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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HORIZONTE / Patrick Modiano
O HORIZONTE / Patrick Modiano

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O Horizonte - um horizonte carregado de esperança que faz deste romance belíssimo uma obra peculiar dentro do universo hipnótico de Patrick Modiano.
Jean Bosmans, um homem frágil perseguido pelo fantasma da mãe, recorda a sua juventude e as pessoas que entretanto perdeu. Sobretudo a enigmática Margaret Le Coz, a jovem mulher por quem se apaixonou nos já longínquos anos 60 e que um dia misteriosamente desapareceu. Quarenta anos depois, Bosmans parte à procura desse amor que a memória teimosamente conservou.

 

 

 


 

 

 


Nos últimos tempos, Bosmans pensava em certos episódios da sua juventude, episódios sem continuação, cortados cerce, rostos sem nome, encontros fugazes. Tudo isto
pertencia a um passado longínquo, mas como estas breves sequências não estavam ligadas ao resto da sua vida, permaneciam em suspenso, num eterno presente. Não deixaria
de se interrogar sobre este assunto, e nunca obteria respostas. Excertos que, para ele, permaneceriam para sempre enigmáticos. Começara a elaborar uma lista, procurando,
ainda assim, encontrar pontos de referência; uma data, um local preciso, um nome cuja ortografia lhe escapasse. Comprara um caderno preto, de capa plastificada,
que guardava no bolso interior do casaco, o que lhe permitia acrescentar observações em qualquer momento do dia, sempre que uma daquelas recordações fulgurantes
lhe acudia ao espírito. Tinha a impressão de se entregar a um jogo de paciência. Mas, à medida que remontava no tempo, experimentava, por vezes, algumas dúvidas;
porque seguira aquele caminho e não outro? Porque deixara aquele rosto, ou aquela silhueta encimada por um curioso gorro de pele e segurando pela trela um pequeno
cão, perder-se no desconhecido? Apoderava-se dele uma vertigem ao pensar no que poderia ter acontecido e não acontecera.
Estes fragmentos de recordações correspondiam aos anos em que a vida é entrecortada de encruzilhadas e se abrem tantas vias
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aos nossos olhos que a escolha se torna difícil. As palavras com que preenchia o caderno evocavam, para ele, o artigo respeitante à "matéria escura" que enviara
para uma revista de astronomia. Por detrás dos acontecimentos precisos e dos rostos familiares, sentia perfeitamente tudo o que se tornara matéria escura: breves
encontros, reuniões falhadas, cartas perdidas, nomes e números de telefone figurando numa antiga agenda e que foram esquecidos, e aqueles e aquelas com quem nos
cruzamos sem sequer nos apercebermos. Como na astronomia, esta matéria escura era mais vasta do que a parte visível da vida. Era infinita. E ele anotava no seu caderno
raras e débeis centelhas vindas do fundo da escuridão. Tão débeis, as centelhas, que Bosmans fechava os olhos e se concentrava, à procura de um pormenor inovador
que lhe permitisse reconstituir o conjunto, mas não havia conjunto, nada mais do que fragmentos, poeira de estrelas. Gostaria de ter mergulhado naquela matéria escura,
de restabelecer um a um os fios quebrados, sim, de voltar atrás para fixar as sombras e ficar a saber mais sobre elas. Impossível. Restava, portanto, encontrar os
apelidos. Ou mesmo os nomes próprios. Serviam de imanes. Traziam à superfície impressões confusas difíceis de esclarecer. Pertenciam à fantasia ou à realidade?
Mérovée. Um nome ou um apelido? Era preferível não se concentrar muito no caso, não fosse a centelha extinguir-se definitivamente. Procedera bem ao apontar a palavra
no caderno. Mérovée. Fingir que estava a pensar em outra coisa. A única maneira de a recordação se definir por si mesma, muito naturalmente, sem ser forçada. Mérovée.
Caminhava ao longo da avenue de l'Opéra, pelas sete horas da noite. Seria por causa da hora, naquela zona próxima dos Grands Boulevards e da Bolsa? Aparecia-lhe
o rosto de Mérovée. Um jovem de cabelo louro encaracolado, com um colete. Via-o mesmo vestido de groom - um desses grooms à entrada dos restaurantes ou na receção
dos grandes hotéis, com um ar de crianças precocemente envelhecidas. Também ele, o tal Mérovée, tinha o rosto enrugado apesar de ser jovem. Esquecemos as vozes,
dizem. E, no entanto, ainda ouvia o timbre da sua voz - um timbre metálico, um
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tom precioso para dizer insolências ao jeito de um rapazelho ou de um dandy. E depois, bruscamente, um riso de velho. Era para os lados da Bolsa, pelas sete horas
da noite, à saída dos escritórios. Os empregados dispersavam em grupos compactos, e eram tão numerosos que empurravam os transeuntes nos passeios e os envolviam
no mesmo fluxo. O tal Mérovée, acompanhado por mais duas ou três pessoas que saíam do edifício. Um rapaz anafado de pele branca, inseparável de Mérovée, bebia todas
as suas palavras com um ar assustado e ao mesmo tempo extasiado. Um louro de rosto magro usava óculos escuros e anel de brasão e mantinha-se geralmente em silêncio.
O mais velho devia ter cerca de trinta e cinco anos. O seu rosto era ainda mais nítido na recordação de Bosmans do que o de Mérovée, um rosto redondo, um nariz pequeno
que lhe conferia um ar de buldogue emoldurado pelo cabelo castanho penteado para trás. Nunca sorria e mostrava-se muito autoritário. Bosmans julgara compreender
que seria ele o chefe de escritório. Dirigia-se-lhes num tom sério como se estivesse encarregado da sua educação e os outros, bons alunos, o ouvissem. Mérovée só
de vez em quando se permitia uma observação insolente. Dos outros membros do grupo, Bosmans não se lembrava. Sombras. O mal-estar que lhe causava aquele nome, Mérovée,
reencontrou-o quando lhe ocorreram três palavras: "Bando da Alegria."
Numa noite em que, como habitualmente, esperava Margaret Le Coz em frente do edifício, Mérovée, o chefe de escritório e o louro de óculos escuros tinham sido os
primeiros a sair e encaminharam-se para ele. O chefe de escritório perguntara-lhe à queima-roupa;
- Quer fazer parte do Bando da Alegria?
E Mérovée fizera soar o seu riso de velho. Bosmans não soubera o que responder. Bando da Alegria? O outro, semblante sempre grave, olhar duro, dissera: "Somos nós,
o Bando da Alegria", e Bosmans achara a explicação cómica, por causa do tom lúgubre do interlocutor. Mas, naquela noite, olhando para os três, imaginou-os apoiados
em pesadas bengalas, ao longo dos boulevards, e, de vez em quando, atingindo um transeunte por descuido. E, em todas essas ocasiões, o riso frágil de Mérovée. Respondeu-lhes:
- Quanto ao Bando da Alegria... deixem-me pensar.
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Os outros mostraram-se dececionados. No fundo, mal os conhecia. Não estivera na sua presença mais de cinco ou seis vezes. Trabalhavam no mesmo escritório que Margaret
Le Coz e fora ela quem lhos apresentara. O moreno com cara de buldogue era seu superior e devia mostrar-se amável para com ele. Num sábado à tarde, Bosmans encontrara-os
no boulevard des Capucines, Mérovée, o chefe de escritório e o louro de óculos escuros. Saíam de um ginásio. Mérovée insistira para que tomasse "uma bebida e comesse
um bolinho de amêndoa" com eles. Dera consigo do outro lado do boulevard, sentado a uma mesa do salão de chá La Marquise de Sévigné. Mérovée parecia deleitado por
os ter arrastado para aquele estabelecimento. Interpelava uma das empregadas de mesa, como um cliente assíduo, e pedia numa voz incisiva "chá e bolos de amêndoa".
Os outros dois olhavam-no com uma certa indulgência, o que surpreendera Bosmans em relação ao chefe de escritório, habitualmente tão severo.
- Então, quanto ao Bando da Alegria... já tomou uma decisão?
Mérovée fizera a pergunta a Bosmans num tom seco e este
procurava um pretexto para se levantar da mesa. Dizer-lhes, por exemplo, que precisava de ir telefonar. Afastar-se-ia da sua companhia. Mas pensava em Margaret Le
Coz, que era colega de escritório deles. Arriscava-se a encontrá-los de novo, todas as noites, quando fosse buscá-la.
- Então, agradar-lhe-ia ser membro do nosso Bando da Alegria?
Mérovée insistia, cada vez mais agressivo, como se quisesse
provocar Bosmans. Dir-se-ia que os outros dois se preparavam para seguir o combate de boxe, o moreno de cara de buldogue com um leve sorriso, o louro impassível
por detrás dos óculos escuros.
- Sabe - declarara Bosmans numa voz calma -, depois do internato e da caserna, não aprecio muito grupos.
Mérovée, desconcertado pela resposta, esboçara o seu sorriso de velho. Falavam de coisas diferentes. O chefe de escritório, numa voz grave, explicara a Bosmans que
frequentavam o ginásio duas vezes por semana. Praticavam diversas modalidades, entre as quais o boxe francês e o judo. E havia mesmo uma sala de armas com um professor
de esgrima. E, aos sábados, inscreviam-se para um cross ou para uma corrida na pista de atletismo no Bois de Vincennes.
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- Devia praticar desporto connosco...
Bosmans tivera a impressão de que o outro lhe dava uma ordem.
- Tenho a certeza de que não pratica desporto suficiente...
Fixava-o nos olhos e Bosmans tinha dificuldade em sustentar aquele olhar.
- Então, vem praticar desporto connosco?
O rosto largo de buldogue iluminava-se num sorriso.
- Concorda com um dia da próxima semana? Inscrevo-o na rue Caumartin?
Desta vez, Bosmans não soube o que responder. Sim, aquela insistência recordava-lhe os velhos tempos do internato e da caserna.
- Há pouco, disse-me que não gostava de grupos? - perguntou-lhe Mérovée numa voz aguda. - Prefere com certeza a companhia de Mlle Le Coz?
Os outros dois pareceram embaraçados com a observação. Mérovée conservava o sorriso mas, ainda assim, parecia temer a reação de Bosmans.
- Com certeza, é mesmo isso. Tem razão, sem dúvida - respondera calmamente Bosmans.
Deixara-os no passeio. Afastavam-se entre a multidão, o chefe de escritório e o louro de óculos escuros caminhando lado a lado. Mérovée, ligeiramente atrás, voltou-se
e acenou-lhe com a mão. E se a memória o estivesse a trair? Fora, talvez, numa outra noite, às sete horas, em frente do prédio de escritórios, quando aguardava a
saída de Margaret Le Coz.
Alguns anos mais tarde, pelas duas horas da madrugada, atravessava de táxi a rotunda onde se cruzam a rue du Colisée e a avenue Franklin-Roosevelt. O motorista deteve-se
no sinal vermelho. Mesmo em frente, junto ao passeio, viu um indivíduo imóvel, muito hirto, trajando uma capa curta preta, calçando sandálias sem meias. Bosmans
reconheceu Mérovée. Rosto mais magro, cabelo muito curto. Estava de sentinela e, à passagem de cada viatura, esboçava um sorriso. Ou antes, um ricto. Dir-se-ia que
se oferecia a clientes de além-túmulo. Era uma noite de janeiro particularmente fria. Bosmans sentiu vontade de se lhe juntar, falar
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com ele, mas pensou que o outro não o reconheceria. Ainda estava a vê-lo, através da janela de trás, e até a viatura dar a curva no Rond-Point. Não conseguia deixar
de fixar aquela silhueta imóvel, de capa preta, e lembrou-se bruscamente do rapaz gordo de pele branca que tantas vezes acompanhava Mérovée e parecia admirá-lo muito.
Que teria sido feito dele?
Havia dezenas e dezenas de fantasmas daquele género. Impossível nomear a maior parte deles. Assim, limitava-se a apontar uma vaga indicação no caderno. A rapariga
morena da cicatriz, que se encontrava sempre à mesma hora na linha Porte-d'Orléans/Porte-de Clignancourt... Em geral, era uma rua, uma estação de metro, um café
que ajudava aqueles fantasmas a emergir do passado. Lembrava-se da mendiga de gabardina, porte de antigo manequim, com quem se cruzara várias vezes em bairros diferentes:
rue du Cherche-Midi, rue de l'Alboni, rue Corvisart...
Surpreendera-o que, entre os milhões de habitantes que contava uma grande cidade como Paris, fosse possível cruzar-se com a mesma pessoa, ao cabo de longos espaços
de tempo, e sempre num local muito distante do precedente. Pedira a opinião de um amigo que fazia cálculos de probabilidades consultando números do jornal Paris
Turf dos últimos vinte anos para apostar nas corridas. Não, não havia nenhuma resposta. Então, Bosmans pensara que o destino, às vezes, insiste. Cruzamo-nos duas,
três vezes com a mesma pessoa. E, se não lhe dirigimos a palavra, pior para nós.

O nome da empresa? Qualquer coisa como "Richelieu ínterim". Sim, digamos; Richelieu ínterim. Um grande edifício da rue du Quatre-Septembre, outrora sede de um jornal.
Uma cafetaria no rés do chão, onde se encontrara duas ou três vezes com Margaret Le Coz porque o inverno, nesse ano, fora rigoroso. Mas preferia esperar por ela
na rua.
Na primeira vez, subira para a ir buscar. Um enorme elevador de madeira clara. Preferira a escada. Em cada piso, nas portas de dois batentes, uma placa com o nome
de uma empresa. Tocara à campainha da que indicava Richelieu ínterim. A porta abrira-se automaticamente. Ao fundo da sala, do lado de lá de um balcão
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encimado por um vidro, Margaret Le Coz estava sentada a uma das secretárias, como outras pessoas à sua volta. Bosmans batera no vidro, ela levantara a cabeça e acenara-lhe
para que a aguardasse em baixo.
Mantinha-se sempre um pouco afastado, na beira do passeio, para não ser envolvido pelo fluxo dos que saíam do edifício à mesma hora, enquanto retinia uma campainha
estridente. Nos primeiros tempos, receara não a distinguir no meio da multidão, e propusera-lhe que usasse uma peça de vestuário graças à qual pudesse identificá-la:
um casaco vermelho. Tinha a impressão de esperar alguém à chegada de um comboio, alguém que importa reconhecer no meio dos viajantes que passam. Ao fundo, os retardatários
que descem da última carruagem, levam-nos a não perder a esperança.
Margaret Le Coz trabalhara durante cerca de quinze dias numa dependência da Richelieu Interim, não muito longe, perto de Notre-Dame-des-Victoires. Ele esperava-a,
também ali, às sete horas da noite, na esquina da rue Radziwill. Vinha sozinha quando saía do primeiro edifício à direita e, ao vê-la caminhar na sua direção, Bosmans
pensara que Margaret Le Coz não corria o risco de se perder na multidão - um receio que o assaltava em certos momentos, desde o primeiro encontro.
Naquela noite, em redor da place de l'Opéra, tinham-se reunido manifestantes frente a uma fila de CRS(1) que formavam uma cadeia ao longo do boulevard, aparentemente
para proteger a passagem de um cortejo oficial. Bosmans conseguira esgueirar-se pelo meio da multidão até à entrada do metro, antes da carga da polícia. Mal descera
os primeiros degraus quando, atrás dele, começaram a refluir manifestantes que empurravam os que os precediam nas escadas. Perdera o equilíbrio e arrastara à sua
frente uma jovem de impermeável, ficando os dois encostados à parede, sob pressão dos outros. Ouviam-se sirenes da polícia. Estavam quase a sufocar, quando a pressão
aliviou. A multidão continuava a escoar ao longo
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das escadas. Hora de ponta. Entraram juntos para uma carruagem. A rapariga ferira-se contra a parede e sangrava da arcada superciliar. Saíram duas estações mais
adiante e ele levara-a a uma farmácia. À saída da farmácia, caminharam lado a lado. Ela levava um penso na arcada superciliar, e ele ostentava uma mancha de sangue
na gola do impermeável. Uma rua calma. Eram os únicos transeuntes. Anoitecia. Rue Bleue. Este nome parecera irreal a Bosmans. Perguntara-se se não estaria a sonhar.
Muitos anos mais tarde, voltara a encontrar-se por acaso naquela rue Bleue, e uma ideia pregara-o ao chão: será realmente verdade que as palavras que duas pessoas
trocam no seu primeiro encontro se dissipam no vazio, como se nunca tivessem sido proferidas? E os murmúrios de vozes, as conversas ao telefone dos últimos cem anos?
Os milhares de palavras segredadas ao ouvido? Todos os fragmentos de frases tão pouco importantes que são condenados ao esquecimento?
- Margaret Le Coz. Le Coz em duas palavras.
- Mora neste bairro?
- Não. Para os lados de Auteuil.
E se todas estas palavras ficassem suspensas no ar até ao fim dos tempos e bastasse um pouco de silêncio e de atenção para captar os seus ecos?
- Então, trabalha neste bairro?
- Sim. Num escritório. E o senhor?
Bosmans ficou surpreendido pela voz calma, a maneira tranquila e lenta de caminhar, como num passeio, uma serenidade aparente que contrastava com o penso na arcada
superciliar e a mancha de sangue no impermeável.
- Oh, eu... eu trabalho numa livraria...
- Deve ser interessante...
O tom era cortês, desprendido.
- Margaret Le Coz, é bretão?
- Sim.
- Então, nasceu na Bretanha?
- Não. Em Berlim.
Respondia às perguntas com uma grande delicadeza, mas Bosmans sentia que não diria muito mais. Berlim. Cerca de quinze
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dias mais tarde, esperava Margaret Le Coz no passeio, às sete horas da noite. Mérovée fora o primeiro a sair do edifício. Usava um fato domingueiro - um desses fatos
de ombros estreitos confecionados por um alfaiate da época, chamado Renoma.
- Vai connosco esta noite? - perguntou ele a Bosmans na sua voz metálica. - Organizámos uma saída... Uma boîte dos Champs-Élysées... Le Festival...
Proferira "Festival" num tom deferente, como se se tratasse de um local sagrado da vida noturna e parisiense. Bosmans declinara o convite. Mérovée postara-se então
à sua frente:
- Estou a ver... Prefere sair com a Boche...
Bosmans tinha por princípio nunca reagir à agressividade dos outros, nem aos insultos, nem às provocações. A não ser por meio de um sorriso absorto. Tendo em conta
a sua estatura e o seu peso, o combate seria, na maior parte das vezes, desigual. Além disso, vendo bem, as pessoas não eram assim tão maldosas.
Nessa primeira noite, continuaram os dois a caminhar, ele e Margaret Le Coz. Tinham chegado à avenue Trudaine, uma avenida da qual se costuma dizer que não se sabe
onde começa nem onde acaba, porventura por formar uma espécie de enclave ou de clareira e por o trânsito automóvel ser escasso. Sentaram-se num banco.
- Que faz no escritório?
- Trabalho como secretária. E traduzo correspondência em alemão.
- Ah, sim, é verdade... Nasceu em Berlim...
Gostaria de saber por que razão aquela bretã nascera em Berlim, mas permanecia em silêncio. Consultara o relógio.
- Espero que passe a hora de ponta para apanhar o metro...
Esperaram, pois, num café em frente do Liceu Rollin. Bosmans fora, durante dois ou três anos, aluno interno daquela escola, como de muitos outros internatos de Paris
ou de província. À noite, fugia do dormitório e caminhava ao longo da avenida silenciosa até às luzes de Pigalle.
- Prosseguiu os estudos?
Fora por causa da proximidade do Liceu Rollin que lhe fizera a pergunta?
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- Não. Não prossegui os estudos.
- Nem eu.
Estranha coincidência aquela, estar sentado em frente dela, naquele café da avenue Trudaine... Um pouco mais adiante, no mesmo passeio, a "Escola Comercial". Um
colega do Liceu Rollin, cujo nome esquecera, um rapaz anafado e moreno, que usava sempre botas forradas, convencera-o a inscrever-se naquela "Escola Comercial".
Bosmans fizera-o unicamente para adiar a incorporação militar, mas só lá estivera duas semanas.
- Acha que devo conservar o penso?
Esfregava com o dedo a arcada superciliar e o penso, um pouco mais acima. Bosmans aconselhou-a a conservar o penso até ao dia seguinte. Perguntou-lhe se sentia dores.
Ela encolheu os ombros.
- Não, não me dói muito... Há pouco, julguei que ia sufocar...
A multidão, na boca do metro, as carruagens a abarrotar, todos os dias, à mesma hora... Bosmans lera algures que um primeiro encontro entre duas pessoas é como um
ligeiro ferimento que sentimos e nos desperta da solidão e do torpor. Mais tarde, quando recordava o primeiro encontro com Margaret Le Coz, pensava que aquele encontro
não podia ter-se produzido de outra maneira; ali, naquela boca do metro, projetados um contra o outro. Mas, numa outra noite, no mesmo local, teriam descido a mesma
escada, no meio da mesma multidão e teriam viajado na mesma carruagem sem se verem... Seria, de facto, assim?
- A verdade é que me apetece tirar o penso...
A jovem tentava puxar pela extremidade do adesivo, entre o polegar e o indicador, mas não conseguia. Bosmans aproximara-se dela.
- Espere... Eu ajudo-a...
Descolava suavemente o adesivo, milímetro após milímetro. O rosto de Margaret Le Coz estava muito perto do dele. A jovem procurava sorrir. Por fim, Bosmans conseguiu
retirar o penso completamente, com um gesto seco. Acima da arcada superciliar, a marca de um hematoma.
A mão esquerda de Bosmans pousara no ombro da jovem. Esta fixava-o com os seus olhos claros.
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- Amanhã de manhã, no escritório, vão pensar que andei à pancada...
Bosmans perguntou-lhe se não podia pedir dispensa por uns dias, por causa do "acidente". Ela sorriu, aparentemente comovida com tamanha ingenuidade. Na empresa Richelieu
ínterim ninguém retomava o seu lugar após a mais breve ausência.
Caminharam até à place Pigalle, pelo mesmo caminho que Bosmans seguia quando fugia do dormitório do Liceu Rollin. À entrada do metro, ofereceu-se para a acompanhar
a casa. O ferimento não a incomodava demasiado? Não. Além disso, àquela hora, as escadas, os corredores e as carruagens estavam desertos e não corria nenhum risco.
- Vá esperar-me um dia, às sete horas, à saída do escritório -disse-lhe ela na sua voz calma, como se, doravante, fosse uma coisa natural. - É o número 25 da rue
du Quatre-Septembre.
Nenhum deles tinha caneta ou papel para apontar o endereço, mas Bosmans tranquilizou-a; nunca se esquecia do nome das ruas e dos números dos edifícios. Era a sua
maneira muito própria de lutar contra a indiferença e o anonimato das grandes cidades, e porventura igualmente contra as incertezas da vida.
Seguiu-a com o olhar enquanto ela descia as escadas. E se a esperasse em vão, à noite, à saída do escritório? Ao pensar que poderia não voltar a vê-la, a angústia
apoderou-se dele. Procurou, sem sucesso, lembrar-se em que livro estava escrito que todos os primeiros encontros eram como um ferimento. Devia ter lido isso nos
tempos do Liceu Rollin.
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Na primeira noite em que Bosmans a foi buscar à saída do escritório, ela acenara-lhe com a mão, no meio dos que saíam do prédio. Vinha acompanhada pelos outros,
Mérovée, o moreno de cara de buldogue e o louro de óculos escuros. Margaret Le Coz apresentou-os, dizendo; "os meus colegas".
Mérovée convidou-os a tomar uma bebida, um pouco mais adiante, no Firmament, e Bosmans sentiu-se impressionado pela sua voz metálica. Margaret Le Coz lançou um olhar
furtivo a Bosmans antes de se voltar para Mérovée e dizer:
- Não posso demorar-me muito... Tenho de ir para casa mais cedo do que habitualmente.
- Ai sim, a sério?
E Mérovée encarara-a de forma insolente. Postado em frente de Bosmans, soltara uma gargalhada de inseto.
- Tenho a impressão de que quer raptar-nos Mlle Le Coz?
Bosmans respondera, com um ar pensativo:
- Ai sim... parece-lhe?
No café, sentado ao lado dela, ambos enfrentavam os outros três. O moreno de cabeça de buldogue mostrava-se de mau humor. Debruçou-se sobre Margaret Le Coz e disse-lhe:
- A tradução do relatório estará terminada em breve?
- Amanhã à noite, senhor.
Chamava-lhe senhor por ele ser muito mais velho do que todos os outros. Sim, cerca de trinta e cinco anos.
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- Não estamos aqui para falar de trabalho - disse Mérovée, fixando o moreno de cabeça de buldogue, com um ar de criança malcomportada à espera de apanhar um tabefe.
O outro não se deu por achado, como se estivesse habituado àquelas observações e sentisse mesmo uma certa indulgência pelo jovem.
- Foi o senhor que andou à pancada com a nossa colega?
Mérovée fizera a pergunta a Bosmans de imprevisto, apontando para a arcada superciliar de Margaret Le Coz.
Esta permanecia impassível. Bosmans fingiu não ter ouvido. Instalou-se o silêncio. O empregado de café não se aproximava da mesa deles.
- Que querem beber? - perguntou o louro de óculos escuros.
- Pede cinco imperiais sem espuma - respondeu Mérovée num tom seco.
O louro levantou-se e dirigiu-se ao balcão para fazer o pedido. Margaret Le Coz trocou um olhar com Bosmans, e este teve a impressão de que se tratava de um olhar
cúmplice. Procurava uma frase para romper o silêncio.
- Trabalham, então, no mesmo escritório?
A frase afigurou-se-lhe estúpida mal acabou de a proferir. E prometeu a si mesmo não fazer mais nenhum esforço para entabular uma conversação. Nunca mais.
- Não propriamente no mesmo escritório - disse Mérovée. - Este senhor tem um gabinete só para ele.
E apontava para o moreno de cabeça de buldogue que conservava um semblante austero. O silêncio, de novo. Margaret Le Coz não tocava na sua bebida. E Bosmans também
não sentia nenhuma vontade de beber cerveja àquela hora.
- E o senhor, o que faz na vida?
A pergunta fora-lhe feita pelo moreno de cabeça de buldogue, que lhe dirigia um estranho sorriso, em contraste com a dureza do olhar.
A partir daquele instante, e à exceção do rosto de Margaret, os rostos e as vozes perdem-se na noite dos tempos, como um disco riscado que se interrompe abruptamente.
De resto, aproximava-se
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a hora do encerramento do café que, por razões que Bosmans sempre ignoraria, se chamava Le Firmament.
Caminham os dois até à estação de metro. É nessa noite que Margaret Le Coz lhe diz que gostaria muito de mudar de emprego e abandonar definitivamente a Richelieu
ínterim e os colegas com quem há pouco se tinham reunido. Todos os dias lê os anúncios de oferta de empregos e todos os dias anseia por uma frase que lhe abra outros
horizontes. Na place de l'Opéra são poucas as pessoas que entram para a estação do metro. Já passou a hora de ponta. Já não se veem cordões de polícias em redor
dos passeios da praça, nem ao longo do boulevard des Capucines mas, em frente da Ópera, dois ou três homens permanecem a postos ao lado dos seus luxuosos carros
de aluguer, à espera de um cliente que não virá.
No momento de descer a escada, Bosmans passou-lhe o braço pelos ombros como se quisesse protegê-la de um empurrão tão violento como o da outra noite, mas percorrem
corredores desertos e são os únicos, no cais, à espera de embarcar. Lembra-se de um longo trajeto de metro no fim do qual se encontra no quarto de Margaret Le Coz,
em Auteuil.
Bosmans quis saber por que razão ela escolhera alugar um quarto naquele bairro distante.
- É mais seguro - respondeu ela. Depois, corrigira de imediato: - É mais tranquilo...
Bosmans surpreendera no seu olhar uma certa inquietação, como se corresse algum perigo. E, numa noite em que se encontraram depois do trabalho, no bar de Jacques,
o Argelino, muito perto da casa de Margaret Le Coz, perguntou-lhe se conhecia mais pessoas em Paris, além dos colegas de escritório. Ela hesitou:
- Não... ninguém... só tu...
Vivia em Paris desde o ano precedente. Antes disso, estivera na província e na Suíça.
Bosmans lembrava-se dos intermináveis trajetos de metro com Margaret Le Coz, nas horas de ponta. E, desde que tomava notas no caderno preto, tivera dois ou três
sonhos em que a via no meio da multidão, à saída do emprego. E também um sonho no qual se
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encontravam de novo esmagados contra a parede, por causa da pressão dos que, por sua vez, eram empurrados na escada pelos que vinham atrás. No dia seguinte, ocorrera-lhe
uma ideia que apontara no caderno: "Naquele tempo, sentimento de estarem perdidos na multidão, ele e Margaret." Achara dois cadernos verdes, marca Clairefontaine,
cujas páginas se encontravam preenchidas por uma caligrafia pequena e apertada que acabara por reconhecer: a sua. Um livro que tentara escrever no ano em que conhecera
Margaret Le Coz, uma espécie de romance. À medida que ia folheando os cadernos, impressionava-se com a letra muito mais cerrada do que era habitualmente a sua. E,
sobretudo, apercebia-se de que ocupava as margens e escrevia sem mudar de linha ou de página, e de que não havia nenhum espaço em branco naquele manuscrito. Era,
sem dúvida, a sua maneira pessoal de exprimir um sentimento de asfixia.
Às vezes, escrevia durante a tarde no quarto de Margaret Le Coz, onde se refugiava na sua ausência. A janela da mansarda abria para um jardim abandonado no meio
do qual se erguia uma faia vermelha. Naquele inverno, uma camada de neve cobriu o jardim mas, muito antes da data indicada pelo calendário para o início da primavera,
já as folhas da árvore quase atingiam o vidro da janela. Assim sendo, por que razão, naquele quarto aprazível, afastado do mundo, a caligrafia, nas páginas dos cadernos,
era tão apertada? Por que razão era tão negro e sufocante o que ele escrevia? Nesse tempo, Bosmans nunca fizera a si próprio estas perguntas.
Naquele bairro, aos sábados e aos domingos, sentiam-se longe de tudo. Logo na primeira noite em que fora esperá-la à saída do trabalho e se tinham encontrado com
Mérovée e os outros, ela dissera-lhe que preferia ficar no seu bairro nos dias em que não trabalhava. Os colegas sabiam o seu endereço? Claro que não. Quando lhe
perguntaram onde morava, ela falara-lhes de uma residência para estudantes. Fora das horas de trabalho, não se dava com eles. Não se dava com ninguém. Num sábado
à noite em que estavam os dois em Auteuil no bar de Jacques, o Argelino, sentados a uma mesa do fundo, em frente do vitral luminoso, Bosmans comentou:
- Se bem compreendo, escondes-te e moras aqui com um nome fictício...
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Ela sorriu, mas com um sorriso contrafeito. Aparentemente, não apreciava muito aquele género de humor. No caminho do regresso, na esquina da rue des Perchamps, deteve-se,
como se tivesse decidido fazer-lhe uma confissão. Ou recearia que alguém a esperasse um pouco adiante, em frente à porta do prédio?
- Anda um tipo à minha procura, nos últimos meses...
Bosmans perguntou-lhe quem era o tipo. Ela encolheu os
ombros. Talvez se arrependesse de lhe ter feito tal confidência.
- Um tipo que eu conheci...
- E tens medo dele?
- Sim.
Ela, agora, parecia aliviada. Permanecia imóvel e fixava em Bosmans os olhos claros.
- O tipo tem o teu endereço?
- Não.
O tipo também não sabia onde ela trabalhava. Bosmans procurou tranquilizá-la. Paris é grande. É impossível encontrar alguém nas filas das horas de ponta. Nenhum
deles se destacava da multidão. Eram anónimos. Como distinguir uma Margaret Le Coz? E um Jean Bosmans? Enlaçara-a pelos ombros, caminhavam ao longo da rue des Perchamps.
Era de noite e esforçavam-se por não escorregar nas placas de gelo. Silêncio a toda a volta. Bosmans ouvia o sino de uma igreja. Contou as badaladas em voz alta,
estreitando-a mais contra si. Onze horas. Àquela hora, só o bar de Jacques, o Argelino, na rue Poussin, permanecia aberto no bairro. Bosmans sentiu-se muito longe
de Paris.
- Aqui, não há nenhuma razão para que alguém te descubra.
- Achas?
Margaret Le Coz olhava para a entrada do prédio à sua frente, com um ar inquieto. Ninguém. Havia noites em que não pensava no assunto. Nos outros dias, pedia-lhe
que fosse esperá-la, sem falta, à saída do emprego. Receava que o "tipo" tivesse descoberto o seu rasto. Bosmans gostaria de saber mais, mas ela mostrava-se reticente
em fornecer pormenores. E, durante os momentos de despreocupação, esperava que ela acabasse por esquecer.
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Num sábado à noite, à saída de um cinema em Auteuil, ela disse-lhe que lhe parecia estarem a ser seguidos por um homem. Bosmans voltou-se, mas ela pegou-lhe no
braço e arrastou-o para que estugassem o passo. De facto, um homem caminhava cerca de vinte metros atrás, uma silhueta de estatura média envergando um sobretudo
com galões.
- Esperamos por ele? - perguntou Bosmans num tom descontraído.
Margaret Le Coz apertava-lhe o braço e puxava-o para a frente. Mas ele não se mexia. O outro aproximava-se. Ultrapassou-os sem lhes prestar atenção. Não, felizmente,
não era quem ela temia.
De regresso, no quarto da rue des Perchamps, ele comentou, num tom jocoso:
- Então, o tal tipo... gostaria de saber como ele é... para o identificar na rua...
Moreno, cerca de trinta anos, bastante alto, rosto magro. Em suma, Margaret fazia-lhe o retrato vago do homem. Mas Bosmans continuava a fazer-lhe perguntas. Não,
o homem não vivia em Paris. Conhecera-o na província ou na Suíça, não se lembrava muito bem. Um mau encontro. E qual era a sua profissão? Não sabia, uma espécie
de caixeiro-viajante, sempre em deslocação pelos hotéis de província e, de vez em quando, em Paris. Mostrava-se cada vez mais evasiva, e Bosmans adivinhava que,
para lutar contra o medo, envolvia o indivíduo numa bruma, interpunha entre os dois uma espécie de vidro fosco.
Naquela noite, no quarto, ele disse-lhe que aquilo não tinha importância. Devia simplesmente ignorar tal indivíduo e, se o visse surgir algum dia, passar adiante
sem sequer lhe lançar um olhar. De resto, não era a única a querer evitar alguém. Ele próprio também não podia atravessar certos bairros de Paris sem apreensões.
- Então, tu também... tens medo de encontrar certas pessoas?
- Imagina um casal de cerca de cinquenta anos - disse Bosmans. - Uma mulher de cabelo ruivo e olhar duro, um homem
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moreno, com um ar de padre sem sotaina. A mulher de cabelo ruivo é a minha mãe, a avaliar pela certidão de nascimento. - Na sua juventude, sempre que Bosmans tinha
o azar de se cruzar com o casal, na rue de Seine e nas proximidades, era sempre a mesma coisa: a mãe caminhava ao seu encontro, queixo agressivo, e pedia-lhe dinheiro,
no tom autoritário de quem repreende uma criança. O homem moreno mantinha-se afastado, imóvel, e observava-o com severidade, como se quisesse suscitar nele a vergonha
de existir. Bosmans ignorava por que razão aqueles dois seres lhe manifestavam tamanho desprezo. Remexia as algibeiras, à procura de algumas notas de banco. Dava-as
à mãe, que as embolsava com um gesto brusco. Afastavam-se os dois, muito hirtos e muito dignos, o homem em pose de toureiro. A Bosmans, restava apenas o suficiente
para comprar um bilhete de metro.
- Mas porque lhes dás dinheiro?
Margaret Le Coz parecia realmente intrigada com o que Bosmans acabara de lhe relatar.
- É realmente a tua mãe? E não tens mais família?
- Não.
Ela esquecia durante alguns instantes o homem que temia ver um dia à sua espera, em frente de casa.
- Como vês, toda a gente se arrisca a ter maus encontros -disse Bosmans.
E acrescentou que o casal já por várias vezes batera à porta do seu quarto, no décimo quarto arrondissement, para lhe pedir dinheiro. Um dia, não lhes abriu a porta.
Mas eles voltaram mais tarde. O homem aguardava na rua, sempre vestido de preto, porte altivo. A mãe subira e pedira o dinheiro numa voz seca, como se se dirigisse
a um inquilino que há muito não pagasse a renda. Da janela, vira-os afastar-se pela rua adiante, hirtos e dignos como sempre.
- Felizmente, mudei de endereço. Já não podem importunar-me.
Naquela noite, Bosmans fez-lhe mais perguntas. Margaret Le Coz não soubera nada do tipo desde que trabalhava na Richelieu ínterim. Também mudara de endereço para
que o homem perdesse o seu rasto. Antes de se fixar naquele quarto de Auteuil,
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morara em vários hotéis perto da Étoile, um dos quais na rue Brey. E fora aí que ele acabara por a descobrir. Fugira do hotel a meio da noite, sem sequer fazer a
mala.
- Então, não tens nada a recear - dissera Bosmans. - Ele deve estar de guarda ao hotel até ao final dos tempos.
Margaret Le Coz soltara uma gargalhada, o que tranquilizou Bosmans. Talvez os outros dois também o esperassem no antigo endereço, a fim de lhe pedirem mais dinheiro.
Imaginava-os no passeio, a mulher de cabelo ruivo, cabeça erguida, qual figura de proa, e o homem sempre muito hirto na sua pose de toureiro.
- E como se chama o tipo? - perguntou Bosmans. - Podes, pelo menos, dizer-me o nome dele.
Margaret Le Coz hesitou um instante. Uma expressão inquieta estampada no olhar.
- Boyaval.
- Não tem nome próprio?
Ela não respondeu. Parecia, de novo, preocupada. Bosmans não insistiu.
Nevava, naquela noite. Bastava convencerem-se, disse ele, de que se encontravam muito longe de Paris, na montanha, algures em Engadine. Quatro sílabas que se proferiam
suavemente, apaziguavam e faziam esquecer os maus encontros.
Boyaval. Alegrava-o ter atribuído um nome àquele indivíduo que tanto parecia preocupar Margaret. Uma vez conhecido o nome, tornava-se possível enfrentar o perigo.
Dispunha-se, sem o conhecimento de Margaret, a neutralizar Boyaval como neutralizara a mulher de cabelo ruivo - a mãe, segundo julgava saber - e o homem vestido
de preto sobre o qual hesitava em dizer se parecia um padre sem sotaina ou um falso toureiro.
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Com o tempo... Há dias, caminhava pela rue de Seine. O bairro mudara desde a época, já remota, da mulher de cabelo ruivo e do padre sem sotaina. Porém, via avançar
na sua direção, pelo passeio em que se deslocava, uma mulher alta apoiada numa bengala. Reconheceu-a ao longe, embora não a vislumbrasse há trinta anos: a mulher
que, de acordo com o registo civil, era sua mãe. Já não tinha o cabelo ruivo, mas branco. Usava um impermeável verde-garrafa, de corte militar, botas de montanha
e, a tiracolo, uma espécie de sacola presa por uma correia. Caminhava num passo firme. Aparentemente, a bengala não lhe servia de nada, uma bengala que mais parecia
um alpenstock.
Ela também o reconheceu. Bosmans detivera-se em frente do antigo Café Fraysse e fitava a, petrificado, como se encarasse uma das Górgonas. A mulher examinou-o de
alto a baixo, queixo espetado para a frente, em ar de desafio. Dirigiu-lhe uma torrente de impropérios numa língua gutural que ele não compreendia. Ergueu a bengala
e tentou atingi-lo na cabeça. Mas, como ele era muito alto, a bengala bateu-lhe no ombro, provocando-lhe uma dor intensa.
Bosmans recuou. A extremidade, ferrada, aflorou-lhe o pescoço. A mulher apoiava-se na bengala, muito hirta, ainda com o queixo arrogante, e fixava-o com uns olhos
que, a Bosmans, pareceram muito mais pequenos e duros do que outrora.
Afastou-se delicadamente para a deixar passar.
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- Minha senhora...
A mulher não se mexia. Num gesto imperioso, estendeu a palma da mão bem aberta. Mas Bosmans não levava dinheiro consigo.
Prosseguiu o seu caminho. Chegou ao alto da praceta da rue Mazarine e voltou-se. Lá atrás, a mulher continuava imóvel, observando-o numa atitude altiva. Passou
a mão pelo pescoço e viu sangue na ponta dos dedos. A bengala ferira-o. Meu Deus, com o tempo, quão irrisório parece o que outrora nos molestou e quão irrisórias
se tornam igualmente as pessoas que o acaso ou a má sorte nos impõem na infância ou na adolescência, e inscrevem no nosso bilhete de identidade. Assim, de tudo aquilo,
restava apenas uma espécie de velha alpinista alemã com o seu uniforme verde-garrafa, a sacola e o alpenstock, lá atrás, no passeio. Bosmans riu-se às gargalhadas.
Atravessou a pont des Arts e entrou no recinto do Louvre.
Na infância, brincava ali tardes inteiras. A esquadra da polícia, lá adiante, à direita, ao fundo da grande cour Carrée, a esquadra que tanto o atemorizava, os
agentes de pé à entrada, com ar de guardas aduaneiros num posto fronteiriço, já nada disso existia. Caminhava a direito, sempre em frente. Anoitecera. Alcançou rapidamente
a entrada da pequena rue Radziwill, onde ia esperar Margaret Le Coz quando esta trabalhava numa dependência da Richelieu ínterim. Ocupava sozinha os escritórios
da dependência e sentia-se verdadeiramente aliviada por já não "ter à perna", como dizia, Mérovée e os outros. Desconfiava deles, em particular de Mérovée e do chefe
de escritório, o moreno de cara de buldogue. Num dia em que Bosmans lhe perguntara em que consistia exatamente o trabalho na Richelieu ínterim, ela respondera:
- Sabes, Jean, eles têm ligações com a prefeitura da polícia.
Mas corrigira de imediato:
- Oh, é um trabalho administrativo... Como uma subempreitada, de certo modo...
Bosmans não se atrevera a confessar que ignorava o significado de "subempreitada" e, de resto, sentia que Margaret queria deixar o assunto por ali. Ainda assim,
ele perguntara:
- Porquê com a prefeitura da polícia?
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- Creio que Mérovée e os outros trabalham, de certo modo, para a prefeitura da polícia... Mas isso não me diz respeito... Pedem-me que escreva à máquina e traduza
relatórios em troca de seiscentos francos por mês... O resto...
Bosmans ficara com a impressão de que ela lhe transmitia aqueles pormenores para se justificar. Envidou uma derradeira tentativa:
- Mas, afinal, o que é ao certo a Richelieu ínterim?
Ela encolheu os ombros.
- Oh... uma espécie de empresa de contenciosos...
Como acontecia com "subempreitada", Bosmans também não sabia o que significava "contencioso". E não lhe apetecia que fosse ela a explicar-lho. Seja como for, dissera
Margaret, espero encontrar um novo emprego brevemente. Portanto, Mérovée e os outros trabalhavam "de certo modo" para a prefeitura da polícia... O que evocava um
vocábulo que, não obstante uma sonoridade envolvente, tinha qualquer coisa de sinistro: delatora.(1) Mas Margaret conhecê-lo-ia?
Esperava-a sempre à mesma hora à entrada da rue Radziwill, uma rua estreita onde não passavam carros e sobre a qual Bosmans se perguntava se não se trataria de
um beco sem saída. Àquela hora, era de noite. Duas ou três vezes, fora mesmo buscá-la ao gabinete, por causa do frio demasiado intenso para esperar na rua. O primeiro
edifício, à direita. Entrava-se por uma porta muito baixa. Uma escada de duplo acesso onde quem subia nunca se cruzava com quem descia. Mas o prédio também tinha
uma porta principal, na rue de Valois. Bosmans dissera a Margaret que não tinha nada a recear do tal Boyaval. Se ele a esperasse de um lado, escapar-se-ia pela outra
saída. E se, por acaso, se encontrassem na escada de duplo acesso, ela e Boyaval, não se veriam e ela teria tempo de fugir. Margaret ouvia com atenção, mas estes
conselhos não pareciam tranquilizá-la verdadeiramente.
Quando Bosmans subia ao seu encontro, atravessava um hall de paredes cobertas de cacifos metálicos e no centro do qual se via
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uma mesa repleta de pastas e arquivos. O telefone tocava sem que alguém respondesse. A divisão em que trabalhava Margaret Le Coz era mais exígua e a janela dava
para a rue de Valois. A lareira e o espelho que a encimava indicavam que o gabinete fora outrora um quarto. Nas noites em que se encontrava com ela, antes de descerem
a escada de duplo acesso e saírem para a rue de Valois, Bosmans tinha a certeza de que estavam fora do tempo, longe de tudo, porventura ainda mais do que no quarto
de Auteuil.
O silêncio, o telefone do hall que tocava em vão, a máquina de escrever na qual Margaret acabava de redigir um "relatório", tudo isso suscitava nele uma impressão
de sonho acordado.
Dirigiam-se para a estação de metro percorrendo as arcadas desertas do Palais-Royal. Bosmans lembrava-se da galeria comercial daquela estação de metro e perguntava-se
se ainda existiria. Eram várias lojas, um cabeleireiro, uma florista, um vendedor de tapetes, cabinas telefónicas, uma montra de roupa interior feminina com cintas
de outros tempos e, ao fundo, um estrado onde norte-africanos agachados aos pés de homens sentados em poltronas de cabedal lhes engraxavam os sapatos. De resto,
num cartaz afixado no início da galeria lia-se a seguinte inscrição, que intrigava Bosmans desde a infância: W.C. Engraxadores.
Numa noite em que ele e Margaret passavam em frente do estrado "W.C. Engraxadores", antes de descerem as escadas que conduziam aos cais do metro, ela puxou-o pelo
braço. Disse-lhe em voz baixa que julgava ter reconhecido Boyaval, sentado numa das poltronas a engraxar os sapatos.
- Espera um minuto - disse-lhe Bosmans.
Deixou-a ao cimo das escadas e encaminhou-se num passo firme em direção a "W.C. engraxadores". Um único cliente, sentado numa das poltronas do estrado, envergando
um sobretudo bege. Era um moreno de cerca de trinta anos, rosto magro mas aspeto próspero. Podia gerir uma garagem situada na zona dos Champs-Élysées ou mesmo um
restaurante do mesmo bairro. Fumava um cigarro enquanto um homem baixo de cabelo branco, ajoelhado, lhe engraxava os sapatos, o que não só não agradava a Bosmans
como o indignava. Ele, habitualmente tão delicado
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e tímido, tinha por vezes acessos súbitos de raiva e revolta. Hesitou um segundo, pousou a mão no ombro do homem e apertou os dedos com força. O outro lançou-lhe
um olhar estupefacto.
- Largue-me imediatamente!
A voz era dura, ameaçadora. Bosmans desejava do fundo do coração que aquele indivíduo fosse Boyaval. Gostava de enfrentar o perigo. Afrouxou a pressão dos dedos.
- O senhor chama-se Boyaval?
- De modo nenhum.
O homem levantou-se e postou-se diante de Bosmans numa atitude defensiva.
- Tem a certeza? - perguntou-lhe Bosmans numa voz calma. -Não se chama Boyaval?
Levava uma cabeça de altura em relação ao homem e pesava mais do que ele. O outro parecia ter reparado no facto. Continuava calado.
- Nesse caso, paciência.
Foi juntar-se a Margaret, ao cimo da escada. Encontrou-a muito pálida.
- Então?
- Não é ele.
Estavam ambos sentados num banco, à espera do metro. Bosmans viu que as mãos de Margaret tremiam ligeiramente.
- Mas porque tens tanto medo dele?
Margaret não respondeu. Bosmans lamentava que o homem não fosse Boyaval. Alimentara a esperança de acabar com ele de uma vez por todas. Era idiota, aquela ameaça
a pairar no ar, aquele tipo presente mas invisível que a aterrorizava sem que ela lhe dissesse exatamente porquê. Ele não tinha medo de nada. Pelo menos, era o que
repetia constantemente a Margaret para a tranquilizar. Depois de ter sido obrigado a enfrentar, desde a infância, a mulher de cabelo ruivo e o padre sem sotaina,
não se deixara impressionar por ninguém. Continuava a repeti-lo a Margaret, ali, naquele banco da estação de metro. Queria distraí-la, descrevendo-lhe o casal que
ainda lhe acontecia enfrentar, de vez em quando, ao virar de uma esquina: o homem de cabelo curto cortado
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à escovinha, faces cavadas, olhar inquisidor; a mulher de queixo trágico, sempre ignóbil na sua túnica afegã... Margaret ouvia-o e acabava por sorrir. Bosmans dizia-lhe
que nada daquilo tinha realmente importância, nem os dois indivíduos que o perseguiam com a sua hostilidade, sem que ele compreendesse porquê e lhe pediam sempre
dinheiro, nem Boyaval, nem nada. De um dia para o outro, podiam trocar Paris por novos horizontes. Eram livres. Margaret meneava a cabeça como se ele a tivesse convencido.
Continuavam sentados no banco e deixavam passar as carruagens do metro.
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Alguém lhe segredara uma frase durante o sono: distante Auteuil, bairro encantador das minhas grandes tristezas, e apontou-a no caderno, ciente de que certas palavras
que ouvimos em sonhos, e que nos impressionam e nos decidimos a fixar, nos escapam ao acordar ou perdem todo o sentido.
Naquela noite, Bosmans sonhara com Margaret Le Coz, o que raramente lhe acontecia. Estavam os dois sentados a uma mesa do bar de Jacques, o Argelino, a mesa mais
perto da porta de entrada, e esta encontrava-se completamente aberta para a rua. Era um fim de tarde de verão e o sol incidia nos olhos de Bosmans. Perguntou-se
se o seu rosto seria o de hoje ou o dos seus vinte e um anos. O dos vinte e um anos, com certeza. De contrário, ela tê-lo-ia olhado com um ar estranho e não o teria
reconhecido. Uma luz límpida banhava todo o ambiente, por causa da porta aberta para a rua. Acudiram-lhe à ideia algumas palavras, certamente o título de um livro:
Uma porta aberta para o verão. Fora, porém, no inverno que conhecera Margaret Le Coz, um inverno muito frio que lhe parecera interminável. O bar de Jacques, o Argelino,
era um refúgio onde se abrigavam das tempestades de neve e não se lembrava de alguma vez ali se ter encontrado com Margaret no verão.
Bosmans observava um fenómeno estranho: a luz do sonho iluminava tudo o que fora real, as ruas, as pessoas com quem ele e Margaret tinham convivido juntos. E se
fosse aquela a luz verdadeira, aquela que banhava os dois naquela época? Sendo assim, porque
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teria, naquele tempo, preenchido os dois cadernos com uma letra miudinha que traía uma sensação de angústia e asfixia?
Julgou ter encontrado a resposta: tudo o que vivemos no dia a dia é marcado pelas incertezas do presente. Por exemplo, ela receava deparar com Boyaval em cada esquina,
e Bosmans receava deparar com o casal inquietante que o perseguia, sem que ele compreendesse porquê, cheio de malevolência e desdém e que lhe teria com certeza esvaziado
os bolsos, se tivesse morrido, ali, na rua, com uma bala no coração. Mas de longe, à distância dos anos, as incertezas e as apreensões vividas no presente apagam-se,
como interferências que nos impedem de ouvir pela rádio uma música cristalina. Sim, agora, pensando bem, era tal e qual como no sonho: eu e Margaret, sentados um
em frente do outro numa luz límpida e intemporal. Foi, de resto, o que nos explicou o filósofo que encontrámos certa noite em Denfert-Rochereau.
- O presente está sempre cheio de incertezas, hein? Interrogam-se, angustiados, sobre o que será o futuro, hein? E depois o tempo passa e o futuro torna-se passado,
hein? - dizia ele.
E, à medida que falava, ia sublinhando as frases com aquele gemido cada vez mais doloroso.
Quando Bosmans lhe perguntou porque escolhera um quarto no distante bairro de Auteuil, ela respondeu:
- É mais seguro.
Bosmans também se refugiara quase na periferia, na extremidade de Tombe-Issoire, a fim de escapar ao agressivo casal que o perseguia. Mas o casal descobrira o endereço
e a mãe fora, certa noite, bater-lhe à porta do quarto enquanto o homem aguardava na rua. No dia seguinte, o bairro de Tombe-Issoire e de Montsouris afigurara-se-lhe
muito menos seguro do que julgara. Voltava-se antes de entrar no prédio e, quando subia a escada, tinha medo de que as duas personagens o esperassem ao fundo do
corredor, em frente à porta do quarto. E depois, decorridos alguns dias, deixou de pensar no assunto. Encontrou outro quarto no mesmo bairro, na rue de l'Aude. Felizmente,
também é preciso contar, como dizia o filósofo, com a despreocupação da juventude, hein? Havia mesmo dias de sol em que Margaret não o fixava com os seus olhos inquietos.
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Distante Auteuil... Olhava para o pequeno mapa de Paris nas duas últimas páginas do caderno de capa sintética. Sempre imaginara que poderia encontrar no interior
de certos bairros as pessoas que conhecera na juventude, com a idade e o aspeto de antigamente. Viviam ali uma vida paralela, ao abrigo do tempo... Nos recantos
secretos desses bairros, Margaret e os outros ainda viviam como eram dantes. Para os alcançar, teria de conhecer passagens ocultas através dos prédios, ruas que,
à primeira vista, pareciam becos e não figuravam no mapa. Em sonhos, sabia como aceder a esses sítios a partir de uma determinada estação de metro. Mas, ao acordar,
não experimentava essa necessidade de verificar a Paris real. Ou antes, não se atrevia.
Certa noite, esperava Margaret no passeio da avenue de l'Observatoire, encostado ao gradeamento do jardim, e esse momento destacava-se dos outros, fixo na eternidade.
Porquê essa noite, na avenue de l'Observatoire? Mas em breve a imagem se moveu de novo, o filme continuou e tudo se tornou simples e lógico. A primeira noite em
que Margaret foi a casa do professor Ferne. Em Auteuil, apanharam o metro até Montparnasse-Bienvenüe. Novamente a hora de ponta. Então, preferiram percorrer o resto
do caminho a pé. Margaret estava adiantada em relação à hora do encontro. As estações do ano confundiam-se. Ainda devia ser inverno, pouco tempo depois da breve
passagem de Margaret pelos escritórios da rue Radziwill. E, no entanto, quando chegaram à entrada do jardim de l'Observatoire, pareceu a Bosmans, com quarenta anos
de distância, que era uma noite de primavera ou de verão. As copas das árvores formavam uma abóbada por cima do passeio em que seguiam, ele e Margaret. Esta disse-lhe:
- Podes acompanhar-me.
Mas ele achou que não seria muito digno. Não, esperaria em frente do prédio onde morava o professor Ferne. Olhava para a fachada. Qual era o andar do professor Ferne?
Com certeza aquele em que uma enfiada de portas envidraçadas se encontrava iluminada. De costas apoiadas contra o gradeamento da praceta, pensava que talvez as suas
vidas tomassem um novo rumo a partir daquela noite. Estava tudo tranquilo e sereno, as folhas das árvores, o silêncio, a fachada do prédio onde se viam esculpidas,
por
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cima da porta da entrada, cabeças de leões. E os leões pareciam estar de guarda e observar Bosmans com um ar sonhador. Uma das portas envidraçadas abrir-se-ia e
ouvir-se-ia alguém tocar piano.
À saída do edifício, Margaret declarou que estava tudo combinado. Vira a mulher do professor. Não tomaria conta das crianças a tempo inteiro, mas três dias por
semana. A mulher do professor explicara-lhe que não se tratava propriamente de um emprego de governanta. Não. Seria mais uma jovem au pair, com a diferença de não
ser obrigada a dormir naquela casa.
Nessa noite, ele ofereceu-se para lhe mostrar o quarto em que vivia, ao fundo do décimo quarto arrondissement, na rue de l'Aude. Não foram de metro. Caminharam
ao longo de uma avenida ladeada por hospícios e conventos, perto do Observatoire, onde Bosmans imaginava alguns sábios, em silêncio e na penumbra, que observavam
as estrelas através de um telescópio. Talvez o professor Ferne fosse um deles. De que seria ele professor? Margaret ignorava-o. Reparara numa grande biblioteca no
apartamento, com uma escada de madeira clara para aceder às últimas prateleiras. Todos os livros estavam encadernados e pareciam muito antigos.

No dia em que Margaret soube que teria de se apresentar em casa do professor Ferne, Bosmans foi buscá-la mais cedo do que habitualmente. Precisava de passar pela
agência de emprego Stewart, faubourg Saint-Honoré, para obter o endereço do professor Ferne e lhe fornecerem o dia e a hora da entrevista.
Foram recebidos por um homem louro de olhos pequenos e azuis e Bosmans perguntou-se se seria o próprio Stewart. Este não se surpreendeu com a presença de Bosmans
e convidou-os a sentarem-se em cadeirões de cabedal, em frente da secretária.
- Finalmente, encontrámos-lhe um emprego - disse o homem a Margaret. - Já tardava...
E Bosmans percebeu que ela se inscrevera na Agência Stewart muito antes de começar a trabalhar para a Richelieu ínterim.
- É uma pena - observou o homem louro - que não possua uma carta de recomendação de M. Bagherian, para quem trabalhou na Suíça.
- Já não tenho o endereço dele - justificou-se Margaret.
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O homem louro retirou de um arquivador uma ficha que pousou à sua frente. Bosmans viu, no cimo da folha de papel, uma fotografia tipo passe. O louro pegou numa
folha de papel com o cabeçalho da Agência Stewart. Copiou para a folha as indicações escritas na ficha. Franziu o sobrolho e ergueu a cabeça:
- Nasceu em Berlim... Reinickendorf?
Hesitou nas sílabas da última palavra. Margaret corou ligeiramente.
- Sim.
- É de origem alemã?
Sempre a mesma pergunta. Manteve-se em silêncio. Acabou por responder numa voz clara:
- Não propriamente.
O homem continuava a copiar a ficha de maneira aplicada. Dir-se-ia que fazia os trabalhos de casa. Bosmans trocou um olhar com Margaret. O outro dobrou o papel e
inseriu-o num envelope no qual também se via o cabeçalho da Agência Stewart.
- Deverá remeter este envelope ao professor Ferne.
Passou o sobrescrito para a mão de Margaret.
- Creio que o trabalho não será demasiado difícil. Duas crianças de cerca de doze anos.
Os pequenos olhos azuis fixavam-se agora em Bosmans.
- E o senhor? Procura trabalho?
Bosmans nunca soube explicar porque respondera: sim. Ele, que por vezes se mostrava tão violento, evitava frequentemente contrariar os seus interlocutores e não
se atrevia a recusar as propostas mais imprevisíveis.
- Se procura um emprego, podemos inscrevê-lo na Agência Stewart.
Em momentos como aquele, Bosmans costumava dissimular o embaraço por trás de um sorriso, e o homem louro deve ter tomado o sorriso como sinal de assentimento. Pegou
numa ficha da empresa.
- Apelido e nome próprio?
- Jean Bosmans.
- Habilitações?
No momento de responder que não possuía outros diplomas para além do do liceu, Bosmans experimentou uma súbita lassidão
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e quis pôr termo à entrevista, mas receou comprometer o futuro de Margaret e desapontar o homem.
Este perguntava-lhe a naturalidade, a data de nascimento e o endereço. Apanhado de surpresa, Bosmans declarou a verdadeira data de nascimento e o endereço no número
28 da rue de l'Aude.
- Quer assinar aqui?
Indicou-lhe o fundo da folha e estendeu-lhe uma caneta. Bosmans assinou.
- Vou precisar de uma fotografia. Envie-ma pelo correio.
Margaret parecia surpreendida com tanta docilidade. Depois
de assinar, Bosmans disse ao homem;
- Sabe, para já, talvez não precise de trabalho.
- Surgem oportunidades - respondeu ele, como se não tivesse ouvido. - Enquanto esperamos por empregos fixos, aparecem trabalhos temporários.
Silêncio. O louro levantou-se.
- Desejo-lhe muita sorte - disse ele a Margaret.
Acompanhou-os até à porta do escritório. Apertou a mão a Bosmans.
- Contactá-lo-emos.
Na rua, Margaret perguntou-lhe porque deixara o homem preencher uma ficha em seu nome. Bosmans encolheu os ombros.

Quantas fichas, questionários, cartões de inscrição preenchidos na sua letra pequena, para agradar a alguém, para se ver livre de alguém, ou mesmo por indiferença,
por nada... A única assinatura que fizera com gosto, fora a da inscrição na Faculdade de Medicina, aos dezoito anos, mas não o aceitaram por não ter feito o exame
de Ciências.
No dia seguinte ao da visita à agência, Bosmans enviou uma fotografia tipo passe para a Agência Stewart. Disse a Margaret que, assim, era mais prudente e que não
deviam levantar ondas...
A Agência Stewart ainda existiria? Pensou em ir certificar-se pessoalmente. No caso de ainda ocupar as mesmas instalações, procuraria nos arquivos a sua ficha e
a de Margaret, com as fotografias da época. E talvez fosse recebido pelo mesmo louro de pequenos olhos azuis. E tudo recomeçaria como dantes.
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Naquele tempo, a livraria não era muito frequentada. Bosmans procurava lembrar-se da configuração do espaço. A livraria propriamente dita, com a sua secretária
de madeira escura. A porta do fundo, que dava acesso a uma espécie de armazém de telhado de vidro, uma arrecadação cheia de livros. Numa das paredes, um cartaz antigo
onde estava escrito: Castrol. Mesmo na extremidade, a porta de ferro corrediça abria para outra rua. Bosmans concluíra que se tratava de uma antiga garagem. De resto,
numa tarde em que folheara os arquivos, encontrara o contrato de arrendamento original. Sim, era de facto isso: a livraria e as Éditions du Sablier tinham substituído
a Garagem de l'Angle.
Uma escada larga, de corrimão de ferro, conduzia da livraria à sobreloja outrora ocupada pelos escritórios da editora. Na porta da direita, uma placa de cobre com
o nome do editor gravado: "Lucien Hornbacher." Um corredor. Depois, uma grande sala bastante sombria à qual Bosmans chamava sala de fumo. Um sofá e poltronas de
cabedal escuro. Cinzeiros de pé alto. Um tapete persa no chão. E, a toda a volta, estantes envidraçadas. Continham todos os livros publicados pelas Éditions du Sablier
ao longo dos vinte anos de existência.
Bosmans passava muitas vezes o início da tarde no antigo gabinete de Lucien Hornbacher. Da janela, avistavam-se, pelo traçado da avenue Reille, as primeiras árvores
do parc Montsouris. Deixava a porta aberta para ouvir o débil toque de campainha que anunciava a entrada de cada cliente no rés do chão. A secretária era pequena
mas maciça, com numerosas gavetas de cada lado. A cadeira giratória não fora substituída desde o tempo de Lucien Hornbacher. Um sofá encostado à parede, em frente
da janela, coberto de veludo azul-noite. No centro da secretária, uma ampulheta, o símbolo da editora. Bosmans reparara que ostentava a marca de um importante ourives
e surpreendia-o que, ao longo de tanto tempo, não tivesse sido roubada. Tinha a impressão de ser o guarda de um local abandonado. Lucien Hornbacher desaparecera
durante a guerra e, vinte anos depois, Bourlagoff, o responsável pela contabilidade, que ia regularmente à livraria, referia-se sempre por meias palavras a esse
desaparecimento. Era um homem de cerca de cinquenta anos, cabelo grisalho cortado à escovinha, tez bronzeada. Na juventude, trabalhara para Hornbacher. Até quando
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poderia subsistir a livraria? Sempre que interrogava Bourlagoff sobre o futuro incerto das antigas Éditions du Sablier, Bosmans obtinha respostas vagas.
Os livros outrora publicados por Lucien Hornbacher enchiam as prateleiras da livraria, no rés do chão. Uma grande parte destes livros tratava de ocultismo, de religiões
orientais e de astronomia. O catálogo incluía igualmente trabalhos de erudição sobre diversos temas. No início, Hornbacher editara alguns poetas e alguns autores
estrangeiros. Mas os clientes que ainda se aventuravam a entrar na livraria interessavam-se, em geral, por ciências ocultas e iam à procura de obras que não encontravam
em mais nenhum sítio e que Bosmans ia muitas vezes buscar ao armazém.
Como descobrira aquele emprego? Numa tarde em que passeava perto de casa, no décimo quarto arrondissement, a tabuleta, meio apagada que encimava a montra, Éditions
du Sablier, despertara a sua atenção. Entrara. Bourlagoff estava sentado à secretária. Começaram a conversar. Bourlagoff procurava alguém que se ocupasse da livraria
quatro dias por semana... Um estudante. Bosmans dissera-se interessado, mas que não era "estudante". Nenhum inconveniente. Pagar-lhe-ia, pelo trabalho, duzentos
francos por semana.
A primeira visita que Margaret lhe fez no local de trabalho foi num sábado de sol de inverno. Pela janela do gabinete de Hornbacher, ele avistara-a, lá adiante,
na esquina da avenue Reille. Lembrava-se de que ela hesitara um momento. Parara no passeio, olhando da esquerda para a direita, para os dois lados da avenida, como
se se tivesse esquecido do número da livraria. Depois, retomara o mesmo trajeto. Devia ter visto a montra, de longe. A partir desse dia, sempre que marcavam encontro
nas antigas Éditions du Sablier, ele espreitava pela janela a chegada de Margaret. Esta caminha sempre ao seu encontro pelo passeio inclinado da avenue Reille, banhada
por uma luz límpida de inverno quando o céu está azul, mas também poderia ser no verão porque se vê, ao fundo, a folhagem das árvores do parque. Às vezes chove,
mas a chuva não parece incomodá-la. Caminha debaixo de chuva com o habitual passo tranquilo. Limita-se a agasalhar-se, apertando com a mão a gola do casaco vermelho.
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Bosmans fora ao apartamento do professor Ferne algumas sextas-feiras à noite, o único dia da semana em que o professor e a mulher saíam até à meia-noite e Margaret
tomava conta dos filhos. Ela acompanhava-os ao início da tarde, a filha ao Colégio Sévigné, o rapaz ao Liceu Montaigne. Jantava com eles. Ficava livre depois do
jantar, e Bosmans aguardava-a na avenue de l'Observatoire.
Certa noite, Margaret foi procurá-lo junto do gradeamento da praceta e disse-lhe que teria de tomar conta das crianças durante mais algum tempo. Os Ferne estavam
em casa de um colega e não regressariam logo depois do jantar. Margaret convidou-o a subir ao apartamento, mas ele hesitou. Não achava que a sua presença chocaria
o professor e a mulher, quando regressassem, e perturbaria as crianças? Não se sentia nada à vontade com aquele género de pessoas, e as suas profissões intimidavam-no:
ele, Georges Ferne, professor de Direito Constitucional numa escola de muito altos estudos, e ela, a Dra. Suzanne Ferne, advogada nos tribunais de Paris, como indicava
o papel de carta que Margaret lhe mostrara.
Bosmans acompanhara-a ao apartamento com uma certa apreensão. O que o levava a introduzir-se no apartamento como um ladrão? O que o impressionara, no vestíbulo,
fora uma certa austeridade. As paredes eram de madeira escura. Quase nenhum móvel na sala que dava para o jardim de l'Observatoire. De resto, tratava-se
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realmente de uma sala? Viam-se duas secretárias pequenas em frente das janelas e Margaret explicou-lhe que o professor Ferne e a mulher trabalhavam muitas vezes
lado a lado, cada um sentado à sua secretária.
Naquela noite, as duas crianças, envergando roupões de tecido escocês, estavam sentadas no sofá de cabedal preto da sala. Quando Margaret e Bosmans entraram, ambos
liam e debruçavam sobre os livros o mesmo rosto atento. Levantaram-se e foram apertar a mão a Bosmans num gesto cerimonioso. Não se mostraram nada surpreendidos
pela sua presença.
O rapaz lia um compêndio de Matemática. Bosmans admirou-se por o ver tomar notas nas margens. A rapariga deixava-se absorver por um livro de capa amarela dos Clássicos
Garnier: Os Pensamentos, de Pascal. Bosmans perguntara-lhes a idade. Onze e doze anos. Felicitara-os pela seriedade e precocidade. Mas eles pareciam insensíveis
aos elogios, como se se tratasse de uma atitude óbvia. O rapaz encolhera os ombros e mergulhara de novo no compêndio e a rapariga lançara um sorriso tímido a Bosmans.
Entre as duas janelas da sala estava pendurada uma fotografia emoldurada: o professor Ferne e a mulher, muito jovens, sorridentes, mas com uma certa gravidade no
olhar, e trajando a beca de advogados. Nas raras noites em que Bosmans se encontrou com Margaret no apartamento, aguardavam, no sofá de cabedal, o regresso do professor
e da mulher. Margaret ia deitar as crianças e concedia-lhes mais uma hora de leitura na cama. Numa mesa redonda, um candeeiro de quebra-luz vermelho difundia uma
luz quente e apaziguadora que formava zonas de penumbra. Bosmans voltava-se para as janelas e imaginava o professor e a advogada Ferne, cada um na sua secretária,
e estudando dossiers. Aos fins de semana, talvez os filhos ficassem junto deles, no sofá, absorvidos nos seus livros, e assim passavam as tardes de sábado, e nada
perturbava o silêncio observado por aquela família estudiosa.
Aquele silêncio e aquela tranquilidade, Bosmans julgava aproveitar-se deles como se cometesse uma fraude, junto de Margaret. Levantava-se para olhar pela janela
e perguntava se se o jardim de
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l'Observatoire, lá em baixo, não se encontrava numa cidade estrangeira aonde tinham acabado de chegar, ele e Margaret.
Na primeira vez, experimentou uma intensa apreensão quando ouviu abrir e fechar-se a porta do apartamento, por volta da meia-noite, e as vozes do professor Ferne
e da mulher no vestíbulo. Olhou fixamente para Margaret e sentiu que lhe transmitiria o pânico se não se recompusesse. Levantou-se e caminhou até à porta da sala
no momento em que os Ferne entravam. Estendeu-lhes a mão como quem se lança à água e ficou perfeitamente apaziguado quando, um após outro, eles lhe apertaram a mão.
- Jean Bosmans - gaguejou.
Eram tão compenetrados quanto os filhos. E, como os filhos, pareciam não se surpreender com nada, muito menos com a presença de Bosmans. Teriam, ao menos, ouvido
o seu nome? O professor Ferne mantinha-se num plano superior, abstrato, em que as trivialidades da vida corrente eram ignoradas. E a mulher também, com o seu olhar
frio, o cabelo curto, uma certa rispidez no porte e na maneira de falar. Mas o que embaraçara Bosmans no primeiro encontro com eles naquela casa acabou por se tornar
tranquilizador, ao ponto de pensar que um relacionamento com aquelas duas pessoas lhe teria sido benéfico.
- O André estudou a lição de Matemática? - perguntou o professor a Margaret numa voz cuja doçura surpreendeu Bosmans.
- Sim, senhor professor.
- Reparei que escreve notas nas margens do livro... - tartamudeou Bosmans. - É formidável, na sua idade.
O professor e a mulher olharam-no fixamente. Talvez se sentissem chocados com o termo "formidável"?
- O André sempre gostou de Matemática - esclareceu o professor na sua voz doce, como se não visse naquilo nada de excecional nem de "formidável".
A Dra. Suzanne Ferne avançara na direção de Bosmans e Margaret.
- Boa-noite - disse-lhes ela, com uma leve inclinação da cabeça e um sorriso distante.
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E saiu da sala. O professor desejou-lhes por sua vez uma boa noite no mesmo tom desprendido da mulher, mas apertou a mão aos dois antes de se dirigir, também ele,
para a porta do fundo.
- É estranho - disse Margaret quando se encontraram a sós. - Poderíamos continuar toda a noite nesta sala... Ser-lhes-ia totalmente indiferente... Andam um pouco
nas nuvens...
Davam a impressão de não querer perder tempo com pormenores insignificantes e, acima de tudo, evitavam falar sem dizer nada. Bosmans imaginou que, na divisão do
fundo que servia de sala de jantar, mesmo as refeições eram tempo de estudo. As crianças, interrogadas sobre um tema de Matemática ou de Filosofia, respondiam de
forma clara, com a precocidade dos jovens músicos prodígios. O professor e a advogada Ferne, pensou Bosmans, deviam ter-se conhecido na faculdade. Conservavam, portanto,
alguma secura no seu relacionamento. Aparentemente, o que os unia era uma grande cumplicidade intelectual, uma camaradagem de antigos estudantes, mesmo na maneira
irónica de não se tratarem por tu.
Certa noite, à saída do prédio, no silêncio do jardim de l'Observatoire, Bosmans fez uma observação que suscitou em Margaret um ligeiro riso por causa do tom grave
que ele empregara:
- A inépcia não é o seu forte.
Bosmans recomendou-lhe que lhes dissesse que eram irmãos. Em sua opinião, Ferne e a mulher desdenhavam dos laços de ordem sentimental se não conduzissem a uma troca
contínua de ideias entre duas pessoas de sexo diferente. Mas sentia um grande respeito por eles e associava-os a palavras como: Justiça; Direito; Retidão. Numa noite
em que Margaret foi deitar as crianças e lhes concedeu excecionalmente, a conselho de Bosmans, duas horas suplementares de leitura, encontravam-se na sala, como
de costume.
- Devíamos pedir-lhes ajuda - disse Bosmans.
Margaret mostrava-se pensativa. Meneava a cabeça.
- Sim... seria bom...
- Não propriamente ajudar-nos - corrigiu Bosmans. - Seria mais um apoio, já que são advogados...
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Certa vez, Bosmans acompanhou Margaret até ao quarto das crianças e viu-os nas suas camas iguais, cada um com um livro escolar. Depois, Bosmans e Margaret aventuraram-se
pelo apartamento. A biblioteca ocupava uma pequena divisão e era consagrada ao Direito e às Ciências Humanas. Prateleiras de discos de música clássica. Um sofá e
um gira-discos no canto esquerdo da divisão. O professor e a advogada Ferne deviam sentar-se naquele sofá, lado a lado, para ouvir música, nos momentos de lazer.
No quarto, mesmo ao lado da biblioteca, não se atreveram a entrar. Pela porta entreaberta, avistaram duas camas separadas, como no quarto dos filhos. Voltaram para
a sala. Foi nessa noite que Bosmans sentiu quanto se encontravam entregues a si próprios. Que contraste entre o professor Ferne e a mulher, os filhos, aquele apartamento
tranquilo e o que os esperava lá fora, ele e Margaret, e os encontros que corriam o risco de vir a ter... Experimentava uma sensação praticamente igual, de segurança
e tranquilidade, durante a tarde, no antigo escritório de Lucien Hornbacher, quando se deitava no sofá de veludo azul-noite e folheava o catálogo das Éditions du
Sablier ou tentava escrever no caderno que trazia sempre consigo. Urgia decidir-se a falar com o professor e a mulher, pedindo-lhes um conselho ou mesmo apoio moral.
Como conseguiria descrever-lhes a mulher de cabelo ruivo e o padre sem sotaina? Admitindo que encontrasse as palavras adequadas, os Ferne não compreenderiam que
tais pessoas pudessem existir e encará-lo-iam com um ar embaraçado. E sabe Deus quem seria esse tal Boyaval sobre o qual Margaret nem ousava fornecer-lhe mais detalhes...
Decididamente, nem um nem outro tinham raízes na vida. Sem família. Sem recursos. Gente de nada. Às vezes, experimentava um vago sentimento de vertigem.
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Certa noite, no regresso a casa, o professor e a mulher pareceram-lhe mais acessíveis do que nas outras vezes. Quando entraram na sala, dirigiram-lhes algumas palavras
de amabilidade, a ele e a Margaret.
- Não estão muito cansados? - perguntou o professor Ferne na sua voz doce.
Bosmans julgou discernir uma expressão de benevolência no olhar que a mulher pousou neles.
- Oh, não... correu tudo muito bem - disse Margaret com um sorriso aberto.
O professor voltou-se para Bosmans.
- É estudante?
Bosmans ficou calado, petrificado pela timidez. Receava responder por palavras que o envergonhassem mal acabasse de as proferir.
- Trabalho numa editora.
- Ai sim? Qual?
Bosmans pensou que o professor e a mulher lhe estavam a dedicar uma atenção cortês. De pé, em frente dele e de Margaret, como se se preparassem para abandonar a
sala.
- Nas Éditions du Sablier.
- Não conheço essa editora - disse a Dra. Suzanne Ferne, com os modos bruscos que já haviam impressionado Bosmans.
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- Na realidade, ocupo-me mais da livraria...
Mas apercebeu-se de imediato da inutilidade daquele pormenor. A atenção do professor Ferne e da mulher começava a dispersar-se. Pormenores que, para eles, eram com
certeza desprezíveis. Talvez devesse dirigir-se-lhes de forma mais direta. Margaret encontrava-se na mesma situação que ele, nunca encontrava as palavras certas
para estabelecer um verdadeiro contacto com eles, limitava-se a sorrir ou a responder às raras perguntas a respeito dos filhos.
- E que género de obras podemos encontrar na sua livraria? -perguntou a mulher do professor num tom de pura cortesia.
- Oh... sobretudo livros respeitantes às ciências ocultas.
- Nós não somos muito versados em ciências ocultas - disse a mulher do professor, encolhendo os ombros.
Bosmans ganhou ânimo.
- Suponho que, enquanto estudantes de Direito, não tivessem muito tempo para se interessarem por ciências ocultas...
E apontou, num gesto hesitante, para a fotografia pendurada na parede, onde se viam os dois, jovens, envergando as becas.
- Tínhamos outros interesses - disse a mulher do professor Ferne numa voz grave que levou Bosmans a arrepender-se imediatamente da sua familiaridade.
Um breve silêncio. Margaret aproveitou, por sua vez, para tentar restabelecer o contacto.
- Aproxima-se o aniversário do André... Pensei que poderíamos oferecer-lhe um cãozinho...
Exprimiu-se num tom ingénuo e espontâneo. O professor e a mulher mostravam-se estupefactos, como se ela acabasse de proferir uma grosseria.
- Na nossa família, nunca tivemos nenhum cão - declarou a Dra. Suzanne Ferne.
Margaret baixou os olhos e Bosmans viu-a corar de confusão. Apeteceu-lhe acorrer em seu auxílio. Receou perder o sangue-frio e revelar uma violência que constituía
sempre uma surpresa naquele jovem de estatura e corpulência imponentes mas de modos reservados.
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- Não gostam de cães?
O professor Ferne e a mulher observavam-no em silêncio, com um ar de não terem compreendido a pergunta.
- Ainda assim, um cão agradaria às crianças - balbuciou Margaret.
- Não me parece - disse a mulher do professor. - O André não suportaria ser distraído do estudo da Matemática por um cão.
O seu rosto adquirira uma expressão severa, e Bosmans surpreendeu-se ao ver a que ponto aquele rosto, o cabelo castanho e curto, a linha do queixo forte, as pálpebras
algo pesadas, pareciam masculinos. Ao seu lado, o professor Ferne ostentava algo de frágil. O cabelo louro a tender para o ruivo? A tez pálida? Bosmans também observara
que a Dra. Suzanne Ferne, quando falava, se limitava a mexer os lábios, os olhos mantinham-se frios.
- Esqueçamos essa história do cão - disse o professor Ferne na sua voz doce.
Com certeza, esqueçamo-la, pensou Bosmans. Naquele apartamento austero, no meio daquela família que devia consagrar-se há várias gerações ao Direito e à magistratura,
e cujos filhos levavam dois anos de avanço em relação aos colegas de escola da mesma idade, não havia lugar para cães. No momento em que sentiu que os Ferne iam
sair da sala, deixando-os sozinhos, a ele e a Margaret, como nas outras noites, pensou que talvez devesse fazer outra tentativa.
- Tenho um conselho a pedir. - E, para ganhar coragem, lançou um olhar à fotografia em que ambos ostentavam as becas pretas.
Tê-lo-iam realmente ouvido? A voz era tão baixa... Recompôs-se imediatamente.
- Mas não quero retê-los... Fica para outra noite...
- Como queira - disse o professor Ferne. - Estou à sua disposição.
O professor e a mulher saíram da sala, lançando-lhes ambos o mesmo sorriso cortês.
- Que espécie de conselho lhes querias pedir? - perguntou Margaret.
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Bosmans já não sabia que responder. Sim, que conselho? A ideia de recorrer ao professor acudira ao seu espírito por causa da fotografia em que estavam vestidos
de advogados. Um dia, aventurara-se pela sala dos passos perdidos do Palácio de Justiça e observara a maneira majestosa e ao mesmo tempo leve com que todos aqueles
homens se deslocavam nas suas becas, algumas delas debruadas a arminho. Além disso, na sua infância, impressionara-o a fotografia de uma mulher jovem, sentada na
sala do Supremo Tribunal de Justiça, atrás de um daqueles homens de preto. Na legenda da foto podia ler-se; "Ao lado da acusada, o seu defensor com todo o rigor
e benevolência paternal..."
De que crime ou de que falta se sentia culpado, ele, Bosmans? Tinha muitas vezes o mesmo sonho: fora cúmplice de um delito muito grave, julgava ele, um cúmplice
secundário, de tal modo que ainda não o tinham identificado, mas um cúmplice, em todo o caso, sem saber porquê. E pairava sobre ele uma ameaça que esquecia momentaneamente,
mas que revia durante o sonho, e mesmo depois de despertar, de modo lancinante.
Que conselhos e que ajuda esperava do professor Ferne e da mulher? Naquela noite, mal saiu do apartamento, largou às gargalhadas. Encontrava-se dentro do elevador
com Margaret - um elevador de portas envidraçadas que descia lentamente e com um banco, no qual Bosmans se sentara - e não conseguia dominar o riso. Comunicou-o
a Margaret. Pedir a advogados que o defendessem contra o quê? A vida? Tinha dificuldade em imaginar-se face ao professor Ferne e à Dra. Suzanne Ferne, estes muito
solenes e ele cedendo às confidências, procurando explicar-lhes o sentimento de culpabilidade que sentia desde a infância sem saber porquê, e aquela impressão desagradável
de caminhar muitas vezes sobre areia movediça... Primeiro, nunca confiara o seu estado de espírito a ninguém, nem pedira ajuda a quem quer que fosse. Não, o que
o impressionava nos Ferne era a total confiança que, aparentemente, sentiam nas suas qualidades intelectuais e morais, a segurança pessoal cujo segredo gostaria
que lhe transmitissem.
Naquela noite, o gradeamento do jardim de l'Observatoire ficara aberto. Ele e Margaret tinham-se sentado num banco. O ar
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estava tépido. Lembrava-se de que Margaret trabalhara em casa do professor e da mulher durante o mês de fevereiro e uma parte do mês de março. Mas, nesse ano, a
primavera devia ter sido precoce, para que ficassem assim tanto tempo sentados no banco. Uma noite de lua cheia. Tinham visto apagar-se a luz em casa do professor
Ferne.
- Então, quando é que vais pedir-lhes conselhos? - perguntou ela.
E riram-se de novo os dois. Falavam em voz baixa, pois receavam ser vistos no jardim. Àquela hora tardia, a entrada era com certeza proibida ao público. Margaret
explicou-lhe que, ao chegar a Paris, se hospedara num hotel, perto da Étoile. Não conhecia ninguém. À noite, passeava pelo bairro. Havia uma praça um pouco mais
pequena do que o jardim de l'Observatoire, uma espécie de praceta com uma estátua e árvores, e Margaret sentava-se ali, num banco, como estavam naquele momento.
- Onde era? - perguntou Bosmans.
Estação de metro Boissière. Que coincidência... Nesse ano, Bosmans descia muitas vezes em Boissière, pelas sete horas da noite.
- Eu morava na rue de Belloy - disse-lhe Margaret -, Hotel Sévigné.
Poderiam ter-se encontrado naquele tempo, no bairro. Numa pequena rua pela qual Bosmans caminhava, à esquerda, um pouco adiante da boca do metro. Saía da livraria
das antigas Éditions du Sablier ao cair da noite. Tinha de fazer uma mudança em Montparnasse. Depois, a linha era direta até Boissière.
Bosmans procurava alguém que lhe passasse à máquina o que escrevera nos dois cadernos Clairefontaine, em letra miudinha, coberta de rasuras. Lera nos anúncios de
um jornal na rubrica "Pedidos de Emprego": Antiga secretária de direção. Para trabalhos de datilografia de todos os géneros. Simone Cordier. Rue de Belloy, 8.16e.
Telefonar à noite, de preferência a partir das 19 horas, Passy 63 04.
Porquê ir tão longe, do outro lado do Sena? Desde que a mãe e o padre sem sotaina tinham descoberto o seu endereço e ela fora
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pedir-lhe dinheiro, Bosmans desconfiava. O homem publicara uma pequena brochura de poesia na juventude e soubera que Bosmans também começara a escrever. Perseguira-o
com sarcasmos num dia em que se tinham encontrado na rua, por acaso. Ele, Bosmans, escritor... Mas não tinha a mínima noção do que era a literatura... Muitos concorrentes,
poucos eleitos... A mãe aprovava com um movimento altivo do queixo. Bosmans correra pela rue de Seine para lhes escapar. No dia seguinte, o homem enviara-lhe um
dos seus antigos poemas a fim de lhe mostrar aquilo de que era capaz, na mesma idade que ele. E que lhe servisse de lição de estilo. "Nenhum mês de junho foi mais
esplêndido / Que junho quarenta no solstício / Os adultos tinham perdido a guerra / E tu corrias pelos campos e esfolavas os joelhos / Rapaz puro e violento / Longe
das aldeãs das raparigas viciosas / O azul do céu nunca fora tão azul / Ao longe viste passar na estrada / O jovem condutor do tanque alemão / Cabelo louro ao sol
/ Teu irmão / Na infância."
Desde então, tinha muitas vezes um sonho; a mãe e o padre sem sotaina entravam no seu quarto sem que ele pudesse esboçar um gesto de defesa. Ela revistava-lhe os
bolsos à procura de uma nota de banco. O outro encontrava os cadernos Clairefontaine em cima da mesa. Lançava-lhes um olhar sinistro e rasgava-os cuidadosamente,
semblante impenetrável, qual inquisidor que destrói uma obra obscena. Por causa deste sonho, Bosmans queria tomar precauções. A datilografia, pelo menos, seria feita
sem o conhecimento daqueles dois indivíduos. Em terreno neutro.
A primeira vez que tocou à porta do apartamento do número 8, rue de Belloy, levava num grande envelope uma vintena de páginas copiadas por ele. Atendeu-o uma mulher
loura de cerca de cinquenta anos, olhos verdes, porte elegante. A sala estava vazia, sem o mínimo móvel, exceto um bar de madeira clara entre as duas janelas e um
banco alto. A mulher convidou-o a sentar-se no banco e ficou de pé atrás do bar. Preveniu-o imediatamente de que só podia datilografar uma dezena de páginas por
semana. Bosmans respondeu-lhe que não tinha importância e que era preferível assim: dedicaria mais tempo às correções.
- E de que se trata?
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A mulher pousou dois copos em cima do bar e serviu whisky. Bosmans não se atreveu a recusar.
- Trata-se de um romance.
- Ah... o senhor é romancista?
Bosmans não respondeu. Se tivesse dito sim, daria a impressão de um aventureiro que se apresenta sob falsas roupagens. Ou de um escroque, daqueles que batem à porta
dos apartamentos e prometem enciclopédias ilusórias, desde que lhes paguem um adiantamento.
Durante seis meses, deslocou-se regularmente a casa de Simone Cordier para lhe remeter novas páginas e recuperar as já datilografadas. Por precaução, pedira-lhe
que conservasse em sua casa as folhas manuscritas.
- Receia alguma coisa?
Lembrava-se perfeitamente de que, certa noite, a mulher lhe fizera esta pergunta, fixando-o com um olhar surpreendido e ao mesmo tempo benevolente. Naquele tempo,
a inquietação devia transparecer no seu rosto, na maneira de falar, de caminhar e mesmo de se sentar. Apoiava-se sempre no rebordo das cadeiras ou das poltronas,
apenas com uma nádega, como se não se sentisse realmente no seu lugar e se preparasse para fugir. Por vezes, esta atitude surpreendia num jovem de estatura elevada
e cem quilos de peso. Diziam-lhe: "Está mal sentado... Descontraia-se... Ponha-se à vontade...", mas era mais forte do que ele. Exibia frequentemente um ar de quem
se desculpa. De quê, afinal? Era a pergunta que muitas vezes fazia a si próprio quando caminhava sozinho pelas ruas. Desculpar-se de quê, hein? De viver? E não conseguia
evitar uma sonora gargalhada que levava os transeuntes a voltarem-se para trás.
E, no entanto, nos dias em que ia buscar as páginas datilografadas a casa de Simone Cordier, dizia para consigo que era a primeira vez que não experimentava um sentimento
de asfixia e que não se mantinha numa atitude de defesa. À saída do metro Boissière, não corria o risco de deparar com a mãe e o seu acompanhante. Estava longe,
numa outra cidade, quase numa outra vida. Por que razão a vida, justamente, o obrigara a cruzar-se com tais fantoches
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que imaginavam exercer poderes sobre ele? Mas não estará a pessoa mais protegida, mais favorecida pela sorte, à mercê, também ela, de um qualquer chantagista? Repisava
esta ideia para se consolar. Havia muitas histórias deste género nos romances policiais.
Foi nos meses de setembro e de outubro. Sim, respirava um ar leve pela primeira vez na vida. Saía das Éditions du Sablier antes de escurecer. Um verão quente que,
diziam, se prolongaria durante meses e meses. Porventura para sempre.
Antes de subir ao apartamento de Simone Cordier, entrava num café do prédio contíguo, na esquina da rue La Pérouse, para corrigir as páginas a entregar e, sobretudo,
as palavras ilegíveis. O texto datilografado por Simone Cordier vinha salpicado de sinais curiosos: alguns "O" atravessados por um traço, tremas no lugar dos acentos
circunflexos, cedilhas por baixo de certas vogais, e Bosmans perguntava-se se se trataria de uma ortografia eslava ou escandinava. Ou muito simplesmente de uma máquina
de marca estrangeira, cujas teclas correspondiam a caracteres desconhecidos em França. Não se atrevia a interrogar a datilógrafa. Preferia assim. Julgava dever conservar
tais símbolos, no caso de ter a sorte de vir a ser publicado. Correspondia ao texto e conferia-lhe o perfume exótico que lhe era necessário. Afinal, embora tentasse
exprimir-se num francês transparente, ele também era, como a máquina de escrever de Simone Cordier, de origem estrangeira.
Quando saía de casa dela, fazia novas correções no café, desta vez nas páginas datilografadas. Tinha o serão inteiro à sua frente. Preferia não sair daquele bairro.
Parecia-lhe atingir uma encruzilhada da sua vida, ou antes, uma orla da qual poderia dar um salto para o futuro. Pela primeira vez, acudia-lhe à ideia uma palavra:
futuro, e outra palavra: horizonte. Naquelas noites, as ruas desertas e silenciosas do bairro eram linhas de fuga que, todas elas, conduziam ao futuro e ao horizonte.
Hesitava em apanhar o metro para fazer o caminho de regresso ao décimo quarto arrondissement e ao seu quarto. Tudo isto fazia parte da sua antiga vida, uma roupagem
velha da qual se desfaria de um dia para o outro, um par de botas gastas. Ao longo da rue La Pérouse, na qual todos os prédios pareciam devolutos - não, via
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uma luz lá no cimo, numa janela de um quinto andar, talvez alguém que o esperasse há muito tempo -, sentia-se dominado pela amnésia. Já esquecera tudo da sua infância
e da adolescência. Bruscamente, libertava-se de um peso.
Cerca de vinte anos mais tarde, reencontrou-se por acaso no mesmo bairro. No passeio, acenava aos táxis que passavam, mas nenhum estava livre. Então, decidiu ir
a pé. Lembrou-se do apartamento de Simone Cordier, das páginas datilografadas com tremas e cedilhas.
Perguntou-se se Simone Cordier teria morrido. Neste caso, não teria sido preciso chamar os serviços de mudanças a um apartamento vazio. Talvez alguém tivesse descoberto,
atrás do bar, as páginas manuscritas que Bosmans outrora lhe confiara.
Enveredou pela rue de Belloy. Era de noite, à mesma hora em que dantes saía da boca de metro, e na mesma estação do ano, como se caminhasse no mesmo verão prolongado.
Deteve-se à entrada do Hotel Sévigné, que ocupava um dos primeiros edifícios da rua, precisamente antes do de Simone Cordier. A porta envidraçada estava aberta,
um pequeno lustre difundia no corredor uma luz branca. Naquele outono, sempre que ia buscar as páginas datilografadas, passava, como agora, em frente do hotel. Um
dia, chegara a pensar alugar um quarto e não voltar à outra margem. Acudiu-lhe ao espírito uma expressão: não voltar atrás.
Porque não encontrei Margaret naquele momento? Porquê alguns meses mais tarde? Devemos ter-nos cruzado naquela rua, ou mesmo no café da esquina, sem nos vermos.
Bosmans permanecia imóvel em frente da porta do hotel. Durante todo aquele tempo, deixara-se arrastar pelos acontecimentos quotidianos de uma vida, os que nos distinguem
da maior parte dos nossos semelhantes e se confundem aos poucos numa espécie de névoa, num fluxo monótono, aquilo a que se chama o decorrer das coisas. A Bosmans
parecia-lhe ter despertado bruscamente daquele torpor. Bastaria entrar, seguir pelo corredor até à receção e perguntar pelo número do quarto de Margaret. Deviam
restar alguns vestígios, um eco da sua passagem por aquele hotel e pelas ruas circundantes.
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Ela chegara da Suíça à gare de Lyon pelas sete horas da noite. Caminhou até à fila de espera dos táxis, com a mala de lona e cabedal que Bagherian lhe oferecera.
Quando o motorista lhe perguntou o endereço, adulterou o nome da rua. Disse: rue Bellot. O motorista não conhecia. Procurou no mapa. Havia uma rue Bellot, para os
lados da bacia de la Villette, mas Bagherian dissera: "perto da Étoile". Felizmente, o Hotel Sévigné dizia qualquer coisa ao motorista. Ah, sim, rue de Belloy.
Obrigaram-na a subir até ao último andar, quarto número 52. Na véspera, na Suíça, passara uma noite em claro no apartamento de Bagherian. Sentia-se demasiado cansada
para desfazer a mala. Deitou-se, vestida, em cima da cama e adormeceu.
Quando acordou, na penumbra, sentiu uma espécie de vertigem, como se fosse saltar borda fora. Mas reconheceu a mala de lona e cabedal ali tão perto, e ganhou confiança.
Tinha sonhado que viajava num barco e o balanço era tão violento que estava sempre prestes a cair do beliche.
A campainha de um telefone. Às apalpadelas, acendeu o candeeiro da mesa de cabeceira. Pegou no auscultador. A voz de Bagherian, ao longe. Interferências. Depois,
tudo se clarificou, dir-se-ia que lhe telefonava do quarto contíguo. Estava bem instalada? Dispensava-lhe conselhos de ordem prática: podia tomar as refeições no
hotel ou no café à esquina da rua; o melhor, para ela,
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seria permanecer naquele hotel até encontrar trabalho, e mesmo depois; se precisasse de dinheiro, que fosse da sua parte a um banco cujo endereço lhe fornecia. Ela
soube perfeitamente que nunca o faria. Recusara o envelope com dinheiro que ele quisera dar-lhe quando a acompanhara à gare de Lausanne. Só aceitara o salário de
governanta das crianças. Governanta: um termo utilizado por Bagherian. Era ele o primeiro a troçar de certas expressões antiquadas que lhe ocorriam frequentemente
e intrigavam Margaret Le Coz. Certo dia, ela elogiara-o pela maneira delicada de se exprimir. Ele explicara-lhe que fora educado em escolas francesas do Egito por
professores muito mais exigentes quanto à sintaxe e ao vocabulário do que os de Paris. Quando pousou o auscultador, Margaret perguntou-se se Bagherian voltaria a
telefonar-lhe. Talvez tivesse sido aquela a última vez que falara com ele. Sendo assim, ficaria sozinha naquele quarto de hotel, no meio de uma cidade desconhecida,
sem saber muito bem porquê.
Desligou o candeeiro da mesa de cabeceira. Naquele momento, preferia a penumbra. Produzira-se de novo uma rutura na sua vida, mas não lamentava o facto, nem se
inquietava. Não era a primeira vez... E acontecia sempre da mesma maneira; desembarcava numa gare sem ninguém à sua espera e numa cidade da qual nem sabia os nomes
das ruas. Nunca regressara ao ponto de partida. E, de resto, nunca houvera ponto de partida, como acontece com as pessoas que dizem ser originárias de certas províncias
e aldeias aonde vão de vez em quando. Ela nunca voltara a um sítio onde tivesse vivido. Por exemplo, nunca mais iria à Suiça, à Suíça que lhe parecera um refúgio
quando subira para o autocarro na estação rodoviária de Annecy e receara ficar retida na fronteira.
Experimentava uma sensação de alegria sempre que tinha de partir e, nos momentos em que se verificava uma rutura, persuadia-se de que a vida prevaleceria. Ignorava
se permaneceria muito tempo em Paris. Dependia das circunstâncias. Tinha a vantagem de ser fácil despistar uma pessoa numa grande cidade, e tornar-se-ia ainda mais
complicado para Boyaval identificá-la em Paris do que na Suíça. Dissera a Bagherian que procuraria trabalho - um trabalho de secretariado uma vez que falava alemão
- e de preferência
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em empresas nas quais passasse despercebida entre os outros. Ele mostrara-se surpreendido e mesmo vagamente inquieto. E porque não governanta, mais uma vez? Não
quisera contrariá-lo. Sim, governanta, desde que encontrasse uma família na qual se sentisse protegida.
Na tarde em que se apresentou na Agência Stewart, no faubourg Saint-Honoré, esperou muito tempo antes de ser recebida por um homem louro de cerca de cinquenta anos
e pequenos olhos azuis. O homem sentou-se à secretária e observou-a durante um momento com o olhar atento e frio de um negociante de cabeças de gado. Ela ficou de
pé, embaraçada. O tipo talvez se preparasse para lhe dizer numa voz seca: Dispa-se. Mas ele apontou-lhe a poltrona de cabedal à sua frente.
- Apelido e nome próprio?
Pegara numa ficha e retirara a tampa da caneta.
- Margaret Le Coz.
Em geral, perguntavam-lhe; em duas palavras? Ou então; é bretã? Mas o homem escreveu o nome na ficha sem lhe perguntar nada.
- Nascida em...?
Era naquele momento que as atenções recaíam sobre ela e lia a surpresa ou a curiosidade ou mesmo a desconfiança no olhar dos outros. Como gostaria de ter nascido
em Villeneuve-Saint Georges ou em Nevers...
- Berlim, Reinickendorf.
- Importa-se de soletrar?
Não se espantara. Parecia achar natural. Ela soletrou "Reinickendorf".
- É de origem alemã?
- Não. Francesa.
Sim, era preferível responder assim, de forma abrupta.
- Domicílio?
- Hotel Sévigné, rue de Belloy, número 8.
- Mora no hotel?
Teve a impressão de que o homem lhe lançava um olhar desconfiado. Esforçou-se por se exprimir num tom desprendido.
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- Sim, mas é absolutamente provisório.
O homem continuava a preencher a ficha, escrevendo devagar.
- Rue de Belloy, é no décimo sexto arrondissement?
- Sim.
Margaret Le Coz receou que o homem lhe perguntasse como pagava a conta do hotel. Era Bagherian quem se encarregava de o fazer. Dissera-lhe que podia permanecer no
Hotel Sévigné durante o tempo que quisesse, mas ela tinha pressa de encontrar trabalho para não depender dele.
- E tem referências?
Levantara os olhos da ficha e fixava-a de novo atentamente. Nenhuma maldade naquele olhar. Apenas frieza profissional.
- Estou a perguntar-lhe se já trabalhou como empregada doméstica?
- Fui governanta na Suíça.
Proferiu a resposta num tom seco, como se, bruscamente, quisesse desafiar aquele negociante de gado de olhos azuis. O homem meneava gravemente a cabeça.
- Na Suíça... É uma boa referência... Era governanta de várias crianças?
- De duas.
- E pode dar-me o nome dos seus empregadores?
- M. Bagherian.
Surpreendeu-a o facto de o homem não lhe pedir que soletrasse o nome. Ao escrevê-lo na ficha, continuava a menear a cabeça.
- Em tempos, tivemos M. Bagherian como cliente... Espere... Vou verificar...
Deu uma volta na cadeira, levantou-se e abriu a gaveta de um arquivo metálico do qual acabou por extrair uma ficha.
- Aqui está... M. Michel Bagherian... rue La Pérouse, número 37... Recorreu duas vezes aos nossos serviços...
Bagherian nunca dissera a Margaret Le Coz que vivera em Paris.
- Também procurava governantas...
O homem passara a observá-la com um certo respeito.
- E M. Bagherian vive atualmente na Suíça?
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Talvez procurasse prosseguir uma conversa mundana como a das duas velhas senhoras que Margaret Le Coz ouvira distraidamente, numa tarde em que ela e as duas crianças
aguardavam Bagherian no hall de um hotel de Ouchy.
- Sim, vive na Suíça.
O homem gostaria com certeza que ela lhe fornecesse outros pormenores. Mas Margaret Le Coz calou-se.
" Tentaremos escolher um empregador do nível de M. Bagherian - disse ele, acompanhando-a até à porta da agência. - Faça-me o favor de me enviar uma fotografia tipo
passe para que possamos anexá-la à ficha e uma declaração assinada por M. Bagherian.
No momento de abrir a porta, voltou-se para ela.
- Tenha paciência. Dir-lhe-emos alguma coisa.

Margaret Le Coz não se afastava muitas vezes do bairro. Nas primeiras noites, teve dificuldade em conciliar o sono. Acabava por adormecer por volta das três horas
da madrugada. Acordava às sete horas e sentia-se impaciente por sair do quarto. Ia buscar os jornais à Étoile, depois percorria o caminho inverso até ao café da
esquina da rue La Pérouse. Ali, lia os anúncios da rubrica "Ofertas de emprego". As últimas palavras que lhe dissera o louro da Agência Stewart: "Tenha paciência.
Dir-lhe-emos alguma coisa" não eram encorajadoras. Seria preferível não contar muito com aquela agência. Bagherian costumava telefonar-lhe por volta das sete horas
da noite. Sentia-se bem no Hotel Sévigné? Não, ainda não passara pelo banco. Mas tinha dinheiro que chegasse. Não lhe apetecia pedir-lhe a declaração para a Agência
Stewart. "Eu, abaixo assinado, Michel Bagherian, atesto que Mlle Margaret Le Coz me satisfez inteiramente..." Alguma coisa a incomodava em tudo aquilo e até mesmo
a entristecia. Ele escrevera com certeza certificados semelhantes a outras "governantas". Quem sabe? Elaborara uma lista num caderno de todas as "governantas" com
quem fora para a cama, e o seu nome figurava no fundo da página. Arrependia-se de tais pensamentos. Estava com certeza a ser injusta para com um tipo que procurava
prestar-lhe um favor. Há tão poucas pessoas prontas a ajudar-nos, a ouvir-nos ou, melhor, a compreender-nos...
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Ao telefone, respondia-lhe por um sim ou um não, não sabia o que lhe dizer. De resto, a voz dele surgia-lhe cada vez mais distante e entrecortada por interferências.
Talvez já não estivesse na Suíça e lhe telefonasse do Brasil onde tencionava ir com os filhos. Margaret chegara mesmo a perguntar-lhe quando partiria ou se já deixara
a Suíça. E ele não lhe respondera. Devia pensar que o caso não lhe interessava, atendendo à sua frieza ao telefone. Quer se encontrasse na Suíça, quer no Brasil,
acabaria por se cansar e deixaria de lhe telefonar. O que seria perfeitamente adequado.
Margaret completara vinte anos no início do mês. Nesse dia, nem sequer a Bagherian o dissera. Não estava habituada a festejar aniversários. Era um acontecimento
que exigia uma família, amigos fiéis, um caminho espaçado por marcos miliários e ao longo do qual eram permitidas pausas antes de retomar a marcha num passo certo.
Mas, pelo contrário, ela avançava na vida por meio de sobressaltos desordenados, ruturas, e voltava sempre a partir do zero. Portanto, os aniversários... Parecia-lhe
já ter vivido várias vidas.
Lembrava-se, porém, do dia dos seus vinte anos. Na véspera, Bagherian confiara-lhe o automóvel para ir levar os filhos à Escola Mérimont, na estrada de Montreux,
a uma dezena de quilómetros de distância. As crianças frequentavam aquela escola três dias por semana, e Margaret tinha dificuldade em imaginar que aquela moradia
rodeada por um grande parque era uma escola. No entanto, visitara as salas de aula e o pequeno refeitório no rés do chão. Ia buscá-los às quartas-feiras à tarde
e levava-os de novo à escola às segundas-feiras. Bagherian dissera-lhe que, para eles, era preferível conviver alguns dias por semana com rapazes e raparigas da
sua idade, em vez de estarem sempre com o pai. Em suma, contratara-a a tempo parcial para cuidar dos filhos. Existia uma Mme Bagherian? Margaret Le Coz pressentira
que não devia abordar o assunto. Morrera ou abandonara o domicílio conjugal?
No regresso, desceu a avenue d'Ouchy. Parou no sinal vermelho do cruzamento, onde se ergue, à direita, o Hotel Royal-Savoy com os seus torreões medievais que lhe
recordavam sempre a história da Branca de Neve e os sete anões. Sobressaltou-se. Vira
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Boyaval de pé, no passeio, preparado para atravessar. Quis voltar a cabeça, mas não conseguiu desviar o olhar daquele homem que envergava um sobretudo preto. Tentou
raciocinar; estava protegida pela viatura. Mas pensou que, de tanto o fixar, acabaria por atrair a sua atenção. De facto, no momento em que atravessou a rua e passou
em frente do automóvel, ele viu-a. Esboçou um sorriso de surpresa. Margaret fingiu não o reconhecer. O homem postou-se de pé em frente da viatura e ela ansiava pela
luz verde. Sempre o mesmo rosto magro, de maçãs do rosto picadas pelas bexigas, cabelo preto cortado à escovinha, olhos cinzentos e duros, silhueta apertada em roupa
muito justa. Desde que se encontrava na Suíça, acabara por esquecê-lo e agora, vendo-o ali especado, achava-o ainda mais inquietante. Poderia dizer; mais repugnante.
Imaginava, com a leviandade da juventude, ter escapado a uma antiga maldição, invocando o pretexto de ter vivido algumas semanas de tranquilidade e de despreocupação
num país neutro, à beira de um lago soalheiro. Mas foi rapidamente chamada à realidade. Não, não se libertaria assim tão depressa. No momento em que o semáforo passou
a verde, poderia tê-lo esmagado sem o mínimo remorso se estivesse certa da sua impunidade. O homem aproximara-se e batia com a mão no capô. Debruçava-se como se
quisesse colar o rosto ao vidro. O sorriso transformara-se num ricto. Margaret Le Coz sufocava. Arrancou bruscamente. Mais adiante, abriu a janela para respirar
ar fresco. Sentia uma ligeira náusea. Não virou à esquerda, pelo chemin de Beaurivage, seguiu antes em frente, sempre a direito. Sentiu-se melhor quando chegou à
margem do lago. Um grupo de turistas acabado de sair de um autocarro caminhava pelo largo passeio, tranquilamente. O homem que parecia servir-lhes de guia apontou,
lá adiante, para terras de França. Nos primeiros dias, ela também olhara, do terraço do apartamento de Bagherian, para o outro lado do lago, pensando que Boyaval
não se encontrava assim tão longe, a uma centena de quilómetros. Imaginava-o à procura do seu rasto e a bordo de um dos barcos que fazem o trajeto entre Évian e
Lausanne. Ela própria também se lembrara de entrar na Suíça num daqueles barcos. Dizia para consigo que facilitaria a passagem da fronteira. De resto, existiria
uma fronteira
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no lago? Porque receava ficar retida na fronteira? E depois, num momento de impaciência, subira para o autocarro na estação rodoviária de Annecy. Uma viagem mais
rápida. Acabar com aquela situação de uma vez por todas.
Deu meia-volta, retomou a avenue d'Ouchy e estacionou o automóvel na alameda em vez de entrar na garagem. Quando abriu o portão, lamentou não possuir uma chave
que o fechasse atrás de si. Encontrava-se sozinha em casa. Bagherian só voltaria do escritório por volta das cinco horas da tarde.
Sentou-se no sofá da sala. Teria paciência para esperar por ele? O pânico dominava-a ante a ideia de que Boyaval talvez soubesse o seu endereço. Como teria ele
sabido que se encontrava na Suíça? A não ser que alguém tivesse ouvido a conversa que travara, em abril, em Annecy, no hall do Hotel d'Angleterre, com o homem moreno
de cerca de trinta e cinco anos, uma bela figura, que lhe confiara procurar uma jovem que lhe cuidasse dos filhos... Fornecera-lhe o endereço e o número do telefone
no caso de lhe interessar. O homem nem devia ter filhos, quisera com certeza passar o serão ou a noite com ela. Mas não insistira quando Margaret respondera que
tinha um encontro marcado. O porteiro dirigira-se-lhe e conduzira-a a um gabinete onde lhe anunciaram que não, não tinham trabalho para ela no Hotel d'Angleterre.
Voltara para o hall mas o tipo já lá não estava. No pedaço de papel, escrevera: Michel Bagherian. Chemin Beaurivage, 5. Lausanne. Tel. 320.12.51.
Uma das portas envidraçadas da sala ainda estava entreaberta. Esgueirou-se para a varanda e debruçou-se da balaustrada. Em baixo, o chemin de Beaurivage, uma pequena
rua que conduzia ao hotel do mesmo nome, estava deserto. Margaret estacionara o automóvel mesmo em frente do prédio. Boyaval podia reconhecê-lo e talvez tivesse
apontado o número da matrícula. Reinava uma calma absoluta, o passeio banhado pelo sol, ouvia-se o roçagar da folhagem das árvores. Era tão grande o contraste entre
aquela rua tranquila, a silhueta de Boyaval, o sobretudo demasiado apertado, o rosto de pele bexigosa, as mãos como pás num corpo tão magro... Não, não o imaginava
naquela rua. Pouco antes, fora vítima de uma alucinação, como nos maus sonhos em que os terrores da
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infância regressam. O dormitório do internato ou de uma casa de correção, mais uma vez. Ao despertar, tudo se dissipa e é tão grande o alívio que se solta uma gargalhada.
Mas ali, na sala, Margaret não sentia vontade de rir. Nunca poderia livrar-se dele. Durante toda a vida, aquele tipo de pele bexigosa e mãos enormes persegui-la-ia
pelas ruas e manter se-ia de sentinela, em frente de todos os edifícios em que ela entrasse. De nada serviria que os edifícios tivessem duas saídas... Não, era uma
situação sem futuro. Ele acabaria por matá-la. Em Annecy, entre os clientes do Café de la Gare, constava que trazia com ele, aos dezoito anos, um revólver numa bainha
de camurça cinzenta. Um requinte da sua parte, segundo os antigos amigos, como o lenço de seda ao pescoço e o blusão de aviador demasiado curto. Ou então seria ela
a matá-lo como quem esmaga uma barata, na esperança de obter circunstâncias atenuantes. Uma tolice, era um desvario da sua cabeça. De repente, apeteceu-lhe falar
com Bagherian. Não sabia o número do telefone do seu escritório. O que a impedia de o procurar na rue du Grand-Chêne? Mas talvez ele tivesse ido almoçar fora. Margaret
receava encontrar-se de novo com Boyaval no centro da cidade. Seria preferível aguardar em casa.
Decidira contar tudo a Bagherian. Não tinha por onde escolher, precisava de o prevenir. O outro podia mostrar-se violento. Andava de um lado para o outro da sala
e procurava, em vão, as palavras certas. Como explicar-lhe que não havia nada entre ela e aquele tipo? Sempre o votara ao desprezo e à indiferença. E, não obstante,
ele obstinava-se, como se tivesse direitos sobre ela. Numa noite em que ele a perseguira pela rue Royal, em Annecy, Margaret voltara-se para o enfrentar e perguntara-lhe
num tom seco a razão de tamanha insistência. O homem esboçara um sorriso algo tolo, que devia ser um tique. Mas continuara a dirigir-lhe um olhar duro, como se experimentasse
algum ressentimento.
Debruçou-se mais uma vez da varanda. Ninguém na rua. Ansiava pelo regresso de Bagherian. Mais uma hora de espera. Desejava profundamente que ele viesse sozinho
e não acompanhado pela mulher a quem Margaret chamava a "secretária" ou pela outra, a quem também dera uma alcunha: a "norueguesa".
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Aparentemente, era a "norueguesa" que passava mais vezes a noite com Bagherian. Seria realmente norueguesa? Tinha um ligeiro sotaque escandinavo. Uma loura de olhos
azuis, a mais simpática das duas. A outra, a "secretária", uma morena de cabelo curto, era muito fria e mal lhe dirigia a palavra. Sim, tudo correria melhor quando
Bagherian regressasse. Sentia-se no mesmo estado de espírito do dia em que o conhecera, em Annecy, no hall do Hotel d'Angleterre. Depois de lhe terem dito que não
lhe dariam trabalho no hotel, sentiu-se desanimada. Chovia na rue Royale, mas nem sequer lhe apeteceu abrigar-se. Para ela, a única perspetiva era encontrar Boyaval,
que a seguiria e lhe ofereceria uma bebida na Taverne, fitando-a com o seu olhar duro. Ela recusaria, como habitualmente, e o tipo continuaria a persegui-la ao longo
da avenue d'Albigny e dos muros da coudelaria. Postar-se-ia em frente do prédio à espera de que voltasse a sair. Passada uma hora, desistiria. Da janela, Margaret
veria a silhueta com o blusão de cabedal demasiado curto afastar-se debaixo de chuva. Mas, naquele fim de tarde, Boyaval não se manifestou. Debaixo das arcadas,
Margaret tirou do bolso do impermeável o papel em que o moreno escrevera, pouco antes, o seu endereço. Pensou telefonar-lhe de imediato, mas achou por bem esperar
pelo menos até ao dia seguinte de manhã a fim de o encontrar em casa, em Lausanne. Porquê no dia seguinte? Podia voltar atrás. Talvez o tipo ainda não tivesse saído
do Hotel d'Angleterre. Sim, ele era a sua única esperança. E agora, na sala do apartamento, experimentava a mesma impaciência. De vez em quando, saía para a varanda
e, de olhar fixo na avenue d'Ouchy, esperava ver aparecer Bagherian. Em Annecy, telefonara durante dois dias para o 320.12.51. Ninguém respondia. Lembrava-se do
alívio no instante em que finalmente ouvira a sua voz e ele lhe propusera que se apresentasse no dia seguinte. Uma tarde bonita, um dos primeiros dias de primavera.
No autocarro, na paragem em frente do pequeno edifício da gare rodoviária, sentia uma grande ansiedade, receava que Boyaval surgisse de repente e a visse, sentada
no seu lugar, através da janela. Ele subiria, talvez fosse capaz de a arrastar para a obrigar a sair, e o motorista, que já se encontrava sentado ao volante, não
faria um gesto
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para a defender. Nem nenhum dos raros passageiros, que assumiriam um ar incomodado. Passaram-lhe pela cabeça algumas palavras; Não assistência a pessoa em perigo.
O autocarro arrancou, estava salva. Seguia lentamente pela avenue de Brogny, ao sol, ladeava o Liceu Berthollet e a caserna, e só uma vaga apreensão perturbava
a sua alegria; o passaporte que guardava num dos bolsos do impermeável caducara há um ano. Mas pouco lhe importava que a retivessem ou não na fronteira. Estava perfeitamente
decidida a não retroceder.
Naquela tarde, também estava bom tempo. Nas paredes da sala, grandes manchas de sol. Teria gostado de sair de casa para caminhar junto ao lago até ao parque, à
espera do regresso de Bagherian. Uma tarde de primavera em que a vida devia ser leve. Bastar-lhe-ia deixar-se levar pela sua descontração natural, como tantas vezes
acontecia. Nas alamedas do parque, havia cartazes que a intrigavam. Na base de uma escultura representando um grupo de macacos, estava escrito este preceito cujo
verdadeiro sentido lhe escapava; "Ver só com um olho. Ouvir só com um ouvido. Saber calar-se. Ser sempre pontual." Ainda assim, tomara nota. Poderia ser-lhe útil.
E, à beira de cada superfície relvada, lia-se um aviso; "Os rebentos de relva não devem ser pisados." Margaret passeava muitas vezes com as crianças naquele parque.
A ideia de que Boyaval deambulava ao longo da avenue d'Ouchy à sua procura aniquilava a sua vontade de sair. Subitamente, parecia-lhe que o lago, o parque e as avenidas
soalheiras, onde se julgara protegida, estavam contaminados pela presença daquele homem. Existem, pois, pessoas que não escolhemos, a quem não pedimos nada e que
nem sequer veríamos se nos cruzássemos com elas, e essas pessoas, sem sabermos porquê, querem impedir-nos de sermos felizes.
Pelas cinco da tarde, quando viu Bagherian caminhar ao longo da alameda, recuperou a calma. Felizmente, não vinha acompanhado pela "secretária" nem pela "norueguesa".
Para vir lá de cima, do centro da cidade, devia ter apanhado o metro - o funicular, como ele dizia, por causa do declive. Margaret deslocava-se muitas vezes de metro
com as crianças. As estações tinham nomes muito estranhos que ela decorara: Jordils. Montriond. Gare centrale. Por
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causa da desorientação em que se encontrava, chamou-o pelo nome próprio e acenou-lhe com o braço. Ele ergueu a cabeça para a varanda e sorriu. Não parecia surpreendido
por Margaret o ter chamado pelo nome próprio. Ela abriu-lhe a porta antes de o ver chegar ao patamar. Em vez de lhe apertar a mão, como habitualmente, pousou-lhe
a mão no ombro e aproximou o rosto do dele sem lhe causar a mínima surpresa. Aliviou-a sentir o contacto dos seus lábios. Ainda era a melhor maneira de esquecer
Boyaval.
Mais tarde, foram a um restaurante numa das avenidas inclinadas em que os edifícios de cor ocre se assemelham aos da Côte d'Azur. Ao crepúsculo, depois de um dia
bonito, Margaret costumava pensar, quando descia de bicicleta uma daquelas avenidas desertas, que iria desembocar numa praia. Já não se lembrava muito bem de todas
as peripécias daquela noite. Bebeu mais do que habitualmente. Depois do restaurante, subiram de automóvel até ao centro, ao escritório onde ele se esquecera de qualquer
coisa. Apesar do adiantado da hora, estava lá a "secretária", selecionava dossiers empilhados no chão, como para uma mudança. Ele fizera vários telefonemas e Margaret
não compreendia nada do que Bagherian dizia nas conversas, com certeza por se encontrar um pouco embriagada. Quem estaria do outro lado do fio? A "secretária", depois
de lhe ter dito "boa-noite" de passagem, fingia ignorá-la. Sim, decididamente, era menos simpática do que a "norueguesa". Saíram os três juntos do escritório. No
passeio da rue du Grand-Chêne, Bagherian convidou-as para beber um copo no bar do hotel ali bem perto. Margaret sentou-se numa poltrona de cabedal, entre Bagherian
e a "secretária", um copo de vodka à sua frente. "À russa", disse Bagherian, brindando com ela e a "secretária". Os outros dois escorropicharam os copos - como se
dizia no Café de la Gare, em Annecy -, mas Margaret bebia pequenos goles, pois era a primeira vez que lhe serviam vodka. Pareceu-lhe que a "secretária" se tornava
amável. Sorria e fazia-lhe perguntas. Sentia-se bem em Lausanne? E dantes, onde trabalhara? Tinha família em França? Margaret procurava responder como podia, não
lhe ocorria uma grande parte das palavras. E, no entanto, Bagherian e a "secretária" olhavam-na com benevolência, como se
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aquela dificuldade de falar os impressionasse realmente. Margaret apercebia-se de que as raras palavras que lhe saíam da boca eram cada vez mais confusas, mas, pela
primeira vez na vida, não experimentava nenhum embaraço, nenhuma apreensão. Desaparecera o medo que, desde sempre, a atormentava na presença de outras pessoas, o
medo de "não estar à altura". Não, teriam de a aceitar tal como era, não faria mais nenhum esforço para estar à altura, limitar-se-ia a ser ela própria, muito simplesmente,
e, se não agradasse, paciência. Acudia-lhe à memória uma frase: "Gosto de quem gosta de mim." E, de repente, surpreendeu-se a proferi-la em voz alta em frente de
Bagherian e da "secretária". Esta lançou-lhe um olhar divertido. Bagherian debruçou-se sobre ela e disse-lhe na sua voz doce:
- Mas com certeza, Margaret, tem razão, é mesmo assim... Gosto de quem gosta de mim... - E aquela frase parecia tê-lo emocionado.
Margaret perguntou-se se a "norueguesa" iria juntar-se-lhes, mas era raro ver a "norueguesa" e a "secretária" juntas. Passavam a noite no apartamento de Bagherian
cada uma na sua vez. Certa noite, porém, tinham ficado as duas com ele. Margaret pensara que a vida sentimental de Bagherian devia ser muito complicada. E agora?
Ver-se-ia. Era preciso viver, como dizia o dono do Café de la Gare, em Annecy. A "secretária" mostrava-se cada vez mais simpática. Pegara na mão de Margaret.
- Mas com certeza, é uma frase muito bonita... Gosto de quem gosta de mim... Tem de ma escrever, para que não me esqueça...
Bagherian perguntava-lhe:
- Não gosta de vodka?
Sim, com certeza. Gostava de tudo. Não tinha espírito de contradição. Esvaziou o copo de um trago.
Na rua, no passeio, Margaret perguntou-se se a "secretária" iria para o apartamento com eles. Mas não. A "secretária" disse a Bagherian:
- Até amanhã, Michel.
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E deram um aperto de mão. Depois, voltou-se para Margaret e sorriu-lhe.
- Não se esqueça de me escrever essa frase sobre o amor, hein? É tão bonita...
Margaret viu-a afastar-se e, no meio do silêncio, ouviam-se as pancadas regulares dos sapatos de salto alto. O automóvel deslizava, motor desligado, pela avenue
d'Ouchy. O declive causava-lhe uma ligeira vertigem. Como se pairasse no ar. Encostou a cabeça ao ombro de Bagherian e este rodou o botão do rádio. Um locutor, numa
voz aveludada, falava em alemão, um alemão estranho que não era o de Berlim, onde ela nascera, um alemão do Sul, pensou ela, com um ligeiro sotaque marselhês. E,
perante esta ideia, Margaret riu-se.
- Estou a vê-la mais descontraída do que há pouco - disse-lhe Bagherian.
Margaret continuava de cabeça encostada ao ombro de Bagherian. E, como o carro parou num sinal vermelho, ele voltou-se ligeiramente e acariciou-lhe o cabelo e a
face.
Mal o automóvel enveredou pelo chemin de Beaurivage, reconheceu a silhueta de Boyaval, apertado no sobretudo preto, postado em frente do prédio do apartamento. Pois
bem, o que ela previra. Surpreendeu-se por não sentir o medo habitual. Não, pelo contrário. Sufocava-a um acesso de raiva. O copo de vodka ou a presença de Bagherian?
Apetecia-lhe mesmo desafiar Boyaval. Era então aquilo que lhe envenenava a existência e a obrigava a rasar as paredes? Nada mais? Um ser vil que a impedia de beneficiar
da luz do sol... E a verdade é que acabara por se resignar, como se fosse uma fatalidade e não tivesse nada de melhor a esperar.
- Elimina-o - disse ela a Bagherian.
Apontava para o outro, em baixo, em frente do prédio.
- Porque queres que o elimine? - perguntou ele numa voz doce, quase um sussurro.
Tratavam-se por tu, pela primeira vez. Margaret sentia o medo invadi-la de novo, como uma enxaqueca que regressa, algumas horas depois de tomarmos um calmante. Bagherian
estacionou o carro, e lá estava Boyaval, imóvel. Impossível evitá-lo.
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- Aquele tipo assusta-me. Continuamos mais algum tempo dentro do carro?
Bagherian voltou-se para ela, surpreendido.
- Mas porque te assusta?
Conservava uma voz calma. Exibia um sorriso irónico que permaneceu quando observou Boyaval.
- Queres que lhe pergunte o que faz ali?
Boyaval avançou alguns passos para ver melhor os ocupantes da viatura. O olhar de Margaret cruzou-se com o dele. O homem sorriu. Depois voltou para junto do prédio.
- Esta tarde, fui a pé até ao parque e aquele tipo seguiu-me.
Bagherian abriu a porta para se apear, mas ela reteve-o, mão no braço. O revólver na bainha de camurça cinzenta era apenas um pormenor, um "requinte", como diziam
os antigos amigos de Boyaval. Às vezes, trazia com ele um canivete de várias lâminas e um dos seus divertimentos favoritos, antes de iniciar a partida de póquer
no Café de la Gare, consistia em pousar a mão esquerda de palma bem aberta em cima da mesa, dedos afastados. E em espetar o canivete cada vez mais depressa entre
os dedos. Se não se ferisse, cada um dos parceiros de jogo tinha de lhe dar cinquenta francos. No caso de se ferir, limitava-se a envolver a mão num lenço branco
e o jogo decorria como habitualmente. Num dia em que ele a abordara na promenade du Pâquier, quando Margaret se dirigia para o cinema do casino, ela ordenara-lhe,
num tom mais ríspido do que era costume, que a deixasse em paz. Ele pegara no canivete, a lâmina abrira-se de repente e Boyaval encostara a extremidade, muito ao
de leve, entre os seus seios. Naquela noite, Margaret sentira verdadeiramente medo e esforçara-se por não se mover nem um milímetro. Boyaval, com um estranho sorriso,
fixava-a nos olhos.
- É uma tolice ter medo - declarou Bagherian. - Eu não tenho medo de nada.
Arrastou-a para fora do automóvel. Pegou-lhe no braço. O outro postara-se à frente dos dois, à entrada da porta. Bagherian caminhava lentamente e apertava o braço
de Margaret. Esta, na sua companhia, sentia-se mais apaziguada. Para ganhar coragem.
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repetia para si mesma: "Não é um menino de coro." Não, apesar dos seus modos e de falar um francês elaborado, o homem que lhe apertava o braço devia dedicar-se a
atividades perigosas. Margaret reparara no aspeto peculiar das pessoas que frequentavam o seu escritório e nos estranhos indivíduos que o rodeavam num fim de tarde
em que fora encontrar-se com ele em Genebra, no hall do Hotel du Rhône.
- O senhor procura alguma coisa? - perguntou Bagherian.
Boyaval encostara-se à porta e cruzara os braços. Fitava Bagherian e Margaret sem abandonar o sorriso crispado.
- Está a impedir-nos de passar - disse Bagherian na sua voz doce.
Margaret deixara-se ficar para trás. O homem não se mexia, de braços cruzados, e continuava em silêncio.
- Dá-nos licença? - insistiu Bagherian numa voz mais baixa, como se não quisesse acordar uma pessoa adormecida.
Tentou deslocar Boyaval para a direita empurrando-o pelo ombro, mas ele não se mexia.
- Pois bem, vou ser obrigado a recorrer à violência.
Empurrou-o com tanta força que Boyaval foi projetado para a frente e ficou estendido ao comprido na beira do passeio. Margaret reparou que ele sangrava da comissura
dos lábios e perguntou-se se não teria perdido os sentidos. Bagherian antecipara-se e debruçava-se sobre ele.
- A esta hora encontrará uma farmácia ainda aberta na avenue de Rumine.
Depois, abriu a porta e deixou passar Margaret. Pegara-lhe de novo no braço. No elevador, não lhe fez nenhuma pergunta, como se nada se tivesse passado e, fosse
como fosse, não tivesse nenhuma importância.
Mais tarde, Margaret sentou-se ao seu lado, no sofá. Gostaria de lhe ter fornecido explicações, de lhe contar como, nos últimos tempos, aquele indivíduo a perseguia
sem descanso. Mas ele mostrava-se descontraído, sorridente, dir-se-ia que regressara de uma agradável festa com amigos e que nada de anormal se passara. Em Annecy,
no início, ela fora duas vezes ao comissariado da
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polícia para pedir proteção e porventura apresentar queixa. Não a levaram a sério. Na primeira vez, o polícia disse; "A menina é tão bonita... Compreende-se que
tenha admiradores", e, na segunda vez, muito menos simpáticos, os agentes olharam-na com um ar desconfiado. Um caso que não interessava ninguém.
- Lamento muito - acabou ela por dizer.
- Que é que lamenta?
Bagherian servia dois copos de uma bebida alcoólica. Aproximou-se dela e segredou-lhe ao ouvido; "À russa." Desta vez, Margaret decidira esvaziar o copo de um trago.
Se ele não manifestara nenhuma curiosidade a respeito da presença de Boyaval em frente do prédio, fora com certeza por haver na sua vida coisas mais preocupantes
e por aquele episódio lhe parecer deveras banal. Eis a razão pela qual não se surpreendia com nada e dava mostras de sangue frio e até de descontração. Tinha razão
e, por isso mesmo, Margaret apreciava-o. Bagherian apagou a luz da sala e ela sentiu que uma mão lhe desapertava a blusa no mesmo sítio em que o outro, tempos antes,
encostara a lâmina do canivete. Mas agora era diferente. Podia finalmente deixar-se levar. Sim, com ele tudo parecia subitamente muito simples.
Por volta das quatro horas da manhã, saiu momentaneamente do quarto de Bagherian para arrumar a roupa que ficara desordenada no sofá e na carpete da sala. Um reflexo
que lhe ficara dos anos de internato, e também o hábito de nunca se encontrar num quarto e num sítio que lhe pertencessem verdadeiramente. Sempre de passagem e na
defensiva. Precisava de ter a roupa sempre bem arrumada, bem perto de si, a fim de partir ao mínimo sinal de ameaça.
A janela da sala estava entreaberta e Margaret ouvia o barulho da chuva. Encostou a testa ao vidro. Boyaval continuava no passeio. Via-o perfeitamente à luz da
entrada cujos apliques ficavam acesos durante a noite. Parecia uma sentinela obstinada numa guarda inútil. Fumava. Marcas de sangue na parte inferior do rosto. Nem
sequer se abrigava da chuva debaixo do alpendre da entrada. Mantinha-se muito hirto, quase em posição de sentido. De vez em quando, aspirava uma fumaça do cigarro.
O sobretudo
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encharcado colava-se-lhe ao corpo. Margaret perguntou-se se aquela silhueta negra lhe esconderia o horizonte durante o resto da vida. Teria de descobrir dentro de
si reservas de paciência, mas sempre o fizera, desde a infância. Porquê? E até quando?

No quarto do Hotel Sévigné, passava noites de insónia, como tantas vezes lhe acontecia em Annecy. Sempre tivera medo de tomar soníferos, medo de nunca mais acordar.
Uma vez, em Annecy, por volta das três horas da madrugada, fartou-se de estar no quarto sem conseguir conciliar o sono. Então saiu, enveredou pela rue Vaugelas,
deserta. A única luz era a do Café de la Gare, aberto durante toda a noite.
Era lá que ia, sempre que sofria de insónias. Deparava sempre com os mesmos clientes. Intrigara-a um pormenor: aquelas pessoas, não as via na rua durante o dia.
Sim, via. Rosy trabalhava numa perfumaria da rue Royale, Margaret Le Coz observava-a através da montra e tinha a impressão de que aquela jovem loura, sorridente
e muito bem arranjada, não era a mesma que via à noite. E cruzara-se várias vezes com o Dr. Hervieu, ao fim da tarde. Era realmente o mesmo homem? De dia, nem Rosy
nem o Dr. Hervieu pareciam reconhecê-la, mas à noite, no café, dirigiam-lhe a palavra. Quanto aos outros, nunca os encontrara de dia, como se se evaporassem ao nascer
do sol: Olaf Barrou, Guy Grene e aquela a quem chamavam Irma, a Doce... Fora ali, no Café de la Gare, que vira Boyaval, logo na primeira noite. De início, não desconfiou
dele. Mostrara-se simpático. Apertava-lhe a mão e dirigia palavras amáveis antes de iniciar a partida de póquer. Depois, começara a aperceber-se, aos poucos, do
nervosismo do homem. Certa noite, convidou-a a ir passar o dia a La Clusaz. Fariam esqui, os dois. Ela recusou. Nunca praticara esqui. Mas o outro mostrou-se agressivo:
- Porquê? Tem medo de mim?
Margaret ficou surpreendida e não soube o que responder. Felizmente, os outros chamaram no para a partida de póquer. Margaret soube mais tarde que o tipo, alguns
anos antes, estivera perto de ser membro da seleção francesa de esqui, mas sofrera um
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acidente muito grave. Fora monitor em La Clusaz e em Megève. E, agora, trabalhava vagamente no posto de turismo. Portanto, devia ter-se sentido humilhado com a falta
de entusiasmo que ela manifestara pelo esqui e com a sua desenvoltura ao recusar o convite. Mas, decorridas algumas noites, já a atitude do tipo assumia um carácter
preocupante.
Margaret encontrou-o várias vezes, ao princípio da tarde, enquanto trabalhou a tempo parcial na livraria da rue de la Poste. Ele atravessava-se-lhe no caminho,
como se pressentisse que ela não queria falar-lhe. Margaret procurava manter a calma e ser delicada. Mas, sempre que ele lhe fazia um convite, encontrava um pretexto
para recusar, e o tipo mostrava-se de novo agressivo. Certa noite, Margaret aceitou acompanhá-lo ao cinema. Pensou que, depois disso, ele talvez se mostrasse menos
insistente. Naquela noite, foram praticamente os únicos espectadores na sala do casino. Lembrava-se tão bem que, em Paris, no quarto do Hotel Sévigné, quando pensava
no caso, o filme e os seus tons escuros e cinzentos se associavam definitivamente, para ela, a Annecy, ao Café de la Gare, a Boyaval. Esperou que o tipo, às escuras,
acabasse por a enlaçar pelos ombros, ou lhe pegasse na mão, o que aceitaria, apesar da repugnância que ele lhe inspirava. Em certos momentos, duvidava tanto de si
própria que se dispunha a dar algo de seu para que os outros a aceitassem ou não continuassem a mostrar se hostis. Sim, sentia-se muitas vezes na desconfortável
situação das pessoas constantemente obrigadas a ceder a chantagistas, na esperança de alguns momentos de tranquilidade.
Mas, durante a sessão de cinema, o tipo não esboçou nenhum dos gestos que ela temia. Mantinha-se muito hirto no assento. Margaret reparou que se debruçou para a
frente, como se o ecrã o fascinasse, no momento em que a rapariga entra no quarto do jovem chefe de orquestra e o mata a tiros de revólver. Experimentou um intenso
mal-estar. Imaginou subitamente Boyaval, de revólver em punho, a entrar no seu quarto da rue du Président-Favre.
À saída do cinema, ele ofereceu-se para a acompanhar a casa. Exprimiu-se numa voz suave, com uma timidez que Margaret não lhe conhecia. Caminharam lado a lado e
ele não lhe fez o mínimo
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avanço. Quis levá-la, novamente, a La Clusaz para uma tarde de lição de esqui. Ela não se atreveu a recusar, receando despertar o mau humor do homem. Tinham ultrapassado
a promenade du Pâquier e encontravam-se perto da villa Schmidt.
- Tem namorado?
Margaret não esperava semelhante pergunta. Respondeu: não. Era mais prudente. Lembrou se da cena do filme em que a rapariga dispara tiros de revólver, por ciúme.
Desde então, e até chegarem à porta do prédio, ele mostrou-se cada vez mais agitado, mas manteve o silêncio. Margaret perguntava-se se ele tencionaria subir ao seu
quarto. Decidira não o contrariar. Para ganhar coragem, repetia a si mesma um conselho que lhe dera uma colega do internato e que seguira muitas vezes: Não fazer
ondas. Deteve-se à porta de casa.
- Quer subir?
Margaret decidira cortar o mal pela raiz. Queria saber como reagiria aquele tipo que a assediava, embora não conhecesse muito bem a sua maneira de ser. Pelo menos,
ficaria a saber.
O tipo esboçou um movimento de recuo e Margaret sentiu-se impressionada pela expressão do seu olhar - uma expressão de ressentimento que a viria a surpreender muitas
vezes, quando ele erguia os olhos para ela e cuja origem Margaret gostaria de conhecer.
- Não tens vergonha de me falar assim?
Exprimira-se num tom severo mas numa curiosa voz de falsete.
Sem estar à espera, Margaret apanhou uma bofetada na face esquerda. A primeira bofetada depois do internato. Ficou atordoada por alguns instantes. Com um gesto maquinal,
levou um dedo à comissura dos lábios para ver se sangrava. Enfrentou Boyaval e teve a sensação de que era ele que estava na defensiva. Ouviu-se dizer, numa voz fria;
- Não quer realmente subir? É estranho... Tem medo? Diga-me porque tem medo?
Um mocho, cego pela luz. Recuava à frente dela. Ela via-o afastar-se, num passo agitado, ao longo da rua. Mais adiante, acabou por se confundir com a parede escura
da coudelaria. Ia evaporar-se no ar. Margaret pensou que nunca mais ouviria falar dele.
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Mas Boyaval reapareceu dois dias mais tarde. Estava sentada à secretária da livraria da rue de la Poste. Seis horas da tarde e já anoitecera. O homem postara-se
em frente da montra e dir se-ia que contemplava os livros expostos. De vez em quando, olhava para ela e esboçava um sorriso. Entrou na livraria.
- Lamento o que se passou há dias.
Margaret respondeu numa voz muito calma:
- Não tem importância.
A fleuma da jovem pareceu apaziguá-lo.
- Então não ficou melindrada?
- Não.
- Talvez nos encontremos no Café de la Gare?
- Talvez.
Embrenhou-se de novo num trabalho de contabilidade do qual Boyaval não tentou distrai-la. Passados alguns momentos, ouviu a porta da livraria fechar-se atrás dele.
Apesar de continuar a sofrer de insónias, deixara de ir ao Café de la Gare, receando encontrá-lo. Todas as tardes, por volta das seis horas, Boyaval surgia do lado
de fora da montra da livraria. Espreitava-a. Margaret esforçava-se por se manter impassível, punha os óculos escuros para se proteger, e os traços de Boyaval tornavam-se
imprecisos através do vidro. Um rosto e um corpo muito magros, mas que transmitiam a Margaret um sentimento de peso como se o invólucro fosse mais denso e a pele
mais mole e mais branca do que pareciam à primeira vista. De resto, os parceiros que jogavam póquer com ele no Café de la Gare partilhavam da mesma impressão, uma
vez que lhe chamavam "Mamute". Rosy, a rapariga da perfumaria, dissera-lhe que ele tinha outra alcunha, cujo significado Margaret não compreendera: "O despachado."
Em Paris, no quarto do Hotel Sévigné, tudo aquilo parecia muito distante... E, no entanto, quando acordava sobressaltada a meio da noite não conseguia deixar de
pensar no assunto. Um dia, foi passear com Rosy pelas arcadas dos grandes blocos de edifícios, perto da Taverne. Em jeito de desabafo, perguntou-lhe como se livrar
daquele tipo. A outra respondeu-lhe: "Ele assedia-te porque não tens defesas imunitárias... Ele é como os micróbios..." Sim,
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Margaret encontrava-se muitas vezes num estado de grande vulnerabilidade. O que se lhe revelara claramente quando fora pedir proteção à polícia. Sentira-se tratada
como um ser desprezível. A atitude dos agentes não teria sido a mesma se ela fosse filha de um industrial ou de um notário da região. Mas, sem família, fora considerada
uma filha de nada(1), o título de um romance que lera. O polícia, ao examinar o passaporte caducado, perguntara porque nascera em Berlim e onde estavam os pais.
Margaret mentira; um pai engenheiro de minas que vivia em Paris e muitas vezes ausente no estrangeiro com a mulher; e ela, aluna do colégio de freiras de Saint-Joseph
em Thônes e no internato de La Roche-sur-Foron. Mas o interlocutor não se mostrou interessado. Melhor para ela. Teria sido penoso entrar em pormenores. Desaconselhara-a,
com um sorriso irónico, a apresentar queixa contra alguém que com certeza não lhe desejava nenhum mal... Um simples apaixonado. Sabe, dissera o homem para rematar,
enquanto não morrer ninguém...
Sim, teria sido embaraçoso se o polícia entrasse em pormenores... Ontem, recebera uma carta, que estava pousada ali ao lado, em cima da mesa de cabeceira. Olhava
para o envelope e quase se espantava ao ler:

Mademoiselle Margaret Le Coz
Hotel Sévigné
Rue de Belloy, 6
Paris 16e

O cabeçalho do envelope indicava que a carta vinha da Agência Stewart. Algumas linhas escritas à máquina:

Cara Mademoiselle,
Venho recordar o que lhe pedi no nosso encontro de quinta-feira passada: uma declaração do seu antigo empregador,
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M. Bagherian. Além disso, seria útil enviar-me um breve curriculum vitae, pois acabo de me aperceber de que a ficha de que dispomos na agência é demasiado sumária
para os nossos clientes.
Com os melhores cumprimentos,
J. Toussaint

A sua vida... Nos momentos de insónias, no quarto do Hotel Sévigné, acudiam-lhe à memória breves episódios e Margaret tinha a impressão de viajar num comboio noturno.
As oscilações do vagão adaptavam-se ao ritmo da sua vida. Apoiava a testa contra a janela do compartimento. A escuridão e depois, de vez em quando, os cais desertos
de uma gare que o comboio atravessava, num painel o nome de uma cidade que servia de ponto de referência, o negrume de um túnel... Berlim. Não lhe restava praticamente
nenhuma recordação de Berlim. Encontra-se, juntamente com outros miúdos, sobre um montículo de escombros, em frente dos edifícios em ruínas e, durante toda a tarde,
veem passar os aviões que se sucedem a uma cadência rápida e aterram um pouco mais adiante. Quando sonha em alemão, ouve uma canção que fala do Landwehrkanal e que
a assustava... Guardou durante muito tempo um livro antigo, impresso durante a guerra, E Tudo o Vento Levou. Neste livro, encontrou uma ficha que servia de marcador,
com cabeçalho da fábrica Argus Motoren, Graf Roedern Allee; Berlim -Reinickendorf, e onde estava escrito o nome da mãe: Le Coz, Geneviève, nascida em Brest. Francesa.
Conservou-a sempre, a ficha, a única recordação que lhe resta da mãe. Acontece-nos perder, em poucos dias, objetos que muito estimamos; um trevo de quatro folhas,
uma carta de amor, um urso de peluche, enquanto outros objetos se obstinam em nos seguir durante anos sem nos pedir licença. Quando já nos julgamos livres deles
para sempre, reaparecem no fundo de uma gaveta. Talvez devesse entregar a ficha àquele monsieur J. Toussaint, da Agência Stewart. Poderia interessar certos clientes.
E, depois de Berlim, o regresso a França, até Lyon. Ainda não atingira a idade da razão, mas lembra-se do comboio noturno que parava em todas as estações e, durante
horas, em pleno campo.
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Não sabe se a mãe a acompanhava ou se estava sozinha no comboio. Em Lyon, a mãe trabalha em casa de pessoas: também deve ter-se inscrito, com certeza, num serviço
de procura de emprego do género da Agência Stewart. O internato na montée Saint-Barthélemy. Ainda hoje sonha que caminha, e é sempre o mesmo trajeto, à noite, da
place des Terreaux até ao quai Saint-Vincent, ao longo do rio Saône. Sente perfeitamente que alguém a segue ao longe, mas não consegue identificar a pessoa por causa
da bruma. O pai que nunca conheceu? Atravessa a ponte e está na place Saint-Paul. Não desvia o olhar do grande relógio luminoso da estação. Espera alguém no cais,
um comboio que vem da Alemanha. A mãe casa-se com um mecânico de Croix-Rousse de quem ela não gosta. Internatos em Thônes e em La Roche-sur-Foron. Corta definitivamente
relações com a mãe. Em Annecy, encontra os primeiros empregos, na empresa Zuccolo e, no verão, no bar do Sporting. É contratada como empregada de mesa por Fidèle
Berger e trabalha na Livraria de la Poste. Não é aceite no Hotel d'Angleterre. Ocupa o lugar de governanta dos dois filhos de um tal monsieur Michel Bagherian.
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Uma jovem caminhava à frente de Bosmans empurrando um carrinho de bebé e tinha, de costas, a mesma silhueta que Margaret. Não conhecia aquele parque, no sítio dos
antigos armazéns de Bercy. Lá adiante, do outro lado do Sena, ao longo do cais que já não se chamava quai de la Gare, alguns arranha-céus. Era a primeira vez que
os via. Uma Paris diferente do que lhe era familiar desde a infância, e sentia vontade de explorar as ruas. A jovem à sua frente era realmente parecida com Margaret.
Bosmans seguia-a mantendo sempre a mesma distância entre os dois. O carrinho de bebé que ela empurrava só com uma mão ia vazio. À medida que atravessava o parque
sem a perder de vista, persuadia-se cada vez mais de que era Margaret. Lera, na véspera, um romance de ficção científica, Les Corridors du temps(1). Personagens
que eram amigas na juventude, mas algumas não envelhecem e, quando encontram as outras, quarenta anos mais tarde, não as reconhecem. Não pode, de resto, haver nenhum
contacto entre elas: estão muitas vezes lado a lado, mas em corredores diferentes. Se quisessem falar umas com as outras, não se ouviriam, como duas pessoas separadas
pelo vidro de um aquário. Bosmans detivera-se e via-a afastar-se em direção ao Sena. Não me serve de nada alcançá-la, pensou. Não me
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reconheceria. Mas um dia, por milagre, enveredaremos pelo mesmo corredor. E tudo recomeçará para ambos neste bairro novo.
Percorria agora a rue de Bercy. Na véspera, entrara num daqueles cafés com acesso à Internet. O nome "Boyaval", do qual se esquecera - ou, antes, que ficara "adormecido",
como os nomes de famílias muito antigas da aristocracia inglesa que desaparecem durante séculos por falta de descendentes, mas voltam a surgir um dia, bruscamente,
no bilhete de identidade de recém-chegados - , este nome, Boyaval, viera do fundo dos tempos. Um meteorito caído à sua frente ao fim de quarenta anos de andanças.
Escrevera no teclado: "Páginas Brancas." Depois: "Boyaval." Um único Boyaval em Paris e em toda a França. Boyaval, Alain. Agência Imobiliária, rue de Bercy, 49.
Na montra, encontravam-se expostas, num cartaz, fotografias com os preços dos apartamentos para venda. Ao fundo da agência, um homem sentado a uma secretária metálica.
A direita, mais perto da montra, uma jovem arrumava dossiers em prateleiras.
- Monsieur Boyaval?
- O próprio.
Bosmans encontrava-se de pé, hirto, em frente da secretária. Não sabia o que dizer. O outro erguera a cabeça na sua direção. Era um homem de cabelo branco, espetado
mas não cortado rente, olhos cinzentos. Usava um fato cinzento do mesmo tom dos olhos. Rosto magro. Maçãs do rosto bem visíveis.
- Em que lhe posso ser útil?
A voz era suave e o sorriso delicado.
- Procuro um apartamento - disse Bosmans. - De preferência neste bairro.
- Só me ocupo de apartamentos neste bairro. E também no décimo terceiro arrondissement, perto da Biblioteca Nacional.
- Tem razão - disse Bosmans. - São bairros novos.
- Para trabalhar, prefiro o que é novo.
O homem apontava para a cadeira à sua frente.
- E que preço se dispõe a pagar?
- Pouco importa - respondeu Bosmans.
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Como ir diretamente ao assunto? Mas que assunto? Era absurdo, tratava-se de outro Boyaval. A jovem pousou à frente do homem um dossier e ele assinou várias folhas
de papel antes de a empregada se reapoderar da pasta e a arrumar na prateleira.
- Julgo ter conhecido um M. Boyaval, em tempos - disse Bosmans numa voz neutra.
- Ai sim?
Fixava-o com os olhos cinzentos, pelos quais Bosmans julgou ver passar uma sombra de inquietação.
- Há muito tempo... em Annecy...
O outro consultou o relógio de pulso e lançou um olhar à rapariga que arrumava os dossiers. Parecia nervoso. Por causa de uma simples palavra: Annecy?
- Quer ir tomar uma bebida aqui ao lado? Muitas vezes, é ali que converso com os meus clientes. Explicar-me-á exatamente o que procura...
Na rua, Bosmans reparou que o homem coxeava ligeiramente. Mas mantinha-se muito hirto e, com aquela rigidez, o cabelo branco espetado mas não muito curto e o rosto
descarnado, poderia passar por um antigo militar.
Sentaram-se na esplanada de um café, ao sol. Eram os únicos clientes. Do outro lado da rua estendia-se o parque de Bercy onde, há pouco, a sósia de Margaret - talvez
ela, numa outra vida -empurrava um carrinho de bebé vazio.
- Um refresco de menta com água. E o senhor?
- A mesma coisa - disse Bosmans.
- Precisa de um apartamento com que área?
- Oh... um simples estúdio.
- Então tenho muitas opções, nesta zona e do outro lado do Sena.
E apontava com o braço para os arranha-céus à beira do Sena, do outro lado do parque de Bercy, que Bosmans vira pouco antes pela primeira vez.
- São ruas novas? - perguntou Bosmans.
- Sim, rasgadas nos últimos cinco anos. É ali que moro. Basta-me atravessar a ponte todas as manhãs para chegar à agência. Praticamente, nunca vou à parte antiga
de Paris.
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- E à parte antiga de Annecy? - perguntou Bosmans.
Reparou no ligeiro movimento de surpresa do interlocutor.
Mas o busto continuava empertigado.
- Ah, sim... disse-me... Conheceu um Boyaval em Annecy... Dirigia-lhe um sorriso algo afetado.
- Viveu em Annecy?
- Não, mas tinha lá amigos que me falavam de um Boyaval.
- Então essa história deve remontar à noite dos tempos.
O sorriso tornou-se mais franco, mais amigável.
- Pelo menos quarenta anos - esclareceu Bosmans.
Silêncio. O outro baixara a cabeça, como se se concentrasse para fazer uma declaração importante e estudasse as palavras. Ergueu-a bruscamente e cravou os olhos
cinzentos em Bosmans.
- Não sei o que lhe disseram os seus amigos... Por mim, tenho uma fraca memória.
- Nada de especial - disse Bosmans. - Aquele Boyaval estivera quase a fazer parte da seleção francesa de esqui.
- Então, trata-se sem dúvida da mesma pessoa.
Bosmans ficou surpreendido com a voz roufenha, o sorriso triste, a expressão desanimada do rosto. Reparou na pele bexigosa das maçãs do rosto, como se estivesse
a observar os pormenores daquele rosto com a ajuda de raios infravermelhos ou ultravioletas. O outro, para se recompor, ingeriu um gole do refresco de menta e acabou
por dizer:
- Não, estou equivocado... Não se trata de modo nenhum da mesma pessoa...
O rosto descontraíra-se, a tez ganhara cor. A mudança espantou Bosmans. Pensou que o seu olhar perdera a acuidade dos infravermelhos e dos ultravioletas. O outro
parecia escolher as palavras.
- Como decerto reparou, já se passaram mais de quarenta anos...
Encolhia os ombros.
- E quem eram os seus amigos que viviam em Annecy?
- Uma rapariga. Chamava-se Margaret Le Coz - disse Bosmans, articulando muito bem as sílabas do nome.
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- Margaret Le Coz, foi o que disse?
Talvez tentasse recordar-se. Franzia o sobrolho. O olhar ausente.
- E ela ainda é viva?
- Não sei - respondeu Bosmans.
- Não me lembro de nenhuma Margaret Le Coz - disse ele numa voz novamente roufenha.
E os traços do seu rosto ostentavam outra vez desânimo, realçavam a pele bexigosa das maçãs do rosto.
- O senhor bem vê, é um pouco como neste bairro - e Bosmans sentiu-se impressionado pela tristeza da voz -, não sei se conheceu os armazéns e o quai de Bercy...
Havia plátanos que formavam uma abóbada de folhagem... Filas de barris no cais... Hoje, perguntamo-nos se essas coisas alguma vez existiram...
Pediu mais um refresco de menta com água.
- Toma a mesma coisa?
- Sim.
Debruçava-se sobre Bosmans.
- Quando regressarmos à agência, elaboro uma pequena lista dos nossos estúdios disponíveis. Alguns são muito espaçosos e cheios de luz.
Pousara a mão esquerda aberta em cima da mesa.
Com a mão direita, pegara na colher que se encontrava no pires e batia com o cabo no espaço entre os dedos afastados. Bosmans não conseguia deixar de fitar as cicatrizes
nas costas da mão e ao longo do dedo médio e do anular. Dir-se-ia que aquela mão sofrera outrora múltiplos golpes de canivete.
Num curto intervalo de tempo - a mesma estação do ano, uma primavera precoce em que, durante vários dias, esteve tanto calor como no mês de julho -, Bosmans viu
surgir de novo aquilo a que chamava um "fantasma do passado", ou pelo menos assim lhe pareceu. Não, tinha quase a certeza.
O bairro em que se encontrava naquela noite não se lhe afigurou muito diferente do da agência imobiliária de Boyaval. Mas, ainda assim, preferia o parque de Bercy
e, do outro lado do Sena, os arranha-céus e os edifícios resplandecentes em redor da Biblioteca
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Nacional onde uma jovem parecida com Margaret - não, era Margaret tal como a conhecera - vivia uma nova existência em ruas novas. Um dia, talvez tivesse uma oportunidade
de a encontrar, se conseguisse transpor as fronteiras invisíveis do tempo.
Entregara uma centena de páginas para passar à máquina - mas, hoje em dia, ainda se utilizaria esta expressão, que evocava o matraquear monótono produzido pelas
antigas máquinas de escrever? - a uma secretária que trabalhava em casa. O trabalho estava pronto, dissera-lhe ela naquele dia. Podia passar pela sua casa, próximo
da porte de Saint-Cloud, por volta das oito horas da noite.
Apanhou o metro. Como no tempo de Simone Cordier, quando lhe levava todas as semanas as folhas manuscritas. E ela nunca tinha passado à máquina mais do que três
páginas. Naquele apartamento sem móveis, onde instalava ela a máquina de escrever? Em cima do bar? Nesse caso, trabalhava de pé ou sentada no banco alto? Ele, desde
então, escrevera mais de vinte livros, e registavam-se alguns progressos técnicos; daqui a pouco, a mulher entregar-lhe-ia um dispositivo USB e ele obteria um texto
limpo, sem os "O" cortados por um traço, os tremas e as cedilhas de Simone Cordier. Mas, na realidade, que mudara realmente? Continuavam a ser as mesmas palavras,
os mesmos livros, as mesmas estações de metro.
Saiu na porte de Saint-Cloud. Sim, preferia os bairros novos do lado leste, os terrenos neutros que nos proporcionam uma ilusão de que poderemos viver uma segunda
existência. Pelo contrário, a igreja de tijolo vermelho da praça da porte de Saint-Cloud remetia-o para o passado e recordava-lhe um episódio desagradável: tem doze
anos de idade, vai sentado no banco de trás de um Renault 4cv, a mãe e o padre sem sotaina à frente, o homem ao volante. Aproveita um sinal vermelho para fugir do
automóvel e corre até à igreja, onde se esconde durante toda a tarde, temendo que os outros dois o descubram em algum passeio. É a sua primeira fuga.
À saída do metro, remexendo no bolso interior do casaco, apercebe-se de que se esqueceu do papel onde estavam escritos o nome da secretária, o endereço e o número
de telefone. Ela chamava-se
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Clément. Também se lembrava do nome da avenida: Dode-de-la-Brunerie. Não a conhecia. Perguntou o caminho a um transeunte. Sempre a direito, do outro lado da praça,
mesmo a chegar a Boulogne.
Esperava encontrar uma avenida pequena, ladeada por edifícios de tamanho médio e desprovidos de código nas portas de entrada. Assim, poderia consultar a lista dos
residentes à medida que avançasse, até deparar com Mlle Clément. Mas os edifícios eram aproximadamente do tamanho dos do antigo quai de la Gare que vira pela primeira
vez no dia em que se dirigira à agência de Boyaval. Grandes prédios novos. Apenas sete números pares: nº 2, nº 6, nº 10, nº 12, nº 16, nº 20, nº 26. Bosmans, erguendo
os olhos para o céu, pensou que cada número continha cerca de cinquenta pessoas. Em frente dos seus olhos desfilavam nomes. Jacqueline Joyeuse. Marie Feroukhan.
Brainos. André Cocard. Albert Zagdun. Falvet. Zelatti. Lucienne Allard. Mas nem uma única Clément. Sentia a cabeça a andar à roda. Os nomes eram cavalos de corrida
que passavam sem parar, a galope, não lhe dando tempo de os distinguir uns dos outros. Rei de copas. Kynette. Azul e Vermelho. Mercury Boy. Feiticeira. Dourada.
A angústia estrangulava-lhe a garganta, um sentimento de vazio. Não encontraria Mlle Clément no meio daqueles milhares e milhares de nomes e de cavalos. Ansiava
por sair daquela avenida. O chão fugia-lhe de baixo dos pés. De que lhe tinham servido tantos esforços, ao longo de quarenta anos, para criar raízes? Estavam podres.
Ao atravessar a praça, foi acometido de uma vertigem. Repetia em voz alta o nome da igreja, mais adiante, onde numa tarde da sua infância se refugiara para fugir
da mulher de cabelo ruivo - a mãe, ao que parece - e do falso toureiro. Sainte-Jeanne-de-Chantal.
Entrou num café e sentou-se à mesa da entrada, num banco de cabedal vermelho. Imaginou-se a ingerir uma bebida alcoólica pelo gargalo da garrafa, o que lhe proporcionaria
uma sensação de embriaguez e de paz de alma. E este pensamento fê-lo rir, ali, sozinho, sentado àquela mesa. Quando o empregado se apresentou, disse-lhe, numa voz
pouco segura:
- Um copo de leite, por favor.
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Procurava respirar a intervalos regulares. Sainte-Jeanne-de-Chantal. Sentia-se melhor. Recompunha-se. Gostaria de conversar com alguém e de se rir da angústia por
que passara pouco antes. Enfim, vejamos... na sua idade... A avenida Dode-de-la-Brunerie não era a floresta da Amazónia, pois não? Já se sentia completamente em
paz.
Num estado que se podia chamar de ligeiro torpor. Decidira ficar ali, sentado, até anoitecer. Não tinha mais nada a recear. A mãe e o padre sem sotaina já não patrulhavam
as ruas há quase meio século, no Renault 4cv, à sua procura, seguidos por um pobre cortejo de fantasmas.
Bosmans ouvia distraidamente as conversas dos raros clientes nas mesas mais próximas. Quase nove horas da noite. Viu entrar uma mulher de certa idade, cabelo branco
cortado à tigela, que caminhava, muito rígida, pelo braço de uma jovem. Vestia calças pretas e um impermeável bege. A jovem ajudou-a a sentar-se à mesa do fundo
e ocupou o lugar ao seu lado. A mulher não despira o impermeável.
Bosmans começou por olhar para ela como fizera em relação aos outros clientes: um olhar que não se fixava, antes pousava num rosto, num transeunte do lado de fora
do vidro, e mais adiante, do outro lado da praça, na igreja Sainte-Jeanne-de-Chantal. A jovem apresentou uma agenda à mulher de cabelo branco e esta escreveu algumas
palavras com a mão esquerda. Sempre o impressionara aquela posição peculiar da mão dos esquerdinos, o punho quase fechado quando escrevem. Terá sido aquilo que despertou
nele uma vaga recordação? Fixou o olhar no rosto da mulher e, de repente, passados tantos anos, julgou reconhecê-la. Yvonne Gaucher. Numa tarde em que se tinham
deslocado a sua casa, ele e Margaret, vendo-a escrever com a mão esquerda, ele dissera-lhe: "O seu nome assenta-lhe bem."(1)
Desde então, tinham-se passado dezenas e dezenas de anos... O facto de Yvonne ainda estar viva, a escassos metros dele, e de lhe bastar levantar-se para lhe falar
- mas já não se lembrava se a
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tratava pelo nome próprio - causava-lhe uma sensação estranha. Seria incapaz de caminhar ao seu encontro. Fosse como fosse, ela não me reconheceria, pensou. E, mesmo
dizendo-lhe o meu nome e o de Margaret, continuaria tudo na mesma. Conservamos uma recordação muito intensa de certos encontros quando somos muito jovens. Uma idade
em que tudo nos surpreende e parece uma novidade... Mas, àquelas e àqueles com quem nos cruzamos e que já viveram uma parte da vida, não podemos exigir uma memória
tão fiel quanto a nossa. Para ela, eu e Margaret não passávamos, com certeza, de dois jovens entre tantos outros que conhecera por um acaso. E, nessa época, saberia
os nossos nomes?
De vez em quando, a mulher voltava-se para a jovem que a acompanhava com a rigidez que Bosmans observara na maneira de andar. Dava-lhe o braço e apoiava-se nela.
O passo era muito lento, a rapariga ajudara-a a sentar-se. Cegou, concluiu Bosmans. Mas não, estava a ler a ementa. A velhice, muito simplesmente.
Se há pouco não tivesse sentido aquela espécie de vertigem, ganharia coragem para ir falar-lhe, correndo o risco de ela não me reconhecer. Talvez habite na avenue
Dode-de-la-Brunerie, entre as centenas e centenas de pessoas que ocupam os grandes edifícios. Yvonne Gaucher. Mlle Clément. Nomes que não despertam as atenções,
nomes neutros ao ponto de tornarem praticamente anónimas as pessoas que os usam.
Não conseguia desviar o olhar do rosto de Yvonne Gaucher. Receava captar o seu olhar. Mas não. Ela conversava com a rapariga, e chegavam algumas palavras aos ouvidos
de Bosmans -sobretudo o que dizia a jovem, numa voz muito clara. Não tratava Yvonne Gaucher por tu. "Fica com o impermeável?", perguntava-lhe ela, e Yvonne assentia
com a cabeça. Tinha o rosto sulcado por inúmeras rugas, como as pessoas que se expõem muito ao sol durante a juventude. Bosmans lembrou-se de Boyaval e da pele bexigosa
nas maçãs do rosto. Mas, neste caso, acontece o contrário, pensou. As rugas desaparecem e reencontro o rosto liso da mulher que eu e Margaret conhecemos.
Só a voz o desconcertava, ou antes, as raras palavras, que eram respostas breves às perguntas que a jovem lhe fazia. Uma voz
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rouca. Vinha de longe e sofrera o desgaste do tempo. Bosmans conseguiu captar uma frase inteira: "Preciso de estar de volta às dez horas." Talvez vivesse num lar
de idosos onde os pensionistas cumpriam horários precisos.
O empregado pousou à sua frente uma granadina e uma fatia de tarte de maçã. A jovem pedira uma Coca-Cola. Trocaram algumas palavras em voz baixa. A rapariga deu
novamente a agenda a Yvonne Gaucher e esta folheou-a como se procurasse a data de um encontro. Por ter a gola do impermeável levantada, dir-se-ia que se encontrava
numa sala de espera e consultava os horários dos comboios.
"Preciso de estar de volta às dez horas." Bosmans sabia que esta frase lhe ficaria na memória e que, sempre que a evocasse, lhe causaria uma picada dolorosa, uma
espécie de pontada. Continuava a ignorar o que ela queria dizer, o que lhe causaria remorsos, como no caso de outras frases interrompidas, outras pessoas que deixamos
escapar. É uma tolice, basta dar um passo. Tenho de lhe falar. Lembrou-se da placa de cobre que os intrigara, a ele e a Margaret, na primeira vez, e na qual estavam
gravados dois nomes: Yvonne Gaucher. André Poutrel. Por causa deles, Margaret abandonara Paris de repente, sem que ele alguma vez soubesse porquê. Nos dias que se
seguiram, comprou os jornais e procurou nas páginas dos casos do dia estes dois nomes: Yvonne Gaucher. André Poutrel. Nada. O silêncio. O vazio. Perguntara-se muitas
vezes se Margaret, por seu lado, saberia mais. Também se lembrava do que Yvonne Gaucher lhe dissera no primeiro encontro: "André explicar-lhe-á." Mas André não lhe
explicara nada. Ou não tivera tempo. Alguns anos mais tarde, passara em frente do número 194 da avenue Victor-Hugo. O número correspondia agora a um grande edifício
novo de paredes envidraçadas. Yvonne Gaucher. André Poutrel. Era como se nunca tivessem existido.
Yvonne Gaucher folheava a agenda e a jovem sussurrava-lhe qualquer coisa em voz baixa. Sim, basta dar um passo. Vou pedir-lhe notícias de André Poutrel e do pequeno
Peter. Pequeno Peter. Era assim que eles lhe chamavam. Eu e Margaret chamávamos-lhe simplesmente Peter. Ela fornecer-me-á finalmente todas as explicações
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desde o início, desde a época longínqua "dos frequentadores e frequentadoras da rue Bleue...". Mas não conseguia levantar-se, sentia-se pesado como chumbo. Não tenho
a coragem necessária. Prefiro que as coisas permaneçam vagas. Se estivesse acompanhado por Margaret, então dirigir-se-iam para a mesa de Yvonne Gaucher. Mas assim,
sozinho... De resto, seria realmente ela? Preferia não saber mais nada. Pelo menos, na dúvida, continua a haver uma forma de esperança, uma linha de fuga para o
horizonte. Pensamos que o tempo talvez não tenha terminado o trabalho de destruição e que ainda haverá encontros. Preciso de estar de volta às dez horas.
A jovem bebia a Coca-Cola por uma palhinha. Yvonne Gaucher esquecera a granadina e olhava em frente. Bosmans reencontrava o olhar de outros tempos, a expressão
atenta e cândida de alguém que, apesar de tudo, confia na vida. Num dado momento, aquele olhar pousou nele, mas não deu mostras de o reconhecer.
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Dos dois, foi André Poutrel que conheceram em primeiro lugar. Bosmans encontrava-se na livraria das antigas Éditions du Sablier, na companhia de Margaret. Lembrava-se
perfeitamente do estado do tempo: uma tarde de frio, céu azul e sol, a primavera do inverno, a estação que ele preferia, e que só dura alguns dias, a intervalos
irregulares, em janeiro ou fevereiro. Tinham decidido ir passear pelo parque de Montsouris, e Bosmans preparava-se para pendurar na porta de vidro da entrada o aviso
que datava do tempo de Lucin Hornbacher: "Por favor, volte um pouco mais tarde." Entrou na livraria um homem louro, de cerca de quarenta anos, envergando um sobretudo
azul-escuro.
- Procuro um livro antigo do qual sou autor.
O aspeto do homem contrastava com o dos clientes habituais. Seria por causa do sobretudo azul-escuro, da estatura elevada, do ar descontraído, do cabelo louro ligeiramente
frisado? Era parecido com Michael Caine, um ator inglês que desempenhava papéis de agente secreto em filmes passados em Londres ou Berlim. Apresentou-se a Margaret
e Bosmans apertando-lhes a mão.
- André Poutrel.
E acrescentou, com um sorriso irónico:
- Apercebi-me de que não tenho em casa um único exemplar dessa obra.
Encontrava-se naquele bairro por um acaso. Quisera saber se a editora e a livraria continuavam a existir. O livro fora publicado
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alguns anos depois da morte de Lucien Hornbacher, quando o ritmo de funcionamento da editora abrandara, publicando apenas cerca de três obras por ano.
André Poutrel acompanhara Bosmans à antiga garagem que servia de armazém e encontraram dois exemplares do livro: Le Cénacle d'Astarté. As capas estavam amarelecidas,
mas, como ainda nenhum leitor lhes cortara as folhas, os dois pequenos volumes conservavam um ar novo.
Depois, conversaram os três. Bosmans respondeu às perguntas de André Poutrel a respeito das antigas Éditions du Sablier. Sim, exercia um trabalho precário, como
precário era o futuro da própria livraria. Muitas vezes, passava a tarde sem receber a visita de nenhum cliente. Mas continuava a tomar conta do estabelecimento,
lá em cima, no antigo escritório de Lucien Hornbacher. Até quando?
André Poutrel voltara-se para Margaret.
- E a senhora, também trabalha na livraria?
Margaret fora despedida na semana anterior pelo professor Ferne e pela mulher, sem a mínima explicação. E a Agência Stewart nunca mais lhe dera sinal de vida.
- Então, é governanta?
André Poutrel tinha um filho e procurava justamente alguém que cuidasse dele durante o dia e nas noites em que saísse com a mulher.
- Se estiver interessada...
- Porque não? - respondeu Margaret. E a desenvoltura da resposta surpreendeu Bosmans.
Bosmans afixou o aviso: "Por favor, volte um pouco mais tarde" e dirigiram-se os três para o automóvel inglês descapotável, estacionado na esquina da avenue Reille
e da rue Gazan. Antes de abrir a porta, André Poutrel tirou de um dos bolsos do sobretudo um cartão de visita dobrado num canto e deu-o a Margaret.
- Telefone-me se o trabalho lhe interessar...
O homem viu que Bosmans levava na mão o outro exemplar do seu livro, Le Cénacle d'Astarté.
- Não se dê ao trabalho de o ler. Foi uma fraqueza da juventude.
Antes de arrancar, abriu a janela e acenou-lhes com a mão. O carro afastou-se ao longo do parque de Montsouris.
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- Um tipo estranho - comentou Margaret.
Lançou um breve olhar ao cartão de visita e confiou-o a Bosmans.
Dr. André Poutrel
Avenue Victor-Hugo, 194
Paris 16e TRO 32 49

- É médico - reparou Margaret.
Por telefone, o médico marcara uma entrevista com Margaret num fim de tarde, acrescentando que podiam ir "os dois". O número 194 da avenida era um edifício mais
baixo do que os outros, uma espécie de palacete. À entrada, uma placa indicava; Dr. André Poutrel - Yvonne Gaucher. 2º andar.
Foi Yvonne Gaucher quem lhes abriu a porta. Mais tarde, quando trocaram impressões, concordaram os dois que ela era muito diferente da Dra. Suzanne Ferne, advogada.
Imaginaram um confronto entre as duas mulheres. É impossível, pensou Bosmans, que alguma vez se encontrem.
Uma morena de olhos claros, cabelo apanhado num rabo de cavalo. Vestia um casaco de camurça e uma saia preta e justa que lhe chegava aos joelhos. Fumava um cigarro.
Bosmans e Margaret nem precisaram de se apresentar. Foi como se se conhecessem, desde sempre e ainda na véspera se tivessem visto.
- O André está em consultas... mas não deve demorar...
E conduziu-os ao longo de um corredor até um quarto que devia ser o dela e de "André". Paredes nuas. Uma cama muito larga e muito baixa. Nenhum móvel. Mandou-os
sentar aos pés da cama.
- Peço desculpa, mas, aqui, estaremos mais tranquilos...
Bosmans viu numa das mesas de cabeceira um livro que reconheceu por causa da capa um pouco amarelecida; Le Cénacle d'Astarté. Yvonne Gaucher surpreendera o seu olhar.
- Foi simpático da sua parte ter-lhe oferecido o livro - disse ela a Bosmans. - O André ficou muito sensibilizado.
Instalou-se um silêncio, que Bosmans quis interromper. Acabou por dizer, com um sorriso;
- Ele confessou-me ser uma fraqueza da juventude...
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Yvonne Gaucher parecia embaraçada.
- Oh... foi num outro período da nossa vida... Éramos imprudentes... Enfim, o André explicar lhe-á...
E a mulher dirigiu-se para a outra mesa de cabeceira, onde estava pousado um cinzeiro. Apagou o cigarro.
- Como verá - disse ela a Margaret -, o pequeno Peter é um menino muito bem-comportado...
- Tenho a certeza de que sim - disse Margaret.
- Estão habituados a lidar com crianças? - perguntou Yvonne Gaucher.
- Gostamos muito de crianças - disse Bosmans.
Repetiu esta frase um pouco mais tarde, em frente do Dr. André Poutrel. Ele, Margaret e Yvonne Gaucher encontravam-se numa grande divisão de lambris nas paredes,
o gabinete onde dava consultas. Usava uma bata branca, que abotoava de lado, e Bosmans pensou que talvez fosse cirurgião. Mas não se atreveu a perguntar em que domínio
preciso exercia a medicina.
- Tenho de lhe apresentar o pequeno Peter - disse Yvonne Gaucher a Margaret. - Vamos buscá-lo à escola.
Em seguida, voltando-se para o Dr. Poutrel:
- Não te esqueças da última consulta.
Devia ser a assistente do marido - mas seria marido? A placa à entrada do edifício não indicava o mesmo nome. Ele perguntou qual a hora dessa última consulta. Sete
horas da noite.
O Dr. Poutrel acompanhou-os até à porta do apartamento.
- Li o seu livro - disse Bosmans no instante em que saía para o patamar.
- A sério?
O Dr. Poutrel dirigiu-lhe um sorriso irónico.
- Nesse caso, gostaria de saber a sua opinião.
Depois, fechou suavemente a porta.
No passeio, Bosmans caminhava entre Margaret e Yvonne Gaucher. Esta era um pouco mais alta do que Margaret, embora calçasse sapatos rasos. Apesar do casaco leve
de camurça, não parecia sentir frio. Limitara-se a levantar a gola. Entraram os três no automóvel de marca inglesa que já conheciam. Margaret à frente.
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- A escola do pequeno Peter é aqui muito perto, na rue de Montevideo - informou Yvonne Gaucher.
Conduzia de maneira indolente e ao mesmo tempo nervosa. Bosmans ficou convencido de que, a caminho da rue de Montevideo, tinha passado com um sinal vermelho.

Não sei praticamente nada desta gente, pensou Bosmans. E, no entanto, as raras recordações que me restam são bastante nítidas. Breves encontros em que o acaso e
a vacuidade desempenham um papel mais importante do que em outras fases da vida, encontros esporádicos, como num comboio noturno. Criava-se uma certa intimidade
entre os passageiros, nos comboios noturnos da sua juventude. Sim, a impressão que me ficou é a de que eu e Margaret viajávamos sempre em comboios noturnos, de tal
modo que aquele período das nossas vidas é descontínuo, caótico, entrecortado por uma quantidade de sequências muito curtas sem a menor ligação entre si... E uma
das breves viagens que mais me impressionou foi a que fizemos com o Dr. Poutrel, Yvonne Gaucher e o "pequeno Peter" - como eles lhe chamavam -, mas a quem nós preferíamos,
eu e tu, chamar simplesmente Peter.
É impossível ordenar tais acontecimentos, decorridos quarenta anos. Devia tê-lo feito mais cedo. Mas, agora, como encontrar as peças que faltam no puzzle? Teria
de se contentar com alguns pormenores, sempre os mesmos.
Assim, apesar das numerosas mudanças de domicílio, guardara o livro de André Poutrel: Le Cénacle d'Astarté. Na página de rosto, uma dedicatória impressa: "Para
Maurice Braive e para os frequentadores e frequentadoras da rue Bleue." Percorrera distraidamente o livro, ao qual as quarenta páginas conferiam essencialmente o
aspeto de brochura. Tratava de ocultismo e, segundo Bosmans julgara compreender, André Poutrel, em Le Cénacle d'Astarté, apresentava se como porta-voz de um grupo
independente dos Altos Estudos Esotéricos.
"Para os frequentadores e frequentadoras da rue Bleue"... Decididamente, acabava tudo por se confundir e os fios tecidos pelo tempo eram tantos e tão emaranhados...
Na noite do primeiro
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encontro, ele e Margaret tinham entrado numa farmácia da rue Bleue. E vinte anos mais tarde visitara o apartamento do primeiro andar do número 27 da mesma rua. O
porteiro, um homem idoso, dissera-lhe: "Sabe, passaram-se coisas muito estranhas aqui, em tempos que já lá vão..." Bosmans lembrou-se da dedicatória do livro.
- Refere-se a um tal M. Maurice Braive?
O porteiro pareceu surpreendido por um homem jovem ter tão boa memória. Fornecera-lhe algumas explicações, mas não muito claras. Maurice Braive reunia homens e mulheres
ali, no apartamento do 27 da rue Bleue, para praticar magia e outras experiências mais repreensíveis "do ponto de vista dos costumes". A missa de ouro e a transmissão
eucarística, às quais aludia Le Cénacle d'Astarté?. Acabara por ser preso com os membros do grupo. Era estrangeiro e fora recambiado para o seu país de origem.
Bosmans perguntara, como por acaso:
- E um tal André Poutrel, não lhe diz nada?
O porteiro franzira as sobrancelhas como se tentasse lembrar-se dos nomes dos frequentadores e frequentadoras da rue Bleue.
- Oh, sabe, na noite em que os prenderam, eram pelo menos vinte. Uma verdadeira rusga.
Na primeira tarde em que Margaret foi buscar o pequeno Peter à escola para o levar para casa, Bosmans acompanhava-a. No vestíbulo do apartamento, depararam com o
Dr. Poutrel.
- Então, leu o meu livro? Não se sentiu chocado?
- Gostei bastante - respondeu Bosmans. - Interesso-me muito pelo ocultismo... Mas não compreendo grande coisa...
Arrependeu-se do tom ligeiramente irónico. Afinal, alinhara pelo mesmo diapasão. Era o tom que o Dr. Poutrel costumava adotar para falar com ele. Esse livro... uma
fraqueza da juventude, repetira Poutrel, pousando a mão no ombro do pequeno Peter. Sorria. Ainda acrescentara, em jeito de brincadeira:
- Sinto-me aliviado por já não restar nenhum exemplar na sua livraria. É preferível eliminar de uma vez para sempre todas as provas.
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À noite, em Auteuil, no bar de Jacques, o Argelino, Margaret explicou-lhe que os novos patrões - era assim que lhes chamava -não se assemelhavam em nada ao professor
Ferne e à mulher. Segundo compreendera, o Dr. Poutrel era osteopata. Procuraram a definição do termo num dicionário e, quarenta anos mais tarde, a iniciativa revelava-se
deveras cândida aos olhos de Bosmans... Como se fosse possível fixar numa definição bem precisa um André Poutrel, como um colecionador que espeta com um alfinete
uma borboleta num quadro... O Dr. Poutrel adiantara a Margaret o salário do mês de uma maneira curiosa: retirara do bolso alguns cheques amarrotados e escolhera
um assinado por um paciente e ao qual acrescentou o nome de Margaret, dizendo-lhe que o levantasse num banco, ali perto, na avenue Victor Hugo. E o salário era o
triplo do que ganhava em casa do professor Ferne. Aparentemente, Yvonne Gaucher era a colaboradora do médico, pois ocupava, sozinha, um pequeno gabinete de consultas
ao fundo do apartamento. Os pacientes nunca se encontravam ao mesmo tempo na sala de espera e não corriam o risco de se cruzar: saíam por um comprido corredor que
dava acesso à escada de outro edifício. Porquê? Por curiosidade, Margaret percorreu aquele caminho com o pequeno Peter e tinham desembocado na rue de la Faisanderie.
Era, de resto, o caminho mais curto para o levar à escola.
- O Dr. Poutrel deu-me uma lista de livros que talvez existam na tua livraria.
E Margaret remeteu-lhe uma folha de papel azul-celeste dobrada em quatro com os dois nomes em caracteres trabalhados em filigrana: Dr. André Poutrel - Yvonne Gaucher.
Segundo Margaret, o pequeno Peter também era muito diferente dos filhos do professor Ferne. Perguntava a si mesma se seria filho do Dr. Poutrel e de Yvonne Gaucher
ou se o teriam adotado. Fisicamente, não era parecido com nenhum deles.
Na Escola Montevideo, a professora disse a Margaret que o miúdo se distraía durante as aulas. Passava o tempo a desenhar num caderno preto de capa plastificada,
sem ouvir as lições. Margaret não prevenira o Dr. Poutrel nem Yvonne Gaucher, receando que lhe ralhassem. Mas apercebeu-se rapidamente de que procedera
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mal. Fora o Dr. Poutrel que comprara e oferecera ao pequeno Peter o caderno preto e Margaret viu-o muitas vezes folheá-lo atentamente quando se encontrava acompanhado
pelo miúdo.
O pequeno Peter também lhe mostrara o caderno preto. Retratos, paisagens imaginárias. À saída da escola, agarrava-se ao braço de Margaret solenemente e caminhava
assim, muito direito e em silêncio, ao seu lado.

Recordações em forma de nuvens flutuantes. Deslizavam umas atrás das outras quando Bosmans se encontrava deitado no sofá, no início da tarde, um sofá que por sua
vez lhe recordava o de outros tempos, o do escritório de Lucien Hornbacher. Fixava o teto como se estivesse estendido na erva de um prado a ver fugir as nuvens.
Num domingo, o Dr. Poutrel e Yvonne Gaucher convidaram-nos, a ele e a Margaret, para almoçar com o pequeno Peter numa divisão do apartamento que Bosmans não conhecia.
Uma mesa de jardim e cadeiras de ferro a condizer, da mesma cor verde-pálido. A mesa e as cadeiras pareciam ter sido provisoriamente instaladas naquela grande sala
vazia.
- Ainda parece que estamos acampados - justificou-se o Dr. Poutrel. - Moramos aqui há pouco tempo.
Nem Margaret nem Bosmans se mostraram surpreendidos. Passados tantos anos, Bosmans pensava que o Dr. Poutrel, Yvonne Gaucher e o pequeno Peter tinham arrombado o
apartamento para o ocuparem ilegalmente. E nós os dois também acampávamos sem autorização de ninguém. Por que razão haveríamos nós de ter, nas nossas vidas, a segurança
inalterável e o sentimento de legitimidade que observava nas pessoas bem-nascidas, nas quais a expressão da boca e o olhar confiante indicam que foram amadas pelos
pais? No fundo, o Dr. Poutrel, Yvonne Gaucher, o pequeno Peter, eu e tu pertencíamos ao mesmo mundo. Mas qual?
Yvonne Gaucher usava calças pretas justas e sapatos rasos, como os de dança. Bosmans sentara-se entre ela e Margaret. Com o cabelo preto apanhado num rabo de cavalo,
parecia pouco mais velha do que Margaret e, no entanto, dias antes, sugerira a Bosmans
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que conhecia o Dr. Poutrel desde a época distante "dos frequentadores e frequentadoras da rue Bleue"... Depois da sobremesa, o pequeno Peter entreteve-se a desenhar
no caderno de capa preta.
- Está a fazer o seu retrato - disse o Dr. Poutrel a Margaret.
Estava bom tempo, naquela tarde. Caminharam até ao Bois de
Boulogne. O médico dava o braço a Yvonne Gaucher. Peter corria à frente deles e Margaret procurava alcançá-lo para que não atravessasse a avenida sozinho, sem esperar
pelo sinal vermelho. Bosmans sentia-se impressionado pela elegância e a descontração de Yvonne Gaucher, de braço dado com Poutrel. Estava certo de que ela fora bailarina.
Tinham chegado à beira do lago. Yvonne Gaucher quis disputar uma partida de minigolfe com o pequeno Peter, mais adiante, na ilha, mas havia muita gente no cais à
espera do barco que atravessava de uma margem para a outra.
- Numa outra oportunidade - disse o Dr. Poutrel.
No caminho de regresso, o pequeno Peter ainda corria à frente deles, mas Margaret desistira de o perseguir. Ele escondia-se atrás de uma árvore e os quatro adultos
fingiam não o ver.
- E vocês os dois, como encaram o futuro? - perguntou subitamente o Dr. Poutrel a Bosmans e Margaret.
Yvonne Gaucher sorriu ao ouvir a pergunta. O futuro... Uma palavra cuja sonoridade, hoje, Bosmans julgava pungente e misteriosa. Mas, naquele tempo, nunca pensávamos
no futuro. Ainda estávamos, sem nos apercebermos da nossa sorte, num eterno presente.

Bosmans já não sabia que idade teria Peter naquele tempo; entre seis e oito anos? A memória devolvia-lhe uns olhos muito pretos, cabelo castanho encaracolado, um
ar sonhador e o rosto debruçado sobre o caderno de capa plastificada. É verdade, não se parecia com os pais. Seriam realmente pais? E, de resto, eram marido e mulher,
como se diz no registo civil?
Lembrava-se de alguns passeios com Margaret e Peter, às quintas-feiras, quando o miúdo não tinha aulas na Escola Montevideo. Caminhavam os três pelas ruas de Auteuil,
perto da casa de Margaret. Ou então pelo parque Montsouris. Desde que Margaret
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desaparecera, sem ele saber se estaria viva ou morta, pensava muitas vezes naqueles passeios.
Que estranho acaso reunira os três, durante algumas tardes... No parque Montsouris, tinham decidido vigiar Peter cada um por sua vez, durante meia hora, enquanto
o outro lia ou se entregava às suas próprias fantasias. Certo dia, por distração, estiveram quase a perder Peter de vista na alameda do lago. Todavia, já tinham
idade para serem pais dele.
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Aquele dia marcou para Bosmans o fim de alguma coisa. Perguntava-se muitas vezes: mas em que estação teria sido? Como é evidente, podia consultar calendários antigos.
Com a ajuda dos pontos de referência que lhe restavam na memória, acabaria por reencontrar o dia exato e a estação. A primavera do inverno, sem dúvida, como costumava
chamar aos dias bonitos de janeiro e fevereiro. Ou o verão da primavera, quando o tempo aquece muito em abril. Ou simplesmente os dias de verão já no outono - estações
que se confundem umas com as outras e nos dão a impressão de que o tempo parou.
Naquele dia, procurava no armazém os livros que constavam da lista elaborada pelo Dr. Poutrel no seu papel de carta pessoal.

- Histoire du groupe Kumris(1) de Tinia Faery.
- Annuaire des chevaliers de l'ordre du Cygne.
- La Femme, ses rythmes et les liturgies d'amour, de Valentin Bresle(2)
- La Fraternité d'Héliopolis, de Claude d'Ygé(3)
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- A Unidade Silenciosa, de H. Kirkwood.
- Les Rêves et les moyens de les diriger, de Hervey de Saint-Denys(4).
Bosmans ouviu a campainha roufenha que anunciava a entrada de um cliente na livraria.
Margaret, de semblante alterado. Tinha dificuldade em falar. Pouco antes, estivera no apartamento, com o Dr. Poutrel, Yvonne Gaucher e o pequeno Peter. Preparava-se
para levar Peter à escola. Alguém bateu à porta. O Dr. Poutrel fora abrir. Vozes. No vestíbulo, o Dr. Poutrel repetia cada vez mais alto; "De modo nenhum... De modo
nenhum." Entrara algemado na sala das consultas. Yvonne Gaucher mantinha-se imóvel, impassível. O pequeno Peter apertava com força a mão de Margaret. Um dos três
homens dirigira-se a Yvonne Gaucher, tirara um cartão do bolso do casaco, mostrara-lho, dizendo: "Queira acompanhar-nos, minha senhora..." A ela, não a algemaram.
Os outros dois já tinham arrastado o Dr. Poutrel para fora da sala, Yvonne Gaucher sentara-se à secretária, vigiada de perto pelo terceiro homem. Escrevia algumas
palavras numa folha de receitas destinada a Margaret.
- Leve Peter a este endereço.
Deu um beijo a Peter sem lhe dizer nada, saiu da sala com o homem atrás dela, sempre muito direita, sempre impassível, como uma sonâmbula.
À noite, Bosmans acompanha Margaret à gare du Nord. Passaram pelo quarto d'Auteuil, onde ela encheu a mala, à pressa. Confia a Bosmans a chave do quarto para o caso
de se ter esquecido de alguma coisa que ele possa vir buscar mais tarde. Não se recorda se o bilhete de segunda classe do comboio noturno se destinava a Berlim ou
Hamburgo. A partida é às nove horas. Ainda têm uma hora à sua frente. Estão sentados um em frente do outro ao fundo da sala de um café, no boulevard Magenta, e Margaret
mostra-lhe o papel que lhe deu um dos homens que levaram o Dr. Poutrel
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e Yvonne Gaucher. Exige a sua apresentação no dia seguinte de manhã, às dez horas, no quai des Orfèvres. Teve de mostrar o passaporte caducado que traz sempre consigo
e o homem tomou nota do nome e do número do passaporte. Bosmans ainda tenta acalmá-la e convencê la a ficar em Paris. Não, Jean, não é possível. Eles sabem coisas
sobre mim que nunca te contei e que estão escritas nos dossiers que possuem. Margaret prefere fugir a ter de se apresentar no dia seguinte perante aqueles homens.
De resto, ela não poderia dizer-lhes nada a respeito do Dr. Poutrel e de Yvonne Gaucher. Não sabe nada. Nunca soube. E depois, seja como for, não sei o que sei.
Está decidida, há muito, a não responder a perguntas. Acredita, Jean, quando apanham pessoas como nós, nunca mais as largam.

Ainda lhe restavam, passados tantos anos, cerca de vinte livros das Éditions du Sablier, que empilhou num grande saco de lona no dia em que foi despedido. Ia ser
construído um edifício no sítio da livraria e da antiga garagem que servia de arrecadação. Entre estes livros, as obras de ocultismo que não tivera tempo de levar
ao Dr. Poutrel.
No meio das páginas de um dos livros, acabara de encontrar uma folha de receitas do Dr. Poutrel. A tinta azul e em grandes letras, podia ler-se: "c/o Mlle Suzanne
Kraay. Rue des Favorites, 32, Paris 15b" Apesar de ter passado tanto tempo, a tinta ainda lhe pareceu fresca. Não era demasiado tarde para comparecer ao encontro.
Na gare du Nord, antes de subir para o comboio noturno, Margaret dera-lhe aquele papel: o endereço escrito à pressa por Yvonne Gaucher onde deveria levar Peter,
naquela tarde. Bosmans ficara algum tempo com ela, dentro da carruagem. Quando chegasse a Hamburgo, ou a Berlim, Margaret indicar-lhe-ia o endereço e ele partiria
ao seu encontro. Seria preferível, dissera ele, escrever-lhe ou telefonar lhe para a Livraria du Sablier, gobelins 43 76. Mas os anos foram passando e ele nunca
recebeu nenhuma carta nem nenhum telefonema.
Desde que fora despedido e abandonara para sempre o antigo escritório de Lucien Hornbacher com o saco repleto de livros,
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tinha muitas vezes o mesmo sonho. O telefone tocava durante muito tempo no escritório deserto, ele ouvia os toques ao longe, mas não conseguia encontrar o caminho
da livraria, perdia-se num dédalo de pequenas ruas de um bairro de Paris que não conhecia e que tentava em vão localizar num mapa, ao acordar. Deixou rapidamente
de ouvir toques de telefone em sonhos. O endereço da Livraria du Sablier já não existia e as cartas de Hamburgo ou de Berlim nunca chegariam ao destino. O rosto
de Margaret acabou por se esbater e se perder no horizonte, como naquela noite, na gare du Nord, em que o comboio começara a andar e Margaret, debruçada da janela
ainda lhe acenava com a mão. Ele próprio, nos anos confusos que se seguiram, tinha apanhado tantos comboios noturnos...

Bosmans não conhecia aquela rua. Todavia, frequentara o bairro em diversos períodos da sua vida e saíra muitas vezes na estação Volontaires. Perguntava-se por que
razão, depois da partida de Margaret, nunca procurara saber o que tinha acontecido ao pequeno Peter e aos seus estranhos pais. Nos primeiros tempos, experimentara
uma sensação de vazio tão profunda por causa do silêncio de Margaret... E depois, aos poucos, o esquecimento sobrepusera-se durante um certo período.
Rue des Favorites, 32. Cinco andares. Bosmans deixou-se estar no passeio do lado oposto, a contemplar a fachada. Não corria o risco de despertar a atenção dos transeuntes.
Sábado à tarde. A rua estava deserta. Numa outra vida e num outro século, a que andar subira Margaret com o pequeno Peter para o confiar a uma tal Suzanne Kraay?
Cada andar contava cinco janelas, e as do meio da fachada formavam uma saliência, por cima da porta da entrada. Varandas, terraços, uma cornija no quinto andar.
Tocou para a porteira.
- Mlle Suzanne Kraay ainda mora aqui?
Uma mulher, de cerca de trinta anos. Parecia não compreender. Fixava-o com um ar desconfiado. Bosmans soletrou o nome. Ela abanou a cabeça num gesto negativo. Depois
fechou a porta do cubículo.
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Bosmans já estava à espera, mas não tinha nenhuma importância. Na rua, ainda permaneceu mais algum tempo diante da fachada. Sol. Era uma rua sossegada. Em instantes
como aquele, tinha a certeza de que bastaria permanecer imóvel no passeio para transpor suavemente uma muralha invisível. E, no entanto, continuava sempre no mesmo
lugar. A rua tornar-se-ia ainda mais soalheira e silenciosa. O que acontecia uma vez repetia-se até ao infinito. De longe, do fundo da rua, Margaret avançaria em
direção a ele e ao edifício número 32, dando a mão ao pequeno Peter - o miúdo, como ela dizia.
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Era verão em Berlim. Até tarde na noite, os elétricos passavam, descrevendo uma curva larga no cruzamento da Zionskirchstrasse e da Kastanienallee. Iam quase vazios.
Bosmans pensou que lhe bastaria entrar num deles, ao acaso, para ir ao encontro de Margaret. Teria a impressão de recuar no tempo. Era tudo mais simples do que pensara.
Em Paris, tentara escrever le coz premindo as teclas do computador, depois Margaret Le Coz, mas não encontrara nada. Numa semissonolência, acudiam-lhe frases à memória,
como as que nos perseguem, por excertos, nas noites de febre: "Então, nasceu na Bretanha? - Não. Em Berlim." No teclado, associara Margaret Le Coz a Berlim. Uma
única resposta no meio do ecrã: Margaret le coz - Ladijnikov Buchladen. Dieffenbachstrasse 16. 10405 Berlin. Telefone/Fax + 49.(0)30.44.05.60.15. Não telefonaria.
Não apanharia um dos elétricos vazios que passavam de noite. Nem o metro. Iria a pé.
Partira, no início da tarde, do bairro de Prenzlauer Berg, um mapa de Berlim no bolso. Traçara o caminho com uma caneta vermelha. Às vezes, perdia-se. Ao descer
a Prenzlauer Allee, pensou que podia seguir por uma rua, à esquerda, e que encurtaria caminho. Desembocou num pequeno parque salpicado de sepulturas. Na alameda
central daquele cemitério campestre, foi ultrapassado por uma jovem de bicicleta, que transportava uma criança no porta-bagagens. Ao longo da Karl Marx Allee, não
se sentiu
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propriamente desenraizado, apesar da avenida demasiado larga e dos edifícios de betão, com o aspeto de gigantescas casernas. Mas esta cidade tem a minha idade. Eu
também tentei construir, ao longo de dezenas de anos, avenidas em ângulo reto, fachadas bem retilíneas, marcos indicadores para esconder os pântanos e a desorganização
originais, os maus pais, os erros de juventude. E, ainda assim, de vez em quando, caio num terreno descampado que me faz sentir bruscamente a ausência de alguém,
ou numa enfiada de edifícios antigos cujas fachadas exibem ferimentos da guerra, como um remorso. Não precisava de consultar o mapa. Caminhava sempre a direito,
atravessou a ponte da via-férrea, depois outra ponte sobre o Spree. E, se fosse um desvio, não tinha nenhuma importância.
Na orla do Görlitzer Park, viam-se jovens sentados à mesa dos cafés, no meio do passeio. Agora, eu e Margaret devemos ser os habitantes mais velhos desta cidade.
Atravessou o parque que, de início, lhe pareceu uma clareira, depois um interminável descampado. Dantes, havia ali uma estação da qual talvez Margaret tivesse partido
no comboio noturno. Mas como poderia ele saber? Na sua cabeça, tudo se misturava. Agora, seguia pelo canal, debaixo das árvores, e perguntou-se se não estaria à
beira do Marne.
Atravessara uma pequena ponte. À sua frente, uma praceta onde brincavam crianças. Sentou-se a uma mesa da esplanada de uma pizaria, da qual via a ponte, os prédios
e as árvores que ladeavam o canal, do outro lado. Caminhara muito. Doíam-lhe as pernas.
Na mesa ao lado da sua encontrava-se um homem de cerca de trinta anos que acabara de fechar um livro com o título em inglês. Bosmans perguntou-lhe onde se situava
a Dieffenbachstrasse. Era ali, muito perto, a primeira à esquerda.
- Conhece a Livraria Ladijnikov?
Fez a pergunta em inglês.
- Sim, muito bem.
- É uma mulher que dirige a livraria?
- Sim. Creio que é de origem francesa. Fala alemão com um leve sotaque francês. A não ser que seja russa...
- É um dos seus clientes?
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- Há dois anos. Ela estava na antiga livraria russa, do lado de Savigny Platz. Depois, veio para aqui.
- E porque é que a livraria se chama Ladijnikov?
- Conservou o nome da antiga livraria russa, a anterior à guerra.
O homem era americano, mas vivia há alguns anos em Berlim, não muito longe dali, nas imediações da Dieffenbachstrasse.
- Ela tem sempre livros e documentos muito interessantes sobre Berlim.
- Que idade tem ela?
- A sua.
Bosmans já nem se lembrava da idade que tinha.
- É casada?
- Não, creio que vive sozinha.
Levantou-se e apertou a mão a Bosmans.
- Acompanho-o à livraria, se quiser...
- Não vou lá já de seguida. Ainda aqui fico um pouco mais, ao sol.
- Se precisar de outras informações... trabalho num livro sobre Berlim... - Deu-lhe um cartão de visita. - Estou quase sempre no bairro. Dê cumprimentos meus à senhora
da livraria.
Bosmans seguiu-o com o olhar. O homem desapareceu na esquina da Dieffenbachstrasse. No cartão de visita podia ler-se o nome Rod Miller.
Dentro de pouco tempo, entraria na livraria. Não saberia muito bem como entabular conversa. Margaret talvez não o reconhecesse. Ou talvez o tivesse esquecido. No
fundo, os seus caminhos tinham-se cruzado num lapso de tempo muito curto. Bosmans dir-lhe-ia:
- Trago-lhe cumprimentos de Rod Miller.
Seguia pela Dieffenbachstrasse. Caía um aguaceiro de verão cuja violência se atenuava à medida que ele avançava, abrigando-se debaixo das árvores. Durante muito
tempo, julgara Margaret morta. Não havia nenhuma razão, não, não havia nenhuma razão. Mesmo no ano em que nascemos, nós os dois, quando esta cidade, vista do céu,
não passava de um monte de escombros, floriam lilases entre as ruínas ao fundo dos jardins.
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Sentia-se cansado por ter caminhado tanto. Mas, por uma vez, experimentava um sentimento de serenidade, com a certeza de ter regressado ao local exato do qual partira
um dia, do mesmo sítio, à mesma hora e da mesma estação, como dois ponteiros que se unem no mostrador de um relógio ao meio-dia. Pairava no ar um semitorpor enquanto
se deixava embalar pelos gritos das crianças na praceta e pelo murmúrio das conversas à sua volta. Sete horas da noite. Rod Miller dissera-lhe que ela deixava a livraria aberta até tarde.

 

 

                                                                  Patrick Modiano

 

 

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