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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LADO MAIS SOMBRIO / A. G. Howard
O LADO MAIS SOMBRIO / A. G. Howard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Passagem de ida para o submundo
Coleciono insetos desde os dez anos de idade; foi o único jeito que encontrei de silenciar seus sussurros. Espetar um alfinete em sua barriga os silencia rapidamente.
Algumas das minhas vítimas perfilam as paredes em molduras tipo caixa, enquanto outras ficam nas prateleiras dentro de potes de vidro para serem usadas depois. Grilos, besouros, aranhas...
Abelhas e borboletas. Não sou seletiva. Assim que ficam tagarelas demais, tornam-se presa fácil.
Capturá-los não é difícil. Você só precisa de um balde de plástico com tampa cheio de granulado higiênico para gatos e algumas cascas de banana jogadas por cima. Faça um buraco na tampa, enfie nele um tubo de PVC e terá uma armadilha para insetos. As cascas de fruta os atraem, a tampa os prende e a amônia do granulado os sufoca e preserva.
Os insetos não morrem em vão. Eu os uso em minha arte, dispondo seus cadáveres em formatos e desenhos. Flores secas, folhas e cacos de vidro dão cor e textura aos desenhos feitos sobre uma base
de gesso. Essas são minhas obras de arte... Meus mórbidos mosaicos.
Hoje a escola dispensou os formandos ao meio-dia. Estou há uma hora debruçada sobre meu projeto mais recente. Há um pote de aranhas entre as ferramentas de artesanato que se acumulam sobre a minha escrivaninha.
Pela janela do meu quarto entra uma brisa doce que cheira a arnica. Há um canteiro de ervas vizinho ao meu dúplex, o que atrai uma espécie de aranha caranguejeira que muda de cor — como um camaleão de oito patas — para poder se mover de modo imperceptível por entre as flores amarelas e brancas.

 

 

 

 

 

 

Abro a tampa de rosca do vidro, retiro trinta e cinco das pequenas aranhas brancas com uma pinça
longa, tomando cuidado para não esmagar seus abdomens nem quebrar suas patas. Usando alfinetes
pequenos, prendo-as sobre uma base de gesso pintada de preto e revestida de besouros selecionados
por suas cascas furta-cor escuras. O que pretendo criar não é um simples céu salpicado de estrelas; é

uma constelação em espiral como plumas feitas de raios de luz. Existem centenas de cenas como essa
inundando a minha cabeça sem que eu faça a menor ideia de onde vêm. Meus mosaicos são a única
maneira de colocá-las para fora.
Recostada em minha cadeira, estudo a obra. Quando o gesso secar, os insetos estarão colados ali
de modo permanente. Então, qualquer ajuste necessário terá de ser feito rapidamente.
Dou uma olhada no relógio digital ao lado da cama, batendo o dedo de leve no lábio inferior.
Tenho menos de duas horas para encontrar meu pai na clínica. Já é uma tradição às sextas-feiras
desde o jardim de infância: comprar sorvete de cheesecake e chocolate para tomar com Alison.
Cérebro e coração congelados não são exatamente minha ideia de diversão, mas meu pai insiste
que é uma terapia para todos nós. Talvez ele pense que, ao ver minha mãe, ao sentar-me lá onde um
dia provavelmente estarei, conseguirei enganar meu destino.
Pena que ele esteja errado.
Pelo menos algo de bom aconteceu por causa da minha insanidade hereditária. Sem as alucinações,
eu provavelmente nunca teria encontrado um modo de me expressar artisticamente.

Minha obsessão por insetos começou em uma sexta-feira, na quinta série. Tinha sido um dia
daqueles. Taelor Tremon dissera a todo mundo que eu era parente de Alice Liddell, a garota que
havia inspirado o romance Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.
O fato de Alice ser, na verdade, minha tataravó fazia com que minhas colegas implicassem comigo
nos intervalos falando de Camundongos e chás dançantes. Quando eu pensava que as coisas não
poderiam piorar, senti algo na minha calça jeans e percebi, mortificada, que havia menstruado pela
primeira vez e estava totalmente despreparada. Prestes a chorar, peguei um suéter da pilha de
achados e perdidos ao lado da entrada principal e o amarrei na cintura para ir até a secretaria.
Mantive a cabeça abaixada, incapaz de encarar qualquer pessoa.
Fingi que estava doente e liguei para que meu pai viesse me buscar. Enquanto esperava por ele na
enfermaria, imaginei uma discussão calorosa entre o vaso de flores na mesa da enfermeira e a abelha
que zunia em volta dele. Foi uma alucinação das fortes, porque eu realmente ouvi a discussão, tão
nitidamente quanto podia ouvir os alunos passando de uma sala para a outra do lado de fora da porta.
Alison já havia me alertado sobre o dia em que me “tornaria mulher”. E para o burburinho que
viria depois. Pensei que era apenas sua instabilidade mental que a fazia dizer aquilo...
Os sussurros eram impossíveis de ignorar, assim como os soluços que iam se acumulando em
minha garganta. Fiz a única coisa que podia: neguei o que acontecia dentro de mim. Enrolei um cartaz
da pirâmide alimentar e bati na abelha com força suficiente para atordoá-la. Então, tirei as flores da
água e as coloquei dentro das páginas do caderno de espiral, de modo a silenciar aquelas pétalas
tagarelas.
Quando chegamos em casa, meu pai, distraído, ofereceu-se para fazer um caldo de galinha.
Coitado! Dei de ombros e fui para o meu quarto.
— Você acha que estará bem para visitar sua mãe mais à noite? — ele perguntou do corredor,
sempre relutante em alterar o delicado senso de rotina de Alison.

Fechei a porta sem responder. Minhas mãos tremiam e o sangue pulsava nervosamente nas veias.
Deveria haver uma explicação para o que acontecera na enfermaria. Eu estava estressada por causa
das brincadeiras sobre o País das Maravilhas e então, quando meus hormônios se manifestaram,
entrei em pânico. Sim. Fazia sentido.
Mas eu sabia bem lá no fundo que estava mentindo para mim mesma e que o último lugar para
onde eu queria ir era a uma clínica psiquiátrica. Alguns minutos depois, voltei para a sala.
Meu pai estava sentado em seu posto favorito — uma poltrona de veludo cotelê puída e revestida
de apliques de margarida. Em um de seus ataques, Alison costurara as flores em todas as partes.
Agora ele nunca iria se desfazer dela.
— Está se sentindo melhor, Borboletinha? — ele perguntou, olhando por cima da revista de pesca.
Um vento úmido e com cheiro de mofo veio do ar-condicionado direto para o meu rosto quando
encostei na parede de madeira próxima a ele. Nosso dúplex de dois quartos nunca oferecera muito
em termos de privacidade, mas naquele dia parecia menor do que nunca. As ondulações do cabelo
escuro de meu pai moviam-se freneticamente.
Troquei os pés de lugar. Essa era a parte de ser filha única que eu detestava — não ter mais
ninguém para quem contar as coisas além do meu pai. — Preciso de mais dessa coisa. Eles só deram
um de amostra.
Seu olhar estava vazio, como o de um cervo observando o tráfego na hora do rush matinal.
— A palestra especial que deram na escola — eu disse, com um nó no estômago. — Aquela para a
qual os meninos não são convidados? — Mostrei o panfleto lilás que distribuíram para todas as
garotas da terceira série. Estava amassado porque eu o jogara junto com o absorvente de amostra
dentro de uma gaveta debaixo das meias.
Depois de uma pausa incômoda, o rosto do meu pai ficou vermelho. — Ah. Então é por isso que...
— Ele ficou repentinamente interessado em uma coleção de iscas de água salgada coloridas. Ficou
envergonhado ou preocupado, ou ambos, já que não havia nenhum traço de água salgada em um raio
de quinhentas milhas de Pleasance, Texas.
— Você sabe o que isso quer dizer, certo? — pressionei. — Alison vai me dar aquele sermão
sobre puberdade de novo.
A vermelhidão passou de seu rosto para as orelhas. Ele folheou algumas páginas, olhando as
imagens com indiferença. — Bem, quem melhor que sua mãe para lhe falar sobre passarinhos e
abelhas, certo?
Uma resposta silenciosa ecoava dentro de minha cabeça: Quem melhor que as próprias abelhas?
Pigarreei. — Não esse sermão, pai. Aquele da loucura. O “Nada as detém. Você não pode escapar
das vozes mais do que eu. Sua tataravó nunca devia ter entrado naquela conversa da toca do coelho”.
Não importava que Alison estivesse certa sobre as vozes. Eu não estava pronta para admitir aquilo
para meu pai e nem para mim mesma.
Ele sentou-se com a postura ereta, como se o ar-condicionado tivesse congelado sua espinha.

Estudei as linhas em zigue-zague da palma da minha mão. Tanto ele como eu sabíamos que o que
ela me diria importava menos do que o que poderia fazer. Se ela tivesse outro ataque, a colocariam
em uma camisa de força.
Aprendi logo por que se chama de força. Porque força nesse contexto significa apertar. Porque
força tanto que o sangue fica represado nos cotovelos, deixando as mãos dormentes. Aperta o
necessário para que o paciente não consiga escapar, não importa o quanto ele grite. Aperta tanto que
sufoca os corações daqueles que amam aquele que a veste.
Meus olhos pareciam inchar, como se fossem explodir em lágrimas novamente. — Olha pai, já tive
um dia horroroso. Podemos simplesmente não ir hoje à noite? Só desta vez?
Meu pai suspirou. — Vou ligar para a clínica e avisar que visitaremos sua mãe amanhã. Mas você
precisa contar para ela em algum momento. É importante para ela, você sabe. Participar da sua vida.
Concordei, fazendo um gesto com a cabeça. Pode ser que eu conte a ela que estou me tornando
mulher, mas não preciso contar que estou me transformando nela.
Brincando com o lenço fúcsia amarrado ao redor do meu short jeans, olhei de relance para os
meus pés. As unhas pintadas de rosa cintilante refletiam a luz da tarde que penetrava pela janela.
Rosa sempre fora a cor preferida de Alison. Era por isso que eu usava.
— Pai — murmurei alto o suficiente para que ele ouvisse. — E se Alison estiver certa? Percebi
algumas coisas hoje. Coisas que não são... normais. Eu não sou normal.
— Normal. — Ele curvou os lábios, naquele seu estilo Elvis. Uma vez ele me contou que foi com
esse sorriso que conquistou Alison. Acho que foi com sua gentileza e senso de humor, porque essas
eram as duas únicas coisas que me faziam parar de chorar todas as noites depois que ela foi
internada.
Ele enrolou a revista e atirou-a na poltrona entre a almofada e o braço. Parou em pé, sua altura de
um metro e oitenta e seis se impondo sobre mim, enquanto segurava e tocava a covinha do meu
queixo — a única parte minha que vinha dele e não de Alison. — Agora, me escute, Alyssa Victoria
Gardner. Normal é algo subjetivo. Nunca deixe que ninguém lhe diga que não é normal. Porque para
mim você é. E a minha opinião é que vale. Entendeu?
— Entendi — sussurrei.
— Bom. — Ele me apertou o ombro, os dedos calorosos e fortes. Pena que um tremor em sua
pálpebra esquerda o denunciava. Estava preocupado e mal sabia da metade.
Me revirei na cama aquela noite. Quando finalmente peguei no sono, tive um pesadelo com Alice
pela primeira vez, e ele vem me assombrando desde então.
Nele, atravesso aos tropeços um tabuleiro de xadrez no País das Maravilhas, saltando sobre
quadrados pontiagudos pretos e brancos. Só que não sou eu. Sou Alice em um vestido azul com
avental rendado, tentando escapar do tique-taque do relógio de bolso do Coelho Branco. Ele parece
que foi esfolado vivo — praticamente pele e osso com orelhas de coelho.
A Rainha de Copas ordenou que minha cabeça fosse degolada e colocada em um vidro com
formol. Roubei a espada real e estou fugindo, desesperada, para encontrar a Lagarta e o Gato de

Cheshire. São os únicos aliados que me restam.
Adentro uma floresta e, agachada, abro caminho cortando trepadeiras com a espada. Um matagal
de espinhos brota do chão. Eles agarram meu avental e minha pele como pequeninas garras
enfurecidas. Árvores de dente-de-leão estão por toda parte. Sou do tamanho de um grilo, assim como
todo mundo.
Deve ter sido algo que comi...
Logo atrás, o relógio do Coelho Branco faz tique-taque cada vez mais alto, mais do que os passos
da marcha de mil soldados de cartas de baralho. Engasgo com uma nuvem de poeira e me lanço na
toca da Lagarta, de onde brotam cogumelos do tamanho de pneus de caminhão. Não há saída.
Só de olhar para o cogumelo mais alto, meu coração dispara. O lugar onde a Lagarta costumava se
sentar, dar conselhos e oferecer sua amizade virou uma massa espessa de fios de teia de aranha. Algo
se move lá dentro, um rosto pressiona o casulo, e se move o suficiente para que eu possa distinguir
apenas seu formato, mas não detalhes. Chego um pouco mais perto, desesperada para identificar
quem ou o quê está lá dentro... mas a boca do Gato de Cheshire aparece flutuando, gritando que
perdera seu corpo, e me distrai.
O exército de cartas aparece. Em menos de um segundo me vejo cercada. Jogo longe a espada, mas
a Rainha de Copas se aproxima e agarra o objeto em pleno ar. Caio de joelhos aos pés do exército,
implorando por minha vida.
É inútil. As cartas não têm ouvidos. E eu não tenho mais cabeça.

Depois de cobrir meu mosaico de aranhas estreladas com um pano enquanto o gesso seca, pego um
pacote de nachos e me dirijo à pista de skate do parque de Pleasance para matar o tempo antes de me
encontrar com meu pai para ir à clínica.
Sempre me senti em casa aqui, nas sombras. O parque fica em uma antiga mina de sal abandonada,
uma imensa caverna subterrânea que em alguns pontos chega a alcançar quinze metros de altura.
Antes de ser reformado, o lugar era usado para armazenar produtos de uma base militar.
Os novos proprietários retiraram a iluminação original e, com tinta fluorescente e luz negra,
transformaram o lugar no sonho de qualquer adolescente — uma área de recreação de atmosfera
escura com iluminação ultravioleta equipada com uma pista de skate, um campo de minigolfe
fluorescente, um salão de jogos e um café.
Com uma pintura verde neon, a grande “tigela” de cimento sobressaía como um farol de luz verde.
Os skatistas têm de assinar um termo de responsabilidade e colocam uma fita fluorescente laranja em
seus skates para evitar colisões no escuro. A certa distância, parecemos vaga-lumes que se alternam
numa espécie de aurora boreal, deixando rastros brilhantes.
Comecei a andar de skate quando tinha quatorze anos. Precisava de um esporte que pudesse
praticar enquanto usava meu iPod e fones de ouvido para abafar os ruídos dos insetos e flores.
Acima de tudo, aprendi a ignorar a maioria das alucinações. As coisas que ouço geralmente são sem

sentido e aleatórias e se fundem em chiados e murmúrios como um barulho de rádio fora da estação.
Quase sempre posso convencer a mim mesma de que não é nada a não ser o ruído ambiente.
Ainda assim, há momentos em que um inseto ou flor diz algo mais alto do que os outros — algo
importante, pessoal ou relevante — e me chama a atenção. Portanto, quando estou dormindo ou
envolvida em qualquer coisa que requeira mais concentração, meu iPod é essencial.
Na pista de skate, as caixas de som tocam de música dos anos 80 a rock alternativo muito alto, o
que impede possíveis distrações. Nem preciso usar fones de ouvido. O único problema é que a
família de Taelor Tremont é dona do lugar.
Ela ligou antes da inauguração, há dois anos. — Achei que você ficaria interessada em saber o
nome que daremos ao espaço — ela disse, com a voz cheia de sarcasmo.
— Ah, sim, e qual é? — perguntei civilizadamente, já que o pai dela, o Sr. Tremont, contratara a
loja de artigos esportivos de meu pai como único fornecedor para o megaespaço. O que é muito bom,
também, considerando que estávamos à beira da falência por causa das despesas médicas de Alison.
E também, como bônus, ganhei um título de sócia vitalícia.
— Bem... — Taelor ironizava devagar. Pude ouvir seus amigos rindo por trás. Eu devia estar no
viva-voz. — Meu pai quer chamar de País das Maravilhas. — Risadinhas ecoaram ao fundo. —
Achei que você iria gostar, visto que tem tanto orgulho de sua tataravó coelha.
A zombaria me abalou mais do que devia. Devo ter ficado quieta por muito tempo, pois as
risadinhas ao fundo cessaram.
— Na verdade — falou ela, tossindo —, acho que já está muito batido. Submundo seria melhor,
uma vez que fica debaixo da terra. O que você acha, Alyssa?
Hoje me lembro daquele olhar ligeiramente arrependido de Taelor enquanto passo pelo meio da
rampa de skate abaixo do luminoso em neon escrito SUBMUNDO pendurado no teto. É bom saber
que ela tem um lado humano. Rock ecoa nas caixas. Enquanto desço pela parte baixa da rampa, vejo
outras silhuetas à minha volta contra o fundo de neon.
Equilibrando um pé na parte de trás do skate, me preparo para levantar a parte da frente com o pé.
Uma tentativa de fazer um ollie algumas semanas atrás me deixou com o cóccix machucado. Agora
morro de medo dessa manobra, mas alguma coisa dentro de mim não me deixa desistir.
Preciso continuar tentando ou nunca vou conseguir aprender novas manobras. Minha determinação
vai além. É visceral — uma agitação que se embaralha com meus pensamentos e nervos até me
convencer de que não estou com medo. Às vezes penso que não estou sozinha em minha própria
cabeça, que há parte de outra pessoa lá dentro, alguém que me incita a seguir além dos limites.
Aproveitando a onda de adrenalina, me jogo. Curiosa em saber a altura que estou alcançando, abro
os olhos, estatelada. Estou no meio do salto, o cimento se aproximando rapidamente abaixo de mim.
Um frio me percorre a espinha. Perco o controle, e o pé da frente escorrega, me jogando para baixo
com um sonoro uuuh.
A perna e o braço esquerdo tocam primeiro o chão. A dor se alastra por todos os meus ossos. O
impacto tira o ar dos meus pulmões, e eu escorrego até parar na parte mais baixa da rampa. Meu

skate vem rolando atrás de mim como um bichinho de estimação fiel, até parar, cutucando minhas
costelas.
Na ânsia de respirar, me viro de costas. Cada nervo do meu joelho e tornozelo arde em fogo. A
faixa da joelheira se soltou e agora há um rasgo em meu legging preto por baixo do short roxo de
ciclista. Sobre a superfície verde em declive ao meu lado, vejo uma mancha escura. Sangue...
Recolho o joelho arrebentado, sentindo uma dor aguda ao respirar. Segundos após a queda, três
funcionários apitam e chegam de patins pela pista interna. Usam aqueles capacetes com luz de
mineiro, mas são, na verdade, salva-vidas estrategicamente colocados em lugares de fácil acesso e
munidos de noções básicas de primeiros socorros.
Eles formam uma barreira visível com seus coletes brilhantes para que os outros skatistas não se
choquem contra nós, enquanto fazem um curativo e limpam o sangue do chão de cimento com
desinfetante.
Um quarto empregado aparece vestindo o colete de gerente. Só pode ser Jebediah Holt.
— Eu devia ter saído fora — falo, enrolando a língua.
— Tá brincando? Ninguém conseguiria evitar uma batida dessas a tempo. — Sua voz profunda fica
mais terna quando se ajoelha ao meu lado. — Estou feliz por ver que voltou a falar comigo. — Ele
está usando bermuda cargo e camiseta preta por baixo do colete. A luz negra brilha em sua pele,
realçando seus braços torneados com reflexos azuis.
Seguro a tira do capacete debaixo do queixo. A luz do capacete dele acerta em cheio o meu rosto.
— Pode me ajudar a tirar isto? — peço.
Jeb se inclina mais para perto a fim de poder me ouvir mesmo com a música alta. O perfume dele
— uma fragrância de chocolate e lavanda — se mistura ao seu suor, em um aroma tão irresistível
quanto cheiro de algodão-doce para uma criança em um parque.
Ele coloca os dedos sob meu queixo e me livra da correia. Ao me ajudar a tirar o capacete, seu
polegar roça minha orelha, causando-me um arrepio. A luz de seu capacete ofusca a minha visão. Só
consigo distinguir a barba escura por fazer, aqueles dentes brancos e alinhados (com exceção do
incisivo esquerdo, que se sobrepõe de leve ao dente da frente) e o piercing sob o lábio inferior.
Taelor protestou, mas ele se recusa a retirar o piercing, o que me faz gostar dele ainda mais.
Namoram há apenas alguns meses. Ela não exerce o menor poder sobre o que ele faz.
Jeb coloca as mãos em concha sob meus cotovelos. — Consegue levantar?
— Claro que sim — rebato, sem a intenção de ser ríspida, mas descontente por ser o centro das
atenções. Assim que me apoio sobre a perna, sinto uma dor lancinante no tornozelo e caio. Outro
empregado me apoia por trás enquanto Jeb se senta e retira seus patins e meias. Antes que eu me dê
conta do que está fazendo, ele me carrega para fora da pista.
— Jeb, quero ir andando. — Envolvo seu pescoço com meus braços para manter o equilíbrio.
Sinto as risadinhas dos outros skatistas enquanto passo, mesmo sem poder vê-los no escuro. Por
causa deles, nunca me esquecerei de que fui carregada para fora como uma diva.

Jeb me suspende mais e fica evidente o quanto estamos próximos: minhas mãos em volta do
pescoço dele, seu tórax encostando nas minhas costelas... aqueles bíceps segurando por baixo dos
meus ombros e joelhos.
Paro de resistir quando saímos da pista para o chão de madeira.
Primeiro penso que estamos indo para o café, mas passamos pelo salão de jogos e viramos à
direita em direção à rampa da entrada, seguindo pelo arco de luz que seu capacete vai definindo. Ele
abre a porta que dá para fora com o quadril. Pisco, tentando me adaptar à claridade do lado de fora.
Rajadas de vento morno jogam meu cabelo contra o rosto.
Ele me coloca com suavidade sobre o chão de cimento. Senta-se ao meu lado, tirando o capacete e
sacudindo o cabelo. Faz algumas semanas que não os corta, e ele está roçando os ombros. Algumas
mechas estão mais longas — uma cortina negra que toca o seu nariz. Ele desamarra a bandana
vermelha e azul da coxa e a amarra em volta da cabeça, dando-lhe um nó na altura da nuca que tira as
mechas da frente do rosto.
Seus olhos verde-escuros observam o curativo sujo de sangue dos meus joelhos. — Eu falei para
você trocar seus acessórios. Suas tiras estão se desfazendo há semanas.
Lá vamos nós. Ele já mudou para o modo irmão mais velho, mesmo sendo só dois anos e meio
mais velho que eu e estando só um ano à frente de mim na escola. — Tem falado com meu pai, é?
Ele franze o rosto e começa a retirar suas joelheiras. Eu também retiro a minha.
— Na verdade — digo, mentalmente me censurando por não ter o bom senso de me retirar para
dentro da minha bolha de silêncio —, eu deveria ser grata a você e ao meu pai por me deixarem vir
para cá. Considerando que este lugar seja tão escuro e amedrontador, coisas ruins podem acontecer a
uma garota tão indefesa.
Um músculo se move no maxilar de Jeb, sinal de que o atingi. — Isto não tem nada a ver com seu
pai. Sem falar que ele é dono de uma loja de esportes, o que significa que você não tem desculpa
para não manter seu equipamento em dia. Andar de skate pode ser perigoso.
— Sim, e Londres também, certo? — Olho para os carros reluzentes do estacionamento enquanto
aliso minha camiseta amassada com estampa de coração sangrando envolto em arame farpado.
Poderia muito bem ser uma radiografia do meu peito.
— Ótimo — rebate ele, atirando as joelheiras para o lado. — Então você ainda não superou.
— Não superei o quê? Em vez de me defender, você ficou do lado dele. Agora não posso ir lá até
me formar. Por que isso deveria me incomodar? — Puxo minha luva mitene para abafar a raiva, que
faz a minha língua fervilhar.
— Pelo menos, ficando em casa, você vai se formar. — Jeb pega sua cotoveleira e puxa a tira de
velcro com força, pontuando o que acabara de dizer.
— Eu também teria me formado lá.
Ele bufa.
Não deveríamos ter discutido aquele assunto. A decepção ainda era muito recente. Eu estava muito

vidrada no programa de intercâmbio que permitia a estudantes do último ano do Ensino Médio
terminarem seus estudos em Londres e ao mesmo tempo obterem créditos para estudar em uma das
melhores escolas de arte da cidade. A mesma universidade para a qual Jeb está indo.
Algumas semanas atrás, meu pai pediu que ele jantasse conosco para falar sobre o programa, já
que ele tinha ganhado uma bolsa e planejava se mudar para Londres no verão. Achei que era uma
ótima ideia, que com Jeb junto estaria tudo certo para mim. E então os dois, juntos, decidiram que
ainda não era a hora certa para eu ir. Os dois decidiram.
Meu pai se preocupa porque Alison tem aversão à Inglaterra — muitas histórias da família
Liddell. Acha que minha ida causaria nela uma recaída. Ela já tem mais furos de agulhas que muitos
drogados de rua.
Ao menos suas objeções faziam sentido. Mas eu ainda não descobrira por que Jeb votara contra a
ideia. O que importava agora? O prazo final foi sexta-feira passada, portanto não havia como mudar
as coisas agora.
— Traidor — murmurei.
Ele abaixa a cabeça, me forçando a olhar para ele. — Estou tentando ser seu amigo. Você ainda
não está pronta para ficar tão longe do seu pai... Não vai ter ninguém para cuidar de você.
— Você vai estar lá.
— Mas não vou poder estar com você a cada segundo. Meus horários vão ser loucos.
— Não preciso de alguém comigo a todo instante. Não sou uma criança.
— Eu nunca disse que você era uma criança. Mas você nem sempre toma as melhores decisões.
Neste caso pelo menos — ele belisca minha canela, soltando meu legging rasgado com um estalo.
Senti um tremor de euforia percorrendo minha perna. Me encolhi, convencendo-me de que eram
apenas cócegas. — Então quer dizer que não posso cometer erros?
— Não erros que possam te machucar.
Balanço a cabeça. — Como se ficar presa aqui não machucasse. Em uma escola que não suporto,
com colegas de classe que acham muito engraçado ficar fazendo piadas sobre o rabo branco de
coelho que estou escondendo. Obrigada por isso, Jeb.
Ele suspira e se senta. — Está certo. Então é tudo culpa minha. Aposto que o fato de você ter
“comido cimento” lá dentro também foi culpa minha.
O nervosismo distorce sua voz e corta meu coração. — Bem, aquela queda foi meio culpa sua —
eu digo, suavizando a voz, num esforço consciente para abrandar a tensão que tinha se criado entre
nós. — Eu já teria aprendido a manobra do pulo se você ainda estivesse me dando aulas de skate.
Os lábios de Jeb se torcem. — Então o novo professor, Hitch... está dando em cima de você?
Dou um soco nele, extravasando um pouco da frustração reprimida. — Não, não está.
Jeb finge espanto. — Mas bem que gostaria. Avisei que daria nele se...
— Como se você mandasse em alguma coisa. — Hitch tinha dezenove anos e era perito em

falsificar identidades e usar drogas recreativas. Forte candidato à prisão. Sei que não devo me
envolver com ele, mas quem decide sou eu.
Jeb me lança um olhar. Pressinto um sermão sobre os perigos de andar com um cara sem rumo.
Tiro um grilo da perna dando um peteleco com minha unha azul, recusando-me a deixar que os
sussurros do inseto deixem este momento ainda mais estranho.
Felizmente, as portas se abrem atrás de nós. Jeb se afasta para dar passagem a algumas garotas.
Uma nuvem de perfume com cheiro de talco nos atravessa quando elas passam e acenam para Jeb.
Ele cumprimenta com a cabeça. Fica olhando elas entrarem em um carro no estacionamento e
partirem.
— Ei — dispara ele. — Hoje é sexta. Não era para você ir visitar sua mãe?
Levo um susto com a súbita mudança de assunto. — Vou encontrar meu pai lá. E depois prometi a
Jen substituí-la nas duas últimas horas do turno dela. — Depois de olhar para minhas roupas
rasgadas, olho para o céu: o mesmo azul surpreendente dos olhos de Alison. — Espero que dê tempo
de passar em casa e me trocar.
Jeb se levanta. — Vou assinar o ponto e sair — ele diz. — Pego seu skate, sua mochila e te levo
na clínica.
Era a última coisa de que eu precisava.
Jeb e sua irmã, Jenara, nunca haviam visto Alison; somente por fotografias. Nem mesmo sabem a
verdade sobre minhas cicatrizes ou sobre o motivo de eu usar luvas. Todos os meus amigos pensam
que, em um acidente de carro com minha mãe quando eu era criança, o para-brisa feriu minhas mãos
e lesionou o cérebro dela. Meu pai não gosta de mentiras, mas a realidade era tão bizarra que ele me
permitia enfeitá-la.
— Mas e a sua moto? — perguntei, para ir ganhando tempo, ao constatar que a Honda CT 70
vintage tunada não se encontrava em nenhum lugar do estacionamento.
— A previsão era de chuva, então a Jen me deixou aqui — justifica. — Seu pai te leva para o
trabalho mais tarde e eu levo seu carro para casa depois. Não é tão fora do meu caminho.
A família de Jeb mora bem perto do nosso dúplex. Meu pai e eu e fomos nos apresentar a eles uma
manhã, logo após eles terem se mudado. Jeb, Jenara e eu ficamos próximos antes do começo da sexta
série, no outono seguinte — tão próximos que no primeiro dia de aula Jeb bateu em um menino no
corredor quando ele me chamou de amante escrava do Chapeleiro Maluco.
Jeb coloca os óculos escuros e ajeita o nó da bandana atrás da cabeça. O sol bate em seus braços
brilhantes salpicados de pequenas cicatrizes redondas.
Olho para os carros estacionados. Gizmo — meu Gremlin 1975, que tem esse nome por causa do
personagem de um filme dos anos 1980 que meu pai foi assistir com Alison em seu primeiro encontro
— não está muito longe. Há a possibilidade de Alison estar no saguão com meu pai. Se não posso
contar com Jeb para me apoiar no assunto de Londres, não posso deixar que veja a maior maluca que
já apareceu na minha árvore genealógica.

— Não, não — retruca ele. — Conheço esse olhar. Você não pode de jeito nenhum dirigir um
carro manual com o tornozelo torcido. — Ele estende a mão. — Passe para cá.
Revirando os olhos, coloco as chaves nas mãos dele.
Ele empurra os óculos escuros para cima da bandana no alto da cabeça. — Espere aqui, vou
ajudar você.
Uma lufada de ar-condicionado atinge o meu rosto quando a porta de entrada do parque se bate
atrás dele. Sinto algo em minha perna, desta vez não jogo o gafanhoto para longe e ouço seu sussurro
em alto e bom som: j á está fadado.
— Sim — sussurro em resposta, acariciando suas asas e me entregando às minhas alucinações. —
Estará tudo acabado quando Jeb vir Alison.

2

Arame farpado
e asas negras

A Clínica das Almas fica a vinte e cinco minutos de carro da cidade.
O sol da tarde bate forte sobre o capô do carro. Depois que passam os prédios, centros de
comércio e casas, não há muito o que ver em Pleasance. Apenas planícies secas com alguns arbustos
e árvores delgadas aqui e acolá.
Toda vez que Jeb começa a falar, respondo de um jeito monossilábico e aumento o volume do CD
player recém-instalado.
Finalmente toca uma música — uma canção acústica e melancólica que uma vez presenciei Jeb
ouvindo enquanto pintava —, e Jeb a ouve, concentrado. A bolsa de gelo que ele trouxe para meu
tornozelo inchado já derreteu, e mexo o pé para que termine de cair.
Luto contra a sonolência, já sabendo o que me espera no limiar do sono. Não preciso ter meu
pesadelo de Alice em plena tarde.
Quando era adolescente, a mãe de Alison, Alícia, pintou todos os personagens do País das
Maravilhas pelas paredes de sua casa, insistiu que eram reais e que conversavam com ela em seus
sonhos. Anos mais tarde, Alícia se lançou em um voo do alto do segundo andar de seu quarto no
hospital onde acabara de dar à luz minha mãe, só para “testar” suas asas. Aterrissou em um canteiro
de rosas e quebrou o pescoço.
Alguns dizem que foi suicídio — depressão pós-parto e tristeza por ter perdido o marido meses
antes, em um acidente numa fábrica. Outros dizem que ela deveria ter sido internada muito antes de
ter tido a criança.
Depois da morte da mãe, Alison foi criada por uma variedade de parentes. Meu pai acha que essa
instabilidade contribuiu para sua doença. Sei que é mais do que isso, sei que é algo hereditário, por
causa dos meus pesadelos recorrentes e dos insetos e plantas. E ainda há a presença que sinto por
dentro. Aquela que vibra e me obscurece quando estou com medo ou hesitante, me incitando a ir além

dos meus limites.
Pesquisei sobre esquizofrenia. Dizem que um dos sintomas é ouvir vozes, e não um farfalhar de
asas dentro da cabeça. Se ainda fosse contar os sussurros das flores e insetos, ouço muitas vozes,
sim. Por qualquer uma dessas definições, sou doente.
Sinto um nó se formando em minha garganta e o engulo.
O CD muda de música e me concentro na melodia, tentando esquecer todo o resto. Jeb troca de
marcha enquanto uma nuvem de poeira bate contra o carro. Olho de relance para a imagem dele de
perfil. Há um traço italiano em seu sangue, e sua pele tem uma tonalidade muito bonita — é cor de
oliva, clara, macia ao toque.
Ele vira a cabeça para mim. Desvio o olhar para o espelho retrovisor e observo o enfeite
aromatizador. Eu o pendurei na haste do espelho hoje.
No eBay tem uma loja que vende aromatizadores de carro customizados por dez dólares cada. É só
mandar uma foto por e-mail, eles a imprimem no aromatizador e devolvem pelo correio. Há duas
semanas usei um dinheiro que tinha ganhado no meu aniversário e comprei dois, um para mim e outro
para o papai pendurar em seu caminhão. Mas ele o colocou na carteira; me pergunto se ele vai deixá-
lo escondido lá para sempre, pois deve ser doloroso demais vê-lo todos os dias.
— Ficou legal — opina Jeb, referindo-se ao aromatizador.
— Sim — balbucio. — É uma foto que a Alison tirou, então tinha que ficar.
Jeb assente com a cabeça, um gesto silencioso... mais reconfortante que palavras bem-
intencionadas de muitos.
Olho para a foto. É a imagem de uma mariposa enorme de asas pretas de um dos álbuns antigos de
Alison. É uma imagem incrível, o modo como as asas estão abertas sobre uma flor entre uma faixa de
sol e a sombra, oscilando entre dois mundos. Alison costumava capturar coisas que a maioria das
pessoas não perceberia — momentos em que os opostos colidem e então se fundem de modo quase
imperceptível. Fico imaginando como ela teria sido bem-sucedida se não tivesse enlouquecido.
Dou um peteleco no aromatizador e observo-o balançar.
Esse inseto sempre me pareceu familiar — assustador e ao mesmo tempo sereno.
Constato que não conheço muito de sua história — de qual espécie é, onde vive. Se descobrisse,
saberia onde Alison deveria ter tirado aquela foto e me sentiria mais próxima dela, de certa maneira.
Mas não posso perguntar. Ela se sensibiliza quando falamos sobre seus álbuns.
Procurando atrás do banco, encontro meu iPhone na mochila e faço uma busca por mariposa
cintilante.
Após vinte e tantas páginas de tatuagens, logotipos, anúncios e fantasias, a imagem de uma
mariposa chama minha atenção. Não se parece exatamente com a de Alison, mas seu corpo é azul
brilhante e as asas pretas são cintilantes, então é bem parecida.
Ao clicar na imagem, a tela fica preta. Quando me preparo para reiniciar o navegador, um clarão
de luz vermelha me detém. A tela pulsa como se eu estivesse diante de um coração batendo. O ar à

minha volta parece pulsar em sincronia.
Surpreendo-me com uma página que aparece na tela. Letras brancas e gráficos coloridos se
destacam contra o fundo negro. Logo de cara, o título me chama a atenção: intraterrenos —
habitantes do reino interior.
Em seguida, a definição: uma raça de seres sobrenaturais sombrios e estranhos, nativos de um
mundo antigo escondido nas profundezas da terra. Muitos usam sua magia para diabruras e
vingança, embora poucos sejam inclinados à bondade e coragem.
Encontro imagens tão violentas e bonitas quanto as pinturas de Jeb: seres luminosos, com pele
multicolorida, olhos grandes e faiscantes, asas sedosas que carregam facas e espadas; criaturas
fantásticas nuas e repugnantes em correntes se arrastando de quatro com rabos retorcidos e patas
bipartidas como porcos; seres prateados e lânguidos enjaulados, chorando lágrimas de óleo negro.
De acordo com o texto, em sua forma original, os intraterrenos podem se parecer com quase tudo:
podem ser pequenos como um botão de rosa ou maiores que um ser humano. Alguns podem até se
passar por mortais, assumindo a forma de seres humanos e se aproveitando disso para enganar as
pessoas à sua volta.
Sinto um nó em meu peito ao ler a linha seguinte: enquanto causam estragos no mundo mortal, os
intraterrenos se mantêm conectados aos seus iguais usando plantas e insetos como condutores do
reino interior.
Minha respiração para. As palavras giram à minha volta, num vaivém estonteante. Se aquilo for
verdade, e não apenas uma fantasia da internet, Alison e eu compartilhamos características de
criaturas místicas e assustadoras. Mas isso nem é possível.
O carro dá um solavanco ao passar por um obstáculo e o celular cai. Quando o pego, está sem
sinal. — Porcaria!
— Não, não. Buraco mesmo. — Reduzindo a marcha, Jeb me lança um olhar despreocupado. É o
Sr. Tranquilidade por trás desses óculos.
Olho para ele. — Talvez você deva prestar atenção na estrada caso existam mais desses,
espertinho.
Ele muda a marcha e ironiza. — Está difícil a partida de paciência?
— Pesquisando insetos. Vire à direita aqui. — Jogo o celular na mochila. Ir à clínica me deixa tão
tensa que devo ter lido as palavras errado. Mesmo quase certa disso, o nó em meu estômago não se
desfaz.
Jeb entra em uma estrada longa e sinuosa. Passamos por uma placa desbotada: CLÍNICA DAS ALMAS:
OFERECENDO PAZ E SOSSEGO A MENTES FATIGADAS DESDE 1942.

Paz. Sim, claro. Está mais para catatonia induzida por medicamentos.
Abaixo o vidro da janela e deixo entrar uma brisa morna. Gizmo descansa enquanto esperamos que
o portão automático de ferro responda.
Abrindo o porta-luvas, retiro uma pequena bolsa de cosméticos e junto alguns apliques de cabelo

que Jenara me ajudou a confeccionar com lã azul mesclada. Estavam entrelaçados para dar um efeito
de dreadlock.
Vamos em direção ao prédio de tijolos de quatro andares; o vermelho se destaca em contraste com
o céu azul. Parece um bolo confeitado em formato de casa, mas os detalhes brancos no telhado
triangular parecem mais dentes afiados do que cobertura de glacê.
Jeb encontra uma vaga junto à picape do meu pai e desliga o motor, que faz um barulho e então
para.
— O carro está fazendo esse barulho há muito tempo? — Ele joga os óculos no console e observa
o painel atrás do volante, olhando para os mostruários e números.
Subo o elástico de minha trança para a altura do ombro. — Mais ou menos uma semana. — As
pontas caem em ondas platinadas iguais às de Alison. Atendendo a um pedido do meu pai, não tinjo
nem corto meu cabelo, porque lhe lembra o dela. Assim, tive de encontrar jeitos criativos de dar uma
modernizada no visual.
Abaixo a cabeça até que o cabelo escorra e caia sobre os joelhos. Agora que os dreads estão bem
presos, jogo o cabelo para cima de novo e vejo Jeb olhando para mim.
Ele desvia o olhar para o painel. — Se você não tivesse ignorado minhas ligações, eu já poderia
ter dado uma olhada neste motor. Você não deve dirigir até que eu conserte.
— O Gizmo está bem. Só está um pouco rouco. Talvez só precise fazer um gargarejo com água e
sal.
— Isto não é brincadeira. O que você vai fazer se ele te deixar na mão no meio do nada?
Torço uma ponta do cabelo entre os dedos. — Humm. Exibir meu decote para um motorista de
caminhão?
Jeb aperta o maxilar. — Não tem graça nenhuma.
Rio dele. — Nossa, só estou brincando. Eu só precisaria mostrar um pedacinho da perna.
Ele esboça um sorriso que desaparece num piscar de olhos. — Veja só, isto vindo de uma garota
que não deu nem o primeiro beijo...
Ele sempre brinca que eu sou uma mistura de skatista descolada com patricinha americana. Parece
que fui rebaixada a puritana.
Solto um grunhido. Não vai adiantar nada negar o problema. — Está bem. Eu ligaria para alguém
do celular e esperaria em segurança dentro do carro com todas as portas trancadas e uma clava na
mão até que o socorro chegasse. E agora, ganho um biscoito?
Ele bate o dedo no painel. — Vou até a sua casa mais tarde dar uma olhada nele. Você pode ficar
comigo na garagem. Como antigamente.
Tiro uma sombra da bolsa de cosméticos. — Seria legal.
Ele abre um grande sorriso — com covinhas e tudo. Uma breve amostra do velho, provocador e
brincalhão Jeb. Meu coração se acelera ao vê-lo assim.

— Ótimo — acrescenta ele. — Que tal hoje à noite?
Fico irritada. — Claro. A Taelor teria um treco se você saísse da festa de formatura mais cedo
para consertar meu carro.
Ele deixa a testa cair sobre o volante. — Ah, não. Tinha esquecido. Ainda tenho que pegar meu
smoking. — Ele olha para o relógio do carro. — A Jen me disse que um cara convidou você para a
formatura, mas que você não quis ir? Por quê?
Encolho os ombros. — Tenho esse defeito de personalidade, como se chama? Dignidade?
Ele ri e pega uma garrafa d’água com sabor de framboesa espremida entre o freio de mão e a
poltrona e bebe o que restou.
Aplico um pouco de delineador preto nos olhos por cima do que já tinha e puxo as extremidades,
no estilo gatinha. Quando termino de aplicar um pouco mais nos cílios de baixo, meus olhos azuis
ganham realce sobre o preto, como uma camiseta fluorescente sob as luzes do Submundo.
Jeb se reclina no banco. — Muito bom. Conseguiu destruir qualquer semelhança com sua mãe.
Congelo. — Não era minha intenção...
— Vamos lá, Al. Sou eu. — Ele estica a mão e bate no aromatizador, que gira, lembrando-me do
site. O nó em meu esterno aperta mais.
Jogo a sombra na bolsa e tiro de lá um brilho labial, depois coloco a bolsa de volta no porta-
luvas.
A mão de Jeb está perto do meu cotovelo no painel, seu calor irradiando em minha direção. — Se
você está com medo de se parecer com ela, vai se parecer com ela. E acabar aqui também.
Fico sem saber o que falar. Ele sempre conseguiu ler meus pensamentos. Mas isso... isso foi como
se ele tivesse se enfiado dentro da minha cabeça.
Deus me livre.
Minha garganta seca e fico olhando a garrafa vazia entre nós.
— Não é fácil viver sob a sombra de alguém. — O semblante dele escurece.
Ele sabia. Tem cicatrizes que provam isso, mais profundas que as deixadas pelas marcas de
cigarro no tórax e nos braços. Ainda me lembro de quando eles se mudaram: os gritos arrepiantes na
casa ao lado às duas da manhã, quando ele tentava proteger a si mesmo, à mãe e à irmã do pai
bêbado. A melhor coisa que já poderia ter acontecido à família de Jeb foi quando o Sr. Holt bateu
seu caminhão contra uma árvore certa noite, três anos atrás. O nível de álcool no sangue dele era 0,3.
Felizmente, Jeb nunca bebe. Seu lado sombrio não combina com álcool, algo que ele descobriu há
alguns anos, quando quase matou um cara em uma briga. A justiça mandou Jeb para um centro de
detenção juvenil por um ano, razão pela qual ele só terminou o colégio aos dezenove. Ele perdeu
doze meses de sua vida, mas ganhou um futuro, pois no centro um psicólogo o ajudou a dominar sua
amargura através da arte e o ensinou que o melhor jeito de conter a raiva era tendo estrutura e
equilíbrio.

— Apenas lembre — pontuou ele, entrelaçando nossas mãos. — Com você não é hereditário. Sua
mãe sofreu um acidente.
As palmas de nossas mãos se tocam, somente minhas luvas entre elas. Encosto meu braço no dele,
alinhando suas cicatrizes contra minha pele.
Você está errado, tenho vontade de dizer. Sou igualzinha a você. Mas não posso. O fato é que os
alcoólatras têm programas e seguem passos que os reconduzem à sociedade e a uma função. Os
loucos, como Alison, só possuem celas acolchoadas e objetos sem pontas. Essa é a normalidade
deles.
Nosso normal.
Ao olhar para baixo, noto que um pouco de sangue vazou e secou no meu curativo do joelho.
Coloco a mão em cima, preocupada com Alison. Ela tem um treco sempre que vê sangue.
— Tome. — Sem que eu precise dizer uma palavra, Jeb tira a bandana da cabeça, se inclina e a
amarra em volta do meu joelho para esconder o curativo sujo. Quando acaba, em vez de voltar para o
seu lado do assento, apoia o cotovelo no painel e corre os dedos pela minha mecha de dreadlock
azul. Pode ser por causa de nossos assuntos mal resolvidos ou pela conversa mais íntima que
tivemos, mas sua expressão é séria.
— Esses dreads estão hiperapertados. — Sua voz está baixa e aveludada, deixando meu estômago
cheio de nós. — Sabe, você deveria ir à festa de formatura. Aparecer lá desse jeito e deixar todo
mundo de queixo caído. Garanto que você ainda manteria sua dignidade.
Ele me olha e examina meu rosto com uma expressão que eu só tinha visto quando ele pintava.
Intenso. Absorto. Como se considerasse a pintura de cada ângulo. Eu de cada ângulo.
Está tão perto que sinto o aroma de framboesa de seu hálito. Seu olhar se move para a covinha que
tenho no queixo e sinto minhas bochechas coradas.
Atrás da cabeça, aquela sensação sombria aumenta, nem tanto uma voz, mas uma presença, como
um bater de asas me estremecendo por dentro... Impelindo-me a tocar o piercing abaixo de seu lábio
inferior. Instintivamente, eu o toco. Ele nem se esquiva quando encosto no pino prateado.
O metal está morno e seu cavanhaque pinica a ponta do meu dedo. Quando me dou conta da
intimidade do ato, recuo.
Jeb pega minha mão e coloca meus dedos sobre seus lábios. Seus olhos se fecham devagar e seus
cílios se aproximam. — Al — ele sussurra.
— Borboletinha! — O chamado de meu pai entra pela janela entreaberta. Dou um pulo e Jeb se
lança rapidamente para seu banco. Meu pai caminha pela grama impecável na direção de Gizmo,
vestindo calça cáqui e camiseta polo azul-marinho onde se lê bordado em prata TOM ARTIGOS
ESPORTIVOS.

Inspiro profundamente algumas vezes para acalmar minha respiração.
Meu pai se inclina na minha janela. — Olá, Jebediah.
Jeb pigarreia. — Olá, Sr. Gardner.

— Hum. Acho que já pode começar a me chamar de Thomas. — Meu pai sorri, o braço apoiado na
borda da janela. — Afinal de contas, ontem você se formou.
Jeb sorri, orgulhoso e pueril. Ele fica assim quando está com meu pai. O Sr. Holt costumava dizer-
lhe que ele nunca daria para nada e o pressionava para largar os estudos e trabalhar na oficina
mecânica em período integral. Meu pai sempre encorajou Jeb a continuar estudando. Se eu não
estivesse ainda tão chateada com o complô dos dois para que eu não fosse para Londres, até curtiria
aquele momento de afetuosidade.
— Quer dizer que minha menina pegou você para motorista? — lança meu pai, me olhando com
jeito brincalhão.
— Pois é. Ela até torceu o tornozelo para me convencer. — Jeb brinca de volta.
Como é que ele consegue soar tão calmo enquanto sinto um furacão por dentro do peito? Será que
ele não está nem um pouquinho mexido pelo que acabou de acontecer conosco há dois segundos?
Ele se vira para o banco traseiro e pega as muletas de madeira que trouxe da enfermaria do
Submundo.
— O que você fez? — Meu pai abre a porta do meu lado com uma expressão preocupada.
Retiro as pernas devagar, cerrando os dentes ao ver o sangue escorrendo pelo meu tornozelo. — O
de sempre. Andar de skate é tentativa e erro, sabia? — Lanço um olhar para Jeb ao vê-lo vir para o
lado do passageiro, mentalmente pedindo que não mencione a joelheira rasgada.
Jeb balança a cabeça e, por um segundo, penso que ele vai ficar contra mim de novo. Em vez
disso, nossos olhares se encontram e estremeço por dentro. O que fez com que eu o tocasse momentos
antes? As coisas já são estranhas o suficiente entre nós do jeito que são.
Meu pai me ajuda a levantar e se agacha para ver meu tornozelo. — Engraçado. Sua mãe estava
convencida de que alguma coisa tinha acontecido. Ela disse que você se machucaria. — Ele fica de
pé, um centímetro mais baixo do que Jeb. — Acho que ela sempre pensa o pior quando você se
atrasa. Você devia ter telefonado. — Ele segura meu cotovelo enquanto ajeito as muletas por baixo
dos braços.
— Desculpe.
— Tudo bem. Vamos levar você para dentro antes que ela faça alguma coisa. — Meu pai se detém
ao ver meu olhar suplicante. — Humm, antes que nosso sorvete derreta e vire sopa de cheesecake.
Vamos em direção ao caminho ladeado por peônias. Insetos dançam por cima delas e o ruído
ambiente começa a ficar mais alto. Lamento por não estar com meus fones de ouvido e meu iPod.
Meu pai vira a cabeça e olha para Jeb quando estamos quase na porta. — Você poderia parar o
carro na garagem, para o caso de chover?
— Com certeza — a voz de Jeb responde logo atrás. — Ei, menina do skate...
Paro atrás de meu pai e giro sobre o pé que está bom, apertando com os dedos da mão a parte
almofadada da muleta. Analiso a expressão de Jeb a distância. Ele parece tão confuso quanto eu.

— A que horas você trabalha amanhã? — pergunta ele.
Fico parada, em pé, como um manequim. — Hum... eu e Jen estamos no turno do meio-dia.
— Está bem. Vá de carona com ela. Passo lá para olhar o motor do Gizmo.
Sinto o coração apertado. Acabou aquela história de ficarmos sempre juntos, como nos velhos
tempos. Parece que agora ele é que vai me evitar. — Tudo bem. Claro. — Contenho meu
desapontamento e me viro para prosseguir com meu pai.
Ele percebe meu olhar. — Tudo bem entre vocês dois? Vocês costumavam ficar consertando o
carro na garagem juntos.
Encolho os ombros e ele abre a porta de vidro. — Talvez a gente esteja se afastando. — É
doloroso falar isso, mais do que eu gostaria de admitir.
— Ele sempre foi um bom amigo — opina meu pai. — Você tem que resolver isso.
— Um amigo não tenta mandar na sua vida. É para isso que existem os pais. — Levantando as
sobrancelhas para dar mais ênfase, entro no prédio com ar-condicionado. Ele entra atrás de mim em
silêncio.
Estremeço. Os corredores me desestabilizam com suas macas longas e vazias e luzes amarelas
piscantes. Azulejos brancos ecoam os sons e enfermeiras em uniformes listrados verde-água e branco
borram minha visão periférica. Os uniformes fazem-nas parecer mais com mulheres fantasiadas de
enfermeiras do que com profissionais da saúde.
Fico contando os arames farpados estampados em minha camiseta enquanto espero meu pai falar
com a enfermeira detrás do balcão. Uma mosca pousa na minha mão e eu a espanto. Ela voa em volta
de minha cabeça fazendo um zunido alto que parece dizer “Ele está aqui” e em seguida dispara para
o corredor.
Meu pai para ao meu lado enquanto olho para a mosca. — Tem certeza de que está bem?
Balanço a cabeça, confirmando e dispersando a alucinação. — É que eu não sei o que esperar
hoje. — É só uma meia mentira. Alison se distrai demais com plantas e insetos e por isso não sai
com frequência, mas tem pedido muito para sair e tomar ar fresco e meu pai falou com o médico para
tentar convencê-lo. Quem sabe o que poderá acontecer?
— Sim. Espero que isso não a desestabilize muito... — A voz dele diminui e os ombros se curvam
como se a tristeza de onze anos subitamente se abatesse sobre ele. — Gostaria que você se lembrasse
dela como ela era antes. — E coloca a mão em minha nuca enquanto nos dirigimos ao pátio. — Ela
era tão equilibrada. Tão sensata. Tão parecida com você. — Ele sussurra essa última parte, talvez
para que eu não ouça.
Mas eu ouço, e o arame farpado aperta ainda mais, até meu coração ficar sufocado e partido.

3

A aranha
e a mosca

Com exceção de Alison, sua enfermeira e dois jardineiros, o pátio está deserto. Alison está sentada
em uma das mesas pretas de ferro fundido em um terraço de cimento cuja ornamentação do piso imita
seixos. Até a decoração tem que ser escolhida cuidadosamente em um lugar como este. Não há vidro
em lugar nenhum, somente um globo refletor prateado firmemente preso ao pedestal que lhe serve de
base.
Como alguns pacientes são conhecidos por pegar cadeiras ou mesas e atirá-las, as pernas da
mobília são aparafusadas ao cimento. Um guarda-sol preto com pintas vermelhas surge do centro da
mesa como um cogumelo gigante e deixa metade do rosto de Alison na penumbra. Xícaras e pires de
chá prateados brilham ao sol. Três jogos: um para mim, um para papai e um para ela.
Trouxemos o aparelho de chá de casa há anos, logo que ela foi internada. É uma indulgência
permitida pela clínica a fim de mantê-la viva. Alison não come nada — seja um filé à Salisbury ou
uma torta de frutas — a menos que esteja em uma xícara de chá.
Nosso sorvete de cheesecake e chocolate aguarda sobre um jogo americano, pronto para ser
servido. Gotas de condensação escorrem pela embalagem de papelão.
As tranças platinadas de Alison pendem sobre o encosto da cadeira, quase tocando o chão. A
franja está enfiada em uma faixa preta na cabeça. Vestida com uma espécie de camisola azul e
coberta pelo peitilho longo de um avental para manter suas roupas limpas, ela se parece mais com a
Alice no chá do Chapeleiro Maluco do que qualquer ilustração que eu já vi.
É o bastante para me deixar enjoada.
A princípio, penso que ela está falando com a enfermeira, até que a mulher se levanta para nos
saudar, alisando seu jaleco verde. Alison nem percebe, pois está muito atenta ao vaso de metal com
cravos diante dela.
Minha náusea aumenta quando ouço os cravos falando por sobre o zunido dos ruídos de fundo.

Eles estão dizendo como é doloroso ser podado nas hastes, reclamando sobre a qualidade da água na
qual estão nadando, pedindo para serem recolocados na terra para que possam morrer em paz.
Foi isso que ouvi. Tenho que imaginar o que Alison acha que eles estão dizendo em sua própria
mente distorcida. O médico não consegue dar detalhes, e eu nunca toquei no assunto porque isso
significaria admitir que herdei a doença dela.
Papai espera pela enfermeira, mas seu olhar, repleto de ansiedade e desapontamento, permanece
fixo em Alison.
Uma leve pressão no meu braço direito muda minha atenção para o rosto artificialmente bronzeado
da enfermeira Mary Jenkins. O aroma que ela exala é uma mistura de torrada queimada e talco em pó.
Seu cabelo castanho está preso em um coque, e um sorriso branco de alta voltagem quase me ofusca a
visão.
— Olazinho — cantarola ela. Como sempre, Alison está ululante como Mary Poppins. Ela analisa
minha bengala. — Puxa! Você se machucou, docinho?
Não. Nasceram algumas lascas de madeira em mim. — Foi no skate — respondi, determinada a
agir da melhor maneira possível por causa de papai, apesar de o lamento das flores sobre a mesa me
irritar.
— Ainda anda de skate? Que hobby interessante. — Seu olhar de piedade insinua um “para uma
moça” mais do que as palavras. Ela analisa meus dreads azuis e a pesada maquiagem dos meus olhos
com uma expressão sinistra no rosto. — Você precisa ter em mente que uma calamidade como esta
pode perturbar sua mãe.
Não estou certa se ela está falando do meu machucado ou do meu estilo de me vestir.
A enfermeira olha de soslaio para Alison, que ainda está sussurrando para as flores, alheia a nós.
— Ela está um pouco alterada hoje. É melhor eu aplicar alguma coisa. — A enfermeira das drogas
começa a tirar uma seringa do arsenal que contém em seu bolso. Uma das muitas coisas que eu
desprezo na mulher: ela parece gostar de aplicar injeções nos pacientes.
Ao longo dos anos, os médicos descobriram que os sedativos controlam melhor os ataques de
Alison. Mas eles acabam fazendo dela um zumbi, distante de tudo que se passa à sua volta. Eu
preferiria vê-la alerta e conversando com uma barata a ver isso.
Lanço um olhar carrancudo para meu pai, mas ele nem nota, porque está muito ocupado esboçando
sua própria carranca.
— Não — reage ele, e o tom profundo e disciplinador de sua voz faz as sobrancelhas da
enfermeira se arquearem. — Se tivermos problemas, mando a Alyssa chamá-la. E temos os
jardineiros ali, se precisarmos de força bruta. — Ele aponta os dois homens corpulentos que estão
ali perto podando arbustos. Eles poderiam ser gêmeos, com seus bigodes enormes e corpos que
lembram morsas, enfiados em aventais marrons.
— Tudo bem. Estarei na recepção se precisar de mim. — Com outro sorriso brilhante e falso, a
enfermeira entra saltitando no edifício, deixando nós três a sós. Ou nós oito, se contarmos os cravos.
Pelo menos eles tinham parado de falar.

No instante em que a sombra de papai atinge o vaso, Alison levanta a cabeça. Um olhar para
minhas muletas e ela dá um pulo do assento, fazendo tremer o jogo de chá. — Ele estava certo!
— Quem estava certo, meu bem? — pergunta meu pai, afastando os fios de cabelo que cobrem as
têmporas dela. Mesmo depois de anos de decepções, ele não consegue ficar sem tocá-la.
— O gafanhoto... — Os olhos azuis de Alison brilham com uma mistura de ansiedade e excitação
quando ela aponta para uma espessa teia de aranha nas varetas do guarda-sol. Uma aranha do
tamanho de uma moeda de 25 centavos desloca-se pela teia, envolvendo um casulo branco para
protegê-lo do vento cortante — na certa, o jantar. — Antes de a aranha protegê-lo, o gafanhoto gritou
alguma coisa. — As mãos de Alison se retesam na altura da cintura. — O gafanhoto disse que você
tinha se ferido, Allie. Ele te viu no lugar em que você anda de skate.
Olho para o caroço mumificado na teia da aranha. Lá estava aquele inseto que ficava subindo na
minha perna no Submundo. Será que ele pegou carona no carro?
Sinto um nó no estômago. Sem chance. Não é possível que seja o mesmo inseto. Alison deve ter
ouvido eu e papai conversando com a enfermeira sobre o meu tombo. Às vezes acho que ela finge
não se importar porque é mais fácil do que encarar o que lhe aconteceu ou o que ela causou à nossa
família.
Ela retesa as mãos com tanta força que as juntas se sobressaltam e ficam brancas. Desde o dia em
que me feriu, ela evita qualquer contato físico entre nós. Alison acha que eu vou quebrar. É por isso
que eu uso luvas, para evitar que ela veja as cicatrizes e que se lembre.
Papai separa suas mãos e entrelaça seus dedos nos dela. A atenção de Alison volta-se para ele, e
aquela tensão intensa se dissipa.
— Olá, tomatinho — diz ela, com a voz suave e firme.
— Olá, minha ursinha.
— Você trouxe sorvete. É alguma comemoração?
— É. — Ele beija sua mão, abrindo aquele sorriso afetuoso no estilo Elvis. — E a Alyssa está
aqui para nos ajudar a comemorar.
— Perfeito. — Ela retribui o sorriso, movimentando o olhar. Não me admira que o papai seja
irremediavelmente apaixonado por ela. Alison tem a beleza de uma fada.
Papai a ajuda a voltar para a cadeira. Ele estende um guardanapo de tecido no colo dela e lhe
serve um pouco de sorvete na xícara de chá. Colocando a xícara em um pires, ele a aproxima de
Alison junto com uma colher de plástico.
— Il tuo gelato, signora bella — dispara ele.
— Grazie, fofinho! — agradece ela de impulso, num raro momento de leveza.
Papai ri e ela dá uma gargalhada, um tilintar que me faz pensar nos sinos de prata que temos na
porta de casa. Pela primeira vez em tempos, ela se sente em casa. Começo a pensar que esta será
uma visita das boas. Com tudo que tem acontecido na minha vida ultimamente, seria muito bom
desfrutar de um momento de estabilidade.

Eu me sento, e papai pega minhas muletas, colocando-as no chão, e depois me ajuda a estender o
tornozelo sobre uma cadeira vazia entre Alison e eu. Ele dá um tapinha no meu ombro e vai sentar-se
do lado oposto.
Por alguns minutos, rimos e sorvemos sopa de cheesecake em nossas xícaras de chá. Conversamos
sobre coisas corriqueiras: o final do ano letivo, o baile de formatura que acontece esta noite, a
colação de grau da noite passada e a Loja de Artigos Esportivos do Tom. Parece que pertenço a uma
família normal.
Então, papai estraga tudo. Ele tira sua carteira para mostrar a Alison algumas fotos dos meus
mosaicos que foram condecorados na feira de artes. As três fotos estão enfiadas nas abas de plástico,
junto a uma variedade de cartões de crédito e recibos.
O primeiro é Lua assassina, todo em azul: borboletas azuis, flores azuis e pedacinhos de vidro
azul. Depois, O último suspiro de outono — um torvelinho de cores outonais feito de mariposas
marrons e pétalas de flores laranja, amarelas e vermelhas. Pulsação de inverno, meu orgulho, é um
emaranhado caótico de flores-mosquitinho e contas de vidro prateadas dispostas sobre a imagem de
uma árvore. Frutos silvestres desidratados pontilham o final de cada ramo, como se a árvore
estivesse sangrando. Grilos negros compõem o pano de fundo. Por mais mórbido que pareça, a
mistura do bizarro e do natural, de alguma maneira, cria beleza.
Alison remexe-se na cadeira, perturbada. — E música? Ela ainda estuda violoncelo?
Papai semicerra os olhos e olha para mim. Alison participou muito pouco da minha educação. Mas
uma coisa em que ela sempre insistiu é que eu fizesse parte de uma orquestra, talvez porque ela
mesma costumasse tocar violoncelo. Abandonei o curso este ano porque só tinha tempo para uma
matéria opcional. Nós não tínhamos mencionado isso porque parecia muito importante para ela que
eu continuasse.
— Podemos falar disso mais tarde — disse papai, apertando a mão dela. — Eu queria que você
visse como ela tem bom olho para os detalhes. Assim como você em suas fotografias.
— As fotografias contam histórias — Alison murmura. — Mas as pessoas esquecem de ler as
entrelinhas. — Libertando a mão da mão de papai, ela cai num silêncio mortal.
Com os olhos cheios de tristeza, papai está prestes a fechar a carteira quando Alison vê o
aromatizador com a foto da mariposa... que ele ainda não pendurou no caminhão.
Com as mãos trêmulas, ela agarra o aromatizador. — Por que você está levando isso?
— Mamãe... — Minha língua faz força para formar a palavra, artificial e dura, como tentar torcer a
haste de uma cereja e dar-lhe um nó. — Fui eu que fiz para ele. É um modo de manter uma parte de
você junto conosco.
Com a mandíbula cerrada, ela se volta para papai. — Eu disse para você manter esse álbum
escondido, não disse? Ela nunca deveria ter visto. Agora é só uma questão de tempo...
É só uma questão de tempo até o quê? Até eu acabar aqui onde ela está? Será que ela acha que as
fotografias a enlouqueceram?
Franzindo a cara, ela joga o aromatizador sobre a mesa. Sua língua estala num ritmo firme. O som

penetra em mim como se alguém estivesse revirando minhas entranhas com a palheta de um violão.
Suas explosões mais violentas sempre começam com um estalar de língua.
Papai tensiona os dedos em torno do aromatizador, cauteloso.
Uma mosca pousa em meu pescoço, fazendo cócegas. Quando eu a espanto, ela vai pousar ao lado
dos dedos de Alison. Ela esfrega as patinhas uma na outra. “Ele está aqui. Ele está aqui.”
Os sussurros do inseto ficam mais altos que o vento, e o resto dos ruídos ambientes, mais altos que
o estalar de língua de Alison e da respiração cautelosa de papai.
Alison inclina-se na direção do inseto. — Não, ele não pode estar aqui.
— Quem não pode estar aqui, ursinha? — indaga papai.
Fico olhando, duvidando que seja possível. Será que os loucos compartilham seus delírios?
Porque é a única explicação para que Alison e eu estejamos ouvindo exatamente a mesma coisa.
A menos que a mosca realmente falasse.
“Ele cavalga no vento”, ela sussurra mais uma vez, e depois sai rodopiando pelo pátio.
Alison me enquadra com o olhar desvairado.
Fico tensa, assombrada.
— Benzinho, o que foi? — Papai está parado ao lado dela, com a mão em seu ombro.
— O que isso quer dizer: “Ele cavalga no vento”? Quem? — Pergunto a Alison, sem me importar
mais em revelar meu segredo a ela.
Ela olha para mim, intensa e muda.
Papai fica olhando para nós duas, cada vez mais pálido.
— Papai? — Inclino-me sobre minha perna apoiada e puxo a meia. — Você poderia ir pegar um
pouco de gelo para o meu pé? Está latejando.
Ele franze o rosto. — Não pode esperar um pouquinho, Alyssa?
— Por favor. Está doendo.
— Sim, ela está com dor. — Alison estica o braço e toca meu tornozelo. O gesto é chocante — tão
normal e acolhedor que gela meu sangue e os meus ossos. Alison está me tocando pela primeira vez
em onze anos.
O acontecimento monumental deixa papai tão aturdido que ele sai sem dizer mais nada. Percebo,
pelo tremor em sua pálpebra direita, que ele trará a enfermeira de volta com ele.
Alison e eu não temos muito tempo.
No instante em que ele desaparece pela porta, eu recolho minha perna da cadeira, contraindo-a por
causa de um espasmo de dor no tornozelo. — A mosca. Nós duas ouvimos a mesma coisa, certo?
O rosto de Alison fica lívido. — Há quanto tempo você ouve as vozes?
— Que diferença isso faz?

— Toda a diferença. Eu poderia ter lhe dito coisas... coisas que evitariam que fizesse a escolha
errada.
— Diga-me agora.
Ela balança a cabeça.
Talvez ela não esteja convencida de que ouço o mesmo que ela. — Os cravos. Devemos honrar
seu último pedido. — Pego uma colher de plástico e, segurando os cravos, vou aos pulos com a
muleta até a beira do pátio de cimento, onde começa o jardim. A terra tem aroma úmido e fresco. Os
aspersores acabaram de regá-la. Alison me segue de perto.
Não vejo mais os jardineiros com cara de morsa. A distância, a porta da cabana está aberta. Os
homens devem estar lá dentro. Bom. Ninguém para nos interromper.
Alison pega as flores e a colher e ajoelha-se. Ela usa a colher para cavucar a terra macia. Quando
o plástico quebra, ela cava com os dedos até abrir uma cova rasa.
Ela coloca os botões dentro da cova e cobre-os com terra. A expressão em seu rosto é como um
céu repleto de nuvens que se revolvem, indecisas sobre dispersar-se ou provocar uma tempestade.
Minhas pernas vacilam. Por tantos anos, as mulheres de nossa família foram tachadas de loucas,
sem o serem. Podemos ouvir coisas que outras pessoas não podem. É a única explicação para nós
duas ouvirmos a mosca e os cravos dizerem a mesma coisa. O truque é não responder ao que dizem
os insetos e as flores diante de pessoas normais, porque aí pareceríamos loucas.
Não somos loucas. Eu devia estar aliviada.
Mas algo mais está acontecendo, algo inacreditável.
Se as vozes são reais, não faz sentido que Alison insista em se vestir como Alice. Por que ela
estala a língua? Por que ela tem ataques de fúria sem razão aparente? São essas coisas que a fazem
parecer mais louca que tudo. São tantas as perguntas que quero fazer. Eu as coloco de lado, porque
existe uma que é a mais premente de todas.
— Por que nossa família? — pergunto. — Por que isso acontece conosco?
A expressão de Alison torna-se amarga. — É uma maldição.
Uma maldição? Será possível? Lembro-me daquele site estranho que encontrei quando pesquisava
sobre a mariposa. Somos amaldiçoadas com poderes místicos, como aqueles intraterrenos que eu vi?
É por isso que minha avó Alícia tentou voar? Ela tentou testar a teoria?
— Tá bom — digo, fazendo um esforço para acreditar no impossível. Quem sou eu para retrucar?
Ando batendo papos com dentes-de-leão e besouros há seis anos. A verdadeira magia deve ser
melhor do que ser esquizofrênico. — Se é uma maldição, existe um modo de quebrá-la.
— Sim. — A resposta de Alison é um grunhido de pesar.
O vento fica mais forte, e suas tranças tremulam como um chicote.
— E qual é? — pergunto. — Por que ainda não fizemos isso?

Os olhos de Alison me fitam. Ela se retirou para algum lugar dentro de si mesma — um lugar em
que ela se esconde quando fica assustada.
— Alison! — Inclino-me para agarrar seus ombros.
Ela volta a se concentrar. — Porque temos que entrar na toca do coelho.
Nem pergunto se a toca do coelho é real. — Então nós vamos encontrá-lo. Quem sabe alguém em
sua família possa ajudar?
É um exagero. Nenhum dos Liddells britânicos sabe de nossa existência. Um dos filhos de Alice
teve um caso secreto com alguma mulher antes de partir para a Segunda Guerra Mundial e morreu no
campo de batalha. A mulher engravidou e veio para os Estados Unidos criar o fruto de seu amor. O
menino cresceu e teve uma filha, minha avó Alícia. Nunca tivemos contato com nenhum deles.
— Não — diz Alison, com a voz cortante. — Deixe-os fora disso, Allie. Eles não sabem mais do
que nós, ou não continuaríamos nessa situação.
A determinação por trás de sua expressão anula qualquer dúvida que sua afirmação críptica possa
levantar. — Está bem. Sabemos que a toca do coelho é na Inglaterra, certo? Existe um mapa? Algum
tipo de instrução por escrito? Onde devo procurar?
— Não deve.
Dou um pulo quando ela abaixa minha meia para expor a marca de nascença sobre meu tornozelo
esquerdo inchado. Ela tem uma marca idêntica no lado interno do pulso. A marca é como um
labirinto feito de linhas com ângulos retos, igual aos quebra-cabeças que se veem em revistas.
— Tem muito mais nessa história do que as pessoas sabem — acrescenta ela. — Os tesouros
mostrarão a você.
— Tesouros?
Ela pressiona sua marca contra a minha, e uma sensação de calor surge no ponto de contato. —
Leia nas entrelinhas — sussurra ela. O mesmo que dissera antes sobre a fotografia. — Você não pode
perder a cabeça, Allie. Prometa que vai se afastar disso.
Meus olhos queimam. — Mas eu quero que você volte para casa...
Ela se afasta do meu tornozelo. — Não! Não fiz tudo isso por nada. — Sua voz é contundente e ela
parece tão pequenina e frágil aos meus pés.
Me dói perguntar o que ela quer dizer, mas, acima de tudo, quero somente abraçá-la. Caio de
joelhos, ignorando a ferida por baixo da bandana de Jeb. Sentir os braços dela ao meu redor é como
estar no paraíso. Sentir o perfume de seu xampu ao enterrar o nariz em sua têmpora é igualmente
delicioso.
Não dura muito. Ela se retesa e me afasta. Um sentimento conhecido de rejeição me atinge o peito.
Depois, me lembro de que papai e a enfermeira devem voltar a qualquer instante.
— A mariposa — eu digo. — Ela tem um papel nisso tudo, não tem? Eu encontrei um site. A foto
da mariposa preta e azul me levou até ele.

Lá no céu, nuvens diminuem a luz do sol e a transformam numa névoa cinza, e a pele de Alison
reflete a mudança. O terror molda seu olhar. — Então você já começou. — Ela levanta as mãos
trêmulas. — Agora que começou a procurar por ele, ele não vai faltar com a palavra. Não
tecnicamente. Você é alvo fácil.
Entrelaço meus dedos nos dela, tentando trazê-la de volta à terra. — Você está me assustando. De
quem está falando?
— Ele virá buscá-la. Ele vai penetrar em seus sonhos. Ou no espelho... Fique longe dos espelhos,
Allie! Está entendendo?
— Espelhos? — pergunto, incrédula. — Você quer que eu me afaste dos espelhos?
Ela se coloca de pé com dificuldade, e eu procuro equilibrar-me na muleta. — Um espelho
quebrado corta mais do que a pele. Ele corta sua identidade.
Como se estivesse esperando essa deixa, a bandana de Joe escorrega do meu joelho, revelando a
atadura cheia de sangue. Um pequeno uivo escapa da boca de Alison. Nenhum estalar de língua me
avisa de que ela vai dar o bote. Minhas costas batem no chão. O ar é forçado para fora de meus
pulmões e uma dor explode entre meus ombros.
Alison me escarrancha no chão, tirando minhas luvas com as lágrimas lhe escorrendo pela face. —
Ele me fez machucar você! — Ela soluça. — Não deixe que aconteça novamente!
Eu já a ouvi dizer essas palavras antes e, em um instante, volto no tempo e no espaço. Uma criança
de cinco anos — inocente, distraída — observando uma tempestade de primavera se formar através
da porta de tela. Os aromas da chuva e da terra molhada me agitavam, me davam água na boca. Bem
diante do meu nariz, uma mariposa pousou na tela, do tamanho de um corvo e com um corpo luminoso
e asas negras semelhantes a cetim. Deixo escapar um som agudo e ela alça voo, flutuando no ar, me
provocando, me convidando para brincar.
O lampejo de um relâmpago, uma imensidão de luz. Mamãe sempre me disse que não era seguro ir
lá fora no meio de uma tempestade... Mas a mariposa pairava, linda, zombeteira, prometendo que não
haveria problema. Empilhei alguns livros para alcançar a tranca e fui correndo para fora dançar com
o inseto no canteiro de flores, com a lama escorrendo pelos dedos dos pés. O grito de mamãe me fez
olhar para cima. Ela vinha correndo na nossa direção com um par de tesouras de poda.
— Vou cortar sua cabeça! — gritava ela, podando todas as flores onde a mariposa pousava,
cortando as pétalas de seus talos.
Eu a segui, hipnotizada por sua energia, com a chuva caindo sobre nós e os relâmpagos
incendiando o céu. Achei que ela estava dançando e abri meus braços no ar atrás dela. Então,
tropecei. Pétalas brancas caíam ao chão, cheias de sangue. Papai chegou correndo. Eu lhe disse que
precisávamos de curativos para os narcisos. Ao me ver, ele soltou um gemido. Eu era jovem demais
para entender que flores não sangram.
De alguma maneira, eu havia me colocado na linha de fogo, e as tesouras de poda retalharam
minha pele — das palmas das mãos até os pulsos. O médico disse que eu não senti dor por causa do
choque. Aquele foi o última dia em que Alison morou em casa, e a última vez em que eu a chamei de

mamãe.
Um trovão me traz de volta ao presente. Meu coração martela contra meu esterno. Eu havia me
esquecido da mariposa. Aquele inseto foi meu animal de estimação secreto quando era criança, e o
catalisador de minhas cicatrizes. Não é de admirar que sua fotografia me parecesse tão familiar. Não
é de admirar que Alison ficasse tão louca ao vê-la novamente.
Ela chora compulsivamente, expondo minhas mãos nuas à luz tênue. — Eu sinto muito, muito! Ele
me usou, e eu falhei com você. Você merece muito, muito mais do que isso. Todos merecemos.
Ela sai de cima de mim e desenterra os cravos. A terra cai dos talos enquanto ela se levanta. —
Ele não pode levá-la! Digam a ele que... — Alison espreme as pétalas entre os pulsos, como se
tentasse estrangulá-las. Depois, atira os botões em frangalhos para o lado e vai aos tropeços até o
globo de luz, tentando tirá-lo da base. Como ele não se mexe, ela soca a bola com os punhos.
Seguro seus cotovelos, temendo que ela se fira. — Por favor, pare — imploro.
— Você me ouviu? — Ela grita para o globo prateado, libertando-se de mim. — Você não pode
levá-la! — Algo se move lá dentro, uma sombra embaçada. Mas, olhando melhor, é somente a
imagem de Alison refletida, gritando tanto que as veias de seu pescoço saltam.
O que acontece a seguir é quase um sonho. As nuvens formam um redemoinho. Começa a chover
com força. Fico olhando a chuva e de repente — como em câmera lenta — o vento enrola sua trança
no pescoço.
Uma tosse seca faz tremer sua garganta e ela se inclina para a frente, os dedos tentando soltar a
trança.
— Alison! — Dou um pulo na direção dela. Nem percebo que meu tornozelo não está mais
doendo.
Alison cai na terra que já virava lama, procurando respirar. A chuva desaba com mais força, como
se alguém estivesse atirando pedrinhas em nós. Suas unhas sujas de terra se cravam no cordão
platinado que a estrangula. Em seu desespero, ela arranca um pouco da pele do pescoço. O sangue
surge nos vergões da pele. Seus globos oculares saltam, vão de um lado para outro enquanto ela luta
para respirar. Seus sapatos batem contra o chão enlameado.
— Alysss — sibila ela, incapaz de falar.
Estou chorando tanto que não consigo ver meus dedos lutando contra a trança. Um relâmpago cai a
distância... Uma vez... Duas... E então o cordão trançado se aperta em volta dos meus dedos e os
enreda, uma pressão tão intensa que tenho a sensação que minhas juntas vão se separar. Meus dedos
voltam ao lugar contra minha vontade e apertam o pescoço dela.
Alguma coisa está me forçando a matar minha mãe!
Náusea, quente e cruel, me rasga as entranhas.
— Não... — Quanto mais eu luto para libertar a nós duas, mais juntas ficamos. Meus dreadlocks
grudam em meu pescoço como um pano molhado. Chuva e lágrimas brotam de minha sombra nos
olhos, e gotículas negras mancham o avental já sujo de Alison. — Solte! — grito para o cabelo dela.

— Pare... Allie — Seu apelo soa oco e sibilante, como o ar escapando de um pneu.
A trança volta a apertar meus dedos.
— Me desculpe — sussurro, soluçando. — Não estou tentando machucá-la...
O trovão me penetra os ossos, o riso debochado de algum demônio maligno. Por mais forte que eu
puxe, as tranças me envolvem com mais força ainda e apertam o pescoço dela. Suas mãos ficam
frouxas. Ela fica roxa, os olhos virados para cima até as íris desaparecerem.
— Alguém me ajude! — O grito força meus pulmões.
Os jardineiros vêm correndo. Dois pares de mãos carnudas me pegam por trás e, sem mais nem
menos, a trança se solta.
Alison suga o ar com força, enchendo os pulmões e tossindo. Eu volto a mancar, e um dos
jardineiros me segura.
A enfermeira Jenkins chega apressada com a seringa nas mãos. Papai está bem atrás dela e eu me
jogo em seus braços.
— Eu n-n-não — digo, gaguejando. — Eu nunca, nunca...
— Eu sei. — Papai me abraça. — Você estava tentando impedir que ela se ferisse. — O abraço
dele faz minhas roupas ensopadas grudarem no corpo.
— Mas não foi a Alison — murmuro.
— É claro que não — sussurra papai no meu ouvido. — Não foi ela. Sua mãe não é ela mesma há
anos.
Consigo controlar a vontade de vomitar. Ele não entende. Ela não estava tentando estrangular a si
mesma; o vento controlava sua trança. Mas quem, em sã consciência, acreditaria nisso?
Pouco antes de Alison fechar os olhos, ela murmura alguma coisa, num gaguejo de bêbado: — As
margaridas... escondem o tesouro. O tesouro enterrado.
E então, ela fica inconsciente — um zumbi.
E eu fico sozinha para encarar a tempestade.

4

Fios de
borboleta

Demorou tanto para acomodar Alison na clínica que papai teve de me levar direto para o trabalho.
Encostamos na guia diante da única loja de roupas vintage em Pleasance. Ela fica localizada em um
pequeno centro de compras no lado comercial do centro da cidade, com um bistrô de um lado e uma
joalheria do outro. A Loja de Roupas Esportivas do Tom fica do outro lado da rua.
— Lembre-se. Estou no trabalho. É só dar uma ligadinha que eu venho pegar você. — A careta de
papai forma rugas nos cantos de sua boca.
Sinto-me entorpecida, ainda me pergunto se imaginei tudo aquilo. Olho para além da fachada de
tijolos cor-de-rosa da loja e da cerca preta de ferro. Meu olhar foca e desfoca as letras pretas
arredondadas sobre a porta: FIOS DE BORBOLETA.
Seguro o aromatizador diante de meu nariz. O cheiro me lembra a primavera, caminhadas ao ar
livre e famílias felizes. Mas só o que eu sinto aqui dentro é o inverno, e a minha família está mais
bagunçada do que nunca. Quero dizer ao papai que os delírios de Alison são reais, mas sem nenhuma
prova ele vai pensar que minha sanidade também está se estilhaçando.
— Você não precisa fazer isso — afirma ele, pegando minha outra mão. Mesmo através das
minhas luvas, seu toque parece gelo.
— São só duas horas — respondo, rouca de tanto gritar no pátio. — Jen não conseguiu ninguém
para cobrir o turno dela na última hora e Perséfone — minha chefe — está fora da cidade.
Sexta-feira é dia de prospecção para Perséfone, quando ela vai a cidades vizinhas para visitar
feirinhas e brechós à procura de mercadorias. Ao contrário do que papai pensa, não estou bancando a
mártir. O horário entre três e cinco horas é completamente morto; praticamente não entra nenhum
cliente, só depois da hora do rush. Pretendo usar esse tempo para pesquisar o site da mariposa no
computador da loja.
— Tenho que ir. — Aperto a mão de papai.

Ele aquiesce.
Abro o porta-luvas para colocar o aromatizador lá dentro, e uma avalanche de papéis cai sobre
meus pés. Um panfleto que está por cima da pilha me chama a atenção. A cor de fundo é um rosa bem
claro, com uma letra genérica branca impressa na frente: ECT — Porque a Terapia Eletroconvulsiva
é Adequada para o Seu Ente Querido.
Eu o recolho. — O que é isso?
Papai se inclina sobre o banco para guardar os outros papéis. — Falamos nisso mais tarde.
— Pai, por favor.
Ele se retesa e olha pela janela. — Eles tiveram que dar a ela outra dose de sedativos enquanto
você estava no saguão.
Aquelas palavras são um golpe para mim. Fui fraca demais para continuar quando eles levaram
Alison na cadeira de rodas para a cela com paredes acolchoadas. Covarde, fiquei deitada no sofá do
saguão puxando meus arruinados dreadlocks feito um robô enquanto assistia a algum reality show
idiota na TV.
Realidade... Eu nem sei mais o que é isso.
— Você me ouviu, Allie? Duas doses em menos de uma hora. Todos esses anos eles a têm
drogado para que ela esqueça. — Ele aperta o volante. — Mas ela está ficando pior. Ela ficou
gritando sobre tocas de coelho e mariposas... E pessoas que perdem as cabeças. As drogas não estão
funcionando. Então os médicos me ofereceram essa opção.
Minha língua absorve a saliva como uma esponja.
— Se você olhar o primeiro parágrafo — começou a explicar, apontando para alguns números no
panfleto —, essa prática voltou a ser usada desde...
— Sabe, eles usavam enguias — interrompo em voz alta demais — antigamente. Eles as
envolviam na cabeça do paciente. Um turbante elétrico.
As palavras não têm sentido — espelham como me sinto por dentro. Eu só consigo pensar nos
meus animais de estimação em casa. Aprendi bem cedo que não poderia ter o costumeiro cão ou gato.
Não que os animais falem comigo; só insetos e plantas estão na minha frequência. Mas, toda vez que
o gato tigrado de Jenara pega uma barata e a rasga em pedaços, tenho náuseas só de ouvir os gritos
do inseto. Então, decidi criar enguias. Elas são elegantes e místicas e usam um órgão de choque para
atordoar sua presa. É uma morte silenciosa e digna, parecida com a dos insetos que morrem por
asfixia em minhas armadilhas. Mesmo assim, não toco a água delas sem usar luvas de borracha. Nem
posso imaginar o que elas fariam com a mente de alguém.
— Allie, não é a mesma coisa que faziam setenta anos atrás. É feito com eletrodos enquanto o
paciente está anestesiado. Os relaxantes musculares mantêm o paciente alheio a qualquer dor.
— Mas ainda podem causar danos cerebrais.
— Não. — Ele lê o texto de cabeça para baixo em voz alta. — Quase todos os pacientes da ECT
apresentam alguma incomodidade como confusão, incapacidade de concentrar-se e perda de memória

recente, mas os benefícios superam os desconfortos temporários. — Ele procura meu olhar, com o
olho esquerdo trêmulo. — Perda de memória recente é um desconforto. Não é dano cerebral.
— É uma forma de dano cerebral. — Sou filha de uma doente mental há onze anos. Sei todas as
definições e níveis de anomalias psicológicas.
— Bom, isso pode ser uma bênção, levando em consideração que as lembranças mais recentes de
sua mãe consistem em nada além da clínica e de uma infinita sucessão de drogas e avaliações
psicológicas. — Os sulcos profundos em volta da boca dele parecem se estender até o crânio. O que
eu não daria para ver seu riso de Elvis naquele momento.
Minha garganta se contrai. — Quem é você para decidir isso por ela?
Os lábios dele se reprimem e formam aquela expressão sisuda que ele esboça sempre que
ultrapasso os limites. — Sou um marido que ama sua esposa e sua filha. Um homem que está exausto
além de suas forças. — A mistura de defesa e resignação em seu rosto me fazem ter vontade de me
encolher e chorar. — Ela tentou se matar bem na sua frente. Mesmo que seja uma impossibilidade
física para ela sufocar a si mesma, isso não importa. Os remédios não estão funcionando. Temos que
dar outro passo.
— E se isso não funcionar... O que vai ser? Uma lobotomia com um abridor de lata? — Jogo o
panfleto sobre o banco dele. O papel vai parar em sua coxa.
— Allie! — A voz dele fica mais cortante.
Consigo enxergar o que ele quer. Ele está desesperado para ter Alison de volta, mas não para mim.
Todos esses anos ele vem ansiando por ela, a mulher que ele costumava levar para o drive-in... Que
andava de mãos dadas com ele pulando sobre poças e sarjetas depois da chuva... Que bebia
limonada na varanda e compartilhava os sonhos de um futuro feliz.
Se ele fizer isso, ela pode nunca mais voltar a ser essa mulher.
Abro a porta e piso na calçada. Embora o sol do fim de tarde tenha despontado por entre as
nuvens, um arrepio me percorre o corpo todo.
— Pelo menos deixe-me ajudar com as muletas. — Papai se prepara para desenterrá-las de
debaixo do banco do passageiro.
— Não preciso mais delas.
— Mas Jeb disse que você torceu...
— Novidade, papai... O Jeb nem sempre está certo. — Aperto a bandana que cobre minha atadura.
Meu tornozelo não dói desde que Alison apertou sua marca de nascença contra a minha. Na verdade,
meu joelho arranhado também parece melhor. Acrescente isso à lista de esquisitices inexplicáveis.
Não tenho tempo para ficar pensando nisso. Tenho problemas maiores.
Papai olha ao longe, cerrando a mandíbula. — Borboletinha...
— Não me chame assim — retruco.
Ele abaixa o rosto ao passarem duas clientes tagarelando. A última coisa que quero fazer é magoá-

lo; ele ficou ao lado de Alison durante anos, sem falar que me criou sozinho.
— Me desculpe. — Eu me abaixo para vê-lo melhor. — Mas vamos pesquisar um pouco mais, tá
bom?
Ele solta um suspiro. — Assinei os papéis antes de sairmos.
Minha máscara de compreensão se esvai e dá lugar à raiva. — Por que você fez isso?
— O médico ofereceu essa opção há meses. Eu já venho pesquisando há algum tempo. A
princípio, não conseguia nem pensar na ideia. Mas... Eles vão começar na segunda-feira. Você pode
ir comigo visitá-la depois.
Um calor desconfortável me sobe pelo pescoço. A umidade da tempestade e o ruído dos insetos
que estão por perto tornam tudo ainda pior.
— Por favor, tente compreender — explica papai — o quanto eu preciso que ela volte para casa.
— Eu também preciso dela.
— Então não faria tudo para que isso acontecesse?
Dentro de mim, um lado escuro se agita e ganha vida. Ele me provoca para dizer exatamente o que
estou pensando. — Sim. Eu até entraria numa toca de coelho. — E bato a porta.
Papai buzina, certamente querendo uma explicação para o meu comentário. Entro depressa na loja,
sem olhar para trás.
A campainha automática produz um trinado e uma lufada de ar balança o candelabro de contas de
cristal pendurado no centro do teto. Fico ali, atordoada, enquanto o ar-condicionado gela minhas
roupas úmidas. O forte aroma de coco que as velas dos candelabros exalam ao longo das paredes
revira meu estômago.
— É você, Al? — A voz abafada de Jenara soa por meio da porta aberta do depósito.
Limpo a garganta e aperto o aromatizador. Na pressa de escapar, me esqueci de deixá-lo no
caminhão. — Oh-oh.
— Viu meu vestido para o baile de formatura? Está na arara de mercadorias novas.
Pego o único cabide da arara. A capa de plástico faz barulho. Jen comprou dois vestidos na Fios
de Borboleta há meses. Ela os cortou e remontou a fim de criar um top verde-limão bem justo que se
abre em uma renda cor-de-rosa com estampa de zebras minúsculas. Lantejoulas furta-cor presas a
mão refletem a luz quando eu penduro o cabide de volta na arara.
— Legal — digo. É incrível mesmo, e, sob circunstâncias normais, eu ficaria muito mais
entusiasmada com sua criação. Mas hoje não consigo encontrar forças.
Jogo o aromatizador de mariposa por baixo do balcão do caixa, ao lado da bolsa de maquiagem de
Jenara. Ele vai parar em cima dos volumes de mitologia de Perséfone.
Uma sensação de que alguém está nos observando me gela os ossos e eu viro a cabeça para olhar o
pôster na parede. É de um filme chamado O Corvo. Perséfone é apaixonada pelo herói: couro preto,
rosto branco, maquiagem preta nos olhos e uma expressão de perpétua inquietação. Criou-se um

pouco de mistério em torno daquele ator. Ele morreu no set de filmagem.
Sempre me senti atraída por aquele pôster. Mesmo em um pedaço de papel, o sujeito consegue ter
olhos muito expressivos — olhos que parecem me conhecer, assim como eu os conheço. Embora eu
nunca tenha visto o filme, o ator me parece familiar, a ponto de eu conseguir sentir o cheiro do couro
que envolve o seu corpo... De sentir sua maciez em meu rosto.
— Ele está aqui... — Dou um pulo quando essas palavras invadem meus ouvidos — as mesmas
que a mosca disse antes. Só que desta vez não é um sussurro, não é um dos ruídos aos quais estou
acostumada. É um homem com forte sotaque britânico.
Espelhos cobrem as paredes da loja, e um borrão se movimenta entre eles. Quando olho mais de
perto, os reflexos nada mostram além da minha própria imagem.
— Ele cavalga no vento. — A voz penetra no meu sangue. Uma rajada de ar frio surge de repente
e apaga as velas, deixando somente a luz da tarde e o candelabro do teto.
Vou recuando aos poucos até bater no balcão. Os olhos insondáveis do pôster seguem cada
movimento meu, como se fosse ele que estivesse falando com a minha cabeça e agitando o vento.
Arrepios gélidos me percorrem a espinha.
— Al! — O grito de Jen quebra a magia. — Pode me ajudar a carregar umas coisas? Precisamos
montar a vitrine do Anjo Negro antes de eu sair.
Esforço-me para fugir do olhar hipnótico do pôster e ir para o depósito. O ar-condicionado
desliga. A rajada de vento deve ter vindo de lá.
Rio de nervoso. Estou cansada, com fome e em choque. Meus delírios são reais e minha família
está amaldiçoada. Só isso. Devia ser fácil de aceitar, certo?
Errado.
Meus sapatos ensopados fazem barulho a cada passo quando eu atravesso o piso ladrilhado nas
cores branco e preto. Jenara me encontra na porta, com uma pilha tão alta de roupas e acessórios nos
braços que mal consegue me ver.
— Então, meu vestido é legal? — A pergunta chega por detrás da pilha. — É assim que você
alimenta o ego da sua melhor amiga?
— É maravilhoso! O Bret vai amar. — Ainda sentindo os olhos do pôster, fico na ponta dos pés e
pego a peruca azul e a pequenina máquina de gelo seco do alto da pilha em seus braços.
— Como se isso importasse — ela diz por detrás do amontoado de coisas. — Eu te disse que o
Jeb ameaçou transformar o Bret em uma abóbora amassada se ele não me trouxer para casa antes da
meia-noite? Ele pegou um lindo conto de fadas como “Cinderela” e transformou em uma ameaça de
morte. É perversão pura.
— É, ele vem encarnando algum personagem ultimamente.
Tudo começa a deslizar de cima daquela torre. Retiro vários acessórios do alto da pilha e o rosto
dela finalmente aparece.

Seus olhos verdes delineados com muito lápis preto se arregalam quando ela me vê: — Caraca!
Parece que você brigou com o Pé-Grande! Você e o Jeb acertaram os ponteiros em uma poça de
lama?
— Rá-rá. — Indo na direção da vitrine, largo as coisas ao lado da Moça na Janela, o manequim de
Perséfone.
Jenara acomoda algumas asas com plumas escuras no alto da pilha de acessórios. Elas cintilam
com lantejoulas pretas.
— Não, sério. O que aconteceu? Eu achei que vocês iam visitar sua mãe. Espera aí. — Jen toca
meu braço. — Alguma coisa deu errado?
Vários cachos rosa escuro despencaram de seu cabelo preso no alto da cabeça. Os cachos formam
espirais parecidas com chamas cor-de-rosa sobre seu tubinho preto, lembrando-me do que fizeram
com o cabelo de Alison na clínica.
— Ela surtou — deixo escapar. — E me atacou.
Todos os outros detalhes ficam parados na minha garganta: como eles rasparam seu cabelo para
que ela não tentasse se sufocar novamente — embora agora eu desconfie que já era uma preparação
para a terapia com choques. Como eles ficaram limpando a baba dos cantos de sua boca e colocaram
fraldas de adulto, porque, quando alguém está muito sedado, não tem controle das faculdades. E, o
pior de tudo, como eles a levaram para a cela acolchoada em uma cadeira de rodas, curvada e
tolhida por uma camisa de força, como uma velhinha sem vida. Por isso não pude segui-los e dizer
adeus. Já tinha visto o bastante.
— Poxa, Al. — A voz de Jen é suave e carinhosa. Ela me puxa para dar um abraço. O perfume
cítrico de chiclete de seu xampu me acalma. — Pode deixar que eu faço a minha própria maquiagem
e o resto. Vá para casa.
— Não posso. — Eu a puxo para mais perto. — Não quero ficar perto das coisas que me lembram
dela. Ainda não.
— Mas você não deve ficar sozinha.
A campainha soa e três senhoras adentram a loja. Jen e eu nos afastamos uma da outra.
— Eu não vou ficar sozinha — respondo. — Não durante o horário comercial.
Jen inclina a cabeça, me analisando. — Olha, eu posso ficar mais meia hora. Vá se recompor. Eu
cuido dos clientes.
— Tem certeza?
Ela sacode de leve uma de minhas tranças. — Certeza absoluta. Não posso deixar você tomando
conta da loja com cara de palhaço que foi recusado no circo. E se entra algum gato?
Forço um sorriso.
— Leve minha bolsa de maquiagem — oferece ela. — Tenho uns apliques que você pode
experimentar.

Vasculho minhas coisas que se encontram no depósito e pego um par de botas de plataforma e
algumas roupas, e depois me agacho para entrar no pequenino banheiro. O tubo de ventilação acima
da pia joga ar gelado sobre a minha pele. Um brilho fluorescente vindo da pequena luminária
distorce meu reflexo. Eu escovo o cabelo, desfazendo os nós, e prendo um dos dreads roxos de
Jenara.
Minha maquiagem já foi lavada por lágrimas e pela chuva, deixando manchas pelo rosto. Agora só
consigo me lembrar de Alison. Mas, se eu olhar com mais profundidade, sou eu usando uma camisa
de força e um turbante de enguia, fazendo caretas que nem o Gato de Cheshire ao sorver carne assada
de uma xícara de chá.
Quanto tempo ainda tenho antes de a maldição me pegar de vez?
Apoio-me na pia, desamarro a bandana de Jeb e absorvo o aroma dele. Antes desta tarde, tudo o
que eu queria era ir para Londres ficar com ele e ganhar créditos para a faculdade. É incrível a
diferença que algumas horas podem fazer.
Se eu não encontrar uma maneira de ir para a Inglaterra procurar a toca do coelho, o cérebro de
Alison será frito e eu vou terminar onde ela está dentro de alguns anos. Não tenho como conseguir
dinheiro suficiente para a passagem de avião antes de segunda-feira. Sem contar o passaporte.
Rangendo os dentes, começo a tirar meu legging rasgado e a atadura. O corte no meu joelho está
quase bom, e quase sem casca. Estou esgotada demais para ficar imaginando a razão. Abro a torneira
de água fria e esfrego as lembranças físicas do que aconteceu, secando minha pele e lingerie com o
secador de cabelo.
Depois de riscar meus olhos com pinceladas verde-escuras e me contorcer para entrar em uma
meia-calça xadrez roxa, verde e vermelha, jogo por cima uma minissaia com combinação bufante.
Uma camiseta de manga cavada verde por baixo de um bustiê vermelho — junto com meias-luvas
roxas — e estou pronta para encarar os clientes.
Dou uma última olhada no espelho. Alguma coisa se move por trás de minha imagem, tremeluzente
e negra, como as asas emplumadas da pilha de acessórios. O aviso figurado de Alison me toma de
assalto. “Ele virá buscá-la. Ele vai penetrar em seus sonhos. Ou no espelho...fique longe do
espelho.” Solto um grito agudo e me viro depressa.
Não há nada ao redor a não ser minha sombra. O cômodo parece encolher e me desequilibrar,
como se eu estivesse dentro de uma caixa rolando ladeira abaixo. Meu estômago fica embrulhado.
Saio correndo para o depósito mal-iluminado e quase tropeço nos cadarços de minha bota alta,
numa corrida desesperada para voltar para perto de Jen.
Ela corre para me encontrar. — Nossa. — Ela me conduz para o banquinho que fica atrás do
balcão do caixa. — Você está com uma cara como se a sua cabeça fosse explodir. Comeu alguma
coisa?
— Sopa de sorvete — murmuro, aliviada por as clientes já terem saído e não terem me visto.
Estou tremendo toda.
Jen sente a temperatura da minha testa. — Você não parece ter febre. Talvez seja algum problema

com o nível de açúcar no sangue. Vou pegar algo para você no bistrô.
— Não me deixe. — Agarro o braço dela.
— Por que não? Eu já volto.
Percebendo o quanto eu pareço maluca, mudo de tática. — A vitrine. Nos temos que... — A
explicação se detém na minha língua quando percebo que ela já terminou de montá-la. — Ah...
— É, ah. — Jen solta meus dedos de sua manga. — Vou acender as velas também. Por que você as
apagou? Você precisa de todas as vibrações relaxantes possíveis. Vou trazer um croissant e algo
para beber; algo sem cafeína. Nunca vi você tão pilhada. — Antes que eu possa responder, ela já
atravessou a sala.
A porta se fecha atrás dela, deixando-me só com a decoração da vitrine. Uma peruca azul e uma
fantasia aderente de anjo negro abraçam a silhueta da Moça na Janela. As asas gigantes estão
amarradas em volta dos ombros do manequim com uma tira de couro da mesma cor. Lantejoulas
pretas cintilam sobre as plumas, e há fumaça saindo da máquina de gelo seco, serpenteando a cena
macabra.
De alguma maneira, aquelas asas e a fumaça são uma coisa só.
Penso na minha amiga mariposa. Por que Alison a atacou com a tesoura de poda? Só porque ela
me atraiu para uma tempestade? Tem que haver algo mais sério, algum tipo de animosidade já
existente, mas não consigo compreender qual.
Relutante, viro o rosto para o pôster. Seus olhos escuros olham direto para mim, penetrantes. —
Você sabe, não é? — sussurro. — Você tem as respostas.
Silêncio...
Rio com desdém — um som vazio e solitário. Estou oficialmente perdendo a razão. Insetos e
flores que sussurram já não são mais do que o suficiente? Esperar que um pôster responda? Isso me
torna uma candidata ao sanatório.
Tremendo, vou até o computador do outro lado e encontro o site que pesquisei antes. Passo direto
por tudo que já vi, tentando encontrar uma conexão com os desvarios de Alison.
Há outra série de fotos: um coelho branco tão magro que parece um esqueleto; flores ostentando
braços, pernas e bocas de onde pinga sangue; uma morsa com algo que se projeta de sua metade
inferior, como raízes de árvores. É a turma do País das Maravilhas depois de uma boa dose de
radiação venenosa. É também uma conexão: de alguma forma, a mariposa e esses seres do reino
subterrâneo estão ligados à história de Lewis Carroll. Não é de admirar que vovó Alícia tenha
continuado a pintar os personagens da história nas paredes.
Desde Alice, minha família é maluca. Será que ela realmente entrou na toca de um coelho e voltou
para contar a história, mas nunca mais foi a mesma depois dessa experiência? Aliás, quem seria?
Todos os meus pelos se eriçam como se uma corrente elétrica percorresse meu corpo.
Depois da última imagem, há uma moldura antiga de hera e flores nos dois lados do fundo preto, e
um poema centralizado em letras brancas adornadas.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e reviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,

E os momirratos davam grilvos.
[1]

Eu já vi esse poema no livro original. Com o bloco de anotações em mãos, rabisco País das
Maravilhas no alto e copio o poema, palavra por palavra.
Abro uma nova janela de pesquisa para buscar interpretações. Um mesmo site apresenta quatro
possibilidades diferentes. E se todas elas estiverem erradas? Leio superficialmente dois outros sites
até que o terceiro me chama a atenção.
Ele mostra ilustrações junto com as palavras — criaturas com narizes longos e envergados cavam
buracos debaixo de relógios de sol. Uma sensação de que conheço aquilo toma conta de mim, e eu
fecho os olhos. Crianças brincam na tela das minhas pálpebras. Um menino alado e uma menina loira
mergulham em um buraco debaixo da estátua de uma criança que equilibra um relógio de sol na
cabeça.
Não sei de onde vêm essas imagens. Devo tê-las visto em algum filme — mas não consigo lembrar
qual. Elas parecem tão reais — e tão familiares.
Anoto rapidamente as definições daquela interpretação do poema. De acordo com quem escreveu,
briluz significa quatro horas da tarde; a touva é uma criatura mítica — uma mistura de texugo e
lagarto com focinho de saca-rolhas. Elas são conhecidas por fazerem seus ninhos debaixo de relógios
de sol. Roldar e reviar são verbos que significam cavar na terra como uma hélice gigante, revirando
o solo até que um túnel profundo seja formado. No contexto do poema, o buraco está sendo cavado
em um local específico, considerando que gramilvo é a grama debaixo de um relógio de sol.
As outras palavras não estão definidas, mas já é um começo.
Segundo o poema e as imagens na minha cabeça, parece que a toca do coelho pode estar
localizada debaixo daquela estátua do menino com o relógio de sol.
Eu só preciso encontrá-la.
Volto para o site dos intraterrenos e vou descendo para ver se há mais algum detalhe que tenha me
escapado. No final, um enorme espaço preto que vai até o fim da página. Nenhum outro texto,
nenhuma foto, mesmo com muito espaço para colocar algo. Será que o webdesigner quis deixar
espaço para mais tarde?
Estou quase saindo do site para pesquisar relógios de sol na Inglaterra, na esperança de encontrar
uma cidade e um endereço, quando um movimento no fundo escuro do site me chama a atenção. É
como assistir a um grilo nadando em meio à tinta. Mas, em vez de um grilo, a simulação de uma
mariposa negra flutua pela tela, como a mariposa do meu passado.
Estou começando a achar que a mariposa está ligada a tudo: ao menino e à menina que vi ao lado
do relógio de sol, à verdadeira maldição de minha família. Se pelo menos eu conseguisse lembrar
mais sobre o inseto. Mas minhas lembranças estão borradas e obscurecidas, como olhar para baixo

de uma altura estonteante através de nuvens espessas.
A animação volta a deter minha atenção. Ela começa no alto de um espaço vazio. Quando chega a
um quarto da descida, um texto em azul brilhante aparece por baixo do rastro das asas da mariposa.
Encontre o tesouro.
Leio e torno a ler até que meus olhos queimam, chocados pela semelhança com o que Alison disse.
“As margaridas escondem o tesouro. O tesouro enterrado.”
Papai cavou todo o jardim quando ela foi internada pela primeira vez, anos atrás — e o deixou
destruído. Não havia nada enterrado lá. Então o que será que ela queria dizer?
Outra linha de texto aparece na tela. Se deseja salvar sua mãe, use a chave.
Dou um pulo para trás, me afastando do computador, com o coração acelerado e as mãos suando
dentro das luvas. Não percebi. As palavras estão olhando para mim, piscando.
Como alguém pode estar falando comigo?
Como alguém saberia sobre Alison e como me encontrou?
Olho para todos os cantos da loja vazia.
Tenho que contar para alguém. Papai está fora de cogitação; ele me mandaria para a terapia de
eletrochoque. Jenara vai pensar que é só mais um dos meus atormentadores da escola me pregando
mais uma peça.
O Jeb. Apesar da estranheza entre nós, sei que ele sempre irá me apoiar. Vou mostrar o site para
ele. Só o fato de pensar no seu sorriso confortador — que diz que ninguém me compreende como ele
— já me resgata do limite do terror.
Ao som da campainha, olho para cima. O rosto de Taelor retribui o olhar e eu quase solto um
gemido bem alto. Seu cabelo na altura dos ombros reflete o brilho dourado do sol. As palavras
Brilho, Glamour e Muita Petulância estão escritas em letras reluzentes na sacola que ela carrega.
Volto ao computador. A tela fica branca e mostra uma mensagem de erro.
— Oi, Alyssa. — Taelor examina atentamente a prateleira de joias a caminho do balcão. —
Alguma promoção hoje? — Ela ergue um broche de strass em forma de caveira com penduricalhos
de ossos cruzados. — De preferência algo que não cheire a casa funerária.
Ignorando-a, digito mais uma vez o endereço do site. A mensagem de erro volta a aparecer.
Chacoalho o mouse. Se eu não conseguir encontrar o site novamente, nunca poderei convencer Jeb de
que o que vi era real.
Taelor chega mais perto. Uma das alças de sua bolsa de grife escorrega de seu ombro bronzeado.
— Acho que não importa. Gente como você não se importa com quem usou essas coisas e nem se
estão mortos ou não.
Depois de fazer uma pausa para torcer o nariz para uma camiseta, ela joga a sacola de compras e a
bolsa do outro lado do balcão e rapidamente apoia os braços na beirada dele. Ela era uma ótima
tenista, mas, quando viu que seu pai nunca ia aos torneios, desistiu. Uma pena.

Os dez centímetros extras das minhas botas me elevam quase à estatura dela. — Você não precisa
se aprontar para um baile? — pergunto, esperando que ela vá embora.
O olhar dela se enche de delicadeza e inocência. — É por isso que estou aqui. Vim na loja ao lado
pegar o presente de formatura do Jeb. Pensei em deixá-lo na casa dele de tarde para ele poder usar
hoje à noite.
Nem pergunto o que ela poderia ter comprado para Jeb em uma joalheria.
— O que é isso? — Ela estica a mão por cima do balcão e puxa minhas anotações para si. Tento
pegá-las, mas ela é rápida. — País das Maravilhas, é? Então está pesquisando sobre os coelhos da
família.
— Tchau, Taelor. — Recupero minhas anotações à força, e acidentalmente derrubo sua bolsa no
chão diante do balcão.
Ela nem se incomoda em pegá-la. Sua expressão endurece. — Nada de tchau. Primeiro vamos
conversar.
Aquela presença inquieta em minha mente me provoca para revidar. Uma explosão de adrenalina
faz minha língua disparar. — Obrigada, mas prefiro falar com um besouro.
Os olhos de Taelor se arregalam, como se ela tivesse se surpreendido com o insulto. Sorrio. É
bom a gente se sentir por cima de vez em quando.
Ela demora alguns segundos para pensar em uma resposta. — Você fala com besouros, é? É bom
saber que vai poder brincar com alguém quando Jeb for embora. E não fique pensando que pode usar
essa bobagem de amiga magoada para impedir que ele se mude para Londres comigo no mês que
vem.
— Com você? — Acabo de despencar de onde estava. Sinto-me como quando estava andando de
skate e caí — como se um holofote de mineiro estivesse focado em mim.
— Ele ainda não te contou? — Taelor estava exultante. — Não me surpreende. Ele está sempre tão
preocupado com seu estado mental. — Ela se encosta no balcão e coloca seu rosto a poucos
centímetros do meu. Seu perfume caro faz meu nariz pinicar. — Vou fazer o último ano do Ensino
Médio em uma escola preparatória em Londres. Me ofereceram um contrato como modelo lá. Meu
pai vai alugar um apartamento para o Jeb. Assim, todo mundo sai ganhando. Jeb pode fazer contatos
para se promover como pintor através das pessoas que eu vou conhecer, e nós ficamos na casa dele
nos finais de semana. Interessante, não acha?
Sinto um aperto no peito.
Ela se retrai. Há certo pânico em sua expressão. Por quê? Ela acaba de anular a chance de eu ter a
amizade de Jeb só para mim mais uma vez. Agora ela tem tudo.
— Nossa! Você realmente achou que tinha uma chance, não? — Taelor zomba. — Só porque ele
pediu que você posasse para alguns rabiscos, isso não quer dizer que ele é a fim de você.
Fico boquiaberta. Jeb nunca me pediu para posar. Algumas vezes ele tirou seu lápis e caderno de
desenho quando estávamos juntos, mas eu nunca imaginaria que ele estivesse me retratando.

— A arte dele trata da morte, da tragédia, então é óbvio que ele goste de seu estilo Mortícia. Isso
não é um elogio. Não se iluda.
Estou atordoada demais para responder.
— Nós duas gostamos dele. — A voz dela fica mais suave, e posso ver que, pelo menos desta vez,
ela está sendo sincera. — Mas você gosta dele o bastante para deixá-lo fazer o que é melhor para
ele? Ele tem talento demais para ficar servindo de babá para você o resto da vida, como seu pobre
pai. Você não acha que isso seria uma tragédia colossal?
A ânsia de arrancar os olhos dela faz minhas veias fervilharem. — Pelo menos eu tenho um pai
que gosta de mim o bastante para me apoiar. — As palavras a atingem feito setas envenenadas. Sua
expressão ferida faz com que eu me arrependa de ter dito aquilo.
A campainha soa e o aroma de café expresso invade a loja.
— Ah, droga. — Jen lança um olhar de raiva para Taelor enquanto a porta se fecha atrás dela. —
O que está fazendo aqui? — Ela para perto de mim e coloca de lado um croissant e uma vitamina de
fruta.
Taelor limpa a garganta e sua máscara de indiferença volta ao lugar. — Alyssa e eu estávamos
conversando sobre Londres e sobre por quê ela não é bem-vinda para ficar comigo e o Jeb. — Ela
pega sua sacola. — Fede aqui na terra dos mortos. Fui.
No instante em que ela sai, Jenara vira-se para mim. — Um dia desses ela vai se descuidar e
mostrar ao Jeb esse lado perverso.
Eu arranco a pontinha do meu croissant. — É por causa dela que ele não quer que eu vá. Ele não
quer que eu... atrapalhe eles.
Torcendo sua meia arrastão com uma caneta, Jen não responde.
— Por que não me contou?
Os olhos dela se enchem de remorso. — Eu só soube que ela ia hoje de manhã. E eu não sabia
como contar para você quando você entrou. Você está sofrendo tanto com sua mãe.
Dobrando as anotações do País das Maravilhas, olho novamente para o computador fora do ar. O
que importa se o site sumiu? Jeb não vai mais me ajudar e nós nunca mais seremos como antes.
— Al?
Os soluços que eu vinha reprimindo desde a minha briga com papai se aninham em meu peito. E
explodem como milhares de bolhas de ácido, consumindo meu coração silenciosamente. Mas me
recuso a chorar.
— Vamos lá — Jen me anima. — Se alguém pode convencê-lo a largar dela, é você. Conte para
ele. Conte o que você sente de verdade.
Penso nas maravilhosas pinturas de Jeb. Em todas as coisas que ele pode ser, se tiver
oportunidade. Ele não precisa de mais bagagem emocional para atrasá-lo. E eu tenho o suficiente
para afundar um petroleiro. Ademais, não conseguirei aguentar se ele me recusar. Ele já escolheu

Taelor em vez da gente.
Enfio as anotações no bolso da saia. — Nada a dizer. Eu me apaixonei por ele quando estávamos
na sexta série, então não conta. — Ela começa a dizer alguma coisa, mas eu a detenho. — E você
também não vai chorar. Nós fizemos a promessa do dedo mindinho, e isso é para sempre.
Uma ruga de preocupação surge em sua testa enquanto ela pega seu vestido e sua maquiagem para
o baile. — Isso não terminou.
— Terminou, sim. O Jeb fez a escolha dele.
Balançando a cabeça, ela sai.
No momento em que a porta se fecha, eu me volto para O corvo. O cara emo olha para mim, e seus
olhos vertem lágrimas negras, como se ele soubesse da minha dor. Sinto o estranho desejo de estar
em seus braços — aninhada no couro.
Estou esperando dentro da toca do coelho, amor. Encontre-me. Seu olhar marca o desafio na
minha alma como um ferrete em brasa.
Assustada com o aprofundamento da nossa conexão, dou um passo para trás e derrubo o porta-
canetas com o cotovelo. Um lápis rola do balcão em frente e cai no chão. Dou a volta para pegá-lo e
fico surpresa ao ver a bolsa de Taelor no chão. Ela saiu com tanta pressa que esqueceu de pegá-la.
Resisto ao desejo de jogar as coisas dela na rua. Em vez disso, pego a bolsa pelas alças e a
guardo debaixo do balcão até ela voltar. O zíper está meio aberto, revelando um grande maço de
dinheiro.
Confusa, tiro o dinheiro, desenrolando o maço de notas de vinte e cinquenta dólares. Tem mais de
duzentos e quarenta dólares. Se eu acrescentar aquilo às minhas economias em casa, terei o suficiente
para comprar uma passagem de ida para a Inglaterra, e ainda sobrará um pouquinho para um
passaporte falso e as despesas; então, eu só precisaria encontrar um endereço para o relógio de sol.
Não seria a primeira vez que ficaríamos devendo aos Tremont. Na quinta série, papai pegou um
empréstimo com o pai de Taelor para ajudar a pagar as despesas médicas de Alison. Foi assim que
Taelor ficou sabendo sobre meu parentesco com Alice Liddell.
Então, de certa maneira, é uma indenização justificada. O pagamento de Taelor a mim por todos os
anos em que ela tornou minha vida um inferno.
Meus dedos tremem enquanto eu jogo a bolsa estripada no fundo da lata de lixo e coloco papéis
por cima. Estendo a mão por baixo do balcão para pegar o aromatizador e o derrubo — junto com o
dinheiro — sobre o livro de cristais místicos de Perséfone. O volume tem um elástico costurado na
encadernação que mantém as páginas fechadas.
Volto-me mais uma vez para o pôster. Os soturnos olhos do rapaz parecem controlar tudo que eu
faço, e não há nada que me impeça de ultrapassar os limites desta vez.
Não há mãe, não há pai, e com certeza não há Jeb. Nem mesmo seu sorriso poderia me salvar
agora.

5

Tesouro

Quando eu e papai chegamos em casa, junto o dinheiro roubado às minhas economias em um estojo
de lápis preso por um elástico e o escondo atrás de meu espelho giratório.
Ao colocar meu celular para carregar, mando uma mensagem para Hitch me encontrar do lado de
fora do Submundo por volta da meia-noite e lhe explico o motivo. Ele é a única pessoa que eu
conheço que pode fazer um passaporte falso. Ainda não acredito que peguei o dinheiro de Taelor e
escondi sua bolsa. Mas, como o papai diz, faremos o que for preciso para trazer Alison de volta para
casa. Imaginar como Jeb ficaria furioso se soubesse que eu iria encontrar com Hitch no meio da noite
e sozinha me dá ainda mais determinação para seguir adiante.
Um estrondo muito próximo balança as janelas, e a chuva forte golpeia o telhado. Mais uma
tempestade se aproxima.
Estico o braço ao lado do vidro frio do aquário e ligo uma suave luz azul. Afrodite e Adônis
executam uma dança graciosa enroscando seus corpos compridos.
Quando sigo para verificar minhas armadilhas de insetos na garagem, corto caminho pela sala.
Papai está lá, sentado em sua poltrona reclinável, fitando as margaridas gigantes que Alison colou
nos braços e nas costas. Ele soluça.
Quero abraçá-lo e me desculpar pela briga, mas, quando ele percebe que o estou observando, diz
que caiu alguma coisa em seu olho e sai para buscar hambúrgueres para o jantar.
Partículas de pó voam à deriva sob a luz âmbar da luminária de chão ao lado de sua poltrona. A
luz esquisita, junto às paredes de madeira escura, dão à sala de estar uma aura estranha, como uma
fotografia antiga em sépia.
Fotografias. Por que Alison disse aquilo sobre fotografias... como as pessoas esquecem de ler nas
entrelinhas?
Fico ali parada, perto da poltrona reclinável, e tudo o que ela disse me percorre a mente, como
pedregulhos atirados num poço sem fim. Uma frase sempre volta à tona: “As margaridas escondem o

tesouro. O tesouro enterrado.”
A explicação está me encarando bem de frente. Está lá há anos. Ajoelho-me diante da poltrona,
amarrotando as camadas de renda debaixo de minha minissaia, e tiro minha mochila do caminho. É
difícil acreditar que sete horas atrás eu estava na escola. Tanta coisa aconteceu que perdi totalmente
a noção do tempo.
Dou um puxão em uma das margaridas de tecido de Alison no lugar onde duas pétalas aplicadas se
enrolam devido aos pontos puídos. Seguindo um palpite, escorrego meu dedo indicador entre as
aplicações e a forração para encontrar um buraco cavado bem fundo dentro do estofamento da
poltrona.
Seguro a respiração e puxo a aplicação até ela ficar pendurada só por uma pétala e alguns fiapos.
O buraco do tamanho de uma moeda de dez centavos olha para mim, num círculo perfeito demais
para ser acidental. Todo esse tempo, eu achei que ela havia costurado os retalhos ali para cobrir
pontos puídos. Todo esse tempo, eu estava enganada.
Cavucando a forração rasgada, vou tirando o estofamento até atingir algo pequeno, duro e
metálico. Sinto o contorno do objeto, seguindo sua forma redonda que se alonga e possui entalhes e
dentes. Uma chave. Meu dedo indicador a arrasta para a abertura do buraco e a puxa para fora. Um
colar de corrente amarrado a ela se enrosca no estofamento feito uma cobra.
O desafio do site agora faz sentido: “Se deseja salvar sua mãe, use a chave.”
Talvez eu devesse estar apavorada, mas estou entusiasmada por finalmente ter alguma prova
palpável de que Alison está tentando me dizer alguma coisa... que suas palavras sem sentido não
eram tão sem sentido assim. Eram pistas coerentes.
Ao bater levemente o dedo sobre o metal frio, fico imaginando o que aquela chave possa abrir.
Nunca vi uma igual, tão intrincada, com tiras de cobre entrelaçadas em forma de hera. Ela parece
velha — uma antiguidade, na verdade. Tão pequenina que poderia abrir um diário.
Penduro a corrente em meu pescoço e a escondo sob a camiseta. Alison disse margaridas, no
plural. Poderia haver outras coisas por trás das outras aplicações?
Inspirada, ignoro o fato de papai poder voltar a qualquer instante. Nem mesmo paro para pensar
nas consequências de rasgar por completo sua poltrona favorita.
Ele mantém um canivete suíço na mesinha, para abrir a correspondência. Abro a parte da tesoura,
corto todas as margaridas pela metade e escavo os buracos debaixo delas. Pedacinhos de algodão do
estofamento flutuam feito flocos de neve ao meu redor.
Logo, estou sentada aos pés da poltrona com uma pequena coleção de objetos relacionados ao País
das Maravilhas: um prendedor de cabelo antigo — que parece mais um grampo, na verdade — com
uma pedra em forma de gota na cor rubi presa à ponta curvada; uma pena para escrever; um leque
vitoriano de renda branca com luvas combinando que cheiram a talco e pimenta-do-reino. Seguro um
espirro e afasto de mim duas fotos de minha tataravó Alice, preferindo um livrinho que também
encontrei.
Passo a mão sobre a capa de papelão esfarrapada e analiso o título: As Aventuras de Alice no País

das Maravilhas. Diante da palavra Alice, está rabiscado o nome de Alison com caneta vermelha.
Ela queria que eu encontrasse esses “tesouros”. Algo aqui deverá me fazer desistir de entrar na
toca do coelho. Em vez disso, estou convencida de que essas coisas podem me ajudar a curar Alison,
me ajudar a quebrar a maldição dos Liddell para sempre.
Enfiado dentro da capa do romance está um panfleto de turismo para a trilha do relógio de sol do
rio Tâmisa, em Londres. Nele, há a estátua de um menino equilibrando um relógio de sol na cabeça.
Recosto-me, incrédula. É a mesma estátua que vislumbrei antes, a que tinha crianças brincando ao
redor. Alison deve ter procurado pela toca do coelho quando era mais jovem; ela deve ter ido a
Londres procurá-lo. De que outro lugar esses souvenirs poderiam ter vindo? E, ainda mais
importante, o que a fez parar de procurar?
A estátua data de 1731 — muito antes do nascimento de Alice Liddell —, então ela já estava lá
quando minha tataravó era pequena, o que significa que ela pode ter caído no buraco debaixo da
estátua.
Agora tenho um endereço, mas, segundo o panfleto, não há acesso público para essa área. Aos
turistas só é permitido olhar para a estátua do relógio de sol por trás do gradil. Mesmo que eu vá até
lá, precisarei de um milagre para chegar perto dela e explorar o relógio de sol de perto.
Recoloco o panfleto dentro do livro, passando os olhos pela história que conheço tão bem. É
repleta de desenhos em preto e branco. Algumas páginas estão dobradas e alguns trechos,
sublinhados: o poema da Morsa e o Carpinteiro, as lágrimas de Alice que causam uma inundação, o
chá da tarde do Chapeleiro Maluco.
A caligrafia de Alison enche as margens com anotações e comentários em tinta de várias cores.
Toco todos eles, triste por nunca termos sentado juntas — com o livro nas mãos — para que ela
pudesse me explicar o que tudo aquilo significa.
A maior parte das anotações está borrada, como se as páginas tivessem sido molhadas. Detenho-
me na ilustração do Rei e da Rainha de Copas, onde ela escreveu: A Rainha e o Rei Vermelhos — foi
aqui que começou. E aqui acabará...
Por trás das cortinas, um relâmpago.
Depois da última página da história, há mais umas vinte páginas coladas a mão. Em cada uma
delas, alguém esboçou desenhos parecidos com os personagens deformados do País das Maravilhas
do site da mariposa: o coelho esquelético, as flores cruéis com dentes cheios de sangue, até uma
interpretação diferente da Rainha Vermelha — uma mulher com traços delicados e cabelo vermelho
vivo, com desenhos feitos a tinta preta em volta dos olhos e asas transparentes.
Os esboços remetem a mais uma visão das crianças, mais forte do que a que eu vivenciara antes,
porque meus olhos nem se fecham. Minha sala de estar vai sumindo e eu estou no meio de um campo,
sentindo o perfume da primavera. Gotículas de luz do sol piscam em volta de mim, no mesmo ritmo
dos ramos de árvore que balançam à brisa. A paisagem é estranhamente fluorescente.
A menina — que parece ter cinco anos — está vestindo um paletó de pijama vermelho com
babados e mangas longas e bufantes, com uma calça combinando que cobre seus tornozelos. Ela está
sentada num montículo de grama ao lado do menino, que não deve ter mais de oito anos. Os dois

estão de costas para mim.
Asas negras pendem das costas do menino como um manto, combinando com sua calça de veludo e
com a camisa de seda. Ele vira de lado, de modo que consigo ver seu perfil, mas seu rosto
permanece oculto atrás de uma cortina de cabelos azuis brilhantes, enquanto ele usa uma agulha para
unir mariposas mortas em um fio, montando um cordão — o menino faz o equivalente a uma guirlanda
de pipoca macabra.
Seus pés — enfiados em botas pretas de trilha — estão apoiados em uma série de desenhos, os
mesmos que estão colados dentro do livro País das Maravilhas de Alison.
— Pronto. — Sua voz jovem e suave farfalha como plumas ao vento. Sem olhar para cima, ele
aponta sua agulha para a imagem da Rainha Vermelha. O cordão de mariposas mortas segue o
movimento, que o faz remexer-se. — Conte-me os segredos dela.
A menina balança os pés descalços, com as unhas cor-de-rosa cintilando na luz suave. — Estou
cansada do País das Maravilhas — murmura ela com a voz tímida de inocência. — Quero ir para
casa. Estou com sono.
— Eu também. Talvez se você não tivesse brigado comigo no ar durante as aulas de voo —
adverte ele, com um sotaque britânico se tornando mais aparente — nós dois nos sentiríamos melhor.
— Fico enjoada quando voamos muito alto. — Ela boceja. — Já é hora de dormir? Estou ficando
com frio.
Balançando a cabeça, o menino cutuca a imagem mais uma vez. — Primeiro, os segredos deles.
Depois, eu a levarei de volta para a sua cama quentinha.
A menina dá um suspiro e pega uma das asas dele, aninhando-se nela. O aconchego e o conforto
me invadem, espelhando o que ela deve estar sentindo. Ela se embrenha no túnel acetinado,
envolvendo-se no perfume dele — de alcaçuz e mel.
— Me acorde quando for a hora de partir — pede ela, com a voz abafada.
Com os olhos ainda escondidos atrás do cabelo revolto, ele ri. Seus lábios são benfeitos e
contrastam com a pele clara, seus dentes perfeitos brilham em sua alvura. — “Dlim, dlão. Cabeça de
cão. Menina bonita, meu amor que roubou meu coração.” Ele puxa sua asa, deixando-a com frio e
amuada.
Ele deita de barriga no chão. Suas asas se espalham pelos lados como poças de petróleo negro e
reluzente, e ele se inclina sobre a pilha de cadáveres de mariposas. Depois de espetar o abdômen de
uma, ele a coloca no lugar, atrás das outras que estão no cordão.
A menina fica olhando, fascinada. — Quero espetar uma.
Ele levanta a mão e cinco dedos se esticam — alvos, graciosos e longos. — Me diga cinco
segredos e eu deixo que você pendure uma mariposa para cada segredo que acertar.
Batendo palmas, a menina pega o desenho da Rainha Vermelha e o coloca sobre o colo. — Ela
gosta de cinzas no chá, ainda fumegando e com brasas.
O menino concorda. — E por quê?

Ela inclina a cabeça, pensando. — Hum.
Não sei explicar por quê, mas sei a resposta. Fico apreensiva, esperando para ver se a menina
adivinha, torcendo por ela.
Levantando sua fila de cadáveres, o menino provoca: — Parece que vou terminar isto aqui
sozinho.
Ela dá um pulo, os pés pisando na grama verde-limão. — Ah! As cinzas são para a mamãe dela.
Tem alguma coisa a ver com a mamãe dela.
— Não é o suficiente — rebate ele, espetando outra mariposa com a agulha, a pilha começando a
diminuir. Ele dá um sorriso maldoso.
A frustração dela é visível. Ele a repreende o tempo todo. A provoca até que ela revide; mas ele
também tem outro lado, um lado estimulante e paciente, pois consigo sentir a afeição e o respeito que
ela tem por ele.
Ele enfia outra mariposa no cordão, estalando a língua. — Que pena que você não vai me ajudar.
Mas acho que você é pequena demais para segurar uma agulha mesmo.
Ela resmunga. — Não sou.
Cansada da arrogância dele, grito a resposta. — O silvo do vapor quando as brasas crepitam no
chá! Isso acalma a rainha. Faz com que ela se lembre de sua mãe fazendo sshhh quando era bebê e
chorava.
As duas crianças voltam a cabeça para a minha direção, como se tivessem me ouvido. O rosto da
menina se revela — uma realidade vívida. Ela sou eu... Uma sósia minha antes de entrar no jardim
da infância, com os dentes da frente faltando e tudo. Mas é o rosto dele — os olhos negros familiares
do menino escorrendo tinta — que me remete de volta à minha sala de estar de joelhos, e o campo
desaparece à minha volta.
Fico atordoada. Será possível? Não são lembranças de algum filme ao qual assisti; são
lembranças que eu criei. Se eu tinha essa lembrança presa dentro de mim, o que mais aconteceu
comigo que não consigo lembrar?
Será que estive mesmo no País das Maravilhas, fazendo companhia a uma das criaturas
intraterrenas?
Inspiro aos trancos. Não. Eu nunca estive lá.
Meus dedos percorrem os traços do cabelo flamejante da Rainha Vermelha do desenho. Se eu
nunca estive lá, como sabia sobre a rainha e sua mãe? Como eu sabia que ela ficou solitária quando
era princesa, depois que sua mãe morreu, porque o rei não suportava ficar perto dela por causa da
semelhança com sua esposa morta? E como eu sabia da tristeza dela quando o pai se casou
novamente por necessidade, pois são as rainhas que mandam no País das Maravilhas?
Sei essas coisas porque ele as ensinou para mim. O menino alado.
Britânico... Lembro da voz que ouvi na minha cabeça no trabalho, junto com o pôster e os olhos
pretos insondáveis e sangrentos do rapaz. Seu desafio ressurge em minha mente: “Estou esperando

dentro da toca do coelho, amor. Encontre-me.”
Amor. Foi como o menino chamou a menina — como o menino me chamou — em minha lembrança
recuperada. É a mesma pessoa... Ou criatura... Mas está mais velho agora, como eu. De repente,
parece que há anos sinto saudade dele. Minhas emoções se embaralham em duas direções diferentes
— uma mistura excitante de terror e anseio que me deixa tonta.
A campainha toca, me jogando de volta ao presente. O controle remoto da garagem de papai está
quebrado. Só pode ser ele.
Me ponho de pé. O estofamento da poltrona cobre todo o chão. Flocos de algodão pendem dos
buracos no tecido. Parece um daqueles brinquedos que espremem massinha de modelar por buracos
estrategicamente localizados.
A campainha toca novamente.
Tiro algum estofamento preso no meu cabelo. Como vou explicar o que fiz com a poltrona?
Com a cabeça a mil, escondo meus achados dentro de minha mochila, tomando a decisão
espontânea de levar tudo para Londres. Depois, pensando nas violentas criaturas no reino interior
que vi na Internet e no rapaz alado de olhos negros que, de alguma maneira, faz parte do meu
passado, jogo o canivete de papai lá dentro também.
Depois de colocar a mochila no canto, vou aos tropeços até a porta e destranco a fechadura,
olhando para a bagunça que deixei para trás.
Ao abrir a porta, Jeb sobe na varanda, enfiando o telefone no bolso do smoking. Esforço-me para
manter uma aparência calma. — Oi.
— Oi — responde ele. Um relâmpago corta as nuvens atrás dele. O clarão produz sombras de seus
cílios sobre as maçãs de seu rosto. Uma rajada de vento traz o cheiro da sua colônia.
Talvez ele esteja aqui para pedir desculpas. Espero que sim, porque estou precisando da ajuda
dele neste momento.
— Precisamos conversar — diz ele. Sua voz ríspida me faz levantar as defesas instantaneamente.
Parado à soleira da porta, Jeb é muito mais alto do que eu. Apesar do smoking, seu estilo ainda é
grunge, desde o queixo não barbeado até a bandana apertada no bíceps direito. Sua barriga
tanquinho e suas botas pretas de combate em lugar de uma camisa e sapatos sociais completam o
look. A Paris Hilton da escola de Pleasance vai ter um chilique quando vir o toque pessoal que ele
acrescentou ao traje.
— Você não deveria estar a caminho do baile do pó de arroz? — pergunto com cuidado, tentando
senti-lo.
— Não vou dirigir.
Tradução: a Taelor vai pegá-lo na limusine da família e está bastante atrasada.
Ele esfrega a articulação de um dedo na decoração em voluta da porta, com a mandíbula rangendo
de um lado para o outro. Jeb está perturbado com alguma coisa, isso é certo. O que poderia ser?
Quem merece um pedido de desculpas sou eu. De joelhos, na verdade.

— Posso entrar? — Um brilho vermelho cintila debaixo de seu lábio, onde há um piercing com
uma pedra vermelho-escura que reflete a luz. O mistério da sacola da joalheria está oficialmente
desvendado.
— Que lindinho — disparo, zombando. — A Taelor te deu um brinco para o lábio... E brilha!
Ele cutuca o piercing com a língua. — Ela está tentando ser diplomática.
A raiva toma conta de mim ao me lembrar de Londres e de todas as coisas que Taelor me disse. —
É claro que está. Porque ela é a oitava maravilha do mundo, e isso falando somente de suas pernas.
Jeb franze a cara. — O que você quer dizer com isso?
— A Taelor tem toda a diplomacia de uma viúva-negra. A pedra do signo dela é a granada. E você
a está usando em seu lábio. Ela quer enredar você em sua teia.
Ele me repreende com o olhar, franzindo a cara. — Dê um tempo para ela. Ela teve um dia
horrível. Perdeu a bolsa com dinheiro dentro. — Ao fazer uma pausa, ele percorre o batente da porta
com o dedo. — O último lugar que ela se lembra de ter estado com a bolsa foi na sua loja. Mas ela
acha que você teria ligado se encontrasse. Você não encontrou, certo?
Reprimo a culpa que me incomoda. — Não. E não sou a guarda-bolsas de sua majestade, para sua
informação.
— Sério, Al. Tenha um pouco de compaixão, tá? Não acha que já a magoou demais?
— Eu a magoei?
— Esfregar na cara dela que o pai não gosta dela como o seu pai gosta... Você não compreende
isso. Você tem tanta sorte de ter um pai como o seu. Nem eu nem ela tivemos isso. Você sabe que
esse é o ponto fraco dela. Foi muita frieza.
Falando em frieza, meu sangue gela nas veias. Estou morrendo de vontade de contar o que ela me
disse e que me forçou a ser maldosa, mas eu não devia precisar fazê-lo. Houve um tempo em que ele
confiava em mim o bastante para ficar do meu lado acima de qualquer dúvida. Agora ele está sempre
tentando acalmar os ânimos entre nós duas. Mas o problema não está comigo... Exceto por ser uma
ladra e mentirosa.
Tudo me pressiona: as descobertas estranhas, minha amizade com Jeb arruinada e minha família
despedaçada. Sinto-me asfixiada. Tento bater a porta. O pé de Jeb me impede. Me afasto, num pulo,
e as dobradiças se abrem.
A mão dele está na maçaneta, então não consigo fechar a porta novamente. Gotículas de chuva
cintilam em seu cabelo brilhante, que sem dúvida bebeu galões de gel e levou horas para ficar
perfeito. É a única parte da aparência dele que Taelor vai aprovar. Quanto a mim, prefiro o look
desleixado — cabelo desgrenhado, o corpo escorregadio de suor com óleo de automóvel ou aquarela
respingada sobre sua pele cor de oliva. É esse o Jeb com quem eu cresci. Com quem eu podia contar.
O Jeb que perdi.
Endureço meu olhar e meu coração. — Se foi por isso que você veio, para me repreender por ter
magoado a sua namorada perfeita, já cumpriu sua missão.

— Ah, não. Eu ainda nem comecei. A Jen me mandou uma mensagem. O Hitch ligou para ela. Acho
que ele não é um sujeito tão mau quanto a gente imaginava, porque ele ficou se perguntando em que
tipo de encrenca você tinha se metido. Por que você precisa de um passaporte falso para hoje à
noite?
Minha garganta se comprime. Quero escorregar pela fenda até o piso. — Não posso falar nisso
agora — murmuro.
— E quando será uma boa hora? Talvez você possa me mandar uma mensagem quando estiver no
avião.
Eu lhe dou as costas, mas ele me segue até a entrada. Cercando-o para que ele não entre na sala,
cruzo os braços sobre o meu bustiê, tentando refrear o desejo de socá-lo. — Você não pode entrar
sem ser convidado.
Ele encosta o ombro na fotografia emoldurada de Alison em um campo de trigo durante a colheita.
— É mesmo? — O salto de sua bota empurra a porta, deixando lá fora a tempestade e o aroma de
chuva. — Da última vez que verifiquei, eu não era um vampiro — ele diz em voz baixa.
Cerro os punhos com mais força e dou um passo para trás, ficando sobre a borda do tapete que
delimita o começo da sala. — Você tem muita coisa em comum com um vampiro.
— Porque sou mau?
— Mais provas. Você acaba de ler minha mente. — Deslizo uma mão para tentar pegar a chave
escondida debaixo de minha camiseta.
Jeb pega meu outro pulso, enrugando minhas luvas ao me puxar para junto dele, na entrada — um
cara a cara com minha minissaia bufante que roça as coxas dele. — Se eu pudesse ler a mente das
pessoas, saberia o que está acontecendo na sua cabeça para você pensar em viajar para outro país
sozinha no meio da noite sem dizer para ninguém.
Tento me libertar, mas ele não deixa. — Hitch é um bobo. Eu disse que queria uma identidade
falsa, não um passaporte. Ele confundiu tudo.
Jeb me solta, mas sua expressão continua cheia de tensão. — O que você quer fazer com uma
identidade falsa?
Aquela vacilação no meu pensamento ganha vida, envolvendo meu crânio, me incitando a irritar
Jeb só para vê-lo se contorcer. — Para frequentar bares e pegar uns caras. Viver um pouco. Ter
experiências. Quem sabe aí eu estarei pronta para ir a Londres a tempo do seu casamento real com
Taelor.
A explosão de veneno surte o efeito desejado. A expressão de Jeb continua ameaçadora, mas fica
frágil, como uma mistura entre sentimentos feridos e o desejo de estrangular alguém. — O que está
acontecendo com a gente?
Dou de ombros e fico olhando para minhas botas, controlando aquela sensação interior que me
provoca. A chuva açoita as janelas, aumentando a bolha de silêncio entre nós. Viro-me para escapar
para a sala, sem nem ligar para a condição em que a deixei.

Jeb vem logo atrás de mim. É como se eu fosse o Coelho Branco tentando vencer o Tempo. Ele
pega a cauda do meu saiote e me rodopia para encará-lo. Sua expressão endurece quando ele vê a
poltrona atrás de mim.
— O que aconteceu com os retalhos da sua mãe? — Ele me pega pelos braços. — Espere...
Aconteceu algo errado hoje na clínica?
Liberto-me dele e levo as mãos ao estômago para acalmar a sensação de tontura. — A Alison teve
um ataque. Dos graves. A Jen não te contou?
Ele continua analisando meu rosto, absorvendo cada traço. — Ela estava com pressa. Eu só recebi
a mensagem sobre o Hitch. É por causa da sua mãe que você está fazendo essa encenação?
Minhas bochechas inflamam. Encenação. Como se eu fosse uma criança na pré-escola tendo um
chilique. Se ele pudesse ver as coisas que estão acontecendo dentro de mim neste momento, teria o
bom senso de ficar assustado.
Por fim, percebo o que está acontecendo... O quanto estou perto da insanidade... A loucura por trás
das coisas em que estou começando a acreditar. Começo a tremer.
Jeb abre os braços. — Vem cá.
Eu nem hesito. Deixo-me cair em seus braços fortes, ansiando por alguma coisa comum e sadia.
Ele nos conduz até o sofá sem separar meu abraço desesperado — com seus braços em volta da
minha cintura e meus pés descansando sobre suas botas, como se estivéssemos valsando. Respiro seu
perfume de lavanda até quase me afogar. Abraçados, nos jogamos sobre as almofadas. Não percebo
que estou chorando até me afastar um pouco e a barriga tanquinho dele ficar colada na minha face
úmida.
— Me desculpe pela camisa — tento tirar a mancha de maquiagem que deixei no lado esquerdo da
barriga dele.
— Dá-se um jeito. — Jeb abotoa o casaco, escondendo a mancha.
— Que se dane a dignidade — sussurro, enxugando o rosto.
Ele afasta alguns fios de cabelo grudados em minha testa úmida. — Quer dignidade? Olha só isso.
— Ele tira algo do bolso interno de seu casaco. — O comitê do baile votou por um baile de
máscaras. A Tae me comprou uma máscara.
— Um baile de formatura com máscaras? Original mesmo. — Respondo com um tom de sarcasmo
forçado, grata por Jeb evitar o assunto da poltrona e Alison. Se é para meu conforto ou para o dele,
não me importa.
— Sem risadas. — Ele coloca a máscara, um retalho de cetim preto com um elástico. Pequeninas
plumas de pavão decoram os buracos dos olhos e as bordas externas, o que faz parecer que uma
borboleta tenha se chocado contra o rosto dele. Não consigo segurar um riso de desdém.
— Ei. — Com as covinhas à mostra, Jeb me belisca a barriga.
Pego os dedos dele, sorrindo. — Então... você é uma drag queen que mudou de lado, certo?

— Ah, você vai pagar por isso, menina do skate. — Ele me cutuca até eu dar um pulo para trás e
cair no sofá, e então me prende.
— Ai. — Cruzo os braços, protegendo os pontos que doem, tanto de chorar quanto de rir.
— Machuquei você? — Ele para, com as mãos nos dois lados da minha cintura.
— Um pouco — minto.
A testa dele está bem perto da minha, seus longos cílios pretos olhando pelos furos da máscara.
Sua expressão é remorso puro. — Onde? No tornozelo?
— Em todo lugar. Dores de riso.
Ele dá uma gargalhada. — Ah. E então, retira o que disse?
— É claro. Você parece mais um espanador de pó, mesmo.
Jeb ri, depois tira a máscara e usa o elástico como um estilingue para mandá-la voando para o
outro lado da sala. Ela atinge a parede e se esparrama no chão, formando um caroço emplumado.
— Boa viagem — dizemos simultaneamente, compartilhando um sorriso.
É disso que tenho sentido falta. Ficar com o Jeb me faz sentir uma pessoa quase normal. Até eu
lembrar que não sou.
Apresso-me para criar alguma distância entre nós. — Você tem que ir. Não quer que Taelor o veja
saindo do meu lado do dúplex.
Ele levanta meu tornozelo e o coloca em seu colo. — Antes quero dar uma olhada nessa torção.
Estou prestes a dizer que está melhor, mas suas mãos fortes e quentes atrás do meu joelho me
fazem cerrar a boca. Mordendo meu lábio inferior, observo-o tirando o cadarço da minha bota.
Quando ele escorrega o dedo indicador por baixo da bainha do meu legging e contorna minha marca
de nascença, o gesto é tão inesperadamente íntimo que minha canela estremece.
Os olhos dele grudam nos meus, e me pergunto se ele também sentiu aquilo. Mais uma vez, ele está
olhando para mim como se eu fosse um de seus quadros.
O som de um trovão balança a sala, quebrando nosso olhar.
Eu tusso. — Viu? Está melhor. — Puxando minha perna, refaço o nó no cadarço.
— Al. — Seu pomo de Adão se mexe quando ele engole. — Quero que esqueça essa coisa do
Hitch. Seja o que for que está acontecendo, não vale a pena... — Ele para. — Perder uma parte
importante de você.
Inacreditável. Ele acha que sou tão recatada que nem fala a palavra. — Quer dizer minha
virgindade?
O pescoço dele fica vermelho. — Você merece mais do que uma transa de uma noite só. Você é o
tipo de garota que deve se comprometer com um cara que realmente goste de você. Tá bom?
Antes que eu possa responder, um ruído de asas me distrai. A princípio, penso que é dentro da
minha cabeça, e então, por sobre o ombro de Jeb, percebo algo se movendo. O lampejo de um

relâmpago pisca por trás das cortinas, iluminando o corredor. Não há dúvida. A mariposa de Alison
— enorme, asas pretas aveludadas, corpo azul luminescente — fica ali parada por um momento
diante do espelho do corredor e então voa para meu quarto.
Minha cabeça dá voltas.
— Não — digo. Não pode ser o mesmo inseto da imagem... O da minha infância. Mariposas só
vivem alguns dias. Não anos.
— Não o quê? — indaga Jeb, alheio à mariposa, com a atenção em mim. — Você vai continuar
com isso?
Minha pulsação ressoa tão alto em meus ouvidos que quase abafa o toque de Taelor no celular de
Jeb.
— É melhor você ir. — Eu o puxo para ficar de pé e o conduzo na direção da porta.
— Espere — lança Jeb com a cabeça para trás, entre passos relutantes. Ele vira e me encara ao
lado da porta. — Quero saber o que vai fazer hoje à noite.
Espreito pela garoa a limusine branca diante da garagem dele, pensando mais uma vez se deveria
dizer-lhe a verdade. Vou para Londres procurar a toca do coelho. Mesmo morrendo de medo de
para onde ela pode me levar, de quem está lá dentro esperando por mim. E do que deverei fazer
quando estiver lá dentro. Eu tenho que ir.
Mas as palavras que Taelor dissera antes rasgam a minha fantasia em mil pedaços: “O Jeb tem
talento demais para ficar servindo de babá para você...”
Sinto meu estômago revirado e digo a coisa mais difícil que já disse na vida. — Você não pode
dar palpites na minha vida. Você abandonou nossa amizade por causa da Taelor. Então não se meta,
Jeb.
Ele dá um passo para trás, entrando na varanda com expressão aturdida. — Não me meter no quê?
— A dor na voz dele me dilacera o coração. — Não me meter em seus planos de ir para a cama com
um coitado qualquer ou não me meter na sua vida?
A limusine buzina e os faróis dianteiros cortam a bruma molhada. Antes de me arrepender do que
disse, sussurro: — Os dois. — E depois bato a porta, me viro e me apoio nela.
Minhas costas mergulham na madeira densa. O arrependimento inunda meu coração já apertado,
mas não permito que a dor me faça parar. Assim que as rodas da limusine rolam sobre o asfalto
molhado, recupero minha mochila, que está na sala. Estou pronta para procurar meu passado.
Quando entro no corredor, hesito, atraída por meus mosaicos pendurados nos dois lados do
espelho. Algo está errado com o Pulsação de inverno. As contas de vidro prateado que formam a
árvore vibram de luz, e os grilos do fundo esticam as pernas em uníssono. Suas asas se esfregam,
produzindo um chiado horripilante.
Arfando, fecho os olhos com força até o chiado parar; depois, volto a abri-los.
O mosaico está normal — parado e inanimado.

Solto um gemido e me afasto. Um estalido quebra o silêncio do meu quarto. Eu tinha deixado a
porta entreaberta, e uma suave luz azul irradia de lá de dentro. Esse brilho só pode ser do corpo da
mariposa. Entro devagar, aliviada e desapontada por ver que é só a lâmpada do aquário das enguias.
Com o coração acelerado, procuro o interruptor da luz principal.
Mais um relâmpago cai lá fora, rompendo o fornecimento de energia. A casa fica às escuras.
Aperto o batente da porta com tanta força que minhas unhas quase entram na madeira. O som de
asas batendo dispara de um lado para o outro do quarto sombrio. Meu pulso dispara, martelando.
Todos os meus instintos me dizem para fugir para o corredor, sair pela porta da frente e tentar
alcançar Jeb para ele me proteger.
Mas ouço a limusine partindo. Ele já se foi.
Alguma coisa macia roça meu rosto. Solto um ganido. Aos tropeços, deslizo as mãos pelo alto da
minha cômoda, encontro minha lanterna e a acendo. A luz amarela ilumina um quadro que Jeb fez
para mim e potes com corpos de insetos.
Os pelos do meu pescoço se eriçam conforme me aproximo do espelho giratório. O vidro está
quebrado de cima a baixo, como um ovo bem cozido e cristalizado que recebeu batidas de uma
colher, esperando para ser descascado.
O que Alison disse sobre espelho quebrado? Que romperia a minha identidade?
Pedaços pontiagudos de um quebra-cabeça refletem minha imagem despedaçada: centenas de
miniaturas de meu legging xadrez me espiam entre botas de cano alto e anáguas de pregas vermelhas
na altura das coxas; milhares de bustiês envoltos em outro milhar de camisetas. Depois, centenas de
rostos meus com olhos azuis gélidos por entre manchas de delineador verde.
E lá, por trás das minhas muitas cabeças, asas negras tremulantes e um brilho azul suave. Dou
meia-volta e aponto a lanterna, esperando encontrar a mariposa atrás de mim.
Nada.
Quando me volto para o espelho, um grito fica preso em minha garganta. A silhueta de um homem
aparece atrás de mim no reflexo. A imagem está distorcida e quebrada em mil pedaços, exceto seus
olhos de tinta e sua boca escura e simétrica. Estes, vejo com clareza. É o menino das minhas
lembranças — já adulto agora.

6

Pela toca
do coelho

“Adorável Alyssa.” Os lábios do rapaz ronronam aquele sotaque britânico que ouvi na loja. “Você
pode curar sua família. Use a chave para levar seus tesouros para o meu mundo. Conserte os
erros de Alice e quebre a maldição. Não pare até me encontrar.”
O que ele quer dizer com “erros de Alice”? Algo que ela fez dentro do País das Maravilhas
causou tudo isso?
O peso da minha mochila me mantém parada no lugar enquanto o encaro fixamente, fascinada.
Tenho medo de virar as costas e ver se ele está atrás de mim, medo de que a silhueta e a voz linda
sejam somente fragmentos de uma mente frenética à beira de um colapso.
— Você é real? — sussurro.
“Eu pareço real?”, ele sussurra em resposta, com a respiração quente alcançando minha nuca. Um
par de mãos fortes me envolve por trás, fazendo cada nervo do meu corpo saltitar. Eu me viro
depressa. O brilho da lanterna varre o cômodo vazio, mas a pressão daqueles dedos ainda me
percorre o abdômen. Atordoada com a sensação, deixo minha mão seguir o toque dele, do meu
umbigo até a barra da minha saia. Meus joelhos cedem. De alguma maneira, ainda estou de pé, como
se aquele fantasma me segurasse.
“Lembre-se de mim, Alyssa.” Um nariz afasta uma mecha do meu cabelo para trás. “Lembre-se de
nós.” Ele começa a cantarolar uma melodia assustadora. Uma música sem letra, somente as notas
familiares de uma canção já esquecida.
Assim que a música acaba, o abraço termina. Tento me equilibrar sobre meus pés. Dentro dos
reflexos despedaçados, a mariposa tomou novamente o lugar dele. De alguma maneira, a mariposa e
o rapaz estão ligados.
Eu deveria estar horrorizada. Deveria estar exaurida. Mas algo acerca do intraterreno é sensual e
revigorante, mais estimulante do que qualquer coisa do meu mundo.

Estendo a mão na direção de um dos reflexos da mariposa, uma rachadura. Meu dedo toca o vidro,
só que, em vez de ser cortante, ele tem a textura de metal esculpido. Mudo a lanterna de posição e
percebo que não é uma rachadura no espelho... é uma chave, pequena e intrincada.
Procuro a chave que está debaixo da minha camiseta, com os dedos tremendo.
“Tsc, tsc”, meu guia sombrio repreende, embora eu não consiga vê-lo em lugar nenhum. “Eu já
ensinei. Está esquecendo um passo.”
Ele tem razão. Eu me lembro. “Visualize aonde você deseja ir”, digo, usando as palavras que ele
disse anos atrás. A chave realiza seus desejos, e abrirá o espelho se essa for a minha vontade.
Apoiando a mochila no chão, tiro o panfleto do relógio de sol de dentro dela e o analiso. Quando
levanto a cabeça, é a imagem do panfleto que me encara no reflexo do espelho quebrado. Insiro a
chave no buraco e a viro.
O espelho se torna líquido e ondulado, absorvendo minha mão. Eu a puxo de volta e a chave cai
sobre o meu peito, suspensa pela corrente. Ergo meus dedos. Eles parecem os mesmos de sempre...
Completamente intactos. Nem molhados estão.
Um estalido chama minha atenção de volta para o espelho. O vidro estilhaçado começa a ficar
liso, formando uma janela líquida em vez de um reflexo. É um portal que se abre para um jardim
iluminado pela luz do sol e flores no lugar onde fica a estátua do relógio de sol.
“Deseje com todo o seu coração.” O comando vaga em minha cabeça, silencioso como um eco do
meu passado. “Em seguida, entre.”
Tenho um momento de lucidez. Se estou prestes a ser magicamente sugada para Londres, preciso
ter um modo de voltar para casa. Alcanço meu estojo de dinheiro e o jogo dentro da mochila. Lanço a
lanterna lá dentro também. E se a toca do coelho for escura demais?
Dou um passo à frente e permito que minhas duas mãos afundem no vidro líquido até os cotovelos.
Do outro lado, uma brisa fresca me toca os braços. Alguém afaga minha pele, descendo do cotovelo
até o pulso... Dedos tão macios e sagazes que me incendeiam as veias.
É um toque que eu já conheço, embora esteja um pouco diferente. Não é mais inocente e calmo.
Quando olho para dentro do portal, minhas mãos enluvadas aparecem na paisagem adiante de mim,
lançando sombras sobre a grama ao lado da silhueta alada do rapaz.
Antes que eu possa vê-lo claramente, ele some.
Hesito e penso em Jeb. É quase como se eu ouvisse a voz dele chamando por mim de algum lugar
distante. Queria que ele estivesse aqui, agora, entrando comigo.
Mas não posso olhar para trás. Por mais desvairado que pareça, aquele rapaz no espelho é a
resposta para tudo que aconteceu no meu passado. Esta é a minha única oportunidade de encontrar o
País das Maravilhas, livrar a linhagem Liddell de sua maldição e salvar Alison. Se eu conseguir
fazer isso, poderei enfim ser normal. Talvez normal o bastante para revelar a Jeb o que eu sinto.
Respirando fundo, mergulho lá dentro.

Vou girando em uma bruma de verdes, azuis e brancos, minhas percepções se desenrolando como
um rolo de gaze. Parece que sinto espinhos — pequeninas agulhas que se enroscam em mim mais uma
vez. Caio de costas no chão e espero com os olhos bem fechados enquanto a minha mochila me
espeta as costas.
A tontura passa e os aromas de solo úmido e de ar fresco passam à minha volta. Pisco e vejo um
sol luminoso e um céu azul. Estranho. Se estou na Inglaterra, ainda deveria ser de madrugada... bem
antes do nascer do sol. De alguma maneira, cheguei na mesma época que a foto do panfleto — a
época que imaginei. Folhas de grama me pinicam por entre as luvas quando coloco meu peso sobre
as mãos para ficar sentada. A estátua do menino com o relógio de sol está a alguns metros de
distância.
Atrás de mim há uma fonte cuja água flui por painéis espelhados que têm o meu tamanho. Eles
devem ser o outro lado do portal pelo qual eu passei, porque meu cabelo e minhas roupas estão
úmidos. Uma cerca de ferro com as extremidades cheias de espetos projeta sombras pelo jardim.
Fico de pé, largo minha mochila no chão e limpo os respingos de lama da minha saia e coxas.
O gorjeio dos pássaros e o ruído das flores e dos insetos parecem reais. Sinto de verdade na pele
a brisa que agita as folhas acima de minha cabeça. Consigo sentir de verdade o cheiro da fragrância
de rosas brancas de um arbusto do outro lado da estátua. Todos os meus sentidos me dizem que isso
não é um delírio.
Minha imaginação não poderia invocar mãos como as daquele rapaz que me guiou — ou a música
que ele me acendeu na memória. Uma música cujos versos me escapam, mas que de algum modo me
definem. A melodia me traz de volta sensações de conforto e segurança — como uma antiga canção
de ninar.
Concentro-me nos ruídos. Um sussurro diferente penetra os meus ouvidos.
Encontre a toca do coelho...
A brisa me acaricia com uma fragrância suave. São as rosas falando.
Ajoelho-me e rastejo na direção da estátua do relógio de sol, afastando a grama ao andar. Deve
haver algum buraco ou tampa de metal — algo que poderia ocultar um túnel.
Uma pedra ornamentada e uma área coberta de hera rodeiam a ampla plataforma da estátua.
Começo a cavar por entre as folhas. Um ruído de fundo surge quando perturbo a morada sagrada de
aranhas, besouros e insetos voadores. Alguns se dispersam sob meus dedos; outros se lançam ao ar.
Seus sussurros grudam em mim feito eletricidade estática e me guiam.
Se com uma pluma tocar, no reino interior irá entrar.
Levanto-me com um pouco de esforço e depois piso na hera, empurrando a estátua. Ela não se
move.
Se a hora não acertar, a noite aqui vai passar.
Hora. Tento me lembrar das definições do poema para era briluz. Não eram quatro horas? De

acordo com a sombra do relógio de sol, já passa das cinco. Talvez eu tenha que atrasar o relógio.
Tento forçar a haste do ponteiro do relógio de sol para uma nova posição, de modo que sua
sombra caia sobre o numeral romano IV. Não se move. Talvez a estátua só precise pensar que são
quatro horas.
Vasculho a minha mochila, tirando a pena de escrever que desencavei da poltrona de papai. “Com
o toque de uma pena...” Centralizo a pena sobre o mostrador e o movo até que ele projete sua sombra
sobre o número IV. Depois, enfio a pena em um orifício para mantê-lo no lugar. O relógio de sol
ainda marca cinco horas, mas espero que meu improviso dê certo.
Uma série de cliques soa de dentro da base da estátua, como trincos sendo abertos. Com o coração
acelerado, forço o ombro contra os braços de pedra do menino. Com os calcanhares bem firmes na
hera, uso as pernas para empurrar e forçar a pedra.
A pedra range contra o metal e a estátua se move sobre a base. Com um jorro de poeira que logo
se dissipa, revela-se um buraco do tamanho de um poço.
Caio de joelhos. Reviro as coisas dentro de minha mochila para encontrar a lanterna. Acendendo-
a, vasculho as profundezas abaixo de mim. Não consigo ver o fundo. Não posso mergulhar de cabeça
dentro de um túnel que não sei aonde vai dar.
Uma imensa sensação de solidão e pânico toma conta de mim. Não sou muito chegada a altura — a
única razão por ainda não ter aprendido um ollie no skate. Adoro a emoção de andar nele, mas queda
livre nunca foi minha ideia de diversão. Certa vez fui fazer rapel em um desfiladeiro com Jeb e
Jenara. A subida não foi ruim, mas Jeb teve que me carregar nos ombros por toda a descida e eu
fiquei de olhos fechados.
Mais uma vez, pego-me desejando que ele estivesse aqui.
Sento-me. Aquela pressão estimulante dentro de mim ganha vida... Garantindo que estou pronta.
Se a realidade é pelo menos um pouco parecida com o livro de Alice, ela não cai livremente, mas
vai flutuando até lá embaixo. As leis da física podem ser diferentes dentro da toca.
Então, talvez a questão não seja a profundidade, mas a velocidade da queda.
Solto a lanterna dentro do buraco. Ela vai caindo vagarosamente, como uma bolha luminosa.
Quase dou uma gargalhada.
Tomo um trago de água de uma das garrafas no fundo da mochila. Em seguida, fecho o zíper e a
coloco nos ombros.
Empoleirada de joelhos à beira do buraco, tenho um momento de dúvida. Sou muito mais pesada
do que um pedaço de plástico com algumas pilhas. Talvez eu devesse empurrar algumas pedras só
para ter certeza.
— Al!
O grito atrás de mim me faz perder o equilíbrio. A terra some debaixo de mim. Gritando, tento
agarrar o vazio e caio no buraco.

Lá dentro, a cavidade fica mais larga. Flutuo, parecendo mais uma pena ao vento do que uma
paraquedista e a minha posição muda de vertical para horizontal. Meu estômago treme, tentando
ajustar-se à ausência de peso.
Lá em cima, alguém mergulha atrás de mim.
Em segundos, ele agarra meu pulso e me puxa para alinhar nossos corpos.
É impossível...
— Jeb?
Os braços dele nos grudam, seu olhar pregado no cenário que passava lentamente. — Santa mãe de
Deus...
— Que disparate! — interrompo com uma citação do livro País das Maravilhas. — Como veio
parar aqui?
— Que lugar é esse? — pergunta ele, hipnotizado por tudo à volta.
Guarda-roupas cheios e abertos, outras peças de mobília, pilhas de livros em prateleiras
flutuantes, despensas, potes de geleia, molduras de quadro vazias, tudo grudado a esmo nas paredes
do túnel, como se estivesse colado com velcro. Uma grossa hera se enrosca em torno de cada item,
incorporando-os às paredes de terra, fixando tudo no lugar.
Cada vez que passamos por algo, Jeb me puxa mais forte, com um misto de medo e fascínio no
rosto. A certa altura, liberto meu braço e agarro um pote envolto em folhas. Coloco-o entre nós e tiro
a tampa, depois estico o braço novamente para deixar o pote de cabeça para baixo, flutuando junto
conosco. Uma gota de geleia de laranja escorre dele e fica suspensa no ar enquanto flutuamos — para
baixo, para baixo, para baixo até que nossos pés pousam suavemente no chão, como se tivéssemos
descido com cordas.
A entrada da toca do coelho agora não é mais do que um pontinho de luz lá em cima. Estamos em
uma sala abobadada vazia e sem janelas, com uma ligeira iluminação de velas penduradas de cabeça
para baixo em candelabros. O aroma de cera e poeira paira no ar. Minhas pernas bamboleiam, como
se eu estivesse correndo sem parar há uma semana. Devemos ter caído pelo menos uns oitocentos
metros. Ainda estamos abraçados, mas nenhum dos dois parece querer se soltar.
Depois de alguns minutos, Jeb nos solta e fica olhando para mim — para dentro de mim.
— Como? — sussurro, ainda incapaz de atinar que ele está aqui.
Ele fica pálido, balança a cabeça. — Eu... Eu escorreguei na varanda por causa da chuva. Só pode
ser isso. Sim, é por isso que estou molhado. Estou sonhando. Mas... — Ele pressiona sua testa contra
a minha e eu anoto mentalmente cada lugar em que nossos corpos se tocam. As mãos dele começam a
subir pelas minhas costelas e param em cada lado do meu rosto. — Você parece real — sussurra ele,
sua respiração quente se misturando com a minha. Cada ponto de contato entre nós acende uma
pequena chama. — E você é tão linda.
Certo, esta é a prova de que ele está delirando e em choque. Para começar, ele nunca disse nada
parecido para mim. E depois, a esta altura, minha maquiagem deve estar parecendo um jornal

ensopado.
A chave. Ela concede desejos. O rapaz sombrio que é meu guia me disse para desejar com todo o
coração. Então, quando visualizei Jeb ao meu lado antes de entrar, porque o queria comigo, ele
entrou também.
Nunca quis arrastá-lo para dentro disso.
Entrelaçando nossos dedos, faço com que ele tire as mãos do meu rosto. — Talvez haja um modo
de mandar você de volta. — Embora eu tenha a sensação terrível de que não há. Algo que ele disse
antes me intriga. — Espere... Como assim escorregou na varanda? Eu ouvi a limusine ir embora.
— A Tae e eu brigamos. Ela foi para o baile sem mim. Eu queria verificar como você estava mais
uma vez — não podia deixar as coisas daquele jeito. Você não atendeu a porta. Ela estava
destrancada, então eu... Deve ter sido aí que bati a cabeça.
Agarro os ombros dele. — Você não bateu a cabeça. Nós estamos aqui de verdade. É real.
— Arram. — Ele se afasta. — Isso seria afirmar que você realmente mergulhei no espelho. Que eu
também mergulhei para pegar você. E que depois fiquei preso dentro de uma árvore e tive que descer
para encontrar você. Não. Não é possível.
— Isso não deveria ter acontecido — murmuro, me remoendo de culpa. — O País das Maravilhas
é o meu pesadelo. Não o seu.
— País das Maravilhas? — Ele aponta para o túnel acima de nós. — Esta é a toca do coelho?
— É. A Alison escondeu as pistas para este lugar nas margaridas da cadeira do papai. Foi por isso
que eu a rasguei.
Basta um olhar para o rosto de Jeb para perceber que ele não está acreditando no que eu falo.
Respiro fundo, tiro a mochila e pego o panfleto e os tesouros. Penso em contar-lhe sobre a
mariposa e meu guia sombrio, mas esses detalhes ficam presos dentro de mim, como um amontoado
estático de coisas.
— Eu ainda não examinei bem essas coisas — acrescento. — Mas acho que foram elas que me
trouxeram até aqui. Acho que o livro de Lewis Carroll não era propriamente ficção. Era um relato
real das experiências de minha tataravó, com algumas discrepâncias. Por exemplo, não havia nada
mencionando que um relógio de sol cobria a toca do coelho.
Ambos olhamos para a réstia de luz lá em cima.
Jeb balança de um lado para o outro, como se estivesse enjoado. Recobrando-se, ele levanta o
olhar e me encara. — Seu pai sabia sobre essas coisas que você achou?
— Não. Se soubesse, ele a teria colocado na terapia de eletrochoque antes.
— Terapia de eletrochoque? Eu achei que ela tinha batido a cabeça num acidente de carro. Que
tivesse lesão cerebral.
— Foi uma desculpa. Nunca houve acidente. Ela tem fixação pelo País das Maravilhas. Agora
posso provar que ela não é louca. Que tudo é real.

O rosto de Jeb se enche de dúvida. — Primeiro temos que voltar. E isso não vai ser fácil.
Ele tem razão. Não há portas. É como se tivéssemos caído dentro da garrafa de um gênio e a única
saída fosse virar fumaça e sair voando.
— Temos que encontrar ajuda. — Ele pega seu celular do bolso do casaco. Depois de pressionar
várias teclas, Jeb franze a cara.
— Sem serviço? — pergunto.
Ele joga o telefone dentro de minha mochila e analisa o conteúdo, determinado. — O que mais
você tem aí dentro?
Uma abelha me rodeia e eu a espanto. Ela deve ter entrado pela abertura acima de nós. — Água
mineral... barras de cereais. Material de escola.
Agacho ao lado dele e meto a mão dentro da mochila para garantir que ele não abra meu estojo de
lápis; depois, afasto o livro “das maravilhas” de Alison para pegar as luvas brancas que encontrei na
cadeira. Tiro as minhas e coloco as outras. Elas ficam perfeitas. Em seguida, prendo o grampo logo
acima de minha orelha esquerda. Me vem uma lembrança vaga e nebulosa de que eu costumava
brincar de me enfeitar com esses itens junto com meu amigo intraterreno. Agora é um impulso. Não
consigo resistir.
Jeb tira da mochila o canivete suíço de papai. Com as sobrancelhas arqueadas, ele ergue o objeto.
— Peguei emprestado de um escoteiro... — digo, piscando.
Ele o acomoda no bolso da calça do smoking. — Não é possível. Briguei com muita gente da
sétima série e guardei lembranças das batalhas. Escoteiros não carregam canivetes maneiros assim.
Sinto o corpo ligeiramente relaxado quando Jeb esboça um sorriso. Não tenho certeza se ele
acredita em tudo isso ou se ainda acha que está sonhando, mas pelo menos está tentando manter o
senso de humor.
Ele fecha o zíper da mochila. O som dos dentes de metal ecoa no recinto. A abelha volta a rodear
minha cabeça. Percebo que esses são os dois únicos sons que ouço. Nenhum ruído de fundo. Nem um
sussurro, nem um lamento, nenhum sinal de uma palavra sequer.
Pela primeira vez em seis anos, entro em contato com o silêncio.
Fecho os olhos e deixo que ele me invada, suave e entorpecedor.
Silêncio. É. Felicidade.
Inspirada por esse pensamento, levanto-me para explorar o lugar.
— Fique por perto, menina do skate. — Jeb recolhe a lanterna, que havia caído sobre a mesa
redonda no meio da sala. Eu não devia estar pensando nisso depois de trazê-lo para cá, mas é
incrível como me sinto bem ao ouvir meu apelido.
Detenho-me perto das paredes com listras roxas e que possuem candelabros de cabeça para baixo.
Ladrilhos brancos e pretos cobrem o piso circular. Uma pilha de cera perfumada cor de creme do
tamanho de um formigueiro descansa debaixo de cada vela gotejante. Como os pavios continuam

acesos é um mistério. Mesmo com a cera derretendo, as velas parecem não diminuir de tamanho.
— Eu não acredito — lança Jeb. Ele ergue um frasco marrom escuro com um rótulo amarrado no
gargalo como uma etiqueta de preço. — Beba-me. — Ele lê em voz alta.
— Sem chance. — Saio para o lado dele correndo.
— Isso encolhe a gente ou algo assim, certo? — pergunta ele.
— É o que diz o livro. Tem algum doce naquela caixa de vidro debaixo da mesa?
Enquanto guardo o frasco na minha mochila, ele se agacha. — Um bolinho sobre uma almofada de
cetim. Parece que tem passas decorando. Elas formam a palavra “Coma-me.”
— É o bolo que faz a gente crescer de novo.
Ele tira a bandana da manga de seu smoking e embrulha a caixa com o doce. — Deduzo que você
queira este aqui também, como prova?
Balanço a cabeça, concordando. Mas não estamos coletando provas. Alguma coisa me diz que
poderei precisar dessas coisas mais tarde, depois que eu tiver mandado Jeb para casa e puder
continuar sozinha.
De volta às paredes, procuro uma saída. Há cortinas de veludo vermelho colocadas em intervalos,
decoradas com cordas douradas que pendem por cima delas como remates que lembram maçanetas.
O comprimento dessas cortinas é longo o bastante para ocultar uma porta. Abro a primeira, na
esperança de encontrar alguma porta antiga e decorada que possa ter uma fechadura que aceite a
chave que trago no pescoço. Não há nada lá, exceto a parede. Tento outra cortina e obtenho o mesmo
resultado.
— Dê uma olhada nisto. — Jeb puxa o lençol que cobre uma engenhoca de madeira apoiada contra
a parede oposta. Cordões, polias e um mostrador gigante de relógio formam a intrincada estrutura.
Há um cartaz onde se lê: RATOEIRA DO LINGUARDARTE. Lembro do poema do Jaguadarte, associado
aos livros de Carroll. A palavra é parecida, mas não igual. Mais uma inconsistência com uma
história que achei que sabia de cor.
Personagens do País das Maravilhas cobrem a frente, em tons vivos de tinta. Uma longa plataforma
se projeta no fundo, ligada a algumas polias.
— Parece um Rube Goldberg — opina Jeb, inclinando a cabeça para esquadrinhá-la.
— Um o quê?
— Rube Goldberg, o cartunista e inventor. Ele desenhava engenhocas complexas que
desempenhavam tarefas simples de maneira complicada. Isto aqui é uma ratoeira.
Fico olhando para ele.
— O que foi? — questiona.
Rindo, balanço a cabeça. — Olha a sua veia de inventor reaparecendo. Achei que você tinha
superado isso na sétima série. — Jeb era obcecado por construir coisas: montava labirintos e rampas
de bolas de gude com seu pai na garagem da casa. Era o único momento em que eu os via se

entendendo bem.
Um sorriso melancólico percorre seu rosto, e sei que ele também está se lembrando.
— O que é aquilo na plataforma? — pergunto, para mudar de assunto, me repreendendo por ter
tocado nele.
Ele dá uma batidinha no que parece ser um pedaço de queijo. — Uma esponja. Eu me pergunto se
essa armadilha funciona de verdade.
— Só há uma maneira de descobrir. — Estendo a mão para pegar uma alavanca com as palavras
EMPURRE-ME escritas em vermelho.
— Espere. — Jeb larga o lençol e me afasta. — Por que haveria uma ratoeira aqui? E se eles a
armaram para presas maiores, como intrusos?
A abelha retorna, zunindo à minha volta novamente. Eu a espanto. Devagar, ela paira no ar, depois
aterrissa na mesma alavanca que eu estava prestes a empurrar.
Com um som estridente, a máquina inicia uma reação em cadeia.
Primeiro, o ponteiro maior do relógio entra no lugar, apontando para o algarismo romano IV. Isso
ativa a roda de uma polia, que, por sua vez, faz girar um saca-rolha através de um nicho até um
buraco. A ponta afiada do saca-rolha penetra e desequilibra uma prancha de gangorra no próximo
nível.
Jeb e eu recuamos vários passos, de mãos dadas.
Eu já vi esse processo antes. Vasculho o bolso de minha camiseta e retiro as anotações do site
sobre o País das Maravilhas, olhando novamente as definições de “era briluz.”
Jeb fica atrás de mim para ler sobre meu ombro. — Onde você encontrou isso?
— Shhh... — Está tudo lá: as quatro horas, o nicho, o saca-rolha. Depois de emitir um assobio
agudo, a máquina lança no ar a esponja alaranjada, que voa para o outro lado do cômodo.
Eu a persigo, derrapando e parando quando ela atinge o chão ao lado de uma das cortinas que eu
havia investigado.
“Pegue-a.” Aquele sotaque britânico penetra em minha cabeça, um lembrete da razão pela qual
vim parar aqui. Não para arrebanhar provas do País das Maravilhas, mas para curar a maldição da
minha família. Tenho que encontrar o rapaz das minhas lembranças. Ele me dirá como reparar os
erros de minha tataravó. Pego a esponja e enfio-a no bolso de minha saia.
O som estridente começa novamente. No lugar onde Jeb se encontra, as polias e rodas voltam à
posição original. Como se estivesse amarrada à máquina por fios invisíveis, a cortina ao meu lado se
ergue, revelando uma portinha que não estava lá dois minutos atrás.
“Abra-a.”
Como um boneco de cordas controlado por meu guia intraterreno, estendo a mão na direção da
porta.
— Al, não! — grita Jeb.

Eu a abro antes que ele me alcance.
Um corredor longo e escuro se estende a partir da porta. Abaixo a cabeça e verifico. Há luz
suficiente atrás de mim para ver que o túnel vai se estreitando gradualmente. Um movimento
repentino na escuridão me faz ir rolando de volta para Jeb. Ele envolve minha cintura com um braço
e me aperta contra ele enquanto a sombra de um pequeno coelho, parado sobre duas pernas, aparece
à porta.
— Atrasado — diz ele, com a voz diminuta.
Trinco os dentes para não gritar. Não posso acreditar. O Coelho Branco é real.
— Atrasada, quero dizer. Senhorita Alice muito atrasada está. — O coelho pula sob a luz
tremeluzente das velas. Seu fraque vermelho desabotoado se abre, revelando sua caixa torácica.
Jeb solta um palavrão e eu coloco a palma da mão sobre minha boca.
Não é o Coelho Branco ou nenhum outro tipo de coelho. É uma criaturinha parecida com um
duende e do tamanho de um coelho. As pernas, braços e corpo são humanos, mas sem carne — um
esqueleto descarnado. Luvas brancas cobrem suas mãos cadavéricas; botas brancas protegem seus
pés. A exceção à aparência esquelética é sua cabeça careca e seu rosto de homem velho, coberto
com carne pálida como a de um albino. Seus olhos — esbugalhados e inquisitivos, como os de uma
corça — têm um brilho rosado. Longas antenas brancas brotam de trás de cada uma de suas pequenas
orelhas humanas.
Fica claro que a jovem Alice deve tê-lo confundido com um coelho. Seus chifres parecem orelhas
quando vistos no escuro.
— Coelho Branco? — arrisco, sentindo o braço de Jeb me apertar enquanto ele murmura algo,
incrédulo.
— Rábido Branco — a cópia de um esqueleto retruca. — Liddell, Alice... você não é. Mas dela as
mãos você tem.
Olho para minhas luvas. — Sou a tata...
— Ninguém — interrompe Jeb, interpondo-se entre mim e a criatura. Ele não me deixa sair de trás
dele. Percebo que ele vai pegar o canivete do bolso e o detenho. Depois, inclino a cabeça para
continuar olhando para o coelho.
— Grande Ninguém é você? — a criatura pergunta, dobrando as antenas para o lado para poder
me ver.
— Não. Meu nome não é esse. Você disse que o seu é Rábido?
A criatura olha para a mesa e em seguida para nós, retorcendo as mãos enluvadas nervosamente.
— Rábido eu sou. Minha família Branca é. — Parecendo confuso com nossa falta de respostas, ele
faz uma reverência, curvando-se. — Rábido Branco, da Corte Vermelha sou eu. São vocês quem?
Minha voz some. Minhas lembranças e as histórias da Internet eram verdadeiras. Entramos no
reino interior e estamos cara a cara com um intraterreno. Aquela estranha melodia soa dentro do meu
coração, a que foi colocada lá pelo meu companheiro de infância esquecido. É ainda mais poderosa

do que a palpitação que sinto de vez em quando. Ela me diz para assumir minha identidade, para
orgulhar-me de quem sou.
Sem nem pensar, deixo escapar: — Alyssa Gardner, da corte humana, sou eu.
Jeb sibila e retesa os ombros, mas não perde o foco sobre nosso convidado.
— Ohhh. — A criatura cadavérica desfalece fazendo um estalido esquisito, como uma campainha
feita de ossos. Seus lábios se retorcem num rosnado hediondo, revelando dois dentes longos e
salientes. — Luvas dela essas são. Uma ladra você é!
Jeb saca o canivete e o abre na lâmina em um movimento ágil, me mantendo atrás dele com o outro
braço.
— Tudo você vai estragar. — Os olhos rosados de nosso convidado ficam vermelhos. Sua boca
espuma saliva. — Não bem-vindos. Assim disse a Rainha Grenadine, não bem-vindos são vocês! —
Seu berro agudo paira no ar enquanto ele pula para o corredor sombrio e desaparece.
— O que você quer dizer com Rainha Grenadine? — grito atrás dele. — Desde quando existe uma
nova rainha? O que houve com a Vermelha?
Jeb fecha o canivete e me agarra antes de eu entrar no corredor para seguir a criatura. — O que era
aquilo? — Seus dedos se fincam em meus ombros enquanto tento me libertar. — Sério, o que era
aquilo, Al? Nenhum coelho vivo se parece com aquilo!
— Jeb! Ele está fugindo! — Debato-me feito um animal selvagem. — Eu sei para onde ele vai... É
a porta para a qual a minha chave foi feita. Por favor! — Há medo nos olhos de Jeb, e eu me pergunto
por que não sinto o mesmo. Só o que sei é que eu sempre fui diferente no meu mundo. Num lugar
como este, sou simplesmente comum.
— Não. — Jeb cruza meus braços sobre o meu peito e me ergue contra uma das cortinas na
parede, de modo que meus pés ficam soltos no ar, me espetando feito uma borboleta num quadro de
cortiça. — Não vamos a lugar algum. Aquele doido raivoso acha que você roubou essas luvas. E
agora ele sabe o seu nome. Muito legal, por sinal.
— Eu não disse intencionalmente — consigo pronunciar, com as botas balançando por causa do
meu esforço para descer.
— Como assim intencionalmente?
A mesma melodia interior que me deu coragem para falar há pouco me alerta para não contar nada
sobre a mariposa, sobre o estranho e nem sobre a música.
— Pelo que eu sei — exponho —, este lugar é um reino mágico. E a coisa que acabamos de ver é
um intraterreno... Um de seus habitantes.
— Mágico? — Jeb me fita como se minha cabeça estivesse torta. — Não me lembro de a versão
de Lewis Carroll mencionar alguma coisa sobre um esqueletinho ambulante.
— Alice devia ser muito jovem para entender o que viu. Talvez sua mente tenha bloqueado os
detalhes mais sinistros. — Olho para minhas mãos enluvadas, simpatizando com o desejo de
esconder as memórias ruins em um nível em que poucas pessoas o fariam.

— Se você estiver certa — opina Jeb —, então nosso guia está errado. — Ele olha para o
pontinho de luz do sol lá em cima. — A entrada ainda está aberta. — Ele me desce para o chão, mas
me mantém segura pelo cotovelo.
Agarro a lapela de seu smoking. — Não está vendo? Não importa que o País das Maravilhas seja
diferente do que Carroll escreveu. Todos esses anos, Alison ficou trancada em um hospício a troco
de nada. É real. Você não estava lá hoje. Eles a trataram feito uma inválida. Se eles fritarem o
cérebro dela, ela pode ficar inválida para sempre. Eu não vou sair daqui sem ajudá-la!
— Já temos com quê ajudá-la. O bolo e o frasco.
— Não é suficiente. Eu tenho que consertar coisas que Alice fez. Ele me disse... — Tarde demais
para me conter.
— Quem disse?
— Eu... encontrei um site. — Cerro os dentes. Já falei demais.
— Algum pervertido te atraiu para cá por algum site de magia? — Jeb não solta meu braço.
— Não exatamente.
— Já terminamos. — Agora ele não está mais me escutando. — Vou levar você para um lugar
seguro. — Ele desliza uma das cordas da cortina por trás de mim e em seguida a enrola no chão em
forma de espiral. — Primeiro nós pegamos todas as cordas e as amarramos juntas para fazer um laço.
Depois, vamos usar a mobília que está na parede do túnel para subirmos. Vai ser como daquela vez
em que escalamos as rochas do desfiladeiro, há alguns anos.
Não sei o que me assusta mais: o fato de o plano ser bom e poder dar certo ou meu desejo de que
ele não dê.
A voz do meu guia retorna, desta vez severa, quase raivosa. “Estou cansado destes jogos. Beba
da garrafa. Um gole. Encontre-me.”
Luto para me desvencilhar de Jeb, mas ele é muito forte. Ele já está na quarta corda quando um
som seco e estridente reverbera acima de nós. Ambos vemos o pontinho de sol ficando totalmente
escuro — a estátua se fechou para nós.
Com o queixo caído, Jeb larga a corda e o meu braço. Saio disparada pelo corredor, pegando a
mochila e uma vela da parede enquanto corro. Agacho na escuridão com os gritos de Jeb
ricocheteando em torno de mim.
Depois de quase tropeçar nos cadarços de minhas botas, uso a boca para segurar a vela e liberar
uma mão. Inspeciono o conteúdo da mochila, procurando o frasco marrom. A chama da vela projeta
centelhas amarelas pelas paredes.
Jeb está bem atrás de mim. Não quero envolvê-lo ainda mais nessa bagunça, mas a única maneira
de mantê-lo a salvo é tendo-o comigo.
Curvo-me para continuar andando, pois a passagem fica mais estreita. Tiro a corrente do meu
pescoço e a envolvo no pulso, de modo que a chave fica pendurada e solta. De alguma maneira, sei
que, a menos que eu queira que a chave encolha também, ela não pode me tocar. Bem adiante, onde a

passagem fica mais estreita, posso ver uma miniatura de porta.
Com a mochila dependurada em um ombro, tiro o frasco marrom e removo a rolha, entornando um
gole do líquido em minha boca do lado oposto aquele em que seguro a vela. O sabor amargo queima
minha garganta. Recoloco a rolha no frasco e guardo-o na mochila, largando-a no chão para Jeb.
— Só um gole! — grito, olhando para trás, e deixo a vela para ele.
Os músculos se encolhem — os ossos estalam. Cada centímetro da minha pele esquenta e aperta,
como se eu estivesse dentro de uma secadora de roupas, ficando cada vez menor. A náusea me revira
o estômago enquanto o corredor parece crescer à minha volta.
Quando olho para trás, Jeb está de barriga no chão, arrastando-se na minha direção com um braço
esticado, tentando me alcançar. Entrelaço-me em seus dedos, tropeço para a frente e, me debatendo
com uma chave que agora é do tamanho da minha mão, destranco a porta e mergulho de cabeça no
País das Maravilhas.

7

O mar de
lágrimas

Levanto-me, pequenina como um grilo, como no meu pesadelo recorrente. Só que desta vez não sou
Alice. E até agora ainda conservo minha cabeça.
Escalando um monte de terra, olho em volta. Um jardim de flores eleva-se mais adiante,
projetando sombras enormes. Pelas aberturas entre os talos, que mais parecem troncos, uma praia se
estende ao longo de um oceano sem fim. Um barco a remo vazio aguarda na margem — gigante
comparado a mim. Sal e pólen temperam o ar.
— Não pode ser. — A voz de Jeb ressoa.
Dou meia-volta sobre o calcanhar para olhar para ele, cobrindo os ouvidos. Um olho imenso espia
de dentro da porta da toca do coelho.
— Beba do frasco marrom — peço.
— Não consigo ouvir. — A fala dele faz tremer o chão debaixo dos meus pés.
Imito o ato de beber alguma coisa e estendo o dedo indicador, sinalizando o número um.
Jeb some.
Espero que ele esteja usando a mochila durante a transição. A julgar pelo tamanho atual das
minhas roupas, tudo o que tocar encolherá também.
Em questão de segundos, Jeb pula e atravessa a abertura com a mochila a reboque. A porta se
fecha atrás dele, com a chave do lado de dentro.
Arrebatando-me pela cintura, ele me puxa para si. — O que você estava pensando?
— Me desculpe.
— Pedir desculpas não vai consertar esta bagunça. Estamos do tamanho de insetos e trancados
para fora da única saída.

— Bom, foi você que deixou a chave na porta!
Seu rosto fica vermelho. — O que vamos fazer agora?
— Comemos um pouco de bolo e crescemos de novo.
Ele arregala as sobrancelhas, fingindo estar chocado. — É lógico. Vamos comer um pedaço do
bolo mágico de cem anos.
— Você pode ficar pequeno, se quiser. Posso carregá-lo no bolso.
Resmungando, Jeb tira a mochila dos braços. — Que seja. Vamos lá. Estamos menores do que
essas flores fedorentas, para gritar...
— O rapaz acha que nós fedemos, Ambrósia. — Uma voz áspera de bruxa irrompe do nada. Um
movimento varre o jardim, como se o vento fizesse oscilar as flores.
Jeb e eu recuamos, quase tropeçando na mochila que estava no chão.
Uma das margaridas gigantes se curva, produzindo uma enorme sombra azul. Uma boca distorcida
se escancara no centro amarelo da flor, e fileiras de olhos piscam em cada pétala. — Acha, sim,
Redolence. Que audácia — diz ela. — Sim, porque, se alguém aqui fede, é ele. Nós não temos
glândulas sudoríparas.
Jeb me empurra para trás dele, invertendo nossa posição. — Hum, Al? Não sou só eu que estou
ouvindo uma flor falar, certo?
Agarro a cintura dele, com o coração martelando contra suas costas. — Você se acostuma. —
Tento sufocar o pânico que me invade.
— O que isso quer dizer?
Não tenho tempo para responder, porque Jeb nos choca contra um talo enorme.
Uma capuchinha se curva, rosnando. Uma centena de olhos cinza se aninham em suas pétalas cor
de laranja. — Olhem por onde andam, por favor.
Vários dentes-de-leão sacodem suas pétalas, que mais parecem algodão, ralhando. Pequeninos
globos oculares projetam-se de suas sementes tufosas, como antenas de caracóis.
Engulo um grito quando todos eles começam a falar ao mesmo tempo:
— Há quanto tempo não recebemos visitas tão deliciosas?
— Em nossos anos pregressos ou nos anos futuros deles?
— Não importa de verdade. Eu estava mais querendo enfatizar esse fato.
Jeb nos conduz a uma pequena clareira no meio das criaturas tagarelantes e me vira para encará-
lo. — Elas acabaram de nos chamar de “deliciosos?”
Atrás de nós, um dente-de-leão espirra. As sementes explodem de sua cabeça tufosa, deixando
pontos vazios. — Meus olhos! Alguém pegue meus olhos! — Ele estende suas folhas para tentar
apanhá-los.

Logo adiante, um gerânio se curva no meio de seu talo e abre um balde que está no chão. A palavra
Pulgões está escrita em um lado, com tinta vermelha brilhante. Fisgando um inseto azulado do
tamanho de um rato, a flor cutuca a vítima, que se contorce, em sua boca e a mastiga, com baba
escorrendo pelas pétalas que formam seu queixo. Suas pálpebras se fecham por debaixo da baba.
A expressão de Jeb torna-se amendrontada. — Uma flor come um pulgão. Quem come acaba
comido! As pessoas às vezes comem flores, Al. Deliciosos...
Aquela pontada de desconforto se torna um soco daqueles de nocautear. — Devemos...
— Correr! — Jeb me pega pela mão e me força a correr na direção da porta da toca do coelho.
— Como vamos entrar? — Minhas coxas doem com a trepidação de cada passo.
— Quebramos o maldito cadeado.
Eu quase tropeço nos saltos de minhas botas. Jeb não dá descanso, me arrastando pelo caminho. —
Não precisamos ir tão depressa! Elas estão presas no chão!
— Não aposte nisso — retruca ele.
Sigo o olhar dele e olho para trás. É como um filme de zumbis — as flores gemem e cortam seus
talos da terra; suas bocas se escancaram e são mantidas abertas por dentes longos e espigados, claros
e com baba pingando feito pingentes de gelo. O dente-de-leão careca se liberta primeiro, e nele
brotam braços e pernas humanos. Ele usa suas raízes para conseguir impulso, como se estivesse
sendo carregado por serpentes. Ainda usa um ramo de hera como chicote e o enrosca no pescoço de
Jeb, laçando-o. Com um puxão, ele o derruba.
— Jeb! — Pego seus pulsos e inicio um cabo de guerra contra a flor sibilante.
— Não podem sair por onde entraram — outra flor grunhe, contorcendo-se em sua cova de terra a
alguns metros dali. É então que percebo que elas não são flores. Não flores de verdade. Assim como
o dente-de-leão, braços e pernas aparecem quando elas se desprendem do chão.
Elas são parte humanoides, parte plantas — mutantes de olhos múltiplos.
— A toca do coelho só possui abertura para o nosso reino. Os portais que se abrem para o seu são
guardados nos castelos bem distantes do oceano, dentro do coração pulsante do País das Maravilhas
— explica uma flor, acenando com o braço. Trepadeiras se agarram à carne esverdeada de seus
bíceps nus. — É lá que fica a única saída. Você não acha que já teríamos saído se houvesse como
fugir da toca?
Pensei em toda aquela mobília enfiada nas paredes do túnel com hera. Então, elas vinham tentando
construir um caminho para entrar em nosso mundo? Sinto um arrepio.
Jeb luta com as trepadeiras, que agora se enroscam em sua cintura. — Al, corra — grita.
— Sim, corra — aconselha o dente-de-leão, zombeteiro. Ele pega meu queixo com dedos de
musgo e inclina a cabeça para me ver com os três olhos que lhe restam. — Corra ou seja comida.
Uma nova onda de pavor me percorre a espinha. Eu o rechaço e sou surpreendida por um senso de
sabedoria: o menino intraterreno das minhas lembranças certa vez me ensinou a derrotar essa flor.

É fácil como soprar tufos ao vento.
Num impulso, estendo o braço e arranco o que sobrou de suas sementes, deixando-a cega. Um
líquido branco gosmento que brota dos globos oculares expostos escorre pelas minhas mãos. A flor
dá um grito agudo e cai no chão, inválida.
Tenho o pressentimento de que Jeb está tentando pegar o canivete do bolso por baixo das cordas
verdes que o prendem. Se eu puder criar uma distração, talvez ele possa nos tirar dessa.
Levanto as sementes do dente-de-leão. Os globos oculares pegajosos se contorcem em minha mão,
tentando olhar para mim. Eu os jogo no chão e piso neles. — Quem é a próxima? — digo, esperando
parecer durona, mas minha voz vacila.
As flores-zumbi uivam e lançam seus ramos, envolvendo meus calcanhares. Serpentes de hera me
sobem pelas pernas e torso até o peito, selando-me feito um casulo de folhas tão espesso que só
minha cabeça e braços erguidos ficam livres. Depois, dois cordões prendem meus pulsos. Com um
puxão, eles me viram de barriga para baixo. Não posso me mexer.
Quase me esqueço de Jeb e do dente-de-leão enquanto os outros me rodeiam.
Mãos disformes, verdes de clorofila, deslizam sobre mim — frias e ásperas como folhas caídas de
uma árvore depois de uma tempestade. A tontura anuvia o meu pensamento. Os ramos estão
apertando muito. Não consigo me soltar. Não consigo nem inalar o ar para gritar.
Rajadas de ar quente me envolvem. Com os olhos bem fechados, soluço. A baba escorre da boca
de alguém para a minha nuca, grudando em meu cabelo.
— Espere! — grita uma delas, muito perto do meu ouvido, que zune. — Ela está usando as luvas!
Escorregando a face contra o chão arenoso, olho para cima e vejo centenas de cílios piscando em
rápida sucessão.
— É verdade! — grita alguma coisa estranha com cabeça de rosa branca. — Você está com o
leque também?
Com o pescoço torto, faço que sim. Minha narina esquerda fica cheia de terra com o movimento.
— Devemos comemorar! — Elas passam o balde de pulgões uma para a outra.
— Acham que é ela? Depois de todo esse tempo? — pergunta uma flor com pétalas cor-de-rosa,
mascando seu lanchinho.
— Ela bem que parece com você sabe quem.
— Essa parece até mais endiabrada, certamente — Pinky acrescenta. — Os olhos de um lírio
tigrado ela tem.
— Imaginem só. — Uma das flores joga um pulgão esperneante na boca e passa o balde. — Em
breve estaremos ligadas ao coração do País das Maravilhas mais uma vez!
A de cabeça rosada inclina-se, voltada para mim. — Então, você está aqui para consertar as
coisas?
Meu olhar passa por suas hastes. Jeb está quase se libertando das trepadeiras. Só mais um

pouquinho. Vencendo o medo que me paralisa o peito, forço-me a falar. — Sim. Para consertar as
coisas.
— Já era hora. Podemos colher raízes, mas não podemos flanar sobre a água, nem dentro de um
barco. Devemos permanecer fincadas ao solo. O caminho para o coração do País das Maravilhas tem
que ser aberto para nós. Para que isso aconteça, as lágrimas de Alice devem ser secas. É o seu
trabalho!
— Ouviu, ouviu? — pronunciam todas em uníssono. — Seu trabalho é consertar os erros dela.
A rosa ergue dois dedos espinhentos para silenciar o resto do jardim. — Você deve atravessar o
mar e ir até a ilha das areias negras. Dentro do coração do País das Maravilhas, o Sábio aguarda. Ele
está aqui desde o começo. Ele fuma o cachimbo da sabedoria. Ele sabe o que deve ser feito.
— Cachimbo? Quer dizer a Lagarta? — pergunto.
Um riso maldoso irrompe entre os que me capturaram.
— A Lagarta — zomba Pinky. — Bem, suponho que você pode chamá-lo assim. É como a outra o
chamava.
— A outra? — pergunto.
— A outra você — explica a rosa. — Aquela cujas lágrimas formaram o mar que agora nos isola
do resto da nossa espécie. Já era hora de uma descendente vir aqui reparar as coisas.
Antes que eu possa responder, um monstro laranja levanta-se para falar. Uma ramagem espigada
lhe cai da boca e fica presa em sua baba. Urtiga selvagem lhe cobre as unhas das mãos. — Podemos
pedir ao octobenus para atravessá-la. Usaremos o cavaleiro élfico para influenciá-lo. Só o sangue
dele já vale por todo o ouro branco do palácio da Rainha de Marfim. O octobenus pode trocá-lo por
um bando de mariscos. Ele nunca mais vai passar fome. Ele não pode recusar tal oferta.
— Este rapaz não é cavaleiro — diz a rosa. — Ele desceu com ela.
A laranja balança as pétalas. — Ele foi enviado para acompanhá-la. Ele tem olhos cor de
esmeralda, e a gota de sangue em seu lábio cristalizou-se e formou uma pedra preciosa. Ele é
inegavelmente um cavaleiro élfico da Corte Branca.
Tento acalmar meus pensamentos para analisar a conversa delas. Elas pensam que o piercing no
lábio de Jeb é uma marca de intraterreno. Procuro-o para ver se ele ouviu, mas ele não está mais
preso pelas trepadeiras.
— Bem, ele não está com o uniforme! — berra Pinky. — Vamos ver se suas orelhas são pontudas.
Elas viram as costas. — Ele fugiu!
As flores saem disparado na direção do som do zíper da mochila, mas Jeb já está com o bolo nas
mãos.
Em menos de dois segundos, ele fica muito mais alto do que nós. Com o corpo encolhido e tenso,
ele varre o jardim com uma de suas botas gigantes. As flores gritam, agrupadas juntas em um buquê
de pétalas tremulantes.

Jeb está elegante e majestoso como um deus grego, adorável e temível em sua ira. Ele me ergue de
modo que eu fico pendurada em seus dedos por ramos de hera, amarrada em meu casulo como um
ioiô impotente.
Uma onda de nervoso percorre meus membros. Tenho que escapar... As amarras estão muito
apertadas... Não consigo expandir os pulmões.
— Não consigo respirar! — debato-me, mas o esforço só me consome mais depressa. Meu
estômago balança feito um pêndulo. As criaturas floridas gritam e se desesperam por mim, mas Jeb
cerra os dedos e me aninha dentro de sua mão — uma escuridão terna, porém sufocante.
— Shh. Peguei você, Al... — Sua respiração se precipita sobre mim quando ele abre a mão.
Meu medo de altura briga com uma claustrofobia que acabo de adquirir. Rolo por sua pele quente
até que seu dedão, cuidadosa e carinhosamente, me detém. Enrijeço o corpo para permitir que ele
desate os ramos de hera. Seus dedos gigantes e calejados são gentis, apesar do tamanho.
No minuto em que me solto, agarro o dedão dele — quase maior do que eu — e esfrego o nariz
sobre ele. O dedo tem gosto de grama, glacê e todos os sabores de Jeb, em proporções maiores. Meu
coração martela contra sua articulação interna. — Obrigada — agradeço, sabendo que ele não
consegue me ouvir.
Com cuidado, ele me leva na direção do seu rosto. Seus olhos são do tamanho de pires de uma
xícara de chá, enormes e emoldurados por cílios como uma touceira de musgo e sombras. — Fique
firme — sussurra ele.
Ele me levanta até seu ombro. Monto em uma alça da mochila. Com uma mão e as duas botas bem
presas para ficar mais segura, aceno para ele.
Diante do meu sinal, Jeb chuta o balde de pulgões, libertando-os. Ele ruge para as flores e elas se
enraízam novamente na terra, recriando o jardim que antes nos rodeava. Ele as ultrapassa com apenas
um passo. Sorte delas não terem sido esmagadas.
Chegamos ao barco a remo, e Jeb estende a palma da mão para me abaixar até ele. A textura da
madeira lembra ondas de areia em um deserto, com lascas pontiagudas feito os pelos de um porco-
espinho. Encontro uma superfície e aguardo.
Jeb coloca a mochila no casco do barco. Ele vasculha dentro dela e sua mão reaparece,
equilibrando um pedaço de bolo sobre a ponta do dedo. Para ele, provavelmente não é mais do que
uma migalha. Levanto-me e como o bolo do seu dedo, fechando os olhos enquanto meus ossos e
minha pele se distendem e expandem feito elásticos. Quando volto a olhar para nós, estou
perfeitamente proporcional a ele, sentada no barco, e Jeb está agachado diante de mim, observando
ansiosamente.
— Tudo bem? — Ele esfrega as mãos nas minhas coxas.
Controlo meu estômago. — Tudo.
— Certo. Tomara que a gente não tenha mais que fazer esse número de encolher-crescer. As
entranhas doem. — O casaco dele está enfiado no fundo do barco e seus braços nus cintilam de suor.
Ele passa a mão no cabelo, deixando-o desgrenhado. — Essas luvas salvaram a sua vida — observa

ele. — Por que você teve a ideia de usá-las?
Sinto-me incapaz de colocar em palavras a sensação estonteante ou a lembrança de uma infância
aqui, então, tento resumi-las. — Um palpite feliz?
Ainda vejo as flores se metamorfoseando em monstros perante nossos olhos. Como disse Jeb, este
não é o País das Maravilhas que Lewis Carroll criou. Mas, de alguma maneira, meus instintos nos
foram úteis até agora. Graças ao meu guia intraterreno ausente.
Tenho que encontrá-lo. Quanto mais fico aqui, mais me sinto atraída por ele. Vamos encontrar a
Lagarta, como sugeriam as flores. Com sua sabedoria, ela poderá ajudar a encontrar o meu guia e a
romper a maldição.
Como se lesse minha mente, Jeb sai do barco a remo e empurra a proa na direção das ondas
brilhantes. A areia arranha o fundo do barco e ele pula para dentro quando já estamos na água. —
Elas disseram que existe uma saída do outro lado do mar. Acho que é nossa única opção. — Falando
do banco à frente ao meu, ele rema com força, e os músculos de seus bíceps se enrijecem.
— Você acha mesmo que essas são as lágrimas de Alice? — pergunto. — Que eu devo encontrar
um modo de fazer com que elas sumam?
— Não sou a pessoa certa para responder isso. Acabo de ver um esqueleto com antenas e uma
floresta de flores zumbis que devoram pulgões.
Apoio os cotovelos nos joelhos. — Me desculpe por ter surtado quando estava presa pelos ramos.
— Finalmente, agora sei como é ser Alison, presa dentro de um pesadelo.
— Está brincando — pergunta Jeb. — Você se atirou como isca para eu poder escapar. Não fiquei
animado quando você se meteu na linha de fogo, mas foi uma ótima tática de distração. Olhe. — Ele
cutuca minha bota com a bota dele. — Vê se descansa um pouco.
Recosto-me para relaxar meus músculos doloridos. O som ritmado do remar aquieta meus olhos
fechados. Não faz nem um minuto que estou descansando quando Jeb assobia.
— Olhe. — Ele aponta para algo atrás de mim.
Com exceção da praia que acabamos de deixar e que vai desaparecendo conforme a distância, não
há mais nada. Estamos cercados por água em todas as direções. Enquanto tento compreender aquilo,
o sol desaparece, como se alguém tivesse desligado um interruptor. Tensiono os músculos do corpo
no assento, os dedos apertando as bordas do barco.
— O que aconteceu? — indaga ele, com a voz nervosa.
— É a noite. Não existe crepúsculo aqui — respondo, tão segura quanto estou de que remamos na
direção certa para encontrar o sujeito alado do meu passado.
Jeb apenas me olha e continua remando.
Estrelas faíscam no céu roxo, refletindo a água escura que faz redemoinhos ao nosso redor. Nós
também giramos, o barco flui em círculos lentos até que fica impossível diferenciar o que é água e o
que é céu.

Jeb recolhe os remos. — Não adianta remar. Temos que deixar a corrente nos levar e esperar o
melhor. — A luz das estrelas faz seu piercing brilhar.
— Pode me passar a mochila? — Tenho uma necessidade repentina de olhar para os desenhos do
livro de Alice.
Jeb tira duas barras de cereais e uma garrafa de água, depois pisa por cima dos remos para chegar
até mim, fazendo com que balancemos um pouco. — Você precisa comer. — Ele me dá a mochila e a
barra, e depois se senta de pernas cruzadas diante de mim.
Coloco a barra de lado, abro a água e tomo um gole. Depois, tiro o País das Maravilhas da
mochila. — Elas acharam que você era um cavaleiro élfico da Corte Branca.
Jeb rasga a embalagem de sua barra. — É, seja lá o que isso for.
Folheio os desenhos. — Aqui. — A figura poderia ser um gêmeo de Jeb: corpo musculoso, queixo
quadrado, cabelo escuro, pontos vermelhos com pedras preciosas alinhados nas têmporas e lábios.
Olhos verde-escuro e aveludados como a parte interna das folhas. A única diferença são as orelhas
pontudas.
Jeb analisa a imagem, mastigando.
— Eles servem a Rainha de Marfim — explico — em seu castelo de vidro. O sangue deles
cristaliza quando em contato com o ar. É assim que eles se marcam, abrindo buracos na carne de
modo que seu sangue possa vazar e se tornar uma pedra preciosa. Eles são treinados para não ter
emoções, para agir somente por instinto. O excesso de autocontrole os torna protetores ferozes, mas
também torna a rainha muito solitária.
Engolindo, Jeb levanta a cabeça. — Parece que você está lendo direto de uma enciclopédia. Como
sabe tudo isso?
Viro as páginas até deparar-me com o coelho esquelético. — Do mesmo modo que sei que o
Rábido Branco foi torturado por um feitiço que foi comendo sua pele e deixou somente seus ossos.
Mas a Rainha Vermelha o resgatou, detendo a magia malévola antes que chegasse ao rosto dele. Ele
jurou servi-la e a ninguém mais até o dia de sua morte. Então, por que ele está servindo a alguém
chamado Grenadine agora?
— Ahn?
Balanço a cabeça. — Nada. Olha, você me viu lá atrás. Eu sabia como deter aquele crápula do
dente-de-leão. Eu sabia como entrar no espelho. É porque me ensinaram.
Jeb amassa a embalagem da barra de cereais e a enfia na mochila, depois fica esperando que eu
explique.
— Eu não sei como, mas, antes de Alison ser internada na clínica, eu estive aqui. Devo ter vindo
muitas vezes — estou lembrando cada vez mais. Acho que eu devia vir mais à noite. Quero dizer,
durante a noite do nosso mundo. Enquanto meus pais dormiam.
Jeb não se mexe, mas vira os olhos para o céu.
Desmorono. — Você acha que sou louca, não é?

Ele sopra e bufa. — Você já olhou à sua volta? Se você for louca, eu sou louco também.
Deixo escapar um riso de alívio. — Bem lembrado.
— Muito bem, é hora de você ser franca comigo. — Ele tira os outros tesouros que encontrei na
poltrona e coloca tudo aos meus pés. — Comece pela sua mãe. Por que ela foi mandada para a
clínica? — Ele faz uma pausa. — E o que isso tem a ver com suas cicatrizes? Certamente elas não
são o resultado de um acidente de carro.
Depois de mais um gole lento de água, conto a minha história, das tesouras de podar aos narcisos
que sangram. Mas não estou pronta para compartilhar detalhes da mariposa, tampouco do meu guia
sombrio. Essas memórias parecem particulares, de algum modo.
Quando chego à parte sobre os insetos e plantas falantes que Alison e eu ouvimos, o olhar dele se
intensifica.
Ela brinca com os cadarços de minha bota. — Então, você escolhe insetos para sua arte porque é a
única maneira que você consegue de...
— Silenciá-los? É.
Ele balança a cabeça. — E eu achava que a minha infância tinha sido torta. Não é de admirar que
você tenha medo de acabar na Clínica das Almas também. — Ele se apoia nos cotovelos. — Agora
entendo. Aquela batalha que sempre vejo nos seus olhos. Luz e escuridão. Como nas minhas fadas
góticas. — Ele me analisa como se eu fosse uma obra de arte novamente.
— Então, os desenhos que você fez de mim... São a base para a sua pintura?
As sobrancelhas dele se erguem.
— Todas as vezes que peguei você olhando para mim como se eu fosse uma paleta de tinta.
Batendo os dedos no barco, ele fecha uma carranca. — Não sei bem do que você está falando.
— Eu sei sobre os esboços que a Taelor encontrou.
Alguma coisa — pode ser surpresa ou vergonha — percorre seus olhos.
Estico os dedos. — Ela está certa, não é? As coisas mórbidas e repulsivas são sujeitos
fascinantes. — Me dói dizer aquilo quase tanto quanto me doeu ouvir.
— Foi isso que ela disse?
Levanto um ombro num gesto de afirmação silenciosa.
Jeb se endireita e coloca uma mão no meu queixo. — Olhe, ela ataca quando se sente ameaçada.
Depois que encontrou os esboços... Ela perdeu o prumo. Quero dizer, o sujeito que ela está
namorando tem uma obsessão estética por outra garota. Dá para ver o lado dela, não dá?
— Talvez. — Eu nunca poderia adivinhar que eu era a obsessão de alguém, estética ou qualquer
outra coisa. Se eu inspiro a arte dele, então por que foi a Taelor que ele escolheu ter em sua vida? —
Jeb... Por que você a aguenta?
Ele faz uma pausa. — Acho que é porque eu sou a única coisa estável que ela tem.

— E, consertando os problemas dela, você espera compensar tudo o que seu pai fez para a Jen e
sua mãe?
Jeb não responde. Me vale como um sim.
Sou tomada por um sentimento de ódio ao pensar na fraqueza e na violência do pai dele. — Você
não é responsável pelos erros dele. Só pelos seus próprios. Como ir para Londres com Taelor.
— Isso não é um erro. Vai ajudar na minha carreira.
Fixo o olhar nas minhas botas. — Muito bem. Assim como o meu “estilo Mortícia” vai ajudar a
minha. — Ensaio uma risada, mas até para mim ela parece falsa.
— Olha. — A insistência na voz de Jeb me faz levantar o olhar para ele. — A Tae estava errada
sobre isso, sabe? Você acha que minhas pinturas são feias ou aberrantes?
Penso nas aquarelas dele: mundos de beleza sombria e fadas góticas vertendo lágrimas negras
sobre cadáveres humanos. Sua descrição da tristeza e da perda é tão pungente e surreal que me toca o
coração.
Entrelaço minhas mãos enluvadas. — Não. Elas são lindas e assustadoras.
Ele aperta meu queixo. — Um artista só é bom quando seu modelo é bom.
Por um único instante que pareceu se estender, ficamos em silêncio. Em seguida, ele me solta.
Esfrego os joelhos, esquentando meu legging. — Posso vê-los algum dia?
— Os esboços?
Eu faço que sim.
— Uma coisa eu digo: se sairmos dessa inteiros, eu faço uma exibição só para você. — Ele
mantém o olhar sobre o meu por um minuto longo demais, e meu sangue ferve. Como vou conseguir
deduzir qualquer coisa se não consigo nem ler os sinais do meu próprio corpo?
— Tá bom. — Ele olha para o livro País das Maravilhas que está sobre seu colo e separa as
fotos de Alice, aproximando-se. — O que é isto? — Ao ligar a lanterna, ele aponta sua luz amarela
para elas, efetivamente me distraindo do golpe causado por minhas emoções.
As imagens estão esmaecidas e gastas. Em uma delas, há uma menina triste e linda com manchas
de terra no vestido e no avental. As palavras Alice, sete anos de idade e recém-saída da toca do
coelho estão escritas a mão na parte de trás. A outra foto é de Alice aos oitenta e dois anos de idade.
Eu as coloco lado a lado. O que foi mesmo que Alison disse? “As fotografias contam uma
história. Mas as pessoas se esquecem de ler nas entrelinhas.”
Ela disse a mesma coisa quando passou o dedo em minha marca de nascença — insistindo que
havia mais coisas na história que as pessoas não sabiam.
Espiando as fotos mais de perto, procuro o rosto e o corpo da jovem Alice. Há uma sombra em seu
cotovelo esquerdo que parece combinar com o labirinto pigmentado que Alison e eu compartilhamos.
Analiso o mesmo ponto na Alice mais velha, mas não há marca de nascença.

— É isso! — Aponto para as fotos. — Ali e ali. Quando era criança, Alice tinha uma marca de
nascença que combinava com a minha e a de Alison, mas ela a perdeu quando ficou velha.
Jeb segura as duas fotos sob a luz. — Será que a foto foi retocada?
— Por que alguém faria isso?
Jeb estende a mão, pega a barra de cereais no banco ao meu lado, abre a embalagem e envolve
meus dedos em torno dela — insistindo, em silêncio, para que eu coma. — Existem respostas no
livro?
Mastigando um naco da barra de granola, vou repassando as páginas. Passo o dedo sobre as
anotações borradas de Alison nas margens enquanto Jeb segura a lanterna. — Pode ser, se essas
notas estivessem legíveis. — Chego ao final, depois dos esboços e das últimas páginas, e estou
prestes a colocá-lo de lado quando Jeb toma o livro de mim.
— Olhe aqui.
Se ele não tivesse mostrado, eu não teria percebido a página em branco dobrada ao meio e colada
de modo a formar uma bolsa voltada para dentro da última capa. Retiro de lá um pedaço de papel
dobrado. É velho, está amarelado e amassado.
As palavras Língua dos mortos estão rabiscadas atrás, seguidas por uma trilha de pontos de
interrogação tortos, e depois uma definição escrita a mão. Língua dos mortos: a língua dos
moribundos. Só se pode usá-la com aquele que foi a causa de sua desgraça. É a recompensa final,
designar uma tarefa que o ofensor deve cumprir ou ele deverá morrer.
Jeb e eu olhamos um para o outro. Eu desdobro o papel para vermos o que está escrito dentro. Sei,
depois da primeira sentença, que é algo em que eu gostaria de nunca ter posto os olhos. Mas não
posso fingir que não vi...

14 de novembro de 1934: Na data da avaliação mental, Alice Liddell Hargreaves é uma mulher
de 82 anos, miúda, que foi trazida a nós por membros da família preocupados. Segundo os
parentes, seu estado mental começou a se deteriorar meses atrás, quando ela acordou certa
manhã, não reconheceu onde estava e tinha somente uma vaga noção de sua identidade.
O psicólogo que conduziu as entrevistas nota que a paciente está preocupada com pensamentos
interiores, frequentemente cismando com o tamanho do recinto e sentindo-se oprimida por ele.
Ela ocasionalmente fica agachada em um canto ou se aninha em uma cadeira quando está sendo
entrevistada. Ela é desatenta e vaga, e tem interações vívidas com objetos inanimados, mas se
mantém isolada de trocas com seres humanos.
A paciente é desorientada quanto ao espaço físico ou lugar, com uma acentuada deficiência
para se situar no tempo, sendo inclinada a dissertações melancólicas sobre a perda de 75 anos
que ela alega ter passado trancada em uma gaiola de pássaro no “País das Maravilhas”, tendo
sido “persuadida pela estátua de um menino quando tinha sete anos para entrar na toca de um
coelho”.
O psicólogo que a examinou atribui isso ao elaborado delírio originado por uma infância
devotada à imaginação vívida que foi alimentada por um amigo íntimo da família Liddell

chamado Charles Dogson, também conhecido como Lewis Carroll. A paciente recorreu a essas
fantasias para explicar sua perda de memória.
Visto que a paciente exibe os seguintes sintomas: (1) delírios elaborados e amnésia seletiva, (2)
interesse e prazer acentuadamente diminuídos em interações sociais, exceto a socialização com
insetos ou plantas, (3) ausência de apetite; prefere frutas e sobremesas e recusa-se a ingerir
alimentos nutritivos a não ser que a bebida seja servida em um dedal e a comida, em um
comedouro de pássaro — ela foi diagnosticada como maníaca e esquizofrênica.
Tratamento recomendado: eletrochoque duas vezes por dia — voltagem natural administrada
através da aplicação de uma enguia elétrica na cabeça. O aconselhamento psiquiátrico deverá
acompanhar o tratamento até que todos os delírios sejam contidos, a memória seja restaurada e o
ânimo da paciente seja elevado.

Atiro o relatório para Jeb.
Ele me observa. — Você está bem?
Como responder? Minha tataravó mergulhou tão fundo em sua psicose que não conseguia se
lembrar de seu passado nem do presente. As idiossincrasias do dedal e do comedouro são muito
parecidas com a obsessão de Alison em relação às xícaras de chá. A consistência me perturba.
Poderia estar acontecendo mais alguma coisa... Não um delírio, mas uma manipulação? Seria por
isso que Alison esteve tão envolvida no mistério de Alice? Seja o que for, é óbvio que ela caminha
para o mesmo destino das minhas outras ancestrais.
— Entende agora por que eu não posso deixar que ela prossiga com esses tratamentos? — Aponto
para o papel. — A data da morte de Alice. Ela morreu dois dias depois do relatório. A terapia de
eletrochoque deve tê-la matado!
Com um puxão, arranco meus dreadlocks — ignorando o buraco na raiz do meu cabelo — e os
lanço ao mar. Estou cansada de refutar a minha semelhança com Alison. Já que somos parceiras neste
jogo bizarro, também podemos ser parecidas.
Jeb me puxa para sentar ao lado dele, mas o barco balança e eu acabo caindo em seu colo. Nós
dois ficamos imóveis. Quando eu começo a tirar minhas pernas, ele me segura no lugar. Meu coração
está aos pulos; não posso negar o quanto é incrível ficar tão perto dele. Ignorando os alarmes que
soam dentro de mim, cedo e aperto o rosto contra a pele macia de seu abdômen, com meus braços
cruzados entre nós. Ele afaga meu cabelo e eu me aconchego debaixo de seu queixo, com as pernas
recolhidas em posição fetal.
— Estou assustada — sussurro. Por mais razões do que eu posso contar.
— Você tem todo o direito de estar — responde ele, com suavidade. — Mas nós vamos voltar
para casa. Vamos contar tudo ao seu pai. Com os dois depoimentos e este relatório do laboratório,
ele tem que acreditar.
— Não. Isso só prova que Alice era tão louca quanto ele acha que Alison é. No fim, ela nem se
lembrava que tinha casado e constituído família. Mesmo com a prova viva dos filhos e netos à sua
volta, ela não lembrava.

Jeb fica em silêncio.
— Não quero acabar numa camisa de força — desabafo, refreando o choro. — Com todas as
minhas lembranças perdidas... Ou tão sem sentido que poderiam ser de qualquer outra pessoa.
Os braços de Jeb se retesam ao meu redor. — Seu futuro não vai ser assim, Alyssa Victoria
Gardner. — Ele nunca me chamou pelo nome completo. Jeb o fala que nem meu pai, agregando poder
a cada sílaba, exatamente o que eu preciso.
— Então como vai ser? — pergunto, faminta por qualquer migalha que ele possa me dar.
— Você vai ser uma artista famosa. — A voz soa extremamente delicada, calma e segura. — Você
vai viver em um daqueles apartamentos chiques em Paris com seu marido rico. Ah, que por acaso é
um exterminador mundialmente famoso. Que tal essa mudança de destino? Você nem vai precisar
caçar seus próprios insetos. Assim você terá mais tempo para passar com seus cinco filhos
brilhantes. E eu irei visitá-la todo verão. Vou aparecer na porta com um vidro de molho de churrasco
do Texas e uma baguete francesa. Eu vou ser Tio Jeb, o esquisito.
Tio Jeb? Gosto da ideia de tê-lo para sempre em minha vida. Mas, quando olho para seu abdômen
maldito sarado e imagino os traços torneados do seu tórax — um maldito conjunto de pontos feitos
um por um, cada vez que ele acidentalmente deixava cair uma bebida ou deixava um brinquedo para
que seu pai tropeçasse —, fico passada ao perceber como os sentimentos antigos nos arrebatam.
Embora o tecido cubra as cicatrizes, conheço cada uma delas de cor. Eu as vi inúmeras vezes,
quando íamos nadar juntos ou trabalhávamos na garagem dele. Sonhei com elas na sexta série,
imaginando como seria traçar aquele caminho com a ponta de meus dedos.
Neste momento, estou imaginando a mesma coisa. Como seria curar as feridas dele com o meu
toque.
— Um exterminador, não — falo sem pensar junto ao pulso que treme em meu pescoço.
— Ahn?
Faço uma pausa. — Vou me apaixonar por um artista. E teremos dois filhos e viveremos no
campo. Uma vida tranquila, para que a gente possa ouvir nossas musas e responder quando elas
chamarem.
Ao segurar a ponta do meu queixo para encontrar seu olhar, ele me dá um sorriso terno, iluminado
pelas estrelas — que me derrete as entranhas. — Gosto mais da sua versão.
A boca dele está tão perto da minha, sua respiração tão quente, adocicada e tentadora, mas a
lembrança de Taelor e Londres me voltam à mente. Não posso deixar meu coração ser roubado por
um cara que gosta de outra garota ou ser o tipo de pessoa que rouba o namorado de outra. Eu já
roubei dinheiro de Taelor e já deixei tudo isso chegar aonde chegou. Pulo do colo dele, com minha
saia de renda raspando nas calças de seu smoking.
Como se tivesse saído de um transe, Jeb senta-se sobre as palmas das mãos e olha para a água
ondulante.
— O que você acha que vai acontecer amanhã? — pergunto com a voz tão trêmula quanto o resto
de mim.

— Aconteça o que acontecer, não se jogue nas coisas sem mim. Vamos fazer tudo juntos. Fechado?
— Ele levanta uma das minhas mãos, estica a minha luva amassada e fecha os meus dedos enquanto
espera por uma resposta.
— Fechado — concordo.
— Bom. — Ele bate meu punho fechado no dele. Eu tremo; por causa da brisa fria e também pela
doçura do gesto.
— Tome. — Jeb pega o casaco de seu smoking e me ajuda a vesti-lo. Depois, coloca tudo dentro
da mochila. — Vamos tentar dormir um pouco.
Ele aninha minhas costas contra seu peito, e ficamos de conchinha no fundo do barco. O nariz dele
descansa no meu cabelo. Uma espiral de estrelas brancas se enrola e explode em suaves centelhas.
Parece uma espiral de relâmpago, o mosaico da aranha e do besouro no qual eu trabalhei hoje cedo
antes de ir andar de skate no Submundo. Outro tremor me percorre. Lembro-me de ter visto as
mesmas constelações com meu guia intraterreno anos atrás. Não me surpreende que isso tenha
aparecido na minha arte.
— Espero que não seja uma tempestade a caminho — Jeb sussurra na minha nuca, com os braços
apertados em volta de mim. — Este barco não aguenta ondas fortes.
Enfiando minha mão no bolso da saia num gesto distraído, cutuco a esponja que meu guia quer que
eu guarde.
— É só uma constelação — respondo, e Jeb não questiona como eu sei aquilo.
Em silêncio, observamos o desenho do céu até que ele rompe em mil cores resplandecentes, como
silenciosos fogos de artifício. Ao final, não resta mais nada além das estrelas brancas comuns.
— Uau! — Nós dois exclamamos.
Depois de alguns minutos em silêncio, Jeb relaxa e sua respiração fica rascante, lenta e estável,
contra a minha nuca. Embora seja o corpo de Jeb que me mantém aquecida, a última coisa que
visualizo antes de cair no sono são olhos negros de tinta e asas brilhantes envergadas.

 

 


CONTINUA