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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM AUSENTE / Michael Hjort e Hans Rosenfeldt
O HOMEM AUSENTE / Michael Hjort e Hans Rosenfeldt

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Apresentando a Unidade de Homicídios da Polícia Nacional, sediada em Estocolmo – também conhecida como Riksmord...

Torkel Höglund – inspector-chefe
Ursula Andersson – perita forense policial
Vanja Lithner – agente de investigação policial
Billy Rosén – agente de investigação policial
Sebastian Bergman – psicólogo e especialista em per?s criminais
Trolle Hermansson – antigo inspector-chefe, demitido por usar a vigilância para assuntos pessoais e por plantar falsas provas.
Jennifer Holmgren – agente policial subalterna na pequena vila de Sigtuna. Destacada temporariamente para a Riksmord.

 

 

 


 

 

 


2003

Desta vez, ela chamava-se Patricia.

Patricia Wellton.

Novos lugares. Novo nome.

No início, há muito tempo, o mais difícil fora reagir quando os recepcionistas de hotel ou os motoristas de táxi chamavam o nome dela.

Mas isso fora naquela época. Ela transformara-se no nome do seu novo documento de identi?cação logo que o recebera. Até agora, só uma pessoa tinha usado o nome dela nesta viagem – o fulano da agência de aluguer de automóveis em Östersund, quando lhe viera dizer que o carro que ela havia reservado com antecedência já tinha sido limpo e estava pronto para partir.

Tinha chegado a tempo, pouco depois das cinco horas da tarde de quarta-feira, e apanhara o Arlanda Express no centro de Estocolmo. Era a sua primeira visita à capital sueca, mas contentou-se com um jantar prematuro e bastante aborrecido num restaurante das proximidades.

Pouco antes das nove, embarcou no comboio da noite para Östersund. Tinha reservado um compartimento-cama para um único ocupante; não pensava que alguém viesse jamais a apanhá-la, independentemente do número de pessoas que pudessem fornecer a sua descrição à Polícia, mas simplesmente não gostava de dormir com estranhos. Nunca o ?zera.

Nem com a equipa de voleibol, durante os torneios, quando era jovem.

Nem durante a sua formação, tanto na base como quando andavam no campo.

Nem durante as missões.

Logo que o comboio saíra da estação, fora ao bufete, comprara uma pequena garrafa de vinho branco e um pacote de amendoins e a seguir instalara-se no seu compartimento a ler Eu Sei Em Que Está Realmente a Pensar, um novo livro que tinha o subtítulo ligeiramente bizarro Ler a Linguagem Corporal Como um Advogado de Tribunal. A mulher que, temporariamente, era conhecida como Patricia Wellton não estava convencida de que os advogados de tribunal fossem particularmente hábeis a ler a linguagem corporal; decerto nunca conhecera um que se destacasse nesse aspecto, mas pelo menos o livro era curto e divertido. Pouco depois da uma hora da manhã já se tinha en?ado entre os lençóis brancos e limpos e apagado a luz.

Cinco horas mais tarde, desceu do comboio em Östersund, fez algumas perguntas e foi encaminhada para um hotel onde tomou um agradável pequeno-almoço antes de ir ao escritório da agência Avis, onde reservara um carro. Teve de esperar, e ofereceram-lhe uma chávena de café enquanto o carro era limpo e veri?cado.

Um novo Toyota Avensis cinzento.

Após uma viagem de pouco mais de cem quilómetros, chegou a Åre. Mantivera-se dentro do limite de velocidade; não havia necessidade de atrair atenções indesejadas, embora isso não alterasse nada em termos práticos. Tanto quanto ela sabia, a Polícia sueca não tinha o hábito de revistar um carro envolvido nalguma infracção menor da lei; na verdade, talvez não tivessem também autoridade para o fazer. Todavia, se alguém descobrisse que ela estava armada, a sua missão ?caria comprometida. Não trazia quaisquer documentos que lhe dessem o direito a porte de armas na Suécia; se encontrassem a sua Beretta M9, haveriam de começar a investigar e não tardariam a descobrir que Patricia Wellton não existia noutro lugar senão ali mesmo, e agora mesmo. Por isso abrandou quando passou pelas pistas de esqui esverdeadas de relva e entrou na pequena vila sobre a colina que descia até ao lago.

Foi dar um passeio curto, escolheu ao acaso um lugar para almoçar e pediu um panini e uma Coca-Cola Diet. Enquanto comia, foi olhando para o mapa. Faltavam pouco mais de cinquenta quilómetros pela E14 antes de ter de sair da estrada e abandonar o carro. A seguir era uma caminhada de vinte quilómetros. Olhou para o relógio. Três horas para chegar lá, uma para tratar de tudo, duas para regressar ao carro, apresentar o seu relatório... Chegaria a Trondheim a tempo de apanhar o voo para Oslo e estaria em casa na sexta-feira.

Deu mais um passeio por Åre, a seguir voltou a entrar no carro e dirigiu-se para oeste. O seu trabalho já a havia levado a muitos lugares diferentes, mas nunca tinha visto uma paisagem como esta. As montanhas amenas e onduladas, a linha do arvoredo claramente de?nida, o Sol a brilhar sobre a água no vale mais abaixo. Ela poderia ser feliz neste sítio. O isolamento. O silêncio. O ar puro. Gostaria de alugar ali uma casa de campo remota, ir fazer longas caminhadas. Ir pescar. Experimentar aquela luz durante o Verão, ?car sentada a ler junto à lareira nas noites de Outono.

Noutra altura qualquer, talvez.

Provavelmente, nunca.

Saiu da E14 quando viu uma placa que dizia Rundhögen e apontava para a esquerda. Pouco depois saiu do carro, pegou na sua mochila e no mapa da região e começou a correr.

Parou cento e vinte e dois minutos mais tarde; um pouco ofegante, mas não cansada. Não correra na sua plena capacidade, nem de perto. Sentou-se e bebeu água enquanto a sua respiração voltava rapidamente ao normal. Depois tirou os binóculos para fora e focou-os na cabana de troncos situada cerca de trezentos metros mais adiante. Estava no sítio certo. Assemelhava-se exactamente à imagem que lhe fora dada pelo seu informador.

Se ela compreendera bem, a cabana datava dos anos 1930: hoje em dia ninguém seria autorizado a construir ali, no sopé da montanha. Algum director de empresa bem relacionado com o Tribunal Real precisara de um abrigo durante as suas viagens de caça, e, para ser franco, na verdade, não se podia chamar àquilo uma casa, nem sequer uma vivenda. Que tamanho teria? Dezoito metros quadrados? Vinte? Janelas minúsculas e uma pequena chaminé que se erguia através de um telhado coberto de feltro. Dois degraus que levavam até à porta, e a cerca de dez metros de distância qualquer coisa que se assemelhava a um barracão. Num dos lados tinha uma porta, e ela assumiu que se tratava de uma latrina. Do outro lado era aberto, e, como havia um cepo no exterior, supôs que fosse uma arrumação para a lenha.

Um movimento por dentro da rede-mosquiteiro verde. Ele estava lá.

Baixou os binóculos, en?ou a mão dentro da mochila e tirou a Beretta. Com movimentos rápidos, muito adestrados, enroscou o silenciador. Pôs-se em pé, guardou a arma no bolso do blusão especialmente concebido para o efeito, pegou na mochila e pôs-se a caminho. De vez em quando olhava por cima do ombro, mas não havia sinal de qualquer movimento. A cabana estava um pouco afastada do carreiro assinalado e, nesta época do ano, ?nal de Outubro, a área não estava propriamente apinhada de caminhantes. Só encontrara dois desde que saíra do carro.

Quando chegou a menos de cinquenta metros da cabana, pegou na arma e encostou-a à perna. Considerou as opções que tinha. Bater à porta e disparar logo que ele viesse abri-la ou assumir que a porta da cabana estava destrancada, entrar e apanhá-lo de surpresa. Tinha acabado de decidir que ia bater quando a porta se abriu. A mulher ?cou hirta por um segundo, depois agachou-se imediatamente. Um homem com cerca de quarenta anos saiu para os degraus. Terreno aberto. Nenhum lugar para se esconder. O melhor que podia fazer era manter-se imóvel; o mínimo movimento era susceptível de atrair a sua atenção. Apertou a arma com mais força. Se ele a avistasse, conseguiria levantar-se e abatê-lo antes que tivesse tempo para fugir. Quarenta metros. Com certeza iria atingi-lo, provavelmente de maneira fatal, mas não era isso que queria. Se ele ?casse ferido, talvez fosse capaz de voltar a entrar na cabana; e se tivesse alguma arma lá dentro? Se ele a avistasse, as coisas tornar-se-iam muito mais difíceis.

Mas ele não mostrou qualquer sinal de a ter avistado. Fechou a porta, desceu os degraus e encaminhou-se para o barracão, onde pegou no machado que estava em cima do cepo e começou a cortar lenha.

Ela endireitou-se devagar, deslocou-se um pouco para a direita, de maneira a ?car oculta pela casa se o homem ?zesse alguma pausa e se voltasse para trás a ?m de contemplar aquela bela paisagem.

O machado. Poderia isso tornar-se um problema? Era improvável. Se tudo corresse como planeado, ele não teria oportunidade de a detectar como ameaça e muito menos de a atacar com uma arma de combate corpo a corpo, como o machado.

Parou quando chegou junto à casa, exalou, demorou alguns segundos a concentrar-se e a seguir contornou a esquina do edifício.

O homem pareceu surpreeendido ao vê-la, para dizer o mínimo. Começou a fazer uma pergunta; a mulher assumiu que quereria saber quem ela era, porventura o que estava a fazer ali no meio das montanhas em Jämtland e se havia algo em que pudesse ajudá-la.

Era irrelevante.

Ela não entendia sueco, e ele jamais obteria uma resposta.

A pistola equipada com o seu silenciador tossiu uma vez.

O homem parou imediatamente de se mover, como se alguém tivesse premido o botão de pausa enquanto assistia a um ?lme. O machado deslizou-lhe para fora da mão, os joelhos dele dobraram-se para a esquerda, o corpo caiu para a direita. Um ruído surdo quando os seus oitenta quilos caíram no chão. Com o coração perfurado pela bala, já estava morto quando tombou, como se alguém o tivesse simplesmente empurrado para um lado.

A mulher aproximou-se do corpo, pôs-se por cima dele com um pé de cada lado e apontou calmamente à cabeça do homem. Um disparo na têmpora, a três centímetros do olho esquerdo. Sabia que ele estava morto, mas en?ou-lhe outra bala no cérebro, a cerca de um centímetro da primeira.

Voltou a en?ar a Beretta no bolso, sem saber se deveria fazer alguma coisa quanto ao sangue no chão ou deixar que a Natureza seguisse o seu curso. Mesmo que alguém se apercebesse de que aquele homem morto desaparecera – e alguém se aperceberia, ela sabia disso – e viesse procurá-lo à pequena cabana, jamais encontraria o corpo. O sangue haveria de indicar que alguma coisa lhe acontecera, mas isso era tudo. Ainda que pensassem o pior, nunca ninguém veria as suas suspeitas con?rmadas. O homem teria desaparecido para sempre.

– Papá?

A mulher sacou novamente a arma ao mesmo tempo que girava para trás. Um único pensamento lhe passou pelo espírito.

Uma criança. Não devia haver ali crianças.


2012

Ele estava a abanar. A tremer. A sua cabeça e os seus ombros. Que estranho – não conseguia relacionar esse movimento com o sonho. Estaria realmente a sonhar? Se assim fosse, não era o sonho habitual. Nenhuma mão pequenina dentro da sua. Nenhum rugido tumultuoso a aproximar-se inexoravelmente. Nenhum turbilhão rodopiante. Mas devia estar a sonhar, porque alguém estava a dizer o seu nome.

Sebastian.

No entanto, se sonhava, então estava sozinho no seu sonho. Sozinho na escuridão.

Abriu os olhos. Contemplou directamente um outro par de olhos. Azuis. Por baixo de cabelo preto. Curto. Despenteado. Por cima de um nariz arrebitado e de uma boca sorridente.

– Bom dia. Desculpa, mas queria acordar-te antes de sair.

Com alguma di?culdade, Sebastian ergueu-se apoiando-se nos cotovelos. A mulher que o acordara parecia satisfeita com os seus esforços. Caminhou até junto de um espelho de corpo inteiro situado aos pés da cama, seleccionou um par de brincos numa prateleira próxima e começou a colocá-los.

O sono de imediato abandonou o cérebro de Sebastian, sendo substituído pela memória do dia anterior.

Gunilla, quarenta e sete anos, enfermeira. Tinham-se visto algumas vezes no Hospital Karolinska. No dia anterior, ele fora à sua última consulta no serviço ambulatório e mais tarde tinham ido sair os dois, para fora da cidade, e a seguir voltaram para casa dela. Sexo surpreendentemente bom.

– Já te levantaste.

Ele percebeu que estava a a?rmar o óbvio, mas não se sentiu de todo confortável com a situação: deitado nu numa cama estranha, enquanto a mulher com quem tinha passado a noite já estava levantada e vestida, pronta a enfrentar o dia. Habitualmente, era ele que se levantava primeiro, de preferência sem acordar a sua parceira ocasional. Era assim que ele queria. Quanto menos fosse obrigado a dizer antes de as abandonar, melhor.

– Tenho de ir trabalhar – informou ela, olhando-o através do espelho.

– O quê, já?

– Sim, já. Na verdade, estou um pouco atrasada.

Sebastian inclinou-se e pegou no seu relógio, que estava sobre a mesa-de-cabeceira. Quase oito e meia. Gunilla ?xava agora uma esbelta corrente de prata à volta do pescoço. Sebastian ?cou a olhá-la, incrédulo. Quarenta e sete anos, a viver no centro da cidade de Estocolmo. Certamente ninguém poderia ser tão con?ante e ingénuo.

– És doida? – disse-lhe ele, sentando-se. – Tu só me conheceste ontem. Eu podia ter-me ido embora com metade daquilo que tens no teu apartamento.

Gunilla ?tou o olhar dele no espelho, sorrindo.

– Estás a tencionar levar metade do que eu tenho no meu apartamento?

– Não. Mas é o que eu te diria mesmo que tencionasse fazer isso mesmo.

Depois de veri?car o seu aspecto uma última vez, Gunilla veio colocar-se ao lado dele na cama. Sentou-se e pousou-lhe uma mão no peito.

– Eu não te conheci ontem. Saí contigo ontem. Tenho toda a informação de que preciso acerca de ti lá no emprego, por isso, se o meu televisor tiver desaparecido quando eu chegar a casa, sei bem onde encontrar-te.

Ellinor passou brevemente pelo espírito de Sebastian, mas ele depressa repeliu tal pensamento. Teria de dedicar-lhe uma considerável quantidade de tempo e de energia dentro de pouco tempo, mas não agora. Gunilla sorriu-lhe de novo. Estava a brincar. Sebastian tornou a pensar no dia anterior.

Ela sorria com frequência.

Ria-se com facilidade.

Tinha sido uma noite agradável.

Gunilla inclinou-se rapidamente e deu-lhe um beijo na boca antes que ele tivesse tempo para reagir. Pôs-se em pé, e já a caminho da porta do quarto disse-lhe:

– Em todo o caso, o Jocke irá ?car de olho em ti.

– O Jocke? – Sebastian procurou na sua memória uma ligação a alguém chamado Jocke, mas não encontrou nada.

– O Joakim. O meu ?lho. Podes tomar o pequeno-almoço com ele, se quiseres; já se levantou e anda por aí.

Sebastian limitou-se a olhar para ela. Não conseguiu lembrar-se de nada para dizer. Estaria ela a falar a sério? O ?lho? Ali, no apartamento? Que idade tinha? Há quanto tempo estava ali? A noite toda? Tanto quanto Sebastian se lembrava, eles não tinham sido propriamente discretos.

– Tenho mesmo de ir embora. Obrigado por ontem.

– Obrigado eu – conseguiu dizer Sebastian antes que Gunilla saísse do quarto, fechando a porta atrás de si. Deixou-se escorregar outra vez para cima das almofadas. Ouviu-a dizer adeus a alguém – provavelmente o ?lho – e a seguir ouviu outra porta fechar-se. O apartamento ?cou silencioso.

Sebastian espreguiçou-se. Não lhe doía. Já não lhe doera durante as últimas semanas, mas ele continuava a apreciar aquela sensação de mover o seu corpo sem dor.

Tinha sido esfaqueado há pouco mais de dois meses, na barriga da perna e na barriga – por Edward Hinde, um psicopata e assassino em série. Sebastian fora logo submetido a uma cirurgia, e as coisas pareciam estar a correr bem, muito bem até, mas depois tinha havido complicações. Ficara um dreno ligado ao seu pulmão perfurado durante pouco mais de uma semana, e quando lho removeram disseram-lhe que seria uma mera questão de tempo até ?car completamente recuperado. No entanto, desenvolvera então uma pneumonia e acumulara líquido no pulmão, pelo que lhe ?zeram outro buraco. Drenaram o ?uido e a seguir coseram-no. Deram-lhe instruções sobre o que devia fazer e não fazer e exercícios para praticar em casa. Demasiados exercícios, demasiado difíceis, demasiado aborrecidos. Em todo o caso, agora estava melhor; no dia anterior tinham-no declarado o?cialmente apto e são.

O corpo dele poderia estar recuperado, mas o caso Hinde nunca andava longe dos seus pensamentos.

Isso devia-se em parte ao facto de Hinde ter levado a cabo a sua vingança mandando assassinar várias mulheres, mulheres com as quais Sebastian tivera uma relação sexual. Não pudera ser ele próprio a executar os assassinatos, claro, porque estava preso na unidade de segurança em Lövhaga desde 1996, graças a Sebastian, mas mesmo assim conseguira cumprir alguns aspectos da sua vingança com a ajuda de um funcionário de limpezas dessa unidade.

Quatro mulheres mortas.

Algo em comum.

Sebastian Bergman.

A sensação de que as mortes daquelas quatro mulheres tinham acontecido por sua culpa era irracional, mas apesar disso não conseguia livrar-se completamente dela. Quando a Brigada Nacional de Homicídios, conhecida como Riksmord, fora prender o funcionário de limpeza, Hinde fugira da prisão e raptara Vanja Lithner.

Não tinha sido um sequestro ao acaso. Não tinha sido por ela trabalhar com Sebastian. Não, Hinde descobrira de alguma maneira que Vanja era ?lha de Sebastian.

Edward Hinde estava morto, mas às vezes Sebastian pensava que, se aquele assassino em série fora capaz de desvendar a verdade, talvez outros conseguissem fazer o mesmo. Não queria que isso acontecesse; o seu relacionamento com Vanja era agora bom, melhor do que jamais tinha sido.

Ele salvara a vida de Vanja quando ela estava lá naquela casa remota, a sós com Hinde, e claro que isso tivera o seu peso. Sebastian não queria saber se Vanja o aturava só por gratidão; fazia-o, e era isso que importava. Na verdade, fazia mais do que aturá-lo. Viera procurar a companhia dele por duas vezes ao longo dos últimos dois meses. Primeiro tinha ido visitá-lo ao hospital, e depois, quando ele tivera alta mas antes de a pneumonia o ter deixado em baixo, sugerira-lhe que se encontrassem para irem tomar um café.

Ainda se recordava da sensação que lhe inundara o corpo quando ouvira a voz dela.

A sua ?lha estava ao telefone e queria encontrar-se com ele.

Mal se lembrava do que tinham dito. Quisera guardar na memória todos os pormenores, todas as nuances, mas a ocasião fora arrasadora, uma situação excessiva para ele. Tinham ?cado sentados num café durante uma hora e meia. Só eles os dois. Por opção dela. Nada de palavras duras. Nada de discussões. Já não se sentia tão vivo, tão presente, desde as férias do Natal de 2004. Estava sempre a relembrar aqueles noventa minutos que tinham passado juntos.

Aquilo poderia acontecer novamente. Haveria de acontecer novamente. Ele poderia voltar a trabalhar. Queria voltar a trabalhar. Por vezes até dava por si cheio de saudades – de um certo tipo de contexto, decerto, mas o mais importante era estar perto de Vanja. Havia-se reconciliado com a noção de que jamais seria o pai dela. Qualquer tentativa de retirar esse papel a Valdemar Lithner resultaria em que Sebastian destruísse tudo. Até agora não tinha conseguido construir muito – uma visita ao hospital e noventa minutos para tomar café, mas sempre era alguma coisa.

Aceitação.

Um certo nível de amabilidade para com ele.

Talvez até uma amizade ?orescente.

Sebastian lançou o edredão para trás e levantou-se. Encontrou as cuecas no chão e o resto das suas roupas em cima da cadeira para onde as tinha atirado nove horas antes. Passou os dedos pelo cabelo e após uma rápida olhadela ao espelho abriu a porta do quarto e ?cou ali parado por um instante. Vinham sons da cozinha. Música. Uma colher a tilintar em louça. Parecia que Jocke estava a tomar o pequeno-almoço sem ele. Sebastian esgueirou-se para a casa de banho e trancou a porta. Apetecia-lhe mesmo um duche, mas a ideia de ?car ali nu com o ?lho de Gunilla a poucos metros de distância tornava a ideia consideravelmente menos atraente. Usou a sanita e em seguida lavou mãos e rosto.

Quando ia a caminho da porta da frente, percebeu que teria de passar pela porta da cozinha, e era exactamente isso que tencionava fazer. Passar por lá. Jocke não haveria de ver nada a não ser as costas de Sebastian se por acaso levantasse os olhos. Sebastian foi até ao corredor, encontrou os sapatos e calçou-os, depois começou a procurar o casaco. Nenhum sinal.

– O seu casaco está aqui dentro – anunciou desde a cozinha uma voz grave. Sebastian fechou os olhos e praguejou baixinho para si próprio. Na noite anterior quisera mostrar-se um pouco apressado, como se não soubesse se poderia ?car, embora ambos soubessem que era exactamente isso que ele ia fazer. Tinha despido o casaco na cozinha enquanto Gunilla abria uma garrafa de vinho.

Suspirou profundamente e entrou na cozinha. Um jovem com cerca de vinte anos estava sentado à mesa com uma tigela de cereais e um iPad à sua frente. Indicou-lhe com um gesto de cabeça a cadeira que estava diante de si, sem tirar os olhos do dispositivo.

– Olá.

Sebastian não teve outra opção senão avançar até lá e recolher aquela ofensiva peça de vestuário.

– Obrigado.

– De nada. Quer tomar alguma coisa?

– Não.

– Já tem o que queria?

O jovem ainda não tinha desviado o olhar do iPad. Sebastian contemplou-o. Sem dúvida que o mais fácil para ambos teria sido deixar passar aquela última observação sem comentários e Sebastian virar-lhe as costas e ir embora, mas porquê seguir a opção fácil?

– Há por aí algum café? – perguntou-lhe Sebastian enquanto vestia o casaco. Se o ?lho de Gunilla não o queria ali, então ele ?caria mais um pouco. Para si, não fazia qualquer diferença. O jovem levantou o olhar, surpreeendido.

– Está ali – disse-lhe ele, acenando com a cabeça na direcção de Sebastian. Sebastian virou-se para trás. Não havia qualquer vestígio de uma máquina de café, de um coador ou de uma cafeteira, mas depois avistou um objecto preto semicircular que parecia um capacete futurista de motociclismo e que tinha uma grade por baixo de uma espécie de torneira. Uns botões nos lados. Metal na parte de cima. Ao lado estavam três pequenos copos de vidro, pelo que Sebastian supôs que aquilo fornecesse algum tipo de bebida.

– Sabe como isto funciona? – perguntou-lhe Jocke, já que Sebastian não fez qualquer tentativa para se aproximar da máquina.

– Não.

Jocke levantou-se.

– O que quer?

– Qualquer coisa forte. A noite acabou tarde.

Jocke lançou-lhe um olhar cansado, tirou uma cápsula de um escaparate em que Sebastian não tinha reparado ainda, abriu a tampa da máquina, colocou lá dentro a cápsula, fechou a tampa, colocou por baixo da torneira um dos copos de vidro e a seguir premiu um botão.

– Então, quem é você? – disse ele, mostrando-se totalmente desinteressado.

– Sou o seu novo papá.

– Que giro. Sentido de humor. Ela devia continuar a andar consigo...

Voltou para o seu lugar. De repente, Sebastian teve a sensação de que Joakim já tinha passado demasiadas manhãs com homens estranhos a mais dentro da sua cozinha. Pegou na chávena sem dizer nada. O café era mesmo forte. E estava quente. Queimou a língua, mas acabou de o beber sem dizer uma palavra.

Dois minutos depois já tinha saído para a cinzenta manhã de Setembro.

 

Demorou alguns segundos a orientar-se e a determinar o caminho mais curto para casa. Para o apartamento na Grev Magnigatan.

Para Ellinor Bergkvist.

A sua inquilina, ou lá o que era. O modo como ela acabara por ir morar consigo continuava a ser um mistério para Sebastian.

Tinham-se conhecido quando Hinde começara a assassinar as suas antigas parceiras sexuais. Sebastian tinha ido visitar Ellinor a ?m de a avisar, e ela fora morar para sua casa. Devia tê-la posto fora dali logo a seguir, mas ainda lá estava.

Já gastara imenso tempo a tentar deslindar a sua relação com Ellinor. Havia algumas coisas de que tinha absoluta certeza.

Decididamente, não a amava.

Gostaria dela sequer? Nem por isso. Mas uma parte de si apreciava o que ela havia feito à sua vida. Trouxera-lhe um certo nível de normalidade. Contra todas as probabilidades, tinha dado por si a apreciar a companhia dela. Cozinhavam juntos. Ficavam deitados na cama a ver televisão. Faziam sexo. Frequentemente. Ela assobiava. Ela ria. Quando chegava a casa, ela dizia-lhe que tinha sentido a sua falta. Não queria admitir isso para si próprio, porque não queria que fosse verdade, não com Ellinor, mas a presença dela tinha signi?cado que, pela primeira vez em muitos anos, ele começara a pensar no seu apartamento como um lar.

Um lar. Disfuncional, mas, ainda assim, um lar.

Andava a usá-la? Absolutamente. Na verdade, não se importava nada com ela. Tudo o que ela dizia entrava-lhe por um ouvido e saía pelo outro. Ela era como uma música de fundo. Mas tinha sido fantástica durante a sua convalescença. Muito honestamente, não conseguia imaginar como se teria aguentado sem ela durante aquelas semanas em que a pneumonia o deixara derreado. Ela até pedira dispensa do emprego nos grandes armazéns Åhlén, não saíra do seu lado. Mas, por mais grato que ele pudesse sentir-se por tais esforços, isso simplesmente não era su?ciente.

Ellinor era uma empregada doméstica, que quase se eclipsava a si mesma, não inteiramente sã, com a qual ele fazia sexo. Embora a sua vida se tivesse tornado mais fácil e mais confortável em todos os sentidos, aquilo não funcionaria a longo prazo. A normalidade da vida quotidiana que Ellinor havia introduzido não passava de uma invenção. Uma quimera. Ele apreciara isso durante algum tempo, talvez até o tivesse incentivado, mas agora tinha a certeza de que não queria que continuasse.

Já estava recuperado, começara lentamente a estabelecer uma espécie de relação com Vanja, assumira que tinha um emprego. As sementes de qualquer coisa que poderia vir a transformar-se numa vida.

Já não precisava mais dela.

Ela tinha de ir embora.

Isso ia ser tudo menos simples.


SHIBEKA KHAN esperava. Como sempre. Estava sentada junto à janela da cozinha no terceiro andar do já degradado bloco de apartamentos construído nos anos 1960 em Rinkeby. Lá fora, as folhas tinham começado a tornar-se amarelas e vermelhas. Crianças em idade pré-escolar gritavam e berravam nos espaços abertos entre os blocos. Shibeka não conseguia lembrar-se de há quantos anos se sentava ali a ver as crianças brincar. Mesma janela, mesmo apartamento, crianças diferentes. Lá fora, o tempo passava muito depressa. Dentro da sua cozinha era como se o tempo tivesse parado.

Ela adorava aquelas horas, depois de os seus ?lhos terem saído e antes que o dia prosseguisse. Era activa, tinha muitos amigos, trabalhava como auxiliar de saúde, estava a fazer excelentes progressos na aprendizagem de sueco e no ano anterior ganhara um lugar num curso de formação para vir a ser enfermeira. Mas, durante um par de horas naquelas manhãs em que ?cava livre, sentava-se ali e observava o mundo exterior. Era a sua outra vida, de certa maneira. Um momento em que ela podia mostrar o seu respeito e o seu amor por Hamid.

Se começasse a pensar nisso, sabia que seria capaz de calcular ao certo há quantos anos se sentava ali, mas agora não podia fazer tal coisa. Não conseguia lidar com as lembranças. Os seus meninos eram o sinal mais evidente do tempo que já passara. Mehran estava agora no último ano do secundário, enquanto Eyer se ia esforçando dois anos atrás dele; não achava as coisas tão fáceis como o seu irmão mais velho. Eyer tinha quatro anos quando Hamid desaparecera; Mehran tinha acabado de fazer seis. Shibeka recordou o sorriso dele quando o papá lhe oferecera uma nova sacola, preta com duas riscas azuis, para estar pronto a começar a escola no Outono. O sorriso dele, os seus olhos escuros a reluzirem de orgulho porque estava a crescer. O caloroso abraço entre pai e ?lho. Uma semana depois, Hamid havia desaparecido, como se o chão se abrisse e o tivesse engolido. Acontecera numa quinta-feira. Uma quinta-feira de há muito tempo.

Curiosamente, com o passar dos anos, ela quase sentia mais saudades dele. Não daquela forma intensa como as sentira ao princípio, mas de uma forma mais pesarosa, mais dolorosa.

De repente, Shibeka zangou-se consigo mesma. Lá estava ela outra vez, com as suas memórias. Essas memórias eram exactamente aquilo com que ela não conseguia lidar, mas o seu espírito não prestava qualquer atenção ao que ela queria. Ultrapassava as suas tentativas para o controlar, encontrava a sua maneira de chegar ao passado. Encontrava os amigos que tinham auxiliado nas buscas. As perguntas e as lágrimas das crianças. O melhor fato de Hamid, o que ela tinha ido buscar à lavandaria, a esperar por ele em vão. Um carrossel de imagens e de momentos individuais, impelido pela esperança de que o espírito dela conseguisse encontrar algo que lhe tivesse escapado, algo que desse sentido a tudo aquilo. Mas ?cava sempre decepcionada. Tinha examinado cada pormenor milhares de vezes, cada rosto já lhe era familiar. Era inútil.

A ?m de se distanciar do turbilhão dos seus pensamentos, Shibeka levantou-se e caminhou até à janela. Era sexta-feira e ele não tardaria a chegar, sabia disso. Faltavam dois dias para que ele viesse outra vez. Não que acreditasse que ele lhe trouxesse alguma coisa, há muito que tinham deixado de lhe responder, mas ela recusava-se a desistir. Tinha continuado a enviá-las. Praticava o seu sueco, a sua caligra?a, usando as palavras certas, a língua o?cial. Tornara-se tão hábil a escrever para as autoridades que muitas das suas amigas vinham agora pedir-lhe ajuda.

Foi então que o avistou. O carteiro. Como de costume, apareceu a pedalar no caminho e em seguida iniciou a sua ronda no bloco dois, depois iria ao quatro e ao seis e só então entraria no bloco oito. O bloco dela.

Esperou até o ver emergir do número seis antes de se dirigir para o corredor em bicos de pés, tentando ser o mais silenciosa possível. Não que isso fosse necessário, mas ela esperava que, de alguma forma, o silêncio melhorasse as suas probabilidades.

Até agora, isso não havia ajudado.

Postou-se junto à porta, à escuta. Ao ?m de algum tempo, ouviu o abafado clique metálico da porta principal a abrir-se no piso térreo. Imaginou-o a caminhar até ao elevador, a premir o botão de chamada. Ele ia sempre primeiro até ao topo do edifício, e a seguir descia. Era essa a sua rotina. A dela era ?car em silêncio no corredor.

Encostou o seu corpo contra a porta. Dois sons diferentes. Um vindo do lado de fora, muito longe. Outro muito próximo – o da sua própria respiração e o zumbido do frigorí?co na cozinha. Dois mundos, separados por madeira e por uma caixa de correio metálica. Os passos aproximaram-se. Para Shibeka, havia algo de religioso naquele momento.

Ou Alá queria que aquilo acontecesse ou não queria.

Era tão simples quanto isso.

Com um ruído que pareceu quase ensurdecedor, a caixa do correio abriu-se e uma série de folhetos coloridos caiu no chão à frente dela. Tudo o que a rodeava desapareceu quando Shibeka se baixou. Por baixo das últimas ofertas especiais do supermercado local estava um envelope branco.

Vinha da SVT, a televisão sueca.

Desta vez, Alá quisera que aquilo acontecesse.


A CULPA NÃO ERA DELA.

Bom, até era, mas tinha sido um erro. Qualquer pessoa podia cometer um erro, não? Maria estava a ser completamente despropositada. Pronto, ela estava cansada, mas quem não estava? E não era como se Karin as tivesse levado deliberadamente para um desvio.

Tinha sido um erro.

Tudo correra muito bem até algumas horas atrás, apesar da chuva.

Maria comemorara o seu quinquagésimo aniversário em Julho, e o presente que Karin lhe oferecera fora uma viagem até às montanhas. Ao triângulo de Jämtland.

Storulvån – Blåhammaren – Sylarna.

Ela achava que bastavam aqueles nomes para que a viagem parecesse mais exótica do que realmente era. O plano era fazerem algumas caminhadas bastante fáceis, nada de muito aventureiro. Uns roteiros curtos e praticáveis todos os dias, em seguida um duche, uma sauna, comida, vinho e uma cama adequada quando chegavam às várias estâncias de montanha. Há muitos anos, Karin ?zera algumas caminhadas naquela área com Fredrik e julgara que seria simplesmente perfeito. Um encontro restaurador com a Natureza, com algum luxo pelo meio.

Muito tempo para conversarem.

Fora um belo presente. Um presente dispendioso. Com a viagem até lá acima, mais as quatro noites de estadia, incluindo o jantar para elas as duas, o custo chegara aos cinco algarismos, mas Maria valia bem isso. Ela era a melhor amiga de Karin desde há muitos anos. Tinha ?cado junto de Karin quando as outras se afastaram um pouco. Cancro de mama, divórcio, a morte da sua mãe. Tinham passado por tudo isso juntas. Também se haviam divertido imenso, claro, mas nunca tinham ido fazer caminhadas. A bem dizer, Maria nunca estivera a norte de Karlstad. Chegara o momento.

Karin escolhera o último ?m-de-semana em que as estações de montanha estavam abertas: o ?nal de Setembro. Isso fora, em parte, para evitar o período de Verão, que tinha bastante procura, e para dar tempo a Maria para que ela planeasse e reservasse as férias de alguns dias no seu emprego mas também porque Karin esperava que o Outono já tivesse então chegado, trazendo aquele ar elevado e puro e o colorido espectáculo oferecido pela paisagem natural. Queria que aquelas montanhas se mostrassem no seu melhor para a sua querida amiga.

Nem sequer havia considerado a possibilidade de que pudesse chover quase ininterruptamente desde que elas saíram do comboio em Enafors.

– Dizem que o tempo vai ?car muito melhor no início da próxima semana – asseverou-lhes o motorista do autocarro que as levou até à estância de montanha de Storulvån quando lhe perguntaram se ele sabia alguma coisa acerca das previsões meteorológicas.

– Será que vai chover durante todo o ?m-de-semana?

Havia uma certa dose de resignação na voz de Maria.

– É isso que eles dizem – respondeu o motorista, abanando sabiamente a cabeça.

– As coisas podem mudar muito rapidamente por estes lados – disse Karin em tom de incentivo. – Há-de correr tudo bem, tu vais ver.

E a estadia delas tinha começado da melhor maneira. Chegaram à estância de montanha, acharam o quarto delas um pouco singelo, mas agradável, ?zeram uma caminhada na área circundante, à tarde dormiram a sesta, depois foram para a sauna e banharam-se numa nascente da montanha, e à noite regalaram-se com uma refeição deliciosa no restaurante, beberam vinho e seguidamente um licor com o café.

De manhã tinham-se levantado às sete. A seguir ao pequeno-almoço prepararam um almoço para levar e encheram uma garrafa térmica com café antes de saírem pouco antes das oito e meia. O céu estava limpo, mas, como sabiam que não havia garantias, ambas traziam consigo equipamento para tempo de chuva, umas botas resistentes e uma muda de roupa quente.

Atravessaram o rio e foram avançando ao longo do vale exuberante, o qual, de acordo com o mapa do hotel, era conhecido como Parken. Aproveitaram o tempo para conversar e foram parando para tirar fotogra?as ou para simplesmente desfrutarem das cercanias. Não tinham pressa. Eram apenas doze quilómetros desde Storulvån até Blåhammaren, que era a sua próxima paragem. Ao ?m de três quilómetros saíram da ?oresta montanhosa de bétulas e prosseguiram ao longo de um planalto, dirigindo-se para o abrigo de Ulvåtjärn, mais acima. Quando lá chegaram, quase se tinham esquecido de que estava a chover. Como avistaram uma subida longa e íngreme para lá do abrigo, demoraram bastante tempo no almoço e no café. Concordaram que aquele clima horrível era algo de que iriam lembrar-se e rir-se mais tarde. Muito mais tarde, provavelmente, mas algum dia... Por ?m, ?zeram-se de novo ao caminho, umas vezes conversando, outras andando em silêncio.

Após mais uma hora, mais ou menos, avistaram a estância de Blåhammaren no cimo da montanha. Decidiram que a principal prioridade de ambas era um duche e uma sauna e marcharam com renovado vigor por aquele terreno desolado e encharcado.

Faltava-lhes apenas um quilómetro quando pararam, tiraram os seus copos de plástico e beberam de um riacho que jorrava pela encosta da montanha. Depois disso, Karin não conseguia lembrar-se porque tinha tirado para fora aquela pasta de plástico que continha a con?rmação da reserva. Tinha aberto a mochila para retirar de lá um pacote de nozes e passas e, por qualquer motivo, olhara para os documentos que trazia.

O que via não fazia qualquer sentido para ela. Nenhum mesmo. Olhou de novo, apercebeu-se do que havia acontecido e voltou a en?ar a pasta na sua mochila enquanto tentava descobrir qual a melhor maneira de contar a Maria o que acabara de descobrir. Não havia uma maneira boa. Havia apenas a verdade.

– Merda – disse ela, deixando claro que também ?cara perturbadíssima com o que acabara de ler.

– Qual é o problema? – perguntou-lhe Maria, com a boca cheia de castanhas de caju. – Se te esqueceste de alguma coisa, podes voltar para trás sozinha. Na minha cabeça, eu já estou dentro da sauna com uma cerveja.

– Não, é que olhei agora mesmo para os pormenores da nossa reserva...

– E? – Maria mergulhou o seu copo na água, bebeu uma golada e a seguir deitou o resto fora.

– Nós... nós estamos um bocadinho enganadas.

– De que estás tu a falar? É já ali em cima. Perdemos alguma coisa pelo caminho?

Maria prendeu a caneca à sua mochila e preparou-se para seguir em frente. Karin cerrou os dentes.

– Blåhammaren é ali em cima. Nós hoje devíamos ir para Sylarna.

Maria ?cou imóvel e olhou-a ?xamente.

– Mas tu vieste a falar de Blåhammaren o tempo todo. De Storulvån para Blåhammaren e daí para Sylarna. Foi o que tu me disseste durante todo o caminho.

– Eu sei, era isso que eu pensava, mas as nossas reservas são para Sylarna esta noite e Blåhammaren amanhã à noite, é o que diz o documento da con?rmação.

Maria continuava a olhar para ela. Agora não. Não quando elas já se encontravam tão perto. Karin estava a brincar. Ela devia estar a brincar.

– Desculpa.

Karin enfrentou o olhar de Maria, e Maria percebeu imediatamente: ela não estava a brincar. Mas talvez aquilo não fosse o ?m do mundo! Tinham-se enganado um bocadinho; felizmente, só precisavam de andar para trás cerca de um quilómetro.

– Então, a que distância ?ca Sylarna?

Karin hesitou. Pelo tom da voz de Maria, percebeu que ela estava prestes a perder a paciência, mas dizer-lhe «não é muito longe» ou «é já ali adiante» não era uma opção. Mais uma vez, só a verdade serviria.

– Dezanove quilómetros.

– Dezanove quilómetros! Só podes estar a brincar!

– São dezanove quilómetros de Blåhammaren até Sylarna. Como ainda não chegámos a Blåhammaren, devem ser dezoito. Talvez dezassete.

– Isso são mais quatro horas, porra!

– Desculpa.

– Até que horas há luz?

– Não sei.

– Pelo amor de Deus, Karin! Nós nunca vamos conseguir chegar lá! Não poderão aceitar-nos ali hoje à noite, e amanhã mudamo-nos para Sylarna? Com certeza poderemos remarcar!

Por um instante, Karin sentiu uma onda de alívio. Claro, era essa a solução. Maria era sensata. Con?ante na noção de que tudo ia ?car bem, pegou no seu telemóvel e na con?rmação da reserva.

Não, não era possível remarcar, aparentemente. Estava tudo cheio. O último ?m-de-semana em que eles estavam abertos era extremamente popular. Se elas tivessem algum colchão insu?ável ou uma esteira, poderiam deitar-se lá fora no barracão, e eles reservavam-lhes uma mesa para jantar depois das 21h30. Karin e Maria tinham considerado essa oferta, mas Maria deixara muito claro que não dormiria dentro da merda de um barracão. Pegara na sua mochila e afastara-se.

Primeiro parecia que Maria não queria falar, mas ao ?m de algum tempo Karin chegou à conclusão de que, provavelmente, ela nem sequer conseguia. Além de estar a chover e de o vento contrário lhes picar as faces, o rosto de Maria estava branco-acinzentado e a pele dela parecia ?ácida, como se não tivesse músculos faciais.

Parecia completamente exausta. Quase nem respondia quando Karin falava para ela; Karin estava a tentar mantê-las animadas, mas isso ia-se tornando cada vez mais difícil.

A culpa não era sua.

Bem, até era, mas tinha sido um erro.

– Espera aí, vamos descansar um bocadinho – disse Karin quando já vinham a caminhar há uma hora e meia.

– Não sejas tão estúpida, foda-se. Mais vale continuarmos a andar, para ao menos chegarmos a algum sítio, foda-se.

– Come algumas nozes, que elas dão-nos mais energia. De qualquer modo, preciso de encher a minha garrafa com água. – Apontou com a cabeça na direcção da água que corria alguns metros abaixo.

– Tu não vais conseguir chegar lá baixo.

– Vou, sim.

Karin mostrou-se mais convencida do que se sentia; estava decidida a manter um espírito positivo em vez de se lamentar e ceder ao mau humor de Maria. Esperava que o jantar e uma noite de sono ?zessem a sua amiga sentir-se melhor, para que toda aquela viagem não ?casse arruinada. Caminhou em direcção à borda do planalto. Maria tinha razão, ia ser difícil descer até lá baixo; aquilo era muito íngreme. Difícil, mas não impossível.

Karin deu mais um passo em direcção à borda e o chão desapareceu sob os seus pés. Caiu, gritou, tentou agarrar alguma coisa a que pudesse segurar-se. A sua mão esquerda encontrou um apoio enquanto caía, mas este partiu-se e ela rebolou pela encosta abaixo juntamente com terra, lama e detritos. Bateu com o joelho direito e, quando aterrou a cerca de um metro de distância do ribeiro, só teve tempo para pensar que aquilo não a impediria de chegar a Sylarna. Algumas pedrinhas vieram atrás dela, espalhando-se sobre a lama.

– Oh, meu Deus! Estás bem? O que aconteceu?

Maria mostrava-se preocupada.

Laboriosamente, Karin içou-se para uma posição sentada. O seu impermeável de cor clara fazia parecer que ela tinha passado por dez assaltos de luta na lama, mas o corpo dela parecia ter sobrevivido. O joelho doía-lhe um pouco, mas nada mais para além isso.

– Estou bem.

– Que paus são esses que tu estás a segurar?

Ela estava a segurar alguma coisa? Karin olhou e atirou aquilo para longe com um grito horrorizado.

Era uma mão.

Uma mão de esqueleto.

O que Maria julgara serem paus eram os ossos de um antebraço arrancado pelo cotovelo. Karin levantou os olhos para a encosta por onde caíra. Um metro abaixo do sítio onde Maria estava em pé, avistou o resto do braço saliente e, ao lado deste, um crânio en?ado na lama.

Karin teve a nítida sensação de que, fosse como fosse, a viagem delas já estava arruinada.


ELLINOR BERGKVIST.

Valdemar Lithner suspirou. Ela tinha aparecido ali pela primeira vez há pouco mais de dois meses. Telefonara para a empresa e marcara uma reunião. Insistira em falar com ele, aparentemente. O motivo da sua visita fora muito pouco claro e as reuniões subsequentes não haviam propriamente ajudado. Qualquer coisa que tinha a ver com um negócio a que ela esperava dar início; precisava de aconselhamento e de assistência. Ele tinha feito o melhor que podia, mas não acontecera nada. Actualmente, Ellinor não estava mais perto de iniciar o seu próprio negócio do que na primeira vez que ele a conhecera. Perguntara-lhe porque quisera vê-lo a si, em particular, e ela dissera-lhe que lhe tinha sido recomendado por alguém que ambos conheciam. Valdemar quisera saber de quem poderia tratar-se, mas ela fora extremamente vaga. Veio a descobrir-se que era extremamente vaga sobre uma variedade de assuntos, como o tipo de negócio em que andava a pensar e o que faria com este.

Mas hoje seria a derradeira reunião entre ambos, e depois ele poderia esquecer de vez Ellinor Bergkvist. Quando ia a caminho da porta, apertou com as mãos as suas costas doridas e esticou a coluna vertebral da melhor maneira que conseguiu. Ellinor estava à espera dele na pequena área de recepção e pôs-se em pé logo que o viu.

– Boa tarde, Ellinor. Bem-vinda.

– Obrigada.

Ela sorriu-lhe quando trocaram um aperto de mão. Indicou-lhe a entrada do seu gabinete e ela despiu o casaco vermelho antes de se sentar à frente dele com a sua enorme mala de mão em cima do joelho.

– Trouxe os papéis que me deu – começou ela, en?ando a mão na mala.

– Ellinor – interrompeu Valdemar, e houve alguma coisa na maneira como proferiu o nome dela que a fez parar de vasculhar e olhar para cima. – Acho que não deve continuar a ser nossa cliente.

Ellinor ?cou hirta. Será que ele começara a suspeitar? Teria ela cometido algum erro? Teria descoberto, de alguma maneira, que ela não vinha ali para aconselhamento ?nanceiro, mas porque... Porque estava ela ali, na verdade? Só quisera ver quem ele era. O que ele era. Tinha sido entusiasmante, sentar-se ali diante de um criminoso que era culpado de fraude, que tinha ameaçado o homem dela e que, possivelmente, estivera envolvido num homicídio.

Quando se mudara para casa do seu amado Sebastian, tinha encontrado uma pasta cheia de papéis. Sebastian mostrara-se muito enervado quando ela lhe falara da pasta e dissera-lhe que a deitasse fora. Que a destruísse.

Ela não tinha feito isso.

Tinha lido o que estava lá dentro. Reconhecera um nome – Investimentos Daktea – e percebera que Valdemar Lithner era de?nitivamente um criminoso. Estava convencida de que ninguém que tivesse estado envolvido nos emaranhados assuntos da Daktea poderia ser inocente; falara-se imenso acerca disso nos jornais alguns anos antes.

Quando Sebastian ?cara em casa a sofrer com a pneumonia, certa vez ela perguntara-lhe quem era Valdemar. Tinha-se lembrado apenas de lhe perguntar quem ele era, nada mais. Sebastian ?cara furioso, exigira saber onde tinha ouvido aquele nome, o que sabia ela. Contara-lhe a verdade, dissera-lhe que vira o nome dentro da pasta. Depois mentira-lhe quando respondera à pergunta que ele lhe ?zera a seguir. Garantira-lhe que a tinha deitado fora.

Ao mesmo tempo, ?cara satisfeita. A forte reacção de Sebastian provara-lhe que estava no caminho certo. Ele parecia ter medo do tal Lithner. Na verdade, ela andava a ajudar Sebastian investigando Valdemar Lithner por sua conta, com o objectivo de, eventualmente, o levar perante a justiça. Mas agora tudo chegara ao ?m.

– Porque não? – perguntou-lhe Ellinor, arrastando-se para a borda da cadeira, pronta a fugir no caso de Valdemar se tornar violento.

– Porque eu não creio que possamos ajudá-la. Esta já é a nossa quarta reunião e você ainda nem sequer começou o seu negócio.

– Houve algumas coisas que se meteram pelo meio...

– Permita-me que lhe faça uma sugestão. Instale o seu negócio e ponha-o a funcionar e depois, quando já tiver tratado da papelada toda, volte cá e logo veremos o que se pode fazer.

Para sua surpresa, Ellinor fez-lhe um gesto de assentimento e levantou-se.

– Tem razão, é uma boa ideia.

Valdemar não se mexeu. Por qualquer motivo, tinha esperado resistência. A?nal, ela passara mais de seis horas no seu gabinete. Tinha pago o tempo dele e nada retirara dessa experiência. Partira do princípio de que ela haveria de tentar manter-se. A bem dizer, não sabia porquê; parecera-lhe apenas que ela era desse tipo.

No entanto, já estava a pegar no casaco e a encaminhar-se para a porta.

– Em todo o caso, obrigada. Aprendi muito – disse-lhe ela.

– Obrigado. Ainda bem que pensa assim.

Ellinor sorriu-lhe enquanto saía do gabinete. Parou na recepção para vestir o casaco, com os pensamentos num turbilhão. Teria ele percebido tudo?

Respirou fundo. Serenou. Avaliou calmamente a situação. Ela ainda estava registada na sua antiga morada, não havia qualquer ligação entre si e Sebastian, a menos que Lithner a tivesse seguido, o que parecia improvável. Provavelmente, não havia nada com que se preocupar; ele, de facto, não achava que pudesse ajudá-la. Ela já não conseguiria ir mais longe; chegara a hora de serem os pro?ssionais a ocupar-se disso. Sebastian jamais precisaria de saber que era ela a responsável pelo desaparecimento de Valdemar Lithner. Seria o seu presente secreto para ele. Um testemunho do seu amor.

Depois, nada poderia jamais ameaçar a felicidade deles.


SHIBEKA CALCORREAVA o apartamento. Sentia-se entusiasmada, mas, ao mesmo tempo, esperara tanto tempo por algo como isto que agora estava realmente a acontecer, que quase se sentia assustada. Sentou-se, pegou na carta que havia pousado cuidadosamente em cima da mesa da cozinha e voltou a lê-la. O texto cobria apenas metade da página. Parecia estranho que uma coisa tão importante pudesse ser tão curta.


Cara Shibeka,

Obrigado pela sua carta – desculpe ter demorado tanto tempo a responder-lhe. A equipa de produção avaliou as informações que nos deu e gostaria muito de entrar em contacto consigo. Seria óptimo se pudéssemos encontrar-nos, sem qualquer compromisso para nenhuma das partes, como é evidente; isso dar-nos-ia a oportunidade de obter uma melhor compreensão da sua história e de decidir como proceder quanto ao assunto do desaparecimento do seu marido.

Por favor, telefone-me.


Lennart Stridh

Repórter

Investigação Hoje


Na parte inferior da página havia um endereço e uns números de telefone. Shibeka pousou a carta. Deveria falar acerca disto aos seus ?lhos? Provavelmente, não. Tanto quanto ela sabia, aquela centelha de esperança podia in?amar-se e morrer. Já tinha acontecido muitas vezes ao longo dos anos, estava habituada a isso. Mas os seus ?lhos tinham de ser protegidos. Já fora su?cientemente doloroso terem crescido sem pai. Mas não tinha a certeza. Conseguiria de facto fazer aquilo sozinha? Leu novamente a carta, como se quisesse ver se esta lhe poderia fornecer algumas respostas, mas conduziu-a apenas às mesmas perguntas. O que signi?cava «sem qualquer compromisso para nenhuma das partes»? Seria apenas uma maneira de não assumir a responsabilidade? O que pensariam eles da sua história? Era verdadeira, mas seria isso su?ciente? Poderia ela realmente encontrar-se a sós com aquele homem? A sua família e as amigas não aprovariam. Tinham razão, em princípio, mas não queria levar mais ninguém consigo. Deixá-la-iam em segundo plano, falariam em seu nome, fá-la-iam ?car ali sentada sem dizer nada, e assim tudo teria sido em vão. Não queria isso. Desta vez queria ouvir a sua própria voz, fazer com que aquilo contasse. As suas amigas sabiam como ela tinha lutado, como se recusara a desistir, mas compreenderiam elas que isto era a Suécia, um país onde as mulheres podiam encontrar-se com homens sem levarem um acompanhante? Era improvável.

Portanto, mais ninguém poderia saber. Foi até ao corredor e sentou-se ao lado do telefone preto sem ?os. Estava em cima de uma mesinha, e lembrou-se de quando ela e Hamid o haviam trazido para casa. Um telefone. Tinham ido comprá-lo ao grande armazém da zona que era agora conhecida como Bromma Blocks; nunca na sua vida tinha visto tantos aparelhos de televisão; ao princípio, nem conseguia acreditar no que estava a ver. Uma parede inteira de imagens em movimento. Fileiras e ?leiras de caixotes que continham de tudo, desde auscultadores a leitores de DVD. O excesso. Ela e Hamid tinham olhado um para o outro e sorrido ao pensarem em todas aquelas pessoas que julgavam ter muito dinheiro mas que, na verdade, dispunham de muito pouco.

Tinham comprado um telefone e o televisor mais barato que conseguiram encontrar. Said dera-lhes boleia até casa. Lembrava-se de ter vindo sentada na parte de trás do carro, a revirar ansiosamente aquela caixa branca que tinha uma imagem de um telefone. Mal podia esperar para abri-la. Para segurar o telefone na sua mão.

Tinham passado muitas noites a tentar entrar em contacto com os amigos e os parentes em Kandahar. Fora sempre difícil. Os telemóveis deles raramente funcionavam, e, quando Shibeka e Hamid conseguiam efectuar a ligação, esta podia ser interrompida a qualquer momento. No entanto, ainda recordava esses tempos com grande carinho.

A ligação para a terra natal.

As vozes alegres em fundo.

Tinham-se sentado ali, lado a lado, ela e Hamid. Ela fazia chá, ele ia tentando os diferentes números de telefone, e, juntos, esperavam. Na maior parte das vezes não havia qualquer resposta, mas sempre que conseguiam punham-se a gritar de alegria, e ela aproximava-se o máximo que podia só para ouvir as palavras da sua antiga terra. Ele deixava-a fazer isso. Deixava-a ouvir. Sorria para ela. Acariciava-lhe a mão enquanto ela se sentava ali em silêncio, à escuta.

Hamid. O seu marido.

Pegou no telefone e ?cou a olhar para ele. Hoje em dia, raramente o utilizava. O contacto com o país de antigamente estava limitado às ocasiões em que ia visitar amigos, ?cando sentada na cozinha com as mulheres enquanto os homens conversavam. Não era a mesma coisa, nem de perto nem de longe. Mas não podia fazer os telefonemas sozinha; eles queriam falar com um homem. Não com ela. As coisas eram mesmo assim.

Marcou um dos números que vinham na parte inferior da carta. Um número de telemóvel. Sabia que os suecos usavam principalmente os seus telemóveis, por isso tentou aquele em primeiro lugar. O aparelho tocou duas vezes, depois uma voz masculina atendeu.

– Lennart Stridh.

De início, ela não se atreveu a falar. Quase esperara que ele não atendesse, de modo que, em vez de enfrentar a realidade, tivesse mais tempo para pensar na conversa, mas o homem do outro lado estava à espera de uma resposta.

– Estou? Fala Lennart Stridh.

Sentiu-se obrigada a responder, mas não havia força nenhuma na sua voz.

– Estou, chamo-me Shibeka Khan, recebi a carta que me enviou.

– Desculpe? Não consigo ouvi-la muito bem.

Ela respirou fundo. Não queria que o homem perdesse o interesse por si.

– A carta. Recebi a carta que me enviou. Chamo-me Shibeka Khan.

– Olá, obrigado por me ter telefonado – disse-lhe ele com renovada energia na voz. – Como lhe disse na carta, estamos muito interessados no desaparecimento do seu marido. Não posso prometer-lhe nada, mas achamos que vale a pena examinar isso.

O homem falava depressa e ela não conseguia acompanhar tudo o que ele dizia, mas reconheceu com toda a certeza a palavra «interessados». Por isso, tentou soar como se entendesse perfeitamente. Sentia que isso era importante para que ele não a mandasse simplesmente embora.

– Óptimo.

– Podemos encontrar-nos?

– Agora?

– Não, agora não. Mas... – Fez-se silêncio, e Shibeka julgou conseguir ouvi-lo a folhear uma agenda. – Segunda-feira às onze... está bem para si?

De repente, ela ?cou assustada.

– Não sei.

O homem do outro lado calou-se por alguns segundos e a seguir continuou:

– Não sabe ou não consegue lá estar?

– Não sei. Acho eu. – Shibeka não sabia bem como havia de explicar-se. Queria ir ter com ele, mas isso parecia-lhe errado. – Seríamos só nós os dois? Nesse encontro?

– A menos que necessite de um intérprete, mas, pela maneira como fala, não será preciso. O seu sueco é muito bom.

– Obrigada, esforço-me por isso.

Hesitou. No mundo de Lennart Stridh não havia nada de estranho no facto de uma mulher ter uma reunião com um homem que não conhecia. Neste país isso era perfeitamente aceitável, e agora ela vivia neste país. Shibeka respirou fundo e agarrou a sua coragem com ambas as mãos.

– Onde?

– Há um café à porta do Åhlén na estação central. O Café Bolero.

Um café. Claro. Os suecos encontravam-se para tomar café. Shibeka percebeu que devia ter trazido papel e caneta para estar pronta a assentar tudo aquilo, mas com certeza seria capaz de se lembrar do café e de qualquer coisa que começava por B.

– Diz-me outra vez o nome do sítio?

– Café Bolero. Mesmo ao lado do centro comercial Åhlén.

– Obrigado.

– Onze horas?

– Onze horas, muito bem. – Sentiu-se um pouco estúpida ao repetir tudo o que ele lhe dizia, mas o homem não parecera achar isso estranho.

– Então até lá – disse-lhe ele, terminando a chamada.

Shibeka ?cou sentada em silêncio por uns momentos antes de pousar o telefone. As coisas tinham corrido melhor do que jamais poderia ter imaginado.


ERA O MESMO APARTAMENTO e, no entanto, não era. Tudo estava no seu lugar habitual. O chão de madeira ainda rangia logo à saída da cozinha quando ela ia tomar o pequeno-almoço lá fora. Até as plantas no peitoril da janela continuavam a crescer como se nada tivesse acontecido. Mas Ursula já não se sentia em casa. Era como se estivesse num ambiente estranho, embora conhecesse cada canto e recanto, cada centímetro quadrado. Talvez fosse dos sons que ela sentia a falta, do facto de o casaco dele já não estar atirado para cima do cadeirão castanho ou de a máquina de café não estar ligada quando chegava a casa. Não sabia o que era. Sentir-se uma estranha na sua própria casa incomodava-a, e o seu lado lógico tentava combater isso, tornar aquela situação compreensível minimizando-a.

As coisas, a?nal, não estavam muito diferentes.

A maior parte dos ruídos tinham desaparecido do apartamento quando Bella se mudara para Uppsala, e, na altura, ela tentava convencer-se de que isso não a incomodara. Em todo o caso, o seu relacionamento com Mikael tinha vindo a esvaziar-se ao longo dos últimos anos. Para ser honesta, haviam-se distanciado. Os casais estavam sempre a separar-se, a divorciar-se, a encontrar novos parceiros. Aquilo que acontecera era perfeitamente natural.

Mas nem toda a lógica do mundo conseguiria reter as dolorosas apreensões que andavam à solta dentro dela. Não era a solidão que a incomodava; ela conseguia lidar com isso. Era a maneira como aquilo acontecera. O facto de ele a ter deixado. Era impossível entender. Ele devia ter lutado por ela.

Não se limitar a desaparecer.

Não o Mikael.

Sempre pensara que, se algum deles se fosse embora, seria ela.

E, no entanto, tinha sido Mikael. Sem tentar sequer salvar o relacionamento que tinham. Sem qualquer arrependimento, ao que parecia. Fora rápido e decisivo de uma maneira de que ela não o julgara capaz.

Ele dissera-lhe que tinha interrompido o seu relacionamento com a outra mulher. Interrompido, não terminado. Fizera uma pausa porque queria resolver tudo com Ursula antes de prosseguir. Isso não fora propriamente verdade. Ele não quisera resolver nada, quisera apenas contar-lhe, dar-lhe aquela desculpa mal amanhada, e depois ir-se embora.

Fora ter com ela.

Com Amanda.

Tinha sido razoável, afável, mas determinado. Não lhe dera a menor hipótese de poder reencontrar o caminho de volta para o seu coração; essa porta estava fechada. Pegara-lhe na mão para a reconfortar quando lhe dera a notícia. Percebera que ele estava a evitar pormenores que poderiam magoá-la, mas que, ao mesmo tempo, não receava a verdade.

Ursula amara-o nesse momento.

Pelo menos, julgava que sim. Era uma sensação que nunca havia experimentado antes, poderosa e contraditória. Como se o alfabeto tivesse de repente adquirido uma nova letra que ela nunca antes vira.

Apetecera-lhe gritar, atirar-lhe coisas. Beijá-lo. Suplicar-lhe. Não ?zera nada. O amor, a raiva e a surpresa formavam uma combinação absurda e totalmente debilitante. Ficara apenas ali sentada a dizer-lhe que sim com a cabeça. Largara a mão dele e dissera-lhe que entendia, embora, na verdade, não entendesse nada.

Ele tinha ?cado no apartamento por uns tempos, mas foram desaparecendo cada vez mais pertences seus e as suas visitas tornaram-se cada vez mais curtas, até que um dia pararam por completo. Tinha-se mudado.

Deixara-a.

Haviam ambos enfrentado muitos desa?os ao longo dos anos. A personalidade dependente dele e a incapacidade dela para lidar com uma relação íntima foram os dois maiores obstáculos que tiveram de superar. No passado sempre haviam resolvido as coisas, encontrado o seu caminho de volta um para o outro, descoberto que, de certa forma, as diferenças entre ambos se tinham transformado nas peças de um quebra-cabeças que fazia sentido.

Desta vez não.

Estava apaixonado, dissera-lhe ele.

Pela segunda vez na sua vida. Desta vez, com alguém que lhe dava tanto quanto recebia.

Ursula percebera que nunca seria capaz de competir com isso.

E deixara-o ir.

 

Nos dias que se seguiram à sua conversa com Mikael, Ursula não saiu do apartamento. Não conseguia sequer fazê-lo. Após aquele choque inicial, tinha muitas perguntas, muitas coisas para tratar. A sua principal preocupação era como e, acima de tudo, quem iria contar a Bella. Quanto mais pensava nisso, mais certa ?cava de que deveria ser ela, caso contrário facilmente poderia perder não apenas o marido mas também a ?lha. Bella sempre fora a queridinha do papá. Eles os dois tinham construído um relacionamento fácil e íntimo ao longo dos anos. Obviamente que Ursula estivera presente, mas um pouco de lado. Às vezes.

Quando não andava a trabalhar.

Quando ela e Bella não tinham uma das suas frequentes discussões.

Quando Ursula queria fazer esse esforço. Só nessas ocasiões.

Nos seus termos.

Tentara evitar confrontar-se com esta última verdade pelo máximo de tempo possível, mas ela viera ao seu encontro naquele apartamento vazio, alheio.

De repente, Ursula percebeu que necessitava de criar um novo relacionamento com Bella, mais real, que tivesse mais de si própria, não um resquício deixado na esteira de Mikael. Já não podia continuar a apoiar-se nele.

Agora estava sozinha.

Ser ela a contar a verdade a Bella talvez fosse um ponto de partida promissor. Pelo menos achou que poderia sê-lo. Telefonou a Mikael e perguntou-lhe se poderia ser ela a explicar a situação a Bella. Ele disse-lhe imediatamente que sim, achava que era uma ideia sensata.

Por isso, aos cinquenta anos de idade, ela confrontava-se com uma tarefa em que nunca fora minimamente boa.

Conhecer a sua ?lha enquanto pessoa.

Como mãe.

Como devia ser.

Demorou quase vinte e quatro horas até ganhar coragem para lhe telefonar.

 

Tinham-se encontrado num café a curta distância da universidade, por sugestão de Bella. Era um daqueles lugares de inspiração americana, onde os biscoitos e os bolos eram gigantescos e o café servido em copos de papelão. Ursula chegou mais cedo, pediu um café com leite e foi sentar-se ao pé de uma janela. Ficou a observar os carros e as pessoas que passavam apressadamente. Ainda não era hora de almoço e o estabelecimento estava meio vazio. Ursula sorveu o café quente e tentou concentrar-se, para impedir que os seus pensamentos voassem em todas as direcções. Mas, quando o conseguiu, restava apenas um problema no seu espírito. Iria perder Bella? A culpa seria sua? Porque não conseguia ela ser como outra mãe qualquer? Porque não conseguia ela...?

De repente, Bella estava em pé atrás de si. Ursula nem sequer a vira entrar.

– Olá, mãe.

Ursula tentou sorrir, mas provavelmente falhou, a julgar pela reacção da ?lha. Bella sentou-se, com uma expressão séria.

– O que aconteceu? Estás muito pálida.

Ursula contou-lhe. Tentou ser justa, não culpar Mikael. Tinha sido uma decisão conjunta, disse-lhe. Algo com que ambos tinham concordado. Aquilo parecia muito pouco convincente, mas ela sentia ser a coisa certa a fazer. Era essencial encontrar um equilíbrio. Não devia obrigar Bella a tomar partido, porque sabia exactamente quem a ?lha escolheria.

Voltaram juntas a pé até à estação. Mãe e ?lha. Ursula não conseguia lembrar-se da última vez que ?zera isso. Bella estava alta. Uma adulta, sensível e talentosa, com uma capacidade para a intimidade que envolveu Ursula. A tensão abandonara-lhe o corpo e ela desfrutava daquele momento. Sentia que estavam mais próximas do que alguma vez tinham estado.

Esse sentimento ainda persistia quando já se encontravam na plataforma ao lado do comboio em que Ursula regressaria a Estocolmo. Bella tinha-lhe perguntado se ela queria passar lá a noite; poderia facilmente preparar a cama extra que tinha no seu quarto. Por um instante, Ursula pensara em surpreender Bella dizendo-lhe que sim, mas depois decidiu que não. As coisas tinham corrido muito melhor do que ela esperara e não queria sujeitar-se ao risco de se mostrar demasiado abelhuda. Disse-lhe que tinha de ir trabalhar, mas prometeu visitá-la de novo, em breve. Muito em breve.

– Tu ficas bem? – perguntou-lhe Ursula, resistindo ao impulso de afagar o rosto da ?lha.

– Claro.

Bella inclinara-se e abraçara-a. Ursula também não conseguia lembrar-se da última vez que isso tinha acontecido. Há muito tempo, não havia dúvida.

– Não ?quei tão surpreendida quanto possas pensar – disse-lhe Bella enquanto se afastava.

Ursula ?cou hirta. Uma pequena voz dentro da sua cabeça estava a gritar-lhe, dizendo-lhe que sorrisse apenas como resposta. Sorri e entra no comboio. Agarra-te a esse bom sentimento. Não lhe deu ouvidos.

– O que queres tu dizer com isso?

– É que... bom, eu falo com o papá com muita frequência e...

Bella desviou o olhar, claramente incomodada com a situação. Ursula tentou compreender o signi?cado daquilo que Bella lhe estava a dizer; só conseguiu encontrar uma explicação.

– Tu sabias que ele andava a sair com outra pessoa?

– Não, não sabia. Absolutamente nada.

– Mas sabias que ele tencionava deixar-me?

– Não, de todo que não. Juro-te, não fazia ideia.

– Mas disseste que não estavas muito surpreendida. Portanto, devias estar à espera disto.

– Mãe...

– Suponho que compreendes porque é que ele me deixou, é porque eu sou... o quê, alguém com quem é impossível viver?

– Mãe, isto está tudo mal. – Brotaram lágrimas nos olhos da ?lha. Bella estendeu-lhe a mão e, para seu espanto, Ursula viu-se dar um passo atrás, virar-lhe as costas e caminhar em direcção ao comboio. – Não vás! – gritou-lhe Bella mais atrás. – Apanha o próximo comboio, vamos falar sobre isto!

Mas ela nem ouvira. Não se atrevera a ?car. Algures no fundo de si, aquela vozinha dizia-lhe que Bella tivera toda a razão.

Ursula continuara a ir trabalhar como era habitual, mas não contara a ninguém o que se passava. O que haveria ela de dizer? Que o seu marido a deixara? Nem pensar nisso. Nunca fora o tipo de pessoa que partilhasse os seus pensamentos e problemas durante o café e o bolo. Entre os seus colegas estava mais próxima de Torkel, que era seu chefe e seu amante, mas não lhe podia contar nada. Ele haveria de interpretar mal a situação, começaria a esperar que aquele intermitente relacionamento sexual pudesse transformar-se em algo mais. Enquanto Mikael tinha feito parte da sua vida, o próprio Torkel fechara a porta a qualquer coisa mais profunda, mas, com Mikael fora do quadro, isso mudaria. Portanto, não disse uma palavra. Continuar simplesmente a representar aquele papel, ?ngindo que nada tinha mudado, fora mais fácil do que esperara.

Tentou concentrar-se no trabalho, o que se revelou mais difícil do que era habitual. A equipa estava de plantão, mas ela voltava para casa mais cedo todos os dias. Arrumava a sua secretária. Recapitulava o material dos casos, catalogava documentos antigos. Isso aguentou-a durante cerca de uma semana, mas a seguir sentiu-se um pouco perdida.

Normalmente, Vanja partilhava a frustração de Ursula quando as coisas estavam assim; também não fora feita para uma vida tranquila. No entanto, tinha acabado de se candidatar a um programa de formação avançada na elaboração de per?s que tinha a duração de três anos e era ministrado pelo FBI nos Estados Unidos. Gastava todo o tempo que tinha a preparar-se para os difíceis testes faziam parte do processo de candidatura. Ursula já quase nem a via, e quando ela estava por perto tinha sempre o nariz en?ado nalgum livro ou estava colada ao ecrã do computador.

Billy estava de regresso ao trabalho após o fatídico tiroteio de Edward Hinde, mas não passava muito tempo no escritório. Havia rumores acerca de uma nova namorada.

A salvação chegou-lhe sob a forma de Sven Dahlén, um dos seus antigos colegas no SKL, o Laboratório Forense Nacional em Linköping, que havia sido recrutado para o recém-formado Grupo de Casos Arquivados no âmbito da Unidade Nacional de Crime. Uma equipa de seis investigadores, incluindo Sven, já estavam a trabalhar nisso em Skåne desde há algum tempo, mas agora o plano era reproduzir o sucesso deles a nível nacional, com um elevado per?l público, e Sven fora convidado a assumir o comando do departamento forense.

O gabinete dele ?cava no piso por baixo da Riksmord e partilhavam o espaço do laboratório.

Ursula começara a encontrar razões para ir lá abaixo. Passara por acaso junto à sala de Sven. Perguntara-lhe se ele queria tomar um café.

Conversaram.

Interessou-se pelos pormenores, ofereceu conselhos.

Certi?cou-se de que passava por lá a intervalos regulares.

Não demorou muito até que lhe ?zessem a primeira pergunta.

A equipa estava a examinar um homicídio em Haninge, há oito anos. Poderia ela dar uma ajuda?

Podia.

Torkel percebeu a intenção dela, mas não disse nada. Uma Ursula que tinha algo para fazer era de longe preferível a uma Ursula que andava por ali de um lado para outro como um tigre dentro de uma jaula demasiado pequena, à espera de alguém em quem pudesse cravar os dentes. Por isso, nada disse quando ela começou mais ou menos a trabalhar no departamento de Sven, sem sequer o informar disso.

Pela noite fora. Ao princípio da manhã. O tempo todo.

Sven dizia-lhe que fosse para casa cuidar da sua família. Ursula mentia e dizia-lhe que estava tudo bem.

Era apenas ela e Mikael, e o seu marido compreendia. Sempre compreendera, assegurava ela a Sven com um sorriso.

Portanto, continuou a trabalhar, muito ciente de que estava a usar a sua função como um escudo para manter tudo o resto à distância.


ALEXANDER SÖDERLING levantou-se da sua dispendiosa cadeira de secretária com design ergonómico e foi até à janela. Algumas pessoas passeavam ao longo da Drottninggatan, apesar da hora tardia. Olhou para o relógio. As crianças dormiam profundamente, e Helena também. Hoje não tinha visto nenhum deles enquanto estavam acordados.

O dia inteiro não fora mais do que uma longa série de reuniões. As coisas corriam bem, já desde há algum tempo. A empresa estava a crescer, mas a carga de trabalho dele também. Tinha regressado ao escritório às seis e pensara simplesmente em ignorar tudo aquilo e ir para casa. Desta vez poderia dar uma boleia a Selma até à sua aula de equitação. Ficar lá a assistir. Passar uma hora com Helena antes de chegar a hora de dormir. Era uma perspectiva atraente, mas ele tinha estabelecido um compromisso. Ia ignorar a pilha de papelada que a sua assistente lhe deixara em cima da mesa antes de sair, mas passaria os olhos pelos emails. Meia hora. Provavelmente, perderia a aula de equitação, mas ainda teria aquela hora com a sua esposa.

Quarenta e cinco minutos mais tarde, tinha terminado e sentia-se muito satisfeito consigo próprio. Decidiu veri?car as últimas notícias antes de ir para casa.

Vinha no topo de todas as primeiras páginas.

VALA COMUM NAS MONTANHAS.

O artigo não fornecia muitos mais pormenores. Duas caminhantes tinham tropeçado numa sepultura. Havia vários corpos que estavam ali desde há muito tempo. Alexander foi veri?car outros sites de notícias: a mesma informação, nada mais. Nem uma palavra sobre quem eles eram, quantos corpos, há quanto tempo lá estavam. Sentou-se e deixou descair os ombros, que inconscientemente levantara quase até às orelhas. Exalou, tentou descontrair-se, pensar com clareza.

Eles tinham sido encontrados.

Mas teriam mesmo?

Deviam ser eles, com certeza. Quantas valas comuns poderia haver em Jämtland?

Foi preparar uma chávena de café. Agora não podia ir para casa. Tomou o seu café em pé, junto à janela, olhando lá para fora, para a Drottninggatan, e a seguir voltou para o computador. Passou quase mais uma hora a navegar na net, para ver se os artigos tinham sido actualizados ou se fora difundida mais alguma informação, mas não havia nada. Amanhã, talvez. A questão era: o que devia ele fazer? Um telefonema? Provavelmente já sabiam, mas se ele não entrasse em contacto poderia parecer que não tivera reacção. Que se descuidara. Entrar em contacto poderia ser a coisa errada a fazer, mas deixar de o fazer seria pior ainda, concluiu.

Levantou-se e foi novamente até à janela. Começara a chover. As poucas pessoas que andavam lá fora apressaram-se, vergando-se contra o vento cada vez mais forte. Alexander pegou no telemóvel. Fez o telefonema. Atenderam-no ao terceiro toque. Música de fundo.

– Sim?

Nada mais por parte da mulher do outro lado. Alexander reconheceu a música: Lykke Li, Possibility. Ouviam muito a Lykke Li lá no gabinete.

– Daqui fala Alexander Söderling – disse ele, só por precaução. Há muito tempo que não falavam.

– Eu sei.

Em qualquer outra conversa, Alexander teria perguntado educadamente ao seu interlocutor como estava, como corriam as coisas, mas as respostas secas que recebera até agora sugeriam que neste momento isso não seria apreciado. Foi direito ao assunto.

– Já leu os jornais?

– O que deveria eu ter lido?

– Encontraram uma vala comum nas montanhas de Jämtland.

– Não sabia disso.

– Está na internet.

– Certo.

Alexander ?cou em silêncio, a olhar para as gotas de chuva que escorriam pela janela abaixo, formando um padrão que se assemelhava a veias. Estava à espera de alguma pergunta a seguir, o que vinha nas notícias, por exemplo, mas não houve nenhuma.

– Julgo que podemos assumir que são eles – esclareceu Alexander, inutilmente. Como já antes dissera a si mesmo, quantas valas comuns poderia haver em Jämtland?

– Certo.

Nada mais também desta vez. Era evidente que a mulher do outro lado do telefone não tinha qualquer intenção de alimentar a conversa. Nem sequer se mostrava particularmente interessada; Alexander começou a ter a sensação de que aquele telefonema tinha sido um erro.

– Vou tentar descobrir se a Polícia sabe quem são – continuou, tentando mostrar alguma iniciativa.

– E se souberem?

– Não creio que tenhamos muito com que nos preocupar. Foi tudo extremamente... pro?ssional.

– Então o que fazemos? – A mulher fez uma breve pausa. – Ou melhor, você, não nós.

– De momento, nada.

– Nada?

– Acho que é a melhor abordagem.

– Então porque me telefonou?

– Queria só... Pensei que gostaria de saber que tinham encontrado a vala.

– O que eu quero saber é se temos problemas. Temos problemas?

– Não – respondeu Alexander.

– Então não quero saber.

Silêncio de novo. Silêncio total. Até a Lykke Li tinha desaparecido. A conversa chegara ao ?m. Alexander pousou o telemóvel e olhou inexpressivamente para a rua lá em baixo.

Será que eles tinham problemas?

Ainda não, mas Alexander estava quase certo de que iriam tê-los em breve.


O TELEFONEMA VEIO logo após as sete e meia da manhã de segunda-feira. Torkel tinha acabado de ir buscar o seu primeiro café do dia. Deslocou o rato para despertar o computador do modo de suspensão, sorveu um trago da bebida quente e atendeu.

– Torkel Höglund.

A interlocutora apresentou-se como superintendente Hedvig Hedman. Torkel situou-a imediatamente em Jämtland, não porque tivesse os nomes de todos os superintendentes locais na ponta da língua, mas porque Hedvig Hedman tinha acabado de ser alvo de uma informação dada ao procurador-geral por qualquer coisa que ela havia dito a respeito de um membro da sua equipa. Era improvável que aquilo fosse mais longe, mas o nome dela estava fresco na memória de Torkel.

– Como posso ajudá-la? – perguntou-lhe, sorvendo outro gole de café e acomodando-se na cadeira.

Poucos minutos depois, desligou.

Seis corpos.

Lá no meio da montanha.

Aparentemente, já ali estavam há algum tempo.

Hedvig Hedman começara por lhe dizer que tinham encontrado uma vala comum. Torkel não sabia ao certo se seis corpos constituíam realmente uma vala comum, mas, como os quatro principais jornais tinham usado esse termo, supunha que sim. Não que isso tivesse alguma importância.

Era o su?ciente para os levar até lá.

Saiu do gabinete. Christel, a sua assistente, ainda não tinha chegado, por isso deixou-lhe uma nota pedindo-lhe que veri?casse os voos para Östersund e o informasse o mais rapidamente possível.

De volta ao seu gabinete, afundou-se na cadeira e terminou o café enquanto pensava no seu próximo movimento.

Precisava de reunir a equipa, mas havia duas coisas em que era preciso pensar.

Em primeiro lugar, a candidatura de Vanja para se juntar ao programa de formação do FBI. Ela passara a primeira etapa do processo de selecção e estava agora entre os últimos oito. Só havia três lugares. Torkel estava cem por cento convencido de que um desses lugares tinha o nome de Vanja. Dera as melhores referências possíveis sobre ela – com sentimentos mistos, tinha de admitir. Pensava o melhor de Vanja, ela era uma excelente agente policial, um membro importante da equipa e realmente merecia a oportunidade de se desenvolver e progredir na carreira. Mas isso signi?cava que a perderia; ela iria para longe durante três anos.

Três anos sem a sua melhor investigadora.

Torkel já tinha começado a procurar quem a substituísse, de forma temporária ou permanente, dependendo de ela decidir voltar para junto deles após a sua temporada nos Estados Unidos ou optar por uma rota diferente. Não tinha anunciado o cargo nem tornara do conhecimento geral que andava à procura, em parte porque havia uma possibilidade microscópica de Vanja não entrar, e em parte porque ele queria evitar um longo e demorado processo de recrutamento que, na pior das hipóteses, poderia implicar ter de lidar com centenas de candidaturas. A sua intenção era ignorar respeitosamente os anos de serviço, as quali?cações formais e alguém que pudesse ter prioridade por algum motivo. Sem dúvida que isso violava uma quantidade de regulamentos de emprego, mas ele não queria saber.

A Riksmord era uma equipa.

A equipa dele.

Tencionava escolher a pessoa que queria. No fundo, importava muito mais quem se era do que aquilo que se tinha feito. Queria um agente policial de primeira categoria, consciencioso, claro, mas isso não era su?ciente. O candidato certo precisava de mais qualquer coisa, algo inde?nível. Teria de ser capaz de se adaptar. Torkel conhecia diversos agentes experientes que tinham trabalhado durante cinco, dez, vinte anos e que, provavelmente, fariam um excelente trabalho do ponto de vista processual, mas, na verdade, não conseguia ver nenhum deles como membro da sua equipa. Além disso, na sua maioria, eram homens, e Torkel tinha quase a certeza de que iria substituir Vanja por outra mulher. Não devido ao número de contingentes ou a alguma decisão paritária, mas pela simples razão de que, na sua experiência, as equipas mistas funcionavam melhor. Ele sabia onde isto iria dar. Não parava de repensar na carta de uma jovem que acabara de concluir a sua formação como cadete em Sigtuna.

Jennifer Holmgren.

Ela escrevera-lhe há algumas semanas, numa base puramente especulativa, explicando porque gostaria realmente de trabalhar para a Riksmord, e algo naquela carta tinha de imediato apelado a Torkel. A carta estava repleta de empenho, de um desejo de se desenvolver, de crescer, de trabalhar com os melhores para aprender, não para subir na carreira.

Quando Vanja lhe dissera que se tinha candidatado a Quantico, Torkel chamara Jennifer para uma breve entrevista. Não pensava seriamente que ela fosse uma potencial substituta, mas estava curioso.

Não ?cara desapontado com ela. Era sociável, motivada, empenhada. Torkel tivera a impressão de que ela precisava de fazer um autêntico esforço para não fervilhar de entusiasmo sempre que falava do que gostaria que o trabalho policial abrangesse. Fizera-lhe lembrar Vanja quando a conhecera, e essa era a melhor recomendação que poderia dar. Obviamente que a juventude e a total falta de experiência estavam contra ela, e sem dúvida que ele receberia muitas críticas por causa disso se decidisse dar-lhe uma oportunidade. No entanto, também poderia dizer-se que ela não estava apegada a arraigados padrões de comportamento, que ela nunca se oporia a novas ideias com base em que «nós sempre ?zemos isto desta maneira». Era aberta e maleável.

Vanja teria notícias dentro de, mais ou menos, uma semana e iria embora em Novembro. Não seria desajustado trazer alguém que porventura pudesse ocupar o lugar dela nesta fase.

Torkel decidiu que telefonaria para Sigtuna para ver se eles podiam libertar Jennifer.

O outro assunto que devia ter em consideração era Sebastian.

Sebastian Bergman.

Irremediável, mas brilhante.

Durante as duas últimas investigações, ele tinha conseguido encontrar maneira de entrar para a equipa. Nenhum deles o queria realmente ali, mas ele ?zera um belíssimo trabalho em ambas as ocasiões, não havia como negá-lo. Sobretudo no caso Hinde – tinha salvo a vida de Vanja.

Ao mesmo tempo, a sua presença criava con?itos de que o grupo não precisava. Uma investigação de homicídio era sempre enervante, e não havia dúvida de que com Sebastian a bordo se tornava ainda mais difícil do que era necessário. Com a sua arrogância, o seu egoísmo e a sua total falta de interesse pelo que o rodeava, ele era uma irritação constante. Era como um buraco negro que ameaçava sugar a energia a todos os que estavam na sala e destruir o grupo a partir do interior.

Uma fascinante fonte de con?ito.

A favor e contra.

Deveria ele trazer Sebastian mais uma vez?

Decisões, decisões.

Se Vanja não tivesse aceitado Sebastian, Torkel nem sequer teria pensado isso, mas na última vez que falara com ela parecera-lhe estar quase ansiosa por voltar a trabalhar com ele. Billy gostava dele, e Torkel também, no fundo, embora por vezes o enlouquecesse ver como o seu velho amigo tornava as coisas tão difíceis para si próprio em qualquer situação. Ursula tinha a capacidade de se concentrar naquilo que era importante em vez de permitir que ele a provocasse. O que mais a incomodava era ver-se confrontada com um facto consumado em vez de sentir que ?zera parte do processo de tomada de decisão. Se ele lhe explicasse simplesmente em que andava a pensar, Ursula não se oporia.

À primeira vista, seis corpos numa vala comum não reclamavam propriamente as habilidades de Sebastian Bergman.

Mas seis corpos signi?cavam um assassino em série ou um assassínio em massa, e na Suécia não havia ninguém que soubesse mais acerca deste assunto especí?co do que Sebastian.

Decisões, decisões.

Torkel sabia o que ia fazer.

Primeiro Sigtuna, em seguida iria lá abaixo visitar Ursula, fazê-la sentir-se parte de tudo aquilo. A seguir Vanja, Billy e, ?nalmente, Sebastian.

Decisão tomada. Estendeu a mão para o telefone.


– TENS DE TE MUDAR DAQUI.

Sebastian voltou a en?ar a faca de manteiga no pacote de Bregott que estava em cima da mesa e virou-se para Ellinor, que colocava a sua chávena de café dentro da máquina de lavar louça. Ele tinha escolhido o seu momento com cuidado. Em circunstância alguma conseguiria lidar com quarenta e oito horas de lágrimas, censuras, discussões histéricas e fúria – que sabia que haveriam de terminar com ele a ejectá-la ?sicamente do apartamento. Por isso esperara até depois de Ellinor gozar o seu ?m-de-semana de folga. Agora ela estava prestes a sair para o emprego; era do tipo consciencioso e não havia qualquer possibilidade de ela ?car ali em casa a tão curto prazo. Ainda que percebesse o que ele lhe dissera, o que, de modo algum, era certo.

– És tão engraçado – disse-lhe sem sequer o olhar, o que con?rmou as suas suspeitas.

– Não, estou a falar a sério. Tens de ir embora, senão eu expulso-te.

Ellinor fechou a máquina de lavar louça, endireitou-se e olhou para ele com um sorriso divertido nos lábios.

– Mas, querido, como é que tu ias passar sem mim?

– Perfeitamente bem – disse-lhe Sebastian, mantendo a irritação longe da voz. Detestava que lhe falassem como se ele fosse uma criança.

– És tão engraçado – repetiu ela quando veio até à mesa e lhe deu um piparote rápido numa bochecha. – Precisas de fazer a barba, estás a arranhar muito – disse-lhe com um sorriso. Debruçou-se e beijou-o na boca. – Vemo-nos logo à noite.

Saiu da cozinha e Sebastian ouviu a porta da casa de banho fechar-se. Sons demasiado familiares disseram-lhe que ela estava a escovar os dentes. Suspirou. Nada tinha mudado. O que esperava ele? Com Ellinor, todas as conversas que não tivessem por tema as banalidades da vida quotidiana andavam sempre à roda. Ela nunca o ouvia, nunca ouvia o que ele estava realmente a dizer-lhe. Interpretava tudo em proveito próprio. Se não lhe fosse possível transformar o que ele dizia em algo positivo, ela simplesmente optava por não entender. Como agora.

Tens de te mudar daqui.

Essas palavras não estavam abertas a interpretações. Eram tão claras como cristal. Eram a realidade.

Mas no mundo de Ellinor a realidade não era uma constante nem uma ciência exacta. Ela podia transformá-la em tudo o que quisesse. Ele já a tinha deixado safar-se com isso demasiadas vezes, mas agora não. Desta vez, havia de a fazer ouvir. Deixou a sua irritação e frustração virem à superfície; pôs-se em pé e foi até à casa de banho. Abriu a porta – ela nunca a trancava – e ?cou postado à entrada. Ellinor procurou o olhar dele no espelho.

– Não queres saber onde é que eu estive na quinta-feira à noite?

Ellinor prosseguiu a escovagem, mas a sua expressão no espelho era clara. Não, não queria saber.

– Não queres saber porque é que eu não vim para casa?

Ellinor cuspiu para o lavatório, voltou a guardar a escova de dentes dentro do copo de plástico que estava na prateleira e, em seguida, limpou a boca a uma das toalhas às riscas que trouxera do emprego para casa.

– Sem dúvida que tiveste as tuas razões – disse-lhe ela, empurrando Sebastian para passar.

– Sim, ela chama-se Gunilla, tem quarenta e sete anos e é enfermeira.

– Não acredito em ti.

– Porque não?

– Porque tu nunca me farias isso.

– Faria, sim.

Ellinor abanou a cabeça enquanto vestia o casaco.

– Não, não farias. Porque isso significaria que querias magoar-me, e porque haverias tu de querer fazer tal coisa?

Sebastian ?cou a olhá-la enquanto ela se baixava e calçava as botas com movimentos rápidos e bruscos. Perdeu o domínio sobre o calçado. Tentou de novo. Agora de uma maneira ainda mais atabalhoada, como se estivesse a esforçar-se por não perder o controlo. Sebastian sentiu a sua irritação desvanecer-se e uma certa dose de simpatia vir ocupar-lhe o lugar. Repeliu-a. Precisava de ser ?rme com ela, mas, para seu desapontamento, ouviu a sua voz assumir um tom mais meigo.

– Eu não quero magoar-te, só quero que compreendas que não podes viver aqui mais tempo.

– Porque não?

– Foi um erro, tu nunca devias ter-te mudado para cá. A culpa é minha, eu senti uma espécie de, não sei... de culpa. Durante algum tempo pensei que era isso que eu queria, mas não é.

Pela primeira vez desde que tinham vindo para o corredor, Ellinor ergueu a cabeça e ?tou o olhar dele.

– As coisas não têm sido boas entre nós?

– Não.

Silêncio. Sebastian julgou ter visto lágrimas nos olhos dela. Estaria a ser entendido, apesar de ter sido mais comedido do que pretendia? Se assim fosse, já era tempo. Agora tinha de se certi?car de que não lhe oferecia uma oportunidade para mal-entendidos, para reinterpretações da situação. Tinha de levar a mensagem até ao destino.

– Tu és como uma empregada doméstica com quem eu tenho relações sexuais. Não me preocupo contigo e tu preocupas-te um pouco demais comigo. É doentio.

Ellinor não respondeu, mas Sebastian julgou ver uma ligeira alteração na expressão dela. Algo endurecera; houvera um lampejo que ele nunca vira antes. Teve a sensação de que já mais alguém lhe havia chamado doentia. Vários outros, porventura, em várias ocasiões. Era óbvio que ela não gostava disso.

– Falaremos sobre isso logo à noite.

Um tom duro na voz que também nunca lhe ouvira antes. Desta vez, ela tinha-o ouvido de certeza. Agora não podia perder o embalo.

– Não há nada para falarmos. É muito simples. Tens de te mudar daqui. Nunca devias ter-te mudado para cá.

– Como eu te disse, vemo-nos logo à noite.

Ellinor abriu a porta e saiu. Nem um beijo, o que já era alguma coisa. Mas a batalha estava longe de terminar. Sebastian conhecia-a agora su?cientemente bem para assumir que ela haveria de voltar para casa com um presente conciliador, cozinhar um jantar fantástio, pedir-lhe desculpa pelo facto de se terem zangado, fora uma discussão tão parva. Haveria de querer fazer amor e esquecer tudo aquilo.

Existia uma possibilidade de ela vir a ser bem-sucedida. De alguma forma, conseguia sempre ultrapassar as suas defesas, por isso precisava de garantir que ela não teria essa oportunidade.

Quando Ellinor se mudara para ali, não trouxera consigo mais do que uma pequena mala. É certo que voltara a sua casa algumas vezes para ir buscar uma ou outra coisa, mas não tinha muitos pertences no apartamento de Sebastian. A sua mala preta e um saco bastariam. Ia embalar as coisas dela.

Contente com o seu plano, dirigiu-se ao quarto, mas foi então que o telemóvel tocou. Rebuscou rapidamente os bolsos e tirou-o para fora. Olhou para o visor. Receou que pudesse ser Ellinor, mas era Torkel. Sebastian ?cou surpreendido com a vaga de esperança que percorreu o seu corpo antes de atender.

Não ?cou desapontado.

Seis corpos. Storulvån. Iam apanhar um avião para Östersund dali a três horas.

Enquanto fazia as malas, era como se tivesse sido transportado quinze anos atrás no tempo. Reunir os objectos essenciais o mais rapidamente possível, sem nunca saber quanto tempo estaria longe, na esperança de que o esperasse um desa?o. Não pensava nisso há muitos, muitos anos, mas, enquanto se deslocava entre o roupeiro e a mala aberta, ocorreu-lhe: tinha saudades daquilo.

Não apenas usaria a sua perícia, trabalharia com Vanja. E tinha-se livrado de Ellinor.

Neste momento, as coisas não poderiam simplesmente correr melhor.


SHIBEKA LEVANTARA-SE cedo, acordara os seus amados ?lhos e dera-lhes o pequeno-almoço. Roht acabado de cozer, aquele pão doce feito com farinha, iogurte e cardamomo, servido com chai e uma taça de damascos secos que ela havia comprado lá em baixo na praça. Os rapazes ainda comeram Frosties com leite. Quando eles eram pequenos, Shibeka decidira que também devia haver comida sueca na mesa do pequeno-almoço e, sem qualquer hesitação, ambos tinham escolhido Frosties, provavelmente por causa da doçura mas também porque gostavam daquele grande tigre no pacote. Já ?zera algumas tentativas para lhes apresentar cereais diferentes, mais nutritivos, mas sem sucesso.

Era dia de desporto para Mehran; como ele ia aprender orientação, preparou-lhe um almoço para levar. Eyer olhou com inveja enquanto ela colocava dentro do saco de Mehran as caixas de plástico que continham o korma do dia anterior. Perguntou-lhe logo se também podia levar um pouco do seu caril preferido. Ela sorriu-lhe; aquilo era mesmo típico de Eyer. Ele era sempre o que ia mais longe, o que tentava obter mais da vida. Mehran era mais sério, mais reservado, nem de perto tão falador. Disse-lhe que não com a cabeça.

– Há algum para ti, mas podes comê-lo ao lanche quando chegares a casa.

Eyer disse-lhe que sim e regressou aos seus Frosties. Shibeka olhou para eles enquanto estavam ali sentados a comer. Os seus meninos. Tinha passado todo o ?m-de-semana a pensar no que haveria de fazer. Devia dizer-lhes? Mehran já tinha idade su?ciente; na verdade, ele devia saber, talvez até ir com ela. Falar em seu nome. Protegê-la. Mas ela não queria isso. Queria protegê-los, queria ir falar com o homem sozinha. Nove anos antes, um tal pensamento nunca lhe teria sequer cruzado o espírito. A ideia de que uma mulher pudesse agir como ela estava a fazer agora não fazia parte do seu mundo. Havia algo de vergonhoso naquilo que andava a planear, mas ao mesmo tempo a sensação era libertadora. Estava orgulhosa de si mesma, apesar da culpa que se amontoava no fundo da sua barriga.

Os rapazes prepararam-se para sair; habitualmente iam a pé para a escola juntos. Shibeka beijou-os na testa e abriu-lhes a porta. Desceram as escadas a correr e ela ?cou ali a ouvi-los durante mais algum tempo do que era costume. Realmente, tinha dois meninos maravilhosos. Respeitosos e educados, ao contrário dos ?lhos de algumas das suas amigas, nos quais o choque entre os costumes do antigo e do novo país muitas vezes levava ao con?ito. Gostava de pensar que isso se devia a si; tinha feito um autêntico esforço para os incentivar a tirarem o melhor de ambas as culturas. Não era fácil, mas ela tentava.

Voltou para dentro e terminou o chá morno, comeu um pedaço do roht doce e delicioso e a seguir foi arranjar-se. Não tinha qualquer intenção de ir bem-vestida, mas queria que ele a levasse a sério. Optou por um xaile preto em volta da cabeça para esconder o cabelo. A?nal, estava de luto, embora já tivessem passado muitos anos desde o desaparecimento de Hamid. Chegaria lá cedo, mas estava demasiado inquieta para ?car em casa mais tempo. Pegou no passe e partiu.

A estação de metropolitano ?cava a dez minutos de distância. Se ela encontrasse alguém conhecido, diria que ia fazer compras, e esperava que não decidissem vir consigo. Seria uma mentira, mas por vezes as mentiras eram necessárias.

A linha azul ia directa à estação central, por isso não havia necessidade de mudar. O comboio estava meio cheio. Shibeka percebeu que não tinha qualquer maneira de entrar em contacto com o homem caso não conseguisse encontrar o café. Não tinha um telemóvel; jamais pensara vir a precisar de uma coisa dessas. Ambos os meninos tinham um; na Suécia, todos os jovens pareciam ter telemóvel. Talvez devesse tê-lo pedido emprestado a um deles! Mas isso haveria de parecer estranho, e eles teriam começado a fazer-lhe perguntas às quais não queria responder. Fosse como fosse, agora não. Havia muitas coisas que não tivera em consideração. Andara demasiado concentrada em conseguir uma reacção, e agora, que ?nalmente estava a acontecer alguma coisa, ao ?m de todo este tempo, não estava realmente preparada para isso. Shibeka decidiu que, se o homem optasse por investigar a sua história, haveria de arranjar um telemóvel. Algumas das suas amigas, e sobretudo os maridos delas, não gostariam disso, mas, de qualquer forma, não gostariam do que ela andava a fazer. Nem um pouco.


– QUERES QUE EU entre contigo?

Maya desligou o motor e virou-se para Billy. Tinham acabado de parar à porta do Terminal 4 em Arlanda. Billy olhou para o relógio; o seu voo partia daí a quarenta e cinco minutos.

– Não, não vale a pena. E estacionar aqui é incrivelmente caro.

– Está bem.

Billy desapertou o cinto de segurança, debruçou-se e deu-lhe um beijo.

– Entro em contacto logo que saiba quanto tempo estarei fora.

Maya assentiu. Billy abriu a porta e saiu. Estava a tirar o seu saco para fora da bagageira quando ouviu a porta do condutor abrir-se, e Maya apareceu.

– Quando tu voltares... – começou ela.

– Não sei.

– O quê?

– Não sei quando volto – esclareceu Billy, fechando a tampa da bagageira com força. – Entro em contacto logo que souber.

– Não foi isso que eu disse. – Maya agarrou-lhe as abas abertas do blusão e aproximou-se. – Eu disse quando tu voltares.

– Sim?

– O que pensas de nós os dois passarmos a morar juntos?

Billy poderia com facilidade ter enumerado vinte coisas que Maya pudesse ter dito e que o surpreendessem menos. Até mais. Não fazia ideia do que havia de dizer-lhe, mas estava dolorosamente ciente de que não lhe dizer nada seria talvez a pior resposta possível. Ele nem sequer pensara na possibilidade de eles passarem a morar juntos. Há quanto tempo estavam juntos? Desde meados do Verão, isso era quanto tempo? Cerca de três meses. Não seria um pouco cedo? Poderia dizer-lhe isso? Decerto tinha de dizer alguma coisa.

– Tu não queres – disse Maya; era evidente que ele tinha mantido o silêncio por demasiado tempo.

– Fiquei só um pouco surpreendido.

– Por não nos conhecermos há muito tempo?

– Bom, sim, em parte por isso e... – Não concluiu a frase. Continuava sem saber o que dizer. Não havia na sua cabeça nada mais sensato do que há dez segundos. – Sim, acho que sim – admitiu ele.

– Mas nós gostamos um do outro e praticamente já moramos juntos agora, só que em duas moradas diferentes.

Isso era verdade. Tinham passado muito tempo um com o outro desde o início, mas agora era tal e qual como Maya dissera: estavam praticamente a morar juntos, às vezes em casa dela, com mais frequência na sua. Ele não andava a trabalhar tanto. Ultimamente, não tinha havido muito para fazer e antes disso tinha ?cado suspenso enquanto era levada a cabo a investigação interna ao tiroteio fatal de Edward Hinde. Qualquer caso em que um agente policial disparasse a sua arma era investigado, sobretudo se houvesse algum desfecho fatal. Billy tinha sido entrevistado várias vezes, tivera duas reuniões com o psicólogo da Administração da Polícia, Håkan Persson Riddarstolpe, e as coisas tinham ?cado assim.

Billy percebeu que Maya o olhava de forma encorajadora. Chegara sem dúvida a sua vez de dizer alguma coisa.

– Então tu mudavas-te para minha casa? – conseguiu, por ?m, dizer.

– Para tua casa, para minha casa, para um sítio novo... podemos falar sobre isso mais tarde. Mas tem de ser o que tu quiseres.

– E... e é – disse-lhe ele. – Honestamente – acrescentou, esperando que ela ouvisse as palavras em vez da hesitação que havia por trás delas.

– Excelente, nesse caso resolvemos isso quando voltares para casa. Boa sorte. – Ela pôs-se em bicos de pés e beijou-o. Ele permaneceu em pé atrás do carro enquanto ela voltava a entrar e se ia embora.

Acenou-lhe. Ela acenou-lhe também.

Um táxi apitou quando ele ia a atravessar a estrada. Olhou lá para dentro e avistou Vanja no banco do passageiro.

Ela acenou-lhe. Billy acenou-lhe também e parou para esperar por ela.

Era um pensamento estranho, mas foi acometido pela noção de que Vanja e Maya nunca tinham estado tão próximas como naquele momento, em carros diferentes, ali no aeroporto. Nunca se tinham encontrado. Ele e Maya estavam prestes a começar a viver juntos, mas Vanja, a sua colega mais íntima e porventura a sua melhor amiga – ou que pelo menos fora outrora a melhor amiga dele –, nunca a conhecera sequer. Isso não seria um sinal de que as coisas estavam a andar um bocadinho depressa demais? Ou seria apenas um sinal de que ele era demasiado cobarde para as apresentar uma à outra? Seria por isso que não quisera que Maya entrasse no terminal consigo? Tinha quase a certeza de que Vanja não ia gostar de Maya, e havia uma distinta possibilidade de que o sentimento fosse mútuo.

O que era um problema.

No entanto, poderia muito bem resolver-se. Vanja ia a caminho dos Estados Unidos. Tinha a certeza de que seria colocada num dos três lugares disponíveis. Ele não se candidatara. Dissera a si próprio que era porque não queria ir viver além-mar durante três anos, que realmente não era isso que ele queria e que, se alguma vez decidisse seguir formação avançada, escolheria outra coisa. Algo mais técnico, mais na sua área de especialização.

Isso era em parte verdade, mas no fundo ele sabia que uma das razões pelas quais não se candidatara era por não saber ao certo como reagiria se Vanja fosse bem-sucedida e ele não.

– Olá, pareces embrenhado em pensamentos profundos! – disse-lhe Vanja quando se aproximou e o abraçou.

– Nem por isso...

A suspensão dele, um departamento em ponto morto e a concentração de Vanja nos seus testes do FBI signi?cavam que se tinham visto pouco ao longo dos últimos meses. Percebeu que sentira a falta dela.

– Como vieste até cá?

– A Maya deu-me boleia.

– Ah, então ainda estás com a Maya?

Era imaginação sua ou havia uma nota de desapontamento na voz dela?

– Estou.

– Que bom.

Ela não lhe perguntou quando conheceria Maya.

Ele também não lhe falou disso.

Puseram-se a caminho do terminal.

 

Quando Billy e Vanja entraram, viram Torkel e Ursula em pé junto aos ecrãs que mostravam as chegadas e as partidas. Estava com eles uma mulher jovem, que teria talvez os seus vinte e cinco anos. Alta, mais alta do que Vanja. Longos cabelos castanhos amarrados atrás num simples rabo-de-cavalo, um rosto esguio, atento, uns olhos azuis brilhantes que se voltaram para Billy e Vanja quando Torkel levantou uma mão para a saudar. Após a habitual rodada de abraços e cumprimentos, Torkel apresentou-lhes a companheira.

– Esta é a Jennifer. Vai viajar conosco.

Vanja estendeu-lhe a mão.

– Olá. Sou a Vanja.

– Jennifer. Na verdade, já nos encontrámos antes.

– Ah, sim?

– Sim, num poço de cascalho em Bro. Eu encontrei um carro queimado que vos interessou.

Pois claro. Vanja fez um gesto de assentimento. Não admirava que não se tivesse lembrado de Jennifer, que, na altura, era uma agente fardada. O relatório que ela ?zera a Vanja demorara apenas cerca de trinta segundos, e além disso Vanja tinha tentado com todas as forças esquecer-se daquele dia especí?co. O dia fora insuportavelmente quente, ela estava de ressaca e furiosa e tinha dito a Billy que era melhor agente policial do que ele, o que ameaçara destruir o relacionamento entre ambos e desfazer a equipa. Mais tarde, ela e Billy tinham falado sobre o assunto. Resolvido aquilo. Mas às vezes Vanja sentia que, na verdade, não tinham conseguido recuperar o que tinham antes desse dia no poço de cascalho de Bro.

– Vocês encontraram o tal menino? – perguntou Billy quando trocou um aperto de mão com a recém-chegada.

– Desculpa?

– Não andavam à procura de um menino desaparecido quando encontraste o carro?

– Exactamente... Lukas Ryd. Sim, encontrámo-lo. Ele tinha ido fazer uma pequena viagem sozinho e perdeu-se.

Jennifer sorriu para Billy. Ao contrário de Vanja, ele lembrava-se dela e do que andava a fazer quando se conheceram. Tinha reparado nela. Billy devolveu-lhe o sorriso.

Vanja deu um passo para trás.

Quando Torkel dissera que tencionava levar uma potencial substituta, Vanja não esperara que ela fosse tão jovem. Quando sorria parecia ainda mais nova. As linhas ligeiramente vincadas em torno dos olhos apagavam-se e parecia mais descontraída. Poderia alguém tão jovem e inexperiente realmente substituir Vanja? No que andaria Torkel a pensar?

Ela não era melhor do que aquilo?

Claro que era.

Vanja estava de partida para Quantico. Era por isso que Jennifer estava ali. Na verdade, Vanja estava contente por Torkel já ter trazido alguém, pois isso signi?cava que ela iria certamente até ao ?m. Ele precisava de garantir que a sua equipa estava a postos, e, para ser franca, Vanja também era jovem e inexperiente quando começara a trabalhar com ele. Embora não tão jovem.

Os seus pensamentos foram interrompidos por Ursula.

– Portanto, vem aí o ?m de qualquer hipótese de paz e tranquilidade.

Vanja voltou-se para as portas e avistou Sebastian caminhando em direcção a eles, com um sorriso satisfeito e ligeiramente presunçoso. Um sorriso que algumas semanas antes a teria levado à loucura, mas hoje limitou-se a registar isso.

– Julgo que estão à minha espera – disse ele, pousando o saco e dando um abraço a Vanja. – Que bom ver-te novamente.

– A ti também.

Billy olhou para eles. Não conseguia entender muito bem aquela relação entre ambos. Percebera que Vanja havia aceitado Sebastian após este se ter oferecido para tomar o lugar dela como refém de Edward Hinde; tinha percebido isso. Mas havia mais qualquer coisa.

Os alvos de Edward Hinde eram mulheres que haviam tido uma relação sexual temporária com Sebastian. A mãe de Vanja estava numa lista de possíveis vítimas que Billy encontrara, pelo que restavam poucas dúvidas de que Sebastian tinha dormido com Anna Eriksson. Enquanto estava sob investigação, Billy vasculhara um pouco mais, mas não tinha ido muito longe. Era praticamente impossível averiguar onde e quando isso tinha acontecido, e acabara por decidir que tentar saber mais sobre a vida sexual da mãe da sua colega era um pouco decadente. Se Anna Eriksson estava a ser, ou tinha sido, in?el com Sebastian era, na verdade, algo que não lhe dizia respeito a si. Claro que se pôs a pensar se Vanja estaria tão positivamente inclinada para Sebastian como se mostrava agora caso viesse a saber disso, mas Billy não tinha qualquer intenção de ser ele a contar-lho. Não queria pôr mais uma vez em risco a sua amizade com Vanja, já ligeiramente desgastada.

– Desculpem-me o atraso – disse Sebastian após ter cumprimentado todos. – Estive à espera de um serralheiro.

– Ficaste do lado de fora sem chave? – perguntou Ursula com aquilo que Sebastian interpretou como um sorriso de esperança.

– Não. – Voltou-se para Jennifer com um sorriso caloroso. – Jennifer, não é?

– Sim. Jennifer Holmgren.

Sebastian fez um gesto de assentimento e repetiu o apelido dela. Torkel viu Ursula revirar os olhos e virou-se para Sebastian.

– Uma palavrinha, por favor.

Sem esperar por qualquer resposta, en?ou a mão sob o cotovelo de Sebastian e puxou-o para um lado.

– Tu não vais dormir com ela – disse-lhe em voz baixa, mas de forma muito clara, logo que ?caram fora do alcance dos ouvidos dos outros.

Sebastian olhou por cima do ombro de Torkel. Jennifer estava a conversar com Billy; Ursula enfrentou o olhar de Sebastian, com o desgosto estampado no rosto. Presumivelmente, sabia ao certo o que Torkel lhe estava a dizer. Sebastian sorriu-lhe.

– Achas que ela está interessada? – disse ele, desviando a sua atenção de novo para Torkel.

– Não, não acho, mas tu tens uma capacidade notável para levares as mulheres para a cama. Desta vez nem sequer vais tentar.

– Está bem.

Torkel fixou Sebastian nos olhos. Está bem? Assim de repente? Demasiado fácil. De súbito, teve a sensação de que havia piorado as coisas. Quando se dizia a Sebastian o que fazer, regra geral, ele fazia exactamente o contrário. Sebastian não conseguia deixar que alguém impusesse a lei no que lhe dizia respeito. Teria Jennifer acabado de se tornar mais interessante porque Torkel lhe dissera para ele não ir lá?

O risco estava decerto presente.

– Estou a falar a sério – disse-lhe ele, enfatizando cada palavra. – Sais daqui tão depressa que os teus pés nem tocam no chão. – Esperava que o prazer de Sebastian por estar de volta pesasse mais do que a sua necessidade de desa?ar a autoridade.

– Estou ciente disso. Não vai acontecer nada.

– Muito bem. Óptimo.

Torkel virou-se para trás a ?m de se juntar de novo aos outros.

– Então, porque está ela aqui? – perguntou-lhe Sebastian.

– Poderá vir a ser a substituta de Vanja.

Sebastian imobilizou-se de súbito e agarrou Torkel pelo braço. Demasiado rápido e apertando-lho um pouco demais. Soltou-o logo que Torkel olhou para ele com as sobrancelhas levantadas.

– O que queres tu dizer? – Sebastian fez um esforço para não se mostrar muito surpreeendido e ansioso. – De que estás tu a falar, a substituta de Vanja?

– A Vanja candidatou-se a um lugar num programa de formação do FBI.

Sebastian ouviu as palavras, entendeu o que elas provavelmente signi?cavam, mas, na verdade, não conseguiu absorvê-las. Não queria absorvê-las.

– Nos Estados Unidos? – foi tudo o que ele conseguiu dizer.

– Creio que é onde o FBI costuma estar.

– Por quanto tempo? Quando? – A boca de Sebastian secou de repente. Achou que as suas perguntas soaram como um grasnido seco, mas talvez fosse por causa daquele ruído tumultuoso nos seus ouvidos. Torkel não pareceu notar.

– O programa?

– Sim.

– Três anos, a partir de Janeiro.

Torkel voltou para junto do resto da equipa; Sebastian ?cou onde estava, como se alguém o tivesse pregado ao chão.

Três anos.

Três anos sem ela.

Quando ?nalmente se aproximara dela.

Ouviu o seu nome. Mais uma vez. Sebastian viu que os outros haviam parado a meio das escadas que conduziam ao controlo de segurança, sem saberem se tinha a intenção de se juntar a eles. Começou a andar. Pegou na mala. O seu corpo estava a caminho de Jämtland, mas o seu espírito estava num lugar completamente diferente.


LENNART STRIDH SALTOU para fora do táxi junto ao Åhlén, em frente ao Café Bolero. Estava cinco minutos atrasado e atravessou a passadeira a correr quando os semáforos estavam prestes a mudar para verde. Um motorista buzinou com raiva, mas Lennart nem sequer olhou na direcção do carro. Apressou-se a chegar ao café, abriu a pesada porta de vidro e entrou. O ar estava pejado do doce aroma do café e dos bolos. Olhou ao redor da sala grande; o local estava mais movimentado do que ele esperava. Ela haveria de ter entre trinta e cinco e quarenta e cinco anos. Sabia que tinha dois ?lhos adolescentes, mas só isso. A curta distância, uma mulher com um xaile preto ao redor da cabeça levantou-se e olhou para ele. Deu alguns passos cautelosos na sua direcção. Era magra, tinha olhos escuros e um tom de pele mais moreno do que a maioria das pessoas que a rodeavam. Devia ser ela. Tinha escolhido uma mesa afastada das outras pessoas, a um canto, onde ?cava quase invisível.

– Shibeka?

Ela fez um leve aceno de cabeça. Ele aproximou-se e estendeu-lhe a mão.

– Olá, eu sou o Lennart.

Ela voltou a assentir com a cabeça. Percebeu que ela se sentia desconfortável, ali no meio da sala. Provavelmente, estava nervosa. Isso era pouco surpreendente – a maioria das pessoas ?cavam nervosas quando o conheciam.

– Muito prazer em conhecê-la. Sente-se bem aí sentada?

Ela falou pela primeira vez.

– Sim. Está óptimo.

O sotaque era menos perceptível do que ao telefone, e ela parecia um pouco mais descontraída, como se a sua ansiedade tivesse diminuído quando ouvira o som da sua própria voz.

– Posso pedir um café para si?

– Chá, por favor.

Embora ela quase nunca o tivesse ?tado nos olhos, parecia mais forte do que ele esperara. Quando falara com ela ao telefone, tinha ?cado com a impressão de uma mulher muito mais oprimida. Foi ao balcão e comprou uma chávena de chá, um americano e dois bolos de canela, contemplando-a enquanto esperava que o seu pedido fosse satisfeito. Ela parecia tensa, as mãos cruzadas em cima do regaço, os olhos ?xos no chão. Chegou à mesa, pousou a bandeja e sentou-se em frente dela. Decidiu ir direito ao assunto.

– Está nervosa? Não precisa de ?car preocupada.

– Não estou habituada a este tipo de coisas.

– Eu compreendo, mas é bastante simples. Vou fazer-lhe algumas perguntas sobre o seu marido, e a senhora tenta responder. Tudo o que disser ?ca só entre nós os dois.

Ela assentiu e sorveu hesitantemente o seu chá sem olhar para cima. Lennart tirou do bolso o bloco de notas, clicou na esferográ?ca. Alguns dos seus colegas gravavam todas as entrevistas que faziam, mas ele preferia caneta e papel. Um gravador podia deixar as pessoas nervosas. Isso signi?cava que elas não poderiam dizer que tinham sido mal citadas, e Lennart achava que as tornava mais cuidadosas, fazia com que começassem a censurar-se. Não queria isso. Naquele momento, o importante era obter uma imagem mental de Shibeka e avaliar o potencial da história dela, para decidir se era ?dedigna e se o desaparecimento do marido era algo que valesse a pena explorar ou um beco sem saída. Nesse ano, Lennart já tinha deparado com vários becos desses e não queria mais.

– Vamos começar por si – disse-lhe ele, de caneta em riste. – Você e o seu marido vieram para a Suécia no ?nal de 2001?

– Sim, com os meninos. Eles tinham dois e quatro anos.

– Do Afeganistão?

Shibeka olhou para ele. Ele fazia aquilo parecer muito fácil. Como se eles tivessem saltado para um avião e aterrado na Suécia algumas horas mais tarde. Por um momento, deixou os seus pensamentos vogarem até ao acampamento no Paquistão, onde tinham ido parar quando primeiramente fugiram de lá. O mau cheiro, a sobrelotação, o medo e, em toda parte, o som de crianças a chorar. As tendas eram geladas à noite e sufocantes durante o dia. Hamid, a convencê-la de que tinham de sair dali. Seguir caminho. Os homens a quem tinham pago para os levarem até ao Irão. A terrível jornada num camião através das montanhas e dos desertos pedregosos, os dias e as semanas a confundirem-se num único e longo pesadelo. Tudo o que conseguia lembrar-se era de estar sentada e encostada contra o táxi, a segurar Eyer e Mehran nos seus braços. Aquela dor nos braços por apertar os seus ?lhos era a única memória autêntica que tinha da fuga deles; o resto era uma confusão de imagens diferentes, mas nunca se esquecera da dor. Esticou os braços um pouco, só para ter certeza de que a dor tinha desaparecido para sempre.

– Sim, mas primeiro fomos para a Grécia.

– Portanto, a Grécia foi o vosso primeiro país de asilo?

Asylland. Mas que palavra. Uma das primeiras que ela tinha aprendido em sueco. O primeiro Estado membro da União Europeia a que um refugiado chega e o país para o qual ele ou ela são enviados de volta antes de serem devolvidos ao seu país.

– Mas depois vieram para a Suécia? – continuou Lennart quando ela não respondeu.

Shibeka assentiu.

– Tínhamos amigos e familiares na Suécia, por isso Hamid quis vir para aqui.

– Mas não vos concederam asilo?

– Ao princípio não. Houve muitos problemas.

Ela calou-se. Lennart inclinou-se um pouco mais para a frente. Isto poderia determinar se ele lhe ia dizer obrigado, mas não, obrigado, ou se prosseguia.

– Nunca foi concedido asilo a Hamid, pois não? E você e os seus ?lhos só o conseguiram alguns anos mais tarde, após ele ter desapareciso... foi assim?

Shibeka suspirou; já sabia onde isto ia dar. Era sempre o mesmo. De volta ao que as autoridades suecas diziam invariavelmente. Estava muito cansada de tudo aquilo.

– Ele não desapareceu por não ter autorização para ?car. E não desapareceu para que nós pudéssemos ?car. – Shibeka levantou a voz e olhou Lennart nos olhos pela primeira vez. – Vocês dizem sempre que foi por isso que ele desapareceu, mas não é verdade!

Lennart olhou-a. Desaparecera a mulher cautelosa, ligeiramente circunspecta. Os olhos dela luziam de paixão. Lennart conseguia ver-lhe a força interior, e de repente compreendeu aquela luta dela pelo marido, que já decorria há tantos anos. Aqui estava uma mulher que jamais desistia, mesmo que as probabilidades estivessem contra si.

– Não é isso que eu estou a dizer, mas é o que dizem a Polícia e o Conselho de Imigração: que Hamid desapareceu após uma reunião com o Conselho de Imigração na qual foi informado de que vocês provavelmente iriam ser mandados para trás.

Shibeka sabia que tinha de protestar. Abanou a cabeça e cerrou os punhos.

– Eles não conhecem Hamid. Ele nunca nos deixaria, nunca deixaria que os seus ?lhos crescessem sem pai. Nunca. Alguma coisa deve ter acontecido.

A expressão dela era quase suplicante quando olhou para o homem sentado à sua frente. Após um breve silêncio, ele largou a caneta e perguntou-lhe com genuína curiosidade:

– Então, o que julga você que aconteceu?

– Não sei.

– Mas pensa que tem algo a ver com o tal homem que apareceu cerca de uma semana após Hamid desaparecer?

– Sim.

– O tal homem que você pensou que era um agente policial?

– Ele portava-se como um agente policial, mas não estava fardado.

– E ele não lhe disse como se chamava?

– Não.

– Portanto, você não tem ideia de onde é que ele vinha?

Ela abanou a cabeça.

– Ele fazia perguntas como um polícia.

– O que lhe perguntou ele?

Shibeka pensou nisso. Por onde começar? Fizera muitas perguntas, todas centradas em Hamid e no seu primo. Ela percebeu que o que dissesse naquele momento seria crucial. Tinha de fazer Lennart Stridh compreender que aquele homem sueco com um fato escuro que tinha ido ao seu apartamento era importante. Que a visita dele era signi?cativa. Ele andava atrás de alguma coisa, alguma coisa que ela não conseguiria dar-lhe mesmo que quisesse.

– Fez sobretudo perguntas acerca do Hamid – disse ela lentamente. – E do Said, o primo dele. Se eles tinham dito para onde iam, se tinham levado alguma coisa com eles, se se tinham encontrado com alguém antes, se tinham ido para fora nas últimas semanas, e... e...

Calou-se a meio da frase. Os seus pensamentos regressavam sempre ao outro homem. Ele e o sueco do fato escuro tinham alguma coisa a ver com o desaparecimento de Hamid, tinha a certeza disso.

– E acerca do Joseph.

Lennart tomou nota do nome.

– Quem é o Joseph?

– Não sei. Ele conhecia o Said.

– E Said desapareceu ao mesmo tempo que o seu marido.

Ela fez um gesto de assentimento.

– O Said via o Joseph com frequência. O Hamid não gostava dele. Ele contou-me isso.

– Mas você nunca conheceu esse tal Joseph nem ouviu nada sobre ele desde então?

– Não. Tentei, mas não consegui encontrá-lo.

De repente, Lennart ?cou sem saber ao certo o que pensar. Shibeka Khan parecia ser digna de con?ança; de facto, ele não estava mesmo a ver porque haveria ela de mentir. Andava desde há muito a tentar descobrir o que acontecera ao marido – na verdade, desde há mais tempo do que realmente sabia dizer, e fazia-o por iniciativa própria. No entanto, o facto de ela não saber não implicava necessariamente que houvesse alguma coisa que valesse a pena investigar, por parte dele e do programa. Poderiam existir todo o tipo de razões por trás daquele desaparecimento, razões que eram trágicas para a família, mas sem qualquer interesse para um jornalista de investigação ou para os telespectadores.

E, no entanto, havia nesta mulher algo que lhe despertou o interesse. Algo na história dela que não encaixava bem. Não, não na sua história – achava ele –, mas na resposta das autoridades. Não era tanto o que lhe tinham dito, mas o que não tinham dito. A pequena pesquisa que ?zera desde que recebera a carta não conduzira a nada de concreto; muito pelo contrário. Começara por telefonar para o Conselho de Imigração e, como de costume, tinham-no transferido de um funcionário para outro até conseguir falar com a pessoa certa. O Conselho con?rmara que Hamid Khan desaparecera alguns dias depois de uma reunião com eles e que suspeitavam de que ele se tinha afastado deliberadamente. Não dispunham de pormenores actuais; a última nota no ?cheiro respectivo dizia que estavam a aguardar os resultados da investigação policial. Essa nota datava de Agosto de 2003. Nada acontecera desde então, a não ser que em 2006 fora concedida uma autorização de residência à esposa de Hamid, Shibeka, e aos seus dois ?lhos, Eyer e Mehran. A seguir, Lennart tinha contactado a Polícia e fora-lhe dito que a investigação concluíra que o desaparecimento de Hamid estava provavelmente ligado a uma ordem de deportação iminente, mas não podiam fazer mais comentários. Lennart quisera saber porquê. O caso estava classi?cado, informaram-no. Era essa a verdadeira razão pela qual estava ali sentado com Shibeka. Não conseguia lembrar-se de outro caso em que uma recusa de concessão de asilo tivesse sido classi?cada.

Depois havia a história de Said Balkhi, o primo de Hamid, que tinha desaparecido ao mesmo tempo. Chegara à Suécia vários anos antes e recebera uma autorização de residência em 2000. Era proprietário e gerente de uma loja na Fridhemsplan onde Hamid por vezes trabalhava. Na noite em que eles desapareceram em 2003, telefonara à esposa e dissera-lhe que estava a ir para casa. Tinham fechado a loja e trancado tudo e nunca mais ninguém os vira. A esposa de Said estava à espera do primeiro ?lho daí a poucos meses. Ele não tinha nenhum motivo para desaparecer, absolutamente nenhum. Havia qualquer coisa em todo este assunto que não lhe parecia bem; Lennart foi-se convencendo cada vez mais de que valia a pena examinar aquilo.

Decidiu por intuição. Exigiria tempo e recursos, mas não faria mal escavar mais um pouco.

– Shibeka, vamos levar isto por diante. Não lhe posso prometer nada, mas pelo menos vamos meter mãos à obra.

Todo o rosto dela se iluminou, e quase entornou o chá quando se pôs em pé num salto.

– Obrigado! Muito obrigado!

Lennart não pôde deixar de sorrir perante a óbvia satisfação da mulher.

– Mas lembre-se, não lhe posso prometer nada.

– Eu sei. Eu sei, mas esperei tanto tempo por isto.

Shibeka acalmou-se, percebeu que estavam várias pessoas a olhar para si e sentou-se novamente. No entanto, a felicidade continuava a borbulhar dentro dela, tornando difícil que se mantivesse quieta.

– Pronto, então temos muito trabalho para fazer – prosseguiu Lennart. – Preciso de uma lista de todos os seus amigos e parentes que possam saber alguma coisa. Preciso de cópias de todas as cartas que enviou e de uma autorização sua para que eu possa solicitar todo o material relevante às autoridades. A seguir precisamos de nos sentar e de recapitular ao pormenor tudo aquilo de que se lembra. Pode fazer isso?

Havia muitas palavras, e ele falava muito depressa. Ela não conseguia acompanhar tudo, mas compreendeu a última pergunta, e sabia a resposta.

– Eu não posso fazer nada – disse-lhe ela, sustendo o seu olhar, e Lennart percebeu instintivamente que isso era verdade.


O VOO DELES PARTIU a horas e deveria aterrar dez minutos mais cedo. Essa informação passou completamente despercebida a Sebastian, sentado no seu lugar da coxia. Também não ouviu as instruções de segurança. Não fazia a mínima ideia de quanto tempo o voo iria demorar nem de como estava o tempo em Östersund. Rejeitou a bebida quente e a sanduíche de carne assada que a tripulação de cabina lhe ofereceu.

Vanja ?caria longe dali por três anos.

Não conseguia tirar isso da sua cabeça. Não podia ser verdade. Aquilo não podia acontecer. O que faria ele? Sabia o que queria fazer.

Ir com ela.

Ou segui-la, pelo menos.

Não havia nada que o prendesse a Estocolmo ou à Suécia, além de Vanja. Queria estar onde ela estivesse. No entanto, percebeu que a ideia de a seguir até aos Estados Unidos era impossível. Ela iria pensar que ele era louco. Era uma loucura. Começaria a evitá-lo de novo, e por bons motivos. A descon?ar dele. A odiá-lo. Não podia permitir que isso acontecesse.

Vanja vinha na sua direcção desde o lavabo na parte da frente do avião. Sebastian tocou-lhe no braço quando ia a passar, e ela parou.

– Ouvi dizer que te candidataste a um lugar num programa de formação do FBI.

– É verdade.

Por um momento, dispôs-se a contar-lhe o que estava a pensar, pedindo-lhe que não fosse. Mas não tinha maneira de fundamentar esse pedido nem resposta para a pergunta inevitável dela:

– Porquê?

– Até que ponto já chegaste? – perguntou-lhe ele em vez disso, na esperança de que ela ainda tivesse um longo caminho a percorrer. Vários obstáculos difíceis. Testes exigentes em que poderia falhar.

– Já ?z balística, os testes físicos e escritos, e neste ?m-de-semana fui ter com Persson Riddarstolpe para a minha avaliação psicológica.

– Ele é um idiota – disse Sebastian, quase por re?exo.

– Eu sei que tu pensas isso.

– Eu não penso isso, ele é um idiota. Isso é um facto, tal como o facto de a Terra ser redonda.

Vanja sorriu-lhe. Ele adorava aquele sorriso.

– Em todo o caso, acho que correu bem. Ele tem de apresentar um relatório e, depois disso, acho que faltam apenas mais alguns passos.

Claro que tinha corrido bem. A pequena centelha de esperança que Sebastian se permitira sentir desvaneceu-se e morreu. Claro que ela tinha passado em tudo com notas altas. Claro que seria aceite.

Ela era a melhor.

Ela era sua ?lha.

– O Torkel acha que eu vou conseguir entrar – continuou Vanja. – É por isso que a Jennifer está aqui.

– Pois, ele disse-me.

Vanja ?cou onde estava; parecia aguardar mais qualquer coisa.

Parabéns, por exemplo.

Ou boa sorte.

Mas isso nunca chegou.

 

A superintendente Hedvig Hedman estava à espera deles no átrio das chegadas. Recebeu-os e pediu desculpa por não lhes poder oferecer melhores condições meteorológicas. Depois de recolherem as bagagens, acompanharam-na até um veículo de transporte que os aguardava. Saíram de Frösön e seguiram à beira do lago até chegarem à E14.

Enquanto se dirigiam para Storulvån, Hedvig contou-lhes o que sabia. Não era muito. Uma a caíra num rebordo que, presumivelmente, sofrera a erosão da chuva. O solo cedera, deixando à mostra um esqueleto. A Polícia começara então a escavar à volta desses restos mortais e deparara com outro crânio. Quando chegaram ao ?m, tinham encontrado seis corpos, lado a lado. Hedvig fora veri?car todos os bancos de dados e arquivos possíveis, mas não havia relatórios sobre um grupo de seis pessoas que tivesse desaparecido em qualquer sítio nos últimos cinquenta anos.

– Sabem há quanto tempo eles estavam lá? – perguntou Torkel.

– Não, deixámo-los na montanha. Ainda não começámos a investigar isso; achámos que era melhor esperar por vocês.

Ursula fez um gesto de aprovação com a cabeça. Havia demasiadas forças policiais locais a quererem mostrar como eram espertos, a quererem provar que conseguiam chegar a alguma conclusão antes que a Riksmord aparecesse. Hedvig Hedman parecia ter uma abordagem diferente – e com toda a razão, na opinião de Ursula. Ela percebera que o caso poderia vir a revelar-se demasiado complexo e pedira imediatamente reforços em vez de esperar até que não soubessem mais o que fazer.

– Sabem como eles morreram? – perguntou ela, ?tando os olhos de Hedvig no espelho retrovisor.

– As primeiras indicações sugerem que foram baleados, mas não podemos ter a certeza antes de os examinarmos.

Jennifer estava sentada lá atrás com Billy, a deleitar-se com a experiência. Não conseguia acreditar na sorte que tivera. Estava de facto sentada dentro de um veículo de transporte com a Riksmord. Seis mortos. A tiro. Enterrados na encosta de uma montanha. Isto era um pouco diferente de passar multas por excesso de velocidade e resolver brigas de bêbados numa sexta-feira à noite. Fora por isto que ela entrara para a Polícia. Assassinos. Pistas. Uma investigação complexa. A perseguição, a excitação. Estava a fervilhar de excitação. Apetecia-lhe dizer isso a toda a gente.

Jennifer Holmgren, Riksmord.

Quase nem conseguia estar quieta. Billy voltou-se para ela. Jennifer sabia que estava ali sentada com um grande sorriso estampado no rosto, mas não conseguia evitá-lo.

– Porque estás tão contente?

Ela disse-lhe a verdade.

– Estou a gostar imenso de estar aqui.

Vanja olhou para a sua substituta lá atrás. Quase esperara que Jennifer acrescentasse um «contigo», referindo-se a Billy. Pareciam ambos ter começado de imediato a dar-se bem. Tinham-se sentado juntos no avião, a rir e a conversar sobre quem seguiam no Twitter e sobre outras coisas a que Vanja não dava a mínima importância. Em poucas horas, Jennifer tinha conseguido fazê-la sentir-se velha. Desviou novamente a sua atenção para a estrada. Precisava de se recompor. Sairia da equipa, por isso era bom que Billy se relacionasse com a sua substituta. Não estava com ciúmes, mas... aquele era o seu lugar. Jennifer ia ocupar o seu lugar. Fora Vanja que optara por partir, mas, ainda assim... Pela primeira vez desde que embarcara na sua aventura do FBI, percebeu que não estava apenas a caminho de um lugar novo, também estava a deixar algo para trás. Algo de bom.

 

Viraram à esquerda para Enafors, e depois à direita antes de chegarem a Handöl. Seguiram ao longo de um vale onde as montanhas se erguiam de ambos os lados da estrada, com as suas quentes cores outonais a reluzirem sob a chuva. A estrada estreita foi-se estreitando ainda mais e depois desembocou de repente num grande parque de estacionamento. Tinham chegado. Um edifício comprido e baixo, extendendo-se em todas as direcções. Um dos lados terminava numa espécie de rami?cação octogonal que se assemelhava a um silo. Telhados cinzentos. Em toda a parte. À primeira vista, oitenta por cento do local pareciam ser telhados. Sebastian não sabia nada sobre arquitectura, mas sabia quando achava que alguma coisa era feia. Aquilo era feio. Funcional, porventura, como estância de montanha, mas ninguém poderia dizer que era atraente.

Apressaram-se a entrar e foram recebidos na recepção por um casal que se apresentou como sendo Mats e Klara, lhes entregou as chaves e lhes explicou as disposições tomadas para os próximos dias. Poderiam ?car o tempo que quisessem, embora o hotel estivesse encerrado, uma vez que a temporada já terminara. Durante o dia haveria pessoas no local, a prepararem-no para o Inverno; algumas ?cariam durante a noite nos alojamentos do pessoal. Todos os dias viria um cozinheiro preparar-lhes o almoço e o jantar. Poderiam ir à cozinha servir-se do que quisessem para o pequeno-almoço. Talvez houvesse de vez em quando algum operário a efectuar pequenas reparações, mas só durante o dia. Se precisassem de qualquer coisa ou tivessem alguma dúvida, Mats e Klara estavam sempre disponíveis.

Decidiram deixar as bagagens nos quartos, comer algo rapidamente e depois ir até à montanha o mais depressa possível, enquanto ainda havia luz. Hedvig tinha dois veículos à sua disposição.

 

Torkel pousou a sua mala em cima da cama e em seguida foi à janela. Tinha vista para o rio; a água estava alta. Uma ponte suspensa transpunha a torrente, e ele avistou o trilho já muito pisado que levava os caminhantes até às montanhas. Sentiu-se contente por estar ali. Não podia ?ngir que não tinha certas esperanças quando viera para esta viagem, esperanças que nada tinham a ver com o trabalho policial. Talvez ele e Ursula pudessem arranjar maneira de voltar um para o outro. De avançar, até. Há muito tempo que viviam segundo as regras que Ursula impusera.

Só no trabalho.

Nunca em terreno caseiro.

Sem planos para o futuro.

Eram regras simples, tinham-nas seguido durante vários anos, e isso dera resultado. Mas depois as coisas tinham mudado. Ursula fora ao apartamento dele. Procurá-lo. Quisera-o. Em terreno caseiro. Em Estocolmo. Duas das regras tinham sido quebradas, em sua opinião, e quem as quebrara fora Ursula. Parecia a Torkel que isso havia complicado as coisas. Nas poucas ocasiões em que se tinham encontrado ou conversado recentemente, ele ?cara com a sensação de que Ursula mudara. Não muito, nada de grave, apenas uns pequenos sinais. Uns pormenores. Pensou que talvez fosse por ela ter medo de que estivessem prestes a quebrar a terceira regra também. Talvez a ideia de um futuro conjunto a assustasse. Torkel não queria mais do que isso, mas sabia que não devia tomar a iniciativa. Tudo o que tinham feito fora nos termos de Ursula. Sempre. Ele queria ir em frente, mas agora tinham a possibilidade de se reagruparem.

De voltar atrás.

De seguirem as regras uma vez mais.

Não havia dúvida de que tudo fora mais simples noutros tempos; ele esperava que conseguissem encontrar o caminho de volta até esse ponto, e em seguida avançassem. Algumas noites num hotel, longe do marido dela. Dar um passo atrás para que pudessem efectuar algum tipo de progresso. Era isso que Torkel queria, era isso que ele esperava.

Como de costume, não fazia a mínima ideia do que Ursula estava a pensar.


APÓS UMA REFEIÇÃO que consistiu de goulash, pão, café e biscoitos de amêndoa com chocolate, reuniram-se à porta da estância de montanha. A chuva desabava agora com mais força. Caía a cântaros quando atravessaram a ponte até aos dois veículos todo-o-terreno que os esperavam do outro lado. Sebastian detestava chuva. Não importava que tivesse vindo bem equipado para aquele clima; ao ?m de poucos minutos, sentia-se como se estivesse molhado até aos ossos. Completamente encharcado e frio.

– Não há nada a que possa chamar-se mau tempo, somente roupas erradas.

Só um cabrão dum fascista da Natureza que tivesse sofrido uma lavagem cerebral diria tal coisa. Isto era mau tempo. De um ponto de vista puramente objectivo, era um tempo horrorosamente mau, e no entanto ele estava bem equipado. Sebastian pensou em voltar para trás, ?car à espera no hotel. Na verdade não precisava de ver o local onde os corpos haviam sido encontrados, mas agora já tinham chegado aos carros e à protecção contra a chuva. Passou à frente de Jennifer e saltou lá para dentro.

Meia hora depois, tinham chegado. Fora erguida uma grande tenda branca sobre os despojos, e um gerador a gasolina fornecia energia para os holofotes colocados dentro e fora da tenda para o anoitecer que se aproximava. Hedvig conduziu-os a um homem na casa dos cinquenta anos que se apresentou como Jan-Erik Kask. Apertou a mão a todos eles, e a seguir pôs-se a caminhar pelo meio da lama.

– O rebordo cedeu, e o que encontrámos foi isto...

Levantou a aba da tenda e Sebastian entrou logo, com Ursula atrás de si. Torkel parou e olhou em redor.

– Há espaço para todos nós?

– Deve haver. Mas não se aproximem muito da borda senão também podem ir parar lá abaixo.

Torkel, Billy, Vanja e Jennifer penetraram na tenda. O ar estava abafado e húmido; a combinação das luzes e da chuva fazia aquilo parecer uma casa de borboletas. Todos desapertaram os casacos.

No meio viram um buraco de aproximadamente dois metros por cinco, com menos de um metro de profundidade. No fundo jaziam seis esqueletos mais ou menos lado a lado; dois deles eram signi?cativamente mais pequenos que os outros. Outros dois ainda tinham restos de roupas apodrecidas agarrados às pernas. O esqueleto que estava mais distante da entrada tinha um braço estendido para o lado da tenda, como se estivesse a veri?car se ainda chovia lá fora. Ouviam a água a correr tumultuosamente mais abaixo. Jan-Erik agachou-se junto à sepultura e acenou para os restos que estavam na outra extremidade.

– Foi ali que a caminheira caiu. Pelo caminho agarrou-se a uma mão e a um antebraço; estão dentro de uma caixa lá fora.

Ursula fez um gesto de assentimento. Tirou a tampa da lente da sua câmara e esta logo se embaciou, tal como ela já sabia que iria suceder. Passou a câmara a Billy e calçou as luvas de látex antes de se agachar em frente de Jan-Erik. Sebastian e os outros permaneceram onde estavam, dispostos em ?la. Este era o departamento de Ursula. O seu espectáculo. Eles eram meros espectadores.

– Seis esqueletos em condições relativamente boas. Foram dispostos lado a lado, com cuidado, não atirados para aqui.

Falou com clareza, embora estivesse a dizê-lo tanto para si quanto para a equipa e para Jan-Erik.

– Isso é signi?cativo? – perguntou Jennifer em voz baixa, sem saber se não faria mal falar. Ursula lançou um olhar rápido a Sebastian, como se lhe dissesse que poderia ser ele a responder.

– Poderá ser. Talvez signi?que que o assassino tem um certo nível de respeito pelas vítimas ou que prefere uma abordagem muito bem estruturada e não se deixa afectar particularmente pelas emoções.

– Como é que vocês os desenterraram? – perguntou Ursula a Jan-Erik.

– Usámos uma pequena escavadora.

– Foram dani?cados? Pela máquina?

– Não, bom, sim, eventualmente, poderemos ter tocado num ou noutro...

Ursula inclinou-se para diante e pegou num osso da coxa sem dizer nada. Era castanho-acinzentado e parecia quase bolorento, com terra e lama agarrados. Por entre a matéria escura havia um rasgão onde brilhava um osso pálido, quase branco. A escavadora tinha feito mais do que tocar num ou noutro. Claro que não era difícil ver-se quais os danos que haviam sido causados recentemente, mas, se o operador tivesse sido mais cuidadoso, eles não precisariam de perder tempo e energia. Ursula voltou a colocar o osso no seu lugar enquanto, em silêncio, afastava todos os pensamentos positivos que tivera até agora sobre a Polícia de Jämtland.

Eram um bando de idiotas trapalhões.

Estendeu a mão para a câmara. Jan-Erik endireitou-se e virou-se para Torkel.

– Ao princípio pensámos que poderiam ser antigos. Realmente antigos – disse ele, só para deixar isso bem claro. – Muitas pessoas morreram aqui na montanha. Mais de três mil soldados do Exército de Carlos XII morreram aqui gelados no Inverno de 1718-19. De vez em quando ainda encontramos os restos deles. Não com frequência, há algum tempo que não, mas acontece.

– Com certeza deve ter sido óbvio que estes não tinham trezentos anos – disse Ursula enquanto fotografava o conteúdo da sepultura de todos os ângulos. – Todos eles têm buracos de bala na cabeça.

– Não podíamos assumir que eram buracos de bala.

Ursula baixou a câmara.

– Que mais poderia ser?

– Alguma arma que tivesse uma extremidade arredondada e fosse utilizada de forma contundente...

– Vocês encontram seis corpos com dois furos redondos no crânio e a primeira coisa de que se lembram é de uma arma antiga, em vez de uma bala?

– Esses soldados não são assim tão antigos.

Ursula decidiu ignorar a observação e voltou a fotografar os despojos.

– Haveria muitos soldados de Carlos XII que usassem gore-tex? – Indicou com a cabeça os dois esqueletos que tinham uns farrapos de vestuário amarelo-acinzentado a cobrir-lhes uma parte dos corpos.

– Esses dois foram os últimos que desenterrámos. Eram os que estavam mais longe da borda da encosta. – A voz de Jan-Erik estava impregnada de raiva contida; era óbvio que já estava a perder a paciência. Sebastian observou-os com interesse. Ursula já antes tinha contrariado os «peritos» de trazer por casa, mas isto fora duro, mesmo por parte dela. Torkel sempre insistira que eles não deviam irritar a força local; esse era um dos motivos pelos quais eram tão bem-sucedidos. Ursula sabia-o perfeitamente, e mesmo assim continuava a implicar com aquele pobre desgraçado.

Torkel pigarreou.

– Deixa o Billy continuar a fazer as fotogra?as e diz-nos o que estamos a ver. Temos de regressar.

Ursula parou e olhou para Torkel, que deu um passo em frente. Enfrentou calmamente o olhar dela. Tinha falado em voz baixa e com educação, como se estivesse a pedir-lhe um favor, mas o leve aceno de cabeça na direcção dela não deixava qualquer dúvida de que se tratava de uma ordem. Sebastian não pôde deixar de se sentir impressionado. Uma solução típica de Torkel. Interrompera um diálogo negativo, Jan-Erik haveria de pensar que Torkel ?cara do seu lado, mas, quando se referira a uma inexistente escassez de tempo e à perícia de Ursula, ?zera-o sem levantar a voz e sem a embaraçar. Ela passou a câmara a Billy sem qualquer hesitação.

– Primeiras impressões: quatro adultos, duas crianças. Olhando para as regiões pélvicas, eu diria que dois dos adultos eram mulheres.

– Então, há quanto tempo estarão aqui?

– É difícil dizer. Lama húmida, porosa, com água a escorrer com regularidade através do terreno... Há mais de cinco anos, em qualquer caso. – Ela levantou-se e caminhou à volta da sepultura. – Dois deles parecem ter sido enterrados com as roupas vestidas; nenhum vestígio de roupas nos outros dois adultos ou nas crianças.

– Poderiam as roupas deles ter apodrecido? – perguntou Vanja. – Se fossem feitas de um tecido diferente, que se decompusesse mais rapidamente?

– É possível, mas não há qualquer sinal de coisa alguma. Nem botões nem fechos, nada.

– Achas que esses quatro estavam aqui há mais tempo que os outros dois?

– Não parece ser assim. Estão todos no mesmo nível. Têm a mesma descoloração óssea. O mesmo posicionamento dos corpos. Julgo que podemos assumir que foram todos enterrados ao mesmo tempo.

– Então, porquê despir quatro deles e não os outros dois?

Ursula não respondeu. Agachou-se de novo e virou com cuidado dois dos crânios que estavam ligeiramente afastados para um lado.

– Os quatro que não têm roupa também não têm dentes – disse ela. – Isso não pode ser explicado pela sugestão de que talvez estivessem aqui há mais tempo.

– O que faz os dentes desaparecerem? – quis saber Jennifer.

– Numa sepultura? Nada. Alguém os removeu antes de os corpos serem enterrados.

– Alguém que não queria que eles fossem identi?cados? – Jennifer sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Tinha entrado para a Polícia para ter acção e excitação. Nada mais interessava. É certo que havia uma certa satisfação no trabalho de rotina, mas fora com isto que ela sonhara. Localizar o perpetrador, encontrar as provas, assegurar uma detenção. Teve de se conter para não sorrir; isso não era apropriado. Dentro daquela tenda húmida, a atmosfera era pesada e grave.

– Essa é uma hipótese – disse-lhe Ursula com um aceno de cabeça.

Sebastian não dissera muito até agora. Precisava de sair dali. Aquilo era demasiado opressivo; não conseguia respirar. Até a chuva era preferível. Foi lá para fora e descobriu que já quase parara de chover. Fazia um vento frio, que soprava de norte. Apertou o seu casacão e respirou fundo algumas vezes.

Seis mortos. Duas crianças. Mais ou menos executados. A Riksmord não trabalhara frequentemente com crianças assassinadas durante o tempo em que estivera com eles, mas já tinha acontecido, e isso causava sempre os seus efeitos, mais do que outros casos. Sebastian suspirou. Não era qualquer um que conseguia disparar contra uma criança. Isso signi?cava que estavam a lidar com um tipo muito particular de perpetrador, mas remover-lhes os dentes a seguir...

As seis pessoas que estavam naquela sepultura não eram as primeiras que ele tinha matado.

Nem as últimas.

Sebastian tinha a certeza disso.


LENNART CALCORREAVA o escritório sem divisórias que constituía a sede do Investigação Hoje. O programa estava centralizado ali há mais de dez anos, e a equipa era agora constituída por mais de vinte pessoas. Não havia muito espaço; estavam amontoados numa área do segundo piso do edifício cinzento de betão que era a sede da Televisão Sueca. O vizinho mais próximo que tinham era a secção de cultura, que juntava menos pessoas numa área maior; várias delas desfrutavam até do luxo de terem o seu próprio gabinete. Lennart estivera nessa mesma posição até há dois anos, quando Sture Liljedahl se tornara seu chefe e logo mandara remover todas as paredes interiores, deixando um espaço aberto onde «a criatividade e a espontaneidade pudessem ?uir livremente». Alegara que queria aumentar a colaboração e o intercâmbio de ideias dentro da equipa, mas Lennart sabia que, na verdade, se tratava de amontoar o máximo possível de funcionários no menor espaço. Hoje em dia estavam todos sentados numa grande sala com as mesas de frente umas para as outras. Lennart detestava aquilo. Queria ser capaz de falar ao telefone e de trabalhar na sua escrita sem estar sempre a ser incomodado. Quando se queixara, Sture informara-o de que ele era demasiado conservador e precisava de desenvolver as suas aptidões sociais. Lennart achava que querer ser capaz de efectuar o seu trabalho em paz e sossego era perfeitamente normal. O que era ainda mais enfurecedor era que Sture continuava a dispor do seu próprio gabinete: duas salas mais pequenas haviam sido unidas e remodeladas. Ele mandara instalar uma parede de vidro grosso e uma nova mesa de reuniões, para que pudesse presidir a reuniões privadas e manter um olho na equipa sem ter de os ouvir. Os conceitos como a colaboração, o intercâmbio de ideias e as aptidões sociais claramente não se destinavam a todos. Mas como o chefe era ele, isso signi?cava que se aplicavam regras diferentes.

Naquele momento, Sture estava lá dentro a conversar com a sua protegida Linda Andersson, uma esforçada mulher de trinta anos, que anteriormente trabalhara para o Expressen. Já estavam a falar há séculos, e Lennart não conseguia entender como é que uma reunião podia demorar tanto tempo. Ansioso por partilhar a história de Shibeka, Lennart pedira para falar com Sture logo que voltara da Sergels Torg. Dissera a Sture que tinha informações importantes e perguntara-lhe se ele tinha tempo para o receber.

Sim, tinha.

Daqui a pouco.

Agora não.

Tinha uma reunião ao almoço, depois ia falar com o director, e a seguir ia ver o programa que deveria ser emitido na próxima quarta-feira.

Depois disso, teria todo o gosto em receber Lennart.

Depois disso, aparecera Linda. Apanhara Sture à má ?la logo que este regressara ao gabinete, e ainda estavam a conversar.

De repente, Lennart sentiu uma vontade desesperada de um cigarro e en?ou na boca uma pastilha elástica de nicotina. Sabor arti?cial a fruta, 2mg de nicotina. Tinha deixado de fumar há dois anos, mas apesar disso surgia-lhe muitas vezes aquele desejo instantâneo, sobretudo quando estava enervado ou aborrecido. Neste momento sentia ambas as coisas. Aquela energia inicial após se ter encontrado com Shibeka fora substituída pela inquietação. Via-os a rirem-se por trás da parede de vidro. Ele nunca entenderia Sture. Quando Lennart não precisava dele, andava em cima de si como um falcão, mas, mal tinha realmente necessidade de falar com ele, era sempre a mesma coisa.

Daqui a pouco.

Agora não.

Sentou-se fatigadamente na sua mesa, pegou na chávena de café morno e sorveu um pouco. Não lhe soube muito bem. Talvez devesse veri?car a sua caixa de correio electrónico, ao menos assim teria algo para fazer. Nesse momento, a porta de Sture abriu-se; parecia que, por ?m, tinham terminado. Linda pegou no seu copo de café e no de Sture e recolheu os papéis. Sture estava à porta e acenou regiamente na direcção de Lennart. O rei estava disposto a conceder-lhe uma audiência. Lennart disse-lhe que sim com a cabeça, remexeu alguma papelada à sua volta para parecer atarefado, em seguida levantou-se e caminhou lentamente em direcção a ele. Não queria parecer demasiado ansioso, não queria que Sture pensasse que ele ?cara ali num estado de grande antecipação, somente à espera. Não, ele também era uma pessoa ocupada. Muito ocupada.

Cuspiu a pastilha elástica pelo caminho. Infelizmente, falhou o caixote do lixo e teve de se baixar para a apanhar. Sture assistiu a tudo isto; ocorreu a Lennart que a sua entrada no reino de Sture poderia ter sido um pouco mais impressionante.

 

Aquilo começou bem. Sture Liljedahl sentou-se em frente dele e escutou-o com interesse. Na verdade, nem por uma vez o interrompeu. Lennart não pôde deixar de se sentir orgulhoso. Estava no rasto de algo realmente bom. Quando terminou, Sture inclinou-se para diante com uma expressão interessada.

– Até que ponto é vulgar que as questões relativas aos requerentes de asilo sejam marcadas como con?denciais?

– O agente policial com quem falei nunca tinha visto isso antes. Não em casos de rotina, disse-me ele.

– Portanto, temos dois homens afegãos que desapareceram em Agosto de 2003 – resumiu Sture. – A Polícia alega que eles desapareceram deliberadamente por o seu pedido ter sido recusado, mas pelo menos um desses homens não tinha razão para desaparecer. Dizes-me outra vez como ele se chamava?

– Said Balkhi. Tinha-lhe sido concedida uma autorização de residência em 2001, e a esposa dele estava grávida.

Sture foi até ao enorme quadro branco que estava atrás dele; tinha sido a primeira coisa que mandara instalar, após a parede de vidro, e adorava fazer lá anotações. Com um marcador vermelho. Lennart supunha que isso o fazia pensar que estava no comando: as anotações dele ali expostas no quadro para que todos pudessem ver. Anotou o nome «Said».

– Então, o que sabemos nós sobre o Said?

– Praticamente nada. Segundo a Shibeka, era primo do Hamid; era co-proprietário de uma loja, juntamente com dois primos da sua esposa. Pensei que poderia ir falar com ela a seguir.

– Nenhum cadastro criminal?

– Nada que eu conseguisse encontrar.

Sture fez um gesto de assentimento.

– Muito bem. Então temos a Shileka... Como é que ela se chama?

– Shibeka. É o meu contacto; foi a única pessoa com quem estive.

– Mas parece ser de con?ança?

– Absolutamente. Fala e escreve muito bem sueco. Não consigo imaginar porque haveria ela de mentir. Anda desde 2003 a tentar descobrir o que aconteceu ao Hamid.

– E ela acha que algo não está bem. Porquê?

– Insiste que o Hamid nunca se teria ido embora sem lhe dizer alguma coisa, e depois há o tal fulano que apareceu doze dias após eles desaparecerem e começou a fazer perguntas sobre o Hamid.

– Ela acha que era um agente policial?

– Ou alguém das autoridades.

– Mas não estava de uniforme?

Lennart abanou a cabeça.

– Fez-lhe perguntas sobre a família de Hamid, sobre os amigos dele, todo o tipo de coisas.

– Ela não consegue dar uma descrição melhor?

– Não. Um homem sueco dos seus quarenta anos. Ela acha que todos os suecos têm mais ou menos o mesmo aspecto.

Lennart olhou para os seus apontamentos antes de prosseguir.

– Os agentes policiais com quem a Shibeka falou disseram-lhe que não tinham enviado ninguém para falar com ela nessa semana, e a Polícia de Solna con?rmou isso ontem.

Sture mostrou-se céptico.

– Talvez o Hamid estivesse envolvido em alguma coisa que a sua esposa não soubesse! Alguma actividade criminosa? Algum tipo de... rede? Há in?nitas possibilidades.

– Tens razão, mas há qualquer coisa acerca daquele período no início da década de 2000. Lembras-te do caso das rendições em 2002?

Sture lançou-lhe um olhar venenoso. Não era provável que ele esquecesse o grande furo do canal rival, que lhes valera um prestigioso prémio.

– Isto poderia ser algo semelhante – disse-lhe Lennart. – Em 2002, dois suspeitos de terrorismo foram deportados para o Egipto sem qualquer aviso, a pedido da CIA. Tanto a Polícia de Segurança sueca como o Ministério dos Negócios Estrangeiros estiveram envolvidos.

Sture animou-se. Essa era uma linha de investigação interessante. Não a mais provável, talvez, mas não impossível.

– Então queres dizer que eles encobriram alguma coisa e esconderam isso atrás de uma recusa de concessão de asilo?

– Uma recusa de concessão de asilo con?dencial – corrigiu Lennart.

– Esse tal Joseph, o que sabemos sobre ele?

Lennart abanou a cabeça.

– Nada. Shibeka lembra-se do nome dele; aparentemente, Hamid mencionou-o pouco antes de desaparecer, mas isso é tudo o que ela sabe.

Sture escreveu «Joseph?» no quadro, depois sentou-se e olhou pensativamente para Lennart.

– Na verdade, não temos o su?ciente. Concentra-te no relatório da Polícia; isso é o mais concreto que temos. Averigua porque é que ele foi classi?cado como con?dencial.

Lennart fez um gesto de assentimento e sorriu, o que era algo que não fazia com frequência durante uma reunião com Sture.

– Era exactamente isso que eu tencionava fazer.

Deve ter-se mostrado demasiado contente, porque Sture inclinou-se para a frente e estreitou os olhos.

– Quero que trabalhes nisso com a Linda.

O sorriso de Lennart desapareceu num segundo. Era exactamente aquilo que ele queria evitar: as intromissões.

– Mas ela não tem já as mãos cheias neste momento? – aventou ele. – O Anders já me ajudou um bocadito; não lhe posso pedir a ele, se precisar?

– Lennart, precisamos de averiguar se vale a pena prosseguir com isto ou não. Estou a dar-te os recursos necessários, e a Linda é boa – disse-lhe Sture com ?rmeza.

– Eu sei, mas gostaria de fazer isto sozinho durante mais algum tempo. Tu sabes que é assim que eu pre?ro trabalhar...

Sture fez um sinal de concordância, mas não estava disposto a desistir. Não era esse o seu estilo.

– Posso sugerir um compromisso? Contas à Linda o que tens até agora, e ela vai ajudar-te com a investigação, mas serás tu que andas em campo. Tu é que mandas nisso. Está bem?

Lennart olhou para ele. «Eu não mando nisto», pensou ele. «Quem manda és tu.» Mas o que podia dizer-lhe? Sture era o chefe, ao passo que Lennart não tardaria a ser substituído.

– Parece-me bem – disse ele, voltando a sorrir.


ESTAVA ESCURO QUANDO todos regressaram ao hotel.

Todos excepto Ursula, que ?cara para trás a ?m de efectuar um exame forense ao local e dirigir a remoção dos corpos. Torkel dispusera-se a ?car também, mas ela recusara, com o pretexto de que não havia muito que ele pudesse fazer. O que era perfeitamente verdade, embora houvesse uma coisa em que ele poderia ajudá-la, graças à sua in?uência política no interior da organização. Os corpos encontrados em Jämtland deveriam ser enviados para o laboratório forense em Umeå; no entanto, Ursula queria que Torkel averiguasse se em vez disso poderia enviá-los para Estocolmo.

Era mais fácil dizer do que fazer, aparentemente. Tudo aquilo se havia transformado numa espécie de guerra em duas frentes. O laboratório de Umeå entendera essa solicitação como um insulto à sua capacidade, enquanto os colegas de Estocolmo deixaram bem claro que não estavam propriamente com falta de trabalho e que decerto não precisavam de mais seis corpos. Se Torkel conseguisse facilitar a transferência, não deveria esperar que o caso obtivesse máxima prioridade. Os superiores dele também puseram em causa os motivos da deslocação. Ao ?m de pelo menos uma dúzia de telefonemas, Torkel percebeu que os custos seriam superiores aos benefícios. Seria em Umeå, e Ursula lá teria de viver com isso. Dir-lho-ia quando ela regressasse. Esperava que fosse quando estivessem a sós. No quarto dele. Ou no dela.

Quando cruzaram a ponte, avistaram o brilho quente e convidativo da secção octogonal do hotel, onde estava localizado o restaurante. Mats e Klara foram ter com eles à recepção, querendo saber o que gostariam de jantar. Concordaram em passar meia hora nos seus quartos antes de se encontrarem no restaurante.

Estavam hospedados naquilo a que Mats e Klara se referiam como «quartos de conforto». Aparentemente, o conforto signi?cava beliches, um tapete de pano, um simples roupeiro de contraplacado sem portas, um duche e uma retrete. Torkel achava que aquilo parecia um quarto de qualquer albergue para caminheiros.

Após um duche quente, posicionou-se em frente ao espelho com uma tesoura de unhas, limpou o vidro embaciado pela condensação e começou a trabalhar na eliminação de pêlos indesejados. A sua narina direita precisava de uma aparadela. Ele detestava aqueles pêlos compridos que, ao longo dos últimos anos, tinham começado a aparecer em lugares onde, decididamente, não os queria ter. Poucas coisas o faziam sentir-se tão velho como quando as suas ?lhas, não sem uma certa dose de Schadenfreude, lhe indicavam que os pêlos das suas orelhas precisavam de ser aparados outra vez. O seu telefone tocou, ele saiu do lavabo para ir atender.

Era Axel Weber do Expressen. Teria ele ouvido correctamente – a Riksmord estava em Jämtland? Na verdade, tinha. Torkel sabia que a história estaria em todos os meios de comunicação dentro de pouco tempo. Weber era um bom jornalista, e o facto de a Riksmord estar envolvida atraía automaticamente mais atenção. Weber queria saber porque estavam lá; o que tinham descoberto? Ou, para ser mais exacto, poderia Torkel con?rmar que tinham encontrado uma vala comum? Torkel respondeu-lhe que tinham encontrado vários corpos, os quais estavam enterrados há muito tempo. Não tinha a mínima intenção de especular sobre há quanto tempo, porque não sabiam. Mas há muito tempo.

Idade, sexo, quantos corpos, pistas, possíveis motivos – Torkel não estava preparado para comentar sobre nada disso. Quando a conversa relativamente curta terminou, Weber, na verdade, não sabia mais do que ao início.

– Você sabe que eu vou descobrir tudo isso, seja como for – disse-lhe ele, e Torkel poderia jurar que conseguira ouvir Weber sorrir do outro lado do telefone.

– Não através de mim.

Desligou a chamada. Era provável que Weber tivesse razão. Era óbvio que alguém da equipa de Hedvig Hedman já tinha falado, e sem dúvida iria continuar a fazê-lo. Hoje em dia, os casos com valor mediático eram quase impossíveis de conter. A partir de agora, teriam de limitar o ?uxo de informações, possivelmente até no que respeitava a Hedvig. O relatório ao procurador-geral sugeria que ela estava rodeada pelos colegas que lhe eram mais ?éis, ou talvez lhe faltasse discernimento no seu papel de liderança. E claro que ela tinha chamado a Riksmord; havia sempre agentes locais que achavam que isso signi?cava estarem a ser postos de lado. Era algo que acontecia com cada vez menos frequência; na sua maioria, eles ?cavam contentes com a experiência e com os recursos adicionais que a Riksmord trazia consigo, mas geralmente alguém sentia que a Riksmord lhes andava a pisar os calos. A partir de agora, Torkel e a sua equipa teriam de assumir que o quartel-general da Polícia em Östersund tinha tantos buracos como um crivo.

Telefonou imediatamente a Ursula; ela podia dizer à equipa que estava no alto da montanha para se manter de olhos abertos. Era improvável que alguém enviasse um fotógrafo para o meio da escuridão só para obter algum vislumbre da sepultura e dos corpos, mas já tinham acontecido coisas mais estranhas.

– Como é que te correu aquilo com o laboratório? – perguntou-lhe Ursula pouco antes de desligar.

– Falamos sobre isso quando voltares – disse-lhe Torkel de forma evasiva.

– Portanto, ?camos em Umeå.

Torkel pensou por um segundo. Poderia mentir-lhe, dizer-lhe que ainda estava a trabalhar no assunto, mas nada ganharia com isso. Mesmo assim, haveria de ser Umeå.

– Eu tentei, mas foi impossível. Quando é que vocês vêm para baixo? – perguntou-lhe, na esperança de impedir que ela matutasse no resultado negativo.

– Estou quase pronta; daqui a uma hora ou perto disso.

– Vou pedir-lhes que mantenham o jantar quente para ti.

– Obrigado.

Ursula terminou a chamada. O facto de ela não lhe ter dito adeus não signi?cava necessariamente que estivesse irritada. Poderia ser apenas por querer voltar ao trabalho, por o telefonema a ter interrompido. Optou por acreditar nessa última versão e voltou para a casa de banho.

 

Caçarola de caça, cunhas de batata, salada e mirtilos selvagens, seguidos de uma mousse de chocolate branco. Tinham começado a sobremesa quando Hedvig Hedman subiu as escadas que levavam à secção do restaurante conhecido como o Loft. Após os breves cumprimentos, ela pousou uma pasta em cima da mesa.

– Acho que talvez tenhamos identi?cado dois deles. Os que tinham roupas – esclareceu.

Torkel abriu a pasta; Vanja estava sentada ao seu lado e inclinou-se para a frente, enquanto Billy e Jennifer davam a volta à mesa para virem espreitar por cima do ombro dele. Sebastian não se mexeu. Supôs que a superintendente forneceria algum tipo de relatório verbal, e estava certo.

– Foi reportado o desaparecimento de dois cidadãos holandeses em Novembro de 2003: Jan e Framke Bakker, de Roterdão. Deviam começar as suas curtas férias de caminhada na Noruega a 27 de Outubro, terminando em Vålådalen na semana seguinte. Eram ambos caminheiros experientes; procurámo-los até a neve ter começado a cair, em 18 de Novembro desse ano.

– E porque pensam que são eles? – perguntou Torkel, olhando-a. – São as únicas pessoas que desapareceram por estes lados?

– Não, mas são o único casal que desapareceu na área em causa, além de o relatório dizer que as roupas de caminhada deles eram cinzentas e amarelas.

Hedvig debruçou-se e abriu uma bolsa de plástico na parte de trás da pasta. Continha o retrato de um homem e de uma mulher, ambos com pouco menos de trinta anos, tirado algures numa montanha coberta de neve. Nos Alpes, talvez. Estavam ambos com óculos de sol e pareciam bronzeados e curtidos pelas intempéries. A mulher tinha o cabelo ruivo e espesso apanhado num rabo-de-cavalo; o homem era mais ou menos careca. Estavam os dois a sorrir para a câmara, com os seus dedos a formar um sinal de vê de vitória. Usavam equipamento de alta qualidade para caminhada, cinzento com pormenores amarelos.

– Parece combinar com os farrapos de roupas na sepultura – disse Vanja.

Torkel concordou. Aquilo era algo a que Ursula precisaria de dar uma olhadela quando voltasse.

 

Duas horas depois estavam sentados numa das salas de conferência do hotel. Se não estivesse escuro lá fora, teriam uma fantástica vista das suaves cores outonais da paisagem montanhosa, mas agora tudo o que conseguiam ver eram os seus próprios re?exos nas janelas, iluminados por quatro poderosas lâmpadas ?uorescentes que os faziam parecer ainda mais pálidos e mais abatidos do que realmente estavam. O jarro, as chávenas de café e as garrafas de água mineral em cima da mesa tornavam a situação muito familiar. Exceptuando Jennifer, todos se tinham sentado em salas como esta muitas, muitas vezes. Sem aquela vista espantosa, este era apenas um lugar para se reunirem, tal como todos os outros.

Billy tinha imprimido as fotogra?as da sepultura e a?xara-as no quadro branco com ímanes.

– Vamos supor que encontrámos Jan e Framke Bakker – começou Torkel. – Se essa suposição estiver correcta, então teremos um período de tempo aproximado para os homicídios, mas precisamos de ter a certeza. Vanja, entra em contacto com a Polícia holandesa e vê se consegues arranjar registos dentários, radiogra?as, qualquer coisa que possa ajudar-nos a identi?cá-los. – Passou-lhe uma pasta e ela fez um gesto de assentimento com a cabeça.

– De onde vieram eles?

Todos os olhos se voltaram para Sebastian, que se levantou e se arrastou até ao quadro branco.

– Hum... Da Holanda. De Roterdão – disse Billy.

Sebastian lançou-lhe um olhar cansado.

– Portanto, eles eram holandeses e vieram da Holanda. Obrigado, eu nunca teria adivinhado.

Billy abriu a boca para responder, mas mudou de ideias e recostou-se para trás na cadeira.

– Re?ro-me a estas seis pessoas – disse Sebastian, batendo numa das fotogra?as com o seu dedo. – Alguém despiu quatro delas e removeu-lhes os dentes. Isso demora tempo. E a seguir vai cavar a céu aberto uma sepultura de quase um metro de profundidade, com seis corpos lá deitados?

– Talvez tenha cavado a sepultura primeiro. – Billy endireitou-se, ansioso por vingança. O olhar que Sebastian lhe lançou foi ainda mais cansado.

– E eles os seis ?caram lá à espera que ele terminasse?

– Bom, não...

– Não. A ordem não importa. É improvável que eles tenham sido assassinados no local onde foram encontrados. Portanto, de onde vieram?

A equipa fez sinais de concordância com a cabeça. Algures lá no fundo, todos já sabiam aquilo, mas ninguém o exprimira por palavras. A sepultura não era necessariamente a cena do crime; na verdade, era altamente improvável. Se conseguissem identi?car a cena, isso aumentaria as possibilidades de encontrarem uma pista. Billy empurrou a cadeira para trás.

– Vou buscar um mapa à recepção.

Sebastian regressou ao seu lugar. Mesmo em frente de Ursula. Recostou-se e olhou-a; ela estava obviamente consciente do seu escrutínio, pois levantou a cabeça e ?tou o olhar dele.

– O que é?

– Estás irritada?

– Não.

– Pareces irritada.

– Bom, não estou. Ainda não.

Sebastian optou por ignorar a expressão dela.

– Pareces irritada e cansada – continuou ele. – Desgastada.

– Sebastian. – Não havia qualquer equívoco no tom de voz de Torkel. Cala a boca, dizia-lhe ele. Sebastian virou-se para ele e abriu os braços.

– O que é? Ela parece mesmo desgastada. É o primeiro dia e ela já parece um caco. Só estou a querer saber como se sente.

– Então porque não me perguntaste isso? – disse-lhe Ursula. – Porque é que não me perguntaste como me sinto, em vez de me dizeres que pareço irritada?

– Desculpa. Como te sentes?

– Muito bem, obrigada. E tu?

Antes que Sebastian tivesse tempo para responder, a porta abriu-se e Billy entrou com um mapa do terreno montanhoso. Estendeu-o em cima da mesa e todos se inclinaram para a frente, excepto Sebastian. Tal como antes, assumiu que se poriam a falar sobre o que estavam a fazer enquanto o faziam.

– Os corpos foram encontrados aqui – disse Billy, traçando uma pequena cruz no mapa. Todos olharam para lá em silêncio, procurando a mesma coisa. Sem conseguirem encontrá-la.

– Não há edifícios. Não há abrigos de montanha. Nenhuma ?oresta. Nenhuma protecção em qualquer lugar das proximidades – resumiu Vanja, mostrando-se desapontada.

Todos voltaram a sentar-se. Billy pegou no mapa e a?xou-o na parede.

– A julgar pelo padrão dos buracos de bala, o perpetrador parece ter sido um assassino muito controlado – disse Ursula. – E?ciente. Arriscar-se-ia ele, realmente, a ser avistado?

– Era Outubro – indicou Billy. – As estâncias de montanha estavam fechadas e não havia quase ninguém ao redor. Talvez valesse a pena correr esse risco.

– Ou talvez ele tenha sido avistado – disse Jennifer calmamente.

Até agora, ela passara a maior parte do seu tempo a ouvir os outros, mas estava a pensar naquelas coisas desde há algum tempo. Desde o jantar, na verdade, quando Hedvig Hedman lhes trouxera a notícia acerca do casal holandês. Mas não se atrevera a falar. Se ela tivesse razão, supunha que mais alguém na equipa teria a mesma ideia, mas até agora ninguém expusera essa teoria. Recapitulou-a rapidamente na sua cabeça, mais uma vez; não era completamente ridícula. Valia a pena arriscar.

Inclinou-se para a frente, agora com uma voz mais forte.

– As duas pessoas que pensamos poder identi?car, o tal casal holandês. Talvez estivessem a passar e vissem o que estava a acontecer.

Ninguém falou, mas Torkel viu que Ursula e Vanja acenavam para si mesmas. Olhou para Jennifer. Não era uma má teoria. Sentiu-se satisfeito, tanto com Jennifer como consigo. Independentemente de saber se a realidade acabaria por coincidir com a hipótese, aquela sugestão mostrava que Jennifer estava a pensar como devia ser, o que, por sua vez, também mostrava que ele ?zera a escolha certa.

Quebrou o silêncio.

– Se seguirmos essa ideia por algum tempo, então signi?ca que os quatro corpos sem roupas eram as vítimas originais, pelo que nos deveríamos concentrar neles. Sabemos mais alguma coisa a seu respeito?

Ursula abanou a cabeça.

– Dois adultos, um homem e uma mulher. Duas crianças, impossível determinar o sexo. Se fossem de uma estatura normal, eu diria que teriam cinco a oito anos de idade.

Sebastian esfregou os olhos. Levantou-se e foi abrir uma das janelas. Debruçou-se no parapeito e respirou o ar daquela noite fria e clara. Como se sentia? Não muito bem, para ser honesto. Não tão bem quanto esperava, em todo o caso. Já aguardava por isto.

Tinha ansiado por isto.

Mais do que isso – tinha necessidade disto.

De passar tempo com Vanja. De trabalhar de novo com ela. De chegar mais perto, de a conhecer, mas agora ela ia-se embora. Abandonava-o. Cortando a única ligação vital que poderia levá-lo a algo que se assemelhasse a uma existência decente.

Ainda por cima, estavam a lidar com duas crianças mortas.

Esta viagem tinha sido um terrível pesadelo até agora.

– Havia danos visíveis nas costelas de duas das vítimas, o que pode sugerir que foram alvejadas no peito em primeiro lugar e só depois na cabeça – prosseguiu Ursula. – Isso apoia a teoria de que o assassino está habituado a manejar uma arma. Visa primeiro a maior área do alvo...

Sebastian olhou para Jennifer. Era jovem demais para si, pelo menos quinze anos, mas não havia dúvida de que poderia tornar a sua estadia um pouco mais agradável. Por outro lado, caso se aproximasse dela, Torkel expulsá-lo-ia. Uma conversa enquanto se tomava uma cerveja no bar, e os outros logo notariam. Também suspeitava que Torkel se poria de guarda no corredor como se estivessem nalguma viagem escolar.

– Eles são uma família? – perguntou Billy.

– Parece ser o cenário mais provável – disse Ursula com um aceno de cabeça –, mas só saberemos quando chegarem os resultados de ADN.

Por outro lado, se ele fosse mandado para casa, o que importava? Com Vanja de partida, não tinha motivo para ?car. Aquele caso era deprimente e até agora relativamente desinteressante.

– Partimos do princípio de que os quatro foram enterrados ao mesmo tempo. Hedvig veri?cou os registos: mais ninguém foi dado como desaparecido aqui em qualquer momento ao longo de 2003. – Torkel levantou os olhos dos seus apontamentos. – Nenhuma criança foi alguma vez dada como desaparecida por aqui.

– Podes fechar a janela, por favor? Estou com frio.

Sebastian foi arrancado ao seu devaneio e deparou com Vanja a olhar para si. Disse-lhe que sim com a cabeça, fechou a janela e regressou ao seu lugar. Vanja não se tinha ido embora. Ainda não. Ainda estava ali, na mesma sala. Ficaria durante mais três meses. Ele tinha mais três meses ao lado dela, dias preciosos que não poderia colocar em risco por se atirar a uma mulher que, provavelmente, em caso algum consideraria ir para a cama com ele. Decidiu ?ngir interesse pela conversa que decorria à sua volta.

– Billy, descobre se alguém se foi embora sem pagar a conta do hotel no período em que o casal holandês desapareceu – disse Torkel. – Veri?ca se foram reportados ou rebocados alguns carros abandonados ou se encontraram equipamento de campismo na montanha. As pessoas poderão ter julgado que eles foram embora por iniciativa própria, e daí não haver qualquer relatório de pessoas desaparecidas.

Billy assentiu.

– Queres alguma ajuda? – ofereceu Jennifer.

– Seria óptimo – respondeu-lhe Billy com um sorriso.

Vanja ?cou a olhá-los. Certamente, não tardaria muito a ser substituída. Por outro lado, era exactamente assim que devia ser. Esta investigação poderia prolongar-se durante meses, e provavelmente seria a sua última. De repente, deu por si a pensar como isso lhe sabia bem.

A sala, o café, o quadro branco, as fotogra?as, as teorias.

Presentemente, estava mais ou menos farta de tudo aquilo. Era altura de seguir em frente. De dar o próximo passo. De crescer e desenvolver-se.

Mas, de momento, o que importava era este caso.

– Não há garantia de que alguém soubesse sequer que eles estavam aqui – disse ela, esperando até que todos lhe dessem atenção. – Podem não ter deixado vestígios. Podiam ter chegado cá de comboio e acampado na montanha. Sem hotéis, sem carro.

– Mas certamente devem ter sido dados como desaparecidos algures – objectou Ursula. – Alguém deve ter reparado que eles não estavam por perto.

– Vanja, veri?ca famílias com duas crianças que tenham desaparecido no Outono de 2003, em todo o país. Na Noruega também.

– Está bem, mas não podemos ter a certeza de que eles são uma família. Podem ser dois adultos com uma criança cada um. Ou a mãe, o novo parceiro, os enteados. E o pai biológico poderia ser o tipo ciumento que por acaso possui uma arma...

Sebastian viu Vanja olhar quase imperceptivelmente para Jennifer. Sorriu para consigo. Jennifer tinha levantado a teoria de que o casal holandês poderia ter sido a testemunha que estava no lugar errado à hora errada. Era uma boa teoria, mas, se Jennifer era boa, então Vanja tinha de ser melhor. A melhor.

Típico de Vanja.

Típico da sua ?lha.

– Muito bem, vamos expandir a pesquisa de modo a incluir crianças desaparecidas ou adultos com crianças – concordou Torkel. – Não podem ser assim tantos. Vamos começar pelo Outono de 2003 e partir do princípio de que todos eles foram enterrados ao mesmo tempo.

Não havia muito mais que pudessem fazer nesta fase. Parecia ter decorrido muito tempo desde que haviam saído de Estocolmo. Todos estavam cansados e a precisar de dormir. Torkel recolheu os seus papéis.

– Digamos que eles os quatro, independentemente de serem ou não uma família, estavam acampados na montanha. Alguém passou por lá e os alvejou. Enquanto ele enterrava os corpos, o casal holandês apareceu e teve de os matar também. Essa é uma teoria com que possamos funcionar?

Todos concordaram que sim e se prepararam para sair da sala. Aquela não era necessariamente a verdade, mas era algo para se trabalhar. Como de costume, teriam de se adaptar e de reavaliar a situação, dependendo do que emergisse no decurso da investigação.

– Esperem um minuto – disse Billy. Voltaram a afundar-se nos seus assentos.

– O que é? – perguntou Torkel, incapaz de afastar o cansaço da voz.

– Porque é que ele nos permitiu identi?car o casal holandês, mas não os outros quatro?

– Porque os outros quatro nos diriam quem era o assassino – disse Sebastian, quase enfatizando excessivamente cada palavra. – Por amor de Deus, há quanto tempo andam vocês neste trabalho? Não há nada que sugira que isto foi um acto de loucura ou que as vítimas foram escolhidas ao acaso. Alguém foi até à montanha com uma arma e executou essas quatro pessoas. – Voltou-se para Ursula. – Ele usou uma pistola ou uma espingarda?

– De momento, é impossível saber. Teremos de ver o que descobrem em Umeå.

Olhou para Torkel, que pensou que ela acentuara um pouco demais o «Umeå». Tinha quase a certeza de que não teria companhia no seu quarto naquela noite. Por outro lado, eles ?cariam por ali algum tempo...

– Não importa – disse Sebastian, levantando-se. – O nosso assassino sabe que, quando esses quatro forem identi?cados, o risco de ele ser apanhado aumenta signi?cativamente.

– Eu sei, mas o casal holandês dá-nos um quadro temporal bastante preciso – persistiu Billy, sem vontade de desistir tão facilmente. – E isso irá ajudar-nos a identi?car os outros.

Sebastian aceitou rapidamente o argumento de Billy e percebeu que este tinha alguma razão, mas não tencionava, de modo algum, deixar o outro homem ganhar. Agora não. Encolheu os ombros, a ?m de banalizar o que acabara de ser dito.

– Ou ele cometeu um erro, e nesse caso estamos com sorte, ou o quadro temporal não nos ajudará em nada.

– Tem de ajudar. Quantas famílias e crianças desapareceram em Outubro de 2003?

– Nenhuma, tanto quanto sabemos neste momento.

– Muito bem, vamos deixar isto por aqui – disse Torkel, pondo-se em pé para realçar as suas palavras. – Esta noite não vamos conseguir chegar mais longe, amanhã temos muito para fazer. – O olhar dele passou pelos seus colegas. – A nossa principal prioridade é identi?car aqueles quatro corpos. Não vamos resolver isto antes de sabermos quem eles são.


ELLINOR OLHOU para o seu relógio enquanto abria a porta do bloco de apartamentos na Grev Magnigatan. Era tarde, já passava bastante das onze. Esperava que Sebastian ainda estivesse acordado. As luzes acenderam-se automaticamente quando entrou. Olhou para as escadas, mas optou pelo elevador. Já tinha estado em pé e caminhado o su?ciente; trabalhara até a loja fechar, às nove horas. Já muitas vezes se perguntara qual era a vantagem de ?carem abertos até tão tarde, mas hoje tinham estado sempre atarefados; era a semana que se seguia ao dia de pagamento. Quando aquilo terminara, tinha ido até à Västmannagatan, ao seu antigo apartamento. Era assim que pensava nele: o seu antigo apartamento. O seu lar era com Sebastian.

A ansiedade e a raiva que ela quase conseguira suprimir durante o dia todo vieram à tona. Ele tinha-lhe falado de uma forma invulgarmente dura nessa manhã.

Não, dura não. Desagradável.

– A servente doméstica com que eu tenho relações sexuais.

Palavras terríveis, feias. E depois aquela horrível historieta sobre alguém cujo nome era Gunilla. Por algum tempo, ela ?cara a pensar se deveria ir directamente para casa e mimá-lo, acalmar as coisas, devolver-lhe o bom humor. Não gostava que discutissem, mas desta vez ele tinha ido longe demais. Cabia-lhe a ele fazer as pazes, era o único que deveria desculpar-se, não ela. Fora por isso que não lhe telefonara durante o dia todo. Isso era invulgar, e por várias vezes se sentira prestes a pegar no telefone, mas cerrara os dentes e mantivera-se forte. Queria que ele soubesse que a tinha magoado; o silêncio dela era o seu castigo.

Fechou a porta do elevador atrás de si e premiu o botão para o terceiro piso.

Tinha passado mais tempo do que previra no seu antigo apartamento. Quando ia a subir encontrara a viúva Lindell, que naturalmente ?cara curiosa. Por onde andava Ellinor? Já ninguém a via por ali! Na verdade, Ellinor só tinha lá ido para regar as suas plantas e veri?car se o saco que continha os documentos sobre Valdemar Lithner ainda estava onde a deixara, mas Fru Lindell insistira em convidá-la para uma chávena de chá. Insistira mesmo. Apesar de realmente não ter tempo, Ellinor não pudera deixar de pensar que seria bastante agradável falar a alguém sobre o grande amor da sua vida, o reputado Sebastian Bergman. Não referiria a discussão de hoje. Que casal não tinha a sua birra de vez em quando? Nenhuma relação era um mar de rosas o tempo todo.

Quarenta e cinco minutos mais tarde, Ellinor abrira a porta do seu apartamento. Fru Lindell tinha ?cado impressionada, Ellinor percebera isso, embora ela tivesse tentado escondê-lo. Até ?ngira que não sabia quem era Sebastian, mas Ellinor não acreditara nisso nem por um momento. Era a sueca típica, roída pela inveja.

Foi directo ao quarto, abriu a porta do roupeiro e viu o saco exactamente onde o deixara. Não sabia porquê, mas tivera um mau pressentimento sobre tudo o que tinha a ver com Valdemar Lithner desde que este pusera termo à relação pro?ssional entre os dois antes do ?m-de-semana. Na maior parte das vezes, conseguia dizer a si mesma que ele sentira – e com razão – que aquilo não estava a levar a sítio nenhum, mas de vez em quando ?cava com a ideia de que tinha sido descoberta, de que Valdemar ou algum dos criminosos seus associados se introduzira subrepticiamente no seu antigo apartamento para descobrir quem ela era na verdade e se sabia alguma coisa acerca dos negócios obscuros deles. No entanto, não havia qualquer sinal de alguém ter estado ali, e se tivessem estado di?cilmente deixariam aquele material incriminatório dentro do roupeiro. Ocorreu-lhe que era um disparate não ter feito uma cópia de tudo, mas isso já não interessava. Entregaria tudo à Polícia no dia seguinte e deixaria que a justiça seguisse o seu curso.

Fechou a porta do roupeiro e ocupou-se a regar as plantas. Já era tarde, mas mesmo assim não telefonou a Sebastian. Por um momento, pensou em passar a noite no seu antigo apartamento. Deixá-lo preocupar-se, sentir a falta dela. Mas, se não fosse para casa, ele não poderia pedir-lhe perdão, o que signi?cava que não conseguiriam resolver aquele desconforto entre eles. Por isso estava agora ali em pé, no elevador, esperando que ele não tivesse já ido deitar-se.

A primeira coisa que viu quando abriu a porta do elevador foi a mala. A sua mala de cabina preta. O que estava ela a fazer no patamar? Com um grande saco de plástico ao lado. Aproximou-se e espreitou para dentro do saco. Eram as suas coisas! Ele tinha despejado as coisas dela para o patamar! Isto já era demais. Pegou na sua chave.

Que estranho – parecia não encaixar.

Veri?cou; sim, era a chave certa. Experimentou de novo, com o mesmo resultado. Não conseguia sequer inseri-la no buraco da fechadura.

A luz apagou-se. Ellinor premiu o pequeno botão alaranjado que reluzia na escuridão e acendeu novamente a luz. Tocou então à campainha. Nenhuma resposta. Premiu a campainha de novo, desta vez por mais tempo. Já começava a ?car irritada. Não havia qualquer som dentro do apartamento. Baixou-se e espreitou através da caixa de correio: escuridão e silêncio. Tocou de novo, mais ou menos apoiada na campainha. Não apareceu ninguém.

Agora estava realmente zangada. Ele não podia tratá-la assim! Já lhe tinha aturado muita coisa porque o amava, mas até mesmo ela tinha o seu limite, e ele havia ultrapassado a linha por vingança. Pegou no telemóvel e avançou até ao «Querido» na sua lista de contactos. Telefonou-lhe. Abriu de novo a tampa da caixa de correio quando ouviu o tom de chamada no seu ouvido; não estava a tocar dentro do apartamento. Ellinor desligou a chamada, respirando com di?culdade. O que deveria fazer agora? Onde estava Sebastian e porque não podia ela entrar? Quando olhou para baixo, viu um envelope branco colado a um dos lados da sua mala. Pegou nele e rasgou-o para o abrir.

A luz apagou-se novamente.

Quando tornou a acendê-la, pegou naquela única folha de papel e desdobrou-a.


Eu quis mesmo dizer o que te disse. Tens de ir embora daqui. Mandei mudar a fechadura. Não estou em casa e ?co fora durante algum tempo, por isso não vale a pena ?cares aí em pé a tocar à campainha. Se me telefonares, não vou atender. Nunca deveria ter deixado que te mudasses para cá. A culpa foi minha, e peço-te desculpa por isso.


Sebastian


Ellinor leu aquela curta mensagem outra vez. E outra. Depois amachucou o pedaço de papel e deitou-o para o chão. Pontinhos negros bailaram diante dos seus olhos. Soltou um grito, como um animal ferido. O grito ecoou na escada, e a seguir ela acalmou-se. Respirou fundo, recuperou o controlo.

Tantas emoções, tudo ao mesmo tempo. Raiva, choque, medo. Ela precisava de tentar pensar com clareza.

Ele não podia deitá-la fora.

Ela não ia deixar que ele a deitasse fora.

Ele não a tinha deitado fora.

Experimentou a chave mais uma vez. Não entrava. Mas devia entrar. Ela morava ali! Voltou a tentar. Empurrou com mais força. O mesmo resultado. Começou a forçar a fechadura. A luz apagou-se de novo, mas ela quase nem se apercebeu.

Tinha de entrar! Aquela era a sua casa!

A chave escorregou-lhe e ela cortou o polegar num pedaço de metal da porta. As chaves caíram e ela agachou-se, procurando-as pelo chão de pedra aos apalpões. Não conseguia encontrá-las. Pôs-se de joelhos, varrendo o chão de lado a lado com as mãos. Encontrou as chaves mas empurrou-as contra a porta do vizinho. Nem sequer tinha forças para se levantar e ir lá buscá-las. Estava acabada. Deixou-se cair no chão e desatou a chorar.

Não sabia quanto tempo tinha ?cado ali sentada a chorar na escuridão, mas por ?m aquilo parou. Foi isso que ela sentiu. Como se tivesse simplesmente parado. Ela tinha acabado de chorar. Ficar ali sentada não estava a melhorar a situação. Ellinor pôs-se em pé, com movimentos calmos e controlados, e enxugou o rosto molhado com as costas das mãos. Avançou até ao interruptor e acendeu novamente a luz, fungando para limpar o ranho do nariz. Baixou-se e apanhou as chaves, guardou-as no bolso, aproximou-se da sua mala e pegou nela com uma mão e no saco de plástico com a outra. Voltaria para Västmannagatan, tentaria resolver aquilo. Nada tinha mudado, disse ela para consigo. Isto era apenas temporário. Uma crise. Mas era uma crise que poderia ser resolvida. Não havia qualquer razão para ela entrar em pânico ou fazer alguma coisa precipitada. Tinha um plano. Cumpri-lo-ia.

Primeiro que tudo, ia tratar de Valdemar Lithner.

Em seguida, trataria de Sebastian.


SOL.

Sol radioso.

A parte superior do corpo dele estava nua e o suor escorria-lhe pelas costas. O ar estava húmido. Pegajoso. O calor e a humidade faziam com que lhe apetecesse sentar-se à sombra com um livro; achou isso cansativo. Ela não; ela era um feixe de energia pura, empoleirada no alto dos seus ombros e incitando-o a ir mais depressa. Ela queria descer até à água, até às ondas frias e às brincadeiras. Riu alto quando ele tropeçou e segurou-lhe mais ?rmemente as bochechas por barbear com as suas mãos pequenas e macias.

– Papá, quero um daqueles.

Ele olhou para onde ela estava a apontar. Uma menina brincava com um gol?nho insu?ável.

Chegaram ao mar. Ele sentiu o sol queimar-lhe os ombros logo que a pousou no chão. Dois pensamentos, quase em simultâneo.

Não havia muita água.

Tinha-se esquecido do protector solar.

Correram para a água. Os salpicos. As risadas. Os gritos vindos da costa.

O rugido.

A parede de água. Viu-a chegar. Correu em direcção a ela. Agarrou-a. A pequena mão dela dentro da sua. Julgou ter sentido aquele anel de borboleta que lhe havia comprado. Não devia largá-la. Nunca a largar. Toda a sua força, toda a sua concentração. Focadas. Toda a sua vida, ali mesmo dentro da mão.

Mas depois ela fora-se. De súbito, a sua mão ?cara vazia. Ele tinha-a largado.

Sebastian acordou embrulhado no espesso edredão. Cheio de calor. Suado. Sem conseguir respirar. A cãibra na sua mão direita espalhando-se até ao cotovelo. Com movimentos descontrolados e selvagens, abriu caminho para fora da roupa da cama e sentou-se. Endireitou dolorosamente os dedos. Sangue na palma da mão.

O sonho.

Que merda de sonho.

Tão vívido.

Pormenorizado. Como um ?lme. Mais do que isso. Pudera senti-lo. Cheirá-lo. Era como se fosse realidade. Tudo aquilo.

Por vezes, consistia em fragmentos desconexos e ele acordava com um nível praticável de ansiedade, os restos pegajosos das impressões, das memórias e das fantasias que ele sabia que haveriam de ir embora. Desta vez fora como se ele tivesse experimentado tudo mais uma vez. Há muitos anos que aquilo não o afectava tanto. Sentiu-se paralisado. O seu coração aceleradíssimo. Estava alagado em suor. Chorava num desespero silencioso, insondável.

Tinha sido por causa das crianças. Das crianças daquela maldita sepultura. Ele não devia ter nada a ver com crianças mortas. Já não conseguia lidar mais com isso. Elas tinham-no levado directamente a Sabine, directamente ao cerne da dor e da culpa que ele tentara trancar ao longo dos anos, mas sem qualquer sucesso; aquilo transbordava sempre um pouco, envenenando-o lentamente. Agora a tranca cedera, e a porta escancarara-se, deixando-o mentalmente ferido e maltratado. Sentia o corpo como daquela vez, há muitos anos. Logo a seguir. Quando ele regressara à devastação das férias de Natal. Sozinho.

Por ?m, conseguiu levantar-se. Para sua surpresa, descobriu que as pernas eram capazes de o transportar. Então tal como agora.

Cambaleou até à cadeira onde tinha deixado cair as suas roupas e vestiu a camisola interior. Não seria capaz de voltar a adormecer. Que horas eram? Quatro e vinte. Pouco mais de quatro horas de sono. Quando conseguiria ele dormir de novo? Já estava com medo de ir para a cama à noite, embora ainda faltassem mais de vinte horas para isso. Não lhe apetecia passar outra noite naquela cama. Não lhe apetecia estar naquele quarto.

Abriu a porta e saiu para o corredor. O hotel estava em silêncio. Fazia mais frio ali fora, e ele pôs-se a pensar se deveria voltar atrás e vestir as calças, mas decidiu não se incomodar com isso. Passou descalço pela recepção e entrou no restaurante. Foi até ao balcão frio e tirou uma lata de Coca-Cola.

– Tenciona pagar por isso?

Sebastian assustou-se e quase deixou cair a lata. Virou-se para trás e viu Ursula sentada junto à janela, com duas garrafas de cerveja em cima da mesa à sua frente – uma vazia, outra meio cheia.

– O que estás tu a fazer aqui? – perguntou-lhe Sebastian enquanto caminhava em direcção a ela.

– Não conseguia dormir. E tu?

– Tive um sonho...

– Um pesadelo?

– Sim.

Sebastian puxou a cadeira que estava diante dela e sentou-se. Abriu a lata e sorveu um pouco. Ursula observou-o de um modo inquisidor.

– Tão mau que tiveste de te levantar?

– Sim.

– Era sobre quê?

– Porque não consegues dormir?

– Eu perguntei primeiro.

– Porque não consegues dormir? – repetiu Sebastian exactamente no mesmo tom de voz.

Ursula ?tou os olhos dele enquanto levava a garrafa aos lábios. Conversas nocturnas na mesa da cozinha. Já houvera algumas. Bastante agradáveis, tanto quanto se lembrava. Talvez ela precisasse de con?ar em alguém. Sebastian era alguém. Ele conhecia-a, mas não era muito próximo. Agora não. Já não. E era capaz de ser objectivo, de manter uma distância adequada em relação a tudo. Não tentaria consolá-la com um sentimentalismo banal nem tentaria animá-la. Poderia funcionar. Com uma condição.

– Não podes contar a ninguém.

– Guardar segredos é, de facto, uma das coisas em que eu sou realmente bom.

Ursula fez um gesto de assentimento; não poderia pôr isso em causa. Sebastian andara a dormir com a sua irmã enquanto eles os dois mantinham uma relação. Com a sua irmã e sabe Deus com quantas outras mulheres. Ursula não fazia a menor ideia. Edward Hinde obrigara-os, a ambos, a pensarem de novo nesses tempos, e para sua surpresa Ursula descobrira que a raiva que alimentara durante tantos anos havia, mais ou menos, desaparecido e fora substituída por algo que se assemelhava a tristeza. O homem que a traíra daquela forma tão má já não existia. O Sebastian que tinha voltado para junto deles era uma pessoa diferente. Continuava a ser brilhante, continuava a ser egoísta, irritante, con?ante e impossível em todos os aspectos, mas era como se ele tivesse de se esforçar mais para fazer o que no passado ?zera naturalmente. Quando ela o viu no balcão frio, quando ele não sabia que alguém o estava a observar, ali, descalço, em cuecas e camisola interior, parecera-lhe solitário. Foi essa a primeira palavra que lhe veio à cabeça.

Solitário.

Miserável ou, pelo menos, triste.

Ela não sabia porquê. O caso Hinde e as ligações pessoais de Sebastian às vítimas haviam causado um certo efeito sobre ele, mas o velho Sebastian ter-se-ia levantado de novo e prosseguido com relativa facilidade. Este Sebastian não. Já não. Por qualquer motivo. O que ele tinha acabado de lhe dizer era verdade: era bom a guardar segredos. Os dele, pelo menos, e ela esperava que isso também se aplicasse aos segredos de outras pessoas. Aos dela em particular.

– O Micke deixou-me.

Sebastian aquiesceu. Já suspeitara de que havia algum problema lá em casa, mas tinha pensado que provavelmente dizia respeito a Bella. Não achou que qualquer coisa que envolvesse Micke afectaria Ursula tão profundamente. Ele era um alcoólico intermitente que trabalhava com demasiado a?nco num emprego pelo qual Ursula jamais manifestara qualquer interesse; tinham uma ?lha, mas muito pouco em comum para além disso, se ele compreendera correctamente. Tanto quanto sabia, fora sempre assim. O casamento deles era um completo mistério para si.

– Estás realmente transtornada com isso?

Ursula ?cou a olhar para ele. Não sabia ao certo que resposta esperara, mas não era aquela.

– O meu marido trocou-me por outra mulher ao ?m de vinte e cinco anos. Portanto, sim, estou...

– Não pensei que o amasses – disse-lhe Sebastian, recostando-se para trás com a lata de Coca-Cola na mão. Ursula percebeu que a «objectivo» e «manter uma distância adequada» poderia acrescentar «brutalmente honesto».

– Eu não queria ser abandonada – disse-lhe com franqueza, sem comentar a observação dele.

– Querias ser tu a deixá-lo... é isso? – Os olhos de Sebastian brilharam na semiobscuridade. – Não é o facto de te ires divorciar que te incomoda, mas o facto de ele te ter deixado. Querias ser tu a dizer como era.

– Sabes que mais, esquece isso – disse-lhe Ursula, assentando a palma das mãos em cima da mesa para lhe indicar que a conversa estava encerrada. Decidiu voltar para a cama, mas Sebastian inclinou-se para a frente e colocou a sua mão sobre a dela.

– Eu não te queria irritar. Bem vejo que estás transtornada, só não entendo porquê. Foste-lhe in?el durante vinte anos.

– Há vinte anos – corrigiu Ursula.

– Portanto, o facto de andares a foder com o Torkel não conta?

Ursula ?cou hirta. Como é que ele sabia? Ou estaria apenas a supor? Enfrentou o olhar dele.

– Sim, eu sei, e não, ele não me disse nada – assegurou-lhe Sebastian. – É óbvio.

O espírito de luta abandonou Ursula e ela deixou-se cair de novo na sua cadeira. O que ele tinha dito era verdade. Não sobre Torkel – bom, isso era verdade, claro, mas sobre Micke. Ele não era o grande amor da sua vida. Ninguém era. Noutros tempos poderia ter sido Sebastian, mas agora ela achava-se incapaz de amar da maneira como as outras pessoas esperavam ser amadas. Micke tinha-a aturado, e durante muito tempo. Torkel estava disposto a tentar, ela sabia disso. A aceitá-la tal como ela era, nos seus próprios termos. O problema é que ela não o queria. Queria apenas uma coisa. Desde que Micke partira, isso havia emergido como o elemento mais importante da sua vida, e era a única coisa que ela tinha a certeza de que jamais poderia ter.

O amor da sua ?lha.

Olhou novamente para Sebastian. Ele ?cou sentado e quieto, para lhe dar espaço.

– Tens razão – disse ela baixinho. – Realmente, não é o Micke. É a Bella.

– O que tem ela?

– Sempre foi a queridinha do papá, mas, enquanto vivíamos juntos, pelo menos algum do seu amor sobrava para mim.

Sob aquela luz fraca, Sebastian viu as lágrimas nos olhos dela. Mudança.

Se não acreditamos que tudo está pré-ordenado, que nada daquilo que fazemos tem um efeito qualquer, então a mudança significa sempre que temos de olhar atentamente para nós próprios. Como vim eu parar aqui? O que poderia ter feito de diferente? O que está a acontecer? O que devo fazer agora? A mudança traz um certo nível de autoconsciência, que nem sempre é totalmente indolor e que não mostra necessariamente o indivíduo em causa sob uma luz muito favorável.

– Quantas vezes pensas tu que ela irá lá a casa visitar-me, agora que o Micke não está?

Sebastian permaneceu calado; a conversa estava a aproximar-se muito desconfortavelmente de si próprio. Uma ?lha distante. A ânsia de proximidade. O receio de que isso jamais viesse a acontecer.

– Nunca – disse Ursula, respondendo à sua própria pergunta e abanando a cabeça enquanto imaginava o futuro. – Há-de telefonar-me nos aniversários e no Natal, e depois aos poucos há-de esquecer-se dos aniversários.

– O que te faz pensar isso?

– Na verdade, não nos conhecemos uma à outra – disse-lhe Ursula, tão rapidamente e com tanta falta de sentimentalismo que Sebastian percebeu que ela já devia ter passado muito tempo a analisar o seu relacionamento com a ?lha. – Eu mantive-me à distância. Foi isso que ?z. Com todos. Dou pequenas partes de mim, apenas. Não se pode fazer isso com os ?lhos. Eles precisam de nós. O tempo todo.

– Já lhe disseste isso?

– É tarde demais. Ela é uma adulta.

– Acho que estás enganada – disse-lhe Sebastian com uma mistura de convicção e de optimismo na voz. – Realmente, espero que não seja tarde demais. – Observou a reacção dela ao seu tom invulgarmente sincero. – Para teu bem – acrescentou, por precaução.

– Obrigada.

Sebastian fez um gesto de assentimento e ficaram em silêncio por algum tempo. Não tinha mais nada a acrescentar, e Ursula obviamente não tinha mais nada para partilhar. Esvaziou a segunda garrafa, afastou-a para um lado e apoiou os cotovelos em cima da mesa.

– E quanto a ti?

– E quanto a mim?

– Com que sonhaste tu?

Sebastian bebeu o resto da Coca-Cola enquanto rapidamente fazia des?lar na sua cabeça as opções e as presentes circunstâncias. Qual era a sua posição na equipa? Vanja dava-se bem consigo, e, apesar do pequeno espectáculo entre eles os dois há pouco, Billy também gostava de si. Torkel era Torkel. Ursula continuava a ser aquela que ele poderia ter de conquistar, embora ela tivesse optado por se abrir – e para ele, não para qualquer outra pessoa na equipa, embora fosse razoável supor-se que estaria mais próxima das outras pessoas. Noutros tempos ele tinha-a magoado muito. Pedira-lhe que o perdoasse, mas ela recusara. Talvez não pudesse ser perdoado. Por nada. Dada a história entre ambos, talvez um pouco de honestidade da sua parte não caísse mal.

E isso ia contra tudo. Ele não lhe queria dizer. Era muito simples. Não queria mesmo.

Poderia mentir-lhe, claro, mas agora essa não era uma opção.

– Fica para outra vez – disse-lhe ele com um casual encolher de ombros, esperando que ela aceitasse.

Ela aceitou.

 

Logo que houve luz, Sebastian saiu para uma caminhada. O conhecimento que ele tinha do local era inexistente, e por isso decidiu seguir o ribeiro ou o rio ou lá como aquilo se chamava. Tinha parado temporariamente de chover, mas a névoa pairava sobre o solo encharcado e as nuvens eram densas e baixas. Não conseguia ver muito longe através das árvores deformadas e distorcidas quando, de vez em quando, olhava para cima. O carreiro estava transformado num mar irregular de lama entrecortada por raízes, e tinha de ver bem onde punha os pés para evitar escorregar e deslizar.

Ele e Ursula tinham ?cado mais um pouco naquele restaurante desolado, e em seguida regressaram aos seus quartos. Ela recordara-lhe que ele prometera não dizer nada; ele tinha concordado e voltara a prometer.

Sebastian fora sentar-se junto à pequena mesa desdobrável junto à janela do seu quarto e ligara o telemóvel. Oito mensagens. Todas de Ellinor. Em algumas tentava argumentar com ele, numa delas gritava e quase o ameaçava, noutra pedia-lhe perdão e prometia corrigir tudo se ele ao menos entrasse em contacto. Na última parecia perfeitamente calma; dizia-lhe que entendia e que ia tratar de tudo. Sebastian desligou o telefone. Talvez não tivesse lidado com a situação da melhor maneira, mas isso teria de esperar até que regressasse a Estocolmo. De momento, tinha outras coisas mais importantes em que pensar.

Tinha ficado sentado no seu quarto, numa cadeira de madeira bastante desconfortável, a tentar formular um plano.

A tomar uma decisão.

Não fora bem-sucedido. Não conseguira concentrar-se devidamente. O sonho pairava como um véu sobre o seu espírito. Aquela memória assumira uma forma quase física; uma e outra vez, ele percebia que a sua mão direita estava fortemente contraída. Punha-se em pé, andava para cima e para baixo, mas isso só o deixava mais inquieto. Tinha de sair dali. Fugir.

Exercício, ar fresco, natureza, estar sozinho sem estar fechado – talvez o ajudasse a concentrar-se.

Era por isso que agora caminhava ao lado da água corrente, com os olhos postos no chão. O carreiro virava bruscamente para a esquerda, conduzindo a uma espécie de ponte metálica com duplas tábuas de madeira sobre as quais se caminhava e com um corrimão de cabo em ambos os lados. Sebastian foi até ao meio da ponte e parou.

Um pássaro cujo nome ele não sabia saltitava dentro e perto da água, onde o rio abrira caminho para a margem e estava mais calmo, quase parado. Acompanhou os movimentos bruscos, quase nervosos, da ave e deixou o seu espírito vaguear.

Desde o sonho até à sua conversa com Ursula e até Vanja. Sempre de volta a Vanja.

Estava tudo ligado.

Ela ia deixá-lo. Muito bem, ele poderia ir visitá-la. Mas quantas vezes antes que isso começasse a parecer estranho? Uma vez? Duas vezes? Poderiam telefonar um ao outro, enviar mensagens por email, ele poderia arranjar aquela coisa do Skype se fosse necessário. Mas tudo isso eram formas de manter um relacionamento que já existia, não de iniciar um novo. Seria estranho conversar com ela através de um ecrã de computador quando raramente falavam na vida real. Daqui a cinco anos talvez funcionasse, quando já fossem amigos. Quando ele fosse alguém cuja presença na sua vida fosse valorizada por ela. A sério, pela pessoa que ele era, não por ele a ter salvo de Edward Hinde.

Não era essa a forma como as coisas estavam agora.

Ainda não.

Esta era a sua oportunidade de chegar perto dela, de criar algo que durasse, algo vivo. Mas só se ela estivesse ali. Não a milhares de quilómetros de distância.

O passarinho obviamente concluíra o que estivera a fazer na água, porque voou por entre as árvores acima da margem e desapareceu. Sebastian endireitou-se.

Na verdade, era muito claro.

Muito simples.

Era errado, claro. Egoísta, ele sabia isso. Não havia qualquer vestígio de preocupação paternal no que ele estava a planear fazer, mas era assim que tinha de ser.

Voltou para trás. Quando saiu da ponte, já decidira agir.

Não sabia como, mas garantiria que Vanja não partia.

Certi?car-se-ia de que ela ?cava em Estocolmo.

De que ?cava com ele.


A CAMINHADA MATINAL foi refrescante. Barnhusbron, Scheelegatan, passando pela Câmara Municipal, em seguida à esquerda ao longo da Hantverkargatan. Ellinor ia caminhando a passos largos, com o saco de plástico ?rmemente preso na sua mão esquerda. Estava numa missão não apenas para veri?car que a justiça seria cumprida, mas para salvar o seu relacionamento com Sebastian.

Sentia-se surpreendentemente atenta, tendo em consideração a sua falta de sono. Tudo lhe parecera completamente irremediável quando regressara ao seu antigo apartamento na noite passada. Tinha telefonado a Sebastian. Repetidas vezes. Não conseguira nada senão a breve gravação do correio de voz dele. Ellinor tinha-lhe dito algo em todas essas vezes, sem, na verdade, conseguir lembrar-se de quê, havia tantos pensamentos com que fora preciso lidar, tantas emoções. Por ?m, deixara-se cair em cima do sofá da sala de estar. Não fazia qualquer ideia de quanto tempo lá ?cara.

No entanto, a compreensão só lhe ocorrera ao ?m da noite, ou ao princípio da manhã, para ser mais exacta. Sobre o que estava a acontecer. Como tudo aquilo estava ligado entre si.

Porque não percebera isso antes? A?nal, conhecia Sebastian. A força advinha-lhe de estar sozinho, era esse o seu lema. Ele tinha problemas com as emoções, era-lhe difícil exprimir o que realmente queria.

Era demasiado teimoso para pedir ajuda.

Demasiado orgulhoso para se mostrar necessitado.

Demasiado protector em relação a ela para a sobrecarregar com os seus problemas e preocupações.

Bastava pensar na maneira como tinha conseguido que ela se mudasse para sua casa. Viera visitá-la com uma historieta qualquer acerca de um assassino em série que talvez andasse atrás dela, dissera-lhe que precisava de deixar o seu apartamento em vez de lhe dizer simplesmente a verdade – que a desejava. Estava a acontecer a mesma coisa agora. Também nesta ocasião era nítido que havia algo completamente diferente por trás das acções dele. Quanto mais ela pensava no assunto, mais certeza tinha.

Logo que descobrira isso, o resto tinha sido muito simples. Óbvio.

Que motivo poderia ele ter para a deixar?

Estava com medo de que ela pudesse sofrer algum mal.

Alguém andava a ameaçá-lo.

Era natural que não a quisesse perto de si. Ela já tinha visto este tipo de coisas na televisão, quando o detective ou o procurador ou quem quer que fosse enviava os seus próximos e os seus entes queridos para longe, a ?m de que eles não corressem perigo. Tinha sido por isso que ele se fora embora. Fora esconder-se. Era por isso que não atendia o telefone. Estava pronto a sacri?car o amor deles pela segurança dela.

Mas quem andava a ameaçar Sebastian?

A resposta óbvia era Valdemar Lithner.

Em todo o caso, ela começaria por aí e logo veria se a situação se alterava quando Lithner estivesse fora de cena. Se não, teria de fazer com que Sebastian se abrisse consigo, fazê-lo perceber que tinham de partilhar os seus problemas tanto quanto as suas alegrias. Que conseguiriam superar qualquer coisa, desde que fossem honestos e ?cassem juntos.

Telefonara a Sebastian mais uma vez e explicara-lhe num tom de voz calmo e convincente que compreendia e que trataria de tudo.

Às oito horas em ponto, ela estava à porta da Autoridade do Crime Económico na Hantverkargatan. Ellinor não sabia muito a respeito de arquitectura, mas achou que aquele prédio de seis andares em Kungsholmen tinha algo dos anos 70. Havia uma pequena área verde do outro lado da estrada, por trás de um gradeamento de ferro, e ao fundo da rua podia ver-se a torre da Câmara Municipal. O Sol já se levantara há algum tempo, e aparentemente ia estar um glorioso dia de Outono após a chuva da noite anterior. Ellinor passou por uma mulher nua feita de bronze, empurrou a porta até a abrir, olhou para o painel de informações a?xado no átrio de entrada e apanhou o elevador para o piso devido.

 

– Como posso ajudá-la? – disse-lhe o jovem que viera buscá-la à recepção, indicando-lhe uma cadeira no lado oposto da secretária.

– Bom, como eu disse à recepcionista, vim cá dar parte de um crime.

– Alguém envolvido no crime económico?

– Isso mesmo, crime económico. – Ela repetiu as palavras com uma certa dose de ênfase. Era excitante dizer aquilo em voz alta. Era excitante estar ali. Excitante e essencial.

– Muito bem... – O jovem virou-se para o seu computador, abriu um formulário e pousou as mãos em cima do teclado.

– Quem gostaria de denunciar e o que é que essa pessoa fez ao certo?

– Tenho tudo aqui.

Ellinor pousou o saco de plástico em cima da mesa. O agente policial olhou para ela com uma certa descon?ança.

– O que é isso?

– Uma investigação. Provas. Tudo o que vocês precisam.

A expressão do homem sugeriu que não estava nada convencido. Olhou para os maços de papéis que estavam lá dentro e não conseguiu reprimir um suspiro. Ellinor percebeu que estava na altura de dar mais algum peso à sua a?rmação.

– Isso é tudo verídico... não é nada inventado por mim. Foi um agente policial que levou a cabo a investigação.

A curiosidade do jovem foi espicaçada.

– Um agente policial?

– Sim.

– E quem é esse agente policial?

– O nome dele é, ou melhor, era, Trolle Hermansson. Já morreu.

O agente limitou-se a abanar educadamente a cabeça perante a informação; ?cou evidente que nunca antes ouvira aquele nome.

– O que acontece agora? – perguntou-lhe Ellinor.

– Vamos olhar para isto e decidir se efectuamos uma investigação.

– Isto é uma investigação – insistiu Ellinor. – Como eu lhe disse, tudo o que vocês precisam está aí.

– Se nós efectuarmos mesmo uma investigação – disse-lhe o jovem, ignorando a interrupção –, será um processo relativamente rápido. O nosso objectivo é um prazo máximo de cinquenta dias, no caso de crimes económicos menos graves.

– Não sei até que ponto isto é grave.

– É por isso que precisamos de lhe dar uma olhadela.

Ellinor não se mexeu. Ter-se-ia esquecido de alguma coisa? Já tinha feito o que viera fazer. Claro que cinquenta dias era muitíssimo tempo, mas eles com certeza estavam muito ocupados. Pôs-se em pé. O jovem fez o mesmo e estendeu-lhe a mão. Ela apertou-lha, e em seguida hesitou. Talvez pudesse conseguir que eles dessem prioridade ao caso.

– Quanto mais cedo esse homem estiver trancado, melhor. Acho que ele anda a ameaçar o meu parceiro.

– Acha?

– Sim.

– O seu parceiro relatou-lhe alguma ameaça?

– Não, mas pôs-me fora de casa. Para me proteger.

Ellinor notou que o jovem abanava a cabeça para si mesmo de uma maneira que talvez sugerisse que não acreditava nela, mas com certeza já deveria estar familiarizado com o problema. A?nal, ele era um agente policial. Ela tinha lido que as ameaças às testemunhas eram um problema crescente na sociedade.

– Vamos ver o que podemos fazer...

– Bom, mas, como eu disse, quanto mais cedo vocês tratarem do Valdemar Lithner, melhor.

Ellinor virou-se para trás e saiu.

Peter Gornack ?cou a vê-la ir embora. Tudo aquilo acontecera muito rapidamente. A chamada da recepção, a reunião, a discussão. O habitual. Mas depois uma vulgar denúncia por parte de um vulgar membro do público tinha-se transformado numa «investigação» que vinha dentro de um saco de plástico e que, de alguma forma, envolvia um polícia morto e um ex-parceiro em perigo. Logo que aquele saco aterrara em cima da mesa de Peter, ele sentira instintivamente que isto seria um desperdício do seu tempo. Iria folhear obedientemente alguns daqueles documentos e a seguir eliminaria rapidamente o caso. Não tinha nenhuma dúvida quanto a isso. Até ela lhe ter dito aquele nome.

Valdemar Lithner.

Ele frequentara a Academia de Polícia com Vanja Lithner; até tinham andado juntos por algum tempo, durante o segundo ano. Ao ?m de alguns meses, ela terminara o relacionamento: nada de dramático, sem grandes problemas. Continuaram a treinar juntos, como amigos. Nunca se haviam tornado colegas, porque logo que a formação ?cara concluída tinham escolhido rotas diferentes. Sabia que ela estava agora a trabalhar com a Riksmord, mas não a via há anos. No entanto, Peter estava praticamente certo de que o pai dela se chamava Valdemar, e não poderiam existir muitas famílias chamadas Lithner, pois não? Seria esta uma queixa contra o pai de Vanja? Mais uma razão para resolver aquilo o mais depressa possível.

Peter esvaziou o saco em cima da mesa, abriu a pasta que ?cara por cima e imobilizou-se.

Uma cópia de um inquérito policial.

Pela Autoridade do Crime Económico.

Fechou a pasta e voltou para o seu computador. Digitou o nome, e o resultado apareceu imediatamente: um inquérito preliminar de 2008. O procurador decidira não o levar mais longe devido à falta de provas. Peter regressou à pilha que tinha em cima da mesa. A investigação policial constituía apenas metade daqueles documentos; o resto era material novo. Novas provas.

Afastou a pasta original para um lado, pegou no resto, recostou-se para trás e começou a ler.

Ao ?m de menos de um minuto, deparou com a Daktea Investments, um nome que todos na equipa conheciam demasiado bem. Foi logo ter com a sua superior imediata.

 

Ingrid Ericsson lembrava-se de Valdemar Lithner.

Muito bem, na verdade. Não era o maior peixe que eles não tinham conseguido ?sgar mas também não era o mais pequeno. Uma série de empresas despojadas imediatamente antes de eles declararem falência, os activos transferidos para o Panamá, um bode expiatório que arcara com as culpas na Suécia e uma conta na América Latina onde era impossível descobrir quem assinara a documentação ou para onde ia o dinheiro a partir dali. Alguns milhões de coroas suecas, era disso que estavam a falar. A casa de Verão, o apartamento da ?lha, um carro novo. Valdemar não tivera medo de esbanjar o dinheiro; parecia ter a certeza de que nada poderia ser ligado a si. E tinha razão. Ingrid bem tentara, trabalhara a?ncadamente. Como chefe do departamento, fora ela a responsável pela investigação preliminar que Peter Gornack acabara de trazer. Segundo dizia Peter, ele recebera-a de uma mulher chamada Ellinor Bergkvist, juntamente com muito outro material. A coisa mais interessante era a ligação à Daktea.

Se Lithner tinha estado envolvido nessa teia especí?ca, então ele era decerto um dos maiores criminosos económicos que eles não tinham conseguido levar perante a justiça. Até agora. Se o material que Ingrid tinha à sua frente viesse a revelar-se correcto, desta vez abateriam Lithner.

A Daktea Investments fora um enorme esquema de Ponzi, apresentado ostensivamente como um produto ?nanceiro seguro, mas que na verdade era um esquema piramidal, cujos responsáveis tinham desaparecido sem deixar rasto quando a bolha rebentara. Milhares de pequenos aforradores e investidores perderam tudo. A Autoridade do Crime Económico dedicara vastos esforços e recursos a detectar quem estava por trás de tal esquema, mas eles tinham sido muito hábeis a esconder a sua identidade através de uma complexa rede de participações cruzadas em fundações anónimas e sociedades gestoras sediadas em paraísos ?scais como o Panamá e as ilhas Caimão. Ela não acreditava que Lithner fosse um dos actores principais, isto era grande demais para ele, mas havia estado envolvido na construção e lidara com parte do dinheiro; isso era muito evidente a partir do novo material. Era quanto bastava a Ingrid.

Seria um sobre-exagero dizer-se que ela interpretara isso pelo lado pessoal porque tivera de arquivar o inquérito anterior, mas havia uma certa satisfação na ideia de prender alguém de cuja culpa ela estava tão convicta. Foi por isso que decidiu agir com rapidez. Habitualmente, o seu departamento lançava um inquérito no prazo de cinquenta dias após ter recebido indicações ou ter sido, de algum modo, informado de qualquer anomalia, mas, se Ingrid ?zesse isto como queria, não demoraria sequer cinco horas.

Telefonou para o gabinete do promotor e falou com Stig Wennberg, que tivera o caso a seu cargo da última vez. Explicou-lhe porque queria voltar a abrir a investigação preliminar, enviou-lhe por fax a nova informação e ao ?m de menos de meia hora já tinha recebido luz verde.

Ingrid ?cou encantada. Não apenas isto melhoraria a taxa de produtividade do departamento como ela iria ter os meios de comunicação metidos no assunto, e isso haveria de enviar uma mensagem inequívoca a todos os que, como Valdemar Lithner, pensavam que se tinham safado com alguma coisa. Haveriam de descobrir que, mesmo que demorasse alguns anos, porventura até vários anos, muitos anos, a Autoridade do Crime Económico poderia atacar a qualquer momento. Eles nunca estariam a salvo.

Reuniu a sua equipa. Iriam veri?car todos os pormenores dos assuntos e das ?nanças de Lithner, tanto pessoais como privados. Desta vez, sabiam o que procuravam.


VERONICA STRÖM não tinha tempo.

Ela realmente não tinha tempo. Havia muito para fazer antes da mudança para Nairobi em Fevereiro. Não tinha vontade nenhuma de se sentar num estabelecimento a ?ngir que desfrutava de uma chávena de café enquanto esperava por Alexander Söderling. Com uma certa dose de irritação, folheou a revista que estava sobre a mesa à sua frente.

Uma jornalista da Revista M telefonara-lhe durante semanas, implorando uma entrevista. Veronica tivera uma carreira fantástica e parecia ser uma mulher muito inspiradora, chilreara a jornalista. Era exactamente o tipo de pessoa acerca da qual os leitores dela queriam saber mais.

Veronica não podia negar que ela tinha razão. Possuía um diploma em Administração de Empresas pela Escola de Economia de Estocolmo e havia progredido através dos bancos e dos jornais até se tornar a editora do gabinete de imprensa e informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ao ?m de três anos fora promovida ao cargo de assessora do secretário das Relações Exteriores e em 2002 tinham criado um novo cargo para ela, o de coordenadora da política de segurança no interior do Governo. Desde 2008 que tinha um alto cargo no Departamento de Defesa, e a partir de Fevereiro seria a embaixadora sueca no Quénia.

Veronica não sabia muito sobre a revista quando a jornalista lhe telefonara, por isso tinha ido procurá-la na internet. Artigos de fundo, beleza, moda, saúde, viagens, dicas ?nanceiras e conselhos para pessoas com mais de cinquenta anos. Verónica não percebeu se deveria sentir-se um pouco insultada. Em Dezembro, fazia quarenta e nove anos. Tinha falado com os seus colegas e todos concordaram que aquela era uma boa plataforma. A jornalista ?cara felicíssima quando ela lhe dissera que sim e garantira a Veronica que seria divertido. Tinham combinado encontrar-se na semana seguinte.

Mas, neste momento, ela tinha um encontro diferente.

Onde raio estava Söderling?

Ficara surpreendida por ter notícias dele. Há muitos anos que não pensava nos acontecimentos de Jämtland. Não achava que o telefonema de Söderling fosse motivo para começar a preocupar-se. Pronto, então tinham encontrado os corpos, mas o risco de alguém vir a descobrir tudo o resto era in?nitesimal. Aquela conversa com Söderling fora como uma mosca num dia de Verão: irritante, mas fácil de afugentar.

Depois ele telefonara-lhe novamente, queria um encontro. Isso signi?cava que havia problemas. Olhou à sua volta. Tinha sido Söderling que sugerira aquele local: um edifício antigo na Riddargatan. O café estava dividido em vários pisos, com uma estreita escadaria de pedra que conduzia de uns a outros. Pequenas salas concebidas para dar a impressão de familiaridade, a sensação de que se estava em casa de alguém, com cadeiras desiguais, sofás velhos e mesas bamboleantes. Veronica achava-o encardido, bolorento e atravancado com demasiado mobiliário. Era como tomar café no meio de um mercado de velharias.

Ele subiu as escadas com um ar enervado e começou a espreitar as várias salas. Ao princípio não reparou nela, e era exactamente o que ela queria. Não havia nada de estranho no encontro entre ambos, mas não era algo que precisassem de publicitar.

Alexander aproximou-se, pediu-lhe desculpa pelo atraso e sentou-se. Pousou a sua pasta no chão e inclinou-se para a frente.

– Tenho pensado muito nos... acontecimentos recentes – disse ele baixinho.

– Eu não – disse-lhe Veronica friamente. – Para ser franca, também espero evitar o assunto no futuro.

Alexander abanou a cabeça.

– Infelizmente, não creio que isso seja possível – disse ele como quem pede desculpa. – Preciso de ajuda.

Veronica suspirou. Não queria ajudá-lo. Queria continuar a preparar-se para a próxima mudança para Nairobi. Queria tornar-se embaixadora sueca e esquecer tudo acerca do Outono de 2003.

– Para quê? – perguntou-lhe ela, bem ciente de que tudo o que Alexander Söderling ?zesse para se proteger também a protegeria a si.

– Lembra-se da recusa de concessão de asilo que nós garantimos que seria marcada como con?dencial?

Veronica fez um gesto de assentimento com a cabeça. Um dos elementos mais simples da operação. Uma palavra à pessoa certa e estava feito. A Polícia de Solna já tinha bastante de que se ocupar sem ter de procurar refugiados que andavam fugidos, portanto ?caram quase agradecidos. Ninguém reagira.

– Temos de remover um dos nomes – prosseguiu Alexander. – O referente.

– Porquê?

– Bom, eles encontraram os corpos – disse-lhe ele, mostrando-se surpreendido. Era óbvio que pensava que ela deveria entender. – Existe apenas um pequeno risco de que venham a fazer a ligação, mas se a ?zerem...

Não terminou a frase. Não era preciso. Ela entendera perfeitamente. Os ?os que restavam eram longos e emaranhados, mas seria possível segui-los. Claro que o melhor era cortá-los o máximo possível. Antes tarde do que nunca. Fez um gesto de assentimento com a cabeça.

– Vou tratar disso. Mais alguma coisa?

– Nada de que eu me lembre.

– Portanto, isto é o ?m do caso.

– Esperemos que sim.

– Óptimo.

Levantou-se e saiu da pequena sala sem sequer olhar para ele. Ninguém reparou na sua partida. Ela ia fazer o telefonema, certi?car-se de que o nome desaparecia, e depois deixaria para trás toda aquela trapalhada.

Era esse o plano. Era um bom plano.

Infelizmente, algo lá no fundo lhe dizia que provavelmente não seria assim tão fácil.


O PONTEIRO DOS MINUTOS no relógio por cima da porta aproximava-se das doze quando Torkel entrou na sala para dar início à reunião. Todos os outros já estavam presentes.

Tinham combinado às onze horas.

Torkel entrou às onze horas.

Ao segundo. Vanja percebeu que fora por puro acaso, mas não pôde deixar de sorrir. Se soubesse, Torkel teria ?cado satisfeito com aquela sua entrada.

– O que temos hoje? – disse ele, sentando-se.

– Veri?cámos os relatórios relevantes de Outubro de 2003 – começou Billy, empurrando para o meio da mesa vários conjuntos de páginas impressas. Os outros serviram-se; Sebastian não se deu a esse trabalho. Ursula ?tou-o e mostrou-lhe um leve sorriso; Sebastian respondeu com um aceno de cabeça.

Torkel estava prestes a perguntar a Sebastian porque é que ele não tinha pegado numa cópia do material, mas parou quando viu o aceno. Viu Ursula recostar-se na cadeira, o sorriso dela alargar-se um pouco mais. Por um momento, sentiu uma pontada de ciúme, mas rápida e e?cientemente a pôs de parte.

Ursula e Sebastian.

Estava fora de questão. Impensável. Ursula era o membro da equipa que menos gostava de Sebastian. Tinham sido colegas nos anos 90 e, se Torkel se lembrava exactamente, davam-se muito bem. Mais tarde acontecera qualquer coisa. Eles tinham continuado a trabalhar juntos, mas mostravam-se mais... pro?ssionais, mais tensos. Aquela proximidade, aquela amizade entre eles, desaparecera. Depois Sebastian fora embora. Ursula nunca havia falado sobre isso. Torkel assumira que Sebastian a magoara de alguma maneira. Era essa a especialidade dele, já naquela época. O que quer que tivesse acontecido não se desvanecera. Nas ocasiões anteriores em que Sebastian tinha trabalhado com a Riksmord, Ursula tornara muito claro o seu descontentamento. Aceitara-o após ele ter salvo a vida de Vanja, mas não mais do que isso.

– Concentrámo-nos na semana em que Jan e Framke Bakker desapareceram – continuou Billy, e Torkel dirigiu a sua atenção para o assunto em causa. – Não existem relatórios sobre alguém que se tenha ido embora sem pagar a conta em qualquer hotel, casa de hóspedes ou pousada da região.

Jennifer prosseguiu a partir daí:

– Não foram encontrados nem rebocados quaisquer carros abandonados e nenhum equipamento de campismo foi encontrado na montanha ou entregue.

– E, como já sabemos, não há mais relatórios sobre pessoas desaparecidas na região durante esse período – concluiu Billy.

Vanja olhou para eles. Vinte e quatro horas depois, já estavam a falar alternadamente. Como o Huguinho, o Zezinho e o Luisinho nos desenhos animados do Pato Donald. Ou no Chip’n’Dale. Era enternecedor, mas ligeiramente perturbante.

– Tive notícias de Umeå – disse Ursula. – Nove milímetros. Provavelmente, a mesma arma ou uma pistola automática, mas isto é apenas um relatório preliminar.

Sebastian fez um gesto de assentimento para si próprio. De repente, o caso ?cava um pouco mais interessante. Uma pistola automática. Isso nem de perto era tão vulgar como uma espingarda por estes lados. Não era o tipo de coisa que alguém normalmente levasse consigo quando ia caminhar pelas montanhas. Tudo sugeria que o perpetrador tinha visado deliberadamente aqueles quatro, sabia o sítio exacto onde eles estavam, e quando. As vítimas conheciam o seu assassino, Sebastian estava certo disso. Logo que elas fossem identi?cadas, abrir-se-ia o caso.

– Procurei relatórios sobre famílias e crianças desaparecidas – começou Vanja. Sebastian inclinou-se para a frente; isto era muito mais interessante. – Até agora, há três famílias que correspondem: dois adultos, duas crianças. Mas nenhuma delas desapareceu no Outono de 2003.

Também ela colocou em cima da mesa um conjunto de folhas impressas; desta vez, Sebastian foi buscá-las. Não faria mal mostrar um certo interesse pelo trabalho de Vanja. Esperava que ela reparasse que ele tinha pegado nas folhas dela, de mais ninguém.

– Como podem ver, a família Thorilsen da Noruega desapareceu durante umas férias perto de Trondheim no Verão de 2000.

– Isso aproxima-se – disse Billy, mais ou menos para si mesmo.

– As crianças têm a idade certa, se a estimativa de Ursula estiver correcta – prosseguiu Vanja. – Seis e oito anos. Nunca foram encontrados.

– Mas isso signi?ca que eles desapareceram três anos antes de irem parar àquela sepultura – disse Torkel. Sabia que todos ao redor da mesa estavam a pensar a mesma coisa, mas ninguém queria ser aquele que apontava as falhas numa pista promissora. Ninguém além de Sebastian, mas esse não estava a dizer nada. Curiosamente. Em vez disso, foi Billy que falou:

– Ou eles desapareceram em 2000, mas não morreram antes de 2003.

– Então, onde estiveram durante três anos? Não há nada na investigação da Polícia norueguesa que sugira que eles se afastaram deliberadamente – contrapôs Vanja. Billy não respondeu. A ideia de que alguém tivesse mantido a família em cativeiro durante três anos para depois a matar era altamente improvável.

– Vamos continuar – disse Torkel, virando para a próxima página das notas de Vanja.

– A segunda família, os Hagberg de Gävle, desapareceu em 2002, mas esse desaparecimento foi encarado como uma fuga para algum paraíso ?scal. Quando começaram a examinar os negócios da família, descobriram que o pai tinha desviado grandes quantias de dinheiro do seu empregador. No entanto, as crianças têm as idades certas: cinco e oito anos.

Ninguém tinha nada a dizer, por isso Vanja continuou.

– A última família é os Cederkvist. Desapareceram algures depois de Fevereiro de 2004 durante uma viagem de barco à volta do mundo; partiram de Gotemburgo em Novembro do ano anterior. O irmão do pai recebeu um bilhete postal de Zanzibar na primeira semana de Fevereiro, e depois disso mais nada. Nem a família nem o barco foram alguma vez encontrados.

Vanja calou-se. Desta vez também ninguém tinha nada a dizer, e Torkel sabia porquê. Estavam decepcionados. Não havia nada que sugerisse que eles tinham encontrado uma das famílias desaparecidas. Os noruegueses eram a melhor opção, mas havia demasiados pontos de interrogação para que a equipa sentisse que tinha mesmo chegado a algum lugar.

– No que respeita a indivíduos sozinhos com crianças, a lista é um pouco mais extensa. Mas não muito. Desapareceram três homens com os seus ?lhos em 2001, 2003 e 2004. Julga-se que todos eles raptaram as crianças e as levaram para os respectivos países de origem. Podem encontrar todos os pormenores no meu relatório. Uma mulher e a sua ?lha desapareceram em Örebro em 2002; a mãe estava profundamente deprimida, e supõe-se que ela se tenha suicidado e matado a menina. Nunca foram encontradas. Um menino de quatro anos de idade desapareceu em Trollhättan em 2005, e também nunca foi encontrado. – Vanja pousou as suas anotações.

Silêncio. No dia anterior, eles tinham-se sentido bastante optimistas; se ao menos conseguissem identi?car as vítimas, isso haveria de os levar até mais perto do assassino. Muito mais perto. Dois adultos, duas crianças. Alguém, algures, deveria ter dado pela falta deles; uma família inteira não podia simplesmente desaparecer, e no entanto era mesmo isso que parecia ter acontecido.

– Precisamos de alargar a pesquisa – disse Torkel com um suspiro audível. – Entrem em contacto com a Europol, a nível internacional. Este é um destino turístico muito popular. Vanja, coordena a pesquisa com Billy e Jennifer, certi?ca-te de que é o mais ampla e e?caz possível.

Vanja aquiesceu e recolheu os seus papéis com um pequeno sorriso de satisfação no rosto.

– O equipamento do casal de holandeses – disse Billy, recostando-se para trás na sua cadeira, com as mãos atrás do pescoço.

– O que tem ele? – perguntou Ursula.

– Não o encontrámos.

– E depois?

Billy baixou as mãos, inclinou-se para a frente e encolheu os ombros.

– Se eles ainda traziam as roupas vestidas, onde está o resto das suas coisas? – Olhou para Sebastian como se esperasse alguma oposição vinda desse lado. – Como eles iam passar uma semana a caminhar nas montanhas, deviam levar consigo uma quantidade razoável de coisas.

– Talvez ele as tenha levado – sugeriu Vanja. – O assassino, quero eu dizer.

– Porquê? Isso só o faria ir mais carregado.

– Mas não sabemos como ele chegou lá. Podia ter um veículo de todo-o-terreno.

– Billy tem razão – interrompeu Ursula. – Talvez as bagagens deles ainda estejam lá em cima – Virou-se para Torkel. – Eu gostaria que escavassem uma área mais ampla em redor da sepultura.

Torkel suspirou de novo, o que não era habitual nele. Reprovava os suspiros e os gemidos nas reuniões; isso fazia baixar o nível de energia, trazia um ar de negatividade que ele preferia evitar.

– Está bem, mas creio que já houve protestos; é uma área de conservação da Natureza.

– E isto é uma investigação de homicídio – retorquiu Ursula. – É uma questão de prioridades.

– Diz isso aos amantes das árvores.

– Eu pensava que era essa a tua função.

Ela sorriu-lhe e recolheu os seus papéis. Iam ?car por ali; todos começaram a mexer-se.

– Houve apenas uma coisa... – A voz de Jennifer fê-los parar. – Uma coisa que eu encontrei quando estava a procurar os carros desaparecidos.

Todos se tornaram a sentar e olharam encorajadoramente para a recém-chegada.

– Foi encontrado aqui o cadáver de uma mulher dentro de um carro queimado em 31 de Outubro de 2003.

Toda a equipa se empertigou inconscientemente; isto era interessante, a coisa mais interessante que se tinha dito desde o início da reunião.

Billy virou-se para Jennifer, esperando que ela notasse o seu olhar inquisidor. Porque não lhe tinha ela contado isto? Ficou mais do que um pouco irritado. Tinham estado a trabalhar lado a lado durante uma hora ou mais após a reunião do dia anterior e durante toda a manhã desde o pequeno-almoço. Compreendia perfeitamente que ela sentisse que precisava de provar alguma coisa, de justi?car o seu lugar na equipa, dado que estava ali só por um período experimental, mas decerto lhe poderia ter dito alguma coisa a ele. Naturalmente, ele tê-la-ia deixado passar a informação aos outros, deixá-la-ia ?car com todo o crédito. Ela recusou-se a encará-lo; o seu olhar estava ?xo em Torkel. Foi acometido por uma certa dúvida. Tinham-se dado muito bem desde o princípio, ele e Jennifer. Ela dissera-lhe várias vezes como se sentia contente por lhe terem dado esta oportunidade. Ele também ?cara contente. Na verdade, não admitira o motivo para si próprio, mas era bom terem alguém novo, que estivesse a tentar progredir. E que, para ser franco, estivesse abaixo dele naquela hierarquia tácita. E a seguir isto, vindo do nada. Informações importantes que ela lhe ocultara, embora supostamente estivessem a trabalhar juntos. Porquê? Será que não conseguira perceber quão ambiciosa ela era? Será que ela queria ser a principal investigadora da equipa? Será que queria ser a melhor? Seria ela a nova Vanja em todos os sentidos?

– A mulher nunca foi identi?cada; não havia quaisquer documentos no carro – continuou Jennifer, aparentemente alheia aos olhares inquisitivos de Billy. – Mas o veículo tinha sido alugado no dia anterior em Östersund por uma tal Patricia Wellton. No entanto, Patricia Wellton não existe.

– O que queres tu dizer, não existe? – perguntou Vanja.

– Ela não existe. Identidade falsa. Ninguém sabe quem ela é. Segundo o relatório, falava inglês e tinha uma carta de condução americana.

– Mas ela não foi dada como desaparecida nos Estados Unidos?

Jennifer abanou a cabeça.

– Nunca nos Estados Unidos houve uma Patricia Wellton com a identi?cação dela ou com aquele número de carta de condução, ainda segundo este relatório, que é extremamente pormenorizado.

Jennifer entregou as suas anotações a Torkel, que as percorreu rapidamente.

– Voltem a veri?car tudo – disse ele com um olhar que abrangeu Vanja, Jennifer e Billy. – Vejam se conseguimos descobrir onde é que ela entrou no país, apoderem-se de tudo o que houver sobre o acidente... imagens, relatório da autópsia, tudo. Quando é que tu disseste que ela foi encontrada?

– Na manhã de 31 de Outubro.

– Onde?

Jennifer levantou-se e foi até ao mapa. Assinalou com um círculo vermelho uma pequena área ao lado da E14.

– Aqui. Julgam que terá perdido o controlo do carro e caído na ravina.

– E o carro incendiou-se? – disse Vanja.

– Sim.

Vanja continuou a olhar em silêncio para aquele material. Era extremamente incomum que um carro se incendiasse ou explodisse num acidente que envolvesse um único veículo. Isso estava sempre a acontecer nos ?lmes, claro, mas, na realidade, era muito raro, o que tornava aquele acidente mais suspeito ainda.

– Uma mulher não identi?cada, com uma identidade falsa, é encontrada morta na mesma semana em que nós pensamos que seis pessoas foram parar a uma vala comum na montanha.

Torkel não precisou de dizer mais. Existia uma ténue possibilidade de os dois acontecimentos não estarem ligados, mas a experiência e as leis da probabilidade tornavam isso improvável.

De repente, eles tinham um novo conjunto de prioridades.

 

– Posso falar contigo?

Billy agarrou Jennifer quando esta se preparava para sair da sala. Sabia que aquilo que havia acontecido o atormentaria durante todo o dia, se não mais. Era melhor lidar desde já com isso. Tirá-lo do caminho.

– Claro, o que é? – Jennifer ainda estava a reluzir devido a todos os elogios que recebera antes de Torkel dar a reunião por encerrada. Percebeu que Billy não parecia tão contente.

– Porque é que tu não me disseste nada sobre o carro queimado?

– Desculpa? – Havia verdadeira surpresa na voz de Jennifer.

– Quando estivemos a trabalhar juntos antes da reunião – esclareceu Billy. – Porque é que não me falaste do carro queimado?

– Eu estava à procura de algo que tivesse a ver com os carros durante o período relevante, e isso apareceu pelo meio.

– E não pensaste em informar-me?

– Antes de toda a gente, queres tu dizer?

– Sim.

– Devia tê-lo feito?

– O que te parece?

Jennifer encolheu os ombros, mostrando-se um pouco confusa.

– Tu estavas ocupado com os hotéis e as pousadas; se tivesses encontrado alguma coisa, eu não esperaria que mo dissesses. Julguei que a coisa mais importante era informar toda a equipa.

Billy não respondeu. Havia uma certa razão no que ela dissera; era por isso que a equipa fazia aquelas reuniões regulares. Todos eles funcionavam de forma independente e a seguir trocavam informações quando se reuniam. Tal como Jennifer ?zera. Porque estava ele a ser tão sensível? Começava a desejar esquecer este episódio.

– Mas, se eu deparar com alguma coisa, terei todo o gosto em ta mostrar a ti em primeiro lugar – disse-lhe Jennifer, interpretando o silêncio dele como um sinal de que havia compreendido mal. – Isso não é um problema.

– Não há necessidade – disse Billy calmamente. Olhou para o lado, para o corredor que estava atrás dela, tudo, menos olhá-la nos olhos.

– Tens a certeza? Quero dizer, se quiseres ser tu a apresentar o que encontrarmos, isso para mim também está bem.

– Não, a sério, não é preciso. – Billy estabeleceu contacto visual e conseguiu esboçar um leve sorriso, esperando que isso diminuísse o impacto do seu azedume inicial.

– Tens a certeza? – Jennifer continuava a mostrar-se um pouco desconfortável com a situação.

– Absolutamente. Eu estava errado. Desculpa.

– Então estamos bem?

– Estamos bem.

– Óptimo, porque eu realmente não quero perturbar as pessoas.

– Não perturbaste. Juro.

Jennifer mostrou-lhe um sorriso caloroso e afastou-se. Billy ?cou onde estava, sentindo-se mais do que um pouco perturbado. Mas que diabo tinha acontecido com ele? O que estava a fazer? Ficara irritado por Jennifer não ter falado consigo primeiro, e isso signi?cava que se sentira ameaçado de alguma forma. O que, por sua vez, signi?cava que aquele comentário de Vanja sobre ela ser melhor agente policial do que ele o atingira mais profundamente do que ele pensava. Tinha a certeza de que deixara tudo isso para trás; haviam esclarecido as coisas. Ele regressara aos aspectos do trabalho em que era melhor, perceberam que tinham papéis diferentes mas igualmente importantes dentro da equipa. Pelo menos, ele achava que sim. Mas agora havia este assunto com Jennifer. E o facto de ele não se ter candidatado ao curso de formação do FBI. Pequenos sinais.

Será que duvidava das suas próprias capacidades ou que estava a transformar-se numa daquelas pessoas amargas que nunca subira na vida e acabara por acreditar que toda a gente andava a conspirar contra si? Não podia permitir que isso acontecesse. Nada disso. Ainda era muito jovem e adorava demasiado o seu trabalho. Talvez fosse melhor recomeçar tudo. Sair da Riksmord e candidatar-se a algo novo.


VALDEMAR LITHNER rolou para o lado direito e olhou para o relógio que estava na mesa-de-cabeceira. Estava na hora de voltar ao trabalho. Tinha vindo a casa almoçar, comera uns cereais e um iogurte na bancada da cozinha e a seguir fora estender-se. Nestes últimos dias andava cansado, embora não soubesse realmente porquê. Continuava a dormir tão bem como sempre, mas nunca se sentia devidamente repousado. Tinha ouvido dizer que isso poderia ser um sintoma de esgotamento, mas no seu caso não parecia provável. Não andava a trabalhar mais arduamente do que era habitual, na verdade, antes pelo contrário, e não se sentia enervado nem sob pressão. No entanto, conseguia fazer cada vez menos. E depois havia aquela dor lancinante que ele sentia na parte inferior das costas. Teria dado um jeito? Mas não lhe parecia ser uma distensão muscular. Saiu do quarto e atravessou o apartamento silencioso, vazio. Haveria de parecer ainda mais silencioso e vazio dentro de poucos meses, quando Vanja se mudasse para os Estados Unidos.

Ela não vivia consigo e com Anna há muitos anos, mas era uma visita frequente. Jantavam juntos todas as quintas-feiras, mas muitas vezes ela telefonava, ia lá ver televisão por um bocado, tomava um café, ?cava para comer alguma coisa. Se estivesse perto do escritório dele, telefonava-lhe e perguntava-lhe se tinha tempo para se encontrarem ao almoço. Agora tudo isso ia acabar. Ela iria para muito, muito longe, durante muito tempo, e Valdemar perderia a coisa que mais prezava na vida: o contacto próximo com a sua ?lha.

É claro que queria que ela fosse. Estava incrivelmente orgulhoso dela – sempre estivera. Não sentira nada senão alegria e orgulho quando ela fora escolhida para fazer parte da Riksmord, mas agora esses sentimentos estavam tingidos de tristeza, e o sentimento de perda era tangível sempre que pensava que ela ia viver para a Virgínia, embora ainda faltassem alguns meses para que efectivamente partisse.

Não ?caria sozinho. Não lhe faltaria amor e companheirismo. Ele e Anna tinham um bom casamento, ainda se amavam um ao outro e, sempre que ele pensava sobre o seu futuro, Anna estava lá. Mas o seu relacionamento com Vanja era muito especial, eles eram muito próximos. Sempre tinham sido. Quando Vanja era pequena, tinha mais paciência para ela do que Anna; gostava de participar nas brincadeiras, de fazer as coisas à maneira dela, e Anna ?cava grata pelo descanso. Quando outros homens no trabalho ou noutros contextos se queixavam das suas ?lhas adolescentes, falavam das discussões e das birras delas e diziam que era como viver com um extraterrestre, Valdemar não se reconhecia de todo na situação deles. Sempre tinha sido capaz de conversar com a ?lha, de discutir as coisas e de chegar a uma decisão conjunta. Talvez fosse porque ela sempre fora muito madura para a sua idade, mas ele gostava de pensar que era porque a ligação entre ambos era tão importante para os dois que não estavam dispostos a testar-lhe os limites. Anna passara por um período mais difícil com Vanja durante a adolescência dela, e por isso con?ara-lhe a si muitas das decisões e regras de comportamento. A relação entre a mãe e a ?lha era geralmente mais complexa do que a que existia entre si e Vanja. Não era uma guerra aberta, e elas nunca trocaram palavras duras, mas simplesmente não eram tão próximas.

Vanja sempre fora a menina do papá. E agora ia deixá-lo.

Quando ela lhe contara os seus planos, a sua reacção inicial fora a de que ela não poderia ir. Ia proibi-la. Encontraria uma maneira de a manter ali. Pela primeira vez desde que conseguia lembrar-se, havia-lhe mentido deliberadamente, dissera-lhe que parecia ser uma boa ideia. Ao longo das semanas seguintes esforçara-se por suprimir a esperança de que ela viesse a fracassar. Tinha de continuar a dizer a si mesmo que era aquilo que ela realmente queria. Ia fazê-la feliz, e isso fá-lo-ia feliz também.

Nesta fase, ele queria de facto que ela fosse bem-sucedida, mas por vezes a sensação de perda dominava-o. Ainda antes de ela ter partido. Como se sentiria quando isso realmente acontecesse?

Rejeitou os seus pensamentos sombrios, voltou para a cozinha e encheu um copo com água. Olhou para o relógio; estava na hora de ir. Quando colocou o copo dentro da máquina de lavar louça e se dirigiu para o corredor, o telemóvel tocou. Era Annika, a sua secretária. Logo que atendeu, ela debitou uma longa e rápida arenga. Não conseguiu compreender tudo o que ela lhe dizia; parecia transtornada, e esperou que tivesse entendido mal. Esforçou-se por manter a voz ?rme quando lhe pediu que se acalmasse e repetisse o que acabara de dizer. Annika respirou fundo e, infelizmente, ele percebeu que já compreendera à primeira. Estava lá a Polícia, a exigir documentos que datavam de há vários anos, e ela achava que ele devia ir já para lá. Valdemar disse-lhe que partiriria de imediato e terminou a chamada.

Ficou no corredor a tentar pôr os pensamentos em ordem.

Mas ele tinha-se safado com aquilo.

Ele tinha encontrado um atalho.

A investigação preliminar tinha sido arquivada. Falta de provas.

Ele tinha feito aquilo para o bem da família.

Era errado, claro. Fácil, mas errado. Já tinha deixado tudo isso para trás, esquecera-o, suprimira-o. A Polícia estava no seu escritório. Di?cilmente poderia ser sobre alguma outra coisa. Porquê agora? Porque haviam eles voltado?

Uma maneira fácil de lhes dar aquilo que de outra forma teria sido incapaz de lhes dar.

Eles não teriam lá voltado se não julgassem que desta vez podiam deitar-lhe a mão. O que tinha acontecido? Ele não era um criminoso, só que aquilo tinha sido muito tentador. Muito fácil.

Um atalho.

Um atalho seguro.

Como deveria lidar com isto?

O som de uma campainha quebrou o silêncio. Valdemar sobressaltou-se. Era a campainha da porta. Quem poderia bater-lhe à porta nesta altura? Não deveria estar ninguém em casa. Abriu a porta com o espírito ainda alheado, mas num instante tudo se compôs.

Reconheceu a sua visitante.

Era Ingrid Ericsson, da Autoridade do Crime Económico.

Ela sorria.


APÓS A REUNIÃO da manhã todos eles ?caram com muito para fazer. Billy fora encarregado de averiguar quando e onde Patricia Wellton entrara no país. Todos sabiam que se tratava de um exercício moroso e possivelmente fútil. Se Patricia Wellton, fosse ela quem fosse, tivesse chegado de comboio ou de carro, jamais a encontrariam, mas tinham de tentar. Pedira a Jennifer que o ajudasse, e ela ?cara contente com isso. Ele salientara que ela não precisava de o informar pessoalmente caso encontrasse alguma coisa e voltou a pedir-lhe desculpas pelo seu comentário anterior. Ela rejeitou o pedido de desculpas; estava tudo bem.

Sentaram-se frente a frente no restaurante vazio, cada um deles equipado com um computador portátil e um telemóvel, e começaram pelo princípio. O que sabiam? Não muito. Patricia Wellton tinha alugado um carro em Östersund, na manhã de 30 de Outubro de 2003 – praticamente era isso. Fora fácil apurar que não houvera voos directos desde o estrangeiro para Östersund no período relevante, para além de voos charter, que eram muito raros. Nenhum voo charter aterrara na manhã do dia 30. O mais próximo em termos temporais fora um voo proveniente de Amsterdão, na manhã de 26 de Outubro. Billy e Jennifer discutiram a possibilidade de Patricia ter passado quatro dias em Östersund, mas descartaram a ideia quase de imediato.

Isso deixava os voos domésticos e os comboios. Decidiram começar pelos dois maiores aeroportos da Suécia; Jennifer ?cou com Arlanda, Billy com Landvetter.

Antes de começarem, foram buscar um jarro de café à cozinha e encontraram um pacote de biscoitos num dos armários, apontando tudo o que tinham levado na lista que estava em cima do balcão. Mats e Klara tinham-lhes apresentado o sistema logo na primeira noite:

– Levem o que quiserem, quando quiserem, mas apontem.

De volta ao restaurante, serviram-se de uma chávena de café e olharam um para o outro por cima da mesa. Billy suspirou.

– Muito bem, vamos lá fazer isto.

Ergueram as suas chávenas num brinde e a seguir começaram a telefonar para todas as companhias aéreas que tinham voado para Estocolmo e Gotemburgo a 30 de Outubro de 2003 e na semana anterior, pedindo acesso às listas de passageiros. Não só teriam de percorrer uma enorme quantidade de burocracia, mas, mesmo que conseguissem obter as informações, teriam também de olhar para milhares de nomes. Existia um risco signi?cativo de esses detalhes já não estarem disponíveis.

– Isto é como o trabalho de Sísifo – disse Jennifer, sorrindo para Billy por cima do seu portátil.

– Absolutamente – disse-lhe Billy, sorrindo de volta. Na verdade, não sabia quem ou o que era Sísifo, alguma coisa que teria a ver com a mitologia grega, porventura, mas não tinha qualquer intenção de lhe perguntar.

 

A tarefa de Torkel era ver se alguém nos Estados Unidos o poderia ajudar a identi?car Patricia Wellton. A carta de condução que ela usara parecia perfeitamente autêntica, tanto quanto ele podia ver pela fotocópia contida na documentação do aluguer do automóvel. Uma boa falsi?cação; com alguma sorte, seria tão boa que isso signi?cava que ela já anteriormente usara o pseudónimo, e nesse caso as autoridades americanas talvez fossem capazes de detectar a sua verdadeira identidade. Se ela fosse uma cidadã dos Estados Unidos, claro. Existia uma possibilidade de ter vindo de um país diferente e estar apenas a usar documentos de identi?cação americanos. Ainda assim, ele precisava de começar por algum lado.

Era altamente improvável que o próprio Torkel fosse capaz de encontrar a pessoa certa com quem falar e de obter as informações directamente dos Estados Unidos, pelo que contactou o IPO, o departamento da Unidade Nacional de Crime que lidava com a cooperação policial internacional. Foi Börje Dahlberg que atendeu. Torkel conhecia-o bem, e, após uma rápida conversa sobre o trabalho e a vida, que infelizmente, no caso de Torkel, se resumiam à mesma coisa, Börje disse-lhe que faria o melhor que conseguisse. Torkel agradeceu-lhe e desligou. Não havia muito mais que pudesse fazer de momento. Saiu do seu quarto e caminhou pelo corredor. Passou pelo quarto de Ursula, mas não parou; sabia que ela tinha ido novamente lá acima, à sepultura. Ontem à noite tinham começado a peneirar a terra removida; o trabalho prosseguia hoje, e Ursula queria estar lá. Torkel já tinha feito o telefonema para pedir que se escavasse uma área mais vasta, na esperança de encontrarem as mochilas do casal holandês; esperara resistência e estava pronto a usar a sua patente se fosse necessário, mas enviar para lá outra vez uma escavadora revelara-se surpreendentemente fácil. Não tinha qualquer intenção de contar isso a Ursula, claro. A versão que ela ia ouvir envolveria toda uma série de funcionários atafulhados em burocracia, insensatos amantes de árvores e jornalistas com lápis a?ados, todos os que Torkel combatera incansavelmente em prol da investigação, mas por causa dela também, claro.

Foi até ao restaurante e viu Jennifer e Billy sentados diante um do outro, ambos ocupados ao telefone, ambos falando inglês. Caminhou até ao balcão, pegou numa caneca vazia, avançou para a mesa deles e serviu-se de um café, depois esperou até um deles terminar o seu telefonema para lhe poderem dizer em que precisavam de ajuda.

 

A seguir à reunião, Vanja decidiu ir ver o carro queimado. Tinham obtido todos os pormenores disponíveis a partir da empresa de aluguer em Östersund, e a investigação policial ao acidente havia sido muito minuciosa. Inesperadamente minuciosa, diria Ursula, pensou Vanja com um sorriso. No entanto, Vanja tinha um pouco mais de con?ança na Polícia local, o que reconhecidamente não era dizer grande coisa. Quem não achasse que os polícias locais eram uns irremediáveis amadores com a competência de crianças de seis anos de idade já mostrava mais con?ança do que Ursula.

Vanja decidiu ir de carro até Åre. Um relatório era um relatório, mas havia sempre mais alguma coisa para descobrir, especialmente se os agentes que tinham estado de serviço em 2003 ainda por lá estivessem. Pegou na cópia fornecida por Jennifer, vestiu a sua roupa de exterior e dirigiu-se para a porta.

– Onde vais?

Vanja virou-se para trás e viu Sebastian espojado numa das poltronas junto da entrada principal. Tinha na mão uma revista antiga, e antes de ele a pousar Vanja vislumbrou umas palavras cruzadas semiacabadas. Sebastian parecia exalar aborrecimento e cansaço.

– A Åre.

– Porquê?

– Quero ver se consigo descobrir mais acerca daquele acidente de carro.

– Posso ir contigo?

A voz dele estava cheia de esperança. Vanja notou também que, de facto, ele lhe pedira. Um «Eu vou contigo» teria sido mais ao estilo de Sebastian, mas, desde o caso Hinde e tudo o mais que acontecera, ele mudara. Estava mais brando, de certa forma, pensou ela. Menos confrontador, pelo menos em relação a si. Para ela isso era óptimo, e na verdade não se importava nada que ele viesse consigo até Åre.

– Sentes-te aborrecido? – perguntou-lhe ela, indicando com um aceno de cabeça a revista que ?cara aberta.

– Não, eu consigo ?car a matutar durante o dia todo sobre «deus egípcio do Sol, duas letras», mas gosto de sair por um bocado.

Vanja fez um gesto de assentimento.

– Está bem. Então despacha-te.

– Dois minutos – disse-lhe Sebastian, e ela julgou ter visto um leve sorriso de gratidão quando ele desapareceu em direcção ao seu quarto.

Aborrecido era dizer pouco. Só havia uma cura para a inquietação e a ansiedade do corpo dele, mas ali em cima não se encontrava ninguém que fosse para a cama consigo. Pensara brevemente em Klara, mas ela nunca estava a mais de dois passos do seu marido barbudo e tinha aquele ar de grande vida ao ar livre que, honestamente, a tornava bastante desinteressante aos olhos de Sebastian. Uma rápida saída com Vanja poderia aliviar-lhe a pior parte do tédio; além disso, não havia nada de útil que ele pudesse fazer ali em cima.

Seis esqueletos e um acidente de carro.

Nada em que pudesse aplicar directamente os seus conhecimentos, portanto, o que haveria de fazer? Apesar de já ter parado de chover e de ter ?cado um belo dia de Outono, não sentia vontade nenhuma de ir dar outro passeio. Já seguira o rio durante meia hora, já vira a paisagem, e isso era su?ciente. De facto, nunca compreendera aquela coisa de se experimentar a Natureza. Aquelas enormes áreas baldias estavam seriamente sobrestimadas, na opinião de Sebastian. Porque era mais espantoso conseguir-se ver vários quilómetros de distância em vez de uns cem metros? As cascatas eram reconhecidamente impressionantes e as montanhas podiam ser dramáticas, mas não faziam nada por ele. Não falavam para ele. Durante os anos que passara nos Estados Unidos, tinha viajado por lá, fora ver o Grand Canyon, as montanhas Rochosas, as cataratas de Niagara. Ouvira as pessoas a soltar oohhs e aahhs, a dizerem como tudo aquilo era magní?co, como nos mostrava quão pequenos somos.

Como se isso fosse positivo.

Idiotas.

Pegou no casaco e voltou para o átrio.

Para Vanja.

 

Foram sentados em silêncio durante a maior parte do caminho, mas isso não incomodou Sebastian. Havia diferentes tipos de silêncio, e este era dos bons. Aquilo não era uma exclusão hostil nem uma gélida declaração de intenções, mas um silêncio natural entre duas pessoas que não necessitavam de preencher cada segundo com conversa. De vez em quando, comentavam alguma coisa que viam; normalmente era Vanja, e normalmente sobre a paisagem natural que os rodeava. Ela disse que um dia gostaria de ir caminhar pelas montanhas, seguir Kungsleden, o Caminho do Rei, desde Abisko até Hemavan. Demorar o tempo que fosse preciso. Mochila, tenda e repelente de mosquitos, a experiência completa. No entanto, era pouco provável que isso acontecesse em breve se ela se mudasse para os Estados Unidos.

Sebastian não mordeu o isco. Não queria falar sobre a possibilidade de ela ir embora. Queria aproveitar aquele momento enquanto seguiam juntos pelas montanhas, desfrutando da companhia um do outro. Além disso, já tinha decidido: ela não ia. Ainda não resolvera como iria impedi-la; tivera uma ideia, mas ainda longe de estar completamente formada.

– Kungsleden ainda cá estará – disse-lhe ele, olhando pela janela; receava que alguma coisa denunciasse o que estava a pensar. A?nal, Vanja era uma agente policial, com uma capacidade quase sobrenatural para saber, apenas pelo tom de voz, se as pessoas estavam a mentir ou a esconder alguma coisa.

– Fazes esqui? – perguntou-lhe Vanja quando se aproximaram de Åre e começaram a ver as amplas pistas de slalom e o esqueleto do teleférico de esqui no lado esquerdo.

– Não... e tu?

– Não com frequência e não particularmente bem, mas consigo descer.

– Foi o teu pai que te ensinou?

Vanja virou rapidamente a cabeça e lançou a Sebastian um olhar interrogativo. Haveria algo de... tenso naquele tom de voz? Ele manteve os olhos ?xos na estrada adiante.

– Foi. Porque é que perguntas?

– Por nada – respondeu ele com um encolher de ombros. – Parece ser o tipo de coisa que as pessoas ensinam aos seus ?lhos.

Como a natação, pensou ele, e sentiu a sua mão direita crispar-se num punho cerrado. Endireitou os dedos e apoiou o cotovelo na parte de baixo da janela. Tinha de ser cuidadoso. O sonho era uma coisa, não tinha qualquer controlo sobre isso, mas uma coisa daquelas entrar na sua cabeça agora, ali no carro com Vanja... Por mais que as crianças mortas na montanha o tivessem afectado, Sebastian Bergman controlava os seus próprios pensamentos. Era essa uma das razões do seu sucesso, da sua grandeza. Mantinha o seu intelecto com rédea curta, jamais permitia que ele andasse à solta, fazia-o trabalhar sempre para si. Esforçava-se por ter controlo total, e normalmente conseguia.

– Nunca foste casado? – perguntou-lhe Vanja quando iam a passar por Tegelfjäll.

Sebastian ?cou hirto. Conseguia manobrar os seus próprios pensamentos, mas não a conversa, ao que parecia. Passou rapidamente em revista as suas opções. Dizer-lhe que não tinha nada a ver com isso. Não era bom, levantaria suspeitas e deixá-la-ia de mau humor. Mentir: um simples não. Poderia ser exposto numa fase posterior e levar a mais perguntas desnecessárias. A verdade. Decidiu-se pela verdade. Até certo ponto, pelo menos.

– Em tempos, sim.

– Quando?

– Noventa e oito.

– Então quando é que vocês se divorciaram?

Sebastian hesitou, mas ateve-se ao caminho que escolhera. A verdade.

– Não nos divorciámos. Ela morreu.

Vanja ?cou calada. Sebastian olhou em frente. Tinha dito o mesmo a Torkel quando se encontraram em Västerås, mas não mais do que isso. Não tinha a menor intenção de ir mais longe agora.

Ninguém sabia mais nada.

Ninguém sabia de tudo.

Se Vanja continuasse a fazer perguntas, ele começaria a mentir.

Ou não?

Deveria contar a alguém pela primeira vez? Contar-lhe tudo? Sobre Lily e Sabine e sobre a onda que as levara a ambas para longe de si. O sentimento de perda, a angústia. Quão perto ele estivera de se ir abaixo. Como, em larga medida, continuava a ?ngir viver a sua vida.

Era provável que isso os aproximasse, que aprofundasse a relação deles. Não conseguia ver como poderia deixar de ser bené?co, e no entanto era-lhe adverso.

Não queria fazê-lo.

A ideia de utilizar uma ?lha para se aproximar da outra pareceu-lhe errada, como se estivesse a explorar Sabine, a aproveitar a morte dela para os seus próprios ?ns. A utilizá-la para chantagem emocional.

Não queria fazê-lo.

Não podia fazê-lo.

– Lamento muito – disse Vanja calmamente.

Sebastian fez um gesto de assentimento com a cabeça, mantendo os seus dedos cruzados para que ela não lhe perguntasse...

– Como é que ela morreu?

Sebastian suspirou. Tinha de acabar com isto. Não havia motivo para o disfarçar nem para tentar alguma diversão. Não podia deixar aquilo sujeito a uma discussão mais aprofundada no futuro. Tinha de parar por ali.

Para sempre.

Voltou-se para ela.

– Ela morreu, não é su?ciente? O que queres tu saber? Queres ver o relatório da autópsia?

Vanja olhou na direcção dele e a seguir dedicou toda a sua atenção ao carro e à estrada. Pretendera apenas mostrar simpatia, mas era evidente que estava em campo minado e, quaisquer que fossem as suas intenções, já tinha passado das marcas.

– Peço desculpa, não é da minha conta.

– Pois não, não é.

Vanja não respondeu. O que poderia ela dizer? Sebastian tinha muito e?cazmente posto termo a qualquer tentativa de conversa ?ada. Continuaram em silêncio.

 

– Tens a certeza de que isto está certo? – perguntou-lhe Sebastian quando saiu do carro.

Vanja compreendeu o cepticismo dele. Aquele atarracado edifício castanho que tinham à sua frente parecia-se mais com um cabeleireiro ou uma pequena pizzaria, mas o GPS levara-os até ali, e o emblema da Polícia na parede sugeria que de facto estavam no lugar certo.

– Eles nem sequer ocupam o edifício todo – disse Sebastian, apontando para o logótipo de uma companhia de seguros mais adiante. – Mas que pardieiro. Quantas pessoas trabalham aqui?

– Não faço ideia – disse Vanja, abrindo a porta.

Lá dentro encontraram um balcão de recepção à direita, com uma ?leira de cadeiras ao longo da parede oposta, e uma mesa com alguns jornais e diversas brochuras policiais espalhados sobre a sua superfície. Em frente havia uma porta que levava a algum tipo de escritório, com uma escadaria ao lado. Vanja e Sebastian foram ao balcão e Vanja explicou quem eram e que estavam à espera deles. A mulher atrás do balcão disse-lhe que sim com a cabeça e a seguir gritou «Kenneth!» na direcção das escadas antes de voltar a encarar os visitantes com um sorriso. Sebastian sorriu-lhe também. Que idade teria ela? Uns quarenta, quarenta e cinco anos, talvez! Cabelo curto e escuro, maçãs do rosto salientes, lábios ?nos, uns seios bastante grandes sob a camisa do uniforme muito bem engomada. Inclinou-se um pouco sobre o balcão e reparou que ela não usava aliança de casada.

– É só um minuto – disse a mulher quando ouviram passos no piso de cima. Um homem com cerca de trinta e cinco anos desceu as escadas e apresentou-se-lhes como Kenneth Hultin.

– Fomos buscar tudo para vocês – disse ele, levando-os pelas escadas. Quando se chegava lá acima, havia três secretárias na sala à direita; Kenneth conduziu-os para a esquerda, para algo que se assemelhava a uma copa e que claramente servia como sala do pessoal. Numa das extremidades havia uma mesa coberta por um encerado às riscas amarelas, rodeada por quatro cadeiras desdobráveis; na outra extremidade estavam entalados um pequeno lava-louças e um frigorí?co. Em cima do frigorí?co estava pousado um microondas, e a máquina de café estava sobre o escorredor da louça. Um odor inconfundível a peixe permeava toda a sala.

– Querem um café ou algo assim? – disse Kenneth, apontando para o pote meio cheio na máquina.

– O que é algo assim? – perguntou Sebastian.

– Desculpe?

– Você disse café ou algo assim... o que é algo assim? – repetiu Sebastian.

– Aahh... chá, água, alguma fruta, talvez... – Kenneth fez um gesto na direcção de uma taça de maçãs que estava em cima da mesa.

– Estamos bem, obrigado – interrompeu Vanja; olhou intensamente para Sebastian, que já tinha perdido o interesse e que, com uma certa expressão de desagrado, examinava a grande tapeçaria pendurada na parede ao fundo da mesa. Kenneth fez um sinal de assentimento e deixou-os a sós. Vanja sentou-se, abriu a pasta em cima da mesa e começou a ler.

O telefonema chegara às 08h23 da manhã do dia 31 de Outubro de 2003. A Polícia tinha chegado ao local às 08h57 e determinara que havia um cadáver no banco do condutor do carro, o qual se incendiara.

– Acho que vou dar uma volta.

Vanja levantou os olhos; Sebastian torceu a cabeça na direcção da porta.

– Julguei que tinhas vindo para ajudar!

– Não, vim para ficar longe daquela maldita montanha deprimente.

Ele saiu da sala e Vanja retomou a sua leitura com um suspiro.

O corpo no interior do carro estava em tão más condições que tinha sido impossível determinar a idade ou o sexo no local. As placas de matrícula tinham-lhes permitido identi?car o veículo como um automóvel que fora alugado em Östersund por uma tal Patricia Wellton, do Kentucky, nos Estados Unidos. Quando tentaram localizar os parentes dela e obter registos dentários ou alguns outros meios de con?rmar a identidade da falecida, descobriram que não havia nenhuma Patricia Wellton no Kentucky. Nunca houvera. A carta de condução tinha sido falsi?cada, e eles só tinham chegado até aí. Assumiram que o corpo no interior do carro era da mulher que se ?zera passar por Patricia Wellton. Nenhuma outra tinha sido dada como desaparecida, mas nunca poderiam estar completamente certos. A pasta continha uma pilha de fotogra?as; Vanja folheou-as e decidiu levá-las consigo. Diriam muito mais a Ursula do que lhe diziam a si.

O carro tinha sido levado para exame forense. Vanja folheou o relatório; não havia nada que explicasse a razão por que ele saíra da estrada. Os travões e a direcção pareciam estar a funcionar na perfeição.

A análise do local também não forneceu qualquer pista sobre os motivos por que o carro se tinha despistado. Não havia qualquer vestígio de um furo ou de colisão com um animal selvagem. A ausência de marcas de derrapagem ou de qualquer outra indicação de uma tentativa para evitar o acidente levaram à especulação de que a condutora poderia ter adormecido ou, porventura, adoecido.

Vanja voltou atrás.

A autópsia não conseguira determinar se a mulher estava viva quando o carro se incendiara. Teoricamente, ela poderia ter tido um ataque cardíaco.

Vanja regressou ao relatório forense. No ?nal havia uma lista dos artigos que tinham sido encontrados dentro do carro. Era curta. Muito curta. A bagageira estava vazia. Vanja fez uma pausa. É certo que a mulher poderia não ter qualquer bagagem, ainda que isso parecesse um pouco estranho, tendo em consideração que ela supostamente tinha viajado para a Suécia, mas fornecera a sua identi?cação quando fora buscar o carro e tinha pago por ele. Deveria trazer uma mala de mão, ou pelo menos alguma carteira ou bolsa. Mas nada disso tinha sido encontrado no carro ou no corpo. Vanja pegou no seu bloco de apontamentos e escreveu:


CARTA DE CONDUÇÃO / DINHEIRO?


Depois regressou ao início da pasta com o bloco de apontamentos ao seu lado. Quando já recapitulara o material pela segunda vez e anotara os pontos sobre os quais tinha perguntas a fazer, chamou Kenneth, na esperança de que ele fosse capaz de lhe esclarecer pelo menos algumas.

 

Vinte minutos depois, Vanja tinha o nome da pessoa que reportara o acidente e o da empresa que, por ?m, fora remover o carro. Agradeceu a Kenneth, recolheu os documentos que queria levar consigo e desceu as escadas.

Sebastian estava na recepção. A mulher atrás do balcão ria e anotava qualquer coisa num cartão. O seu número de telefone, assumiu Vanja quando a viu entregá-lo a Sebastian com uma piscadela de olho.

– Estás pronto para partir? – perguntou-lhe Vanja enquanto passava.

– Sim, e tu?

Vanja nem respondeu; limitou-se a abrir a porta e saiu. Respirou profundamente aquele ar fresco de Outono enquanto se dirigia para o carro. Era bom fugir daquele ar duvidoso, e cada vez mais abafado, do piso de cima da esquadra de Polícia, e também servia para acalmar a súbita vaga de irritação que ela sentira na recepção. Isso era estúpido, disse ela a si mesma, ridículo. Os assuntos de Sebastian não tinham nada a ver consigo, mas naquela necessidade compulsiva que ele sentia de levar para a cama quase todas as mulheres que conhecia havia algo que ela achava profundamente ofensivo. Desagradável. Percebeu que estava um pouco envergonhada por causa dele, mas ao mesmo tempo havia algo de triste naquele comportamento. De triste e de desesperado. O que faltava na vida dele? Que tipo de espaço vazio deveriam preencher esses contactos tão fugazes? Além disso, Sebastian era agora um representante da Riksmord, e tal comportamento era desadequado. Vanja não tinha nenhuma intenção de discutir isso com ele; no entanto, falaria no assunto a Torkel, e depois o problema seria deste.

Vanja ouviu de novo a mulher rir-se; ela gritara «Até depois!», quando Sebastian abriu a porta e saiu de lá com um sorriso no rosto.

– Então, o que vamos fazer agora? – perguntou-lhe ele enquanto abria a porta do carro.

– Tenho uma morada.

– A morada de quem?

– Do fulano que encontrou o carro.

– Porque precisamos de falar com ele?

– Porque ele encontrou o carro.

Vanja abriu a porta do condutor e entrou. Sebastian ?cou ali em pé por um momento, a repetir a conversa na sua cabeça. Vanja estava irritada. Havia a hipótese de que ela estivesse desapontada com Kenneth, mas a explicação mais provável era que fosse ele próprio o culpado. Como de costume.

– É a Bodil? – perguntou-lhe ele enquanto esperavam para virar à esquerda para a E14, logo que houvesse alguma abertura entre os carros que saíam do túnel por baixo da encosta do slalom.

– Quem é a Bodil?

– A recepcionista. Não tenho de ir para a cama com ela, se tu não quiseres que eu vá.

Vanja saiu para a estrada principal e rapidamente acelerou para quinze quilómetros acima do limite de velocidade. Ele de facto era um mistério. Jamais ocorreria a Vanja falar sobre a sua vida sexual com um colega. Ela e Billy continuavam a ser próximos, mas nenhum deles jamais partilhara pormenores íntimos. Não que Vanja tivesse muito para contar hoje em dia, mas mesmo assim... No entanto, esse era nitidamente mais um limite que estava presente nas pessoas normais e completamente ausente em Sebastian Bergman.

– O que te leva a pensar que estou interessada em quem tu possas ou não estar a planear levar para a cama? – perguntou-lhe ela.

– O facto de pareceres irritada.

– Não estou.

Sebastian assentiu para consigo. Estavam a andar em círculo. Não conseguiriam chegar mais longe. Vanja ligou o rádio.

A P4 de Jämtland. Qualquer coisa sobre um urso.

Depois Roger Pontare.

Seguiram em silêncio.


LENNART PASSARA o dia todo a tentar evitar Linda Andersson, com limitado sucesso. Não ajudava que eles trabalhassem no mesmo escritório. Sture devia ter-lhe dito para ela entrar em contacto com Lennart caso este não entrasse em contacto consigo, porque foi ter com ele logo depois das duas. Lennart disse-lhe que estava mesmo a sair; ia ter uma reunião na cidade. Na verdade, vagueava pelos corredores do centro de televisão a pensar como haveria de lidar com a situação. Não havia nada de errado com Linda enquanto jornalista; era conscienciosa e trabalhadora. Mas não se podia con?ar nela. Se algo corresse mal, por pouco que fosse, Sture saberia disso antes que Lennart tivesse tempo para elaborar alguma estratégia de defesa. E se corresse bem? De repente, Sture mostrara-se um pouco interessado demais na história de Shibeka, e isso preocupava Lennart. Sture tinha uma tendência para receber o crédito por qualquer sucesso e era igualmente hábil a dissociar-se de quaisquer fracassos. O melhor cenário era quando Sture ?cava vagamente interessado – não o su?ciente para se envolver, mas o su?ciente para não bloquear algum projecto. Lennart decidiu manter Linda o mais longe possível do material fundamental. O mais seguro seria pedir-lhe que fosse veri?car os registos o?ciais: a Polícia, o Conselho de Imigração, a administração ?scal. Isso precisava de ser feito com toda a minúcia. Provavelmente, não produziria nada de útil, mas ao menos mantê-la-ia ocupada durante alguns dias.

Entretanto, ele ia concentrar-se naquilo que era não o?cial, encoberto, e também nas pessoas envolvidas; seria daí que provavelmente viriam as descobertas. Se viessem.

Satisfeito com o seu plano, sentou-se no pequeno café do átrio de entrada e telefonou a Linda. Esta mostrou-se contente, mas estava um pouco familiarizada demais com os nomes – até pronunciou Shibeka correctamente –, e Lennart percebeu que ela já recebera um relatório completo de Sture. Marcaram um encontro para daí a meia hora; ainda estava na cidade na sua reunião, disse-lhe ele.

Terminou a chamada e olhou em volta para o café praticamente deserto, que alguém tentara tornar moderno e convidativo com uns cadeirões desiguais, alguns sofás e um papel de parede com padrões salientes. Infelizmente, a selecção de cafés que sabiam a tanino, as sanduíches embrulhadas em plástico e as deprimentes refeições prontas a aquecer no microondas signi?cavam que o decorador se esforçara em vão.

Talvez fosse melhor sair por um bocado, pensou Lennart. Seria embaraçoso se Linda descesse para tomar café e o encontrasse ali. O céu enevoara-se; ele esperava que não começasse a chover. Percebeu que estava em mangas de camisa, mas não havia maneira de poder voltar ao escritório para ir buscar o seu casaco. De facto, odiava aquele lugar. Era melhor ir apanhar uma constipação.

 

Lennart desceu em direcção à Filmhuset, com vista para o Gärdet e os extensos campos de altas ervas amarelas. Pegou no telefone. Tinha muito poucos contactos que fossem boas fontes dentro da Polícia. Gostaria de ter telefonado a Trolle Hermansson; é certo que ele fora um agente policial em serviço durante alguns anos, mas ainda deveria ter contactos, pois era brilhante a rebuscar o lixo para Lennart. Mas Trolle estava morto. Tinha sido encontrado morto dentro da bagageira de um carro no Verão anterior. Não ?cara claro como tinha ido lá parar, mas tinha-se envolvido de alguma forma naquele emaranhado caso de Edward Hinde, que em Julho enchera as primeiras páginas durante semanas. A Polícia não podia, ou não queria, revelar qual tinha sido o envolvimento dele, e Lennart suspeitava que a verdade por trás daquelas respostas vagas era que, na verdade, não sabiam. O próprio Lennart ?cara muito surpreendido. Trolle era um homem que en?ava um dedo em muitos bolos. Tinha trabalhado não apenas para Lennart mas para a Factos Frios e para o Expressen. Porém, Lennart não conseguia perceber porque é que Trolle se haveria de interessar por alguém como Hinde. O Trolle que Lennart conhecera estava interessado em dinheiro, não em trazer assassinos perante a justiça ou em transformar o mundo num lugar melhor. Desistira de tudo isso há muito tempo.

Lennart olhou para o número de Trolle, que estava gravado no seu telefone com CP, para contacto policial, e percebeu que nunca mais lhe telefonara. Apesar disso, não queria apagar o número; isso parecia-lhe muito de?nitivo, quase desrespeitoso. Sucedia o mesmo com o seu avô, que falecera no Natal do ano anterior; o número dele também ainda lá estava.

Eram memórias reais, de certa forma. Uma pessoa queria apegar-se a elas...

Após alguma hesitação, Lennart optou pelo número dois na sua lista de contactos CP: Anitha Lund. Para ser franco, lidar com ela era demasiado complicado e muitas vezes isso trazia-lhe mais problemas do que soluções. Ela não era motivada pelo desejo de dinheiro ou de aventura, mas pela raiva, o que tornava mais difícil avaliar aquilo que ela lhe dizia. Poderia facilmente estar mais interessada nalguma vingança pessoal do que em apurar a verdade, mas neste momento ele não dispunha de muitas opções.

Ela atendeu quase de imediato. Parecia irritada.

– O que queres?

– Apenas uma pequena conversa – aventurou Lennart, mantendo um tom casual.

– Estou a trabalhar. Não quero ser incomodada.

– Então porque atendeste o telefone, se estás ocupada?

– Porque sou bem-educada.

Lennart riu-se. Já tinha aprendido que não valia a pena ser-se demasiado bem-educado com Anitha.

– Tu és muitas coisas, Anitha, mas bem-educada não é uma delas.

– Não, eu sou uma idiota – disse Anitha sem qualquer pitada de humor na voz. – Pergunta ao meu chefe ou a qualquer outra pessoa que trabalhe aqui. O que queres?

– Preciso de te ver. Há uma coisa sobre a qual gostaria de falar contigo.

– Não. Não quero trabalhar mais contigo. O que pagam é uma porcaria e eu não ganho nada com isso.

– Não é verdade, e tu sabes.

– Porque não?

– Ficas a saber coisas que mais ninguém sabe. Tu gostas disso, não gostas?

– Não, o único que gosta desse tipo de coisas és tu; tu é que és o jornalista. Eu sou aquela a quem tu telefonas e que vens incomodar quando está a trabalhar.

– Escuta, Anitha – disse-lhe Lennart, baixando a voz para realçar a gravidade da situação. – Eu acho que vais gostar disto. Honestamente.

Silêncio. Quase conseguia ouvi-la a sopesar a sua curiosidade contra a relutância em ajudá-lo. A conversa tinha decorrido exactamente como ele queria.

– Logo verei. Eu telefono-te – disse-lhe ela ao ?m de uma longa pausa.

Resposta errada. Isso não servia.

– Não, encontramo-nos daqui a uma hora. Se não gostares do que eu tenho para te dizer, óptimo. Dá-me só a oportunidade de explicar.

Demorou algum tempo até que a resposta chegasse; na verdade, Lennart até já começara a rever as suas opções. O problema era que ele não tinha opções nenhumas. Percebeu que precisava de começar a procurar um bom substituto para Trolle Hermansson.

– No local habitual, logo depois das três – disse Anitha ?nalmente.

– Excelente.

Lennart terminou a chamada e olhou em redor. Tinha ido a pé quase até ao Freeport. Estava cheio de frio. Começara a cair um leve chuvisco. As minúsculas gotas de água eram quase refrescantes, mas o céu estava a tornar-se mais escuro e mais ameaçador. Virou-se para trás e voltou para o escritório, caminhando mais depressa. Primeiro ia ter uma breve conversa com Linda, a seguir sairia para um verdadeiro encontro.

Com o seu casaco vestido.


VANJA VIROU PARA PASSAR entre dois postes tortos e seguiu dois repisados e lamacentos sulcos de pneus até chegar ao pátio da casa isolada. Desligou o motor e por um instante ?caram os dois ali sentados, a admirar a vista diante deles.

À direita, no meio do vasto terreiro, estava uma casa verde de dois pisos com portas e janelas brancas. Ou pelo menos já tinham sido brancas em tempos; agora a tinta estava a descamar e a madeira podre e escura ?cara à mostra em diversos locais. A tinta dos painéis de madeira da casa propriamente dita também se soltara em grandes lascas, e a madeira que estava por baixo parecia bolorenta em determinadas zonas. A área que rodeava a casa assemelhava-se a um pequeno ferro-velho. Vanja avistou pelo menos três motos de neve, que pareciam estar em condições de funcionamento. Uma carrinha Chevrolet, uma camioneta branca e um Volvo 242 enferrujado estavam estacionados em ?la do lado de fora de um abrigo para automóveis construído com alguns toros e uma lona, que o vento já esfarrapara. Entre a garagem e um grande anexo, que parecia estar prestes a desabar, havia uma série de máquinas aparentemente dispostas de forma aleatória. Um rachador de troncos, um triturador de jardim, um cortador de relva, um soprador de neve e qualquer coisa disforme que estava escondida por baixo de uma grande lona verde. Uma broca de gelo e um aparador estavam encostados à parede vermelha do anexo. Do outro lado da casa estava um trampolim mais ou menos coberto por folhas caídas no ano anterior, atrás de uma enorme pilha de toros. Vanja também avistou uma motorizada e uma mota de motocross semicobertas por outra lona atrás do trampolim, e havia ferramentas de jardim e peças de equipamentos mecânicos mais pequenos espalhadas por toda a erva que crescera e sobressaía dos arbustos. À porta da casa, um cão pastor estava amarrado por uma corda grossa. Tinha saltado, pusera-se em pé e começara a ladrar quando eles entraram de carro na propriedade e não mais parara.

Vanja e Sebastian saíram do carro e caminharam em direcção à casa. Antes de lá chegarem, a porta abriu-se e um homem saiu para o alpendre. O cabelo comprido por baixo de um boné de basebol emoldurava-lhe o rosto; uma barba espessa, emaranhada, começava logo abaixo dos seus olhos, tornando virtualmente impossível adivinhar-se a idade dele. Vestia uma camisa de ?anela em xadrez vermelho e umas largas calças verdes com muitíssimos bolsos que estavam en?adas num par de botas pesadas. Vanja e Sebastian pararam. O homem desceu os degraus e gritou ao cão que se calasse, o que não teve qualquer efeito.

– O que querem?

– Harald Olofsson?

O homem disse que sim com a cabeça.

– Quem é você?

Vanja apresentou-se a si e a Sebastian, mostrando-lhe a identi?cação policial. Harald nem sequer olhou.

– Creio que foi você que encontrou aqui um Toyota incendiado em Outubro de 2003!

– Poderei ter sido.

– Gostaríamos de falar consigo.

– Está bem.

Harald cuspiu para o lado de Vanja e en?ou as mãos nos bolsos. Ficou a abanar-se para trás e para a frente sobre os calcanhares e a olhar para o chão, de modo que os seus olhos ?cassem escondidos sob a pala do boné. Eles não precisavam de uma licenciatura em Psicologia para entenderem que o homem que estava à sua frente se sentia desconfortável com a situação.

– Encontrou-o na manhã de 31 de Outubro – a?rmou Vanja, pegando no bloco de apontamentos. – O que fez quando isso aconteceu?

– Chamei a Polícia, claro.

– Desceu até ao carro?

Harald passou a mão na sua barba algumas vezes, para cima e para baixo, na esperança de que isso transmitisse a impressão de que estava a pensar cuidadosamente na pergunta, que ele percebia que era importante. Mas já tinha sido há muito tempo e precisava de se lembrar. Na verdade, estava a pensar quando ia ter de começar a mentir. Quanto é que eles sabiam? A pergunta sobre se ele tinha descido até ao carro era algum teste? Ele já tinha lidado com a Polícia antes, e geralmente passava por aquilo oferecendo respostas evasivas, monossilábicas, até descobrir o que eles já sabiam e o que estavam a tentar saber. Depois era-lhe fácil adaptar as suas respostas e a sua história. Mas estes dois vinham de Estocolmo. Eram da Riksmord, nada mais, nada menos. Não fazia ideia porque estariam interessados num velho acidente de carro, e não ia perguntar-lhes. Tencionava manter o papel que escolhera como campónio taciturno e bastante vagaroso de Norrland. Para con?rmar os preconceitos deles. Responderia às suas perguntas. Sendo tão vago quanto possível. Apegar-se-ia às suas tácticas já experimentadas e testadas, embora estivesse a lidar com um novo adversário. Sem dúvida que, a certo ponto, teria de esticar a verdade, mas por enquanto não.

– Desci – disse ele, abanando a cabeça para si próprio, como se tivesse conseguido extrair a memória daquela manhã para fora dos mais sombrios recessos da sua mente. – Desci até ao carro.

– Antes de chamar a Polícia?

– Sim.

– Porquê?

Harald olhou por baixo da pala e ?tou o seu olhar pela primeira vez.

– Para ver se havia alguém ferido.

O que em parte era verdade. Harald percebeu que teria de começar a mentir muito em breve.

– Tocou em alguma coisa dentro do carro?

Um salto enorme. Ele estava mesmo à beira.

– Acho que não – disse ele evasivamente, como se tentasse diminuir a mentira, para evitar transpor a linha só por mais algum tempo.

– Sim ou não?

Ela não ia desistir.

– Foi há nove anos atrás – arriscou ele.

– Quantos carros queimados com o cadáver de uma mulher lá dentro é que você encontrou desde então? – perguntou-lhe o homem mais velho que estava ao lado dela, mostrando-se distintamente irritado. – Nenhum, suponho eu. Estou certo?

Harald desviou a sua atenção, ?tou o homem nos olhos. Bergman, era esse o nome dele? Não tinha dito nada até agora. Isso seria signi?cativo? E a pergunta dele não era uma pergunta, era uma a?rmação. Harald teve a sensação de que aquele homem conseguia ver através de meias-verdades e de cortinas de fumo. Estava na altura de tomar uma decisão: a verdade ou uma mentira convincente. Optou pela primeira.

– Sim.

– O corpo estava crestado como uma batata frita, por isso não valia a pena veri?car-lhe a pulsação, pois não?

– Não.

– Então eu suponho que não pode ser tão difícil lembrar-se se tocou ou não em alguma coisa dentro do carro.

– Não.

– Então, tocou?

Tempo para a mentira.

– Não.

– Tem a certeza?

Harald assentiu várias vezes, como se a memória de repente se tornasse muito clara.

– Tenho. Andei à volta do carro para veri?car se alguém tinha caído para fora, por isso poderei ter-lhe tocado, provavelmente toquei, mas não abri as portas.

Calou-se. Sebastian pensou que provavelmente ele ?cara exausto após ter proferido uma frase longa e coerente. Harald cuspiu outra vez, voltando a concentrar-se mais uma vez no chão aos seus pés.

Vanja olhou-o de forma penetrante. Aquela última resposta tinha sido diferente, fundamentada, explicativa. Na verdade, ele tinha respondido a mais do que lhe fora perguntado. Quase como um álibi. E agora olhava de novo para o chão. Ela estava prestes a perguntar-lhe se tinha armas na propriedade e, se assim fosse, que armas eram, quando Sebastian falou.

– Tem ?lhos?

Harald olhou para cima, genuinamente surpreeendido.

– Não.

– Então o que está aquilo a fazer aqui? – Sebastian fez um gesto com a cabeça na direcção do trampolim. – Você não me parece ser exactamente o tipo de pessoa que salta em trampolim.

– Uns vizinhos meus já não o queriam – respondeu Harald, encolhendo os ombros. – Vou vendê-lo na internet.

Sebastian olhou em volta. Não havia uma casa à vista.

– Você não tem vizinhos.

– Acolá – disse Harald, acenando vagamente com a mão algures para trás de Sebastian.

Sebastian virou-se para Vanja, deparou com o olhar dela e percebeu que estava a pensar o mesmo que ele.

 

– Ele estava a mentir – disse Vanja enquanto conduzia o carro para longe da casa isolada e descia em direcção à estrada principal.

– Eu sei. Sobre o trampolim, pelo menos.

– Achas que foi roubado?

Sebastian encolheu os ombros.

– Talvez não por ele, mas não creio que tenha recibos de todas aquelas coisas que estão espalhadas no seu quintal.

Vanja concordou. Um ladrão ou receptador de bens roubados. Tanto fazia. Fora o primeiro a chegar ao local do acidente e tinha uma atitude liberal para com o que é meu e vosso; Harald Olofsson poderia facilmente remover um dos pontos de interrogação daquela investigação.

– Eles não encontraram nenhuma mala de mão dentro do carro – disse ela, olhando para Sebastian. – Nem nenhuma bolsa ou carteira.

– Poderiam ter sido destruídas pelo fogo.

Era possível, mas Vanja sentia-se longe de convencida. Tanto quanto conseguia perceber, a investigação ao incêndio do carro fora muito minuciosa. Tinha a certeza de que os técnicos teriam encontrado os restos de algum saco ou bolsa se eles lá estivessem.

– O material da Polícia de Åre está no banco de trás. Veri?ca se encontraram dentro do carro algumas impressões digitais que não tenham conseguido identi?car.

Sebastian virou-se e, com alguma di?culdade, pegou na pasta que tinha deslizado para o extremo oposto do assento.

– O Billy tem de veri?car se ele possui alguma arma – disse enquanto abria a pasta.

– Deve ter... todos os fulanos vêm caçar aqui para cima, não é?

– Não com uma pistola semiautomática.

Vanja fez um gesto de assentimento. Estava contente por não ter chegado a perguntar a Harald pelas armas; ele poderia ter-se oposto a uma revista da casa, o que então lhe teria dado tempo de sobra para se livrar de qualquer coisa suspeita depois de eles se terem ido embora, ao passo que agora nem sequer sabia que andavam à procura de uma arma. De repente, parecia que a viagem a Åre, que lhe parecera algo rebuscada, poderia realmente vir a ser útil. O telefone de Vanja tocou; pegou nele e olhou para o visor: «ANNA».

Por um momento, pensou em não atender. Queria continuar a discutir o caso com Sebastian, recapitulando o que eles sabiam, o que julgavam saber e o que precisavam de tentar descobrir. Ou a sua mãe só queria conversar, e isso era algo que Vanja não podia aturar agora, ou ela estava preocupada com alguma coisa, e Vanja também não tinha tempo para isso. Não queria perder a concentração.

– Não vais atender? – perguntou Sebastian, olhando para o telefone. – A Anna... não é a tua mãe?

– Pois é.

– Porque não queres falar com a tua mãe?

Vanja suspirou. O psicólogo típico. Fale-me sobre a sua infância. Se a alternativa era ter Sebastian a especular e a tecer considerações psicológicas sobre o seu relacionamento com Anna durante todo o caminho de regresso, era mais fácil atender.

– Olá, mãe – disse ela, tentando mostrar-se tão alegre quanto possível.

Logo que ouviu a voz da mãe, percebeu que tinha acontecido alguma coisa. Algo realmente mau.

 

– Tu queres voltar para Estocolmo?

O tom de voz de Torkel deixou muito claro que ele julgava ter ouvido mal. Vanja estava de pé à entrada do quarto dele, a balouçar o corpo de um pé para o outro. Já ?cara extremamente enervada devido à notícia de que o seu pai tinha sido levado sob custódia, ou detido, Anna não sabia ao certo o quê, e realmente não precisava que Torkel, com as suas sobrancelhas erguidas e a sua óbvia reprovação, lhe ?zesse sentir que ela estava a prejudicar a equipa. Também a entendera mal.

– Eu não quero, mas tenho de ir – respondeu-lhe ela, realçando o facto de esta escolha não ser sua.

– Porquê?

Vanja hesitou. Diria aos outros mais tarde, corressem as coisas como corressem, mas não agora. Precisava de saber mais. Nem sequer sabia qual o nível de suspeita que pendia sobre Valdemar ou o que supostamente teria ele feito. Se dissesse a Torkel que o seu pai estava sob custódia, ele bombardeá-la-ia com perguntas.

Porquê?

De que era ele suspeito?

E talvez a pior de todas: fosse o que fosse, poderia ele ser culpado?

Precisava de descobrir as respostas a essas perguntas antes de contar a alguém.

– É um assunto de família.

A expressão de Torkel passou da frustração para a simpatia. De repente, Vanja percebeu como ia sentir a falta dele quando fosse para os Estados Unidos. Não conseguia imaginar vir a encontrar outro líder de equipa que fosse, de perto, tão bom quanto Torkel.

– O que aconteceu? – preocupação genuína na voz dele.

– Desculpa, eu realmente não posso dizer mais nada, mas sabes que não me iria embora se não fosse importante.

Torkel contemplou a sua melhor investigadora. Não havia qualquer dúvida de que ela estava sob considerável pressão. Deveria ter acontecido alguma coisa à mãe ou ao pai; a família que tinha era essa, tanto quanto ele sabia. Esperava que o cancro de pulmão de Valdemar não tivesse regressado. Não passara muito tempo desde que ele aparentemente o vencera. Decerto não teria voltado? Sabia que ela tinha razão; era uma das pessoas mais conscienciosas que já conhecera. Nada se interpunha entre Vanja e um caso. Ao longo dos anos, em diversas ocasiões, ela tinha posto de lado a sua vida pessoal e social por causa do trabalho. Ia deixá-la ir, claro que sim.

– Existe algo que eu possa fazer para ajudar? – perguntou-lhe ele, e viu-a descontrair-se visivelmente. Ficara claro que abandonar a investigação fora uma decisão difícil, portanto, o que acontecera lá em casa devia ser grave. Torkel desejava que ela se sentisse capaz de con?ar em si, mas sabia bem que não devia pressioná-la.

– De momento não – respondeu Vanja, abanando a cabeça. – Obrigada. Lamento muito ter causado problemas.

– Nós havemos de resolver isso. Vai lá e faz o que precisas de fazer.

Vanja aquiesceu com a cabeça e virou-se para trás, mas quando chegou à porta hesitou.

– Poderás pedir a alguém para me reservar o bilhete enquanto faço as malas?

– Sem problema.

Ela mostrou-lhe um sorriso que não chegou a contaminar-lhe o olhar. Assombrada. Ela parecia assombrada, pensou Torkel quando pegou no telefone para ligar a Christel a pedir que arranjasse um voo para Vanja. Na sua visão periférica, viu uma ?gura que ocupava a porta. Julgou que Vanja tivesse voltado; talvez ela decidisse contar-lhe, a?nal, o que estava a acontecer. Mas não, quem estava encostado à ombreira da porta era Sebastian.

– A Vanja vai-se embora?

– Sim. Então o que aconteceu quando saíste com ela?

– Isso não tem nada a ver comigo.

Torkel foi apanhado de surpresa, mas compreendeu que a resposta não era tão inverosímil quanto poderia parecer. Há menos de dois meses, a presença de Sebastian teria sido provavelmente a única coisa que faria Vanja abandonar uma investigação em curso.

– Eu não disse que tinha.

– Foi o que pareceu.

– Ela disse-me que tinha qualquer coisa a ver com a família; só imaginei que soubesses o que poderia ser.

Sebastian abanou a cabeça.

– A mãe telefonou-lhe, falaram durante alguns minutos e a seguir ela continuou a conduzir o carro até aqui sem dizer uma palavra.

– E não tens nenhuma ideia do que aconteceu?

Sebastian abanou novamente a cabeça e deu um passo para dentro do quarto. Pigarreou como se soubesse que o que estava prestes a dizer talvez não caísse bem.

– Eu pensei ir com ela.

Torkel olhou para Sebastian com a mesma expressão que ostentara poucos minutos antes. Mais uma vez, esperava ter ouvido mal.

– Foda-se, o que é que tu estás a dizer?

– Pensei em ir com a Vanja. Até Estocolmo – esclareceu Sebastian, só para o caso de Torkel pensar que ele estava a oferecer-se para a levar a Östersund.

– Porquê?

Sebastian percorreu rapidamente uma gama de respostas possíveis. Porque não achava que alguma vez fosse capaz de dormir naquele quarto outra vez. Porque este caso estava a afectá-lo de uma forma que lhe fazia sentir que precisava de ganhar alguma distância em relação a ele. Porque o hotel era enfadonho, o ambiente era enfadonho, o caso era enfadonho. Optou pela versão curta.

– Porque quero afastar-me desta maldita montanha.

– Porquê? Não consegues encontrar ninguém para foder?

– Exactamente. Todas as minhas decisões se baseiam na disponibilidade de possíveis parceiras sexuais.

Enquanto Sebastian dizia essas palavras em voz alta, para sua surpresa percebeu quão perto elas se aproximavam da verdade. Felizmente, Torkel interpretou esse comentário como o sarcasmo que se destinara a ser.

– Desculpa – disse-lhe ele. – Mas o que se passa é que, se a Vanja está de partida, eu realmente não te quero perder a ti também.

– Sê honesto. Que bem é que eu estou a fazer aqui? Temos seis esqueletos na ladeira de uma montanha. Eu preciso de um pouco mais do que isso para chegar a alguma coisa útil.

Torkel sabia que Sebastian tinha razão. Nesta fase, ?car sem ele não faria a mínima diferença. Torkel também achava que provavelmente acabariam por levar todo o caso para Estocolmo dentro de poucos dias, a menos que surgisse algo novo. Suspirou.

– Vou mandar reservar outro bilhete.

– Se precisares realmente de mim, estou só a um telefonema de distância – disse-lhe Sebastian ao sair do quarto. Sentia-se bastante animado. Era óbvio que queria mais ir embora dali do que admitira a si mesmo. Ia dizer a Vanja que partiria com ela. Não era completamente impossível que ela pudesse ?car bastante satisfeita.


ISTO NÃO PARECIA nada bom.

A chávena de café ainda estava em cima da mesa, com o seu conteúdo frio e praticamente intacto. A sanduíche de salsicha e queijo estava ao lado dela, com duas dentadas a menos. Ele apagou o quarto cigarro e exalou o fumo com algo que se assemelhou a um suspiro. Zeppo, que estava deitado ao lado do fogão, levantou a cabeça quando ouviu aquele som invulgar. Harald Olofsson não tinha o hábito de suspirar.

Harald levantou-se, caminhou até ao lava-louças sobre o chão de quadrados de cortiça vermelha e branca, debruçou-se e abriu a janela. Quatro cigarros em rápida sucessão quase tinham enchido a cozinha de fumo. O cão seguiu-o com os olhos. Harald abriu a janela para trás e encheu os seus pulmões com aquele ar puro e gélido, e a seguir tirou um copo de um dos armários castanho-escuros por cima do fogão. Encheu-o com água fria e bebeu-a.

Isto não parecia nada bom.

Harald já tivera de lidar com a Polícia no passado. Muitas vezes. Por algum motivo, eles faziam uma viagem até sua casa sempre que tinham assaltado alguma garagem na região ou roubado a moto de neve a alguém. Passeavam-se pelo local, levantavam as lonas, revistavam o anexo. Nunca encontraram nada. Diziam que iam ?car de olho nele. Habitualmente, ele dizia-lhes que ?cava satisfeito por ouvir isso e que era sempre bom ter visitas. Depois iam-se embora.

Nunca encontraram nada, mas não porque ele não estivesse envolvido. A maior parte das coisas que procuravam já tinham chegado a Harald antes que a Polícia aparecesse, ou então vinham a caminho. Nunca tinham conseguido culpá-lo de nada a não ser infracções menores, e isso porque ele era inteligente. Inteligente, coerente e abençoado com paciência. Quando comprara esta casa, há quase vinte anos, uma das primeiras coisas que ?zera fora levantar o soalho do anexo e levar lá para dentro uma pequena escavadora. Por baixo do novo soalho existia agora uma arrecadação com cerca de oito metros quadrados, su?cientemente profunda para se estar em pé. O alçapão para a íngreme escada de madeira que levava à Câmara, como ele lhe chamava, estava por baixo do grande tapete de pano que tinha o soprador de neve em cima, e até agora ninguém o descobrira. Tudo o que vinha ter com Harald acabava na Câmara. Lá em baixo, ele podia demorar o tempo que quisesse a decidir o que fazer com cada artigo: vendê-lo como estava, desmontá-lo e vender as peças separadamente ou repará-lo e depois vendê-lo. Havia muitas possibilidades, e Harald escolhia invariavelmente aquela que lhe trouxesse mais dinheiro. As motos de neve eram muitíssimo lucrativas, mas também envolviam grande trabalho, porque tinham de ser impossíveis de rastrear. Isso demorava tempo, mas era mesmo assim. Ele era bom no que fazia. Ferramentas, maquinaria, veículos. Nada de arte, jóias ou porcarias dessas. Alguns dos moços noruegueses com quem trabalhava tinham-lhe trazido o trampolim há cerca de um ano. Disseram que era um presente para ele, que lhe poderia render umas cinco mil coroas. Pelo menos. E era impossível de rastrear, porque eram todos exactamente iguais. Ele aceitara-o, mas quando fora consultar o site dos leilões online descobrira que havia muitos outros em oferta por menos de mil, de modo que nem sequer se dera ao trabalho de o anunciar. Até agora, nada do que ele tinha vendido lhe trouxera quaisquer problemas. A Polícia constituía apenas um pequeno inconveniente. Nunca mais voltava a pensar no assunto logo que eles se iam embora. Mas agora era diferente.

Isto não parecia nada bom.

Tinha ?cado a ver o carro afastar-se antes de entrar e ir fazer café. Não conseguira sossegar e tivera de ir lá fora buscar Zeppo para lhe fazer companhia. Preparara uma sanduíche. Servira-se de uma chávena de café. Começara a fumar.

Tinham passado nove anos desde que aquele carro saíra da estrada. Ninguém mostrara qualquer interesse por si durante a investigação, além de uma breve entrevista no local; ele tinha-lhes contado a verdade, dissera que ia a passar de carro, que vira o fumo, parara e encontrara o carro no fundo da ravina. Tanto quanto Harald sabia, nunca ninguém sugerira que aquilo pudesse ser outra coisa que não um acidente, mas agora tinha aparecido a Riksmord. Eles não investigavam acidentes rodoviários. Investigavam homicídios. A mulher que estava no carro teria sido assassinada? Devia ser isso. Ele não podia ?car envolvido numa coisa dessas. Supunha que a Polícia se esforçaria um pouco mais com um caso de homicídio do que com uma motoreta roubada que a companhia de seguros, fosse de que maneira fosse, haveria de pagar. Se eles encontrassem alguma coisa que o ligasse ao acidente – ao homicídio, corrigiu-se –, revolveriam aquele lugar de alto a baixo.

Tudo estaria acabado.

Descobririam a Câmara.

Ele ?caria sem nada.

Por isso, tinha de garantir que eles não encontravam nada. Simples.

E, ainda assim, hesitava.

Não lhe parecia bem destruir algo que poderia ajudar a Polícia a resolver um homicídio. Embora Harald operasse na periferia da lei, tinha moral. Receber bens roubados era uma coisa; nunca encomendava nada, nunca incitara alguém a cometer um crime. Só ganhava algum dinheiro quando o mal já estava feito. Se ele não ?zesse isso, alguém mais o faria. Era apenas um negócio. Matar uma pessoa era uma questão diferente.

Por outro lado, se tinham passado todos aqueles anos à procura de quem assassinara a mulher no carro, parecia improvável que fossem apanhá-lo agora. Com ou sem os artigos que Harald retirara do carro queimado.

Tomou uma decisão, pousou o copo e saiu da cozinha. Sabia exactamente onde estavam as mochilas e a bolsa. Chegara a hora de fazer uma fogueira.


INSTRUÇÕES DE SEGURANÇA COLECTIVA. Exactamente as mesmas que da última vez. Em seguida, o avião avançou ao longo da pista, ganhou velocidade e deixou o chão. Vanja estava sentada à janela, a olhar para a cidade que ia diminuindo lá em baixo. Sebastian observou-a pelo canto do olho. Seria um certo exagero dizer-se que ela tinha ?cado contente quando ele lhe dissera que teria companhia na viagem para Estocolmo, mas pelo menos aceitara isso. Quisera saber porquê, claro. Sebastian tinha repetido a razão que dera a Torkel: só queria ?car longe daquela maldita montanha.

Billy fora levá-los de carro a Östersund. Quis saber porque é que Vanja optara por os deixar, mas ela só lhe dissera que se tratava de um assunto de família. Billy não insistira, mas Sebastian julgou ter detectado algum desapontamento por Vanja não trocar con?dências com ele. Notara ultimamente uma distinta mudança na relação entre ambos; de certeza que tinha acontecido algo enquanto eles estavam a trabalhar no caso Hinde, e, fosse o que fosse, continuava a afectá-los.

Billy acompanhara-os até à sala de embarque, embora Vanja lhe tivesse dito que não havia necessidade. Sebastian teve a sensação de que foi exactamente por isso que ele o fez. Quando já tinham procedido ao check-in e Vanja fora à casa de banho, Billy virara-se imediatamente para Sebastian.

– Porque vai com ela?

Sebastian tinha ?cado espantado com a pergunta e com o tom descon?ado de Billy. A escolha das palavras sugeria que Billy julgava que a partida dele estava de alguma forma ligada à de Vanja e que iam viajar juntos e não só ao mesmo tempo.

– Não vou – disse ele. – Vamos apenas no mesmo voo.

– Porquê?

– Porque é bom ter um pouco de companhia.

Billy lançara-lhe um olhar exasperado e suspirara, como se estivesse a falar com uma criança pequena.

– O que eu quero dizer é porque é que se vai embora também, se não tem nada a ver com a Vanja?

Sebastian dera-lhe imediatamente aquela que já se havia tornado a sua resposta-padrão a essa pergunta especí?ca, mas duvidava que Billy tivesse acreditado nisso.

– Ela contou-lhe alguma coisa sobre o que aconteceu? – perguntou Billy.

– A Vanja?

– Sim.

– Não, nada.

Dessa vez não houve dúvidas; Billy não acreditara nele. Vanja regressara e tinham-se despedido. Um breve abraço, quase forçado, reparou Sebastian. Quando olhou para trás, antes de passarem pelo controlo de segurança, Billy já se tinha ido embora.

Mas agora iam a caminho. O sinal do cinto de segurança apagou-se, porém tanto Vanja como Sebastian mantiveram os deles apertados. Vanja continuava meio voltada para o outro lado. Supôs que ela tencionasse ignorá-lo durante a maior parte da viagem, a menos que ele ?zesse algo a respeito disso.

– O que está a acontecer entre ti e o Billy?

Resultou. Voltou-se de imediato, ?cando de frente para ele.

– De que estás a falar?

– Parece-me que vocês já não se estão a dar tão bem.

– Achas?

– Sim. Estou enganado?

Vanja ?cou calada. Ela poderia, claro, rejeitar tudo aquilo e terminar a conversa respondendo simplesmente que sim à pergunta dele. Provavelmente, era isso que teria feito noutros tempos, em primeiro lugar para o calar e em segundo lugar porque, de maneira alguma, ia admitir que ele tinha razão. Mas isso era noutros tempos.

– Não. As coisas andam um pouco... tensas.

– Porquê?

Vanja hesitou de novo, em seguida decidiu-se. Torceu o corpo, tanto quanto o cinto de segurança lho permitia.

– Eu disse-lhe que era melhor agente policial do que ele.

Sebastian absorveu essa informação com um aceno de cabeça. Sem dúvida que ouvir uma coisa dessas colocaria uma relação pro?ssional sob pressão.

– Já sei que foi estúpido – continuou Vanja como se lhe tivesse lido os pensamentos. – Não precisas de me dizer isso.

– Foi estúpido – disse-lhe Sebastian com um sorriso que, para seu alívio, ela retribuiu. – Verdadeiro, mas estúpido.

– Eu sei...

Vanja suspirou. Era evidente que o relacionamento estragado com Billy a deixara abatida. Sebastian ajeitou-se o mais confortavelmente que pôde no assento. Este era, ou pelo menos tinha sido, o seu terreno de eleição. Começou por explicar que era evidente que Billy sempre soubera que Vanja era melhor do que ele, que Billy gostava demasiado dela para ser seu adversário, mas era nítido que algo tinha mudado. Por alguma razão, ele deixara de se contentar com a sua posição na hierarquia; decidira competir com ela, e agora simplesmente não queria perder. Vanja perguntou-lhe o que poderia fazer para melhorar a situação. Sebastian pensou, por breves instantes, se diria alguma mentira para a fazer sentir-se melhor ou se optaria pela dura verdade. Optou por esta última.

– Nada. Tu começaste isto dizendo que eras melhor que ele; isso não pode ser desfeito. Ele tem de lidar com essa situação, e tu tens de lidar com ele.

Vanja aquiesceu com uma expressão carrancuda. Sebastian percebeu que não era essa a resposta que ela esperara. Como toda a gente, ela queria que houvesse uma solução, queria aprender as palavras mágicas que deixariam tudo bem. Mas às vezes não havia mesmo nenhumas. Sebastian olhou-a com ternura, suprimindo o desejo de lhe pousar sobre o braço uma mão suave. Muito devagarinho. Tinham conversado. Sobre assuntos pessoais. Estavam relacionados com o trabalho, é certo, mas mesmo assim... Decidiu prosseguir nessa linha.

– Eu posso ter uma conversa com ele quando voltarem para Estocolmo – propôs.

– Obrigada, mas não há necessidade. Já me sinto melhor agora que conversámos sobre isto.

Sebastian pensou depressa. Ela acabara de lhe oferecer uma abertura, uma oportunidade de chegar mais perto, para lá do trabalho, à sua vida pessoal. Talvez estivesse a mover-se rápido demais, mas certamente arriscaria.

– Talvez te sentisses melhor se falasses sobre o que está a passar-se agora na tua família.

Vanja ?cou hirta. Fitou o olhar dele, procurando algum sinal de falsa preocupação. Porque estava ele a tentar levar a melhor, a tentar encontrar alguma fraqueza que pudesse explorar? Procurou nos olhos dele o antigo Sebastian, mas não estava lá.

– O meu pai foi preso – disse ela. Para sua surpresa, dizer estas palavras em voz alta aliviou-lhe um pouco a ansiedade.

– O quê? Porquê?

– Não faço ideia. A Anna não sabia.

Um tremor frio percorreu a espinha de Sebastian. E se fosse fraude?

Eles agiriam depressa se tivessem deitado as mãos àquele material que Trolle Hermansson desenterrara acerca de Valdemar Lithner alguns meses atrás. A pedido de Sebastian, quando ele andava empenhadíssimo em tentar destruir a relação entre Valdemar e Vanja. O material que ele dissera a Ellinor para deitar fora. Ela a?rmara que o mandara para o lixo, mas em tudo o que dizia respeito a Ellinor a verdade era um conceito muito subjectivo.

Poderia ela ter agido por sua própria iniciativa?

Seria por isso que Valdemar fora preso?

Porque teria ela feito uma coisa dessas?

Porque era Ellinor. De repente, isso pareceu-lhe perfeitamente razoável. Certa vez ela tinha feito perguntas sobre Valdemar, lembrou-se ele, mas saberia alguma coisa sobre Vanja? Sebastian tentou pensar: havia alguma informação sobre Vanja nos apontamentos de Trolle?

Não conseguia lembrar-se.

Na melhor das hipóteses, Ellinor tinha entregado o material de forma anónima. Enviara-o por correio para a Polícia. Ou entregara-o em mão sem deixar o nome.

Na melhor das hipóteses. Mas tratava-se de Ellinor. No fundo, Sebastian sabia que não poderia fazer tal suposição. Era mais provável que ela não só se tivesse identi?cado como ?cado bastante orgulhosa com o que conseguira ou conseguiria logo que a Polícia levasse a cabo a sua investigação. Se fosse esse o caso, poderia prejudicá-lo? Iria Vanja descobrir? Provavelmente, não. Embora ela fosse uma agente policial e uma colega, seria conduta grave e imprópria que alguém lhe desse o nome de uma informadora num caso que envolvia o seu pai.

– Ficaste muito calado.

A voz de Vanja trouxe Sebastian de volta à realidade.

– Desculpa... Estava a pensar como poderei ajudar-te. Conheço algumas pessoas bem colocadas, a?nal de contas.

– Obrigado, mas não quero que te envolvas. Isto é uma coisa que nós temos de resolver sozinhos.

Ela virou-se mais uma vez e olhou para fora da pequena janela, sobre as nuvens que pareciam uma paisagem ondulante feita de gelo.


POR MOTIVOS PESSOAIS.

Vanja tinha abandonado a investigação por motivos pessoais.

Ursula torceu o volante para a esquerda e virou para a estreita pista de asfalto que o GPS lhe estava a dizer para seguir durante 1,2 km antes de virar à esquerda novamente. O aborrecimento que sentia era ilógico, mas isso não o tornava menos real. O marido deixara-a e a ?lha estava completamente do lado dele.

Não seriam motivos pessoais? Ela não tinha coisas que precisava de enfrentar e de resolver?

Claro que tinha, e ninguém teria compreendido melhor do que Torkel, se tivesse sabido. Mas a diferença entre Vanja e Ursula era que Ursula não tinha contado nada a ninguém e quisera continuar a trabalhar. Não queria mais do que isso, a bem da verdade. Mas não neste aspecto particular do caso.

Torkel tinha-lhe dito para regressar da montanha, onde ela estivera a efectuar um exame pormenorizado da cena com uma equipa local. A maior parte da terra e do cascalho da sepultura tinha sido peneirada e veri?cada, mas não haviam encontrado nada que pudesse fazer progredir a investigação. A escavadora tinha chegado, e Ursula indicara-lhes onde queria que os trabalhos começassem. Até agora, tinham sido reorientados três vezes, mas sem sucesso, o que signi?cava que nesse momento o sítio da sepultura se revelava a área menos produtiva. Torkel decidira, muito acertadamente, mudar as prioridades tirando-a de lá por algum tempo, mas ela continuava irritada. Ir de carro aos ferros-velhos e interrogar sucateiros sobre acidentes de carro ocorridos há anos era o trabalho de Vanja.

Jennifer e Billy continuavam a tentar rastrear a viagem de Patricia Wellton até à Suécia. Torkel mantinha-se em contacto com a Europol e a Interpol. Ambas as organizações estavam a pesquisar os seus registos em busca de famílias ou de várias combinações de dois adultos e duas crianças que tivessem sido dados como desaparecidos no Outono de 2003. Até agora tinham fornecido a Torkel três casos possíveis, mas este rapidamente conseguira eliminá-los a todos.

Ursula tinha de admitir que Torkel também era um problema, uma fonte de irritação adicional. Queria que ela fosse ter com ele, queria que tudo voltasse a ser como era antigamente, quando iam trabalhar para longe de Estocolmo: noites de intimidade em vários quartos de hotel por toda a Suécia. Ele desejava-a. Fisicamente, claro, mas não era só isso, e agora a ânsia dele por algo mais era como um trabalho árduo; demasiado enervante. Sem dúvida que o mais fácil seria ir ter ao quarto dele durante a noite. Fazer sexo. Voltar sorrateiramente para a sua própria cama ao amanhecer. Fingir que estava tudo na mesma. Não seria um grande sacrifício.

Mas não podia fazer isso.

Não queria fazer isso.

Apesar de Torkel não saber que ela e Mikael se tinham separado, a ideia de complicar ainda mais a sua vida acrescentando-lhe um chefe e amante que imaginava um futuro confortável em conjunto era demais para si neste momento. Ursula tencionava mantê-lo à distância do braço.

E também não tencionava perder muito tempo nesta visita, pensou quando o GPS a informou de que tinha chegado ao destino. Virou para o terreno do ferro-velho, passando pelos portões de metal abertos, e parou diante de um edifício cinzento em piso térreo com um letreiro no telhado con?rmando que aquilo era mesmo o Hammarén & Filho Sucateiros. Desligou o motor, pegou na pasta que Torkel lhe entregara e saiu do carro.

Ursula nunca antes tinha ido a um lugar como aquele, e na verdade não sabia bem o que esperar. Não prestara muita atenção ao que acontecia aos carros quando chegavam ao ?m da vida, mas provavelmente imaginara que eles eram desmantelados, tudo o que poderia ser reutilizado era reciclado e aquilo que sobrava era comprimido num pequeno cubo. Certamente que aquela ideia de eles serem empilhados uns em cima dos outros em longas ?las com vários metros de altura pertencia aos ?lmes americanos! Aparentemente, não. A vasta área, rodeada por uma alta cerca de chapa ondulada encimada por arame farpado, estava repleta de carros. De todos os modelos e cores possíveis. Fila após ?la, a maior parte delas com dez, doze metros de altura. Os carros que estavam na parte inferior de cada pilha tinham ?cado esmagados sob o peso dos que estavam em cima. Na ?la mais próxima de si, Ursula contou rapidamente mais de cem. Milhares de veículos tinham encontrado lugar para o seu último repouso na Hammarén & Filho.

Os seus pensamentos foram interrompidos por uma porta que se abriu e fechou, e quando se virou para lá viu um homem de cinquenta e tal anos avançar na sua direcção desde o edifício cinzento. Estava vestido com um garrido fato-macaco cor de laranja, esticado sobre uma impressionante barriga de cerveja, e usava um boné sebento que ostentava o nome da empresa. Algumas madeixas de cabelo grisalho saíam por baixo do boné; tinha um rosto redondo com olhos azuis muito juntos, um nariz largo e um bigode escuro salpicado de cinzento por cima de uma boca generosa. Quando se aproximou, ela viu que estava a mascar uma pitada de rapé.

– Boa tarde. Posso ajudá-la?

Ursula apresentou-se e mostrou-lhe a sua identi?cação. O homem nem sequer olhou para ela.

– Ursula... esse não era o nome daquele polvo mau n’A Pequena Sereia?

– Talvez – respondeu Ursula, um tanto surpreendida. Era uma observação inicial assaz inesperada, e ela não fazia ideia de quais fossem os nomes n’A Pequena Sereia.

– De certeza que era – disse o homem, fazendo um gesto de assentimento para si próprio. – Os miúdos estavam mesmo na idade certa quando esse ?lme apareceu. Vimos a cassete tantas vezes que a ?ta até ?cou mais ou menos gasta. Naqueles tempos era em VHS, claro.

Ursula ficou a pensar se deveria salientar que poucas mulheres, fosse qual fosse o seu nome, achariam particularmente atraente serem comparadas a um molusco cefalópode ou se deveria apenas tratar daquilo que a trouxera ali, quando o homem transferiu para a sua mão esquerda as luvas que trazia e lhe estendeu a direita. Ursula apertou-a.

– Arvid Hammarén. Prazer em conhecê-la. Em que posso eu ajudar o longo braço da lei? – disse-lhe ele, empurrando um pouco para trás o seu boné. Mais outra observação que ela não esperava. Será que hoje em dia alguém ainda usava essa expressão para se referir à Polícia? Era óbvio que Hammarén (ou seria o & Filho?) a usava; a expressão dele era franca e prestável.

– Estamos a investigar um acidente de carro em Storlien no Outono de 2003. A 31 de Outubro.

– Certo...

– Não houve outro veículo envolvido. O carro incendiou-se. Uma pessoa morreu.

Ursula abriu a pasta e tirou uma das fotogra?as que a Polícia de Åre ?zera no local. Estendeu-a a Arvid.

– Oh, esse. Sim, tratámos disso. Era um carro alugado, se bem me lembro.

– Exactamente.

– Não o quiseram de volta – disse Arvid, devolvendo a fotogra?a a Ursula. – Quando a Polícia terminou com ele, trouxemo-lo para aqui.

Ursula olhou para as ?leiras de automóveis empilhados e percebeu que havia uma ténue possibilidade de o carro ainda ali estar, algo que não se atrevera sequer a considerar durante o caminho até lá.

– Por acaso, ainda o terá para aí?

– Provavelmente – disse Arvid, tirando o boné e coçando a cabeça. – A questão é saber onde...

– Pode descobrir?

– Posso.

Arvid colocou de novo o boné, virou-se para trás e caminhou de volta até ao escritório. Ursula ?cou onde estava, tentando não pensar em como a área ao seu redor deveria estar contaminada. Todos aqueles carros, a chuva e a neve que passava através deles, arrastando o chumbo, o mercúrio, os CFC e o óleo para o interior do solo. Se os Hammarén & Filho alguma vez decidissem fechar o estabelecimento, aquele lugar pareceria o rescaldo de Chernobyl. Mais uma vez, foi interrompida pelo som da porta a abrir-se.

– Encontrei! – gritou-lhe Arvid Hammarén; estava tão satisfeito consigo mesmo que Ursula não pôde deixar de sorrir.

Cinco minutos depois, estavam diante do que restava do Toyota cinzento. Era o segundo carro a contar do fundo numa pilha de seis, por cima do que outrora tinha sido um Volvo 242 azul-claro. Ursula aproximou-se e olhou para o destroço achatado, queimado, enferrujado.

– Usámo-lo para peças de substituição durante um período – informou Arvid –, mas há muito tempo que ?cou simplesmente para aí.

– Peças de substituição? – Ursula ?cou surpreendida.

– Sim, o motor quase não ?cou dani?cado, por incrível que pareça. A maior parte dos danos do incêndio foram no interior do carro.

Ursula espreitou pela janela lateral partida e viu que Arvid tinha razão. Apesar de todos os anos que o carro ?cara exposto às intempéries, ainda era evidente que o interior ?cara todo queimado. Caminhou ao redor do carro, examinando-o o melhor que podia dado o espaço disponível e consultando ao mesmo tempo as fotogra?as que tinha na sua pasta. Olhara brevemente para elas quando Torkel lhas dera, mas agora, que as via melhor, era óbvio. O fogo tinha começado dentro do carro e alastrado para fora. A extensão do incêndio fora relativamente restrita; a pintura da capota apenas ?cara queimada em cerca de um metro para fora do pára-brisas. O resto estava intacto. A bagageira não sofrera praticamente danos nenhuns. O que não seria o caso se o depósito de gasolina tivesse explodido ou se o seu conteúdo se derramasse.

Ursula esgueirou-se por trás do carro e agachou-se. Arvid ia seguindo as actividades da mulher com interesse. Ela apoiou-se na traseira do Volvo para conseguir examinar pelo menos uma parte do lado de baixo do Toyota. Viu o su?ciente. Saiu de lá e endireitou-se.

– O depósito de gasolina está esmagado – disse ela, sobretudo para si mesma, enquanto regressava às fotogra?as.

– O que signi?ca isso?

Ursula não respondeu logo. Folheou as imagens e percebeu de imediato que, se o tanque tivesse sido esmagado por alguma pedra no caminho para baixo, por exemplo, então a gasolina teria escorrido para fora pela parte inferior do carro e caído para a ravina. O fogo não poderia ter começado em resultado do acidente. Alguém quisera ter a certeza de que a mulher que estava dentro do carro não poderia ser identi?cada.

Passou mais uma vez em revista as imagens; embora não quisesse, estava muito satisfeita por ter sido ela a vir ao ferro-velho em vez de Vanja. Dado que o carro ainda ali estava, poderia efectuar um exame tardio da cena do crime. A bagageira estava aberta em todas as fotogra?as. Poderia, claro, ter-se aberto devido à força da colisão, mas Ursula tinha a certeza de que alguém fora lá abaixo ao carro após ele ter caído na ravina, por isso decidiu ir veri?car.

Foi de novo até à traseira do Toyota, com Arvid logo atrás de si.

– Encontrou alguma coisa? – perguntou-lhe ele, com timidez.

– Sim.

A bagageira ainda estava aberta, na medida em que o carro de cima o permitia. O tempo que o veículo havia ?cado exposto aos elementos tornava difícil ver, mas Ursula julgou conseguir distinguir uns ?nos arranhões em volta da fechadura que não poderiam ser explicados pela posição do carro após o acidente. Parecia provável que alguém a tivesse aberto à força. Ursula recapitulou rapidamente o que Torkel lhe dissera e a seguir virou-se para Arvid.

– Conhece um tal Harald Olofsson?

– O respigador, sim.

Ursula pensou que provavelmente sabia a resposta, mas mesmo assim fez a pergunta.

– Porque lhe chama isso?

Arvid mostrou-se um pouco desconfortável, como se já tivesse falado demais.

– Eu não gosto de falar mal de ninguém...

– Diga-me lá.

– Ele nunca foi condenado por nada – disse Arvid num tom de desculpa. – Portanto não estou a acusá-lo, mas diz-se por aí que tudo se lhe cola às mãos.

– É um ladrão.

– Ele... – Arvid pareceu procurar uma descrição menos crítica, mas não conseguiu encontrar nada adequado. Encolheu os ombros e concordou. – É um ladrão. Recebe coisas roubadas e vende-as.

De repente, Ursula sentiu aquele leve formigueiro na barriga que lhe surgia sempre que ela descobria algo que podia fazer avançar um caso. Tudo o que precisava de fazer agora era descobrir o que Harald Olofsson tirara da bagageira.


– VOU FAZER UM INTERVALO.

Jennifer olhou-o por cima do seu ecrã; do outro lado da mesa, Billy empurrou a cadeira para trás e fechou o computador portátil.

– Está bem – disse-lhe enquanto ele saía do restaurante. Ela própria não se importaria de fazer uma pausa. Não conseguia decidir o que era mais aborrecido: tentar falar com as pessoas certas da companhia aérea e persuadi-las a enviarem-lhe as listas de passageiros ou a monótona tarefa de veri?car essas listas quando elas chegavam. Antes de Torkel a convidar a vir até Jämtland, antes de ela passar a fazer parte da Riksmord, Jennifer pensava que alguém fazia esse tipo de trabalho para eles. Mas não tinham mais ninguém. Era ela e Billy. E, aparentemente, agora restava apenas ela.

Olhou para o relógio. Faltavam pouco mais de duas horas para o jantar. Um pequeno intervalo seria bom, mas então não haveria ninguém a tentar descobrir como Patricia Wellton entrara no país se Torkel passasse ali por acaso.

 

Billy foi ao seu quarto e pousou o computador portátil em cima da mesa junto à janela. Sentia-se um pouco culpado por ter deixado Jennifer tão sozinha; primeiro fora levar Sebastian e Vanja a Östersund e tinha-a deixado por lá novamente. O problema é que ele não conseguia concentrar-se; o seu espírito continuava a rememorar o que acontecera.

Vanja tinha optado por abandonar a investigação devido a um problema familiar.

Billy imaginava que devia ser algo extremamente grave, senão ela jamais se teria afastado do caso e voltado para casa. Não estava preparada para lhe contar o que se passava, e ele entendia isso perfeitamente. Fosse o que fosse, sem dúvida que ela pretendia avaliar a situação, descobrir o máximo que pudesse e meditar sobre isso antes de decidir fazer con?dências aos colegas e, se assim fosse, antes de também decidir o que lhes dizer. Mais uma vez, perfeitamente compreensível.

Era o comportamento de Sebastian que o preocupava. Quando Vanja lhe dissera que ia embora, ele decidira, rápida e alegremente, ir também.

Porquê?

Era nítido que Torkel não achara isso estranho; Sebastian não tinha um grande contributo para dar à investigação nesta fase. Isso era verdade, mas porque não teria partido mais cedo? Porquê ?ngir que a sua partida não tinha nada a ver com Vanja? E, talvez mais importante ainda, o que tinha ele realmente a ver com Vanja?

Porquê?

Porque é que Sebastian Bergman, um homem que não se importava com o que qualquer um pensava a seu respeito, mostrava de repente tanta preocupação com uma colega? A resposta óbvia teria sido que queria levá-la para a cama, mas até Sebastian devia saber que tal jamais aconteceria.

Então, porquê?

Torkel poderia não achar isso estranho, mas também não sabia o mesmo que Billy: a ligação entre Vanja e Sebastian. Anna Eriksson, a mãe de Vanja, ?zera parte da lista de possíveis vítimas que Edward Hinde havia produzido.

Porquê?

Billy estava sempre a voltar à mesma pergunta, e após os acontecimentos de hoje já não podia rejeitá-la mais. Dedicar-lhe-ia algum tempo, na esperança de encontrar uma resposta para alguns desses «porquês».

Sentou-se, abriu o computador e olhou para o ecrã enquanto tentava organizar os seus pensamentos.

O que sabia ele?

Por onde deveria começar?

Pelo princípio.

Todas as mulheres da lista da Hinde haviam tido uma relação sexual com Sebastian. Por conseguinte, Sebastian e a mãe de Vanja deveriam também ter tido uma relação sexual.

Quando?

Em Västerås, Sebastian entregara a Billy um envelope que tinha o endereço de onde Anna Eriksson morara em tempos: Vasaloppsvägen 17, em Hägersten. Isso era tudo o que Billy tinha para seguir em frente. O envelope fora devolvido à remetente, e a remetente havia sido Esther Bergman, mãe de Sebastian. Sebastian tinha ido a Västerås para limpar e vender a casa dos seus pais após a morte da mãe. Quanto tempo teria aquela carta? Era do ?nal dos anos 70 – Dezembro de 1979? Talvez se adequasse; Anna Eriksson poderia ter escrito a Esther por algum motivo ligado ao seu relacionamento com o ?lho desta. Seria por isso que Sebastian esperara mais de trinta anos para tentar encontrá-la? Se eles não haviam tido qualquer contacto desde então, Sebastian não sabia que Anna era a mãe de Vanja, e fora por isso que não lhe pedira o endereço.

Billy suspirou. Não conseguia chegar a uma resposta, somente a mais perguntas.

Porque quisera Sebastian voltar a entrar em contacto? Pelo que Billy sabia, Sebastian não precisava de telefonar às suas antigas conquistas quando sentia tesão – antes pelo contrário, caso se acreditasse no que se dizia. Sebastian fazia tudo o que podia para evitar repetir os seus desempenhos. Então, porque quisera entrar em contacto com Anna Eriksson mais de trinta anos depois?

E porque é que a mãe de Sebastian teria escrito a Anna?

Billy só tinha visto o envelope, não o seu conteúdo, mas com certeza não haveria qualquer razão para Esther escrever a uma das antigas namoradas do seu ?lho, a menos que fossem muito próximas. A ideia de Sebastian apresentar uma rapariga à mãe e posteriormente as duas se tornarem boas amigas parecia improvável, no mínimo. Sebastian sempre deixara muito claro que não gostava dos seus pais; na verdade, não tivera nada a ver com eles desde os dezanove anos de idade. Ora isto acontecera mais tarde, pelo que talvez a carta de Esther fosse uma resposta a alguma mensagem que Anna lhe enviara.

Mas porquê? Porque não escrevera ela a Sebastian em vez disso?

Billy pesquisou rapidamente Sebastian no Google e clicou no primeiro resultado: a Wikipedia. Jacob Sebastian Bergman, nascido em 1958. Havia uma breve introdução e depois um cronograma. Novembro de 1979, Universidade da Carolina do Norte, com uma bolsa Fulbright. Regressara à Suécia em 1983.

Billy recostou-se para trás na cadeira e recapitulou a sua sequência de provas circunstanciais, procurando os pontos fracos. Não havia.

Sebastian dorme com Anna Eriksson em 1979 (ou antes disso). Em 1979, Anna tenta entrar em contacto com Sebastian, mas este tinha mudado para os Estados Unidos. Escreve à mãe dele. Esther responde-lhe, mas a carta vem devolvida. Ela guarda a carta e Sebastian encontra-a. O conteúdo da carta leva-o a querer localizar Anna Eriksson.

Porquê?

O que constava nessa carta?

Deveria ter sido importante para Sebastian pensar que valia a pena procurá-la ao ?m de trinta anos. Teriam chegado a encontrar-se? Billy não se lembrava de Vanja ou Sebastian alguma vez terem referido que este conhecia a mãe dela.

Então porquê? Porque é que uma mulher escreve a um homem com quem teve um relacionamento?

Para lhe dizer que está infeliz e que o quer de volta?

Para lhe dizer que está feliz, só para o magoar?

A mãe de Sebastian responderia a algo assim? Para quê responder? Porque não enviar simplesmente a carta de Anna para Sebastian nos Estados Unidos? Por outro lado, se Sebastian rompera todos os contactos com os pais, talvez ela nem soubesse onde ele estava.

Para lhe dizer que tem uma DST?

Para lhe dizer que está grávida?

Billy imobilizou-se. Olhou para o que havia anotado. O que sabia ele realmente, para além das suas teorias sobre a carta?

Sabia que Sebastian se oferecera para trocar de lugar com Vanja quando Hinde a raptara.

Sabia que Sebastian lutara arduamente para regressar à Riksmord.

Sabia que Sebastian tinha decidido regressar a Estocolmo com Vanja quando esta teve um problema familiar.

E sabia outra coisa: Vanja nascera em Julho de 1980.

Bateram à porta e Billy sobressaltou-se. Antes de ter tempo de dizer alguma coisa, a porta abriu-se e Jennifer estava ali, parecendo muito satisfeita consigo mesma.

– Encontrei a Patricia Wellton.


LENNART ENTROU no salão de bingo em Sankt Eriksgatan. Tinham certamente melhorado aquele lugar. As luzes ?uorescentes tinham desaparecido e também as desajeitadas mesas de pinho cobertas de queimaduras de cigarro que outrora dominavam o ambiente. As paredes tinham sido pintadas de novo e uma alcatifa com atraentes padrões combinava lindamente com o mobiliário moderno da área do café. Muitos pequenos focos de luz realçavam o contraste entre as mesas brancas e redondas e as paredes verde-escuras. Parecia mais um restaurante da moda ou um clube nocturno do que uma sala de bingo, desde que se ignorassem as máquinas de bingo colocadas em longas ?las no meio da sala. Com os seus ecrãs iluminados e garridamente coloridos e os jogadores sentados diante deles nuns confortáveis cadeirões, intensamente concentrados, à primeira vista parecia estar-se numa espécie de centro de comunicações ou na sala de controlo de alguma série de ?cção cientí?ca. Gerida por pessoas bastante idosas. O salão poderia ter sofrido melhorias, mas a clientela era exactamente a mesma. A bem dizer, parecia ainda mais velha, ainda mais curvada e mais grisalha, ainda a cheirar a fumo. Lennart era provavelmente a pessoa mais jovem que estava por ali. O seu único concorrente era o homem que vestia um pólo e estava sentado no alto do pódio, anunciando os números na sua voz nasalada enquanto a máquina ao lado dele cuspia as bolas. Era uma sensação invulgar, ser-se o mais jovem. Hoje em dia, ele sentia-se muitas vezes velho em comparação com os outros clientes dos cafés e restaurantes nos arredores de Estocolmo, mas não ali. Na verdade, ia ?cando mais jovem a cada minuto. Suspeitava que era exactamente por isso que Anitha gostava daquele local; fazia-a sentir-se jovem de novo.

Lennart sentou-se perto do fundo da sala, escondido da rua por um enorme cartaz de papelão onde se proclamava a capacidade mágica do bingo para fazer o tempo voar ao mesmo tempo que proporcionava a oportunidade de uma pessoa se divertir e ganhar grandes prémios. Olhou para a sua máquina e percebeu que, se tivesse inserido dinheiro e ligado o ecrã à sua frente, poderia ter riscado um dos números que acabavam de ser anunciados.

Dois e quatro, vinte e quatro.

Por um momento, entreteve-se com a ideia de jogar mesmo, mas depois viu-a entrar. Como era costume, trazia uma saia castanha e um camisolão demasiado grosso. Para esconder o facto de que estava com excesso de peso, supôs ele. O seu cabelo castanho vinha apanhado num carrapito. O rosto estava bem maquilhado, embora de uma forma um pouco exagerada, e as cores eram um pouco fortes demais. Tentava parecer elegante, mas na verdade não sabia como. Anitha Lund, em poucas palavras, pensou ele. Ela queria muito, mas não sabia como chegar lá.

Tinha sido uma espécie de funcionária dos Recursos Humanos na Direcção Nacional de Polícia, mas zangara-se com quase toda a gente. Fora transferida várias vezes antes de assumir o seu presente cargo como administradora responsável pelo desenvolvimento do pessoal. Parecia bom, mas não signi?cava quase nada. Tomava nota das candidaturas que chegavam e depois passava-as a alguém que efectivamente tomava as decisões. Lennart sentia alguma simpatia por ela; era amarga, e a vida não lhe tinha corrido como ela gostaria. Era a ressabiada arquetípica, o tipo de pessoa que descarregava a sua frustração sobre todos os que a rodeavam e se tinham saído melhor. Que pensava que era tudo culpa de outra pessoa. Que via defeitos em todos os sistemas, mas nenhum em si mesma.

Isso acontecia com frequência entre os que se dispunham a fornecer informações à imprensa. No início da sua carreira como jornalista, Lennart tinha pensado que as pessoas revelavam as anomalias porque tinham moral e pretendiam evitar malefícios, mas infelizmente não era esse o caso. Na sua maior parte, as fontes tinham motivos muito mais simples: dinheiro, injustiças e vingança. Não era bonito, mas era verdade.

Anitha viu-o e ele sorriu-lhe quando ela veio sentar-se ao seu lado.

– Olá, Anitha.

– Olá.

– Posso perguntar-te se também vens aqui no teu tempo livre?

Ela pousou a mala de mão castanho-clara na prateleira em frente do ecrã e ?tou-o.

– Claro que sim. Isto é um pouco como o meu emprego, percebes? Alguém anuncia alguma coisa. Eu assinalo. Anunciam novamente. Eu assinalo. A única diferença é que aqui poderia realmente ganhar alguma coisa de vez em quando.

Ela olhou para o ecrã, como se estivesse a pensar jogar.

– Talvez eu devesse experimentar isto um dia – disse Lennart, tentando manter o tom amigável, mas Anitha foi directa ao assunto.

– Então o que é assim tão importante?

– Um caso de asilo que foi classi?cado. Dois homens afegãos que desapareceram. Ninguém sabe onde eles estão e ninguém parece importar-se.

– A Polícia de Segurança obviamente importou-se.

Lennart virou-se de frente para ela. Esse pensamento já lhe ocorrera, mas havia outras agências que poderiam assinalar uma investigação como con?dencial.

– A Polícia de Segurança... o que te leva a pensar que seja a Säpo?

– Quem mais haveria de ser? Se eles eram afegãos, presumo que fossem muçulmanos. Tu sabes perfeitamente que a Säpo é envolvida sempre que o caso é sério. Uma ameaça à segurança nacional e assim por diante.

– Não precisas de me dizer o que a Säpo faz – disse-lhe Lennart com um sorriso.

– Pois, mas tu precisas de mim, não é? – respondeu Anitha com uma repentina aspereza na voz. – Portanto, podes muito bem ouvir o que te digo. Ou ?camos já por aqui?

Ela recostou-se na cadeira, realçando o facto de estar a levar a melhor.

Maldição, ela era complicada.

– É claro que estou a ouvir-te – disse-lhe Lennart. – Desculpa – acrescentou, para o caso de o seu tom de voz não ser su?cientemente claro.

Anitha inclinou-se de novo para a frente. Parecia um pouco mais calma, mas Lennart sabia que ela poderia irritar-se a qualquer momento.

– Tens algo de mais concreto?

Lennart assentiu e entregou-lhe uma folha de papel onde se resumia o que ele sabia. Ela passou os olhos pelas breves notas enquanto Lennart contemplava o homem do pólo.

Quatro e sete, quarenta e sete.

Três e seis, trinta e seis.

– Tens alguma linha vencedora? – disse-lhe Anitha, experimentando um gracejo enquanto pousava o papel.

– Isso depende de ti – gracejou ele também.

Ela não sorriu.

– Não sei. Isto parece-me um pouco escasso. Nós já temos imigrantes su?cientes, não é? Não me faz diferença se alguns deles desaparecerem. – Olhou para longe.

Um e sete, dezassete.

– Mas concordo contigo, de facto há qualquer coisa de estranho em que uma recusa de concessão de asilo seja marcada como con?dencial – disse-lhe ela após um breve silêncio. – Mas isso não é su?ciente.

– O que queres dizer?

– Não é su?ciente para que eu me envolva.

– Existe alguma maneira de eu conseguir fazer com que te interesses? – disse-lhe Lennart ao mesmo tempo que sentia a sua esperança murchar e morrer.

– Não creio. O que acontece é que sou a única a correr o risco, enquanto tu ?cas com todo o crédito se eu encontrar alguma coisa.

Lennart suspirou. Isto não estava a correr bem.

Cinco e dois, cinquenta e dois.

Uma mulher com permanente no cabelo grisalho e uma blusa azul gritou «Casa!» a duas ?las de distância dele.

– Não posso pagar-te muito – disse-lhe Lennart, tentando uma última jogada. – Mas talvez haja mais alguma coisa que eu possa dar-te.

– Duvido.

Anitha sorriu-lhe pela primeira vez. Ele sabia porquê; ela estava a desfrutar do seu poder, a deleitar-se com a noção de que era necessária.

– Nem sequer te ofereceste para me pagar um café – disse-lhe ela, pondo-se em pé. – Precisas de melhorar o teu poder de persuasão, Sr. Importante da Televisão. – Pegou na mala de mão. – Talvez tenhas mais sorte com o bingo. Adeuzinho.

 

Sentindo-se irritado, Lennart caminhou em direcção à estação de metropolitano na Fridhemsplan. Com Anitha fora do quadro, teria de seguir a rota o?cial. Ameaçá-los, ligar o aquecimento, estar sempre a evocar o princípio da liberdade de informação, mas infelizmente assim também ?caria visível demais, o que não era bom. Se havia algo de suspeito acerca do desaparecimento de Hamid e Said, a mensagem alastraria como um incêndio no interior da Polícia, dando aos envolvidos aviso e tempo su?ciente para prepararem o seu contra-ataque. Lennart tinha aprendido da maneira mais difícil que era sempre melhor aplicar pressão quando dispunha de provas concretas para apresentar logo que começassem a surgir as respostas evasivas – factos incontestáveis que não pudessem ser rejeitados, informações que expunham os culpados e faziam as desculpas parecerem desprezíveis. Era assim que se fazia boa televisão.

Neste momento, nove anos passados, tudo o que tinha era uma recusa de asilo con?dencial e alguns acontecimentos estranhos. Nem de perto isso era su?ciente. Precisava de tentar saber mais junto de Shibeka e da esposa de Said. Poderia descobrir algo se insistisse um pouco. Não era muito, mas era a sua única esperança.

 

Shibeka estava sentada à mesa da cozinha a ler as instruções do seu novo telemóvel, página após página repleta de informações sobre como guardar e sincronizar contactos, descarregar jogos e inserir o cartão SIM. Não precisava de uma boa parte de todas aquelas funções; queria estar acessível e porventura fazer um telefonema ou dois – para os seus ?lhos e para aquele homem da televisão, Lennart Stridh. Talvez desse também o seu número a alguns dos amigos na escola e no emprego, mas só isso. Estava bem ciente de que no seu círculo mais próximo ninguém acharia aceitável que uma mulher sozinha tivesse um telemóvel, e por isso nunca comprara um, embora já tivesse pensado algumas vezes que lhe seria útil. Andava a alargar os limites do que presentemente era aceitável, ela sabia disso. Seria estúpido causar uma provocação desnecessária, mas continuou a ler o espesso folheto escrito em doze línguas. Era entusiasmante contemplar todas as possibilidades, mesmo que nunca viesse a precisar delas.

O telefone ?xo tocou no corredor. Era Lennart, e parecia cansado.

– Olá, Shibeka. Está tudo bem?

– Está tudo bem, obrigada.

– Óptimo. Ouça, eu estava a pensar passar por aí amanhã, se não se importar.

Shibeka ?cou hirta de horror.

– Por aqui?

– Sim, preciso de falar consigo, talvez conhecer os seus ?lhos, e também preciso de entrar em contacto com a mulher do Said.

Shibeka ?cou fria por dentro. Não estava à espera daquilo.

– Isso é impossível – respondeu ela, quase por re?exo.

– O que quer dizer com impossível?

Lennart parecia completamente atónito.

– Não sei como explicar, mas não parece bem – disse ela debilmente.

– Não parece bem?

Shibeka hesitou. Como poderia fazê-lo entender? Ele era sueco. Os suecos podiam ir visitar qualquer um, a qualquer hora.

– Eu não devo ?car sozinha consigo – disse el, por ?m.

Ouviu-o suspirar e percebeu que o dia dele não estava a correr-lhe pelo melhor. Mas havia regras, mesmo que isso lhe parecesse estranho.

– Está bem, eu percebo – disse ele, para seu alívio. – Não faz mal se nos encontrarmos na cidade?

– Está muito bem.

– Mas vou ter de falar com os seus ?lhos e com a esposa do Said em algum momento, caso contrário, isto não vai mesmo funcionar.

Shibeka não soube o que dizer. Na verdade, não tinha avaliado o alcance daquilo a que dera início. Julgara que eles iriam apenas encontrar-se, isso seria bom, seria o su?ciente. O homem do programa de televisão haveria de descobrir o que acontecera ao seu marido e, de alguma maneira mágica, tudo se resolveria. Agora compreendia que a jornada tinha apenas começado.

– Preciso de pensar. Não tenho a certeza de que seja boa ideia. Não é o que eu queria.

– É assim que tem de ser, caso contrário, não conseguirei ir mais longe.

Quando ela pensava no assunto, era óbvio. De repente, sentiu-se desgastada. Tinha desaparecido a alegria que ela experimentara devido ao facto de aquilo com que sonhara durante tanto tempo estar de facto a acontecer; alguém a tinha ouvido, alguém acreditara nela. Chegara agora a altura do acerto de contas.

– Eu falo consigo amanhã – disse ela ?nalmente. – Telefono-lhe; comprei um telemóvel.

– Excelente, pode dar-me o número?

– Ainda não o con?gurei.

– Não precisa de o configurar para obter o número – explicou-lhe Lennart com toda a paciência, como se estivesse a ajudar uma criança. – Está num papel separado.

– Eu sei, mas há tantos papéis...

Mais um suspiro na outra extremidade da linha.

– Está bem, você telefona... tem o meu número, não tem?

– Sim, está na carta. Eu telefono-lhe.

– Está bem, o mais tardar amanhã. – Ele parecia mais cansado do que ela se sentia. Depois desligou, e Shibeka ?cou ali em pé com o telefone mudo na mão.

Pousou o auscultador e voltou para a cozinha. Sentou-se à mesa e olhou para o novo telemóvel e para a embalagem azul que ainda há poucos minutos lhe parecia um símbolo de tantas oportunidades. Agora não era mais do que um falso profeta.

O que imaginara ela que iria acontecer? Era óbvio que tudo colidiria mais cedo ou mais tarde, e presumivelmente isso era inevitável caso ela quisesse respostas para as perguntas que volteavam na sua cabeça desde há tanto tempo. Iria ter de se erguer pelo seu desejo de conhecer a verdade, ainda que esta fosse dolorosa e independentemente do que pensassem as pessoas ao seu redor. Não se importava; muitos já a consideravam demasiado... sueca, assumiu ela. O que a preocupava eram os seus meninos. Eles viam em muitos dos mais velhos um modelo, consideravam-nos uma ligação ao país de origem e ao seu pai. Não queria destruir essa relação.

O que deveria ela fazer?

Shibeka tentou pensar que conselho lhe teria dado Hamid. Era sempre muito sensato, sobretudo quando ela tinha dúvidas. Sentia a falta das suas palavras, dos seus pensamentos. Precisava deles agora.

A campainha tocou e um segundo depois ela ouviu uma chave na fechadura. Era Mehran. Ele fazia sempre isso – primeiro tocava, em seguida abria a porta. Eyer mantinha o dedo na campainha até ela vir abrir a porta e o deixar entrar, mas Mehran não. Era como se estivesse a dizer-lhe: Olá, estou aqui, mas consigo fazer isto sozinho.

Foi até ao corredor e olhou para o ?lho. Alto, esbelto, contente por ter chegado a casa. Ele pousou o saco e tirou os sapatos.

– Como correu o teu dia de desporto?

– Bem. Eu e o Levan perdemo-nos.

– Demoraram muito tempo a voltar?

– Perto de uma hora, mas, como eu tinha deixado o meu almoço no sítio onde trocámos de roupa, ?quei cheio de fome.

Ele beijou-a na face e avançou em direcção à cozinha.

– O que é aquilo? – perguntou quando viu a caixa azul em cima da mesa.

– Um telemóvel – respondeu Shibeka com sinceridade.

– É para quem?

– Para mim.

Mehran lançou-lhe um olhar que ela não conseguiu interpretar bem, ao mesmo tempo que pegava no telefone e o examinava. Barato, modelo ultrapassado. Perdeu logo o interesse e pousou-o.

– Mas tem cuidado com o lugar onde o usas – disse-lhe ele enquanto ia para a sala e ligava o televisor. No canal Nickelodeon, como de costume. Shibeka ?cou a vê-lo fazer isso. Tinha crescido tanto. Estava a tornar-se um homem. O tempo passava muito depressa; às vezes, isso assustava-a.

– Vou fazer-te uma chávena de chai – disse-lhe ela em voz alta.

– Obrigado – bradou ele acima do som da televisão. Shibeka encheu a chaleira, ligou-a, depois parou. O que estava a fazer? Estava a comportar-se como uma mulher má, a guardar segredos e a fazer coisas às escondidas daqueles que amava.

Isso não estava certo.

Não estava nada certo.

Ela não podia continuar assim. Era um caminho perigoso. As mentiras haveriam de crescer, e com elas a distância entre si e os meninos.

Tomou uma decisão. Respirou fundo e entrou na sala de estar. As palavras surgiram-lhe com mais facilidade do que ousara esperar.

– Comecei uma coisa. Uma coisa sobre a qual preciso de falar contigo.

Mehran olhou-a com curiosidade, e mais uma vez ela percebeu quanto ele tinha crescido. Já não era um menino, e baixou os olhos para lhe mostrar respeito. Sentou-se ao lado dele e pegou-lhe na mão. Ele tinha de saber, e ela ouviria o que ele dissesse.

– É sobre o teu pai – disse-lhe.

Sentiu Mehran sobressaltar-se. Nunca tinha gostado de falar sobre o pai. Isso preocupava Shibeka desde há muito, mas ao ?m de algum tempo percebera que ele estava a fazer o luto à sua própria maneira. À maneira dos homens.

Hamid.

O homem que tinha desaparecido, mas estava sempre presente.

Shibeka começou a falar. Contou-lhe tudo.

O televisor continuou ligado, mas já ninguém o ouvia.


POUCAS COISAS incomodavam Harald Olofsson. Quase tudo o que vinha ter com ele, fosse planeado ou não, era tratado de uma maneira regrada e sistemática que a maioria das pessoas acharia impressionante. O próprio Harald nunca pensava sequer nisso. Não precisava de fazer qualquer esforço para se manter no controlo ou para não se exaltar. Era simplesmente uma pessoa metódica, ponderada. Por conseguinte, sentir a sua frequência cardíaca aumentar e a sua respiração tornar-se cada vez mais ofegante era uma sensação estranha e indesejável.

Não conseguia encontrar as mochilas.

Era muito meticuloso sobre os locais onde guardava as coisas. O quintal poderia parecer um local bombardeado, mas Harald sabia exactamente onde estava cada artigo e de onde ele viera. No seu ramo de trabalho, a organização era fundamental. Nada do que estava à vista poderia ser associado a um proprietário anterior, e o mesmo sucedia com o conteúdo do anexo. Embora este parecesse estar a rebentar pelas costuras, com tudo aparentemente atirado para ali ao acaso, por trás daquilo havia um plano. Os artigos que estavam à frente e ?cavam claramente visíveis eram tão seguros como os que estavam no pátio. Quanto mais se entrava lá dentro e mais difícil se tornava alcançar um objecto especí?co, mais provável era que se conseguisse encontrar um proprietário anterior, com algum trabalho árduo. Tudo o que de?nitivamente não deveria ser encontrado na sua posse estava lá em baixo, na Câmara. As duas mochilas do acidente de carro tinham ?cado por lá algum tempo ao princípio, mas com o passar dos anos haviam sido transferidas para o piso de cima. Hoje em dia, Harald não achava que elas pertencessem à categoria dos objectos que precisavam de estar escondidos, pelo que não deveria ter nenhuma di?culdade em encontrá-las.

Mas tinha.

Um grande problema.

Já passara uma considerável quantidade de tempo no anexo, percorrera tudo aquilo pelo menos duas vezes. Tinha a certeza de que as mochilas não estavam lá. Então onde estavam? Já se teria livrado delas? Não continham nada de valor, tanto quanto ele se lembrava, mas não tinha qualquer memória de as ter deitado fora ou queimado. Então onde estavam? Talvez isso não tivesse importância; se ele não lhes podia deitar a mão, então a Polícia também não conseguiria encontrá-las, se viessem fazer-lhe outra visita. De qualquer modo, porque haveriam de voltar? Já respondera às perguntas deles, e pareciam perfeitamente satisfeitos quando se foram embora.

Saiu para o quintal, piscando os olhos para o sol-poente. Zeppo levantou-se e caminhou em direcção ao dono, até onde a corda lho permitia. Harald aproximou-se e afagou o cão, soltando-lhe ao mesmo tempo a corda da coleira. Nessa manhã não tinha ido passear Zeppo; uma caminhada pela ?oresta faria bem a ambos. Harald entrou em casa para ir buscar a trela. Assobiou e partiram os dois pelo estreito carreiro de terra. Ao ?m de cerca de cem metros, foram para o meio das árvores. Daí a poucos segundos, Harald conseguiu sentir que a serenidade ao seu redor lhe fazia bem. Aquele silêncio. Não conseguia ouvir nada senão os sons da própria ?oresta. Respirou fundo algumas vezes, e os últimos vestígios de qualquer ansiedade desvaneceram-se. Tinha-se enervado sem motivo algum. Esqueceria tudo sobre o acidente do carro e aquelas malditas mochilas. Harald rebolou os ombros como se quisesse sacudir ?sicamente aquela memória e exalou com um suspiro de satisfação, quase esperando ver a sua respiração. Agora fazia bastante frio à noite, e o Sol já perdera algum do seu calor durante o dia. A chuva do ?m-de-semana talvez fosse a última; na próxima vez poderiam muito bem ver alguma neve.

Continuaram a andar entre as densas coníferas. Zeppo parou, farejou, seguiu uma pista interessante e depois regressou. Durante longos períodos, ele não via nem ouvia o cão; cada um deles fazia a sua própria coisa e ambos se sentiam contentes assim. De repente, Harald percebeu que a luz começara a esmorecer; estava na hora de ir para casa.

– Zeppo!

O cão não apareceu. Chamou-o novamente, mas continuava a não haver nenhum sinal de Zeppo. Harald parou e pôs-se à escuta, mas o único som era o ténue sussurro das copas das árvores. Praguejou para consigo. De vez em quando, o cão detectava um cheiro qualquer e esquecia tudo o resto, saía da vista e do alcance da voz.

– Zeppo! – gritou ele de novo, desta vez muito mais alto. Ficou a tentar ouvir algum tipo de resposta, algum latido ou restolhar no meio do mato. Estava prestes a gritar uma quarta vez quando se lembrou.

Estavam no sótão.

As mochilas estavam no sótão.

Lembrou-se exactamente onde as tinha arrumado, mas já não sabia ao certo porque as trouxera para dentro de casa. Não era coisa que ele ?zesse habitualmente. Nunca. Se fossem encontrados no anexo alguns artigos roubados, contra todas as expectativas, pelo menos existia uma possibilidade teórica de que alguém os pudesse ter colocado lá sem Harald saber disso. No entanto, se fosse encontrado algo dentro de casa, isso tornava-se mais difícil, razão pela qual nada do que lhe vinham entregar passava da soleira da porta. Ele devia ter decidido que as mochilas eram seguras. Ninguém lhes sentira a falta, presumivelmente ninguém sabia sequer que elas existiam. Mas, se a Riksmord mostrava interesse, era essencial levá-las para fora da casa. Se ao menos Zeppo regressasse.

– Zeppo! – gritou ele com toda força que podia. – Volta para aqui, pelo amor de Deus! – acrescentou, como se quisesse comunicar-lhe a gravidade da situação. Nada. Harald passou mais dez minutos a gritar e a deambular por ali até que ouviu um restolhar no meio do mato. Zeppo lá apareceu, a abanar a cauda como se tivesse passado um belo bocado onde quer que tivesse estado, muito obrigado por perguntares. Harald prendeu-o à trela e abalou dali o mais rapidamente que podia.

Logo que chegou foi prender Zeppo no pátio e apressou-se a entrar dentro de casa. Encontrou as duas mochilas ligeiramente carbonizadas no sótão, no sítio exacto onde se lembrava de as ter visto. Para falar verdade, não lhe interessava muito o modo como o seu cérebro funcionava, sentia-se apenas contente por ter encontrado a resposta. Estava na hora de acabar com aquilo. Deixou cair as mochilas pelo alçapão, apagou a luz e desceu. De uma delas, tinham caído algumas coisas, incluindo a mala de mão queimada. Porque a guardara? Em todo o caso, agora ela poderia desaparecer, juntamente com tudo o resto. Chegado à cozinha, abriu aquilo que, com alguma imaginação, poderia chamar-se o armário de limpeza e tirou de lá uma garrafa de acendalha líquida e uma caixa de fósforos. Voltou para o exterior; ainda não estava completamente escuro, mas estava com certeza mais escuro do que ao crepúsculo. Deveria esperar até de manhã? Pareceria estranho fazer agora uma fogueira? Rejeitou essa ansiedade injusti?cada; ninguém veria a fogueira. Passou pelo anexo em direcção à parte de trás da propriedade. Zeppo ?cou interessado e seguiu-o até onde a corda lho permitia. No local onde a lama e o cascalho do caminho se transformavam em relva, deixou cair as mochilas, abriu a garrafa e aspergiu generosamente o tecido castanho impermeável com o líquido. Fechou a tampa e acendeu um fósforo.

A seguir, tudo pareceu acontecer ao mesmo tempo.

O incêndio de?agrou quando Zeppo começou a ladrar. Um segundo depois, Harald foi iluminado pelos poderosos faróis de um carro que entrou pelos portões. Olhou para o carro sem compreender, a seguir baixou os olhos para as mochilas que ardiam aos seus pés, depois novamente para o carro enquanto o motor deste era desligado e as luzes se apagavam. Harald piscou os olhos e viu uma ?gura que caminhava na sua direcção.

– Harald Olofsson? – disse uma voz de mulher. De repente, alguém, presumivelmente a dona da voz, correu para a frente e tentou apagar o fogo. Zeppo continuou a ladrar e Harald recuou.

Tão perto.

Se a mulher, que ele assumira ser uma agente policial, tivesse chegado quinze minutos mais tarde, não teria encontrado nada além de fuligem e cinzas, e ele ter-se-ia safado daquilo.

Se não se tivesse lembrado de onde estavam as mochilas, ter-se-ia safado daquilo.

Se o cão tivesse vindo logo que ele o chamou, ter-se-ia safado daquilo.

Tantos ses. Demasiados.

Percebeu que não ia safar-se daquilo.


– VAMOS COMEÇAR pelo acidente do carro?

Torkel olhou para Harald Olofsson, afundado na sua cadeira, mãos entrelaçadas, cabeça inclinada, olhos ?xos no chão. Este fez um gesto de assentimento.

– Tem de responder às minhas perguntas – disse-lhe Torkel, apontando para o telemóvel pousado em cima da mesa entre eles. – Para a gravação sair bem – esclareceu quando percebeu que Harald não tinha visto o gesto. Harald assentiu de novo.

Quando Ursula telefonara e contara a Torkel o que tinha acontecido, o que ela havia encontrado e que trazia Harald Olofsson para interrogatório, tinham decidido que a opção mais simples e mais próxima seria usar a estação de montanha, e era por isso que Harald estava agora sentado na mesa desdobrável do quarto de Torkel, diante deste e de Ursula. Ursula teria preferido ir imediatamente examinar os restos das mochilas, antes que fossem enviadas para o Laboratório Forense Nacional em Linköping, mas Torkel insistira que queria que ela assistisse à entrevista. Em circunstâncias normais, teria lá estado Vanja, mas, como Vanja se fora embora, ele queria... o que queria ele realmente? A melhor coisa a seguir a essa, presumivelmente. Jennifer fora um complemento promissor e consciente para a equipa, mas era demasiado nova para ser colocada numa situação que dependia de uma capacidade quase instintiva para trabalhar em conjunto, e Billy... Billy era Billy. Ele e Vanja formavam uma boa equipa, mas Torkel queria Ursula, embora esta manifestamente não tivesse qualquer vontade de estar ali. Torkel entendeu que era provável que isso signi?casse que ele poderia contar com mais uma noite sem companhia, mas tinha de pôr de lado as considerações pessoais; em primeiro lugar, estava a investigação.

– Pode falar-nos sobre aquela manhã? – disse Torkel num tom interessado, esperando que isso transmitisse a Harald a noção de que estavam apenas a ter uma conversa. Harald encolheu os ombros.

– Eu ia a conduzir – disse ele em voz baixa, com os olhos ainda ?xos no chão.

– Desculpe – interrompeu Torkel. – Acha que pode falar um pouco mais alto? – Harald olhou para cima.

– Eu ia a conduzir – repetiu ele.

– Desde onde? – interveio Ursula.

Harald virou-se para ela.

– O quê?

– De onde vinha?

– Tenho uma... amiga que mora perto da fronteira, na Noruega. Às vezes ?co lá.

– Uma amiga?

– Sim.

– Uma mulher?

– Sim.

– Qual é o nome dela?

– Henny. Henny Petersen.

Torkel obteve um endereço e um número de telefone; acontecesse o que acontecesse, provavelmente entrariam em contacto com ela, embora fosse pouco plausível que se lembrasse se Harald Olofsson passara lá a noite de 30 para 31 de Outubro de 2003.

– Eu estava a voltar para casa de manhã – prosseguiu Harald quando Torkel já parara de escrever. – Vi fumo a subir desde o rio lá em baixo, por isso parei. A seguir vi o carro.

– O que fez então? – Torkel achava que sabia, mas, na medida do possível, era sempre melhor que o entrevistado contasse a história pelas suas próprias palavras.

– Fui lá abaixo ver se havia alguém ferido e percebi logo que a condutora estava morta.

– Portanto, o que fez? – disse-lhe Ursula, como se fosse um eco de Torkel. Harald engoliu em seco. Os olhos da mulher eram mais difíceis que os do homem. Penetrantes. Impiedosos. Ela tinha ido ao seu quintal. Tinha encontrado as mochilas. A sua pergunta era puramente retórica; Harald estava bem ciente de que aqueles dois agentes policiais já sabiam o que ele tinha feito.

– Encontrei a mala de mão, ou o que restava dela, em todo o caso. Como estava mesmo ao lado da porta e a janela estava partida, eu... tirei-a.

Ursula fez um gesto de assentimento para si própria, o que con?rmou a suposição de Harald de que eles já tinham descoberto a maior parte do que acontecera naquela manhã.

– Continue.

Harald hesitou, ganhou algum tempo sorvendo um pouco do copo de água que Torkel tinha ido buscar à casa de banho.

– Voltei ao meu carro para ir buscar uma gazua. Consegui abrir a bagageira e tirei o que estava lá dentro – disse, pousando o copo com cuidado para não ter de enfrentar o olhar deles.

Ursula ?cou a olhá-lo, com o desprezo a fervilhar dentro de si. Ao ?m de todos estes anos, deixara de se sentir surpreendida com aquilo que as pessoas eram capazes de fazer umas às outras, mas havia neste indivíduo mal vestido qualquer coisa que a deixava doente. Ele tinha encontrado o corpo de uma mulher dentro de um carro e a primeira coisa em que pensara fora em acartar penas para o seu próprio ninho. Saquear, era isso que Harald Olofsson tinha feito. Em pequena escala, é certo, mas ainda assim era saquear. No livro de Ursula não havia desculpa para quem tirava proveito do infortúnio de alguém daquela maneira. Absolutamente nenhuma.

– Então, o que é que encontrou? – perguntou-lhe Torkel. Se ele sentia o mesmo que Ursula a respeito o homem que tinha à sua frente, disfarçava-o bem.

– Duas mochilas.

– Mais nada?

– Não.

– Nenhuma tenda? – interveio Ursula.

– Não.

Torkel entendeu onde ela queria chegar. Ainda não sabiam onde é que as quatro pessoas da sepultura tinham pernoitado.

– As mochilas sofreram hoje sérios danos devido ao fogo de há pouco – continuou Torkel.

– Sim. Desculpe.

Harald ?tou-os com uma expressão que correspondia à sinceridade da sua voz. Se não fosse o saque, Ursula quase teria sentido pena dele.

– Havia algumas etiquetas com endereço quando as encontrou?

– Não sei.

– Pense lá. Ou alguns emblemas ou bandeiras, alguma coisa que pudesse indicar a quem elas pertenciam?

– Não sei.

Ursula inclinou-se para a frente, apoiando os braços em cima da mesa. Esperou até que Harald ?tasse os seus olhos, o que demorou alguns silenciosos segundos.

– Deixe-me explicar – disse-lhe ela logo que estabeleceram contacto visual. – O exame forense sugere que o acidente não causou o incêndio. O incêndio foi iniciado de forma deliberada, possivelmente para ocultar provas.

Ela viu Harald sobressaltar-se quando as implicações das suas palavras o penetraram. Num segundo, a expressão dele passou da desculpa para o medo.

– Ou talvez para calar a mulher que ia a conduzir – prosseguiu Ursula. – Se pensarmos que ela estava viva quando o fogo começou...

Não concluiu a frase; em vez disso, deixou que a imagem e as consequências desta se entranhassem nele. Percebeu que estava a dar resultado. O rosto de Harald perdeu toda a cor, e quando pegou no copo de água a mão dele tremia. Ursula não fazia ideia se o que acabara de lhe dizer era verdade; provavelmente, a mulher não estava viva. No relatório da autópsia não havia nada que sugerisse que ela tinha fumo nos pulmões, mas Harald Olofsson não sabia disso.

– Se estava viva quando o fogo começou, então estamos a falar de homicídio – concluiu ela, recostando-se para trás na cadeira.

– Eu não tive nada a ver com isso! – Harald virou-se instintivamente para Torkel. Embora não o tivessem discutido ou pensado sequer no assunto, ele e Ursula pareciam ter desenvolvido uma estratégia de polícia bom/polícia mau. Ursula parecia decidida a continuar nessa via.

– Talvez ela estivesse lá sentada quando lhe começou a tirar o material; recobrou os sentidos, você percebeu que ela o tinha visto e... Não sei, talvez você tenha entrado em pânico?

– Não!

– Tirou mais alguma coisa do carro? – perguntou-lhe Torkel calmamente. Até aqui, Harald tinha-se mostrado cooperante, mas agora também estava assustado, por isso mais valia que eles aproveitassem.

– Não, nada, eu juro. A mala de mão e as duas mochilas. A seguir chamei a Polícia.

– Nós vamos revirar a sua casa de alto a baixo, e se você nos está a mentir...

Torkel calou-se, mas Harald sabia exactamente o que ele queria dizer. Tal como sabia que aquilo chegara ao ?m. Tudo chegara ao ?m. Eles haveriam de encontrar a Câmara. Desta vez, não se safaria, mas não fazia a mínima intenção de se misturar num homicídio que nada tinha a ver consigo.

– Eu não estou a mentir. – Olhou de um para o outro, mas ?xou-se em Ursula; parecia ser ela que mais precisava de ser convencida. – Eu não tirei mais nada! A mala de mão e as duas mochilas. E o carro já estava a arder quando o encontrei.

Torkel e Ursula não disseram uma palavra.

– Juro – disse Harald mais uma vez.

Acreditaram nele.


PARECIA ESTRANHO entrar na ala de custódia de Kronoberg como uma familiar. Vanja já tinha lá ido muitas vezes por causa do trabalho, sem nunca imaginar que um dia estaria ali num papel completamente diferente. Sentiu que as paredes de pedra da área da recepção se fechavam sobre si. A esmagavam. Fazendo com que cada passo em direcção ao agente de plantão fosse mais difícil que o anterior. Por ?m, chegou lá. Janne Gustavsson estava sentado atrás do vidro. Abanou a cabeça em sinal de reconhecimento.

– Não sabia que a Riksmord tinha cá alguém!

– Não temos.

Vanja calou-se. Janne olhou-a interrogativamente. Havia qualquer coisa na voz dela; não parecia tão con?ante como era seu hábito. Na verdade, nem parecia ela. Era óbvio que tinha acontecido alguma coisa.

– Venho ver o meu pai – prosseguiu ela numa voz fraca. – Deve cá estar.

Janne olhou para ela, e de repente tudo fez sentido.

Lithner.

Ainda não lhe tinha ocorrido, embora aquele nome devesse ter feito soar os alarmes. Lithner.

Quantas pessoas tinham aquele apelido? Quase ninguém, além de uma atraente agente policial loura da Riksmord e do fulano que estava no número vinte e três.

Valdemar Lithner.

Tinha chegado algumas horas antes, detido por Ingrid Ericsson, da Autoridade do Crime Económico. Ela era uma das poucas pessoas que realmente sabiam como Janne se chamava, e tratava-o pelo seu primeiro nome. Pôs-se a pensar se Vanja saberia. Provavelmente, não.

– O Valdemar Lithner é seu pai?

Vanja disse-lhe que sim com a cabeça, remexendo nervosamente uma madeixa de cabelo. De repente, Janne pensou que ela parecia uma menina. Uma menina perdida. Não pôde deixar de sentir pena dela.

– Será possível vê-lo?

– Infelizmente, é um pouco difícil – disse-lhe Janne com toda a simpatia que pôde, olhando para o relógio. – O que acontece é que já passa das cinco horas, e não tenho a certeza de que seja permitido.

– Foram impostas algumas restrições?

Janne folheou os seus papéis, embora já soubesse o que ia encontrar. Ingrid Ericsson havia dito que não a tudo.


Chamadas telefónicas [NÃO]

Cartas [NÃO]

Acesso ao computador [NÃO]

Visitantes [NÃO]


Ericsson dizia sempre que não.

Janne prosseguiu a veri?cação por mais algum tempo, só por precaução, e a seguir olhou para Vanja.

– Receio bem que sim. Sem acesso.

– Você acha realmente que eu iria comprometer a investigação?

– Não, mas não importa o que eu penso – disse ele, quase em tom de desculpa. – Terá de ir falar com Ingrid Ericsson ou com o procurador.

Vanja olhou em redor, mostrando-se vagamente confusa, como se esperasse que Ericsson ou o procurador estivessem sentados na recepção. Janne poderia ter obtido um certo contentamento com aquela situação; regra geral, os da Riksmord eram muito perfeitos, muito imparáveis. Não precisavam de se sentar atrás de uma divisória de vidro a falar com as pessoas, como ele fazia. Mas havia no desespero dela qualquer coisa a que era difícil resistir. Aquilo não combinava com ela, e isso fê-lo sentir-se desconfortável em vez de arrogante.

– Tem o número da Ingrid? – perguntou-lhe ela ?nalmente.

Ele disse-lhe que sim com a cabeça e anotou-lho num post-it.

– Vou dar-lhe também o número do procurador... Stig Wennberg. Geralmente, é mais fácil lidar com ele do que com Ingrid.

Vanja fez um gesto de agradecimento quando ele lhe passou o papel.

– Obrigado, Janne.

Então ela sabia o seu nome.

– Boa sorte – disse-lhe, e foi sentido. Ela ia precisar.

Quando ela saiu, viu-a pegar no telemóvel ainda antes de a porta se fechar atrás de si.

A seguir desapareceu. Ele já vira muitas coisas durante os seus dez anos de serviço, mas isto fora algo diferente.

 

Vanja telefonou primeiro a Ingrid Ericsson; provavelmente, era melhor começar pela pessoa que conduzia a investigação. Directamente para o correio de voz; era possível que ela tivesse o telefone desligado. Deixou uma breve mensagem pedindo a Ingrid que lhe telefonasse o mais depressa possível, mas não deu mais pormenores. Ingrid ia perceber, sem dúvida, que aquilo dizia respeito ao pai dela, mas não poderia fazer-lhe o pedido através de um serviço de mensagens. Já seria bastante difícil numa conversa a sério. Em seguida, tentou Stig Wennberg, o procurador. Nunca se cruzara com o nome de Ingrid Ericsson no seu trabalho, mas já estava familiarizada com a excelente reputação de Wennberg. Lembrou-se de que alguns dos seus colegas tinham achado uma vergonha quando ele se transferira para a Autoridade do Crime Económico poucos anos antes.

Ele atendeu quase de imediato. Vanja ouviu crianças em fundo e assumiu que ele estava em casa. Parecia enervado, mas, quando ela lhe disse que era agente policial, descontraiu um pouco. Perguntou como poderia ajudá-la, julgando que ela lhe telefonara devido a algum caso em que andava a trabalhar.

Ela disse-lhe como poderia ajudá-la.

Todos os vestígios de descontracção desapareceram.

– Isso está fora de questão. Percebe?

Houve no tom de voz dele uma gravidade que não existia quando atendera a chamada. Isto não ia ser fácil. Era um acto de equilibrismo deveras complicado. A acusação de comportamento impróprio estava apenas a algumas frases de distância caso ela insistisse demais, que era o que realmente lhe apetecia fazer. Apetecia-lhe gritar com ele, dizer-lhe que precisava de ver o seu pai já, com regras ou sem regras. Mas não podia fazer isso. Tinha de manter o controlo, de formular o seu pedido com muito cuidado.

– Eu sei que é um pedido invulgar – disse ela, tímida –, mas preciso mesmo de ver o meu pai.

A resposta foi um suspiro profundo.

– Eu estou no meio de um caso; talvez já tenha ouvido falar da vala comum em Jämtland – continuou ela, tentando uma nova estratégia. Se ele não estava preparado para ajudar uma ?lha, talvez estivesse disposto a ajudar uma agente policial. – Preciso de saber o que aconteceu ao meu pai para poder regressar para junto da equipa.

– Você está com a Riksmord e com o Torkel Höglund?

– Exactamente.

Wennberg hesitou por um segundo. A?nal, talvez houvesse uma maneira.

– Conhece o Torkel? – perguntou-lhe Vanja num tom que esperava fosse neutro.

– Sim, mas não creio que isso a leve a algum lugar.

A porta fechara-se tão depressa quanto se abrira, mas Vanja não ia desistir. Tentou de novo encontrar aquela pequena abertura, devagarinho, devagarinho, sem o irritar demasiado.

– Eu ?caria contente se a visita fosse supervisionada, claro.

– As restrições são impostas pela agente encarregada, a decisão é dela.

– Com certeza, mas muitas vezes as restrições são bastante abrangentes. Ele não é suspeito de homicídio. Enquanto procurador, está no âmbito do seu poder abrir excepções.

Wennberg não disse nada mas também não desligou a chamada, o que já era alguma coisa. Enquanto continuasse a falar com ele, tinha uma possibilidade.

– Eu sei que é pedir muito, mas, honestamente, não consigo ver que mal lhe faria isso. Se acontecer alguma coisa, eu perco o emprego. A única pessoa que está a correr um risco aqui sou eu.

Por um segundo, ela pensou na sua formação com o FBI; isto poderia ter algum impacto negativo sobre as suas oportunidades? Sentiu vergonha de si própria; porque estava a pensar nisso agora? Tinha assuntos mais importantes a considerar, a pessoa que mais signi?cava para si.

O seu pai.

Ele era o único em que ela tinha de se concentrar, não em si mesma.

Na outra ponta da linha, as crianças tinham sossegado ou então Wennberg tinha-se mudado para outro quarto.

– Se o Torkel me telefonar e se responsabilizar por si, terei isso em consideração. É a única maneira – disse-lhe ele, por ?m.

– Está bem. – Vanja quase nem conseguiu proferir as palavras. – Ele irá telefonar-lhe já. Prometo. Ele vai telefonar-lhe.

– Acesso supervisionado. Dez minutos no máximo.

– Sim. Óptimo. Absolutamente. Muitíssimo obrigado.

– Agradeça ao Torkel se isso acontecer.

Ele desligou a chamada e Vanja ?cou ali com o telefone na mão. Havia superado o primeiro obstáculo. Estava a progredir. Agora só precisava de falar com Torkel. Na sua cabeça, conseguiu ouvir-se a encetar uma conversa que nem nos seus sonhos mais estouvados alguma vez esperara vir a ter.

Olá, Torkel.

Preciso da tua ajuda.

O meu pai foi preso.

 

Valdemar pusera-se a pensar quando é que o agente de plantão viria buscá-lo. Não esperava que acontecesse alguma coisa antes do dia seguinte, mas, por outro lado, o que sabia ele sobre a rotina normal deste lugar? Já estava sentado há tanto tempo na mesma posição em cima daquela tarimba dura, que as suas pernas tinham ?cado rígidas e dormentes e os primeiros passos que dera tinham sido vacilantes. O guarda levara-o pelo corredor verde e despido até à mesma sala de entrevistas onde antes fora interrogado. Sentara-o na mesma cadeira da mesma mesa e dissera-lhe que esperasse. A rigidez das suas pernas tinha diminuído, mas a dor ao fundo da coluna regressara. Sentia-se velho e desgastado e, pior ainda, sentia-se como se não estivesse bem ali, como se estivesse sentado naquela sala e ao mesmo tempo noutro lugar. A sua cabeça rodopiava. Tudo acontecera muito depressa. Aquela mulher que aparecera à sua porta. As primeiras entrevistas. Ficar fechado. E agora mais perguntas, aparentemente.

Era provável que tudo isso ?zesse parte da estratégia deles para tentarem confundi-lo.

Estava a dar resultado.

Precisava de se recompor, de se concentrar. De responder às perguntas sem se atrapalhar e sem perder o controlo. Ouviu sons no corredor e sentou-se um pouco mais direito. Diria tão pouco quanto pudesse, era esse o plano. Funcionara da última vez, talvez agora fosse igualmente e?caz.

A pesada porta abriu-se e ele vislumbrou alguém atrás do guarda. Quase entrou em pânico. Não podia ser, não devia ser ela! A pessoa desapareceu da vista por um segundo, enquanto o guarda ?cava à porta, ocultando-a. Valdemar esperou que aquilo tivesse sido alguma partida da sua imaginação, que quando o guarda entrasse não houvesse ninguém atrás dele. Ou que fosse aquela mulher muito satisfeita consigo mesma que tinha ido prendê-lo. Qualquer coisa seria melhor do que...

Mas depois viu-a. Ela era real. Estava ali, tão pálida e tão confusa quanto ele. Olhava-o com uma expressão ilegível. Fez uma corajosa tentativa de lhe mostrar um sorriso, mas percebeu que era inútil. Naquela sala, naquela situação, um sorriso não tinha qualquer utilidade.

– Olá, Vanja – disse-lhe ele, o mais casualmente que conseguiu.

Ela não respondeu. Caminhou até à cadeira que estava em frente dele, mas permaneceu em pé. Por um instante, Valdemar pensou se poderia recusar-se a vê-la, se poderia pedir ao guarda que o levasse de volta para a sua cela. Talvez isso tornasse as coisas mais fáceis.

Para ela.

Não para ele.

Ele estava perdido, já sabia isso. O atalho que ele seguira tinha-o desviado, e agora estava perdido. Ela jamais lhe perdoaria. Poderia compreender, caso ele realmente tentasse explicar-lhe, mas como poderia explicar-lhe se ele próprio não entendia?

– O que é que tu ?zeste, pai? – perguntou-lhe ela subitamente.

Ele baixou o olhar para as mãos. Até elas pareciam velhas, cheias de veias e enrugadas, desgastadas. Talvez ela nunca mais quisesse pegar-lhes.

O guarda fechou a porta e aproximou-se da mesa.

– Dispõem de dez minutos – disse ele em tom o?cioso. – Eu tenho de estar presente.

Vanja concordou e ele foi sentar-se num banquinho ao canto. Encostou-se à parede e tentou mostrar-se tão desinteressado quanto possível.

Valdemar olhou para a ?lha, que ainda estava de pé à sua frente. Ela já devia ter estado naquela sala muitas vezes, mas nunca assim.

– O que é que tu ?zeste? – repetiu ela.

Valdemar sentiu-se compelido a dizer-lhe a verdade.

– Uma estupidez, receio eu.

Vanja puxou a cadeira e sentou-se pesadamente. Olhou-o. Parecia ter envelhecido vários anos em poucos dias. Havia tanta coisa que ela queria dizer-lhe, tantas perguntas que queria fazer. Tanto que ela precisava de saber, mas, com o guarda presente na sala, ele não poderia contar-lhe tudo. Talvez fosse melhor assim. Vê-lo tinha-a deixado muito mais abalada do que esperara. Precisava de lhe fazer algumas perguntas inofensivas para poder recompor-se.

– Tens algum advogado?

– Não – disse-lhe ele, abanando a cabeça. – O escritório queria enviar alguém, mas eu recusei.

– Porquê?

– Não sei. Pensei que se tivesse um advogado tu poderias ?car a saber, e não queria isso.

Continuava a não conseguir olhá-la nos olhos.

– De qualquer modo, descobri. Tu pensas mesmo que ias conseguir manter isto em segredo? Eu sou agente da Polícia!

Valdemar voltou a abanar a cabeça. Era possível guardar segredos. Enterrá-los e esperar que tudo corresse bem. Já antes dera resultado.

– Eles interrogaram-me há alguns anos, mas o inquérito preliminar foi arquivado. Eu esperava que isso também acontecesse desta vez – disse-lhe ele, ?tando-a. – Assim, nunca terias de saber.

Vanja empalideceu. Ele percebeu que não era isso que ela queria ouvir. Queria que tudo voltasse ao normal, tal como ele. Queria que esta situação ridícula fosse um parêntesis nas suas vidas, um erro que poderia ser explicado, que haveria de desaparecer tão rapidamente como aparecera. Saber que tinha havido um inquérito anterior não ajudava a preservar essa ilusão.

– Sobre o que era a investigação anterior? – perguntou-lhe ela, mostrando-se inesperadamente recomposta.

Ele conhecia-a. Fossem quais fossem os sentimentos que ela tivesse quando entrara na sala, tinha-os posto de lado. Agora estava zangada.

– A mesma coisa. Peculato, fraude, evasão ?scal, abuso de con?ança...

– Mas não levaram isso avante?

– Não, mas agora dizem que encontraram novas provas.

Valdemar calou-se, não queria falar mais, mas não havia como escapar; Vanja faria perguntas sobre essas novas provas. Descobriria de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde; talvez fosse melhor ouvi-lo da boca dele.

– Tem a ver com a Daktea – disse ele baixinho.

Ela inclinou-se para a frente, olhando-o como se ele fosse um estranho, uma pessoa que ela nem sequer conhecesse. Nunca antes tinha olhado para ele daquela maneira, com tanta frieza.

– Tu estiveste envolvido na Daktea?

– É claro que eu não sabia tudo – disse-lhe, abanando a cabeça como se mesmo ele não conseguisse ainda entender o que realmente se passara. – A dimensão que aquilo tinha. Con?ei nas pessoas erradas.

Procurou a mão dela, mas ela não respondeu. Se as suas mãos tinham envelhecido, as dela haviam perdido completamente o interesse. Espreitou o guarda, que agora os olhava com curiosidade. Ela merecia uma explicação, mas ele precisava de escolher as palavras com cuidado.

– Eu só queria que nós tivéssemos uma boa vida, querida.

Apercebeu-se de como aquela desculpa soava oca.

Ela também, aparentemente.

– Sempre tivemos uma boa vida – retorquiu ela.

Tinha razão, como de costume. Poderiam ter sentido a falta de coisas materiais. De bugigangas. Nada que realmente tivesse alguma importância. Nada que pudesse substituir o que ele agora estava a perder, mas quisera tanto ser o papá que nunca via nada como um problema, o papá que podia dar à sua família a vida que todos os outros pareciam ter. Alguém de quem elas se podiam orgulhar.

– Pois, mas a tua mãe queria mesmo ter uma casa de Verão, tu precisavas de um apartamento...

Ela in?amou-se como um foguete.

– Um apartamento! Estás a tentar arrastar-me para tudo isto? Estás a querer dizer-me que estás aí sentado por minha causa?

– Por favor, Vanja, não, não foi isso que eu quis dizer.

– Então o que quiseste dizer?

Ele de?nhou perante os olhos dela. Desabou. Era um inútil. Um mentiroso, um aldrabão. Tinha de a fazer entender como aquilo fora tão simples, tão tentador. Embriagante. Como ele se havia entusiasmado com tudo, até que por ?m nem sequer pensara no facto de que era ilegal. Precisava de lhe explicar isso, mas não conseguia encontrar as palavras.

– Não sei – disse ele por ?m. – Não sei, Vanja.

Tudo aquilo era uma grande trapalhada. As únicas palavras que restavam eram banalidades.

– Eu amo-te. Eu amo-te muito e queria... – Calou-se e enxugou uma lágrima. – Eu queria dar-te tudo.

– Eu nunca te pedi tudo.

A frieza da voz dela era terrível. Retorcia-se e revirava-se no interior do peito dele como um verme gelado; quase nem o deixava respirar. Ela não queria saber do seu amor. Como podia acontecer tal coisa? Ele costumava signi?car tudo para ela, sabia disso. Mas desapontara-a, e da pior maneira imaginável. Tinha feito coisas nas costas dela, acabara por tornar-se uma pessoa diferente do homem que ela julgava ter conhecido durante todos estes anos, mentira-lhe. Não se podia fazer isso a Vanja. Ela era completamente honesta e exigia honestidade em troca. Era simples. Valdemar sabia disso, sabia o que precisava de fazer para a reconquistar, mas, em vez de lhe dizer a verdade, mentiu-lhe de novo.

– Eu não ?z nada ilegal.

– Então, o que ?zeste?

Sabia que ela conseguia vê-lo à transparência. Estava completamente aberto, mas mesmo assim tentava esquivar-se. Não podia fazer mais nada.

– Poderei ter ultrapassado um pouco os limites. Ajudei pessoas que não devia ter ajudado.

– Pois foi – a?rmou ela categoricamente, com toda a emoção ausente da sua voz. Poderia muito bem ter feito um comentário sobre o tempo no mesmo tom. Valdemar nada disse; lançou-lhe um olhar suplicante quando ela afastou a cadeira com toda a calma e se pôs em pé.

– Seja o que for de que eles te estão a acusar, tu ?zeste-o.

Virou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta.

– Por favor, Vanja. Espera – implorou ele.

O guarda olhou para o relógio.

– Têm mais três minutos.

Ela virou-se para trás e Valdemar esperou poder aproveitar esses minutos.

180 segundos.

Podia conseguir-se muito em 180 segundos.

– Obrigada, mas já terminei.

Palavras não eram ditas, ela desapareceu. Valdemar enterrou o rosto nas mãos, esperando nunca ter de voltar a encarar a realidade. A realidade em que a sua ?lha tinha desaparecido.


O CORAÇÃO DE MEHRAN batia furiosamente, e ele sentiu-se suado e com calor. Tinha dito à mãe exactamente o que pensava. Fechara a porta do seu quarto com tanta força que uma das fotogra?as de família que estavam penduradas no corredor tinha caído. Agora estava deitado na cama, a olhar para o tecto. Nunca tinham discutido antes daquela maneira, nem sequer quando ela o tinha apanhado a fumar com Levan. Mas isto era diferente. Sob todos os aspectos. A mãe tinha feito coisas às escondidas. Enganara-o a ele e a Eyer. Dizia que era por causa deles, que queria protegê-los, mas ele sabia que não era verdade.

Era tal e qual como Memel tinha dito.

A Shibeka está confusa. O Hamid era a espinha dorsal dela. Sem uma espinha dorsal, nós balançamos e caímos. Tu tens de a ajudar, compreendes?

Sempre defendera a mãe perante aquele velho teimoso que achava que ela não sabia o seu lugar. Mehran tinha contado a Memel quanto ela lutara por eles, como fazia sempre tudo por eles. Era a melhor mãe que um ?lho poderia ter. Trabalhara e estudara para que eles tivessem uma vida melhor. Tinha aprendido sueco por causa deles. Mas percebia agora que, provavelmente, Memel tinha razão.

A sua mãe estava confusa.

Não havia outra explicação. Tinha ido longe demais. Ele não lhe dissera nada quando ela enviara cartas atrás de cartas para toda a gente, desde os serviços sociais à Polícia e à imprensa. Tinha-se mantido em silêncio ao seu lado e sempre a deixara falar de Hamid à Polícia, mesmo sabendo que eles não se interessavam. Para eles, ela era apenas uma imigrante qualquer a reclamar. Mas nunca lhe dissera nada. Sempre ?cara do seu lado.

E era assim que ela lhe agradecia.

Fazendo coisas nas suas costas.

Mehran virou-se para o outro lado e pegou no leitor de mp3 que lhe tinham oferecido no aniversário. Gostava de house music, especialmente de Avicii. Procurou «Níveis» e aumentou o volume. Havia na música algo que tornava as coisas mais claras; era como se aquilo que tinha acontecido se revelasse mais simples, mais puro, o que, por sua vez, tornava a raiva dele mais manejável. Através da música via a vida como uma imagem, e já não lhe doía tanto. Não era fácil para a mãe, ele sabia disso. Ela fazia o melhor que podia.

Mas estava confusa.

Isso tornara-se óbvio com este seu último capricho.

Era bom que ela tivesse aprendido sueco; podia ajudá-lo a ele, a Eyer e aos seus amigos. Mas também havia nisso algo de mau; Memel tinha razão. Porque não era apenas a língua, ela tinha adquirido conhecimentos adicionais, aprendera coisas que Memel e os outros homens não aprovavam.

Eles sentiam-se preocupados.

Com as suas próprias esposas.

E se elas também ?cassem confusas?

Mehran gostava de Memel. Era Memel que punha o braço à volta dele e lhe falava sobre o país de origem e sobre Hamid. Tinha levado Mehran à mesquita e mostrara-lhe como fazer as abluções, como preparar-se para as orações.

Mehran sempre defendera a mãe, mas agora ela tinha ido encontrar-se com alguém da televisão. Sozinha. Com um homem sueco. Depois de tudo o que tinha feito por ela.

A raiva estava de volta, e desta vez nem sequer Avicii conseguiria acalmá-la. Um homem sueco! Até agora, os suecos não tinham feito nada por eles. Pelo contrário, a culpa era dos suecos. O seu pai tinha desaparecido aqui, na Suécia, onde estava seguro e a salvo, e não no perigoso Afeganistão. Não no caminho até ali. Mas na Suécia, onde ele e a sua família deviam sentir-se constantemente gratos. Era tudo uma grande mentira. A Suécia não era segura, não para a maioria das pessoas que ele conhecia. Viviam num estado de permanente insegurança. Seriam autorizados a permanecer ou não? Seriam deportados um dia? Ou, pior ainda, acabariam desaparecer como o seu pai? Lembrou-se do funcionário do Conselho de Imigração que quisera expulsá-los, apesar de Hamid ter desaparecido. Shibeka tinha ?cado aterrorizada por alguém poder vir um dia buscá-los, levá-los ao aeroporto e mandá-los embora.

Era tudo uma mentira. Ele detestava mentiras.

E agora também a mãe lhe mentira.

Mehran respirou fundo e ligou os «Níveis» outra vez. Esperava vir a acalmar-se se deixasse a música em repetição. A canção ainda nem sequer tinha chegado ao ?m quando percebeu que ela estava ali, de pé à entrada da porta. A ?tá-lo com os seus olhos castanhos, avermelhados de tanto chorar.

– Perdoa-me, Mehran – disse ela baixinho. – Posso entrar?

Mehran não respondeu. Limitou-se a olhar para ela enquanto a música lhe enchia a cabeça. Ela sentou-se ao seu lado na cama. Ele não a impediu. Sentiu-lhe a mão quente em cima da sua barriga, o que o acalmou mais do que a música.

– Não podes tirar os auscultadores? – perguntou-lhe ela.

Falava em pashtun. Adorava quando ela fazia isso. No dia-a-dia, ela insistia sempre que falassem sueco, para os ajudar a melhorar. Mas hoje falava em pashtun. Percebeu porquê. Fazia isso sempre que era importante que eles entendessem tudo o que dizia. Em pashtun, a voz dela soava mais familiar. Mais autêntica. Mais como a sua mãe. Tirou os ausculadores dos ouvidos com relutância, mas a raiva ainda lá estava.

– Eu sei que tu estás zangado – continuou ela. – Mas nunca quis magoar-te. Só não sabia como havia de te dizer.

Olhou para ela, deixando a raiva transparecer no tom de voz.

– Porque não podemos falar sempre em pashtun?

Ela pareceu surpreendida; não estava à espera daquela pergunta.

– Acho que é bom falarmos sueco. Vivemos na Suécia.

– Mas não somos suecos, mesmo que tu pareças pensar que somos.

Shibeka pegou-lhe na mão.

– Não sejas mau, Mehran. Eu pensei que ele poderia ajudar-nos.

– Como?

– Não sei, mas tenho de descobrir o que aconteceu. Temos de descobrir.

– Ele foi-se embora, mãe. Embora. Não percebes? – gritou-lhe.

Shibeka apertou-lhe a mão. Ele continuou a gritar, apesar da pressão daqueles dedos suaves.

– O facto de tu não quereres aceitar isso não melhora as coisas. Estás confusa! Eu estou confuso!

– Mas eu não posso simplesmente desistir, porque conhecia o teu pai muito bem. Vejo-o em ti; todos os dias me lembro dele. Não percebes? É impossível. É como pedir-me para parar de respirar. Ou para deixar de amar.

De repente, ela começou a chorar. Mehran já não a via chorar há muito tempo. Ao princípio, quando Hamid desaparecera, ela chorava o tempo todo, mas depois, um dia, tinha parado. Era como se tivesse ?cado sem lágrimas. Tentou consolá-la; sentou-se e olhou-a nos olhos. Amava-a muito, mas ela tinha de entender que não podia continuar assim.

– Eu também sinto falta dele, mamã. Mas toda a gente diz que agora tens de parar. Eu sempre lhes disse que tu estás bem, que não farás nenhuma estupidez. E tu vais encontrar-te com esse homem sem me dizeres?

– Acho que ele pode ajudar-nos.

– Pára com isso, mãe. Ninguém aqui nos tem ajudado em nada. Porque haveria ele de ser diferente? Estás a fazer com que todos nós pareçamos uns idiotas. – Calou-se e olhou para ela. – Tu não és idiota, mãe. Eu sei disso.

Shibeka assentiu e afastou a sua mão.

– Tens razão, Mehran. A partir de agora, vou ouvir-te. Serás tu a tomar as decisões. Prometo ouvir-te, tal como ouvia o teu pai. Mas tens de o conhecer. O homem da televisão. Depois poderás decidir.

Falava com ele de uma forma completamente diferente: como um igual. Ele percebeu que tinha de lhe responder nos mesmos termos. A sua voz foi suave.

– Diz-lhe que venha cá amanhã.

– Devemos dizer ao Eyer?

Mehran abanou a cabeça.

– Não. Ele ainda é muito novo.

– Mas tu não. Já não és.

– Não, mãe. Não sou.

Shibeka arriscou um sorriso antes de sair do quarto. Mehran permaneceu sentado na cama. Agora já não precisava da música. Hoje tinha crescido, e não precisava da música para o ajudar a entender isso. Era uma sensação espantosa. Estaria realmente pronto para assumir a responsabilidade que lhe fora dada? Não queria mais do que isso, mas também havia algo de assustador na noção de que já não podia continuar a esconder-se atrás da sua idade, de que já não era uma criança.

Foi até ao corredor; a mãe estava na cozinha. Quando Eyer chegasse a casa, haveria uma refeição quente, como sempre. Tudo seria como sempre fora, mas tudo tinha mudado.

Provavelmente, ela achava que eles eram diferentes, que ele queria esquecer. Mas isso não era verdade. Tinham apenas maneiras diferentes de lidar com a perda. Ela fazia telefonemas, escrevia cartas, não parava com isso. Mehran mantinha-se em silêncio. Ela mostrava a sua dor, ele transportava-a no fundo de si. Era isso que um homem fazia. A dor que ?cava trancada lá dentro tornava um homem forte.

As mulheres choram. Os homens não.

Shibeka virou-se para trás e sorriu-lhe, e desta vez ele retribuiu o sorriso.

Ela tinha segredos. Ele também, mas os dele estavam enterrados na sua infância. Teria de os trazer cá para fora ou podia deixá-los em repouso? Não sabia.

Mas jamais esqueceria aquele homem da voz áspera. O homem acerca do qual o seu pai o tinha avisado.

Joseph.


VANJA TINHA VOMITADO em Kronoberg, sem qualquer aviso. Fora à casa de banho do pessoal e sentara-se, não porque quisesse usar a retrete mas só para ?car sozinha por alguns momentos. De repente, o seu estômago virara-se do avesso e tudo o que continha caíra no chão entre os seus pés. Ficou a olhar para aquela porcaria amarela. Sentiu na boca um sabor amargo e, automaticamente, inclinou-se para a frente, para o caso de haver mais para vir. Não podia sair da ala de custódia até que o guarda viesse abrir-lhe a porta, e antes disso ele tivera de ir levar Valdemar de volta à sua cela. Ia demorar algum tempo, mas ela não tinha pressa, e agora já não importava se vomitasse todo o chão.

Já nada importava.

A memória daquela reunião com Valdemar estava em primeiro plano no seu espírito, e atrás dela não havia mais nada. Só havia ele, dentro de uma sala onde jamais teria imaginado vê-lo. Era uma impossibilidade e, no entanto, acontecera. Valdemar não estava inocente. Se já antes ela tinha as suas dúvidas, agora tinha a certeza. Ele contornara a verdade, táctica que ela conhecia muito bem. Vanja já presenciara isto muitas vezes no seu trabalho.

Poderia ter forçado os limites, dissera-lhe ele. Valdemar, o que nunca forçava os limites.

O sabor amargo que ela sentia na boca justi?cava-se; era o sabor de um dia terrível. Teria gostado de esvaziar completamente o estômago, de trazer tudo para cima, de deitar tudo para fora.

Mas não restava nada, por mais que ela tentasse vomitar. En?ou então dois dedos pela garganta abaixo, uma e outra vez, até se sentir totalmente vazia. Os seus sapatos e a parte inferior das pernas das calças ?caram salpicados de vómito, mas não se importou; sentiu-se liberta, como se tivesse recuperado o controlo do seu corpo. Como se se tivesse livrado da porcaria que ingerira. Era uma sensação maravilhosa. Apeteceu-lhe comer sem parar, consumir o máximo possível só para tornar a vomitar.

Há muito tempo que Vanja não se sentia assim. Há uma eternidade. Mas entendeu porque gostara disto naquela altura.

Perder e recuperar o controlo.

A experiência simultânea do prazer e da vergonha.

Debruçou-se e contemplou o conteúdo do seu estômago no chão.

Tinha dezassete anos quando começara; era uma aluna da escola secundária em Östermalm. Era inteligente e perspicaz; adorava ler, de modo que o problema não era o lado académico. Era o resto. O lado social.

Todos os outros na escola pareciam ser ricos, bonitos e perfeitos. Havia muitas regras tácitas, códigos sobre os quais ela não sabia nada. Queria ter amigos. Queria um namorado. Queria fazer parte do grupo. Mas não era assim. Tudo o que ela fazia estava errado. Por mais que tentasse, continuava a ser um daqueles que não se adaptavam. Começara então a comprar guloseimas durante o caminho até casa para se animar: doces, biscoitos, batatas fritas. Mais e mais. O sal, o açúcar e a gordura tornaram-se seus amigos, e optava por eles com uma frequência cada vez maior.

No entanto, pensar em todas as porcarias que andava a consumir assustava-a, fazia com que se sentisse pior entre os corpos perfeitos e magérrimos de todos os que a rodeavam. Por isso começara a ?ngir-se doente de vez em quando para se impedir de ganhar peso. Ao princípio não parecera ser uma má ideia; não o fazia muitas vezes, e de facto era a combinação perfeita: podia consumir todas aquelas delícias e livrar-se delas um pouco mais tarde.

Mas aquilo fora crescendo, até que por ?m ela só pensava na comida e na rapidez com que poderia vomitá-la. Nada mais importava.

Um dia leu um artigo sobre distúrbios alimentares no Dagens Nyheter. Era sobre a bulimia. Tinha apenas passado os olhos pelos outros artigos da série, mas de repente reconheceu-se ali. Leu sobre os efeitos colaterais, sobre a possibilidade de a menstruação se tornar irregular e parar. O esmalte dos dentes poderia ?car severamente dani?cado. Correra para a casa de banho e fora veri?car nervosamente a parte de trás dos seus dentes da frente, pois, ao que parecia, era aí que a erosão começava. Não conseguiu sentir nada de anormal com a língua mas também não sabia o que deveria sentir. No entanto, já não tinha o período há três meses. Preparara uma pilha de sanduíches e lera o artigo de novo, com uma crescente sensação de familiaridade. Tudo batia certo. A seguir foi vomitar e desatou a chorar.

Estava doente.

Não era apenas porque não se adaptava. Estava doente, e muito poucas pessoas conseguiam recuperar daquela doença especí?ca.

Con?denciou isso a Valdemar, foi ao escritório dele. Continuava sem saber onde arranjara forças para tal, pois sentia-se muitíssimo envergonhada, mas fora a Valdemar que ela optara por contar tudo. Ele tirara o resto do dia e tinham ido dar um passeio. Ela sentia-se fraca e tonta, mas ele conseguira extrair tudo dela, devagarinho, passo a passo. Quando realmente importava, ele tinha avançado e sido o pai que ela sempre esperara que fosse. Era maravilhoso.

Duas semanas mais tarde, ele arranjou maneira de a colocar numa nova escola. Já se estava no ?nal do período de Verão, por isso só no Outono é que ela começara no Södra Latin. Ele tratou de tudo. Um retiro de duas semanas durante o Verão para raparigas com bulimia, a ?m de lhe fornecer as ferramentas para combater o problema. Tinha procurado os melhores terapeutas, encontrava alguém novo caso ela não gostasse da pessoa com quem estava a trabalhar.

Ele curara-a, com a sua proximidade e a sua honestidade.

Era esse o retrato que ela não conseguia compatibilizar com o homem que acabara de encontrar naquela sala sombria e acanhada. Quando tinha dezassete anos, revelara-lhe um segredo doloroso; isso exigira coragem e absoluta con?ança por parte dela. Porque não poderia ele fazer o mesmo aos cinquenta e cinco? Quando sobreviera a crise, ele tinha optado por se manter trancado na casa de banho, por assim dizer.

Isso deixou-a muito triste. Aquilo não era uma traição ou uma humilhação. Era muito pior. Sentiu-se como se tivesse sido completamente abandonada.

Daqui em diante, Vanja teria de se arranjar sozinha. A sério. Tinha desaparecido a segurança de saber que ele estava sempre lá quando precisasse dele.

O pai.

Nunca mais voltaria a estar lá para ela da mesma forma. Nunca.

Vanja pôs-se em pé, e os seus sapatos colaram-se àquela porcaria fedorenta, pegajosa. Só queria sair dali. Tudo aquilo a enojava: o lavabo, o cheiro, o sabor.

Pôs-se a pensar se queria ir visitar Anna, mas também isso lhe pareceu um trabalho demasiado árduo. Anna precisaria de muito apoio e ia fazer perguntas intermináveis. Vanja era incapaz de lhe dar apoio agora e não poderia responder às perguntas. Anna tinha muitas amigas, mulheres que lhe eram mais próximas do que Vanja. Teriam de cuidar dela esta noite se fosse necessário.

Lavou o rosto, limpou os sapatos e as calças, enxaguou a boca. Percebeu então como era importante a formação do FBI; mais importante que nunca. Já não era apenas um programa de formação e uma oportunidade; era uma jornada que ela tinha de cumprir. Agora que estava sozinha.

Estava na hora de crescer, a sério.

Vanja partiria assim que tivesse notícias do comité de selecção, antes de o curso realmente começar. Partiria simplesmente. Deixaria a Riksmord. Deixaria tudo. Caminharia pelos seus próprios pés.

Já era tempo.


MAIS UMA VEZ, Torkel foi o último a chegar à reunião. Isto começava a tornar-se um hábito, e desta vez ele não estava apenas atrasado, também estava cansado e mal-humorado. Primeiro que tudo, o telefonema de Vanja deixara-o alarmado, mas tinha feito o que ela lhe pedira e falara com o procurador. A seguir, Axel Weber tinha-lhe telefonado de novo. Associara o acidente de carro e a mulher morta à descoberta dos corpos na montanha e queria saber qual era a ligação. Mesmo que Torkel a conhecesse, não teria dito a Weber, claro, mas o próprio facto de o jornalista parecer saber exactamente o que eles andavam a fazer deixara-o muitíssimo irritado. No entanto, não lhe parecera que ele soubesse que se tratava de um carro de aluguer ou quem o conduzia ou que Patricia Wellton usara uma identi?cação falsa. Felizmente, Weber também não sabia o que Ursula havia encontrado em casa de Harald Olofsson; se ele descobrisse, a imprensa explodiria com todos os tipos de especulações. Torkel tentara contactar Hedvig Hedman, mas sem sucesso. Independentemente do que se passava com a queixa ao procurador-geral, ela precisava de assegurar que a sua equipa manteria a boca calada no futuro.

– Ursula – disse ele logo que se sentou. Mais valia ir direito ao assunto; tinha sido um longo dia.

– Passei em revista o que encontrámos em casa de Olofsson da melhor maneira que pude antes de enviar aquilo para Linköping – disse Ursula ao mesmo tempo que abria o seu computador portátil. – As notas estão na nossa pasta partilhada e está aqui uma versão impressa se vocês preferirem. – Jennifer e Torkel esticaram-se para a frente e retiraram um exemplar enquanto Billy abriu a pasta no seu computador.

– Como sabem, foi o conteúdo da mala de mão que se revelou mais interessante; encontrei os restos de uma carta de condução emitida em nome de uma Liz McGo-Qualquer Coisa dentro de um bolso interior.

– Já conseguiste alguma coisa com o nome? – interrompeu Torkel, virando-se para Billy.

– Sim e não. Queres que apresente o meu relatório agora?

– Não. Continua, Ursula.

– Não havia muito mais dentro da mala; estava no interior do carro e ?cou mais dani?cada pelo incêndio do que as mochilas. Tudo o que não ardeu ?cou parcial ou totalmente derretido pelo calor. Como podem ver, consegui identi?car artigos vulgares: maquilhagem, uma escova de cabelo, chaves e uma carteira que continha restos de notas, tanto coroas como dólares, além de algumas moedas suecas. Também havia pedaços daquilo que parecem ser cartões de plástico, mas estão demasiado dani?cados para que eu consiga alguma coisa deles. É possível que o laboratório venha a ter mais sucesso.

– E quanto às mochilas?

– Estavam dentro da bagageira e ?caram quase intactas. A tentativa de Harald Olofsson para as destruir apenas lhes causou danos super?ciais no exterior. Continham sobretudo roupas, pertencentes a um homem adulto, uma mulher adulta e duas crianças... um menino e uma menina. Buracos de bala e sangue em alguns objectos, incluindo as roupas dos miúdos.

– Os corpos na montanha – disse Jennifer.

Ursula aquiesceu.

– Lençóis, fronhas, produtos de higiene pessoal, alguns brinquedos e livros infantis. Em sueco. É tudo.

– Impressões digitais? – perguntou Billy.

Ursula abanou a cabeça.

– Os ácidos gordos já desapareceram ao ?m de tanto tempo.

– Nomes ou qualquer outra coisa que permita identi?cá-los? – perguntou Torkel, embora fosse evidente que ele já saberia se Ursula tivesse feito uma descoberta dessas. Sem surpresa alguma, ela voltou a abanar a cabeça.

– Nada que eu tenha encontrado. Os nossos colegas no laboratório de Linköping têm à sua disposição métodos completamente diferentes para examinar superfícies como aquelas; esperemos que encontrem alguma coisa.

– Vale a pena divulgar as roupas, para ver se alguém os reconhece?

– Podemos tentar, mas não havia nada de relevante; pareciam apenas roupas perfeitamente normais.

– Nenhum nome na roupa das crianças? – perguntou Jennifer.

– Não.

– Mas as pessoas não costumam colocar os nomes dos seus ?lhos nas roupas?

Ursula pensou nisso. Nunca tinha escrito «Bella» numa única peça de roupa. Lera as instruções do infantário e da escola a pedir-lhe que o ?zesse, mas sempre as ignorara. Teria Mikael feito isso? Ela achava que não; a?nal, ela tinha lavado as roupas da sua ?lha em muitíssimas ocasiões, e decerto teria reparado nisso. Não teria?

– Viste as etiquetas?

Ursula afastou-se dos pensamentos a respeito do seu ex-marido e da sua ?lha e virou-se para Jennifer. Ela é nova, disse para consigo. Nova e ambiciosa, e tem boas intenções. Sê simpática.

– Sim, vi as etiquetas – disse ela pacientemente. – Todas as etiquetas, na verdade, incluindo as dos objectos que pertenciam ao adultos...

– Os lençóis – disse Torkel, interrompendo a resposta exageradamente bem-educada. O que, na verdade, deveria dizer a Jennifer era que talvez fosse má ideia pôr em causa a aptidão pro?ssional de Ursula de uma maneira tão notória. – Ninguém leva lençóis quando vai acampar.

– Faz-se isso nos albergues – disse Jennifer.

– Já veri?cámos todos os albergues – disse Billy.

– Veri?quem-nos novamente.

– Não há sacos-cama, não há tenda, nada com que se possa cozinhar. Isto não me parece uma viagem de campismo – disse Ursula.

Torkel suspirou. Mas de onde raio tinham vindo aquelas pessoas? Onde tinham elas estado? O que estavam a fazer no meio das montanhas? Onde tinham morrido? Quem eram? Sentiu-se como se a equipa não soubesse agora mais do que quando tinham chegado a Jämtland. Acenou para Billy e Jennifer, esperando que eles tivessem algum contributo para dar.

– Quando obtivemos a nova carta de condução através de Ursula, dividimos as tarefas entre nós – começou por dizer Billy enquanto se levantava e avançava até ao quadro branco. Deslocou as fotogra?as da cena da sepultura, a ?m de arranjar espaço para um cronograma.

– Jennifer continuou com a Patricia Wellton, porque a tinha encontrado nas listas de passageiros, por isso é melhor começarmos por aí.

Pegou num marcador preto, e Jennifer olhou para as suas anotações.

– A Patricia Wellton voou de Frankfurt para Estocolmo na tarde de 29 de Outubro de 2003. Desembarcou em Arlanda pouco depois das cinco horas, e supomos que apanhou o comboio da noite para Östersund.

– Como chegou ela a Frankfurt? – perguntou Torkel.

– Não sabemos, mas também tinha reservado um bilhete de Trondheim para Oslo a 31 de Outubro. Não apanhou esse voo, e é tudo o que temos sobre ela.

– Muito bem – felicitou-a Torkel. – Börje Dahlberg ainda não conseguiu encontrar nada sobre uma Patricia Wellton; não está em nenhuma base de dados, o que sugere que se trata de uma identidade que não usara anteriormente.

– O que nos leva à tal Liz McGo-Qualquer Coisa – interveio Billy. – Como a carta de condução foi encontrada no carro de Wellton, assumimos que elas as duas estavam relacionadas, e começámos em Frankfurt. Uma Liz McGordon chegou lá a 28 de Outubro.

Torkel endireitou-se ao mesmo tempo que sentia uma vaga de energia. Esta era, de facto, uma notícia muito boa. Outra pessoa, alguém cuja presença eles haviam detectado na mesma cidade e ao mesmo tempo que um dos seus suspeitos. Olhou para o quadro e para o cronograma de Billy.

– Um dia antes de a Patricia Wellton partir de Frankfurt – disse ele.

– Sim...

Billy estava longe de parecer tão satisfeito quanto deveria estar, pensou Torkel.

– Acho que vais ter de telefonar ao Börje outra vez – disse-lhe Billy, quase em tom de desculpa. – A Liz McGordon também não existe. Pelo menos esta Liz McGordon.

– Mas que merda esta! – Os ombros de Torkel descaíram enquanto ele tentava descobrir o que signi?cava aquilo. Duas mulheres. Duas identidades falsas. Nunca tinha visto nada assim. O que estava a acontecer?

– De onde veio ela? – perguntou Ursula.

– Washington DC – disse Jennifer enquanto Billy continuava a escrever. – Na Delta Airlines. Não temos informações sobre a viagem dela a partir de Frankfurt, mas também tinha um bilhete de volta... com partida de Oslo a 1 de Novembro.

– Então, como ia chegar lá?

– Não sabemos.

Torkel pôs de lado o desapontamento e a fadiga que só por um momento se permitira sentir. Levantou-se e começou a andar pela sala.

– Portanto, a Liz McGordon voa dos Estados Unidos para Frankfurt no dia 28. A Patricia Wellton voa de Frankfurt para Estocolmo no dia 29, e em seguida viaja para Östersund, onde aluga um carro no dia 30. No dia 31 devia voar de Trondheim para Oslo, e no dia seguinte a Liz McGordon tem um bilhete reservado para voltar de Oslo para Washington.

Parou e veri?cou rapidamente o que Billy tinha escrito no quadro branco.

– Patricia Wellton e Liz McGordon são a mesma pessoa. – Fez-se silêncio quando se compenetraram das palavras de Torkel.

– Mas a Patricia ou a Liz, ou qualquer que seja o nome dela, nunca chega a Trondheim, porque o seu carro tem um acidente e alguém o incendeia – prosseguiu. – Dentro da bagageira estão as mochilas que provavelmente pertenciam a quatro das pessoas cujos corpos encontrámos na montanha. O que é que isso nos diz?

– Que ela abateu a tiro aquelas quatro pessoas – disse Jennifer.

– Ou que esteve envolvida nisso de alguma forma – corrigiu Ursula.

– Não encontrámos nenhuma arma no carro.

Parecera uma a?rmação, mas Torkel olhou interrogativamente para Ursula, que a con?rmou com outro aceno de cabeça.

– O Olofsson poderia tê-la levado – sugeriu Billy.

– Acho que nos teria dito – disse Ursula.

– Talvez já se tivesse livrado dela – interrompeu Jennifer. – Ele parece muito pro?ssional.

Para seu deleite, Torkel conseguia realmente sentir a mudança na atmosfera. Todos eles estavam inclinados para a frente, mentalmente estimulados. Tudo o que se dizia parecia relevante, as respostas surgiam com rapidez. As teorias eram testadas, aceites ou rejeitadas. Liz McGordon poderia não existir, mas o aparecimento dela trouxera uma nova vida à investigação. O importante agora era manter o ritmo e continuar a tentar desemaranhar os ?os.

– Portanto, se aceitarmos que a Liz e a Patricia são a mesma mulher, ela veio para a Europa a partir dos Estados Unidos, mudou de identidade, viajou até Jämtland, abateu a tiro quatro pessoas que nós julgamos serem uma família e tencionava voltar para os Estados Unidos. Tudo no espaço de cinco dias? Ela passaria menos de vinte e quatro horas nesta região. Aquelas quatro pessoas estavam no meio do nada. Como é que ela as encontrou?

– Devia saber exactamente onde estavam.

– Como?

– Talvez as conhecesse! – disse Jennifer. – Poderiam ser americanos.

– Havia livros infantis suecos numa das mochilas – indicou Billy.

– Mas não faltam nenhuns suecos que correspondam à descrição.

Todos olharam para o mapa que Billy tinha a?xado anteriormente. Na verdade, era uma área enorme. Jennifer foi acometida por uma ideia e teve de reprimir o desejo de levantar a sua mão.

– Talvez estivessem a acampar com alguém que disse à Patricia exactamente onde se encontravam. Ele ou ela poderão ter ajudado a matá-los e a escavar a sepultura.

Silêncio mais uma vez. Uma nova teoria que levara a novos pensamentos enquanto todos ponderavam o que Jennifer tinha dito, tentando encontrar-lhe os pontos fortes e fracos.

Mais do que um perpetrador.

– Isso explicaria porque não conseguimos encontrar nenhuma tenda – continuou Jennifer. – A Patricia levou as mochilas e o colaborador dela levou a tenda.

– E fez o quê? – perguntou Ursula. Havia algo na ideia de Jennifer que não funcionava. – Transportou-a para outro lugar?

– Poderiam ter saído juntos da montanha, e depois, por algum motivo, tiveram uma discussão no caminho para Trondheim. A outra pessoa matou a Patricia e prosseguiu viagem sozinha.

– Nesse caso, deveríamos ter encontrado a tenda no carro. Porque é que ele ou ela levaria a tenda e deixaria as mochilas?

Jennifer ?cou calada. Ursula tinha razão. Billy interveio.

– Alguém a matou, temos a certeza disso. Se não foi o amigo dela lá na montanha...

– Caso ela tivesse algum – interrompeu Ursula.

– ... então deve ter sido outra pessoa – disse Billy, ignorando a interrupção.

– Um terceiro perpetrador. – Ursula não conseguiu afastar o cepticismo da sua voz.

A energia desvaneceu-se tão rapidamente quanto tinha chegado. Isso acontecia às vezes, quando as coisas se tornavam demasiado diversi?cadas, demasiado grandes. Quando de repente tudo parecia possível, nada era credível. De súbito, Torkel sentiu a falta de Vanja. Ela era, sem dúvida, a melhor nessas situações. Assegurava que todos mantinham a concentração, seleccionava o que era importante, deixava tudo o resto de lado. Conseguia seguir uma linha e arrastar todos consigo. Compreendeu de novo como ela era uma parte importante da equipa. Esperava que estivesse bem; também esperava que o pai dela viesse a ser inocentado e que ela não tardasse a regressar.

– Um, dois, três perpetradores; uma tenda, nenhuma tenda, nenhuma arma. Vamos regressar ao que realmente sabemos? – disse ele numa tentativa de colocar a discussão de novo sobre os carris.

À sugestão dele seguiu-se um preocupante silêncio.

– Não temos a certeza de nada?

– Nós sabemos... o que sabemos – disse Billy, acenando na direcção do quadro branco. – E não é muito.

– Recebi um relatório muito preliminar do laboratório em Umeå – disse Ursula, tirando o documento da pilha que estava à sua frente. – Eles conseguiram obter os registos dentários do casal holandês, que parecem con?rmar aquilo que pensávamos: trata-se de Jan e Framke Bakker.

– Óptimo. – Torkel não conseguiu esconder o seu desapontamento, que Ursula claramente interpretou como uma afronta pessoal.

– Lamento muito, julguei que querias que nos concentrássemos no que realmente sabemos!

– Eu sei, é que...

Torkel não concluiu a frase. Percebeu que não chegariam mais longe. Esta noite não. Após uma breve descrição das tarefas do dia seguinte, deram a reunião por encerrada.

Quando ?cou sozinho na sala, sentou-se à mesa, encostou as palmas das mãos uma contra a outra e apoiou o queixo sobre os polegares. O olhar dele ?xou-se no quadro branco, nas fotogra?as, nas diferentes linhas coloridas que conduziam a palavras-chave ou a frases breves, no cronograma de Billy. O que eles, na verdade, sabiam era que tinham uma mulher com duas identidades falsas, uma das quais pelo menos era su?cientemente boa para que ela pudesse voar de e para os Estados Unidos após o 11 de Setembro. Torkel suspirou profundamente. Teve uma horrível sensação de que o caso tinha passado agora de complicado para incrivelmente complicadíssimo.


SEBASTIAN ESTAVA em ?uxo total, a limpar o apartamento de tudo o que lhe lembrava Ellinor. Já tinha deitado fora as ?ores que estavam em cima da mesa, seguidas de todas aquelas velas esquisitas que cheiravam a morango ou a baunilha e que ela insistira em comprar. Agora encontrava-se na sala de estar, a dobrar os naperons de crochet que adornavam todas as superfícies planas. Queria um espaço desimpedido, não aquelas porcarias artesanais por baixo de umas estúpidas estatuetas de porcelana. Ellinor tinha comprado a maior parte daquelas coisas de que agora se livrava, mas havia alguns objectos que ele reconheceu. Ela devia ter rebuscado os armários todos, à procura de algo para lhe «alegrar» o apartamento. Os objectos familiares lembraram-lhe Lily. Ela nunca tinha sido assim tão «moderna e orientada para o design» – as palavras que Ellinor usara para se descrever a si mesma –, mas tentara tornar o local mais acolhedor e caseiro.

Sebastian rejeitou esses pensamentos sobre Lily; nunca viera nada de bom do facto regressar a esses tempos. Em vez disso, concentrou-se em Ellinor. Agora já não se sentia tão preocupado; se, de alguma forma, Ellinor estivesse por trás dos problemas que Valdemar tinha com a Polícia, uma enorme quantidade de coisas teria de correr muito mal para que alguém pudesse estabelecer qualquer ligação com ele.

A campainha da porta tocou. Sebastian estava a dobrar um grande pano branco e parou a meio. Por falar no diabo, pensou ele. Ellinor. Mais ninguém viria visitá-lo àquela hora da noite. Na verdade, agora que pensava nisso, ninguém viria visitá-lo a hora nenhuma.

Pensou em manter-se em silêncio até que ela se fosse embora. Daria resultado, sem dúvida, mas ela havia de voltar, uma e outra vez. Além de tudo, isso demonstrava uma certa cobardia. Era melhor mostrar-lhe quão pouco ela signi?cava para si, provar-lhe que não apenas a removera do seu apartamento mas também da sua vida.

A campainha voltou a tocar. Não tinha a mínima intenção de a deixar entrar, para que ela não visse realmente até que ponto já a havia eliminado. Teria de contentar-se em irritá-la à distância, dando-lhe a saber que estava em casa, mas decidido a ignorá-la. Foi até ao rádio e ligou-o. Na bela Rádio 104.7. A estação favorita dela. Sebastian sorriu para consigo. Havia de ?car louca quando percebesse que ele estava a ouvir a «sua» estação e ela não podia entrar. Aumentou o volume. Celine Dion cantava My Heart Will Go On. Os deuses estavam do lado dele; Ellinor adorava aquela canção. Pôs o volume no máximo, até a música ecoar por todo o apartamento. Tinha a certeza de que poderiam ouvi-la na escada. Celine estava mesmo a esforçar-se. Sebastian sentou-se na poltrona mais próxima, recostou-se e fechou os olhos. Também teria gostado de fechar os ouvidos; sentia que ouvir aquela xaropada banal lhe estava a encurtar a vida. Não conseguia ouvir nada da porta, mas supôs que Ellinor ainda lá estava. Ela não desistiria tão facilmente. Decidiu juntar-se ao coro para realçar a sua presença no apartamento. Ao princípio sentiu-se um pouco hesitante; não cantava desde a adolescência, e muito pouco mesmo nessa época, mas desta vez abalançou-se à experiência. Sem dúvida que soava horrivelmente, mas não se importou; o seu principal objectivo era irritar Ellinor. Cantou o mais alto que a voz lhe permitiu.

Por ?m, a música parou. No silêncio que se seguiu, ouviu a campainha mais uma vez. Oh, isto era maravilhoso! Veio outra canção; Sebastian não a reconheceu, mas esperava que fosse sobre amor perdido.

Desgosto e amor perdido.

Por outro lado, não estaria isso sujeito a interpretações erradas? Sebastian sentou-se mais direito. E se Ellinor pensasse que ele estava ali sentado sozinho, a ouvir a música favorita dela e a cantar ao mesmo tempo porque sentia a sua falta? Se fosse esse o caso, nunca mais se iria embora. Começaria a dar pontapés na maldita porta até a deitar abaixo, acorrendo como um cavaleiro de armadura reluzente para vir resgatá-lo da sua vida solitária. Levantou-se tão depressa que até se sentiu bastante tonto, e atravessou a sala mais ou menos a cambalear para ir desligar o rádio.

– Sebastian, o que estás tu a fazer? – ouviu ele do outro lado da porta. Ficou hirto. Pôs-se à escuta. Sentiu-se frio por dentro. Aquela não era a voz de Ellinor. Era a de Vanja.

– Vou já! – gritou ele. Parou pouco antes de abrir a porta, subitamente inseguro; seria mesmo Vanja? Teria ele ouvido mal? A?nal, Celine tinha abusado dos seus tímpanos durante uns bons três minutos.

– És tu, Vanja? – perguntou ele timidamente.

– Sim. – A resposta veio de imediato.

Era Vanja. À sua porta. Abriu-a o mais rápido que pôde, mas o sorriso dele desapareceu logo que a viu. Era Vanja, e ao mesmo tempo não era. Estava pálida e num estado deplorável.

– O que aconteceu? – perguntou-lhe ele com genuína preocupação na sua voz. Ela estava com um aspecto de merda, para ser franco.

– Preciso de conversar com alguém.

E escolheste-me a mim.

– Entra – disse-lhe ele, afastando-se para o lado. Ela entrou para o corredor, com o seu rosto a reluzir de transpiração.

Entre todas as pessoas do mundo, escolheste-me a mim quando precisaste de alguém para conversar.

Sebastian teve de fazer um autêntico esforço para se impedir de esboçar um grande sorriso. Com certeza não era disso que ela precisava naquele momento; não de um sorriso satisfeito de contentamento, decerto. Em vez disso, ostentou a sua cara séria, preocupada.

– És sempre bem-vinda aqui. Como te sentes?

Ela ?tou-o com uma expressão ao mesmo tempo curiosa e intrigada.

– O que estavas tu a fazer quando eu toquei à campainha?

Sebastian ?cou sem saber o que dizer.

– Estava... a... a... Estava a fazer limpezas.

Vanja ergueu as sobrancelhas, depois sorriu. A?nal, talvez os sorrisos não estivessem proibidos.

– Costumas cantar quando fazes limpezas?

Teve de lhe dizer que sim com a cabeça. O que havia de fazer – contar-lhe a verdade? Que queria atormentar a sua ex-namorada, a qual poderia ser responsável por terem levado o pai de Vanja para a cadeia? Isso não cairia lá muito bem.

– Surpreendes-me – disse-lhe ela, conseguindo manter um tom ligeiro. – Pensei que tivesses uma empregada. E que andasses a dormir com ela.

A conversa de circunstância parecia estar a dar resultado, a acalmá-la. Por isso ele continuou – qualquer coisa que a ?zesse sentir-se melhor, qualquer coisa que a ?zesse ?car. Precisava de saber o que tinha acontecido.

– A música ajuda-me a relaxar.

– A Celine Dion?

– Sim, ela é boa para quando se anda a limpar a casa. – Arriscou um sorriso. – Tu não tens pequenas manias?

Ela concordou com um aceno de cabeça.

– Sim, mas não canto tão alto.

Ele abriu os braços

– Tu sabes como eu sou, faço sempre tudo em excesso. Vamos entrar.

Conduziu-a para o interior do apartamento. Reparou que ela tinha recuperado alguma da sua cor normal enquanto olhava à sua volta com uma curiosidade que ele reconheceu muito bem.

– Não sabia que tinhas uma casa tão grande – disse-lhe ela, incapaz de disfarçar o facto de se sentir impressionada.

– Como eu disse, sempre tudo em excesso.

– Bom, se tens dinheiro para isso, porque não?

– Ganhei bom dinheiro noutros tempos. Entra e senta-te.

Levou-a para a sala de estar. O sofá por baixo da grande janela pareceu acolhedor. Ellinor tinha-o mudado para ali contra a vontade dele, mas de repente percebeu que isso tornara a sala mais espaçosa; poderia ?car onde estava.

– Vou fazer café para nós.

Vanja abanou a cabeça.

– Água basta.

Ela sentou-se no sofá. Sebastian foi à cozinha, pegou num grande jarro e deitou lá para dentro imenso gelo, acrescentando em seguida umas rodelas de limão. Outra coisa em que Ellinor insistira e que agora parecia adequada. Ele queria causar-lhe a melhor impressão possível. Queria ser alguém com quem Vanja pudesse vir ter no futuro, sempre que precisasse de conversar. Encheu o jarro, pegou em dois copos e regressou à sala de estar.

Impressionou-o como ela parecia pequena. Pequena e vulnerável, com os braços ?rmemente cruzados sobre o peito, aquela expressão tensa e séria. A breve descontracção que parecera ter sentido no corredor já desaparecera. Sebastian sentou-se em frente dela e tentou mostrar-se o mais prestável possível. Serviu um copo de água a cada um, sorveu uma golada e esperou um momento antes de falar. Sabia que era o melhor caminho a seguir. Numa situação como esta, a outra pessoa muitas vezes interpretava o silêncio como sinceridade. O silêncio fazia-lhe sentir que o ouvinte tinha tempo e que, portanto, levaria muito a sério o que ela pretendia dizer.

– É sobre o Valdemar? – disse-lhe ele ?nalmente.

Vanja fez um gesto de cabeça quase imperceptível.

– Foste vê-lo?

Ela disse-lhe que sim com a cabeça, e os seus olhos encheram-se de lágrimas.

– Não há pressa. Eu tenho todo o tempo do mundo, e há muita água na torneira.

Ela olhou-o com gratidão.

– Fui vê-lo. A Kronoberg.

– Ele ?cou preso?

– Está em prisão preventiva.

Sebastian assentiu com simpatia.

– É suspeito de quê?

– Desvio de fundos, fraude, evasão ?scal... – Ela encolheu os ombros para lhe mostrar que não tinha coragem de des?ar a lista toda. – É culpado – disse ela, procurando o olhar de Sebastian.

– Tens a certeza?

Ela acenou com a cabeça uma única vez. Ele compreendeu que ela desejava, do fundo do seu coração, que não fosse assim.

– Não entendo nada disto. Aparentemente, a Autoridade do Crime Económico já o tinha investigado antes. Não deram seguimento ao caso, mas agora conseguiram associá-lo à Daktea.

– Porquê?

– Não faço ideia. Novas provas.

O calafrio na espinha de Sebastian regressou, acompanhado por uma ligeira cãibra no estômago.

A Autoridade do Crime Económico. Novas provas.

A Daktea.

Ellinor. Não havia outra explicação. Isso não signi?cava necessariamente que a pista conduzisse até si, mas precisava de tempo para pensar – e já não o tinha. Percebeu que não dissera nada desde há algum tempo; esperou que Vanja pensasse que se sentia transtornado por causa dela e não que estava a matutar na sua própria culpa.

– Isso não parece bom – conseguiu ele dizer. – Sabes o que é que eles encontraram? – continuou, esperando por algum pormenor que o exonerasse.

– Não. O procurador é o Stig Wennberg, e a agente encarregada da investigação é a Ingrid Ericsson. Conheces algum deles?

– Já ouvi falar do Wennberg. – Sebastian pôs-se em pé. Sentia-se dividido. Uma parte de si queria dançar em cima da mesa. A outra parte estava preocupadíssima.

O plano dele para derrubar Valdemar Lithner do seu pedestal, a tarefa de que havia encarregado Trolle Hermansson, acabara por se concretizar e parecia estar a funcionar muito melhor do que jamais poderia ter esperado. De certa forma, essa era uma notícia fantástica. Desde que nada pudesse conduzir até si. Ele ia subir ao pedestal, Valdemar seria derrubado. Esmagado. Agora precisava de agir com cuidado, de garantir que o sonho se transformava em realidade. Sebastian começou devagar.

– Talvez exista uma boa explicação. Ele é consultor ?nanceiro, não é?

– Sim?

– Talvez tenha sido arrastado para qualquer coisa sem, na verdade, entender. E os crimes económicos são notavelmente difíceis de provar.

Não com as provas que Trolle reuniu.

Ele próprio examinara algum daquele material, embora lhe parecesse ter sido há uma vida. Havia extractos de contas bancárias no estrangeiro com nomes e datas. Havia provas claras sobre o verdadeiro destino do dinheiro. Pagamentos aos bodes expiatórios. Tudo. Valdemar estava frito.

Sebastian sentou-se de novo e inclinou-se para a frente. Ofereceu a Vanja o melhor conselho de que conseguiu lembrar-se.

– Tens de o ajudar. Quer ele seja culpado ou não... tu sabes isso.

Ela aquiesceu, e as lágrimas transbordaram. Sebastian sentiu a dor dela.

Por seu lado, estava muito feliz.

Não devia sentir-se assim.

– Porque é que ele não disse nada? Porque é que ele não me contou? – disse ela num súbito rompante.

– Suponho que simplesmente não terá decidido fazê-lo.

– Porque não? Ele é meu pai!

Não por muito mais tempo.

– Há muitas pessoas que se comportam dessa maneira – disse Sebastian calmamente quando se levantou para lhe ir buscar um lenço de papel ou outra coisa parecida. – É provável que tenha um medo terrível de te perder.

Calou-se. Estaria a correr o risco de tornar Valdemar demasiado humano? Estaria a ser demasiado compreensivo? Tinha de fazer isto como devia ser. Sabia que não deveria ser muito crítico em relação a Valdemar; a?nal, ela não deixara de amar o pai. Muito pelo contrário – era por causa do seu amor por ele que se sentia tão desapontada. Era esse o motivo por que estava ali sentada, e ele não devia esquecer-se disso. Nunca.

Vanja amava Valdemar.

Mesmo que Sebastian tivesse vontade de espezinhar Valdemar, não poderia fazê-lo demasiado às claras. Por outro lado, não podia ser demasiado gentil e compreensivo, pois então Vanja poderia querer perdoar o pai. Precisava de encontrar um equilíbrio, mantendo em vista o objectivo de longo prazo. A solução era aumentar a distância entre eles, trabalhar na fenda que surgira no relacionamento entre ambos, alargando-a pouco a pouco. Precisava de usar todos os seus dotes para a conquistar. Agora ela sentia-se furiosa e decepcionada, mas surgiriam momentos em que só quereria Valdemar de volta, e seria então que Sebastian teria de fazer com que ela o escolhesse a si em vez disso.

– Não percebo porque é que ele não me contou – soluçou Vanja. – É isso que me deixa tão zangada. Ele mentiu-me.

Sebastian regressou com um guardanapo que encontrou numa das gavetas. Vanja enxugou o rosto e assoou ruidosamente o nariz. Desta vez, Sebastian foi sentar-se no sofá ao lado dela. Precisava de despersonalizar Valdemar, de o transformar gradualmente num símbolo. As pessoas achavam mais fácil matar símbolos. Era esse o segredo por trás da vontade política de generalizar grupos étnicos e sectores da população. Era mais fácil não gostar de grupos sem rosto. Ciganos, homossexuais, judeus e... criminosos. Ele tinha de levar Vanja a considerar Valdemar como um criminoso e não como seu pai. Não seria fácil, mas, se alguém podia conseguir isso, era Sebastian Bergman. Sentia-se con?ante, mas tinha de aproximar-se mais dela, de se tornar mais humano ao mesmo tempo que Valdemar se tornava menos. Respirou fundo.

– Já tive uma ?lha – disse-lhe ele de repente.

– O quê? – Vanja olhou para ele surpreendida, com os olhos vermelhos de tanto chorar.

– Com Lily, a minha esposa. Não contei isto a mais ninguém.

Vanja olhava-o ?xamente.

– O que lhe aconteceu?

– Morreu. No tsunami. Tinha quatro anos.

– Oh, meu Deus.

– Eu estava a segurar a mão dela quando a onda veio, mas soltei-a. Foi arrancada da minha mão. – Olhou-a com toda a afeição que conseguiu evocar. – Só eu sei o que é perder alguém.

– Lamento imenso, Sebastian.

– Obrigado.

Pegou-lhe na mão. Ela deixou.

Quando chegara ali, ele era um colega. Agora era um pai de luto.

Era um passo na direcção certa.


TINHAM DITO A EYER que precisavam de sair por um bocado, e deixaram-no a ver televisão. Primeiro ele tinha-lhes perguntado aonde iam e a seguir quisera ir com eles, mas Mehran fora muito ?rme com o seu irmão mais novo e dissera-lhe que ele ?cava em casa. Havia uma coisa que a mamã e Mehran tinham de ir fazer.

Sozinhos.

Shibeka ?cou tão surpreendida como Eyer com o novo tom de voz de Mehran, que não admitia discordâncias. Isto certamente deu resultado; Eyer encolhera-se no sofá sem fazer mais perguntas. Mehran olhara para a mãe.

– Vamos – disse-lhe ele, abrindo caminho.

Ela nem sequer tivera tempo para responder, limitara-se a ir atrás dele. Na verdade, teria realmente preferido ir sozinha visitar a esposa de Said, Melika; a conversa ia ser difícil. No entanto, quando dissera a Mehran que precisava de ir falar com Melika porque Lennart Stridh queria conhecê-la, ele mostrara-se tão decisivo como com Eyer. A partir de agora, iam fazer isto juntos. Ele passaria a estar envolvido em tudo o que ela ?zesse, pelo menos no que respeitava a Hamid e ao tal jornalista. Não havia nada a discutir. Agora eram eles os dois. Ela ?cara orgulhosa da maneira como ele de repente crescera e assumira a responsabilidade, mas ao mesmo tempo não pudera deixar de sentir que ele já não con?ava em si, o que era um pensamento terrível. A única coisa que ela sempre pretendera fora corrigir as coisas e descobrir o que havia acontecido a Hamid – tanto para bem das crianças como para o seu próprio bem.

Caminharam em silêncio pela fria noite de Outono. Começava a fazer muito mais frio logo que o Sol se punha. O Inverno ainda estava a um par de meses de distância, mas era como se o frio tivesse vindo mais cedo. Viraram à esquerda e atravessaram os taludes entre os enormes blocos de apartamentos. Melika e o ?lho moravam na outra ponta da urbanização conhecida como Rinkeby e demorariam cerca de quinze minutos a chegar lá. Hoje em dia, Shibeka não via Melika com muita frequência. Ao princípio, logo após os maridos delas terem desaparecido, costumavam estar sempre a encontrar-se, mas agora era como se recordassem demasiado uma à outra o que haviam perdido, e aquele apoio mútuo que fora tão importante tinha-se metamorfoseado em discussões intermináveis sobre o que era certo e errado. Um outro problema era que Melika não fora visitada por nenhum funcionário sueco após o desaparecimento, para além de um agente uniformizado. Quando, ao início, Shibeka lhe falara disso, tinham-se zangado. Melika achava que Shibeka andava a imaginar conspirações em toda a parte, enquanto Shibeka achava que Melika se recusava a considerar as várias possibilidades que elas deviam investigar.

Tinham reagido de formas muito diferentes à sua dor. Para Melika, era como se o novo país tivesse a culpa, e retirara-se, apoiando-se intensamente nos valores do seu país natal. Shibeka, por outro lado, tornara-se muito activa. Continuara a aprender sueco, arranjara um emprego, começara a escrever cartas e a telefonar para as autoridades. Não queria recolher-se, queria respostas. Mas talvez não fossem assim tão diferentes. Ambas eram mulheres que se recusavam a desistir; talvez fosse essa a origem do atrito entre as duas. Tinham feito opções diferentes e estavam decididas a defender essas opções. De forma demasiado determinada, sentia Shibeka por vezes.

Quando estavam a chegar à torre cinzento-azulada onde morava Melika, Shibeka sentiu uma dor na barriga. Poderia isto realmente dar resultado? Não deveria ela pedir a Mehran que esperasse cá fora? Isso facilitaria as coisas. Pararam à porta. Mehran virou-se e olhou para ela, depois apontou para uns balouços abandonados no pequeno parque de recreio à esquerda do bloco de apartamentos.

– O pai trouxe-me aqui poucos dias antes de desaparecer.

– Eu sei.

– Provavelmente, é por isso que agora quase nunca venho cá.

Shibeka aquiesceu. Mehran levantou os olhos para o edifício; havia luzes acesas na maior parte das janelas.

– Ela não vai gostar disto – disse-lhe ele, como se tivesse lido os pensamentos da mãe.

– Eu sei.

– Ela quer esquecer. Tal como todos nós – disse Mehran timidamente.

– Ela não quer esquecer. Ela quer que tudo seja como costumava ser. Eu também. Só que temos maneiras diferentes de chegar lá.

Mehran pegou-lhe na mão. Havia nos seus belos olhos escuros uma tristeza que ela nunca lhe vira antes.

– Mas as coisas nunca podem voltar a ser como eram, mãe.

Shibeka aquiesceu.

– Tu és sábio, Mehran. Hei-de ouvir-te sempre. Prometo.

De repente, ele abraçou-a, e foi lindo. Ela sentira vontade de fazer exactamente a mesma coisa durante toda a noite, e, pela maneira como a apertou, percebeu que ele também queria isso.

Agora eram eles os dois.

Shibeka e o seu ?lho mais velho.

Hamid vivia através dele.


BILLY ESTAVA sentado cá fora. Uma pálida e amarela Lua cheia pendia do céu ao lado da montanha mais próxima, espalhando a sua luz fria sobre a água escura mais abaixo e sobre a retorcida e esparsa ?oresta de bétulas situada a curta distância. Além da água a correr, ele conseguia ouvir de vez em quando o grito de uma ave de rapina, mas não fazia ideia de como se chamava. Não havia mais nada, e ele estava a desfrutar do frio e da quietude. Não tinha ido veri?car a temperatura antes de sair, mas não poderia estar muito acima de zero, se estivesse. Isso não o incomodava; estava bem agasalhado. Tinha vindo cá fora telefonar a Maya, não porque houvesse uma melhor cobertura de rede, mas porque gostava de poder andar por ali sem que ninguém os ouvisse enquanto falavam.

A conversa durara cerca de quinze minutos. Billy dissera-lhe o que podia a respeito do caso, enquanto ela lhe tinha contado o que andara a fazer desde que ele saíra de Estocolmo. Sentia a sua falta, a vida dela era desinteressante e vazia sem ele. Sabia quando voltava para casa? Ele não sabia, mas também sentia a falta dela. Enquanto falavam sobre quanto sentiam a falta um do outro, Billy esperara que Maya levantasse o tema de irem morar juntos, mas ela não disse nada, e por uns momentos ele pensou que aquilo poderia ser algo que ela lhe dissera devido a um impulso momentâneo, algo que deixara escapar por ele estar de partida. Talvez se tivesse arrependido quando chegara a casa e o assunto estivesse posto de parte. Dera por si a esperar que, de facto, fosse esse o caso, e imediatamente se sentira culpado. Foi como se ela tivesse detectado a vibração, pois de repente ouvira-a dizer:

– Voltaste a pensar naquilo que discutimos no aeroporto?

– Não, realmente não tenho tido tempo...

– Eu estive a pensar nisso.

Claro.

– Quero que vamos viver em tua casa.

– Em minha casa?

– Eu quero morar em Söder.

– Está bem...

Obviamente agradada com a resposta, ela mudou de assunto. Billy assumiu que o «Está bem» poderia ter sido interpretado como «Excelente, então está tudo resolvido», mas não conseguia decidir-se a esclarecer que aquilo signi?cava mesmo «Está bem, obrigado por me dizeres isso, vamos ver como irá ser». Tinham continuado a conversar por mais alguns minutos antes de reiterarem o quanto se queriam ver um ao outro e terminarem a chamada.

Agora Billy estava sentado no terraço, a olhar para a Lua. Já estava ali fora há algum tempo, deixando o seu espírito vaguear, mas este estava sempre a voltar à mesma coisa. E não era a perspectiva de Maya se mudar lá para casa.

Ouviu passos no cascalho e, quando se voltou para trás, viu Jennifer a caminhar na sua direcção transportando uma bandeja. Trazia dois cobertores dobrados debaixo de um braço.

– Olá, vi que estavas cá fora. Estou a incomodar?

– Não.

– Trouxe cerveja e chá, não sabia ao certo o que preferias – disse-lhe ela, pousando a bandeja em cima da mesa.

– Uma cerveja seria bom.

– Cobertor?

Ela estendeu-lhe dois cobertores castanho-escuros, ásperos e cheios de borbotos, salpicados aqui e ali com o logótipo da Associação de Turismo Sueca num tom de amarelo-sujo. Billy teve a sensação de que eram mais velhos do que ele. Consideravelmente mais velhos. Pegou num e colocou-o à volta dos ombros; Jennifer fez o mesmo com o dela e veio sentar-se ao seu lado. Ele bebeu um gole de cerveja, ela sorveu um gole de chá e soltou um suspiro de satisfação, com a sua respiração a tornar-se visível no ar frio da noite.

– O que estás tu a fazer cá fora? – disse-lhe ela depois de terem permanecido em silêncio por algum tempo.

– Nada; estou só a pensar.

– Sobre o caso?

– Não.

– Não?

– Não. Quando não estou a trabalhar sou muito bom a desligar. Acho que temos de ser capazes de fazer isso...

Jennifer concordou com um aceno de cabeça. A ?loso?a de «deixar o trabalho no trabalho» não era propriamente algo novo, mas isso não a tornava menos válida. Pessoalmente, ela não tinha conseguido pensar em mais nada senão no caso desde que tinham embarcado no avião para Jämtland. Tentara dormir após a reunião da noite, relaxar, mas fora-lhe impossível. Tinha-se levantado para ir preparar uma bebida quente e vira Billy lá fora no terraço. Por isso, ali estava ela. Sorveu outro gole de chá, o qual não tardaria a ?car frio.

– Parecias estar concentrado em alguma coisa.

Billy assentiu. Tinha estado a pensar na única coisa que estava sempre a ocorrer-lhe, na única coisa que, sob muitos aspectos, parecia ser mais importante do que o caso em que estavam a trabalhar.

Poderia Sebastian Bergman ser realmente pai de Vanja?

Não tivera tempo para voltar a passar tudo aquilo a pente ?no; na verdade, queria recapitular o que sabia e o que estava a supor, os argumentos a favor e contra. Queria veri?car datas, locais, suposições. Devia tê-lo feito nessa noite, mas viera cá para fora falar com Maya e acabara por ?car ali sentado. Não estava fora de questão, Sebastian e Vanja. Era uma possibilidade, baseada em fundamentos muito pouco ?rmes, em cartas que ele não tinha lido, em suposições que não podia con?rmar. Mas a ideia ganhara raízes. A única coisa de que tinha a certeza era que, se Sebastian fosse o pai de Vanja, então Sebastian era o único que sabia. Se Vanja soubesse, isso ter-se-ia tornado óbvio. Ela adorava o pai. Ou o homem que julgava ser seu pai...

– Tu abateste o Edward Hinde.

Billy regressou do luar para a realidade. Virou-se para Jennifer, mas quase não lhe conseguia ver o rosto; ela tinha puxado para a frente o capuz do seu casaco e segurava a caneca de chá à frente da boca enquanto falava.

– O quê? Sim, pois foi.

– Imagino que toda a gente te pergunte isto, mas qual foi a sensação?

Fora a primeira coisa em que Jennifer tinha pensado quando se conheceram em Arlanda e ela percebera quem era Billy. Ela nunca tinha sequer tirado a sua pistola do coldre, mas na sua imaginação já muitas vezes se vira a empunhar a arma, pronta a disparar.

Acção. Decisões instantâneas. A emoção da perseguição.

Porém, todas as vezes que ela fantasiava sobre esse aspecto da sua pro?ssão, esperando um dia vir realmente a experimentá-lo, os bandidos desistiam sempre. Sentiam que estavam em situação de inferioridade, derrotados, batidos. Os seus devaneios nunca terminavam com ela a disparar, e muito menos a matar alguém. De vez em quando, punha-se a pensar se seria capaz de o fazer caso surgisse a ocasião.

Virou-se para Billy, que continuava indiferente. Tentou averiguar se a sua pergunta o irritara ou se ele estaria a pensar no que havia de dizer. Provavelmente, era a primeira hipótese; ela ainda estava a ouvir o que lhe dissera. «Qual foi a sensação?»

Que pergunta tão estúpida.

– Não era isso que eu queria dizer – explicou ela. – Isto é, como é que se lida com uma coisa dessas? Como é que tu lidaste?

Billy pensou nisso. Não tinha uma resposta imediata porque, tanto quanto conseguia lembrar-se, nunca ninguém lho perguntara. Ninguém da equipa, nem sequer Torkel. Tinham-se preocupado com o bem-estar dele, garantiram-lhe que estaria de volta ao trabalho em breve, que não poderia ter feito nada de maneira diferente, que não tinha outra opção, mas ninguém lhe perguntara como se sentira. Não exactamente, não houvera mais do que os habituais «Como estás tu?» e «Tu estás bem?», proferidos num tom de voz que deixava claro que não esperavam uma resposta profunda ou sequer honesta. Apesar de todos estarem treinados para lidar com indivíduos traumatizados e em estado de choque, quando algum deles era afectado todos pareciam pensar que o melhor era não falar no assunto. Era para isso que serviam os psicólogos. Agora que pensava nisso, Maya também não lho perguntara. Tinham falado muito sobre o assunto, mas o tema fora como ele deveria usar essa experiência para crescer, em vez de permitir que aquilo pusesse em causa, de uma maneira destrutiva, a sua escolha de pro?ssão ou o seu carácter.

– Ele teria matado a Vanja – disse Billy com um encolher de ombros. – Foi assim que eu pensei. O Sebastian estava ferido e o Hinde teria matado a Vanja. Não tive escolha.

– Só porque era a coisa certa a fazer, não signi?ca necessariamente que fosse simples.

Billy virou-se para a ?tar outra vez. Ele tinha dito apenas que não tivera escolha. A maioria das pessoas ?caria satisfeita com essa resposta; tinha feito a única coisa que podia fazer. Se não havia escolha, não se era realmente responsável. Mas era evidente que isso não bastava para Jennifer. Ele conseguia ver genuína preocupação e interesse nos seus olhos; ela merecia melhor.

– Não penso nisso – disse-lhe ele honestamente. – Nunca penso nisso.

– E isso é bom?

– Não sei. Funciona.

Levantou os olhos para a Lua. Jennifer pareceu satisfeita; não fez mais perguntas. Terminou o seu chá e voltou a pousar a caneca na bandeja. As duas últimas respostas dele tinham tornado claro, presumivelmente, que não queria falar do assunto, mas na verdade ?zera-o. Ele gostava de Jennifer. Ela parecia querer saber mais, ir além da violência e do sensacionalismo. Parecia querer conhecê-lo, e não havia muitas pessoas que sentissem isso. Talvez fosse estúpido deixar passar a oportunidade.

– Senti-me bem – disse ele tão baixinho que Jennifer teve de se chegar mais perto para o ouvir. – Matá-lo. Senti-me bem. É por isso que nunca penso no caso.

Não olhou para ela; manteve os olhos ?xos na Lua. Foi quase como se estivesse a falar sozinho. Jennifer não disse uma palavra. Nem sequer se mexeu. Sentia que o mínimo ruído poderia fazê-lo lembrar-se de que ela estava ali e levá-lo a calar-se.

– Embora ele o merecesse e tivesse matado Vanja, eu não devia sentir-me bem. Não julgava que fosse esse tipo de pessoa. Não quero ser esse tipo de pessoa. Assusta-me, e é por isso que nunca penso no caso.

Jennifer não sabia o que dizer; esperava não precisar de dizer absolutamente nada. Billy continuava a olhar para a Lua. Se aquilo fosse um ?lme americano, ela teria pegado na mão dele para lha apertar de uma maneira tranquilizadora, mas, como não era um ?lme, ?cou sentada e perfeitamente imóvel.


ESTAVAM SENTADOS na sala de estar. Melika ?cara surpreendida quando os vira ali em pé à sua porta àquela hora da noite, mas pedira-lhes imediatamente que entrassem. Convidara-os a sentarem-se no grande sofá de couro preto de que Said tanto se orgulhara em tempos. Foi preparar um bule de chá vermelho e trouxe-o numa bandeja com alguns copos e um prato de baklava.

– Não tenho muita coisa cá em casa.

– Está óptimo – disse-lhe Shibeka calorosamente.

Melika ainda parecia um pouco intrigada quando pousou os copos e serviu o chá fumegante do bonito bule. Shibeka estava prestes a explicar-lhe porque estavam ali quando Mehran quebrou o silêncio.

– A minha mãe tem uma coisa para te dizer.

Shibeka fez-lhe um aceno de agradecimento e tentou mostrar-se o mais descontraída possível. Estava mentalmente preparada para o facto de que esta conversa não ia ser fácil.

– Preciso da tua ajuda.

– E como posso ajudar? – disse Melika, sentando-se em frente deles. Não tinha servido um copo de chá para si própria. Era um sinal claro.

– Falei com um jornalista da televisão. Sobre o Said e o Hamid.

Ambos viram o rosto de Melika endurecer, como se a ténue sensação de desconforto que ela sentira desde o início se cristalizasse de repente em pura aversão. No entanto, Shibeka optou por continuar.

– Ele concorda comigo; acha que aquilo que aconteceu é muito esquisito.

Não chegou mais longe. Melika pôs-se de pé num salto. A sua voz era estridente e ela praticamente cuspiu as palavras para Shibeka.

– Pára já aí, Shibeka! Eu não preciso que um estranho me venha dizer o que é ou não é esquisito!

– Não foi isso que eu quis dizer.

– Foi sim! Tu achas que és a única pessoa em todo o mundo que está a sofrer, e agora foste a correr ter com um homem qualquer que te diz que tens razão. Não estou interessada!

– Eu não fui a correr ter com ninguém – respondeu Shibeka calmamente. – Escrevi cartas, ?z telefonemas, e ele foi o único que me ouviu.

– Um homem? Um homem sueco? Um estranho?

Shibeka fez um leve aceno de cabeça. Melika balouçava-se para a frente e para trás, e parecia improvável que voltasse a sentar-se enquanto eles ali estivessem.

– Tu já ouviste o que estás a dizer, Shibeka? – começou ela. – Quantas vezes já se encontraram? Estiveste a sós com ele? – Shibeka baixou os olhos por um segundo; aquela conversa tinha-se transformado num pesadelo, e não havia como escapar ao desastre. De repente, percebeu como fora estúpida; já devia saber que Melika reagiria assim. A voz da outra mulher elevou-se ainda mais.

– Tu estiveste sozinha com ele? Talvez seja por isso que está tão interessado!

O tom dela era agora desagradável, e lançou um olhar fulminante a Shibeka, que estava prestes a perder a paciência, embora soubesse que era vital manter a calma. Resistir à provocação. Se ela começasse a discutir, só iria piorar as coisas.

– Claro que não, eu estava lá. A minha mãe sabe como se deve comportar. – O tom de Mehran foi autoritário e composto. Shibeka não conseguiu perceber como deveria reagir. Decerto não estava à espera daquilo; na verdade, quase se havia esquecido de que ele estava sentado ao seu lado. Todavia, Mehran parecia perfeitamente à vontade. – Parece que vale a pena ouvi-lo – acrescentou ele, como se tivesse mentido durante toda a vida. Estava a usar a sua nova voz, aquela que adquirira nessa tarde. Talvez ela já estivesse dentro de si há muito tempo; parecia demasiado con?ante para ser tão recente. Talvez tivesse lá ?cado a aguardar o momento em que seria necessária.

Shibeka não se mexeu; sentia-se ao mesmo tempo impressionada com o ?lho e enervada com a situação. Precisava de dizer alguma coisa para que a mentira de Mehran não fosse exposta, mas era-lhe difícil encontrar o caminho naquela paisagem desconhecida que o ?lho de repente lhe apresentara. Mehran, porém, parecia não ter problema algum no seu novo papel.

– Ele quer conhecer-te também. A minha mãe e eu esperamos que estejas disposta a colaborar.

Melika ?cou a olhar para os dois. Por ?m, Shibeka ganhou coragem para falar, pegando na deixa do ?lho.

– Melika, eu sei que tu pensas que eu errei em muitas ocasiões, mas realmente acredito que esta é a coisa certa a fazer.

Melika continuava a mostrar-se céptica, mas pelo menos sentou-se. Era óbvio que os modos con?antes de Mehran também haviam causado nela um efeito tranquilizador.

– Não posso. Poderia encontrar-me com uma mulher, mas não com um homem. Tenho demasiado respeito pelo Said.

– Compreeendo – disse Shibeka. – Vou falar com o Lennart...

– Eu é que vou falar com o Lennart – corrigiu-a rapidamente Mehran. – Tenho a certeza de que se poderá combinar alguma coisa.

Melika assentiu e Mehran mostrou-lhe um sorriso sereno.

– Obrigado – disse Shibeka.

– Agradece ao teu ?lho – respondeu a outra mulher.


SEBASTIAN TINHA ENCOMENDADO uma refeição no restaurante italiano da esquina. Insistira que Vanja precisava de comer e preparara a mesa da cozinha. Os pratos eram bonitos, cor de mar?m com um ?no aro prateado, os talheres eram pesados e caros e, juntamente com os altos copos de cristal e com o aroma tentador da comida, tudo aquilo era tão convidativo que Vanja tinha concordado em ?car sem protestar demasiado. Já estava escuro, e Sebastian acendeu várias velas. Comeram com satisfação, falando em voz baixa. Se alguma pessoa de fora os visse, teriam parecido dois velhos amigos desfrutando de um jantar em casa dele, provavelmente numa cena frequente. Depois de tudo o que acontecera, Vanja achou aquilo libertador. Era como se de repente ela tivesse companhia dentro da bolha em que se encontrava. Não queria sair dali, nunca mais. Queria ?car ali, naquela cozinha da Grev Magnigatan, com o homem que demonstrava qualidades que ela nunca suspeitara sequer que ele possuía. A sua ?agrante honestidade quando lhe contara a terrível tragédia que lhe destruira a vida. A sua hospitalidade. A maneira como a escutava.

Era como se houvesse duas versões de Sebastian: aquele que tinha um ego enorme e espezinhava todos os que o rodeavam sem preocupação alguma e este homem sincero que perdera toda a família, mas que, de alguma forma, conseguira prosseguir. Vanja sentia-se um pouco envergonhada, em parte por ter sentido tanta pena de si própria e se ter revolvido na sua amargura, e em parte por nunca lhe ter dado oportunidade para que ele mostrasse esse lado do seu carácter. Ele oferecera-lhe uma perspectiva. Ela não fazia ideia do que seria perder realmente alguém; a traição de Valdemar ainda se podia aguentar, quando pensava nisso. Pelo menos, continuava vivo. Ela conseguiria seguir em frente com a sua vida, escolher se isso ia acontecer com ou sem ele. Talvez não estivesse completamente sozinha, a?nal.

Vanja olhou para a comida que estava à sua frente. Aquela massa com frutos do mar estava deliciosa e não lhe suscitava aquele desejo irresistível. Era apenas comida, sem qualquer risco psicológico. Apenas comida. Boa comida.

Deveria falar sobre a bulimia a Sebastian?

Ele tinha sido honesto para com ela acerca da sua perda, compartilhara o seu segredo com ela, e no entanto isso não lhe pareceu bem. Aquilo não era uma competição para provar quem tinha sofrido mais, e em todo o caso a sua recaída tinha sido meramente temporária, um mecanismo de fuga numa situação extrema. Já se sentia muito melhor.

Sebastian abriu uma garrafa de vinho branco. Disse-lhe que não bebia, mas serviu-lhe um copo. O vinho estava à temperatura perfeita e tinha um sabor frutado e fresco. Era assim que a vida devia ser. Ela tomou a sua decisão: ia contar-lhe. Um dia, mas não agora.

Queria saber mais sobre Sabine, mas não tinha a certeza se deveria perguntar-lhe; não queria mostrar-se intrometida e incomodá-lo. No entanto, estava genuinamente interessada; gostava do Sebastian que estava ali sentado à sua frente, e de repente compreendeu porque tinha ele tanto com sucesso com as mulheres.

O seu aspecto não era muito distinto. Tinha peso a mais e andava bastante mal-arranjado, era óbvio que não se preocupava muito com a aparência, mas estava muito presente no momento, e essa era uma qualidade atraente. Adivinhou que provavelmente era esse o segredo dele. Nunca tinha pensado nisso; no que dizia respeito a esse aspecto da vida dele, ela sempre reagira com raiva. Havia assumido que ele estava apenas a usar todas aquelas mulheres, mas começava agora a entender porque é que tantas iam com ele. Ele dizia as coisas certas no momento certo. Fazia-as sentir que estavam a ser ouvidas, e presumivelmente também as fazia sentirem-se desejadas. Sem dúvida que ao longo dos anos tinha aperfeiçoado o seu jogo.

A sua técnica.

Aquilo não passava de um truque, na verdade.

De repente, foi acometida por um pensamento. E se ele estava a fazer a mesma coisa consigo? O vinho, a proximidade, as revelações pessoais.

Um truque.

Poderia ele ser tão calculista? Seria aquilo apenas um estratagema para a levar para a cama? Vanja pousou a faca e o garfo; o vinho deu-lhe coragem, e foi directa ao assunto.

– Estás a ser assim tão simpático para mim porque queres dormir comigo?

Sebastian parou a meio da mastigação. Estaria ela a ver coisas ou surgira um leve rubor na garganta dele?

– É isso que tu pensas?

– Não sei. Quero dizer, é isso que tu fazes, não é?

– Pelo amor de Deus... Nós trabalhamos juntos, Vanja. Negócios e prazer não se misturam.

Ela ?cou a olhá-lo. Havia algo naqueles olhos cinzento-azulados que não conseguia interpretar.

– Eu tinha de perguntar. Nunca vi este teu lado antes.

– O que queres tu dizer? – disse-lhe ele, pousando o garfo e inclinando-se para a frente.

– A seres assim normal – respondeu ela com um encolher de ombros. – Agradável. Esta é a primeira vez que tu és simpático para mim.

Ela ergueu o seu o copo num brinde.

– Não é por querer fazer sexo contigo.

– Óptimo. Eu também não quero ir para a cama contigo.

– Óptimo, nesse caso, ambos sabemos onde estamos – disse-lhe ele com um sorriso. Depois a sua expressão tornou-se séria. – Mas realmente quero ser teu amigo.

– És mesmo. Honestamente. E não me importaria de beber outro copo de vinho.

Sebastian encheu-lhe o copo e ela recomeçou a comer. Vanja não conseguia lembrar-se da última vez que havia apreciado tanto uma refeição. Ele ?cou sentado a observá-la, com um olhar caloroso, quase amoroso.

Seria capaz jurar que ela não tinha pensado em Valdemar desde que se sentara à mesa.

 

Eram duas horas da manhã e a garrafa de vinho estava praticamente vazia. Tinham ?cado sentados a conversar sobre tudo o que havia para falar. Sebastian conseguira levar a conversa para longe dos problemas de ambos e assegurara que eles mantinham aquela simples proximidade que haviam descoberto.

A cabeça de Vanja caiu para trás contra o sofá. Aquela coisa terrível que lhe acontecera parecia agora mais ténue; o presente era mais forte. Tinha alguma coisa a ver com o álcool, sem dúvida, mas não era apenas da bebida. Ela conseguira manter Valdemar à distância com a ajuda do riso e da amizade. Não lhe apetecia ir para casa. Fechou os olhos. Não podia adormecer ali.

Devia ir para casa.

Tinha de ir para casa.

Mas a verdade é que não lhe apetecia. Quase teria sido mais simples que ele a tivesse seduzido. De?nitivamente, aquilo não era sexual, não havia em Sebastian nada que a atraísse, mas isso tê-la-ia poupado ao problema de optar. De tomar uma decisão. Ela teria sido capaz de ?car. Sabia que, se acontecesse alguma coisa, isso seria um desastre total, em todos os sentidos possíveis, mas agora já quase nem se importava.

Repeliu essa ideia tão depressa como ela tinha chegado. Era absolutamente ridícula. Repugnante. A ideia de ir para a cama com ele só para poder ?car ali. Tinha bebido demasiado vinho. Levantou-se rapidamente; sentiu raiva de si mesma, e isso devia ser óbvio.

– Tenho de ir.

Sebastian mostrou-se surpreeendido, como se não conseguisse perceber porquê.

– Não há problema... queres que chame um táxi?

– Por favor. – Ela acalmou-se e foi até ao corredor calçar os sapatos. – Desculpa, é que já é tão tarde.

– Compreendo. – Ele seguiu-a e encostou-se à ombreira da porta. – Podes passar cá a noite, se quiseres.

Ela lançou-lhe um olhar feroz, mas ele fez um sorriso desarmante.

– Tenho um quarto vago. Um quarto de hóspedes. Não é usado há anos, mas está ali, se quiseres.

Não, ela ia para casa. Já tinha tomado a sua decisão e não havia nada a discutir. Ao mesmo tempo, sabia o que a esperava. Logo que ?casse sozinha de novo, Valdemar viria ter consigo, tinha a certeza disso. Enquanto andasse de um lado para outro no seu pequeno apartamento, ele viria ter consigo e talvez lhe trouxesse até a compulsão para comer.

– Aceito, obrigado – ouviu-se a dizer-lhe.

Sebastian aquiesceu e foi preparar-lhe a cama. Vanja ?cou ali a pensar que raio acabara de acontecer. Estaria ele, a?nal, a tentar seduzi-la? Porque não protestara ela? Porque não se limitara a ir embora?

– Vou arranjar-te uma escova de dentes – gritou-lhe ele.

Era porque não queria, percebeu. Queria ?car com Sebastian.


ELE NÃO SE SENTIA enervado, tinha antes uma sensação de estar a ser observado, embora estivesse sozinho naquele quarto desconhecido. Não conseguia lembrar-se de como chegara ali. Através de uma porta, presumivelmente, mas não parecia haver nenhuma. Pelo menos atrás de si. Talvez houvesse alguma na outra extremidade da grande sala, mas não conseguia vê-la. Dois grandes holofotes estavam apontados directamente aos seus olhos. Caminhou pelo chão axadrezado. Os seus passos ecoaram no vazio. Conseguiu sentir um cheiro... a champô. Deu mais alguns passos, mas não lhe pareceu que se tivesse aproximado mais do outro lado. Se houvesse mesmo outro lado. As luzes cegavam-no, e para além delas havia apenas escuridão. Uma campainha começou a tocar, algures ao longe. Na escuridão. O som foi-se tornando mais alto, mais próximo, embora ele não estivesse a mover-se naquele momento. A seguir sentiu uma dor atroz no ?anco, logo abaixo das costelas. Dor atroz estava errado; fora antes um golpe. Olhou para baixo com surpresa, mas não conseguiu ver nada a não ser o padrão de xadrez do soalho. Outro golpe, desta vez no peito. O som que continuava a retinir estava agora realmente perto. Reconheceu a melodia, mas não a conseguiu identi?car.

– Alexander...

Uma voz de mulher.

Um nome.

O nome dele.

Alexander Söderling abriu os olhos. Estava deitado ao lado de Helena, com o rosto enterrado no seu longo cabelo. Atrás de si, o telemóvel continuava a tocar enquanto Helena lhe dava uma cotovelada na barriga.

– Sim, está bem, já acordei – murmurou enquanto se virava e pegava no telefone. Pela hora, estava-se mais perto da manhã do que da noite. Número privado. Atendeu a chamada.

– Alexander – disse ele com voz grossa. Pigarreou.

– Alexander Söderling?

A voz pronunciara o seu apelido como «Soderlang». Americano. Alexander sentou-se, direito.

– Sim.

O homem do outro lado disse, com uma arrastada pronúncia sulista, o apelido dele e o nome da organização que representava. Alexander percebeu que aquela era uma conversa que não queria ter a um metro de distância de Helena, mesmo que ela parecesse ter voltado a adormecer. Levantou-se e saiu do quarto.

– Como posso ajudá-lo? – disse enquanto fechava a porta atrás de si.

– Aparentemente, a Polícia sueca está a investigar a morte da Liz McGordon.

Alexander voltou a pigarrear enquanto caminhava descalço pelo estreito patamar em direcção à escada.

– Quem é a Liz McGordon? – perguntou, espreitando Selma antes de fechar também a porta do quarto dela.

– A mulher que morreu num acidente de carro no Norte da Suécia há alguns anos.

Alexander parou a caminho do quarto do ?lho. Nunca tinha sequer ouvido falar de Liz McGordon.

– Estamos a falar de Patricia Wellton? – disse ele.

Houve uma breve hesitação; julgou ouvir um restolhar de papéis, e em seguida o homem voltou.

– Possivelmente, sim.

– Bom, porque não disse logo? – Alexander sentiu que estava a ?car irritado. Na verdade, não queria ter aquela discussão em sua casa, no seu telemóvel.

– Pelo que entendi, a Polícia encontrou alguns corpos – prosseguiu o homem sem a menor indicação de ter ouvido a pergunta. Alexander fechou a porta de Daniel sem espreitar o interior do quarto.

– Certo.

– Pelo que entendi – disse novamente o homem cujo nome Alexander já esquecera –, estabeleceram uma ligação entre esses corpos e Patricia Wellton.

Estabeleceram? Isso era mais do que Alexander sabia. Não fora à internet ver as notícias desde que saíra do escritório, por volta das três horas do dia anterior. Tinha decidido passar a tarde e a noite com a família. Levara as crianças à natação, em seguida ele e Helena tinham preparado o jantar juntos. Partilharam uma garrafa de vinho. Não se conseguia lembrar da última vez que haviam feito isso. Depois do jantar, ele tinha ido deitar as crianças, lera-lhes não uma mas duas histórias antes de adormecerem, assistira ao noticiário com a esposa e bebera o resto da garrafa de vinho. Tinham ido para a cama ao mesmo tempo e feito amor antes de adormecerem. Ele também não conseguia lembrar-se da última vez que isso acontecera. Quando fechara os olhos, Alexander quase se sentira um pai normal, alguém que não sabia nada sobre homicídios colectivos nas montanhas e americanas mortas. Mas isso fora na noite anterior, agora a realidade batia-lhe no ombro desde o outro lado do Atlântico e ele descia as escadas para se actualizar.

– Você sabe mais do que eu – disse ele com toda a franqueza enquanto ia buscar o seu iPad à mesa da sala de estar.

– Está tudo nos vossos jornais.

– Estou agora mesmo a veri?car.

Depressa encontrou o Expressen e um segundo depois percebeu o motivo daquele telefonema tão matutino.


MULHER ENCONTRADA MORTA EM CARRO INCENDIADO LIGAÇÃO AO HOMICÍDIO EM MASSA NAS MONTANHAS


Passou os olhos pelo artigo. Nada sobre o facto de ela ser americana, nada sobre nada, para ser mais exacto, excepto que o acidente estava de alguma forma ligado à descoberta dos seis corpos no alto da montanha. Não dizia como nem porquê.

– Já encontrou? – disse o homem, denotando algo mais do que um tom de impaciência na voz.

– Sim, tenho-o aqui, mas...

– Em primeiro lugar, é uma infelicidade que isto tenha surgido.

A crescente irritação de Alexander subiu outro nível e transformou-se em raiva. Estavam a telefonar-lhe para reclamarem sobre coisas acerca das quais ele não podia fazer absolutamente nada, nem naquela época nem agora.

– Ouça lá – disse ele, já sem se preocupar em mostrar-se bem-educado. – Se vocês não queriam que eles fossem encontrados, então deviam ter feito melhor trabalho quando se tratou de os enterrar, não acha?

– Em segundo lugar... – continuou o homem calmamente, como se não tivesse sequer ouvido Alexander.

Foi a vez de Alexander o interromper.

– Para sua informação, aqui são quatro horas da manhã, por isso, se tem uma lista longa, talvez possa voltar a telefonar durante o horário de expediente.

– Em segundo lugar... – A voz no seu ouvido adquiriu de súbito uma nitidez que indicava que o homem do outro lado não estava habituado a ser interrompido ou desa?ado. E que não gostara das poucas ocasiões em que isso efectivamente acontecera. – Em segundo lugar, nós tínhamos a impressão de que a morte de Patricia fora um acidente.

– E?

– Pelo que entendi, a Polícia está a tratar do caso como se fosse um homicídio.

Merda! Alexander ?cou hirto. Compreendeu de imediato o que isso signi?caria se fosse verdade. Mas não podia ser verdade, pois não?

De maneira nenhuma.

Leu de novo o artigo relativamente breve, e desta vez viu uma frase em que o jornalista referia que o incêndio do carro, provavelmente, não fora uma consequência do acidente. Foda-se!

– Não sei nada sobre isso – disse ele, notando a decepção que sentia por a sua voz não estar muito ?rme. – De acordo com as informações que recebi, foi um acidente.

– Pelos vistos, foi mal informado.

– Ou o jornalista percebeu tudo mal. Não seria a primeira vez.

– Esperemos que sim.

Fez-se um breve silêncio enquanto o americano deixava a última frase pairar no ar para que Alexander se apercebesse da ameaça implícita. Este estremeceu enquanto ?cava ali com as calças vestidas, embora a casa estivesse sempre nuns muito agradáveis 21 graus. O ar condicionado era só uma das coisas que lhes agradara quando tinham comprado a casa quatro anos antes. À medida que as crianças iam ?cando um pouco mais crescidas, Helena começara a desesperar por sair da cidade; estava farta do trânsito e queria um jardim. Obtivera 3000 metros quadrados com vista para o mar a partir da casa lindamente desenhada no cimo da colina. Ele tinha saído das Forças Armadas e entrara para a Nuntius alguns anos antes, e Helena estava a progredir na sua carreira no Handelsbanken. Tinham uma boa vida, ele, Helena e os ?lhos. Ou pelo menos assim fora até estes velhos fantasmas terem voltado a assombrá-lo.

– Acompanharemos os desenvolvimentos a partir daqui – continuou a voz –, mas, realmente, agradecíamos que pudesse encontrar tempo para nos informar se surgir algo de novo.

O que ele queria dizer era: descubra que raio está a acontecer e informe-nos de imediato. Uma ordem sob a forma de um pedido bem-educado.

Alexander prometeu manter-se em contacto, e a chamada terminou. Pousou o telefone ao lado do iPad e ?cou a contemplar a escuridão. Foi à cozinha e abriu o frigorí?co, um Sub-Zero PRO 48, que na sua opinião fora muitíssimo caro. Examinou as prateleiras e concluiu que, na verdade, não queria nada, por isso fechou a porta. Pensou num copo de água, mas decidiu que não. Voltou para a sala, sentou-se numa das cadeiras Hans J. Wegner e pegou outra vez no seu iPad. Releu o artigo, que fora escrito por alguém chamado Axel Weber. Deveria entrar em contacto com esse tal Weber? Descartou a ideia quase de imediato; dado o seu passado, provavelmente iria apenas exacerbar a situação. Continuou a navegar; o Aftonbladet não trazia tanto sobre a história. Talvez sentissem que ela pertencia ao rival. Os jornais da manhã tinham apenas relatado a descoberta dos corpos na montanha; não havia nada sobre o incêndio do carro e a mulher morta. Alexander suspirou, largou o iPad e pensou durante algum tempo. Não tardou a compreender que a forma como abordasse o problema não fazia qualquer diferença, pois acabava sempre no mesmo lugar, com a mesma pessoa. Ele tinha de ser informado. Estava na hora de pegar o touro pelos cornos. Pegou no telefone e marcou um número. Tinham passado muitos anos desde o último contacto; esperava que os dados ainda estivessem correctos. Alexander ouviu o telefone chamar e a seguir uma voz de homem.

– Charles.

Nenhum indício de ter sido acordado.

– É o Alexander. Söderling – acrescentou, só por precaução.

– O que queres?

Direito ao assunto. E porque não? Não havia qualquer motivo para conversa ?ada. Alexander não gostava do homem a quem se vira forçado a telefonar e não tinha qualquer dúvida de que o sentimento era mútuo. Alexander também tinha... medo seria uma palavra muito forte, mas o outro homem fazia-o sentir-se desconfortável. Havia nele algo de particularmente desagradável. De imprevisível.

– O que aconteceu realmente em Jämtland? À Patricia Wellton? Os ianques acabaram de telefonar.

– A sério?

– Sim... achas que te telefonei às quatro da manhã para me divertir?

– Não, estou a referir-me aos «ianques». Tu usas mesmo essa palavra? Parece que estás num ?lme de 1940.

Alexander achou que aquilo soara como se Charles estivesse a sorrir. Como se o assunto não fosse importante. Como se não tivesse nada a ver com ele. Decidiu terminar a chamada o mais rapidamente possível.

– Teve alguma coisa a ver contigo?

– O que é que teve alguma coisa a ver comigo?

– A maneira como a Patricia Wellton morreu.

– Queres mesmo saber a resposta?

Não, gritou uma voz dentro da cabeça de Alexander. «Não, não quero. Enquanto eu não souber, só tenho de reagir, não de agir. Não quero saber.» A voz dizia-lhe a verdade, claro, ele realmente não queria saber, mas não tinha escolha.

– Sim, quero.

– Mas isso pode signi?car que terás de mentir aos... ianques.

Alexander fechou os olhos. Portanto, Patricia Wellton tinha sido assassinada. As coisas tinham ido de mal a pior e passado ao desastre total em poucos minutos.

– Porque estou a partir do princípio de que tu não contarias a ninguém – continuou Charles. Alexander percebeu que ele já não estava a sorrir. Longe disso.

– Na verdade, não importa o que eu diga, não é? – disse-lhe Alexander, tentando afastar da sua voz o sentimento de resignação. – Se a Polícia sabe que ela foi assassinada, vão acabar por descobrir de qualquer maneira.

– Isso é um problema.

– Sim.

– Mas é o teu problema, Alexander. Se o tornares meu, hei-de garantir que os teus problemas se tornam maiores ainda.

Outra ameaça. Nessa manhã, chagavam-lhe de forma intensa e rápida. Alexander não precisou de se dar ao trabalho de pensar numa resposta; o homem do outro lado já tinha desligado.

Pousou o telefone em cima da mesa e ?cou em pé, embora não soubesse para onde ir ou o que fazer. Na verdade, só havia uma coisa que ele sabia: que não ia dormir mais esta noite.


SEBASTIAN NÃO CONSEGUIA dormir. Era impossível. Tentara sossegar, mas, por mais que se revolvesse e revirassse, de nada servia. O apartamento estava em silêncio. No entanto, ele sentia-se repleto de vida.

Ela estava ali.

Estava a dormir no quarto de hóspedes que Lily insistira que eles deviam ter só para o caso de alguém pernoitar lá.

A sua ?lha.

Obrigado, Lily.

A cabeça dele estava a andar à roda. Por mais que tentasse, não conseguia pôr os pensamentos em ordem; eram demasiado numerosos, demasiado diversi?cados, havia medos e possibilidades a voar em todas as direcções.

Eram quatro e meia quando Sebastian ?nalmente desistiu e se levantou da cama. O chão de madeira rangeu alto, o que o incomodou; não queria que ela acordasse. Logo que abrisse os olhos, quereria ir-se embora. Tinha reparado que Vanja se mostrara nervosa quando ia para a cama, um pouco ansiosa para o caso de ele lhe tocar e vir a revelar-se o homem que, no fundo, realmente era. E, apesar disso, tinha ?cado. Ele conseguira aproximar-se dela de uma maneira que jamais sonhara possível. Se ao menos pudessem passar mais tempo juntos, então as cautelas dela haveriam de desaparecer por completo. Perceberia que ele jamais tentaria algo consigo e, certa de tal facto, haveria de o apreciar ainda mais. Ele subiria ao cimo do pedestal, e ela nunca descobriria porque é que ele não tentara nada. Nunca.

Experimentou andar pela sala em bicos de pés, mas o velho soalho de madeira rangia por todo o lado. Acabou por desistir e esperou que tudo corresse pelo melhor. Foi à cozinha buscar um copo de água; pôs-se à escuta, mas não ouviu nada. A noite anterior continuava envolta numa espécie de bruma. Embora ele não tivesse bebido, sentia-se quase embriagado com aquele a?uxo de possibilidades. Fora o destino que a trouxera até ali, e agora cabia-lhe a ele garantir que ela voltaria. Uma e outra vez. Até que para ela fosse tão natural vir procurá-lo como outrora fora ir encontrar-se com Valdemar.

Deslocou-se o mais silenciosamente que pôde até ao quarto onde ela dormia. A porta estava fechada. Encostou o ouvido à madeira pintada de branco. Nada. Voltou para a cozinha e encheu um copo com água para ela; se estivesse acordada, devia ter sede. Tinha bebido bastante.

Abriu a porta devagar e entrou no pequeno quarto. Estava escuro; a única luz provinha do corredor atrás dele.

Ela parecia estar a dormir. Conseguiu distinguir os contornos do seu corpo por baixo do edredão e o seu cabelo sobre a almofada. Tinha o rosto voltado para o outro lado. Avançou e fechou a porta atrás de si. O ar estava abafado, tinha um forte odor a suor e a álcool, o cheiro característico de uma ressaca. Mas também tinha o cheiro de um ser humano. Era maravilhoso. O quarto era agradável, ainda que um pouco estreito. Papel de parede azul-claro, uma elegante arca e uma escrivaninha em estilo rococó, uma cama com sólida estrutura de metal. Lily tinha comprado tudo aquilo num leilão em Norrtälje, umas bonitas peças que ?cavam muito bem em conjunto. Sobretudo com uma pessoa a respirar dentro do quarto.

Sebastian pegou na cadeira da escrivaninha com cuidado e sentou-se ao lado da cama. Os seus olhos acostumaram-se à escuridão. A respiração dela era regular e uniforme. Um pé saía por baixo do edredão; nem sequer descalçara as meias brancas. Sorriu para consigo; de repente, apercebia-se da criança que havia nela. Apeteceu-lhe aconchegá-la; sentiu-se o pai que nunca tinha sido para ela.

O pai que ia ser.

Apetecia-lhe ?car ali sentado até que a alvorada entrasse pelas cortinas e lhe tocasse no cabelo louro, apetecia-lhe vê-la logo que acordasse e olhasse à sua volta. Mas percebeu que isso havia de parecer-lhe estranho e assustador. Pousou o copo de água na mesa-de-cabeceira e sentou-se de novo na cadeira.

De repente, lembrou-se de Sabine.

Sebastian não se sentara muitas vezes ao lado da sua cama. Naquela época, ele não sabia como a vida era frágil; era como se tudo estivesse garantido. Na verdade, lembrava-se de uma altura em que Sabine tivera uma infecção intestinal, e ele e Lily tinham discutido sobre quem haveria de ?car sentado junto dela. Ele fora arrogante, achara que Lily estava a exagerar em relação ao perigo de a ?lha deles as?xiar com o seu próprio vómito enquanto dormia, mas ?nalmente cedera. Tinham dividido a noite entre ambos, e ele ?cara com as primeiras horas da manhã.

Tal como agora.

Estava de novo a vigiar a ?lha, mas desta vez isso não o incomodava. Desta vez, ele compreendia que devemos amar os nossos ?lhos quando os temos.

Não quando pensamos que vamos tê-los.

Era o presente que importava.

Era esse o segredo.

De repente, teve uma ideia. Levantou-se com muito cuidado, debruçou-se e afastou-lhe devagarinho o cabelo para um lado. Sentiu a testa dela suave e quente sob o seu toque. Beijou-lha com suavidade. Roçando os lábios nela. Sentiu-se um pouco envergonhado e endireitou-se. Talvez devesse sair dali! Talvez devesse ser um pouco mais cuidadoso, agora que ela tinha vindo visitá-lo e começara a gostar dele, mas isso era difícil. Quase impossível. Não havia nada mais bonito do que uma criança a dormir. Caminhou até à porta, abriu-a, depois virou-se para trás e olhou-a. Ela começou a mexer-se.

– Sebastian?

– Vim só trazer-te um copo de água – sussurrou.

Era óbvio que ela não sentira o beijo, caso contrário, o seu tom de voz teria sido signi?cativamente mais impetuoso.

– Que horas são?

– Quase cinco. Volta a dormir.

– Humm. Hoje é um dia importante.

– Porquê?

– Acho que vou ter notícias do FBI hoje. Ou amanhã.

Sebastian ?cou hirto.

– Ainda tencionas ir? Depois de tudo o que aconteceu?

– É exactamente por isso que eu vou. Boa noite.

Ele viu-lhe o rosto por um segundo antes de ela se virar para o outro lado.

– Boa noite.

A?nal, aquilo não passara de um sonho. Ela nunca mais voltaria a dormir no seu quarto de hóspedes.

Partiria.

Ele perdê-la-ia mais uma vez.


ANITHA LUND chegou ao emprego mais cedo. Como sempre. Já lá estava antes de a maioria das pessoas se ter sentado para tomar o pequeno-almoço. Na verdade, antes que elas saíssem da cama. Habitualmente chegava às cinco e meia, o que signi?cava que podia evitar a companhia dos colegas durante pelo menos duas horas. Começava a sua manhã desfrutando de um café com leite na cozinha vazia do terceiro andar. Noutros tempos, quando ela se encontrava numa posição de autoridade, tinha um gabinete próprio onde podia tomar o seu café, mas agora a secretária dela estava situada entre as dos comuns mortais, e era somente a partir da cozinha que conseguia ter uma vista decente. Ficava ali sentada a olhar para Kungsholmen. Durante muito tempo, Anitha in?ltrara-se no gabinete do novo chefe para ir tomar o seu café matinal, mas um dia, não havia muito tempo, fora apanhada e já não se atrevera mais a correr tal risco.

Por volta das seis ia para a sua secretária. Classi?cava as novas candidaturas, o que lhe demorava cerca de meia hora. Com a maior parte do trabalho do dia já feita, podia dedicar-se àquilo que mais gostava: navegar. Pesquisar disparates na internet. Ir veri?car o Flashback e escrever comentários sobre tudo, desde a imigração à vida amorosa das celebridades. Era esse o seu verdadeiro trabalho. Fazia o que tinha que fazer durante trinta minutos pela manhã e mais um pouco a meio do dia para que lhe pagassem o salário, nada mais. Ao princípio, aquela carga de trabalho mínima parecera-lhe limitada e humilhante, mas desde que descobrira o Flashback e outros sites de mexericos, isso tornara-se um elemento positivo.

Quando ia a passar pelo gabinete de Joakim – que ele partilhava com Viktor, que era demasiado elegante para ser hetero –, viu que o computador dele estava ligado. Por descuido. A nova directiva impunha que todos os computadores fossem encerrados no ?nal do dia de trabalho, tanto por razões de segurança como de poupança de energia. Aquilo era típico de Joakim; ele pensava sempre que estava acima das regras. Mas poderia ser útil. Anitha olhou em volta; o escritório continuava deserto. Joakim nunca chegava antes das oito e meia e Viktor estava num curso durante essa semana. Ela dispunha de pelo menos meia hora, o que lhe daria tempo para veri?car se o cavalheiro do Investigação Hoje andava atrás de algo interessante. Tinha sido esse o plano dela desde sempre: não ajudar Lennart, mas averiguar o que ele lhe contara e ver se poderia bene?ciar dessa informação.

Anitha sentou-se à secretária de Joakim e desdobrou o papel que Lennart lhe dera. Hamid Khan e Said Balkhi. Imigrantes. Novos suecos. «Para enriquecerem a nossa cultura», como ela escrevera no Flashback. Aquilo era típico da televisão sueca, sempre tão politicamente correcta, sempre pronta a expor as injustiças, desde que essa exposição veiculasse os devidos valores. Diziam estar do lado do homem comum, mas isso eram tretas. Eles não queriam saber a verdade, porque a verdade magoa. A verdade era que a Suécia estava a ser destruída por todas aquelas pessoas novas que continuavam a chegar. Anitha não tinha quaisquer dúvidas a respeito disso.

Abriu a caixa de identi?cação de acesso e pôs-se a pensar que nome deveria usar. Tinha quatro preferidos, todos eles de chefes mais velhos a cujas senhas e palavras-passe ela conseguira aceder. A questão era: quem atrairia menos atenções? Sabia que quando alguém efectuava uma pesquisa na base de dados ?cavam lá registadas três coisas: a hora, o endereço IP exclusivo do computador e o nome da pessoa que acedera.

Não poderia fazer muito quanto à hora; talvez devesse esperar até depois do almoço, quando houvesse mais pessoas no edifício, mas, como as outras duas variáveis não poderiam levar até si, decidiu arriscar. Optou por Gunnar Bengtsson; trabalhava no piso de cima e, geralmente, chegava cedo. Poderia parecer estranho que ele estivesse a usar o computador de Joakim, mas Anitha não se importava; quem teria de explicar isso seria Gunnar.

Eles deviam alterar as palavras-passe a cada noventa dias, mas Gunnar limitava-se a adicionar um número ao nome da sua cadela: Molly1, Molly2, e assim por diante. De momento, ia no Molly14. O sistema aceitou a palavra-passe e ela entrou. Havia cada vez mais discussões sobre segurança, cada vez mais rotinas, e Anitha não conseguia entender porque é que ninguém veri?cava se as senhas eram dinâmicas e garantia que fossem realmente alteradas. Não que ela estivesse disposta a apontar as de?ciências do sistema. Sentia-se ousada e cheia de vida; este era o momento que mais adorava. Clicou na função de pesquisa.

Havia duas referências a Hamid Khan e a Said Balkhi. A primeira era um relatório da Polícia de Solna con?rmando que os dois homens estavam desaparecidos desde 3 de Agosto de 2003 e que, de acordo com o Conselho de Imigração, havia boas razões para se acreditar que tinham desaparecido por vontade própria devido ao risco de deportação. O relatório incluía pormenores pessoais dos dois homens – nada de estranho nisso. Como não havia mais informações sobre as buscas, Anitha não podia dizer até que ponto a Polícia realmente se esforçara. A nota seguinte era mais interessante. Tinha sido adicionada cerca de uma semana depois e a?rmava que o caso fora entregue à Säpo.

Era tudo.

Anitha tentou entrar no ?cheiro para ver se havia mais algum pormenor, mas não apareceu nada. Ficou hirta e olhou em volta. Julgava que ainda estava sozinha, mas levantou-se e foi até à porta só para con?rmar. O escritório continuava silencioso e deserto. Anitha sentou-se e concentrou-se de novo no ecrã. Algo não batia certo. De acordo com os regulamentos, deveria haver o nome de pelo menos um indivíduo responsável que pudesse ser contactado, mesmo que a informação propriamente dita estivesse classi?cada ou fosse considerada sensível por algum motivo. Mas não havia nada, o que de?nitivamente era contra as regras. Toda a ideia era que o sistema devia ser claro e, para aqueles que tivessem a devida acreditação de segurança, pesquisável. Deveria ser sempre possível transmitir quaisquer perguntas que pudessem surgir, mas, neste caso especí?co, isso não era possível. Anitha não estava inteiramente familiarizada com as rotinas da Säpo, e talvez houvesse uma explicação simples. Ou talvez houvesse uma explicação mais simples ainda, o que parecia mais provável a Anitha.

Eles estavam a esconder alguma coisa.

Talvez não fosse uma coincidência o facto de o cavalheiro do Investigação Hoje se mostrar interessado.

Regressou ao menu principal, procurou os números de identi?cação de ambos os homens, tanto separadamente como em conjunto, para ver se existiriam mais algumas referências. Nada. Apareceram novamente os mesmos dois ?cheiros. Pensou por um momento; precisava de algo mais para trabalhar. Assentou o nome do agente de investigação em Solna que surgia no primeiro documento: inspectora Eva Gransäter. Anitha não sabia ao certo qual a melhor maneira de a abordar, e provavelmente ela não lhe diria nada, mas era importante ser meticuloso, sobretudo quando havia tão pouco para prosseguir.

Quando estava prestes a encerrar a sessão, lembrou-se de que havia mais uma coisa que podia veri?car: a data das notas. Talvez fosse útil; o sistema fora construído de modo a que a data e a hora ?cassem registadas automaticamente sempre que algum ?cheiro era actualizado ou se adicionavam novas informações. Era provável que sucedesse o mesmo quando algo era removido; valia a pena con?rmar.

Clicou no segundo ?cheiro e fez o mesmo duas vezes na função de data. Apareceu no ecrã uma pequena caixa branca que continha vários números; ela leu-os e sorriu. Era mesmo boa. Podiam tratá-la como merda, mas, quando realmente se interessava, conseguia encontrar aquilo que os outros tinham tentado esconder.

O ?cheiro que fora criado a 12 de Agosto de 2003 e declarava que a Säpo havia assumido o caso fora editado no dia anterior.

Ela não podia saber o que tinha sido removido ou quem ?zera aquilo. Mas alguém achara necessário apagar informações de um arquivo que estava intacto desde 12 de Agosto de 2003.

Isto não era um caso vulgar de um requerente de asilo que fugira por causa da ameaça de deportação. Isto era outra coisa. Algo maior.

Muito maior.

Ela poderia gastar horas naquilo, mais uma pequena tarefa entre todas as outras pequenas tarefas que douravam os seus dias.

Agora já tinha algo para fazer.

A única questão era como havia de proceder.


– FRIO E CLARO, um belo dia.

Tinha sido assim que a sempre sorridente Klara o recebera quando se encontraram no corredor. Torkel nem sequer pensara no tempo; nessa manhã tinha outras coisas em mente.

Antes de mais, Yvonne tinha-lhe telefonado.

– Vejo que estás no alto das montanhas – dissera-lhe ela. – Voltas no ?m-de-semana?

Torkel percebera imediatamente porque estava ela a perguntar-lhe isso; ela e Kristo?er iam até à Finlândia, de sexta a domingo. Só eles os dois – um ?m-de-semana romântico, presumivelmente. Estava combinado desde Agosto, e as meninas ?cariam com ele. A menos, claro, que estivesse sentado num hotel isolado nas montanhas em Jämtland. Passou a mão sobre o rosto num gesto fatigado e percebeu que precisava de fazer a barba.

– Não sei. Mesmo que vá para casa, não tenho a certeza de quanto tempo terei de passar a trabalhar.

– Pronto, era o que eu pensava. Vou resolver as coisas com outra pessoa.

Nenhuma acusação ou desapontamento na voz dela, apenas a constatação de um facto. Um problema que precisava de ser resolvido. Era boa, a Yvonne, pensou ele com afeição. Facilitava-lhe a vida.

– Lamento muito.

– Eu sei. As meninas têm andado ansiosas por passar algum tempo contigo.

Torkel sabia que aquilo também não se destinava a fazer com que ele se sentisse culpado, mas fez.

– Vou falar com elas, para ver se podemos combinar alguma coisa.

– Boa ideia.

Torkel olhara para o relógio.

– Elas estão em casa agora?

– Não, foram para a escola.

– Telefono-lhes logo à noite.

– Óptimo.

Na verdade, não havia muito mais a dizer; a questão prática já tinha sido resolvida, e no entanto, de certa forma, Torkel não queria terminar a chamada.

– Então, está tudo bem? – disse ele casualmente.

– Muito bem... é trabalhoso, claro, com elas as duas em escolas diferentes; e a Elin arranjou um namorado.

– Um namorado?

– Sim, chama-se Erik. Andam juntos há algumas semanas; são da mesma turma.

A turma dela era a HT12, do curso de Hotelaria e Turismo em que Elin se matriculara na Escola Secundária John Bauer em Agosto. Uma decisão que ela não discutira com o pai. Quando Torkel descobrira quais eram os seus planos, fora à internet procurar saber mais. Não ?cara impressionado. «Após a conclusão do curso, poderá trabalhar como recepcionista, coordenador de eventos ou de conferências ou na indústria da restauração, por exemplo», lera ele. Não pudera deixar de se sentir decepcionado; esperava que Elin tivesse um objectivo mais elevado do que ser recepcionista ou empregada de mesa. No entanto, não dissera uma palavra; não tinha o direito de pôr em causa a escolha dela quando não tomara parte nas discussões que a haviam levado a tal decisão. Tinham um bom relacionamento, mas ultimamente, sempre que ele manifestava alguma opinião ou fazia perguntas sobre algo que Elin ?zera, a resposta era sempre: «Bom, se tu te envolvesses mais, já saberias.» Era doloroso, mas por vezes a verdade magoa. Decidiu ser inteiramente positivo a respeito do namorado quando falasse com ela mais tarde.

– Já o conheceste? – perguntou ele a Yvonne.

– Sim, parece muito simpático. Dormiu cá na semana passada.

– Dormiu aí?

– Sim, na sexta-feira à noite.

Torkel esteve à beira de lhe perguntar pelos quartos separados, mas percebeu que mais uma vez ia fazer ?gura de um homem irremediavelmente antiquado. Hoje em dia, a maior parte das suas opiniões eram recebidas como se ele tivesse uma perspectiva pré-histórica sobre a vida em geral.

– Não devíamos ter... regras sobre esse tipo de coisas? – disse, em vez disso.

– E temos. Eles só estão autorizados a passar a noite um com o outro aos ?ns-de-semana, não quando têm aulas no dia seguinte.

Na verdade, ele não lhe tinha perguntado quais eram as regras, mas achava que deveria ter sido consultado; porém, sabia que Elin considerava que, como vivia com Yvonne, eram as regras desta que contavam.

– Está bem – disse ele.

– Ela vai fazer dezassete anos daqui a três meses, Torkel. – Era evidente que Yvonne descobrira exactamente o que ele estava a pensar só por aquelas palavras.

– Eu sei. Sinto-me excluído, apenas isso.

– Só há uma pessoa que pode alterar essa situação.

– Eu sei.

– As meninas dizem-te as coisas se tu lhes perguntares.

– Eu sei – disse ele mais uma vez, embora não achasse necessariamente que isso fosse verdade. À medida que as meninas iam crescendo, era-lhe cada vez mais difícil ser uma parte natural das suas vidas, ir além das perguntas básicas sobre como lhes estava a correr a escola, como iam as aulas. Não sabia ao certo como aprofundar a conversa, como lhes perguntar o que era realmente importante. O que pensavam, o que sentiam, quais eram os seus planos e sonhos. Elas já não partilhavam espontaneamente os seus pensamentos como sucedia quando eram mais novas; nessa época, ele chegara por vezes ao ponto de lhes pedir para se calarem por haver tantas coisas que queriam contar-lhe. Paradoxalmente, parecia que quanto mais tempo passava, menos sabia a respeito delas. Culpa sua, claro. Esse tipo de comunicação tinha de ser mantido para poder funcionar.

– Tenho de ir – disse Yvonne, para seu alívio.

– Eu também, é melhor lançar-me ao trabalho...

– Telefona às meninas hoje à noite.

– Assim farei. Adeus.

Terminara a chamada e deixara-se ?car sentado com o telefone na mão por algum tempo, antes de ir para a casa de banho fazer a barba. O aparelho tinha tocado outra vez logo a seguir.

– É Börje do IPO. acordei-o? – disse uma voz alegre quando Torkel atendeu.

– Não, já me levantei há um bocado. – Torkel sentou-se e puxou para junto de si um bloco de apontamentos. – Teve sorte?

Não muita, como veio a veri?car-se. Ou, para se ser mais exacto, absolutamente nenhuma no que respeitava a Patricia Wellton. Segundo as autoridades norte-americanas, nunca houvera uma mulher com esse nome nascida naquela época que fosse cidadã dos Estados Unidos ou que tivesse uma carta de condução americana.

Talvez fosse apenas um pseudónimo que ela usava no estrangeiro, pensou Torkel enquanto Börje prosseguia.

Haviam tido mais sucesso com Liz McGordon. Não estavam exactamente a nadar em informação, mas havia cinco referências a ela, todas relacionadas com saídas ou entradas nos Estados Unidos. A primeira fora em Abril de 2001, a segunda no ano seguinte e a última em 2003.

– Ela saiu do país a 28 de Outubro – disse Börje –, mas não há nenhum registo de que tenha regressado. É como se ela não existisse dentro dos Estados Unidos; não há nada em lugar nenhum senão nessas viagens.

– Provavelmente ela tinha um nome diferente quando estava no país – disse-lhe Torkel; decidiu ser honesto com Börje. Já se conheciam há muito tempo, e ele sabia que a informação não passaria dali. – Nós achamos que a Patricia Wellton e a Liz McGordon eram a mesma pessoa.

– A sério?

– Sim, e a razão pela qual ela não fez a viagem de regresso em 2003 é o facto de ter morrido aqui a 31 de Outubro.

– Merda. Queres que eu continue a procurar os dois nomes?

Torkel realmente não achava que valesse muito a pena. Börje tinha descoberto tudo o que havia para saber sobre Patricia e Liz; não conseguiria desenterrar mais informação, a menos que descobrissem uma terceira identidade.

– Não, não será necessário – respondeu. – Mas posso perguntar-te uma coisa?

– Diz lá.

– Ela tinha um passaporte americano falso, su?cientemente bom para entrar e sair do país no ano a seguir ao 11 de Setembro. Quem produz falsi?cações dessa qualidade?

– O que queres dizer?

Torkel hesitou. Isto era algo que ele não tinha compartilhado com ninguém.

– Poderia ela ter sido... alguma espécie de funcionária do Governo?

– O que queres tu dizer, uma funcionária do Governo?

– Tu sabes... uma agente.

– Da CIA?

– Ou de alguma outra coisa, não sei.

– Existe algo que sugira que ela poderia sê-lo? – quis saber Börje, parecendo interessado.

Torkel não respondeu de imediato. Sim, ele achava que havia. As duas identidades falsas, os pormenores de viagem e?cientes e bem planeados, o envolvimento no homicídio colectivo na montanha, o padrão pro?ssional dos buracos de bala. No entanto, eram apenas teorias, pensamentos que lhe haviam ocorrido. Pensamentos que poderiam ter vastas consequências caso se ?casse a saber que tinham vindo do chefe da Riksmord.

– Sabes que mais? Esquece isso – disse ele despreocupadamente ao seu colega. – Foi só uma ideia disparatada. Muito rebuscada. Esquece.

– Está bem.

– Obrigado pela ajuda.

Terminara a chamada, percebera que estava realmente com fome e tinha encontrado Klara – que ?zera comentários sobre o clima – quando ia a caminho da sala de jantar. Para além de Ursula, que estava a ler numa mesa ao canto com os restos do pequeno-almoço à sua frente, não havia mais ninguém. A chávena dela ainda fumegava, pelo que Torkel assumiu que estava a ?nalizá-lo com o café e o jornal.

Quando foi servir-se ao bufete, pôs-se a pensar se teria chegado a altura de saírem de Jämtland e levarem a investigação de volta para Estocolmo. A descontraída rotina matinal de Ursula dizia-lhe que realmente não tinham trabalho su?ciente para fazer ali em cima. Não sabia onde estavam Billy e Jennifer; ainda a dormir, talvez.

Pegou no seu tabuleiro e foi juntar-se a Ursula.

– Bom dia. Dormiste bem?

– Dormi. E tu?

– Muito bem, obrigado.

Torkel polvilhou os seus cereais com um pouco de açúcar enquanto olhava em volta, para se certi?car de que estavam realmente sozinhos.

– Sinto a tua falta – disse-lhe ele em voz baixa.

Ursula suspirou. Fora isto que ela receara logo que vira Torkel entrar e percebera que iam ?car sozinhos. Sabia que ele entraria em considerações pessoais. Que se referiria ao relacionamento deles. Que a forçaria a tomar algum tipo de decisão. Por isso suspirou, e Torkel assumiu que era por causa do outro homem na vida dela.

– É o Micke? – perguntou-lhe.

Bom, sim, era. Fosse o que fosse que ela lhe dissesse, independentemente de decidir contar-lhe a verdade ou mentir-lhe, era tudo sobre Micke.

– Sim – disse-lhe ela com franqueza. Torkel aquiesceu com simpatia. Engoliu em silêncio várias colheradas do pequeno-almoço e depois disse:

– Então... como estão as coisas entre vocês? – logo quando Ursula pensava já se ter safado com o seu breve «Sim». Ela suspirou novamente. Na verdade, era muito simples. Verdade ou mentira. Separados ou casados. Difícil ou ainda mais difícil.

– Sinto que estamos a tornar-nos cada vez mais próximos, a encontrar o nosso caminho de volta um para o outro – disse-lhe ela num tom adequadamente arrependido.

– Compreendo – disse Torkel com um aceno de cabeça. – Que bom.

– Portanto, não me sentiria bem... tu e eu – continuou Ursula. Já que ia mentir-lhe, mais valia que o ?zesse devidamente. – É por isso que tenho andado um pouco fria contigo. Tenho de aproveitar isto; provavelmente, é a nossa última oportunidade.

– Absolutamente. Eu compreendo. – Torkel limpou o queixo. – Boa sorte – acrescentou.

Ele estava a ser sincero. Era um homem encantador. Mais cedo ou mais tarde, haveria de descobrir que ela e Micke se tinham separado, que ela lhe mentira, mas neste momento não podia lidar com isso. A crise imediata terminara. Torkel iria deixá-la em paz.

O telemóvel dela tocou. Atendeu a chamada, fez duas breves perguntas e desligou.

– Era a equipa que está lá em cima no sítio da escavação. Encontraram a bagagem do casal holandês.


LENNART ESTAVA IRRITADO. Linda Andersson estava esfusiante. Iam a caminho de Rinkeby através de Bromma, num dos carros da televisão sueca. Linda ia a conduzir e a ouvir rádio. Shibeka tinha telefonado antes a Lennart e arruinara-lhe o dia todo. Aparentemente, a esposa de Said recusava encontrar-se com ele por ser um homem. No entanto, ponderaria falar com uma mulher. Lennart tentara tudo para a fazer mudar de opinião, mas Shibeka insistira: era isso ou nada. Ele realçara que seria um grande problema que poderia comprometer todo o projecto, mas Shibeka ignorara essa sua ameaça velada e, por ?m, ele vira-se forçado a ceder e prometera levar uma colega do sexo feminino. Shibeka agradecera-lhe.

Provavelmente, ela era a única pessoa que faria isso, pensou ele. Linda e Sture ?cariam satisfeitíssimos, mas era pouco provável que lhe agradecessem, e agora ele encontrava-se exactamente na posição que pretendera evitar. A história que tinha sido sua fugia-lhe agora das mãos, tornando-se de mais alguém. Um esforço de equipa. Pensara por momentos em levar consigo Annika Morin; ela era uma repórter freelancer de con?ança, mas, caso Sture viesse a descobrir que ele tinha substituído Linda, ?caria louco. Sture estava muito ciente de que Lennart queria voar a solo e brilhar, por isso, tudo o que Lennart podia fazer era aguentar-se e tirar o melhor partido da situação.

Telefonara a Linda para a pôr rapidamente ao corrente do que se passava, e ela fora buscá-lo de carro trinta minutos depois. Era e?ciente, tinha de o reconhecer. Fê-la prometer que qualquer informação ?caria só entre eles e que quaisquer decisões sobre o que iriam usar lhe caberia a ele. Linda disse todas as coisas certas. Sabia que a história era dele, não faria nada que não o deixasse feliz – seria uma jogadora da equipa.

Pois, está bem. Enquanto Sture quisesse que assim fosse. Lennart sabia que daqui em diante precisaria de se manter um passo à frente. Por outro lado, talvez pudesse começar a con?ar em Linda. Ainda não decidira. Uma parte dele estava cansada por ter de fazer tudo sozinho. Havia engarrafamentos junto aos escritórios centrais do Svenska Enskilda Banken e avançava-se muito lentamente. Lennart suspirou e olhou para fora da janela lateral. Uma mulher no carro ao lado bocejou. Ele detestava engarrafamentos; não conseguia entender como é que algumas pessoas podiam ?car sentadas no meio do trânsito durante horas, dia após dia. Estava contente por morar no centro da cidade e, habitualmente, viajar de táxi ou de metropolitano. Sentindo-se frustrado, meteu na boca outro pedaço de goma de nicotina. Já devia ser o décimo, e o dia ainda mal começara. Linda sorriu-lhe.

– Há quanto tempo andas a tentar deixar de fumar?

– Deixei há três meses – mentiu ele.

– Só estás livre do vício quando não precisares mais das pastilhas.

«Eu sei, foi por isso que não te disse que já passaram dois anos desde que parei», pensou ele. «Para não ?cares com a ideia de que sou um sujeito fraco.»

– Alguma vez fumaste? – perguntou-lhe ele.

– Não, mas trabalhei numa história sobre como as pastilhas de nicotina se transformaram de repente numa grande indústria. A nicotina tornou-se um produto farmacêutico, e os lucros que eles têm com os fumadores que tentam desistir são simplesmente ridículos.

Lennart olhou para ela. Na verdade, não queria ter esta conversa, mas tinha de ser simpático para ela.

– Interessante – foi o melhor que pôde arranjar. Não conseguiu sequer mostrar-se sincero, mas Linda pareceu não reparar nisso.

– Tu e eu somos os únicos que pensam assim. O Sture não se interessou de todo pelo assunto.

– Talvez não tivesses o ângulo certo. O Sture gosta de coisas de grande exposição. De grande amplitude.

– Como esta?

– Se vier a resultar em alguma coisa. Preocupa-me um pouco que talvez andemos atrás de algo que não nos leve a sítio nenhum – disse-lhe ele com toda a honestidade. – Temos de pôr estas famílias do nosso lado.

– Vou fazer o meu melhor. Sabes mais alguma coisa sobre Melika?

– Não. Realmente, não sei nada sobre ela, por isso és muito importante para mim.

Lennart tentou mostrar-se tão amigável quanto possível, comunicar-lhe como estava grato sem entrar em exageros.

– Como eu disse, vou fazer o meu melhor.

O semáforo mudou para verde e o carro avançou quatro metros. Lennart já estava a sentir a necessidade de mais outra pastilha.

 

– Olá, estamos aqui para ver Shibeka. Eu sou o Lennart e esta é a Linda – disse Lennart, sorrindo para o garoto de quinze anos de idade que viera abrir a porta logo que a campainha tocara. O rapazinho assentiu, mas não lhe retribuiu o sorriso. Estava vestido com calças de ganga e uma camisola preta; tinha cabelo curto e escuro, bem penteado, e o ar de quem se vestira para a ocasião. A expressão dele era cautelosa, com uma pitada de descon?ança.

– Mehran Khan. Entrem.

Entraram para o espaçoso vestíbulo. O apartamento estava limpo e arrumado e cheirava a sabão. As paredes estavam decoradas com fotogra?as de família – nalgumas delas, Lennart reconheceu Shibeka – e uns pendentes em ?o de ouro. O lugar era uma intrigante mistura das linhas rectas suecas temperadas com cores exóticas. Em silêncio, Mehran indicou-lhes onde deviam pendurar os casacos. Lennart avistou Shibeka na sala de estar; estava empoleirada sobre o braço de um grande sofá cinzento, usando um xaile preto que lhe cobria completamente o cabelo. Numa poltrona à sua frente estava uma outra mulher com xaile, a qual tinha virado o rosto para longe deles. Era Melika, presumivelmente. Lennart acenou a Shibeka, que depressa desviou o olhar. Em vez disso, foi Mehran que o ?tou nos olhos, com uma expressão desa?adora. Isso dizia tudo. Agora estavam em casa deles e aplicavam-se as regras deles. Lennart sentiu-se estúpido. Viera ali para construir uma relação baseada na con?ança; não era bom entrar à bruta, como se estivesse a visitar um velho amigo.

– Pode sentar-se ali enquanto falamos – disse-lhe o rapaz, apontando para a luminosa cozinha ao lado da sala de estar.

«Ele não gosta de mim», pensou Lennart. «Nem um pouco.»

Percebeu que aquela reunião que tivera com Shibeka no café não tinha caído bem e que, de alguma forma, precisava de estabelecer contacto com aquele rapaz.

– Esperava que você e eu pudéssemos ter uma conversa – disse-lhe ele experimentando-o, mas, obviamente, Mehran não estava interessado.

– Mais tarde, talvez. Agora tenho de me ir sentar com as mulheres. – Voltou-se para Linda. – Espere aqui.

Foi indicar-lhe o caminho para a cozinha.

– Tem chá, se quiser um pouco – disse ele, apontando para o bule castanho que estava em cima da mesa, antes de regressar para junto de Linda. Lennart deixou-se cair numa cadeira enquanto via Mehran levar Linda para a sala e fechar a porta atrás deles. Daí a pouco, ouviu o murmúrio de vozes; parecia que Melika não falava sueco e que Shibeka estava a traduzir. Infelizmente, falavam baixo demais para que ele entendesse o que diziam. Pensou se haveria de ir em bicos de pés até à porta e pôr-se à escuta; a?nal, fora para isso que viera até ali, não para ?car sentado na cozinha a beber chá. No entanto, decidiu que não; se fosse apanhado a escutar a conversa, não subiria na estima de Mehran. Lennart sentiu-se como se não tivesse sido apenas derrotado, mas arrasado.

Ouviu a voz de Linda; parecia alegre, enérgica, empenhada. Ele podia entender isso. Ela estava onde devia estar.


AS DUAS MOCHILAS eram idênticas: Arc’teryx de 65 litros, pretas, com uma orla vermelha. Jan e Framke Bakker pareciam ter sido o tipo de casal que gostava de mostrar a sua união vestindo-se de forma idêntica. As roupas gore-tex cinzentas e amarelas, as mochilas vermelhas e pretas, até as botas de caminhada eram exactamente da mesma marca e modelo, tanto quanto Ursula conseguia recordar. Podia imaginá-los no Verão, vestidos com fatos-de-treino e crocs idênticos, acampados junto a um lago qualquer. Embora isso nunca fosse acontecer e jamais tivesse acontecido. Os crocs ainda não estavam inventados quando eles os dois caminharam em direcção a algo naquela montanha que logo lhes custara a vida.

Ursula virou cuidadosamente o equipamento deles; estava em condições surpreendentemente excelentes, dado o tempo que tinha permanecido enterrado. Sujo e enlameado, claro, e e em alguns sítios a humidade e o bolor tinham corroído o material à superfície, mas o que ela tinha à sua frente era signi?cativamente mais mochilas do que despojos.

Tinham sido encontradas a cerca de uma dúzia de metros dos corpos, o que reforçava a teoria de que, para o assassino, ou assassinos, não importava que o casal holandês fosse identi?cado. Nesse caso, era estranho que se tivessem dado ao trabalho de cavar um novo buraco perto da sepultura, mas Ursula não tinha interesse em especular sobre o motivo pelo qual o teriam feito. Não era essa a sua função.

Uma tenda estava presa com alças duplas ao fundo de uma mochila. Ursula removeu-a com cuidado e pô-la de lado, juntamente com uma concha de água em plástico verde-escuro que estava num gancho de metal ao lado. Deslocou a mochila de modo a que a parte de cima ?casse de frente para si. Viu os restos de um colchão e de um saco-cama, também presos com correias. Removeu-os, colocou-os ao lado da tenda e dedicou a sua atenção à aba. As ?velas de plástico estavam cheias de terra e de cascalho, mas abriram-se com relativa facilidade. Quando dobrou a aba para trás, sentiu que havia algo no interior das duas bolsas e puxou os fechos de correr. Pela primeira vez desde que trouxera as mochilas para a sala reservada a esse ?m, e que ela já antes usara para examinar os artigos encontrados na posse de Harald Olofsson, o tempo que elas haviam passado debaixo da terra tornou-lhe as coisas mais difíceis. Ambos os fechos se recusaram a ceder. Pegou numa pequena faca e cortou os fechos ao longo da parte de cima. Encontrou lá dentro alguns talheres de metal e um canivete com uma variedade de funções; num dos lados tinha uma cruz branca no interior de uma espécie de escudo sobre um fundo vermelho. Um frasco de plástico com repelente de mosquitos, os restos de um pacote de lenços de papel e alguns pensos rápidos. A outra bolsa continha algo que era praticamente inidenti?cável, mas os restos da embalagem sugeriam que outrora tinha sido um pacote de guloseimas de chocolate, nozes, passas e outros alimentos energéticos.

Cortou a corda ?na que apertava a parte de cima do saco interior e logo compreendeu que Jan e Framke Bakker tornariam a sua tarefa um pouco mais fácil. Os conteúdos estavam cuidadosamente embalados em sacos de plástico separados, bem fechados. Muitos deles não tinham sido afectados pela humidade. Ursula retirou saco após saco e colocou-os em cima da mesa antes de veri?car as bolsas exteriores, onde encontrou uma garrafa de água, um fogão de campismo e uma garrafa de combustível. Quando a mochila ?cou vazia, começou a dedicar-se aos sacos de plástico. Tal como adivinhara ao ver a pesada tenda, esta era a mochila de Jan. Cuecas, camisolas, impermeáveis, um agasalho quente, roupa interior. Um saco de artigos de higiene contendo uma lâmina de barbear, sabonete, preservativos, desodorizante, analgésicos, escova e pasta de dentes. Ursula parou e olhou para os artigos espalhados diante de si: vulgares objectos funcionais embalados para uma semana de férias, uma semana que Jan e Framke Bakker tinham, sem dúvida, planeado e ansiado. E então acabaram por ir ter ao lugar errado no momento errado.

Suspirou e puxou a outra mochila para si. Mais uma vez retirou o colchão e o saco-cama e abriu a aba. Estava prestes a investigar as bolsas quando o telefone tocou: um número que ela não reconheceu.

– Ursula.

– É Ursula Andersson? – perguntou uma voz feminina com cadenciada pronúncia de Norrland.

– Sim – con?rmou Ursula e surpreendeu-se ao pensar de repente se deveria voltar a usar o seu nome de solteira, agora que estava divorciada. Não tanto por causa do nome propriamente dito, não havia muito para escolher entre Lindgren e Andersson, mas porque ela já não era uma Andersson. Ou seria? Usara esse nome durante tantos anos que talvez fosse, com ou sem um homem Andersson ao seu lado.

– Fala Renate Grossman do laboratório forense em Umeå – disse a pessoa do outro lado, interrompendo o ?o de pensamentos de Ursula. – É sobre estes seis corpos de Jämtland... julgo que é a senhora a agente encarregada do caso.

– O agente de investigação sénior é Torkel Höglund, mas pode transmitir-me a informação.

– Em primeiro lugar, temos a causa da morte. – Ursula ouviu Renate a bater no teclado para abrir as imagens relevantes. – Todos os seis foram alvejados com uma pistola de nove milímetros. Conseguimos estabelecer que quatro foram baleados no peito, mas é impossível dizer se esses disparos foram fatais. Todos foram baleados duas vezes na cabeça, à queima-roupa. A morte teria sido instantânea em resultado disso.

– Quando diz que quatro deles foram baleados no peito, isso signi?ca que os outros dois não foram ou que vocês não conseguiram determinar se assim foi?

– Não conseguimos determinar se assim foi.

– Muito bem. E que mais?

– Temos os resultados preliminares da análise do ADN aos quatro corpos, duas crianças e dois adultos, que nos pediu para veri?car.

– E?

– Os adultos eram os pais das duas crianças.

– Portanto, eram uma família.

– Sim.

Ursula não disse nada. Tinham vindo a trabalhar no pressuposto de que estavam perante uma família, mas a con?rmação causou-lhe um arrepio na espinha. Lá no meio da montanha, alguns deles deviam ter visto os outros morrer. Teriam morrido primeiro os pais ou as crianças? Fosse como fosse, não suportava pensar nisso.

– E quanto às outras lesões nos corpos? – prosseguiu Renate. – Quer que eu lhas descreva agora ou prefere que lhe envie apenas os pormenores?

– Envie-mos para cá, isso bastará.

Em seguida, mudou de ideias.

– Imagino que não haja nada que possa ajudar na identi?cação!

Renate bateu no seu teclado durante alguns segundos.

– Não, todos os dentes foram removidos e não há nada relativo a possíveis operações ou consultas hospitalares que pudessem ser detectadas. Lamento.

– Obrigada, de qualquer forma.

– Boa sorte.

Ursula pousou o telefone, pensou por um momento, depois pegou nele e marcou um número. Torkel atendeu de imediato.

– Telefonaram do laboratório forense de Umeå – disse Ursula sem preâmbulos. – Os resultados preliminares de ADN con?rmam que se tratava de uma família.

– Muito bem – disse Torkel. – Ao menos temos essa certeza – acrescentou, para o caso de a sua breve resposta poder ser interpretada como falta de interesse ou mesmo truculência.

– Aquelas famílias que Vanja tinha encontrado – prosseguiu Ursula. – Uma norueguesa e duas suecas?

– Sim?

– Eu gostaria de obter uma amostra de ADN de um parente próximo de cada família para comparar.

– Achas mesmo que poderia ser alguma delas? – Torkel não pôde deixar de se mostrar céptico. – Quero dizer, nenhuma desapareceu no período em causa.

– Eu sei, mas quero poder eliminá-las completamente.

Torkel fez um gesto de assentimento para consigo. Claro que ela queria isso. Ursula não deixava nada ao acaso; era assim que alguém se tornava a melhor.

– Vou pôr o Billy e a Jennifer a tratar disso.

– Óptimo.

– Só mais uma coisa – disse-lhe Torkel antes que ela terminasse a chamada. – Se não encontrares nada de particular nessas mochilas, voltamos para Estocolmo hoje à noite.

– Até que en?m.

E desligou.

Ursula pôs de lado o seu telefone e voltou à mochila encardida que tinha em cima da mesa à sua frente. Cortou ao longo do fecho de correr e en?ou a mão dentro da bolsa. Algo duro. Rectangular. Embrulhado em plástico. Dois sacos de plástico, como se con?rmou. Ainda antes de ter retirado o segundo saco, já julgava saber o que tinha encontrado. Uma pequena e esguia câmara digital. A bateria já se esgotara há muito tempo, claro, mas a tampa da ranhura do cartão de memória estava fechada e parecia intacta. Ursula não fazia ideia do que acontecia às imagens num cartão de memória se fossem envoltas em plástico e ?cassem enterradas durante dez anos, mas sabia a quem perguntar. Desta vez não lhe telefonou; foi procurar Billy.


SHIBEKA KHAN causava muito boa impressão: falava de forma clara e intensa e o seu sueco era praticamente ?uente, com um extenso vocabulário. Linda sentiu-se muito entusiasmada, ali sentada no sofá com a mulher de que já tanto tinha ouvido Lennart falar. Do outro lado dela estava o rapaz que lhes fora abrir a porta; aparentemente, era o ?lho mais velho de Shibeka. Ele nada dissera desde que se sentara, mas ia acompanhando cada palavra, cada movimento, com os seus atentos olhos castanhos. Linda e Shibeka começaram por algumas observações bem-educadas; Linda agradeceu a todos por lhe darem a oportunidade de falar com eles. Shibeka mostrou-se amigável e acolhedora, disse como estava satisfeita por eles terem vindo, mas a outra mulher, Melika, um pouco mais jovem e mais rechonchuda que Shibeka, estava claramente desconfortável com a situação. Isso tornara-se óbvio pela sua postura rígida e pelas breves frases que de vez em quando proferia na sua língua materna. Linda não precisava de entender a língua para perceber que esta entrevista não ia ser fácil. O facto de o sueco de Melika ser mínimo, o que signi?cava que tudo o que ela dissesse tinha de ser interpretado por Shibeka, tornava ainda mais difícil a tarefa de Linda ultrapassar as defesas de Melika e construir um relacionamento. O pashtun era uma língua bonita, e Linda tentava olhar para Melika com interesse e compreensão enquanto Shibeka lhe ia traduzindo as perguntas. Conversaram durante um bocado sobre o tempo e sobre se elas estavam a gostar da vida na Suécia. O sueco transformava-se em pashtun e seguidamente em sueco outra vez. A resistência de Melika parecia atenuar-se; era impossível ter a certeza, mas pelo menos ela abanara a cabeça algumas vezes e já não desviava os olhos de Linda.

Era importante que isto corresse bem. Ela tinha a certeza de que Lennart não a queria aqui; era um dos melhores jornalistas que ela conhecia, mas um autêntico lobo solitário, por isso, algo especial. Tinha ?cado muito orgulhosa quando ele lhe pedira para vir consigo e queria que percebesse que ela era um recurso valioso, não sua inimiga.

– Quantos ?lhos tem, Melika? – perguntou-lhe ela.

– Ela tem um ?lho, tem agora oito anos – a resposta veio de Shibeka.

– Como se chama ele?

– Ali.

Linda aquiesceu.

– Então ele nunca conheceu o pai?

Entendeu a resposta antes de Shibeka falar; Melika abanou a cabeça.

– Não, ele nasceu em Novembro daquele ano.

Que triste. Eram mais ou menos da mesma idade, ela e Melika; Linda ia fazer trinta e um em Novembro. O seu gato tinha morrido há três anos; fora a pior coisa que lhe acontecera. Melika tinha perdido o marido quando estava grávida e criara o ?lho sozinha. Podiam ser praticamente da mesma idade, mas as suas vidas eram tão diferentes quanto podiam ser.

– Deve ter sido muito difícil – disse Linda com sinceridade. – Importa-se que eu lhe faça algumas perguntas sobre o seu marido?

– Ela não entende porquê – disse Shibeka quando Melika parou de abanar a cabeça.

– Queremos ver se podemos ajudá-la a descobrir o que aconteceu. É por isso que estamos aqui. Para a ajudar.

Shibeka disse algumas palavras a Melika naquela bela língua; a resposta de Melika pareceu hostil. Shibeka mostrou-se um pouco envergonhada.

– Ela gostava de saber como pode ajudá-la.

Linda fez um gesto de assentimento; não tinha qualquer intenção de desistir já. Precisava de encontrar uma maneira de chegar àquela mulher, que parecia determinada a não a deixar entrar.

– Estamos a tentar descobrir a verdade.

Linda reforçou as suas palavras com um leve sorriso, mas não recebeu nada em troca. Shibeka virou-se para ela, mostrando-se desapontada.

– Como é que a verdade nos poderia ajudar?, pergunta ela. Iria trazê-los de volta? – disse Shibeka, e acrescentou: – Desculpe, ela não se sente muito positiva em relação a este assunto.

– Não faz mal, eu compreendo. Mas não seria melhor saber do que não saber?

– Ela não pensa assim.

– Não quer saber o que aconteceu?

– Não. Ela já sabe. Ele veio para a Suécia. Trabalhou muito. Era honrado. Era um bom homem. Mesmo assim, desapareceu.

– É exactamente por isso que queremos descobrir a verdade, precisamente porque ele era um bom homem.

Pashtun de novo. Linda recostou-se para trás e tentou mostrar-se calma. A curiosidade não era útil; tinha de se manter composta, digna. Como ela não falava pashtun, a sua linguagem corporal era ainda mais importante. Algo que Shibeka lhe dissera parecia estar a dar resultado; desta vez, o tom de voz de Melika foi mais musical, menos eriçado.

– Ela diz que você pode perguntar.

Linda baixou os olhos para as suas anotações.

– O Said tinha uma autorização de residência, não tinha?

– Sim.

– Ele era dono de uma loja?

– Em sociedade com dois primos de Melika. Era a vez de o Said fechar a loja naquela noite, mas nunca voltou para casa.

– E os primos não sabem nada?

Shibeka abanou a cabeça.

– Eu própria lhes perguntei. Tinham saído algumas horas antes.

– Pode perguntar à Melika, por favor? Eu gostaria de ouvir isso dela.

A resposta veio logo.

– Ela diz a mesma coisa.

– Não havia problemas com dinheiro nem com qualquer outra coisa?

Melika sorriu quando entendeu a pergunta; Shibeka também sorria.

– As coisas estavam a correr bem ao Said – explicou Shibeka. – Muito bem, na verdade. Ele era consciencioso e trabalhador.

Linda retribuiu o sorriso, mas começava a sentir-se frustrada. Era uma conversa agradável, mas ela não estava a conseguir chegar a lado nenhum. Precisava de aguçar as suas perguntas.

– Veio algum homem visitá-la e fazer-lhe perguntas sobre o Said cerca de uma semana mais tarde? Creio que alguém veio falar consigo.

– Ela diz que não. Não veio ninguém.

Linda aquiesceu.

Mas isso não foi tudo o que ela disse, pensou Mehran, olhando para Melika. Deixara-se ?car sentado e quieto a ouvir a conversa enquanto o ritmo da sua pulsação aumentava. O tom de voz de Melika alterara-se logo que as perguntas se tornaram sensíveis. Ele achou que a mãe também tinha notado a diferença.

Ficou convencido de que Melika estava a mentir. Alguém fora falar com ela, tinha a certeza disso. Juntou-se à discussão.

– E quanto ao Joseph? Reconheces esse nome, Melika? – perguntou-lhe ele em pashtun. Melika virou-se para ele, parecendo assustada.

– O que é que lhe disse? – quis saber Linda.

Mehran ignorou a mulher sueca e lançou um olhar feroz à sua mãe.

– Não traduzas! Isto é só entre nós.

Uma Melika diferente da que ele conhecia estava agora diante de si, uma mulher que, sem sombra de dúvida, não queria estar ali. Ela praticamente lhe assobiou:

– Não o conheço. Nunca ouvi esse nome.

Estava a mentir de novo.

– O Said conhecia-o; eu já sei isso. Diz a verdade. Não para ela – disse-lhe Mehran, acenando com a cabeça na direcção de Linda. – Para nós.

Melika abanou a cabeça com raiva.

– Já te disse, não conheço nenhum Joseph!

Todos se calaram. Linda ?cou confusa.

– Alguém me pode explicar o que ela disse, por favor?

Shibeka estava prestes a falar, mas Mehran chegou lá primeiro.

– Ela diz que não quer conversar mais.

Linda abriu os braços para trás.

– Mas porque não?

– É o que ela diz – disse-lhe Mehran, pondo-se em pé. – Portanto, acabamos por aqui.

Linda ?cou a olhar para ele.

– Mas ainda mal começámos.

Mehran conseguia entender a sua frustração. Ela percebia que tinha acontecido alguma coisa, mas não tinha ideia do que poderia ser.

A verdade chegaria. Não para a mulher loura com quem a sua mãe estivera a falar. Não para o homem que estava sentado na cozinha. Chegaria para ele.

Para Joseph.


HÅKAN PERSSON RIDDARSTOLPE estava sentado no seu pequeno gabinete do sexto piso do Quartel-General da Administração Nacional da Polícia a completar as avaliações ?nais, quando alguém bateu na ombreira da porta. Håkan levantou uma mão e demorou a concluir a frase que estava a escrever antes de se virar para trás, ostentando uma expressão que ele esperava que mostrasse como estava ocupado. Seria algum desperdício de tempo.

Fossem quais fossem as suas intenções, o seu rosto não revelou nada para além de completa surpresa ao ver quem estava ali em pé.

Sebastian Bergman.

Håkan Persson Riddarstolpe poderia com toda a facilidade lembrar-se de uma centena de pessoas que tivessem mais probabilidades de vir ter com ele, incluindo o rei e Meg Ryan – na verdade, esperara secretamente que ela viesse bater à sua porta desde que a vira em When Harry Met Sally, em 1989.

– Bom dia, como vai isso? – disse-lhe Sebastian como se tivesse o hábito de aparecer por ali para uma conversinha. Na verdade, há vários anos que eles não se viam; há mais de dez anos, pensou Håkan.

– Que raio queres tu?

Não conseguira afastar a surpresa nem a raiva da sua voz.

– Posso entrar por um minuto? – disse-lhe Sebastian enquanto penetrava sem esperar pelo «não» que deveria seguir-se. Tirou uma pilha de papéis e pastas de cima de uma cadeira e sentou-se.

Håkan Persson Riddarstolpe contemplou com aversão aquele homem que acabara de se fazer convidado para o seu gabinete. Isto era típico.

Sebastian Bergman queria entrar e sentar-se.

Sebastian Bergman entrava e sentava-se.

Sem sequer pensar se isso era conveniente, se estava a incomodar Håkan, se Håkan queria visitas ou não. Nada tinha mudado ao longo dos últimos dez anos. Aparentemente, o Universo continuava a girar em torno de Sebastian Bergman.

Naqueles tempos, eles realmente falavam com bastante frequência. Eram mais ou menos da mesma idade, tinham um percurso académico semelhante e trabalhavam dentro da mesma organização. Teria sido um exagero dizer-se que eram amigos, mas haviam tido uma relação pro?ssional baseada no respeito mútuo, ou pelo menos assim pensara Håkan.

Em 1999, Sebastian estivera no seu auge. Os dois livros que publicara sobre Edward Hinde tinham-lhe rendido uma grande quantidade de elogios – bem merecidos, na opinião de Håkan. Sebastian tornara-se uma verdadeira autoridade na sua área, alguém que aparecia nas notícias e no sofá durante os programas diurnos da televisão a explicar os crimes mais brutais e a oferecer uma perspectiva sobre o carácter daqueles que estavam por trás de tais acontecimentos. Desde que Sebastian se retirara das aparições públicas, esse papel tinha sido ocupado por Leif G. W. Persson, mas poderia ter sido Håkan Persson Riddarstolpe a sentar-se lá para esclarecer os crimes terríveis, com a sua voz plena de con?ança.

Devia ter sido.

Teria sido.

Se não fosse Sebastian Bergman.

Em 1998, Sebastian mudara-se para a Alemanha, para Colónia, tanto quanto Håkan se lembrava, deixando a porta aberta a um sucessor.

Cerca de um mês depois, foram encontrados numa mina dos arredores de Sala os corpos de três meninas. Os antigos poços tinham estado fechados desde a década de 1950 e o município decidira abri-los ao público. Quando desceram lá abaixo para efectuarem as veri?cações de segurança, ?zeram aquela macabra descoberta. Três adolescentes estavam lá sentadas e rodeadas de almofadas, animais e velas queimadas. Os testes forenses revelaram quase de imediato que as meninas tinham morrido em resultado de um veneno, ingerido por via oral. Foi encontrada no local uma garrafa térmica com motivos ?orais que continha os restos de um chá envenenado e havia um copo ao lado de cada rapariga.

Sebastian tinha ido para longe, deixando nos meios de comunicação um vazio que precisava de ser preenchido. Håkan Persson Riddarstolpe, na altura funcionário da Administração Nacional da Polícia, tal como agora, vira a sua oportunidade. Teria sido uma tolice ignorá-la. O caso atraíra uma enorme quantidade de publicidade, e havia uma necessidade de alguém poder explicar o que levara três raparigas, ?guras reconhecidamente bastante solitárias e «alternativas», a tomarem a decisão conjunta de acabarem com as suas vidas numa antiga mina abandonada.

Håkan era o homem capaz de satisfazer essa necessidade.

De repente, ele não era apenas um especialista em suicídio ritual e colectivo mas também, na sua qualidade de psicólogo, bem versado em temas como a vulnerabilidade das mulheres jovens e as crescentes exigências que lhes eram impostas pela sociedade. Não tardou a encontrar-se nos estúdios da televisão e da rádio a perorar sobre a ?xação na própria aparência, as normas enviesadas, a crescente pressão para obter resultados e a baixa auto-estima. Estava exactamente onde queria estar, onde devia estar.

Até Sebastian Bergman decidir voltar da Alemanha.

Mais tarde, Håkan tentara encontrar uma razão para o regresso do seu colega, mas não parecia haver uma – a não ser que Sebastian quisera colocá-lo no seu lugar.

O que, aliás, fez, e de que maneira.

Após passar apenas um dia em Sala, ele anunciara que as três meninas tinham sido assassinadas, e algumas horas mais tarde as equipas forenses con?rmaram as conclusões dele quando efectuaram um segundo exame e descobriram sinais de que tinha sido usada uma força externa para administrar o veneno. Chamaram a Riksmord e, embora Sebastian não tivesse desempenhado um papel activo na investigação, mesmo assim recebeu uma grande quantidade de elogios quando por ?m localizou o assassino. Elogios completamente imerecidos, na opinião de Håkan.

Mas essa não era a pior parte. Já antes algumas pessoas se tinham enganado e voltado, sendo-lhes dada uma segunda oportunidade. A pior parte foi o facto de Sebastian ter aparecido num programa noticioso destruindo-o completamente. Dissera que quem pensava que aquele era um caso de suicídio colectivo devia voltar para a escola e estudar qualquer coisa diferente; que a pessoa em causa não era claramente adequada para a psicologia criminal. Repetira as palavras e as frases que Håkan tinha usado; nos lábios de Sebastian, sob essas novas circunstâncias, elas pareceram ridícula e totalmente irracionais.

Sim, as pessoas podiam voltar depois de terem cometido um erro, mas não se o perito incontestável nesse campo especí?co destruísse na totalidade a credibilidade delas e as remetesse por toda a eternidade para as ?leiras dos incompetentes. No ?nal, Håkan ?cara aliviado por manter o emprego. Sabia que o seu futuro tinha estado em discussão depois de Sala, mas ainda ali estava, mantido bem longe de qualquer publicidade, bem longe dos principais casos e das investigações mais complexas. Hoje em dia era responsável por questões de recursos humanos, veri?cava a aptidão dos candidatos, fazia aconselhamento a traumatizados e avaliava as candidaturas para promoção e desenvolvimento pro?ssional. Era o que era. Já há treze anos. Fazendo sempre as mesmas coisas no mesmo gabinete, longe das luzes da ribalta e do dinheiro a sério. Longe do sucesso que o homem sentado à sua frente conseguira.

– O que queres? – perguntou-lhe Håkan de novo, embora desta vez conseguisse exercer algum controlo, manter um tom de voz mais neutro.

– Quero pedir-te um favor – respondeu Sebastian como se viesse pedir-lhe uma caneta emprestada.

Mais uma vez, Håkan foi apanhado de surpresa. Entre todas as razões que poderia ter imaginado para a visita de Sebastian, um favor seria a última coisa da lista.

– Porque haveria eu de te fazer um favor? – disse-lhe ele, embora, ao dizê-lo, lhe ocorresse que poderia ter sido mais sensato perguntar-lhe que tipo de favor.

– Porque estás numa belíssima posição de negociação. – Sebastian susteve calmamente o olhar do seu interlocutor.

– O que queres dizer com isso? – Håkan manteve-se à defesa. Tanto quanto se lembrava, muito poucas pessoas tinham conseguido alcançar um resultado positivo nas suas negociações com Sebastian Bergman. Quando obtinham algum.

– Quero dizer que preciso da tua ajuda para uma coisa, e tu podes mais ou menos ditar o que pretendes em troca.

Ainda aquela expressão franca e honesta. Håkan pensou depressa. Sebastian também não gostava de si. Desde há anos que se mantinha à distância. A antipatia era mútua.

E, no entanto, ali estava ele.

– O que é que tu pretendes? – disse ele por ?m, e Sebastian inclinou-se para a frente.


ANITHA TINHA passado o dia na sua secretária, enterrada nos manuais relacionados com o sistema do computador: três espessas pastas que normalmente habitavam uma prateleira por cima da fotocopiadora do departamento. A primeira pasta já tinha sido muito manuseada. Continha o manual do utilizador para os leigos e visava responder às perguntas mais comuns. Após uma breve e infrutífera pesquisa, Anitha decidiu concentrar-se nas segunda e terceira pastas. Queria saber como funcionava o sistema de segurança e como é que os arquivos eram recuperados após algum acidente. Um par de horas mais tarde, tinha descoberto que o sistema principal tinha dois backups. Se compreendera correctamente, um servidor em espelho copiava todas as informações do servidor principal a cada três minutos. Essa era a salvaguarda principal e a primeira linha de defesa. Estava completamente automatizada e fora concebida para minimizar a perda de dados. O manual não dizia onde estava localizado esse servidor, mas era evidente que a I-tech, a empresa que originalmente lhes instalara o sistema, era responsável tanto pelo servidor como pelas actualizações regulares.

O segundo sistema de segurança era, sem dúvida, antiquado e consistia em ?tas que copiavam as informações todos os dias. Essas ?tas tinham de ser trocadas e armazenadas; os manuais não diziam a quem competia tal trabalho, mas Anitha suspeitou que ele recaísse no departamento interno de TI, em parte porque manter as tarefas mais simples com o pessoal da casa signi?cava que se poupava dinheiro, e em parte porque o departamento de TI não tinha reduzido o número de funcionários após a Administração Nacional da Polícia ter adquirido o sistema da I-tech, o que deveriam ter feito se esse aspecto do seu trabalho tivesse desaparecido. Quanto mais Anitha pensava nisso, mais convencida ?cava, e, se houvesse algum elo mais fraco na cadeia, esse elo era o departamento de TI. Ela podia esquecer tudo o que tivesse a ver com a I-tech; eles eram pro?ssionais. O programa viera originalmente de Israel, embora a I-tech fosse uma empresa sueca. O software tinha sido desenvolvido a ?m de ser usado pela Mossad, o serviço israelita de inteligência, e pelas Forças Armadas desse país; só numa fase posterior se tornara um produto comercial. Anitha não tinha dúvidas de que a I-tech continuava sob controlo dos israelitas. Os judeus eram especialistas em matéria de negócios, toda a gente sabia disso, e, na sua opinião, de modo algum deixariam que uns tarados suecos dos computadores arrecadassem todo aquele dinheiro.

Tinha investigado a empresa enquanto as negociações estavam em curso e até escrevera uma carta anónima à Administração Nacional da Polícia apontando a inconveniência de se associarem à I-tech devido à ligação com o Estado sionista. Obviamente isso não surtira qualquer efeito junto daqueles que tomavam as decisões; as suas cartas anónimas nunca tinham surtido efeito. A I-tech conseguira o contrato, e ela teve de admitir que o sistema era excelente. Era estável, as variáveis de busca e as funções de ?ltro extremamente e?cientes. O que di?cilmente surpreendia; a?nal, eles estavam cercados de inimigos, por isso, tinham de conseguir uma qualidade superior. Ao contrário do que sucedia ali na Suécia, onde quase ninguém conseguia nada para além de correcção política e fraqueza. Ela supunha que os judeus tinham de ser assim mesmo, entalados entre os muçulmanos e os outros terroristas.

Continuou a folhear as pastas, só para ter a certeza de que não tinha perdido nada. Até passou algum tempo a consultar a lista de erros para ver se a poderia ajudar, e foi aí que encontrou a pista ?nal de que precisava.

Aquilo era conhecido como Erro 237.

A explicação era longa, sob o título «Erro de escrita suave com backup-exec.» Continuou a ler, e mesmo no ?nal daquele texto longo e incompreensível, repleto de termos técnicos e de abreviaturas, dizia: «Por favor, contacte apoio informático NPB.» «Procurai e achareis», pensou ela. Demorara tempo, mas ao menos agora tinha uma possível abertura. Parecia provável que o backup em ?ta estivesse no edifício. A alteração ao ?cheiro sobre os dois homens afegãos tinha sido efectuada há quatro dias, o que signi?cava que existia uma possibilidade de o ?cheiro original inalterado ainda estar por perto.

Mas por quanto tempo eram guardados os backups? Ela sabia que as ?tas eram reutilizadas; seria impossível guardá-las todas, eles simplesmente não dispunham dessa capacidade de armazenamento lá em baixo. Mas supôs que as manteriam durante pelo menos um mês, pelo que havia uma forte possibilidade de o original ainda estar algures entre todos aqueles uns e zeros.

Se ela conseguiria ter acesso a eles era uma outra questão, claro. Não dispunha da autorização nem dos conhecimentos técnicos, por isso precisava de ajuda – e julgava saber exactamente onde encontrá-la.

 

Ele mostrou-se surpreendido quando ela lhe bateu à porta. Morgan Hansson vestia uma camisa branca bastante esticada sobre a barriga e usava uns óculos com armação de massa; tinha cabelos encaracolados de comprimento médio e barba. Uma grande barba. A barba era a primeira coisa que se notava; metade do rosto dele parecia consistir num exuberante matagal. A segunda coisa que se notava eram as sandálias castanhas que usava sempre. Parecia uma caricatura do maníaco dos computadores que efectivamente era. O seu gabinete era sinal disso mesmo. Havia papéis por toda parte e as prateleiras estavam pejadas de monitores avariados e de unidades de sistema empilhadas umas em cima das outras. O pouco espaço restante estava atravancado com cabos cinzentos, impressoras, discos rígidos e outros equipamentos. Tudo o que fosse defeituoso e estivesse relacionado com computadores parecia ter ido parar ao gabinete dele. Morgan largou rapidamente os cabos em que segurava; a sua mão estava quente e húmida quando a cumprimentou. Só podia ser suor.

– Olá, precisas de ajuda? – perguntou-lhe ele.

Anitha olhou para aquele caos e sentiu-se desconfortável. Não fazia ideia de como haveria de lhe explicar o seu problema.

– Não, estava apenas a dar um passeio.

– Aqui em baixo?

– Sim, precisava só de espairecer, sabes? De ir para longe do chefe.

Morgan riu em tom conspiratório. Ela sorriu-lhe e percebeu que ele quase parecia envergonhado pela sua visita enquanto retirava uma pilha de caixas da cadeira que tinha em frente à sua secretária.

– Por favor, senta-te.

Anitha sacudiu a cabeça.

– Não, obrigado... estava só a pensar se gostarias de almoçar comigo!

A ideia de o levar dali para fora por um bocadinho tinha acabado de lhe ocorrer. Desde há algum tempo que Anitha suspeitava de que Morgan gostava dela; era sempre ele que lhe telefonava de volta quando ela contactava o departamento de TI para reclamar e cumprimentava-a sempre com um aceno de cabeça quando se cruzavam nos corredores. Ao que parecia, ela estava certa. Morgan corou e não conseguia olhá-la nos olhos. Ele era uma ternura, de certa forma. Demasiado gordo e hirsuto, mas meigo, como um animal de estimação felpudo.

– Se tu tiveres tempo, claro – disse-lhe ela, ainda a sorrir.

Ele pareceu genuinamente surpreendido com a pergunta.

– Claro que tenho.

Morgan pegou no seu casaco bege, que lhe ?cava demasiado curto. Ela pensou se seria o único que tinha. Nunca o vira com outra coisa vestida senão aquele casaco pálido, inadequadamente desportivo, inspirado em Ralph Lauren, com umas lapelas de couro castanho. Não combinava de todo com ele. Poderia ter resultado nalgum jogador de golfe ou nalgum contabilista que tentasse mostrar-se jovial, mas não fazia nada por um homem que parecia um burgesso.

– Na cantina ou na cidade?

– Vamos para a cidade – disse Anitha com toda a rapidez.

Era melhor sair dali; além disso, na cantina do pessoal alguém poderia vê-los juntos. Ela não queria isso.

 

Puseram-se a caminho ao longo da Kungsholmsgatan. Ao menos já tinha parado de chover; o Sol tentava abrir caminho por entre as nuvens. Morgan parou, mostrando-se um pouco perdido.

– Onde havemos de ir?

Anitha passou rapidamente em revista os lugares que conhecia; queria evitar tudo o que ?casse demasiado perto do quartel-general da Polícia.

– Há um italiano em Sankt Göransgatan que é muito bom, se tu não te importares!

– Parece-me excelente. Habitualmente, como na cantina.

«Ou no McDonald’s, a julgar pela ?gura que tens», pensou ela.

– Bom, nesse caso, uma mudança vai fazer-te bem – disse-lhe ela ao mesmo tempo que lhe dava uma palmadinha no braço e se dirigia para o Parque Kronoberg. Ele disse-lhe que sim com a cabeça e subiram ambos a íngreme colina que levava ao parque. Estava um belo dia de Outono, embora a relva continuasse molhada. Encontraram várias mulheres com carrinhos de bebé. Quanto mais se afastavam da esquadra da Polícia, mais ligeiros se tornavam os seus passos. Era como se experimentassem a sensação de se libertarem das paredes daquele colosso atrás deles, e a conversa ?uía mais livremente do que Anitha esperara. Tentou manter-se concentrada nele, o que não lhe era nada difícil. Ela fazia perguntas, ele respondia. Para sua surpresa, descobriu que era de facto muito simpático.

Quando chegaram à Fridhemsplan, ela sugeriu que deviam fazer uma caminhada mais longa, talvez até ao pavilhão junto ao Lago Mälaren, em Norr Mälarstrand. Ainda estava aberto, e ela não ia lá há anos. Morgan nunca tinha ido, mas ?caria muito contente por experimentar. Anitha poderia ter-lhe talvez sugerido o McDonald’s em Västberga, e ele teria trotado ao seu lado.

Quando viraram para baixo em direcção à água, Anitha pensou se teria chegado a altura de abordar a verdadeira razão do seu convite para almoçar. Deveria ela esperar até que estivessem sentados, até que estivessem a tomar café, até que estivessem no caminho de regresso? Tinha medo de que quanto mais tempo o adiasse, mais difícil se tornasse abordar o tema de uma maneira natural. Ao mesmo tempo, precisava que ele sentisse que ela lhe pedia ajuda porque se estavam a divertir e porque con?ava nele. Era complicado. Talvez fosse melhor esperar até ao café.

Ela calara-se e devia ter ?cado com um aspecto preocupado, porque Morgan parou e olhou-a de forma penetrante.

– Aconteceu alguma coisa? Pareces um pouco transtornada.

Ela levantou os olhos e decidiu que ele lhe fornecera a abertura de que precisava. Se achava que ela estava transtornada, só precisava de seguir por esse caminho.

– Tenho uma con?ssão a fazer.

A voz dela foi séria, directa. Completamente diferente da maneira como falara até ali. Ficou muito contente com o seu tom.

– O quê?

– Fiz uma grande trapalhada. Já agora, ?cas a saber... tem a ver com o sistema de TI. No trabalho.

Ele ?cou pálido e mostrou-se logo preocupado. Foi como se uma nuvem carregada de chuva aparecesse de repente sobre a sua cabeça e vertesse todo o seu conteúdo.

– O que aconteceu?

Anitha virou-se e olhou para o lago. A reacção dele fora um pouco forte demais. Se estava preocupado antes de ela sequer lhe contar o que supostamente tinha feito, como ?caria quando sobreviesse a crise? No entanto, agora já era tarde demais para parar.

– Vamos comer primeiro. Não te convidei para o almoço para que tu pudesses resolver os meus problemas. – Tentou mostrar-se valente, enquanto ao mesmo tempo lhe enviava um sinal de que precisava de alguém. Dele. – Assim pelo menos já terás alguma coisa no estômago antes de chegares à conclusão de que eu sou uma idiota completa – continuou ela, olhando para o chão.

– Não acho que tu sejas uma idiota.

– Tu não sabes o que eu ?z.

– Então conta-me.

Um respirar fundo, um pestanejar envergonhado. Ela agora tinha de transmitir fraqueza.

– Eu quis ajudar uma colega a encontrar uma coisa no sistema, mas premi o botão errado. Aquilo simplesmente desapareceu, e agora não consigo encontrá-lo.

Morgan riu e ?cou mais descontraído. Não estava a ver o problema. Obviamente que não. Ela ainda não chegara lá.

– Isso não é nada, só precisas de o recuperar. Vou ajudar-te depois do almoço.

Ela assentiu com a cabeça, tentando encontrar a quantidade certa de pressão para a pergunta que tinha de fazer em seguida. Afastou-se, na esperança de que um pouco de ansiedade solitária se revelasse mais e?caz naquele momento.

– Isso não é tudo...

Ele seguiu-a e colocou-se mesmo atrás dela.

– Continua.

Anitha não se virou. Deixou a sua cabeça pender, contemplou uma ponta de cigarro que estava no chão. Pensar que as pessoas ainda fumavam! Ela simplesmente não conseguia entender. Hitler nunca fumara. Ele odiava os fumadores. Ela percebia porquê.

– Era um ?cheiro con?dencial.

Ela manteve os olhos ?xos no ?ltro amarelo já achatado, no papel sujo que se desintegrara com a humidade e a luz do Sol. A sua táctica parecia estar a resultar; ele ainda não fugira. Decidiu virar-se para trás e confrontá-lo no último momento possível; sentia que, a cada segundo, se aproximava mais, tanto física como emocionalmente.

– Acalma-te, tenho a certeza de que isso se resolverá – disse-lhe ele. – Se não tens autorização, não podes apagar nada de forma permanente; deve estar por lá em algum lugar.

A voz dele foi mais suave, ela percebeu que queria realmente ajudá-la. Ele tocou-lhe gentilmente no ombro. Talvez estivesse na altura de se virar e ?sgá-lo. Decidiu esperar mais algum tempo; só teria uma oportunidade, e queria torná-la ainda mais crítica, uma questão de vida ou de morte. Ele tinha de sentir que ela estava a colocar a vida dela nas suas mãos, e depois não poderia de modo algum dizer-lhe que não. Anitha sussurrou para a ponta de cigarro:

– Vou perder o meu emprego.

– Não sejas tola.

Ela sentiu pressão da mão no seu ombro aumentar. Uma mão que dizia: Estou aqui para ti. Virou-se, com o desespero estampado no rosto. Amaldiçoou o facto de não conseguir chorar quando queria; isso teria ajudado imenso.

– Vou sim. Acedi com a identi?cação do chefe. Nem sequer devia ter feito aquela pesquisa. Eles vão despedir-me.

A cor desapareceu do rosto dele quando toda a importância do que ela lhe dissera o atingiu. Ela ouviu os sons da cidade e o restolhar das folhas por cima deles quando uma suave brisa passou entre as árvores. Uma buzina de carro ao longe. Morgan deu um passo para trás. Anitha sentiu que as coisas estavam a fugir do seu controlo. Adoptou a expressão mais implorante que conseguiu; tinha de transformar aquilo num dilema moral em que ela era uma boa pessoa e não alguém que pretendia bisbilhotar só porque descobrira algo através do Investigação Hoje.

– Eu só queria ajudar uma colega em Solna. A Eva Gransäter... conheces?

Felizmente, Morgan abanou a cabeça e Anitha prosseguiu, congratulando-se por se ter lembrado do nome da agente de investigação responsável.

– Eu devia ajudá-la a encontrar a pessoa certa a contactar na Säpo, mas depois premi o botão errado e tudo aquilo simplesmente desapareceu.

Ele pareceu ?car a pensar no assunto, a matutar se devia ir embora ou ?car e ouvir.

Talvez ela tivesse sido demasiado rápida. Deviam ter tido um almoço decente primeiro, ter ?cado a conhecer-se um pouco melhor, talvez ter-se encontrado algumas vezes durante a semana seguinte ou algo assim. Mas era fácil ser-se sensato depois dos acontecimentos. Ela desviou o olhar de novo, ignorando agora a ponta de cigarro. Isto era sério. Só restava uma possibilidade. Teria de ser ele a escolhê-la a si.

– Desculpa, eu nunca quis arrastar-te para a minha trapalhada. Não vamos falar mais nisso. Eu compreendo. Realmente, lamento muito.

Começou a afastar-se dele. Tinha de lhe oferecer uma rota de fuga, a hipótese de lhe dizer que não, não vindo atrás dela. Justamente quando pensava que tinha perdido, ele ?nalmente falou. Foi uma palavra muito vulgar, longe de ser tão dramática quanto ela teria gostado, no fundo, mas foi o que bastou.

– Espera.

Ele já tinha feito a sua escolha.


VANJA ESTAVA quinze minutos atrasada quando abriu a porta do Roppongi e entrou. Na verdade, não lhe apetecia sushi; ainda estava um pouco ressacada e o seu corpo ansiava por gorduras, mas Peter tinha sugerido aquele lugar e ela não tivera energia para se lembrar de uma alternativa.

Bebera demasiado vinho na noite anterior. No apartamento de Sebastian Bergman. Era algo que ela jamais esperara fazer, mas também jamais esperara que o seu pai estivesse sentado dentro de uma cela por ser suspeito de obscuras transacções ?nanceiras. Tinha sido um dia muito estranho. O mundo virado ao contrário. O seu pai desapontara-a, e ela tinha visto um lado completamente diferente de Sebastian. A combinação do vinho e da preocupação dele tinham-lhe permitido repelir os pensamentos sobre Valdemar durante algum tempo, mas, após um rápido pequeno-almoço com Sebastian, nessa manhã eles tinham regressado de forma inexorável.

Ela precisava de descobrir mais.

Descobrir tudo o que houvesse para saber.

Vanja pensara em todas as pessoas que conhecia su?cientemente bem para lhes pedir ajuda, de preferência na Autoridade de Crimes Económicos. Havia alguém? Sim, Peter Gornack. Colega de escola noutros tempos, ex-namorado, mas sem ressentimentos, se Vanja não se enganava. Há alguns anos ele trabalhava nessa unidade; ainda lá estaria? Ligou para a central e transferiram a chamada para ele.

Peter não era idiota; percebeu o que ela queria. Não se viam há anos, e agora ela queria saber se ele gostaria que se encontrassem para almoçar, justamente quando o seu departamento andava a investigar o pai dela. Mas disse-lhe que sim. Estava à sua espera quando ela lá chegou, numa mesa ao pé de uma das enormes janelas com vista para a Hantverkargatan. O local convinha perfeitamente a Vanja; as mesas da área principal de refeição eram demasiado próximas, e ela não queria que ninguém escutasse a conversa deles.

Peter levantou-se para a cumprimentar e mostrou-se inseguro sobre se haveria de a abraçar ou não.

– Olá, há quanto tempo! – Ela facilitou as coisas tomando a iniciativa de o abraçar.

– De facto – disse ela, despindo o casaco e sentando-se no banco ao lado dele.

– Como estás?

– Já estive melhor.

– Compreendo...

Calaram-se e Vanja passou os olhos pela ementa. O prato do dia era tori katsu com maionese picante. Não sabia se era dos efeitos tardios do álcool ou do episódio do dia anterior na casa de banho, mas de repente a maionese picante transformou o tori katsu na escolha óbvia. Também pediu uma água mineral quando a empregada veio, enquanto Peter se decidiu por um sushi grande.

– Obrigada por teres vindo – disse-lhe Vanja depois de terem feito os pedidos.

– Não há problema, mas não podemos falar sobre as investigações ao teu pai – disse Peter com uma expressão grave.

– Ouvi dizer que existiu um inquérito anterior que não chegou a lado nenhum – continuou Vanja como se não tivesse ouvido uma palavra do que ele dissera. – Porque pegaram nisso de novo? O que mudou?

Peter suspirou. Algures lá no fundo, quando concordara em encontrar-se com ela, já sabia que tudo aquilo se centraria no seu trabalho. Só podia culpar-se a si, e havia algumas coisas que lhe poderia dizer sem comprometer a sua posição. Só precisava de escolher as palavras com cuidado.

– Vieram à luz informações complementares em relação ao inquérito anterior – disse ele, bebendo um pouco da cerveja com baixo teor alcoólico que tinha pedido enquanto esperava por ela.

– Que tipo de informações suplementares?

Talvez ele estivesse à espera de que ela adoçasse um pouco a situação, que começasse com uma actualização sobre o que eles os dois tinham andado a fazer ao longo dos anos, como corriam as coisas no trabalho a ambos, que revisitasse algumas memórias antigas; aparentemente, isso não ia acontecer. Na verdade, não ?cara surpreendido. A Vanja que ele conhecera nunca desistia até ter descoberto tudo o que lhe era possível – e estava impaciente.

– Com certeza que me podes dizer isso – insistiu ela. – Se ele é acusado e o caso vai para tribunal, sempre poderei ler o inquérito preliminar.

Peter suspirou de novo. Observou Vanja quando a empregada lhe trouxe a garrafa de água e um copo. Havia algo no que ela dissera, claro. Ele estava bastante certo de que Valdemar seria acusado e acabaria em tribunal. «Um passo de cada vez», decidiu. «Pensa antes de falares.» Ia correr tudo bem.

– Uma mulher foi lá entregar-nos um saco cheio de material sobre o teu pai – disse-lhe ele devagar. – As notas do processo original, além de novas informações sobre o envolvimento dele no caso Daktea, entre outras coisas – continuou.

– Como arranjou ela as notas do processo original? – perguntou Vanja enquanto se servia de água.

– Não sabemos. – Peter encolheu os ombros para enfatizar esse ponto. – De acordo com essa mulher, teve algo a ver com o Trolle Hermansson.

Vanja teve tamanho sobressalto que entornou a água em cima da mesa.

– Sabes quem é? – perguntou-lhe Peter ao ver como ela reagira.

– É um antigo polícia.

– Aparentemente, está morto.

– Eu sei. Encontrei o corpo dele dentro da bagageira de um carro.

Vanja levantou-se e foi ao balcão buscar um punhado de guardanapos. Isto não fazia sentido. Trolle Hermansson, um antigo agente que ela nunca conhecera e de quem nunca ouvira sequer falar, tinha aparecido na sua vida em duas ocasiões ao longo de poucos meses. Qual era a ligação dele com Valdemar?

– Esse Hermansson esteve envolvido na investigação inicial? – perguntou ela enquanto limpava a mesa.

– Tanto quanto sei, não, mas, segundo a mulher que lá esteve, foi ele o responsável pelo novo material.

Vanja quase nem ouviu uma palavra do que ele lhe disse. Para ser franca, não esperava muito daquele almoço; não pensava que Peter estivesse disposto ou habilitado a ajudá-la. Mas Trolle Hermansson tinha agora aparecido de novo, juntamente com uma qualquer mulher misteriosa que parecia decidida a arruinar o seu pai. Ela tinha de começar a investigar. Como Hermansson já estava morto, restava a mulher.

– Sabes quem é ela? A tal mulher que levou o material – indagou.

– Não, mas não temos motivos para ir veri?car o passado dela; a investigação à morte do Hermansson está encerrada.

– Qual é o nome dela? – Vanja inclinou-se para a frente a ?m de não perder uma única sílaba.

Peter suspirou de novo, desta vez audivelmente. Nem sequer precisava de pensar nisto. Dar o nome a Vanja estava fora de questão. Revelar o nome de uma informadora a uma familiar do suspeito ia contra todas as regras do manual, mesmo que essa familiar fosse uma agente policial, que, tinha de admiti-lo, continuava extremamente atraente.

– Vá lá, Vanja. Tu sabes que não te posso dizer isso.

Vanja concordou. Claro que sabia. Mas também sabia que não tinha qualquer intenção de sair daquele restaurante sem um nome. Passou rapidamente em revista as várias opções que lhe poderiam permitir obtê-lo e descartou de imediato a mais óbvia; nem sequer sabia se ele estava solteiro ou não. Em vez disso, decidiu apelar a Peter Gornack, o agente policial, transformando aquilo num caso mútuo.

– Eu sei que o meu pai não está inocente – começou Vanja, ?tando Peter nos olhos. – Poderei garantir que ele tenha uma boa representação jurídica, mas não farei mais nada para o ajudar. – Aproximou-se mais, olhando em redor para se certi?car de que ninguém estava a ouvi-los, e baixou a voz. Peter também teve de se debruçar para ouvir o que ela estava a dizer.

– Eu encontrei o Trolle morto dentro de um carro, assassinado por um homem que o matou a mando do Edward Hinde. Em seguida, o Hinde fugiu da prisão de Lövhaga, sequestrou-me e ameaçou matar-me.

Peter limitou-se a dizer-lhe que sim com a cabeça; já conhecia parte da história, mas não toda, e não podia negar que estava curioso. A fuga e a posterior morte de Edward Hinde ainda eram um tema frequente de conversa entre os colegas, fosse qual fosse a unidade ou o departamento em que trabalhassem.

– Se o Trolle estava envolvido na investigação ao meu pai, talvez tudo isso esteja ligado. É demasiada coincidência que um velho ex-polícia apareça por duas vezes em casos que me têm a mim como denominador comum, não achas?

– Eu não...

– Só quero investigá-la, prometo.

Vanja olhou para Peter com uns olhos arregalados e a expressão mais sincera de que foi capaz. Por um momento, pensou no Gato das Botas dos ?lmes Shrek e percebeu que não devia exagerar, por isso desviou o olhar, como se quisesse certi?car-se mais uma vez de que ninguém estava interessado na discussão deles.

– Não vou aproximar-me dela, não vou falar com ela, e se descobrir alguma coisa transmito-ta para que tu possas decidir se vale a pena saber mais.

Peter recostou-se para trás. Ela percebeu que ele ?cara a pensar no que lhe dissera. Não estava a tentar descobrir como haveria de dizer que não; estava indeciso. A analisar as possíveis armadilhas. A tentar encontrar algo que pudesse vir a causar-lhe problemas mais tarde. Não havia nada. Ela conseguira apanhá-lo, e apercebeu-se disso.

– Se o Edward Hinde e os homicídios daquelas mulheres no Verão estiverem, de algum modo, ligados ao meu pai, então com certeza que também quererás saber disso! – disse-lhe ela de modo a eliminar quaisquer dúvidas.

– Ellinor – disse-lhe ele em voz baixa. – O nome dela é Ellinor Bergkvist.

– Obrigada.

A mão dela roçou na dele. A empregada trouxe-lhes a comida e, enquanto Vanja mergulhava ansiosamente o seu frango frito na maionese picante e perguntava como lhe corriam as coisas, Peter Gornack teve a sensação de que passaria o resto do almoço preocupado por ter falado demais.


O ENORME ROTTWEILER queria prosseguir. Estava sentado aos pés do homem no banco de jardim, olhando suplicantemente para ele com os seus olhos castanhos. Charles sentia o seu escrutínio; estava bem ciente de que aquela caminhada não lhe propiciara muito em matéria de exercício. Tivera a esperança de conseguir reconciliar-se com os acontecimentos das últimas horas enquanto levava o cão a dar uma volta pela pista de dez quilómetros na ?oresta das proximidades, mas isso não dera resultado. O ar estava frio e leve, até as árvores caducas que até agora haviam resistido ao Outono tinham sido forçadas a ceder e a diminuir a produção de cloro?la, e para além dele e do cão não havia mais ninguém à vista. As condições ideais para processar as consequências daqueles telefonemas matutinos. Mas era como se os seus pensamentos se desintegrassem a cada passo que dava. Tudo era muito incerto.

Isto era invulgar, quase assustador. Charles sempre tinha sido capaz de processar informações e de tomar decisões rápidas à medida das circunstâncias. Na sua pro?ssão, nem sempre era possível sentar-se a avaliar as opções – por vezes era, mas nem sempre. O seu treino ensinara-o a pensar depressa sempre que a situação o exigia. Todavia, esses casos envolviam quase sempre um elevado nível de adrenalina, com o cérebro e o corpo a funcionarem à velocidade máxima. O telefonema de Alexander Söderling, porém, evocara quase um sentimento de resignação, um cansaço profundamente entranhado; era improvável que os acontecimentos que ele deixara para trás e com os quais se reconciliara permanecessem no passado.

Ao ?m de apenas um quilómetro, sentara-se num dos bancos junto ao pequeno lago.

O que sabiam eles, o que poderiam descobrir, o que nunca seriam capazes de averiguar?

O facto de eles terem relacionado o incêndio no carro com os corpos na montanha era uma infelicidade, não mais do que isso. E antes? Aqueles dois homens. Quatro, na verdade. Um simples trabalho de vigilância. Aprender com os melhores. Duro, implacável. Mas os tempos exigiam essa abordagem.

Ele próprio experimentara.

Quando se pensa que eles já não aguentam, continua-se por mais vinte segundos, e a seguir por mais dez, era o que lhe tinham dito aquelas ?guras implacáveis.

Uma e outra vez.

E, pelo meio, as perguntas.

Onde? Quando? Quem mais?

Uma e outra vez.

Onde? Quando? Quem mais?

Os erros logo ali. O erro, mais tarde. Quando Charles pensara que ia obter ajuda, quando esperara que a pessoa que sempre estivera presente provasse, mais uma vez, ser leal e de con?ança.

A traição.

A decisão difícil.

Patricia Wellton. Lembrava-se de estar à espera dela. Tinha-se atrasado várias horas e estava furiosa quando ?nalmente aparecera. Gritara com ele, queixando-se das más informações. Como raio haveria ela de fazer o seu trabalho quando os pormenores sobre o alvo estavam incorrectos? Charles não sabia do que ela estava a falar. Ela explicara-lhe. A partir daí, as coisas tinham piorado rapidamente. Ele batera-lhe. Depressa e com força. Ela estava completamente impreparada e ele estava particularmente bem treinado nesse tipo de ataque, de modo que ela se fora logo abaixo. Inconsciente. Para dentro do carro, para o fundo da ravina; colocá-la no lugar do motorista, empurrar o carro para fora da estrada. Segui-lo até lá abaixo, esvaziar o depósito, iniciar o fogo.

Um acidente lamentável. Até agora.

Seria por isso que lhe estava a ser tão difícil concentrar-se? Seria por a ansiedade ter evocado as memórias e a mágoa reprimida? Porque aquele acidente acabara de se transformar num homicídio. Ele tinha assassinado Patricia Wellton, e a organização para a qual ela trabalhava não era conhecida pela sua capacidade de perdoar e esquecer. Até agora, nada estava de?nido. Até agora, era uma mera especulação na imprensa tablóide, mas Charles sabia que estavam a observá-lo. Se houvesse alguma con?rmação o?cial dessa especulação, não tinha a menor dúvida de que viriam caçá-lo. Poderia ser uma boa ideia fazer planos para tal eventualidade. Havia quem pudesse protegê-lo; ele tinha acesso ao melhor recurso quando se queria motivar os homens e as mulheres para virem em nosso auxílio.

Informação.

Levantou-se do banco. O cão pôs-se em pé num segundo, mas a caminhada terminara. Charles achava que a sua ameaça a Alexander Söderling dera resultado, mas estava na hora de con?rmar isso. Estava na hora de agir, de colocar a sua casa em ordem. Tinha sacri?cado demasiado durante todas as semanas e todos os meses desde há quase dez anos; se as suas acções dessa época viessem a ter consequências agora, então ele certi?car-se-ia de que pelo menos não seria o único a cair.


O VOO SK071 ATERROU às 20h35, com dez minutos de atraso. Ao ?m de mais quinze minutos, Torkel, Ursula, Billy e Jennifer estavam à espera junto ao tapete das bagagens. Ninguém dizia nada; também não tinham falado muito no avião desde Östersund. Embora isso continuasse por dizer, todos eles estavam desapontados por realmente terem conseguido tão pouco durante aquela estadia. Tinham identi?cado o casal holandês e ligado a morte de Patricia Wellton/Liz McGordon às vítimas na montanha, mas era só. Ainda não tinham ideia de quem era a família na sepultura nem conheciam a verdadeira identidade de Patricia Wellton/Liz McGordon.

A sua única esperança era a câmara que Ursula tinha encontrado dentro da mochila. Billy depressa constatara que não dispunha do cabo nem do carregador certo, o que signi?cava que não poderia carregar a bateria. O golpe seguinte ocorrera quando abriram a tampa do compartimento do cartão de memória. Embora a câmara tivesse sido envolvida em plástico, o ar e possivelmente a humidade tinham lá entrado. As partes metálicas do cartão de memória estavam oxidadas, e o cartão estava ?rmemente colado. Sem ferramentas adequadas à sua disposição, Billy não ousara tentar removê-lo, por isso a câmara estava agora dentro do saco dele exactamente no mesmo estado em que Ursula lha entregara.

– Olá, bem-vindo a casa!

Billy virou-se para trás e só teve tempo de vislumbrar Maya antes que ela se pusesse em bicos de pés e lhe desse um beijo. Colocou as mãos nas bochechas dele, pressionou o corpo dela contra o seu e, aparentemente, quis imobilizar aquele momento. Após o que lhe pareceu ser pelo menos um minuto, Billy afastou-se, dando um pequeno passo para trás, um pouco envergonhado com aquela recepção tão emotiva.

– Não conheces os meus colegas – disse-lhe ele; estavam todos a sorrir para si, tal como ele esperara. Apresentou-os um a um, e Maya pareceu fazer uma pequena vénia de cada vez que apertava a mão de alguém. Ele nunca a vira fazer isso antes, mas também nunca a tinha visto apertar a mão a alguém que não conhecesse, agora que pensava nisso. Era muito amável, mas ao mesmo tempo era um pouco estranho que uma mulher adulta ?zesse esse tipo de coisa. Maya virou-se para Jennifer, que se apresentou.

– Oh, pensei que você fosse a Vanja – disse-lhe Maya com um sorriso.

– Não, ela teve de regressar mais cedo – explicou Jennifer. Maya fez um gesto de assentimento, en?ou o seu braço no de Billy e começou a conversar com os outros como se fosse uma parte dele, da vida dele. Soube-lhe bem. Ele percebeu que sentira a falta dela; estava realmente contente por a ver. Se sentia a falta dela ao ?m de apenas alguns dias, não signi?caria isso que queria vê-la com mais frequência? O tempo todo? Talvez irem morar juntos não fosse, a?nal de contas, uma ideia assim tão má.

A bagagem chegou e avançaram para a saída.

– Onde mora? – perguntou Maya a Jennifer.

– Em Sollentuna.

– Isso ?ca no nosso caminho... quer uma boleia?

– Seria óptimo.

Billy e Jennifer acenaram a Torkel e a Ursula quando partiram.

– Partilhamos um táxi? – perguntou Ursula enquanto descolava a etiqueta da companhia aérea da sua mala. Poderia lidar com isso. Ela sairia primeiro, e Torkel não esperaria ser convidado a entrar. No mundo dele, ela ainda continuava casada com um marido que a esperava no seu apartamento. Ursula deu por si desejando estar a viver nesse mundo.

– O meu carro está no parque de estacionamento – disse-lhe Torkel, acenando vagamente na direcção das janelas. – Eu estava a pensar telefonar à Yvonne e ir ver as meninas, senão já te tinha oferecido uma boleia.

– Não há problema, vou apanhar um táxi.

– Então, vemo-nos amanhã.

– Até depois.

Torkel dirigiu-se para o autocarro que o levaria ao parque de estacionamento e Ursula ?cou a vê-lo afastar-se. «Ali vai um homem desapontado», pensou ela. Apesar do tempo que tinham passado juntos em Storulvån, nada acontecera. Não era apenas por não terem feito sexo – nem sequer tinham ido fazer uma caminhada ou ?cado sentados a conversar depois do jantar. Não tinham passado tempo nenhum juntos fora do trabalho, para além de um rápido pequeno-almoço. Talvez ela não precisasse de se mostrar tão indiferente. No dia seguinte seria um pouco mais sociável. Ursula pegou na sua mala e foi juntar-se à ?la para o táxi.

 

Quarenta e cinco minutos mais tarde, ela chegou a casa e digitou o código da porta. Abriu a sua caixa de correio, que ainda ostentava uma etiqueta declarando que pertencia a M. U. & B. Andersson. Ursula assumiu que lhe caberia a si mudá-la. Ocorreu-lhe que talvez a nova etiqueta devesse dizer U. Lindgren, mas não perseguiu essa ideia; não ia fazer nada a respeito disso naquela noite, com toda a certeza. O apartamento pareceu-lhe mais vazio do que ela se lembrava. Pousou a mala no corredor; tudo estava exactamente como havia deixado. Claro que era sempre assim quando voltava para casa desde que Mikael se mudara dali, mas agora, que estivera afastada por alguns dias, era ainda mais claro que vivia sozinha. Que estava sozinha. O lugar pareceu-lhe abafado; abriu uma das janelas da sala de estar, a seguir regressou ao corredor e tirou as suas roupas da mala. Deixou os sapatos onde eles tombaram e deixou cair o casacão em cima do banquinho em veludo vermelho que estava por baixo do espelho. Foi até à cozinha e abriu o frigorí?co; no avião tinham-lhe dado café e uma sanduíche, mas ainda estava com fome. Infelizmente, o seu frigorí?co não podia ajudar. Havia queijo e um tubo de ovas de peixe, mas ela percebeu que não tinha pão. Pegou num boião de iogurte que estava na porta: o termo do prazo de validade tinha sido há três dias. O mesmo com o leite. En?ou o nariz em ambos, mas já tinha perdido o apetite. Era muito triste, na verdade; o seu frigorí?co era um retrato que resumia a vida de uma mulher recentemente divorciada. Por outro lado, sempre teria tido aquele aspecto se Mikael não garantisse que havia comida em casa. As compras e a alimentação de Bella tinham ?cado a cargo dele. Entre outras coisas.

Fechou a porta do frigorí?co, pegou na sua correspondência, sentou-se no sofá e começou a passá-la em revista. Nada que lhe interessasse ou que a ?zesse sentir-se remotamente melhor. Televisão? Viu as horas. Podia assistir ao noticiário na TV4, mas, na verdade, não lhe apetecia. Pegou no telemóvel; deveria telefonar a Bella? Era uma coisa perfeitamente normal para fazer, dizer à ?lha que já chegara a casa. Nunca o ?zera antes, mas decidiu que, a partir desse momento, seria o tipo de progenitora que fazia exactamente isso. Tinham falado duas vezes desde Uppsala, e em ambas as ocasiões haviam-se mantido em temas de conversa seguros, como o trabalho de Ursula e os estudos de Bella, conseguindo evitar qualquer referência ao que acontecera na estação. Mas aquilo estava sempre presente, era mais um tijolo no já alto muro que se erguera entre elas. Ursula sabia que lhe cabia a si fazer baixar o muro.

Bella atendeu ao terceiro toque.

– Olá, sou eu – disse Ursula; não pôde deixar de se sentar um pouco mais direita. – Estou a incomodar-te?

– Mais ou menos... saí com uns amigos.

Ursula apercebeu-se dos sons inconfundíveis de um pub ou clube: música, riso, vida.

– Só queria que tu soubesses que já estou em casa.

– Estiveste fora?

Ursula disse a si própria para não se decepcionar. Como haveria de saber Bella onde ela estivera? Se queria que a ?lha soubesse, deveria ter-lhe telefonado a contar. Decidiu que era mais uma das coisas que faria no futuro.

– Sim, em Jämtland.

– Aquela vala comum?

– Sim.

– Então, como correu isso?

– Ainda não terminámos; trouxemos a investigação para Estocolmo.

Fez-se silêncio por alguns segundos, e em seguida Bella disse:

– Querias alguma coisa?

Ursula não respondeu logo. O que queria ela? Queria dizer como o apartamento lhe parecera vazio quando entrara, queria fazer-se convidada para ir a Uppsala, perguntar se Bella gostaria de ir com ela durante um mês, mais ou menos, para um lugar qualquer que fosse quente e ensolarado. Fugir ao horrível clima de Novembro. Só elas as duas. Fora isso que quisera dizer-lhe.

Mas o que disse foi:

– Não. Está tudo bem contigo?

– Óptimo... tenho imenso trabalho, mas, para além disso, está tudo bem.

Seria aquilo uma delicada sugestão de que ela não tinha tempo para visitas nem para ir ver a sua mãe divorciada, ou estaria Ursula a magicar demasiadas coisas?

– Excelente, lembrei-me apenas de te telefonar.

– Está bem, talvez pudéssemos ter uma conversa no ?m-de-semana!

– Com certeza. Vou deixar-te voltar para ao pé dos teus amigos.

– Falamos em breve. Adeus, mãe.

– Adeus...

Bella já tinha desligado. Ursula ?cou ali sentada com o telefone na mão. Não ia conseguir sossegar esta noite, ali sozinha no apartamento. Levantou-se, foi até ao corredor e vestiu as suas roupas de sair. Isto estava longe de ser o seu cenário de sonho, mas ele era alguém, e ela precisava de alguém agora.

 

Passou a mão pelo cabelo e compôs nervosamente o casacão antes de tocar à campainha.

– Quem é? – disse ao ?m de alguns segundos a voz por trás da porta fechada.

– Sou eu. Ursula.

Ouviu a fechadura girar.

– O que estás a fazer aqui?

– Apetece-te jantar?

Ele olhou para o relógio.

– Falta um quarto para as onze.

– Um jantar tardio.

Ele olhou para ela; ela percebeu que ele não conseguira entender o que queria. Era tarde demais para jantar, claro. Quereria apenas a sua companhia? Tinha deixado muito claro que não estava interessada no passado. Ursula percebeu que ela era a última pessoa que ele esperava ver, mas agora estava ali, e ele parecia genuinamente satisfeito.

– Estou só um pouco surpreendido – disse, con?rmando-lhe os pensamentos.

– Compreendo. Para ser franca, eu também.

– Queres sair ou preparo alguma coisa para nós?

– Podes preparar alguma coisa para nós – disse-lhe Ursula, dando um passo para o interior. Com um último olhar divertido, Sebastian fechou a porta atrás dela.


CHEGARAM AO INÍCIO DA MANHÃ, com o velho Memel a liderar a delegação de homens silenciosos que entraram no corredor e nas vidas deles com a autoridade que a idade lhes conferia. Mehran conhecia os cinco; ?caram ali parados a olhar para ele e para a sua mãe. Shibeka parecia espantada, mas Memel ?xou-se em Mehran, com uma expressão severa e implacável. Desaparecera-lhe do olhar aquele brilho vivaz e quase juvenil que Mehran tanto apreciava; isso dava a Memel um ar de encanto e de bondade. Agora era como se ele tivesse algum mau cheiro debaixo do nariz.

– Precisamos de falar contigo – disse-lhe ele. – Tens tempo?

Não era bem uma pergunta; recusar não era uma opção. Mehran percebeu exactamente o que acontecera: Melika tinha falado, provavelmente ainda no dia anterior, logo que os deixara. Mehran ?cara furioso; Melika não estava apenas a esconder alguma coisa, optara por envolver outras pessoas.

– Claro – disse ele educadamente, e indicou a Memel a sala onde Eyer estava a ver televisão. Mehran foi desligar o aparelho e disse a Eyer, que ainda estava de pijama, que fosse para o seu quarto. A atrapalhação matinal de Eyer desapareceu de imediato quando se levantou num salto, ?tando os homens com olhos arregalados. Teve o bom senso de fazer um respeitoso aceno com a cabeça a cada um quando passou por eles, o que agradou a Mehran. Foi bom ver que o seu irmão sabia comportar-se quando isso era importante. Virou-se para Shibeka, que continuava parada em pé no corredor, e pediu-lhe que trouxesse aos convidados algo para comer e beber, mas Memel abanou a cabeça. Eles não estavam ali para comer e beber.

Os homens instalaram-se no sofá enquanto Memel escolhia um cadeirão de braços em frente aos outros, no seu papel de porta-voz. Mehran também se sentou e esperou por Shibeka. Ainda que sentisse borboletas na barriga, também se sentia bem. Fora para ele que Memel se tinha virado, era ele que falava agora pela sua família. Noutros tempos, também ele teria sido enviado para o seu quarto quando os adultos estavam a discutir assuntos importantes. Sentou-se um pouco mais direito para mostrar que estava pronto a assumir o papel.

Shibeka juntou-se a ele. Tinha a certeza de que a sua cabeça estava totalmente coberta, e o tecido preto realçava-lhe a palidez do rosto. Desde há muito tempo que ela não se dava a esse trabalho, pensou Mehran; tal como ele, ela compreendia a gravidade da situação.

Um breve silêncio. Memel olhou para cada pessoa à vez antes de começar.

– Soubemos do que Shibeka anda a fazer. Queremos discutir isso contigo. Dar-te a oportunidade de nos falares acerca do assunto.

Shibeka baixou os olhos, e Mehran entendeu que era a sua vez de falar. Ao princípio ?cou um pouco decepcionado com a sua voz; não soara tão adulta como ele teria desejado.

– Andamos apenas a tentar descobrir o que aconteceu ao meu pai e ao Said.

– Compreendemos isso tudo – respondeu Memel após uma pausa. – Mas estamos preocupados. As pessoas vêm ter connosco e perguntam se a tua mãe sabe mesmo o que está a fazer.

– Lamento que isto esteja a afectar outros, mas não têm nada com que se preocupar. Nós sabemos o que andamos a fazer.

Memel suspirou; não gostara da resposta de Mehran. Será que aquele rapaz achava que se ia safar com tanta facilidade? Inclinou-se para a frente.

– Mehran, esteve aqui um homem sueco. É casado, solteiro? Quantas mulheres visita ele? O que pretende?

– Ele só quer saber o que aconteceu. É jornalista. Estou presente em todas as reuniões com ele.

– A sério? Não foi isso que ouvimos dizer.

A expressão de Memel era gélida. Shibeka endireitou-se, as linhas ao redor da sua boca contraíram-se como acontecia sempre que se zangava. Mehran percebeu que ela estava a fazer um enorme esforço para se manter calma; fez-lhe um aceno com a cabeça e dirigiu a sua atenção para Memel e para os homens sentados no sofá. A sua voz estava agora mais serena; era como se estivesse a acostumar-se ao seu novo papel a cada palavra, a cada frase.

– A minha mãe tem o maior respeito por mim e pelo meu pai. Ela nunca faria nada sem me dizer. Se estás zangado com alguém, deveria ser comigo.

Outro silêncio. Ele viu a dúvida nos olhos de Memel.

– Não gosto disso, Mehran. Não é esse o nosso caminho, e tu bem sabes.

– Então, qual é o nosso caminho? – interveio Shibeka. A fonte de emoções que estivera a tentar suprimir brotara agora para a superfície. – Ficarmos sentados em silêncio? Não fazermos nada? Ficarmos calados?

Memel irritou-se.

– Tu nem precisas de fazer essa pergunta... já conheces a resposta!

Mehran apercebeu-se de que estava a perder o controlo da situação. Se havia uma coisa de que tinha a certeza, era que desafiar Memel não era boa ideia. Não era o tipo de homem que alguém quisesse ter como inimigo. Mehran percebeu que precisava de demonstrar a sua posição dentro da família para restaurar a ordem. Virou-se para a mãe e bradou-lhe:

– Cala-te! Tu vais ?car calada!

Por um segundo, julgou que Shibeka pudesse explodir. Os olhos dela relampejaram, e esteve a um passo de lhe dar uma bofetada, mas, de algum modo, recuperou o controlo. Soltou um longo suspiro e baixou os olhos mais uma vez. Mehran adorou e ao mesmo tempo detestou a sensação que lhe deu essa submissão da mãe. Encarou Memel, tentando mostrar-se o mais contrito que conseguiu.

– A minha mãe não fez isto por mal. É que está de luto! Os últimos anos têm sido difíceis para ela. Peço desculpa.

Memel hesitou, mas depois pareceu aceitar o pedido de desculpas.

– Têm sido tempos difíceis para muitas pessoas, mas devemos manter-nos unidos. Fazer o que está certo. É isso que estamos a dizer. Compreendes, Mehran?

Mehran assentiu.

– Compreendo.

– Se realmente é esse o caso, então pára com isto já. Melika não quer ser envolvida no assunto, e o resto de nós também não. Não podem pensar só em vocês. Têm de pensar em todos nós.

Dito isto, pôs-se em pé, e os outros homens imitaram-no de imediato. Mehran também se levantou. Memel deu um passo em frente e ?tou-o profundamente nos olhos, um olhar que tanto continha amor como um aviso claro.

– Mehran, tens o teu pai dentro de ti. Vi isso hoje. Mostra-me quem és. Faz a coisa certa – disse-lhe, batendo no ombro do rapaz de uma maneira quase amigável.

– Prometo, Memel. Não ?carás desapontado.

Memel sorriu-lhe.

– Óptimo. Então não há necessidade de voltarmos a falar disto. Obrigado pelo teu tempo.

Desapareceram tão rapidamente quanto haviam chegado. Nenhum deles olhou sequer para Shibeka, que continuava sentada no banco da sala de estar, com os olhos ?xos no chão. Era como se ela já não existisse.

Mas Mehran existia. Pousou uma mão sobre o ombro da mãe.

– Há-de correr tudo bem, mãe... em princípio.

Não sabia ao certo se ele próprio ainda acreditava nisso.


LENNART TENCIONARA trabalhar a partir de casa o dia todo. Precisava de paz e sossego para pôr em ordem os seus pensamentos e lamber as suas feridas. Depositara grandes esperanças nesta história, e agora tudo caía por terra. Linda Andersson não conseguira obter nada da mulher de Said. Antes pelo contrário – aquilo fora um desastre, e ambos haviam sido convidados a deixar o apartamento de Shibeka poucos segundos após Melika ter saído de lá de rompante, batendo com a porta atrás de si. Até Shibeka se recusara a encará-lo.

Presumivelmente, tudo isto se devera ao ?lho, o rapaz de expressão truculenta. Não parecia partilhar o entusiasmo da mãe perante a ideia de que o Investigação Hoje ajudaria a revelar a verdade sobre o desaparecimento do seu pai. Talvez fosse cultural. Talvez ele se sentisse ameaçado por a mãe ter agido de forma independente. Podia bem acontecer que ele não quisesse revisitar a dor antiga e que ?zesse o luto pelo pai à sua própria maneira. Fosse qual fosse o motivo, no que dizia respeito a Lennart, aquilo era devastador. Sem a cooperação das esposas e das famílias dos homens desaparecidos, ele nem sequer tinha o princípio de um programa. No entanto, recusava-se a desistir. Tentou animar-se: as coisas não eram assim tão más. Não era a primeira vez que se perdia uma história; havia sempre sugestões a aparecerem e a desaparecerem, e só algumas se levavam por diante. Era mesmo assim. Poderia ter sido muito pior; ele podia ter passado meses naquele projecto e ver-se obrigado a desistir no ?nal. Era essa a realidade; quando se começava a escavar, às vezes não se encontrava nada, ou pelo menos não o su?ciente para fazer boa televisão.

Mas Lennart achava difícil desistir. Fora sempre a mesma coisa. Na verdade, essa era uma qualidade útil na sua pro?ssão; a teimosia ajudava, mas tinha o seu preço. Ele orgulhava-se do que ?zera. Não aceitava a saída mais simples; escavava e escavava até encontrar alguma coisa, e a história de Shibeka deixara-o emocionado. Tinha todos os ingredientes para uma reportagem perfeita: um marido desaparecido, uma esposa atraente que se recusava a desistir apesar de todos os anos que já tinham decorrido, além de ligações à Polícia de Segurança. Lennart procurava um furo como aquele desde há muito tempo; era libertador lidar com alguma coisa que, por uma vez, não tivesse a ver com dinheiro nem com políticos manhosos. Fazia-lhe lembrar a razão por que quisera tornar-se jornalista, e não fora para revelar como os magnatas ?cavam ainda mais ricos nem como os altos executivos ávidos evitavam pagar impostos.

Quando ele contava histórias daquelas, não era a sua própria voz que ouvia, era a voz dos tempos. A voz de hoje.

O que acontecera a Shibeka convinha-lhe muito mais. Ele queria falar aos telespectadores sobre pessoas reais, agarrar neles e acordá-los. Mexer com eles. Vejam o que está a acontecer na Suécia agora mesmo! Nós não tratamos as pessoas de forma igual. Por vezes, os amigos brincavam com ele, diziam-lhe que era o último idealista que ainda acreditava ser possível mudar o mundo armado apenas com uma câmara.

Ele precisava de ver Shibeka de novo, desta vez a sós. Era a sua única possibilidade. Já lhe telefonara várias vezes para o telemóvel, mas ela não atendera. Decidiu ir fazer uma caminhada, desanuviar a cabeça. Talvez telefonar aos seus compinchas, fazer planos para o jogo de domingo: o Hammarby contra o Brage. Quando estava a vestir o casaco e a encaminhar-se para a porta, o telemóvel tocou. Era Shibeka. Quase deixou cair o aparelho na sua ânsia de atender; ao princípio, quase não ouviu o que ela lhe estava a dizer.

Quando ?nalmente compreendeu, soube que era um desastre. Tentou persuadi-la, convencê-la de que poderia ajudar. De que ela havia de descobrir a verdade. De que ele não desistia ao primeiro revés.

Não fez diferença alguma.

Quem desistia era ela.

Aquilo terminara.


MEHRAN FICOU SENTADO na cozinha a escutar a conversa no corredor. Não era que não con?asse nela, mas queria ter a certeza de que estava a fazer o que lhe prometera, que isto era o ?m de tudo. Era um sentimento estranho, escutar a sua própria mãe. Mas, se esta estava desconfortável com a decisão, disfarçava-o bem. A voz dela manteve-se ?rme, embora ele quase conseguisse ouvir o sueco a queixar-se, a implorar-lhe. Estava a perder o seu tempo. Ela abreviou a chamada; não havia mais nada para discutir. Foi só quando desligou e se deixou cair sobre o banquinho ao lado do telefone que julgou ter compreendido. Perscrutou o coração dela enquanto o seu sonho morria e uma parte da sua vida chegava ao ?m. Foi ter com ela, decidido a ser o mais gentil que pudesse. Estava orgulhoso dela, embora ela provavelmente não o percebesse.

– Ficou desapontado – disse-lhe ela sem o olhar.

– E tu também.

Shibeka aquiesceu com tristeza.

– Não vou mentir-te. Vou cumprir o que te prometi. Mas lutei por isto tanto tempo...

Mehran sentou-se ao seu lado. Sentia a dor dela e queria mostrar-lhe que também estava a sofrer. Jamais tivera a intenção de a magoar, a ela ou a qualquer outra pessoa; mas que os acontecimentos tinham seguido o curso errado e haviam-nos conduzido a este ponto.

– Era necessário. Tu compreendes isso, não é?

Pegou-lhe na mão, a ?m de sublinhar o facto de que agora estava tudo bem.

– Para ser franca, Mehran, não compreendo. Realmente, não vejo porque era errado. As pessoas como tu e eu precisam de alguém como Lennart para lutar por elas, caso contrário, ninguém as ouve.

– Mas, se nós continuarmos, vamos ?car completamente sozinhos. Não podemos permitir que isso aconteça. Não queremos isso.

– Estamos sozinhos, Mehran. Quem julgas tu que nos vai ajudar? Memel?

Shibeka cuspiu mais ou menos esse nome ao mesmo tempo que se punha em pé. Pareceu que ela precisava de fugir à tristeza e à decepção e que isso estava a dar resultado. Quando se levantou tinha um ar mais forte. Virou-se para o ?lho, estendendo-lhe o telemóvel.

– O que vou eu fazer com isso?

– Não faço ideia. Guarda-o, dá-o ao Eyer. Não preciso mais dele.

Mehran pegou no telefone. Sentiu o peso na sua mão, muito mais pesado do que era. Cheio de sonhos desfeitos e de esperanças despedaçadas.

– Promete-me uma coisa, Mehran – disse-lhe Shibeka gravemente. – Não ouças apenas os outros. Ouve-te a ti mesmo. Talvez eu tenha ido longe demais, mas tu tens de ouvir a tua própria voz.

Entrou no seu quarto e fechou a porta.

Conseguiu deixar para trás a tristeza e a decepção; deixou-as com Mehran.


HAVIA VINTE E TRÊS Ellinor Bergkvist na Suécia, e três delas moravam em Estocolmo. Vanja imprimiu todos os dados, mas decidiu concentrar-se nas três da capital. Mesmo nome, mulheres diferentes.

Vinte e duas delas viviam vidas completamente opostas à de Vanja. Os seus caminhos poderiam cruzar-se nalgum ponto no futuro, mas não era provável. Uma, porém, estava directamente envolvida nos acontecimentos que haviam colocado o seu pai dentro de uma cela prisional; ela até poderia ter algo a ver com a morte de Trolle Hermansson.

Vanja recostou-se no sofá enquanto a impressora despertava para a vida e zumbia no quarto ao lado. O problema era que ela não poderia entrar em contacto com nenhuma das Ellinor daquela lista, não porque tivesse feito alguma promessa a Peter Gornack, mas porque tal acto seria evidência de um juízo extremamente pobre por parte dela – tentar in?uenciar um informador numa investigação sobre o seu pai. Isso poria ?m a qualquer esperança de formação junto do FBI, e, no entanto, ela precisava de saber mais.

Por um momento, pensou em telefonar a Billy, mas, por um lado, ele provavelmente ainda estava em Jämtland, e, por outro, a relação entre ambos não recuperara o su?ciente para que ela lhe fosse pedir para efectuar uma investigação particular em seu nome. Isso também poderia causar problemas aos dois se alguma vez viesse a saber-se; ela estaria a colocar Billy numa situação impossível, o que era quase tão mau quanto ser ela própria fazê-lo. Mas precisava de ajuda.

Sebastian.

Esquisito. O nome dele foi o primeiro que lhe ocorreu. Antigamente, ela tinha sempre pensado em Valdemar primeiro, ou em Billy, em certas circunstâncias. Mas agora era Sebastian.

Há alguns meses, nunca o teria considerado uma opção; Sebastian Bergman não fazia nada a menos que ganhasse algo com isso, era do conhecimento comum. No entanto, após os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas, ela achou que ele talvez pudesse abrir uma excepção, fazer-lhe um favor. Só para ser amável. Valia a pena tentar. Além disso, estava apenas vagamente ligado à Riksmord, possuía uma consciência muito liberal e não teria qualquer problema em inventar uma história de encobrimento se fosse apanhado.

Por outro lado, o que pretendia ela realmente que ele ?zesse? Que entrasse em contacto com aquelas mulheres e lhes perguntasse se tinham ajudado a implicar Valdemar Lithner em transacções ?nanceiras duvidosas? Todas, menos uma, não fariam a mais pequena ideia do que ele lhes dizia, e aquela que entendesse havia de mentir. Talvez Ellinor Bergkvist fosse uma perda de tempo; a única vantagem de que ela dispunha poderia vir a revelar-se um beco sem saída. Valeria sequer a pena tentar? Valdemar era culpado, ela estava certa disso.

O que ele lhe dissera durante aquele breve encontro entre ambos.

A maneira como lho dissera.

A expressão no seu rosto.

Ele estava onde devia estar; que importava como tinha ido lá parar? Que importava quem tinha informado os colegas dela na Autoridade do Crime Económico, e porquê? Ela ia partir para os Estados Unidos, deixando tudo isso para trás. Não podia simplesmente largar o assunto?

Vanja levantou-se e foi até ao quarto, recolheu as folhas de papel da impressora e passou os olhos por elas enquanto regressava à sala de estar.

Vinte e três nomes e endereços. Um deles era o correcto.

Avançou até à mesa de café; o seu telefone começou a tocar antes que lá chegasse.

– Vanja Lithner – disse ela sem se dar ao trabalho de veri?car o mostrador.

– Olá, é a Harriet, dos Recursos Humanos.

– Olá!

– Estou a incomodar-te?

– De todo, não.

Vanja não pôde deixar de sorrir. Sentiu um formigueiro de antecipação; Harriet era a responsável pelo desenvolvimento pessoal e pelo programa de intercâmbio internacional na Administração Nacional da Polícia e também a pessoa que lhe abriria a porta e permitiria que Vanja voasse para longe. Que deixasse o país. Que olhasse para a frente, não para trás. Vanja precisava de espaço para respirar, de tempo para se concentrar apenas em si mesma. Acompanharia o julgamento, claro, mas à distância. A distância física permitir-lhe-ia o luxo de ?car de fora. Tinha sido, durante demasiado tempo, a menina boazinha que fazia tudo o que se esperava dela. Mais tarde, teria de enfrentar o relacionamento com o pai, mais tarde haveriam de encontrar o caminho de volta um para o outro, ela tinha a certeza disso, mas, para tal, precisava de ter força, e neste momento não a tinha. Sentia-se cansada. Trinta e dois anos de idade, e cansada. Da maior parte das coisas. O FBI e os Estados Unidos devolver-lhe-iam o ânimo. Neste momento, só queria abandonar tudo e correr pela porta que Harriet estava prestes a abrir-lhe.

– Lamento muito – ouviu Harriet dizer; ao princípio não entendeu nada.

Será que Harriet sabia sobre Valdemar? Possivelmente: o quartel-general da Polícia era um local de trabalho como qualquer outro e os boatos espalhavam-se num instante pelos seus corredores.

– Obrigado, mas isto é o que é; agora não há muito que eu possa fazer a respeito do caso – disse-lhe Vanja, pousando as folhas impressas em cima da mesa de café. Caminhou até à janela e olhou para além da folhagem cada vez mais esparsa, na direcção do Gärdet.

Fez-se silêncio do outro lado da linha: um silêncio surpreendido. O tipo de silêncio que surge quando alguém perde completamente o ?o de uma conversa.

– Não estou a entender muito bem... – disse Harriet.

– O meu pai – esclareceu Vanja, na esperança de que o seu tom de voz mostrasse que ela não estava muito incomodada e que não havia qualquer necessidade de discutir mais esse tema.

– O que tem ele?

– Ele foi... – começou a dizer Vanja, mas calou-se. Harriet não sabia, mas tinha começado a conversa dizendo que lamentava muito qualquer coisa. Uma pequena bola de ansiedade começou a rebolar na barriga de Vanja.

– Não é nada – continuou ela. – De que estava a falar?

Silêncio de novo. Desta vez, diferente: não surpreendido, antes atrapalhado, o tipo de silêncio que surge quando alguém está a ganhar coragem para transmitir más notícias. A bola ia crescendo rapidamente.

– Você não foi aceite no programa de formação do FBI.

Num segundo, a bola cresceu até atingir o tamanho de uma bola de futebol. Expulsou o ar para fora dos pulmões, tornou-se-lhe difícil respirar. Aquilo não podia ser verdade. Não podia mesmo. De uma maneira algo estranha, aquilo não era real.

– Tem a certeza?

Pergunta estúpida. Quem tinha a derradeira responsabilidade era Harriet. Não havia muitos mais candidatos. É claro que ela tinha a certeza.

– Sim. Lamento muito.

– Mas porquê? – Aquilo tinha de ser um engano. Se ela ao menos conseguisse descobrir o motivo, poderia corrigi-lo. – Quero dizer... estava tudo a correr tão bem.

– Håkan Persson Riddarstolpe – disse Harriet, e fez uma pausa como se quisesse dar a Vanja a oportunidade de descobrir a quem se referia. Não que isso fosse necessário quando se tratava de um nome daqueles; a imagem do homem com o bigodinho e os olhos estreitos dentro do seu gabinete desarrumado veio-lhe de imediato ao espírito, mas não lhe forneceu qualquer pista. A sua entrevista com Håkan Persson Riddarstolpe tinha corrido bem. Muito bem. Ele próprio lho dissera quando lhe apertara a mão à saída.

O que tinha acontecido? Ele mentira-lhe? Se sim, porquê? Ela precisava de mais informações.

– Pois... – disse, para con?rmar que sabia de quem Harriet estava a falar.

– Ele deixou muito claro na sua avaliação que você não é adequada e recomenda que não seja incluída no programa.

– Porquê?

Foi a única pergunta de que conseguiu lembrar-se, porque era a única palavra que tinha na cabeça. Tudo o resto havia desaparecido.

– Ele não referiu as razões, mas o que importa é a recomendação.

– Mas é apenas a recomendação de uma pessoa.

– O FBI não a aceitará se o psicólogo responsável pela avaliação diz que não é adequada – disse-lhe Harriet num tom de voz destinado a dourar a pílula.

– Mas eu sou adequada – quase gritou Vanja. – Pergunte a quem quiser. Ninguém é mais adequado do que eu, porra!

– Vanja, lamento muito.

– Isso não basta. – Vanja quase cuspiu as palavras. Isto não estava a acontecer. Ela não o permitiria. Nunca desistia, era isso que a fazia avançar. Por isso era a melhor.

– Posso obter outra avaliação, de outra pessoa qualquer. Ele está enganado. Deve haver algum processo de recurso.

– Håkan é o psicólogo que efectua as nossas avaliações para este tipo de candidaturas. A decisão ?nal é dele.

Vanja não sabia o que dizer. A porta por onde ela ia proceder à fuga tinha-lhe sido fechada na cara com tanta força e de uma forma tão de?nitiva que ela quase conseguia senti-lo, como se alguém lhe tivesse assestado um duro golpe.

– Haverá outras oportunidades – disse Harriet, tentando consolá-la. – Não este ano, e provavelmente não no próximo, dada a maneira como as coisas estão de momento, mas no futuro.

– Pois. Obrigada.

Vanja terminou a chamada. Permaneceu em pé junto à janela, vendo as pessoas ao longe, a andarem, a correrem, a pedalarem nas suas bicicletas. A caminho de algum lugar onde prosseguirem as suas vidas por algum tempo, algumas horas, um pouco mais. O que ia ela fazer? Como podia continuar?

Afastou-se dali. Quis chorar, mas não conseguiu. Sentia-se apenas vazia. Era como se o curso do FBI tivesse sido um frágil alicerce sobre o qual tudo o resto se apoiara, permitindo-lhe funcionar apesar do que estava a acontecer, e, agora que ele tinha desaparecido, todo o edifício desabara.

Acabou por ir para o sofá. Não fazia ideia de quanto tempo ?cou ali sentada, a olhar para o espaço, até o seu olhar recair sobre as páginas impressas que estavam em cima da mesa. Olhou para elas como se não soubesse o que eram ou como tinham ido lá parar e depois inclinou-se para a frente, pegou nelas e começou a ler.

Mesmo nome, diferentes gra?as, diferentes endereços.

Um pensamento consciente.

O primeiro desde o telefonema.

Agora ela podia procurar a Ellinor certa. Vanja percebeu que o que a levara a conter-se fora o risco de perder o seu lugar naquele programa. Não ia perder o emprego, não por uma coisa daquelas. Não tinha qualquer intenção de ameaçar ou de assustar a mulher; só queria os factos. Poderia porventura deixá-la assinalada, mas nada mais.

«Depois da tempestade vem a bonança», pensou ela para sua surpresa quando se levantou. Essa frase corriqueira ocorreu-lhe de súbito, possivelmente porque todos os outros pensamentos e emoções continuavam bloqueados e paralisados.

Que ridículo.

A bonança não chegaria, ela tinha a certeza disso.


MORGAN HANSSON sentiu o sabor a sangue na sua boca. Não era sangue, claro, ele sabia disso. Era nervosismo, ansiedade e medo. Mas, mesmo assim, tinha aquele sabor metálico. Interessante como certos sentimentos tinham mesmo um sabor, pensou ele. É possível ter-se uma percepção concreta de algo tão abstracto. O amor devia saber a chocolate, pensou. Mas não era esse o sabor que sentia.

Era este.

Parou e encostou-se à parede cinzenta e irregular. Tentou acalmar-se. Só queria que aquilo chegasse ao ?m. Não comia desde a noite anterior, o seu estômago doía-lhe demais para que sentisse fome. Em vez disso, bebera grandes quantidades de água com gás; tinha a sua própria máquina de carbonar na cozinha. Era isso que fazia habitualmente quando precisava de relaxar. Bebia água carbonatada. Provavelmente, era por isso que o seu estômago borbulhava, fazendo subir à boca e à garganta frequentes golfadas de acidez. Morgan tentava dizer a si próprio que aquilo eram apenas nervos. Só isso. Ele não passava de um técnico de TI a caminho da sala de TI situada por baixo do parque de estacionamento. Tinha a devida acreditação de segurança, já ?zera aquele percurso muitas vezes no passado e até levava consigo dois discos rígidos de 10TB para que parecesse que ele ia lá abaixo tratar de algum assunto legítimo. Não era como se trouxesse um letreiro pendurado ao pescoço a declarar: «Este homem está prestes a infringir a lei.»

As intenções não eram visíveis, mesmo que assim parecesse. As intenções permaneciam invisíveis até serem traduzidas em acção. E o que ele tencionava fazer seria impossível de descobrir. Não ia tirar nada nem imprimir nada. Ia apenas veri?car se um arquivo e uma referência que, aparentemente, tinham sido eliminados por engano ainda lá estavam. Encontrar um nome. Isso não era ilegal. Era um caso limite. Possivelmente.

De súbito, ?cou zangado consigo mesmo. É claro que aquilo era errado – quem estava ele a tentar enganar? Esse ?cheiro estava classi?cado.

Apeteceu-lhe regressar para o seu gabinete, onde havia todos aqueles pedaços e peças soltas, os cabos, os discos rígidos, as impressoras, todas as coisas que o faziam sentir-se confortável. Anitha teria apenas de ?car desapontada. Não lhe importava que ela ?casse zangada consigo; não tinha tomates para este tipo de coisas. Ou, melhor ainda, poderia mentir-lhe, dizer-lhe que o arquivo já não estava lá. Que a cópia de segurança tinha sido apagada por qualquer motivo. Era uma ideia agradável, libertadora e simples. Uma pequena mentira bastaria; ela nunca conseguiria con?rmar o que ele lhe dissesse. Mas não podia fazer isso. Tinha-lhe prometido. Ela precisava de ajuda. Era importante ajudar as amigas, sobretudo se havia uma possibilidade de elas virem a tornar-se algo mais do que isso.

Continuou a andar. Chegou à última porta de segurança e pegou no seu passe. Ergueu-o diante do leitor e aguardou o clique. Demorou apenas um segundo. Abriu a porta. Este corredor era mais estreito e sensivelmente mais quente. A sala do servidor que estava atrás da primeira porta tinha ar condicionado, e algum do calor gerado pelo sistema passava para o corredor. Era provável que começasse a suar a qualquer momento. A sala onde estavam armazenadas as ?tas de backup era logo a seguir à sala do servidor. Ele achava que todo aquele procedimento de backup era já quase pré-histórico. Com certeza que nenhuma outra instituição moderna usava ?tas hoje em dia! O sistema tinha sido instalado nos anos 1960, quando ainda não tinham sido inventados os discos rígidos e tudo era armazenado em ?tas magnéticas. Em termos ?nanceiros, isso ?zera sentido até alguns anos atrás, quando o custo dos discos rígidos realmente grandes tinha começado a baixar, mas a Administração Nacional da Polícia decidira manter as ?tas. Morgan não sabia ao certo se isso fora por hábito, por preguiça ou por pura insensatez. Havia um maior risco de as ?tas ?carem dani?cadas, além de o próprio processo ser muito mais trabalhoso; alguém tinha de as substituir ?sicamente a intervalos regulares. Tinham de ser manuseadas e armazenadas correctamente, depois desmagnetizadas e reutilizadas. Por outro lado, talvez fosse esse o verdadeiro motivo da decisão: manter os empregos dentro da autoridade policial. Morgan presumiu que não estava a par de tudo. De qualquer forma, sentia-se feliz por não ter de ser ele a lidar com as ?tas o tempo todo. Só recebera formação para o caso de Göransson ?car doente ou não estar disponível; ele era o backup do backup que tratava do backup, por assim dizer. Provavelmente, seria a única pessoa em todo o mundo capaz de perceber o humor que havia nisso.

Abriu a porta e entrou na sala. À sua frente encontrava-se a máquina que estava ligada à sala do servidor por meio de cabos de ?bra: era um IBMTS2250 LTO de quinta geração, adquirido em 2011. Sentiu-se grato por isso; com os modelos anteriores, era necessário abrir a informação em sequência, o que demorava tempo. O novo modelo tornava possível usar a ?ta como um disco rígido, acedendo a tudo directamente através do sistema de ?cheiros, o que lhe pouparia imenso tempo.

Göransson governava um navio bem arrumado. As ?tas estavam cuidadosamente rotuladas por ordem cronológica. Morgan sabia que elas eram mantidas durante pelo menos três meses até serem reutilizadas. Segundo dizia Anitha, ela tinha apagado acidentalmente o ?cheiro há dois dias. Talvez ele devesse começar alguns dias antes disso, para ver o aspecto que o ?cheiro tinha então. Pegou com todo o cuidado na ?ta e segurou-a na mão. Era mais pesada do que ele se lembrava, mas talvez fosse como o sabor que ele sentia na boca; o peso dela advinha de outra coisa.

Respirou fundo.

A intenção estava prestes a transformar-se em acção.


MEHRAN IA CAMINHAR até ao centro da cidade. Só precisava de sair do apartamento, de se sentir de novo um adolescente, a pessoa que tinha sido antes de tudo isto começar, quando o seu maior problema era se eles iriam conseguir entrar na festa em Lövgatan no ?m-de-semana seguinte, e se lá estaria Miriam. Tinha enviado uma mensagem de texto a Levan, para lhe perguntar se a festa continuava combinada, mas não ainda obtivera resposta.

Devia sentir-se satisfeito com a forma como as coisas tinham corrido, mas, por qualquer motivo, não conseguira encontrar essa sensação de satisfação. Há uns tempos tinha pensado que se sentiria calmo logo que ele e os outros homens tivessem feito o que queriam, mas ao longo das últimas horas o seu espírito estivera em reboliço. Fora estranho, como se um presente que ele desejava há muito tivesse acabado por não ser nada de especial. Melika havia mentido. A sua mãe sempre tivera razão, mas isso agora não ia ajudá-la. Muito pelo contrário; os outros olhariam para Shibeka de forma diferente, embora ela tivesse escutado, cedido, desistido. O contacto dela com os outros ia diminuir; era assim que aquilo funcionava. Não bastava fazer-se apenas a coisa certa; nunca se devia fazer a errada. Era muito simples. Ela seria uma daquelas de quem se falaria cada vez menos, alguém que lentamente se metamorfoseava mais numa memória do que numa pessoa viva. As coisas eram assim.

Shibeka, que sempre cuidara de si. Que nunca desistira. O novo país tinha-lhe dado oportunidades inéditas para lutar; na Suécia, ela não tinha de aceitar a sua situação, de desaparecer na quietude por ser viúva, de ?car sentada em silêncio. Isso tornara-a forte. Especial. Era disso que o jornalista e os suecos gostavam: uma mulher que estava disposta a lutar por aquilo que queria. E era exactamente isso que Memel e os outros odiavam e temiam, presumia Mehran.

Ele, por outro lado, seria recompensado, levado mais para o seio da comunidade. Ao contrário de Shibeka, tinha mostrado que era alguém em quem se podia con?ar, que, embora defendesse a sua família, faria a coisa certa quando isso fosse realmente importante. Era como se ele tivesse ganho uma boleia à custa do esforço da sua mãe – como se lhe tivesse roubado o poder, o usasse para seguir em frente e a deixasse para trás, pelo que doravante eles passariam a mover-se em direcções diferentes. Ele estaria a avançar, enquanto ela recuaria.

E, no meio de tudo isso, continuava lá a mentira de Melika. Quem ia averiguar aquilo agora? Quem ia apurar a verdade?

Ninguém.

Isso não lhe parecia bem. De modo nenhum.

Quando Mehran chegou ao centro comercial, viu alguns dos rapazes mais velhos da escola à porta da lavandaria. Levantaram uma mão para o cumprimentarem, mas não sentia vontade nenhuma de ?car ali com eles. Retribuiu com um aceno de cabeça, mas continuou a andar. Não avistou Levan, mas percebeu que também não queria estar com ele. Prosseguiu até ao bloco de apartamentos de Melika e parou junto à reduzida área de recreio exterior. Foi sentar-se no balouço que o seu pai nunca lhe permitira usar. Ele insistira e insistira e chorara e chorara, mas Hamid recusara-se a ceder. Era para as crianças mais crescidas, dizia-lhe sempre. Aquilo quase se tornara uma espécie de ritual. Mehran perguntava-lhe se podia ir ao balouço. Hamid dizia-lhe que não, só quando tu fores mais crescido. Mehran pedia e pedia, mas Hamid nunca cedera. Nunca. Mehran sentou-se cautelosamente no balouço. Hoje em dia não lhe parecia nada de especial; era apenas um grande pneu de borracha suspenso por duas correntes. Hamid deixara-o usar o outro balouço, o que tinha um pequeno pneu adicional preso por baixo do grande para que não se pudesse cair. Sentiu nos seus dedos o frio das correntes, tal como quando era pequeno. Começou a balouçar-se. A armação rangeu ritmicamente à medida que ele ganhou velocidade.

Para frente e para trás. Para a frente e para trás.

De cada vez que o seu corpo se movia para a frente, outra pergunta surgia na cabeça dele.

Porque é que Melika mentira quando fora ao apartamento deles?

Para trás.

O que sabia ela sobre o homem chamado Joseph?

Para trás.

O que a deixara tão nervosa que ela sentira a necessidade de recorrer a Memel?

Para trás.

Ele tinha de apurar aquilo. Não podia simplesmente ir lá acima visitar Melika; isso não ia funcionar. Não podia correr o risco de ela se ir queixar de novo a Memel e aos outros.

Talvez devesse ir visitar a loja de Said. Tinha lá estado várias vezes com o pai; de vez em quando, Hamid ia dar-lhes uma ajuda, só para ter algo que fazer. Said era dono do estabelecimento, em conjunto com dois dos primos de Melika, Ra? e... Turyalai, era isso. Era de Ra? que se lembrava melhor; ele brincava sempre com Mehran e oferecia-lhe caramelos. Há muito tempo que não pensava nos primos. Eles não moravam em Rinkeby, mas em Vällingby, segundo dizia Shibeka. Pelo menos, costumavam morar. Ao princípio tinham ido visitar Melika algumas vezes, e ele sabia que tinham dado algum dinheiro a Shibeka para a ajudarem. No entanto, isso já fora há anos; tinha passado a vê-los cada vez menos à medida que Melika e Shibeka se foram distanciando. Mas talvez soubessem alguma coisa. Said passava a maior parte do seu tempo com eles.

Parou o balouço e deslizou para fora. Levantou os olhos mais uma vez para o apartamento de Melika antes de se dirigir para o metropolitano.

Tinham silenciado a sua mãe com a ajuda dele; agora era o único que poderia descobrir a verdade.


A PRIMEIRA ELLINOR BERGKVIST morava em Grönviksvägen 107, em Nockeby. Vanja inseriu o endereço no seu GPS; julgava que nunca tinha ido a Nockeby. No meio do intenso trânsito que apanhou pelo caminho, foi pensando como haveria de abordar as diversas mulheres. Certamente não iria dizer-lhes que era uma agente policial, mas o que haveria de dizer então? O mínimo possível, decidira quando entrara para a área de estacionamento semicircular em frente àquele bloco cinzento sujo em forma de V. Vanja aproximou-se do número 107 pelo largo caminho asfaltado que existia entre os edifícios; avistou mais adiante uma faixa de água fria e pardacenta. Parecia um canal, mas ela supôs que deveria fazer parte do lago Mälaren. A porta do edifício era feita de metal e vidro. Trancada. Veri?cou o painel na parede: Bergkvist, segundo andar. Vanja premiu o Levin do terceiro andar, disse que vinha entregar ?ores para Bergkvist mas ninguém estava em casa. Poderia ela entrar e deixá-las à porta? Quando entrou na fria escada, decidiu evitar o elevador. Bergkvist morava no primeiro apartamento à esquerda no patamar do segundo piso. Tocou a campainha e uma mulher com cerca de trinta e cinco anos veio abrir a porta. Ela ouviu em fundo o som de uns barulhentos desenhos animados para crianças. A mulher tinha cabelos castanhos apanhados atrás num rabo-de-cavalo, uns discretos brincos de ouro e uma maquilhagem muito bem aplicada (embora não recentemente). Vestia uma blusa leve e folgada, uma saia elegante e uns collants. Vanja teve a impressão de que ela tinha ido buscar as crianças no caminho de casa para o trabalho e que acabara de chegar.

– Ellinor Bergkvist? – perguntou Vanja quando a mulher lhe lançou um olhar interrogativo.

– Sim?

– O meu nome é Vanja Lithner. – Calou-se e esperou por uma reacção. O seu apelido era invulgar; se aquela mulher estivesse envolvida no assunto relativo ao seu pai, di?cilmente não manifestaria alguma reacção. Vanja observou-a com atenção; era boa nisso. Detectar os pequenos sinais, as nuances: um piscar de olhos, um deslocamento do peso corporal. A mulher que estava à sua frente não mostrou nada a não ser genuína surpresa.

– Valdemar Lithner é meu pai – continuou Vanja, e a seguir voltou a fazer uma pausa. Observou-a e aguardou.

– Desculpe, mas o que é que realmente pretende?

Do interior do apartamento veio um bramido, seguido de um grito pela mamã, e a informação de que Hugo andava à bulha, seguida por uma negação categórica e por uma a?rmação de que Linnea estava a mentir.

– Eu já vou! Portem-se bem! – gritou a mulher antes de se voltar de novo para Vanja.

– Teve alguma coisa a ver com Valdemar Lithner e com um homem chamado Trolle Hermansson?

– Não, não tive. Não sei do que está a falar.

Agora o nervosismo nos olhos e na voz, mas isso era provavelmente porque Linnea estava a informar todos, em voz alta, sobre quão estúpido era Hugo por mudar os canais. A primeira Ellinor não era a Ellinor certa, Vanja tinha a certeza disso.

– Lamento muito, nesse caso, deram-me a morada errada. Peço desculpa – disse ela, dando um passo para trás.

A mulher fez um gesto de assentimento e fechou a porta. Houve mais um grito seguido pelo som de choro quando também Ellinor Bergkvist pôs em causa a inteligência do seu ?lho – ele realmente achava que bater na cabeça da irmã com o comando era a maneira de resolver a discussão?

Vanja começou a descer as escadas. Mais duas Ellinors em Estocolmo. Vinte no resto do país. Mas ela não tinha pressa.

A?nal, já não ia para os Estados Unidos.


MEHRAN APANHOU a linha azul para Fridhemsplan; não precisava de mudar. Sabia que a pequena loja estava situada dentro da estação do metropolitano, mas não estava certo de que saída devia escolher. Já lá não ia há dez anos e sabia que não podia con?ar nas memórias de quando era menino. Aquilo que a um rapaz de cinco anos de idade parecia uma distância enorme, na realidade, poderia não ser mais de 100 metros.

Quando subiu da plataforma para os grandes túneis que conduziam às várias escadas rolantes, recebeu uma mensagem de texto de Levan a con?rmar que a festa continuava marcada. Mehran apagou-a; agora tinha coisas mais importantes em que pensar.

Sabia que a loja não se situava nos corredores próximos da Fridhemsplan propriamente dita, onde tinha estado muitas vezes, mas num dos mais pequenos, para o lado de Stadshagen. Seguiu as indicações para Mariebergsgatan; julgou reconhecer o nome.

Mehran encontrou o local mais cedo do que esperara. Estava inserido numa estreita passagem pedestre com paredes de cimento cinzento, ao pé de uma escadaria que conduzia à cidade mais acima. Três sujas montras gradeadas exibiam anúncios escritos à mão que publicitavam ofertas especiais, e uma porta de aço reforçado estava escancarada para provar aos poucos transeuntes que a loja estava realmente aberta. Parecia diferente daquilo de que ele se lembrava; ao princípio não conseguiu distinguir porquê, mas depois percebeu. O letreiro era diferente. Antigamente, era amarelo-açafrão, com as letras num vermelho-garrido. Não sabia o que lá dizia, porque nessa altura ainda não tinha aprendido a ler, mas de facto lembrava-se daquelas cores fortes, provavelmente porque lhe faziam lembrar a sua terra natal. Agora era a preto e branco. Loja de conveniência. Breve e funcional: não evocava quaisquer memórias. Entrou. O cheiro era exactamente o mesmo: o débil odor do metropolitano, misturado com poeira e algo doce. Tinham mudado a caixa para mais perto da porta. Atrás do balcão estava sentado um homem com os seus cinquenta anos, vestido com um pulôver preto, a ler um jornal enquanto tomava café. Tinha cabelo grisalho e curto, que lhe começava a escassear. Mehran não o reconheceu.

Dirigiu-se a ele, sorrindo-lhe educadamente. Começou a falar em pashtun, quase por hábito.

– Olá, o Ra? está cá?

O homem levantou os olhos, sem compreender.

– O que disse? – respondeu num forte sotaque sueco. Mehran supôs que ele tivesse origens árabes, mas por precaução passou a falar em sueco.

– O Ra?. O Ra? está cá?

– Não conheço nenhum Ra?.

– É o dono desta loja.

O homem mostrou-se mais confuso ainda.

– O meu irmão e eu é que somos donos desta loja.

Pois claro. Era por isso que ele não ouvia nada sobre a loja há muito tempo; tinham-na vendido.

– Comprámo-la a uns afegãos – continuou o homem. – É a eles que se está a referir?

– Penso que sim. O Ra? e o Turyalai?

– Não me lembro dos nomes, mas eram três, tanto quanto me recordo.

Mehran assentiu. Said teria sido o terceiro homem.

– O outro homem chamava-se Said? – perguntou-lhe ele, só para ter a certeza.

O homem encolheu os ombros.

– Não faço ideia. O meu irmão é que tratou de tudo. São seus parentes?

– Não. O meu pai era amigo do Said.

O homem sorveu um pouco do seu café.

– O meu irmão demorou muito tempo a fechar o negócio. Não gostava nada deles. Eram muito difíceis, discutiam connosco, discutiam uns com os outros.

Mehran ?cou atónito. Não era nada assim que ele se lembrava de Said e dos outros.

– Sabe sobre o que discutiam eles?

– Não se punham de acordo quanto a vender ou não. Estavam sempre a mudar de opinião, e nós pensámos que aquilo não ia resultar em nada, mas de repente eles telefonaram e tudo se resolveu em vinte e quatro horas. Ficámos espantadíssimos; até já tínhamos começado a ver outras instalações.

A boca de Mehran ?cou subitamente seca. Ele não conseguia conjugar aquela história que o homem lhe estava a contar com as memórias que tinha de Said e dos outros. Eles haviam sido bons amigos. A?nal, eram família; parentes distantes pelo lado de Melika, evidentemente, mas mesmo assim... Com certeza que se davam bem? Ele sempre acreditara que sim, mas talvez tivesse existido algum con?ito de que ele não se apercebera quando era criança! Isso não era impossível, mas porque não o referira Shibeka? Ela praticamente não pensara noutra coisa durante os últimos anos. Algo não batia certo.

– Há quanto tempo é dono do estabelecimento, se não se importa que eu pergunte?

O homem sorriu e recostou-se na cadeira desconjuntada.

– Há demasiado tempo, na minha opinião. Nove anos, penso eu, mas o meu irmão é que tem todos os pormenores. Posso telefonar-lhe, se quiser.

– Por favor, não se importa?

– Eu pareço alguém que tenha muito para fazer? – disse o homem secamente, acenando com a mão para a loja vazia. Pegou no telefone, premiu um botão, pôs-se em pé e começou logo a falar em árabe.

Mehran conseguiu entender uma ou outra palavra estranha, mas não o su?ciente para compreender tudo. Olhou em redor; quantas vezes tinha estado ali quando era criança? Umas dez, talvez quinze. Habitualmente, estava lá Said, às vezes Ra?, Turyalai nunca. Mehran tinha-o encontrado ocasionalmente em casa de Melika, mas não com frequência su?ciente para ter uma memória nítida dele. Turyalai era o maior dos três, tanto quanto se lembrava. Não tinha excesso de peso, mas tanto Said como Ra? eram altos e magros – por isso, comparado com eles, parecera-lhe grande. Rosto redondo. Cabelo curto. Um pouco mal-humorado. Mehran não os via desde há muito tempo, e nunca como indivíduos. Tinha-os agrupado como três amigos, três parentes – era Said e os outros dois. Agora ?cara a saber que talvez não tivessem sido tão próximos como ele sempre acreditara.

O homem atrás do balcão terminara a sua conversa.

– Comprámos este lugar em Setembro de 2003, depois de negociarmos com eles durante quase um ano.

Mehran assentiu rigidamente; não lhe ocorria nada para dizer. O seu espírito rodopiava. Os dois primos tinham vendido a loja apenas um mês depois de o seu pai e Said terem desaparecido. Não tinha a certeza de que isso signi?cava alguma coisa, mas era demasiado cedo. E tinham discutido por causa da venda; porque é que Melika nunca falara disso? A?nal, eram seus primos; ela devia ter dito que eles tinham vendido a loja. Porque é que ele nunca soubera? Mais uma vez, aquilo não batia certo.

– O seu irmão lembra-se de quem é que não queria vender? – ouviu-se ele a perguntar.

– Ele acha que era o Said, mas não tem a certeza. Em todo o caso, o Said não estava presente quando a venda se efectuou, por isso, o meu irmão assumiu que ele não tinha ?cado contente com o negócio.

Said não estava mesmo presente, pensou Mehran. Já tinha desaparecido por essa altura. Juntamente com o seu pai.

Quando saiu da loja começou a correr, correu pelas escadas rolantes abaixo. Na verdade, nem sabia onde ia, mas sabia que algo estava errado.

Só havia uma pessoa com quem ele poderia falar.

Uma pessoa a quem ele tinha de contar.

A mãe.


A SEGUNDA ELLINOR morava na Västmannagatan, no centro da cidade. Após passar quase vinte minutos à procura de um lugar para estacionar, Vanja desistiu e abandonou o carro demasiado perto de uma passadeira de peões. Recusava-se a usar os parques de estacionamento com vários pisos; o preço era mais do que ridículo. Preferiu correr os seus riscos e só esperava não ser multada durante a meia hora, ou perto disso, de que precisava.

Não havia intercomunicador na porta, apenas um teclado. Vanja deixou-se ?car junto à porta; era um bloco de apartamentos relativamente grande e deveria haver alguém a chegar a casa vindo do trabalho ou a sair cedo para uma noite na cidade. Ao ?m de dez minutos, saíram de lá dois jovens que se dirigiram para Odenplan. Vanja esgueirou-se para o interior antes que a porta se fechasse. Mais uma escada, mais uma lista de nomes. Bergkvist, terceiro andar. Começou a subir as escadas, tocou à campainha. Tentou novamente. Nada.

– Está à procura de Ellinor?

Vanja virou-se para trás. Uma senhora idosa com um casaco que lhe ?cava demasiado grande tinha acabado de chegar ao patamar. Por baixo do chapéu de aba larga via-se-lhe o cabelo alvíssimo e um rosto tão enrugado que lembrou a Vanja mais uma múmia egípcia do que uma uva seca. Pelo menos às uvas secas ainda restava alguma humidade, ao passo que a mulher que se aproximava de Vanja parecia completamente ressequida. No entanto, os olhos dela luziam de vida e de curiosidade.

– Sim.

– Se ela não está em casa, provavelmente está no trabalho. Existe alguma coisa em que eu possa ajudá-la? Chamo-me Tyra Lindell; moro no piso de cima.

Apontou para o tecto com um dedo ?no. Tudo nela parecia seco e quebradiço. Vanja pôs-se a pensar porque não teria ela usado o elevador, mas depois percebeu que a mulher nem sequer perdera o fôlego após subir três lanços de escadas.

– Obrigada, mas eu realmente preciso de falar com Ellinor. Sabe onde ela trabalha?

– No Åhlén... produtos domésticos ou de interiores ou lá como isso se chama.

– Muito bem, obrigada.

Vanja sorriu-lhe e encaminhou-se para as escadas.

– Eles estão abertos até às nove horas em certas noites.

– Obrigada – disse-lhe Vanja novamente por cima do ombro.

– E se ela não estiver lá, imagino que esteja com o cavalheiro seu amigo – continuou Tyra Lindell como se não tivesse notado que Vanja já não estava ali à sua frente.

Vanja parou. Voltou a subir as escadas.

– Por acaso sabe onde ele mora?

– Não faço ideia, mas, se ?zermos fé em Ellinor, não deve ser muito difícil de encontrar.

– Oh?

Tyra inclinou-se para diante de modo conspiratório e baixou a voz.

– Aparentemente, ele é muito conhecido... famoso, na verdade. – Revirou os olhos para mostrar quão pouca fé atribuía aos disparates de Ellinor. – Ela contou-me tudo sobre ele, e ?cou bastante irritada por eu não saber quem ele era. No ?nal, tive de ?ngir.

– Lembra-se do nome dele?

– Oh, sim... Sebastian, Sebastian Bergman. Parece que é psicólogo.

Vanja olhou para a velhota. Era impossível. Ela devia ter ouvido mal. Esse nome não podia aparecer ali. Agora não. A sensação que antes tivera no seu apartamento regressou; isto não podia ser verdade. Devia ser alguma partida, um daqueles programas de televisão com câmaras escondidas. Em breve alguém saltaria cá para fora, a rir-se da facilidade com que ela tinha sido enganada. Impagável! Vanja não sabia quem poderia ser esse alguém, mas certamente teria de ser essa a explicação.

– Sebastian Bergman é o cavalheiro amigo de Ellinor – repetiu ela, notando, para sua surpresa, como a voz era ?rme. Tyra con?rmou.

– Sim. Como eu disse, ele é psicólogo, e aqui entre nós... – Tyra chegou-se mais perto novamente, e desta vez pousou a mão enrugada no braço de Vanja – eu cá acho que de tempos a tempos a Ellinor precisa de alguma ajuda nesse departamento.

– Tem a certeza?

– Não, mas ela é um pouquinho esquisita.

– Quero dizer, tem a certeza de que ela andava a falar sobre um psicólogo chamado Sebastian Bergman?

– Absoluta. Está praticamente a viver com ele. Ou pelo menos estava; ultimamente, tem passado bastante tempo em casa. Se calhar ele ganhou juízo.

Tyra sorriu-lhe, mas Vanja nem sequer reparou. Era como se dois universos paralelos tivessem colidido nas escadas de um bloco de apartamentos na Västmannagatan e dado origem a uma realidade alternativa. Se alguém fosse saltar cá para fora e rir-se da sua expressão atónita, este seria um bom momento. Mas ninguém o fez. Infelizmente.


ANITHA MANTIVERA-SE discreta desde o seu almoço demorado com Morgan Hansson. Fizera o que lhe pagavam para fazer, não acedera ao sistema sob o nome de outra pessoa nem sequer tinha publicado no Flashback. Sem dúvida que estava a ser excessivamente cautelosa, mas sentia que era melhor fazer uma pausa em todas as actividades suplementares até voltar a ter notícias de Morgan. Ele prometera-lhe que iria à sala de dados da cave na manhã seguinte, mas ainda não a contactara. Quanto tempo poderia demorar a pesquisar algumas ?tas de backup?

Durante algum tempo, Anitha ?cara preocupada; e se ele tivesse ido falar com o seu superior directo e lhe tivesse contado tudo, em vez de a ajudar? Talvez fosse por isso que estava tão calado. Todavia, acalmou-se quando se lembrou de como Morgan se chegara mais perto no dia anterior, antes de se separarem, e dos olhares que ele lhe lançara. Tinha-o manobrado na perfeição; ele não ia desiludi-la. Na verdade, suspeitava de que o verdadeiro problema seria livrar-se dele quando tudo isto chegasse ao ?m.

À tarde já não conseguiu ?car parada por mais tempo; decidiu ir lá abaixo visitá-lo. Ela tinha de saber. Havia de telefonar-lhe primeiro ou simplesmente aparecia por lá de surpresa? A última opção talvez fosse a melhor; queria olhá-lo nos olhos enquanto ele falava para conseguir perceber se estava a mentir ou não. Caminhou rapidamente em direcção à escadaria principal, apressou-se a descer ao primeiro piso e não abrandou até chegar ao gabinete dele.

Não estava lá. Percorreu todo aquele piso, tentando comportar-se como se tivesse assuntos importantes a tratar. Por ?m, avistou-o junto à escadaria mais pequena; parecia vir a subir, presumivelmente ao encontro dela. Toda a sua postura corporal lhe disse que já o ?zera. Ela acelerou o passo, apeteceu-lhe começar a correr, mas controlou-se. Isso haveria de parecer estranho, e certamente não queria atrair a atenção de ninguém.

Alcançou-o quando ele estava a chegar à pesada porta de vidro.

– Morgan – disse-lhe ela, o mais casualmente que pôde.

Ele virou-se para trás e mostrou-lhe um olhar neutro que ela não conseguiu interpretar. Não era nervoso nem entusiasmado; simplesmente era.

– Como correu isso? – continuou ela.

Ele não respondeu, mas indicou-lhe com um aceno de cabeça que deviam passar pela porta. Seguiu-o quando ele começou a descer as escadas, com os passos de ambos a fazerem eco. Ele parecia querer chegar lá abaixo antes de dizer alguma coisa, possivelmente para evitar a acústica das escadas. As suas palavras seriam ampli?cadas e poderiam ser ouvidas pela pessoa errada. Era uma precaução sensata, mas Anitha estava a sofrer. Finalmente, parou e esperou por ela. Tentou mostrar-se despreocupada quando se lhe juntou, embora só lhe apetecesse sacudi-lo, fazê-lo dizer alguma coisa.

– Já ?z aquilo – sussurrou ele por ?m.

– Muito obrigada – disse-lhe Anitha calorosamente. – Eu estava um pouco preocupada contigo...

– Foi uma coisa estúpida de fazer, mas eu queria ajudar-vos, a ti e à Eva.

– A Eva? – ouviu-se Anitha dizer; um segundo depois, percebeu a quem ele se referia. Morgan olhou-a com cepticismo.

– A Eva. A agente policial de Solna. A amiga de quem tu me falaste.

– Pois claro, sim, a Eva Gransäter – balbuciou Anitha, amaldiçoando a sua estupidez. Como podia ela esquecer-se das suas próprias mentiras? – Tenho-me sentido muito enervada – acrescentou, numa tentativa de explicação.

– Eu também – disse Morgan de um modo desarmante. – Até pensei que ia ter um ataque cardíaco lá em baixo.

– Como correu isso?

– Bem, Adam Cederkvist é o nome que a tua colega procura. Sabes quem ele é?

– Não faço a mínima ideia – respondeu Anitha com total honestidade enquanto era dominada por uma vaga de desapontamento. Tinha estado à espera de um nome que conseguisse reconhecer, de um ?gurão cuja reputação arruinada tivesse um sabor mais doce que a de algum anónimo funcionário público, caso isto levasse a algum lado.

– Nada mais? – disse ela, incapaz de esconder o que sentia.

– Essa foi a referência que tu apagaste por engano. E agora tenho uma pergunta para ti – disse-lhe Morgan com um sorriso irónico.

– Não há problema – respondeu-lhe Anitha, embora suspeitasse de que poderia vir a arrepender-se disso. De repente, Morgan parecia demasiado seguro de si para o gosto dela.

– Isto é mesmo sobre quê?

– Desculpa?

– Porque é que tu acedeste ao sistema com um nome falso e foste pesquisar ?cheiros con?denciais da Säpo?

Anitha tentou mostrar-se blasé.

– Já te disse... foi uma tentativa estúpida de ajudar uma colega.

Um breve silêncio. Morgan fez um gesto de assentimento para si próprio, como se tivesse acabado de receber a con?rmação de algo que já julgava saber. Inclinou-se na direcção dela.

– Eu fui con?rmar. Eva Gransäter. Ela já não é agente policial. Saiu em 2007.

As faces de Anitha tingiram-se de vermelho. Ficou sem saber o que responder. Era uma sensação estranha; ela sempre se mantivera na sombra, e agora tinha sido apanhada pela luz.

– Então, vais dizer-me do que se trata – prosseguiu Morgan calmamente – ou preferes que eu transmita isto ao meu chefe?

– Não. Eu digo-te.

– Óptimo. Quero saber tudo.

Morgan olhou-a de novo com a sua recém-descoberta con?ança. Anitha percebeu que jamais se livraria dele. Doravante, iriam jantar juntos com bastante frequência. A questão era: quem tinha manobrado quem?

 

Merda, ele tinha de pensar depressa.

Há menos de um minuto, estava em pé na cozinha a fritar uns hambúrgueres quando a campainha tocara. Retirara a frigideira do lume antes de ir até ao corredor. Perguntou quem era, lembrou-se de que devia mandar instalar um óculo na porta. Era Vanja. Sentira o seu coração dar um pequeno salto de alegria, embora ela parecesse bastante acabrunhada, tanto quanto conseguira perceber por aquele «É a Vanja». Sebastian respirara fundo; sem dúvida que ela já tivera notícias a respeito do programa do FBI e ?cara devastada. Precisava de alguém que a consolasse. Tinha aberto a porta.

Ela não estava devastada.

Estava furiosa.

– Ellinor Bergkvist – vociferara ela de braços cruzados, mal a porta se abrira.

– O que tem ela?

– Tu sabes quem é.

Não era uma pergunta. Sebastian agradeceu à sua estrela da sorte por não ter dito «Quem é essa?» quando ouvira o nome da mulher que tinha morado consigo durante algum tempo.

– Sim.

Respostas breves. Não valia a pena perder as reservas antes de saber mais.

– É a pessoa que entregou à Polícia o material sobre o meu pai.

Vanja tinha ?cado a olhar para ele com uma expressão que era ainda pior do que alguns meses antes, quando o detestava intensamente.

Ele tinha de pensar depressa. Merda, ele tinha de pensar depressa.

Deu um passo para o lado e ela entrou. Ficou parada do lado de dentro da porta. Não fez qualquer tentativa para despir o casaco nem para se descalçar.

– Conta-me o que aconteceu – disse-lhe ele, procurando ganhar tempo.

– A tua namorada entregou à Autoridade do Crime Económico o material que levou a que o meu pai fosse preso, por isso, acho que tu é que tens algumas explicações a dar.

Braços ainda cruzados. Um olhar de desa?o nos olhos. Sebastian optou pela verdade, ou, pelo menos, por uma variação sobre a verdade. O mais próximo possível dela, mas com a omissão de alguns pormenores. Soltou um suspiro profundo para mostrar como estava transtornado. Nem sequer precisou de ?ngir; isto poderia destruir tudo o que ele construíra ao longo dos últimos dias.

– Eu de facto pensei nisso, mas... – Calou-se e abanou a cabeça. – Esperava que não fosse verdade.

– De que estás tu a falar?

Ele respirou fundo. Teria de tocar de ouvido, de correr os seus riscos. O pior de tudo seria tentar esquivar-se àquilo.

– O Trolle Hermansson apareceu-me aqui há alguns meses e deu-me um saco contendo apontamentos sobre o caso do Valdemar.

– Mas porquê? Porque tos deu a ti?

– Não faço ideia. Presumi que ele sabia que trabalhávamos juntos de vez em quando, mas que eu já não estava formalmente ligado à Riksmord.

– Não compreendo... mas porque é que o Trolle tinha começado a investigar o meu pai?

Sebastian encolheu os ombros. Poderia ater-se à sua versão da verdade.

– Pelo que eu conhecia do Trolle, ele fazia qualquer trabalho que conseguisse arranjar.

– Conheceste-o bem?

– Trabalhámos juntos, mas ele foi expulso antes de eu sair da Riksmord. Isso deve ter sido... talvez há uns quinze anos!

– Mas vocês ainda mantinham contacto?

– Víamo-nos de vez em quando. Ele era muito solitário... divorciado, tinha perdido a família. Era um bocado parvalhão... não havia muita gente disposta a aturá-lo.

– A não ser outro parvalhão.

– Acho que sim...

Vanja compenetrou-se do que acabara de ouvir. Sebastian ?cou satisfeito ao ver que os braços dela tinham descaído ligeiramente; começava a descontrair-se. Por um lado, isso era bom, mas, por outro, era mau. Agora que a sua fúria inicial havia diminuído, estava a ?car pensativa e analítica, o que era muito mais perigoso para Sebastian. Quaisquer que fossem as perguntas seguintes, elas seriam ditadas pelo seu intelecto, não pelas suas emoções.

– Mas se alguém pediu ao Trolle para investigar o meu pai, porque é que ele te deu o material a ti e não a essa pessoa?

Uma pergunta difícil com uma resposta simples, pois era claro que tinha sido Sebastian quem pedira a Trolle para desenterrar todo o lixo que conseguisse sobre Valdemar Lithner, e essa era a única coisa que ele jamais poderia dizer a Vanja. Estava na altura de abandonar a verdade por completo.

– Não sei, talvez tenham discutido por causa do pagamento, talvez o Trolle se tenha zangado por algum motivo e decidisse disparatar com eles.

– Portanto, em vez disso, deu-te tudo aquilo a ti.

– Sim.

Estavam sempre a voltar ao mesmo ponto; até Sebastian conseguia ver como a explicação era oca. Havia muitos mais cenários credíveis.

Trolle poderia ter ido à Polícia.

Destruído tudo o que encontrara.

Deixado aquilo esquecido nalguma gaveta do seu apartamento.

Porque o entregara a Sebastian? Era essencial impedir que Vanja pensasse nisso, que reforçasse a motivação.

– Não sei, se calhar tinha medo de ter aquele material em sua casa ou talvez quisesse que mais alguém visse o que ele obtivera. Como já disse, ele era muito solitário.

– Então, o que ?zeste tu com aquilo? – perguntou Vanja; ao menos parecia ter desistido de saber porque é que Sebastian adquirira aquele material, por enquanto. Regressar às meias-verdades.

– Nada. Li aquilo e decidi não fazer nada. Depois, quando o Trolle morreu...

– Qual era a ligação dele com o Edward Hinde e o Ralph Svensson... disse-te alguma coisa sobre isso?

Aproximavam-se rapidamente do próximo ponto crítico. Ele tinha de arranjar uma explicação plausível para que um velho chui caído em desgraça, que passara despercebido durante quase quinze anos, surgisse de repente duas vezes no decurso de apenas alguns meses. O denominador comum era Sebastian, claro, mas ele tinha de encontrar outra coisa qualquer.

Outra pessoa qualquer.

Vanja.

– Eu também me pus a pensar no assunto – disse-lhe ele, afagando o queixo. – A única coisa que me ocorre é que alguém lhe pediu para investigar o teu pai, por isso ele acabou por chegar a ti, descobriu que estavas envolvida numa importante investigação de homicídio, decidiu adiantar-se à Riksmord resolvendo o caso sozinho e depois... morreu.

Sebastian conteve a respiração.

Demais? Demasiado fácil? Demasiado rebuscado?

Vanja concordou pensativamente. Sebastian achou que era melhor continuar enquanto se mantinha em vantagem, certi?car-se de que ela não dispunha de muito tempo para ponderar.

– Em todo o caso, decidi deitar fora o material que Trolle me tinha dado, mas depois ?quei ferido e tive de permanecer no hospital. Pedi à Ellinor que o destruísse, mas é óbvio que ela não o fez.

– Então quem é essa Ellinor?

Voltar à verdade.

– É... uma mulher doente que viveu aqui durante algum tempo. Quando as mulheres com quem eu tinha dormido começaram a ser assassinadas, fui avisá-la e ela... mudou-se para aqui. E cá ?cou, conforme foi dando.

Ele nem sequer conseguia explicar isso a si mesmo.

– Já não estamos juntos. Pu-la a andar daqui para fora. Ela é doida – acrescentou, só para sublinhar o facto de que nada tinha a ver com o que acontecera.

Vanja ?cou ali a observá-lo, a processar as informações, a tentar decidir se acreditava nele ou não. Ele deu um passo em frente, pousou-lhe uma mão no braço, aguardou até ela enfrentar o seu olhar sincero, simpático.

– Lamento muito que isto tenha acontecido, e realmente espero que não penses que teve algo a ver comigo.

Vanja perscrutou intensamente o olhar dele, procurando algum sinal de que estivesse a mentir, procurando algo que não ?zesse sentido. Trolle, Ellinor, o material – tudo estava ligado a Sebastian. Poderia ser uma coincidência, um capricho do destino. Que mais haveria de ser?, perguntou a si mesma. Ainda não estava completamente satisfeita com a explicação sobre o motivo por que Trolle havia entregado tudo a Sebastian, mas estava inclinada a acreditar nele. Por vezes, as coisas limitavam-se a acontecer; as pessoas agiam de acordo com uma lógica que lhes era muito própria, e esta parecia ser uma dessas situações. Que razão poderia ter Sebastian Bergman para querer ver o pai dela ir parar à prisão?

Absolutamente nenhuma.

Ele era seu amigo.

Fez-lhe um sinal de assentimento com a cabeça e percebeu como ele ?cou aliviado. Como ?cou contente.

Mas, logo que a raiva e a incerteza se desvaneceram, Vanja não conseguiu conter as lágrimas. De repente, ?cou a olhar para o chão, chorando em silêncio. Sebastian não sabia o que fazer; parecia querer abraçá-la, mas hesitava. Ela avançou um passo na sua direcção para lhe mostrar que não fazia mal, e ele colocou os seus braços à volta dela.

– Não entrei para o programa do FBI – murmurou ela sobre o peito coberto pelo avental enquanto soltava todas as decepções das últimas vinte e quatro horas. Soluçava a tal ponto que estava a tremer, e ele fez o que pôde para a confortar. Como um pai. Precisava dela, era por isso que tinha ido falar com Riddarstolpe, mas ela também precisava de si. Era melhor para ambos que ela não se fosse embora, disse para consigo enquanto lhe afagava gentilmente o cabelo.


VALDEMAR ESTAVA deitado de costas na sua tarimba, a olhar para o tecto e a tentar pensar em algo que não fosse aquela dor que lentamente se desvanecia nas suas costas. A mesma tarimba, a mesma cela, o mesmo tecto, mas agora ele ?cara à responsabilidade do sistema de justiça criminal, não da Polícia. Tinha sido formalmente acusado nessa tarde.

Nunca antes estivera num tribunal e esperava que se parecesse com aqueles que tinha visto nas séries televisivas americanas, mas acabou por não ser esse o caso, pelo menos no que dizia respeito à sala do tribunal distrital de Estocolmo, para onde fora levado às 13h05, juntamente com Karin Svärd, a advogada que, por ?m, conseguira contratar. Havia uma tribuna em frente, por trás da qual despontavam as costas altas de cinco cadeiras verdes com um aspecto muito confortável. Duas dessas cadeiras estavam ocupadas por funcionários judiciais, as outras estavam vazias. Diante da tribuna havia duas mesas curvas, dispostas de maneira a que fosse fácil ver-se quem estava na outra mesa e falar com quem estivesse na tribuna. Na mesa mais distante da porta estavam sentadas duas pessoas: Valdemar foi informado de que uma delas era Stig Wennberg, o procurador, e a outra era um assistente qualquer; Karin não sabia o nome dele.

Sentaram-se. Valdemar tinha olhado para a zona do público. Anna estava lá, claro; Vanja não. Exactamente como ele queria. Deixou o seu olhar percorrer os outros ali presentes antes de ?tar os olhos de Anna; ninguém que ele reconhecesse. Ninguém do escritório. Pessoas coscuvilheiras que não tinham mais nada para fazer, presumivelmente. Anna tinha um ar cansado. Ele ofereceu-lhe um leve sorriso e ela retribuiu, mas os seus olhos não se iluminaram como habitualmente acontecia, e ela depressa desviou a sua atenção para os dois funcionários judiciais.

Teve início a sessão. Após se ter con?rmado os nomes dos presentes, o procurador foi convidado a ler as acusações. Stig Wennberg aclarou a garganta e começou a falar. Era uma longa lista. Valdemar olhou para Anna; as feições dela pareciam tornar-se mais rígidas a cada acusação lida em voz alta.

Não tinham falado um com o outro desde que a Polícia o fora buscar. Acreditaria ela que ele estava inocente? Tinham desfrutado da boa vida, tinham conseguido regalar-se, mas julgaria ela realmente que ele ganhava tanto assim? Talvez não se preocupasse com esse lado das coisas, ou teria suspeitado que parte daquele dinheiro provinha de actividades um pouco mais obscuras? Ele não sabia. Nunca tinham discutido o assunto. A julgar pela expressão dela na sala do tribunal, aquilo fora um completo choque, e ela não parecia duvidar da sua culpa. Não havia pequenos abanões da cabeça para mostrar quão ridículas eram as acusações do procurador nem olhares simpáticos para Valdemar a ?m de lhe transmitir como lamentava que um homem inocente tivesse acabado em tal situação. Na verdade, ela parecia determinada a não olhar de todo para ele. Isso magoava-o, mas só podia culpar-se a si mesmo. Tinha sido um golpe devastador para a sua esposa e para a sua ?lha, e, ao contrário de si, elas eram totalmente inocentes. Não o surpreendia que decidissem distanciar-se dele. Tinha um longo caminho a percorrer caso quisesse recuperar a con?ança e o amor delas; demasiado longo, porventura.

Na verdade, não compreendia como chegara àquele ponto. Não podia culpar a ignorância; ele sabia o que a Daktea andava a fazer, aquilo que lhe haviam pedido para fazer. Era ilegal, mas, para ser justo, não tinha calculado o âmbito da operação até ela entrar em colapso. No entanto, também sabia que eles eram espertos; com a sua ajuda, tinham construído uma sólida estrutura repleta de becos sem saída e de inúmeras transacções que eram praticamente impossíveis de rastrear. Com o passar do tempo, sentira-se cada vez mais seguro. Ele era apenas uma pequena engrenagem numa máquina enorme. Porque haveria alguém de vir atrás de si?

Wennberg concluiu a sua declaração. Perguntaram a Valdemar se ele se declarava culpado ou inocente. Olhou para Karin, que lhe fez um aceno quase imperceptível. Instruíra-o sobre o que haveria de dizer, mesmo que fosse mentira.

– Inocente.

A sessão continuou por mais trinta minutos. Karin fez o melhor que pôde para expor todas as fraquezas do caso da procuradoria, mas Valdemar não tinha grande fé nas possibilidades dela, e, com efeito, o resultado foi o que já esperava: acusado de fraude grave. O procurador pediu que todas as restrições se mantivessem, e o pedido dele foi deferido. Terminara. Anna levantou-se e foi a primeira a sair da sala; Valdemar achou que ela estava a esforçar-se para não chorar. Isso era o pior. Não a humilhação, não o facto de ter sido preso, não a punição que inevitavelmente se seguiria, mas os danos que ele causara às pessoas que amava. Era quase mais do que conseguia suportar. Tivera a esperança de conseguir trocar algumas palavras com Anna, mas, em vez disso, deu instruções a Karin para lhe dizer que, em circunstância alguma, ela deveria informar Vanja de que fora constituído arguido.

De volta à sua cela, deitara-se na tarimba; não havia muito mais para fazer. Ao ?m de mais ou menos uma hora, as costas tinham começado a doer-lhe de novo. Não era por ter ?cado deitado na mesma posição durante muito tempo, mas, em todo o caso, virou-se para o outro lado. Isso não ajudou. Pedira, e tinham-lhe dado, uns analgésicos. Não tinha vontade de comer quando serviram o jantar, mas tinha pedido mais analgésicos. E agora estava deitado na sua tarimba, a olhar para o tecto e a tentar pensar em alguma coisa que não fosse aquela dor que lentamente desaparecia. Estava sempre a lembrar-se de Anna e de Vanja, o que, de certa forma, ainda era mais doloroso. Levantou-se com alguma di?culdade e dirigiu-se à pequena retrete. Baixou as calças e urinou. Estaria a luz a pregar-lhe alguma partida? Acabou de urinar e inclinou-se para ver melhor. Desviou um pouco a cabeça para que a luz do tecto iluminasse a retrete.

O conteúdo estava vermelho.

Cor de sangue.


O ENCONTRO TERMINOU.

Torkel tinha-os juntado a todos, naquela sala que sempre fora conhecida apenas por Sala, para uma última reunião antes do ?m-de-semana. Seis cadeiras dispostas em torno de uma mesa de reuniões oval sobre uma alcatifa cinzento-esverdeada. Numa das paredes estava o quadro branco em que Billy havia recriado o cronograma com a ajuda das informações que haviam recolhido em Storulvån. A Sala ?cou em silêncio; eles deviam estar a discutir os progressos realizados ao longo das últimas vinte e quatro horas, a reportar o que tinham feito e quais os resultados que haviam alcançado ou esperavam vir a alcançar. Infelizmente, era desanimador perceber como havia tão pouco para discutir.

Torkel começara por dizer a todos que tinha telefonado a Hedvig Hedman em Östersund para a informar de que já tinham conseguido con?rmar a identidade do casal holandês. Era uma prática comum da Riksmord apresentar à Polícia local, que havia solicitado a sua ajuda, um relatório sobre partes de uma investigação em curso, com ênfase em partes de. Era importante que a força local se sentisse envolvida, mas era mais importante ainda que a Riksmord controlasse o ?uxo de informações, e tinha sido por isso que ele não lhes dissera nada acerca da sua teoria de que o casal holandês, por acaso, estava apenas no lugar errado à hora errada nem acerca da câmara ou de como estava a desenvolver-se o resto do caso.

Felizmente.

Torkel não tinha ?cado muito surpreendido quando, nessa tarde, encontrara um artigo de página inteira na edição online do Expressen, com o título «ELES MORRERAM NAS SUAS FÉRIAS DE SONHO». Na introdução a?rmava-se que a Riksmord estava agora cem por cento certa da identidade de dois dos seis corpos encontrados na vala comum nas montanhas: eram Jan e Framke Bakker, de Roterdão. O artigo trazia uma fotogra?a do casal, um texto bastante emotivo sobre quanto eles deveriam ter ansiado pela sua semana nas montanhas de Jämtland, uma breve entrevista com um amigo, que estava grato por se ter chegado a alguma conclusão, e uma caixa com factos sobre «A Sepultura da Montanha», como o jornal chamara ao caso.

Se Torkel tivera alguma dúvida, agora tinha toda a certeza: informar Hedman e a Polícia de Östersund era praticamente o mesmo que emitir um comunicado de imprensa. Terminara o seu resumo salientando como era importante que ele, e só ele, lidasse com a imprensa.

A equipa limitara-se a dizer-lhe que sim com a cabeça.

O mesmo de sempre, por outras palavras.

A seguir, fora Jennifer a reportar a sua experiência: muito trabalho com pouca coisa para mostrar resumia mais ou menos os seus prolongados esforços, em que recorrera a todas as bases de dados internacionais que se pudesse imaginar para localizar mais famílias que pudessem corresponder ao per?l dos quatro corpos não identi?cados. Ou a equipa já conhecia as que ela apresentou ou ela conseguira eliminá-las quase de imediato, graças ao facto de a equipa forense de Umeå lhes ter fornecido as idades estimadas e uma avaliação bastante exacta da altura de cada pessoa. Isso levou-os a Ursula, que passou imediatamente a palavra a Billy.

Billy tinha começado o dia a tratar da câmara encontrada na mochila do casal holandês. Conseguira descobrir um cabo que servia, mas a câmara recusara-se a carregar. Passara demasiado tempo en?ada no chão, assumiu ele. Não era surpreendente que ?car enterrado durante nove anos fosse mais do que o aparelho aguentava, ainda que tivesse ?cado embrulhado em plástico e guardado dentro de uma mochila. Em vez disso, ele concentrou-se no cartão de memória, mas depressa percebeu que não conseguiria retirá-lo da câmara sem o dani?car. Fora consultar Ursula, que teve a mesma opinião, e por isso tinham enviado a câmara por correio para o Laboratório Forense Nacional em Linköping, com uma mensagem a dizer que a recuperação das imagens era uma questão da maior urgência. Durante a tarde, Ursula telefonara aos seus antigos colegas, em parte para veri?car se a câmara lá chegara e, em parte, para salientar que urgente signi?cava exactamente isso. Disseram-lhe que tinham dado prioridade à câmara logo que ela chegara e que as coisas pareciam promissoras. Na segunda-feira, já deveriam ter as imagens.

Torkel assentiu em sinal de apreço. Pelo menos, havia algo em que poderiam manter a esperança durante o ?m-de-semana. Por ?m, Ursula acrescentou que estava certa quanto às impressões digitais nas mochilas encontradas em casa de Harald Olofsson: era impossível recolher alguma. Ainda estavam a examinar as roupas e tinham encontrado alguns ?os de cabelo que esperavam poder vir a comparar com os corpos em Umeå.

Perto do ?nal da reunião tinham posto a investigação de lado e deixado de ser agentes policiais por um pouco. Tudo começou quando Jennifer perguntara a todos o que iam fazer no ?m-de-semana; Billy e Maya iam apanhar cogumelos. Para Billy, era a primeira vez; estava a tentar participar naquilo com um espírito aberto, mas tinha a sensação de que não seria esse o seu novo passatempo. Jennifer ia visitar a mãe, mas salientou que poderia ser contactada no telemóvel a qualquer hora do dia ou da noite. Não o disse, mas estava convencida de que ?caria em ânsias pela manhã de segunda-feira logo que saísse dali.

Ursula disse que tencionava ir visitar Bella a Uppsala, o que não era verdade. Na verdade, não sabia o que ia fazer, mas achava que existia uma possibilidade de acabar por ir a casa de Sebastian novamente.

Torkel ia passar o ?m-de-semana com as ?lhas, contente por desta vez ter sido capaz de cumprir a sua promessa.

Havia uma atmosfera fora do comum na Sala. Ali dentro, os temas de conversa eram geralmente as mortes violentas e súbitas, as teorias sobre crimes e criminosos – discussões concentradas em pormenores que todos eles deixavam para trás quando iam para casa, pois, caso contrário, poluiriam a atmosfera exterior. Mas agora, por um momento, as coisas eram diferentes. Eles eram colegas, quase amigos, a conversarem sobre a vida em vez de falarem sobre a morte.

Levantaram-se e foram para casa passar o ?m-de-semana.

Como pessoas normais.

Era uma sensação estranha.


A MÃO DELA estava tão quente como sempre. Ele tinha-lhe contado a sua história, e agora segurava a mão dela o mais ?rmemente que podia. Ela reagira com surpresa e ansiedade, passeando-se ao redor da sala antes de se deixar cair à frente dele. Ele tornou a lembrar-se de quando era menino, de quando a mão dela era tudo o que bastava para o consolar. Naquela época, a sua pequena mão quase desaparecia no amoroso aperto das dela. Agora já não era assim; hoje em dia, a sua mão praticamente cobria a dela. A ternura ainda lá estava, mas agora era ela que precisava de consolo. Deixaram-se ?car sentados em silêncio por um momento; percebeu que ela se esforçava por entender o signi?cado do que ele lhe dissera. Depois Shibeka soltou a mão de Mehran, levantou-se e caminhou lentamente até à fotogra?a de Hamid, que estava no mesmo sítio desde que ele se conseguia lembrar. Pegou nela, acariciou o vidro, cobrindo-lhe com o seu dedo indicador a boca a preto e branco. Mehran percebeu que tinha mais ou menos a mesma idade que o seu pai naquele retrato. Jovem e alto, com toda a vida pela frente.

– O Hamid disse uma vez que o Said estava arrependido de ter comprado a loja, mas essa foi a única coisa negativa que eu alguma vez lhe ouvi. Tens a certeza de que eles discutiram?

– Eu não sei, mas porque haveria alguém de mentir acerca disso?

Shibeka abanou a cabeça. Ela também não conseguia lembrar-se de nenhuma razão.

– Melika contou-me que os primos dela tinham vendido a loja, mas eu julguei que tivesse sido apenas há cerca de um ano.

– Eles venderam-na um mês depois de o Hamid e o Said terem desaparecido. Talvez a Melika não queira que saibamos.

Shibeka voltou a pousar a fotogra?a com cuidado, olhando carinhosamente para o homem que fora uma parte tão grande da sua vida. Mesmo depois de ter desaparecido.

– Os meus pais deram-me este retrato quando eu tinha treze anos, para que eu conhecesse o aspecto do homem com quem me casaria. Eu costumava sentar-me a olhar para ele e a pensar que tipo de pessoa seria. Seria um bom marido? Seria meigo, severo, terno? Eu não fazia ideia. Tinha muito medo... não que me atrevesse a dizer alguma coisa a alguém. Decidi que ele ia ser um bom homem. Olhei para o retrato dele e disse a mim mesma que os seus olhos eram ao mesmo tempo curiosos e gentis, que ele parecia sensato. Mas sabes uma coisa? – O olhar dela era afável quando contemplou o ?lho. – Mesmo assim, ?quei surpreendida. Quando o conheci, ele era ainda melhor do que eu poderia ter esperado; mais amável e mais sensato, mais terno do que eu poderia ter imaginado. É por isso que este retrato signi?ca tanto para mim. Dá-me esperança.

Voltou para ao pé de Mehran, com o olhar a reluzir dessa memória.

– Esperança em que as coisas possam ser melhores do que pensava – continuou. – Em que por vezes as nossas preocupações sejam infundadas. Eu ainda tenho esperança.

– Mas sabes que a Melika mentiu, não sabes? Sobre o Joseph.

Shibeka fez um gesto de assentimento.

– Nesse caso, ela poderá ter mentido sobre outras coisas – prosseguiu Mehran. – Como este negócio com a loja.

– Talvez, mas o que podemos nós fazer, Mehran?

– Eu vou falar com ela, e desta vez não vou deixar que fuja.

Mehran sabia o que tinha de fazer. Usaria a sua nova voz para descobrir a verdade. Presumivelmente, era por isso que Alá lha tinha dado; não para crescer diante de Memel e dos outros homens, como ele tinha pensado, mas para enfrentar algo muito mais difícil.

Muito mais importante.

Shibeka olhou para ele e, ao ?m de algum tempo, concordou.

Que assim seja.


DESTA VEZ, Vanja esperou durante mais de meia hora à porta do bloco de apartamentos na Västmannagatan antes que aparecesse um casal de meia-idade, a passear-se de braço dado, que inseriu o código e desapareceu no interior. Vanja esgueirou-se rapidamente lá para dentro atrás deles. Olharam-na com um ar descon?ado quando passou por eles enquanto ?cavam à espera do elevador; quase esperou ter de lhes mostrar a sua identi?cação, mas nenhum deles disse nada; limitaram-se a olhá-la como se estivessem a tentar memorizar a sua aparência para o caso de, mais tarde, virem a ser chamados como testemunhas. Vanja subiu rapidamente até ao terceiro piso. Talvez esta fosse uma ideia estúpida, mas ela tinha de saber.

Não ?cara muito tempo em casa de Sebastian. Tinha chorado, deitado tudo cá para fora. Ele confortara-a, ali em pé no corredor, até que o pior já tivesse passado; convidara-a a ?car para comer alguma coisa – estava a cozinhar uns hambúrgueres –, mas ela tinha recusado. Precisava de estar sozinha, de pensar no que havia acontecido, no que sabia. Queria mesmo acreditar nele, mas não era assim tão simples. Ele poderia ser uma nova versão melhorada, mas continuava a ser Sebastian. Inteligente, inescrupuloso, com uma consciência liberal – as mesmas qualidades que ela valorizara poucas horas antes contavam agora contra ele, e era por isso que ela voltara àquele bloco de apartamentos na Västmannagatan. Tinha de saber a verdade antes de poder, com toda a certeza, considerar Sebastian como o amigo de que ela tão desesperadamente necessitava.

Tocou à campainha de Ellinor Bergkvist. Era quase meia-noite, mas não se importou. Tocou de novo, mantendo o polegar em cima do botão. Apercebeu-se de um movimento por trás do óculo da porta, em seguida a fechadura fez um estalido e a porta abriu-se até onde a corrente de segurança lho permitia.

– Olá, eu chamo-me Magdalena – disse Vanja. – Posso falar consigo sobre o Sebastian Bergman?

– O que se passa com ele? – perguntou Ellinor, numa voz em que havia uma mistura de cepticismo, de alegria e de ansiedade.

– Posso entrar por um momento?

– Não.

A ?m de dar maior peso à sua resposta, Ellinor fechou a porta até não ?car mais do que uma pequena nesga entreaberta. Espreitou para fora com um olho.

– E quanto ao Sebastian? – reiterou ela.

Vanja começou a explicar-lhe que era uma agente policial, fazendo ?gas para que Ellinor não lhe pedisse para mostrar a sua identi?cação. Uma investigação em curso pela Unidade do Crime Económico conduzira a Sebastian, e as coisas não estavam famosas. Pelo pouco que ela conseguia ver do rosto de Ellinor, pareceu perturbada. A Daktea, a morte de Trolle Hermansson, o facto de toda esta informação ter sido entregue por alguém que estava relacionado com Sebastian signi?cava que a Polícia tinha de analisar mais minuciosamente o papel que Sebastian desempenhara em tudo aquilo, esclareceu Vanja. Era um caso complexo, e, quando surgia algum colega numa investigação, era uma questão de rotina investigar-se um pouco mais. Ellinor fez um gesto de concordância. Vanja ?cou impressionada ao perceber como se havia transformado numa boa mentirosa.

Ellinor começou a falar; parecia estar orgulhosa do que ?zera e igualmente decidida a que nenhuma sombra de culpa viesse a recair sobre Sebastian.

Sim, ele tinha-lhe pedido para deitar fora o saco, mas ela lera o que lá estava e decidira ajudá-lo.

Não, Sebastian nunca lhe dissera que Valdemar constituía uma ameaça nem exprimira qualquer desejo de o prejudicar de alguma maneira; essa conclusão tinha sido da própria Ellinor. Podia ter-se enganado.

Sim, pensava que ele tinha recebido aquele material de alguém chamado Trolle, mas não tinha a certeza.

Vanja foi-se sentindo cada vez mais descontraída sempre que Ellinor con?rmava algo que Sebastian lhe dissera. Ultimamente, a vida assemelhava-se muito a uma montanha-russa emocional; ela não conseguiria suportar se viesse a descobrir que Sebastian, por alguma razão inexplicável, estivera envolvido na ruína do seu pai. De facto, o inverso parecia ser verdade.

Ele quisera protegê-la.

Salvá-la. Mais uma vez. Tal como ?zera com Edward Hinde.

Teria conseguido se não fosse aquela mulher que tinha o rosto encostado contra a porta. Vanja sentiu um surto de raiva, uma emoção pura, clara – que era bem-vinda após aquela mistura de tristeza, dor, descon?ança e confusão que sofrera durante as últimas vinte e quatro horas.

– O Sebastian está de volta à cidade? – perguntou Ellinor, mostrando-se esperançosa.

– Porque pergunta?

– Quero vê-lo.

Em circunstâncias normais, Vanja teria sentido pena de uma mulher na situação de Ellinor; teria achado que as acções de Sebastian ao expulsá-la de sua casa e depois ao recusar-se a falar com ela eram ao mesmo tempo cobardes e insensíveis. Uma sacanice. Teria ?cado completamente do lado da mulher. Em circunstâncias normais.

– Ele disse que vocês já não estavam juntos – declarou ela sem rodeios.

– Ele só está a dizer isso para me proteger – insistiu Ellinor.

– De quem?

– Do Valdemar Lithner.

A raiva de Vanja cobriu-se de impaciência. Ellinor estava a contradizer-se: ela tinha acabado de lhe dizer que Sebastian não considerava Valdemar uma ameaça. Foi essa a gota de água; Vanja sentiu uma súbita vontade de partir para o ataque. Já lhe tinha aturado muitas tretas; estava na hora de lhe dar algo em troca. Aquela mulher já destruíra muita coisa, e, além disso, ela estaria a fazer um favor a Sebastian, disse para si mesma.

– Ele expulsou-a de casa porque você é doida. Nunca mais quer voltar a vê-la – disse-lhe ela, ?xando o seu olhar no olho que espreitava pela fresta. Ellinor saltou para trás como se alguém a tivesse esbofeteado.

– Ele não disse isso.

– Sim, disse. – Vanja regozijou-se ao perceber que tinha recuperado o controlo. No dia seguinte talvez não se sentisse orgulhosa de si, mas preocupar-se-ia com isso quando chegasse a hora. Para já, decidiu retorcer a faca um pouco mais.

– Ele disse que você era doente; que a deixou ?car lá em casa com ele algum tempo por bondade, mas que não conseguiu aturá-la mais. Sobretudo depois do que fez ao Valdemar Lithner.

A luz da escada apagou-se e, na escuridão compacta que se seguiu, Vanja não viu o olhar de Ellinor estreitar-se e escurecer quando a ?tou com uma emoção inconfundível: ódio.

– Mantenha-se longe do Sebastian – ouviu Ellinor no meio da escuridão, e a seguir aquela ?gura que estava à sua porta já tinha desaparecido. Não acendera a luz enquanto descia as escadas, presumivelmente para tornar a sua partida mais dramática, adivinhou Ellinor enquanto fechava a porta.

Correu para o quarto, foi até à janela. Se Magdalena atravessasse a rua e virasse à esquerda, Ellinor conseguiria vê-la.

Foi exactamente isso que ela fez, e Ellinor ?cou a observá-la até que desaparecesse de vista. Ellinor deixou-se cair sobre a cama desfeita.

Aquela mulher tinha dito coisas tão terríveis.

Terríveis e verdadeiras?

Valdemar Lithner tinha sido preso. Ele já não podia constituir uma ameaça para ninguém, e no entanto Sebastian não a contactara, não lhe pedira para regressar, agora que o perigo tinha passado.

Segundo aquela mulher, Sebastian nunca tivera medo de Valdemar. Teria ela interpretado mal a situação? Se assim fosse...

Mal conseguia suportar formular tal pensamento. Se assim fosse, ele ter-lho-ia dito na nota que colara à sua mala.

Se assim fosse, ele não lhe dissera aquelas coisas dolorosas nem a expulsara de sua casa a ?m de a proteger. Fartara-se dela. Na verdade, via-a como uma empregada doméstica com quem ele tinha relações sexuais, e agora isso chegara ao ?m. Aquela enfermeira de que ele lhe falara – tinha mesmo dormido com ela. Com ela e sabe Deus com quantas outras.

Ellinor amara-o.

Ele andara apenas a brincar consigo.


ELE PASSARA o dia de sábado a sós com a sua música e os seus pensamentos enquanto estes balouçavam para a frente e para trás, paravam e depois lhe fugiam. No entanto, continuava sempre a voltar ao mesmo ponto, e quando a noite chegou já sabia o que tinha de fazer. Tinha de confrontar Melika. Não podia permitir que ela escondesse a verdade por mais tempo. A sua mãe teria querido ir com ele se soubesse; compreendia isso, mas era melhor que o ?zesse por conta própria. Se fosse apenas ele, Memel e os outros não poderiam dizer muito, e se aquilo corresse mal e causasse alguns problemas seria melhor que só pudessem culpá-lo a si. Mehran poderia explicar-lhes, pôr as cartas na mesa, falar-lhes das mentiras de Melika; eles teriam de o ouvir. Não tinham de ouvir Shibeka. Era essa a diferença entre os homens e as mulheres; ele precisava de tomar isto a seu cargo e de aprender a explorá-lo.

Nessa manhã, Shibeka preparara-lhe o pequeno-almoço. Ele comera bem, dissera-lhe que ia sair, mas não lhe dissera para onde. Agora estava à porta do bloco de apartamentos de Melika. Mehran queria apanhá-la de surpresa, certi?car-se de que ela não tinha oportunidade de se preparar de maneira nenhuma; atacaria de repente, sem qualquer aviso. Só não sabia como. O toque da campainha surpreendê-la-ia, é certo, mas ele não podia entrar lá em casa à força, e decerto não queria ter aquela conversa no patamar.

Finalmente, teve a sua oportunidade. Vira-a partir com outra mulher cerca de uma hora antes, e agora o ?lho dela, Ali, vinha a descer a rua com dois amigos. Separaram-se na encruzilhada dos caminhos, e Ali seguiu o seu. As vozes dos outros rapazes desvaneceram-se. Mehran estava meio escondido atrás de uma árvore, a observar Ali enquanto este caminhava sem a mais pequena preocupação. Conhecia Ali, claro, mas Eyer estava mais próximo dele, tanto em idade como em interesses, e já há muito que não falavam. Endireitou-se e caminhou rapidamente para o outro rapaz. O rosto de Ali iluminou-se quando o viu.

– Olá, Mehran!

Parecia genuinamente satisfeito por ver Mehran. Bom, isso signi?cava que a mãe dele não lhe dissera nada acerca dos seus problemas com a família Khan, o que devia facilitar mais as coisas.

– Olá, Ali, como vai a vida?

– Óptima.

– Importas-te que eu suba contigo só por um bocadinho? Esqueci-me da chave e está um pouco frio; a minha mãe só chega a casa daqui a umas horas.

Tentou mostrar-se o mais friorento que podia, a ?m de tornar credível a sua história; Ali ?cou convencido.

– Claro que podes, embora eu pense que a minha mãe não está em casa, por isso, não haverá nada para comer.

– Não faz mal... podemos ver televisão.

Mehran sentiu-se ao mesmo tempo nervoso e entusiasmado quando Ali abriu a porta do apartamento. Não fazia ideia se aquilo daria resultado, mas pelo menos teria uma ligeira vantagem quando Melika chegasse a casa e o encontrasse sentado no seu sofá. Isso se ela voltasse para casa sozinha... caso contrário, ele teria de inventar outro plano.

Ele e Ali passaram uma hora em frente do televisor. Conversaram sobre Eyer, sobre a escola e os amigos antes de ?carem sem coisas para dizer. Mehran tinha outros assuntos em mente. Se Ali achava o silêncio desconfortável, não o mostrava; na verdade, parecia encantado por alguém muito mais velho estar ali sentado a ver desenhos animados consigo. Talvez isso não fosse muito estranho; todos os amigos dele tinham irmãos e irmãs. Nenhum era ?lho único, como ele.

Por ?m, ouviram uma chave na porta.

– Cá está ela! – disse Ali alegremente.

– Óptimo – disse Mehran, pondo-se em pé. Fitou Ali com um olhar severo.

– Vai para o teu quarto.

Ali mostrou-se espantado.

– Mas porquê?

– Vai para o teu quarto, disse eu. Já!

Ali levantou-se com uma expressão de revolta. Esta casa era sua; ele não ia a lugar nenhum.

Mehran ?cou irritado; era óbvio que não tinha autoridade su?ciente. Todavia, não queria gritar com Ali, que não passava de uma criança inocente, tal como ele fora outrora. Sem dúvida que era esse o problema; ele era muito sensível.

– Preciso de falar com a tua mãe – disse-lhe num tom de voz mais razoável. – A sós.

Ali não teve tempo para lhe responder antes de Melika entrar com um grande saco de compras. Ficou espantada ao ver Mehran.

– O que estás a fazer aqui?

– Acho que sabes a resposta para isso.

Ela passou por Ali, que parecia não saber como reagir.

– O que aconteceu, Ali? – perguntou-lhe Melika ansiosamente. Mehran respondeu por ele.

– Pedi-lhe que fosse para o quarto. Eu sei que tu estás a mentir. Achei que ele não precisava de ouvir isto.

O rosto dela perdeu a cor. Deixou cair o saco no chão.

– Sai daqui, Mehran. Já.

Ele abanou a cabeça. Não tinha qualquer intenção de desistir. Só quando chegasse à verdade.

– Não tens de contar à minha mãe, mas tens de me contar a mim.

– Contar-te o quê? Não sei do que tu estás a falar.

– Eu fui à loja do Said. À loja do teu marido. À loja do pai do Ali. Sabes o que me disseram?

Por um segundo, ela ?cou sem saber o que responder. Mehran percebeu que as suas palavras tinham atingido o objectivo, tinham ultrapassado o muro de protecção das mentiras. Ela permaneceu ali de pé, sem dizer nada, como se esperasse que, caso mantivesse o silêncio por tempo su?ciente, ele desistisse e fosse para casa. Nada disso. Mehran sentia-se mais poderoso do que nunca; a sua força de vontade tinha-lhe tirado os nervos.

– Posso passar isto ao Memel, se quiseres. Eu acho que ele se ia interessar por saber que os teus primos e o Said se zangaram. Que os teus primos venderam a loja um mês depois de ele desaparecer. Ou será que já sabe? Será que toda gente sabe excepto nós?

– Isso não é verdade – sussurrou ela, deixando-se cair no banco que estava ao lado da porta.

– O que é que não é verdade, Melika?

Ela olhou para o chão. Para os pés. A seguir, levantou os olhos para o ?lho.

– Faz o que o Mehran disse. Vai para o teu quarto.

Ali não podia acreditar no que ouvia.

– Mas, mãe...

– Vai para o teu quarto! – gritou-lhe ela. Pelo tom esganiçado, Mehran percebeu que ela estava prestes a quebrar. Ele, por outro lado, havia encontrado, com toda a certeza, a sua voz.

Ali esgueirou-se para o quarto. Provavelmente, nunca mais voltaria a olhar para Mehran da mesma maneira. Por ?m, Melika ?tou-o. A expressão dela deixara de ser hostil, estava apenas triste.

– Eu não sei o que aconteceu, Mehran. Honestamente, não sei.

– Mas sabes mais do que nos contaste.

Ela assentiu com um gesto de cabeça quase imperceptível.

– Quem é o Joseph?

Ela ?cou branca como um fantasma.

– Um homem mau. É tudo culpa dele.

Não havia mais tristeza nos seus olhos; em lugar disso, ele viu medo. Uma incómoda ansiedade, porventura até terror.

Mehran estendeu-lhe a mão. Agora queria ser afável; achou que era isso que a verdade exigia.

– Conta-me – disse-lhe ele.


DURANTE O FIM-DE-SEMANA, Morgan Hansson tinha mostrado a Anitha uma série de novas facetas do seu carácter. Ele não era de todo um burgesso.

Era algo muito pior.

Um bon vivant.

Um homem que realmente sabia lidar com as cartas que lhe tinham sido distribuídas. Após ela lhe ter contado a verdade sobre Lennart Stridh e o programa de televisão, Morgan sugerira que fossem jantar fora, tal como ela receara. Isso seria simpático, não seria, agora que se conheciam tão bem e já não tinham mais segredos? Anitha não pudera dizer-lhe que não. Ia ter de o lisonjear, de concordar com todas as suas sugestões para o resto da vida, ou pelo menos enquanto continuasse a trabalhar na Polícia.

Na sexta-feira à noite tinham ido comer ao sítio favorito dele, o Texas Longhorn da Sankt Paulsgatan, e Anitha aprendera o seguinte:


1) Ele adorava falar, especialmente quando já tinha bebido alguns copos.

2) Adorava grandes quantidades de carne vermelha, servida com batatas assadas e recheadas com natas ácidas e queijo Cheddar. Ficara surpreendida por ele não ser mais gordo, ao ver a quantidade que ingeriu.

3) Gostava de cerveja e de bares barulhentos, de preferência na zona urbana de Söder. Segundo ele dizia, era a melhor maneira de se terminar a noite, e muitas vezes era um dos últimos a sair.

4) Era obcecado por água com gás. Tinha-lhe contado em pormenor a alegria que lhe dava ter a sua própria máquina de carbonar, e agora também já havia uma na cozinha dela. Ele tentara ir lá a casa instalar-lha, mas fora aí que ela traçara o limite. Nessa ocasião. Era só uma questão de tempo até ele fazer daquela a sua casa e se pôr na cozinha dela a carbonar água com um ar muito feliz.

5) Adorava o centro comercial Kista Galleria. Tinham ido aí comprar a máquina. Gostava do facto de haver ali tantas pessoas, diferentes culturas vindas de todo o mundo. Isso era muito «não sueco», achava ele. Ela teve de concordar, ainda que só lhe apetecesse gritar com cada ?bra do seu ser.


Nessa noite iam ao cinema – decisão de Morgan, claro. Ele ia sempre ao cinema aos domingos, e presumivelmente ela também, a partir de agora. Um ?lme qualquer em 3D, aparentemente. Não se atreveu a dizer-lhe que nunca tinha visto nada em 3D, caso contrário, sem dúvida que ele a faria assistir a tudo o que já havia sido produzido nesse formato.

Tentou pensar nalgum aspecto positivo do seu novo «amigo».

Não conseguiu lembrar-se de nada.

Nada mesmo.

Algo tinha de mudar. Anitha precisava de sentir que, pelo menos, retiraria algo daquele calvário em que a sua vida se transformara; mesmo que não fosse muito, o orgulho dela exigia alguma retribuição, caso contrário, mais valeria estender-se e morrer. Recusava-se a fazer isso; tinha de manter o controlo de alguma coisa.

Decidiu telefonar a Lennart Stridh; já agora, poderia muito bem ganhar algum dinheiro com isto. Não seria um grande negócio, já sabia, mas neste momento era melhor que nada. A sensação de controlo não tinha preço; era disso que ela realmente necessitava.

Ia dar-lhe o nome.

Não era muito, mas ele haveria de pagar um preço mais elevado do que jamais pagara antes.


URSULA ESTAVA sentada no sofá a ver televisão.

No sofá de Sebastian, a olhar para o televisor de Sebastian.

Com Sebastian.

Tinha acabado ali a sexta-feira depois do trabalho. Passara lá a noite. Não tinham feito sexo; para sua surpresa, a pergunta nem sequer surgira. Sem o menor indício ou sugestão, ele preparara-lhe a cama no quarto de hóspedes; no dia seguinte, tinha acordado quando o pequeno-almoço já estava pronto. Fora para casa na manhã de sábado.

Matutara na ideia de realmente ir até Uppsala fazer uma surpresa a Bella; os progenitores não costumavam fazer esse tipo de coisas? Umas visitinhas sem aviso prévio? Algumas horas agradáveis juntas, almoçavam, em seguida ela voltava para casa. Era uma boa ideia, mas não aconteceu. Ela simplesmente não teve coragem. Em vez disso, passara o dia de sábado a fazer limpezas, compras, a lavar a roupa: as tarefas que uma mulher divorciada tinha de enfrentar ao ?m-de-semana.

Nessa manhã voltara para casa de Sebastian. Ele ?cara satisfeito ao vê-la; tomara um segundo pequeno-almoço com ele, e depois tinham ido fazer uma longa caminhada enquanto um par de operários lhe faziam um serviço que ele encomendara. Ao domingo era mais caro, evidentemente, mas, por outro lado, eles chegaram à hora exacta que tinham dito. Iam encaixar-lhe um óculo na porta. Mil oitocentas e cinquenta coroas.

Falaram sobre tudo o que havia para falar enquanto caminhavam. Ursula decobriu que era relaxante estar com alguém com quem podia abrir-se, alguém que sabia tudo sobre ela e Mikael. Não precisava de pensar antes de falar. Tinham conversado sobre a investigação, mas era óbvio que Sebastian não estava interessado e que não tinha intenção de se envolver. Não nesta fase. Esqueletos, mochilas e listas de passageiros não lhe interessavam de todo. Já a mulher americana – caso fosse americana – que de algum modo estaria envolvida nos homicídios, essa era interessante. Mas também estava morta.

Ele precisava de pessoas, de pessoas vivas. Estragadas, retorcidas, doentes. De pessoas cuja percepção da realidade e cuja visão do mundo desa?assem a sua. De mentes complexas, difíceis de entender. De pessoas que os outros classi?cassem como más, a ?m de tornar tudo mais fácil para si próprios. Se aparecesse alguém assim, ele ?caria contente por contribuir, mas até lá...

Por ?m, tinham ido parar a um salão de bilhar na zona de Söder e tinham jogado uma espécie de snooker com regras inventadas. Ursula ganhou três dos quatro jogos. Ofereceu-se para pagar uma cerveja a Sebastian, mas, para sua surpresa, ele quis uma Coca-Cola. Nos tempos em que tinham andado juntos, ele bebia álcool. Não em quantidades assustadoras, mas gostava de aceitar uma bebida quando lha ofereciam. Mais uma vez, ela pusera-se a pensar no que lhe teria acontecido.

– Com que é que tu sonhaste – disse-lhe ela de repente – quando estávamos lá em Jämtland?

Sebastian ?cou espantado com a pergunta. O olhar ?rme dela não revelava nada do que lhe passava pelo espírito. Não pôde deixar de sorrir. Se tinha ?cado surpreendido quando ela lhe aparecera por lá na quinta-feira à noite, ?cara atónito quando ela regressara no dia seguinte e passara lá a noite. E agora Ursula voltava à conversa deles em Storulvån num tom normal, sociável. Os seus olhos podiam não denunciar o que ela estava a pensar, mas a pergunta fazia-o. Ela achava que aquele breve encontro entre ambos no restaurante do hotel era algo que valia a pena repetir.

Estava curiosa.

Acerca dele.

Junte-se a isto as visitas ao seu apartamento: duas noites, sem sexo, é certo, mas mesmo assim Sebastian sentia que, aos poucos, eles estavam a encontrar o caminho de volta para algo que se assemelhava ao que haviam tido muitos anos atrás, antes de ela descobrir que ele fora para a cama com a sua irmã.

Isso sabia-lhe bem, mas ele queria saber porquê.

Ursula tinha deixado muito claro que nunca lhe perdoaria, portanto, o que pretendia ela? O divórcio devia ter-lhe mexido com a cabeça, mas ainda assim... Seria algum tipo de jogo? Faria isto parte de um plano re?nado para se vingar? Teria a intenção de o magoar? O que quer que estivesse em curso, era emocionante e também a coisa mais interessante que acontecera durante aquela investigação inútil.

– Porque queres saber?

– Tu disseste que havias de me contar.

– Sim, mas porque queres saber?

Ursula pegou na sua garrafa de cerveja e bebeu um gole. Ele observou-a; julgava saber o que ela estava a fazer. Estava a pensar exactamente o que haveria de dizer. Se ela lhe dissesse apenas que estava curiosa, não conseguiria nada, e sabia disso. Tinha de ser honesta, de o desa?ar ou de lhe apresentar uma teoria que ele tivesse simplesmente de refutar.

– Porque quando tu entraste no restaurante, quando não sabias que eu estava a olhar para ti...

– Sim? – disse Sebastian, quase com expectativa, quando ela fez essa pausa. Parecia ter optado pela honestidade; percebeu que ela escolhia as palavras com cuidado.

– Parecias uma pessoa que tinha perdido tudo. Alguém a quem não restava mais nada.

Sebastian não lhe respondeu de imediato. Ela procedera bem. Nenhum verdadeiro desa?o e decerto nada que ele pudesse refutar. Honesto e infelizmente verdadeiro.

– Hei-de contar-te um dia – disse-lhe ele com serenidade. – Não aqui, e provavelmente não esta noite, mas hei de contar-te. Prometo.

Ursula aquiesceu. Percebeu pela voz dele e pelo seu olhar que não deveria ter andado muito longe da verdade. Era perfeitamente compreensível que ele não quisesse contar-lhe a sua história num banquinho de bar, com um velho tema dos Eurythmics em fundo, e ela também não queria ouvi-la num lugar como aquele.

– Em breve, espero – disse-lhe ela.

Nenhum voltara a mencionar isso. Quando regressaram, os operários já se tinham ido embora, e havia um óculo no meio da porta. Tinham feito o jantar mais cedo, e a seguir acabaram no sofá. Sebastian procurou lembrar-se de quando fora a última vez que ?cara sentado ao lado de alguém a ver televisão sem pensar em mais nada, com os pés em cima da mesa de café. Devia ter sido com Lily.

– Posso passar cá a noite? – perguntou-lhe Ursula quando pegou no comando para silenciar os anúncios.

– Claro.

– Obrigado.

Ela percorreu os canais e encontrou no Discovery um programa qualquer acerca de sobrevivência. Sebastian espreitou-a pelo canto do olho como se perguntasse mais uma vez: o que andava ela a fazer? Seria algum jogo? Vingança?

Não sabia. E, mais importante ainda, não se importava.


LENNART IA A CAMINHO do estádio, estava em pé com Benke e Stig dentro de uma carruagem repleta de outros apoiantes do Hammarby quando Anitha lhe telefonou. Nessa noite jogavam contra o Brage, e ele mal conseguia ouvi-la devido ao estrépito que os fãs faziam. Teve de se mudar para a extremidade da carruagem e pressionar o telefone contra o ouvido para ter alguma possibilidade de entender o que ela estava a dizer. Falava depressa e parecia ter encontrado algo. Não era muito, mas pelo menos era um começo. Um nome. Adam Cederkvist. Era ele o agente da Säpo que tinha assumido a responsabilidade pelo caso dos dois homens afegãos desaparecidos no Outono de 2003. Era tudo o que ela sabia. Passou o resto do telefonema a dizer que lhe ia enviar a factura de um almoço no pavilhão do lago Mälaren, o qual esperava que ele pagasse, e que também esperava um pagamento adicional. Lennart disse-lhe que ia ver o que podia fazer e prometeu telefonar-lhe de volta quando tudo estivesse mais silencioso. Isso não a satisfez; disse que ele teria de arranjar uma quantia razoável de dinheiro porque ela passara por consideráveis di?culdades para o ajudar. Lennart quis saber se ela se tinha metido em apuros, mas ela repetiu simplesmente que o dinheiro era importante, e desligou. Os amigos olharam interrogativamente para ele; disse-lhes que era trabalho, infelizmente. Mostraram-se desapontados, e as coisas não ?caram muito melhores quando lhes disse que ia sair em Skanstull e voltar para casa. Envidaram todos os esforços para que mudasse de opinião, sobretudo Benke, que estivera em Espanha durante duas semanas e se sentia realmente ansioso para que saíssem e fossem ver o jogo juntos. Decerto nada era tão importante que não pudesse esperar! Há tanto tempo que falavam deste jogo! Por ?m, Lennart cedeu. A?nal era domingo, não havia muito que ele pudesse fazer além de uma pesquisa na internet, e isso poderia esperar até que ele chegasse a casa. Tinha perdido os dois últimos jogos, e hoje em dia as únicas vezes que estava com os seus velhos amigos era quando havia futebol. Conheciam-se desde a adolescência, mas agora todos eles andavam tão preocupados com as respectivas famílias, os ?lhos, as namoradas e o trabalho, que nunca tinham tempo para se encontrarem. Lennart decidiu que depois do jogo ia trabalhar durante cerca de uma hora. Não poderia fazer diferença nenhuma; fosse como fosse, todo aquele caso Shibeka Khan tinha ido praticamente por água abaixo. Ele dissera a Sture Liljedahl que toda a família voltara atrás. A questão era saber se a informação de Anitha poderia trazer a história de volta à vida; se assim fosse, ele teria de descobrir algo mais. Só com um nome não ia longe.

Os lugares deles estavam situados mesmo junto ao terreno de jogo. Benke tinha arranjado lugares cativos para a temporada. Andava há anos a prometer fazer isso, mas esta fora a primeira vez que de facto conseguira. A atmosfera era óptima, o jogo estava interessante, mas Lennart não conseguia parar de pensar naquilo que Anitha lhe dissera. Ele tinha um nome, um indivíduo concreto para seguir. Talvez valesse a pena. Faria uma pesquisa rápida logo que chegasse a casa.

A cinco minutos do ?m, Sigurdsson marcou um golo fantástico e todo o estádio irrompeu em aplausos. O Hammarby ganhou, e Lennart rugiu a sua alegria juntamente com todos os outros. Stig convenceu-o a ir beber umas cervejas. Era tarde demais para trabalhar, insistiu ele, e Lennart aceitou um compromisso: duas cervejas, a seguir teria de ir para casa.

Ao ?m de oito cervejas e vários cálices, ele já só ouvia a bebida e os seus amigos barulhentos e não o apelo do dever. Foi com eles a uma festa num sítio qualquer perto de Zinken e conseguiu evitar fumar, contra todas as probabilidades. Não que pudesse reivindicar crédito por isso; estava de pé numa varanda cheia de gente, que pertencia a alguém que ele mal conhecia, com um cigarro apagado na mão, quando Benke o vira, lho tirara e o deitara para o chão. Era uma piada, mas estavam os dois bêbados e Lennart cortou a mão num vidro partido. Stig veio separá-los e envolvera-lhe a mão num lenço molhado. A seguir ?caram ali sentados por algum tempo, a chorar o quanto gostavam um do outro, ainda que nunca o tivessem dito quando estavam sóbrios. Às três da manhã alguém denunciou a festa à equipa de plantão para ?scalização de ruído e distúrbios, e todos foram mandados para a rua. Chegou a casa às quatro e meia e caiu na cama. A última coisa de que se lembrou foi que havia qualquer coisa que tinha de fazer naquele dia.

Só não sabia ao certo o que era.


QUANDO A EQUIPA se reuniu na segunda-feira de manhã, rapidamente perceberam que não acontecera quase nada.

Tinham recebido os resultados preliminares das amostras de ADN recolhidas em elementos das famílias desaparecidas: o pai da mãe da família Thorilsen, que tinha desaparecido perto de Trondheim. A irmã da mãe da família Hagberg de Gävle e um irmão do pai da família Cederkvist, que presumivelmente se afogara no oceano Índico. Nenhuma delas correspondia a qualquer um dos corpos encontrados na sepultura da montanha. Não foi uma grande surpresa, e qualquer coisa que se pudesse excluir disponibilizava tempo para outras linhas de investigação.

Billy estava sentado à secretária quando o seu computador deu sinal. O Laboratório Forense Nacional enviara as fotogra?as que tinham conseguido recuperar do cartão de memória. Eram noventa e três. Ele descarregou o ?cheiro e começou a vê-las. Pareciam datar do início da Primavera até à morte do casal holandês. Uma festa de aniversário de alguém que era presumivelmente a ?lha de um amigo, dado que não aparecia em nenhuma outra imagem. Fotogra?as de passeios de bicicleta, mais festas, idas à praia, caminhadas, jogos de futebol. Rostos felizes, sorridentes. A ocasional fotogra?a feita naquela que só poderia ser a casa dos Bakker. O quotidiano.

As últimas trinta e sete eram interessantes. Uma delas tinha sido tirada no aeroporto de Trondheim: Framke com a sua mochila, à porta do edifício do terminal, a sorrir para a câmara. A seguir já estavam no alto das montanhas; agora era a vez de Jan apontar para os cumes das montanhas, como se estivesse a mostrar para onde iam. Piqueniques, dormidas, vistas deslumbrantes. Billy seleccionou e imprimiu todas as imagens das montanhas, e, enquanto a impressora fazia o seu trabalho, saltou para as últimas.

Framke a desarmar a tenda.

Um riacho a correr.

Renas no alto de uma encosta.

A entrada para um vale com Jan em primeiro plano, a beber de uma pequena cascata. A última imagem: ele parecia feliz, a sorrir para a câmara e para a sua esposa. Billy veri?cou a data: 30 de Outubro. O dia em que tinham morrido. O vale que se estendia por trás dele, uma pequena casa do lado direito e, além dela, um planalto, céu azul, outras montanhas em fundo. Billy reconheceu o horizonte; tinha estado ali. Fora naquele planalto que eles haviam encontrado os corpos. Era difícil calcular a distância, mas estimou que Jan e Framke Bakker teriam cerca de uma hora de caminhada à sua frente até chegarem ao local. Mais uma hora de vida, algo que aquele homem sorridente, naturalmente, não sabia quando a foto fora tirada. Isso acrescentava àquela imagem imobilizada uma lamentável gravidade. Billy estava prestes a passar a outro assunto quando foi atingido por um pormenor particular.

A casa.

Aquela pequena casa no vale, no sopé da montanha. A equipa tinha revistado a cena do crime, mas não conseguira encontrá-la. Agora já não existia casa nenhuma, mas era óbvio que, a 30 de Outubro de 2003, havia. Billy ampliou no seu ecrã aquela área da fotografia: uma cabana de troncos com uma chaminé, uns degraus que levavam até à porta. Não era muito grande. Um pavilhão de caça.

Levantou-se e foi até à Sala para estudar o mapa que haviam trazido do hotel. O túmulo estava assinalado com uma cruz. Já todos tinham olhado para o mapa, claro, mas ele queria veri?car outra vez.

Nenhuma casa estava assinalada no local onde deveria ter estado uma casa, de acordo com a fotogra?a dos Bakker.

Billy pegou no telefone da mesa de reuniões e olhou para a parede, onde estava a?xado o cartão de Mats e Klara. Marcou o número; Klara atendeu ao segundo toque.


LENNART FOI ACORDADO pelos raios do sol no seu rosto. A luz feria-lhe os olhos, e ele virou-se a ?m de puxar o estore para baixo, mas, em vez disso, conseguiu atirar toda aquela engenhoca para cima da sua mão enfaixada. Isso fê-lo saltar para fora da cama com um grito.

Muito desperto graças à dor, cambaleou até à casa de banho e engoliu dois analgésicos fortes. Lavou o rosto com água fria, pensando que deveria tê-los tomado antes de ir para a cama; por norma, isso ajudava quando estava de ressaca, mas na noite anterior já não estava a pensar como devia. Não estava de todo capaz de pensar, para ser franco. Contemplou a ligadura na sua mão. Mas que noite aquela – muito mais louca do que ele esperava. Pela certa, o homem que estava no espelho ia hoje ?car a trabalhar em casa.

Trabalho...

Agora já estava a lembrar-se de tudo. Anitha tinha-lhe telefonado no dia anterior... descobrira o nome do fulano da Säpo em 2003. Adam... Adam... ele ?cou hirto. Com certeza não se tinha esquecido da merda do apelido! Estivera a pensar nisso durante toda a noite – bom, pelo menos até à quinta ou sexta cerveja. Respirar fundo várias vezes. Não valia a pena ?car enervado, caso contrário, o nome que ele tinha na ponta da língua ?caria perdido para sempre. Certamente não queria entrar em contacto com Anitha; faria a ?gura de um completo idiota que não levava o seu trabalho a sério.

Um completo idiota era exactamente como ele se sentia.

Adam.

Adam.

– Adam C-Qualquer coisa – disse ele em voz alta. Ou seria D? Não, C. Tinha ?cado a pensar naquele nome o tempo todo, por isso, ele havia de estar em algum lugar. Só tinha desaparecido. Temporariamente, esperava ele. Decidiu ir tomar um duche frio, quebrar a sua linha de pensamento.

Funcionou.

Adam Cedergren ou Cederkvist, um ou o outro. Pelo menos, já tinha algo para prosseguir, e sabia que o fulano trabalhava para a Säpo. Foi sentar-se no seu escritório e começou a fazer alguns telefonemas.

Ao ?m de cerca de uma hora, já sabia que nenhum Adam Cedergren ou Cederkvist trabalhava para a Polícia de Segurança ou para o serviço policial regular. No entanto, no arquivo de notícias encontrou de facto um artigo sobre um tal Adam Cederkvist que desaparecera com a esposa e os filhos na costa africana durante uma viagem de barco em 2004. Nunca tinham sido encontrados. Lennart telefonou a um amigo no Dagens Nyheter, um investigador com quem já trabalhara muitas vezes, e pediu-lhe ajuda. Estava a compor uma história sobre marinheiros de longo curso que desapareceram, disse-lhe ele, e queria saber se o colega poderia dar uma olhadela no arquivo do seu jornal, que era muito mais extenso do que qualquer coisa a que Lennart tivesse acesso. Haveria alguma coisa sobre a família Cederkvist? Vinte minutos depois, recebeu uma mensagem por email.

Não era muito, mas fazia-o avançar mais um passo. Adam Cederkvist estava em licença sabática da Polícia quando desaparecera. Infelizmente, não era claro se ele havia trabalhado para a Säpo. Tinha um irmão, Charles Cederkvist, mas mais nenhum parente.

Lennart pensou durante algum tempo. Na verdade, não queria telefonar para a Polícia de Segurança e começar a fazer perguntas sobre Adam Cederkvist. Alguém se dera a um grande trabalho para ocultar a identidade dele. Se o Investigação Hoje começasse a farejar por ali, poderia destruir tudo. Ele tinha muito pouco para avançar, por isso, precisava de ser cuidadoso.

Todavia, gostou efectivamente do que tinha. Se Adam Cederkvist trabalhava para a Säpo, isso era um bom começo para uma teoria da conspiração. Porque é que eles precisavam de esconder o nome de um dos seus, que estava morto desde 2004? Não queria ouvir a explicação antes de ele próprio já conhecer a resposta.

Decidiu entrar em contacto com o irmão e ver se este saberia alguma coisa. Havia um Charles Cederkvist em Oskarshamn; devia ser ele.

O homem atendeu de imediato, parecendo fresco e desperto – o completo oposto de como Lennart se sentira.

– Estou a falar com Charles Cederkvist?

– Sim.

– Chamo-me Lennart Stridh; trabalho para a televisão sueca no programa Investigação Hoje.

– Ah, sim...

De repente, Charles pareceu menos seguro de si, mas isso acontecia com quase toda a gente quando Lennart lhes dizia de onde estava a ligar. Era suposto que o Investigação Hoje deixasse as pessoas nervosas; era essa a razão de ser do programa.

– Tenho algumas perguntas sobre o seu irmão Adam – continuou ele.

– Ele está morto. Morreu há muito tempo. – Charles mostrou-se deveras surpreendido.

– Eu sei. Desapareceu durante uma viagem de barco, creio.

– Isso mesmo. Porque é que me está a perguntar por ele?

Lennart achou que a pergunta se justi?cava; precisava de acalmar os receios de Charles Cederkvist.

– O nome dele surgiu num caso em que estou a trabalhar. Queria saber se nos poderíamos encontrar para uma conversa!

– É sobre quê?

– Se pudermos encontrar-nos, eu explico-lhe tudo – insistiu Lennart. Não lhe apeteceu estar a des?ar tudo aquilo ao telefone; a dor de cabeça tinha voltado. Quanto é que ele tinha realmente bebido na noite passada?

– Só se me disser de que se trata – respondeu Charles. Era óbvio que estava a falar a sério. Lennart só tinha uma opção.

– Tem a ver com o papel dele na Säpo e com um caso de pessoas desaparecidas em 2003.

– Que caso de pessoas desaparecidas?

– Pre?ro não discutir isso ao telefone. – A resposta foi o silêncio. – Posso garantir-lhe que não tenho absolutamente nenhuma intenção de arrastar o nome do seu irmão para o meio da lama. Só quero descobrir a verdade.

– Ele nunca discutia o trabalho comigo – disse-lhe Charles, e Lennart sentiu que tinha quebrado a relutância inicial do outro homem em colaborar.

– Talvez lhe tenha dito algo a que não atribuiu qualquer importância naquele momento, mas que talvez me ajude.

Mais um breve silêncio.

– Está bem, mas eu moro em Oskarshamn.

– Posso ir aí ter.

– Está bem. Quando?

– Agora?

– Óptimo.

Lennart não pôde deixar de sorrir. A conversa tinha corrido melhor do que ele ousara esperar. A história estava de novo em curso.


POUCO MAIS de uma hora depois de Billy ter passado em revista as fotogra?as dos Bakker, a equipa estava reunida na Sala. Torkel tinha telefonado a Vanja e a Sebastian; como Vanja não atendeu, deixara-lhe uma mensagem, mas falara com Sebastian e, mais ou menos, ordenara-lhe que fosse lá ter. Estavam de regresso a Estocolmo, e, se Sebastian se considerava uma parte da Riksmord, precisava de mostrar isso. Portanto, quatro das seis cadeiras ao redor da mesa oval estavam agora ocupadas por Torkel, Ursula, Jennifer e Sebastian; olhavam para o quadro branco, onde Billy a?xara a imagem de Jan Bakker a beber água da cascata, com uma ampliação da cabana ao fundo. Ele apontou para a imagem ligeiramente desfocada enquanto Sebastian pegava numa garrafa de água mineral.

– O edifício é este que vocês podem ver aqui ao fundo – disse ele. – Só para que saibam onde estamos...

Deslocou-se até ao mapa.

– Este é o sítio onde foi tirada a fotogra?a – disse, indicando um ponto a cerca de dez centímetros da cruz que assinalava a sepultura. – Os corpos foram encontrados neste local, o que signi?ca que a cabana estava mais ou menos aqui – continuou, apontando para um local que distava apenas um centímetro da sepultura.

A porta abriu-se e Billy calou-se quando Vanja entrou. O primeiro pensamento de Torkel foi que ela tinha um ar cansado.

– É bom ver-te – disse-lhe ele, mostrando-se agradado e surpreendido.

Vanja fez apenas um gesto com a cabeça em resposta, puxou uma cadeira e deixou-se cair nela.

– Deixei-te uma mensagem – disse-lhe Torkel enquanto ela torcia os ombros para despir o casaco. Seria imaginação sua ou ela tinha perdido peso?

– Eu sei, é por isso que aqui estou.

– Como está a correr aquilo?

Vanja não respondeu imediatamente. Olhou para Sebastian, que assentiu de forma encorajadora.

– Não entrei para o programa do FBI – declarou ela numa voz desprovida de emoção.

– O quê? Porque não? O que aconteceu?

Torkel mostrou-se completamente estupefacto; era nítido que ninguém se dera ao trabalho de o informar, pensou Sebastian.

– Aconteceu o Håkan Persson Riddarstolpe – disse Vanja com um encolher de ombros. – Disse que eu não tinha per?l para o lugar.

Fez-se silêncio ao redor da mesa, o tipo de silêncio que surgia quando todos sabiam que deveriam dizer algo reconfortante e simpático, mas ninguém tinha ideia do que pudesse ser.

Torkel estava a sentir di?culdade para compreender o que ela lhe dissera. Håkan Persson Riddarstolpe era uma pessoa muito competente. Poderia não estar entre os melhores, mas Torkel nunca tinha ouvido dizer que ele cometesse um erro destes. Pelo menos, não desde aquele assunto em Sala, há muitos anos. O que teria acontecido? Ninguém era mais adequado do que Vanja. Isto tinha de ser resolvido já, antes que fosse tarde demais.

– Há alguma coisa que eu possa fazer? – disse ele, quebrando o silêncio. Vanja abanou a cabeça.

– Não há recurso.

– Ele é um idiota, eu sempre disse isso – interveio Sebastian.

– É óbvio que se trata de um erro; vou descobrir o que se está a passar – disse Torkel.

Vanja mostrou-lhe um débil sorriso de agradecimento. Sebastian pôs-se a pensar na in?uência que Torkel teria; a sua dispendiosa visita a Riddarstolpe teria sido em vão? Jennifer levantou lentamente a mão.

– Talvez este não seja o momento certo, mas se eu vim para cá substituir Vanja...

– Pensaremos na tua posição mais tarde – interrompeu Torkel.

– É melhor que ?ques – disse Vanja. – Vou precisar de estar bastante tempo fora. O meu pai foi constituído arguido...

Ela viu Ursula, Billy e Jennifer sobressaltarem-se; não sabiam nada acerca da prisão de Valdemar.

– Pretendo examinar em pormenor a investigação preliminar, por isso, irei andar um pouco... distraída.

Sebastian bebeu um pouco da sua água mineral. Isto era novidade para ele, e não era boa. Vanja tencionava ajudar Valdemar. Sebastian tinha de a trazer de volta a si, de a fazer pensar no seu pai como um criminoso, alguém que a desiludira. Não quisera adiantar-se após os seus sucessos com o FBI e com Ellinor; assumira que ela entraria em contacto se precisasse dele, mas estava obviamente na altura de voltar a acelerar as coisas.

– Já foste visitá-lo outra vez? – perguntou-lhe, naquele que esperou que fosse um tom de voz neutro.

Vanja disse-lhe que não com a cabeça.

Pelo menos, isso já era alguma coisa.

– Podemos falar acerca disso mais tarde – disse Torkel, trazendo-os de volta ao assunto que tinham em mãos. – Há algumas novas informações sobre a nossa família na montanha.

Billy tomou uma vez mais a palavra.

– Como eu disse, em 2003 havia aqui uma cabana, um antigo pavilhão de caça da década de 1930. Desapareceu num incêndio, em Janeiro de 2004.

Voltou para a sua cadeira e olhou para o computador portátil.

– Foi propriedade privada até 1969, ano em que foi doada às Forças Armadas. A partir de 1970, estava disponível para ser alugada por qualquer pessoa empregada nas Forças Armadas ou que lá tivesse algum membro da família.

Todos ?caram interessados; isto era bom. Dar-lhes-ia aquilo de que realmente precisavam, algo para trabalhar. Um nome.

– Sabemos quem alugou o local durante essa semana de 2003? – quis saber Vanja, arrastada contra a sua vontade para o curso dos acontecimentos, para a tensão, a perseguição.

– Primeiro tivemos de encontrar a administradora certa, depois tivemos de a convencer a desenterrar os registos de há dez anos...

– Nós sabemos que tens trabalhado arduamente – disse-lhe Torkel com impaciência. – Dá-nos um nome.

– Adam Cederkvist alugou a casa na semana quarenta e quatro de 2003 – disse Jennifer. – Levou a família com ele.

– Lena, Ella e Simon Cederkvist – adiantou Billy.

Todos aqueles que estavam na sala pareceram ?car sem ar quando foram dominados por uma sensação de anticlímax.

– Mas não podem ser os Cederkvist que estão na sepultura. – Vanja disse em voz alta o que todos estavam a pensar. – Eles partiram numa viagem de barco à volta do mundo em Novembro. Enviaram postais de Zanzibar em Fevereiro.

Ursula folheou os seus apontamentos, embora soubesse exactamente o que ia encontrar.

– O ADN de Charles Cederkvist, irmão de Adam, também não correspondeu ao homem ou às crianças da sepultura.

– Oh, vá lá... têm de ser eles!

Mais uma vez, alguém pôs por palavras o que todos estavam a pensar; foi Sebastian. Levantou-se e começou a andar pela sala.

– O Adam e a família alugam uma cabana na mesma semana em que uma família é assassinada a uma centena de metros de distância; o lugar arde poucos meses mais tarde, em seguida Adam e a família desaparecem ao largo da costa de África sem deixar rasto. Não conseguem ouvir o que isto nos diz?

Parou. É claro que ouviam. A vida estava cheia de coincidências, já o sabiam, mas isto era demais.

– O Adam trabalhava para as Forças Armadas? – perguntou Vanja.

– Não, mas o irmão dele trabalhava – respondeu Jennifer. – Ainda trabalha... no serviço de inteligência militar e segurança. Vive em Oskarshamn.

– Então o que fazia o Adam? – quis saber Torkel.

– Pode dizer-se que era um colega. Na Säpo.

Inteligência militar e Polícia de segurança. As hipóteses de tudo aquilo ser uma coincidência pareceram de repente ainda mais remotas.

– Digamos que é o Adam Cederkvist. Como é que provamos isso? –perguntou Billy.

– Os parentes da mulher – sugeriu Vanja.

– Vai demorar alguns dias – disse Ursula.

Torkel decidiu-se.

– Façam isso. Existem demasiados pontos de interrogação. Billy e Jennifer, encontrem alguém que tenha visto a família depois daquela semana no Outono de 2003... colegas, vizinhos, qualquer um. – Virou-se para Vanja. – Veri?ca a escola e o infantário, descobre se as crianças lá voltaram depois das férias, a meio do período de Outono.

Vanja assentiu. Estava a ?car um pouco cansada destas situações, das horas passadas em várias salas de reuniões, dos quadros brancos e das teorias, mas, quando acontecia algo assim, quando eles conseguiam algum avanço, quando a pesquisa se transformava em perseguição, ela tinha de admitir que a sensação era difícil de superar.

– Ursula, contacta o Laboratório Forense Nacional e pede-lhes que verifiquem de novo os resultados da amostra de ADN do Charles Cederkvist – disse Torkel, concluindo a onda de ordens. – Eu vou falar com a Polícia de Oskarshamn.

– O que devo fazer? – disse Sebastian.

– De momento nada, mas, se os corpos na sepultura forem a família Cederkvist, eu realmente gostaria que tivesses uma conversa com o irmão.

 

Torkel foi para o seu gabinete e pegou no telefone. Encontrou no computador o número da esquadra de Oskarshamn e fez a chamada. A operadora passou-o ao agente que sabia quem tinha ido recolher a amostra de ADN; ele estava fora, mas podia ser contactado no telemóvel. Torkel marcou o novo número e aguardou. Quando «Jörgen» atendeu, Torkel explicou-lhe quem era e porque lhe estava a ligar. Aparentemente, Jörgen tinha ido visitar Charles Cederkvist no ?m-de-semana anterior, seguindo as instruções; tinha sido convidado a entrar, e Charles oferecera-lhe café. Nesse ponto, Ursula entrou no gabinete; Torkel indicou-lhe uma cadeira e mudou para alta-voz. A?nal, esta era a área dela.

– E recolheu a amostra de ADN? – perguntou Torkel, embora a resposta devesse ser evidente. Essa era a única coisa que tinham pedido a Jörgen para fazer.

– Sim. Bom, foi ele próprio que a recolheu.

Torkel olhou para Ursula, que estava muito mal impressionada.

– Mas viu-o fazer isso?

– Não muito bem... ele foi para outra sala.

Torkel sentiu um cansaço alastrar pelos ossos. Tinha uma ideia do que acontecera, mas precisava de ter a certeza.

– E onde estava você?

– Estava na cozinha, a beber o meu café.

Ursula suspirou de forma audível e voltou a afundar-se na cadeira; mais uma prova vinha apoiar a sua teoria de que o nível de competência entre os seus colegas agentes policiais se media por uma escala que rapidamente decrescia à medida que se aproximava de Kungsholmen. Era óbvio que Oskarshamn era su?cientemente longe para se assemelhar ao modelo Keystone Kops.

– Havia mais alguém na casa enquanto lá esteve?

– A companheira dele, mas estava a dormir. Trabalha à noite.

– Acha que ele podia ter ido ao quarto fazer o esfregaço?

– Bom, sim, podia... não sei onde ele foi.

– Acha que podia ter recolhido uma amostra de saliva da companheira, em vez da sua própria?

Silêncio. Torkel agradeceu a informação ao colega e terminou a chamada.

– O laboratório não devia veri?car se a amostra vinha de um homem ou de uma mulher? – perguntou ele a Ursula enquanto marcava outro número.

– Não se nós apenas lhes pedirmos que a comparem com outra amostra – disse-lhe ela com um encolher de ombros, como se pedisse desculpa em nome deles.

– Mas a amostra estava marcada com o nome do Charles Cederkvist – persistiu Torkel. – Não deviam ter reagido a isso?

– Não há nenhuma garantia de que os técnicos tenham sequer visto o nome. Andavam só à procura de provas de uma relação.

Torkel ligou novamente para Oskarshamn e pediu que o pusessem em contacto com o agente com quem tinha acabado de falar; queria que eles fossem buscar Charles Cederkvist.

Enquanto esperava, ?tou o olhar de Ursula, mas não disse nada.

Não estava a gostar disto.

Se era Adam Cederkvist que eles tinham encontrado, então alguém se dera a um enorme trabalho para autenticar a história da viagem de barco à volta do mundo. Também tinham um homem que trabalhava para o serviço de inteligência militar a falsi?car a sua própria amostra de ADN, e uma mulher morta que possuía duas identidades falsas e que, com toda a probabilidade, levara a cabo a execução altamente pro?ssional de quatro pessoas, uma das quais trabalhava para a Polícia de Segurança sueca.

Isto era demasiado grande.

Maior que um homicídio colectivo.

Torkel não estava a gostar nada disto.


DEPOIS DE CHARLES ter dado instruções para o caminho ao homem do programa de televisão e desligado o telefone, permaneceu em pé na sua sala de estar durante algum tempo. Agora avançavam contra si por todos os lados, a rodeá-lo, a tentar encurralá-lo. Ele precisava de tratar disso, tal como tratara de tudo o resto. Tinha de continuar, de forma racional e metódica. Por um momento, permitiu-se o luxo de pensar no seu irmão, nas crianças, mas as emoções intrometeram-se. Elas faziam-no abrandar, ?car parado, tornar-se vulnerável. A única resposta era a acção. Fecharia todas as portas que eles abrissem durante o tempo que pudesse. Isto não era sobre ele, era uma questão de segurança nacional. Charles embalou rapidamente alguns artigos essenciais e saiu, encaminhando-se para o carro. Virou-se para trás, a ?m de olhar a sua casa pela que ele presumia ser a última vez. Tinha sido feliz ali. Tinha sido uma boa casa. Uma boa vida. Era uma pena que nunca mais voltasse ali. Deveria escrever uma carta a Marianne? Ela jamais entenderia. Seria melhor telefonar-lhe. Mais tarde, quando já tivesse arranjado alguma maneira de lhe explicar, de a acalmar. Ia ?car devastada.

Percebeu que tinha voltado de novo às emoções. O que não era bom. Elas acabariam por destruí-lo. Há nove anos deixara-as levar a melhor, e Patricia Wellton morrera. Desta vez, ele tinha de ser pró-activo. Entrou no carro e pôs-se a caminho. Virou para a estrada principal e, ao ?m de uma curta distância, viu um carro da Polícia a vir na sua direcção. Abrandou, mantendo-se bem dentro do limite de velocidade. Os dois carros passaram e, pelo espelho retrovisor, viu o carro da Polícia abrandar e piscar para a direita. Não podia ter a certeza, claro, mas ?cara com a sensação de que eles estavam a ir para sua casa. Estava certo. Ele não voltaria. Nunca mais.


VANJA AGRADECEU e desligou o telefone. Estivera a falar com a directora da escola de Vallhamra, em Märsta; a mulher estava no cargo somente há cinco anos e meio, mas tinha ido buscar um dos professores subalternos que lá trabalhava há mais de quinze anos e que se lembrava muito bem de Ella e Simon Cederkvist. Todos tinham ?cado terrivelmente transtornados quando eles morreram.

Vanja dirigiu-se ao gabinete impessoal mas funcional de Torkel; Ursula já ocupava o sofá dos visitantes.

– O Charles Cederkvist não estava em casa – disse Torkel antes de Vanja ter a oportunidade de lhe dizer qualquer coisa.

– E no emprego?

– Segundo o chefe, também não.

– Vamos lançar um alerta?

– Não sei – disse Torkel, hesitando. – Não temos muito para prosseguir.

– Receio bem que, realmente, não possa ajudar.

Vanja empoleirou-se no braço de uma cadeira.

– As crianças não regressaram à escola depois das férias de Outono, mas também não tinham de regressar.

– Porque não? – perguntou Ursula.

– Por causa da viagem à volta do mundo. Frequentaram a escola até às férias e depois iam ter aulas em casa. A mãe delas era professora.

– Mas ninguém as viu depois das férias? – Torkel queria uma con?rmação.

– Não, mas, como eu disse, na verdade isso não signi?ca nada.

– Obrigado. Esperemos que o Billy e a Jennifer tenham mais sorte.

Vanja aquiesceu e pôs-se em pé.

– Têm alguma ideia sobre onde foi o Sebastian?

– Foi lá abaixo, à cantina, penso eu – respondeu Ursula.

Vanja estava prestes a sair da sala quando Torkel a deteve.

– Vanja...

Ela virou-se para trás.

– Vou falar com a Harriet sobre esse assunto do FBI, e irei mais acima se for necessário.

– Obrigado, mas acho que não vai fazer diferença nenhuma.

Torkel ?cou a vê-la afastar-se, com uma expressão conturbada no rosto. Ursula espreguiçou-se.

– Vê isso pelo lado positivo. Assim consegues ?car com ela.

– Não é isso que ela quer.

– Nós nem sempre conseguimos o que queremos – disse Ursula, lacónica. Torkel concordou com um aceno de cabeça. Tanto quanto Ursula sabia, ele estava dolorosamente ciente desse facto.


MEHRAN SAIU da linha verde em Vällingby. Segundo Melika, Joseph morava num apartamento em Härjedalsvägen. Ou, pelo menos, morava; ela não sabia se ainda estaria por lá. Nem queria saber, insistira. Mehran consultara o GPS no seu telemóvel e pusera-se a caminho. Não tinha pressa; nem sequer sabia o que faria se Joseph abrisse a porta. Tudo o que Melika lhe tinha dito rodopiava na sua cabeça; até se sentia quase tonto. Tinham sido partes de uma história, fragmentos de acontecimentos de há muito tempo que suscitavam mais perguntas do que forneciam respostas. O principal é que ela estava assustada. Aterrorizada. Mehran acreditara nela; nunca antes vira um medo como aquele. Era como se tivesse estado contido dentro dela e jorrasse em golfadas quando ela decidira abrir a represa. Isso tornava a história dela credível, embora Mehran não conseguisse perceber a situação geral.

Said e os primos de Melika tinham arranjado dinheiro emprestado para montar a loja. Pediram-no à família e aos amigos, mas aquilo mal chegava para cobrir as despesas, de modo que os primos queriam vender – sobretudo à medida que cada vez mais credores começaram a pedir-lhes o reembolso do seu dinheiro. Até dispunham de potenciais compradores – dois irmãos. Said tinha a certeza de que a loja começaria a correr bem dentro de pouco tempo, e queria mantê-la. No entanto, não tinha dinheiro su?ciente para comprar a parte dos outros dois. Andavam sempre a discutir, e isso surtia os seus efeitos. Melika fora apanhada no meio. Tinha de ser leal aos seus primos, mas, ao mesmo tempo, amava o marido, ainda que às vezes o achasse ingénuo.

Os problemas realmente começaram quando Ra?, o primo mais novo que gastava sempre mais do que ganhava, contraiu um empréstimo junto de um homem chamado Joseph. Na verdade, o verdadeiro nome dele era Mohammed Al Qualquer Coisa – Melika não conseguia lembrar-se, mas todos o conheciam por Joseph. Ninguém ?cara contente quando Ra? se envolveu com Joseph; havia muitos rumores acerca dele, acerca do modo como ganhava o seu dinheiro. Dizia-se que ele conhecia pessoas. Não apenas boas pessoas. Que era perigoso atraiçoá-lo.

Ao princípio, fora muito simpático e prestável, especialmente para Ra?, mas depois começara a aparecer na loja com crescente frequência. Tinha opinião sobre tudo, agia como se fosse ele o dono daquele lugar. Isso deixava Said furioso. Ra? tentava mediar, tal como Turyalai, mas isso não melhorava nada; Said continuava a acusar Joseph de interferir em assuntos que não lhe diziam respeito.

Joseph insistia que o empréstimo a Ra? signi?cava que ele era agora co-proprietário.

Said insistia que o empréstimo a Ra? nada tinha a ver com a loja.

Joseph dizia que a loja era a sua garantia; estava simplesmente a cuidar do investimento que ?zera.

As discussões continuaram. Por ?m, os primos intervieram e pediram a Joseph que deixasse de aparecer por lá. Prometeram pagar-lhe o empréstimo, e Joseph concordou. Elaborou um plano de pagamento em prestações, com juros que se transformavam em juros sobre os juros caso os pagamentos se atrasassem; descrevera com grande pormenor o que aconteceria se não recebesse o seu dinheiro. Ra? e Turyalai começaram a roubar dinheiro da caixa para conseguirem pagar-lhe, e ao ?m de algum tempo Said apanhara-os.

Tinha sido terrível, dissera Melika. Said acusara toda a família dela. Eles falaram-lhe de Joseph e do medo que lhe tinham. Said ?cara furioso; ele ia mostrar a Joseph! Qualquer pessoa que roubasse a loja roubava Said, e ninguém roubava Said! Ninguém!

Ele e Hamid tinham ido a Vällingby. Nunca revelaram como ?zeram isso, mas voltaram de lá com o dinheiro. Deixaram Joseph guardar a quantia que emprestara de início, mas recuperaram o resto. Gabaram-se do medo que Joseph sentira. Said era o herói; ele era imparável. Ele e os primos de Melika ?caram amigos outra vez. Pediram-lhe desculpa, e ele aceitara as desculpas. Todos prometeram ?car juntos a partir daí – não haveria mais discussões. Tudo ia ?car bem.

Mas não ?cou bem.

Melika começara a chorar enquanto continuava a contar a sua história.

Um mês depois, Said e Hamid desapareceram sem deixar rasto. Shibeka fora a primeira a preocupar-se quando eles não voltaram para casa. Telefonara a todos aqueles de que conseguira lembrar-se; Hamid não era o tipo de pessoa que desaparecesse. Procuraram-nos em toda a parte, falaram com todos os amigos deles. Mas Said e Hamid tinham desaparecido.

Ninguém sabia de nada.

Rafi ficou com a ideia de que Joseph estava envolvido. Encheu-se de coragem e tentou localizá-lo, mas Joseph tinha ido para o Egipto.

Algumas semanas mais tarde, Joseph entrara na loja. Postara-se ali e exigira o seu dinheiro de volta. Agora eles já não podiam esconder-se atrás de Said.

Ra? convenceu o irmão a vender. Reembolsaram Joseph, deram a parte de Said a Melika. Não podiam provar nada, mas sempre suspeitaram de que, de alguma forma, Joseph estivera envolvido no desaparecimento de Said. Ra? era o que se sentia mais culpado. Tinha contraído o empréstimo com Joseph, tinha roubado dinheiro da caixa. Se não o tivesse feito, talvez Said ainda cá estivesse. Isso quase dera cabo dele. Não quis voltar a ver Melika, nem o irmão. Mudou-se para Malmö e pouco tempo depois Turyalai fora ter com ele. Melika não tornara a ver nenhum deles desde então.

Mehran não conseguia entender porque é que ninguém dissera nada. Como podiam eles deixar aquilo assim, sem descobrir a verdade? Said era o marido dela. O pai dos seus ?lhos. E Hamid era o pai dele.

Fora difícil explicar, mas também era muito simples.

Todos eles tinham medo. Não sabiam nada de concreto. Haviam começado por manter o silêncio, e era mais fácil continuarem desse modo.

Assim fora a vida dela desde que Said desaparecera. Primeiro tivera medo de Joseph. Depois, medo de que Shibeka e os outros viessem a saber do empréstimo.

Ela sempre tivera medo.

Ao princípio, Mehran esperara odiá-la, mas não conseguia. Ele e Shibeka poderiam ter vivido com a incerteza, mas pelo menos não tinham vivido com o medo. Na verdade, sentiu pena de Melika.

Todavia, Mehran obrigara-a a dar-lhe a morada. Ele não tinha medo. Precisava de compreender, para bem de Shibeka, mas não dissera nada à mãe; ela nunca o teria deixado ir lá. Só iria ?car preocupada, por isso ele ?ngira que ia para a escola como de costume.

Chegara a Härjedalsgatan. Aquilo não parecia grande coisa; blocos de apartamentos vermelhos, não tão altos quanto os de Rinkeby. Contou três andares. Mais antigos, mas em melhores condições. Havia um grande relvado em frente ao edifício em forma de L. O número 44 era a parte mais longa do L. Olhou em volta, olhou para o papel que Melika lhe dera. Número 44, estava certo. Um casal de idosos caminhava pelo passeio a curta distância. Além disso, o sítio estava deserto. Pôs-se a caminho.

Só precisava de saber se Joseph lá estava, apenas isso. Não ia fazer mais nada. Ia dizer-lhe que era ?lho de Hamid, para ver como ele reagia. Se ainda lá estivesse, claro. Era uma morada antiga.

Lentamente, Mehran aproximou-se da porta. Isto não era tão fácil como pensara; quanto mais perto chegava, mais pesados se tornavam os seus passos. Ao ?m de algum tempo, teve de se obrigar a continuar. Sentia o suor a escorrer-lhe pelas costas, embora estivesse um dia frio. No entanto, não podia ir até ali sem tentar. Ia ter cuidado, prometeu a si mesmo. Mas também agiria como um homem. Ele era ?lho de Hamid. Um dia, há muito tempo, o pai entrara por esta mesma porta e encontrara-se com Joseph. Agora chegara a sua vez.

Não era necessário um código para a porta principal, e ele penetrou no escuro átrio de entrada. Não se deu ao trabalho de acender a luz. Olhou para a lista de residentes; havia alguém chamado M. Al Baasim, que era a única coisa que se aproximava do nome de que Melika se lembrava mal. Silenciosamente, subiu as escadas até ao primeiro andar. Ficou em pé à porta. Tentou imaginar o seu pai; Hamid estivera ali mesmo, com o seu amigo Said. Tinha tocado à campainha, forçara o homem que estava lá dentro a devolver o dinheiro que Ra? roubara da loja. Mehran gostava de saber o que acontecera; teria sido Hamid o mais forte ou fora ali só para apoiar Said? Mehran decidiu que Hamid tinha sido o herói.

Tal como ele. Agora seguia os passos do pai.

Um homem corpulento, com a barba por fazer, abriu a porta.

– O que deseja?

Mehran não reconheceu a voz. Estava inseguro sobre muitas coisas que diziam respeito a Joseph, mas seria capaz de reconhecer aquela voz àspera em qualquer lugar. Tinha a certeza absoluta disso; o homem que estava à sua frente não era Joseph.

– Estou à procura do Joseph – disse ele, mostrando-se tão con?ante quanto podia.

O homem olhou para ele. Mehran não percebeu ao certo o que aquele olhar signi?cava.

– O Joseph? Já não mora cá. Mudou-se daqui há muito tempo. Quem quer saber?

– Chamo-me Mehran, Mehran Khan. Sou ?lho do Hamid.

– Não conheço nenhum Hamid.

– Mas o Joseph conhecia. Pode dizer-me onde ele está?

O homem riu-se, mostrando uma ?la de dentes amarelos e irregulares.

– Não, mas, se o vir, diga-lhe que ele me deve dinheiro. Não tinha pago as contas da água nem da electricidade quando eu ?quei com o apartamento.

Mehran não teve tempo para lhe responder antes de a porta se fechar na sua cara. Ficou ali por um momento, depois voltou a descer as escadas.

Na verdade, não sabia o que fazer agora.

Dentro do apartamento, o homem dos dentes amarelos espreitava através do óculo da porta, observando o rapaz enquanto este se ia embora.

Da sala de estar veio uma voz que falava árabe. Pareceu mais um grasnar do que qualquer outra coisa.

– Quem era?

– Problemas, acho eu – respondeu o homem.


VANJA SAIU do elevador no piso térreo, caminhou ao longo do corredor à esquerda e entrou na cantina do pessoal através das portas de vidro que estavam abertas. À direita estava a secção de self-service: quatro grandes gôndolas com uma variedade de pratos para o almoço. Carne, peixe, pratos vegetarianos e saladas. Duas ?las serpenteavam até às caixas registadoras e davam para a sala principal de refeições, onde as bebidas, o pão e os condimentos estavam disponíveis num comprido balcão. Havia cerca de quarenta mesas cobertas com panos brancos encerados, e em cada uma delas um vaso que continha raminhos de mirtilo. A maior tinha espaço para dezasseis pessoas, a mais pequena para quatro. Muitas pessoas, longas ?las, o zumbido constante das conversas, o ruído dos talheres na louça.

Vanja imobilizou-se quando viu quem acabara de pagar e avançava por entre as mesas. Håkan Persson Riddarstolpe. Ficou a olhá-lo, a pensar se deveria ir ter com ele, perguntar-lhe o que tinha acontecido, o que ?zera ela de errado. Alguma vez haveria de descobrir; não poderia deixar aquilo para trás se tais perguntas ?cassem sem resposta. Mas seria este o momento certo, o local certo? Porque não?, pensou, colocando-se no encalço dele.

Depois reparou em Sebastian, sentado numa mesa perto da janela. Riddarstolpe estava prestes a passar por ele. Sebastian olhou para o seu ex-colega. Vanja abrandou o passo; queria ver se Sebastian ia falar com ele. Ficaria muito satisfeita se Sebastian confrontasse Riddarstolpe perante uma cantina cheia de gente e lhe dissesse que ele era um idiota incompetente. Estava quase a chegar lá. Se Sebastian ia fazer alguma coisa, tinha de ser agora. E ele de facto fez alguma coisa, mas certamente não era o que Vanja esperava.

Sebastian fechou os olhos por um segundo e cumprimentou-o.

Um aceno de cabeça.

Vanja não podia acreditar no que vira.

Um aceno de cabeça – e aquilo não fora uma saudação, fora antes um reconhecimento, um acordo mútuo.

Que loucura.

Ela estava a ?car louca.

Sebastian não gostava de Riddarstolpe. Detestava-o. Talvez ele não quisesse fazer uma cena, mas um cumprimento? Aquilo tinha sido uma saudação contida, bem-educada? Com um toque de desdém, porventura? Teria ela interpretado mal? Não, ela sabia bem o que tinha visto. Fora um cumprimento bem satisfeito, com os olhos fechados, aquele tipo de aceno de cabeça que se usa para agradecer a alguém que nos fez um favor.

Mas isso era ridículo.

O que poderia Riddarstolpe ter feito por Sebastian? Nada. Na verdade, Sebastian deveria detestá-lo ainda mais depois dos acontecimentos recentes. Ignorá-lo. Fulminá-lo com o olhar. Tratá-lo com arrogante desprezo.

Tudo menos aquele aceno de cabeça.

A ideia surgiu-lhe do nada. Cortou-lhe o fôlego. Era impossível. Não havia absolutamente razão nenhuma para suspeitar de uma coisa dessas. Ela, de facto, tinha perdido a cabeça.

Mas os acontecimentos recentes...

Nada bons. Valdemar, Trolle, Ellinor, o FBI. Um denominador comum.

Sebastian Bergman.

Mas porquê? Que razão poderia haver? Neste momento. Nenhuma mesmo. Era uma loucura, mas a ideia impôs-se. A explicação para o facto de Trolle entregar aquele material a Sebastian não tinha sido inteiramente convincente, e agora aquele aceno de cabeça conspiratório. Vanja saiu da cantina. Quando entrou no elevador, premiu o botão para o sexto andar.

 

Olhou em volta; todo o piso parecia estar deserto, provavelmente por ser hora de almoço. Começou a andar pelo corredor. Os primeiros gabinetes estavam vazios. Ouviu a porta principal abrir-se e virou-se para trás. Entrou uma mulher com cabelo escuro e curto e olhos castanhos, que trazia o seu almoço dentro de um saco de plástico.

– Posso ajudá-la? – disse-lhe ela quando entrou na pequena copa ao lado da porta. Vanja aproximou-se.

– Não tenho a certeza... Chamo-me Vanja Lithner e estou com a Riksmord. Isto poderá parecer um pouco estranho, mas eu tenho um colega chamado Sebastian...

– Bergman? – disse a mulher, voltando-se para ela com um sorriso.

– Isso mesmo... conhece-o?

– Conheço.

A resposta breve e o sorriso que a acompanhou disseram a Vanja que ela conhecia Sebastian no sentido bíblico do termo. Tinham dormido juntos, Vanja teve a certeza disso. Não conseguiu reprimir um suspiro.

– Esteve aqui na quinta-feira passada – disse a mulher, colocando a sua refeição dentro de um dos dois microondas que estavam em cima da bancada. Vanja ?cou hirta. Fora ali só para con?rmar como era insano imaginar que Sebastian estivesse envolvido em tudo o que lhe acontecera, para repelir esses pensamentos de uma vez por todas.

– Aqui?

– Sim, veio falar com o Håkan – disse-lhe a mulher ao mesmo tempo que fechava a porta e programava o temporizador para um minuto e quarenta e cinco segundos.

Caos. Não havia outra palavra para descrever o que estava a acontecer dentro da cabeça de Vanja. O seu telemóvel tocou. Olhou para o visor. Era Anna. Não podia tratar desse assunto naquele momento. Rejeitou a chamada. A mulher de cabelos escuros ?cara encostada à bancada, a olhar para Vanja como se estivesse à espera de que a conversa continuasse, mas Vanja estava num mundo que era só seu. Nem sequer sabia por onde começar. Por qualquer razão desconhecida, estava sempre a lembrar-se do apartamento de Sebastian. Do jantar. De pernoitar lá. Daquele serão em que ele conquistara a sua con?ança. Não porque quisesse dormir consigo, dissera ele. Então porquê? O telemóvel tocou: era Anna de novo. Desta vez, atendeu.

– Estou ocupada – disse ela com rispidez. – É importante?

Era.


LENNART TINHA IDO directamente para a Televisão Sueca e fora buscar um dos carros do departamento de produção. Decidiu que era boa ideia usar um veículo o?cial; serviria como cartão de visita para o homem com quem se ia encontrar. Não tinha contado a ninguém aonde ia; primeiro queria seguir esta pista. Se ela tivesse alguma utilidade, quando regressasse contaria a Linda e, possivelmente, a Sture; caso contrário, não precisaria de lhes dizer nada e poderia evitar a humilhação de se ter enganado. O que mais o preocupava era que ainda tinha muito álcool na sua corrente sanguínea. Demorava cerca de doze horas a sair do corpo, e ele tomara a sua última bebida às três e meia, quatro da manhã. Estava na zona de risco, mas teria apenas de conduzir com cuidados redobrados. Já antes se safara assim.

Demorou um pouco a fugir à cidade; a Valhallavägen estava repleta de camiões a partir do Freeport, mas, logo que conseguiu sair para a Essingeleden, o trânsito passou a ?uir bem. Charles Cederkvist telefonou-lhe e sugeriu que se encontrassem a norte de Söderköping; ele estava fora, a tratar de alguns assuntos. Isso convinha muito a Lennart; era uma viagem mais curta. Reprogramou o GPS: pouco mais de duas horas. Sentiu que o destino lhe sorria. Tinha uma pista para seguir, o trânsito na E4 não estava assim tão mau, e na rádio estava a passar um programa fascinante sobre as repercussões do desastre de Fukushima. Lennart sempre se interessara pelo tema da energia nuclear e ainda recordava com orgulho uma das suas melhores reportagens, sobre os inadequados procedimentos de segurança na central nuclear de Forsmark. Tinha sido nomeado para um prémio; essa fora uma boa história. Noutros tempos, ele realmente conseguia encontrar ouro puro.

O sistema de navegação por satélite apitou e interrompeu-lhe o ?o dos pensamentos. Aparentemente, ele devia sair da estrada. Já teria lá chegado? Lennart encostou à berma e parou. Olhou melhor para o GPS; ao que parecia, o endereço que Charles lhe dera situava-se muito mais longe da auto-estrada do que ele pensara ao início. Era muito perto da água, em Bråviken.

Pôs-se de novo em andamento e, na saída seguinte, virou para uma estrada secundária. Sentiu-se bem-disposto. Aquele era o tipo de estrada que ele adorava, estreita e sinuosa; exigia uma certa dose de esforço por parte do condutor. Esse era, provavelmente, um dos aspectos mais aborrecidos de se viver em Estocolmo: não havia estradas como aquela.

Estava tão concentrado na condução que nem reparou no carro preto que saíra de um caminho de terra batida e se mantivera atrás dele a uma distância segura.


UNIDADE DE UROLOGIA, Hospital Karolinska.

Fora para aí que tinham levado o seu marido. O agente de serviço tinha-lhe telefonado de manhã para lhe dizer que Valdemar sofria de dores nas costas, tão fortes que por momentos até perdera a consciência quando tentara levantar-se da cama. Tinha sido levado para as urgências, onde o médico depressa o encaminhara para Urologia. Há uma hora, Anna tinha lá chegado pela A2. Valdemar estava a ser examinado, por isso sentara-se à espera e telefonara à ?lha.

Vanja estava ali agora. Haviam-se abraçado quando ela chegara; o primeiro pensamento de Anna fora que Vanja tinha o olhar de quem se sentia perseguida. Perseguida e exausta, como se apenas conseguisse manter-se em pé devido à força de vontade pura.

Vanja perguntou-lhe se ela sabia o que acontecera; Anna não fazia ideia.

Tinham-se sentado num dos sofás azul-claros da sala de espera. Anna pensou se haveria de perguntar a Vanja há quanto tempo ela regressara e porque não entrara em contacto quando soubera que Valdemar tinha sido preso, mas decidiu que não. Nada de bom poderia vir daí. O facto de Vanja e Valdemar terem uma relação especial não era segredo; eram muito mais próximos do que ela e Anna jamais tinham sido ou alguma vez seriam. As coisas eram mesmo assim. Se ela começasse a fazer perguntas, Vanja responderia que o telefone funcionava nos dois sentidos. O que era verdade. Anna também não tinha telefonado a Vanja.

– Tu sabias? – disse Vanja de repente.

– Não. – O que era verdade, independentemente daquilo a que Vanja se referisse.

– Como é que isso é possivel?

Anna virou-se para a ?lha, que estava a olhar em frente.

– Tu queres dizer se eu sabia que ele estava doente?

– Não.

– Já tens mais de trinta anos de idade. Conhecias o tipo de vida que nós levávamos. Tu sabias?

– Não.

Vanja ?tou-a. Havia desolação no seu olhar; poderia tão profunda infelicidade dever-se apenas ao que acontecera ao seu pai?

– Desculpa – disse Vanja, pousando a sua mão sobre a de Anna. Um pouco surpreendida, Anna deu-lhe uma palmadinha tranquilizadora.

Entrou um médico na sala de espera e ambas se levantaram. Ele apresentou-se como Omid Shahab e sugeriu que fossem para o seu gabinete conversar. Isso não era bom sinal, pensou Anna.

– Importas-te de ir sozinha? Eu pre?ro esperar aqui pelo Valdemar.

Vanja disse-lhe que sim com a cabeça. Anna ?cou a ver a ?lha afastar-se com o médico. Poderia parecer estranho, ?car na sala de espera, mas ela simplesmente não conseguia suportar ouvir más notícias acerca do marido. Já tivera su?cientes. Mais não.

 

Vanja sentou-se no gabinete de Omid e este puxou a sua cadeira para junto da dela. Não é bom sinal, pensou ela. Aquela sala privada, aquela proximidade e aquela expressão grave e simpática. Isto era sério.

– Fizemos uma ecogra?a – começou o médico.

– E?

– Enviámo-lo logo lá para cima para fazer uma TAC, só para termos a certeza, mas tudo indica que Valdemar tem cancro renal.

Isso não. Outra vez não, pensou Vanja. Ele tinha sido dado como curado ainda há pouco. Não tinham já sofrido o su?ciente?

– Ele teve cancro de pulmão há pouco tempo – disse ela ao médico.

– Sim, já sabemos disso. É provável que as células cancerosas se tenham metastizado e atacado os rins.

– Muito bem, então o que vai acontecer agora?

– Precisamos de descobrir com que fase do cancro estamos a lidar – explicou Omid, certi?cando-se de que ela entendia tudo o que lhe estava a dizer. – Podemos operar. Na melhor das hipóteses, o problema não terá alastrado para além dos rins.

Vanja não precisou de perguntar qual seria a pior hipótese. A palavra-chave era «alastrar». O corpo do seu pai poderia estar crivado de cancros; se assim fosse, ele não conseguiria lidar com isso. E ela também não. Mas havia outra palavra que a incomodara: rins. No plural.

– Ambos os rins estão afectados? – perguntou ela, embora julgasse já saber a resposta. O aceno de cabeça de Omid con?rmou os seus receios.

– É isso que o exame indica, o que signi?ca que só poderemos operar quando tivermos um dador.

– Eu ofereço-me como dadora – disse Vanja imediatamente.

– Compreendo que seja esse o seu primeiro instinto, mas trata-se de uma intervenção muito séria, tanto para o dador como para o receptor – disse-lhe Omid, abanando a cabeça. – Tem de pensar melhor.

– Não, não tenho. Quero doar um rim.

Omid olhou para a jovem sentada à sua frente. Teve a sensação de que tudo o que ele dissesse não teria qualquer importância; ela já se decidira.

– Vou marcar-lhe uma consulta com a equipa de dadores – disse ele ao cabo de um momento.


«LENNART STRIDH morto em acidente de automóvel.»

A parangona enchia todo o ecrã do seu iPad. Era uma grande notícia. Um dos mais conhecidos jornalistas de investigação da Suécia tinha saído para fora da estrada e caíra na baía em Bråviken, batera com a cabeça no pára-brisas e afogara-se. «O cinto de segurança poderia tê-lo salvado», dizia a legenda por baixo da fotogra?a do carro a ser içado para fora da água, com o logótipo da televisão sueca claramente visível na lateral. Isso não era verdade. A partir do momento em que Lennart decidira telefonar a Charles Cederkvist, nada o poderia ter salvo.

Charles consultou rapidamente outro jornal da tarde. Mesmo título, mas com a informação adicional de que a Polícia não havia descartado a condução sob o efeito do álcool. Excelente. Continuou a analisar as reportagens publicadas online; não havia qualquer sugestão de que se suspeitasse de crime.

Uma porta fechara-se com estrondo, ou pelo menos fechara-se parcialmente. Teria Lennart dito a alguém aonde ia, com quem se deveria encontrar? Se não, quereriam saber o que ele andava a fazer em Bråviken? Depois havia o telemóvel de Lennart. Ele telefonara a Charles; se alguém decidisse rastrear as suas últimas horas e viesse a descobrir a chamada, veriam um nome que já constava noutro caso.

Charles pousou o iPad, pôs o carro a trabalhar e conduziu em direcção a Estocolmo. Havia muitos ses e mas. Sentia-se como um homem ao lado de uma enorme barragem na qual começavam a aparecer pequenas ?ssuras. Ele tapava-as o melhor que podia, mas tudo indicava que a barragem não tardaria a rebentar e que tudo jorraria de lá em profusão. Charles queria estar bem longe quando isso acontecesse.

O seu telefone tocou. Olhou para o visor: um nome que já não via há muito tempo. Pensou por instantes em deixá-lo tocar, mas precisava de toda a informação que pudesse arranjar de modo a poder manter-se um passo à frente por tanto tempo quanto possível.

– O que quer?

– É o Joseph – disse a voz rouca com forte sotaque no outro lado da linha.

– Já sei. O que quer?

– Veio aqui um rapaz. O ?lho do Hamid.

Charles permaneceu em silêncio, o que Joseph interpretou como querendo dizer que ele não se lembrava de quem era Hamid.

– Um dos homens que entregámos aos americanos – esclareceu ele.

Charles conseguiu vê-los na sua mente. Deitados no chão, de mãos e pés atados. Naquela altura, não sabia os nomes deles; já tinham sido apanhados quando entrara no quadro. A sua função era apenas observar – ser a presença sueca enquanto os agentes americanos operavam em território sueco, reportar, porventura aprender até alguma coisa.

– O que queria ele?

– Andava à minha procura.

Charles fechou os olhos por um segundo. Mais uma brecha na barragem. Tinha de a tapar o mais depressa possível, antes que se tornasse maior.

– Marque um encontro, vá buscá-lo e telefone-me logo que o tiver.

Terminou a chamada antes que o homem da voz áspera tivesse tempo para responder. Fincou o pé no acelerador e prosseguiu a sua viagem para norte. Duas coisas para fazer: apoderar-se de um outro carro e certi?car-se de que não tinha de resolver isto sozinho.


FRACASSO ÉPICO. Desastre total. Tudo estava a rebentar diante dele. Pensara que aquilo que tinha feito era contra as regras, possivelmente ilegal, mas que provavelmente não era perigoso; a?nal, acabara por revelar-se tudo menos isso.

Era fatal.

Não havia outra maneira de interpretar aquela primeira página da edição online do Aftonbladet. Tinha morrido um jornalista. Lennart Stridh.

O artigo dizia que fora um acidente, mas o rosto acinzentado de Anitha dizia algo diferente. Quando ela lhe gaguejara que há menos de vinte e quatro horas tinha dado a Stridh o nome que ele havia encontrado no sistema de computador, Morgan entendeu. Era impossível ver o quadro completo, que era muito complicado, mas havia coincidências a mais. Por mais que tentasse, não conseguia explicar aquilo como um mero capricho do destino.

Estava tudo ligado.

Precisou de se encostar à secretária de Anitha para obter apoio. Tinha as mãos sujas de sange. Um homem fora provavelmente assassinado por causa de informações que ele havia ajudado a recuperar.

Tudo o que ele quisera fora que Anitha passasse tempo consigo. As suas intenções eram boas. Ele andava à procura de amor, de alguém com quem pudesse partilhar a sua vida quotidiana. Nada mais.

E era ali que aquilo tinha conduzido. À pirataria informática e à morte. Sempre soubera que o que estava a fazer era errado, mas tratava-se apenas de um nome. Nada mais.

Depois tinha explorado o que sabia; fora esse o seu maior pecado. Tinha sido estúpido e rude. Não se podia obrigar alguém a amar-nos. Não era assim que as coisas funcionavam. Mas ele tivera a esperança de que, se Anitha passasse algum tempo consigo, mudasse de opinião, visse os aspectos positivos do seu carácter, talvez até aprendesse a gostar dele, nem que fosse só um pouco; isso ter-lhe-ia bastado.

Agora ele estava a ser castigado. Talvez isso lhe parecesse inteiramente desproporcionado, mas era a única interpretação possível.

Nós colhemos aquilo que semeamos.

Com juros.

Precisava de fazer isto como devia ser, mesmo que signi?casse que ela nunca mais falaria consigo. Ela dissera-lhe que seria um desastre para ambos se alguém viesse a descobrir o que tinham feito. Não havia dúvidas de que estava certa, mas ele não podia ?car quieto. Os erros não desapareciam só porque alguém os enterrava e seguia em frente, especialmente quando alguém morrera. Era aí que ele traçava a fronteira. Se era uma boa pessoa, estava na hora de o provar.

De contar a verdade.

Mas a quem?

Morgan não fazia ideia. Em primeiro lugar, o conhecimento de que ele dispunha era claramente perigoso, e em segundo lugar existia o risco de que ninguém acreditasse em si. Nem sequer sabia por onde haveria de começar.

Devia falar com alguém que o conhecesse, alguém que soubesse que ele não ia exagerar ou inventar coisas – alguém que pudesse transmitir a informação sem arrastar o seu nome juntamente com ele. Um agente policial.

Apesar de ele já trabalhar na sede da Polícia há tanto tempo, não conhecia muitos agentes. Os seus colegas eram sobretudo funcionários civis, e esses não poderiam ajudá-lo. A única pessoa de que se lembrava era um fulano da Riksmord que partilhava o mesmo interesse pelos computadores. Costumavam conversar de vez em quando sobre discos rígidos e redes, e ele sempre se mostrara muito simpático. Parecia consciencioso. Seria a Riksmord capaz de manter em bom recato o nome de um informador? Talvez lhe pudesse perguntar o que fazer. Billy Rosén devia saber.

Não contou a Anitha as suas intenções; não havia nenhum motivo. Morgan percebeu que aquele era o ?m do relacionamento entre eles, ou lá o que se pudesse chamar à situação a que ele a obrigara, mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. O importante agora era salvar-se a si próprio.

A Riksmord era no terceiro andar.

Aquele sabor na sua boca regressou, mas desta vez não era amor; era medo.

Pediu para falar com Billy em privado.


JENNIFER IA SENTADA na parte de trás de um carro que tinha acabado de sair do parque de estacionamento por baixo do quartel-general da Polícia em Kungsholmen e virara à esquerda; sentia-se impressionada pela rapidez com que as coisas por vezes acontecem.

Há pouco mais de meia hora, Billy recebera a visita de um homem com barba, com excesso de peso e com um casaco bege-pálido que lhe assentava extremamente mal. Billy tinha-o apresentado como Morgan Hansson, um colega do departamento de TI. Morgan mal conseguira dizer-lhes olá antes de pedir para falar com Billy em privado.

Cinco minutos depois, ela vira Billy a correr para o gabinete de Torkel, e ao ?m de pouco tempo todos estavam reunidos na Sala. Todos excepto Vanja. Ninguém sabia onde ela estava; não atendia o telemóvel, mas naquele momento Sebastian parecia ser o único a preocupar-se com isso. Os outros estavam completamente concentrados em Billy, que continuava a escrever no quadro branco enquanto explicava que Morgan tinha feito um favor a uma colega, fora procurar as ?tas de backup e encontrara um nome que havia sido removido de um relatório. Passara esse nome à sua colega, que por sua vez o passara a Lennart Stridh do Investigação Hoje.

– Ele morreu, sabiam? – dissera Jennifer, um pouco insegura sobre onde levaria tudo aquilo e desconhecendo se eles estavam ao corrente ou não. – Morreu num acidente de carro há poucas horas.

Todos assentiram. Já sabiam. Billy prosseguiu:

– O tal relatório referia dois homens que desapareceram após lhes ter sido recusado asilo no Outono de 2003: Hamid Khan e Said Balkhi. A Polícia de Solna recebeu ordens para deixar de os procurar. A Säpo assumiu o caso, e o agente responsável foi o Adam Cederkvist.

Silêncio. O que eles tinham acabado de ouvir parecia tão impossível que Ursula se sentira obrigada a perguntar:

– Estás a referir-te ao nosso Adam Cederkvist?

Billy dissera-lhe que sim com a cabeça.

– Mas como é que isso se relaciona com a família assassinada em Jämtland? – perguntou Jennifer.

– Não faço a menor ideia, mas Lennart Stridh recebeu o nome ontem, e hoje está morto.

– Porque é que o Investigação Hoje estava interessado? – perguntou Torkel.

– Morgan não sabia.

– Quem é a colega que ele estava a ajudar?

Menos de cinco minutos depois, Anitha Lund estava sentada à frente deles, protestando com indignação que conhecia os seus direitos e que não tinha absolutamente nenhuma intenção de dizer fosse o que fosse. Ao ?m de um minuto e de uma conversa tranquila com Torkel, mudou de ideias.

Tudo o que ela sabia era que a esposa de Hamid Khan, Shibeka, tinha contactado Lennart. Anitha tinha ?cado curiosa ao constatar que a referência do contacto na Säpo fora removida do relatório original.

– Quando é que o nome foi removido?

Ela deu-lhes a data – poucos dias após os corpos terem sido encontrados na sepultura da montanha. Também lhes entregou o papel que Lennart lhe dera, bem como o endereço de Shibeka Kahn, e neste ponto já Billy os conduzia para a rotunda ao fundo da Rålambshovsleden.

Estariam em Rinkeby daí a menos de quinze minutos.


MEHRAN TINHA SAÍDO em Fridhemsplan para mudar de comboio. Não lhe apetecia ir já para casa, por isso foi ao centro comercial Västermalm, situado mesmo ao lado da estação de metropolitano. Vagueou por lá sem qualquer rumo, olhando para as montras das lojas. Sabia que devia ir para casa e contar a Shibeka o que acontecera, mas, antes de o fazer, queria saber mais. A mãe precisava de saber a verdade para que pudesse deixar de andar em círculos, obcecada com o desaparecimento de Hamid.

Ela precisava de uma conclusão. De uma conclusão pertinente.

Ele também. Voltou a sair para a Fleminggatan; estava apinhada de gente. Parou no meio de todas aquelas pessoas que se atarefavam a tratar dos seus assuntos. Olhou para o alto edifício amarelo situado a curta distância, no cimo da colina. No sopé da mesma situava-se a passagem onde antes fora a loja de Said. Se ao menos ele lá tivesse ido logo, teria descoberto tudo há muito tempo. Mas sabia porque não o ?zera; preferira não revisitar certos locais onde tinha estado com o pai. Um desses locais era a loja. Tal como o campo de futebol que ?cava a meio caminho para Tensta, onde Hamid o ensinara a andar de bicicleta. Ou a área de lazer junto ao bloco de apartamentos de Melika.

Sempre pensara que eles lhe lembrariam demasiado o seu pai. Não queria ter aquela sensação de perda; queria trancá-la bem, deixá-la em paz. Pelo menos, fora nisso que Mehran acreditara, mas, de facto, não era verdade. Precisava daqueles locais, daquelas memórias. Elas não o magoavam; podiam dizer-lhe coisas.

Porque, a?nal, algumas das suas memórias eram inexactas. As pessoas que ele pensara serem suas amigas não eram realmente nada disso. A loja onde antes lhe ofereciam caramelos conduzira a todo aquele negrume. Melika não estava sempre zangada, ela estava apenas assustada.

Mas uma coisa continuava igual.

Ele sentia saudades do pai, tanto quando era criança como agora, em adulto. Não havia qualquer dúvida quanto a isso.

A vida era muito estranha. Toda a gente que ele conhecia queria tirar muito dela: bens, sucesso, respeito. Consigo passava-se o mesmo, mas o que ele queria de verdade era um contexto. Coisas que pudesse entender. Memórias que não se alterassem. Amigos nos quais pudesse con?ar. Pais que continuassem por perto. Parecia muito simples, mas ele começava a compreender cada vez melhor que essas coisas eram difíceis de encontrar.

O seu telemóvel tocou, interrompendo-lhe os pensamentos.

Não reconheceu o número no visor, mas reconheceu a voz.

– Mehran? – disse-lhe ela asperamente.

Ele demorou um segundo a responder. Dois. Talvez três.

– Sim.

O homem não esperou; a voz dele estava no ouvido de Mehran, a exigir uma resposta.

– É o Joseph. Ouvi dizer que andaste à minha procura.

Mehran não disse nada. Ficou ali a olhar para os carros que passavam. A voz parecia tão segura de si que ele até olhou ao seu redor para ver se Joseph estaria parado algures por perto. Não havia qualquer sinal dele, mas isso não signi?cava necessariamente alguma coisa.

– Não te vejo há muito tempo, Mehran. Como tens passado?

– Como é que conseguiu o meu número?

– Foi fácil. Conheço muitas pessoas que me podem ajudar com todos os tipos de coisas.

A ameaça não fora sequer velada. Ele queria mostrar a Mehran quem conseguia encontrar quem. Mehran decidiu a?rmar-se; Joseph não lhe metia medo.

– Quero encontrar-me consigo – disse-lhe o mais calmamente que conseguiu.

– E porquê?

– Quero falar consigo. Acho que também quer falar comigo.

A voz do outro lado deixou de se ouvir por um momento.

– Nesse caso, podes vir ter aqui – disse, ?nalmente.

– Óptimo. Diga-me onde está.


SEBASTIAN SUBIU as escadas do bloco de apartamentos em Stavbygränd atrás de Jennifer e de Billy. Aquilo era quase simbólico: os jovens ávidos correndo à frente e o intelecto a fechar a rectaguarda. Não havia realmente grande motivo para que ele estivesse ali, mas era melhor vir do que ?car na sede preocupado com Vanja. Além disso, o caso parecia ter tomado um rumo interessante. Se Adam Cederkvist tinha sido o responsável pelo caso dos dois homens afegãos desaparecidos e isso levara, de alguma maneira, a que ele e a sua família acabassem numa sepultura na montanha, então o caso não era apenas intrigante de um ponto de vista conspirativo mas também era único. Charles, o irmão de Adam, tentara ocultar-lhes a identidade deste, o que sugeria que ele estava envolvido. Poderiam até estar a presenciar um fratricídio. Muito interessante, de facto, se isso fosse verdade. Esperava vir a conhecer Charles para poder estudar todas as repressões, racionalizações e projecções que ele provavelmente utilizava.

Jennifer e Billy tocaram à campainha de Shibeka Khan. Sebastian deixou-se ?car para trás; aquela escada estreita parecia-lhe muito sobrepovoada. O rapaz magrinho de treze anos que veio abrir a porta deve ter sentido o mesmo; ?tou-os com uns olhos arregalados.

– Olá... estamos à procura de Shibeka Khan – disse-lhe Billy num tom amigável.

– Polícia – acrescentou Jennifer rapidamente, mostrando-lhe a sua identi?cação. Adorava dizer aquilo, pensou Sebastian. Era óbvio que, acima de tudo, se considerava uma agente. Fora provavelmente por isso que Torkel a escolhera, porque a sua energia e empenho compensavam a falta de experiência.

– Aconteceu alguma coisa? – perguntou o rapazinho ansiosamente.

– Precisamos de falar com a tua mãe. Ela está em casa? – perguntou Sebastian, tentando parecer-se menos com uma série policial. Estavam a falar com uma criança, por amor de Deus!

O garoto disse-lhe que sim com a cabeça e voltou lá para dentro. Ouviram-no chamar alguém num idioma diferente. Jennifer virou-se para Billy.

– Suponho que seja uma família muçulmana. Pode suceder que ela só esteja disposta a falar comigo.

– Está bem.

Veio à porta uma mulher com cerca de trinta e cinco anos. Era bonita, com uns olhos escuros e inteligentes e umas feições bem de?nidas, elegantementes emolduradas pelo pano preto que lhe cobria o cabelo. Sebastian sorriu ao vê-la. Acabara de acontecer. Ele percebera que nunca tinha dormido com uma mulher que usasse véu. Sem dúvida que seria muito difícil de atingir, mas a verdade é que nunca tentara.

– Shibeka Khan? – perguntou Jennifer. A mulher disse-lhe que sim.

– Sim.

– Nós somos da Polícia. Podemos entrar? – disse Sebastian educadamente, pondo-se à frente de Jennifer, que pareceu, no mínimo, surpreendida. Ele ignorou-a.

– Aconteceu alguma coisa ao Mehran? – perguntou Shibeka, mostrando-se subitamente ansiosa.

– Não. Quem é o Mehran?

– O meu ?lho. O meu ?lho mais velho.

– Não aconteceu nada com ele; estamos aqui porque julgamos que tem falado com o Lennart Stridh do Investigação Hoje... – começou a dizer Jennifer, mas Sebastian interrompeu-a com a sua voz mais quente, mais simpática.

– Não sei se é apropriado eu pedir-lhe isto, dado que sou um homem... – colocou particular ênfase na palavra «homem». – Mas não demorará muito.

– Não tem importância – disse Shibeka, dando um passo para o lado a ?m de os deixar entrar.

O corredor estava limpo e arrumado e havia um aroma maravilhoso vindo da cozinha – a açafrão e outras especiarias. Shibeka pegou na mão do ?lho, mostrando-se ainda preocupada.

Sebastian dispensou a ambos um sorriso tranquilizador.

– Belo rapaz aí tem.

Shibeka não respondeu, e, antes que Sebastian conseguisse dizer mais alguma coisa, a agente policial Jennifer tomou a palavra.

– Creio que o seu marido, o Hamid, desapareceu há nove anos!

Shibeka aquiesceu.

– O Lennart foi a única pessoa que me ouviu. Vocês não ?zeram nada.

Sebastian falou antes que Jennifer interviesse, provavelmente para dizer algo sobre Lennart; não havia motivo para que Shibeka ?casse a saber que ele estava morto. Não antes de eles terem a certeza de que existia alguma ligação.

– Alguém veio visitá-la após o desaparecimento do seu marido?

A reacção de Shibeka disse-lhe que essa era uma pergunta que ela queria que a Polícia lhe ?zesse há muito tempo. Há imenso tempo.

– Veio cá um homem cerca de uma semana depois de Hamid desaparecer. Eu sempre achei que ele era da Polícia, mas nunca mais voltou.

– Como se chamava ele?

– Não disse.

Sebastian virou-se para Billy e estendeu a mão.

– Tens aí o retrato?

Billy abriu a pasta e entregou uma fotogra?a a Sebastian.

– Foi este o homem?

Shibeka olhou para o retrato. Sebastian já sabia a resposta antes de ela falar.

Adam Cederkvist tinha estado ali.

Havia, inegavelmente, uma ligação.


APÓS O BREVE ENCONTRO com Anitha Lund, Torkel entrou em contacto com Britta Hanning na Säpo. Para falar verdade, eles não se conheciam, embora já se tivessem encontrado ocasionalmente quando os seus caminhos se cruzavam. Eram da mesma idade e haviam tido um percurso pro?ssional semelhante dentro da força policial, mas era pouco provável que isso facilitasse as coisas. A?nal, Britta Hanning era da Säpo, e, tal como esperara, ele não conseguira nada com o seu pedido de informação sobre o caso de dois requerentes de asilo desaparecidos que aterrara na secretária deles nove anos antes. Torkel não conseguiu nada antes de lhe dizer que tinham encontrado, numa cova das montanhas, um dos antigos colegas dela, um homem que toda a gente pensava que se afogara durante uma viagem de barco à volta do mundo.

– Até que ponto têm a certeza de que a pessoa que encontraram era o Adam?

– Temos a certeza – retorquiu Torkel com ?rmeza, embora ainda não dispusessem de uma prova forense. – Não sentiram a falta dele?

– Ficou de licença a partir de meados do Outono; ia passar um ano a viajar de barco pelo mundo, com a família.

– Alguém fez parecer que ele tinha partido, mas morreu no alto de Jämtland em Outubro.

Após um breve silêncio, Britta disse que voltaria a telefonar-lhe. Dez minutos mais tarde, ligou-lhe e pediu-lhe que fosse lá.

Agora ele estava sentado no gabinete dela, situado num canto do piso superior da sede da Polícia, na secção mais próxima da Polhemsgatan – o Parque Kronoberg a um lado, os telhados verdes dos edifícios da Kungsholmsgatan no outro. Havia declinado a oferta de café quando chegara, mas ?cara à espera de que a assistente pessoal de Britta lhe trouxesse o dela antes de começarem. Entretanto, Britta não estava interessada em conversas de circunstância; pedira-lhe desculpa por ter de responder a um ou dois emails e concentrara-se no seu computador. Torkel olhou para o parque lá fora. O vento tinha-se levantado durante a manhã e agora as folhas das árvores em frente rodopiavam sete andares mais acima. Ainda estava calor ao sol, pelo menos quando se estava dentro de casa atrás de uma vidraça, mas dentro em breve ele não seria mais do que uma fonte de luz durante poucas horas por dia, uma refulgente promessa de calor num futuro distante.

Bateram à porta e a assistente pessoal de Britta colocou em cima da secretária, à frente dela, uma chávena Höganäs verde com cappuccino; sorriu para Torkel quando ia a sair. Assim que a porta se fechou, Britta virou-se para Torkel.

– Conte-me.

Torkel começou pelo telefonema de Hedvig Hedman desde Östersund e terminou com os acontecimentos das últimas horas e o facto de alguns membros da sua equipa estarem agora em Rinkeby. A única coisa que deixou de fora foram os nomes das pessoas envolvidas no incidente do acesso aos computadores; não tinha qualquer dúvida de que Britta haveria de os localizar, agora que sabia onde procurar.

– Já falaram com o Charles Cederkvist?

– Não conseguimos localizá-lo.

Britta suspirou de forma audível quando pegou na sua chávena e olhou para fora da janela. Torkel permaneceu em silêncio, dando-lhe tempo para pensar. Para um estranho, talvez fosse óbvio que os diferentes departamentos da Polícia se deviam ajudar uns aos outros, e na maioria dos casos era isso que sucedia, mas isto era a Säpo. Certamente seria preciso muito para que lhe dessem acesso ao material deles durante uma visita esporádica, sem nenhuma pressão ao mais alto nível dentro da organização. Britta pareceu ter chegado a uma decisão. Voltou-se para Torkel e pousou a chávena.

– Está bem.

Empurrou uma pasta na direcção dele. Quando Torkel estava prestes a pegar-lhe, Britta colocou a sua mão sobre ela. Torkel levantou os olhos com um ar interrogativo; a expressão dela não deixava espaço para negociações.

– Isto ?ca aqui – disse-lhe ela, retirando a mão. Torkel recostou-se na sua cadeira e abriu a pasta.

Esperava passar algum tempo em leitura intensa enquanto Britta terminava o seu cappuccino, mas quando olhou para o conteúdo percebeu que aquilo não ia demorar tempo nenhum. Folheou as breves notas, a seguir fechou a pasta e contemplou Britta com uma descon?ança maldisfarçada.

– Isto é tudo o que vocês têm?

– Sim.

– Mas não há nada aqui.

Não era exagero. Segundo o que constava da pasta, Adam Cederkvist tinha sido informado de que Hamid Khan e Said Balkhi eram suspeitos de terrorismo ou, pelo menos, de terem contactos com terroristas, e portanto parecia improvável que eles tivessem desaparecido por estarem ameaçados de deportação, especialmente tendo em vista o facto de Said já possuir uma autorização de residência permanente. Em vez disso, assumia-se que eles tinham viajado para o estrangeiro a ?m de efectuarem ataques terroristas ou de receberem formação para prepararem tais ataques. Um caso para a Säpo, para o dizer de forma simples. Mas, aparentemente, Adam Cederkvist não aceitara essa teoria e continuara a investigar. Até tinha ido visitar as esposas dos dois homens; por qualquer motivo, ele ?cara então ainda mais convencido de que aquele não fora um desaparecimento voluntário – antes pelo contrário. Uma nota ?nal na parte inferior da página era a única coisa que poderia ser útil, pelo que Torkel podia ver.

– No fundo, há aqui uma referência a agentes americanos...

– Pois, eu vi isso. Fui veri?car antes de você chegar; não tivemos nenhum agente estrangeiro activo no país durante esse período.

– O?cialmente.

– Não tivemos nenhuns agentes estrangeiros activos no país durante esse período – repetiu Britta num tom que deixou muito claro a Torkel que aquela conversa seria muito breve, a menos que ele jogasse de acordo com as regras. As regras dela. Ele compreendeu e passou adiante.

– De onde veio a sugestão de que esses dois homens estavam envolvidos em actividades terroristas?

– Não posso responder a isso.

– Não preciso de um nome especí?co.

Britta olhou-o nos olhos e não disse nada. Torkel suspirou para si mesmo. Compreendia plenamente o problema da segurança nacional, mas às vezes o sigilo entre os departamentos podia ser um pouco ridículo.

– Deixe-me dizer isto doutra maneira. Será que a inteligência militar e o serviço de segurança partilham, por vezes, as informações recebidas?

– Às vezes.

– Foi isso que aconteceu neste caso?

– Não sei.

Torkel contemplou a mulher sentada à sua frente. Parecia-lhe sincera, mas isso era irrelevante. Ela não ia dizer-lhe nada. Pensou num cenário possível. A inteligência militar descobrira que alguém se andava a preparar para efectuar um ataque terrorista contra um alvo americano, talvez num futuro muito próximo. Hamid e Said tinham sido indicados. Tinham-nos apanhado e os americanos foram autorizados a... a fazer o quê? Se os dois homens tinham sido levados para fora do país, isso não teria resultado decerto em grandes títulos nos jornais? Em 2004, quando fora revelado que a CIA tinha levado dois egípcios da Suécia em 2001, houvera um grande pandemónio. Se isso tivesse acontecido de novo dois anos mais tarde, certamente teria vindo à luz. Ou teriam eles aprendido a lição? Conseguiram ocultá-lo dessa vez? Será que agentes americanos tinham levado Hamid e Said para fora do país?

Não valia de todo a pena expor a sua teoria a Britta; mesmo que ela soubesse, nunca lho diria. Tentou uma táctica diferente; este era o seu último tiro.

– Se o Adam pensava que agentes americanos estavam a operar na Suécia, porque é que isso não teve seguimento?

– Fiquei a pensar na mesma coisa.

Torkel ?cou impressionado com a súbita honestidade na voz dela.

– Não sabe?

– Não.

– Então, o que acha?

– Acho que alguém garantiu que o assunto não chegaria mais longe.

Ela apontou para o tecto. Como estavam no último piso, não havia qualquer presença física acima dela, e parecia improvável que Deus tivesse decidido intervir num caso de Polícia. Por isso, aquele dedo deveria representar «um poder superior».

Mas isso não era tudo.

Também signi?cava que eles tinham um grande problema.

 

Torkel estava a regressar à Riksmord quando decidiu ir fazer uma caminhada, para desanuviar a cabeça. A tarde de Outono parecera-lhe muito bonita a partir da janela de Britta, como um anúncio cheio de pessoas alegres, vestidas com grandes camisolões, correndo alegremente atrás de crianças e cães e terminando num sofá diante de uma lareira crepitante para desfrutarem do produto que estava a ser anunciado. Por um breve momento, imaginou-se a si e a Ursula como essas pessoas alegres, mas rapidamente descartou tal pensamento. Um passeio e um pouco de ar fresco iam fazer-lhe bem. Logo que saiu da entrada principal, percebeu que o tempo estava muito mais agradável por trás de uma vidraça do que lá fora. O vento arrabatou-lhe violentamente as roupas enquanto Torkel baixava a cabeça e virava à esquerda. Foi comprar um café à loja da esquina, voltou a caminhar com o vento atrás de si e foi sentar-se num banco do parque. Estava à sombra e certamente não era abrigado; ele não tardaria a gelar, e o café quente não ajudava grand coisa. No entanto, tendo decidido sentar-se ao ar livre por um bocado, não se sentiu disposto a desistir tão facilmente.

Concentrou-se no caso.

Portanto, muitos pontos de interrogação. Ele só não conseguia dar sentido àquilo.

Se a inteligência militar tinha apanhado Hamid e Said, porquê informar a Säpo? Porque não descrever simplesmente aquilo como um desaparecimento na sequência de uma recusa de concessão de asilo e deixar a coisa assim?

Porque esse tipo de desaparecimento não era conclusivo. Os familiares poderiam conseguir convencer alguém de que os indivíduos em causa não tinham desaparecido por sua livre vontade, e se gritassem su?cientemente alto a Polícia teria de voltar a assumir o caso. De começar a pesquisar. A investigar. Alguém quisera evitar isso a todo o custo.

Assim, o caso ?cava encerrado no que dizia respeito à Polícia de Solna. Ninguém o apresentaria no Crimewatch, nos Mais Procurados ou nos tablóides. O carimbo da Säpo era um selo inviolável, que indirectamente insinuava que havia algo que aqueles dois muçulmanos tinham querido esconder. Para a maioria das pessoas, o facto de a Säpo estar interessada neles signi?cava que deviam ser culpados de alguma coisa.

Lennart Stridh, Anitha Lund e Morgan Hansson tinham quebrado esse selo, e um deles fora morto.

Torkel pôs-se em pé, pensou em ir fazer uma caminhada, mas decidiu que já tivera o suficiente de grandes espaços ao ar livre. Voltou para o escritório, ainda a pensar no caso.

Charles Cederkvist recebe um aviso sobre a actividade terrorista. Manda ir buscar Hamid e Said. Contacta a CIA. Hamid e Said desaparecem. Charles pede ao seu irmão que assuma e encerre o caso. Até aí, tudo bem. Torkel achou que conseguia ver o ?m do labirinto através do qual os seus pensamentos iam abrindo caminho.

Muito bem, mas o que vinha depois?

Adam não ?zera apenas o que lhe fora solicitado. Começara a ir mais fundo. Associara os desaparecimentos à presença americana não o?cial na Suécia.

Teria sido por isso que morrera?

Se assim fosse, quem estaria por trás disso?

Certamente, Charles não teria matado o próprio irmão por ele se ter abeirado de uma verdade desconfortável!

O ?m do labirinto recuou para longe, e, quando Torkel abriu a porta com um suspiro, percebeu que, mesmo que estivessem a mover-se na direcção certa, ainda tinha um longo caminho a percorrer.


ALEXANDER SÖDERLING abriu a porta da recepção e disse olá a Hanna, que lhe respondeu com um:

– Tem uma visita.

Alexander percorreu rapidamente a agenda na sua cabeça. Tanto quanto se lembrava, a reunião em Vasastan da qual acabara de regressar era a última do dia.

– Quem é?

Hanna apontou com a cabeça para a elegante zona de espera, onde Charles Cederkvist estava precisamente a pousar a mais recente edição do Indústria Hoje. Levantou-se com alguma di?culdade do baixo sofá de couro rosa-choque com as suas almofadas amarelas e brancas de forma irregular e caminhou em direcção a Alexander com um sorriso.

Os dois homens trocaram um aperto de mão e Alexander fez questão de dizer que tinha passado muito tempo e que estava muito contente por ver Charles antes de levar o convidado para o seu gabinete.

– Preciso de me ir embora. Para longe, por muito tempo – disse Charles logo que Alexander fechou a porta.

– Não entendo como te posso ajudar.

Charles lançou-lhe um olhar, tornando muito claro que não achava necessário explicar. Alexander abriu os braços para trás, como se pretendesse indicar que o local onde estavam deveria bastar para que Charles visse como o seu pedido era irrazoável.

– Agora administro esta empresa; não posso ajudar-te.

Fitou o olhar de Charles e não encontrou nenhuma simpatia.

– Teria sido difícil quando eu estava na inteligência militar, mas agora é impossível.

– Nada é impossível – disse-lhe Charles, caminhando até à janela. As pessoas avançavam com di?culdade ao longo da Drottninggatan, inclinadas contra o vento. – Tu tens contactos e dinheiro, ou pelo menos contactos com dinheiro. Usa-os.

Alexander foi sentar-se na sua confortável cadeira de escritório. Esta era uma visita indesejável e vinha recordar-lhe coisas que ele preferiria esquecer, mas não havia qualquer razão para que devesse ser mais do que isso.

– Não vamos apressar as coisas – disse ele calmamente. – Eles encontraram os corpos, estão a examinar o acidente de carro, mas...

Charles interrompeu-o com uma breve risada desprovida de alegria ao mesmo tempo que se voltava de modo a olhar para o homem sentado atrás da secretária. Dez anos mais velho, quinze quilos mais pesado. Alexander tinha realmente perdido o pulso. Aqueles bons anos passados a gerir uma empresa de relações públicas tinham-no embotado, transformando-o de pantera vigilante em indolente gato caseiro. Naqueles tempos, havia já tantos anos, Alexander Söderling costumava dizer que nunca se podia ter informação a mais. Agora nem sequer parecia conhecer o básico. Estava na altura de uma actualização.

– O Joseph telefonou-me. O ?lho de Hamid andou à procura dele – disse Charles num tom de voz baixo, intenso. – A Polícia procura-me; já identi?caram o Adam. O Investigação Hoje começou a explorar o assunto e, como sabes, é apenas uma questão de tempo até que a CIA perceba que a Patricia Wellton foi assassinada, se não souberem já. – Manteve os olhos ?xos em Alexander, para se certi?car de que a sua mensagem atingia o alvo. Alexander sentiu a cor fugir-lhe do rosto. Aquilo era mau, muito mau. A todos os níveis. O pior aspecto era provavelmente o Investigação Hoje; Lennart Stridh tinha sido encontrado morto dentro de um carro em Bråviken. Pelo amor de Deus, para onde é que Charles estava a arrastá-lo?

– Vou ver o que posso fazer – disse-lhe; ?cou satisfeito ao notar a ?rmeza da sua voz.

– Não, vais fazê-lo – disse-lhe Charles, avançando até à mesa. – Eu sacri?quei demasiado para ir ao fundo só porque tu te tornaste ocioso e tens medo de incomodar os teus amigos. – Debruçou-se e pegou numa caneta. – O meu novo número – disse-lhe, anotando-o num pedaço de papel que estava junto ao braço esquerdo de Alexander. – Tens até logo à noite.

Endireitou-se e dirigiu-se para a porta.

– O que vais fazer agora? – perguntou-lhe Alexander, embora uma parte dele pensasse que o melhor era saber o mínimo possível.

– Vou tratar do Joseph e do rapaz.

– Também trataste do Lennart Stridh? – ouviu-se Alexander dizer, embora desta vez ele tivesse a absoluta certeza de que não queria saber a resposta.

– Faz o que tens de fazer e deixa-me fazer o que eu tenho de fazer.

A seguir foi-se embora. A porta fechou-se atrás dele com um estalido silencioso. Alexander ?cou onde estava. Deixou escapar um longo suspiro. Tantos pensamentos a povoarem a sua cabeça. A questão fundamental: como havia ele de lidar com esta situação? Charles estava obviamente desesperado e, portanto, era imprevisível e perigoso. Queria fugir, o que signi?cava que estava sob pressão vinda de tantas direcções que ele achava que não conseguiria ultrapassar isto. E, se Charles achava que tudo estava acabado, como ia Alexander sobreviver? Não ia. A menos que tivesse ajuda.

Pegou no telemóvel e procurou o número que pretendia. Ela atendeu de imediato.

– Disse-me para não telefonar a menos que tivéssemos um problema – disse Alexander sem preâmbulos. Supôs que ela sabia quem era. Calou-se por um segundo. – Temos um problema.

 

Veronica Ström terminou a chamada e respirou fundo, tentando manter a calma.

Sim, eles tinham um problema.

No pior momento possível.

Virou-se para a mulher que estava na outra extremidade da pálida mesa de reuniões. O homem ao lado dela estava a baixar a sua câmara; ?zera várias imagens enquanto ela falava ao telefone. Por um instante, Veronica pensou que poderiam ter ouvido o que ela dissera, depois lembrou-se de que as suas respostas tinham sido sobretudo monossilábicas, além de uma promessa de tratar das coisas antes de desligar.

A mulher era Maria Stensson, jornalista. Veronica não se lembrava do nome do fotógrafo. Ele tinha-se apresentado quando chegara, mas isso entrara-lhe por um ouvido e saíra-lhe pelo outro.

– Lamento muito, mas preciso de fazer um telefonema – disse ela, sorrindo-lhes à laia de desculpa.

– Não há problema – disse Maria Stensson, retribuindo o sorriso.

Veronica percebeu que o colega estava prestes a protestar; ainda queria fazer algumas fotogra?as no gabinete e talvez ao ar livre, lá em baixo junto à água, por trás do edifício do Parlamento, antes que ?casse muito escuro.

– Isto não demora nada – disse Veronica, antecipando-se a ele. Saiu do gabinete e foi até ao corredor que alojava a maioria dos representantes dos social-democratas no Parlamento. Ela ia tratar das coisas, tal como havia prometido a Alexander Söderling. Marcou +1 e seguidamente um número que já sabia de cor. Uma voz masculina atendeu ao segundo toque com um seco «Sim?».

Veronica apresentou-se e contou-lhe brevemente porque estava a ligar-lhe; lamentava incomodá-lo, mas tinham surgido um ou dois problemas.

O homem do outro lado, com a sua pronúncia sulista, perguntou como poderia ajudar.

Veronica começou a explicar.


MEHRAN NUNCA VIERA até tão a sul. Ele e Levan tinham ido uma vez a Flemingsberg com um amigo, mas ele acabara de passar por essa estação e já ia a caminho de Tullinge. Deveria sair na penúltima paragem, que se chamava Södertälje Port.

Joseph estaria lá à espera dele.

Mehran devia telefonar-lhe quando o comboio saísse de Östertälje. Estava a ser-lhe difícil ?car quieto e continuou a olhar para o cartaz azul e branco que mostrava todas as estações daquela linha. Faltavam sete. Seis. Após cada paragem, voltava a consultar o cartaz, como se o número de estações pudesse mudar de repente enquanto ele ?cava sentado no comboio. O metal que levava no bolso estava quente, embora devesse ser frio. Tinha-a arranjado através de Levan: uma pistola de partida já bastante escavacada. Parecia um pouco pateta, com aquela cor acobreada e o cano ?no, mas o amigo de Levan garantira-lhe que funcionava. Tudo o que Mehran precisava de fazer era apontar e disparar. Seis tiros. Ele esperara algo melhor, mas, apesar de Levan estar sempre a dizer que conhecia as pessoas certas, o melhor que ele conseguira arranjar fora aquilo – pelo menos em tão curto espaço de tempo. Mehran não fazia ideia de como poderia deitar as mãos a uma arma, por isso mesmo, ?cou contente por a ter.

Tinha ido buscá-la a Sergels Torg. Levan tivera de se responsabilizar por ele e viera ter consigo logo que Mehran lhe telefonara. Custara 1500 coroas; Mehran conseguiu trocá-la pelo novo telemóvel que a sua mãe tinha comprado. Levan teve de lhe emprestar mais 200 para os cartuchos. Mehran ?cou aborrecido por ter de os pagar em separado, mas Levan e o fornecedor tinham-lhe dito que era assim que as coisas funcionavam. A pistola era como um carro e os cartuchos eram o combustível, insistiram eles. Duas coisas completamente diferentes. Mehran sabia que estava a ser enganado, mas não tivera escolha. Não tinha qualquer intenção de ir ao encontro do homem que poderia muito bem estar por trás do desaparecimento do seu pai sem ir armado. Isso estava fora de questão. Se alguém ia ser apanhado de surpresa, era Joseph, não ele.

Apalpou a arma. Estava quente, mas nem de longe tão reconfortante como ele esperara. Mehran olhou ao redor da carruagem; sentia que toda a gente estava a olhar para si. Provavelmente estavam, pois continuava a levantar-se e a ir ao mapa da linha entre as estações, mas não conseguia libertar-se da sensação de que todos sabiam que ele estava armado. Que não devia estar ali. Que estava prestes a cometer um erro grave.

O seu telemóvel tocou; o som fê-lo dar um salto. Pôs-se a procurar o aparelho. Na verdade, não queria atender, mas podia ser Joseph. Não conseguia encontrá-lo; tê-lo-ia guardado no mesmo bolso que a arma? Isso seria deveras estúpido. E se ele puxasse a arma para fora juntamente com o telefone? Podia cair ao chão, e todos os que já sabiam que ele estava armado haveriam de ver a prova. Tacteou febrilmente o bolso estreito; a arma que primeiro lhe parecera tão pequena parecia agora, de repente, enorme e pesada. Por ?m, percebeu que o som não provinha desse bolso, mas do seu casaco. Onde sempre guardara o telefone. Óbvio. Pegou nele quando parou de tocar tão abruptamente como havia começado.

Respirou fundo várias vezes, tentou recompor-se antes de veri?car o visor.

Não era Joseph, era a mãe.

Na verdade, não queria falar com ela naquele momento. Nem sequer queria pensar nela; isso apenas serviria para enfraquecer a sua determinação. Mas ela queria falar consigo. Telefonou novamente. Já se sabia como ela era; não ia desistir até que ele atendesse.

Estava alegre e entusiasmada, o que não lhe pareceu nada adequado. O que teria acontecido para ela estar tão alegre?

– Mehran? Onde estás?

– Na cidade.

– Escuta, a Polícia esteve aqui. Eles acreditam em mim.

Mehran não conseguiu compreender o que se estava a passar.

– A Polícia?

– Estiveram aqui. Tens de voltar para casa.

Ele tinha ouvido correctamente, embora continuasse sem entender.

– Não posso, mãe.

– Tens de vir, Mehran. Estiveram aqui três agentes. Desta vez, eles estão a levar isto a sério.

– Mãe, não posso. Encontrei o Joseph. Vou agora ter com ele.

Ouviu-a perder a respiração; como se alguém a tivesse esbofeteado.

– De que estás tu a falar?

– Eu já o localizei. Vou descobrir a verdade. Tenho de fazer isto.

– Volta para casa, Mehran – implorou ela. – Por favor, volta para casa.

– Depois. Quando eu souber. Quando eu souber o que aconteceu. Prometo.

– Mehran! – Ela já estava a gritar; ele afastou o telefone do ouvido. Ainda conseguiu ouvir a súplica dela quando terminou a chamada.

Era errado, sabia disso. Devemos sempre ouvir as nossas mães. Mas não havia escolha, independentemente daquilo que a Polícia pudesse saber ou não.

Durante nove anos, Shibeka tinha esperado que eles a ouvissem.

Durante nove anos, ele esperara por Joseph.

Hoje, ambos os desejos lhes seriam concedidos.

 

Eyer não conseguiu perceber porque é que a mãe estava a gritar. Abraçou-a, tentou consolá-la. Ela quase nem deu pela sua presença. Continuava agarrada ao telefone, a marcar o mesmo número uma e outra vez, mas Mehran parecia rejeitar sempre a chamada. Por ?m, ela deixou-se cair no chão. Eyer tentou abraçá-la com mais força ainda; tudo o que sabia era que não devia largá-la. Nunca.

Finalmente, ela acalmou-se um pouco e olhou para ele. Os seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas não estava triste da maneira que era costume. Isto era diferente, um horror que ele nunca tinha visto. Percebeu que estava a acontecer algo terrível; os seus abraços pareciam muito pouco e?cazes.

– O que aconteceu, mamã?

– É o Mehran. É o Mehran. Ele...

Ela calou-se e abraçou-o, afundando o rosto no seu cabelo. Não sabia se deveria, nem mesmo se poderia, dizer-lhe mais alguma coisa. Como poderia explicar-lhe algo que ela própria mal entendia? Como poderia falar-lhe sobre aquele nome que durante tanto tempo caminhara ao seu lado como um fantasma, a sombra de cuja mera existência ela duvidara?

Joseph.

Mehran ia ter com ele e aquilo ia acontecer de novo, tal como da última vez que o nome de Joseph surgira. Mehran ia desaparecer, tal como o pai. O homem que não fora mais do que um nome ia prejudicar a sua família mais uma vez. Ela sabia disso. E a culpa era sua. Ela era a única que o deixara regressar, quando se recusara a esquecer. Ela mantivera o monstro vivo, alimentara-o, e agora tinha-lhe entregado o seu primogénito. Shibeka agarrou-se a Eyer, pensando se alguma vez conseguiria largá-lo. Achava que não. Mas tinha de fazer alguma coisa, não podia simplesmente desistir.

Reparou no cartão que aquele polícia um pouco obeso lhe tinha dado; ele olhara para si de uma maneira que ela não gostava. Estava pousado em cima da mesa ao lado do telefone.

A Polícia poderia não a ter ajudado no passado, mas agora ela já não tinha mais ninguém. Precisava de o fazer compreender.


– CHARLES MIKAEL CEDERKVIST, nascido em 1966 em Hedemora. Está a morar em Oskarshamn com a sua parceira Marianne Fransson desde 2006. Sem ?lhos. O seu irmão Adam era dois anos mais novo.

Billy dirigia-se à equipa dentro da Sala, onde todos, excepto Vanja, se haviam reunido. Sebastian tinha-lhe telefonado várias vezes, mas sem sorte alguma. Começara a ?car seriamente preocupado. Vanja tinha saído à hora do almoço e ninguém ouvira falar dela desde então. Decidiu que passaria pelo seu apartamento mais ao ?m da noite, mas para já precisava de se concentrar no homem cujo retrato Billy a?xara numa parede inteira graças ao projector. O tal homem que provavelmente tinha matado o seu irmão.

– A família mudou-se para Södertälje quando ele tinha treze anos e o pai conseguiu um emprego na Scania – prosseguiu Billy. – Charles cumpriu lá o serviço militar, candidatou-se à formação para o?ciais e depois passou para a formação especializada. Foi recrutado para o serviço de inteligência militar e segurança em 1998, mas isso é tudo o que sabemos. Eles não nos dizem nada; nem sequer estavam dispostos a con?rmar que Charles trabalha para eles. Se quisermos obter mais informações, temos de seguir a rota o?cial: um pedido formal de uma autoridade para outra.

Olhou para Torkel, que fez um aceno de cabeça para lhe mostrar que entendera. A rota o?cial também signi?cava o percurso lento e burocrático, infelizmente. Billy abriu outra imagem no seu computador portátil e Jennifer tomou a palavra.

– O chefe da inteligência militar em 2003 era o major-general Alexander Söderling. Deixou o Exército em 2008 e mudou-se para os negócios. É o director executivo da Nuntius, uma empresa de relações públicas sediada na Drottninggatan. Ainda não tentámos entrar em contacto com ele.

– Não vale a pena – disse Torkel com um suspiro. – Se a inteligência militar nem sequer con?rma que o Charles trabalha para eles, o Söderling também não nos irá dizer nada.

O telemóvel de Sebastian tocou. Pegou nele, esperando que fosse Vanja, mas era um número que não reconheceu. Ignorou os olhares irritados de todos os restantes quando se levantou para atender. Dez segundos depois, já tinha saído da sala.

– Entrei em contacto com o Investigação Hoje – continuou Jennifer. – O chefe do Lennart Stridh... – olhou para os seus apontamentos –, Sture Liljedahl, disse-me que, tanto quanto sabia, o Lennart já tinha desistido da história da Shibeka. Ele não fazia ideia do que estaria o Lennart a fazer lá em Bråviken, mas prometeu ir veri?car o computador dele e informar-nos se encontrasse alguma coisa.

Antes que ela conseguisse dizer mais, Sebastian abriu a porta de rompante.

– Era a Shibeka Khan. O ?lho dela vai a caminho de um encontro com alguém que se chama Joseph.

– Quem é o Joseph? – perguntou Ursula, não sem razão.

– A Shibeka não sabia, mas ele estava associado ao Hamid e ao Said. A Shibeka acha que o Joseph teve algo a ver com o desaparecimento deles, e o ?lho está absolutamente convencido do seu envolvimento.

– Onde vão eles encontrar-se? – perguntou Torkel, pronto a deixar a Sala imediatamente.

– Ele não lhe disse.

– Poderá ser o Charles? – sugeriu Jennifer. Torkel aquiesceu. Era possível... muito provável, na verdade.

– Nesse caso, temos de o encontrar rapidamente. Billy?

Billy já estava no seu computador.

– Ele ligou a partir de um telemóvel. Posso tentar localizá-lo.

Levantou os olhos para Sebastian.

– Qual é o número dele?

– Como diabo hei-de saber?

– Podes tentar descobrir?

Sebastian telefonou a Shibeka, explicou-lhe a situação e passou o telefone a Billy.

– Olá, chamo-me Billy, preciso do... – olhou interrogativamente para Sebastian.

– Mehran – disse-lhe Sebastian.

– ... número de telefone do Mehran, para podermos tentar localizá-lo.

Tomou nota do número e pediu a Shibeka mais alguns pormenores. Não tardou a saber qual o operador (a 3), que tipo de telefone era (um daqueles com um ecrã onde só é preciso tocar com o dedo) e quem era o assinante (Shibeka Khan); pediu-lhe para ver se conseguia encontrar o recibo. Agradeceu-lhe a ajuda, devolveu o telefone a Sebastian e pegou no seu. Contactou a 3 e deu-lhes um número de três dígitos mais a palavra-passe que provava que estava a ligar-lhes da Polícia. Ao ?m de trinta segundos, já tinha um número IMEI. Entretanto, Shibeka encontrara o recibo. Billy con?rmou que o número IMEI estava correcto, só por precaução, e, em seguida, inseriu os quinze dígitos no seu computador.

– O que é isso? – perguntou-lhe Jennifer; ela tinha contornado a mesa e viera colocar-se atrás dele.

– Cada telemóvel tem um número de identi?cação único. Desde que o aparelho esteja ligado, eu devo conseguir... – Não terminou a frase; toda a sua atenção estava concentrada no ecrã.

– Vou buscar um carro – disse Torkel, saindo da sala.

– Bingo! – Billy recostou-se na cadeira, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça; estava obviamente satisfeito consigo. Sebastian aproximou-se e viu surgir um ponto azul sobre um fundo cinzento.

– Onde está ele? – perguntou, impaciente.

– Espera – disse-lhe Billy, erguendo a mão. Ao redor do ponto azul começou a aparecer um mapa, pouco a pouco, e ?nalmente emergiram nomes e outros pontos de referência. Billy examinou o ecrã e passou o dedo ao longo de uma grossa linha preta que o ponto azul parecia estar a seguir.

– Aquilo é o caminho-de-ferro. Ele está num comboio, nos arredores de Södertälje.

– Isso é onde o Charles Cederkvist cumpriu o serviço militar – informou Jennifer.

Billy fechou o seu computador e ele e Jennifer saíram a correr pela porta.


SHIBEKA TINHA-LHE LIGADO tantas vezes que ele tivera de colocar o telefone no silêncio; agora, em vez de tocar, estava sempre a vibrar. Ignorou-o. Fez um telefonema rápido para Joseph quando o comboio chegou a Östertälje, tal como ?cara combinado. A voz áspera atendeu de imediato.

Ele estaria à sua espera na estação seguinte, no parque de estacionamento logo à saída.

A voz não disse mais nada.

Mehran também não.

Não era necessário.

Pôs-se junto às portas, com uma mão en?ada no bolso. O metal já não estava quente, nem ele. O calor do seu corpo fora substituído por um suor frio que quase lhe causava arrepios.

Era normal ter medo. Não havia nada de errado nisso.

Não ter coragem para agir, isso é que seria errado. Os guerreiros tinham medo, compreendia ele agora. A bravura signi?cava sermos capazes de agir apesar do medo que sentimos.

O comboio começou a abrandar: Södertälje Port. Mehran desceu para a plataforma e viu o edifício vermelho da estação um pouco mais adiante; a saída devia ser ali. Sentiu-se melhor logo que começou a andar; a ansiedade ainda lá estava, mas o movimento tornava-a mais fácil de manusear. Entrou no vasto edifício de tijolo, viu as grandes portas que levavam ao parque de estacionamento. Não sabia o que ia fazer caso Joseph estivesse realmente ali à sua espera. Sentia-se contente por terem combinado encontrar-se num local onde havia outras pessoas; sentia-se mais seguro do que num apartamento. Alguns dos outros passageiros vinham atrás de si, e ele abrandou para os deixar passar. Mehran não tinha pressa, e ter pessoas à sua frente dava-lhe uma certa segurança. Havia cerca de uma dúzia de veículos no pequeno parque de estacionamento. Dois passageiros foram recolhidos por um Ford vermelho logo à entrada enquanto alguns outros se dirigiram para a paragem de autocarro situada a curta distância. Os restantes partiram em diferentes direcções, e daí a pouco Mehran era o único que sobrara. Ficou ao pé da porta, olhando em redor.

Um homem saiu de um BMW preto muito bem polido, com os olhos ?xos em Mehran. Parecia árabe e teria cerca de cinquenta anos; bem constituído, com cabelo grisalho curto e alguns ?os pretos que ainda lhe restavam na barba. Mehran não o reconheceu. Estava vestido com um blusão curto de cabedal negro, calças de ganga e sapatos sem atacadores; a combinação do carro e do blusão dava-lhe um ar de rico. De poderoso. Ou talvez fosse apenas o espírito de Mehran a pregar-lhe partidas. O homem acenou para Mehran, que lhe acenou de volta. Lentamente, começou a caminhar em direcção a Mehran. Perfeito. Joseph viria até si. No entanto, não sabia o que fazer com as mãos. Não se atrevia a tocar na arma; o homem poderia reparar no movimento e perceber que ele estava armado. Deixou pender os braços de lado; não lhe pareceu adequado, mas não encontrou mais nada para fazer. Não queria mostrar-se nervoso, não queria dar a Joseph (se fosse Joseph) qualquer vantagem, de maneira alguma. O homem caminhava despreocupadamente em direcção a si como se não tivesse a mínima preocupação do mundo, como se tivesse vindo buscar um velho amigo. Nem a mínima sugestão de desconforto no seu corpo. Isso irritou Mehran; ele queria que Joseph tivesse medo de si, não o contrário.

– Querias falar comigo – disse-lhe o homem quando chegou a cinco metros de distância. Era ele. Havia qualquer coisa especial em ouvir aquela voz ao vivo, tão perto, e não ao telefone ou numa memória. Mehran ?cou ainda mais confuso sobre o que haveria de fazer com as mãos.

– Tenho algumas perguntas sobre o meu pai – disse ele o mais claramente possível. A sua voz foi ?rme, o que já era alguma coisa.

– O teu pai chamava-se Hamid, não era?

Mehran assentiu.

– Eu mal o conhecia. Ele era amigo de um amigo.

– O Said não era teu amigo. Eu sei que emprestaste dinheiro ao Ra?, o primo dele.

Joseph encolheu os ombros.

– Eu ajudo muitas pessoas. Muitas, muitas pessoas. – Sorriu. – Sou mesmo assim.

– O meu pai desapareceu. Ando a tentar descobrir o que lhe aconteceu.

– Estás a perguntar à pessoa errada.

Mehran perscrutou o olhar de Joseph. Era tão profundo como uma sepultura. Nos olhos de Joseph não havia esperança nenhuma, futuro nenhum. Ele realmente gostaria de ter já a arma na sua mão direita, mas não podia sacá-la, ali não. Havia muitas pessoas à volta. Deu um passo atrás; não conseguiu evitá-lo.

– Estou? – respondeu, tentando mostrar-se con?ante. – Eu acho que você sabe o que lhe aconteceu.

– Não entendo porque dizes semelhante coisa – disse-lhe Joseph, um pouco mais devagar. – Deve haver algum tipo de mal-entendido.

– Não penso assim.

– Estás enganado. Vamos para outro sítio qualquer resolver isto?

– Podemos resolvê-lo aqui.

Joseph riu-se.

– Não. Ou vens comigo ou esquecemos o assunto.

Virou-lhe costas e pôs-se a caminhar de volta para o carro.

– Não terás outra oportunidade – acrescentou.

Mehran não sabia ao certo o que fazer. Não tinha planeado mais do que conhecer realmente Joseph, mas percebia agora que tinha de agir. De dar àquele homem arrogante algo em que pensar. Apanhá-lo de surpresa. Talvez devesse tirar a arma para fora, encostá-la contra a testa de Joseph.

Mas não aqui; precisava de o apanhar sozinho, embora na verdade não quisesse entrar no carro. Era demasiado arriscado. Joseph já tinha chegado ao BMW e virou-se para trás.

– Vens? – disse-lhe ele com irritação.

Talvez devesse desistir, pensou Mehran. Aceitar que não chegaria mais longe. Não ?zera ?gura de tolo, não perdera a coragem; poderia ir-se embora dali com a cabeça erguida. E isso não signi?cava que aquilo tivesse chegado ao ?m; agora ele sabia que Joseph existia e poderia planear o próximo encontro de ambos com mais cuidado.

Mas não fora isso que ele prometera a si próprio.

Prometera a si próprio que descobriria a verdade.

Para o bem de Shibeka.

En?ou a mão no bolso; o metal estava outra vez quente. Estava a postos, e ele também. Começou a caminhar em direcção ao carro, segurando a coronha da pistola.

– Espere aí! – gritou ele. Olhou em volta; o parque de estacionamento estava vazio. Aquilo poderia funcionar. Tinha de funcionar. Se ele conseguisse fazer Joseph entrar dentro do carro com uma arma apontada à cabeça antes que mais alguém aparecesse, talvez funcionasse. O metal na sua mão dava-lhe força. Aumentou a velocidade ao mesmo tempo que tentava mostrar-se o mais descontraído possível, como se tivesse mudado de ideias. Mas talvez não estivesse ainda muito decidido. Queria que a ameaça permanecesse invisível, dentro do bolso e não na sua linguagem corporal.

Joseph contornou o carro para abrir a porta do passageiro. Mehran apertou a pistola com mais força, pronto a sacá-la para fora. Já estava quase a sorrir para consigo. Joseph ia ter uma grandessíssima surpresa.

Estava apenas a um metro quando ouviu o som de vozes. Duas raparigas apareceram por trás do abrigo do autocarro. Tinham cerca de vinte anos, riam e gracejavam enquanto caminhavam em direcção à estação. Instintivamente, Mehran largou a arma e abrandou para que elas pudessem passar. No entanto, se permanecesse ali por demasiado tempo, denunciar-se-ia; Joseph haveria de ?car admirado por ele estar relutante em aproximar-se do carro enquanto as raparigas ainda estavam à vista. Teve de avançar. Joseph sorria-lhe.

– Tu vens aqui e acusas-me – disse-lhe ele em voz baixa, derrubando Mehran com um único soco certeiro. Mehran caiu no chão atrás do carro e aterrou em cima do cascalho. Joseph manteve-se de olho nas raparigas enquanto pontapeava o rapaz com força na cabeça. Duas vezes. O débil gemido cessou após o segundo pontapé. As raparigas não pareceram ter notado fosse o que fosse; continuavam a conversar e a rir-se. Joseph esperou até elas entrarem, e em seguida lançou o rapaz inconsciente para dentro da bagageira do carro. Mehran pesava menos do que ele esperara, o que era bom. Os corpos demasiado pesados eram sempre um problema. Pegou no seu telefone e ligou para Charles, que atendeu imediatamente.

Como sempre.


LEVAVAM AS LUZES AZUIS acesas; Jennifer ia a conduzir. Tinham acabado de chegar a Essingeleden e a velocidade deles aproximava-se dos 140 quilómetros por hora. Torkel ia agarrado à alça por cima da porta, como sempre; isso fazia-o sentir-se mais seguro. Teria preferido que fosse Billy a conduzir; ele era o melhor da equipa quando se tratava de alta velocidade, mas ia no banco de trás debruçado sobre o seu computador portátil, a seguir o sinal do telemóvel de Mehran Khan. Torkel tinha acabado de falar com Britta Hanning da Säpo; desta vez, ela mostrara-se um pouco mais cooperaante. Virou-se para Billy.

– Eles conhecem alguém chamado Joseph. A Britta não se dispôs a dar-me o nome verdadeiro, mas, aparentemente, trata-se de um certo amigo deles.

– Um amigo? – Jennifer ?cou curiosa.

– Um informador. Alguém que dá indicações aos serviços de segurança sobre os extremistas e outros grupos.

Billy inclinou-se para a frente; mal podia acreditar no que ouvia.

– Então nós estamos a ir atrás de um dos nossos «amigos»?

– Parece que sim.

O carro balançou quando ultrapassaram um camião polaco articulado. Torkel apertou a alça com mais força, mas Jennifer permaneceu completamente impassível.

– Mas, se ele ajudou a Säpo, talvez tenha ajudado outras organizações, como a inteligência militar, por exemplo – disse ela enquanto voltava a mudar de faixa de rodagem.

Torkel assentiu. Isso não estava fora de questão. Nesta fase, nada estava fora de questão no que dizia respeito a este caso. Os tempos tinham mudado e hoje em dia a luta contra o terrorismo e o extremismo de?nia a agenda dos que estavam encarregados de defender o país. De súbito, lutavam contra um inimigo invisível que não usava uniforme, e as regras de empenhamento tinham mudado. Os segredos eram maiores, os métodos menos re?nados. A sociedade aberta tornara-se uma vítima e o veneno gerado por esses segredos acabara por extravazar. Pensou no menino de quinze anos que, de alguma forma, acabara metido no meio daquela confusão, um menino que tinha perdido o seu pai. Era a isso que os segredos tinham levado: a tragédias familiares. Voltou-se novamente para Billy.

– Ainda estás a apanhar o sinal do telefone do Mehran?

Billy abanou a cabeça.

– Não, perdi a ligação ao servidor durante um bocado. A última posição foi à porta da estação de Södertälje Port. Vou pedir à Polícia local que envie um carro para lá.

Torkel ouviu os dedos de Billy a voarem sobre o teclado. «Estou a ?car velho», pensou ele. Lembrou-se de quando era preciso pegar no telefone para falar com os colegas, de quando era preciso usar cães para procurar pessoas. Agora Billy estava sentado na parte de trás do carro a tratar disso tudo. Enquanto estivesse ligado ao servidor.

– Devemos chegar lá daqui a quinze minutos – disse Jennifer. O estômago de Torkel não estava mesmo a gostar disto.

– Ele já não está lá – anunciou Billy. – Está a dirigir-se para a E20.

– Carrega no acelerador – disse Torkel a Jennifer.


ESTAVA DE VOLTA. Almnäs. Södertälje.

Tinha cumprido ali o serviço militar obrigatório. Ao princípio, pensara naquilo como um mal necessário, mas rapidamente passara a adorá-lo. Não sabia ao certo porquê; havia qualquer coisa nas rotinas, na disciplina, no rigor, que ele conseguia abraçar quando se dispunha a fazê-lo, contrariamente à maioria dos seus camaradas de recruta, que tratavam tudo aquilo como um jogo. O lado físico do treino atraiu-o de imediato, mas com o passar do tempo fora ?cando cada vez mais fascinado pelas estratégias, a forma de pensar usada para enganar e derrotar o inimigo. Descobriu duas coisas acerca de si próprio: uma predilecção pela vida militar e um instinto competitivo, o que para si foi uma surpresa completa. Ele e o irmão tinham-se envolvido em vários desportos enquanto cresciam, mas nunca tinham sido obcecados por ganhar. Só quando ele fora parar ao Exército. Era como se não conseguisse empenhar-se totalmente até que se tratasse de uma questão de vida ou de morte. Começara a treinar como um louco. A cuidar do corpo. A amá-lo, como um desportista de elite que tivesse de ser capaz de con?ar nele a ?m de alcançar os objectivos. As armas eram as ferramentas do seu ofício; aprendeu a usá-las todas, de forma decidida e com respeito. A meio do serviço obrigatório já se tinha candidatado à formação para o?ciais, e claro que fora aceite. Ele tinha boas lembranças deste local que transformara a sua vida.

Mas nem todas eram boas.

A segunda vez que aqui estivera fora em Agosto de 2003. O regimento tinha sido dissolvido seis anos antes. As Swedint, as Forças Armadas da Suécia, continuavam a operar ali, mas a maior parte daqueles edifícios quadrados e impessoais que datavam dos anos 1970 estavam vazios e degradados.

Alexander ordenara-lhe que fosse a Almnäs; Joseph tinha-lhes indicado dois homens afegãos, e os americanos queriam falar com eles. Qualquer actividade em solo sueco exigia uma presença sueca.

Um Volvo anónimo estava estacionado à porta do armazém quando ele chegara. O homem que estava em pé ao lado do carro atirou o cigarro para o chão e veio ao encontro de Charles. Trocaram um aperto de mão; Charles disse o seu nome, o outro homem não. Charles ?cou impressionado por o americano parecer tão jovem. Bem constituído, daquela maneira que Charles imaginava um estudante universitário cujo talento especial fosse o futebol americano. Cabelo ruivo. Origens irlandesas, porventura.

O outro americano estava lá dentro; também não lhe disse o seu nome. Um pouco mais velho, mais magro, mais musculoso. Um rosto comprido, o nariz um pouco grande demais, cabelo penteado para um lado, uma franja a tombar sobre uma das lentes dos óculos de aviador que ele nunca tirava.

Dois homens estavam deitados no chão, de costas, com as mãos e os pés acorrentados a uns postes de metal aparafusados ao chão, os braços tão esticados quanto possível acima das suas cabeças. Contorciam-se e reviravam-se, tentando libertar-se enquanto falavam sem parar, pedindo para serem libertados, insistindo que aquilo era um erro, gritando, exigindo respostas.

Não obtiveram nenhumas.

Os homens não tinham qualquer roupa para além das cuecas. Charles não conseguiu ver-lhes os rostos; estavam cobertos com toalhas. Sem trocar uma única palavra, o homem dos óculos escuros pegou num balde de água e começou a derramá-lo sobre o tecido espesso que cobria o rosto de um dos homens que estavam no chão. O corpo dele estremeceu num poderoso re?exo de as?xia. Calou-se de imediato. O seu companheiro pareceu sentir que acontecera algo e gritou um nome.

Hamid!

O americano continuou a despejar água para cima da toalha. O homem que aparentemente se chamava Hamid puxou as suas correntes, tentando escapar. Charles viu a pele dele rasgar-se contra as pulseiras de metal e os pulsos de Hamid começarem a sangrar. O ?uxo de água parou. O homem de cabelo ruivo agachou-se e puxou a toalha para trás. Hamid engasgou-se ao tentar respirar; estava quase a hiperventilar e o medo brilhava-lhe nos olhos. O seu olhar ?xou-se no de Charles e ele começou a pedir-lhe ajuda. O homem ruivo bateu-lhe no rosto e ele parou de falar. Em seguida começaram as perguntas.

Onde é que ia acontecer?

Quando é que ia acontecer?

Quem mais estava envolvido?

Hamid claramente não entendia. Limitou-se a abanar a cabeça, conseguiu dizer algo que soou como «enganado» e «por favor» antes de a toalha lhe voltar a ser colocada. Gritou, e o seu companheiro fez o mesmo.

Desta vez, ambos os americanos pegaram num balde e derramaram água sobre os dois homens ao mesmo tempo. Impassíveis, implacáveis.

Charles recebeu ordens para reabastecer os outros baldes. Fez o que lhe disseram. Dava-lhes os baldes cheios quando eles ?cavam vazios. Voltava a enchê-los.

Agachar-se. Retirar a toalha.

Onde? Quando? Quem mais?

Não obtiveram quaisquer respostas.

A certo ponto, Hamid, em pânico, fez uma tentativa para se libertar, e Charles ouviu os ossos do pulso dele quebrarem-se quando se lançou o mais longe que pôde para a direita, a ?m de tentar escapar ao ?uxo inexorável da água.

Onde? Quando? Quem mais?

Charles não fazia ideia de há quanto tempo aquilo já decorria quando lá chegou. Posicionou-se por cima da cabeça de um dos homens, com as pernas bem afastadas, e inclinou o balde. A água escorreu para o tecido num ?uxo lento mas constante, impedindo e?cazmente que passasse algum ar.

– Quando se pensa que eles já não aguentam mais – disse-lhe o homem dos óculos de aviador –, continua-se por mais vinte segundos, e a seguir por mais dez.

Uma e outra vez.

Os dois homens estavam a sangrar bastante dos pulsos e dos tornozelos, e a mão esquerda de Hamid ?cara pendurada num ângulo muito estranho. Tinham parado de gritar. Já não falavam. Já não imploravam. Nem sequer tinham forças para sussurrar. Limitavam-se a olhar, com uns olhos que já estavam mortos, de cada vez que as toalhas eram removidas e alguém lhes fazia perguntas. A respiração deles tornou-se cada vez mais débil; pouco tempo depois, mais não era que uma série de soluços.

Quando? Onde? Quem mais?

Uma e outra vez.

Fizeram um intervalo. Foram lá para fora fumar. Nenhum deles disse muito. Voltaram para dentro e continuaram.

Said morreu primeiro; parou simplesmente de respirar. Afogamento a seco, declarou o homem ruivo antes de tentar reanimá-lo com respiração boca-a-boca. Sem sucesso. O outro homem debruçou-se sobre o corpo inerte e iniciou uma massagem cardíaca enquanto o colega continuava a insu?ar oxigénio naqueles pulmões dani?cados. Sem sucesso. Charles começara a sentir uma sensação de revulsão. Isto era mau. Realmente mau. Nenhum daqueles dois afegãos era cidadão sueco, mas um deles, o que já morrera, tinha uma autorização de residência permanente. Os métodos extremos de interrogatório já eram su?cientemente maus, mas pelo menos podiam ser justi?cados; a sociedade aberta estava sob ataque. A democracia tinha de ser protegida e a presente situação exigia uma abordagem dura. Mas isto? Como é que eles iam corrigir isto, foda-se?

Os americanos desistiram das suas tentativas de reanimar Said e regressaram a Hamid. Charles supôs que fossem soltá-lo, parar o interrogatório; parecia-lhe óbvio que aqueles dois homens não sabiam nada. Mas não. Os americanos puxaram-lhe a toalha e viraram a cabeça de Hamid para a esquerda de modo a que ele pudesse ver o amigo. Um fraco gemido foi tudo o que ele conseguiu emitir antes de voltarem a colocar-lhe a toalha e recomeçarem.

Durou mais trinta minutos.

O homem de cabelo ruivo e o homem dos óculos de aviador saíram do país. Charles reportou a Alexander que Hamid e Said nunca seriam encontrados. Se eles pudessem simplesmente encerrar a investigação de pessoas desaparecidas que a Polícia de Solna havia iniciado, tudo estaria bem.

Charles conhecia muito bem o homem certo para esse trabalho, ou julgava conhecer. Mas Adam desiludira-o. Não compreendera. Não quisera compreender.

Em vez de simplesmente assumir o caso e enterrá-lo, começara a investigar. Tinha ido visitar as famílias, inquirira o que se andava a dizer nos Negócios Estrangeiros. Alexander conseguia garantir que Adam não chegaria a lugar algum, claro, mas Adam continuava a ser um problema.

Charles ?cou surpreendido. É certo que o seu irmão sempre tivera uma forte noção do que era certo e errado – fora por isso que se juntara à Polícia –, mas Charles julgara que ele se deixaria disso quando estava em jogo a segurança nacional. Havia uma ameaça constante à sociedade aberta. Pelo amor de Deus, a ministra dos Negócios Estrangeiros tinha sido assassinada dentro de um grande armazém no Outono[1]!

Haviam tido longas conversas. Adam queria saber mais, queria saber tudo. Charles contara-lhe ninharias, mas Adam não se mostrara satisfeito. Dissera a Charles que tencionava chegar ao fundo de tudo aquilo e que, se o que ele pensava que tinha acontecido viesse a con?rmar-se, não seria capaz de fechar os olhos. Ainda que eles fossem irmãos. Charles pedira-lhe para esperar, para largar aquilo por uns tempos. Pensar melhor. Adiar por uma semana.

Ele tinha reservado um refúgio de montanha, uma cabana de troncos em Jämtland. Adam não poderia ir até lá e pensar melhor nas coisas? Se ele sentisse o mesmo quando regressasse, então poderia seguir em frente e fazer o que julgava correcto. Uma semana. Colocar alguma distância entre ele e a situação poderia ser uma coisa boa – a?nal, ele adorava as montanhas, não era?

Adam tinha ido.

Alguém telefonara a Patricia Wellton. Charles não sabia se o responsável pelo estabelecimento desse tipo de contacto tinha sido Alexander ou alguém no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas, no caos que se seguira ao assassinato de Anna Lindh, ele supôs que não tivesse sido o secretário dos Negócios Estrangeiros em exercício.

Charles tinha ido lá ter com Patricia após os acontecimentos, para que ela pudesse apresentar o seu relatório. Quando ela ?nalmente chegara, com várias horas de atraso, estava furiosa. Ninguém lhe tinha dito nada sobre uma mulher e dois ?lhos. Como diabo haveria de fazer o seu trabalho quando as informações sobre o alvo eram imprecisas?

Adam. O estúpido, estúpido Adam, que amava tanto a sua família. Charles compreendera logo: Adam tinha levado a família consigo. Lena, Ella e Simon.

Lena tinha sido da mesma turma de Charles no liceu, em Södertälje. Eram bons amigos. Ou ela era sua amiga, pelo menos; estava apaixonado por ela. Nunca lho dissera; tinha medo de a perder para sempre se lhe desse o menor indício dos seus sentimentos. Ela passava muito tempo em casa deles. Era dois anos mais velha do que Adam; naquela idade, as raparigas supostamente pensam que os rapazes mais novos são infantis, imaturos e desinteressantes, mas Lena não era como as outras raparigas. Passara a andar com Adam durante o seu último ano na escola. Ele tinha dezassete anos, ela dezanove. Charles era forçado a vê-los aos dois, enroscados em cima do sofá, beijando-se e abraçando-se enquanto viam televisão. À noite conseguia ouvi-los através da parede do seu quarto, mas mantivera-se forte; aquilo era uma paixão adolescente. Ninguém esperava que durasse. Mas durou.

Ano após ano após ano.

Casaram-se em 1990, quando Adam tinha vinte e dois. Tiveram Ella cinco anos mais tarde, e Simon dois anos depois disso. Uma familiazinha feliz. Mudaram-se para Estocolmo, e Charles para Oskarshamn. Encontravam-se muitas vezes, gostavam de passar tempo juntos. Charles era o padrinho de Simon; adorava o seu sobrinho e a sua sobrinha, mas nunca superara a sensação de que Adam tinha ?cado com algo que lhe pertencia. Uma sensação errada e totalmente irracional, claro; se Adam tivesse sabido o que ele sentia por Lena, nunca teria avançado. Charles estava certo disso.

Adam era um homem bom, agradável.

Patricia Wellton.

Tudo ?cara preto quando percebera que ela tinha matado Lena e as crianças. Eles não deviam morrer. Deviam viver. Quem sabia o que poderia ter acontecido no futuro? Possivelmente nada. Não fora por isso que ele quisera que Adam fosse até Jämtland. Fora porque não tinha escolha; era uma questão de segurança nacional, um sacrifício que era preciso fazer para proteger uma democracia frágil.

Lena e as crianças nunca deviam morrer.

Mas morreram.

Patricia tinha-os matado, e por isso ele matara Patricia.

Charles sobressaltou-se. Aproximava-se um carro. O feixe dos faróis varreu os edifícios desertos quando virou para lá. Quanto tempo estivera ele ali em pé, perdido nos seus pensamentos?

Pertencia àquele lugar.

Devia ter escolhido outro sítio. Havia demasiadas memórias. Olhou para o relógio, depois espreitou lá para fora. Joseph tinha chegado. Estava na hora de mais outra conclusão.


O ANTIGO POSTO de sentinela tinha sido abandonado há muito tempo. As janelas estavam partidas e alguém tinha rabiscado «Luta armada», muito apropriadamente, nas paredes em decomposição. Joseph passou devagar pela cancela levantada e prosseguiu em direcção à colina. Até o asfalto fora esquecido, tinha enormes buracos e ervas daninhas a crescerem através das rachas. Quando chegou ao cimo da colina, viu as casernas que se estendiam diante de si. Virou para lá e foi estacionar o mais longe possível. Olhou à volta, mas não conseguiu ver ninguém. Se os edifícios já tinham passado há muito do seu melhor, isso não era nada comparado com esta área. Havia lixo e cacos de vidro por toda a parte, todas as superfícies estavam cobertas de gra?tti e até se avistava uma quantidade de carros queimados. Era, na verdade, o lugar perfeito para enterrar pecados antigos. Noutros tempos, os jovens vinham treinar ali para defenderem o seu país; agora aquilo era apenas uma cidade-fantasma. Joseph desligou o motor, e o silêncio foi total.

Nem um som saía da bagageira. Óptimo. Teria sido difícil se o miúdo começasse a espernear e a berrar. Já lhe sucedera o mesmo uma vez na Jordânia, quando era mais novo, e não tinha sido nada fácil conduzir o carro enquanto isso acontecia. Ele já tinha dores de cabeça su?cientes, sobretudo com aquele rapaz a persegui-lo ao ?m de todos estes anos. Teria feito mais sentido se alguém começasse a fazer perguntas logo após os dois homens terem desaparecido. Nessa época, Joseph ?cara muito preocupado, mas, como o passar dos anos, sentira-se cada vez mais seguro, e por ?m tinha mais ou menos esquecido aquilo. A vida continuava. As suas apreensões foram diminuindo a cada dia, até se tornarem tão diminutas que nem faziam sentir a sua presença.

Mas ele percebera agora que as crianças que ?cam para trás não esquecem. Provavelmente, o seu desejo de compreender tornava-se mais forte à medida que iam ?cando mais velhas, e um dia lá estavam elas, a fazer perguntas. Se ao menos tivessem algum nome para investigar.

E o rapaz, evidentemente, tinha.

Alguém devia ter falado.

2003 tinha sido um período louco para ele. Toda a gente andava desesperada para obter informações: os americanos, os britânicos, os suecos, os egípcios. Queriam sempre mais e mais. Era como se achassem que a pequena Suécia estava cheia de potenciais terroristas e essa crença os ?zesse lançar dinheiro e recursos em todas as direcções. Ele achara-se mesmo no meio dessa loucura e rapidamente descobrira qual era o seu papel, e de bom grado. Pessoas importantes começaram a ouvi-lo. Os seus sussurros traziam-lhe poder e dinheiro. Era uma sensação embriagante, a de ter as vidas dos outros nas mãos, bastando para isso indicá-los.

Mas com o dinheiro vinham as exigências. Eles queriam nomes. O tempo todo. Mais e mais. Eram insaciáveis e paranóicos. Porque é que essa pessoa ia viajar para aquele lugar? Quem era essa pessoa com quem se ia encontrar lá? O que estava o imã a fazer na Suécia? Quem o convidara? Poderia ele tentar aproximar-se desse grupo especí?co?

Ele mantinha-os contentes enquanto ia enchendo os bolsos com dinheiro.

As coisas agora eram diferentes. Eles já não con?avam nos informadores individuais da mesma maneira. Tinham re?nado os seus métodos; a informação provinha de uma variedade de fontes e era veri?cada com mais cuidado. Coordenada. As regras tinham mudado e havia menos dinheiro disponível. Usavam os seus próprios agentes para se in?ltrarem entre os oponentes enquanto ambos os lados tentavam encontrar novas formas de se combaterem um ao outro. Os americanos usavam aviões não tripulados para lançar bombas e mísseis enquanto o inimigo dormia e os extremistas encontravam novos países onde operar. Era como um circo ambulante, a viajar constantemente de um país pobre para o seguinte.

Joseph já percebera há muito que os seus dias de glória tinham chegado ao ?m. Em breve precisaria de encontrar outra coisa qualquer. O pior era que muitos dos seus potenciais empregadores haviam desaparecido nos últimos anos. Khadda? fora-se e Mubarak também. Os líbios tinham sido os melhores, superiores a todas as potências ocidentais em conjunto. Eram completamente paranóicos e estavam dispostos a pagar por informações que eram muito fáceis de encontrar.

Ali foi encontrar-se com exilados líbios.

Tarek tinha mostrado interesse neste grupo ou naquele grupo.

Mahmed tinha falado sobre os ?lhos de Khadda? em termos negativos.

Ele conseguira trocar esses disparates banais por dinheiro. Costumava pensar que noutros tempos tivera o seu próprio mar, onde pescava pessoas e informações e as vendia na sua própria peixaria.

A maioria dos que ele vendera eram culpados.

Hamid e Said não eram.

Tinham sido vendidos porque ele precisava de mostrar serviço e porque eles o haviam humilhado. Esforçava-se; estava a ser-lhe difícil encontrar novos nomes. Charles já conhecia todos os que ele referira. O dinheiro tinha secado. Ele precisava de alguém para vender, de preferência alguém realmente perigoso.

Parecera-lhe ser a solução perfeita.

Tinha dito a Charles que Hamid e Said estavam envolvidos no planeamento de um novo ataque em solo americano. Charles nunca tinha ouvido falar deles. Ficara com novos nomes para trabalhar, e Joseph obtivera a sua vingança.

Hamid e Said tinham ido a sua casa humilhá-lo. Tinham-no roubado. Não pareciam compreender quem ele era, que tipo de contactos tinha. Mas ele mostrara-lhes.

Mais tarde, percebeu que tinha sido uma coisa estúpida de se fazer. Os que lhe pagavam começaram a duvidar de si. Hamid e Said não tinham levado a lugar nenhum. Claro. Mas ele aprendera com o seu erro; não voltou a cometê-lo. Pensara que aquilo estava esquecido, até o rapaz aparecer.

Mais um erro para corrigir, pensou ele. Saiu do carro e contornou-o até chegar à bagageira. Talvez devesse deixar o rapaz onde ele estava até que Charles chegasse. Bastava que lho entregasse e se fosse embora. Era assim que funcionava; ele nunca tivera sangue nas mãos. Limitava-se a fazer entregas.

Acendeu um cigarro e olhou para o que em tempos tinha sido uma carreira de tiro. Agora era um campo coberto de mato, mas os suportes de metal enferrujado em que os alvos eram outrora a?xados ainda lá estavam.

O rapaz já devia ter recobrado os sentidos. Ele aproximou-se e escutou. Nada. Joseph ?cou um pouco preocupado; não queria entregar um corpo morto. Abriu a bagageira para ver se o rapaz estava bem.

A bala atingiu-lhe o ombro direito logo abaixo da clavícula, e ele caiu de costas, completamente apanhado de surpresa. Não lhe doeu tanto quanto esperava, mas sentiu o sangue encharcar-lhe a camisola. O rapaz saltou para fora e colocou-se sobre ele, brandindo o que parecia ser uma arma de brincar. Disparou outro tiro, mas Joseph atirou-se para um lado e ele falhou. Lançou-se para a frente e agarrou o rapaz com a sua mão esquerda; a mão direita não parecia estar a funcionar. Arrancou-lhe a arma da mão e ela caiu no chão. O rapaz conseguiu pontapear o ombro ferido de Joseph. Foi incrivelmente doloroso, e ele caiu, gritando. Com as forças que lhe restavam, alcançou a arma e puxou-a para si. Ouviu o som de pés em corrida, e, quando conseguiu pôr-se de joelhos, viu o rapaz a correr pelo campo em direcção à carreira de tiro.

– Eu já te apanho, meu sacaninha! – berrou Joseph. – Tal como ?z ao teu pai!

Pôs-se em pé. A dor no seu ombro estava agora muito pior e era-lhe difícil fazer qualquer movimento com a mão direita. Apanhou a pequena arma com a mão esquerda; não parecia grande coisa, mas teria de servir. De repente, ouviu atrás de si uns passos sobre o cascalho e os vidros partidos. Levantou a arma e virou-se para trás. Era Charles. Baixou a arma e apontou para o campo.

– Ele fugiu.

– Eu vi-o.

Charles não se mexeu. Joseph não conseguiu entender.

– Ele vai a fugir. – Apontou para o seu ombro ensanguentado. – Tem de me ajudar.

Charles fez um gesto de assentimento e tirou da cintura uma grande pistola automática preta. Parecia muito mais útil do que aquela que Joseph empunhava.

– Claro que vou ajudar-te – disse-lhe ele enquanto destravava o fecho de segurança. Avançou para o campo e Joseph soltou um suspiro de gratidão. Quando Charles ia a passar por ele, parou.

– Mas só para que saibas... esta é a última vez.

Encostou a pistola contra a cabeça de Mohammed Al Baasim e disparou. Duas vezes.

Ainda o corpo mal caíra no chão e já Charles se pusera a caminho, atrás de Mehran.

Ele não poderia ter ido muito longe.


FICARAM PRESOS no trânsito pouco antes da ponte Södertälje. Os trabalhos na estrada tinham reduzido a via a uma pista, e Jennifer demorou vários minutos a ziguezaguear entre os carros e passar. Todavia, não foi esse o seu maior problema. Billy tinha perdido o sinal do telemóvel de Mehran. Torkel começava a ?car enervado.

– Onde foi a última vez que o viste? – perguntou ele com rispidez.

– Na E20, mas ou alguém desligou o telefone ou estão numa área com má cobertura de sinal. Não sei.

– Foda-se!

Torkel sabia que Billy não tinha culpa, mas aquilo era um desastre; estavam tão perto e tinham-lhes perdido o rasto. Jennifer conseguiu novamente ganhar velocidade e olhou para ele com alguma incerteza.

– Para onde é que eu vou?

– Segue em frente para a E20. – Voltou-se para Billy. – Mostra-me o mapa; onde é que ele estava quando o perdeste?

Billy virou o ecrã ao contrário e indicou-lhe.

– Se o telefone morreu e eles continuaram na E20, já os perdemos. Esperemos que tenham saído da auto-estrada – disse Torkel.

Billy entendeu o raciocínio dele.

– Pronto, então limitamo-nos a adivinhar onde é que eles saíram?

– Almnäs é aqui para estes lados – disse Jennifer sem tirar os olhos da estrada. – Foi onde o Charles cumpriu o serviço militar – esclareceu ela.

Torkel fez um gesto de assentimento com a cabeça e olhou novamente para o mapa. Floresta, lagos e aquele local com um nome estranho. Almnäs. A poucos quilómetros do ponto que Billy acabara de indicar.

– Vale a pena tentar – disse Billy. – É o melhor que temos.

– Manda vir o helicóptero – disse Torkel. – É uma grande área; vamos precisar de alguma ajuda.

– Estou a tratar disso – disse Billy, ainda a olhar para o ecrã. Nenhum ponto azul. Apenas podiam esperar que tivessem acertado e que chegassem lá a tempo.


MEHRAN OUVIU os dois tiros e lançou-se para dentro de uma vala cheia de lama. Ao princípio pensou que alguém estava a disparar contra si, mas, quando levantou cautelosamente a cabeça para espreitar, viu outro homem a caminhar na sua direcção por entre o mato e a desvanecente luz do crepúsculo. Vestia roupas escuras e tinha cabelo louro e curto; parecia musculado e em boa condição física. Um sueco, presumivelmente. Mehran nunca o vira antes. Ele parecia trazer alguma coisa na mão – uma arma? Percebeu que não poderia ser outra coisa quando avistou o corpo contorcido e imóvel de Joseph estendido ao lado do carro preto.

Tornou a deslizar para dentro da vala, em pânico. O frio da terra e da lama depressa penetrou nas suas roupas, mas ele tinha coisas mais importantes em que pensar. Precisava de sair dali. Rapidamente. Havia um maciço de árvores a curta distância e a ?oresta estaria talvez uns cinquenta metros mais adiante. Era a sua única possibilidade; tinha de fugir daquela área aberta e ir para o meio das árvores, onde haveria muito mais lugares para se esconder. Não se atreveu a veri?car até onde o homem já chegara; começou simplesmente a rastejar, esperando ser capaz de chegar perto das árvores antes de ter de abandonar a protecção da vala. A água estava viscosa e fedorenta e as partes do solo que não estavam molhadas encontravam-se cobertas de ervas altas tão a?adas como lâminas, o que lhe di?cultava o progresso. Não conseguia ?rmar-se; os seus pés estavam sempre a escorregar na lama e a luta era exaustiva. De repente, percebeu que, fosse como fosse, não seria boa ideia deslocar-se tão depressa, pois as ervas altas iriam balouçar, mostrando ao homem o lugar exacto onde estava. Encurralado. O homem chegaria sem dúvida à vala antes que Mehran alcançasse o arvoredo. Ficaria ali deitado no meio de toda aquela porcaria, e o homem ia encontrá-lo. Tinha de assumir um risco maior se quisesse safar-se. Tinha de se levantar e correr, esperando que o homem demorasse algum tempo a avistá-lo naquela semiobscuridade. Endireitou-se um pouco, preparou-se para partir. Foi então que ouviu o homem chamá-lo, muito mais perto do que Mehran esperava. E, o que era pior, ele sabia o seu nome.

– Anda cá para fora, Mehran! – gritou, tão alto que ecoou através do campo. – Eu sou da Polícia!

Mehran espalmou-se contra o chão, fez-se tão pequeno quanto podia.

– Está tudo bem, Mehran. Eu quero ajudar-te.

A cabeça de Mehran estava a andar à roda. Não entendia nada daquilo. Como é que o homem sabia quem ele era? Seria isso que Shibeka quisera dizer quando lhe falara da Polícia? Eles teriam vindo ajudá-lo? Mas como poderiam tê-lo encontrado ali, no meio de um campo? Nem mesmo ele sabia onde estava.

Não podia ser verdade.

Era impossível.

Além disso, porque é que um agente policial dispararia duas vezes sobre Joseph?

Começou a gatinhar de novo, tentando usar as pernas para se impelir para diante. Era incrivelmente difícil. A lama afundava-se e não lhe dava nenhum ponto de apoio. O corpo doía-lhe e a sua cabeça latejava. O homem continuava a gritar, cada vez mais perto. Mehran tentou ignorar a voz, bloqueá-la. Usá-la para calcular a que distância se encontrava do homem, nada mais. Continuou a avançar, mas isso tornava-se cada vez mais difícil. Ele não estava inteiramente recuperado do golpe que Joseph lhe assestara e sentia-se tonto, fraco e doente. Mas não podia desistir; precisava de encontrar a força, a adrenalina. O instinto de sobrevivência.

De repente, os gritos tornaram-se mais fracos; o homem estava a afastar-se. Isso deu-lhe um novo surto de energia. Mehran continuou a avançar, rastejando, rastejando; usando os dedos e as unhas para se arrastar, empurrando com as pernas, todo o seu corpo a gritar de dor. Estava a fazer progressos, metro a metro. Já não ouvia o homem há algum tempo; esperava que ele estivesse ainda a deslocar-se na direcção oposta. Já nem sequer tinha forças para continuar à escuta.

Por ?m, viu o maciço de árvores mesmo à sua frente. Só um pouco mais adiante. Decidiu correr os últimos metros, penetrar no meio das árvores e em seguida na segurança da ?oresta. Ia correr e correr sem nunca mais parar, para longe daquela vala fedorenta, daquelas ervas que lhe tinham rasgado o corpo em pedaços. Só um pouco mais para diante, disse a si mesmo. Só um pouco, um nadinha mais.

Tu consegues fazê-lo, Mehran. Tu consegues fazê-lo.

Saltou para fora da vala; as suas pernas não cederam, o que o surpreendeu. No entanto, continuava a sentir-se tonto e não tardou a perder o equilíbrio. Caiu, tornou a levantar-se. Continuou a avançar. Recuperou o controlo do seu corpo. Pelo menos já não tinha necessidade de usar os braços doridos, e quando ganhou velocidade sentiu que havia mais poder nas suas pernas do que pensara. Ouviu o homem gritar-lhe para parar, mas Mehran não se virou para trás. Simplesmente correu e correu, como prometera a si próprio. Ultrapassou o maciço de árvores e continuou, atravessando o campo por trás delas. Agora já não faltava muito. A ?oresta estava talvez a uns trinta metros de distância.

Ainda nenhum som de tiros.

Ele ia mesmo conseguir.

Ia mesmo conseguir.

Só viu o buraco quando já era tarde demais. Era um tipo qualquer de defesa militar, uma trincheira ou porventura um talude. Tentou saltar sobre ele, mas voltou a perder o equilíbrio quando chegou ao outro lado e aterrou lá dentro. Caiu desajeitadamente sobre um pé e gritou de dor quando este se dobrou e quebrou com um ruído horrível. Tombou no fundo da trincheira, tentando não gritar de novo. Não queria fazer nenhum ruído, mas não conseguia evitar. Estava a chorar, embora não quisesse, a choramingar de dor, apesar de saber que não devia fazê-lo.

 

Charles viu o rapaz cair. Tinha andado por ali muitas vezes em exercícios e sabia como era difícil ver a vala quando se ia a correr; no escuro, era praticamente impossível. A ideia era essa, na verdade; o inimigo não deveria vê-la. Um dos seus homens cometera certa vez o mesmo erro quando ele estava a liderar um pelotão; aqueles tempos pareciam pertencer a uma vida diferente, quando o pior que poderia suceder era que alguém se magoasse durante o treino.

Aumentou a velocidade; conseguia ouvir o rapaz a chorar. Parecia estar ferido, e provavelmente ainda se encontraria lá em baixo quando Charles chegasse à vala, mas não havia garantias. O rapaz parecia ser de dura estirpe. Tal como o seu pai.

 

Sentiu-se como se já estivesse deitado numa sepultura. As ásperas paredes de cimento da trincheira, cobertas de musgo, formavam um rectângulo, e lá em cima ele avistava o céu negro, salpicado por uma ou outra estrela, agora que o Sol já se tinha ido. Mehran quase sentiu a sombra do homem cair sobre si quando ele avançou silenciosamente. Conseguiu discernir uma silhueta, uma mancha mais densa de escuridão, postada lá em cima a olhar para si. Mehran viu-o erguer lentamente a arma.

Esta era a sua oportunidade de descobrir a verdade. Não com todos os pormenores, talvez, mas os pontos principais. A morte do pai estava ligada às coisas que ele não entendia de todo, mas existia uma ligação. O inexplicável sempre tinha sido lógico; só que ele e Shibeka não haviam tido acesso a todas as peças do quebra-cabeças. Agora, ele tinha a peça mais importante. O seu pai tinha morrido; fora assassinado por algum motivo. Não se havia afastado da família; não tinha deixado de os amar e partido.

Mehran quase se sentiu contente. Era o que havia de estranho na morte, pensou. Espera-se vir a ter medo dela, mas em vez disso ela traz-nos o conhecimento de como as coisas eram realmente.

Ia ser muito difícil para a sua mãe. Ela haveria de culpar-se a si mesma. Fora ele que tivera a opção mais fácil. Essa era outra verdade: ser-se deixado para trás era a coisa mais difícil de todas. Já sabia isso.

Seguiria os passos do pai mais cedo do que esperara. Não tardariam a reunir-se, ele e Hamid. Desejava-o, e ao mesmo tempo não o desejava, mas a escolha já não era sua.

No entanto, Mehran não tinha qualquer intenção de morrer a chorar. Não queria dar àquele homem essa satisfação, mas, por mais que tentasse conter as lágrimas, simplesmente não conseguia. Chorava de medo, mas isso não o envergonhava. Ter coragem signi?ca agir mesmo quando se está com medo.

– O que aconteceu ao meu pai? – gritou ele para a escuridão. O homem não respondeu.

Não queria.

Não podia.

Charles baixou os olhos para o rapaz, estendido entre as pedras e os galhos. Parecia ter partido a perna, mas, mesmo assim, recusava-se a desistir. Estava a chorar, mas ao mesmo tempo olhava para Charles com uma hostilidade indisfarçável. Com força. Isso sempre o impressionara. O rapaz era muito novo, a bem dizer, não passava de uma criança, e no entanto estava a mostrar todo aquele espírito combativo.

Fez pontaria, mas de repente hesitou.

Ia matar uma criança? Fora a isso que realmente chegara?

Aquele rapazinho tinha seis anos quando o pai dele desaparecera. E Simon tinha seis anos quando morrera.

Patricia Wellton teria hesitado antes de disparar sobre ele? Provavelmente, não; os pro?ssionais como ela nunca hesitavam.

Ele também era um pro?ssional, mas desta vez não tinha a certeza.

Não era um banal assassino, estava apenas a tentar fechar portas. A proteger segredos. O rapaz perguntou-lhe outra vez pelo pai; ele merecia saber.

– Receio bem que esteja morto. Mas tu já sabias isso.

O rapaz abanou a cabeça com uma expressão ainda mais hostil, se é que isso era possível.

Facilmente poderia ser Simon ali em baixo, pensou Charles. Hoje em dia teria mais ou menos a mesma idade que este rapazinho. Quinze, quase dezasseis anos. O aniversário de Simon era em Novembro, 18 de Novembro. Pôs-se a pensar quando seria o aniversário de Mehran.

Talvez não fosse uma coincidência que eles tivessem a mesma idade. Talvez tudo isto fosse sobre isso mesmo.

Vermos as consequências das nossas acções.

Perceber ?nalmente que era impossível fechar mais portas. Que o preço era demasiado elevado.

De súbito, Charles ouviu o som de um helicóptero, que se aproximava rapidamente. Percebeu que era um Eurocopter EC135, um helicóptero da Polícia. Estaria mesmo por cima dele em menos de dois minutos.

Acabara. Iam apanhá-lo, portanto, o que importava se o rapaz estivesse vivo ou morto? Importava para si.

Matar uma criança quando já tudo estava perdido.

Isso não fazia dele um protector.

Isso não fazia dele um soldado.

Isso fazia dele um monstro.

Baixou a arma, saltou por cima da trincheira e correu em direcção à ?oresta. Ia contorná-la até regressar ao carro, efectuando um grande círculo, com alguma sorte mantendo-se fora da esfera de operações da Polícia. Havia uma possibilidade. Mas se eles o apanhassem... se falassem acerca dele mais tarde, haveriam de dizer como era mau, uma pessoa terrível. Iam chamar-lhe psicopata. Charles não se importava. Tinha feito o que ?zera pelas coisas em que acreditava. A guerra era a guerra; eram necessários sacrifícios. Toda a gente queria uma sociedade boa, livre, mas ninguém estava disposto a pagar por isso.

Iriam lembrar-se de que ele deixara o rapaz viver? Iriam ver nisso alguma centelha de bondade? Provavelmente, não.

Mas não importava.

O rapaz saberia que ele não era um monstro.

 

Torkel, Billy e Jennifer saltaram para fora do carro e sacaram as suas armas. Para Jennifer, era a primeira vez. Agarrou-a com as duas mãos e manteve-a apontada ao chão. Entre as casernas, na extremidade mais distante da parada, avistaram agentes uniformizados examinando o corpo de um homem que, a julgar pelo aspecto, não poderia ser Charles Cederkvist. Não havia nenhum vestígio de Charles nem do rapaz. Começaram a esquadrinhar a área em redor dos edifícios mais próximos, mas depressa perceberam que teriam de pedir reforços. O helicóptero andava em círculos, com os seus poderosos holofotes a varrer constantemente o chão.

– Espalhem-se – disse Torkel a Billy e a Jennifer. Começaram a mover-se ao longo dos edifícios escuros e delapidados à direita, tendo a ?oresta do seu lado esquerdo. Jennifer viu Billy mais à frente, mas depois ele virou à esquerda e desapareceu. Ela prosseguiu; à sua frente, a escuridão pareceu-lhe de certa forma mais espessa. Mais edifícios – antigos depósitos de munições, se ela se recordava bem do mapa. O feixe da lanterna iluminava-lhe o percurso enquanto ela avançava ao longo do caminho pedregoso, escutando atentamente. Ouvia atrás de si as vozes dos agentes uniformizados, que se tornaram mais fracas quando ela chegou mais perto dos depósitos. Depois ouviu outra coisa, que vinha da ?oresta à sua direita. Parou e virou-se para lá, apontando a sua lanterna entre as árvores. O som fez-se ouvir outra vez, agora um pouco mais longe; era decerto alguém ou algo em movimento. Jennifer seguiu a linha das árvores com a luz da lanterna e avistou uma ?gura vestida de preto a poucos metros de distância.

– Não se mexa! – gritou-lhe ela, mas a sua ordem teve o efeito oposto. O homem começou a correr. Jennifer perdeu-o de vista, mas correu velozmente, apontando a lanterna entre as árvores. Ao ?m de alguns segundos, avistou-o de novo; já tinha aumentado a distância entre eles. Continuou a correr, fazendo o que podia para manter o feixe de luz sempre apontado sobre ele.

Ia cerca de dez metros à sua frente quando correu para o meio da estrada e aumentou ainda mais a velocidade. Jennifer corria o mais depressa que era capaz enquanto pedia reforços através do rádio bidireccional preso ao seu ombro. Agora já percebera para onde se dirigia aquele fugitivo; havia um carro estacionado ao pé dos depósitos de munições. A luz da lanterna fez re?exo nos vidros dos faróis.

– Pare! – gritou-lhe ela, ainda sem muita esperança de que lhe obedecessem desta vez. Ele nem sequer abrandou. Jennifer sentiu que a adrenalina lhe dava um poder extra; era por isto que ela havia ansiado. Acção. Decisões momentâneas. A perseguição, a excitação. Fora por isto que ela se tornara uma agente policial.

Quando o homem, que ela assumiu ser Charles Cederkvist, já quase chegara ao carro, os faróis piscaram e as fechaduras abriram-se com um clique. Ele era rápido. Ela não abrandou, apesar da sua respiração ligeiramente esforçada. Quando chegou ao carro, ele abriu a porta do condutor. A seguir aconteceu uma coisa estranha. Ele parou. Ficou ali parado atrás da porta, como se estivesse a posar para uma fotogra?a. Jennifer também parou e apontou-lhe a arma.

– Levante as mãos e afaste-se do carro – disse-lhe ela, avançando um pouco. Charles não se moveu. Ela não conseguia ver-lhe as mãos. Repetiu a instrução. Onde estavam os outros? Charles continuava sem se mexer.

– Levante as mãos e afaste-se do carro – disse ela pela terceira vez. Porque é que ele simplesmente não desistia? Isto era o sonho dela. A caça tinha chegado ao ?m. Estava armada. Ele devia sentir-se derrotado, suplantado, acabado. Devia desistir. Jennifer baixou o olhar. Havia uma possibilidade de ela conseguir alvejar-lhe os pés por baixo da porta ou o ombro esquerdo por cima desta. Talvez. Mas, na verdade, não queria disparar; o melhor seria convencê-lo a render-se.

Percebeu que não era de?nitivamente essa a intenção dele quando, de súbito, o viu erguer a mão, apoiá-la na porta e disparar dois tiros. Jennifer atirou-se para um lado; Cederkvist saltou para dentro do carro e arrancou com uma chiadeira de pneus. Jennifer teve de rebolar para fora do caminho a ?m de evitar ser atropelada.

Viu as luzes vermelhas dos farolins traseiros desaparecerem, a seguir viu Billy iluminado pelos faróis durante um segundo antes de começar a correr, gritando e praguejando.

Billy saltou para dentro do carro deles, ligou o motor, fez marcha atrás e deu início à perseguição enquanto chamava o carro-patrulha pelo rádio. Carregou no acelerador; naquele caminho estreito e sinuoso, de tempos a tempos conseguia avistar as luzes vermelhas do carro de Charles mais à frente. Billy engrenou uma mudança abaixo; ele não era bom em tudo, mas não existiam muitas pessoas que conseguissem batê-lo em matéria de condução. Correu pela noite fora, com todos os seus sentidos em alerta total. Os faróis iluminavam as árvores, os arbustos, sinais luminosos passavam e desapareciam na escuridão atrás dele. Estava a aproximar-se; o seu sucesso incitava-o ainda mais. O holofote do helicóptero incidiu sobre o carro de Charles, e Billy pisou o acelerador com mais força; queria acabar com aquilo ali, onde não havia trânsito, em vez de levar a perseguição para as estradas principais.

Estava cada vez mais perto, e poucos segundos depois apanhou-o. Era impossível ultrapassá-lo; a pista era demasiado estreita. Billy estava somente um metro atrás dele, um pouco preocupado com a possibilidade de Charles travar. Se ?zesse isso, Billy iria parar ao banco de trás do carro de Charles, mas, de momento, a sua presa não mostrava qualquer sinal de abrandamento.

De repente, as luzes do carro que ia à frente iluminaram um sinal rodoviário que anunciava uma curva acentuada à esquerda, e Billy viu a sua oportunidade. Chegou-se um pouco mais perto e, quando Charles travou à entrada da curva, Billy engrenou novamente uma mudança abaixo, virou o volante para a esquerda e acelerou. Acertou no carro de Charles junto à roda de trás. A traseira do veículo derrapou para fora da estrada e Billy julgou ver Charles a tentar recuperar o controlo. Em vão. Billy pisou o travão a fundo e viu o outro carro sair da estrada e virar-se ao contrário no campo mais abaixo. Soltou rapidamente o cinto de segurança e saiu.

 

Charles rapidamente se apercebeu de duas coisas.

Não estava inconsciente. O carro encontrava-se de cabeça para baixo.

A terceira coisa de que teve consciência atingiu-o logo que tentou mover-se. Tinha dores e estava a sangrar.

Tentou orientar-se. O helicóptero continuava a circular, mantendo o carro sob o seu holofote, o que tornava aquilo mais fácil para ele. Viu a sua arma tombada junto à janela do passageiro e estendeu a mão para ela.

Agora tudo acabara.

O assunto dos dois homens afegãos tinha-se transformado numa hidra. Cada vez que ele cortava uma cabeça, duas outras cresciam no seu lugar. Não podia continuar. Aquilo chegara ao ?m. Apertou a arma com mais força e conseguiu empurrar e abrir uma das portas. Laboriosamente, começou a gatinhar para fora.

Billy ia a descer a encosta quando viu movimento no carro, que ?cara caído a cerca de dez metros de distância da pista. Sacou da sua arma, libertou-lhe a trava de segurança e manteve-a apontada para baixo.

Charles saiu; estava a sangrar muito e tinha as roupas bastante rasgadas.

Billy aproximou-se.

Quando Charles se agarrou ao carro para se pôr em pé, Billy viu a arma na mão dele e levantou a sua.

– Largue a arma! – gritou ele por cima do ruído do helicóptero que pairava.

Charles continuava a tentar endireitar-se, não dando qualquer indicação de o ter ouvido ou não.

– Largue a arma! – gritou Billy o mais alto que podia. Charles estava em pé; vacilou, depois virou-se lentamente para Billy. De súbito, a cena ?cou iluminada de um modo ainda mais intenso quando chegou o carro-patrulha e os seus faróis detectaram Charles Cederkvist enquanto este levantava deliberadamente a sua arma e a apontava a direito para Billy.

Billy disparou dois tiros.

Ambos lhe penetraram no coração.

O corpo inerte de Charles caiu no chão.


NOITE, ESCURIDÃO.

O candeeiro de secretária virado para a parede era a única fonte de luz no gabinete; Sebastian e Torkel estavam sentados na escuridão, com os seus corpos a projectarem longas sombras nas paredes. O vento fazia abanar as janelas.

Se Sebastian fosse um bebedor, teria um copo de uísque na mão para completar o quadro; Torkel estava a beber cerveja directamente da garrafa. Já era a sua segunda ou terceira.

– Há muito tempo que não nos sentávamos assim – disse Torkel, quebrando o silêncio.

– Nós nunca nos sentámos assim – respondeu Sebastian –, e, se vais começar a ser revoltantemente nostálgico, eu vou para casa.

Torkel sorriu e bebeu um gole da sua cerveja. Julgava que desta vez Sebastian tivera uma atitude diferente para com o trabalho e a equipa, mas talvez ele não tivesse mudado muito.

– Porque não foste já para casa? – perguntou-lhe.

– Porque é que tu não foste?

– Estou sozinho – disse Torkel, com honestidade. – Hoje em dia, não gosto de estar em casa.

Calou-se, e Sebastian percebeu que ele esperava uma qualquer reacção da sua parte. Não tinha o mínimo interesse em ouvir falar da vida emocional de Torkel, por isso optou por responder à pergunta original, para desviar o foco de tudo o que fossem assuntos pessoais.

– Estou irritado. O Charles Cederkvist não esteve por trás do desaparecimento do Hamid Khan e do Said Balkhi nem da execução de Adam e da sua família.

Torkel concordou com um aceno de cabeça.

– Mas esteve envolvido.

Sebastian resmungou.

– Então o que pensas tu que aconteceu?

Torkel recostou-se para trás, bebeu mais um pouco e meditou sobre a questão em silêncio durante alguns segundos.

– Penso – disse lentamente – que a CIA esteve aqui e que ou eles levaram os dois homens consigo ou os mataram. Penso que a inteligência militar sabia disso e o Charles pediu ao irmão que encerrasse a investigação. Mas o Adam descobriu coisas a mais e foi assassinado em Jämtland.

– Pela Patricia Wellton?

– Sim. Mas porque é que alguém a matou depois... não sei.

– Charles está morto. Achas que ele é o único que vamos conseguir ligar a isto? – Não houve dúvidas acerca do desagrado na voz de Sebastian.

Torkel inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos em cima dos joelhos, e perscrutou o homem que tinha diante de si, o homem a quem ainda queria chamar amigo.

– Julguei que não te preocupavas com toda essa parte da condenação/punição. O destino não é nada, o caminho é tudo. Não é isso que costumas dizer?

– Isso não signi?ca que eu quero que eles se safem – disse Sebastian acremente.

– Mas às vezes safam-se – disse-lhe Torkel num tom de constatação, recostando-se no sofá.

– Além disso, desta vez o caminho foi uma grandessíssima chatice – prosseguiu Sebastian numa tentativa de explicar a sua persistente irritação. – O Billy abateu a única pessoa que era remotamente interessante.

– Talvez tivesses desfrutado mais se tivesses andado sempre por perto – respondeu-lhe Torkel com um sorriso provocador.

– Eu tinha outro peixe para fritar.

Torkel sentou-se direito.

– Como está a Vanja? Tiveste notícias dela?

Sebastian abanou a cabeça.

– Ela não atendeu o telefone durante todo o dia.

– Aceitou a rejeição do FBI com muita di?culdade – disse Torkel pensativamente.

– Ela é uma pessoa forte.

– É certamente muito boa a dar essa impressão, mas acho que, depois daquele assunto com o pai, isto quase a deitou abaixo.

A irritação de Sebastian foi temperada por uma sensação de desconforto e talvez por algo que ele não conseguia lembrar-se de sentir há muito tempo: culpa. Estava de?nitivamente na hora de mudar de assunto.

– Nós sabemos muito – disse ele, voltando ao tema original da conversa e esperando que Torkel o seguisse. – O Lennart Stridh deve ter colegas; eu poderia passar-lhes a história.

Torkel abanou a cabeça e inclinou-se para a frente mais uma vez, como se fosse trocar con?dências com o seu colega. Sebastian não gostou nada disso.

– Sabes porque é que eu estou onde estou e porque continuo a aguentar-me ali, ano após ano?

– Não... isso nunca me passou pela cabeça – disse-lhe Sebastian candidamente.

– É porque sei quando se deve recuar. Escolhe as tuas batalhas, Sebastian. Trava só aquelas que possas ganhar.

– Esse não é de todo o meu estilo.

– Isso torna a vida mais fácil.

– E mais aborrecida. Por falar em aborrecido...

Levantou o braço num gesto exagerado, olhou para o relógio e pôs-se em pé. Torkel sorriu e fez o mesmo.

– Eu também me vou embora; há uma coisa que preciso de fazer.

Apesar de tudo o que acontecera, hoje era claramente impossível desanimar Torkel. Talvez fosse essa a sua maneira de lidar com a frustração: com um sorriso. Sebastian pegou no casaco e dirigiu-se para a porta; Torkel desligou o candeeiro.

– Até que nível achas tu que isto vai?

– Não estou interessado. Nunca viremos a saber.

– E consegues viver com isso?

– Sim, e tu também consegues.

Desceram no elevador em silêncio. Torkel tinha razão, claro. Sebastian conseguiria viver com isso, tal como tinha de viver com tudo o resto.


O AGENTE POLICIAL acabara de sair. Shibeka não o reconhecera; chamava-se Torkel Höglund e, aparentemente, che?ava uma coisa qualquer chamada Riksmord. Fora afável e cativante e perguntara-lhe como estava Mehran, o que tinham dito os médicos; parecera genuinamente interessado. No entanto, quando chegaram ao que tinha acontecido e ao que eles sabiam, com toda a certeza, as suas palavras foram tristemente familiares.

Não sabiam muito. Não se atreviam a especular.

Eram bons com as palavras. Mas não com a verdade.

Ou talvez tivessem compreendido que o preço era demasiado elevado. Talvez fosse tão simples como isso e eles fossem mais sensatos do que ela. Apesar do que toda a gente dizia a respeito da liberdade e da abertura, talvez houvesse coisas em que era melhor não mexer. Ela quase perdera o seu ?lho porque não tinha conseguido entender isso; valera a pena?

Nunca.

Mas poderia ela realmente ?car calada? Agora mesmo, ali sentada ao lado de uma cama de hospital com o seu ?lho engessado, a escolha era muito simples. Mas daqui a três meses? Daqui a seis meses? Quando as perguntas voltassem a assombrá-la?

Não sabia se conseguiria fazê-lo.

Pegou na mão de Mehran. As cores começavam a regressar-lhe ao rosto, provavelmente graças aos fortes analgésicos que lhe tinham dado. Os olhos dele estavam mais bonitos do que nunca. Eram os olhos de Hamid.

– Mãe? – disse ele baixinho.

– Sim?

– Eles sabem mais do que dizem. Devem saber.

– Não penses nisso agora. Julguei que não voltava a ver-te.

Ela debruçou-se, porque queria abraçá-lo com força, nunca mais o largar, mas sabia que magoaria o corpo ferido e maltratado. Em vez disso, apertou-lhe a mão com mais força. Mehran olhou-a com tristeza.

– Desculpa eu não te ter dito o que ia fazer.

– Tu nunca precisas de me pedir desculpa – sussurrou-lhe ela. – Se alguém devia pedir desculpa era eu.

– Porquê?

– Por te ter arrastado para tudo isto.

– Tu também nunca precisas de me pedir desculpa. Nunca mais.

Aqueles lindos olhos encheram-se de lágrimas.

– Ele está morto, mãe. Foi assassinado.

– Eu sei. Acho que sempre soube.

– Mas não sabemos como. Nem porquê.

– Podemos falar sobre isso mais tarde... sobre se é realmente importante saber como e porquê.

Calaram-se. Mehran olhou para a mãe e ocorreu-lhe um pensamento. Simples. Evidente para ele. Mas não se lembrava de alguma vez o ter expressado em palavras. Sem dúvida, tinha assumido que ela sabia, que nem era preciso dizê-lo.

– Amo-te, mãe.

Desta vez, ela não conseguiu conter-se. Levantou-se e deu-lhe um grande abraço, que ele adorou embora o magoasse.

– Podes contar-me coisas sobre ele? – disse-lhe baixinho quando ela voltou a sentar-se.

– Sobre o Hamid?

– Há tanta coisa que eu não sei. Até agora não queria saber. Sempre pensei que seria muito doloroso.

– Eu entendi, Mehran.

Ele respirou fundo e continuou:

– Mas estava enganado, percebi isso hoje. Ele vive através das nossas memórias, dá-nos força. A nós, os que ?cámos.

Shibeka sorriu-lhe. Memórias. Havia tantas. Tantas. Até que en?m tinha alguém com quem as partilhar.


ALEXANDER SÖDERLING tivera uma boa manhã. Deixara-se ?car na cama e tomara o pequeno-almoço com a família. Quando todos já tinham ido para a escola e para o emprego, instalou-se com o seu iPad e foi passar os olhos pelos jornais. Nenhuma ligação entre os acontecimentos lá em Almnäs e os corpos na montanha ou os dois homens afegãos desaparecidos. Nem entre Charles e o acidente de carro que acabara com a vida de Lennart Stridh. O rapaz tinha sobrevivido com uma perna partida, mas Alexander assumiu que alguém fora su?cientemente inteligente para tornar claro que, sob certas circunstâncias, era melhor manter a boca fechada. Parecia que eles iam ?car bem. Veronica Ström cumprira a sua promessa quando lhe dissera que ia tratar de tudo.

Alexander saiu de casa às 9h15 e foi para o carro. Habitualmente saía mais cedo para poder antecipar-se à hora de ponta; hoje demoraria pelo menos uma hora a chegar ao trabalho, mas não fazia mal. Destrancou o Audi enquanto caminhava pelo carreiro. Olhou para os extensos relvados, que estavam cobertos de folhas. Malditos vizinhos – não podiam livrar-se daqueles áceres enormes? Já era bastante mau que tirassem o sol ao seu jardim no Verão, mas, no Outono, noventa por cento das folhas iam parar ao seu lado da cerca. Por mais de uma vez, acalentara a ideia de ir até lá uma noite e cravar alguns pregos de cobre nos troncos, mas quanto tempo demorariam aqueles cabrões a morrer? Anos, provavelmente. Se desse resultado. Talvez fosse apenas um mito. Uma motosserra havia de dar resultado, disso ele tinha a certeza. Era tentador. Quais seriam as consequências? Uma multa? Ter de pagar uma indemnização? Um artigo qualquer na imprensa? Talvez valesse a pena; os vizinhos não conseguiriam ressuscitar aqueles cabrões se ele os deitasse abaixo.

Abriu a porta do carro, atirou lá para dentro a sua pasta e sentou-se. Sentiu uma dor aguda ao fundo das costas, como uma picada de vespa ou... Fez deslizar a mão por trás de si, picou-se novamente. Um al?nete. Como diabo tinha ido parar um al?nete dentro do estofo? De onde viera ele? Estava prestes a sair para ver se conseguia removê-lo quando percebeu que algo estava errado.

O seu coração estava acelerado.

Não estava a bater mais depressa, não começara a ganhar rapidez. Estava acelerado. Caiu para trás e tentou ganhar controlo sobre a sua respiração. Precisava de se descontrair. Respirar fundo. Mas não servia de nada; o corpo dele estava em piloto automático. Os batimentos do seu coração ressoavam-lhe nos ouvidos, tinha uma dor no peito. Percebeu que estava prestes a ter um ataque cardíaco. Não havia nenhuma maneira de o seu coração conseguir aguentar aquele nível de esforço por muito mais tempo. Pressionou ambas as mãos contra a buzina, na esperança de alertar alguém. Não funcionou. Calcou o botão. Nem um som. A cãibra no seu peito piorou. As veias do pescoço latejavam. Tinha de pedir ajuda, e depressa. Mas a quem? Aquela tranquila área residencial estava mais ou menos deserta àquela hora do dia.

Do outro lado da estrada, a cerca de vinte metros de distância, estavam dois homens sentados dentro de um carro. Um Volkswagen vermelho-escuro que Alexander nunca vira antes. Tentou atrair a atenção deles. Acenou-lhes, bateu no pára-brisas. Foi o melhor que pôde fazer; não seria capaz de sair mesmo que conseguisse abrir a porta.

Era imaginação sua ou os dois homens estavam a observá-lo? Aquele que tinha o cabelo ruivo estava, de certeza. Quanto ao outro, era difícil decidir, porque usava óculos escuros. Modelo de aviador. Porque não faziam eles alguma coisa? Enquanto o seu coração ameaçava explodir para fora do peito, ele de repente compreendeu.

O seu derradeiro pensamento, logo após o coração parar de bater, não foi sobre Annika ou as crianças, estranhamente. Foi sobre Veronica Ström e o facto de ele agora saber ao certo o que ela queria dizer quando lhe a?rmara que trataria de tudo.


BILLY ENFIOU duas fatias de pão na torradeira. Foi até ao frigorí?co e tirou de lá manteiga, queijo e marmelada, que colocou sobre o tabuleiro que estava em cima da ilha da cozinha. Ligou o jarro eléctrico. Dobrou a omeleta ao meio e deixou-a em cima da placa de aquecimento. Tirou duas canecas do armário por cima do lava-louças. Não havia pressa; estava de novo suspenso do serviço, pela segunda vez em poucos meses. Isso não parecia bem, evidentemente. A imprensa lançaria mãos ao trabalho se descobrisse, mas até agora ele tivera sorte. Por estranho que parecesse, tinha havido pouca publicidade sobre o que acontecera nos arredores de Almnäs.

Todavia, Billy não conseguia parar de pensar naquilo.

Charles a sair do carro. Uma arma apontada directamente a Billy. Poderia ter feito algo diferente? Apontado para o ombro ou para uma perna, por exemplo? Colocá-lo fora de acção? As suas memórias do incidente não eram cem por cento cristalinas, mas havia uma coisa de que ele se lembrava com dolorosa clareza: aquele sentimento de antecipação quando descera a encosta e se aproximara do carro.

Torkel falaria por si, claro. Charles Cederkvist era um o?cial da inteligência altamente treinado, que apontara uma arma a Billy a uma distância de poucos metros. Embora estivesse ferido, era altamente provável que representasse uma ameaça letal. Havia imensas testemunhas. Não, ele não estava particularmente preocupado com a investigação interna. Nada preocupado, na verdade. O que estava a corroê-lo era que, embora não se lembrasse de tudo o que conduzira àquele tiro, lembrava-se do sentimento que se lhe seguira de imediato. Uma vaga de calor inundara o seu corpo quando vira Charles tombar. Mais endor?nas do que adrenalina, tinha a certeza disso. Uma sensação de bem-estar. Era uma loucura, mas a única coisa a que ele poderia compará-la era a maneira como se sentia depois de uma sessão de sexo. De uma sessão de sexo realmente boa.

O jarro eléctrico desligou-se e ele verteu água para as duas canecas e deixou cair um saquinho de chá em cada uma. Virou a omeleta para dentro de um prato e colocou-o também no tabuleiro, juntamente com o mel. Contemplou o tabuleiro com satisfação; não se tinha esquecido de nada. Sim, tinha – as torradas. Envolveu-as num pano limpo. Pensou que a in?uência de Maya sobre si se estendera a todas as áreas da sua vida, mas poderia muito bem ter causado o maior efeito sobre a sua alimentação e sobre o que ele conseguia fazer dentro de uma cozinha. Foi ao corredor, tirou uma chave do bolso do casaco, pousou-a ao lado da faca da manteiga, depois pegou no tabuleiro e foi até ao quarto.

Maya estava a dormir voltada para o lado esquerdo. Um pequeno ?o de saliva escorrera-lhe do canto da boca para cima da almofada; Billy até achou isso adorável. Ela era boa para si. Neste momento, era realmente boa para si. Ao princípio tinha sido um pouco difícil; achara que ela teria menos consideração por si se ele fosse o tipo de pessoa que se sentia perfeitamente satisfeita com a forma como as coisas lhe corriam no emprego, enquanto ela achara que ele queria que ela o ajudasse a modi?car a sua vida. Fora por isso que ele entrara em confronto com Vanja. Agora tinha resolvido tudo, com ambas. Mais com Maya do que com Vanja, tinha de admitir.

Acordou-a com suavidade; ela ?cou bem acordada logo à primeira, como sempre. Era como se tivesse um interruptor para ligar e desligar: radiosa como uma ?or em botão logo ao princípio da manhã, à noite adormecia em dois segundos. Ela sentou-se, limpando discretamente a boca. Billy pousou o tabuleiro com cuidado e juntou-se a ela.

– Tu és uma estrela – disse-lhe ela, dando-lhe um beijo antes de encetar o seu pequeno-almoço.

Quando pegou na faca da manteiga, parou a meio do movimento. Pousou-a e agarrou na chave.

– O que é isto?

– É uma chave.

– Eu pensei que tu não querias.

– Eu também pensava que não.

Com muito cuidado, para evitar virar o tabuleiro, ela inclinou-se e abraçou-o. Ele abraçou-a também, durante muito tempo. Quando estava ali, ele era a pessoa que queria ser. Maya não conhecia o outro Billy, aquele que se sentia bem depois de ter matado alguém. Só Jennifer conhecia esse Billy. Poderia ele ir viver com Maya sem lhe contar? O que aconteceria se lhe contasse? Jennifer não tinha reagido de forma particularmente forte, mas, a?nal de contas, ela própria era uma agente policial e não ia passar a morar com ele.

– ... na Primavera.

Billy percebeu que Maya lhe murmurara qualquer coisa ao ouvido. Afastou-se.

– Desculpa? O quê??

– Agora podemos casar-nos na Primavera.

Billy não conseguiu dizer uma palavra; nem sequer conseguiu esboçar um sorriso. Maya, porém, ria.

– Eu estava só a brincar! Estava a brincar, querido!

Colocou as mãos nas faces dele e beijou-o na boca. O telefone dele tocou; saltou para fora da cama e atendeu. Era Vanja.


ELA FICOU contente por o ver.

Estava preocupado com ela; percebeu isso logo que ele entrou na sala. Embora estivesse vestida e sentada na cama, aquilo era um hospital e ela era uma paciente. Tranquilizou-o; estava ali somente para exames e para uma consulta sobre um transplante de rim. Ela era a dadora, por isso, não havia nada com que se preocupar.

Ele puxou uma cadeira para junto da cama e começou a informá-la sobre tudo o que acontecera desde que ela os deixara. Disse-lhe que tinha passado a viver com Maya, mas levou a maior parte do tempo a pô-la ao corrente do caso.

– Tu não tinhas outra opção – disse Vanja quando chegou à parte sobre a morte a tiro de Charles Cederkvist.

– Eu sei – mentiu ele.

Ela pegou-lhe na mão; percebeu que o gesto o surpreendeu. Sebastian tinha dito que ela não podia fazer nada a respeito da discórdia entre ambos, que a bola estava do lado de Billy, mas ela tinha de tentar. Além disso, a sua opinião sobre Sebastian enquanto mentor de con?ança caíra consideravelmente nos últimos tempos.

– Eu não devia ter dito que era melhor agente do que tu.

– Mas és – disse-lhe Billy, encolhendo os ombros.

– Eu realmente preciso de um amigo, e tu és o melhor que alguma vez tive – disse-lhe ela com tal franqueza que Billy se sentiu corar.

– Tudo bem, eu sou teu amigo, esquece aquelas outras coisas.

Vanja sorriu-lhe de forma tão calorosa e aliviada que ele teve de fazer um autêntico esforço para não desviar o olhar. O telefone dela começou a vibrar em cima da mesa-de-cabeceira. Billy pegou nele, grato pela diversão, e olhou para o visor.

– O Sebastian.

– Ignora-o – disse ela. Billy pousou o telefone, sem perceber o que estava a acontecer.

Sebastian. Vanja compreendeu que precisava de partilhar aquilo com alguém. Se o mantivesse guardado dentro de si, consumi-la-ia. Precisava de con?denciar com um amigo.

– Eu acho que o Sebastian...

Hesitou, percebendo quão ridículo soaria aquilo quando ela o dissesse em voz alta. Billy pensaria que ela tinha enlouquecido. Não havia nenhuma dúvida quanto a isso; ela fazia pesadas exigências aos seus amigos.

– Este assunto com o meu pai e o facto de eu não ter conseguido entrar para o programa do FBI – começou ela, falando devagar e escolhendo as palavras com cuidado.

– Sim?

– Acho que o Sebastian teve algo a ver com ambas as coisas.

A expressão de Billy disse-lhe que ela soara tão louca quanto receara.

– Por que diabo estaria o Sebastian envolvido? – perguntou-lhe ele com toda a justi?cação.

– Não sei. Já pensei nisso, e o melhor que consigo arranjar é que ele está doente. Quer arruinar-me a vida, por alguma razão estranha.

Billy acenou-lhe com a cabeça para disfarçar a sua confusão. Era difícil conciliar aquilo que Vanja lhe estava a dizer com as suas próprias especulações a respeito de Sebastian. Porque haveria ele de querer magoar Vanja se era pai dela?

– Isso soa um pouco... louco.

– É por isso que ele se vai safar – disse-lhe ela com toda a calma e sinceridade que conseguiu. – É tão louco que ninguém ia acreditar que o fez. Eu acho que ele é um psicopata.

O que poderia ele dizer-lhe? A porta abriu-se e, para alívio de Billy, entrou um médico.

– Pode ir para casa – disse o Dr. Shahab a Vanja.

– Está bem... quando devo voltar?

– Não precisa de voltar. Não podemos continuar a aceitá-la como dadora; o seu rim não é compatível.

Vanja não entendeu nada; era como se ele tivesse de repente começado a falar uma língua estrangeira.

– Claro que é. Eu sou ?lha dele.

– Lamento muito. – O médico abriu as mãos em jeito de desculpa. – Infelizmente, às vezes este tipo de coisas acontece.

– Qual é o grupo sanguíneo dela? – ouviu Billy perguntar.

– Há muitas coisas que têm de ser compatíveis, não só o grupo sanguíneo. – O que não era de todo uma resposta. – Na nossa opinião pro?ssional, o risco de rejeição é demasiado grande.

– Eu sou do grupo O – disse Vanja a Billy.

– E o teu pai?

– Não sei.

Ela virou-se para o Dr. Shahab, cujo olhar fugiu para longe. Ele coçou o queixo. O instinto de Vanja enquanto agente policial veio à tona. Ele estava a esconder alguma coisa.

– Qual é o grupo sanguíneo do meu pai? – perguntou-lhe ela.

– Não posso dizer-lhe isso, é con?dencial.

– Ele é meu pai. Vou descobrir de uma maneira ou de outra dentro dos próximos quinze minutos, por isso, pode muito bem dizer-me já.

Omid Shahab hesitou. Não devia dar esse tipo de informação a ninguém, quer fossem familiares ou não. Ao mesmo tempo, não tinha qualquer dúvida de que Vanja descobriria em consideravelmente menos de quinze minutos.

– É AB – disse ele em voz baixa.

Vanja entendeu logo as implicações.

Mesmo que ela não se lembrasse do esquema de cruzamento genético que aprendera na escola, os seus conhecimentos tinham sido actualizados regularmente graças aos anos de trabalho com Ursula e com a análise de cenas de crime.

Um progenitor com o grupo sanguíneo AB não poderia gerar uma criança com grupo O.

Não conseguiu processar as implicações do que acabara de ouvir. Eram demasiado grandes. Demasiado. Billy inclinou-se e deu-lhe um abraço. Ela agarrou-se a ele, com medo de desmoronar.

Billy não disse nada, mas o seu espírito corria a toda a brida.

Estava a pensar qual seria o grupo sanguíneo de Sebastian Bergman.

Tinha a certeza de que não era AB.


ELLINOR RETIROU a etiqueta com o seu nome e guardou-a dentro de um dos pequenos armários de metal que revestiam a parede da sala de pessoal do Åhlén. Pegou no seu saco e no seu casaco e fechou a porta. O saco estava mais pesado do que era habitual ou era apenas imaginação sua? 874 gramas não era muito, mas ela pensava que conseguia sentir a diferença. Talvez fosse psicológico, como quando as pessoas julgavam que estavam sob medicação e se sentiam melhores, ainda que na verdade andassem a tomar um placebo. Colocou o saco por cima do ombro – estava de?nitivamente mais pesado – e caminhou em direcção à saída do pessoal. Disse adeus a três das suas colegas pelo caminho; iam sair para tomar uma bebida e perguntaram a Ellinor se gostaria de ir também, mas ela recusou.

Tinha outros planos.

Saiu para a Mäster Samuelsgatan e apertou o casaco. Olhou em volta. Primeiro que tudo, ia comer qualquer coisa. O Jensens Bøfhus estava à mão, ?cava a poucas centenas de metros de distância. Segurando as lapelas do seu casaco contra o vento, pôs-se a caminho. Havia bastantes pessoas em volta, mas ninguém lhe prestou qualquer atenção.

Ninguém sabia que ela era uma doentia empregada doméstica com quem Sebastian tivera relações sexuais.

Ninguém sabia que o seu saco estava hoje um pouco mais pesado.

Ninguém sabia. Ainda.

Não havia pressa. Ela ia demorar-se com um bom pedaço de carne, um copo de vinho, talvez dois. Terminaria com um café e uma daquelas pequenas trufas, se tivessem alguma. Dispunha de muito tempo, e a estação de metropolitano ?cava ali perto, para o caso de, mais tarde, ela decidir não ir a pé até ao apartamento de Sebastian.


O LOCAL estava impecável.

Torkel, por norma, tentava esforçar-se um pouco mais com o apartamento quando não estava activamente envolvido nalgum caso. Desta vez não fora uma causa perdida, mas ele decidira fazer uma grande limpeza, em parte para passar o tempo, para ter algo que fazer.

Arrumou tudo, aspirou, limpou o pó, levou os tapetes e as almofadas dos assentos lá para fora e zurziu-os, mudou a roupa das camas, sacudiu os edredões. Abriu o roupeiro e pensou em dar uma boa arejadela a tudo, mas decidiu que isso seria ir longe demais.

Eram oito horas quando Torkel terminou. Tomou um duche, sentou-se no seu sofá livre de pó e ligou o televisor. Depois percebeu que não queria ser incomodado e desligou-o novamente. Foi até à cozinha e abriu o frigorí?co; não estava com fome. Tirou uma cerveja e sentou-se com o jornal da manhã. Quinze minutos depois, o telefone tocou.

– Boa noite... fala Axel Weber do Expressen.

– Boa noite.

– Desculpe telefonar-lhe tão tarde, mas queria saber se chegou a alguma conclusão sobre aqueles corpos encontrados na montanha.

Ao princípio a pergunta surpreendeu Torkel, mas depois lembrou-se de que só ele e a equipa sabiam quem haviam encontrado; a versão o?cial era que tinham sido incapazes de identi?car os corpos.

Escolher as suas batalhas.

Deu a versão o?cial a Weber e desligou.

Quanto ao tiroteio em Södertälje, nem sequer havia uma versão o?cial. A inteligência militar tinha embargado tudo aquilo, recusando-se ainda a con?rmar ou a negar que Charles Cederkvist ?zera parte da organização. Se Torkel tinha interpretado correctamente os documentos que estavam à sua frente, a história seria divulgada dentro de um ou dois dias, e em seguida desapareceria por completo. Não se seguiria um julgamento nem parentes enlutados a falar, nenhuma sugestão de que o incidente estivesse relacionado com quadrilhas. Sem esses ingredientes, um tiroteio fatal na área de Södertälje não seria notícia por muito tempo.

Após ter terminado a conversa com Weber, ?cou ali sentado por alguns momentos com o telefone na mão.

Axel Weber, correspondente criminal.

Poderia ser um grande chato, mas era bom naquilo que fazia.

Se ele descobrisse a identidade dos corpos na sepultura, estabeleceria imediatamente a ligação com Charles Cederkvist. Poderia até relacioná-los com o homem que tinha sido encontrado morto em Almnäs, que, ao que parecia, era conhecido como Joseph e que poderia conduzi-lo ao caso dos dois homens afegãos desaparecidos, Hamid e Said.

Hoje estivera com a viúva e o ?lho de Hamid. Mentira-lhes. Falsi?cara a verdade. Dera-lhes a entender que, com Charles e Joseph mortos, eles não conseguiriam chegar a lado algum. Ninguém ia chegar a lado algum.

Mas depois Weber telefonara.

Escolher as suas batalhas. Ou pedir a alguém que as trave por nós, pensou enquanto marcava um número.

– Boa noite, fala Torkel Höglund da Riksmord...

Cinco minutos mais tarde terminou a chamada. Tinha seguido o procedimento correcto e informara a Polícia local que originalmente lhes pedira ajuda sobre o resultado ?nal da investigação. Ninguém poderia opor-se a isso. Tinham identi?cado os quatro corpos restantes e o caso estava agora encerrado. Ele nunca supusera que Hedvig Hedman e a sua equipa fossem passar essa informação tão importante...

Satisfeito com a sensação de ter feito algo ilícito, que ele já não experimentava desde a adolescência, levantou-se e deambulou pelo apartamento. A noite ainda era relativamente jovem; apeteceu-lhe sair.

Telefonou às ?lhas; quereriam ir ao cinema? Podiam escolher o ?lme. Elas gostaram de ter notícias suas, mas estavam a fazer outra coisa. Noutra ocasião. Torkel entreteve-se com a ideia de telefonar a Ursula, mas não conseguiu inventar nenhuma razão espúria e ao mesmo tempo convincente, portanto, em vez disso, serviu-se de um uísque e ligou novamente o televisor. Beber sozinho não era uma boa ideia, mas, se ele não ?zesse isso, quando é que iria conseguir tomar uma bebida? Bebeu de um trago o primeiro copo e serviu-se de outro.

 

Ursula estava sentada na cozinha com um copo de vinho enquanto Sebastian servia a comida que tinha acabado de ir comprar à rua. Se alguém que conhecesse a história dela com Sebastian a tivesse visto agora, perguntaria que diabo estava ela a fazer. Pela quarta vez numa semana. De vez em quando Ursula também perguntava isso, mas tinha encontrado uma expressão para resumir o tempo que passava com Sebastian: pouco exigente.

Era disso que ela precisava presentemente: uma fuga, uma diversão, disparatar – não sabia o que era, mas gostava da companhia de Sebastian. Conseguia relaxar. Ele nunca ?caria com a ideia de que aquilo se poderia transformar em algo mais, e ela também não. Ele nunca diria «amo-te» – ou pelo menos não iria senti-lo. Era melhor do que estar sozinha, mas era nos seus termos. Entrara naquilo com os olhos bem abertos. Ele não era monogâmico, e ela também não. Já o amara noutros tempos, e ele desapontara-a, mas isso fora porque ela tivera expectativas irracionais.

Sobre a união. A ?delidade. A vida.

Além disso, ele era uma boa companhia. Para além de eles terem muito para conversar, acontecia-lhe qualquer coisa quando ele estava sozinho com uma mulher. Tornava-se mais sensível, parecia mais aberto, mais interessado. Ela não tinha quaisquer ilusões de que houvesse nisso alguma relação consigo; sem dúvida que ele seria o mesmo fosse qual fosse a mulher que estivesse sentada à sua mesa. Funcionava puramente em piloto automático. Andara durante tanto tempo a seduzir mulheres compulsivamente que o cérebro dele desligava de forma automática o aspecto degenerado do seu carácter quando ?cava a sós com algum membro do sexo oposto. Fazia qualquer coisa para as levar para a cama. Não tinha conseguido com Ursula desta vez. Por enquanto não, acrescentou ela para si mesma quando ele entrou com os pratos e lhe sorriu.

– O jantar está servido – disse ele.


O PROGRAMA NA TELEVISÃO continuava mas a garrafa já estava mais ou menos vazia, reparou Torkel quando se serviu de mais um copo. Não estava completamente cheia quando ele começara, mas já lhe retirara um bom bocado. O su?ciente para se sentir um tanto ébrio. No sofá, sozinho em frente ao televisor. Patético. Endireitou-se, sentindo-se um pouco tonto e com um certo ardor no estômago. Devia ir comer alguma coisa, mas lá estava ela de novo: a solidão. Era triste, cozinhar só para um. E sair de casa para ir comer sozinho era ainda mais triste. As suas ?lhas tinham outros planos para a noite, e isso não deveria mudar ao longo dos próximos anos. Lembrou-se de que deveria certamente ir conhecer esse tal namorado – pelo menos enquanto ele ainda andasse por lá; naquela idade, essas coisas tendem a ser de curta duração. Seria isso que ele queria? Yvonne tinha Kristo?er. O que tinha ele? Quem tinha ele? Ninguém.

Pensou em Sebastian.

Sebastian tinha sempre alguém, quando quisesse. Se Torkel gozasse apenas de uma pequena parte do sucesso de Sebastian com as mulheres, teria sido um homem feliz.

Com uma mulher.

Com Ursula.

Porque era esse o problema. Mesmo que lhe tivesse sido confortável sair e tentar conhecer alguém ou registar-se nalgum site de encontros online, não havia lá fora ninguém que ele quisesse. Sabia que queria Ursula.

Seria esta realmente uma guerra que ele não poderia ganhar? Ela era casada, mas no passado isso não a impedira. Este assunto de ela e Mikael terem encontrado o seu caminho de volta um para o outro devia ser uma fase passageira. Mikael não era o que Ursula queria ou precisava, e ela sabia disso. Talvez só tivesse necessidade de um sinal mais claro de Torkel para ter coragem de partir, certa de que ele estaria ali para a agarrar. Era um mau ?m de frase; Ursula não precisava que ninguém a agarrasse. Ela era mais íntegra do que qualquer outra pessoa de que ele se conseguisse lembrar, mas o facto persistia: não sabia o que ele sentia por si. Ele nunca poderia ganhar se não entrasse na batalha. Torkel pegou no telefone e ligou-lhe. Pôs-se em pé antes de ela atender e começou a andar pela sala, o que fez a sua cabeça rodopiar ainda mais. Quanto uísque tinha ele emborcado mesmo?

– Ursula.

– Olá, sou eu – disse ele, animadamente. – Torkel – acrescentou, só por precaução.

– Já percebi. Como estás?

– Estou óptimo. Mesmo óptimo. – Respirou fundo, o que quase se transformou num arroto, que conseguiu transformar num soluço. – E tu, como estás?

– Também estou bem, obrigada.

– Excelente.

– Querias alguma coisa? – perguntou-lhe Ursula após alguns segundos de silêncio.

Torkel parou junto à janela e coçou a cabeça. Não conseguia pensar em nada convincente, por isso disse-lhe a verdade.

– Não, só queria falar contigo.

– Está bem, mas as coisas estão um pouco...

Ela olhou para Sebastian, que se levantou e levou os pratos para o lava-louças.

– Eu amo-te.

Ursula ?cou contente por Sebastian estar de costas para si. Não sabia bem como tinha reagido, mas, dado que quase deixou cair o telefone, surpreendida era, provavelmente, um eufemismo. O que deveria ela dizer-lhe? Aquela era decerto a última coisa que esperara ouvir do seu chefe.

– Eu sei que tu tens o Mikael e tudo – continuou Torkel, poupando-a a ter de responder à sua declaração –, mas se alguma vez romperes... eu estou à tua espera. Amo-te.

Ursula continuava sem conseguir pensar em nada para dizer. Sentia que Sebastian a olhava, mas não queria encará-lo.

– Isso é bom – conseguiu dizer ?nalmente; tinha de dizer alguma coisa. Fez-se silêncio do outro lado do telefone; ela quis quebrá-lo, mas não fazia ideia de como. Torkel pigarreou como se tivesse percebido que a colocara numa posição impossível.

– Foi estúpido da minha parte telefonar-te, mas queria que tu soubesses.

– Eu já sabia.

Torkel pareceu ter pressa de ?nalizar a conversa; ela achou que ele não tinha ouvido a sua resposta.

– De qualquer modo, desculpa – disse ele. – Até amanhã.

– Até amanhã.

Depois desligou. Ursula pousou lentamente o telefone enquanto tentava recuperar o domínio da sua expressão facial, dos seus pensamentos e da sua voz. Ao ?m de alguns segundos, leantou os olhos para Sebastian.

– Era o Torkel.

– O que queria ele?

– Nada. Trabalho. Bebeu uns copos, acho eu...

Sebastian, obviamente, não precisou de saber mais nada. Apontou para a máquina de café expresso.

– Café na sala?

Ursula disse-lhe que sim e pôs-se em pé. Passaria algum tempo até esquecer aquela conversa.


ELLINOR INTRODUZIU o código, e quando a porta zumbiu ela empurrou-a e entrou. Acendeu a luz e olhou em volta para o familiar átrio de entrada. Ele sem dúvida pensava que ela era estúpida. Esperava que ela aparecesse quando ele estava de guarda. Que tocasse à campainha e ?zesse uma cena. O bombardeasse com telefonemas e mensagens de texto. Mas ela mantivera-se à distância. Não lhe telefonara, não lhe enviara mensagens, não passara por lá. Tinha esperado o seu tempo. Se Ellinor conhecia Sebastian, e infelizmente achava que conhecia, por esta altura ele provavelmente já se esquecera de si. Ter-se-ia congratulado por se livrar dela tão facilmente, e logo que a expulsasse e a humilhasse, nunca mais teria pensado no assunto. Mas ela estava prestes a mudar isso. A mostrar-lhe que ele não podia tratá-la daquela maneira. Outros homens já o tinham tentado antes.

Göran, por exemplo.

O voluntário da defesa local em Aspudden.

Fora assim que ele se lhe apresentara: Göran Jönsson, voluntário da defesa local. Para a maioria das pessoas, essa actividade recaía entre um mal necessário e um passatempo agradável, mas para Göran era nada mais nada menos que uma vocação. Ele realmente levava as suas funções a sério; poderia muito bem ser capaz de salvar a Suécia só com uma mão se os russos viessem. Seriam os russos, tinha ?cado a saber Ellinor. Eram sempre os russos.

Mas Göran tivera de abandonar o seu amado grupo de defesa. A culpa era só dele. Se ele não tivesse ameaçado bater-lhe, ela nunca teria sentido a necessidade de se armar. Nunca se teria interessado pela Glock dele, que pesava exactamente 874 gramas.

Começou a subir as escadas. Tinha corrido por ali acima muitas vezes, ansiosa por ver o seu querido Sebastian. Era como se ela só começasse a viver quando vinha para casa ter com ele; o resto dos seus dias, quando não estavam juntos, era monótono e incolor. Ela tivera a certeza de que ele sentia o mesmo. Mas não sentia. Nunca sentira. Ela chegou ao andar devido e caminhou até à porta.

Um óculo. Por causa dela? Bom, pelo menos tinha deixado algum vestígio de si no apartamento dele. Não tardaria a deixar outro. Tinha acabado de decidir como.

 

Sebastian serviu duas chávenas de café enquanto Ursula se instalava no sofá, aconchegando as almofadas atrás de si.

– Passo cá a noite, se não te importares.

– Não precisas de perguntar, a cama já está feita.

– Tenho de dormir no quarto de hóspedes?

Sebastian pousou cuidadosamente a cafeteira do café em cima da mesa, como se qualquer movimento brusco pudesse fazer Ursula perceber aquilo que tinha acabado de dizer e mudar de ideias.

– Não...

Ursula assentiu com satisfação e colocou os seus pés em cima do sofá.

– Então conta-me lá – disse ela com um pequeno sorriso expectante.

– Conto-te o quê?

– Sobre o sonho.

Sebastian suspirou profundamente quando se sentou na poltrona em frente a ela. Na verdade, esperara que este tema não surgisse novamente, sobretudo não agora, quando ele já começara a visualizar o que iria acontecer dentro do quarto num futuro não muito distante.

– Porque é que continuas a insistir nisso?

– Porque é que continuas a esquivar-te e a fugir? Se não me contas, vou passar a noite no quarto de hóspedes. Ou então vou para casa.

Sebastian olhou para ela; continuava a sorrir, mas sabia que ela falava a sério.

– Tu queres que eu me confesse em troca de sexo?

– Exactamente.

– E achas que isso vai funcionar?

– Absolutamente.

Ele suspirou outra vez. Ela conhecia-o muito bem. Mas ele não precisava necessariamente de entrar na corrida para conseguir ganhar o prémio; Sebastian Bergman não era alheio a um pequeno subterfúgio.

– E vou perceber imediatamente se tu estás a mentir – disse Ursula, como se lhe tivesse lido os pensamentos. Mais uma vez, ela conhecia-o bem. Demasiado bem.

– Preciso de ir urinar primeiro.

Ursula debruçou-se e olhou para a sua chávena.

– Tens algum leite?

– No frigorí?co... tu sabes onde está.

Ela ergueu uma sobrancelha, levantou-se e voltou para a cozinha.

 

Ellinor ?cou imóvel no patamar, à espera. A luz apagou-se. Demorou alguns segundos até que os seus olhos se acostumassem à escuridão, mas conseguiu ver a luz no interior do apartamento através do óculo. Conseguiria perceber facilmente quando Sebastian espreitasse para fora. Ele iria ?car muito surpreendido. Se tivesse tempo para isso.

Tocou à campainha e en?ou a mão no saco.

 

Sebastian estava na casa de banho quando a campainha tocou.

– Eu atendo – gritou Ursula saindo da cozinha.

Foi até à porta, e, como era hábito, encostou o seu olho ao óculo. Uma estupidez, claro; quem quer que estivesse lá fora não viera para a ver, e ela não conhecia nenhuns amigos de Sebastian. Para ser franca, surpreendia-a que ele tivesse amigos.

Estava escuro como breu nas escadas. Quem estava lá fora, aparentemente, não acendera a luz.

 

Ellinor viu o pontinho de luz do corredor desaparecer quando um olho se aproximou do óculo pelo lado de dentro. Encostou a Glock contra a lente convexa e puxou o gatilho.

 

 

                                                   Michael Hjort e Hans Rosenfeldt         

 

 

 

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