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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O IMPIEDOSO PAÍS DAS MARAVILHAS / Haruki Murakami
O IMPIEDOSO PAÍS DAS MARAVILHAS / Haruki Murakami

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O elevador continuou a subir com extrema lentidão. Pelo menos assim me parecia, mas não punha as mãos no fogo: avançava tão devagar que, pura e simplesmente, eu perdera todo o sentido de orientação. Também podia ser que estivesse a descer, ou talvez a cabina nem sequer se movesse. Vamos partir do princípio – uma mera hipótese sem fundamento, formulada arbitrariamente com base nas circunstâncias em que me encontrava – de que o elevador fosse a subir. Se calhar, tinha ascendido ao décimo terceiro piso antes de descer três andares. Ou, então, dera a volta à Terra e regressara ao ponto de partida. A verdade é que eu não sabia.
Aquele elevador não tinha nada em comum com o engenho rudimentar e funcional, uma simples variante equivalente ao balde de um poço, instalado no meu prédio. As discrepâncias entre os dispositivos eram mais que muitas, custando a acreditar que as duas peças de maquinaria pudessem ter sido concebidas para o mesmo fim, cumprissem funções idênticas e tivessem o mesmo nome. Era caso para dizer que a distância avassaladora entre ambas desafiava os limites da compreensão.
Primeiro que tudo, por uma questão de tamanho. O elevador em que me encontrava era tão amplo que poderia ter servido de escritório. Havia lugar para uma secretária, uma estante e um armário; juntando um fogão, uma mesa e quatro cadeiras, daria para uma pequena cozinha, e ainda sobraria espaço. Com boa vontade, se calhar alguém conseguiria lá enfiar três camelos e uma palmeira de dimensão média. Em segundo lugar vinha a higiene. Estava tão limpo como um caixão acabado de construir. As paredes e o teto eram de aço inoxidável reluzente, imaculado; a alcatifa, de um bonito verde-musgo, sem uma nódoa, cobria o pavimento. Terceiro, estava terrivelmente silencioso. A partir do momento em que entrei, as portas deslizaram e fecharam-se sem fazer barulho – literalmente, nem o mais pequeno ruído –, e reinou um silêncio absoluto. Como a corrente calma e profunda de um rio.
Ainda outra coisa: faltava ali a maior parte dos acessórios que é normal encontrar num elevador. Por exemplo, onde estaria o painel de comandos, com a sua panóplia de botões e interruptores? Não se via nenhum botão que indicasse os andares, nem para abrir e fechar as portas, nem sequer um botão de alarme. Nada de nada. Confesso que começava a sentir-me extraordinariamente inseguro. E não era só por causa dos botões: indicação luminosa dos andares também era coisa que não existia, assim como não se lobrigava qualquer informação sobre a capacidade do ascensor, as normas de segurança ou até mesmo uma placa com o nome do fabricante. Saída de emergência? Era um mistério. Ali me encontrava eu, encerrado numa autêntica urna. Por mais voltas que desse, aquele elevador nunca deveria ter sido certificado pelo corpo de bombeiros. Afinal de contas, os ascensores têm de cumprir determinadas normas.

 


 


Enquanto observava aquelas quatro insondáveis paredes de aço, veio-me à ideia a lendária fuga do ilusionista Houdini, a que eu assisti no cinema quando era pequeno. Imobilizado por uma grande quantidade de cordas e correntes, enfiado dentro de um enorme baú e amarrado, por sua vez, com uma robusta corrente fechada a cadeado, Houdini era atirado do alto das cataratas do Niágara. Ou talvez fosse parar ao fundo gelado do oceano Ártico, já não me recordo ao certo. Considerando que não me encontrava preso por cordas nem cadeias, isso representava uma vantagem, contudo, o facto de eu desconhecer os truques de magia não deixava de jogar contra mim.

Pensando bem, não só ignorava os estratagemas como nem sequer sabia se o elevador estava em andamento ou imobilizado.

Experimentei tossir, mas o resultado foi um ruído estranho, nada parecido com a tentativa de aclarar a voz. O que se ouviu foi um som apagado, surdo, como quando se atira uma mão-cheia de barro contra um muro de cimento. Mal podia acreditar que tivesse saído da minha garganta. Quis ter a certeza, e tornei a pigarrear; porém, a cena repetiu-se. Desisti de fazer mais tentativas.

Deixei-me estar no interior daquele compartimento hermeticamente selado durante uma eternidade. Esperei. Não aconteceu nada. Não havia meio de as portas se abrirem. No meio do silêncio e na sua perfeita imobilidade, a cena parecia uma natureza-morta: Homem no Elevador.

Comecei a ficar nervoso. Podia dar-se o caso de a máquina estar avariada, ou talvez o operador – partindo do princípio de que existia alguém com tais funções no edifício – se tivesse esquecido de que eu me encontrava dentro da cabina. Já não era a primeira vez que alguém se esquecia da minha existência.

Concentrei toda a minha atenção e pus-me à escuta, mas nem um ruído. Encostei a orelha às paredes de aço inoxidável. Como era de prever, nada, nenhum som. A única coisa que consegui foi deixar o desenho da minha orelha marcado a branco no frio metal. Provavelmente, o elevador era uma caixa metálica de um modelo especial fabricado para absorver todos os ruídos. Tentei assobiar a melodia de «Danny Boy», mas o som que saiu dos meus lábios parecia o suspiro de um cão com um ataque de asma.

Resignado à minha sorte, encostei-me à parede e decidi pôr-me a contar as moedas enfiadas nos bolsos e assim passar o tempo. Para alguém com a minha profissão, saber como matar o tempo é tão importante como, para um pugilista profissional, estar sempre a apertar na mão uma bola de borracha. Se quisermos ser rigorosos, não se trata de um exercício no puro sentido da palavra. Só através da repetição incessante é possível corrigir a tendência para a distribuição desigual.

Em todo o caso, procuro andar sempre preparado e com trocos no bolso das calças. No meu bolso direito guardo as moedas de cem e as de quinhentos ienes; no esquerdo, as de cinquenta e as de dez. Quanto às de um e às de cinco ienes, ando com elas nos bolsos de trás: por regra, não costumam entrar nos meus cálculos. O que faço é introduzir ambas as mãos nos bolsos e, com a direita, calculo a soma total das moedas de cem e de quinhentos ienes, ao mesmo tempo que, com a esquerda, conto as de cinquenta e as de dez.

Para quem nunca tenha realizado esta operação aritmética, poderá ser difícil imaginar o seu elevado grau de dificuldade, sobretudo numa primeira fase. O hemisfério direito e o hemisfério esquerdo do cérebro realizam um trabalho de cálculo completamente distinto, que, no final, é possível unir em conjunto como as duas partes de uma melancia dividida ao meio. Ao princípio custa, quando uma pessoa não está habituada.

Para ser sincero, não posso dizer com toda a certeza se utilizo os hemisférios direito e esquerdo do cérebro separadamente. Um especialista em neurofisiologia cerebral talvez adiante outra explicação sobre o assunto. O certo, porém, é que eu não possuo grandes conhecimentos na matéria. Tudo o que sei é que, no momento em que estou a proceder à contagem das moedas, fico com a nítida impressão de que estou a usar o lado direito e o lado esquerdo do cérebro em separado. E quando acabo de contar, a mesma história: o cansaço que experimento ao finalizar é intrinsecamente diferente do cansaço que sentiria ao concluir um cálculo normal. Como tal, por uma questão de lógica, habituei-me a associar o hemisfério direito ao bolso direito e o hemisfério esquerdo ao bolso esquerdo.

Pergunto-me se não serei uma daquelas pessoas com tendência para dar o significado que mais lhes convém aos diversos fenómenos que ocorrem um pouco por toda a parte, que interpretam os acontecimentos, e a existência em geral, à sua própria maneira. E não digo isto armado em convencido ou porque seja um oportunista de primeira, mas sim por ter reparado que, se queremos compreender a verdadeira natureza deste mundo, o melhor é vermos as coisas do nosso ponto de vista.

Vamos imaginar, por momentos, que o planeta Terra não era uma esfera mas uma gigantesca mesa de café. Até que ponto isso faria diferença na nossa vida de todos os dias? Obviamente que o exemplo não deixa de ser paradoxal; vendo bem, não se pode andar por aí, pegar numa coisa e mudar tudo só porque nos dá na cabeça. Ainda assim, continuando no campo das possibilidades e partindo da tal conceção arbitrária da Terra enquanto mesa de café, ajudaria a eliminar uma infinidade de pequenos problemas triviais, que se prendem com o facto de a Terra ser uma esfera – sem irmos mais longe, a força da gravidade, o meridiano internacional e o círculo máximo chamado equador. Afinal, quantas vezes acontece a uma pessoa normal, que leva uma vida perfeitamente vulgar, preocupar-se com o equador?

Regressemos, por esse motivo, ao busílis da questão; melhor dizendo, voltemos aos dois aspetos, uma vez que não é fácil efetuar em simultâneo um cálculo diferenciado entre a mão direita e a mão esquerda. A mim, para não ir mais longe, demorou-me uma grande quantidade de tempo aprimorar o processo; no entanto, uma vez adquirido, nunca mais se perde o jeito. É como andar de bicicleta ou nadar. Só treinando é que uma pessoa consegue melhorar a técnica e aperfeiçoar o estilo. Por essa razão, quanto mais não seja, ando sempre com bastantes trocos no bolso e, sempre que tenho um minuto livre, entretenho-me a calcular as moedas.

Desta vez trazia no bolso três moedas de quinhentos ienes, dezoito moedas de cem, sete de cinquenta e dezasseis de dez. O que perfazia, no total, a soma de três mil oitocentos e dez ienes. Não tive dificuldade nenhuma em fazer a conta. Uma operação aritmética destas é tão fácil como contar os dedos das mãos. Satisfeito, encostei-me à parede de aço e fiquei ali a contemplar as portas à minha frente. Continuavam sem se abrir.

Por que motivo permaneciam fechadas? Não havia meio de perceber. Depois de uma reflexão aturada, cheguei à conclusão de que podia descartar as soluções porventura mais banais, como, por exemplo, a hipótese de avaria ou um esquecimento por parte do operário encarregado de as manobrar. No fim de contas, ambas careciam de verosimilhança. Não porque fosse irrealista da minha parte pensar que tais incidentes pudessem acontecer. Pelo contrário, estou convencido de que percalços destes são o pão nosso de cada dia na vida real. O que pretendo dizer é que, num quadro particular – refiro-me, claro está, a uma realidade em que esteja presente o malfadado elevador, liso e escorregadio –, manda o sentido prático que se condene a ausência dessa singularidade, enquanto fenómeno paradoxal. Pode alguém tão desatento, ao ponto de negligenciar a manutenção do mecanismo do elevador ou de se esquecer das manobras adequadas ao funcionamento do mesmo a partir do momento em que entra um visitante no seu interior, ser capaz de construir uma máquina excêntrica e sofisticada como aquela?

A resposta, obviamente, era «não».

Uma tal probabilidade não existia.

Pelo que me fora dado a constatar, eles eram neuróticos em alto grau, antecipando meticulosamente todos os pormenores. Dir-se-ia que tinham medido cada passo com uma régua. Mal entrei no edifício, fui de imediato abordado por dois guardas, que quiseram saber com quem me ia encontrar, confirmaram o meu nome na lista dos visitantes esperados para esse dia, examinaram a minha carta de condução, verificaram a minha identidade no computador central; depois de me obrigarem a passar pelo detetor de metais, enfiaram-me ao empurrão dentro daquele elevador. Nem sequer quando fui visitar a Casa da Moeda me acontecera ser submetido a um controlo tão rigoroso. Era impensável que, sem que nada o fizesse prever, tivessem baixado a guarda.

Restava apenas uma hipótese: tinham sido eles a colocar-me de propósito naquela situação. Sem dúvida que não queriam que eu me desse conta dos movimentos do elevador. Queriam que o elevador se deslocasse com toda a lentidão, de modo que eu não soubesse se estava a subir ou a descer. O mais provável era terem mandado instalar um sistema de videovigilância e estarem a observar-me, naquele preciso instante, através de câmaras estrategicamente colocadas.

Querendo vencer o tédio, lembrei-me de tentar localizar alguma câmara, mas depois, pensando melhor, disse para mim próprio que nada ganharia com isso. Pelo contrário: só iria pô-los de sobreaviso, além de me arriscar a que travassem a marcha do ascensor, o que contribuiria para que eu chegasse ainda mais tarde ao encontro marcado.

Por todas as razões e mais alguma, decidi não fazer nada. No fundo, encontrava-me ali no exercício das minhas funções. Não tinha nada a perder. Para quê ficar alarmado?

Encostei-me à parede, voltei a meter as mãos nos bolsos e pus-me a contar as moedas. É uma daquelas operações que uma pessoa faz maquinalmente. Três mil setecentos e cinquenta ienes. Não tinha nada que saber.

Três mil setecentos e cinquenta ienes?

Havia ali qualquer coisa que não batia certo.

Sem dúvida que devia ter cometido algum erro.

Notei que as palmas das mãos começavam a ficar húmidas de suor. Nos três últimos anos, nunca me enganara ao contar as moedas que trazia no bolso. Nem uma única vez! A confirmar-se, era mau sinal. Tinha de recuperar o terreno perdido, antes que aquele presságio nefasto se transformasse num desastre.

Fechei os olhos e, como se estivesse a limpar as lentes dos óculos, esvaziei o hemisfério direito e o hemisfério esquerdo do cérebro. Depois tirei as mãos dos bolsos das calças, estendi as palmas e estiquei bem os dedos, de forma a permitir que o suor secasse. Executei o ritual em tudo semelhante aos gestos de Henry Fonda, momentos antes de se bater em duelo no filme Warlock: O Homem das Pistolas de Ouro. Não que tenha grande importância, mas confesso que gosto imenso desse filme.

Com as palmas das mãos completamente secas, voltei a enfiá-las nos bolsos e dei início a uma terceira contagem. Se a soma correspondesse a uma das anteriores, tudo bateria certo. Um erro, qualquer pessoa comete. A situação particular em que me encontrava pode ter contribuído para me deixar um tanto nervoso. Foi esse o meu primeiro erro. Em todo o caso, bastava-me refazer os cálculos e chegar ao número correto para remediar a situação. Antes de ser salvo, porém, abriram-se as portas do elevador. Sem aviso prévio e sem o menor ruído, ambas as portas deslizaram até ficarem escancaradas.

Concentrado como eu estava na complexa tarefa de contar as moedas, a princípio nem me apercebi do sucedido. Ou, para ser mais exato, reparei que as portas se abriam, mas não alcancei no preciso instante o significado concreto daquele ato. Claro que o facto de as portas se terem aberto queria dizer que a ligação, anteriormente interrompida entre os dois espaços havia sido retomada. E, ao mesmo tempo, isso queria dizer que o elevador chegara ao seu destino.

Deixei o que estava a fazer e concentrei a minha atenção no exterior. Para lá da porta estendia-se um corredor; de pé, no meio desse corredor, via-se uma mulher. Uma rapariga gorducha, vestida de cor-de-rosa e calçando sapatos também cor-de-rosa, de salto alto. O saia-casaco era de bom corte, elegante, confecionado num tecido acetinado. O rosto da jovem tinha uma expressão refinada, a condizer. Depois de olhar para mim, como que para se certificar da minha identidade, a mulher esboçou um gesto com a cabeça. «Vem comigo», parecia ela querer indicar. Pus de parte a ideia de contar as moedas, tirei as mãos dos bolsos e saí do elevador. Ato contínuo, como se o tivessem previsto, as portas fecharam-se nas minhas costas.

Uma vez no corredor, observei com atenção o espaço em redor, mas não vi rigorosamente nada que pudesse lançar alguma luz sobre a situação em que me encontrava naquele momento. Queria parecer-me que estava numa passagem subterrânea do edifício, mas isso até um aluno da primária teria adivinhado.

O interior do edifício era incrivelmente sombrio e revelava uma ausência de características definidas. Tal como sucedia no caso do elevador, tinham sido utilizados materiais de qualidade superior, mas perfeitamente anódinos. O pavimento de mármore resplandecia; as paredes, de um branco-amarelado, faziam lembrar os pãezinhos doces que eu costumava comer ao pequeno-almoço. Ao longo do corredor, de ambos os lados, alinhavam-se pesadas portas de madeira, todas elas com um número inscrito numa placa de metal, embora não obedecendo a uma ordem lógica: depois do 936 aparecia o 1212, seguido do 26. Jamais me deparara com uma sucessão de algarismos tão disparatada. Decididamente, não batia a bota com a perdigota.

A jovem mal abriu a boca. Dirigiu-se a mim dizendo: «Por aqui, se faz favor», mas limitou-se a mexer os lábios e a formar a frase, sem emitir som. Não tive dificuldade em entender o que ela tinha dito, pois, antes de me dedicar àquele trabalho, frequentara durante dois meses um curso para aprender a ler nos lábios. De início, julguei que havia algum problema com os meus ouvidos. Depois de não ter captado o ruído produzido pelo elevador, ao ser confrontado com os sons estranhos e ásperos em que se traduziam as tossidelas e os assobios, comecei a duvidar da minha capacidade auditiva.

Experimentei tossir. O som, ainda que um pouco surdo, parecia mais normal do que quando pigarreara no elevador. Que alívio! Não se passava nada de errado com os meus ouvidos. Era a mulher que devia ter algum problema no aparelho fonador.

Fui andando sempre atrás dela. Tac, tac, tac. Os sapatos de salto-agulha ressoavam no corredor vazio como numa pedreira às primeiras horas da tarde. As suas pernas, cheias, apertadas nas meias de náilon, reverberavam no mármore do chão.

A mulher parecia bastante roliça. Era jovem, bonita e tudo isso, o que não impedia que fosse a atirar para o gordinho. Enquanto a seguia pelo corredor deserto, não tirei os olhos dela: da sua nuca, dos seus braços, das suas pernas. A carne agarrava-se-lhe ao corpo como uma abundante camada de neve caída em silêncio durante a noite.

Fico sempre perturbado na presença de uma mulher jovem, bonita e rechonchuda. Não me perguntem a razão. Talvez seja porque à minha mente aflore, espontaneamente, a imagem dos seus hábitos alimentares. Basta aparecer-me à frente uma moça gordita, e dou por mim a evocar, de maneira automática, cenas em que a imagino a mordiscar o resto das folhas frescas e estaladiças da salada de agrião que guarnecem o prato ou, num gesto de pura gula, a ensopar o pão no molho até à última gota. É mais forte do que eu. E quando isso acontece, tal como um ácido corrói o metal, a imagem da comida invade a minha mente por inteiro, impedindo-a de efetuar qualquer outra função mental.

Tratando-se de uma vulgar mulher gorda, a coisa não tem história. Mulheres obesas são como nuvens no céu. Limitam-se a flutuar, e a sua presença não me diz a ponta de um corno. Agora, quando a mulher é jovem, bonita e gorda, o caso muda de figura. Sinto-me impelido a tomar uma atitude. Isto porque pode dar-se o caso de acabarmos juntos na cama. Creio que é isso que está na origem de toda a confusão: não é fácil ir para a cama com uma mulher quando não estamos no pleno domínio das nossas faculdades.

Não quer dizer que eu tenha algo contra as mulheres gordas. Confusão e repulsa são sentimentos distintos. Já dormi com mulheres novas, bonitas e gordas, e, de uma forma geral, diria que as experiências não foram nada desagradáveis. Desde que bem conduzido, o estado de confusão pode dar excelentes resultados, muito mais brilhantes do que por norma se obteriam. Como é óbvio, também pode acontecer o contrário e correr mal. O sexo é qualquer coisa de extraordinariamente delicado, não se compara com uma ida a uma grande superfície ao domingo para comprar uma garrafa-termo. Mesmo entre as mulheres igualmente jovens, belas e gordas existem diferenças no que respeita ao género de obesidade. Admito que há um tipo de adiposidade que me conduz na direção certa, ao passo que outro tipo me deixa perdido, provocando em mim uma ligeira perturbação.

Neste sentido, fazer amor com mulheres gordas pode revelar-se um desafio. Porque existem tantas maneiras de uma pessoa engordar, tal como muitas e variadas são as maneiras de morrer.

* * *

Era sobre isto que eu meditava enquanto percorria o corredor atrás daquela jovem bonita e de formas avantajadas.

Ao pescoço levava um lenço branco a combinar com o elegante saia-casaco rosa. Dos lóbulos carnudos das orelhas pendiam uns brincos de ouro retangulares, que oscilavam obedecendo à cadência dos seus passos e emitiam lampejos brilhantes. Movimentava-se com grande agilidade, atendendo ao peso. Podia acontecer que tivesse vestido uma cinta ou outro apetrecho qualquer destinado a realçar ao máximo a sua figura, porém, mesmo considerando essa hipótese, tal não alterava o facto de o movimento das suas ancas inflamar os meus sentidos. Aquela gordura toda excitava-me. Ela era o meu tipo de mulher anafada.

Sem estar aqui a pretender justificar-me, não há assim tantas mulheres que me atraiam. Isto para não dizer que, pelo contrário, poucas vezes me sinto atraído. Por isso, nas raras ocasiões em que tal sucede, fico sempre com vontade de tirar a prova dos noves e de perceber, no meu caso concreto, como funciona a lei da atração.

Coloquei-me a seu lado e pedi desculpa por comparecer com oito ou nove minutos de atraso no local da entrevista.

– Não fazia ideia de que as formalidades na entrada me iriam reter durante tanto tempo – justifiquei-me. – Além disso, também não imaginava que o elevador fosse tão lento. A verdade é que cheguei aqui, à porta do edifício, com dez minutos de avanço.

A jovem fez um breve gesto de assentimento, como quem diz: «Estou a ver.» Da sua nuca desprendia-se uma ténue fragrância a eau de cologne. Um odor que dava a ilusão de me encontrar no meio de um campo cheio de melões em plena manhã de verão. Aquele cheiro teve o condão de provocar em mim uma sensação estranha: uma mistura incoerente e nostálgica de sentimentos, como se duas lembranças sem qualquer relação se tivessem sobreposto num lugar desconhecido. De vez em quando apoderam-se de mim sensações deste género. Quase sempre, diga-se de passagem, provocadas por odores particulares.

– Que corredor tão extenso – observei, com o objetivo de entabular conversa.

A rapariga estudou-me, sem nunca deixar de caminhar. Calculei que andasse pelos vinte ou vinte e um anos. Tinha as feições regulares, a testa alta e uma pele bonita.

– Proust – limitou-se ela a dizer, observando-me de frente.

Ou, para ser mais preciso, não pronunciou a palavra «Proust», mas deu a ideia de ter formado com o movimento dos seus lábios o que me pareceu ser «Proust». Continuava sem emitir um único som. Nem sequer se ouvia o rumor da sua respiração. Era como se ela falasse comigo através de uma espessa parede de vidro.

Proust?

– Marcel Proust? – perguntei eu.

Ela olhou para mim com espanto. E então repetiu: «Proust.» Desalentado, tornei a colocar-me atrás dela e, enquanto a seguia, dei voltas à cabeça esforçando-me por encontrar uma palavra que pudesse corresponder ao movimento labial: «Pus»... «Prússia»... «Prumo»...

Entretive-me a fazer rolar as palavras na boca, umas após as outras, numa sucessão de sílabas sem sentido naquele contexto, mas nenhuma parecia ajustar-se de forma convincente ao movimento sugerido pelos seus lábios. Tudo apontava para que ela tivesse dito «Proust». No entanto, o que eu não compreendia era a relação que podia existir entre aquele longo corredor e Marcel Proust.

Talvez ela tivesse citado Proust como metáfora para o tamanho do corredor. Contudo, a ser esse o caso, havia que reconhecer que a formulação pecava por demasiado brusca, para não dizer inoportuna... Ainda perceberia se ela tivesse referido o comprimento do corredor enquanto metáfora do conjunto da obra de Marcel Proust. Agora, o contrário parecia-me bizarro.

Um corredor longo como a obra de Marcel Proust?

Seja como for, fui atrás dela, e juntos percorremos a interminável galeria. Em boa verdade, parecia não ter fim. Demos voltas e mais voltas, subimos e descemos pequenos lanços de escadas; ao todo, devemos ter calcorreado a distância que percorreríamos se estivéssemos no corredor de um edifício normal. Ou, então, talvez nos limitássemos a ir e vir num movimento contínuo, à imagem do que acontece nas gravuras de Escher. Isto para dizer que, por mais que andássemos, o cenário era sempre o mesmo. Pavimentos de mármore, paredes pintadas de um amarelo-claro, cor de casca de ovo, portas de madeira com uma numeração estapafúrdia e puxadores de aço inoxidável. Não havia janelas. E, durante todo o tempo, os saltos altos da jovem continuavam a ecoar ao longo do corredor, produzindo o mesmo martelar constante e regular, enquanto os meus ténis de corrida faziam um barulho mole e pegajoso, que fazia pensar em borracha derretida.

A rapariga travou de repente. Concentrado como eu estava no ruído que as solas dos meus ténis produziam, nem me dei conta. Em resultado disso, fui de encontro a ela. As suas costas ampararam o meu peito, e o choque revelou-se bastante agradável, como uma nuvem carregada de chuva. A nuca dela cheirava a uma conhecida colónia com fragrância de melão. Com o embate, a jovem viu-se projetada para diante, e tive de a agarrar pelos ombros para evitar que caísse.

– Desculpe – disse eu. – Ia distraído, perdido nos meus pensamentos.

A jovem gorda corou ao de leve. Sou capaz de jurar que não se mostrava minimamente incomodada.

– Tozum’sta – sussurrou ela. Pelos seus lábios passou a sombra de um sorriso.

A seguir, encolheu os ombros e acrescentou:

– Sela.

Não dizia exatamente aquilo, e aqui corro o risco de me repetir: limitava-se a formar as palavras com os lábios.

– Tozum’sta? – pronunciei baixinho, só para mim. – Sela?

– Sela – disse ela com convicção.

Soava-me a turco. Seria possível? O problema é que eu nunca na vida tinha ouvido uma palavra daquele idioma. Por isso, se calhar era outra coisa qualquer. Sentindo-me cada vez mais confuso, achei melhor esquecer a história de querer conversar com ela. Ler nos lábios é uma operação muito delicada, e, para ser franco, eu ainda estava longe de dominar a técnica na perfeição, uma vez que contava apenas com dois meses de aulas para adultos num centro educativo municipal.

A rapariga sacou de uma pequena chave eletrónica, que tinha um formato oval, e introduziu-a horizontalmente na fechadura da porta que ostentava a placa número 728. A porta abriu-se com um clique. Pelos vistos, o mecanismo funcionava às mil maravilhas.

Ela abriu a porta. Parada na ombreira, manteve a porta aberta, sem nunca tirar a mão do puxador. Depois, virou-se para mim e convidou-me a entrar:

– Saum’te Sela.

Escusado será dizer que foi isso que eu fiz.


O Fim do Mundo

2

Os Animais Dourados

Com a chegada do outono, o corpo dos animais selvagens cobria-se de uma vasta pelagem de ouro. Dourada no mais puro sentido da palavra, que é como quem diz: sem que houvesse o mínimo traço de outra cor misturada. Um tom que representa a própria essência do dourado e que existe neste mundo enquanto tal. Entre o céu e a terra, os animais andavam cobertos de ouro puríssimo.

Quando cheguei à Cidade – era primavera –, os animais apresentavam o pelo curto de diferentes cores. Preto e cinzento com laivos de amarelo, branco e castanho-ferrugem. Também se viam algumas pelagens mosqueadas. Revestidos das mais diversas tonalidades, esses animais vagueavam pacificamente, como que impelidos à mercê do vento, pelas verdes pastagens onde crescia a vegetação fresca. Mostravam-se tranquilos, quase meditabundos: até a sua respiração era leve e calma, fazendo lembrar a neblina matinal. Em completo silêncio, tasquinhavam a erva verde e, uma vez saciados, dobravam as patas por baixo do corpo, tombavam por terra e deixavam-se cair num breve sono.

A primavera passou, o verão chegou ao fim, e, no momento em que a luz adquiriu um brilho diáfano e os primeiros ventos de outono começaram a encrespar a superfície dos rios, o aspeto dos animais conheceu uma mudança. Despontaram alguns fios dourados, ao início de forma esparsa – como certas plantas brotam por vezes fruto do acaso, fora do tempo –, que depois, a pouco e pouco, se transformaram em incontáveis tentáculos, invadindo o pelo curto até, finalmente, o cobrirem por inteiro de um brilhante tom dourado. A metamorfose dos animais durou uma semana do princípio ao fim: deram início a este ritual quase em simultâneo, acabando praticamente ao mesmo tempo. Ao fim de sete dias, todos os animais, sem exceção, se converteram em animais dourados. Quando o Sol se ergue, lança sobre o mundo uma nova luz dourada e o outono desce sobre a Terra.

Apenas aquele longo corno de grande porte, protuberante no meio da testa, apresentava a cor branca, desde a base até à delicada extremidade. Fazia lembrar menos um corno e mais a extremidade de um osso que tivesse rasgado a pele e ficara enquistado naquele sítio. Tirando o branco dos cornos e o azul dos olhos, os animais são dourados. Abanam as cabeças como se estivessem a experimentar um novo traje, ao mesmo tempo que investem com a ponta dos cornos na direção do vasto céu outonal. Depois, molham as patas na água fresca dos riachos e esticam o pescoço em direção aos arbustos para mordiscar as bagas vermelhas, frutos da estação.

* * *

Quando o crepúsculo começou a tingir de azul a Cidade, subi a uma das torres de vigia situadas na zona oeste da Muralha, a fim de observar o Guardião, que agrupava o rebanho, recorrendo para o efeito ao som produzido pelo corno. Um toque longo seguido de três curtos. Era invariavelmente esse o sinal. Sempre que ouvia soar o corno, eu fechava os olhos e deixava aquele doce som invadir os meus sentidos. Não há sonoridade que se compare à desse instrumento. O seu eco navega pelas ruas como um peixe pálido e translúcido atravessa as ruas empedradas e propaga-se debaixo das arcadas, entre os muros de pedra que rodeiam as casas alinhadas ao longo do rio. A sua ressonância espalha-se por toda a Cidade, atravessa os sedimentos invisíveis do tempo, penetrando em todos os recantos.

Sempre que o corno ressoava pelas ruas da Cidade, os bichos erguiam a cabeça, como que em resposta a lembranças imemoriais. Os animais, que eram mais de mil, olhavam para cima, na direção de onde provinha o chamamento, assumindo idêntica postura. Alguns deixavam de mordiscar as folhas de giesta, em sinal de temor respeitoso, enquanto outros, deitados sobre o chão de pedra, cessavam de golpear o pavimento com os cascos; outros, ainda, despertavam da sesta proporcionada pelos últimos raios de sol, e todos esticavam o pescoço no ar.

Por um instante, era como se tudo ficasse em suspenso, apenas se distinguindo o pelame dourado dos animais ondulando ao sabor da brisa noturna. O que passaria pelas suas cabeças nesse momento? Para onde estariam a olhar? Ficavam ali, imóveis, com os pescoços inclinados no mesmo ângulo e na mesma direção, mantendo os olhos perdidos no espaço. Habituados a escutar aquele som, apuravam o ouvido, até que os últimos ecos se dissolviam no lusco-fusco. Então, subitamente, erguiam-se sobre as patas e começavam a caminhar numa determinada direção, como se tivessem acabado de se lembrar de alguma coisa. Quebrara-se o encantamento, e a Cidade enchia-se com o ruído de um número infindável de cascos. Aquele som evocava sempre na minha imaginação uma quantidade prodigiosa de bolas de espuma brotando das profundezas da terra. As bolas enchiam as ruas, trepavam pelas paredes das casas, acabando por cobrir tudo, até mesmo a Torre do Relógio.

No entanto, tratava-se de uma mera ilusão de ótica provocada pela escuridão. Bastava-me abrir os olhos e tudo se desvanecia: a Cidade continuava igual, nada mudara. Os animais atravessavam as ruas, formando uma coluna que deslizava como um rio pelas tortuosas ruas calcetadas. À cabeça da manada não havia nenhum animal que se destacasse, apostado em conduzir os outros. As bestas limitavam-se a seguir o curso daquele fluxo silencioso, os seus dorsos sacudidos por tremores à medida que avançavam, de olhos no chão. E, no entanto, intuía-se que aqueles animais se encontravam ligados por um laço, invisível a olho nu mas real, feito de memórias íntimas e indeléveis.

A coluna que descia, vinda do norte, atravessou a Ponte Velha e foi reunir-se aos outros animais oriundos de leste, percorrendo o trilho ao longo dos canais. Depois, virando para oeste, uns e outros atravessaram juntos a zona industrial, indo ter ao pé da Colina Ocidental. Ali, na encosta desse outeiro, esperavam-nos os animais mais velhos, bem como os de tenra idade, que não podiam afastar-se demasiado das portas da Cidade. Neste ponto, a coluna mudava de direção, rumo ao norte, atravessava a Ponte Ocidental e encaminhava-se para a Porta Ocidental.

Mal os animais que seguiam na dianteira chegavam diante da porta, o Guardião franqueava-lhes a entrada. Reforçada na horizontal com grossas traves de ferro, as portas eram rugosas e pesadas. Deviam ter cerca de quatro ou cinco metros de altura e o bordo superior estava cravejado de pregos afiados, formando uma espécie de coroa de agulhas, para evitar que alguém saltasse. O Guardião movia a porta direita, maciça, puxando-a para si sem esforço, e deixava sair as bestas. A porta do lado esquerdo permanecia sempre fechada. Quando todos os animais, sem exceção, tinham acabado de passar, o Guardião tornava a fechar a porta e colocava a tranca no seu lugar.

A Porta Ocidental era, segundo julgo saber, a única via de acesso à Cidade. Estava rodeada pela enorme Muralha, dos seus sete ou oito metros de altura, que só os pássaros podiam superar.

Ao chegar a manhã, o Guardião abria de novo a Porta Ocidental e fazia soar o corno, convidando os animais a entrar. Assim que eles se encontravam todos lá dentro, tornava a fechar a porta e trancava-a.

– A verdade é que não há necessidade de utilizar o ferro-lho – explicou-me o Guardião. – Apenas eu tenho força para abrir uma porta tão pesada como esta. Nem sequer várias pessoas juntas seriam capazes de semelhante façanha. Se o faço, é porque assim está decidido. As regras são para cumprir.

Após ter pronunciado aquelas palavras, o Guardião puxou o gorro de lã até às sobrancelhas e calou-se bem calado. Era um autêntico gigante, o Guardião, corpulento e coriáceo, como nunca me lembro de ter visto outro. A camisa ameaçava rebentar sob a pressão dos seus músculos. Havia ocasiões em que fechava os olhos e se afundava num silêncio interminável. Não saberia dizer se ele caíra numa crise de melancolia, ou se, pura e simplesmente, se tinha produzido algum bloqueio das suas funções cognitivas. Assim que o silêncio tomava conta dele, a única coisa a fazer era aguardar que voltasse a si. E quando, por fim, recuperava a consciência, abria os olhos lentamente, fitava-me com um olhar vago, sem nunca deixar de esfregar os joelhos com as mãos, como se procurasse adivinhar a todo o custo as razões da minha presença ali.

– Porque fazes sair os animais, ao cair da noite, para longe dos muros da Cidade, e de manhãzinha os tornas a receber dentro da Muralha? – perguntei, um dia, ao Guardião, logo que ele recuperou a presença de espírito.

O Guardião olhou-me fixamente, sem demonstrar o mínimo sinal de emoção.

– Porque ficou estabelecido – justificou ele. – E é assim que deve ser. Da mesma maneira que o Sol nasce a leste e se põe a oeste.

* * *

Quando o Guardião não estava entregue à missão de abrir e fechar a porta, dedicava o seu tempo a afiar um autêntico arsenal de objetos cortantes. Na sua cabana encontravam-se, alinhados, machados, foices e facas de todos os tamanhos e feitios, de modo que ele ocupava os tempos livres a afiá-los escrupulosamente na sua pedra de amolar. Uma vez aguçados, os gumes disparavam um brilho branco, tudo menos natural, e, mais do que refletir a luz recebida, as lâminas davam a impressão de esconder no seu interior um corpo luminoso.

Ao ver-me examinar a sua coleção de lâminas, o Guardião sorriu com satisfação, seguindo atentamente o meu olhar.

– Tem cuidado! Basta um toque para te cortares – observou, apontando para o seu arsenal com o dedo espesso e nodoso como a raiz de uma árvore. – Olha que não se trata de brinquedos. Foram todos fabricados por mim, forjados um a um. Antigamente era ferreiro, e este é o resultado do meu labor. Estão bem afiados e o seu equilíbrio é perfeito. Não é fácil escolher o punho adequado ao peso de uma lâmina. Experimenta pegar numa para ver. Atenção, não te cortes!

De entre todos os instrumentos cortantes alinhados sobre a mesa escolhi o machado mais pequeno e brandi-o várias vezes no ar. Diga-se em abono da verdade que bastou conferir um pouco de força ao pulso – ou tão-só pensar em fazê-lo – para que o gume afiado do machado reagisse com vivacidade, como um cão de caça bem treinado, rasgando o ar com um silvo seco. O Guardião tinha motivos para estar orgulhoso.

– Também fui eu que fiz os punhos. Talhei-os usando madeira de freixo com dez anos de idade. Para as pegas, muita gente prefere outros materiais, mas eu não prescindo do velho freixo. Precisa de ter dez anos... Antes disso é demasiado jovem e não serve; nem mais novo, nem mais velho. Dez anos é o tempo ideal. A madeira mostra-se resistente, flexível, com o grau de humidade certo. No Bosque Oriental encontram-se bons freixos.

– E para que lhe servem tantas facas?

– Para as mais variadas coisas – respondeu o Guardião. – No inverno, sobretudo, são-me de grande utilidade. Espera e ficarás a saber como o inverno aqui é longo.

* * *

Fora da Cidade existe um lugar reservado aos animais, um sítio onde eles pernoitam. Passa por ali um riacho que lhes permite beber, por isso água não lhes falta. Mais adiante, até onde a vista alcança, estende-se um vasto mar de árvores de fruto.

Do lado ocidental da Muralha encontram-se edificadas três torres de vigia, às quais é possível aceder por meio de uma escada. As torres possuem janelas protegidas por grades de ferro, de onde é possível observar, em baixo, os animais.

– Só a ti é permitido ver os animais – afirmou o Guardião. – Acabaste de chegar, tem a sua lógica. Depois de te instalares e te habituares a viver aqui, as coisas entrarão na normalidade. Nessa altura deixarás de te interessar por eles. Acontece com toda a gente. Salvo durante a primeira semana da primavera, que é um caso diferente.

Durante uma semana, no dealbar da primavera, contou-me o Guardião, as pessoas subiam às torres de vigia para assistir aos combates entre os animais.

No decorrer desse período – e apenas durante uma semana antes de as fêmeas darem à luz –, os machos adquirem uma ferocidade sem limites, inimaginável em tempos normais, e desatam a ferir-se uns aos outros. E dessa enorme quantidade de sangue que alastrava pelo terreno nascia uma nova ordem e uma nova vida.

* * *

No outono, porém, os animais permanecem agachados uns ao lado dos outros, em silêncio, deixando o seu longo pelo dourado refulgir à luz do sol poente. Perfeitamente imóveis, como estátuas rentes ao solo, de pescoço estendido, aguardam, imóveis, que os últimos raios do dia mergulhem num oceano verde de macieiras. Quando, finalmente, o Sol desaparece e as trevas azuladas da noite se abatem sobre eles, os animais erguem a cabeça e baixam os olhos, pousando sobre a terra o seu único corno.

E assim chegava ao fim mais um dia na Cidade.


O Impiedoso País das Maravilhas

3

Impermeável.
Os Invisíveis. Lavandaria

Fui conduzido a uma grande sala vazia. As paredes e o teto estavam pintados de branco, a carpete era cor de café: duas cores elegantes e que combinavam na perfeição. Sim, mesmo no que toca a uma cor simples como o «branco», é bom não confundir o branco requintado com o branco vulgar.

Os vidros das janelas, totalmente opacos, não permitiam ver a paisagem lá fora, mas a luz difusa que ainda assim se infiltrava só podia ser a luz do Sol. O que significava que nos encontrávamos acima do nível do solo, e não num subterrâneo. Como tal, o elevador tinha subido. Saber isso contribuiu para me tranquilizar. Os meus palpites estavam certos.

A rapariga indicou-me um sofá de pele no meio da sala e convidou-me a sentar. Instalei-me e cruzei as pernas, ao mesmo tempo que ela saía por uma porta diferente daquela por onde havíamos entrado.

A divisão tinha muito pouca mobília. À frente do sofá, em cima de uma mesinha de café, estavam alinhados um cinzeiro de loiça, um isqueiro e uma cigarreira. Ao abri-la, reparei que estava vazia.

Nas paredes, a ausência de elementos supérfluos era total: não se via nem um quadro, um calendário ou uma fotografia.

Perto da janela havia uma grande secretária. Levantei-me, fui até à janela e, de caminho, aproveitei para bisbilhotar. Tratava-se de uma secretária de madeira sólida com gavetas enormes de cada lado. Sobre o tampo havia um candeeiro, três esferográficas Bic, uma agenda de mesa e, mesmo ao lado, vários clipes espalhados. Lancei uma espreitadela e notei que a agenda estava aberta no dia em questão.

Num dos cantos viam-se três arquivadores, desses vulgaríssimos que se encontram por aí ao pontapé. Demasiado funcionais, diga-se de passagem, não combinavam minimamente com o ambiente geral. Um armário de arquivo de madeira emprestaria mais classe à sala, mas isso era se tivesse sido eu a escolher. Para todos os efeitos, aquela não era a minha casa. Só me deslocara até ali para executar uma certa missão, e que os arquivadores fossem metálicos e cinzento-rato ou que existisse uma jukebox rosa-pálido não era problema meu.

Na parede da esquerda havia um roupeiro encastrado com portas de correr. Era todo o mobiliário que existia. Não se via uma estante, um relógio, um telefone, um afia-lápis, um tabuleiro para colocar cartas e documentos de escritório, um jarro de água. Tornava-se impossível adivinhar para que raio serviria aquela sala. Qual seria a sua função? Voltei para o sofá, cruzei as pernas e bocejei.

Passados dez minutos, a jovem tornou a aparecer. Sem se dignar dirigir-me um olhar, abriu uma das portas do armário, tirou lá de dentro um pacote negro envolto num material brilhante e depositou-o em cima da mesa de café.

Tratava-se de um impermeável oleado e de umas galochas, tudo cuidadosamente dobrado. Em cima do pacote via-se um par de grossos óculos de proteção, como aqueles que os pilotos usavam no tempo da Primeira Guerra Mundial. Cada vez percebia menos o que me estava a acontecer.

A mulher aproximou-se de mim para dizer qualquer coisa, mas o movimento dos seus lábios era demasiado rápido e não consegui ler a mensagem.

– Desculpe... – atrevi-me a dizer, verbalizando a minha insegurança. – Poderia falar um pouco mais devagar, por favor? Ler nos lábios não é a minha especialidade.

Desta vez falou devagar, abrindo muito a boca e pronunciando as palavras com toda a clareza.

– Enfie isto por cima da roupa, se não se importa – disse ela.

Para dizer a verdade, preferia não o fazer, mas ainda seria mais complicado pôr-me a discutir, de modo que optei por seguir as suas instruções em silêncio. Descalcei os ténis desportivos e calcei as galochas; depois vesti o impermeável por cima das calças e da camisa. Pesava uma tonelada, e as galochas eram dois ou três tamanhos acima do meu; uma vez mais, porém, preferi não levantar objeções. A rapariga veio colocar-se à minha frente, abotoou-me o impermeável e cobriu-me a cabeça com o capuz. Ao fazê-lo, tocou-me com a testa na ponta do nariz.

– Cheira bem – disse eu, naquele que pretendia ser um elogio, tanto a ela como à água-de-colónia.

– Obrigada – respondeu, fechando até ao pescoço, um a um, com um estalido seco, os botões de pressão do capuz. A seguir, colocou-me os óculos de piloto. Com a ajuda dela, eu transformara-me numa espécie de múmia equipada para enfrentar as intempéries.

Chegados àquela fase, abriu a porta do armário, pegou-me na mão e introduziu-me lá dentro. Depois acendeu a luz e fechou a porta com a mão que tinha livre. Encontrávamo-nos no interior de um roupeiro encastrado, com a diferença de que ali, naquele armário destinado a guardar peças de vestuário, roupa era coisa que não havia – apenas meia dúzia de cabides pendurados e bolas de naftalina. Provavelmente, nem sequer se tratava de um roupeiro. Talvez fosse uma passagem secreta, ou assim. De contrário, que sentido fazia a rapariga ter-me obrigado a enfiar o impermeável e a ficar ali encafuado?

A jovem utilizou um manípulo metálico que havia ao canto do armário e, logo de seguida, a parede frente à nossa começou a abrir-se, levantando-se e formando uma abertura, como se fosse o porta-bagagens de um carro utilitário. Via-se um buraco negro, mas, ao mesmo tempo, dava para sentir uma corrente de ar frio e húmido; por sinal, uma aragem que não provocava uma sensação muito agradável. Também se ouvia o gorgolejar constante da água a correr.

– Há um rio que passa não muito longe – pareceu-me perceber nas suas palavras.

O rumor do rio imprimia à sua maneira de falar silenciosa um certo realismo. Dir-se-ia que ela emitira sons verdadeiros e que a corrente afogara os sons que proferira. Talvez fosse pura sugestão, mas o certo é que, de repente, as suas palavras se transformaram em linguagem percetível. Estranho, muito estranho.

– Subindo a correnteza do rio, irá dar a uma grande cascata. Passe por baixo. Ao fundo encontra-se o laboratório do meu avô. Quando lá chegar, ele lhe dirá o que fazer a seguir.

– Quando eu chegar, o seu avô estará à minha espera?

– Sim – respondeu a jovem, entregando-me uma grande lanterna à prova de água presa por uma correia. Não me apetecia nada arriscar-me no escuro, contudo, era demasiado tarde para recuar, de modo que me resignei à minha sorte e tratei de enfiar uma perna dentro daquele buraco negro que se abria diante de mim. Em seguida, curvei-me para a frente, passei a cabeça e os ombros, e, por fim, encaixei a perna que faltava. Conseguir mexer-me não foi tarefa fácil, metido naquele oleado rígido, mas, aos poucos, lá consegui arrastar-me e ir do armário até ao outro lado da parede. No meio do escuro e através dos óculos de proteção, a jovem gorda pareceu-me terrivelmente atraente.

– Cuidado. Não se afaste do rio – advertiu-me ela, inclinando-se para me fitar bem nos olhos.

– Sempre a direito até à cascata – gritei eu.

– Sempre a direito até à cascata – repetiu ela.

Para fazer uma experiência, formei com os lábios a palavra «sela», sem produzir qualquer som. Ela fez-me um sorriso rasgado e respondeu: «Sela.» Depois bateu-me com a porta na cara.

* * *

Encontrei-me totalmente mergulhado nas negras trevas. Refiro-me, literalmente, a uma escuridão absoluta, em que não se via a ponta de um corno. Nem a minha própria mão eu consegui distinguir quando a aproximei da cara. Por momentos, caiu-me a alma aos pés e fiquei ali parado, completamente desconcertado. Sentia-me dominado pela mais fria impotência. A sensação que tinha era a de ser um pedaço de peixe envolto em película transparente, depositado no frigorífico e ali esquecido, como é costume acontecer aos restos. Por instantes, a surpresa de me encontrar no escuro tolheu-me os movimentos e invadiu-me uma imensa lassidão. Se a rapariga fazia tenções de fechar a porta, ao menos podia ter-me avisado.

Apalpei o interruptor da lanterna e, de imediato, um feixe de raios amarelados traçou uma linha a direito através da escuridão. Primeiro que tudo, apontei a luz para os pés e observei com calma o espaço em redor. Encontrava-me numa plataforma de cimento, com cerca de três metros quadrados; a dois passos abria-se um precipício abrupto sem fim. Não existia qualquer barreira de proteção, nenhum parapeito que se visse. A rapariga também me devia ter prevenido acerca disto antes, pensei, sentindo-me um tudo-nada irritado com ela.

Encostada à plataforma, numa das extremidades, vislumbrei uma escada de alumínio que me permitia descer. Coloquei a lanterna na diagonal, a tiracolo, e dei início à descida, colocando um pé atrás do outro nos degraus escorregadios, sempre com muito cuidado. À medida que descia, o bramido da água tornava-se mais forte e mais nítido. Uma pessoa abria a porta de um armário, em pleno edifício de escritórios, e ia ter a um precipício oculto, ao fundo do qual corria um rio... Onde é que se ouvira falar de semelhante cenário? Ainda por cima, no coração de Tóquio!

Quanto mais cismava no assunto, mais perturbado ficava. Primeiro, aquele elevador sinistro; depois, a mulher anafada que falava sem dizer uma palavra, e, por fim, esta excursão a passo de caracol! Se calhar, devia ter recusado o trabalho e regressado a casa. Para além de ser demasiado perigoso, desafiava os limites do bom senso. Mas não; continuei a descer em direção ao abismo. Estaria em jogo o meu orgulho profissional? Ou seria antes por causa da rapariga roliça vestida com o saia-casaco cor-de-rosa? Por uma razão ou por outra, engraçara com a jovenzinha, daí que fosse minha intenção cumprir com galhardia a missão.

Após ter descido vinte degraus, parei para recuperar o fôlego; depois continuei e desci mais dezoito degraus até tocar no solo. De pé junto à escada, dirigi o feixe de luz escrupulosamente pelo espaço em volta. Descobri que estava em cima de uma superfície rochosa, lisa e dura; a dois metros dali corria um rio. À luz da lanterna, vi que a superfície da água ondulava como uma bandeira desfraldada ao vento. A corrente era veloz, mas não deu para me aperceber da profundidade nem da cor da água. A única coisa que vi foi que corria da esquerda para a direita.

Fazendo incidir a luz no chão sob os meus pés, avancei ao longo do rio, no sentido contrário ao da corrente. Volta e meia, podia jurar que sentia a presença de qualquer coisa movendo-se próximo de mim, e então apressava-me a dirigir a lanterna nessa direção, mas não consegui divisar nada, a não ser as íngremes paredes rochosas que se erguiam de ambos os lados do rio. Provavelmente, a culpa era de toda aquela escuridão: deixava-me com os nervos em franja.

Ao fim de cinco ou seis minutos de marcha, uma alteração no murmúrio das águas fez-me compreender que o teto se tornara mais baixo. Alumiei a zona por cima da minha cabeça, mas as trevas eram tão densas que me impediram de distinguir o teto. Nas paredes laterais vislumbrei os tais desvios a que a jovem fizera referência. De facto, mais do que desvios, eram fendas cavadas na rocha, ao fundo das quais fluíam vários fios de água formando um pequeno riacho que desembocava no rio. A fim de inspecionar um pouco melhor, aproximei-me e apontei a luz da lanterna para uma das fendas, sem, no entanto, conseguir ver um palmo à frente do nariz. Descobri apenas que o fundo do buraco negro parecia muito maior do que sugeria à primeira vista. Entrar lá dentro? Não, obrigado.

Agarrando a lanterna com força na mão direita, continuei a seguir a corrente do rio, sentindo-me quase um peixe. A plataforma rochosa estava húmida e resvaladiça, por isso tinha de prestar atenção e ver onde punha os pés. Naquele breu profundo, se desse um passo em falso e caísse ao rio, ou se deixasse cair a lanterna, ficaria em maus lençóis.

Concentrei, pois, toda a atenção no solo que pisava. Quando dei por mim, apercebi-me de que à frente, sete ou oito metros mais acima, oscilava uma pequena luz. O meu primeiro reflexo, assim que a vi, foi desligar a lanterna. Depois, enfiei a mão pela abertura do impermeável e tirei uma navalha do bolso traseiro das calças. Abri a lâmina às apalpadelas. A escuridão e o rugido da água envolviam-me por completo.

No preciso segundo em que apaguei a lanterna, a luzinha amarela começou a seguir-me, desenhando dois círculos amplos no ar. O sinal parecia indicar: «Está tudo bem. Não há problema.» Apesar disso, não baixei a guarda, à espera de ver como eles reagiam. Automaticamente, a luz começou de novo a oscilar, movendo-se através do espaço deserto como um luminoso inseto gigante dotado de um cérebro descomunal. Empunhando a navalha com firmeza na mão direita e com a lanterna apagada na mão esquerda, cravei os olhos naquele ponto de luz.

A uma distância de três metros, a luz deixou de avançar, elevou-se e voltou a imobilizar-se. Era tão fraca que, a princípio, nem percebi o que procurava alumiar, mas, apurando a visão, acabei por distinguir o que me pareceu ser um rosto humano. Tal como eu, aquele homem escondia-se por baixo de uns óculos de proteção e de um capuz negro. Na mão trazia uma pequena lanterna portátil, dessas que se vendem nas lojas de artigos desportivos. Ao mesmo tempo que iluminava a cara com a lanterna, esforçava-se desesperadamente por me comunicar qualquer coisa, que o barulho da água não me deixava ouvir. Além disso, a escuridão que se fazia sentir impedia-me de ler nos seus lábios.

– ... porque... devido a... tenho pena... por isso... – parecia dizer o homem, se bem que eu não tivesse maneira de conferir sentido àquelas palavras. Em todo o caso, não me parecia existir perigo, por isso acendi a lanterna e iluminei a minha cara de perfil, tocando com o dedo na orelha para assinalar que não ouvia nada.

Convencido, o indivíduo acenou afirmativamente com a cabeça várias vezes, após o que pousou a lanterna no chão, enfiou as mãos no impermeável e pôs-se a remexer nos bolsos, inquieto. De repente, o marulhar à minha volta diminuiu de intensidade, como acontece quando a maré desce bruscamente. Pensei que ia desmaiar. Que os meus sentidos se desligavam e que, por isso, o som se apagava na minha cabeça. Preparado para a perda de consciência que se adivinhava (não sabia explicar porquê), retesei os músculos do corpo.

No entanto, passaram-se alguns segundos, e ali continuava eu, de pé. Para ser sincero, estava na plena posse das minhas faculdades. O que acontecia era que o som da água tinha diminuído.

– Vim buscá-lo – disse o homem, e desta vez a sua voz chegou nitidamente aos meus ouvidos.

Abanei a cabeça, enfiei a lanterna debaixo do braço e tratei de fechar a navalha e de a guardar. Tinha o pressentimento de que ia ser um daqueles dias em que tudo me poderia acontecer.

– O que se passou com o barulho? – perguntei.

– Ah, sim, o barulho da água... Estava muito forte, não era? Baixei-o. Desculpe lá. Agora está como deve ser – disse o homem, assentindo repetidas vezes.

O fragor da corrente baixara de volume até se converter no murmúrio de um riacho.

– Então, vamos? – Virando-me as costas sem explicações, encaminhou-se com um passo seguro no sentido contrário ao da corrente de água. Eu segui-o, iluminando com a lanterna o chão que pisava.

– Baixou o som? Quer dizer que se trata de um produto artificial? – indaguei, gritando na direção do que me pareciam ser as costas dele.

– Nada disso – ripostou ele. – O som era natural.

– Como é que se faz para baixar um som natural?

– Em rigor, não é uma questão de baixar – esclareceu o homem. – Na realidade, suprimi-o.

A resposta deixou-me na dúvida, mas decidi não insistir naquela tecla. Não me encontrava em situação de o fustigar com perguntas. Estava ali apenas para desempenhar uma missão, e não era nada comigo se a pessoa que requeria os meus serviços apagava, suprimia ou misturava o som como se estivesse a preparar uma vodca com limão. Como tal, segui-o sem dizer uma palavra.

Reinava um grande silêncio, agora que o barulho da água deixara de se fazer ouvir, ao ponto de eu distinguir o ranger das nossas botas de borracha em contacto com o solo. Por cima da minha cabeça chegou-me aos ouvidos, por duas ou três vezes, um rangido estranho, como se alguém estivesse a roçar dois seixos um no outro; no entanto, esse barulhinho parou logo a seguir.

– Encontrei indícios da presença dos Invisíveis nas imediações, sabe? – disse o homem. – Isso deixou-me preocupado, daí que tenha ido ao seu encontro. Por norma, os Invisíveis não se costumam aventurar até esta zona, mas pode acontecer. Constituem um sério problema.

– Os Invisíveis? – admirei-me.

– Aposto que até uma pessoa como você apanharia um valente susto se desse de caras com um deles, nem que fosse por mero acaso, não é verdade? – atirou o sujeito, soltando uma sonora gargalhada.

– Imagino que sim – respondi, achando melhor concordar com o meu interlocutor. Invisível ou não, a última coisa que me apetecia era ter de enfrentar semelhante criatura, ainda por cima num local escuro como aquele.

– Foi por isso que vim ao seu encontro – repetiu o homem. – Gente perigosa, os Invisíveis.

– Fico-lhe muito agradecido – disse eu.

Continuámos sempre a andar, até que começámos a ouvir o que me pareceu o rumor da água, como se estivesse uma torneira aberta. Era a cascata. Apenas com um movimento rápido da lanterna, não pude ver grande coisa, mas pareceu-me enorme: se o som não tivesse sido reduzido, o barulho seria impressionante. Assim que me cheguei mais à frente, os óculos de proteção ficaram todos salpicados de água.

– Aqui é onde temos de passar por baixo de água, certo? – perguntei.

– Exato, meu rapaz – confirmou o homem. E, sem mais explicações, foi direito à cascata e desapareceu no seu interior. Não tive outro remédio senão apressar-me a segui-lo.

Por sorte, o sítio onde atravessámos revelou-se o ponto onde o caudal era menos abundante, mas, ainda assim, a água possuía força suficiente para nos manter presos de encontro ao solo. Por mais boa vontade que tivéssemos, e apesar de nos encontrarmos protegidos pelo impermeável, parecia-me uma estupidez alguém ser obrigado a apanhar com aquele jorro de água em cima de cada vez que entrava ou saía do laboratório. Possivelmente, tratava-se de uma medida de segurança. Fosse como fosse, devia haver uma maneira mais airosa de o conseguir.

Já debaixo da cascata, caí e bati violentamente com o joelho contra as rochas. A ausência de som tinha-me feito perder o sentido das proporções entre o não-som e a realidade que o produzia, deixando-me bastante desconcertado. Uma cascata devia fazer o volume sonoro que se espera que uma cascata faça.

Ao fundo abria-se uma caverna com largura suficiente para permitir a entrada de uma pessoa. Continuando sempre em frente, havia uma porta de ferro. O homem tirou do bolso o que me pareceu ser uma calculadora pequena, enfiou-a na fechadura e, após tê-la manipulado um pouco, a porta abriu-se para dentro sem fazer ruído.

– Bom, chegámos. Faça favor – disse o indivíduo, dando-me passagem. A seguir, entrou também ele e fechou a porta.

– Isto é que foi uma trabalheira – comentou.

– Não vou negar – respondi de forma discreta.

O homem riu-se, sempre com a lanterna pendurada ao pescoço, os óculos postos e sem tirar o capuz da cabeça. Tinha um riso estranho. O que soava aos meus ouvidos era uma espécie de jovial «oh, oh, oh», como se ele estivesse com um ataque de tosse.

O espaço onde nos encontrávamos era grande e frio como o vestiário de uma piscina, e nas prateleiras alinhava-se meia dúzia de equipamentos iguais ao meu: impermeáveis pretos, galochas e os correspondentes óculos de proteção. Tirei os óculos, despi o impermeável e pendurei-o num cabide; depois guardei as galochas numa das prateleiras. Quanto à lanterna, deixei-a ficar pendurada num prego fixo na parede.

– Desculpe toda esta maçada – disse ele –, mas não me posso dar ao luxo de descuidar as questões de segurança. Sou obrigado a rodear-me de todas as precauções por causa dos tipos que andam a rondar por aí.

– Os Invisíveis? – perguntei eu, para ver se tirava nabos da púcara.

– Acertou. Os próprios, entre outros que tais – confirmou o homem, assentindo para si próprio.

Sem perder tempo, conduziu-me a uma sala situada ao fundo do vestiário. Debaixo do impermeável, o homem que eu tinha à minha frente revelou-se um velhote normalíssimo, baixo e com um aspeto distinto. Não sendo propriamente gordo, era de constituição forte e resistente. Apresentava uma pele rosada e, quando tirou do bolso uns óculos sem aros e os pôs em cima do nariz, mostrou ter algumas parecenças com um político importante dos tempos anteriores à guerra.

Convidou-me a sentar no sofá de pele, e ele, por sua vez, foi instalar-se à secretária. A disposição da sala era igualzinha à divisão onde me tinham feito entrar pouco antes. A cor da alcatifa, as paredes, a iluminação, o sofá: era tudo igual, sem tirar nem pôr. Em cima da mesa baixa que ficava diante do sofá via-se um conjunto para fumador parecido, bem como um monte de clipes espalhados da mesma maneira. A sensação que tive foi a de regressar à outra sala. Podia muito bem ser uma ilusão. Para dizer com toda a certeza, não me recordava do modo como se encontravam dispostos os clipes.

O velho observou-me durante alguns momentos. A seguir, pegou num clipe e pôs-se a remover a cutícula das unhas. Mais concretamente, da unha do indicador esquerdo. Acabando a tarefa, atirou o clipe desdobrado para o cinzeiro. No caso de alguma vez reencarnar, pensei para comigo que não queria voltar à Terra como clipe.

– De acordo com as informações que tenho, os Invisíveis aliaram-se aos Semióticos – disse o ancião. – Isto não significa que existe uma aliança sólida entre eles, atenção. Os Invisíveis mostram-se extremamente cautelosos, ao passo que os Semióticos vão sempre lançados por aí fora. A existir algum pacto, será por certo provisório. De qualquer modo, não deixa de ser mau sinal. O facto de os Invisíveis andarem a rondar, quando nunca deveriam circular por estas paragens, é por demais evidente. O pior é que, a continuar assim, não tarda nada e estaremos a assistir a uma invasão de Invisíveis. E, nessa eventualidade, quem ficará num grande aperto sou eu.

– Com efeito, assim é – concordei.

Quanto a mim, não fazia a menor ideia de quem pudessem ser os tais Invisíveis, mas, por qualquer motivo, tinham congregado esforços com os Semióticos, e isso alterava a relação de forças, deixando-me numa situação difícil. O que significava que, repousando a nossa rivalidade com os Invisíveis num equilíbrio periclitante, bastaria uma manobra, por mais pequena que fosse, para provocar uma reviravolta. Para começar, o simples facto de eu ignorar tudo acerca dos Invisíveis e de, em contrapartida, eles conhecerem a minha pessoa indicava que o equilíbrio não existia. Claro que talvez eu não soubesse de nada por ocupar um lugar inferior na escala, encontrando-se os chefes da organização ao corrente da existência de tais criaturas desde há muito tempo.

– Bom, seja como for, gostaria que deitasse mãos à obra quanto antes – disse o velho.

– Por mim, tudo bem – disse eu.

– Pedi à agência que me enviasse o melhor programador. Pelos vistos, o amigo tem uma excelente reputação. Toda a gente garante o melhor a seu respeito. Dizem que é muito competente, que é corajoso e responsável no seu trabalho. Tirando uma certa falta de espírito de equipa, nada a apontar.

– Isso peca por exagero – observei.

O homem de idade voltou a soltar uma gargalhada tonitruante das dele.

– Na realidade, a sua capacidade para trabalhar em grupo pouco ou nada me interessa. O importante é a audácia. Se uma pessoa não der mostras de coragem, nunca poderá tornar-se um programador de primeira categoria. Aposto que o seu ordenado está à altura dos serviços que presta...

Não tendo nada a acrescentar sobre o assunto, fiquei calado. O velho tornou a rir-se, conduzindo-me depois à sala ao lado.

– Sou biólogo – explicou ele. – Em rigor, a biologia não abarca todo o meu trabalho, que é bastante mais vasto e impossível de definir numa só palavra. Vai desde a neurofisiologia à acústica, passando pela linguística e pelo estudo das religiões comparadas. Não tenho o mínimo pejo em afirmar que desenvolvo uma pesquisa muito original e de grande valor. Nos últimos tempos, os meus estudos têm-se centrado no palato dos mamíferos.

– O palato?

– Sim, a boca. Refiro-me à constituição da boca. A fim de saber como se move, como se produz a voz, entre outros tópicos do género. Repare bem nisto, por favor.

Ao dizer aquilo, acionou o interruptor e acendeu as luzes do laboratório. A parede do fundo estava completamente coberta de estantes, vendo-se alinhadas todas as cabeças de mamíferos possíveis e imagináveis. Desde a girafa, o cavalo, passando pelo panda e pelo rato, pelo menos são estes que recordo. Assim à vista desarmada, deviam lá estar entre trezentas e quatrocentas. Também havia caveiras humanas, escusado será dizer. De raça branca, asiática, de índios americanos, sempre alinhadas duas a duas, um macho e uma fêmea.

– Os crânios de baleias e de elefantes estão guardados numa espécie de depósito que há no subterrâneo. Como por certo entenderá, ocupam demasiado espaço – referiu o ancião.

– Pois, calculo que sim – disse eu. Bastariam as ossadas da cabeça de uma baleia para encher por completo aquele lugar.

Os animais tinham, todos eles, o maxilar aberto, como se estivessem prontos para ser inspecionados, fixando a parede oposta com as órbitas vazias. Mesmo tratando-se de espécimes destinados à investigação científica, não se podia dizer que aqueles ossos fossem um espetáculo agradável à vista. Nas restantes prateleiras, ainda que em menor número em relação às caveiras, alinhavam-se línguas, orelhas, lábios e palatos de todas as formas e feitios, conservados em formol dentro de frascos.

– Que me diz? Bela amostra, não é verdade? – observou o velho, feliz da vida. – Há aqueles que fazem coleção de selos ou de discos. Também há quem se dedique a armazenar garrafas de vinho na cave, sem contar com os ricaços que decoram os seus jardins com tanques de assalto, por puro divertimento. Pois eu coleciono crânios! Há gostos para tudo. É isso que confere interesse ao mundo, não lhe parece?

– Tem inteira razão.

– Comecei muito cedo a interessar-me por crânios de mamíferos e, desde então, já consegui arrecadar um bom número de espécimes. Ando nisto há cerca de quarenta anos. Compreender os ossos requer um tempo infinito. Nesse aspeto, é bem mais simples compreender as pessoas de carne e osso. Estou firmemente convencido disso. Claro que você é ainda muito jovem e deve estar interessado sobretudo na carne. Engano-me? – Voltou a soltar uma gargalhada. – Pela parte que me toca, demorei trinta anos para perceber o som que os ossos produzem. Trinta anos não é brincadeira nenhuma.

– Som? – espantei-me. – Os ossos produzem som?

– Evidentemente – retorquiu o velho. – Cada osso tem o seu som próprio, específico. É como se fosse a linguagem secreta dos ossos. Olhe que os ossos falam, e quando digo isto não é uma metáfora. O objetivo da minha atual pesquisa consiste em analisar esses sinais. Bem vê, se o homem conseguir descodificar os sinais, ficará em condições de os controlar artificialmente.

Soltei uma espécie de grunhido em jeito de resposta. Não percebia bem todas as implicações de uma descoberta daquela natureza, mas, se houvesse um fiozinho de verdade no que o homem dizia, sem dúvida que estávamos perante uma investigação interessantíssima.

– Parece tratar-se de uma investigação da maior importância – observei.

– Tem razão – confirmou o idoso com um aceno de cabeça. – Por isso mesmo é que os outros pretendem deitar a mão às minhas descobertas. Trata-se de gente que tem ouvidos apurados, sabe? Além de pretenderem usar os meus estudos para fins pouco ortodoxos... Se for possível extrair informações diretamente a partir dos ossos, e isto só para lhe dar um exemplo, a tortura deixa de fazer sentido. Basta matar uma pessoa, arrancar-lhe a carne, limpar bem o esqueleto, e pronto, obtém-se a informação pretendida.

– Que horror!

– De qualquer modo, para o melhor e para o pior, a investigação ainda não chegou ao fim. De momento, no estádio em que se encontra, a melhor maneira de obter dados da memória é extraindo o cérebro.

– Essa agora! – Extrair os ossos ou extrair o cérebro: não via grande diferença entre uma coisa e outra.

– Por isso é que preciso dos seus préstimos. Para que os dados resultantes das minhas experiências não fiquem nas mãos dos Semióticos – declarou o velhote com uma expressão séria. – A civilização moderna enfrenta um grave dilema, visto que a ciência pode ser usada para diversos fins, uns bons e outros maus. Por essa ordem de ideias, acredito que a ciência deve existir única e exclusivamente para si mesma.

– Devo dizer que as convicções não são o meu forte – atalhei. – No entanto, gostaria de vincar o seguinte, e refiro-me a um assunto prático. Desta vez, não foram os serviços centrais nem um agente oficial a requerer os meus préstimos. Foi o senhor, diretamente. O que não deixa de ser irregular. Para ser honesto, é bem possível que se trate de uma iniciativa contrária às regras da profissão. O que significa que, no caso de se verificar uma infração, arrisco-me a ser penalizado e, quem sabe?, poderei até perder a licença. Espero que compreenda a minha atitude.

– Estou ciente da gravidade do caso – replicou o idoso. – A sua preocupação é perfeitamente legítima. Tive o cuidado de pedir autorização ao Sistema, mas acontece que, de forma a preservar o segredo, pus-me em contacto consigo sem seguir a via administrativa. Não corre perigo de sanções, nem nada do género.

– De certeza?

O ancião tirou um dossiê da gaveta e estendeu-mo. Abri a pasta e dei uma espreitadela. Batia certo: o formulário e a assinatura estavam em ordem.

– Confere – disse eu, devolvendo a pasta ao meu interlocutor. – Trabalho no segundo nível, não sei se está a ver? O que significa...

– ... o dobro da tarifa normal. Por mim, tudo bem. Desta vez, com mais um extra incluído, ainda vai à tarifa tripla.

– Muito generoso da sua parte.

– São cálculos da máxima importância. Além disso, obriguei-o a passar por baixo de uma cascata – referiu o velho, soltando nova gargalhada.

– Nesse caso, gostaria de ver os dados numéricos – pedi eu. – Só posso decidir como vamos estabelecer a fórmula depois de conferir os valores. Qual de nós os dois fica encarregado de inserir os dados no computador?

– Eu ocupo-me da parte informática, se não vir objeção. O meu amigo encarrega-se do resto. Pode ser?

– Tudo bem. Sempre me poupa trabalho.

O ancião levantou-se da cadeira, tocou num ponto determinado atrás dele, e o que parecia ser uma simples parede abriu-se de repente. Aquele local era uma verdadeira caixinha de surpresas. O idoso tirou outra pasta e fechou a porta. Ao fazê-lo, a parede voltou a transformar-se numa vulgaríssima parede branca. Peguei no dossiê e passei os olhos pelos números que enchiam sete páginas. Os valores numéricos não apresentavam em si mesmos qualquer problema.

– Num caso como este, basta uma lavagem – afirmei. – Com uma analogia de frequência deste nível, não há que recear a instalação de uma ponte temporária. Apesar de saber que, em teoria, a possibilidade existe, não seria possível comprovar a sua legitimidade. E, assim sendo, também não se pode controlar todos os erros. O que equivaleria a atravessar o deserto sem bússola. Moisés conseguiu fazê-lo...

– Moisés foi mais longe e atravessou o mar.

– Isso é uma história antiga. Que eu saiba, a este nível não conheço nenhum precedente de infiltração nem de pirataria por parte dos Semióticos.

– Está a querer dizer-me que uma conversão simples é quanto basta?

– Uma conversão dupla representa riscos acrescidos. É um facto que reduziria a zero a possibilidade de criação de uma ponte temporária, mas, nesta fase do campeonato, trata-se de um nítido malabarismo. O processo ainda não está definido com suficiente clareza.

– Quem é que falou numa conversão dupla? – perguntou o velho, recomeçando a empurrar as cutículas com o clipe. Desta vez, no dedo médio da mão esquerda.

– A que se refere, em concreto?

– Ao shuffling. Estou a falar de um shuffling. Quero que faça uma lavagem cerebral e que dissimule os dados. Foi por isso que o fiz vir até aqui. Para uma simples lavagem ao cérebro não precisava de ter requerido os seus serviços.

– Não entendo – disse eu, descruzando as pernas e tornando a cruzá-las. – Como é que está ao corrente da técnica do shuffling? Estamos a falar de informações altamente confidenciais, que nenhuma pessoa alheia ao programa deveria conhecer.

– Bom, pode dizer-se que eu tenho uma espécie de canal aberto que me permite chegar às mais altas esferas do Sistema.

– Nesse caso, investigue através desse canal. Escute o que lhe digo: de momento, todas as operações de shuffling estão canceladas. Desconheço as razões por que tal acontece. Se calhar, surgiu algum problema... De qualquer modo, é proibido utilizar o shuffling. Se viesse a descobrir-se que o tinha feito, não me livraria de uma sanção.

O velho estendeu-me de novo a pasta recheada com os documentos.

– Veja com atenção a última página. Deve encontrar uma autorização que permite utilizar o shuffling.

Seguindo as instruções dele, abri a pasta na última página e passei os olhos pelo documento. Não havia dúvida de que continha uma autorização para utilizar o sistema de shuffling. Reli-a repetidas vezes; tratava-se de uma autorização oficial. Continha cinco assinaturas. Em que estariam a pensar os dirigentes da organização? Não compreendia nada daquilo. Primeiro davam ordem para escavar um buraco e depois mandavam enchê-lo. Uma vez cheio, diziam para tornar a abrir o buraco! Quem se lixa é sempre o mexilhão... aqueles que andam no terreno, como eu.

– Faça-me fotocópias a cores de todos estes documentos, por favor. Sem nenhuma prova em concreto, poderei vir a encontrar-me numa situação muito perigosa.

– Claro! – asseverou o homem de idade. – Claro que faço. Não se preocupe com nada. Foi tudo feito na mais estrita legalidade. No que respeita aos honorários, pago-lhe metade hoje e a outra metade quando terminar o seu trabalho. Isto se o senhor não levantar nenhuma objeção...

– Por mim está perfeito. A lavagem ao cérebro, vou fazê-la agora, aqui mesmo. A seguir, pego nos valores numéricos e levo-os para tratar do shuffling lá em casa. Uma operação destas requer cuidados especiais. Quando acabar, trago os dados de volta.

– Preciso deles para daqui a quatro dias, ao fim da manhã. Não pode passar daí.

– Dá-me tempo de sobra.

– Peço-lhe por tudo, meu filho, não se atrase – suplicou o ancião. – Se isso acontecesse, seria um autêntico desastre.

– O mundo desmoronava-se? – perguntei, em tom de brincadeira.

– Num certo sentido, sim – respondeu o velho com um ar misterioso.

– Não se preocupe. Nunca me atraso – sosseguei-o. – Gostaria que me arranjasse um termo com café quente e um copo de água com gelo. Ah, e qualquer coisa para comer, se fosse possível. Tenho a impressão de que me espera uma longa sessão.

* * *

Tal como eu previa, o trabalho exigiu-me uma grande quantidade de horas. A ordenação dos dados numéricos revelou-se uma tarefa bastante simples em si mesma, mas, atendendo ao elevado número de variáveis, o cálculo demorou bastante mais do que o esperado. Introduzi os valores numéricos resultantes no hemisfério direito do cérebro e, uma vez codificados e convertidos em valores totalmente distintos, passei-os para o hemisfério esquerdo e imprimi o resultado no papel. Em poucas palavras, e para simplificar, é nisto que consiste a lavagem ao cérebro. Os códigos de conversão variam consoante o programador. Estes valores numéricos diferem da tabela de números aleatórios, na medida em que são suscetíveis de ser representados num diagrama. Posto de outro modo, a chave reside no modo como o hemisfério direito e o hemisfério esquerdo do cérebro se apresentam separados. Trata-se, como é óbvio, de uma convenção, uma vez que não existe uma divisão efetiva entre os dois hemisférios. Se tivéssemos de os representar graficamente, desenharia qualquer coisa do género:

Em última análise, se os bordos dentados não coincidirem exatamente, torna-se impossível devolver os valores numéricos à sua forma original. Contudo, os Semióticos procuram descodificá-los aplicando uma ponte temporária aos valores roubados do computador. Ou seja, reproduzem os bordos dentados através de um holograma e analisam os valores. Às vezes, a coisa funciona, outras vezes não. Quanto mais nós, os Programadores, aperfeiçoamos a nossa técnica, mais eles contra-atacam. Nós protegemos os dados; eles roubam-nos. O velho jogo de polícias e ladrões.

Quanto aos dados obtidos de maneira ilícita, os Semióticos ganham dinheiro a traficá-los no mercado negro, obtendo lucros colossais. E, o que é pior, guardam as informações mais valiosas para eles e utilizam-nas em benefício próprio.

A nossa organização é vulgarmente conhecida como o Sistema, enquanto a dos Semióticos dá pelo nome de Fábrica. Na sua origem, o Sistema era um grupo privado, mas, à medida que viu crescer a sua importância, conquistou um estatuto semigovernamental. A sua estrutura funciona, por assim dizer, de maneira semelhante à da norte-americana Bell Company, fornecedora de sistemas informáticos. Nós, Programadores, estamos na base da organização e somos trabalhadores liberais e, tal como acontece com os contabilistas e os advogados, precisamos de uma licença oficial emitida pelo Estado, o que significa que só podemos aceitar trabalho através do Sistema ou dos seus agentes oficiais acreditados para os devidos efeitos. Esta medida cautelar destina-se a impedir um uso indevido da tecnologia por parte da Fábrica; quem infringir a regra é punido com uma multa, vendo a sua licença revogada. Pessoalmente, tenho as minhas dúvidas de que se trate de uma medida acertada. Isto porque acontece muitas vezes que os Programadores, ao serem absorvidos pela Fábrica, ficam sem a sua identidade e passam à clandestinidade, acabando por se transformar em Semióticos.

Confesso que ignoro qual é a estrutura da Fábrica. A princípio, funcionava como uma pequena empresa de alto risco; em pouco tempo, porém, conheceu uma expansão assinalável. Há quem lhe chame «máfia de dados» e, verdade seja dita, o facto de apresentar ramificações em diferentes organizações clandestinas tem tudo que ver com os métodos da máfia. Quer dizer, com a diferença de se ocuparem apenas das informações. A informação é limpa e dá dinheiro. Logo, eles vigiam os computadores, sacam os dados que lhes interessam e tiram daí os seus dividendos.

* * *

Prossegui a minha lavagem ao cérebro enquanto bebia um termo inteiro de café. Trabalhar uma hora e descansar meia hora: é a minha regra de ouro. Se não for assim, a linha onde se juntam o hemisfério esquerdo e o hemisfério direito do cérebro esbate-se e os valores numéricos tornam-se imprecisos.

Durante a meia hora de repouso, aproveitei para pôr a conversa em dia com o velhote. Não importa sobre o quê, interessa é mexer os lábios. Não há melhor maneira de uma pessoa recuperar da fadiga mental.

– O que são todos esses dados? – perguntei.

– São números que dizem respeito aos resultados das minhas experiências – explicou o ancião. – É o resultado de um ano inteiro de trabalho. A combinação das conversões numéricas das imagens tridimensionais da capacidade oral dos crânios dos animais, juntamente com uma descodificação em três elementos das vozes que lhes saem do palato. Creio já lhe ter dito que demorei trinta anos para perceber o som característico de cada osso... Quando der por concluídos os meus cálculos, seremos capazes de extrair esse som, não de uma forma empírica, como é óbvio, mas teórica.

– Quer então dizer que poderemos controlar o som artificialmente?

– Acertou – disse o ancião.

– E quando tal se verificar, o que acontecerá?

O velho permaneceu em silêncio durante alguns segundos, ao mesmo tempo que passava a ponta da língua pelo lábio superior.

– Muitas coisas, na verdade – afirmou ele, decorrido um bocado. – Não posso dizer quais, mas não imagina o que poderá acontecer...

– A eliminação do som é uma delas?

O velhote riu-se com um ar divertido.

– Assim é, acertou uma vez mais. Ajustando o sinal devido no cérebro humano, torna-se possível eliminar ou reduzir o som. Cada pessoa tem o cérebro de uma forma distinta, daí que não seja possível eliminar o som por completo, mas, ainda assim, consegue-se baixá-lo significativamente. Resumindo, trata-se de somar a vibração do som e do sinal antissom e arranjar maneira de soarem em conjunto. A eliminação do som é, de todos os resultados das minhas investigações, um dos menos nocivos.

Se aquilo era inofensivo, pensei eu, imagine-se o resto. Ao visualizar as pessoas espalhadas pelo mundo inteiro a aumentarem e a baixarem o som a seu bel-prazer, experimentei um certo desconforto.

– É possível proceder à eliminação do som tanto na fase da sua produção, que é como quem diz, da emissão da voz, como da receção, através de quem escuta. No caso da emissão de voz, e visto ser mais pessoal, a eficácia do método anda à volta dos dez por cento – avançou ele.

– Faz tenções de apresentar ao mundo a sua descoberta?

– Que ideia! – impacientou-se ele, agitando as mãos. – Por que carga-d’água iria eu divulgar a terceiros informações tão interessantes? Claro que não. São coisas que faço só para me divertir.

A sua estranha e contagiante risada voltou a fazer-se ouvir. Até eu me ri.

– A minha investigação limita-se a um campo muito restrito. Além do mais, quem é que se interessa pela fonética? – prosseguiu ele. – Muito estranharia se alguém, no meio dessa corja de idiotas espalhados pelo mundo académico, entendesse um chavelho acerca da minha teoria. Os cientistas não me levam a sério.

– Acredito, mas não se pode dizer que os Semióticos são propriamente idiotas. Pelo contrário: no que respeita à análise e descodificação de dados, são considerados uns perfeitos génios, sem exceção. De certeza que estão em condições para entender, em toda a sua complexidade, o alcance da sua investigação.

– Bem sei, bem sei. Por isso é que mantive em segredo os dados e os procedimentos, e publiquei a teoria apenas parcialmente... Assim, não há perigo de alguém decifrar os dados. O mundo científico pode demorar cem anos, mas a minha teoria há de acabar por ser comprovada. Basta-me saber isso.

– Hum...

– Por isso mesmo, meu rapaz, é que tudo tem de passar pelo processo de lavagem e de shuffling.

– Estou a ver.

* * *

Na hora seguinte, concentrei-me nos cálculos. Depois fiz nova pausa.

– Posso fazer-lhe uma pergunta? – disse eu, dirigindo-me ao velho.

– Sobre quê?

– Está relacionada com a jovem da entrada. Uma assim para o forte, com um fato cor-de-rosa...

– É a minha neta – declarou o velho. – Uma rapariga extraordinariamente inteligente. Apesar de ser muito nova, já me dá uma grande ajuda nas minhas experiências.

– Sim, mas o que eu lhe queria perguntar é outra coisa... Gostaria de saber se é muda de nascença ou se foi submetida a alguma experiência de eliminação do som?

– Diabos me levem! – exclamou o velhote, dando uma forte palmada no joelho. – Que cabeça a minha! Fiz uma experiência de eliminação de som com ela e depois esqueci-me de a devolver ao seu estado natural. Que desgraça! Tenho de ir já remediar a situação.

– Sim, parece-me uma decisão sábia – rematei eu.


O Fim do Mundo

4

A Biblioteca

No centro da Cidade há uma praça semicircular que se estende a norte da Ponte Velha. A outra metade do círculo – que é como quem diz, a parte inferior – fica a sul, tendo o rio de permeio. Ainda que ostentem os nomes Praça Norte e Praça Sul, formando assim uma unidade, o certo é que estes semicírculos, de tão distintos, provocavam, por assim dizer, uma impressão diametralmente oposta aos olhos dos seus observadores. Na Praça Norte reinava uma atmosfera misteriosa, caracterizada por um silêncio profundo e asfixiante, como se ali confluísse o silêncio das ruas em redor, ao passo que a Praça Sul, flutuando numa vaga sensação de ausência, pouco ou nada transmitia. Comparada com a zona que se estendia para norte da ponte, a parte sul contava com menos edifícios, e tanto as pedras da calçada como os canteiros estavam pouco cuidados.

No centro da praça setentrional erguia-se, altaneira, apontando ao céu, a grande Torre do Relógio. Em vez de referir a Torre do Relógio, talvez fosse mais correto dizer que se tratava de um objeto que apresentava a forma de uma torre de relógio. Porque, verdade seja dita, há muito que as agulhas tinham parado e, desde então, o relógio deixara de poder cumprir a função para a qual fora criado: medir o tempo.

Era uma torre quadrada, construída em pedra, com as suas quatro arestas indicando os quatro pontos cardeais, cada vez mais estreita à medida que ganhava altura. No topo viam-se quatro esferas, uma de cada lado, com os oito ponteiros apontando, para toda a eternidade, as dez horas e trinta e cinco minutos. Através de umas aberturas, pouco mais abaixo, dava para perceber que a torre estava vazia e que, utilizando as escadas ou assim, uma pessoa podia subir lá acima, dado que não se vislumbrava a entrada. A torre era altíssima e tão a direito que para ver as horas era preciso atravessar a ponte e passar para a margem sul.

A praça estava rodeada de vários edifícios de pedra e tijolo dispostos em fileira, formando uma espécie de leque a toda à volta. Sem adornos nem placas indicativas de qualquer espécie, estes edifícios tinham as portas hermeticamente fechadas: não se via ninguém entrar nem sair. Da mesma forma, nada distinguia um edifício do outro. Tanto podiam ser escritórios dos correios onde já não chegavam cartas ou porventura uma empresa mineira que tivesse perdido os seus trabalhadores... Um crematório sem defuntos, quem sabe? No entanto, estranhamente, aqueles edifícios ao abandono não davam a ideia de estar ao abandono. De cada vez que atravessava as ruas desertas pressentia a existência de perfeitos desconhecidos, que no interior sustinham a respiração enquanto prosseguiam com os seus misteriosos trabalhos.

A Biblioteca encontrava-se numa dessas ruas desertas, em local destacado. A bem dizer, trata-se de um edifício de pedra exatamente igual aos outros. Nenhum traço distintivo, nenhum cartaz exterior, nada indicava que fosse uma biblioteca. Com as suas velhas paredes de cores lúgubres, as janelas com beirais estreitos protegidas por barras de ferro e pesadas portas de madeira, poderia facilmente confundir-se com um reservatório de cereais. Se o Guardião não me tivesse assinalado o local em pormenor num mapa, nunca teria pensado que se tratava de uma biblioteca.

– Assim que estiveres instalado, dirige-te à Biblioteca – tinha-me dito o indivíduo no próprio dia da minha chegada. – Vais encontrar uma rapariga a tomar contar das instalações. Diz-lhe que a Cidade deseja que leias os velhos sonhos. Ela depois encarrega-se do resto.

Ocupado a entalhar um lenho de madeira, o Guardião interrompeu o que estava a fazer, fechou a navalha pequena, recolheu as aparas espalhadas sobre a mesa e deitou-as no cesto do lixo.

– Velhos sonhos? – disse eu. – O que pretende dizer com isso?

– Os velhos sonhos são... isso mesmo, velhos sonhos. Na Biblioteca encontram-se a pontapé, para todos os gostos e feitios. Aproveita agarrar neles e lê tudo o que te aprouver, de fio a pavio.

O Guardião pegou na deixa e examinou com muita atenção o lenho, cuja ponta acabara de burilar e, achando-o ao seu gosto, depositou-o numa estante atrás de si, onde se alinhavam outros vinte ou mais objetos de madeira, talhados e polidos da mesma maneira.

– Podes perguntar à vontade – declarou o Guardião, cruzando as mãos atrás da nuca –, mas lembra-te: eu não sou obrigado a responder. Além disso, há coisas que não posso dizer. Seja como for, a partir de agora deves ir todos os dias para a Biblioteca ler os velhos sonhos. É esse o teu trabalho. Apresenta-te às seis da tarde e fica ali a ler sonhos até serem umas dez ou onze da noite. A rapariga tratará do jantar. Poderás fazer o que te der na real gana com o tempo que sobrar. Compreendido?

– Sim, compreendido – respondi. – E até quando terei de fazer esse trabalho?

– Até quando, perguntas tu... Vá lá uma pessoa saber! Até chegar a hora – disse o Guardião. Posto isto, pegou noutro bocado de madeira, que tirou de uma pilha, e pôs-se a talhá-lo com a sua navalhinha de bolso.

– Esta é uma cidade modesta. Não há lugar para pessoas ociosas. Aqui, todos têm um papel a desempenhar. O teu é na Biblioteca, a ler sonhos. Imagino que não tenhas vindo cá com a ideia de passar os dias sem fazer a ponta de um corno, não é assim?

– Para mim, trabalhar não representa um fardo. Antes pelo contrário. É preferível estar ocupado do que não ter nada que fazer.

– Muito bem – concordou o Guardião, sem tirar os olhos da ponta da navalha. – Nesse caso, será melhor que deites mãos à obra quanto antes. A partir de agora, passas a ser o Leitor de Sonhos. Deixas de responder por outro nome. Tu serás o Leitor de Sonhos, tal como eu sou o Guardião, estás a compreender?

– Compreendo.

– Da mesma forma que só existe um Guardião, também só existirá um Leitor de Sonhos. Para ser leitor de sonhos é preciso possuir certos requisitos. Requisitos esses que eu passarei a atribuir-te a partir deste momento.

Após ter proferido aquelas palavras, o Guardião tirou do armário um pratinho com um pó branco, colocou-o em cima da mesa e verteu sobre ele um pouco de azeite. A seguir, riscou um fósforo e fez arder o azeite. Ato contínuo, pegou numa faca em concreto, com a ponta achatada, mais parecida com uma faca de manteiga, que se encontrava alinhada no meio de vários objetos cortantes, e aqueceu a ponta durante uns bons dez minutos. Depois apagou a chama com um sopro e esperou que a faca arrefecesse.

– É só para te marcar – avisou o Guardião. – Não te vai doer nada, escusas de ter medo.

Dito aquilo, o homem levantou a pálpebra do meu olho direito com um dedo e picou-me o globo ocular com a ponta da faca. No entanto, tal como ele havia garantido, não me doeu, tão-pouco senti medo, por estranho que pareça. A faca penetrara no meu globo ocular com grande facilidade, no maior silêncio, como se mergulhasse em gelatina. A seguir, o Guardião repetiu a operação no olho esquerdo.

– Quando deixares de ser o Leitor de Sonhos, a ferida irá sarar por si mesma – afirmou o Guardião, arrumando o prato e a faca. – Porque esta é, definitivamente, a marca do Leitor de Sonhos. Mas há uma coisa que deves ter em conta: com estes olhos, evita encarar o Sol. Se olhares para o Sol, receberás o devido castigo. A partir de hoje só poderás sair de noite ou quando o tempo estiver nublado. Nos dias claros, soalheiros, procura manter-te resguardado, num ambiente o mais escuro possível.

O Guardião entregou-me uns óculos de sol com lentes fumadas, dizendo-me que andasse com eles sempre postos, exceto para dormir. E foi assim que perdi a luz do Sol.

* * *

Dias mais tarde, ao entardecer, empurrei pela primeira vez a porta da Biblioteca.

A pesada porta de madeira abriu-se com um ruído áspero e irritante, deixando ver um longo corredor à minha frente. Respirava-se um ar estagnado, que cheirava a pó, como se aquele lugar estivesse abandonado desde há longos anos. As tábuas do soalho apresentavam-se desgastadas pelo uso das solas dos sapatos, e as paredes de gesso tinham entretanto adquirido a mesma tonalidade amarelenta das lâmpadas elétricas.

Ao longo do corredor, de ambos os lados, existiam várias portas fechadas a cadeado, tendo a cobri-las, em todas elas, uma camada de pó branco. A única porta que não se encontrava trancada ficava mesmo ao fundo: uma porta com um fecho delicado e um vitral que deixava passar a luz de um candeeiro. Bati à porta por mais de uma vez, mas não obtive resposta. Coloquei a mão na velha maçaneta de cobre e fi-la rodar com cuidado: a porta abriu-se para dentro, silenciosamente. No interior da sala nem vivalma. Era uma divisão enorme, porventura mais ampla do que a sala de espera de uma estação de comboios, sem janelas, sem qualquer decoração supérflua. Havia apenas uma mesa tosca e três cadeiras, um braseiro alimentado a carvão, parecido com os irori1 que se usavam em tempos que já lá vão, um grande relógio de parede e um balcão. Em cima do velho braseiro via-se uma cafeteira preta com o esmalte a descascar, da qual saía uma nuvem de vapor branca. Atrás do balcão existia outra porta com uma almofada de vidro trabalhado, idêntica à da entrada, que deixava igualmente perceber a luz de outro candeeiro. Hesitei, sem saber se havia de bater antes de entrar, mas, por fim, decidi que era melhor esperar que aparecesse alguém.

Em cima do balcão estavam espalhados alguns clipes prateados. Peguei nuns quantos e pus-me a brincar com eles, até que acabei por me sentar numa cadeira mesmo à frente da mesa.

* * *

A rapariga entrou pela porta que ficava atrás do balcão não sei quanto tempo depois, talvez uns dez ou quinze minutos mais tarde. Trazia na mão uma espécie de pasta com documentos. Quando me viu, fitou-me com surpresa e corou.

– Desculpe, não sabia que estava aqui – disse ela. – Devia ter batido à porta. Tenho estado lá dentro, a pôr os papéis em ordem. Uma confusão dos diabos...

Permaneci durante muito tempo mudo e quedo, a olhar para ela. A sua cara não me era estranha. Havia nela qualquer coisa que fazia agitar suavemente os sedimentos enterrados no fundo da minha consciência. Porém, sentia-me incapaz de explicar aquela sensação, ao mesmo tempo que as palavras se afundavam nas trevas distantes.

– Como pode ver, por aqui já não aparece ninguém. Restam apenas os velhos sonhos, mais nada.

Fiz um ligeiro sinal de assentimento com a cabeça, sem tirar os olhos do rosto da rapariga. Procurei um sinal a partir dos seus olhos, dos seus lábios, da testa ampla, dos cabelos pretos apanhados atrás, na nuca. No entanto, quanto mais me concentrava nos pormenores, mais sentia que a imagem de conjunto se esbatia. Às tantas, perdi a paciência e desisti.

– Desculpe, mas não se terá enganado no edifício? Pergunto isto porque são todos parecidos... – afirmou a rapariga, depositando a pasta com os documentos em cima do balcão, ao lado dos clipes. – A única pessoa que pode entrar aqui, com a missão de ler os velhos sonhos, é o Leitor de Sonhos. De resto, não se autoriza a entrada a mais ninguém.

– Estou aqui para ler os sonhos – atalhei. – Foi a Cidade que me enviou.

– Desculpe, mas importa-se de tirar os óculos?

Tirei os óculos escuros e olhei-a de frente. Ela fixou o olhar nas minhas pupilas, que haviam adquirido a tonalidade pálida que constituía a marca do Leitor de Sonhos. Tive a impressão de que o seu olhar me perfurava a carne e penetrava até à medula dos meus ossos.

– Muito bem. Pode voltar a pôr os óculos – disse ela. – Apetece-lhe um café?

– Sim, agradeço.

A jovem trouxe duas chávenas de café da sala ao fundo, serviu o café que havia na cafeteira e sentou-se do outro lado da mesa.

– Ainda não acabei de arranjar as coisas; começamos amanhã com a leitura dos sonhos – anunciou a jovem. – Parece-lhe bem este lugar para ler os sonhos? A sala de leitura está fechada, mas podemos sempre abri-la...

Respondi que, por mim, estava perfeito. Aproveitei e perguntei se iria contar com a ajuda dela na tarefa que me esperava.

– Sim. O meu trabalho consiste em guardar os velhos sonhos e ajudá-lo a lê-los.

– Não nos encontrámos já em qualquer lado, por acaso?

A jovem levantou os olhos e fitou-me. Parecia andar a vasculhar nos arquivos da memória para ver se encontrava alguma recordação minha, mas acabou por abanar a cabeça.

– Nesta cidade, como sabe, a memória é algo de pouco preciso e terrivelmente incerto. Há coisas que conseguimos recordar, e outras que não. Segundo parece, você pertence ao grupo das coisas impossíveis de recordar. Tenho muita pena.

– Não faz mal – disse eu. – Não é grave.

– Pode ser que nos tenhamos visto antes. Vivi sempre nesta cidade... e não se pode dizer que seja muito grande.

– Em contrapartida, eu cheguei apenas há meia dúzia de dias.

– Meia dúzia de dias?!... – exclamou ela, espantada. – Nesse caso, de certeza que me está a confundir com alguém, uma vez que sempre vivi aqui durante toda a minha vida. Deve tratar-se de uma pessoa parecida comigo.

– É possível – respondi, dando um gole no meu café. – Mas às vezes pergunto-me se, em tempos que já lá vão, não teremos vivido todos num lugar completamente diferente... se não teremos levado uma existência completamente diferente. E se, por qualquer razão, essas vivências não se terão apagado da nossa memória, ao ponto de não nos lembrarmos de nada. Nunca lhe aconteceu pensar nisso?

– Nunca – disse ela. – Se calhar, passam-lhe essas ideias pela cabeça porque é o Leitor de Sonhos. Um Leitor de Sonhos pensa e sente as coisas de maneira muito diferente das pessoas normais.

Isso é que eu já não podia jurar.

– Quer dizer que se lembrava do que fazia e de onde se encontrava?

– Quem me dera, mas não – confessei. A seguir, fui até ao balcão, peguei num dos clipes e observei-o pormenorizadamente. – No entanto, sei que existiu qualquer coisa, tenho a certeza. Assim como estou seguro de a ter encontrado antes, nessa outra vida.

O teto da Biblioteca era altíssimo, e a sala silenciosa como o fundo do mar. Com o clipe na mão, olhei em volta, distraído, sem pensar em nada de especial. Sentada à minha frente, a jovem continuou a beber o seu café com todo o vagar.

– Não faço ideia da razão por que estou aqui – disse eu.

Ao olhar fixamente para cima, reparei que as partículas amarelas da luz elétrica pareciam expandir-se e contrair-se. O mais provável era tratar-se de uma ilusão de ótica causada pelas pupilas feridas. Afinal de contas, o Guardião operara uma transformação nos meus olhos, a fim de me permitir ver coisas extraordinárias. Na parede, um relógio enorme e antigo triturava o tempo devagar, em silêncio.

– Talvez haja um motivo para eu estar aqui – acrescentei –, mas não me consigo recordar.

– É uma cidade muito tranquila. Se veio cá em busca de sossego, encontra-se no sítio certo.

– Pode ser que sim – respondo. – O que é que há para fazer hoje?

Abanando a cabeça, ela ergueu-se com gestos pausados e levantou as duas chávenas vazias da mesa.

– Por hoje, ficamos assim. Iniciaremos o nosso trabalho amanhã. Entretanto, regresse a casa e aproveite para descansar.

Tornei a olhar para cima, em direção ao teto, e depois voltei a concentrar a atenção na rapariga. Aquele rosto encontrava-se estreitamente ligado a qualquer coisa que eu guardava no fundo do coração, sem sombra de dúvida. E isso provocava em mim uma doce e ligeira perturbação. Fechei os olhos e procurei às cegas dentro da minha mente confusa. Ao cerrar os olhos, senti o silêncio envolver-me como uma fina camada de pó.

– Apareço amanhã quando forem seis da tarde – anunciei.

– Adeus – disse ela.

* * *

Ao atravessar a Ponte Velha, depois de sair da Biblioteca, apoiei-me no parapeito e fiquei ali durante um bocado a contemplar a cidade abandonada pelos animais. As primeiras e pálidas sombras da noite tingiam de azul a Torre do Relógio e a Muralha que circundava a Cidade, as fileiras de edifícios espalhados ao longo do rio e a cadeia de montanhas mais a norte. O único rumor que se ouvia era o murmúrio da água. Até mesmos os pássaros tinham partido em debandada.

Se veio cá em busca de sossego... Ainda tinha as palavras da rapariga nos ouvidos. Acontecia, porém, que isso não estava nas minhas mãos.

Quando a escuridão se abateu sobre a Cidade e começaram a acender-se as luzes que bordejavam o caminho à beira do rio, peguei em mim e atalhei caminho pelas ruas desertas em direção à Colina Ocidental.

1 Embora atualmente se utilize o kotatsu, antes dele existiu o irori, uma espécie de braseiro construído para combater os rigores do frio. Fazia-se um buraco quadrado no soalho, embutia-se a lareira, revestida com barro e pedra, e adicionava-se uma camada de cinzas, onde se queimava lenha (e, mais tarde, carvão). Os japoneses aproveitavam o fogo para ferver água numa chaleira ou cozinhar sopa numa panela de ferro suspensa sobre o irori, através de um gancho que pendia do teto. (N. das T.)


O Impiedoso País das Maravilhas

5

Cálculos. Evolução. Desejo Sexual

Com a missão de restituir a voz original à neta, que por sua causa ficara afónica, o ancião regressou à superfície. Pela minha parte, remeti-me ao silêncio e prossegui com os meus cálculos enquanto ia bebendo café.

Não saberei dizer ao certo durante quanto tempo o velho esteve ausente. Programei o alarme do meu relógio de pulso para soar de hora em hora e de trinta em trinta minutos, a fim de, alertado pelo toque, me poder entregar a ciclos alternados, ora de trabalho, ora de descanso. Acabei por tapar o mostrador do relógio para não ver as horas. É difícil concentrar-me nos cálculos se ficar dependente do tempo. Além disso, a hora real não tem nada que ver com as minhas operações matemáticas. O meu trabalho começa quando dou início à programação e, da mesma forma, termina quando acabo de programar. A única medida temporal válida para mim é o ciclo temporal alternado: uma hora, trinta minutos, uma hora, trinta minutos, uma hora... assim por diante.

Durante a ausência do velhote devo ter descansado duas ou três vezes. Nessas alturas aproveitei para ir à casa de banho, estendi-me no sofá sem pensar em nada de especial, fiz flexões. O sofá é muito confortável, nem demasiado mole, nem demasiado duro. Além do mais, a almofada adapta-se na perfeição à minha cabeça. Habituado que estou a trabalhar em qualquer lugar, sei do que falo quando digo que nem sempre é fácil encontrar um sofá cómodo onde valha a pena repousar o corpinho quando chega a hora de passar pelas brasas. Os sofás, na sua maioria, são comprados ao acaso, sem qualquer critério, revelando-se, até mesmo no caso dos mais luxuosos, uma autêntica deceção assim que a pessoa experimenta deitar-se em cima deles. Isto para dizer que poucos são os que valem realmente a pena. Não compreendo como é que, na hora de comprar um sofá, as pessoas podem dar-se ao luxo de ser tão pouco exigentes.

Defendo a teoria – ainda que tal possa não passar de um preconceito da minha parte – de que a escolha de um sofá diz muito acerca do seu proprietário. Um sofá constitui, à sua maneira, um mundo compacto e inviolável. Isso, porém, é uma coisa que só aqueles que cresceram comodamente sentados num bom sofá podem entender. Acontece o mesmo aos que cresceram a ler bons livros ou a ouvir boa música. Funciona assim.

Conheço vários indivíduos que, apesar de conduzirem automóveis de alta cilindrada, têm em suas casas sofás de segunda ou terceira categoria. São pessoas que não me merecem confiança. Um carro topo de gama terá o seu valor, não o nego, mas não passa de um automóvel caro. Qualquer pessoa com umas massas pode comprá-lo. Ao passo que um bom sofá exige discernimento, experiência e toda uma filosofia de vida. Custa dinheiro, mas isso não basta. É impossível adquirir um sofá perfeito sem uma ideia clara e definida do que é um sofá.

O sofá em cima do qual eu me encontrava estendido pertencia, a todos os títulos, à categoria dos sofás de primeiríssima categoria. Tanto assim era que comecei a sentir pelo velhote um assomo de simpatia. Ali estiraçado, com os olhos fechados, pus-me a pensar no modo extravagante como ele falava, nos seus maneirismos e na sua gargalhada peculiar. Ao recordar a história da eliminação do ruído, disse com os meus botões que só podia tratar-se de um cientista de grande craveira, não restavam dúvidas. Para começar, um cientista medíocre jamais estaria em posição de suprimir o som, assim sem mais nem menos. Além disso, era inegável que o homem possuía uma boa dose de extravagância. Sempre ouvira dizer que, entre os cientistas, não faltavam excêntricos nem misantropos, mas não conhecia nenhum que fosse ao extremo de construir um laboratório subterrâneo por trás de uma cascata só para escapar aos olhos do mundo...

Imaginei os montantes astronómicos que poderiam resultar da comercialização da técnica de eliminação e introdução do som. Para começar, isso significaria o desaparecimento das instalações acústicas de salas e locais de concertos: os amplificadores e os altifalantes deixariam de fazer sentido. Logo, o contrário também era possível. Aplicando à aeronáutica – que é como quem diz, aos aviões – mecanismos para anular o ruído, por certo que se estaria a prestar um serviço às pessoas que vivem perto dos aeroportos, que veriam assim a sua qualidade de vida bastante melhorada. Ao mesmo tempo, era inegável que semelhante técnica poderia ser usada para os mais variados fins militares ou criminais. Bombardeiros silenciosos, armas com silenciador, bombas com o volume ampliado para rebentar com o cérebro humano e outros artefactos do género iriam começar a aparecer, uns atrás dos outros, e com eles a matança institucionalizada dos seres humanos a grande escala alcançaria um grau de sofisticação sem precedentes. Parecia-me estar a ver a cena com os meus próprios olhos. Consciente de tudo isto, e precisamente por essa ordem de ideias, talvez o velho cientista não se atrevesse a divulgar o resultado das suas pesquisas, preferindo guardá-lo para ele. Mais um motivo para gostar daquele velhote.

Encontrava-me eu a iniciar o meu quinto ou sexto ciclo de trabalho, quando o ancião regressou, trazendo debaixo do braço um grande cesto.

– Café acabado de fazer e sanduíches – anunciou ele. – Sanduíches de pepino, de presunto e de queijo. Espero que goste.

– Gosto. São as minhas preferidas – respondi.

– Deseja comer já?

– Não, só depois de acabar este ciclo, obrigado.

Quando soou o alarme do relógio, tinha acabado de proceder à lavagem de cinco das sete folhas com listas de valores numéricos. Faltava pouco. Deixei o trabalho naquele ponto, levantei-me do meu lugar e, depois de uma boa espreguiçadela, ataquei a comida.

Havia sanduíches em quantidade suficiente para alimentar um exército regular de frequentadores de todos os bares e restaurantes que eu conheço. Não creio que seja por nenhuma razão em especial, mas as operações de lavagem ao cérebro deixam-me sempre com uma fome de lobo. Comi dois terços das sanduíches em silêncio. Meti à boca, por esta ordem, as sanduíches de pepino, de presunto, de queijo, acompanhando a refeição com café quente.

Enquanto eu devorava três, o velhote mordiscava uma. Não sei explicar, mas parecia um grilo muito bem-educado e elegante.

– Coma, coma o que quiser – disse o idoso. – Quando chegamos à minha idade, cada vez temos menos apetite. Come-se pouco e trabalha-se pouco. Os jovens devem alimentar-se. Comer bem e engordar. As pessoas têm horror a ganhar peso. Se quer que lhe diga, é porque engordam da maneira errada. E, quando isso acontece, perdem a saúde e a beleza. O que não acontece quando se engorda como deve ser. Pelo contrário, a existência torna-se mais completa, o desejo sexual aumenta, o cérebro funciona melhor. Nos meus verdes anos costumava ter uns quilitos a mais. Agora sou uma sombra do que era... – O homem soltou uma das suas gargalhadas, franzindo os lábios. – E que me diz destas sanduíches? Boas, não acha?

– Sim, deliciosas – elogiei. De resto, não estava a dizer nenhuma mentira. As sanduíches eram estupendas. Para ser franco, sou tão exigente no que toca a sanduíches como em matéria de sofás, e aquelas sanduíches em concreto superavam as melhores expectativas. O pão era fresco, leve e fofo, cortado com uma faca limpa e bem afiada. Pode parecer um pormenor de somenos, mas ter uma boa faca à mão é indispensável. Por mais requintados que sejam os ingredientes, se a faca não for boa, torna-se impossível preparar uma sanduíche digna desse nome. Neste caso, a mostarda era de qualidade superior; a alface, fresquíssima; a maionese, caseira, ou pelo menos assim parecia. Há séculos que eu não comia umas sanduíches tão deliciosas.

– Foi a minha neta que as fez. Para lhe agradecer, disse-me ela – declarou o velho. – Preparar sanduíches é a sua especialidade.

– Bem pode dizê-lo! Estão fantásticas. Nem um chef faria melhor.

– Folgo em saber. Quando lhe transmitir o elogio, vai ficar toda contente. Como quase nunca recebemos visitas, tem muito poucas oportunidades de ficar a conhecer a opinião de outras pessoas acerca dos seus dotes culinários. É sempre ela a tratar das sanduíches, mas depois só nós os dois é que apreciamos o repasto.

– Vivem sozinhos? – perguntei.

– Sim, desde há muito tempo. Por mim falo quando digo que temos pouco contacto com o mundo, sobretudo por culpa minha... Às tantas, acabei por contagiar a neta. E isso, para ser franco, deixa-me preocupado. Estamos a falar de uma rapariga que devia sair, dar-se mais com os outros. É inteligente e tem uma saúde de ferro, mas não se interessa pela realidade exterior. Ora, uma coisa dessas não pode acontecer quando se é jovem. Além do mais, o desejo sexual deve ser satisfeito de uma maneira adequada. Não lhe parece? Diga-me cá: não acha a minha neta atraente?

– Sim, sim... sem dúvida – gaguejei.

– O instinto sexual é uma energia positiva, disso não haja dúvidas. Porém, se não for satisfeito e, em vez disso, ficar acumulado, a mente acaba por perder lucidez, e o corpo, o seu equilíbrio físico. Este pressuposto tanto é válido para os homens como para as mulheres. No caso das mulheres, o ciclo menstrual torna-se irregular, o que pode conduzir a um desequilíbrio emocional.

– Ah, pois!... – exclamei.

– Aquela jovem precisa o mais rápido possível de ter relações sexuais com o homem adequado. Estou convencido disso, quer na minha qualidade de biólogo, quer como seu tutor – prosseguiu o velhote, deitando um pouco de sal sobre o pepino.

– Ai, sim?... Por acaso teve oportunidade de lhe devolver o som? – inquiri. Atolado em trabalho como estava, a última coisa que me apetecia era pôr-me a falar do desejo sexual alheio.

– É verdade, já me esquecia de lhe dizer – referiu o ancião. – A minha neta recuperou a voz. Agradeço imenso ter comentado essa história comigo. Se não o tivesse feito, a pobre rapariga passaria sabe-se lá quantos dias mais naquele estado. Quando me encerro aqui neste buraco, como agora, passam-se dias até tornar à superfície. Pobre menina, lá teria ela de viver sem emitir um som que fosse... Olhe que não é fácil, sabe?

– Pois, imagino... – anuí.

– Como lhe disse, a minha jovem neta quase não se dá com ninguém, por isso não seria um problema assim tão grave. A questão coloca-se se alguém telefonar... Nesse caso, representaria um grave inconveniente. Já me aconteceu ligar para casa, por mais de uma vez, e estranhar que ninguém atendesse o telefone. Uma maçada!

– Visto que não pode falar, também deve ter problemas quando vai às compras, calculo...

– Por acaso, não. Fazer compras não é um problema – explicou o ancião. – Nos supermercados, mesmo que uma pessoa entre muda e saia calada, pode comprar o que lhe der na veneta. É tudo muito prático. A minha neta adora os supermercados, faz sempre lá as suas compras. A bem dizer, a vida dela passa-se entre o escritório e o supermercado.

– Ela nunca regressa a casa?

– Uma vez por semana, se tanto. É preciso ver que a minha neta adora estar no escritório. Temos tudo o que nos faz falta: uma kitchenette, casa de banho com duche... Nada nos impede de levar uma vida normal, como vê.

Fiz um vago gesto de assentimento com a cabeça e bebi mais um gole de café.

– Por falar nisso, deu-me a sensação de que o amigo se entendeu às mil maravilhas com a minha neta. Como é que conseguiu? Por telepatia?

– Leitura de lábios. Em tempos, frequentei um curso organizado pela Câmara Municipal. Naquela época dispunha de muito tempo livre e pensei que um dia ainda me poderia dar jeito.

– Ah, com que então, leitura de lábios! – exclamou o velho, assentindo repetidas vezes, como se quisesse manifestar a sua aprovação. – Uma técnica muito eficaz, pelos vistos. Eu também a domino um bocadinho. Que tal se tentássemos manter uma conversa sem pronunciar as palavras durante alguns minutos, nós os dois?

– Acho melhor não. Vamos continuar a falar normalmente, importa-se? – Naquele dia já tinha tido a minha conta de conversas em silêncio.

– Por outro lado, é uma técnica bastante primitiva e apresenta vários inconvenientes. Se estiver escuro, não se percebe nada e é preciso passar o tempo com os olhos pregados na boca do nosso interlocutor. De qualquer modo, enquanto medida provisória, reconheço a sua eficácia. Mostrou ser uma pessoa muito previdente ao aprender a ler nos lábios.

– Medida provisória?

– Exato – confirmou o ancião, fazendo outra vez que sim com a cabeça. – Escute bem o que lhe digo: no futuro, o mundo será insonoro.

– Insonoro? – repeti sem pensar.

– Sim, totalmente insonoro, desprovido de som. Para a evolução do homem, a emissão de sons não faz falta, podendo mesmo revelar-se prejudicial. Portanto, mais cedo ou mais tarde, vou tratar de fazer o som desaparecer.

– Essa agora! – exclamei. – Está a querer dizer que o canto dos pássaros, o murmúrio dos rios, a música... tudo isso deixará de existir?

– Como é evidente.

– A ser verdade, parece-me uma realidade bem triste, essa.

– Lamento. A culpa é da evolução, impiedosa e triste, para não variar. Uma evolução feliz é coisa que não existe – declarou o velho.

Após ter pronunciado aquelas palavras, levantou-se, dirigiu-se à secretária, tirou um pequeno corta-unhas de dentro da gaveta e começou a cortar, uma a seguir à outra, as dez unhas das mãos, começando pela unha do polegar da mão direita e acabando no mindinho da mão esquerda.

– A investigação ainda não está concluída, por isso não posso entrar em pormenores, mas, em linhas gerais, é mais ou menos isto. Agradeço, no entanto, que não revele nada a ninguém. Seria uma catástrofe se um dia esta notícia chegasse aos ouvidos dos Semióticos.

– Não se preocupe. Ninguém melhor do que nós, os Programadores, para esconder um segredo.

– Bom, as suas palavras deixam-me, de certo modo, mais tranquilo – confessou o ancião.

Com o cantinho de um bilhete-postal, arrebanhou os pedacinhos de unha que se encontravam espalhados por cima da mesa e deitou-os no caixote do lixo. Depois, escolheu outra sanduíche de pepino, deitou-lhe uma pitada de sal e mordiscou-a com evidente deleite.

– Talvez não me fique bem dizê-lo, mas são mesmo uma delícia!

– A sua neta também é boa na cozinha?

– Nada de especial. As sanduíches, isso sim, são divinais. Não se pode dizer que seja má na cozinha, mas os seus cozinhados não se comparam às sanduíches.

– Digamos que possui um talento especial para isso – alvitrei.

– Pode dizer-se que sim – confirmou o velhote. – Sabe que mais? Penso que tem muito jeito para entender a minha neta. Se tivesse de lha confiar, fazia-o tranquilamente, era limpinho.

– A mim? – perguntei, apanhado de surpresa. – Só porque elogiei as sanduíches preparadas por ela?

– Vai dizer-me que não estavam ao seu gosto?...

– Adorei as sanduíches – confirmei, procurando lembrar-me da jovem abundante de carnes mas sem que os meus pensamentos interferissem com os cálculos. Depois bebi mais um pouco de café.

– Sabe o que lhe digo? O amigo tem qualquer coisa. Ou então falta-lhe qualquer coisa. Na realidade, vai dar ao mesmo.

– Às vezes, também me parece – respondi com sinceridade.

– Nós, os cientistas, chamamos a isso estar em pleno processo evolutivo. Mais cedo ou mais tarde, acabará por compreender que a evolução é uma coisa bastante dura. E sabe qual é o aspeto mais implacável de todos?

– Não sei. Diga-me o senhor.

– O facto de não ser possível escolher de que maneira evoluímos. Ninguém escolhe a evolução a seu bel-prazer. Acontece o mesmo com as inundações, as avalanchas e os tremores de terra. Nunca se sabe quando vão acontecer, e depois, no momento em que se produzem, já é demasiado tarde...

Aquela tirada do velho deu-me que pensar.

– E essa evolução de que fala tem alguma coisa que ver com a tal insonorização? Quero dizer, com a possibilidade de o homem perder, um dia, a capacidade de falar?

– Não, de todo. Podemos falar. Poder falar ou não, em si mesmo, carece de importância. Trata-se apenas de uma etapa.

Confessei-lhe que tinha alguma dificuldade em seguir o raciocínio dele. Era a pura verdade. Quando entendo as coisas, digo; quando não as entendo, também. Não gosto de meias-tintas. E eu não compreendia. Não haveria tantos problemas neste mundo se fôssemos mais claros ao expressarmos as nossas intenções. Estou certo de que, na sua maioria, as pessoas se exprimem de uma maneira ambígua, porque, no fundo, andam à procura de problemas. Acredito piamente na minha teoria.

– Bom, ficamos por aqui – disse o velho, soltando uma das suas gargalhadas tonitruantes. – Ao levantar questões de natureza tão complicada, arriscamo-nos a interferir com os seus cálculos. Deixemos o assunto em banho-maria.

Por mim, não achei que devesse colocar objeções. Naquele preciso momento soou o alarme do meu relógio, pelo que regressei à lavagem de cérebros. Quanto ao ancião, abriu uma gaveta, pegou com a mão direita numa espécie de pinças de aço inoxidável, parecidas com as que se usam para mexer nas brasas da fogueira, e começou a ir e vir, em constante movimento, até à estante onde se alinhavam os crânios. Com a ajuda das pinças, dava golpezinhos neste ou naquele crânio e apurava o ouvido, atento à ressonância. Parecia um virtuoso do violino a passear por entre a sua coleção de Stradivarius, escolhendo um ou outro e dedilhando as cordas para ver se estavam afinadas. Até nesse simples ato de escutar os sons se podia ver o amor fora do comum que o velho homem tinha pelos seus crânios. Apesar de não passarem, todos eles, de simples crânios, cada um possuía uma ressonância muito distinta. Um soava como um frasco de uísque; outro, como uma enorme jarra de flores. Em tempos, todos eles haviam estado recobertos de carne e de pele, todos haviam contido matéria cinzenta (se bem que estejamos a falar de cérebros com diferentes capacidades), todos haviam estado dominados por ideias diferentes, que iam da comida ao desejo sexual. Pensar que tudo aquilo se desvanecera...

Experimentei imaginar a minha própria cabeça – sem pele, com a carne arrancada e o cérebro extraído –, alinhada numa daquelas prateleiras, enquanto o ancião lhe ia dando pequenos golpes com as pinças metálicas. Uma sensação estranhíssima. Que diabo poderia aquele velhote decifrar a partir da ressonância do meu crânio? Seria capaz de ler as minhas recordações? Ou, quem sabe?, talvez descobrisse outras coisas, coisas que a memória nem sequer tivesse registado... Invadiu-me um enorme desassossego.

Não era propriamente a ideia da morte que me atemorizava. Como disse William Shakespeare: «Morre este ano e não terás de morrer no próximo.»2 De um certo ponto de vista, convenhamos que a coisa parecia muito simples. No entanto, a ideia de que, depois de morto, a minha cabeça seria colocada numa prateleira e alvo de pequenos toques dados com pinças não me entusiasmava. Mais: deprimia-me pensar que, uma vez morto, alguém pudesse extrair algo de dentro de mim. A vida não é fácil, mas uma pessoa sempre pode ir gerindo o seu destino de acordo com a sua consciência. Como acontece com a personagem de Henry Fonda no filme O Homem das Pistolas de Ouro. Ao menos gostaria que me deixassem descansar em paz. Julguei compreender o desejo manifestado pelos faraós do Antigo Egito, no sentido de serem enterrados no interior das pirâmides.

Algumas horas mais tarde, dei finalmente por concluída a lavagem ao cérebro. Como não andara sempre a olhar para o relógio, ignorava quanto tempo tinha sido preciso, mas, a julgar pelo meu estado de fadiga, deduzi que teriam sido umas oito ou nove horas. Uma tremenda canseira. Levantei-me do sofá e espreguicei-me demoradamente, para ver se descontraía alguns músculos. No manual fornecido aos Programadores, que tem ilustrações e tudo, ensinam-nos a relaxar um total de vinte e seis músculos diferentes. Se, ao terminar o exercício, o cansaço mental tiver desaparecido, juntamente com a fadiga física propriamente dita, a esperança de vida aumenta.

Estamos a falar de uma profissão que ninguém sabe ainda quantos anos pode durar, uma vez que nem sequer há dez anos foi criada. Quem diz dez, diz vinte anos. Algumas pessoas defendem que os Programadores podem continuar a trabalhar até morrerem. E há quem opine que, antes ou depois, um Programador acaba, a páginas tantas, por ficar incapacitado. Nenhuma destas hipóteses passa de uma simples conjetura. Por isso, resta-me desentorpecer corretamente os tais vinte e seis músculos. E deixar as teorias para os especialistas.

Quando acabei de relaxar os músculos, sentei-me no sofá, fechei os olhos e procedi lentamente à união do hemisfério esquerdo com o direito. A primeira fase do meu trabalho estava assim concluída. Tal como indicava o manual.

O velho colocou em cima da secretária um crânio que parecia ser de um cão de grande porte, mediu aqui e ali com um calibrador e apontou as medidas com o lápis numa foto do espécime.

– Já terminou?

– Sim – respondi.

– Deve estar de rastos. Agradeço o seu esforço – observou o ancião.

– Agora vou regressar a casa e ver se durmo. Amanhã ou depois tratarei do shuffling, e, o mais tardar, daqui a três dias, antes da hora do almoço, entrego tudo. Parece-lhe bem?

– Muito bem, muito bem – disse o velho, acenando com a cabeça. – Mas veja se respeita esse prazo; o tempo é essencial. Se não chegar aqui antes do meio-dia, ficarei numa situação crítica. Muito crítica.

– Compreendo – sosseguei-o.

– E, peço-lhe por tudo, tenha cuidado para não lhe roubarem as listas. Se isso acontecesse, o meu pescoço e o seu estariam no cepo.

– Fique descansado. Os Programadores recebem um treino muito rigoroso, que lhes permite enfrentar situações dessas e evitar quaisquer acidentes de percurso. Não deixamos que nos roubem com tanta facilidade os dados processados. Pode ficar tranquilo.

De um bolso secreto, camuflado nas calças atrás do meu joelho direito, extraí uma caixa de metal destinada a guardar documentos importantes, introduzi a lista com os valores calculados lá dentro e fechei-a.

– Mais ninguém pode abrir este estojo. Se tentarem abri-lo, os documentos no seu interior destroem-se automaticamente.

– Vejo que têm tudo pensado – afirmou o ancião.

Devolvi a caixa ao bolso interior das calças.

– Sobraram algumas sanduíches. De certeza que não quer acabar com elas? Não sou capaz de comer grande coisa quando estou a trabalhar, mas seria uma pena desperdiçar esta comida toda.

Ainda estava com fome, por isso aceitei a oferta e devorei o resto das sanduíches. O velhote acabara com as que tinham pepino e já só havia de queijo e de fiambre; como eu não era grande apreciador de pepino, não me importei. Bebi mais uma chávena de café acabado de fazer servida por ele.

* * *

Tornei a vestir o impermeável, peguei nos óculos grossos de proteção e na lanterna e regressei ao subterrâneo. Desta vez, o ancião não me acompanhou.

– Usei as ondas sonoras para afugentar os Invisíveis, o que significa que não deverão aparecer tão cedo. Por esse lado não há nada a temer – esclareceu o velho. – Agora são eles que não se atrevem a aproximar-se destas paragens nem a vir meter o nariz nas nossas coisas. Visto que andam a reboque dos Semióticos, basta uma pequena ameaça, e desistem logo dos seus intentos.

Por mais otimistas que fossem aquelas palavras do ancião, o simples facto de saber que no subsolo existiam os chamados Invisíveis e outras criaturas subterrâneas que tais deixou-me logo com pouca vontade de me aventurar por ali às escuras. O que mais me apavorava era desconhecer que diabo de raça era a dos Invisíveis, que hábitos cultivavam e que forma tinham; enfim, o facto de não saber, no fundo, como me defender deles. Com a lanterna na mão esquerda e agarrando a navalha com a direita, empreendi o caminho de volta, seguindo ao longo do rio subterrâneo.

Senti-me a salvo quando avistei a silhueta da jovem gordinha de saia-casaco cor-de-rosa ao pé da escada de alumínio – a mesma por que descera à ida –, a fazer sinais com a lanterna. Assim que cheguei junto dela, apressou-se a dizer-me qualquer coisa, mas o ruído da água, que voltava a fazer-se sentir, impedia-me de ouvir fosse o que fosse. Além disso, estava demasiado escuro para conseguir ler nos seus lábios, por isso não percebi patavina.

Bem ou mal, lá nos decidimos a subir a escada, com vista a alcançarmos um lugar onde houvesse luz. Eu ia à frente e ela seguia atrás. A escada parecia não ter fim. À ida, como estava muito escuro e não via nada, descera sem medo, mas naquele momento, só de imaginar a altura, o meu rosto e as axilas cobriram-se de suor frio. Num edifício vulgar, aquela altura corresponderia a três ou quatro andares e, como se não bastasse, os degraus mostravam-se escorregadios devido à humidade, de tal maneira que me via obrigado a subir com grande cuidado para não pôr o pé em falso e dar uma queda valente.

A meio caminho, senti necessidade de respirar ar fresco, mas, sabendo que a jovem seguia mesmo colada a mim, compreendi que não era o momento adequado e acabei por subir até ao topo sem me virar e sem qualquer paragem. Por um lado, ficava deprimido com a ideia de ter de voltar ao laboratório por aquele mesmo caminho, daí a três dias. Porém, não me restava outro remédio. Fazia parte do pacote e estava incluído no bónus.

Assim que entrei na sala de onde partira, depois de ter saído do armário encastrado na parede, a rapariga ajudou-me a tirar os óculos e a despir o impermeável.

– Correu bem o trabalho? – perguntou a rapariga. A sua voz, que eu ouvia pela primeira vez, era doce e límpida.

Olhando para ela de frente, respondi:

– Se não tivesse corrido bem, a esta hora ainda estaria por lá. No nosso trabalho é assim que as coisas funcionam.

– Obrigada por teres falado ao meu avô na história de eu estar sem som. Foi um grande favor que me fizeste. Passei a semana inteira assim...

– Nesse caso, porque é que não me comunicaste o ocorrido por escrito? Teríamos esclarecido o problema num ápice, evitando esta confusão toda.

Sem responder, a jovem deu a volta à secretária e tratou de ajustar os brincos que trazia postos nas orelhas.

– Regras são regras.

– As regras determinam que não se pode comunicar nada por escrito?

– A-hã. Uma das regras.

– Essa é boa...

– Está proibido tudo o que possa ir contra a evolução.

– Estou a ver – disse eu, sinceramente admirado. De facto, a rapariga não dava ponto sem nó.

– Quantos anos tens? – perguntou-me.

– Trinta e cinco – disse eu. – E tu?

– Dezassete – respondeu ela. – És o primeiro programador que conheço. Verdade seja dita que também nunca me encontrei com nenhum semiótico...

– A sério que só tens dezassete anos? – perguntei, surpreendido.

– A sério. Por que razão havia eu de mentir? Tenho dezassete anos. Não pareço, pois não?

– Não. Para ser sincero, dava-te vinte anos ou mais.

– Isso é porque não gosto de parecer a idade que tenho – explicou ela.

– Não vais à escola?

– Não quero falar nisso. Pelo menos agora. Da próxima vez que nos encontrarmos, explicarei tudo.

– Estou a ver – disfarcei. Devia ter as suas razões.

– Conta-me... Como é ser um programador?

– Somos pessoas normais. Programadores ou Semióticos, quando não estamos a trabalhar, somos todos parecidos uns com os outros e levamos uma vida vulgar.

– As pessoas, na sua maioria, podem ser vulgares; normais é que não são.

– Bom, essa é a tua opinião – afirmei. – O que quero com isto dizer é que não temos nada de especial. Quando nos sentamos ao lado de alguém no comboio, não despertamos as atenções; comemos o que os outros comem, bebemos cerveja... A propósito, obrigado pelas sanduíches, estavam deliciosas.

– A sério? – perguntou ela, com um sorriso rasgado.

– É raríssimo encontrar sanduíches tão boas. E disso percebo eu, que já comi muitas ao longo da minha vida.

– E o café?

– O café também estava bom.

– Por acaso não te apetece mais uma chávena? Assim sempre podíamos trocar dois dedos de conversa...

– Não, obrigado, mais café não – disse eu. – Acho que já não consigo beber mais uma gota. Além disso, estou a sentir necessidade de voltar para casa e de me enfiar na cama a dormir.

– Que pena!

– Sim, também lamento, acredita.

– Bom, então acompanho-te até ao elevador. Sozinho não me parece que consigas lá chegar. O corredor é muito comprido e complicado.

– Obrigado. Dificilmente conseguiria atinar com o caminho.

Ela deitou a mão a uma espécie de chapeleira redonda que estava em cima da mesa e entregou-ma. Peguei nela e sopesei-a. Atendendo ao tamanho, pesava muito pouco. Se de facto era uma caixa para guardar chapéus, os artigos em questão deviam ser invulgarmente grandes. A caixa estava rodeada de uma grossa fita adesiva, para evitar que se abrisse.

– O que é isto? – quis eu saber.

– Um presente do meu avô para ti. Abre-o quando chegares a casa.

Sacudi ao de leve a caixa com as duas mãos. Não ouvi barulho nenhum, resistência de género algum.

– Tem cuidado, que é frágil – advertiu a jovem.

– Uma jarra de flores ou assim?

– Não sei. Quando chegares a casa e espreitares, logo verás.

A seguir, a rapariga abriu uma mala de mão cor-de-rosa e estendeu-me um cheque bancário. O montante era ligeiramente mais elevado do que eu esperava. Guardei-o na carteira.

– Recibo?

– Não é preciso – disse ela.

Abandonámos aquela divisão e caminhámos em direção ao elevador, percorrendo o longo labirinto, sempre a subir e a descer pelo mesmo corredor por onde tinha ido. Os seus saltos altos ressoavam no pavimento com um barulhinho agradável, tal como da outra vez. A sua gordura deixara de me fazer confusão. Andando ao seu lado, mal me lembrava do seu peso. Possivelmente, acabaria por me familiarizar com esse facto.

– És casado? – quis ela saber.

– Não – respondi. – Já fui, em tempos, mas agora já não sou.

– O teu casamento acabou porque te tornaste programador? Pergunto isto porque sempre ouvi dizer que é difícil um programador manter um lar a funcionar como deve ser.

– Isso não é verdade. Muitos programadores constituíram família e vivem felizes. Se bem que alguns deles defendam que é mais fácil trabalhar sem a família atrás e prefiram levar uma vida de solteiros. O nosso trabalho implica um grande desgaste nervoso, para não falar no perigo, e, por vezes, uma mulher e filhos aumentam o risco...

– No teu caso, como é que as coisas se passaram?

– Só me tornei programador depois do divórcio. Por isso, uma coisa não teve nada que ver com a outra.

Ela ficou pensativa. Passado um bocadinho, disse:

– Desculpa se te faço perguntas tão indiscretas. É a primeira vez que apanho um programador pela frente, e há tantas coisas que gostaria de saber...

– Não faz mal – tranquilizei-a eu.

– Ouvi dizer que os Programadores, quando dão um trabalho por terminado, sentem um bruto aumento do desejo sexual. Bate certo?

– Isso já não te sei dizer. Pode ser que sim, uma vez que, durante todo o tempo que dura a missão, uma pessoa fica sujeita a uma tensão nervosa fora do vulgar.

– E, nessas ocasiões, com quem é que vais para a cama? Tens namorada?

– Não – respondi.

– Então, com quem é que fazes sexo? Não és homossexual nem daquelas pessoas para quem o sexo não importa, pois não? Se calhar, não queres responder...

– E porque não havia eu de querer responder? – retorqui. Não sou propriamente do género de andar a divulgar a minha vida por tudo quanto é sítio, mas, por outro lado, como também não tenho nada a esconder, se me fazem perguntas desse género, respondo. – Durmo com diferentes mulheres, consoante a ocasião.

– Nesse caso, irias para a cama comigo?

– Não creio.

– Porquê?

– É uma questão de princípio. Quase nunca vou para a cama com raparigas que conheço. Só serve para complicar as coisas. Além do mais, não durmo com mulheres com quem esteja profissionalmente envolvido. Tratando-se de um trabalho que envolve segredo profissional, penso que devo separar as águas.

– Não será antes porque sou gorda e me achas feia?

– Para começar, não estás assim tão gorda, e, depois, não és feia – disse eu.

Ela voltou a ficar pensativa.

– Nesse caso, como é que fazes para ter sexo? Abordas a primeira que encontras pelo caminho e propões ir para a cama com ela?

– Já me tem acontecido.

– Ou pagas a uma prostituta?...

– Também já me aconteceu.

– E se eu me deitar contigo a troco de dinheiro, aceitas?

– Não, não me parece – respondi. – Temos uma diferença de idades demasiado grande. Acontece que eu, com raparigas mais novas, não me sinto à vontade.

– O meu caso é diferente.

– Talvez, mas, pela parte que me toca, não quero arranjar mais problemas do que aqueles que já existem. Na medida do possível, gostaria de levar uma vida tranquila.

– O meu avô diz que o ideal seria eu ter relações sexuais pela primeira vez com um homem mais velho. A partir dos trinta e cinco anos, aconselha ele. Também diz que o desejo, quando se acumula e atinge um certo grau de intensidade, nos faz perder a lucidez mental.

– Ah, sim, o teu avô também me contou tudo isso.

– Acreditas que seja verdade?

– Para ser franco, não sei, não sou biólogo. No entanto, quer-me parecer que isso depende de cada pessoa e que não deves fazer afirmações tão categóricas.

– Tu és dos que têm uma intensidade muito elevada?

– O normal, calculo eu... – respondi, depois de pensar um bocadinho.

– Ainda sei muito pouco acerca da minha libido – confessou a jovem anafada. – Por isso é que estou deserta por experimentar umas quantas coisas.

Enquanto procurava uma resposta adequada para lhe dar, chegámos junto do elevador. Que alívio! Como um cãozinho bem treinado, abriu as portas e esperou pacientemente que eu entrasse.

– Até à próxima – despediu-se ela.

As portas do elevador fecharam-se sem ruído. Encostei-me às paredes de aço inoxidável e soltei um profundo suspiro.

2 «He that dies this year is quit for the next» – Henrique IV, ato IV, cena II. (N. das T.)


O Fim do Mundo

6

A Sombra

Quando a bibliotecária depositou o primeiro exemplar em cima da mesa, demorei um certo tempo a perceber que se tratava de um velho sonho. Depois de o ter contemplado durante um bom bocado, levantei a cabeça e olhei para a rapariga, de pé à minha frente. Calada, também ela fitava o objeto posto em seu sossego. Pensei com os meus botões que o nome de «velho sonho» não combinava nada bem com o que tinha diante de mim. As palavras «velho sonho» sugeriam um cenário diferente – textos antigos ou, em todo o caso, qualquer coisa de contornos porventura mais vagos e imprecisos.

– Aí tens um velho sonho – disse ela. O seu tom de voz indeciso denunciava uma certa distância. Mais do que uma explicação destinada à minha pessoa, parecia estar a convencer-se a si mesma.

Assenti, apesar de não perceber bem.

– Pega nele – exortou-me.

Peguei nele com mil cuidados e percorri-o com os olhos, para ver se encontrava vestígios de um velho sonho. Por mais que procurasse, não descobri o menor vestígio. Não passava do crânio de um animal, um animal não muito grande. O osso frontal do crânio apresentava-se ressequido e sem cor, como se o bicho tivesse estado durante muito tempo exposto ao sol, acabando às tantas por perder a cor original. A mandíbula, projetada para a frente, permanecia ligeiramente aberta, como se o bicho tivesse ficado petrificado no preciso momento em que ia abrir a boca. As pequenas órbitas, esvaziadas do seu conteúdo, deixavam entrever o vazio interior.

O crânio era leve, e essa leveza pouco natural conferia-lhe uma qualidade quase imaterial, por assim dizer. Era como se todos os sinais de vida tivessem abandonado aquele animal e não persistissem nele reminiscências do que o fizera vibrar. Não conservava sinais de matéria, de memória, de calor. No meio da fronte via-se uma pequena cavidade rugosa ao tato. Quando a apalpei com o dedo, deduzi que fosse o que restava de um corno entretanto desaparecido.

– É o crânio de um dos unicórnios que andam pela Cidade? – perguntei à rapariga

Ela fez que sim com a cabeça.

– O velho sonho encontra-se lá dentro.

– Quer dizer que eu tenho de decifrar os sonhos a partir daqui?

– É essa a função do Leitor de Sonhos – confirmou ela.

– E que farei com os sonhos, uma vez lidos?

– Nada. Basta que os leias.

– Há aqui qualquer coisa que me escapa – objetei. – Tudo bem, entendo a necessidade de ler um velho sonho alojado no crânio. Mas não é possível que, depois disso, a coisa fique por aí, pela leitura. Dá-me a sensação de que a obra não fica completa. Um trabalho deve ter uma finalidade. Como, por exemplo, transcrever o que leio para qualquer lado, pô-lo por ordem alfabética e classificar esse material.

Ela abanou a cabeça.

– Não te consigo explicar qual é o sentido de tudo isto. Pode ser que, ao leres os sonhos, o consigas descobrir. Seja como for, não me parece que o sentido em si mesmo deste trabalho te diga muito respeito.

Pousei o crânio em cima da mesa e observei-o de novo a uma distância confortável. Estava envolto num silêncio absoluto que não fazia pensar em nada. No entanto, podia muito bem acontecer que o silêncio não tivesse origem na atmosfera exterior, mas emanasse de dentro do crânio, desprendendo-se como fumo. Não deixava de ser um fenómeno estranho. Perguntei a mim próprio até que ponto não haveria uma ligação entre aquele silêncio estático e o centro da Terra. Mudo e imóvel, o crânio mantinha as suas órbitas despojadas de vida cravadas no espaço vazio.

Quanto mais o observava, mais tinha a sensação de que o crânio me queria transmitir alguma coisa. À volta, flutuava no ar uma certa tristeza, mas nem eu próprio conseguia explicar em que se traduzia essa tristeza. Faltavam-me as palavras exatas.

– Vou proceder à leitura – anunciei, voltando a colocar o crânio em cima da mesa e a sentir o seu peso nas minhas mãos. – Seja como for, não tenho escolha.

Ela esboçou um sorriso, tirou-me o crânio das mãos, limpou cuidadosamente o pó que se acumulara na superfície com dois paninhos, antes de tornar a colocar em cima da mesa o crânio, ainda mais branco do que anteriormente.

– Bom, vou explicar-te o processo para ler os velhos sonhos – disse ela. – Mas a minha maneira não passa de uma imitação. A única pessoa capaz de o fazer é o Leitor de Sonhos. Presta atenção, por favor. Primeiro, deves colocar o crânio de frente para ti e apoiar suavemente os dedos de ambas as mãos aqui, nas têmporas.

Ao dizer aquilo, apoiou suavemente os dedos das mãos sobre os ossos parietais do crânio e dirigiu-me um olhar, como se quisesse certificar-se de que eu estava a prestar atenção às suas palavras.

– Depois, olhas fixamente para o osso frontal. Não o faças com muita intensidade. Fita-o de uma forma discreta, suavemente. Não podes tirar os olhos dele. Por mais que fiques encandeado, não desvies o olhar.

– Encandeado?

– Sim, isso mesmo. Ao ser alvo do teu olhar, o crânio irá emitir luz e calor, e tu só terás de explorar aquela luz com todo o vagar, usando para o efeito as pontas dos dedos. Se fizeres como eu disse, poderás ler os velhos sonhos.

Repeti para mim mesmo, por ordem, as explicações que ela tinha acabado de me dar. Não conseguia imaginar, como é óbvio, a que tipo de luz ou a que sensação tátil se referia, mas pelo menos ficara o método devidamente assimilado. Ao contemplar os seus dedos finos pousados sobre aquela ossatura, assaltou-me a vívida impressão de que já vira aquele crânio em qualquer lado. Tanto os ossos – tão brancos que pareciam ter sido alvo de repetidas lavagens – como a cavidade frontal provocavam uma estranha perturbação no meu coração. Tal como, de resto, acontecera no momento em que pousara pela primeira vez os olhos no rosto da rapariga. Não saberia dizer se estava diante de uma recordação autêntica, ou tão-só de uma ilusão causada por uma deformação momentânea do tempo e do espaço.

– Passa-se alguma coisa? – inquiriu ela.

Abanei a cabeça.

– Nada. Estava só a pensar. Julgo ter percebido bem o que tenho de fazer. Agora é só uma questão de passar da teoria à prática.

– Vamos jantar primeiro – disse a rapariga. – Uma vez iniciada a tarefa, já não teremos tempo para isso.

De uma cozinha pequena que havia ao fundo trouxe uma panela e pô-la a aquecer em cima do braseiro. Era uma sopa à base de legumes com cebolas e batatas. Assim que começou a ferver, produzindo um som muito agradável, por sinal, ela encheu dois pratos e levou-os para a mesa, juntamente com fatias de pão de nozes.

Ficámos sentados à frente um do outro, em silêncio. A refeição era frugal e eu nunca tinha provado aquele tipo de condimentos, mas há que reconhecer que me soube bem. Quando acabei de comer, senti-me quente, reconfortado por dentro. Em seguida, a jovem serviu um chá verde a ferver. Uma infusão com um travo amargo, preparada à base de plantas medicinais.

* * *

A leitura de sonhos não se revelou uma tarefa assim tão simples quanto as explicações da rapariga davam a entender. Os raios de luz eram demasiado fracos e, por mais que eu concentrasse toda a minha atenção nas pontas dos dedos, o certo é que não conseguia orientar-me no meio daquele labirinto tortuoso. Contudo, os meus dedos conseguiam perceber com nitidez a presença dos velhos sonhos, traduzindo-se numa espécie de rumor, uma torrente de imagens em catadupa. Ainda assim, os meus dedos tinham dificuldade em traduzi-los e convertê-los em mensagens claras. Constatava apenas a sua existência.

Quando finalmente acabei de ler dois dos sonhos, já passava das dez da noite. Devolvi à rapariga os crânios cujos sonhos acabara de decifrar, tirei os óculos e massajei devagar os olhos pesados.

– Imagino que estejas cansado... – concluiu ela.

– Sim, um pouco – confirmei. – Os meus olhos ainda não estão habituados. Quando concentro o olhar durante muito tempo, absorvem a luz dos velhos sonhos e acabo por ficar com dores de cabeça. É uma dorzinha sem importância, mas turva-se-me a vista e deixo de poder fixar as coisas.

– Acontece o mesmo com toda a gente, ao início – explicou ela. – Até os olhos estarem habituados, custa. Mas não te preocupes, vais ver que em breve te acostumarás. Durante algum tempo, o melhor será irmos com calma.

– Sim, também me parece.

Depois de ter arrumado os velhos sonhos, a jovem iniciou os preparativos para regressar a casa. Abriu a tampa do braseiro, recolheu o resto das cinzas com a ajuda de uma pequena pá e enterrou-as num balde com areia.

– Não deves permitir que o cansaço se instale no teu coração3 – aconselhou ela. – A minha mãe dizia sempre isto. Mesmo que o cansaço se apodere de ti, do teu corpo, dizia ela, devemos continuar sempre a ser donos do nosso coração.

– Parece-me um bom conselho.

– A verdade é que não sabemos muito bem o que é o coração. Pela minha parte, não sei o que significa exatamente, tão-pouco como se usa. No fundo, não passa de uma palavra.

– O coração não é uma coisa que se usa – declarou ela. – O coração está aí. É como o vento. Sentimos os seus movimentos, e isso chega-nos.

Ela tapou o braseiro, levou a cafeteira esmaltada e as chávenas para o fundo da sala, lavou-as e, terminada a tarefa, vestiu um casaco feito de um grosseiro tecido azul. Um azul gasto, a fazer lembrar um trovão arrancado do céu, que, com o passar dos anos, tivesse perdido a noção das suas origens. Mergulhada nos seus pensamentos, permaneceu de pé ao lado das cinzas apagadas.

– Vens de outro país? – perguntou-me, como se esse pensamento tivesse acabado de lhe passar pela cabeça.

– Sim – respondi.

– E como é que são as coisas na tua terra?

– Não me lembro de nada – disse eu. – Lamento, mas não tenho uma única recordação digna desse nome. Quando me tiraram a sombra, dissiparam também as recordações do velho mundo. Em todo o caso, ficava muito afastado daqui.

– Mas sabes o que é o coração, certo? – perguntou-me ela.

– Penso que sim.

– A minha mãe também tinha coração – acrescentou. – Acontece, porém, que ela desapareceu quando eu tinha sete anos. E de certeza que foi por culpa de ter um coração, como tu.

– Desapareceu?

– Sim, desapareceu. Mudemos de assunto, está bem? Por aqui não é de bom-tom falar acerca das pessoas desaparecidas. Falemos antes da cidade onde moravas. Alguma recordação terás, não?

– Recordo apenas duas coisas – confessei. – Uma: que a cidade onde vivia não estava rodeada por nenhuma muralha; e a outra: que todos caminhavam arrastando atrás de si a sua sombra.

* * *

Sim, todos arrastávamos a nossa própria sombra. Ao chegar a esta cidade – em que me encontro –, vi-me obrigado a confiar a minha sombra ao Guardião da porta.

– Não podes entrar na Cidade com ela – avisou-me o homem. – Ou deixas a sombra para trás, ou renuncias a entrar aqui; agora escolhe.

Em resultado disso, abandonei a minha sombra.

O Guardião fez-me permanecer de pé durante um grande bocado num descampado, junto à porta. O sol das três da tarde projetava com nitidez a minha sombra sobre o terreno.

– Deixa-te estar quieto – ordenou-me. A seguir, sacou de uma navalha de bolso, introduziu a ponta afiada da lâmina entre a sombra e o solo, começou a brandir a faca da esquerda para a direita, como se estivesse a apalpar terreno, até que, num movimento certeiro, arrancou com destreza a sombra do chão.

A sombra vacilou um pouco, na tentativa de se defender, mas, por fim, deixou-se ficar, sem forças. Separada de mim, tinha um aspeto muito mais miserável e derreado do que se poderia pensar.

O Guardião fechou a lâmina da navalha. Deixámo-nos estar os dois durante alguns segundos a olhar para aquela sombra, órfã do seu próprio corpo.

– Como te sentes? – perguntou-me o Guardião. – Estranha sensação, não é verdade? Quero dizer, uma pessoa ver-se assim privada da sua sombra... Em rigor, uma sombra não serve para nada. Não passa de um peso morto.

– Desculpa, mas precisamos de nos separar nos tempos mais próximos – comuniquei à sombra, aproximando-me dela. – Não estava nas minhas intenções, mas não tive outro remédio. Por isso, procura ter paciência e mantém-te aqui à espera durante algum tempo, pode ser?

– Algum tempo? Isso quer dizer o quê? – perguntou a sombra.

Respondi que não sabia.

– De certeza que não te vais arrepender? – insistiu a sombra, em voz baixa. – Desconheço as circunstâncias, mas não me parece justo separar alguém da sua sombra. Uma coisa dessas não te incomoda? Trata-se de um erro, sem dúvida; de resto, este lugar só pode ser um equívoco. Não é essa também a tua opinião? Uma pessoa não pode viver sem a sua sombra, e uma sombra não pode viver sem a pessoa a quem pertence. No entanto, eis-nos aqui, divididos e levando por diante a nossa existência. Há qualquer coisa que não bate certo. Não te parece?

– Tens razão. É antinatural – reconheci. – Mas aqui não há nada que seja normal. E quando nos encontramos num lugar anormal, o melhor que temos a fazer é adaptar-nos à sua natureza.

A sombra concordou com a cabeça.

– São apenas palavras. Porém, eu vejo mais longe do que as palavras. Confesso que o ar deste local não me faz bem. É diferente do ar que se respira nos outros sítios. Os ares daqui não nos convêm, nem a mim nem a ti. Não deveriam ter-te obrigado a abandonar-me. Até à data, sempre nos demos muito bem juntos, nós os dois, sabes? Porque me abandonaste?

Em todo o caso, era demasiado tarde. A sombra tinha sido arrancada do meu corpo.

– Assim que me instale, voltarei para te vir buscar – prometi. – É provável que a nossa separação seja apenas temporária, que não dure para sempre. Voltaremos a ficar juntos.

Suspirando, a sombra lançou-me um olhar desanimado. Eram três da tarde e o sol caía a pique sobre nós. Eu sem a minha sombra, e a minha sombra sem mim.

– Tudo isso não passa de uma hipótese, de uma esperança que tu acalentas – voltou a sombra à carga. – As coisas não vão funcionar. Não me peças para explicar, mas tenho um mau pressentimento. Vamos fugir, à primeira oportunidade que se nos deparar. Regressemos juntos ao mundo a que pertencemos.

– Não podemos regressar ao nosso mundo. Desconheço o caminho de volta. E tu também, quase aposto.

– Sim, por agora, mas encontrarei uma maneira de escapar, nem que seja a última coisa que faça. Quero que nos encontremos volta e meia e que troquemos impressões com uma certa regularidade. Virás visitar-me?

Acenei afirmativamente com a cabeça, ao mesmo tempo que pousava a mão no seu ombro; em seguida, dirigi-me para onde se encontrava o Guardião. Este, enquanto eu falava como a minha sombra, andara a recolher as pedras caídas por terra à frente da sua cabana e tratara de as juntar em montinhos num sítio onde não causassem transtorno.

Quando me aproximei, o Guardião limpou as mãos sujas de poeira branca às fraldas da camisa e colocou a sua grande manápula em cima das minhas costas. Não consegui perceber ao certo se era uma manifestação de familiaridade ou, pelo contrário, uma exibição de força.

– A tua sombra fica muito bem entregue – afirmou o Guardião. – Dar-lhe-ei de comer três vezes ao dia e, uma vez por dia, levá-la-ei a passear. Podes ficar sossegado. Não tens motivos para te preocupar.

– Posso vê-la de quando em quando?

– Bem... – disse o Guardião. – Não a poderás ver quando te apetecer, mas não me ocorre qualquer razão que te impeça de o fazer, volta e meia. Desde que a ocasião e as circunstâncias o permitam, parece-me aceitável.

– E quando eu quiser que ma devolva?

– Pelos vistos, ainda não compreendeste bem como funcionam as coisas por estas bandas – disse o Guardião, sempre com a mão enorme pousada nas minhas costas. – Nesta cidade ninguém está autorizado a ter sombra. Por outro lado, quem entra já não pode sair. Como vês, a tua pergunta não faz sentido.

E foi assim que perdi a minha sombra.

À saída da Biblioteca, ofereci-me para acompanhar a jovem até casa.

– Não é preciso que me leves a casa – respondeu ela. – Não tenho medo e, além disso, a tua casa fica na direção oposta.

– Gostaria de te acompanhar – insisti. – Estou um bocado nervoso e, se regressar já a casa, não me parece que consiga adormecer.

Lado a lado, atravessámos a Ponte Velha em direção a sul. O vento desse princípio de primavera, ainda um pouco frio, fazia mexer os ramos dos salgueiros que cresciam nas margens do rio, e os raios de uma Lua estranhamente nítida iluminavam as pedras redondas da calçada sob os nossos pés. O ar estava carregado de humidade, tornando a superfície do terreno pesada e escorregadia. A rapariga libertou os cabelos, que levava atados com uma fita de nastro, arrepanhou-os de um lado e enfiou-os dentro do casaco.

– Tens um cabelo muito bonito – disse-lhe eu.

– Obrigada.

– Já te devem ter dito isso mesmo, aposto.

– Não, nunca. És o primeiro.

– E qual é a sensação?

– Não sei... – disse ela, levantando a cabeça e olhando para mim sem tirar as mãos dos bolsos. – Dou-me conta de que estás a elogiar os meus cabelos, mas, pelos vistos, não passa disso mesmo. Os meus cabelos provocaram em ti uma sensação qualquer, e é dessa sensação que estamos a falar. Engano-me?

– Enganas-te. Estou a falar dos teus cabelos.

Ela esboçou um pequeno sorriso e pareceu andar à procura de alguma coisa no ar.

– Desculpa. Não há meio de me habituar à tua maneira de falar.

– Não faz mal. Vais ver que é uma questão de tempo.

* * *

A casa dela ficava situada no Bairro Operário. Tratava-se de um local degradado, a sudoeste da zona industrial. A bem dizer, também este era, em geral, um lugar triste, que deixava transparecer uma imensa sensação de abandono. Até mesmo os grandes canais, por onde em tempos tinham corrido águas límpidas e haviam transitado barcaças e chalupas, mostravam agora as comportas fechadas, sinal de que a água secara. Aqui e ali, ao longo do leito ressequido do riacho, aflorava um pedaço de lodo endurecido e esbranquiçado, como o cadáver enrugado de um enorme animal pré-histórico. Nas margens viam-se largos degraus de pedra, que antes serviam para descarregar as mercadorias, e as plantas herbáceas haviam criado raízes por entre as gretas formadas no meio das pedras. Velhas garrafas e peças enferrujadas de maquinaria emergiam no meio do lodaçal; uma barcaça de madeira de fundo chato apodrecia lentamente perto daquele montão de destroços.

Ao longo dos canais sucediam-se as fábricas desertas com ar de se encontrarem ao abandono. As portas estavam fechadas, as janelas haviam ficado sem vidros, a hera trepava pelas paredes, a ferrugem cobria as escadas de emergência, o terreno era um mar de ervas daninhas.

Passando as fileiras de fábricas, chegava-se ao Bairro Operário. Constituído por edifícios de cinco andares, os blocos antigamente tinham sido apartamentos elegantes para gente endinheirada, explicou-me a rapariga, mas depois, com o andar da carruagem, tinham-nos subdividido em pequenas parcelas destinadas a serem habitadas por modestos operários. Porém, quando a maioria das fábricas encerrara as portas, os operários tinham ficado sem trabalho. E a partir do momento em que as suas qualificações técnicas deixaram de ter utilidade, limitavam-se a fabricar por encomenda pequenos objetos de que a Cidade precisava. O pai dela era um desses homens.

Atravessando a pequena e rudimentar ponte de pedra sobre o canal, fomos ter ao bairro onde ela habitava. As estreitas passagens suspensas que nos permitiam ir de uma casa à outra faziam lembrar as escadas utilizadas durante os ataques aos castelos, em plena Idade Média.

Entretanto, já era quase meia-noite e as luzes estavam, na sua maioria, apagadas. Pegando-me bruscamente na mão, a rapariga conduziu-me em passo ligeiro ao longo daqueles corredores labirínticos, como se fosse sua intenção escapar ao olhar predatório de um pássaro gigantesco, que lá do alto pudesse andar à caça dos humanos. Às tantas, deteve-se diante de um edifício e despediu-se de mim.

– Boa noite – disse eu.

Posto isto, trepei sozinho a encosta da Colina Ocidental e regressei ao meu alojamento.

3 Em japonês, a palavra «coração» tem um significado mais amplo, abarcando não só os sentimentos como as áreas do conhecimento e a vontade, incluindo assim conceitos como «pensamento», «mente», «alma» e «espírito». (N. das T.)


O Impiedoso País das Maravilhas

7

Crânio. Lauren Bacall.
Biblioteca

Meti-me num táxi. Lá fora era noite cerrada e as ruas estavam cheias de pessoas que regressavam a casa do trabalho. Ainda por cima começara a chuviscar, por isso demorei uma eternidade a chegar.

Mesmo em circunstâncias normais, custa-me sempre imenso encontrar táxi. Por razões de segurança, deixo passar os primeiros dois táxis livres que vejo, antes de apanhar um. Ouvi dizer que os Semióticos contam ao seu serviço com vários táxis falsos e que se servem deles para raptar os Programadores quando estes acabam de executar um trabalho, fazendo-os desaparecer de circulação. Pode ser que não passe de um rumor. Confesso que nunca me aconteceu nada do género, nem a mim nem a ninguém conhecido. Ainda assim, mais vale andar prevenido...

Por isso, procuro viajar sempre de metropolitano ou de autocarro. Àquela hora da noite, porém, estava de tal forma cansado que só pensava em dormir. Chovia e a simples perspetiva de ter de apanhar transportes públicos apinhados de gente, em hora de ponta, dava-me calafrios. Resultado: decidi mandar parar um táxi, desse lá por onde desse. Uma vez dentro do táxi, estive quase, quase a adormecer, e foi preciso lutar para não ceder à sonolência. Quando chegasse a casa e me estendesse na cama, então, sim, poderia dormir à vontade. Adormecer no táxi representaria um perigo enorme.

Para manter os olhos abertos, concentrei toda a minha atenção no relato de um jogo de basebol que estava a ser transmitido na rádio. Não tenho por hábito seguir o fenómeno do basebol, nem sou propriamente um especialista na matéria, mas, pelo sim, pelo não, resolvi tomar partido pela equipa atacante no momento, logo, contra a que defendia em campo. A minha equipa encontrava-se a perder por três a um. Depois de a bola ter sido batida na casa-mãe, um jogador na segunda base, já com dois outs, e que devia percorrer o campo, atrapalhou-se, tropeçou e caiu entre a segunda e a terceira bases; em resultado disso os outs acabaram por ser em número de três e a equipa não conseguiu obter nenhum ponto. O comentador desportivo disse que o resultado era péssimo, e eu vi-me obrigado a dar-lhe razão. Claro que qualquer um pode escorregar e cair, mas, em pleno jogo de basebol, é bom que isso não aconteça entre a segunda e a terceira bases. Além do mais, porventura abatido pelo desaire, o lançador atirou uma bola fácil direitinha à equipa contrária, que acabou assim por conseguir marcar um segundo home run na ala esquerda do campo, aumentando a vantagem para quatro a um.

Quando o táxi parou diante da casa onde eu me encontrava alojado, o resultado mantinha-se igual. Paguei a corrida e saí do carro com a chapeleira na mão e o espírito embotado. Deixara praticamente de chover.

Na caixa do correio não havia cartas. No gravador automático não havia chamadas. Pelos vistos, os meus serviços não tinham sido requisitados. Perfeito. Pela minha parte, também não precisava de ninguém. Fui ao frigorífico buscar gelo, servi-me de um generoso uísque e acrescentei um pouco de água gasosa. A seguir, despi-me, enfiei-me na cama e, recostado na cabeceira, bebi o uísque em pequenos goles. Tinha a sensação de que poderia desmaiar de um momento para o outro, mas não era razão para renunciar a esse aprazível ritual de fim de dia. Aqueles breves instantes que vão desde a altura em que me deito até que adormeço. Levo sempre comigo para a cama qualquer coisa para beber, oiço música, leio um livro. Na minha maneira de ver as coisas, aprecio tanto esses instantes como gosto de assistir a um bonito pôr do Sol ou de respirar ar puro.

Bebera cerca de metade do uísque quando o telefone começou a tocar. O aparelho estava colocado em cima de uma mesa redonda, a uns dois metros da cama. Nessa noite, não estando nas minhas intenções mexer um dedo para me levantar, deixei-me ficar ali deitado, a olhar distraidamente para o telefone enquanto este tocava. Deve ter tocado umas treze ou catorze vezes, mas ignorei-o. Se a cena tivesse acontecido nos desenhos animados de antigamente, o aparelho teria vibrado de forma impante no ar, a cada toque, mas, como é bom de ver, nada disso aconteceu. O telefone tocou e deixou-se estar, posto em seu sossego, em cima da mesa, imóvel. E eu observava-o, saboreando o meu uísque.

Ao lado do telefone, deixara ficar a carteira, a navalha e a tal chapeleira de cartão que me tinha calhado em sorte. De repente, ocorreu-me que talvez fosse melhor abri-la de uma vez por todas e verificar o seu conteúdo. Às tantas, podia ser qualquer coisa que necessitasse de frigorífico, ou um animal vivo. Ou então um objeto de grande valor. No entanto, o cansaço levou a melhor. Vendo bem, era lógico esperar que, em qualquer dos casos referidos, alguém se tivesse dado ao trabalho de me avisar. Esperei que o telefone parasse de tocar, emborquei o resto do uísque, apaguei as luzes do candeeiro na mesa de cabeceira e fechei os olhos. Como se tivesse estado à espera da sua oportunidade, o sono precipitou-se sobre mim como uma gigantesca rede negra. No instante em que me deixava cair nos braços de Morfeu, pensei: Quem sabe o que poderá acontecer a seguir?

Quando acordei, o quarto estava às escuras. O meu relógio indicava que eram seis e um quarto. Contudo, não fui capaz de distinguir se da manhã ou se da tarde. Vesti as calças, fui ao corredor e olhei para a porta do apartamento ao lado. A edição do jornal matutino lá estava, em cima do tapete, por isso só podia ser manhã. Nestes casos é muito prático ter a assinatura de um jornal. Talvez eu devesse assinar um.

Ao todo, dormira cerca de dez horas. Visto que o corpo me pedia descanso, e, para além disso, não tinha coisas urgentes para fazer nesse dia, podia continuar na ronha durante mais um bocado, mas acabei por mudar de ideias e lá me decidi a saltar da cama. Não há nada como o prazer de uma pessoa se levantar ao nascer do Sol, costumo eu dizer. Tomei duche, lavei-me escrupulosamente e barbeei-me. Após os vinte minutos de alongamentos da praxe, preparei o pequeno-almoço com o que havia. O frigorífico estava quase vazio, precisava de me abastecer. Sentei-me à mesa e, enquanto bebia o sumo de laranja, peguei num lápis e fiz uma lista do que tinha de comprar. Uma folha não chegou, foram precisas duas. De qualquer maneira, como o supermercado não estava aberto, decidi passar por lá mais tarde, quando saísse para almoçar.

Enchi a máquina de lavar com tudo o que se encontrava dentro do cesto da roupa suja, na casa de banho, e quando estava a esfregar os ténis à mão no lavatório veio-me à lembrança a misteriosa oferta do velhote. Deixei a sapatilha direita por lavar, sequei as mãos com um pano de cozinha, voltei ao quarto e peguei na chapeleira. Continuava a parecer muito leve, atendendo ao seu tamanho, e esse aspeto provocava-me uma sensação bastante desagradável. A caixa pecava por ser demasiado leve. Aquela circunstância dava-me que pensar. Chamem-lhe intuição profissional se quiserem, ainda que, em rigor, não tivesse bases em que apoiar o meu raciocínio.

Percorri a sala com o olhar. Estava estranhamente silenciosa. Dir-se-ia que alguém tinha desligado o som, mas, quando aclarei a garganta para fazer uma experiência, o barulho que se ouviu foi um pigarrear normalíssimo. Peguei na navalha e pus-me a dar golpes com o punho dela na mesa; a cena repetiu-se: também desta vez, o toque surdo que se ouviu foi o do costume. Quando se experimenta na pele o fenómeno da eliminação do som, durante um tempo a pessoa tende a achar o silêncio suspeito. Abri a janela que dava para a varanda. Ouviam-se na perfeição os carros e os pássaros. Fiquei mais tranquilo. Qual evolução, qual carapuça! É bom que o mundo esteja cheio de mil e uma sonoridades.

Cortei a fita usando a navalha multiusos com cuidado para não danificar o conteúdo. A parte superior da chapeleira estava repleta de bolinhas de papel de jornal. Desdobrei duas ou três páginas e li-as: eram notícias normais e sem nada de especial, arrancadas de um exemplar do Mainichi Shimbun de três semanas antes, de modo que fui à cozinha buscar um saco, tornei a amarrotar as folhas e... lixo com elas. Lá dentro havia os exemplares guardados do Mainichi; ao todo, deviam ser os números guardados ao longo de duas semanas. Eliminado o papel de jornal, deparei-me com uma camada daquele material – poliestireno? esferovite? –, em bocados do tamanho do dedo de uma criança. Pus-me a apanhar aquele produto às mãos-cheias e atirei com tudo para o saco do lixo. Não fazia a menor ideia do que ia encontrar dentro da chapeleira, mas o certo é que aquela oferta me estava a dar uma trabalheira diabólica. Após ter afastado mais ou menos metade do poliestireno (da esferovite, ou lá o que era), dei de caras com qualquer coisa envolta em papel de jornal. Começando a ficar um bocado farto, regressei à cozinha, tirei uma lata de Coca-Cola do frigorífico, levei-a para o quarto e bebi-a aos golinhos sentado na cama. A seguir, utilizei o canivete de bolso para cortar as unhas. Um pássaro com o peito negro aproximou-se da janela e desatou a debicar com ferocidade as migalhas de pão que se encontravam espalhadas sobre a mesa, produzindo os sons habituais.

Não tardei a recuperar o ânimo. Dirigi-me à mesa e extraí de dentro da caixa o objeto embrulhado em papel de jornal. Estava rodeado por várias voltas de fita adesiva, evocando uma obra de arte contemporânea. O feitio era o de uma melancia comprida e estreita, mas o peso não. Deixei ficar a navalha e a caixa no chão e, sobre a ampla superfície da mesa, pus-me a desprender devagar o papel e a fita adesiva. Foi então que vi surgir o crânio de um animal.

Bonito. Contado nem se acredita!, pensei. Por que diabo o velho imaginou que eu gostaria de receber um crânio como presente? Sim, porque, digam lá o que disserem, ninguém em seu perfeito juízo se põe a oferecer caveiras assim do pé para a mão...

A forma da cabeça parecia ser a de um cavalo, em tamanho reduzido. Em todo o caso, deduzi – recorrendo aos meus conhecimentos de biologia – que devia ser o crânio de um mamífero não muito grande, um herbívoro ungulado ou com cascos, e com a cabeça longa e delgada. Procurei lembrar-me de alguns animais que preenchessem essas características. O cervo, a cabra, a ovelha, a gazela, o antílope, o burro... Provavelmente havia outros; a verdade é que não me recordava.

Optei por deixar o crânio em cima do televisor. Não se podia dizer que fosse um elemento decorativo particularmente atraente, mas foi o melhor sítio que encontrei. De certeza que Ernest Hemingway o teria colocado sobre a chaminé, ao lado das cabeças de alce, mas em minha casa, como é lógico, não havia chaminé. Nem chaminé nem aparador, já para não falar numa mísera sapateira! O único sítio onde se podia pousar o crânio daquele animal estrambólico era em cima do televisor.

Ao despejar o que estava dentro da caixa no lixo, desencantei lá no fundo – uma vez mais, muito bem embrulhado em papel de jornal – um objeto comprido e estreito. Tratava-se de um par de pinças de aço inoxidável, iguaizinhas às que o ancião usava para golpear o crânio dos seus animais. Sopesei-as na palma das mãos e deixei-me estar ali a olhar para elas. Ao contrário do crânio, eram pesadas e tão imponentes como a batuta de marfim que um grande maestro como Furtwängler empunhava para reger a Filarmónica de Berlim.

Só para ver o que acontecia, coloquei-me diante do televisor, de pinças em punho, e dei um pequeno toque na parte da frente do crânio do animal. Ouviu-se um murmúrio, uma espécie de «aagh» parecido com a respiração nasal de um cão. Pela minha parte, esperava um som mais duro e seco, um «toc» ou assim, e confesso que aquilo me pareceu um bocado estranho, mas também não era motivo para colocar nenhuma objeção. Se o som produzido era aquele, não era isso que iria alterar a situação.

Quando me fartei de contemplar o crânio e de lhe dar pancadinhas, afastei-me do televisor, sentei-me na cama, pus o telefone em cima dos joelhos e marquei o número do meu contacto que trabalhava no Sistema para confirmar a agenda de trabalho. Ele atendeu e disse que tinha trabalho para mim daí a quatro dias, perguntando se eu via nisso qualquer inconveniente. Respondi-lhe que não. A fim de evitar problemas no futuro, passou-me pela cabeça consultá-lo acerca da legalidade do uso do shuffling, mas depois mudei de ideias, pensando que, se o fizesse, a conversa poderia prolongar-se demasiado. Os documentos estavam em ordem e eu tinha sido devidamente remunerado. Além disso, o ancião havia dito que não entrara em contacto comigo através do agente oficial, pedindo-me para guardar sigilo. Para quê complicações desnecessárias?

Confesso que não nutria grande simpatia pelo agente que me tinha sido atribuído. Era um homem dos seus trinta anos, alto e magro, sempre com a mania de que sabia mais do que outros. Na presença de um indivíduo do género, faço os possíveis por evitar confusões.

Depois de ter discutido com ele alguns aspetos mais burocráticos relativos ao trabalho seguinte, desliguei, sentei-me no sofá da sala, abri uma lata de cerveja e pus no vídeo a cassete de Paixões em Fúria, com Humphrey Bogart. Adoro a atriz Lauren Bacall neste filme. Também não vai nada mal em À Beira do Abismo, mas, no meu modo de ver, em Paixões em Fúria ela possui qualquer coisa que não encontro nos outros filmes. Revi vezes sem conta a película de John Huston para tentar descobrir a que se poderia dever isso, mas nunca consegui obter uma resposta. Talvez seja porque ela, a Bacall, possui uma qualidade alegórica necessária, que simboliza a necessidade de simplificar a existência humana. Mas não o posso jurar.

Ao mesmo tempo que procurava manter-me atento ao que se passava no pequeno ecrã, os olhos fugiam-me a todo o momento para o crânio à minha frente, pousado em cima do televisor. Incapaz de me concentrar nas imagens, parei o vídeo na cena em que se dá o furacão, desisti de ver a fita e, enquanto acabava de beber a cerveja, fiquei ali a contemplar distraidamente a caveira sobre o aparelho de televisão. Aos poucos, comecei a ter a impressão de já a ter visto em qualquer parte. Onde? Quando? Não me conseguia lembrar das circunstâncias em que tal acontecera. Tirei uma camisola de malha da gaveta e cobri o crânio com ela; só depois continuei a assistir ao filme Paixões em Fúria. Pude finalmente concentrar toda a minha atenção em Lauren Bacall.

Eram onze da manhã quando saí de casa. Abasteci-me de tudo o que precisava no supermercado perto da estação e, a seguir, passei pela loja de vinhos para comprar uma garrafa de vinho tinto, água mineral com gás e sumo de laranja. Na lavandaria do bairro levantei um casaco e duas camisas; na papelaria adquiri uma esferográfica, envelopes e papel de carta; na drogaria, uma pedra para afiar, a mais fina que consegui encontrar. Passei ainda pela livraria e trouxe duas revistas; entrei numa loja de produtos elétricos à procura de lâmpadas e cassetes para a aparelhagem; na loja de fotografia comprei película para uma máquina Polaroid. De caminho, entrei na loja de música e saí de lá com vários discos debaixo do braço. Em resultado disso, os assentos traseiros do meu pequeno carro encheram-se de sacos de compras. Pode muito bem acontecer que eu seja um comprador compulsivo, reconheço isso. Em cada uma das minhas esporádicas idas à cidade acabo sempre por sair de lá com uma montanha de pequenos objetos, mais parecendo um esquilo quando chega o mês de novembro.

De resto, sirvo-me do carro precisamente para essa finalidade. Comprei-o num dia em que perdera a cabeça numa série de lojas e já não tinha mãos a medir com os embrulhos. Sem saber como havia de transportar toda aquela tralha para casa, e com os braços cheios de sacos, encontrei por mero acaso um local onde vendiam carros em segunda mão; entrei e dei com veículos de toda a espécie e feitio. Como não sou um grande maluco por carros e entendo pouco do assunto, disse qualquer coisa como: «Quero um carro qualquer, desde que não seja muito grande.»

O meu interlocutor, um homem de meia-idade, foi buscar um catálogo, a fim de me permitir escolher o modelo, mas a última coisa que me estava a apetecer era consultar catálogos, por isso tratei de lhe explicar que precisava de um carro para quando andasse às compras. Não planeava utilizá-lo na autoestrada, nem para levar a namorada a passear. Não precisava de uma viatura com um motor potente, nem com ar condicionado, rádio, teto de abrir ou pneus topo de gama. Disse-lhe mais: queria um modelo pequeno, que gastasse pouco e não libertasse muito fumo pelo tubo de escape, que não fosse demasiado ruidoso e não me deixasse ficar no meio da estrada. No que dizia respeito à cor, caso tivessem algum azul-marinho, seria perfeito.

O vendedor propôs-me um carro utilitário, amarelo, de fabrico japonês. A cor não me entusiasmava por aí além; contudo, assim que o experimentei, percebi logo que estava na presença de uma viatura fiável e que andava bem. Além disso, gostei do design, inspirado em linhas simples, e do facto de não contemplar acessórios supérfluos. Ainda por cima, tratando-se de um modelo antigo, era barato.

– Um carro é basicamente isto – disse-me o vendedor. – Para falar com toda a franqueza, creio que as pessoas perderam o juízo.

Respondi-lhe que era também essa a minha opinião.

E foi assim que me tornei proprietário de um carro para ir às compras.

* * *

Dando por terminadas as minhas aquisições, meti o carro no parque de estacionamento ao lado de um restaurante que havia ali perto, pedi uma cerveja, salada de gambas e rodelas de cebola fritas, que comi sozinho, em silêncio. As gambas estavam demasiado fritas; o polme das cebolas um tudo-nada espapaçado. No entanto, quando passei os olhos pelo local, não vi nenhum cliente queixar-se à empregada nem atirar com o prato ao chão, de modo que decidi comer a minha refeição sem levantar protestos. Da esperança nasce a desilusão.

Através da janela do restaurante via-se a autoestrada. Por ali circulavam automóveis de várias cores e modelos. Ao olhar para eles, veio-me de novo à memória aquele velho excêntrico e a sua neta gorducha. Por mais simpatia que eles me inspirassem, viviam ambos num mundo próprio e insólito, que ultrapassava os limites do meu entendimento. Aquele elevador absurdo, o enorme buraco que se abria aos nossos pés, no fundo do armário... Já para já não falar nos Invisíveis e no dispositivo de eliminação do som! Tudo aquilo era profundamente anómalo. E, como se não bastasse, à despedida tinham-me oferecido o crânio de um animal.

Para matar o tempo, enquanto esperava pelo café, no fim da refeição rememorei, um a um, diferentes pormenores físicos da jovem roliça. Os brincos retangulares, o fato saia-casaco cor-de-rosa, os sapatos de salto alto, a gordura acumulada em torno do pescoço, as suas feições... bom, esse género de coisas. Recordava-me com relativa nitidez de tudo, mas, quando procurava reunir as partes e captar o conjunto, ficava com uma imagem desfocada. Devia ser porque, nos últimos tempos, não tinha ido para a cama com nenhuma rapariga forte, pensei. Por isso não conseguia evocar a sua figura.

Numa coisa, porém, o velho tinha razão: não basta dizer que uma pessoa é gorda, pois há diversos tipos de gordura. Certa vez – creio que foi no ano em que ocorreu o incidente do Exército Vermelho Japonês, em Karuizawa4 –, fiz amor com uma rapariga que tinha umas ancas e umas coxas invulgarmente grandes. Ela trabalhava numa agência de um banco onde eu era cliente; depois de trocarmos uma série de piropos, decidimos ir beber um copo e acabámos na cama. Só quando dei por mim deitado ao seu lado é que descobri até que ponto era volumosa a parte inferior do corpo dela. Visto permanecer sempre sentada atrás do balcão, nunca me apercebera daquela desproporção anatómica. Contou-me que tal se devia ao facto de ter praticado pingue-pongue quando andava a estudar, muito embora aquela relação de causa-efeito não me tivesse convencido. Que eu soubesse, o pingue-pongue não costumava desenvolver a metade inferior do corpo humano.

Para ser sincero, a gordura dela revelava-se, aos meus olhos, bastante atraente. Encostar a orelha à sua anca era o mesmo que estar deitado num campo, em plena tarde primaveril, sentindo os seus músculos, macios como um futon bem arejado, descendo depois pelas curvas suaves até chegar ao púbis. Quando lhe confidenciei que achava sedutora a sua gordura – sou daqueles indivíduos que, se gostam de uma coisa, não conseguem ficar calados –, ela limitou-se a dizer: «Ah, sim?»

* * *

Deixei de pensar no corpo nu da rapariga, paguei a conta e abandonei o restaurante. Pus-me então a caminho da biblioteca do bairro; atrás do balcão encontrava-se a bibliotecária, uma jovem elegante, de cabelos compridos.

– Têm alguma obra sobre crânios de mamíferos? – perguntei.

Mergulhada na leitura de um livro de bolso, a bibliotecária levantou a cabeça e encarou-me.

– Desculpe?

– Alguma... coisa... sobre... crânios... de... mamíferos? – repeti, separando bem as palavras.

– Crânios-de-mamíferos – entoou ela, como se cantasse um refrão. Dito daquele modo, soava como o título de um poema. Como acontece quando o poeta, antes de recitar o poema, anuncia o título ao público presente na sala. Achei bonito. Perguntei a mim próprio se ela usaria o mesmíssimo tom em relação a todos os que lhe fossem bater à porta, como eu... Que é como quem diz, se ela pronunciaria da mesma maneira títulos como A História do Teatro de Marionetas, ou Introdução ao Tai Chi.

Pensei que seria divertido se existissem realmente poemas com esses nomes.

Ela refletiu durante uns segundos, mordiscando o lábio inferior, antes de dizer:

– Espere um instante, vou ali ver.

Virou-me as costas e, sentada na cadeira, escreveu simplesmente no teclado «mamíferos». No ecrã surgiram cerca de vinte títulos de obras. A jovem funcionária marcou dois terços com o lápis ótico. Depois de guardar o resto na memória, voltou ao documento, teclando desta vez a palavra «esqueleto». Apareceram mais sete ou oito títulos, dos quais ela salvou dois e juntou aos que tinha guardado antes. Decididamente, as bibliotecas já não são o que eram. Já lá vão os dias em que se enfiavam as fichas de cartão numa bolsinha de plástico na contracapa dos livros! Quando eu era miúdo, adorava ficar a olhar para as datas carimbadas nessas fichas de registo.

Enquanto a bibliotecária manuseava o teclado do computador com rapidez e habilidade, entretive-me a observar as suas costas esbeltas e os seus longos cabelos. Não conseguia formar uma ideia precisa acerca dela. Era bonita, amável, parecia inteligente e recitava os títulos dos livros como se fossem nomes de poemas. Não havia nenhuma razão que me impedisse de simpatizar com ela.

A jovem carregou na tecla da impressora, imprimiu a lista com os dados que apareciam no ecrã do computador e entregou-ma.

– Pode escolher vários títulos – disse ela.

A saber:

1. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS MAMÍFEROS

2. ENCICLOPÉDIA ILUSTRADA DOS MAMÍFEROS

3. O ESQUELETO DOS MAMÍFEROS

4. HISTÓRIA DOS MAMÍFEROS

5. EU, UM MAMÍFERO

6. ANATOMIA DOS MAMÍFEROS

7. O CÉREBRO DOS MAMÍFEROS

8. O ESQUELETO ANIMAL

9. OS OSSOS FALAM

Com o meu cartão, tinha direito a levar três livros. Escolhi os números 2, 3 e 8. Eu, Um Mamífero e Os Ossos Falam também pareciam ser interessantes, mas não tinham uma relação direta com o problema que me apoquentava naquela altura concreta.

– Lamento muito, mas a Enciclopédia Ilustrada dos Mamíferos é um livro de consulta, não pode sair das nossas instalações – afirmou a bibliotecária, arranhando a testa com a esferográfica.

– Escute uma coisa – propus eu –, é por causa de um assunto muito importante. Não mo pode ceder apenas por um dia? Devolvo-lho amanhã, sem falta. Prometo.

– Tenho imensa pena, mas acontece que os atlas ilustrados são bastante requisitados... Se viesse a saber-se que eu tinha deixado sair da biblioteca um livro de referência, os meus superiores iam cair em cima de mim e dizer-me das boas.

– Só por hoje? Vá lá... Ninguém dará por isso.

A jovem permaneceu calada por alguns segundos, durante os quais passeou a ponta da língua de encontro à parte de dentro dos dentes inferiores. Tinha uma língua rosada, muito bonita.

– De acordo. Mas só desta vez. E terá de mo trazer de volta amanhã, antes das nove e meia da manhã.

– Obrigado – disse eu.

– De nada – disse ela.

– Fico muito agradecido. Gostaria de a recompensar pelo seu gesto. Há alguma coisa de que se lembre?

– Aqui em frente existe uma loja da cadeia Baskin-Robbins. Poderia ir lá comprar-me um gelado? Um cone duplo, com café em baixo e pistácio em cima. Não se esquece?

– Sai um cone duplo, com café em baixo e pistácio em cima – repeti, em jeito de confirmação.

Saí da biblioteca e dirigi-me à tal geladaria; enquanto isso, ela foi buscar o livro à sala do fundo. Quando voltei com o gelado, ela ainda não tinha regressado ao seu posto, de modo que me deixei ficar com o gelado na mão esquerda, esperando pacientemente. Dois velhotes que estavam sentados ali perto, a ler os jornais, lançavam, volta e meia, um olhar carregado de estranheza, que tanto recaía sobre mim como sobre o gelado que eu segurava. Por sorte, o gelado estava bastante frio e duro, caso contrário, teria começado a derreter-se. Saber-me ali de pé, com um cone de gelado na mão e sem o comer, causava-me uma incómoda sensação, como se fosse uma estátua de bronze votada ao abandono. A única coisa que poderia tornar aquele cenário ainda pior seria o gelado começar a pingar e a sujar tudo...

Em cima do balcão, virado para baixo como um coelhinho que tivesse adormecido de bruços, estava o livro de bolso que a rapariga lia quando entrei. Tratava-se do segundo volume de O Viajante do Tempo, uma biografia do escritor H. G. Wells. Não tinha ar de ser um livro que fizesse parte do espólio da biblioteca; devia pertencer-lhe. Ao pé, alinhados, viam-se três lápis bem afiados, assim como sete ou oito clipes, cada um para seu lado. O que fariam aqueles clipes todos espalhados?

Se calhar, devido a alguma flutuação no campo gravitacional, os clipes tinham invadido o mundo e estavam a multiplicar-se. Ou então tratava-se de um fenómeno puramente casual e eu é que estava a conceder-lhe demasiada importância. (Mas que dava que pensar, dava.) O crânio daquele animal, os clipes... Palpitava-me que existia uma ligação entre eles, muito embora não soubesse ao certo dizer que género de ligação poderia haver entre um crânio de animal e meia dúzia de clipes.

Por fim, a jovenzinha dos cabelos compridos lá se dignou entrar de novo em cena, trazendo com ela os três volumes. Passou-mos para as mãos e, em troca, agarrou no gelado e pôs-se a comê-lo atrás do balcão, meio escondida, na esperança de passar despercebida. Vista de cima, a sua nuca indefesa era lindíssima.

– Agradeço muito – disse ela.

– Eu é que agradeço. A propósito, para que servem estes clipes?

– Os-clipes? – repetiu ela, num tom cantante. – Bom, para juntar várias folhas de papel, imagino. Parece-me lógico, não? É para isso que servem, e toda a gente os utiliza.

Tinha toda a razão. Tornei a agradecer e fui-me embora da biblioteca. Clipes era o que mais havia por aí. Pela módica quantia de mil ienes, podia comprar uma remessa de clipes que chegariam e sobrariam para o resto da vida. Passei pela papelaria e gastei mil ienes em clipes. Depois regressei a casa.

* * *

Uma vez instalado no apartamento, guardei a comida no frigorífico. Envolvi bem a carne e o peixe em película aderente e pus no congelador tudo o que tinha de ser congelado, sem esquecer o pão e o café em grão. Enchi uma tigela com água e mergulhei o tofu lá dentro. Guardei no frigorífico a cerveja e as verduras, tendo o cuidado de colocar os legumes menos frescos à frente. Pendurei o casaco trazido da lavandaria no armário do quarto; deixei ficar os detergentes na prateleira da cozinha. A seguir, espalhei um punhado de clipes em cima do televisor, junto ao crânio.

Uma estranha combinação, diga-se de passagem.

Pelo menos tão curiosa como a combinação de uma almofada de plumas e um gelado, ou um tinteiro junto de uma alface. Saí da sala e fui até à varanda contemplar a cena de longe, mas a minha impressão manteve-se. O crânio e os clipes não tinham nada em comum. Contudo, não havia dúvida de que devia existir um elo secreto que eu desconhecia ou que não recordava.

Sentei-me na cama e fiquei durante um bom bocado a olhar para os objetos pousados em cima do televisor. Não me ocorreu nada. O tempo foi-se escoando. Primeiro, uma ambulância e, depois, um carro com altifalante a debitar propaganda a um partido de extrema-direita passaram lá fora, na rua. Apeteceu-me um uísque, mas consegui aguentar-me. Tinha de me manter sóbrio, precisava de pensar. Pouco depois, voltou a passar o tal carro a fazer propaganda à direita. Se calhar, andava perdido. Havia muitas curvas e era fácil um condutor perder-se no meio do bairro.

Por fim, desisti, levantei-me do meu poiso, fui antes sentar-me na mesa da cozinha e comecei a folhear o livro que trouxera emprestado da biblioteca. Primeiro que tudo, procurei os herbívoros de tamanho médio, aproveitando para examinar as imagens com a forma do crânio, estudando-as atentamente, uma a uma. O número de herbívoros de tamanho médio era muito superior ao que eu calculava. Só na família dos cervídeos encontrei mais de trinta.

Fui buscar o crânio que estava em cima do televisor e depositei-o sobre a mesa da cozinha, dedicando-me então à laboriosa tarefa de o comparar com todas as ilustrações da enciclopédia. Demorei uma hora e vinte minutos a verificar noventa e três crânios distintos, mas nem um correspondia ao que tinha diante de mim. Encontrava-me novamente num impasse. Fechei os livros e empilhei-os numa esquina da mesa. Depois levantei os braços e espreguicei-me.

Desalentado, deitei-me em cima da cama e pus a correr no vídeo a cassete do filme O Homem Tranquilo, realizado por John Ford.

Foi então que tocaram à campainha. Ao olhar pela vigia, vi um homem de meia-idade com o uniforme da Companhia de Gás de Tóquio. Sem tirar a correia de segurança, abri a porta e perguntei-lhe o que pretendia.

– Venho proceder à inspeção periódica da instalação de gás – disse o homem.

– Espere um instante – retorqui.

Regressei ao quarto, enfiei no bolso a navalha que deixara ficar em cima da mesa da cozinha e abri a porta. Ainda não passara um mês desde a última inspeção à instalação de gás. Mais a mais, o comportamento do homem parecia-me tudo menos natural.

Apesar disso, fingi que não era nada comigo e continuei a ver O Homem Tranquilo. O sujeito inspecionou primeiro o gás da casa de banho com um instrumento que parecia um aparelho para medir a tensão arterial, e depois dirigiu-se à cozinha, onde o crânio continuava em cima da mesa. Sem baixar o volume do televisor, caminhei em bicos de pés até à cozinha e, tal como suspeitava, fui dar com o homem a introduzir a caveira num saco preto de plástico, daqueles destinados ao lixo. Extraindo a navalha do bolso e abrindo-a, entrei de supetão na cozinha. Agarrei nele por trás, imobilizando-lhe os braços, e encostei a ponta da navalha ao seu nariz:

– Não foi por mal... – justificou-se, meio a gaguejar. – Acontece que, ao vê-lo, de repente deu-me uma vontade imensa de ficar com ele. Foi um impulso, mais nada. Desculpe.

– Isso é que não desculpo – retorqui.

Imagine-se, um funcionário da companhia de gás pousar os olhos nos ossos de um animal em cima da mesa de uma cozinha e sentir o impulso irreprimível de lhes deitar a mão!

– Ou me contas a verdade, ou corto-te o pescoço! – voltei a ameaçar.

Aos meus ouvidos, aquelas palavras soavam completamente a falso, mas o homem assim não o entendeu.

– Perdão! Estou disposto a dizer tudo – confessou ele. – A verdade é que me ofereceram dinheiro para o roubar. Andava eu pela rua, quando fui abordado por dois indivíduos, que me perguntaram se estava disposto a fazer um trabalho a troco de cinquenta mil ienes. Davam-me aquela quantia na hora, e outros cinquenta mil quando lhes levasse o que eles pretendiam. Eu não queria, mas um dos tipos era enorme e tinha toda a pinta de se preparar para me fazer passar um mau bocado, no caso de recusar. De modo que não tive outro remédio, acredite... Obrigaram-me. Por favor, não me mate! Tenho duas filhas pequenas, que andam no secundário...

– As duas no secundário? – perguntei, pouco convencido.

– Sim, uma está no primeiro ano e a outra no terceiro – respondeu o homem.

– Estou a ver... E que liceu frequentam?

– A mais velha anda no liceu municipal de Shimura; quanto à mais nova, entrou para o Futaba, em Yotsuya.

A associação tinha o seu quê de anómalo, mas acreditei nele. Decidi dar ao sujeito o benefício da dúvida.

Por precaução, mantive a navalha encosta à sua nuca, saquei-lhe a carteira do bolso traseiro das calças e examinei o seu conteúdo. Encontrei setenta e cinco mil ienes, dos quais cinquenta mil em notas novinhas, acabadas de sair do banco. Tirando o dinheiro, tinha ainda o cartão de empregado da Companhia de Gás de Tóquio e fotografias a cores da família. As duas filhas apareciam vestidas com os seus melhores quimonos de Ano Novo. Não se podia dizer que alguma delas fosse especialmente bonita. Como possuíam ambas um tipo de figura idêntico, fui incapaz de distinguir qual era a que andava em Shimura e qual a que frequentava o liceu de Futaba. Descobri ainda um passe de comboio válido para o trajeto Sugamo-Shinanomachi. O homem parecia inofensivo; como tal, baixei a arma branca e afastei-me.

– Pode ir à sua vida – disse eu, devolvendo-lhe a carteira.

– Muito obrigado – disse ele. – Mas o que será de mim? Aceitei o dinheiro, mas regresso sem o objeto pretendido...

Respondi-lhe que não tinha a mínima ideia. Os Semióticos – de certeza que os mandantes só podiam ser eles – atuavam de maneira imprevisível. Faziam-no de propósito, para que ninguém fosse capaz de adivinhar a sua linha de conduta. Tanto podiam arrancar os olhos das órbitas com a ponta de uma faca como passar para as suas mãos os restantes cinquenta mil ienes, agradecer-lhe por todos os inconvenientes e desejar-lhe melhor sorte para a próxima. Quem poderia saber?

– Um era grande e encorpado, diz você? – insisti, apostado em não lhe dar tréguas.

– Sim, um deles era enorme. E o outro, minúsculo. Não devia ter mais de um metro e cinquenta. O pequeno ia muito bem vestido. Juntos pareciam dois delinquentes.

Expliquei ao indivíduo como sair pelas traseiras do prédio, que iam dar a um parque de estacionamento. Uma vez ali, seria fácil ele orientar-se. Com sorte, regressaria a casa sem encontrar pela frente os dois malfeitores.

– Muito agradecido – disse o homem, como se eu acabasse de lhe salvar a vida. – Não fará queixa de mim na empresa, pois não?

Sosseguei-o, prometendo nada dizer. Acompanhei-o à saída, fechei a porta à chave e pus a corrente. Depois sentei-me na cadeira da cozinha, deixei a navalha com a lâmina aberta sobre a mesa e tirei a caveira do saco de plástico. Pelo menos, conseguira apurar alguns factos. Ficara a saber que os Semióticos andavam atrás daquele crânio. O que significava que eles atribuíam à caveira enorme valor.

De momento, encontrávamo-nos numa posição equivalente. Eu possuía o crânio, mas desconhecia o seu significado. Eles estavam a par do seu valor – ou, pelo menos, tinham uma vaga noção –, mas não estavam na sua posse. Empatados. Fifty-fifty. Podia escolher entre dois caminhos a seguir. Um era pôr-me em contacto com o Sistema, explicar-lhes a situação e pedir-lhes proteção contra os Semióticos (e, já agora, que levassem o crânio dali para um sítio mais seguro). Outro era chegar à fala com a jovem anafada e pedir-lhe explicações acerca do crânio e do seu valor. No entanto, a ideia de meter o Sistema ao barulho naquele imbróglio não me entusiasmava assim muito. O mais provável era submeterem-me a interrogatórios sem fim e levarem por diante um sem-número de investigações. Não me dou bem com as grandes organizações. São demasiado rígidas, exigem demasiado do nosso tempo e do nosso esforço. Além disso, têm idiotas a mais a trabalharem para elas.

Por outro lado, entrar em contacto com a gordinha revelava-se uma tarefa impossível. Para começar, não sabia o número de telefone do seu escritório. Havia sempre a possibilidade de ir ter com ela ao edifício da ordem, mas, naquela altura, tornava-se perigoso sair de casa e, além do mais, era impensável que eu pudesse entrar, sem marcação prévia, num edifício dotado de tão sofisticado dispositivo de segurança.

Resumindo e concluindo: optei por não fazer nada.

Peguei nas pinças de aço inoxidável e dei outro golpezinho no alto da cabeça, só para ver o resultado. Ouviu-se o mesmo lamento lúgubre de antes. Dir-se-ia que o animal, do qual desconhecia o nome, estava vivo e gemia. Ouvindo com atenção, porém, dei-me conta de que o som provocado parecia vir de um ponto preciso. Tornei a golpeá-lo ao de leve com as pinças, até encontrar o lugar exato. O tal som dolente saía, muito concretamente, por uma pequena cavidade com cerca de dois centímetros de diâmetro, localizada no meio da testa. Empunhei o crânio na mão e estudei-o com calma, perguntando a mim mesmo porque produziria um som tão singular. Passei com suavidade a ponta dos dedos pelo interior do orifício. Ao toque, era mais rugoso do que os ossos costumavam ser. Como se lhe tivessem arrancado qualquer coisa de forma violenta. Um corno... por exemplo.

Um corno?

Partindo do princípio de que estávamos a falar de um corno, aquilo que eu tinha nas mãos era o crânio de um unicórnio.

Voltei a folhear a Enciclopédia Ilustrada dos Mamíferos à procura de um exemplar da espécie que tivesse um corno à frente. Por mais que procurasse, não encontrei nenhum, até parecia que semelhante animal não existia. Quando muito, o rinoceronte preenchia os requisitos, mas, a julgar pelo tamanho e pela forma do crânio, era impossível tratar-se daquele animal.

Completamente à nora, fui ao frigorífico buscar gelo e bebi um Old Crow on the rocks. Começava a anoitecer, e bem podia permitir-me um uísque. Também abri uma lata de espargos. Confesso que adoro espargos brancos. Quando acabei de comer, preparei uma sanduíche de ostras fumadas com bolachas integrais de centeio. A seguir tomei um segundo uísque.

O crânio devia ter pertencido a um unicórnio. Era a explicação mais pragmática, convenhamos. Caso contrário, não havia maneira de as coisas avançarem.

Tinha em meu poder o crânio de um unicórnio.

Bonito, só a mim! Por que razão me estavam sempre a acontecer coisas bizarras daquelas? Que teria eu feito para merecer aquilo? Não passava de um programador por conta própria, um tipo dotado de sentido prático e realista, sem grandes ambições nem interesses obscuros. Não tenho família, amigos nem namorada. Pode ser que, um dia, quando me reformar e assentar tranquilamente de uma vez por todas, as minhas poupanças sirvam para aprender a tocar violoncelo ou falar grego. Por que diabo me encontro sempre envolvido no meio de histórias rocambolescas que metem unicórnios, supressão de som e outras cenas do género?

Terminado o segundo uísque com gelo, fui até ao quarto, procurei na lista telefónica, telefonei para a biblioteca e pedi para me ligarem à encarregada das consultas na biblioteca.

Dez segundos depois, passaram-me a rapariga dos cabelos compridos.

– Enciclopédia Ilustrada dos Mamíferos – disse eu.

– Ah, obrigada pelo gelado – replicou ela.

– De nada. Tenho mais um favor a pedir. Pode ser?

– Um-favor? – perguntou ela. – Depende...

– Importa-se de tentar ver se me encontra alguma coisa sobre unicórnios?

– Sobre-unicórnios? – repetiu ela.

– É pedir muito?

Fez-se um breve silêncio. Imaginei que estivesse a mordiscar o lábio inferior.

– O quê, concretamente, no que respeita aos unicórnios?

– Tudo – disse eu.

– Oiça, são quatro e cinquenta e cinco, está quase na hora de fechar, e antes disso ainda temos muito trabalho pela frente. Agora não posso. Porque não aparece amanhã, logo que a biblioteca abrir? Assim, tem possibilidade de procurar nas calmas tudo o que quiser sobre unicórnios, sobre tricórnios ou sobre o que seja.

– É urgente. Estamos a falar de uma questão muito importante.

– Importante, a sério? Até que ponto?

– Tem que ver com a evolução – expliquei.

– A e-vo-lu-ção – disse ela, sílaba a sílaba. Parecia ter sido apanhada de surpresa. Devia estar a perguntar a si própria se estaria diante de um autêntico louco ou de uma pessoa de coração puro que parecia passada dos carretos. Rezei para que se decidisse pela segunda opção. Em todo o caso, pressenti que pudesse sentir um vago interesse humano pela minha pessoa. Por instantes, instalou-se um silêncio parecido com um pêndulo mudo.

– Imagino que, por evolução, se refira ao fenómeno que ocorreu ao longo de milhões de anos. Desculpe que insista nesta tecla, mas qual é, nesse caso, o motivo de tanta pressa? Não pode esperar mais um dia?

– Há evoluções que tardam milhões de anos e evoluções que demoram três horas. Não é um assunto que possa ser explicado pelo telefone. É muito complicado. Mas, peço-lhe por tudo, acredite em mim: trata-se de um assunto de importância capital, relacionado com o próximo passo da evolução humana.

– Como acontece no filme 2001: Odisseia no Espaço?

– Exato. – Tinha visto o filme vezes sem conta em vídeo.

– Sabe o que penso de si?

– Sim, que não tem a certeza se eu sou um louco inofensivo ou um louco perigoso. Estou enganado?

– Não, não está enganado.

– Bem sei que não me cabe a mim dizê-lo, mas não sou má pessoa – afirmei. – E, se quer saber a verdade, também não estou louco. Posso, isso sim, ser um pouco excêntrico e obstinado. Mas de louco nada tenho. Até à data, por mais que me detestem, nunca puseram em causa a minha sanidade mental.

– Bom, há que reconhecer que o seu discurso é coerente. Não me parece má pessoa, de facto. Sem esquecer que até me comprou um gelado. Muito bem. Combinamos um encontro às seis e meia da tarde numa cafetaria que fica perto da biblioteca. Nessa altura, deposito os livros nas suas mãos. Parece-lhe bem?

– Infelizmente, as coisas não são assim tão simples. Torna-se complicado explicar, mas hoje não posso sair de casa. Lamento imenso.

– Quer dizer – disse ela, começando a bater nos incisivos com a ponta das unhas (ou, pelo menos, assim parecia, a julgar pelo barulhinho) – que me está a pedir que leve os livros a sua casa. É isso? Ou será que compreendi mal?

– Para ser franco, sim, é isso mesmo – disse eu. – Mas é um favor que lhe peço, claro.

– Apelando aos meus bons sentimentos?

– Exato. Tenho as minhas razões.

O silêncio que se seguiu foi dos longos. No entanto, graças à melodia escocesa «Annie Laurie», que anunciava o fecho do estabelecimento, soube que tal não se devia à eliminação de som. A jovem havia emudecido. Tão simples quanto isso.

– Nos cinco anos que trabalho na biblioteca, nunca encontrei pela frente um crava assim – disse ela. – É a primeira vez que alguém me pede para lhe levar livros ao domicílio. E logo no primeiro dia! Não lhe parece que é preciso lata?

– Tem razão. Porém, não me resta outra alternativa. Estou entalado até ao pescoço. A menina é a minha única saída.

– Só visto! – exclamou ela. – Enfim... Explica-me como se vai para sua casa?

Foi com gosto que lhe prestei todos os esclarecimentos.

4 O caso ficou conhecido como o «incidente Asama-Sans», ocorrido entre os dias 19 e 28 de fevereiro de 1972, em plena fase de agitação do movimento estudantil japonês. Um grupo de extrema-esquerda (Exército Vermelho Unido), conhecido pelos seus métodos implacáveis, divide-se após a fuga de dois membros. Nas montanhas de Karuizawa, onde se encontram refugiados, cinco dos seus elementos mantêm várias pessoas reféns durante nove dias e entram em confrontos armados com a polícia, que resultam em mortes. Murakami abordou o assunto no Livro 1 de 1Q84. (N. das T.)


O Fim do Mundo

8

O Coronel

– Não me parece que tenhas qualquer hipótese de recuperar a tua sombra – declarou o Coronel, bebendo o seu café em pequenos goles.

Tal como acontecia com a maior parte das pessoas habituadas durante muitos anos a dar ordens, o Coronel mantinha as costas bem direitas e o queixo projetado para a frente enquanto debitava o seu discurso. Não se podia dizer, contudo, que a sua atitude fosse uma manifestação de arrogância ou de sobranceria. Em resultado da sua longa carreira militar, conservara a postura ereta, mantendo uma vida regular e uma grande quantidade de condecorações. Considerava-o o vizinho ideal. Amável, sossegado e, a acrescentar a tudo isso, bom jogador de xadrez.

– Tal como disse o Guardião – prosseguiu o velho Coronel –, tanto em teoria como na prática, são nulas as probabilidades de recuperares a tua sombra. Enquanto permaneceres na Cidade, uma das condições é deixares de ter sombra, e tu jamais abandonarás esta Cidade. Esta Cidade é aquilo a que nós, no exército, em jargão militar, chamamos «uma ratoeira». Pode-se entrar nela, mas não se pode sair. Por causa da Muralha a toda a volta, como é bom de ver...

– Não fazia ideia de que estava condenado a ficar sem a minha sombra para sempre – justifiquei-me. – Pensei que fosse uma coisa temporária. Ninguém me explicou a situação como deve ser.

– Nesta Cidade nunca encontrarás quem te explique bem coisa nenhuma, seja o que for. A Cidade funciona segundo as suas regras, tem uma lógica muito própria. Ninguém está interessado em quem sabe o quê ou quem vive na ignorância. Na minha opinião, é lamentável, mas, enfim... – contrapôs o Coronel.

– E o acontecerá à minha sombra a partir de agora?

– Não lhe acontecerá nada. Ficará ali, é tudo. Até morrer. Já tornaste a vê-la desde que chegaste?

– Não. Tentei por mais de uma vez, mas o Guardião não me deu autorização. Por razões de segurança, segundo diz.

– Ah, nesse caso, não há nada a fazer. Conservar a sombra faz parte das funções do Guardião, e é sobre ele que recai toda a responsabilidade. Não posso fazer nada. O Guardião é um homem com mau feitio, para não dizer violento... Não dá ouvidos a ninguém. A única solução é ter paciência e esperar que a sua disposição mude para melhor.

– Vou fazer isso – disse eu. – Só não entendo por que diabo represento eu um motivo de preocupação para ele...

Quando acabou de tomar café, o Coronel pousou a chávena em cima do pires, tirou um lenço do bolso e limpou a boca. Tal como o resto das suas roupas, o lenço, apesar de limpo e bem engomado, era velho e estava muito usado.

– Preocupa-o a ideia de que tu e a tua sombra voltem a unir-se. Se isso acontecer, ver-se-ia forçado a recomeçar tudo desde o princípio.

Após ter pronunciado estas palavras, tornou a concentrar-se no tabuleiro de xadrez. Em geral, era ele quem ganhava, visto que tanto as peças como o modo de as deslocar no tabuleiro diferiam ligeiramente do xadrez, tal como eu estava habituado a jogar.

– O macaco come o bispo, certo?

– Inevitável – disse ele.

A seguir, foi a minha vez de mover a torre para cortar a retirada ao macaco.

Assentindo várias vezes com a cabeça, o Coronel voltou a cravar os olhos no tabuleiro. Os lances faziam prever uma vitória quase certa do meu parceiro de jogo, mas o Coronel, sem me dar tréguas, movia as peças com cautela, depois de analisar circunstanciadamente cada uma das jogadas que fazia. Para ele, o jogo consistia mais em pôr à prova a sua inteligência do que em vencer o adversário que tinha pela frente.

– É doloroso para uma pessoa separar-se da sua sombra e deixá-la morrer – sentenciou o ancião, ao mesmo tempo que, com um hábil movimento em diagonal do cavaleiro, bloqueou o espaço entre o rei e a torre. Deste modo, o meu rei ficou totalmente desprotegido.

Mais três jogadas e ficaria em xeque-mate.

– Todos nós tivemos de passar pelo mesmo – sublinhou o Coronel. – Eu não fui exceção. Se bem que uma coisa é tu seres despojado da tua sombra em pequeno, quando ainda és um rapaz inocente e não a conheces nem te afeiçoaste a ela, e outra, muito diferente, isso acontecer quando já tens uma idade razoável. Nesse caso, dói mais... A minha morreu quando eu tinha sessenta e cinco anos. Nessa idade partilhamos muitas recordações!

– Quanto tempo pode viver uma sombra, a partir do momento em que é separada do corpo a que pertence?

– Depende da sombra – afirmou o velho Coronel. – Há sombras cheias de ânimo, que resistem melhor, e outras que não duram tanto. Nesta Cidade, porém, uma vez separadas, não duram muito. Esta terra não é para sombras. Aqui, o inverno é longo e rigoroso. Poucas sombras resistem até à primavera.

Deixei-me ficar por instantes a estudar o tabuleiro de xadrez, mas depois acabei por me dar por vencido.

– Ainda tens cinco jogadas para me ganhar – assegurou o Coronel. – Vale a pena tentar. Em cinco jogadas, o adversário pode sempre cometer um erro. Até ao fim, nunca se deve cantar vitória.

– Vou tentar – disse eu.

Enquanto matutava, o ancião aproximou-se da janela, entreabriu com os dedos as pesadas cortinas e, através de uma pequena fresta, espreitou lá para fora.

– Agora começa para ti o período mais difícil. Acontece o mesmo quando se perde um dente de leite: até nascer o novo, custa um bocado. Entendes o que quero dizer?

– Refere-se ao momento em que nos arrancam a sombra e ela todavia não morreu?

– Isso mesmo – assentiu o ancião. – Ainda me lembro bem. Torna-se difícil encontrar o equilíbrio entre o mundo do antigamente e o mundo que pertence ao futuro. Como tal, uma pessoa vacila. Mas assim que te nasce o dente novo, esqueces-te logo do outro que foi à vida.

– Quando a alma se perde, é isso?

O velho não respondeu.

– Desculpe fazer tantas perguntas – disse eu –, mas a verdade é que pouco ou nada sei acerca desta cidade, e tudo me parece um tanto desconcertante. Como funcionam as coisas, porque se encontra rodeada por uma muralha tão alta, por que razão entram e saem todos os dias animais por aquela porta, o que são os «velhos sonhos»? Não entendo rigorosamente nada. E o senhor é a única pessoa a quem posso fazer estas perguntas.

– Não penses que tenho resposta para tudo – afirmou o ancião com o ar mais calmo do mundo. – Há muitas coisas que não se conseguem explicar com palavras e outras que não devem ser explicadas. Mas não te preocupes. À sua maneira, a Cidade é justa. A partir de agora, ir-te-ei mostrando as coisas que te fazem falta ou que precisas de saber. Quanto a ti, terás de ir apreendendo sozinho, uma a uma, à medida que elas te surjam à frente. Esta é uma cidade perfeita, faço-me entender? E perfeição significa que tem tudo, tudo! Porém, se não fores capaz de assimilar as coisas, aos teus olhos será como se ela não tivesse nada para te oferecer. Um vazio absoluto. Recorda bem o que te vou dizer. Os outros poderão fornecer-te um determinado número de ensinamentos e informações, mas, em última análise, o que importa é o que aprendes por tua própria iniciativa: é isso que ficará a fazer parte de ti. Acredita, esses conhecimentos revelar-se-ão uma grande ajuda. Abre os olhos, presta atenção, usa a cabeça. Se tens coração, serve-te dele. Não te posso ensinar mais nada.

* * *

Se o Bairro Operário onde a bibliotecária morava vira morrer o antigo esplendor, o Bairro das Residências Oficiais, que se estendia até à parte sudoeste da Cidade, era uma zona que ia perdendo a cor, dia após dia, mostrando-se debaixo de uma luz seca. O espetáculo da primavera diluíra-se para dar lugar ao verão, e o vento que soprava no outono encarregara-se de disseminar os resquícios de humidade. Sobre a suave e extensa ladeira da chamada Colina Ocidental alinhavam-se residências oficiais brancas com dois andares. Na sua origem, aqueles edifícios haviam sido concebidos para albergar, cada um, três famílias, e o único espaço em comum que tinham era o amplo vestíbulo situado no meio. Os revestimentos de madeira de cedro que se viam na fachada, as molduras das janelas, as varandas estreitas: tudo estava pintado de branco. Até onde a vista alcançava, era tudo branco. A encosta da Colina Ocidental apresentava-se revestida de todos os matizes de branco. Um branco fulgurante, tão radioso que parecia quase artificial; um branco transformado em amarelo depois de ter permanecido durante uma larga temporada ao sol; um branco inteiramente reduzido a nada pela chuva e pelo vento... mil e uma gradações de branco sucediam-se até ao infinito, espalhando-se pelos caminhos cobertos de gravilha que atravessavam a colina. As residências não tinham vedações a delimitá-las. Junto às varandas estreitas viam-se apenas canteiros largos com um metro de altura. Os canteiros estavam muito bem cuidados; na primavera, ali rebentavam a flor do açafrão e as margaridas, e, no outono, os cosmos. Em contraste com as flores, os edifícios tinha um aspeto ainda mais decrépito.

O bairro devia ter conhecido melhores dias. Ao percorrer as ruas, dava para perceber, aqui e ali, vestígios desse passado distinto. Sem dúvida que naquelas ruas tinham brincado crianças, e no interior das casas, rescendendo a aromas dos preparativos para o jantar, haviam soado acordes de piano. Eu sentia na pele todas aquelas recordações, como se penetrassem através das várias portas invisíveis do meu ser.

Tal como o próprio nome indicava, o Bairro das Residências Oficiais fora em tempos habitado por funcionários do governo. Estamos a falar de empregados porventura pertencentes à classe média, pessoas que não ocupavam postos muito altos nem muito baixos. Naquele lugar, refugiados nas suas modestas vidas, quem sabe?, ter-se-iam esforçado por escapar à mediocridade. No entanto, agora não se via rasto deles. Para onde teriam ido? Impossível saber.

Depois dos burocratas, chegara a vez de os militares na reforma ocuparem aquelas instalações. Haviam perdido as suas sombras e viviam, dia após dia, à imagem e semelhança das crisálidas de insetos, encostados aos muros batidos pelo sol, na Colina Ocidental varrida por ventos fortes.

O Guardião destinara-me um quarto numa daquelas vivendas. Na mesma casa moravam o Coronel, dois capitães, dois tenentes e um sargento. O sargento encarregava-se das questões relacionadas com a alimentação e de tudo o que dizia respeito à lida da casa, enquanto o Coronel tinha por missão dar o seu beneplácito. Tal como no exército. Os anciãos eram, todos eles, seres solitários: eternamente ocupados nos preparativos da guerra, em combates, retiradas, em revoluções e contrarrevoluções, tinham perdido a oportunidade de formar uma família.

De manhã, levantavam-se cedo, tomavam o pequeno-almoço a correr e deitavam mãos ao trabalho, sem que ninguém lhes tivesse dado ordens. Uns raspavam da parede com a espátula a tinta escamada, a cair de podre, outros arrancavam as ervas daninhas do jardim, alguns estavam encarregados de reparar as peças de mobiliário, outros havia que, arrastando atrás de si um carrinho de mão, desciam até ao sopé da colina, a fim de ir buscar mantimentos e rações de comida. Terminadas as tarefas matinais, recolhiam-se ao sol e ali passavam o resto do dia, entregues às suas reminiscências.

* * *

Tinham-me dado um quarto no primeiro andar de um edifício orientado a leste. A vista possível da janela, obstruída por uma pequena elevação, não era bonita, mas, ao longe, dava para vislumbrar o Rio e a Torre do Relógio. O gesso das paredes do quarto apresentava-se manchado e os caixilhos da janela tinham uma camada branca de pó, o que me levava a concluir que o quarto devia ter ficado desabitado durante largo tempo. A mobília consistia numa cama velha, numa mesa pequena e em duas cadeiras. Os cortinados grossos pendurados na janela cheiravam a mofo. A madeira do soalho estava em mau estado e rangia a cada passo que eu dava.

Todas as manhãs, o meu vizinho Coronel aparecia no quarto e tomava o pequeno-almoço comigo; à tarde, corríamos as cortinas e mantínhamos o quarto na penumbra. Jogar xadrez era a única maneira que tínhamos de enganar as horas do dia.

* * *

– Deve ser frustrante para um jovem como tu isso de ser obrigado a correr as cortinas e a ficar fechado num quarto às escuras, num dia bonito como o de hoje – disse o Coronel.

– Sim, é duro.

– Tanto melhor para mim, que sempre ganho um companheiro de xadrez! Os outros não se interessam por jogos. Até hoje, nunca encontrei mais ninguém disposto a jogar uma partidinha comigo.

– O que o levou a abandonar a sua sombra?

O ancião observou os dedos banhados pela luz do Sol que entrava pelos interstícios dos cortinados, mas depois afastou-se da janela e veio sentar-se de novo à mesa, de frente para mim.

– Quem me dera saber... Talvez por andar há muito a defender esta cidade. E a ideia de a abandonar, de me ir embora... Toda a minha vida deixaria de fazer sentido. Claro que agora são águas passadas!

– Alguma vez se arrependeu de a ter abandonado?

– Não, nunca – disse o ancião, negando várias vezes com a cabeça. – Nunca me arrependi. Não é uma coisa de que tenha de me arrepender.

Comi o macaco com a minha torre e, desta forma, abri caminho para movimentar o meu rei.

– Boa jogada – elogiou o ancião. – Com a torre podes proteger os peões e, além disso, libertas o rei. Mas, ao mesmo tempo, permites que o meu cavaleiro conquiste uma certa liberdade de ação.

Enquanto ele estudava sem pressa a jogada seguinte, fui pôr água ao lume e preparei outro café.

Pensei com os meus botões que, no futuro, ainda passaria muitas tardes como aquela. Na Cidade rodeada por aquela muralha altíssima, as minhas opções eram francamente reduzidas.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

9

Apetite. Desilusão. Leninegrado

Enquanto esperava pela bibliotecária, preparei uma refeição simples para o jantar. Esmaguei várias umeboshi5 no almofariz e fiz um molho para temperar a salada; fritei sardinhas e, num pedacinho de manteiga, estufei carne de vaca com tofu, aburaage6, inhames e aipo. Não me saí nada mal. Como tinha tempo de sobra, abri uma lata de cerveja e entretive-me a preparar uma salada de espinafres cozidos com gengibre, temperados com myoga7, e feijão-verde com molho de sésamo. A seguir, estendi-me em cima da cama e coloquei no gira-discos um velho disco de 33 rotações com os concertos para piano e orquestra de Mozart, interpretados por Roberto Casadesus. A música de Mozart comove-me mais sempre que a escuto nas reproduções antigas. Mas pode dar-se o caso de ser apenas uma mania minha, claro.

Já passava muito das sete, era noite cerrada do outro lado da janela, e ela sem dar um ar da sua graça. Acabei por escutar, do princípio ao fim, os Concertos para pianoforte número 23 e 24. Se calhar, tinha pensado duas vezes e decidira não vir. Dificilmente poderia censurá-la, analisando o caso sob todos os pontos de vista.

Porém, enquanto procurava outro disco, já resignado com a ideia de ela não aparecer, tocaram à campainha. Espreitei pela vigia e reconheci a jovem encarregada das consultas na biblioteca com uma pilha de livros debaixo do braço. Com a corrente posta, abri a porta e perguntei-lhe se havia mais alguém no corredor.

– Não, ninguém – respondeu ela.

Tirei a corrente e convidei-a a entrar. Assim que a apanhei dentro de casa, fechei a porta e voltei a colocar a corrente.

– Cheira muito bem! – disse ela, aspirando os aromas. – Posso espreitar a cozinha?

– À vontade. Tens a certeza de que não viste nenhum indivíduo com ar suspeito a rondar a porta do prédio? Reparaste se havia homens das obras na rua? Alguém dentro de um carro, no parque de estacionamento?

– Não vi ninguém – afirmou ela, desembaraçando-se dos livros e depositando-os em cima da mesa da cozinha. Em seguida, começou a destapar as caçarolas que estavam ao lume. – Foste tu que cozinhaste isto tudo?

– Sim. Se te apetece, podemos comer qualquer coisa. Não é nada de especial, aviso já.

– Brincas? Adoro este género de refeição.

* * *

Levei a comida para a mesa e observei, admirado, a forma como ela aos poucos devorava um prato atrás do outro. Vale a pena cozinhar para quem come assim com tanto gosto. Preparei um Old Crow com gelo num copo grande, levei ao lume forte um bocadinho de atsuage8, salpiquei com gengibre e comecei a comer para acompanhar o meu uísque. A jovem continuava a devorar a sua refeição em silêncio. Ofereci-lhe uma bebida alcoólica, mas ela recusou.

– Deixas-me provar um bocadinho desse tofu frito? – pediu ela.

Empurrei na direção dela a metade que sobrara do atsuage e contentei-me em beber o resto do uísque a seco.

– Se te apetece, tenho arroz e umeboshi. Também posso preparar-te uma misoshiru9 num instante – acrescentei.

– Seria fantástico – respondeu ela.

Fiz uma base muito simples para o caldo com o atum seco, preparei uma sopa de miso com wakame10 e cebolas, que servi acompanhada de arroz e umeboshi. Ela devorou tudo num abrir e fechar de olhos. Assim que os pratos ficaram limpos, à exceção dos caroços das umeboshi, soltou um suspiro de satisfação.

– Estava delicioso – elogiou ela. – Os meus cumprimentos ao chef...

Era a primeira vez que via uma rapariga atraente e com uma figura tão elegante dar mostras de tamanha voracidade. Tinha, de facto, um apetite prodigioso. Na minha qualidade de cozinheiro, reconheço que me sentia gratificado, ao ponto de continuar a observá-la com um olhar vago, entre a admiração e o assombro, mesmo depois de ela ter acabado de comer.

– Comes sempre com esse apetite todo? – perguntei-lhe sem papas na língua.

– Sim, mais ou menos – respondeu ela com o ar mais natural deste mundo. – Porquê?

– Porque não engordas.

– Dilatação gástrica – confessou. – Posso comer o que me der na gana e não engordo.

– Nesse caso, deves gastar rios de dinheiro em comida! – disse eu.

Para ser franco, ela tinha dado boa conta de toda a comida por mim preparada e destinada a durar até ao dia seguinte.

– Uma fortuna – replicou ela. – Quando vou comer fora, tenho sempre de ir a dois sítios. Primeiro, como uma refeição ligeira, por exemplo, uma tigela de ramen11 ou umas gioza12. Funciona como uma espécie de aquecimento, entendes? Depois, ataco a refeição principal. Tenho a impressão de que a maior parte do meu ordenado vai todo para a alimentação.

Voltei a oferecer-lhe um copo. Ela disse-me então que lhe apetecia uma cerveja. Fui ao frigorífico buscar uma e, como quem não quer a coisa, peguei numa boa quantidade de pequenas salsichas frankfurter würstchen e levei-as a aloirar numa frigideira. Não dava para acreditar, mas, enquanto eu comi apenas duas, ela deu cabo do resto. O seu apetite voraz fazia lembrar uma metralhadora pesada fazendo fogo sobre um celeiro. As provisões que eu calculara para toda a semana diminuíam a olhos vistos. Com aquelas salsichas planeara fazer uma deliciosa receita de chucrute...

Servi-lhe mais um pouco de salada de batata já preparada, a que acrescentara wakame e atum, e ela devorou tudo sem deixar uma migalha, acompanhando o repasto com uma segunda cerveja.

– Ah, agora sim, sinto-me feliz! – exclamou ela.

Pela minha parte, quase sem ter comido, já ia no meu terceiro uísque com gelo. Fascinado pela sua enorme capacidade de ingurgitar alimentos, até me esquecera do que era ter apetite.

– Se te apetece qualquer coisa para sobremesa, tenho bolo de chocolate – sugeri.

Como seria de esperar, a jovenzinha não se fez rogada. Só de olhar para ela, comecei a ter a sensação de ficar com a comida entalada na garganta. Confesso que gosto de cozinhar, mas sou pessoa de me alimentar em doses frugais.

* * *

Provavelmente, foi por essa razão que não o consegui pôr de pé. Quero dizer, por estar obcecado com o estômago. Desde os Jogos Olímpicos de Tóquio, realizados em 1964, que o meu pénis não me deixava ficar mal. Até à data, sempre tivera uma confiança ilimitada nas minhas aptidões físicas, e, como tal, aquilo representou um choque considerável.

– Deixa lá, não te preocupes – disse a rapariga, para ver se me consolava.

Logo a seguir à sobremesa, depois de ouvirmos dois ou três discos, cada um com a sua bebida na mão – ela a tomar mais uma cerveja, eu o meu uísque –, enfiámo-nos então debaixo dos lençóis. Fizera amor com uma série de raparigas ao longo da minha vida, mas era a primeira vez que ia para a cama com uma bibliotecária. Também era a primeira vez que convencia com tanta facilidade uma rapariga a dormir comigo. Talvez isso se devesse ao facto de a ter convidado para jantar lá em casa. O certo é que, repito, não consegui levantá-lo. Dava-me a sensação de que tinha o estômago inchado como o de um golfinho e não consegui insuflar forças no meu baixo-ventre.

Com o seu corpo nu encostado ao meu, ela passeou o dedo anelar para cima e para baixo, percorrendo cada centímetro do meu peito.

– Isso pode acontecer a qualquer um. Não é preciso fazeres um bicho de sete cabeças.

Quanto mais ela procurava consolar-me, mais se abatia sobre mim, com toda a sua crueza, a minha incapacidade de manter uma ereção. Lembrei-me de, em tempos, ter lido que o pénis era mais estético no seu estado flácido do que ereto, mas isso tão-pouco me serviu de lenitivo.

– Quando foi a última vez que te deitaste com uma rapariga? – quis ela saber.

Destapei o baú das recordações e, com um certo nervosismo, pus-me a vasculhar o seu interior.

– Há duas semanas, creio.

– E dessa vez correu tubo bem?

– Claro – retorqui. Pelos vistos, nos últimos tempos começava a ser normal as pessoas lembrarem-se de fazer perguntas sobre a minha vida sexual.

– Com quem? A tua namorada?

– Uma call-girl. Telefonei-lhe e marquei encontro aqui em casa.

– E quando te deitas com mulheres desse género não experimentas... sei lá... um certo sentimento de culpa?

– Não era uma mulher – corrigi. – Era uma rapariga, uma rapariga dos seus vinte ou vinte e um anos. E não, não me senti especialmente culpado. Aconteceu tudo de uma forma muito natural, sem complicações. Além do mais, não era a primeira vez que ia para a cama com uma prostituta.

– E masturbaste-te a seguir?

– Não – respondi. A seguir, andara muito ocupado com o trabalho, ao ponto de nem sequer ter tido tempo para ir à lavandaria buscar o meu casaco preferido, quanto mais para me masturbar!

Quando lhe comuniquei isso mesmo, ela assentiu com a cabeça, convencida.

– Claro. Deve ser por isso.

– Porque não me masturbei?

– Claro que não, tolo! Por culpa do trabalho. Dizes que estás sempre demasiado ocupado, não é verdade?

– Por exemplo, anteontem fiquei sem dormir durante vinte e seis horas.

– Trabalhas em quê?

– Em informática – respondi. Quando me perguntavam o que fazia na vida, respondia invariavelmente que era informático. Em linhas gerais, não era mentira nenhuma, e as pessoas, como não dominavam a matéria, contentavam-se com a resposta e não faziam mais perguntas.

– De certeza que deves ter estado submetido a demasiada pressão e que todo esse stresse acumulado provocou um falhanço temporário. Só pode ter sido. Acontece com frequência, sabes?

– Hum... – Podia ser que ela tivesse razão. A juntar ao cansaço acumulado, nos últimos dias a minha vida tinha sido um encadeamento de coisas estranhas. Podia muito bem ter acontecido que, numa altura em que me sentia particularmente tenso, a visão daquele apetite voraz, para não dizer agressivo, tivesse provocado em mim uma impotência transitória. Sim, era plausível.

Ainda assim, palpitava-me que o problema tinhas raízes um pouco mais profundas. Talvez houvesse um quarto elemento. No passado, acontecera-me estar igualmente cansado e nervoso, porém, sempre arranjara energia para manter relações sexuais satisfatórias. Podia ser que a causa se devesse a alguma singularidade dela...

Singularidade. Cabelos compridos. Biblioteca.

– Experimenta pôr a orelha sobre o meu estômago – disse a rapariga, atirando a coberta para os pés da cama. Tinha um corpo macio e lindíssimo. Elegante, sem um grama de gordura a mais. Os seios eram do tamanho ideal. Encostei a orelha ao espaço entre o peito e o ventre, liso como uma folha de papel de desenho, tal como me pedira para fazer. Parecia um milagre que, depois de ter comido desalmadamente, a barriga não estivesse minimamente inchada. Era como se tudo tivesse sido engolido pelo seu apetite, à imagem e semelhança do que acontecia no filme em que as coisas desapareciam debaixo do casaco de Harpo Marx... A sua pele era fina, suave, quente.

– Ouves alguma coisa? – perguntou ela.

Retendo a respiração, apurei o ouvido. À parte o ritmo lento dos batimentos do seu coração, não se ouvia nada. Deu-me a sensação de estar deitado no meio de um bosque silencioso, escutando ao longe o rumor provocado pelo machado do lenhador.

– Não oiço nada – disse eu.

– Não se ouve o estômago? Não se ouve o barulho da digestão?

– Não entendo muito do assunto, mas diria que não faz ruído nenhum. Os sucos gástricos vão dissolvendo a comida, e pronto. Mesmo que se produzam alguns movimentos peristálticos, não me parece que se oiçam.

– Pois olha que eu sinto o meu estômago a trabalhar algo mais consistente, com todas as suas forças. Vá, tenta outra vez.

Permaneci na mesma postura, prestando atenção, enquanto contemplava distraidamente o seu ventre e os pelos púbicos salientes e espessos. Nem assim logrei captar o som de qualquer atividade gástrica. Apenas, ao longe, os batimentos regulares do coração. Veio-me à memória uma cena que aparece em Duelo no Atlântico. Mesmo por baixo do sítio onde eu encostava o ouvido, o estômago dela procedia à digestão em silêncio: como acontecia com o submarino em que navegava Curd Jürgens no tal filme.

Às tantas, desisti e afastei-me. Encostado na cabeceira da cama, passei-lhe o braço à volta dos ombros. Cheirei os seus cabelos.

– Tens água tónica? – perguntou-me.

– No frigorífico – respondi.

– Apetecia-me uma vodca com água tónica. Posso...?

– Claro.

– Também bebes qualquer coisa?

– O mesmo que tu.

Ela levantou-se toda nua da cama e foi até à cozinha preparar as duas vodcas-tónica. Enquanto isso, pus a tocar no gira-discos um velho álbum de 33 rotações do Johnny Mathis, voltei para a cama e comecei a cantar baixinho. Eu, o meu pénis flácido e Johnny Mathis.

Continuava a cantarolar quando ela voltou, transportando dois copos e utilizando os livros sobre unicórnios como bandeja. Bebemos as nossas vodcas-tónica tranquilamente, enquanto escutávamos o disco de Johnny Mathis.

– Quantos anos tens? – perguntou-me.

– Trinta e cinco – respondi. Nada melhor do que a pura verdade. – Divorciei-me há uns tempos, e agora estou sozinho, por minha conta. Não tenho filhos nem namorada.

– Eu tenho vinte e nove anos. Daqui a cinco meses vou fazer trinta.

Voltei a olhar de frente para ela. Não parecia nada ter aquela idade. Quem a visse não lhe daria mais de vinte e dois ou vinte e três anos. Tinha o traseiro firme e empinado, nem uma ruga na cara. Dei comigo a pensar que estava a perder rapidamente a habilidade para adivinhar a idade das mulheres.

– Pareço mais nova, mas tenho vinte e nove anos – insistiu. – E tu, por acaso não serás jogador de basebol ou assim?

Fui de tal maneira apanhado de surpresa que só faltou entornar a bebida por cima de mim.

– O quê? Onde é que foste buscar essa ideia? Há mais de quinze anos que não toco numa bola de basebol...

– Tenho a impressão de ter visto a tua cara na televisão. E olha que a única coisa a que assisto, por norma, são os jogos de basebol e os noticiários. Talvez te conheça dos telejornais.

– Nunca apareci nos telejornais.

– Num anúncio, se calhar...

– Também não.

– Nesse caso, deve ser o teu sósia. Uma coisa é certa: não tens cara de informático – declarou a jovem. – E, claro, com todas essas histórias da evolução e dos unicórnios... sem esquecer a tal navalha de ponta e mola.

Ao dizer aquilo, apontou para as minhas calças caídas no chão. Com efeito, via-se a navalha a espreitar do bolso traseiro.

– Isso acontece porque me ocupo dos dados relacionados com a biologia. Biotecnologia, para ser mais concreto, em que entram em jogo interesses empresariais. Todo o cuidado é pouco. Nos últimos tempos, como sabes, tem-se registado o aumento da pirataria de dados...

– Hum... – fez ela com uma expressão de total incredulidade estampada no rosto.

– Tu, por exemplo, também trabalhas com computadores e, no entanto, não tens ar de ser operadora informática.

Ela pôs-se a bater nos dentes incisivos com a ponta das unhas.

– No meu caso, estamos a falar de tarefas cem por cento administrativas. Limito-me a introduzir os títulos dos livros classificados por temas, faço uma busca para as consultas, comprovo a disponibilidade dos livros, essas coisas. Também posso fazer cálculos, naturalmente. Quando saí da faculdade, andei durante dois anos numa escola de informática a tirar uma especialização para aprender a trabalhar com computadores.

– Que modelo de computador usam na biblioteca?

A jovem descreveu-mo. Tratava-se do mais recente modelo da gama intermédia de computadores para escritório, muito mais avançado do que parecia à primeira vista. Bem utilizado, mostrava-se capaz de realizar cálculos bastante complexos. Só me servira dele uma única vez.

Enquanto eu permanecia de olhos fechados a pensar em computadores, ela levantou-se, foi preparar mais duas vodcas-tónica e trouxe-as para a cama. Recostados na cabeceira, fomos dando pequenos goles nas nossas bebidas. Quando o disco chegou ao fim, a agulha voltou a pousar sobre as espiras do 33 rotações, graças às virtudes do sistema automático, e o álbum de Johnny Mathis voltou ao início. Recomecei também a fazer coro com ele.

– Não achas que formamos um belo par? – perguntou ela. O fundo do seu copo de vodca roçava-me volta e meia nas costas, causando-me arrepios.

– Belo par? – repeti.

– Sim. Tu tens trinta e cinco anos, e eu vinte e nove. Não te parece a idade certa?

– A idade certa? – Decididamente, deixara-me contagiar pelo seu hábito de repetir as frases.

– Com as nossas idades, podíamos entender-nos às mil maravilhas. Somos os dois solteiros, damo-nos bem. Além disso, eu não me meteria na tua vida, e tu, pela tua parte, não interferirias na minha... Há alguma razão para não gostares de mim?

– Claro que me agradas – afirmei. – Tu tens um caso de dilatação gástrica, e eu sofro de impotência. Sim, vendo bem, talvez formemos o par ideal.

Rindo, ela estendeu a mão e afagou o meu pénis flácido. Era a mão que tinha segurado o copo gelado: estava fria até dizer basta e fez-me estremecer.

– Vais ver que to consigo pôr de pé – sussurrou-me ao ouvido. – Serei capaz de resolver o teu problema. Mas isso pode esperar. Na minha vida há coisas mais importantes do que o desejo sexual; a comida, por exemplo. O sexo, para mim, é como uma boa sobremesa. Se houver, tanto melhor, porém, se não houver, não representa qualquer problema. Desde que tudo o resto valha a pena, claro está.

– Uma boa sobremesa? – repeti de novo.

– Sim, uma boa sobremesa – repetiu ela, por sua vez. – Mas isso fica para segundas núpcias. Falemos antes um pouco acerca dos unicórnios. No fim de contas, foi para isso que me pediste para vir cá ter, não foi?

Fiz que sim com a cabeça e pousei no chão os dois copos vazios. Ela largou o meu pénis e pegou em dois volumes que repousavam em cima da mesinha de cabeceira. Um, da autoria de Burtland Cooper, intitulava-se Arqueologia dos Animais, e o outro era O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges.

– Folheei-os antes de vir. Este – adiantou ela, pegando no livro de Borges – considera os unicórnios seres fantásticos, como o dragão e a sereia, ao passo que aquele – e, juntando o gesto à palavra, pegou na obra Arqueologia dos Animais – aborda a questão de um ponto de vista mais científico e não exclui a hipótese de os unicórnios terem existido. Comparado com as descrições que há dos dragões ou dos gnomos, por exemplo, não deixa de ser espantoso que, tanto um como o outro, infelizmente, forneçam raríssimas descrições de unicórnios. Talvez isso aconteça porque os unicórnios eram criaturas mais reservadas... Pelo menos, é a leitura que eu faço. Tenho muita pena, mas foi tudo o que consegui arranjar na biblioteca.

– Chega e sobra. Basta-me uma espécie de resumo. Agradeço imenso.

Ela estendeu-me os dois volumes.

– Importavas-te de ler em voz alta os pontos importantes? – perguntei eu. – Tenho mais facilidade em captar as ideias gerais quando as coisas me entram pelo ouvido...

A jovem anuiu. Escolhendo começar pela leitura de O Livro dos Seres Imaginários, abriu-o na primeira página.

– «Tal como ignoramos o significado do Universo, também o significado dos dragões permanece aos nossos olhos desconhecido.» – leu ela. – Isto é o que vem escrito no prefácio.

– Estou a ver.

A seguir, abriu o livro já no final, numa página devidamente assinalada com um marcador.

– Antes de mais, deixa-me explicar-te que existem dois tipos de unicórnio. O primeiro pertence à Europa Ocidental e teve origem numa região da Grécia; o outro é o unicórnio chinês. São muito diferentes, tanto pela morfologia como pela perceção que os homens deles tinham. O unicórnio ocidental, presente na Grécia, por exemplo, tal como vem descrito por Borges, «tem o corpo parecido com o do cavalo, a cabeça semelhante à do cervo, as patas de um elefante, a cauda de um javali. A sua voz surge como um poderoso lamento, e cresce-lhe no meio da testa um enorme corno negro. Diz-se que é impossível capturar vivo semelhante animal».

«Por seu turno, o unicórnio chinês apresenta outras características: “Tem corpo de cervo”, conta Borges, “cauda de vaca e cascos de cavalo. O corno que lhe cresce na frente é feito de carne; a pelagem do lombo apresenta uma mistura de cinco cores, enquanto a do ventre é castanha ou de um amarelo-torrado.”

«São muito diferentes, não vês?

– Sim.

– E não apenas na forma. Os unicórnios orientais e os ocidentais apresentam também uma grande diferença, no que respeita ao seu carácter e ao seu significado. Os ocidentais consideravam o unicórnio um animal extremamente feroz e agressivo. Basta pensar que tinha um corno que media quase um metro... Segundo Leonardo da Vinci, existe apenas um modo de capturar o unicórnio; é um método que consiste em tirar proveito da sua sexualidade. Ao confrontá-lo com uma donzela, é dominado pelo desejo sexual, esquece o ímpeto beligerante e apoia a cabeça no colo da mulher, não oferecendo resistência aos seus captores. O significado do corno torna-se claro, não te parece?

– Claríssimo.

– O unicórnio oriental, em contrapartida, é um animal sagrado de bom agoiro. Juntamente com o dragão, a fénix e a tartaruga, faz parte dos quatro animais emblemáticos da mitologia chinesa que trazem boa sorte, situando-se em primeiro lugar entre os trezentos e sessenta e cinco animais quadrúpedes existentes à superfície da Terra. De temperamento calmo, caminha de um modo cauteloso para não esmagar nenhum outro ser vivo mais pequeno e alimenta-se apenas de ervas secas. Vive cerca de mil anos e a sua aparição anuncia o nascimento de um ser pleno de sabedoria. A mãe de Confúcio, por exemplo, terá visto um unicórnio quando se encontrava de esperanças.

«Setenta anos mais tarde, caçadores mataram um kylin que conservava no corno um pedaço da fita que a mãe de Confúcio atara à sua volta. Confúcio foi ver o unicórnio e chorou, porque sentiu que a morte daquele animal misterioso e inocente era um presságio e que a fita encerrava o seu passado.

«Que me dizes? Interessante, não te parece? O unicórnio ainda aparece na História chinesa até ao século treze. Quando o exército de Gengis Khan planeava a invasão da Índia, as tropas de reconhecimento deram de caras com um unicórnio em pleno deserto. Tinha a cabeça idêntica à de um cavalo, com um corno espetado a meio, e uma pelagem esverdeada. Parecido com um veado, falava a linguagem dos humanos. “Chegou a hora de o vosso senhor regressar ao seu país”, disse-lhes ele.

«Consultado a esse respeito, um dos ministros chineses de Gengis Khan explicou que o animal era um jiao-shui, uma variante do kylin. Mais: adiantou ainda que, ao longo de quatrocentos anos, os exércitos haviam combatido por todo o Ocidente. Então, o Céu, que tinha horror a ver sangue derramado, enviava-lhe um aviso através do jiao-shui, exortando-o a poupar o império, pois só pela via da moderação seria possível alcançar a felicidade eterna. E foi assim que o imperador renunciou aos seus planos bélicos.

«Em resumo, é esta a diferença entre o unicórnio oriental e o unicórnio ocidental, uma vez que têm ambos o mesmo nome. No Oriente, simboliza a paz e a tranquilidade; no Ocidente, a agressividade e a luxúria; em todo o caso, o unicórnio é um animal imaginário, motivo pelo qual se lhe podem atribuir os mais variados significados. Neste aspeto, dir-se-ia que os dois mitos apresentam semelhanças.

– Isso significa então que não existem animais com um só corno?

– Entre os cetáceos há uma baleia, o narval, que também dá pelo nome de «unicórnio-do-mar», mas, para ser rigorosa, não tem propriamente um corno, e sim uma espécie de dente incisivo na mandíbula superior esquerda que cresce para fora. O tal «corno», por assim dizer, que mede cerca de dois metros e meio de comprimento, é reto e espiralado como um chifre. Este cetáceo muito pouco comum, que as gentes da Idade Média raramente tinham oportunidade de encontrar nas águas, está em vias de extinção.

«Ainda no capítulo dos mamíferos, e considerando as espécies que foram surgindo durante o Mioceno, havia alguns animais que não eram parecidos com o unicórnio. Por exemplo...

Ao pronunciar aquelas palavras, a jovem pegou no volume Arqueologia dos Animais e abriu o livro mais ou menos a meio.

– Aqui tens dois ruminantes que, segundo tudo indica, terão vivido no Mioceno há coisa de vinte milhões de anos, a norte do continente americano. O que aparece na figura da direita é um Cyntetokerus, e o que figura na da esquerda um Curanokerus. Tinham ambos três cornos, se bem que um deles fosse independente.

Pedi-lhe o livro para ver melhor as ilustrações. O Cyntetokerus parecia a simbiose entre um cavalo pequeno e um veado, possuindo dois cornos idênticos aos de um touro e, no meio, um terceiro corno bífido em forma de Y. O da esquerda, de seu nome Curanokerus, tinha o focinho mais arredondado e na frente exibia uma cornadura idêntica à do veado, acrescida de um outro apêndice curvado para trás, plantado no alto da cabeça. Os dois animais ofereciam um espetáculo grotesco.

– De qualquer forma, quase todos os animais mamíferos com um número ímpar de cornos desapareceram da face da Terra – prosseguiu ela, voltando a pegar no livro. – Se nos limitarmos aos mamíferos, poucos são os animais munidos de um único corno ou com um número par deles. No decorrer do processo evolutivo, são considerados exemplares anómalos, uma espécie de órfãos da evolução. E, embora não nos limitemos aos mamíferos... estou a pensar nos dinossauros, por exemplo... existiu uma espécie gigante com três cornos, o tricerátopo, mas foi a exceção. O que significa que o corno, sendo uma arma centralizada, não serve para nada, sobretudo se o comparares com uma forquilha. Pelo facto de ter três dentes, aumenta a resistência da superfície e impede que eles sejam cravados com êxito no corpo do inimigo.

«Além disso, no caso de os oponentes serem em número superior, torna-se mais difícil a um animal com três cornos extraí-los do corpo dos adversários, a fim de investir contra o animal que se segue.

– Como a resistência é maior, custa mais – disse eu.

– Precisamente – reforçou ela, fincando-me três dedos no peito. – Este é o defeito dos animais que possuem três cornos. A tese é que aqueles que têm dois cornos, ou apenas um, são mais funcionais. Vejamos agora quais as vantagens de um único corno. Não, pensando bem, o melhor é explicar-te primeiro a necessidade de ter dois cornos. A primeira vantagem prende-se com a simetria. O movimento de todos os animais é determinado pelo equilíbrio bilateral, ou seja, pela repartição das forças e pela simetria entre a esquerda e a direita. O nariz, por exemplo, tem dois orifícios, a boca mantém uma simetria esquerda-direita e, na realidade, funciona dividida em duas. Umbigo, só temos um, mas trata-se de um órgão atrofiado.

– E o pénis?

– O pénis e a vagina, juntos, formam uma unidade.

– Ah, pois claro – comentei. – Era evidente.

– Os órgãos mais importantes são os olhos, que funcionam como uma espécie de torre de controlo, seja para efeitos de ataque, seja para defender. Como tal, é lógico que os cornos estejam colocados muito próximos, a fim de proporcionar a sua máxima eficácia. Temos um bom exemplo: o rinoceronte. Na sua origem, estamos a falar de um unicórnio, visto ter um único corno, além de que é também terrivelmente míope. As razões pelas quais o rinoceronte sobreviveu, apesar deste defeito, prendem-se com o facto de ser herbívoro e estar coberto por uma dura carapaça. Em resultado disso, o rinoceronte quase não tem necessidade de se defender. Nesse sentido, como se pode comprovar só de olhar para ele, apresenta semelhanças com o dinossauro. O unicórnio, porém, a julgar pelas ilustrações, não corresponde a essas características. Não tem nenhuma carapaça a cobri-lo e é muito... como diria?...

– Vulnerável? – sugeri eu.

– Isso mesmo.

– No que toca à vulnerabilidade, pertence à mesma categoria do veado. Se fosse míope, estaria condenado à extinção, ainda por cima. Mesmo considerando que tivesse desenvolvido o sentido da audição ou o do olfato, uma vez encurralado não teria a mínima possibilidade de se defender. Atacar um unicórnio era como disparar contra um pato que não pode voar com uma espingarda automática de alta precisão. Outra desvantagem de ter apenas um corno: se este ficar danificado, o animal está perdido. Por outras palavras, é como atravessar o deserto do Sara sem pneus sobresselentes. Entendes?

– Perfeitamente.

– Outro dos defeitos do corno único é que, com ele, não se pode exercer muita força. É mais fácil se tomares como exemplo os dentes molares e os incisivos. Tal como te disse antes, trata-se de um problema de equilíbrio. Quanto mais pesado é o instrumento com que se aplica uma determinada força, maior é a estabilidade global do corpo. Enfim, creio que esta teoria vem demonstrar os defeitos do unicórnio, não achas?

– Sim, mais claro não podia ser. Explicas muito bem.

Ela sorriu e fez deslizar um dedo pelo meu peito.

– Sim, mas não é tudo – prosseguiu. – Em teoria, há uma razão pela qual o unicórnio poderia ter conseguido escapar à extinção. E aqui chegámos ao ponto culminante. Adivinhas do que falo?

Cruzei as mãos sobre o peito e refleti durante um minuto ou dois. Só havia uma resposta possível.

– A ausência de um inimigo natural? – alvitrei.

– Lógico – disse ela, e deu-me um beijo nos lábios. – Imagina um habitat sem predadores naturais.

– Teria de ser um lugar isolado, onde os outros animais não pudessem entrar. Por exemplo, uma espécie de «mundo perdido», tal como Conan Doyle o concebeu no romance com o mesmo nome. Uma região que se encontrasse a grande altitude ou, então, uma depressão profunda. A cratera de um vulcão extinto, rodeada a toda a volta por muralhas altíssimas.

– Brilhante! – exclamou ela, apontando com o indicador para o meu coração. – E é bom não esquecer que foi precisamente num habitat assim que descobriram o crânio de um unicórnio.

Engoli em seco, por reflexo. A pouco e pouco, sem me dar conta, estava a aproximar-me do cerne da questão.

* * *

– Foi encontrado em mil novecentos e dezassete, na frente russa.

– Um mês antes da Revolução de Outubro, no decorrer da Primeira Guerra Mundial, ou seja, durante o governo de Kerenski – disse eu. – Pouco antes do início do golpe de estado bolchevique.

– Um soldado de infantaria russo encontrou-o quando escavava uma trincheira na frente ucraniana. Acreditou tratar-se do crânio de uma vaca ou de um veado, e deixou-o a um canto. O assunto teria ficado por ali, e o crânio cairia nas profundas trevas da História, não fosse dar-se o caso de o tenente que comandava ter sido estudante de pós-graduação na Faculdade de Biologia da Universidade de Petrogrado, que antigamente se chamava Sampetersburgo. O tenente recolheu o crânio, levou-o consigo para o acampamento e examinou-o ao pormenor. Descobriu então que pertencia a uma espécie desconhecida. Pôs-se de imediato em contacto com o catedrático de biologia da Universidade de Petrogrado e esperou que lhe fosse enviada uma equipa de investigadores, que, no entanto, nunca chegou a aparecer. Naqueles tempos reinava na Rússia o mais absoluto caos. Eram declaradas greves a torto e a direito, as provisões e os medicamentos não chegavam com regularidade às tropas... Convenhamos que não era uma altura propícia para uma expedição científica se pôr a caminho da frente de batalha. E mesmo que conseguissem os seus intentos, não creio que tivessem disposto do tempo necessário para realizar o trabalho de campo. Porque o certo era que o exército russo sofria derrota atrás de derrota e a linha da frente não parava de retroceder. Talvez, quem sabe?, aquela zona tivesse caído já nas mãos dos alemães.

– E o que aconteceu ao capitão?

– Foi enforcado num poste de telégrafo em novembro desse ano. Muitos dos oficiais, filhos de famílias burguesas, conheceram a mesma sorte e ficaram pendurados nos postes, ao longo do caminho, na estrada que ia da Ucrânia até Moscovo. O jovem era um simples estudante de biologia, sem qualquer relação com a política.

Imaginei os oficiais, um a um, pendurados nos postes de telégrafo alinhados na planície russa.

– Acontece que, antes de o exército bolchevique tomar o poder, o tenente confiou o crânio a um homem da sua confiança, um soldado ferido que ia ser enviado para a retaguarda, prometendo-lhe que, se o entregasse a um catedrático universitário, receberia uma generosa recompensa. Mas o soldado só teve possibilidade de levar o dito crânio até à faculdade em fevereiro do ano seguinte, quando recebeu alta do hospital, vindo então a descobrir que a universidade se encontrava encerrada. Os estudantes estavam empenhados dia e noite na revolução, e os professores, na sua maioria, haviam sido obrigados a exilar-se ou tinham sido feitos prisioneiros. Sem grandes alternativas, o soldado adiou a entrega e confiou o crânio a um cunhado, que geria um estábulo em Petrogrado, após o que voltou para a sua aldeia natal, a trezentos quilómetros da cidade. Contudo, por motivos que ignoro, o soldado jamais pôde regressar a Petrogrado, e a caixa permaneceu abandonada durante anos a fio no armazém anexo à estrebaria.

«O crânio não voltaria a ver a luz do dia até ao ano de mil novecentos e trinta e cinco. Sampetersburgo passara então a chamar-se Leninegrado. Lénine tinha morrido. Trotski estava no exílio e Estaline detinha o poder. Em Leninegrado quase ninguém montava a cavalo, razão pela qual o dono dos estábulos se desfizera do negócio e, com parte do dinheiro, abrira uma pequena loja que vendia artigos para a prática do hóquei.

– Hóquei? – admirei-me. – Na Rússia soviética dos anos trinta sabiam o que era o hóquei?

– Não faço ideia. Limito-me ao que vem aqui escrito. Mas sempre te digo que Leninegrado, depois da revolução, devia ser uma cidade relativamente cosmopolita. É possível que houvesse quem jogasse hóquei.

– Se tu o dizes...

– Enfim, seja como for, enquanto fazia o inventário do seu armazém, esse homem encontrou a caixa que lhe tinha sido dada a guardar pelo cunhado, em mil novecentos e dezoito, e abriu-a. Foi então que encontrou a carta dirigida ao reitor da Faculdade de Biologia, onde dizia: «Peço-lhe que recompense devidamente a pessoa a quem este crânio foi confiado.» Escusado será dizer que o antigo dono dos estábulos transportou a caixa até à universidade... isto é, àquela que passara a ser a Universidade de Leninegrado... e solicitou uma entrevista com o professor catedrático em questão. Todavia, sendo o referido professor judeu, tinha sido enviado para a Sibéria, depois de Trotski ter caído em desgraça.

«Ao não encontrar quem lhe pagasse a recompensa monetária, e diante da perspetiva de ficar até ao fim dos seus dias na posse de um crânio que não lhe dizia rigorosamente nada e que não lhe traria um cêntimo, o homem não esteve com meias-medidas. Foi ter com outro professor de biologia, explicou-lhe a situação, cedeu o crânio à universidade por uma quantia irrisória e regressou a casa.

– Ao fim de dezoito anos, o crânio lá conseguiu chegar à universidade!

– O professor – retomou ela o fio à meada –, o tal catedrático, examinou minuciosamente o crânio e chegou à mesma conclusão que o jovem tenente, dezoito anos antes. Ou seja, que o crânio não pertencia a uma espécie que existisse no presente, tão-pouco a um animal que pudesse ter surgido à face da Terra em épocas precedentes. O crânio fazia lembrar o do veado e a forma da mandíbula situava-o, por analogia, entre os herbívoros ungulados, mas, pelos vistos, apresentava as faces mais proeminentes. Contudo, a maior diferença em relação ao veado era o facto de o corno estar no meio da cabeça. Numa palavra, era um unicórnio.

– Queres dizer que tinha um corno a sério?

– Sim, tinha um corno. Ainda que não estivesse inteiro, como é bom de ver. O corno encontrava-se partido a cerca de três centímetros da base. A partir do fragmento que restava, deduziram que devia ter alcançado uns bons vinte centímetros e que devia ter sido reto como o de um antílope. Pelo menos, foi o que ficou registado. O diâmetro da base era de... deixa-me cá ver se não me engano... dois centímetros.

– Dois centímetros – repeti. O orifício do crânio que me fora dado pelo ancião tinha precisamente dois centímetros de diâmetro.

– O professor Petrov, pois era esse o nome do catedrático, dirigiu-se à Ucrânia acompanhado de vários ajudantes e alunos de pós-graduação e, durante um mês, realizaram um aturado trabalho de campo no mesmíssimo lugar onde, tempos atrás, a companhia do jovem capitão havia escavado as suas trincheiras. Por azar, não lograram encontrar outro crânio igual, mas descobriram uma data de factos bastante interessantes acerca daquela região. Tratava-se de uma zona conhecida como a meseta da Volínia, que formava um planalto relativamente elevado no meio da região ocidental da Ucrânia, rica em planícies, e desde logo um ponto geográfico de grande importância estratégica no plano militar. Por essa razão, durante a Primeira Guerra Mundial, as forças alemãs e austro-húngaras envolveram-se repetidamente em sangrentas batalhas corpo a corpo com o exército russo, a fim de lutarem pelo domínio de cada metro quadrado daquela colina. No decorrer da Segunda Guerra Mundial, foram tantos os bombardeamentos e os ataques de artilharia por parte de ambos os lados em contenda que a configuração da zona mudou por completo. Bom, mas isto já é uma história diferente, que se verificou mais tarde. O que então chamou a atenção do professor Petrov foi o facto de as ossadas dos animais desenterrados na meseta serem muito diferentes das restantes espécies encontradas na região. Com base nisso, o professor formulou a hipótese de que, antigamente, nos tempos da pré-história, o planalto devia ter constituído uma cratera, funcionando como uma espécie de berço para várias formas particulares de vida. Por outras palavras, um mundo perdido.

– Uma cratera vulcânica?

– Sim. Um planalto regular e circular, rodeado de uma alta parede rochosa. Esta teria conhecido o efeito de uma forte erosão ao longo de milhões de anos, até se converter numa colina normal e perfeitamente vulgar. No seu interior, o unicórnio, um elo perdido na cadeia da evolução, teria levado uma vida tranquila, livre dos predadores, seus inimigos naturais. Água era coisa que não faltava por aquelas paragens, e o solo era fértil: a teoria tem tudo para ser viável. O professor Petrov apresentou à Academia das Ciências da União Soviética uma tese intitulada Estudo do Sistema Biológico da Meseta da Volínia. Corria o ano de mil novecentos e trinta e seis.

– Palpita-me que a receção não deve ter sido muito boa...

– Não, não foi. Parece que professor não teve ninguém a apoiá-lo, de entre os membros da Academia. Tanto mais que, por azar, naquela época assistia-se a um conflito de poderes entre a Universidade de Moscovo e a Universidade de Leninegrado. Encontrando-se em franca desvantagem, Leninegrado recebeu com frieza uma tese antidialética como aquela. Todavia, ninguém podia ignorar a existência do crânio de unicórnio. Ao contrário da hipótese em cima da mesa, era uma realidade indiscutível. Assim sendo, alguns especialistas na matéria dedicaram-se ao estudo desse objeto durante um ano e, no final, não lhes restou outro remédio senão admitir que o crânio não era uma falsificação e que pertencia, sem sombra de dúvida, a um animal com um único corno. Por fim, o comité da Academia das Ciências declarou que se tratava do crânio de um Cervidce odocoileus, cervo atingido por uma deformação, sem qualquer relação com a cadeia evolutiva, indigno de um estudo mais aprofundado. O crânio foi devolvido ao professor Petrov e à Universidade de Leninegrado. Fim da história.

«O professor Petrov esperou que os ventos mudassem e que chegasse o momento propício em que os resultados da sua pesquisa pudessem ser finalmente reconhecidos. Mas em mil novecentos e quarenta e um, com o início da guerra contra a Alemanha, as suas esperanças desvaneceram-se, e foi assim, nesse estado de desespero, que morreu em mil novecentos e quarenta e três. Por sua vez, o crânio também levou sumiço durante o cerco de Leninegrado. A universidade foi reduzida a escombros pelos bombardeamentos das forças alemãs e russas, e ninguém sabe onde foi parar o crânio. Assim se perdeu a única prova que confirmava a existência do unicórnio.

– Quer então dizer que não resta nada que sirva de prova?

– Tirando as fotografias, não.

– As fotografias?

– Sim, existem fotografias do crânio. O professor Petrov tirou centenas de fotos ao crânio. Algumas salvaram-se da destruição provocada pela guerra e encontram-se, nos dias de hoje, preservadas na biblioteca da Universidade de Leninegrado. Olha, aqui tens uma.

A rapariga estendeu-me o livro e apontou para uma reprodução a preto-e-branco. Se bem que estivesse um tudo-nada desfocada, dava para reconhecer a forma do crânio. Tinham-no posto em cima de uma mesa coberta por uma toalha branca e, ao seu lado, haviam colocado um relógio de pulso para indicar o seu tamanho real. Um pequeno buraco branco no meio da testa indicava a posição do corno. Não havia dúvida: o crânio era igualzinho ao que me fora dado pelo velhote, com a diferença de que este conservava a base do corno; de resto, não podiam ser mais idênticos. Dirigi o olhar para o crânio que repousava sobre o televisor, totalmente coberto pela camisola de malha: visto de longe, parecia um gato adormecido. Hesitei em contar à jovem que tinha o crânio na minha posse ou calar-me. Achei melhor ficar calado. Quanto menos pessoas souberem um segredo, mais possibilidades ele tem de assim permanecer.

– E de certeza que o crânio foi destruído no tempo da guerra? – perguntei.

– Vá-se lá saber – respondeu ela, enrolando a franja com o dedo mindinho. – A acreditar no que vem escrito no livro, os combates do cerco de Leninegrado foram tão violentos e cruéis que arrasaram a cidade por completo, sem deixar pedra sobre pedra, como se um rolo compressor tivesse passado por ali. Além disso, o bairro onde se encontrava situada a universidade foi dos mais fustigados pelos combates, por isso tudo leva a crer que o crânio tenha sido reduzido a pedaços. Existe sempre a possibilidade de o professor Petrov o ter escondido antes, em qualquer parte, ou de o exército alemão o ter arrebanhado e levado como troféu de guerra. O certo é que ninguém o viu desde então.

Tornei a olhar para a fotografia. Fechei o livro com um gesto seco e deixei-o ficar em cima da cama. Questionei-me se o crânio que eu tinha em meu poder era o da Universidade de Leninegrado ou se poderia tratar-se do crânio de outro unicórnio que tivessem desenterrado algures. O mais simples era fazer a pergunta diretamente ao ancião. Qualquer coisa do género: «Onde é que foi descobrir o crânio? E por que carga-d’água mo deu a mim?» Como tinha de me encontrar com ele assim que acabasse o shuffling, para lhe entregar os dados, na altura logo tentaria saber. De momento era inútil torrar os miolos com semelhante história.

Enquanto, com os olhos cravados no teto, me entregava a estas reflexões, ela apoiou a cabeça no meu peito e encostou o corpo ao meu. Rodeei-a com os braços. Depois de ter ficado a saber mais qualquer coisa acerca dos unicórnios, sentia-me um pouco mais aliviado, mas o estado do meu pénis continuava sem alteração, o que é o mesmo que dizer: continuava sem conseguir uma ereção. A jovem, porém, não parecia incomodada com esse facto e insistia em desenhar figuras indecifráveis sobre o meu estômago.

5 Ameixas secas conservadas em sal. (N. das T.)

6 Pasta de soja frita. (N. das T.)

7 O gengibre Zingiberaceae é uma planta herbácea que cresce desde tempos imemoriais no Japão e no Sul da Coreia. Na alimentação japonesa, utiliza-se sobretudo para temperar a sopa de miso e o sunomono, entre outros pratos. (N. das T.)

8 Uma qualidade de aburaage. Consiste em tofu cortado grosso e frito. (N. das T.)

9 Sopa de miso (pasta de soja fermentada). Dilui-se miso no caldo, a que depois se pode acrescentar verduras, tofu, algas ou marisco. (N. das T.)

10 Uma variedade de algas. (N. das T.)

11 Massa chinesa servida num caldo. (N. das T.)

12 Uma espécie de pastéis recheados de carne e verduras. (N. das T.)


O Fim do Mundo

10

A Muralha

Numa tarde nublada, pus-me a caminho da cabana do Guardião e fui encontrar a minha sombra a ajudá-lo a reparar uma carroça. Os dois haviam transportado o veículo para o centro do terreno e, depois de terem arrancado as tábuas velhas do fundo e dos lados, estavam naquele momento a substituí-las por outras novas. O Guardião aplainava as tábuas com gestos hábeis e experientes, enquanto a sombra as ajustava, usando para o efeito um martelo. O seu aspeto quase não mudara desde que nos tínhamos separado. Parecia gozar de boa saúde, embora os seus gestos traduzissem alguma rigidez e por baixo dos olhos tivessem aparecido rugas em sinal de mau humor.

Quando me aproximei, ambos interromperam o que estavam a fazer e levantaram a cabeça.

– Que se passa? Precisas de mim? – perguntou o Guardião.

– Sim, quero falar consigo – respondi.

– Espera por mim lá dentro, estamos quase despachados – disse o Guardião sem tirar os olhos da tábua de madeira que acabava de alisar.

A minha sombra limitou-se a olhar de relance para mim e, sem mais, retomou o trabalho. Parecia furibunda.

Entrei na cabana do Guardião, sentei-me à mesa da cozinha e ali me deixei estar à espera dele. O Guardião só limpava a mesa quando era preciso afiar as facas. Pratos sujos, taças, grãos de café, aparas de madeira e cinza de cachimbo: estava tudo amontoado, contribuindo para a imagem de desmazelo habitual. Apenas os objetos cortantes se dispunham segundo uma ordem que tinha qualquer coisa de prodigioso.

O Guardião fez-me esperar um bom bocado. Com os braços apoiados nas costas da cadeira, entretive-me a olhar para o teto. O que fariam as pessoas naquela cidade para matar o tempo?

Lá fora prosseguia o barulho incessante da plaina e do martelo.

Por fim, a porta abriu-se; contudo, quem entrou na cabana não foi o Guardião, mas a minha sombra.

– Não podemos falar durante muito tempo – disse, passando rente a mim. – Só vim buscar pregos.

Abriu a porta do fundo, à direita, que dava para uma espécie de arrecadação, e tirou de lá uma caixa de pregos.

– Ouve-me com atenção – disse a sombra, enquanto verificava o tamanho dos pregos que havia na caixa. – Antes de mais, tens de desenhar um mapa da Cidade. Não deves basear-te no que te dizem as outras pessoas, mas apenas nas imagens que os teus olhos registarem e nas distâncias que calcorreares com os teus próprios pés. Deves apontar no papel tudo o que vires, sem deixar nada por registar. Nem o pormenor mais insignificante...

– Isso leva tempo.

– Basta que mo faças chegar às mãos antes que acabe o inverno – disse a sombra, falando com grande rapidez. – E também vou precisar de explicações por escrito. Necessito, acima de tudo, do que me conseguires arranjar acerca da Muralha. A sua configuração, a forma como se prolonga até ao Bosque que fica mais a leste, por onde o Rio entra e sai. Compreendido?

Dito aquilo, e sem se dignar sequer a encarar-me, a sombra saiu porta fora. Repeti mentalmente o que ela acabara de enunciar. A forma da Muralha, o Bosque Oriental, o local de entrada e de saída do Rio. Bem pensado. Fazer um mapa não era má ideia. Desse modo, poderia averiguar como é que a Cidade estava organizada e aproveitaria o tempo livre. Acima de tudo, o que me fazia mais feliz era saber que a minha sombra ainda tinha confiança em mim.

* * *

Pouco depois chegou o Guardião. Mal entrou na cabana, a primeira coisa que fez foi limpar o suor do rosto e das mãos com uma toalha; só então se deixou cair pesadamente numa cadeira.

– Bom, qual é o problema?

– Posso ver a minha sombra? – perguntei.

O Guardião acenou várias vezes com a cabeça. A seguir, encheu o cachimbo com tabaco e acendeu-o com um fósforo.

– Não, de momento não é possível – disse ele. – Tenho muita pena, mas é muito cedo. Nesta estação, as sombras ainda estão demasiado fortes. Espera que os dias fiquem mais curtos. Para evitar complicações...

Ao mesmo tempo que dizia aquilo, o homem partiu em dois o fósforo e depositou-o no cinzeiro que estava em cima da mesa.

– Digo isto também por ti, acredita – prosseguiu ele. – Se agora te afeiçoares a ela, depois será pior. Já vi isso acontecer uma data de vezes. É um bom conselho. Tem um bocadinho de paciência.

Mantive-me em silêncio. Não se podia dizer que fosse um interlocutor fácil, logo, dissesse eu o que dissesse, não me ligaria nenhuma; além disso, tinha conseguido chegar à fala com a minha sombra. Só me restava esperar que se proporcionasse outra ocasião de me encontrar com ela.

O Guardião levantou-se, aproximou-se do lava-loiça e saciou várias vezes a sede bebendo água por uma taça de cerâmica.

– Como é que vai o trabalho?

– Começo a habituar-me, pouco a pouco – disse eu.

– Ótimo – comentou o Guardião. – Dar o melhor no trabalho é o mais importante. As pessoas que não desempenham o seu ofício como deve ser acabam por meter ideias parvas na cabeça.

Lá fora conseguia ouvir a minha sombra martelando sem descanso.

– Que me dizes a um passeio? – sugeriu o Guardião. – Tenho uma coisa interessante para te mostrar.

Segui-o. Na clareira, de pé em cima da carroça, a minha sombra dava as últimas marteladas numa tábua lateral. À exceção das rodas e do eixo, a carroça estava como nova.

O Guardião atravessou a clareira e conduziu-me até junto de uma torre de vigia. Estava uma tarde húmida e cinzenta. Sobre a Muralha, o céu mostrava-se coberto de nuvens negras provenientes de ocidente, ameaçando chuva a todo o momento. A camisa do Guardião, completamente empapada de suor, aderia ao seu corpanzil e desprendia um odor desagradável.

– Esta é a Muralha – afirmou o homem, dando-lhe palmadas com as mãos, como se estivesse a bater no flanco de um cavalo. – Mede sete metros de altura e rodeia a Cidade inteira. Os pássaros são os únicos que conseguem franqueá-la, passando por cima dela. Tirando esta, não existe mais nenhuma. Havia outra a oriente, até há pouco tempo, que se encontra fragmentada. Como podes ver, é feita de tijolos, mas não se trata de tijolos normais. Nada nem ninguém pode derrubá-los. Nem um canhão, nem tremores de terra, nem os tufões...

O Guardião apanhou do chão um pedaço de madeira e, à medida que ia debitando o seu discurso, começou a desbastá-lo com uma faca. A faca estava muito bem afiada e, num abrir e fechar de olhos, o homem transformou o bocado de madeira numa cunha aguçada.

– Repara bem – disse ele. – Entre um tijolo e outro não existe argamassa. Porque não faz falta. Os ladrilhos estão de tal maneira solidamente unidos que, nos interstícios, não se consegue enfiar nem um cabelo.

Ao dizer aquilo, tratou de introduzir a ponta bicuda da cunha entre um tijolo e outro, mas não pôde avançar um milímetro sequer. Logo a seguir, retirou a cunha e, com a extremidade da lâmina, raspou a superfície de um tijolo, produzindo um desagradável som estridente; nem assim, porém, foi possível arranhar a pedra ao de leve. Depois de verificar o estado da lâmina, o Guardião fechou a sua faca e guardou-a no bolso.

– Nada nem ninguém pode danificar ou destruir esta Muralha. Já para não falar em que se torna impossível escalá-la. Porque a Muralha é perfeita. Lembra-te disto: ninguém pode sair daqui. Por isso, não te ponhas com ideias tolas. – Em seguida, pousou a sua mãozorra nas minhas costas. – Compreendo a tua amargura, mas todos temos de passar pelo mesmo. Tens de ter paciência. Aguenta e verás: há de chegar o momento da salvação. E, então, as tuas angústias deixarão de existir, e o mesmo acontecerá com a dor que sentes. Tudo desaparecerá. Podes crer: as sensações efémeras de nada valem. Vai por mim e esquece a tua sombra. Aqui é o fim do mundo. Não é possível ir para além destas fronteiras. Nem mesmo tu podes ir a parte alguma.

Juntando o gesto às palavras, o Guardião deu-me outra palmada valente nas costas.

* * *

No caminho de regresso a casa, parei a meio da Ponte Velha, apoiei-me no parapeito e, à medida que contemplava o rio, meditei no que me dissera o Guardião.

O fim do mundo.

Por que motivo me tinha ele dito que abandonasse o meu velho mundo para ir até àquele lugar? Não me lembrava das circunstâncias, tão-pouco me recordava do sentido de tudo aquilo. Alguma coisa, uma força qualquer enviara-me até ali. Uma força poderosa e arbitrária. Por sua culpa, perdera a minha sombra e as minhas recordações, e encontrava-me à beira de perder o coração.

Aos meus pés, o Rio corria com um agradável murmúrio. Nas suas margens via-se um banco de areia onde cresciam salgueiros. Os seus ramos espalhavam-se pela superfície e estremeciam suavemente ao sabor da corrente. A água era límpida e transparente, e nos remansos em torno dos rochedos nadavam alguns peixes. Sempre que contemplava o Rio, invadia-me uma imensa paz de espírito.

A partir da ponte, uma série de degraus dava acesso à ilha, onde existia um banco à sombra do salgueiro. Via-se sempre um ou outro animal ali por perto. Muitas vezes, acontecia-me descer até àquela ilhota de areia e oferecer aos bichos os bocados de pão que levava comigo metidos nos bolsos. Os animais, hesitando primeiro, esticavam o pescoço e lá vinham comer à minha mão os pedacinhos de pão. Contudo, eram sempre os mais velhos, ou os mais novos, que comiam da minha palma.

Com a chegada do outono, os olhos insondáveis dos animais, que me faziam lembrar as águas profundas de um lago, iam-se tingindo com tonalidades cada vez mais sombrias. Ao mesmo tempo, as folhas das árvores mudavam de cor e a erva começava a secar, anunciando que se aproximava a longa e dura estação da fome. E tal como o ancião havia previsto, também para mim provavelmente o inverno seria longo e duro.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

11

Roupa. Melancia. Caos

Os ponteiros do relógio marcavam as nove e meia quando a rapariga saltou da cama, apanhou a roupa caída pelo chão e começou a vestir-se com vagar, demorando o seu tempo. Deitado na cama, apoiado num cotovelo, eu seguia os seus gestos pelo canto do olho. A sua maneira insinuante de fazer deslizar sobre o corpo as peças de roupa, uma após a outra, suavemente, sem movimentos supérfluos, possuía a tranquilidade de um pássaro no inverno. Puxou o fecho da saia, abotoou, de cima a baixo, todos os botões da blusa e, no final, sentou-se na cama e calçou as meias de vidro. A seguir, deu-me um beijo na cara. Acredito que haja muitas mulheres que saibam desembaraçar-se da roupa de um modo sedutor, mas quantas serão capazes de se vestir com graça e encanto? Assim que ficou pronta, passou a mão pelos longos cabelos compridos. Ao vê-la fazer aquele gesto, foi como se uma corrente de ar fresco tivesse acabado de entrar no quarto.

– Obrigada pelo jantar – disse ela.

– De nada.

– Costumas preparar sempre tanta comida só para ti?

– Se estiver mais ou menos desocupado, sim – respondi. – Quando tenho muito trabalho, fico sem tempo para cozinhar e contento-me com o que encontrar à mão, ou então vou comer fora.

Ela sentou-se numa cadeira da cozinha, tirou um cigarro da mala e acendeu-o.

– Eu cozinho pouco. Não me dá gozo cozinhar, para dizer a verdade. Só a ideia de regressar a casa, às sete da tarde, e de me pôr ao fogão, a preparar uma quantidade de comida que depois acabarei por comer sozinha, deprime-me. Dá-me a sensação de viver para comer.

Respondi-lhe que provavelmente tinha razão.

Enquanto me vestia, ela tirou uma agenda do bolso, apontou qualquer coisa com uma esferográfica, arrancou a página em questão e deu-ma.

– É o meu telefone de casa – explicou. – Se me quiseres ver outra vez ou se te sobrar comida, liga-me. Virei logo ter contigo.

* * *

Quando a jovem se foi embora, levando com ela os três livros sobre mamíferos para devolver à biblioteca, o apartamento pareceu mergulhar num estranho silêncio. Fui pôr-me à frente do televisor, levantei a camisola e observei uma vez mais o crânio do unicórnio. Não tinha nenhuma prova científica, mas, às tantas, comecei a perguntar a mim mesmo se aquele não seria o enigmático crânio que o infeliz do tenente de infantaria descobrira em plena frente de batalha na Ucrânia. Quanto mais olhava para o crânio, mais convencido ficava de que sobre ele pesava uma aura misteriosa: era como se o peso da fatalidade se fizesse sentir. Claro que poderia ter sido apenas sugestionado pela história que acabara de escutar. Sem nada a que me agarrar, voltei a dar um toquezinho na cabeça com as pinças de aço inoxidável e regressei à cozinha.

Em seguida, levantei os pratos e os copos e lavei-os à mão; depois passei um pano pela mesa. Estava na hora de dar início ao shuffling.

A minha senha para o shuffling era «fim do mundo», funcionando como título de um drama profundamente pessoal, no qual me baseava para variar a ordem dos dados que tinham sido sujeitos à lavagem e utilizá-los nos cálculos informáticos. Quando falo em «drama», não estou a fazer referência a nenhum dos folhetins que a televisão exibe a toda a hora. O «meu» drama é muito mais caótico e não tem um argumento muito lógico. Chamo-lhe «drama» como lhe poderia chamar outra coisa qualquer. Seja como for, nunca me explicaram ao certo o seu conteúdo. Sei apenas que dá por esse nome: «fim do mundo».

Foram os cientistas do Sistema que criaram e desenvolveram o tal drama. Para ser programador sujeitei-me a um ano inteiro de treino. Depois de ter passado nos exames finais, congelaram-me durante duas semanas, a fim de procederem a uma análise exaustiva das minhas ondas cerebrais, tendo extraído o elemento que constituía o núcleo do meu cérebro. Foi-lhe então implantada a senha de acesso ao shuffling e, uma vez terminada a operação, voltaram a introduzir o núcleo dentro do cérebro. Disseram-me que o título era «fim do mundo» e comunicaram-me que seria essa a password. A minha consciência viu-se assim reestruturada e passou a ter uma dupla organização. Quer dizer, na periferia existe o todo caótico da minha consciência e, no seu interior, como o caroço de uma umeboshi, encontra-se o núcleo da consciência que sintetiza este caos.

No entanto, eles recusaram relevar-me qual o conteúdo da consciência.

– Não tens necessidade de saber mais – asseguraram-me. – Porque, neste mundo, não existe nada de mais preciso que a inconsciência. Depois de uma certa idade... os nossos cálculos, feitos com todo o rigor, permitiram que a fixássemos nos vinte e oito anos... a consciência de um ser humano, na sua globalidade, já não conhece alterações. Quando analisado do ponto de vista do funcionamento global do cérebro, vemos que aquilo a que se chama, por norma, «transformações da consciência» não passa, no fundo, de uma série de insignificantes oscilações superficiais. Todavia, o chamado «fim do mundo», o novo núcleo da tua consciência, funcionará até ao fim dos teus dias, com precisão e sem variações. Compreendeste até aqui?

– Sim, compreendi na perfeição – respondi.

– Todos os métodos de lógica e de análise são, numa palavra, inúteis. É o mesmo que tentar partir uma melancia com a ponta de uma agulha de coser: arranha a casca, mas não consegue chegar à polpa. Precisamente por isso, nós fizemos questão de separar a casca da polpa. Ainda que, neste mundo, haja muito boa gente que se contente em mordiscar a casca.

«Seja como for – prosseguiram os cientistas –, temos de proteger para sempre a tua “senha-drama” da turbulência superficial, das oscilações superficiais da tua consciência. Imagina que te explicamos que o “fim do mundo” consiste nisto e naquilo... Seria como tirar a casca da melancia. Neste caso, sem dúvida que a tentação se revelaria demasiado grande e tu por certo tentarias meter os dedos lá dentro, que é como quem diz, procurarias mexer no conteúdo e melhorá-lo. Então, a universalidade da “senha-drama” esfumar-se-ia num abrir e fechar de olhos. Puf! E o shuffling deixaria de ser viável.

«Por essa ordem de ideias, tratámos de te providenciar uma melancia com uma casca muito grossa – referiu outro interlocutor. – Podes aceder ao núcleo; no fim de contas, é parte integrante de ti. Mas não podes conhecê-lo. Tudo soçobraria num mar de caos. Porque se tu mergulhares de mãos vazias no caos, deves voltar à tona de mãos vazias. Estás a seguir o meu raciocínio?

– Creio que sim.

– E ainda temos outro problema – acrescentaram em coro, num tom solene. – Deve o ser humano conhecer com exatidão a sua própria consciência?

– Confesso que não sei – admiti.

– Também nós não sabemos. É uma questão que vai para lá dos limites da ciência. Em Los Alamos, os cientistas que construíram a bomba atómica viram-se confrontados com uma questão da mesma gravidade.

– Talvez seja um problema ainda mais grave – acrescentou outra pessoa. – De um ponto de vista empírico, é a única conclusão a tirar. Por esse motivo, podemos afirmar que esta é, num certo sentido, uma experiência deveras arriscada.

– Experiência?

– Experiência – repetiram eles. – Temos muita pena, mas não podemos dizer-te mais do que isto.

* * *

Depois ensinaram-me o método do shuffling. Devo executá-lo apenas à noite, de preferência quando estiver sozinho, e nem com o estômago cheio nem com ele vazio. E, ainda para mais, devo escutar três vezes seguidas a gravação preestabelecida que me permite aceder ao drama chamado «fim do mundo». A esse sinal, a minha consciência mergulha no caos. E é então no âmago desse caos que eu procedo ao shuffling, estabelecendo ligação com os valores numéricos. Uma vez completada a operação, interrompe-se o contacto e a minha consciência emerge do caos. Completa-se o caos e eu não recordo nada. O shuffling é, como o nome indica, a operação inversa. Para o efeito, escuto uma gravação que contém o sinal acústico oposto.

Tenho este mecanismo implantado dentro de mim, no meu cérebro. Por outras palavras, não sou mais do que uma espécie de túnel da inconsciência. Tudo passa através de mim. Como tal, de cada vez que procedo a um shuffling, sinto-me terrivelmente vulnerável e inseguro.

Já a lavagem ao cérebro é diferente. Apesar de ser um processo longo e complicado, enquanto o realizo posso sentir-me orgulhoso de mim mesmo, porque ali concentro todas as minhas capacidades.

O shuffling, pelo contrário, não representa motivo de orgulho nem acrescenta nada às minhas capacidades. Nesse processo, sou usado como um mero recetáculo. Alguém processa alguma coisa, sem que eu me dê conta, utilizando uma consciência que me pertence mas que eu desconheço. Por essa razão, nem sequer me considero digno de usar o nome programador.

Como é evidente, não tenho o direito de escolher o tipo de processo que prefiro. Estou autorizado a realizar ambos os tipos de procedimento, tanto o shuffling como a lavagem ao cérebro, mas, na minha qualidade de programador, não me é permitido tomar qualquer iniciativa. Quem não está bem pode sempre abandonar o seu trabalho e mudar de vida. E eu, pela parte que me toca, não faço tenções de deixar de ser programador.

Desde que não se entre em litígio com os elementos armados em importantes que fazem parte do Sistema, nenhum outro ofício me permitirá desenvolver as minhas capacidades individuais com tamanha margem de liberdade, sem esquecer o ordenado, que é bom. Trabalhando uns quinze anos, dá para uma pessoa pôr de lado o suficiente para se reformar e viver tranquila durante o resto da vida. Por isso é que me dispus a ultrapassar uma data de provas e suportei um treino duríssimo.

* * *

A embriaguez não é um impedimento para o shuffling, pelo contrário. Quando ingerido em quantidades moderadas, os próprios especialistas consideram que as bebidas alcoólicas contribuem para diminuir a tensão nervosa. Mas achei melhor eliminar todos os vestígios de álcool do meu corpo. Tanto mais que ficara dois meses sem fazer shuffling, após o método ter sido congelado, razão pela qual necessitava de toda a minha concentração. Tomei um duche frio, dediquei quinze minutos à prática de intensos exercícios de alongamentos e bebi duas chávenas de café bem forte. Devia ser mais do que suficiente para a maior parte do álcool ingerido abandonar de vez o meu organismo.

Abri o cofre, tirei lá de dentro as listas com os valores numéricos convertidos e um pequeno gravador, e coloquei tudo em cima da mesa da cozinha. Preparei o meu bloco de notas e escolhi cinco lápis muito bem afiados.

A primeira coisa, assim que ajustei os auriculares nos ouvidos, foi pôr o gravador a funcionar. Fiz andar o marcador digital até ao dezasseis, depois fi-lo retroceder até ao nove, antes de avançar até ao vinte e seis. Esperei dez segundos; então, o número que aparecia no contador apagou-se e soou um sinal acústico. Qualquer outra operação teria cancelado automaticamente a gravação.

Quando o gravador ficou pronto, coloquei à minha direita um caderno novo e, à esquerda, os valores numéricos convertidos. Concluíra os preparativos. A luz vermelha indicava que estavam ligados os dispositivos de alarme, tanto o da porta como os das janelas, pelos quais se podia aceder à casa. Não cometera qualquer erro. Estendi a mão e carreguei na tecla de reprodução do gravador: começou logo a ouvir-se um sinal acústico e, aos poucos, sem o menor ruído, fui engolido por um tépido mar de caos.

(eu)


O Fim do Mundo

12

O Mapa do Fim do Mundo

Um dia depois do encontro com a minha sombra, comecei logo a desenhar o mapa da Cidade.

Ao cair da tarde, subi à Colina Ocidental, a fim de obter uma perspetiva geral, e contemplei o panorama. Uma vez que a colina não era suficientemente alta para me permitir abarcar a cidade inteira, e porque a minha vista se encontrava bastante mais debilitada, tornou-se impossível distinguir com clareza o traçado da Muralha. Apenas consegui entrever, com maior ou menor nitidez, os contornos da Cidade.

A Cidade não era nem demasiado grande nem demasiado pequena. Quero dizer, não era assim tão vasta que ultrapassasse a minha capacidade de imaginação e de reconhecimento, nem tão minúscula ao ponto de poder ser abrangida na totalidade com um único olhar. Pelo menos foi isso que eu descobri do meu posto de observação no alto da Colina Ocidental. A alta Muralha rodeava a Cidade, o Rio atravessava-a de norte a sul, e o céu, chegando o lusco-fusco, tingia as águas de cinzento-escuro. De um momento para o outro, ouviu-se o som do corno e o ruído dos cascos ressoou nas ruas da cidade.

Ocorreu-me que a única maneira de confirmar qual a configuração da Muralha era contorná-la e seguir a pé ao longo do seu perímetro. Não se anunciava uma empresa fácil. Só podia caminhar pelo exterior ao entardecer ou em dias nublados, e mesmo nessas alturas precisava de ter cuidado para não me afastar muito da Colina Ocidental. Havia sempre a possibilidade de o céu, coberto de nuvens, clarear de repente, ou de começar a chover a cântaros. Por isso mesmo, todas as manhãs perguntava ao Coronel que aspeto tinha o céu. As previsões dele costumavam acertar em cheio.

– É porque não tenho mais nada em que pensar, sabes? – dizia-me o ancião, todo ufano dos seus talentos. – A páginas tantas, quando uma pessoa passa os seus dias a estudar o movimento das nuvens, acaba por aprender em que direção seguem.

O Coronel, porém, não estava em condições de prever as bruscas mudanças meteorológicas. O que significava que era arriscado para mim avançar no terreno.

Ainda por cima, junto à Muralha acumulavam-se arbustos, árvores e pedregulhos, o que me dificultaria a passagem, para não dizer que tornaria o acesso impossível. As casas ficavam todas localizadas no centro, espalhadas ao longo do Rio, e, assim que me afastava do coração da Cidade, tornava-se difícil encontrar um caminho transitável. De todas as vezes que descobria um carreiro pouco frequentado através das ervas, este acabava mais adiante, ou então via-me engolido por arbustos espinhosos, sem outra alternativa a não ser dar meia-volta e regressar ao lugar de onde tinha vindo.

Decidi iniciar a minha exploração pelo extremo ocidental da Cidade, que é como quem diz, nas imediações da Porta Principal, onde se encontrava a cabana do Guardião, e prosseguir no sentido contrário. De início, correu tudo com muito mais facilidade do que eu imaginava. A norte da tal porta, ao longo da Muralha, estendia-se uma pradaria onde crescia erva que dava pela cintura. Recortando-se na paisagem, formando aquilo que parecia ser uma costura numa manta de retalhos, um bonito caminho serpenteava por entre as ervas altas. Pássaros parecidos com andorinhas, que tinham feito o ninho nos campos, levantavam voo a fim de percorrer os céus em busca de alimento e regressavam ao ponto de partida. Viam-se mesmo, embora em número reduzido, alguns outros animais; o pescoço e o dorso assomavam por sobre a erva, como se flutuassem nas águas, deslocando-se lentamente em busca de rebentos verdes necessários à sua alimentação.

Um pouco mais adiante, seguindo sempre ao longo da Muralha, e após virar à direita, rumo a sul, fui dar a uns antigos barracões militares em ruínas. Ao todo, três edifícios de dois andares, sem ornamentos de qualquer espécie, alinhados uns ao lado dos outros. A certa distância via-se um grupo compacto de casas mais pequenas do que a minha, provavelmente destinadas aos oficiais. O casario estava rodeado de muros baixos de pedra: entre uma e outra casa haviam sido plantadas árvores a intervalos regulares e um muro baixo de pedra corria a toda a volta, formando um círculo. Não se via vivalma. Devia ter sido ali que os militares, agora reformados, habitavam antes de terem sido transferidos para o edifício onde eu morava. Por qualquer motivo, talvez os tivessem transferido para a Residência Oficial, situada na Colina Ocidental, e, em resultado disso, as casas tinham ficado ao abandono, entregues à ruína. Pelos vistos, aquele amplo terreno fora utilizado à época como campo de treinos, pois no meio da erva viam-se, aqui e ali, restos de antigas trincheiras e um pedestal de pedra para hastear a bandeira.

Avançando para leste, acabavam os prados e começava o bosque. A princípio, viam-se apenas alguns arbustos isolados, que irrompiam de entre as ervas, mas depois, aos poucos, acabavam por formar um verdadeiro matagal. Cresciam com os troncos delgados entrelaçados, enquanto os ramos se estendiam, alcançando uma altura que ia do meu ombro à minha cabeça. A seus pés crescia uma enorme variedade de plantas e arbustos, por entre os quais despontavam flores escuras do tamanho da ponta de um dedo. À medida que o matagal ganhava espessura, o terreno tornava-se mais abrupto e os arbustos aumentavam em número, em variedade e em escala. Se não fosse pelo gorjeio de um ou de outro pássaro, o silêncio seria absoluto.

Quanto mais me adentrava no estreito trilho cavado no bosque, mais os ramos cerravam fileiras à minha volta, ao ponto de formarem um manto sobre a minha cabeça. O meu campo de visão foi-se reduzindo pouco a pouco, até que perdi de vista a Muralha. Não tive outro remédio senão mudar de direção e rumar a sul por um pequeno caminho que levava à Cidade. Ao entrar na zona urbanizada, atravessei a Ponte Velha e regressei a casa.

* * *

Com o outono à porta, eu continuava sem conseguir traçar um perfil da Cidade que fosse para além de um conjunto de contornos extraordinariamente vagos. Em traços gerais, a zona urbanizada estendia-se para leste e para oeste, ao longo do Rio, delimitada a norte pelo Bosque e, a sul, por uma colina que, na sua encosta oriental, se convertia num áspero e duro solo rochoso, que chegava até junto da Muralha. A leste da Cidade estendia-se uma floresta, mais selvagem e impenetrável que o Bosque localizado a norte, estendendo-se junto às duas margens do Rio. Dos poucos caminhos abertos, apenas um trilho, que bordejava o Rio e conduzia à Porta Oriental, permitia percorrer a pé aquela área, sem perder o contacto com a Muralha, até chegar junto da entrada. Tal como o Guardião me tinha dito, a Porta Oriental estava tapada com cimento, e ninguém podia entrar nem sair.

O Rio precipitava-se impetuosamente desde a Serra Oriental, passando depois por baixo da Muralha, para reaparecer junto à Porta Oriental; a seguir, atravessava a Cidade, já no interior do recinto, voltando a fluir em direção ao exterior e formando nas imediações da Ponte Velha umas bonitas ilhas. Contam-se em três as pontes que atravessam o Rio: a Ponte Ocidental, a Ponte Oriental e, no meio, a Ponte Velha. A Ponte Velha é a mais antiga, e também a mais bonita. O Rio, pouco antes de chegar à Ponte Ocidental, desviava-se bruscamente para sul, traçando uma curva suave ao alcançar a Muralha. Antes de lá chegar, cavava um vale profundo no flanco da Colina Ocidental.

No entanto, o rio não chegava a cruzar a Muralha. Antes de chegar ao muro, formava um Lago cujas águas eram absorvidas para o interior de umas grutas cavadas na montanha. De acordo com a explicação avançada pelo Coronel, do outro lado, por baixo da Muralha, estendia-se um profundo vale calcário a perder de vista, formado por uma infindável rede de correntes subterrâneas.

* * *

Durante esse tempo, escusado será dizer, continuei todos os dias a exercer as minhas funções de leitor de sonhos. Às seis em ponto empurrava a porta, jantava com a bibliotecária e, depois, lia velhos sonhos.

Já me mostrava capaz de ler cinco ou seis por noite. Os meus dedos seguiam habilmente o intrincado traçado das luzes, e eu percebia com maior nitidez as imagens e as ressonâncias. Continuava sem compreender que sentido fazia ler os velhos sonhos, assim como não compreendia os princípios em que se baseavam as minhas funções, mas, a julgar pela reação da jovem, sabia até que ponto o meu labor era satisfatório. Os olhos já não me doíam quando expostos à luz emitida pelos crânios e, nos dias que iam correndo, cansava-me menos. Conforme acabava de ler os sonhos, a bibliotecária alinhava os crânios em cima do balcão. No dia seguinte, porém, quando eu chegava à Biblioteca, os crânios haviam desaparecido sem deixar rasto.

– Estás a fazer grandes progressos – elogiou ela. – O trabalho avança muito mais célere do que o previsto.

– Quantos crânios existem ao todo?

– Muitíssimos. Mil, talvez dois mil. Queres vê-los?

A jovem levou-me até uma espécie de armazém situado por trás do balcão, grande como uma sala de aulas, onde se alinhavam filas e mais filas de estantes, sobre as quais repousavam os crânios brancos dos animais, sucedendo-se uns ao lado dos outros até ao infinito. Era uma visão que fazia lembrar um cemitério. Uma atmosfera glacial evocando a morte pairava sobre a sala.

– Credo! – exclamei. – Na tua opinião, quantos anos vão ser precisos para ler todos estes crânios?

– Não precisas de os ler todos – apressou-se ela a tranquilizar-me. – Basta que leias os que puderes. Quanto aos que ficarem por ler, deles se encarregará o próximo leitor de sonhos. Até lá, os velhos sonhos continuarão a dormir o seu sono.

– E tu também ajudarás o próximo leitor?

– Não, só te ajudo a ti. Assim ficou decidido. Um bibliotecário pode ajudar apenas um único leitor de sonhos. O que significa que, na altura em que deixares este trabalho, eu abandonarei as minhas funções na Biblioteca.

Anuí. Não sabia explicar, mas o que ela acabara de dizer parecia-me uma coisa óbvia. Permanecemos por instantes encostados à parede, a observar os crânios brancos alinhados em cima das estantes.

– Alguma vez foste ao Lago que fica mais a sul? – perguntei-lhe.

– Sim. Há muito tempo. A minha mãe levou-me lá quando eu era pequena. As pessoas não costumavam aventurar-se por aquelas bandas, mas a minha mãe sempre foi especial. Qual a razão de ser dessa pergunta?

– Tenho curiosidade.

Ela abanou a cabeça.

– É um sítio mais perigoso do que tu julgas. Não deves aproximar-te do Lago. Para começar, não tens necessidade disso e, depois, não existe lá nada que mereça a pena ver. Porque é que estás tão interessado no Lago?

– Interessa-me conhecer bem esta terra, de lés a lés. Se não quiseres fazer-me companhia, vou sozinho.

A jovem olhou para mim por breves momentos; em seguida, lançou um pequeno suspiro de resignação.

– De acordo. Uma vez que não pareces ser uma pessoa fácil de convencer, não posso deixar que vás sozinho. Mas lembra-te de que o Lago me provoca um receio tremendo e que será esta a última vez que voltarei àquele lugar. Existe ali qualquer coisa de maligno.

– Não te preocupes – tranquilizei-a. – Se formos os dois juntos e tivermos cuidado, nada nos acontecerá, vais ver.

Ela abanou de novo a cabeça.

– Como nunca lá estiveste, não sabes o medo que me dá aquele sítio! Não estamos a falar de uma água normal. Está amaldiçoada. Parece que chama por nós...

– Faremos de modo a não nos aproximarmos muito – prometi, pegando-lhe na mão. – Limitar-nos-emos a olhar à distância. Só pretendo dar uma espreitadela.

* * *

Numa tarde escura de novembro, depois de termos almoçado qualquer coisa, pusemo-nos a caminho do Lago. Pouco antes de chegarmos, o Rio formava uma profunda depressão escavada na encosta oeste da Colina Ocidental; densos arbustos invadiam o acesso ao longo da estrada, obrigando-nos a contornar a colina por trás, mais a sul. Como tinha chovido de manhã, o terreno estava húmido e pesado, fazendo com que os nossos pés se afundassem a cada passo sobre uma espessa camada de folhas mortas. A meio do trajeto, cruzámo-nos com dois unicórnios que vinham em sentido contrário. Passaram por nós sem demonstrar o mínimo interesse, fazendo oscilar ao de leve, da direita para a esquerda, os seus pescoços dourados.

– O alimento começa a escassear – referiu ela. – Aproxima-se o inverno e os bichos procuram desesperadamente os últimos frutos das árvores. Por isso é que se arriscaram a vir até aqui. Por norma, nunca acontece.

Assim que nos afastámos da encosta, deixámos de encontrar animais. O caminho propriamente dito acabava ali. À medida que avançávamos, atravessámos campos desertos onde não se via uma alma, apenas grupos de casas desabitadas e em ruína, ao mesmo tempo que chegava até nós o inconfundível fragor da água.

Tratava-se de um som diferente de todos os que eu ouvira até à data.

Era diferente do rugido das cascatas, do uivo do vento, do ribombar da terra. Dir-se-ia um suspiro exalado pela garganta de um gigante. Diminuía e aumentava de volume, volta e meia interrompia-se, para depois continuar. Outras vezes mudava de tom, transformando-se num clamor sufocado.

– Dá a impressão de estar alguém a gritar alguma coisa – aventei.

Ela virou-se para mim sem pronunciar palavra. Seguia à minha frente, com as mãos protegidas pelas luvas, apartando os arbustos à medida que avançava.

– O caminho está muito pior do que antes – comentou. – Da última vez, não se mostrava em condições tão adversas. Se calhar, faríamos melhor em voltar para trás. Que me dizes?

– Uma vez que chegámos até aqui, julgo que devemos prosseguir.

Avançámos durante vários minutos pelo meio dos arbustos, guiados pelo rumor das águas, até que, de repente, diante dos nossos olhos se apresentou um vasto panorama. Ali chegava ao fim o extenso matagal e começava uma ampla planície que bordejava o Rio. Do lado direito, o cenário era dominado por um vale profundo cavado pela corrente. Ao sair da garganta e atravessando o vale, a corrente começava a diminuir, parecendo amansada, e, ganhando agora um sinistro tom azul-escuro, avançava lentamente, como uma serpente que tivesse acabado de digerir um pequeno animal mamífero, até ganhar a forma de um gigantesco lago.

– Não te aproximes demasiado – alertou a rapariga, agarrando-me por um braço. – A olho nu, a água pode parecer calma e sem ondas, mas não te fies demasiado. Lá em baixo existem remoinhos terríveis. Se fores engolido, jamais voltarás à superfície.

– O Lago é assim tão fundo?

– Tem uma profundidade incrível... Só te posso dizer que os remoinhos são como uma espécie de broca que não para de escavar continuamente o fundo das rochas. Dizem que, antigamente, era para ali que atiravam os hereges e os criminosos...

– E o que lhes acontecia?

– Nunca mais regressavam à superfície. Deves ter ouvido falar das cavernas, não é verdade? Debaixo do Lago abrem-se inúmeras grutas e, se fores sugado para o seu interior, ficarás condenado a vogar nas trevas durante toda a eternidade.

O ensurdecedor barulho da respiração, que brotava do Lago como se fosse uma nuvem de vapor, dominava o espaço em redor. Pareciam gemidos de agonia, oriundos das profundezas da Terra.

A jovem apanhou um fragmento de madeira que lhe cabia na mão e atirou-o para o meio do lago. A madeira embateu nas águas, flutuou durante cinco segundos e, de súbito, com um pequeno estremecimento, afundou-se, como se alguém a tivesse puxado com força, não voltando a aparecer à superfície.

– Já te disse que há fortes sorvedouros que sugam tudo para o fundo. Viste o que acabou de acontecer ao pedaço de madeira?

Sentámo-nos na erva, a cerca de dez metros do Lago, e comemos o pão que tínhamos levado no bolso. Do ponto onde nos encontrávamos, a paisagem em redor respirava paz e tranquilidade. As flores enchiam os campos de tons outonais, os ramos das árvores mostravam-se cheios de folhas de um vermelho-vivo e, no centro do Lago, a superfície mostrava-se lisa como um espelho, sem uma única onda capaz de turvar as águas. Do outro lado erguia-se, imponente, uma falésia calcária formada pela Muralha de tijolos negros. Tirando o profundo arquejar oriundo do Lago, reinava um silêncio total nas redondezas. Nem as folhas se mexiam.

– Por que razão queres tanto esse tal mapa do território? – perguntou ela. – Mesmo que o consigas fazer, não poderás abandonar a Cidade.

Ao dizer aquilo, sacudiu as migalhas de pão que lhe tinham caído no colo e dirigiu o olhar para o Lago.

– O que te leva a querer sair daqui? – voltou ela à carga.

Abanei a cabeça em silêncio. Nem sequer percebia ao certo se com aquele gesto queria dizer que não, que ainda não decidira, ou se negava apenas por não saber o que pensar, tamanha era a confusão que ia na minha cabeça.

– Não sei – respondi. – Só quero conhecer melhor esta cidade. Que forma tem, como é constituída, qual a sua história, quem nela habita e que vida leva. Quero saber tudo. Quem faz as regras que me são impostas, o que me faz mover: é isso que eu pretendo apurar. Porque a verdade é que não sei o que vou encontrar no futuro.

Ela virou lentamente a cabeça, da direita para esquerda, e olhou para mim de frente.

– Não há futuro – disse. – Não compreendes? Isto é o fim do mundo. Temos de ficar aqui eternamente.

Estendi-me de costas e ali fiquei, a contemplar o céu. Escuro e nublado, como sempre. Tinha diante de mim o único céu que me era dado a ver. O solo, empapado pela chuva caída durante a manhã, estava húmido e frio, mas, apesar disso, a terra exalava um agradável odor.

Com um bater de asas, alguns pássaros de inverno levantaram voo dos arbustos e, ao passar por cima da Muralha, desapareceram no céu, rumo a sul. Só os pássaros podiam sobrevoar a Muralha. As nuvens baixas anunciavam que se aproximava um inverno rigoroso.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

13

Frankfurt. Porta.
Organização Independente

Como sempre, fui recuperando consciência gradualmente, a partir dos extremos do meu campo de visão. Primeiro, a porta da casa de banho apareceu no ângulo direito do meu campo visual; a seguir, no esquerdo, foi a vez de distinguir os contornos do candeeiro da mesa da cozinha; depois, a minha atenção começou a alargar-se para o centro, da mesma forma que o gelo vai aos poucos cobrindo a superfície de um lago, acabando por confluir num ponto central. No meio do meu campo visual havia um relógio-despertador, cujos ponteiros apontavam para as onze e vinte e seis minutos. Aquele despertador tinha sido um presente que me calhara em sorte no final de uma cerimónia de casamento. Para apagar o zumbido do alarme é preciso apertar em simultâneo um botão vermelho localizado no lado esquerdo e outro preto no lado direito. Caso contrário, o despertador continua a tocar. Este original mecanismo tem por objetivo impedir que as pessoas, naquele que é um gesto automático muito habitual, desliguem o alarme sem estarem completamente acordadas e continuem a dormir. O certo é que, mal o alarme se punha a tocar, não tinha outro remédio senão levantar-me da cama, colocar o despertador sobre os joelhos e apertar ao mesmo tempo os dois botões, com a mão esquerda e a mão direita, altura em que a minha mente se via obrigada a dar um passo ou dois e penetrar no mundo real.

Correndo o risco de me repetir, torno a dizer que o despertador me foi oferecido num casamento. Agora o casamento de quem é que não me recordo, confesso. Houve uma época em que eu tinha muitos amigos e conhecidos com idades que rondavam os vinte e cinco anos, e passava a vida a ser convidado para as cerimónias de casamento deles. O certo é que nunca antes comprara um objeto ao mesmo tempo tão idiota e tão complicado, em que fosse preciso apertar dois botões para acabar de vez com a chinfrineira. Até porque, regra geral, sou uma pessoa que tem muito bom acordar.

Quando a minha visão se focou no ponto onde se encontrava o despertador, eu, num gesto reflexo, peguei nele, pu-lo no colo e com ambas as mãos apertei os botões, tanto o preto como o vermelho. Só depois me dei conta de que não estava a tocar. Eu não me fora deitar nem tinha ido dormir, logo, não tivera necessidade de pôr o despertador; limitara-me a colocá-lo, por puro acaso, em cima da mesa da cozinha. Era isso! Tinha estado a fazer um shuffling. A cena do despertador não fazia sentido.

Deixei ficar o relógio em cima da mesa e olhei em volta. Continuava tudo igual. A luz vermelha indicava que o alarme estava ligado. A um canto da mesa havia uma chávena de café vazia, mesmo junto a um cinzeiro com o que restava de um cigarro que a bibliotecária fumara. Era um Marlboro Light, sem vestígios de batom. Agora que pensava nisso, ela não usava maquilhagem.

Depois examinei o caderno e os lápis pousados diante de mim. Dos cinco lápis bem afiados, dois estavam sem bico, outros dois completamente gastos e apenas um se encontrava intacto. No dedo anelar da mão direita sentia ainda um ligeiro intumescimento, provocado por ter estado a escrever durante muito tempo seguido. O shuffling tinha ficado concluído. Dezasseis páginas do caderno cheias de dados numéricos, anotados numa caligrafia fina e apertada.

Seguindo as instruções do manual, comparei os valores numéricos resultantes do shuffling com os valores numéricos convertidos na lavagem, após o que queimei a segunda lista e fiz desaparecer as cinzas no lava-loiça. Enfiei o caderno numa caixa e guardei-o juntamente com o gravador no cofre. Em seguida, sentei-me no sofá da sala e suspirei. Metade do trabalho estava concluído. Ainda tinha pela frente um dia livre.

Servi-me de dois dedos de uísque, fechei os olhos e bebi-o em dois tragos. O calor vivo do álcool atravessou-me a garganta, deslizou pelo esófago e atingiu-me em cheio no estômago. Transportado pelo sangue, o calor libertado propagou-se pelas minhas veias, transmitindo-se a todo o corpo. Fui à casa de banho, lavei os dentes, bebi dois copos de água, urinei. De regresso à cozinha, afiei os lápis e arrumei-os por ordem na caixa. Depois tratei de devolver o despertador à mesinha de cabeceira e de desligar o atendedor de chamadas. O relógio indicava que eram onze e cinquenta e sete da noite. Tinha o dia seguinte livre, um dia inteiro para mim. Despi-me à pressa, vesti o pijama, enfiei-me entre os lençóis e, após ter puxado a roupa de cama até ao pescoço, apaguei a luz do candeeiro que tinha à cabeceira. Estava decidido a dormir doze horas a fio. Ninguém poderia impedir-me de dormir durante doze horas a fio. Mesmo que as aves cantassem, mesmo que as pessoas apanhassem o metro para ir trabalhar, mesmo que algum vulcão entrasse em erupção, mesmo que comandos israelitas arrasassem uma povoação palestiniana, algures no Médio Oriente... eu continuaria a dormir.

Voltei à minha velha fantasia e pus-me a remoer no que faria quando abandonasse a profissão de programador. Com o dinheiro que tinha posto de parte (amealhara uma quantia considerável), e somando a isso o dinheiro da reforma, poderia viver sem preocupações, aprender grego e a tocar violoncelo. Enfiaria o estojo do violoncelo no assento traseiro do carro, iria de viagem até às montanhas e ali praticaria os meus exercícios musicais, nas calmas.

Se as coisas corressem pelo melhor, talvez pudesse até comprar uma casita na montanha. Uma pequena cabana, com uma cozinha bem equipada, onde passaria os dias a ler, escutando música, assistindo a filmes antigos no videogravador, cozinhando... Não me desagradava nada a ideia de ter ao meu lado a rapariga dos longos cabelos compridos, a encarregada das consultas na biblioteca. Eu cozinharia e ela comeria.

Enquanto pensava em comida, adormeci. O sono apoderou-se de mim, como se o céu tivesse caído sobre a minha cabeça. O violoncelo, a cabana, a comida... tudo isso se esfumou, convertido em pequenos fragmentos. Fiquei só eu, a dormir como uma pedra.

* * *

Havia alguém que me tinha aberto um buraco no cérebro com uma broca e que tentava introduzir lá dentro uma folha dura, tipo papel de carta. A tira de papel era enorme e duríssima, e cada vez ia penetrando mais fundo. Eu procurava afastá-la com a mão, mas, por mais que tentasse, a tira continuava a enterrar-se na minha cabeça.

Sentei-me e passei as mãos pela cabeça: não encontrei vestígios da tal tira de papel. Apalpei e tão-pouco encontrei qualquer orifício. Estava a tocar uma campainha. Por sinal, uma campainha que não parecia querer parar. Agarrei no despertador, coloquei-o em cima dos joelhos e carreguei com ambas as mãos, no botão vermelho e no preto. A chinfrineira continuou. Era o telefone. O relógio marcava as quatro e dezoito. Lá fora ainda estava tudo escuro. Ou seja, eram quatro e dezoito da madrugada.

Saltei da cama, dirigi-me à cozinha e levantei o auscultador. Sempre que me telefonam a altas horas da noite, juro a mim próprio que, da próxima vez, antes de me deitar, levarei o telefone comigo para o quarto, mas depois esqueço-me. E acabo sempre por dar uma topada na esquina da mesa da cozinha ou ir contra o fogão.

– Estou? – disse eu.

Não se ouviu nenhum som do lado de lá do fio. Silêncio total, como se o telefone estivesse enterrado na areia.

– Estou?!! – berrei, perdendo a paciência.

Do outro lado, ninguém dava sinal de vida. Nem sequer se ouvia o ruído de uma respiração. O silêncio era tão absoluto que dava a sensação de que se transmitia através do fio telefónico, preparando-se a todo o momento para me arrastar com ele. Irritado, desliguei, fui ao frigorífico buscar uma garrafa de leite, bebi o leite em grandes goladas e regressei para o vale de lençóis.

Quando o telefone voltou a tocar, eram quatro e quarenta e seis minutos da manhã. Levantei-me, fiz o mesmo percurso, estendi a mão para levantar o auscultador do telefone e atendi.

– Estou?

– Sim? – respondeu uma voz feminina, que eu não consegui identificar. – Desculpa por aquilo de há bocado. O som vai e vem. Desaparece de vez em quando, sabes?

– O som desaparece de vez em quando?

– Sim, isso mesmo – respondeu ela. – Desde há bocado que se nota uma grande perturbação nos campos sonoros. De certeza que aconteceu alguma coisa ao meu avô. Estás a ouvir-me?

– Sim, oiço-te – afirmei. Era a neta daquele velhote estrambótico que me presenteara com o crânio do unicórnio. A jovem gordinha do fato saia-casaco cor-de-rosa.

– O meu avô ainda não voltou para casa. E o som alterou-se de repente. De certeza que lhe sucedeu alguma coisa de grave. Experimentei telefonar para o laboratório, mas não me respondeu... Estou convencida de que os Invisíveis lhe deitaram a mão e lhe fizeram mal.

– Tens a certeza? Não se terá dado o caso de o teu avô ficar absorvido nas suas experiências, esquecendo-se por completo de regressar a casa? Da última vez, se bem te lembras, nem dera conta de que te tinha tirado o som durante uma semana inteira. Não sei, mas palpita-me que estamos a falar de uma pessoa com tendência para se esquecer de tudo o resto quando mergulha nas suas pesquisas.

– Não, não é isso. Desta vez é diferente. Falo com conhecimento de causa. Entre mim e ele existe uma ligação muito forte. Uma espécie de telepatia, que nos permite saber sempre quando sucede qualquer coisa ao outro. E eu sei que aconteceu alguma coisa ao meu avô. Algo de terrível. Além do mais, destruíram a barreira do som. Por isso é que o campo sonoro está tão alterado no subterrâneo.

– O que é isso da barreira do som?

– É um dispositivo que emite um som especial para manter os Invisíveis afastados. Foi destruído, e todo o equilíbrio sonoro desta zona ficou seriamente afetado. Sei, de ciência certa, que os Invisíveis atacaram o meu avô.

– Com que finalidade?

– Andam atrás dos resultados da pesquisa desenvolvida por ele. Os Invisíveis, os Semióticos... não escapa ninguém. Querem a todo o custo deitar a mão às suas investigações. Fizeram-lhe uma proposta, mas o meu avô ficou furibundo e recusou-se a negociar com semelhante gentalha. Por favor! Vem assim que puderes. Está a acontecer algo de muito grave. Ajuda-me, peço-te.

Imaginei os Invisíveis vagueando pelo tenebroso subterrâneo. Só a ideia de me ver obrigado a descer àquele lugar fazia-me pele de galinha.

– Sei que isto pode parecer uma coisa horrível para se dizer, acredita. Tenho muita pena, mas sou programador de profissão. No meu contrato não estão incluídos outros serviços e, além disso, não creio que servisse de grande coisa. Gostaria imenso de te ajudar, mas lutar contra os Invisíveis a fim de resgatar o teu avô ultrapassa em muito as minhas competências. Porque não chamas a polícia ou os responsáveis pelo Sistema?... Quero dizer, gente especialmente treinada para lidar com casos desta natureza?

– Chamar a polícia está fora de questão. Se as forças da autoridade fossem chamadas a intervir, teria de lhes explicar a situação e ficaria a saber-se tudo. Se as investigações do meu avô forem tornadas públicas, será o fim do mundo.

– O fim do mundo?

– Por favor – insistiu a rapariga. – Vem depressa ajudar-me! Se não o fizeres, as consequências serão irreparáveis. E, a seguir ao meu avô, vão procurar-te a ti.

– A mim? Ainda se fosses tu a visada... Mas porquê eu?

– Porque és tu a chave. Sem ti não vão conseguir abrir a porta.

– Não percebo do que me estás a falar – disse eu.

– Agora, por telefone, não tenho tempo para te dar pormenores. Mas trata-se de um assunto grave, muito mais grave do que possas imaginar. Acredita em mim quando te digo que é uma questão de vida ou de morte para ti. A sério. Não há tempo a perder. Ou será o fim. Palavra de honra que não te estou a mentir.

– Só me faltava mais esta! – exclamei, olhando para o relógio. – De qualquer maneira, o melhor que tens a fazer é desaparecer do mapa quanto antes. A ser verdade o que dizes, corres perigo.

– E para onde é que posso ir?

Dei-lhe a morada de um supermercado de Aoyama que ficava aberto durante toda a noite.

– Espera por mim lá dentro, na cafetaria. Chegarei por volta das cinco e meia.

– Estou cheia de medo. Qualquer coisa...

* * *

O som desapareceu de novo. Gritei o mais alto que pude ao telefone, sem obter resposta. O silêncio desprendia-se do auscultador como fumo vomitado pela boca de uma arma de fogo. Se calhar, voltara a haver problemas de insonorização. Desliguei, despi o pijama, enfiei uma T-shirt e umas calças de algodão. A seguir, fui para a casa de banho fazer a barba com a máquina elétrica num instante, lavei a cara e penteei-me em frente ao espelho. Devido à privação de sono, a minha cara estava inchada como um bolo de queijo baratucho. Só tinha um desejo: dormir. Seria pedir muito? Dormir tudo o que precisava de dormir, para recuperar forças e levar uma vida normal, uma vida igual à das pessoas vulgares. Porque seria que aquela gente não me deixava em paz? Primeiro, a história dos unicórnios; agora, os Invisíveis... Que diabo tinha tudo isso que ver comigo?

Vesti um corta-vento por cima da roupa; guardei a carteira, uma navalha e os trocos que levava no bolso. Após um momento de hesitação, envolvi o crânio do unicórnio num par de toalhas e meti-o, juntamente com as pinças metálicas, num saco de desporto, ao lado do cofre contendo os valores resultantes do shuffling. Decididamente, o meu apartamento não era seguro. Para um profissional, forçar a fechadura da porta ou do cofre seria tão fácil como lavar uma peúga.

Por fim, calcei os ténis (um dos sapatos continuava por lavar), peguei no saco desportivo e saí de casa. O corredor estava vazio. Desci pelas escadas, evitando o elevador. Ainda não amanhecera e o prédio estava mergulhado no mais completo silêncio. No parque de estacionamento, a mesma coisa: não se via ninguém.

Esquisito. Estava tudo demasiado tranquilo. No caso de andarem atrás do crânio, o normal era que tivessem deixado ao menos um tipo qualquer a vigiar; mas não, ali não havia ninguém. Dir-se-ia que se tinham esquecido da minha existência.

Abri a porta do carro, pousei o saco no banco da frente e pus o motor a funcionar. Eram quase cinco da matina. Saí da garagem sempre a olhar com atenção em todas as direções e dirigi-me para Aoyama. As ruas estavam desertas, quase sem trânsito, tirando os táxis, que se apressavam na hora de os seus motoristas regressarem a casa, e algum camião de transporte noturno. Volta e meia, deitava uma olhadela através do espelho retrovisor: ninguém me seguia.

Os acontecimentos começavam a tomar um rumo estranho. Conhecia muito bem a maneira de trabalhar dos Semióticos. Quando perseguiam qualquer objetivo, empregavam todos os meios ao seu alcance para os fins que pretendiam obter. Subornar um empregado anódino da companhia de gás ou afrouxar a vigilância da pessoa que tinham debaixo de olho não era o seu estilo. Escolhiam sempre o método mais eficaz e não hesitavam na hora de o pôr em prática. Uma vez, dois anos antes, haviam sequestrado cinco programadores e, com uma serra elétrica, tinham-lhes cortado a parte superior do cérebro com o propósito de extrair os dados que continham, isto quando eles ainda estavam vivos. Fracassaram no seu intento e, mais tarde, foram encontrados os cinco cadáveres, despojados de cérebro e sem a calota craniana, a flutuar na baía de Tóquio. Aquele pessoal da Fábrica, os Semióticos, não estava com meias-medidas. Havia ali qualquer coisa que não fazia sentido.

Cheguei ao estacionamento do supermercado às cinco e vinte e oito minutos, quase em cima da hora marcada. A leste, o céu começava a adquirir uma tonalidade leitosa. Com o saco a tiracolo, entrei no supermercado. Aquela grande superfície encontrava-se quase deserta. Sentado ao pé da caixa, um jovem funcionário com uniforme às riscas lia uma das revistas que estavam à venda. Uma mulher de idade e profissão indefinidas passeava pelos corredores, empilhando latas de conserva e comida pré-cozinhada no seu carrinho de compras. Dobrei a esquina, passei pela secção de bebidas alcoólicas e fui direito à cafetaria.

A jovem não estava sentada em nenhum dos doze tamboretes alinhados diante do balcão. Sentei-me na ponta e mandei vir um copo de leite frio e uma sanduíche. O leite, de tão frio, não sabia a nada, e o pão, envolto em película transparente, estava mole e espapaçado. Comi a sanduíche com todo o vagar, dando pequenas dentadas no pão, e bebi o leite do mesmo modo, aos golinhos. Durante algum tempo entretive-me a apreciar um cartaz turístico de Frankfurt, pendurado na parede mesmo à minha frente. Era uma vista da cidade no outono. As folhas das árvores situadas junto ao rio tinham adquirido uma tonalidade avermelhada, os cisnes nadavam à superfície das águas e um velho de casaco preto e gorro com viseira dava-lhes de comer. Via-se uma velha e majestosa ponte de pedra e, ao fundo, a torre da catedral. Olhando com atenção, descobri, nas duas extremidades da ponte, várias casinhas de pedra, uma espécie de guaritas. Não sei para que serviriam. O céu era azul, as nuvens brancas. Havia muitas pessoas sentadas nos bancos, à beira-rio, todas com casacos vestidos; algumas mulheres tinham um lenço na cabeça. Apesar de ser uma bonita fotografia, só de olhar para ela ficava com frio. Sem dúvida que a paisagem outonal de Frankfurt, em parte, já o sugeria; mas a mim, confesso, uma torre alta com um campanário provoca-me sempre calafrios.

Como tal, dirigi o olhar para a parede oposta, onde se via um cartaz a fazer publicidade a uma marca de cigarros. Um homem ainda jovem, de pele lisa, segurava entre os dedos um cigarro aceso, olhando de soslaio com uma expressão distraída. Porque será que os modelos que fazem propaganda a marcas de tabaco têm sempre aquele ar de quem não está a ver nada em concreto, de quem não está a pensar em nada de especial?

Ao contrário do que me acontecera com a imagem de Frankfurt, aquele cartaz não tinha muito para ver, de modo que dei meia-volta e pus-me a observar o supermercado.

Pedi um café quente e saboreei-o devagar, sem acrescentar açúcar nem leite.

A partir das seis, o número de clientes começou a aumentar. Donas de casa que iam comprar pão e leite para o pequeno-almoço, estudantes que regressavam a casa depois de uma direta e que passavam pela cafetaria para comer uma refeição ligeira. Houve uma rapariga que comprou papel higiénico, um empregado de escritório adquiriu três jornais diferentes e dois homens de meia-idade, com tacos de golfe, entraram para comprar uma garrafa de uísque. Na realidade, deviam ter trinta e muitos anos, como eu. Pensando bem, eu próprio poderia ser considerado um homem de meia-idade. Se pareço mais jovem é porque não carrego tacos de golfe nem visto a roupa usada por esse tipo de jogadores.

Ainda bem que combinara o encontro com ela num supermercado. Noutro lugar qualquer teria sido mais difícil matar o tempo. Adoro supermercados.

Esperei até às seis e meia. A essa hora, desisti, regressei ao sítio onde deixara o carro e dirigi-me à estação de Shinjuku. Aí chegado, estacionei a viatura no parque, peguei no saco, fui até ao balcão de depósito de bagagens e pedi para mo guardarem. Ao avisar o funcionário para ter cuidado ao manuseá-lo porque tinha coisas frágeis lá dentro, ele atou à asa do saco uma etiqueta vermelha a dizer FRÁGIL que mostrava um copo de cocktail. Vi-o guardar o meu saco azul num cacifo e recebi das mãos dele o comprovativo. Em seguida, fui até ao quiosque dos jornais, comprei um envelope e selos no valor de duzentos e sessenta ienes, guardei o comprovativo dentro do envelope, fechei-o, colei os selos e enviei a carta por correio para um apartado postal secreto que eu próprio abrira em nome de uma empresa fictícia. Desta maneira era pouco provável que dessem com ele. Por vezes, servia-me deste estratagema como medida de segurança.

Depois fui buscar o meu carro ao parque de estacionamento e regressei a casa. Só de pensar que já não corria o risco de ser roubado, sentia um grande alívio. Meti o carro na garagem, subi as escadas, entrei em casa, tomei duche e enfiei-me na cama. Adormeci como se nada se tivesse passado.

* * *

Às onze, recebi uma visita. Considerando o rumo que os acontecimentos haviam tomado, confesso que já esperava, de maneira que não fiquei muito espantado. Contudo, os visitantes em questão não tocaram à campainha: atiraram o corpo de encontro à porta e entraram por ali dentro de roldão. Talvez a expressão «atirar o corpo de encontro à porta» não seja a mais precisa, visto que não só derrubaram a porta, como rebentaram com ela, batendo-lhe com uma ferramenta metálica, daquelas que se usam nos estaleiros para demolir edifícios, ao ponto de o chão estremecer como gelatina. Foi pavoroso. Usando aquela força toda, podiam ter obrigado o porteiro a entregar-lhes a chave-mestra dos apartamentos. Pelo menos, sempre evitariam que eu me metesse em despesas, vendo-me obrigado a pagar a reparação da porta. Além disso, e após semelhante manifestação de brutalidade, arriscava-me a ser expulso do prédio.

Enquanto aquela gentinha deitava a porta abaixo, vesti as calças, meti a cabeça pelo buraco da camisola, escondi a navalha no cinto e fui à casa de banho fazer uma mija. Por mera precaução, abri o cofre, carreguei no botão de segurança do gravador e apaguei a gravação. Fui ao frigorífico, tirei lá de dentro uma cerveja e a salada de batata, e almocei sem pressas. Se quisesse, podia sempre escapar pela escada de incêndio que havia das traseiras, mas estava demasiado cansado. Para quê dar-me a esse trabalho? Não ia resolver os problemas que me apoquentavam naquele preciso momento. A verdade é que estava metido – melhor dizendo, tinham-me metido – numa situação extraordinariamente crítica e, sem ajuda de fora, não conseguiria resolver o problema. Precisava seriamente de falar com alguém.

Deslocara-me ao laboratório subterrâneo de um cientista, que tinha solicitado os meus serviços para lhe processar alguns dados. Na ocasião, o indivíduo oferecera-me o crânio de um unicórnio, que eu levara para casa. Passado pouco tempo, um empregado da companhia de gás, provavelmente subornado pelos Semióticos, introduzira-se no meu apartamento sob um falso pretexto e tentara apoderar-se do crânio. De madrugada, a neta do homem que me havia contratado telefonara-me, dizendo que o avô fora raptado pelos Invisíveis e pedindo a minha ajuda. Tínhamos marcado encontro num sítio, mas ela não comparecera. Resumindo, eu tinha em meu poder dois objetos de grande valor. Um era o famoso crânio; o outro, os dados resultantes do shuffling. E ambos encontravam-se escondidos no depósito de bagagens da estação de Shinjuku.

Uma embrulhada de todo o tamanho. Precisava que alguém me desse uma pista. Caso contrário, arriscava-me a ter de passar a vida a fugir com o crânio do unicórnio debaixo do braço.

Bebi o resto da cerveja, acabei de comer a salada de batata e, no preciso momento em que deixava escapar um suspiro de satisfação, ouviu-se um estrondo, que mais parecia uma explosão, e a porta blindada abriu-se bruscamente, deixando entrever o maior e mais encorpado homem que eu jamais vira nos dias da minha vida. Trazia uma camisa havaiana com um estampado chamativo, calças militares de cor caqui cheias de nódoas de gordura e uns sapatos de ténis enormes que mais pareciam umas barbatanas de mergulho. Tinha a cabeça rapada, o nariz esborrachado e o pescoço tão grosso como o tórax de uma pessoa normal. As pálpebras eram escuras e espessas como metal, e o branco dos seus olhos mortiços revelava-se desagradavelmente viscoso. Pareciam olhos artificiais de vidro, mas, observando com atenção, comprovei que as suas pupilas efetuavam um movimento rápido de vez em quando, pelo que deviam ser autênticos. Mediria cerca de um metro e noventa e cinco. Tinha os ombros largos, e a enorme camisa havaiana, que parecia feita a partir de um lençol rasgado em dois, estava-lhe tão apertada no peito que os botões pareciam prestes a saltar de um momento para o outro.

O Calmeirão fitou a porta que acabara de rebentar com a mesma expressão com que teria olhado para a rolha de uma garrafa de vinho acabada de abrir, e depois virou-se para mim. Não parecia nutrir grande simpatia pela minha pessoa. Observou-me como se eu fizesse parte da mobília. Em rigor, bem que naquela hora gostaria de o ser...

À medida que o homenzarrão começou a aproximar-se de mim, apareceu por trás dele um homenzinho magro, com feições regulares, que não devia ter mais de um metro e meio de altura. Trazia vestido um polo azul-celeste, calças de pinças de cor bege e sapatos castanho-claros. No seu pulso brilhava um Rolex de ouro exageradamente grande, mas, como não se fabricam relógios Rolex para crianças, escusado será dizer que ficava enorme nele. Fazia lembrar um daqueles aparelhos transmissores que as personagens do Star Trek usam. Devia ter trinta e muitos ou, quando muito, quarenta e poucos anos. Com vinte centímetros mais, poderia ter sido ator de segunda em qualquer série de televisão.

O Calmeirão entrou na cozinha sem tirar os sapatos, deu a volta à mesa e puxou a cadeira que estava mesmo à minha frente. Só depois é que o Minorca avançou lentamente e se sentou. O Calmeirão encostou-se ao lava-loiça, cruzou os braços no peito – por sinal, uns braços do tamanho das coxas de um homem normal – e cravou aqueles olhos apagados e sem expressão num ponto acima dos meus rins. Devia ter fugido pela escada de incêndio enquanto podia. Sem dúvida que eu tinha cometido um grave erro, ao avaliar a situação.

O Minorca não se dignou olhar para mim, nem sequer se deu ao trabalho de me saudar. Sacou do bolso um maço de cigarros e um isqueiro, que alinhou em cima da mesa. O tabaco era Benson & Hedges e o isqueiro um Dupont de ouro. Estava à vista por que razão os governos dos países estrangeiros mentiam quando se referiam ao desequilíbrio da balança comercial. O pequenote pegou no isqueiro e pôs-se a brincar com ele, fazendo-o rodar entre os dedos com grande habilidade. Parecia um número de circo, mas o certo é que eu não me lembrava de ter solicitado uma sessão do género ao domicílio.

Procurei em cima do frigorífico, localizei o cinzeiro com a marca Budweiser, que, tempos antes, me tinham dado num bar qualquer, limpei o resto das cinzas com os dedos e depositei-o à frente do pequenitates. Produzindo um som seco e metálico, este acendeu um cigarro, semicerrou os olhos e soprou o fumo, que se espalhou pela divisão. As suas dimensões tinham qualquer coisa de bizarro. Cara, mãos, pernas: tudo nele era diminuto e desproporcionado. Dir-se-ia uma cópia em tamanho pequeno de uma pessoa normal. Em resultado disso, o cigarro Benson & Hedges que ele empunhava parecia do tamanho de uma lapiseira.

Sem dizer uma palavra, o Minorca mantinha os olhos cravados na ponta acesa do cigarro. Num filme de Jean-Luc Godard, aquela cena teria como legenda: «O homem vê o cigarro consumir-se.» Por sorte ou por azar, os filmes de Godard tinham deixado de estar na moda. Quando grande parte da ponta do cigarro se transformara num rolo de cinza, o homem sacudiu-a para cima da mesa. Sem passar cartão ao cinzeiro.

– No que respeita à porta... – começou por dizer o Minorca, com um timbre de voz agudo e penetrante – ... vimo-nos forçados a deitá-la abaixo. O que tem de ser tem muita força. Se quiséssemos, podíamos tê-la aberto nas calmas, com a chave, mas tínhamos as nossas razões. Espero que não nos guardes rancor.

– Aqui neste apartamento não vão encontrar nada. Por mais que procurem, não encontrarão nada – insisti.

– Procurar? – referiu o Minorca com um ar espantado. – Procurar? – Com o cigarro pendurado na boca, coçou a palma da mão. – Para encontrar o quê, não me dirás?

– Isso já não sei. Devem ter vindo aqui à procura de qualquer coisa, certo? Por alguma razão rebentaram com a porta...

– Não entendo patavina do que estás para aí a dizer – voltou o pequenitates à carga. – Creio que estás enganado. Nós não queremos nada. Viemos apenas ter uma conversa contigo. Estamos aqui para falar, só isso. Não procuramos nada, não queremos nada. Bom, uma Coca-Cola, se por acaso tiveres, até bebia...

Abri a porta do frigorífico, tirei duas latas de Coca-Cola que tinha comprado para misturar com o uísque e coloquei-as em cima da mesa, juntamente com dois copos. A seguir, peguei numa lata de cerveja Ebisu para mim.

– Calculo que ele também quererá uma – disse eu, indicando o gigante atrás de mim.

A um sinal do Minorca, o outro aproximou-se sem fazer barulho e pegou na lata de Coca-Cola que estava em cima da mesa. Tendo em conta a sua encorpada envergadura, movia-se com surpreendente agilidade.

– Quando acabares de beber, faz aquele truque que sabes – pediu o Minorca. Depois, dirigindo-se a mim, acrescentou rapidamente: – Uma pequena demonstração.

Voltei-me e fiquei ali a observar o Calmeirão a beber a Coca-Cola de um trago. Mal acabou, e após virar a lata para comprovar que não restava nem uma gota lá dentro, colocou-a entre as palmas das mãos; então, sem mover um músculo da cara, espalmou-a por completo. Com um ruído que fazia lembrar papel de jornal ao sabor do vento, a lata vermelha de refrigerante ficou transformada numa fina lâmina de metal.

– Bom, isto é uma coisa que qualquer um consegue – disse o Minorca.

Qualquer pessoa menos eu, pensei.

Foi então que o Calmeirão pegou na dita folha de metal espalmada com os dedos e, esboçando um leve esgar, a rasgou de alto a baixo. Certa ocasião, tinha visto fazer o mesmo com uma lista telefónica, mas era a primeira vez que alguém rasgava à minha frente uma lata de Coca-Cola. Nunca tendo experimentado, dificilmente poderia ajuizar da dificuldade de semelhante proeza, mas palpitava-me que devia ser bastante difícil.

– Também consegue torcer uma moeda de cem ienes. Não há muita gente que seja capaz disso – disse o pequenitates.

Acenei afirmativamente.

– Até uma orelha ele consegue arrancar.

Assenti com um movimento de cabeça.

– Até há coisa de três anos, este camarada era profissional de luta livre – afiançou o Minorca. – Dos bons, por sinal. Possivelmente chegaria a campeão, integrado na seleção nacional. Sabes o que lhe aconteceu? Teve o azar de fazer uma lesão no joelho. Com um joelho magoado, não se pode competir. Na luta livre, um atleta precisa de ser ágil de movimentos e rápido.

Como o pequenitates estava a olhar para mim, voltei a acenar afirmativamente.

– Desde essa altura que me ocupo dele. É meu primo, sabes?

– Pelos vistos, na vossa família não conhecem o tamanho médio – observei.

– Ora repete lá o que disseste... – ameaçou o Minorca, de olhos cravados em mim.

– Nada, nada – disfarcei.

O Minorca pareceu hesitar por momentos, mas, às tantas, deixou cair o assunto. Atirou o cigarro que estava a fumar para o chão e esmagou-o com o pé. Achei melhor não protestar.

– Precisas de descontrair. Confia em mim e vais ver que ficas logo muito mais tranquilo – disse o Minorca. – Ainda estás demasiado tenso.

– Posso ir buscar outra cerveja ao frigorífico?

– Era só o que faltava! Estás na tua casa, é o teu frigorífico, a tua cerveja. Certo?

– E a minha porta, não se esqueça...

– Deixa lá a maldita porta! É por pensares desse modo que não descontrais e tens as costas tão rígidas! Já para não falar no facto de teres uma porta barata que não presta para nada. Com o dinheiro que ganhas, bem podias mudar-te para uma casa com uma porta decente.

Deixei morrer a história da porta, fui ao frigorífico buscar outra cerveja e bebi-a em pequenos goles. O Minorca deitou a Coca-Cola para dentro do copo e, depois de esperar que a espuma assentasse, bebeu metade.

– Desculpa se te deixámos nervoso. Olha, vou explicar-te melhor ao que viemos. Estamos aqui para te ajudar.

– Deitando-me a porta abaixo?

Ao ouvir aquilo, o sujeito ficou vermelho como um pimentão e as narinas dilataram-se.

– E tu a dares-lhe com a porta! Não te disse para esqueceres essa história? – exclamou ele, devagar e martelando as palavras.

De seguida, virando-se para o Calmeirão, repetiu a pergunta. O outro fez um gesto de assentimento, sinal de quem concordava. O Minorca parecia-me um tipo bastante irascível. E eu tenho dificuldade em conviver com pessoas que fervem em pouca água.

– Viemos ter contigo cheios de boas intenções – prosseguiu o Minorca. – Como tu andas confuso, cá estamos para te explicar umas quantas coisas. Enfim, falar em confusão talvez seja um pouco exagerado. Digamos, se preferires, que estás um bocado desorientado, que tal?

– Estou confuso e desnorteado. Não tenho nenhuma informação, nenhuma pista... Nem sequer tenho porta.

O Minorca pegou no isqueiro de ouro e, sem se levantar sequer da cadeira, atirou-o contra o frigorífico. O impacto produziu um barulho estridente e sinistro, provocando na porta do meu frigorífico uma mossa bem visível. O Calmeirão apanhou o isqueiro do chão e depositou-o sobre a mesa. Tirando a amolgadela, tudo voltara à estaca zero. Para se acalmar, o Minorca bebeu o que restava da sua Coca-Cola. Sempre que me deparo no meu caminho com pessoas exaltadas, sinto vontade de pôr à prova a sua impaciência.

– E não me dirás que importância tem a porcaria de uma porta?! Ou duas portas, para o caso tanto faz! Pensa na gravidade da situação. Porque a situação é muito grave. Podíamos ter destruído o apartamento inteiro, que não tinha importância nenhuma. Não te quero ouvir falar outra vez naquela porta!

A minha porta!, disse para comigo. Não interessava saber se a porta custava muito ou pouco. Uma porta é um símbolo.

– Paciência, não se fala mais na porta – concedi. – Mas, depois deste episódio, arrisco-me a que me despejem do apartamento. Este edifício é muito tranquilo e só vivem cá pessoas respeitáveis.

– Se alguém protestar, basta que me ligues. Cá me encarregarei dessa gente. Temos métodos muito eficazes para os convencer, acredita. Não te preocupes.

Deu-me a sensação de que isso só vinha complicar as coisas, razão pela qual optei por não provocar mais o meu interlocutor. Anuí em silêncio e continuei a beber a minha cerveja.

– Se calhar, estou a meter o nariz onde não devo, mas deixa-me dar-te um conselho. A partir dos trinta e cinco anos, o que uma pessoa tem a fazer é perder o hábito de beber cerveja – prosseguiu o Minorca. – A cerveja é boa para estudantes e operários. Não só faz aumentar a barriga, como não tem classe. Quando se chega a uma certa idade, tanto o vinho como o brandy caem melhor. Urinar em excesso dá cabo do metabolismo. É melhor deixares a cerveja, acredita. Escolhe um vinho mais caro. Experimenta beber um copo por dia, desses vinhos que custam vinte mil ienes a garrafa.

Um conselho do arco-da-velha.

– Seja como for – continuou o homem –, não sou eu que te vou dar conselhos. Todos temos os nossos pontos fracos. Os meus são o tabaco e as coisas doces. Sobretudo os doces. Apesar do mal que fazem aos dentes e de provocarem diabetes.

Fiz que sim com a cabeça, em sinal de concordância.

O indivíduo pegou noutro cigarro e acendeu-o com o isqueiro.

– Cresci ao lado de uma fábrica de chocolates, sabes? Talvez essa circunstância me tenha marcado. Não estamos a falar das grandes fábricas muito conhecidas, como as que produzem os chocolates e doces Morinaga ou Meiji, nada disso. Era uma pequena fábrica artesanal pouco conhecida, que ficava para as minhas bandas. Fabricavam uma dessas marcas baratuchas que se vendem nos quiosques ou se encontram em promoção nos supermercados. O certo é que não havia um dia que não me cheirasse a chocolate. O odor a chocolate infiltrava-se por toda a casa. As cortinas, a almofada, o gato... rescendia tudo a chocolate. Por isso é que ainda agora gosto tanto dessas gulodices. Basta-me o cheiro do chocolate... Vêm-me logo lampejos da minha infância à memória, e volto a ser criança.

Dito aquilo, deu uma espreitadela ao mostrador do seu Rolex. Senti-me tentado a trazer o assunto da porta outra vez à baila, contudo, mudei de ideias, pensando que nunca mais sairíamos dali.

– Muito bem – disse o Minorca, pigarreando. – Visto que não temos muito tempo, vamos lá acabar com a conversa de chacha. Sentes-te um pouco mais calmo?

– Um bocadinho – respondi.

– Passemos então ao que interessa – prosseguiu ele. – Tal como te disse antes, estamos aqui com o propósito de clarificar as tuas dúvidas. Podes perguntar o que quiseres, sem medo. Se puder, responder-te-ei. – Fez um gesto com a mão, como que dizendo: «Vamos, coragem.» – Pergunta o que tiveres vontade de perguntar.

– Primeiro que tudo, gostaria de saber quem são os senhores e até que ponto dominam a situação.

– Excelente pergunta – disse o homem, olhando para o companheiro em busca da sua aprovação. Logo que o outro concordou com a cabeça, virou-se de novo para mim. – És um rapaz inteligente, tu. E não estás com meias-palavras.

Sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro. Simpático da parte dele.

– Vamos pôr a questão da seguinte maneira: a nossa presença tem por objetivo dar-te uma ajuda. Apurar a que organização pertencemos, de momento, não vem ao caso. Quanto ao que sabemos acerca da tua situação, diria que sabemos do Professor, do crânio, do shuffling... Enfim, estamos a par de quase tudo. Também sabemos coisas que tu desconheces. Próxima pergunta?

– Foram vocês que pagaram ao funcionário da companhia de gás, ontem à tarde, para ele vir cá a casa roubar-me o crânio?

– Sobre essa considera-te esclarecido. Não temos qualquer interesse no crânio. Nós não queremos nada.

– Nesse caso, quem foi? Quem pagou ao tal funcionário? Não me vão dizer que se trata de um fantasma, pois não?

– Disso já não sabemos – afirmou o Minorca. – E há ainda outra coisa que também escapa à nossa compreensão, e que tem que ver com as experiências do Professor. Conhecemos ao pormenor aquilo em que ele se encontra envolvido, no presente. Só não é claro para nós qual o rumo das suas pesquisas. E gostaríamos de ficar esclarecidos.

– Também não faço ideia – respondi. – Não sei nada de nada... o que não impede que toda a gente passe a vida a criar-me problemas.

– Temos perfeita consciência de que não estás a par de nada. Andas a ser usado.

– Então o que vos trouxe aqui?

– Viemos só para te cumprimentar e travar conhecimento contigo – disse o Minorca, começando a dar pancadinhas com o isqueiro na mesa. – Pensámos que seria melhor se estivesses ao corrente da nossa existência. Assim, de futuro, teremos mais facilidade em trocar informações e pontos de vistas. Agora é a tua vez.

– Posso dar largas à imaginação?

– À vontade. A imaginação é livre como os pássaros e vasta como o mar. Nada a pode deter.

– Creio que não pertencem ao Sistema nem à Fábrica, pois atuam de maneira distinta. Devem pertencer a uma pequena organização independente. E estão a ver se conseguem alargar a vossa esfera de influência. Possivelmente, à custa da Fábrica.

– Estás a ver? Que te disse eu – lançou o homem, virando-se para o comparsa. – É ou não um espertalhaço?

O Calmeirão concordou com a cabeça.

– Para um homem tão inteligente, até parece mentira que viva numa pocilga destas! E que tenha sido abandonado pela mulher...

Há muito tempo que não me faziam tantos elogios. Corei.

– Acertaste em quase tudo – disse o Minorca. – Andamos atrás das novas fórmulas descobertas pelo Professor com o propósito de nos situarmos em boa posição nesta guerra informática. Estudámos bem o assunto, fizemos os trabalhinhos de casa e estamos prontos para o que der e vier. Capital não nos falta. Agora queremos contar contigo e com a investigação desenvolvida pelo Professor. Convosco do nosso lado, podemos subverter os dados que estão na base da estrutura bipolar composta pelo Sistema e pela Fábrica. É este o aspeto positivo da guerra da informação. Muito democrático. Quem possuir um sistema novo e superior leva a taça. E vence o combate de uma vez por todas. É a lei da selva no seu melhor. Quem diz que nós não podemos ganhar algum com isso? O Japão é um monopólio absoluto ou quê? O Sistema monopoliza as informações que vêm à luz do dia; a Fábrica monopoliza a parte ilegal, mantida na sombra. Não há concorrência possível. Além de ser contrário a todas as leis da economia liberal. Achas natural que assim seja?

– Não sou tido nem achado no processo – disse eu. – As pessoas como eu encontram-se na base da pirâmide, limitando-se a fazer o seu trabalho como uma formiguinha. Não mando a ponta de um chavelho. Por isso, se vieram cá com a intenção de me fazer passar para o vosso lado...

– Quer-me parecer que não estás a entender – cortou o Minorca, dando um estalo com a língua. – Não queremos fisgar-te. Dissemos apenas que te pretendíamos a ti. Próxima pergunta?

– Quero saber quem são os Invisíveis.

– Os Invisíveis? Vais dizer-me que um tipo inteligente como tu não descobriu ainda? Pois bem, são umas criaturas que vivem debaixo de terra. Habitam nos túneis do metropolitano, nas redes de esgotos... em lugares assim. Não se misturam com os seres humanos, daí que se saiba tão pouco acerca deles. Em princípio, não são perigosos, embora já tenha acontecido deitarem a mão a alguém, a algum trabalhador do metropolitano que se tenha perdido nos subterrâneos, e devorarem-no.

– E o Governo está ao corrente?

– Claro que sim, os seus membros estão ao corrente de tudo, mas só ao mais alto nível.

– Nesse caso, porque é que não avisam as pessoas? Ou, melhor ainda, por que razão não se livram dos Invisíveis?

– Em primeiro lugar – disse o homem –, porque, avisando a população, gerava-se logo uma onda de pânico. É evidente, não te parece? Ninguém gostaria de saber que existe um bando de criaturas pululando debaixo dos seus pés... Em segundo lugar, não existe maneira de acabar com eles. Nem sequer as Forças de Defesa poderiam alguma vez ocupar a totalidade do subsolo de Tóquio e exterminar essa raça. Impossível! Os Invisíveis vivem no reino das trevas. Qualquer ação nesse sentido redundaria numa autêntica guerra.

«E, depois, há outra coisa. Os Invisíveis construíram o seu reduto mesmo por baixo do Palácio Imperial. Caso lhes acontecesse alguma coisa, poderiam escavar um túnel em plena noite, emergir do subsolo e arrastar para debaixo de terra quem se encontrasse à superfície. Se isso viesse a acontecer, o Japão afundar-se-ia num caos sem remédio, não te parece? Como tal, o Governo faz vista grossa e deixa-os em paz. Agora pensa na possibilidade oposta. Ou seja, na hipótese de estabelecerem uma aliança com eles. Ficariam com um poder extraordinário. Em caso de um golpe de estado, ou de uma guerra, quem contasse com os Invisíveis do seu lado teria a vitória assegurada. Porque, mesmo numa situação de guerra nuclear, eles sobreviveriam. Contudo, e até à data, não se verificou nenhuma aliança. São criaturas extremamente desconfiadas, os Invisíveis, e preferem não se relacionar com os seres humanos.

– No entanto, ouvi dizer que estão a colaborar com os Semióticos... – interrompi.

– Sim, corre esse rumor. Porém, partindo do princípio de que isso é verdade, deve tratar-se apenas de uma fação dos Invisíveis que, por qualquer razão, estabeleceu temporariamente um pacto com os Semióticos. Só isso. Uma aliança permanente entre eles seria impensável.

– Mas o Professor não foi raptado pelos Invisíveis?

– Sim, também ouvimos isso. Porém, nada podemos afirmar de ciência certa. Também pode acontecer que não passe de uma farsa. Quem nos diz que o Professor não pôs a circular essa história só para se esconder? A situação é de tal forma caótica e complexa que todas as hipóteses têm de ser levadas em consideração.

– E qual seria o objetivo do Professor?

– O Professor estava empenhado em desenvolver uma investigação especial – avançou o homem, estudando o isqueiro de diversos ângulos. – Uma investigação independente, que partia de uma posição antagónica tanto em relação aos Invisíveis como aos Semióticos. Os Invisíveis procuram adiantar-se aos Semióticos, e os Semióticos tentam eliminar do mapa os Invisíveis. O Professor tirou partido dessa rivalidade e abriu uma brecha que lhe permitiu avançar na sua investigação, e que poderá revolucionar por completo o funcionamento do mundo. Para isso, precisamos de ti. Refiro-me não só à tua capacidade de programador como à tua pessoa.

– De mim? – disse espantado. – E por que carga-d’água precisam de alguém como eu? Não tenho nenhum talento especial, sou uma pessoa normalíssima. Sinceramente, não percebo de que maneira posso contribuir para a transformação do mundo.

– Também nós gostaríamos de perceber porquê – afirmou o Minorca sem deixar nunca de manusear o isqueiro. – Temos algumas ideias, mas nenhuma certeza. Seja como for, o certo é que o Professor focou as suas pesquisas em ti. E, após ter concluído os preparativos, chegou a uma altura em que está pronto para dar o derradeiro passo. Como é óbvio, tu não deverias aperceber-te.

– Portanto, vocês pretendem apoderar-se de mim e da investigação, a partir do momento em que ele conclua o estádio final...

– É mais ou menos como tu dizes. A situação, porém, deu para o torto. A Fábrica topou qualquer coisa e pôs-se em ação. Daí que, pela nossa parte, também tivéssemos de nos mexer. Uma complicação das antigas!

– E o Sistema está ao corrente da situação?

– Não, creio que ainda não deram por isso. Mas, como conhecem o Professor, de certeza que estão vigilantes.

– E, na realidade, o Professor quem é?

– Trabalhou durante vários anos para o Sistema. Não me refiro à execução de tarefas práticas, como tu fazes. Estava integrado no laboratório central de pesquisas. A sua especialidade...

– Trabalhou no Sistema?! – exclamei. A história começava a ficar demasiado complicada. Pelos vistos, apesar de tudo girar à minha volta, era eu o único mantido na ignorância.

– Exato. Pode dizer-se que o Professor já foi teu colega – disse o Minorca. – Nunca o deves ter visto, calculo eu, mas faziam parte da mesma organização... Apesar de ser um único sistema, a organização que reúne os Programadores abarca um número elevado de atividades complexas, e revela-se por demais rigorosa no que toca à segurança: apenas quem está nas altas esferas sabe o que acontece, quando e onde. Quer dizer, a mão esquerda não sabe o que faz a direita, o olho esquerdo e o direito alcançam coisas distintas. Por outras palavras, há um excesso de informação para recair sobre os mesmos ombros. Os Semióticos tratam de roubar as informações, ao passo que os Programadores procuram protegê-las. O certo, porém, é que ambas as organizações cresceram tanto que, chegadas a esta fase, ninguém consegue processar o caudal de informação.

«Bom, verdade seja dita que o Professor abandonou a organização e decidiu investigar por conta própria. Os seus conhecimentos abarcam vários campos, ou não fosse ele um autêntico cérebro. Percebe de fisiologia cerebral, biologia, frenologia, psicologia... Sem exagero, é possível afirmar que estamos a falar de um homem da Renascença, mas do nosso tempo.

Só de pensar que me dera ao trabalho de explicar a um génio daquele calibre o que era uma lavagem ao cérebro e o shuffling, senti-me um perfeito idiota!

– Não seria exagero referir que praticamente foi ele, sozinho, a inventar o atual método de cálculo utilizado pelos Programadores. Melhor dizendo, todos vocês não passam de obreiros com o cérebro cheio do mel resultante dos conhecimentos técnicos que ele adquiriu. Talvez não seja uma metáfora muito boa...

– Não faz mal, continue – disse eu.

– Assim que o Professor pediu a demissão, os Semióticos puseram-se logo em campo e tentaram recrutar os seus serviços. Como deves saber, a maior parte dos programadores que abandonam a organização acabam nas fileiras dos Semióticos. Contudo, o Professor recusou o convite, argumentando que era seu dever levar por diante uma investigação independente. Nessas circunstâncias, converteu-se num inimigo, tanto dos Semióticos como dos Programadores. Aos olhos da organização que alberga os Programadores, era um indivíduo que sabia demais, e para os Semióticos continuava a pertencer à organização rival. Já conheces a maneira como os Semióticos funcionam: ou estás do lado deles, ou contra eles. O Professor, ciente disso, mandou construir um laboratório perto do antro onde se acoitam os Invisíveis. Já foste ao laboratório dele, segundo creio?

Fiz que sim com a cabeça.

– Tem o seu quê de loucura, mas não deixa de ser uma ideia de génio. Com os Invisíveis por perto, ninguém se atreve a aproximar-se do laboratório. Porque, afianço-te, não há quem lhes consiga fazer frente, nem os Programadores nem os Semióticos. Para poder entrar e sair, o Professor emite umas ondas sonoras que afugentam os Invisíveis. Isso faz com que fique com o terreno livre, como aconteceu com Moisés quando atravessou o mar Vermelho. Um sistema defensivo perfeito. Tirando a jovenzinha, tu deves ter sido a única pessoa a ter acesso ao laboratório. Isto só para veres até que ponto és importante para o Professor! Seja como for, parece que as suas investigações entraram na fase final e que, para as levar a bom porto, faltava o teu contributo. Daí que te tenha chamado.

Soltei uma espécie de grunhido. Era a primeira vez na vida que eu significava tanto para alguém. Assumir aquela importância toda causava-me estranheza. Não me conseguia habituar a essa ideia.

– Está a querer dizer-me que os dados que eu processei não passaram de um estratagema destinado a atrair-me e que, em si mesmos, não têm qualquer valor?

– Não, longe disso! – exaltou-se o Minorca. Depois tornou a consultar o relógio. – Os dados constituem um programa meticulosamente elaborado. Uma espécie de bomba-relógio destinada a rebentar no tempo devido com grande estardalhaço: bum! Claro que tudo isto não passa de uma simples conjetura. A não ser que perguntemos diretamente ao Professor, nunca saberemos se existe uma ponta de verdade nesta teoria. Bom, começa a fazer-se tarde... o melhor será ficarmos por aqui. Ainda temos outros trabalhinhos pela frente...

– E no que toca à neta do Professor, o que lhe aconteceu?

– O quê? Aconteceu-lhe alguma coisa? – exclamou o homem com um ar espantado. – Olha que nós não sabemos de nada. Não podemos controlar tudo. Porque é que perguntas? Tens um fraquinho por ela?

– Não – respondi. Ela não me interessava minimamente. E daí, talvez...

Levantando-se da cadeira sem tirar os olhos de cima de mim, o Minorca pegou no maço de tabaco e no isqueiro, que estavam em cima da mesa, e meteu-os no bolso das calças.

– Penso que as coisas ficaram esclarecidas e que agora já sabes em que posição te encontras e, ao mesmo tempo, qual é a nossa posição. Posso acrescentar que temos um plano. Repara, nesta altura do campeonato conhecemos melhor a situação dos Semióticos, o que faz com que estejamos um passo à frente deles. No entanto, comparada com a Fábrica, a nossa organização revela-se muito mais frágil. Se eles atacarem a sério na reta final, é muito provável que se adiantem no terreno e que acabem por nos cilindrar. Para evitar que isso aconteça, devemos fintar os Semióticos. Percebes o que te digo?

– Sim – disse eu. – Percebo muito bem.

– Sozinhos, porém, nunca o conseguiremos. Temos de pedir ajuda a alguém. Tu, se estivesses na nossa posição, pedirias ajuda a quem?

– Ao Sistema – respondi.

– Estás a ver? – tornou a dizer o Minorca, virando-se para o Calmeirão. – Bem te disse que este era inteligente. – A seguir, encarou-me olhos nos olhos. – Mas para isso precisamos de usar um isco. Sem isco não há peixe! E o nosso isco serás tu...

– Não posso dizer que a ideia me entusiasme por aí além – observei.

– O entusiasmo não é para aqui chamado. Não temos alternativa. E agora quero fazer-te uma perguntinha. Neste apartamento, o que é que tem mais valor para ti?

– Nada – respondi eu. – Aqui não existe nada que valha grande coisa. São tudo coisas baratuchas...

– Isso salta à vista. No entanto, haverá por certo algum objeto, nem que seja apenas um, que não gostarias de ver destruído, calculo. Por mais barato que seja tudo, o certo é que vives aqui...

– Destruir? O que pretende dizer com isso?

– Destruir quer dizer isso mesmo... destruir! Como aconteceu com a porta – replicou o Minorca, apontando na direção da porta toda retorcida e arrancada dos gonzos. – Destruir por destruir. Vamos reduzir tudo a cacos.

– A que propósito?

– Não te posso explicar em duas palavras. E mesmo que pudesse, não ia adiantar nada. Por isso, diz-me o que gostarias que não ficasse estragado. É um bom conselho, acredita.

– Bom, nesse caso, o aparelho de vídeo – disse eu, resignado à minha sorte. – E o televisor. Os dois foram caros, além de que acabei de os comprar há relativamente pouco tempo. Ah, e o uísque que está guardado dentro do armário da sala.

– E que mais?

– O blusão de couro e um fato novo de três peças. O blusão tem a gola de pele, como aqueles usados pelos aviadores do exército norte-americano.

– Mais nada?

Refleti durante alguns instantes. Não, vendo bem, não havia mais nada a assinalar. Não sou do tipo de acumular peças de valor em casa.

– É tudo.

O Calmeirão assentiu. O Minorca assentiu.

Primeiro, o Calmeirão pôs-se a abrir os armários todos, um atrás do outro. Depois, tirou de dentro de uma gaveta um bullworker13, que eu utilizava às vezes para trabalhar a musculatura, e, passando-o por trás das costas, executou um alongamento dorsal completo. Nunca vira ninguém fazer nada do género. Impressionante.

Depois, o energúmeno agarrou no aparelho com ambas as mãos, como se estivesse a empunhar um taco de basebol, e dirigiu-se para o quarto. Colocou-se diante do televisor, brandiu o bullworker por cima da cabeça e, apontando na direção do tubo de raios catódicos, golpeou-o com toda a força. Acompanhado do estrépito do cristal feito em fanicos e de centenas de clarões de luz, o televisor de vinte e seis polegadas que eu comprara três meses antes ficou reduzido a pedaços.

– Espera – gritei, fazendo menção de me levantar, mas o Minorca impediu-me, dando uma palmada na mesa.

Ato contínuo, o Calmeirão soergueu o meu videogravador e bateu com ele repetidas vezes, violentamente, contra o que restava do televisor. Alguns botões voaram em todas as direções, o cabo provocou um curto-circuito e um fio de fumo branco flutuou no ar como uma alma que tivesse alcançado a salvação. Depois de comprovar que o aparelho de vídeo estava completamente fora de combate, o gigante atirou a carcaça ao chão e sacou da navalha. A lâmina afiada abriu-se, deslizando com um estalido seco. Em seguida, aproximando-se do roupeiro, o homem abriu a porta e desatou a retalhar o meu blusão de aviador e o fato de três peças da Brooks Brothers: no total, tinham-me custado qualquer coisa como duzentos mil ienes.

– Não há direito – gritei, dirigindo-me ao Minorca. – Tinha-me dito que pouparia aquilo por que eu tinha mais apreço.

– Eu não te disse isso – replicou o Minorca, impassível. – Só te perguntei o que era, aos teus olhos, mais valioso. Começamos sempre por aí. Lógico, não te parece?

– Estou feito! – murmurei, e fui ao frigorífico buscar mais uma cerveja. Enquanto o Calmeirão dava cabo do meu pequeno e confortável apartamento, composto por dois quartos, sala e cozinha, deixei-me ficar ali, ao lado do Minorca, a assistir àquela vaga de destruição.

13 Em japonês, buruwaakaa. Instrumento usado no treino de resistência, foi desenhado por Gert F. Koelbel e comercializado pela primeira vez na década de 1960. (N. das T.)


O Fim do Mundo

14

O Bosque

O outono acabou-se em dois tempos. Uma manhã, ao levantar-me da cama, olhei para o céu e verifiquei que o inverno estava à porta. Tinham desaparecido as nuvens outonais, de contornos nítidos, e no seu lugar viam-se espessas nuvens cinzentas, que assomavam por cima da Serra do Norte como mensageiras do infortúnio. A Cidade encarava o outono como um visitante agradável, mas a sua passagem pecava sempre por ser demasiado breve, e a sua partida demasiado brusca.

Quando o outono chegou ao fim, produziu-se um vazio temporário, criando uma espécie de imobilidade que não era nem outono nem inverno. O manto dourado que cobria os corpos dos animais perdeu aos poucos o seu fulgor e adquiriu uma tonalidade baça e esbranquiçada, como se tivesse passado pela lixívia, anunciando aos habitantes da Cidade que a chegada do inverno estava iminente. Todos os seres vivos encolhiam a cabeça entre os ombros e contraíam os músculos do corpo, preparando-se para enfrentar a estação gelada. Os sinais do inverno cobriam a Cidade como uma membrana invisível. O sopro do vento e o ondular da erva, até mesmo o barulho dos passos sobre a calçada no silêncio noturno – tudo se tornou pesado e frio, como um presságio do que estava para vir. Até o murmúrio das águas do Rio, que no outono soava mansa e docemente aos meus ouvidos, deixara de me aquecer o coração. Todas as coisas se fechavam hermeticamente dentro de uma carapaça, a fim de preservar a sua existência, encerrando-se num espaço que continha o próprio fim. O inverno é uma estação singular, diferente das outras. O canto dos pássaros tornava-se mais agudo e intenso, e só o esporádico bater de asas quebrava aquela imobilidade gélida.

– Este inverno vai ser particularmente frio – observou o Coronel. – Dá para uma pessoa saber pela forma das nuvens. Repara, lá adiante, tão carregadas que estão!

O velho militar chamou-me para junto da janela e assinalou umas nuvens espessas e cinzentas pairando sobre a serra.

– Ao chegar a esta altura do ano, aparecem sempre as primeiras nuvens. São uma espécie de batedores do exército: ajudam-nos a prever, através da forma, se o inverno será muito severo. As nuvens chatas e lisas anunciam um inverno temperado. Quando mais densas, mais rigoroso o inverno. As piores são as que têm a forma de um pássaro com as asas abertas. Anunciam um inverno glacial. Por exemplo, como aquelas ao fundo.

Semicerrei os olhos o mais que pude para distinguir as nuvens que, lá no topo de tudo, circundavam a cordilheira. Formavam uma linha, da direita para a esquerda, alcançando quase os dois extremos da serra e, no centro, mostravam uma protuberância grande. Tal como o ancião dissera, tinham a forma de um pássaro com as asas estendidas. Um gigantesco e funesto pássaro cinzento-escuro preparando-se para voar em direção a nós.

– Vamos ter um inverno duro, daqueles que só acontecem de cinquenta em cinquenta ou de sessenta em sessenta anos. A propósito, não tens casaco, pois não?

– Não, não tenho.

A única coisa que possuía era um casaco de algodão, não muito grosso, que me tinham dado ao chegar à Cidade.

O ancião abriu um roupeiro, tirou de lá um capote militar azul-marinho e deu-mo. Peguei nele. Era compacto como uma pedra, e o tecido de lã provocava-me um ligeiro ardor na pele.

– Pesa um bocado, mas sempre é melhor do que nada. Andei à procura dele para to dar. Espero que seja o teu tamanho.

Enfiei os braços nas mangas. Ficava-me um nadinha largo nos ombros e dava-me a sensação de acarretar um fardo em cima das costas; enquanto não me habituasse a ele, ameaçava fazer-me perder o equilíbrio e cair, mas era confortável. Além disso, como dizia o velhote, antes ter casaco do que não ter casaco nenhum. Agradeci-lhe.

– Continuas a desenhar o teu mapa? – quis saber o Coronel.

– Continuo – respondi. – Faltam-me ainda algumas partes, mas, sim, estou apostado em levar o meu projeto até ao fim. Seria uma pena ficar pelo caminho...

– Não tenho nada contra o facto de desenhares um mapa. A decisão é tua e não incomoda ninguém. Quando chegar o inverno, porém, digo-te já que é bom não pensares em ir muito longe. Aceita o meu conselho e mantém-te perto das zonas habitadas. O próximo inverno será rigoroso como poucos, e a prudência nunca é demais. Se bem que esta terra não seja muito grande, o certo é que, em pleno inverno, há uma data de sítios perigosos que desconheces. Deves esperar pela primavera para acabar o teu mapa.

– Compreendo – disse eu. – E quando é que começa o inverno?

– Assim que nevar. Com a chegada das primeiras neves, tem início o inverno, que chega ao fim quando a neve acumulada nas margens do Rio começa a derreter.

Bebemos o nosso café enquanto contemplávamos as nuvens sobre a serra.

– Ah, outra coisa que deves saber – avisou-me ele. – Mal tenha início a estação fria, não te aproximes da Muralha nem te aventures pelo Bosque dentro. No inverno, são dois lugares que adquirem um poder desmedido.

– O que é que há no Bosque?

– Nada – respondeu o velho militar, após um momento de reflexão. – Rigorosamente nada. Pelo menos, nada de que tenhamos necessidade, tu e eu. O Bosque não tem nada para nos oferecer.

– Não vive lá ninguém?

O ancião abriu a portinhola do braseiro, limpou o pó acumulado no interior e introduziu alguma lenha miúda e pedaços de carvão mineral.

– Já vai sendo altura de usar o braseiro. Vamos acendê-lo esta noite. A lenha e o carvão vieram do Bosque, e o mesmo acontece com os cogumelos, o chá e outros alimentos que tais. Nessa medida, pode dizer-se que precisamos dele. Mas só nesse sentido. Tirando isso, acabou-se.

– Sim, mas então deve lá viver alguém. Pessoas que extraem o carvão, recolhem a lenha e andam à procura dos cogumelos...

– Claro que sim. Há quem ali viva. Cedem-nos o carvão, a lenha e os cogumelos, e nós, pela nossa parte, damos-lhes cereais e roupa. A troca realiza-se uma vez por semana e nela intervêm apenas algumas pessoas escolhidas a dedo, num local previamente combinado. Esse é, no entanto, o único contacto que temos com os habitantes dos bosques. Eles não se aventuram por estas paragens e nós não nos aproximamos da floresta. Somos pessoas diferentes, que levam uma existência totalmente distinta.

– Diferentes em que sentido?

– Em todos os sentidos possíveis e imaginários – acrescentou o ancião. – Escuta bem o que te digo: não te aconselho a interessares-te por eles. É gente perigosa. Poderiam exercer uma influência negativa sobre ti, que ainda não tens a tua personalidade formada. E enquanto isso não acontecer, é melhor não te expores a perigos desnecessários. O Bosque não passa de um bosque. No mapa, basta que lá ponhas «Bosque», e pronto. Entendido?

– Entendido.

– Depois, há ainda a considerar outro grande perigo. Com a chegada dos rigores invernosos, a Muralha aperta o cerco em torno da Cidade. Quer assegurar-se de que permanecemos todos encerrados no seu interior, sem apelo nem agravo. Àquele baluarte não escapa nada do que sucede intramuros. Repito: tu ainda estás a formar a tua personalidade. Vives com dúvidas e contradições, por vezes arrependes-te do que fizeste e mostras-te fraco. Para ti, o inverno é a estação mais perigosa.

* * *

Ainda assim, tinha algum tempo para descobrir mais qualquer coisa acerca do Bosque, antes que chegasse o inverno. Prometera à minha sombra que lhe entregaria o mapa antes de o outono findar. Sem esquecer o pedido expresso que ela me pedira no sentido de explorar o Bosque. Faltava isso para o mapa ficar concluído.

As nuvens que se acumulavam sobre a cadeia montanhosa, mais a sul, levantavam com lentidão as suas asas e, à medida que se aproximavam da Cidade, a luz do Sol perdia rapidamente o seu brilho dourado. Uma difusa capa de nuvens cobria o céu, como uma fina camada de cinzas, disseminando uma claridade pálida. Era a estação que convinha aos meus olhos feridos. O céu perdera aquele brilho azul luminoso que me encadeava, e o vento não tinha força para afugentar as nuvens com o seu sopro repentino.

Avancei pelo caminho ao longo do Rio e entrei no Bosque, decidido a explorar o seu interior, prosseguindo rente à parede de pedra a fim de não me perder. Sempre poderia ir recolhendo no mapa os elementos que me permitiam traçar os contornos da Muralha.

No entanto, tal não se revelou empresa fácil. A meio do caminho tropecei numa série de depressões profundas, fruto de algum aluimento de terras, onde cresciam arbustos de framboesas mais altos do que eu. Os paludes cortavam-me o acesso e, um pouco por toda a parte, pegajosas teias de aranha colavam-se-me à cara, ao pescoço e às mãos. Volta e meia, ouvia o rumor distante de qualquer criatura que se contorcia por entre a vegetação densa. Os gigantescos ramos das árvores ondulavam sobre a minha cabeça, tingindo o Bosque de tons sombrios que recordavam o fundo do mar. Junto às árvores assomavam cogumelos de várias cores, grandes e pequenos, que pareciam fruto de uma qualquer sinistra doença de pele.

Numa ocasião em que me separei do muro e penetrei um pouco mais fundo, descobri um mundo estranhamente calmo e silencioso. A densa vegetação silvestre exalava o hálito fresco da vida que germinava na natureza selvagem, tranquilizando os meus sentidos e acalmando-me o espírito. Era então aquela a traiçoeira paisagem para a qual o Coronel me alertara? Aos meus olhos, não parecia ser um local ameaçador. As árvores, as plantas e os pequenos seres vivos repetiam o eterno ciclo da vida, e em cada pedra, em cada punhado de terra, sentia a presença da imutável Providência.

Quanto mais me afastava da Muralha e mergulhava no coração da floresta, mais intensa se tornava essa impressão. As sombras funestas depressa se dissiparam, a forma das árvores e o verde da folhagem suavizou-se, o canto dos pássaros revelou-se mais alegre e prolongado. Nem nas pequenas clareiras que se abriam a breve trecho, aqui e ali, nem no murmúrio das águas dos riachos que corriam pelo meio dos arbustos, se pressentia aquela tensão, aquele negrume que emanava das proximidades da Muralha. Porque seriam tão diferentes as duas paisagens? Talvez a Muralha, com todo o seu poder, perturbasse a atmosfera do Bosque. Ou seria um problema relacionado com a configuração do solo?

Por mais agradável que fosse caminhar pela mata dentro, devo confessar que em momento algum me afastei completamente da Muralha, para não correr o risco de a perder de vista. O Bosque era denso e, caso me perdesse, não saberia orientar-me na direção correta. Não havia um único carreiro, não havia sinais indicativos de qualquer espécie. Ainda não sabia se o Bosque era meu aliado ou meu inimigo e, além disso, aquela sensação agradável podia ser uma ilusão criada com o propósito de me arrastar para as suas profundezas. Em todo o caso, e tal como dissera o Coronel, a Cidade ainda me considerava um ser fraco e instável. Todo o cuidado era pouco.

Talvez por não ter ousado penetrar no coração da floresta, não descobri o menor vestígio dos seus habitantes. Nem sinal deles nem dos artefactos que pudessem ter deixado para trás. Sentia-me dividido entre o medo e a esperança de os encontrar, mas o certo é que fui incapaz de farejar indícios da sua existência. Suponho que viveriam muito mais para o interior do Bosque. Ou, então, eram ardilosos o suficiente para me evitarem.

* * *

Ao terceiro ou ao quarto dia das minhas investigações, no ponto onde a Muralha, a oriente, fazia uma curva denunciada em direção a sul, fui dar com uma pequena clareira. Aninhada entre dois blocos de pedra, aquele lugar abria-se diante de mim como um pequeno leque, formando um vácuo onde a exuberante vegetação local não lograva penetrar. Estranhamente, não havia sombra da violenta tensão que se respirava junto à Muralha; pelo contrário, reinavam ali a calma e a paz de espírito que detetara no fundo do Bosque. Um tapete de erva, curta e húmida, cobria o solo; por cima da minha cabeça estendia-se um céu nitidamente recortado numa forma bizarra. A um canto viam-se restos de betão, indicando a presença de uma habitação naquele local. Aproximei-me das fundações e dei-me conta de que ali devia ter existido uma sólida casa, construída a partir de planos bem traçados. A casa compunha-se de três divisões independentes: uma cozinha, uma sala de banho e um vestíbulo. Enquanto percorria as ruínas, esforçava-me por imaginar qual teria sido o aspeto da casa, em tempos que já lá iam. Mas como saber por que carga-d’água mandara alguém construir aquela casa no meio de uma floresta, e por que razão a deixara depois ao abandono?

Atrás da porta das traseiras, junto à cozinha, havia ainda vestígios de um poço de pedra; todavia, encontrava-se coberto de terra e à superfície cresciam ervas em profusão. As pessoas que abandonaram a casa, muito provavelmente, tinham encerrado o poço antes de partir. Vá lá saber-se porquê.

Sentei-me junto ao poço e, encostado ao parapeito, ali me deixei ficar a olhar para o céu. O vento norte agitava os ramos das árvores que emolduravam aquele pedaço semicircular do céu e fazia sussurrar a folhagem. Nuvens espessas e carregadas de humidade cruzavam em diagonal aquele espaço. Levantei a gola do casaco e segui o movimento das nuvens com o olhar.

Por trás das ruínas entrevia-se a Muralha. Desde que penetrara no Bosque, era a primeira vez que me encontrava tão perto dela. Vista assim, àquela curta distância, conseguia ouvir, literalmente, a sua respiração. Ali sentado naquela clareira rente ao Bosque Oriental, encostado ao bocal do velho poço, escutei o rumor do vento e comecei a acreditar nas palavras do Guardião. Se havia alguma coisa perfeita neste mundo, só podia ser a Muralha. Devia existir desde o princípio dos tempos. Como as nuvens que cruzam os céus, como a água da chuva que forma rios à superfície da Terra.

A Muralha era extensa demais para ser desenhada num mapa, a sua respiração revelava-se demasiado pesada, a curva das suas linhas demasiado elegante. De cada vez que eu tentava desenhá-la no papel, invadia-me uma infinita sensação de impotência. Consoante o ângulo de observação, a Muralha mudava de aspeto, impossibilitando a missão de a reproduzir com precisão. Incrível!

Fechei os olhos, decidido a passar pelas brasas. O vento assobiava-me aos ouvidos, sem tréguas, mas as árvores e a Muralha resguardavam-me do frio. Antes de adormecer, pensei na minha sombra. Chegara a hora de lhe entregar o mapa. Havia pormenores que precisavam de ser burilados, evidentemente, uma vez que o interior da floresta ainda se encontrava em branco. O inverno, porém, estava à porta, e a sua chegada viria colocar um ponto final nas minhas diligências. No meu caderno de esboços já desenhara os contornos da Muralha, sem esquecer a forma e a posição dos marcos divisórios e dos edifícios. Além disso, acrescentara algumas notas reunindo os elementos mais precisos que conseguira reunir. Com base nestas informações, por certo que a sombra ficaria em condições de traçar um plano.

Não sabia ao certo se o Guardião me deixaria vê-la, apesar de ele ter prometido que isso aconteceria mal os dias começassem a ficar pequenos e a sombra apresentasse sinais de debilidade. Agora que o inverno estava a chegar, essas condições pareciam cumprir-se.

Sempre de olhos fechados, pus-me a pensar na rapariga da Biblioteca. Quanto mais pensava nela, mais abissal era a tristeza que me dominava. Ignorava de onde viria esse sentimento, e qual a sua razão de ser; sabia apenas que representava uma perda. Continuava a perder algo relacionado com ela. E assim continuaria...

Via-a todos os dias, mas o vazio interior permanecia. Quando lia velhos sonhos na sala da Biblioteca, ela estava a meu lado. Jantávamos juntos, bebíamos qualquer coisa quente e depois levava-a a casa. Pelo caminho, íamos conversando. Ela fazia-me confidências acerca do pai, das irmãs pequenas, do dia a dia.

Chegada a hora de nos separarmos, à porta de sua casa, dava-me a impressão de que o sentimento de perda se tornava maior do que antes de a ver. Não sabia como dominar aquela incoerente sensação de vazio. O meu poço era demasiado fundo, demasiado escuro, e não existia terra em quantidade suficiente para o encher.

Imaginei que o sentimento de perda pudesse estar ligado ao desaparecimento das minhas recordações, mas não tinha a certeza. A minha memória procurava qualquer coisa na rapariga, mas nem eu sabia concretamente o quê, e essa contradição criava em mim um vazio insustentável. Naquele momento, porém, era um problema sem solução. A minha própria existência era demasiado frágil, demasiado insegura.

Afastei da consciência todos os elementos do quebra-cabeças e mergulhei num sono profundo.

* * *

Quando acordei, a temperatura baixara de forma significativa. A tiritar, apertei com força o casaco de encontro ao corpo. Anoitecia. Levantei-me e, no momento em que sacudia alguns restos de erva da roupa, senti o primeiro floco de neve aflorar-me o rosto. Ao levantar os olhos, vi que as nuvens se encontravam muito mais baixas e muito mais ameaçadoras. Grandes flocos de neve informes caíam do céu e, num bailado ao capricho do vento, vinham pousar no chão. O inverno chegara.

Antes de partir, deitei um derradeiro olhar à Muralha. Debaixo daquele céu espesso e escuro onde bailavam os flocos de neve, a Muralha erguia-se em toda a sua perfeição, mais imponente do que nunca. Observando-a, deu-me a ideia de que ela me contemplava desde as alturas. Estava ali à minha frente como uma criatura pré-histórica acabada de despertar. Porque estás aqui?, parecia perguntar-me. Que procuras?

Mas eu não tinha respostas para lhe dar. Aquele breve sono ao relento e ao frio despojara o meu corpo de todo o calor e deixara na minha mente uma mistura de formas indistintas. Seria aquele o meu corpo? Tudo era denso e nebuloso.

Percorri a floresta, procurando não olhar para a Muralha, e corri em direção à Porta Oriental. O caminho era longo. A escuridão adensava-se cada vez mais. O meu corpo perdera o seu precário sentido de equilíbrio. A meio caminho, vi-me obrigado a parar para descansar e recuperar forças. Apostado em prosseguir, tudo fiz para coordenar os nervos, embotados e dispersos. Sentia que alguma coisa, a coberto das trevas, gravitava pesadamente sobre mim. Pareceu-me ouvir o som saído de um corno no interior do Bosque; o eco atravessou a minha consciência sem deixar qualquer traço da sua passagem.

Quando, por fim, saí do Bosque e me encontrei à beira do Rio, o breu profundo cobria a Terra. Sem estrelas e na ausência da Lua, apenas o vento carregado de neve e o rumor gelado das águas dominavam a paisagem. Para trás erguia-se a floresta obscura varrida pela nevasca.

Ignoro quanto tempo demorei a chegar à Biblioteca. A única coisa de que me lembro é de ter caminhado sem parar, seguindo sempre o caminho ao longo do Rio. Os ramos dos salgueiros baloiçavam na escuridão, o vento assobiava sobre a minha cabeça. Por mais que eu avançasse, o caminho parecia não ter fim.

* * *

A rapariga fez com que me sentasse diante do braseiro e pousou a mão na minha testa. Tinha a mão gelada. Por reflexo, fiz um esforço para a afastar, mas não fui capaz de erguer o braço, e a simples tentativa provocou-me náuseas.

– Estás a arder em febre – constatou ela. – Por onde andaste? O que estiveste a fazer?

Queria responder-lhe, mas não encontrava palavras. Nem sequer compreendia o que pretendia ela dizer com aquilo.

A bibliotecária trouxe-me umas mantas, que fora desencantar não sei onde, envolveu-me nelas e ajudou a que me estendesse mesmo à frente do fogão. Ao fazê-lo, os seus cabelos roçaram na minha cara. Não posso perdê-la, lembro-me de ter pensado. Pensei que não queria perdê-la. Porém, não saberia dizer se esse pensamento saíra da minha consciência, naquele preciso momento, ou se era o fragmento de uma recordação antiga. Havia perdido demasiadas coisas, encontrava-me demasiado cansado. Dominado por esse sentimento de impotência, assisti ao gradual afastamento da minha lucidez. Apoderou-se de mim uma estranha sensação de desagregação, como se a consciência estivesse, muito lentamente, a elevar-se, ao mesmo tempo que o meu corpo procurava a todo o custo impedir que isso se verificasse. E eu não sabia de que lado havia de ficar: se devia ficar com este ou entregar-me nas mãos daquela.

Enquanto isto, a rapariga apertava-me a mão.

– Dorme – ouvi-a dizer. As suas palavras demoraram tempos infindos a chegar até mim, vindas das negras trevas.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

15

Uísque. Tortura. Turguéniev

O Calmeirão atirou com as garrafas de uísque para o lava-loiça e escaqueirou-as todas, sem deixar uma inteira. Foi uma autêntica razia. Devido ao relacionamento cordial que eu mantinha com o dono da loja de bebidas da esquina, sempre que havia uísque de importação a preços mais baixos, ele encomendava-me umas garrafas, o que me permitira ter em casa uma boa reserva.

O tipo começou por partir duas garrafas de Wild Turkey, a seguir passou para o Cutty Sark, prosseguiu com três garrafas de I. W. Harper, atacou outras duas de Jack Daniel’s, pulverizou uma garrafita de Four Roses, fez voar uma de Haig e, para acabar em beleza, guardou meia dúzia de garrafas de Chivas Regal para o fim. Fez uma barulheira infernal, mas o pior de tudo era o fedor. Não é de admirar: de uma assentada, acabara com a reserva de uísque que eu demorava seis meses a consumir. Escusado será dizer que toda a casa ficou empestada de álcool.

– Uma pessoa fica embriagada só de estar aqui a assistir! – disse o pequenitates, espantado.

Conformado, com os cotovelos sobre a mesa e a cabeça apoiada nas mãos, limitava-me a ver as garrafas feitas em fanicos formarem uma pilha dentro do lava-loiça. Tudo o que sobe, um dia tem de descer: é certo e sabido. No meio do estrépito provocado pelo vidro a partir-se, ouvia-se o assobio desafinado do Calmeirão. Na realidade, mais do que assobiar, dir-se-ia que passava um fio dental no meio dos dentes separados por intervalos irregulares. A melodia (se é que se podia falar em melodia...) não me dizia nada. Aos meus ouvidos, mais parecia que estava alguém a arranhar as cordas de um violino. Uma chinfrineira, era o que era, capaz de deixar os nervos em franja a qualquer pessoa. Fiz rodar a cabeça várias vezes, para tentar descontrair os músculos do pescoço, e bebi um gole de cerveja.

O homem prosseguiu com a sua destruição insana. Bom, talvez a coisa tivesse uma explicação lógica, na ótica deles, mas a verdade é que, aos meus olhos, nada daquilo fazia sentido. O Calmeirão levantou a cama do sítio, esventrou o colchão com a navalha, tirou a minha roupa toda para fora do armário, esvaziou o conteúdo das gavetas, arrancou o painel do aparelho de ar condicionado, deitou o lixo do cesto dos papéis para o meio do chão, abriu as portas dos armários e destruiu tudo o que estava lá dentro. Trabalhava com grande rapidez e eficácia.

Após ter deixado o quarto e a sala transformados numa espécie de estaleiro, foi a vez da cozinha. O Minorca e eu passámos para a sala de estar, devolvemos o sofá, que estava de pernas para o ar e com a parte de trás toda retalhada, à sua posição original, sentámo-nos e ficámos a ver o gigante pôr a cozinha a ferro e fogo. No meio da desgraça generalizada, era uma sorte que a parte da frente do sofá estivesse quase intacta. Estamos a falar de um sofá de muito boa qualidade, cómodo até dizer chega, que eu comprara por tuta-e-meia a um fotógrafo meu conhecido. Por sinal, um fotógrafo muito popular nos meios da publicidade, forçado a retirar-se para as montanhas de Nagano na sequência de uma doença nervosa. Foi ele que me vendeu por bom preço aquele sofá que tinha no estúdio fotográfico. Tive muita pena dos seus problemas psicológicos, mas considerei-me um grande sortudo por ter podido ficar com ele.

Eu estava sentado na extremidade direita, com a lata de cerveja na mão; quanto ao pequenitates, encontrava-se na outra ponta, de pernas cruzadas e apoiado no braço do sofá. Apesar do caos diabólico, nenhum dos outros inquilinos aparecera para ver o que se passava. Os vizinhos que moravam naquele andar eram quase todos pessoas solteiras e estariam a trabalhar; a não ser em circunstâncias extraordinárias, não havia ninguém em casa durante o dia. Estaria a parelha ao corrente disto, sabendo à partida que podiam fazer o barulho que lhes desse na veneta? Provavelmente. Pareciam a par de tudo, aqueles dois. Brutamontes, sim, mas isso não impedia que analisassem bem a situação e calculassem ao pormenor as jogadas.

O Minorca lançava, volta e meia, uma olhadela ao seu Rolex, para controlar o andamento da operação, enquanto o Calmeirão continuava a destruir metódica e sistematicamente, um atrás do outro, todos os objetos que encontrava pela frente, sem desperdiçar energia. Confrontado com uma busca tão exaustiva, nem um lápis eu teria podido esconder. Acontece, porém, que eles – tal como o pequenitates dissera – não andavam à procura de nada em especial. Limitavam-se a semear o caos, pura e simplesmente.

A que propósito?

Talvez quisessem fazer crer a terceiros que andavam à procura de qualquer coisa.

E quem poderia ser essa personagem?

Desisti de remoer o assunto, bebi um último gole de cerveja e deixei ficar a lata vazia em cima da mesa. O Calmeirão abriu a porta de um armário da cozinha, varreu os copos todos para o chão e preparou-se para fazer o mesmo aos pratos. A cafeteira com filtro, a chaleira, o saleiro, o açucareiro e a lata da farinha voaram. O arroz ficou espalhado no meio do chão. Os alimentos guardados no congelador tiveram a mesma sorte. Uma dúzia de lagostins congelados, um bife de vaca, uma embalagem de gelado natural, a manteiga de primeira qualidade que me custara os olhos da cara, ovas de salmão para aí com uns trinta centímetros de comprimento e um frasco com molho de tomate preparado por mim foram esmagar-se no chão revestido de linóleo com o estrondo que um meteorito a atingir uma estrada asfaltada produziria.

A seguir, o Calmeirão ergueu o frigorífico com ambas as mãos, projetou-o para a frente e pregou com ele no chão; caiu com a porta para baixo. Pelos vistos, devia ter-se partido algum cabo próximo do radiador, porque lançou uma chuva de chispas no ar. Que explicação iria eu dar ao eletricista que viesse reparar o material? Só de pensar nisso, fiquei com dores de cabeça.

O ato de destruição terminou de repente, tal como começara. Sem um «mas» nem um «se» nem um «porquê». De um momento para o outro, um silêncio sepulcral invadiu a casa. De pé junto à porta da cozinha, o Calmeirão deixou de assobiar e ficou ali a fitar-me com um olhar perdido. Confesso que não fazia ideia do tempo que ele demorara a reduzir o meu apartamento àquele monte de escombros. Um quarto de hora, meia hora? Um pouco mais de quinze minutos, um pouco menos de trinta. Vendo o ar satisfeito que o Minorca deitara ao mostrador do seu Rolex, calculo que se aproximava do tempo médio destinado à devastação de um T2. O que não falta neste mundo são tempos médios, digam eles respeito à cronometragem de uma maratona ou ao tempo normal que se gasta a utilizar um rolo de papel higiénico.

– Palpita-me que vai demorar o seu tempo a pôr isto em ordem – afirmou o Minorca.

– Também me parece – disse eu. – Tempo e dinheiro.

– O dinheiro é o menos. Guerra é guerra, meu rapaz. Se começas a deitar contas à vida, mais vale entregar a vitória de bandeja.

– Esta não é a minha guerra...

– Não interessa. Na guerra é assim mesmo. Uma pessoa só tem de se conformar, mais nada.

O Minorca tirou do bolso um lenço imaculado, colocou-o à frente da boca e tossiu duas ou três vezes. Depois de examinar o lenço, tornou a guardá-lo no bolso. Pode ser um preconceito da minha parte, mas não confio minimamente em pessoas que andam com lencinhos no bolso. Quanto menos agradamos às pessoas, mais preconceitos alimentamos.

– Assim que nos formos embora, vai aparecer o pessoal do Sistema. – O Minorca pôs uma expressão séria, a condizer com o discurso. – E tu prepara-te para lhes falares de nós. Explicas que entrámos por aqui de rompante e que demos cabo da mobília, porque andávamos à procura de uma coisa. Dizes que te perguntámos onde tinhas escondido o crânio, mas que não sabes nada acerca de crânio nenhum. Entendido? Não podes revelar aquilo que ignoras, da mesma forma que não podes dar aquilo que não tens. Nem sob tortura... E por isso, acrescentas tu, tivemos de sair daqui de mãos a abanar.

– Tortura...?! – exclamei, assustado.

– É preciso que estejas acima de qualquer suspeita. Não desconfiam que foste ter com o Professor ao laboratório. De momento, somos os únicos a sabê-lo, por isso não corres perigo. Para mais, sendo tu um excelente programador, ninguém desconfiará de ti. Pensarão que somos gente da Fábrica. E põem-se a andar enquanto o diabo esfrega um olho. Temos tudo calculado ao pormenor.

– Sim, mas tortura? – voltei à carga. – O que quer dizer com isso da tortura?

– Explico-te mais tarde, não te preocupes – respondeu o pequenitates.

– E se eu der com a língua nos dentes e contar tudo aos do Sistema? – perguntei.

– Não sejas parvo – impacientou-se o Minorca. – Se fizeres isso, serás eliminado. E olha que isto que te estou a dizer não é uma mentira nem uma ameaça. É a pura verdade. Foste ter com o Professor às escondidas, fizeste um shuffling sem comunicar ao Sistema, apesar de estares terminantemente proibido. Só isso já seria suficiente para te causar problemas. Ainda por cima, o Professor utilizou os teus serviços para levar por diante as suas experiências. Achas que vão permitir semelhante coisa? Encontras-te numa situação muito mais perigosa do que pensas, sabes? Para ser franco, é como se te encontrasses em equilíbrio num só pé sobre o parapeito de uma ponte. Aconselho-te a que penses bem de que lado queres ficar. Uma vez caído em desgraça, será demasiado tarde.

Cada um sentado na sua ponta do sofá, medimos forças com o olhar.

– Gostaria que me explicasse uma coisa – disse-lhe. – Que tenho eu a ganhar se colaborar convosco e mentir ao Sistema? Afinal de contas, sou um programador do Sistema, ao passo que a vocês nada me liga. O que teria eu a ganhar aliando-me a dois estranhos e mentindo aos meus companheiros?

– É muito simples – respondeu o homem. – Nós conhecemos mais ou menos a posição em que te encontras e deixamos que continues vivo. A organização para a qual trabalhas, pelo contrário, não sabe quase nada da camisa de onze varas em que estás metido. E, no dia em que ficarem a par da situação, o mais provável é livrarem-se de ti. Da forma como eu vejo as coisas, nós somos uma aposta mais segura. Simples, não te parece?

– Mais cedo ou mais tarde, o Sistema acabará sempre por saber. Não percebo ao certo a que situação se refere, mas o Sistema é uma organização enorme; para mais, eles não são estúpidos.

– Talvez – afirmou ele. – Mas ainda vai demorar o seu tempo. E, com um pouco de sorte, nós poderemos entretanto resolver os nossos problemas, tu e eu. Fazer uma escolha é isso mesmo. Escolher a parte que oferece maiores probabilidades de ganhar, nem que seja por apenas um por cento. Como no xadrez. Dão-te xeque, mas tu arranjas maneira de te safar. E enquanto te safas, pode ser que o teu adversário meta a pata na poça. Por mais poderosos que sejam os nossos inimigos, nunca podemos descartar a possibilidade de eles cometerem um erro. Bom...

Posto isto, o indivíduo espreitou o relógio de pulso, virou-se para o comparsa e estalou os dedos. Ao ouvir aquele som, o Calmeirão levantou a cabeça e pestanejou, como um robô subitamente acionado, e foi-se aproximando do sofá, até ficar de pé à minha frente. Especou-se aí como uma parede divisória. Divisória, foi o que eu disse? Mais do que uma divisória, parecia uma tela de cinema ao ar livre. Isto para dizer que me bloqueou a vista por completo. Com o seu corpanzil, intercetou a luz do teto, deixando-me envolto numa débil sombra. Veio-me à memória o dia em que, ainda na primária, assisti a um eclipse do Sol no pátio da escola. Na companhia de todos os meus companheiros de turma, observei o Sol através de um cristal de vidro, que funcionava como filtro. Desde então passou-se um quarto de século. Um quarto de século... e vejam só o sarilho em que me encontrava!

– Bom... – repetiu o homem. – Lamento informar-te, mas agora vais passar por uma experiência não muito agradável. Reconheço que isso é dizer pouco... Pronto, bastante desagradável. Lembra-te de que é para teu bem e tem paciência. Não penses que gostamos de fazer isto por desporto. Se o fazemos, é porque não temos escapatória. Despe as calças.

Descoroçoado, despi as calças. Resistir não me teria servido de nada.

– De joelhos no chão.

Obedeci. Levantei-me do sofá e ajoelhei-me na alcatifa. Ver-me naquela posição, apenas com as cuecas e uma camisola interior, provocou em mim uma estranheza inexplicável. Porém, antes que eu tivesse sequer tempo para refletir sobre o assunto, o gigante colocou-se atrás de mim, passou os braços sob as minhas axilas e imobilizou-me ambos os pulsos à altura dos rins. Os seus gestos relevaram-se ágeis e de uma precisão a toda a prova. A pressão não era muito grande, mas, quando tentei mover-me, uma dor fulgurante percorreu-me a nuca e os ombros, e senti-me como se me estivessem a desmembrar. A seguir, imobilizou-me os tornozelos com as suas próprias pernas. Acabei por ficar completamente imobilizado, como um daqueles patos que se veem nas barracas de tiro ao alvo.

O Minorca foi à cozinha, deitou a mão à navalha do Calmeirão, que estava em cima da mesa, e regressou. Abriu a lâmina, que devia ter uns sete centímetros de comprimento, tirou o isqueiro do bolso e passou a ponta da lâmina pelo fogo. A arma branca, em si mesma, não parecia um instrumento muito perigoso, mas também não se podia dizer que fosse propriamente uma daquelas navalhas de fancaria que são vendidas na drogaria da esquina. A lâmina media o suficiente para cortar uma pessoa às postas. Ao contrário do urso, o corpo do homem é mole como um pêssego maduro, e uma navalha com sete centímetros de lâmina pode muito bem cumprir a sua função.

Após ter esterilizado a arma, o Minorca esperou pacientemente que a lâmina esfriasse. Em seguida, pôs a mão esquerda sobre o elástico que mantinha as minhas cuecas brancas presas à cintura e baixou-o até deixar a descoberto metade do pénis.

– Vai doer um bocado. Aguenta – avisou.

Uma bolha de ar do tamanho de uma bola de ténis subiu-me do estômago até à garganta. Senti o nariz ficar coberto de gotas de suor. Tremia de medo. O mais certo era recear que me tocassem no sexo. E que, uma vez ferido, nunca mais pudesse ter uma ereção.

O homem, porém, não me fez nada no pénis. Efetuou um corte horizontal com cerca de seis centímetros no abdómen, um nadinha abaixo do umbigo. Ainda quente, a ponta afiada da navalha penetrou suavemente na carne e deslizou para a direita, como se traçasse uma linha com a ajuda de uma régua. Tentei encolher a barriga, mas não fui capaz de me deslocar nem um milímetro. O gigante mantinha-me perfeitamente imobilizado. Além disso, com a mão esquerda, o Minorca agarrava-me firmemente no pénis. O suor escorria-me por todos os poros. Ato contínuo, fui dominado pela dor. Uma dor excruciante. Só depois de o Minorca limpar o sangue com um lenço de papel e ter fechado a lâmina da navalha é que o Calmeirão me libertou. O sangue tingiu de vermelho os meus ténis brancos. O Calmeirão trouxe-me uma toalha limpa da casa de banho e pressionou-a contra a ferida.

– Isso resolve-se com sete pontos – disse o Minorca. – Bom, talvez fique uma pequena cicatriz, mas nesse sítio quase ninguém a vai ver. Tenho muita pena, mas o mundo é assim mesmo. É aguentar, e cara alegre.

Afastei a toalha do corpo e examinei o corte. O ferimento não era muito profundo, mas, através do sangue, a carne tinha uma cor rosa-pálido.

– Estamos no ir. Quando aparecerem os do Sistema, mostra-lhes o teu ferimento. Explicas que, como não nos dizias onde estava o crânio, ameaçámos cortar-te um pouco mais abaixo. Mas como tu não sabias, nada feito. Foi então que desistimos do nosso intento e desaparecemos de cena. Era disto que falávamos quando nos referimos à tortura. Claro que, se fosse a sério, seria muito pior, eh, eh, eh... Por hoje basta. Para a próxima, se for caso disso, teremos oportunidade de te mostrar do que somos capazes!

Com a toalha apertada contra o abdómen, concordei. Não sou capaz de explicar porquê, mas palpitou-me que era melhor fazer o que aqueles dois energúmenos diziam.

– Aqui para nós, devem ter sido vocês que me enviaram cá a casa aquele pobre funcionário da companhia de gás, não é verdade? – perguntei como quem não quer a coisa. – Estava previsto que ele metesse os pés pelas mãos, pois o que pretendiam com a vossa manigância era deixar-me de sobreaviso e obrigar-me a esconder o crânio em qualquer lado. Engano-me?

– Que inteligente! – tornou o Minorca a dizer, olhando para o Calmeirão. – Não lhe escapa uma! Continua a usar a cabecinha, e vais ver como te safas. Com um pouco de sorte, naturalmente.

Posto isto, os dois visitantes abandonaram o meu apartamento. Não se viram na necessidade de abrir a porta, tão-pouco tiveram de a fechar. A minha porta blindada, toda retorcida e fora dos gonzos, estava aberta ao mundo.

* * *

Despi a roupa interior manchada de sangue, atirei com tudo para dentro o cesto da roupa suja, depois peguei numa compressa de gaze embebida em água e limpei o sangue em torno da ferida. Quando fazia movimentos para a frente e para trás, sentia uma dor aguda. Ao ver que ficara com resquícios de sangue na manga da camisola, desembaracei-me dela e juntei-a à roupa suja no cesto respetivo. No meio da roupa espalhada pelo chão, escolhi uma T-shirt de uma cor em que não se notasse muito o sangue, assim como um reduzido slip, e vesti-me. Custou-me horrores.

Fui até à cozinha, bebi dois copos de água e, absorto nos meus pensamentos, fiquei à espera de ver entrar em cena o pessoal do Sistema.

Meia hora mais tarde, chegaram três indivíduos do escritório central. Entre eles encontrava-se o jovem pretensioso que era o meu contacto dentro da organização e que costumava aparecer ali em casa para recolher os dados. Como de costume, vinha de fato escuro, camisa branca e com uma gravata que lhe conferia todo o aspeto de um empregado bancário. Os outros dois calçavam ténis e estavam vestidos como funcionários de uma empresa transportadora. O que não quer dizer que trabalhassem num banco ou numa empresa de transportes; simplesmente, andavam arranjados de modo a não chamar sobre si as atenções. Mas os seus olhos não paravam de perscrutar tudo em redor, e tinham os músculos tensos e preparados para enfrentar toda e qualquer situação.

Como seria de esperar, também eles não tiveram de bater à porta, entrando diretamente sem descalçar os sapatos. Enquanto os dois homens com pinta de funcionários de uma empresa transportadora revistavam o meu apartamento de uma ponta à outra, o jovem que por norma contactava comigo recolheu o depoimento. Tirou do bolso interior do casaco um bloco preto e nele foi apontando, com uma lapiseira, os pontos essenciais do meu relato. Contei-lhe que me tinham aparecido em casa dois tipos que andavam atrás de um crânio e mostrei-lhe o ferimento. Ele examinou-o durante alguns segundos, mas não fez comentários.

– E que história era essa do crânio? – quis ele saber.

– Não sei – respondi. – Isso era o que eu lhe ia perguntar.

– De certeza que não sabe? – insistiu o meu contacto numa voz desprovida de inflexão. – Trata-se de um assunto muito importante. Ora faça lá um esforçozinho de memória, por favor. Depois será demasiado tarde para retificar o seu depoimento. Os Semióticos não dão ponta sem nó. Se eles vieram ao seu apartamento à procura do crânio, é porque têm razões fundamentadas para acreditar que o crânio se encontrava aqui. Não há fumo sem fogo. Esse crânio deve valer bastante, para eles se darem ao trabalho de vir buscá-lo. Atendendo a estes argumentos de peso, não acredito que não saiba o que se passa...

– Visto que é tão esperto, talvez me possa explicar o que significa estar na posse desse crânio – disse eu.

– É precisamente isso que andamos a averiguar – avançou o meu contacto no Sistema, enquanto batia repetidas vezes com a lapiseira no bloco de notas. – A averiguar de um modo exaustivo, para que conste. Sim, porque nós, quando nos pomos a investigar um assunto, vamos ao fundo da questão. E se viermos a descobrir que nos esconde alguma coisa, arranjará sérios problemas. Tem consciência disso?

Respondi-lhe que sim, que tinha consciência disso. Como acabaria tudo aquilo? Ninguém pode prever o futuro...

– Sabíamos vagamente que os Semióticos andavam a maquinar alguma coisa. Começaram a dar sinal. Qual possa ser o objetivo concreto das suas demandas, porém, não sabemos ao certo. Tão-pouco sabemos que valor tem o crânio para eles. Uma coisa é certa: quanto mais indícios formos reunindo, mais próximos estaremos da verdade dos factos. Sobre isto não tenho qualquer dúvida.

– E eu, pela minha parte, que devo fazer?

– Estar alerta. Fazer uma pausa e manter os olhos abertos. De momento, cancelaremos todos os compromissos de trabalho. Se acontecer algo, ligue-nos de imediato. O telefone funciona?

Levantei o auscultador e verifiquei que dava sinal. Disse para comigo que não fora por acaso que os outros dois não tinham cortado a linha telefónica.

– Funciona – respondi.

– Percebeu bem? Aconteça o que acontecer, por mais insignificante que seja, telefone-nos logo. Não procure solucionar as coisas sozinho, nem esconder-nos nada. É uma gentinha perigosa. Da próxima vez não se contentarão em fazer-lhe um arranhão na barriga.

– Um arranhão? Chama a isto um arranhão?

Os dois homens com aspeto de empregados ao serviço de uma empresa de transportes, uma vez terminada a inspeção do apartamento, regressaram à cozinha.

– Procedemos a uma revista minuciosa – afirmou o mais velho. – Atuaram com método e não lhes escapou nada. Um trabalho de profissionais. Só pode ser coisa dos Semióticos.

O meu contacto fez um gesto de assentimento e os outros saíram da sala, deixando-nos sós.

– Se eles andavam à procura de um crânio, como é que se explica que tenham ido ao extremo de rasgar a roupa? – perguntei. – Era impossível camuflar o crânio no meio da roupa, fosse ele de que tamanho fosse. Isto partindo do princípio de que existia algum crânio...

– Estes tipos são profissionais. E os profissionais consideram todas as hipóteses. O meu amigo poderia ter escondido o crânio num daqueles armários com fecho automático e ter feito desaparecer a chave. E uma chave pode esconder-se em qualquer parte.

– Evidente... – disse eu. Era evidente.

– A propósito, os Semióticos não lhe fizeram uma proposta?

– Uma proposta?

– Sim. Não lhe propuseram que fosse trabalhar para eles, na Fábrica, muito concretamente? A troco de dinheiro ou de algum cargo...

– Não me fizeram nenhuma proposta desse género. Só me perguntaram pelo crânio, além de me terem feito este golpe no abdómen.

– Muito bem – disse o meu contacto –, escute com atenção o que vou dizer. Caso lhe façam alguma proposta, deve recusar liminarmente. Se viermos alguma vez a saber que nos atraiçoou, pode ter a certeza de que acabaremos consigo, nem que para isso tenhamos de o perseguir até ao fim do mundo. Isto não é uma ameaça, é uma promessa. Estamos a falar do Sistema: o Estado somos nós. Não há nada que não possamos fazer.

– Terei isso em linha de conta.

* * *

Quando eles se foram embora, procurei fazer o ponto da situação. Mas por mais voltas que desse, não cheguei a conclusão nenhuma. O nó do problema era apenas um: que diabo de investigação levava por diante o Professor? Fazer grandes conjeturas sem estar na posse desse elemento representava uma pura perda de tempo. E, a bem dizer, eu desconhecia as ideias que fervilhavam na cabeça do velho professor.

A única coisa que sabia de ciência certa era que me tinha visto obrigado a trair o Sistema. E, se eles soubessem disso – o que, mais cedo ou mais tarde, por certo aconteceria –, ver-me-ia numa situação crítica, tal como vaticinado pelo jovem convencido que era o meu contacto. De nada me serviria dizer que tivera de mentir debaixo de ameaças. Mesmo ficando a conhecer as circunstâncias da minha traição, a malta do Sistema nunca me perdoaria.

Enquanto estava mergulhado nestes pensamentos, a ferida começou a latejar e a doer-me cada vez mais. Achei melhor pegar em mim e ir ao hospital, para ver se me examinavam a ferida. Depois de procurar na lista telefónica a empresa de táxis mais próxima, mandei vir um. Apertei uma toalha contra a barriga, vesti as calças mais largas que encontrei e calcei-me. Ao agachar-me para enfiar os sapatos, senti uma dor tão afiada que mais parecia que o meu corpo se estava a fender em dois. E pensar que uma ferida no baixo-ventre, com apenas dois ou três milímetros de profundidade, podia transformar a vida de um homem num inferno!

Desci no elevador e esperei pelo táxi sentado num vaso de plantas que havia no vestíbulo. Era uma e meia da tarde no meu relógio. Tinham passado apenas duas horas desde que aquelas duas bestas me derrubaram a porta. Por sinal, duas horas muito longas. Dava-me a sensação de que haviam decorrido pelo menos umas dez horas...

À minha frente vi desfilarem as donas de casa que regressavam das suas compras. Dos sacos de supermercado espreitavam alhos-porros e nabos. Senti uma certa inveja daquelas mulheres. A elas ninguém lhes destruíra o frigorífico nem rasgara o ventre. Para que a vida seguisse tranquilamente o seu curso, só tinham de se preocupar com as notas dos filhos e com a melhor maneira de cozinhar o alho-porro e o nabo japonês. Não tinham necessidade de sair de casa a correr com um crânio de unicórnio debaixo do braço, nem de torturar os neurónios a processar códigos secretos incompreensíveis. Aquela, sim, era uma vida normal.

Pensei nos lagostins, no bife de vaca, na manteiga e no molho de tomate, descongelados no chão da cozinha. O mais tardar, havia que os comer no dia seguinte. O problema era que não tinha o mínimo apetite.

O carteiro chegou numa motocicleta Honda Supercub vermelha e começou a distribuir metodicamente a correspondência dentro das caixas de correio alinhadas junto à entrada, no vestíbulo. Vendo bem, havia caixas a transbordar de correio, enquanto outras não recebiam uma carta para amostra. Para a minha, o carteiro nem sequer se dignou olhar.

Ao lado das caixas de correio via-se uma árvore-da-borracha envasada; o vaso estava cheio de pauzinhos de chupa-chupas e de beatas. A árvore-da-borracha tinha um aspeto tão debilitado e sem viço como eu. Dava a impressão de que as pessoas passavam a vida a atirar as beatas dos seus cigarros para dentro do vaso, ou a estragar as folhas a seu bel-prazer. Não me lembrava desde quando é que a planta ali se encontrava, para ser sincero. A julgar pela sujidade acumulada, diria que há bastante tempo. Devia ter passado por ali todos os dias sem dar por ela... Até ao dia em que levara uma navalhada na barriga e me vira obrigado a esperar por um táxi na entrada do prédio.

* * *

Depois de me examinar, a primeira coisa que o médico perguntou foi como é que eu tinha feito aquilo.

– No decorrer de uma discussão. Uma história de saias, está a perceber? – disse eu.

Foi a única coisa de que me lembrei. Bastava olhar para constatar que o golpe tinha sido feito com uma navalha.

– Nestes casos temos de informar a polícia – referiu o médico.

– Preferia não envolver a polícia no assunto. Devo confessar que a culpa foi minha, em parte. Uma vez que o ferimento não é tão grave quanto isso, gostaria que ficasse tudo em família, por assim dizer. É um favor que lhe peço.

O médico ainda esboçou algumas palavras de protesto, mas por fim lá se deixou convencer. Deitando-me na marquesa, desinfetou a zona da lesão, deu-me várias injeções, preparou agulha e fio e coseu-me habilmente os bordos da ferida. Terminada a sutura, apareceu uma enfermeira, que me aplicou uma compressa sobre a área afetada e me rodeou a cintura com uma espécie de faixa de borracha, bem apertada. Durante toda a operação, não deixou de olhar para mim com uma expressão desconfiada.

– Não faça movimentos bruscos – advertiu o médico. – Deve evitar o álcool e as relações sexuais, e procure não se rir demasiado. Acima de tudo, descanse, aproveite para ler. Amanhã quero vê-lo outra vez.

Agradeci, paguei a despesa no guiché, aviei a receita do antibiótico para evitar que a ferida infetasse e regressei a casa. Ao chegar, estendi-me em cima da cama, tal como o médico recomendara, e comecei a ler Rudin, de Turguéniev. Em rigor, teria preferido Águas da Primavera14, mas encontrar o livro no meio das ruínas em que se encontrava o meu apartamento era uma missão quase impossível. E, pensando bem, não se podia dizer que Águas da Primavera fosse uma leitura mais apaixonante do que Rudin.

Deitado na cama, antes de escurecer, com uma faixa à volta da barriga e um romance de Turguéniev nas mãos, comecei a sentir que tudo poderia acontecer. Nada do que me sucedera nos últimos três dias tinha sido por culpa minha. Os acontecimentos foram-me impostos por uma força exterior, e eu limitei-me a ser apanhado no meio.

Fui à cozinha e pus-me a vasculhar com atenção os destroços provocados pelos vidros empilhados no lava-loiça. Quase todas as garrafas haviam ficado desfeitas em mil pedaços, mas descobri uma de Chivas Regal que tinha um resto de uísque no fundo:

ainda dava para encher um copo, e foi o que fiz. Depois, examinei o copo à contraluz, mas não detetei nenhum fragmento de vidro. Voltei para a cama, levando comigo o copo, e continuei a ler o meu livro enquanto bebia o uísque à temperatura ambiente.

Tinha lido Rudin quando andava a estudar na universidade, já lá iam quinze anos. Quinze anos! Ao reler a obra naquelas circunstâncias, com a barriga toda enfaixada, dei-me conta de que Rudin, o herói, me inspirava muito mais simpatia. A maior parte das pessoas não consegue emendar os seus próprios defeitos. As tendências do ser humano, de uma forma geral, consolidam-se antes dos vinte e cinco anos, e depois disso, por mais que uma pessoa se esforce, dificilmente consegue mudar a sua profunda natureza. O problema vem da maneira como o mundo exterior reage às nossas tendências. Com a ajuda do uísque, dei por mim cada vez mais identificado com Rudin. Com as personagens dos romances de Dostoiévski é raro sentir essa empatia, ao contrário do que acontece com as de Turguéniev. Simpatizo com quase todas elas. Talvez por terem uma data de defeitos. E nós, os que temos os nossos defeitos, tendemos a identificar-nos com aqueles que têm tantos defeitos como nós. Verdade seja dita que os defeitos exemplificados pelas personagens de Dostoiévski, muitas vezes, não se afiguram como defeitos, e por isso sou incapaz de sentir por eles uma empatia total. No caso de Tolstói, já que estou a falar do assunto, os defeitos dos seus heróis revelam-se de tal forma desmesurados e transcendentais que eles tendem a tornar-se monumentos estáticos.

Ao acabar de ler Rudin, atirei o livro de bolso para cima da estante e voltei a respigar no lava-loiças, em busca de restos. Descobri um dedo de precioso néctar no fundo de uma garrafa de Jack Daniel’s Black Label, deitei-o num copo, voltei para a cama e, desta vez, mergulhei na leitura de O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Adoro a literatura clássica. Quem é que, nos dias de hoje, ainda lê O Vermelho e o Negro?

Isto para dizer que, ao reler o dito romance, me identifiquei com Julien Sorel. Os seus predicados já estavam consolidados aos quinze anos, e confesso que essa circunstância foi decisiva para o meu processo de identificação com ele. Porque, em boa verdade, o facto de alguém ter já determinado, antes dos quinze anos, todos os fatores que condicionarão a sua vida, por mais objetivamente que uma pessoa procure encará-lo, não deixa de ser trágico. É o mesmo que encerrar-se numa sólida masmorra. Confinado a esse mundo, circundado por uma muralha, caminhando para a sua própria destruição.

Qualquer coisa me perturbou.

A muralha.

Aquele mundo estava rodeado de muralhas.

Fechei o livro e, depois de deixar o último trago de Jack Daniel’s deslizar pela garganta, concentrei os meus pensamentos nesse mundo cercado por uma muralha. Conseguia imaginar com relativa facilidade a muralha, altíssima, e um portão enorme. Reinava um silêncio sepulcral. E eu encontrava-me lá dentro. Tirando isso, tinha uma consciência pouco nítida do espaço em volta e não distinguia com clareza a paisagem no seu conjunto. A topografia da cidade recortava-se, de uma forma inconfundível, mas as imagens que me rodeavam eram extremamente desfocadas e confusas. Além disso, uma voz distante, perdida naquele véu opaco, chamava por mim.

Parecia a cena de um filme. Um daqueles épicos históricos a que eu devia ter assistido em tempos. El Cid, Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, A Túnica Sagrada, Spartacus... O certo é que não me lembrava de ter visto aquelas imagens em nenhum dos filmes. O que significava que a paisagem não passava de um produto da minha imaginação.

Abanei a cabeça para ver se me libertava da imagem. Devia estar cansado, pensei.

A Muralha simboliza as limitações da minha vida, disso não há dúvida, disse para mim mesmo. E o silêncio é uma reminiscência da eliminação do som. O facto de a paisagem se mostrar desfocada a toda a volta talvez fique a dever-se à minha imaginação, que enfrenta por estes dias uma crise devastadora. E talvez a voz que me chama seja a da rapariga de cor-de-rosa.

Após ter submetido o meu desvario momentâneo àquela análise simplista, tornei a abrir o livro. Mas não fui capaz de me concentrar na leitura. A minha vida não vale um caracol, pensei. Zero. Nada. O que é que construí até à presente data? Rigorosamente nada. Fiz alguém feliz? Ninguém. Possuo alguma coisa a que possa chamar minha? Nada de nada. Não tenho nem família, nem amigos, nem casa. Nem sequer uma ereção. E encontro-me em risco de perder o posto de trabalho.

Até o objetivo último da minha existência, o idílico mundo em que iria aprender a tocar violoncelo e a estudar grego, se encontrava ameaçado. Se perdesse o meu emprego, ficaria impedido de economizar o suficiente para realizar os meus sonhos. Pior do que isso: obrigado a fugir e perseguido pelo Sistema até ao fim do mundo, como iria eu arranjar tempo para aprender a conjugar os verbos irregulares gregos?

Fechei os olhos, lancei um suspiro, profundo como um poço inca, e voltei a enfronhar-me na leitura de O Vermelho e o Negro. O que estava perdido, perdido estava. Por mais que matasse a cabeça com aqueles e outros dilemas do género, não havia volta a dar.

Verifiquei com surpresa que anoitecera entretanto e que me encontrava rodeado por trevas dignas de uma descrição feita por Turguéniev ou por Stendhal. Estendido na cama, a ferida não me doía tanto. De vez em quando, uma moinha surda como a percussão de um tambor percorria-me a cicatriz, prolongando-se até às costas; contudo, uma vez passada a aflição, quase me esquecia da sua existência.

O relógio marcava as sete e vinte da tarde, mas eu continuava sem grande apetite. Desde aquela sanduíche pouco substancial para acompanhar o copo de leite, às cinco e meia da manhã, sem esquecer a salada de batata engolida na cozinha, que eu não metia nada à boca. Porém, só de pensar em comida, o meu estômago revolvia-se todo. Estava cansado, a precisar de dormir, ferido na barriga e com a casa num caos, como se um exército de anões por ali tivesse aberto caminho a ferro e fogo.

Anos atrás, tinha lido um romance de ficção científica passado num futuro próximo, em que o mundo, submerso pelos seus próprios detritos, se transformara num campo de ruínas: o cenário que a minha casa oferecia não andava muito longe disso. Havia toda a espécie de resíduos espalhados pelo chão. Desde o meu fato de três peças rasgado até ao aparelho de vídeo e ao televisor, ambos escavacados, um vaso de flores em pedaços, garrafas feitas em fanicos, o pé do candeeiro partido, os discos pisados, o molho de tomate descongelado e entornado, os cabos elétricos das colunas arrancados... A maior parte das camisas e da roupa interior que cobriam por inteiro o chão do quarto estava manchada de tinta e de sumo de uva, não havendo nem uma que eu pudesse voltar a vestir. Umas uvas que eu deixara ficar no prato, em cima da mesinha de cabeceira, tinham ido parar ao chão, mostrando-se agora todas pisadas. As obras completas de Joseph Conrad e Thomas Hardy estavam empapadas de água suja da jarra. Quanto aos gladíolos, derramados sobre a minha camisola de caxemira bege-clarinho, tinham o ar de uma oferenda depositada a um soldado morto em combate. Numa das mangas via-se uma mancha de tinta Pelikan de cor azul-real, do tamanho de uma bola de golfe.

Tudo o que existira convertera-se em lixo.

Uma montanha de lixo inútil. Os micro-organismos morrem e transformam-se em petróleo; as grandes árvores caem e transformam-se em carvão. Aquilo, porém, era lixo autêntico, lixo puro que não servia para coisa nenhuma. Que destino poderia alguém dar a um videogravador escavacado?

Dirigi-me outra vez à cozinha e pus-me a vasculhar as garrafas partidas no lava-loiça. Para mal dos meus pecados, já não restava uma gota de uísque. Toda a reserva de uísque que eu tinha em casa, em vez de ir parar direitinha ao meu estômago, estava condenada a deslizar pelos canos da cozinha, descendo, qual Orfeu, até ao subsolo, direito ao reino dos Invisíveis.

Enquanto remexia no meio das garrafas, cortei o dedo do meio da mão direita num caco de vidro. Fiquei durante alguns instantes a contemplar o sangue escorrer da extremidade do meu dedo e pingar sobre o rótulo de uma garrafa de Four Roses. Às tantas, vendo que não parava, optei por limpar o sangue com um lenço de papel e colocar um penso adesivo.

Pelo chão da cozinha, espalhadas como cartuchos vazios na sequência de um tiroteio, tinham rolado sete ou oito latas de cerveja. Ao apanhá-las, reparei que estavam mornas, mas sempre era melhor do que nada. Com uma lata em cada mão, voltei para a cama e continuei a ler Stendhal, enquanto dava pequenos goles na cerveja. A minha ideia era que o álcool eliminasse a tensão daqueles últimos três dias e me ajudasse a cair num sono reparador. Mesmo considerando que no dia seguinte me esperava um não mais acabar de chatices – o que sem dúvida acabaria por se verificar –, de momento só tinha um desejo: dormir como um bebé. Queria dormir durante o tempo que a Terra demorava a girar sobre si mesma, tal como fazia Michael Jackson. Só assim poderia encarar com um renovado sentimento de desespero os novos problemas que me esperavam.

Pouco antes das nove, dei-me por vencido. Pontualmente, o sono chegou ao meu humilde tugúrio, reduzido a escombros e com um ar tão desolado como a face oculta da Lua. Deixei cair ao chão O Vermelho e o Negro, que já ia em mais de metade, apaguei a luz da mesa de cabeceira, milagrosamente salva do massacre, enrosquei-me todo na cama e adormeci. Sentia-me um feto encolhido no meio da devastação daquele quarto. Até chegar o momento certo de acordar, ninguém poderia estorvar o meu sono. Eu era o príncipe do desespero, envolto no manto dos dissabores. E permaneceria mergulhado num sono profundo até que um sapo do tamanho de um Volkswagen Golf se aproximasse para me despertar com um beijo.

* * *

Contrariamente às minhas previsões, dormi apenas duas horas. Por volta das onze da noite, a rapariga gorda vestida de cor-de-rosa apareceu em minha casa e começou a abanar-me o ombro. Pelos vistos, o meu sono de pouco ou nada valia. As pessoas passavam lá por casa e arrogavam-se o direito de me dar pontapés, como se quisessem comprovar o estado dos pneus de um carro em segunda mão. Que direito tinham de o fazer? Podia estar a envelhecer, mas não era nenhum automóvel de ocasião!

– Deixa-me em paz! – exclamei.

– Escuta-me, por favor. Levanta-te. Peço-te por tudo! – apressou-me a jovem.

– Deixa-me sossegado! – repeti.

– Não são horas de dormir – insistiu ela, desatando a bater-me de lado com o punho fechado. Uma dor violenta percorreu-me o corpo inteiro. A sensação que tive foi a de que alguém acabara de abrir a porta do Inferno.

– Por favor, levanta-te – voltou ela à carga. – Se ninguém fizer nada, é o fim do mundo.

14 Turguéniev escreveu Águas da Primavera entre 1870 e 1871, quando estava na casa dos cinquenta. Oscilando entre a amargura deixada pelos amores de juventude entretanto perdidos e a consciência irónica da sua ilusória qualidade, a narrativa tem o seu quê de autobiográfico. Publicado em 1875, cinco anos antes de Pais e Filhos (considerado um dos romances mais importantes do século XIX), Rudin foi o primeiro romance do escritor a granjear-lhe fama enquanto um dos grandes nomes do realismo russo, contendo já pensamentos e emoções reveladores da alma do seu autor. (N. das T.)


O Fim do Mundo

16

A Chegada do Inverno

Quando acordei, encontrava-me deitado. Reconheci o odor familiar da minha cama, do meu quarto. Ao mesmo tempo, porém, tudo me parecia ligeiramente mudado. Como se aquela cena tivesse sido recriada a partir das minhas recordações de infância. Nos mais ínfimos pormenores, até mesmo no que tocava às manchas no teto e ao gesso escavacado das paredes.

Lá fora chovia. Uma chuva de inverno, dura como gelo, abatia-se sobre o telhado, empapando o solo. Os sons tanto podiam vir de perto como distar um quilómetro de mim: não era capaz de calcular as distâncias.

Ao lado da janela descortinei a silhueta do Coronel. O ancião colocara ali uma cadeira e, imóvel, sentado com as costas bem direitas, como era seu hábito, via a chuva cair. Porque contemplaria ele a chuva com tanto interesse? Confesso que não atinava com a resposta. A chuva não passava disso mesmo: era chuva. Percutia no telhado, empapava a terra e desaguava nos rios. Só isso.

Experimentei levantar o braço e tocar na cara com a palma da mão, mas não fui capaz. O braço recusou mexer-se. Todo o meu corpo, de resto, estava terrivelmente pesado. Tentei chamar o velho Coronel, mas da minha boca não saiu qualquer som. Uma massa de ar oprimia os meus pulmões, impedindo-me de respirar normalmente. Dir-se-ia que o meu corpo, paralisado por completo, deixara de funcionar. Limitava-me a manter os olhos abertos e a observar a janela, a chuva e o Coronel. Não conseguia lembrar-me das razões que poderiam estar por trás da minha impotência. Sempre que procurava fazer um esforço de memória, a minha cabeça começava a latejar com violência: doía-me tanto que parecia que ia rebentar.

– Inverno – disse o Coronel, tamborilando com a ponta do dedo no vidro da janela. – Chegou o inverno. Agora vais ficar a saber por que razão o tememos tanto por estas bandas.

Fiz um pequeno gesto de assentimento.

Sim. Era o inverno que me deitava abaixo. Depois eu... atravessara o Bosque e conseguira chegar à Biblioteca. De repente, veio-me à memória a sensação dos cabelos da jovem na minha face.

– Foi a jovenzinha que trabalha na Biblioteca que te trouxe até aqui. Com a ajuda do Guardião, bem entendido. Estavas a arder em febre e a transpirar em bica. Isto aconteceu anteontem.

– Anteontem...

– Sim. Dormiste durante dois dias seguidos. Pensei que não irias acordar nunca mais. Não te avisei? Não te disse para não te aventurares pelo Bosque dentro?

– Peço desculpa – disse eu.

O Coronel pegou numa caçarola que estava a aquecer em cima do fogão e deitou o conteúdo para dentro de um prato. A seguir, ajudou-me a sentar-me direito na cama, encostado para trás. A cabeceira de madeira estalou com um rangido de ossos.

– Primeiro que tudo, come isto – disse o ancião. – Só três colheres, é quanto basta. Deixaremos as desculpas e as reflexões para mais tarde. Tens fome?

Respondi-lhe que não. Nem sequer me apetecia respirar.

– Mas isto tens de comer. Três colherzinhas já me chegam. Coragem. Só três colheres e já está. Sentes-te capaz de beber?

Anuí.

A sopa, que devia ser feita à base de ervas medicinais, era tão amargosa que dava vontade de vomitar, mas lá consegui engolir três colheradas. Quando acabei, senti que as forças abandonavam o meu corpo.

– Muito bem – disse o Coronel, deixando ficar a colher dentro do prato. – Bem sei que a sopa é um bocadinho amarga, mas garanto que expulsará os maus humores do teu corpo. Agora dorme um pouco e vais ver que te sentirás muito melhor. Dorme descansado. Estarei aqui para assistir ao teu acordar.

* * *

Quando abri os olhos estava escuro lá fora. Um vento muito forte empurrava a chuva de encontro aos vidros da janela. O Coronel encontrava-se à minha cabeceira.

– Que tal? Sentes-te melhor?

– Muito melhor, obrigado. Que horas são?

– São oito da noite.

Tentei levantar-me, e mal me tive de pé.

– Onde queres ir?

– À Biblioteca. Tenho os velhos sonhos para ler – respondi.

– Não digas disparates! Da maneira que te encontras, não consegues andar nem cinco metros...

– Não posso ausentar-me dali nem faltar ao trabalho.

O ancião abanou a cabeça.

– Os velhos sonhos podem esperar. Tanto o Guardião como a jovem sabem que precisas de descansar. Além do mais, a Biblioteca está encerrada.

Deixando escapar um suspiro, o Coronel aproximou-se do fogão, serviu-se de uma taça de chá e regressou para junto de mim. O vento parou por momentos, depois voltou a golpear a janela.

– Pelo que percebi, engraçaste com a bibliotecária – prosseguiu o Coronel. – Não era minha intenção escutar, mas não pude evitar. Tenho estado sempre ao pé de ti e, com a febre, deliraste. Não há motivo para ter vergonha. É normal que os jovens se apaixonem. Tenho razão, não tenho?

Fiquei calado.

– É uma boa menina. E estava muito preocupada contigo – continuou o velho Coronel, bebendo um gole de chá. – Mas, considerando a situação atual, não é conveniente que te apaixones por ela. Preferia não ter de te dizer isto, mas há certas coisas que preciso de te explicar a esse respeito.

– E porque é que não é conveniente?

– Porque ela não poderá nunca retribuir os teus sentimentos. Ninguém tem culpa. Nem tu, nem ela. Quase me atreveria a dizer que a culpa é do mundo, por estar feito desta maneira. Mas não se pode mudar o mundo. Seria o mesmo que procurar inverter o curso de um rio.

Sentei-me na cama e esfreguei as faces com as duas mãos. Pareceu-me notar que o meu rosto estava um tudo-nada mais magro, para não dizer emaciado.

– Refere-se à alma, não é verdade?

O ancião concordou com a cabeça.

– Está a dizer-me que, como eu tenho coração e ela não, por mais que a ame, jamais poderei receber algo em troca.

– Isso mesmo. Nunca terás a merecida retribuição e acabarás por te perder. Porque ela, como muito bem dizes, não tem coração. Tal como eu. Ninguém aqui tem.

– Mas o senhor é muito amável. Preocupa-se comigo, permaneceu acordado horas a fio só para cuidar de mim. Não será essa uma forma de dar expressão aos seus sentimentos?

– Não, enganas-te. A amabilidade e os sentimentos são coisas diferentes. Em rigor, a amabilidade é uma função superficial. Não passa de um mero hábito, que nada tem que ver com os sentimentos nem com o coração. A alma é qualquer coisa de mais profundo e, também, de mais inconstante.

Fechei os olhos e procurei reunir num só todos os meus pensamentos, dispersos em várias direções.

– O que eu acho – disse – é que as pessoas perdem o coração quando lhes morre a sombra? Não será assim? – disse eu.

– Tens toda a razão.

– E como a sombra da rapariga já morreu, isso significa que ela não poderá recuperar o seu coração, é isso?

O velhote acenou afirmativamente com a cabeça.

– Desloquei-me pessoalmente à Câmara e vi com os meus próprios olhos o registo do óbito. Como tal, não há erro possível. A sombra morreu quando a rapariga tinha dezassete anos. E, tal como mandam as regras, foi enterrada no Pomar das Macieiras. Está tudo registado, tintim por tintim, até mesmo o enterro. Se quiseres informações pormenorizadas, o melhor é perguntares-lhe diretamente. De certeza que ficarás mais convencido se ouvires a história da boca dela. Porém, se me é permitido acrescentar uma coisa, sempre te digo o seguinte. A jovem, quando a arrancaram à sua sombra, ainda não sabia o que era fazer pleno uso da razão. De modo que nem sequer se recorda de que um dia teve coração. Nesse sentido, é diferente das pessoas como eu, que perdi a minha sombra por vontade própria, quando cheguei a velho. Isso permite-me imaginar os movimentos do teu coração, ao passo que a pequena não está em condições de o fazer.

– No entanto, ela recorda-se lindamente da mãe. Pelo que me disse, a sua mãe conservou o coração, mesmo depois de a sombra ter morrido. Não sei qual é a explicação, mas, agora pergunto, o facto de isso ter acontecido não seria uma ajuda? Partindo do princípio de que ela teria herdado parte dos sentimentos da mãe... Não lhe parece plausível?

O ancião fez girar várias vezes o chá frio que restava na taça e bebeu-o lentamente.

– Não – respondeu o Coronel. – Escuta uma coisa. A Muralha não deixa escapar uma parcela mínima de coração. Se, por mera coincidência, restasse uma pequena fração, a Muralha trataria de a absorver na íntegra. E caso não lograsse absorvê-la na sua totalidade, essa pessoa seria expulsa da Cidade. Segundo parece, foi o que aconteceu à mãe da jovem.

– Está a dizer-me que eu não devo ter esperança?

– Não quero que apanhes nenhuma desilusão. Esta cidade é forte, e tu és fraco. Deverias sabê-lo, com base no que te aconteceu.

Por momentos, o Coronel fixou em silêncio o interior da sua taça vazia.

– Mas podes ter a rapariga, se quiseres.

– Tê-la?

– Sim. Podes ir para a cama com ela e, se quiseres, podem viver juntos. És livre de realizar todos os teus desejos nesta cidade.

– Sem que o coração seja tido nem achado?

– O coração não existe – afirmou o velho. – Mesmo o teu acabará por morrer. E quando isso acontecer, deixarás de experimentar sentimentos de perda ou de desengano. E até o amor deixará de existir. Ficará apenas a vida de todos os dias. Uma vida calma e tranquila. Tu aprecias essa vida, e ela tem apreço por ti. Se é o que desejas, fica com ela. Ninguém ta poderá tirar.

– Que estranho! Eu tenho coração e, no entanto, por vezes perco-o de vista. Não, não era isto que eu queria dizer. O meu coração anda sempre perdido e há alturas em que o encontro. Apesar disso, estou certo de que vai voltar qualquer dia, e esta convicção é o que me ajuda a conservar a minha existência. Daí que me custe tanto imaginar o que significa perder o coração.

O velho Coronel assentiu repetidas vezes com a cabeça.

– Pensa com calma – aconselhou ele. – Ainda vais a tempo.

– É o que vou fazer – respondi.

* * *

Depois disso, o Sol não se mostrou. Quando a febre baixou, saí da cama, abri a janela e respirei o ar da rua. Estava em condições de me levantar, mas a verdade é que durante um par de dias senti faltarem-me as forças, incapaz de me agarrar sequer ao corrimão da escada ou à maçaneta da porta. Enquanto isso, o Coronel obrigava-me todas as noites a beber aquela beberagem amarga e preparava-me uma espécie de caldo à base de arroz. A seguir, sentava-se à cabeceira da cama e contava-me histórias de antigas batalhas. Não tornou a falar-me dela nem da Muralha, e eu tão-pouco me atrevi a fazer-lhe perguntas. Se ele sentisse necessidade de me explicar alguma coisa, por certo já o teria feito.

Ao terceiro dia, encontrava-me restabelecido ao ponto de pedir ao Coronel a sua bengala e dar um pequeno passeio nas imediações da casa. À medida que caminhava, apercebi-me de que o meu corpo se tornara mais leve: provavelmente, a febre alta fizera-me perder peso, mas algo me dizia que não era aquela a única razão. O inverno conferia a todas as coisas que me rodeavam uma estranha gravidade. E eu era o único que parecia não fazer parte desse mundo pesado.

Da encosta da colina onde se erguia a Residência Oficial era possível alcançar toda a metade oeste da Cidade. Via-se o Rio, a Torre do Relógio, a Muralha e, muito ao longe, vislumbrava-se o que parecia ser a Porta Ocidental. Escondidos atrás dos óculos escuros, os meus débeis olhos não logravam distinguir os pormenores com grande precisão; no entanto, pude verificar que o ar invernoso dotara os contornos da paisagem de uma nitidez que nunca antes se me revelara. Era como se o vento gélido que soprava da Serra do Norte tivesse varrido aquele pó de cores indefinidas que aderia a todos os recantos da Cidade.

Embrenhado na contemplação da Cidade, lembrei-me do mapa que ficara de entregar à minha sombra. Por culpa da minha maleita, já levava quase uma semana de atraso relativamente ao dia em que prometera dar-lho. A sombra devia estar preocupada comigo, ou, quem sabe?, talvez tivesse renunciado aos seus planos, acreditando que eu a abandonara. Aquele pensamento entristeceu-me.

Pedi ao Coronel um par de botas velhas, daquelas usadas para trabalhar, retirei a palmilha, introduzi o mapa muito bem dobrado, até ficar de um tamanho reduzido que lhe permitisse caber lá dentro, e tornei a pôr a palmilha no sítio. De certeza que a minha sombra se lembraria de desmontar as botas e daria com ele. Pedi então ao Coronel que fosse à procura da minha sombra, a fim de lhe entregar o calçado.

– Ela possui apenas uns ténis desportivos... Quando a neve começar a acumular-se nos caminhos, ficará com os pés congelados! – expliquei. – Não tenho confiança no Guardião. Posso contar com o senhor para lhe fazer chegar isto às mãos?

– Uma vez que é só por isto, creio que não haverá problema – retorquiu o Coronel, pegando nas botas.

Ao entardecer, regressou e disse-me que, com efeito, tinha visto a minha sombra e lhe entregara as botas em mão.

– Estava preocupada contigo – disse o velho Coronel.

– Como é que ela lhe pareceu?

– Creio que se ressente do frio. Ainda assim, encontra-se bem, não há motivo para preocupações.

* * *

Dez dias depois do acesso de febre, ao cair da noite, pude finalmente descer a colina e ir até à Biblioteca.

Talvez fosse imaginação minha, porém, mal abri a porta, a atmosfera lá dentro pareceu-me ainda mais viciada do que anteriormente. Nada ali denunciava a presença humana, como se aquele lugar estivesse abandonado desde há muito. O lume no braseiro encontrava-se apagado; a cafeteira, fria. Ao levantar a tampa, vi que tinha restos turvos de café. O teto pareceu-me mais alto do que era costume. As luzes estavam apagadas; apenas os meus passos ressoavam na escuridão, provocando um eco estranhamente antigo. Não havia sinais dela. O balcão estava coberto por uma ténue camada de poeira.

Sem saber o que fazer, sentei-me num banco de madeira e esperei que a rapariga chegasse. A porta não estava fechada à chave, por isso era natural que aparecesse. Armei-me de paciência e esperei, imóvel, tiritando de frio. Por mais que esperasse, ela não havia meio de chegar. Quando muito, as trevas adensaram-se, e foi tudo. Dava-me a sensação de que todas as coisas deste mundo haviam desaparecido, deixando-me a mim e à Biblioteca para trás. Era eu o único que permanecera sozinho, no fim do mundo. Por mais que esticasse a mão, os meus dedos não encontravam nada que pudessem tocar.

O pesadume do inverno invadia a sala. Era como se os objetos que ali havia estivessem firmemente pregados ao chão e à mesa. Sozinho, sentado no escuro, parecia-me que diversas partes do meu corpo iam perdendo o seu peso real, e estas alargavam-se e contraíam-se segundo os seus caprichos. Como acontece quando, diante de um espelho côncavo, daqueles que deformam a nossa imagem, os movimentos se tornam mais lentos.

Levantei-me do banco para acionar o interruptor da luz. Fui buscar alguns bocados de carvão e alimentei o braseiro, peguei num fósforo e acendi o lume. Depois voltei a sentar-me. De certa maneira, em contraste com o fogo, a escuridão tornou-se ainda mais densa; ao acender o braseiro, o frio aumentou.

Provavelmente, estava demasiado enredado nos meus pensamentos. Ou talvez aquele torpor que ainda subsistia no mais profundo do meu ser me tivesse convidado a um breve período de sono. De repente, dei-me conta da sua presença, ali de pé, mesmo à minha frente, observando-me em silêncio. Porque a luz do candeeiro elétrico projetava uma luz amarelada, difusa, a sua silhueta encontrava-se envolta numa espécie de véu. Durante alguns instantes, não consegui tirar os olhos dela. Trazia o mesmo casaco azul de sempre e o cabelo apanhado de um lado e escondido debaixo da gola. Transportava no corpo o perfume do vento invernoso.

– Pensava que já não vinhas – disse eu. – Esperei muito tempo por ti.

Ela despejou o café frio no lava-loiça e, depois de lavar a cafeteira, encheu-a com água limpa e colocou-a ao lume. Em seguida, libertou o cabelo, despiu o casaco e pendurou-o num cabide.

– E por que razão pensaste que eu não viria? – perguntou-me.

– Não sei. Era uma impressão que tinha.

– Enquanto precisares de mim, podes contar comigo. Da mesma forma que tu precisas de mim, certo?

Assenti. Precisava dela, disso não tinha a menor dúvida. Por mais que o sentimento de perda se intensificasse ao vê-la, a sua presença era-me essencial.

– Quero que me fales da tua sombra – pedi-lhe. – Pode dar-se o caso de a ter encontrado no velho mundo.

– Sim, talvez. Também pensei nisso ao princípio, quando disseste que podia ser que nos conhecêssemos.

Ela sentou-se junto ao fogão e, por instantes, ficou absorta na contemplação das chamas.

– Tinha eu quatro anos, separaram-me da minha sombra e mandaram-na embora, para fora da Muralha. A minha sombra viveu no mundo exterior, enquanto eu vivi neste mundo. Não faço ideia do que terá sido feito dela lá fora. Da mesma forma que ela nunca soube nada de mim. Quando fiz dezassete anos, a minha sombra regressou à cidade e morreu. Na hora de morrer, as sombras voltam sempre, sabes? Foi nessa altura que o nosso Guardião a enterrou no pomar.

– E então passaste a ser uma verdadeira habitante da Cidade, foi isso?

– Sim. O coração que ainda permanecia em mim foi enterrado juntamente com a minha sombra. Tu disseste que o coração é como o vento, mas nós é que somos parecidos com o vento, não te parece? Porque nós limitamo-nos a passar ao lado, sem pensar em nada, sem sentir nada. Sem envelhecer e sem morrer nunca.

– E quando a tua sombra voltou, viste-a?

Ela abanou a cabeça.

– Não, não vi. Que razão tinha eu para me encontrar com ela? De certeza que era completamente diferente de mim.

– Não é de excluir a hipótese de que ela fosse a tua pessoa.

– Pode ser que sim – disse ela. – Em todo o caso, agora já não tem importância. O círculo fechou-se.

Em cima do braseiro, a cafeteira começou a assobiar. Aos meus ouvidos soou como o vento, soprando de muito longe.

– Apesar de tudo, sentiste necessidade de me ver?

– Sim – respondi.


O Impiedoso País das Maravilhas

17

Fim do Mundo.
Charlie Parker. Bomba-Relógio

– Por favor – gritou a rapariga gorda. – Se não fizermos qualquer coisa, o mundo vai acabar!

Por mim, pensei, pode perfeitamente acabar já hoje. O ferimento no baixo-ventre doía-me terrivelmente. A sensação que tinha era a de que dois rapazinhos gémeos cheios de vitalidade me davam pontapés com toda a força no espaço limitado da minha reduzida imaginação.

– Que aconteceu? Dói-te alguma coisa? – perguntou a rapariga?

Inspirei profundamente e peguei numa camisola que tinha à mão para limpar o suor da cara.

– Entraram dois tipos pela casa dentro e fizeram-me um corte de seis centímetros na barriga – disse eu de rajada, como se vomitasse o ar acumulado nos pulmões.

– Com uma faca?

– Como se eu fosse um porquinho-mealheiro.

– Quem te fez essa barbaridade? E porquê?

– Isso gostava eu de saber. Tenho dado voltas à cabeça, mas continuo sem descortinar as razões por detrás de semelhante gesto. Olha, gostaria de te fazer uma pergunta. Podes dizer-me porque é que toda a gente teima em pisar-me como se eu fosse uma espécie de capacho?

A jovem respondeu que não com a cabeça.

– Às tantas, até pensei que eles pudessem ser teus conhecidos, ou teus colegas... Refiro-me àqueles dois que me cortaram a barriga, claro.

Durante alguns segundos, a jovem anafada fitou-me intensamente com uma expressão desorientada.

– Como é que pudeste pensar isso?

– Não sei. Talvez porque tenho de fazer recair o odioso da questão sobre alguém. Quando as coisas não têm pés nem cabeça, sentimo-nos sempre melhor quando acusamos outra pessoa.

– Talvez, mas com isso não resolves nada.

– Não resolvo nada, dizes bem – admiti. – Acontece, porém, que nada do que está a acontecer é por culpa minha. Foi o teu avô quem pôs a engrenagem em marcha. Eu fui apanhado no meio, sem que ninguém me consultasse. Por que carga-d’água tenho de ser eu a resolver tudo?

Assaltou-me de novo uma guinada de tal forma violenta que não tive outro remédio senão interromper o meu discurso e esperar que a dor passasse. Como se estivesse num cruzamento, à espera de que o sinal ficasse verde.

– Hoje, por exemplo, aconteceu a mesma coisa. Primeiro, telefonas-me tu, de madrugada. Dizes-me que o teu avô desapareceu do mapa e pedes-me ajuda. Eu vou ter contigo, mas não compareces. Regresso e, enquanto passo pelas brasas, aparecem-me cá em casa dois salafrários que partem a mobília toda e me cortam a barriga com uma faca. Depois é a vez de os sujeitos do Sistema entrarem pela casa dentro e desatarem a fazer-me perguntas. E, por último, entras tu em cena. Não vais negar que parece uma coisa combinada... Parecem uma equipa de basquetebol em campo. E tu, afinal de contas, até que ponto estás a par da situação?

– Para ser sincera, não creio que saiba muito mais. Ajudava o meu avô na investigação, mas limitava-me a fazer o que ele mandava. Faz isto, faz aquilo. Vai ali, vai acolá. Telefona àquele, escreve esta carta. Enfim, esse género de coisas... Encontro-me na mesmíssima situação que tu: não faço a menor ideia do que ele andava a congeminar.

– Mas tu costumavas ajudá-lo na sua investigação, se não me engano...

– Ocupava-me apenas do processamento de dados e realizava tarefas do género. A verdade é que não tenho conhecimentos especializados sobre o assunto, por isso não entendia muito do que via e ouvia.

Pus-me a bater nos dentes com a ponta das unhas, enquanto procurava reordenar as minhas ideias. Tinha de encontrar uma saída. Antes que acabasse por ser completamente dominado pelas circunstâncias, precisava de pegar no fio da meada e dar sentido a toda a história.

– Disseste que, se não fizéssemos qualquer coisa, ia ser o fim do mundo, não foi? Porquê? A que propósito?

– Isso não sei. Foi o meu avô que me disse: «Se me acontecer alguma coisa, será o fim do mundo.» E olha que o meu avô não era do género de brincar com coisas sérias. Se ele disse que o fim do mundo poderia estar para breve, é porque estamos mesmo a falar do fim do mundo.

– Não entendo. «Será o fim do mundo»... O que significa essa conversa, vendo bem? Tens a certeza de que o teu avô falou do «fim do mundo», quero dizer, usou mesmo essas palavras, e não «extinção do mundo» ou «destruição do mundo», por exemplo?

– Não, ele disse: «O mundo vai acabar.»

Dei voltas à ideia do fim do mundo, continuando sempre a bater com a unha nos dentes.

– Isso do fim do mundo está relacionado comigo, certo?

– Acho que sim. O meu avô dizia sempre que tu eras a chave de tudo. Que as suas investigações eram baseadas em ti, isto desde há vários anos.

– Procura recordar-te de outras coisas – insisti. – Que história é essa da bomba-relógio?

– Bomba-relógio?

– Foi o que avançou o homem que me esfaqueou. Disse que os dados que processara para o teu avô eram como uma bomba-relógio que explodiria em devido tempo. Que diabo significa isso?

– Bom, não passa de uma suposição minha – respondeu a rapariga gorducha –, mas creio que o meu avô nunca deixou de conduzir as suas investigações sobre a consciência do ser humano. Persistiu sempre nessa demanda, desde que criou o sistema de shuffling. A mim, dá-me a impressão de que o shuffling está na origem de tudo. E digo isto porque, antes de ele ter começado a desenvolver aquele projeto, o meu avô contava-me tudo. Falava-me das suas investigações, daquilo em que se encontrava a trabalhar na altura, do que faria a seguir... Como te disse antes, não possuo grandes conhecimentos na matéria, mas as explicações técnicas avançadas pelo meu avô eram muito interessantes e fáceis de compreender. Adorava as nossas conversas.

– E, uma vez implementado o sistema do shuffling, fechou-se em copas e tornou-se mais reservado?

– Foi isso mesmo. O avô começou a ficar dia e noite fechado no seu laboratório subterrâneo e deixou de conversar comigo acerca das suas pesquisas. Sempre que eu lhe fazia alguma pergunta, respondia a primeira coisa que lhe passava pela cabeça e mudava de assunto.

– Deves ter-te sentido magoada...

– Sim. Magoada e terrivelmente sozinha. – Ao dizer aquilo, a jovem voltou a fitar-me em silêncio. – Diz-me uma coisa: posso deitar-me na tua cama? Está um frio do raio aqui...

– Se não me tocares na ferida nem te mexeres muito, por mim tudo bem – disse eu.

Porque seria que, nos últimos tempos, todas as raparigas que encontrava pela frente queriam enfiar-se na cama comigo?

A jovem deu a volta, passou para o outro lado da cama e, sem despir o fato saia-casaco cor-de-rosa, deslizou para dentro da roupa. Estendi-lhe uma das almofadas em que apoiava a minha cabeça; ela pegou nela, deu-lhe duas ou três pancadinhas com a palma da mão para a espalmar e colocou-a debaixo da cabeça. A sua nuca exalava aquele peculiar aroma de melão, o mesmo de quando a encontrara pela primeira vez. Com grande esforço, mudei de posição e virei-me para ela. Ali estávamos nós, partilhando a mesma cama, um em frente do outro.

– Sabes uma coisa? É a primeira vez que estou assim, tão próxima de um homem – confidenciou-me a rapariga gorda.

– Ai, sim?

– Raras são as vezes que venho à cidade. Por isso é que faltei ao nosso encontro. E quanto ia para te perguntar o caminho, desapareceu o som.

– Bastava que tivesses dito ao taxista, que ele por certo saberia como chegar aqui.

– Sim, mas trazia muito pouco dinheiro comigo. Saí de casa meio a correr e nem sequer me lembrei de que podia vir a precisar de dinheiro. Resultado: fui obrigada a vir a pé.

– Não tens mais família, à parte o teu avô?

– Os meus pais e os meus irmãos morreram num acidente de viação, tinha eu seis anos. Um camião foi embater na traseira do carro onde seguiam, o depósito de gasolina incendiou-se e todos eles morreram carbonizados.

– E foste a única sobrevivente?

– Naquela altura, eu encontrava-me no hospital. Quando eles sofreram o acidente, iam precisamente visitar-me.

– Estou a ver.

– Desde então, fiquei sempre a viver com o meu avô. Não andei na escola, e quase nunca saio de casa. Os meus amigos contam-se pelos dedos...

– Porque é que não foste à escola?

– O meu avô sempre disse que não me fazia falta – respondeu ela, como se a questão não tivesse qualquer importância. – De resto, ele próprio me ensinou todas as disciplinas, desde o inglês e do russo, passando pela anatomia, tudo. Além disso, a minha tia ensinou-me a cozinhar e a coser.

– A tua tia?

– Bom, a senhora que vivia lá em casa e que se ocupava da lida doméstica. Era muito boa mulher, por sinal. Morreu de cancro há cerca de três anos. Desde então, ficámos sozinhos, o avô e eu.

– Quer dizer que, a partir dos seis anos, não foste mais à escola.

– Não, mas isso não constituiu nunca um problema. Sei fazer uma data de coisas. Falo quatro idiomas, para além do japonês. Sei tocar piano e saxofone, consigo montar uma equipa de telecomunicações. Aprendi técnicas de navegação e funambulismo. Li imensos livros. E preparo umas sanduíches boas, não preparo?

– Sim – reconheci eu.

– A educação escolar dura dezasseis anos e, segundo diz o meu avô, a única coisa que faz é desgastar o cérebro. Ele também pouco foi à escola.

– Impressionante. Mas não te causou uma certa tristeza – acrescentei – o facto de não teres amigos da tua idade?

– Não sei bem. Estava sempre tão ocupada, que nunca arranjei tempo para ficar a remoer o assunto. E há outra coisa: não sei até que ponto teria muitos assuntos em comum com as pessoas da minha idade.

– Hum...

– Por outro lado – animou-se ela –, tu fascinas-me.

– Eu? Porquê?

– Bom, pareces estar sempre extraordinariamente cansado. No entanto, a ti, o cansaço parece dar-te uma espécie de energia. E é isso que eu tenho dificuldade em perceber. Não te pareces com mais ninguém que eu conheça. O avô nunca está cansado, e o mesmo acontece comigo. Diz lá: é verdade que estás sempre cansado?

– Sim, canso-me muito facilmente – respondi. – E tanto assim é que, por mais que repita esta ideia, nunca é demais dizê-lo.

– E qual é a sensação, conta-me? – quis ela saber. – Quer dizer, de uma pessoa estar assim cansada...

– O que acontece é que as emoções vão-se sobrepondo e acabam por se tornar cada vez mais vagas. Começas a sentir pena de ti própria e irritas-te com os outros, sentes pena dos outros e irritas-te contigo própria... enfim, esse género de sentimentos.

– Continuo sem perceber.

– Sim, acabamos por não compreender nada de nada. Como acontece quando pomos a girar um pião pintalgado de muitas cores. Quanto mais depressa gira, mais difícil se torna distinguir cada uma das cores, até que, no fim, a confusão é total.

– Parece interessante – comentou a jovenzinha rechonchuda. – Vejo que dominas o assunto.

– Sim, podes dizê-lo.

Com efeito, podia explicar tudo, de fio a pavio, acerca do sentimento de fadiga que nos vai corroendo a vida, ou que brota do próprio coração da vida, e explicá-lo de cem maneiras distintas. Devia ser outra das coisas que não ensinavam na escola.

– Sabes tocar saxofone, por acaso? – perguntou-me ela.

– Não.

– E um disco do Charlie Parker, tens?

– Acho que sim, mas agora não é boa altura para o ir buscar. Além do mais, a aparelhagem está estragada e nem sequer o poderíamos escutar.

– Tocas algum instrumento musical?

– Não, nenhum – respondi.

– Posso tocar-te – perguntou ela.

– Não – respondi num tom assertivo. – Podes aleijar-me se atingires um ponto sensível.

– E posso tocar-te quando a ferida sarar?

– Quando estiver curado, sim, se entretanto o fim do mundo ainda não tiver chegado... Voltando ao que interessa. Creio que me estavas a falar do teu avô e de como ele mudou depois de ter inventado o shuffling.

– Exato. A partir daí, transformou-se por completo. Deixou praticamente de comunicar comigo, tornou-se taciturno, começou a falar sozinho...

– E o que dizia o teu avô sobre o shuffling? Lembras-te?

Brincando por momentos com um dos brincos de ouro que tinha postos nas orelhas, a jovem refletiu antes de responder.

– Ele dizia que esse sistema era a porta pela qual se podia aceder a um novo mundo. Em princípio, foi criado como sendo uma técnica complementar para a reorganização dos dados que se introduziam no computador, mas, utilizado de uma certa maneira, adquiria o poder de mudar a estrutura e o funcionamento do próprio mundo. Um bocado parecido com a física nuclear, que, como é sabido, originou a bomba atómica.

– Resumindo, o sistema de shuffling é uma porta aberta para um mundo novo, e eu sou a chave para essa porta.

– Em síntese, acho que poderíamos dizer que sim.

Continuei a golpear os dentes da frente com a ponta das unhas. Apetecia-me um uísque, um copo cheio de uísque com gelo, mas tanto o gelo como o uísque tinham-se evaporado cá de casa.

– Pensas que o objetivo do teu avô era destruir o mundo?

– Não, nada disso! O meu avô pode ter o seu feitio e ser um bocado egoísta e misantropo, mas, no fundo, é uma excelente pessoa. Como tu e eu.

– Obrigado pela parte que me toca.

Era a primeira vez na vida que me diziam que eu era boa pessoa.

– Além disso, o meu avô vivia aterrorizado com a ideia de as suas investigações caírem nas mãos erradas. O que significa que, pelo que lhe dizia respeito, não tinha más intenções. O meu avô abandonou o Sistema porque temia que, continuando ao serviço dessa organização, o seu trabalho fosse utilizado para fins menos lícitos. Daí que se tenha demitido, escolhendo prosseguir sozinho a sua jornada.

– Mas o Sistema é composto pelos bons! Impede os Semióticos de roubarem os dados informáticos e de os colocarem no mercado negro, e, ao mesmo tempo, protege os direitos dos legítimos proprietários desses mesmos dados.

A jovem gorda olhou fixamente para mim e depois encolheu os ombros.

– O meu avô não parece estar demasiado preocupado em saber quem são os bons e quem são os maus. Diz que a bondade ou a maldade são atributos que fazem parte da natureza profunda do ser humano e que não têm nada que ver com os direitos de propriedade.

– Sim, é possível que a razão esteja do lado dele.

– Ainda por cima, o meu avô não confia em nenhum tipo de poder. Durante muito tempo, fez parte do Sistema, é certo, mas só a fim de aceder a uma quantidade de dados, a material de pesquisa e a simuladores sofisticados. Por isso, depois de concluir o complexo sistema de shuffling, decidiu que era muito mais fácil e eficaz continuar as suas pesquisas por conta própria. Defendia ele que, uma vez criado o sistema de shuffling, já não tinha necessidade da equipa toda nem das instalações e que o resto era apenas trabalho intelectual.

– Hum... Quando o teu avô abandonou o Sistema, por acaso não terá feito uma cópia dos meus dados pessoais e trazido esse material com ele?

– Isso já não te sei dizer – respondeu ela. – Mas imagino que, se quisesse, poderia tê-lo feito sem problemas. O meu avô era chefe do laboratório do Sistema e tinha livre acesso aos dados.

As coisas deviam ter acontecido assim. O Professor abarbatara os meus dados, servira-se deles nas suas pesquisas e, usando-me como cobaia, continuara a trabalhar, levando muito mais longe a sua teoria do shuffling. As peças começavam a encaixar. Tal como o pequenitates afirmara, o Professor requisitara a minha presença por ter chegado ao estádio final das suas investigações, e só me passara para as mãos os dados com um propósito em vista: o de que, ao processá-los através do sistema de shuffling, a minha consciência reagisse a um código determinado que ele ocultara no seu interior.

A confirmarem-se estas suspeitas, a minha consciência – ou, melhor dizendo, o meu inconsciente – provavelmente já devia ter começado a reagir. Uma bomba-relógio, tinha dito o Minorca. Calculei por alto o tempo passado desde que o shuffling chegara ao fim. Após terminar o processamento de dados, levantara-me pouco antes da meia-noite – na noite anterior –, o que significava que haviam decorrido quase vinte e quatro horas. Era muito tempo. Não sei para quantas horas depois teria ele programado o mecanismo destinado a fazer explodir a bomba, mas, em todo o caso, os ponteiros do relógio já tinham avançado vinte e quatro horas.

– Tenho mais uma pergunta – voltei à carga. – Disseste que vinha aí «o fim do mundo»? Ouvi bem?

– Sim. Foi o que o meu avô disse.

– E ele fez essa afirmação antes ou depois de começar a sua investigação com base nos meus dados?

– Depois – respondeu a rapariga. – Sim, creio que foi depois. Porque o meu avô começou a dizer que «vinha aí o fim do mundo» há muito tempo. Porque é que perguntas? Achas que existe uma relação?

– Isso não te posso afirmar com inteira segurança, mas há uma coisa que me dá que pensar. Sabes que a minha senha para aceder ao shuffling é «fim do mundo»? Não me venhas dizer que é uma simples coincidência...

– E qual é o conteúdo desse teu «fim do mundo»?

– Não sei. Apesar de se tratar da minha consciência, encontra-se num lugar a que não consigo aceder. Só conheço estas palavras: «fim do mundo».

– E não podes recuperar o conteúdo? Ou seja, fazer a operação inversa e voltar ao ponto de partida?

– Impossível – declarei. – Nem um batalhão blindado do exército conseguiria subtraí-lo do cofre-forte que existe no subterrâneo do Sistema. Está dotado de um dispositivo de segurança especial e a vigilância não podia ser mais apertada.

– O meu avô conseguiu esses dados valendo-se da sua posição, quase aposto...

– Provavelmente. Mas não passam de simples conjeturas. A única maneira de saber a verdade é perguntando diretamente ao teu avô.

Fazendo pressão com a mão sobre o ferimento que tinha na barriga, sentei-me na cama. Sentia pontadas lancinantes nas têmporas e a cabeça vibrava como um painel de controlo.

– É a única solução, palpita-me – disse eu. – Não sei que diabo significa aquilo a que o teu avô chama «fim do mundo», mas, em todo o caso, de braços cruzados não podemos ficar. Tenho a impressão de que, se não fizermos qualquer coisa para pôr fim a esta situação, alguém vai pagar as favas.

E esse alguém poderia muito bem ser eu.

– Seja como for, primeiro temos de ir em auxílio do meu avô.

– Porque somos boas pessoas, nós os três?

– Tu o disseste – confirmou a jovem anafada.


O Fim do Mundo

18

A Leitura de Sonhos

Incapaz de ler claramente os segredos ocultos no fundo do meu coração, dediquei-me ao projeto de decifrar velhos sonhos. À medida que o inverno avançava a passos largos, não podia adiar indefinidamente o momento de retomar o meu ofício. Além do mais, o facto de me concentrar na leitura permitia-me esquecer, ainda que por breves instantes, o sentimento interior de perda.

Por outro lado, quantos mais sonhos lia, mais intensa era a sensação de impotência que se apoderava de mim. Esse sentimento devia-se ao facto de não conseguir interpretar a mensagem que esses sonhos deviam transmitir. Lesse eu os sonhos que lesse, não havia meio de compreender o sentido oculto nas mensagens enviadas pelos velhos sonhos. Era como ler em voz alta, noite após noite, um encadeado de frases ininteligíveis. Como contemplar todos os dias o fluir das águas de um rio. Não me servia de nada. Diga-se em abono da verdade que a minha técnica de ler sonhos melhorara. Aumentara o número de sonhos que era capaz de ler, e fazia-o de uma forma mais hábil. No entanto, o vazio deixado em mim por essa tarefa crescia proporcionalmente. A fim de progredir, o ser humano mostra-se por regra capaz de desenvolver grandes esforços, mas os meus, convenhamos, não me levavam a parte nenhuma.

– Confesso que não faço a menor ideia do que significam estes velhos sonhos – disse eu à bibliotecária. – Aqui há tempos, referiste que o meu trabalho consistia em ler os velhos sonhos dos crânios. Porém, eles limitam-se a passar através de mim. Sou incapaz de compreender um único e, quanto mais leio, mais desgastado me sinto.

– Dizes isso, mas continuas a ler os velhos sonhos como se estivesses possuído. Sempre gostaria de saber porquê...

– Não sei – respondi, abanando a cabeça.

Reconheço que me concentrava a fundo no trabalho que fazia para ver se aplacava o sentimento de perda. Porém, até eu tomava consciência de que aquele não era o único fator. A jovenzinha tinha razão: eu mergulhava na leitura de sonhos como se estivesse possuído.

– Pergunto-me se, em parte, o problema não estará em ti – alvitrou ela.

– Em mim?

– Creio que devias abrir mais o teu coração. Não sei grande coisa acerca do coração, mas dá para perceber que o teu coraçãozinho está hermeticamente fechado. Aliás, da mesma forma que os velhos sonhos precisam de quem os leia, também tu experimentas uma forte necessidade de os ler.

– O que te leva a dizer isso?

– A leitura de velhos sonhos é isso mesmo. Tal como os pássaros que voam para sul ou para norte, consoante as estações do ano, assim o Leitor de Sonhos tem por missão continuar sempre a ler velhos sonhos.

A rapariga estendeu a mão por cima da mesa e pousou-a sobre a minha. Depois sorriu. O seu sorriso veio direito a mim e teve o condão de evocar uma doce luz primaveril assomando por entre as nuvens.

– Abre o teu coração. Não és nenhum prisioneiro. És um pássaro que atravessa os céus em busca de sonhos.

* * *

Desse por onde desse, não tinha outro remédio senão ir pegando nos velhos sonhos, um de cada vez, a fim de os examinar com grande atenção. Escolhia um crânio, de entre os muitos alinhados naquelas prateleiras a perder de vista, transportava-o em mão com todos os cuidados e mais algum para cima da mesa. A rapariga ajudava-me a tirar-lhe o pó com um paninho húmido e, em seguida, a secá-lo com um pano seco. Terminada a operação, e uma vez bem esfregada, a camada superior do velho sonho tornava-se imaculada, como se fosse neve acabadinha de cair. Sob o efeito da luz, as órbitas oculares vazias mais pareciam dois poços sem fundo.

Com ambas as mãos, cobria a parte superior da calota e esperava que, como reação à temperatura do meu corpo, o crânio começasse a emitir calor. Quando este alcançava uma determinada intensidade – muito ténue, de uma tepidez que fazia lembrar um raio de sol no inverno –, o crânio, branco e polido, começava a narrar-me os velhos sonhos que encerrava no seu interior. Eu fechava os olhos, respirava fundo, abria o meu coração e ia traçando com a ponta dos dedos o fio da história que me era contada. A sua voz era demasiado fraca e as imagens que projetava eram desfocadas e brancas, como estrelas distantes no céu ao amanhecer. A partir daí, só podia decifrar diversos fragmentos imprecisos, que me esforçava por unir; por mais que procurasse uni-los, nunca lograva obter uma imagem global.

No meio desses fragmentos havia paisagens que nunca tinha visto, músicas que jamais escutara, palavras sussurradas em diversas línguas, ininteligíveis aos meus ouvidos. Afloravam de repente à superfície e sumiam-se de imediato, no mais profundo das trevas. Entre um fragmento e outro não existia qualquer tipo de nexo: era como fazer rodar o botão de frequência de um aparelho de rádio a toda a velocidade. Procurava de todas as maneiras concentrar os meus sentidos na ponta dos dedos, mas, por mais que me esforçasse, o resultado era o mesmo. Sentia que os velhos sonhos queriam contar-me qualquer coisa, só não lograva decifrar o quê.

Talvez houvesse alguma coisa de errado na maneira como eu os lia. Ou talvez as palavras se tivessem desgastado ao longo dos anos. Ou, quem sabe?, entre a história que lhes ia na cabeça e a história por mim imaginada existia porventura uma distância espacial e temporal decisiva.

Em todo o caso, tudo o que me restava era observar em silêncio aqueles resquícios de diferente natureza, que se iam perfilando e desaparecendo. Também havia imagens familiares, escusado será dizer. Erva verde ondulando ao sabor do vento, nuvens brancas que deslizavam no céu, a luz do Sol refletida na superfície de um rio. Enfim, cenas do género, perfeitamente vulgares. E, no entanto, essas imagens normais e corriqueiras tocavam o meu coração de uma maneira estranha e infligiam-me uma tristeza inexplicável. Onde se encontravam os elementos que suscitavam em mim tamanha melancolia? Nem eu sabia. E como um barco que vemos passar do lado de lá da janela, aqueles fragmentos apareciam e desvaneciam-se sem deixar rasto.

As imagens duravam uns instantes, até que, aos poucos, como acontece quando a maré se retira, os velhos sonhos começavam a perder o calor e voltavam a ser simples crânios, brancos e frios. Era um sinal de que os velhos sonhos tornavam a mergulhar no seu sono intemporal. E a água escorria-me dos dedos, pingando sobre o solo. O meu labor como Leitor de Sonhos consistia em repetir isso, uma vez e outra.

Assim que os velhos sonhos ficavam completamente frios, entregava-os à rapariga, que tratava de alinhar os crânios sobre o balcão. Entretanto, eu deixava-me estar com ambas as mãos pousadas sobre a mesa, para ver se descansava um pouco e descontraía. Chegava a ser capaz de ler cinco ou seis velhos sonhos por dia. Para cima deste número, perdia a minha capacidade de concentração e as pontas dos dedos não logravam captar mais do que um vago sussurro. Quando os ponteiros do relógio assinalavam as onze, sentia-me de tal maneira exausto que mal me tinha de pé.

No final de cada sessão, a jovem preparava-me sempre um café quente. Às vezes, trazia de casa umas bolachas ou um pão de frutos feito por ela durante o dia, e aquilo constituía uma refeição ligeira. Sentados à frente um do outro, quase sem trocarmos uma palavra, bebíamos o café e devorávamos as bolachinhas ou o pão. Eu estava tão derreado que durante um certo tempo não era capaz de articular as palavras como deve ser, e ela, sabendo isso, remetia-se ao silêncio.

– Será por minha culpa que não consegues abrir o teu coração? – perguntou ela, um belo dia. – Eu não posso corresponder aos teus sentimentos, e talvez por isso te feches tanto...

Estávamos os dois, como acontecia muitas vezes, nas escadinhas que partiam do centro da Ponte Velha e iam dar à ilhota, entretidos a seguir com os olhos a corrente. A Lua pálida e fria, reduzida a uma pequena lasca, refletia-se temerosa nas águas do Rio. Uma frágil embarcação de madeira que alguém havia deixado amarrada a um poste, na pequena ilha, produzia um ligeiro marulhar que se juntava ao murmúrio do Rio. Como estávamos sentados ao lado um do outro nos degraus estreitos, sentia o calor do corpo dela de encontro ao meu ombro.

Que estranho, pensei. As pessoas associam o coração ao calor. Mas não há relação nenhuma entre o coração e o calor do corpo.

– Não, não é bem assim – respondi-lhe. – Se não te abro o meu coração, é um problema exclusivamente meu. Tu não tens culpa. Acontece que eu não estou seguro dos meus sentimentos, daí que me sinta confuso.

– Nesse caso, nem sequer estás em condições de perceber muito bem o que é o coração?

– Nem sempre consigo compreendê-lo, é certo – admiti. – Há alturas em que só percebemos o que nos vai na alma muito depois, quando já é demasiado tarde. Na maioria dos casos, as pessoas têm de tomar decisões e vêm-se obrigadas a agir sem estar seguras dos seus sentimentos, e isso deixa-nos desorientados, a nós e aos outros.

– Como é que o coração pode ser uma coisa tão imperfeita? – atirou-me ela, sorrindo.

Tirei as mãos dos bolsos e contemplei-as à luz da Lua. Banhadas por aquela tonalidade leitosa, pareciam um par de estátuas desproporcionadas, em miniatura.

– Também é essa a minha opinião – declarei. – O coração é algo de muito imperfeito. Mas deixa vestígios, e nós podemos seguir esses vestígios, como se fossem pegadas na neve.

– E onde conduzem essas pegadas?

– A nós mesmos – respondi. – O coração é assim. Sem coração não chegas a lado nenhum.

Levantei a cabeça e olhei para cima. A Lua de inverno flutuava no céu da Cidade cercada pela alta Muralha, emitindo uma luz exageradamente brilhante, quase incongruente.

– Tu não tens culpa de nada – repeti, em jeito de consolação.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

19

Hambúrgueres.
Um Skyline. Prazo-Limite

Primeiro que tudo, resolvemos trincar qualquer coisa. Confesso que não estava com grande apetite, mas não sabíamos quando haveria oportunidade de voltar a comer uma refeição decente. Por isso, o mais acertado era meter algo no estômago. Um hambúrguer e uma cerveja vinham mesmo a calhar. Ela, por seu turno, dizia que só tinha comido uma tablete de chocolate ao almoço e que estava esganada. Pelos vistos, o pouco dinheiro que levava só lhe dera para comprar aquele chocolate.

Vesti as calças de ganga com cuidado para não tocar na ferida, meti uma camisa desportiva por cima da T-shirt e enfiei uma camisola fina pela cabeça. Por uma questão de segurança, abri a gaveta da cómoda e escolhi um corta-vento de náilon, não fosse o diabo tecê-las. A rapariga não estava, nem de perto nem de longe, vestida para uma expedição espeleológica, mas, infelizmente, no meu roupeiro não havia nem camisas nem calças que lhe servissem. Eu era uns bons dez centímetros mais alto do que ela e pesava menos dez quilos. O mais simples teria sido ir a uma loja ali perto comprar roupa prática, que lhe permitisse movimentar-se com outra facilidade. Mas onde iríamos nós arranjar um estabelecimento desses aberto a meio da noite? Por sorte, desencantei um velho blusão de combate do exército norte-americano, comprado por tuta-e-meia há uma porrada de tempo, e servia-lhe. O problema eram os sapatos de salto alto, mas ela explicou-me que, no escritório, tinha sapatos de jogging e galochas.

– Uns sapatos de jogging cor-de-rosa e umas galochas da mesma cor – acrescentou.

– Estou a ver que gostas de cor-de-rosa.

– Quem gosta é o meu avô. Diz que essa cor me favorece muito.

– Com efeito, fica-te bem – gabei eu. Não era mentira nenhuma: assentava-lhe que nem uma luva. Regra geral, as mulheres gordas que costumam andar vestidas de cor-de-rosa ficam parecidas com enormes bolos de morango, mas àquela, por alguma razão que desconheço, a cor ficava-lhe a matar.

– O teu avô tem um fraquinho pelas mulheres bem nutridas, não tem? – perguntei, só para confirmar o que já sabia de antemão.

– Pois tem – respondeu a rapariga de rosa. – Por isso é que me esforço para engordar. Depende muito da alimentação. Mal me descuido e como menos, emagreço logo. Ando sempre a procurar encher-me de alimentos à base de manteiga, de molhos e de coisas do género...

– Hum... estou a ver.

Abri o armário encastrado na parede para tirar uma mochila, guardada atrás de uma pilha de roupa. Depois de me certificar de que não estava rasgada, meti no seu interior casacos para os dois, uma lanterna, uma bússola, luvas, uma toalha, um facalhão, um acendedor de cozinha, uma corda e combustível sólido. A seguir, dirigi-me à cozinha e, no meio dos alimentos espalhados pelo chão, peguei em dois pães, numa quantidade de latas de conserva de carne, pêssego em calda, salsichas e sumo de toranja, e enfiei tudo dentro da mochila. Enchi o cantil de água. Atafulhei os bolsos das calças com todo o dinheiro que encontrei em casa.

– Até parece que vamos fazer um piquenique... – observou a jovem.

– Podes crer.

Antes de sairmos, dei uma vista de olhos pelo apartamento. Tinha o aspeto de uma lixeira. Uma vez mais, a vida ensinara-me uma lição. Para se construir qualquer coisa é preciso muito tempo, mas basta um instante para ficar tudo destruído. Nas três divisões daquele pequeno apartamento estava toda a minha vida. Tinha levado uma vida aceitável, é certo, se bem que houve dias em que me sentisse um pouco farto. Tudo aquilo se esfumara por completo, como a neblina matinal... e pensar que demorara apenas o tempo de abrir duas latas de cerveja. O meu trabalho, o meu uísque, a minha paz, a minha solidão, a minha coleção das obras de Somerset Maugham e dos filmes de John Ford: tudo se convertera num monte de detritos inúteis.

«(...) do esplendor na relva, da glória em flor (...)», recitei mentalmente. Depois estendi o braço, carreguei no botão do interruptor e desliguei a eletricidade em toda a casa.

* * *

Atendendo às dores pavorosas provocadas pelo ferimento na barriga, e encontrando-me demasiado cansado para analisar a situação em toda a sua complexidade, optei por esvaziar a cabeça. Era melhor não pensar em nada do que deixar o raciocínio a meio. Sempre com a rapariga ao meu lado, entrei no elevador e, juntos, descemos até ao estacionamento localizado no piso subterrâneo, onde abri a porta do carro e atirei a mochila para cima do assento traseiro. Se houvesse alguém à coca que nos pudesse seguir, estava-me nas tintas! Naquela altura do campeonato, já deixara de me importar com isso. Primeiro que tudo: contra quem é que tinha de me acautelar? Os Semióticos? O Sistema? Ou aqueles dois energúmenos da navalha? Na situação em que me encontrava, manobrar habilmente entre três grupos de inimigos diferentes revelava-se uma tarefa acima das minhas forças. Com aquele ferimento horizontal de seis centímetros no ventre, morto de sono e acompanhado da jovem gorducha, já tinha com que me entreter! Só me faltava ter de enfrentar os Invisíveis nas trevas subterrâneas! Se eles quisessem agir, que fizessem o que lhes desse na real gana.

Como não estava em grandes condições físicas, perguntei à jovem se ela seria capaz de pegar no volante. Respondeu-me que não sabia conduzir.

– Lamento imenso. Se estivéssemos a falar de um cavalo, não teria qualquer problema...

– Deixa lá, não tem importância. Pode ser que ainda venha a ser preciso saber montar bem a cavalo num futuro próximo... – retorqui.

Depois de ter verificado que o depósito de combustível estava quase cheio, saímos do parque de estacionamento. Percorri a estradinha tortuosa que atravessava a zona residencial e desemboquei numa grande artéria. Apesar do adiantado da hora, as ruas estavam cheias de carros. Havia sobretudo táxis, embora também se vissem muitos camiões e viaturas ligeiras. Por que razão toda aquela gente sentia necessidade de andar às voltas pela cidade, em plena noite era um mistério para mim. Porque seria que não regressavam às suas casas às seis da tarde, no final de um dia de trabalho, e, em chegando as dez, não se enfiavam na cama e apagavam a luz para dormir?

Por outro lado, aquele era um problema que não me dizia respeito. Independentemente da minha opinião, o mundo continuaria a expandir-se segundo os seus próprios interesses. Pensasse eu o que pensasse, os árabes continuariam a extrair petróleo, e, com este petróleo, os grandes conglomerados continuariam a produzir eletricidade e gasolina e as pessoas a percorrer as ruas das grandes cidades em perseguição dos seus desejos. O que tinha a fazer era deixar-me de histórias e procurar os meus próprios problemas.

Diante do semáforo, com as duas mãos pousadas no volante, soltei um grande bocejo enquanto esperava que a luz ficasse verde.

Mesmo à frente do meu carro estava um camião enorme, carregado de rolos de papel empilhados até bater no tejadilho da caixa. À minha direita via-se um casal jovem num Skyline branco desportivo. Impossível dizer se eles estavam a caminho de uma noitada ou se regressavam a casa, mas o certo é que deixavam ambos transparecer um certo tédio. A mulher, exibindo o braço esquerdo com duas pulseiras de prata a baloiçar da janela do carro, dirigiu-me um olhar de esguelha. Não parecia especialmente interessada na minha pessoa, só olhara para mim por não ter outra coisa melhor para fazer. Um letreiro do restaurante Denny’s, um sinal de trânsito ou a minha cara: era tudo igual ao litro. Devolvi-lhe o olhar. Era bonita, mas de uma beleza vulgar. Numa série de televisão, por exemplo, faria bem o papel de amiga da protagonista, e imaginei-a logo numa cena em que estivessem as duas a tomar chá na cafetaria, altura em que lhe perguntaria qualquer coisa do género: «Que se passa contigo? Ultimamente, não pareces muito animada.» Teria apenas direito a uma breve aparição, após o que desapareceria de cena e ninguém se lembraria mais dela. O sinal passou a verde. Enquanto o camião denotava uma certa dificuldade em arrancar, o Skyline branco desapareceu do meu campo de visão, libertando uma nuvem de fumo preto saído pelo tubo de escape e deixando ficar no ar a música dos Duran Duran.

– Presta atenção aos carros que vêm atrás – pedi à jovem. – Se vires algum que esteja sempre colado a nós, avisa-me.

Ela anuiu e virou-se para trás.

– Achas que nos estão a seguir?

– Não sei – respondi. – Mais vale ser prudente. Contentas-te com um hambúrguer? É o mais rápido, e assim não perdíamos tempo...

– Como achares melhor; fico bem com qualquer coisa.

Parei o carro diante da primeira cadeia de hambúrgueres com serviço de drive-through que encontrei no caminho. Uma rapariga vestida de vermelho e com uma curtíssima minissaia aproximou-se de nós, colocou uma bandeja em ambas as janelas e tomou nota do pedido.

– Um cheeseburger duplo, batatas fritas e um chocolate quente – pediu a rapariga gorducha.

– Um hambúrguer normal e uma cerveja – acrescentei.

– Lamento informar que não vendemos álcool – disse a funcionária.

– Nesse caso, uma Coca-Cola – pedi eu.

Quem se lembraria de pedir cerveja num drive-through?

Enquanto esperávamos que nos trouxessem a comida, ficámos atentos para ver se aparecia alguém, mas nenhum carro veio colocar-se atrás do nosso. Claro que, se nos estivessem a seguir, o mais provável era que evitassem parar no mesmo sítio. Ficariam à nossa espera num local onde pudessem manter-nos debaixo de olho. Baixei a guarda e comecei a devorar maquinalmente o hambúrguer servido com umas folhas de alface do tamanho de um bilhete de portagem, tudo acompanhado de batatas fritas e sem esquecer a Coca-Cola. A jovem abundante de carnes mordiscava com deleite, sem pressas, o seu cheeseburger, escolhia as batatas fritas uma a uma, a dedo, e sorvia o seu chocolate.

– Queres mais batatas fritas? – perguntou-me.

– Não, obrigado.

Assim que ela limpou completamente tudo o que havia no tabuleiro, bebeu o resto do chocolate, lambeu o ketchup e a mostarda que haviam ficado agarrados aos dedos e limpou tanto as mãos como a boca com um guardanapo. Saltava à vista que a comida lhe soubera às mil maravilhas.

– Bom, voltando à história do teu avô – disse eu –, creio que o melhor a fazer é começarmos por voltar ao laboratório subterrâneo.

– Tens razão. Pode ser que encontremos ali alguma pista.

– A questão é saber como faremos para evitar o reduto dos Invisíveis... Disseste que o dispositivo para os afugentar estava estragado, não foi?

– E está. Mas não te preocupes, existe um pequeno aparelho para situações de emergência. Embora não seja muito potente, desde que o transportemos connosco quando caminharmos, servirá para impedir que os Invisíveis se acerquem de nós.

– Ah! Então, não há problema – disse eu, mais aliviado.

– Bom, verdade seja dita que não é assim tão simples. Esse tal mecanismo portátil funciona alimentado por uma bateria e só dispomos de trinta minutos. Depois apaga-se e tens de carregar a bateria.

– Quanto tempo demora a carregar?

– Quinze minutos. Trabalha durante trinta minutos e fica um quarto de hora parado. Regra geral, como só temos de percorrer o caminho entre o escritório e o laboratório, chega e sobra.

Resignado, abstive-me de fazer qualquer comentário. Sempre era melhor que nada. Saí do parque de estacionamento, parei num supermercado aberto e comprei duas latas de cerveja e uma garrafa de uísque de formato pequeno, daquelas que são para transportar no bolso. Um pouco mais adiante, parei o carro, bebi as duas cervejas e um quarto da garrafa de uísque. Senti-me um pouco melhor. Fechei a garrafa e passei-a à rapariga, pedindo-lhe que a guardasse na mochila.

– Porque é que bebes tanto? – perguntou-me ela.

– Por ter medo, se calhar – respondi.

– Eu tenho medo e não bebo.

– O teu medo e o meu são distintos.

– Não compreendo – retorquiu.

– Com os anos, aumenta o número de atos irreparáveis.

– Também aumenta o cansaço, não é assim?

– Sim, o cansaço também aumenta.

Ela virou-se para mim, estendeu a mão e tocou-me no lóbulo da orelha.

– Vai correr tudo bem, não te preocupes. Eu estarei sempre a teu lado.

– Obrigado – respondi.

* * *

Deixei ficar o carro no estacionamento do edifício onde o avô da rapariga tinha o laboratório, saí e pus a mochila às costas. A intervalos regulares, a ferida dava sinal de si e eu sentia uma dor excruciante. A sensação que tinha era a de estar um carro carregado de feno a passar devagarinho por cima do meu ventre. É apenas uma dor, procurei convencer-me. Uma dor superficial que não tem nada que ver com a minha essência enquanto ser humano. Tal como a chuva, acabará por cessar. Chamei a mim os restos de amor-próprio que ainda conservava, arredei da cabeça todos os pensamentos sobre a dor e apressei-me a seguir atrás da rapariga.

Diante do edifício encontrava-se um jovem guarda, alto e robusto, que pediu à jovem que apresentasse o seu cartão de residente. Ela tirou-o de dentro de uma carteirinha de plástico do bolso e estendeu-lho. O guarda inseriu o cartão na ranhura de um computador e, depois de comprovar o nome e o número que apareciam no ecrã, carregou num botão e abriu-nos a porta.

– É um edifício muito especial – explicou-me ela, enquanto atravessávamos em diagonal o vastíssimo átrio. – As pessoas que entram por aquela porta têm segredos que procuram a todo o custo proteger, daí que tenham instalado neste edifício um sistema de segurança especial. Aqui fazem-se investigações muito importantes, decorrem reuniões do mais confidencial que possas imaginar, enfim, esse tipo de coisas. Primeiro, na entrada, verificam a tua identidade, como acabaste de ver, e a seguir controlam os passos que dás aqui dentro através das câmaras que estão instaladas por tudo quanto é sítio. Mesmo que nos estejam a seguir, não conseguem entrar no edifício.

– Sabem que o teu avô mandou abrir aqui dentro um poço que conduz diretamente ao subterrâneo?

– Parece-me pouco provável. Quando construíram o edifício, o meu avô mandou fazer uma passagem especial, a fim de poder aceder diretamente do escritório aos subterrâneos, mas deve haver pouca gente a par do projeto. Só o proprietário do edifício e quem desenhou os planos, calculo. Aos encarregados da obra foi-lhes comunicado que se tratava da rede hídrica. Quanto à licença de construção, escusado será dizer que também estava falsificada.

– Deve ter custado um balúrdio.

– De certeza. O meu avô tem montes de dinheiro. E eu, a mesma coisa, sabes? Sou podre de rica. Graças à herança dos meus pais e ao seguro de vida, especulei na bolsa e o dinheiro multiplicou-se.

A rapariga tirou uma chave do bolso e abriu a porta do elevador. Subimos no famoso ascensor, exageradamente grande e estranho até dizer basta.

– Com que então, jogas na bolsa?

– Sim, o meu avô ensinou-me a especular na bolsa. Como selecionar as informações, como interpretar os dados do mercado, como fugir aos impostos, como transferir capitais para bancos estrangeiros, o costume. Devo dizer que a bolsa é muito interessante. Investiste, alguma vez?

– Infelizmente, não – admiti. Nem sequer investira dinheiro num depósito a prazo.

– Antes de se dedicar à investigação, o meu avô foi operador bolsista. Porém, como ganhara rios de dinheiro, resolveu deixar de especular e preferiu tornar-se cientista. Genial, não te parece?

– Sim, genial – concordei.

– O avozinho é um génio em tudo o que faz.

O elevador, tal como acontecera da primeira vez, avançava com uma lentidão de tal forma exasperante que se tornava difícil dizer se subia ou se descia. Demorava uma eternidade, e reconheço que fiquei nervoso só de pensar que, através das câmaras de videovigilância, os nossos movimentos estavam a ser observados.

– O avô dizia que a educação escolar tem um rendimento demasiado baixo para que alguém possa transformar-se num Einstein. E tu, qual é a tua opinião?

– Não sei. Pode ser que tenhas razão – disse eu. – Andei a estudar durante dezasseis anos e, diga-se em abono da verdade, não creio que isso me tenha servido de muito. Não falo línguas estrangeiras, não toco nenhum instrumento musical, não conheço as regras do mercado bolsista... Nem sequer sei montar a cavalo.

– Nesse caso, porque não abandonaste a escola? Se quisesses, podias ter saído de lá em qualquer altura.

– Pois, talvez, mas isso... – tartamudeei, ao mesmo tempo que procurava encontrar razões para tal. Sem sombra de dúvida, podia ter-me vindo embora, bastava que tivesse querido. – Não me ocorreu, pura e simplesmente. A minha família, ao contrário da tua, era do mais normal e tradicional que possas conceber. Pela parte que me toca, devo dizer que nunca me passou pela cabeça que alguma vez pudesse sobressair fosse no que fosse.

– Pois olha que foi um erro da tua parte! – contrariou-me ela. – Todo o ser humano possui um talento que lhe permite exceder-se pelo menos numa área concreta. O problema consiste no facto de as pessoas não saberem desenvolver as suas capacidades inatas, acabando por perdê-las ao desbarato.

– Como eu, queres tu dizer.

– Não, longe disso. Tu és um caso à parte. Acredito que possuis qualidades que fazem de ti uma pessoal especial. Tens uma carapaça emocional muito dura e, graças a ela, conservas muitas coisas intactas dentro de ti.

– Carapaça emocional?

– Exato – confirmou ela. – Por isso, como vês, ainda estás a tempo. Quando esta história acabar, que tal pegarmos em nós e juntarmos os trapinhos? Não me refiro a casarmos, nem nada do género, apenas a vivermos juntos. Podíamos viajar até à Grécia, à Roménia, ou à Finlândia... Sei lá, rumar a um lugar tranquilo onde pudéssemos passar o tempo a andar a cavalo e a cantar. Dinheiro não me falta, e terias finalmente a possibilidade de te transformares numa figura de alto gabarito.

– Hum... – murmurei. – Convenhamos que não está nada mal pensado.

Devido àquele incidente, a minha atividade enquanto programador encontrava-se numa situação bastante delicada, e a ideia de levar uma existência tranquila no estrangeiro não deixava de ter os seus atrativos. Contudo, não estava seguro de poder converter-me numa figura de proa. Além do mais, as pessoas que se destacam em qualquer campo sempre tiveram a firme convicção de que, um dia, seriam capazes disso. Ninguém consegue lá chegar deixando o destino entregue em mãos alheias.

Estava eu perdido nestas reflexões quando se abriram as portas do elevador. A jovem saiu primeiro, e eu segui-a. Tal como no dia em que a vira pela primeira vez, avançou em passo rápido, fazendo ressoar os saltos altos sobre o pavimento, sempre comigo atrás dela. Diante dos meus olhos, o seu traseiro bem torneado oscilava graciosamente, e dos brincos de ouro desprendiam-se faíscas.

– Vamos admitir que a vida seguia esse rumo – retomei, dirigindo-me às suas costas –, e que tu me oferecias rios de coisas, mas que eu não podia oferecer-te nada em troca. Aí tens uma situação que me parece terrivelmente antinatural, para não dizer injusta.

Ela abrandou o passo até ficar a meu lado, e caminhámos juntos.

– A sério que pensas assim?

– A sério. Parece-me antinatural e injusto – repeti.

– De certeza que deve haver alguma coisa que me possas dar.

– Por exemplo?

– Por exemplo... a tua coragem emocional. Gostaria imenso de conhecer melhor essa tua carapaça emocional. Saber de que é feita, como funciona, enfim, tudo acerca dela. Até agora, nunca encontrei nada parecido. Interessa-me, e muito.

– Não exageremos – contrariei. – Toda a gente resguarda o seu coração, em maior ou menor grau, por detrás de uma couraça. Pessoas como eu encontram-se por aí ao pontapé. O que acontece é que tens pouco contacto com o mundo e, como tal, sentes dificuldade em perceber como funcionam os sentimentos das pessoas vulgares. Só isso.

– Com que então, não sabes nada de nada? – replicou a rapariga gorda. – E no que toca a executar um shuffling? Tens essa capacidade ou não?

– Claro que tenho, mas estamos a falar de uma técnica profissional, de uma capacidade que adquiri. Foi-me implantada através de uma operação cirúrgica e, depois, fui sujeito a um treino. Estou convencido de que a maioria das pessoas, desde que bem treinada, seria capaz de efetuar o shuffling. Não é muito diferente de saber utilizar o ábaco ou de tocar piano.

– A questão não é assim tão simples quanto parece – contrapôs ela. – Isso era o que pensavam todos ao princípio. Que qualquer um... bom, depois de superar uma série de testes, desde que devidamente treinado, seria capaz, tal como acontece contigo, de proceder ao shuffling. De resto, o meu avô também partilhava dessa opinião. E foi assim que vinte e seis pessoas, no total, foram operadas e receberam o mesmo treino, adquirindo a capacidade de realizar o shuffling. Até aqui, tudo funcionou na perfeição. Os problemas surgiram depois.

– Espera aí, nunca ouvi falar desta história! – exclamei. – Sempre me disseram que o projeto tinha corrido sobre rodas.

– Pura propaganda. Na realidade, as coisas passaram-se de maneira bem diversa. Das vinte e seis pessoas que foram submetidas ao tratamento e dotadas de meios para efetuarem o sistema de shuffling, vinte e cinco morreram entre um ano e um ano e meio depois de as experiências terem chegado ao fim. Tu és o único sobrevivente. Apenas tu lograste permanecer vivo, passados três anos, e, pelos vistos, continuas a executar os teus shufflings sem problemas nem complicações de maior. Ainda pensas que és uma pessoa vulgar? Nos dias que correm, passaste a ser a pessoa mais importante do mundo.

Continuei a percorrer o corredor em silêncio, com as mãos enfiadas nos bolsos. A situação ultrapassava em muito os limites das minhas faculdades, ameaçando escapar-me das mãos e ganhar uma proporção cada vez mais abrangente.

– E porque morreram os outros? – fiz questão de saber.

– Não sei. A causa não ainda não está esclarecida. Segundo parece, ocorreu um problema no funcionamento do cérebro e as pessoas morreram em resultado disso. Mas o que terá desencadeado tal coisa, ninguém sabe.

– E não foi adiantada nenhuma hipótese?

– Sim. O meu avô costumava dar uma explicação. Dizia ele que as pessoas normais não podem suportar a irradiação do núcleo do próprio cérebro, de modo que as células cerebrais criam uma espécie de anticorpos. Acontece, porém, que depois a reação é demasiado violenta e acaba por provocar a morte. Em rigor, o assunto revela-se bastante mais complexo, mas, em resumo, podemos afirmar que era esta a teoria do avô.

– Nesse caso, como é que se explica que eu tenha sobrevivido?

– Possivelmente, tu contavas com os tais anticorpos de uma forma natural. Aquilo a que eu chamei há pouco a tua carapaça emocional. Por uma razão ou outra, o teu cérebro possuía já esses anticorpos, e foram eles que te permitiram sobreviver. O avozinho tentou criar uma carapaça artificial destinada a proteger o cérebro, mas, como é evidente, a coisa não resultou.

– E essa proteção de que falas, a couraça, a carapaça, ou lá como lhe queiras chamar... trata-se de um traço congénito ou de algo adquirido?

– O mais provável é ser, em parte, congénito e, em parte, adquirido. Contudo, a partir dessa altura, o meu avô deixou de me fornecer mais explicações. Dizia que saber demasiado me colocaria em perigo. Em todo o caso, e com base nas suas teorias, posso adiantar-te que, no meio de um milhão ou de milhão e meio de pessoas, existe apenas uma dotada à nascença desses anticorpos, e essa pessoa és tu. Além de que, hoje em dia, a única maneira para se apurar quem possui semelhante capacidade consiste em proceder ao shuffling, não há volta a dar!

– Então, se a hipótese formulada pelo teu avô estiver correta, isso significa que tiveram uma sorte danada pelo facto de poderem contar comigo entre aquelas vinte e seis pessoas?

– Por isso é que tens tanto valor para nós, enquanto preciosa amostra. E, é bom não esquecer, como a chave que nos permitirá abrir a porta.

– E a respeito do teu avô... Que diabo pretendia ele fazer comigo? Que significam os dados que me fez processar através do shuffling? Onde é que entra o crânio do unicórnio nesta história?

– Se eu soubesse, acredita que te ajudava, aqui e agora – respondeu a jovem.

– A mim e ao mundo inteiro.

* * *

O escritório estava virado de pantanas. A desordem não era tão grande como a que existia no meu apartamento, mas andava lá perto. Espalhados pela alcatifa via-se todo o tipo de documentos e livros, a secretária estava de pernas para o ar, o cofre-forte tinha sido forçado, as gavetas haviam sido arrombadas, tiradas dos armários e espalhadas pelo chão, o sofá-cama estava feito em tiras, e as peças de vestuário do Professor e da neta, até então guardadas no roupeiro, amontoavam-se de qualquer maneira, também devidamente estraçalhadas, sobre o que restava do sofá. Toda a roupa da jovem era, com efeito, cor-de-rosa. Um magnífico conjunto de matizes, que ia do rosa-pálido ao rosa-púrpura.

– Delinquentes! – exclamou ela, abanando a cabeça. – Devem ter vindo pelos subterrâneos.

– Achas que foram os Invisíveis?

– De todo. Eles nunca se atreveriam a subir até aqui. E mesmo que se tivessem aventurado a tal, deixariam atrás de si o seu odor.

– Odor? Que odor?

– Um odor pavoroso, que faz lembrar o cheiro a peixe podre ou a lodo. Isto não é obra dos Invisíveis. Pergunto-me se não terão sido os mesmos que rebentaram com tudo em tua casa... O estilo de atuação parece ser idêntico.

– Pode ser que sim.

Varri o quarto com o olhar. Mesmo à frente da escrivaninha virada ao contrário encontrava-se espalhado o conteúdo de uma caixa de clipes, que brilhavam à luz do candeeiro fluorescente. Visto não ser a primeira vez que os clipes me deixavam intrigado, enquanto fingia inspecionar o chão apanhei um punhado deles e guardei-os no bolso das calças.

– O teu avô guardava material importante aqui?

– Não, apenas coisas sem valor. Livros de registo, faturas, documentos com pouco interesse relacionados com a pesquisa... Mesmo que tenham roubado alguma coisa, não fará mossa.

– E o tal aparelho, aquele que serve para repelir os Invisíveis, está avariado?

No meio de uma montanha de pequenos objetos espalhados diante do televisor, entre os quais se contavam lanternas, um leitor de cassetes, um despertador, uma lata de pastilhas para a tosse, ela pegou num aparelho parecido com um audímetro e ligou-o e desligou-o várias vezes.

– Não há problema. Funciona. Devem ter pensado que não passava de um aparelho sem importância, quase de certeza. Além do mais, como se trata de uma máquina rudimentar, que funciona à base de um princípio muito simples, não se avaria com facilidade – comentou ela.

Em seguida, a moça gordita dirigiu-se a um canto do quarto, agachou-se, levantou uma tampa e premiu um botão. Ato contínuo, levantou-se e pressionou suavemente a parede num determinado ponto, com a palma da mão, permitindo descobrir um painel do tamanho de uma lista telefónica; no seu interior apareceu uma espécie de cofre-forte.

– Que me dizes? Desafio qualquer um a dar com ele... – gabou-se. Marcou uma combinação de quatro números, e a porta do cofre abriu-se. – Importas-te de tirar o que está lá dentro e colocar tudo em cima da mesa?

Tornei a pôr a mesa na sua posição original, o que teve o efeito de reavivar a dor da ferida, e dispus em cima o conteúdo do cofre-forte. Havia um molho de cadernetas bancárias atadas com um elástico, com cerca de cinco centímetros de grossura, aquilo que me pareciam ações da bolsa e certificados, dois ou três milhões de ienes em dinheiro, um objeto pesado enfiado dentro de uma bolsa de tecido, uma agenda de pele preta, um envelope castanho. A rapariga abriu o envelope e depositou sobre a mesa o que tinha lá dentro: um velho relógio Omega e um anel de ouro. O relógio estava ligeiramente oxidado e tinha o vidro estalado.

– Uma lembrança do meu pai – disse a rapariga. – O anel era da minha mãe. Tudo o resto ficou queimado.

Fiz que sim com a cabeça, e ela tornou a guardar o relógio e o anel no sobrescrito. Em seguida, pegou num maço de notas e enfiou-o dentro do bolso do casaco.

– Esquecera-me por completo de que havia dinheiro aqui guardado – disse ela. Depois, abriu a mala de tecido, sacou de lá um objeto envolto numa camisa velha, desenrolou a camisa e mostrou-mo. Era uma pequena pistola automática. Embora estivesse gasta pelo uso, saltava à vista que não se tratava de uma arma de brinquedo, mas sim de uma pistola a sério, com balas de verdade. Não podia jurar, até porque não entendo muito de armas, mas diria que se tratava de uma Browning ou de uma Beretta. Já as tinha visto no cinema. Havia ainda um carregador e uma caixa de balas.

– Na qualidade de programador, imagino que sejas bom atirador? – lançou ela.

– Longe disso! – respondi, apanhado de surpresa. – Nunca empunhei uma arma em toda a minha vida.

– Pois eu sou muito boa. Comecei a praticar há uma data de anos. Sempre que vou até à nossa casa de férias, na região de Hokkaido, procuro praticar tiro nas montanhas. Garanto-te que consigo acertar num objeto do tamanho de um postal dos correios a dez metros de distância. Genial, não achas?

– Sim, genial – respondi. – Onde é que foste desencantar uma destas?

– Deves ser mesmo ingénuo, coitado... – declarou a jovem num tom resignado. – Basta uma pessoa ter dinheiro para conseguir tudo o que quiser e mais alguma coisa. Não sabias? Bom, seja como for, e visto que tu nunca aprendeste a disparar, o melhor será ficar eu com a pistola. Parece-te bem?

– À vontade. Tem cuidado e vê se não me acertas. Não vá acontecer que, no meio da escuridão, às tantas te atrapalhes e me atinjas. Duvido que me conseguisse aguentar de pé, caso fosse ferido de novo.

– Não te preocupes. Sou uma pessoa muito prudente – referiu a rapariga, enfiando a pistola automática no bolso esquerdo do casaco. Era curioso como aqueles bolsos, por mais objetos que ela lá enfiasse, não pareciam aumentar de volume nem aparentassem minimamente deformar-se. Podia ser que o fato saia-casaco estivesse dotado de algum esconderijo especial. Ou, então, talvez isso ficasse a dever-se, pura e simplesmente, ao facto de se tratar de uma peça de excelente corte.

De seguida, a rapariga abriu a agenda de pele preta numa página do meio e deixou-se estar durante um grande bocado a olhar para ela, à luz do candeeiro, com uma expressão muito séria. Eu aproveitei para deitar também uma espreitadela à dita página, mas estava repleta de números e de letras do alfabeto latino: nada que eu conseguisse descodificar.

– É a agenda do meu avô – explicou ela. – Está escrita numa linguagem cifrada, que só eu e ele conhecemos. Costuma apontar aqui os seus planos de trabalho ou as ocorrências diárias. Dizia ele que, no caso de lhe acontecer alguma coisa, eu devia procurar ler a agenda sem falta. Eh, espera aí! No dia vinte e nove de setembro tu acabaste de fazer a lavagem ao cérebro dos dados, certo?

– Exato – respondi eu.

– Ele aqui escreveu (1). Possivelmente, para indicar que se tratava do primeiro passo. E depois acabaste o shuffling na noite de trinta ou na madrugada do dia um de outubro, se não estou em erro...

– Confirmo: bate certo.

– Aqui ele pôs um (2). Segundo passo. E depois, deixa cá ver... Ah, sim, ao meio-dia de dois de outubro aparece então um (3) e, à frente, na letra do avô: «programa desativado».

– No dia dois, ao meio-dia, tinha combinado encontrar-me com o Professor. Se calhar, pretendia desativar este programa especial, tão complexo, que me instalaram no cérebro. Para evitar o fim do mundo. Porém, as circunstâncias mudaram. É muito possível que o Professor tenha sido assassinado, ou que o tenham raptado e que se encontre em parte incerta. A nossa principal preocupação, neste preciso momento, é encontrar o seu rasto.

– Vamos com calma. Estou a ler a página seguinte. Este código tem que se lhe diga... é complicadíssimo.

Enquanto ela percorria as páginas da agenda, eu arrumei as coisas dentro da mochila e substituí as pilhas da minha lanterna de bolso. Os impermeáveis e as galochas tinham sido violentamente projetados para o meio do chão, mas, por sorte, não se encontravam danificados. Porque, é bom que se diga, se passássemos por baixo da cascata sem o impermeável vestido, ficaríamos ensopados da cabeça aos pés e gelados até à medula. Além de que, apanhando frio, corria o risco de a ferida recomeçar a doer-me. Enfiei na mochila os ténis cor-de-rosa da jovenzinha, que se encontravam por terra. Olhei para o meu relógio digital: era quase meia-noite. Haviam passado quase doze horas do prazo de que dispúnhamos para desativar o programa.

– Depois há ainda umas operações matemáticas bastante complicadas. Potência elétrica, velocidade de dissolução, resistências, margens de erro e coisas desse género. Disso já não pesco nada.

– Passa à frente o que não perceberes. Temos muito pouco tempo – apressei-a. – Basta decifrares o que puderes.

– Não é preciso decifrar nada.

– Porquê?

Ela passou-me a agenda para a mão e assinalou qualquer coisa. Não existia ali nenhum código anotado, apenas um xis enorme, a par de uma data e do prazo-limite. Em comparação com os outros caracteres que apareciam ao pé, tão pequenos que, para lê-los, quase era preciso uma lupa, o X revelava-se desmesuradamente grande e a desproporção aumentava ainda mais a impressão, já de si funesta, que produzia.


– Achas que significa «prazo-limite»? – quis ela saber.

– É possível. Talvez esse seja o ponto (4). Se no (3) fosse desativado o programa, a sua anulação não teria razão de ser. Mas se, por uma razão qualquer, a anulação ficasse sem efeito, o programa seguiria o seu curso, até chegar ao ponto xis.

– Quer então dizer que temos de encontrar o paradeiro do meu avô antes do dia dois, ao meio-dia...

– Julgo que sim – disse baixinho.

– E quanto tempo nos resta? Isto é, para que chegue o fim do mundo, para que se produza o big bang final.

– Trinta e seis horas – respondi. Não precisava sequer de olhar para o relógio. Era o tempo que a Terra demorava a dar uma volta e meia sobre o seu eixo. Durante este lapso de tempo, os jornais conheceriam duas edições matutinas e uma vespertina. O despertador soaria duas vezes, os homens fariam duas vezes a barba. Os mais sortudos talvez fizessem amor duas ou três vezes. Trinta e seis horas não davam para mais. Imaginando que a esperança média de vida de uma pessoa seja de setenta anos, estamos a falar de um dezassete mil avos da existência de um ser humano. E, ao fim destas trinta e seis horas, alguma coisa – talvez o fim do mundo – iria acontecer.

– E agora, que fazemos?

Encontrei um analgésico dentro de um estojo de primeiros socorros que rebolara para debaixo do armário, engoli-o com água do cantil e pus a mochila às costas.

– Só nos resta descer até ao mundo subterrâneo. Que outra coisa podemos fazer? – respondi.


O Fim do Mundo

20

A Morte dos Animais

Os animais tinham perdido já vários dos seus companheiros. Após o primeiro nevão digno desse nome, que durara toda a noite, os corpos de alguns dos unicórnios mais velhos foram encontrados enterrados debaixo de uma camada de neve que devia ter uns cinco centímetros de espessura. A sua pelagem dourada havia adquirido uma capa esbranquiçada, a condizer com a brancura invernal. O sol matinal assomava por entre as nuvens e lançava um brilho ofuscante sobre a paisagem gélida. O vapor da respiração libertado pelos unicórnios, ali reunidos em número superior a mil, dançava, timidamente branco, na luz da manhã.

* * *

Acordei antes do amanhecer e descobri que um manto de neve imaculada descera sobre a Cidade. Era um espetáculo lindíssimo. Naquela paisagem branca e uniforme erguia-se a negra Torre do Relógio e, a seus pés, deslizava o Rio, formando uma tira escura. O Sol ainda não se levantara e o céu mostrava-se coberto de nuvens espessas, sem revelar o menor interstício entre elas. Enfiei o casaco, calcei as luvas e encaminhei-me para a Cidade, seguindo por um caminho deserto. Pelos vistos, a neve começara a tombar de mansinho depois de eu me ter deitado, e deixara de cair pouco antes de eu abrir os olhos. Sobre o manto branco não havia vestígios de passos. Peguei num pedacinho de neve; suave ao toque e leve como a farinha, desfez-se na minha mão. Junto ao Rio, as águas estagnadas tinham formado à superfície uma fina capa de gelo, salpicada de branco.

Tirando o sopro esbranquiçado da minha respiração, nada mais dava sinais de vida na Cidade. Não havia vento, não se viam pássaros. Apenas se ouvia o ruído provocado pelas solas das minhas galochas ao pisar a neve. Ressoava de uma forma exagerada, a roçar o antinatural, nas paredes das casas.

Ao aproximar-me da Porta Ocidental, vi o Guardião diante da praça. Enfiara-se debaixo da carroça que estivera a reparar, tempos antes, com a ajuda da minha sombra, e encontrava-se a lubrificar os eixos das rodas. No interior da carroça alinhavam-se umas quantas talhas de cerâmica, utilizadas para guardar óleo de girassol; estavam firmemente atadas às tábuas laterais para evitar que se virassem e entornassem o conteúdo. Que estranho, ocorreu-me. Para que diabo quereria o Guardião uma tão grande quantidade de óleo?

O Guardião assomou por baixo da carroça e levantou a mão para me cumprimentar. Parecia estar de bom humor.

– Isso é que foi madrugar! Que bons ventos te trazem?

– Resolvi vir para observar de perto a paisagem com neve – respondi. – Do alto da colina, pareceu-me um espetáculo encantador.

O Guardião desatou às gargalhadas e pousou, como era seu costume, a manápula nos meus ombros. Não usava luvas.

– Saíste-me cá uma raridade... Vejam bem, descer até aqui para ver uma coisa que, a partir de agora, vais ficar farto de ver! Realmente, és um bicho raro.

Soltando uma enorme nuvem branca de respiração, que mais parecia ter sido expelida por uma locomotiva a vapor, o Guardião cravou os olhos na porta.

– Bom, é caso para dizer que apareceste na altura certa. Sobe até ao cimo de uma torre de vigia e verás uma coisa interessante. As primícias deste inverno. Não tarda muito, tocarei o corno. Presta atenção ao que sucede à tua volta.

– As primícias?

– Quando vires, saberás do que falo.

Sem compreender a que ele se referia, subi a uma torre de vigia, sempre na companhia do Guardião, e contemplei a paisagem em redor. O Pomar das Macieiras, coberto de neve, parecia envolto numa espécie de nuvem. As serras a norte e a leste apresentavam-se tingidas de branco quase na sua totalidade, deixando apenas a descoberto umas quantas arestas porventura mais rochosas, que irrompiam como cicatrizes numa ferida.

Junto a essa torre de vigia, os animais, como era seu costume, dormiam. Jazendo por terra, imóveis, com as patas dobradas e o corpo de um branco tão puro como a neve, os cornos em riste, estavam mergulhados num sono tranquilo. A neve que se depositava sobre os seus dorsos, à medida que ia caindo, não parecia sequer perturbá-los. Deviam estar profundamente adormecidos.

Por fim, a pouco e pouco, surgiram no céu algumas abertas, e a luz do Sol começou a iluminar a superfície das coisas, mas eu permaneci de pé, no topo da torre, a observar o cenário que me rodeava. Os raios luminosos eram como uma espécie de focos que alumiavam parcialmente, ali e acolá; além disso, mal podia esperar para ver com os meus próprios olhos a tal «coisa interessante» que o Guardião mencionara.

Finalmente, o homem abriu a cancela e deu o sinal do costume, fazendo soar o corno: um toque longo e três curtos. Ao primeiro toque, os bichos despertaram, ergueram a cabeça e dirigiram o olhar em direção ao sítio de onde provinha o som do corno. O abundante vapor branco que exalavam indicava que os seus corpos estavam prontos para iniciar um novo dia. Quando dormiam, os animais mal respiravam.

Assim que o derradeiro eco do corno se dissolveu no ar, os animais ergueram-se. Primeiro, começaram por esticar as patas dianteiras, devagar, para experimentar, só depois estirando as patas traseiras. A seguir, lançaram repetidas vezes os cornos no ar e, por fim, como se tivessem acabado de descobrir a neve acumulada no lombo, desataram a sacudi-la. Só então iniciaram a marcha em direção à porta.

Assim que os animais entraram todos, compreendi finalmente o que o Guardião me queria mostrar. Alguns elementos da manada, que eu julgara adormecidos, permaneciam na mesma posição, congelados, sem vida. Mais do que mortos, pareciam meditar sobre um assunto de importância vital. Para eles, contudo, não existiriam mais respostas. Nenhuma nuvem branca de respiração sairia dos seus focinhos. A vida abandonara os seus corpos; as suas mentes tinham sido absorvidas pelas trevas profundas.

Assim que os restantes bichos se dirigiram para a porta, os cadáveres ficaram caídos para trás no terreno, como pequenas protuberâncias nascidas à superfície da terra. Os seus corpos estavam envoltos numa mortalha de neve branca. Só o corno, estranhamente cheio de vida, fendia o ar. Os outros animais, na sua maioria, ao passar junto deles, dobravam profundamente o pescoço, raspando com os cascos no solo. Choravam a morte dos seus companheiros.

Deixei-me ficar durante muito tempo a contemplar os corpos imóveis dos animais sem vida. Pelo menos até que o Sol brilhou lá no alto, no céu, até a sombra da Muralha ter tocado nos meus pés e assim que a neve acumulada no terreno começou a derreter. Dava-me a sensação de que acabariam por dissolver também a morte, que aqueles animais, aparentemente mortos, se levantariam do chão e iniciariam a sua marcha diária, como todas as manhãs.

Os animais, porém, não se moveram. Apenas a sua pelagem dourada, agora empapada de neve derretida, continuava a brilhar à luz do sol matinal. Por fim, começaram a doer-me os olhos.

Desci daquela torre de vigia, atravessei o Rio e subi a Colina Ocidental, a fim de regressar aos meus alojamentos. Uma vez em casa, dei-me conta de que o Sol me provocara ferimentos bem mais graves na vista do que eu julgava. Ao fechar os olhos, uma incessante torrente de lágrimas desatou a cair sobre os meus joelhos. Lavei a zona atingida com água fria, mas nada surtiu efeito. Corri as pesadas cortinas e passei horas a fio sem mexer um músculo, com os olhos fechados, vendo linhas e figuras estranhas que emergiam e se desvaneciam numa obscuridade em que eu perdera todo e qualquer sentido das distâncias.

Às dez da noite, o velho Coronel bateu à minha porta, transportando uma bandeja com café na mão. Ao deparar comigo prostrado na cama, de barriga para cima, aplicou-me uma toalha húmida sobre as pálpebras. Eu sentia picadas dolorosas atrás dos ouvidos, mas já não me doía tanto ao ponto de chorar.

– Que diabo te aconteceu? – perguntou ele. – A luz da manhã é muito mais forte do que julgas. Sobretudo quando neva... Não sabes que os olhos de um leitor de sonhos não suportam a luz intensa? Por que razão teimaste em sair?

– Fui ver os animais – disse eu. – Morreram muitos deles. Oito ou nove. Não, minto, foram mais.

– E a partir de agora morrerão em grande número. De todas as vezes que nevar.

– Como é que se explica que eles morram com tanta facilidade? – perguntei ao ancião, ainda deitado de costas, mas sem tirar a toalha dos olhos.

– São animais débeis. Não resistem ao frio nem à fome. Sempre foi assim.

– E vão morrer todos?

O velho abanou a cabeça.

– Há dezenas de milhares de anos que sobrevivem, e hão de continuar a fazê-lo. Muitos deles morrem no decorrer do inverno, mas, ao chegar a primavera, há sempre novas crias que nascem. A nova vida expulsa a velha. Acontece que o número de animais que podem alimentar-se das árvores e da erva nesta Cidade é limitado, bem vês...

– Nesse caso, porque é que não se mudam para outro lugar? Nos bosques, o que mais há são árvores, e, rumando a sul, decerto não encontrariam tanta neve. Não percebo por que razão permanecem nestas paragens.

– Não te consigo responder a isso – afirmou o Coronel. – Sei apenas que os animais não podem afastar-se daqui. Pertencem à Cidade, são escravos dela. Tal como acontece contigo e comigo. Também eles sabem perfeitamente, por instinto, que não podem escapar. Se calhar, só podem alimentar-se dos rebentos de erva e dos arbustos que aqui crescem. Ou então, talvez não sejam capazes de atravessar o solo rochoso que se estende para sul. Não o posso afirmar com toda a certeza, mas, em todo o caso, as bestas não devem afastar-se daqui.

– Que fazem com os seus cadáveres?

– São queimados. É o Guardião quem trata disso – respondeu o Coronel, aquecendo as mãos grandes e secas na chávena de café. – A partir de agora, essa vai ser a sua principal ocupação. Primeiro, corta-lhes a cabeça, extrai-lhes o cérebro e os olhos, e depois limpa muito bem as cabeças e leva-as ao lume, a cozer numa panela grande. No que respeita aos corpos, amontoa-os, rega-os com óleo de girassol e deita-lhes fogo.

– E depois de introduzir velhos sonhos no interior dos crânios, colocam-nos todos alinhados nas prateleiras da Biblioteca? – perguntei, sempre de olhos fechados. – Mas porquê? Porquê esses crânios?

O ancião não me deu resposta. Ouvi apenas as tábuas de madeira debaixo dos seus pés. O estalido foi-se distanciando lentamente da cama e deteve-se junto à janela. O silêncio durou ainda alguns momentos.

– Ficarás a saber isso no dia em que compreenderes o que é um velho sonho – disse ele por fim. – Saberás então por que motivo os velhos sonhos se encontram dentro dos crânios. Não posso ser eu a dizer-to. Tu é que és o Leitor de Sonhos. Tens de ser tu a encontrar a resposta, por ti mesmo.

Depois de enxugar as lágrimas com a toalha, abri os olhos. Ao pé da janela, vislumbrei, envolta numa espécie de neblina, a silhueta do Coronel.

– O inverno ajuda a clarificar todas as coisas – prosseguiu o velho Coronel. – Quer nos agrade ou não, é assim mesmo. A neve continuará a cair, os animais continuarão a morrer. Nada pode evitar isso. Ao meio-dia, verás uma coluna de fumo cinzento formar-se por cima da fogueira onde os animais são queimados. Enquanto durar o inverno, esta cena voltará a repetir-se todos os dias. Neve branca e fumo cinzento.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

21

Pulseiras. Ben Johnson. Demónio

Por trás do armário reinava a mesma escuridão da primeira vez em que lá entrara, mas agora que estava ciente da existência dos Invisíveis, as trevas pareciam-me ainda mais cerradas e gélidas do que antes. Nunca me deparara com uma escuridão mais densa que aquela. Antes de as cidades terem eliminado por completo a obscuridade da face da Terra com faróis, luzes de néon e montras iluminadas, o mundo deveria ter estado mergulhado num negrume de cortar a respiração, tão profundo como aquele.

A jovem desceu as escadas à minha frente. Com o dispositivo para afugentar os Invisíveis enfiado no bolso do impermeável, uma grande lanterna pendurada a tiracolo e fazendo chiar as galochas, desceu sozinha, com rapidez, mergulhando nas trevas profundas.

– Vem! Podes descer!

Vi uma luz amarelada tremeluzir ao longe. O abismo era muito mais profundo do que recordava. Comecei a descer os degraus tão molhados como anteriormente e, se não tivesse cuidado, seria fácil escorregar e cair. Enquanto descia lembrei-me do jovem casal no Skyline e da música dos Duran Duran na aparelhagem. E eles sem terem consciência de nada.

Não sabiam que eu estava a descer ao fundo das trevas com uma ferida no abdómen e com uma lanterna e uma grande faca. Só pensavam no número que o velocímetro das suas expectativas de sexo marcava, nas lembranças e nas insípidas canções pop que subiam e desciam nos tops. Claro que não podia criticá-los. O que se passava era que eles não sabiam de nada. Só isso.

Eu próprio gostaria de saber um pouco menos. Imaginei-me sentado ao volante do Skyline, com aquela rapariga a meu lado, a percorrer a cidade ao som da música dos Duran Duran. Será que a rapariga tirava aquelas duas finas pulseiras de prata quando fazia amor? Oxalá que não, disse para mim próprio. Mesmo nua, aquelas pulseiras precisavam de estar ali, faziam parte do seu corpo.

Contudo, era muito provável que as tirasse. As mulheres costumam tirar as joias antes de tomar duche. E se lhe pedisse que não as tirasse? Não conseguia decidir-me, não estava certo da opção a tomar; de qualquer maneira, devia tentar fazer amor com ela com as pulseiras postas. Era essencial.

Imaginei-me a fazer amor com ela, com as pulseiras postas. Como não conseguia recordar-me do seu rosto, optei por baixar a luz no quarto. Estávamos às escuras e eu não conseguia ver as suas feições. Assim que acabasse de se despojar da elegante e fina roupa interior lilás, branca ou azul-celeste, as pulseiras converter-se-iam no seu único adorno. Reluziriam na semiobscuridade, tilintando baixinho sob os lençóis e...

Absorto nestas fantasias, senti que o meu pénis se endurecia por baixo do impermeável. Isto é o cúmulo!, disse para mim mesmo. Por que razão estava com uma ereção naquele momento, num sítio daqueles? Porque não tinha conseguido tê-la na cama, com a bibliotecária – a rapariga que sofria de dilatação gástrica – e a tinha agora, empoleirado numas escadas absurdas? Ficava assim excitado por causa de duas pulseiras de prata? E, ainda para mais, no momento em que o mundo estava prestes a chegar ao fim!

Quando pousei os pés no chão de pedra, ela fez deslizar a luz da lanterna na direção das sombras.

– Despacha-te! Tenho a certeza de que os Invisíveis andam por aqui. Escuta – disse. – Ouves o barulho?

– Barulho? – repeti.

– Um bater de barbatanas. Escuta com atenção. Consegue-se ouvir. E há o cheiro.

Agucei o ouvido, cheirei o ar, mas não captei nada.

– Se não estás habituado, não dás por nada. Uma vez que saibas o que procurar, até consegues detetar as vozes deles. Não se trata propriamente de fala; são mais umas ondas sonoras. Parecem morcegos. Todavia, os ouvidos humanos conseguem captar parte do seu espectro vocal, pelo que não é impossível comunicar com eles.

– Mas se dizes que não falam, como é que os Semióticos conseguiram pôr-se em contacto com eles?

– Não é difícil arranjar uma máquina de traduzir. Um aparelho que converta as suas ondas sonoras em palavras e as vozes dos seres humanos em ondas sonoras. Talvez os Semióticos tenham construído uma máquina assim. Se quisesse, o meu avô teria conseguido fazer uma sem qualquer problema. Contudo, nem sequer tentou.

– Porquê?

– Porque não queria falar com eles. Os Invisíveis são criaturas perversas e o seu linguajar é nojento. Só comem carne estragada, excrementos em decomposição e bebem água estagnada. Antigamente viviam por baixo dos cemitérios e alimentavam-se de cadáveres putrefactos. Isto, claro, antes de se começar a cremar os corpos.

– Então, não comem os vivos?

– Não. Quando apanham uma pessoa viva, metem-na dentro de água durante muitos dias e comem-na à medida que se vai decompondo.

Bonito! Contado nem se acredita. Era o que me faltava ouvir. Suspirei. Estava cheio de vontade de voltar para casa.

Apesar de tudo, prosseguimos o nosso caminho rio acima. Ela ia à frente, conhecia bem o caminho. Sempre que a minha luz lhe batia nas costas, fazia brilhar os seus brincos de ouro.

– Esses brincos não são demasiado pesados para andares sempre com eles? – perguntei, falando para as costas dela.

– Estou habituada – retorquiu. – E o teu pénis: alguma vez sentiste que era muito pesado?

– Não, na realidade não. Nunca.

– Aí tens.

Continuámos a andar, sem dizer mais nada. Ela parecia conhecer o terreno muito bem e avançava a bom ritmo, enquanto ia varrendo as zonas circundantes com a luz da lanterna. Com grande dificuldade, eu seguia atrás dela, dando um passo penoso atrás de outro.

– Diz-me, tiras os brincos quando tomas duche? – perguntei para não ficar para trás. Quando falava, ela desacelerava um pouco a marcha.

– Não – respondeu –, deixo-os ficar. Mesmo nua, fico com eles. Achas sexy?

– Sim... – respondi, aturdido – ... agora que o dizes, acho que sim.

– Como é que fazes amor? De frente? Sempre?

– Ah, sim, geralmente sim.

– Mas às vezes também vai por trás, não?

– Às vezes.

– Para além dessas, há um montão de posições diferentes, não é? Podes ficar por baixo, sentado ou usar uma cadeira...

– Há muitos tipos de pessoas diferentes e, portanto, também há muitas circunstâncias diferentes.

– Não sei muito acerca de sexo, sabes? – confessou. – Nunca vi como se faz e também nunca fiz. Nunca ninguém me ensinou nada acerca do assunto.

– Não é uma coisa que se possa ensinar, vais ter de descobrir por ti própria – disse. – Quando tiveres um namorado e dormires com ele, vais aprender muitas coisas de forma natural.

– Mas isso não me diz nada. Eu gosto das coisas mais... como dizer?... mais intensas. Uma coisa que me seja proposta de forma intensa, que eu aceite intensamente. Nada desse «vais aprender muitas coisas» e da «forma natural» de que falas.

– Olha, viveste bastante tempo com uma pessoa muito mais velha do que tu. Um homem genial, com uma personalidade forte. Mas nem toda a gente é assim. A maior parte das pessoas é gente normal e vulgar que vive a tatear no escuro. Como eu, por exemplo...

– Não, tu és diferente. Contigo eu ficava bem. Já to disse no outro dia, não foi?

Fiz um esforço deliberado para varrer da cabeça todas as imagens de sexo. A minha ereção mantinha-se, o que, no meio de todas aquelas sombras negras do subterrâneo, parecia um tanto deslocado. Sobretudo porque era difícil caminhar assim.

– Com que então, esse aparelho emite umas ondas sonoras que os Invisíveis detestam – disse, para mudar de tema.

– Sim. Enquanto as emitirmos, não se aproximam a menos de quinze metros. Portanto, tem cuidado e não te afastes mais de quinze metros de mim. A não ser que queiras que te apanhem, te levem para o seu covil, te enfiem num poço e te vão comendo à medida que fores apodrecendo. Estou capaz de jurar que irias começar a apodrecer pela barriga. Têm dentes e unhas muito afiados, sabias? Tal qual uma fiada de estiletes.

Ao ouvir isto, corri a aproximar-me dela.

– Ainda te dói a ferida no estômago? – perguntou a rapariga.

– Está mais suportável, graças aos analgésicos. Se fizer movimentos bruscos, ainda sinto umas guinadas, mas, em geral, está melhor – respondi.

– Se conseguirmos encontrar o meu avô, ele faz-te desaparecer a dor.

– O teu avô? Como assim?

– É muito fácil. Já me fez isso várias vezes, quando me doía a cabeça. Envia uns sinais à mente para que ela se esqueça de sentir a dor; na realidade, a dor é uma mensagem enviada pelo corpo. Mas é melhor não abusar desse remédio. Se bem que, em casos de urgência, não faça mal.

– Se ele pudesse fazer isso, facilitava-me a vida – comentei.

– Isto, claro, no caso de o encontrarmos – concluiu a jovem gordita.

Ela continuava a percorrer o leito da ribeira para montante, em passos seguros, balançando a potente lanterna para a direita e para a esquerda. A espaços, na rocha, abriam-se caminhos transversais que faziam lembrar grandes rasgões e grutas assustadoras. Das paredes de ambos os lados escorriam fios de água que desaguavam no rio, ao longo do qual crescia um musgo luxuriante e viscoso como lodo. Tinha uma cor tão verde que parecia artificial. Era incompreensível como um musgo subterrâneo, que não dispunha de luz do Sol para fazer a fotossíntese, tivesse aquela cor. Tratava-se certamente de um fenómeno próprio das profundezas.

– Diz-me, achas que os Invisíveis andam por aqui?

– Claro – respondeu-me como se fosse óbvio. – Aqui estamos no mundo deles, não lhes escapa nada do que se passa no subsolo. Com toda a certeza que, neste preciso momento, estão por aí, à nossa volta, a observar-nos. Já há algum tempo que ouço uma espécie de sussurro.

Apontei o feixe de luz da minha lanterna para a parede, mas só consegui ver a rocha áspera e deformada e as manchas de musgo.

– Estão escondidos no fundo das grutas e dos ramais, entre as sombras, onde a luz não chega – afirmou, impávida. – Além disso, com toda a certeza que devem vir alguns atrás de nós.

– Há quanto tempo é que o emissor está ligado?

Após consultar o relógio de pulso, a jovem informou-me:

– Dez minutos. Dez minutos e vinte segundos. Dentro de cinco minutos chegamos à cascata. Não te preocupes.

Exatamente cinco minutos mais tarde, chegámos à cascata. O dispositivo de eliminação de ruído devia estar a funcionar, já que o estrépito da cascata mal se ouvia.

Calámo-nos, enfiámos os capuzes na cabeça, atámos os cordões por baixo do queixo, pusemos os óculos e preparámo-nos para atravessar a queda-d’água silenciosa.

– É bizarro! – admirou-se a rapariga. – O dispositivo de eliminação de som funciona, o que significa que o laboratório não foi destruído. Se os Invisíveis o tivessem atacado, teriam arrasado tudo. Odeiam o laboratório com todas as suas forças.

O facto de a porta do laboratório estar fechada com o código confirmou as suas suposições. Se os Invisíveis ali tivessem entrado, de certeza que não a teriam fechado à saída. Os assaltantes tinham sido outros.

Demorou bastante tempo a marcar os números da combinação da fechadura. Por fim, inseriu o cartão eletrónico e abriu a porta. O laboratório estava às escuras e no local pairava um forte aroma a café. Fechou a porta rapidamente e, depois de verificar que não era possível abri-la do lado de fora, carregou num interruptor e acendeu a luz da sala.

O laboratório sofrera um ataque tão devastador como o do escritório lá de cima e o do meu apartamento. Os documentos estavam espalhados pelo chão, os móveis derrubados, a loiça quebrada, os tapetes rasgados e a divisão parecia ter sido abundantemente regada com café. Por que razão teria o Professor preparado tanto café? Escapava-me por completo, era muito estranho. Por muito que gostasse da bebida, era impossível uma pessoa sozinha beber aquela quantidade.

Contudo, havia uma diferença fundamental entre a destruição do laboratório e a dos dois outros locais. No laboratório, os assaltantes tinham estabelecido uma distinção muito clara entre o que queriam e não queriam destruir. O que rasgaram, rasgaram conscientemente, mas não tinham tocado em mais nada. O computador, o material de telecomunicações, o dispositivo de eliminação de som e a instalação elétrica estavam intactos e bastava carregar num botão para funcionarem na perfeição. Tinham arrancado várias peças ao volumoso aparelho emissor das ondas sonoras que repeliam os Invisíveis, para o inutilizar; ainda assim, depois de substituídas, o aparelho tornaria a funcionar.

O quarto do fundo estava mais ou menos no mesmo estado. À primeira vista, um caos sem remédio, mas tudo fora calculado ao milímetro. Os crânios alinhados na prateleira tinham escapado ao massacre, bem como todos os aparelhos relacionados com a investigação. Apenas aparelhos mais baratos, fáceis de encontrar no mercado, e algum material de experiências haviam sido destruídos.

A jovem dirigiu-se para o cofre-forte dissimulado numa parede e abriu-o para inspecionar o seu interior. Não estava fechado à chave. Com ambas as mãos tirou lá de dentro punhados de cinzas brancas, restos de papel queimado, e espalhou-as por cima da mesa.

– Pelos vistos, o dispositivo de incineração automática funcionou bem – disse. – Essa gentinha não conseguiu levar nada.

– De acordo com a tua opinião, quem achas que fez isto?

– Humanos – declarou. – Os Semióticos, ou talvez outro grupo, chegaram aqui com a cumplicidade dos Invisíveis e abriram a porta. Mas só os humanos entraram no laboratório e lhe puseram as patas em cima. E para poderem voltar a utilizá-lo... juraria que estavam a planear forçar o meu avô a prosseguir com a sua investigação... não destruíram os aparelhos mais importantes. Depois, trancaram a porta para que os Invisíveis não pudessem vir espalhar ainda mais confusão.

– Mas não conseguiram levar nada de valor.

– Não.

– Seja como for, levaram o teu avô – disse, correndo o olhar pela sala –, que era o que havia aqui de mais valioso, não te parece? Por causa disso, vou continuar sem saber o que é que o Professor me instalou no cérebro. Estou num beco sem saída.

– Não te precipites – tentou acalmar-me a moça gordita. – Ninguém apanhou o meu avô, podes ter a certeza. Há uma saída secreta; de certeza que fugiu por lá. Com um aparelho para repelir os Invisíveis, tal como nós fizemos.

– Como é que podes saber isso?

– Não tenho provas nenhumas, mas sei. O meu avô é uma pessoa muito precavida, nunca se deixaria apanhar com tanta facilidade. De certeza que, enquanto estavam a tentar arrombar a porta, ele se escapou pela passagem secreta.

– Então, neste momento, o Professor está são e salvo no exterior.

– Não é assim tão simples – disse a jovem. – A passagem secreta é uma espécie de labirinto que atravessa o reduto dos Invisíveis e, partindo daqui, por mais rápido que sejas, levarias cinco horas a percorrê-lo. Se tomarmos em linha de conta que o aparelho para repelir os Invisíveis se aguenta só meia hora, o mais certo é o meu avô ainda estar no labirinto.

– A menos que os Invisíveis o tenham apanhado.

– Não me parece. Já a pensar em situações como esta, o meu avô construiu um refúgio subterrâneo fora do alcance dos Invisíveis. Provavelmente está lá escondido, à nossa espera.

– É uma pessoa muito cautelosa. E tu sabes onde fica esse esconderijo?

– Acho que sim. O meu avô explicou-me o caminho com muito cuidado. Além disso, desenhou um esquema neste bloco e marcou os pontos perigosos, onde temos de passar com todo o cuidado.

– Que tipo de perigos há?

– Penso que é melhor não saberes – respondeu ela. – Cá para mim, punhas-te mais nervoso do que já estás.

– E quanto tempo demoramos a chegar a esse refúgio fora do alcance dos Invisíveis?

– Mais ou menos vinte e cinco minutos para alcançarmos a entrada. A partir daí até ao sítio onde está o meu avô, mais uma hora, hora e meia. Depois de darmos com a entrada, já não teremos de nos preocupar com os Invisíveis. O problema está em chegar lá. Se não avançarmos com rapidez suficiente, ficamos sem bateria.

– E se a bateria se esgotar a meio do caminho?

– Há que confiar na sorte – replicou a jovem. – Teríamos de fugir o mais depressa possível e agitar a luz das lanterna à nossa volta para que os Invisíveis não se aproximassem. Odeiam levar com a luz. Mas se nos descuidarmos por um segundo que seja, estendem a mão pelos interstícios da luz e agarram-nos.

– Estamos feitos! – disse, numa voz desprovida de emoção. – A bateria já está carregada?

Ela deitou uma olhadela ao mostrador da bateria e, depois, ao relógio de pulso.

– Mais cinco minutos.

– É melhor despacharmo-nos. Se os meus cálculos estiverem corretos, os Invisíveis já terão avisado os Semióticos da nossa presença e, nesse caso, eles devem ter dado meia-volta imediatamente.

A rapariga despiu o impermeável, descalçou as galochas, pôs os ténis e vestiu o blusão do exército norte-americano.

– Muda de roupa também – disse-me. – A partir daqui, o melhor é termos roupa mais leve para conseguirmos passar.

Tal como ela fizera, despi o impermeável, enfiei o corta-vento por cima da camisola e puxei o fecho até ao queixo. Pus a mochila às costas e troquei as galochas por uns ténis. O relógio marcava quase meio-dia e meia.

Ela dirigiu-se à sala ao fundo, atirou ao chão os cabides que estavam no armário, agarrou no varão com as duas mãos e começou a fazê-lo rodar. Enquanto o fazia, ouviu-se o ruído de rodas dentadas a encaixarem-se. Girou um pouco mais, sempre no mesmo sentido, e a parte inferior do painel do lado direito subiu cerca de setenta centímetros. Espreitando pela abertura, tudo o que se conseguia ver eram umas sombras tão densas que parecia ser possível tocar-lhes. Um vento gelado, a cheirar a mofo, soprou para dentro da sala.

– Não está mal, pois não? – perguntou a moça gordita, virando-se para mim sem soltar o varão.

– Nada mal – admirei-me. – Nunca passaria pela cabeça de ninguém procurar uma passagem dentro de um armário. O teu avô é um tanto obsessivo, não?

– Não, nada. Um obcecado é uma pessoa que se obstina em olhar numa única direção, ou que tem um único interesse, não te parece? O meu avô, pelo contrário, sobressai em todos os campos. Da astronomia à genética e também à carpintaria, claro – afirmou. – Não há ninguém como ele. Há muita gente que aparece na televisão ou nas revistas, mas não passam de fantasmas. Um verdadeiro génio alimenta-se de tudo o que existe no mundo.

– De acordo, mas mesmo que uma pessoa seja um génio, os que a rodeiam não são e tentarão utilizar o seu talento. É o que se está a passar agora. Sejas uma luminária ou um imbecil, não podes manter-te isolado num mundo virgem, afastado de toda a gente. Mesmo que te escondas debaixo do chão ou te feches dentro de altas muralhas. Haverá sempre alguém que te descobre e destrói o teu mundo. E o teu avô não é exceção. Foi por culpa dele que me deram uma navalhada na barriga e que o mundo vai acabar dentro de pouco mais de trinta e cinco horas.

– Se encontrarmos o meu avô, tudo se resolve.

Aproximou-se de mim, pôs-se em bicos de pés e deu-me um beijinho mesmo por baixo da orelha. O seu beijo aqueceu-me o corpo e a dor da ferida pareceu acalmar um pouco. Talvez naquela zona, por baixo da orelha, existisse um ponto que produzisse tal efeito. Ou talvez fosse porque há muito tempo não era beijado por uma rapariga de dezassete anos. Na realidade, desde a última vez que fora beijado por uma rapariga dessa idade já lá iam dezoito anos.

– Se acreditares que tudo vai acabar bem, deixas de ter medo, sabes? – disse.

– Com a idade, a pessoa vai acreditando em cada vez menos coisas – respondi. – É o mesmo que acontece com os dentes. Não que uma pessoa se torne cínica ou cética, mas vai-se gastando, pura e simplesmente.

– Estás com medo?

– Sim, estou com medo – respondi. Dobrei-me e tornei a espreitar pelo buraco. – Nunca fui capaz de suportar sítios estreitos e escuros.

– Mas não podemos voltar para trás. Não nos resta outra opção senão avançar.

– Claro, é lógico – retorqui. Começava a sentir que o meu corpo já não me pertencia. No secundário, quando jogava basquetebol, às vezes tinha esta sensação. Quando a bola avançava com demasiada rapidez e o meu corpo tentava alcançá-la, a minha consciência deixava-se ficar para trás.

A rapariga tinha os olhos cravados no mostrador do dispositivo. Pouco depois, declarou:

– Vamos.

A bateria estava carregada.

Tal como acontecera antes, ela tomou a dianteira e eu segui-a. No instante em que entrámos no buraco, ela virou-se e fez girar uma roda, fechando a entrada. Ao mesmo tempo que a porta se fechava, o pequeno quadrado de luz que entrava por ali foi ficando cada vez mais estreito, tornando-se um delgado fio vertical, até que acabou por desaparecer. Caiu sobre nós uma escuridão ainda mais palpável do que antes e senti que as sombras mais densas que alguma vez vira caíam sobre mim. Nem sequer o clarão da lanterna conseguia rasgá-las, limitando-se a projetar um débil feixe de luz nada tranquilizador.

– Não estou a perceber porque é que o teu avô escolheu fazer uma passagem que atravessa o centro do esconderijo dos Invisíveis.

– Porque, como ele diz, é o sítio mais seguro – respondeu-me virando para mim a luz da sua lanterna. – No centro do refúgio dos Invisíveis existe um local sagrado para eles, um verdadeiro santuário onde não podem penetrar.

– Por razões religiosas?

– Creio que sim. Eu própria nunca o vi, mas é o que o meu avô conta. Diz que é um tanto assustador falar de fé nestes casos, mas que se trata sem dúvida de uma espécie de religião. O deus dos Invisíveis é um peixe. Um peixe enorme, sem olhos. – Depois de pronunciar estas palavras, virou-se e dirigiu a luz para a frente. – E agora, vamos continuar. Não há tempo a perder.

O teto da gruta era tão baixo que eu tinha de me dobrar para poder avançar. Apesar de a superfície rochosa ser quase sempre lisa e resvaladiça, de vez em quando eu batia com a cabeça numa saliência. Mas não havia tempo para queixumes. Caminhava como um verdadeiro possesso, com o feixe de luz cravado com firmeza nas costas da jovem para não a perder de vista. Tendo em linha de conta a sua corpulência, ela deslocava-se com grande agilidade, em passo rápido, e tinha uma notável capacidade de resistência. Eu também era bastante forte, mas caminhar curvado estava a provocar-me fortes dores no abdómen ferido. Doía-me como se me tivessem cravado um punhal de gelo na barriga. A minha camisa, encharcada de suor, colava-se-me ao corpo. Mesmo assim, era preferível aguentar as dores da ferida do que arriscar-me a perder a jovem roliça de vista e a ficar sozinho no meio das trevas. À medida que avançava, a sensação de que o corpo não me pertencia ia crescendo. Disse para os meus botões que talvez isto se devesse ao facto de não me poder ver a mim próprio. Mesmo pondo a mão em pala sobre os olhos, não conseguia vê-la.

É muito estranho ser incapaz de ver o próprio corpo. Quando se prolonga por bastante tempo, a pessoa dá por si a perguntar-se se o seu corpo não passará de uma simples hipótese. É certo que, quando batia com a cabeça, me magoava e que a ferida no abdómen não me dava tréguas. E sentia o chão debaixo dos pés. Mas tudo isto não passava de simples dores, uma mera perceção. Podia dizer-se que não era mais do que um conceito assente na hipótese de que o meu corpo me pertencia. Portanto, não podia descartar a possibilidade de o meu corpo ter desaparecido e de que só restasse o conceito, a funcionar autonomamente. Tal como a situação de alguém a quem amputaram uma perna e que continua a sentir comichão nos dedos dos pés da perna amputada.

Tentei várias vezes verificar que o meu corpo existia apontando a luz da lanterna para ele, mas, como estava com medo de perder a rapariga de vista, acabei por desistir.

A verdade é que o meu corpo existe, pensei, tratando de me convencer a mim próprio. Se tivesse desaparecido, deixando para trás apenas a alma, de certeza que me sentiria melhor. Porque se a alma tivesse de suportar eternamente feridas na barriga, úlceras gástricas e hemorroidas, onde diabo estaria a salvação? E se a alma não se separasse do corpo, onde diabo encontraria a sua razão de existir?

Absorto nestas cogitações, continuava a seguir o blusão militar verde-azeitona, a camisa cor-de-rosa presa com um cinto, que espreitava por baixo, e os ténis Nike também cor-de-rosa. Os brincos de ouro baloiçavam, cintilando na obscuridade. Pareciam um par de pirilampos revoluteando junto do seu pescoço.

Ela continuava a caminhar em silêncio, sem se voltar para mim. Parecia ter esquecido por completo a minha existência. Avançava inspecionando os ramais e as grutas com rápidos golpes de luz da lanterna. Ao chegar a uma bifurcação, deteve-se, tirou o mapa do bolso do peito e iluminou-o para verificar o caminho a seguir. Deu-me tempo para chegar junto dela.

– Tudo bem? Estamos no bom caminho? – perguntei.

– Sim, tem calma. Vamos bem. Por agora... – respondeu-me numa voz segura.

– Como sabes?

– Porque estamos no bom caminho, digo-te eu – e apontou com a lanterna para o solo. – Olha para o chão.

Dobrei-me para olhar com atenção para o círculo iluminado. Numa das fendas da rocha brilhavam pequenos objetos prateados. Apanhei um, descobrindo que se tratava de clipes metálicos.

– Vês? O meu avô esteve por aqui. Como já calculava que o seguíssemos, deixou-nos este sinal.

– Muito bem – respondi.

– Já passou um quarto de hora, temos de nos despachar.

Mais à frente surgiram novas bifurcações, mas encontrámos sempre mais clipes espalhados no chão a indicar-nos o caminho, de maneira que nos foi possível continuar sem hesitações, poupando um tempo precioso.

Aqui e ali, buracos fundos abriam as suas bocas aos nossos pés. Mas como a sua localização estava marcada a vermelho no mapa, pouco reduzíamos a velocidade, iluminando o chão com as lanternas ao chegar junto deles. Os buracos tinham entre cinquenta e setenta centímetros de diâmetro, pelo que era fácil saltar por cima deles ou rodeá-los. Por curiosidade, atirei uma pedra com o tamanho de um punho para dentro de um, mas, por mais que esperasse, não ouvi nada. Fiquei com a impressão de que a pedra teria atravessado a Terra até chegar ao Brasil ou à Argentina. Só de imaginar a possibilidade de dar um passo em falso e cair dentro de um daqueles poços, senti um aperto na boca do estômago.

Serpenteando para a esquerda e para a direita e dividindo-se em inúmeros ramais, o caminho continuava a descer indefinidamente. Não que fosse uma descida acentuada; acontecia, porém, que nunca mais acabava. Dava-me a sensação de que, passo a passo, me ia desprendendo do mundo luminoso da superfície.

A meio do caminho abraçámo-nos. Uma única vez. Ela deteve-se de repente, virou-se para mim, apagou a lanterna e rodeou-me com os braços. Procurou-me os lábios com as pontas dos dedos e pousou os seus lábios sobre os meus. Envolvi-lhe o corpo com os braços e apertei-a suavemente contra o peito. Era estranho estar abraçado a alguém no meio daquelas sombras. Acho que Stendhal escreveu qualquer coisa acerca de abraçar alguém no escuro, pensei. Não me lembrava do título do livro. Tentei recordar-me, mas não fui capaz. Será que Stendhal teria mesmo abraçado uma rapariga no meio da escuridão? Decidi que, se saísse dali com vida e o mundo não tivesse chegado ao fim, iria procurar o livro.

O aroma da água-de-colónia de melão desaparecera já da sua nuca. Fora substituído pelo odor de uma rapariga de dezassete anos. E por baixo do odor dela permanecia o meu. O blusão do exército norte-americano estava impregnado do cheiro da minha própria vida. O aroma da comida que cozinhara, do café que entornara, do suor que transpirara. Todos esses odores permaneciam ali, indeléveis. Enquanto eu abraçava, no fundo de um subterrâneo negro como o breu, uma rapariga de dezassete anos, vi toda essa vida como uma miragem que não tornaria a acontecer. Podia recordar que tudo isso acontecera em tempos, mas não seria possível trazer de novo ao meu espírito os sentimentos que me transportariam de volta a uma vida passada.

Ficámos ali abraçados durante um bom bocado. O tempo corria célere, mas já não me parecia ser um problema importante. Aquele abraço libertava-nos do nosso medo e, de momento, isso era o mais importante.

Pouco depois, ela comprimiu com força os seios contra o meu peito, abriu a boca e a sua língua doce penetrou-me na boca juntamente com um hálito cálido. A ponta da língua deslizou em torno da minha, os dedos enfiaram-se no meu cabelo. Tudo não durou mais que uns dez segundos, e ela afastou-se então bruscamente. Senti um desespero profundo, como se fosse um astronauta que alguém abandonara, completamente só, na imensidão do espaço.

Acendi a lanterna e vi-a de pé à minha frente. Ela também acendeu a dela.

– Vamos! – disse.

Virou-se e começou a caminhar no mesmo passo rápido. O toque dos seus lábios permaneceu nos meus, sentia ainda no meu peito o bater do coração dela.

– Eu... não estive mal, pois não? – perguntou sem se voltar.

– Nada mal – assegurei-lhe.

– Mas faltou qualquer coisa, não foi?

– Sim – concordei. – Uma coisa.

– E o que era?

– Não sei.

* * *

Depois de percorrermos um terreno plano durante cinco minutos, percebemos que o espaço em que estávamos se tornava mais amplo e vazio. O cheiro também mudara e os nossos passos ressoavam de maneira diferente. Dei uma palmada e o eco devolveu-me um som amplificado e informe.

Enquanto ela sacava o mapa para ver onde estávamos, eu varri o espaço à nossa volta com a luz da lanterna. O teto era arredondado, em cúpula, e o terreno circular parecia adaptar-se à forma do teto. Um círculo plano, claramente construído por... mãos humanas? As paredes eram lisas, sem rugosidades nem saliências. No chão, ao centro, abria-se um buraco pouco profundo, com cerca de um metro de diâmetro, cheio de uma substância viscosa de natureza indistinta. No ar flutuava um cheiro que, não sendo muito intenso, deixava um desagradável travo ácido na boca.

– Isto deve ser o santuário – disse a jovem. – De momento, estamos a salvo. Os Invisíveis não entram aqui.

– Acho muito bem que não possam entrar aqui, mas será que nós podemos sair?

– Vamos deixar isso nas mãos do meu avô. Ele arranja maneira. Além do mais, não te esqueças de que temos dois sinais sonoros, o que vai manter os Invisíveis à distância o tempo todo. Quer dizer, enquanto temos um a funcionar, podemos recarregar o outro. Assim, não há que ter medo de nada, e não vai ser preciso prestar atenção ao tempo que demorarmos.

– Estou a ver – disse eu.

– Então? Mais animado?

– Um pouco – respondi.

De ambos os lados do santuário havia um baixo-relevo trabalhado primorosamente. Ali se viam dois enormes peixes mordendo a cauda um do outro, formando um círculo. Tinham um aspeto muito estranho. As cabeças eram proeminentes como o nariz de um avião bombardeiro e, em vez de olhos, tinham duas grandes e grossas antenas projetadas para a frente, retorcendo-se como gavinhas. As bocas, desproporcionadas em relação ao corpo, eram grandes, rasgadas quase até às brânquias e, mesmo por baixo, nasciam uns órgãos curtos e rechonchudos, como patas de animal, decepados mesmo abaixo da articulação. Comecei por pensar que aqueles órgãos lhes permitiriam avançar como se fossem ventosas, porém, depois de os observar com atenção, descobri três unhas afiadas na ponta de cada um. Era a primeira vez que via um peixe com garras. As barbatanas dorsais tinham uma forma grotesca e as escamas projetavam-se como espinhas.

– Serão animais mitológicos? Achas que existem realmente? – perguntei.

– Vá-se lá saber! – retorquiu a jovem, que se agachou para recolher mais alguns clipes espalhados no chão. – Seja o que for, estamos no bom caminho. Vamos, despacha-te!

Projetei a luz da lanterna uma última vez sobre os baixos-relevos, e depois segui-a. Comovera-me o facto de os Invisíveis serem capazes de esculpir um relevo tão primoroso no meio de uma escuridão tão absoluta. Muito bem, conseguiam ver no escuro, mas esta capacidade de visão era impensável. E agora estavam muito provavelmente a observar cada um dos nossos movimentos, atentos a todos os gestos.

À medida que penetrava no recinto sagrado, o caminho transformava-se num declive suave e o teto ganhava rapidamente altura, até que, pouco tempo depois, se tornou impossível iluminá-lo com a lanterna.

– A partir daqui entramos na montanha – informou-me. – Costumas fazer alpinismo?

– Em tempos fazia escalada uma vez por semana. Contudo, nunca escalei nada às escuras.

– Não parece ser uma montanha muito alta – comentou, enfiando o mapa no bolso. – Nem sequer chega a ser uma montanha propriamente dita. É mais uma colina, mas o meu avô diz que, para eles, trata-se de uma verdadeira montanha. A única montanha subterrânea. A montanha sagrada.

– E nós vamos profaná-la, não achas?

– Não, muito pelo contrário. À partida, a montanha é um lugar impuro. Todas as impurezas se concentram aqui. Poderíamos dizer que este lugar é uma caixa de Pandora cuja tampa é a crusta terrestre. E nós vamos passar mesmo pelo meio.

– Estou com a impressão de que não sairemos daqui vi-vos.

– Já te disse há bocadinho que é preciso ter confiança, não disse? Se acreditares que tudo vai correr bem, o teu medo desaparece. Pensa numa recordação divertida, nas pessoas que amaste, no que te fez chorar, na tua infância, nos teus planos para o futuro, na música de que gostas: tudo serve. Se pensares nisso, o teu medo vai-se.

– Achas que o Ben Johnson serve? – perguntei.

– Ben Johnson?

– Era um ator que montava muito bem a cavalo. Entrou nos filmes antigos do John Ford. Um cavaleiro extraordinário.

Da escuridão vieram as suas gargalhadas divertidas.

– És mesmo giro!

– Sou demasiado velho para ti. E não sei tocar nenhum instrumento.

– Se nos safarmos desta, ensino-te a montar.

– Obrigado – disse. – E tu, em que vais pensar?

– No beijo que te dei – respondeu. – Foi por isso que te beijei. Não sabias?

– Não.

– Sabes o que pensa o meu avô nestes casos?

– Não.

– O meu avô não pensa em nada. É capaz de esvaziar a mente por completo. Os génios são assim. Esvaziando a cabeça, não há ar viciado que consiga penetrar nela.

– Percebo.

Tal como a moça gordita havia anunciado, o caminho foi-se tornando cada vez mais íngreme, até que demos de caras com uma parede de rocha e tivemos de continuar a escalada usando ambas as mãos. Entretanto, eu não deixava de pensar no ator Ben Johnson. Na imagem de Ben Johnson a cavalo. Recordei todas as cenas que pude de Forte Apache, Os Dominadores, A Caravana Perdida e Rio Grande15. O sol caía a pino sobre a planície e no céu vogavam nuvens de um branco tão puro que pareciam pintadas a pincel. Manadas de búfalos avançavam ao longo dos vales, as mulheres assomavam à porta de suas casas secando as mãos a aventais brancos. Os rios corriam, o vento fazia tremeluzir a luz, as pessoas entoavam canções. E Ben Johnson cruzava a cena como um raio, montado no seu cavalo. A câmara deslizava indefinidamente sobre os carris, para manter o enquadramento da sua silhueta heroica.

Pensei em Ben Johnson e no seu cavalo enquanto tateava a superfície das rochas, em busca de pontos de apoio para os meus pés. Não sei se foi por causa disso, mas a dor da ferida na barriga diminuiu de forma assombrosa, e finalmente consegui afastar da minha cabeça a ideia de que me tinham ferido. Disse para os meus botões que a teoria da rapariga acerca de acalmar as dores físicas com um sinal que se implanta na consciência talvez não fosse tão disparatada como parecia.

Em si mesma, a escalada não apresentava grandes dificuldades. O chão era estável, não havia grandes paredes íngremes que dificultassem os apoios e encontravam-se sempre buracos de tamanho conveniente na rocha. Segundo os padrões estabelecidos, era uma escalada ao nível de um principiante, um caminho fácil e sem perigos, que um estudante poderia percorrer sozinho num domingo de manhã. Todavia, trepar às escuras era um assunto totalmente diferente. Em primeiro lugar, como é óbvio, não se via nada. A pessoa não tem forma de saber o que está à sua frente, nem quanto lhe falta subir, nem em que posição está, nem o que há debaixo dos seus pés, nem se segue a rota certa ou não. Avança às cegas. Nunca pensei que perder a visão implicasse tamanho pânico. Em certos casos, é possível chegar-se ao ponto em que se perdem os juízos de valor e, por consequência, o amor-próprio e a valentia que lhes estão associados. Quando uma pessoa tenta alcançar um objetivo, pensa espontaneamente em três coisas: o que consegui até agora? Em que posição me encontro? O que tenho de fazer daqui para a frente? Se não é possível responder a estes três pontos, restam o medo, a falta de autoconfiança e o cansaço. Era a situação em que me encontrava. O problema não residia nas dificuldades físicas. A verdadeira questão era até que ponto seria capaz de manter o controlo sobre mim próprio.

Continuámos a subir a tenebrosa montanha. Como não era possível trepar empunhando as lanternas, eu pusera a minha no bolso das calças e ela tinha amarrado a correia da sua às mangas, nas costas, que a lanterna iluminava. Por isso, não víamos nada. A luz que tremeluzia sobre a sua cintura iluminava em vão o espaço negro. E eu escalava o precipício em silêncio, com os olhos postos naquela luz incerta.

De vez em quando, dirigia-me a palavra para verificar que eu não tinha ficado para trás. Dizia-me coisas como: «Estás bem?», ou: «Já falta pouco.»

– E se cantássemos uma canção? – propôs, ao fim de um bocado.

– Que canção? – perguntei.

– Uma qualquer. Basta que tenha música e letra. Vá! Canta qualquer coisa.

– Não canto à frente de ninguém.

– Vá lá, canta, por favor.

Não tinha alternativa: cantei «À Lareira».

Nas noites em que a neve cai

fico bem junto da lareira.

Arde, arde, lareira.

E contamos uns aos outros

contos de outro tempo.

Arde, arde, lareira.

Como não sabia a letra, inventei a continuação. Em resumo, eis o que acontece: toda a gente está sentada à lareira, para se aquecer, e alguém toca à porta. O pai vai abrir e depara-se com uma rena ferida, que lhe diz: «Tenho fome, dá-me de comer.» O pai abre uma lata de pêssegos em calda e dá-os à rena.

– Não te sais nada mal – disse-me, em jeito de elogio. – Tenho imensa pena de não poder aplaudir, mas é mesmo uma bela canção.

– Obrigado.

– Canta-me outra – pediu.

E eu cantei «Natal Branco».

Natal Branco de sonhos,

branca paisagem invernal,

os doces sentimentos

e os velhos sonhos

meu presente te dão.

Natal branco de sonhos,

fechos os olhos e hoje ainda

o som dos sinos

e o fulgor da neve

vivem no meu coração.

– Muito bem! Inventaste a letra, não foi?

– Disse o que me veio à cabeça.

– Porque é que só cantas canções sobre o inverno e a neve?

– Não sei. Talvez seja porque estamos às escuras e faz frio. Por isso, só me vêm à cabeça canções assim – disse, enquanto ia subindo. – Agora é a tua vez de cantar qualquer coisa.

– «A Canção da Bicicleta». Serve?

– Vamos a isso.

Numa manhã de abril

percorri de bicicleta

uma estrada desconhecida

a caminho da floresta.

Na minha bicicleta nova

cor-de-rosa, rosa, rosa,

selim e guiador rosa,

rosa, rosa, cor-de-rosa,

dos pneus aos travões.

– Dir-se-ia que a canção foi feita a pensar em ti.

– Claro, é a minha canção. Gostas?

– Gosto.

– Queres ouvir o resto?

– Sim, sim, por favor!

Numa manhã de abril

a minha cor é o rosa.

Não gosto de mais nenhuma.

Sim, rosa, rosa, cor-de-rosa.

A minha bicicleta nova,

os meus sapatos também.

Rosa, rosa, cor-de-rosa.

Camisola e chapéu

rosa, rosa, cor-de-rosa,

Calças e calcinhas

rosa, rosa, cor-de-rosa.

– Os teus sentimentos em relação ao cor-de-rosa ficaram claramente definidos. Agora, continua – disse-lhe.

– Esta parte é essencial – respondeu. – Diz-me: sabes se há óculos de sol cor-de-rosa?

– Tenho a impressão de que o Elton John tem uns.

– Hum... Bom, vamos esquecer isso. Vou continuar.

A meio do caminho

encontrei um homem,

e toda a sua roupa

era azul.

Com a barba por fazer,

e a barba era

de cor azul.

Como a noite escura,

de um azul profundo.

Como a noite escura, escura,

sempre azul.

– Isso é comigo?

– Não, que ideia! Não estou a falar de ti. Tu não entras nesta canção.

«Menina, não vás ao bosque»,

disse-me o homem.

As regras do bosque

são para os animais,

mesmo numa manhã de abril.

As águas do rio

não correm para cima,

mesmo numa manhã de abril.

Mas eu

de bicicleta ao bosque fui

numa bicicleta cor-de-rosa,

rosa, rosa, cor-de-rosa.

Sim, numa manhã de sol de abril.

Não tenho medo de nada

se não descer da minha bicicleta

rosa, rosa, cor-de-rosa.

Nela não receio nada,

porque não é vermelha, azul ou castanha.

É rosa, cor-de-rosa.

Chegámos ao topo da montanha no fim de «A Canção da Bicicleta» e demos com uma ampla planície. Depois de recuperarmos o fôlego, inspecionámos o espaço à nossa volta com a luz das lanternas. A planície parecia vasta: era muito lisa, como uma mesa que se estendia até ao infinito. Ela agachou-se por instantes perto da borda da planície e descobriu mais meia dúzia de clipes prateados.

– Até onde o teu avô conseguiu ir?

– Já falta pouco. Estamos perto. O meu avô falou-me muitas vezes deste planalto, e eu tenho a noção do sítio onde ele está.

– Então o teu avô veio aqui muitas vezes?

– Ah, pois. Pensa comigo: para fazer o mapa, teve de percorrer isto várias vezes. Conhece o terreno como a palma da mão. Tudo: desde onde vão dar os caminhos até às passagens secretas.

– E andou por aqui às voltas sozinho?

– Claro – retorquiu. – O meu avô gosta de fazer as coisas sozinho. Não é que seja um misantropo ou não confie nas pessoas, é simplesmente porque as outras pessoas não podem segui-lo.

– Estou a compreender o que queres dizer – aquiesci. – A propósito, que raio de planalto é este?

– Antigamente, os antepassados dos Invisíveis viviam aqui. Escavaram grutas na montanha e viviam todos juntos. Era nesta planície que faziam as suas celebrações religiosas. Acreditam que a sua divindade também vive nesta montanha. O oficiante, ou feiticeiro, como lhe queiras chamar, colocava-se aqui, invocava o deus das sombras e oferecia-lhe sacrifícios.

– E o deus deles é aquele peixe sinistro com garras?

– É. Eles acreditam que o peixe controla o mundo das trevas. O ecossistema subterrâneo, as ideias, o sistema de valores, a vida e a morte. A lenda diz que foi este peixe que conduziu os antepassados deles até aqui.

Ela apontou a lanterna para junto dos pés e mostrou-me uma espécie de fosso escavado no chão com cerca de dez centímetros de profundidade e um metro de largura. Era um canal que se estendia em linha reta desde o início da planície até se perder no meio das trevas.

– Se seguirmos este caminho a direito, acabamos por chegar ao antigo altar. Penso que é onde o meu avô está escondido. O altar é o ponto mais sagrado de todo o santuário e ninguém pode aproximar-se dele. Ele ali não tem nada a temer.

Avançámos em linha reta, seguindo o canal. Depressa o caminho se tornou uma abrupta descida e as paredes de ambos os lados começaram a elevar-se rapidamente. Eu estava a ficar com a impressão de que as paredes se aproximavam e acabariam por nos esmagar. À nossa volta reinava um silêncio sepulcral, não se via o menor sinal de vida. O único som que se escutava era o ranger das nossas solas de borracha, num ritmo estranho, ecoando nas rochas. Enquanto caminhava, levantei muitas vezes os olhos para o céu, de forma inconsciente. Quando um ser humano se vê mergulhado na escuridão, procura instintivamente a luz da Lua ou das estrelas.

Todavia, por cima da minha cabeça não havia nem Lua nem estrelas. Muito pelo contrário, sobre a minha cabeça adensavam-se trevas ainda mais negras. Era um lugar sufocante, onde não corria a mais leve aragem. Tudo parecia ainda mais opressivo do que antes. A minha própria existência me parecia mais difícil de suportar. Tudo me puxava para o chão: como se o meu alento, o eco dos meus passos e o ato de erguer e baixar a mão sentissem, como se fossem de lodo, uma poderosa atração para a superfície da terra. Mais do que estar desaparecido nas profundezas do subsolo, parecia-me ter chegado a um planeta desconhecido, perdido algures no espaço. A atração terrestre, a densidade atmosférica, a perceção do tempo, tudo me parecia completamente diferente do que recordava.

Ergui a mão esquerda, acendi a luz do meu relógio e vi as horas. Eram duas e vinte. Tínhamos iniciado a descida por volta da meia-noite, o que significava que só estava na escuridão há apenas duas horas, mas sentia-me como se tivesse passado um quarto da minha vida envolto em trevas. Até mesmo a luz do relógio digital, depois de a fitar durante um bocado, me fazia semicerrar os olhos. Os meus olhos deviam ter-se habituado progressivamente à obscuridade. A luz da lanterna também me incomodava. Quando se permanece muito tempo nas trevas, a escuridão transforma-se no estado normal, e a luz é que passa a ser o elemento estranho.

Prosseguimos a nossa descida sem trocar uma única palavra, percorrendo a passagem funda e estreita. Como o único caminho existente era em linha reta, não corria o perigo de bater com a cabeça numa rocha do teto, pelo que apaguei a lanterna e continuei a avançar, orientando-me pelo ruído das solas de borracha da rapariga. Ao fim de certo tempo, deixei de perceber se tinha os olhos abertos ou fechados. Tê-los de uma forma ou de outra era indiferente e, para o experimentar, fui-os abrindo e fechando enquanto caminhava; de facto, ao fim de um bocado, era incapaz de dizer se estavam abertos ou fechados. Entre uma ação humana e a sua oposta existe uma diferença assente na sua eficácia intrínseca, e se esta se perde, o muro que separa a ação A da ação B acaba por desaparecer.

De momento, a única sensação externa que tinha era o ruído das solas de borracha da minha companheira. Seria por causa do terreno, da atmosfera ou da escuridão? O ruído chegava-me bastante distorcido. Tentei escutar o eco como se fosse uma voz que me falava, mas o que dizia não correspondia a nenhuma palavra que conhecesse. Pareciam reverberações de línguas que não conhecia, fossem de África, do Sudoeste Asiático ou do Médio Oriente. Na língua japonesa não existiam sons que correspondessem àquilo. Em rigor, aquele eco podia ser próximo do francês, do alemão ou do inglês. Primeiro, tentei em inglês: Even-through-be-shopped -degreed-well, mas quando tentei repeti-lo, o que disse já não tinha nada que ver com o eco dos passos dela. Imitando o som o melhor que podia, deu qualquer coisa como ifvgen-gdou-bgi-chpóvg-égvel-ugévl.

Parecia finlandês e, por infortúnio, eu não conhecia a língua. A impressão com que ficara, partindo das próprias palavras, era a de que aquilo devia querer dizer qualquer coisa como: «O camponês encontrou um velho demónio no caminho», mas não passava de uma impressão não fundamentada por qualquer base linguística séria.

Continuei a caminhar tentando descobrir correspondências entre o barulho dos sapatos e as palavras ou frases em diversas línguas. Visualizei o par de ténis Nike cor-de-rosa, pisando, um trás do outro, a superfície rochosa plana. O calcanhar direito assentava no chão, o centro de gravidade deslocava-se para a ponta e, antes que o calcanhar direito se soltasse do solo, o esquerdo assentava no chão. E isto repetia-se até ao infinito. O tempo corria cada vez mais devagar. Tal como se a um relógio faltasse a corda e os ponteiros fossem parando. Os ténis cor-de-rosa avançavam, recuando lentamente para o fundo do meu cérebro atordoado.

ifvgen-gdou-bgi-chpóvg-égvel-ugévl

ifvgen-gdou-bgi-chpóvg-égvel-ugévl

ifvgen-gdou-bgi...

dizia o eco dos passos dela.

Num caminho campestre finlandês, um velho demónio está sentado numa pedra. Este ser maléfico teria uns dez ou vinte mil anos e, à primeira vista, percebia-se que estava exausto. Tinha a roupa e os sapatos cobertos de pó. A barba, por fazer, era rala.

– Onde vais num passo tão apressado? – perguntou o demónio ao camponês.

– A lâmina da minha enxada partiu-se, vou arranjá-la – respondeu o camponês.

– Não é preciso apressares-te tanto – disse aquele espírito do mal. – O Sol ainda está muito alto; que necessidade tens tu de trabalhar tanto? Senta-te aqui um bocadinho e escuta o que te vou dizer.

O camponês olhou para a cara do demónio, cheio de desconfiança. Sabia muito bem que era melhor não fazer acordos com o demo. Mas aquele parecia tão miserável e tão cansado! Então, o camponês...

... Algo me roçou a face. Algo liso e suave. Liso e suave, não muito grande, familiar. O que seria? Enquanto ordenava as ideias, tornou a bater-me na cara. Ergui a mão direita e tentei agarrar essa coisa, mas não consegui. Tornou a bater-me na cara. À minha frente tremeluzia uma luz desagradável. Abri os olhos. Até então não me apercebera de que os tinha cerrados. Há um bocado que os fechara. À frente do meu rosto estava a lanterna da rapariga e o que me batia na cara era a sua mão.

– Para! Estás a encandear-me, isso dói!

– Deixa-te de palermices! Onde pensas que estás para te pores a dormir? Depressa, levanta-te!

– Levanto-me?

Acendi a lanterna e olhei à minha volta. Não tinha consciência de tal, mas estava sentado no chão, encostado à parede. Não me lembrava de me ter sentado, nem tivera intenção de dormir. O chão e a parede estavam húmidos, empapados de água.

Devagar, pus-me de pé.

– Não percebo. Devo ter adormecido de repente. Não dei por me ter sentado no chão, nem queria dormir.

– Foram eles que te forçaram a isso – disse a jovem. – Querem que adormeçamos, como tu fizeste.

– Eles?

– Os que habitam a montanha. Não sei se deva chamar-lhes deuses ou espíritos malignos; esses seres, vá. Querem impedir-nos de avançar.

Abanei a cabeça para sair daquele torpor.

– Estava tudo muito confuso e já não sabia se tinha os olhos abertos ou fechados. E os teus sapatos faziam um barulho esquisito, então...

– Os meus sapatos?

Expliquei-lhe como, enquanto escutava o eco das passadas dela, um velho demónio tinha aparecido.

– É uma armadilha – explicou ela. – Hipnose ou coisa do género. Se eu não tivesse reparado, terias ficado aqui a dormir. Até ser demasiado tarde.

– Demasiado tarde?

– Claro que sim, meu caro, demasiado tarde! – insistiu, sem explicar o que queria dizer «demasiado tarde». – Puseste uma corda na mochila?

– Pus, mas tem só cinco metros.

– Tira-a.

Tirei a mochila dos ombros, vasculhei por entre as latas de conserva, as garrafas de uísque e o cantil e estendi-lha. Ela atou uma extremidade à minha cintura e enrolou a outra na sua. A seguir puxou a corda, aproximando-nos um do outro.

– Perfeito – disse a rapariga gordita. – Assim não nos separamos.

– Desde que não adormeçamos os dois... – disse eu. – Porque tu também não dormiste grande coisa, pois não?

– Não se pode fraquejar por um segundo que seja, percebes? Se começas a ter pena de ti próprio porque achas que dormiste pouco, as forças do mal atacam por aí. Compreendes?

– Sim.

– Então, vamos. Não há tempo a perder.

Avançámos com os corpos unidos pela corda de náilon. Esforcei-me por não prestar atenção ao ruído dos passos dela. Caminhava dirigindo o feixe de luz da lanterna para as costas da rapariga e mantinha os olhos cravados no blusão do exército, verde-azeitona. Tinha comprado aquele blusão em 1971. Nessa altura, a Guerra do Vietname ainda decorria e Richard Nixon, aquele homem de ar sinistro, era o presidente dos Estados Unidos. Foi num tempo em que toda a gente usava o cabelo comprido, calçava sapatos sujos, ouvia rock psicadélico, vestia roupa em segunda mão do exército norte-americano, com o símbolo da paz cosido nas costas, e muitos pensavam que eram o Peter Fonda em Easy Rider. O mesmo será dizer que datava da época dos dinossauros.

Tentei recordar-me de algumas coisas que tinham acontecido nesse tempo, mas não me veio nada à cabeça. Pelo que não me restou outro remédio senão recordar as cenas do Peter Fonda na moto. Àquela cena sobrepôs-se a melodia de «Born to Be Wild» de Steppenwolf, mas rapidamente «Born to Be Wild» se transformou em «I Heard it Through the Grapevine», de Marvin Gaye. Se calhar porque as introduções das duas canções eram parecidas.

– Em que é que estás a pensar? – perguntou a moça gorducha, que ia à minha frente.

– Nada em especial – respondi.

– Queres cantar uma canção?

– Não, já cantámos que baste.

– Então pensa em qualquer coisa.

– E se falássemos?

– De quê?

– Da chuva. Não é nisso que pensas?

– De acordo...

– Lembras-te de algum dia de chuva?

– Na tarde em que os meus irmãos e os meus pais foram mortos estava a chover.

– Falemos então de algo mais alegre.

– Não, está bem, apetece-me falar nisso. Além do mais, a não ser contigo, não há ninguém com quem eu possa falar. E assim sendo... Claro que, se não queres que eu fale disso, calo-me já.

– Se te apetece, fala.

– Não se percebia bem se estava a chover ou não. Desde manhã que era esse o cenário. Um céu absolutamente parado, coberto de nuvens cinzentas. Eu estava deitada na minha cama de hospital e passei o dia a olhar para o céu. Era o princípio de novembro e à frente da minha janela crescia uma canforeira. Árvores grandes, que já tinham perdido metade das folhas e, por entre os ramos, era possível ver o céu. Gostas de olhar para as árvores?

– Não sei – respondi. – Não posso dizer que deteste, mas nunca olhei para as árvores com muita atenção, acho.

Para ser franco, era incapaz de distinguir uma canforeira de um carvalho.

– Adoro olhar para as árvores. Desde pequena e mesmo agora. Quando tenho tempo, costumo sentar-me debaixo de uma árvore, acaricio o tronco, ou levanto o olhar para os ramos; consigo ficar assim durante horas, sem fazer mais nada. As canforeiras do jardim do hospital eram árvores magníficas. Estendida na cama, passava os dias a olhar para o céu e para as canforeiras. Já para o fim, conhecia quase todos os ramos, um por um. Assim como os malucos dos comboios sabem de cor os nomes de todas as linhas e de todas as estações... Além disso, vinham muitos pássaros pousar nas minhas canforeiras. Todo o tipo de pássaros: pardais, picanços e estorninhos. E outros de belas cores e de que não sei o nome. De vez em quando, também apareciam corvos. Todos aqueles pássaros descansavam por um bocado nos ramos e levantavam voo outra vez. Os pássaros são muito parecidos com a chuva, sabias?

– Não sabia.

– Quando está a chover ou prestes a chover, nunca se vê um único pássaro empoleirado nos ramos. Mas eles chegam assim que a chuva para e cantam muito alto. É como se festejassem todos juntos o fim da chuva. Talvez seja porque os insetos vêm à superfície quando acaba de chover. Ou, pura e simplesmente, porque gostam que a chuva pare. Foi assim que aprendi a prever o tempo: se não se viam pássaros, era porque ia chover, e se os pássaros regressavam e se punham a cantar, era porque a chuva tinha parado.

– Ficaste muito tempo no hospital?

– Sim, mais ou menos um mês. Desde pequena que tinha um problema numa válvula cardíaca e fui operada. Foi uma operação complicada e parece que a minha família já se tinha resignado à ideia de me perder. Muito estranho, não achas? No fim de tudo, fui a única que sobrevivi. Tenho uma saúde excelente, e os outros morreram todos.

Calou-se de repente e continuou a andar. Avancei também, pensando no coração dela, nas canforeiras e nos pássaros.

– No dia em que morreram, os pássaros andaram muito agitados. Por causa daquela chuva que ninguém sabia se ia cair ou não, que caía e parava logo, os pássaros pousavam e voavam outra vez. Estava um dia muito frio, a anunciar o inverno, e como o meu quarto estava aquecido, os vidros ficavam logo embaciados e eu tinha de estar sempre a limpá-los. Levantava-me da cama, ia limpar os vidros com um guardanapo e voltava para a cama. Eu não tinha autorização para me levantar, mas dava-me vontade de ver as árvores, os pássaros, o céu e a chuva. Quando uma pessoa tem de passar muito tempo num hospital, internada, este tipo de coisas representa a própria vida, percebes? Alguma vez estiveste internado?

– Não – respondi.

Por regra, passo tão bem como um urso na primavera.

– Havia pássaros com penas vermelhas e cabeça negra. Andavam sempre aos pares. Comparados com eles, os picanços tinham ar de empregados bancários de fatos escuros, mas vinham todos cantar quando a chuva acabava, empoleirados nos ramos... Naquele momento, sabes o que pensei? Disse para os meus botões: o mundo é verdadeiramente estranho; há centenas, dezenas de milhões de canforeiras a crescer por todo o mundo... obviamente, não é forçoso que sejam canforeiras... e o Sol que brilha, ou a chuva que cai sobre elas, e, segundo os casos, dezenas, centenas de milhares de pássaros que se vêm empoleirar nos seus ramos ou levantam voo. E, não sei porquê, só de imaginar este espetáculo, fiquei triste, muito triste.

– Porquê?

– Talvez por o mundo estar cheio de árvores sem fim, de incontáveis pássaros, inúmeras chuvadas. Apesar disso tudo, parecia-me que eu só conseguia ter uma única canforeira e uma única chuvada. E seria sempre assim. Era possível que os anos passassem e que eu morresse tendo apenas uma canforeira e um dia de chuva. Quando pensei nisto, senti-me tremendamente só e chorei. Enquanto chorava, desejava com todas as minhas forças que alguém me desse um abraço. Mas não estava ali ninguém. E eu, completamente sozinha, chorei durante muito tempo estendida em cima da cama.

«Entretanto, foi anoitecendo, e os pássaros desapareceram. Já não conseguia ver se estava chover ou não. Naquele fim de tarde, toda a minha família morreu. Se bem que só mo tenham dito muito tempo depois.

– Deve ter sido muito doloroso, imagino...

– Não me lembro bem. Tenho a sensação de que não consegui sentir nada. A única coisa de que me recordo é que, naquela tarde, ninguém me abraçou. E isso, para mim, pareceu o fim do mundo. Sabes o que se sente quando tudo é escuro, amargo, triste e precisas desesperadamente que alguém te dê um abraço, mas não tens ninguém?

– Acho que sim – respondi.

– Alguma vez perdeste alguém de quem gostavas?

– Várias vezes.

– Então, agora estás sozinho?

– Não – respondi, passando os dedos pela corda de náilon. – Neste mundo nunca se está completamente sozinho. De uma forma ou de outra, todos estamos unidos. Chove, os pássaros cantam. Rasgam-te as tripas e uma rapariga beija-te no escuro.

– Mas, sem amor, é como se o mundo não existisse – afirmou a rapariga gorda. – Sem amor, a vida é como o vento que passa do outro lado da janela. Não podes tocar na mão de outra pessoa, não podes sentir o seu cheiro. Por mais mulheres que compres com dinheiro, por mais desconhecidas com que vás para a cama, não tens nada autêntico. Também não terás ninguém que te abrace com força.

– Mas eu não passo o meu tempo a comprar mulheres e a dormir com esta e aquela – protestei.

– É a mesma coisa.

Pensei que talvez tivesse razão. Ninguém me abraçava com força. Tão-pouco eu abraçava alguém. E os anos tinham passado assim. Eu envelheceria na solidão mais absoluta, como um pepino-do-mar colado ao seu rochedo, no fundo de um oceano.

Distraído com estes pensamentos enquanto andava, não me apercebi de que ela parara e choquei contra as suas costas almofadadas.

– Desculpa! – exclamei.

– Chiu! – disse, agarrando-me o braço. – Ouvi um barulho. Escuta!

Imóveis, prestámos atenção a um eco que provinha do fundo das trevas. Vinha de um ponto que há muito tínhamos deixado para trás. Era débil, quase impercetível. Um ténue ribombar da terra, o roçar de duas imponentes massas de metal, friccionando-se uma contra a outra. No entanto, fosse o que fosse, o som continuava, ininterrupto, aumentando de volume a pouco e pouco. Aquele ruído provocava um desagradável arrepio gelado, como se um grande inseto trepasse devagar pelas nossas costas. Era um eco surdo, quase impercetível ao ouvido humano.

Até mesmo o ar que nos envolvia parecia ter começado a vacilar por efeito daquelas ondas sonoras. Um vento espesso e pesado soprava à nossa volta, de frente para trás, como lama arrastada por uma ribeira. O ar, carregado de água, estava húmido e frio. Tudo parecia estar à espera, na expectativa de qualquer coisa.

– Será um terramoto? – sugeri.

– Não – respondeu a jovem roliça. – É muito mais terrível do que isso.

15 Respetivamente, Fort Apache (1948), She Wore a Yellow Ribbon (1949), Wagon Master (1950) e Rio Grande (1950), filmes do realizador John Ford. (N. das T.)


O Fim do Mundo

22

A Fumarada Cinzenta

Tal como havia anunciado o velho Coronel, a coluna de fumo erguia-se todos os dias. A fumarada cinzenta elevava-se do Pomar das Macieiras e dissipava-se por entre as nuvens carregadas no céu. Fixando-se a vista no fumo, ficava-se com a impressão de que as nuvens nasciam por entre as macieiras. O fumo surgia às três da tarde, em ponto, e a sua duração variava de acordo com o número de animais que haviam morrido durante a noite. Nas manhãs a seguir a violentas nevascas, ou em noites particularmente glaciais, via-se uma espessa coluna de fumo, que durava horas, evocando incêndios florestais nas montanhas.

Custava-me a perceber a razão por que não tomavam medidas para defender os animais.

– Porque é que não constroem um estábulo algures? – perguntei ao idoso, durante um jogo de xadrez. – Porque é que ninguém protege os animais do vento, do frio e da neve? Não é preciso ser uma coisa muito sofisticada; seria possível salvar muitas vidas com um simples teto e uma cerca.

– Trabalho feito em vão... – respondeu-me o ancião sem tirar os olhos do tabuleiro. – Mesmo que lhes construísse-mos um estábulo, os animais não entrariam. Há muitos anos que dormem deitados na terra. É por isso que pernoitam ao relento, pondo a vida em perigo. No meio da neve, do vento e do frio.

O Coronel colocou o rei à frente do bispo, reforçando uma posição já de si forte. De ambos os lados, os peões defendiam a linha da frente. Esperou que eu passasse ao ataque.

– A crer no que diz, pensar-se-ia que os animais procuram a morte e o sofrimento.

– Em certo sentido, sim. Para eles, tudo isto é natural. Muito possivelmente, o frio e o sofrimento serão a sua salvação.

Calou-se, e eu fiz deslizar o meu bispo para junto da sua torre. Queria forçá-lo a deslocar a torre. Ele esteve prestes a fazê-lo, mas reconsiderou e, em vez disso, fez recuar um cavalo, reduzindo o seu espaço defensivo como se fosse uma almofada de agulhas.

– Cada dia mais esperto, hã? – disse-me o Coronel, a rir.

– Ainda não lhe posso pedir meças neste campo – retorqui, a rir também. – A que se refere quando fala de redenção?

– À redenção que a morte lhes traz. Os animais morrem, é certo, mas renascem na primavera. Sob a forma de crias.

– E essas crias crescem, sofrem e morrem como eles? Porque têm de padecer tanto?

– Porque é a lei – respondeu o ancião. – É a tua vez. Se não comeres o meu bispo, perdes.

* * *

A neve caiu durante três dias ininterruptos, e depois o céu clareou, transformando radicalmente a paisagem. Os raios de sol tornaram a inundar a aldeia incrustada na brancura do gelo, que se encheu do ruído da neve a derreter e do brilho ofuscante do sol. Por todo o lado se ouvia o barulho das placas de neve que tombavam dos ramos das árvores. Para fugir à luz, corria as cortinas e fechava-me no meu quarto. Por mais esforços que fizesse em esconder-me por trás dos pesados cortinados que cobriam por completo a minha janela, não conseguia fugir à claridade. A aldeia gelada refletia o sol, como se fora um enorme diamante delicadamente talhado que enviava para o meu quarto raios diretos, ferindo-me os olhos.

Em tardes que tais, deixava-me ficar estendido na cama, com uma almofada sobre os olhos, a escutar os diferentes trinados de vários tipos de pássaros, que se aproximavam do parapeito da minha janela e depois saltavam para a seguinte. As aves sabiam muito bem que os idosos que viviam na Residência Oficial espalhavam migalhas de pão nos parapeitos das janelas. Eu também escutava as vozes dos idosos que tagarelavam, sentados num quadrado de sol à frente da residência. Só eu me mantinha afastado dos seus raios benfazejos.

* * *

Ao crepúsculo, eu abandonava a cama, lavava os olhos inchados com água fria, punha óculos escuros, descia a ladeira, onde se acumulava a neve, e ia até à Biblioteca. Todavia, nos dias em que os olhos me doíam, não conseguia ler tantos sonhos como de costume. Depois de decifrar um ou dois, a luz que os velhos sonhos emitiam causava-me nos dois globos oculares uma dor imensa, tal qual me espetassem alfinetes. Notava um certo peso numa zona indefinida por trás dos olhos, como se estivesse cheia de areia e, no mesmo instante, perdia a sensibilidade nas pontas dos dedos.

Nessas ocasiões, a bibliotecária trazia-me uma toalha ensopada em água fria e aplicava-a sobre os meus olhos, ou massajava-os. Por vezes trazia-me um caldo ligeiro ou leite e fazia questão de me dar à boca esses líquidos. Tanto a sopa como o leite tinham uma curiosa textura áspera, agreste na língua e com um paladar um tanto forte, mas, dia após dia, fui-me habituando, e para o fim já apreciava aquele sabor tão peculiar.

Quando lho disse, ela sorriu, contente.

– Isso significa que estás a habituar-te à Cidade. Aqui, a comida é um pouco diferente da que existe nos outros sítios. Conseguimos fazer muitas coisas com poucos ingredientes. O que parece carne não é carne, ou o que parece ovos não são ovos. Ou o que parece café não é café. É tudo a fingir, não passa disso. Esta sopa cheira muito bem. Estás mais quente e com menos dores de cabeça?

– Sim.

De facto, o meu corpo recuperara o calor e eu tinha a cabeça bastante menos pesada do que algumas horas antes. Agradeci-lhe a sopa, fechei os olhos e descontraí corpo e mente.

– E agora, precisas de mais qualquer coisa, não é verdade? – perguntou.

– Eu? Para além da tua presença?

– Não sei. De repente, fiquei com essa sensação. Talvez haja qualquer coisa que te ajude a abrir o coração endurecido pelo inverno, por pouco que seja.

– O que me falta é a luz do Sol – respondi. Tirei os óculos escuros e, depois de limpar as lentes com um pano, tornei a pô-los. – Mas é impossível. Os meus olhos não conseguem supor-tá-la.

– Não, penso que se trata de algo mais pequeno. Uma coisinha que vai libertar o teu coração. Como quando há bocado te massajei os olhos com os dedos. Não te lembras? No mundo em que vivias, o que é que fazem quando o coração fica demasiado pesado?

Vasculhei longamente por entre os fragmentos de memórias que me restavam, mas não logrei recordar-me de nada do que queria.

– Não funciona, não me lembro de nada. Perdi as minhas recordações quase todas.

– Basta um pormenor ínfimo. Diz o que te vier à cabeça e pensaremos sobre isso os dois, em conjunto. Gostaria de poder ajudar-te.

Assenti e, uma vez mais, tentei recuperar as recordações do meu velho mundo, enterradas, todas juntas, no fundo da minha memória. Todavia, o bloco de pedra era demasiado pesado e, por mais que tentasse, apenas consegui deslocá-lo. A cabeça começou a doer-me de novo. Era possível que, no instante em que me separei da minha sombra, tivesse irremediavelmente perdido o meu próprio eu. Naquele momento apenas me restava um coração inseguro e incoerente. Um coração que se ia fechando devido ao frio crescente do inverno.

Ela pousou as palmas das mãos na minha testa.

– Deixa estar, já chega. Pensarás nisso outro dia. É possível que, entretanto, te ocorra qualquer coisa.

– Antes de partir, vou ler um último sonho – disse eu.

– Estás muito cansado. Não devias deixar isso para amanhã? Não tentes esforçar-te. Os velhos sonhos podem esperar o tempo que for preciso.

– Não, a verdade é que é muito mais confortável ler outro sonho do que ficar sem fazer nada. Enquanto leio, não penso.

Olhou-me fixamente durante uns instantes, fez um ligeiro aceno de cabeça, afastou-se da mesa e desapareceu na direção da Biblioteca. Pus a cabeça entre as mãos, com os cotovelos apoiados na mesa, fechei os olhos e abandonei o meu corpo às trevas. Quanto tempo duraria o inverno? Um inverno longo e duro, dissera o ancião. E começara há pouco tempo. A minha sombra conseguiria atravessar o inverno até ao fim? E eu? Seria capaz de o ultrapassar, dada a confusão e a insegurança que dominavam o meu coração?

Ela pousou uma caveira sobre a mesa e, tendo limpado o pó com um pano húmido, como era costume, secou-a com outro. Com a testa apoiada nas mãos, eu observava os seus movimentos.

– Há alguma coisa que eu possa fazer por ti? – perguntou, levantando a cabeça de repente.

– Já fizeste muito por mim – respondi.

Ela parou de limpar a caveira, sentou-se numa cadeira e olhou-me a direito.

– Não é disso que estou a falar. Estou a falar de qualquer coisa especial. Ir para a tua cama, por exemplo, esse tipo de coisas...

Abanei a cabeça.

– Não, não tenho vontade de me deitar contigo. Fico feliz por me dizeres isso, mas...

– Porquê? Desejas-me ou não?

– Sim, desejo-te, mas não posso ir para a cama contigo, pelo menos para já. Não tem nada que ver com o facto de eu te desejar ou não.

Ela refletiu por um instante, após o que se pôs de novo a limpar a caveira. Durante esse espaço de tempo, levantei a cabeça e ergui os olhos para a lâmpada amarela que estava pendurada no teto. Por mais que o meu coração endurecesse, por mais pressão que o inverno exercesse sobre mim, não podia dormir com ela, ali, naquele momento. Se o fizesse, a confusão no meu coração aumentaria e o sentimento de perda acentuar-se-ia ainda mais. Tinha a impressão de que a Cidade queria que eu fosse para a cama com ela, porque, dessa forma, ser-lhes-ia mais fácil apoderarem-se do meu coração.

Ela pôs à minha frente a caveira que acabara de limpar, mas não lhe toquei; observava os seus dedos pousados na mesa. Procurei perceber o que esses dedos me diziam, mas foi inútil. Não passavam de dez dedos delicados.

– Gostava que me falasses da tua mãe – disse eu.

– Que queres saber a seu respeito?

– O que quiseres contar-me.

– Bem... – começou, pousando os dedos sobre a caveira. – Parece-me que sentia algo de especial pela minha mãe, diferente do que sentia por todos os outros. Sei que já passou muito tempo e é difícil recordar, mas parece-me... devia ser diferente dos sentimentos que nutria pelo meu pai e pelas minhas irmãs, não sei porquê, mas...

– O coração é isso. Nunca existe igualdade. É como o fluir de uma ribeira. A força da corrente varia de acordo com a morfologia do terreno.

A jovem esboçou um breve sorriso.

– Parece-me injusto.

– Mas é assim. E hoje ainda amas a tua mãe, não é verdade?

– Não sei.

Mudou a posição da caveira e olhou-a de vários ângulos.

– É uma pergunta muito vaga, não achas?

– Sim, penso que sim.

– Bom, então falemos de outra coisa – propus. – Lembras-te das coisas de que a tua mãe gostava?

– Sim, muito bem. Gostava do sol, dos passeios, dos banhos de mar, também gostava de ir ver os animais. Quando o tempo estava bom, saíamos muitas vezes. As pessoas da Cidade não dão passeios, sabias? Mas tu gostas de passear, não é verdade?

– Sim – respondi. – E também gosto de sol. E de brincadeiras na água. Lembras-te de mais qualquer coisa?

– Lembro-me de que, quando estava em casa, a minha mãe falava muitas vezes sozinha. Não sei se podemos considerar isto como uma coisa de que ela gostava ou não, mas, seja como for, ela costumava falar sozinha.

– Sobre quê?

– Não me lembro. Mas não era um monólogo normal. Não sei explicar bem, mas penso que, para a minha mãe, aquilo tinha um sentido especial.

– Especial?

– Sim. Modulava a voz de um modo muito estranho e prolongava ou cortava as palavras. Por vezes, a voz soava muito alta; outras vezes, era baixa como o soprar do vento.

Enquanto observava a caveira por baixo da mão dela, revi as minhas vagas recordações. Desta vez houve algo que me comoveu.

– Eram canções – disse.

– Também sabes falar daquela maneira?

– Não é falar. As canções cantam-se.

– Então, canta – pediu.

Respirei fundo e dispus-me a cantar qualquer coisa, mas não consegui recordar-me de uma única melodia. Todas as canções haviam abandonado a morada do meu corpo. Fechei os olhos e soltei um suspiro.

– Não consigo. Não me lembro de canções nenhumas.

– E o que seria necessário para te lembrares?

– Precisava de um disco e de um gira-discos. Não, aqui deve ser impossível. Então, um instrumento musical. Quando estivesse a tentar produzir sons com o instrumento, talvez acabasse por conseguir recordar-me de uma canção, pelo menos.

– E que feitio tem um instrumento musical?

– Há centenas de tipos de instrumentos; não é possível explicar-tos numa só palavra. Conforme o tipo, a maneira de os usar é diferente, e o som que produzem também. Alguns precisam de quatro homens para que os levantem, ao passo que outros cabem na palma da mão. Há uma variedade infinda, de todos os tamanhos e feitios.

Depois de ter dito isto, apercebi-me de que o fio da memória estava bem presente dentro de mim, mas que continuava emaranhado. Ou talvez estivesse tudo a desenrolar-se na direção certa.

– Talvez exista um objeto desses na sala de documentação lá do fundo. Não passa de uma sala atafulhada de bricabraque, de objetos de uma época antiga, e apenas lhe deitei uma olhadela. O que te parece irmos ali à procura?

– Vamos então ver. De qualquer maneira, acho que hoje não estou em condições de ler sonhos.

Atravessámos o amplo depósito onde estavam alinhadas todas as caveiras, passámos a outro corredor e abrimos uma porta com painéis quadrados de vidro fumado, com o mesmo formato dos vitrais da entrada. A maçaneta de cobre estava coberta de pó, mas a porta não se encontrava fechada à chave. Ela carregou num interruptor, e surgiu uma luz amarela, empoeirada, que iluminou uma divisão comprida e estreita. Nas paredes brancas alongavam-se as sombras dos objetos empilhados no chão.

Eram, na sua maioria, malas ou sacos. Por entre aquilo tudo, identificavam-se algumas máquinas de escrever dentro de caixas, ou raquetas de ténis e outros objetos deste tipo, mas eram bastante raros e mais de metade da divisão estava, de facto, ocupada por sacos de variados tamanhos e formas. Deviam ser perto de uma centena. Além do mais, todos os sacos estavam cobertos por uma camada de pó que quase se poderia dizer impenetrável. Ignorava as circunstâncias que tinham levado todos aqueles sacos até semelhante local; fosse como fosse, abri-los todos revelava-se uma tarefa complicada e exigiria muito tempo.

Agachei-me e levantei a tampa de uma máquina de escrever. No ar ergueu-se um remoinho de pó esbranquiçado, qual nuvem de neve pulverulenta a seguir a uma avalancha. Era um modelo antigo, com teclas redondas que a tornavam parecida com uma caixa registadora. Aparentava ter tido muito uso e a tinta preta estava a descamar em vários pontos.

– Sabes o que é isto?

– Não – respondeu, cruzando os braços, de pé ao meu lado. – Nunca vi nada parecido. É um instrumento de música?

– Não, é uma máquina de escrever. Serve para imprimir letras. É muito antiga.

Tornei a fechá-la e, a seguir, abri um cesto de vime, que estava ao lado. Continha um conjunto para piqueniques: facas, garfos, pratos, copos e uns guardanapos brancos já amarelecidos, tudo arrumado com esmero. Também isto pertencia a um tempo que já lá vai. Desde o aparecimento dos pratos de alumínio e dos copos de papel que ninguém carregava com trastes daqueles durante uma excursão.

Havia uma maleta de pele de porco cheia de roupa: vestidos, camisas, gravatas, peúgas, roupa interior. A maior parte das peças, comidas por traças, não passava de uma recordação. No meio das peças de vestuário estava guardado um estojo de toilette e uma garrafa de uísque. A escova de dentes e o pincel da barba tinham os pelos duros, e quando desarrolhei a garrafa de uísque já não saiu qualquer aroma. Não havia mais nada para além disto: nem um livro, documentos ou agenda, nada que falasse da vida ou da personalidade do proprietário.

Abri mais umas quantas malas de viagem. Tinham praticamente o mesmo: roupa e um mínimo de artigos, tudo enfiado à pressa num saco, num impulso; sugeriam preparativos de viagem precipitados. Dentro de cada saco faltava qualquer coisa que a pessoa usasse habitualmente, o que conferia ao conjunto uma impressão de artificialidade.

Até mesmo a roupa era anódina: nem elegante, nem miserável. Era certo que mostrava um estilo marcado por uma época, estação, sexo e idade do dono, mas nada transmitia uma impressão especial. A maior parte das peças estava estragada. E nenhuma tinha etiqueta. Parecia que alguém quisera tirar o nome e a personalidade a cada uma das maletas. Apenas restava um objeto anónimo, produto inevitável de qualquer época.

Abri cinco ou seis malas e desisti. Estava tudo demasiado sujo de pó e não me parecia que dentro de alguma existisse um instrumento musical. Fiquei com a impressão de que, se existia um instrumento musical em toda a cidade, não era ali que se encontrava, mas num sítio muito diferente.

– Vamos sair daqui – sugeri. – Todo este pó faz-me doer os olhos.

– Ficaste triste por não encontrar nenhum instrumento musical?

– Um pouco. Deixa, procurá-lo-emos noutro sítio – decidi.

* * *

Depois de a ter deixado, regressava sozinho à Colina Ocidental quando um vento forte começou a soprar nas minhas costas, como se viesse em minha perseguição, e o uivo agudo que produzia ao passar por entre as árvores parecia rasgar o céu. Virei-me e observei uma Lua pela metade pairando no céu, como um ponto por cima da Torre do Relógio, ao mesmo tempo que, à sua volta, desfilavam grandes nuvens negras. À luz da Lua, a superfície do Rio era de um negro tão intenso como o alcatrão.

O cachecol com um aspeto quentinho que encontrara numa das malas do arquivo veio-me à memória. Estava roído pelas traças, mas, enrolado ao pescoço, proteger-me-ia do frio. Disse para mim mesmo que, se perguntasse ao Guardião, obteria muitas respostas. Quem eram os proprietários daquelas malas? Podia usar o que continham? De pé, exposto ao vento sem sequer um cachecol, as orelhas doíam-me tanto que era como se estivessem a ser perfuradas por uma faca. Decidi ir no dia seguinte fazer uma visita ao Guardião. Também precisava de saber como estava a minha sombra.

Tornei a virar as costas à Cidade e trepei a encosta íngreme que me levaria até à Residência Oficial.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

23

Buracos. Sanguessugas. Torre

– Não é terramoto nenhum – disse a rapariga. – É muito mais terrível do que isso.

– O quê, por exemplo?

Respirou fundo como se estivesse prestes a dizer qualquer coisa, desistiu e abanou a cabeça.

– Não há tempo para explicações. Avança o mais rapidamente que conseguires. Só assim vamos conseguir escapar. Talvez a ferida te doa, mas morrer seria pior, não concordas?

– Talvez.

Sempre ligados um ao outro pela corda, lançámo-nos a correr pelo fosso, o mais depressa que conseguimos. A lanterna que ela levava na mão oscilava para cima e para baixo, projetando nas paredes altas desenhos em ziguezague que faziam lembrar as linhas de um gráfico. Nas minhas costas, o conteúdo da mochila saltava e entrechocava-se com estrépito. As latas de conserva, o cantil, a garrafa de uísque e tudo o resto. Se pudesse, ter-me-ia desembaraçado do que não fosse estritamente indispensável, mas não podia parar. Nem sequer tinha tempo para pensar na dor que sentia no baixo-ventre e concentrei-me exclusivamente no facto de ir a correr atrás dela. Nem se punha a hipótese de abrandar o passo, preso que estava pela corda que nos unia. A sua respiração entrecortada e o barulho dos objetos a chocarem dentro da minha mochila ouviam-se alto e bom som, mas depressa esse ruído foi abafado por um retumbar surdo da terra, de intensidade crescente.

Quanto mais avançávamos, mais o barulho ganhava força e nitidez. Na realidade, estávamos a correr a direito para a origem do som, já que este aumentava pouco a pouco de volume. Aquele rugido que, de início, parecia provir do centro da Terra, depressa se converteu numa espécie de estertor emitido por uma garganta gigantesca; parecia que o ar expulso pelos pulmões ficara preso nessa garganta, sem conseguir transformar-se em voz. E foi então que, muito próximo, escutámos o súbito estrondo de um bocado de rocha dura a partir-se e o chão começou a tremer em todas as direções. Ignorava o que era, mas algo sinistro avançava debaixo dos nossos pés e preparava-se para nos engolir a qualquer momento.

A ideia de que corríamos diretamente para a origem de todo aquele fragor dava-me calafrios, mas uma vez que a rapariga decidira tomar aquela direção, não me restava alternativa. Só podia avançar tão depressa quanto fosse capaz. Felizmente, o caminho era plano e liso como uma pista de bólingue, sem curvas ou obstáculos, o que nos permitia continuar a correr sem nos preocuparmos com nada.

Aquele ofegar estava cada vez mais próximo. Dir-se-ia que a coisa avançava às cegas para um objetivo bem definido, abalando brutalmente as trevas subterrâneas à sua passagem. De vez em quando também ouvíamos o estrondo de enormes rochas, como se fossem atiradas umas contra as outras por uma força colossal. Parecia que todas as forças que se escondiam nas trevas estavam em revolução, lutando desesperadamente para se libertarem do seu jugo.

O ruído durou uns instantes e parou, de repente. Houve uma breve pausa e, logo de seguida, o espaço ficou cheio de um estranho murmúrio, como se, ao mesmo tempo, mil anciãos inspirassem o ar pelos intervalos dos dentes. Só se ouvia aquele silvo. Os outros barulhos, o ofegar, o estrondo das rochas, o estrépito das pedras contra o solo, desapareceu tudo. Na escuridão só se ouvia aquele silvo dissonante do ar: fiiiuuu, fiiiuuu. Dir-se-ia que escutávamos a respiração calma e feliz de um animal a aproximar-se sorrateiramente da presa, juntando as forças, ou então infindáveis vermes subterrâneos prestes a fugir, assaltados por um qualquer pressentimento indistinto, estendendo e retraindo como acordeões os seus corpos repugnantes. Fosse como fosse, era um som terrível e maligno, um som que nunca antes escutara.

O que mais me assustava naquele ruído, o mais horripilante, era que, longe de nos rejeitar, parecia estar a convidar-nos aos dois. Eles sabiam que nos aproximávamos e esperavam-nos com os corações vibrando de júbilo. A este pensamento, fui assaltado por um terror imenso que me gelou o sangue. Não restavam dúvidas de que aquilo não era um terramoto. Tal como ela dissera, era algo muito pior. Só que eu não fazia a mínima ideia do que poderia ser. Já há um bom bocado que a situação ultrapassara os limites da minha imaginação, situando-se agora nas regiões mais secretas da minha consciência. Era incapaz de imaginar o que seria aquilo. Só me restavam forças para saltar, um atrás de outro, os fossos profundos, insondáveis mesmo, que se abriam entre a minha imaginação e as circunstâncias: mais valia continuar a fazer qualquer coisa – correr – do que ficar sem fazer nada.

Tinha a sensação de que corríamos há muito tempo, mas não estava capaz de o garantir. Tão depressa me parecia que tinham passado quatro ou cinco minutos, como trinta ou quarenta. O pânico e a confusão que a situação provocava haviam paralisado a minha noção do tempo. Por mais que corresse, não sentia cansaço algum e a dor da ferida escondera-se num escaninho da mente. Sentia uma estranha rigidez nos braços, mas era a única sensação física. Nem sequer tinha consciência de que estava a correr. As minhas pernas avançavam mecanicamente, golpeando o solo. Corria em frente sem parar como se fosse empurrado por trás por uma densa massa de ar.

Naquele instante, eu não o sabia, mas penso que a rigidez dos braços tinha origem nos ouvidos. Ao concentrar todos os meus nervos naquele silvo pavoroso, retesava inconscientemente os músculos das orelhas e a rigidez dos ombros espalhava-se-me pelos braços. Dei-me conta disto quando choquei com força contra o ombro da rapariga, fazendo-a cair no chão e tombando, logo após, por cima dela, de cabeça. Não consegui ouvir os gritos de advertência que me lançara. A certa altura, pensei ter escutado qualquer coisa, mas os circuitos que ligam os ruídos captados pelos ouvidos à capacidade de os dotar de sentido estavam bloqueados, pelo que não percebi que eram um aviso.

A primeira coisa que me ocorreu no instante em que choquei com a cabeça no chão foi que eu havia regulado de forma inconsciente a minha perceção auditiva. Exatamente como se tivesse cortado o som!, disse para com os meus botões. Numa situação-limite, a consciência humana faz despertar faculdades tão estranhas quanto diversas. Por outras palavras, passo a passo, eu avançava no sentido da evolução.

O que senti logo a seguir – seria mais correto falar de encadeamento de cenas cinematográficas – foi uma dor excruciante dos dois lados da cabeça. À frente dos meus olhos, as trevas rasgaram-se em mil pedaços, o tempo deteve-se, fiquei com a sensação de que o meu corpo estava preso numa distorção espaciotemporal. A dor era tão violenta que pensei que o meu crânio se tinha fendido, estilhaçado ou desfeito. Ou que talvez o meu cérebro tivesse sido projetado para fora. O que significava que já devia estar morto e que apenas a minha consciência se retorcia de dor ao reviver uma recordação fragmentária, como a ponta cortada da cauda de uma lagartixa.

No entanto, passado aquele instante, percebi que continuava vivo. Estava vivo e respirava, e era por isso que sentia aquela dor infernal. Notei que as lágrimas me subiam aos olhos e corriam pelo rosto. Rebolavam pelas minhas faces, caíam sobre o solo rochoso, escorriam-me até aos lábios. Jamais sentira uma dor de cabeça tão indescritível.

Pensei que ia desmaiar, mas algo me manteve preso ao mundo das trevas e do sofrimento. Era um fragmento de uma memória indistinta dizendo-me que, naquele instante, eu estava prestes a fazer algo importante. Sim... eu estava a fazer qualquer coisa. Corria, tropeçava e caía. Fugia. Não podia ficar ali inconsciente. Não passava de uma vaguíssima recordação, tão indefinida que dava pena, mas agarrava-me a ela com unhas e dentes.

Estava, realmente, aferrado a ela. Todavia, pouco depois, à medida que recuperava a consciência, apercebi-me de que não estava a agarrar-me a um simples fragmento de memória. Agarrava-me a uma corda de náilon. Por um instante, vi-me convertido numa pesada peça de roupa, a ondular ao vento. Esforcei-me por fazer o meu papel de roupa estendida a secar, ao mesmo tempo que o vento, a gravidade e outras forças tentavam derrubar-me. Como me viera tal imagem à cabeça? Nem sequer percebia. Ganhara talvez o hábito de procurar analogias e dar formas concretas às circunstâncias em que me encontrava.

Logo a seguir, apercebi-me de algo muito real: as metades superior e inferior do meu corpo estavam em situações muito diferentes. Mais precisamente, não sentia quase nada da cintura para baixo, ao passo que controlava na perfeição as sensações da metade superior. Doía-me a cabeça, as faces, e os lábios estavam gelados e sentiam a dureza da rocha contra a qual se comprimiam, as mãos seguravam a corda com firmeza, tinha o estômago praticamente na garganta e o peito preso numa saliência. Até ali, percebia tudo o que se passava, mas na metade inferior não fazia a mínima ideia dos acontecimentos.

Talvez a parte inferior do meu corpo tivesse desaparecido?

Com o choque que me atirara para o chão, o meu corpo ter-se-ia dividido em dois no local da ferida, e a metade inferior teria sido projetada para qualquer sítio. As minhas pernas!, pensei, as pontas dos pés, o ventre, o pénis, os testículos, o meu... Não, vendo bem, aquilo não tinha lógica. Mesmo que tivesse perdido toda a metade inferior do corpo, o meu sofrimento não acabava ali.

Tentei analisar friamente a situação. A parte de baixo do meu corpo existia, e isto devia-se apenas à circunstância de não conseguir senti-la. Fechei os olhos, esperei que sucessivas vagas de dor passassem e concentrei-me totalmente na minha metade inferior. O esforço de concentração naquela zona, tão falha de sensibilidade que me levara ao ponto de questionar a sua existência, era equivalente ao que havia feito umas horas antes para conseguir a ereção que o meu pénis se recusara a ter. Era como empurrar o vazio com todas as forças.

Foi então que me lembrei da rapariga de cabelo comprido e barriga dilatada que trabalhava na biblioteca. Perguntei-me por que diabo não teria conseguido a ereção quando me deitara com ela. Fora a partir daquele momento que as coisas tinham começado a deteriorar-se. Mas não podia ficar a pensar nisso para sempre. O uso eficaz do pénis não é o único objetivo da vida humana. Pelo menos tinha chegado a essa conclusão há muitos anos, quando lera A Cartuxa de Parma, de Stendhal. Afastei da minha mente toda e qualquer ideia relacionada com a ereção.

A metade inferior do meu corpo parecia estar numa situação ambígua. Como se estivesse suspensa no ar e... sim, era isso. A metade inferior do meu corpo pendia da borda do solo rochoso, enquanto a metade superior se esforçava por impedir, com grande dificuldade, que eu caísse no fundo do abismo. Por isso me agarrava à corda com todas as forças.

Abri os olhos e fiquei encandeado por uma luz brilhante. A rapariga gorda tinha virado o feixe da sua lanterna para os meus olhos.

Agarrando-me com unhas e dentes à corda, tentei alçar a parte inferior do corpo para o chão rochoso.

– Depressa! – gritou-me. – Se não nos apressarmos, não saímos desta com vida.

Esforcei-me por passar os pés para cima da rocha, mas foi mais difícil do que pensava. Não tinha qualquer ponto de apoio, mesmo que conseguisse içá-los. Não tive outro remédio senão largar a corda e apoiar os cotovelos no chão para conseguir alçar o corpo todo, como se fora um peso morto. Pesava uma tonelada e o solo resvalava como se estivesse coberto de sangue. Não sabia por que razão estava assim, porém, não havia tempo a perder com tais preocupações. A ferida no abdómen, a roçar na rocha, doía-me como se tivessem acabado de me ferir com a navalha. Sentia-me como se fora espezinhado com violência. Alguém quisera destruir-me, reduzir o meu corpo, a minha consciência, todo o meu ser a pó.

Contudo, estava a ser capaz de alçar o meu corpo, centímetro a centímetro. No instante em que o meu cinto entrou em contacto com a rocha, dei-me conta de que a corda que tinha atada à cintura me puxava para a frente. Mas, em vez de me ajudar, fazia aumentar a dor da ferida e bloqueava-me a concentração.

– Não puxes a corda! – gritei na direção da luz. – Eu subo sozinho, escusas de puxar!

– Consegues?

– Sim, está quase.

Com a fivela do cinto presa na superfície rochosa, reuni todas as minhas forças para passar uma perna para cima, e acabei por conseguir sair daquele poço negro, que não tinha nada que estar ali. Depois de me perguntar se estava bem, ela aproximou-se de mim e apalpou-me o corpo com ambas as mãos para verificar que estava inteiro.

– Lamento não ter conseguido ajudar-te com a corda – disse. – Tive de me agarrar muito bem à rocha para evitar que caíssemos os dois pelo buraco.

– Não faz mal. Porque é que não me avisaste de que havia um buraco?

– Não tive tempo. Foi por isso que te gritei para parares.

– Não ouvi.

– Seja lá como for, temos de sair daqui na bisga – disse a jovem roliça. – Nesta zona há muitos buracos e temos de avançar com cuidado. No fim disto já fica a faltar muito pouco. Se não nos despacharmos, sugam-nos o sangue até adormecermos e morrermos.

– Sugam-nos o sangue?!

Dirigiu a lanterna para o interior do buraco onde quase caíra. A boca do poço, um círculo tão perfeito que parecia ter sido desenhado a compasso, media cerca de um metro de diâmetro. Quando varreu a zona circundante com a luz, vi que no chão se sucediam vários buracos do mesmo tamanho, até onde a vista alcançava. Pareciam favos enormes.

As paredes que flanqueavam o caminho tinham desaparecido, e perante os nossos olhos estendia-se uma planície rochosa, cheia de incontáveis furos. Adivinhava-se um caminho por entre os buracos. Era uma passagem perigosa, com um metro e meio nos pontos mais largos e cerca de trinta centímetros nos mais estreitos, mas, com cuidado, era possível percorrê-la.

O problema é que parecia haver algo que tremia e se retorcia no chão. Era um espetáculo fascinante. Dava a sensação de que o solo rochoso, ao invés de ser firme e duro, oscilava e serpenteava como areia movediça. Ao princípio pensei que o forte golpe que levara na cabeça me afetara o nervo ótico. Por isso, iluminei a minha mão com a lanterna. Não oscilava nem serpenteava. Era a minha mão de sempre. O que significava que o nervo ótico não sofrera danos. O chão é que se movia.

– Sanguessugas – explicou. – Uma legião de sanguessugas que rastejaram para fora do buraco. Se nos deixarmos ficar por aqui, chupam-nos o sangue todo e acabaremos como crisálidas vazias.

– Bem, mas que sítio! – exclamei. – Era isto a coisa terrível de que falavas?

– Que ideia! As sanguessugas não passam de um preâmbulo. O horror vem depois. Anda, despacha-te!

Ainda presos um ao outro pela corda, pisámos o chão coberto de sanguessugas. Pelas minhas pernas, até às costas, subia a sensação viscosa das minhas solas de borracha a esmagarem inúmeras sanguessugas.

– Toma cuidado e não tropeces! Se cais dentro de um buraco, és um homem morto. Estão a abarrotar destes bichos.

Agarrou-me com força pelo cotovelo, e eu fechei a mão sobre a manga do casaco dela. Avançar no meio da escuridão por uma placa rochosa com trinta centímetros de largura, viscosa e escorregadia, era verdadeiramente complicado. Os cadáveres moles das sanguessugas que esmagávamos com os pés colavam-se às nossas solas como uma geleia espessa que nos impedia a firmeza do passo.

Sentia agora com clareza as sanguessugas, que, quando caíra, se haviam colado à minha roupa e me chupavam o sangue das orelhas e da nuca, mas não conseguia livrar-me delas. Tinha a lanterna na mão esquerda e com a direita agarrava o casaco da rapariga, e não podia largar nem uma coisa nem outra. Como caminhava com a luz apontada para o chão, e por mais que tal me repugnasse, via-me obrigado a manter os olhos cravados naquela imensidade de sanguessugas. Eram tantas que davam vertigens. E dos buracos continuava a jorrar um número infinito daqueles bichos.

– Devem ser os buracos para onde os antigos Invisíveis atiravam as vítimas dos sacrifícios – conjeturei.

– Certo! Saíste-me cá um espertalhão! – disse.

– Até aí, consigo alcançar – respondi.

– Acreditavam que as sanguessugas eram as mensageiras do peixe de que te falei. Numa palavra: subalternas. Por isso também a elas ofereciam sacrifícios. Vítimas frescas, carnudas e cheias de sangue. Regra geral, os sacrificados eram seres humanos capturados à superfície.

– E essas práticas já desapareceram?

– Pelos vistos, sim. O meu avô disse-me que agora são eles que comem a carne das pessoas e que ao peixe e às sanguessugas apenas oferecem a cabeça decapitada como oferenda simbólica. Em todo o caso, desde que este lugar se converteu num santuário, nunca mais ninguém cá pôs os pés.

Ultrapassámos um incontável número de poços, esmagando dezenas de milhares de sanguessugas debaixo dos pés. Numa ou noutra ocasião, ambos escorregámos, mas amparámo-nos, eu a ela e ela a mim, evitando a queda.

Aquele silvo desagradável provinha do interior dos negros poços. Estendia os seus tentáculos até nós, envolvendo-nos totalmente como as árvores de um bosque, durante a noite. Prestando atenção, percebia-se o «fiiiuuu, fiiiuuu», como uma legião de decapitados, esforçando-se por implorar alguma coisa, mas cujas gargantas cortadas só logram emitir um silvo.

– Estamos perto da água – disse. – As sanguessugas não passam de um preâmbulo. Quando desaparecerem, chegará a água. Correrá a jorros do interior dos poços e toda esta zona se transformará num lamaçal. As sanguessugas sabem-no, e é por isso que correm para fora dos poços. Temos de chegar ao altar antes que a água suba.

– Com que então, já sabias de tudo... Porque é que não disseste nada antes?

– Em boa verdade, não tinha realmente a certeza. A água não sobe todos os dias; acontece apenas duas ou três vezes por mês. Quem podia imaginar que seria precisamente hoje?

– Estamos tramados! É uma desgraça atrás da outra! – Acabara de pôr em palavras o que vinha a pensar desde a manhã.

Prosseguimos a marcha, contornando os poços com grandes cuidados. Contudo, por mais que avançássemos, os buracos não tinham fim. Talvez continuassem infinitamente até aos confins da terra. Tínhamos tantas sanguessugas agarradas à sola dos sapatos que quase não sentíamos o chão debaixo dos pés. Ao dar um passo atrás de outro com uma concentração extrema, a cabeça acabava por ficar entorpecida e cada vez era mais difícil manter o equilíbrio. Em situações-limite, as capacidades físicas aumentam, mas a capacidade de concentração é muito mais limitada do que se possa julgar. Seja qual for a situação crítica em que nos encontramos, se esta se prolonga sem alterações, inevitavelmente, a atenção decai. À medida que o tempo decorre, torna-se cada vez mais difícil reconhecer a situação crítica, diminui a capacidade de concebermos a própria morte, e o vazio apodera-se da consciência.

– Ânimo! – incitou-me. – Mais um pouco e chegamos a um lugar seguro.

Como estava com preguiça de abrir a boca, limitei-me a acenar com a cabeça. Mas apercebi-me logo de que, naquela escuridão, era um gesto sem o menor sentido.

– Estás a ouvir-me? – inquietou-se. – Está tudo bem?

– Sim, tem calma. Estou agoniado – respondi.

Já há algum tempo que sentia vontade de vomitar. A legião de sanguessugas contorcendo-se no chão, o fedor que se desprendia delas, o líquido viscoso dos seus corpos, aquele silvo sinistro, a escuridão, a fadiga e a falta de sono conjugavam-se para me apertar o estômago com um anel de ferro. E os sucos gástricos, que fediam a vómito, subiam-me do esófago até à parte de trás da língua. Parecia que a minha capacidade de concentração se aproximava do limite. Era como se tocasse um piano, com apenas três oitavas e que não era afinado há cinco anos. Há quantas horas vagueávamos na escuridão? Que horas seriam no mundo exterior? Haveria sol? Já andariam a distribuir os jornais?

Nem sequer podia deitar uma olhadela ao meu relógio. Conjugava todos os meus esforços para levantar um pé atrás do outro, enquanto iluminava o chão com a lanterna. Queria ver o céu do amanhecer ganhar progressivamente uma cor esbranquiçada, beber um copo de leite, sentir o cheiro do bosque pela manhã, folhear um matutino. Estava farto da escuridão, das sanguessugas, dos buracos, dos Invisíveis. Todas as vísceras, todos os músculos, todas as células do meu corpo precisavam de luz. Por mais débil que fosse. Conformar-me-ia com um miserável raio de luz, mas que fosse de luz autêntica, não da luz de uma lanterna.

Enquanto pensava em luz, o meu estômago contraiu-se e a minha boca encheu-se de um hálito fedorento. Um odor que evocava uma piza de salame estragado.

– Aguenta mais um bocado. Quando sairmos daqui, poderás vomitar à vontade – disse ela, aumentando a pressão no meu cotovelo.

– Não vou vomitar – murmurei por entre dentes cerrados.

– Acredita em mim! Vamos safar-nos. É verdade que tivemos pouca sorte, mas isto vai acabar de um momento para o outro. Não pode durar eternamente.

– Acredito – balbuciei.

Ainda assim, estava com a impressão de que os buracos se sucediam infinitamente. E até cheguei a pensar que passávamos, uma e outra vez, pelo mesmo local. Tornei a evocar a edição da manhã, acabada de imprimir, de um jornal. Um jornal tão recente que a tinta ainda se agarrava às pontas dos dedos. Muito grosso, com cadernos publicitários, porque é sabido que na edição da manhã há de tudo. Tudo o que esteja relacionado com a vida à superfície. Tudo. Desde a hora a que o primeiro-ministro se levanta, ao estado do mercado de valores ou o suicídio de toda uma família, até receitas de cozinha, o comprimento das saias, as críticas das novidades literárias e os anúncios das imobiliárias.

O problema é que eu não assinava nenhum. Três anos antes, abandonara o hábito de ler jornais. Não era capaz de explicar porquê, mas tinha deixado de os ler. Talvez porque a minha vida tivesse seguido um rumo sem ligações às emissões televisivas ou aos artigos da imprensa. O meu único elo de ligação à sociedade consistia em processar na minha cabeça os números que me forneciam, convertê-los numa forma diferente e devolvê-los; o resto do tempo, passava-o sozinho a ler romances antiquados, vendo velhos filmes de Hollywood e bebendo cerveja ou uísque. Não tinha necessidade de folhear os jornais.

Mas mergulhado naquelas trevas absurdas, desprovidas de toda a luz, rodeado por um número incontável de poços e sanguessugas, fui assaltado por um desejo louco de ler a edição matinal de um periódico. Sentar-me num lugar qualquer com sol e corrê-lo de uma ponta à outra, sem omitir uma única letra, como um gato perante um pires de leite. Absorver os vários fragmentos da vida que as pessoas viviam sob o sol e embeber cada uma das células do meu corpo da sua luz.

– Chegámos! Já vejo o altar! – exclamou a moça gordita.

Tentei erguer os olhos, mas os pés escorregavam-me e tinha dificuldade em levantar a cabeça. O altar podia ter a cor ou o formato que quisesse; não me interessava. A única coisa que me interessava era alcançá-lo o mais depressa possível. Fiz um último esforço de concentração e avancei com o maior cuidado.

– Mais dez metros e chegamos.

No preciso instante em que ela proferiu estas palavras, o ruído do silvo – fiiiuuu, fiiiuuu –, que subia do fundo dos poços, cessou repentinamente. Acabou de uma forma tão brusca e antinatural que parecia que alguém, no centro da Terra, tinha pegado numa enorme foice de lâmina bem aguçada e, de um golpe, cortara o som. Aquele silvo áspero, que vinha das profundezas depois de exercer uma enorme pressão sobre a terra, cessou sem aviso prévio, sem eco. Mais do que emudecer o silvo, criou a sensação de que o próprio espaço que o compreendia desaparecera por completo. Foi tão repentino que perdi o equilíbrio e estive à beira de cair.

Um silêncio tão inescrutável, que fazia mal aos ouvidos, estendeu-se sobre toda a zona. A aparição súbita deste silêncio total, no meio das trevas, era ainda mais sinistra do que o desagradável ruído anterior. Face a um som, seja ele qual for, é possível assumir uma determinada postura. Mas o silêncio é zero, é nada. Cercava-nos e, para cúmulo, não existia. Notei que qualquer coisa me oprimia por dentro no fundo dos ouvidos, como se a pressão atmosférica tivesse mudado. Os músculos das orelhas, incapazes de se adaptar à variação brusca, aguçaram a sua capacidade auditiva para captar qualquer sinal que surgisse por entre o silêncio.

Contudo, o silêncio era absoluto. Uma vez terminado, o silvo não recomeçou. Tanto ela como eu permanecemos imóveis, aguçando o ouvido no vazio. Para aliviar a opressão que sentia nos ouvidos, engoli saliva, mas em vão o fiz: limitei-me a conseguir que um som amplificado artificialmente, parecido com o que faz a agulha do gira-discos quando roça na borda do prato, ressoasse dentro da minha cabeça.

– A água já recuou? – perguntei.

– Não. Dentro de pouco tempo vai começar a jorrar – respondeu-me. – Aquele silvo, que ainda agora ouvíamos, era o som do ar acumulado nos canais tortuosos a ser expulso pela pressão exercida pela água. E agora que todo o ar já saiu, não há qualquer obstáculo à passagem da água.

A jovem tomou-me a mão e, juntos, ultrapassámos os derradeiros buracos. Talvez não passasse de impressão minha, mas podia jurar que havia menos sanguessugas pululando no solo rochoso. Depois de passar por mais cinco ou seis buracos, entrámos de novo numa plataforma vazia. Ali não havia nem buracos nem sanguessugas. Os bichos deviam ter fugido na direção oposta. Conseguira superar o pior. Pois, mesmo supondo que morria engolido pelas águas, tal seria mil vezes preferível a morrer por cair dentro de um poço cheio de sanguessugas.

Sem ter plena consciência do que fazia, larguei-lhe a mão para me libertar das sanguessugas que se me agarravam à nuca, mas a rapariga gorducha prendeu-me o braço e impediu-me de o fazer.

– Deixa isso para mais tarde. Se não subirmos já à torre, afogamo-nos – apressou-me, mantendo o passo rápido sem me soltar o braço. – Não são cinco ou seis sanguessugas que te vão matar. Além do mais, se as tirares à bruta, arrancas um bocado da pele. Não sabias?

– Não, não sabia – respondi. – Sou tão burro quanto um peso de chumbo amarrado às boias luminosas num canal.

Vinte ou trinta passos mais à frente, ela fez-me parar e, com a grande lanterna que levava na mão, iluminou uma enorme «torre», como lhe tinha chamado, ali, perante os nossos olhos. A «torre» tinha a forma de um cilindro que se erguia a direito, apontando para as trevas. Parecia um farol, mas, à medida que ganhava altura, ia ficando mais estreita, e tornava-se impossível perceber o seu tamanho exato. Era demasiado alta para a conseguirmos iluminar por inteiro e ter uma imagem global, além de que não dispúnhamos de tempo para o fazer. A jovem limitou-se a varrer brevemente a superfície da torre com a luz da lanterna e, sem dizer uma palavra, logo correu para ela e começou a subir a escada. Claro que a segui sem perder tempo.

Vista de baixo e a uma luz insuficiente, a «torre» fazia pensar num monumento magnífico e precioso, em cuja realização tivessem sido utilizadas admiráveis técnicas de arquitetura e uma quantidade de tempo colossal, mas quando me aproximei e lhe toquei, dei-me conta de que não passava de uma simples massa rochosa, tosca e informe. Um mero produto acidental da erosão.

Em torno da massa rochosa, os Invisíveis haviam construído uma escada – se é que se podia chamar escada a algo assim rudimentar – em espiral. Irregular, com degraus tão exíguos que apenas permitiam apoiar o pé, faltando alguns aqui e ali. Quando falhava um degrau, apoiávamos o pé numa saliência da rocha próxima, mas como não podíamos agarrar-nos às rochas com as duas mãos para não cairmos, tornava-se impossível alumiar os degraus à medida que avançávamos, e nisto, com frequência, ao pisar um hipotético degrau, púnhamos o pé no vazio. A escada podia ser útil aos Invisíveis, que viam no escuro, mas para nós, além de uma tortura, representava mais um perigo iminente. Víamo-nos forçados a subir com suma atenção, degrau a degrau, colados à parede rochosa como dois lagartos.

Já tinha subido trinta e seis degraus – tenho a mania de os contar à medida que vou subindo escadas –, quando chegou até nós um ruído estranho, vindo das trevas. Como se alguém tivesse atirado um grande pedaço de rosbife contra uma parede lisa. Um som plano e húmido, cheio de energia. Depois fez-se silêncio. Um instante mudo e sinistro. Agarrado a uma saliência com ambas as mãos, esmagado contra a parede de rocha, esperei que aparecesse qualquer coisa.

Foi então que se ouviu o inconfundível fragor da água. O som da água a jorrar, ao mesmo tempo, dos inúmeros poços por que havíamos passado. Não se tratava de uma quantidade de água insignificante. Lembrei-me de uma reportagem sobre a inauguração de uma barragem num noticiário, que vi quando era aluno da primária. O governante, com um capacete na cabeça, carregou no botão de uma máquina, as comportas abriram-se e um enorme jato de água saiu disparado, para longe, para o vazio, acompanhado de uma nuvem de água pulverizada e de um estrondo pavoroso. Foi na época em que, no cinema, ainda passavam as notícias e os desenhos animados. Enquanto observava as imagens, pensei no que sucederia se, por uma razão qualquer, eu estivesse por baixo daquela barragem que vomitava uma quantidade tão gigantesca de água, e o meu coração infantil encheu-se de terror. Não podia imaginar que, um quarto de século mais tarde, me encontraria numa situação parecida. As crianças têm tendência para pensar que, no extremo, uma espécie de poder sagrado os livrará de todos os perigos possíveis que o mundo lhes puser no caminho. Pelo menos era assim que eu pensava quando era miúdo.

– A água vai subir até onde? – perguntei à rapariga, que ia três degraus à minha frente.

– Até bastante alto – foi a resposta sucinta. – Se queremos salvar-nos, temos de subir muito mais. Ao topo não chega, tenho a certeza. É tudo o que sei.

– E quantos degraus faltam?

– Muitos – respondeu.

Bela resposta! Não me restava outro remédio senão recorrer à minha imaginação.

Continuámos a subir a escada de caracol tão depressa quanto éramos capazes. A avaliar pelo rumor da água, a «torre» a que estávamos agarrados erguia-se no centro de uma plataforma deserta, cercada por todos os lados de buracos cheios de sanguessugas. Em resumo: estávamos encalhados numa espécie de mastro que se erguia no meio dos jatos de água. E se a rapariga não estivesse errada, aquele espaço vazio que fazia lembrar uma praça inundar-se-ia como um pântano, e no centro só ficaria, como se fosse uma ilha, o topo da «torre».

A lanterna, que levava a tiracolo presa por uma correia, oscilava de forma irregular contra as suas costas e o feixe de luz desenhava criaturas fantasmagóricas na escuridão. Continuei a subir, tomando essa luz como meta. Já perdera a conta aos degraus que subira, mas deviam ter sido uns cento e cinquenta, talvez duzentos. No início, o jorro de água elevara-se e caíra, precipitando-se no solo de rocha com um estrépito ensurdecedor; pouco depois, o barulho transformara-se no rugido de uma torrente a cair numa catarata e, entretanto, convertera-se num gorgolejar, como se o tivessem abafado com uma tampa. Era indubitável que o nível da água estava a subir. Como não se via nada abaixo dos nossos pés, era impossível perceber até onde chegara, mas pensei que não seria estranho se, de um momento para o outro, a água me chegasse aos calcanhares.

Sentia-me no meio de um pesadelo. Algo me perseguia, mas eu era incapaz de avançar depressa, e esse algo vinha mesmo atrás de mim e estava prestes a agarrar-me pelos tornozelos com umas mãos escorregadias. Como sonho, era espantoso, mas tratando-se da realidade, era muito pior. Decidi ignorar os degraus; agarrei-me à rocha com ambas as mãos e subi, içando o meu corpo suspenso no vazio.

Não teria sido melhor deixarmo-nos ficar a flutuar sobre a água até que esta nos levasse ao topo? A ideia ocorreu-me de repente. Seria mais sensato; acima de tudo, não corríamos o risco de cair. Durante um bocado, remoí a ideia, avaliando-a, e a verdade era que, sendo uma das minhas, não estava nada mal. Decidi transmiti-la à rapariga.

– Impossível – respondeu ela de imediato. – Por baixo da superfície da água há correntes turbulentas e fortíssimas. Se fôssemos apanhados num remoinho, de pouco nos serviria nadar. Nunca conseguiríamos subir à superfície, e mesmo que conseguíssemos, no meio da escuridão não saberíamos para onde ir.

Posto isto, e por mais que me exasperasse, não tinha outro remédio senão continuar a subir aqueles irritantes degraus, um atrás do outro. De vez em quando, o rumor da água diminuía, como um motor que abrandasse gradualmente de velocidade, até que se converteu num gemido surdo. O nível da água subia incessantemente. Se ao menos houvesse um fiozinho de luz de verdade!, disse para os meus botões. Por mais débil que fosse, com um pouco de luz natural faríamos a subida sem problemas e saberíamos até onde chegava a água. Eu não me sentiria invadido pelo pânico característico de um pesadelo, de não saber em que instante iria ser agarrado pelos tornozelos. Aquela escuridão enchia-me de um terror insondável e frio.

Na minha cabeça, aquele filme do noticiário continuava a passar. No ecrã, a enorme parede da barragem continuava a despejar incessantemente um jorro de água, que caía na bacia por baixo. Insistente, a câmara mostrava imagens de ângulos variados. De cima, de frente, de um lado, a lente brincava com o jato de água como se o lambesse. A sombra do enorme jorro projetava-se na parede de betão da barragem. Como se fosse a própria água, as sombras dançavam nas paredes brancas e lisas. Com os olhos cravados na tela do cinema, a sombra da água converteu-se na minha sombra, que dançava agora na parede curva da barragem. Sentado na cadeira do cinema, não conseguia tirar os olhos dela. Logo a seguir, apercebi-me de que era a minha sombra que ali dançava, mas eu era apenas mais um espectador na sala, não sabia o que fazer. Não passava de um impotente boneco de neve com nove ou dez anos. Talvez devesse precipitar-me para o ecrã e agarrar a minha sombra, ou irromper na sala de projeção e apoderar-me do filme. Contudo, não era capaz de determinar se seria lícito agir daquela forma. Portanto, não disse nada e limitei-me a permanecer imóvel, com os olhos cravados na minha sombra.

Ela continuou a bailar incessantemente à frente dos meus olhos. Serpenteava em silêncio, desenhando formas irregulares, como uma paisagem longínqua que vacila por entre a bruma. A minha sombra não podia falar e, pelos vistos, também não conseguia transmitir-me fosse o que fosse por sinais. Contudo, era óbvio que estava a esforçar-se por me dizer qualquer coisa. Sabia que eu estava ali sentado, a olhar para ela. Mas sentia-se tão impotente quanto eu, porque não passava de uma sombra.

Nenhum outro espectador se deu conta de que a sombra do jato de água que se refletia na parede da barragem era, na realidade, a minha. Ao meu lado estava sentado o meu irmão mais velho, mas ele também não se deu conta. Apercebendo-se, ter-me-ia sussurrado qualquer coisa ao ouvido. O meu irmão costumava falar e fazer barulho no cinema, sempre a comentar isto e aquilo.

E eu também não lhe disse que era a minha sombra; estava com a impressão de que não iria acreditar em mim. Além do mais, parecia-me que a sombra me queria transmitir uma mensagem só a mim. Queria contar-me qualquer coisa de outro lugar e outro tempo usando o ecrã do cinema.

Sobre a parede de betão arredondada, a minha sombra estava sozinha, abandonada por todos. Não sabia como tinha conseguido chegar até ali, tão-pouco o que tencionava fazer a seguir. Dentro em breve escureceria e ela seria engolida pelas trevas. Ou talvez, quem sabe?, arrastada pela corrente rápida, chegaria até ao mar, e aí voltaria a ser a minha sombra e a agir como tal. A ideia encheu-me de uma tristeza imensa.

Pouco depois, a notícia sobre a barragem chegou ao fim e, no ecrã, noticiaram a coroação do rei de um país qualquer. Uma carruagem bonita, puxada por cavalos empenachados, atravessava uma praça calcetada. Procurei a minha sombra no chão, mas apenas encontrei as dos cavalos, da carruagem e dos edifícios.

As minhas recordações terminavam aqui, mas eu não podia garantir ter realmente vivido tudo aquilo no passado. Porque, até àquele momento, estas recordações distantes nunca me tinham vindo à cabeça uma única vez. Talvez tudo não passasse de uma cena criada pela minha mente ao ouvir o rumor da água no meio daquela escuridão anormal. Algum tempo antes, lera um livro de psicologia que descrevia estes mecanismos mentais. Pelos vistos, em situações extremas, por vezes o ser humano constrói ilusões mentais para se defender de uma realidade adversa. Era, pelo menos, o que defendia o psicólogo. Não obstante, as imagens que acabara de visualizar eram demasiado precisas, demasiado vívidas e estavam ligadas à minha existência por laços demasiado fortes para tudo aquilo não passar de uma ilusão criada pela minha mente. Conseguia recordar com nitidez os odores e os sons que me rodeavam naqueles momentos. Era capaz de perceber o desconcerto do meu coração, bem como a confusão e o terror indefinido que me haviam assaltado aos nove ou dez anos. Estava convicto de que tudo aquilo me tinha realmente acontecido. Alguma força o enterrara bem no fundo da minha consciência e, naqueles instantes, confrontado com uma situação extrema, a tampa saltara e as recordações tinham vindo à superfície.

Em virtude de que força?

A operação ao cérebro a que fora submetido para poder realizar o shuffling estava certamente na origem de tudo isto. Não tinha a menor dúvida. Haviam fechado as minhas recordações dentro dos muros da consciência. A memória fora-me roubada durante bastante tempo.

Enfureci-me com esta ideia. Ninguém tinha o direito de me arrebatar as recordações. Era a minha história. Roubar a memória a alguém era o mesmo que roubar-lhe a vida. À medida que a minha zanga foi aumentando, esqueci-me do medo. Hei de sobreviver, dê lá por onde der, decidi. Sobreviverei. Vou sair deste louco mundo de trevas e recuperarei todas as recordações que me roubaram. Chegue ou não o fim do mundo, renascerei como um ser completo.

– Uma corda! – gritou a jovem, de repente.

– Uma corda?

– Olha! Vem depressa! Está aqui uma corda pendurada!

Subi a toda a pressa três ou quatro degraus, cheguei junto dela e apalpei a parede. De facto, havia ali uma corda. Uma corda forte de alpinismo, não muito grossa, e cuja extremidade pendia à altura do meu peito. Com mil cuidados, agarrei-a com uma mão e puxei-a, cada vez com mais força. A julgar pela resistência que oferecia, devia estar firmemente presa a algo.

– De certeza que isto é obra do meu avô! – gritou a rapariga. – Deixou-a cair para nós.

– Pelo sim, pelo não, vamos dar outra volta – sugeri.

Contornámos de novo a torre, pisando com cuidado os degraus debaixo dos nossos pés. A corda continuava pendurada no mesmo lugar. A intervalos de cerca de trinta centímetros, tinham sido formados nós para que pudéssemos apoiar os pés. Se fosse assim até ao topo da «torre», poupar-nos-ia muito tempo.

– Tenho a certeza de que foi o meu avô. Está sempre atento aos pormenores.

– Estou a ver que sim – disse eu. – Sabes trepar a uma corda?

– Claro! – retorquiu a jovem gordita. – Desde pequena que sou ótima a trepar. Não te tinha contado?

– Então, sobe tu primeiro. Quando chegares lá acima, vira a luz da lanterna cá para baixo, e eu subo então.

– Mas, entretanto, a água vai chegar aqui. Não seria melhor subirmos os dois ao mesmo tempo?

– No alpinismo, a regra é uma pessoa por corda. Primeiro que tudo, há que ter em conta a resistência da corda e, depois, é mais complicado subirem dois do que subir um, e leva-se mais tempo. Por outro lado, mesmo que a água chegue, agarrado à corda poderei continuar a subir.

– És mais valente do que pareces, sabias? – disse-me.

Permaneci imóvel na escuridão. Pensei que talvez voltasse a beijar-me, mas ela começou a trepar com agilidade pela corda, sem se preocupar comigo. Agarrado à rocha com ambas as mãos, fiquei a observar a subida daquela luz, vendo como oscilava, soltando clarões ao acaso. A cena fazia lembrar uma alma embriagada, que ascendia, cambaleante, ao céu. Enquanto a contemplava, fui assaltado por um tremendo desejo de tomar um uísque, mas a garrafa estava dentro da mochila que levava às costas e, numa posição tão periclitante, torcer-me, soltar a mochila e tirar a garrafa era, fosse qual fosse o ponto de vista, impossível. Ignorei a vontade que me assaltara e, em vez disso, decidi reproduzir na minha mente o instante em que tomava um uísque. Um bar tranquilo e limpo, uma taça de amendoins, «Vendôme», pelo The Modern Jazz Quartet, a tocar baixinho, um uísque duplo com gelo. Pouso o copo no balcão e deixo-me ficar a observá-lo por instantes sem lhe tocar. Primeiro é preciso contemplar o uísque, e só quando a pessoa se cansa de o contemplar é que deve bebê-lo. Tal como com uma rapariga bonita.

Neste ponto, tomei consciência de que não tinha nem fato nem casaco decentes. Aquele par de alucinados rasgara-me a roupa toda. Desolado, pensei: O que hei de vestir para ir ao bar? Antes de ir, teria de renovar o meu guarda-roupa. Decidi-me por um fato de tweed azul-marinho. Um azul elegante. O casaco teria três botões, ombros pouco marcados, de corte direito. Um traje à moda antiga. Como os que George Peppard costumava usar no início dos anos sessenta. A camisa seria azul. De um tom que combinasse com o fato, apenas um pouco descolorido. O tecido seria um algodão grosso oxford, e o colarinho, o mais normal e discreto possível. Queria uma gravata às riscas, em duas cores. Vermelho e verde. O vermelho, escuro, e o verde, um desses verdes que nunca sabemos se é verde ou se é azul, como o mar durante uma tempestade. Compraria tudo numa loja elegante de roupa de homem, vestir-me-ia, entraria no bar e pediria o uísque duplo com gelo. No mundo subterrâneo, as sanguessugas, os Invisíveis e os peixes com garras podiam armar toda a confusão que quisessem, que eu, no mundo da superfície, vestiria um fato de tweed azul-marinho e tomaria um uísque vindo da Escócia.

De repente, dei-me conta de que o rumor da água desaparecera. Talvez os buracos tivessem deixado de vomitar água. Ou talvez a água tivesse alcançado uma altura considerável e já não se ouvisse. Mas nada disso me importava. Se a água queria subir, que subisse. Já decidira sobreviver. E recuperar a memória. Nunca mais haveria de me deixar manipular por alguém.

Pensei para mim próprio que, claro, de nada me serviria gritar isto tudo agarrado a uma rocha, nas profundezas do subsolo, pelo que deixei correr e dobrei o pescoço para olhar para o alto. Ela estava muito mais acima do que eu pensara. Não sabia a quantos metros de distância já ia naquele instante, mas seria o equivalente a uns três ou quatro pisos de um grande armazém. Estaria na secção de senhora ou na dos tecidos para quimonos. Um pouco aborrecido, perguntei-me quanto mediria aquela massa rochosa na sua totalidade. Os dois juntos já devíamos ter subido uma parte considerável e, posto que ainda faltava bastante, aquela massa rochosa devia ser altíssima. Numa certa ocasião, tivera o capricho de subir a pé os vinte e seis andares de um arranha-céus, mas dava-me a impressão de que a escalada da «torre» superava em muito o meu anterior feito.

De qualquer forma, pensei que era uma sorte que as trevas negras me impedissem de ver para baixo dos meus pés. Por mais habituado que estivesse à montanha, trepar a um local tão escarpado e perigoso sem equipamento, e com uns simples ténis nos pés, era uma experiência aterrorizadora. Era como limpar os vidros da fachada de um grande armazém, sem rede nem andaimes. Enquanto estivesse a subir sempre, envolto na escuridão, não havia problemas, mas assim que parava, a altura começava a preocupar-me.

Tornei a inclinar o pescoço e olhei para o alto. Ela continuava a subir e a luz continuava a baloiçar, mas estava já a uma altura muito maior do que antes. Efetivamente, devia ser muito boa a trepar pela corda, tal como havia dito. O que teria passado pela cabeça do idoso para se refugiar num lugar tão bizarro? Se tivesse esperado por nós num lugar mais normal, ter-nos-ia poupado muito cansaço.

Estava absorto nestes pensamentos quando me pareceu escutar uma voz lá no alto. Ergui o olhar e descortinei uma luzinha amarelada, que piscava como as luzes de navegação de um avião. Devia ter chegado ao topo. Agarrei na corda com uma mão, tirei a lanterna do bolso com a outra e fiz o mesmo sinal para cima. Logo a seguir, virei a lanterna para baixo, verificando onde estava a superfície da água, mas a luz da minha lanterna era muito débil e não consegui ver nada. As trevas eram demasiado profundas e, a não ser que descesse um pouco, não descortinava nada. O meu relógio de pulso marcava as quatro e doze minutos da madrugada. Ainda não amanhecera. Todavia, já tinham distribuído a edição matutina do jornal. Os comboios ainda não circulavam. À superfície, toda a gente devia estar a dormir profundamente, alheada de tudo.

Puxei a corda para mim com ambas as mãos e, respirando fundo, comecei a subir lentamente.


O Fim do Mundo

24

A Praça das Sombras

De manhã, quando abri os olhos, verifiquei que o magnífico tempo soalheiro que se mantivera durante três dias tinha chegado ao fim. O céu estava coberto por uma camada uniforme de nuvens carregadas, e os raios de sol, que mal conseguiam atravessá-la e chegar à Terra, tinham já perdido o calor e o brilho. Envoltas naquela luz gelada e cinzenta, as árvores erguiam ao alto os seus ramos despidos, desprovidos de folhas, recortando-se no céu como se fossem fendas na paisagem atravessada pelo murmúrio gelado do Rio.

O aspeto do céu prenunciava uma iminente queda de neve, mas a neve não caía.

– Hoje não neva – explicou-me o ancião. – A julgar pelas nuvens, não trazem neve.

Abri a janela e de novo contemplei o céu. No entanto, não fui capaz de distinguir quais as nuvens que podiam deixar cair neve e quais não.

* * *

O Guardião estava sentado à frente de um grande braseiro de ferro, descalço, a aquecer os pés. O braseiro era igual ao que estava na Biblioteca. Na parte superior tinha uma superfície plana onde cabiam uma chaleira ou uma marmita e, na inferior, uma gaveta para recolher a cinza. A parte da frente apresentava o aspeto de uma pequena secretária de metal, com uma grande maçaneta. Sentado numa cadeira, o Guardião apoiava os pés nessa maçaneta. Devido ao calor que se desprendia da chaleira e ao odor de tabaco de cachimbo barato – imagino que se tratasse de um sucedâneo –, a atmosfera estava húmida e pegajosa. De certeza que o fedor a pés também tinha algo que ver com isto. Por trás da cadeira onde estava sentado havia uma grande mesa de madeira e, em cima desta, alinhava-se toda uma série de foices e machadinhas, arrumadas junto de uma pedra de amolar. A pátina de todos os cabos era o sinal de uma longa utilização, mal se percebia de que cor eram.

– É um cachecol – disse, indo direito ao assunto. – Sem cachecol, gela-se-me o pescoço.

– Claro, claro – respondeu o Guardião, numa atitude compassiva. – É normal.

– No arquivo do fundo da Biblioteca há roupa que ninguém veste. Pensei que talvez pudesse usar algumas peças.

– Ah! Aquela roupa? Usa a que quiseres. Sendo para ti, não há problema. Escolhe um cachecol, um casaco, o que precisares.

– Não pertencem a ninguém?

– Não te preocupes com os donos da roupa. Mesmo que existissem, há muito tempo que se esqueceram dela. Ah! Pelos vistos, andas à procura de um instrumento musical. É verdade?

Assenti. Aquele homem sabia tudo.

– Por princípio, nesta cidade não existem instrumentos musicais – disse ele. – O que não significa que não haja um ou outro. És sério no trabalho que fazes, não vejo inconveniente em que tenhas um. Vai à Central Elétrica e fala com o Encarregado. Talvez ele possa ajudar-te.

– À Central Elétrica? – admirei-me.

– Sim, claro – respondeu, indicando a lâmpada por cima da sua cabeça. – De onde pensas que vem a eletricidade? Das macieiras?

A rir, desenhou-me um mapa e disse-me como chegar onde queria.

– Sobe o Rio pelo caminho da margem sul. Ao fim de trinta minutos, vais ver à tua direita um velho celeiro sem telhado nem porta. Uma vez aí, vira à direita e segue em frente. Pouco depois encontrarás uma colina e, passada a colina, o Bosque. Pouco depois de entrares no Bosque, a uns quinhentos metros, vais encontrar a Central Elétrica. Percebeste?

– Acho que sim. Mas estava convencido de que é perigoso ir ao Bosque durante o inverno. É o que toda a gente diz. Além do mais, já tive uma má experiência.

– Ah, pois! Já me tinha esquecido completamente. É verdade, vi-me obrigado a levar-te à Residência Oficial, colina acima, na minha charrete. Já estás bem?

– Sim. Muito obrigado.

– Estou a ver que ficaste escaldado, hã?

– Pois fiquei.

O Guardião fez um sorriso aberto e mudou a posição dos pés, que estavam apoiados na maçaneta.

– Ainda bem que ficaste escaldado. Ganhas prudência. Com isso, não tornas a pôr-te de novo em perigo. Um bom lenhador tem uma única cicatriz, nem uma a mais ou a menos. Uma só. Percebes?

Fiz que sim com a cabeça.

– No entanto, não há qualquer perigo em ires à Central. Fica mesmo à entrada do Bosque e só há um caminho. Não te perdes. Tão-pouco verás os habitantes do Bosque. A zona perigosa fica no fundo da floresta e perto da Muralha. Se não te aproximares de lá, não te acontecerá nada. No entanto, atenta no que te digo: não te afastes do caminho, seja sob que pretexto for, e não vás mais além da Central. Se o fizeres, é possível que te vejas metido em grandes sarilhos.

– O Encarregado da Central é um habitante do bosque?

– Não, ele não. Não se parece com os do Bosque, mas também não é parecido com os da Cidade. Não é uma coisa nem outra. Não pode entrar no Bosque nem regressar à Cidade. É inofensivo, e também lhe falta coragem.

– Como são os habitantes do Bosque?

O Guardião deixou pender a cabeça e cravou-me os olhos na cara, em silêncio.

– Acho que já te tinha dito, logo no início: tu és livre de perguntar, e eu, de não responder.

Assenti.

– Não quero responder a isso, ponto final. Tanto quanto sei, há algum tempo que dizes que queres ver a tua sombra, certo? Pois chegou o momento. Por causa do inverno, as suas forças decaíram um bocado, e não vejo inconveniente em que a vejas.

– Ela tem passado mal?

– Não, não, que ideia! Está fresca que nem uma alface. Todos os dias a levo a fazer exercício durante umas horas e tem uma fome de cão. Só que, no inverno, os dias são mais curtos, está frio, e as sombras não se dão bem com isso. Ninguém tem culpa. É perfeitamente normal, a coisa mais natural do mundo. Não é culpa tua nem minha. Enfim, como vais vê-la, poderás falar disto tudo com ela.

O Guardião agarrou num molho de chaves, que estava pendurado na parede, enfiou-o no bolso do casaco e, bocejando, atou os cordões das grossas botas de couro. Pareciam muito pesadas e as solas tinham pitões de ferro para caminhar sobre a neve.

As sombras viviam numa espécie de zona neutra entre a Cidade e o mundo exterior. Como eu não podia abandonar o recinto nem a sombra estava autorizada a entrar, a Praça das Sombras era o único local onde as pessoas que tinham perdido as suas sombras podiam encontrar-se com as sombras que tinham perdido as suas pessoas. A praça ficava nas traseiras da cabana do Guardião. De praça apenas tinha o nome; nem sequer era ampla. Era apenas maior do que o jardim de uma casa e estava rodeada de um imponente gradeamento de ferro.

O Guardião tirou o molho de chaves do bolso, abriu a porta de ferro, deixou-me passar e entrou logo de seguida. A praça era um quadrado perfeito e aproveitava a Muralha que rodeava a Cidade como parede de fundo. Num canto erguia-se um velho ulmeiro e, por baixo deste, havia um banco tosco. A árvore tinha umas cores tão desbotadas que não se percebia se estava viva ou morta.

Numa curva da Muralha haviam construído provisoriamente, com velhos ladrilhos e pedras, uma cabana. Não tinha vidros nas janelas e, por porta, apresentava uma simples prancha de madeira. Como não se via qualquer chaminé, concluí que lá dentro deveria estar bastante frio.

– É ali que vive a tua sombra – disse-me o Guardião. – É mais confortável do que parece. Tem água quente e retrete. Também tem um sótão onde não há correntes de ar. Não é um hotel, mas protege da chuva e do vento. Queres entrar?

– Não, prefiro ficar aqui – respondi. O cheiro nauseabundo da cabana do Guardião provocara-me uma valente dor de cabeça. Mesmo com frio, preferia respirar um pouco de ar fresco.

– De acordo, vou buscá-la – disse, e entrou na cabana.

Levantei a gola do casaco, sentei-me no banco por baixo do ulmeiro e dispus-me a esperar pela sombra enquanto ia remexendo a terra com o tacão do sapato. O chão estava duro, coberto por algumas placas de gelo. Só junto da Muralha, nas zonas com mais sombra, havia neve.

Um pouco mais tarde, o Guardião saiu da cabana acompanhado da minha sombra. O Guardião atravessou a praça em passos largos, fazendo ranger o chão gelado debaixo das solas com os pitões, e a minha sombra seguiu-o, caminhando mais devagar. Não parecia estar tão bem como afirmara o Guardião. Achava-a com um ar mais abatido, os olhos e a barba sobressaíam de forma extraordinária.

– Bom, vou deixá-los sozinhos – disse o Guardião. – Imagino que tenham muito a dizer um ao outro, portanto, falem com calma. Mas não se demorem numa conversa muito comprida; se, por acaso, voltassem a juntar-se, seria extremamente difícil separarem-se. Além do mais, não serviria de nada. Não passaria de um incómodo que só vos faria mal. Compreendido?

Fiz que sim com a cabeça. O Guardião estava certo. Mesmo que nos juntássemos, acabariam por nos separar outra vez. Teríamos de começar tudo do princípio.

A minha sombra e eu seguimo-lo com o olhar enquanto fechava a grade à chave e se dirigia para a cabana dele. O ranger das suas solas com pitões a morder o solo foi-se afastando a pouco e pouco, e quando, por fim, a pesada porta de madeira se fechou nas suas costas, a sombra sentou-se ao meu lado. Imitando-me, começou a raspar no solo com o tacão do sapato. Vestia uma camisola fina, de malha, umas calças de trabalho e calçava as velhas botas que eu lhe havia dado.

– Estás bem? – perguntei.

– Como havia de estar? – replicou. – Está demasiado frio, a comida é indescritível.

– Disseram-me que fazes exercício todos os dias.

– Exercício? – queixou-se. – Ele chama àquilo fazer exercício? Todos os dias me arrasta para fora da cabana e força-me a ajudá-lo a queimar os animais. Carregamos os cadáveres na charrete, passamos a porta em direção ao Pomar das Macieiras, regamo-los com azeite e pegamos-lhes fogo. Antes de os queimarmos, o Guardião degola-os com o machado. Já viste a magnífica coleção de facas que tem. Seja qual for o ponto de vista, esse tipo está passado dos carretos. Se tivesse oportunidade, iria pelo mundo fora à machadada a tudo o que lhe aparecesse pela frente.

– Ele também é um homem da Cidade?

– Não. Não passa de um funcionário. Diverte-se a queimar os animais, o que seria inimaginável para alguém da Cidade. Desde o início do inverno, já queimou uma boa quantidade deles, sabes? Só esta manhã, matou três. Agora vamos queimá-los.

Tal como eu, a minha sombra continuou a escavar o chão gelado com o tacão do sapato. O solo estava duro que nem pedra. Um pássaro de inverno soltou um grito agudo e levantou voo do ramo de uma árvore.

– Encontrei o mapa – disse a sombra. – Estava muito mais bem desenhado do que esperava e as explicações eram excelentes. Mas recebi-o demasiado tarde.

– Estive doente – anunciei-lhe.

– Sim, já me disseram. Todavia, chegado o inverno, já era demasiado tarde. Se o tivesse em minhas mãos antes, as coisas teriam avançado sem contratempos e conseguiria fazer planos.

– Planos?

– Para fugir daqui. É óbvio, não? Que outros planos poderia fazer? Ou pensavas que queria o mapa só para me divertir?

Abanei a cabeça e acrescentei:

– Pensei que poderias dizer-me o que significa esta cidade estranha. No fim de contas, ficaste com a maior parte das minhas recordações.

– Sim, e depois? É verdade que tenho quase todas as tuas recordações, mas sozinho não posso aproveitá-las de forma que valha a pena. Para que tal fosse possível, teríamos de nos juntar outra vez. E, na prática, isso é impossível: não deixariam que nos voltássemos a ver e muito dificilmente poderia traçar qualquer plano. Portanto, de momento, penso sozinho no sentido secreto desta cidade.

– Já percebeste alguma coisa?

– Em parte. Só que não posso falar-te disso. Se não verificar alguns pormenores, terei falta de ânimo e de convicção. Dá-me um tempo. Tenho a impressão de que, se pensar um pouco mais, verei as coisas mais claras. No entanto, quando lá chegar, talvez seja demasiado tarde. No inverno, o meu corpo enfraquece progressivamente; se continuar assim, não seria de estranhar que, mesmo traçando bem o meu plano de fuga, não tenha forças para o pôr em ação. Era por isso que queria o mapa antes de o inverno chegar.

Ergui os olhos para o ulmeiro sobre a minha cabeça. Por entre os ramos grossos viam-se pequenos fragmentos de nuvens escuras.

– Só que fugir daqui é impossível – retorqui. – Já viste o mapa, não viste? Não há saída. Isto é o fim do mundo. Não se pode voltar atrás nem é possível avançar.

– Talvez seja o fim do mundo, mas confio que é possível sair daqui. Tenho a certeza. Está escrito no céu. Que há uma saída. Os pássaros voam por cima da Muralha, não é verdade? E onde vão esses pássaros? Vão para o mundo exterior. Do outro lado da Muralha existe outro mundo, não tenho a menor dúvida. É precisamente por isso que ela rodeia toda a Cidade: para evitar que as pessoas fujam. Se não houvesse nada no exterior, qual seria a utilidade de fechar a Cidade com um muro? De certeza que há uma saída em qualquer parte.

– És capaz de ter razão.

– E eu vou encontrar essa saída; vou fugir daqui contigo. Não quero morrer num lugar tão triste. – Depois de pronunciar estas palavras, emudeceu e tornou a escavar o chão. – Creio já te ter dito que esta cidade é um lugar contranatura e assente num erro – prosseguiu a sombra. – Pois continuo a pensar o mesmo. Não é natural e, além do mais, está errada. Mas o problema é que foi criada assim, artificial e errónea. Como nada é natural e tudo está distorcido, vistas bem as coisas, as peças encaixam na perfeição. O conjunto faz um todo coerente, em que tudo se relaciona e adapta. Como isto. – Com a ponta do sapato, traçou um círculo no chão. – É um círculo fechado. Por isso, quando já aqui estás há muito tempo, dando voltas às coisas, começas a convencer-te de que eles estão certos e tu é que está enganado. Porque eles parecem demasiado coerentes. Percebes?

– Perfeitamente. Às vezes, tenho a mesma sensação. Sinto que, comparado com a Cidade, não passo de um ser insignificante, cheio de contradições.

– Mas isso é falso – insistiu a sombra, traçando desenhos indecifráveis ao lado do círculo. – Nós temos razão, e são eles quem se engana. Nós somos naturais, e eles não. Tens de acreditar nisto, mesmo que te faltem as forças. Se não acreditares, a Cidade acabará por te absorver antes que te dês conta, e então será demasiado tarde.

– Todavia, o certo e o errado são, ao fim e ao cabo, relativos. Além do mais, roubaram-me a memória, que é o que deveria dar-me a medida para distinguir ambas as coisas.

A sombra anuiu.

– Compreendo que te sintas confuso, mas pensa no que te vou dizer. Acreditas que o movimento contínuo existe?

– Não. Por princípio, não pode existir.

– Pois isto é o mesmo. Esta cidade é segura e tem tudo, algo que, já de si, é tão impossível como o movimento contínuo. Por norma, a cidade perfeita é uma coisa que não existe. E, contudo, esta assim é. Ora, tem de haver algum truque algures. Como aqueles mecanismos que, aparentemente, funcionam em movimento contínuo, mas que, na realidade, se valem de uma força maior, oculta.

– E já descobriste de que se trata?

– Ainda não. Como te disse, tenho uma hipótese, mas ainda há que confirmar os pormenores. E, para isso, preciso de tempo.

– E não vais explicar-me a tua hipótese? Quem sabe?, talvez pudesse ajudar-te a confirmá-la.

A sombra tirou as mãos dos bolsos e, depois de soprar o seu hálito quente sobre elas, esfregou os joelhos.

– Não, não podes. A mim dói-me o corpo, mas a ti dói-te o coração. E a primeira coisa que tens de fazer é curar-te. Senão, tu e eu jamais conseguiremos sair daqui. Eu pensarei em como sair, mas tu esforça-te por encontrar maneira de te salvares a ti mesmo. É prioritário.

– Sim, estou confuso, tens razão – disse eu, pousando o olhar no círculo traçado no chão. – Não sei que caminho seguir. E pergunto-me que homem era antes. Que força pode ter um coração que perdeu o seu eu de vista? E, além do mais, numa cidade fortificada, com um sistema de valores peculiar. O inverno chegou e, a partir de agora, vou sentir-me cada vez mais inseguro do meu próprio coração.

– Não, não, estás enganado – disse a sombra. – Não perdeste a confiança em ti próprio. Alguém te roubou a memória, e foi isso que te lançou num grande desconcerto. Mas tu não estás errado. Mesmo perdendo as recordações, o coração sabe muito bem que caminho tomar. Garanto-te: o coração tem os seus princípios de conduta. O teu eu continua a ser o teu eu. Tens de acreditar na tua força. Se não o fizeres, há uma força externa que te arrastará para um lugar absurdo e incompreensível.

– Lutarei – prometi.

A sombra assentiu e ficou por instantes a contemplar o céu nublado. Depois fechou os olhos, como que imersa nas suas reflexões.

– Sempre que me sinto perdida, olho para os pássaros – disse, então. – Quando os vejo, compreendo que não estou enganada. Eles não têm nada que ver com a perfeição da Cidade. Nem com a Muralha, nem com a Porta, nem com o corno. Absolutamente nada que ver. Faz como eu, olha para os pássaros.

Da porta da grade chegou-me a voz do Guardião, chamando por mim.

A entrevista havia chegado ao fim.

– Não apareças por cá durante uns tempos – sussurrou-me a minha sombra ao ouvido, no momento em que nos separámos. – Se precisar, arranjarei maneira de entrar em contacto contigo. O Guardião é muito desconfiado e, se nos virmos com demasiada frequência, vai suspeitar que estamos a tramar alguma e ficará alerta. E isso dificultaria imenso o meu trabalho. Se te perguntar, finge que a conversa não correu muito bem. De acordo?

– De acordo.

* * *

– Então? Como correu? – perguntou-me o Guardião quando voltei à sua cabana. – Foi divertido verem-se ao fim de tanto tempo, não?

– Pois, não sei dizer. Não sei bem... – disse, negando com a cabeça.

– Sim, claro. É normal – respondeu o Guardião com ar satisfeito.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

25

Comida. Fábrica de Elefantes.
Trampa

Comparado a subir os degraus, trepar pela corda era uma brincadeira de crianças. A cada trinta centímetros haviam sido formados nós bem apertados, e a própria corda era bastante grossa, o que a tornava fácil de usar. Agarrei-me a ela com ambas as mãos e fui trepando, nó a nó, oscilando ligeiramente para trás e para a frente, e assim ganhando impulso. Parecia uma cena de um filme de trapezistas. Claro que as cordas dos trapezistas não têm nós. Se tivessem, os espectadores não os levariam a sério.

De vez em quando olhava para cima, mas como ela tinha o feixe de luz da lanterna virado para mim, o brilho encandeava-me e impedia-me de calcular a distância. Disse para os meus botões que a rapariga, decerto preocupada, devia estar a vigiar atentamente a minha subida. A dor da ferida no abdómen latejava ao ritmo do bater do meu coração. A cabeça, em consequência do golpe que fizera ao cair, continuava a doer-me. Nem uma dor nem outra me impediam de trepar à corda, mas incomodavam-me.

Quanto mais me aproximava do topo, mais a sua lanterna me iluminava o corpo e a zona em meu redor. A amabilidade da jovem era desnecessária; já me habituara a subir às escuras. A luz cegava-me e fez-me escorregar várias vezes. Tinha dificuldade em avaliar as distâncias entre as zonas iluminadas e as escuras. As partes iluminadas ganhavam relevos inusitados, e as sombrias pareciam mais fundas do que eram. Além do mais, a luz cegava-me. O corpo humano adapta-se ao meio em que está, seja ele qual for. Não tinha dificuldade em compreender que os Invisíveis, vivendo há tanto tempo no subsolo, tivessem adaptado todas as suas funções biológicas à escuridão.

Após subir sessenta ou setenta nós, cheguei por fim ao que parecia ser o topo. Apoiei as mãos na borda da rocha e icei-me, como fazem os nadadores para sair da piscina.

Demorei bastante tempo, pois só podia mover os braços, esgotados com a longa escalada. Sentia-me como se tivesse nadado um ou dois quilómetros em estilo livre. Ela ajudou-me a subir, puxando-me pelo cinto.

– Livrámo-nos deles por uma unha negra – disse ela. – Se o meu avô demorasse quatro ou cinco minutos mais, estaríamos mortos.

– Estupendo! – disse eu, cansado, ao mesmo tempo que me deixava cair sobre uma rocha plana e inspirava a grandes golfadas. – Até onde chegou a água?

Ela pousou a lanterna no chão e puxou a corda, devagar. Quando já tinha recolhido cerca de trinta nós, passou-ma para as mãos. A corda estava ensopada. A água chegara a uma altura considerável. Tal como dissera, se o Professor se tivesse atrasado quatro ou cinco minutos a lançar-nos a corda, ter-nos-íamos visto metidos numa grande enrascada.

– Já encontraste o teu avô, certo?

– Claro – respondeu. – Está ali dentro, no altar, ao fundo. Mas fez uma entorse. Disse-me que, quando fugia, enfiou um pé num buraco.

– E, mesmo com uma entorse, conseguiu chegar até aqui?

– Conseguiu, o meu avô é muito forte. É de família.

– Assim parece – comentei. Tomava-me por uma pessoa forte, mas, perante aqueles dois, não passava de um aprendiz.

– Vamos! O meu avô está à nossa espera. Diz que tem muitas coisas para te dizer.

– E eu a ele.

Voltei a pôr a mochila às costas e dirigi-me para o altar. Aquilo a que chamava «altar» não passava de um simples buraco redondo, aberto na parede rochosa. Dentro havia um espaço amplo, que um candeeiro a gás, colocado numa reentrância da parede, iluminava com uma ténue luz amarelada espalhando-se pelo interior da gruta. As rugosidades da rocha criavam uma multitude de estranhas formas. O Professor estava sentado junto do candeeiro, com uma manta sobre as pernas. Metade do seu rosto permanecia escondida na sombra. Devido a um efeito da luz, os olhos pareciam muito mais cavados, mas a verdade é que era a personificação da saúde.

– Livraram-se de boa! – exclamou o Professor, contente. – Já sabia que ia ficar tudo inundado, claro. Mas pensava que chegariam mais cedo, pelo que não prestei grande atenção.

– Perdi-me na cidade, avô – explicou a neta. – Fui ao encontro dele quase com um dia de atraso.

– Bom, bom. Isso não tem importância! – disse o Professor. – Agora não interessa se vos custou a chegar ou não; não muda nada.

– E que diabo haveria de mudar? – perguntei.

– Bom, bom. Deixemos os temas complicados para mais logo. Vá, sente-se aqui. Primeiro, vamos tirar-lhe essa sanguessuga que tem no pescoço. Se a deixar ficar aí, ganha uma cicatriz.

Sentei-me um tanto afastado do Professor. A neta sentou-se ao meu lado, tirou uma caixa de fósforos do bolso, pegou num, acendeu-o e fez com que a enorme sanguessuga que eu tinha na nuca se desprendesse. A abarrotar do sangue que me tinha sugado, a sanguessuga inchara até ficar com o tamanho de uma rolha de garrafa. Quando a rapariga lhe chegou o fósforo, ela soltou um ruído húmido: chuuu... A sanguessuga ficou por instantes a retorcer-se no chão, até que a rapariga a esmagou com a sola do sapato. Na pele ficou-me um ardor, como o que resulta de uma queimadura. Quando virava a cabeça para a esquerda com força, tinha a impressão de que a pele se ia rasgar como se fosse um tomate demasiado maduro. Se continuasse a viver assim durante mais uma semana, o meu corpo iria parecer um catálogo de feridas e contusões. Faria uma edição mundial, com ilustrações a cores, igual às fotografias do pé de atleta nos cartazes à entrada das farmácias. Incisão abdominal, incisão na cabeça, pisadura provocada por sanguessuga... talvez também devesse acrescentar a impotência. Assim, o conjunto seria ainda mais aterrador.

– Por acaso não trouxeram nada que se trinque? – perguntou o ancião. – Com a pressa, não consegui trazer provisões e, desde ontem, só comi um chocolate.

Abri a mochila, tirei umas latas de conserva, um pão e o cantil, e entreguei tudo ao Professor, juntamente com um abre-latas. Começou por beber a água com sofreguidão e, a seguir, estudou as latas, uma por uma, com muita atenção, como se estivesse a verificar o ano de colheita de um vinho. Abriu uma lata de pêssegos e outra de carne.

– Não querem comer? – perguntou.

Respondi que não. Naquele sítio, naquele momento, não me estava a apetecer nada.

O Professor partiu um pedaço de pão, pôs-lhe por cima um grosso bocado de carne enlatada e devorou tudo com apetite. A seguir comeu vários pedaços de pêssego, levou a lata aos lábios e bebeu a calda. Entretanto, tirei para fora a garrafa de uísque e bebi uns bons tragos. Graças à bebida, a dor das diversas zonas magoadas do meu corpo aliviou. Não que tivesse desaparecido, mas como o álcool me embotava os sentidos, fiquei com a impressão de que a dor se convertera num ser independente, sem qualquer relação direta comigo.

– Ufa! Tenho de lhe agradecer – exclamou o Professor. – Por costume trago comigo provisões para dois ou três dias, mas, desta vez, esqueci-me de repor as existências. O meu descuido deixa-me embaraçado. Quando uma pessoa se habitua à vida fácil, baixa a guarda. Eis uma boa lição. «Prepara o teu guarda-chuva num dia de sol para que o tenhas pronto num dia de chuva.» Antigamente, as pessoas diziam frases de grande sensatez – acrescentou, soltando uma das suas gargalhadas tonitruantes.

– Vejo que já terminou – disse eu. – Creio que chegou o momento de abordarmos a questão principal. Conte-me tudo por ordem, a começar pelo princípio: que diabo se propunha fazer? Que ações desencadeou? Com que resultados? Que devo fazer? Diga-me tudo...

– Mas tudo isso são questões científicas, coisas muito técnicas – contrapôs, em tom de dúvida.

– Então, simplifique a parte técnica e explique-me de forma a que o possa entender. Basta perceber as linhas gerais e saber que medidas terei de tomar.

– Se lhe explicar tudo, vai zangar-se comigo. A verdade é que...

– Não me zango – prometi. No ponto em que estávamos, não valia de nada irritar-me.

– Em primeiro lugar, tenho de lhe pedir desculpa – começou. – Ainda que tivesse sido em nome da ciência, menti-lhe e usei-o e, como consequência disso, você agora encontra-se num beco sem saída. Estou bem ciente dos meus atos. Acredite em mim, isto não são palavras vãs. Do fundo do coração lhe peço desculpa. Não obstante, desejo que compreenda que a minha investigação se revestia de grande importância, tinha um valor sem precedentes. Nós, os cientistas, quando nos surge um filão debaixo dos olhos, temos tendência a esquecer tudo o resto. É por isso que a ciência avança sem cessar. Além do mais, se me permite dar ainda um passo, diria que nesta pureza radica, justamente, o progresso científico... Diga-me uma coisa... Leu Platão?

– Muito pouco – respondi. – Mas faça o favor de se cingir aos factos principais. A pureza dos objetivos da investigação científica já ficou bastante esclarecida.

– Peço-lhe que me desculpe. Só queria dizer-lhe que a pureza da ciência pode causar danos a muita gente. Ainda que, certamente, suceda o mesmo com todos os fenómenos naturais puros. Os vulcões em erupção sepultam cidades, as inundações tragam vidas humanas, os terramotos sacodem e arrasam a superfície da Terra... E, apesar disso, será possível afirmar que os fenómenos naturais são malvados? Porque...

– Avô – interrompeu-o a jovem –, talvez seja melhor abreviares um pouco; só temos tempo...

– Sim, sim, tens razão – disse o Professor, agarrando na mão da neta e dando-lhe palmadinhas afetuosas. – Bom, a propósito... por onde começar? Não tenho muito jeito para explicar as coisas de forma linear, seguindo uma ordem. Como poderei dizer? Que...

– O senhor entregou-me valores numéricos e pediu-me que fizesse um shuffling. O que eram esses valores? Para que queria o shuffling?

– Para perceber, tenho de voltar três anos atrás.

– Faça o favor... – instei-o.

– Naquela época, eu trabalhava nos laboratórios do Sistema. Ainda não fazia parte do quadro, era uma espécie de especialista auxiliar. Dirigia uma equipa de quatro ou cinco elementos, e dispúnhamos de umas instalações soberbas, sem limite de despesas. Pela parte que me toca, o dinheiro não me interessa e o meu feitio não se coaduna com trabalhar às ordens de terceiros. No entanto, o Sistema proporcionava-me um material experimental a que não poderia ter tido acesso por nenhuma outra via e, acima de tudo, permitia-me pôr em prática os frutos da minha investigação. Essa perspetiva atraía-me mais do que qualquer outra coisa.

«Na altura, o Sistema encontrava-se numa situação crítica. Os Semióticos tinham decifrado praticamente a totalidade dos sistemas de encriptação de dados que o Sistema criara para proteger a informação. Quanto mais o Sistema complicava as fórmulas, mais sofisticados se tornavam os processos de descodificação usados pelos Semióticos. E assim sucessivamente. Pareciam dois vizinhos à compita pela altura das cercas. Um levanta uma vedação, e o outro, para não ficar atrás, constrói uma cerca mais alta. E continuam assim até que as vedações se tornam tão altas que deixam de ser funcionais. Todavia, o Sistema não podia retirar-se da competição. É sabido que quem se retira, dá-se por vencido. E o derrotado perde toda a razão de ser. Por este motivo, o Sistema decidiu criar um sistema de codificação de dados assente num princípio completamente novo, impossível de quebrar com facilidade. E propuseram-me dirigir a equipa encarregada de o criar.

«Ao escolherem-me a mim, tinham tomado uma decisão sábia. Porque eu, naquela época, e também agora, era o cientista mais competente e ambicioso que trabalhava no campo da fisiologia cerebral. Como não apresentava trabalhos de investigação e não fazia conferências em congressos nem outras idiotices do género, o mundo académico ignorava-me, mas no que tocava ao conhecimento do cérebro, ninguém me batia. E o Sistema sabia-o. Por isso, viram em mim a pessoa idónea. Desejavam uma mudança de conceito radical, drástica, logo desde a base; um método longe da dificuldade e da sofisticação dos sistemas anteriores. O programa desejado não podia ser entregue a um cientista que tivesse de trabalhar de manhã à noite no laboratório de uma universidade, obrigado a publicar teses inúteis e a ter de se preocupar com os honorários. Um cientista verdadeiramente original tem de ser livre.

– Contudo, o senhor, ao entrar no Sistema, renunciou à sua liberdade, não é assim? – perguntei.

– Com efeito, sim – admitiu o ancião. – Tem razão. E estou plenamente consciente disso. Não me arrependo, mas sei bem o que fiz. Não pretendo desculpar-me com isso, mas desejava, com todas as minhas forças, levar as minhas teorias à prática. Naquela altura, eu já tinha concebido e elaborado uma teoria, mas ainda não tivera oportunidade de a testar na prática. É o problema principal de quem trabalha em fisiologia cerebral: não pode fazer experiências com animais, como acontece com tantos outros ramos da fisiologia. Porque o cérebro de um símio, por exemplo, não possui funções complexas equiparáveis ao subconsciente ou à memória do ser humano.

– O que significa – interrompi-o – que nos utilizou como cobaias humanas.

– Bom, bom, não tire conclusões precipitadas. Deixe-me primeiro explicar-lhe as minhas ideias. Há uma teoria geral sobre os códigos secretos: não existe nenhum que não possa ser decifrado. É uma verdade que não admite exceções. E isto porque todos os códigos assentam num princípio qualquer. E esse princípio, por mais complexo e elaborado que seja, em última instância está condicionado ao limite médio do entendimento humano: tem de ser entendido por outros seres humanos. Se descobres o princípio, decifras o código. Um dos códigos mais fiáveis é o chamado book-to-book system. Neste sistema, dois indivíduos que enviam mensagens cifradas possuem dois exemplares da mesma edição de um livro e decifram-na baseando-se nas palavras de determinada linha de um determinado número de página. No entanto, tem um ponto fraco: basta descobrir de que livro se trata para se entender o código, o que faz com que não sirva para mais nada. Além do mais, é preciso ter o livro sempre consigo, o que acarreta grandes perigos.

«Foi então que me ocorreu uma ideia. Só poderia existir um código perfeito. O que processasse a mensagem num sistema que ninguém compreendesse. Ou seja, codificar a informação através de uma caixa negra perfeita e descodificá-la fazendo uso da mesma caixa negra utilizada para a processar. Nem sequer o dono da caixa conheceria o conteúdo nem o princípio em que assenta. Poderia servir-se dela, mas ignoraria em que consistia. E não sabendo nada, ninguém lhe poderia arrancar a informação à força. Que lhe parece? É perfeito, não acha?

– Em resumo, essa caixa negra é o subconsciente de um ser humano, não é verdade?

– Exato. Permita-me que acrescente ainda uma coisa. Todos os seres humanos agem baseando-se nos seus próprios princípios. Não há dois indivíduos iguais. É, por assim dizer, uma questão de identidade. E o que é a identidade? Simplesmente, o pensamento original que resulta da soma de memórias de experiências passadas. Simplificando, podemos chamar-lhe «coração», ou também «mente». Nenhum indivíduo tem um coração ou uma mente igual ao de outro. Todavia, o ser humano apenas conhece o seu próprio sistema de pensamento. Nem você nem eu o conhecemos. A parte que conhecemos, ou cremos conhecer, com dificuldade se poderá dizer que é um quinze avos ou um vinte avos da nossa consciência. Não passa da ponta do icebergue. Para que perceba melhor, deixe-me fazer-lhe uma pergunta. O senhor é audaz ou receoso?

– Não sei – respondi com franqueza. – Umas vezes sou audaz, outras, receoso. Não posso definir-me numa palavra.

– O mesmo acontece com o pensamento de alguém. Não pode definir-se numa palavra. Segundo as circunstâncias e o sujeito em causa, a pessoa oscilará instintivamente, de forma quase instantânea, entre a audácia e a cobardia. E isto porque a sua mente está equipada com um sofisticado programa, se bem que ela não saiba quase nada do conteúdo e dos pormenores do tal programa. A pessoa não tem qualquer necessidade de o conhecer e, mesmo não o conhecendo, pode funcionar como indivíduo. É isso a caixa negra. É dizer que, na nossa mente, se esconde um enorme cemitério de elefantes que o homem nunca explorou. Com exceção do macrocosmo, é a última terra incognita que resta à espécie humana.

«Não, a expressão “cemitério de elefantes” não está correta. Porque não se trata de um depósito de recordações mortas. Seria mais rigoroso falar de “fábrica de elefantes”. É aí que se selecionam inúmeros retalhos de memórias e conhecimentos; os fragmentos resultantes desta seleção combinam-se entre si de um modo complexo, até formarem uma linha; por sua vez, estas linhas combinam-se de modo complexo até formarem um feixe, e a soma destes feixes constitui um sistema. Para ser rigoroso, é uma fábrica. Um local de produção. Você é o chefe da fábrica, se bem que não possa visitá-la. Tal como acontece em Alice no País das Maravilhas: para lá entrar tem de ingerir uma beberagem especial. Não há dúvida de que Lewis Carroll escreveu uma obra notável.

– Então... os nossos padrões de conduta são configurados pelas instruções procedentes dessa «fábrica de elefantes»?

– Certo. Em resumo...

– Espere – interrompi-o. – Permita-me uma pergunta.

– Adiante, adiante.

– Compreendo a lógica do seu discurso, mas creio que esses padrões de conduta acabam por não funcionar nos pormenores mais insignificantes da vida real. Por exemplo, quando me levanto de manhã, tomo chá ou café com as minhas torradas, dependendo do humor com que acordo.

– Confirmo – disse o Professor, assentindo enfaticamente. – Também há que tomar em consideração que o subconsciente de um indivíduo vive em permanente transformação. Para estabelecer um paralelismo é como se todos os dias saísse uma nova edição revista de uma enciclopédia. Para estabilizar o sistema de pensamento humano é preciso resolver dois problemas.

– Problemas? – surpreendi-me. – Onde está o problema? Não se trata de ações humanas normais e correntes?

– Bom, bom – proferiu o Professor em tom conciliador. – Se entrarmos por aí, vamos ter ao campo da teologia. Daremos de caras com o determinismo, e temas semelhantes, e acabaremos a discutir se as ações dos homens estão previamente determinadas pela vontade de um deus ou se são fruto do livre-arbítrio. Com o início da Idade Moderna, a ciência avançou fundamentando-se na espontaneidade fisiológica do homem. Contudo, ninguém sabe explicar o que se entende por vontade. Ninguém ainda decifrou o segredo da fábrica de elefantes que existe na nossa mente. Freud e Jung, entre outros, publicaram várias teorias, mas, em definitivo, limitaram-se a inventar conceitos úteis para abordar o tema. Um instrumento prático, não nego, mas isso não implica que fundamentaram a espontaneidade do ser humano. Na minha opinião, limitaram-se a conferir à psicologia as cores da filosofia escolástica.

Neste ponto, o Professor tornou a explodir em gargalhadas. A neta e eu aguardámos, em silêncio, pelo final deste assomo de hilaridade.

– Defino-me como um homem pragmático – prosseguiu o Professor. – Citando a velha máxima «a César o que é de César e a Deus o que é de Deus». Ao fim e ao cabo, a metafísica não passa de conversa fiada semiótica. Antes de enveredar por estes caminhos, há montanhas de coisas a fazer em campos bem conhecidos. Como, por exemplo, o assunto da caixa negra. Podemos deixar a caixa negra ficar como está. E também pode usar-se. Só que... – disse, espetando o indicador – ... há que resolver os dois problemas que referi. Um deles é a casualidade inerente ao plano dos atos superficiais, e o outro, a mudança que a caixa negra sofre à medida que o indivíduo vai passando por novas experiências. Posso garantir que nem um nem outro são problemas fáceis de resolver. Porque, como muito bem disse antes, são atos humanos perfeitamente normais. Enquanto vive, o homem passa por experiências diversas, e estas, minuto a minuto, segundo a segundo, vão-se acumulando no interior da sua mente. Interromper este processo implica a morte do indivíduo.

«Chegados a este ponto, coloquei-me uma hipótese: o que sucederia se, num momento concreto, se fixasse a caixa negra de um indivíduo num determinado instante? Depois poderia continuar a mudar tanto quanto quisesse. A caixa negra continuaria inalterada, idêntica ao que era no instante em que fora bloqueada. Bastaria então uma simples evocação, e ela ressurgiria, sempre que o desejássemos, na sua forma exata. Uma coisa parecida com a congelação instantânea.

– Um momento, por favor. Isso implicaria que um único indivíduo possuiria dois sistemas de pensamento distintos, certo?

– Correto, correto – disse o ancião. – É muito inteligente. Corresponde às minhas expectativas. Sim, tem razão. O sistema de pensamento A está em estado de conservação permanente. E na outra fase vai mudando de forma contínua para A’, A’’, A’’’ e por aí fora. Como se a pessoa tivesse um relógio parado no bolso direito, e outro, a funcionar, no esquerdo. Segundo as suas necessidades, poderia escolher um ou outro. E com isto, um dos temas complicados estava resolvido.

«O segundo problema resolver-se-ia segundo o mesmo princípio. Bastava suprimir a possibilidade de escolher o nível superficial do sistema de pensamento A. Está a seguir-me?

Respondi que não.

– Trata-se de raspar a camada superficial, como faz um dentista com o esmalte dos dentes. E deixar apenas o fator central necessário, o núcleo da consciência. Assim, eliminar-se-ia a divergência. E o sistema de pensamento superficial eliminado congela-se e atira-se para dentro de um poço: splash! É o arquétipo do sistema de shuffling. É esta, mais ou menos, a teoria que eu tinha esboçado antes de entrar no Sistema.

– Está a falar de intervenções cirúrgicas ao cérebro, certo?

– De momento, é necessário operar – disse o Professor. – Se houver avanços na investigação, no futuro talvez deixe de ser necessário. Quem sabe?, poder-se-á utilizar a hipnose ou algo do género para criar o mesmo estado. No entanto, na fase em que estamos, continua a ser impossível. Só se consegue fazendo descargas elétricas no cérebro. Por outras palavras, trata-se de trocar de forma artificial as ligações dos circuitos cerebrais. Não é uma intervenção excecional. De facto, não é muito diferente de muitas das operações ao cérebro que se praticam hoje nos epiléticos. Deste modo, compensam-se as descargas elétricas produzidas por uma irritação no cérebro... Posso omitir os detalhes técnicos?

– Por favor, omita. Basta-me saber o essencial.

– Em suma, trata-se de estabelecer uma ligação com o fluxo das correntes cerebrais. Uma bifurcação. Ao lado, implanta-se um elétrodo com uma pequena pilha. E, como reação a determinado sinal, a ligação muda.

– Quer dizer com isso que me meteram na cabeça um elétrodo e uma pilha?

– Claro.

– Estou tramado! – exclamei.

– Não é tão perigoso nem tão estranho como possa crer. Não são maiores do que um feijão encarnado, e o mundo está cheio de pessoas que andam por aí com coisas desse tamanho implantadas no corpo. Devo acrescentar que o circuito do sistema original de pensamento, ou seja, do relógio parado, é um circuito fechado. Ao entrar nele, não lhe será possível reconhecer o curso dos seus próprios pensamentos. Ou seja, nesse espaço de tempo, você não sabe o que pensa ou o que está a fazer. A não ser assim, existiria o perigo de que fosse alterando o seu próprio sistema de pensamento.

– Também temos o problema da irradiação do núcleo puro da consciência a que rasparam a superfície, não é verdade? Depois de me terem operado, um membro do seu grupo comentou que essa irradiação poderia afetar brutalmente o cérebro.

– É verdade. Há que dizer que não sabemos nada sobre o assunto. Só podemos fazer conjeturas. Não há experiências feitas, só se disse que podia acontecer.

«Há bocado, o senhor falou de “cobaias humanas”, e reconheço, fizemos experiências com seres humanos. Mas fique sabendo que sob pretexto algum podíamos permitir que um material tão precioso quanto vocês, os Programadores, corresse o menor perigo. O Sistema escolheu dez homens, e nós fizemos as intervenções cirúrgicas e observámos os resultados.

– Que tipo de pessoas queriam?

– A nós ninguém disse nada. As únicas condições eram que fossem dez jovens, gozando de boa saúde, sem antecedentes de doenças mentais e com um QI superior a cento e vinte. Nós ignorávamos onde vos foram buscar e como os trouxeram. Os resultados foram regulares. Em dez pessoas, sete ligações funcionaram. Nas outras três não deu resultado, e o sistema de pensamento ou ficou unidirecional, de um ou de outro lado, ou misturaram-se os dois. Contudo, com sete, o resultado foi positivo.

– E o que é que aconteceu aos que baralharam os dois sistemas?

– Devolvemo-los ao seu estado original, claro. Não sofreram danos. Enquanto treinávamos os sete restantes, detetámos um par de problemas. Um era de carácter técnico, e o outro tinha origem nos indivíduos submetidos a exame. O primeiro derivava da ambiguidade do sinal para mudar de ligação. No princípio, tínhamos escolhido como sinal um número de cinco algarismos, mas, por alguma razão, parte dos sujeitos mudava a ligação ao sentir o cheiro do sumo de uva. Descobrimos isto quando lhes servimos sumo de uva ao almoço.

Ao meu lado, a jovem gorda soltou uma risadinha, mas eu não via a mínima graça em nada daquilo, porque, depois do shuffling, alguns odores tinham começado a causar-me perturbações várias. Sem ir mais longe, quando cheirava a sua água-de-colónia com aroma de melão, escutava o ressoar de alguns ruídos dentro da minha cabeça. Se de cada vez que cheirava qualquer coisa a minha ligação mudava, aquilo podia ser horroroso.

– Solucionámos o problema intercalando ondas sonoras específicas nos dígitos. Vimo-nos obrigados a fazer isto, porque certo tipo de odores produzia reações semelhantes às originadas pelo sinal de arranque. O outro problema era que, no caso de alguns sujeitos, mesmo que a ligação mudasse perfeitamente, o sistema de pensamento original não funcionava. Após grandes trabalhos de investigação, descobrimos que o sistema de pensamento dos indivíduos em questão tinha um problema de base. O núcleo da consciência deles era instável e pouco denso. Eram homens saudáveis e inteligentes, mas a sua identidade mental estava pouco desenvolvida e estruturada. Outros mostravam uma óbvia falta de domínio: possuíam uma identidade marcada, mas a sua indisciplina constituía um obstáculo ao uso do núcleo de consciência. Em resumo, descobrimos que a operação, só por si, não era suficiente para aceder ao shuffling, e que eram precisos outros requisitos suplementares.

«No final, restaram três. Nos três casos, a ligação mudava com o sinal, e desempenhavam a sua tarefa de maneira eficaz e estável, servindo-se do sistema de pensamento original congelado. Após os termos submetido a repetidas provas ao longo de um mês, deram-nos luz verde.

– E depois recebemos o tratamento de shuffling, não foi?

– Precisamente. Antes disso, para estudar esta questão e após múltiplas entrevistas a quase quinhentos candidatos, selecionámos vinte e seis homens fisicamente aptos e sem antecedentes de doenças mentais, senhores de personalidades originais e, além disso, capazes de controlar os seus próprios atos e sentimentos. Uma tarefa imensa. Há muita coisa que não se deteta apenas com exames e entrevistas. O Sistema elaborou um relatório pormenorizadíssimo sobre cada um dos vinte e seis indivíduos. A sua procedência, percurso escolar, família, vida sexual, hábitos alimentares e de bebida... Tudo. Estudaram-nos a fundo. É por isso que o conheço tão bem como a mim mesmo.

– Há uma coisa que não estou a perceber – disse. – Segundo ouvi, o nosso núcleo de consciência, a caixa negra, está guardado na biblioteca do Sistema. Como é que conseguiram?

– Fizemos uma cópia integral dos seus sistemas de pensamento. Quando acabámos de fazer a simulação, decidimos guardá-la no banco central de dados. Por uma questão de segurança. Para o caso de lhes suceder, a vocês, alguma coisa.

– E essa reprodução é rigorosa?

– Não, claro que não. O facto de a camada superficial do vosso sistema ter sido bem extraída permite-nos duplicar esta parte com relativa facilidade, tornando toda a operação bastante mais fácil e próxima da realidade. Para sermos rigorosos, esta reprodução está feita com um holograma e três tipos de coordenadas planas. Com os computadores convencionais teria sido impossível realizar esta tarefa, mas os computadores de última geração possuem bastantes funcionalidades do tipo dos da fábrica de elefantes e conseguem adaptar-se às estruturas complexas da consciência. Apresenta claramente os mesmos problemas que traçar um plano, mas não creio que valha a pena alargarmo-nos sobre o assunto. Para pôr o assunto de forma clara, digo-lhe que o método de reprodução consiste no seguinte: primeiro, introduzem-se no computador muitos padrões de descargas elétricas procedentes da sua consciência. Há ligeiras diferenças entre cada um destes eletroencefalogramas, já que os chips do interior das linhas foram manipulados, o que altera a totalidade do gráfico. Entre os elementos reorganizados, há uns que devemos quantificar, outros não. É o computador que os identifica. Os elementos sem valor são eliminados, e os restantes ficam gravados como padrão de base. Repetimos este processo milhões de vezes. É como se fôssemos sobrepondo sucessivas lâminas de plástico. Depois, uma vez comprovado que a diferença já não é aparente, guarda-se o padrão como caixa negra.

– Está a falar de reproduzir o cérebro?

– Não, nada disso. É impossível reproduzir o cérebro. Limitei-me a fixar o seu sistema de consciência a nível fenomenológico, dentro de uma temporalidade estável, uma vez que nada podemos fazer quanto à ductilidade do cérebro ao longo da passagem do tempo. Mas ainda dei um passo mais, sabia? Consegui reproduzir a caixa negra em imagens. – O seu olhar pousou na neta e, depois, em mim. – Sim, transformei o núcleo da consciência em imagens. Nunca ninguém tinha conseguido fazê-lo. Porque era impossível. Mas eu fiz com que fosse possível. Como acha que consegui?

– Não faço a menor ideia.

– Mostrei um objeto ao indivíduo examinado, analisei a reação elétrica produzida no cérebro, transformei-a em números e, a seguir, em pontos. De início, apenas consegui um gráfico muito esquemático, mas à medida que o fui corrigindo e acrescentando detalhes, consegui que no monitor do computador surgisse a mesma imagem que ele tinha visto. É mais complicado do que possa parecer e exige muito tempo e esforço, mas, simplificando, é isto. Conforme se vai repetindo o processo, uma e outra vez, o computador vai assimilando o modelo e aprende a reproduzir automaticamente as imagens a partir das reações do cérebro. Os computadores são fantásticos. Desde que lhes dêmos instruções coerentes, eles trabalham com coerência.

«De seguida, uma vez que o computador tenha assimilado o modelo, introduz-se a caixa negra. É então que se opera o prodígio: surge uma representação figurativa do núcleo de consciência. As imagens são extremamente confusas e fragmentárias, claro, e, em si mesmas, carecem de sentido. É preciso montá-las como se fosse um filme. Cortam-se uns elementos, colam-se outros, eliminam-se umas coisas, combinam-se outras. E transformam-se numa história com sentido.

– Numa história?

– Não é tão extraordinário como parece – disse o Professor. – Um bom músico plasma o seu pensamento e a sua consciência na música, um pintor, nas cores e nas formas. Um escritor fá-las surgir numa história. Pois bem, isto segue a mesma lógica. Tratando-se de uma conversão, não é um decalque rigoroso, mas uma representação de grandes partes da consciência. Além do mais, isso pouco importa, pois esta visualização carece de qualquer utilidade prática. Para dizer a verdade, fi-la como passatempo.

– Como passatempo?

– Eu, antes... bom, antes da guerra... fui assistente de montagem. É por isso que sou tão bom editor. Na realidade, este trabalho consiste em ordenar o caos. Tranquei-me no meu laboratório e trabalhei sozinho, sem pedir a colaboração da minha equipa. Ninguém sabia a que me dedicava. E levei para casa, em segredo, os dados de visualização que recolhi. Eram o meu património.

– Converteu em imagens a consciência de vinte e seis pessoas?

– Sim, de todas. Fui-lhes atribuindo um nome, e esse nome converteu-se no título da caixa negra. À sua chamei «fim do mundo».

– «Fim do mundo», sim. O nome sempre me intrigou imenso.

– Mais tarde falaremos disso – disse o Professor. – Seja como for, ninguém soube que convertera em imagens as consciências dos vinte e seis indivíduos. E também não contei a ninguém, porque queria prosseguir a investigação fora do Sistema. Tinha concluído com êxito o projeto que me encomendaram, realizara as requeridas experiências em seres humanos. Estava farto de investigar para outros. Queria voltar a trabalhar à minha vontade, pegando nisto e naquilo, como me desse na veneta. Não sou daqueles cientistas que se enfronham numa só linha de trabalho, sou mais pessoa de abordar vários estudos em paralelo. De um lado, a frenologia, do outro, a acústica, e, em simultâneo, estudos do cérebro. E é impossível fazer isto quando se trabalha para terceiros. Por isso, quando concluí esta fase da investigação, disse ao Sistema que já terminara o meu trabalho, que apenas lhe faltavam uns pormenores técnicos e que chegara o momento de me afastar. No entanto, não mo permitiram, porque sabia demais acerca do projeto. Pensaram que iria aliar-me aos Semióticos e fazer com que os seus planos de shuffling ficassem em águas de bacalhau. Para eles, ou és amigo ou és inimigo. Pediram-me que aguardasse três meses e que, entretanto, continuasse as minhas investigações particulares no laboratório deles. Garantiram-me que não teria de fazer qualquer trabalho e que me dariam bónus extraordinários, dizendo-me que levariam três meses a completar um programa rigoroso para salvaguardar o segredo, razão por que me pediam que ficasse até então. Sou um homem que nasceu livre e desagradou-me enormemente ver-me atado daquela maneira, mas o acordo era muitíssimo vantajoso. De modo que decidi ficar os três meses que me pediam, a fazer o que me desse na gana.

«Mas a ociosidade não traz nada de bom. Dispunha de muito tempo livre e tive a ideia de acrescentar mais um circuito ao já instalado na cabeça dos sujeitos... ou seja, na sua. Um terceiro circuito de pensamento. E neste circuito número três incorporei o núcleo da consciência que tinha montado.

– E porque fez tal coisa?

– Por um lado, porque queria ver o efeito que produzia nos sujeitos. Queria comprovar como funcionava, dentro das suas mentes, uma consciência manipulada por outro indivíduo. Em toda a história da Humanidade não existe outro exemplo tão claro. Também o fiz... e isto era um motivo secundário... por outra razão: já que o Sistema me tratava como propriedade sua, também queria utilizá-los a eles como me apetecesse. Queria criar, no mínimo, uma função sem que eles soubessem.

– E foi só por isso que nos inseriu na cabeça um montão de circuitos tão complexos como uma rede ferroviária?

– Não, por favor. Quando o ouço falar assim, envergonho-me de mim próprio. Fico verdadeiramente envergonhado. Talvez não saiba, mas a curiosidade científica é muito difícil de reprimir. É claro que as experiências em seres humanos, realizadas pelos cientistas que colaboravam com os nazis alemães nos campos de concentração, parecem-me odiosas e repugnantes. Mas, no meu foro íntimo, pergunto: «Uma vez que as fizerem, como não as levaram a cabo de uma forma mais hábil e eficaz?» No fundo, nós, os cientistas que fazemos experiências em seres humanos, pensamos do mesmo modo. Além do mais, eu não pus a vida de ninguém em perigo. Onde já havia dois, acrescentei um terceiro. Só isso. Uma alteração mínima no desenho do circuito não representava qualquer carga para o cérebro. Tratava-se meramente de formular palavras diferentes utilizando as mesmas letras.

– Mesmo assim, o certo é que, excetuando eu, todas as pessoas submetidas ao shuffling morreram. A que se deve isso?

– Nem sequer eu sei a resposta – respondeu o Professor. – Sim, tem razão. Dos vinte e seis programadores que receberam o tratamento para o shuffling, vinte e cinco morreram. E morreram todos em circunstâncias idênticas. Deitaram-se, adormeceram e, na manhã seguinte, deram com eles mortos.

– Então – disse eu –, é bem possível que me aconteça o mesmo amanhã de manhã, não lhe parece?

– Não é assim tão simples. – O Professor torceu-se, pouco à vontade, debaixo da manta. – As mortes foram ocorrendo ao longo de seis meses. E tudo aconteceu num período que vai de um ano e dois meses a um ano e oito meses depois de concluídas as experiências. E só você, três anos e três meses mais tarde, continua a fazer o shuffling sem problemas. A única explicação possível é que deve ter alguma faculdade especial que os outros não tinham.

– Especial? A que se refere?

– Bom... de certeza que, depois do tratamento de shuffling, notou algum sintoma estranho. Teve alucinações auditivas, visões, lipotimias ou algo parecido?

– Não, nada – respondi. – Não tenho visões nem alucinações auditivas. Só tenho a impressão de que fiquei tremendamente sensível a certos cheiros. Em geral, ao aroma da fruta.

– Isso aconteceu a todos. O cheiro de certos frutos exerce um efeito na ligação. Ignoro a razão, mas sei que acontece. Mas isto não lhe provocou alucinações auditivas, nem visões ou desmaios, pois não?

– Não.

– Hum... – O ancião refletiu durante uns instantes. – E além disso?

– À parte isso, apercebi-me recentemente, tive a sensação de que as recordações ocultas iam voltar. Até hoje não tinham passado de fragmentos de memórias e não lhes dera importância, mas, há bocadinho, a recordação foi muito nítida e prolongou-se durante bastante tempo. E identifiquei a causa: foi desencadeada pelo ruído da água, mas não foi uma visão; tratou-se de uma memória autêntica, tenho a certeza.

– Não, não é certo – negou categoricamente o Professor. – Talvez a tenha percebido como autêntica, mas era uma ponte artificial criada por si. O mesmo é dizer que entre a sua própria identidade e a consciência que montei e lhe implantei surgiu uma divergência, lógica e natural. E você está a tentar estender uma ponte sobre esta contradição para legitimar a sua própria existência.

– Não estou a perceber. Até agora, nunca me tinha acontecido. Porque é que começou agora, de repente?

– Porque eu lhe alterei a ligação e libertei o terceiro circuito – explicou o Professor. – Mas vamos por ordem, senão ser-me-á difícil explicar-lho, e a si, entender-me.

Tirei a garrafa de uísque para fora e bebi um trago. Estava com a sensação de que a história que se dispunha a contar-me ia ser mais horrível do que eu imaginara.

– Depois das primeiras oito mortes, o Sistema chamou-me para que investigasse as suas causas. Para ser franco, preferia desvincular-me do assunto, mas aquela técnica tinha sido desenvolvida por mim e tratava-se de um assunto de vida ou de morte, pelo que não me foi possível manter-me afastado. Decidi ajudar e ir ver o que se passava. Explicaram-me as circunstâncias da morte dos programadores e mostraram-me os resultados da autópsia cerebral. Tal como lhe disse, os oitos haviam falecido em circunstâncias idênticas e todos de causa desconhecida. Não apresentavam lesões nem no corpo nem no cérebro e todos tinham parado de respirar enquanto dormiam pacificamente. Parecia uma morte por eutanásia. Nos rostos não se viam quaisquer vestígios de agonia.

– E descobriu a causa da morte?

– Não. É claro que fui capaz de propor algumas hipóteses. Como os oito programadores tinham morrido um a seguir ao outro depois de receber o tratamento de shuffling, podíamos descartar a mera casualidade. Portanto, havia que tomar medidas. É o dever de um cientista. Cheguei a uma hipótese: a possibilidade era que as ligações instaladas no cérebro se tivessem soltado e entrado em curto-circuito, ou que tivessem desaparecido. Como resultado disso, o sistema mental entrara em colapso e as funções cerebrais não teriam sido capazes de suportar a sua energia. Outra possibilidade era que o problema não residisse na ligação, mas sim no próprio facto de se libertar, mesmo por um breve lapso de tempo, o núcleo da consciência. Talvez o cérebro humano seja incapaz de o suportar. – Depois de pronunciar estas palavras, com a manta puxada até ao queixo, fez uma pausa. – Foi a hipótese que formulei. Faltam-me provas, mas, considerando as circunstâncias anteriores e posteriores aos factos, o mais provável é que a causa da morte se deva a uma outra possibilidade ou à soma de ambas.

– E a autópsia ao cérebro não ajudou?

– O cérebro não é uma torradeira ou uma máquina de lavar. Não tem cabos nem interruptores à vista. Tratava-se apenas da alteração do percurso de uma simples descarga elétrica invisível; portanto, depois da morte, tornava-se impossível extrair a ligação e estudá-la. Num cérebro vivo é possível detetar anomalias, mas num morto, não. Se tivesse havido uma lesão ou um tumor, claro que o teríamos detetado. Mas não havia nada. O cérebro estava totalmente limpo.

«Nessa altura, pedi a dez sobreviventes que viessem ao meu laboratório, e tornámos a examiná-los. Registámos as suas ondas cerebrais, analisámos a mudança de sistema de pensamento, comprovámos o bom funcionamento da ligação. Submetemo-los a longas entrevistas e perguntámos-lhes se tinham notado alguma anomalia física ou se sofriam de alucinações auditivas ou visuais. Mas não descobrimos nenhum problema relevante. Todos estavam bem de saúde e executavam o shuffling sem contratempos. Concluímos que os falecidos deviam ser portadores de algum defeito congénito incompatível com a operação de shuffling. Ainda não sabíamos de que defeito se tratava, mas seria algo que seríamos capazes de resolver antes de dar início à segunda leva de tratamentos de shuffling.

«Estávamos enganados. No mês a seguir morreram mais cinco programadores, entre eles três dos indivíduos sujeitos ao exaustivo exame posterior. Morreram, sem mais, algumas pessoas acerca das quais acabáramos de determinar, após exaustivos exames, que não tinham qualquer problema. Foi um golpe duro. Dos vinte e seis indivíduos sujeitos à intervenção, metade morrera devido a causas desconhecidas. O problema estaria na própria raiz do projeto. Em suma, o cérebro revelara-se incapaz de se valer de dois sistemas de pensamento alternativos. Face aos factos, sugeri ao Sistema que suspendesse o projeto: que extraíssemos a ligação do cérebro dos sobreviventes e cancelássemos as operações de shuffling. De outra forma, poderiam morrer todos. Mas o Sistema argumentou que era impossível e recusou a minha proposta.

– Porquê?

– Porque o sistema de shuffling funcionava com grande eficácia, e naquele momento não podiam congelar o programa. Se o tivessem feito, o funcionamento do Sistema teria ficado paralisado. Além do mais, acrescentaram que nada fazia prever que os programadores morreriam todos e que, se havia sobreviventes, estes poderiam servir para futuras investigações. Foi então que me desliguei do assunto.

– E apenas eu sobrevivi.

– Precisamente.

Apoiei a nuca na parede rochosa e, distraidamente, passei a mão pela barba que me crescia no queixo, enquanto contemplava o teto. Não conseguia lembrar-me da última vez que fizera a barba. Devia estar com um aspeto horrível.

– E então, porque é que eu não morri?

– Não passa de uma hipótese – disse o Professor –, e tenho consciência de que estou a juntar uma hipótese a outra. Pelo que me diz o meu sexto sentido, não estaremos muito longe da realidade. Para dizer a verdade, você já devia possuir um sistema de pensamento composto, mesmo antes de lhe implantarmos qualquer coisa. Imagino que de forma inconsciente. Sem o saber, o meu amigo fazia um uso duplo da sua própria identidade. É como o exemplo que lhe dei antes, quando lhe falei em levar um relógio no bolso direito das calças e outro no da esquerda. Você já tinha a ligação estabelecida de nascença e, por isso, estava-lhe psicologicamente imune.

– Essa hipótese assenta em algum pressuposto real?

– Sim. Há cerca de uns dois ou três meses, revi todas as caixas negras, os sistemas de pensamento dos vinte e seis programadores passados a imagens. E descobri uma coisa. A sua imagem é a mais coerente, não tem falhas, é a mais lógica. Numa palavra, é perfeita. Tanto que poderia utilizar-se, tal qual, num romance ou num filme. Outro tanto não sucede com as imagens dos outros vinte e cinco indivíduos. Os fragmentos que as constituem são confusos, falta-lhes coerência. Por mais que me esforçasse a montá-las, não consegui dar-lhes nem lógica, nem harmonia. Parecem uma sucessão de sonhos desconexos. Contudo, a sua é completamente diferente. A diferença é tão grande como a que existe entre o desenho de um pintor profissional e o de uma criança.

«Pensei muito sobre quais poderiam ser as razões, e creio existir uma única conclusão possível: você já as tinha ordenado previamente. É por isso que o conjunto de imagens está estruturado com tanta nitidez. Recorrendo de novo a um exemplo, é como se tivesse descido à «fábrica de elefantes» e tivesse construído as imagens por suas próprias mãos. Sem sequer o saber.

– Inacreditável! – exclamei. – Como é isso possível?

– Pode dever-se a vários fatores – começou por dizer o Professor. – Experiências durante a infância, contexto familiar, objetivação excessiva do ego, sentimento de culpa... Seja qual for o caso, posso afirmar que tem uma tendência marcada para se proteger a si mesmo. Estou enganado?

– É possível – assenti. – E que diabo vai passar-se agora?

– Não há o menor problema. Se nada acontecer, continuará como até aqui, e morrerá de velhice – asseverou-me. – Claro que, sendo realistas, é improvável que não aconteça nada. Goste ou não, o meu amigo é a chave que pode decidir o resultado desta absurda guerra de informação. Dentro de pouco tempo, o Sistema vai pôr em marcha o projeto de segunda geração, utilizando-o, a si, como protótipo. Vão submetê-lo a uma análise exaustiva e aprofundada, remexê-lo de uma ponta à outra. Não posso dizer-lhe em que consistirá concretamente, mas tenho a certeza de que não será agradável. Não sei com rigor o que será, mas até aí é fácil de adivinhar. Por isso, quero ajudá-lo.

– Oh, não! – exclamei, abatido. – Não vai participar nesse estudo?

– Como já lhe disse, vender o fruto dos meus estudos não faz muito o meu género. Além do mais, não quero participar em nada que possa ter como consequência a morte de seres humanos. Vários fatores me fizeram pensar. Construí um laboratório subterrâneo para fugir das pessoas. E porque o Sistema não é o único a querer utilizar-me, apareceram os Semióticos, e eu não gosto destas organizações. Só buscam o seu próprio lucro.

– E porque é que teve de lançar mão de artimanhas para contactar comigo? Porque é que me enganou, fazendo-me correr em sua ajuda, para me pedir que efetuasse uns cálculos?

– Queria confirmar a minha hipótese antes de o Sistema e os Semióticos o apanharem para o estudar exaustivamente. Porque, se conseguisse decifrar o mistério, seria capaz de evitar que passasse um mau bocado. Entre os dados que lhe dei estava escondido um sinal para mudar para o terceiro sistema de pensamento. Dito de outra forma, uma vez alcançado o segundo sistema, você teria passado por um ponto que o faria mudar para o terceiro sistema de pensamento, e seria aí que processaria os dados.

– Esse terceiro sistema de pensamento é o que o senhor visualizou e montou, certo?

– Precisamente – concordou o Professor.

– E de que forma ia confirmar a sua hipótese?

– Estudando as divergências – disse o Professor. – Inconscientemente, você tinha já dominado com perfeição o conteúdo do seu núcleo de consciência. Por isso, utiliza sem problemas o segundo sistema de pensamento. Contudo, o terceiro circuito compreende a parte que eu montei e, portanto, o normal é que surjam divergências entre as duas, e que essas divergências provoquem uma reação da sua parte. Pois bem, queria quantificá-la. E, a partir dos dados desta quantificação, teria podido formar uma ideia um pouco mais concreta sobre o poder que se esconde no fundo da sua consciência, sobre o seu conteúdo e as suas causas.

– Teria podido, foi o que disse?

– Sim. Teria podido. Mas foi tudo por água abaixo. Os Semióticos, de conluio com os Invisíveis, destruíram o meu laboratório. Levaram os dados todos. Depois de terem saído, voltei para aqui rapidamente e pude verificá-lo. Já não há ali nada de valor. Nestas condições é-me impossível quantificar a divergência. Inclusivamente, aqueles tipos levaram as caixas negras visualizadas.

– E que relação tem isso tudo com o fim do mundo? – perguntei.

– Para dizer a verdade, não é o mundo onde estamos que vai acabar. É dentro de si, da sua consciência, que o mundo vai chegar ao fim.

– Não estou a perceber.

– Trata-se do núcleo da sua consciência. O fim do mundo é, nem mais nem menos, o que a sua consciência descreve. Não sei porque é que oculta isso no fundo da sua consciência, mas é o que acontece. No interior da sua consciência, o mundo chegou ao fim. Ou, formulando a ideia ao contrário, a sua consciência está a viver o fim do mundo e, naquele mundo, desapareceu a maioria das coisas que é lógico existirem neste. Lá não existe tempo, nem dimensão espacial, nem a vida, nem a morte. Tão-pouco existem, no sentido estrito das palavras, os valores e o ego. Neste mundo, aliás, são os animais que controlam o ego das pessoas.

– Os animais?

– Os unicórnios. Nesta cidade há unicórnios.

– E esses unicórnios têm alguma relação com o crânio que me entregou?

– Isso não passa de uma réplica que eu próprio fabriquei. Magnífico, não é verdade? Baseei-me nas imagens que visualizei na sua consciência, mas tive problemas. Não tem qualquer significado em particular, mas como me interesso pela frenologia, tive a ideia de o fazer. Ofereço-lho.

– Espere um instante – disse. – Deixe-me ver se o compreendi bem: no fundo da minha consciência existe esse mundo de que fala. O senhor montou-o, deu-lhe uma forma mais clara e implantou-mo na cabeça sob a forma de um terceiro circuito, o chamado «circuito três». A seguir, enviou um determinado sinal, pôs esse circuito na minha consciência a funcionar e fez-me executar um shuffling. Até aqui está certo?

– Sim, está.

– E quando acabou o shuffling, esse circuito três fechou-se automaticamente e a minha consciência regressou ao circuito um.

– Não, isso não está certo – contrapôs o Professor, coçando a nuca. – Se tivesse sido assim, as coisas eram muito mais simples. Mas não são. O circuito três não possui a função de bloqueio automático.

– Então o meu circuito três continua aberto?

– Ah... sim.

– Mas agora estou a pensar e a agir servindo-me do circuito um...

– Isso é possível, porque o circuito dois tem uma senha. Espere, vou desenhar-lhe um esquema – disse.

Tirou um bloco e uma esferográfica do bolso, fez um desenho e entregou-mo.


– Isto é o estado normal da sua consciência. A ligação A está ligada ao circuito 1 e a B com o circuito 2. Contudo, agora está assim. – O Professor fez outro desenho no papel.


– Está a perceber? Enquanto a ligação B continua ligada ao circuito 3, a ligação A, graças ao sistema de mudança automática, comunica com o circuito 1. Por essa razão, você pode pensar e agir servindo-se do primeiro circuito. Mas isto é provisório. Antes ou depois, acabará por conduzir a ligação B para o circuito 2. Porque, na realidade, o circuito 3 não lhe pertence. Se o deixar ficar como está, a energia gerada por esta divergência vai fundir a ligação B, e você ficará para sempre ligado ao circuito 3, a descarga elétrica deste vai atrair a ligação A para o ponto 1 e, por consequência, acabará por fundir também esta ligação. Por isso, antes de as coisas chegarem a este ponto, eu teria de calcular a energia de divergência e devolvê-lo, a si, ao seu estado original.

– Teria? – perguntei.

– Sim. Porque agora já não posso fazer nada. Como lhe disse antes, aqueles loucos destruíram-me o laboratório e levaram a documentação mais importante. Assim sendo, tenho muita pena, mas vai ser-me impossível ajudá-lo.

– Vejamos – disse eu –, está a dizer que vou ficar preso para sempre no circuito 3, sem a menor hipótese de me escapar?

– Isso mesmo. Vai ter de viver no fim do mundo. Lamento do fundo do coração.

– Lamenta do fundo do coração?! – exclamei, atónito. – Isto não se resolve com desculpas. Talvez o senhor ache que fica tudo bem com um pedido de desculpas, mas que diabo me vai acontecer? Foi o senhor que começou isto tudo. Não estamos a brincar! Nunca tinha ouvido nada tão atroz!

– Mas nunca me passou pela cabeça, nem sequer em sonhos, que os Semióticos pudessem conluiar-se com os Invisíveis. Devem ter sabido que eu começara a fazer qualquer coisa e atacaram-me para roubarem o segredo do shuffling. Muito provavelmente, neste momento, o Sistema já sabe tudo. Para eles, nós os dois somos uma faca de dois gumes. Está a compreender? O Sistema deve pensar que você e eu, juntos, começámos a tramar alguma nas costas da organização, e imagino que seja precisamente isso o que os Semióticos queriam que pensasse. Tramaram tudo para que o Sistema acreditasse nisto, calculando que nos liquidaria para salvaguardar o segredo: pensaria que os tínhamos traído e, apesar de a nossa morte pôr um ponto final no sistema do shuffling, liquidar-nos-ia. Acima de tudo, somos a chave deste projeto, e se caíssemos os dois nas mãos dos Semióticos, as consequências seriam terríveis. No que diz respeito aos Semióticos, se o Sistema nos liquidasse, o projeto de shuffling seria cancelado, e se fugíssemos e lhe escapássemos também não teriam nada a objetar. Em resumo, em nenhum dos dois casos teriam algo a perder.

– Oh, não! – exclamei.

Os sujeitos que tinham ido a minha casa, que me haviam destruído o apartamento e me rasgaram o ventre eram, com toda a certeza, Semióticos. Tinham engendrado aquela farsa para atrair a atenção do Sistema sobre mim. E eu caíra na armadilha.

– Estou perdido. Com o Sistema e os Semióticos colados aos meus calcanhares, se ficar de braços cruzados, a minha existência desaparecerá da face da Terra.

– Não, a sua existência não terminará. Simplesmente, entrará num mundo diferente.

– Vai dar ao mesmo – disse eu. – Sabe?, compreendo perfeitamente que sou um ser tão insignificante que é preciso uma lupa para me verem. Foi sempre assim. Até a mim me custa encontrar a minha cara na fotografia de fim de curso. Não tenho família, pelo que o meu desaparecimento não prejudicará ninguém. Tão-pouco tenho amigos, pelo que ninguém chorará a minha morte. Está tudo muito claro na minha cabeça. No entanto, e por estranho que pareça, estou bastante satisfeito com a minha vida neste mundo. Não sei porquê. Talvez porque estou dividido em dois, os dois vamo-nos animando um ao outro, e posso levar uma vida divertida. Não sei. Em todo o caso, sinto-me confortável neste mundo. Detesto muita gente, e há muita gente que me detesta, mas também gosto de algumas pessoas e, das que gosto, gosto muito. E não tem nada que ver com ser correspondido. Vivo assim. Não quero ir a lado nenhum. A imortalidade não me faz falta. Envelhecer é duro, mas não sou o único a quem isso acontece. Acontece a toda a gente. Não quero unicórnios nem barreiras.

– Não é uma barreira, é uma muralha – corrigiu o Professor.

– Estou-me nas tintas. Não preciso nem de barreiras nem de muralhas – disse eu. – Posso enfurecer-me um pouco? Não costuma acontecer-me, mas estou cheio de vontade de perder a cabeça.

– Acho que, dadas as circunstâncias, é inevitável – respondeu o Professor, beliscando o lóbulo da orelha.

– O senhor é o único responsável por tudo isto. Eu não tenho culpa de nada. Foi o senhor que começou, que levou o projeto avante e me meteu nisto. Enfiou os circuitos que lhe deu na gana na cabeça de algumas pessoas, fez-me executar um shuffling ilegalmente, obrigou-me a trair o Sistema, lançou os Semióticos em minha perseguição, arrastou-me para um subterrâneo absurdo e agora pretende acabar com o meu mundo. Nunca vi coisa mais espantosa! Não lhe parece? Ao menos, deixe-me como estava.

– Hum... – grunhiu o Professor.

– Ele tem razão, avô – interveio a rapariga gorda. – Vives tão metido nas tuas coisas que nem te dás conta dos males que causas. Com aquela investigação da barbatana da cauda aconteceu o mesmo, lembras-te? Tens de fazer qualquer coisa.

– Fiz o que fiz a pensar no seu bem, mas a situação foi sempre piorando – lamentou-se o idoso. – Até que me escapou das mãos. Já não posso fazer nada, e você também não. A roda gira cada vez mais depressa e nada pode detê-la.

– Oh, não! – repeti.

– Mas você – acrescentou –, naquele mundo pode recuperar o que perdeu neste. O que perdeu e o que continua a perder.

– O que perdi?

– Sim – reiterou o Professor. – Tudo o que perdeu. Está tudo lá.


O Fim do Mundo

26

A Central Elétrica

Quando acabei de ler os sonhos disse à bibliotecária que tencionava ir à Central Elétrica, e o seu rosto ensombrou-se.

– Fica no interior do Bosque – disse ela, apagando as brasas incandescentes no balde de areia.

– Logo à entrada – precisei. – O Guardião disse-me que não corro qualquer risco.

– Ninguém sabe o que o Guardião pensa. Por mais que diga que está à entrada, o Bosque não deixa de ser um lugar perigoso.

– De qualquer maneira, vou até lá. Quero encontrar um instrumento musical, custe o que custar.

Quando acabou de tirar o carvão todo, abriu o gavetão inferior e esvaziou para o balde a cinza branca que se acumulava no seu interior. Abanou a cabeça várias vezes.

– Acompanho-te – decidiu a rapariga.

– Porquê? Não gostas de chegar perto do Bosque, eu sei. Não te sintas obrigada a ir.

– Não podes ir sozinho. A verdade é que não estás consciente de todos os perigos do Bosque.

* * *

Dirigimo-nos para leste ao longo do Rio, debaixo de um céu carregado. A manhã estava tão cálida que mais parecia ter já chegado a primavera.

Não havia vento e até o murmúrio da água perdera a sua fria claridade habitual e adquirira um timbre opaco. Ao fim de dez ou quinze minutos de caminho, tirei as luvas e desembaracei-me do cachecol que levava ao pescoço.

– Parece primavera – comentei.

– É verdade. Mas este calorzinho não vai durar mais do que um dia. É sempre a mesma coisa. O frio de inverno regressa logo a seguir.

Caminhámos pela margem do Rio, em direção a nascente. Depois de deixarmos para trás as últimas casas dispersas, encontrámos campos de cultivo do lado direito do caminho, ao mesmo tempo que o chão de seixos redondos se convertia num estreito carreiro enlameado. Nos sulcos dos campos, a brancura da neve traçava uma infinidade de linhas que lembravam aranhiços. Pelo seu lado, na margem esquerda do Rio havia uma quantidade infinda de chorões, cujos ramos pendiam sobre a água. Pequenos pássaros pousavam nos frágeis ramos e, depois de os fazer abanar várias vezes, como se estivessem a tentar manter o equilíbrio sobre eles, desistiam e tornavam a levantar voo. A luz do Sol era pálida e doce, e várias vezes levantei a cabeça e deixei que o seu suave calor me acariciasse o rosto. Ela levava a mão direita no bolso do casaco dela e a esquerda no bolso do meu. Na minha mão esquerda eu levava uma pequena maleta e, com a direita, agarrava a dela, dentro do meu bolso. Na maleta levava o almoço e uma gentileza para o Encarregado da Central Elétrica.

Quando a primavera chegar, tudo se tornará mais fácil, pensei, com a minha mão presa à sua mão morna. Se o meu coração conseguisse ultrapassar o inverno, se o corpo da minha sombra conseguisse ultrapassar o inverno, eu recuperaria o meu coração, melhor e mais forte. Tal como a sombra dissera, era preciso vencer o inverno.

Caminhámos lentamente junto ao Rio enquanto os nossos olhos deslizavam pela paisagem. Não falávamos, não porque não tivéssemos nada para dizer, mas porque não sentíamos necessidade de o formular por palavras. A brancura da neve gelada nos grandes sulcos, os pássaros que seguravam no bico os frutos vermelhos das árvores, as plantas verdes invernais, de folhas grossas e rígidas, as pequenas poças de água transparente que, aqui e ali, o Rio formava, a silhueta da serra coroada de neve: olhávamos para uma coisa a seguir à outra como que para confirmar a sua existência. Tudo o que se refletia nas nossas pupilas absorvia com avidez aquele calor efémero que surgira de repente e se infiltrava até às zonas mais recônditas dos nossos corpos. Nem sequer as nuvens que cobriam o céu destilavam a sensação opressiva do costume e pareciam envolver o nosso pequeno mundo com mãos suaves e tépidas.

Vimos também alguns animais que vagueavam pela erva seca em busca de comida. O seu pelame, de um dourado pálido, embranquecera. Tinham o pelo muito mais comprido do que no outono, e também mais espesso, mas, apesar disso, percebia-se que haviam enfraquecido muito. Os ossos espetavam-se visivelmente na pele, como as molas de um velho sofá, e a carne dos beiços pendia flácida. Os olhos haviam perdido o brilho, as articulações das quatro patas estavam proeminentes como bolas. A única coisa que não mudara fora o corno branco que lhes nascia no focinho. O corno continuava apontado ao céu, direito e orgulhoso como sempre.

Reunidos em pequenos grupos de três ou quatro, os animais deslocavam-se ao longo dos sulcos no campo, de um arbusto para o outro. No entanto, nas árvores já quase não havia folhas ou bagas vermelhas comestíveis, moles. Nos ramos das árvores altas ainda restava um ou outro fruto, mas os animais não conseguiam chegar-lhes, e ali permaneciam, junto das árvores, na esperança vã de encontrar frutos caídos, observando com tristeza os pássaros que os bicavam.

– Porque é que estes animais não tocam nos frutos dos campos? – perguntei.

– Porque é assim. Se bem que não conheça o motivo – disse. – Os animais não comem aquilo que alimenta o homem. Se lhes damos qualquer coisa, comem-no, mas se nós não lho oferecermos, eles não tocam em nada.

Na borda do Rio, alguns animais, com as patas dianteiras dobradas, inclinavam-se sobre a água para beber. Quando passámos perto deles, continuaram a beber sem sequer levantar a cabeça. Os cornos brancos refletiam-se na superfície do Rio com tanta nitidez que parecia que um monte de chifres brancos tinha caído no fundo das águas.

* * *

Tal como me explicara o Guardião, depois de percorrer cerca de trinta ou quarenta metros ao longo do Rio e deixar para trás a Ponte Oriental, encontrámos um pequeno carreiro que virava para a direita, para sul. Era tão estreito que, se não estivéssemos atentos, teríamos passado sem o ver. Já não se viam os campos, apenas um prado de ervas altas e cerradas, secas, ao longo de um dos lados do caminho. Entre os campos de cultivo e a floresta estendia-se um prado como para os separar.

Pouco a pouco, o terreno começou a subir, ao mesmo tempo que a erva rareava. A ladeira tornou-se mais íngreme, até se transformar numa montanha rochosa. No entanto, por mais que lhe dê este nome, não se tratava de uma elevação abrupta, mas de uma formação escalonada. A rocha era um arenito relativamente macio e os degraus tinham as arestas arredondadas pelo uso. Depois de subirmos um bom bocado, alcançámos o topo. Não devia ser muito mais alta do que a Colina Ocidental, onde eu vivia.

Ao contrário do que acontecia no lado norte, a ladeira sul da colina formava um suave declive. O prado de erva seca prolongava-se um pouco mais, e a seguir estendia-se, amplo como o mar, o negro Bosque Oriental.

Sentámo-nos para recuperar o fôlego e permanecemos um bocado a observar a paisagem. Vista dali, a Cidade tinha um aspeto muito diferente do que estava habituado a ver. O Rio traçava uma surpreendente linha reta, sem uma única curva: parecia ter sido escavado de forma artificial. A norte do Rio estendia-se o Pântano e, à direita deste, separado pelo Rio, o Bosque Oriental, que provocara a erosão do solo, transformando-o num planalto isolado. Vimos também os campos de cultivo, na margem do rio que acabáramos de deixar para trás. Em toda esta zona não se via uma única casa e a Ponte Oriental estava deserta, envolta numa atmosfera de nostalgia. Esforçando a vista um pouco mais, era possível ver o Bairro Operário e a Torre do Relógio, mas, por qualquer razão, ambos pareciam espectros sem corpo, chegados de um lugar remoto.

Depois de uma pequena pausa, começámos a descer a colina em direção ao Bosque. À entrada deste havia um tanque tão pouco profundo que se via o fundo e, no centro, emergiam as grandes raízes, da cor de ossos, de uma árvore morta. Sobre as raízes descansavam pássaros brancos, que nos olhavam fixamente. A neve estava dura e, quando a pisávamos, não deixávamos qualquer marca. O longo inverno transformara por completo o aspeto do Bosque. Não se escutavam os trinados dos pássaros, nem se viam insetos. Apenas as enormes árvores continuavam a absorver a força vital das profundezas da terra, erguendo-se até ao céu coberto de grandes nuvens negras.

Quando percorríamos o caminho do Bosque, chegou-nos ao ouvido um ruído estranho. Parecia o uivar do vento quando atravessa a floresta, mas não corria a mais leve aragem e, além do mais, tratava-se de um ruído mais uniforme. Progressivamente, o ruído foi ganhando força e nitidez, mas continuávamos sem saber de onde vinha. Ela também nunca tinha ido à Central Elétrica.

Vimos um enorme ulmeiro e, por trás, um terreiro deserto. Ao fundo erguia-se o edifício do que parecia ser a Central Elétrica, se bem que, na realidade, não houvesse qualquer tabuleta a indicá-la. Era parecida com um enorme hangar. Não se via qualquer instalação especial, nenhum cabo de alta tensão. O estranho ruído do vento parecia provir do interior daquele edifício de tijolo. Na fachada via-se uma sólida porta de ferro de dois batentes e, na parte superior, uma fila de janelinhas. O caminho terminava naquele terreiro.

– Deve ser a Central Elétrica – disse eu.

A porta devia estar fechada à chave, já que nem sequer unindo forças fomos capazes de a fazer mexer.

Decidimos contornar o edifício. A central era mais comprida do que larga, e na parte superior de todas as paredes via-se a mesma fila de janelinhas que havia na fachada. Era por estas janelas que saía o ruído. Não havia mais nenhuma porta, apenas as lisas e anódinas paredes de tijolo, que tinham algumas semelhanças com a muralha que rodeava a Cidade. No entanto, chegando perto, verificava-se que os tijolos eram grosseiros e de uma qualidade muito diferente daqueles que compunham a Muralha. Eram rugosos ao tato e muitos estavam lascados.

Nas traseiras, encostada ao edifício, via-se uma casinha também de tijolo. Era do mesmo tamanho que a cabana do Guardião e tinha uma janela e uma porta normais. Pendurado na janela, um saco de cereais fazia as vezes de cortina e no telhado erguia-se uma chaminé negra de fuligem. Ali, ao menos, sentia-se o odor de uma vida humana. Por três vezes dei três pancadas na porta, mas não obtive resposta. A porta estava fechada à chave.

– Olha, há ali uma entrada – disse-me ela, agarrando-me na mão.

Quando me virei na direção que me indicava, vi, numa esquina das traseiras do edifício, uma porta de ferro aberta para fora.

Diante da porta, o ruído era quase ensurdecedor. O interior estava muito mais escuro do que seria de esperar e, antes de os meus olhos se habituarem à obscuridade, não fui capaz de ver nada, apesar de ter posto a mão em pala sobre os olhos. Não havia nenhuma luz – era estranho que, numa central elétrica, não existisse uma única lâmpada – e a débil claridade que entrava pelas janelinhas lá no alto não chegava além do teto. Perante os meus olhos, só o ruído do vento bailava dentro do edifício deserto.

Calculei que, se chamasse, ninguém me responderia; portanto, ainda à entrada, tirei os óculos de sol e aguardei que os meus olhos se adaptassem à obscuridade. Ela parou mesmo atrás de mim. Dava a impressão de que não queria aproximar-se demasiado do edifício: o ruído do vento e a escuridão amedrontavam-na.

Como estava habituado a viver no escuro, os meus olhos não demoraram muito tempo a adaptar-se à penumbra, e logo vislumbrei a silhueta de um homem parado no centro. Um homem de estatura pequena e magro. À sua frente erguia-se, a direito até ao teto, uma grossa coluna cilíndrica de ferro com três ou quatro metros de diâmetro, em que o homem tinha cravado os olhos. A não ser a coluna, não existia mais nada parecido com uma instalação elétrica, uma máquina: o edifício estava tão vazio como um picadeiro coberto. O chão estava pavimentado com os mesmos tijolos das paredes. Parecia um forno gigantesco.

Entrei sozinho no edifício, deixando-a à porta. Percorrera já metade da distância que me separava da coluna quando o homem deu pela minha presença. Sem mudar de posição, limitou-se a virar a cabeça na minha direção e olhou-me fixamente, enquanto me aproximava. Era jovem, pouco mais novo que eu; a antítese de um encarregado. Tinha braços, pernas e ombros muito magros e uma tez pálida. De pele lisa, sem barba, a linha do cabelo recuara até lhe deixar a descoberto uma testa alta. Vestia roupa limpa e cuidada.

– Bom dia! – saudei-o.

Sempre com a boca firmemente cerrada, inclinou-se ligeiramente, num gesto de saudação.

– Estou a incomodar? – perguntei. Dado o ruído do vento, vi-me forçado a falar aos gritos.

O homem abanou a cabeça, em sinal de que não o incomodava, e indicou-me uma janelinha de vidro, do tamanho de um postal, que havia na coluna. O gesto parecia sugerir-me que espreitasse. Olhando com atenção, dei-me conta de que a janela fazia parte de uma porta que se abria na coluna, firmemente presa com pernos. Do outro lado do vidro, uma espécie de ventoinha gigantesca, instalada paralelamente ao chão, girava com violenta energia. Parecia um motor com mil cavalos de potência, rodando sobre um eixo. Era de presumir que a força do vento que entrava por um sítio qualquer fizesse girar com intensidade as pás da ventoinha, que produziria eletricidade. Pelo menos, foi o que imaginei.

– Que grande vendaval! – disse eu.

O homem assentiu, dando-me razão. A seguir, pegou-me por um braço e conduziu-me para a entrada. Eu media mais meia cabeça do que ele. Dirigimo-nos para a porta, lado a lado, como bons amigos. À entrada, ela esperava-me, de pé. O jovem fez uma ligeira vénia à sua frente, da mesma forma que fizera comigo.

– Bons dias – saudou-o a jovem gordita.

– Bons dias – respondeu o homem.

Conduziu-nos a um lugar onde mal se ouvia o ruído do vento. Atrás da cabana estendia-se um campo arado, que ligava com o Bosque. Sentámo-nos nuns cepos, lado a lado.

– Peço que me desculpem, mas digamos que não tenho uma grande voz – começou o jovem Encarregado, em tom de desculpa. – Calculo que tenham vindo da Cidade, não é assim?

Respondemos afirmativamente.

– Como podem ver – prosseguiu –, é a força do vento que produz a eletricidade para a Cidade. Nesta zona abundam poços enormes, e utilizamos o vento que brota do seu interior. – Calou-se por instantes, com o olhar cravado no chão a seus pés. – O vento levanta-se uma vez de três em três dias. Neste subsolo há muitas grutas por onde circulam o vento e a água. Estou encarregado de fazer a manutenção das instalações. Nos dias em que o vento sopra, lubrifico a maquinaria; também trato de evitar que os interruptores congelem. A eletricidade produzida aqui chega à Cidade por cabos subterrâneos.

Depois de pronunciar estas palavras, varreu os campos com o olhar. Em torno do terreno cultivado erguia-se, alto como uma muralha, o Bosque. A terra negra dos campos estava cuidadosamente lavrada, mas ainda não tinha dado fruto.

– Nos meus momentos livres vou desbastando lentamente o Bosque e alargando o terreno. Claro que pouco posso fazer. Contorno as árvores grandes e escolho as zonas mais acessíveis. Mas é bom fazer qualquer coisa com as nossas próprias mãos. Quando chegar a primavera, vou poder apanhar legumes. Vieram em visita de estudo?

– Mais ou menos – respondi.

– Os habitantes da Cidade não costumam aparecer por aqui – comentou. – Ninguém entra na floresta. A não ser o distribuidor, claro. Vem uma vez por semana trazer-me a comida e artigos de uso diário.

– E vive sempre aqui sozinho? – perguntei.

– Sim, há muito tempo. Sei o estado de cada uma das engrenagens da central só pelo ruído que produzem. É como se passasse os dias a conversar com as máquinas. Depois de o fazeres durante bastante tempo, aprendes. Se as máquinas se mantêm em bom estado, sinto-me em paz comigo mesmo. Também conheço os sons do Bosque; emite sons variados. É como se estivesse vivo.

– Não é muito duro viver sozinho na floresta?

– Duro? Se é duro? Não percebo essa pergunta – disse ele. – O Bosque existe, está aqui, e eu vivo cá; é a única coisa que importa. Alguém tem de ficar aqui a tratar das máquinas. Além do mais, vivo mesmo à entrada do Bosque, não conheço a zona mais interior.

– Além de si, há mais pessoas a viver na floresta? – perguntou a rapariga.

O Encarregado refletiu durante um instante e, logo de seguida, respondeu, com pequenos movimentos de cabeça:

– Conheço algumas. Os que vivem no campo dedicam-se à extração do carvão, a desbastar o Bosque para cultivar qualquer coisa. No entanto, vi muito pouca gente e apenas trocámos umas palavras. Não me aceitam. Eles vivem no Bosque, e eu vivo aqui sozinho. No interior da floresta deve haver mais gente, mas nunca lá entrei e eles quase nunca chegam perto da entrada.

– Alguma vez viu uma mulher? – quis saber a rapariga. – Uma mulher com uns trinta e um, trinta e dois anos?

O Encarregado abanou a cabeça.

– Não, nunca vi mulher nenhuma. Só homens.

Olhei-a, mas ela não disse mais nada.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

27

Palito Enciclopédico.
Imortalidade. Clipes

– Oh não! – exclamei. – De certeza que não se pode fazer nada? E, segundo os seus cálculos, em que estado me encontro agora?

– Está a referir-se ao estado do seu cérebro? – perguntou o Professor.

– Claro – retorqui. – A que estado iria referir-me, então? Até que ponto é que o meu cérebro já se deteriorou?

– Segundo os meus cálculos, há umas seis horas que a ligação B se fundiu. Tenha em conta que se trata de um termo técnico, não significa que o seu cérebro se esteja a fundir ou qualquer coisa do género. Temos então que...

– O circuito 3 fechou-se e o circuito 2 está morto.

– Efetivamente. É por isso que, como lhe disse há bocado, o seu cérebro está a começar a criar as pontes de ligação. Em resumo, começou a produzir memórias. Se me permite utilizar uma metáfora, para lidar com essas mudanças formais, criou cabos de ajustamento entre as camadas superficiais da sua consciência e essa fábrica de elefantes no seu inconsciente.

– O que significa – prossegui – que a ligação A não funciona como deve ser, não é verdade? Ou seja, existe uma fuga de informação a partir dos circuitos do inconsciente.

– Não é bem assim – corrigiu o Professor. – Esses cabos já existiam desde o princípio. Por mais que se diversifiquem os circuitos de pensamento, essa ligação não pode cortar-se. O mesmo é dizer que a sua consciência superficial, ou seja, o circuito 1, constrói-se alimentando-se do seu subconsciente, nomeadamente do circuito 2. Estes cabos são as raízes da árvore e, ao mesmo tempo, a terra. Porque o cérebro humano não poderia funcionar sem eles, deixámo-los ficar no sítio. No limite do mínimo necessário, a um nível onde não possa acontecer nem uma fuga desnecessária, nem um refluxo de consciência. É claro que a descarga de energia produzida pela ligação B, ao fundir-se, teve um impacto fora do normal sobre este cabo. E o seu cérebro, apanhado de surpresa, começou o trabalho de reajustamento.

– E isso significa que a produção renovada de memórias vai continuar a um ritmo acelerado?

– Precisamente. Dito de uma forma simples, trata-se de uma espécie de paramnésia, um déjà vu. Os dois processos assentam num princípio muito semelhante, e essa produção prosseguirá durante algum tempo. Pouco depois, dará início a uma reestruturação do mundo baseando-se nas suas novas recordações.

– Uma reestruturação do mundo?

– Sim. Neste momento, você está a fazer os preparativos para se trasladar para outro mundo. É por isso que o mundo em que vive no presente muda pouco a pouco, adequando-se a esta nova realidade. É assim o conhecimento: o mundo altera-se de acordo com a nossa perceção. Existe, sem dúvida, aqui e agora, mas do ponto de vista fenomenológico, o mundo não passa de uma entre um número infinito de possibilidades. Para ser mais preciso, o mundo muda segundo se dê um passo para a direita ou um passo para a esquerda. Portanto, o mundo muda à medida que as recordações mudam.

– Parece-me um sofisma – disse. – É demasiado conceptual. O senhor não considera a temporalidade. O problema que vejo é que o seu raciocínio cai num paradoxo temporal.

– Em certo sentido, o seu caso é um paradoxo temporal de grande alcance – declarou o Professor. – Porque você está a criar um mundo paralelo a partir de memórias.

– Então, este mundo que comecei a experimentar está a afastar-se lentamente do meu mundo original?

– Aí está uma questão para a qual ninguém tem resposta ou que não é possível demonstrar. Limito-me a dizer que não se pode excluir a possibilidade. Não estou a referir-me a um mundo paralelo extremo, como os que aparecem nos romances de ficção científica, claro. Não, trata-se de um problema cognitivo, da forma que o mundo adota em função da perceção que tem dele através do conhecimento. E creio que esse mundo se altera conforme a perspetiva que assumir.

– E depois da mudança, a ligação A transforma-se, aparece um mundo diferente e eu vou viver nele? E não posso fazer nada para evitar tal mudança? Devo ficar de braços cruzados?

– Temo que sim.

– E até quando vai durar esse mundo?

– Para sempre – foi a resposta do Professor.

– Não percebo. Como é que pode ser para sempre? O corpo tem os seus limites. Se o corpo morre, o cérebro também morre. E se o cérebro morre, acaba-se a consciência, não é verdade?

– Não. No pensamento, o tempo não existe. É a diferença entre sonhos e pensamento. Em pensamento é possível abarcar tudo num só instante. Também é possível experimentar a eternidade, da mesma forma que é possível criar um circuito fechado que dá uma volta atrás de outra. É isso o pensamento. Não é possível interrompê-lo, como acontece com os sonhos. Nesse aspeto é parecido com o palito enciclopédico.

– O palito enciclopédico?

– O palito enciclopédico é um jogo teórico inventado por um cientista qualquer: assenta na teoria de que é possível gravar toda uma enciclopédia num palito de dentes. Sabe como?

– Não.

– É muito engenhoso. A informação, quer dizer, o conteúdo da enciclopédia é passado a números. Todas as letras são transformadas em números de dois dígitos. O A converte-se em 01, o B em 02, e assim sucessivamente. O 00 é um espaço em branco; os pontos e as vírgulas também se convertem em números. A seguir, coloca-se uma vírgula decimal no início de cada sucessão de algarismos. O que resulta numa fração decimal incrivelmente longa. Por exemplo: 0,1732000631... Depois faz-se uma marca no ponto do palito que corresponde a este número específico. Por exemplo, ao 0,50000... corresponde um ponto colocado bem a meio do palito de dentes; ao 0,3333... um ponto situado a um terço da extremidade. Está a perceber?

– Sim.

– Desta forma, qualquer informação, por extensa que seja, fica reduzida a uma marca num palito de dentes. Claro que isto só funciona em teoria, não se pode levar à prática. Com a tecnologia de que dispomos nos dias que correm, é impossível fazer marcas tão rigorosas. Mas apanhou a ideia, certo? O tempo é o comprimento do palito de dentes. A quantidade de informação que guarda não tem relação nenhuma com o comprimento. Pode ser tão extensa quanto se queira, e, inclusivamente, chegará quase até ao infinito. Não acaba, compreende? O problema está no software. Não tem qualquer relação com o hardware. Pode ser um palito de dentes, um tronco de madeira com duzentos metros de comprimento ou o equador; não tem a menor importância. Mesmo que o corpo morra e a sua consciência se extinga por completo, o seu pensamento, captado no instante anterior, continuará a dividir-se eternamente. Recorde o velho paradoxo da flecha que voa. O que diz que «uma flecha que vai no ar está imóvel», ou seja, que uma seta em voo está, de facto, em repouso. Pois bem, a morte do corpo físico é a flecha que vai no ar. Voa em linha reta, apontada ao seu cérebro. Ninguém consegue escapar a isto. Chega sempre o dia em que toda a gente morre e o seu corpo desaparece. O tempo faz a seta avançar. Contudo, tal como já disse, o pensamento pode continuar a fracionar o tempo até ao infinito. A flecha nunca atingirá o alvo.

– O mesmo é dizer que é possível alcançar a eternidade – disse eu.

– Exato. Em pensamento, o ser humano é imortal. Para ser mais preciso, não chega a ser imortal, mas fica muito perto de uma imortalidade ilimitada. A vida eterna.

– Era esse o verdadeiro objetivo da sua investigação, não era?

– Não, não é verdade – disse o Professor. – De início, nem sequer me tinha dado conta disso. Contudo, no decorrer da investigação, deparei-me com esse facto e estudei-o, movido pela curiosidade. E foi então que descobri: o ser humano não chega à imortalidade através da expansão do tempo; só pode alcançá-la fracionando-o.

– E foi então que decidiu arrastar-me para dentro desse mundo da imortalidade?

– Foi um acidente, não foi premeditado. Acredite em mim, não estou a mentir. Não tinha intenção de o colocar nesta situação, contudo, agora não temos escolha. Só existe uma maneira de escapar do mundo da imortalidade.

– E em que consiste?

– Em morrer neste preciso instante – declarou, expedito, o Professor. – Em morrer antes que a ligação A entre em funcionamento. Assim, não restaria nada.

No interior da caverna fez-se um prolongado silêncio. O Professor pigarreou, a jovem gorda suspirou e eu emborquei um trago de uísque. Ninguém pronunciou uma única palavra.

– E... como seria esse mundo imortal? – quis saber.

– Como já lhe disse – afirmou o Professor –, é um mundo pleno de paz. Foi você que o construiu, é o seu próprio mundo. E nele poderá finalmente voltar a ser você mesmo. Contém e inclui tudo, e, ao mesmo tempo, não tem nada. Consegue imaginar?

– Não.

– Claro, foi o seu inconsciente que o construiu. E não é toda a gente que o pode fazer, garanto-lhe. Há pessoas que se veriam forçadas a vaguear eternamente num mundo incoerente e caótico, mas você não; é uma pessoa perfeitamente adaptada à imortalidade.

– E quando passará ele para esse mundo? – perguntou a neta.

O Professor consultou o relógio de pulso. Fiz o mesmo com o meu. Eram seis e vinte e cinco da manhã. Amanhecera entretanto. Já tinham distribuído a edição matinal dos jornais.

– Dentro de vinte e nove horas e trinta e cinco minutos – calculou o Professor. – Com uma margem de erro de quarenta e cinco minutos, mais ou menos. Programei a mudança para o meio-dia por ser mais fácil de perceber. Amanhã ao meio-dia.

Abanei a cabeça. Teria ele dito «por ser mais fácil de perceber»? Bebi outro trago de uísque. Mas, por mais que bebesse, o álcool não estava a ter o menor efeito sobre o meu corpo. Nem sequer notava o sabor do uísque. Tinha a estranha impressão de que o meu estômago se transformara em pedra.

– O que vais fazer agora? – perguntou-me a jovem, pousando-me a mão no joelho.

– Não sei – respondi. – Antes de mais nada, subir à superfície. Odeio a ideia de ficar aqui parado, à espera de que as coisas aconteçam. Quero sair, ir para esse mundo onde amanheceu. Depois pensarei no que fazer.

– Não precisa que lhe explique mais nada? – indagou o Professor.

– Não, obrigado – retorqui.

– Está aborrecido?

– Um pouco – respondi –, mas, aborrecido ou não, as coisas não mudam. Além do mais, é tudo tão bizarro que ainda não tive tempo de o digerir. Talvez mais para a frente me aborreça muito mais. Se bem que, nessa altura, já terei morrido e não estarei neste mundo.

– A verdade é que não pretendia dar-lhe uma explicação tão pormenorizada – disse o Professor. – Porque, não o inteirando de tudo isto, o assunto terminaria sem que tivesse consciência do que se passara. Claro que não vai morrer. É apenas a sua consciência que desaparecerá para todo o sempre.

– O que é o mesmo – revidei. – De todas as formas, prefiro ter tido conhecimento da situação. Trata-se da minha vida. Não quero que me desliguem o interruptor sem que me dê conta. Até onde for possível, quero ser senhor dos meus atos. Diga-me onde é a saída.

– A saída?

– A maneira de sair para a superfície.

– Vai demorar e, além do mais, terá de passar junto ao sítio onde se escondem os Invisíveis. Não se importa?

– Não, nesta altura já não tenho medo de nada.

– De acordo – anuiu o Professor. – Depois de descer a montanha, vai encontrar a água; agora está calma, poderá nadar sem problemas. Tem de nadar em direção a sudoeste. Indico-lhe o rumo com a luz da lanterna. Nade em linha reta e, mais adiante, verá uma pequena gruta na parede de rocha, acima da linha da água. Entre por aí e irá ter aos esgotos. Os esgotos conduzem, em linha reta, aos túneis do metropolitano.

– Do metropolitano?

– Sim, claro. Entre as estações de Gaien-mae e Aoyama-Itchome da linha Ginza do metropolitano.

– Como é isso possível?

– Porque os Invisíveis querem controlar a rede toda. Durante o dia talvez não, mas, quando a noite cai, são donos e senhores do interior do metropolitano. As obras no metro de Tóquio ampliaram enormemente o seu campo de ação: criaram-lhes uma via de acesso. Por vezes, chegam mesmo a atacar um ou outro trabalhador da manutenção e devoram-no.

– E como é que isso não se sabe?

– Se fosse tornado público, as consequências seriam terríveis. Imagine: quem quereria trabalhar no metro? Quem se atreveria a entrar nas carruagens? As autoridades sabem tudo isto, claro, e duplicaram a grossura das paredes, tapam os buracos, iluminam os túneis por onde as linhas correm e vigiam-nos, mas isto não basta para deter os Invisíveis. Numa só noite são capazes de abrir uma passagem através dos muros ou cortar os cabos elétricos à dentada.

– Se a saída é entre Gaien-mae e Aoyama-Itchome, onde diabo estamos agora?

– Pois, diria que por baixo da Avenida Omotesano, perto do Meiji-jingu16, não sei exatamente. A partir daí, só existe um caminho. Demora muito tempo a percorrer, porque é uma passagem muito estreita e dá muitas voltas e reviravoltas, mas não

tem como falhar. Primeiro, deve dirigir-se para Sendagaya. Tenha em conta que o refúgio dos Invisíveis fica perto do Estádio Nacional. Nesse ponto, o caminho desvia para a direita. Vá até ao estádio de basebol de Jingue, uma vez passando o Museu de Pintura, saia para a linha Ginza, na Avenida Aoyama. Leva talvez duas horas a chegar à saída. Foram claras as minhas indicações?

– Sim.

– Atravesse o mais depressa que conseguir a zona onde fica o refúgio dos Invisíveis. Não se distraia. E tenha muito cuidado com o metro. Há cabos de alta tensão e os comboios circulam ininterruptamente. Vai chegar à hora de ponta. Seria uma pena fazer todo este trajeto para acabar esmagado por um comboio.

– Terei cuidado – garanti. – E o que vai o senhor fazer?

– Torci um pé e, além disso, se saísse daqui, a única coisa que ganharia seria ter o Sistema e os Semióticos colados aos meus calcanhares. Para já, permanecerei escondido. Ninguém se aproxima daqui. Por sorte, trouxeram-me comida. Sou muito frugal, e isto dá-me para três ou quatro dias – disse, e acrescentou: – Saia primeiro. Não se preocupe comigo.

– E que fazemos com os dispositivos para afugentar os Invisíveis? Para alcançar a saída, preciso dos aparelhos e o senhor ficaria sem nenhum à mão.

– Vá com a minha neta – disse o Professor. – E ela, assim que o tenha ajudado, voltará para trás e virá ter comigo.

– Boa ideia – aprovou a neta.

– E se lhe acontecer qualquer coisa? Se, por exemplo, a apanharem, o que será de si?

– Não me apanham – declarou ela.

– Não se preocupe – disse o Professor. – Apesar de ser tão jovem, sabe muito bem o que tem de fazer. Pode confiar nela. Pela minha parte, conto com alguns recursos. Em caso de emergência, com uma pilha seca, água e uns pedacitos de metal posso improvisar qualquer coisa para afugentar os Invisíveis. O princípio é bastante simples e, apesar de não ser tão eficaz como o dispositivo, será suficiente para os manter à distância. Fui marcando o caminho todo com pedacinhos de metal, lembra-se? Pois bem, os Invisíveis odeiam-nos. Claro que o efeito dura uns meros vinte minutos.

– Está a falar dos clipes? – perguntei.

– Precisamente. Os clipes são ideais. São baratos, pouco volumosos, enfiam-se uns nos outros e podem usar-se ao pescoço. Como se fosse um colar. Sim, os clipes são fantásticos.

Tirei um punhado de clipes do bolso do meu corta-vento e entreguei-lhos.

– Chegam?

– Caramba, caramba! – admirou-se. – Serão uma grande ajuda. A verdade é que deixei cair demasiados clipes pelo caminho e estava com medo de que não chegassem até mim. Não sei como lhe agradecer, é uma pessoa muito previdente. É raro encontrar alguém com a sua inteligência.

– Avô, temos de ir – disse a neta. – Resta-nos muito pouco tempo.

– Tem cuidado – avisou o Professor. – Os Invisíveis são muito astutos.

– Não te preocupes. Voltarei sã e salva – disse a neta, pousando suavemente os lábios na face do avô.

– Quanto a si, tendo em conta os resultados, tenho de admitir que procedi de forma inqualificável – disse-me o Professor. – Se fosse possível, trocaria de lugar consigo. Já gozei bastante a vida, não há nada de que me arrependa. No entanto, para si é talvez demasiado cedo. Além do mais, foi tudo tão repentino que nem sequer dispôs de tempo para se preparar psicologicamente. De certeza que há uma montanha de coisas que deixa por fazer neste mundo, não é verdade?

Em silêncio, assenti.

– Todavia, não deve ter medo – prosseguiu o Professor. – Não há que recear nada, percebe? Não se trata da morte. É a vida eterna. Nela poderá finalmente ser você mesmo. Comparado com esse, este mundo não é mais do que uma imagem ilusória, não se esqueça.

– Anda, vamos embora! – incitou-me a jovem, agarrando-me pelo braço.

16 Santuário xintoísta que fica no distrito de Shibuya, na cidade de Tóquio, e cuja construção teve início em 1915. (N. das T.)


O Fim do Mundo

28

O Instrumento Musical

O jovem Encarregado da Central Elétrica convidou-nos a visitar a sua cabana. Quando entrámos, ele foi verificar o fogo, dirigiu-se à cozinha com uma chaleira de água quente e preparou uma infusão. O frio do Bosque deixara-nos gelados até aos ossos e a chávena de chá quente reconfortou-nos. Enquanto a saboreávamos, o rugir do vento nunca cessou, nem por um instante.

– Apanho esta erva no Bosque – disse o Encarregado. – Durante o verão, ponho-a a secar à sombra. Aguenta o inverno todo. É nutritiva e aquece o corpo.

– Deliciosa – disse a rapariga.

A tisana era aromática e suave.

– Como se chama esta erva? – perguntei.

– Não sei – respondeu o jovem. – Cresce no Bosque e cheira tão bem que, um dia, decidi fazer uma infusão e prová-la. Trata-se de uma planta verde, baixa, que floresce em julho. Nessa altura do ano, apanho as flores mais pequenas e ponho-as a secar. Os animais também gostam de comer as flores destas plantas.

– Os unicórnios aparecem por aqui? – Estava assombrado.

– Sim, até ao início do outono. Quando o inverno se aproxima, eles afastam-se; mas enquanto o tempo está bom, chegam em pequenos grupos e brincam comigo. E eu divido a minha comida com eles. No inverno, não; mesmo sabendo que poderia dar-lhes comida, não se aproximam do Bosque. Assim sendo, durante o inverno estou completamente sozinho.

– Se quiser, podemos comer os três juntos – disse a rapariga. – Trouxemos sanduíches e fruta de sobra. Gostava de comer connosco?

– Fico muito grato – disse o Encarregado. – Há muito tempo que não como nada preparado por outra pessoa. Tenho uns cogumelos salteados do Bosque. Querem provar?

– Muito obrigado – respondi.

Comemos as sanduíches que ela preparara, a seguir demos conta dos cogumelos, e de sobremesa trincámos a fruta, tudo acompanhado da infusão de ervas. Durante o almoço, ninguém falou. O barulho do vento, que penetrava na cabana como uma corrente de água transparente, enchia o silêncio. Misturado com esse barulho, o tilintar das facas e dos garfos nos pratos tinha um eco sobrenatural.

– Nunca sai do Bosque? – indaguei.

– Nunca – respondeu ele, abanando a cabeça devagar. – É o que está estabelecido. Tenho de cuidar da Central Elétrica. Talvez, um dia, chegue alguém para me substituir. Não sei quando, mas se esse dia chegar, poderei sair do Bosque e regressar à Cidade. Até esse momento, não me é permitido sair. Não posso afastar-me do Bosque nem um pequeno passo, uma vez que tenho que esperar que o vento se levante a cada três dias.

Assenti e bebi o resto da tisana. O ruído do vento já durava há duas horas, duas horas e meia. Quando se prestava atenção, ficava-se com a sensação de que, pouco a pouco, ia puxando por nós. Pensei em como devia ser triste a vida daquele homem novo, ali metido, a ter de escutar o ruído do vento na Central Elétrica deserta, no meio do Bosque.

– É claro que não vieram visitar a Central Elétrica apenas por motivos educativos, pois não? – perguntou o jovem Encarregado. – Como já lhes tinha dito, não é habitual receber visitas dos habitantes da Cidade.

– Andamos à procura de um instrumento musical – expliquei. – Disseram-nos que aqui saberíamos onde encontrar um.

Ele fez que sim com a cabeça várias vezes e, por instantes, observou o garfo e a faca pousados no prato, um sobre o outro.

– É verdade, temos cá alguns instrumentos musicais. São muito velhos, mas se encontrarem algum que esteja utilizável, podem levá-lo. A verdade é que nunca serão tocados. Limito-me a alinhá-los e a olhar para eles. Querem vê-los?

– Se nos permitir – disse eu.

Arrastou a cadeira e levantou-se. Eu imitei-o.

– Sigam-me. Tenho-os dentro de casa, como decoração – explicou.

– Eu fico aqui para arrumar a mesa e preparar o café – sugeriu a rapariga.

O Encarregado abriu a porta do quarto, acendeu a luz e convidou-me a entrar.

– Aqui os tem – disse.

Encostados à parede do quarto alinhavam-se vários instrumentos musicais. Eram todos tão velhos que poderiam classificar-se como antiguidades e, na sua maior parte, tratava-se de instrumentos de corda. Bandolins, guitarras, violoncelos, uma harpa pequena... A maior parte das cordas estava coberta de ferrugem, partida ou nem sequer existia. A bem dizer, parecia muito difícil encontrar por ali outras para as substituir.

Entre eles havia um instrumento que nunca vira. Era de madeira, tinha uma forma parecida à de uma tábua de lavar, com uma fila de protuberâncias de metal que faziam lembrar garras. Peguei nele e tentei arrancar-lhe algum som, mas sem sucesso. Havia ainda vários tambores pequenos, postos em fila. Tinham as baquetas correspondentes, mas parecia impossível tocar o que quer que fosse com elas. Havia também um instrumento de sopro grande, que fazia lembrar um fagote, mas também parecia estar inutilizável.

Sentado numa pequena cama de madeira, o Encarregado observava-me a experimentar um instrumento atrás de outro. Tanto a colcha como a almofada mostravam-se impecavelmente limpas e a cama estava muito bem feita.

– Há algum que possa utilizar? – perguntou.

– Não sei – respondi. – São todos tão velhos!

Ele levantou-se da cama, avançou para a porta, fechou-a e tornou a sentar-se. Como o quarto não tinha janelas, depois de ele fechar a porta o ruído do vento diminuiu bastante.

– Não lhe parece estranho que eu guarde esses objetos? – perguntou-me o Encarregado. – Não há um único habitante da Cidade que se interesse por essas coisas. Todos dispõem dos utensílios necessários para a vida quotidiana: panelas, facas, lençóis, roupa. Basta-lhes isso, satisfazem-se com o básico; ninguém quer mais. Pela minha parte, eu não sou assim. Estas coisas interessam-me muito e não sei dizer porquê. Os objetos de formas complicadas, bonitos, fascinam-me. – Apoiara uma mão na almofada e mantinha a outra no bolso das calças. – E, sabe? – prosseguiu –, para ser sincero, também gosto desta Central Elétrica: a ventoinha, os vários contadores e os transformadores... Talvez esta minha tendência esteja cá desde sempre, o meu gosto por estas coisas, e tenha sido por isso que decidiram mandar-me para aqui. Ou talvez tenha adquirido este gosto já depois de ter vindo para cá, à força de viver sozinho. Passo tanto tempo metido na Central Elétrica que já não me lembro de como era a minha vida anterior. Às vezes, fico com a impressão de que jamais poderei regressar à Cidade. Por causa deste meu gosto, a Cidade nunca me aceitará.

Peguei num violino que apenas tinha duas cordas e dedilhei-o com as pontas dos dedos. Ouviu-se um staccato seco.

– Como é que conseguiu reunir todos estes instrumentos?

– Vêm de diversos lugares – explicou. – Pedi à pessoa que me entrega os alimentos que mos fosse trazendo. Às vezes, aparecia um ou outro velho instrumento no fundo dos armários das casas, ou em algum celeiro. Como não servem para nada, a maioria acabou por ser convertida em lenha, mas, ainda assim, escaparam alguns. Sempre que encontrava um, ele trazia-mo. Todos os instrumentos têm uma forma bonita. Não sei tocar, nem me passava pela cabeça tentar tal coisa, mas contemplo-os e aprecio a sua beleza. Apesar de serem complexos, não têm um único pormenor supérfluo. Costumo sentar-me aqui a observá-los, absorto. Isto basta-me. Parece-lhe estranho?

– Os instrumentos musicais são muito bonitos – disse eu. – Não, não me parece nada estranho.

Os meus olhos pousaram num acordeão pousado no chão, entre um violoncelo e um tambor, e peguei nele. Tratava-se de um modelo muito antigo e, em vez de teclas, tinha botões. O fole estava rígido e tinha algumas fendas, mas, à primeira vista, não parecia ter fugas de ar. Deslizei as mãos por baixo das correias, peguei nele e distendi-o várias vezes. Para que o fole funcionasse eram precisos movimentos mais amplos do que estava à espera, porém, se as teclas funcionassem, arrancar-lhe-ia algum som. De facto, desde o momento que consiga manter o ar, o acordeão é um instrumento que não se estraga com facilidade, e mesmo que tenha uma ou outra fuga, é relativamente fácil de reparar.

– Posso tocar? – perguntei.

– Claro! Avance! Foi feito para isso – incitou-me.

Enquanto dobrava e estendia o fole à direita e à esquerda, fui carregando nos botões por ordem, a partir de baixo. Alguns emitiam um som muito débil, mas reproduziam a escala musical. Tornei a carregar nos botões, de cima para baixo.

– Que som mais peculiar! – exclamou o jovem, profundamente interessado. – É como se os sons mudassem de cor.

– Quando carrego nestes botões soltam-se notas, sons com frequências variadas – disse eu. – São todos diferentes. E, de acordo com a sua frequência, combinam-se, ou não, uns com os outros.

– Não percebo isso de combinar ou não combinar. Que quer dizer «combinar»? Terem necessidade um do outro?

– Mais ou menos – respondi. Tentei tocar um acorde. Não consegui nada que se parecesse, mas o resultado não foi dissonante. Apesar disso, não consegui lembrar-me de nenhuma canção. Apenas de alguns acordes.

– Esses sons combinam?

Disse-lhe que sim.

– Por mim, não sei – disse. – Parecem-me ressonâncias estranhas. É a primeira vez que escuto esses sons, não sei o que dizer. São diferentes do rumor do vento e dos trinados dos pássaros. – Depois de pronunciar estas palavras, pousou as mãos nos joelhos e contemplou alternadamente o meu rosto e o acordeão. – Seja lá como for, ofereço-lhe esse instrumento. Fique com ele. Mais vale uma coisa assim pertencer a alguém que a saiba utilizar. Não faz sentido ficar eu com ela – disse e, ato contínuo, prestou atenção ao ruído do vento. – Vou ver como estão as máquinas. Tenho de as inspecionar de meia em meia hora, para verificar se a ventoinha gira bem, se os transformadores funcionam sem problemas. Não se importava de esperar por mim aqui?

Quando o jovem saiu, voltei à divisão que servia de casa de jantar e de estar e tomei o café que ela me tinha preparado.

– Isso é um instrumento musical? – perguntou-me.

– Sim – respondi. – Mas há instrumentos de muitos géneros e cada um produz um som diferente, sabias?

– Parece um fole...

– Bom, o princípio é o mesmo.

– Posso tocar-lhe?

– Claro que sim – e estendi-lhe o acordeão.

Ela segurou-o com ambas as mãos, muito cautelosa, como se aquele objeto se tratasse da frágil cria de um animal, e contemplou-o de uma ponta à outra.

– Que coisa tão estranha! – exclamou, sorrindo inquieta. – Mas que sorte! Conseguiste um instrumento musical. Estás contente?

– Pelo menos valeu a pena vir até aqui.

– Este homem não conseguiu libertar-se por completo da sua sombra, sabias? Não lhe resta muita, mas ainda tem um bocadinho – sussurrou. – É por isso que está no Bosque. Não tem valor suficiente para entrar, mas também não pode regressar à Cidade. Coitado! Tenho imensa pena dele.

– Pensas que a tua mãe está no interior do Bosque?

– Talvez sim, talvez não – respondeu-me. – Não sei. Só agora pensei em perguntar-lhe.

* * *

Sete ou oito minutos mais tarde, o jovem regressou à cabana. Agradeci-lhe o instrumento, abri a maleta e pus sobre a mesa as ofertas que trouxera. Um pequeno relógio-despertador de viagem, um jogo de xadrez, um isqueiro. Encontrara-os nas maletas do arquivo.

– Aceite como sinal de gratidão pelo instrumento musical, peço-lhe – disse.

O jovem começou por recusar categoricamente, acabando por os aceitar depois. Examinou o despertador, examinou o isqueiro, e depois examinou, uma a uma, as peças do xadrez.

– Sabe jogar? – perguntei.

– Não se preocupe, não me faz falta – disse ele. – São suficientemente bonitas para que me contente com contemplá-las e, além do mais, descobrirei por mim mesmo como se usam. Disponho de tempo que chegue e sobre.

Informei-o de que era altura de nos pormos a caminho.

– Já se vão? – perguntou, com tristeza.

– Temos de regressar à Cidade antes que escureça, e gostava de dormir ainda um pouco antes de ir trabalhar – expliquei.

– Compreendo, claro – respondeu o jovem. – Acompanho-os à porta. Gostaria de vos levar até ao limite do Bosque, mas tenho trabalho e não posso afastar-me daqui.

Despedimo-nos no exterior da cabana.

– Voltem outro dia. E deixem-me escutar o som do instrumento – pediu. – Serão sempre bem-vindos.

– Obrigado.

À medida que nos afastávamos da Central Elétrica, o ruído do vento foi diminuindo de intensidade, e quando chegámos ao limite do Bosque já desaparecera por completo.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

29

Lago. Masatomi Kondo. Meias-Calças

Para que não se molhasse enquanto nadávamos, a jovem gordita e eu reduzimos o nosso equipamento tanto quanto conseguimos. Embrulhámo-lo numa camisa e pusemos tudo à cabeça. Sem dúvida que estaríamos numa figura extremamente ridícula, mas não tínhamos tempo nem sequer para rir. Uma vez que deixáramos para trás as provisões, o uísque e outros objetos supérfluos, o volume não era grande. Eu levava comigo apenas a lanterna, uma camisola, os sapatos, a carteira, a navalha e o dispositivo para afugentar os Invisíveis. Ela ia mais ou menos no mesmo estilo.

– Tenham cuidado – avisou o Professor. Naquela penumbra, parecia muito mais velho do que na primeira vez que o vira. Tinha a pele flácida, o cabelo seco como vegetais plantados num terreno pouco próprio e o rosto salpicado de manchas castanhas. Visto assim, não passava de um velhote cansado. É bem verdade que o destino dos homens, sejam eles cientistas eminentes ou não, é envelhecer e morrer.

– Adeus – disse ele.

Desci pela corda, no meio da escuridão, até chegar à superfície da água. Fui à frente e, quando cheguei ao fundo, fiz sinal com a lanterna para ela descer. Enfiar-me dentro de água naquele negrume era horrível e não me apetecia nada fazê-lo, mas claro, não tinha escolha. A não ser estar fria como o gelo, a água não parecia apresentar mais nenhum problema. Era água normal e corrente. Não escondia nada por baixo da superfície e a sua densidade era a do costume. Em todo o lado reinava a calma e o silêncio próprios do fundo de um poço. Nada se mexia, nem no ar nem na água nem por entre as sombras. Só o nosso chapinhar, ampliado até ao exagero, ressoava naquela obscuridade. Parecia o som produzido por um gigantesco animal aquático a devorar a sua presa. Já estava metido na água, quando dei conta de me ter esquecido de pedir ao Professor que me aliviasse a dor da ferida.

– Aquele peixe das garras não anda por estes lados, pois não? – perguntei, virando-me para o sítio onde calculei que ela estivesse.

– Claro que não – respondeu a moça roliça. – Bom, acho que não. Não deve passar de uma lenda.

Apesar de tudo, não consegui afastar da cabeça a ideia de que aquele peixe enorme iria surgir de repente, vindo das profundezas, para me arrancar uma perna com uma dentada. É bem sabido que as trevas alimentam todo o tipo de terrores.

– E também não há sanguessugas?

– Isso não sei. Diria que não – foi a resposta.

Presos pela corda, contornámos a torre, nadando lentamente para que o equipamento não se molhasse, e, de repente, vimos a luz da lanterna do Professor. O feixe de luz cortava a escuridão numa linha reta, como um farol que projeta uma luz oblíqua, tingindo a água de manchas amarelo-claras.

– Temos de ir a direito nesta direção – indicou ela. O mesmo é dizer que devíamos avançar sobrepondo a luz das nossas lanternas ao clarão que se refletia na superfície da água.

Fui à frente, com ela a nadar atrás de mim. O chapinhar das minhas mãos na água alternava com o dela. De vez em quando parávamos de nadar, virávamo-nos para trás, verificávamos se era aquela a direção certa e retificávamos o rumo.

– Tenta não molhar as tuas coisas – disse-me ela, enquanto ia nadando. – Se o dispositivo se molhar, não serve para nada.

– Fica descansada – respondi.

Na verdade, claro está, era necessário um grande esforço para evitar que aquilo se molhasse. Como estava mergulhado naquela profunda escuridão, nem sequer conseguiria dizer onde se encontrava a superfície da água. Às vezes, nem sequer sabia onde tinha as mãos. Enquanto nadava, recordei-me de Orfeu, forçado a atravessar o Estige para chegar ao Reino dos Mortos. Há no mundo uma infinidade de religiões e mitos, mas, quando se trata da morte, toda a gente pensa invariavelmente no mesmo. Orfeu atravessou de barco o rio das trevas. Eu estava a atravessá-lo a nado, com um embrulho à cabeça. Neste sentido, os gregos da Antiguidade eram muito mais espertos do que eu. A ferida começava a preocupar-me, mas não ganhava nada em perder tempo com elucubrações. Talvez devido à tensão nervosa, já pouco me doía, e apesar de os pontos se terem soltado, tentei convencer-me de que uma ferida assim nunca tinha matado ninguém.

– É verdade que estás muito zangado com o meu avô? – perguntou. Devido à escuridão e aos ecos estranhos, não fui capaz de perceber em que direção e a que distância se encontrava a jovem.

– Não sei. Nem sequer sou capaz de dizer – gritei, virando-me para o sítio onde imaginei que ela estivesse. Até mesmo o eco da minha própria voz me chegou de uma direção estranha. – Enquanto estava a ouvir o teu avô, acabei por chegar à conclusão de que me era indiferente.

– Indiferente?

– A minha vida não vale grande coisa e o meu cérebro também não.

– Mas tu tinhas dito que estavas satisfeito com a tua vida.

– Foi falar por falar – retorqui. – Todos os exércitos precisam de uma bandeira.

A jovem meditou nas minhas palavras durante uns segundos e, entretanto, fomos avançando sem falar. Um silêncio denso e profundo como a morte caiu sobre o lago subterrâneo. Onde andará o peixe?, perguntei para os meus botões. Começava a convencer-me de que aquele peixe sinistro com garras existia realmente. Permaneceria adormecido no fundo do lago? Andaria a nadar noutra gruta qualquer? Ou teria cheirado a nossa presença e estaria, nesse preciso instante, a dirigir-se ao nosso encontro? Ao imaginar o instante em que o peixe me abocanharia a perna, o meu corpo foi percorrido dos pés à cabeça por um estremecimento. Por mais que tivesse de morrer ou desaparecer dentro de pouco tempo, queria evitar ser devorado por um peixe naquele lugar miserável. Se tivesse de morrer agora, preferia que acontecesse à luz do Sol. Apesar de sentir os braços pesados e exaustos da água gelada, continuei a nadar com desespero.

– Mas tu és muito boa pessoa – disse a rapariga. A voz não traía o menor cansaço. O seu tom era tão despreocupado como se estivesse dentro de uma banheira.

– Pouca gente pensa assim – disse.

– Penso eu.

Enquanto nadava, virei-me. A luz da lanterna do Professor já ficara muito para trás, mas as minhas mãos ainda não tinham tocado na ansiada parede rochosa. Porque estará tão longe?, perguntei-me, enfastiado. Se o Professor sabia a que distância se encontrava, não tinha custado nada dizer-mo e eu ter-me-ia mentalizado. O que andaria o peixe a fazer? Será que ainda não descobrira a minha presença?

– Não é intenção minha defender o meu avô – disse a jovem gordita –, mas ele não tem más intenções. Acontece que ele se apaixona por uma coisa e perde de vista tudo o que está à volta. Foi o que aconteceu com isto. Começou com as melhores intenções do mundo: queria despachar-se a resolver o mistério que tu constituis antes que o Sistema pusesse mãos ao trabalho. Se bem o conheço, deve estar cheio de vergonha por ter colaborado com o Sistema e ter-se metido naquelas histórias estúpidas de experiências em seres humanos. Foi tudo um equívoco.

Continuei a nadar em silêncio. Naquela altura, já pouco me importava se ele reconhecesse que estava enganado.

– Então, perdoas-lhe?

– Não tem a menor relevância que o perdoe ou não – respondi. – Mas porque é que deixou o projeto a meio? Se ele se sentia tão responsável, devia ter continuado a investigação dentro do Sistema para evitar que sacrificassem mais pessoas, não te parece? Por mais que o teu avô afirme que detesta trabalhar em grandes organizações, em boa verdade foi por culpa da sua linha de investigação que um montão de pessoas acabou por morrer, uma atrás da outra.

– O meu avô deixou de confiar no Sistema – explicou a rapariga. – Diz que, no Sistema, os Programadores e a Fábrica dos Semióticos são como as mãos direita e esquerda de uma mesma pessoa.

– Como dizes?

– Que aquilo que o Sistema faz e o que faz a Fábrica, tecnicamente, é quase o mesmo.

– Tecnicamente falando, sim. Só que nós protegemos a informação, e os Semióticos roubam-na. Temos objetivos muito diferentes.

– E se fosse a mesma pessoa a dirigir o Sistema e a Fábrica? Isso teria como resultado que, enquanto a mão esquerda rouba uma coisa, a direita protege-a.

Continuando a nadar no escuro, pus-me a pensar nas palavras dela. Apesar de custar a crer, não se podia descartar aquela ideia de ânimo leve. Eu trabalhava para o Sistema, mas se alguém me perguntasse como era a estrutura da organização, não saberia como responder. Porque se tratava de um organismo gigantesco e porque o secretismo regia tudo o que dizia respeito à informação interna. Limitávamo-nos a receber instruções e a executá-las, uma atrás da outra. As pessoas de escalões inferiores, como eu, não faziam a mínima ideia do que se passava lá mais para cima.

– Pois, é verdade, tens razão, seria um negócio com lucros exorbitantes – admiti. – Obrigando-os à concorrência, podiam fazer subir os preços até onde quisessem. E, além do mais, conseguindo garantir que as duas forças se mantivessem equivalentes, não teriam de temer um afundamento dos preços.

– O meu avô deu-se conta disso mesmo enquanto trabalhava para o Sistema. Ao fim e ao cabo, o Sistema não passa de uma empresa privada com ligações ao Estado. E as empresas privadas procuram o lucro, o seu único objetivo é obter benefícios. Para o público, o Sistema arvora a bandeira da defesa dos direitos de propriedade da informação, mas tudo não passa de palavras. O meu avô percebeu que a investigação que fazia iria acarretar graves consequências. Se as técnicas de manipulação livre e arbitrária do cérebro continuassem a avançar àquele ritmo, concluiu ele, a sociedade e a existência do homem chegariam a uma situação insustentável. Era necessário deter aquela voragem, interrompê-la, mas nem o Sistema nem a Fábrica tinham qualquer intenção de o fazer. Foi por isso que o meu avô se retirou do projeto. Era horrível sacrificar-te a ti e aos outros programadores, mas a investigação não podia avançar. O número de vítimas foi muito maior.

– Só por curiosidade: tu estavas a par de tudo, não é verdade? – perguntei-lhe.

– Sim – confessou, depois de hesitar uns segundos.

– E porque é que não me contaste logo a história toda no início? Tinhas-me evitado a vinda a este sítio absurdo, não teria perdido tempo de forma tola...

– Porque tu querias ver o meu avô e ele explicava-te tudo em pormenor – acrescentou ela. – Além disso, se fosse eu a contar-to, de certeza que não terias acreditado em mim.

– Talvez não – concordei. Realmente, a história do terceiro circuito e da imortalidade não é coisa em que se acredite facilmente.

Depois de nadar um pouco mais, de repente, as minhas mãos bateram em algo duro. Absorto nos meus pensamentos, ao princípio nem adivinhei do que se tratava, mas, uns instantes de confusão mais tarde, percebi que era a parede de rocha. Tínhamos conseguido atravessar o lago submarino.

– Chegámos! – exclamei.

Ela aproximou-se de mim e tocou na parede. Quando me voltei, vi brilhar a luz do Professor, diminuta entre as trevas, como uma estrela. Partindo da linha dessa luz, tínhamo-nos desviado talvez dez metros para a direita.

– Deve estar por aqui – disse a rapariga. – Temos de encontrar uma abertura a cerca de cinquenta centímetros acima da superfície da água.

– Achas que terá ficado submersa?

– Não. A água mantém-se sempre à mesma altura. Não sei porquê, mas é assim. Alguns centímetros a mais ou a menos.

Com grandes cuidados para que as coisas que levava à cabeça, embrulhadas na camisa, não se molhassem, tirei para fora a lanterna, apoiei a mão numa fenda da parede e, tratando de manter o equilíbrio, iluminei a zona uns cinquenta centímetros mais acima. A luz amarelada da lanterna banhou a superfície rochosa. Os meus olhos demoraram a habituar-se à luz.

– Não se vê buraco nenhum – disse eu.

– Um pouco mais para a direita – sugeriu ela.

Dirigindo a luz para o alto, fui-me deslocando ao longo da parede, mas não consegui descobrir nada que se parecesse com uma cavidade.

– Tens a certeza de que é para a direita? – indaguei. Agora que parara de nadar e estava imóvel dentro do lago, notava como o frio da água me penetrava até aos ossos. Tinha todas as articulações rígidas, como se estivessem congeladas, e nem conseguia abrir bem a boca ao falar.

– Tenho. Avança um pouco mais para a direita.

A tiritar, desloquei-me um pouco mais para a direita. De repente, a minha mão esquerda, que ia deslizando pela superfície da parede rochosa, apalpou um objeto estranho. Algo redondo e abaulado como um escudo, do tamanho de um LP. Passando-lhe os dedos por cima, apercebi-me de que era esculpido. Iluminei aquela zona para o observar com mais cuidado.

– É um baixo-relevo – disse ela.

Fiz que sim com a cabeça, incapaz de pronunciar uma única palavra. O baixo-relevo era idêntico ao que víramos à entrada do santuário. Dois peixes sinistros com garras que rodeavam o mundo, ligados pela cabeça e a cauda. Como se fora uma lua afundando-se no mar, dois terços do baixo-relevo estavam acima da linha de água, e o terço restante abaixo.

Aquele baixo-relevo estava esculpido com tanta delicadeza como o anterior. Sem dúvida que fora uma tarefa árdua realizar um trabalho tão minucioso num sítio onde era dificílimo arranjar apoio para os pés.

– A saída é aqui – anunciou ela. – Deve existir o mesmo baixo-relevo à entrada e à saída. Olha para cima.

Fui fazendo deslizar a luz da lanterna pela parede rochosa. Vislumbrei qualquer coisa misturada na sombra de uma rocha saliente. Não percebi bem o que era, pelo que lhe entreguei a lanterna e me dispus a trepar.

Para minha sorte, por cima do baixo-relevo havia fendas onde apoiar as mãos. Reunindo todas as minhas forças, icei o meu corpo hirto do frio e apoiei os pés no baixo-relevo. A seguir, levantei a mão direita, agarrei-me à extremidade da rocha saliente, dei um impulso e passei a cabeça acima da rocha. Efetivamente, ali estava a entrada de uma caverna. Senti uma leve correnteza, um ar gélido, bafiento, desagradável, mas, em todo o caso, havia ali um túnel. Finquei os cotovelos na saliência, apoiei os pés num dos buracos e icei-me para cima da rocha.

– Cá está o buraco! – gritei para baixo, ao mesmo tempo que sentia uma pontada de dor na ferida.

Ela ficou aliviada.

Apanhei a lanterna, agarrei a jovem pela mão e ajudei-a a subir. Sentámo-nos bem juntinhos à entrada da caverna, e ali ficámos um bocado, a tiritar. A minha camisa e as minhas calças, completamente encharcadas, estavam tão geladas que pareciam acabadas de tirar do congelador. Sentia-me como se tivesse estado a nadar dentro de um enorme copo de uísque.

Desfizemos o embrulho de roupa que tínhamos trazido à cabeça e vestimos camisas secas. Emprestei-lhe a minha camisola. Despimos as camisas e os casacos molhados. Como não levávamos nem calças nem roupa interior para trocar, tivemos de aguentar e manter o que trazíamos vestido e que continuava molhado.

Enquanto ela verificava se o dispositivo para afugentar os Invisíveis estava a funcionar, fiz sinais luminosos na direção da «torre» para informar o Professor de que havíamos chegado sãos e salvos. Em resposta, a pequena luz amarela que flutuava nas trevas piscou duas ou três vezes antes de se extinguir. Quando a luz desapareceu, o mundo regressou à absoluta escuridão primeva. A esse mundo do nada onde era impossível medir distância, espessura ou profundidade.

– Vamos! – incitou-me a jovem gordita.

Acendi a luz do meu relógio de pulso e vi as horas. Eram sete e dez da manhã. A hora a que todas as cadeias de televisão emitiam o primeiro noticiário. Enquanto tomavam o pequeno-almoço, as pessoas que viviam à superfície estariam a meter nas suas cabeças sonolentas a informação meteorológica, os anúncios de analgésicos e os números da exportação de automóveis para os Estados Unidos. Ninguém sabia que eu passara a noite a vaguear por um labirinto subterrâneo. Ninguém sabia que nadara em água gelada, que as sanguessugas me tinham chupado o sangue, que a dor da ferida me martirizava. Ninguém sabia que o mundo real acabaria dentro de vinte e oito horas e quarenta e dois minutos. Porque essa notícia não dera na televisão.

* * *

Aquela passagem era muito mais estreita do que as que havíamos percorrido até ao momento, e vimo-nos obrigados a avançar agachados, quase de gatas. Além disso, o caminho era tão tortuoso como as vísceras de um animal: subia e descia, dobrava-se para a direita e para a esquerda. Umas vezes, tínhamos de descer por uma parede íngreme, apoiando os pés nas reentrâncias das rochas, e logo a seguir éramos forçados a trepar. Outras vezes, o caminho fazia voltas complicadas, que traziam à memória os carris de uma montanha-russa. Tudo isto nos obrigava a avançar com uma lentidão extrema. De certeza que não tinham sido os Invisíveis a escavar esta passagem; devia antes ser o resultado da erosão. Por mais malvados que fossem, não era credível pensar que tivessem construído um caminho tão complicado e difícil.

Ao fim de trinta minutos, trocámos o dispositivo por outro e, depois de andar mais dez minutos, verificámos que a estreita e tortuosa passagem desembocava de repente numa ampla caverna, de teto alto. Estava deserta e às escuras como o vestíbulo de um edifício antigo e cheirava a mofo. O caminho terminava ali, após o que se bifurcava para a direita e para a esquerda como um T, e notámos uma leve corrente de ar que circulava da direita para a esquerda. Ela iluminou alternadamente os dois ramos do caminho, mas ambos mergulhavam rapidamente na escuridão mais profunda.

– Para onde temos de ir? – perguntei.

– Para a direita – respondeu-me. – É a direção correta e, além disso, é de lá que corre o ar. Foi o que o meu avô disse, não foi? Aqui fica Sendagaya e, virando para a direita, chegamos ao estádio de basebol de Jingu.

Visualizei mentalmente a paisagem exterior. Se ela estivesse certa, por cima de nós deveriam estar os dois ramen-ya que ficam mesmo ao lado um do outro, bem como a livraria Kawade e o Victor Studio. O meu barbeiro também ficava por ali: há dez anos que o frequentava.

– Sabias que o barbeiro onde vou fica por aqui? – disse-lhe.

– Ah, sim? – respondeu-me, sem mostrar o menor interesse.

Disse para os meus botões que não seria má ideia ir cortar o cabelo antes do fim do mundo. De qualquer forma, vinte e quatro horas não davam para fazer grande coisa. Teria tempo para tomar um banho, vestir roupa lavada, ir ao barbeiro e pouco mais.

– Cuidado! – advertiu-me. – Estamos a chegar ao esconderijo dos Invisíveis. Já ouço vozes e cheira mal. Fica perto de mim! Não te afastes!

Prestei atenção e farejei o ar, mas não descobri o menor indício sonoro ou olfativo. Pareceu-me escutar uma onda sonora estranha, algo parecido com «jiuru-jiuru», nada de muito definido.

– Será que sabem que estamos a aproximar-nos?

– Claro! – retorquiu. – Estamos no reino dos Invisíveis. Não há nada que não saibam. Além do mais, devem estar bastante aborrecidos: atravessámos o seu santuário e aproximamo-nos do seu refúgio. Se nos apanharem, fazem-nos passar um mau bocado. Portanto, não te afastes de mim, está bem? Se te afastares por um bocadinho que seja, é certo e sabido que vai sair um braço da escuridão que te vai agarrar e levar-te vá-se lá saber para onde!

Encurtámos a corda que nos unia até ficar com cerca de cinquenta centímetros.

– Cuidado! Aqui não há parede! – guinchou em voz aguda, dirigindo o feixe de luz para a esquerda. Tal como ela dizia, a parede do lado esquerdo desaparecera e, em seu lugar, abria-se um vazio de densas e negras trevas. O feixe de luz atravessou-o como uma flecha, até a ponta desaparecer numa escuridão ainda mais densa. As trevas estavam cheias de vida, respiravam, agitavam-se. Eram sinistras, espessas e turvas como gelatina.

– Estás a ouvir? – perguntou ela.

– Estou.

A voz dos Invisíveis chegava-me agora aos ouvidos com grande nitidez. Para ser preciso, não era bem uma voz, mais parecia um zumbido. O zumbido de milhares de asas de insetos que atravessava a escuridão e me entrava pelos ouvidos, afiado como uma broca. O rumor reverberava com violência nas paredes rochosas e, distorcido em estranhos ecos, perfurava-me os tímpanos. Tinha vontade de atirar com a lanterna, pôr-me de cócoras e tapar os ouvidos. Os meus nervos sofriam o desgaste da lima do ódio.

Aquele ódio era diferente de qualquer outro que tivesse experimentado antes. O ódio dos Invisíveis fustigava-nos qual rajada de vento saída da boca do inferno com a intenção de nos despedaçar. Aquela escuridão negra, como que condensando todas as sombras do subsolo, e o fluir do tempo, deformado e embrutecido num mundo que havia perdido a luz e os olhos, formavam uma massa gigantesca que gravitava sobre nós. Até então nunca pensara que o ódio pudesse pesar tanto.

– Não pares! – gritou-me ao ouvido.

A voz dela soava seca, mas sem tremer. Foi só com o seu grito que me apercebi de que me imobilizara. Ela deu um forte puxão na corda que nos unia pela cintura.

– Não podes parar! Se paras, é o teu fim, arrastam-te para as trevas.

Só que os meus pés não se moviam, o ódio dos Invisíveis mantinha-os solidamente cravados no chão. Parecia-me que o tempo recuava até recordações de terrores imemoriais. Já não conseguia avançar para lado nenhum.

Vinda do escuro, a mão dela deu-me uma forte estalada na cara. O bofetão foi tão brutal que, por instantes, fiquei surdo.

– Para a direita! – ouvi-a gritar. – Direita! Estás a ouvir? Avança o pé direito. O direito, idiota!

A tremer, lá consegui avançar o pé direito. E nas vozes deles percebi um leve toque de desapontamento.

– O esquerdo! – gritou, e eu movi o pé esquerdo. – Fantástico! Continua! Avança devagar, um pé de cada vez. Estás bem?

Respondi que sim, mas sem sequer ter a certeza de que a minha boca tivesse pronunciado qualquer palavra. Sabia apenas que os Invisíveis queriam arrastar-nos para dentro da escuridão mais negra. Esforçavam-se por fazer o terror entrar-nos pelos ouvidos e deter os nossos passos para depois nos conduzir, pouco a pouco, para o seu território.

Tendo conseguido mover os pés, fui assaltado por um impulso irresistível de começar a correr. Queria escapar o quanto antes daquele lugar aterrador.

Como se pudesse ler os meus pensamentos, ela estendeu a mão e agarrou-me pelo pulso com dedos de ferro.

– Vira a luz para o chão. Encosta-te à parede e avança de lado, um passo de cada vez. Percebeste?

– Sim – respondi.

– E que não te passe pela cabeça virar a luz para cima.

– Porquê?

– Porque os Invisíveis estão aí, mesmo por cima das nossas cabeças – sussurrou a moça gorducha. – E não podes olhar para eles. Se os visses, não conseguirias dar nem mais um passo.

Tornei a virar o feixe de luz para o chão e fomos avançando de lado, devagar. De vez em quando, o ar gélido que nos fustigava a cara trazia-nos um fedor repugnante a peixe podre, e sempre que tal acontecia, cortava-me a respiração. Era como se estivéssemos prisioneiros dentro do ventre de um enorme peixe estripado e com as vísceras infestadas de vermes. Continuávamos a ouvir a voz dos Invisíveis. Era um som tão desagradável como o ruído que se arranca à força de algo que não costuma produzir som algum. Tinha os tímpanos endurecidos, e, de vez em quando, vinham-me à boca golfadas de saliva amarga.

Apesar de tudo, os meus pés iam avançando num movimento mecânico. Todos os meus nervos estavam concentrados em fazer mover alternadamente o direito e o esquerdo. Uma vez por outra, ela dizia-me qualquer coisa, mas as suas palavras não me chegavam aos ouvidos. Contou-me que, enquanto vivesse, nunca conseguiria apagar as vozes deles da memória. Que voltariam a assaltar-me, um dia, sem aviso, vindas das profundezas da escuridão. E, um dia, sem aviso, fatalmente, as suas mãos viscosas surgiriam das trevas para me agarrarem pelos tornozelos.

Quanto tempo teria passado desde que entrara naquele mundo de pesadelo? Já não sabia. Ela levava na mão o dispositivo para afastar os Invisíveis, que continuava com a luz azul acesa; não estávamos ali há muito tempo, mas podia jurar que tinham passado duas ou três horas.

De súbito, pareceu que a corrente de ar mudara. O fedor a podre atenuou-se, a pressão nos meus ouvidos foi baixando como a maré e os ecos também se alteraram. E quando nos demos conta, as vozes dos Invisíveis já soavam longe, como o ronco surdo das vagas. Tínhamos ultrapassado o pior. Quando ela levantou a lanterna e a apontou para cima, a luz voltou a iluminar a parede rochosa. De costas contra a parede, soltámos um longo suspiro, e com a mão limpámos o suor gelado que nos escorria pela cara.

Durante um bom bocado, nem ela nem eu pronunciámos uma única palavra. A voz dos Invisíveis acabou por se desvanecer na distância e o silêncio voltou a cair sobre o sítio onde estávamos. O único som era o das gotas de água que caíam no chão com um baque seco.

– O que é que eles odeiam tanto? – perguntei-lhe.

– O mundo da luz e as pessoas que lá vivem – respondeu.

– Então, é espantoso que se tenham aliado aos Semióticos. Por mais benefícios que lhes possa trazer esse conluio.

Não me deu resposta. Em vez disso, tornou a apertar-me o pulso com força.

– Sabes o que eu penso em momentos como este?

– Não – respondi.

– Que seria fantástico poder acompanhar-te nesse mundo para onde vais daqui a um bocadinho.

– E deixar este?

– Sim, claro – disse ela. – Este mundo é aborrecido. De certeza que seria muito mais divertido viver dentro da tua consciência.

Abanei a cabeça sem nada dizer. Não queria viver dentro da minha consciência. Eu não queria viver dentro da consciência de ninguém.

– Bom, seja lá como for, temos de ir andando – declarou a rapariga gorducha. – Não podemos distrair-nos. Temos de encontrar o esgoto. Que horas são?

Carreguei no botão do relógio e iluminei o mostrador, mas os dedos tremiam-me um pouco. Iria levar algum tempo até conseguir dominar o tremor por completo.

– Oito e vinte – informei.

– Vou trocar de aparelho – disse ela. Carregou no botão do outro dispositivo, pô-lo a funcionar, tirou a pilha do que tínhamos acabado de utilizar e enfiou-o descuidadamente entre a camisa e a saia. Entráramos na gruta uma hora antes. A crer nas indicações do Professor, em breve chegaríamos a um caminho que seguia para a esquerda, em direção à avenida cheia de árvores onde ficava o Museu de Pintura. Chegados aí, estaríamos a dois passos das linhas do metro, que, pelo menos, eram um prolongamento da civilização à face da Terra. Quando as alcançássemos, teríamos conseguido escapar ao mundo dos Invisíveis.

Avançando mais um pouco, vimos que, tal como esperávamos, o caminho infletia para a esquerda, em ângulo reto. Já devíamos ter chegado à avenida dos ginkgos17. Estávamos no princípio do outono e ainda deveria haver folhas verdes nas árvores. Na minha cabeça bailaram imagens da luz quente do sol outonal, dos perfumes da verdura e do vento do início do outono. Fiquei cheio de vontade de me deixar ficar estendido durante horas numa paisagem assim, a contemplar o céu. Sim, iria ao barbeiro cortar o cabelo e, a seguir, iria até ao Parque de Gaien estender-me no relvado para ficar a olhar o céu. E beberia cerveja gelada até me fartar. Antes que o mundo chegasse ao seu fim.

– Achas que lá fora está bom tempo? – perguntei à rapariga, que avançava em passo estugado.

– Não sei. Não faço ideia. Como queres que saiba? – disse.

– Não viste o boletim meteorológico?

– Não. Passei o dia todo à procura da tua casa.

Tentei recordar se havia estrelas no céu quando saíra de casa, na noite anterior, mas foi um esforço vão. A única coisa de que me lembrava era o jovem par do Skyline, a escutar os Duran Duran no rádio do carro. Não me recordava das estrelas. Pensando bem, há meses que não as via. Mesmo que tivessem desaparecido todas do firmamento três meses antes, eu não me tinha dado conta de nada. As únicas coisas que vira e cuja lembrança guardava eram as pulseiras de prata no pulso da rapariga, os tacos de polo no vaso da árvore-da-borracha na entrada do meu prédio, esse tipo de coisas. O que me fez pensar que levava uma vida insatisfatória, pouco adequada à minha pessoa. Logo me ocorreu que poderia ter nascido no campo, na Jugoslávia, e ser um pastor que, todas as noites, observava a Ursa Maior. O carro Skyline, os Duran Duran, as pulseiras de prata, o shuffling, o meu fato de tweed azul-marinho: tudo me parecia um sonho distante, de um passado remoto. Tal como um cilindro reduz um automóvel a uma placa de metal, também várias recordações distintas se tinham estranhamente amalgamado. Entrelaçadas umas nas outras, todas as minhas memórias tinham sido reduzidas à espessura de um cartão de crédito. Vistas de frente, ofereciam uma sensação pouco natural, mas, de perfil, não passavam de uma estreita linha com pouco significado. Continham toda a minha vida, é certo, mas não passavam de um cartão de plástico. Mesmo que as introduzisse na máquina que o Professor criara para as ler, não lograria encontrar-lhes sentido.

Disse para mim próprio que a primeira ligação devia estar a ficar mais debilitada, e era por isso que, aos meus olhos, as minhas recordações da realidade iam ganhando um ar tão plano, tão alheio. Era quase certo que a minha consciência se afastava progressivamente de mim. O meu cartão de identidade tornar-se-ia cada vez mais fino, até ter a espessura de uma folha de papel e acabar por desaparecer por completo.

Enquanto, qual autómato, avançava atrás dela, tornei a pensar no casal que circulara no Skyline. Não percebia porque estava tão obcecado com eles, mas a verdade é que não conseguia pensar noutra coisa. Que estariam a fazer naquele preciso momento, às oito e meia da manhã? Não tinha a mais remota ideia. Talvez estivessem a dormir profundamente, na cama. Ou talvez se encontrassem num comboio, a caminho dos respetivos empregos. Qual das duas hipóteses? Tinha a consciência de uma certa desconexão entre o mundo real e a minha imaginação. Se fosse guionista de uma série televisiva, de certeza que teria conseguido escrever o enredo adequado. Uma mulher vai estudar para França e casa-se com um francês, mas, pouco tempo depois, o marido sofre um acidente de viação que o deixa em estado vegetativo. Farta da vida que leva, abandona o marido, regressa a Tóquio e vai trabalhar para a embaixada belga, ou talvez suíça. As pulseiras de prata são uma recordação do casamento. Aqui há um flashback: a praia de Nice, no inverno. Ela nunca tirava as pulseiras, mesmo quando tomava banho ou fazia amor. O homem é um veterano da ocupação do Auditório Yasuda18 e nunca tira os óculos de sol, tal qual o protagonista de Cinza e Diamantes19 . É um realizador de televisão famoso, mas tem frequentemente pesadelos com o gás lacrimogéneo. A mulher suicidou-se cinco anos antes, abriu as veias. Aqui há outro flashback. Pelos vistos, nesta série, há muitos flashbacks. Cada vez que vê as pulseiras tremer no pulso esquerdo da rapariga, revê os pulsos cortados e ensanguentados da mulher. Por isso, pede-lhe que as passe para o pulso direito.

– Nem pensar! – recusou-se ela. – Só uso as pulseiras no pulso esquerdo.

Também podia ser um pianista parecido com o de Casablanca. Um pianista alcoólico. Acompanhado do seu eterno copo de genebra com umas gotinhas de limão, pousado em cima do piano. É amigo de ambos, conhece os respetivos segredos. Trata-se de um pianista de jazz muito talentoso; infelizmente, o álcool leva-o por maus caminhos.

Quando cheguei a este ponto – e como era de prever –, tudo aquilo me pareceu um monte de estupidezes, e deixei correr. Este enredo nada tinha que ver com a realidade. Mas enquanto me interrogava sobre o que era a realidade, apoderou-se de mim uma grande confusão. A realidade era tão pesada como uma caixa de areia a abarrotar e era incoerente. Há uma série de meses que eu nem sequer contemplava as estrelas.

– Já não consigo aguentar mais! – disse.

– O quê? – perguntou a jovem.

– A escuridão, o fedor a bafio, os Invisíveis, tudo! As calças molhadas, a ferida no abdómen... Nem sequer sei como está o tempo. Em que dia da semana estamos?

– Já falta pouco – tentou acalmar-me. – Acaba já.

– Sinto-me muito confuso – disse. – Não consigo recordar-me das coisas do exterior. Pense o que pensar, as minhas ideias acabam sempre por enveredar por caminhos muito estranhos.

– Em que estavas a pensar?

– No Masatomi Kondo, na Ryoko Nakano e no Tsutomu Yamazaki20.

– Deixa – retorquiu. – Não penses em nada. Tiro-te daqui não tarda.

Portanto, decidi não pensar em nada, mas foi então que comecei a ficar obcecado com as calças molhadas, que se me agarravam, gélidas, às pernas. Por culpa delas, tinha o corpo gelado e a dor surda provocada pela ferida voltava a atormentar-me. Todavia, apesar do frio, surpreendentemente, não sentia vontade de urinar. Quando foi a última vez que urinei? Revi todas as minhas recordações por ordem, virei-as de pernas para o ar, mas foi tudo inútil. Não consegui lembrar-me.

No mínimo, não urinava desde que descera para o subterrâneo. E antes? Antes disso, guiara o carro. Tinha comido um hambúrguer, vira o casal do Skyline. E antes? Antes dormira. A jovem anafada irrompera pela minha casa dentro e acordara-me. Teria urinado nessa altura? Não me parecia. Ela tinha-me arrancado da cama e arrastara-me para a rua, sem sequer me dar tempo de urinar. E antes? Não me recordava bem do que havia feito. Ah! Sim, fora ao médico. Ou, pelo menos, pensava que sim. O médico cosera-me a ferida. Que médico fora? Não fazia ideia. Mas tinha a certeza de que fora um médico. Um médico de bata branca cosera-me um pouco acima dos pelos púbicos. Teria urinado antes ou depois daquilo?

Não fazia a menor ideia.

Parecia-me que não. Se o tivesse feito, recordar-me-ia do ardor da ferida ao urinar. Uma vez que não o recordava, tal queria dizer que não tinha urinado. Não restavam dúvidas. Portanto, há muito tempo que não urinava. Há quantas horas?

Quando pensei em tempo, a minha mente caiu num estado de confusão semelhante ao de um galinheiro ao nascer do dia. Doze horas? Vinte e oito horas? Trinta e duas horas? Onde diabo se teria metido toda essa quantidade de urina? Ao longo desse tempo todo, eu bebera cerveja, uma cola, uísque. Onde teria ido parar todo esse líquido?

Não. Talvez tivesse sido no dia anterior que me tinham rasgado o ventre e eu fora ao hospital. Estava com a impressão de que a véspera fora um dia totalmente distinto, mas ao perguntar-me que tipo de dia fora a véspera, senti-me incapaz de dizer. A véspera não passava de uma confusa massa de tempo, tinha a forma de uma gigantesca cebola, inchada de água. O que conteria? Onde deveria carregar para que saísse... o quê? Na minha cabeça não havia uma única ideia clara.

Acontecimentos variados aproximavam-se e afastavam-se como cavalinhos num carrossel. Que diabo, quando é que aquele par me furara a barriga? Fora antes ou depois de ter estado sentado na cafetaria do supermercado ao amanhecer? Quando é que tinha urinado? E porque é que estava tão preocupado com a urina?

– Cá estão! – exclamou, virando-se para trás. Agarrou-me o cotovelo com força. – Os esgotos. A saída.

Afastei da cabeça o problema da urina e contemplei o círculo que a lanterna dela projetava na parede. Iluminava um buraco quadrado, parecido com uma conduta do lixo, com o tamanho apenas necessário para um homem caber.

– Mas isto não são os esgotos – disse.

– Os esgotos estão mais fundo. Isto é o túnel que vai até lá. Não sentes? Cheira a esgoto.

Aproximei o nariz do buraco e cheirei. De facto, sentia-se o odor a esgoto. Depois de dar voltas e mais voltas naquele labirinto, até mesmo o fedor dos esgotos tinha um perfume de intimidade que me deixava nostálgico. Senti nitidamente uma corrente de ar vinda do fundo daquele buraco. Pouco depois, o solo foi sacudido por pequenos estremeções e escutei uma composição de metro a percorrer a linha, bem no fundo do buraco. O ruído durou dez ou quinze segundos, após o que foi enfraquecendo até acabar por se desvanecer por completo, como uma torneira de água que alguém fecha devagarinho. Não restavam dúvidas, chegáramos à saída!

– Até que enfim, chegámos! – exclamou ela, dando-me um beijo na nuca. – Como te sentes?

– Nem perguntes – respondi. – Estou aturdido.

Ela enfiou a cabeça no buraco. Depois de o seu traseiro macio desaparecer, segui-a. O estreito túnel prolongava-se em linha reta. A minha lanterna apenas iluminava o seu traseiro e as barrigas das pernas que me faziam lembrar couves chinesas, brancas e lisas. A saia molhada colava-se-lhe às coxas.

– Ei! Estás aí?

– Claro! – gritei.

– Está aqui um sapato no chão.

– Que tipo de sapato?

– Um sapato de homem, de pele, preto. Só um.

Vi-o logo a seguir. Era um sapato velho, tinha o tacão gasto. Havia um bocado de lodo esbranquiçado agarrado à ponta.

– O que é que faz aqui um sapato?

– Não sei. Talvez tenha caído a um homem caçado pelos Invisíveis.

– Talvez.

Como não havia nada de especial para ver, continuei em frente, com os olhos postos na bainha da saia dela. De vez em quando, a bainha subia até à zona superior das coxas, deixando ver uma nesga de pele branca e suave, sem manchas de lama. Mesmo no ponto onde, noutros tempos, estaria um cinto de ligas preso às meias. Claro que isso seria antes do aparecimento das meias-calças, agora eram águas passadas.

A alvura da sua pele trouxe-me recordações do passado. Jimi Hendrix, Cream, os Beatles, Otis Redding: toda uma época. Assobiei as primeiras notas de «I Go To Pieces» de Peter & Gordon. Grande canção. Doce e sufocante. Muito melhor do que os Duran Duran. Se bem que talvez tenha essa opinião porque estou a ficar velho, pensei. Na realidade, já passaram vinte anos desde que estiveram na moda. E há vinte anos quem é que iria imaginar que apareceriam as meias-calças?

– Porque é que estás a assobiar? – gritou ela.

– Não sei. Porque me apetece – respondi.

– E o que estás a assobiar?

Disse-lhe o título.

– Não conheço essa canção.

– Pois não, esteve na berra antes de tu nasceres.

– De que fala?

– De como o corpo se desfaz em mil pedaços e desaparece.

– E porque é que estás a assobiar isso?

Refleti por um instante e cheguei à conclusão de que não tinha nenhuma razão especial. Tinha-me vindo à cabeça sem mais.

– Não sei – respondi.

Enquanto pensava noutras canções, chegámos finalmente à rede de esgotos. Na realidade, e apesar de falar em rede de esgotos, aquilo não passava de um grande tubo de cimento. Tinha cerca de um metro e meio de diâmetro e havia cerca de dois centímetros de água a correr no fundo. Ao longo da linha de água crescia um musgo viscoso. De longe chegava-nos, de vez em quando, o ruído do metro a passar. Agora era tão nítido que quase o poderíamos classificar de estrepitoso e, inclusivamente, até se via uma ténue luz amarelada.

– Como é que os esgotos se ligam ao metro? – perguntei.

– Para dizer com rigor, isto não são os esgotos – respondeu-me. – Este tubo apenas recolhe a água de uma nascente subterrânea e condu-la para as valetas do metro. Mas como há escorrências de águas residuais, a água fica suja. Que horas são?

– Nove e cinquenta e três – informei.

Ela tirou o dispositivo contra Invisíveis de debaixo da saia, premiu o interruptor e trocou-o pelo que tínhamos estado a usar até agora.

– Vamos, coragem! Já falta pouco, mas ainda não podemos baixar a guarda, sabes? Não te esqueças de que os Invisíveis dominam toda a rede do metro. Viste o sapato, não viste?

– Claro que vi.

– E não ficaste arrepiado?

– Fiquei, pois.

Avançámos pelo tubo de cimento, seguindo o curso de água. O chapinhar das solas de borracha dos nossos sapatos ressoava dentro do tubo como se fossem estalidos de uma língua: um ruído abafado pelo estrondo dos comboios que se aproximavam e afastavam. Era a primeira vez na minha vida em que o barulho da passagem do metro me enchia de alegria. Era buliçoso, estava vivo como a própria vida, cheio de luz brilhante. Dentro viajavam vários tipos de pessoas, que se dirigiam a locais variados enquanto liam o jornal ou folheavam uma revista. Recordei os cartazes multicoloridos que forravam o interior das carruagens, o mapa do metro por cima das portas. No mapa, a linha de Ginza era sempre amarela. Não sei por que razão, mas é assim. Por isso, sempre que penso nesta linha, vem-me à cabeça a cor amarela.

Não demorámos muito a alcançar a saída. A abertura encontrava-se fechada com uma grade de barras de ferro, mas estava partida e havia um buraco por onde um homem podia passar. Alguém arrancara um grande bocado de cimento na base e faltava uma das barras. Adivinhava-se ali a mão dos Invisíveis, mas, desta vez e para variar, fiquei-lhes agradecido: se as barras estivessem bem presas, não teríamos podido entrar no mundo exterior apesar de o termos diante dos nossos olhos.

Do outro lado viam-se semáforos e uma espécie de caixas de madeira quadradas que serviam para guardar sapatos. Entre os carris elevavam-se, a espaços regulares, como se fossem estacas, colunas de cimento enegrecidas. As lâmpadas das colunas espalhavam uma luz mortiça, que a mim me pareceu ofuscante. Depois de ter permanecido tanto tempo no subsolo, sem luz, os meus olhos tinham-se habituado à escuridão.

– Vamos esperar aqui um pouco até os nossos olhos se adaptarem à claridade – sugeriu ela. – Bastam dez ou quinze minutos. Depois continuamos. Mais à frente, teremos de esperar outra vez para que se habituem a uma luz mais potente. Senão, ficaríamos cegos. Com tantos comboios a passar por aqui, é preciso ver bem, percebes?

– Sim – respondi.

Agarrou-me pelo braço, fez-me sentar num pedaço de cimento seco e sentou-se ao meu lado. A seguir, agarrou-me o braço com ambas as mãos, um pouco abaixo do cotovelo, e apoiou-se em mim. Ao ouvirmos um comboio aproximar-se, virámos a cabeça e fechámos os olhos com força. Por um instante, no interior das nossas pálpebras brilhou uma luz fulgurante, que desapareceu acompanhando o ruído do comboio, um estrépito que nos perfurava os ouvidos. Cegos, os meus olhos verteram grossas lágrimas. Limpei-as com a manga da camisa; escorriam-me pela cara abaixo.

– Vá, não é nada. Habituas-te já – disse ela. Dos seus olhos também haviam brotado dois fios de lágrimas que lhe escorriam pela cara. – Mais três ou quatro e passa. Nessa altura, os nossos olhos já se terão habituado e podemos aproximar-nos da estação. Uma vez aí, estaremos a salvo dos Invisíveis e podemos subir à superfície.

– Lembro-me de me ter acontecido o mesmo no passado – disse eu.

– Andaste nos túneis do metro?

– Não, mulher. Estou a falar da luz. De ter chorado lágrimas por causa de uma luz demasiado brilhante.

– Ah! Já aconteceu a toda a gente.

– Não, não é isso. Eram uns olhos especiais e a luz também era especial. Estava muito frio. Tal como agora, os meus olhos estavam há muito tempo habituados à escuridão e não suportavam a luz. Eram uns olhos muito especiais.

– Lembras-te de mais alguma coisa?

– Não, só disto. Não me lembro de mais nada.

– A tua memória está a andar para trás, de certeza – afirmou.

Com ela encostada a mim, sentia a curva do seu peito no meu braço. Era a única zona quente em todo o meu corpo gelado por causa das calças ensopadas.

– Agora vamos sair para o exterior. Já decidiste para onde vais, o que vais fazer, quem irás ver? Enfim, isso tudo... – perguntou-me, deitando uma olhadela ao relógio de pulso. – Ainda te restam vinte e cinco horas e cinquenta minutos.

– Vou a casa tomar um banho. Vou vestir roupa lavada e, mais tarde, talvez vá ao barbeiro.

– Ainda vai sobrar tempo.

– Depois decido o que fazer a seguir – respondi.

– Posso acompanhar-te a tua casa? – pediu. – Também quero tomar banho e mudar de roupa.

– Claro.

Passaram dois comboios na direção de Aoyama-Itchome, o que nos fez tornar a virar a cabeça e fechar os olhos. A luz continuava a cegar-nos, mas já não chorámos.

– O cabelo não te cresceu tanto que precises de ir ao barbeiro – comentou ela, iluminando-me a cabeça. – Além do mais, de certeza que te sentes melhor com ele comprido.

– Estou farto de ter o cabelo comprido.

– Seja como for, não cresceu assim tanto que te faça ir cortá-lo. Quando é que foste ao barbeiro pela última vez?

– Não sei – respondi. Não fazia a menor ideia. Nem sequer conseguia recordar-me de quando urinara pela última vez. Portanto, o que acontecera na semana anterior era como se tivesse sucedido na pré-história.

– Em tua casa tens qualquer coisa no meu tamanho?

– Não sei. Acho que não.

– Não faz mal. Visto-as na mesma – retorquiu. – Vais usar a cama?

– A cama?

– Estou a perguntar se vais arranjar uma rapariga para dormires com ela.

– Não tinha pensado nisso – disse. – Não, não me parece.

– Então, posso dormir nela? Gostava de dormir um bocadinho, antes de voltar para junto do meu avô.

– Não é que me importe, mas não ficaria admirado se os Semióticos ou os elementos do Sistema aparecessem por minha casa. Como ultimamente ando a ser tão solicitado, já nem sequer fecho a porta à chave.

– Isso não me preocupa – respondeu ela.

Fiquei a pensar que, realmente, talvez não se preocupasse. Cada um preocupa-se com coisas diversas.

Aproximou-se o terceiro comboio proveniente de Shibuya, que passou mesmo à nossa frente. Fechei os olhos e comecei a contar depressa mentalmente. Quando cheguei a catorze, a última carruagem acabara de passar. Já só me doíam os olhos. Havíamos superado a primeira etapa para subir à superfície. Já não corríamos o perigo de Invisíveis nos apanharem e atirarem para dentro de um poço, tão-pouco de sermos devorados pelo peixe gigantesco.

– Avancemos – disse ela, tirando a mão do meu braço ao pôr-se de pé. – Já vai sendo tempo de sairmos.

Assenti, levantei-me e desci para os carris atrás dela. E começámos a caminhar em direção a Aoyama-Itchome.

17 Ginkgo biloba, uma das árvores mais antigas que existem. É considerada um fóssil vivo. No Japão é espontânea. É vista como um símbolo de paz e longevidade, uma vez que vários exemplares sobreviveram à bomba atómica no Japão. Em Portugal existe uma célebre, no Parque da Pena, em Sintra. (N. das T.)

18 Refere-se aos incidentes ocorridos nos dias 18 e 19 de janeiro de 1969, quando a polícia invadiu o campus da Universidade de Tóquio para pôr fim à ocupação do auditório pelos estudantes em revolta. (N. das T.)

19 Popiól i Diament, filme de Andrzej Wajda, de 1958, que não foi distribuído em Portugal. (N. das T.)

20 Atores e atriz (no caso de Ryo-oko Nakano) famosos de séries de televisão, teatro e publicidade. (N. das T.)


O Fim do Mundo

30

O Buraco

De manhã, acordei com a impressão de que os incidentes no Bosque tinham acontecido em sonhos. Mas não, claro, não sonhara com aquilo. Em cima da mesa, como um animalzinho indefeso, descansava o velho acordeão. Fazia tudo parte da realidade. A ventoinha que girava, impulsionada pelo vento vindo do subsolo; o Encarregado da Central Elétrica, aquele jovem de expressão desditosa; a coleção de instrumentos musicais...

Além disso, dentro de mim continuava a ressoar um ruído insolitamente irreal. Era como se estivessem a martelar-me a cabeça. O ruído mantinha-se incessantemente, como se alguém tentasse enfiar-me um objeto qualquer dentro do cérebro. Não tinha dores de cabeça, ela estava em perfeito estado, mas tudo aquilo parecia irreal.

Da cama percorri o quarto com o olhar, mas não me pareceu que houvesse alguma mudança. O teto, as quatro paredes, o chão ligeiramente empenado, a janela, as cortinas: estava tudo igual. Havia a mesa e, sobre a mesa, o acordeão. Na parede estavam pendurados o meu casaco e o corta-vento. Do bolso do casaco espreitavam as luvas.

De seguida, verifiquei se o meu corpo funcionava normalmente. Todos os meus músculos se moviam como de costume. Os olhos não me doíam. Sem exceção, estava tudo absolutamente normal.

No entanto, aquele som liso continuava a martelar-me a cabeça. Era irregular, coral. Uma mescla de vários sons homogéneos. Tentei descortinar a sua origem, mas, por mais que me esforçasse, não fui capaz de perceber a direção de onde provinha. Devia nascer dentro da minha própria cabeça.

Querendo esgotar todas as hipóteses, saltei da cama e espreitei pela janela, e foi então que, por fim, descobri a origem do som. No descampado por baixo da janela, três velhotes, de pá na mão, escavavam um grande buraco. O ruído era produzido pelo choque das pás contra o solo gelado e duro. Naquele ar muito seco, o som ganhava uma cadência estranha: eis o que me confundira. Os acontecimentos dos últimos dias deviam ter-me alterado os nervos.

O relógio marcava quase dez horas. Era a primeira vez que me deixava dormir até tão tarde. Porque não me despertara o Coronel? Com exceção dos dias em que tinha febre, ele acordara-me todos os dias às nove, trazendo-me o tabuleiro com o pequeno-almoço dos dois.

Esperei até às dez e meia, mas o Coronel não apareceu. Resignado, desci à cozinha, peguei num pão e em qualquer coisa para beber, regressei ao quarto e tomei o pequeno-almoço sozinho. Talvez por estar habituado a tomá-lo na companhia de alguém, achei-o insípido.

Comi apenas metade do pão e deixei o resto para os animais. Depois, enquanto esperava que o braseiro fizesse subir a temperatura do quarto, deixei-me ficar sentado na cama, imóvel, embrulhado no meu casaco.

A doçura idílica do tempo do dia anterior esfumara-se durante a noite e o opressivo ar gelado do costume invadia o quarto. O vento soprava não muito forte, mas a paisagem recuperara as cores invernais, e o céu baixo e asfixiante, que se estendia da Serra do Norte aos campos desertos, estava coberto por nuvens prenhes de neve.

No descampado por baixo da minha janela, os quatro velhotes continuavam a cavar o buraco.

Quatro?

Quando olhara pela janela da primeira vez, eram apenas três. Três anciãos a escavar um buraco à pazada. Contudo, agora eram quatro. Calculei que um quarto se lhes tivesse juntado. Não era fora do normal. Na Residência Oficial havia tantos idosos que era quase impossível contá-los. Os quatro velhotes tinham dividido o terreno em quatro e cada um estava a cavar junto dos respetivos pés, em silêncio. De vez em quando, uma rabanada de vento caprichosa fazia esvoaçar as abas dos seus casacos finos, mas eles, com as faces vermelhas, indiferentes ao frio, continuavam a enterrar as pás na terra sem parar. Um deles estava mesmo a transpirar e despira o casaco, que, pendurado no ramo de uma árvore qual casca vazia, ondeava ao vento.

Assim que o meu quarto aqueceu, sentei-me numa cadeira, peguei no acordeão e estiquei e comprimi lentamente o fole. Contemplando-o ali, no meu quarto, dei-me conta de que o instrumento fora construído com muito mais minúcia do que me apercebera quando o vira pela primeira vez no Bosque. Os botões e o fole haviam adquirido uma pátina de sujidade, mas a pintura da madeira não estava minimamente lascada, e os delicados arabescos desenhados junto à borda mantinham-se intactos. Mais do que de um instrumento musical, era apropriado falar-se de uma obra de arte. Em todo o caso, o fole estava um tanto enrijecido e o seu movimento revelava-se assaz difícil. Era provável que já estivesse abandonado há bastante tempo, e ignorava que tipo de pessoa o tocara anteriormente e por que voltas chegara às mãos do Encarregado da Central Elétrica. Tudo permanecia envolto em mistério.

O acordeão era uma joia delicada, não só do ponto de vista decorativo como também enquanto instrumento musical. Em primeiro lugar, era pequeno. Fechado, cabia dentro do bolso do casaco. Claro que o tamanho não obstava à qualidade musical, além de que não faltava qualquer peça ao acordeão.

Abri-o e fechei-o repetidas vezes e, já familiarizado com o movimento do fole, fui carregando nos botões da caixa dos baixos por ordem enquanto pressionava as teclas do lado da melodia. Após ter conseguido arrancar-lhe várias notas, parei e prestei atenção aos sons que pairavam à minha volta.

Os anciãos continuavam a cavar. As quatro pás enterravam-se na terra a um ritmo irregular e intermitente, que penetrava no meu quarto com uma nitidez surpreendente. De vez em quando, o vento fustigava a minha janela. Do lado de fora via-se a vertente da colina, coberta aqui e ali de restos de neve. Não sabia se o som do acordeão chegaria aos ouvidos dos velhotes. Não me parece provável, disse para os meus botões. O som era débil e o vento soprava na direção contrária.

Há muito tempo que eu não tocava acordeão e, além do mais, estava habituado a um teclado moderno, de modo que foi bastante difícil adaptar-me a um mecanismo tão antigo e com aquela disposição dos botões. De acordo com o seu tamanho, o acordeão tinha uns botões diminutos e muito próximos entre si, o que estaria bem para uma mulher ou uma criança. Contudo, e como era lógico, para um homem adulto, com mãos grandes, tornava-se bastante difícil tocá-lo.

Apesar disto tudo, ao fim de um par de horas já conseguira tirar dele alguns acordes, mas não me ocorria nenhuma melodia. Por mais que, uma e outra vez, carregasse nos botões, esforçando-me por recordar uma canção qualquer, apenas conseguia uma sucessão de notas soltas, sem a menor linha melódica.

De vez em quando, umas notas tocadas à sorte levavam-me a crer que estava prestes a recordar-me de qualquer coisa, mas estes lampejos de memória desapareciam tão depressa como surgiam, engolidos pelo ar.

Dava-me a sensação de que a minha incapacidade de me recordar de uma melodia se devia ao ruído das pás dos idosos. Não seria apenas isso, mas era certo que o barulho me retirava a concentração. As pancadas das pás ressoavam aos meus ouvidos com uma clareza excessiva, tanto que começava a parecer-me que escavavam um buraco no meu crânio. Quanto mais cavavam, maior era o vazio que se abria dentro da minha cabeça.

De repente, por volta do meio-dia, o vento recobrou ímpeto e começou a misturar-se com a neve. A tormenta açoitava com um ruído seco as vidraças das janelas. Os pequenos e brancos flocos de uma neve dura como o gelo assentavam no parapeito da janela para, pouco tempo depois, serem arrastados pelo vento. Aquela neve em pó não chegaria a solidificar, mas não tardaria a transformar-se em grossos flocos, carregados de humidade. Era a ordem habitual. A terra não tardaria a cobrir-se de novo de uma espessa camada de neve. A neve dura anuncia sempre uma grande nevasca.

Contudo, os anciãos continuavam a escavar sem se preocuparem com a neve; parecia que sabiam de antemão que iria nevar. Nenhum deles levantou os olhos para o céu, abandonou a tarefa ou disse uma única palavra. Até mesmo o casaco pendurado no ramo continuava no mesmo sítio, açoitado pela ventania.

O número de velhotes aumentara para seis. Os dois últimos trabalhavam com uma picareta e um carrinho de mão. O velhote da picareta saltara para dentro do buraco e golpeava a terra gelada; o do carrinho de mão recolhia à pazada os montes de terra acumulada junto do buraco, colocava-a dentro do carrinho de mão e transportava-a até ao alto da encosta, onde a despejava. O buraco já lhes dava pela cintura. Nem sequer a forte ventania abafava o estrépito das pás e da picareta.

Renunciei ao esforço de encontrar melodias, pousei o acordeão em cima da mesa e aproximei-me da janela para contemplar o trabalho deles durante uns instantes. Nenhum parecia estar a dirigir, todos trabalhavam em pé de igualdade, não havia ninguém a dar ordens ou indicações. O ancião que trabalhava com a picareta rasgava a terra com grande eficácia, os outros quatro tiravam-na do buraco às pazadas, e o último, com o carrinho de mão, transportava-a em silêncio até ao alto da encosta.

Enquanto observava o buraco, comecei a ser assaltado por uma série de dúvidas. A primeira: que o buraco era demasiado grande para ser um simples buraco onde depositar lixo e ia começar a nevar de um momento para o outro. Os idosos deviam estar a escavar o buraco com um outro propósito que me escapava: se a neve se acumulasse no buraco, na manhã seguinte estaria completamente tapado. Uma simples olhadela para o céu carregado de nuvens de neve tê-lo-ia dito aos velhotes. A Serra do Norte já estava coberta de neve até meia encosta.

Depois de alguns momentos de reflexão, concluí que o seu trabalho não tinha o menor sentido. Voltei para junto do braseiro e deixei-me ficar a olhar para o carvão transformado em brasas. Talvez nunca mais consiga recordar-me de nenhuma canção, disse para os meus botões. Tanto faz ter um instrumento musical como não. Mesmo que consiga encadear sons, nunca passará de uma série de notas sem sentido. O acordeão que descansava em cima da mesa era apenas um objeto de belas formas. De imediato acreditei compreender na perfeição o que o Encarregado da Central Elétrica me dissera. Não era preciso arrancar dele notas ou sequer saber tocá-lo. Era tão bonito que olhá-lo se tornava suficiente. Fechei os olhos e fiquei a escutar o som do vento a bater na janela.

* * *

À hora do almoço, os anciãos pararam de trabalhar e regressaram à Residência Oficial. Atiraram as pás e a picareta para o chão, e estas ali ficaram.

Sentado numa cadeira junto da janela, observava o buraco quando o meu vizinho, o Coronel, me bateu à porta. Trazia o mesmo casaco grosso de sempre e um barrete de trabalho com viseira enterrado até às sobrancelhas. Trazia pequenas manchas de pó de neve agarradas ao casaco e ao barrete.

– Parece que esta noite vai nevar forte e feio – comentou o ancião. – Trago a comida?

– Se não se importa – respondi.

Dez minutos mais tarde, regressou com uma panela e pousou-a sobre o braseiro. A seguir, tal como os crustáceos que, quando chega a época, largam a casca, foi tirando com grande cuidado o barrete, o casaco e as luvas. Por último, passou os dedos pelo cabelo branco despenteado, sentou-se numa cadeira e soltou um suspiro.

– Lamento não ter podido vir tomar o pequeno-almoço – disse. – Estive ocupado desde muito cedo, de manhã, e nem sequer tive tempo de comer.

– Por acaso não esteve a cavar o buraco?

– O buraco? Ah! Esse buraco! Não, essa tarefa não me compete. Não é que não goste de cavar, mas não – disse com uma risadinha. – Estive a trabalhar na Cidade.

Assim que a panela aqueceu, dividiu a comida por dois pratos e colocou-os sobre a mesa. Tratava-se de um estufado de legumes com aletria. Comeu com apetite, soprando sobre a comida para a arrefecer.

– Para que serve aquele buraco? – perguntei ao Coronel.

– Para nada – respondeu, enquanto levava a colher à boca. – Estão a cavar por cavar. Nesse sentido, trata-se de um buraco puro.

– Não percebo.

– É muito simples. Apeteceu-lhes fazê-lo, é a única razão.

Mastiguei o pão enquanto refletia naquela ideia de buraco puro.

– De vez em quando, cavam um buraco – explicou o ancião. – Pode bem ser que, no fundo, se compare à minha paixão pelo xadrez. Não tem sentido, não leva a lado nenhum, mas isso não interessa nada. Aqui, nós abrimos um buraco atrás do outro. São atos sem finalidade, esforços sem progresso, passos que não conduzem a lado nenhum. Não achas maravilhoso? Ninguém fica ferido, ninguém fere ninguém. Ninguém passa à frente de ninguém ou fica para trás. Sem vitória, sem derrota.

– Acho que percebo.

O ancião, depois de assentir várias vezes com a cabeça, inclinou o prato e recolheu o último pedaço de estufado.

– Talvez haja na Cidade coisas que te pareçam estranhas. Mas, para nós, é tudo muito natural. Natural, puro e pacífico. Tenho a certeza de que, um dia, tu também o compreenderás. Espero que sim. Fui militar durante muito tempo, e não me arrependo. A meu modo, tive uma vida feliz. O cheiro a pólvora e a sangue, o relampejar dos sabres, o toque dos clarins: ainda hoje recordo tudo isso muitas vezes. Contudo, não consigo recordar-me do que nos empurrava para a luta: a honra, o patriotismo, a combatividade, o ódio, esse tipo de coisas. Neste momento, talvez tenhas medo de perder o teu coração. Eu também receei pelo meu. Não tens de te envergonhar disso. – Interrompeu-se por instantes, à procura de palavras, com o olhar vago. – No entanto, quando perderes o teu coração, a tua alma encontrará a paz. Uma paz tão profunda como nunca sentiste. Lembra-te do que te digo.

Assenti em silêncio.

– Além disso, na Cidade ouvi falar da tua sombra – contou o Coronel, limpando os restos do estufado com o pão. – Dizem que a sua saúde piorou. Vomita quase tudo o que come e há três dias que não se levanta da cama, no sótão. Talvez não dure muito. Se não for grande incómodo, porque não lhe fazes uma visita? Segundo parece, tem vontade de te ver.

– Pois... – disse, fingindo que hesitava – ... não me importava de ir, mas não sei se o Guardião o permitirá.

– Claro que permitirá. Quando as sombras estão a morrer, o dono tem o direito de as visitar. Está estabelecido com todo o rigor. Nesta cidade, a morte de uma sombra é uma ocasião solene, e mesmo sendo ele o Guardião, não pode proibir-te a visita. Além do mais, não tem qualquer motivo para o impedir.

– Então vou já – decidi, após uma breve pausa.

– Fazes bem – disse o ancião, dando-me palmadinhas no ombro. – Vai antes que comece a nevar, isto é, antes que anoiteça. Na realidade, a sombra é o que existe de mais próximo do ser humano. Faz-lhe companhia durante os seus últimos momentos e ficarás em paz contigo mesmo. Ajuda-a a morrer bem. Pode parecer cruel, mas será benéfico para ti também.

– Eu sei.

Vesti o casaco e enrolei o cachecol no pescoço.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

31

Controlo de Bilhetes.
Os Police. Detergentes

A distância entre a saída do coletor e a estação de Aoyama-Itchome não era grande. Avançávamos pelos carris e, quando víamos que se aproximava uma composição, corríamos a esconder-nos atrás de uma coluna e esperávamos que passasse. Conseguíamos ver claramente o interior das carruagens, mas os passageiros não podiam ver-nos. No metro, as pessoas não olham pelas janelas para ver a paisagem. Leem o jornal ou olham para o vazio. O metro não passa de um meio de transporte prático para se deslocarem numa grande cidade. Ninguém entra numa carruagem de metro com o coração palpitante de alegria.

Não havia muitos passageiros. Poucos viajavam de pé. Apesar de a hora de ponta ter terminado, por aquilo que me recordava, depois das dez da manhã, o metro da linha de Ginza devia ter mais gente.

– Que dia da semana é hoje? – perguntei à rapariga.

– Não sei. Nem sequer penso nisso – respondeu.

– Há muito pouca gente no metro, para um dia de semana – comentei, abanando a cabeça. – Talvez seja domingo.

– E o que é que tem se for domingo?

– Nada. É domingo, e mais nada.

Andar pelos carris era mais cómodo do que imaginara. Eram largos, nada atrapalhava o passo, não havia semáforos, carros, peditórios ou bêbedos. As luzes fluorescentes projetavam no chão a quantidade de luz certa e, graças ao sistema de ar condicionado, o ar era respirável. Não havia nada a objetar, sobretudo depois da atmosfera húmida e bafienta do subterrâneo.

Primeiro deixámos passar um comboio na direção de Ginza, e depois um outro que se dirigia para Shibuya. A seguir, aproximámo-nos da estação de Aoyama-Itchome e, escondidos atrás de um pilar, espiámos a gare. Se um funcionário nos apanhasse a cirandar pelos carris, armaria o maior escarcéu. Não me ocorria uma única razão plausível para lhe dar. Descobrimos uma escada na ponta da gare. Saltar a barreira não nos pareceu muito difícil; o problema era evitar que nos vissem.

Agachámo-nos atrás de um pilar, à espera de que um comboio na direção de Ginza parasse ali, abrisse as portas, os passageiros entrassem e as portas se fechassem. Observámos o cobrador, que saiu para a plataforma e que, depois de verificar as saídas e as entradas, fechou as portas e deu o sinal de arranque. Quando o comboio desapareceu na boca do túnel, o empregado desapareceu também. Na plataforma oposta também não havia nenhum funcionário à vista.

– Vamos! – disse a moça gordita. – Não corras, caminha com naturalidade. Se corrermos, vão suspeitar de nós.

– De acordo! – respondi.

Saímos de trás do pilar, dirigimo-nos em passo rápido para a ponta da gare e, com o ar mais indiferente do mundo, como se fizéssemos aquilo todos os dias, subimos a escada e saltámos a barreira. Alguns passageiros ficaram a olhar para nós, assombrados, como se perguntassem incrédulos: «E quem vêm a ser estes dois?» Era evidente que não éramos funcionários do metropolitano. Cobertos de lama dos pés à cabeça, com o casaco e a camisa ensopados, o cabelo desgrenhado e os olhos chorosos devido à luz ofuscante, não era fácil confundirem-nos com funcionários da companhia. Por outro lado, a quem passaria pela cabeça andar a calcorrear a linha por simples diversão?

Sem lhes dar tempo de chegarem a qualquer conclusão, atravessámos a gare a toda a pressa e dirigimo-nos para a cabina do encarregado. Quando ali chegámos, demo-nos conta de que não tínhamos bilhete.

– Dizemos que os perdemos, pagamos a multa e vamos – propôs ela.

Disse ao jovem empregado que tínhamos perdido os bilhetes.

– Procuraram bem? – perguntou. – Têm muitos bolsos. Procurem outra vez.

À frente da cabina, fingimos revistar a nossa roupa de cima a baixo. Entretanto, o funcionário mantinha os olhos postos em nós, desconfiado.

Dissemos-lhe que não os encontrávamos.

– Onde apanharam o metro?

– Em Shibuya.

– E quanto pagaram de Shibuya até aqui?

Disse que não me lembrava.

– Cento e vinte ou cento e quarenta ienes, acho.

– Não se lembra?

– Estava com a cabeça noutro lado – respondi.

– De certeza que entraram em Shibuya? – perguntou o funcionário.

– Claro. Estamos na plataforma do comboio que vem de Shibuya. De onde acha que vimos? – argumentei.

– É possível passar de uma outra plataforma para esta. A linha de Ginza é muito grande, sabe? Podem ter ido de Tsudanuma a Nihonbashi pela linha Tozai, mudado de linha e, depois, terem vindo até aqui.

– De Tsudanuma?

– É um exemplo – disse o funcionário.

– Então, quanto custa vir de Tsudanuma até aqui? Eu pago quanto for necessário. Parece-lhe bem?

– O senhor vive em Tsudanuma?

– Não – respondi. – Em toda a minha vida nunca lá pus os pés.

– Então porque é que está disposto a pagar?

– Porque foi o que o senhor acabou de me dizer.

– Não passou de um exemplo, já lhe disse.

Entretanto, chegou a composição seguinte, apeou-se uma vintena de passageiros, passaram à frente da cabina e seguiram o seu caminho. Observei-os à medida que se iam afastando; nem um único perdera o bilhete. Retomámos as negociações.

– E desde onde tenho de pagar para que o senhor fique satisfeito?

– Desde a estação onde apanhou o comboio – respondeu.

– Mas já lhe disse que foi em Shibuya!

– Mas não se lembra de quanto lhe custou o bilhete.

– Essas coisas esquecem-se – respondi. – O senhor lembra-se de quanto custa um café no McDonald’s?

– Nunca tomo café no McDonald’s – retorquiu o homem. – É um desperdício de dinheiro.

– Não passa de um exemplo – disse eu. – Estava a querer dizer que as pessoas esquecem logo o valor das coisas pequenas.

– Seja como for, todas as pessoas que perdem o bilhete costumam declarar o preço mínimo. Todas vêm aqui dizer que vieram de Shibuya. É sempre o mesmo.

– Já lhe disse que pago o bilhete de onde quiser que seja. De onde quer que lhe pague o bilhete?

– Não me cabe a mim decidir isso, não lhe parece?

Não estava com vontade de continuar com aquela discussão estéril, pelo que lhe entreguei mil ienes e avançámos sem dizer mais nada. Atrás de nós ouvimos a voz do cobrador que nos chamava, mas fingimos não o ouvir. Aborrecia-me perder tempo por causa de um ou dois bilhetes quando o mundo se encontrava à beira do fim. Além do mais, pensando bem, eu nem sequer apanhara o metro!

Chovia à superfície. Gotas diminutas como pontas de agulha empapavam o solo e as árvores. Devia ter estado a chover a noite toda. A visão da chuva ensombrou o meu ânimo. Era um dia precioso para mim. O meu último dia. Não queria que chovesse. Bastava-me que fizesse bom tempo durante um ou dois dias. Depois poderia chover um mês de seguida, como no romance de J. G. Ballard21, que eu já não o saberia. Queria estender-me num relvado, banhado pela esplendorosa luz do Sol, e beber uma cerveja gelada enquanto ouvia música. Não pedia mais do que isso.

Contrariamente aos meus desejos, nada indicava que a chuva fosse parar. Uma massa de nuvens escuras, que parecia envolta em várias camadas de papel celofane, cobria todo o céu e deixava cair uma chuva fina e persistente. Queria comprar o jornal para ver a informação meteorológica, mas isso implicaria tornar a aproximar-me da cabina do cobrador, e não estava com vontade nenhuma de me ver envolvido numa nova e interminável discussão sobre os bilhetes. Desisti de comprar o jornal. O dia começava sem brilho nem glória. Nem sequer tinha a certeza de que fosse domingo.

Toda a gente caminhava com o guarda-chuva aberto; éramos os únicos que o não tínhamos. Refugiámo-nos debaixo do beiral de um edifício e, durante um bom bocado, deixámo-nos ficar com o olhar perdido a contemplar a rua como se fossem as ruínas da Acrópole. Uma fiada colorida de carros ia e vinha, percorrendo a rua sem parar. Eu estava com grandes dificuldades em convencer-me de que, debaixo dos nossos pés, existia o misterioso mundo dos Invisíveis.

– Ainda bem que está a chover! – exclamou a jovem.

– Porquê?

– Porque se estivesse bom tempo, teríamos ficado cegos com a luz do Sol e não poderíamos ter saído logo para a superfície.

– Ah...

– Que vais fazer?

– Antes de mais nada, beber qualquer coisa quente. Depois, vou a casa tomar banho.

Entrámos no supermercado mais próximo e, na cafetaria, junto à porta, pedimos duas sopas de milho e uma sanduíche de ovo com presunto. A menina que estava ao balcão começou por ficar estupefacta com o nosso aspeto lamentável, porém, numa atitude verdadeiramente profissional, assentou o nosso pedido de imediato.

– Duas sopas de milho e uma sanduíche de ovo com presunto – confirmou.

– Exato – disse eu. Logo a seguir, perguntei-lhe: – Que dia é hoje?

– Domingo – respondeu.

– Olha! – exclamou a jovem gorda. – Acertaste!

Enquanto aguardávamos que nos servissem as sopas e a sanduíche, decidi matar o tempo a ler um Sport Nippon, que encontrei na cadeira ao meu lado. Não acreditava que a leitura de um jornal desportivo me pudesse ser útil, mas era melhor do que nada. No jornal vi a data: «domingo, 2 de outubro». Os diários desportivos não publicam a previsão meteorológica, mas as páginas dedicadas às corridas de cavalos traziam muita e pormenorizada informação acerca do tempo. A chuva pararia ao final da tarde, o que não iria afetar a última corrida, que seria extremamente dura. Era o que dizia. No estádio de basebol de Jingu, o Yakult tinha perdido contra o Chunichi por 6 a 2. Ninguém fazia a menor ideia de que por baixo do estádio se encontrava o refúgio dos Invisíveis.

A jovem disse-me que queria ler a última página, e eu soltei-a e passei-lha. O artigo que ela desejava ler tinha o seguinte título: «Ingerir sémen embeleza a pele?» Por baixo havia um comentário sobre um livro intitulado: Eu, que fui encerrada numa jaula e violada. Custava-me a perceber como era possível violar uma mulher presa numa jaula. De certeza que era preciso uma boa técnica para o conseguir. Fosse como fosse, era complicado. Eu nunca conseguiria.

– Escuta, gostas que engulam o teu sémen? – perguntou a rapariga.

– Tanto me faz – respondi.

– Pois vê o que está aqui escrito: «Em geral, durante uma felação, os homens gostam que as mulheres engulam o sémen. O homem considera esse ato como uma forma de aceitação integral da sua pessoa pela mulher. É um ritual e uma confirmação.»

– Não percebo – disse eu.

– Alguém já engoliu o teu?

– Não me lembro. Mas acho que não.

– Hum! – fez ela, continuando a ler o artigo.

Pus-me a ler a lista dos resultados da Liga Central e da Liga do Pacífico.

Trouxeram as sopas e a sanduíche. Bebemos as primeiras e dividimos a segunda. Sabia a torradas, a presunto, a clara e gema de ovo. Limpei as migalhas de pão e os restos da gema dos cantos dos lábios com o guardanapo de papel e soltei um suspiro. Foi um suspiro tão profundo que parecia conter em si todos os suspiros do meu corpo. Soltamos poucos suspiros tão profundos como aquele ao longo de toda uma vida.

Saímos do estabelecimento e procurámos um táxi. Dado o nosso ar imundo, tivemos dificuldade em arranjar quem nos quisesse transportar. O motorista era um jovem de cabelo comprido; vinha a ouvir uma música dos Police num grande gravador de cassetes estereofónico, que trazia no banco ao lado do seu. Dei-lhe a direção e deixei-me cair contra as costas do assento.

– Digam lá: como é que se puseram nesse estado? – perguntou o taxista, olhando pelo retrovisor.

– Numa luta corpo a corpo debaixo de chuva – respondeu a jovem.

– Ah, sim? Fantástico! – retorquiu o motorista. – Estão com um ar espantoso. E tu tens um grande chupão no pescoço.

– Eu sei – respondi.

– Mas tanto se me dá – disse o taxista.

– Porquê?

– Eu só apanho gente que tenha pinta de gostar de rock. É-me indiferente que esteja suja ou limpa. Só quero é poder ouvir música. Gostam dos Police?

– Não estão mal – respondi, diplomático.

– Na empresa dizem-me para não pôr esta música. Que escolha os programas de música pop que passam na rádio. Nem a brincar! Matchi, Seiko Matsuda22... Pffff! Ouvir essas chachadas, só se estivesse maluco! Os Police são do melhor! Era capaz de os ouvir o dia inteiro sem me fartar! E também gramo reggae. O que acham?

– Não está mal – repeti.

Quando acabou a cassete dos Police, o motorista pôs uma gravação de um concerto de Bob Marley. O porta-luvas do táxi estava a abarrotar de cassetes. Exausto, morto de frio, ensonado, com o corpo moído, não estava nas melhores condições para apreciar a música, mas era agradável viajar de táxi. Deixei-me ficar, com o olhar vago, a observar o rapaz que conduzia a mexer os ombros ao ritmo do reggae.

Quando o táxi parou à frente de minha casa, paguei a corrida, saí do carro e dei-lhe mais dez mil ienes de gorjeta.

– Para comprares uma cassete.

– Muito obrigado! Até um dia destes!

– Até ver – respondi.

– Escute, não acha que dentro de dez ou quinze anos a maioria dos táxis vai passar música rock? Era ótimo, não era?

– Era – disse.

No entanto, não acreditava no que estava a dizer. Jim Morrison morrera há mais de dez anos, mas não me lembro de ter estado num único táxi que pusesse música dos Doors. Neste mundo há coisas que mudam e coisas que não mudam. E as coisas que não mudam, passe o tempo que passar, não mudam mesmo. A música nos táxis é uma delas. Os rádios dos táxis estão sempre sintonizados em estações de música pop, conversas de mau gosto ou transmissões de jogos de basebol. Dos altifalantes dos grandes armazéns sai invariavelmente o som da orquestra de Raymond Lefèvre; nas cervejarias, são as polcas; e nos bairros comerciais, no final do ano, só se escutam canções de Natal dos Ventures.

Subimos de elevador. A porta do meu apartamento continuava fora dos gonzos, mas alguém a encostara à ombreira de tal forma que, à primeira vista, parecia fechada. Não sabia quem o fizera, contudo, por certo que necessitara de bastante tempo e de muita força. E eu, tal qual um homem de Cro-Magnon arredando a lousa que cobre a entrada da gruta que habita, afastei a porta para o lado e deixei a jovem passar. Uma vez dentro de casa, tornei a puxá-la de modo a que, do exterior, não se visse o interior do apartamento e encostei-lhe uma cadeira por descargo de consciência.

A casa encontrava-se limpa e arrumada: impecável. Tanto que, por um instante, cheguei a ter dúvidas de que aquele par tivesse dado cabo de tudo. Os móveis, que deveriam estar de pernas para o ar, estavam na posição original, alguém apanhara a comida espalhada pelo chão, os cacos das garrafas e da loiça tinham desaparecido, os livros e os discos tinham regressado aos seus lugares, a roupa encontrava-se de novo arrumada no armário. A cozinha, a casa de banho e o quarto tinham sido limpos e brilhavam como espelhos, e no chão não se via o menor vestígio de pó.

Claro que, observando com atenção, percebiam-se rastos da catástrofe. O tubo de raios catódicos da televisão continuava partido, com a enorme boca escancarada como se fosse o túnel do tempo, e o frigorífico não funcionava e estava absolutamente vazio. Tinham tirado toda a roupa rasgada, e a pouca que se salvara cabia numa maleta pequena. Só haviam escapado meia dúzia de pratos e copos. O relógio de parede parara e não havia um único aparelho elétrico que funcionasse em condições. Alguém separara o que ficara inutilizado e atirara tudo para o lixo. Graças a esse alguém, o meu quarto encontrava-se agora limpo e despojado. Sem qualquer objeto desnecessário, parecia grande e espaçoso como nunca. Deviam faltar coisas, mas, naquele momento, não me ocorria nada de que pudesse necessitar.

Fui à casa de banho, experimentei o esquentador a gás e, após verificar que não estava estragado, enchi a banheira de água. Ainda havia sabão, e a minha lâmina de barbear, a escova de dentes, toalhas e champô. O duche também funcionava. O roupão estava em boas condições. Também devia ter desaparecido um monte de coisas dali, mas era incapaz de me recordar de uma que fosse. Enquanto enchia a banheira e examinava o quarto, a rapariga gorda deixou-se ficar estendida na cama, a ler Os Insurretos da Bretanha, de Balzac23.

– Ouve, sabes que em França também havia lontras? – disse.

– Sim, claro.

– Achas que ainda há?

– Não sei – respondi. – Não sei nada desse assunto.

Sentado numa cadeira da cozinha, perguntei-me quem, com mil diabos, me teria limpado a casa. Quem, e com que finalidade, teria investido tanto esforço em arrumar cada canto do meu apartamento. Talvez tivesse sido aquele par de Semióticos, ou talvez os do Sistema. Não compreendia os critérios a que obedeciam os pensamentos e as ações daquela gente. Obviamente, estava agradecido à misteriosa pessoa que me limpara a casa; era muito mais agradável regressar e ter tudo arrumado.

Quando a banheira ficou cheia, convidei a rapariga para tomar banho antes de mim. Ela marcou a página do livro e despiu-se na cozinha. Fê-lo com tanta naturalidade que me deixei ficar sentado na cama a olhar, distraído, para o seu corpo nu. Tinha um corpo curioso, adulto e infantil ao mesmo tempo. Era como se um corpo normal tivesse sido coberto por uma grossa camada de carne branca e suave, como se o tivessem untado uniformemente com gelatina. Era uma gordura tão bem distribuída que, se não se prestasse atenção, nem dava para perceber que era gorda. Os braços, os músculos, o pescoço, a zona abdominal, tudo estava maravilhosamente inchado; ela tinha a pele lisa como a de uma baleia. Considerando o volume do seu corpo, os seios não eram demasiado grandes e tinham uma forma bonita; o traseiro também era empinado.

– Não tenho má pinta, pois não? – perguntou a moça roliça, olhando-me da cozinha.

– Não, não tens – respondi.

– Custou-me imenso engordar. Tive de comer muitíssimo, montes de pastéis e coisas gordas – disse ela.

Assenti em silêncio.

Enquanto ela tomava banho, tirei as calças molhadas e a camisa, pus uma peça de roupa que tinha sobrado e estendi-me em cima da cama a pensar no que fazer a seguir. O meu relógio marcava quase onze e meia, restavam-me pouco mais de vinte e quatro horas. Não podia gastar as minhas últimas horas de vida de qualquer maneira.

Na rua começou de novo a chover. Era uma chuva fina e silenciosa, que mal se refletia nas minhas pupilas. Se não tivesse visto as gotas de água que caíam no parapeito da janela, nem sequer teria sabido que estava a chover. De vez em quando ouvia-se um carro que passava em baixo, na rua, levantando salpicos da fina camada de água que cobria a calçada. Também se ouviam vozes de crianças a chamar alguém. Na casa de banho, a rapariga cantava uma canção cuja melodia eu não lograva identificar. Talvez a tivesse inventado.

Estendido na cama, fui assaltado por um sono irresistível, mas não podia dormir. Se adormecesse, acabar-se-ia o tempo sem que eu pudesse fazer mais nada.

Contudo, uma vez na situação de ter de decidir o que fazer em vez de dormir, não me ocorreu nada. Tirei o aro de borracha da borda do abajur do candeeiro que tinha junto da cama, brinquei com ele durante um bocado e tornei a pô-lo no sítio. Desse por onde desse, não podia ficar enfiado naquele quarto, não ganhava nada em deixar-me estar ali imóvel. Se saísse, talvez me ocorresse qualquer coisa. Uma vez na rua, traçaria um plano.

Era uma sensação estranha pensar que não tinha mais do que vinte e quatro horas pela frente. Sem dúvida que teria montanhas de coisas a fazer, mas a verdade é que não me ocorria nenhuma. Tornei a tirar o aro de borracha do candeeiro e enrolei-o no dedo. Foi então que me lembrei daquele cartaz turístico de Frankfurt, pendurado na parede do supermercado. No cartaz havia um rio, uma ponte sobre o rio e cisnes a sulcar a superfície da água. Aquela cidade tinha bom aspeto. Tive a impressão de que não seria má ideia ir até Frankfurt e acabar lá a minha vida. Só que era impossível chegar a Frankfurt em vinte e quatro horas e, mesmo que fosse possível, estava fora de questão perder dez horas enfiado num avião, à frente de pratos de comida de plástico. Além do mais, nada me garantia que, uma vez ali, não pensasse que a paisagem do cartaz era melhor do que a real. Preferia que a minha vida não terminasse com um sentimento de deceção. Havia que eliminar as viagens dos meus planos. As deslocações levavam tempo e, pior ainda, na maior parte dos casos a realidade não é tão divertida quanto se imagina.

Em definitivo, a única coisa que me ocorria era comer uma boa refeição, acompanhado por uma rapariga, e beber um copo. Além disso, não me apetecia fazer mais nada. Folheei a minha agenda, procurei o número da biblioteca, marquei-o e pedi que chamassem a jovem encarregada das consultas.

– Diga? – disse a rapariga.

– Muito obrigada pelos livros sobre os unicórnios – disse.

– Eu é que agradeço a maneira como me recebeste.

– Apetece-te jantar comigo esta noite? – convidei-a.

– Jantar? – repetiu. – Esta noite tenho um workshop.

– Um workshop? – repeti.

– Sim, sobre a contaminação dos rios. Sobre a extinção dos peixes devido aos detergentes, esse tipo de coisas. Estamos a fazer uma investigação sobre o assunto. E, esta noite, sou eu a apresentar um trabalho.

– Parece uma pesquisa muito útil – comentei.

– Sim, pois é. Por isso – acrescentou –, se não te importas, podíamos deixar o jantar para amanhã. Amanhã é segunda, a biblioteca está fechada e tenho tempo livre.

– Amanhã ao meio-dia já cá não estou. Não te posso dar pormenores por telefone, mas vou estar longe durante algum tempo.

– Vais para longe? De viagem? – perguntou.

– Mais ou menos.

– Desculpa. Espera um instante.

A rapariga parecia estar a falar com alguém que tinha ido fazer uma pergunta. Pelo telefone chegava-me o ambiente da biblioteca ao domingo. Uma menina gritava e o pai repreendia-a baixinho. Também se ouvia alguém bater nas teclas de um computador, e parecia que o mundo estava a funcionar com toda a normalidade. As pessoas iam buscar livros à biblioteca, os empregados do metro perseguiam os passageiros desonestos, os cavalos de corrida galopavam debaixo de chuva.

– Sobre construção de vivendas – ouvi-a dizer – há três volumes no número cinco da estante F. Veja ali.

A seguir escutei o seu interlocutor comentar qualquer coisa.

– Desculpa – disse ela, de novo ao telefone. – Está bem. De acordo. Falto à reunião. Claro que vão protestar, mas paciência...

– Lamento.

– Não faz mal. Seja como for, nos rios desta zona já não há peixes. Mesmo que a apresentação se atrase uma semana, não vai fazer diferença.

– Posto assim, tens razão – retorqui.

– Jantamos em tua casa?

– Não, o meu apartamento está de pantanas. O frigorífico não funciona, não tenho quase nada que comer em casa. Não se pode cozinhar.

– Eu sei – disse ela.

– Sabes?

– Sim. Mas agora está impecável, não está?

– Foste tu que o limpaste?

– Claro. Fiz mal? Hoje de manhã passei por aí e subi para te levar outro livro. Dei com a porta aberta, arrancada das dobradiças, e tudo virado do avesso. Por isso, pus-me a limpar. Cheguei um pouco atrasada ao trabalho, mas foi uma maneira de te agradecer o convite do outro dia. Ficaste aborrecido?

– De todo! – exclamei. – Muito pelo contrário. Fizeste-me um enorme favor.

– Então, que te parece se nos encontrarmos às seis e dez à frente da biblioteca? Aos domingos fechamos às seis.

– De acordo – disse eu. – Muito obrigado.

– De nada – respondeu ela. E cortou a chamada.

Enquanto estava à procura de roupa para ir ao jantar, a jovem gorda saiu do banho. Passei-lhe uma toalha e um roupão. Com a toalha e o roupão na mão, por um instante deixou-se ficar de pé, nua, à minha frente. O cabelo molhado colava-se-lhe à cara e a extremidade das suas orelhas pontiagudas espreitava por entre as madeixas. Nas orelhas ainda brilhavam os brincos de ouro.

– Tomas banho com os brincos postos? – perguntei.

– Sim, claro. Já to tinha dito. Não caem enquanto tomo banho. Gostas deles?

– Sim – disse.

* * *

A roupa interior dela, mais a saia e a camisa, estavam estendidas na casa de banho. Um sutiã cor-de-rosa, umas cuecas cor-de-rosa, uma saia rosa e uma camisa rosa-pálido. Só por ver aquelas peças ali, fiquei com uma dor aguda nas têmporas. Nunca gostei que pendurassem cuecas ou meias na minha casa de banho. Se me perguntarem porquê, não saberei dizer a razão, mas foi sempre assim.

Rapidamente, lavei o cabelo e o corpo, escovei os dentes e barbeei-me. Depois saí da casa de banho, sequei-me com a toalha e enfiei umas cuecas e umas calças. Apesar da sucessão estrambótica de coisas que fizera ultimamente, a dor do golpe era muito mais suportável do que no dia anterior. Tanto que, até ao momento de me meter dentro de água, nem sequer me recordara da ferida. A jovem gorda sentara-se na cama e estava a ler Balzac enquanto passava o secador pelo cabelo. A chuva não dava mostras de abrandar. A visão da roupa interior estendida na casa de banho, a rapariga sentada na cama a ler enquanto secava o cabelo e a chuva a cair na rua transportaram-me para a minha vida de casado, vários anos antes.

– Queres o secador? – perguntou-me.

– Não – respondi. Aquele secador fora ali deixado pela minha mulher quando saíra de casa. Eu usava o cabelo curto e não precisava dele.

Sentei-me ao seu lado, apoiei a cabeça na cabeceira da cama e fechei os olhos. Ao fechá-los, diversas cores surgiram e desapareceram na escuridão. Pensando bem, há vários dias que não dormia. Quando tentara fazê-lo, surgira sempre alguém para me despertar sem dó nem piedade. Ao fechar os olhos, senti o sono arrastar-me para o mundo das sombras profundas. Exatamente como os Invisíveis, o sono esticava o braço e dispunha-se a puxar-me para si.

Abri os olhos e esfreguei a cara com ambas as mãos. Depois de lavar a cara e de me barbear, ao fim de muitas horas sem o ter feito, sentia a pele seca e rígida como a pele de um tambor. Parecia que estava a passar as mãos sobre o rosto de um estranho. Notava uma sensação de queimadura no sítio onde as sanguessugas me tinham chupado o sangue. Segundo parecia, os bichos tinham-mo sugado em grande quantidade.

– Ouve – disse a rapariga, pousando o livro a seu lado –, a sério que não te apetece que engulam o teu sémen?

– Agora não – respondi.

– Não te apetece?

– Não.

– E também não queres ir para a cama comigo?

– Agora não.

– Não gostas de mim porque estou gorda?

– Não se trata disso. Tens um corpo muito bonito.

– Então porque é que não queres ir para a cama comigo?

– Não sei – retorqui. – Não sei porquê, mas estou com a sensação de que não devo fazer isso neste momento.

– É por razões morais? Vai contra a tua ética de vida?

– A minha ética de vida – repeti. Aquelas palavras despertaram em mim estranhas ressonâncias. Refleti por instantes com os olhos cravados no teto. – Não, não é isso – disse eu. – É outra coisa diferente, de outra natureza. Tem que ver com o instinto, com a intuição... Ou talvez com o refluxo da minha memória. Não consigo explicar. Na realidade, tenho imensa vontade de ir para a cama contigo, sabes? Mas essa coisa impede-me. Diz-me que não é o momento certo.

Com o cotovelo apoiado na almofada, ela fixou o olhar em mim.

– Não estás a mentir?

– Nunca minto acerca destas coisas.

– É verdade que é isso que pensas?

– É isso que sinto.

– Podes dar-me uma prova?

– Uma prova? – admirei-me.

– Qualquer coisa que possa convencer-me de que tens vontade de ir para a cama comigo.

– Estou com uma ereção.

– Mostra-ma – pediu.

Após uns instantes de hesitação, decidi baixar as calças e mostrar-lha. Estava demasiado cansado para continuar a discutir, e a verdade é que dentro de pouco tempo já não estaria neste mundo. Não acreditava que mostrar um pénis são e ereto a uma jovem de dezassete anos pudesse dar origem a um grave problema social.

– Hum... – murmurou, olhando para o pénis ereto. – Posso tocar-lhe?

– Não – respondi. – Já tens a prova que queres?

– Já. Está bem.

Subi as calças e guardei o pénis dentro delas. Escutámos um grande camião de transporte que passava lentamente debaixo da janela.

– Quando é que voltas para junto do teu avô?

– Depois de ter dormido um pouco e de a roupa ter secado. Antes do final da tarde, a água vai descer e voltarei a ir pelo metro.

– Com o tempo que está, a roupa não fica seca antes de amanhã de manhã.

– Não! Então, o que posso fazer?

– Aqui perto há uma lavandaria self-service. Podes ir lá secá-la.

– Mas não tenho roupa para ir à rua.

Durante um bocado dei voltas à cabeça, mas não me ocorreu nada. A única solução era ir eu à lavandaria pôr a secar a roupa dela. Dirigi-me à casa de banho e enfiei a roupa molhada num saco de plástico da Lufthansa. Depois, da roupa que me restava escolhi umas calças de pinças verde-azeitona e uma camisa azul com botões no colarinho. Calcei uns mocassins castanhos. E foi assim que, sentado numa cadeira de plástico da lavandaria, perdi de forma tonta uma parte do precioso tempo que me restava. O meu relógio marcava as doze e dezassete.

21 Referência a Cataclismo Solar (traduzido em Portugal por Mário e Isabel Braga), o primeiro romance do autor que, num cenário de ficção científica, conta uma história apocalíptica em que a Terra mergulha no caos devido às consequências do efeito de estufa. (N. das T.)

22 Matchi (de seu nome verdadeiro Masahilo Kondo) é um cantor e ator japonês famoso. A cantora Seiko Matsuda é uma estrela pop, do J-pop (pop japonês), sendo também atriz. (N. das T.)

23 Romance de 1829, faz parte da sua A Comédia Humana. (N. das T.)


O Fim do Mundo

32

A Sombra Encaminha-se
para a Morte

Quando abri a porta da cabana do Guardião, este encontrava-se junto da porta das traseiras, a cortar lenha.

– Parece que vai cair um belo nevão – comentou, de machado na mão. – Esta manhã morreram quatro animais, e amanhã muitos mais morrerão. Tem sido um inverno excecionalmente frio.

Descalcei as luvas, aproximei-me do braseiro e aqueci a ponta dos dedos. O Guardião reuniu um molho de lenha miúda, atirou-o para dentro da sala que servia de armazém, fechou a porta e tornou a pendurar o machado na parede. A seguir, veio sentar-se ao meu lado para aquecer as mãos também.

– Ao que parece, vou ter de queimar os corpos dos animais sozinho. Graças à sua ajuda, até agora tem sido bastante cómodo, mas, enfim, que se há de fazer! Na realidade, é o meu trabalho.

– Isso quer dizer que a sombra está bastante mal, então?

– Não está bem – disse o Guardião, abanando a cabeça. – Não está nada bem. Há três dias que não sai da cama. Trato dela o melhor que posso, mas quando chega a nossa hora, não há nada a fazer, não é verdade?

– Posso vê-la?

– Claro. Mas não fiques mais de meia hora. É que, dentro de meia hora, vou ter de queimar os animais.

Fiz que sim com a cabeça.

O Guardião tirou um molho de chaves da parede e abriu a cancela de ferro que dava para a Praça das Sombras. Em passo rápido, entrou à minha frente, abriu a porta da cabana da sombra e deixou-me passar. O interior da cabana estava vazio, não havia móveis; o chão era de ladrilhos frios. O vento invernal entrava pelas frestas da janela e estava um frio horrível. Parecia uma câmara frigorífica.

– Não tenho culpa – desculpou-se o Guardião. – Não foi por prazer que fechei a tua sombra. Está estabelecido que as sombras vivam aqui dentro. São regras que têm de ser cumpridas. E a tua sombra teve sorte: em algumas ocasiões já tivemos aqui três sombras ao mesmo tempo.

Nada que eu pudesse dizer faria alguma diferença, pelo que assenti em silêncio. Disse para os meus botões que jamais deveria ter abandonado a minha sombra num local assim.

– A tua sombra está ali em baixo – indicou. – Vê. Junto ao chão não faz tanto frio. Cheira um pouco mal, mas...

O Guardião dirigiu-se para um canto do quarto e abriu uma porta corrediça, enegrecida pela humidade. Atrás dela não havia propriamente uma escada, apenas uns degraus toscos encostados à parede. O Guardião desceu à minha frente e com a mão fez-me sinal para o seguir. Sacudi a neve do casaco e fui atrás dele.

Na cave entrou-me pelo nariz um fedor nauseabundo a excrementos. Não havia janelas e o ar estava parado, sem saída possível. A cave tinha o tamanho de uma arrecadação de trastes e a cama ocupava cerca de um terço do espaço. A minha sombra, extremamente enfraquecida, jazia sobre a cama, virada para a porta. Debaixo da cama via-se um urinol de loiça. Havia uma mesa velha meio partida, e em cima dela luzia uma pequena vela: a sua chama proporcionava toda a luz e o calor que existiam no quarto. O chão era de terra batida, e o ar, glacial como o gelo, penetrava até aos ossos. A sombra puxara a coberta até às orelhas e virou para mim uns olhos parados e mortiços. Tal como dissera o ancião, não parecia que fosse durar muito.

– Eu saio – disse o Guardião, como se não fosse capaz de suportar mais aquele fedor. – Conversem os dois. Falem do que quiserem, a tua sombra já não tem forças para se agarrar a ti.

Quando o Guardião desapareceu, a sombra, depois de aguardar uns instantes, fez-me um sinal com a mão, indicando que me aproximasse da cabeceira da cama.

– Não te importas de subir e verificar que o Guardião não está à escuta atrás da porta? – pediu-me em voz baixa.

Concordei, subi os degraus sem fazer barulho, abri a porta, olhei para fora e, depois de verificar que não estava ninguém por ali, regressei à cave.

– Não há ninguém – garanti-lhe.

– Tenho uma coisa para te dizer – disse a sombra. – Não estou tão mal como parece. Fingi para enganar o Guardião. É verdade que estou muito mais débil do que antes, mas os vómitos e o não ser capaz de me levantar da cama não passam de fingimento. Ainda posso levantar-me e caminhar sem problemas.

– E fazes isso para fugir?

– Claro! Se não fosse por essa razão, não me daria a tanto trabalho, garanto-te. Assim, ganhei três dias. Mas agora tenho de fugir daqui, porque dentro de três dias talvez já não consiga mesmo levantar-me. O ar desta cave tem um efeito pernicioso no corpo. É frio como o gelo, penetra nos ossos. Que tempo faz lá fora?

– Está a nevar – disse, mantendo as mãos nos bolsos. – E à noite vai piorar. O frio vai ser muito mais intenso.

– Se nevar, vão morrer muitos mais animais – disse a sombra. – E se morrerem outros animais, o Guardião vai ter muito mais trabalho. Conseguimos escapar daqui enquanto ele estiver no Pomar das Macieiras, a queimar os bichos. Tu vais buscar o molho de chaves, abres a cancela de ferro e fugimos os dois.

– Pela Porta Ocidental?

– Não, por essa porta é impossível. Está fechada, é muito vigiada e, mesmo que conseguíssemos, o Guardião apanhava-nos logo. Pela Muralha não dá. Só os pássaros conseguem sobrevoar a Muralha.

– Então, por onde vamos fugir?

– Deixa isso comigo. Pensei no plano até ao último pormenor; fui reunindo muita informação acerca da Cidade, sabias? Quase gastei o teu mapa, de tanto olhar para ele, e o Guardião contou-me um montão de coisas. Como pensava que eu não ia conseguir fugir, teve a amabilidade de me explicar muitos pormenores. Tudo graças a ti, que conseguiste que o velho baixasse a guarda. Enfim, ao princípio levei mais tempo do que pensava, mas agora o plano está bem defenido. Tal como disse o Guardião, já não tenho forças para me agarrar a ti, mas, se conseguir escapar, recupero e, então, poderemos voltar a ser um. Eu livro-me de morrer aqui, e tu recuperas as tuas memórias e tornarás a ser o que eras originalmente.

Deixei-me ficar a olhar fixamente para a chama da vela, sem nada dizer.

– Que diabo se passa? – perguntou a sombra.

– O que era originalmente... como é que eu era?

– Ei! Alto aí! Não me digas que estás com dúvidas? – A sombra estremeceu.

– Sim, estou com dúvidas. Realmente, estou com dúvidas – reconheci. – Antes de tudo o mais, não me lembro de como era antes. Valerá a pena voltar a esse mundo? Valerá a pena voltar a ser eu mesmo?

A sombra ia dizer qualquer coisa, mas detive-a, levantando a mão.

– Espera um momento. Deixa-me acabar. Esqueci-me por completo de quem era antes, mas agora começo a sentir algum apego a esta cidade. Sinto-me atraído pela rapariga que conheci na Biblioteca, o Coronel também é boa pessoa. Gosto de observar os animais. O inverno é muito duro, porém, nas outras estações, a paisagem é muito bonita. Aqui ninguém odeia ninguém, não há lutas. A vida é parca mas satisfatória e há igualdade entre os seres humanos. Ninguém diz mal do próximo, ninguém quer roubar nada a ninguém. Trabalha-se, mas toda a gente gosta de o fazer. Além do mais, trabalha-se pelo prazer de trabalhar, é um trabalho puro: ninguém é obrigado a trabalhar, ninguém trabalha ao engano. Ninguém inveja ninguém. Ninguém se queixa, ninguém sofre.

– Não existe dinheiro, grandes fortunas ou hierarquia. Não há processos nem hospitais – acrescentou a sombra. – Não existe velhice nem medo da morte. É isso?

Fiz que sim com a cabeça.

– Que te parece? – perguntei. – Que motivos teria para abandonar a Cidade?

– O que dizes – respondeu a sombra, tirando a mão de debaixo da coberta e esfregando os lábios ressequidos – parece ter a sua lógica. Se, realmente, esse mundo existe, encontraste uma verdadeira utopia. Não tenho nada a opor. Faz o que achares melhor. Eu resigno-me e morro aqui. Mas estás a ignorar algumas coisas, e são coisas muito importantes. – A sombra começou a tossir. Em silêncio, esperei que o ataque de tosse terminasse. – Da última vez que nos vimos, disse-te que esta cidade era antinatural, errónea. À força de ser assim, é completa. Tu acabas de falar da sua perfeição e, por isso, vou falar-te agora da sua artificialidade e do erro em que assenta. Escuta-me bem. Em primeiro lugar, a premissa principal é que, neste mundo, a perfeição não existe. Já to disse. É como uma máquina de movimento perpétuo, que, por definição, não pode existir. A entropia aumenta sempre. E como a elimina esta cidade, que diabo? É certo que, aqui, à exceção do Guardião, as pessoas não ferem os outros, não odeiam ninguém, não têm desejos. Todos estão satisfeitos e vivem em paz. E a que julgas tu que se deve isto? Ao facto de não terem coração.

– Eu sei.

– Esta cidade perfeita pôde formar-se assim porque as pessoas perderam o coração. Vivem no interior de um tempo que alongou a sua existência até à eternidade, porque elas ficaram sem coração. É por isso que ninguém envelhece, ninguém morre. Entretanto, a sombra é arrancada ao corpo a que pertence e espera-se que morra. Estando a sombra morta, o resto não é complicado. Basta retirar essa espécie de espuma ligeira que renasce todos os dias do coração.

– Retirar?

– Já te explico um pouco melhor. Para já, o problema do coração. Dizes-me que nesta cidade não há lutas, nem ódio, nem esperança. Magnífico! Olha, se tivesse forças, eu aplaudia. Mas o facto de não haver nem lutas, nem ódio, nem desejos significa que também não existe o oposto de tudo isso. Ou seja, não existe alegria, serenidade ou amor. É porque existem o desespero, a desilusão e a tristeza que há alegria. Uma serenidade sem desespero é coisa que não existe em parte alguma. É a isso que eu chamo a «natureza». E, evidentemente, o mesmo se passa com o amor. Mesmo em relação a essa rapariga da Biblioteca de que falas, é possível que a ames, mas esse sentimento não te leva a lado nenhum, porque ela não tem coração. Os seres desprovidos de coração não passam de fantasmas ambulantes. Qual é o sentido de possuir uma coisa assim? É isso mesmo que queres, viver uma vida eterna transformado num fantasma como eles? Assim que eu morrer, passarás a fazer parte desse bando até à eternidade e nunca mais poderás sair desta cidade, percebes?

Por um longo momento, pairou naquela cave um silêncio opressivo. A sombra voltou a tossir várias vezes.

– Mas eu não posso deixá-la ficar aqui. Para te dizer o que significa para mim... bem, amo-a e tenho necessidade dela. Não se pode mentir ao coração. Se fugisse agora, arrepender-me-ia certamente logo a seguir, e quando se sai daqui não é possível regressar.

– Pois, pois, estou a ver! – exclamou a sombra, soerguendo-se na cama para se encostar à parede. – És realmente difícil de convencer. Há bastante tempo que te conheço e sei que és casmurro, mas é muito teu complicares a vida com problemas tão complexos no último minuto. Que é que se passa contigo, bem vistas as coisas? Se vais sugerir que queres que fujamos os três, tu, eu e essa rapariga, digo-te desde já que é impossível! Porque as pessoas daqui não têm sombra e não podem sobreviver fora deste espaço.

– Sei isso muito bem – disse eu. – O que quero dizer é que podes fugir sozinho. Eu ajudo-te.

– Bom, está visto que não entendes – disse a sombra, encostando a cabeça à parede. – Se eu fugisse sozinho e tu ficasses, darias contigo numa situação desesperada. O Guardião explicou-me isso muito bem. As sombras, todas as sombras, têm de morrer aqui. Mesmo as sombras que saem acabam por voltar à Cidade para morrer. As que não morrem aqui deixam atrás de si uma morte imperfeita, supondo que um dia morram. O mesmo será dizer que viverias eternamente com coração. E, além disso, dentro do Bosque. Porque é aí que vivem as pessoas cujas sombras não tiveram uma morte válida. Serias expulso da Cidade e terias de vaguear eternamente pelo Bosque, perdido nos teus pensamentos. Já conheces o Bosque, não é verdade?

Assenti.

– É claro que não poderias levar a rapariga para o Bosque – prosseguiu a sombra. – Porque ela é um ser «perfeito», ou seja, não tem coração. E as pessoas perfeitas vivem na Cidade, não podem viver no Bosque. Vês, ficarias completamente sozinho. Compreendes porque é que não faz o menor sentido continuar aqui?

– E para onde foram os corações das pessoas?

– E és tu um leitor de sonhos?! – exclamou a sombra, atónita. – Como podes não saber?

– A verdade é que não sei.

– Eu explico-te. Os corações são levados para o exterior pelos animais. A isso se chama «esvaziar». Os animais absorvem o coração das pessoas, guardam-no e levam-no para o exterior. E quando chega o inverno, eles morrem, com todos esses egos encerrados nos seus corpos. Não são nem o frio nem a falta de comida que os matam. O que os mata é o peso dos egos que a Cidade lhes impõe. Na primavera, nascem outras crias: precisamente o mesmo número de animais que morreram. E as crias crescem e, por sua vez, morrem, carregando o peso dos egos rejeitados pela Cidade. É esse o preço da perfeição. Podes perguntar-me que sentido tem uma perfeição assim. Uma perfeição que só se preserva sobrecarregando os mais fracos, os destituídos.

Eu contemplava a ponta dos meus sapatos sem dizer uma única palavra.

– Quando os animais morrem, o Guardião decapita-os – prosseguiu a sombra. – Porque no interior do crânio estão gravados os egos das pessoas. Limpam os crânios e enterram-nos durante um ano e, aplacadas as forças, colocam-nos numa estante da Biblioteca. Depois, graças ao trabalho dos leitores de sonhos, esfumam-se no ar. O Leitor de Sonhos... isto é, tu... é um recém-chegado à Cidade, cuja sombra ainda não morreu. Os egos lidos pelo Leitor de Sonhos são absorvidos pelo ar e desaparecem não se sabe para onde. São os «velhos sonhos». Em resumo, tu cumpres a função de uma posse de terra. Percebes a que me refiro?

– Sim – respondi.

– Quando a sombra morre, o Leitor de Sonhos deixa de o ser e integra-se na Cidade. Desta forma, a Cidade vai girando eternamente em torno do círculo da perfeição. Obrigam-se os seres imperfeitos a carregar com a parte imperfeita, vive-se absorvendo apenas a parte filtrada do líquido. Achas que está certo? É um mundo real? As coisas devem ser assim? Tenta considerar o conjunto do ponto de vista do débil, do imperfeito. Do ponto de vista dos animais, das sombras e dos habitantes do Bosque.

Deixei-me ficar com os olhos cravados na chama da vela até que estes começaram a doer-me. Nessa altura, tirei os óculos e limpei as lágrimas com as costas da mão.

– Virei amanhã, às três – disse eu. – Tens razão. O meu lugar não é aqui.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

33

Lavar Roupa em Dia de Chuva.
Carro de Aluguer. Bob Dylan

Como se tinha posto um domingo chuvoso, as quatro máquinas de secar da lavandaria estavam ocupadas. Em cada um dos puxadores das portas estava pendurado um saco de plástico colorido ou um saco de compras. Havia três mulheres. Uma dona de casa, que calculei ter entre trinta e cinco e quarenta anos, e duas raparigas que pareciam ser hóspedes da residência de estudantes do bairro. A dona de casa, sentada de braços cruzados numa cadeira de plástico, limitava-se a olhar fixamente para o tambor da máquina, que girava, como se estivesse a ver televisão. As duas raparigas, uma ao lado da outra, folheavam um exemplar da revista JJ. Quando entrei, as três lançaram-me uma breve olhadela, mas logo desviaram o olhar para o tambor da máquina e para a revista.

Sentei-me numa cadeira com o saco da Lufthansa nos joelhos, à espera da minha vez. Como as raparigas não tinham nenhum saco, calculei que a sua roupa estivesse dentro das máquinas. O que queria dizer que, assim que uma delas parasse, eu teria caminho livre. Com algum alívio, pensei que não levaria muito tempo. A simples ideia de ficar à frente de uma máquina durante uma hora, a ver a roupa dar voltas lá dentro, deprimia-me. Já só me restavam menos de vinte e quatro horas.

Ali sentado, descontraí-me, e o meu olhar perdeu-se num ponto indefinido no espaço. Na lavandaria flutuava um cheiro peculiar, uma mistura do odor específico de roupa a secar e detergente. A meu lado, as raparigas tagarelavam sobre os desenhos das respetivas camisolas. Nenhuma das duas era especialmente bonita, mas como é sabido, as raparigas sofisticadas não passam as tardes de domingo a ler revistas na lavandaria.

Contrariamente aos meus cálculos, as máquinas de secar estavam a demorar muito tempo a parar. Existem vários aforismos ligados às lavandarias, e um deles afirma que: «A máquina por que esperas demora sempre uma eternidade a parar.» Mesmo parecendo que a roupa está completamente seca, o tambor continua a girar, dando voltas e mais voltas.

Ao fim de quinze minutos, nenhuma das máquinas tinha ainda parado. Entretanto entrou uma mulher jovem, esbelta e bem vestida, com um grande saco de papel na mão. Dirigiu-se a uma máquina de lavar, atirou lá para dentro um monte de fraldas de pano, abriu um saquinho de detergente, espalhou-o sobre a roupa, fechou a tampa e introduziu uma moeda na ranhura.

Estava com vontade de fechar os olhos e dormitar um bocado, mas fui impedido pelo receio de que, enquanto o fizesse, um dos tambores parasse e alguém aproveitasse a ocasião para lá meter a sua roupa antes de mim. O que representaria mais tempo perdido.

Estava arrependido de não ter trazido nada para ler. Enquanto lesse estaria distraído, e o tempo passaria mais depressa. Apesar de não ter a certeza de que, em momentos daqueles, fazer o tempo voar fosse o mais indicado. Melhor seria fazer com que o tempo passasse o mais devagar possível. No entanto, que sentido tinha gastar alguns dos preciosos minutos disponíveis numa lavandaria? Não seria aumentar o desperdício?

Pensar nisto provocou-me uma dor de cabeça. A existência de tempo é um tema conceptual. É claro que vamos incluindo uma matéria atrás da outra nessa temporalidade, até deixarmos de saber se as coisas que dela derivam são atributos do tempo ou atributos da matéria.

Abandonei este tópico e comecei a dar voltas à cabeça para decidir o que fazer assim que saísse da lavandaria. A primeira coisa seria ir comprar roupa. Roupa elegante. Como não havia tempo para me fazerem a bainha das calças, abandonei a ideia de arranjar o fato de tweed por que andei a suspirar quando estivera no subterrâneo. Era uma pena, mas tinha de me resignar. Portanto, contentar-me-ia com aquelas calças de pinças e compraria um blazer, uma camisa e uma gravata. E um impermeável. Com isso já poderia entrar em qualquer restaurante. Precisaria de cerca de uma hora e meia para fazer aquelas compras todas. Possivelmente, antes das quinze já as teria terminado. A partir daí até à hora do encontro, às dezoito e dez, havia um furo de três horas.

Esforcei-me por pensar na forma de passar essas três horas, mas não me ocorreu nada de interessante. O sono e o cansaço obstavam a que pensasse com clareza. Além do mais, havia outros obstáculos provenientes do fundo da minha consciência, de um lugar que me era inacessível.

Enquanto tentava aclarar as ideias, o tambor da máquina de secar da direita parou. Após verificar que não se tratava de uma ilusão, olhei à minha volta. A dona de casa e as estudantes trocaram uma olhadela rápida, mas nenhuma delas se levantou da cadeira. Então, eu, seguindo uma norma da lavandaria, abri a porta da máquina, tirei a roupa quente que estava no fundo do tambor e enfiei-a no saco de compras que estava pendurado no puxador, abri o meu saco da Lufthansa e pus a roupa dentro da máquina de secar. Fechei a porta e, depois de comprovar que estava a girar, regressei à minha cadeira. O relógio marcava as doze e cinquenta.

A dona de casa e as estudantes espiavam cada um dos meus movimentos. Deitaram uma olhadela ao tambor onde tinha metido a roupa lavada, e logo miraram, às furtadelas, o meu rosto. O problema era que, primeiro, pusera poucas peças, segundo, eram todas peças de roupa de senhora e, ainda para mais, cor-de-rosa. Chamava muito a atenção. Aborrecido, pendurei o saco da Lufthansa no puxador da máquina e decidi ir para outro sítio passar os vinte minutos que faltavam para a roupa secar.

A chuva miudinha continuava a cair, tal como de manhã, como se pretendesse fazer uma qualquer sugestão ao mundo. Abri o guarda-chuva e fui dar uma volta pelo bairro. Atravessando a tranquila zona residencial, desembocava-se numa rua onde as lojas se sucediam. Havia um cabeleireiro, uma padaria, uma loja de surf – por que razão haveria uma loja de surf em Setagaya era algo que me escapava –, uma tabacaria, uma pastelaria ocidental, um videoclube e uma lavandaria. Na porta da lavandaria havia um letreiro que dizia: «10% de desconto em dias de chuva». Por mais voltas que desse, não percebia porque seria mais barato lavar a roupa em dias chuvosos. Dentro da lavandaria estava o dono, um homem calvo com cara de poucos amigos, a passar uma camisa. Do teto, quais grossas lianas, pendiam vários cabos elétricos. Era uma lavandaria dos tempos antigos, em que o dono passava as camisas a ferro. Sem mais, senti um assomo de simpatia por aquele homem. Em lavandarias daquelas talvez não agrafassem o talão de identificação ao punho. Odiava tanto aquilo que preferia ser eu mesmo a passar as camisas em casa.

Do lado de fora, à entrada da loja, havia uma espécie de murete em cima do qual se alinhavam vários vasos com flores. Deixei-me ficar a olhar para eles por instantes, mas não conhecia o nome de nenhuma planta. Como é que não sabia nem um? Nem mesmo eu era capaz de o explicar. Sob todos os aspetos, tratava-se de plantas normais e vulgares, e fiquei com a impressão de que qualquer pessoa saberia o nome de todas sem exceção. As gotas de água que caíam do telhado golpeavam a terra negra no interior dos vasos. Com os olhos cravados nelas, fui assaltado pelo desespero. Vivera trinta e cinco anos neste mundo e nem sequer sabia como se chamavam as flores mais comuns.

Uma única lavandaria fizera-me descobrir muitas coisas: por exemplo, revelou a minha ignorância quanto ao nome das flores, e que, em dias de chuva, ir à lavandaria sai mais barato. Apesar de passar naquela rua quase todos os dias, nunca me tinha dado conta de que existia ali aquele murete.

Vi um caracol que deslizava pela superfície do murete, o que foi uma nova descoberta. Até esse instante, estivera convencido de que os caracóis só apareciam durante a época das chuvas. Claro que, pensando bem, se só apareciam durante a época das chuvas, onde se meteriam durante o resto do ano?

Apanhei esse caracol que tinha decidido aparecer no mês de outubro e coloquei-o numa das plantas, em cima de uma folha verde. O caracol ficou por momentos a tremer sobre a folha, porém, depressa se estabilizou numa posição inclinada e olhou em volta.

Voltei para trás até à tabacaria e comprei um maço de Lark longos e um isqueiro. Há cinco anos que deixara esse vício, mas não me faria mal nenhum fumar um maço de cigarros na véspera do fim do mundo. Logo ali, por baixo do telhado da tabacaria, pus um cigarro na boca e acendi-o com o isqueiro. Era uma sensação estranha voltar a ter um cigarro entre os lábios ao fim de tanto tempo, mais estranha do que imaginara. Aspirei lentamente e soltei devagar uma longa baforada de fumo. Tinha as pontas dos dedos entumecidas e o espírito confuso.

A seguir, fui até à pastelaria e comprei quatro bolos. Todos tinham um longo nome francês; no preciso instante em que os meteram na caixa, esqueci-me de como se chamavam. Esquecera por completo o francês que aprendera no momento em que saíra da faculdade. A empregada da pastelaria era uma rapariga alta como um poste, tremendamente desajeitada a fazer nós. Nunca vi uma rapariga alta que tivesse boas mãos. Claro que não sei se esta teoria é válida para o mundo todo, talvez seja limitada aos encontros que o destino me proporcionou.

Ao lado ficava o videoclube de que eu era cliente. Os donos tinham a minha idade, e ela era muito bonita. No ecrã da televisão de vinte e sete polegadas colocado à entrada da loja estava a passar O Lutador da Rua24, de Walter Hill. É o filme em que Charles Bronson faz de lutador de boxe de mãos nuas e James Coburn interpreta o papel do agente. Entrei na loja, sentei-me no sofá e fiquei a ver algumas cenas do filme para matar o tempo.

Por trás do balcão, ao fundo da loja, a dona parecia aborrecida, pelo que lhe ofereci um dos bolos. Ela escolheu uma tartelette de pera, e eu um cheesecake. Enquanto comia o meu bolo, observei a cena em que Charles Bronson luta contra o homem careca. A maioria dos espectadores está convencida de que o homem careca ganharia, mas eu assistira ao filme uns anos antes e tinha a certeza de que o vencedor seria Charles Bronson. Quando acabei o meu cheesecake, acendi um cigarro, fumei metade e, depois de verificar que Charles Bronson deixara o adversário KO, levantei-me do sofá.

– Fica mais um bocadinho – pediu a dona da loja.

Disse-lhe que gostaria imenso de ficar, mas que tinha a roupa na máquina de secar da lavandaria. Olhando para o relógio, vi que tinham passado vinte minutos da uma da tarde. A máquina já devia ter parado há que tempos.

– Oh, não! – exclamei.

– Não te preocupes. De certeza que alguém tirou a tua roupa da máquina e a meteu no saco. Ninguém tem interesse em roubar a tua roupa interior.

– É verdade – respondi numa voz desalentada.

– Para a semana vou receber três filmes antigos do Hitchcock.

* * *

Saí do videoclube e regressei à lavandaria pelo mesmo caminho. Por sorte, o local estava vazio, e a roupa que deixara na máquina jazia no fundo do tambor, esperando pacientemente o meu regresso. Das quatro máquinas de secar, apenas uma estava em funcionamento. Enfiei a roupa no saco e regressei ao meu apartamento.

A jovem gorda estava a dormir na minha cama. Dormia tão profundamente que, de início, cheguei a pensar que estava morta, porém, quando aproximei o ouvido, senti a respiração leve do sono. Tirei a roupa seca do saco, depositei-a sobre a almofada e deixei a caixa de bolos na mesa de cabeceira, ao lado do candeeiro. Adoraria deslizar entre os lençóis e estender-me ao seu lado, mas não podia.

Fui à cozinha, bebi um copo de água, senti uma imediata vontade de urinar e urinei; depois sentei-me numa cadeira e olhei à minha volta. Na cozinha alinhavam-se as torneiras, o esquentador a gás, o exaustor, o forno a gás, panelas e caçarolas de vários tamanhos, a chaleira, o frigorífico, a torradeira, o despenseiro, o conjunto de colheres, uma grande lata de chá Brooke Bond, a panela elétrica, a cafeteira. O que, numa palavra, se designava por «cozinha» compunha-se, na realidade, de uma série de aparelhos e objetos de diferentes tipos. Ao contemplar de novo, com calma, a minha cozinha, apercebi-me da sua complexa e estranha tranquilidade, própria da ordem que organizava o mundo.

Quando me mudara para aquele andar, a minha mulher ainda estava comigo. Tinham passado oito anos desde que me mudara para ali e, nessa altura, eu costumava sentar-me àquela mesa durante a noite, a ler. Como a minha mulher tinha um sono muitíssimo calmo, por vezes assustava-me, pensando que estaria morta. E à minha maneira, por imperfeito que fosse enquanto ser humano, amava-a.

Sim, pensei, há oito anos que habitava aquele apartamento. Oito anos antes, vivera ali com a minha mulher e o meu gato. A primeira a sair fora ela, logo a seguir saíra o gato. E agora sairia eu. Utilizando como cinzeiro uma chávena de café velha que ficara sem pires, fumei um cigarro e tornei a beber água. Porque teria ficado oito anos num lugar daqueles? Até a mim mesmo me parecia estranho. Não gostava especialmente de ali viver; a renda não era barata. O sol da tarde batia de chapa, o porteiro era antipático. A minha vida não fora mais feliz desde que me mudara para ali. A queda demográfica fora acentuada.

Porém, fosse como fosse, tudo anunciava o fim.

A vida eterna, pensei. A imortalidade.

O Professor dissera-me que me encaminhava para o mundo da imortalidade. Que o fim do mundo não era a morte, antes uma transformação, que poderia ser eu mesmo, que poderia recuperar todas as coisas que perdera no passado, bem como as que estava a perder agora.

Talvez fosse como dissera. Não, de certeza que seria assim. Aquele ancião sabia tudo. E se ele dizia que aquele mundo era o mundo da imortalidade, poderíamos apostar que era o mundo da imortalidade. Mesmo assim, não havia uma única das palavras do Professor que conseguisse despertar um eco no meu coração. Eram demasiado abstratas, demasiado ambíguas. Tinha a sensação de que, naqueles momentos, eu não era suficientemente eu mesmo, e a maneira como um ser imortal devia contemplar a sua própria imortalidade transcendia amplamente os estreitos limites da minha imaginação. E a tudo isto havia ainda que juntar os unicórnios e a Muralha. Tinha a impressão de que O Feiticeiro de Oz era mais realista.

O que foi que perdi?, perguntei a mim mesmo, dando voltas à cabeça. Sem dúvida alguma que teria perdido muitas coisas. Se tivesse apontado tudo com minúcia, de certeza que teria enchido por completo um dos cadernos da universidade. Sofrera bastante com a perda de algumas delas, apesar de, no momento em que as perdera, ter julgado não me importar demasiado, mas com outras sucedera-me o contrário. À medida que o tempo tinha passado, fora perdendo diversas coisas, várias pessoas, vários sentimentos. No bolso de um casaco simbolizando a minha existência abrira-se um buraco fatal, que nenhum fio e uma agulha seriam capazes de coser. Nesse sentido, se alguém tivesse aberto a janela de minha casa, enfiando a cabeça lá dentro para gritar: «A tua vida é um zero absoluto!», eu não disporia de nenhum argumento para esgrimir contra tal afirmação.

No entanto, dava-me a sensação que, podendo voltar atrás, teria tido uma vida idêntica à que levara. Porque esta vida – uma vida repleta de perdas – era eu. Era o único caminho de que dispunha para ser eu. Mesmo que para tal fosse preciso abandonar todo o tipo de pessoas, e que todo tipo de pessoas me abandonasse; mesmo que tivesse de apagar ou limitar os mais belos sentimentos, esquecer as mais sublimes qualidades ou sonhos, eu não podia ser outra coisa senão eu mesmo.

No passado, quando era mais jovem, acreditara que conseguiria vir a ser qualquer coisa diferente de mim mesmo. Inclusivamente, pensara que poderia abrir um bar em Casablanca e conhecer Ingrid Bergman. Ou também, numa atitude mais realista – e deixando de lado se, de facto, era ou não mais realista –, acreditara que poderia levar uma vida mais proveitosa e mais de acordo com a minha própria personalidade. Chegara mesmo a treinar para me transformar interiormente com esse objetivo. Lera The Greening of America25, vira três vezes Easy Rider. Mas, apesar de tudo isto, acabava sempre a regressar ao mesmo sítio, como um barco com o leme torcido. Era o «meu eu». O «meu eu» não ia a lado nenhum. O «meu eu» estava aqui, à espera de que eu regressasse.

Seria preciso chamar a isto desespero?

Não sabia. Talvez fosse desespero. Turguéniev talvez lhe chamasse desencanto. Dostoiévski, talvez inferno. Somerset Maugham talvez escolhesse chamar-lhe realidade. Mas, usassem o termo que usassem, este era eu.

Não conseguia imaginar o mundo da imortalidade. Talvez aí pudesse recuperar as coisas que havia perdido e criar um mundo novo. Talvez existisse lá alguém que me aplaudisse, me felicitasse. E talvez tivesse sorte e conseguisse ter uma vida mais proveitosa, mais de acordo com a minha personalidade. De qualquer forma, seria um outro eu, um eu que nada teria que ver comigo. O meu eu de agora tinha o meu próprio ego. Era um facto histórico, algo que ninguém conseguiria alterar.

Depois de alguns momentos de reflexão sobre aquilo tudo, cheguei à conclusão de que o mais razoável era partir do princípio de que morreria dentro de pouco mais de vinte e quatro horas. A ideia de passar para o mundo da imortalidade trazia-me à cabeça a obra Os Ensinamentos de Don Juan26 e estava a deixar-me bastante inquieto.

Ia morrer, concluí arbitrariamente. Dada a minha maneira de ser, era melhor pensar assim. A ideia proporcionou-me um certo alívio.

Apaguei o cigarro, dirigi-me ao quarto, tendo contemplado por instantes o rosto da jovem adormecida, verifiquei se tinha tudo aquilo de que necessitava dentro dos bolsos das calças. Claro que, pensando bem, precisava de muito pouca coisa. O que me faria falta, para além da carteira e do cartão de crédito? A chave do meu apartamento já não servia de nada, a carteira profissional tão-pouco. Não precisava da agenda, e como tinha abandonado o carro, as chaves eram igualmente inúteis. O canivete também não me fazia falta, os trocos idem. Despejei em cima da mesa todas as moedas que tinha dentro dos bolsos.

Primeiro fui de comboio até Ginza, comprei uma camisa, uma gravata e um blazer na Paul Stuart e paguei a conta com o meu American Express. Pus-me à frente do espelho com a roupa vestida: a imagem não era nada má. Preocupava-me um pouco que o vinco das calças de pinças verde-azeitona estivesse a começar a desbotar, mas nem tudo pode ser perfeito. A combinação do blazer de flanela azul-marinho com a camisa cor de laranja escura conferia-me um ar de jovem e prometedor executivo de uma empresa de publicidade. Pelo menos, ninguém diria que pouco tempo antes eu me arrastava por um subterrâneo e que dentro de vinte e duas horas desapareceria deste mundo.

Enquanto olhava para a minha imagem no espelho, dei-me conta de que a manga esquerda do blazer era cerca de um centímetro mais curta do que a direita. Para ser mais preciso, não era a manga que era mais curta, antes o meu braço esquerdo que era mais comprido. Não percebia o que se tinha passado. Sou destro e não me recordava de ter feito qualquer esforço especial com o braço esquerdo. O empregado informou-me de que podiam arranjar a manga em quarenta e oito horas, mas eu recusei a sugestão.

– O senhor joga basebol? – perguntou, entregando-me o talão da compra feita com o cartão de crédito.

Disse que não.

– A maior parte dos desportos deforma o corpo – acrescentou o homem. – Há que evitar excessos no desporto e comer e beber com moderação para que a roupa assente bem.

Agradeci e saí da loja. O mundo estava cheio de sentenças. A cada passo que dava, descobria coisas novas.

Ainda chovia, mas eu já estava farto de compras. Assim, depois de renunciar a adquirir um impermeável, entrei numa cervejaria e pedi uma cerveja e um prato de ostras. Por uma qualquer razão, na cervejaria soava uma sinfonia de Bruckner. Não sabia qual delas seria, mas a verdade é que ninguém sabe os números das sinfonias de Bruckner. Em todo o caso, era a primeira vez que escutava música deste compositor numa cervejaria.

Além da minha, havia mais duas mesas ocupadas. Numa delas estava sentado um casal jovem, na outra, um idoso de baixa estatura com um chapéu na cabeça. Sem o tirar, o ancião bebia a cerveja a pequenos goles, enquanto o casal falava baixinho, sem sequer tocar na cerveja. O ambiente normal de uma cervejaria numa chuvosa tarde de domingo.

Enquanto escutava a música de Bruckner, espremi o limão sobre as minhas cinco ostras, comi-as uma a uma no sentido dos ponteiros do relógio, e emborquei uma caneca de cerveja. Os ponteiros do enorme relógio da cervejaria marcavam três menos cinco. Por baixo da esfera havia dois leões, frente a frente, circundando o relógio com os corpos retorcidos. Eram ambos machos e tinham as caudas dobradas como se fossem dois cabides. Assim que a sinfonia de Bruckner terminou, foi substituída pelo Bolero de Ravel. Uma combinação curiosa.

Depois de pedir uma segunda cerveja, fui ao lavabo e urinei outra vez. Por mais tempo que passasse, o jato de urina não parava. Nem eu mesmo percebia de onde vinha tanto líquido, mas como não tinha nada de urgente que fazer, continuei a urinar calmamente. Creio que a micção se prolongou por cerca de dois minutos. Entretanto, nas minhas costas soava ainda o Bolero de Ravel. Urinar enquanto escutava o Bolero foi algo chocante. Acabei por ficar com a sensação de que o jorro de urina continuaria a correr por toda a eternidade.

Após concluir aquela longa micção, senti-me um homem novo. Lavei as mãos e, após ter observado o meu rosto num espelho deformado, regressei à mesa e bebi uns bons tragos de cerveja. Apetecia-me fumar, mas percebi que tinha deixado ficar o maço de Lark em cima da mesa da cozinha, pelo que fiz sinal ao criado e pedi-lhe que me trouxesse um maço de Seven Stars e uma caixa de fósforos.

Parecia que o tempo parara naquela cervejaria deserta, porém, a verdade é que prosseguia lentamente o seu curso. Os leões tinham percorrido cento e oitenta graus cada um, os ponteiros avançaram para as três e dez. Com um cotovelo apoiado na mesa, continuei a beber cerveja e fumei um Seven Stars com os olhos cravados no relógio. Contemplar os ponteiros do relógio era a forma mais absurda de passar o tempo, mas não me ocorria nada melhor que fazer. A maior parte das ações humanas assenta no pressuposto de que a vida continua; se uma pessoa afasta esta premissa, fica sem nada. Tirei a carteira do bolso e examinei tudo o que estava no seu interior. Cinco notas de dez mil ienes, várias de mil. Noutro compartimento havia vinte notas de dez mil presas com um clipe. Além do dinheiro vivo, tinha os cartões da American Express e o Visa. E dois cartões multibanco. Parti estes últimos em quatro bocados e deixei-os ficar no cinzeiro. Já não podia utilizá-los. Idêntica sorte tiveram dois outros cartões, um de sócio da piscina coberta e o do videoclube, bem como o cartão de pontos que me davam quando comprava café em grão. Guardei a carta de condução e tirei dois cartões de visita antigos. O cinzeiro ficou repleto dos restos da minha vida. No fim, fiquei apenas com o dinheiro, os cartões de crédito e a carta de condução.

Quando os ponteiros do relógio chegaram às três e meia, levantei-me, paguei a conta e saí. A chuva quase tinha parado enquanto acabava de beber a cerveja. Por isso, deixei ficar o guarda-chuva no bengaleiro. Não era mau presságio. O tempo estava a melhorar e eu sentia que o meu corpo se tornava cada vez mais ligeiro.

Senti-me renascer ao deixar ficar o guarda-chuva para trás. No mesmo instante, senti vontade de mudar de sítio. O ideal seria um lugar cheio de gente. Depois de ficar um instante a observar a fila de ecrãs de televisão do edifício Sony junto a um grupo de turistas árabes, desci para a estação de metro da linha Marunouchi e comprei um bilhete para Shinjuku. Devo ter adormecido no instante em que me sentei, porque acordei, de repente, em Shinjuku.

Inesperadamente, quando passei pela cabina do funcionário que verificava os bilhetes, recordei-me de que o crânio e os dados do shuffling continuavam guardados nos cacifos da estação. Já não precisava deles e nem sequer levava o talão comigo, mas como não tinha nada melhor para fazer, decidi ir buscá-los. Subi a escada, dirigi-me ao guiché dos cacifos e disse que tinha perdido o talão.

– Procurou bem? – perguntou-me o encarregado.

Respondi que sim.

– De que objeto se trata?

– De um saco de desporto azul da Nike.

– Podia desenhar-me a marca?

Peguei no bloco e no lápis que me estendia, desenhei o bumerangue achatado do logotipo da Nike e escrevi por cima a palavra «Nike». O encarregado deitou-me um olhar desconfiado e, a seguir, foi percorrendo as estantes com o bloco na mão até que encontrou o meu saco e mo trouxe.

– É este?

– É.

– Tem algum documento onde conste o seu nome e a sua morada?

Quando lhe entreguei a carta de condução, o encarregado confrontou os dados com os que estavam escritos na etiqueta pendurada no saco. A seguir arrancou a etiqueta, depositou-a em cima do balcão juntamente com uma esferográfica e disse-me:

– Assine aqui, por favor.

Assinei a etiqueta, agarrei no saco e agradeci ao encarregado.

Triunfara no meu propósito de retirar a minha bagagem, contudo, a verdade é que o saco da Nike não condizia com o resto da minha toilette. Não podia ir jantar com uma rapariga levando aquele saco na mão. Ainda pensei em comprar outro saco, mas para levar um crânio daquele tamanho precisava de uma mala de viagem grande ou de um saco como os que usam os jogadores de bólingue. A mala seria demasiado pesada e eu preferia andar com o saco da Nike, em vez de transportar um de bólingue.

Depois de considerar as várias possibilidades, cheguei à conclusão de que o mais sensato seria alugar um carro e pôr o saco no banco de trás. Assim, evitava o incómodo de andar com o saco na mão e deixava de me preocupar se achavam que combinava com o meu fato ou não. O ideal seria um elegante carro europeu. Não que gostasse particularmente dos carros europeus, mas fiquei com a impressão de que, tratando-se de um dia tão especial da minha vida, o carro teria de estar à altura da ocasião. Até àquele momento, eu só tinha guiado um Volkswagen que estava para abate e o meu carrinho japonês.

Entrei numa cafetaria, pedi as páginas amarelas, anotei a esferográfica os números de quatro agências de aluguer de carros situadas na zona da estação de Shinjuku e liguei para cada uma delas. Nenhuma tinha carros europeus. Sendo domingo e aquela estação do ano, quase não tinham carros para alugar; além do mais, não alugavam carros estrangeiros. Em duas das quatro agências já não tinham nenhum carro disponível, na terceira só tinham um Civic. Finalmente, a última tinha um Toyota Carina 1800 GT Twin Cam Turbo e um Mark II. A mulher da agência disse-me que os dois carros eram novos e que tinham aparelhagem estéreo. Como não me apetecia continuar a fazer chamadas, decidi alugar o Carina 1800 GT Twin Cam Turbo. Tanto me fazia. Os carros nunca me tinham interessado grandemente, nem sequer sabia como eram um Carina 1800 GT Twin Cam Turbo ou o Mark II.

A seguir, fui a uma loja de discos e comprei algumas cassetes. Grandes Êxitos, de Johnny Mathis; Noite Transfigurada, de Schönberg, dirigida por Zubin Mehta; Stormy Sunday, de Kenny Burrell; The Popular, de Duke Ellington; os Concertos Brandeburgueses, com Trevor Pinnock; e uma cassete de Bob Dylan que incluía «Like a Rolling Stone». Uma seleção heterogénea, mas não me restava outra solução: não sabia que música me iria apetecer escutar quando estivesse no Carina 1800 GT Twin Cam Turbo. Uma vez sentado no carro, talvez me apetecesse ouvir James Taylor. Ou talvez valsas vienenses. Ou os Police, ou os Duran Duran. Ou talvez não me apetecesse escutar nada. Não fazia a menor ideia.

Enfiei as cassetes no saco, fui à agência de aluguer de carros, pedi que me mostrassem o carro, entreguei a carta de condução e assinei os documentos. Comparado com o do meu carro, o assento do condutor do Carina 1800 GT Twin Cam Turbo parecia o painel de comandos de uma nave espacial. Caso alguma vez se vissem dentro do meu carro, as pessoas habituadas a conduzir Carinas 1800 GT Twin Cam Turbo certamente pensariam estar numa caverna de trogloditas. Enfiei a cassete de Bob Dylan na aparelhagem e, enquanto escutava «Watching the River Flow», fui experimentando, um a um, todos os manípulos do painel de comandos do carro. Se quando estivesse a conduzir me enganasse num, podia ver-me metido em sarilhos.

Enquanto, com o carro parado, mexia em todos os comandos, a simpática rapariga que me tinha atendido saiu da oficina, pôs-se ao lado do carro e perguntou se me podia ajudar. Tinha um sorriso tão puro e agradável como o de um bom anúncio de televisão. Os dentes eram muito brancos, a linha do queixo bem definida e usava uma cor de batom bonita.

Disse-lhe que não havia problema nenhum, que apenas estava a experimentar tudo para mais tarde não ter qualquer percalço.

– De acordo – disse a jovem, tornando a sorrir.

O sorriso dela fez-me recordar uma colega de turma do secundário. Era uma rapariga inteligente, de carácter franco e aberto. Segundo ouvira dizer, casara com um dos líderes do movimento revolucionário que conhecera na universidade e tivera dois filhos, mas saíra de casa, abandonando as crianças, e ninguém sabia onde estava. Quem teria podido prever que aquela jovenzinha de dezassete anos, que gostava de J. D. Salinger e George Harrison, viria a ter filhos com um dos líderes do movimento revolucionário e desapareceria pouco depois, sem deixar rasto?

– Oxalá todos os clientes fossem tão cautelosos como o senhor! – comentou a jovem. – Se não se está habituado, os painéis digitais dos modelos mais recentes são difíceis de manobrar.

Assenti. Ótimo, eu não era o único novato.

– Onde é que tenho de carregar para saber a raiz quadrada de cento e oitenta e cinco? – perguntei.

– Para isso terá de esperar que saia o novo modelo – respondeu-me, a sorrir. – É Bob Dylan?

– É – respondi. Bob Dylan estava a cantar «Positively Fourth Street». Mesmo tendo já passado vinte anos, continuava a ser uma bela canção.

– É fácil reconhecer Bob Dylan – disse ela.

– Porque toca harmónica pior do que o Stevie Wonder?

Riu-se. Gostei do seu riso. Eu ainda era capaz de fazer uma mulher rir.

– Não, não é por isso. É que tem uma voz muito especial – disse ela. – A voz dele faz lembrar um miúdo de pé, à frente de uma janela, a ver como chove.

– É uma descrição muito precisa – disse eu. E era. Já lera vários livros sobre Bob Dylan, mas jamais encontrara uma descrição tão exata. Concisa, rigorosa. Quando lho disse, corou ligeiramente.

– Não sei. É simplesmente o que penso.

– É muito difícil uma pessoa expressar o que sente por palavras – disse. – Todos sentimos um montão de coisas, e poucas pessoas são capazes de as transmitir por palavras com rigor.

– Gostava de escrever um romance – disse ela.

– De certeza que seria excelente.

– Muito obrigada.

– É raro que uma rapariga da sua idade ouça Bob Dylan.

– Gosto de música antiga. Bob Dylan, The Beatles, The Doors, The Birds, Jimi Hendrix...

– Um destes dias gostava de falar consigo durante um bocado – declarei.

Ela inclinou a cabeça ligeiramente para o lado e sorriu. Uma rapariga bonita conhece trezentas maneiras de responder a isto. E pode utilizar qualquer uma delas com um homem divorciado, fatigado, de trinta e cinco anos. Agradeci-lhe e arranquei. Dylan cantava «Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again». O encontro com aquela jovem pusera-me de muito bom humor. Tinha sido uma sorte escolher o Carina 1800 GT Twin Cam Turbo.

O relógio digital do painel marcava dezasseis horas e quarenta e dois minutos. O céu da cidade aproximava-se do entardecer. Eu circulava a baixa velocidade por ruas cheias de carros que se dirigiam para suas casas. Só por ser domingo, já seria normal haver um engarrafamento, mas como além disso um pequeno carro desportivo verde se enfiara contra um camião de oito toneladas carregado de blocos de cimento, o trânsito estava totalmente paralisado. O desportivo verde parecia uma caixa de cartão vazia sobre a qual alguém se tivesse inadvertidamente sentado. Vários polícias envergando impermeáveis negros rodeavam o carro e o reboque estava a enganchar uma corrente na parte de trás do veículo.

Levei muito tempo a conseguir sair do local do acidente, mas ainda faltava bastante para a hora do encontro, de modo que continuei a ouvir tranquilamente Bob Dylan enquanto fumava um cigarro. Tentei imaginar como seria estar casada com um líder de um movimento revolucionário. Poder-se-ia tomar um movimento revolucionário como uma profissão? Claro que não era uma profissão propriamente dita. No entanto, considerando que a política é uma profissão, a revolução deveria ser tida como um ramo dessa atividade. Mas não tinha ideias muito claras acerca deste assunto.

Será que, quando chegava a casa, discutia o progresso da revolução com o marido enquanto bebiam uma cerveja?

Bob Dylan começara a cantar «Like a Rolling Stone»; portanto, deixei de pensar na revolução e comecei a assobiar ao ritmo da música. Estávamos todos a ficar velhos. Era algo tão inegável como a chuva.

24 Filme de 1975, com o título original Hard Times. (N. das T.)

25 Obra de Charles A. Reich, (1970), não traduzida em Portugal, tornou-se uma espécie de panegírico da contracultura dos anos sessenta. Misturava análise sociológica com elogios à música rock, à canábis e às calças de ganga, defendendo que todas revelavam uma mudança fundamental na forma de ver o mundo. (N. das T.)

26 Título da obra do antropólogo e escritor Carlos Castañeda, The Teachings of Don Juan: A Yaqui Way of Knowledge, publicado em 1968. O livro relata os primeiros encontros do autor com Don Juan Matus, um índio yaqui de Sonora. Entre outros temas, a obra foca-se na diferença de culturas e nas dificuldades de entendimento mútuo. (N. das T.)


O Fim do Mundo

34

Os Crânios

Vi alguns pássaros voarem. Estes sobrevoaram, em voo rasante ao chão, a encosta branca e gelada da Colina Ocidental e desapareceram do meu campo visual.

Enquanto aquecia os pés e as mãos à frente do braseiro, bebi o chá a escaldar que o Coronel me tinha preparado.

– Hoje também vais ler sonhos? Com o que está a nevar, o mais certo é acumular-se muita neve, e torna-se perigoso subir ou descer a colina. Não podes faltar ao trabalho só por um dia? – perguntou o velhote.

– Não posso faltar, muito menos hoje – respondi.

O ancião saiu do quarto a abanar a cabeça e não tardou a regressar para me trazer umas botas de neve que desencantara algures.

– Calça-as. Com estas botas não escorregas.

Experimentei-as, e eram o meu número. Um bom presságio.

Chegada a hora, enrolei o cachecol ao pescoço e enfiei as luvas e o gorro que o velhote me tinha deixado. A seguir, peguei no acordeão e meti-o no bolso do casaco. Gostava tanto dele que não me queria separar daquele instrumento nem por um instante.

– Tem cuidado – preveniu-me o velhote. – Estás num momento decisivo. Se te acontecer qualquer coisa, o dano será irreparável.

– Eu sei – respondi.

* * *

Tal como havia calculado, o buraco estava cheio com uma boa quantidade de neve. À sua volta não se via nenhum velhote, e alguém guardara as ferramentas todas. A este ritmo, de certeza que na manhã seguinte o buraco estaria completamente tapado pela neve. Parei mesmo em frente e ali permaneci durante um bom bocado a contemplar a neve que caía no seu interior. A seguir, afastei-me do buraco e desci a colina.

Nevava tanto que a visibilidade era de muito poucos metros. Tirei os óculos e enfiei-os no bolso, puxei o cachecol até aos olhos e continuei a descer. Por baixo dos meus pés, os pitões das botas produziam um ruído agradável; de vez em quando ouvia-se o grito de algum pássaro no Bosque. Como se sentiriam os pássaros durante o nevão? Não sabia. E os animais? Que sentiriam, que pensariam, envoltos na neve que não parava de cair?

* * *

Cheguei à Biblioteca uma hora antes do habitual, mas ela já estava à minha espera, com o braseiro aceso a aquecer a sala. Sacudi a neve que se depositara sobre o casaco e tirei o gelo das solas das botas.

Apesar de ter estado ali no dia anterior, a visão da Biblioteca despertou em mim uma nostalgia indescritível. A luz amarelenta do candeeiro que se refletia nos cristais facetados, o calor íntimo que emanava do braseiro, o aroma do café que saía do bico da cafeteira, as memórias de velhos tempos de silêncios infiltrados em cada canto da sala, os gestos tranquilos e comedidos dela: tinha a sensação de ter perdido tudo isto muito tempo antes. Descontraí-me, deixei o meu corpo fundir-se no ar. Pensei que estava prestes a perder aquele mundo tranquilo para sempre.

– Queres comer agora ou preferes deixar para mais tarde?

– Não quero comer. Não tenho fome – respondi.

– Tudo bem. Quando tiveres apetite, seja qual for a hora, avisa-me. Vai um café?

– Sim, obrigado.

Tirei as luvas, pendurei-as no ornamento metálico do braseiro para que secassem e, enquanto aquecia os dedos das mãos, um a um, como se os desatasse, fiquei a ver como ela tirava a cafeteira de cima do braseiro e enchia as chávenas de café. Passou-me uma das chávenas e, de seguida, sentou-se sozinha à frente da mesa e começou a beber o café.

– Que nevão espantoso! Não se veem dois palmos à frente do nariz – comentei.

– Sim, vai nevar durante vários dias seguidos. Até que todas as grandes nuvens que estão imóveis no céu tenham descarregado.

Bebi metade do café quente e, com a chávena na mão, sentei-me à frente da rapariga. Pousei a chávena na mesa e, em silêncio, contemplei o rosto dela. Enquanto a olhava, invadiu-me uma tristeza tão grande que me absorveu por completo.

– Quando parar de nevar, de certeza que vai haver mais neve acumulada do que alguma vez imaginaste ver – disse ela.

– Talvez não possa vê-la.

Ela levantou os olhos da chávena e cravou-mos na cara.

– Porquê? Qualquer pessoa pode ver a neve.

– Hoje, em vez de ler velhos sonhos, preferia falar – comecei. – Temos de falar de algo muito importante. Tenho muitas coisas para te dizer e quero que me digas outras tantas. Importas-te?

Sem saber onde é que aquilo iria parar, ela cruzou os dedos sobre a mesa e dirigiu-me um olhar vago.

– A minha sombra está prestes a morrer – disse eu. – Como bem sabes, o inverno está a ser muito duro e não creio que ela aguente muito mais. É uma questão de tempo. Quando a minha sombra morrer, eu perderei o meu coração para sempre. Por isso, neste instante, estou a viver um momento crucial. Tenho de tomar muitas decisões. Sobre mim mesmo, em relação a ti, sobre todas as coisas. Tenho pouco tempo para pensar, mas mesmo que dispusesse de todo o tempo do mundo, chegaria à mesma conclusão. De facto, eu já cheguei a uma conclusão.

Enquanto bebia o café, no meu íntimo, tentei assegurar-me de que não fizera a opção errada. Não, não me enganara. Claro que, escolhesse o caminho que escolhesse, perderia sempre muitas coisas de vez. – É possível que amanhã à tarde eu abandone a Cidade – disse. – Não sei por onde nem como irei. A minha sombra logo me dirá a maneira de sair; vamos os dois abandonar a Cidade, regressar ao velho mundo de onde viemos e ali viveremos. Arrastarei a minha sombra, como acontecia antes, irei envelhecendo entre preocupações e sofrimentos e acabarei por morrer. Creio que esse mundo é mais adequado para mim. Viverei dominado pelo meu coração, arrastado por ele. Mas quase de certeza que tu não serás capaz de entender isto.

Ela tinha o olhar fixo na minha cara, mas, na realidade, mais do que observar-me a mim, parecia ter os olhos cravados no espaço onde o meu rosto estava.

– Não gostas desta cidade?

– No início, tu disseste-me que, se tinha vindo em busca de paz, eu iria gostar desta cidade. E, realmente, aprecio a sua paz e a sua calma. E sei que, se perdesse o meu coração, a paz e a tranquilidade seriam completas. Nesta cidade, ninguém faz sofrer ninguém. Talvez me venha a arrepender durante toda a vida por tê-la abandonado. Apesar disso, não posso ficar aqui. Porque o meu coração não me permite que fique sem ele e que sacrifique a minha sombra aos animais. Por muita paz que pudesse alcançar se ficasse aqui, não posso mentir ao meu coração, mesmo que ele se fosse extinguindo pouco a pouco. Há ainda um outro problema. Quando perdes uma coisa uma vez, mesmo que essa coisa deixe de existir, continuas a perdê-la durante toda a eternidade. Percebes?

Ela permaneceu em silêncio durante um bom bocado, a olhar para os dedos das mãos. O vapor que se libertava das chávenas de café desaparecera. Na sala, tudo estava imóvel.

– E nunca mais regressarás à Cidade?

Assenti.

– Quando sair daqui, nunca mais poderei regressar, isso é óbvio. Mesmo que tentasse voltar, as portas da Cidade nunca se abririam para mim.

– E não te importas?

– Vai ser muito duro perder-te. Mas eu amo-te, e o que importa é a pureza desse sentimento. Não quero transformar o meu amor num sentimento artificial só para te ter comigo. Se a alternativa é essa, é-me mais suportável perder-te assim, conservando o meu coração.

A sala tornou a ficar silenciosa, de tal forma que o ruído do carvão a estalar ressoava de forma desmesurada. Ao lado do braseiro estavam pendurados o meu casaco, o meu cachecol, o meu gorro e as luvas. Fora a Cidade que me dera tudo aquilo. Prendas singelas, mas habituara-me a elas.

– Também pensei em deixar que a minha sombra fugisse sem mim e ficar aqui sozinho – contei-lhe. – Mas se o fizesse, expulsavam-me para o Bosque e nunca mais poderia ver-te. Porque tu não podes viver no Bosque. As únicas pessoas que podem viver lá são aquelas cujas sombras não foram eliminadas por completo, aquelas que, apesar de tudo, ainda conservam um coração dentro do peito. Eu tenho coração, tu não. Por isso, nem sequer consegues sentir falta de mim.

Ela abanou a cabeça com calma.

– É verdade, eu não tenho coração. A minha mãe, sim, tinha, mas eu não. E como ela conservou o seu, foi expulsa para o Bosque. Não te contei, mas ainda me lembro de quando a levaram. Às vezes, inclusivamente, até penso nisso. Penso que, se tivesse coração, teria vivido sempre junto da minha mãe, no Bosque. Se tivesse coração, também poderia sentir a tua falta.

– Mas isso significaria que serias expulsa para o Bosque. Apesar disso, pensas que gostarias de ter coração?

Ela cravou os olhos nos dedos enlaçados sobre a mesa e, logo de seguida, abriu as mãos.

– Recordo-me de a minha mãe dizer que, se tiveres coração, vás onde vás, não podes perder nada. É assim?

– Não sei – respondi. – Não sei se é verdade ou não. A tua mãe acreditava que sim. O caso é se tu acreditas ou não.

– Sim, talvez acredite – disse, fixando o olhar no meu.

– Acreditas?! – perguntei, surpreendido. – Achas que podes acreditar?!

– Talvez – respondeu.

– Pensa bem. É muito importante. Acreditar em algo, seja o que for, é um ato do coração muito evidente. Percebes? Imagina que acreditas em qualquer coisa: implica que existe a possibilidade de te defraudarem. E se te enganarem, ficas dececionada. E sentires-te dececionada é um sinal de que tens um coração. Por acaso tens coração?

Ela abanou a cabeça.

– Não sei. Só me recordava da minha mãe. Não ia mais além. Só pensei que talvez conseguisse acreditar no que me dizia.

– É possível que dentro de ti exista qualquer coisa que tenha um vínculo com o coração, algo que te conduza até ele. Mas está endurecido, petrificado e não pode manifestar-se exteriormente. Por isso, a Muralha nunca o pôde eliminar.

– Se dentro de mim existir um coração, isso significa então que me aconteceu o mesmo que à minha mãe e a minha sombra não foi totalmente eliminada?

– Não, não creio. A tua sombra morreu e foi enterrada no Pomar das Macieiras. Está documentado. Contudo, penso que, graças às recordações da tua mãe, permaneceram no teu interior reminiscências ou fragmentos de memória, e é isso que te abala. E tenho a certeza de que, se continuares a evocá-los, vão conduzir-te a algum lugar.

Na sala reinava um silêncio pouco natural. Parecia que todos os sons tinham sido absorvidos pela neve que dançava na rua. Senti que a Muralha nos escutava às escondidas, retendo a respiração. Estava tudo demasiado tranquilo.

– Falemos dos velhos sonhos – disse eu. – É verdade que os animais absorvem os vossos corações, que nascem dia após dia, e que estes se convertem em velhos sonhos?

– Sim. Quando a sombra morre, os animais assumem o nosso coração, absorvem-no.

– Então, a partir dos crânios, eu podia decifrar o teu coração, não é verdade?

– Não, isso não é possível. O meu coração não foi absorvido como um todo; reduzido a fragmentos, o meu coração foi absorvido por vários animais diferentes, e esses fragmentos misturaram-se de forma indissolúvel com os fragmentos dos corações de outras pessoas. Não serias capaz de distinguir que sentimentos são os meus e quais os de outros. Durante todo este tempo dedicaste-te a ler velhos sonhos, mas nunca pudeste dizer quais eram os meus, pois não? Os velhos sonhos são assim. Ninguém saberá dizer a quem pertencem. O caos desaparece sob a forma de caos.

Compreendi muito bem o que me dizia. Lia velhos sonhos todos os dias, mas jamais fora capaz de compreender um único fragmento. Agora restavam-me apenas vinte e uma horas, e nessas vinte e uma horas tinha de arranjar maneira de chegar ao coração dela. Estranho. Estava na cidade da imortalidade e, contudo, todas as minhas escolhas se encontravam limitadas a um intervalo de vinte e uma horas. Fechei os olhos e respirei fundo várias vezes seguidas. Tinha de concentrar todas as minhas forças na busca do fio que desenredasse aquela situação.

– Vamos ao armazém – disse eu.

– Ao armazém?

– Vamos ao armazém olhar para os crânios. Talvez nos ocorra alguma solução.

Estendi-lhe a mão, levantámo-nos, passámos por trás do balcão e abrimos a porta que dava para o armazém. Quando ela carregou no interruptor, uma luz mortiça iluminou os inúmeros crânios alinhados nas prateleiras. Cobertos por uma grossa camada de pó, a sua brancura descolorida destacava-se na penumbra. Todos tinham as mandíbulas abertas no mesmo ângulo, e as enormes órbitas descarnadas contemplavam o espaço vazio à sua frente. Destilavam um silêncio glacial que flutuava no armazém como uma bruma transparente. Encostados à parede, observámos por instantes os crânios alinhados. O ar frio mordia-me a pele, fazia-me tremer até aos ossos.

– A sério que acreditas que consegues ler o meu coração? – perguntou-me, com os olhos postos na minha cara.

– Acredito que sou capaz de ler o teu coração – disse eu, com calma.

– E como?

– Ainda não sei – respondi. – Mas vou conseguir. Estou absolutamente convencido. De certeza que haverá uma maneira, e eu vou descobri-la.

– Eras capaz de separar uma das gotas de chuva que caem em fio, umas sobre as outras?

– Escuta-me bem. O coração não é uma gota de chuva. Não é qualquer coisa que caia do céu, não é algo indiferenciado, que se confunda. Se fores capaz de acreditar em mim, acredita. Vou encontrá-lo. Aqui está tudo e nada está aqui. E sei que posso encontrar aquilo de que ando à procura.

– Encontra o meu coração – disse ela, após um breve silêncio.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

35

Corta-Unhas. Molho de Manteiga.
Jarro de Metal

Estacionei o carro à frente da biblioteca às cinco e vinte. Como ainda faltava um bocado para a hora do encontro, saí do carro e dei uma volta pelas ruas lavadas pela chuva. Para matar o tempo, entrei numa cafetaria, pedi um café enquanto assistia a uma partida de golfe e entretive-me com um jogo de vídeo num salão de jogos. O jogo consistia em ir abatendo a tiros de canhão uma divisão de tanques que atravessava um rio para atacar a minha posição. Ao princípio, consegui alguma vantagem, mas à medida que o jogo foi avançando, o número de tanques inimigos foi-se multiplicando como uma horda de lemingues, até que, por fim, arrasaram a minha posição. Naquele instante, o ecrã encheu-se de uma luz branca, incandescente, como a de uma explosão atómica. E surgiram as letras «Game over – insert coin». Seguindo as instruções, introduzi na ranhura outra moeda de cem ienes. Então, ouviu-se uma musiquinha e a minha posição reapareceu, intacta, no ecrã. Era um combate destinado à derrota. Se não perdesse, o jogo jamais acabaria, e um jogo que não tem fim não faz sentido. O salão de jogos teria dificuldades, e eu também. Pouco depois, a minha posição foi outra vez arrasada e a luz incandescente tornou a inundar o ecrã. De novo surgiram as letras «Game over – insert coin».

Ao lado do salão de jogos havia uma loja de ferragens. Na montra estavam expostos de forma exuberante vários objetos. Junto a um jogo de chaves inglesas e de fendas viam-se um martelo e uma chave de parafusos elétrica. Também havia um jogo de ferramentas portátil, de fabrico alemão, num estojo de pele. O estojo era tão pequeno como um porta-moedas, mas continha, arrumados muito juntos, desde um x-ato pequeno até a um martelo e um eletroscópio. A seu lado estava um jogo de trinta escopros. Como jamais me passara pela cabeça que poderia existir uma tal variedade de lâminas de escopro, fiquei de boca aberta a olhar para aquele conjunto. Cada uma das trinta lâminas era ligeiramente diferente das demais e, entre elas, algumas havia com formas tão estranhas que eu não conseguia imaginar para que serviriam. Por contraste com o bulício do salão de jogos, a loja de ferragens estava silenciosa como a parte oculta de um icebergue. Por trás do balcão, na zona sombria ao fundo da loja, estava sentado um homem de meia-idade, de óculos, que desmontava qualquer coisa usando uma chave de parafusos.

Obedecendo a um impulso, entrei na loja e pus-me à procura de um corta-unhas. Descobri os corta-unhas ao lado dos artigos da barba, cuidadosamente alinhados como se fora um mostruário de insetos. Havia um com um formato tão insólito que não consegui sequer perceber como se utilizava. Escolhi-o e levei-o ao balcão. Era uma placa lisa de aço inoxidável com uns cinco centímetros de largura; não fazia a mínima ideia de onde apertar nem como manipulá-lo para conseguir cortar as unhas.

Quando cheguei à frente do balcão, o dono largou a chave de parafusos e a batedeira que estava a desmontar e mostrou-me como funcionava.

– Olhe, veja com atenção. Um! Dois! Três! E já tem um corta-unhas.

– Estou a ver – disse. Efetivamente, tinha-se convertido num corta-unhas magnífico. Devolveu-o à sua forma original e estendeu-mo. Imitei os seus gestos e converti-o de novo num corta-unhas.

– Trata-se de um artigo de primeira classe – disse, como se me revelasse um segredo. – É da casa Henkel e dura uma vida. Muito prático para levar em viagem. Não oxida, a lâmina é forte. Pode inclusivamente usá-lo para cortar as unhas ao cão.

Custou-me dois mil e oitocentos ienes. Vinha num pequeno estojo de pele. Depois de me dar o troco, o dono continuou a desmontar a batedeira. Havia um monte de parafusos, classificados por tamanhos, nuns pratinhos brancos. Ali colocados, os parafusos negros pareciam realmente felizes.

Depois de comprar o corta-unhas, regressei ao carro e fiquei à espera dela enquanto escutava os Concertos Brandeburgueses. Matutei um bocado na razão de os parafusos parecerem tão felizes dentro daqueles pratinhos brancos. Talvez fosse por terem deixado de fazer parte da batedeira e recuperado a sua independência enquanto parafusos. Ou talvez fosse porque consideravam que, naqueles pratinhos brancos, lhes tocara em sorte um lugar magnífico. Em todo o caso, era muito agradável contemplar a felicidade alheia.

Tirei o corta-unhas do bolso do casaco, soltei-o, cortei a ponta de uma unha para o experimentar, devolvi-o à sua posição original e guardei-o no estojo. Produzia uma sensação agradável ao cortar. Não sei por que razão, as lojas de ferragens parecem-me aquários pouco visitados.

Perto das dezoito, a hora a que a biblioteca fechava, muita gente começou a abandonar o edifício, na sua maioria estudantes de bacharelato que deviam ter estado a estudar na sala de leitura. Na mão de quase todos vinha um saco de desporto de plástico igual ao meu. Pensando bem, os bacharéis têm todos um não-sei-quê de artificial. A todos sobra ou falta qualquer coisa. Claro que é absolutamente possível que eles me achem muito menos natural. O mundo é assim. As pessoas chamam a isto o conflito de gerações.

Misturados com os estudantes vinham alguns idosos, que costumam passar as tardes de domingo na sala dos periódicos a ler revistas ou quatro jornais diferentes. Acumulam conhecimentos como os elefantes e regressam a casa, onde o jantar os aguarda. Os anciãos não parecem ser tão bizarros quanto os estudantes.

Depois de terem saído todos, soou uma sirene algures. Eram seis da tarde. Quando ouvi a sirene senti, pela primeira vez em vários dias, o estômago vazio. Pensando bem, desde manhã que apenas comera a sanduíche de ovo com presunto, um bolinho, umas ostras, e na véspera não comera nada. A sensação de fome faz lembrar um grande buraco. Como aqueles buracos fundos e escuros que vira no subterrâneo, que não devolviam qualquer som quando se lhes atirava uma pedra para dentro. Encostei-me ao assento e fiquei a pensar em comida com os olhos cravados no tejadilho baixo do carro. Pela minha imaginação desfilou todo o tipo de pratos. Inclusivamente, cheguei a pensar em rodelas de cebola nos pratinhos brancos. Cobertas de molho bechamel e acompanhadas com agriões, de certeza que não ficariam nada mal.

A rapariga das consultas saiu da biblioteca às seis e um quarto.

– O carro é teu? – perguntou.

– Não, é alugado – respondi. – Não condiz comigo?

– Não muito. Não sei, mas dá-me a impressão de que é para gente mais nova.

– Era o único que havia na agência. Não o escolhi por querer. A verdade é que tanto me faz ser um ou outro.

– Hum... – murmurou, dando uma volta ao carro como se estivesse a avaliar a mercadoria. Entrou para o lado oposto e sentou-se. Examinou detalhadamente o interior, abriu o cinzeiro, espreitou para dentro do porta-luvas.

– São os Concertos Brandeburgueses, não é verdade?

– Gostas?

– Imenso. Passo a vida a ouvi-los. Acho que a melhor versão é a do Karl Richter. Esta gravação parece-me bastante recente. De quem é?

– De Trevor Pinnock.

– Gostas de Pinnock?

– Não especialmente – respondi. – Comprei a primeira versão que encontrei. Mas não estão mal.

– Já ouviste os Concertos Brandeburgueses dirigidos por Pau Casals?

– Não.

– Pois tens de ouvir. Não é muito ortodoxa, mas é fabulosa.

– Ouvirei – prometi, mas ignorava se disporia de tempo. Já só me restavam dezoito horas e, além do mais, tinha de dormir um pouco. Por mais que a minha vida estivesse a acabar, não podia passar toda a noite acordado.

– O que te apetece comer? – perguntei-lhe.

– Que tal comida italiana?

– Muito bem.

– Podíamos ir a um sítio que eu conheço – disse ela. – É bastante perto daqui e a comida é fresquíssima.

– Tenho fome. Tanta fome – acrescentei –, que estava capaz de comer parafusos.

– Eu também. Que camisa tão bonita!

– Obrigado – disse.

O restaurante ficava a cerca de quinze minutos de carro. Depois de avançar lentamente pelo caminho tortuoso de uma zona residencial, fugindo a pessoas e ciclistas, o restaurante apareceu de repente, a meia encosta. Era uma casa de madeira branca, de tipo ocidental, convertida em restaurante, com uma tabuleta pequena a anunciar o nome. Uma pessoa que passasse por ali nunca adivinharia que se tratava de um restaurante. Ficava no meio de várias casas tranquilas, rodeadas de cercas altas, onde sobressaíam uns ciprestes dos Himalaias e uns pinheiros negros, cujas silhuetas escuras se recortavam contra o céu crepuscular.

– Nunca teria adivinhado que existe aqui um restaurante – disse eu ao entrar no parque de estacionamento.

Não era muito grande: tinha apenas três mesas e quatro bancos ao balcão. Um empregado de avental conduziu-nos até à mesa do fundo. Pela janela que havia junto da mesa viam-se os ramos de uma ameixeira.

– Queres vinho? – perguntou-me.

– Escolhe tu – respondi. Entendo menos de vinhos do que de cerveja.

Enquanto ela conferenciava sobre vinhos com o empregado, eu contemplei a ameixeira do jardim. Foi uma sensação estranha encontrar uma ameixeira no jardim de um restaurante italiano, mas, bem vistas as coisas, talvez não fosse assim tão estranho. Talvez em Itália também houvesse ameixeiras. Em França havia lontras. Depois de escolher o vinho, abrimos a carta e deliberámos sobre a nossa estratégia gastronómica. Levámos bastante tempo a decidir. De entrada, pedimos uma salada de gambas com coulis de morangos, ostras, mousse de fígado à italiana, lulas com tinta, beringelas fritas com queijo e wakasagi27 marinado; de entre os pratos de massa, eu escolhi tagliatelle caseiro, e ela, esparguete com manjericão.28

– E mais? Queres dividir o macarrão com molho de peixe? – perguntou ela.

– Perfeito – respondi.

– Que peixe recomenda para hoje? – perguntei ao empregado.

– Há um robalo muito fresco – respondeu. – Que lhes parece o peixe cozido ao vapor com amêndoas?

– Vou experimentar – disse ela.

– Eu também – acrescentei. – E quero ainda salada de espinafres com risotto de cogumelos.

– A dose de risotto é bastante grande – afirmou o empregado, preocupado.

– Não se preocupe. A última vez que comi foi ontem de manhã, e ela tem dilatação gástrica.

– Pareço um buraco negro – acrescentou a rapariga.

– Já tomei nota do risotto – afirmou o empregado.

– Para sobremesa, um sorvete de uva, um soufflé de limão e, depois, um espresso – disse ela.

– Eu quero o mesmo – afirmei.

Quando o empregado se afastou, depois de levar algum tempo a assentar diligentemente todos os pedidos, ela olhou-me, sorridente.

– Não pediste tanta comida só para me fazeres companhia, pois não?

– Não. Estou realmente esfomeado. Há muito tempo que não tinha tanta fome.

– Perfeito – disse ela. – Não confio em pessoas que comem pouco. Fico sempre com a impressão de que vão encher a barriga noutro sítio qualquer. O que achas?

– Não sei – respondi. Não sabia.

– «Não sei» é a tua expressão favorita, certo?

– Talvez.

– E «talvez» é outra.

Ficara sem palavras, pelo que me limitei a abanar a cabeça, em silêncio.

– E porquê? Porque é que as tuas ideias são tão ambíguas?

«Não sei», «talvez», murmurava para os meus botões quando o empregado se aproximou, abriu a garrafa de vinho e nos serviu cerimoniosamente os copos, com ademanes que traziam à ideia um médico assistente do Palácio Imperial, especialista em osteopatia, que estivesse prestes a tratar de uma luxação do príncipe herdeiro.

– «A culpa não é minha» é a expressão favorita do protagonista de O Estrangeiro, de Camus, não é verdade? Como é que se chamava? Acho...

– Mersault – esclareci.

– Isso mesmo. Mersault – repetiu. – Li o romance no liceu. Mas os estudantes de agora já não leem O Estrangeiro. Fizemos um inquérito lá na biblioteca. Como é que se chama aquele escritor de que gostas?

– Turguéniev.

– Isso. Turguéniev não é um grande escritor. Além do mais, passou de moda.

– Talvez – respondi. – Mas eu gosto. Também gosto de Flaubert e de Thomas Hardy.

– Nunca lês autores contemporâneos?

– Sim. De vez em quando leio Somerset Maugham.

– Não me parece que muita gente considere Somerset Maugham um autor contemporâneo, mas enfim... – comentou, inclinando o copo de vinho. – É como não encontrar os discos de Benny Goodman nas jukeboxes; vai a dar ao mesmo.

– É um autor interessante. Já li O Fio da Navalha três vezes. Não é um grande romance, mas pode ler-se. É melhor isso do que o contrário.

– Hum... – murmurou ela. – Essa camisa cor de laranja fica-te muito bem, há que dizê-lo.

– Obrigado – respondi. – O teu vestido também não está mal.

– Obrigada – disse. Era um vestido de veludo azul-marinho com uma pequena gola de renda branca. À volta do pescoço tinha dois finos colares de prata.

– Depois do teu telefonema, fui a casa trocar de roupa. É muito prático viver perto do local de trabalho.

Entretanto trouxeram-nos as entradas e, durante um bocado, comemos em silêncio. Era uma comida leve, nada sofisticada, sem peneiras. Os ingredientes eram muito frescos. As ostras estavam bem fechadas e tinham um intenso cheiro a mar, como se tivessem acabado de sair de lá.

– Já resolveste o assunto dos unicórnios? – perguntou-me, enquanto soltava uma ostra da concha com o garfo.

– Mais ou menos – respondi, usando o guardanapo para limpar a tinta das lulas dos lábios. – De momento, está resolvido.

– E onde estava o unicórnio?

– Aqui – e espetei um dedo na minha testa. – O unicórnio vive dentro da minha cabeça. De facto, existe aqui dentro uma manada inteira.

– Estás a falar em sentido figurado?

– Não. De figurado tem muito pouco. Vivem realmente dentro da minha cabeça. Foi uma pessoa que o descobriu.

– Que interessante! Quero saber mais. Conta!

– Não é assim tão interessante, não penses – disse eu, e passei-lhe o prato das beringelas. Em troca, ela passou-me o prato do wakasagi.

– Não faz mal. Apetece-me ouvir o que tens para dizer. E muito.

– No mais fundo da consciência, todos temos uma espécie de núcleo, inacessível até mesmo para nós próprios. No meu caso é uma cidade. É atravessada por um rio e está cercada por uma muralha muito alta, de tijolos. Os habitantes da cidade não podem viver fora dela. Só os unicórnios podem sair. Como se fossem papel mata-borrão, os unicórnios absorvem os egos dos habitantes da cidade e transportam-nos para o lado de fora da muralha. Por isso, nessa cidade não há egos. E eu vivo lá. É tudo. Nunca a vi com os meus próprios olhos, por isso não te posso contar mais nada.

– É uma história muito original – comentou.

Depois de lhe explicar aquilo, dei-me conta de que o ancião não me tinha falado de nenhum rio. Segundo parecia, a pouco e pouco, aquele mundo ia-me atraindo para si.

– No entanto, eu não o inventei inconscientemente – afirmei.

– Mesmo sendo inconsciente, é obra tua, não?

– Assim parece.

– Este wakasagi não está nada mau, não achas?

– Nada mau, mesmo.

– Isso que me contas faz lembrar aquela história dos unicórnios da Rússia que te contei, lembras-te? – disse ela, cortando uma beringela a meio com a faca. – Os unicórnios da Ucrânia também viviam num lugar parecido.

– Pois, assim parece – retorqui.

– Talvez exista alguma relação.

– Ah, é verdade! – exclamei, metendo a mão num dos bolsos... – Trouxe-te um presente.

– Adoro presentes! – exclamou.

Tirei o corta-unhas do bolso e dei-lho. Ela tirou-o do estojo e ficou a olhar para ele com estranheza.

– O que é isto?

– Dá-mo – pedi, e tirei-lho da mão. – Olha bem. Um! Dois! Três!

– Um corta-unhas?

– Precisamente. É muito prático para levar em viagem. Se quiseres pô-lo como estava, tens de fazer o mesmo, mas ao contrário. Olha.

Tornei a transformar o corta-unhas numa placa de aço e devolvi-lho. Ela montou-o e devolveu-o à forma original.

– É muito curioso. Muito obrigada – disse. – Tens por hábito oferecer corta-unhas às raparigas?

– Não, é a primeira vez. Há bocado passei por uma loja de ferragens e apeteceu-me comprar qualquer coisa. E um jogo de escopros era demasiado grande...

– O corta-unhas é perfeito. Obrigada. E como nunca se sabe onde é que os corta-unhas vão parar, vou andar sempre com ele no bolso de dentro da carteira.

Enfiou o corta-unhas no estojo e guardou-o na carteira.

Tiraram os pratinhos das entradas e trouxeram a massa. Aquela violenta sensação de fome ainda não diminuíra. Os seis pratos de entradas tinham desaparecido sem deixar rasto no vazio que se abria dentro do meu corpo. Em relativamente pouco tempo, enchi o estômago com uma quantidade bastante razoável de tagliatelle e, a seguir, devorei metade da dose de macarrão com o molho de peixe. Quando terminei, estava com a sensação de que começava a ver uma luzinha ao fundo do túnel.

Enquanto esperávamos que nos trouxessem o robalo, fomos bebericando o vinho.

– Diz-me uma coisa. Para deixar a tua casa naquele estado, utilizaram alguma máquina especial? – perguntou, sem afastar os lábios da borda do copo. A sua voz vibrou no interior, adquirindo um timbre surdo. – Ou foram várias pessoas?

– Nada de máquinas. Basta uma só pessoa.

– Devia ser muito forte.

– Como uma rocha.

– Alguém que conheças?

– Não, foi a primeira vez que o vi.

– Mas o apartamento estava feito num oito. Parecia que tinham jogado uma partida de râguebi lá dentro.

– Pois foi.

– Tinha alguma coisa que ver com o assunto do unicórnio?

– Pelos vistos, sim.

– E já está tudo resolvido?

– Não. Pelo menos no que lhes diz respeito, não.

– E para ti, sim?

– Sim e não – retorqui. – Como não tenho escolha, poder-se-ia dizer que está resolvido, mas como não fui eu que tomei as decisões, pode dizer-se que não está. Seja como for, em todo este assunto, ninguém quis ouvir a minha opinião. Imagina um ser humano a jogar uma partida de polo contra uma equipa de focas. É a mesma coisa.

– É por isso que amanhã vais para longe?

– Mais ou menos.

– De certeza que estás metido num grande sarilho, não é verdade?

– Um sarilho tão grande que nem consigo percebê-lo. O mundo tem-se vindo a complicar cada vez mais: a energia nuclear, a divisão do socialismo, o avanço da informática, a inseminação artificial, os satélites-espiões, os órgãos artificiais, as lobotomias... até os painéis de instrumentos dos carros mudaram tanto que não há quem os entenda. O que se passa é que, para resumir tudo em poucas palavras, me vi metido na guerra da informação. Até que os computadores comecem a ter a sua própria personalidade, eu sou um elo perdido. Um recurso provisório.

– Acreditas que, um dia, os computadores vão ter personalidade própria?

– É possível – respondi. – A ser assim, eles mesmos poderiam codificar os dados e efetuar os cálculos. E ninguém lhos poderia roubar.

O empregado aproximou-se e serviu-nos o robalo e o risotto.

– Confesso que me custa um bocadinho perceber isso tudo – afirmou ela, enquanto cortava o robalo com a faca de peixe. – A biblioteca é um lugar muito tranquilo, sabes? Está cheia de livros, as pessoas vão lá lê-los, e é tudo. A informação está disponível para toda a gente, ninguém luta.

– Oxalá eu trabalhasse numa biblioteca! – exclamei. Sim, de facto, devia ter-me dedicado a isso.

Comemos o robalo e rapámos o prato do risotto. Por fim, começava a vislumbrar o fundo do buraco da fome.

– O robalo estava delicioso – comentou, com um ar de satisfação.

– Conheço um truque para preparar um bom molho de manteiga – disse eu. – Cortas rodelas muito finas de chalota, mistura-las com manteiga de boa qualidade e levas a dourar com muito cuidado. Se não tiveres cuidado, não fica saboroso.

– Gostas de cozinhar?

– A cozinha quase não evoluiu depois do século dezanove. Pelo menos no que diz respeito à boa comida. A frescura dos ingredientes, o tempo e a dedicação, o sabor e a estética, são coisas eternas, que nunca evoluem.

– Aqui fazem um excelente soufflé de limão – informou ela. – Ainda tens espaço no estômago?

– Claro – respondi. Podia comer cinco soufflés.

Ela comeu o sorvete de uva, o soufflé e bebeu o espresso. Tinha razão: o soufflé era delicioso. Todas as sobremesas deviam ser sempre assim tão boas. O espresso era tão denso que se podia pô-lo na palma da mão e tinha um sabor redondo.

Quando acabámos de enfiar tudo dentro dos nossos respetivos buracos, o chef abeirou-se de nós para nos cumprimentar. Dissemos-lhe o quanto estávamos satisfeitos com a excelência da comida.

– Vale a pena cozinhar para gente com um apetite tão salutar – disse. – Nem sequer em Itália há gente que coma tanto como os senhores.

– Muito obrigado – agradeci.

Quando regressou à cozinha, chamámos o empregado e pedimos mais dois cafés.

– És a primeira pessoa que conheço capaz de comer tanto como eu e manter-se tão calmo.

– Ainda podia comer mais – respondi.

– Em casa tenho uma piza congelada e uma garrafa de Chivas Regal.

– Não está mal – disse.

De facto, a casa dela era bastante próxima da biblioteca. Era uma casinha pré-fabricada, mas independente. Tinha um vestíbulo e até um jardinzito onde apenas cabia uma pessoa deitada. O jardinzinho não podia albergar grandes esperanças de alguma vez ter sol, mas ela plantara uma azálea num canto. A casa tinha ainda um segundo piso.

– Comprei-a quando estava casada – explicou. – Paguei o empréstimo com o dinheiro do seguro de vida do meu marido. Comprámo-la com a ideia de ter filhos. Para uma pessoa sozinha é demasiado grande.

– Sim, calculo que sim – disse, olhando à minha volta, sentado no sofá da sala de estar.

Ela tirou uma piza do congelador, meteu-a no forno e, a seguir, trouxe a garrafa de Chivas Regal, copos e gelo, que pousou na mesinha da sala de estar. Liguei a aparelhagem e fui pondo várias cassetes. Escolhi a meu gosto cassetes de Jackie McLean, Miles Davis, Wynton Kelly, música desse tipo. Enquanto a piza cozinhava, escutei «Bags’ Groove» e «The Surrey with the Fringe on Top» e bebi um uísque. Ela abriu uma garrafa de vinho para ela.

– Gostas do jazz antigo? – inquiriu.

– Na época do liceu, passava o dia a ouvir este tipo de jazz nos cafés.

– Não ouves música moderna?

– Ouço de tudo: Police, Duran Duran... Ouço o que as pessoas me deixam ouvir.

– Mas tu não gostas especialmente, certo?

– Não preciso – respondi.

– O meu marido, o que morreu, estava sempre a pôr discos antigos.

– Tal como eu.

– Sim, um pouco. Mataram-no com uma pancada, num autocarro. Com um jarro de metal.

– Porquê?

– Chamou a atenção de um rapaz com o cabelo cheio de laca, num autocarro, e o outro bateu-lhe com um jarro de metal.

– E porque é que o rapaz levava um jarro de metal?

– Não sei – respondeu. – Não faço ideia.

Tão-pouco eu tinha alguma ideia.

– Fosse como fosse, é horrível morrer com uma pancada num autocarro, não achas?

– Sim, tens razão. Coitado – condoí-me.

Quando a piza ficou pronta, dividimo-la ao meio e cada um comeu metade. Fomos bebendo, sentados ao lado um do outro.

– Queres ver o crânio do unicórnio? – perguntei.

– Oh, sim! – exclamou. – A sério, tens um?

– É uma reprodução, não é autêntico.

– Não importa. Quero vê-lo.

Fui ao carro, que estava estacionado à frente da porta. Tirei o saco de desporto do banco de trás e regressei. Era uma noite do início de outubro, calma e agradável. As nuvens começavam a afastar-se e, nos intervalos, já se via a Lua quase cheia. Era de esperar que no dia seguinte estivesse bom tempo. Regressei ao sofá da sala de estar, corri o fecho do saco, tirei de lá o crânio embrulhado na toalha e passei-lho para as mãos. Ela pousou o copo e examinou o crânio com toda a atenção.

– Está muito bem feito.

– Foi um especialista de crânios que o fez – disse, sorvendo um golo de uísque.

– Parece verdadeiro.

Parei a cassete, tirei a pinça do bolso e dei-lhe uma pancadinha. Ouvi o mesmo som seco que anteriormente.

– O que estás a fazer?

– Cada cabeça tem a sua própria ressonância – expliquei. – É a partir dela que o especialista de crânios pode ler as várias recordações.

– Que história mais fantástica! – disse. E deu-lhe também uma pancadinha com a pinça. – Não me parece nada uma imitação.

– É porque foi feito por um tipo maníaco.

– O meu marido tinha uma fratura na cabeça. De certeza que não deve ter soado bem.

– Não sei – respondi.

Ela deixou o crânio em cima da mesa, pegou no copo e bebeu um gole de vinho. Sentados no sofá, com os ombros a tocarem-se, inclinámos os copos e observámos o crânio do animal. Desprovido de carne, parecia sorrir-nos e estar prestes a sorver todo o ar que nos rodeava.

– Põe uma música qualquer – pediu ela.

Daquela montanha de cassetes escolhi uma que me agradou, enfiei-a na aparelhagem, carreguei no botão e voltei para o sofá.

– Estás bem aqui? Ou preferes ir lá para cima, para a cama?

– Prefiro ficar aqui.

As colunas debitavam «I’ll Be Home» de Pat Boone. Fiquei com a sensação de que o tempo fluía na direção contrária, mas isso deixara de ser importante. Podia correr na direção que quisesse. Ela fechou as cortinas de renda da janela que dava para o jardim e apagou a luz da sala. À luz da Lua, despiu-se. Tirou os colares, o relógio de pulso em forma de pulseira, o vestido de veludo. Eu também tirei o relógio de pulso e atirei-o para a outra ponta das costas do sofá. A seguir despi o casaco, alarguei a gravata e engoli de um trago o uísque que ainda havia no fundo do copo.

No momento em que ela descalçava as meias, fazendo-as num rolo, a música mudou para «Georgia on My Mind», de Ray Charles. Fechei os olhos, pus os dois pés em cima da mesa, e da mesma forma que fazia girar o gelo dentro de um copo de uísque, fiz girar o tempo dentro da minha cabeça. Parecia que tudo aquilo já tinha acontecido antes. A roupa que ela despira, a música de fundo e as frases que trocáramos eram um pouco diferentes. No entanto, esta diferença não alterava nada. Por mais voltas que déssemos, íamos sempre parar ao mesmo sítio. Era como estar montado num cavalo de carrossel. Um empate eterno. Ninguém nos ultrapassa, não ultrapassamos ninguém, limitamo-nos a chegar sempre ao mesmo sítio.

– Parece que tudo isto já aconteceu há algum tempo – disse eu, de olhos fechados.

– Claro – respondeu ela. Tirou-me o copo da mão e, devagar, foi-me desapertando os botões da camisa.

– Como é que sabes?

– Porque sei – disse. E beijou o meu peito desnudo. O seu cabelo comprido caía sobre a minha barriga. – Tudo já aconteceu no passado. Limitamo-nos a dar voltas, uma e outra vez. Não é assim?

Ainda com os olhos fechados, saboreei com os meus lábios o toque dos dela, a sensação do seu cabelo. Pensei no robalo, pensei no corta-unhas, pensei no caracol no murete da lavandaria. O mundo estava cheio de sugestões.

Com os olhos fechados, abracei-a com carinho e passei-lhe a mão pelo ombro para abrir o sutiã. Não havia nenhum colchete.

– É à frente – sussurrou.

Não restavam dúvidas, o mundo evoluía.

Depois de fazermos amor três vezes, tomámos um duche e, enrolados numa manta, no sofá, escutámos um disco de Bing Crosby. Sentia-me maravilhosamente. A minha ereção fora tão perfeita como a pirâmide de Gizé, do cabelo dela desprendia-se um maravilhoso cheiro de amaciador e o sofá e as almofadas, embora fossem um pouco duros, não estavam mal. Pertenciam a uma época em que as coisas se construíam sólidas e cheiravam a sol de tempos pretéritos. No passado existira um tempo magnífico em que se fabricavam sofás assim como se fosse a coisa mais natural do mundo.

– É um belo sofá – disse eu.

– Estava a pensar comprar outro. Este já está velho e cheio de altos.

– Eu gosto deste.

– Muito bem, de acordo – respondeu.

Acompanhando a voz de Bing Crosby, cantei «Danny Boy».

– Gostas desta canção?

– Sim, muito – disse. – Na primária, ganhei o primeiro prémio de um concurso de harmónica com esta melodia. Deram-me uma dezena de lápis. Há muito tempo, eu era um prodígio a tocar harmónica.

Riu-se.

– A vida é tão estranha!

– Sim, bem estranha – concluí.

Ela tornou a pôr «Danny Boy», e eu tornei a cantá-la, seguindo a música. Da segunda vez que a cantei, fiquei triste.

– Quando te fores embora, escreves-me? – perguntou.

– Escrevo – respondi. – Se puder pôr as cartas no correio, claro.

Dividimos o vinho que restava na garrafa entre os dois e bebemo-lo.

– Que horas são? – perguntei.

– Meia-noite.

27 Pequeno peixe de água doce, muito popular na gastronomia japonesa. (N. das T.)

28 Apesar de ser uma refeição abundante, não é comparável a uma refeição ocidental. No Japão, as doses, muito pequenas, são trazidas em pequenos pratos, que muitas vezes são deixados em cima da mesa até ao fim da refeição. É parecido com um menu de degustação. (N. das T.)


O Fim do Mundo

36

O Acordeão

– Sentes, não é verdade? – disse ela. – Sentes que vais poder ler o meu coração, não é verdade?

– Sim, sinto-o com muita força. Sei que o teu coração está ao alcance da minha mão e que não estou a vê-lo. Devo ter à frente dos olhos, neste preciso momento, a maneira de o encontrar.

– Se sentes isso, deve ser verdade.

– Só que não estou a conseguir descobri-la.

Sentados no chão do armazém, ao lado um do outro, levantámos o olhar para os crânios. Imóveis, estavam virados para mim, mas não pronunciaram uma única palavra.

– Isso que sentes com tanta intensidade não poderia ter acontecido há pouco tempo? – perguntou. – Tenta recordar-te de tudo o que aconteceu à tua volta a partir do momento em que a tua sombra começou a enfraquecer. Talvez a chave esteja aí. A pista que nos conduza ao meu coração.

No chão gelado, fechei os olhos e esforcei-me por ouvir o eco do silêncio dos unicórnios.

– Hoje de manhã, os anciãos escavaram um buraco à frente do meu quarto. Não sei o que pretendiam enterrar, mas era muito grande. Fui acordado pelo barulho das pás. Tive a sensação de que me perfuravam a cabeça. Mas a neve encheu o buraco.

– E além disso?

– Fomos os dois à Central Elétrica, lembras-te? Estive com o Encarregado e conversei com ele acerca do Bosque. Mostrou-me as máquinas da central que estão por cima do buraco do vento. O rugido do vento é odioso, parece que sopra vindo dos fundos do Inferno. O Encarregado era jovem, tinha uma personalidade agradável, era magro.

– E a seguir?

– Ofereceu-me um acordeão, um pequeno acordeão de fole. É velho, mas tem bom som.

Sentada no chão, ela refletia. No armazém, a temperatura descia a cada minuto que passava.

– Talvez seja o acordeão – sugeriu. – Sim. De certeza que o segredo está aí.

– O acordeão?

– Tem lógica, não achas? O acordeão está ligado à música, a música está ligada à minha mãe, a minha mãe está ligada aos fragmentos do meu coração.

– De certeza que é isso – respondi. – Sim, faz todo o sentido. Talvez a chave esteja aí. No entanto, falta um elo fundamental na cadeia: não me recordo de nenhuma canção.

– Não é preciso que seja uma canção. Podes deixar-me escutar como soa? Só um bocadinho?

– Claro.

Saí do armazém, fui buscar o acordeão ao bolso do casaco, que estava ao lado do braseiro, regressei para junto dela com o instrumento e sentei-me. Deslizei as duas mãos por baixo das correias e tentei tocar alguns acordes.

– Que som tão bonito! – exclamou ela. – É igual ao som do vento?

– É o som do vento. Vou criando ventos com sons diferentes e combino-os.

Ela fechou os olhos e deixou-se ficar imóvel, a escutar os acordes.

Toquei, por ordem, todos os acordes de que fui capaz de me recordar. Tateando suavemente com os dedos da mão direita, fui carregando em todas as teclas da escala musical. Não saiu nenhuma melodia, mas não fazia mal. Bastava deixar que ela escutasse o som do acordeão como se fosse o vento. Decidi não tentar mais nada. Bastava que confiasse o meu coração ao vento, como se fosse um pássaro.

Disse para mim mesmo que jamais poderia abandonar o meu coração. Por mais pesado, por mais triste que estivesse em certas ocasiões, noutras sulcava o vento como um pássaro que voa para o infinito. Inclusivamente, poderia mergulhar o meu coração dentro dos ecos daquele pequeno instrumento.

Tive a sensação de que o vento que soprava no exterior do edifício me chegava aos ouvidos. O vento invernal dançava sobre a Cidade. Enrolava-se em torno da alta Torre do Relógio, passava por baixo das pontes, agitava os ramos dos salgueiros que bordejavam o Rio. Açoitava as árvores do Bosque, varria a pradaria, fazia estalar os postes de eletricidade da zona industrial, golpeava a porta da Muralha. Sob o seu sopro, os animais gelavam e as pessoas sustinham a respiração dentro de suas casas. Com os olhos fechados, evoquei várias imagens da Cidade. As ilhotas do Rio, uma das torres de vigia situada a oeste, a Central Elétrica do Bosque, o espaço soalheiro à frente da Residência Oficial onde os velhotes costumavam sentar-se. Os animais inclinados, a beber água nos remansos do Rio; o vento agitando a erva verde, que durante o verão crescia nos degraus de pedra do canal. Recordei até aos mais pequenos detalhes o Lago situado a sul onde tínhamos ido juntos, ela e eu. Recordei-me dos pequenos campos de cultivo por trás da Central Elétrica, da pradaria onde se erguiam os antigos barracões e das ruínas do velho poço, que ficavam no ponto em que o Bosque Ocidental ligava com a Muralha.

Pensei nas pessoas que conhecera na Cidade. O meu vizinho, o Coronel, os velhotes que viviam na Residência Oficial, o Encarregado da Central Elétrica, o Guardião da Porta Ocidental... Naquele momento, todos eles deviam estar nas suas respetivas casas a escutar o rugido do vendaval que fustigava a Cidade.

Estava prestes a perder para sempre todas e cada uma destas paisagens, todas e cada uma destas pessoas. E, claro, ela. No entanto, recordá-los-ia para sempre, como se tivesse acabado de os ver na véspera, aquele mundo e as pessoas que nele habitavam. Eles não tinham a mínima culpa de que a Cidade fosse antinatural e assentasse num fundamento erróneo, nem se lhes podia assacar a responsabilidade de os seus habitantes terem perdido o coração. Até talvez recordasse o Guardião com nostalgia. Porque ele não era mais do que outro elo da férrea cadeia em que a Cidade consistia. Algo criara uma poderosa Muralha, e as pessoas pura e simplesmente tinham sido absorvidas por ela. Senti que era capaz de amar todas as paisagens e todas as pessoas da Cidade. Não podia lá ficar. Mas amava-os.

Naquele instante, algo bateu levemente no meu coração. Um dos acordes insistia em permanecer dentro de mim, como se me pedisse alguma coisa. Abri os olhos e decidi voltar a tocá-lo. Com a mão direita procurei os sons correspondentes. Ao fim de um bom bocado, dei por fim com as quatro primeiras notas de uma melodia. Aquelas quatro notas foram descendo do céu, devagar, dançando no ar como ténues raios de sol, até pousarem no meu coração. Aquelas quatro notas precisavam de mim, e eu precisava delas.

Carregando nos botões do teclado, toquei muitas vezes aquelas quatro notas. Reparei que requeriam umas quantas notas mais e um acorde diferente. Procurei um novo acorde. Encontrei-o logo. Ainda me custava um pouco entrar na melodia, mas as quatro primeiras notas conduziram-me às cinco notas seguintes. A seguir, chegaram três notas de um outro acorde.

Aquilo era uma canção. Não uma canção completa, mas a primeira estrofe de uma canção. Repeti, uma e outra vez, os três acordes e as doze notas. Devia ser uma canção que já conhecia.

«Danny Boy»!

Fechei os olhos e continuei. Agora que sabia o título da canção, as notas fluíam e os acordes sucediam-se espontaneamente através das pontas dos meus dedos. Toquei a melodia uma e outra vez. Com toda a clareza, percebia como a música se ia infiltrando no meu coração, aligeirando a tensão e a rigidez de cada ponto do meu corpo. Ao ouvir música pela primeira vez ao fim de tanto tempo, dei-me conta do quanto sentia a sua falta. De a ter perdido há tanto tempo, esquecera-me do quanto a desejava. A música tornou leves o meu coração e os meus músculos gelados pelo frio invernal e trouxe aos meus olhos uma luz cálida e nostálgica.

Naquela música pareceu-me sentir a respiração da Cidade. Eu estava dentro da Cidade, a Cidade estava dentro de mim. A Cidade respirava e estremecia ao compasso do estremecer do meu corpo. Movia-se, serpenteava, sentia-a como se fosse a minha própria pele.

Depois de repetir muitas vezes aquela melodia, afastei as mãos do instrumento, pousei-o no chão, encostei-me à parede e fechei os olhos. Ainda sentia o tremor do meu corpo. Tudo o que ali havia era eu. A Muralha, a porta, os animais, o Bosque, o Rio, o buraco por onde saía a ventania, o Lago: tudo era eu. Tudo estava dentro de mim. Provavelmente, até o inverno gelado era eu.

Mesmo depois de eu ter pousado o instrumento musical, ela permaneceu com os olhos fechados, agarrada ao meu braço com ambas as mãos. Escorriam lágrimas dos seus olhos. Apoiei uma mão no ombro dela, pousei os lábios sobre os seus olhos. As lágrimas conferiam-lhes uma humidade tépida e suave. Uma luz ténue e doce iluminou-lhe a face, fazendo brilhar as lágrimas. Contudo, não se tratava da luz mortiça da lâmpada pendurada no teto. Era uma luz mais branca, mais quente, como a das estrelas.

Levantei-me e apaguei a lâmpada. E descobri de onde vinha a luz. Eram os crânios que brilhavam. A sala estava tão iluminada como se fosse meio-dia. Era uma luz suave como um raio de sol na primavera, serena como o luar. A velha luz adormecida no interior dos crânios despertava agora. As filas de crânios brilhavam em silêncio como o mar cintilante da manhã, fragmentado em milhares de pontos luminosos. Aquela luz, no entanto, não me cegava. Aquela luz enchia-me de paz, enchia o meu coração do calor trazido pelas velhas recordações. Sentia que os meus olhos estavam curados, já nada podia feri-los.

Era uma visão maravilhosa. A luz cintilava por todo o lado. Como joias no fundo de ondas cristalinas, os crânios brilhavam, emitindo a silenciosa luz prometida. Tomei um crânio nas mãos e deslizei suavemente as pontas dos dedos pela superfície. Nele descobri o seu coração. Estava ali. Senti-o, flutuava, era uma minúscula bola nas pontas dos meus dedos. Cada um dos pontinhos de luz oferecia apenas uma ínfima quantidade de calor e luz. Mas aquele átomo de luz e calor ninguém lho podia tirar.

– O teu coração está aqui – disse-lhe. – O teu coração acordou e é ele que cintila aqui.

A rapariga esboçou um gesto de anuência e cravou os olhos marejados de lágrimas na minha cara.

– Consigo ler o teu coração. E vou conseguir uni-lo num todo. O teu coração deixará de ser um coração perdido e fragmentado em mil pedaços. Está aqui e ninguém vai poder arrebatar-to. – Tornei a pousar os lábios sobre as pálpebras dela. – Deixa-me aqui sozinho – pedi. – Quero ler o teu coração antes que a manhã chegue. A seguir, dormirei um pouco.

Ela assentiu de novo, percorreu com o olhar as fileiras de crânios que brilhavam e abandonou o armazém. Quando a porta se fechou, encostei-me à parede e durante uma eternidade contemplei os inúmeros pontos de luz que brilhavam sobre os crânios. Aquelas luzes eram os velhos sonhos que ela sonhara e, ao mesmo tempo, eram os meus próprios velhos sonhos. Descobrira-o finalmente, depois de percorrer um longo caminho por aquela cidade muralhada.

Escolhi um crânio, pousei as duas mãos sobre ele e fechei os olhos devagarinho.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

37

Luz. Introspeção. Limpeza

Não sabia quantas horas dormira. Alguém estava a sacudir-me. A primeira coisa de que tomei consciência foi o cheiro do sofá. Logo a seguir, irritação com a pessoa que estava a acordar-me. O mundo inteiro, qual praga de gafanhotos no outono, pretendia arrancar-me aos braços do meu precioso sono.

Apesar disso, no meu íntimo, algo me instava a acordar. Como se me dissesse: «Não tens tempo para dormir.» Esse algo do meu íntimo estava a dar-me pancadas na cabeça com um jarro de metal.

– Acorda, por favor! – dizia ela.

Endireitei-me no sofá e abri os olhos. Tinha vestido um roupão cor de laranja. Ela vestia uma camisa de homem, branca, e estava em cima de mim, sacudindo-me pelos ombros. Apenas coberta com uma camisa e umas cuecas brancas, o seu corpo delgado trouxe-me à cabeça o de um rapazinho frágil. Um corpo suscetível de ser reduzido a pó e varrido por uma forte rabanada de vento. Onde diabo teria ido parar toda aquela comida italiana que tínhamos devorado? Onde largara o meu relógio de pulso? Era tudo muito confuso. No entanto, se os meus olhos não me enganavam, ainda não amanhecera.

– Olha! Ali, em cima da mesa! – exclamou ela.

Obedeci. Em cima da mesa estava uma espécie de árvore de Natal pequena. Mas não podia ser uma árvore de Natal: era demasiado pequena e, além do mais, ainda estávamos apenas no início de outubro. Não, não podia ser. Segurando as lapelas do roupão com as duas mãos, olhei fixamente para o objeto que estava em cima da mesa. Era o crânio que ali deixara. Não, talvez ela o tivesse posto sobre a mesa. Não me lembrava de qual dos dois o colocara naquele sítio, mas não importava. Em todo o caso, o que estava em cima da mesa a brilhar como uma árvore de Natal era o crânio de unicórnio que eu trouxera. Um halo de luz envolvia a caveira.

Cada um dos pontinhos de luz era diminuto e não tinha grande força. Contudo, os pequenos pontos de luz flutuavam por cima do crânio como incontáveis estrelas. Era uma luz branca, ténue e suave. Cada pontinho estava, por sua vez, rodeado de um halo de luz distinta, mais difusa, e os seus contornos surgiam vagamente velados. Por isso, mais do que brilhar na superfície do crânio, a luz flutuava-lhe por cima. Sentados juntos no sofá, permanecemos durante bastante tempo em silêncio com os olhos cravados naquele mar de luzinhas. Ela agarrava-se a um dos meus braços com ambas as mãos, e eu continuava a segurar as lapelas do roupão. Eram altas horas da noite e não se ouvia o menor ruído nas redondezas.

– O que é isto? É algum truque?

Abanei a cabeça. Passara uma noite com o crânio em casa, e ele não emitira qualquer luz. Devendo-se a algum tipo de pintura ou de musgo fosforescente, não brilharia ou deixaria de brilhar por capricho. Quando estivesse escuro, brilharia. Além do mais, antes de adormecermos, não estava a brilhar. Não se tratava de nenhum truque. Era algo especial, não criado por mãos humanas. Nenhuma força artificial teria conseguido produzir uma luz tão suave e serena.

Com cuidado, desprendi as mãos que se me agarravam ao braço, estendi a mão para o crânio, peguei nele em silêncio e pousei-o sobre os joelhos.

– Não tens medo? – perguntou ela, em voz baixa.

– Não – respondi. Não tinha medo. Aquilo devia ter alguma relação comigo. E ninguém tem medo de si próprio.

Ao cobrir o crânio com as palmas das mãos senti o calor tépido de um débil borralho. Os meus dedos estavam inclusivamente envoltos num halo de luz pálida. Fechei os olhos, deixei que os meus dez dedos penetrassem naquele calor suave e senti que do meu coração brotava uma imensidade de velhas recordações, como nuvens longínquas.

– Não parece uma réplica – comentou ela. – De certeza que é um crânio autêntico, que vem de tempos remotos, trazendo longínquas recordações...

Em silêncio, assenti. Mas que poderia eu saber? Fosse aquilo o que fosse, o certo era que emanava luz e que essa luz estava nas minhas mãos. Sabia apenas que a luz me dizia qualquer coisa. Era uma intuição. Possivelmente, estaria a indicar-me um caminho. Só que tanto podia estar relacionado com o novo mundo de que me aproximava como do velho mundo que me preparava para abandonar. E eu não era capaz de dizer qual.

Abri os olhos e de novo contemplei a luz que tingia os meus dedos de branco. Não conseguia captar o significado da luz, mas percebia-se nitidamente que era desprovida de malícia ou hostilidade. Assente na minha mão, parecia satisfeita por se encontrar ali. Com a ponta do dedo segui a linha de luz que pairava no ar. Nada a temer, pensei. Não havia razão para ter medo de mim próprio.

Pousei de novo o crânio sobre a mesa e rocei a face dela com a ponta daquele dedo.

– Está quente – constatou.

– É porque a luz está quente – disse eu.

– Achas que eu também poderia tocar-lhe?

– Claro.

Durante um bocado, ela deixou ficar as mãos pousadas no crânio e manteve os olhos fechados. Como seria de esperar, os seus dedos também se cobriram de um véu de luz branca.

– Senti qualquer coisa – disse ela. – Não sei o que foi, mas é uma coisa que já senti há muito tempo, não sei onde. O ar, a luz, o som, isso tudo. Mas não sei explicar...

– Eu também não – disse. – Tenho sede.

– Queres cerveja? Ou água?

– Cerveja é melhor.

Enquanto ela tirava a cerveja do frigorífico e a trazia para a sala, juntamente com os copos, apanhei o relógio de pulso atrás do sofá e vi as horas. Eram quatro e dezasseis. Dentro de pouco mais de uma hora seria manhã. Peguei no telefone e marquei o número do meu apartamento. Nunca tinha ligado para minha casa, pelo que me foi difícil recordar o número. Ninguém atendeu. Deixei que o telefone tocasse quinze vezes, desliguei, tornei a marcar e esperei outra vez até ao décimo quinto toque. O resultado foi o mesmo: não estava ninguém.

A rapariga gordita teria regressado aos subterrâneos para ir ter com o avô? Ou os Semióticos tinham regressado ao meu apartamento para a raptarem e a levarem não sei para onde? Fosse o que fosse, disse para os meus botões, ela sabia tomar boa conta de si própria. Era dez vezes mais capaz do que eu de enfrentar qualquer situação, por mais perigosa que fosse. E, além disso, tinha metade da minha idade, o que era importante. Ao desligar, fui assaltado por uma vaga nostalgia por pensar que não voltaria a vê-la. Era uma sensação parecida com a que se tem ao ver retirar todos os sofás e os candeeiros de parede de um hotel que dentro de pouco tempo será encerrado. As janelas vão sendo fechadas, uma atrás da outra, retiram-se as cortinas...

Bebemos a cerveja enquanto contemplávamos a luz branca que se desprendia do crânio.

– Achas que és tu que fazes a luz brilhar? – perguntou.

– Não sei. – Contudo, era essa a sensação que dava. Claro que também era possível que a luz fosse a resposta a outra coisa qualquer.

Despejei o resto da cerveja dentro do copo e bebi-a com vagar. Antes do amanhecer, o mundo era um local silencioso e deserto, como o interior do Bosque. A minha roupa e a dela estavam espalhadas pelo tapete. O meu casaco, a minha camisa, a minha gravata, as minhas calças, o vestido dela, as suas meias, a sua roupa interior. Fiquei com a sensação de que aquele monte de roupa espalhada era a materialização dos trinta e cinco anos da minha vida.

– O que é que estás a ver? – perguntou-me.

– A roupa.

– Porquê?

– Porque até há pouco fazia parte de mim. E a tua roupa era parte de ti. Mas agora já não. Parece roupa diferente, de gente diferente. Não parece ser a minha roupa.

– Estás assim porque fizeste amor – disse ela. – Depois de fazer amor, as pessoas ficam com tendência para a introspeção.

– Não, não é isso – disse, segurando o copo vazio. – Não estou introspetivo. No entanto, há muitos pormenores no mundo que atraem a minha atenção. Os caracóis, as gotas de chuva, a montra de uma loja de ferragens, esse tipo de coisas.

– Apanho a roupa?

– Não, está bem onde está. Sinto-me mais tranquilo assim. Não é preciso recolhê-la.

– Fala-me dos caracóis.

– Vi um caracol à frente da lavandaria – disse. – Não sabia que havia caracóis no outono.

– Há caracóis o ano todo.

– Pois, já vi que sim.

– Sabias que, na Europa, os caracóis têm um significado mítico? – perguntou ela. – A concha significa o mundo das trevas, e o facto de o caracol sair da concha quer dizer que o sol surgiu. Por isso, as pessoas, quando veem um caracol, têm o gesto instintivo de dar uma pancada na concha para fazer o caracol sair. Alguma vez fizeste isso?

– Não – retorqui. – Sabes muitas coisas.

– Quando se trabalha numa biblioteca aprende-se um montão de coisas.

Peguei no maço de Seven Stars que estava em cima da mesa e acendi um cigarro com os fósforos que me tinham dado na cervejaria. E voltei a olhar para a minha roupa espalhada no chão. Uma manga da minha camisa descansava sobre as meias azul-pálido dela. O seu vestido de veludo estava dobrado ao meio, como que retorcido, e a fina combinação jazia a seu lado, qual bandeira arriada. Os seus colares e o relógio estavam espalhados pelo sofá e a carteira de pele negra descansava sobre uma mesa de café que havia num canto da sala.

A sua roupa espalhada pelo chão parecia-se mais com ela do que ela mesma. Ou talvez a minha roupa se parecesse mais comigo do que eu próprio.

– Porque é que foste trabalhar para uma biblioteca? – quis saber.

– Porque gosto de bibliotecas. São tranquilas, estão cheias de livros, sempre a abarrotar de conhecimentos. Não me apetecia trabalhar num banco ou numa empresa comercial, e também não queria ser professora.

Soltei o fumo do cigarro na direção do teto e observei a sua trajetória.

– Queres saber mais coisas sobre mim? – perguntou. – Onde nasci, como era em miúda, em que universidade estudei, quando perdi a virgindade, a minha cor favorita, esse tipo de coisas?

– Não – respondi. – Agora não. Quero saber isso tudo pouco a pouco.

– Eu também quero conhecer-te pouco a pouco.

– Nasci junto ao mar – disse. – Sempre que ia à praia de manhã depois de um tufão, na areia havia todo o tipo de objetos trazidos pelas ondas. Encontravam-se as coisas mais surpreendentes. Desde garrafas, geta29, chapéus, caixas de óculos e até mesas e cadeiras. Não faço a menor ideia de como chegavam à praia, mas gostava imenso de as ir buscar e estava sempre à espera de que houvesse um tufão. Talvez as ondas tivessem arrancado as coisas de uma praia para depois as atirar para outra. – Apaguei o cigarro no cinzeiro e deixei o copo vazio em cima da mesa. – Todos aqueles objetos trazidos pelas ondas vinham espantosamente limpos. Não havia um único que estivesse tão sujo que não se pudesse tocá-lo. O mar é algo muito especial. Quando penso naquela época, recordo sempre aqueles detritos arrojados à praia. A minha vida consistiu sempre nisto, em recolher detritos, limpá-los a meu modo e ir deitá-los noutro sítio qualquer. Mas eram detritos inúteis, não podiam utilizar-se. Apodreciam no sítio onde ficavam.

– Mas para fazer isso é preciso estilo. Para a limpeza, quero dizer.

– E qual é a vantagem de ter um estilo desses? Um caracol também tem estilo. A única coisa que faço é ir de uma praia à outra. Lembro-me de muitas coisas que me aconteceram na vida, porém, apenas as recordo. Nenhuma delas tem nada que ver com o homem que sou agora. Limito-me a recordá-las. São coisas limpas, mas sem qualquer utilidade.

Ela pousou uma mão no meu ombro, levantou-se do sofá e foi à cozinha. Tirou uma garrafa de vinho do frigorífico, encheu um copo, pô-lo numa bandeja juntamente com uma cerveja e trouxe tudo para a mesa.

– Gosto desta hora de obscuridade antes do amanhecer – comentou. – Porque é limpa e não serve para nada, penso eu.

– Mas termina depressa. Amanhece, e lá vem o jornaleiro, o leiteiro e os comboios começam a circular.

Deslizou para o meu lado, puxou a coberta para o peito e sorveu um pouco de vinho. Eu servi-me da cerveja e, com o copo na mão, contemplei o crânio pousado na mesa, que ainda não tinha perdido o seu resplendor. Derramava a sua luz pálida sobre a garrafa de cerveja, o cinzeiro e os fósforos. Pousou a cabeça sobre o meu ombro.

– Estive a olhar para ti quando regressavas da cozinha – disse eu.

– E que te parece?

– Tens umas pernas muito bonitas.

– Gostas?

– Muito.

Ela pousou o copo sobre a mesa e deu-me um beijo mesmo por baixo da orelha.

– Sabes? – disse. – Adoro elogios.

* * *

Quando amanheceu, pouco a pouco, o dia foi clareando, e a luz do crânio, como que lavada pelo sol, foi perdendo lentamente o seu brilho e voltou a ser um monte de ossos brancos anódinos. Abraçados no sofá, vimos como a luz da manhã foi empurrando as sombras para o mundo que existia do outro lado das cortinas. A sua respiração cálida humedecia o meu ombro, os seus seios eram pequenos e suaves.

Quando terminou de beber o vinho, adormeceu placidamente como se fosse fixar-se naquele curto intervalo de tempo. A luz do Sol banhava os telhados das casas vizinhas, os pássaros vinham até ao jardim e desapareciam de novo. A voz do locutor dava as notícias, alguém punha um carro em funcionamento. Eu já não tinha sono. Não me lembrava de quantas horas dormira, mas o torpor desaparecera por completo e a minha cabeça estava liberta dos efeitos do álcool. Com cuidado, afastei a cabeça dela do meu ombro, levantei-me do sofá, fui à cozinha, bebi vários copos de água e fumei um cigarro. Depois, fechei a porta entre a sala e a cozinha, liguei o leitor de cassetes que estava em cima da mesa e sintonizei uma emissora de FM, com o volume baixinho. Apetecia-me ouvir uma música de Bob Dylan, mas, infelizmente, não passaram nenhuma. Em vez disso, puseram «Autumn Leaves», por Roger Williams. Estávamos no outono.

A cozinha dela era muito parecida com a minha. Tinha um lava-loiça, um exaustor, um frigorífico com congelador e um esquentador a gás. Os tamanhos, as funcionalidades e o número de utensílios eram praticamente os mesmos. A única diferença era que ela não tinha um forno a gás, mas um micro-ondas. Também tinha uma chaleira elétrica. Havia um jogo de facas arrumadas por tamanho, mas afiadas de maneiras diferentes. Poucas mulheres sabem afiar facas como deve ser. Todos os recipientes para cozinhar eram de pirex, muito práticos para o micro-ondas, e as sertãs estavam cuidadosamente untadas com azeite. O caixote do lixo por baixo do lava-loiça estava limpo.

Nem sequer sei porque me interessam tanto as cozinhas de terceiros. Não tenho intenção de coscuvilhar os pormenores da vida quotidiana das outras pessoas, mas reconheço que as cozinhas despertam a minha atenção de um modo muito pouco natural. «Autumn Leaves» por Roger Williams terminou e, a seguir, ouviu-se «Autumn in New York», da orquestra de Frank Chacksfield. Banhado pela luz de uma manhã de outono, contemplei distraído as caçarolas, as tigelas e os frascos de especiarias alinhados nas prateleiras. A cozinha é um mundo à parte, já William Shakespeare o dizia. O mundo é uma cozinha.

No fim da melodia, a locutora comentou: «Chegou o outono!» A seguir, falou do cheiro da primeira camisola de lã que se veste quando chega o outono. Disse que há uma boa descrição deste cheiro num romance de John Updike. A melodia que se seguiu foi «Early Autumn», de Woody Herman. O relógio de cozinha em cima da mesa marcava as sete e vinte e cinco da manhã. As sete e vinte e cinco da manhã do dia três de outubro. Segunda-feira. O céu estava tão claro e parecia tão profundo como se alguém o tivesse escavado com uma faca afiada. Não parecia um mau dia para deixar este mundo.

Pus água a aquecer e escaldei uns tomates que havia no frigorífico, piquei alho e uns legumes que encontrei para preparar um molho de tomate; a seguir, juntei umas salsichas e deixei cozer tudo em lume brando. Entretanto, cortei pimentos e pepinos em pedaços pequenos, preparei uma salada, fiz uma cafeteira de café, salpiquei uma fatia de pão com umas gotas de água, embrulhei-a em papel de alumínio e levei-a ao forno, a tostar. Quando a comida ficou pronta, acordei-a e tirei o copo, a taça e a garrafa de cerveja de cima da mesa de jantar.

– Que bem que cheira! – exclamou.

– Posso vestir-me agora? – perguntei.

Nunca me visto antes de a mulher o fazer. Acho que dá má sorte. Numa sociedade civilizada, chama-se a isto educação.

– Claro, força – disse ela, despindo a camisa. A luz da manhã criava sombras suaves nos seus seios e no ventre, e fazia brilhar a sua pele. Deixou-se ficar assim uns instantes, a contemplar o seu corpo nu.

– Nada mal, não é verdade?

– Não, nada mal – concordei.

– Não tenho banhas nem pregas na barriga, e a pele está ainda bem esticada. Por agora, claro – declarou, apoiando as mãos no sofá e virando-se para mim. – Mas, um dia, tudo isto desaparecerá de repente, não te parece? Acabar-se-á como um fio que se corta, sem possibilidade de voltar atrás. É triste.

– Vamos comer – sugeri.

Ela foi à sala contígua, enfiou uma camisola amarela pela cabeça e vestiu um velho par de calças de ganga desbotadas. Eu vesti as calças de pinças e a camisa. Sentámo-nos frente a frente à mesa da cozinha: comemos o pão, as salsichas e a salada. Tomámos café.

– Adaptas-te sempre assim tão depressa às cozinhas na casa das outras pessoas? – indagou.

– No fundo, todas as cozinhas são iguais – respondi. – Nelas se cozinha e se come. Não existe grande diferença entre uma coisa e outra.

– Às vezes não te sentes farto de viver sozinho?

– Não sei. Nunca tinha pensado nisso. Vivi cinco anos com a minha mulher, mas agora nem sequer me recordo da vida que levava. Tenho a sensação de ter vivido sempre sozinho.

– Nunca pensaste em voltar a casar?

– Fazia alguma diferença? – respondi. – É igual uma coisa ou outra. É como se fosse um canil com uma entrada e uma saída. Não importa por onde se entra ou por onde se sai.

Ela riu-se e, com um guardanapo de papel, limpou o molho de tomate que ficara nos cantos da boca.

– É a primeira vez que ouço alguém comparar o casamento a um canil.

Quando acabámos de tomar o pequeno-almoço, aqueci o café que sobrara e enchi uma chávena para cada um.

– O molho de tomate estava excelente – elogiou.

– Se levasse louro e orégãos teria ficado ainda melhor – respondi. – E se o tivesse deixado ficar ao lume mais uns dez minutos também.

– Seja como for, estava ótimo. Há muito tempo que não comia um pequeno-almoço tão bem preparado. O que vais fazer agora?

Olhei para o relógio. Eram oito e meia.

– Podemos sair às nove. Ir a um parque apanhar sol enquanto bebemos cerveja. Às dez e meia levo-te de carro onde quiseres e vou-me embora. O que fazes logo?

– Volto para casa, lavo a roupa e limpo a casa, e depois, sozinha, vou mergulhar nas recordações do sexo que tivemos esta noite. Não está mal, não é verdade?

– Nada mal – concordei. E não estava.

– Olha, não penses que vou para a cama com o primeiro que me aparece – acrescentou.

– Eu sei.

Enquanto lavava a loiça, ela tomou um duche, cantando. Lavei a caçarola e os pratos com um detergente de gordura de origem vegetal que pouca espuma fazia, limpei-os com um pano e deixei tudo em cima da mesa. Lavei as mãos, peguei numa escova de dentes que encontrei na cozinha e lavei os dentes. A seguir fui à casa de banho e perguntei-lhe se tinha alguma lâmina de barbear.

– Vê no armário de cima, do lado direito. Acho que tens lá a do meu marido.

Efetivamente, no armário havia espuma de barbear da Gilette, com aroma a lima-limão, e uma elegante lâmina. A embalagem de espuma estava quase vazia e, no pulverizador, estava agarrado um bocado de espuma branca, já seca. Morrer significa desaparecer e deixar ficar para trás uma embalagem de espuma de barbear quase vazia.

– Encontraste? – perguntou.

– Sim – respondi.

Regressei à cozinha com a lâmina, a espuma de barbear e uma toalha limpa, aqueci a água e barbeei-me. Quando terminei, lavei a lâmina e a tampa com todo o cuidado. Os pelos da minha barba misturaram-se com os do homem morto no cano do lavabo, e juntos desapareceram pelo cano.

Enquanto ela se vestia, eu sentei-me no sofá da sala de estar e li o jornal da manhã. Um taxista tivera um ataque de coração enquanto conduzia o táxi, estampara-se contra o gradeamento de um viaduto e morrera; os passageiros, uma mulher de trinta e dois anos e uma menina de quatro, estavam gravemente feridas. No almoço do conselho municipal dum sítio qualquer tinham servido ostras em mau estado e duas pessoas morreram. O ministro dos Negócios Estrangeiros afirmara achar lamentável a política de altas taxas de juros dos Estados Unidos, um encontro de banqueiros americanos analisara o problema do pagamento da dívida dos países da América Latina. O ministro das Finanças peruano criticara a ingerência dos Estados Unidos na economia da América do Sul; o ministro dos Negócios Estrangeiros da República Federal da Alemanha protestara veementemente, exigindo a retificação do desequilíbrio da balança comercial com o Japão. A Síria censurava Israel, Israel censurava a Síria. Havia também uma secção de conselhos sobre o que fazer quando um jovem de dezoito anos agredisse os pais. Não parecia haver nada que me pudesse ser útil durante as minhas últimas horas de vida.

Ela estava à frente do espelho a pentear-se, com umas calças de algodão bege e uma camisa castanha aos quadrados vestidas. Pus a gravata e o casaco.

– O que vais fazer ao crânio do unicórnio? – perguntou-me.

– Ofereço-to. Onde queres pô-lo?

– Em cima da televisão, que te parece?

Peguei no crânio, que perdera a sua luz, fui a um canto da sala de estar e pu-lo em cima do televisor.

– Então?

– Não está mal – comentei.

– Achas que tornará a brilhar?

– De certeza que sim – disse. Abracei-a de novo para gravar o seu calor na minha mente.

29 Sandálias com sola de madeira. (N. das T.)


O Fim do Mundo

38

A Fuga

Com a chegada da alvorada, a luz dos crânios começou a desvanecer-se. Quando a luz acinzentada da manhã, que entrava por uma pequena janelinha perto do teto do armazém, começou a iluminar debilmente as paredes mais próximas, pouco a pouco, os pontos de luz perdiam o seu brilho e, juntamente com a recordação das trevas profundas, foram fugindo, um a um, para outro lugar qualquer.

Até a última luz desaparecer, continuei a deslizar os dedos pelos crânios, absorvendo o seu calor. Não sabia que percentagem do total tinham alcançado as luzes que eu conseguira ler durante a noite. Havia vários crânios para ler e dispunha de muito pouco tempo. Contudo, decidi deixar de pensar no tempo e fui esquadrinhando com os dedos, com toda a atenção e o maior cuidado, um crânio atrás de outro. Percebia claramente como, por baixo das polpas dos meus dedos, se ia desenhando, segundo a segundo, a existência do seu coração. Sentia que era suficiente fazer aquilo. O número ou a proporção não interessavam. Por mais que uma pessoa se esforce, jamais será capaz de decifrar tudo o que se oculta nos escaninhos do coração humano. A verdade é que o seu coração estava ali e que eu o sentia. Que mais poderia querer?

Depois de devolver o último crânio ao seu lugar na estante, sentei-me no chão e encostei-me à parede. Através da claraboia lá no alto não se via o céu e, portanto, não seria capaz de adivinhar que tempo fazia lá fora. Atendendo à pouca luminosidade, apenas podia dizer que o tempo devia estar encoberto. Pelo armazém flutuavam umas sombras pálidas, como se fora uma corrente de líquido suave, e os crânios haviam mergulhado naquele sono profundo que tornara a visitá-los. Também eu fechei os olhos e deixei a minha mente repousar no ar frio da madrugada. Ao levar a mão à face, dei-me conta de que a mão conservava o calor da luz.

Deixei-me ficar sentado naquele canto, imóvel, até o meu espírito, mergulhado no silêncio e no ar frio, serenar. O tempo carecia de uniformidade e coerência. O ténue luar que entrava pela janela não mudava, as sombras continuavam paradas no mesmo lugar. O seu coração infiltrara-se no meu corpo e percorria a minha carne. Sentia-o misturar-se com os diversos fenómenos que me constituíam, imiscuir-se nos cantos mais esconsos do meu corpo. De certeza que levaria ainda bastante tempo até conseguir dar-lhe uma forma mais clara e definida, e talvez me custasse mais ainda passar-lho, infiltrá-lo no corpo dela. Claro que, por mais tempo que demorasse, mesmo que não lograsse alcançar uma forma perfeita, mesmo assim poderia oferecer-lhe um coração. E ela, pelos seus próprios meios, seria capaz de o melhorar. Estava convencido disso.

Levantei-me e abandonei o armazém. Ela estava sozinha, sentada a uma mesa da sala de leitura, à minha espera. A mancha de luz esbatia os contornos do seu corpo. A noite fora longa, tanto para ela como para mim. Quando me viu, levantou-se sem dizer nada e pôs a cafeteira ao lume. Enquanto o café aquecia, lavei as mãos na pia do fundo, sequei-as com uma toalha e sentei-me à frente do braseiro para ficar perto do calor.

– Estás cansado? – perguntou-me.

Fiz que sim com a cabeça. Sentia-me pesado como um pedaço de barro, mal podia erguer a mão. Passara muitas horas a ler os velhos sonhos. No entanto, o cansaço não penetrara no meu coração. Tal como ela me havia dito no primeiro dia em que me dedicara a ler sonhos, por mais cansados que nos sintamos, não devemos deixar que o cansaço penetre no nosso coração.

– Porque é que não foste para casa dormir? – perguntei. – Não era preciso ficares aqui.

Ela encheu uma chávena de café e passou-ma.

– Enquanto aqui estiveres, eu fico.

– É a regra?

– Não, fui eu que decidi – respondeu, sorrindo. – Além do mais, estás a ler o meu coração. Não posso ir-me embora e deixá-lo ficar aqui, não é?

Assenti e bebi um pouco de café. Os ponteiros do relógio de parede marcavam as oito e um quarto.

– Queres que te prepare o pequeno-almoço?

– Não – respondi.

– Mas desde ontem que não comes nada!

– Não tenho fome. Preciso de dormir. Acordas-me às duas e meia da tarde? Entretanto, gostava que te sentasses ao meu lado e velasses o meu sono. Não te importas de fazer isso por mim?

– Se é o que queres... – respondeu, ainda com um sorriso nos lábios.

– Sim, é o que mais desejo no mundo.

Trouxe um par de mantas da sala do fundo e tapou-me com elas. Como de costume, o seu cabelo roçou-me a cara. Quando fechei os olhos, escutei como, perto dos meus ouvidos, os pedaços de carvão iam estalando. Os dedos dela descansavam no meu ombro.

– Até quando vai durar o inverno? – perguntei.

– Não sei. Ninguém sabe quando termina. Mas não creio que vá durar muito tempo; talvez este seja o último nevão.

Estendi a mão e pousei as pontas dos dedos na sua face. Ela fechou os olhos e, por instantes, saboreou aquele calor suave.

– É o calor da minha luz?

– Que sensação te provoca?

– Parece a luz da primavera – respondeu.

– Vou tentar transmitir-te o teu coração – disse eu. – Talvez leve algum tempo a fazê-lo, mas se acreditares nele, um dia vou consegui-lo. Sem a menor dúvida.

– Eu sei – disse a jovem gordita. E pousou suavemente a palma da mão sobre os meus olhos. – Dorme.

* * *

Acordou-me às duas e meia em ponto. Levantei-me da cadeira e, enquanto vestia o casaco, punha o cachecol, as luvas e o gorro, ela bebeu um café sozinha, sem dizer uma única palavra. Como tinha ficado pendurado perto do braseiro, o casaco ensopado de neve secara e estava quente.

– Queres guardar-me o acordeão? – pedi.

Ela concordou. Pegou no acordeão que estava em cima da mesa, segurou-o nas palmas das mãos por um instante, como se o sopesasse, e tornou a pô-lo onde estava.

– Não te preocupes, eu cuido dele – disse, acenando com a cabeça.

* * *

Quando saí, apenas nevava, não havia vento. O nevão forte que durara toda a noite parecia ter parado umas horas antes, mas o céu continuava coberto de nuvens de chumbo anunciando a chegada de um outro grande nevão. Aquilo não passava de uma trégua.

Quando me preparava para atravessar a Ponte Ocidental, vi como do outro lado da Muralha começava a elevar-se a fumarada cinzenta do costume. Começou por ser um fumo branco que subia em baforadas, como se gaguejasse, mas depressa se converteu numa fumarada espessa e escura, resultado da combustão de grandes quantidades de carne. O Guardião encontrava-se no Pomar das Macieiras. Corri para a sua cabana, deixando na camada de neve em que me enterrava até aos joelhos umas pegadas tão claras que até a mim me espantaram. Reinava um silêncio sepulcral, como se a neve absorvesse todos os sons. Não havia vento, nenhum pássaro cantava. Nas redondezas, a única coisa que se ouvia, amplificada de forma estranha, era o ruído que as minhas botas faziam na neve recente.

A cabana do Guardião estava deserta e no interior pairava aquele odor acre do costume. O braseiro estava apagado, mas ainda crepitavam brasas recentes. Em cima da mesa, espalhados, havia pratos sujos e cachimbos; na parede alinhavam-se foices e machados com lâminas cintilantes. Varrendo a sala com o olhar, fiquei com a sensação de que o Guardião ia entrar de um momento para o outro, aproximando-se por trás, sem fazer ruído, para me pôr a mão no ombro. Senti que a fileira de facas, o bule, os cachimbos, tudo o que havia ali reprovava, sem palavras, a minha traição.

Evitando aquela tétrica fila de facas, estendi a mão, agarrei rapidamente no molho de chaves que estava pendurado na parede, saí pela porta das traseiras e aproximei-me da entrada da Praça das Sombras. Sobre a imaculada capa de neve que cobria toda a praça não se via qualquer pegada, e apenas o negro ulmeiro se erguia no centro. Por instantes, senti que um único passo naquele local constituiria um sacrilégio, de tanto parecer mergulhado num sono benfazejo e encantado, fechado num equilíbrio silencioso. O vento traçara belos desenhos na neve, os ramos do ulmeiro, carregados aqui e ali de neve branca gelada, repousavam os seus braços sinuosos no ar. Nada mexia. Nevava. De vez em quando, como se acordasse de repente, levantava-se um sopro de vento, como se fora um leve suspiro. Fiquei com a impressão de que aquele lugar nunca mais se esqueceria de que, com os meus pés, eu perturbara o seu sono breve e agradável.

No entanto, eu não dispunha de tempo para hesitações. Não podia voltar atrás. Agarrei no molho de chaves e, com as mãos entumecidas, tentei meter, uma atrás da outra, as quatro chaves na fechadura. Nenhuma entrava. Reparei que um suor frio cobriu as minhas axilas. Tentei evocar o momento em que o Guardião abrira a porta. Empunhava quatro chaves, não havia dúvidas. Contara-as. Uma das quatro tinha de entrar na fechadura.

Pus as chaves no bolso e, depois de esfregar as mãos com força para as aquecer, tornei a tentar. A terceira entrou até ao fundo da fechadura e, com um estalido, girou. O nítido som agudo e metálico ecoou na praça deserta. Com a chave na fechadura, deitei uma olhadela à minha volta, mas não havia ninguém por perto. Não se ouviam nem vozes, nem passos. Entreabri a pesada porta de metal, fiz deslizar o corpo para o outro lado e tornei a fechar a porta, esforçando-me por não fazer barulho.

A neve acumulada na praça estava fofa como espuma e absorvia por completo o ruído dos meus passos. O ranger do chão debaixo dos meus pés fazia lembrar um animal gigantesco a mastigar cuidadosamente a presa capturada. Avancei pela praça, deixando atrás de mim duas linhas retas de pegadas, e passei junto ao banco onde se acumulava um grande monte de neve. Algures ouviu-se o piar de um pássaro.

O ar no interior da cabana estava gelado, muito mais frio do que no exterior. Fiz deslizar a porta corrediça e desci a escada.

A minha sombra aguardava-me, sentada na cama na cave.

– Pensava que já não vinhas – disse ela, exalando um vapor branco.

– Prometi. E eu cumpro sempre as minhas promessas – disse. – Vem! Vamos sair já. Está aqui um fedor insuportável.

– Não posso subir a escada – disse a sombra, suspirando. – Já tentei, mas foi em vão. Pelos vistos, estou muito mais fraca do que imaginava. Que ironia, não é verdade? Fingi que estava débil e não me apercebi de que perdia realmente as forças. Esta noite, sobretudo, o frio chegou-me aos ossos.

– Eu arrasto-te lá para cima.

A sombra abanou a cabeça.

– Mesmo que me arrastes, não vou ser capaz de te seguir. Já não posso correr. Não conseguirei escapar. Parece-me que é o fim.

– Foste tu que começaste. Não te ponhas com lamechices agora. Eu levo-te às costas. Dê lá por onde der, vamos sair daqui e tu vais sobreviver.

A sombra olhou-me com os olhos húmidos, encovados.

– Se o dizes, eu tento – replicou. – Mas vai ser muito duro para ti caminhares na neve comigo às costas.

Concordei.

– Desde o princípio que sabia que não ia ser fácil.

* * *

Arrastei a minha exausta sombra até ao alto da escada e, a seguir, fiz com que se apoiasse no meu ombro para atravessarmos a praça. A fria muralha negra que se erguia do lado esquerdo observava, muda, lá das alturas, as nossas silhuetas e as marcas dos nossos passos. Como se já não aguentassem o peso, os ramos do ulmeiro deixaram tombar no chão uns cristais de gelo e ficaram a oscilar.

– Tenho pouca sensibilidade nas pernas – disse a sombra. – Enquanto estive de cama, quis fazer exercício para não enfraquecer mais, mas não pude. Este quarto é demasiado pequeno.

Abandonei a praça arrastando a minha sombra, entrei na cabana do Guardião e, por precaução, tornei a pôr as chaves no sítio. Com um pouco de sorte, o Guardião levaria o seu tempo a perceber que tínhamos fugido.

– Para onde temos de ir agora? – perguntei à sombra, que tiritava diante do braseiro que perdera já todo o seu calor.

– Para o Lago que fica a sul – disse a sombra.

– O Lago que fica a sul? – repeti, num ato reflexo. – Que diabo há no Lago?

– É preciso mergulhar nele para sairmos daqui. Com este frio, talvez apanhemos uma constipação, mas no estado em que as coisas estão não me parece que tenhamos escolha.

– Mas no fundo do Lago há uma corrente fortíssima. Se nos atirarmos à água, vai puxar-nos para o fundo e morremos logo.

Tiritando, a sombra tossiu várias vezes.

– Não, não temos a certeza. Cheguei à conclusão de que é a única saída possível. Considerei todas as possibilidades, uma por uma. Tenho a certeza de que a saída é pelo Lago. Não pode haver outra. É lógico que tenhas dúvidas, mas confia em mim, peço-te. Pensa que eu estou a arriscar a única vida que tenho. Não vou cometer nenhuma loucura. Explico-te os pormenores pelo caminho. O Guardião regressa dentro de uma hora, no máximo, uma hora e meia, e quando regressar, é bem possível que se dê conta de que nos escapámos e se lance em nossa perseguição. Não podemos ficar aqui mais tempo.

Do lado de fora da cabana do Guardião nem vivalma. Apenas se viam dois rastos de pegadas: o que eu deixara quando me aproximara da cabana e os do Guardião quando saíra, na direção da porta da Muralha. Também se viam os sulcos deixados pelo rodado da carreta. Carreguei a minha sombra aos ombros. Quando emagrecera, tornara-se muito mais leve, mas não ia ser fácil trepar a Colina com ela às costas. Sem a sombra, eu habituara-me a uma vida muito mais cómoda. A verdade é que não sabia se ia conseguir aguentar o peso dela.

– O Lago é bastante longe. Temos de atravessar a Colina Ocidental, contornar a Colina do Sul e tomar um caminho que atravessa o mato.

– Achas que consegues?

– Chegados a este ponto – retorqui –, não tenho outro remédio, não te parece?

Tomei o caminho coberto de neve que ia para sul. Apesar de ainda se verem nitidamente as pegadas que eu deixara na vinda, fiquei com a impressão de que me cruzava com o meu eu passado. Além das minhas pegadas, só se viam os rastos dos animais. Quando me voltei para trás, vi que, do outro lado da Muralha, continuava a erguer-se, muito direita, a grossa coluna de fumo cinzento: parecia uma macabra torre cinzenta cujo topo ia sendo absorvido pelas nuvens. A julgar pelo seu volume, o Guardião devia estar a queimar muitos cadáveres. O grande nevão que caíra na noite anterior devia ter matado mais animais do que noutras circunstâncias. Como o Guardião iria necessitar de bastante tempo para incinerar tantos corpos, ainda levaria um bom bocado antes de se lançar em nossa perseguição. Senti que, com a sua morte tranquila, os animais estavam a ajudar-nos a alcançar o nosso objetivo.

No entanto, a espessa camada de neve dificultava-me os passos. A neve gelada tinha-se acumulado entre os pitões das botas, tornando-me os pés muito pesados e fazendo-me escorregar a cada dois ou três passos. Arrependi-me de não ter ido buscar um par de raquetas ou de esquis. Num sítio onde nevava tanto, de certeza que deveria haver objetos destes num canto qualquer. Era provável que o Guardião guardasse alguns na arrecadação da cabana, no sítio onde armazenava toda a casta de ferramentas. Mas era demasiado tarde para voltar atrás. Tinha chegado à Ponte Ocidental e, se regressasse atrás, perderia um tempo precioso. À medida que avançava, fui ficando cheio de calor e comecei a ficar com a testa coberta de suor.

– Com estas pegadas, salta aos olhos de qualquer um para onde vamos – disse a sombra, olhando para trás.

Enquanto caminhava pela neve, imaginei o Guardião no nosso encalço. Sem dúvida que correria pela neve à velocidade do diabo. Era mil vezes mais forte do que eu e não ia carregado com um peso às costas. Além do mais, de certeza que estaria devidamente equipado para andar comodamente sobre a neve.

Tinha de me afastar o mais possível antes de o Guardião regressar à cabana. Senão, estaríamos perdidos.

Pensei nela, esperando por mim à frente do braseiro da Biblioteca. Sobre a mesa descansava o acordeão, dentro do braseiro brilhava um fogo escarlate, o vapor desprendia-se da cafeteira. Recordei o roçar do seu cabelo na minha face, recordei o toque dos seus dedos no meu ombro. Não podia deixar a minha sombra morrer ali. Se o Guardião nos apanhasse, a minha sombra seria de novo presa na cave e morreria. Avancei e avancei, debatendo-me para reunir todas as minhas forças. De vez em quando, voltava-me para trás para comprovar que a coluna de fumo cinzento continuava a subir, do outro lado da Muralha.

A meio do caminho, cruzei-me com muitos animais. Vagueavam num esforço inútil de encontrar debaixo da neve algum alimento miserável que pudessem meter na boca. Paravam para me ver passar por eles, carregando a minha sombra às costas. Com uns grandes olhos de um azul profundo, exalavam nuvens de vapor branco. Os animais pareciam compreender cabalmente o sentido daquele ato.

Na base da Colina Ocidental parei, sem fôlego. O peso da sombra fizera grande mossa na minha resistência e os meus pés começavam a arrastar-se pela neve. Pensando bem, nos últimos tempos não tinha feito nenhum tipo de exercício. O vapor que exalava estava a ficar cada vez mais denso, a começara de novo a nevar e quase não se via nada.

– Estás bem? – perguntou-me a sombra, às minhas costas. – Queres parar para descansar um bocado?

– Lamento, mas sim, tenho de descansar cinco minutos. Preciso de cinco minutos para me recompor.

– Muito bem. Não te preocupes. Sou eu que tenho a culpa de não poder correr. Descansa tanto quanto queiras. Está a fazer-me impressão que tenhas de carregar com tudo.

– Também é para meu bem – retorqui. – Não é assim?

– Sim, estou convencida disso – respondeu a sombra.

Pousei a minha sombra, sentei-me na neve e suspirei. Tinha tanto calor que nem sequer sentia o frio da neve. As minhas pernas estavam tensas, duras como pedras, desde a anca até à ponta das unhas.

– Às vezes tenho dúvidas, sabes? – acrescentou. – Penso que, se tivesse morrido tranquilamente, sem te dizer nada, a teu modo poderias ter ficado a viver aqui, sem sofrimento.

– Talvez.

– E eu impedi-to.

– Mas eu teria de saber isso tudo – disse.

A sombra assentiu. Levantou a cabeça e olhou para a coluna de fumo cinzento que se erguia por cima do Pomar das Macieiras.

– O Guardião está a demorar muito tempo a queimar os animais todos – disse ela. – Além do mais, dentro de pouco tempo chegaremos ao topo. A seguir, contornamos a Colina do Sul e, uma vez aí, poderemos ficar tranquilos. O Guardião já não nos alcançará. – Após pronunciar estas palavras, apanhou um punhado de erva e deixou que deslizasse entre os dedos. – No princípio, a noção de que a Cidade teria por força uma saída oculta não passou de intuição, mas depois vi-o com clareza. Porque esta cidade é perfeita, e a perfeição inclui sempre todas as possibilidades. E, neste sentido, isto nem sequer é uma cidade. É algo mais flutuante, mais global. Altera-se sem cessar, mostrando-nos todas as hipóteses, e assim conserva a perfeição. Numa palavra, não é de todo um mundo imutável, fixo para sempre. Muito pelo contrário, alcança a sua completude no movimento. Por isso, se queres uma saída, tem de haver uma saída. Percebes?

– Perfeitamente – disse eu. – Compreendi-o ontem: é um mundo de possibilidades. Aqui está tudo e nada está aqui.

Sentada na neve, a sombra ficou a olhar-me fixamente. Depois abanou a cabeça várias vezes, numa concordância silenciosa. A neve caía cada vez com mais força. Pelos vistos, aproximava-se um novo nevão.

– Partindo do princípio de que existia uma saída, por um processo de eliminação comecei à procura dela – prosseguiu. – A primeira que descartei foi a Porta Ocidental. Mesmo supondo que poderíamos fugir por ali, o Guardião apanhava-nos num abrir e fechar de olhos. Conhece aquela zona toda como a palma da mão. Além do mais, a porta seria a primeira coisa a vir à cabeça de alguém que quisesse fugir. A saída não podia estar num lugar tão óbvio, portanto, descartei a Muralha. E também a Porta Oriental: está entaipada, e na entrada do Rio na Cidade há uns grandes barrotes. Impossível escapar por ali. A única que resta é o Lago, a sul. Podemos fugir da Cidade levados pela corrente do Rio.

– Tens a certeza?

– Sim. Diz-me o coração. Todas as outras saídas estão fechadas, com pedra e cal. O Lago é o único lugar que continua intacto. Não está rodeado por nenhum muro. Não te parece estranho? Eles valeram-se do medo para o fecharem. Se formos capazes de superar esse medo, venceremos a Cidade.

– E quando foi que te deste conta disso?

– Quando pela primeira vez vi o Rio. Foi apenas uma vez, mas, um dia, o Guardião ordenou-me que o acompanhasse à Ponte Ocidental. Quando vi o Rio, fiquei a saber. Percebi que o Rio carecia de toda e qualquer maldade. Que era apenas água e, além do mais, estava cheio de vitalidade. Se confiarmos o nosso corpo a esta corrente, se nos deixarmos levar pelo fluir da água, poderemos regressar ao local onde vivíamos antes, na nossa forma original. Foi o que percebi. Acreditas no que te digo?

– Sim, acho que sim – respondi. – Consigo acreditar no que estás a dizer. É possível que o Rio nos conduza até aí, ao mundo que deixámos para trás. Pouco a pouco, tenho vindo a recordar-me de pormenores desse mundo. Do ar, do som, da luz, coisas desse tipo. A música trouxe-me essas recordações todas.

– Não sei se é um mundo maravilhoso ou não – acrescentou a sombra. – Mas, pelo menos, é o mundo em que devemos viver. Haverá coisas boas e coisas más. E outras que não serão nem boas nem más. Nasceste ali e ali morrerás. Quando tu morreres, eu também desaparecerei. É o mais natural.

– Acho que tens razão – comentei.

Tornámos a contemplar a Cidade a nossos pés. A Torre do Relógio, a Ponte e também a Porta Ocidental e o fumo, tudo fora ocultado por uma violenta nevasca. Só se via uma enorme coluna de neve que caía do céu como se fosse uma enorme catarata.

– Se concordas, poderíamos continuar – disse a sombra. – A nevar assim, é bem possível que o Guardião tenha parado de queimar os animais e talvez regresse mais cedo.

Fiz que sim com a cabeça, pus-me de pé e sacudi a neve que se acumulara na viseira do gorro.


O Impiedoso Mundo das Maravilhas

39

Pipocas. Lord Jim.
Desaparecimento

A meio do caminho para o parque, parei numa cervejaria e comprei umas quantas latas de cerveja. Quando lhe perguntei que marca preferia, respondeu-me que, desde que tivesse espuma e soubesse a cerveja, lhe era indiferente. Eu tinha uma opinião bastante parecida. O céu azul, sem a menor mancha, parecia ter sido acabado de criar naquela manhã; estávamos no início de outubro. Desde que a cerveja tivesse espuma e soubesse a cerveja, não era preciso mais nada.

Como me sobrava dinheiro, comprei um pack de seis cervejas importadas. As latas douradas da Miller High Life reluziam como que banhadas pelo sol outonal. A música de Duke Ellington também se casava na perfeição com aquela bela manhã de outubro. Enfim, a música de Duke Ellington também combinaria na perfeição com uma noite de passagem de ano no Polo Sul.

Enquanto guiava, fui assobiando a acompanhar o fantástico solo de trombone de Lawrence Brown em «Do Nothing till You Hear from Me». Seguiu-se o solo de Johnny Hodges em «Sophisticated Lady».

Parei o carro junto do parque de Hibiya, estendemo-nos na relva e bebemos a cerveja. Sendo ainda de manhã, o parque estava deserto como o convés de um porta-aviões depois de todos os aviões terem levantado voo. Havia apenas um bando de pombos, e estes revoluteavam sobre o relvado como se estivessem a fazer exercícios de aquecimento.

– Não há uma nuvem – comentei.

– Está ali uma – disse ela, apontando para um ponto ligeiramente acima do auditório de Hibiya.

Havia de facto uma nuvem isolada no céu. Uma nuvem branca que parecia um bocado de algodão preso numa ponta de um ramo de uma canforeira.

– Uma insignificância – comentei. – Quase nem se pode chamar àquilo nuvem.

Pondo a mão em pala sobre os olhos, ela pôs-se a olhar fixamente a nuvem.

– Sim, tens razão. É muito pequena – disse.

Mantivemo-nos em silêncio durante um grande bocado, a contemplar a nuvem, e abrimos a segunda lata de cerveja.

– Porque te divorciaste? – perguntou-me.

– Porque, quando viajávamos de comboio, não me deixava sentar do lado da janela – respondi.

– Estás a brincar, imagino.

– É uma resposta de um romance de J. D. Salinger. Li-o quando andava no liceu.

– O que se passou? Agora a sério.

– Muito simples. Um verão, há cinco ou seis anos, ela foi viajar e não voltou.

– Nunca mais se viram?

– Não – disse, chegando a cerveja à boca e bebendo-a lentamente. – Não havia qualquer razão para nos vermos.

– A vida de casados não estava a correr bem?

– Estava a correr muito bem – disse, contemplando a lata de cerveja que tinha na mão. – Mas isso não tem muito que ver com a razão de fundo. Dormíamos na mesma cama, mas, quando fechávamos os olhos, estávamos sozinhos. Percebes o que quero dizer?

– Acho que sim.

– Quando se fala de gente, não se pode fazer generalizações. No que toca à visão das coisas, há dois tipos de pessoas: as que têm uma visão global e as que têm uma visão limitada. Eu sou mais uma pessoa com uma visão limitada da vida. Não faz muito sentido justificar ou explicar esta limitação. Há que traçar uma linha num sítio qualquer, traça-se e pronto! Mas nem toda a gente vê as coisas da mesma maneira.

– Mas até as próprias pessoas que não as veem assim se esforçam por ultrapassar os limites dessa linha, não achas?

– Talvez. Mas eu não. Não vejo por que toda a gente tem de escutar música em estéreo. Nem que escutar o violino do lado esquerdo e o violoncelo do direito aprofunde ainda mais o sentido da música. Não deixa de ser um meio mais sofisticado de evocar imagens.

– E tu, por acaso não serás um pouco casmurro?

– Ela dizia-me o mesmo.

– A tua mulher?

– Sim – respondi. – Dizia que eu tinha tudo tão definido que me faltava flexibilidade. Outra cerveja?

– Sim, obrigada.

Arranquei o anel da terceira cerveja Miller High Life e entreguei-lha.

– O que pensas da minha vida? – perguntou. Sem tocar na cerveja, olhava fixamente para o buraco na parte superior da lata.

– Alguma vez leste Os Irmãos Karamázov? – perguntei-lhe.

– Sim. Uma vez. Há muito tempo.

– Terias de o reler. Nesse livro há um montão de coisas interessantes. Perto do final, Aliosha diz a um estudante chamado Kólia Krasotkin: «Escuta, Kólia, no futuro serás certamente uma pessoa muito infeliz, mas dá graças pela vida na sua globalidade.» – Acabei a minha terceira cerveja e, após uns segundos de hesitação, abri a quarta. – Aliosha sabia montanhas de coisas, mas quando na altura li o romance, fiquei com muitas dúvidas. Perguntava-me como era possível que alguém abençoasse uma vida desgraçada.

– E é por isso que pões limites à tua vida?

– Talvez – respondi. – Teria de ter sido eu e não o teu marido a morrer com uma pancada de um jarro de metal, no autocarro. Penso que esse género de morte conviria perfeitamente a um tipo como eu. As imagens diretas e fracionadas que se interrompem de um golpe. Não há tempo para pensar em nada.

Estendido no relvado, ergui a cabeça e olhei para o sítio onde antes estava a nuvem. Tinha-se escondido por trás dos ramos da canforeira.

– Olha, achas que eu tenho lugar na tua visão limitada? – perguntou.

– Todo o mundo pode entrar e todo o mundo pode sair – contrapus. – É uma das vantagens da visão limitada. Ao entrar, limpas bem os pés e, ao sair, fechas a porta e vais-te. Só isso. É o que toda a gente faz.

A rir, ela pôs-se de pé e com a mão sacudiu os pedaços de erva que se tinham agarrado às calças de algodão.

– Tenho de ir. Já são horas.

Olhei para o relógio. Eram dez e vinte e dois minutos.

– Acompanho-te a casa.

– Não é preciso – disse ela. – Vou às compras a um dos grandes armazéns aqui da zona e volto para casa sozinha, de comboio. É melhor assim.

– Então, despedimo-nos aqui. Vou ficar mais um bocado. Está-se muito bem.

– Muito obrigada pelo corta-unhas.

– De nada – respondi.

– Quando voltares, telefonas-me?

– Vou à biblioteca – prometi. – Gosto de ver quem trabalha.

– Adeus.

* * *

Fiquei a olhar fixamente, como Joseph Cotten em O Terceiro Homem30, vendo-a afastar-se pelo caminho que atravessava o parque a direito. Quando a sua silhueta desapareceu por trás de umas árvores, pus-me a observar os pombos. Havia subtis diferenças na maneira de andar entre um pombo e outro. Pouco depois, chegou uma mulher muito bem vestida acompanhada de uma criança e, quando começaram a espalhar pipocas, todos os pombos à minha volta levantaram voo e aproximaram-se delas. A menina devia ter três ou quatro anos e, como fazem todas as crianças dessa idade, aproximava-se dos pombos com os braços abertos, a tentar apanhar um. Mas, claro, eles não se deixavam apanhar. Os pombos também têm o seu humilde modo de vida. A mãe bem vestida deitou-me uma olhadela rápida, mas não voltou a olhar para mim. Alguém que, numa segunda-feira de manhã, está estendido no relvado de um parque com várias latas de cerveja vazias por perto não é uma pessoa decente.

De olhos fechados, esforcei-me por recordar os nomes dos três irmãos Karamázov. Mitia, Iván, Aliosha e, depois, o irmão bastardo, Smerdiakov. Quantas pessoas há em Tóquio capazes de recitar de cor os nomes de todos os irmãos Karamázov?

Com o olhar cravado no céu, senti-me um pequeno bote vogando no mar aberto. Sem vento, sem ondas, limitava-me a flutuar ali, imóvel. Um bote que flutua no oceano tem qualquer coisa de muito especial. Foi Joseph Conrad quem o afirmou. Na passagem do naufrágio em Lord Jim.

O céu não tinha fundo e reluzia claro como os conceitos firmes das pessoas que não têm dúvidas. Às vezes, quando do chão olho para ele, sinto que o céu é a síntese de toda a existência. Tal como o mar. Quando olhas para o mar durante muitos dias seguidos, acabas por sentir que só existe o mar. Joseph Conrad pensava como eu. Afastado da ficção que o barco representa e atirado para o oceano aberto, um pequeno bote possui, efetivamente, algo muito especial, e ninguém pode manter-se insensível a esta singularidade.

Estendido no relvado, bebi a última lata de cerveja, fumei um cigarro e afugentei da minha cabeça todos os pensamentos literários. Tinha de regressar à realidade. Restava-me pouco mais de uma hora.

Levantei-me, apanhei as latas vazias, segurando-as entre os braços, aproximei-me do caixote do lixo e deitei-as fora. Tirei os cartões de crédito da carteira e queimei-os dentro do cinzeiro. A mãe bem vestida voltou a lançar-me uma olhadela rápida. As pessoas decentes não queimam cartões de crédito à segunda de manhã nos parques. Comecei por queimar o American Express, a seguir o Visa. Os cartões de crédito ardiam com ar de grande satisfação. Veio-me à cabeça que poderia queimar também a gravata Paul Stuart, mas mudei de ideias. Chamaria demasiado a atenção e, além do mais, não tinha qualquer necessidade de queimar a gravata.

A seguir, comprei num quiosque dez pacotes de pipocas, abri e espalhei pelo chão o conteúdo de nove, para os pombos, e comi o outro sentado num banco. Juntou-se uma multidão de pombos suficiente para um documentário sobre a Revolução de Outubro, e comeram as pipocas. Eu comi as minhas ao mesmo tempo que os pombos. Há muito tempo que não provava pipocas, e a verdade é que me souberam muito bem.

A mãe bem vestida e a filha contemplavam agora a fonte. A mãe devia ter a minha idade. Enquanto a observava, recordei-me de uma antiga colega de turma, a que casara com o revolucionário, tivera dois filhos e desaparecera. Ela já não podia levar os filhos ao parque. Claro que ignorava o que pensaria, mas parecia-me que este ponto – desaparecer completamente da sua própria vida – nos oferecia um terreno de compreensão mútua. No entanto, ela talvez se recusasse a reconhecer um ponto em comum comigo. Havia vinte anos que não nos víamos e, durante esses vinte anos, muita coisa acontecera. Vivêramos circunstâncias diferentes, pensávamos de modo distinto. Além do mais, no que dizia respeito ao facto de se abandonar a vida, ela fizera-o de sua própria vontade, e eu não. A mim tinham-me arrancado os lençóis enquanto dormia.

Tive a sensação de que ela me censuraria por isso: «E tu, que diabo decidiste?», dir-me-ia. E teria razão. Eu não escolhera absolutamente nada. A única decisão que tomara, se é que podia chamar-lhe assim, fora perdoar ao Professor e recusar-me a ir para a cama com a neta, mas de que me servira? E ela acharia que, com tão pouca coisa, a minha vida tivesse desempenhado um papel tão pouco decisivo na sua própria aniquilação? Não fazia a menor ideia. Separavam-nos vinte anos. O que ela poderia pensar ou não estava para além dos limites da minha imaginação.

Além do mais, dentro desses limites, já pouco restava. Apenas via os pombos, a fonte, o relvado, a mãe e a filha. No entanto, enquanto mantinha o olhar fixo nessas imagens, senti pela primeira vez em vários dias que não queria abandonar este mundo. Não queria saber para que mundo iria a seguir. Mesmo supondo que, ao longo dos meus trinta e cinco anos de vida, tivesse consumido noventa e três por cento do fulgor da minha vida, não me importava. Queria continuar a contemplar eternamente o futuro das coisas e conservar com amor os restantes sete por cento. Não sabia porquê, mas parecia-me que a responsabilidade era minha. Era verdade que, a partir de determinado momento, a minha vida e a forma de a viver se tinham enredado, mas eu tivera boas razões para isso. Mesmo que as outras pessoas não o entendessem, não pudera agir de outra maneira.

A verdade é que não queria desaparecer deixando para trás a minha vida complicada. Tinha a obrigação de velar por ela até ao fim. De outro modo, perderia todo o sentido de equidade para comigo mesmo. Não podia desaparecer sem mais, deixando a minha vida neste estado!

Mesmo não havendo ninguém para lamentar o meu desaparecimento, mesmo não deixando um vazio no coração de ninguém, eu não queria desaparecer: a minha existência só a mim dizia respeito. Claro que perdera muitas coisas ao longo da vida. Tantas que, a não ser eu mesmo, já quase não tinha nada a perder. Todavia, no meu íntimo, o reflexo do que perdera continuava vivo, e era isso que havia modelado o meu ser ao longo da minha vida.

Não queria abandonar este mundo. Fechando os olhos, fui capaz de perceber claramente como o meu coração oscilava. Foi um abalo tão grande e profundo, muito para além da tristeza e da solidão, que fez estremecer o meu ser desde os alicerces. Aquele vaivém não cessava. Finquei os cotovelos nas costas do banco para aguentar a oscilação. Ninguém me ajudou. Ninguém podia socorrer-me. Da mesma forma que eu também não podia ajudar ninguém.

Teria querido desfazer-me em lágrimas, mas não podia chorar. Era demasiado adulto para o fazer, tinha demasiadas experiências na minha vida. Neste mundo existe um tipo de tristeza que não te permite verter lágrimas. É uma das coisas que não é possível explicar a ninguém e, mesmo que pudesses, ninguém te compreenderia. E essa tristeza, sem mudar de forma, vai-se acumulando em silêncio no teu coração como a neve numa noite sem vento.

Uma vez, quando era mais novo, tentara traduzi-la em palavras. Mas por mais que me esforçasse por encontrar as palavras adequadas, não conseguira transmiti-la a ninguém, nem sequer a mim mesmo, e abandonara a tentativa. De modo que bloqueara as palavras, bloqueara o meu coração. Quando é tão profunda, a tristeza nem sequer se permite metamorfosear-se em lágrimas.

Apetecia-me fumar um cigarro, mas já não havia nenhum no maço. Dentro dos bolsos só havia fósforos. E já só tinha três. Acendi-os e atirei-os ao chão, um atrás do outro.

Quando tornei a fechar os olhos, o vaivém desaparecera. No interior da minha cabeça apenas pairava, como se fosse pó, um agradável silêncio. Deixei-me ficar um bom bocado, sozinho, a contemplar aquele pó. Permanecia suspenso no ar, imóvel, sem descer. Franzi levemente os lábios e soprei, mas continuou sem se mover. Nem o mais poderoso dos vendavais poderia afastá-lo.

Então, pensei na rapariga da biblioteca, que acabara de se ir embora. Pensei no seu vestido de veludo, nas suas meias e na combinação, amontoadas sobre o tapete. Continuariam ainda no chão, ainda por recolher, como se fossem parte dela mesma? Tê-la-ia tratado honestamente, tinha sido justo com ela? Não, não é isso, disse para os meus botões. Quem queria equidade? Ninguém. Eu era o único que necessitava dela. Mas que sentido poderia ter uma vida sem equidade? Amava tanto a roupa espalhada pelo chão como a amava a ela. Seria isto uma das formas que a equidade assumia dentro de mim?

É verdade que o conceito de equidade é apenas válido num mundo extremamente limitado, mas este conceito abrange todas as manifestações da vida. Desde os caracóis e as estantes de uma loja de ferragens até à vida conjugal. Abarca tudo. Mesmo que ninguém mo pedisse, era a única coisa que eu podia dar. Neste sentido, a equidade parece-se com o amor. O que a pessoa está disposta a dar e o que lhe pedem são duas coisas distintas. Precisamente por isso, muitas coisas me passaram pela frente, ou melhor, dentro de mim.

Talvez devesse arrepender-me da minha vida. Seria outra forma de equidade. Mas eu não conseguia arrepender-me de nada. Mesmo que tudo tivesse passado longe, como o vento, deixando-me ficar para trás, porque aí estavam também as minhas próprias esperanças e desejos. E só restara aquele pó branco que flutuava no interior da minha cabeça.

* * *

Fui ao quiosque do parque comprar tabaco e fósforos e, de caminho, entrei numa cabina telefónica e tornei a ligar para casa. Não esperava que alguém atendesse, mas não me pareceu má ideia ligar para casa numa altura em que a minha vida estava prestes a chegar ao fim. Era capaz de imaginar claramente o som do telefone a ressoar dentro do apartamento.

No entanto, e contra todas as minhas expectativas, ao terceiro toque, alguém pegou no auscultador. E perguntou: «Sim?» Era a jovem anafada do fato cor-de-rosa.

– Está aí alguém? – perguntei, assombrado.

– O que é que estás a dizer? – respondeu. – Saí e voltei. Não tenho tempo a perder. Regressei porque queria saber como acabava o livro.

– O de Balzac?

– Sim. É fascinante. Ali sente-se a força do destino.

– Já tiraste o teu avô do subterrâneo?

– Claro. Foi muito fácil. A água já tinha recuado e era a segunda vez que fazia aquele caminho. Até comprei os bilhetes de metro antes de ir para lá. O meu avô está perfeito. Manda-te um abraço.

Agradeci e perguntei:

– E o que está a fazer agora?

– Foi para a Finlândia. Diz que, se ficasse no Japão, iriam causar-lhe demasiados problemas e não teria paz para fazer investigação e, assim, foi montar um laboratório na Finlândia. Pelos vistos, é um bom lugar, muito tranquilo. E, inclusivamente, tem renas.

– E tu vais ter com ele?

– Decidi ficar por cá e viver em tua casa.

– Em minha casa?

– Sim. Agrada-me muito. Vou pôr uma porta e comprar-te um frigorífico e um videogravador. Alguém destruiu os teus pertences. Escuta, importas-te que ponha uma colcha, as cortinas e uns lençóis cor-de-rosa?

– Não, não me importo.

– E posso assinar o jornal, certo? É que queria consultar a programação da televisão.

– Avança – disse eu. – Mas é perigoso ficares aí. Os Semióticos ou os tipos do Sistema podem aparecer.

– Pfff! Não tenho medo deles – retorquiu. – Eles andam atrás de vocês os dois, de ti e do meu avô. Eu não sou tida nem achada. Além do mais, há bocado veio cá um par de bichos raros. Um homem grandalhão e outro pequeno. Corri com eles do apartamento.

– Como?

– Disparei um tiro à orelha do grandalhão. De certeza que lhe rebentei um tímpano.

– Se disparaste dentro de casa, tiveste protestos, não?

– Nem um – respondeu. – Ninguém repara num disparo; toda a gente pensa que foi um pneu de um carro que rebentou. Se houvesse mais tiros, então sim, teria problemas. Mas eu tenho muito boa pontaria e só preciso de um tiro.

– Muito bem!

– Escuta, quando perderes a consciência, gostaria de te congelar. O que achas?

– Faz o que te der na gana, eu não vou dar por nada... – respondi. – Agora, vou para o cais de Harumi, pelo que terás de ir lá buscar-me. Estarei num Carina 1800 GT Twin Cam Turbo, branco. Sou incapaz de te explicar como é o carro, mas lá dentro estará a tocar uma cassete de Bob Dylan.

– Bob Dylan? Não conheço. Como é?

– A voz dele parece a de uma criança... – comecei a dizer, mas tive preguiça de continuar e deixei correr. – É um cantor com voz rouca.

– Sabes uma coisa? Se eu te congelar e o meu avô descobrir um novo método, talvez possa pôr-te como estavas. Não tenhas demasiadas esperanças, mas a possibilidade existe.

– Se perder a consciência, bem posso esquecer-me das esperanças – respondi, irritado. – Vais ser tu a congelar-me?

– Tem calma, não te preocupes. Sou ótima a congelar. Fiz experiências com animais e congelei um montão de gatos e cães vivos. A ti vou congelar-te muito bem e esconder-te num lugar onde ninguém te encontrará. Ouve, se tudo correr bem, quando recobrares a consciência, vais para a cama comigo?

– Sim, claro – retorqui. – Se ainda te apetecer ir para a cama comigo.

– De certeza que vais?

– Quando a técnica o permitir – corrigi. – Porque não sei dentro de quantos anos é que vai acontecer.

– Em qualquer caso, eu já não terei dezassete anos – acrescentou.

– As pessoas vão acumulando anos. Inclusivamente as congeladas.

– Enfim... bem, boa sorte! – disse.

– Para ti também – devolvi. – Depois de falar contigo, sinto-me um pouco melhor.

– Porque te disse que existe a possibilidade de regressares a este mundo? Não te esqueças de que não é certo que...

– Não, não é por isso. Claro que fico contente por existir essa possibilidade, mas referia-me a outra coisa. Queria dizer que fico contente por ter conseguido falar contigo. Por ter ouvido a tua voz, saber o que andas a fazer agora.

– Queres que fale mais?

– Não, já é suficiente. Tenho pouco tempo, sabes?

– Olha – disse a jovem gorda –, não tenhas medo, está bem? Mesmo que desapareças para sempre, pensa que vou recordar-te enquanto viver. Não esqueças isso, está bem?

– Não esqueço – respondi. E desliguei.

Às onze, fui a um lavabo ali perto, urinei e abandonei o parque. Liguei o motor e conduzi em direção ao porto, enquanto ia ruminando aquela ideia da congelação. A Avenida Ginza estava cheia de homens de fato e gravata. Enquanto esperava à frente do semáforo, olhei com atenção em meu redor para ver se descobria a rapariga da biblioteca, às compras por ali, mas, por pouca sorte, não a vi. Nas minhas pupilas apenas se refletiu gente desconhecida.

Quando cheguei ao porto, parei o carro junto de um armazém deserto e, enquanto fumava, pus a cassete de Bob Dylan e programei-a para que, ao acabar, recomeçasse automaticamente. Rebati o assento, apoiei as pernas no volante e respirei com calma. Apetecia-me beber outra cerveja, mas já não tinha nenhuma. Tinha-as bebido todas no parque, com ela. O sol entrava pelo para-brisas, envolvendo-me na sua luz. Quando fechei os olhos, senti que a luz me aquecia as pálpebras. Depois de um longo trajeto, a luz do Sol chegara a este humilde planeta e dedicara uma pequena parte da sua força a aquecer as minhas pálpebras. Fiquei estranhamente comovido com este pensamento. A providência do Universo não ignorava ninguém, não esquecia as minhas pálpebras. Naquele instante, percebi um pouco dos sentimentos de Aliosha Karamázov. Certamente que uma vida limitada deveria ter as suas compensações limitadas.

De passagem, bendisse, à minha maneira, o Professor, a neta e a rapariga da biblioteca. Ignorava se tinha o poder de distribuir bênçãos ao próximo, mas como não tardaria em desaparecer, ninguém poderia exigir-me responsabilidades. Acrescentei o taxista que gostava dos Police e de reggae à minha lista de abençoados. Ele transportara-nos no seu carro quando estávamos cobertos de lama dos pés à cabeça. Não havia qualquer motivo para o deixar de fora. Provavelmente, naquele preciso momento, transportava para algum destino, enquanto escutava música rock, jovens passageiros.

À minha frente estendia-se o mar. Também se via um velho cargueiro com a linha de flutuação acima da água, depois de descarregar toda a mercadoria. As gaivotas descansavam aqui e ali, como manchas brancas. Bob Dylan cantava «Blowin’in the Wind». Enquanto escutava a canção, pensei nos caracóis, no corta-unhas, no robalo com molho de manteiga, na espuma de barbear. O mundo está cheio de revelações, que surgem sob diferentes formas.

O sol de outono brilhava sobre o mar, fragmentando-se em milhentos clarões que se misturavam com as ondas. Parecia que alguém tinha feito em fanicos um espelho gigantesco. Tinha-o partido em fragmentos tão pequenos que nunca ninguém seria capaz de os reunir de novo. Nem sequer o exército do rei mais poderoso. A canção de Dylan trouxe-me automaticamente à cabeça a rapariga da agência de aluguer de carros. Tinha-me deixado uma impressão excelente; não podia excluí-la da minha lista.

Evoquei a sua imagem. Vestia um blazer, dum tom de verde que fazia lembrar o relvado de um campo de basebol no início da temporada, com uma blusa branca e um laço preto. Devia ser o uniforme da agência: nunca ninguém vestiria um blazer verde com um laço negro ao pescoço. Ao escutar esta velha canção de Dylan, ela lembrara-se da chuva.

Eu também pensei na chuva. A chuva que me ocorreu era tão fina que não sabia se caía ou não. Mas chovia. Molhava os caracóis, molhava as cercas, molhava as vacas. Ninguém podia parar a chuva. Ninguém podia escapar-lhe. A chuva caía sempre de maneira equitativa.

Depressa essa chuva se transformou numa cortina opaca de cores indefinidas, que cobriu a minha consciência.

O sono começou a invadir-me.

Assim poderei recuperar todas as coisas que fui perdendo, pensei. Apesar de as ter perdido uma vez, não tinham desaparecido em absoluto. Fechei os olhos e abandonei-me àquele sono profundo. Bob Dylan continuava a cantar «A Hard Rain’s A-Gonna Fall».

30 Filme de Carol Reed (1949) em que a personagem que Cotten desempenha é um romancista que, na Viena do pós-guerra, se empenha na investigação da morte de um amigo, traficante do mercado negro durante o conflito. (N. das T.)


O Fim do Mundo

40

O Pássaro

Quando, com grande dificuldade, consegui chegar ao Lago do Sul, a neve caía com tanta intensidade que cortava a respiração. Parecia que o céu, quebrado em mil pedaços, se desfazia sobre a Terra. A neve caía sobre o Lago e era absorvida, sem o menor ruído, por aquelas águas de um azul tão profundo que lhes dava um ar sinistro. Na superfície da Terra, coberta uniformemente de branco, apenas se abria, qual gigantesca pupila, o buraco redondo do Lago.

Petrificados sob a neve, permanecemos um grande bocado em silêncio, de olhos postos naquela cena. O terrífico rugido da água ecoava por toda a zona, da mesma forma que antes, mas a neve amortecia o barulho tornando-o parecido ao de um tremor de terra distante. Ergui os olhos para um céu demasiado baixo para ser classificado como tal e dirigi o olhar para a Muralha, que flutuava vagamente, negra, do outro lado do violento nevão. A Muralha já não parecia estar a falar comigo. «Fim do mundo» era um nome que casava na perfeição com aquela paisagem gelada e desértica.

A neve foi-se acumulando rapidamente sobre os meus ombros e na viseira do meu gorro. As pegadas que havíamos deixado sobre a neve já deviam ter desaparecido por completo. Deitei uma olhadela à sombra, que estava de pé, ligeiramente afastada de mim. A sombra olhava fixamente para a superfície do Lago com os olhos encovados enquanto sacudia a neve de vez em quando com a mão.

– É aqui a saída. Tenho a certeza – disse. – A Cidade não vai poder prender-nos outra vez. Seremos livres como pássaros. – A sombra levantou o rosto ao céu, fechou os olhos e deixou que a neve caísse sobre ela, como uma bênção. – Que tempo magnífico! O céu está limpo e o vento ligeiro – acrescentou, rindo-se. A sombra parecia estar a recobrar forças, como se a tivessem libertado das suas correntes. Coxeando ligeiramente, aproximou-se de mim, sem ajuda. – Eu sinto-o – afirmou. – Do outro lado do Lago está o mundo exterior. Diz lá: estás com medo de te atirares à água?

Neguei com a cabeça.

A sombra pôs-se de cócoras e desapertou os atacadores dos sapatos.

– Se ficarmos aqui de pé, vamos acabar congelados. É melhor atirarmo-nos à água. Descalcemos os sapatos e atemo-nos com os cintos. Se nos separarmos e nos perdermos na saída, irá tudo por água abaixo.

Tirei o gorro que o Coronel me dera, sacudi a neve que se acumulara sobre ele e, segurando-o nas mãos, contemplei-o. Era um gorro de combate de tempos passados. Nalguns pontos, o tecido estava esgarçado, desbotado e esbranquiçado. Provavelmente, o Coronel usara-o com carinho durante décadas. Voltei a sacudir o gorro com cuidado e enfiei-o na cabeça.

– Eu fico aqui – declarei.

A sombra deitou-me um olhar vago, desfocado.

– Pensei bem no caso – expliquei. – Peço desculpa, mas refleti muito sobre o assunto. Sei perfeitamente o que significa deixar-me ficar aqui sozinho. Sei que tens razão e que, tal como dizes, o mais lógico seria que voltássemos juntos ao mundo de onde viemos. Aquela ali, do outro lado, é a minha verdadeira realidade, e estou consciente de que, fugindo dela, faço uma má escolha. Mas não posso abandonar este sítio.

A sombra, com as mãos enfiadas nos bolsos, sacudiu a cabeça várias vezes, lentamente.

– E porque não? No outro dia prometeste-me que fugiríamos da Cidade. Por isso planeei tudo e por isso me trouxeste às costas, não é verdade? O que te fez mudar de opinião? A mulher?

– Ela também conta, claro – respondi. – Mas não foi só ela. Descobri uma coisa, pelo que decidi ficar.

A sombra suspirou. De novo levantou o rosto para o céu.

– Encontraste o coração dela, não foi? Decidiste viver com ela no Bosque e queres deixar-me.

– Já te disse e repito, não foi só isso – insisti. – Descobri o que criou esta cidade. Assim, tenho obrigação de permanecer, a responsabilidade é minha. Queres saber o que criou esta cidade?

– Não, não quero saber – respondeu a sombra. – Porque eu sei. Desde o princípio que sei. Esta cidade foste tu que a criaste. Criaste tudo: a Muralha, o Rio, o Bosque, a Biblioteca, a Porta, o inverno. Tudo, absolutamente tudo. Este lago também, a neve também. Eu sabia perfeitamente.

– E porque é que não me disseste antes?

– Porque, se to tivesse dito, terias querido ficar, como, efetivamente, pretendes fazer. E eu queria tirar-te daqui, custasse o que custasse. Porque o mundo em que deves viver está ali fora. – Sentou-se na neve e fez que não com a cabeça várias vezes. – E agora que o descobriste, já não vais querer ouvir-me, não é verdade?

– Assumi uma responsabilidade – disse. – Não posso abandonar o mundo e as pessoas que criei segundo a minha fantasia. Lamento por ti. Lamento-o do fundo do coração e, além do mais, vai ser muito duro termos de nos separar. Mas tenho de assumir a responsabilidade pelos meus atos. Este é o meu mundo. A Muralha é a muralha que me cerca a mim mesmo, o Rio é o rio que corre no interior do meu corpo, o Fumo é o fumo que se eleva quando eu mesmo ardo.

A sombra pôs-se de pé e fixou o olhar na superfície tranquila do Lago. Imóvel na neve que caía sem cessar, a sombra dava a impressão de que, a pouco e pouco, ia perdendo espessura, como se recuperasse a sua forma plana habitual. Durante um longo momento ficámos mudos. O vapor branco que saía das nossas bocas flutuava no ar e desaparecia rapidamente.

– Já percebi que não posso deter-te – disse a sombra. – Contudo, a vida no Bosque é muito mais dura do que imaginas. O Bosque é completamente diferente da Cidade. Para sobreviver há que trabalhar duramente, o inverno é comprido e rigoroso. Uma vez que entres, nunca mais poderás sair. Terás de lá permanecer eternamente.

– Tenho consciência disso.

– Mas não vais mudar de opinião.

– Não – retorqui. – No entanto, não me esquecerei de ti. Dentro do Bosque irei, gradualmente, recordando o meu antigo mundo. Calculo que existam muitas coisas a recordar. Muitas pessoas, muitos lugares, muitas luzes, muitas canções.

A sombra cruzou os dedos das mãos à frente do peito e esfregou-os repetidas vezes. A neve que pousava no seu corpo criava estranhos efeitos de claro-escuro que se ampliavam e encolhiam lentamente. Enquanto esfregava as mãos, mantinha a cabeça ligeiramente inclinada, esforçando-se por ouvir o ruído que fazia ao esfregá-las.

– Tenho de ir – disse a sombra. – Não faço a menor ideia se alguma vez nos voltaremos a ver. Devia despedir-me, mas não sei que dizer-te. Por mais que procure, não me ocorrem as palavras adequadas.

Tornei a tirar o gorro, sacudi-lhe a neve e tornei a pô-lo.

– Espero que sejas feliz – desejou-me. – Agradavas-me, e não te digo isto por ser a tua sombra, sabes?

– Obrigado – disse.

* * *

Depois de o Lago ter absorvido por completo o corpo da minha sombra, deixei-me ficar ali um longo bocado a contemplar a superfície da água. Não restara uma única onda. A água era azul como os olhos dos animais e igualmente silenciosa. Ao perder a minha sombra, senti-me abandonado nos confins do Universo. Já não podia ir a lado nenhum, já não tinha onde regressar. Aquilo era o fim do mundo, e o fim do mundo conduzia a nenhures. Era ali que o mundo acabava, se detinha em silêncio.

Virei as costas ao Lago e comecei a andar em direção à Colina Ocidental. Do outro lado estava a Cidade, por ali corria o Rio e no interior da Biblioteca duas coisas me esperavam: ela e o acordeão.

Vi um pássaro branco voar no meio da tormenta, rumo ao sul. Depois da sua passagem, nada mais restou senão o ranger na neve sob os meus pés.

 

 

                                                                  Haruki Murakami

 

 

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