Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MISTÉRIO DA TORTA / Alan Bradley
O MISTÉRIO DA TORTA / Alan Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

DENTRO DO ARMÁRIO ESTAVA TUDO ESCURO como sangue velho. Elas me empurraram para lá e trancaram a porta. Inspirei forte, lutando para permanecer calma. Tentei contar até dez a cada inspiração, e até oito ao liberar o ar lentamente para dentro das trevas. Para minha sorte, elas tinham prendido a mordaça tão apertado em minha boca aberta que minhas narinas ficaram desobstruídas, e fui capaz de encher vagarosa e plenamente o pulmão com o ar viciado e mofado.
Tentei enfiar as unhas por baixo do xale de seda que me amarrava as mãos atrás das costas, mas como eu sempre as roí até a carne, não tinha como agarrar o tecido. Sorte eu ter me lembrado de juntar as pontas dos dedos, usando-as como dez bases pequenas e firmes para afastar as palmas, quando elas amarraram fortemente os nós.
Girei os pulsos, apertando um contra o outro até sentir um pouco de folga. Usei os polegares para puxar a seda para baixo até os nós ficarem entre minhas palmas e, então, entre meus dedos. Se elas tivessem sido espertas o bastante para pensar em amarrar meus polegares juntos, eu nunca teria conseguido escapar. Que completas idiotas elas eram.
Com as mãos por fim livres, me desfiz rapidamente da mordaça.
Agora, a porta do armário. Mas, primeiro, para certificar-me de que elas não estariam de tocaia me aguardando, agachei-me e espiei através do buraco da fechadura que estava livre. Graças aos céus, elas tinham levado a chave. Ninguém à vista! Com exceção do perpétuo emaranhado de sombras, trastes velhos e deploráveis bugigangas, o comprido sótão estava vazio. A área estava livre.
Esticando a mão acima da cabeça no armário, desatarraxei o gancho de um cabide para casaco. Enfiei a parte curva no buraco da fechadura e usei a outra ponta como alavanca. Depois de cutucar e futucar um pouco, o mecanismo produziu um gratificante clique. Foi quase fácil demais. A porta se abriu, e eu estava livre.

 


 


Desci aos pulos a larga escadaria de pedra até o vestíbulo, parando na porta da sala de jantar só o tempo suficiente para jogar minhas tranças para trás por cima dos ombros, como uso sempre.

O pai ainda insistia em que o jantar fosse servido na hora exata e comido na maciça mesa de carvalho, exatamente como quando a mãe ainda estava viva.

— Ophelia e Daphne ainda não desceram, Flavia? — ele perguntou em um tom irritado, olhando por cima da última edição do British Philatelist, aberto ao lado da sua carne com batatas.

— Eu não as vejo há séculos — respondi.

Era verdade. Eu não as via desde que me amordaçaram e me vendaram, depois me arrastaram com as mãos amarradas pelas escadas sótão acima e me trancaram no armário.

O pai olhou para mim por cima dos óculos pelos quatro segundos de sempre antes de voltar a murmurar algo sobre seus tesouros.

Lancei-lhe um sorriso suficientemente amplo para apresentar-lhe uma boa visão do aparelho que engaiolava meusdentes. O pai sempre gostou de ser lembrado de que seu dinheiro estava sendo bem empregado. Mas desta vez ele estava preocupado demais para notar.

Levantei a tampa da tigela de porcelana com legumes e, das profundezas de suas borboletas e framboesas pintadas à mão, pesquei uma generosa colherada de ervilhas. Usando a faca como régua e o garfo como ancinho, organizei as ervilhas para que formassem meticulosas fileiras e colunas ao longo do meu prato; fileira após fileira de pequenas esferas verdes, espaçadas com uma precisão que teria deleitado o coração do mais exigente relojoeiro suíço. Então, começando da esquerda, espetei a primeira ervilha com o garfo e a comi.

Foi tudo culpa de Ophelia. Ela, afinal, tinha dezessete anos e, portanto, esperava-se que possuísse um mínimo de maturidade. Que ela se enturmasse com Daphne, que tinha treze, simplesmente não era justo. Suas idades combinadas totalizavam trinta anos. Trinta anos! — contra meus onze. Não era apenas antiesportivo, era absolutamente desprezível. E simplesmente clamava por vingança.

 

Na manhã seguinte, eu estava atarefada no meio dos frascos e vasos do meu laboratório químico, no piso superior da ala leste, quando Ophelia invadiu o recinto e perguntou:

— Cadê meu colar de pérolas?

Encolhi os ombros e respondi:

— Não sou guardiã das suas bugigangas.

— Eu sei que você pegou. As pastilhas de menta que estavam na minha gaveta de lingerie também sumiram, e observei que as pastilhas de menta desaparecidas nesta casa parecem acabar sempre na mesma boquinha suja.

Ajustei a chama de uma lamparina a álcool que estava esquentando uma proveta de líquido vermelho.

— Se está insinuando que minha higiene pessoal não tem o mesmo padrão da sua, você pode ir lamber minhas galochas.

— Flavia!

— Bem, você pode, sim. Estou cansada de ser culpada por tudo, Felinha.

Mas minha virtuosa indignação foi interrompida bruscamente quando Ophelia espiou com olhinhos míopes para dentro do frasco cor de rubi, que justamente começava a ferver.

— O que é esta massa grudenta no fundo? — perguntou, dando pancadinhas no vidro com suas unhas compridas e esmaltadas.

— É um experimento. Cuidado, Felinha, é ácido!

O rosto de Ophelia ficou branco.

— São as minhas pérolas! Pertenciam à mamãe!

Ophelia era a única das filhas de Harriet que se referia a ela como “mamãe”: a única de nós velha o bastante para ter quaisquer lembranças reais da mulher de carne e osso que nos carregou em seu corpo, fato que ela nunca se cansava de nos lembrar. Harriet morrera em um acidente de alpinismo quando eu tinha apenas um ano, e não se falava muito dela em Buckshaw.

Se eu ficava com inveja das lembranças de Ophelia? Se eu ficava ressentida com elas? Não, era mais profundo que isso. De um jeito um tanto estranho, eu desprezava as lembranças dela sobre nossa mãe.

Ergui os olhos lentamente do meu trabalho para que as lentes redondas dos meus óculos relampejassem um brilho de luz branca e vazia para ela. Eu sabia que, sempre que fazia isso, Ophelia tinha a horrenda impressão de que estava na presença de algum cientista louco alemão como num filme em preto e branco da Gaumont.

— Besta!— vociferou ela.

— Megera! — retruquei. Mas não antes de Ophelia girar nos calcanhares — impecavelmente, eu achei — e sair pela porta.

A retribuição não demorou a chegar. Aliás, com Ophelia nunca demorava. Ela não era, como eu, uma planejadora a longo prazo acostumada a deixar a sopa da vingança ferver em fogo lento até a perfeição.

De repente, depois do jantar, com o pai seguramente recolhido ao seu estúdio para examinar sua coleção de cabeças de papel, seus queridos selos estampados com o perfil da rainha, Ophelia pôs de lado, em silêncio, a faca de manteiga de prata, na qual, como um periquito australiano, estivera olhando sua própria imagem durante o último quarto de hora. Sem preâmbulos,ela disse:

— Eu não sou realmente sua irmã, você sabe... nem Daphne. É por isso que somos tão diferentes de você. Suponho que nunca lhe ocorreu que você foi adotada.

Deixei cair minha colher com barulho.

— Isso não é verdade. Sou a cara de Harriet. É o que todo mundo diz.

— Ela escolheu você no Lar para Mães Solteiras por causa da evidente semelhança com ela — disse Ophelia, fazendo uma cara enojada.

— Como poderia haver semelhança se ela era uma adulta e eu um bebê? — eu sem dúvida sacava as coisas depressa.

— Porque você a fez lembrar das próprias fotografias de bebê. Sabe, ela até as carregava com ela para exibi-las ao seu lado para as pessoas poderem compará-las com você.

Apelei para Daphne, cujo nariz estava enfiado em um exemplar encadernado em couro de O castelo de Otranto.

— Isso não é verdade, não é, Dafi?

— Infelizmente é — disse Daphne, virando preguiçosamente uma página do livro. — O pai sempre disse que seria um choque para você. Fez nós duas jurarmos nunca contar. Ou, pelo menos, até você fazer onze anos.

— Uma valise verde — disse Ophelia. — Vi com meus próprios olhos. Vi mamãe enfiar as fotografias dela de bebê em uma valise verde quando foi até o Lar. Embora eu tivesse só seis anos na época, quase sete, nunca vou esquecer das mãos brancas dela... os dedos no fecho de latão.

Saltei da mesa e fugi da sala aos prantos. Na verdade só pensei no veneno na manhã seguinte, no desjejum.

Como acontece com todos os grandes planos, esse era bem simples.

 

Buckshaw foi o lar da nossa família, os De Luce, desde tempos imemoriais. A atual casa georgiana foi construída para substituir a original elisabetana, totalmente queimada por aldeões que suspeitavam que os De Luce tinham simpatia pelos Orange, os protestantes irlandeses.

O fato de termos sido católicos fervorosos por quatrocentos anos, e permanecido assim, não significava nada para os inflamados cidadãos de Bishop’s Lacey. A “Casa Velha”, como era chamada, fora destruída pelas chamas, e a casa nova que a substituiu já estava em seu terceiro século.

Dois ancestrais mais recentes dos De Luce, Antony e William de Luce, que discordavam acerca da Guerra da Crimeia, estragaram as linhas arquitetônicas da estrutura original. Cada um deles acrescentara à casa uma ala: William, a ala leste, e Antony, a oeste.

Cada um tornou-se recluso em seu próprio domínio, e cada qual proibiu o outro de pôr os pés além da linha preta que mandaram pintar bem no centro do vestíbulo que passava pela entrada e ia até a toalete do mordomo, atrás das escadas do fundo. Seus dois anexos de tijolos amarelos, terrivelmente vitorianos, voltavam-se para trás como as asas cortadas de um anjo de cemitério. Aos meus olhos, eles davam às janelas altas e às venezianas da fachada georgiana de Buckshaw a aparência empertigada de uma solteirona cujo coque está apertado demais.

Um De Luce posterior, Tarquin — ou Tar, como era chamado —, na esteira de um colapso mental, arruinou o que prometia ser uma carreira brilhante em química e foi expulso de Oxford no verão do Jubileu de Prata da Rainha Vitória.

O indulgente pai de Tar, preocupado com a saúde instável do rapaz, não poupou despesas ao equipar um laboratório no andar superior da ala leste de Buckshaw. Era repleto de vidraria alemã, microscópios alemães e um espectroscópio alemão, balanças químicas de latão de Lucerna e um tubo de Geisler de vidro soprado, com formato complexo, ao qual Tar podia acoplar bobinas elétricas para estudar o modo como diversos gases fluorescem.

Sobre uma mesa junto das janelas havia um microscópio Leitz, cujo latão ainda brilhava com o mesmo luxo cálido do dia em que fora trazido de charrete do trem em Buckshaw Halt. O ângulo do seu espelho podia ser ajustado para captar os primeiros raios pálidos do sol matinal. Para dias nublados ou depois de escurecer, ele era equipado com uma lamparina a parafina para microscópios feita pela Davidson & Co., de Londres.

Havia até mesmo um esqueleto humano articulado, disposto sobre uma plataforma com rodas, que fora dado a Tar quando ele tinha apenas doze anos pelo grande naturalista Frank Buckland, cujo pai comera o coração mumificado do Rei Luís XIV.

Três paredes dessa sala eram forradas do piso ao teto por armários com frente envidraçada, dois deles repletos, fileira após fileira, de produtos químicos em potes de vidro de boticário, cada qual etiquetado na meticulosa caligrafia de Tar de Luce que, no fim, frustrou o destino e sobreviveu a todos eles. Ele morreu em 1928, com sessenta anos, no meio de seu reino químico, onde foi encontrado certa manhã pela governanta, um dos olhos mortos ainda olhando cegamente através do seu adorado Leitz. Correram boatos de que ele estava estudando a decomposição de primeira ordem do pentóxido de nitrogênio. Se isso era verdade, foi a primeira pesquisa registrada de uma reação que eventualmente levaria ao desenvolvimento da bomba atômica.

O laboratório do tio Tar foi trancado e preservado em silêncio ao longo de muitos e poeirentos anos, até que aquilo que o pai chamava de meus “estranhos talentos” começou a se manifestar, e fui capaz de reivindicá-lo para mim.

Eu estremecia de alegria sempre que pensava no dia chuvoso de outono em que a química chegou em minha vida.

Eu estava escalando as estantes de livros na biblioteca, fazendo de conta que era uma famosa alpinista, quando meu pé escorregou e um livro pesado foi ao chão. Quando o peguei para alisar suas páginas amarrotadas, vi que ele estava repleto não apenas de palavras, mas de dúzias de desenhos também. Em alguns deles, mãos sem corpo despejavam líquidos em curiosos recipientes de vidro, que pareciam instrumentos musicais de outro mundo.

O título do livro era Um estudo elementar de química, e em minutos ele me ensinou que a palavra iodo vem de um termo que significa “violeta”, e que o nome bromo deriva de uma palavra grega que significa “mau cheiro”. Isso era o tipo de curiosidade que eu precisava saber! Enfiei o grosso volume vermelho embaixo do meu suéter e o levei para cima. Só mais tarde reparei no nome H. de Luce escrito na folha de rosto. O livro pertencera a Harriet.

Logo passei a estudar atentamente suas páginas em todos os momentos livres. Havia noites em que eu mal podia esperar pela hora de ir para a cama. O livro de Harriet se transformara no meu amigo secreto.

Nele estavam detalhados todos os metais alcalinos: alguns com nomes fabulosos, como lítio e rubídio; os terrosos, como estrôncio, bário e rádio. Vibrei em voz alta quando li que uma mulher, Madame Curie, descobrira o rádio.

E então havia os gases venenosos: fosfina, arsina (do qual se sabe que uma única bolha pode ser letal), peróxido de nitrogênio, ácido hidrossulfúrico... as listas continuavam e continuavam. Quando descobri que eram fornecidas instruções precisas para formular aqueles compostos, fui ao céu.

Depois que aprendi a ver sentido em equações químicas como K4FeC6N6 + 2 K = 6KCN + Fe (a qual descreve o que acontece quando o prussiato amarelo de potassa é aquecido com potássio para produzir cianureto de potássio), o universo se abriu diante de mim: era como ter topado com um livrode receitas que antes pertencera à bruxa da floresta.

O que me intrigou mais que qualquer outra coisa foi descobrir o modo como tudo, toda a criação era mantida coesa por laços químicos invisíveis. Encontrei um estranho e inexplicável conforto em saber que em algum lugar, muito embora não pudéssemos vê-la em nosso próprio mundo, havia uma estabilidade real.

De início não fiz a conexão óbvia entre o livro e o laboratório abandonado que eu descobrira quando criança. Mas quando consegui ligar as coisas, minha vida acordou para a vida — se é que isso faz algum sentido.

Aqui no laboratório do tio Tar, fileira sobre fileira, estavam os livros de química que ele tão amorosamente reunira, e logo descobri que, com um pequeno esforço, a maioria deles não estava assim tão além da minha compreensão.

Os experimentos simples vieram na sequência, e tentei me lembrar de seguir as instruções ao pé da letra. Não vou dizer que não aconteceram umas poucas e fedidas explosões, mas quanto menos for dito sobre isso, melhor.

Com o passar do tempo, meus cadernos de anotações foram ficando mais gordos. Meu trabalho se tornava cada vez mais sofisticado à medida que os mistérios da química orgânica se revelavam para mim, e me regozijei com o conhecimento recém-adquirido daquilo que podia tão facilmente ser extraído da natureza.

Minha paixão especial — venenos.

Saí golpeando a folhagem com uma bengala de bambu surrupiada de um porta-guarda-chuvas do vestíbulo da frente. Ali atrás, no jardim da cozinha, os muros altos de tijolos vermelhos ainda não tinham deixado entrar o sol acalentador; ainda estava tudo encharcado da chuva que caíra durante a noite.

Abrindo caminho por entre os restos da grama não aparada do ano passado, fui cutucando ao longo da parte de baixo do muro até encontrar o que estava procurando: um macinho de folhas brilhantes cujo tom escarlate tornava seus ramos de três folhas fáceis de localizar entre as outras trepadeiras. Puxando um par de luvas de jardinagem de algodão que estavam enfiadas no meu cinto, dei início a uma ruidosa versão assobiada de Bibbidi-Bobbidi-Boo e comecei a trabalhar.

Mais tarde, na segurança do meu sanctum sanctorum, meu Santo dos Santos — eu topara com essa deliciosa expressão em uma biografia de Thomas Jefferson e adotei-a como minha —, enfiei as folhas coloridas em uma retorta de vidro, tomando o cuidado de não remover as luvas até que a lustrosa folhagem estivesse seguramente tampada. Agora vinha a parte que eu adorava.

Arrolhando a retorta, conectei-a de um lado a um frasco no qual a água já estava fervendo e, de outro, a um tubo de vidro espiralado cuja ponta aberta ficava suspensa sobre uma cuba vazia. Com a água borbulhando furiosamente, observei o vapor encontrar seu caminho através do tubo e escapar para dentro do frasco por entre as folhas. Elas já começavam a se enroscar e amaciar, enquanto o vapor abria pequeninas bolsas entre suas células, liberando os óleos que eram a essência da planta viva.

Esse era o modo como os antigos alquimistas praticavam sua arte: fogo e vapor, vapor e fogo. Destilação.

Como eu amava esse trabalho.

Destilação. Eu pronunciei em voz alta. — Des-ti-la-ção!

Fiquei olhando maravilhada como o vapor esfriava e se condensava na serpentina e torci as mãos em êxtase quando a primeira gota de líquido pairou suspensa e depois caiu com um barulhinho no receptáculo que a aguardava. Plop!

Depois que a água evaporou até o fim e a operação estava completa, apaguei a chama, apoiei o rosto entre as mãos para observar com fascínio o fluido se depositando na cuba em duas camadas distintas: a água destilada clara no fundo, flutuando sobre um líquido de tom amarelo claro. Era o óleo essencial das folhas. Era chamado urushiol e usado, entre outras coisas, na manufatura do verniz.

Enfiei a mão no bolso e extraí de lá um tubo dourado brilhante. Removi a tampa e não pude deixar de sorrir quando se revelou uma ponta vermelha. O batom de Ophelia, surrupiado da gaveta de sua cômoda, juntamente com as pérolas e as pastilhas de menta. E Felinha — Miss Lenço Sujo de Meleca — ainda nem notara que ele se fora.

Lembrando-me das pastilhas de menta, joguei uma na boca, esmagando a bala ruidosamente entre os molares.

O batom saiu com facilidade do tubo, e reacendi a lamparina a álcool. Era preciso apenas um calor suave para reduzir o material a uma massa de cera. Se Felinha ao menos soubesse que batom era feito de escamas de peixe, ela poderia ficar um pouco menos ávida por besuntar a boca inteira com aquilo. Precisava me lembrar de contar a ela. Sorri arreganhando os dentes. Mais tarde.

Com uma pipeta, extraí alguns milímetros do óleo destilado que flutuava na cuba e então, gota a gota, pinguei-o delicadamente na massa de batom derretido, dando à mistura uma vigorosa mexida com uma espátula de madeira.

Fino demais, pensei. Baixei um pote e acrescentei uma boa porção de cera de abelhas para restaurar a consistência anterior.

Hora de usar as luvas de novo — e o molde de projéteis de ferro, que eu surrupiara do — bastante decente — museu de armas de fogo de Buckshaw.

Estranho, não é mesmo, que um batom seja precisamente do mesmo tamanho que uma bala calibre 45? Só uma pequena informação útil. Eu teria de pensar em suas ramificações esta noite, quando estivesse seguramente acomodada em minha cama. Naquele momento, estava ocupada demais.

Extraído do molde e resfriado sob água corrente, o batom vermelho reformulado encaixou perfeitamente de volta em seu recipiente dourado.

Testei várias vezes para me certificar de que estava funcionando direito. Então recoloquei a tampa. Felinha havia dormido até tarde e ainda estaria embromando no café da manhã.

— Onde está meu batom, sua porquinha? O que você fez com ele?

— Está na sua gaveta — eu disse. — Reparei nele quando surrupiei suas pérolas.

Em minha breve vida, espremida entre duas irmãs, eu tinha necessidade de me tornar mestra da língua afiada.

— Não está na minha gaveta. Acabei de olhar e não está lá.

— Você pôs os óculos? — indaguei com um sorriso forçado.

Muito embora o pai tivesse equipado todas nós com óculos, Felinha se recusava a usar os dela. Os meus continham pouco mais que vidro de janela. Eu os usava somente no laboratório para proteger os olhos, ou quando queria ganhar simpatia.

Felinha bateu forte com as palmas das mãos na mesa e saiu da sala tempestuosamente.

Voltei a sondar as profundezas de minha segunda tigela de cereais.

Depois, escrevi em meu caderno:

 

Sexta-feira, 2 de junho de 1950, 9h42.

Aparência da cobaia normal, porém mal-humorada.

(Ela não está sempre assim?)

O ataque pode variar entre 12 e 72 horas,

 

Eu podia esperar.

 

A sra. Mullet, que era baixa, cinzenta e redonda como uma pedra de moinho e que, tenho certeza, via a si mesma como uma personagem de um poema de A. A. Milne, estava na cozinha preparando uma de suas tortas de creme que mais pareciam ser recheadas com pus. Como de costume, estava lutando com o enorme fogão que dominava a pequena e entulhada cozinha.

— Oh, srta. Flavia! Venha cá, ajude-me com o forno, querida.

Mas, antes que eu pudesse pensar em uma resposta adequada, o pai apareceu atrás de mim.

— Flavia, uma palavrinha. — Sua voz estava pesada como o chumbo nas botas de um mergulhador de águas profundas.

Relanceei para a sra. Mullet, para ver como ela estava aceitando aquilo. Ela sempre fugia ao menor sinal de desconforto. Certa vez, quando o pai ergueu a voz, ela se enrolou em um tapete e se recusou a sair até que mandassem chamar seu marido.

Ela fechou cuidadosamente a tampa do forno como se fosse feita de cristal.

— Preciso sair — disse ela. — O almoço está no réchaud.

— Obrigado, sra. Mullet — falou o pai. — Nós nos arranjamos.

Nós estávamos sempre nos arranjando.

Ela abriu a porta da cozinha — e deixou escapar um grito repentino, como um texugo acuado.

— Oh, meu bom Deus! Com seu perdão, Coronel De Luce, mas oh, meu bom Deus!

O pai e eu tivemos de empurrá-la um pouco para ver.

Era um pássaro, um jack snipe — ou bico-de-ferro — morto. Estava caído de costas na soleira da porta, as asas rígidas estendidas como um pequeno pterodátilo, os olhos desagradavelmente velados, o longo bico negro de agulha apontando para cima. Alguma coisa espetada nele se movia com a brisa matinal — um pequenino pedaço de papel.

Não, não um pedaço de papel, mas um selo postal.

O pai se curvou para olhar mais de perto, então deu um pequeno suspiro. E de repente estava agarrando a garganta, suas mãos tremendo como folhas de álamo no outono, o rosto da cor de cinzas quando molhadas.


MINHA ESPINHA CONGELOU POR UM MOMENTO, pensei que ele estava tendo um ataque do coração, como frequentemente acontece com os pais sedentários. Num minuto eles estão matraqueando sobre como você precisa mastigar cada bocado vinte e nove vezes e, no minuto seguinte, você está lendo sobre eles no Daily Telegraph:

 


Calderwood, Jabez, de Frinton. Subitamente em sua residência no sábado, dia 14 do corrente mês. Aos cinquenta e dois anos. Filho mais velho de et cetera... et cetera... et cetera... deixa as filhas Ana, Diana e Triana...

 

 

Calderwood, Jabez e sua laia têm o hábito de partir para o céu de repente, deixando para trás um sortimento de filhas deprimidas para se virarem sozinhas.

Eu já não tinha perdido a mãe? Com certeza, o pai não iria me pregar essa peça de mau gosto.

Ou iria?

Não. Ele estava agora puxando o ar ruidosamente pelo nariz como um cavalo de carroça enquanto esticava a mão para a coisa caída na soleira da porta. Seus dedos, como uma comprida e vacilante pinça branca, puxaram com delicadeza o selo do bico da ave morta e depois enfiaram apressadamente o papelzinho perfurado em um dos bolsos do colete. Apontando o indicador trêmulo para a pequena carcaça, o pai disse:

— Livre-se daquela coisa, sra. Mullet — ordenou com uma voz estrangulada que soou como a de outra pessoa, a voz de um estranho.

— Oh, céus, Coronel De Luce — queixou-se a sra. Mullet. — Oh céus, coronel, eu não... eu acho... quero dizer...

Mas ele já tinha rumado para seu estúdio, com um andar pesado, bufando e resfolegando como uma locomotiva de carga.

Enquanto a sra. Mullet ia buscar a pá de lixo, cobrindo a boca com a mão, escapei para meu quarto.

 

Os quartos de dormir em Buckshaw eram vastos, escuros hangares de Zeppelins, e o meu, na ala leste — ou Tar, como a chamávamos —, era o maior deles. Seu papel de parede do início do período vitoriano (amarelo-mostarda, salpicado de riscos que pareciam emaranhados de barbante vermelho-sangue) fazia com que parecesse ainda maior: uma vastidão árida, fria, ilimitada e cheia de correntes de ar. Mesmo no verão, a jornada do quarto até o distante lavatório perto da janela era uma experiência que poderia ter intimidado Scott da Antártica. Por isso pulei essa parte e subi direto na minha cama de quatro colunas onde, enrolada em um cobertor de lã, eu poderia me sentar de pernas cruzadas até as vacas voltarem para casa, meditando sobre a minha vida.

Pensei, por exemplo, em quando usei uma faca de manteiga para raspar amostras do revestimento ictérico da minha parede. Lembrei-me de Dafi com os olhos arregalados me contando que, num dos livros de A. J. Cronin, um pobre sujeito adoeceu e morreu depois de dormir em um quarto cujo componente principal da coloração do papel de parede era arsênico. Esperançosa, levei minhas raspas ao laboratório para análise.

Nada do enfadonho Teste de Marsh para detectar arsênio para mim, muito obrigada! Eu favorecia o método pelo qual o arsênico era primeiro convertido ao seu trióxido, depois aquecido com acetato de sódio para produzir óxido de kakodyl: não apenas uma das substâncias mais venenosas conhecidas no planeta Terra, mas com a vantagem adicional de liberar um odor inacreditavelmente ofensivo: como o fedor de alho podre, só que um milhão de vezes pior. Seu descobridor, Bunsen (famoso pelo seu bico queimador), notou que apenas inalar levemente a substância fazia não só mãos e pés formigarem, como também a língua produzia uma repulsiva camada preta. Oh, Deus, como são múltiplas as tuas obras!

Você pode imaginar meu desapontamento quando vi que a amostra não continha arsênico: ela tinha sido colorida por uma simples tintura orgânica, muito provavelmente feita a partir da madeira do salgueiro ou algum outro corante vegetal inofensivo e extremamente maçante.

De algum modo, aquilo fez com que meus pensamentos voassem de volta para o pai.

O que o assustara tanto na porta da cozinha? E seria realmente medo o que vi em seu rosto?

Sim, parecia haver poucas dúvidas a respeito. Não poderia ser mais nada. Eu já estava muito familiarizada com sua raiva, sua impaciência, sua fadiga, seus súbitos humores sombrios: todos esses, estados que passavam de vez em quando pelas suas feições como sombras das nuvens que atravessavam as colinas inglesas.

Ele não tinha medo de aves mortas, disso eu já sabia. Eu já o vira cutucar as entranhas de muitos gansos gordos no Natal, brandindo sua faca como um assassino oriental. Certamente não poderia ser a presença de penas. Ou o olho mortiço da ave.

E não poderia ter sido o selo. O pai amava selos mais do que amava sua prole. A única coisa que ele amou mais do que os seus lindos pedacinhos de papel foi Harriet. E ela, como eu já disse, estava morta.

Como aquele jack snipe.

Poderia ser essa a causa da sua reação?

— Não! Não! Vá embora! — A voz áspera entrou na minha janela aberta, descarrilando e destruindo o trem dos meus pensamentos.

Joguei de lado o cobertor, pulei da cama, atravessei o quarto correndo e olhei para baixo, para o jardim da cozinha.

Era Dogger. Ele estava com o corpo colado contra o muro, seus dedos escuros e envelhecidos estendidos sobre os tijolos vermelhos desbotados.

— Não chegue perto de mim! Vá embora!

Dogger era o braço direito do pai: seu ajudante geral. E ele estava sozinho no jardim.

A sra. Mullet já havia me confidenciado que Dogger sobrevivera a dois anos em um campo japonês para prisioneiros de guerra, seguidos por mais treze meses de torturas, fome, desnutrição e trabalhos forçados na Ferrovia da Morte entre a Tailândia e a Birmânia onde, supunha-se, fora forçado a comer ratos.

— Seja delicada, querida — ela aconselhou. — Os nervos dele estão meio abalados.

Olhei para ele lá embaixo, no canteiro de pepinos, os cabelos prematuramente brancos em pé; os olhos voltados para cima, aparentemente cegos, em direção ao sol.

— Está tudo bem, Dogger — gritei. — Estou dando cobertura aqui de cima.

Por um momento, achei que ele não tinha me ouvido, mas então seu rosto se voltou lentamente, como um girassol, na direção da minha voz. Prendi a respiração. Você nunca sabe o que uma pessoa pode fazer naquele estado.

— Fique firme, Dogger — tornei a gritar. — Está tudo bem. Eles se foram.

De repente ele amoleceu, como um homem segurando um fio elétrico energizado cuja corrente acaba de ser desligada.

— Srta. Flavia? — A voz dele tremia. — É você, srta. Flavia?

— Estou descendo — respondi. — Estarei aí num instante.

Desci correndo a escada dos fundos, desordenadamente, e entrei na cozinha. A sra. Mullet tinha ido para casa, mas a torta estava esfriando na janela aberta.

Não, pensei. O que Dogger precisava era algo para beber. O pai guardava o scotch bem trancado em um armário no estúdio, e eu não podia me intrometer.

Por sorte, achei uma jarra de leite frio na copa. Enchi um copo alto e disparei para o jardim.

— Aqui, beba isto — falei, oferecendo-lhe o copo.

Dogger segurou a bebida com as duas mãos, olhou para ela por um longo momento como se não soubesse o que fazer com aquilo e então levou-a de maneira hesitante à boca. Bebeu sofregamente até acabar com o leite e me entregou o copo vazio.

Por um momento pareceu vagamente estar em êxtase, como um anjo de Rafael, mas aquela impressão passou depressa.

— Você está com um bigode branco — comentei. Inclinei-me para os pepinos, arranquei uma grande folha verde-escura e usei-a para enxugar-lhe o lábio superior.

A luz estava voltando a seus olhos vazios.

— Leite e pepinos... — disse ele. — Pepinos e leite...

— Veneno! — gritei, pulando para cima e para baixo e batendo os braços como uma galinha, para mostrar-lhe que estava tudo sob controle. — Veneno letal! — E ambos rimos um pouco.

Ele piscou.

— Céus! — exclamou, olhando em volta do jardim comose fosse uma princesa despertando do mais profundo dos sonhos. — E não é que este vai ser um lindo dia?

 

O pai não apareceu na hora do almoço. Para me tranquilizar, encostei o ouvido na porta do estúdio e fiquei por alguns minutos escutando o folhear de páginas filatélicas e um pigarro ocasional. Coragem, decidi.

À mesa, Daphne estava sentada com o nariz enfiado emWalpole (o escritor Horace), um sanduíche de pepino a seu lado, encharcado e esquecido num prato. Ophelia, suspirando sem fim, cruzava, descruzava e recruzava as pernas, o olhar inexpressivo perdido no espaço, e só pude supor que ela estava flertando mentalmente com Ned Cropper, o faz-tudo da estalagem Os Treze Patos. Ela estava absorta demais em seu devaneio presunçoso para notar quando me inclinei para ver mais de perto os seus lábios assim que ela esticou a mão distraidamente para um cubo de açúcar, enfiou-o na boca e começou a chupá-lo.

— Ah — comentei para ninguém em especial —, as espinhas vão desabrochar pela manhã.

Ela deu um bote na minha direção, mas minhas pernas foram mais rápidas do que as patas de rã dela.

Já no laboratório, escrevi:

 

Sexta-feira, 2 de junho de 1950, 13h07.

Ainda nenhuma reação visível.

"A paciência é um ingrediente necessário ao gênio." (Disraeli)

 

A noite chegou e avançou, mas eu não conseguia dormir. Geralmente, quando a luz se apaga, viro um pedaço de chumbo, mas aquela noite era diferente. Fiquei deitada de costas, as mãos entrelaçadas por trás da cabeça, revendo o dia.

Primeiro, houve o pai. Bem, não, não é bem verdade. Primeiro houve o pássaro morto na soleira da porta — e depois houve o pai. O que eu pensei ter visto no rosto dele foi medo, mas ainda havia um cantinho na minha cabeça que parecia não acreditar nisso.

Para mim — para todas nós — o pai era destemido. Ele tinha visto coisas durante a guerra: coisas horríveis que não devem jamais ser postas em palavras. Ele de algum modo sobrevivera aos anos em que Harriet esteve desaparecida e supostamente morta. E com tudo isso, ele foi leal, firme, determinado e inabalável. Inacreditavelmente inglês. Insuportavelmente orgulhoso.Mas agora...

E, então, houve Dogger: Arthur Wellesley Dogger, para dar-lhe seu “nome de batismo completo” (como ele dizia em seus melhores dias). Dogger veio para nós primeiro como criado pessoal do pai, mas depois, quando “o peso das vicissitudes daquela posição” (palavras dele, não minhas) recaíram sobre seus ombros, ele achou “mais satisfatório” se tornar mordomo, daí chofer, depois o faz-tudo de Buckshaw, daí chofer de novo por algum tempo. Nos meses mais recentes, ele começou a oscilar como uma folha no outono, antes de repousar em sua presente posição de jardineiro, e o pai então doou nossa perua Hillman à igreja de S. Tancredo como prêmio de rifa.

Pobre Dogger! Era o que eu pensava, muito embora Daphne tivesse dito que eu nunca deveria dizer isso de ninguém: “Não só é condescendente, como deixa de levar em conta o futuro”, ela afirmava.

Ainda assim, quem poderia esquecer a aparência estranha de Dogger no jardim? A grande carcaça simplória de um homem indefeso, ali em pé, cabelos e ferramentas em desordem, o carrinho de mão tombado, e uma expressão no semblante como se... como se...

Um farfalhar de folhagem atingiu meu ouvido. Voltei a cabeça para escutar.

Nada.

É um fato simples da natureza: possuo uma audição aguda, o tipo de audição, me disse o pai certa vez, que permite ao seu dono ouvir teias de aranha retinindo como ferraduras contra as paredes. Harriet também a possuía, e às vezes gosto de imaginar que sou, de certo modo, um estranho remanescente dela: um par de ouvidos separados do corpo gravitando pelos salões assombrados de Buckshaw, escutando coisas que às vezes é melhor não ouvir.

Mas ouça! Lá está outra vez! Uma voz grave, dura e cavernosa, como um sussurro em uma lata de biscoitos vazia.

Escorreguei para fora da cama e fui, pé ante pé, até a janela. Tomando cuidado para não agitar as cortinas, espiei o jardim da cozinha lá fora bem quando a lua gentilmente saía de trás de uma nuvem para iluminar a cena, como em uma produção de primeira de Sonho de uma noite de verão.

Mas não havia mais nada para ver além da luz prateada dançando entre os pepinos e as rosas.

E, então, ouvi: uma voz irada, como o zumbido de uma abelha no fim do verão tentando atravessar uma vidraça fechada.

Vesti um dos robes japoneses de seda de Harriet (um dos dois que eu salvara do Grande Expurgo), enfiei os pés nos mocassins indianos adornados com contas que me serviam de chinelos e esgueirei-me para o patamar da escada. A voz vinha de algum lugar dentro da casa.

Buckshaw possuía duas grandes escadarias de formato espelhado, ambas curvando-se para baixo desde o piso superior, chegando ao térreo logo antes da linha preta pintada que dividia a entrada de ladrilhos axadrezados. Minha escadaria, da ala Tar, ou leste, terminava naquele grande hall pintado e reverberante. À sua frente, ficava a ala oeste, com o museu de armas e, atrás dele, o estúdio do pai. Era daquela direção que vinha a voz. Esgueirei-me para lá.

Colei o ouvido na porta.

— Além disso, Jacko — dizia uma voz rude do outro lado da madeira almofadada —, como você pôde viver diante da descoberta? Como você pôde continuar?

Por um momento nauseante pensei que George Sanders, o ator, viera a Buckshaw e estava fazendo um sermão para o pai a portas fechadas.

— Vá embora — respondeu o pai, e sua voz não estava irada, mas naquele tom contido, controlado, que indicava que ele estava furioso. Na minha cabeça, eu podia ver sua sobrancelha franzida, os punhos cerrados e os músculos da mandíbula tensos como cordas no arco.

— Ora, deixe disso, meu caro — retrucou a voz untuosa. — Estamos nisso juntos; sempre estivemos, sempre estaremos. Você sabe tão bem quanto eu.

— Twining tinha razão — disse o pai. — Você é odioso, um arremedo desprezível de ser humano.

— Twining? O velho Cuppa? Cuppa está morto há trinta anos, Jacko, como Jacob Marley. Mas, como disse Marley, seu fantasma ainda perdura. Como talvez você tenha notado.

— E nós o matamos — afirmou o pai em uma voz rasa, mortiça.

Será que ouvi o que ouvi? Como ele pôde...

Ao afastar o ouvido da porta e me curvar para espiar pelo buraco da fechadura, perdi as palavras seguintes do pai. Ele estava em pé ao lado da escrivaninha, de frente para a porta. O estranho estava de costas para mim. Ele era excessivamente alto, mais de um metro e noventa, calculei. Com seu cabelo vermelho e terno cinza-ferrugem, me lembrou a garça canadense empalhada que ficava num canto escuro do museu de armas.

Colei de novo o ouvido na porta almofadada.

— ... a culpa não envelhece — continuava a voz. — O que é um par de milhares para você, Jacko? Você deve ter ganhado uma bela bolada quando Harriet morreu. Ora, só o seguro...

— Cale essa boca suja! — bradou o pai. — Vá embora antes que eu...

De repente fui agarrada por trás e uma mão áspera fechou a minha boca. Meu coração quase pulou fora do peito.

Eu estava tão firmemente presa que não consegui nem reagir.

— Volte para a cama, srta. Flavia — sibilou uma voz em meu ouvido.

Era Dogger.

— Isso não é da sua conta — sussurrou ele. — Volte para a cama.

Ele relaxou o aperto, e eu me soltei contorcendo o corpo. Lancei-lhe um olhar fulminante. Na semiobscuridade, vi seus olhos se abrandarem um pouco.

— Dê o fora — ele repetiu.

Eu dei o fora.

De volta a meu quarto, andei de um lado para outro por algum tempo, como costumo fazer quando estou frustrada.

Pensei no que tinha ouvido. O pai, um assassino? Era impossível. Provavelmente havia alguma explicação simples. Se ao menos eu tivesse ouvido o resto da conversa entre ele e o estranho... se ao menos Dogger não tivesse me atacado de emboscada na escuridão. Quem ele pensa que é?

Vou mostrar a ele, pensei.

— Sem mais discussão! — falei em voz alta.

Tirei o disco de Jose Iturbi da capa de papel verde, dei bastante corda em meu gramofone portátil e pus o lado B da Polonaise, de Chopin, em lá bemol no prato. Joguei-me na cama e cantei junto:

— LA-la-la-lá, la-la-la-lá, la-la-la-lá, la-la-la-lá...

A música soou como se tivesse sido composta para um filme em que alguém punha em marcha um velho Bentley, o qual ficava falhando e explodindo: apenas uma seleção que me levasse flutuando para o mundo dos sonhos...

 

Quando abri os olhos, um alvorecer cor de ostra espiava para dentro pelas janelas. Os ponteiros do meu despertador de latão marcavam 3h44. No verão, a luz do dia chegava cedo, e, em menos de um quarto de hora, o sol deveria surgir.

Espreguicei, bocejei e desci da cama. A corda do gramofone acabara, e a agulha estava parada nos sulcos. Por um momento, pensei em dar corda novamente para oferecer à casa uma alvorada polonesa. E então me lembrei do que acontecera há poucas horas.

Fui até a janela e olhei para o jardim embaixo. Lá estava a estufa, as vidraças embaçadas de orvalho e, ali, a claridade angulosa permitia ver o carrinho de mão de Dogger tombado e esquecido entre os eventos de ontem.

Determinada a esclarecer as coisas, a decifrar algo que nem tinha certeza, vesti-me e desci rapidamente pela escada dos fundos até a cozinha.

Ao passar pela janela, notei que haviam cortado uma fatia da torta da sra. Mullet. Que estranho, pensei; certamente não tinha sido nenhum dos De Luce. Se havia uma coisa a respeito da qual todos nós estávamos de acordo — algo que nos unia como família — era a nossa aversão pelas tortas de creme da sra. Mullet. Sempre que ela se desviava de nossas favoritas de ruibarbo ou groselha para a detestável torta de creme, nós geralmente declinávamos, fingindo uma doença coletiva, e a mandávamos embora para casa com a torta e instruções solícitas para servi-la, com nossos cumprimentos, ao seu bom marido, Alf.

Ao sair, vi que a luz prateada do alvorecer transformara o jardim em uma clareira mágica, trazendo faixas do dia por além dos muros. O orvalho cintilante cobria tudo, e eu não teria ficado nada surpresa se um unicórnio saísse de trás de uma roseira e tentasse descansar a cabeça no meu colo.

Eu estava caminhando para o carrinho de mão, quando tropecei subitamente e caí para a frente sobre as mãos e os joelhos.

— Droga! — exclamei, já olhando em volta para me certificar de que ninguém me ouvira. Eu estava agora toda suja de terra preta molhada.

— Droga — reclamei de novo, um pouco mais baixo.

Torci o corpo para ver no que havia tropeçado e vi imediatamente: alguma coisa branca se projetava do meio dos pepinos. Por um momento vacilante, uma parte de mim lutou desesperadamente para acreditar que se tratava de um ancinho pequeno, um gracioso minirrastelo com dentes brancos encurvados.

Mas a razão voltou, e minha cabeça admitiu que se tratava de uma mão. Uma mão acoplada a um braço: um braço que serpenteava para fora do canteiro de pepinos.

E ali, na extremidade dele, tingida de um horrendo verde-pepino orvalhado, havia uma face. Uma face que se parecia, em todos os aspectos, com o Homem Verde da lenda da floresta.

Movida por uma vontade mais forte do que a razão, me vi descendo ainda mais sobre as mãos e os joelhos ao lado daquela aparição, em parte por reverência e, em parte, para olhar mais de perto.

Quando já estava quase nariz a nariz com a coisa, seus olhos começaram a se abrir.

Fiquei chocada demais para mover um músculo.

O corpo entre os pepinos tomou um fôlego trêmulo... e então, espumando pelo nariz, pronunciou uma única palavra, lenta e um pouco triste, diretamente na minha cara.

— Vale — ele disse.

Minhas narinas se apertaram automaticamente quando senti o leve bafo de um odor peculiar — um odor cujo nome esteve, por um instante, bem na ponta da minha língua.

Os olhos, azuis como os pássaros nas porcelanas Willow, fitaram os meus como se estivessem olhando de um passado indistinto e esfumaçado, como se em suas profundezas houvesse algum reconhecimento.

E então eles morreram.

Eu gostaria de poder dizer que meu coração ficou chocado, mas ele não ficou. Eu gostaria de poder dizer que meu instinto foi sair correndo, mas isso não seria verdade. Em vez disso, fiquei olhando maravilhada, saboreando cada detalhe: os dedos se agitando levemente, a quase imperceptível turvação bronze-metálico que aparece sobre a pele, como se, diante dos meus próprios olhos, ela estivesse sendo bafejada pela morte.

E, então, a quietude total.

Eu gostaria de poder dizer que fiquei com medo, mas não fiquei. Muito pelo contrário. Aquela era, de longe, a coisa mais interessante que me acontecera na vida inteira.


SUBI CORRENDO A ESCADARIA OESTE. Meu primeiro pensamento foi acordar o pai, mas alguma coisa — algum grande imã invisível — me fez parar abruptamente. Dafi e Felinha eram inúteis em emergências; não teria adiantado nada chamá-las. O mais rápida e silenciosamente possível, corri para os fundos da casa, para o quartinho no topo da escada da cozinha, e bati de leve na porta.

— Dogger! — sussurrei. — Sou eu, Flavia.

Não ouvi som nenhum lá dentro e bati outra vez.

Depois de cerca de duas eternidades e meia, ouvi os chinelos de Dogger se arrastando no piso. A fechadura fez um clique forte quando o ferrolho foi puxado, e a porta cautelosamente se abriu uns poucos centímetros. Pude ver que seu rosto estava abatido, como se ele não tivesse dormido.

— Há um cadáver no jardim — disparei. — Acho melhor você vir.

Enquanto eu ficava mudando meu peso de um pé para o outro e roendo as unhas, Dogger me lançou um olhar que só podia ser descrito como reprovador, depois desapareceu na escuridão do quarto para se vestir. Cinco minutos depois estávamos juntos a caminho do jardim.

Era óbvio que Dogger não era estranho a cadáveres. Como se tivesse feito isso a vida toda, ele se ajoelhou e tentou sentira pulsação com dois dedos no ângulo de trás do maxilar. Pelo seu olhar distante e impassível pude ver que não havia nenhuma.

Erguendo-se lentamente, ele sacudiu o pó das mãos, como se elas tivessem sido de algum modo contaminadas.

— Vou informar ao coronel — falou.

— Não devíamos chamar a polícia? — perguntei.

Dogger correu os longos dedos pelo queixo com a barba por fazer, como se estivesse meditando sobre uma questão de consequências transcendentais. Havia severas restrições ao uso do telefone em Buckshaw.

— Sim — ele respondeu, afinal. — Suponho que sim.

Caminhamos juntos, devagar demais, até a casa.

Dogger pegou o telefone e colocou o fone no ouvido, mas vi que seu dedo pressionava firmemente o gancho. Sua boca se abriu e se fechou várias vezes e então sua face empalideceu. O braço começou a tremer e pensei por um momento que ele ia derrubar aquilo. Ele olhou para mim desamparado.

— Aqui — mostrei, pegando o dispositivo de sua mão. — Eu faço isso.

— Bishop’s Lacey 221 — eu disse ao telefone, pensando, enquanto aguardava, que Sherlock poderia ter sorrido com a coincidência.

— Polícia — atendeu uma voz oficial do outro lado da linha.

— Policial Linnet? — comecei. — Aqui é Flavia de Luce, falando de Buckshaw.

Eu nunca havia feito isso antes e precisava confiar no que ouvira no rádio e vira no cinema.

— Gostaria de relatar uma morte — prossegui. — Você poderia mandar um investigador?

— É de uma ambulância que você precisa, srta. Flavia? — perguntou. — Nós usualmente não convocamos um inspetor a não ser que as circunstâncias sejam suspeitas. Aguarde enquanto procuro um lápis...

Houve uma pausa enlouquecedora enquanto o ouvia revirando suprimentos de escritório antes de continuar.

— Muito bem, agora me dê o nome do falecido, lentamente, o último nome primeiro.

— Não sei o nome dele — revelei. — É um estranho.

Era verdade: eu não sabia o nome dele. Mas sabia, e muito bem, que o corpo no jardim — o corpo com cabelo vermelho e vestido num terno cinza — era o do homem que eu espiara pelo buraco da fechadura do estúdio. O homem que o pai havia...

Mas aquilo eu não podia contar a eles.

— Não sei o nome dele — repeti. — Nunca o vi antes em minha vida.

Eu tinha atravessado a linha.

 

A sra. Mullet e a polícia chegaram no mesmo momento; ela a pé, vindo da aldeia, e eles em um sedã Vauxhall azul. Depois que ele parou ruidosamente sobre o cascalho, a porta da frente se abriu com um rangido, e um homem saltou para a entrada de carros.

— Srta. De Luce — chamou ele, como se o fato de pronunciar meu nome em voz alta me colocasse em seu poder. — Posso chamá-la de Flavia?

Assenti com a cabeça.

— Sou o inspetor Hewitt. Seu pai está em casa?

O inspetor era um homem de aparência bem agradável, com cabelo ondulado, olhos cinzentos e um pouco daquela postura de buldogue me lembrou Douglas Bader, o ás dos aviões Spitfire, cujas fotos eu tinha visto nas edições antigas de A Guerra Ilustrada, que jaziam empilhadas na sala de visitas.

— Ele está — respondi —, mas um tanto indisposto — essa palavra eu pedira emprestada de Ophelia. — Vou lhe mostrar o cadáver eu mesma.

A boca da sra. Mullet se escancarou e seus olhos se arregalaram.

— Oh, meu bom Deus! Com seu perdão, srta. Flavia, mas oh, meu bom Deus!

Se ela estivesse usando um avental, o teria jogado por cima da cabeça e fugido, mas não estava. Em vez disso, entrou cambaleando pela porta aberta.

Dois homens vestidos com ternos azuis, como se estivessem aguardando instruções, permaneceram espremidos no banco traseiro do carro e agora começavam a se estender para fora.

— Sargento detetive Woolmer e sargento detetive Graves — apresentou o inspetor Hewitt. O sargento Woolmer era grandalhão e quadrado, com o nariz esmagado de um pugilista profissional; o sargento Graves era um pequeno pardal loiro e jovial com covinhas, que sorriu para mim ao apertar minha mão.

— E agora, se me fizer o favor... — pediu o inspetor Hewitt.

Os detetives descarregaram seus equipamentos do porta-malas do Vauxhall, e eu os levei em solene procissão da casa até o jardim.

Depois de apontar o corpo, fiquei observando fascinada, enquanto o sargento Woolmer desempacotava sua câmera e a montava sobre um tripé de madeira. Os dedos, gordos como salsichas, faziam gentis ajustes microscópicos nos pequenos controles prateados. À medida que fazia diversas exposições cobrindo o jardim, dedicando especial atenção ao canteiro de pepinos, o sargento Graves abria uma surrada caixa de couro, na qual havia garrafas impecavelmente arrumadas, fileira sobre fileira, e onde vi de relance um pacote de envelopes semitransparentes.

Dei um passo à frente ansiosa, quase salivando, para olhar mais de perto.

— Flavia — pediu o inspetor Hewitt, entrando cautelosamente no meio dos pepinos —, você não poderia pedir a alguém que nos sirva um pouco de chá?

Ele deve ter visto minha expressão de espanto e justificou:

— Começamos cedo esta manhã. Você acha que conseguiria improvisar alguma coisa?

Então era isso. Do nascimento até a morte basta uma única mulher estar presente para ser convocada a cair fora e tratar de ferver a água. Improvisar alguma coisa, realmente! Quem ele pensava que eu era?

— Vou ver o que pode ser feito, inspetor — retruquei. Friamente, espero.

— Obrigado — agradeceu o inspetor Hewitt. E então, enquanto eu saía para a cozinha pisando duro, ele gritou — Ah, Flavia...

Voltei-me, na expectativa.

— Vamos entrar para o chá. Você não precisa vir aqui fora.

Que ousadia! Que maldita desfaçatez!

 

Ophelia e Daphne já estavam sentadas à mesa do café. A sra. Mullet já deixara vazar as novidades sinistras, e houvera tempo de sobra para elas se prepararem em poses de fingida indiferença.

Os lábios de Ophelia ainda não tinham reagido à minha pequena armação, e fiz uma anotação mental para registrar o tempo de observação e os resultados mais tarde.

— Encontrei um cadáver no canteiro de pepinos — contei a elas.

— Isso é bem você — definiu Ophelia, e continuou a ajeitar as sobrancelhas.

Daphne havia terminado de ler O castelo de Otranto e estava agora bem adiantada em Nicholas Nickleby. Mas notei que ela estava mordendo o lábio inferior enquanto lia: um sinal certeiro de distração.

Houve um silêncio lírico.

— Havia muito sangue? — Ophelia perguntou afinal.

— Nenhum — respondi. — Nem uma gota.

— De quem era o corpo?

— Não sei — tornei a responder, aliviada com a oportunidade de me esquivar atrás da verdade.

— A morte de um perfeito estranho — proclamou Daphne na sua melhor voz de locutora da rádio BBC, arrastando os olhos para fora do livro de Dickens, mas deixando um dedo para marcar o lugar.

— Como você sabe que é um estranho? — perguntei.

— Elementar — disse Dafi. — Não é você, não sou eu, e não é Felinha. A sra. Mullet está na cozinha, Dogger está no jardim com os policiais, e o pai estava lá em cima minutos atrás, no banho.

Eu estava prestes a contar-lhe que era a mim que ela tinha ouvido na banheira, mas decidi não contar; qualquer menção ao banho levaria inevitavelmente a zombarias sobre minha higiene. Mas, depois dos eventos matinais no jardim, eu sentira uma súbita necessidade de um pouco de sabão e uma lavada rápida.

— Provavelmente ele foi envenenado — argumentei. — O estranho, quero dizer.

— É sempre veneno, não é? — disse Felinha jogando os cabelos. — Pelo menos naquelas pavorosas novelas sensacionalistas de detetive. Neste caso, ele provavelmente cometeu o erro fatal de comer as iguarias da sra. Mullet.

Enquanto ela afastava os restos grudentos de um ovo cozido em fogo lento, alguma coisa luziu na minha cabeça como uma cinza que pula da grelha para o fogo, mas, antes que pudesse examiná-la, o fio dos meus pensamentos foi rompido.

— Escutem isto — disse Daphne, lendo em voz alta. — Fanny Squeers está escrevendo uma carta:

 


... meu paizinho é uma máscara de contusões azuis e verdes...Fomos obrigados a mandar carregá-lo para a cozinha, onde está caído agora...


Quando seu sobrinho, aquele que você recomendou como professor, fez isso com meu paizinho, pulou em cima do corpo dele com os pés e também usou linguagem com a qual não vou poluir minha pena descrevendo, ele, na sequência, atacou também minha mãezinha com terrível violência, atirando-a no chão e cravando seu pente várias polegadas para dentro da cabeça dela. Mais um pouco e teria entrado em seu crânio. Temos um atestado médico de que, caso isso tivesse acontecido, o casco de tartaruga do pente teria afetado seu cérebro.

 

 

— Agora escutem este trecho:

 


Eu e meu irmão fomos as vítimas de sua fúria e, desde então, padecemos muito, o que nos leva à angustiante crença de que sofremos algumas feridas nas nossas entranhas, especialmente porque nenhuma marca de violência é visível externamente. Estou gritando o tempo todo enquanto escrevo...

 

 

Isso me soou como um caso clássico de envenenamento por cianureto, mas eu não tive vontade de partilhar minha visão com essas duas pessoas rústicas.

— “Gritando o tempo todo enquanto escrevo” — repetiu Dafi. — Imaginem só!

— Conheço a sensação — eu disse, afastando meu prato e, deixando o desjejum intocado, subi lentamente a escadaria leste para meu laboratório.

 

Sempre que me sentia perturbada, ia para meu sanctum sanctorum. Aqui, entre frascos e cubas, eu me permitia ser envolvida pelo que chamava de Espírito da Química. Aqui, às vezes, recriava, passo a passo, as descobertas dos grandes químicos. Ou retirava carinhosamente da estante um volume da preciosa biblioteca de Tar de Luce, tal como a edição inglesa de Elementos da Química, de Antoine Lavoisier, publicada em 1790, mas cujas páginas, mesmo depois de 160 anos, ainda estavam firmes. Como eu exultava com os nomes antiquados só aguardando para serem colhidos das suas páginas: manteiga de antimônio... flores de arsênico.

“Venenos de classificação” era como então os chamava Lavoisier, mas eu sentia um grande prazer ao pronunciar os nomes, como um comilão em um spa.

— Orpimenta! — exclamei em voz alta, saboreando a palavra, a despeito de sua natureza venenosa.

— Cristais de Vênus! Liquor vaporizado de Boyle! Óleo de formigas!

Mas desta vez não estava funcionando; minha cabeça continuava no pai, pensando de novo, e de novo, no que eu havia visto e ouvido. Quem era aquele Twining — velho Cuppa — o homem que o pai disse que eles mataram? E por que ele não apareceu para o café da manhã? Aquilo me deixou realmente preocupada. O pai sempre insistia que o desjejum era “o banquete do corpo” e, até onde sei, não havia nada no mundo que o fizesse perdê-lo.

Então, também pensei na passagem de Dickens que Daphne lera para nós: as contusões azuis e verdes. Teria o pai lutado com o estranho e sofrido ferimentos que não podiam ser escondidos à mesa? Ou teria sofrido aqueles ferimentos nas entranhas descritas por Fanny Squeers: feridas que não deixavam marcas externas de violência? Talvez tenha sido isso o que aconteceu com o homem de cabelo vermelho. O que poderia explicar por que eu não tinha visto nenhum sangue. Poderia o pai ser um assassino? De novo?

Minha cabeça girava. Não pude pensar em nada melhor para acalmá-la do que o Dicionário de Inglês Oxford. Peguei o volume com a letra V. Qual tinha sido mesmo a palavra que o estranho pronunciara no meu rosto? “Vale!”. Era isso.

Folheei as páginas: vagabundo... vagante... vão... aqui estava — vale: adeus, até logo, adieu. Era a segunda pessoa do singular do imperativo do verbo latino valere, estar bem.

Que coisa estranha para um homem moribundo dizer a alguém que ele não conhecia.

Uma barulheira súbita que vinha do hall interrompeu meus pensamentos. Alguém estava golpeando furiosamente o velho gongo do jantar. Aquele disco enorme que parecia remanescente de um filme de J. Arthur Rank não era soado há séculos, o que podia explicar por que eu ficara tão assustada com aquele som rachado.

Corri para fora do laboratório e escada abaixo para encontrar um homem grande demais, em pé ao lado do gongo, como percussor ainda na mão.

— Legista — anunciou ele, e deduzi que estava se referindo a si mesmo. Embora não se desse o trabalho de dar seu nome, reconheci-o imediatamente como o dr. Darby, um dos dois sócios na única clínica médica de Bishop’s Lacey.

O dr. Darby era idêntico a John Bull: cara vermelha, queixo duplo e um estômago que se projetava como uma vela inflada de vento. Usava um terno marrom, com um colete amarelo axadrezado, e carregava a tradicional valise preta dos médicos. Se ele me reconheceu como a menina cuja mão costurara depois do incidente com um caco rebelde de vidro do laboratório, não deu nenhum sinal aparente disso, mas ficou lá postado na expectativa, como um cão na pista.

O pai ainda não estava visível em lugar nenhum; nem Dogger. Eu sabia que Felinha e Dafi jamais seriam condescendentes em reagir ao gongo (“Tão absolutamente pavloviano”, diria Felinha), e a sra. Mullet ficava sempre na cozinha.

— A polícia está no jardim — afirmei a ele. — Vou mostrar o caminho.

Quando saímos para a luz do sol, o inspetor Hewitt ergueu os olhos do que estava examinando, o cadarço de um sapato preto que se projetava desagradavelmente dos pepinos.

— Bom dia, Fred — cumprimentou. — Achei que seria melhor você vir dar uma olhada.

— Hum — respondeu o dr. Darby. E, abrindo a valise, procurou em seu interior por um momento, antes de tirar um saco de papel branco. Enfiou dois dedos lá dentro e extraiu uma única pastilha de menta, que jogou na boca e chupou com um prazer ruidoso.

Logo em seguida já tinha entrado no meio das plantas e se ajoelhado ao lado do cadáver.

— Alguém que conhecemos? — perguntou enrolando um pouco a fala em volta da pastilha.

— Não é o que parece — disse o inspetor Hewitt. — Bolsos vazios... nenhuma identificação... mas tenho razões para crer que veio recentemente da Noruega.

Veio recentemente da Noruega? Certamente aquela era uma dedução digna do próprio grande Holmes — e eu ouvira com meus próprios ouvidos! Estava quase pronta a perdoar o inspetor pela sua indelicadeza de há pouco. Quase... mas não realmente.

— Já iniciamos averiguações, portos de escala e tudo mais.

— Malditos noruegueses! — exclamou o dr. Darby, levantando-se e fechando sua valise. — Eles vêm para cá em bando, como pássaros para um farol, depois morrem e deixam a limpeza para nós. Isso não é justo, não é mesmo?

— O que devo anotar como hora da morte? — perguntou o inspetor Hewitt.

— Difícil dizer. Sempre é. Bem, nem sempre, mas frequentemente.

— Mais ou menos?

— Com a cianose, não dá para dizer: leva algum tempo para saber, você sabe. Oito a doze horas, eu diria. Vou descobrir mais depois que nosso amigo estiver em cima da mesa.

— E com isso, seriam...?

O dr. Darby puxou o punho da manga e olhou para o relógio.

— Bem, deixe-me ver... agora são 8h22, portanto, seria lá por essa mesma hora da noite passada e não mais tarde do que, digamos, meia-noite.

Meia-noite! Eu devo ter inspirado alto, pois ambos, o inspetor Hewitt e o dr. Darby, voltaram-se e olharam para mim. Como eu poderia dizer-lhes que, há apenas umas poucas horas, o estranho da Noruega soltara seu último alento na minha cara?

A solução era fácil. Saí correndo.

Encontrei Dogger podando as roseiras no canteiro embaixo da janela da biblioteca. O ar estava impregnado com seu perfume: o delicioso aroma das caixas de chá do Oriente.

— O pai ainda não desceu, Dogger? — perguntei.

— As rosas Lady Hillingdon estão especialmente bonitas este ano, srta. Flavia — elogiou ele, como se nosso encontro furtivo na noite jamais tivesse acontecido. Muito bem, pensei, vou jogar o jogo dele.

— Especialmente bonitas — concordei. — E o pai?

— Não creio que ele tenha dormido bem. Suponho que esteja descansando até mais tarde.

Dormindo até mais tarde? Como ele poderia estar na cama quando a casa fervilhava de policiais?

— Como ele reagiu quando você lhe contou sobre — você sabe — no jardim?

Dogger se voltou e me olhou diretamente nos olhos.

— Eu não contei.

Ele estendeu o braço e, com um golpe súbito da sua tesoura de podar, cortou fora uma flor menos-que-perfeita. Ela caiu no chão com um plop!, onde ficou, com a face enrugada olhando das sombras para nós.

Ficamos olhando fixamente para a rosa decepada, pensando na próxima jogada, quando o inspetor Hewitt apareceu de trás do canto da casa.

— Flavia — ele chamou. — Gostaria de uma palavrinha com você.

— Lá dentro — acrescentou.


— COM QUEM VOCÊ ESTAVA FALANDO LÁ FORA? — perguntou o inspetor Hewitt.

— Dogger! — respondi.

— Primeiro nome?

— Flavia — eu disse. Não pude evitar.

Estávamos sentados em um dos sofás Regency, na Sala Rosada. O inspetor pôs de lado bruscamente sua caneta e virou o corpo para me encarar.

— Se você já não está ciente disso, srta. De Luce — e suspeito que esteja —, esta é uma investigação de assassinato. Não vou tolerar frivolidades. Um homem está morto e é meu dever descobrir o porquê, o quando, o como e o quem. E, depois que fizer isso, é meu dever explicar à Coroa. O que significa o Rei George VI, e o Rei George VI não é um homem frívolo. Será que fui claro?

— Sim, senhor — assenti. — O primeiro nome dele é Arthur, Arthur Dogger.

— E ele é o jardineiro aqui em Buckshaw?

— Agora ele é, sim.

O inspetor tinha aberto seu caderninho preto e estava tomando notas em uma caligrafia microscópica.

— Ele não foi sempre?

— Ele é um faz-tudo — informei. — Era nosso chofer até que seus nervos fraquejaram...

Embora eu tivesse desviado o olhar, pude ainda sentir a intensidade de seu olhar de detetive.

— A guerra — expliquei. — Ele foi prisioneiro de guerra. O pai achou que... ele tentou...

— Entendo — disse o inspetor Hewitt, a voz subitamente suave. — Dogger se sente mais feliz no jardim.

— Ele se sente mais feliz no jardim.

— Você é uma menina notável, sabia? — falou. — Na maioria dos casos, esperaria para falar com você até que um dos pais estivesse presente, mas como o seu pai está indisposto...

Indisposto? Ah, é claro! Eu quase esquecera da minha mentirinha.

A despeito de meu embaraço momentâneo, o inspetor prosseguiu:

— Você mencionou a limitação de Dogger como chofer.O seu pai ainda tem um automóvel?

De fato, ele tinha: um velho Rolls-Royce Phantom II, que agora residia na estrebaria. Na verdade, pertencera a Harriet e não era mais usado desde o dia em que a notícia de sua morte chegara a Buckshaw. Além disso, embora o pai não dirigisse, não permitia que ninguém mais o tocasse.

Consequentemente, a carroceria desse magnífico puro-sangue, com longo capô preto, radiador Palladian, alto e niquelado com os “erres” entrelaçados, havia há muito sido violada por camundongos do campo, que acharam seu caminho através do piso e feito ninho no porta-luvas de mogno. Mesmo em sua decrepitude, ele era às vezes chamado de “O Royce”, como as pessoas finas frequentemente chamam esses veículos.

“Só um camponês o chamaria de Rolls”, ironizou Felinha uma vez, quando eu, momentaneamente, esqueci meus bons modos na presença dela.

Sempre que queria estar sozinha em um lugar onde não fosse perturbada, galgava até o interior obscurecido do carro de Harriet coberto de pó e me sentava por horas no aconchego, cercada pelo estofamento decadente de veludo e couro rachado e mordiscado.

Diante da pergunta inesperada do inspetor, meu pensamento voou para um dia escuro e tempestuoso do outono passado, um em que chovia a cântaros com torrentes de ventos furiosos. Como o risco da queda de galhos era grande demais para arriscar uma caminhada nos bosques acima de Buckshaw, esgueirei-me para fora de casa e abri caminho através da tempestade até a estrebaria para dar uma boa pensada. Dentro, o Phantom reluzia nas sombras, enquanto a tempestade uivava e fustigava as janelas como uma tribo de demônios famintos. Minha mão já estava na maçaneta do carro quando me dei conta de que havia alguém lá dentro. Quase morri de susto. Mas então percebi que era o pai. Estava simplesmente lá, sentado, com lágrimas escorrendo pelo rosto, alheio à tempestade.

Por vários minutos fiquei quieta, com medo de me mover, mal me atrevendo a respirar. Mas quando o pai estendeu a mão lentamente para a maçaneta, tive de cair silenciosamente sobre as mãos como uma ginasta e rolar para baixo do carro. Com o canto do olho, vi uma de suas botas de borracha de cano curto, perfeitamente polidas, descer do estribo e, conforme ele se afastava, andando devagar, ouvi algo como um soluço escapar dele. Fiquei lá deitada por um longo tempo, olhando para cima, para o piso do Rolls-Royce de Harriet.

— Sim — respondi. — Há um velho Phantom na estrebaria.

— E o seu pai não dirige.

— Não.

— Entendo.

O inspetor pôs de lado a caneta e o caderninho, cuidadosamente, como se fossem feitos de cristal veneziano.

— Flavia — ele disse (e não pude deixar de notar que eu não era mais “srta. De Luce”) —, vou lhe fazer uma pergunta muito importante. Sua resposta é crucial, entende?

Assenti.

— Sei que foi você quem relatou este... incidente. Mas quem foi o primeiro a descobrir o corpo?

Minha cabeça entrou em parafuso. Será que contar a verdade incriminaria o pai? Será que a polícia já sabia que eu convocara Dogger para o canteiro de pepinos? Obviamente não. O inspetor acabara de saber a identidade de Dogger, portanto, parecia razoável presumir que eles ainda não o tinham interrogado. Mas, quando o fizessem, quanto ele iria contar? Qual de nós ele iria proteger: o pai ou eu? Haveria algum novo tipo de teste pelo qual eles saberiam que a vítima ainda estava viva quando a descobri?

— Fui eu — deixei escapar. — Eu encontrei o corpo. — Senti-me como Cock Robin, da canção de ninar “Quem matou Cock Robin?”.

— Foi o que pensei — falou o inspetor Hewitt.

E seguiu-se um daqueles silêncios incômodos. Ele foi quebrado pela chegada do sargento Woolmer, que usou seu corpo robusto para conduzir o pai para dentro da sala.

— Nós o encontramos na estrebaria, senhor — informou ele. — Escondido num carro velho.

— E quem é você, posso saber? — demandou o pai. Ele estava furioso, e, por um instante, captei um vislumbre do homem que ele deve ter sido outrora. — Quem é você, e o que está fazendo na minha casa?

— Sou o inspetor Hewitt, senhor — respondeu o inspetor, levantando-se. — Obrigado, sargento Woolmer.

O sargento deu dois passos para trás até passar o umbral da porta e depois desapareceu.

— Bem? — disse o pai. — Há algum problema, inspetor?

— Receio que sim, senhor. Um corpo foi encontrado em seu jardim.

— Você quer dizer, um corpo? Um cadáver?

O inspetor Hewitt assentiu.

— Sim, senhor — ele respondeu.

— De quem é? O corpo, quero dizer.

Foi naquele momento que me dei conta de que o pai não tinha contusões, nem arranhões, nem cortes, nem esfoladuras... pelo menos, nada visível. Também notei que ele começara a empalidecer, a não ser nas orelhas, que começavam a parecer massinha de modelar cor-de-rosa.

E notei que o inspetor também tinha reparado. Ele não respondeu à pergunta do pai imediatamente, mas deixou-a pairando no ar.

O pai se virou e caminhou fazendo um longo arco até o bar, tocando com as pontas dos dedos na superfície de todos os móveis pelos quais passava. Preparou um vemute Votrix com gim e entornou, com uma eficiência que sugeria mais prática do que eu imaginaria possível.

— Nós ainda não identificamos a pessoa, Coronel De Luce. Na verdade, esperávamos que o senhor pudesse nos oferecer alguma ajuda.

Com isso, a cara do pai ficou ainda mais pálida, se é que é possível, do que estava antes, e as orelhas ainda mais vermelhas.

— Sinto muito, inspetor — falou ele em voz quase inaudível. — Por favor, não me peçam para... não sou muito bom com mortes, entenda...

Não é muito bom com mortes? O pai era um militar, e os militares vivem de mortes. Para um soldado profissional, por estranho que pareça, a morte era vida. Até eu sabia disso.

Tive consciência na hora, também, que o pai acabara de contar uma mentira e, de repente, sem aviso, em algum lugar dentro de mim, uma pequena linha se rompeu. Senti-me como se tivesse acabado de envelhecer um pouco e alguma coisa antiga arrebentara.

— Eu entendo, senhor — disse o inspetor Hewitt —, mas a não ser que outros caminhos se apresentem...

O pai puxou um lenço do bolso, enxugou a testa e depois o pescoço.

— É meio chocante, você sabe — declarou —, isso tudo...

Ele acenou com pouca firmeza para o ambiente, e quando fez isso, o inspetor Hewitt pegou seu caderninho, virou a capa e começou a escrever; o pai caminhou lentamente para a janela, por onde fingiu estar olhando a paisagem, uma paisagem que eu podia ver nitidamente na minha cabeça: o lago artificial; a ilha com suas falsas ruínas decorativas e inúteis; as fontes, agora secas, fechadas desde o início da guerra; as colinas ao fundo.

— O senhor esteve em casa a manhã inteira? — perguntou o inspetor sem mais preâmbulos.

— O quê? — o pai fez meia-volta.

— O senhor esteve fora de casa desde a noite passada?

Foi uma longa pausa antes que o pai respondesse.

— Sim — respondeu afinal. — Estive fora da casa esta manhã. Na estrebaria.

Tive de conter um sorriso. Sherlock Holmes certa vez observou a respeito do seu irmão, Mycroft, que seria mais improvável encontrá-lo fora do Diogenes Club do que deparar com um bonde descendo uma estradinha rural. Como Mycroft, o pai tinha seus trilhos e seguia por eles. A não ser pela igreja e uma ocasional corrida mal-humorada para o trem para comparecer a uma exibição filatélica, ele raramente punha o nariz para fora da porta.

— A que horas foi isso, coronel?

— Quatro, talvez. Talvez um pouco antes.

— O senhor ficou na estrebaria durante... — o inspetor Hewitt relanceou para seu relógio de pulso — cinco horas e meia? Das quatro da manhã até agora há pouco?

— Sim, até agora há pouco — revelou o pai. Ele não estava acostumado a ser questionado e, muito embora o inspetor não reparasse, eu podia sentir a irritação crescente na voz dele.

— Entendo. O senhor costuma sair frequentemente a essa hora da manhã?

A pergunta do inspetor soou casual, quase displicente, mas eu sabia que não era.

— Não, realmente não — retrucou o pai. — Aonde quer chegar?

O inspetor Hewitt tocou a ponta do nariz com a caneta, como se fosse formular a próxima pergunta para uma comissão parlamentar.

— O senhor falou com alguma outra pessoa a respeito?

— Não — afirmou o pai. — É claro que não. Nem viva alma.

O inspetor Hewitt parou de tocar o nariz por tempo suficiente para fazer uma anotação. — Ninguém?

— Ninguém.

Como se soubesse disso o tempo todo, o inspetor inclinou leve e gentilmente a cabeça. Pareceu desapontado e suspirou enquanto enfiava seu caderninho no bolso.

— Ah, uma última pergunta, coronel, se não se importa — falou de repente, como se tivesse acabado de pensar naquilo. — O que estava fazendo na estrebaria?

O olhar do pai se voltou para a janela, e os músculos de sua mandíbula se retesaram. Então olhou para o inspetor diretamente nos olhos.

— Não estou preparado para lhe contar isso, inspetor — ele disse.

— Muito bem, então — continuou o inspetor Hewitt. — Eu acho...

Foi nesse exato momento que a sra. Mullet abriu a porta empurrando-a com seu vasto traseiro e entrou na sala gingando como uma pata-choca, carregando uma bandeja repleta.

— Trouxe gostosos biscoitos de gergelim para vocês — anunciou ela. — Biscoitos e chá, e um bom copo de leite para a srta. Flavia.

Biscoitos de gergelim e leite! Eu odiava os biscoitos da sra. Mullet do mesmo modo que São Paulo odiava o pecado. Talvez até mais. Tive vontade de subir na mesa e, usando uma salsicha na ponta de um garfo como cetro, bradar com minha melhor imitação de Laurence Olivier: “Ninguém irá nos livrar desta incontrolável cozinheira de biscoitos?”.

Mas não fiz isso. Fiquei na minha.

Com uma pequena reverência, a sra. Mullet pousou seu fardo na frente do inspetor Hewitt, depois subitamente avistou o pai, que ainda estava em pé junto da janela.

— Oh! Coronel De Luce. Eu tinha esperanças de que aparecesse. Queria lhe dizer que daquela ave morta que ontem encontramos na soleira da porta me livrei.

A sra. Mullet, de algum modo, achava que tais inversões de frases não eram apenas elegantes, mas poéticas.

Antes que o pai pudesse desviar o curso da conversação, o inspetor Hewitt tomou as rédeas.

— Uma ave morta na soleira da porta? Conte-me a respeito, sra. Mullet.

— Bem, senhor, eu e o coronel e a srta. Flavia estávamos na cozinha. Eu acabara de tirar uma deliciosa torta de creme do forno e posto para esfriar na janela. Era aquela hora do dia em que a minha cabeça normalmente começa a pensar em voltar para casa, para o Alf. Alf é meu marido, senhor, e ele não gosta que eu fique flanando por aí na hora de seu chá. Diz que fica todo agitado, se o horário de sua digestão é perturbado. Se a digestão dele atrasa, é algo problemático, e envolve baldes e esfregões, e tudo.

— A hora, sra. Mullet?

— Era coisa de onze horas, ou onze e quinze. Eu venho por quatro horas de manhã, das oito ao meio-dia, e três horas à tarde, das treze às dezesseis — disse ela, com uma surpreendente careta para o pai, que estava olhando pela janela de modo tão incisivo para reparar. — Usualmente fico além do meu horário, com isso e aquilo.

— E a ave?

— A ave estava na soleira da porta, morta como o burro de Dorothy. Era um jack snipe. Um daqueles bicos-de-ferro pequenos. Deus sabe que cozinhei muitos deles no meu tempo para ter certeza disso. Fiquei apavorada de ver ele lá caído de costas com as penas tremendo ao vento, como se sua pele ainda estivesse viva, enquanto o coração já estava morto. Foi o que eu disse para Alf. “Alf, aquela ave estava lá caída como se sua pele ainda estivesse viva...”.

— Tem uma visão muito aguçada, sra. Mullet — disse o inspetor Hewitt, e ela se estufou como uma pomba de papo, enrubecida. — Havia mais alguma coisa?

— Bem, senhor, sim, havia um selo enfiado no biquinho dele, quase como se estivesse carregando o selo na boca, como uma cegonha carrega um bebê numa fralda, se sabe o que quero dizer, mas de um outro jeito, nada parecido com isso.

— Um selo, sra. Mullet? Que tipo de selo?

— Um selo de correio, senhor, mas diferente dos que se veem hoje em dia. Oh, não, nada parecido com isso. Aquele selo tinha a cabeça da rainha estampada. Não Sua Atual Majestade, que Deus a abençoe, mas a rainha velha... Qual era a rainha... a Rainha Vitória. Ao menos ela devia estar lá se o bico daquela ave não estivesse espetado bem onde a cara dela deveria estar.

— Você tem certeza quanto ao selo?

— Pela minha vida, eu queria morrer, senhor. Alf tinha uma coleção de selos quando era jovem, e ele ainda guarda o que restou dela em uma lata de biscoitos Huntley and Palmers embaixo da cama no hall superior. Ele não a tira mais de lá, como fazia quando éramos mais jovens, diz que o deixa triste. De um jeito ou de outro, reconheço um selo Penny Black quando vejo um, com bico de ave enfiado ou não.

— Obrigado, sra. Mullet — agradeceu o inspetor Hewitt, servindo-se de um biscoito —, suas informações foram de grande ajuda.

A sra. Mullet fez outra mesura para ele e foi para a porta, dizendo:

— Eu disse para o Alf que era engraçado, porque normalmente não se veem bicos-de-ferro na Inglaterra antes de setembro. Foram muitos os que eu já virei no espeto e servi assados sobre uma bela torrada. A sra. Harriet, que Deus abençoe sua alma, gostava mais que tudo de um belo...

Ouvi um gemido atrás de mim e me virei bem a tempo de ver o pai se dobrar ao meio como uma cadeira de acampamento e resvalar para o chão.

 

Devo dizer que o inspetor Hewitt foi muito bom naquilo. Num piscar de olhos estava ao lado do pai, colando o ouvido em seu peito, afrouxando-lhe a gravata, verificando com um dedo comprido se havia obstrução nas vias respiratórias. Pude ver que ele não tinha dormido durante suas aulas de primeiros socorros na St. John Ambulance. Um momento depois ele abriu a janela, pôs os dedos indicador e médio no lábio inferior e soltou um assobio que eu teria dado uma moeda para aprender.

— Dr. Darby! — gritou. — Suba aqui, por favor. Depressa! Traga sua valise.

Quanto a mim, estava ainda em pé com a mão na boca quando o Dr. Darby marchou para dentro da sala e se ajoelhou ao lado do pai. Depois de um exame rápido, um-dois-três, ele tirou um pequeno frasco azul da valise.

— Síncope — disse ele ao inspetor Hewitt. — Isso quer dizer que ele desmaiou. Nada para se preocupar — foi sua explicação para a sra. Mullet e para mim.

Ufa!

Ele destampou o vidro e, em nos poucos instantes antes que o aplicasse às narinas do pai, detectei um cheiro familiar: era o meu velho amigo Ammon Carb., carbonato de amônio, ou, como o chamo quando estamos sozinhos no laboratório, Sal volatile, ou às vezes simplesmente sais. Eu sabia que a parte “ammon” do nome vinha de amônia, assim chamada por ter sido descoberta pela primeira vez não muito longe do templo do deus Amon no Egito antigo, onde foi encontrada na urina de camelos. E eu sabia que mais tarde, em Londres, um homem de minha predileção patenteara um método pelo qual os sais para cheirar podiam ser extraídos de guano da Patagônia.

Química! Química! Como eu a adoro!

Quando o dr. Darby segurou o frasco junto de suas narinas, o pai deixou escapar uma bufada, como um touro no campo, e suas pálpebras se abriram como cortinas de enrolar. Mas ele não pronunciou nem uma palavra.

— Ah! De volta aos vivos, estou vendo — exclamou o doutor, enquanto o pai, confuso, tentava se erguer sobre os cotovelos e olhar em volta. A despeito do seu tom jovial, o dr. Darby o segurava nos braços como se fosse um bebê recém-nascido. — Espere um momento até conseguir se orientar. Apenas fique deitado nesse velho tapete por um minuto.

O inspetor Hewitt aguardou em pé até o momento de ajudar o pai a se levantar.

Apoiando-se pesadamente no braço de Dogger — Dogger tinha sido convocado —, o pai subiu com cuidado as escadas até seu quarto. Daphne e Felinha fizeram uma breve aparição: não mais, realmente, do que um par de rostos lívidos atrás do corrimão.

A sra. Mullet, apressando-se de passagem a caminho da cozinha, parou para pôr uma mão solícita no meu braço.

— A torta estava boa, querida?

Eu tinha esquecido da torta até aquele momento. Tirei uma folha do caderno do dr. Darby.

— Hum — fingi.

O inspetor Hewitt e o dr. Darby tinham retornado ao jardim quando subi lentamente as escadas para meu laboratório. Fiquei olhando com um pouco de tristeza e quase um toque de perda, quando dois atendentes de ambulância vieram contornando o lado da casa e começaram a acomodar o corpo do estranho em uma maca de lona. A distância, Dogger dava a volta na fonte Balaclava, no gramado leste, decapitando atarefado mais Lady Hillingdons.

Todos estavam ocupados; com um pouco de sorte, eu poderia fazer o que tinha de fazer e voltar antes que alguém percebesse que eu havia saído.

Esgueirei-me escada abaixo e saí pela porta da frente, tirei Gladys, minha velha bicicleta BSA, encostada contra uma urna de pedra, e minutos depois eu pedalava furiosamente para Bishop’s Lacey.

Qual era o nome que o pai mencionara?

Twining. Era isso. O velho Cuppa. E eu sabia exatamente onde encontrá-lo.


A BIBLIOTECA LIVRE DE BISHOP'S LACEY era localizada no caminho das Vacas, uma trilha estreita, sombreada, que descia da Rua Principal até o rio. O edifício original era uma modesta casa georgiana de tijolos negros, cuja fotografia certa vez aparecera em cores na capa da Country Life. Tinha sido doada ao povo de Bishop’s Lacey por Lorde Margate, um morador local que vencera na vida e fizera fama e fortuna como o único fornecedor de Beef Chips, uma carne bovina enlatada inventada por ele, para o governo de Sua Majestade durante a Guerra dos Bôeres.

A biblioteca existira como um oásis de silêncio até 1939. Então, enquanto estava fechada para reforma, pegou fogo quando uma pilha de trapos dos pintores entrou em combustão espontânea bem na hora em que o sr. Chamberlain pronunciava para o povo britânico seu famoso discurso “Enquanto a guerra não começar, há sempre a esperança de que ela possa ser evitada”. Como toda a população adulta de Bishop’s Lacey estava reunida em volta dos rádios, ninguém, inclusive os seis membros voluntários do corpo de bombeiros, percebeu as labaredas até ser tarde demais. Quando chegaram com o carro equipado com uma bomba manual, nada mais restava do lugar, a não ser uma pilha de cinzas ardendo. Por sorte, todos os livros escaparam, pois tinham sido guardados em locais temporários para proteção.

Mas, com o deflagrar da guerra e a fadiga generalizada desde o armistício, o edifício original nunca chegou a ser substituído. Seu local agora nada mais era senão um terreno crestado na Rua das Provisões, virando a esquina logo depois da estalagem Os Treze Patos. A propriedade, tendo sido doada em caráter definitivo e em comum acordo aos moradores de Bishop’s Lacey, não podia ser vendida, e a área outrora temporária que abrigou seus edifícios era agora o lar permanente da Biblioteca Livre de Bishop’s Lacey.

Quando saí da Rua Principal, pude ver a biblioteca, uma caixa de placas de vidro e azulejos, que fora construída nos anos de 1920 para abrigar um salão de exposição de automóveis. Diversas das placas esmaltadas originais, ostentando os nomes de carros extintos, como o Wolseley e o Sheffield-Simplex, ainda estavam presas a uma das paredes abaixo da linha do forro, altas demais para atrair a atenção de ladrões e vândalos.

Agora, um quarto de século depois que o último Lagonda rodou pelas portas afora, o edifício havia caído em uma espécie de decrepitude, lascado e quebrado, como louça velha na moradia dos empregados.

Atrás e além da biblioteca, havia um aglomerado de anexos decadentes, como túmulos em volta de uma igreja rural, afundados no capim alto entre o velho salão de exposição e o caminho de cordas que acompanhava o rio. Diversos daqueles barracões com chão de terra batida abrigavam o excesso de livros da sede anterior da biblioteca, muito maior e há muito destruída. O interior das estruturas temporárias, que outrora abrigara um conjunto de oficinas mecânicas, era agora o lar de fileiras e fileiras de livros desprezados, com os temas identificados acima deles: História, Geografia, Filosofia, Ciência. Ainda cheirando a óleo de antigos motores, ferrugem e banheiros primitivos, aquelas garagens de madeira eram chamadas de depósitos — e eu podia ver por quê! Eu vinha aqui frequentemente e, depois do meu laboratório em Buckshaw, era meu lugar favorito no mundo.

Eu estava pensando nisso quando cheguei à porta de frente e girei a maçaneta.

— Droga! — praguejei. Estava trancada.

Dei um passo para o lado para espiar através da janela e notei um aviso toscamente escrito à mão, com lápis preto, grudado no vidro: FECHADA.

Fechada? Hoje era sábado. O horário da biblioteca era das dez da manhã às catorze e trinta, de quinta-feira a sábado; isso era claramente informado no aviso emoldurado em preto ao lado da porta. Teria acontecido alguma coisa com a srta. Pickery?

Dei uma sacudida na porta e depois bati com força. Coloquei as mãos em concha sobre o vidro e espiei dentro, mas com exceção de um raio de luz do sol atravessando uma nuvem de pó antes de repousar sobre prateleiras de romances, não havia nada para ver.

— Srta. Pickery! — chamei, mas não houve resposta.

— Droga! — reclamei de novo. Teria de adiar as pesquisas até alguma outra hora. Enquanto estava do lado de fora do Caminho das Vacas, ocorreu-me que o Paraíso deve ser um lugar onde a biblioteca fica aberta vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.

Não... oito dias por semana.

Eu sabia que a srta. Pickery morava na Rua dos Sapatos. Se deixasse minha bicicleta aqui e pegasse um atalho pelos anexos nos fundos da biblioteca, passaria atrás da Treze Patos e sairia ao lado do chalé dela.

Segui pelo comprido caminho de capim molhado, prestando muita atenção para não tropeçar em nenhuma das peças decrépitas de máquinas que se projetavam para fora aqui e ali, como ossos de dinossauro no deserto de Gobi. Daphne descrevera para mim os efeitos do tétano: bastava um arranhão de uma roda velha de automóvel para espumar pela boca, latir feito cachorro e cair no chão em convulsões ao sinal de água. Eu acabara de conseguir juntar um bocado de cuspe na boca para praticar, quando ouvi vozes.

— Mas como você pôde deixar, Mary? — Era a voz de um homem jovem, vindo do pátio da estalagem.

Colei o corpo atrás de uma árvore e então espiei por trás dela. Quem falava era Ned Cropper, aquele que realizava todo tipo de serviço na Treze Patos.

Ned! O simples fato de pensar nele tinha sobre Ophelia o efeito de uma injeção de novocaína. Ela enfiara na cabeça que ele era a cara de Dirk Bogarde, mas a única similaridade que eu podia ver era que ambos tinham braços e pernas e montes de cabelos cheios de brilhantina.

Ned estava sentado sobre um barril de cerveja do lado de fora da porta de trás da estalagem, e a menina que eu reconheci como Mary Stoker estava sentada em outro. Eles não olhavam um para o outro. Enquanto Ned traçava um elaborado labirinto no chão com o calcanhar da bota, Mary mantinha as mãos fortemente entrelaçadas no colo, olhando para coisa nenhuma no ar.

Embora ele tivesse falado em voz baixa num tom de urgência, pude ouvir perfeitamente cada palavra. A parede rebocada da Treze Patos funcionava como um perfeito amplificador de som.

— Eu disse a você, Ned Cropper, não tive como evitar. Ele veio por trás de mim quando eu estava trocando os lençóis dele.

— Por que você não gritou? Sei muito bem que você pode acordar os mortos... quando quer.

— Você não conhece muito bem meu pai, conhece? Se ele soubesse o que aquele sujeito fez, faria galochas com a minha pele!

Ela cuspiu no chão de terra.

— Mary! — A voz veio de algum lugar dentro da hospedaria, mas assim mesmo repercutiu no pátio como um trovão. Era o pai de Mary, Tully Stoker, o dono da estalagem, cuja voz anormalmente alta desempenhava um papel proeminente nas histórias mais escandalosas das comadres faladeiras da aldeia.

— Mary!

Mary pôs-se em pé de um pulo ao som daquela voz.

— Estou indo! — gritou ela. — Estou indo!

Ela vacilou, dividida, como se estivesse tomando uma decisão. Subitamente, como uma víbora dando um bote, pulou na direção de Ned e plantou-lhe um beijo impetuoso na boca e, então, com uma sacudida no avental — como um mágico sacudindo sua capa —, desapareceu para dentro do escuro da porta aberta.

Ned ficou sentado mais um momento, depois limpou a boca com as costas da mão, antes de rolar o barril para junto de outros vazios no lado oposto do pátio da estalagem.

— Olá, Ned! — gritei, e ele se voltou, meio embaraçado. Eu sabia que ele estava se perguntando se eu o teria ouvido falando com Mary, ou testemunhado o beijo. Decidi ser ambígua.

— Lindo dia — falei, com um sorriso caloroso.

Ned perguntou sobre minha saúde, e então, em ordem de cautelosa precedência, sobre a saúde do pai e de Daphne.

— Eles estão ótimos — respondi a ele.

— E a srta. Ophelia? — perguntou ele, finalmente chegando a ela.

— A srta. Ophelia? Bem, para dizer a verdade, Ned, estamos todos meio preocupados com ela.

Ned recuou como se uma vespa tivesse pousado em seu nariz.

— Oh? Qual é o problema? Nada sério, espero.

— Ela ficou toda verde — eu disse. — Acho que é clorose. O dr. Darby também pensa isso.

Em seu Dicionário da linguagem vulgar, de 1811, Francis Grose chamou a clorose de “febre do amor” e de “doença das virgens”, e eu sabia que Ned não tinha o mesmo acesso fácil que eu ao livro do capitão Grose. Ponto para mim!

— Ned!

Era Tully Stoker de novo. Ned deu um passo em direção à porta.

— Diga-lhe que perguntei por ela — pediu ele.

Fiz-lhe um V de Winston Churchill com os dedos. Era o mínimo que poderia fazer.

 

A Rua dos Sapatos, como o Caminho das Vacas, descia da Rua Principal até o rio. O chalé antigo, da época dos Tudors, da srta. Pickery, a meio caminho, parecia com algo que se vê na tampa da caixa de um quebra-cabeça. Com telhado de palha e paredes caiadas, janelas de vidro bisotado e porta holandesa pintada de vermelho, era o deleite de qualquer artista, com paredes em vigas de madeira aparentes flutuando como mastros de um velho e pitoresco navio sobre um mar de flores antiquadas, como anêmonas, malvas, cravos-da-índia, campainhas e outras cujos nomes não conheço.

Roger, o gato ruivo da srta. Pickery, rolou na soleira da porta da frente, expondo a barriga para um carinho. Cedi.

— Bom menino, Roger — eu disse. — Onde está a srta. Pickery?

Roger saiu andando lentamente à procura de alguma coisa interessante para examinar, e eu bati à porta. Não houve resposta.

Dei a volta até o jardim dos fundos. Ninguém em casa.

De volta à Rua Principal, depois de parar para dar uma olhada em alguns velhos potes de boticário contaminados por ovos de moscas na janela do farmacêutico, eu atravessava o Caminho das Vacas quando, por acaso, olhei de relance para a esquerda e vi alguém entrando na biblioteca. Abri os braços, inclinei as asas e virei noventa graus. Mas, quando cheguei à porta, a pessoa já havia entrado. Virei a maçaneta, e dessa vez a porta se abriu.

A mulher estava guardando sua bolsa na gaveta e se acomodando atrás da escrivaninha, e percebi que nunca a tinha visto antes na minha vida. A cara dela era tão enrugada como uma daquelas maçãs esquecidas que alguém às vezes acha no bolso do casaco de inverno do ano passado.

— Sim? — disse ela, olhando por cima dos óculos. Eles ensinam as pessoas a fazer isso na Academia Real de Ciência da Biblioteconomia. Os óculos, eu notei, tinham uma ligeira coloração acinzentada, como se tivessem sido mergulhados em vinagre durante a noite.

— Eu esperava ver a srta. Pickery — falei.

— A srta. Pickery teve de se afastar para tratar de um assunto particular de família.

— Ah! — exclamei.

— Sim, é muito triste. A irmã dela, Hetty, que mora em Nether-Wolsey, sofreu um acidente trágico com uma máquina de costura. Nos primeiros dias parecia que tudo ia ficar bem, mas então as coisas deram uma virada repentina e, agora, parece que existe uma possibilidade real de ela perder o dedo. Uma pena... e ela com os gêmeos. A srta. Pickery, é claro...

— É claro — concordei.

— Eu sou a srta. Mountjoy, e ficarei feliz em ajudá-la no lugar dela.

Srta. Mountjoy! A aposentada srta. Mountjoy! Eu tinha ouvido histórias sobre “A srta. Mountjoy e o Reinado do Terror”. Ela tinha sido a bibliotecária-chefe na Biblioteca Livre de Bishop’s Lacey quando Noé era marinheiro. Toda doçura por fora, mas por dentro “O Palácio da Maldade”. Ou, pelo menos, foi o que me contaram (outra vez a sra. Mullet, que lê novelas de detetive). Os moradores ainda rezam novenas para ela não voltar da aposentadoria.

— E como posso ajudar você, queridinha?

Se existe uma coisa que realmente desprezo é ser tratada de “queridinha”. Quando eu escrever minha obra-prima, Um tratado sobre todos os venenos, e chegar ao “cianeto”, vou pôr em “Usos” a frase “Particularmente eficaz na cura daqueles que chamam as pessoas de ‘queridinha’”.

Ainda assim, uma das minhas regras de vida é esta: quando você quer alguma coisa, morda a língua.

Dei um sorriso frouxo e disse: — Eu gostaria de consultar os arquivos de jornais.

— Arquivos de jornais! — ela gorgolejou. — Céus, você sabe muita coisa, não é, queridinha?

— Sim — respondi, tentando parecer modesta. — Eu sei.

— Os jornais estão em ordem cronológica nas estantes da Sala Drummond. Fica atrás, à esquerda, no topo da escada — orientou ela com um aceno de mão.

— Obrigada — agradeci, dirigindo-me para lá.

— A não ser, é claro, que você queira alguma coisa anterior ao ano passado. Nesse caso, eles estarão em um dos anexos externos. Que ano em particular você está procurando?

— Na verdade não sei — eu disse. Mas espere um minuto — eu sabia, sim! O que foi que o estranho disse no estúdio do pai?

“Twining — O velho Cuppa está morto há...” O quê?

Eu podia ouvir a voz melada do estranho na minha cabeça: “O velho Cuppa está morto há... trinta anos!”.

— O ano é 1920 — eu disse, fria como uma truta. — Gostaria de examinar o arquivo de jornais de 1920.

— Esses provavelmente ainda estão no Barracão do Poço; isto é, se é que os ratos ainda não passaram por lá — ela disse com uma ponta de malícia no olhar por cima dos óculos como se, à simples menção de ratos, eu pudesse jogar as mãos para o ar e sair correndo e gritando.

— Vou encontrá-los — reafirmei. — Existe uma chave?

A srta. Mountjoy revirou a gaveta da escrivaninha e desenterrou um anel com chaves de ferro que pareciam ter pertencido aos carcereiros de Edmond Dantès, em O Conde de Montecristo. Fiz as chaves retinirem com uma sacudida bem-humorada e saí pela porta.

O Barracão do Poço era o anexo mais distante do edifício principal da biblioteca e equilibrava-se sobre a margem íngreme do rio. Era um conglomerado de tábuas castigadas pelo tempo e chapas de zinco ondulado enferrujadas, tudo tomado por musgo e trepadeiras. No auge do salão de exposição, tinha sido a oficina onde se trocava o óleo e os pneus dos carros, lubrificavam-se os eixos e realizavam-se outros ajustes.

Desde então, o abandono e a erosão haviam reduzido o lugar a algo semelhante à choupana de um eremita na floresta.

Virei a chave e a porta se abriu com um gemido ferrugento. Adentrei a penumbra, tomando cuidado para contornar as bordas escarpadas do poço fundo do mecânico que, embora estivesse coberto por tábuas pesadas, ainda ocupava grande parte da sala.

O lugar tinha um cheiro penetrante e almiscarado com mais do que um toque de amônia, como se houvesse pequenos animais vivendo embaixo do assoalho.

Metade da parede mais próxima ao Caminho das Vacas era tomada por uma porta sanfonada, agora bloqueada, que antes se abria para permitir aos automóveis que entrassem e estacionassem sobre o poço. O vidro de suas quatro janelas tinha sido pintado, por alguma razão insondável, de um vermelho medonho através do qual vazava a luz do sol, dando ao ambiente uma coloração sangrenta e perturbadora.

Acompanhando as três paredes restantes, erguendo-se como estruturas de beliches, estendiam-se prateleiras de madeira, cada qual suportando grandes pilhas de jornais amarelados: The Hinley Chronicle, The West Counties Advertiser, The Morning Post-Horn, todos arrumados por ano e identificados com etiquetas desbotadas escritas à mão.

Não tive problemas para encontrar o ano de 1920. Ergui a pilha de cima, sufocando com a nuvem de pó que se levantou na minha cara como uma explosão num moinho de farinha, enquanto fragmentos pequeninos de papel-jornal caíam no chão como neve de papel.

Banheira e bucha esta noite, pensei, goste ou não.

Havia uma mesa pequena perto de uma janela suja: luz e espaço apenas suficientes para abrir os jornais, um de cada vez.

O Morning Post-Horn me chamou a atenção: um tabloide cuja primeira página, como no Times of London, estava repleta de anúncios, fragmentos de notícias e colunas de conselhos:

 


Perdido: pacote de papel marrom amarrado com barbante de açougueiro.


De valor sentimental para o dono agoniado.


Oferece-se generosa recompensa.


Contatar “Smith”, a/c The White Hart, Wolverston.

 

 

Ou isto:

 


Minha Querida: Ele estava olhando. Mesma hora na próxima quinta-feira. Traga pedra-sabão. Bruno.

 

 

E então subitamente me lembrei! O pai frequentara Greyminster... e Greyminster não era perto de Hinley? Joguei o Morning Post-Horn de volta ao seu lugar e puxei para baixo a primeira de quatro pilhas do The Hinley Chronicle.

Esse jornal era publicado semanalmente, às sextas-feiras. A primeira sexta-feira daquele ano era dia de Ano-Novo, portanto, a primeira edição do ano era datada da sexta-feira seguinte: 8 de janeiro de 1920.

Havia páginas e mais páginas de notícias dos feriados — visitantes de Natal vindos do continente, um encontro adiado da Associação das Senhoras Religiosas, um porco “de bom tamanho” à venda, festividades do Dia do Boxe em The Grange, um pneu perdido da carroça do cervejeiro.

Os “Julgamentos em Curso” eram um catálogo sinistro de roubos, caça ilegal e assaltos.

Sem intervalo, prossegui, e minhas mãos ficaram pretas da tinta que secara vinte anos antes de eu nascer. O verão trouxe mais visitantes do continente, dias de feira, empregos disponíveis, acampamentos de escoteiros, dois banquetes e diversas obras propostas para as estradas.

Depois de uma hora, estava começando a me desesperar. As pessoas que liam aquelas coisas deviam possuir uma visão sobre-humana, tão miseravelmente pequenas eram as letras. Muito mais disso e eu sabia que teria uma tremenda dor de cabeça.

E então encontrei:

 


Popular professor mergulha para a morte

 

 


Em um acidente trágico na manhã de segunda-feira, GrenvilleTwining, M.A. (Oxon.), 72, professor de latim e respeitado diretor do internato da Greyminster School, perto de Hinley, caiu para a morte da torre do relógio da Anson House de Greyminster. Os que estão familiarizados com os fatos descreveram o acidente como “simplesmente inexplicável”.

 

“Ele subiu no parapeito, envolveu-se em sua beca, e nos deu a saudação romana de palma para baixo. ‘Vale!’, ele bradou para os rapazes embaixo na quadra”, disse Timothy Greene, do sexto ano em Greyminster, “... e jogou-se para baixo!”.

 

 

“Vale”? Meu coração deu um pulo. Era a mesma palavra que o moribundo exalara na minha face! “Adeus.” Dificilmente poderia ser uma coincidência, poderia? Era simplesmente bizarro demais. Droga! Minha cabeça disparava como louca e meu bom senso estava paralisado. O Barracão do Poço estava longe de ser o lugar certo para especulações; eu pensaria naquilo depois.

Continuei lendo:

 


“Do jeito que a beca se agitava, ele se parecia exatamente com um anjo cadente”, disse Toby Lonsdale, um rapaz de faces rosadas que estava quase em lágrimas quando foi afastado por seus camaradas antes que desmaiasse, desmoronando de vez ali mesmo.


O sr. Twining tinha sido recentemente interrogado pela polícia sobre um selo postal desaparecido: uma variante única e extremamente valiosa do Penny Black.


“Não existe conexão”, disse o dr. Isaac Kissing, que é diretor de Greyminster desde 1915. “Absolutamente não existe conexão. O sr. Twining era reverenciado e, se me permite dizer, amado por todos os que o conheceram.”


O Hinley Chronicle apurou que continuam os inquéritos policiais sobre ambos os incidentes.

 

 

A data do jornal era 24 de setembro de 1920.

Recoloquei-o na prateleira, saí e tranquei a porta. A srta. Mountjoy ainda estava sentada ociosamente à sua escrivaninha quando devolvi a chave.

— Encontrou o que estava procurando, queridinha? — perguntou.

— Sim — respondi, fazendo uma grande encenação de sacudir a poeira das mãos.

— Posso saber um pouco mais? — ela indagou timidamente. — Eu poderia direcioná-la para materiais relacionados.

Tradução: ela estava ardendo de curiosidade bisbilhoteira.

— Não, obrigada, srta. Mountjoy — agradeci.

Por alguma razão, subitamente senti como se meu coração tivesse sido arrancado e substituído por uma falsificação feita de chumbo.

— Você está se sentindo bem, queridinha? — perguntou a srta. Mountjoy. — Está parecendo meio adoentada.

Adoentada? Eu me sentia como se estivesse a ponto de vomitar.

Talvez fosse nervosismo, ou até uma tentativa inconsciente de evitar a náusea, mas para meu horror me vi despejando:

— A senhorita já ouviu falar de um sr. Twining, da Greyminster School?

Ela perdeu a fala. Seu rosto ficou vermelho, depois cinzento, como se tivesse pegado fogo diante dos meus olhos e desmoronado em uma avalanche de cinzas. Puxou um lenço de renda da manga, deu-lhe um nó e comprimiu-o na boca, e por alguns momentos ficou lá, sentada, balançando na sua cadeira e apertando o lenço de renda entre os dentes como um marujo do século XVIII cuja perna estava sendo amputada abaixo do joelho.

Por fim, olhou para mim com os olhos a ponto de marejare disse com a voz trêmula:

— O sr. Twining era irmão da minha mãe.


ESTÁVAMOS TOMANDO CHÁ. A SRTA. MOUNTJOY desenterrara uma maltratada chaleira de latão de algum lugar e, depois de uma escavação em sua bolsa, removeu de lá um pacote aberto de biscoitos peek freans.

Sentei-me em uma escada da biblioteca e me servi de mais um biscoito.

— Foi trágico — ela contou. — Meu tio foi diretor do internato da Anson House desde sempre, ou era o que parecia. Ele se orgulhava muito da sua casa e dos rapazes. Não poupava esforços em encorajá-los a dar sempre o melhor de si; ele os preparava para a vida.

“Gostava de brincar dizendo que falava latim melhor do que o próprio Julio César, e sua gramática latina, Língua Latina de Twining — por sinal, publicada quando tinha apenas vinte e quatro anos —, era o texto-padrão em escolas de todo o mundo. Eu ainda tenho um exemplar na minha cabeceira, e muito embora não possa ler muita coisa ali, às vezes gosto de segurá-lo por causa do conforto que me traz: qui, quae, quod, e tudo mais. As palavras têm um som tão reconfortante.

“O tio Grenville estava sempre organizando coisas: encorajou os rapazes a formar uma sociedade de debates, um clube de patinação, um clube de ciclismo, um grupo de carteado. Era um entusiástico ilusionista amador, embora não muito bom — você sempre podia ver o ás de ouros espreitando na sua manga com um pedaço de elástico pendurado. Era um fervoroso colecionador de selos e incentivava os rapazes a aprender a história e a geografia dos países emitentes, bem como a manter álbuns bem cuidados e organizados. E foi essa a causa da sua derrocada.”

Parei de mastigar e fiquei na expectativa. A srta. Mountjoy entrara em uma espécie de devaneio e parecia improvável que prosseguisse sem encorajamento.

Pouco a pouco, deixei-me enfeitiçar por ela. Falou comigo de mulher para mulher, e eu sucumbi. Senti pena dela... realmente senti.

— Sua derrocada? — perguntei.

— Ele cometeu o grande erro de depositar sua confiança em diversas desculpas esfarrapadas de jovens que se insinuaram em suas boas graças. Eles simularam ter grande interesse por sua pequena coleção de selos e fingiram um interesse ainda maior na coleção do dr. Kissing, o diretor da escola. Naquele tempo, o dr. Kissing era a maior autoridade em Penny Black, o primeiro selo postal do mundo, em todas as suas múltiplas variantes. A coleção Kissing era motivo de inveja, e digo isso com conhecimento de causa. Aquelas criaturas vis convenceram o tio Grenville a interceder e conseguir uma exibição privada dos selos do diretor. Enquanto examinavam a joia da coroa da coleção, um Penny Black de uma certa peculiaridade, me esqueci dos detalhes, o selo foi destruído.

— Destruído? — perguntei.

— Queimado. Um dos meninos ateou fogo nele. Só por brincadeira.

A srta. Mountjoy pegou seu chá, e um anel de fumaça voou pela janela, por onde ficou olhando para fora durante o que pareceu ser um longo tempo. Eu estava começando a achar que havia se esquecido de mim, mas então ela falou de novo:

— É claro que meu tio foi responsabilizado pelo desastre...

Ela se voltou e me olhou nos olhos. — E o resto da história, você já descobriu esta manhã no Barracão do Poço.

— Ele se matou — sentenciei.

— Ele não se matou! — ela gritou. A xícara e o pires caíram de suas mãos e se estilhaçaram no piso ladrilhado. — Ele foi assassinado!

— Por quem? — perguntei, controlando minhas emoções. A srta. Mountjoy estava começando a mexer com meus nervos de novo.

— Por aqueles monstros! — ela vociferou. — Aqueles monstros obscenos!

— Monstros?

— Aqueles meninos! Eles o mataram, tão certo como se tivessem pegado um punhal em suas próprias mãos e cravado em seu coração.

— Quem eram esses meninos... quero dizer, esses monstros? Você se lembra dos nomes?

— Por que você quer saber? Que direito você tem de vir aqui despertar esses fantasmas?

— Sou interessada em História — eu disse.

Ela passou a mão pelos olhos como que comandando a si mesma para sair de um transe e falou com a voz lenta de uma mulher drogada.

— Faz tanto tempo — ela balbuciou. — Tanto, tanto tempo. Realmente não tenho vontade de recordar... O tio Grenville mencionou os nomes deles antes de ter sido...

— Assassinado? — sugeri.

— Sim, é isso, antes de ter sido assassinado. Estranho, não é? Durante todos esses anos um dos nomes ficou mais gravado na minha cabeça porque me lembrava de um macaco... um macaco acorrentado, você sabe, com um realejo e um chapeuzinho redondo vermelho e uma caneca de lata.

Ela deu uma risadinha nervosa e tensa.

— Jacko — deduzi.

A srta. Mountjoy sentou-se pesadamente como se tivesse sido golpeada por um cutelo de açougueiro. Olhou para mim com olhos arregalados como se eu tivesse acabado de me materializar vinda de outra dimensão.

— Quem é você, menininha? — sussurrou ela. — Por que você veio aqui? Qual é seu nome?

— Flavia — respondi, parando um momento à porta. — Flavia Sabina Dolores de Luce — o “Sabina” era real. “Dolores”, inventei na hora.

 

Até eu salvá-la de um esquecimento enferrujado, minha velha e fiel BSA Keep Fit de três marchas teria mofado por anos em um barracão de ferramentas entre vasos de flores quebrados e carrinhos de mão de madeira. Como tantas outras coisas em Buckshaw, ela antes pertencera a Harriet, que a batizara de Hirondelle, “a andorinha”. Eu a rebatizara de Gladys.

Os pneus de Gladys estavam murchos, suas engrenagens completamente secas e clamando por óleo, mas, com sua própria bomba on-board e bolsa de ferramentas em couro preto atrás do selim, ela era totalmente autossuficiente. Com a ajuda de Dogger, logo consegui deixá-la tinindo. Junto com o jogo de ferramentas, encontrei um livreto chamado Ciclismo para mulheres de todas as idades, de Prunella Stack, líder da Liga Feminina de Saúde e Beleza. Na capa estava escrito com tinta preta, numa caligrafia fluente e bonita: Harriet de Luce, Buckshaw.

Havia momentos em que Harriet não havia partido; estava por toda parte.

Enquanto eu disparava para casa, passando pelas lápides inclinadas e cobertas de musgo no pátio apinhado da igreja de São Tancredo, pelas veredas estreitas e repletas de folhas, cruzando a argilosa Estrada Principal, e entrando no campo aberto, deixei Gladys livre para fazer o que quisesse, precipitando-se ladeiras abaixo, rodando velozmente pelas sebes, imaginando o tempo todo que eu era piloto de um dos Spitfires que, apenas cinco anos atrás, haviam passado, em voo rasante, por aquelas mesmas cercas vivas, como andorinhas a ponto de aterrissar em Leathcote.

Soube pelo livreto que se eu praticasse o ciclismo com um atiçador atrás, como a srta. Gulch em O Mágico de Oz, escolhesse terrenos variados e respirasse profundamente, brilharia como o farol de Eddystone de tanta saúde e nunca teria espinhas: uma informação útil, que não perdi tempo em repassar para Ophelia.

Fico pensando, existiria um livreto concomitante chamado Ciclismo para homens de todas as idades? E, se existisse, teria sido escrito pelo líder da Liga Masculina de Saúde e Beleza?

Fiz de conta que era o menino que o pai sempre quis: um filho que ele poderia levar à Escócia para pescar salmão e caçar galos-da-floresta nas charnecas; um filho que ele poderia mandar ao Canadá para dedicar-se ao hóquei no gelo. Não que o pai fizesse alguma dessas coisas, mas se ele tivesse um filho, eu gostaria de pensar que ele poderia ter feito.

Meu nome do meio poderia ser Laurence, como o dele, e quando estivéssemos juntos a sós ele me chamaria de Larry. Quanto desapontado ele deve ter ficado quando todas nós nascemos meninas.

Será que fui cruel demais com aquele horror, srta. Mountjoy? Vingativa demais? Ela não era, afinal, apenas uma velha solteirona inofensiva e solitária? Teria um Larryde Luce sido mais compreensivo?

— Raios, não! — bradei para o vento e cantarolei, enquanto seguíamos voando:

 


Umpa-chuka! Umpa-chuka!


Umpa-chuka-bum!

 

 

Mas eu não me sentia mais como um dos malditos escoteiros do Lorde Baden-Powell nem como o Príncipe Knick-Knack de Ali-Kazaam.

Eu era eu. Eu era Flavia. E me amava, mesmo que ninguém mais me amasse.

— Viva Flavia, todo mundo! Flavia para sempre! — bradei, enquanto Gladys e eu disparávamos pelos Portões Mulford, à velocidade máxima, entrando na alameda de castanheiras ao longo da rampa de acesso de Buckshaw.

Aqueles portões magníficos, com seus grifos exuberantes e ferro forjado negro filigranado, outrora adornaram a propriedade vizinha de Batchley, o lar ancestral de “Os Sórdidos Mulford”. Os portões foram adquiridos para Buckshaw nos anos 1760 por um certo Brandwin de Luce, que — depois que um dos Mulford fugiu com a mulher dele — os desmontou e levou para casa.

A troca de uma esposa por um par de portões (“Os mais belos deste lado do Paraíso”, Brandwin escrevera em seu diário) pareceu ter resolvido a questão, uma vez que os Mulford e os De Luce continuaram sendo grandes amigos e vizinhos até que o último Mulford, Tobias, vendeu a propriedade na época da Guerra Civil Americana e foi para além-mar ajudar seus primos confederados.

 

— Uma palavrinha, Flavia — pediu o inspetor Hewitt, saindo pela porta da frente.

Será que ele estava esperando por mim?

— É claro — respondi, cortês.

— Onde você esteve agora mesmo?

— Eu estou presa, inspetor? — era uma piada, esperava que ele entendesse.

— Estava apenas curioso.

Ele puxou um cachimbo do bolso do casaco, encheu-o e riscou um fósforo. Fiquei olhando enquanto o fumo queimava progressivamente na direção dos seus dedos quadrados.

— Fui à biblioteca — confessei.

Ele acendeu o cachimbo, depois apontou o bocal para Gladys.

— Não estou vendo nenhum livro.

— Ela estava fechada.

— Ah! — disse ele.

O homem era de uma calma enlouquecedora. Até no meio de um homicídio, era plácido como se estivesse passeando no parque.

— Eu falei com Dogger — começou ele, e notei que mantinha os olhos fixos em mim para avaliar minha reação.

— Ah, é? — disfarcei, mas na minha cabeça soava aquele tipo de aviso que se ouve em um submarino prestes a mergulhar: “Uuuuga!”.

Cuidado! Pensei. Olhe onde pisa. Quanto Dogger contou a ele? Sobre o estranho no estúdio? Sobre a discussão com o pai? As ameaças?

Esse era o problema com alguém como Dogger: ele provavelmente sucumbiria sem nenhuma razão. Teria ele tagarelado para o inspetor sobre o estranho no estúdio? Maldito sujeito! Maldito!

— Ele diz que você o acordou por volta de quatro horas da madrugada e contou que havia um cadáver no jardim. Está correto?

Contive um suspiro de alívio, quase sufocando no processo. Obrigada, Dogger! Que o Senhor o abençoe, o guarde e faça brilhar sobre você a sua face, para sempre! Bom, velho e leal Dogger. Eu sabia que podia contar com você.

— Sim — confirmei. — Está correto.

— O que aconteceu então?

— Desci e saí para o jardim pela porta da cozinha. Mostrei o corpo a ele. Dogger se ajoelhou ao lado dele e tomou o pulso.

— E como ele fez isso?

— Ele pôs a mão no pescoço do sujeito, embaixo da orelha.

— Humm — continuou o inspetor. — E havia? Pulso, quero dizer?

— Não.

— Como você sabe? Ele contou?

— Não — respondi.

— Humm — disse ele outra vez. — Você também se ajoelhou ao lado dele?

— Imagino que poderia ter feito isso. Mas não acho... Não me lembro.

O inspetor fez uma anotação. Mesmo sem ver, eu sabia o que era: Pergunta: D. (1) disse a F. que não havia pulso? (2) Viu F. ajoelhar JC (Junto ao Cadáver)?

— É bem compreensível — disse ele. — Deve ter sido um choque e tanto.

Lembrei-me da imagem do estranho lá, caído, à primeira luz do alvorecer: a barba ligeiramente crescida no queixo, fios de cabelos vermelhos se agitando gentilmente ao leve sopro da brisa matinal, a palidez, a perna estendida, os dedos tremendo, o último suspiro. E aquela palavra, soprada na minha cara... “Vale”.

A excitação daquilo tudo!

— Sim — assenti —, foi devastador.

 

Eu tinha evidentemente passado no teste. O inspetor Hewitt foi para a cozinha, onde os detetives Woolmer e Graves estavam atarefados, organizando as operações sob uma barragem de bisbilhotices e sanduíches de alface da sra. Mullet.

Quando Ophelia e Daphne desceram para almoçar, observei desapontada a inusitada alvura na aparência de Ophelia. Teria a minha poção saído pela culatra? Teria eu, por algum caprichoso acidente da química, produzido um creme facial miraculoso?

A sra. Mullet entrou agitada, resmungando, enquanto arrumava a sopa e os sanduíches sobre a mesa.

— Não está certo — reclamou. — Eu já estou atrasada, e toda essa confusão, e Alf me esperando em casa, e tudo. A audácia deles me pedindo para tirar aquele pássaro morto da lata de lixo — disse ela, estremecendo —, para eles poderem botá-lo em pé e tirar um retrato. Não está certo. Eu mostrei a eles a lata de lixo e disse que se queriam tanto a carcaça, podiam muito bem escavá-la eles mesmos; eu tinha um almoço para fazer. Coma os sanduíches, querida. Não há nada como carnes frias em junho, são boas como um piquenique.

— Pássaro morto? — perguntou Daphne franzindo os lábios.

— Aquele que a srta. Flavia e o coronel acharam na porta dos fundos ontem. Ainda me deixa arrepiada, o jeito como aquela coisa estava caída lá, com os olhos congelados e o bico diretamente para cima com um pedacinho de papel enfiado nele.

— Foi o Ned. Viu só? — exclamou Ophelia, dando uma palmada na mesa. — Você estava certa, Dafi. É um símbolo de amor!

Daphne andara lendo O ramo de ouro na Páscoa e dissera a Ophelia que os costumes primitivos de galanteio dos mares do sul às vezes sobreviviam em nossos tempos iluminados. Era simplesmente uma questão de ser paciente, dissera ela.

Olhei de uma para a outra inexpressivamente. Havia eras inteiras em que eu não entendia nada sobre minhas irmãs.

— Um pássaro morto, rígido como uma tábua, com o bico diretamente para cima? Que tipo de símbolo é esse? — perguntei.

Daphne se escondeu atrás de seu livro, e Ophelia corou um pouco. Escapuli da mesa e as deixei dando risadinhas abafadas.

 

— Sra. Mullet — questionei —, a senhora não contou ao inspetor Hewitt que nós nunca vemos bicos-de-ferro na Inglaterra antes de setembro?

— Bicos-de-ferro, bicos-de-ferro! Tudo o que ouço hoje em dia é isso. Dê um passo para o lado, por favor — você está num lugar que precisa ser limpo.

— Por que isso? Por que nunca vemos bicos-de-ferro antes de setembro?

A sra. Mullet endireitou-se, deixou cair a escova no balde e enxugou as mãos ensaboadas no avental.

— Porque eles estão em outro lugar — disse ela triunfante.

— Onde?

— Oh, você sabe... eles são como todos esses pássaros que migram. Estão em algum lugar lá no norte. Até onde sei, poderiam estar tomando chá com papai-noel.

— Quando você diz lá no norte, quão distante quer dizer? Escócia?

— Escócia? — falou com desprezo. — Oh, céus, não. Até a segunda irmã do meu Alf, Margaret, vai para a Escócia nas férias, e ela não é nenhum pássaro.

— Mas o marido dela é — acrescentou.

Houve um rugido em meus ouvidos, e alguma coisa fez clique!

— Que tal Noruega? — perguntei. — Bicos-de-ferro poderiam veranear na Noruega?

— Imagino que sim, querida. Você vai ter de conferir.

Sim! O inspetor Hewitt não tinha dito ao dr. Darby que eles tinham razões para acreditar que o homem no jardim viera da Noruega? Como era possível eles saberem isso? O inspetor me contaria se eu perguntasse?

Provavelmente não. Nesse caso, eu teria de decifrar sozinha.

— Vá andando agora — pediu a sra. Mullet. — Não posso ir para casa enquanto não terminar este andar, e já é uma da tarde. A digestão do pobre Alf provavelmente já está em estado de choque a esta altura.

Saí pela porta dos fundos. A polícia e o legista já tinham ido embora e levado o corpo com eles. O jardim agora parecia estranhamente vazio. Dogger não estava visível em lugar nenhum, então eu me sentei em uma parte baixa do muro para pensar um pouco.

Teria Ned deixado o bico-de-ferro — o jack snipe — morto na soleira da porta como um símbolo do seu amor por Ophelia? Ela certamente parecia estar convencida disso. Se tinha sido Ned, onde ele conseguira aquilo?

Dois segundos e meio depois, agarrei Gladys, joguei a perna por cima do selim e, pela segunda vez naquele dia, saí voando como o vento para a aldeia.

A velocidade era essencial. Ninguém em Bishop’s Lacey ainda devia saber da morte do estranho. A polícia não teria contado a ninguém — nem eu.

Os mexericos não começariam até a sra. Mullet terminar a faxina e caminhar até a aldeia. Mas depois que ela chegasseem casa, a notícia do assassinato em Buckshaw se espalharia como a peste negra. Eu tinha até então para descobrir o que precisava saber.


QUANDO BREQUEI DERRAPANDO E ENCOSTEI GLADYS contra uma pilha de troncos envelhecidos, Ned ainda trabalhava no pátio da estalagem. Tinha terminado com os barris de cerveja e estava, agora, descarregando ostensivamente queijos do tamanho de pedras de moinho da traseira de um caminhão estacionado.

— Olá, Flavia — cumprimentou ele ao me ver, aproveitando a oportunidade de parar de trabalhar. — Quer um pouco de queijo?

Antes que eu pudesse responder ele já tinha puxado um canivete de aparência duvidosa do bolso e cortado uma fatia grossa de queijo Stilton com uma facilidade assustadora. Cortou uma para si mesmo e a devorou na hora, com o que Daphne chamaria de um “prazer ruidoso”. Daphne vai ser escritora e copia em um velho caderno as frases que a impressionam nas leituras do dia a dia. Me lembrei do “prazer ruidoso” da última vez em que bisbilhotei suas páginas.

— Esteve em casa? — perguntou Ned, num olhar tímido de relance. Vi o que viria a seguir. Assenti.

— E como está a srta. Ophelia? O doutor esteve por lá?

— Sim — respondi. — Creio que ele a viu esta manhã.

Ned engoliu inteira minha lorota.

— E então, ela ainda está verde?

— Mais amarelada do que antes — menti. — Uma tonalidade puxando mais para o sulfúrico do que para o cúprico.

Eu aprendera que uma mentira enrolada em detalhes, como uma pílula para cavalos em uma maçã, descia com mais facilidade. Mas, desta vez, assim que falei soube que havia me excedido.

— Ah, Flavia! — queixou-se Ned. — Você está caçoando de mim.

Brindei-o com meu melhor sorriso de caipira rústica e de lento entendimento.

— Você me pegou, Ned — confessei. — Culpada, segundo a acusação.

Ele me devolveu o mesmo sorriso amarelo, e isso foi bizarro. Por uma fração de segundo achei que ele estava me imitando e senti meu humor começar a esquentar. Mas então me dei conta de que ele estava honestamente contente por ter me entendido. Era minha oportunidade.

— Ned, se eu fizesse uma pergunta terrivelmente pessoal, você responderia?

Aguardei até que aquilo penetrasse em sua mente. Comunicar-se com Ned era como trocar mensagens por telegrama com uma pessoa na Mongólia que lê devagar.

— É claro que eu responderia — afirmou, e a piscadela marota em seu olho me sugeriu o que viria a seguir. — E é claro que eu poderia não dizer a verdade.

Demos ambos uma boa risada, e então fui ao que interessava. Comecei com a artilharia pesada.

— Você está loucamente apaixonado pela Ophelia, não é?

Ned chupou os dentes e passou um dedo por dentro do colarinho.

— Ela é uma garota legal, isso eu tenho de reconhecer.

— Mas você não gostaria de um dia morar com ela em um chalé com telhado de palha e criar uma ninhada de moleques?

A essa altura, o pescoço de Ned era uma coluna vermelha subindo, como um grosso termômetro de álcool. Em segundos ficou parecendo um desses pássaros que inflam o papo para fins de acasalamento. Decidi ajudá-lo.

— Apenas suponha que ela quisesse vê-lo, mas o pai dela não permitisse. Suponha que uma de suas irmãs mais novas pudesse ajudar.

Seu papo vermelho já estava começando a diminuir. Achei que ele ia começar a chorar.

— Está falando sério, Flavia?

— Palavra de honra — jurei.

Ned esticou os dedos calejados e deu uma sacudida surpreendentemente gentil na minha mão. Foi como apertar as mãos de um abacaxi.

— Dedos da amizade — afirmou, seja lá o que ele queria dizer com isso.

Dedos da amizade? Por acaso eu tinha dado o aperto de mão secreto de alguma irmandade rústica que se encontrava à luz do luar em pátios de igreja ou bosques escondidos? Eu era agora uma iniciada e seria convidada a participar de indizíveis rituais sangrentos à meia-noite entre as sebes? Parecia ser uma possibilidade interessante.

Ned estava sorrindo para mim como a caveira de uma bandeira pirata. Resolvi assumir o controle.

— Escute — disse a ele. — Lição número um: não deixe aves mortas na soleira da porta de sua amada. É coisa que somente um gato apaixonado faria.

Ned pareceu confuso.

— Já deixei flores uma ou duas vezes, esperando que ela notasse — confessou.

Aquilo era novidade para mim; Ophelia deve ter escamoteado os buquês em seu aposento, para fins de devaneio, antes que qualquer pessoa da casa os notasse.

— Mas aves mortas? Nunca. Você me conhece, Flavia. Eu não faria uma coisa dessas.

Quando parei para pensar naquilo por um momento, soube que ele tinha razão. Eu o conhecia e ele não faria isso. Minha pergunta seguinte, contudo, resultou ser pura sorte.

— Mary Stoker sabe que você está caído pela Ophelia?

Era uma frase que eu ouvira no cinema, em algum filme americano — Agora seremos felizes ou Adoráveis mulheres — e aquela era a primeira oportunidade que eu tinha de usá-la. Como Daphne, eu me lembrava de palavras, mas sem precisar de caderno para anotá-las.

— O que Mary tem a ver com isso? Ela é filha de Tully, e fim de papo.

— Sai dessa, Ned — falei. — Eu vi aquele beijo hoje de manhã, quando estava... de passagem.

— Ela precisava de um pouco de apoio. Nada além disso.

— Por causa de alguém que se aproximou furtivamente por trás dela?

Ned deu um pulo.

— Ora, vá se danar! — protestou. — Ela não quer que ninguém fique sabendo disso.

— Quando ela estava trocando os lençóis?

— Você é um demônio, Flavia de Luce! — rugiu Ned. — Fique longe de mim! Vá para casa!

— Conte para ela, Ned — disse uma voz calma, e eu me voltei para ver Mary à porta.

Ela estava com uma das mãos aberta contra o umbral da porta, a outra segurando a blusa junto ao pescoço, como Tess em Uma lição de vida. Primeiro plano, pude ver que ela tinha as mãos vermelhas e grossas e um olhar decidido.

— Conte a ela — repetiu. — Não pode fazer nenhuma diferença para você agora, certo?

Detectei instantaneamente que ela não gostava de mim. É um fato da vida que uma garota pode perceber num relance se outra garota gosta dela. Felinha diz que existe uma conexão telefônica interrompida entre homens e mulheres, e não dá para saber qual de nós desligou. Com um rapaz, você nunca sabe se ele está chocado ou brincando, mas com uma garota você pode dizer nos primeiros três segundos. Entre meninas existe um fluxo silencioso e interminável de sinais invisíveis, como as mensagens telegráficas em alta frequência entre a costa e os navios no mar, e esse fluxo secreto de pontos e traços sinalizava que Mary me detestava.

— Vá em frente, conte a ela! — gritou Mary.

Ned engoliu em seco e abriu a boca, mas não saiu nada de lá.

— Você é Flavia de Luce, não é? — despejou. — Uma daquele bando lá de cima em Buckshaw — ela jogou aquilo como uma torta na minha cara.

Assenti calada, como se fosse alguma mal-agradecida congênita vinda das terras do senhor que precisava ser mimada. Melhor cooperar, pensei.

— Venha comigo — ordenou Mary com um aceno. — Seja rápida e fique em silêncio.

Segui-a para dentro de uma despensa escura de pedra, e depois por uma escada fechada de madeira que subia numa espiral íngreme para o piso superior. No topo, saímos para o que devia ter sido outrora um depósito de roupas de cama e mesa: um armário alto e quadrado agora cheio de prateleiras de produtos químicos para limpeza, sabões e ceras. No canto, esfregões e vassouras encostados em desordem, em meio a um cheiro devastador de desinfetante carbólico.

— Quieta — sussurou ela, dando um apertão brutal em meu braço. Passos pesados se aproximavam, pela mesma escada que acabáramos de subir. Nos encostamos em um canto, tomando cuidado para não derrubar os esfregões.

— Vai chegar o maldito dia, senhor, em que um cavalo Cotswold vai levar o prêmio! Se eu fosse você faria uma fezinha em Seastar e mandaria para o diabo qualquer palpite que ouvisse de algum maldito idiota de Londres, que não sabe a diferença entre sua arca e sua auréola!

Era Tully, trocando dicas confidenciais de turfe com alguém, em um volume tão alto que poderia ser ouvido em Epson Downs. Uma outra voz resmungou alguma coisa que terminava com um “Ho-ho!”, enquanto o som de seus passos desaparecia no labirinto de passagens revestidas.

— Não, por aqui — sussurrou novamente Mary, puxando meu braço. Nos esgueiramos por um canto e entramos em um corredor estreito. Ela tirou um molho de chaves do bolso e silenciosamente destrancou a última porta à esquerda. Nós entramos.

Estávamos em um quarto que provavelmente não havia mudado desde que a Rainha Elizabeth visitou Bishop’s Lacey em 1592 em uma de suas excursões de verão. Minhas primeiras impressões foram de um teto de madeira, painéis de gesso, uma janelinha com vidraças chumbadas entreabertas para entrada de ar e tábuas de assoalho que subiam e desciam como ondas do oceano.

Encostada numa parede havia uma mesa de madeira entalhada com um Guia ABC das Estradas de Ferro (outubro de 1946) enfiado embaixo de uma das pernas para impedi-la de balançar. Sobre a mesa havia uma jarra e um vaso descombinados, em rosa e creme, um pente, uma escova e um pequeno estojo de couro preto. Em um canto perto da janela aberta estava uma única peça de bagagem: um baú em fibra vulcanizada de aparência barata, coberto de adesivos coloridos. Ao lado havia uma cadeira de espaldar reto com uma vareta a menos. Do outro lado da sala, um guarda-roupa de madeira de qualidade inferior. E a cama.

— É isso — sentenciou Mary. Enquanto ela nos fechava por dentro, virei-me para olhá-la de perto pela primeira vez. Sob a luz cinzenta que vinha das vidraças cobertas de fuligem, ela parecia mais velha, mais rude e mais frágil do que a menina de mãos grossas que eu acabara de ver à luz brilhante do sol no pátio da estalagem.

— Imagino que você nunca esteve em um quarto tão pequeno, esteve? — disse ela com desdém. — Vocês de Buckshaw gostam de fazer visitas esporádicas a Bedlam, não é? Ver os idiotas, ver como vivemos em nossas gaiolas. Nos jogar um biscoito.

— Não sei do que você está falando — retruquei.

Mary virou o rosto para mim, e passei a receber toda a intensidade do seu olhar furioso.

— Aquela sua irmã, aquela Ophelia, mandou você aqui com uma mensagem para Ned, e não me diga que não mandou. Ela imagina que sou uma mulher devassa, e eu não sou.

E naquele instante decidi que gostava de Mary, mesmo sabendo que ela não gostava de mim. Qualquer pessoa que conhecesse a palavra “devassa” merecia ser cultivada como amiga.

— Escute — argumentei —, não há mensagem nenhuma.O que eu disse para Ned foi estritamente para disfarçar. Você tem de me ajudar, Mary. Sei que você vai. Houve um assassinato em Buckshaw...

Pronto! Eu falei!

— ... e ninguém ainda sabe, exceto você e eu — e o assassino, é claro.

Ela olhou para mim, não por mais que três segundos, e então perguntou: — Então, quem está morto?

— Eu não sei. É por isso que estou aqui. Mas faz sentido para mim que, se alguém aparece morto no meio dos pepinos e nem a polícia sabe quem é, o lugar mais provável em que ele esteve hospedado na vizinhança... é bem aqui, na estalagem Os Treze Patos. Você bem que podia me trazer o registro.

— Nem preciso trazê-lo para você — disse Mary. — Só temos um hóspede neste momento, e ele é o sr. Sanders.

Quanto mais eu falava com Mary, mais gostava dela.

— E este aqui é o quarto dele — acrescentou ela, solícita.

— De onde ele é? — perguntei.

Seu rosto se anuviou. — Não sei direito.

— Ele já se hospedou aqui antes?

— Não que eu saiba.

— Então eu preciso dar uma olhada no registro. Por favor, Mary! Por favor! É importante! Logo a polícia estará aqui, e então será tarde demais.

— Vou tentar... — disse ela e, destrancando a porta, esgueirou-se para fora do quarto.

Assim que ela se foi, abri a porta do guarda-roupa. A não ser por um par de cabides de madeira, ele estava vazio, e voltei minha atenção para o baú, que estava recoberto de adesivos como cracas presas ao casco de um navio. Aqueles crustáceos coloridos, no entanto, tinham nomes: Paris, Roma, Estocolmo, Amsterdã, Copenhague, Stavanger — e mais.

Tentei o fecho e, para minha surpresa, ele se abriu. Estava destrancado! As duas metades, com uma dobradiça no meio, separaram-se facilmente, e me vi cara a cara com o guarda-roupa do sr. Sanders: um terno de sarja azul, duas camisas, um par de sapatos Oxford marrons (com sarja azul? Até eu sabia que não combinavam!) e um chapéu mole, teatral, que me lembrou as fotografias de G. K. Chesterton que eu tinha vistona Radio Times.

Puxei para fora as gavetas do baú, tomando cuidado para não desarrumar o conteúdo: um par de escovas de cabelo (imitação de tartaruga), um barbeador (Valet AutoStop), um tubo de creme de barbear (Morning Pride Brushless), uma escova de dentes, creme dental (Timol: “especialmente recomendado para conter os germes que causam as cáries”), cortador de unhas, um pente reto (celuloide) e um par de abotoaduras quadradas (azeviche de Whitby, com um par de iniciais em prata incrustadas: HB).

HB? Não era o quarto do sr. Sanders? O que poderia significar HB?

A porta se abriu e uma voz sussurrou: — O que você está fazendo?

Quase pulei fora da minha pele. Era Mary.

— Não pude pegar o registro. Papai estava... Flavia! Você não pode vasculhar a bagagem de um hóspede desse jeito! Você vai nos colocar em apuros. Pare com isso.

— Muito justo — concordei, enquanto acabava de revistar os bolsos do terno. De qualquer modo, estavam vazios. — Quando foi a última vez que você viu o sr. Sanders?

— Ontem. Aqui. Ao meio-dia.

— Aqui? Neste quarto?

Ela engoliu em seco e assentiu, desviando o olhar.

— Eu estava trocando os lençóis quando ele veio por trás de mim e me agarrou. Tampou minha boca com a mão para eu não gritar. Sorte que papai chamou do pátio bem na hora. Isso o deixou meio perturbado. Não pense que eu não lhe dei um bom chute, ou dois. Ele e suas patas imundas! Teria lhe arrancado os olhos com as unhas se tivesse uma chance.

Ela olhou para mim como se tivesse falado demais; como se um vasto abismo social tivesse se aberto entre nós.

— Eu teria lhe arrancado os olhos com as unhas e cuspido nos buracos — apoiei.

Os olhos dela se arregalaram de horror.

— John Marston — eu disse a ela. — A cortesã holandesa, 1604.

Houve uma pausa de aproximadamente duzentos anos. Então Mary começou a rir.

— Ah, você é uma peça! — expressou Mary.

O abismo tinha sido vencido.

— Segundo ato — acrescentei.

Segundos depois estávamos ambas nos dobrando de rir, as mãos cobrindo a boca, pulando pelo quarto e bufando pelo nariz, como um par de focas adestradas.

— Felinha uma vez leu para nós, embaixo dos cobertores, com uma lanterna — revelei, e, por alguma razão, isso nos pareceu ainda mais hilariante e começamos de novo, até ficar quase paralisadas de tanto rir.

Mary jogou os braços em volta de mim e me deu um abraço esmagador.

— Você é fantástica, Flavia — disse ela. — É mesmo. Venha cá, dê uma olhada nisto.

Foi até a mesa, pegou o estojo de couro preto, desamarrou a tira de couro e levantou a tampa. Aninhadas lá dentro estavam duas fileiras de pequenos frascos de vidro, doze ao todo. Onze estavam cheios de um líquido de coloração amarelada; o décimo segundo contava com apenas 1/4 do conteúdo. Entre as fileiras de frascos havia uma reentrância semicircular, como se faltasse algum objeto tubular.

— O que você deduz disso? — sussurrou ela, enquanto a voz de Tully ecoava vagamente na distância. — Venenos, você acha? Um perfeito dr. Crippen, o nosso sr. Sanders?

Destampei o frasco parcialmente cheio e levei ao nariz. Cheirava como se alguém tivesse derramado vinagre na parte de trás de um emplastro: um cheiro acre de proteína, como o cabelo de um alcoólatra queimando no quarto ao lado.

— Insulina — reconheci. — Ele é diabético.

Mary me deu uma olhada inexpressiva, e eu subitamente entendi como Arquimedes se sentiu quando disse “Eureca!” na banheira. Agarrei o braço de Mary.

— O sr. Sanders tem cabelo vermelho? — indaguei.

— Vermelho como ruibarbo. Como você sabe?

Ela me olhou como se eu fosse Madame Zolanda no festival da igreja, com um turbante, um xale e uma bola de cristal.

— Palpite de feiticeira — garanti.


— CARAMBA! — DISSE MARY, PROCURANDO EMBAIXO da mesa e puxando para fora um cesto metálico de papéis. — Eu quase me esqueci disto. Papai vai usar minha pele como rede se descobrir que eu não esvaziei esta coisa. Ele está sempre preocupado com germes, juro, mesmo que você não pense nisso quando olha para ele. Sorte que eu me lembrei antes... oh, Deus! Olhe só para esta sujeira.

Ela fez uma careta de nojo e segurou o cesto na altura dos braços. De início, eu apenas espiei lá dentro. Nunca se sabe o que se vai encontrar quando se enfia o nariz no lixo dos outros.

O fundo do cesto estava coberto de pedaços e migalhas de massa: nenhum recipiente, simplesmente pedaços jogados lá dentro, como se quem estivesse comendo tivesse achado que já bastava. Pareciam ser restos de uma torta. Quando enfiei a mão e extraí um pedaço, Mary produziu um som de nojo e desviou o rosto.

— Olhe para isto — apontei. — É um pedaço da casca, está vendo? É marrom-dourada aqui, do forno, com pequenas rugas de massa, como decorações em um dos lados. Estes outros pedacinhos são da crosta do fundo. São mais brancos e finos. Não são muito crocantes, né?

— Ainda assim — acrescentei —, estou com fome. Quando você não comeu nada o dia inteiro, tudo parece bom.

Ergui a torta e abri a boca, fazendo de conta que ia devorar aquilo.

— Flavia!

Parei com a carga esfarelante a meio caminho da minha boca escancarada.

— Hã?

— Oh, você! — preocupou-se Mary. — Dê-me isso. Vou jogar fora.

Alguma coisa me disse que essa não era uma boa ideia. Alguma outra coisa me disse que aquele resto de torta era uma evidência que deveria ser deixada intocada para o inspetor Hewitt e os dois detetives descobrirem. Realmente considerei isso por um momento.

— Tem um pedaço de papel? — perguntei.

Mary negou com a cabeça. Abri o guarda-roupa e, nas pontas dos pés, apalpei ao longo da prateleira de cima. Como suspeitava, uma folha de jornal fora colocada ali para servir de forro temporário para a prateleira. Bendito seja, Tully Stoker!

Tomando cuidado para não quebrá-los, empurrei os restos maiores da torta para cima do Daily Mail e o dobrei em um pacote perfeito, que enfiei no bolso. Mary ficou me olhando nervosamente, sem dizer palavra.

— Teste de laboratório — afirmei em tom soturno. Para dizer a verdade, eu ainda não tinha ideia do que ia fazer com aquele troço nojento. Pensaria em alguma coisa depois, mas no momento eu queria mostrar a Mary quem estava no comando.

Quando pus o cesto de papéis no chão, surpreendi-me com um movimento súbito no fundo, e não me importa admitir que meu estômago deu um primitivo salto mortal. O que haveria lá?Vermes? Um rato? Impossível: eu não poderia ter deixado de notar uma coisa tão grande.

Espiei cautelosamente para dentro do recipiente e, com certeza, havia algo se mexendo no fundo do cesto. Uma pena! E estava se mexendo gentilmente, quase imperceptível, para a frente e para trás, com as correntes de ar do quarto; estremecendo como uma folha morta em uma árvore — do mesmo modo como o cabelo vermelho do estranho morto estremecera com a brisa matinal.

Podia ter sido só essa manhã que ele morreu? Parecia uma eternidade desde os desprazeres no jardim. Desprazeres? Flavia, sua mentirosa!

Mary continuou olhando horrorizada, à medida que eu enfiava a mão no fundo do cesto e extraía o que parecia uma pena com um pedaço de massa empalado na ponta.

— Está vendo isto? — perguntei, estendendo aquilo em sua direção. Ela se encolheu do mesmo modo como Drácula supostamente faz quando ameaçado com uma cruz. — Se a pena tivesse caído em cima da massa no cesto de papéis, não estaria cravada.

— Vinte e quatro aves pretas assadas em uma torta — recitei citando a Mamãe Gansa. — Viu?

— Você acha? — duvidou Mary, os olhos parecendo pires.

— Certíssimo, Sherlock — respondi. — O recheio da torta era de ave, e acho que posso dizer de que espécie.

Estendi para ela de novo. — Que belo prato para servir ao Rei — falei, e desta vez ela sorriu para mim.

Vou fazer a mesma coisa com o inspetor Hewitt, pensei, enquanto embolsava a coisa. Sim! Vou resolver este caso e presenteá-la a ele envolvida em alegres fitas coloridas.

“Você não precisa voltar aqui fora”, ele dissera para mim no jardim, aquele cara de caçarola. Que maldita insolência!

Bem, vou mostrar a ele um truque ou dois!

Algo me dizia que Noruega era a chave. Ned não estivera na Noruega e, além disso, jurara não ter deixado o pássaro na nossa porta e eu acreditava nele, portanto, ele estava fora de questão — pelo menos por enquanto.

O estranho tinha vindo da Noruega, e eu tinha ouvido isso de fonte absolutamente confiável. Ergo (isso quer dizer “portanto”), o estranho podia ter trazido o jack snipe com ele.

Em uma torta.

Sim! Isso fazia sentido! Que método melhor para fazer passar uma ave morta por um inquisitivo inspetor da Alfândega de Sua Majestade?

Só mais um passo e o trabalho estará feito: se não se pode perguntar ao inspetor como ele sabia sobre a Noruega, nem ao estranho (obviamente, já que ele está morto), então, quem resta?

E subitamente vi tudo, vi aquilo se espalhar diante de mim aos meus pés, do jeito como alguém deve ver do topo de uma montanha. Do jeito que Harriet deve...

Do jeito que uma águia vê sua presa.

Cumprimentei a mim mesma com prazer; se o estranho viera da Noruega, largara uma ave morta na soleira da nossa porta antes do café da manhã, e então aparecera no estúdio do pai depois da meia-noite, ele deve ter ficado em algum lugar não muito longe. Algum lugar à distância de uma caminhada de Buckshaw. Algum lugar como este aqui, um quarto da Treze Patos.

Agora eu sabia com certeza: o cadáver entre os pepinos era o sr. Sanders. Não podia haver qualquer dúvida a respeito.

— Mary!

Era Tully outra vez, berrando como um bezerro, e, desta vez, parecia, estava logo do lado de fora da porta.

— Já vou, papai! — gritou ela, agarrando o cesto de papéis.

— Caia fora daqui — ela sussurrou. — Espere cinco minutos e depois desça a escada dos fundos, pelo mesmo caminho que fizemos para subir.

Ela se foi, e um momento depois a ouvi explicando a Tully que ela só queria dar uma limpada extra no cesto de papéis, pois alguém deixara uma imundície dentro dele.

— Nós não queremos que alguém morra por causa de germes que pegou na Treze Patos, queremos papai?

Ela estava aprendendo.

Enquanto esperava, dei uma segunda olhada no baú. Corri os dedos sobre as etiquetas coloridas, tentando imaginar onde ele tinha estado em suas viagens, e o que o sr. Sanders andou fazendo em cada cidade: Paris, Roma, Estocolmo, Amsterdã, Copenhague, Stavanger. Paris era vermelha, branca e azul, e também Stavanger.

Será que Stavanger era na França?, perguntei-me. Não soava francês — a não ser, é claro, que se pronunciasse “sta-van-jê”, como se pronuncia Laurence Olivier. Toquei a etiqueta e ela se enrugou embaixo do meu dedo, se encrespou como a água na frente da proa de um navio.

Repeti o teste com os outros adesivos. Todos eles estavam firmemente colados: tão lisos quanto o rótulo de um vidro de cianeto.

De volta a Stavanger. Parecia um pouco mais irregular do que os outros adesivos, como se houvesse alguma coisa embaixo dele.

O sangue murmurava em minhas veias como a água no canal que alimenta um moinho.

Novamente abri o baú e peguei o barbeador na gaveta. Enquanto removia a lâmina, pensei na sorte que tinham as mulheres — a não ser por uma pessoa como a srta. Pickery da biblioteca — por não precisarem se barbear. Já era suficientemente difícil ser mulher sem ter de carregar todo aquele equipamento aonde quer que fossem.

Segurando a lâmina cuidadosamente entre o polegar e o indicador (depois do incidente com o vidro eu tinha sido doutrinada a respeito de objetos cortantes), fiz um talho junto da borda da etiqueta, tomando um grande cuidado para cortar ao longo do limite preciso de uma linha decorativa azul e vermelha que percorria quase toda a largura do papel.

Quando ergui levemente a incisão com o lado cego da lâmina, alguma coisa escorregou para fora. Era um envelope translúcido, similar aos que eu observara no kit do detetive Graves. Através da sua semitransparência, pude ver que havia algo dentro, algo quadrado e opaco. Abri o envelope e dei-lhe um tapinha com o dedo. Algo caiu na minha palma: duas coisas, de fato.

Dois selos postais. Dois selos postais em laranja vivo, cada qual em seu próprio invólucro translúcido. Tirando a cor, eram idênticos ao Penny Black que tinha sido enfiado no bico do jack snipe. A cara da Rainha Vitória de novo. Que desapontamento!

Eu não duvidava que o pai entrasse em êxtase com a perfeição das coisas, o encantamento da estampa, os prazeres das perfurações e as glórias da cola, mas para mim não eram mais que o tipo de coisa que você gruda numa carta para a terrível tia Felicity em Hampshire, agradecendo por seu atencioso presente de Natal, um Almanaque anual de Neddy, o Esquilo.

Mas por que me dar o trabalho de pô-los de volta? Se o sr. Sanders era corpo no nosso jardim, ele não teria mais necessidade de selos postais.

Não, pensei, vou ficar com essas coisas. Elas podem vir a calhar algum dia quando eu precisar negociar uma saída para uma situação difícil com o pai, que é incapaz de pensar em selos e disciplina ao mesmo tempo.

Enfiei o envelope no bolso, lambi o indicador e umedeci o lado de dentro do corte na etiqueta do baú. Então, com o polegar, eu o alisei e fechei. Ninguém, nem mesmo o inspetor Fabian, da Scotland Yard, poderia sequer desconfiar que ela havia sidocortada.

Meu tempo acabou. Dei uma última olhada pelo quarto, saí discretamente para o corredor escuro e, como Mary me instruiu, segui, cautelosa, para a escada dos fundos.

— Você é tão inútil quanto calças num touro, Mary! Como diabos posso ficar em cima das coisas quando você deixa ir tudo para o inferno numa cesta?

Tully estava subindo no sentido contrário; mais uma volta da escada e estaríamos cara a cara!

Fugi na ponta dos pés na direção oposta, pelo labirinto de corredores cheios de curvas e voltas: subindo dois degraus aqui, descendo três ali. Um momento depois, ofegante, vi-me no topo da escada em L que levava à entrada da frente. Até onde eu podia ver, não havia ninguém lá embaixo.

Desci pé ante pé, um passo vagaroso de cada vez.

Um longo corredor, profusamente enfeitado com gravuras de esportes escuras e manchadas de água, fazia as vezes de saguão, onde séculos de arenques sacrificados tinham deixado o cheiro de suas almas defumadas impregnado no papel de parede. Somente a nesga de luz do sol visível através da porta da frente aberta aliviava a penumbra.

À minha esquerda havia uma pequena escrivaninha com um telefone, uma lista telefônica, um pequeno vaso de vidro com violetas cor de malva e um livro. O registro!

Obviamente, a estalagem Os Treze Patos não era uma colmeia agitada: suas páginas abertas ostentavam os nomes dos viajantes que o assinaram na última semana e mais. Eu não precisei nem encostar naquilo.

Ali estava:

 

2 de junho 10h25 F.X. Sanders Londres

 

Nenhum outro hóspede se registrara no dia anterior, e nenhum desde então.

Mas Londres? O inspetor Hewitt disse que o homem morto viera da Noruega, e eu sabia que, como o Rei George, o inspetor Hewitt não era um homem frívolo.

Bem, ele não dissera exatamente isso: disse que o falecido chegara recentemente da Noruega, o que era uma coisa completamente diferente.

Antes que eu pudesse pensar nisso a fundo, ouvi um estrondo vindo de cima. Era Tully de novo: o onipresente Tully. Pude perceber pelo seu tom de voz que Mary ainda estava passando por um mau pedaço.

— E não olhe para mim desse jeito, menina, ou lhe darei razões para se arrepender.

E agora estava descendo a escada principal! Em mais alguns segundos ele me veria. No momento em que eu estava prestes a disparar para a porta da frente, um surrado táxi preto parou diretamente na frente dela, com uma pilha alta de bagagem sobre a capota e as pernas de madeira de um tripé de fotógrafo se projetando por uma das janelas.

Tully foi distraído por um momento.

— Aqui está o sr. Pemberton — disse ele, em um sussurro alto para ser ouvido. — Ele chegou cedo. Agora, menina, eu disse que isso iria acontecer, não disse? Mexa-se e se livre desses lençóis sujos enquanto eu procuro Ned.

Saí em disparada! Passei direto pelas gravuras de esportes até o vestíbulo dos fundos, e para fora, e de lá para o pátio da estalagem.

— Ned! Venha pegar a bagagem do sr. Pemberton.

Tully estava bem atrás de mim, seguindo-me em direção aos fundos da estalagem. Embora momentaneamente ofuscada pelo sol forte, pude ver que Ned não estava por perto. Ele devia ter terminado de descarregar o caminhão e fora cuidar de outros afazeres.

Sem nem pensar, pulei para dentro do caminhão, deitei e me espremi atrás de uma pilha de queijos.

Espiando por entre os queijos redondos empilhados, vi Tully voltar para o pátio, olhar em volta e enxugar a cara vermelha com o avental. Estava vestido para tirar chope. O bar deve estar aberto, pensei.

— Ned! — ele berrou.

Eu sabia que, debaixo do sol forte, ele não poderia me ver no interior obscurecido do caminhão. Tudo o que eu tinha de fazer era ficar quieta e não atrair atenção.

Eu estava pensando isso quando mais um par de vozes se somou ao berreiro de Tully.

— Saúde, Tully — disse uma. — Obrigado pela cerveja.

— Até mais, parceiro — respondeu a outra. — Vejo você sábado.

— Diga a George que ele pode apostar a camisa no Seastar. Só não diga qual camisa!

Era uma daquelas coisas estúpidas que os homens dizem simplesmente para ficar com a última palavra. Não havia nada de remotamente engraçado naquilo. Mas, ainda assim, todos eles riram e estavam provavelmente dando tapas nas pernas às gargalhadas com a piada e, momentos depois, senti o caminhão afundar nas molas quando os dois sentaram-se pesadamente na boleia. Então o motor acordou para a vida com um rangido estridente e começou a se mover — para trás.

Tully estava dobrando e desdobrando os dedos, acenando para o caminhão, enquanto ele dava ré, indicando com as mãos a folga entre a guarda traseira e o muro do pátio da estalagem. Eu agora não poderia pular para fora sem cair diretamente em seus braços. Teria de esperar até que saíssemos através do arco de entrada para a estrada.

Meu último vislumbre do pátio foi de Tully caminhando de volta em direção à porta e Gladys encostada onde eu a deixara, contra uma pilha de lenha.

Quando o caminhão virou bruscamente e acelerou, fui atingida na cabeça por uma roda de queijo Wensleydale que tombou e a segui deslizando pelo piso áspero de madeira. Quando consegui me segurar, a estrada atrás de nós passava velozmente em um borrão de cercas verdes, e Bishop’s Lacey se perdia na distância.

Agora você conseguiu, Flavia, pensei, talvez nunca mais veja sua família de novo.

Por mais atraente que essa ideia me parecesse de início, me dei conta rapidamente de que iria sentir falta do pai — pelo menos um pouco. Quanto a Ophelia e Daphne, eu logo aprenderia a viver sem elas.

O inspetor Hewitt já teria, é claro, chegado à conclusão apressada de que eu tinha cometido o assassinato, fugido da cena do crime e estava a caminho da Guiana Inglesa em um navio errante. Ele também teria alertado todos os portos para ficar de olho em uma assassina de onze anos de tranças e suéter.

Depois de juntar dois e dois, a polícia logo poria os sabujos na pista de uma fugitiva que cheirava como uma loja de queijos do velho mundo. Então eu precisaria encontrar um lugar para tomar um banho: um regato numa campina, talvez, onde pudesse lavar minhas roupas e secá-las sobre um espinheiro. Eles, naturalmente, entrevistariam Tully, interrogariam Ned e Mary e descobririam como escapei da Treze Patos.

Os Treze Patos.

Por que será, perguntei-me, que os homens que escolhem os nomes das estalagens ou bares são tão desesperadamente pouco criativos? A Treze Patos, a sra. Mullet certa vez me contou, recebeu esse nome no século XVIII de um senhorio que simplesmente contou doze outros patos licenciados nas aldeias próximas e acrescentou mais um.

Por que não algo de valor prático, como, por exemplo, Os Treze Átomos de Carbono? Algo que pudesse ser usado como método mnemônico? Havia treze átomos de carbono no tridecilo, cujo hidreto era o gás do pântano. Que nome mais útil para um bar!

Já Treze Patos, realmente... Só um homem para batizar um lugar com nome de ave!

Eu ainda estava pensando em tridecilo quando vi de relance, pela traseira aberta do caminhão, uma pedra redonda caiada. Tinha um jeito familiar, e me dei conta quase imediatamente que se tratava do marco da saída para Doddingsley. Em pouco menos de um quilômetro o motorista seria forçado a parar — nem que fosse por um momento — antes de virar à direita para St. Elfrieda, ou à esquerda para Nether Lacey.

Me arrastei até a beirada da carroceria aberta bem quando os freios cantaram e o veículo reduziu a marcha. Um momento depois, como um comando sendo sugado para fora de um bombardeiro Whitley, escorreguei para fora da traseira e caí na terra de quatro.

Sem olhar para trás, o motorista virou à esquerda e, quando o pesado caminhão com sua carga de queijos se afastou numa nuvem de poeira, peguei o caminho de casa.

Ia ser uma dura caminhada dos campos até Buckshaw.


ESPERO QUE MUITO TEMPO DEPOIS que minha irmã Ophelia esteja morta e enterrada, sempre que eu pensar nela, minha primeira lembrança seja a de seu toque gentil ao piano. Sentada ao teclado do velho Broadwood de cauda na sala de estar, Felinha se transforma em uma pessoa diferente.

Anos de prática — independentemente do que mais tenha contribuído — deram-lhe a mão esquerda de um Joe Louis e a mão direita de um Beau Brummel (ou pelo menos é o que diz Daphne).

Por ela tocar tão lindamente, sempre senti como minha sagrada obrigação ser especialmente detestável com ela. Por exemplo, quando ela está tocando uma daquelas primeiras composições de Beethoven, que soa como se tivesse sido plagiada de Mozart, eu paro o que estou fazendo para passar despreocupadamente pela sala de visitas.

— Trabalho de primeira com o martelo — eu dizia alto o bastante para ser ouvida acima da música. — Toc! Toc! Toc!

Ophelia tinha olhos azuis leitosos: o tipo de olhos que eu gosto de imaginar que o cego Homero devia ter. Embora ela conheça a maior parte de seu repertório de cor, ocasionalmente muda de posição em cima do banquinho do piano, dobra o corpo na cintura como um autômato e aperta os olhos para enxergar a partitura.

Uma vez, quando observei que ela parecia um marsupial australiano desorientado, ela pulou do banquinho e me bateu quase até me matar com uma sonata para piano de Schubert enrolada. Ophelia não tem senso de humor.

Quando pulei a última cerca e pude ver Buckshaw do outro lado do campo, quase fiquei sem fôlego. Era daquele ângulo e naquela hora do dia que eu mais a amava. Ao me aproximar do oeste, as velhas rochas luziam como açafrão ao sol do fim de tarde, bem acomodadas na paisagem como uma complacente galinha-mãe chocando seus ovos, com a bandeira britânica se desdobrando alegremente por cima.

A casa parecia alheia à minha aproximação, como se eu fosse um intruso chegando sorrateiramente.

Mesmo a quinhentos metros de distância pude ouvir os acordes da Toccata, de Pietro Domenico Paradis — aquela de sua Sonata em Lá —, vindo célere ao meu encontro.

A Toccata era minha composição favorita; em minha cabeça, era a maior realização musical de toda a história do mundo, mas creio que, se Ophelia soubesse disso, nunca mais tocaria a peça novamente.

Sempre que ouço essa música ela me faz pensar em descer correndo o íngreme lado leste da Colina Goodger; correndo tão depressa que minhas pernas mal podem acompanhar seus próprios passos, enquanto me precipito de um lado a outro, zunindo contra o vento como uma gaivota bem-aventurada.

Quando já estava mais perto de casa, parei no meio do campo e escutei o fluir perfeito das notas, não presto demais — exatamente do jeito que eu gostava. Pensei naquela vez em que ouvi Eileen Joyce interpretar a Toccata na BBC. O pai havia ligado o rádio, não necessariamente para escutar, enquanto se ocupava com a coleção de selos. As notas encontraram seu caminho pelos corredores e galerias de Buckshaw, flutuaram pela escada em espiral acima até dentro do meu quarto. Quando finalmente percebi o que estava sendo executado, desci correndo as escadas e irrompi no estúdio do pai, mas a música já havia terminado.

Ficamos lá olhando um para o outro, ele e eu, sem saber o que dizer, até que por fim, sem uma só palavra, saí da sala e subi lentamente as escadas de volta.

Este é o único problema com a Toccata: ela é curta demais.

Dei a volta na cerca e entrei no terraço. O pai estava sentado à sua escrivaninha na janela do estúdio, atento ao que fazia.

Os membros da Rosa-Cruz alegam em suas publicações que você pode fazer um completo estranho se voltar em um cinema lotado, se fixar o olhar deliberadamente em sua nuca, e eu olhei para ele o mais intensamente que pude.

Ele ergueu os olhos um instante, mas não me viu. Sua cabeça estava em outro lugar.

Eu não mexi nem um músculo.

E então, como se sua cabeça fosse feita de chumbo, ele olhou para baixo e prosseguiu com seu trabalho, e Felinha passou a tocar alguma coisa de Schumann.

 

Sempre que estava pensando em Ned, Felinha tocava Schumann. Suponho que seja por isso que chamam aquilo de música romântica. Uma vez, quando ela tocava uma sonata de Schumann, com uma expressão excessivamente sonhadora, comentei em voz bem alta para Dafi que eu simplesmente adorava música de coreto, e Felinha explodiu de raiva. Raiva que aumentou pelo fato de eu sair marchando da sala para voltar alguns minutos depois com uma corneta acústica de baquelite que achara em um armário, uma caneca de lata e um letreiro desenhado à mão pendurado no pescoço com um barbante: “Fiquei surda em um trágico acidente de piano. Por favor, se compadeça”.

A essa altura, Felinha provavelmente já tinha se esquecido do incidente, mas eu não. Ao fingir que passava por ela para olhar pela janela, tive uma rápida visão em close da cara dela. Droga! Mais uma vez, nada para meu caderno.

— Você provavelmente está encrencada — disse ela, batendo a tampa do piano. — Onde esteve o dia inteiro?

— Nada que seja da sua conta — respondi. — Não sou sua empregada.

— Todos estavam procurando por você. Dafi e eu dissemos que você fugiu de casa, mas pelo jeito não tivemos essa maldita sorte.

— É uma maldita falta de educação falar “maldita”, Felinha; não fica bem para você. E não estufe as bochechas desse jeito: faz você parecer uma pera petulante. Onde está o pai?

Como se eu não soubesse.

— Ele não pôs o nariz para fora o dia inteiro — comentou Dafi. — Você acha que ele está preocupado com o que aconteceu esta manhã?

— O cadáver na propriedade? Não, eu não diria isso — não tem nada a ver com ele, tem?

— Foi o que pensei — concluiu Felinha, erguendo a tampa do piano.

Jogando os cabelos para trás, ela atacou a primeira das Variações de Goldberg, de Bach.

Era lenta, mas adorável apesar disso, muito embora mesmo nos seus melhores dias, Bach, a meu ver, não chegasse aos pés de Pietro Domenico Paradis.

E então me lembrei de Gladys! Eu a tinha deixado na Treze Patos, onde podia ser vista por qualquer um. Se a polícia já não tivesse estado lá, logo estaria.

Perguntei-me se a essa altura Mary ou Ned não teriam sido forçados a contar-lhes sobre minha visita. Mas se foram, raciocinei, o inspetor Hewitt não estaria neste exato momento em Buckshaw lendo para mim a Lei de Perturbação da Ordem Pública?

Cinco minutos depois, pela terceira vez naquele dia, eu estava a caminho de Bishop’s Lacey — desta vez, a pé. Mantendo-me junto das sebes e me escondendo atrás de árvores sempre que ouvia o som de um veículo se aproximando, consegui seguir caminho, por uma rota tortuosa, para a outra ponta da Rua Principal que, a essa hora tardia, estava mergulhada no seu costumeiro sono vazio.

Um atalho pelo jardim ornamental da srta. Bewdley (lírios-d’água, cegonhas de pedra, peixinhos dourados e uma passarela laqueada de vermelho) me levou até o muro de tijolos que contornava o pátio interno da Treze Patos, onde me agachei e fiquei ouvindo. Gladys, se ninguém a tivesse tirado de lá, estaria no lado oposto.

A não ser pelo som distante de um trator, não havia ruído algum. Bem quando eu estava prestes a aventurar uma espiada por cima do muro, ouvi vozes. Ou, para ser mais precisa, uma voz, e era a voz de Tully. Eu poderia tê-la ouvido mesmo se tivesse ficado em Buckshaw usando tampões de ouvidos.

— Nunca pus os olhos no sujeito na minha vida, inspetor. Sua primeira visita a Bishop’s Lacey, eu suponho. Eu me lembraria se ele tivesse estado aqui antes: Sanders era o nome de solteira da minha falecida esposa, que Deus a tenha, e eu teria notado se alguém com esse nome já tivesse assinado o registro, pode apostar nisso. Não, ele nunca esteve aqui no pátio; ele entrou pela porta da frente e subiu para o quarto. Se houver alguma pista, é lá que você vai achar — lá ou no bar. Ele esteve no bar depois, por algum tempo. Bebeu uma caneca de cerveja, virou de uma vez e não deixou gorjeta.

Então a polícia sabia! Pude sentir a excitação fervilhando dentro de mim como cerveja de gengibre, não porque eles identificaram a vítima, mas porque eu chegara lá primeiro, com um pé nas costas.

Permiti que uma expressão convencida passasse rapidamente pelo meu semblante.

Quando as vozes sumiram na distância, usei a trepadeira para me esconder e espiei por cima dos tijolos. O pátio da estalagem estava vazio.

Pulei o muro, agarrei Gladys e a rodei furtivamente até a Rua Principal vazia. Em disparada pelo Caminho das Vacas, refiz o roteiro por onde passara pela manhã, dando a volta por trás da biblioteca, entre ela e a Treze Patos, e, ao longo do esburacado caminho ao lado do rio até a Rua dos Sapatos, passei o pátio da igreja e entrei nos campos.

Seguimos sacolejando pelos campos, Gladys e eu. Era bom estar na companhia dela.

 


Sobre a sra. Porter a lua brilhava


E sobre a filha cintilava;


Em água com gás, os pés lavava.

 

 

Era uma canção que Dafi me ensinara, mas só depois de eu prometer que jamais a cantaria em Buckshaw. Parecia uma canção para se cantar a céu aberto, e aquela era a oportunidade perfeita.

Dogger me recebeu à porta.

— Preciso falar com você, srta. Flavia — disse ele. Pude ver a tensão em seus olhos.

— Está bem — concordei. — Onde?

— Na estufa — respondeu ele, com um aceno brusco do polegar.

Segui-o contornando o lado leste da casa, passando pela porta verde no muro do jardim da cozinha. Uma vez na estufa, era como estar na África: ninguém a não ser Dogger jamais pusera os pés naquele lugar.

Dentro, vidros no teto abertos para ventilação pegavam o sol da tarde, refletindo-o para baixo onde nós estávamos, entre as prateleiras com vasos e as mangueiras de jardim.

— Que é que há, Dogger? — perguntei alegremente, tentando soar um pouquinho — mas não demais — como o Coelho Pernalonga.

— A polícia — ele arriscou. — Preciso saber quanto você contou a eles sobre...

— Estive pensando a mesma coisa — revelei. — Você primeiro.

— Bem, aquele inspetor... Hewitt. Ele me fez algumas perguntas sobre esta manhã.

— Também a mim — confirmei. — O que você contou a ele?

— Sinto muito, srta. Flavia. Tive de contar a ele que você veio e me acordou quando encontrou o corpo e que eu fui ao jardim com você.

— Isso ele já sabia.

As sobrancelhas de Dogger subiram como um par de gaivotas.

— Ele sabia?

— É claro que sabia. Eu contei a ele.

Dogger soltou um longo e lento assobio.

— Então você não contou a ele sobre... aquela briga... no estúdio?

— Certamente não, Dogger! Por quem você me toma?

— Você nunca deve sussurrar nem uma palavra sobre aquilo, srta. Flavia. Nunca!

Agora, aí estava uma bela de uma encruzilhada. Dogger estava me pedindo para conspirar com ele para esconder informações da polícia. Quem estaria protegendo? Ele mesmo? O pai? Ou seria eu?

Eram perguntas que eu não podia lhe fazer diretamente. Decidi tentar outra abordagem.

— É claro que vou ficar calada. Mas por quê?

Dogger pegou uma colher de pedreiro e começou a jogar terra preta dentro de um vaso. Ele não olhou para mim, mas seu queixo se projetou em um ângulo que sinalizava claramente que havia tomado uma decisão sobre alguma coisa.

— Existem coisas — argumentou ele, afinal — que precisam ser conhecidas. E existem outras coisas que não precisam ser conhecidas.

— Tais como? — arrisquei.

As linhas do seu rosto se abrandaram e ele quase sorriu.

— Dê o fora — ele ordenou.

No laboratório, tirei do bolso o pacote embrulhado em papel e abri cuidadosamente as dobras.

Soltei um gemido de desapontamento: a viagem de bicicleta e a escalada do muro haviam reduzido a evidência a pouco mais que partículas de massa suja.

— Oh, porcaria — eu disse, não sem um pouco de prazer com a adequação das minhas palavras. — E agora, o que vou fazer?

Pus a pena cuidadosamente em um envelope e o guardei em uma gaveta no meio de cartas pertencentes a Tar de Luce que tinham sido escritas e respondidas quando Harriet tinha a minha idade. Ninguém jamais pensaria em procurar aqui e, além disso, como Dafi dissera certa vez, o melhor lugar para esconder uma cara feia é em cima do palco, na ópera.

Mesmo em sua forma mutilada, a massa esfarelada me lembrou que eu não tinha comido o dia inteiro. O jantar em Buckshaw era, segundo algum arcaico estatuto, sempre preparado antes pela sra. Mullet e reaquecido para nosso consumo às vinte e uma horas.

Eu estava morrendo de fome, com fome bastante para comer um... bem, para comer uma fatia da repulsiva torta de creme da sra. Mullet. Estranho, não é? Ela me perguntara antes, logo depois que o pai desmaiou, se eu tinha gostado da torta... e eu não tinha comido nada.

Quando fui à cozinha às quatro da manhã — logo antes de ter tropeçado no corpo entre os pepinos — a torta ainda estava na janela, onde a sra. Mullet a deixara para esfriar. E estava faltando um pedaço.

Um pedaço faltando, realmente!

Quem poderia tê-lo tirado? Lembro-me de ter me perguntado então. Não tinha sido o pai, nem Dafi, nem Felinha; eles prefeririam comer minhocas com creme sobre uma torrada à maldita torta da sra. Mullet.

Nem Dogger poderia ter comido; ele não era o tipo de homem que vai se servindo da sobremesa. E se a sra. Mullet lhe tivesse dado a fatia, não teria pensado que eu a comi, teria?

Desci as escadas e entrei na cozinha. A torta se fora.

A vidraça ainda estava na posição erguida, exatamente como a sra. Mullet a deixara. Teria ela levado os restos da torta para o marido, Alf?

Eu poderia telefonar e perguntar a ela, pensei, mas então me lembrei das restrições telefônicas do pai.

O pai era de uma geração que desprezava “o instrumento”, como ele o chamava. Sempre pouco à vontade com a coisa, ele só poderia ser convencido a falar sob as mais terríveis circunstâncias.

Ophelia me contou uma vez que, mesmo quando chegou a notícia da morte de Harriet, ela teve de ser enviada por telegrama, pois o pai se recusava a acreditar em qualquer coisa que não tivesse visto impressa. O telefone em Buckshaw era assinado para uso somente em caso de incêndio ou emergência médica. Qualquer outro uso do “instrumento” requeria a permissão pessoal do pai, uma regra que havia sido martelada na nossa cabeça desde o dia em que saímos do berço.

Não, eu teria de aguardar até o dia seguinte para perguntar à sra. Mullet sobre a torta.

Peguei um pão na copa e cortei uma fatia grossa. Passei manteiga e, depois, uma generosa camada de açúcar mascavo. Dobrei o pão ao meio duas vezes, a cada vez pressionando com a palma da mão. Enfiei no forno que estava começando a esquentar e deixei lá pelo tempo suficiente para cantar três estrofes de uma música qualquer.

Não era um genuíno pãozinho doce de Chelsea, mas teria de servir.


MUITO EMBORA NOSSA FAMÍLIA tivesse sido católica romana desde o tempo em que as corridas de bigas causavam furor, isso não a impedia de frequentar a igreja de São Tancredo, a única de Bishop’s Lacey e uma fortaleza da Igreja da Inglaterra anglicana, se é que alguma vez houve uma.

Havia diversas razões para nossa escolha. A primeira era a localização conveniente, e outra o fato de que o pai e o vigário tinham (embora em épocas diferentes) frequentado a escola em Greyminster. Além disso, o pai uma vez salientara para nós que a consagração era permanente, como uma tatuagem. São Tancredo, ele disse, era uma igreja católica romana desde antes da Reforma e, aos seus olhos, continuava sendo.

Consequentemente, todas as manhãs de domingo, sem exceção, nós perambulávamos pelos campos como patos, o pai açoitando intermitentemente a vegetação com sua bengala, Felinha, Dafi e eu, nessa ordem, e Dogger, em suas roupas domingueiras, na retaguarda.

Ninguém na igreja de São Tancredo prestava a menor atenção em nós. Alguns anos atrás, houve uma pequena erupção de resmungos dos anglicanos, mas tudo foi acertado sem sangue ou contusões com uma oportuna contribuição para o Fundo para Restauração do Órgão.

“Diga a eles que nós podemos não rezar com eles”, disse o pai ao vigário, “mas pelo menos não estamos ativamente rezando contra eles”.

Uma vez, quando Felinha perdeu a cabeça e precipitou-se ao altar para comungar, o pai se recusou a falar com ela até o domingo seguinte. Desde então, bastava que ela mexesse os pés na igreja para o pai murmurar “Fique quieta, garota”. Ele não precisava chamar a atenção dela; seu perfil de porta-estandarte de alguma legião romana especialmente ascética era suficiente para nos manter no lugar. Pelo menos em público.

Agora, relanceando para Felinha com os olhos fechados, as pontas dos dedos unidas e apontando para o céu, e os lábios formando suaves palavras de devoção, tive de me beliscar para me lembrar de que eu estava sentada ao lado da “Bola de Pelos do Diabo”.

A congregação de São Tancredo logo se acostumou com nosso mergulhar e emergir, e nós desfrutávamos a caridade cristã — com exceção de quando Dafi contou ao organista, sr. Denning, que Harriet instilara em todas nós sua sólida crença de que a história do dilúvio no Gênese derivava da memória racial da família dos gatos, com referência especial ao afogamento de gatinhos.

Isso causou um bocado de indignação, mas o pai resolveu as coisas fazendo uma generosa doação para o Fundo de Reparos no Telhado, uma importância que ele deduziu da mesada de Dafi.

“Como eu não recebo mesada de um jeito ou de outro”, disse Dafi, “ninguém sai perdendo. Na verdade, é um excelente castigo”.

Eu ouvi, impassível, quando a congregação uniu-se na confissão geral: “Deixamos de fazer as coisas que deviam ter sido feitas; e fizemos as coisas que não devíamos ter feito”.

As palavras de Dogger me vieram à cabeça: “Existem coisas que precisam ser conhecidas. E existem outras coisas que não precisam ser conhecidas”.

Virei-me e olhei para ele. Seus olhos estavam fechados e os lábios se moviam. E também, reparei, os do pai.

Como era Domingo da Trindade, fomos brindados com uma brincadeira incomum tirada do Apocalipse, toda sobre a pedra de jaspe e cornalina, o arco-íris ao redor do trono, o mar de vidro cristalino, e as quatro bestas cheias de olhos na frente e desconfortavelmente atrás.

Eu tinha minha opinião quanto ao verdadeiro significado daquela referência obviamente alquímica, mas, como a estava reservando para minha tese de Ph.D., guardei-a para mim. E apesar de os De Luce serem jogadores do time adversário, por assim dizer, não pude deixar de invejar aqueles anglicanos com as glórias do seu Livro da Oração Comum.

O vidro também era glorioso. Acima do altar, o sol da manhã se derramava para dentro através de três janelas, cujos vitrais tinham sido produzidos na Idade Média por vidreiros semicivilizados e seminômades que viviam e se embriagavam à margem da Floresta Ovenhouse. Restavam poucos remanescentes deles ainda ornando a região oeste de Buckshaw.

No vitral esquerdo, Jonas saltava para fora da boca do grande peixe, olhando para trás, por cima do ombro, com uma expressão de arregalada indignação.

Lembrei-me de que, segundo o folheto que costumavam distribuir na entrada da igreja, as escamas brancas da criatura tinham sido conseguidas fundindo o vidro com estanho, ao passo que a pele de Jonas tinha sido tingida de marrom com sais de ferro férrico (é bem interessante — pelo menos para mim — que esses também sejam o antídoto para o envenenamento por arsênico).

O vitral da direita retratava Jesus emergindo do seu túmulo, enquanto Maria Madalena, de vestido vermelho (também de ferro, ou talvez de partículas de ouro triturado), estende para ele uma vestimenta roxa (dióxido de manganês) e um pão amarelo (cloreto de prata).

Eu sabia que esses sais tinham sido misturados com areia e cinzas de um junco de pântano salgado chamado barrilha, fundidos em um forno suficientemente quente para fazer Shadrach, Meshach e Abednego pensarem duas vezes, e depois resfriados até que a cor desejada fosse obtida.

O vitral do meio era dominado pelo próprio São Tancredo, cujo corpo jazia, naquele exato momento, em algum lugar embaixo dos nossos pés na cripta. Nessa concepção, ele estava em pé diante da porta aberta da igreja em que nos sentávamos (como ela se parecia antes que os vitorianos a melhorassem), dando as boas-vindas com os braços abertos a uma multidão de paroquianos. São Tancredo tinha um rosto agradável: o tipo de pessoa que você gostaria de convidar numa tarde de domingo para folhear edições antigas do Illustrated London News, ou talvez até da Country Life e, já que compartilhamos sua fé, gosto de imaginar que, enquanto ficava lá embaixo roncando pela eternidade, tinha uma afeição por todos nós em Buckshaw.

Quando minha cabeça flutuou de volta ao presente, me dei conta de que o vigário estava rezando pelo homem que eu encontrara morto no jardim.

— Ele era um estranho entre nós — disse o pároco. — É desnecessário que seu nome nos seja conhecido...

Isso seria uma novidade para o inspetor Hewitt, pensei.

— ... para que peçamos a Deus que tenha piedade de sua alma e lhe conceda a paz.

Então, a notícia já havia corrido! A sra. Mullet, imaginei, não perdera tempo em atravessar a estrada ontem e contar a novidade para o vigário. Dificilmente eu acreditaria que ele a soubera pela polícia.

Ouviu-se uma batida surda quando alguém se levantou do genuflexório bruscamente; olhei em volta bem a tempo de ver a srta. Mountjoy passando como um caranguejo para fora do banco e apressando-se pela nave lateral para a saída.

— Estou enjoada — sussurrei para Ophelia, que me deixou passar por ela num piscar de olhos. Felinha tinha uma aversão especial por vômito em cima dos seus sapatos, uma peculiaridade útil da qual eu me aproveitava de vez em quando.

Do lado de fora, havia começado a ventar, açoitando os ramos dos teixos no pátio da igreja e fazendo correr ondulações através da grama não aparada. Vi de relance a srta. Mountjoy desaparecer entre os túmulos cobertos de musgo, dirigindo-se para o pórtico em ruínas e coberto de folhagens.

O que a deixara tão perturbada? Por um momento considerei sair correndo atrás dela, mas depois pensei melhor: o rio fazia um meandro em volta da igreja de tal modo que ela ficava virtualmente sobre uma ilha e, com o correr dos séculos, a água serpenteante cortara caminho através da ancestral vereda além do pórtico. A única maneira possível para a srta. Mountjoy pegar o rumo de casa sem voltar atrás seria tirar os sapatos e passar com dificuldade pela agora submersa passagem de pedras que antes transpunha o rio.

Era óbvio que ela queria ficar sozinha.

Juntei-me de novo ao pai quando ele apertava a mão de Canon Richardson. Com o assassinato, nós, os De Luce, viramos o assunto do momento, e os aldeãos nas suas melhores roupas domingueiras faziam fila para falar conosco ou, às vezes, simplesmente nos tocar como se fôssemos talismãs. Todos queriam um dedo de prosa, mas ninguém queria dizer nada que importasse.

“Que coisa horrível aquilo em Buckshaw”, eles diziam para o pai, ou Felinha, ou para mim.

“Detestável”, nós respondíamos e apertávamos as mãos, e em seguida aguardávamos que o próximo suplicante se aproximasse. Somente depois de atendermos à congregação inteira, ficamos livres para voltar para casa e almoçar.

Quando estávamos cruzando o estacionamento, a porta de um familiar carro azul se abriu e o inspetor Hewitt veio atravessando o cascalho ao nosso encontro. Como eu imaginava que as investigações policiais eram provavelmente postas de lado aos domingos, fiquei um pouco surpresa ao vê-lo. Ele deu ao pai um enérgico aceno de cabeça e tocou a aba do chapéu para Felinha, para Dafi e para mim.

— Coronel De Luce, umas poucas palavras... em particular, se não se importa.

Observei o pai atentamente, receando que ele pudesse desmaiar outra vez, mas, além de uma ligeira contração dos dedos no cabo de sua bengala, ele não pareceu nem um pouco surpreso. Ele pode até, pensei, ter se preparado para esse momento.

Dogger, nesse meio tempo, já havia escapulido quietamente para a casa, talvez para trocar seus antiquados punhos e colarinho duro pelo conforto do macacão de jardineiro.

O pai correu os olhos por nós como se fôssemos um bando de gansos intrometidos.

— Venha para meu estúdio — disse ele ao inspetor, e então virou-se e saiu.

Dafi e Felinha ficaram olhando para o meio de coisa nenhuma como tendem a fazer quando não sabem o que dizer. Por um momento pensei em quebrar o silêncio, mas, pensando melhor, decidi não fazê-lo e saí andando de um jeito descuidado, assobiando “Harry Lime”, o tema de O terceiro homem.

Como era domingo, achei que seria apropriado ir até o jardim e dar uma olhada no lugar onde o corpo estivera caído. Seria, de um certo modo, como aquelas pinturas vitorianas de viúvas se agachando para colocar um punhado de violetas patéticas — geralmente em um copo de vidro — sobre o túmulo do marido morto, ou da mãe. Mas de algum modo o pensamento me deixou triste, e decidi pôr o teatro de lado.

Sem o homem morto, o canteiro de pepinos estava estranhamente desinteressante, nada além de um canteiro de verduras com um talo quebrado aqui e ali e algo que parecia com a suspeita marca de um calcanhar arrastado. Na grama, pude ver as perfurações onde as pernas pontudas do pesado tripé do detetive Woolmer perfuraram o terreno.

Eu sabia, de ouvir Philip Odell, o detetive particular do rádio, que sempre que ocorre uma súbita e inexplicável morte, é necessário que haja um exame post mortem, e eu não podia deixar de me perguntar se o dr. Darby já estava com o corpo — pois o ouvira comentar com o inspetor Hewitt — “em cima da mesa”. Mas, novamente, isso era algo que não me atrevia a perguntar, pelo menos não ainda.

Olhei para a janela do meu quarto lá em cima. Refletidas nela, tão próximas que eu quase podia tocá-las, imagens de nuvens brancas rechonchudas flutuavam em um mar de céu azul.

Tão próximas! É claro! O canteiro de pepinos ficava diretamente embaixo da minha janela!

Ora, então, por que eu não tinha ouvido nada? Todo mundo sabe que um assassinato requer o empenho de uma certa quantidade de energia mecânica. Esqueço-me da fórmula exata, embora saiba que existe uma. A força aplicada em um breve intervalo de tempo (por exemplo, uma bala) produz um bocado de ruído, enquanto uma força aplicada mais lentamente pode muito bem não produzir ruído nenhum.

O que isso me dizia? Dizia-me que, se o estranho havia sido violentamente atacado, isso ocorrera em algum outro lugar, algum lugar fora do alcance do ouvido. Se ele tinha sido atacado no lugar onde eu o encontrara, o assassino usara um método silencioso: silencioso e lento já que, quando o encontrei, o homem ainda estava vivo, embora por muito pouco.

“Vale”, o moribundo dissera. Mas por que ele haveria de dizer adeus para mim? Era a palavra que o sr. Twining tinha gritado antes de pular para a morte, mas qual seria a conexão? Estaria o homem entre os pepinos tentando ligar sua própria morte com a do sr. Twining? Teria ele estado lá quando o velho pulou? Teria ele tomado parte naquilo?

Eu precisava pensar — e pensar sem distrações. A estrebaria estava fora de questão, já que eu agora sabia que, em momentos difíceis, poderia muito bem encontrar o pai sentado no Phantom de Harriet. Restavam as ruínas da ilha, a folly.

No lado sul de Buckshaw, sobre uma ilha em um lago artificial, havia uma ruína artificial, à sombra do que fora um pequeno templo grego de mármore manchado de liquens. Agora afundada em abandono e urtigas, tempos houve em que era uma das glórias da Inglaterra: uma pequena cúpula sobre quatro pernas elegantemente delgadas, aquilo poderia ter sido um coreto no Parnaso. Incontáveis De Luce do século XVIII haviam levado seus hóspedes até a ilha, em festivas barcas juncadas de flores. Lá faziam piqueniques de carne fria de caça e tortas, ao mesmo tempo que observavam os cisnes deslizando pela água vítrea, olhando através de seus monóculos para o eremita contratado enquanto ele oscitava e bocejava na entrada da sua caverna coberta de hera.

A ilha, o lago e a ruína tinham sido projetados por Capability Brown (embora essa atribuição tenha sido questionada mais de uma vez nas páginas da Notes and Queries, que o pai lia avidamente, mas somente nos casos em que surgiam assuntos de interesse filatélico). Havia ainda na biblioteca de Buckshaw um grande portfólio contendo um conjunto de desenhos originais assinados pelo paisagista. Eles inspiraram um pequeno gracejo por parte do pai: “Que aqueles outros sabichões vivam no seu próprio ‘disparate’”, disse ele.

Havia uma tradição familiar, segundo a qual havia sido em um piquenique na folly de Buckshaw que John Montague, o quarto Conde de Sandwich, inventara o lanche que recebeu seu nome quando ele pela primeira vez pôs um pedaço de carne fria entre duas fatias de pão enquanto jogava cribbage com Cornelius de Luce.

“A história que se dane”, dissera o pai.

Agora, depois de caminhar até a ilha, afundando os pés em não mais que trinta centímetros de água, sentei-me nos degraus do pequeno templo com as pernas encolhidas e o queixo apoiado nos joelhos.

Antes de tudo, havia a torta de creme da sra. Mullet. Onde fora parar?

Deixei meu pensamento vagar de volta às primeiras horas da manhã de sábado: eu me vi descendo as escadas, atravessando o corredor até a cozinha e, sim, a torta certamente estava na janela. E um único pedaço tinha sido cortado.

Mais tarde, a sra. Mullet perguntara se eu tinha gostado da torta. Por que eu? Por que ela não perguntara a Felinha, ou Dafi?

E então a resposta me atingiu como um trovão! O homem morto a tinha comido. Sim. Estava tudo fazendo sentido!

Ali estava um diabético que fizera uma longa viagem desde a Noruega, trazendo consigo um jack snipe escondido em uma torta. Eu encontrara os restos daquela torta — completos, com uma pena reveladora — na Treze Patos, e a ave morta fora largada na soleira da nossa porta. Como não tinha comido — muito embora, de acordo com Tully Stoker, lhe fora servido um drinque no bar —, o estranho seguira para Buckshaw na sexta-feira à noite, discutira com o pai e, ao sair, passara pela cozinha e se servira de uma fatia da torta de creme da sra. Mullet. E ele não tinha ainda atravessado o canteiro de pepinos quando ela o derrubou!

Que tipo de veneno poderia agir tão depressa? Repassei mentalmente as possibilidades mais prováveis. O cianeto agia em minutos: depois de ficar com a face azul, a vítima era asfixiada quase imediatamente, deixando para trás um cheiro de amêndoas amargas. Mas não. Se o cianeto tivesse sido usado, a vítima teria morrido antes de eu encontrá-la. (Embora eu tenha de admitir que tenho predileção pelo cianeto — quando se trata de velocidade, ele está no topo da lista com os melhores. Se os venenos fossem cavalos, eu apostaria meu dinheiro no cianeto.)

Mas o cheiro que eu sentira no último alento do estranho era de amêndoas amargas? Eu não acreditava.

Então havia o curare. Ele também tinha um efeito quase instantâneo e, mais uma vez, a vítima morria em minutos por asfixia. Mas o curare podia não matar por ingestão: para ser letal, tinha de ser injetado. Além disso, quem na Inglaterra rural — além de mim, é claro — carregaria curare no seu kit?

Que tal tabaco? Lembrei-me de que um punhado de folhas de tabaco deixado de molho em um pote de água embaixo do sol por vários dias podia facilmente se evaporar até restar uma grossa resina preta semelhante a melaço, capaz de causar a morte em segundos. Mas a Nicotiana era cultivada na América, e seria improvável encontrar folhas frescas na Inglaterra e mais ainda na Noruega.

Pergunta: pontas de cigarro, charutos ou tabaco para cachimbo triturados produziriam um veneno igualmente tóxico?

Como ninguém fumava em Buckshaw, eu teria de reunir minhas próprias amostras.

Pergunta: quando (e onde) os cinzeiros da Treze Patos são esvaziados?

 

A verdadeira questão era esta: quem pusera o veneno na torta? E ainda mais pertinente: se o homem morto tivesse comido aquela coisa por acidente, a quem tinha sido originalmente destinada?

Estremeci quando uma sombra passou através da ilha e olhei para cima bem quando uma nuvem escura bloqueou o sol. Ia chover — e logo.

Mas antes que eu me pusesse em pé, ela veio aos cântaros, uma daquelas breves porém ferozes tempestades de começo de junho que esmagam flores e causam estragos em escoadouros. Tentei encontrar um local seco e coberto no centro exato da cúpula aberta onde eu ficasse mais abrigada do aguaceiro — não que fizesse muita diferença, com o vento frio que subitamente surgira de lugar nenhum. Me envolvi com os braços para me aquecer. Teria de esperar passar, pensei.

— Olá! Você está bem?

Havia um homem em pé do outro lado do lago, olhando para mim na ilha. Pelas torrentes de chuva, eu não podia ver mais do que pinceladas de cor molhada, o que lhe emprestava a aparência de alguém em uma pintura impressionista. Mas antes que eu pudesse responder, ele já tinha arregaçado a barra das calças, tirado os sapatos, e estava rapidamente pisando descalço pela água na minha direção. Firmando-se com seu longo cajado, ele me lembrou São Cristóvão carregando o Menino Jesus nas costas através do rio, muito embora à medida que se aproximava pude ver que o objeto em seus ombros era, na verdade, uma mochila de lona.

Ele vestia um traje folgado de andarilho e usava um chapéu de aba larga e mole: um pouco como Leslie Howard, o astro do cinema, pensei. Era cinquentão, adivinhei, mais ou menos da idade do pai, mas lépido apesar disso.

Com um caderno de desenho à prova d’água em uma das mãos, ele era a própria imagem do artista-ilustrador itinerante: Velha Inglaterra e tudo mais.

— Você está bem? — repetiu ele, e me dei conta de que não tinha respondido da primeira vez.

— Perfeitamente bem, obrigada — eu disse, balbuciando um pouco demais para me redimir da possível indelicadeza. — Fui pega pela chuva, como vê.

— Eu vejo, sim — concordou ele. — Você está molhada.

— Não só molhada, como encharcada — corrigi. Quando se trata de precisão nos termos, sou fanática.

Ele abriu sua mochila e tirou de lá uma capa impermeável, o tipo de coisa usada por andarilhos nas Ilhas Ocidentais. Ele envolveu meus ombros com ela e imediatamente me sentia quecida.

— Não precisava... mas muito obrigada — agradeci.

Ficamos lá, juntos, no meio da chuvarada, sem falar, os dois olhando além do lago, escutando o ruído do aguaceiro.

Depois de algum tempo ele tentou: — Já que vamos ficar encalhados juntos numa ilha, suponho que não fará mal nenhum nos apresentarmos.

Tentei localizar seu sotaque: Oxford, com um toque de mais alguma coisa. Escandinávia, quem sabe?

— Sou Flavia — eu disse. — Flavia de Luce.

— Meu nome é Pemberton, Frank Pemberton. Prazer em conhecê-la, Flavia.

Pemberton? Não era este o homem que chegara à Treze Patos bem quando eu estava no meio da minha fuga de Tully Stoker? Eu queria que aquela visita permanecesse em segredo, portanto, não disse nada.

Trocamos um aperto de mão molhado e depois nos afastamos, como frequentemente fazem pessoas estranhas depois de se tocarem.

A chuva continuava. Depois de algum tempo, ele recomeçou:

— Na verdade, eu sabia quem você era.

— Sabia?

— Hu-hum. Para qualquer um que se interesse seriamente por casas de campo inglesas, De Luce é um nome muito conhecido. Afinal, sua família está listada no Quem é Quem.

— Você se interessa seriamente por casas de campo inglesas, sr. Pemberton?

Ele riu.

— Um interesse profissional. De fato estou escrevendo um livro sobre o assunto. Pensei em chamá-lo de Lares majestosos de Pemberton: um passeio através do tempo. Soa impressionante, você não acha?

— Acho que depende de quem você está tentando impressionar — opinei —, mas soa sim... bastante, quero dizer.

— Moro em Londres, claro, mas tenho perambulado por esta parte do país há algum tempo, rabiscando em meus cadernos. Eu tinha esperanças de dar uma olhada na propriedade e entrevistar seu pai. De fato, é por isso que estou aqui.

— Não creio que isso será possível, sr. Pemberton — informei. — Entenda, houve uma morte súbita em Buckshaw, e o pai está... ajudando a polícia nas investigações.

Sem pensar, eu tirara aquela frase de séries no rádio de que me lembrava e, até falar, não me dera conta de suas implicações.

— Bom Deus! — exclamou ele. — Uma morte súbita? Ninguém da família, espero.

— Não — respondi. — Um estranho total. Mas desde que ele foi encontrado no jardim em Buckshaw, entenda, o pai é obrigado a...

Naquele momento, a chuva parou tão subitamente como começara. O Sol saiu para brincar de arco-íris na grama, e em algum lugar na ilha um cuco cantou, precisamente como ele faz no final da tempestade na Sinfonia Pastoral de Beethoven. Juro que ele fez isso.

— Entendo perfeitamente — disse ele. — Eu nem pensaria em me intrometer. Se o Coronel De Luce quiser entrar em contato em outra ocasião, estou na estalagem Os Treze Patos, em Bishop’s Lacey. Tenho certeza de que o sr. Stoker ficará feliz em transmitir a mensagem.

Removi a capa e entreguei a ele.

— Obrigada — agradeci. — É melhor voltar.

Caminhamos de volta através do lago, juntos como um par de banhistas de férias na praia.

— Foi um prazer conhecê-la, Flavia — despediu-se. — Com o tempo, estou certo de que nos tornaremos bons amigos.

Fiquei olhando enquanto ele atravessava o gramado em passo descontraído rumo à avenida de castanheiras e desapareceu de vista.


ENCONTREI DAFI NA BIBLIOTECA, empoleirada bem no topo de uma escada com rodinhas.

— Onde está o pai? — perguntei.

Ela virou uma página e continuou lendo como se eu nunca tivesse nascido.

— Dafi?

Senti meu caldeirão interior começando a ferver: aquela panela borbulhante com uma mistura misteriosa que podia rapidamente transformar “Flavia, a Invisível” em “Flavia, o Terror Sagrado”.

Agarrei um dos degraus e dei uma boa sacudida na escada e então a empurrei para começar a rolar. Uma vez iniciado o movimento, era bem fácil sustentá-lo, com Dafi agarrada no topo como uma craca paralisada, enquanto eu a empurrava ao longo da sala comprida.

— Pare com isso, Flavia! Pare com isso!

Como me aproximava da porta a uma velocidade alarmante, brequei e então dei a volta na escada e saí correndo outra vez na direção oposta, e o tempo todo Dafi ficou oscilando no topo como se estivesse no cesto da gávea de um baleeiro em um vendaval no Atlântico Norte.

— Onde está o pai? — gritei.

— Ainda está no estúdio com o inspetor. Pare com isso! Pare com isso!

Quando ela já parecia estar meio verde em volta das guelras, parei.

Dafi desceu a escada trêmula e pisou cautelosamente no chão. Pensei por um momento que ela iria se atirar em cima de mim, mas ela pareceu estar levando um tempo inusitadamente longo para recuperar o equilíbrio em terra.

— Às vezes você me assusta — confessou.

Eu ia responder que às vezes eu assustava a mim mesma, mas então me lembrei de que o silêncio pode, às vezes, causar mais dano do que palavras. Mordi a língua.

Os brancos de seus olhos ainda estavam aparecendo, como os de um cavalo de carroça desembestado, e decidi me aproveitar do momento.

— Onde mora a srta. Mountjoy?

Dafi ficou com cara de nada.

— A srta. Biblioteca Mountjoy — acrescentei.

— Não faço ideia — disse Dafi. — Não uso a biblioteca da aldeia desde que era criança.

Ainda de olhos arregalados, ela me olhou por cima dos óculos.

— Eu estava pensando em pedir um conselho para ela sobre como me tornar bibliotecária.

Era a mentira perfeita. A expressão de Dafi virou quase uma expressão de respeito.

— Eu não sei onde ela mora — confirmou. — Pergunte à sra. Cool, na confeitaria. Ela sabe o que existe embaixo de todas as camas de Bishop’s Lacey.

— Obrigada, Dafi — agradeci, enquanto ela desabava sobre uma bergère. — Você é uma boa pessoa.

Uma das principais conveniências de morar perto de uma aldeia é que, se necessário, você pode chegar lá depressa. Saí voando na Gladys, pensando que poderia ser uma boa ideia manter um diário de bordo como os pilotos são obrigados a fazer. A esta altura, Gladys e eu já teríamos registrado algumas centenas de horas de voo juntas, a maior parte indo para Bishop’s Lacey e voltando. De vez em quando, com uma cesta de piquenique presa em seu bagageiro preto, podíamos nos aventurar ainda mais longe.

Uma vez, tínhamos rodado a manhã inteira para dar uma olhada em uma estalagem onde Richard Mead, ao que diziam, ficara hospedado uma única noite em 1747. Richard (ou Dick, como eu às vezes me referia a ele) é o autor de Um relato mecânico de venenos em vários ensaios. Publicado em 1702, foi o primeiro livro sobre o tema em língua inglesa, e um volume da primeira edição era o orgulho de minha biblioteca química. Na galeria de retratos de meu quarto, eu tinha o retrato dele colado no espelho, ao lado dos de Henry Cavendish, Robert Bunsen e Carl Wilhelm Scheele, enquanto Dafi e Felinha tinham os de Charles Dickens e Mario Lanza, respectivamente.

A confeitaria na Rua Principal de Bishop’s Lacey ficava espremida entre o prédio do agente funerário de um lado e uma peixaria do outro. Encostei Gladys na vitrine de vidro laminado e agarrei a maçaneta.

Resmunguei baixinho. Diabos, o lugar estava trancado!

Por que o universo conspira assim contra mim? Primeiro o armário, depois a biblioteca e, agora, a confeitaria. Minha vida estava se transformando em um longo corredor de portas trancadas.

Pus as mãos em concha contra o vidro e espiei o interior sombrio.

A sra. Cool devia ter saído ou, talvez, como todos em Bishop’s Lacey, teve uma emergência de família.

Segurei a maçaneta com as duas mãos e sacudi a porta, sabendo o tempo todo que seria inútil.

Lembrei-me de que a sra. Cool morava nos fundos da loja. Talvez ela tivesse esquecido de destrancar a porta. Pessoas mais idosas frequentemente fazem esse tipo de coisa: elas ficam senis e...

Mas e se ela tivesse morrido enquanto dormia? Ou pior...

Olhei para os dois lados, mas a Rua Principal estava vazia. Espere! Eu tinha esquecido o Beco dos Parafusos, um túnel de paralelepípedos e tijolos escuro e úmido que levava ao pátio atrás da loja. É claro! Fui para lá imediatamente.

O Beco dos Parafusos cheirava a um passado que, segundo diziam, incluía uma notória taberna. Senti um calafrio involuntário quando o som dos meus passos ecoou nas paredes cobertas de musgo e telhado gotejante. Tentei não tocar nos tijolos manchados de verde e malcheirosos dos dois lados, ou inalar o ar azedo, enquanto avançava lentamente até sair para a luz do sol na outra extremidade da passagem.

O pequeno pátio dos fundos da sra. Cool era confinado por um muro baixo de tijolos caindo aos pedaços. O portão de madeira estava aferrolhado por dentro.

Passei por cima do muro, marchei diretamente para a porta e bati forte com a palma da mão.

Encostei o ouvido na porta, mas aparentemente nada se mexia lá dentro.

Saí da passagem, atravessei a grama mal cuidada e pressionei o nariz contra a parte de baixo da vidraça fuliginosa. A parte traseira de uma cômoda me bloqueava a visão.

Em um canto do pátio havia uma decrépita casa de cachorro — tudo o que restara do collie da sra. Cool, Geordie, que fora atropelado por um carro em alta velocidade na Rua Principal.

Empurrei a casinha desconjuntada até liberá-la do monte de terra e a arrastei pelo pátio até diretamente abaixo da janela. Então subi nela.

Do topo da casa de cachorro faltou apenas mais um pouco para eu conseguir pôr as pontas dos pés no peitoril da janela, onde oscilei precariamente sobre a pintura lascada, os braços e as pernas abertos como o Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci, uma das mãos segurando firmemente uma veneziana, enquanto a outra tentava limpar um ponto de observação no vidro imundo.

Estava escuro dentro do pequeno quarto de dormir, mas havia luz suficiente para ver uma silhueta deitada na cama. Então vi a face lívida me olhando de volta, a boca escancarada em um horrendo “O”.

— Flavia! — exclamou a sra. Cool, pondo-se em pé com dificuldade, com palavras abafadas pelo vidro da janela. —Que diabo...?

Ela agarrou a dentadura dentro de um copo e enfiou-a na boca, depois desapareceu por um momento e, quando pulei para o chão, ouvi o ruído do ferrolho sendo puxado. A porta se abriu para dentro e revelou-a ali em pé — como um texugo numa armadilha — de vestido caseiro, a mão abrindo e fechando em espasmos nervosos no pescoço.

— Que diabo...? — ela repetiu. — O que houve?

— A porta da frente está trancada — respondi. — Não pude entrar.

— É claro que está trancada — disse ela. — Está sempre trancada aos domingos. Eu estava dando um cochilo.

Ela esfregou os olhinhos pretos, ainda apertados contra a luz.

Lentamente me dei conta de que ela tinha razão. Era domingo. Embora parecessem séculos, tinha sido apenas esta manhã que eu estivera na igreja de São Tancredo com minha família.

Devo ter parecido arrasada.

— O que foi, querida? — perguntou a sra. Cool. — Aquele assunto horroroso em Buckshaw?

Então ela sabia.

— Espero que você tenha tido o bom senso de ficar longe da cena do...

— Sim, é claro, sra. Cool — disfarcei com um sorriso pesaroso. — Mas me pediram para não falar sobre aquilo. Estou certa de que a senhora entende.

Era mentira, mas de primeira classe.

— Que boa menina você é — elogiou ela, com uma olhadela para as janelas de cortinas cerradas em uma fileira de casas próximas que davam para seu pátio. — Isto não é lugar para conversar. É melhor você entrar.

Ela me levou por um corredor estreito: de um lado seu minúsculo quarto de dormir e do outro uma sala de estar em miniatura. E de repente estávamos na loja, atrás do balcão que servia de correio da aldeia. Além de ser a única confeiteira de Bishop’s Lacey, a sra. Cool era também a responsável pelo correio e, como tal, sabia tudo o que valesse a pena saber — exceto química, é claro.

Ela me observou cuidadosamente enquanto eu olhava com interesse para as várias prateleiras cobertas de potes de vidro com pirulitos e balas de menta e confeitos de chocolate.

— Sinto muito. Não posso fazer negócios no domingo. Eu teria de enfrentar os juízes. É a lei, você sabe.

Balancei a cabeça tristemente.

— Desculpe-me — eu disse. — Esqueci que dia era hoje. Não quis assustá-la.

— Bem, não aconteceu nada demais —confortou-me ela, subitamente recuperando seus poderes de tagarelice e agitando-se de um lado para o outro, tocando a esmo em uma ou outra coisa.

— Diga a seu pai que logo vai chegar uma nova série de selos, mas nada para ficar muito entusiasmado, pelo menos a meu modo de ver. Alguma velha figura do Rei George, que Deus o abençoe, mas incrementada com novas cores.

— Obrigada, sra. Cool — agradeci. — Certamente vou dizera ele.

— Tenho certeza de que aquele pessoal do Correio Geral em Londres pode sugerir alguma coisa melhor do que isso — prosseguiu ela —, mas ouvi dizer que eles estão economizando os miolos para celebrar o Festival da Grã-Bretanha no ano que vem.

— A senhora poderia me dizer onde mora a srta. Mountjoy —despejei.

— Tilda Mountjoy? — Ela apertou os olhos. — O que você quer com ela?

— Ela foi muito gentil comigo na biblioteca e pensei que seria simpático levar alguns doces para ela.

Dei um sorriso doce para combinar com o sentimento.

Era uma mentira desavergonhada. Eu não considerara o assunto nem por um momento até agora, quando vi que poderia matar dois coelhos com uma única cajadada.

— Ah, sim — disse a sra. Cool. — Margaret Pickery foi cuidar da irmã dela em Nether-Wolsey: a máquina de costura Singer, a agulha, o dedo, os gêmeos, o marido rabugento, a garrafa, as contas... uma oportunidade inesperada e recompensadora para Tilda Mountjoy...

— Balas azedinhas — aconselhou de repente. — Domingo ou não, balas azedinhas seriam uma escolha perfeita.

— Eu tenho seis pence para gastar — revelei. — ... e um xelim de pirulitos de menta — acrescentei. Pirulitos de menta eram minha paixão secreta.

A sra. Cool foi pé ante pé até a frente da loja e puxou as cortinas.

— Só entre nós, e o pilar do portão — cochichou em voz conspiratória.

Ela despejou uma conchada de balas azedinhas em um saco de papel roxo, de uma cor tão funérea que simplesmente implorava para ser enchido com uma ou duas conchadas de arsênico ou nux vomica.

— É um xelim e seis pence — falou, embrulhando os pirulitos de menta com papel. Entreguei-lhe dois xelins e, enquanto ela ainda procurava o troco nos bolsos, eu disse: — Está certo, sra. Cool, não preciso do troco.

— Que criança doce você é. — Ela sorriu de alegria e enfiou mais um pirulito de menta no embrulho. — Se eu tivesse filhos, não poderia esperar que tivessem nem metade da sua consideração e generosidade.

Dei-lhe um meio sorriso e guardei o resto enquanto ela me explicava onde era a casa da srta. Mountjoy.

— Quinta do Salgueiro — disse ela. — Não há como errar. É alaranjada.

 

A Quinta do Salgueiro era, como a sra. Cool havia dito, alaranjada; o tipo de alaranjado que você vê quando o chapéu escarlate de um cogumelo venenoso está começando a cair. A casa ficava escondida nas sombras, embaixo dos ramos verdes pendentes de um monstruoso salgueiro-chorão, que oscilavam inquietos com a brisa, varrendo a terra abaixo como uma vintena de vassouras de bruxa. O movimento me fez pensar em uma música do século XVII que Felinha às vezes tocava e cantava — muito docemente, tenho de admitir — quando estava pensando em Ned:

 


O salgueiro-chorão vai se enroscar,


e o salgueiro-chorão vai ondular,


Nos braços do jovem amado que meu coração possuiu, oh!


como eu gostaria de estar.

 

 

A canção se chamava “As sementes do amor”, embora amor não fosse a primeira coisa que me vinha à mente sempre que eu via um salgueiro; pelo contrário, eles sempre me lembravam de Ophelia (a de Shakespeare, não a minha), que se afogou perto de um.

A não ser por um pedacinho de gramado do tamanho de um lenço de um lado, o salgueiro da srta. Mountjoy enchia o pátio fechado. Mesmo da porta eu podia sentir a umidade do lugar: os ramos lânguidos da árvore formavam uma campânula verde, por meio da qual pouca luz parecia penetrar, dando-me a estranha sensação de estar embaixo d’água. Musgos de um verde intenso faziam do degrau da porta uma esponja de pedra, e manchas de água esticavam seus tristes dedos negros ao longo da superfície de argamassa alaranjada.

Sobre a porta havia uma aldrava de bronze oxidado, com a cara sorridente do Lincoln Imp, o demônio-símbolo da cidade de Lincoln. Eu a ergui e dei um par de batidas gentis. Enquanto aguardava, olhei para cima com um ar ausente, para o caso de alguém estar espiando por trás das cortinas.

Mas a renda empoeirada não se mexeu. Era como se não houvesse sequer um sopro de ar dentro da casa.

À esquerda, um passeio calçado com tijolos velhos e gastos contornava o lado da casa, e depois de esperar à porta por um ou dois minutos, eu o segui.

A porta dos fundos estava quase toda escondida por longos ramos de salgueiro, todos ondulando com um farfalhar de leve expectativa, como uma vistosa cortina verde de teatro pouco antes de subir.

Pus as mãos em concha sobre o vidro em uma das janelinhas. Se eu ficasse na ponta dos pés...

— O que você está fazendo aqui?

Dei meia-volta.

A srta. Mountjoy estava plantada do lado de fora do círculo de ramos de salgueiro, olhando para dentro. Através das folhagens, eu podia ver apenas faixas verticais da cara dela, mas o que vi me deixou nervosa.

— Sou eu, srta. Mountjoy, Flavia — falei. — Queria agradecer-lhe por me ajudar na biblioteca.

Os ramos do salgueiro farfalharam quando a srta. Mountjoy adentrou o manto de vegetação. Estava segurando um par de tesouras de jardim em uma das mãos e não falou nada. Seus olhos, como duas uvas-passas loucas em seu rosto enrugado, não deixavam os meus.

Recuei quando ela pisou no passeio, bloqueando minha fuga.

— Eu sei muito bem quem é você — disse ela. — Você é Flavia Sabina Dolores de Luce, a filha mais nova de Jacko.

— Você sabe que ele é meu pai?! — ofeguei.

— É claro que sei, menina. Uma pessoa da minha idade sabe muita coisa.

De algum modo, antes que eu pudesse me conter, a verdade pulou para fora de mim como a rolha de uma garrafa.

— O ‘Dolores’ era mentira — confessei. — Às vezes eu invento coisas.

Ela deu um passo em minha direção.

— Por que você está aqui? — perguntou ela. Sua voz era áspera.

Rapidamente enfiei a mão no bolso e pesquei o saco de balas.

— Trouxe algumas balas azedinhas — respondi —, para me desculpar pela indelicadeza. Espero que as aceite.

Saiu dela um chiado estridente, que eu tomei por uma risada.

— Recomendação da sra. Cool, sem dúvida?

Como o bobo da corte em uma pantomima, dei meia dúzia de balançadas na cabeça.

— Fiquei triste ao ouvir sobre o modo como seu tio, o sr. Twining, morreu — eu disse e estava sendo sincera. — Honestamente, fiquei. Não parece justo.

— Justo? Certamente não foi justo — assentiu ela. — E no entanto, não foi injusto. Não foi nem mesmo perverso. Você sabe o que foi?

É claro que eu sabia, já tinha ouvido isso antes, mas não estava aqui para debater com ela.

— Não — sussurrei.

— Foi assassinato — revelou ela. — Foi assassinato, puro e simples.

— E quem foi o assassino? — perguntei. Às vezes a minha própria língua me pega de surpresa.

Uma expressão um tanto vaga flutuou pelo rosto da srta. Mountjoy, como uma nuvem atravessando na frente da lua, como se ela tivesse passado a vida inteira se preparando para o papel e então, no meio do palco, sob a luz do refletor, tivesse esquecido a fala.

— Aqueles meninos — consentiu ela afinal. — Aqueles meninos odiosos, detestáveis. Jamais vou esquecê-los; apesar de suas bochechas rosadas e inocência infantil.

— Um daqueles meninos é meu pai — afirmei mansamente.

Os olhos dela estavam em outro lugar no tempo. Lentamente eles retornaram ao presente para se focalizar em mim.

— Sim — ela confirmou. — Laurence de Luce. Jacko. Seu pai era chamado de Jacko. Um apelido de escola, porém até o médico-legista o chamou assim. Jacko. Ele pronunciou o nome tão suavemente no inquérito, quase carinhoso — como se o tribunal inteiro estivesse fascinado pelo nome.

— Meu pai prestou testemunho no inquérito?

— É claro que testemunhou — como os outros meninos. Era o tipo de coisa que se fazia naquele tempo. Ele negou tudo, é claro, toda a responsabilidade. Um valioso selo postal tinha sido roubado da coleção do diretor, e isso era tudo “Oh não, senhor, não fui eu, senhor!” Como se por artes mágicas tivessem brotado dedinhos imundos no selo e ele tivesse surrupiado a si mesmo!

Eu já ia dizer a ela “Meu pai não é um ladrão, e nem um mentiroso”, quando de repente me dei conta de que nada que eu dissesse iria mudar aquela cabeça ancestral. Decidi partir para a ofensiva.

— Por que a senhorita saiu de repente da igreja esta manhã? — perguntei.

A srta. Mountjoy se encolheu, como se eu tivesse jogado um copo de água na cara dela.

— Você não tem papas na língua, não é?

— Não — concordei. — Tinha alguma coisa a ver com o vigário rezar para o estranho em nosso meio, não tinha? O homem cujo corpo eu encontrei no jardim de Buckshaw.

Ela assobiou através dos dentes como uma chaleira.

— Você encontrou o corpo? Você?

— Sim — reafirmei.

— Então me conte: ele tinha cabelo vermelho? — Ela fechou os olhos e manteve-os fechados, aguardando a resposta.

— Sim — respondi. — Ele tinha cabelo vermelho.

— Pelo que recebemos, possa o Senhor nos tornar verdadeiramente gratos — ela sussurrou antes de abrir os olhos de novo. Aquilo me pareceu uma resposta não apenas peculiar como, de algum modo, pouco cristã.

— Não entendi — confessei. E não mesmo.

— Eu o reconheci imediatamente — disse ela. — Mesmo depois de todos esses anos, soube quem era ele assim que vi aquela cabeleira vermelha saindo da Treze Patos. E se isso não fosse o bastante, o seu porte insolente, aquela arrogância presunçosa, aqueles frios olhos azuis — qualquer uma dessas coisas teria me contado que Horace Bonepenny voltara a Bishop’s Lacey.

Tive a sensação de que estávamos resvalando para águas mais profundas do que eu conhecia.

— Talvez agora você possa entender por que eu não poderia participar de nenhuma oração pelo repouso da alma podre daquele menino — daquele homem.

Ela estendeu a mão e pegou o saco de balas azedinhas da minha, jogou uma na boca e embolsou o resto.

— Pelo contrário — continuou —, eu rezo para que ele esteja, neste exato momento, sendo assado no inferno.

E com isso ela entrou em sua úmida Quinta do Salgueiro e bateu a porta.

Quem seria Horace Bonepenny? E o que o trouxera de volta a Bishop’s Lacey?

Eu podia pensar em apenas uma pessoa que poderia ser convencida a me contar.

 

Subindo a avenida de castanheiras em direção a Buckshaw, pude ver que o Vauxhall azul não estava mais estacionado à porta. O inspetor Hewitt e seus homens tinham ido embora.

Eu pedalava Gladys para os fundos da casa quando ouvi batidas metálicas vindo da estufa. Fui até a porta e olhei para dentro. Era Dogger.

Ele estava sentado sobre um balde emborcado, batendo nele com uma colher de pedreiro.

Blém... blém... blém... blém... Do mesmo jeito que o sino da igreja de São Tancredo soa no funeral de algum ancestral em Bishop’s Lacey, ele continuava seguidamente, como se estivesse medindo o ritmo de uma vida. Blém... blém... blém... blém...

Ele estava de costas para a porta, e era óbvio que não tinha me visto.

Me afastei silenciosamente até a porta da cozinha, onde fiz um grande e ruidoso alarde derrubando Gladys no degrau de pedra. (“Desculpe, Gladys”, sussurrei.)

— Droga e maldição! — blasfemei bem alto, para ser ouvida na estufa. Fingi avistá-lo ali atrás do vidro.

— Oh, olá Dogger — falei alegremente —, justamente a pessoa que eu estava procurando.

Ele não se voltou imediatamente, e eu fingi raspar um pedaço de barro da sola do sapato até ele se recuperar.

— Srta. Flavia — ele disse lentamente. — Todos estão à sua procura.

— Bem, aqui estou eu — apresentei-me. Melhor assumir o controle da conversa até Dogger voltar à realidade suavemente.

— Eu estava conversando com alguém na aldeia que me contou a respeito de alguém sobre quem eu pensei que você poderia me contar.

Dogger conseguiu esboçar o espectro de um sorriso.

— Sei que não estou colocando as coisas do melhor jeito, mas...

— Entendo o que você quer dizer.

— Horace Bonepenny — despejei. — Quem é Horace Bonepenny?

Ao ouvir minhas palavras, Dogger começou a se contrair espasmodicamente como um sapo de laboratório cuja coluna vertebral foi ligada a uma bateria. Ele lambeu os beiços e enxugou a boca furiosamente com um lenço. Pude ver que seus olhos estavam começando a ficar baços, piscando como fazem as estrelas logo antes do alvorecer. Ao mesmo tempo, ele fazia um grande esforço para se recompor, mas com pouco sucesso.

— Não faz mal, Dogger — acalmei-o. — Não importa. Esqueça.

Ele tentou pôr-se em pé, mas não conseguiu se erguer do balde emborcado.

— Srta. Flavia — sentenciou—, existem perguntas que precisam ser feitas, e existem perguntas que não precisam ser feitas.

Então, aí estava outra vez: como uma lei, aquelas palavras saíam dos lábios de Dogger tão naturalmente, e tão definitivamente, como se o próprio Isaías as tivesse pronunciado.

Mas aquelas poucas palavras pareciam tê-lo deixado totalmente esgotado e, com um suspiro sonoro, cobriu o rosto com as mãos. Naquele momento, eu não queria nada além de jogar os braços em volta dele e abraçá-lo, mas sabia que ele não tinha energia para isso. Então, contentei-me em pôr a mão em seu ombro, percebendo no momento em que fiz isso que o gesto era um consolo maior para mim do que para ele.

— Vou chamar o pai — eu disse. — Vamos ajudar você a voltar para o quarto.

Dogger virou o rosto lentamente para mim, uma máscara pálida de tragédia. As palavras saíram dele como uma pedra raspando em outra pedra.

— Eles o levaram, srta. Flavia. A polícia o levou embora.


FELINHA E DAFI ESTAVAM SENTADAS em um divã florido na sala de visitas, envolvidas nos braços uma da outra, barulhentas como sirene de um ataque aéreo. Eu já tinha dado alguns passos para dentro da sala, a fim de me juntar a elas, quando Ophelia me viu.

— Onde você esteve, seu monstrinho? — sibilou ela, levantando-se de um pulo e vindo para cima de mim como um gato selvagem, os olhos inchados e vermelhos como faróis de bicicleta. — Todos estavam procurando por você. Achamos que tinha se afogado. Oh! Como eu rezei para ter sido isso!

Bem-vinda ao lar, Flavinha, eu pensei.

— O pai foi preso — disse Dafi sem rodeios. — Eles o levaram embora.

— Para onde? — perguntei.

— Como vamos saber? — respondeu Ophelia com desdém. — Para onde quer que levem pessoas presas, imagino. Onde você esteve?

— Bishop’s Lacey ou Hinley?

— O que você quer dizer? Fale coisa com coisa, sua maluquinha.

— Bishop’s Lacey ou Hinley — repeti. — A delegacia de polícia de Bishop’s Lacey tem só uma sala, portanto, não acho que eles o tenham levado para lá. A sede da Polícia do Condado fica em Hinley. Logo é provável que o tenham levado para Hinley.

— Eles vão acusá-lo de assassinato — disse Ophelia — e então ele vai ser enforcado! — Ela explodiu em lágrimas de novo e virou de costas.

Por um momento quase senti pena dela.

Saí da sala de visitas para o corredor e vi Dogger a meio caminho subindo a escadaria oeste, penosamente, passo a passo, como um condenado subindo os degraus do patíbulo.

Agora era minha chance!

Esperei até ele desaparecer de vista no topo da escada, depois me esgueirei para o estúdio do pai e silenciosamente tranquei a porta atrás de mim. Era a primeira vez na vida que me via sozinha naquela sala.

Uma parede inteira foi reservada para os álbuns de selos do pai, gordos volumes cujas cores indicavam o reino de cada monarca: preto para a Rainha Vitória, vermelho para Eduardo VII, verde para George V e azul para o nosso monarca atual, George VI. Lembrei-me de que um delgado volume escarlate enfiado entre o livro verde e o azul continha apenas uns poucos itens — uma de cada das nove variações conhecidas dos quatro selos emitidos ostentando a efígie de Eduardo VIII, antes de ele se evadir com aquela mulher americana.

Eu sabia que o pai extraía um prazer infinito das incontáveis e diminutas variações de seus pedacinhos de papel, mas não conhecia os detalhes. Somente quando ficava suficientemente excitado com alguma nova migalha de cultura inútil na última edição do London Philatelist é que cantava rapsódias ao desjejum, quando aprendíamos um pouco mais sobre seu mundo alegre e isolado. Fora essas raras ocasiões, nós éramos todas, minhas irmãs e eu, bebês inocentes no que dizia respeito a selos, enquanto o pai gastava seu tempo com trivialidades, montando álbuns de pedacinhos de papel colorido com um deleite assustador, maior que o de alguns homens quando penduram cabeças de cervos e tigres nas paredes.

Na parede oposta aos livros havia um aparador estilo jacobino do início do século XVII cujo tampo e gavetas transbordavam com o que parecia ser uma infinidade de suprimentos filatélicos: fitas protetoras, gabaritos de perfuração, bandejas esmaltadas para imersão, garrafas de fluido para revelar marcas-d’água, apagadores de goma, envelopes transparentes, reforços de página, pinças e uma lâmpada ultravioleta coberta.

Na extremidade da sala, em frente à porta-balcão que abria para o terraço, estava a escrivaninha do pai: uma antiga partner’s desk do tamanho de uma quadra esportiva, que possivelmente foi um dia usada na firma de contabilidade de Scrooge e Marley. Imaginei imediatamente que as gavetas estariam trancadas — e eu estava certa.

Onde, perguntei-me, o pai esconderia um selo em uma sala repleta de selos? Não havia dúvidas na minha cabeça de que ele o escondera — como eu teria feito. O pai e eu compartilhamos uma paixão pela privacidade, e percebi que ele nunca seria tão tolo a ponto de deixá-lo em um lugar óbvio.

Em vez de olhar em cima ou dentro de coisas, deitei no chão como um mecânico inspecionando o chassi de um automóvel e deslizei de costas pela sala, examinando a parte de baixo dos móveis. Olhei os fundos da escrivaninha, da mesa, do cesto de papéis e da poltrona Windsor do pai. Olhei embaixo do tapete turco e atrás das cortinas. Olhei nas costas do relógio e virei as gravuras na parede.

Havia de longe livros demais para procurar, portanto, tentei pensar em qual deles seria o menos provável que alguém olhasse. É claro! A Bíblia!

Mas uma rápida folheada nessa versão King James da Bíblia não revelou mais que um velho folheto da igreja e um cartão de pêsames por algum De Luce morto na época da Grande Exposição.

Então de repente me lembrei de que o pai havia arrancado o Penny Black do bico do jack snipe morto e guardado no bolso do colete. Talvez ele o tenha deixado lá, com a intenção de se livrar dele mais tarde.

Sim, era isso! O selo não estava aqui. Que idiota eu fui ao pensar que estaria. O estúdio inteiro, é claro, estaria no topo da lista dos esconderijos óbvios demais. Uma onda de certeza me invadiu, e eu soube, com aquilo que Felinha e Dafi chamam incorretamente de “intuição feminina”, que o selo estava em algum outro lugar.

Tentando não fazer barulho, virei a chave e saí para o hall. As “Irmãs Bizarras” ainda estavam na mesma, na sala de estar, as vozes se alternando entre momentos de raiva e pesar. Eu poderia ter ficado ouvindo à porta, mas achei melhor não. Tinha coisas mais importantes a fazer.

Segui, silenciosa como uma sombra, pela escada oeste acima e entrei na ala sul.

Como esperava, o quarto do pai estava em semiobscuridade quando entrei. Muitas vezes eu olhara do gramado para cima, para as janelas dele, e vira as pesadas cortinas completamente cerradas.

Por dentro, ele possuía toda a melancolia de um museu depois da hora de fechamento. O aroma forte das colônias e loções de barba do pai sugeria sarcófagos abertos e vasos mortuários egípcios que estiveram outrora abarrotados de antigas especiarias. As pernas finamente recurvas de um lavatório Rainha Anne pareciam quase indecentes ao lado da sóbria cama gótica no canto, como se algum velho e amargo camareiro com problemas estomacais estivesse olhando para sua amante, enquanto ela desenrolava meias de seda por cima das pernas longas e jovens.

Até os dois relógios do quarto sugeriam tempos há muito passados. Sobre a lareira, uma monstruosidade em imitação de ouro com um pêndulo de bronze, que parecia a lâmina curva em O poço e o pêndulo, tiquetaqueando o tempo e refletindo um brilho empanado ao fim de cada batida na fraca iluminação do quarto. Sobre a mesa de cabeceira, um pequeno e delicado relógio georgiano que dava-se em silente desacordo: os ponteiros do primeiro marcavam 15h15, e os dele, 15h12.

Percorri o longo quarto até a outra ponta e parei.

O quarto de vestir de Harriet — o qual só podia ser adentrado através do quarto do pai — era território proibido. Ele nos acostumara a respeitar o santuário em que o transformara no dia em que soubera da morte dela. Ele conseguiu isso fazendo-nos acreditar que, muito embora não nos dissesse diretamente, qualquer violação dessa regra resultaria em sermos levadas marchando em fila indiana até o limite do jardim, onde seríamos enfileiradas contra o muro de tijolos e sumariamente abatidas.

A porta para o quarto de Harriet era recoberta de feltro verde, como uma mesa de bilhar posta em pé. Dei-lhe um empurrão e ela se abriu em um silêncio perturbador.

O quarto estava inundado de claridade. Através das altas vidraças em três dos seus lados jorravam torrentes de luz solar, difundida por um sem-fim de rendas italianas para dentro de uma câmara que poderia ter sido o cenário para uma peça sobre o Duque e a Duquesa de Windsor. O tampo da penteadeira estava coberto de escovas e pentes Fabergé, como se Harriet tivesse acabado de sair para um banho no quarto ao lado. Havia frascos de perfume Lalique adornados por braceletes coloridosde baquelite e âmbar, enquanto um encantador fogareiro elétrico e uma chaleira de prata pareciam prontos para fazer o chá matinal. Uma única rosa amarela murchava em um vaso delgado de vidro.

Sobre uma bandeja oval havia um minúsculo frasco de cristal contendo não mais que uma ou duas gotas de perfume. Eu o peguei, tirei a tampa e passei o frasco languidamente de um lado para o outro, embaixo do nariz.

A essência evocava pequenas flores azuis, prados nas montanhas e frescor.

Uma impressão peculiar passou por mim — ou melhor, através de mim, como se eu fosse uma sombrinha me lembrando de qual era a sensação de ser aberta na chuva. Olhei para o rótulo e vi que ostentava uma só palavra: Miratrix.

Uma cigarreira de prata com as iniciais H. de L. jazia ao lado de um espelho de mão, em cujas costas estava estampada a imagem de Flora, da pintura de Boticelli, Primavera. Eu nunca tinha notado antes nas reproduções do original, mas Flora parecia enorme e alegremente grávida. Poderia esse espelho ter sido um presente do pai a Harriet quando estava grávida de uma de nós? E nesse caso, qual? Felinha? Dafi? Eu? Achei improvável que fosse eu: uma terceira menina dificilmente teria sido um presente dos deuses — pelo menos no que concernia ao pai.

Não, provavelmente era Ophelia, a primogênita — ela que parecia ter chegado ao mundo com um espelho na mão... talvez este mesmo.

Uma poltrona de vime junto de uma das janelas compunha um lugar perfeito para leitura e ali, ao alcance da mão, estava a pequena biblioteca de Harriet. Ela trouxera os livros de seu tempo de escola no Canadá e dos verões com uma tia em Boston: Anne de Green Gables e Jane de Lantern Hill eram vizinhos pegados de Penrod e Merton do cinema, ao passo que no extremo oposto da prateleira estava encostado um exemplar surrado de As terríveis revelações de Maria Monk. Eu não tinha lido nenhum deles, mas, pelo que sabia de Harriet, todos eram provavelmente livros sobre rebeldes e renegados.

Ali perto, sobre uma mesinha redonda, havia um álbum de fotografias. Ergui a capa e vi que as páginas eram de um papel preto encorpado, as legendas escritas à mão embaixo de cada instantâneo em preto e branco com giz: Harriet (2 anos) na casa de Morris; Harriet (15 anos) na Academia Femininada Srta. Bodycote (1930 — Toronto, Canadá); Harriet como Espírito Alegre, seu avião Havilland Gypsy Moth (1938); Harriet no Tibete (1939).

As fotos mostravam Harriet crescendo — de um querubim gordo com fartos cabelos dourados, passando por uma menina alta, magrela e sorridente (sem seios perceptíveis), vestindo roupas de hóquei, e chegando a uma estrela de cinema com uma franja loira, em pé, como Amélia Earhart, com uma das mãos repousando negligentemente sobre a borda do mastro do Espírito Alegre. Não havia fotografias do pai. Nem de alguma de nós.

Em todas as fotografias, os traços de Harriet eram de uma mulher cuja feição fora obtida pegando as características de Felinha, Dafi e eu, sacudindo em um pote antes de montá-las novamente naquela sorridente, confiante e, no entanto, afetuosamente tímida aventureira.

Enquanto olhava para seu rosto, tentando ver a alma de Harriet através do papel fotográfico, ouvi uma leve batida na porta.

Uma pausa — e depois outra batida. E a porta começou a se abrir.

Era Dogger. Ele enfiou a cabeça lentamente no quarto.

— Coronel De Luce? — ele chamou. — Está aqui?

Eu congelei, mal me atrevendo a respirar. Dogger não mexeu um músculo, mas olhou direto em frente com aquele jeito de criado bem treinado que conhece seu lugar, confiando nos ouvidos para lhe dizer se estava perturbando.

Mas que jogo ele estava fazendo? Não tinha acabado de me contar que a polícia levara o pai embora? Por que diabos então esperaria encontrá-lo aqui no quarto de vestir de Harriet? Será que Dogger era assim tão confuso? Ou estaria me seguindo?

Entreabri os lábios ligeiramente e inspirei lentamente pela boca para que um som inadvertido do nariz não me entregasse, fazendo ao mesmo tempo uma prece silenciosa para não espirrar.

Dogger ficou lá, plantado, por um longo tempo, como um estátua viva. Eu tinha visto gravuras daqueles entretenimentos antigos em que os atores eram rebocados com tinta branca e polvilho antes de se organizar em poses imóveis, frequentemente de uma natureza provocante, cada qual supostamente representando uma cena da vida dos deuses.

Depois de algum tempo, bem quando eu estava começando a perceber como um coelho se sente quando fica paralisado, Dogger lentamente retirou a cabeça, e a porta se fechou sem nenhum ruído.

Teria me visto? E se tivesse, estaria fazendo de conta que não?

Aguardei, escutando, mas não ouvi nenhum som do quarto vizinho. Eu sabia que Dogger não iria ficar lá por muito tempo, e quando achei que já se havia passado tempo suficiente, abri a porta e espiei para fora.

O quarto do pai estava como eu o havia deixado, os dois relógios tiquetaqueando, mas agora, por causa do meu medo, o som parecia mais alto do que antes. Percebendo que aquela era uma oportunidade que nunca mais ocorreria de novo, comecei minha busca, usando o mesmo método que usara no estúdio do pai, mas como seu quarto era tão espartano quanto deve ter sido a tenda de campanha de Leonidas, aquilo não levou muito tempo.

O único livro ali era um catálogo da Stanley Gibbons para um leilão de selos a se realizar dali a três meses. Virei-o de cabeça para baixo e folheei ansiosamente as páginas, mas nada caiu para fora.

Havia surpreendentemente poucas roupas no armário do pai: um par de velhos casacos de tweed com remendos de couro nos cotovelos (os bolsos vazios), dois suéteres de lã e algumas camisas. Vasculhei dentro dos sapatos e de um antigo par de meias-galochas militares, mas não encontrei nada.

Com uma pontada de remorso dei-me conta de que a única outra roupa do pai era seu terno de domingo, que ele ainda devia estar usando quando o inspetor Hewitt o levou embora. (Eu não me permiti usar a palavra “preso”.)

Talvez ele tivesse escondido o Penny Black perfurado em algum outro lugar — no porta-luvas do Rolls-Royce de Harriet, por exemplo. Até onde eu sabia, ele poderia já tê-lo destruído. Agora que eu parara para pensar a respeito, aquilo é o que teria feito mais sentido. O selo em si estava danificado, portanto, não tinha valor. Contudo, alguma coisa nele havia deixado o pai perturbado, e parecia lógico que, assim que tivesse voltado a seu quarto na sexta-feira, teria imediatamente acendido um fósforo embaixo dele.

Isso, é claro, teria deixado vestígios: cinza de papel no cinzeiro e um fósforo queimado no cesto de papéis. Isso foi fácil de verificar, já que ambos estavam bem na minha frente — e estavam vazios.

Talvez ele tivesse jogado a evidência no vaso e dado a descarga.

Agora eu sabia que estava me agarrando a qualquer coisa.

Desista, pensei; deixe isso para a polícia. Volte ao seu confortável laboratório e dê prosseguimento ao trabalho de sua vida.

Eu pensei — mas apenas por um momento, e com pouca emoção — que gotas letais poderiam ser destiladas das plantas inscritas no Festival de Flores da Primavera; que um alegre veneno poderia ser extraído do junquilho, e que licores mortíferos do narciso. Até o teixo comum do pátio da igreja, tão amado pelos poetas e casais de namorados, continha em suas sementes e folhas toxina suficiente para dar fim à metade da população da Inglaterra.

Mas esses prazeres teriam de esperar. Minha obrigação era para com o pai, e recaíra sobre meus ombros ajudá-lo, especialmente agora que ele não podia se ajudar sozinho. Eu sabia que devia chegar a ele, onde estivesse, e colocar minha espada a seus pés do mesmo modo que um escudeiro medieval jura lealdade a seu cavaleiro. Mesmo que eu não pudesse ajudá-lo, poderia ainda me sentar a seu lado, e me dei conta, com uma súbita e pungente pontada, de que sentia terrivelmente a falta dele.

Fui tomada por uma ideia repentina. Quantos quilômetros até Hinley? Daria para chegar lá antes de escurecer? E mesmo se conseguisse, seria autorizada a vê-lo?

Meu coração bateu forte como se alguém tivesse me dado furtivamente um chá de dedaleira.

Hora de partir. Já fiquei aqui por tempo suficiente. Dei uma olhada no relógio da cabeceira —15h40, ele marcava agora. O relógio da lareira seguia tiquetaqueando solenemente, e seus ponteiros marcavam 15h37.

O pai devia estar muito perturbado para notar, imaginei, porque em geral, quando se tratava da hora, ele era um verdadeiro déspota. Lembrei-me do seu jeito de dar ordens a Dogger (embora não a nós) de um modo militar:

“Leve os gladíolos para o vigário às treze horas, Dogger”, ele dizia. “Ele estará esperando. Esteja de volta às 13h45, e então decidiremos o que fazer com as lentilhas-d’água”.

Olhei para os dois relógios, na esperança de que alguma coisa me ocorresse. O pai nos contara uma vez, em uma das suas raras disposições expansivas, que o que o fizera se apaixonar por Harriet era sua capacidade de refletir. “Coisa notável em uma mulher, realmente, quando se pensa nisso”, disse ele.

E subitamente eu vi. Um de seus relógios tinha sido parado por precisamente três minutos. O relógio na lareira.

Aproximei-me dele lentamente, como quem caça uma ave. Sua caixa escura e lúgubre lhe emprestava a aparência de uma carruagem fúnebre vitoriana, cheia de botões, vidro e laca negra.

Minha mão se estendeu para ele, pequena e branca no quarto penumbroso; senti meus dedos tocarem o mostrador frio; senti meu polegar soltar o fecho de prata. Agora o pêndulo de latão estava diante das pontas dos meus dedos, oscilando para cá e para lá com seu detestável tique-taque. Eu estava quase com medo de tocar naquela coisa. Respirei fundo e agarrei o pêndulo pulsante. A inércia o fez estremecer forte na minha mão por um instante, como um peixinho dourado que você agarra de repente; como um coração antes de silenciar.

Apalpei a parte de trás do peso de latão. Alguma coisa estava presa ali; alguma coisa grudada com fita adesiva atrás dele: um pacote pequenino. Puxei com os dedos, senti-o soltando-se e caindo na minha mão. Já enquanto removia os dedos dos órgãos internos do relógio, adivinhei o que estava prestes a ver... e estava certa. Ali, na minha palma, jazia um pequeno envelope transparente, dentro do qual, claramente visível, estava um selo postal Penny Black. Um Penny Black com um buraco no meio, como o que poderia ter sido produzido pelo bico de um jack snipe morto. O que haveria naquilo que deixara o pai tão apavorado?

Pesquei o selo para olhar melhor. Em primeiro lugar, lá estava a Rainha Vitória com um buraco na cabeça. Pouco patriótico, talvez, mas dificilmente o bastante para abalar tanto um homem adulto. Não, devia haver mais.

O que será que tornava este selo diferente dos outros do seu tipo? Afinal, essas coisas não eram impressas às dezenas de milhões, todas iguais? Ou será que não eram?

Pensei em quando o pai — no interesse de ampliar nossas perspectivas — subitamente anunciou que as noites de quarta-feira seriam dedicadas, daí em diante, a uma série de palestras compulsórias (realizadas por ele) sobre os vários aspectos do governo britânico. A “Série A”, como ele a chamou, seria, muito previsivelmente, sobre o tópico “A História do Penny Black”, ou cartões de Natal da Inglaterra.

Dafi, Felinha e eu trouxemos cadernos para a sala de estar e fingimos tomar notas enquanto passávamos pedaços de papel de uma para outra com mensagens rabiscadas tais como “Selem a boca dos palestrantes” e “Vamos lamber o tédio!”.

Os selos postais, o pai explicou, eram impressos em folhas de duzentos e quarenta; vinte fileiras horizontais de doze, o que para mim era bastante fácil de lembrar, já que 20 é o número atômico do cálcio e 12 o número do magnésio — tudo o que eu tinha de fazer era pensar em CaMg. Cada selo da folha trazia um identificador único de duas letras, começando com “AA” no selo superior esquerdo e progredindo alfabeticamente da esquerda para a direita, até atingir “TL” na extremidade direita da vigésima fileira, ou fileira inferior.

Esse esquema, o pai nos contou, foi implementado pelo Correio para evitar falsificações, embora não estivesse perfeitamente claro como isso deveria funcionar. Havia uma paranoia desenfreada, disse ele, de que covis de falsificadores estariam trabalhando dia e noite, de Land’s End até John O’Groats, produzindo cópias para fraudar Sua Vitoriana Majestade em um penny de cada vez.

Olhei atentamente para o selo na minha mão. Embaixo, sob a efígie da Rainha Vitória, estava escrito o seu valor: UM PENNY. À esquerda dessas palavras estava a letra B, e à direita a letra H.

 


Tinha esta aparência: B UM PENNY. H

 

 

“BH.” O selo saíra da segunda fileira na folha impressa, oitava coluna à direita. Dois-oito. Seria isso significativo? Fora o fato de que 28 era o número atômico do níquel, eu não consegui pensar em mais nada.

E então eu vi! Não era um número, de modo algum: era uma palavra!

Bonepenny! Não apenas Bonepenny, mas Bonepenny, H.! Horace Bonepenny!

Enfiado no bico do jack snipe (Sim! O apelido do pai na escola era “Jacko”!), o selo servira como cartão de visita e ameaça de morte. Uma ameaça que o pai captara e entendera ao primeiro relance.

O bico da ave havia perfurado a cabeça da rainha, mas deixara o nome do remetente claramente visível para quem tivesse os olhos para ver.

Horace Bonepenny. O falecido Horace Bonepenny.

Devolvi o selo ao esconderijo.

 

No topo da colina, em uma placa num poste de madeira apodrecida — tudo o que restara de uma forca do século XVIII — dois indicadores apontavam em direções opostas. Eu poderia chegar a Hinley, pegando a estrada para Doddingsley, ou seguindo por uma estrada um pouco mais longa, menos usada, que me levaria pela aldeia de St. Elfrieda. Pela primeira, chegaria mais depressa; pela segunda, sendo menos usada, correria menos risco de ser avistada no caso de alguém informar que estava desaparecida.

— Há-há-há! — gargalhei, com ironia. Quem se importaria?

Ainda assim, peguei a estrada da direita e apontei Gladys na direção de St. Elfrieda. Era ladeira abaixo o tempo todo, e fiz um bom tempo. Quando pedalei para trás, o mecanismo Sturmey-Archer de três velocidades na roda traseira de Gladys fez um barulho que parecia um ninho de cascavéis furiosas pingando veneno. Fiz de conta que elas estavam logo atrás de mim, atacando meus tornozelos. Foi glorioso! Eu não me sentia numa forma física tão boa desde o dia em que produzi pela primeira vez, por sucessiva extração e evaporação, um curare sintético da Calla palustris.

Pus os pés no guidão e deixei Gladys livre. Enquanto disparávamos pela colina poeirenta abaixo, cantei uma canção ao vento:

 


Eles a chamam de a garota


Com um jeitinho delicado!...


NO SOPÉ DA COLINA DE OAKSHOTT, pensei repentinamente no pai, e a tristeza voltou. Eles acreditam mesmo que ele assassinou Horace Bonepenny? E se o fez, como foi? Se o pai assassinou alguém embaixo da janela do meu quarto, o ato foi cometido em silêncio absoluto. Eu dificilmente poderia imaginar o pai matando alguém sem levantar a voz.

Mas, antes que eu pudesse especular mais um pouco, a estrada se nivelou antes de desviar para Cottesmore e para Doddingsley Magna. À sombra de um velho carvalho havia um banco de parada de ônibus, no qual sentava-se uma figura familiar: um gnomo ancestral de calções folgados presos abaixo dos joelhos, parecendo um George Bernard Shaw que encolheu ao lavar. Estava sentado tão placidamente, com os pés pendurados dez centímetros acima do chão, que poderia ter nascido no banco e vivido lá a vida inteira.

Era Maximilian Brock, um vizinho de Buckshaw, e rezei para ele não ter me visto. Dizia-se à boca pequena, em Bishop’s Lacey, que Max, aposentado do mundo da música, agora ganhava a vida em segredo escrevendo — sob pseudônimos femininos (como Lala Dupree) — histórias escandalosas para revistas americanas com títulos como Confissões confidenciais e Romances abrasadores.

Por causa do modo como ele se intrometia nos assuntos de todos os que conhecia e depois vendia a peso de ouro as histórias que lhe contavam confidencialmente, Max era chamado, ao menos pelas costas, de “Investigador da Aldeia”. Mas, como ele era o antigo professor de piano de Felinha, eu não poderia simplismente ignorá-lo.

Encostei na valeta rasa, fingindo que não o tinha visto, e fiquei manuseando a corrente de Gladys. Com um pouco de sorte, ele continuaria olhando para o outro lado e eu poderia me esconder atrás da sebe até que fosse embora.

— Flavia! Haroo, mon vieux.

Belzebus! Fui avistada. Ignorar um “haroo” de Maximilian — mesmo vindo de um banco de parada de ônibus — era ignorar o décimo primeiro mandamento. Fingi que acabara denotá-lo e pus na cara um sorriso amarelo, enquanto empurrava Gladys na direção dele através do mato. Maximilian morara por muitos anos nas Ilhas do Canal, onde era o pianista da Orquestra Sinfônica de Alderney, uma posição — disse ele — que requeria uma grande dose de paciência e um bom estoque de romances de detetive.

Em Alderney, a fim de atrair todo o rigor da lei (ou pelo menos foi o que ele me contou uma vez, quando conversávamos sobre crime, na Exposição Anual de Flores de São Tancredo) era necessário apenas se plantar no meio da praça da cidade e gritar “Haroo, haroo, mon prince. On me fait tort!”. Isso era chamado “clamor público” e significava, em essência, “Atenção, meu príncipe, alguém está cometendo um ato ilícito contra a minha pessoa!”. Ou, em outras palavras, alguém está cometendo um crime contra mim.

— E como vai você, meu pequeno pelicano? — perguntou Max, inclinando a cabeça como um tagarela aguardando uma migalha de resposta, mesmo antes de ser oferecida.

— Estou bem — respondi cautelosamente, lembrando-me de que Dafi me contara uma vez que Max era como uma daquelas aranhas que o paralisam com uma picada e não o largam mais, até sugar a última gota de essência de sua vida — e da vida de sua família.

— E o seu pai, o bom coronel?

— Ele se mantém ocupado, com uma coisa ou outra — eu disse. Senti meu coração vacilar no peito.

— E a srta. Ophelia — ele perguntou —, continua pintando a cara como Jezebel e se admirando no aparelho de chá?

Aquilo estava perto demais de casa, até para mim. Não era da conta dele, mas eu sabia que Maximilian podia descambar para uma tremenda crise de fúria sem mais aquela. Felinha às vezes se referia a ele pelas costas como “Rumpelstilstskin”, e Dafi como “Alexander Pope — o sátiro”.

Ainda assim, eu achava Maximilian, a despeito dos seus hábitos repelentes, e talvez por causa da nossa similaridade em estatura, um interlocutor interessante e informativo, para certas ocasiões — desde que você não cometesse o erro de confundir seu tamanho diminuto com fraqueza.

— Ela está muito bem, obrigada — respondi novamente. — Sua compleição encontrava-se perfeitamente atraente esta manhã.

Não acrescentei “irritantemente”.

— Max — perguntei, antes que ele pudesse forçar mais uma pergunta —, você acha que eu poderia aprender a tocar aquela pequena sonata de Paradis?

— Não — ele sentenciou sem um instante de hesitação. — Suas mãos não são as de uma grande artista. São as mãos de uma envenenadora.

Mostrei os dentes num sorriso. Essa era nossa piadinha particular. E era óbvio que ele ainda não soubera do assassinato em Buckshaw.

— E a outra? — perguntou ele. — Daphne... a irmã vagarosa?

“Vagarosa” era uma referência ao talento de Dafi, ou falta dele, ao piano: uma jornada infindável para colocar dedos relutantes sobre teclas que pareciam encolher-se ao seu toque. A batalha de Dafi com o instrumento era como a de uma galinha enfrentando a raposa, uma batalha perdida, que sempre terminava em lágrimas. E, contudo, como o pai insistia, a guerra prosseguia.

Um dia, quando a encontrei soluçando no banquinho com a cabeça sobre a tampa fechada do piano, sussurrei: “Desista, Dafi”, e ela voou para cima de mim como um galo de briga.

Eu tentei até o encorajamento. Sempre que a ouvia ao Broadwood, ia até a sala de estar, debruçava-me no piano e ficava com o olhar perdido na distância, como se seu desempenho me encantasse. Em geral ela me ignorava, mas uma vez quando eu disse “Que peça adorável é esta! Como se chama?”, quase bateu a tampa em meus dedos.

“A escala de sol maior!”, guinchou ela, e saiu correndo da sala.

Buckshaw não era um lugar fácil para se viver.

— Ela está bem — tornei a responder. — Lendo Dickens de montão. Não se consegue extrair uma palavra dela.

— Ah! — disse Maximilian. — O bom e velho Dickens.

Ele não pareceu capaz de pensar em mais nada sobre aquele tópico, e eu mergulhei em um silêncio momentâneo.

— Max — eu disse. — Você é um cidadão do mundo...

Com aquilo, ele se estufou todo e se inflou até a pouca altura que podia conseguir.

— Não apenas um cidadão do mundo: um boulevardier — emendou ele.

— Exatamente — continuei, tentando imaginar o que queria dizer a palavra. — Você já visitou Stavanger? — Aquilo iria me poupar de procurar no atlas.

— O quê? Stavanger na Noruega?

“BINGO!”, eu quase gritei. Horace Bonepenny tinha estado na Noruega! Respirei fundo para me recompor, esperando que isso fosse atribuído à impaciência.

— É claro, na Noruega! — exclamei condescendente. — Existe outra Stavanger?

Por um momento pensei que ele fosse explodir. Seus olhos se estreitaram e senti um calafrio quando as nuvens negras de um ataque de raiva de Maximilian esconderam o sol. Mas então ele deu uma risadinha, como água de fonte burburejando num copo.

— Stavanger é a primeira escala na Estrada para o Inferno... que é uma estação ferroviária — informou ele. — Viajei por ela até Trondheim, e depois para Inferno que, acredite ou não, é uma pequena aldeia na Noruega, de onde os turistas frequentemente despacham cartões-postais aos amigos com a mensagem “Gostaria que você estivesse aqui!” e onde executei o Concerto para Piano de Grieg em Lá Menor. Grieg, incidentalmente, era tão escocês quanto Scot é norueguês. Um avô de Aberdeen, ele partiu indignado depois da Batalha de Culloden — mas deve ter se arrependido depois que se deu conta de que não fizera mais do que trocar firths, que são estuários escoceses, por fjords, ou fiordes noruegueses.

“Trondheim foi um grande sucesso, devo dizer... críticos bondosos, público educado. Mas aquela gente nunca entendeu sua própria música, você sabe. Toquei Scarlatti também, para trazer um vislumbre do sol italiano àquele clima nórdico gelado. Ainda assim, no intervalo, ouvi por acaso um caixeiro-viajante de Dublin sussurrar para um amigo, ‘Para mim é tudo Grieg, Thor’.”

Sorri por educação, embora já tivesse ouvido essa velha anedota antes, pelo menos quarenta e cinco vezes.

— Isso foi nos velhos tempos, é claro, antes da guerra. Stavanger! Sim, é claro que estive lá. Mas por que você pergunta?

— Como você foi para lá? De navio?

Horace Bonepenny estava vivo em Stavanger e agora estava morto na Inglaterra, e eu queria saber por onde ele andara nesse meio-tempo.

— É claro que de navio. Você não está pensando em fugir de casa, está, Flavia?

— Estávamos tendo uma discussão — na verdade uma briga — sobre isso na noite passada, no jantar.

Essa era uma das maneiras de otimizar uma mentira: usando a velha franqueza.

— Ophelia achava que o embarque seria em Londres; o pai insistiu que seria em Hull; Daphne votou em Scarborough, mas somente porque Anne Brontë foi enterrada lá.

— Na verdade, Newcastle — disse Maximilian.

Ouviu-se um ronco ao longe quando o ônibus de Cortesmore se aproximou, oscilando pela pista entre as sebes como uma galinha andando numa corda esticada. Ele parou na frente do banco, chiando forte como se estivesse cansado do esforço de uma vida dura entre as colinas. A porta se abriu com um gemido de ferro.

— Ernie, mon vieux — saudou Maximilian. — Como vai andando a indústria dos transportes?

— Embarque — disse Ernie, olhando direto em frente através do para-brisa. Se ele pegou a piada, preferiu ignorá-la.

— Sem viagem hoje, Ernie. Só usando seu banco para descansar os rins.

— Os bancos são para uso exclusivo dos viajantes aguardando o ônibus. Está no livro de regras, Max. Você sabe tão bem quanto eu.

— De fato sei, Ernie. Obrigado por me lembrar.

Max escorregou para fora do banco e caiu em pé no chão.

— Tchauzinho então — obedeceu ele, e levantando o chapéu, saiu andando pela estrada como Charlie Chaplin.

A porta do ônibus gemeu e se fechou quando Ernie engatou a trepidante primeira marcha, e o ônibus começou a bufar e a se mover relutantemente para a frente. E, assim, seguimos todos os nossos caminhos separados: Ernie e seu ônibus para Cortesmore, Max para seu chalé, Gladys e eu retomando nossa viagem para Hinley.

 

A delegacia de polícia em Hinley estava instalada em um prédio que tinha sido antes uma estalagem e parada de diligências. Incomodamente confinada entre uma pequena praça e um cinema, sua fachada, com vigas de madeira aparentes, projetava-se como grossas sobrancelhas por cima da rua, a lâmpada azul pendurada na parte saliente. Um anexo construído em blocos de cimento pintados de um marrom indefinível aderia à lateral do prédio como esterco de vaca num vagão de trem de passagem. Ali, suspeitei, era onde ficavam as celas.

Deixando Gladys para pastar em um bicicletário, onde mais de metade do espaço era ocupado por Raleighs pretas com um ar oficial, subi os degraus gastos e entrei pela porta da frente.

Um sargento uniformizado estava sentado numa escrivaninha rearranjando papéis e coçando os cabelos escassos com a ponta de um lápis. Eu sorri e fui entrando.

— Espere aí — trovejou ele. — Aonde você pensa que vai, mocinha? — perguntou.

Parece ser uma característica de policiais falar em perguntas. Sorri como se não tivesse entendido e segui na direção de uma porta aberta, além da qual dava para ver um corredor escuro. Mais rápido do que eu poderia acreditar, o sargento pôs-se em pé e me agarrou pelo braço. Fui pega de surpresa. Não havia mais nada a fazer a não ser irromper em lágrimas.

Eu odiava fazer isso, mas era o único recurso de que dispunha.

 

Dez minutos depois, estávamos tomando um chocolate no salão de chá da delegacia, o policial Glossop e eu. Ele me contara que tinha uma menina exatamente como eu em casa (do que, de algum modo, eu duvidava), chamada Elizabeth.

— Ela é uma grande companheira para sua pobre mãe, a nossa Lizzie — disse ele —, pois a sra. Glossop, isto é, minha esposa, levou um tombo de uma escada no pomar de macieiras e quebrou a perna, vai fazer duas semanas no sábado.

Meu primeiro pensamento foi de que ele havia lido edições demais de revistas em quadrinhos como The Beano e The Dandy; e de que estava exagerando um pouco para fins de entretenimento. Mas a expressão sincera e a testa franzida me disseram outra coisa: esse era o verdadeiro policial Glossop, e eu teria de lidar com ele em seus próprios termos.

Assim, comecei a soluçar de novo e contei a ele que eu não tinha mãe e que ela havia morrido no distante Tibete em um acidente de alpinismo e que sentia saudades enormes dela.

— Calma, calma, mocinha — falou. — Chorar não é permitido neste recinto. Tira a dignidade natural do ambiente, por assim dizer. É melhor você enxugar os olhos agora, antes que eu tenha de jogá-la no xilindró.

Consegui dar um sorriso pálido, que ele devolveu com interesse.

Diversos detetives haviam entrado para um chá e um pãozinho doce durante minha atuação, cada qual me dando sorrisos aprovadores em silêncio. Pelo menos não me fizeram perguntas.

— Posso ver meu pai, por favor? — perguntei. — O nome dele é Coronel De Luce, e acredito que vocês estão com ele aqui.

O rosto do policial Glossop ficou subitamente inexpressivo, e vi que tinha jogado minha cartada depressa demais; e que agora eu estava frente a frente com as autoridades.

— Espere aqui — disse ele, e saiu por um corredor estreito no fim do qual parecia haver uma parede de barras pretas de aço.

Assim que ele se foi, dei uma olhada rápida em minhas vizinhanças. Eu estava em uma salinha sombria, com itens de mobiliário tão surrados que poderiam ter sido comprados diretamente na carroça de um mascate, com as pernas lascadas e amassadas como se tivessem sofrido um século de chutes na canela por botas regulamentares do governo.

Numa tentativa vã de alegrar as coisas, um minúsculo armário de madeira tinha sido pintado de verde-maçã, mas a pia era uma relíquia manchada de ferrugem que podia ter sido emprestada da prisão de Wormwood Scrubs. Copos trincados e pratos rachados estavam tristemente lado a lado em um escorredor, e notei pela primeira vez que as esquadrias das janelas eram, de fato, barras de ferro apenas semidisfarçadas. O lugar inteiro tinha um odor estranho, pungente, que eu havia notado assim que entrara: cheirava como se um pote de pasta de anchovas, esquecido anos atrás no fundo de uma gaveta, tivesse apodrecido.

Fragmentos de uma canção de Os piratas de Penzance me vieram à mente. “O destino de um policial não é feliz”, a D’Oyly Carte Opera Company cantara no rádio e, como de costume, Gilbert e Sullivan estavam certos.

De repente me vi pensando em ir embora. Essa missão inteira era temerária, nada além de um impulso para salvar o pai; alguma coisa vomitada por uma parte pré-histórica do meu cérebro. Apenas levante-se e caminhe para a porta, disse para mim mesma. Ninguém vai nem notar que você saiu.

Escutei por um momento, inclinando a cabeça como Maximilian para aumentar o volume da minha já aguda audição. Em algum lugar a distância, vozes graves zumbiam como abelhas em uma colmeia remota.

Deslizei os pés lentamente um na frente do outro, como alguma bailarina dançando o tango e parei abruptamente à porta. De onde eu estava, podia ver apenas um canto da escrivaninha do sargento do outro lado do corredor e, misericordiosamente, não havia nenhum cotovelo oficial repousando sobre ela.

Arrisquei uma espiada. O corredor estava vazio, e segui dançando o tango, desimpedindo o caminho todo até a porta e saí para a luz do dia.

Muito embora eu não fosse uma prisioneira, minha sensação de fuga era imensa.

Fui andando displicentemente até o bicicletário. Mais dez segundos e estaria a caminho. E então, como se alguém tivesse jogado um balde de água gelada na minha cara, paralisei em estado de choque: Gladys se fora! Quase gritei alto.

Lá estavam todas as bicicletas oficiais com suas pequenas luzes oficiais e seus bagageiros-padrão governamentais — mas Gladys se fora!

Olhei para um lado e para o outro, e de algum modo, assustadoramente, as ruas subitamente pareciam diferentes, agora que eu estava a pé. Para que lado ficava minha casa? Para que lado ficava a estrada?

Como se eu não tivesse problemas suficientes, uma tempestade se aproximava. Nuvens negras ferviam no céu ocidental, enquanto aquelas que passavam velozmente logo acima eram desagradavelmente roxas e machucadas.

Fui tomada pelo medo, e depois pela raiva. Como eu podia ter sido tão boba a ponto de largar Gladys desprotegida em um lugar estranho? Como iria para casa? O que seria da pobre Flavia?

Felinha me dissera uma vez para nunca parecer vulnerável em vizinhanças pouco familiares, mas como, eu me perguntei, realmente se consegue fazer isso?

Era o que eu estava pensando quando uma mão pesada caiu sobre meu ombro e uma voz disse: — Acho que é melhor você vir comigo.

Era o inspetor Hewitt.

 

— Isso seria altamente irregular — disse o inspetor Hewitt. — Impróprio no mais alto grau.

Estávamos sentados em seu escritório: uma sala comprida e estreita que antes tinha sido o bar daquela antiga estalagem para diligências. Era impressionantemente simples e bem-arrumada, uma sala onde faltavam apenas uma planta num vaso e um piano.

Um arquivo e uma escrivaninha de desenho bem comum; uma cadeira, um telefone e uma pequena estante de livros, no topo da qual havia uma fotografia emoldurada de uma mulher de casaco de pelo de camelo empoleirada no corrimão de uma graciosa ponte de pedra. De algum modo, eu esperava mais.

— Seu pai está detido aqui até que obtenhamos certas informações. Nessa ocasião, ele será provavelmente levado para outro lugar, que não estou autorizado a revelar. Sinto muito, Flavia, mas vê-lo está fora de questão.

— Ele está preso? — perguntei.

— Receio que sim — ele respondeu.

— Mas por quê? — Esta foi uma pergunta ruim, e eu soube disso assim que ela saiu da minha boca. Ele estava olhando para mim como se eu fosse uma criança.

— Olhe, Flavia — disse ele. — Eu sei que você está aborrecida. É compreensível. Você não teve a chance de ver seu pai antes... bem, você não estava em Buckshaw quando o trouxemos aqui. Essas coisas são sempre muito difíceis para um policial, você sabe, mas você precisa entender que às vezes existem coisas que eu gostaria muito de fazer como amigo, mas que, como representante de Sua Majestade, estou proibido de fazer.

— Eu sei — concordei. — O Rei George VI não é um homem frívolo.

O inspetor Hewitt olhou para mim tristemente. Levantou-se de sua escrivaninha e foi até a janela, de onde ficou olhando para as nuvens que se reuniam lá fora, as mãos atrás das costas.

— Não — consentiu afinal —, o Rei George não é um homem frívolo.

Então, de repente, eu tive uma ideia. Como o proverbial relâmpago, tudo se encaixou no devido lugar tão suavemente como em um desses filmes passados ao contrário, em que as peças de um quebra-cabeça pulam cada uma para seu lugar, completando-o diante dos seus olhos.

— Posso ser franca com você, inspetor? — perguntei.

— É claro — disse ele. — Por favor, faça isso.

— O corpo em Buckshaw era de um homem que chegou em Bishop’s Lacey na sexta-feira depois de uma viagem de Stavanger, na Noruega. Você precisa soltar o pai imediatamente, inspetor, porque, entenda, ele não fez isso.

Embora pego um pouco de surpresa, o inspetor se recuperou depressa e me deu um sorriso indulgente.

— Não fez?

— Não — eu afirmei. — Eu fiz. Eu matei Horace Bonepenny.


ERA ABSOLUTAMENTE PERFEITO. Não haveria ninguém que pudesse provar o contrário.

Fui acordada no meio da noite, eu alegaria, por um barulho peculiar do lado de fora da casa. Desci as escadas e entrei no jardim, onde fui vítima de um vagabundo: um ladrão, talvez, com a intenção de roubar os selos do pai. Depois de uma breve luta, o dominei.

Espere aí, Flavia, esse último pedaço parece um pouco improvável: Horace Bonepenny tinha mais de um metro e oitenta de altura e poderia ter me estrangulado apenas com o polegar e o indicador. Não, nós lutamos e ele morreu — um coração fraco, talvez, resultado de alguma doença da infância há muito esquecida. Febre reumática, digamos. Sim, foi isso. Insuficiência cardíaca congestiva retardada, como Bethem Mulherzinhas. Enviei uma prece silenciosa para São Tancredo fazer um milagre. Por favor, querido São Tancredo, faça com que a autópsia de Bonepenny confirme minha mentirinha.

— Eu matei Horace Bonepenny — repeti, como se dizer aquilo duas vezes o fizesse mais crível.

O inspetor Hewitt inspirou profundamente e soltou pelo nariz.

— Conte-me a respeito — pediu ele.

— Ouvi um barulho no meio da noite, saí para o jardim, alguém saiu das sombras e pulou em cima de mim...

— Espere — disse ele —, que parte das sombras?

— As sombras atrás da estufa. Eu estava me debatendo para escapar, quando houve um gorgolejar repentino na garganta dele, quase como se ele estivesse sofrendo uma insuficiência cardíaca congestiva, devido a um ataque de febre reumática que ele sofreu quando era criança, ou qualquer coisa assim.

— Entendo — continuou o inspetor Hewitt. — E, então, o que você fez?

— Eu voltei para a casa e fui chamar Dogger. O resto, acredito, você já sabe.

Mas espere — eu sabia que Dogger não havia contado a ele sobre nós dois termos ouvido a discussão do pai com Horace Bonepenny; ainda assim, não era provável que Dogger contasse ao inspetor que eu o acordara às quatro da manhã sem mencionar o fato de que eu havia matado o homem. Ou será que era?

Eu precisava de tempo para pensar melhor nisso.

— Lutar com um invasor dificilmente pode ser chamado de assassinato — disse o inspetor.

— Não — confirmei —, mas ainda não contei tudo.

Folheei à velocidade da luz meus cartões de índice mental: venenos desconhecidos para a ciência (lento demais); hipnotismo fatal (idem); os golpes secretos e proibidos do jiu-jitsu (improvável; obscuro demais para explicar). Subitamente, começou a ficar claro para mim que o martírio requeria um verdadeiro gênio inventivo — uma língua loquaz não é suficiente.

— Eu tenho vergonha — acrescentei.

Quando em dúvida, pensei, recorra aos sentimentos. Senti orgulho de mim por ter pensado nisso.

— Hummm — disse o inspetor. — Vamos deixar isso de lado por enquanto. Você contou a Dogger que matou esse vagabundo?

— Não, não creio. Eu estava perturbada demais com aquilo tudo, entende?

— Você contou a ele depois?

— Não, eu achei que os nervos dele não aguentariam.

— Bem, isso tudo é muito interessante — considerou o inspetor Hewitt —, mas os detalhes parecem um pouco escassos.

Eu sabia que estava à beira de um precipício: mais um passo, e não haveria volta.

— Há mais — tentei —, só que...

— Só quê?

— Eu não vou dizer mais nem uma palavra até que você me deixe falar com o pai.

O inspetor Hewitt parecia estar tentando engolir alguma coisa que não queria descer. Ele abriu a boca como se de repente alguma obstrução tivesse se materializado em sua garganta, então fechou-a de novo. Ele engoliu em seco, e então fez uma coisa que eu tive de admirar, algo que anotei mentalmente para acrescentar à minha própria sacola de truques: ele agarrou seu lenço no bolso e transformou sua perplexidade em um espirro.

— Em particular — acrescentei.

O inspetor assoou o nariz ruidosamente e voltou para a janela, onde ficou olhando fixamente para coisa nenhuma, as mãos novamente atrás das costas. Eu estava começando a perceber que isso significava que ele estava meditando profundamente.

— Muito bem — decidiu abruptamente. — Venha comigo.

Sofregamente, pulei da cadeira e fui atrás dele. À porta, ele barrou minha passagem para o corredor com um braço e se voltou, a outra mão flutuando como uma pena até pousar no meu ombro.

— Estou prestes a fazer uma coisa que pode me dar fortes razões para me arrepender — confessou ele. — Estou arriscando minha carreira. Não me desaponte, Flavia... por favor, não me desaponte.

— Flavia! — espantou-se o pai. Pude perceber que ele estava surpreso por me ver ali. E então estragou tudo, acrescentando: — Leve embora esta criança, inspetor. Eu lhe imploro, tire-a daqui.

Ele virou as costas para mim e ficou de frente para a parede.

Embora a porta da sala tivesse sido pintada com tinta creme amarelado, era óbvio que era revestida de aço. Quando o inspetor a destrancara, percebi que a câmara em si era pouco mais que um pequeno escritório com uma cama de campanha e uma pia surpreendentemente limpa. Misericordiosamente, eles não tinham posto o pai em uma das jaulas gradeadas que eu tinha visto de relance pouco antes.

O inspetor Hewitt inclinou secamente a cabeça para mim, como que dizendo: “A decisão é sua”, depois saiu e fechou a porta em silêncio. Não houve nenhum ruído de chave virando na fechadura, ou de ferrolho sendo fechado, embora um clarão do lado de fora e o súbito ribombar de um trovão pudessem bem ter mascarado o som.

O pai deve ter pensado que eu saíra com o inspetor, porque teve um sobressalto nervoso quando se virou e viu que eu ainda estava lá.

— Vá para casa, Flavia — ordenou.

Embora estivesse rigidamente plantado e ereto, sua voz era velha e cansada. Pude ver que ele estava tentando representar o papel de fleumático cavalheiro inglês, destemido diante do perigo, e me dei conta, com uma sensação de dor, que o amava e o odiava por isso ao mesmo tempo.

— Está chovendo — eu disse apontando para a janela. As nuvens tinham se rasgado em pedaços como haviam feito antes na folly, e a chuva caía pesada mais uma vez. As gotas gordas eram claramente audíveis ao ricochetear como tiros no peitoril do lado de fora da janela. Em uma árvore do outro lado da rua, uma gralha solitária se sacudia como um guarda-chuva molhado.

— Não posso ir para casa até a chuva passar. E alguém surrupiou a Gladys.

— Gladys? — ele não entendeu, os olhos como os de uma criatura marítima extinta nadando para a superfície, vinda de profundezas desconhecidas.

— Minha bicicleta — revelei.

Ele assentiu distraído, e percebi que não tinha me ouvido.

— Quem trouxe você aqui? — perguntou o pai. — Ele? — Fez um movimento brusco com o polegar em direção à porta para indicar o inspetor Hewitt.

— Eu vim sozinha.

— Sozinha? De Buckshaw?

— Sim — eu disse.

Aquilo pareceu ser mais do que ele era capaz de entender, e ele voltou para a janela. Não pude deixar de notar que o pai assumiu a mesma pose do inspetor Hewitt, com as mãos atrás das costas.

— Sozinha. De Buckshaw — ele percebeu afinal, como se tivesse acabado de deduzir aquilo.

— Sim.

— E Daphne e Ophelia?

— As duas estão bem — assegurei. — Com uma tremenda saudade do senhor, é claro, mas estão cuidando das coisas até o senhor voltar para casa.

Quero ver minha mãe morta se eu mentir.

Era o que as menininhas às vezes cantarolavam quando pulavam corda no pátio da igreja. Bem, a minha mãe já estava morta, não estava? Portanto, que mal poderia haver? E quem sabe? Por causa disso, eu poderia até ganhar um crédito no paraíso.

— Voltar para casa? — falou o pai afinal, enquanto algo como um suspiro escapava dele. — Isso pode não acontecer por algum tempo. Não... pode não acontecer por muito tempo.

Na parede, ao lado de uma janela gradeada, estava colado o calendário de um verdureiro de Hinley, ostentando o retrato do Rei George e da Rainha Elizabeth, cada qual hermeticamente encerrado em sua própria bolha privada, e vestidos de um modo que me fez pensar que o fotógrafo os pegara por acaso a caminho de um baile a fantasia no castelo de algum principezinho da Bavária.

O pai deu uma olhadela furtiva para o calendário e começou a andar impaciente de um lado para outro na pequena sala, evitando cuidadosamente meu olhar. Ele pareceu ter esquecido que eu estava lá e começara agora a fazer pequenos ruídos cantarolados, pontuados por uma fungada indignada ocasional, como se estivesse se defendendo perante um tribunal invisível.

— Eu acabei de confessar — anunciei.

— Sim, sim — disse o pai, e continuou andando e murmurando consigo mesmo.

— Contei ao inspetor Hewitt que eu matei Horace Bonepenny.

O pai parou bruscamente como se tivesse ido de encontro a uma espada. Ele se virou e me fixou com aquele temido olhar azul que era frequentemente sua arma preferida para lidar com as filhas.

— O que você sabe sobre Horace Bonepenny? — perguntou, em um tom gélido.

— Um bocado, na verdade — respondi.

Então, surpreendentemente, a animosidade o deixou de supetão, simples assim. Num momento suas bochechas estavam infladas como a cara dos ventos em desenhos animados e, no seguinte, estavam tão murchas quanto as de um mercador de cavalos. Ele se sentou na beirada do banco, espalhando os dedos de uma das mãos para se firmar.

— Por acaso ouvi a discussão no estúdio — continuei. — Sinto muito se bisbilhotei. Eu não tinha a intenção, mas escutei vozes no meio da noite e desci. Sei que ele tentou chantageá-lo... Ouvi a briga. É por isso que contei ao inspetor Hewitt que eu o matei.

Dessa vez o pai captou a mensagem.

— Você o matou? — perguntou ele. — O que quer dizer com o matou?

— Eu não queria que eles soubessem que foi você.

— Eu? — exclamou o pai, pulando da cama como um foguete. — Bom Deus! O que faz você pensar que eu matei o homem?

— Está tudo bem — acalmei-o. — Muito provavelmente ele merecia. Nunca vou contar a ninguém. Eu juro.

Com a mão direita, fiz aquele sinal de quem dá a palavra de honra, e o pai olhou para mim como se eu fosse alguma monstruosa criatura molhada que acabava de sair de uma pintura de Hieronymus Bosch.

— Flavia — ele afirmou. — Por favor, entenda isto: por mais que eu tenha gostado do que aconteceu, não matei Horace Bonepenny.

— Você não o matou?

Mal pude acreditar. Eu já tinha chegado à conclusão de que o pai havia cometido um assassinato, e seria muito difícil admitir que estava errada.

Ainda assim, eu me lembrava de que Felinha me dissera uma vez que a confissão fazia bem para a alma — naquela vez, ela tinha forçado meu braço para trás das costas e estava tentando me forçar a contar o que eu tinha feito com seu diário.

— Eu ouvi o que você disse sobre matar o diretor, sr. Twining. Fui até a biblioteca e olhei nos arquivos de jornais. Falei com a srta. Mountjoy, ela é sobrinha do sr. Twining. Ela se lembrou dos nomes Jacko e Horace Bonepenny do inquérito. Sei que ele se hospedou na Treze Patos e que trouxe um jack snipe morto da Noruega, escondido em uma torta.

O pai sacudiu a cabeça triste e lentamente, de um lado para o outro, não por admiração às minhas habilidades de detetive, mas como um urso velho que levou um tiro e se recusa a cair.

— É verdade — ele confirmou. — Mas você realmente acredita que seu pai seria capaz de cometer um assassinato a sangue-frio?

Quando pensei naquilo por um momento — realmente pensei naquilo — vi como tinha sido tola. Por que eu não percebera antes? Assassinato a sangue-frio era exatamente uma das muitas coisas de que o pai seria incapaz.

— Bem... não — arrisquei.

— Flavia, olhe para mim — disse ele, mas, quando ergui os olhos e os fixei nos dele, vi, por um enervante momento, meus olhos me fixando de volta, e tive de desviar o olhar.

— Horace Bonepenny não era um homem especialmente decente, mas ele não merecia morrer. Ninguém merece morrer — falou o pai, a voz sumindo como numa transmissão distante em ondas curtas, e eu percebi que ele não estava mais falando somente comigo.

— Já existe tanta morte no mundo — acrescentou.

Ele se sentou, olhando para as próprias mãos, cada polegar acariciando o outro, os dedos entrelaçados como as engrenagens de um velho relógio.

Depois de algum tempo, perguntou: — E Dogger?

— Ele também estava lá — admiti. — Do lado de fora do estúdio...

O pai soltou um gemido.

— É o que eu temia — sussurrou ele. — É o que eu temia mais que qualquer outra coisa.

E então, enquanto a chuva, em camadas, fustigava a vidraça, o pai começou a falar.


DE INÍCIO, AS PALAVRAS, POUCO HABITUAIS para o pai, vieram lentas e hesitantes — saindo de um modo relutante, aos solavancos, como vagões de carga enferrujados na ferrovia. Mas então, ganhando velocidade, elas logo se amaciaram e passaram a fluir com suavidade e firmeza.

— Meu pai não era um homem fácil de gostar — disse ele. — Ele me mandou embora para um internato quando eu tinha onze anos. Eu o vi novamente raras vezes. É estranho, você sabe: eu nunca soube o que lhe interessava até que alguém em seu funeral, um dos que carregaram o caixão, por acaso comentou que sua paixão era netsuke. Tive de procurar aquilo no dicionário.

— É uma pequena escultura japonesa em marfim — falei. — Está em uma das histórias do Dr. Thorndyke, de Austin Freeman.

O pai me ignorou e prosseguiu.

— Embora Greyminster não ficasse a mais que uns poucos quilômetros de Buckshaw, naquele tempo poderia igualmente ficar na lua. Éramos sem dúvida afortunados por ter como diretor da escola o dr. Kissing, uma alma gentil, que acreditava que nunca nada de mal aconteceria a um menino se lhe fossem administradas doses diárias de latim, rúgbi, críquete e história, e, no geral, éramos bem tratados.

“Como a maioria, de início eu era um menino solitário, atendo-me aos livros e chorando nas sebes sempre que conseguia sair sozinho. Certamente, eu pensava, devo ser a criança mais triste do mundo; devia haver alguma coisa horrível de nascença comigo para fazer com que meu pai tivesse se livrado de mim de maneira tão cruel. Eu acreditava que, se pudesse descobrir o que era, poderia haver uma possibilidade de corrigir as coisas, de compensá-lo de algum modo.

“À noite, no dormitório, eu construía um túnel embaixo das cobertas e, com uma lanterna, examinava meu rosto em um espelho de barbear roubado. Não podia ver nada de especialmente errado, mas afinal eu era apenas uma criança e não estava realmente equipado para julgar essas coisas.

“Mas o tempo passou e me vi sendo varrido para a vida da escola. Eu era bom em história, mas totalmente sem esperança quando se tratava dos Livros de Euclides, o que me colocava em algum lugar nas fileiras intermediárias: nem tão proficiente nem tão estúpido para atrair atenção para mim mesmo.

“A mediocridade, eu descobri, era a grande camuflagem; a grande pintura protetora. Aqueles meninos que não fracassavam, mas também não sobressaíam, eram deixados em paz, livres das exigências do mestre, que poderia querer prepará-los para a glória, e do valentão da escola que poderia querer fazer deles seu bode expiatório. Esse fato simples foi a primeira grande descoberta de minha vida.

“Foi no quarto ano, eu acho, que finalmente comecei a me interessar pelas coisas à minha volta e, como todos os meninos daquela idade, tinha um gosto insaciável pela ocultismo, portanto, quando o sr. Twining, o diretor do internato, propôs a fundação de um círculo de ilusionismo, eu me vi subitamente ardendo por um novo entusiasmo.

“O sr. Twining era mais incentivador do que adepto; não era um artista refinado, devo admitir, mas realizava truques com tamanha exuberância, tanto entusiasmo generoso, que teria sido muito rude de nossa parte conter nosso ruidoso aplauso de meninos de escola.

“Ele nos ensinou, durante as noites, a transformar vinho em água, usando nada mais que um lenço e um pedaço de mata-borrão colorido; como fazer uma moeda marcada desaparecer de um copo coberto antes de ser extraída da orelha de Simpkins. Nós aprendemos a importância do jargão, a linguagem do ilusionista, por assim dizer; e ele nos instruiu em embaralhamentos espetaculares que deixam o ás de copas sempre embaixo do baralho.

“Não é preciso dizer que o sr. Twining era popular; ‘amado’ seria uma palavra melhor, embora poucos de nós, na época, tenhamos visto o suficiente dessa emoção para reconhecer o seu significado.

“Seu maior reconhecimento veio quando o diretor da escola, dr. Kissing, pediu a ele para organizar um espetáculo de ilusionismo para o Dia dos Pais, um projeto alegre, ao qual ele se lançou entusiasticamente.

“Por causa de minha destreza com uma ilusão chamada ‘A Ressurreição de Tchang Fu’, o sr. Twining estava ansioso por me ver atuar no grande final do espetáculo. O truque requeria dois operadores, e por essa razão ele me permitiu escolher qualquer assistente que eu quisesse; foi como vim a conhecer Horace Bonepenny.

“Horace chegara de St. Cuthbert, depois de uma confusão naquela escola envolvendo um dinheiro desaparecido — apenas um par de libras, acredito, embora na época isso parecesse uma fortuna. Senti pena dele, admito. Senti que ele foi maltratado, particularmente quando confidenciou para mim que o pai dele era o mais cruel dos homens e tinha feito coisas indizíveis em nome da disciplina. Espero que isso não seja brutal demais para você, Flavia.”

— Não, é claro que não — eu disse, puxando a cadeira mais para perto. — Por favor, continue.

— Horace já era um menino extraordinariamente alto, com um emaranhado de cabelos vermelhos como fogo. Seus braços eram tão compridos no casaco da escola que os pulsos se projetavam para fora como varas expostas além dos punhos. ‘Bony Magrelo’, os meninos o chamavam, e o provocavam sem dó por causa de sua aparência.

“Para deixar as coisas piores, seus dedos eram impossivelmente compridos, finos e brancos, como os tentáculos de um polvo albino, e ele tinha aquela pele pálida, alva demais, que às vezes vemos nos ruivos. Corriam rumores de que seu toque era venenoso. Ele se aproveitava disso um pouco, é claro, avançando com uma fingida falta de jeito para os meninos que caçoavam dele, os quais ficavam dançando à sua volta, sempre mantendo uma distância segura.

“Uma noite, depois de um jogo de ‘lebre e cães’, ele estava descansando sobre um degrau, arquejando como uma raposa, quando um menino pequeno chamado Potts veio na ponta dos pés e lhe deu uma bofetada dolorosa no rosto. A intenção era de que não passasse de um toque, como no jogo de queimada, mas logo se transformou em outra coisa.

“Quando eles viram que o temido monstro, Bonepenny, estava atordoado, e seu nariz sangrando, os outros meninos começaram a se amontoar e ele logo foi derrubado, sendo esmurrado, chutado e selvagemente espancado. Foi então que eu, por acaso, apareci.

“‘Parem!’, bradei o mais alto que pude, e, para minha surpresa, a confusão parou imediatamente. Os meninos começaram a se desenroscar, um a um, do emaranhado de braços e pernas. Deve ter havido alguma coisa na minha voz que os fez obedecer instantaneamente. Talvez o fato de que eles haviam me visto realizar truques misteriosos me emprestara algum ar de autoridade invisível, não sei, só sei que quando lhes ordenei que voltassem a Greyminster, eles sumiram como uma matilha de lobos no anoitecer.

“‘Você está bem?’, perguntei a Bony, ajudando-o a se levantar.

“‘Ligeiramente amaciado, mas só em um ou dois pontos isolados — como a carne de Carnforth’, disse ele, e nós rimos. Carnforth era o notório açougueiro de Hinley, cuja família vinha fornecendo a Greyminster a carne para os assados de domingo desde as guerras napoleônicas.

“Pude perceber que Bony estava mais machucado do que queria admitir, mas ele se fez de valente. Dei-lhe o ombro para se apoiar e o ajudei a manquitolar de volta a Greyminster.

“Daquele dia em diante, Bony ficou sendo minha sombra. Ele adotou meus entusiasmos e, ao fazer isso, parecia quase se tornar uma pessoa diferente. Houve ocasiões, de fato, em que imaginei que ele estava se transformando em mim; que aqui bem diante de mim estava uma parte minha pela qual eu vinha procurando no espelho da meia-noite.

“O que sei é que nunca estivemos em melhor forma do que quando estávamos juntos; o que um de nós não conseguia fazer, o outro conseguia com facilidade. Bony parecia ter nascido com uma capacidade matemática totalmente formada e logo estava revelando para mim os mistérios da geometria e da trigonometria. Fez disso um jogo, e passávamos muitas horas felizes, calculando sobre o estúdio de quem a torre do relógio da Anson House iria cair quando a derrubássemos com uma alavanca a vapor gigante de nossa própria invenção. Uma outra vez, desenvolvemos por triangulação uma engenhosa série de túneis que, a um dado sinal, desabaria simultaneamente, fazendo com que Greyminster e todos os seus habitantes mergulhassem em um abismo dantesco, onde seriam atacados por vários tipos de vespas, abelhas e vermes, com os quais planejávamos povoar o lugar.”

Vespas, abelhas e vermes? Podia ser este o pai falando? De repente me vi ouvindo o que ele falava com um novo respeito.

— Como iríamos conseguir isso — ele prosseguiu — nós nunca realmente pensamos a fundo, mas a conclusão disso tudo foi que, enquanto eu estava ficando íntimo do velho Euclides e seus livros de proposições, Bony, com um pouquinho de orientação, estava se revelando um ilusionista natural.

“Eram os dedos, é claro. Aqueles longos apêndices brancos pareciam ter vida própria, e não se passou muito tempo antes que ele dominasse completamente as artes da prestidigitação. Vários objetos apareciam e desapareciam na ponta dos seus dedos com tamanha e fluida graça que até eu, que sabia perfeitamente bem como era feita cada ilusão, mal podia acreditar em meus olhos.

“E, à medida que aumentava sua habilidade de prestidigitação, também aumentava sua autoestima. Com um pouco de mágica ao alcance da mão, ele se transformou em um novo Bony, confiante, afável e talvez até insolente. Sua voz também mudou. Onde ontem ele soava como um estridente menino de escola, agora parecia subitamente — pelo menos enquanto estava atuando — possuir uma laringe feita de mogno polido: uma voz profissional hipnótica que jamais deixava de convencer os seus ouvintes.

“‘A Ressurreição de Tchang Fu’ funcionava assim: eu trajava um quimono de seda grande demais, que encontrara em um bazar de caridade da igreja, uma linda peça em vermelho-sangue, coberta de dragões chineses e símbolos místicos. Lambuzava o rosto com tinta amarela e esticava um elástico fino em volta da cabeça para puxar meus olhos nos cantos. Envoltórios de salsicha de Carnforth, envernizados e cortados para formar unhas compridas e encurvadas, acrescentavam um detalhe repulsivo. Tudo o que faltava para completar minha aparência era um pouco de rolha queimada, alguns fiapos de barbante desfiado para a barba e uma assustadora peruca teatral.

“Eu pedia um voluntário do público — um cúmplice, é claro — , que havia ensaiado de antemão. Eu o trazia para o palco e explicava, em uma cômica voz cantada de mandarim, que estava prestes a matá-lo, a mandá-lo para a Terra dos Alegres Ancestrais. Essa comunicação impassível nunca falhava em arrancar um suspiro do público, e, antes que eles pudessem se recuperar, eu puxava uma pistola das dobras da minha túnica, apontava para o coração do meu cúmplice e puxava o gatilho.

“Uma pistola feita para dar a partida em competições pode fazer um barulho assustador quando é disparada num ambiente fechado, e aquela coisa disparava com um tremendo estrondo. Meu assistente levava as mãos ao peito, apertando ao mesmo tempo um pedaço de papel escondido, embebido em ketchup, que escorria de um jeito horrível por entre os dedos. Então ele olhava incrédulo para a sujeira em seu peito, boquiaberto e de olhos arregalados.

“‘Socorro, Jacko!’, ele gritava. ‘O truque deu errado! Fui baleado!’, e caía morto de costas no chão.

“O público, a essa altura, estava sentado com as costas rigidamente retas, chocado; diversos estavam em pé, e uns poucos em lágrimas. Eu erguia a mão para acalmá-los.

“‘Sirêncio!’, eu chiava, fitando-os com um olhar terrível. ‘Ancestlais plecisam sirêncio.’

“Poderia haver algumas risadinhas nervosas, mas em geral havia um silêncio chocado. Eu ia buscar um lençol enrolado nas sombras e o estendia por cima do meu assistente aparentemente morto, deixando visível apenas o rosto virado para cima.

“Agora, aquele lençol era um objeto realmente notável; eu o fizera em grande segredo. Era dividido longitudinalmente em terços por um par de sarrafos delgados de madeira, costurados dentro de duas bainhas estreitas que o atravessavam no sentido do comprimento e eram, é claro, invisíveis quando ele estava enrolado.

“Agachando-me e usando a túnica como disfarce, eu removia os sapatos do meu assistente (isso era feito com facilidade, já que ele discretamente afrouxara os cordões logo antes de eu escolhê-lo no meio do público) e os enfiava, com as pontas para cima, na extremidade dos sarrafos.

“Os sapatos, entenda, tinham sido especialmente preparados com um furo através de cada salto, dentro do qual podia ser enfiado um pequeno prego para perfurar a ponta do sarrafo. O resultado era muito convincente: um cadáver de boca aberta caído no chão, a cabeça se projetando para fora de um lado do lençol e os sapatos virados para cima do outro lado.

“Se tudo acontecesse de acordo com o plano, grandes manchas vermelhas atravessariam o lençol acima do peito do ‘cadáver’, e, caso contrário, eu podia sempre acrescentar um pouco de outro pedaço de papel costurado na minha manga.

“Agora vinha a parte importante. Eu mandava abaixar as luzes (‘Honoláveis ancestlais lequelem esculidão compreta!’) e, na penumbra, disparava um par de flashes de papel de magnésio. O efeito disso era cegar o público por um momento: apenas o suficiente para meu assistente arquear as costas e, enquanto eu ajustava o lençol, colocar os pés firmemente no chão em posição agachada. Os sapatos, é claro, projetando-se da ponta do lençol, faziam parecer que ele ainda estava deitado em posição perfeitamente horizontal.

“Agora eu começava minha feitiçaria oriental, abanando as mãos e convocando-o da terra dos mortos. Enquanto eu tagarelava encantamentos inventados, meu assistente começava, muito devagar, a se levantar da posição agachada até se pôr em pé, sustentando os sarrafos nos ombros, os sapatos aparecendo na ponta do lençol.

“O que o público via, naturalmente, era um corpo envolvido num lençol se levantando diretamente no ar e pairando um metro e meio acima do chão.

“Então eu implorava aos alegres ancestrais que o deixassem retornar à Terra dos Espíritos Vivos. Isso era feito com muitos passes mistificadores das minhas mãos, após o que eu disparava um último flash de papel de magnésio e meu assistente jogava longe o lençol, enquanto dava um pulo no ar e aterrissava sobre os pés.

“O lençol, com seus sapatos pregados e seus sarrafos costurados, era jogado para o lado no escuro, e nós cumprimentávamos o público em meio a aplausos estrondosos. E como ele usava meias pretas, ninguém jamais pareceu reparar que o ‘homem morto’ havia perdido os sapatos.

“Isso era ‘A Ressurreição de Tchang Fu’, e era assim que eu planejei apresentá-la no Dia dos Pais. Bony e eu iríamos nos esgueirar para o banheiro com o equipamento, onde eu lhe daria instruções sobre os detalhes mais finos da ilusão.

“Mas logo se tornou aparente que Bony não era o cúmplice ideal. A despeito de seu entusiasmo, ele era simplesmente alto demais. Sua cabeça e seus pés apareciam muito além do meu lençol preparado, e era tarde demais para fazer um novo. E havia o fato inevitável de que, se por um lado Bony era uma maravilha com as mãos, por outro seu corpo e seus membros ainda eram os de um menino de escola desajeitado. Seus joelhos de cegonha tremiam enquanto ele supostamente devia estar levitando, e em um ensaio ele se estatelou em cima do traseiro, levando com ele a ilusão inteira — lençol, sapatos e tudo — a um desabamento estrondoso.

“Eu não conseguia imaginar o que fazer. Bony ficaria devastado se eu escolhesse outro assistente, e contudo era esperar demais que ele dominasse o papel nos poucos dias que restavam antes da apresentação. Eu estava à beira do desespero.

“Foi Bony quem veio com a solução.

“‘Por que não trocar os papéis?’, sugeriu, depois de um colapso especialmente embaraçoso dos nossos adereços. ‘Dê-me uma oportunidade. Vou vestir o velho manto de feiticeiro e você fará a levitação.’

“Tenho de admitir que aquilo foi brilhante. Com a cara pintada de amarelo e as mãos compridas e magras se projetando para fora das mangas do quimono vermelho (tornadas ainda mais espectrais com sete centímetros de unhas de pele de salsicha), Bony era a figura mais notável que já pisou em um palco.

“E como ele era um mímico natural, não teve problemas em pegar a voz rachada e estridente de um velho mandarim. A sua encenação de ritual era, no mínimo, melhor que a minha, e aqueles dedos longos de graveto se agitando no ar como bichos-pau foram uma visão para não se esquecer tão cedo.

“A apresentação em si foi brilhante. Com a escola inteira e os pais visitantes como espectadores, Bony fez uma exibição que nenhum deles jamais esquecerá. Ele foi, alternadamente, exótico e sinistro. Quando ele me chamou do meio da plateia como seu assistente, até eu estremeci um pouco diante daquela figura ameaçadora que acenava para mim atrás da ribalta.

“E quando ele disparou a pistola e me baleou no peito, houve um pandemônio! Eu havia tomado a precaução de aquecer e diluir meu reservatório de sangue de ketchup, e a mancha resultante foi horrivelmente realista.

“Um dos pais — o pai de Giddings Minor — teve de ser fisicamente contido pelo sr. Twining, que havia previsto que algum espectador ingênuo poderia querer correr para o palco.

“‘Calma, meu caro senhor’, sussurrou Twining ao ouvido do sr. Giddings, ‘É simplesmente uma ilusão. Os meninos já fizeram isso muitas vezes antes.’

“O sr. Giddings foi escoltado relutantemente de volta à sua cadeira, o rosto ainda afogueado. Contudo, apesar disso, ele ainda foi homem o bastante para ir aos bastidores depois do espetáculo e dar um forte aperto de mão em nós dois.

“Depois daquele banho de sangue e morte, minha levitação de ressuscitado foi quase uma decepção, se posso usar a expressão, muito embora tivesse trazido salvas após salvas de aplausos sonoros de um público de bom coração que se sentiu aliviado ao ver o infeliz voluntário de volta à vida. No final tivemos de voltar ao palco sete vezes, embora eu soubesse perfeitamente que pelo menos seis delas foram para meu parceiro.

“Bony absorveu a adulação como uma esponja ressecada.Uma hora depois do espetáculo ele ainda estava apertando mãos e levando palmadinhas nas costas de um maremoto de mães e pais maravilhados que pareciam só querer tocá-lo, embora quando eu joguei meus braços em volta dos seus ombros, ele tenha me dado um olhar um tanto estranho; um olhar que sugeria, por um instante fugaz, que ele nunca me vira antes.

“Nos dias que se seguiram, vi que ele mudou totalmente. Bony se transformara em um ilusionista confiante, e eu agora nada mais era senão seu assistente. Ele começou a falar comigo de um jeito novo e adotou uma postura um tanto arrogante, como se sua timidez de outrora nunca tivesse existido.

“Suponho que eu poderia dizer que ele me abandonou — ou era o que parecia. Frequentemente eu o via com um menino mais velho, Bob Stanley, que era alguém de quem eu jamais gostara muito. Stanley tinha uma daquelas caras angulares, de queixo quadrado, que sai bem nas fotografias, mas parece rude na vida real. Como ele fizera comigo, Bony pareceu assumir alguns dos traços de Stanley, mais ou menos do mesmo modo que um mata-borrão absorve a escrita de uma carta. Sei que foi mais ou menos nessa época que Bony começou a fumar e, suspeito, também a beber um pouco.

“Um dia, eu me dei conta um pouco chocado de que não gostava mais dele. Alguma coisa havia mudado dentro de Bony ou, quem sabe, se arrastado para fora. Havia momentos em que eu o flagrava olhando fixamente para mim na classe, quando seus olhos pareciam de início ser os olhos de um mandarim idoso, e depois, quando reparavam em mim, tornavam-se frios e reptilianos. Comecei a me sentir como se, de algum modo misterioso, algo me tivesse sido roubado.

“Mas ainda havia coisas piores por vir.”

O pai silenciou, e eu esperei que ele continuasse com a história, mas em vez disso ele ficou sentado olhando sem ver para a chuva que caía. Pareceu-me melhor ficar quieta e deixá-lo com seus pensamentos, quaisquer que fossem eles.

Eu sabia que, como ocorrera com Horace Bonepenny, alguma coisa mudara entre nós.

Aqui estávamos nós, o pai e eu, fechados em uma salinha despojada, e pela primeira vez na minha vida tendo alguma coisa que poderia passar por uma conversa. Estávamos falando um com o outro quase como adultos; quase como um ser humano fala com outro; quase como pai e filha. E, muito embora eu não pudesse pensar em nada para dizer, flagrei-me desejando que aquilo continuasse até a última estrela se apagar.

Desejei poder abraçá-lo, mas não pude. Já há algum tempo eu tinha consciência de que havia algo no caráter dos De Luce que desencorajava qualquer demonstração externa de afeto um pelo outro; qualquer declaração explícita de amor. Estava no nosso sangue.

E assim ficamos sentados, o pai e eu, rigidamente, como duas velhas em um chá da paróquia. Não era um jeito perfeito de viver a vida, mas teria de servir.


O CLARÃO DE UM RELÂMPAGO ALVEJOU todos os vestígios de cor na sala, e com ele veio o estrondo ensurdecedor do trovão. Ambos nos encolhemos.

— A tempestade está diretamente acima de nós — disse o pai.

Assentindo para assegurar-lhe que estávamos nisso juntos, olhei em volta do que me cercava. O cubículo fortemente iluminado — a lâmpada nua acima, a porta de aço e o catre —, a chuva jorrando do lado de fora, parecia estranhamente a sala de controle do submarino em Mergulhamos ao amanhecer. Imaginei que o trovão retumbante da tempestade era o som de cargas profundas explodindo logo acima das nossas cabeças, e subitamente não tive mais tanto medo pelo pai. Nós dois, ao menos, éramos aliados. Eu fiz de conta que, enquanto permanecêssemos quietos e em silêncio, nada no mundo poderia nos fazer mal.

O pai prosseguiu como se não tivesse havido uma interrupção.

— Nós nos tornamos completos estranhos, Bony e eu — ele afirmou. — Embora continuássemos sendo membros do Círculo Mágico do sr. Twining, cada um de nós perseguia seus próprios interesses. Eu desenvolvi uma paixão pelos grandes truques de palco: serrar uma dama ao meio, fazer desaparecer uma gaiola de canários canoros, esse tipo de coisa. É claro que a maior parte desses efeitos estava fora do alcance do meu orçamento de menino de escola, mas, com o passar do tempo, pareceu suficiente simplesmente ler sobre eles e aprender como cada um era executado.

“Bony, contudo, progrediu para truques que requeriam um grau ainda maior de destreza manual: efeitos simples que podiam ser feitos debaixo do nariz do espectador com um mínimo de parafernália. Ele podia fazer um despertador niquelado desaparecer de uma das mãos e aparecer na outra diante de seus olhos e nunca me mostrava como isso era feito.

“Foi por essa época que o sr. Twining teve a ideia de organizar uma Sociedade Filatélica, outro dos seus grandes entusiasmos. Ele achou que, ao aprender a colecionar, catalogar e montar selos postais do mundo inteiro, iríamos aprender muito sobre história, geografia e organização, para não falar do fato de que as discussões regulares iriam promover confiança entre os membros mais tímidos do clube. E uma vez que ele mesmo era um colecionador devoto, não via nenhuma razão para que todos os seus meninos fossem menos entusiásticos.

“Sua própria coleção era a oitava maravilha do mundo, ou pelo menos era o que me parecia. Ele se especializara em selos britânicos, com atenção especial às variações de cor nas tintas de impressão. Tinha a inquietante habilidade de ser capaz de deduzir o dia — às vezes até a hora — em que um determinado espécime foi impresso. Comparando as sempre cambiantes rachaduras microscópicas produzidas pelo uso e pelo desgaste das placas gravadas de impressão, ele era capaz de deduzir uma quantidade surpreendente de detalhes.

“As folhas dos seus álbuns eram obras-primas. As cores! E o modo como elas eram distribuídas pela página, cada qual uma pincelada da paleta de um Turner.

“Começavam, é claro, com as emissões em preto de 1840. Mas logo o preto era aquecido até o marrom, o marrom para o vermelho, o vermelho para o laranja, o laranja para o carmim vivo; ou para o índigo, e o vermelho veneziano — um brilhante desabrochar de cores, como que para pintar a explosão em flores do próprio Império. Isso é que é glória!”

Eu nunca tinha visto o pai tão vivo. Subitamente, ele era um menino de escola de novo, o rosto transformado e lustroso como uma maçã polida.

Mas aquelas palavras sobre glória: eu já não as tinha ouvido antes? Não foram as palavras pronunciadas para Alice por Humpty Dumpty?

Fiquei sentada em silêncio, tentando decifrar as conexões que a cabeça dele devia estar fazendo.

— Apesar de tudo isso — ele continuou —, o sr. Twining não estava de posse da coleção filatélica mais valiosa de Greyminster. Aquela honra pertencia ao dr. Kissing, cuja coleção, embora não fosse extensa, era seleta — talvez até de valor inestimável.

“O dr. Kissing não era, como se poderia esperar do diretor de uma das nossas grandes escolas públicas, um homem nascido para a riqueza ou o privilégio. Ficou órfão ao nascer e foi criado pelo avô, um operário numa fundição de sinos na região leste de Londres que, naquele tempo, era mais conhecida por suas condições humilhantes de vida do que por sua caridade, e pelos crimes mais do que pelas oportunidades educacionais.

“Quando tinha quarenta e oito anos, o avô perdeu o braço direito em um acidente pavoroso envolvendo metal derretido. Incapaz de continuar trabalhando em seu ofício, não restava nada a fazer senão viver nas ruas como mendigo; uma situação aflitiva na qual permaneceu mergulhado por cerca de três anos.

“Cinco anos antes, em 1840, a firma londrina dos senhores Perkins, Bacon e Petch fora nomeada pelos Lordes do Tesouro como a tipografia exclusiva para os selos postais britânicos.

“O negócio prosperou. Só nos doze primeiros anos da nomeação, cerca de dois bilhões de selos foram impressos, a maioria dos quais foi por fim parar nas latas de lixo do mundo. Até Charles Dickens se referiu à prodigiosa produção inglesa de efígies da Rainha.

“Felizmente foi na gráfica da Rua Fleet dessa mesma firma que o avô do sr. Kissing finalmente conseguiu se empregar — como varredor. Ele ensinou a si mesmo a empurrar uma vassoura com uma mão só melhor do que a maioria dos homens fazia com as duas, e como ele acreditava firmemente em respeito, pontualidade e confiabilidade, logo se viu como um dos empregados mais valiosos da firma. De fato, o próprio dr. Kissing uma vez me contou que o sócio sênior, o velho Joshua Butters Bacon em pessoa, sempre chamava o avô dele de ‘Sineiro’, por respeito ao seu antigo ofício.

“Quando o dr. Kissing ainda era criança, seu avô muitas vezes trazia para casa alguns selos que haviam sido rejeitados e descartados por causa de irregularidades na impressão. Aqueles ‘pedacinhos bonitos de papel’, como ele os chamava, eram frequentemente seus únicos brinquedos. Ele passava horas arrumando e rearrumando os fragmentos coloridos por tom, por variações sutis demais ao olho humano. Seu melhor presente, ele disse, foi uma lupa, que o avô conseguiu pechinchando com um vendedor de rua depois de empenhar a aliança de casamento de sua própria mãe por um xelim.

“A cada dia, no percurso de ida e volta da escola, o menino visitava o maior número possível de lojas e escritórios, oferecendo-se para varrer os pisos em troca dos envelopes selados nos seus cestos de papéis.

“Com o tempo, aqueles pedacinhos bonitos de papel se tornaram o núcleo de uma coleção que viria a ser a inveja da realeza, e mesmo depois que já havia ascendido à posição de diretor de Greyminster, ele ainda possuía a pequena lupa que o avô lhe dera.

“‘Os prazeres simples são os melhores’, ele costumava nos dizer.

“O jovem Kissing aproveitou a tenacidade com que a vida o favorecera quando menino e seguiu em frente de bolsa de estudos em bolsa de estudos, até que chegou o dia em que o velho Sineiro esteve presente em lágrimas para ver o seu neto se graduar com distinção em duas especialidades em Oxford.

“Agora há uma crença entre os que deveriam saber das coisas, de que os selos postais mais raros são aquelas aberrações e mutilações que são inevitavelmente subprodutos do processo de impressão, mas isso não é verdade. Não importam as somas que tais monstruosidades possam alcançar se vazarem para o mercado, para o verdadeiro colecionador elas não são mais que restos.

“Não, as verdadeiras raridades são aqueles selos que foram oficialmente postos em circulação, legitimamente ou de outro modo, mas em quantidade muito limitada. Às vezes, alguns milhares de selos podem ser liberados antes que um problema seja notado; às vezes, algumas centenas, como é o caso quando uma única folha consegue escapar do Tesouro.

“Mas, em toda a história do Correio Britânico, houve uma ocasião — e somente uma ocasião — em que uma única folha de selos era dramaticamente diferente de seus milhões de semelhantes. Foi assim que isso aconteceu.

“Em junho de 1840, um garçom louco chamado Edward Oxford disparou dois tiros quase à queima-roupa na Rainha Vitória e no Príncipe Albert quando eles viajavam em uma carruagem aberta. Misericordiosamente, os tiros erraram o alvo, e a Rainha, que estava grávida de quatro meses de seu primeiro filho, não foi ferida.

“Muitos pensaram que a tentativa de assassinato fora um plano cartista, dos trabalhadores, enquanto outros acreditavam que tivesse sido uma conspiração dos orangemen, uma organização protestante, que queriam estabelecer o Duque de Cumberland no trono da Inglaterra. Havia mais verdade nessa suposição do que acreditava o governo, ou talvez do que eles estavam preparados para admitir. Embora Oxford pagasse pelo seu crime, passando os vinte e sete anos seguintes de sua vida confinado em Bedlam — onde ele parecia ser mais são do que a maioria dos internos e muitos dos médicos —, seus manipuladores permaneceram à solta, invisíveis na metrópole. Eles tinham mais com que se preocupar.

“No outono de 1840, um aprendiz de tipógrafo chamado Jacob Tingle se empregou na firma Perkins, Bacon e Petch. Como ele era, acima de tudo, uma criatura ambiciosa, o jovem Jacob logo progrediu no ofício a passos largos.

“O que os seus empregadores ainda não sabiam era que Jacob Tingle era o peão de um jogo mortalmente sério, um jogo do qual somente seus mestres sombrios estavam a par.”

Se houve alguma coisa que me surpreendeu nessa narrativa, foi o modo como o pai a trouxe à vida. Eu quase podia esticar a mão e tocar os cavalheiros com seus colarinhos altos engomados e suas cartolas; as damas em suas saias com anquinhas e chapéus amarrados embaixo do queixo. E, assim como as personagens da sua narrativa ganharam vida, o mesmo sucedeu com o pai.

— A missão de Jacob Tingle era totalmente secreta. Ele deveria, usando os meios que tivesse à disposição, imprimir uma folha, e uma folha somente, de selos Penny Black, usando uma tinta laranja viva que lhe fora fornecida para a missão. O frasco havia sido entregue a ele, juntamente com um adiantamento, em uma cervejaria vizinha ao pátio da igreja deSt. Paul por um homem com um chapéu de aba larga sentado nas sombras da taberna e que falava numa inflexível voz sussurrada.

“Depois de imprimir secretamente aquela folha bastarda, ele deveria escondê-la em uma resma de Penny Blacks comuns que estavam aguardando a expedição para as agências de correio da Inglaterra. Isso feito, o trabalho de Jacob estaria terminado.O destino decidiria o resto.

“Mais cedo ou mais tarde, em algum lugar da Inglaterra, um folha de selos cor de laranja iria emergir, e sua mensagem seria suficientemente simples para os que têm olhos para ver. ‘Estamos no seu meio’, eles estariam declarando. ‘Nos movimentamos entre vocês livremente, sem ser vistos.’

“O Correio inadvertido não teria oportunidade de recolher os selos provocadores. E, uma vez que eles viessem à luz, as notícias da sua existência se espalhariam como um incêndio incontrolável. Nem mesmo o governo de Sua Majestade poderia ocultá-los. O resultado seria o terror no mais alto nível.

“Veja bem, embora sua mensagem tenha chegado tarde demais, um agente secreto havia se infiltrado nas fileiras dos conspiradores e informado que a descoberta dos selos alaranjados deveria servir como sinal para conspiradores em todas as partes começarem uma nova onda de ataques pessoais à Família Real.

“Parecia ser o esquema perfeito. Se falhasse, os perpetradores teriam simplesmente de esperar algum tempo e tentar de novo. Mas não houve necessidade de tentar de novo; a coisa funcionou como um relógio.

“No dia seguinte ao encontro com o estranho no pátio da igreja de St. Paul, houve um espetacular, e suspeito, incêndio em um beco diretamente atrás de Perkins, Bacon e Petch. Quando os tipógrafos e o pessoal administrativo correram para fora para ver melhor o fogo, Jacob friamente tirou o frasco de tinta laranja do bolso, entintou a placa com um cilindro de reserva que escondera embaixo de uma fileira de garrafas de produtos químicos em uma prateleira, aplicou uma folha umedecida de papel com marca-d’água e imprimiu a folha. Foi fácil demais.

“Antes de os outros trabalhadores voltarem a seus postos, Jacob já havia enfiado a folha cor de laranja no meio das suas irmãs pretas, limpado a placa, escondido os trapos sujos e estava fazendo os ajustes para a próxima leva de selos comuns, quando o velho Joshua Butters Bacon em pessoa passou por lá, e congratulou o jovem por sua calma diante do perigo. Ele iria longe em seu ofício, o velho lhe disse.

“E então o destino, como faz frequentemente, jogou uma chave inglesa no mecanismo. O que os conspiradores não puderam prever foi que o homem com o chapéu de aba larga iria, naquela mesma noite, ser atingido no meio da chuva na Rua Fleet por um cavalo de carroça desembestado, e que, com seu último alento, iria reverter a fé em que havia sido criado, e confessar o plano — Jacob Tingle e tudo — a um policial vestindo capa de chuva, que ele confundiu com um padre católico de batina.

“Mas àquela altura Jacob já havia feito o trabalho sujo, e a folha de selos alaranjados já estava voando, por correio noturno, para algum canto desconhecido da Inglaterra. Espero que você não esteja achando tudo isso maçante demais, Harriet.”

Harriet? O pai me chamara de “Harriet”?

Não é incomum que pais com várias filhas desfiem seus nomes em ordem de nascimento quando querem chamar a mais nova, e eu há muito estava acostumada com ser chamada de “Ophelia, Daphne, Flavia, raios”. Mas Harriet? Nunca! Teria sido um ato falho, ou o pai realmente acreditava que estava contando sua história para Harriet?

Eu queria sacudir o resto da história para fora dele; queria abraçá-lo; queria morrer.

Percebi que o som da minha voz poderia quebrar o encanto e virei a cabeça lentamente para um lado e para o outro, como se ela estivesse correndo perigo de cair.

Do lado de fora, o vento açoitava as trepadeiras que orlavam a janela, enquanto a chuva torrencial desabava.

— Levantou-se um clamor público — prosseguiu o pai afinal, e eu parei de prender a respiração.

“Foram mandados telegramas aos administradores de todos os postos de Correio do reino. Qualquer que fosse o canto da Inglaterra onde os selos alaranjados pudessem chegar, eles deveriam ser imediatamente trancados a sete chaves, e o Tesouro deveria ser notificado, com toda urgência, do lugar onde se encontravam.

“Como remessas maiores de Penny Blacks tinham sido enviadas às cidades, pensava-se que eles iriam muito provavelmente aparecer em Londres ou Manchester; talvez Sheffield ou Bristol. Pelo que se constatou depois, de fato, não foi nenhuma dessas.

“Escondida em uma das mais recônditas regiões da Cornualha está a aldeia de St. Mary-in-the-Marsh. É um lugar onde nunca aconteceu nada, nem se espera que algo aconteça.

“O chefe do Correio local era um certo Melville Brown.Um cavalheiro idoso que já passara alguns anos da idade usual de aposentadoria e estava tentando, com pouca sorte, economizar uma pequena parte do seu magro salário para ‘ir levando até a hora de ir para o pátio da igreja’, como ele dizia aqualquer um que quisesse ouvir.

“Quis o destino — já que St. Mary-in-the-Marsh ficava fora de mão — que o chefe Brown não recebesse a ordem oficial telegrafada do Tesouro, e, portanto, foi uma completa surpresa quando, alguns dias depois, após desempacotar uma pequena remessa de Penny Blacks, e contar os selos para ver se a quantidade estava certa, encontrar os selos desaparecidos literalmente ao alcance de seus dedos.

“É claro que ele viu imediatamente os selos alaranjados. Alguém havia cometido um engano terrível! Não viera, como normalmente deveria ter vindo, um folheto com as ‘Instruções Oficiais’ aos administradores do Correio anunciando uma nova cor para o selo Penny. Não, isso era algo de grande importância, mesmo que ele não soubesse do que se tratava.

“Por um momento — mas apenas por um momento, veja bem — ele pensou que aquela folha de selos estranhamente coloridos poderia valer mais que seu valor nominal. Menos de meio ano depois de sua introdução, algumas pessoas, mais provavelmente gente de Londres, acreditava ele, que não tinham nada melhor a fazer com seu tempo, já começaram a colecionar os selos autoadesivos e a colocá-los em pequenos álbuns. Um selo impresso fora de registro, ou com números de prova invertidos, poderia alcançar até uma libra ou duas, e uma folha inteira deles, bem...

“Mas Melville Brown era um daqueles seres humanos que parecem ser raros tal como arcanjos. Ele era um homem honesto. Portanto, enviou imediatamente um telegrama para o Tesouro, e em menos de uma hora um mensageiro ministerial foi despachado de Paddington para recuperar os selos e trazê-los de volta para Londres.

“O governo tencionava que a folha espúria fosse destruída imediatamente, com toda a solenidade oficial de uma Missa Pontifícia de Réquiem. Joshua Butters Bacon sugeriu, em vez disso, que os selos fossem guardados no arquivo da tipografia, ou talvez no Museu Britânico, onde pudessem ser estudados por gerações futuras.

“A Rainha Vitória, no entanto, que era bem voluntariosa, tinha suas próprias ideias: ela pediu que lhe dessem um único selo como recordação do dia em que fora poupada da bala de um assassino; o resto deveria ser destruído pelo mais alto diretor da firma que os imprimira.

“E quem poderia negar um pedido da Rainha? Àquela altura, com as tropas britânicas a ponto de invadir Beirute, o primeiro-ministro, Visconde Melbourne (cujo nome já estivera certa vez ligado romanticamente ao de Sua Majestade), tinha outras coisas em mente. E as coisas ficaram por isso mesmo.

“E foi assim que a única folha de Penny alaranjado do mundo foi queimada em um cinzeiro de vidro sobre a mesa do diretor administrativo da Perkins, Bacon e Petch. Mas, antes de acender o fósforo, Joshua Butters Bacon, com precisão cirúrgica, cortara fora dois espécimes — veja bem, isso foi alguns anos antes de as perfurações serem introduzidas: o selo marcado com ‘AA’ de um lado, para a Rainha Vitória e, em segredo total, um outro marcado com ‘TL’ no canto oposto, para ele mesmo.

“Aqueles eram os selos que um dia viriam a ser conhecidos pelos colecionadores como ‘Os Vingadores de Ulster’, embora, durante muitos anos antes de receberem esse nome, sua própria existência tenha sido um segredo de Estado.

“Anos depois, quando a escrivaninha de Bacon foi mexida depois de sua morte, um envelope que de algum modo ficara alojado atrás dela caiu no chão. Como você já deve ter adivinhado, o varredor que o encontrou foi o avô do dr. Kissing, o Sineiro. Com o velho Bacon morto, ele pensou que não haveria mal em levar para casa, como um brinquedo para o neto de três anos, aquele único selo postal cor de laranja vibrante que estava dentro do envelope.”

Senti um rubor subindo para minhas bochechas e rezei desesperadamente para que o pai estivesse distraído demais para notar. Como, sem tornar a situação ainda pior do que era, eu poderia contar a ele que ambos os Vingadores de Ulster, o marcado com “AA” e o outro com “TL”, estavam, naquele exato momento, displicentemente enfiados no fundo do meu bolso?


PARTE DE MIM ESTAVA SE CONTORCENDO para tirar do bolso os malditos selos e colocá-los na mão dele, mas o inspetor Hewitt me pusera sob palavra de honra. Eu não poderia pôr nas mãos do pai alguma coisa que podia ter sido roubada; alguma coisa que poderia incriminá-lo ainda mais.

Felizmente o pai estava desatento. Nem mesmo um outro clarão súbito de relâmpago seguido por um estalo violento e um longo retumbar de trovão o puxaram de volta para o presente.

— O Vingador de Ulster marcado com TL, é claro — prosseguiu ele —, tornou-se a base da coleção do dr. Kissing. Era um fato bem conhecido que existiam somente dois desses selos. O outro — o espécime com a marca AA — passou após a morte da Rainha Vitória para seu filho, Eduardo VII, e, após a morte dele, para seu filho, George V, em cuja coleção permaneceu até recentemente — foi roubado em plena luz do dia de uma exposição de selos. E não foi recuperado.

“Ahá!”, pensei.

— E quanto ao TL? — eu disse em voz alta.

— O TL, como vimos, foi guardado em segurança no cofre do estúdio do diretor em Greyminster. O dr. Kissing o tirava de lá de tempos em tempos, “em parte para admirar com volúpia”, ele nos contou uma vez, “e em parte para me lembrar das minhas origens humildes, caso eu, alguma vez, demonstrasse sinais de querer parecer mais do que sou”.

“O Vingador de Ulster, no entanto, raras vezes era mostrado a outras pessoas; talvez somente para uns poucos filatelistas mais sérios. Já foi dito que o próprio Rei certa vez se ofereceu para comprar o selo, uma oferta que foi polida, porém firmemente recusada. Quando aquilo falhou, o Rei implorou, por intermédio de seu secretário particular, uma permissão especial para ver ‘esse fenômeno de marmelada’, como o chamou: um pedido que foi celeremente concedido e que terminou com uma visita secreta de sua falecida Alteza Real a Greyminster após o anoitecer. Ocorre perguntar, é claro, se ele trouxe consigo o AA para que os dois selos notáveis pudessem novamente, nem que por umas poucas horas, estar reunidos. Esse talvez continuará sendo, para sempre, um dos grandes mistérios da filatelia.”

Toquei de leve o bolso, e as pontas dos meus dedos formigaram com o leve roçar do papel.

— Nosso velho diretor do internato, o sr. Twining, recordava-se claramente da ocasião e se lembrou com pesar de como as luzes do estúdio do diretor ficaram acesas por muito tempo naquela noite de inverno. O que me traz de volta, que lástima!, a Horace Bonepenny.

Pude perceber pela mudança de tom em sua voz que o pai mais uma vez se recolhera a seu passado pessoal. Um arrepio percorreu minha espinha. Eu estava prestes a conhecer a verdade.

— Bony havia se tornado, nessa época, mais que um ilusionista consumado. Ele agora era um jovem prepotente, impositivo, com uma postura insolente, que geralmente conseguia suas vontades com o simples expediente de empurrar mais forte que o outro.

“Além da mesada que recebia dos advogados do pai, estava ganhando uma boa quantia extra se apresentando em Greyminster e vizinhanças, primeiro em festas infantis e, depois, à medida que aumentava sua autoconfiança, em concertos nos quais era permitido fumar e em jantares políticos. A essa altura, ele havia contratado Bob Stanley como seu único parceiro, e sabia-se de histórias sobre algumas de suas apresentações mais extravagantes.

“Mas, fora da sala de aula, eu raramente o via naqueles dias. Tendo superado as habilidades do Círculo Mágico, ele o abandonou, e ouviram-no fazer comentários pejorativos sobre aqueles ‘amadores simplórios’ que continuavam sendo filiados.

“Com seu público diminuindo, o sr. Twining finalmente anunciou que estava desistindo dos ‘salões da ilusão’, como ele chamava o Círculo Mágico, para se concentrar na Sociedade Filatélica.

“Lembro-me da noite — era início de outono, a primeira reunião do ano — em que Bony subitamente apareceu, cheio de dentes e risos, e falsa cordialidade. Eu não o via desde o fim do último período letivo, e agora ele, de certo modo, parecia um alienígena e grande demais para a sala.

“‘Ah, Bonepenny’, cumprimentou o sr. Twining, ‘que prazer inesperado. O que o traz de volta a estes humildes aposentos?’.

“‘Baboseiras!’ bradou Bony, e a maior parte de nós deu risada.

“E então, de repente, ele deixou de lado a pose. Num instante, era todo menino de escola outra vez, respeitoso e cheio de humildade.

“‘Quero dizer, senhor’, disfarçou ele, ‘que estive pensando durante as férias inteiras que grande prazer seria se fosse possível convencer o diretor a mostrar aquele seu selo esquisito’.

“O semblante do sr. Twining se anuviou. ‘Aquele selo esquisito, como você diz, Bonepenny, é uma das joias da coroa da filatelia britânica, e eu certamente jamais sugeriria que ele fosse exibido indiscriminadamente a um patife insolente como você.’

“‘Mas, senhor! Pense no futuro! Quando nós rapazes estivermos crescidos... tivermos nossas próprias famílias...’

“Diante disso, começamos a sorrir uns para os outros e a traçar formas no tapete com a ponta dos pés.

“‘Seria como aquela cena em Henrique V, senhor’, prosseguiu Bony.

“‘Aquelas famílias em seus leitos na Inglaterra se considerarão amaldiçoadas por não estarem em Greyminster para dar uma olhada furtiva no grande Vingador de Ulster! Oh, por favor, senhor! Por favor!’

“‘Eu vou lhe dar uma nota alfa-plus pelo atrevimento, jovem Bonepenny, e um zero pela imitação grotesca de Shakespeare. Entretanto...’

“Pudemos perceber que o sr. Twining estava se abrandando. Um canto do seu bigode se ergueu, só um pouquinho.

“‘Oh, por favor, senhor’, todos nós interviemos.

“‘Bem...’, disse o sr. Twining.

“E então ficou combinado. O sr. Twining falou com o dr.Kissing, e aquele respeitável senhor, lisonjeado porque seus meninos se interessavam por um objeto tão misterioso, consentiu prontamente. A exibição ficou marcada para o domingo seguinte à noite, depois da capela, e seria conduzida na residência particular do diretor. Os convites seriam exclusivamente para os membros da Sociedade Filatélica, e a sra. Kissing iria coroar a noite com chocolate e biscoitos.

“A sala estava cheia de fumaça. Bob Stanley, que viera com Bony, fumava sem cerimônia e ninguém parecia se importar. Embora os meninos da sexta série tivessem privilégios, aquela foi a primeira vez em que vi um deles acender um cigarro na frente do diretor. Eu fui o último a chegar, e o sr. Twining já havia enchido o cinzeiro de pontas de cigarro Wills’ Gold Flake que, fora da sala de aula, ele fumava incessantemente.

“O dr. Kissing, como todos os diretores verdadeiramente grandes, não era um apresentador medíocre. Ele tagarelou sobre isto e aquilo: o tempo, os pontos no jogo de críquete, o Fundo dos Ex-Alunos, as péssimas condições das telhas da Anson House; mantendo-nos em suspense, você sabe.

“Somente depois que deixou todos nós saltitando como grilos, ele disse, ‘Meu Deus, tinha esquecido — vocês vieram aqui para dar uma olhada no meu famoso pedacinho de papel’.

“Àquela altura já estávamos fervendo de excitação como uma sala cheia de chaleiras. O dr. Kissing foi até o cofre na parede e torceu as pontas dos dedos em uma dança elaborada para aplicar o segredo do cofre.

“Com um par de cliques, a coisa se abriu. Ele enfiou a mão lá dentro e tirou uma lata de cigarros — uma lata comum de Gold Flake! Aquilo provocou alguns risos, eu posso dizer. Não pude deixar de me perguntar se ele não teria tido a audácia de tirar aquele mesmo recipiente velho na frente do Rei.

“Houve uma pequena algazarra, e depois o silêncio recaiu sobre a sala quando ele abriu a tampa. Lá dentro, aninhado sobre um berço de mata-borrão absorvente, havia um minúsculo envelope: pequeno demais, insignificante demais, se poderia dizer, para conter um tesouro de tamanha magnitude.

“Com um floreio, o dr. Kissing tirou uma pinça para selos do bolso do colete e, removendo o selo com o cuidado de um engenhoso militar extraindo o detonador de uma bomba que falhou em explodir, ele o depositou sobre o papel.

“Nos amontoamos em volta, empurrando e nos acotovelando para ver melhor.

“‘Cuidado, meninos’, recomendou o dr. Kissing. ‘Lembrem-se dos bons modos; sejam sempre cavalheiros.’

“E lá estava ele, o célebre selo, parecendo-se exatamente como sempre soubemos que iria se parecer, e, no entanto, tão mais... tão mais fascinante. Mal podíamos acreditar que estávamos na mesma sala com o Vingador de Ulster.

“Bony estava logo atrás de mim, inclinado sobre meu ombro. Eu podia sentir seu bafo quente na minha face, e pensei ter sentido um ligeiro odor de torta de porco e vinho tinto. ‘Será que ele andou bebendo?’, perguntei-me.

“E então aconteceu uma coisa da qual jamais vou me esquecer, até o dia da minha morte — e talvez nem então. Bony arremessou-se para a frente, arrebatou o selo e ergueu-o no alto entre o polegar e o indicador, como um padre erguendo uma hóstia.

“‘Veja isto, senhor!’, ele bradou. ‘É um truque!’

“Ficamos todos entorpecidos demais para nos mexer. Antes que alguém pudesse piscar um olho, Bony puxou um fósforo do bolso, riscou-o contra uma unha e o encostou no canto do Vingador de Ulster.

“O selo começou a ficar preto, depois a se enrolar; uma pequena chama passou por sua superfície e, um momento depois, não restava mais nada a não ser uma mancha de cinza preta na palma de Bony. O ruivo ergueu as duas mãos e, numa voz terrível, entoou:

 


‘Cinzas às cinzas, pó ao pó


Se o Rei não pode ter, terá o Diabo só!’

 

 

“Foi aterrador. Houve um silêncio escandalizado. O dr. Kissing ficou lá plantado de boca aberta, e o sr. Twining, que tinha nos conduzido até lá, parecia ter levado um tiro no coração.

“‘É um truque, senhor’, bradou Bony, com aquele seu sorriso de capela mortuária. ‘Agora me ajudem a trazê-lo de volta, todos vocês. Se nos dermos as mãos e rezarmos juntos...’

“Ele agarrou minha mão com a sua direita, e com a esquerda segurou a de Bob Stanley.

“‘Formem um círculo’, ordenou ele. ‘Deem-se as mãos e formem um círculo de orações!’

“‘Pare com isso!’, comandou o dr. Kissing. ‘Pare imediatamente com essa insolência. Devolva o selo para a caixa, Bonepenny.’

“‘Mas, senhor’, disse Bony — e eu juro que vi o seu dente brilhar à luz das chamas da lareira — ‘se nós não nos unirmos, a mágica não pode funcionar. A magia é assim, entenda’.

“‘Ponha... o... selo... de... volta... na... caixa’, ordenou o dr. Kissing, lenta e deliberadamente, e seu rosto parecia uma daquelas coisas horripilantes que se encontram numa trincheira depois de uma batalha.

“‘Tudo bem então, terei de fazer isso sozinho’, zombou Bony. ‘Mas é apenas justo avisá-los de que será muito mais difícil assim.’

“Eu nunca o tinha visto tão confiante; nunca o tinha visto tão cheio de si.

“Ele arregaçou a manga e ergueu aqueles dedos compridos de pontas brancas bem alto no ar, o mais alto que podia alcançar.

 


‘Retorne, retorne, ó Rainha Alaranjada,


Retorne e nos conte onde andou enfiada!’

 

 

“Com isso, ele estalou os dedos, e subitamente havia um selo onde não havia selo segundos antes. Um selo alaranjado.

“O rosto amargo do dr. Kissing relaxou um pouco. Ele quase sorriu. Os dedos do sr. Twining estavam profundamente fincados na minha omoplata, e me dei conta pela primeira vez de que ele esteve agarrado em mim como se disso dependesse sua própria vida.

“Bony puxou o selo para perto para ver melhor, até quase tocá-lo com a ponta do nariz. Ao mesmo tempo, tirou do bolso uma lupa enorme e examinou o selo recém-materializado com os lábios contraídos.

“Então, subitamente, sua voz era a de Tchang Fu, o velho mandarim, e juro que, apesar de ele não estar usando nenhuma maquiagem, pude ver claramente a pele amarela, as unhas compridas e o quimono com o dragão vermelho.

“‘Oh-oh! Honoláveis ancestlais mandalam selo elado!’, ludibriou ele, erguendo-o para nossa inspeção. Era um selo ordinário de emissão da Receita Federal americana: uma estampilha comum da Guerra Civil que a maioria de nós tinha em abundância nos nossos álbuns.

“Ele o deixou esvoaçar até o chão, depois encolheu os ombros e revirou os olhos para o céu.

“‘Retorne, retorne, ó Rainha Alaranjada...’, ele começou outra vez, mas o dr. Kissing o havia agarrado pelos ombros e o estava chacoalhando como se fosse uma lata de tinta.

“‘O selo’, ele exigiu, estendendo a mão. ‘Imediatamente.’

“Bony virou para fora os bolsos das calças, um após o outro.

“‘Eu não consigo encontrá-lo, senhor’, escarneceu ele. ‘Alguma coisa parece ter dado errado.’

“Ele olhou para dentro de cada uma de suas mangas, passou um dedo comprido pelo lado de dentro do colarinho, e seu rosto sofreu então uma súbita transformação. Em um instante, ele voltou a ser o menino de escola assustado que parecia não ter nada melhor a fazer senão sair correndo.

“‘Funcionou antes, senhor’, gaguejou ele. ‘Muitas e muitas vezes.’

“Seu rosto estava ficando vermelho, e pensei que ele estava a ponto de chorar.

“‘Revistem-no’, vociferou o dr. Kissing, e vários meninos, sob a direção do sr. Twining, levaram Bony para o lavatório onde o viraram de cabeça para baixo e o revistaram dos cabelos vermelhos aos sapatos marrons.

“‘É como disse o menino’, afirmou o sr. Twining, quando por fim eles voltaram. ‘O selo parece ter desaparecido’.

“‘Desaparecido?’ desesperou-se o dr. Kissing. ‘Desaparecido? Como pode a maldita coisa ter desaparecido? Você tem certeza absoluta?’

“‘Certeza absoluta’, confirmou o sr. Twining.

“Então procuraram pela sala inteira: o tapete foi levantado, mesas foram movidas, ornamentos virados de ponta-cabeça, mas tudo inutilmente. Por fim o dr. Kissing atravessou a sala até o canto onde Bony estava sentado com a cabeça afundada entre as mãos.

“‘Explique-se, Bonepenny’, demandou ele.

“‘Eu... eu não posso, senhor. Ele deve ter queimado. Deveria ter sido trocado, entende, mas eu devo ter... eu não... eu não posso...’

“E ele desandou a chorar.

“‘Vá para a cama, menino!’, bradou o dr. Kissing. ‘Saia desta casa e vá para a cama!’

“Foi a primeira vez em que qualquer de nós o ouviu levantar a voz acima do nível de uma conversa cordial, e aquilo nos abalou profundamente.

“Dei uma olhada para Bob Stanley e notei que ele estava se balançando para a frente e para trás nas pontas dos pés, olhando para o chão tão despreocupadamente como se estivesse esperando um bonde.

“Bony se levantou e atravessou lentamente a sala na minha direção. Seus olhos estavam vermelhos quando ele estendeu o braço e segurou minha mão. Deu um aperto flácido, mas foi um gesto que me senti incapaz de retornar.

“‘Sinto muito, Jacko’, disse ele, como se eu, e não Bob Stanley, fosse seu parceiro.

“Não consegui olhá-lo nos olhos. Virei a cabeça até perceber que ele não estava mais perto de mim.

“Depois que Bony já havia se esgueirado para fora da sala, olhando para trás por cima do ombro com o rosto lívido, o sr. Twining tentou se desculpar com o diretor, mas aquilo pareceu só tornar as coisas piores.

“‘Talvez eu devesse telefonar para os pais dele, senhor’, ele tentou.

“‘Pais? Não, sr. Twining. Eu acho que não são os pais que devem ser trazidos aqui.’

“O sr. Twining ficou plantado no meio da sala torcendo as mãos. Deus sabe que pensamentos passavam pela cabeça do pobre homem. Não consigo me lembrar nem dos meus próprios.

“A manhã seguinte era segunda-feira. Eu atravessava a quadra, tomando uma brisa com Simpkins, que tagarelava sobre o Vingador de Ulster. A notícia se espalhara rapidamente e para qualquer lugar que se olhasse se veriam ajuntamentos de meninos com as cabeças coladas e as mãos se agitando em grande excitação, enquanto trocavam os últimos — e quase inteiramente falsos — boatos.

“Quando estávamos a cerca de cinquenta metros da Anson House, alguém gritou: ‘Olhem! Lá em cima! Na torre! É o sr. Twining!’

“Olhei para cima e vi a pobre alma no telhado da torre do sino. Ele se segurava no parapeito como um morcego ferido, a beca se agitando ao vento. Um raio de sol irrompeu através das nuvens como um refletor de teatro, iluminando-o por trás. Seu corpo inteiro parecia incandescente, e os cabelos, projetando-se por baixo do chapéu, pareciam um disco de cobre martelado sob o sol nascente, como a auréola de um santo em um manuscrito iluminado.

“‘Cuidado, senhor’, gritou Simpkins. ‘As telhas estão em péssimo estado!’

“O sr. Twining baixou os olhos para os pés, como se acordasse de um sonho, como se estivesse desconcertado por achar-se subitamente transportado a vinte e cinco metros de altura em pleno ar. Ele olhou para as telhas e, por um momento, ficou perfeitamente imóvel.

“E então endireitou o corpo em sua plena estatura, segurando-se apenas com as pontas dos dedos. Ele ergueu o braço direito numa saudação romana, a beca flutuando à sua volta como a toga de algum antigo César nos seus baluartes.

“‘Vale!’, ele bradou. Adeus.

“Por um momento, pensei que ele tivesse dado um passo atrás, afastando-se do parapeito. Talvez ele tivesse mudado de ideia; talvez o Sol tivesse me ofuscado. Mas então ele estava no ar, desabando. Um dos meninos depois contou a um repórter de jornal que ele parecia um anjo caindo do céu, mas não foi assim. Ele mergulhou diretamente para o chão como uma pedra dentro de uma meia. Não existe um meio mais agradável de descrever.”

O pai fez uma longa pausa, como se lhe faltassem palavras. Eu prendi a respiração.

— O som que o corpo fez quando atingiu as pedras — disse ele por fim — vem me perseguindo em sonhos desde aquele dia até hoje. Eu vi e ouvi coisas na guerra, mas nada como isso. Nada como isso mesmo.

“Ele era um homem amado, e nós o assassinamos. Horace Bonepenny e eu o assassinamos tão certo como se o tivéssemos jogado de cima da torre com as nossas próprias mãos.”

— Não! — protestei, estendendo a mão e tocando a do pai. — Aquilo não teve nada a ver com você!

— Ah, teve, Flavia.

— Não! — repeti, embora estivesse um pouco desconcertada com minha própria audácia. Eu estava realmente falando assim com o pai? — Aquilo não teve nada a ver com você. Horace Bonepenny destruiu o Vingador de Ulster!

O pai sorriu um sorriso triste. — Não, ele não destruiu, minha querida. Veja bem, quando eu voltei ao meu estúdio naquela noite de domingo e tirei o casaco, encontrei um ponto estranhamente grudento no punho da minha camisa. Vi logo o que era: enquanto estávamos nos dando as mãos para formar o círculo de orações que distrairia nossa atenção, Bony enfiou o dedo indicador dentro da manga do meu casaco e colou o Vingador de Ulster no meu punho. Mas por que eu? Por que não Bob Stanley? Por uma excelente razão: se eles tivessem revistado todos nós, o selo teria sido encontrado na minha manga, e Bony teria clamado inocência. Não admira que não puderam encontrá-lo quando o revistaram dos pés à cabeça!

“É claro que ele resgatou o selo quando apertou minha mão antes de partir. Bony era um mestre prestidigitador, lembre-se, e como eu tinha sido outrora seu cúmplice, seria lógico que tivesse sido novamente. Quem acreditaria em outra coisa?”

— Não! — insisti.

— Sim. — O pai sorriu. — E agora resta pouco a contar.

“Apesar de nada ter sido jamais provado contra ele, Bony não voltou para Greyminster depois daquele período letivo. Alguém me contou que ele viajara para o exterior a fim de escapar de alguns aborrecimentos, e não posso dizer que fiquei surpreso. E também não fiquei surpreso ao ouvir, anos depois, que Bob Stanley, depois de ser expulso da escola de medicina, acabou indo parar na América, onde abriu uma loja filatélica: uma daquelas empresas de reembolso postal que publicam anúncios em revistas de quadrinhos e vendem pacotes de selos a adolescentes com garantia de devolução. O negócio em si, no entanto, parece ter sido nada mais que uma fachada para as suas operações mais sinistras com colecionadores ricos.

“Quanto a Bony, não voltei a vê-lo durante trinta anos. E então, justamente no mês passado, fui a Londres para participar de uma exposição internacional de selos promovida pela Real Sociedade Filatélica. Você deve se lembrar da ocasião. Um dos destaques foi a exibição pública de uns poucos itens selecionados da coleção da nossa atual Majestade o Rei, incluindo o raro Vingador de Ulster AA — o gêmeo do selo do dr. Kissing.

“Eu mal dei uma olhada nele; as lembranças não eram agradáveis. Havia outros itens da mostra que eu queria ver, e consequentemente o Vingador de Ulster do Rei não ocupou mais que alguns segundos de meu tempo.

“Logo antes de a exposição fechar por aquele dia, eu estava do outro lado do salão examinando uma folha de selos novos, com a qual pensava em me presentear, quando, por acaso, olhei para o outro lado e vi de relance uma cabeleira vermelha que só podia pertencer a uma pessoa.

“Era Bony, é claro. Ele estava falando sem parar para um grupo de colecionadores reunidos na frente do selo do Rei. Enquanto eu olhava, o debate foi ficando mais acalorado, e pareceu que alguma coisa que Bony havia dito estava deixando agitado um dos curadores, que sacudia a cabeça veementemente enquanto as vozes se elevavam.

“Eu não achei que Bony tivesse me visto — nem eu queria isso.

“Foi casualmente que um velho amigo do exército, Jumbo Higginson, apareceu naquele exato momento e me arrastou para um jantar tardio e um drinque. Bom e velho Jumbo... não foi a primeira vez em que ele apareceu bem no momento oportuno.”

Alguma coisa passou pelos olhos do pai, e eu vi que ele havia desaparecido para dentro de uma daquelas tocas de coelho pessoais que tão frequentemente o engolfavam. Eu, às vezes, perguntava-me se algum dia aprenderia a conviver com seus súbitos silêncios. Mas então, como um brinquedo de corda emperrado que pula abruptamente de volta à vida quando lhe damos um piparote, ele prosseguiu com a história, como se não tivesse ocorrido interrupção nenhuma.

— Quando abri o jornal, no trem, ao voltar para casa naquela noite e li que o Vingador de Ulster do Rei tinha sido trocado por uma falsificação, isso aparentemente feito à plena vista do público, de diversos filatelistas irrepreensíveis e um par de guardas de segurança, eu sabia não somente quem fora o autor do roubo, como também, ao menos em termos gerais, como a coisa tinha sido realizada.

“Então, na última sexta-feira, quando o jack snipe apareceu morto na soleira da nossa porta, eu soube imediatamente que Bony estivera lá. ‘Jack Snipe’ era meu apelido em Greyminster, ou, abreviadamente, ‘Jacko’. As letras no canto do Penny Black representavam o nome dele. É muito complicado.”

— B Um Penny H — disse eu. — Bonepenny, Horace. Em Greyminster ele era chamado de Bony e você era Jacko, abreviadamente. Sim, eu já tinha decifrado isso um bom tempo atrás.

O pai me olhou como se eu fosse uma serpente venenosa e ele estivesse indeciso entre apertá-la contra o peito e jogá-la longe pela janela. Ele esfregou o lábio superior com o indicador várias vezes, como se quisesse trancar a boca, mas depois seguiu em frente.

— Mesmo o fato de saber que ele estava em algum lugar por perto não me preparou para o choque assustador de ver aquela face branca e cadavérica aparecer na janela do meu estúdio. Era mais de meia-noite. Eu devia ter me recusado a falar com ele, é claro, mas ele fez certas ameaças...

“Ele exigiu que eu comprasse dele ambos os Vingadores de Ulster: o que ele roubara recentemente e o que havia feito desaparecer da coleção do dr. Kissing anos atrás.

“Veja bem, ele havia enfiado na cabeça que eu era um homem rico. ‘É a oportunidade de investimento de uma vida inteira’, ele me disse.

“Quando respondi que não tinha dinheiro, ele ameaçou contar às autoridades que eu havia planejado o roubo do primeiro Vingador de Ulster e contratado o segundo. E Bob Stanley iria respaldar sua alegação. Afinal, o colecionador de selos era eu, e não ele.

“E não estava eu presente quando ambos os selos foram roubados? O demônio ainda insinuou que eu até poderia — poderia, note bem! — ter posto os Vingadores de Ulster em algum lugar nas minhas coleções.

“Depois de nossa discussão, fiquei perturbado demais para ir para a cama. Quando Bony se foi, fiquei andando de um lado para outro em meu estúdio durante horas, afligindo-me, passando e repassando a situação na cabeça. Eu sempre me senti parcialmente responsável pela morte do sr. Twining. É algo terrível para se admitir, mas é verdade. Meu silêncio conduziu diretamente ao suicídio daquele estimado senhor. Se ao menos eu tivesse tido a força interior de proclamar minhas suspeitas quando menino, Bonepenny e Stanley nunca teriam escapado impunes, e o sr. Twining não teria sido levado a tirar a própria vida. Como vê, Flavia, o silêncio é às vezes a mais custosa das conveniências.

“Depois de um tempo muito longo e de muito pensar, decidi — contra tudo em que acredito — ceder à chantagem. Eu venderia as minhas coleções, tudo o que possuía, para comprar o seu silêncio, e devo lhe dizer, Flavia, que estou mais envergonhado dessa decisão do que de qualquer outra coisa que tenha feito na minha vida. Qualquer coisa.”

Eu gostaria de ter sabido a coisa certa a dizer, porém dessa vez minha eloquência falhou, e fiquei lá sentada como um esfregão, incapaz até de encarar meu pai.

— A algum momento da madrugada, deve ter sido pelas quatro horas, pois já estava começando a clarear, apaguei a luz, com toda a intenção de andar até a aldeia, acordar Bonepenny em seu quarto na estalagem e concordar com suas exigências.

“Mas alguma coisa me impediu. Não posso explicar, mas é verdade. Saí para o terraço, mas em vez de dar a volta até a frente da casa como estava determinado a fazer, fui sendo atraído como um ímã para a estrebaria.”

Então, não fora o pai quem saiu pela porta da cozinha. Ele caminhou do terraço pelo lado de fora do estúdio, acompanhando o muro externo do jardim até a estrebaria. Ele não pusera o pé no jardim. Ele não passara pelo moribundo Horace Bonpenny.

— Eu precisava pensar — continuou o pai —, mas não conseguia focalizar direito minha mente.

— E você entrou no Rolls-Royce de Harriet — deixei escapar. Às vezes eu poderia me dar um tiro.

O pai me fitou com aquele tipo de olhar triste que a minhoca deve dirigir ao passarinho madrugador um instante antes de o bico dele se fechar.

— Sim — ele assentiu suavemente. — Eu estava cansado. A última coisa que me lembro de ter pensado foi que, uma vez que Bony e Bob Stanley descobrissem que eu estava falido, desistiriam do jogo em favor de alguém mais promissor. Não que eu desejasse essa situação aflitiva a outra pessoa...

“E então eu devo ter caído no sono. Não sei. Na verdade, não importa. Eu ainda estava lá quando a polícia me encontrou.”

— Falido? — perguntei, atônita. Não pude evitar. — Mas, pai, você tem Buckshaw.

O pai olhou para mim com os olhos úmidos, olhos que eu nunca tinha visto antes no seu rosto.

— Buckshaw pertencia a Harriet, entenda, e, quando ela morreu, não havia deixado testamento. Os impostos sobre o legado muito provavelmente nos consumirão.

— Mas Buckshaw é sua! — insisti. — Está na família há séculos.

— Não — revelou o pai tristemente. — Não é minha, não totalmente. Veja bem, Harriet era uma De Luce antes de se casar comigo. Ela é minha prima em terceiro grau. Buckshaw era dela. Não me resta nada para investir na propriedade; nem um centavo. Estou, como já disse, virtualmente falido.

Ouviu-se uma batida metálica na porta, e o inspetor Hewitt entrou na sala.

— Sinto muito, Coronel De Luce — comunicou ele. — O chefe de polícia, como deve saber, faz questão absoluta de que até a sombra da lei seja observada. Permiti a vocês o máximo de tempo que posso sem perder minha pele.

O pai assentiu tristemente.

— Venha, Flavia — disse o inspetor para mim. — Vou levá-la para casa.

— Eu ainda não posso ir para casa — aleguei. — Alguém surrupiou minha bicicleta. Eu gostaria de registrar uma ocorrência.

— Sua bicicleta está no banco de trás de meu carro.

— Então já a encontrou? — perguntei. Aleluia! Gladys estava segura e inteira!

— Ela nunca desapareceu — respondeu ele. — Vi você estacioná-la lá fora e mandei o policial Glossop guardá-la por segurança.

— Para eu não poder fugir?

O pai ergueu uma sobrancelha diante dessa impertinência, mas não disse nada.

— Em parte, sim — disse o inspetor Hewitt —, mas principalmente porque ainda está chovendo a cântaros lá fora, e é uma longa pedalada colina acima até Buckshaw.

Abraçei o pai em silêncio e, embora permanecesse imóvel, ele não pareceu objetar.

— Tente ser uma boa menina, Flavia — pediu ele.

Tente ser uma boa menina? Isso foi tudo o que ele pôde pensar? Era evidente que nosso submarino emergira, seus ocupantes subiram das imensas profundezas e toda a magia foi deixada embaixo.

— Farei o melhor que puder — prometi, virando-me para sair. — Farei o melhor que puder.

 

— Você não devia ser dura demais com seu pai, sabe — disse o inspetor Hewitt quando reduziu a velocidade para passar pela placa que apontava para Bishop’s Lacey. Olhei para ele; seu rosto estava iluminado pela claridade suave do painel do Vauxhall. Os limpadores de para-brisa, como foices negras, se moviam de um lado para outro pelo vidro à estranha luz da tempestade.

— Você acredita honestamente que ele assassinou Horace Bonepenny? — perguntei.

A resposta dele demorou séculos para chegar e, quando veio, soou carregada de uma tristeza pesada.

— Quem mais estava lá, Flavia?

— Eu... por exemplo — respondi.

O inspetor Hewitt ligou o aquecedor para evaporar a condensação que nossas palavras começavam a formar no para-brisa.

— Você não espera que eu acredite naquela história sobre a luta e o coração fraco, espera? Porque não acredito. Não foi isso que matou Horace Bonepenny.

— Então foi a torta! — despejei com uma súbita inspiração. — Ele foi envenenado pela torta!

— Você envenenou a torta? — ele perguntou quase sorrindo.

— Não — admiti. — Mas gostaria de ter envenenado.

— Era uma torta bem comum — disse o inspetor. — Eu já vi o relatório do analista.

Uma torta bem comum? Esse foi provavelmente o maior elogio que os doces da sra. Mullet poderiam jamais receber.

— Como você deduziu — ele prosseguiu —, Bonepenny de fato se serviu de uma fatia de torta várias horas antes de morrer. Mas como você podia saber disso?

— Quem senão um estranho iria comer aquela coisa? — perguntei com ironia apenas suficiente na voz, para mascarar a súbita percepção de que eu tinha cometido um erro: Bonepenny não fora envenenado pela torta da sra. Mullet, afinal. Foi infantil de minha parte pretender que fosse isso.

— Desculpe-me por ter dito aquilo — falei. — Simplesmente escapou. Você deve achar que eu sou uma completa idiota.

O inspetor Hewitt não respondeu por um tempo demasiadamente longo. Por fim, recitou:

 


Salvo se uma certa doçura no fundo ela comporta,


Com todas as rugas da torta, quem se importa?

 

 

— Minha avó costumava dizer isso — ele acrescentou.

— O que significa? — perguntei.

— Significa... bem, cá estamos em Buckshaw. Provavelmente estão preocupados com você.

 

— Oh! — disse Ophelia em sua voz despreocupada. — Você saiu? Nós nem notamos, notamos, Dafi?

Dafi, com o proeminente branco equino dos seus olhos à mostra, estava definitivamente amedrontada, porém tentava não deixar transparecer.

— Não — ela murmurou, e mergulhou de volta em Casa abandonada. Dafi era, senão outra coisa, uma leitora voraz.

Se elas tivessem perguntado, eu teria contado de bom grado sobre minha visita ao pai, mas elas não perguntaram. Se fosse para haver algum pesar por sua situação aflitiva, eu deveria fazer parte dele; isso estava bem claro. Felinha, Dafi e eu éramos como três lagartas em três casulos diferentes e, às vezes, eu me perguntava por quê. Charles Darwin certa vez observou que a competição mais feroz pela sobrevivência vinha da própria tribo, e como o quinto de seis filhos — e com três irmãs mais velhas — ele obviamente estava em posição de saber do que estava falando.

Para mim, parecia uma questão de química elementar: eu sabia que uma substância tende a ser dissolvida por solventes que são quimicamente similares a ela. Não havia explicação racional para isso; a natureza simplesmente era assim.

Tinha sido um longo dia, e minhas pálpebras davam a sensação de que tinham sido usadas para arrancar mariscos de uma pedra.

— Acho que vou para a cama. Boa noite, Felinha. Boa noite, Dafi.

Minha tentativa de ser sociável foi recebida com silêncio e um grunhido. Quando estava subindo as escadas, Dogger se materializou de repente no patamar, com um candelabro que poderia ter sido comprado às pressas em um bazar de família que vende tudo para se mudar.

— E o Coronel De Luce? — ele sussurrou.

— Ele está bem, Dogger.

Dogger assentiu trêmulo, e cada um de nós se arrastou para seu respectivo quarto.


A ESCOLA GREYMINSTER REPOUSAVA cochilando ao sol, como se sonhasse com glórias passadas. O lugar era precisamente como eu o imaginara: velhos edifícios magníficos de pedra, gramados verdes e bem cuidados se estendendo até o rio preguiçoso, vastos e vazios campos de esportes que pareciam emitir ecos silenciosos de jogos de críquete cujos jogadores há muito estavam mortos.

Encostei Gladys contra uma árvore no caminho lateral pelo qual eu entrara em suas dependências. Atrás de uma sebe, um trator parado com o motor funcionando ocioso, sem um motorista à vista.

Vozes de meninos do coro vinham flutuando da capela pelos gramados. A despeito do sol forte da manhã, estavam cantando:

 


Suavemente agora a luz do dia cai,


Some aos poucos de vista e se esvai...

 

 

Fiquei ouvindo por um momento até que subitamente eles interromperam o canto. Então, depois de uma pausa, o órgão começou de novo, enfezado, e os cantores recomeçaram.

Enquanto eu caminhava lentamente pela grama daquilo que, tenho certeza, o pai chamaria de “a quadra”, as altas janelas vazias da escola me fitavam friamente, e tive a súbita e esquisita sensação que um inseto deve ter quando colocado embaixo de um microscópio — a sensação de uma lente invisível pairando, e algo estranho, talvez, quanto à luz.

Com exceção de um único menino que passava correndo e dois professores de becas pretas caminhando e conversando com as cabeças juntas, os amplos gramados e passeios sinuosos de Greyminster estavam vazios sob um céu do mais profundo azul. O lugar inteiro parecia ligeiramente irreal, como uma fotografia excessivamente ampliada: algo que você poderia ver em um desses livros com um nome como Inglaterra pitoresca.

A pilha de pedra calcária do lado leste da quadra — a com a torre do relógio — devia ser a Anson House, pensei: a velha residência do pai.

Ao me aproximar dela, ergui a mão para proteger os olhos contra o brilho ofuscante do céu. Foi de algum lugar lá em cima entre o parapeito e as telhas que o sr. Twining mergulhou para a morte, sobre as pedras do calçamento abaixo; aquelas pedras antigas que agora estavam a não mais de trinta metros de mim.

Atravessei o gramado sem pressa, para dar uma olhada.

Para meu desapontamento, não havia marcas de sangue. É claro que não deveria, depois de todos aqueles anos. Elas devem ter sido lavadas de maneira apropriada assim que possível — muito provavelmente antes ainda que o corpo fraturado do sr. Twining tivesse sido levado para o que quer que chamassem de descanso.

Fora o constante desgaste por duzentos anos de pés privilegiados, aquelas pedras não contavam histórias. Apertado ao longo das paredes de pedra da Anson House, o passeio tinha no máximo dois metros de largura.

Joguei a cabeça para trás e olhei diretamente para a torre. Vista daquele ângulo, ela se erguia vertiginosamente em uma parede escarpada de pedra que terminava muito, muito acima de mim, em uma graciosa filigrana de cantaria ornamental. Ela desenhava gordas nuvens brancas que, flutuando preguiçosamente além dos parapeitos, criavam a sensação peculiar de que a estrutura inteira estava se inclinando... caindo... tombando sobre mim. A ilusão me deixou com o estômago embrulhado, e tive de desviar o olhar.

Degraus de pedra gastos levavam sedutoramente do passeio de pedras, através de uma entrada em arco, para uma porta dupla. À minha esquerda estava a guarita do porteiro, com seu ocupante debruçado em cima de um telefone. Ele nem olhou quando me esgueirei para dentro.

Um corredor frio e mal iluminado se prolongava na minha frente, aparentemente para o infinito, e segui por ele, erguendo os pés cuidadosamente para evitar que fizessem qualquer ruído ao escorrregar sobre o piso de ardósia.

Em ambos os lados, uma longa galeria de faces sorridentes — algumas de alunos, outras de professores — perdia-se na escuridão, cada qual um filho de Greyminster que dera a vida pelo seu país, e cada qual na sua própria moldura preta laqueada: “Para que outros possam viver”, estava escrito em um pergaminho dourado. No final do corredor, separadas das outras, havia fotografias de três meninos, com seus nomes gravados em vermelho em pequenos retângulos de latão. Embaixo de cada nome estavam as palavras “Desaparecido em combate”.

Desaparecido em combate? Por que a foto do pai não estava pendurada lá?, perguntei-me.

O pai de um modo geral estava tão ausente quanto aqueles jovens cujos ossos ficaram em algum lugar na França. Senti-me um pouco culpada por pensar aquilo, mas era verdade.

Acho que foi naquele momento, ali no corredor sombrio em Greyminster, que comecei a me dar conta de todo o alcance da natureza distante do pai. Ontem eu estivera prestes a jogar meus braços em volta dele e abraçá-lo até virar geleia, mas agora eu entendia que a acalentadora cena de prisão de ontem não tinha sido um diálogo, mas um monólogo perturbado. Não era comigo que ele estava falando, mas com Harriet. E quanto ao Horace Bonepenny agonizante, eu não fora mais que uma confidente involuntária.

Agora, simplesmente estando aqui em Greyminster, onde os problemas do pai começaram, aquilo tudo parecia um lugar ainda mais frio, remoto e inóspito.

Na penumbra além das fotos, subi uma escada que levava ao primeiro andar, até um corredor que, como o que eu acabara de deixar, também seguia por toda a extensão do edifício. Embora as portas de ambos os lados estivessem fechadas, cada uma delas era equipada com uma pequena vidraça que me permitia dar uma espiada dentro. Eram salas de aula, e todas iguais.

No fim do corredor, uma grande sala de canto prometia algo mais: uma placa na porta dizia “Laboratório de Química”.

Experimentei a porta e ela se abriu imediatamente. A maldição estava quebrada!

Não sei o que eu estava esperando, mas não era aquilo: mesas de madeira manchadas, frascos desinteressantes, retortas turvas, tubos de ensaio lascados, bicos de Bunsen de qualidade inferior e um gráfico colorido na parede contendo um risível erro de impressão, no qual as posições de arsênico e selênio estavam trocadas. Percebi isso imediatamente e — com um toco de giz azul do rebordo embaixo do quadro-negro — tomei a liberdade de corrigir o erro desenhando uma seta de duas pontas. “ERRADO!”, escrevi abaixo dele e sublinhei duas vezes.

Aquele assim chamado laboratório não era nada em comparação ao meu em Buckshaw, e, ao pensar nisso, meu peito inflou-se de orgulho. Não havia nada que desejasse mais naquele momento do que correr para casa, só para estar lá, e poder tocar em meus próprios vidros reluzentes, para preparar o veneno perfeito, só pela sensação de fazer isso.

Mas aquele prazer teria de esperar. Havia trabalho a ser feito.

 

De volta ao corredor, refiz meus passos para o centro do edifício. Se eu tivesse avaliado corretamente, deveria agora estar diretamente embaixo da torre, e a entrada para ela não deveria estar longe.

Uma pequena porta nos painéis, que eu tomara de início por um armário para vassouras, abriu-se para revelar uma escada íngreme de pedra. Meu coração emitiu uma batida.

E então eu vi a placa. Após subir uns poucos degraus, uma corrente atravessava a escada, com um cartão escrito à mão: Torre interditada — Acesso estritamente proibido.

Pulei por cima como um tiro.

Era como estar dentro de uma concha. A escada se torcia em voltas e mais voltas, enroscando seu caminho estreito para cima em uma uniformidade monótona. Não havia possibilidade de ver o que estava à frente nem, aliás, o que estava atrás. Apenas os poucos degraus imediatamente acima e abaixo eram visíveis.

Por algum tempo, contei-os em sussurro enquanto subia, mas depois descobri que precisava do fôlego para abastecer as pernas. Era uma ascensão íngreme e eu estava começando a sentir uma dor de lado. Parei um momento para descansar.

A pouca luz que havia parecia vir das janelinhas em fenda, uma posicionada a cada volta da escada. Naquele lado da torre, calculei, ficava a quadra. Ainda sem fôlego, retomei a ascensão.

Então, súbita e inesperadamente, a escada terminou — assim sem mais — em uma pequena porta de madeira.

Era o tipo de porta pela qual um anão numa floresta poderia pular para dentro de um carvalho: uma escotilha semicircular com uma abertura de ferro para uma chave-mestra. E nem é preciso dizer, aquela coisa estúpida estava trancada.

Deixei escapar um chiado de frustração e me sentei no último degrau, respirando pesadamente.

— Maldição! — praguejei, e a palavra ecoou de volta pelas paredes com volume surpreendente.

— Olá, aí em cima! — veio uma voz cava, seguida pelo ruído de passos lá embaixo.

— Maldição! — praguejei de novo, dessa vez num sussurro. Eu tinha sido descoberta.

— Quem está aí em cima? — demandou a voz. Tampei a boca com a mão para sufocar o impulso de responder.

Quando meus dedos tocaram os dentes, tive uma ideia.O pai uma vez dissera que ainda chegaria o dia em que eu seria grata pelo aparelho que fui forçada a usar, e ele tinha razão. Era isso.

Usando os polegares e indicadores como pinças duplas, puxei o aparelho para baixo com toda a força que pude reunir, e com um clique satisfatório ele pulou fora da boca para minha mão.

Enquanto os passos chegavam cada vez mais perto, subindo implacavelmente para onde eu estava encurralada contra a porta trancada, torci o arame em um L com uma laçada na ponta e enfiei o aparelho arruinado no buraco da fechadura.

O pai mandaria me açoitar, mas eu não tinha outra escolha.

A fechadura era velha e pouco sofisticada, e eu sabia que poderia forçá-la — se ao menos tivesse tempo suficiente.

— Quem está aí? — demandou a voz. — Sei que você está aí em cima. Posso ouvi-lo. A torre está interditada. Desça imediatamente, menino.

Menino? Então ele realmente não me vira.

Movi cuidadosamente o arame para dentro e para fora e torci para a esquerda. Como se tivesse sido lubrificada naquela manhã, a lingueta deslizou suavemente para trás. Abri a porta e atravessei-a, fechando-a silenciosamente atrás de mim. Não dava tempo de tentar trancá-la por dentro. Além disso, quem quer que estivesse subindo provavelmente teria a chave.

Eu estava em um espaço escuro como um porão de carvão. As janelinhas em fenda haviam terminado no topo da escada.

Os passos pararam do lado de fora da porta. Movi-me sem fazer barulho para um lado e me colei contra a parede de pedra.

— Quem está aqui em cima? — perguntou a voz. — Quem é? — E então uma chave foi inserida, o trinco fez um clique e a porta se abriu, e um homem enfiou a cabeça pela abertura.

O facho de sua lanterna passou rapidamente para um lado e para o outro, iluminando uma confusão maluca de escadas que se trançavam trevas acima. Ele dirigiu a luz para cada escada, permitindo ao facho escalá-las degrau por degrau até desaparecer na escuridão.

Eu não mexi um músculo; nem mesmo os olhos. Com a visão periférica tive uma vaga percepção do homem em silhueta contra a porta aberta: cabelos brancos e um bigode assustador. Estava tão perto que poderia tê-lo tocado.

Houve uma pausa que me pareceu uma eternidade.

— Os malditos ratos outra vez — ele disse para si mesmo, finalmente, e a porta se fechou com uma batida, me deixando na escuridão. Ouvi um tilintar de chaves e depois a lingueta fechando.

Eu estava trancada lá dentro.

Imagino que devia ter dado um grito, mas não dei. Eu não estava nem um pouco perto de me desesperar. De fato, estava começando a me divertir.

Eu sabia que poderia tentar forçar a fechadura de novo e me arrastar escada abaixo, mas muito possivelmente cairia diretamente nas garras do porteiro.

Como não podia ficar ali para sempre, a única outra opção era para cima. Esticando os braços como uma sonâmbula, fui colocando os pés um na frente do outro até que meus dedos tocaram a mais próxima das escadas de mão que eu tinha visto iluminadas pela lanterna dele — e subi.

Não existe na verdade nenhum truque em subir uma escada no escuro. De certo modo, é preferível ver o abismo que está sempre abaixo de você. Mas, enquanto escalava, meus olhos foram ficando cada vez mais acostumados com a escuridão — ou semiescuridão. Minúsculas fissuras nas pedras e na madeira deixavam entrar luz aqui e ali por passagens do tamanho de picadas de alfinete, e logo descobri que era capaz de distinguir o contorno geral da escada, preto sobre preto à luz cinzentada torre.

Os degraus acabaram de repente, e me vi sobre uma pequena plataforma de madeira, como um marinheiro no meio daquele amontoado de cordas. À minha esquerda, outra escada subia para a obscuridade.

Dei-lhe uma boa sacudida, e, embora rangesse assustadoramente, parecia bastante sólida. Inspirei fundo, pisei no primeiro degrau e subi.

Um minuto depois cheguei ao topo, a uma plataforma menor e mais instável. Mais outra escada, mais estreita e precária que as outras, que tremeu alarmantemente quando pus o pé nela e comecei a lenta e cautelosa escalada. A meio caminho, parei e comecei a contar os degraus:

“Dez (aproximadamente)... onze... doze... treze...”

Minha cabeça bateu em alguma coisa e, por um momento, não consegui ver nada além de estrelas girando. Agarrei-me aos degraus como se minha vida dependesse disso, a cabeça doendo e a escada de palitos de fósforo vibrando nas minhas mãos como um arco distendido. Senti-me como se alguém tivesse me escalpelado.

Quando estiquei um braço para cima e apalpei em volta da minha cabeça quebrada, meus dedos se fecharam em torno de uma alça de madeira. Eu a empurrei para cima com toda a força que me restava, e o alçapão se ergueu.

Num instante me icei para fora e me vi em cima do telhado da torre, piscando como uma coruja à luz repentina do sol. De uma plataforma quadrada no centro, telhas de ardósia se inclinavam suavemente para fora, em direção aos quatro pontos cardeais.

O panorama não era nada menos que magnífico. Passando a quadra, além das telhas da capela, panoramas em diferentes verdes se desdobravam até distâncias indistintas.

Ainda apertando os olhos, cheguei um pouco mais perto do parapeito e quase perdi a vida.

Havia um súbito buraco escancarado aos meus pés e tive de agitar os braços como um moinho de vento para não cair. Enquanto cambaleava na beirada, vi num relance nauseante as pedras do calçamento lá embaixo, brilhando sinistras ao sol.

O vão tinha talvez cinquenta centímetros de largura, com uma borda elevada de dois centímetros em volta, transposto a cada três metros aproximadamente por uma estreita viga de pedra que juntava o parapeito saliente ao telhado. Essa abertura tinha evidentemente sido projetada para suprir a drenagem de emergência em caso de chuva inusitadamente forte.

Pulei a abertura cautelosamente e olhei por cima do parapeito que chegava até a minha cintura. Muito abaixo, a grama da quadra se estendia em três direções. Apertado como estava ao longo da parede da Anson House, o passeio de pedras não era visível abaixo das ameias salientes. Que estranho. Se o sr. Twining tivesse pulado de uma daquelas ameias, ele só poderia ter caído na grama.

A não ser, é claro, que nos trinta anos que se passaram desde o dia da sua morte, a quadra tivesse passado por mudanças paisagísticas substanciais. Uma outra olhada vertiginosa parabaixo através da abertura atrás de mim deixou óbvio que não era esse o caso: as pedras abaixo e as tílias que as ladeavam eram decididamente muito antigas. O sr. Twining tinha caído através desse buraco. Sem dúvida.

Ouvi um barulho repentino atrás de mim e fiz meia-volta. No centro do telhado havia um cadáver pendurado, oscilando, de uma forca. Tive de lutar para não gritar.

Como o corpo amarrado de um ladrão de estrada que eu tinha visto nas páginas da Newgate Calendar, a coisa girava e se torcia com o vento súbito. Então, sem aviso, sua barriga pareceu explodir, e suas tripas saíram voando no ar em uma nauseante corda retorcida em escarlate, branco e azul.

Com um estalo ruidoso, as entranhas se desenrolaram e, de repente, muito acima da minha cabeça, no topo de um mastro, a Union Jack, a bandeira britânica, flutuava ao vento.

Quando me recobrei do susto, vi que a bandeira tinha sido armada para poder ser erguida e abaixada lá de baixo, talvez da guarita do porteiro, por uma engenhosa série de cabos e polias que terminavam na capa de lona à prova do tempo. Tinha sido isso que eu confundira com um cadáver e uma forca.

Sorri estupidamente da minha bobagem e me aproximei, cautelosa, do mecanismo para ver melhor. Mas, além da engenhosidade mecânica do dispositivo, havia nele pouca coisa interessante.

Eu acabara de me virar e estava voltando para o vão aberto quando tropecei e caí de cara no telhado, com a cabeça se projetando por cima da beira do abismo.

Poderia ter quebrado todos os ossos do corpo, mas estava com medo de me mexer. Um milhão de quilômetros abaixo, ou ao menos era o que parecia, um par de figuras parecidas com formigas emergiu da Anson House e saiu andando pela quadra.

Meu primeiro pensamento foi que eu ainda estava viva. Mas então, quando o terror diminuiu, a raiva tomou seu lugar: raiva de minha própria estupidez e falta de jeito, raiva da bruxa invisível que estava atrapalhando minha vida com uma cadeia interminável de portas trancadas, pernas esfoladas e cotovelos arranhados.

Lentamente me pus em pé e sacudi o pó. Não só as minhas roupas estavam imundas, como eu também conseguira arrancar metade da sola do sapato esquerdo. A causa do dano não foi difícil de encontrar: eu tropeçara na beira cortante de uma telha saliente que, arrancada do seu lugar, jazia agora solta no telhado, parecendo uma das tábuas nas quais Moisés recebera os Dez Mandamentos.

É melhor eu recolocar a telha, pensei. Senão os moradores da Anson House vão ter chuva jorrando sobre suas cabeças, e a culpa será exclusivamente minha.

A telha era mais pesada do que parecia, e tive de ficar de joelhos enquanto tentava enfiá-la de volta no lugar. Talvez ela tivesse virado ao contrário, ou talvez as telhas vizinhas tivessem afundado. Qualquer que fosse a razão, eu simplesmente não conseguia deslizá-la de volta ao encaixe escuro de onde meu pé a extraíra.

Poderia facilmente enfiar a mão na abertura para ver se havia alguma obstrução —, mas então me lembrei das aranhas e escorpiões que sabidamente habitam tais grutas.

Fechei os olhos e enfiei os dedos. No fundo da cavidade eles encontraram alguma coisa — alguma coisa macia.

Puxei bruscamente a mão e me ajoelhei para olhar lá dentro. Não havia nada no buraco a não ser trevas.

Cuidadosamente, enfiei os dedos de novo e, com o polegar e o indicador, puxei o que quer que fosse que estava no fundo do buraco.

No fim, aquilo saiu quase sem esforço, desdobrando-se à medida que emergia, como a bandeira que drapejava acima da minha cabeça. Era um pedaço de pano preto desbotado — Russell cord, eu acho que o material se chama — e cheirava a mofo: uma beca de professor. E enrolado dentro dela, esmagado, sem conserto, havia um chapéu preto de formatura de topo quadrado.

E naquele instante percebi, sem a menor sombra de dúvida, que aquelas coisas haviam desempenhado um papel na morte do sr. Twining. Eu não sabia qual era, mas certamente iria descobrir.

Devia ter deixado aquelas coisas ali, eu sei. Devia ter ido até o telefone mais próximo e ligado para o inspetor Hewitt. Em vez disso, o primeiro pensamento que surgiu em minha cabeça foi este: como eu iria escapar de Greyminster sem ser notada?

E, como tão frequentemente ocorre quando você está numa enrascada, a resposta surgiu imediatamente.

Enfiei os braços nas mangas da beca mofada, endireitei a copa entortada do chapéu e o enfiei na cabeça, e, como um grande morcego negro, desci, batendo as asas precariamente, as cascatas de escadas tremelicantes até a porta trancada.

O truque que eu tinha feito com meu aparelho dentário funcionara antes, e agora eu precisava que funcionasse de novo. Enquanto manuseava nervosamente o arame no buraco da fechadura, ofereci uma prece silenciosa ao deus que governa essas coisas.

Depois de muito forçar e arranhar, de entortar o arame e de praguejar um pouco, minha oração foi finalmente atendida, e a lingueta deslizou para trás com um coaxar mal-humorado.

Antes de alguém conseguir dizer “dê o fora!”, eu já tinha descido as escadas, escutado junto da porta de baixo e espiado através de uma rachadura no longo hall. O lugar era silencioso.

Abri a porta com cuidado, saí para o corredor sem fazer barulho, segui rapidamente pela galeria de meninos perdidos, passei pela guarita vazia do porteiro e saí para o sol.

Havia estudantes por toda parte — ou assim parecia — conversando, flanando, passeando, rindo. Comemoravam ao ar livre a proximidade do fim do ano letivo.

Meu instinto era me encolher para dentro da beca e do chapéu e me esgueirar andando de lado como um caranguejo para o outro lado da quadra. Será que eu seria notada? É claro que sim; para aqueles meninos selvagens eu iria sobressair como uma rena ferida atrás do rebanho.

Não! Eu iria jogar os ombros para trás e, como um garoto atrasado para uma corrida de obstáculos, sairia andando a passos largos, a cabeça alta, na direção do caminho. Eu só poderia torcer para que ninguém reparasse que, por baixo da beca, eu estava usando um vestido.

E ninguém reparou; ninguém sequer olhou duas vezes para mim.

Quanto mais eu me afastava da quadra, mais segura me sentia, mas sabia que, sozinha no espaço aberto, estaria muito mais suscetível a ser vista.

Apenas alguns metros à frente, um antigo carvalho ocupava confortavelmente o gramado como se estivesse ali desde os tempos de Robin Hood. Quando estendi a mão para tocá-lo (missão cumprida!), um braço surgiu de trás do tronco e agarrou meu pulso.

— Ai! Me solte! Você está me machucando! — protestei automaticamente, e meu braço foi solto de imediato, conforme eu ainda me virava para encarar meu agressor.

Era o sargento detetive Graves, e ele parecia tão surpreso quanto eu.

— Bem, bem — ele disse com um sorriso perplexo. — Bem, bem, bem, bem, bem.

Ia fazer um comentário mordaz, mas pensei melhor. Sabia que o detetive gostava de mim, e eu poderia precisar de toda ajuda que pudesse conseguir.

— O inspetor apreciaria o prazer de sua companhia — disse ele, apontando para um grupo de pessoas conversando no caminho onde eu deixara Gladys.

O detetive Graves não disse mais nada, mas, quando nos aproximamos, ele me empurrou gentilmente em sua frente em direção ao inspetor Hewitt, como um cãozinho terrier que presenteia o dono com um rato morto. A sola arrancada do meu sapato se abanava como a do Pequeno Vagabundo de Charlie Chaplin, mas embora o inspetor tivesse dado uma olhadela, foi diplomático o bastante para guardar seus pensamentos para si mesmo.

O detetive Woolmer estava imponentemente postado acima do Vauxhall azul, o rosto grande e anguloso como o Monte Matterhorn. À sua sombra havia um homem de macacão, musculoso e bastante bronzeado, e um homenzinho encarquilhado de bigode branco que, ao me ver, deu uma estocada no ar com o dedo, excitado.

— É ele! — exclamou. — É esse aí!

— É ele, realmente? — perguntou o inspetor Hewitt, erguendo o chapéu da minha cabeça e tirando a beca dos meus ombros com a gentil deferência de um valete.

Os pálidos olhos azuis do homenzinho incharam visivelmente nas órbitas.

— Ora, é só uma menina! — constatou ele.

Eu poderia ter-lhe dado um tapa na cara.

— Sim, é ela — disse o homem bronzeado.

— O sr. Ruggles aqui tem razões para crer que você esteve no alto da torre — informou o inspetor, com um aceno de cabeça para o bigode branco.

— E daí se estive? — respondi. — Estava apenas dando uma olhada em volta.

— Aquela torre está interditada — vociferou o sr. Ruggles. — Interditada! E está escrito no aviso. Você não sabe ler?

Dei de ombros para ele graciosamente.

— Eu teria subido todas as escadas atrás de você se soubesse que era só uma menina. — E acrescentou em um aparte para o inspetor Hewitt: — Os meus velhos joelhos não são mais como costumavam ser.

— Sabia que você estava lá em cima — prosseguiu ele. — Fiz que não sabia para poder telefonar para a polícia. E não venha me dizer que você não forçou a fechadura. Aquela fechadura é minha responsabilidade, e sei que estava trancada, tão certo quanto estou aqui em Fludd’s Lane.

— Imagine! Uma menina! — comentou ele, com uma sacudida incrédula de cabeça.

— Você forçou a fechadura? — perguntou o inspetor. Embora se comportasse como se não estivesse, pude ver que ele ficou desconcertado. — Onde você aprendeu um truque desses?

— Muito tempo atrás e muito longe — falei.

O inspetor encarou-me com um olhar duro como aço.

— Pode ser que existam pessoas que se satisfaçam com esse tipo de resposta, Flavia, mas eu não sou uma delas.

Lá vem o velho discurso “O Rei George não é um homem frívolo” de novo, pensei, mas o inspetor Hewitt havia decidido esperar pela minha resposta, não importa quanto demorasse.

— Não há muita coisa para fazer em Buckshaw — expliquei. — Às vezes faço coisas só para fugir do tédio.

Ele me estendeu o manto preto e o chapéu e perguntou:— E é por isso que você está usando essa fantasia? Para fugir do tédio?

— Não é uma fantasia. Se você quer saber, encontrei isso embaixo de uma telha solta no telhado da torre. Tem alguma coisa a ver com a morte do sr. Twining. Tenho certeza disso.

Se os olhos do sr. Ruggles tinham inchado antes, eles agora quase pularam fora da cara.

— O sr. Twining? — espantou-se. — O sr. Twining que pulou de cima da torre?

— O sr. Twining não pulou — esclareci. Não pude resistir à tentação de ficar quite com aquele homenzinho desagradável. — Ele foi...

— Obrigado, Flavia — interrompeu o inspetor Hewitt. — Isso já basta. E não vamos mais tomar seu tempo, sr. Ruggles. Sei que é um homem ocupado.

Ruggles se estufou como um pombo fazendo a corte e, com um aceno de cabeça para o inspetor e um sorriso impertinente para mim, saiu por entre o gramado para seus domínios.

— Obrigado pelas suas informações, sr. Plover — disse o inspetor voltando-se para o homem de macacão, que ficara aguardando ali em silêncio.

O sr. Plover ajeitou o topete e voltou para seu trator sem dizer palavra.

— Nossas grandes escolas públicas são cidades em miniatura — disse o inspetor, com um aceno de mão. — O sr. Plover a percebeu como uma intrusa no instante em que você pisou no caminho. Ele não perdeu tempo em ir até a guarita do porteiro.

Dane-se o sujeito! E dane-se também o velho Ruggles! Preciso me lembrar quando chegar em casa de mandar-lhe um jarro de limonada colorida, só para mostrar que não havia ressentimentos. Já era muito tarde na estação para anêmonas, portanto a anemonina estava fora de questão. A beladona, por outro lado, embora pouco comum, podia ser encontrada se você soubesse exatamente onde procurar.

O inspetor Hewitt entregou o chapéu e a beca ao detetive Graves, que já havia tirado várias folhas de papel de seda do seu kit.

— Maravilha — disse o detetive. — Ela pode ter nos poupado o trabalho de rastejar pelas telhas.

O inspetor lançou-lhe um olhar que poderia ter detido um cavalo desembestado.

— Desculpe, senhor — justificou-se Graves com o rosto subitamente afogueado, voltando-se para seu embrulho.

— Conte-me, em detalhes, como você achou essas coisas — disfarçou o inspetor Hewitt, como se nada tivesse acontecido. — Não deixe nada de fora — e não invente nada.

À medida que eu falava, ele ia anotando tudo com sua caligrafia rápida e minúscula. Por ficar sentada na frente de Felinha, enquanto ela escrevia em seu diário no café da manhã, eu me tornara muito boa em ler de ponta-cabeça, mas as notas do inspetor Hewitt não eram mais que formiguinhas marchando pela página.

Contei tudo a ele, desde os rangidos das escadas até o escorregão quase fatal; da telha solta, passando pelo que estava embaixo dela, até a fuga engenhosa.

Quando terminei, vi que rabiscou um par de caracteres ao lado do meu relato, embora eu não pudesse distinguir o que fosse. Ele fechou o caderninho bruscamente.

— Obrigado, Flavia. Você foi de grande ajuda.

Bem, pelo menos ele teve a decência de admitir isso. Fiquei lá parada na expectativa, aguardando por mais.

— Receio que os cofres do Rei George não sejam fundos o bastante para levá-la para casa duas vezes em vinte e quatro horas — disse ele. — Portanto, vamos acompanhá-la até a saída.

— E devo voltar aqui com o chá? — perguntei.

Ele ficou lá com os dois pés plantados na grama e uma expressão no rosto que sugeria querer dizer qualquer coisa. Um minuto depois, os pneus Dunlop de Gladys cantavam alegremente pela estrada revestida de macadame, deixando o inspetor Hewitt — “e seus pares”, como teria dito Dafi — cada vez mais distantes.

Antes de eu ter rodado quinhentos metros, o Vauxhall me alcançou e depois me ultrapassou. Acenei feito louca quando passou por mim, mas as faces que me olharam das janelas estavam carrancudas.

Trinta metros adiante, as luzes de freio se acenderam e o carro encostou à beira da estrada. Quando parei ao lado dele, o inspetor abaixou o vidro.

— Vamos levá-la para casa. O detetive Graves vai pôr sua bicicleta no porta-mala.

— O Rei George mudou de ideia, inspetor? — perguntei altivamente.

Uma expressão como eu nunca tinha visto antes perpassou-lhe o rosto. Eu quase poderia jurar que era de preocupação.

— Não, o Rei George não mudou de opinião. Mas eu mudei.


NÃO QUERO SER DRAMÁTICA DEMAIS, mas naquela noite eu dormi o sono dos malditos. Sonhei com torres e saliências escabrosas e uma chuva que vinha do oceano, arrastada pelo vento, com odor de violetas. Uma mulher pálida de vestido elisabetano em pé ao lado da minha cama sussurrava em meu ouvido que os sinos iriam soar. Um velho marujo de casaco de linóleo sentava-se em cima de uma estaca, remendando redes com uma agulha, enquanto distante no mar um pequenino aeroplano voava em direção ao sol poente.

Quando afinal acordei, o sol brilhava na janela, e eu estava com um resfriado simplesmente miserável. Ainda antes de descer para o café da manhã, já tinha usado todos os lenços da gaveta e acabado com uma toalha de banho limpa. Nem é preciso dizer que eu não estava de bom humor.

— Nem chegue perto de mim — ordenou Felinha quando fui, às apalpadelas, até a outra ponta da mesa, fungando como uma baleia.

— Morra, sua bruxa — consegui dizer, fazendo uma cruz com os indicadores.

— Flavia!

Cutuquei meu cereal, dando uma mexida com o canto de uma torrada. A despeito dos poucos pedacinhos crocantes que restavam para reavivá-lo, a papa grudenta na tigela tinha gosto de papelão.

Minha consciência deu um tranco, um pulo como um filme de cinema mal emendado. Eu tinha adormecido à mesa.

— Qual é o problema? — ouvi Felinha perguntar. — Você está bem?

— Ela está entregue à sua “enervante sonolência, devido à devassidão ou ao deboche hesternais” — disse Dafi.

Dafi estava lendo nos últimos tempos Pelham, de Bulwer-Lytton, algumas páginas todas as noites antes de dormir, como seu livro de cabeceira, e até terminá-lo nós provavelmente seríamos fustigadas diariamente na hora do desjejum com frases obscuras em um estilo de prosa tão rígido e inflexível quanto pôquer de salão.

Eu estava me esforçando para traduzir a frase quando de repente Felinha saiu da mesa.

— Bom Deus! — ela exclamou, enrolando rapidamente o penhoar em volta dela como uma mortalha. — Que diabo é aquilo?

Uma silhueta aparecera junto da porta, nos espiando através das mãos em concha contra o vidro.

— É aquele escritor — esclareci. — O homem das casas de campo. Pemberton.

Felinha soltou um guincho e fugiu para cima, onde, eu sabia, ela iria enfiar o suéter azul justo, passar pó compacto nas suas imperfeições matinais e descer flutuando pelas escadas, fingindo ser outra pessoa: Olivia de Havilland, por exemplo. Ela sempre fazia isso quando havia um homem estranho na propriedade.

Dafi ergueu os olhos desinteressada e depois voltou à leitura. Como de costume, sobrou para mim.

Saí para o terraço, fechando a porta atrás de mim.

— Bom dia, Flavia — saudou-me Pemberton com um sorriso. — Dormiu bem?

Se eu dormi bem? Que tipo de pergunta era aquela? Aqui estava eu, no terraço, com os olhos fechando de sono, o cabelo como um ninho de ratos, o nariz escorrendo como um rio de trutas. Além disso, uma pergunta sobre a qualidade do sono de alguém não está reservada para aqueles que passaram a noite sob o mesmo teto? Eu não tinha certeza; teria de conferir na Etiqueta Completa para Senhoras, de Beeton. Felinha me dera um exemplar de presente de aniversário, mas ele ainda estava escorando a perna mais curta da minha cama.

— Não muito — confessei. — Peguei um resfriado.

— Lamento ouvir isso. Eu estava com esperanças de conseguir entrevistar seu pai sobre Buckshaw. Não gosto de ser inconveniente, mas meu tempo é limitado. Desde a guerra, o custo das acomodações longe de casa, mesmo na hospedaria mais humilde como a Treze Patos, é aviltante. Ninguém gosta de alegar pobreza, mas nós, pobres estudiosos, ainda jantamos principalmente pão e queijo, você sabe.

— Você tomou café da manhã, sr. Pemberton? — perguntei. — Tenho certeza de que a sra. Mullet pode arranjar alguma coisa.

— Muito gentil de sua parte, Flavia, mas o proprietário, sr. Stoker, preparou-me um verdadeiro banquete de duas salsichas e um ovo, e temo pelos botões de meu colete.

Não sabia muito bem como entender aquilo, e o resfriado estava me deixando irritada demais para perguntar.

— Talvez possa responder às suas perguntas — arrisquei. — O pai foi detido... — sim, era isso! Flavia, sua raposinha matreira! — O pai ficou detido na cidade.

— Oh, não creio que sejam assuntos que interessem muito a você: algumas perguntas meio complicadas sobre esgoto e as Leis sobre Áreas Delimitadas — esse tipo de coisa. Eu esperava acrescentar um apêndice sobre as mudanças arquiteturais feitas por Antony e William de Luce no século XIX. “Uma Casa Dividida”, e tudo o mais.

— Eu já ouvi falar em apêndices que são removidos — retruquei sem pensar —, mas esta é a primeira vez que ouço falar de um apêndice acrescentado.

Mesmo com o nariz escorrendo, eu ainda podia ser a melhor em trocadilhos. Um espirro molhado e explosivo arruinou o efeito.

— Talvez eu possa simplesmente entrar e dar uma olhada rápida em volta. Fazer algumas anotações. Não vou perturbar ninguém — foi a sugestão do sr. Pemberton.

Eu estava tentando pensar em sinônimos para “não”, quando ouvi o ronco de um motor, e Dogger, pilotando nosso velho trator, apareceu entre as árvores no fim da alameda, transportando uma carga de adubo composto para o jardim. O sr. Pemberton, que notou imediatamente que eu estava olhando por cima de seu ombro, voltou-se para ver o que era. Quando avistou Dogger vindo em nossa direção, acenou amistosamente.

— Aquele é o velho Dogger, não é? O fiel empregado da família?

Dogger tinha brecado, olhando em volta para ver a quem Pemberton poderia estar acenando. Quando não viu ninguém, ergueu o chapéu numa saudação, depois coçou a cabeça. Ele desceu do trator e veio gingando pelo gramado em nossa direção.

— Eu diria, Flavia — apressou-se Pemberton relanceando para seu relógio de pulso — que realmente perdi a noção do tempo. Prometi me encontrar com meu editor em Nether Eaton para dar uma olhada em uma tumba muito rara: ambas as mãos expostas, e tudo o mais. Grades extraordinárias. Ele entende de tumbas, o velho Quarrington, portanto, é melhor não o deixar esperando. Se eu deixar, ora, Tumbas e Ornamentos de Pemberton poderá nunca ser nada além de uma piscadela do olho do autor.

Ele ergueu sua mochila de artista e desceu os degraus sem pressa, fazendo uma pausa no canto da casa para fechar os olhos e inspirar profundamente, enchendo os pulmões com o revigorante ar matinal.

— Dê lembranças ao Coronel De Luce — recomendou, e então se foi.

Dogger subiu os degraus arrastando os pés, como se não tivesse dormido.

— Visitantes, srta. Flavia? — perguntou, removendo o chapéu e enxugando a testa com a manga.

— Sr. Pemberton. Ele está escrevendo um livro sobre casas de campo, ou tumbas, ou coisa assim. Queria entrevistar o pai sobre Buckshaw.

— Não creio ter ouvido o nome — disse Dogger. — Mas, também, eu não sou muito de ler. Todavia, srta. Flavia...

Eu sabia que ele ia começar um sermão completo, com parábolas e exemplos horripilantes, sobre falar com estranhos, mas não começou. Em vez disso, contentou-se em tocar a aba do chapéu com o indicador, e nós dois ficamos lá, parados, olhando fixamente para além do gramado como uma dupla de vacas. Mensagem enviada; mensagem recebida. Bom e velho Dogger. Esse era o seu jeito de ensinar.

Tinha sido Dogger, por exemplo, que pacientemente me ensinara a forçar fechaduras quando dei com ele um dia escarafunchando a porta da estufa. Ele tinha perdido a chave durante um dos seus “episódios” e estava trabalhando atarefadamente com os dentes entortados de um garfo de cozinha aposentado que encontrara em um vaso de flores.

Suas mãos tremiam muito. Sempre que Dogger ficava assim, dava a impressão de que, se você esticasse um dedo e tocasse nele, seria eletrocutado instantaneamente. Mas, apesar disso, eu me ofereci para ajudar, e alguns minutos depois ele estava me mostrando como a coisa era feita.

— É muito fácil, srta. Flavia — disse ele depois da minha terceira tentativa. Apenas tenha em mente três “tês”: torque, tensão e tenacidade. Imagine-se vivendo dentro da fechadura. Escute as pontas de seus dedos.

— Onde você aprendeu a fazer isso? — perguntei, maravilhada quando ela se abriu com um clique. Era ridiculamente fácil depois que você pegava o jeito.

— Muito tempo atrás e muito longe — respondeu Dogger, saindo da estufa ocupado demais para responder a mais perguntas.

 

Embora a luz do sol inundasse meu laboratório pela janela, eu não conseguia pensar direito. Minha cabeça estava fervilhando com as coisas que o pai me contara e as que eu desenterrara sozinha: as mortes do sr. Twining e de Horace Bonepenny.

Qual seria o significado do chapéu e da beca que eu encontrara escondidos nas telhas da Anson House? A quem pertenciam, e por que foram deixadas ali?

Tanto o relato do pai como o que estava nas páginas do Hinley Chronicle afirmaram que o sr. Twining estava usando sua beca quando despencou para a morte. Parecia muito improvável que ambos estivessem enganados.

Havia também os roubos do Vingador de Ulster de Sua Majestade e de seu gêmeo, que pertencera ao dr. Kissing.

Onde estaria o dr. Kissing agora?, perguntei-me. A srta. Mountjoy saberia? Ela parecia saber de tudo. Poderia ele ainda estar vivo? De algum modo, isso parecia duvidoso. Trinta anos se passaram desde que ele pensou que viu seu precioso selo se esvair em fumaça.

Mas minha cabeça era um turbilhão, meu cérebro estava confuso, e eu não conseguia pensar com clareza. Meu nariz estava entupido, meus olhos lacrimejavam e estava sentindo que uma dor de cabeça de rachar vinha chegando. Precisava clarear as ideias.

A culpa era minha: nunca deveria ter deixado meus pés ficarem frios. A sra. Mullet vivia dizendo: “Mantenha os pés quentes e a cabeça fria, e você nunca vai se ver espirrando na cama”. Se alguém era derrubado por um resfriado, só havia uma coisa a fazer; portanto, lá fui eu arrastando os pés para a cozinha, onde encontrei a sra. Mullet preparando uma massa.

— Você está fungando, querida — falou ela, sem erguer os olhos do rolo de macarrão. — Vou lhe preparar uma bela caneca de caldo de galinha — a sra. Mullet podia ser enlouquecedoramente perceptiva.

Às palavras “caldo de galinha”, ela abaixou a voz até um quase sussurro e deu uma olhada conspiratória por cima do ombro.

— Caldo quente de galinha é um segredo que a sra. Jacobson me ensinou no chá do Instituto Feminino. Está na família dela desde o Êxodo. Veja bem, eu não falei nada.

Uma outra pérola da sabedoria da aldeia favorita da sra. Mullet tinha a ver com eucaliptos. Ela obrigou Dogger a plantar um para ela na estufa e, assiduamente, escondia rebentos dele aqui e ali em Buckshaw como talismãs contra gripes e resfriados.

“Com eucalipto no lar, gripes e resfriados não haverás de pegar”, costumava entoar triunfalmente. E era verdade. Desde que ela começara a esconder as folhas escuras e lustrosas em lugares insuspeitos pela casa, nenhum de nós deu mais uma fungada sequer.

Até agora. Alguma coisa obviamente dera errado.

— Não, obrigada, sra. Mullet. Acabei de escovar os dentes.

Era mentira, mas foi o melhor que me ocorreu assim de repente. Além de sugerir um quê de martírio, minha resposta encerrava a vantagem adicional de reforçar minha imagem no departamento de higiene pessoal. Ao sair, surrupiei da despensa uma garrafa de grânulos amarelos rotulados como Caldo de Galinha Partington e, de uma luminária de parede no hall, me servi de um punhado de folhas de eucalipto.

Em cima, no laboratório, peguei um frasco de bicarbonato de sódio que o tio Tar, em sua caligrafia aracnídea, etiquetara como sal aeratus, e também, do seu jeito meticuloso, como “Bicarb. Sod.”, para distingui-lo do bicarbonato de potássio, que também era às vezes chamado de sal aeratus. O “Bicarb. Pot.” ficava mais à vontade em extintores de incêndio do que na barriga.

Eu conhecia aquilo como NaHCO3, que os camponeses chamavam de fermento. De algum lugar, eu me lembrava de ter ouvido que esses mesmos rústicos acreditavam no poder de uma boa dose de sais alcalinos para eliminar até o caso mais renitente de resfriado comum.

Fazia sentido quimicamente, considerei: se os sais ajudavam na cura, e o caldo de galinha também, pense no magnífico poder restaurador de um copo efervescente de caldo de galinha! Era fascinante. Eu patentearia a coisa; seria o primeiro antídoto do mundo contra o resfriado: Antigripal De Luce: Fórmula Exclusiva de Flavia!

Eu até consegui dar uma cantarolada moderadamente alegre enquanto media 230 cc de água potável em uma proveta e a coloquei sobre a chama para aquecer. Nesse meio-tempo, em um frasco tamponado, fervi os fragmentos de folhas de eucalipto e fiquei observando as gotas de óleo cor de palha começarem a se formar na extremidade da serpentina de destilação.

Quando a água já estava em plena fervura, tirei-a do calor e a deixei esfriar por vários minutos; depois coloquei duas colheres de chá bem cheias do Caldo de Galinha Partington e uma colher de sopa do velho NaHCO3.

Dei-lhe uma boa mexida e deixei espumar como o Vesúvio por cima da boca da proveta. Tampei o nariz e virei metade do preparado: glu-glu.

Galinha efervescente! Ó, Senhor, protegei a todos nós que labutamos nas vinhas da química experimental!

Destampei o frasco e joguei a água de eucalipto, com folhas e tudo, dentro do que restara da sopa amarela. Então, tirando meu suéter e o colocando sobre a cabeça como um capuz, inalei o vapor canforáceo de galinha e eucalipto e, em algum lugar dentro das cavernas pegajosas da minha cabeça, pensei sentir as narinas comemorarem em rendição. Já estava me sentindo melhor.

Ouvi uma batida brusca na porta e quase pulei fora da minha pele. Era tão raro alguém vir para esta parte da casa que um toque na porta era tão inesperado como um daqueles acordes sinistros de órgão em um filme de terror, quando uma porta se abre para uma galeria de cadáveres. Puxei o ferrolho, e lá estava Dogger, torcendo o chapéu como uma lavadeira irlandesa. Pude ver que ele estava tendo um de seus episódios.

Estendi o braço e toquei as mãos dele, e elas se aquietaram imediatamente. Eu tinha observado — embora não faça uso frequente do fato — que há ocasiões em que um toque pode dizer mais coisas que as palavras.

— Qual é a senha? — perguntei, juntando os dedos e colocando as mãos sobre a cabeça.

Durante quatro segundos e meio Dogger me olhou com cara de nada, e então os músculos tensos da sua mandíbula relaxaram lentamente e ele quase sorriu. Como um autômato, ele entrelaçou os dedos e copiou meu gesto.

— Está na ponta da língua — hesitou. — Me lembro agora: “arsênico”.

— Cuidado para não engolir — repliquei. — É veneno.

Com uma notável demonstração de pura força de vontade, Dogger forçou-se a sorrir. O ritual tinha sido adequadamente observado.

— Entre, amigo — eu disse, e abri a porta.

Dogger entrou e olhou em volta maravilhado, como se tivesse sido subitamente transportado para o laboratório de um alquimista na antiga Suméria. Fazia tanto tempo que ele estivera nesta parte da casa que se esquecera de como era a sala.

— Quanto vidro — observou, trêmulo.

Puxei a velha cadeira Windsor do tio Tar da escrivaninha e a firmei enquanto Dogger se encaixava entre os braços de madeira.

— Sente-se. Vou preparar alguma coisa para você.

Enchi um frasco limpo de água e coloquei-o em cima de uma rede de arame. Dogger sobressaltou-se com o pequeno pop! do bico de Bunsen, quando apliquei o fósforo.

— Saindo — imitei uma garçonete. — Pronto num instante.

O bom dos objetos de vidro de laboratório é que neles a água ferve na velocidade da luz. Joguei uma colherada de folhas pretas em uma proveta. Quando ela ficou de um vermelho profundo, ofereci a Dogger, que olhou com ar cético.

— Tudo bem — esclareci. — É chá Tetley’s.

Ele bebericou o chá cautelosamente, soprando a superfície para esfriar. Enquanto bebia, lembrei-me de que há uma razão para nós ingleses sermos conduzidos mais pelo chá do que pelo Palácio de Buckingham ou pelo governo de Sua Majestade: além da alma, a infusão de chá é a única coisa que nos diferencia dos grandes macacos — ou pelo menos foi isso que o vigário comentou com o pai, que contou para Felinha, que contou para Dafi, que contou para mim.

— Obrigado. Já me sinto eu mesmo de novo. Mas há uma coisa que preciso contar-lhe, srta. Flavia.

Empoleirei-me na beirada da mesa, tentando parecer amigável.

— Diga lá!

— Bem — começou Dogger —, a senhorita sabe que há ocasiões em que às vezes tenho... isto é, de quando em quando, há momentos em que eu...

— É claro que sei, Dogger. Não temos todos?

— Eu não sei. Não me lembro. Veja bem, a questão é que, quando eu estava... — Seus olhos reviraram como os de uma vaca indo para o matadouro. — Eu acho que posso ter feito alguma coisa para alguém. E agora eles foram e prenderam o coronel por isso.

— Você está se referindo a Horace Bonepenny?

Houve um estardalhaço de vidro quebrado quando Dogger deixou cair o copo com o chá no chão. Corri para pegar um pano e, por alguma razão estúpida, toquei de leve as mãos dele, que estavam completamente secas.

— O que você sabe sobre Horace Bonepenny? — ele perguntou, segurando meu pulso com um aperto férreo. Se não fosse Dogger, teria ficado aterrorizada.

— Eu sei tudo sobre ele — respondi, removendo gentilmente seus dedos. — Pesquisei na biblioteca. Falei com a srta. Mountjoy, e o pai me contou a história inteira no domingo à noite.

— Você viu o Coronel De Luce no domingo à noite? Em Hinley?

— Sim. Fui de bicicleta. Contei a você que ele estava bem. Não se lembra?

— Não. Às vezes não me lembro.

Seria possível? Teria Dogger encontrado Horace Bonepenny em algum lugar dentro da casa, ou no jardim, depois lutado com ele e causado sua morte? Teria sido um acidente? Ou havia mais alguma coisa?

— Conte-me o que aconteceu. Conte-me o quanto se lembrar.

— Eu estava dormindo — começou. — Ouvi vozes, vozes altas. Levantei e fui até o estúdio do coronel. Havia alguém no hall.

— Era eu — falei. — Eu estava no hall.

— Era você. Você estava no hall.

— Sim, você me mandou dar o fora.

— Eu disse? — Dogger parecia chocado.

— Sim, você me mandou voltar para a cama.

— Um homem saiu do estúdio — continuou Dogger subitamente. — Eu me esquivei para trás do relógio, e ele passou bem na minha frente. Poderia ter esticado a mão e tocado nele.

Ficou claro que ele pulou para um ponto no tempo depois que eu voltara para a cama.

— Mas você não... tocou nele, quero dizer.

— Não, então, não. Eu o segui até o jardim. Ele não me viu. Fiquei junto da parede atrás da estufa. Ele estava no meio dos pepinos... comendo alguma coisa... agitado... falando consigo mesmo... uma linguagem obscena... parece que não reparou que estava fora do caminho. E então começaram os fogos.

— Fogos? — perguntei.

— Você sabe, bombinhas, rojões, essas coisas. Achei que devia haver alguma festa na aldeia. É junho, você sabe. Eles muitas vezes têm festejos em junho.

Não houvera festejo nenhum; disso eu tinha certeza. Eu preferiria me arrastar por toda a extensão do Amazonas com tênis furados a perder uma oportunidade de brincar de atirar cocos na Tia Sally e me entupir de biscoitos e morangos com creme. Não, eu estava muito bem informada sobre as datas dos festejos.

— E, então, o que aconteceu? — perguntei. Poderíamos pensar nos detalhes mais tarde.

— Devo ter caído no sono — disse Dogger. — Quando acordei, estava deitado na grama. Ela estava molhada. Me levantei e fui para a cama. Não estava me sentindo bem. Devo ter tido um de meus surtos. Não me lembro.

— E você acha que, durante seu surto, pode ter matado Horace Bonepenny?

Dogger assentiu melancolicamente. Ele tocou a própria nuca.

— Quem mais estava lá? — perguntou.

Quem mais estava lá? Onde eu tinha ouvido aquilo antes? É claro! O inspetor Hewitt não tinha usado aquelas mesmas palavras em relação ao pai?

— Incline a cabeça, Dogger — pedi.

— Sinto muito, srta. Flavia. Se eu matei alguém, não tive a intenção.

— Incline a cabeça para baixo.

Dogger afundou na cadeira e inclinou-se para a frente. Quando ergui seu colarinho, ele se encolheu.

No seu pescoço, abaixo e atrás da orelha, havia uma grande e suja contusão roxa com o tamanho e a forma de um salto de sapato. Ele se encolheu quando a toquei.

Deixei escapar um assobio baixinho.

— Fogos, uma ova! — soltei. — Não eram fogos, Dogger. Você foi verdadeiramente agredido. E você esteve andando por aí com esse inchaço no pescoço há dois dias? Deve doer demais!

— Dói, srta. Flavia, mas já tive machucados piores.

Devo ter olhado para ele com um ar incrédulo.

— Eu dei uma examinada nos meus olhos no espelho — ele acrescentou. — As pupilas estão do mesmo tamanho. Uma pequena concussão, mas não muito grave. Logo vou superar.

Eu ia perguntar onde ele fora buscar aquela informação, quando acrescentou depressa: — Mas isso é só uma coisa que eu li em algum lugar.

De repente pensei em uma pergunta mais importante.

— Dogger, como você poderia ter matado alguém se estava inconsciente?

Ele ficou ali parado, parecendo um menininho chateado por levar uma bronca. Sua boca abria e fechava, mas não saía nada.

— Você foi atacado! — exclamei. — Alguém atingiu você com um sapato!

— Não, eu acho que não — discordou tristemente. — Veja bem, tirando Horace Bonepenny, eu estava sozinho no jardim.


FORAM TRÊS QUARTOS DE HORA TENTANDO CONVENCER Dogger a me deixar colocar uma compressa de gelo em sua nuca, mas ele não permitiu. Descanso, ele me assegurou, era o único remédio para aquilo, e correu para o quarto.

Da minha janela, pude ver Felinha espichada em cima de um cobertor no gramado, tentando receber o sol nos dois lados do rosto, acompanhada de alguns exemplares da revista Picture Post. Fui buscar um velho binóculo do exército do pai para ver mais de perto o estado da pele dela. Depois de uma boa olhada, abri o meu caderno e escrevi:

 

Terça-feira, 6 de junho de 1950, 9h15 Aparência da cobaia continua normal, 96 horas depois da administração. Solução fraca demais? Cobaia imune? É de conhecimento geral que os esquimós da Ilha de Baffin são imunes à hera venenosa. Poderia isso significar o que eu penso?

 

Mas meu coração não estava naquilo. Era difícil estudar Felinha quando o pai e Dogger estavam tão presentes em meus pensamentos. Eu precisava organizar minhas ideias.

Virei para uma página em branco e escrevi:

 


Possíveis suspeitos


Pai: tem o melhor motivo de todos. Conheceu o homem morto durante a maior parte da vida; foi ameaçado com denúncia; foi ouvido discutindo com a vítima logo antes do assassinato. Ninguém sabe o paradeiro na hora em que o crime foi cometido. Inspetor Hewitt já o prendeu e o acusou de homicídio; portanto, sabemos onde estão as suspeitas do inspetor!


Dogger: uma espécie de zebra. Não sei muita coisa sobre seu passado, exceto que é obstinadamente leal ao pai. Ouviu o pai discutir com Bonepenny (mas eu também) e pode ter decidido eliminar a ameaça de denúncia. Dogger é sujeito a “episódios” durante e após os quais a memória é afetada. Poderia ter matado Bonepenny durante um desses? Poderia ter sido um acidente? Mas, se foi isso, quem o atingiu na cabeça?

Sra. Mullet: nenhum motivo, a não ser infligir vingança contra a pessoa que deixou jack snipe morto na soleira de sua cozinha. Velha demais.

Daphne de Luce e Ophelia Gertrude de Luce: (seu segredo está exposto, Gert!) Não me faça rir! Essas duas estão tão absortas em livros e espelhos que não matariam uma barata que aparecesse no próprio prato do jantar. Não conheciam o morto, não tinham motivo e estavam roncando quando Bonepenny encontrou seu fim. Caso encerrado, no que concerne a essas duas debiloides.

Mary Stoker: motivo: Bonepenny a assediou na Treze Patos. Poderia tê-lo seguido até Buckshaw e o despachado no meio dos pepinos? Parece improvável.

Tully Stoker: Bonepenny estava hospedado na Treze Patos. Teria Tully ouvido o que aconteceu com Mary e decidido se vingar? Ou seria um hóspede pagante mais importante que a honra da filha?

Ned Cropper: Ned está enrabichado com Mary (e com outras). Sabia o que aconteceu entre Mary e Bonepenny. Pode ter decidido acabar com ele. Bom motivo, mas nenhuma evidência de que ele esteve em Buckshaw naquela noite. Poderia ter matado Bonepenny em outro lugar e trazido para cá em um carrinho de mão? Mas Tully também poderia. Ou Mary!

Srta. Mountjoy: motivo perfeito: acredita que Bonepenny (e o pai) mataram seu tio, o sr. Twining. Problema é idade: não posso imaginar Mountjoy lutando com alguém com a altura e a força de Bonepenny. A não ser que tenha usado algum tipo de veneno. Questão: qual foi a causa oficial da morte? Hewitt me contaria?

Inspetor Hewitt: policial. Tenho de incluir somente para ser justa, completa e objetiva. Não estava em Buckshaw no momento do crime e não tem motivo conhecido. (Mas ele frequentou Greyminster?)

Sargentos Detetives Woolmer & Graves: Idem.

Frank Pemberton: só chegou em Buckshawdepois do assassinato.

Maximilian Brock: gagá; velho demais; nenhum motivo.

 

Li e reli essa lista três vezes, esperando que nada tivesse me escapado. E então percebi algo que me deixou a cabeça funcionando a toda. Horace Bonepenny não era diabético? Eu tinha encontrado seus frascos de insulina na Treze Patos, exceto a seringa. Ele a teria perdido? Teria sido roubada?

Ele havia viajado, muito provavelmente de barco, de Stavanger, na Noruega, para Newcastle, via Tyne, e de lápor trem até York, onde deve ter feito baldeação para Doddingsley, de onde deve ter tomado um ônibus ou táxi para Bishop’s Lacey.

E, até onde eu sabia, durante todo aquele tempo ele não havia comido! A crosta de torta no seu quarto (como evidenciado pela pena entranhada) era daquela onde ele tinha escondido o jack snipe morto a fim de contrabandeá-lo para a Inglaterra. Tully Stoker não havia contado ao inspetor que seu hóspede tomara uma cerveja no bar? Sim — mas não houve menção à comida!

E se, depois de vir a Buckshaw e ameaçar o pai, ele tivesse saído da casa pela cozinha — o que ele fez quase certamente — e visto a torta na janela? E se ele tivesse se servido de uma fatia e a devorado, depois saído e entrado em choque? As tortas de creme da sra. M. tinham esse efeito sobre todos nós em Buckshaw, e nenhum de nós era sequer diabético!

E se tivesse sido a torta da sra. Mullet, afinal? Nada além de um estúpido acidente? E se todas as pessoas da minha lista fossem inocentes? E se Bonepenny não tivesse sido assassinado?

Mas se isso fosse verdade, Flavia, disse uma vozinha triste e serena dentro de mim, por que o inspetor Hewitt prendeu o pai, imputando-lhe acusações?

Embora meu nariz ainda estivesse escorrendo e os olhos ainda lacrimejassem, achei que talvez a minha poção de galinha estivesse começando a fazer efeito. Reli minha lista de suspeitos e pensei até a cabeça latejar.

Eu não estava chegando a lugar algum. Decidi afinal dar uma saída, sentar na grama, inalar um pouco de ar fresco e desviar minha cabeça para algo completamente diferente. Eu poderia pensar sobre óxido nitroso, por exemplo, N2O, ou gás hilariante: algo que Buckshaw e seus habitantes estavam precisando urgentemente.

Gás hilariante e assassinato pareciam ser parceiros deveras estranhos, mas seriam realmente?

Pensei em minha heroína, Marie-Anne Paulze Lavoisier, uma das gigantes da química, cujo retrato estava grudado no espelho do meu quarto, junto com aqueles outros imortais, o cabelo parecendo um balão de ar quente, e o marido olhando-a com adoração, parecendo não se importar com o tolo penteado. Marie sabia que tristeza e tolice frequentemente andam de mãos dadas. Lembrei-me de que, durante a Revolução Francesa, no laboratório do seu marido Antoine — justo quando eles haviam selado todos os orifícios corporais de seu assistente com piche e cera de abelhas, enrolado-o em um tubo de seda envernizada e o feito respirar através de um canudinho para dentro dos instrumentos de medição de Lavoisier —, naquele exato momento, com Marie-Anne ao lado, desenhando esboços dos procedimentos, as autoridades derrubaram a porta a pontapés, irromperam na sala e arrastaram seu marido para a guilhotina.

Uma vez contei essa história cruelmente divertida para Felinha.

“A necessidade de heroínas geralmente é encontrada no tipo de pessoa que mora em cabanas”, disse minha irmã, com uma fungadela arrogante.

Mas isso não estava levando a nada. Meus pensamentos eram caóticos, como palhas em um monte de feno. Precisava encontrar um catalisador como, por exemplo, tivera Kirchoff. Ele havia descoberto que o amido fervido na água continuava sendo amido, mas quando apenas umas poucas gotas de ácido sulfúrico eram adicionadas, era transformado em glucose. Certa vez repeti o experimento para me assegurar de que era assim, e era. Cinzas às cinzas, amido a açúcar. Uma pequena janela para a criação.

Voltei para dentro de casa, que parecia agora estranhamente silenciosa. Parei à porta da sala de estar e escutei, mas não havia nenhum som de Felinha ao piano ou de Dafi virando páginas. Abri a porta.

A sala estava vazia. E então me lembrei de que, na hora do desjejum, minhas irmãs tinham falado em caminhar até Bishop’s Lacey a fim de despachar para o pai as cartas que cada uma delas havia escrito. Além da sra. Mullet, que estava nas profundezas da cozinha, e de Dogger, descansando no andar de cima, eu estava, talvez pela primeira vez, sozinha nos salões de Buckshaw.

Liguei o rádio para me fazer companhia e, quando as válvulas se aqueceram, o ambiente foi preenchido pelo som de uma opereta. Era O Mikado, de Gilbert e Sullivan, uma das minhas favoritas. Não seria adorável, pensei certa vez, se Felinha, Dafi e eu pudéssemos ser tão alegres e despreocupadas como Yum-Yum e suas duas irmãs?

 


Na escola, somos três jovenzinhas,


Todas nós muito atrevidinhas,


Cantamos em trio, tão alegrinhas,


Três jovenzinhas na escola!

 

 

Sorri quando elas três cantaram:

 


Para nós três, tudo é só brincadeira,


Ninguém escapa, e a gente nem dá bola!


Grande piada, a vida é brejeira


Três jovenzinhas na escola!

 

 

Envolvida na música, joguei-me em uma poltrona exageradamente estofada e deixei as pernas penduradas por cima do braço, a posição em que a natureza tencionava que se ouvisse música, e pela primeira vez em dias senti os músculos do meu pescoço relaxarem.

Devo ter caído em um breve sono, ou talvez apenas um devaneio — não sei —, mas quando despertei, Koko, o Grande Senhor Executor, estava cantando:

 


E a ele pois foi dada


A masmorra por morada...

 

 

As palavras me fizeram pensar imediatamente no pai, e me vieram lágrimas aos olhos. Isso não era opereta, refleti. A vida não era uma piada brejeira, e Felinha, Dafi e eu não éramos três jovenzinhas na escola. Éramos três meninas cujo pai fora acusado de assassinato. Pulei da cadeira para desligar o rádio, mas quando estendi a mão para o botão, a voz do Grande Senhor Executor flutuou lugubremente do alto-falante:

 


Minha meta tão sublime


Que finalmente me anime


Que o castigo sirva ao crime —


Que o castigo sirva ao crime...

 

 

Que o castigo sirva ao crime. É claro! Flavia, Flavia, Flavia! Como você pôde não ver?

Como uma bola de aço de rolamento caindo dentro de um vaso de vidro polido, alguma coisa na minha cabeça fez clique, e eu soube, tão certo como sei meu próprio nome, como Horace Bonepenny fora assassinado.

Somente mais uma coisa — bem, duas coisas na verdade; três, no máximo — era necessária para fechar esse caso inteiro como uma caixa de bombons e presenteá-la ao inspetor Hewitt com fitas vermelhas e tudo. Depois que ele ouvisse minha história, tiraria o pai do xadrez antes que uma pessoa normal conseguisse dizer “paralelepípedo”.

 

A sra. Mullet ainda estava na cozinha trabalhando em uma galinha.

— Sra. M., posso ser franca com a senhora?

Ela ergueu os olhos para mim e enxugou as mãos no avental.

— É claro, querida. Você não é sempre?

— É sobre Dogger.

O sorriso em seu rosto se congelou enquanto ela virou as costas e começou a lidar laboriosamente com a bola de barbante com o qual começou a costurar a ave.

— Eles não fazem mais as coisas como antes — resmungou ela quando ele se partiu. — Nem mesmo barbante. Ora, não faz nem uma semana que eu disse para o Alf: “Aquele barbante que você trouxe da papelaria...”.

— Por favor, sra. Mullet — implorei. — Há uma coisa que preciso saber. É uma questão de vida ou morte! Por favor!

Ela olhou para mim por cima dos óculos como um representante da igreja, e pela primeira vez me senti em sua presença como uma menininha.

— A senhora disse uma vez que Dogger esteve na prisão, que o fizeram comer ratos, que ele foi torturado.

— É verdade, querida — concordou. — Meu Alf diz que eu não devia ter deixado isso escapar. Mas nós não devemos falar sobre isso. Os nervos do pobre Dogger estão em farrapos.

— Como a senhora sabe disso? Sobre a prisão, quero dizer?

— Meu Alf também esteve no exército, você sabe. Ele serviu por algum tempo com o coronel, e com Dogger. Ele não fala sobre isso. A maioria deles não fala. Meu Alf voltou para casa em segurança, sem problemas maiores do que sonhos maus, mas não é assim com muitos deles. É como uma irmandade, você sabe, o exército; como se todos fossem um só espalhado por toda a face do globo. Eles sempre sabem onde estão todos os velhos companheiros e o que aconteceu com eles. É estranho, algo mediúnico.

— Dogger matou alguém? — perguntei à queima-roupa.

— Tenho certeza que sim, querida. Todos eles mataram. Era o serviço deles, não era?

— Além do inimigo.

— Dogger salvou a vida do seu pai — revelou. — Mais de uma vez. Ele era um ordenança médico, ou coisa assim, e dos bons. Dizem que ele tirou uma bala do peito do seu pai, bem ao lado do coração. Justo quando ele estava costurando, algum sujeito da RAF perdeu a cabeça por causa de um choque de bomba. Tentou atacar todo mundo na tenda com um facão. Dogger o deteve.

A sra. Mullet apertou bem o último nó e usou uma tesoura para cortar fora a ponta do barbante.

— Deteve?

— Sim, querida. Deteve.

— Você quer dizer que ele o matou.

— Depois, Dogger não conseguia se lembrar. Ele estava tendo um daqueles seus momentos, você sabe, e...

— E o pai pensa que isso aconteceu de novo; que Dogger salvou a vida dele outra vez matando Horace Bonepenny! É por isso que ele está assumindo a culpa!

— Eu não sei, querida, é certo que não sei. Mas se ele fez isso, seria típico do coronel.

Tinha de ser isso; não havia outra explicação. O que foi que o pai disse quando eu contei que Dogger também tinha ouvido sua discussão com Bonepenny? “É o que eu temia mais que qualquer outra coisa”, foram suas palavras exatas.

Era estranho, realmente — quase ridículo — como alguma coisa saída de Gilbert e Sullivan. Eu havia tentado assumir a culpa para proteger o pai. Ele estava assumindo a culpa para proteger Dogger. A questão era: quem Dogger estava protegendo?

— Obrigada, sra. M. Vou manter nossa conversa em segredo. Estritamente confidencial.

— Conversa de garotas — disfarçou, com um olhar de soslaio e um horrível sorriso forçado.

O “conversa de garotas” foi demais. Íntimo demais, depreciador demais. Alguma coisa em mim que era menos do que nobre ergueu-se das profundezas, e eu fui transformada num piscar de olhos em “Flavia, a Vingadora de Trancinhas”, cuja missão era jogar uma chave inglesa naquela assustadora e irreversível máquina de fazer tortas.

— Sim — assenti. — Conversa de garotas. Já que estamos falando francamente, este é o melhor momento para contar à senhora que nenhum de nós em Buckshaw realmente gosta da sua torta de creme. De fato, nós detestamos.

— Ah, mas eu sabia disso muito bem — confessou.

— A senhora sabia? — Fiquei desconcertada demais para pensar em mais do que três palavras.

— É claro que sim. As cozinheiras sabem tudo, eles dizem,e eu não sou diferente de nenhuma outra. Sei que os De Luce e as tortas de creme não se misturam desde que a sra. Harriet estava viva.

— Mas...

— Por que eu faço? Porque o Alf gosta de uma boa torta de creme de vez em quando. A sra. Harriet costumava me dizer: “Os De Luce são ruibarbos arrogantes e groselhas espinhosas, sra. M., enquanto o seu Alf é um tranquilo e doce homem, fã de torta de creme. Gostaria que você fizesse uma torta de creme, ocasionalmente, para nos lembrar dos nossos hábitos arrogantes, e quando torcermos o nariz para ela, ora, você deve levá-la para casa, para o seu Alf como um doce pedido de desculpas”. E eu não me importo de dizer que levei para casa um considerável número de pedidos de desculpas nesses mais de vinte anos desde então.

— Por isso, a senhora não vai precisar de mais um — falei.

E então fugi. Tão rápido que ninguém poderia me ver de costas por causa da poeira.


PAREI NO CORREDOR, COMPLETAMENTE IMÓVEL, e escutei. Por causa dos pisos de parquete e lambris de madeira dura, Buckshaw transmitia sons tão perfeitos quanto o Royal Albert Hall. Mesmo em silêncio total, Buckshaw tinha seu próprio silêncio singular; um silêncio que eu reconheceria em qualquer lugar.

O mais calmamente que pude, peguei o telefone e dei algumas batidas no gancho com o dedo.

— Eu gostaria de fazer uma chamada interurbana para Doddingsley. Desculpe, não tenho o número, mas é a estalagem de lá: Raposa Feliz ou Rabeca e Funil. Esqueci o nome certo, mas acho que tem um R e um F.

— Um momento, por favor — disse a voz entediada, mas eficiente, do outro lado da linha crepitante.

Isso não deve ser muito difícil, pensei. Estando localizada na frente da plataforma do trem, do outro lado da rua, a “RF” ou como quer que se chame, era a estalagem mais próxima à estação, e Doddingsley, afinal, não era nenhuma metrópole.

— As únicas que tenho na listagem são a Vinhedo e Ao Cocheiro Alegre.

— É isso — exclamei. — Ao Cocheiro Alegre!

O “erre-efe” deve ter borbulhado do lodo no fundo da minha cabeça.

— O número é Doddingsley dois três — disse a voz. — Para futura referência.

— Obrigada — murmurei, enquanto os toques do outro lado começavam sua pequena repetição.

— Doddingsley dois três. Ao Cocheiro Alegre. Cleaver falando.

Cleaver, presumi, era o proprietário.

— Eu gostaria de falar com o sr. Pemberton, por favor. É muito importante.

Eu aprendera que qualquer barreira — mesmo uma em potencial — era mais facilmente superada simulando urgência.

— Ele não está — disse Cleaver.

— Ai, meu Deus! — suspirei, exagerando um pouquinho. — Lamento que tenha me desencontrado dele. Poderia me dizer quando ele partiu? Talvez então eu saiba a que horas esperá-lo.

Flavia, pensei, você devia estar no Parlamento.

— Ele partiu no sábado de manhã. Três dias atrás.

— Oh, muito obrigada! — sussurrei numa voz rouca que, esperava, poderia enganar o Papa. — Você é muito gentil.

Encerrei a ligação e devolvi o fone ao gancho gentilmente como se ele fosse um pintinho recém-chocado.

— O que você pensa que está fazendo? — demandou uma voz abafada.

Dei meia-volta e lá estava Felinha, com um cachecol em volta da parte de baixo do rosto.

— O que você está fazendo? — ela repetiu. — Você sabe perfeitamente bem que não é para usar o telefone.

— O que você está fazendo? — rebati. — Vai andar de tobogã?

Felinha tentou me agarrar, e o cachecol caiu, revelando um par de lábios vermelhos e inchados que a tornavam a imagem escarrada de um mandril de Camarões.

Eu fiquei maravilhada demais para rir. A hera venenosa que eu injetara no batom de Felinha deixara sua boca como uma cratera empolada que poderia ser creditada ao Monte Popocatepetl. Meu experimento tinha sido bem-sucedido afinal. Que soem as trombetas!

Infelizmente, eu não tinha tempo para anotar aquilo; meu caderno teria de esperar.

 

Maximilian, de xadrez mostarda, estava empoleirado na beirada do cocho de pedra que ficava na sombra da cruz do mercado, os pés pequeninos balançando no ar como Humpty Dumpty, a criatura-ovo que debate com Alice. Ele era tão pequeno que quase não o vi.

— Haroo, mon vieux, Flavia! — bradou, e eu fiz Gladys parar, derrapando bem junto das biqueiras de seus sapatos de verniz.

Pega na armadilha outra vez! O jeito era tirar o melhor proveito que pudesse da situação.

— Olá, Max. Tenho uma pergunta para você.

— Oh-oh! — disse ele. — Assim sem mais! Uma pergunta! Sem preliminares! Sem falar das irmãs? Nenhum boato das grandes salas de concertos do mundo?

— Bem — respondi um pouco embaraçada. — Eu ouvi O Mikado no rádio.

— E como foi? Dinamicamente falando? Eles sempre têm uma tendência para encenar Gilbert e Sullivan aos gritos, você sabe.

— Esclarecedor — completei.

— Ahá! Você precisa me contar de que maneira. O caro Arthur compôs algumas das músicas mais sublimes já escritas nesta nobre ilha: O acorde perdido, por exemplo. G. e S. me fascinam muito. Você sabia que a imortal parceria deles foi destruída por causa de uma discordância sobre o custo de um tapete?

Olhei atentamente para ele, para ver se estava caçoando, mas parecia estar falando sério.

— É claro que estou morrendo de vontade de saber de você sobre os recentes desprazeres em Buckshaw, Flavia, querida, mas sei que seus lábios estão triplamente selados pela modéstia, lealdade e legalidade — e não necessariamente nessa ordem, estou correto?

Assenti com a cabeça.

— A sua pergunta ao oráculo, então?

— Você esteve em Greyminster?

Max começou a dar risadinhas como um passarinho amarelo.

— Oh, querida, não. Nada de tão grandioso, receio. Meus estudos foram no continente, Paris para ser preciso, e não necessariamente em local fechado. Meu primo Lombard, no entanto, é um velho greyminsteriano. Ele sempre fala muito favoravelmente daquele lugar, quando não está nas corridas ou jogando em Montfort.

— Ele já mencionou o diretor, dr. Kissing?

— O homem dos selos? Ora, minha cara menina, ele raramente fala de outra coisa. Idolatrava o velho cavalheiro. Alega que o velho Kissing fez dele o que é hoje — o que não é grande coisa, mas ainda assim...

— Será que ele ainda está vivo? O dr. Kissing, quero dizer. Se estiver, deve estar muito velho, não é? Aposto tudo o que tenho que ele morreu há séculos.

— Então você perderia todo o seu dinheiro! — exclamou Max, com um grito de entusiasmo. — Cada bendito penny!

 

Rook’s End ficava instalada entre as dobras de um confortável leito formado pela Colina Squires e Jack O’Lantern, este último um curioso afloramento da paisagem que, a distância, parecia ser um túmulo da Idade do Ferro, mas, chegando mais perto, provava ser substancialmente maior e com o formato de uma caveira.

Segui com Gladys para lá, num caminho que entrava pelo que seria a mandíbula da caveira. No final da pista, sebes densas abriam como que um parênteses para Rook‘s End. Seus gramados se estendiam para leste, oeste e sul, negligenciados e eriçados. Apesar do sol, colunas de névoa ainda flutuavam nas sombras acima da grama revolta. Aqui e ali a ampla extensão verde era quebrada por uma daquelas enormes, tristes faias, cujas raízes maciças e ramos pendentes sempre me lembravam uma família de elefantes melancólicos errando solitários pela savana africana.

Embaixo das faias, duas senhoras antiquadas flanavam em um diálogo animado, como se estivessem competindo para o papel de Lady Macbeth. Uma estava vestindo uma diáfana camisola de musselina e uma touca que parecia, de algum modo, ter escapado do século XVIII, enquanto sua companheira, envolvida em um vestido trapézio azul-cianeto, usava brincos de latão do tamanho de pratos de sopa.

A casa em si era o que muitas vezes se chama romanticamente de “lar assistencial”. Outrora a mansão ancestral da família de Lacey, de onde Bishop’s Lacey tirou seu nome (e, pelo que dizem, era bem remotamente relacionada com os De Luce), o lugar foi regredindo por etapas: de casa de campo de um inventivo e bem-sucedido mercador de linho francês até o que é hoje, um hospício particular ao qual Dafi teria instantaneamente atribuído o nome de “A Casa Desolada”. Quase desejei que ela estivesse aqui.

Dois automóveis empoeirados, encostados um no outro no pátio da frente, eram testemunha da escassez tanto de pessoal como de visitantes. Largando Gladys ao lado de uma velha araucária-do-chile, subi cautelosamente os degraus irregulares e cobertos de musgo até a porta da frente.

Uma placa pintada à mão dizia “Toque Aqui”, e então dei uma puxada na alça esmaltada. Dentro da casa soou um timbre metálico, como um sino de vaca, anunciando minha chegada a pessoas desconhecidas.

Como nada aconteceu, toquei de novo. Do outro lado do gramado, as duas senhoras tinham começado a encenar um chá da tarde, com elaboradas cortesias elegantes e dedos encurvados em xícaras e pires invisíveis.

Apertei o ouvido contra a porta maciça, mas a não ser por um fraco ruído de fundo, que devia ser o som do edifício respirando, não consegui ouvir nada. Empurrei a porta e entrei.

A primeira coisa que me impressionou foi o cheiro do lugar: uma mistura de repolho, colchões emborrachados, lavagem e morte. Por baixo daquilo, como um forro impermeável de tenda, um odor forte de desinfetante para lavar pisos — cloreto de dimetil-benzil-amônio, a julgar pelo cheiro —, um ligeiro aroma de amêndoas amargas, que era inusitadamente parecido com o de cianeto de hidrogênio, o gás utilizado para exterminar assassinos nas câmaras de gás norte-americanas.

O hall de entrada era pintado de verde-maçã-hospício: paredes, portas, janelas, objetos de madeira e tetos, todos verdes. Os pisos eram cobertos por um linóleo marrom barato, tão arranhado por goivas gladiatórias que parecia ter sido aproveitado dos restos do Coliseu romano; no que eu pisava em uma das suas bolhas marrons pustulentas, a coisa deixava escapar um chiado asqueroso, e fiz uma nota mental para verificar se cor pode causar náusea.

Contra a parede oposta, em uma cadeira de rodas cromada, um homem muito velho estava sentado olhando diretamente para cima, a boca escancarada, como se estivesse esperando por um milagre iminente a ocorrer em algum lugar perto do teto.

Afastada para um lado, uma escrivaninha, vazia a não ser por uma campainha de prata e um cartão sujo e engordurado onde estava escrito “Toque Aqui”, sugerindo alguma presença oficial, porém invisível.

Dei quatro batidas secas na campainha. A cada ding, o velho piscou violentamente, mas não tirou os olhos do teto acima da sua cabeça.

De repente, como se tivesse se esgueirado através de um painel secreto nos revestimentos da parede, uma mulher diminuta se materializou. Usava uniforme branco e um gorro azul, embaixo do qual ela estava atarefadamente enfiando, com um dos indicadores, fiapos flácidos de cabelos cor de palha molhada.

Ela parecia ter acordado a contragosto e sabia muito bem que eu sabia disso.

— Sim? — disse ela numa voz tênue porém eficiente, uma voz padrão de hospital.

— Vim para ver o dr. Kissing — informei. — Sou a tataraneta dele.

— O dr. Isaac Kissing? — perguntou ela.

— Sim, dr. Isaac Kissing. Vocês têm mais de um aqui?

Em silêncio, a “Fantasma Branca” girou nos calcanhares, e eu a segui por uma passagem em arco para dentro de um estreito solário que corria por toda a extensão do edifício. A meio caminho por aquela galeria ela parou, apontou um dedo fino como o do terceiro fantasma em Conto de Natal e se foi.

No outro extremo da sala com janelas altas, sob o único raio de sol a penetrar a escuridão que pairava sobre o lugar, um velho estava sentado sobre uma cadeira de vime, com um halo de fumaça azul erguendo-se lentamente sobre a cabeça. Em desordem sobre uma mesinha ao seu lado havia uma pilha de jornais ameaçando escorregar para o chão.

Ele estava enrolado em um robe cor de rato — como Sherlock Holmes, a não ser pelo fato de que era malhado, como um leopardo, por buracos queimados por cigarro. Embaixo disso havia visivelmente um terno preto desbotado e um colarinho alto com abas, de safra ancestral. Seus cabelos compridos e cacheados de cor amarelo-acinzentada estavam coroados por um chapéu pequeno em forma de ninho, de veludo cor de ameixa. Um cigarro aceso pendia de seus lábios, a cinza pendurada como uma lesma mumificada.

— Olá, Flavia — cumprimentou ele. — Eu estava esperando por você.

 

Uma hora se passou: uma hora durante a qual eu cheguei a me dar conta, pela primeira vez, do que havíamos perdido na guerra. Não tivéramos um começo especialmente bom, o dr. Kissing e eu.

— Devo avisá-la logo de início que não estou na minha melhor forma para conversar com garotas — anunciou ele.

Mordi o lábio e fiquei de boca fechada.

— Um menino pode ser transformado em um homem civilizado por uma surra de vara, ou qualquer outro entre diversos estratagemas, mas uma menina, por ser excluída pela natureza, por assim dizer, de tal brutalidade física, deve permanecer para sempre como uma terra incógnita. Você não acha?

Reconheci essa como uma daquelas perguntas que não requerem resposta. Ergui os cantos dos lábios naquilo que esperava ser um sorriso de Mona Lisa — ou pelo menos, um que sinalizasse a exigida civilidade.

— Então você é a filha do Jacko. Não se parece nem um pouco com ele, você sabe.

— Dizem que me pareço com minha mãe, Harriet — respondi.

— Ah, sim. Harriet. Que grande tragédia. Que terrível para todos vocês.

Ele estendeu a mão e tocou uma lupa que estava equilibrada no topo de uma montanha de jornais a seu lado. No mesmo movimento, abriu uma lata de cerveja que estava na mesa e pegou um cigarro.

— Faço o melhor que posso para me manter informado sobre o mundo, pelos olhos desses escribas de jornal. Meus próprios olhos, devo confessar, depois de terem se concentrado na passagem destes noventa e cinco anos, estão muito desgastados por tudo o que já viram.

“Ainda assim, de algum modo consigo me manter informado sobre os nascimentos, mortes, casamentos e condenações que são notícia em nosso distrito. E ainda assino as revistas Punch e Lilliput, é claro.

“Você tem duas irmãs, acredito, Ophelia e Daphne?”

Confirmei a veracidade das informações.

— Jacko sempre teve uma queda para o exótico, ao que me lembro. Não fiquei realmente surpreso ao ler que ele batizou suas duas primeiras filhas inspirado em uma histérica shakespeareana e numa almofada grega de alfinetes flechada.

— Como disse?

— Daphne foi atingida por Eros com uma flecha mortalmente apaixonante antes de ser transformada em uma árvore por seu pai.

— Mas eu quero saber sobre Ophelia, a louca — pedi.

— Maluquice — disse ele, esmagando a ponta do cigarro num cinzeiro transbordante e acendendo outro. — Você não concorda?

Os olhos que me encaravam eram brilhantes e redondos como os de qualquer professor que já esteve diante de uma lousa com um ponteiro na mão, e percebi que meu plano tinha dado certo. Eu não era mais uma “menininha”. Enquanto a mítica Daphne se transformara em um mero loureiro, eu me transformara em um menino da quarta série.

— Na verdade não, senhor. Shakespeare pretendia que Ophelia fosse um símbolo de alguma coisa, como as ervas e flores que ela colhe.

— Hã? — atrapalhou-se — O que é isso?

— Simbólico, senhor. Ophelia é a vítima inocente de uma família assassina cujos membros são totalmente egocêntricos. Pelo menos, é o que eu penso.

— Entendo — refletiu ele. — Muito interessante.

“Assim mesmo — acrescentou de repente — foi muito gratificante saber que seu pai conservou suficientemente o seu latim para chamá-la de Flavia. Aquela dos cabelos dourados.”

— Os meus são mais para o marrom-rato.

— Ah.

Parecíamos ter chegado a um daqueles impasses que desorganizam tantas conversas com os idosos. Eu estava começando a pensar que ele havia adormecido com os olhos abertos.

— Bem — falou afinal —, é melhor você me deixar dar uma olhada nele.

— Senhor? — estranhei.

— No meu Vingador de Ulster. É melhor você me deixar dar uma olhada nele. Você o trouxe com você, não trouxe?

— Eu... sim, senhor, mas como...?

— Vamos deduzir — disse ele, tão mansamente como se tivesse dito vamos orar.

— Horace Bonepenny, ex-ilusionista e veterano artista da fraude, aparece morto no jardim de seu velho colega de escola, Jacko de Luce. Por quê? Chantagem é o mais provável. Portanto, vamos supor chantagem. Em horas, a filha de Jacko está vasculhando arquivos de jornais em Bishop’s Lacey, bisbilhotando relatos do falecimento do meu caro colega, o sr. Twining. Que Deus dê descanso à alma dele. Como eu sei disso? Eu diria que é óbvio.

— A srta. Mountjoy — deduzi.

— Muito bom, minha querida. Tilda Mountjoy, realmente. Meus olhos e ouvidos estão na aldeia e suas vizinhanças pelo último quarto de século.

Eu devia saber! A srta. Mountjoy era uma espiã!

— Mas continuemos. No último dia de sua vida, o ladrão Bonepenny escolheu se hospedar na estalagem Os Treze Patos. O jovem pateta — bem, não mais jovem, mas um pateta ainda assim — consegue se fazer matar friamente. Eu comentei certa vez ao sr. Twining que aquele menino não se daria bem. Hesito em ressaltar que estava correto em meu prognóstico. Sempre houve um bafo de enxofre naquele garoto.

“Mas estou divagando. Logo depois de sua partida para a eternidade, o quarto de Bonepenny na estalagem é revirado por uma bela jovem cujo nome eu não me atrevo a pronunciar em voz alta, mas que agora está sentada modestamente diante de mim, inquieta, manuseando alguma coisa no seu bolso que dificilmente poderia ser outra coisa senão um certo pedacinho de papel cor de marmelada sobre o qual está impressa a imagem de sua antiga Majestade Rainha Vitória, e ostentando as letras de verificação TL. Quod erat demonstrandum. Q.E.D.”

— Q.E.D. — confirmei, e sem dizer nada puxei do bolso o envelope translúcido e estendi para ele. Com mãos trêmulas — embora, se tremiam pela idade ou excitação, eu não podia ter certeza — e usando o papel fino como uma pinça improvisada, ele descolou a aba do envelope com seus dedos manchados de nicotina. Quando os cantos alaranjados do Vingador de Ulster apareceram, não pude deixar de notar que as pontas de seus dedos manchados de nicotina e os selos eram de uma tonalidade praticamente idêntica.

— Grande Scott! — saudou ele, visivelmente abalado. — Você encontrou o AA. Este selo pertence à Sua Majestade, você sabe. Ele foi roubado de uma exposição em Londres, apenas semanas atrás. Estava tudo nos jornais.

Ele me lançou um olhar acusador por cima dos óculos, que foi desviado quase imediatamente para os tesouros resplandecentes que estavam em suas mãos. Ele parecia ter se esquecido de que eu estava na sala.

— Saudações, meus velhos amigos — sussurrou, como se eu não estivesse lá. — Já fazia tempo demais. — Ele pegou a lupa e examinou os selos atentamente, um de cada vez. — E você, meu estimado TL. Que história você poderia contar!

— Horace Bonepenny estava com os dois — adiantei. — Encontrei-os na bagagem dele, na estalagem.

— Você revirou a bagagem dele? — perguntou o dr. Kissing, sem desviar o olhar da lupa. — Bah! Os policiais dificilmente vão pular de alegria nos campos da aldeia quando ouvirem isso... nem você, aposto.

— Eu não revirei a bagagem dele, exatamente — afirmei. — Ele escondeu os selos embaixo de uma etiqueta de viagem, do lado de fora de um baú.

— No qual, é claro, você estava distraidamente, apenas por acaso, mexendo quando os selos caíram em suas mãos.

— Sim — confirmei. — Foi precisamente assim que aconteceu.

— Diga-me uma coisa — falou ele mal-humorado, virando-se para me olhar nos olhos —, seu pai sabe que você está aqui?

— Não — exclamei. — O pai foi acusado pelo assassinato. Ele está preso em Hinley.

— Bom Deus! Foi ele quem fez isso?

— Não, mas todos parecem pensar que foi. Por um momento, eu mesma pensei isso.

— Ah! E o que você pensa agora?

— Eu não sei. Às vezes acho uma coisa e às vezes outra. Tudo está muito confuso.

— Tudo sempre fica confuso antes de se esclarecer. Diga-me, Flavia, o que lhe interessa mais que qualquer coisa no universo? Qual é sua grande paixão?

— Química — respondi, em menos tempo do que leva meia batida do coração.

— Muito bom! — acolheu o dr. Kissing. — Em minha época de professor, coloquei a mesma questão àquele exército de hotentotes, e eles sempre resmungavam sobre uma coisa ou outra. Blá-blá-blá, blá-blá-blá, e isso era tudo. Você, em comparação, pôs em uma palavra.

O vime rangeu horrivelmente quando ele fez meia-volta na cadeira para me encarar. Por um terrível momento, pensei que a espinha dele havia se esfarelado.

— Nitrato de sódio — continuou. — Sem dúvida, você está familiarizada com nitrato de sódio.

Familiarizada com isso? O nitrato de sódio era o antídoto para o envenenamento por cianeto, e eu o conhecia em todas as suas diversas reações tão bem quanto conhecia meu próprio nome. Mas como ele sabia disso para escolhê-lo como exemplo? Será que ele era paranormal?

— Feche os olhos — pediu o dr. Kissing. — Imagine que você está segurando um tubo de ensaio parcialmente cheio de uma solução a trinta por cento de ácido hidroclorídico. A isso, você adiciona uma pequena quantidade de nitrato de sódio. O que você observa?

— Eu não preciso fechar os olhos. Fica cor de laranja... cor de laranja e turvo.

— Excelente! A cor daqueles selos extravagantes, não é? E então?

— Dando um tempo, vinte ou trinta minutos talvez, a solução clareia.

— Ela clareia. Encerro meu caso.

Como se um enorme peso tivesse sido tirado dos meus ombros, dei um sorriso idiota.

— Você deve ter sido um professor extraordinário, senhor.

— Sim, eu era... no meu tempo. E agora você trouxe meu pequeno tesouro para casa, para mim — falou, olhando novamente para os selos.

Isso foi algo com o que eu não contava, algo em que eu realmente não havia pensado direito. Eu tencionava somente descobrir se o proprietário do Vingador de Ulster ainda estava vivo. Depois disso, eu o entregaria ao pai, que o cederia à polícia, a qual, no devido tempo, cuidaria para que fosse devolvido ao seu legítimo proprietário. O dr. Kissing notou imediatamente minha hesitação.

— Deixe-me colocar outra questão. E se você tivesse vindo aqui hoje e descobrisse que eu tinha batido as botas, por assim dizer; que voei para a minha recompensa eterna?

— Você quer dizer morreu, senhor?

— Essa é a palavra que eu estava procurando: morrer. Sim.

— Suponho que teria dado o selo para o pai.

— Para ficar com ele?

— Ele saberia o que fazer com ele.

— Eu pensaria que a melhor pessoa para decidir isso é o dono do selo, você não concorda?

Eu sabia que a resposta era “sim”, mas não consegui falar. Eu sabia que, mais que qualquer coisa, queria dar o selo de presente ao pai, muito embora não fosse meu para dar. Ao mesmo tempo, queria dar ambos os selos ao inspetor Hewitt. Mas por quê?

O sr. Kissing acendeu mais um cigarro e ficou olhando para fora da janela. Por fim, pegou um dos selos do envelope e me entregou o outro.

— Este é o AA — disse ele. — “Ele não é meu; ele não me pertence”, como diz a velha canção. O seu pai pode fazer com ele o que desejar. Não cabe a mim decidir.

Eu peguei aquele Vingador de Ulster da mão dele e o envolvi cuidadosamente no meu lenço.

— Por outro lado, o delicado TL é meu. Meu mesmo, sem a menor sombra de dúvida.

— Espero que fique feliz ao colá-lo de volta em seu álbum, senhor — falei resignada, enfiando o selo gêmeo no bolso.

— Meu álbum? — ele deu uma risada grasnada que terminou em tosse. — Meus álbuns, minha querida, como disse o finado poeta Dowson, foram-se com o vento.

Seus velhos olhos se voltaram para a janela, olhando sem ver para o gramado lá fora, onde as duas senhoras ainda se alvoroçavam e piruetavam como borboletas exóticas embaixo das árvores salpicadas de sol.

 


Esqueci muitas coisas, Cynara! Foram-se com o vento,


Rosas lançadas, rosas turbulentas com a multidão


Dançando, para tirar teus pálidos lírios perdidos do pensamento;


Mas eu estava desolado e doente de velha paixão,


Sim, o tempo todo, pois a dança foi longa:


A ti fui fiel, Cynara! Ao meu modo.

 

 

— É um trecho daquele poema Non sum qualis eram bonae sub regno Cynarae. Você o conhece?

Eu sacudi a cabeça e respondi: — É muito bonito.

— Permanecer segregado em um lugar como este — disse o dr. Kissing, com um largo movimento do braço —, por sua desmazelada decrepitude, é, como você pode ver, um empreendimento financeiro deveras devastador.

Ele olhou para mim como se tivesse feito uma piada. Como não ofereci reação, apontou para a mesa.

— Pegue um desses álbuns. O de cima, acho, vai servir.

Eu agora notara pela primeira vez que havia uma prateleira encaixada abaixo do tampo da mesa, sobre a qual havia dois álbuns de capa grossa. Soprei a poeira e estendi para ele o que estava em cima.

— Não, não... abra você mesma.

Abri o álbum na primeira página, que continha dois selos: um preto, e outro vermelho. Pelas leves marcas de resíduos de cola e linhas paralelas, pude ver que a página outrora estivera preenchida. Virei para a página seguinte... e a seguinte. Tudo o que restava do álbum era uma carcaça devastada: uma coisa rala, vazia, que até um menino de escola teria escondido, envergonhado.

— O custo, como vê, de abrigar um coração palpitante. Descartando a vida a um quadradinho por vez. Não sobrou muito, sobrou?

— Mas é o Vingador de Ulster! — entusiasmei-me. — Deve valer uma fortuna!

— Sem dúvida — concordou o dr. Kissing, relanceando mais uma vez para seu tesouro através da lupa.

— A gente lê nos romances sobre o adiamento da sentença que vem depois que o alçapão já foi acionado; sobre o cavalo cujo coração para alguns centímetros antes da linha de chegada. — Deu uma risadinha seca e pegou um lenço para enxugar os olhos. — “Tarde demais! Tarde demais! gritou a donzela.O toque de recolher não soará esta noite!”

— Como o destino ama um gracejo — prosseguiu ele, em meio sussurro. — Quem disse isso? Cyrano de Bergerac, não foi?

Por apenas uma fração de segundo, pensei o quanto Dafi iria apreciar conversar com aquele velho cavalheiro. Mas somente por uma fração de segundo. E então encolhi os ombros.

Com um sorriso ligeiramente divertido, o dr. Kissing tirou o cigarro da boca e encostou a ponta acesa no canto do Vingador de Ulster.

Senti como se uma bola de fogo tivesse sido lançada contra meu rosto; como se meu peito tivesse sido amarrado com arame farpado. Pisquei, e então, paralisada de horror, vi o selo começar a arder vagarosamente, depois explodir em uma minúscula chama que foi lambendo, lenta e inexoravelmente, a face jovem da Rainha Vitória.

Quando a chama chegou às pontas dos seus dedos, dr. Kissing abriu a mão e deixou as cinzas escuras flutuarem para o chão. Então, embaixo da barra de seu roupão, um sapato preto envernizado se aventurou a sair, pisou delicadamente nas cinzas e, com alguns movimentos rápidos, desfez o que restou.

Em três batidas do coração, o Vingador de Ulster nada mais era senão uma mancha preta no linóleo de Rook’s End.

— O selo em seu bolso acaba de ter seu valor duplicado — sentenciou dr. Kissing. — Guarde-o bem guardado, Flavia. Ele agora é o único no mundo.


SEMPRE QUE ESTOU AO AR LIVRE E SINTO VONTADE de clarear as ideias, jogo-me no chão de costas, abro os braços e as pernas de um jeito que me faz parecer um asterisco e olho para o céu. Nos primeiros momentos fico normalmente entretida com as minhas “flutuações”, aquelas pequenas sequências sinuosas de proteínas que ondulam de um lado para outro no campo de visão como diminutas galáxias escuras. Quando não estou com pressa, fico de cabeça para baixo para agitá-las e depois me deito de novo para assistir ao espetáculo, como se fosse um filme de animação.

Hoje, contudo, já estava com coisas demais na cabeça para me incomodar; portanto, depois de pedalar por não mais que uns dois quilômetros desde Rook’s End, joguei-me na grama e fiquei olhando para o céu de verão.

Eu não podia tirar da cabeça uma coisa que o pai me contara, especificamente que eles dois, ele e Horace Bonepenny, haviam matado o sr. Twining; que eles eram pessoalmente responsáveis por aquela morte.

Se isso não tivesse sido mais do que uma das ideias fantásticas do pai, eu teria descartado imediatamente, mas era mais do que isso. A srta. Mountjoy também acreditava que eles haviam matado o tio dela e me disse isso.

Era muito fácil ver que o pai sentia uma legítima sensação de culpa. Afinal, ele fora parte da iniciativa para ver a coleção de selos do dr. Kissing, e sua antiga amizade com Bonepenny, embora esfriada, tornara-o cúmplice indiretamente. Mas ainda assim...

Não; tinha de haver algo mais do que isso, mas independentemente do que fosse, eu não podia imaginar.

Fiquei deitada na grama, olhando para a abóbada azul do céu tão ardentemente como aqueles faquires da Índia escaladores de cordas que costumavam olhar diretamente para o sol antes que nós os tivéssemos civilizado, mas não conseguia pensar direito em nada. Diretamente acima de mim, o sol era um grande zero branco, lançando suas chamas sobre minha cabeça vazia.

Eu conseguia me ver enfiando meu chapéu de gênio na cabeça, puxando-o por cima das orelhas como eu aprendera a fazer. Era um modelo cônico e alto como de um feiticeiro, coberto de equações e fórmulas químicas: uma cornucópia de ideias.

Nada ainda.

Mas, espere! Sim! Era isso! O pai não fizera nada. Nada! Ele, sabia — ou pelo menos suspeitava —, desde o instante em que aquilo aconteceu, que Bonepenny tinha afanado o valioso selo com a efígie... e, no entanto, não contara a ninguém.

Era um pecado por omissão: uma daquelas ofensas do catálogo eclesiástico de crimes de que Felinha estava sempre falando, e que aparentemente se aplicava a todo mundo, menos a ela.

Mas a culpa do pai era uma culpa moral e, como tal, dificilmente seria o que me afetaria.

Ainda assim, não havia como negar: o pai silenciara, e, por causa do seu silêncio, tornara obrigatório para o íntegro sr. Twining assumir a culpa e pagar pela violação da honra com a própria vida.

Certamente deve ter havido algum falatório na época. Os nativos desta parte da Inglaterra nunca foram conhecidos por sua reticência; longe disso. No século passado, o poeta de Hinley, Herbert Miles, referiu-se a nós como “aquele bando de gansos que mexericam alegremente nos aprazíveis gramados”, e havia uma certa dose de verdade em suas palavras. As pessoas adoram falar — especialmente quando envolve responder às perguntas dos outros — porque isso as faz se sentirem queridas. A despeito do exemplar manchado de molho de carne de Indague aqui dentro sobre tudo, que a sra. Mullet guardava em uma prateleira na copa, eu já descobrira muito tempo atrás que o melhor meio de conseguir respostas sobre tudo era se aproximar da pessoa mais próxima e perguntar. Sem pressionar.

Eu não poderia questionar muito o pai sobre seu silêncio naqueles tempos de escola. Mesmo que me atrevesse, o que não aconteceria, ele estava trancado em uma cela do distrito de polícia e, provavelmente, ficaria por lá. Eu não poderia perguntar à srta. Mountjoy, que batera uma porta na minha cara, porque me via como o sangue morno do sangue-frio de um assassino. Em suma, eu estava por minha própria conta.

Durante o dia inteiro, alguma coisa estava mexendo comigo no fundo da minha cabeça, como um gramofone numa sala distante. Se ao menos eu pudesse sintonizar a melodia...

A velha sensação começara quando estava vasculhando as pilhas de jornais no Barracão do Poço atrás da biblioteca. Era algo que alguém tinha dito... mas o quê?

Às vezes, tentar capturar um pensamento fugaz podia ser como tentar capturar um passarinho dentro de casa. Você o espreita, se aproxima nas pontas dos pés, tenta agarrá-lo...e o passarinho se vai, quase sempre ao alcance de seus dedos, suas asas...

Sim! Suas asas!

“Ele parecia um anjo caindo do céu”, dissera um dos meninos de Greyminster. Toby Lonsdale — lembrei-me agora de seu nome. Que coisa peculiar para um menino dizer sobre um professor despencando no ar! E o pai comparara o sr. Twining, logo antes de pular, a um santo aureolado de um manuscrito sagrado.

O problema era que eu não havia pesquisado o bastante nos arquivos. O Hinley Chronicle afirmara muito claramente que as investigações policiais sobre a morte do sr. Twining, e o roubo do selo do dr. Kissing, continuavam. E o seu obituário? Isso teria vindo depois, é claro, mas o que dizia?

Num piscar de olhos, eu estava montada em Gladys, pedalando furiosamente para Bishop’s Lacey e o Caminho das Vacas.

 

Não vi o aviso de “fechado” até estar a três metros de distância da porta da frente da biblioteca. É claro! Flavia, às vezes você tem tapioca no lugar do cérebro; Felinha estava certa quanto a isso. Hoje era terça-feira. A biblioteca não iria abrir de novo até as dez horas da manhã de quinta-feira.

Enquanto eu empurrava Gladys lentamente em direção ao rio e ao Barracão do Poço, fiquei pensando naquelas edificantes historinhas bobas que eles contam na Hora infantil: aqueles pequenas narrativas virtuosas como a da Pequena Locomotiva (“Acho que posso... Acho que posso...”) que foi capaz de puxar um trem de carga inteiro por cima da montanha só porque achava que podia, achava que podia. E por que ela nunca desistiu. Nunca desistir era a chave.

A chave? Eu tinha devolvido a chave do Barracão do Poço para a srta. Mountjoy: me lembrava perfeitamente. Mas haveria chance de haver uma cópia? Uma chave de reserva escondida sob um peitoril de janela para ser usada na eventualidade de algum personagem dos romances ali abrigados distraído ter saído de férias em Blackpool levando o original no bolso? Como Bishop’s Lacey não era (pelo menos até alguns dias atrás) um reduto notório do crime, uma chave escondida parecia ser uma possibilidade considerável.

Corri os dedos por cima da moldura da porta, olhei embaixo dos vasos de gerânios que ladeavam o caminho e até ergui um par de pedras de aparência suspeita.

Nada.

Examinei as fendas no muro de pedra que ia do caminho até a porta.

Ainda nada. Nem uma pista.

Pus as mãos em concha contra uma janela e espiei as pilhas de jornais que se desintegravam adormecidos em seus berços lá dentro. Tão perto, porém tão longe.

Estava tão exasperada que poderia cuspir, e cuspi.

“O que Marie-Anne Lavoisier teria feito?”, perguntei-me. Teria ficado lá bufando e espumando como um daqueles vulcões em miniatura que resultam quando uma pilha de bicromato de amônia é incendiada? De algum modo, eu duvidava. Marie-Anne esqueceria a química e cuidaria da porta.

Dei uma torcida violenta na maçaneta e caí de frente para dentro da sala. Algum idiota estivera lá e deixara aquela coisa estúpida destrancada! Esperei que ninguém tivesse visto. Foi bom ter pensado nisso, contudo, pois me dei conta de que seria prudente levar Gladys para dentro, onde não poderia ser avistada por algum intrometido de passagem.

Contornando a boca do poço coberta por tábuas no meio da sala, avancei cautelosamente ao longo das prateleiras de jornais amarelados.

Não tive dificuldade em encontrar as edições relevantes do Hinley Chronicle. Sim, aqui estava. Como eu imaginara possível, o obituário do sr. Twining aparecera na sexta-feira após o relato da sua morte:

 


Twining, Grenville, M.A. (Oxon.) Falecido repentinamente na segunda-feira passada na Greyminster School, perto de Hinley, aos setenta e dois anos de idade. Foi precedido por seus pais, Marius e Dorothea Twining, de Winchester, Hants. Deixa uma sobrinha, Matilda Mountjoy, de Bishop’s Lacey. O sr. Twining foi sepultado na capela de Greyminster, onde o Rev. Canon Blake-Soanes, o Reitor de São Tancredo, o Bispo Lacey e o Capelão de Greyminster conduziram as orações. Os tributos florais foram numerosos.

 

 

Mas onde eles o enterraram? Teria o corpo sido levado de volta a Winchester e posto para descansar ao lado de seus pais? Teria sido sepultado em Greyminster? De algum modo, recusava-me a acreditar. Parecia muito mais provável que eu fosse encontrar sua sepultura no pátio da igreja de São Tancredo, uma caminhada de não mais de dois minutos de onde eu estava.

Deixaria Gladys para trás, no Barracão do Poço; não havia sentido em atrair atenções desnecessárias. Se me abaixasse e me mantivesse atrás das sebes que ladeavam o caminho de sirgagem, poderia facilmente passar daqui para o pátio da igreja sem ser vista.

Quando abri a porta, um cachorro latiu. A sra. Fairweather, presidente da Liga das Senhoras do Altar, estava no fim do caminho com seu cãozinho corgi. Fechei a porta com cuidado antes que ela ou o animal pudessem me avistar. Espiei para fora pelo canto da janela e observei o cão farejando o tronco de um carvalho enquanto a sra. Fairweather, com o olhar perdido no horizonte, fingia não saber o que se passava na outra ponta da guia.

Maldição! Eu teria de esperar até o bicho terminar o que tinha de fazer. Corri os olhos pela sala.

De ambos os lados da porta havia estantes improvisadas cujas tábuas malcortadas e flácidas pareciam ter sido pregadas por um carpinteiro amador bem-intencionado, porém inepto.

À direita, coleções de livros de referência obsoletos — ano após ano do Diretório Clerical de Crockford, Anuário de Hazell, Almanaque de Whitaker, Diretórios de Kelly, Anuário Naval de Brassey — todos comprimidos lado a lado de um modo desconfortável sobre prateleiras de madeira sem pintura, e suas outrora régias capas em vermelho, azul e preto estavam agora desbotadas para o marrom, pela ação do tempo e pela infiltração da luz do dia, e todos cheiravam a ratos.

As prateleiras da esquerda estavam ocupadas por fileiras de volumes cinzentos idênticos, cada qual com o mesmo título gravado em ouro na lombada, em elaboradas letras góticas: O greyminsteriano; lembrei-me de que aqueles eram os anuários da velha escola do pai. Nós até tínhamos alguns em Buckshaw. Puxei um deles da prateleira antes de notar que estava datado de 1942.

Devolvi o livro a seu lugar e corri o indicador da direita para a esquerda pelas lombadas dos volumes restantes: 1930... 1925...

Aí estava — 1920! Minhas mãos tremiam quando trouxe o livro para baixo e folheei rapidamente de trás para a frente. Suas páginas transbordavam de artigos sobre críquete, remo, atletismo, bolsas de estudos, rúgbi, fotografia e estudos da natureza. Pelo que eu podia ver, não havia nem uma palavra sobre o Círculo Mágico e a Sociedade Filatélica. Espalhadas por toda parte, havia fotografias em que fileiras de meninos sorriam forçado e, às vezes, faziam caretas para a câmera.

Do lado oposto à página de título havia um retrato tarjado de preto. Nele, um cavalheiro de aparência distinta, de chapéu acadêmico e beca, empoleirado displicentemente na ponta de uma mesa, com uma gramática latina na mão enquanto olhava para o fotógrafo com uma expressão ligeiramente divertida. Abaixo da foto havia uma legenda: “Grenville Twining, 1848-1920”.

Isso era tudo. Sem menção aos eventos que cercaram sua morte, sem elogios e sem lembranças afetuosas do homem. Teria havido uma conspiração de silêncio?

Havia ali algo mais do que aparentava.

Comecei a virar lentamente as páginas, correndo os olhos pelos artigos e lendo as legendas das fotos.

A dois terços do livro, meus olhos captaram o nome “De Luce”. A fotografia mostrava três meninos em mangas de camisa e bonés da escola sentados em um gramado, ao lado de um cesto de vime que repousava sobre um cobertor repleto de guloseimas no que parecia ser um piquenique: pão, um pote de geleia, tortinhas, maçãs e jarras de cerveja de gengibre.

A legenda dizia “Omar Khayyam Revisitado — A lanchonete de Greyminster nos traz orgulho. Da esquerda para a direita: Haviland de Luce, Horace Bonepenny e Robert Stanley posam para um quadro vivo das páginas do poeta persa”.

Não havia dúvida de que o menino da esquerda, de pernas cruzadas sobre o cobertor, era o pai, parecendo mais feliz, alegre e despreocupado do que eu jamais o vira. No centro, o rapazinho comprido, desengonçado, fazendo de conta que ia morder um sanduíche, era Horace Bonepenny. Eu o teria reconhecido mesmo sem a legenda. Na fotografia, seus flamejantes cachos vermelhos ficaram registrados no filme como uma fantasmagórica aura pálida em volta da cabeça.

Não pude conter um arrepio ao pensar em quanto ele se parecia com um cadáver.

Ligeiramente separado de seus camaradas, o terceiro menino, a julgar pelo ângulo pouco natural da cabeça, parecia estar fazendo um grande esforço para mostrar seu melhor perfil. Era bonito de um jeito misterioso e mais velho que os outros dois, com um quê da bela aparência ardente de um astro do cinema mudo.

Era estranho, mas tive a sensação de que já tinha visto aquele rosto antes.

De repente senti que alguém havia jogado um lagarto pelo meu pescoço abaixo. É claro que eu já tinha visto aquele rosto — e recentemente! O terceiro menino na fotografia era a pessoa que apenas dois dias atrás se apresentara para mim como Frank Pemberton; Frank Pemberton, que ficara comigo embaixo da chuva na folly de Buckshaw; FrankPemberton, que naquela mesma manhã me dissera que estava de partida para dar uma olhada em uma tumba em Nether Eaton.

Um a um, os fatos se encaixavam e, como Saul, enxerguei claramente como se as escamas tivessem sido arrancadas dos meus olhos.

Frank Pemberton era Bob Stanley, e Bob Stanley era “O Terceiro Homem”, por assim dizer. Tinha sido ele quem matara Horace Bonepenny no canteiro de pepinos em Buckshaw. Eu apostaria minha vida nisso.

Quando todas as peças se encaixaram, meu coração começou a bater como se estivesse a ponto de explodir.

Havia algo de suspeito em Pemberton, desde o começo, e novamente isso era algo em que eu não pensava desde domingo na folly. Era algo que ele tinha dito... mas o quê?

Tínhamos conversado sobre o tempo; tínhamos trocado nomes. Ele admitira que já sabia quem eu era, que ele procurara no Quem é Quem. Por que ele precisou fazer isso, se já conhecia o pai a maior parte da sua vida? Teria sido isso que pôs a vibrar minhas antenas invisíveis?

Havia seu sotaque, lembrei-me. Leve, mas ainda assim...

Ele me contara sobre seu livro: Lares majestosos de Pemberton: um passeio através do tempo. Plausível, suponho.

O que mais ele havia dito? Nada de grande importância, um blá-blá-blá sobre nós sermos companheiros naufragados em uma ilha deserta. Que devíamos ser amigos.

O pedacinho de brasa que estava ardendo lentamente no fundo da minha cabeça explodiu em chamas de repente!

“Estou certo de que nos tornaremos bons amigos.”

Suas palavras exatas! Mas onde eu as ouvira antes?

Como uma bola na ponta de um elástico, meus pensamentos foram arremessados a um dia de inverno. Embora ainda fosse cedo, as árvores do lado de fora da janela da sala de estar tinham mudado de amarelo para laranja e daí para cinzento; e o céu, de azul-cobalto ficou preto.

A sra. Mullet nos trouxera um prato de bolinhos e fechara as cortinas. Felinha estava sentada no sofá se olhando nas costas de uma colher, e Dafi, esticada na velha poltrona do pai junto do fogo. Ela lia em voz alta para nós um trecho de Penrod, um livro que ela confiscara da pequena prateleira de favoritos de infância que fora preservada no quarto de vestir de Harriet.

Penrod Schofield tinha doze anos, um ano e alguns meses mais velho que eu, mas próximo o bastante para ser de interesse passageiro. Para mim, Penrod parecia ser Huckleberry Finn arrastado no tempo para a Primeira Guerra Mundial e instalado em alguma cidade do meio-oeste americano. Embora o livro estivesse cheio de estábulos, becos e cercas altas de tábuas e carros de entregas que eram, naqueles tempos, ainda puxados por cavalos, a coisa toda me parecia tão alienígena como se tivesse acontecido em Plutão. Felinha e eu havíamos ficado hipnotizadas durante as leituras feitas por Dafi de Scaramouche, A ilha do tesouro e Um conto de duas cidades, mas havia alguma coisa em Penrod que fazia seu mundo parecer tão distante de nós no tempo quanto a última Era do Gelo. Felinha, que pensava nos livros em termos de notas musicais, dissera que ele tinha sido escrito na clave de sol.

Ainda assim, enquanto Dafi avançava penosamente pelas páginas, nós demos risada uma ou duas vezes, aqui e ali, com Penrod desafiando seus pais e a autoridade, mas eu me perguntara na época o que havia em relação a um menino rebelde que capturara a imaginação, e possivelmente o amor, da jovem Harriet de Luce. Talvez eu agora estivesse começando a adivinhar.

A cena mais divertida, lembrei-me, tinha sido aquela em que Penrod estava sendo apresentado ao hipócrita Reverendo Kinosling, que lhe dera algumas palmadinhas na cabeça e dissera com sua pronúncia arrevesada: “Estou certo de que nos tornaremos bons amigos”. Era o tipo de condescendência com a qual eu tivera de conviver a minha vida inteira, e provavelmente eu ri alto demais.

O ponto, no entanto, era que Penrod era um livro norte-americano, escrito por um autor norte-americano. Provavelmente não era tão conhecido aqui na Inglaterra como no exterior.

Poderia Pemberton — ou Bob Stanley, como eu agora sabia — ter cruzado com o livro, ou com a frase, na Inglaterra? Era possível, claro, mas parecia improvável. E o pai não havia me contado que Bob Stanley — o mesmo Bob Stanley que era o parceiro de Horace Bonepenny — se fora para a América e fundara um negócio nebuloso de selos postais?

O leve sotaque de Pemberton era americano! Um velho grey minsteriano com um ligeiro toque de Novo Mundo.

Que imbecil eu fui!

Mais uma olhada pela janela me mostrou que a sra. Fairweather se fora, e o Caminho das Vacas estava agora vazio. Deixei o livro aberto sobre a mesa, esgueirei-me pela porta afora e voltei contornando o Barracão do Poço até o rio.

Cem anos atrás o Rio Efon tinha sido parte de um sistema de canais, embora pouco tivesse restado dele além de um rebocador. Ao pé do Caminho das Vacas havia uns poucos remanescentes em decomposição dos pilares que outrora demarcavam a barragem, mas à medida que corriam em direção à igreja, as águas do rio haviam se expandido para formar grandes lagoas, uma das quais ficava no centro da baixada pantanosa atrás da igreja de São Tancredo.

Passei pelo pórtico apodrecido para dentro do pátio da igreja, onde as velhas sepulturas se inclinavam de um jeito maluco como boias flutuando em um oceano de grama tão longo que tive de caminhar através dele como se fosse uma banhista à beira-mar com água pela cintura.

As sepulturas mais antigas, e aquelas que pertenceram aos mais ricos dos antigos paroquianos, estavam mais perto da igreja, enquanto aqui atrás, ao longo do muro de pedras brutas, estavam as de sepultamentos mais recentes.

Havia também uma camada vertical. Quinhentos anos de uso constante deram ao pátio da igreja a aparência de um pão posto em pé: um gordo filão verde recém-assado, estufado até consideravelmente acima do nível das terras à sua volta. Senti um delicioso arrepio ao pensar nos corpos fermentados que jaziam embaixo dos meus pés.

Por algum tempo, circulei sem destino por entre as lápides, lendo nomes de famílias que eram frequentemente mencionados em Bishop’s Lacey: Coombs, Nesbit, Barker, Hoaree Carmichael. Aqui, com um carneiro gravado na pedra, estava o pequeno William, o bebê de Tully Stoker que, caso tivesse vivido, seria agora um homem de trinta anos, e o irmão mais velho de Mary. O pequeno William morrera com cinco meses e quatro dias, “de crupe”, dizia lá, na primavera de 1919, um ano antes de o sr. Twining pular da torre do relógio de Greyminster. Havia uma boa possibilidade, portanto, de que o doutor também estivesse enterrado em algum lugar por perto.

Por um momento pensei que o tivesse encontrado: uma pedra negra com uma ponta piramidal e o nome Twining grosseiramente gravado. Mas esse Twining, olhando mais de perto, revelou ser um Adolphus que se perdera no mar em 1809. Sua lápide estava tão notavelmente preservada que não pude resistir ao impulso de passar os dedos sobre a fria superfície polida.

— Durma bem, Adolphus. Seja quem for.

A lápide do sr. Twining — assumindo que ele tinha uma, e achei difícil acreditar em outra coisa — não seria um dos espécimes desgastados pelo tempo que se inclinavam como dentes marrons irregulares, nem um daqueles vastos monumentos com pilares, correntes pendendo e cercas funerais de ferro forjado que marcavam os lotes das famílias mais aristocráticas de Bishop’s Lacey (incluindo muitos falecidos De Luce).

Pus as mãos no quadril e me plantei, afundada até a cintura nas ervas do perímetro do pátio da igreja. Do outro lado do muro de pedra estava o rebocador e, além dele, o rio. Tinha sido em algum lugar ali atrás que a srta. Mountjoy desaparecera depois de fugir da igreja, imediatamente depois que o vigário nos dissera para orar pelo repouso da alma de Horace Bonepenny. Mas aonde ela estava indo?

Mais uma vez passei por cima do pórtico e cheguei ao caminho do rebocador.

Agora podia ver claramente as pedras que marcavam a passagem por entre as serpentinas de algas logo abaixo da superfície do rio preguiçoso. Elas contornavam a lagoa que se alargava até um banco de areia no lado oposto, acima e além do qual corria uma sebe de arbustos espinhosos, delimitando um campo que pertencia à Fazenda Malplaquet.

Tirei os sapatos e as meias e pisei na primeira pedra. A água estava mais fria do que esperava. Meu nariz ainda estava escorrendo um pouco, e meus olhos lacrimejavam, e me perpassou a mente o pensamento de que eu provavelmente morreria de pneumonia dentro de um ou dois dias e, em breve, me tornaria uma residente do pátio da igreja de São Tancredo.

Agitando os braços como um equilibrista, avancei cautelosamente através da água e chapinhei pela lama do banco de areia. Agarrando um punhado de ervas compridas, consegui içar-me para cima do aterro, um dique de terra compactada que se erguia entre o rio e o campo adjacente.

Sentei-me para recuperar o fôlego e limpar a lama dos pés com um chumaço de grama que crescia aos tufos ao longo da sebe. Em algum lugar por perto um passarinho amarelo cantava “um pedacinho de pão sem queijo”. De repente, ele silenciou. Fiquei escutando, mas tudo o que pude ouvir foi o zumbido distante dos campos: o som monótono de gaita de fole de distantes máquinas agrícolas.

Depois de calçar de volta os sapatos e as meias, sacudi a poeira e comecei a caminhar ao longo da sebe, que parecia de início ser um emaranhado impenetrável de espinhos. Então, quando estava prestes a me virar e retornar, encontrei uma passagem estreita no meio daquele emaranhado de arbustos, na verdade não mais que uma falha. Enfiei-me no meio e saí do outro lado da sebe.

Uns poucos metros atrás, na direção da igreja, alguma coisa se projetava para fora da grama. Aproximei-me cautelosamente, os cabelos da nuca se arrepiavam num alarme sensorial.

Era uma pedra tumular, e rusticamente gravado sobre ela estava o nome Grenville Twining.

Sobre a base inclinada da lápide havia uma única palavra: Vale!

Vale! — a palavra que o sr. Twining bradara de cima da torre! A palavra que Horace Bonepenny soprara no meu rosto ao expirar.

A compreensão veio para cima de mim como uma onda: a mente agonizante de Bonepenny queria apenas confessar o assassinato do sr. Twining, e o destino lhe concedera apenas uma única palavra com a qual fazê-lo. Ao ouvir sua confissão, eu me tornara a única pessoa viva que poderia ligar as duas mortes. Com exceção, talvez, de Bob Stanley. O meu sr. Pemberton.

Ao pensar isso, um arrepio percorreu minha espinha.

Não havia datas na lápide do sr. Twining, como se, quem quer que o tivesse sepultado, quisesse obliterar sua história. Dafi lera para nós narrativas nas quais suicidas eram enterrados do lado de fora do pátio da igreja, ou em encruzilhadas, mas eu não acreditava que isso fosse mais do que lendas eclesiásticas de velhas comadres. Ainda assim, não pude deixar de me perguntar: como Drácula, o sr. Twining jazia embaixo dos meus pés envolvido na capa do seu Mestre?

Mas a beca que eu encontrara escondida no telhado da torre na Anson House — que agora estava nas mãos da polícia — não pertencia ao sr. Twining. O pai deixara claro que o sr. Twining estava usando sua beca quando caiu. E, do mesmo modo, também Toby Lonsdale, contara ao Hinley Chronicle.

Não poderiam ambos estar errados? O pai admitira, afinal, que o sol poderia ter ofuscado seus olhos. O que mais ele me contou?

Lembrei-me de suas exatas palavras quando descreveu o sr. Twining em pé sobre o parapeito: “Os cabelos se projetando por baixo do chapéu pareciam um disco de cobre martelado sob o sol nascente, como a auréola de um santo em um manuscrito sagrado”.

E então o resto da verdade se despejou em cima de mim como uma onda de náusea: era Horace Bonepenny que estava lá em cima no parapeito. Horace Bonepenny, dos flamejantes cabelos vermelhos; Horace Bonepenny, o mímico; Horace Bonepenny, o mágico.

A coisa toda tinha sido uma ilusão cuidadosamente planejada!

A srta. Mountjoy tinha razão. Ele tinha assassinado o tio dela.

Horace Bonepenny e seu parceiro, Bob Stanley, deviam ter atraído o sr. Twining até o telhado da torre, muito provavelmente sob a desculpa de devolver o selo roubado, que eles tinham escondido lá.

O pai me contara dos extravagantes cálculos matemáticos de Bonepenny; suas rondas arquitetônicas o teriam deixado tão familiarizado com as telhas da torres quanto com seu próprio estúdio.

Quando o sr. Twining ameaçou expô-los, eles o mataram, provavelmente golpeando-o na cabeça com um tijolo. O golpe fatal teria sido impossível de detectar depois de uma queda tão terrível. E então eles encenaram o suicídio — cada momento daquilo fora planejado a sangue-frio. Talvez eles tivessem até ensaiado.

Tinha sido o sr. Twining quem caiu sobre as pedras do calçamento, mas tinha sido Bonepenny quem andara pelas ameias ao sol matinal e também ele, em um chapéu acadêmico e uma beca emprestados, quem bradara “Vale!” para os meninos na quadra. “Vale!” — uma palavra que só poderia sugerir suicídio.

Tendo feito isso, ele se esquivou para trás do parapeito no momento em que Stanley derrubava o corpo através da abertura para drenagem no telhado. Para um observador no chão, ofuscado pelo sol, teria parecido que o velho cavalheiro havia caído diretamente. Na verdade, não era nada mais que a Ressurreição de Tchang Fu representada em escala maior, com olhos ofuscados e tudo.

Absolutamente convincente!

E durante todos aqueles anos, o pai tinha acreditado que seu silêncio causara o suicídio do sr. Twining, que tinha sido ele o responsável pela morte do velho cavalheiro! Que fardo assustador para carregar, tão horrível!

Foram precisos trinta anos até que eu encontrasse a evidência entre as telhas da Anson House, até alguém suspeitar que havia sido um assassinato. E eles quase escaparam impunes.

Estendi a mão e toquei a sepultura do sr. Twining para me firmar.

— Vejo que você o encontrou — disse alguém atrás de mim, e ao som de sua voz meu sangue gelou.

Virei-me e dei de cara com Frank Pemberton.


SEMPRE QUE ALGUÉM SE VÊ CARA A CARA com um assassino em um romance ou no cinema, suas primeiras palavras estão sempre revestidas de ameaças e frequentemente são de Shakespeare.

“Bem, bem”, ele geralmente irá sussurrar. “‘As jornadas terminam num encontro de amantes’ ou ‘Os tão sábios e tão jovens, dizem eles, nunca vivem muito’”.

Mas Frank Pemberton não falou nada nessa linha; de fato, foi bem o contrário:

— Olá, Flavia — saudou-me com um sorriso sonso. — Engraçado encontrar você aqui.

Minhas artérias palpitavam tanto que poderiam ser ouvidas, e eu já conseguia sentir a vermelhidão invadindo meu rosto, o qual, a despeito dos calafrios, instantaneamente se tornara quente como uma frigideira.

Um único pensamento veloz passou pela minha cabeça: eu não posso deixar que ele perceba... Não posso deixar. Não posso demonstrar que sei que ele é Bob Stanley.

— Olá — respondi, na esperança de que minha voz não estivesse trêmula. — Que tal era a tumba escondida?

Eu soube naquele exato instante que não estava enganando ninguém, a não ser a mim mesma. Ele observava meu rosto como um gato observa o canário da família quando ambos estão sozinhos em casa.

— A tumba? Ah! Um bonito trabalho artesanal em mármore branco. Notavelmente parecido com um marzipã de amêndoas, mas maior, é claro.

Decidi fazer o jogo dele até conseguir formular um plano.

— Espero que seu editor tenha ficado satisfeito.

— Meu editor? Oh, sim... O velho...

— Quarrington — afirmei.

— Sim. Exatamente. Quarrington. Ele ficou estático.

Pemberton — eu ainda pensava nele como Pemberton — pôs sua mochila no chão e começou a desafivelar as correias do seu portfólio.

— Ufa! — disse ele. — Bem quente, não está?

Ele tirou o casaco, jogou-o displicentemente por cima do ombro e apontou a sepultura do sr. Twining com um movimento do polegar.

— Qual é o grande interesse?

— Era um velho professor do meu pai.

— Ah! — Ele sentou e reclinou-se contra a base da pedra, tão displicente como se fosse Lewis Carrol e eu fosse Alice, fazendo um piquenique à margem do Rio Ísis.

Quanto ele sabia? Esperei até que fizesse o lance inicial. Eu podia usar o tempo para pensar.

Eu já estava planejando minha fuga. Será que poderia correr mais rápido que ele? Parecia improvável. Se eu fugisse pelo rio, ele me alcançaria antes que chegasse na metade do caminho. Se me dirigisse para o campo, em direção à Fazenda Malplaquet, seria menos provável que eu encontrasse ajuda do que se corresse para a Rua Principal.

— Sei que seu pai é uma espécie de filatelista — falou de repente, olhando despreocupado para a fazenda.

— Ele coleciona selos, sim. Como você sabe?

— Meu editor, o velho Quarrington, mencionou isso por acaso esta manhã em Nether Eaton. Ele estava pensando em pedir ao seu pai para escrever uma matéria sobre algum selo postal obscuro, mas não sabia como se aproximar dele. Eu não consegui entender nada daquilo... muito além do meu alcance... técnico demais... sugeri que talvez ele devesse ter uma palavrinha com você.

Era uma mentira, e a detectei imediatamente. Sendo eu mesma uma mentirosa perfeita, era capaz de perceber os sinais reveladores de uma inverdade antes mesmo que acabasse de sair de sua boca: o excesso de detalhes, a enunciação improvisada e o propósito de fazer tudo parecer um bate-papo descontraído.

— Poderia valer um bocado de dinheiro, você sabe — ele acrescentou. — O velho Quarrington está bem rico desde que se casou com os milhões de Norwood, mas não deixe transparecer que contei. Imagino que seu pai não iria dizer não a uns trocados suficientes para comprar uma coisinha de meio penny da Nova Guiné, iria? Ele deve precisar de uma boa soma de dinheiro para manter um lugar como Buckshaw.

Aquilo era aliar insulto à injúria. O homem deve achar que sou boba.

— O pai anda muito ocupado esses dias — falei. — Mas vou mencionar isso a ele.

— Ah, sim, essa... morte súbita de que você falou... polícia e tudo mais. Deve ser uma chateação danada.

Ele ia agir, ou iríamos ficar ali sentados naquela conversa fiada até escurecer? Talvez fosse melhor eu tomar a iniciativa. Desse jeito, pelo menos, teria a vantagem da surpresa. Mas como?

Lembrei-me de um conselho fraternal que Felinha deu uma vez a Dafi e a mim:

— Se você for alguma vez assediada por um homem — disse ela —, chute-o nos “casanovas” e saia correndo!

Embora no momento aquilo me soasse como uma informação bastante útil, o único problema era que eu não sabia onde ficavam localizados os “casanovas”.

Teria de pensar em alguma outra coisa.

Raspei o bico do sapato na areia; eu iria agarrar um punhado e jogar nos olhos dele antes que ele percebesse o que o atingira. Eu o flagrei me observando.

Ele se levantou e sacudiu o pó atrás das calças.

— As pessoas às vezes fazem uma coisa às pressas e depois se arrependem — soltou em tom coloquial.

Estaria se referindo a Horace Bonepenny ou a si mesmo? Ou estaria me avisando para não fazer nada de insensato?

— Eu vi você na Três Patos, você sabe. Estava do lado de dentro da porta da frente, olhando o registro, quando meu táxi encostou.

Droga! Eu tinha sido vista, afinal.

— Tenho amigos que trabalham lá — expliquei. — Mary e Ned. Às vezes apareço para dar um alô.

— E você sempre vasculha os quartos dos hóspedes?

Pude sentir meu rosto ficando vermelho assim que ele mencionou aquilo.

— Como eu suspeitava — prosseguiu. — Olhe, Flavia, vou ser franco com você. Um parceiro de negócios tinha algo em sua posse que não lhe pertencia. Era meu. Agora, eu sei com toda a certeza que, a não ser meu parceiro, você e a filha do senhorio foram as duas únicas pessoas que estiveram naquele quarto. Também sei que Mary Stoker não teria nenhuma razão para pegar aquele objeto em especial. O que eu deveria pensar?

— Você se refere àquele selo velho? — perguntei.

Aquilo ia ser um número na corda bamba, e eu já estava vestindo minha malha. Pemberton relaxou imediatamente.

— Você admite? — disse ele. — Você é uma menina ainda mais esperta do que achei que fosse.

— Ele estava no chão embaixo do baú. Deve ter caído. Eu estava ajudando Mary a limpar o quarto. Ela havia esquecido algumas coisas, e o pai dela, você sabe, pode ser...

— Eu sei. Então você roubou meu selo e o levou para casa.

Eu mordi o lábio, enruguei a cara um pouquinho e esfreguei os olhos.

— Eu de fato não roubei. Achei que alguém tinha deixado cair. Não, isso não é inteiramente verdade: eu sabia que Horace Bonepenny o deixara cair e, já que ele estava morto, não iria mais precisar dele. Achei que poderia dar de presente ao pai, e ele deixaria de ficar zangado comigo por causa do vaso Tiffany que eu tinha quebrado. Pronto. Agora você sabe.

Pemberton assobiou.

— Um vaso Tiffany?

— Foi um acidente. Eu não devia estar jogando tênis dentro de casa.

— Bem, isso resolve o problema, não é? Você devolve meu selo, e o caso está encerrado. De acordo?

Assenti alegremente. — Vou correr até em casa e pegá-lo.

Pemberton explodiu numa gargalhada pouco lisonjeira e deu uma palmada na perna. Quando se recobrou, ele admitiu:

— Você é muito boa, sabia? — para a sua idade. Você me lembra de mim mesmo. Correr até em casa e buscá-lo, realmente!

— Tudo bem, então. Vou contar a você onde eu o escondi e você pode ir buscá-lo sozinho. Vou ficar aqui. Palavra de escoteira.

Fiz a saudação com os dedos. Não contei a ele que tecnicamente não era mais membro da organização, desde que fui expulsa por fabricar hidróxido férrico para ganhar a medalha de Serviços Domésticos. Aparentemente ninguém se importou por aquilo ser o antídoto para envenenamento por arsênico.

Pemberton olhou para o relógio.

— Está ficando tarde. Não temos mais tempo para brincadeiras.

Alguma coisa mudara em sua face, como se uma cortina tivesse sido puxada por cima dela. Havia uma súbita friagem no ar.

Ele deu um bote para cima de mim e agarrou meu pulso. Eu deixei escapar um grunhido de dor. Em mais alguns segundos, eu sabia, ele iria torcer meu braço atrás das costas. Cedi imediatamente.

— Eu o escondi no quarto de vestir do pai, em Buckshaw — disse sem pensar. — Há dois relógios no quarto: um grande em cima da lareira e um menor em cima da mesa ao lado da cama. O selo está grudado nas costas do pêndulo do relógio na lareira.

E então uma coisa terrível aconteceu — terrível e, como se revelou depois, maravilhosa, as duas coisas juntas em uma só: eu espirrei.

Minha congestão nasal ficara latente, quase esquecida, pela maior parte do dia. Eu tinha notado que, do mesmo modo como se retraem quando você está dormindo, as congestões nasais muitas vezes dão uma trégua quando você está preocupada demais para lhes dar atenção. A minha de repente estava de volta, violentamente.

Esquecendo por um momento que o Vingador de Ulster estava aninhado dentro dele, peguei o lenço. Pemberton, surpreso, deve ter pensado que meu movimento súbito fosse um prelúdio para a fuga — ou talvez para um ataque contra a sua pessoa.

Qualquer que fosse o caso, levei o lenço ao nariz, mas antes mesmo que eu o abrisse ele parou minha mão com uma agarrada rápida como um raio, amarrotou o lenço de algodão em uma bola que ele socou, com selo e tudo, na minha boca.

— Muito bem, então — disse ele. — Veremos.

Ele puxou o casaco de cima do ombro, abriu-o como uma capa de toureiro, e a última coisa que vi quando jogou a coisa por cima da minha cabeça foi a lápide do sr. Twining e a palavra “Vale!” gravada na base. Eu lhes dou adeus.

Alguma coisa se apertou contra minhas têmporas e adivinhei que Pemberton estava usando as correias de seu portfólio para amarrar firmemente o casaco.

Ele me içou para cima do ombro e me carregou pelo rio tão facilmente como um açougueiro carrega meia carcaça de um boi. Antes que minha cabeça parasse de girar, ele já tinha me posto bruscamente no chão.

Agarrando minha nuca com uma das mãos, ele usou a outra para segurar meu braço em um aperto de tornilho, e empurrou-me violentamente para a frente pelo caminho do rebocador.

— Apenas continue pondo um pé na frente do outro até eu mandá-la parar.

Tentei gritar por socorro, mas minha boca estava entupida com o lenço molhado. Não consegui produzir nada além de um grunhido suíno. Não podia nem dizer a ele o quanto estava me machucando.

De repente me dei conta de que estava mais apavorada do que jamais estivera na vida.

Enquanto seguia cambaleando, rezei para que alguém nos avistasse; caso avistassem, certamente iriam gritar, e se gritassem, mesmo com a cabeça amarrada no casaco de Pemberton, eu provavelmente ouviria. Se eu ouvisse, me desvencilharia dele de repente e dispararia na direção das vozes. Mas se fizesse isso prematuramente, eu sabia, me arriscaria a despencar de cabeça no rio e ser abandonada lá por Pemberton para me afogar.

— Pare aqui — ordenou de repente, depois de eu ter sido empurrada em marcha forçada pelo que julguei ser uma centena de metros. — Fique quieta.

Obedeci.

Ouvi-o lidando com alguma coisa metálica e, um momento depois, o que soou como o rangido de uma porta se abrindo. O Barracão do Poço!

— Um passo para cima — orientou. — Certo... agora três em frente. E pare.

Atrás de nós uma porta se fechou como a tampa de um ataúde, com um rangido de madeira.

— Esvazie os bolsos — disse Pemberton.

Eu só tinha um: o bolso do suéter. Não havia nada nele a não ser a chave da porta da cozinha em Buckshaw. O pai sempre insistira que cada uma de nós carregasse sempre uma chave para o caso de alguma emergência, e como ele conduzia verificações ocasionais, eu nunca andava sem ela. Quando virei o bolso do avesso, ouvi a chave cair no assoalho de madeira, e depois pular e deslizar. Um segundo depois ouvi um leve tinido quando ela parou sobre o concreto.

— Droga — praguejou.

Bom! A chave caíra no poço de serviços, eu tinha certeza. Agora Pemberton teria de arrastar as tábuas que a cobriam e descer para dentro do buraco. Minhas mãos ainda estavam livres: eu arrancaria o casaco dele da minha cabeça, sairia correndo pela porta afora, tiraria o lenço da boca e gritaria como gansos velhos enquanto corria para a Rua Principal. Ela ficava a menos de um minuto de distância.

Eu estava certa. Quase imediatamente, ouvi o ruído inconfundível de tábuas pesadas sendo arrastadas pelo piso. Pemberton gemeu enquanto as puxava para fora da boca do poço. Eu teria de tomar cuidado com a direção em que iria correr: um passo errado, e cairia no buraco aberto e quebraria o pescoço.

Eu não tinha me mexido desde que passáramos pela porta, a qual, se eu estava certa, devia agora estar atrás de mim com o poço na frente. Eu teria de calcular uma volta de cento e oitenta graus com os olhos vendados.

Ou Pemberton tinha alguma habilidade psíquica finamente sintonizada, ou ele detectara algum movimento diminuto da minha cabeça. Antes que eu pudesse fazer alguma coisa, ele já estava ao meu lado, girando meu corpo meia dúzia de vezes como se estivesse começando um jogo de cabra-cega e eu fosse a cabra. Quando finalmente parou, eu estava tão atordoada que mal conseguia ficar em pé.

— Agora — disse ele —, nós vamos descer. Cuidado onde pisa.

Eu sacudi a cabeça rapidamente de um lado para outro, pensando, enquanto fazia isso, quão ridícula devia parecer, enfaixada no casaco dele.

— Escute, Flavia, seja uma boa menina. Não vou machucar você, desde que se comporte. Assim que eu tiver o selo de Buckshaw nas minhas mãos, vou mandar alguém para libertá-la. Senão...

Senão?

— ... serei forçado a fazer uma coisa muito desagradável.

Uma imagem de Horace Bonepenny exprimindo o último suspiro na minha cara flutuou diante dos meus olhos, e soube que Pemberton era mais do que capaz de cumprir sua ameaça.

Ele me arrastou pelo cotovelo até um ponto que presumi ser a beira do poço.

— Oito degraus para baixo — falou. — Vou contá-los. Não se preocupe, vou segurá-la.

Dei um passo no ar.

— Um — começou, quando meu pé pousou em alguma coisa sólida. Fiquei lá, cambaleando.

— Devagar... dois... três, você já está na metade do caminho.

Estendi a mão direita e senti a beira do poço quase na altura do meu ombro. Quando meus joelhos expostos detectaram o ar frio do poço, meu braço começou a tremer como um galho morto ao vento de inverno. Senti um aperto na garganta.

— Bom... quatro... cinco... só faltam dois.

Ele estava arrastando os pés nos degraus atrás de mim, um de cada vez. Perguntei-me se poderia agarrar seu braço e puxá-lo bruscamente para dentro do poço. Com um pouco de sorte, ele racharia a cabeça no concreto e eu passaria por cima do seu corpo para a liberdade.

De repente ele paralisou, os dedos afundando no meu braço. Soltei um grito abafado, e ele relaxou um pouco o aperto.

— Silêncio! — ordenou, num rosnido que não era para se brincar.

Do lado de fora, no Caminho das Vacas, um caminhão estava dando marcha a ré, as engrenagens gemendo em um lamento que subia e descia. Alguém vinha vindo!

Pemberton ficou completamente imóvel, sua respiração acelerada raspando no silêncio frio do poço.

Com a cabeça abafada pelo casaco, só pude ouvir fracamente as vozes do lado de fora, seguidas pelo som metálico da tampa traseira sendo abaixada.

Por estranho que pareça, o pensamento que me veio à cabeça foi Felinha. Por que eu não gritei?, perguntaria ela. Por que eu não arranquei o casaco da cabeça e finquei os dentes no braço de Pemberton? Ela iria querer saber de todos os detalhes, e não importa o que eu dissesse, iria rebater todos os argumentos como se ela fosse o próprio Presidente da Suprema Corte.

A verdade era que eu estava tendo dificuldade até para conseguir respirar. Meu lenço — um robusto e prosaico pedaço de algodão — estava tão apertado na minha boca que minha mandíbula doía desesperadamente. Eu tinha de respirar pelo nariz entupido, e mesmo tomando os fôlegos mais profundos, era capaz de inspirar oxigênio apenas o suficiente para não desmaiar.

Eu sabia que, se começasse a tossir, estaria perdida; o menor esforço fazia minha cabeça girar. Além disso, me dei conta, os homens lá fora ao lado do caminhão em marcha lenta não poderiam ouvir nada além do ruído do motor. A não ser que eu conseguisse inventar algo ensurdecedor, eu jamais me faria ouvida. Enquanto isso, era melhor ficar quieta e continuar assim. Economizaria energia.

Alguém fechou a tampa traseira do caminhão com uma batida metálica; duas portas foram batidas ruidosamente, e ele saiu rangendo, pesado, em primeira marcha. Estávamos sozinhos de novo.

— E agora — sentenciou Pemberton —, você vai descer. Só mais dois degraus.

Ele deu uma beliscada no meu braço e eu deslizei o pé para a frente.

— Sete — contou.

Parei, relutante em descer o último degrau, que me levaria ao fundo do poço.

— Mais um. Com cuidado.

Era como se ele estivesse ajudando uma velhinha a atravessar uma rua movimentada.

Desci mais um degrau e, no mesmo instante, me vi afundada até o tornozelo em lixo. Pude ouvir Pemberton remexendo aquilo com o pé. Ele ainda estava agarrando fortemente meu braço e relaxou só por um instante quando se curvou para pegar alguma coisa. Obviamente a chave. Se ele podia vê-la, pensei, devia haver um pouco de luz no fundo do poço.

Luz do dia no fundo do poço. Por alguma razão insondável, o pensamento resgatou as palavras do inspetor Hewitt quando estava me levando da delegacia de Hinley para casa: salvo se uma certa doçura no fundo ela comporta, com todas as rugas da torta, quem se importa?

O que aquilo queria dizer? Minha cabeça rodopiava.

— Sinto muito, Flavia — disse Pemberton repentinamente, interrompendo meus pensamentos —, mas vou ter de amarrá-la.

Antes que suas palavras tivessem tempo de se registrar na minha mente, ele puxou minha mão direita para trás e amarrou meus pulsos. O que ele usara, me perguntei. Sua gravata?

Enquanto ele apertava o nó, me lembrei de pressionar as pontas dos dedos formando um arco, como fizera quando Felinha e Dafi me trancaram no armário. Quando foi aquilo? Na última quarta-feira? Parecia mil anos atrás.

Mas Pemberton não era nenhum idiota. Ele reparou na hora o que eu estava fazendo e, sem palavra, comprimiu as costas das minhas mãos com força entre o polegar e o indicador, e meu arco de segurança desabou em dor. Ele apertou bem o laço até meus pulsos ficarem espremidos um contra o outro, e depois deu um nó duplo, e triplo, dando uma puxada forte a cada passo.

Corri um polegar por cima do nó e senti como era liso e escorregadio. Seda. Sim, ele usara uma gravata. Uma preciosa oportunidade de escapulir daqueles grilhões!

Meus pulsos já estavam transpirando, e eu sabia que a umidade logo faria a seda encolher. Bem, não exatamente: a seda, como o cabelo, é uma proteína, e não encolhe de verdade, mas o modo como é tecida pode fazer com que se aperte impiedosamente quando molhada. Depois de algum tempo, o circulação das minhas mãos seria interrompida, e então...

— Sente-se — ordenou Pemberton, empurrando meus ombros, e eu me sentei.

Ouvi o clique da fivela do cinto dele quando o removeu, o enrolou nos meus tornozelos e o apertou.

Ele não disse mais nenhuma palavra. Os sapatos dele rasparam no concreto quando subiu os degraus do poço, e então ouvi o som de tábuas pesadas sendo arrastadas de volta para sua entrada.

Alguns momentos depois, tudo era silêncio. Ele se fora.

Eu estava sozinha no poço, e ninguém a não ser Pemberton sabia onde eu estava.

Eu ia morrer lá embaixo, e então finalmente encontrariam meu corpo. Eles me ergueriam até um reluzente ataúde preto e me transportariam para algum necrotério frio e úmido onde me deitariam sobre uma mesa de aço inoxidável.

A primeira coisa que fariam seria abrir minha boca e extrair a bola ensopada que era meu lenço e o abririam em cima da mesa ao lado dos meus lívidos restos e um selo alaranjado — um selo pertencente ao Rei — flutuaria para o chão; era como alguma coisa saída diretamente de uma história de Agatha Christie. Alguém — talvez até a própria srta. Christie — escrevesse uma história de detetive sobre isso.

Eu estaria morta, mas seria estampada na primeira página do News of the World. Se não estivesse tão apavorada, tão exausta, tão sem fôlego e sentindo tanta dor, poderia até achar aquilo divertido.


SER SEQUESTRADA NUNCA É EXATAMENTE do jeito que vocé imagina. Em primeiro lugar, eu não tinha mordido nem arranhado o sequestrador. E nem gritara: eu seguira mansamente como um cordeiro para o abate.

A única desculpa em que posso pensar é que todas as minhas forças estavam sendo desviadas para alimentar minha mente acelerada, e que nada delas restara para impelir os músculos. Quando uma coisa assim de fato acontece com você, a quantidade de besteiras que desaba instantaneamente sobre sua cabeça pode ser impressionante.

Eu me lembrei, por exemplo, da alegação de Maximilian de que nas Ilhas Canal você podia suscitar o clamor público simplesmente bradando “Haroo, haroo, mon prince. On me fait tort!”.

Fácil de falar, mas difícil de fazer quando a boca está arrolhada com algodão e a cabeça está enrolada no casaco de um estranho que fede razoavelmente a suor e brilhantina.

Além disso, pensei, há uma notável carência de príncipes na Inglaterra de hoje. Os únicos em que eu podia pensar no momento eram o marido da princesa Elizabeth, o Príncipe Philip, e o bebê dela, o Príncipe Charles.

Isso significava que, para todos os fins práticos, eu estava por minha própria conta.

O que teria feito Marie-Anne Lavoisier? Ou, quanto a isso, seu marido Antoine?

Meu presente apuro era uma lembrança vívida demais do assistente de Marie-Anne, encasulado em seda impermeabilizada e deixado para respirar por um canudinho. E era improvável, eu sabia, que alguém irrompesse no Barracão do Poço e me carregasse para a Justiça. Não havia guilhotina em Bishop’s Lacey, mas também não havia milagres.

Não, refletir sobre Marie-Anne e sua família condenada era deprimente demais. Eu teria de procurar inspiração em outros grandes químicos.

O quê, então, Robert Bunsen, por exemplo, ou Henry Cavendish teriam feito caso se vissem amarrados e amordaçados no fundo de um poço gosmento?

Fiquei surpresa com a velocidade com que a resposta me veio à mente: eles fariam um levantamento dos recursos disponíveis.

Muito bem, eu faria um levantamento dos recursos disponíveis.

Eu estava no fundo de uma fossa de dois metros de profundidade, o que ficava desconfortavelmente próximo às dimensões de uma sepultura. Minhas mãos e pés estavam amarrados e não seria fácil achar a saída tateando. Com a cabeça envolvida no casaco de Pemberton — e sem dúvida fortemente amarrada junto com os braços — eu não podia ver nada. Minha audição estava abafada pelo tecido grosso; meu paladar anulado pelo lenço enfiado na boca.

Eu estava tendo dificuldade para respirar, o nariz parcialmente coberto, e o mais leve esforço estava sendo usado pelo pouco de oxigênio que chegava aos pulmões. Eu precisava ficar quieta.

O sentido que aparentemente fazia hora extra era o olfato, e a despeito da minha cabeça embrulhada, o fedor do poço se infiltrava poderosamente em minhas narinas. No fundo, era a exalação do solo que permanecera por muito anos diretamente embaixo de habitações humanas: um odor acre de coisas sobre as quais era melhor nem pensar. Superposto nesse odor de fundo havia o cheiro adocicado de óleo velho de motor, o travo pungente de gasolina muito velha, de monóxido de carbono, borracha de pneu e, talvez, um leve bafo de ozônio de velas de ignição há muito queimadas.

E havia aquele vestígio de amônia que eu notara antes. A srta. Mountjoy mencionara ratos, e eu não ficaria surpresa se descobrisse que eles proliferavam naqueles edifícios abandonados ao longo da margem do rio.

Mais perturbador era o cheiro do gás do esgoto: uma sopa nojenta de metano, sulfato de hidrogênio, dióxido de enxofre e os óxidos de nitrogênio — cheiro de decomposição e coisa podre; o cheiro da tubulação aberta da margem do rio até o poço no qual eu estava agora amarrada.

Estremeci só de pensar nas coisas que poderiam estar agora mesmo passando por aquele duto. Mas para dar um descanso à minha imaginação seria melhor, pensei, continuar com o levantamento do poço.

Eu quase esquecera de que estava sentada. A ordem de Pemberton para sentar e o fato de ter me empurrado para baixo foram tão surpreendentes que não notei em cima do que me sentei. Agora podia sentir aquilo embaixo de mim: plano, sólido e estável. Mexendo o traseiro, consegui detectar a ligeira flacidez daquela coisa, juntamente com um ruído de madeira rangendo. Como uma grande caixa de chá, pensei, ou algo muito parecido. Teria Pemberton colocado isto aqui por precaução, antes de me abordar no pátio da igreja?

Foi então que me dei conta de que estava faminta. Não tinha comido nada desde o magro desjejum que, por falar nisso, tinha sido interrompido pelo súbito aparecimento de Pemberton na janela. Quando meu estômago começou a enviar pequenos espasmos de queixa, comecei a desejar que tivesse cuidado melhor das minhas torradas e cereais.

Mais ainda, eu estava cansada. Mais que cansada: eu estava totalmente exausta. Não tinha dormido bem, e os efeitos remanescentes da congestão nasal estavam dificultando a ingestão de oxigênio.

Relaxe, Flavia. Mantenha a cabeça fria. Pemberton logo chegará em Buckshaw.

Eu contava com o fato de que, quando ele entrasse na casa, seria interpelado por Dogger, que daria um jeito nele de maneira inequívoca.

Bom e velho Dogger! Como eu sentia falta dele. Ali estava aquele grande desconhecido vivendo debaixo do mesmo teto, e eu nunca pensara em lhe perguntar, cara a cara, sobre seu passado. Se eu conseguisse dar um jeito de escapar dessa encrenca infernal, juro que na primeira oportunidade o convidaria para um piquenique. Eu iria com ele de barco até a folly, onde lhe serviria pão com patê de vegetais e extrairia dele muitas informações sobre todos os detalhes sangrentos. Ele ficaria tão aliviado por eu ter conseguido escapar que dificilmente se negaria a me contar tudo.

O dileto amigo fingira ser o assassino de Horace Bonepenny, ainda que por acidente durante um de seus ataques, e fizera isso para proteger o pai. Eu tinha certeza disso. Dogger não estivera lá comigo no corredor, do lado de fora do estúdio do pai? Não tinha ouvido, como eu, a briga que precedera a morte de Bonepenny?

Sim, o que quer que tenha acontecido, Dogger cuidaria disso. Dogger era intensamente leal ao pai — e a mim. Leal até a morte.

Muito bem, então. Dogger cuidaria de Pemberton e estaria tudo resolvido.

Estaria?

E se Pemberton realmente chegasse a Buckshaw sem ser detectado e conseguisse entrar no estúdio do pai? E se ele parasse o relógio da lareira, examinasse atrás do pêndulo e não encontrasse nada lá, a não ser o Penny Black mutilado? O que faria então?

A resposta era simples: ele voltaria para o Barracão do Poço e me submeteria à tortura.

Uma coisa estava clara: eu tinha de escapar antes que ele conseguisse voltar. Não havia tempo a perder.

Meus joelhos estalaram como gravetos secos quando me pus em pé.

O primeiro passo, e mais importante, eu já havia dado: fazer um levantamento do espaço, mapear suas características e descobrir qualquer coisa que pudesse me ajudar na fuga. Com as mãos amarradas atrás das costas, eu só poderia mapear a parede de concreto andando lentamente pelo seu perímetro, as costas firmadas contra ela, usando as pontas dos dedos para tatear cada centímetro da superfície. Com um pouco de sorte, poderia encontrar algo cortante para usar como ferramenta e libertar as mãos.

Meus pés estavam amarrados tão apertado que eu podia sentir os ossos dos tornozelos raspando um no outro, e eu tinha de inventar algum jeito de andar aos pulos como rã. Cada movimento meu era acompanhado pelo farfalhar de papéis velhos embaixo dos pés.

Perto do que julguei ser o fim do poço, pude sentir uma corrente de ar frio soprando em meus tornozelos, como se houvesse uma abertura perto do chão. Me virei de frente para a parede, tentando enganchar a ponta do pé em alguma coisa, mas os nós estavam apertados demais. Cada movimento ameaçava me jogar de cara no chão.

Pude perceber que minhas mãos estavam rapidamente ficando cobertas por uma sujeira rançosa das paredes; só o cheiro daquilo já me dava náuseas.

E se, pensei, eu conseguisse subir no caixote de chá? Assim, minha cabeça ficaria acima do nível do poço, e poderia haver algum tipo de gancho mais acima na parede: alguma coisa, talvez, que teria sido usada para pendurar uma sacola de ferramentas ou uma luz de trabalho.

Mas primeiro eu precisava encontrar o caminho de volta para o baú.

Toda amarrada do jeito que estava, essa tarefa levou mais tempo do que eu esperava. Porém, mais cedo ou mais tarde, eu sabia, minhas pernas topariam no que eu estavam procurando e, completada minha circunavegação do fosso, estaria de volta onde comecei.

Dez minutos depois eu estava arfando como um cão de caça da Etiópia e ainda não tinha encontrado o caixote de chá. Teria passado por ele sem perceber? Deveria prosseguir ou voltar pelo mesmo caminho?

Talvez a caixa estivesse no meio do buraco e eu ficara me esfalfando aos pulos em volta dele. Pelo que eu podia me lembrar do poço na minha primeira visita — embora ele parecesse coberto por tábuas e eu não tivesse realmente olhado para dentro dele — achei que não poderia ter mais do que uns dois metros e meio de comprimento por um e oitenta de largura.

Com os tornozelos atados, eu não conseguia pular mais do que cerca de quinze centímetros em qualquer direção: digamos, doze por dezesseis pulos. Era fácil concluir que, com as costas para a parede, o centro do poço estaria a seis ou oito pulos de distância.

A essa altura, eu já estava sendo tomada pela fadiga. Pulava de um lado para o outro feito um gafanhoto num pote de geleia, e não chegava a lugar nenhum. Então, bem quando eu já estava prestes a desistir, raspei a canela no caixote de chá. Sentei-me sobre ele imediatamente para recuperar o fôlego.

Depois de algum tempo, comecei a mexer os ombros, um pouco para trás e para a direita. Quando mudei para a esquerda, o ombro tocou o concreto. Isso era encorajador! A caixa estava encostada na parede — ou suficientemente perto dela. Se, de algum modo, eu conseguisse subir nela, haveria uma possibilidade de eu me jogar para cima e por sobre a borda do buraco, como um leão-marinho no aquário. Uma vez fora do poço, a probabilidade seria muito maior de encontrar algum gancho ou projeção que me ajudasse a rasgar o casaco de Pemberton arrancando-o da minha cabeça. Então eu seria capaz de ver o que estava fazendo. Eu livraria as mãos, e depois os pés. Tudo parecia tão simples em teoria.

Tão cautelosamente quanto possível, virei-me noventa graus para que minhas costas se voltassem para a parede. Desloquei meu quadril para a borda de trás do caixote e ergui os joelhos até eles tocarem a parte do casaco que estava embaixo do meu queixo.

Havia uma borda ligeiramente ressaltada em volta da parte de cima da caixa, e consegui enganchar os calcanhares nela. Então, lenta... cuidadosamente... comecei a esticar as pernas, deslizando as costas, centímetro a centímetro, parede acima.

Éramos um triângulo retângulo. A parede e o tampo do baú formavam os lados adjacentes e opostos, e eu era a trêmula hipotenusa.

Uma câimbra repentina atravessou os músculos da minha panturrilha, e tive vontade de gritar. Se eu deixasse a dor tomar conta de mim, desabaria de cima do caixote e provavelmente quebraria um braço ou uma perna. Controlei-me e esperei a dor passar, mordendo a bochecha por dentro com tal ferocidade que senti, quase instantaneamente, o sabor salgado e morno do meu próprio sangue.

Fique firme, Flavia, tentei me motivar. Existem coisas piores. Mas, pela minha vida, não consegui pensar em nenhuma. Não sei quanto tempo fiquei lá parada, tremendo, mas me pareceu uma eternidade. Eu estava toda empapada de suor, e no entanto havia um ar frio soprando de algum lugar; eu ainda podia senti-lo em minhas pernas nuas.

Depois de uma luta prolongada, vi-me por fim em pé sobre a caixa. Corri os dedos pelo máximo de parede que fui capaz, mas ela ainda estava enlouquecedoramente lisa.

Desajeitada como uma elefanta bailarina, virei o corpo cento e oitenta graus até ficar de frente para a parede. Me inclinei para a frente e senti — ou achei que senti — a borda do poço embaixo do queixo. Mas, com a cabeça enfaixada no casaco de Pemberton, não podia ter certeza.

Não havia saída; pelo menos, nessa direção. Era como se eu fosse um hamster que conseguira subir até o topo de escada em sua gaiola só para descobrir que não havia para onde ir a não ser para baixo. Mas certamente os hamsters sabiam, em seu coração de hamsters, que qualquer tentativa de fuga seria inútil; somente nós, humanos, éramos incapazes de aceitar nosso próprio desamparo.

Desci lentamente de joelhos sobre o caixote. Descer, ao menos, foi mais fácil do que subir, embora a madeira áspera e cheia de farpas, e algo que dava a dolorosa sensação de uma borda de lata por toda a volta do baú, já tivesse arranhado meus joelhos expostos. De lá, fui capaz de me torcer para o lado até ficar sentada e jogar as pernas para cima até sentir que elas tocaram o chão.

A não ser que eu encontrasse a abertura através da qual o ar frio entrava no poço, a única saída era para cima. Haveria de fato um cano ou duto que levasse ao rio, com diâmetro suficiente para eu me arrastar através dele? E mesmo se houvesse, estaria livre de obstruções, ou eu subitamente daria de cara — como um lagarto cego — com alguma coisa horripilante na escuridão e ficaria encalhada ali, incapaz de me mover para a frente ou para trás?

Será que meus ossos seriam encontrados no futuro por uma arqueólogo perplexo? Será que eu seria exposta em uma caixa de vidro no Museu da Inglaterra, para ser admirada pelas multidões? Minha cabeça disparava entre os prós e contras.

Mas espere! Eu tinha me esquecido da escada no fim do poço! Eu poderia sentar no primeiro degrau e ir subindo de costas, um degrau de cada vez. Chegando no topo, empurraria com os ombros e ergueria as tábuas que cobriam o fosso. Por que eu não tinha pensado nisso logo de cara, antes de ficar me arrastando como uma minhoca até aquele nível de exaustão?

Foi então que algo me atingiu, sufocando minha consciência como um travesseiro. Antes que eu pudesse aceitar minha total exaustão, antes que eu pudesse me preparar para lutar, fui aniquilada. Senti-me afundando para o chão no meio de papéis farfalhantes: papéis que, a despeito do ar frio que vinha do conduto, agora me pareciam surpreendentemente mornos.

Mudei um pouco de posição, como se quisesse mergulhar naquelas profundezas e, puxando os joelhos para junto do queixo, adormeci instantaneamente.

 

Sonhei que Dafi estava encenando uma pantomima de Natal. O grande hall de Buckshaw tinha sido transformado num teatro vienense que era como um requintado porta-joias, com uma cortina de veludo vermelho e um imenso candelabro de cristal no qual as chamas de uma centena de velas bruxuleavam e piscavam.

Dogger, Felinha, a sra. Mullet e eu estávamos sentados lado a lado em uma única fileira de cadeiras, enquanto lá perto, em um assento entalhado, o pai se ocupava com seus selos.

A peça era Romeu e Julieta, e Dafi, em uma notável demonstração da arte do transformismo, estava representando todos os papéis. Num momento ela era Julieta no balcão (o patamar no topo da escadaria oeste) e no seguinte, depois de desaparecer por não mais que uma piscadela de um corvo, reaparecia no mezanino como Romeu.

Ela voou de um lado para outro, para cima e para baixo, comovendo corações com doces palavras de amor.

De vez em quando, Dogger encostava um dedo nos lábios e se esquivava silenciosamente para fora da sala, retornando momentos depois com um carrinho de mão pintado, transbordando de selos postais, que ele despejava aos pés do pai. Este, atarefado, cortava selos pelo meio com uma tesoura de unhas de Harriet, resmungando sem sequer erguer os olhos, e continuava com seu trabalho.

A sra. Mullet ria, e ria, como a velha governanta de Julieta, corando e lançando olhares para nós todos, como se houvesse alguma mensagem codificada que só ela podia entender. Ela enxugou a cara vermelha com um lenço de bolinhas, torcendo-o muitas vezes nas mãos antes de amarfanhá-lo numa bola e enfiá-lo na própria boca para interromper seus risos histéricos.

Agora Dafi (como Mercuccio) descrevia como Mab, a Rainha das Fadas, galopa:

 


Pelos lábios das jovens, que com beijos logo sonham,


Lábios que Mab, zangada, muitas vezes com pústulas atormenta


Pois seus hálitos por balas e doces se contaminaram.

 

 

Dei uma olhadela furtiva para Felinha que, mesmo pelo fato de que seus lábios pareciam alguma coisa que se pode encontrar no carrinho de mão de um peixeiro, tinha atraído as atenções de Ned, que estava sentado atrás dela, inclinando-se para a frente por cima de seu ombro, os próprios lábios contraídos, pedindo um beijo. Mas, a cada vez que Dafi esvoaçava rapidamente do balcão para o mezanino abaixo no papel de Romeu (que se parecia, com seu bigode fininho, mais com David Niven em Neste mundo e no outro, do que com um nobre Montéquio), Ned punha-se em pé de um pulo com uma salva de aplausos enfatizados por assobios, enquanto Felinha, inabalável, jogava balas de menta na boca escancarada, arfando subitamente, quando Romeu irrompia na sepultura de mármore de Julieta:

 


Pois aqui está deitada Julieta, e sua formosura faz


desta abóbada um ambiente real transbordante de luz.


Morte, deita-te ali...

 

 

Eu acordei. Droga! Alguma coisa corria por cima dos meus pés: uma coisa molhada e peluda.

— Dogger! — tentei gritar, mas minha boca estava entupida com uma coisa molhada. A mandíbula doía, e a cabeça parecia ter sido arrasada pelo talho de um açougueiro.

Esperneei com os dois pés e alguma coisa passou correndo através dos papéis soltos, guinchando fortemente.

Uma ratazana. O poço provavelmente estava apinhado daquelas criaturas. Será que me mordiscaram enquanto eu dormia? O simples pensamento me fez encolher de medo.

Endireitei o corpo e me apoiei na parede, os joelhos embaixo do queixo. Seria demais esperar que os ratos mordiscassem minhas amarras como faziam nos contos de fadas? Seria muito mais provável que eles mascassem minhas juntas até os ossos, e eu seria impotente para impedi-los.

Pare com isso, Flavia, pensei. Não deixe sua imaginação vagar para longe.

Houve muitas vezes no passado em que, trabalhando no meu laboratório ou na cama à noite, eu inesperadamente me peguei pensando: “Você está sozinha com Flavia de Luce”, o que às vezes era um pensamento assustador, e às vezes não. Esta era uma das ocasiões assustadoras.

Os ruídos de bichos correndo eram bem reais; alguma coisa estava vasculhando os papéis no canto do poço. Se eu mexia as pernas ou a cabeça, os ruídos cessavam por um momento, e depois começavam de novo.

Quanto tempo eu dormi? Foram horas ou minutos? Ainda era dia lá fora, ou estava escuro?

Lembrei-me de que a biblioteca estaria fechada até quinta-feira de manhã, e hoje era apenas terça-feira. Eu poderia ficar aqui por muito tempo.

Alguém comunicaria meu desaparecimento, é claro, e provavelmente seria Dogger. Seria demais esperar que ele flagrasse Pemberton na invasão a Buckshaw? Mas, mesmo se ele fosse pego, Pemberton contaria onde me escondeu?

Agora minhas mãos e pés estavam ficando amortecidos, e pensei no velho Ernie Forbes, cujos netos foram obrigados a arrastá-lo pela Rua Principal em cima de um carrinho. Ernie perdera uma das mãos e os dois pés para a gangrena durante a guerra, e Felinha uma vez me contou que ele precisou ser...

Pare com isso, Flavia! Pare de ser uma chorona tão patética!

Pense em outra coisa. Pense em qualquer coisa.

Pense, por exemplo, em vingança.


HÁ OCASIÕES — ESPECIALMENTE QUANDO ESTOU CONFINADA — em que meus pensamentos tendem, como o homem na história de Stephen Leacock, a correr loucamente em todas as direções.

Fico quase envergonhada em admitir as coisas que passaram pela minha cabeça de início. A maior parte delas envolvia venenos, outros utensílios domésticos, e todas elas incluíam Frank Pemberton.

Minha mente correu ao nosso primeiro encontro na Treze Patos. Embora eu tivesse visto seu táxi parar diante da porta da frente e também ouvisse Tully Stoker gritar para Mary que o sr. Pemberton chegara cedo, eu não havia realmente posto os olhos no homem em si. Isso não ocorreu até sábado na folly.

Embora tivessem ocorrido diversas coisas estranhas após o súbito aparecimento de Pemberton em Buckshaw, eu realmente não tivera tempo de pensar nelas.

Em primeiro lugar, ele não chegara em Bishop’s Lacey até horas depois de Horace Bonepenny ter expirado na minha frente. Ou teria chegado?

Quando ergui os olhos e vi Pemberton postado na beira do lago, fui tomada pela surpresa. Mas por quê? Buckshaw era minha casa: eu nascera e vivera lá todos os minutos da vida. O que havia de tão surpreendente em um homem postado à beira de um lago artificial?

Pude perceber uma resposta àquela pergunta mordendo o anzol que eu deixara no meu subconsciente. Não olhe diretamente, pensei, pense em outra coisa — ou pelos menos finja.

Havia chovido naquele dia, ou apenas começado a chover. Eu olhara para cima de onde estava, nos degraus do pequeno templo em ruínas, e lá estava ele, do outro lado da água, no lado sul do lago; do lado sudoeste, para ser precisa. Por que diabos ele teria aparecido daquela direção?

Era uma pergunta para a qual eu tinha a resposta há algum tempo.

Bishop’s Lacey fica a noroeste de Buckshaw. Vindo de Mulford Gates, à entrada de nossa alameda de castanheiras, a estrada segue em curvas e viradas mais ou menos diretamente para nossa aldeia. No entanto, Pemberton aparecera do sudoeste, da direção de Doddinglsley, que ficava a cerca de quatro quilômetros atravessando os campos. Por quê, então, em nome do demônio, ele escolheria vir por esse caminho? As opções pareciam limitadas, e eu, rapidamente, anotei no meu caderno mental:

 


1. Se ele (o suspeito), Pemberton, era o assassino de Horace Bonepenny, poderia ele, como dizem que os assassinos sempre fazem, ter sido atraído de volta ao local do crime? Teria deixado alguma pista? Como a arma do crime? Teria voltado a Buckshaw para recuperá-la?

 


2. Como ele já estivera em Buckshaw na noite anterior, conhecia o caminho através dos campos e queria evitar ser visto. (Vide premissa 1 acima.)

 

 

E se na sexta-feira, na noite do assassinato, Pemberton, acreditando que Bonepenny trazia com ele os Vingadores de Ulster, o seguira de Bishop’s Lacey até Buckshaw e o assassinara lá?

Mas espere, Flavia, pensei. Segure seus cavalos. Não saia galopando desse jeito.

Por que Pemberton não iria simplesmente surpreender sua vítima em uma daquelas tranquilas sebes que ladeiam praticamente todos os caminhos nesta parte da Inglaterra?

A resposta me veio como se estivesse destacada em néon vermelho no Piccadilly Circus: porque ele queria que o pai fosse culpado pelo crime!

Bonepenny tinha de ser morto em Buckshaw!

É claro! Sendo o pai um quase recluso, seria improvável esperar que ele estivesse longe de casa. Os assassinatos — pelo menos aqueles em que o assassino espera escapar da Justiça — tinham de ser planejados de antemão e, muitas vezes, detalhadamente. Era óbvio que um crime filatélico precisava ser atribuído a um filatelista. Se era improvável que o pai estivesse na cena do crime, a cena do crime teria de ir até ele.

E foi o que aconteceu.

Embora eu tivesse de início formulado essa sequência de eventos — ou, pelo menos, algumas das suas conexões — horas atrás, foi somente agora, quando finalmente fui forçada a ficar a sós com Flavia de Luce, que fui capaz de encaixar todas as peças.

Flavia, estou orgulhosa de você! Marie-Anne Paulze Lavoisier também ficaria.

Agora, então: Pemberton, é claro, seguiu Bonepenny até Doddingsley; talvez por todo o caminho desde Stavanger. O pai tinha visto ambos na exposição semanas atrás — uma prova de que nenhum deles estava vivendo no exterior de modo permanente.

Eles provavelmente tinham planejado isso juntos, essa chantagem contra o pai. Assim como planejaram a morte do sr. Twining. Mas Pemberton tinha seu próprio plano.

Uma vez convencido de que Bonepenny estava a caminho de Bishop’s Lacey (aonde mais, realmente, ele estaria indo?), Pemberton descera do trem em Doddingsley e se registrara na Cocheiro Alegre. Eu sabia disso com certeza. Então, na noite do assassinato, tudo o que ele tinha a fazer era caminhar pelos campos em direção a Bishop’s Lacey.

Ali, ele aguardara até ver Bonepenny deixar a estalagem e partir a pé para Buckshaw. Com Bonepenny fora do caminho e sem suspeitar que estava sendo seguido, Pemberton revistara o quarto na Treze Patos e seu conteúdo — inclusive a bagagem de Bonepenny — e não encontrara nada. Ele, é claro, nunca pensara, como eu, em cortar as etiquetas.

Àquela altura, ele devia ter ficado furioso.

Esgueirando-se da estalagem sem ser visto (muito provavelmente por aquela escada íngreme nos fundos), ele seguiu sua presa a pé até Buckshaw, onde eles devem ter discutido no nosso jardim. Como foi então, me perguntei, que eu não os ouvira?

Depois de meia hora, ele havia abandonado Bonepenny como morto, seus bolsos e carteira devidamente esvaziados. Mas os Vingadores de Ulster não estavam lá: Bonepenny, afinal, não tinha conseguido colocar as mãos nos selos.

Pemberton cometeu seu crime e então simplesmente saiu andando pela noite, atravessando os campos até a Cocheiro Alegre, em Doddingsley. Na manhã seguinte, ele desceria de um táxi, com muito estardalhaço na Treze Patos, fingindo que acabara de chegar de Londres de trem. Ele teria de revistar o quarto de novo. Arriscado, mas necessário. Certamente os selos ainda deviam estar escondidos lá.

De partes dessa sequência de eventos, eu já havia suspeitado há algum tempo, e embora ainda não tivesse juntado os fatos remanescentes, já havia verificado a presença de Pemberton em Doddingsley na chamada telefônica ao sr. Cleaver, o proprietário da Cocheiro Alegre.

Em retrospecto, tudo parecia razoavelmente simples.

Parei de pensar por um momento para ouvir minha respiração. Era lenta e regular, enquanto eu estava lá sentada com a cabeça repousada nos joelhos.

Nesse momento, lembrei uma coisa que o pai havia nos contado certa vez: Napoleão chamara os ingleses de “uma nação de lojistas”. Errado, Napoleão!

Tendo acabado de passar por uma guerra em que toneladas de trinitrotolueno foram despejadas em cima das nossas cabeças no escuro, éramos uma nação de sobreviventes, e eu, Flavia Sabina de Luce, podia notar isso até em mim mesma.

E então murmurei parte do Salmo 23, por questões de segurança. Nunca se pode ter certeza.

E agora: o assassinato.

Novamente, a face agonizante de Horace Bonepenny flutuou perante mim no escuro, sua boca se abrindo e fechando como a de um peixe sufocando na grama. Sua última palavra e seu último suspiro saíram como uma coisa só: “Vale”, disse ele, e isso flutuou de sua boca diretamente para minhas narinas. E chegou a mim como uma onda de tetracloreto de carbono.

Não havia dúvida nenhuma de que era tetracloreto de carbono, um dos compostos químicos mais fascinantes.

Para um químico, seu cheiro adocicado, embora de duração muito rápida, é inconfundível. Não é muito diferente das caracterísicas do clorofórmio usado pelos anestesistas em cirurgias.

No tetracloreto de carbono (um dos seus muitos pseudônimos), quatro átomos de cloro brincam de ciranda com um único átomo de carbono. É um inseticida poderoso, ainda usado de vez em quando em casos persistentes de ancilóstomos, aqueles pequenos, silenciosos parasitas que se empanturram com o sangue sugado no escuro dos intestinos, tanto de homens como de animais.

Porém, o mais importante: os filatelistas usam o tetracloreto de carbono para fazer aparecerem as marcas-d’água quase invisíveis dos selos. E o pai guardava garrafas disso em seu estúdio.

Pensei no quarto de Bonepenny na Treze Patos. Que tola eu fora em pensar em uma torta envenenada! Isso não era um conto de fadas dos irmãos Grimm; era a história de Flavia de Luce.

A casca da torta não era nada além disso: apenas uma casca. Antes de sair da Noruega, Bonepenny removera o recheio, e enfiara dentro o jack snipe, com o qual planejava aterrorizar o pai. Foi assim que ele contrabandeou o pássaro morto para a Inglaterra.

Não foi tanto o que encontrei em seu quarto, mas o que não encontrei. E este, é claro, era o único item que estava faltando no pequeno kit de couro em que Bonepenny levava seus suprimentos de diabético: a seringa.

Pemberton encontrara a seringa e a embolsara ao vasculhar o quarto de Bonepenny logo antes do assassinato. Tenho certeza disso.

Eles eram parceiros no crime, e ninguém saberia melhor do que Pemberton quais eram os suprimentos médicos essenciais para a sobrevivência de Bonepenny.

Mesmo se Pemberton tivesse planejado um meio diferente de despachar sua vítima — uma pedra na nuca, ou estrangulamento com um ramo verde de salgueiro — a seringa na bagagem de Bonepenny devia ter parecido algo enviado por Deus. Eu estremecia só de pensar como aquilo tinha sido feito.

Eu podia imaginar os dois lutando, à luz do luar. Bonepenny era alto, mas não muito musculoso. Pemberton o teria derrubado como um puma derruba um cervo.

Surge a seringa hipodérmica, e na base do cérebro de Bonepenny ela entra. Simples assim. Não levaria mais que um segundo, e o efeito seria quase instantâneo. Este, eu tinha certeza, fora o meio como Horace Bonepenny encontrara sua morte.

Se ele tivesse ingerido a substância — e teria sido quase impossível forçá-lo a engolir aquilo — uma quantidade muito maior de veneno seria necessária: uma quantidade que ele teria prontamente vomitado.

Ao passo que cinco centímetros cúbicos injetados na base do cérebro teriam sido suficientes para derrubar um boi.

Os vapores inconfundíveis do tetracloreto de carbono foram rapidamente transmitidos para boca e cavidades nasais, como eu havia detectado. Mas quando o inspetor Hewitt e seus sargentos detetives chegaram, já se haviam evaporado sem deixar rastros.

Foi um crime quase perfeito. De fato, teria sido perfeito se eu não tivesse descido ao jardim, como fiz.

Eu não tinha pensado nisso antes. Seria a continuação da minha existência a única coisa que restava entre Frank Pemberton e a liberdade?

Ouvi um ruído áspero.

Eu não sabia dizer de que direção ele vinha. Virei a cabeça, e o som parou quase instantaneamente.

Por um minuto ou mais, reinou o silêncio. Forcei os ouvidos, mas pude ouvir apenas o som da minha própria respiração que, notei, ficara mais rápida — e mais irregular.

Lá estava de novo! Como se um pedaço de madeira estivesse sendo arrastado, com agonizante lentidão, contra uma superfície áspera.

Tentei gritar “Quem está aí?”, mas a bola de lenço na minha boca reduziu minhas palavras a um resmungo abafado. Com o esforço, senti as mandíbulas doerem como se alguém tivesse enfiado um dormente de trilho de trem em cada lado da minha cabeça.

Melhor ouvir, pensei. Ratos não arrastam tábuas, e a não ser que estivesse enganada, eu não estava mais sozinha no Barracão do Poço.

Como uma serpente, movi a cabeça lentamente de um lado para outro, tentando aproveitar minha audição superior, mas as pesadas amarrações do casaco em minha cabeça abafavam tudo, menos os sons mais altos.

Mas os ruídos não evocavam nem metade da irritação que o silêncio entre eles produzia. O que quer que estivesse no poço estava tentando manter sua presença oculta. Ou estaria em silêncio só para me enervar?

Ouvi um rangido, depois um leve plic!, como se um pedregulho tivesse caído em cima de uma grande pedra.

Tão lentamente como uma flor se abrindo, estiquei as pernas para a frente, mas, como elas não encontraram resistência, puxei-as de volta para debaixo do queixo. Melhor me enroscar, pensei; melhor apresentar um alvo menor.

Por um momento, focalizei a atenção nas mãos, que ainda estavam atadas atrás de mim. Talvez tivesse acontecido um milagre; talvez a seda tivesse se esticado e afrouxado, mas não tive essa sorte. Até meus dedos amortecidos podiam sentir que as minhas amarras estavam tão apertadas como antes. Eu não tinha esperanças de me soltar. Eu realmente morreria aqui embaixo.

E quem sentiria minha falta?

Ninguém.

Depois de um período adequado de luto, o pai voltaria aos seus selos, Daphne arrastaria para baixo mais uma caixa de livros da biblioteca de Buckshaw, e Ophelia descobriria uma nova cor de batom. E em breve — dolorosamente muito em breve — seria como se eu nunca tivesse existido.

Ninguém me amava, e isso era um fato. Harriet podia ter me amado quando eu era bebê, mas ela estava morta.

E então, para o meu horror, me vi em lágrimas.

Fiquei apavorada. Olhos lacrimejantes eram uma coisa contra a qual eu lutara desde que podia me lembrar e, contudo, a despeito dos meus olhos vendados, eu parecia ver flutuando diante de mim uma face bondosa, uma face de que eu havia me esquecido em meu sofrimento. Era, é claro, a face de Dogger.

Dogger ficaria desolado se eu morresse!

Segure-se, Flavia... é apenas um poço. Como era aquela história que Dafi nos leu sobre um poço? Aquele conto de Edgar Allan Poe? Aquele sobre o pêndulo?

Não, eu não ia pensar sobre isso. Não ia!

E então havia o Buraco Negro de Calcutá, onde o Nawab da Bengala prendeu cento e quarenta e seis soldados britânicos em uma cela feita para não mais que três.

Quantos sobreviveram àquela única noite naquele forno sufocante? Vinte e três, lembrei-me, e, pela manhã, estavam loucos babando — todos eles.

Não! Não, Flavia!

Minha cabeça era como um vórtice, girando... girando. Respirei fundo para me acalmar, e minhas narinas se encheram com cheiro de metano. É claro!

O cano para a margem do rio estava cheio daquilo. Tudo o que era necessário para explodir era uma fonte de ignição, e o resultado seria comentado durante anos.

Eu encontraria o fim do cano e chutaria. Se a sorte estivesse do meu lado, os pregos nas solas dos meus sapatos provocariam uma centelha, o metano explodiria, e seria o fim.

A única desvantagem desse plano era que eu estaria no fim do cano quando a coisa explodisse. Seria como estar amarrada na boca de um canhão.

Bem, o canhão que se dane! Eu não morreria aqui neste poço fedido sem lutar.

Reunindo tudo o que restava das minhas forças, finquei os calcanhares e me empurrei contra a parede até ficar em pé. Levou muito mais tempo do que eu esperava, mas afinal, embora tremendo, fiquei em pé.

Não havia mais tempo para pensar. Eu encontraria a fonte do gás metano, ou morreria tentando.

Quando tentei pular para onde eu achava que poderia estar o cano, uma voz gelada sussurrou no meu ouvido:

— E agora, para Flavia.


ERA PEMBERTON E, AO SOM DE SUA VOZ, meu coração disparou. O que ele queria dizer? “E agora, para Flavia”? Teria ele já feito algo terrível com Dafi, ou Felinha... ou com Dogger?

Antes que eu pudesse começar a imaginar, ele já tinha agarrado meu braço em um aperto paralisante, com o polegar fincado no músculo como fizera antes. Tentei gritar, mas não saiu nada. Achei que ia vomitar.

Sacudi a cabeça violentamente de um lado para outro, mas só depois do que me pareceu uma eternidade, ele me soltou.

— Mas, primeiro, Frank e Flavia vão ter uma conversinha — disse ele, em um tom agradável e coloquial como se estivéssemos passeando no parque, e me dei conta naquele instante que eu estava sozinha com um louco na minha própria Calcutá.

— Vou tirar o casaco da sua cabeça, entendeu?

Fiquei totalmente parada, petrificada.

— Escute, Flavia, e escute com atenção. Se você não fizer exatamente o que eu disser, vou matá-la. Simples assim. Entendeu?

Assenti.

— Bom. Agora fique quieta.

Pude senti-lo mexendo rudemente com os nós que tinha feito no casaco, e imediatamente seu forro liso de seda começou a escorregar pelo meu rosto, e depois caiu.

O facho de sua lanterna me atingiu como uma pancada de martelo, cegando-me com a luz.

Encolhi-me, em choque. Estrelas faiscantes e manchas pretas passavam alternadamente por meu campo de visão. Eu tinha ficado tanto tempo às escuras que até a luz de um simples fósforo teria sido lancinante, mas Pemberton apontava aquela lanterna poderosa diretamente para meus olhos.

Incapaz de erguer as mãos para me proteger, só pude virar a cabeça para o lado, fechar os olhos bem apertado e esperar que a náusea passasse.

— Doloroso, não é? — disse ele. — Mas isso não é nem metade da dor que você vai sentir se mentir para mim outra vez.

Abri meus olhos ardidos e tentei focalizá-los em um canto escuro do poço.

— Olhe para mim! — demandou ele.

Virei a cabeça e apertei os olhos para ele, o que deve ter sido uma careta verdadeiramente horrível. Não conseguia vê-lo atrás da lente redonda da lanterna, cujo facho violento ainda queimava meu cérebro como um gigantesco sol branco do deserto.

Lentamente, sem se apressar, ele virou a luz, dirigindo-a para o chão. Em algum lugar atrás da claridade, ele nada mais era senão uma voz na escuridão.

— Você mentiu para mim.

Fiz algo parecido com um encolher de ombros.

— Você mentiu para mim — Pemberton repetiu mais alto, e, dessa vez, pude perceber a tensão na sua voz. — Não havia nada escondido naquele relógio além do Penny Black.

Então ele estivera em Buckshaw! Meu coração palpitava como um passarinho engaiolado.

— Mngg — balbuciei.

Pemberton pensou por um momento, mas não conseguiu tirar nenhum sentido daquilo.

— Vou tirar o lenço da sua boca, mas primeiro quero lhe mostrar uma coisa.

Ele pegou o casaco no chão do poço e enfiou a mão no bolso. Quando a mão saiu, estava segurando um objeto reluzente de vidro e metal. Era a seringa de Bonepenny! Ele a estendeu para eu inspecionar.

— Você estava procurando por isto, não estava? Na estalagem e no seu jardim? E estava aqui o tempo todo!

Ele riu pelo nariz feito um porco e sentou-se nos degraus. Prendendo o farolete entre os joelhos, segurou a seringa em pé enquanto vasculhava mais uma vez o casaco e tirava de lá um frasco marrom. Eu mal tive tempo de ler o rótulo antes que ele removesse a rolha e enchesse rapidamente a seringa.

— Imagino que você sabe o que é esta substância, não é, Srta. Sabe-Tudo?

Olhei-o nos olhos, mas não dei nenhum outro sinal de tê-lo ouvido.

— E não pense que eu não sei precisamente como e onde injetar isto. Não passei todas aquelas horas na sala de dissecação do Hospital de Londres à toa. Depois de derrubar o velho Bony, a injeção em si foi algo quase ridiculamente simples: ligeiramente em ângulo para um lado, através dos músculos splenius capitus e semispinalis capitus, perfurar o ligamento atlantoaxial e deslizar a agulha por cima do arco do eixo. E pimba! Hora de dormir! O tetracloreto de carbono se evapora instantaneamente, quase sem deixar vestígios. O crime perfeito, se é que eu mesmo posso dizer isso.

Bem como eu havia deduzido! Só que agora eu sabia precisamente como ele tinha feito isso! O homem era louco, babando, louco de jogar pedra!

— Agora escute. Vou tirar este lenço da sua boca, e você vai me contar o que fez com os Vingadores de Ulster. Uma palavra errada... um movimento errado, e...

Segurando a seringa em pé, quase encostada em meu nariz, ele apertou levemente o êmbolo. Algumas gotas de tetracloreto de carbono espirraram, como orvalho, na ponta da agulha, e caíram para o chão. Meu nariz sentiu o odor familiar da substância.

Pemberton colocou a lanterna em cima dos degraus e ajustou sua posição para iluminar meu rosto. E colocou a seringa ao seu lado.

— Abra — ordenou.

Foi isto o que passou velozmente pela minha cabeça: ele enfiaria o polegar e o indicador na minha boca para remover o lenço. Eu morderia com todas as minhas forças — arrancaria fora os dedos dele!

Mas e daí? Eu ainda estava amarrada, pés e mãos, e mesmo severamente mordido, Pemberton ainda poderia me matar com facilidade.

Abri meus maxilares doloridos só um pouco.

— Abra mais — disse ele, hesitando. Então, rápido como uma piscadela, ele enfiou os dedos e pescou o lenço na minha boca. Por um único instante, a luz da lanterna foi bloqueada pela sombra da mão dele, e ele não viu, como eu vi, um levíssimo brilho alaranjado quando a bola molhada caiu na escuridão do chão.

— Obrigada — sussurrei, rouca, fazendo meu primeiro lance na segunda parte do jogo.

Pemberton pareceu desconcertado.

— Alguém deve tê-los achado — grasnei. — Os selos, quero dizer. Eu os coloquei no relógio — juro.

Percebi instantaneamente que tinha ido longe demais. Se eu estivesse dizendo a verdade, Pemberton não teria mais nenhuma razão para me manter viva. Eu era a única que sabia que ele era um assassino.

— A não ser... — acrescentei depressa.

— A não ser? A não ser o quê?

Ele caiu em cima das minhas palavras feito um jaguar em cima de um antílope abatido.

— Meus pés — choraminguei. — Estão doendo. Não consigo pensar. Não consigo... Por favor, pelo menos afrouxe... só um pouquinho.

— Muito bem — concordou ele surpreendentemente sem pensar. — Mas vou deixar suas mãos amarradas. Assim, você não vai para lugar nenhum.

Assenti entusiasmada.

Pemberton se ajoelhou e afrouxou a fivela do cinto que me prendia. Assim que o couro escorregou para fora dos meus tornozelos, reuni minhas forças e chutei-o nos dentes.

Quando ele cambaleou para trás, sua cabeça bateu violentamente contra o concreto, e ouvi o ruído de um objeto de vidro atingindo o chão e escorregando para o canto. Pemberton deslizou pesadamente pela parede abaixo até cair sentado enquanto eu manquitolava em direção aos degraus.

Comecei a subir... um... dois... meu pé desajeitado chutou a lanterna, que foi rolando e virando pelo piso do poço até parar com o facho iluminando a sola de um dos sapatos de Pemberton.

Três... quatro... meus pés pareciam cotocos decepados nos tornozelos.

Cinco...

Certamente àquela altura minha cabeça já deveria estar acima do poço, mas se estava, a sala continuava no escuro. Não havia mais que uma leve luminescência avermelhada que vinha das janelas na porta sanfonada. Devia estar escuro lá fora; eu devia ter dormido por horas.

Quando eu estava tentando me lembrar onde ficava a porta, ouvi um ruído áspero no poço. O facho da lanterna cruzou o teto loucamente de um lado para outro e, de repente, Pemberton saiu dos degraus e veio para cima de mim.

Ele jogou os braços à minha volta e apertou até eu não conseguir mais respirar. Pude ouvir os ossos estalando em meus ombros e cotovelos.

Tentei chutá-lo nas canelas, mas ele foi rápido em me dominar.

Atravessamos a sala para um lado e para outro, como dois piões.

— Não! — ele gritou perdendo o equilíbrio e caiu de costas no poço, arrastando-me com ele.

Ele atingiu o fundo com uma tremenda pancada e, no mesmo instante, aterrissei em cima dele. Ouvi-o ofegar na escuridão. Teria quebrado a coluna? Ou logo estaria em pé de novo, me chacoalhando como se eu fosse uma boneca de trapo?

Com uma súbita manifestação de força, Pemberton me jogou longe, e eu saí voando de cara para baixo até um canto do poço. Como uma lagarta, fui me retorcendo até conseguir ficar de joelhos, mas era tarde demais: Pemberton me agarrara violentamente pelo braço e estava me arrastando para os degraus.

Foi quase fácil demais: ele se agachou e agarrou a lanterna onde ela havia caído, depois estendeu a mão para a escada. Eu tinha pensado que a seringa fora atirada ao chão, mas devo ter ouvido o frasco caindo, pois no momento seguinte vi de relance a agulha na mão dele — e então senti uma picada na nuca.

Meu único pensamento foi ganhar tempo.

— Você matou o professor Twining, não matou? — ofeguei. — Você e Bonepenny.

Isso pareceu pegá-lo desprevenido. Senti o aperto relaxar, só um pouquinho.

— O que faz você pensar isso? — sussurrou ele no meu ouvido.

— Era Bonepenny quem estava no telhado — afirmei. — Foi Bonepenny quem gritou ‘Vale!’. Ele imitou a voz do sr. Twining. Foi você quem jogou o corpo pelo buraco abaixo.

Pemberton tomou ar pelo nariz.

— Bonepenny contou isso a você?

— Eu achei o chapéu e a beca embaixo das telhas. Deduzi isso sozinha.

— Você é uma menina muito esperta — admitiu, quase pesaroso.

— E agora que você matou Bonepenny, os selos são seus. Pelo menos seriam, se você soubesse onde estão.

Isso pareceu irritá-lo. Ele voltou a torcer meu braço, mais uma vez afundando o polegar no músculo. Gritei de dor.

— Cinco palavras, Flavia — sussurrou ele. — Onde estão os malditos selos?

No longo silêncio que se seguiu, em meio à dor amortizante, minha mente se refugiou na fuga da realidade.

Seria este o fim de Flavia?, perguntei-me.

Se era, estaria Harriet me protegendo? Estaria ela sentada neste exato momento em cima de uma nuvem, com as pernas balançando no ar e dizendo: “Oh, não, Flavia! Não faça isso; não diga isso! Perigo, Flavia! Perigo!”.

Se ela estava, não pude ouvi-la; talvez eu estivesse mais distante de Harriet do que Felinha e Dafi. Talvez ela me amasse menos.

Era triste o fato de que, das três filhas de Harriet, eu era a única que não tinha lembranças reais dela. Felinha, como uma avarenta, vivenciara e acumulara oito anos do amor de mãe. E Dafi insistia que, muito embora mal tivesse três anos quando Harriet morreu, tinha uma lembrança perfeitamente clara de uma mulher jovem, esbelta e sorridente que punha nela um vestido e uma touca engomados, a colocava sentada em um gramado iluminado de sol sobre um cobertor e tirava retratos com uma máquina fotográfica de fole, antes de presenteá-la com um pepininho em conserva.

Outra pontada me trouxe de volta à realidade — a agulha estava na base do meu cérebro.

— Os Vingadores de Ulster. Onde estão?

Apontei um dedo para o canto do poço onde o lenço continuava caído, embolado nas sombras. Quando o facho da lanterna de Pemberton dançou em sua direção, desviei os olhos, e então voltei o olhar para cima, como dizem que os santos de antigamente faziam quando buscavam a salvação.

Ouvi antes de ver. Um ruído abafado, como o de um pterodátilo gigante batendo as asas do lado de fora do Barracão do Poço. Um momento depois, houve um estrondo assustador, e uma chuva de vidro quebrado.

A sala acima de nós, além da boca do poço, explodiu em uma luz amarela ofuscante e, através dela, nuvens de vapor passaram como fantasmas inflados.

Ainda enraizada no lugar, fiquei olhando para o cenário acima, para a estranhamente familiar aparição que tremeluzia acima do poço.

Eu pirei, pensei. Fiquei maluca.

Acima da minha cabeça, tremendo como uma coisa viva, estava o chassi do Rolls-Royce de Harriet.

Antes que eu pudesse piscar, ouvi o ruído das portas se abrindo e de pés tocando o chão acima de mim.

Pemberton deu um pulo para a escada, subindo por ela, atabalhoado, como um rato acuado. No topo, ele parou, tentando desesperadamente escalar da borda do poço até o para-choque dianteiro do Phantom.

Uma mão sem corpo apareceu e o agarrou pelo colarinho, pinçando-o para fora do poço como se fosse um peixe em uma lagoa. Seus sapatos desapareceram na luz acima de mim, e ouvi uma voz — a voz de Dogger! — dizendo: — Desculpe pelo cotovelo.

Houve um nauseante ruído de esmagamento, e alguma coisa atingiu o chão acima de mim como um saco de nabos.

Eu ainda estava atordoada quando a visão apareceu. Toda de branco, escorregadia, passava facilmente através da estreita abertura entre o cromo e o concreto antes de fazer sua rápida e palpitante descida para dentro do poço.

Quando ela lançou os braços em volta de mim e soluçou no meu ombro, pude sentir o corpo magro tremendo como uma folha.

— Sua bobinha! Sua bobinha! — exclamou ela, vezes e vezes seguidas, os lábios vermelhos se apertando contra o meu pescoço.

— Felinha! — falei, abobalhada de surpresa. — Você está sujando de óleo o seu melhor vestido!

Do lado de fora do Barracão do Poço, no Caminho das Vacas, tudo era uma fantasia: Felinha, de joelhos, soluçava, os braços apertando com força minha cintura. Enquanto eu estava lá, imóvel, era como se tudo se dissolvesse entre nós, e por um momento Felinha e eu éramos uma única criatura iluminada pelo luar no caminho nublado.

E então todo mundo em Bishop’s Lacey pareceu se materializar, saindo da escuridão, cacarejando como conselheiros municipais para a cena iluminada pelo farolete, e para aquilo que um dia foi a porta do Barracão do Poço, agora estourado. Um contava ao outro o que estava fazendo quando o estrondo ecoara por toda a aldeia. Era como uma cena daquela peça, Brigadoon, em que a aldeia encantada volta lentamente à vida por um único dia a cada cem anos.

O Phantom de Harriet, com seu belo radiador perfurado por ter sido usado como um tanque de guerra, agora fervia silencioso na frente do Barracão do Poço, vazando água para o chão. Vários dos aldeões mais fortes — um deles, notei, era Tully Stover — tinham empurrado o pesado veículo para trás, para permitir que Felinha me guiasse para fora do poço e para o brilho intenso dos seus grandes faróis redondos.

Felinha se pusera em pé, mas ainda estava agarrada a mim, como uma craca ao casco de um navio, tagarelando animadamente.

— Nós o seguimos até aqui, sabia? Dogger sabia que você não tinha chegado em casa, e quando ele viu alguém rondando a casa...

Aquela foi a ocasião em que ela pronunciara o maior número de palavras consecutivas para mim em toda minha vida, e eu fiquei lá saboreando-as um pouco.

— Ele chamou a polícia, é claro; então ele disse que se nós seguíssemos o homem... se ficássemos com os faróis apagados e mantendo uma boa distância... Oh, Deus! Você devia ter-nos visto voando pelos caminhos!

Bom e silencioso Royce, pensei. Contudo, o pai ficaria furioso quando visse os estragos.

A srta. Mountjoy, afastada num canto, puxava um cachecol de lã apertado em volta dos ombros e olhava com ódio para a caverna estilhaçada, antiga porta do Barracão do Poço, como se aquela profanação em grande escala da biblioteca tivesse ido ainda além da última gota. Tentei chamar sua atenção, mas ela desviou o olhar nervosamente na direção de seu chalé, como se já tivesse tido emoções demais para uma noite e quisesse ir para casa.

A sra. Mullet também estava lá, com um homem baixo e gorducho como almôndega, que estava visivelmente tentando contê-la. Devia ser seu marido, Alf, pensei; nem um pouco parecido com o personagem charmoso de filme que eu imaginara. Se estivesse sozinha, a sra. M. teria vindo correndo, jogado os braços em volta de mim e chorado, mas Alf parecia mais consciente de que demonstrações públicas de familiaridade não ficavam muito bem. Quando lhe dei um sorriso vago, ela tocou um dos olhos com a ponta de um dedo.

Naquele momento, o dr. Darby chegou ao local tão despreocupado como se tivesse saído para uma caminhada ao anoitecer. A despeito dos seus modos relaxados, não pude deixar de notar que ele trouxera a valise preta de médico. Seu consultório/ residência ficava logo dobrando a esquina na Rua Principal, e ele deve ter ouvido o estrondo de madeira e vidro arrebentando. Ele me examinou dos pés à cabeça com um olhar penetrante.

— Sente-se bem, srta. Flavia? — perguntou ele, inclinando-se para ver meus olhos mais de perto.

— Perfeitamente bem, obrigada, dr. Darby — respondi cordialmente. — E você?

Ele enfiou a mão no bolso para pegar suas balas de menta. Antes que o saquinho de papel estivesse metade para fora, eu já estava salivando como um cachorro; as horas de cativeiro e a mordaça tinham deixado minha boca com um gosto de cabo de guarda-chuva.

O dr. Darby procurou um pouco entre as balas, depois selecionou cuidadosamente uma que lhe pareceu a mais desejável e jogou-a na boca. Um momento depois, estava a caminho de casa.

A pequena multidão abriu alas quando um automóvel virou da Rua Principal para o Caminho das Vacas. Quando ele parou ao lado do muro de pedra, os faróis do automóvel iluminaram dois vultos em pé juntos embaixo de um carvalho: Mary e Ned. Eles não vieram para a frente, mas sorriram para mim timidamente das sombras.

Será que Felinha os vira juntos? Não creio, pois ela ainda estava tagarelando chorosamente para mim sobre o salvamento. Se ela os tivesse enxergado, eu poderia rapidamente me ver em uma selvagem luta de boxe sem luvas: arrastada até o joelho para me arrancarem os cabelos. Dafi uma vez me dissera que, quando se trata de uma boa luta, é geralmente a filha do patrão quem dá o primeiro soco, e ninguém sabe melhor do que eu que Felinha tem esse talento. Ainda assim, fico orgulhosa em dizer que tive a presença de espírito — e a coragem — de sinalizar minhas congratulações a Ned com o polegar para cima.

A porta de trás do Vauxhall se abriu, e o inspetor Hewitt saiu. Ao mesmo tempo, os sargentos detetives Graves e Woolmer saíram do assento da frente e pisaram, com surpreendente delicadeza, no Caminho das Vacas.

Woolmer marchou rapidamente para onde estava Dogger, segurando Pemberton com um aperto torcido e aparentemente doloroso, que o fizera se curvar como uma estátua de Atlas suportando o mundo nos ombros.

— Vou levá-lo agora, senhor — anunciou o detetive Woolmer e, um momento depois, pensei ter ouvido o clique de algemas niqueladas.

Dogger ficou olhando enquanto Pemberton era arrastado para o carro da polícia, depois, veio lentamente em minha direção. Enquanto se aproximava, Felinha sussurrou agitada ao meu ouvido: “Foi Dogger quem pensou em usar a bateria do trator para dar partida no Royce. Lembre-se de dar-lhe os parabéns”.

E ela enfim largou minha mão e se afastou.

Dogger estava na minha frente, as mãos caídas de lado. Se ele estivesse de chapéu, estaria torcendo-o. Ficamos lá, um olhando para o outro.

Eu não estava a fim de começar meus agradecimentos falando de baterias. Queria antes dizer a coisa certa: palavras de coragem que seriam comentadas em Bishop’s Lacey pelos próximos anos.

Um vulto escuro passando na frente dos faróis do Vauxhall me chamou a atenção como se, por um momento, Dogger e eu tivéssemos sido lançados nas sombras. Um vulto familiar, uma silhueta destacada em preto e branco, parecia um recorte de papel contra a luz: o pai.

Ele começou a caminhar desajeitada, quase timidamente, em minha direção. Mas quando reparou em Dogger a meu lado, parou e, como se tivesse acabado de pensar em alguma coisa vitalmente importante, virou-se e trocou algumas palavras silenciosas com o inspetor Hewitt.

A sra. Cool, a encarregada do correio, inclinou a cabeça gentilmente para mim, mas ficou bem atrás, como se, de algum modo, eu fosse uma Flavia diferente daquela que — apenas dois dias atrás? — comprara um xelim e seis pence de balas em sua loja.

— Felinha — eu disse, voltando-me para ela —, faça-me um favor. Dê um pulo de volta no poço, pegue meu lenço e certifique-se de trazer também o que está embrulhado dentro dele. O seu vestido já está imundo, não vai fazer muita diferença. Boa menina!

O queixo de Felinha caiu quase um metro, e pensei por um momento que ela ia dar um murro em meus dentes. O rosto dela ficou tão vermelho quanto os lábios. E então, de repente, ela girou nos calcanhares e desapareceu nas sombras do Barracão do Poço.

Voltei-me para Dogger, para pronunciar minha breve e clássica observação, mas ele se adiantou.

— Ora, srta. Flavia — disse ele mansamente —, parece que vai ser uma linda noite, não é mesmo?


O INSPETOR HEWITT ESTAVA PLANTADO no meio do meu laboratório, girando o corpo devagar, o olhar varrendo o equipamento científico e os armários de produtos químicos como o facho de um farol no mar. Depois de dar uma volta completa, ele parou, e então fez mais um giro na direção oposta.

— Extraordinário! — esticou a palavra. — Simplesmente extraordinário!

Um raio de sol morninho entrou através dos altos postigos, iluminando um frasco de líquido vermelho que estava apenas começando a ferver. Decantei metade da substância em uma xícara de porcelana e entreguei ao inspetor. Ele olhou para mim com um ar duvidoso.

— É chá — eu disse. — Assam, importado da Índia pela Fortnum and Mason. Espero que não se importe de ter sido requentado.

— Requentado é só o que bebemos na delegacia. Não aceito nenhum outro.

Enquanto bebia, ele foi caminhando lentamente pela sala toda, examinando o aparato químico com interesse profissional. Pegou um pote ou dois das prateleiras e segurou cada um deles contra a luz, depois curvou-se para olhar através da lente do meu microscópio Leitz. Pude ver que ele estava com alguma dificuldade em ir ao ponto.

— Bela peça de porcelana bone china — falou afinal, erguendo a xícara acima da cabeça para ler o nome do fabricante no fundo.

— Spode, muito antiga. Albert Einstein e George Bernard Shaw tomaram chá nesta mesma xícara quando visitaram o tio-avô Tarquin — não ambos ao mesmo tempo, é claro.

— O que eles teriam achado um do outro? — questionou o inspetor Hewitt, dando uma olhadela para mim.

— O que teriam? — questionei também, dando uma olhadela de volta.

O inspetor tomou mais um gole do chá. De algum modo, ele parecia inquieto, como se houvesse alguma coisa que gostaria de dizer, mas não soubesse como começar.

— Este foi um caso difícil — continuou. — Bizarro, na verdade. O homem cujo corpo você encontrou no jardim era um estranho total, ou parecia ser. Tudo o que sabíamos era que ele viera da Noruega.

— O snipe — falei.

— Como disse?

— O jack snipe morto na soleira da nossa cozinha. Jack snipes nunca são encontrados na Inglaterra antes do outono. Ele tinha de ter sido trazido da Noruega escondido em uma torta. Foi assim que você soube, não foi?

O inspetor pareceu intrigado.

— Não — disse ele. — Bonepenny estava usando um par de sapatos novos de um sapateiro de Stavanger.

— Ah! — exclamei.

— Daí em diante, conseguimos seguir a pista dele muito facilmente.

Enquanto falava, as mãos do inspetor Hewitt desenharam um mapa no ar.

— Nossas inquirições aqui e no estrangeiro nos contaram que ele havia pego o barco de Stavanger para Newcastle e de lá viajara de trem para York, prosseguindo depois para Doddingsley. De Doddingsley ele tomou um táxi para Bishop’s Lacey.

Ahá! Precisamente como eu havia suposto.

— Exato — concordei. — E Pemberton — ou devo dizer Bob Stanley? — seguiu-o, mas parou em Doddingsley. Ele ficou na Cocheiro Alegre.

Uma das sobrancelhas do inspetor Hewitt se ergueu como uma cobra.

— Oh! — ele disse, despreocupado demais. — Como você sabe disso?

— Telefonei para a Ao Cocheiro Alegre e falei com o sr.Cleaver.

— E isso é tudo?

— Eles estavam nisso juntos, assim como no assassinato do sr. Twining.

— Stanley nega — afirmou. — Alega que não teve nada a ver com isso. Puro como a neve, e tudo o mais.

— Mas ele me contou no Barracão do Poço que havia matado Bonepenny! Além disso, admitiu ligeiramente que a minha teoria estava certa: o suicídio do sr. Twining foi uma ilusão encenada.

— Bem, isso ainda precisa ser conferido. Estamos examinando, mas vai levar algum tempo, embora eu deva dizer que seu pai foi de grande ajuda. Ele agora nos contou a história inteira que levou à morte do pobre sr. Twining. Eu só gostaria que ele tivesse decidido antes ser tão prestativo. Poderíamos ter economizado... Desculpe — continuou. — Eu estava especulando.

— O meu sequestro — concluí.

Não pude deixar de admirar a rapidez com que o inspetor mudou de assunto.

— Voltando ao presente — contou. — Vamos ver se entendi direito: você acha que Bonepenny e Stanley eram parceiros?

— Eles sempre foram parceiros — falei, convicta. — Bonepenny roubava os selos e Stanley os vendia no exterior para colecionadores inescrupulosos. Mas, de algum modo, eles nunca conseguiram dispor dos dois Vingadores de Ulster; eles simplesmente eram muito conhecidos. E tendo um deles sido roubado do Rei, seria arriscado demais para qualquer colecionador ser pego com essas peças em sua coleção.

— Interessante — raciocinou o inspetor. — E então?

— Eles planejavam chantagear o pai, mas, em algum momento, devem ter tido um desentendimento. Bonepenny vinha de Stavanger para consumar a façanha e, a certa altura, Stanley se deu conta de que poderia segui-lo, matá-lo em Buckshaw, pegar os selos e sair do país. Simples assim. E toda a culpa seria atribuída ao pai. E foi o que aconteceu — acrescentei, com um olhar acusador.

Houve um silêncio incômodo.

— Olhe, Flavia. Eu realmente não tive muita escolha, você sabe. Não havia outros suspeitos viáveis.

— E quanto a mim? Eu estava na cena do crime — eu disse, apontando para os frascos de produtos químicos que forravam as paredes. — Afinal, sei muita coisa sobre venenos. Poderia ser considerada uma pessoa perigosa.

— Hummm — disse o inspetor. — Um ponto interessante. E você estava no local, no momento da morte. Se as coisas não tivessem se passado exatamente como se passaram, poderia bem ser que seu pescoço estivesse no laço.

Eu não havia pensado nisso. Senti um frio na espinha e estremeci.

O inspetor prosseguiu: — Contra esse argumento, no entanto, estão os fatos de seu tamanho físico, de sua ausência de qualquer motivo real e de você não ter exatamente caído fora. O assassino típico geralmente mantém da polícia à maior distância possível, enquanto você foi... bem, “onipresente” é a palavra que me ocorre. E então, o que você estava dizendo?

— Stanley emboscou Bonepenny no nosso jardim. Bonepenny era diabético e...

— Ah! — disse o inspetor, quase consigo mesmo. — Insulina! Não nos ocorreu testar isso.

— Não — discordei. — Insulina não: tetracloreto de carbono. Bonepenny morreu com uma injeção de tetracloreto de carbono na base do cérebro. Stanley comprou um frasco da substância de Johns, o químico, em Doddingsley. Vi o rótulo do frasco quando ele encheu a seringa no Barracão do Poço. Você provavelmente já o encontrou embaixo de todo aquele lixo.

Pude ver pela cara dele que eles não tinham encontrado.

— Então ele deve ter rolado pela tubulação — continuei. — Há um antigo esgoto que corre por baixo do rio. Alguém terá de pescá-lo de lá.

Pobre sargento Graves!, pensei.

— Stanley roubou a seringa do kit de Bonepenny na Treze Patos — acrescentei sem pensar. Droga!

O inspetor reagiu com garras.

— Como você sabe o que havia no quarto de Bonepenny? — perguntou ele bruscamente.

— Ahn... eu já ia chegar lá — reagi. — Daqui a alguns minutos. Stanley acreditava que você jamais detectaria nenhum vestígio de tetracloreto de carbono no cérebro de Bonepenny. Ainda bem que não detectou. Poderia ter presumido que viera de um dos frascos do pai. Há litros da substância no estúdio dele.

O inspetor Hewitt puxou seu caderno e rabiscou algumas palavras, que eu deduzi serem “tetracloreto de carbono”.

— Eu sei que era tetracloreto de carbono porque Bonepenny bafejou sinais daquilo no meu rosto com suas últimas palavras — revelei, franzindo o nariz numa careta apropriada.

Se é possível dizer que a tez do inspetor Hewitt ficou branca, então a tez do inspetor Hewitt ficou branca.

— Você tem certeza disso?

— Eu sou mesmo competente no que diz respeito a hidrocarbonetos clorados, obrigada.

— Você está me dizendo que Bonepenny ainda estava vivo quando você o encontrou?

— Só um pouco — minimizei. — Ele... ahn... se foi quase imediatamente.

Houve mais um daqueles longos silêncios cavernais.

— Veja — retomei —, vou lhe mostrar como foi feito.

Peguei um lápis amarelo, dei um par de voltas no apontador e fui para o canto onde o esqueleto articulado estava pendurado na ponta de um fio.

— Isto foi doado ao meu tio-avô, Tarquin, pelo naturalista Frank Buckland — contei, fazendo uma carícia afetuosa na caveira. — Eu o chamo de Yorick.

Mas não contei ao inspetor que Buckland, em sua velhice, dera o presente em reconhecimento ao destino promissor de Tar. “Ao futuro brilhante da ciência”, escrevera Frank no cartão.

Levei a ponta recém-afiada do lápis ao topo da colunavertebral, empurrando-o ligeiramente embaixo do crânio enquanto repetia as palavras de Pemberton no Barracãodo Poço:

— ‘Ligeiramente em ângulo para um lado, através dos músculos splenius capitus e semispinalis capitus, perfurar o ligamento atlantoaxial e deslizar a agulha por cima do...’

— Obrigado, Flavia — interrompeu o inspetor abruptamente. — É o suficiente. Você tem ceteza absoluta de que foi isso que ele disse?

— Suas palavras precisas — repeti — Tive de procurá-las na Anatomia de Gray. A Enciclopédia das crianças tem várias pranchas, mas nenhuma com detalhes suficientes.

O inspetor Hewitt esfregou o queixo.

— Tenho certeza de que o dr. Darby poderia encontrar a marca da agulha na nuca de Bonepenny — atrevi-me, solícita —, se soubesse onde procurar. Ele poderia inspecionar os seios paranasais também. O tetracloreto de carbono é estável no ar e poderia ainda ficar preso lá, já que o homem não estava mais respirando. E — acrescentei — você poderia lembrá-lo de que Bonepenny tomara uma bebida na Treze Patos logo antes de partir andando para Buckshaw.

O inspetor ainda parecia intrigado.

— Os efeitos do tetracloreto de carbono são intensificados pelo álcool — expliquei.

— E você tem — perguntou ele, com um sorriso despreocupado — alguma teoria especial sobre por que a substância poderia ainda estar nos seios nasais dele? Eu não sou químico, mas acredito que o tetracloreto de carbono evapora muito rapidamente.

Eu tinha uma razão, mas não estava disposta a compartilhá-la com qualquer um, especialmente com a polícia. Bonepenny estava sofrendo com uma congestão nasal extremamente desagradável: uma congestão nasal que, quando ele expirou a palavra “Vale” na minha cara, fora transmitida para mim. Obrigadão, Horace!, pensei.

Eu também suspeitava que as passagens nasais bloqueadas de Bonepenny poderiam bem ter preservado o tetracloreto de carbono injetado, o qual é solúvel em água — ou em muco, por sinal —, o que também teria ajudado a inibir a entrada de ar exterior.

— Não — respondi. — Mas você poderia sugerir ao laboratório de Londres que conduzisse o teste recomendado pela Farmacopeia Britânica.

— Não posso me lembrar dele, assim de repente — disse o inspetor Hewitt.

— É um lindo procedimento — afirmei. — Ele verifica o limite de cloro livre quando o iodo é liberado do iodeto de cádmio. Tenho certeza de que eles estão familiarizados com isso. Eu me ofereceria para fazê-lo eu mesma, mas não espero que a Scotland Yard se sinta à vontade em entregar pedaços do cérebro de Bonepenny a uma criança de onze anos.

O inspetor Hewitt ficou olhando para mim pelo que pareceu vários séculos.

— Está bem — rendeu-se, afinal —, vamos dar uma olhada.

— No quê? — perguntei, colocando minha máscara de inocência ofendida.

— O que quer que você tenha feito. Vamos dar uma olhada.

— Mas eu não fiz nada. Eu...

— Não pense que sou bobo, Flavia. Ninguém que tenha tido o prazer de conhecê-la jamais acreditará por um instante que seja que você não fez sua lição de casa.

— Está ali — mostrei e sorri mansamente, indo para uma mesa de canto sobre a qual havia um tanque de vidro coberto por uma toalha de chá molhada.

Puxei a toalha.

— Bom Deus! — disse o inspetor. — O quê, em nome de...

Ele olhou literalmente boquiaberto para o objeto rosado que flutuava sereno no tanque.

— É um belo pedaço de cérebro. Peguei na despensa. A sra. Mullet comprou miolo ontem no açougue de Carnforth, para a ceia de hoje. Ela vai ficar furiosa.

— E você...? — disse ele, abanando a mão.

— Sim, é isso mesmo. Injetei dois centímetros cúbicos e meio de tetracloreto de carbono. É a capacidade da seringa de Bonepenny. O cérebro humano médio pesa aproximadamente mil e quatrocentos gramas — prossegui — e o deste animal talvez um pouco mais. Por isso cortei cento e cinquenta gramas dele antes da experiência.

— Como você descobriu isso? — perguntou o inspetor.

— Está em um dos volumes de Arthur Mee, A Enciclopédia das crianças, eu acho.

— E você testou esse... cérebro, para detectar a presença de tetracloreto de carbono?

— Sim, mas não antes de se passarem quinze horas depois que eu o injetei. Avaliei que foi esse o tempo decorrido entre a substância ser injetada no cérebro de Bonepenny e a autópsia.

— E...?

— Ainda facilmente detectável — constatei — Brincadeira de criança. É claro que usei paminodimetilanilina. É um teste bastante novo, mas excelente. Foi descrito na The Analist há cerca de cinco anos. Puxe um banquinho, vou lhe mostrar.

— Isso não vai funcionar, você sabe. — O inspetor Hewitt deu uma risadinha.

— Não vai funcionar? — protestei. — É claro que vai funcionar. Eu já fiz isso uma vez.

— Eu quero dizer que você não vai me distrair com seu trabalho de laboratório e deslizar convenientemente do selo. Afinal, é isso o que interessa, não é mesmo?

Ele me encurralou. Eu tinha planejado não falar nada sobre o Vingador de Ulster e depois, discretamente, entregá-lo ao pai. Afinal, quem iria saber?

— Olhe, eu sei que você está com ele — disse o inspetor. — Nós fizemos uma visita ao dr. Kissing em Rook’s End.

Tentei parecer pouco convencida.

— E Bob Stanley, o seu sr. Pemberton, contou-nos que você o roubou dele.

Roubei dele? Que ideia! Que atrevimento!

— Ele pertence ao Rei — protestei, veemente. — Bonepenny o roubou de uma exposição em Londres.

— Bem, a quem quer que pertença, é propriedade roubada, e minha obrigação é cuidar para que seja devolvido. Tudo o que preciso saber é como você chegou a tomar posse dele.

Mas que droga! Eu não poderia mais me esquivar. Teria de confessar minhas transgressões na Treze Patos.

— Vamos fazer um acordo — propus.

O inspetor Hewitt caiu na gargalhada.

— Há ocasiões, srta. De Luce, em que você merece uma medalha de bronze. E há outras em que merece ser mandada para o quarto a pão e água.

— E qual dessas ocasiões é esta? — perguntei.

Opa! Melhor olhar onde pisa, Flavia.

Ele sacudiu os dedos para mim.

— Estou ouvindo — refez-se.

— Bem, eu estive pensando — falei. — A vida do pai não tem sido exatamente agradável nos últimos tempos. Em primeiro lugar, você chega em Buckshaw e, antes que percebamos, acusa-o de assassinato.

— Espere... espere — interrompeu o inspetor. — Nós já passamos por isso. Ele foi acusado de assassinato porque confessou.

Confessou? Isso era novidade.

— E assim que ele fez isso, veio Flavia. Eu tive mais confissões entrando pela porta do que Nossa Senhora de Lourdes num sábado à noite.

— Eu estava só tentando protegê-lo. Àquela altura, achava que ele poderia ter feito isso.

— E quem ele estava tentando proteger? — perguntou o inspetor Hewitt, observando-me atentamente.

A resposta, naturalmente, era Dogger. Foi o que o pai quis dizer quando disse “É o que eu temia”, depois que lhe contei que Dogger também ouvira a cena em seu estúdio com Horace Bonepenny.

O pai pensou que Dogger havia matado o homem; isso estava claro. Mas por quê? Teria Dogger feito isso por lealdade — ou durante uma de suas crises peculiares?

Não — melhor deixar Dogger fora disso. Era o mínimo que eu podia fazer.

— Provavelmente eu — menti. — O pai pensou que eu havia matado Bonepenny. Afinal, não tinha sido eu que fora achada, por assim dizer, na cena do crime? Ele estava tentando proteger a mim.

— Você realmente acredita nisso? — perguntou o inspetor.

— Seria adorável pensar isso — confessei.

— Tenho certeza que sim — confirmou o inspetor. — Tenho muita certeza que sim. E agora, de volta ao selo. Não esqueci dele, você sabe.

— Bem, como eu estava dizendo, eu gostaria de fazer alguma coisa pelo pai; alguma coisa que o deixasse feliz, mesmo que fosse por umas poucas horas. Eu gostaria de lhe dar o Vingador de Ulster, mesmo que apenas por um ou dois dias. Deixe-me fazer isso, e vou contar tudo o que sei. Prometo.

O inspetor foi andando displicentemente até a estante, pegou um volume encadernado de Procedimentos da Sociedade Química, de 1907, e soprou uma nuvem de pó de cima da lombada. Ele folheou as páginas, como se estivesse procurando o que dizer a seguir.

— Você sabe — continuou —, não existe nada que minha mulher, Antigone, deteste mais do que fazer compras. Ela me disse uma vez que preferia obturar um dente a gastar meia hora para comprar um pernil de carneiro. Mas ela precisa comprar, goste ou não. É o seu destino, como ela diz. Para atenuar um pouco a experiência, ela compra às vezes uma revistinha amarela chamada Você e Suas Estrelas.

“Eu tenho de admitir que até agora eu zombava de algumas das coisas que ela lê para mim no café da manhã, mas esta manhã meu horóscopo disse, e eu cito, ‘Sua paciência será testada até o limite’; você supõe que eu poderia estar julgando mal essas coisas, Flavia?”

— Por favor! — queixei-me, dando às palavras uma ênfase suplicante.

— Vinte e quatro horas — disse ele — nem um minuto mais.

E subitamente falei tudo, e me vi despejando incoerentemente sobre o jack snipe morto, a de fato muito inocente (embora intragável) torta de creme da sra. Mullet, minha revista no quarto de Bonepenny na estalagem, sobre eu ter encontrado os selos, minhas visitas à srta. Mountjoy e ao dr. Kissing, meus encontros com Pemberton na folly e no pátio da igreja, e meu cativeiro no Barracão do Poço.

A única parte que deixei de fora foi o envenenamento do batom de Felinha com extrato de hera venenosa. Por que confundir o inspetor com detalhes desnecessários?

Enquanto eu falava, ele fez uma anotação ocasional em um caderninho preto, cujas páginas, notei, estavam cheias de setas e sinais codificados que poderiam ter sido inspirados por um formulário alquímico da Idade Média.

— Eu estou aí? — perguntei, apontando.

— Você está — disse ele.

— Posso dar uma olhada? Só uma espiadinha?

O inspetor Hewitt fechou o caderninho: — Não. É um documento confidencial da polícia.

— Você realmente escreve meu nome, ou sou representada por um desses símbolos?

— Você tem seu próprio símbolo — disse ele, enfiando o caderninho no bolso. — Bem, já é hora de eu ir andando.

Ele estendeu a mão e me deu um firme aperto: — Até mais ver, Flavia. Foi... uma experiência e tanto.

Ele foi até a porta e abriu.

— Inspetor...

Ele parou e se voltou.

— Qual é? Meu símbolo, quero dizer.

— É um P — disse ele. — Um P maiúsculo.

— Um P? — perguntei surpresa. — E o que significa um P?

— Ah. É melhor deixar isso para sua imaginação.

 

Dafi estava na sala de visitas, esparramada no tapete, lendo O Prisioneiro de Zenda.

— Você sabia que mexe os lábios enquanto lê? — perguntei.

Ela me ignorou. Decidi arriscar a vida.

— Por falar em lábios — falei —, onde está Felinha?

— No médico — respondeu. — Ela teve algum tipo de crise alérgica. Alguma coisa com que ela teve contato.

Ahá! Meu experimento tivera um resultado brilhante!Ninguém jamais saberia. Assim que tive um momento sozinha, registrei no meu caderno:

 

Terça-feira, 6 de junho de 1950, 13h30. Sucesso! Resultado conforme postulado. Justiça foi feita.

 

Deixei escapar uma fungada discreta. Dafi deve ter ouvido, pois se virou e cruzou as pernas.

— Não pense nem por um momento que você vai sair ilesa disso — disse ela mansamente.

— Ahn? — A perplexidade inocente era minha especialidade.

— Que poção de bruxa você pôs no batom dela?

— Não tenho a menor ideia do que você está falando — falei inocentemente.

— Dê uma olhada em você mesma no espelho — disse Dafi. — Cuidado para não quebrá-lo.

Voltei-me e fui lentamente até a lareira, onde pendia um turvo remanescente do período da Regência, refletindo tristemente a sala.

Inclinei-me mais para perto, perscrutando minha imagem. De início, não vi nada a não ser a minha pessoa brilhante de sempre, meus olhos violetas, minha tez pálida, mas, enquanto olhava, comecei a notar mais detalhes no devastado reflexo de mercúrio.

Havia uma nódoa no meu pescoço. Uma enfezada nódoa vermelha! Onde Felinha me beijara!

Deixei escapar um guincho de angústia.

— Felinha disse que em menos de cinco segundos no poço ela já estava totalmente quite com você.

Antes ainda de Dafi virar de lado e voltar à sua tola história de espadachins, eu já havia inventado um plano.

 

Em outros tempos, quando eu tinha por volta de nove anos, mantinha um diário sobre como era ser uma De Luce, ou pelo menos como era ser esta De Luce em particular. Pensei um bocado sobre como me sentia e finalmente cheguei à conclusão de que ser Flavia de Luce era como ser um sublimado: como o resíduo de cristais pretos que era deixado no vidro frio de um tubo de ensaio pelos vapores violetas do iodo. Na época, achei que era a descrição perfeita, e nada aconteceu no decorrer dos últimos dois anos para mudar minha opinião.

Como eu já disse, está faltando alguma coisa nos De Luce; alguma ligação química, ou falta dela, que trava suas línguas sempre que se veem ameaçados pela afeição. É tão improvável que um De Luce chegue a dizer a outro que o ama quanto um Pico do Himalaia se curvar e sussurrar coisinhas doces para um penhasco adjacente.

Isso ficou provado quando Felinha roubou meu diário, arrombou o fecho de latão com um abridor de latas da cozinha, e o leu em voz alta do topo da grande escadaria, vestindo roupas que furtara de um espantalho das vizinhanças.

Esses pensamentos estavam em minha cabeça quando me aproximei da porta do estúdio do pai. Fiz uma pausa, insegura de mim mesma. Eu realmente queria fazer isso?

Bati à porta hesitantemente. Houve um longo silêncio antes de a voz do pai dizer: — Entre.

Virei a maçaneta e entrei na sala. Da mesa perto da janela, o pai ergueu os olhos da lupa por um momento e depois prosseguiu com seu exame de um selo magenta.

— Posso falar? — perguntei, consciente no mesmo momento de que era uma coisa muito estranha para se dizer, e, no entanto, parecia ser precisamente a escolha certa de palavras.

O pai pôs a lupa de lado, tirou os óculos e esfregou os olhos. Ele parecia cansado. Enfiei a mão no bolso e tirei de lá um pedaço de papel azul, dentro do qual eu havia guardado o Vingador de Ulster. Dei um passo à frente, como uma suplicante, coloquei o papel em cima de sua escrivaninha e recuei de novo.

O pai desdobrou o papel.

— Bom Deus! — exclamou! — É o AA!

Colocou os óculos de volta e pegou a lupa de joalheiro para examinar o selo.

Agora, pensei, vem minha recompensa. Concentrei-me nos lábios dele, aguardando que se movessem.

— Onde você encontrou isso? — perguntou afinal, naquela voz suave que prende uma borboleta num alfinete.

— Eu encontrei — respondi.

O olhar do pai era militar — implacável.

— Bonepenny deve ter deixado cair — falei. — É para você.

O pai estudou meu rosto como um astrônomo estuda uma supernova.

— Isso é muito decente de sua parte, Flavia — disse ele por fim, com um grande esforço.

E me entregou o Vingador de Ulster.

— Você precisa devolver isto imediatamente ao legítimo proprietário.

— O Rei George?

O pai assentiu, um pouco tristemente, pensei. — Não sei como isso chegou às suas mãos e não quero saber. Você chegou até este ponto sozinha e agora precisa terminar o que começou.

— O inspetor Hewitt quer que eu o entregue a ele.

O pai sacudiu a cabeça. — Muito gentil da parte dele, mas também muito oficial. Não, Flavia, este velho AA aqui passou por muitas mãos em seu tempo, algumas delas muito elevadas e algumas muito baixas. Você precisa cuidar para que suas mãos sejam as mais dignas entre todas elas.

— Mas como a gente faz para escrever ao Rei?

— Tenho certeza de que você encontrará um jeito — aconselhou o pai. — Por favor, feche a porta quando sair.

 

Como se fosse para encobrir o passado, Dogger estava jogando algumas doses de esterco com uma pá no canteiro de pepinos.

— Srta. Flavia — cumprimentou ele, tirando o chapéu e enxugando a testa com a manga da camisa.

— Como a gente endereça uma carta ao Rei? — perguntei.

Dogger apoiou cuidadosamente a pá contra a estufa.

— Teoricamente ou na prática?

— Na prática verdadeira.

— Hummm — refletiu. — Acho que vou precisar conferir isso em algum lugar.

— Espere um pouco — falei. — O indague aqui sobre tudo da sra. Mullet fica sempre na copa.

— Ela está fazendo compras na aldeia — sugeriu Dogger.— Se andarmos depressa, poderemos escapar vivos.

Um minuto depois, estávamos juntos na copa.

— Aqui está — falei excitada, quando o livro caiu aberto nas minhas mãos. — Mas espere: ele foi publicado sessenta anos atrás. Será que ainda está correto?

— Com certeza — disse Dogger. — As coisas não mudam tão depressa nos círculos reais como mudam nos nossos. Nem deveriam.

— A sala de estar estava vazia. Dafi e Felinha tinham saído para algum lugar, muito provavelmente planejando seu próximo ataque.

Achei uma folha decente de papel em uma gaveta, e então, mergulhando a pena em um tinteiro, copiei a saudação do livro ensebado da sra. Mullet, tentando fazer uma letra tão bonita quanto possível:

 


Mui Gracioso Soberano:


Caso seja do agrado de Sua Majestade,


Por favor, vide anexo um item de considerável valor pertencente a Sua Majestade, o qual foi roubado em data anterior a este mesmo ano. Como veio tal item a cair em minhas mãos (um toque elegante, pensei) não é importante, mas posso assegurar a Sua Majestade que o criminoso foi apanhado.

 

 

— Foi apreendido — corrigiu Dogger, lendo por cima do meu ombro.

Modifiquei.

— O que mais?

— Mais nada — disse Dogger. — Apenas assine. Os reis preferem concisão.

Com cuidado para não borrar a página, copiei o fechamento do livro:

 


Permaneço, com a mais profunda veneração, a mais fiel súdita de Sua Majestade e serva obediente,


Flavia de Luce (Senhorita)

 

 

— Perfeito! — exclamou Dogger.

Dobrei a carta de maneira meticulosa, marcando uma dobra extra especialmente benfeita com o polegar. Enfiei-a em um dos melhores envelopes do pai e escrevi o destinatário:

 


Sua Alteza Real Rei George VI


Palácio de Buckingham, Londres, S.W. Inglaterra

 

 

— Devo escrever “Pessoal”?

— É uma boa ideia — respondeu Dogger.

 

Uma semana depois, eu estava esfriando meus pés descalços nas águas do lago artificial, revendo minhas anotações sobre a coniina, o principal alcaloide da cicuta venenosa, quando Dogger apareceu, de repente, agitando alguma coisa na mão.

— Srta. Flavia! — gritou ele, e então saiu pisando na água até a ilha, de botas e tudo.

As pernas de suas calças estavam ensopadas e, embora estivesse lá pingando como Poseidon, seu sorriso era tão brilhante quanto uma tarde de verão. Ele me entregou um envelope macio e branco como pluma de ganso.

— Devo abrir? — perguntei.

— Acho que está endereçado a você.

Dogger recuou quando rasguei o envelope e puxei para fora uma única folha de papel creme que estava dobrada lá dentro:

 


Cara srta. De Luce,


Sou-lhe extremamente grato por sua recente mensagem e pela devolução do esplêndido item ali contido o qual, como deve saber, desempenhou um papel importante não apenas na história da minha própria família, como na história da Inglaterra.

Por favor, aceite os meus mais sinceros agradecimentos

E estava assinado simple

 

 

                                                   Alan Bradley         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

 

 

                                                

 

smente “George”.