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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O NOBRE E A PLEBEIA / Lorraine Heath
O NOBRE E A PLEBEIA / Lorraine Heath

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Minha memória mais remota é Feagan dizendo, com seu sotaque do bairro do extremo leste londrino:
— Frannie querida, venha sentar-se no meu colo. Para ele eu era sempre "Frannie querida". Frannie querida, pegue o gim.
Frannie querida, esfregue meus pés cansados. Frannie querida, eu contarei uma história.
Todos me conheciam por Frannie Darling, ou seja, Frannie querida.
Eu morava em um quarto com Feagan e seu notório bando de crianças conhecidas pelas mãos leves. Não me lembro de uma época em que Feagan não estivesse em minha vida. Algumas vezes eu imaginava que ele era meu verdadeiro pai. Os cabelos dele eram vermelhos e rebeldes como os meus. Mas ele nunca me chamou de filha. Eu era uma de suas crianças, aquela que se sentava em seu colo e o ajudava a contar os lenços e as moedas que os outros traziam.
Eu removia cuidadosamente da seda os monogramas bordados. Aprendi muitas letras com essa tarefa tediosa, pois os volteios rebuscados me fascinavam. Eu sempre perguntava a Feagan o significado das letras antes de começar a apagar todas as evidências de que elas haviam existido. Pensando nessa época, eu me surpreendia ao entender que um pedaço de pano tivesse tanto valor. E tinha.
Suponho que Feagan poderia ter sido um professor em sua juventude, lecionando letras e números, e admirado por seus alunos. Ou talvez, se ele fosse meu pai, eu gostaria que ele fosse mais do que um criminoso.
Ele não falava em seu passado e eu nunca perguntei do meu.
Eu simplesmente aceitava minha vida no triste cortiço como algo que me fosse devido. Os meninos de Feagan tratavam-me como se eu fosse especial, talvez por eu remendar as roupas e aconchegar-me neles quando ia dormir. Quando fiquei mais velha, cozinhava para eles e cuidava de seus ferimentos. E algumas vezes eu os ajudava a furtar.

Mas nada disso havia me preparado para o medo ou o horror quando, aos doze anos, fui raptada e vendida para um bordel. Luke e Jack, na época os meninos mais velhos de Feagan, salvaram-me do pesadelo.
Mas não a tempo. Luke matou o homem que tão cruelmente roubara minha inocência.
Enquanto ele esperava o julgamento, recebeu a visita do pai do morto, o conde de Claybourne, que reconheceu Luke como seu neto há muito tempo sumido e nossas vidas tiveram uma reviravolta drástica. A coroa perdoou Luke, devolveu-o aos cuidados de seu avô que me levou junto.
O conde estava determinado a dar-nos as oportunidades que nunca havíamos tido. Ele contratou tutores, e eu aprendi rapidamente a ler, a escrever e a fazer cálculos complicados. Aprendi etiqueta e bom comportamento, mas sempre me senti constrangida na residência de St. James.
Luke começou a frequentar o universo da aristocracia, e eu comecei a sentir-me desajeitada a seu lado. Eu ficava muito mais à vontade na companhia de Jack. Quando a sorte sorriu e ele abriu um clube para cavalheiros, ofereceu-me um belo salário para cuidar da contabilidade. Agradeci ao conde tudo o que ele havia feito por mim e, mesmo sabendo que minha vida melhorara em todos os aspectos devido a seus esforços, foi com certo alívio que deixei a mansão da St. James.
No íntimo eu estava convicta de que não merecia aquela vida. Eu não fazia parte da aristocracia, onde um lugar raramente era conseguido por meio de esforço ou realização, e sim por descendência, o que não era meu caso. Fiquei satisfeita por não ter de suportar os olhares, os falatórios e as especulações sussurradas.
Convenci-me de que seria feliz se não tivesse mais de conviver com os lordes e as damas da aristocracia, e aboli-os de minha vida.
Trabalhei duro para criar um porto seguro onde eu me sentisse contente e feliz. Eu sabia ter conseguido o que desejava e não almejava mais nada.
Então, ele entrou em meu mundo pequeno e seguro... que, mais uma vez, tornou-se um lugar muito perigoso.

 


 


Capítulo Um

Londres, 1851.

Sterling Mabry, o oitavo duque de Greystone, não soube dizer por que a notara.

Mais tarde ele refletiria se não tinha sido atraído pelo vermelho vibrante de seus cabelos. Ou talvez fosse o fato de ela encontrar-se no altar ao lado de Catherine, irmã dele, que se casava com Lucian Langdon, conde de Claybourne. Ou talvez, quem sabe, fosse a maneira súbita — durante a recepção na residência recém-adquirida do cunhado — com que três homens se aproximaram dela, cada um reivindicando seu território, da mesma maneira como acontecia entre os leões da África que ele vira. Surpreendeu-o nenhum deles ter rugido.

Ao lado da janela da sala de estar, com a taça de champanhe na mão e à espera do brinde obrigatório que liberaria sua volta para casa, Sterling observou o sorriso tímido com que ela conversava e a maneira como inclinava a cabeça de lado, como se partilhasse de um segredo escandaloso. Ele desejou saber do que se tratava e mesmo sem escutá-la pela distância que se encontrava, imaginou se a voz seria doce como a de um anjo ou se ela cantava como uma sereia, pois os três pareciam hipnotizados pela jovem.

Era óbvio que eles tinham em comum algo de muito especial, pois foi possível ver a afeição que ela demonstrava, em um seu rosto adorável e expressivo, por cada um deles.

Sterling pouco se interessou por aqueles homens, exceto pelo papel que deveriam desempenhar na vida dela. O primeiro ele conhecia muito bem. Tratava-se de Jack Dodger, proprietário do notório clube masculino aonde Sterling ia com frequência desde sua volta a Londres. O segundo, o mais alto e corpulento dos três, era uma criatura que ele não gostaria de encontrar em uma viela à noite... nem durante o dia. O terceiro cavalheiro era William Graves, o médico que Luke Claybourne mandara quando Catherine desmaiara no recente velório do pai de ambos.

Sterling notou com interesse a aproximação de Luke e a maneira como o pequeno grupo o saudou, com sorrisos largos, tapinhas nas costas, apertos de mão e uma leve zombaria. Nenhum abraço da dama, apenas um sorriso caloroso que falava por si. Ela o admirava, ficava feliz por ele, desejava as melhores coisas e, sobretudo, o amava.

Os cinco estavam juntos de novo, todos, sem dúvida, provenientes das ruas. Ladrões, batedores de carteiras, assassinos e sabe-se lá mais quais outras ligações entre eles. Esse entendimento deveria ter posto um fim ao interesse de Sterling pela jovem, mas, ao contrário, a atração só fez aumentar.

Ele escutou os passos leves e conhecidos, e se virou no momento exato em que Catherine chegava perto dele. Com os cabelos louros presos no alto da cabeça, ela estava corada pela excitação do casamento e seus olhos azuis brilhavam como joias.

— Fascinado por eles? — ela caçoou.

Ele se deu conta de que seu olhar fixo poderia ter sido não apenas rude, mas também óbvio, embora tivesse certeza de que outros convidados também notavam o grupo.

Sterling não deveria surpreender-se com a presença de tantos membros da aristocracia. A notícia do casamento apressado entre o Conde Diabólico e Catherine corria por toda Londres. A curiosidade da elite lotara a pequena capela e no momento eram muito bem recebidos na casa de Luke. Até mesmo Marcus Langdon, o antigo herdeiro ao título de conde de Claybourne, comparecera. Parecia que ele aceitara seu destino de ex-sucessor. Sem dúvida, todos estavam intrigados e o escândalo era murmurado de boca em boca.

— Eu estava apenas curioso, só isso — ele foi lacônico. — Eles não fazem parte de nosso meio. Quem é a mulher estava ao seu lado no altar?

— Frannie. Nós nos tornamos amigas. Se o senhor meu irmão tivesse vindo ao jantar comemorativo que oferecemos ontem à noite, ou chegado à igreja mais cedo, eu poderia ter feito as apresentações.

Sterling ignorou a admoestação — ele não se sentiria bem no jantar, assim como ela não se sentiria à vontade ao lado dele, quando tudo fora dito e feito — e fixou-se no nome. Frannie. Esperava algo mais exótico e, no entanto, o nome combinava com ela.

— Ela se veste com muita simplicidade.

O traje azul de tecido grosso que ela usava não estava de acordo com o ambiente. Sterling imaginou-a com um vestido de seda escarlate ou violeta para destacar as curvas e os pés descalços.

— Ultimamente aprendi a não julgar pelas aparências — Catherine censurou-o.

Sterling julgava as pessoas pela aparência e pelo status. Ele separava a elite daqueles com quem só mantinha uma associação se fosse absolutamente necessário. Nunca tivera razão nem desejo de reunir-se com antigos criminosos.

— Eles a sustentam? — ele perguntou.

— Como é?

— Os homens que a rodeiam são parentes dela? Do que ela vive?

— Está fazendo perguntas indiscretas, meu irmão.

— Ela é amante de algum deles? — Ele a fitou com seriedade.

Sterling não podia imaginar Catherine relacionando-se com eles, muito menos ela incluir em sua festa de casamento uma mulher de moral questionável, mas se a outra fosse amiga de Luke do tempo em que perambulavam pelas ruas...

— Quem disse isso? — Catherine escarneceu. — Ela é guarda-livros do Dodger’s, o clube masculino de jogo.

Um nome respeitável para um clube de cavalheiros nem tanto, o que deveria ser importante, Sterling supôs.

— Estranho.

— Acho admirável. Nem todas as mulheres têm um pai que as sustente.

— Encolha as garras, Catherine, não estou insultando a jovem, mas admita que as mulheres costumam se ocupar com a casa e não com negócios.

Ela tocou o braço.

— Perdão, mas eu não gosto que critiquem os amigos de Claybourne. Na sua ausência, Sterling, eles me ajudaram várias vezes.

Então sua longa viagem forçara a irmã a procurar patifes conhecidos? O fato deve ter agradado o pai deles e dado mais um motivo para ele ficar desapontado com o herdeiro, a quem considerava um perdulário.

Sterling admitia que vivera como esbanjador, visando os próprios prazeres acima de tudo. Muitas vezes discutira com o pai sobre as escolhas que fazia, mas o pai fora incapaz de compreender o que representava não estar no controle da própria vida e o que era ter medo de enfrentar um futuro sombrio e solitário.

— Eu deveria tê-lo apresentado. — Catherine procurou animar Sterling, percebendo que os pensamentos do irmão trilhavam caminhos áridos.

— Não é necessário. — Ele não achava que sua aproximação fosse apreciada.

— Uma pena que tenha mudado tanto, Sterling.

— Já a escutei comentar isso antes. Todos mudam, Catherine, e eu poderia dizer o mesmo a seu respeito.

— Não dessa maneira. Tenho a impressão de que o cinismo tomou conta de suas ideias.

— Apenas me tornei realista. Procure seu marido, pois quero fazer o brinde e terminar com minha obrigação.

Os olhos azuis de Catherine, semelhantes ao do irmão, não esconderam o pesar, e Sterling segurou-a pelo braço antes de ela se afastar.

— Perdoe-me. Eu desejo felicidades mais do que merecidas. Como fiquei afastado durante um período e passei a maior parte desse tempo ao ar livre, não me sinto bem confinado em um salão cheio de gente.

Mover-se em meio a tamanha confusão sem colidir com ninguém se tornara uma tarefa desagradável. Se ele soubesse que o número de convidados de Catherine e Luke era excessivo, teria se despedido na igreja.

— Por isso não saiu de perto da janela, como se quisesse pular daí a qualquer momento?

— No meio da tempestade? — Sterling olhou a chuva batendo na vidraça. As nuvens negras faziam a manhã parecer noite, e a noite se tornara sua inimiga. — O dia hoje está melancólico.

— Discordo. Este é o dia mais maravilhoso de minha vida. Sterling reconheceu a própria grosseria e resolveu corrigir-se.

— Posso garantir que será o primeiro de muitos dias maravilhosos de sua vida, minha querida.

— Sei que não conto com sua aprovação na minha escolha para um marido, pois, como a maioria dos lordes, você só enxerga que o passado está contra ele. Mas tenho a esperança de que o tempo se encarregará de fazê-lo apreciar as melhores qualidades de Claybourne.

Provavelmente não, mas Sterling não queria ofuscar a alegria da irmã com a negativa.

— Sterling, suponho que depois de tanto tempo despendido nas viagens pelo mundo sua atenção se concentrará na busca de uma esposa.

— Posteriormente. Estamos de luto e até por isso eu não esperava que este evento fosse tão exuberante.

— Pois não foi nem um pouco exagerado. Talvez tenhamos um pouco mais de convidados do que seria apropriado, mas eles facilitarão o caminho de Claybourne em meio à aristocracia, depois de anos andando à margem dela. Além disso, os homens não se prendem tão rigorosamente ao luto quanto as mulheres. Se quiser dançar esta noite, ninguém o repreenderá.

— Ah, esse é o poder que vem com o ducado.

— Por acaso alguém ocupou seus pensamentos enquanto esteve fora? — Catherine interessou-se.

— Fazendo o papel de casamenteira? Será melhor pensar em sua viagem de núpcias.

— Não poderemos viajar. Temos alguns assuntos para resolver em Londres.

— Mesmo assim suponho que seu marido estará contando com sua atenção completa por uns tempos. Sou perfeitamente capaz de procurar uma esposa sem perturbá-la.

— Isso não seria perturbação, mas um prazer — Ela apertou o braço. — Senti sua falta, Sterling, e estou muito feliz com sua presença. Agora, se me der licença, vou procurar Claybourne, para que você possa fazer seu brinde.

Catherine afastou-se e ele abafou a culpa que as palavras dela provocaram. Sterling gostaria de estar em qualquer outro lugar, menos ali. Ele bebeu o champanhe, chamou um criado e pediu outra taça. Será que a festa não terminaria nunca?

Catherine aproximou-se do marido e Sterling notou que ele a fitava com adoração. Por que não adorá-la? Ela era a filha de um duque, e sua linhagem era o melhor que a aristocracia britânica tinha para oferecer. Catherine entendia seu lugar no mundo e ajustava-se perfeitamente dentro dele. Sterling já não podia afirmar isso sobre si mesmo. A urgência de escapar dali rugia em sua mente e ele estava no limite de sua paciência. Então os murmúrios no salão cessaram e ele aproveitou para erguer a taça.

— À minha irmã, Catherine, a nova condessa de Claybourne e a seu afortunado marido. Minha querida, que o sol sempre a ilumine, mesmo durante o mais escuro dos dias.

Ele tomou o líquido borbulhante enquanto uma roda de aplausos e vivas ecoavam pelo salão. Luke e Catherine beberam o champanhe e beijaram-se. Os presentes riram, aplaudiram e desejaram felicidades ao casal.

Sterling tomou mais uma taça de champanhe. Talvez se bebesse além do usual, pudesse afogar a dor de saber que jamais poderia alcançar o que o jovem casal alcançara. A felicidade de um amor verdadeiro.


Ele era o aristocrata mais perigoso da recepção.

Frannie Darling entendeu que dava um crédito excessivo ao homem que estava em pé junto à janela, tendo em vista estar rodeada por pessoas que não tinham escrúpulos em infringir a lei se isso fosse conveniente. Mas enquanto seus amigos eram perigosos para todos, exceto para ela, aquele homem representava perigo apenas para ela.

Sabia disso da mesma forma que intuía quais eram os bolsos mais recheados para ali meter a mão, ou da mesma forma que sabia quando uma lista de número fora registrada de forma incorreta antes de fazer a soma ou também como a certeza que naquele recinto coalhado de gente, seus amigos eram apenas Jack, Jim e Bill.

Havia pouco tempo descobrira que Luke sempre duvidara de que fosse o verdadeiro conde de Claybourne, mas os últimos acontecimentos convenceram-no da verdade, e ele não mais questionara a herança do título. Confiante, ele circulava por entre os convidados, sem temer que estivesse vivendo na pele de outro.

Frannie não podia admitir sentir-se tão à vontade em um mundo enorme, importante e que não pertencia. Apesar de seu pequeno universo sumir na comparação, era onde se sentia satisfeita. Era possível que o desagrado com os circunstantes a tivesse feito notar o homem que estava junto à janela e que parecia querer fugir dali como ela. Sabia de quem se tratava. Era o irmão de Catherine, o recém-sagrado duque de Greystone.

Pensou tê-lo visto olhar para ela e observou-o sorrateiramente. Tinha pele bronzeada, como se trabalhasse ao ar livre. Não havia um fio fora do lugar dos cabelos louro-escuros que tinham sido penteados para a ocasião, mas Frannie não pôde deixar de imaginá-los soltos ao vento enquanto ele galopava pelos mesmos caminhos explorados por Marco Polo. Greystone era um aventureiro destemido. Havia pouco quando falava com os demais, ele demonstrava polidez, uma certa tolerância, como se desejasse outra fonte de entretenimento.

— Acha que eles serão felizes? — Jack perguntou e ofereceu outra taça de champanhe, forçando-a a desviar a atenção do homem que a fascinava.

Ele superava a importância da vida e, por regra geral, ela preferia o pequeno e o rotineiro.

— Tenho certeza disso. Catherine e Luke combinam.

— O que acha do irmão dela?

Ele era tão poderoso quanto a tempestade que inundava a cidade. Alguma mulher certamente descobriria em seus braços prazeres para ela desconhecidos. O calor a invadiu e ela teve de mentir.

— Não sei.

— Ele nos observava — Jim afirmou.

— Muitos convidados estão fazendo a mesma coisa — Bill murmurou.

— Sem perder de vista os próprios bolsos — Jack acrescentou. — Sinto-me tentado a circular por aí e furtar algumas coisas.

Frannie franziu o cenho. O avô de Luke os livrara dos cortiços, mas não fora capaz de tirar completamente os cortiços de dentro deles.

— Não faça nada que possa embaraçar Luke. Ele finalmente foi aceito por seus pares e convidar-nos me faz pensar em um pouco de rebelião.

Eles eram os patifes de sua juventude que nunca tinham sido abandonados. O passado deles forjara um liame inquebrantável.

— Ainda à espreita dele? — Jack perguntou.

— Assim como eu espreito todos vocês e vocês fazem o mesmo comigo.

Havia ocasiões em que a observação deles era muito íntima e superprotetora. Frannie os amava muito, mas às vezes ela desejava algo que não podia identificar. Talvez esse fosse o motivo de ela ter vontade de encenar uma rebelião. Espiou o cavalheiro parado junto à janela.

— Creio que vou me apresentar.

— Ele é um miserável duque — Jack lembrou-a.

— Sei disso — Frannie murmurou antes de entregar a ele a taça, suspirar e atravessar o recinto.

Como princípio, ela costumava evitar os nobres, pois eles a lembravam de sua origem humilde, mas algo naquele homem despertava sua atenção e a fazia almejar por um momento de imprudência. Durante toda sua vida ela procurara isolar-se de tudo que a fizesse sofrer, o que tornara sua existência monótona, mas nada aquele homem lembrava monotonia.

Frannie sentiu-se observada pelos presentes e poderia ter se aborrecido, mas teve uma sensação de carícia ao notar que ele a analisava e por pouco não tropeçou. Os rapazes de Feagan nunca a olhavam com desejo. E talvez por esse fato, Greystone fosse tão perigoso para ela. Com apenas um olhar, ele a fazia experimentar a transformação de menina desajeitada em uma mulher tentadora capaz de atrair um homem para o pecado.

O mais surpreendente era a atração que sentia por ele. Ela jamais encontrara um homem que despertasse paixão ou que a fizesse desejar ser beijada e acariciada.

Derrotou a vontade de voltar a seu porto seguro e parou diante dele. Os olhos azuis de Greystone a lembraram de uma safira que adornava uma corrente por ela roubada de uma rica mulher. Feagan ficara tão feliz com a peça que comprara um morango. Àquela altura ela não conseguia comer a fruta sem lembrar-se de que a mesma representava a recompensa por seu comportamento depravado. Uma noite com Greystone resultaria em comer uma tigela inteira de morangos deliciosos.

— Creio que nós ainda não fomos apresentados. Sou Frannie Darling.

— A guarda-livros do Dodger’s.

Frannie arregalou os olhos. Ela raramente entrava no recinto de jogos e poucas pessoas tinham a chave para acesso em seu local de trabalho.

— Eu me recordo de que o senhor é um dos membros do clube.

— E eu me lembro de que seus amigos — ele apontou Jack, Jim e Bill que esperavam ansiosos a volta da parceira — são gatunos.

Desapontada, Frannie concluiu que ele fazia parte do grupo que desacreditava na ascensão social, o mesmo grupo que a fizera sofrer enquanto morara com o conde de Claybourne. Ela deveria tê-lo deixado entregue à sua mesquinhez, mas sentiu-se compelida a ficar. Talvez quisesse dar a ele a oportunidade de se redimir.

— Suponho que tenha desaprovado a lista de convidados, mesmo que seja costume após as núpcias oferecer um café da manhã na casa da família da noiva.

— Pense o que quiser, mas eu valorizo minha propriedade e prefiro não ter mãos leves circulando por aqui.

— Entendo.

Frannie sabia julgar como ninguém o caráter das pessoas, mas o dele não se revelava. Os mendigos eram os melhores atores do mundo. Com um olhar para a vítima, eles conquistavam corações e simpatia, e podiam fazer uma pessoa doar sua última moeda. Ao que parecia, Greystone fingia uma atuação que garantia não ter de recompensar ninguém. Ela imaginou quais seriam os motivos.

— Ele a fará feliz? — Ele perscrutou a multidão.

— Luke?

— Claybourne.

Pelo menos ele reconhecia o título de Luke e importava-se com a felicidade da irmã.

— Imensamente.

Ele anuiu com brusquidão.

— Então isso é tudo o que importa. Se me der licença... Ele deu alguns passos e Frannie o chamou.

— Vossa Graça?

Sterling virou-se e Frannie sorriu com malícia, sem saber se pretendia irritá-lo, embora ele o merecesse. Ela não pretendia deixar sem resposta o insulto a seus amigos e tinha sua própria declaração para fazer. Eles não eram os únicos ladrões presentes. Frannie levantou a mão e em seus dedos estava pendurado um relógio de ouro preso a uma grossa corrente.

— Milorde esqueceu seu relógio.

Sterling olhou para o colete, apalpou-o sem acreditar e voltou para Frannie um olhar ameaçador, estendendo a mão. Ela deixou a peça valiosa na palma da mão dele e não teve como se livrar do aperto em seu pulso.

— Cuidado, srta. Darling — ele a avisou com rispidez. — Fiquei fora muito tempo e agora sou muito menos civilizado do que era antes de minha partida.

Frannie não duvidou da afirmativa e teve a impressão de que seria devorada. Seu coração disparou e as pernas amoleceram.

Com uma mesura brusca, Sterling soltou-a e afastou- se. Frannie observou-o sair pela porta e surpreendeu-se como o feitiço se virara contra o feiticeiro. Não esperava ser deixada sem fôlego pelo encontro, nem muito menos se aborrecer por isso. Um sentimento incomum e poderoso a impediu de desejar que ele partisse.


Sterling queria sair logo dali, mas moderou os passos para não colidir com as pessoas e conseguiu deixar o recinto com facilidade. Sua expressão sombria não animou ninguém a detê-lo para uma conversa.

Admitia que seu comportamento com a srta. Darling fora odioso, mas ele não contava com a própria reação diante da proximidade dela. Ela não tinha voz angelical, mas sim um tom que despertava paixões dentro de quatro paredes. Quente, sensual e de tirar o fôlego, como se eles já houvessem feito amor e ela desejasse repetir a dose.

Ele quase gemeu ao lembrar-se dos olhos dela, verdes e fulgurantes. O que mais o atraíra fora a diferença com as outras jovens. O olhar dela não era inocente, mas sim de quem aprendera com a vida. Ela vira muito e provavelmente agira de maneira que faria as outras desmaiar.

Sterling perdia o controle em raras ocasiões, mas entendeu que se não se afastasse dela, provavelmente a tomaria nos braços, independentemente de onde estivesse.

E ainda por cima não a sentira surrupiar seu relógio de bolso. O que era uma pena, pois ele gostaria de sentir seu toque. Por isso tratou de afastar-se a passos largos.


O encontro com Sterling Mabry, o oitavo duque de Greystone, deixara Frannie inquieta.

Os meninos de Feagan — ela sempre pensava neles como meninos apesar de adultos — não fizeram perguntas. Ela precisava de um pouco de solidão para se recompor. Como a chuva não permitia um passeio pelos jardins, ela teria de contentar-se com a imensa residência dos Claybourne. Como os criados a conheciam, não a impediriam de andar pelos corredores e salas onde convidados não teriam acesso. Desde que se mudara daquela casa, viera visitar o conde de Claybourne apenas uma vez. Embora não se sentisse muito à vontade ali, havia um dos recintos que ela tinha uma grata lembrança.

Sem hesitar, abriu a porta da grande biblioteca e entrou. Fechou os olhos por um instante e inalou a maravilhosa fragrância dos livros. Livros razão não tinham esse cheiro agradável. Fechou a porta e caminhou por entre as poltronas e pequenas mesas que formavam áreas de leitura individual, passou pelas estantes lotadas de livros e deslizou os dedos pelas lombadas dos muitos volumes que o antigo conde de Claybourne colecionara durante anos. Ele havia sido um leitor voraz e apresentara a ela os trabalhos de Jane Austen e Charles Dickens, entre outros. Dentro desse recinto, ela viajara pelo mundo.

Isso a fez lembrar-se de Sterling. Por intermédio de Catherine, soubera que ele explorara o mundo e as maravilhas que ele relatara. Era difícil imaginar a coragem necessária para tal empenho. Viajar de navio pela imensidão do oceano e ter a certeza de chegar ao destino. O que afinal ele fizera para tornar-se tão amargo e menos civilizado? E por que ela não podia parar de pensar nele, apesar da rudeza com que fora tratada? E por que achava que ele temia algo?

Ao descobrir que ela levara seu relógio, o medo reluzira por milésimos de segundo em seu olhar antes de brilhar perigosamente. Ela conhecera muitas almas amedrontadas, inclusive a própria. Podia entender a reação de raiva, mas por que o incomodara não ter percebido o furto? Ou ela estaria fazendo uma interpretação errônea do caso? O que não aconteceria se Sterling fosse um livro.

Recriminou a si mesma por haver se apossado do relógio dele. Ela já havia superado suas origens e se irritara com o fato de ele trazê-las de volta. Por que sentira a necessidade de provar que era uma ladra experiente?

Na verdade, não havia motivos para se importar com a opinião dele a respeito de seus amigos ou de si mesma. Sterling era arrogante, rude e representava a aristocracia que ela desprezava. Mesmo o avô de Luke, apesar de toda a bondade que demonstrava, olhava com altivez para os infelizes a quem o neto chamava de amigos. Ainda assim, Frannie não podia deixar de pensar nele com carinho.

Foi até a escrivaninha e sentou-se. Passou a mão sobre a superfície polida da mesa e recordou-se da figura imponente do conde de Claybourne que ali se sentava. Até o dia em que ela descobrira a fraqueza dele por balas de limão e a partir de então ele se tornara humano a seus olhos, principalmente quando oferecera uma. Abriu a gaveta onde o velho lorde guardava seus doces.

— Planejando furtar alguma coisa?

Frannie deu um pequeno grito e pressionou a mão no peito. Com o coração aos saltos, virou-se para encarar o acusador.

Sterling estava encostado na parede de um canto escuro, de braços cruzados, e Frannie não entendeu por que não o notara antes. Os trovões ribombavam e a chuva parecia ter aumentado de intensidade.

— Vossa Graça assustou-me.

Ela sempre havia pensado que Luke e Jack possuíam uma presença dominadora, mas tinha de admitir que eles sumiam se comparados ao duque de Greystone. Ele não era um homem acostumado a ser ignorado e a atração que por ele sentira no salão tornava a se manifestar, contudo ela se recusava a ceder. Não permitiria que o duque zombasse de sua ternura pelos amigos, mas não cometeria a infantilidade de espernear.

Engoliu em seco, determinada a enfrentá-lo.

— Ele costumava esconder nesta gaveta as balas de que tanto gostava — ela respondeu ao silêncio pesado que se seguiu. — O antigo conde — explicou. — O avô de Luke.

Diante do mutismo de Sterling, Frannie fechou a gaveta e levantou-se da poltrona, recusando-se a se acovardar. Com o coração batendo quase tão forte quanto os trovões, foi até a janela e olhou para fora.

— Quando eu morava aqui, milorde sentava-se nesta poltrona — ela apontou a cadeira estofada de verde próxima da janela — e fazia com que eu lesse para ele todas as tardes. Estranho. Quando menina, morei com um jovem que eu estava certa de ter matado alguém, mas eu não o temia. Porém o velho conde me aterrorizava.

— Por quê?

Finalmente ele falava. Frannie encarou-o, surpresa ao descobrir que estavam muito próximos e suspeitou que a pergunta havia sido feita para impedi-la de escapar. Por que razão a ideia de ele querer que ela ficasse a deixava tão excitada?

— Talvez por ele ser tão grande. — Frannie sacudiu a cabeça, frustrada pela inabilidade de descrever o avô de Luke. Ela era mais experiente no uso de número do que com palavras. — Não fisicamente, é claro. Ele era alto como Luke, porém bem mais magro e curvado pela idade, mas ele era imponente e tudo o que o rodeava era grande. As casas nas quais vivia, tanto na cidade como no campo, ou o coche onde viajava. Quando eu o acompanhava em alguma visita em Londres, notava a deferência como era tratada, o que me dava a certeza de que ele era um homem muito poderoso... assim como Vossa Graça.

— Homens poderosos a assustam?

— Causam-me uma certa hesitação, mas não sou mais criança para ser intimidada por eles. Eu diria que a idade traz uma tendência a não se importar muito com que os outros pensam.

Sterling ergueu um dos cantos da boca, e Frannie teve uma vontade absurda de fazê-lo rir, mesmo que ele houvesse desconfiado da mentira. Não podia negar que a incomodava a opinião degradante da aristocracia a seu respeito e também de seus amigos. Cada um deles, à sua maneira, ajudava os menos favorecidos e todos eram muito leais, capazes de dar a vida um pelo outro. E a incomodava profundamente o fato de pessoas menosprezarem essas boas qualidades e esperarem sempre o pior.

— A senhorita fala como se fosse uma anciã.

— Tenho quase trinta anos.

Frannie se sentiu compelida a revelar a idade, talvez para assegurá-lo de que não se tratava de nenhuma jovem inocente, mas sim de uma mulher de opinião própria... pelo menos até aproximar-se dele. Naquele instante não tinha certeza se queria que ele chegasse mais perto ou se afastasse antes de a situação escapar de seu controle. E com ele, ela não garantia um controle completo. Teve vontade de desmanchar os cabelos e deixar vir à tona o aspecto não civilizado a que ele se referira.

— Idade suficiente para estar casada e ter filhos.

— Ah, eu tenho filhos. — Frannie notou a reprimenda em sua expressão e irritou-se por ele pensar o pior a seu respeito. Teve vontade de não explicar nada e deixá-lo imaginar o que quisesse. Por um lado, queria que ele tivesse uma má impressão, mas, por outro, que a achasse merecedora... de algo inexplicável. — Quero dizer... recolho órfãos ou o farei uma vez que a casa de minhas crianças esteja terminada.

— Ah, uma reformista.

— Vejo que desaprova. Vossa Graça não crê em boas ações?

— Elas têm seu lugar, mas trabalhar com órfãos parece-me um desperdício para uma mulher tão adorável.

Frannie sentiu um calor percorrer seu corpo dos pés à cabeça. Ela sempre se considerara comum e a agradava que assim fosse. Não queria favores masculinos e fazia o possível para não parecer atraente. Até o vestido que ela usava para aquela ocasião especial fora escolhido para não chamar a atenção, contudo não adiantara.

— Não tenho certeza se devo me sentir insultada ou elogiada.

— Elogiada, eu asseguro. Creio que nós tivemos um início infeliz com nossa apresentação ou talvez pela falta dela. Vim até aqui em busca de solidão para pensar na melhor maneira de me redimir. Em geral não sou tão descortês. — Sterling olhou pela janela. — Quem era o cavalheiro de casaco marrom com quem a senhorita falava há pouco?

Ela se surpreendeu com a mudança súbita de assunto.

— James Swindler, um inspetor da Scotland Yard. Frannie poderia jurar que o duque segurava o riso.

— Não me referi à ocupação dele, mas o que ele é seu. Frannie achou a declaração estranha. O que mais ele poderia ser?

— Um amigo. Vossa Graça deseja uma apresentação? Sterling deixou escapar uma risada antes de sacudir a cabeça e comprimir os lábios um contra o outro.

— Não. Mas ele agia como seu protetor.

— Todos eles são muito protetores.

— Todos?

— Os meninos de Feagan

— E Feagan é...

— O pai de rua que nos acolheu e criou.

— O que os ensinou a roubar?

— Entre outras coisas.

— A senhorita deve ter sido uma aluna aplicada, pois nem mesmo senti a ação de seus dedos. O problema é que eu gostaria muito de conhecer seu contato.

Sem pressa, Sterling tornou a fitá-la como quem fazia um convite e uma promessa. Como responder a isso? Admitir que também gostaria de sentir o toque dele? Aos doze anos Frannie perdera a inocência, porém nunca tivera interesse sexual por homens. Não que os temesse. Aprendera com os meninos de Feagan que nem todos os homens eram brutos. Ainda assim, não se sentira atraída por nenhum, nem queria atraí-los. Nunca sentira aquela estranha agitação no estômago ao olhar para um homem, nunca sentira o coração disparar daquela maneira pela proximidade masculina, nem encontrara dificuldade para respirar ao analisar o contorno de lábios masculinos.

— Nenhuma resposta, nem ao menos para negar que esteja curiosa para saber como eu poderia tocá-la?

— Não tenho habilidade nesses jogos de flerte.

Frannie novamente revelava segredos de sua intimidade. Ela sempre colaborava com os meninos quando o assunto era furto, encontrar um estratagema ou espoliar alguém. Eles sempre buscavam sua opinião nos negócios. Mas isso tudo era muito distante do que acontecia ali. Ela se sentia como uma exploradora iniciante viajando sem mapa.

— Não se trata de um jogo, srta. Darling — Sterling disse num tom de voz baixo, que repercutiu dentro dela e se alojou nas proximidades do coração.

— E por tocá-la, Vossa Graça quer dizer...

— Simplesmente tocar.

Frannie, que sempre se dera conta do ambiente e de quem a cercava, julgando o melhor momento para tomar ou sair, não percebera a aproximação maior de Sterling com olhos escurecidos de desejo. Com extrema delicadeza, ele passou a ponta dos dedos na face, na testa e no queixo dela.

— Tão suave — ele sussurrou, acariciando o lábio com a ponta do polegar, seguindo os próprios movimentos com o olhar, como se nunca tivesse visto nada tão fascinante ou como se ela fosse uma criatura rara. — Algum dos cavalheiros que a acompanham... é seu amante?

— Não! — Insultada, ela teria recuado se não estivesse presa pela carícia do polegar sob o lábio.

— A senhorita tem um amante?

— Isso não é de sua conta.

— Tem? — ele insistiu.

— Não.

— Ótimo.

Sterling não tirava os olhos dela e o fogo neles contido intensificou-se e pareceu queimá-la. Frannie pensou que entraria em ebulição e teve uma vontade ridícula de abrir alguns botões do corpete e deixar que o duque assoprasse sua pele.

— Por que isso é ótimo? — Ela quase não reconheceu a própria voz, de tão ardente.

— Porque eu gostaria muito de beijá-la, srta. Darling, e ao contrário de seu costume, não tenho o hábito de tomar o que pertence a outrem.

Sterling segurou o rosto de Frannie e aproximou-se devagar, dando a oportunidade de recuar ou recusar. Mas Frannie inclinou-se na direção dele, cerrando os olhos. E Sterling beijou-a.

Ela já havia recebido beijos forçados e castiços, mas nenhum homem tocara seus lábios com tanta ternura e determinação, abrindo-os para permitir sua entrada. Também ela nunca quisera tanto corresponder. Sterling tinha sabor de champanhe e de desejo.

Ele a abraçou e Frannie jamais experimentara estar tão próxima de um homem, nem tivera o busto apertado por um peito sólido ou inalara tão profundamente o perfume masculino. Nunca tivera dentro de sua boca a língua de um homem, nem correspondera àquela dança sensual. E, sobretudo, desejava com desespero o que não conhecia e que deveria amedrontá-la.

Sterling não causava receio. Frannie abraçou-o pelo pescoço e ficou na ponta dos pés para facilitar o acesso do que ela tanto desejava. Com um gemido surdo, ele mudou o ângulo do beijo, aprofundou-o e explorou cada centímetro da boca desconhecida. O calor aumentou e Frannie supôs que poderia derreter. A paixão e as sensações arrebatadoras permitiriam que os dois se tornassem um só?

Ele se afastou ligeiramente e fitou-a com intensidade.

— Como a senhorita não tem um amante, eu gostaria de oferecer meus serviços. Pelo visto, nós somos compatíveis.


Capítulo Dois


— Você está bem? Na volta ao Dodger's no coche emprestado por Luke, Frannie, que olhava a chuva pela janela, voltou-se para Jack.

— Claro, por que a pergunta?

— Você parece preocupada.

Era verdade. Ela pensava na proposta escandalosa de Sterling e em sua resposta ainda mais indecente.

— Pensarei em sua oferta.

Estaria ela considerando a hipótese ou apenas não soubera o que responder? Se negasse, ele insistiria na pergunta? Ela o veria novamente? Se aceitasse, mudaria de ideia mais tarde? Teria remorso?

Oh, céus, eram tantas as suas dúvidas!

Frannie tirou uma luva e passou os dedos na face que Sterling acariciara. A sensação nada representava em comparação à sensualidade despertada por ele. Um calor incrível serpenteara em seu ventre e a envolvera até ela se sentir como cera derretida. Passou com traços irregulares a ponta dos dedos nos lábios e novamente a impressão não se comparou à doce pressão da boca de Sterling na sua, forçando seus lábios a se abrirem.

Uma vez Luke a beijara com a leveza de uma borboleta na pétala de uma flor. O beijo de Sterling não fora leve, mas também não tinha sido rude. Fora como se apenas ela pudesse matar a avidez de um homem famélico. De onde provinham esses pensamentos insanos? Seria um reflexo de seus próprios desejos e de sua vontade de experimentar tudo o que ele tinha a oferecer?

— Jack, você já teve alguma amante? — Frannie perguntou, olhando novamente pela janela.

— Depende.

Ela se voltou para o amigo. A pergunta fora simples. Ele tivera ou não tivera. O que poderia ser acrescentado?

— Depende do quê?

— Se considerarmos ou não uma mulher paga como amante. — Jack cruzou os braços na altura do peito e fixou-se no teto do coche. — Para mim, uma amante teria de ficar comigo por vontade própria, sem intenção de ganhar uma recompensa. Sob essa perspectiva, nunca tive uma amante. — Ele a fitou.

— Parece-me uma questão estranha partindo de você.

Pela primeira vez na vida, ela não se sentia à vontade com Jack. Não poderia contar que o encontro ardente com Sterling provocara sua indagação e que se desse ouvidos aos próprios anseios, iria à procura do duque nessa noite.

— Simples curiosidade. Não sei quais são as expectativas para uma amante e o que a situação acarreta na verdade. Um amante... ama sua parceira e vice-versa?

— Por deus, Frannie, o amor não está envolvido no fato. Trata-se apenas de uma maneira cortês de explicar que um cavalheiro deseja o que está sob as saias de uma dama.

Ela anuiu e tornou a observar a janela. Certamente isso era tudo o que Sterling desejava. Frannie Darling servia para a cama, mas não para esposa. Ele a enxergava como uma meretriz e usava a boca depravada como moeda. E ela quase pensara em aceitar a proposta dele.

— Desculpe-me, Frannie, eu não deveria ter sido tão rude. — Jack inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nas coxas. — Por que a súbita curiosidade?

Frannie sentiu no rosto o calor do constrangimento... ou seria vergonha?... e ficou satisfeita que o tempo obscuro impedisse a visão de suas faces coradas. A infância forjara uma união que permitia compartilhar os pensamentos mais íntimos, sem fiscalização ou cobrança. Ela o fitou e abaixou o olhar.

— Tive uma proposta.

— De que tipo?

Frannie reuniu coragem para responder:

— Alguém deseja ser meu amante.

Jack estreitou os olhos por um segundo e ela percebeu que já tinha visto aquela expressão que precedia uma tempestade.

— Quem é o patife?

Frannie admitiu que nada deveria ter dito, mas Jack era um de seus melhores amigos. De repente entendeu que havia fatos que não deveriam ser compartilhados, mas ela não tinha mais ninguém a quem procurar. Certamente não poderia fazer o comentário com Catherine, uma vez que o irmão dela fora o causador do dilema.

— Não vou dizer. Esqueça o que eu perguntei. Jack recostou-se no assento com força.

— Foi o infeliz do Greystone.

— O quê? Oh, não! Por que pensou nele?

Jack tornou a inclinar-se para a frente e segurou as mãos de Frannie.

— Frannie, minha querida, sou um homem e notei a maneira como ele a olhava. Como se você fosse uma guloseima apetitosa para satisfazer a fome masculina. Ele sumiu por um tempo e você também. Parece-me que ele se aproveitou da oportunidade e durante o momento clandestino fez a proposta indecente.

Não foi o que parecera. Pelo contrário, ela se sentira lisonjeada, embora estivesse zonza e perdida em uma névoa de paixão quando ele a beijara. Espantava-se com a maneira de Jack descrever o olhar de Sterling. Já vira homens a fitarem de soslaio ou mais diretamente, mas sempre como se ela fosse um cristal delicado que poderia quebrar-se e jamais com fome. Era estimulante e ela apertou os dedos de Jack.

— Acha que seria tão ruim acalentar a ideia de ser amante de alguém? Fui ladra, prostituta...

— Não por sua escolha, Frannie.

— Um homem pagou por mim, Jack. Chame isso como quiser, embora eu nunca tenha me entregado por vontade própria a um cavalheiro. Estou com quase trinta anos, muito além da idade em que a maioria das jovens se casa. Até Luke pedir minha mão em casamento, eu não havia pensado em ser uma esposa. Não me vejo casada.

— Por que não? Jim a desposaria em um piscar de olhos. E eu também, por falar nisso, se eu não achasse que você merecia coisa melhor.

Frannie deu um sorriso torto.

— Jack Dodger casado? Não posso acreditar nisso.

— Ele é um duque — Jack lembrou-a, favorecendo a argumentação.

Jack sabia o mal-estar que ela experimentava diante da aristocracia. Todos eles eram da mesma opinião e por isso a tinham rodeado na festa.

— Isso seria um problema se eu pensasse em me casar com ele, mas não é esse o caso. Amantes fazem parte de um pecado secreto, não é? Eu não teria de me imiscuir no mundo dele.

— A resposta à sua pergunta anterior é "não". Não existe amor entre amantes. Você provavelmente sofreria muito e eu me sentiria responsável por você ter uma visão errônea do mundo pelo fato de trabalhar no Dodger's. Eu providencio um lugar seguro para homens se envolverem no pecado, mas não quero que façam isso com você. Além disso, qualquer homem decente ficaria feliz em tê-la como esposa. Nada menos do que isso.

Frannie anuiu, desvencilhou as mãos e recostou-se no assento.

— Suponho que ele não tenha me feito um elogio.

— Não fez.

— Talvez eu devesse ter dado uma bofetada.

— Certamente.

Frannie suspirou e mais uma vez fixou o olhar para fora. O problema todo era ela desejar beijá-lo novamente. Estar tão perto de um homem era uma experiência estimulante. Uma pena que ela não parava de pensar nisso e, quanto mais pensava, mais desejava.

Sterling sabia que se aproximava a hora em que perderia tudo o que estivera em seu alcance.

Sentado na sua biblioteca, bebia conhaque, escutava o tique-taque incessante do relógio sobre o consolo da lareira e impedia a fúria de emergir. Raiva requeria uma energia que ele não podia desperdiçar no momento. Talvez mais tarde, quando não tivesse nada melhor para fazer do que refletir em como a vida poderia ter sido melhor se...

Sempre estivera determinado a não se entristecer, mesmo que a tristeza o ameaçasse. Também pensaria nisso mais tarde.

No entanto, preocupava-se em preencher seu reservatório de lembranças. E tinha mais uma que desejava muito adicionar à sua coleção de tesouros. Uma noite com ela poderia muito bem ser a coroação gloriosa, o último prazer, sua última travessura antes de voltar a atenção para o dever. Duvidava de que ela valesse a pena adiar o rumo inevitável de sua vida.

Frannie Darling.

Ela era esguia, mas tinha uma certa imponência de quem lutara contra os desapontamentos da vida e saíra vitoriosa. Por ser uma plebeia, um aristocrata como ele não cogitaria em tomá-la como esposa. Mas ele supunha que ela seria uma amante a contento.

Fechou os olhos e trouxe à mente imagens do encontro deles na biblioteca. Os dedos que se entrelaçaram em seus cabelos, a boca que respondera às suas carícias e o perfume delicado de rosas que ainda não sumira de suas roupas. Ele queria aquela fragrância em sua cama. Havia muito tempo não ansiava tanto por uma mulher e ela não o desapontara.

Não podia acreditar na proposta que fizera para se tornarem amantes e a resposta corajosa o espantara.

— Pensarei em sua oferta.

Frannie estaria falando a sério ou apenas caçoava dele? Eles se empenhavam em um jogo estranho. Ela era o demônio fantasiado de mulher sedutora ou pelo menos era uma feiticeira por tê-lo envolvido em um encanto do qual ele era incapaz de escapar. Estava obcecado pela maciez da pele de Frannie, por seus olhos verdes e pelo vermelho radiante de seus cabelos. Desejava beijá-la novamente e tirar as roupas aos poucos para revelar os tesouros escondidos. Tivera muitas aventuras em suas viagens, mas nada que se comparasse ao interesse que Frannie despertava. A resposta dela seria positiva? Ela não ousaria recusar um duque.

Chegaria uma época em que seu título de nada valeria e ela não se interessaria por ele, assim como outras mulheres o rejeitariam. Seu pai não gritara a verdade em uma altura suficiente?

Por esse motivo seu pai se opusera às suas viagens pelo mundo e insistira que ele deveria se casar antes de tudo. Mas ele não poderia explorar o mundo... e as mulheres... com uma esposa a tiracolo. Sterling tinha intenções de permanecer fiel à esposa, embora duvidasse de que ela teria a mesma consideração quando soubesse da verdade. E ele aprendera pelo caminho mais difícil que seria melhor manter sua deficiência em segredo por mais tempo possível. Lady Angelina zombara dele e o ensinara que o amor era uma ilusão facilmente destrutível pela verdade.

Não cometeria novamente o mesmo engano. Guardaria seu segredo até depois do casamento. Mas antes de pensar em uma esposa, queria uma noite de paixão sem freios. E, para isso, apenas uma mulher serviria.

Frannie Darling.

Ainda podia sentir o gosto de seus lábios. Ansiava por desabotoar o corpete que o impedira de ver a pele de alabastro. Baseado na face sedosa, não duvidava de que a cútis dela sob as roupas fosse uma perfeição. Os seios caberiam dentro de suas palmas e os mamilos endureceriam sob a provocação suave de sua língua. Queria passar os lábios sobre...

— Mais conhaque, sir?

Letárgico por não esquecer a srta. Darling nem por um minuto e pelo consumo excessivo de bebida, Sterling não se assustou com a interrupção. Sentia-se flutuar e sabia que deveria recusar a oferta, pois nem ouvira o criado entrar, o que também não era incomum. Seus criados esmeravam-se no decoro e deslizavam no maior silêncio, como se os pés não tocassem o chão.

Sterling levantou a taça, sem se preocupar com a embriaguez que permitiria afastar Frannie de sua mente para conseguir pegar no sono. Ou talvez fosse melhor seduzi-la em seus sonhos, onde o desejo dela seria equivalente ao dele.

O conhaque derramou-se sobre sua coxa e sua camisa.

— Cuidado, homem!

Ele se levantou da poltrona e virou-se...

Para descobrir que nenhum criado entrara em seu santuário, mas que Jack Dodger e James Jim Swindler estavam ali dentro. Supôs que devesse agradecer por serem apenas dois e não quatro rufiões em sua biblioteca.

Jim deixou a garrafa na mesa com uma delicadeza surpreendente para um homem daquele tamanho.

— Como foi que entraram? — Sterling indagou, desejando não estar com a fala tão arrastada.

Ele encontrava dificuldade em focalizar seu mundo naturalmente sombreado. Por que não acendera mais lamparinas ou não bebera menos?

— Não importa — Jack respondeu. — O principal é entender que você nada poderá fazer para impedir-nos de ficar fora quando desejamos estar dentro.

— Eu poderia chamar um guarda, mas suponho que ninguém me dará atenção se souberem que um inspetor invadiu minha residência.

— Tem razão, Vossa Graça. — O tom de zombaria de Jim deixava claro o quanto desprezava o título e o próprio Sterling, considerando-os de pouca serventia.

— Posso oferecer um drinque aos senhores?

— Fique afastado de Frannie — Jim foi direto ao assunto. Eles não aceitavam a bebida.

— Ou então? — Sterling perguntou.

— Eu o farei sumir.

Nada como uma ameaça direta para esclarecer o assunto. Infelizmente, Sterling não era muito amigo de ameaças que apenas serviam para torná-lo ainda mais teimoso e determinado a fazer o que desejava.

— Verdade? E seus superiores têm conhecimento dessa destreza incomum que o senhor parece cultivar?

— Greystone, Frannie é uma pessoa muito especial para nós — Jack afirmou — e não temos a menor intenção de vê-la sofrer.

— Bem, isso me inclui no trio, pois também não tenho intenções de causar sofrimento.

— Milorde pode não pretender, mas o resultado será trágico se fizer dela sua amante.

Sterling estreitou os olhos. Teria ele sido tão transparente?

— Ela nos contou — Jack respondeu à pergunta não formulada. — Imagine que a inocência de Frannie chega a esse ponto.

— Ela não beija como uma jovem inocente.

Jim avançou com as mãos grandes fechadas em punho, mas Jack agarrou-o pelo paletó.

— Calma, Swindler.

Jim obedeceu à voz autoritária, mesmo sem gostar da interferência que, no entanto, agradou a Sterling. O homenzarrão parecia acostumado a brigar e a vencer, o que daria poucas chances a Sterling, por mais que ele se empenhasse.

Jack deu um passo adiante e interpôs-se entre Jim e Sterling, porém Jim era bem mais alto, e Sterling pôde ver a fúria nos olhos verdes. Dos dois, ele era sem dúvida o mais perigoso, ainda que Sterling não fosse tolo para subestimar Jack Dodger.

— Greystone, o caso é que Swindler, Graves, Claybourne e eu nos consideramos como irmãos de Frannie e cada um de nós subiria ao patíbulo por ela — Jack afirmou.

— Ouvi contar que você é muito zeloso do que é seu.

— Acertou e por isso serei obrigado a destituí-lo como membro do Dodger's. Você terá de procurar seus prazeres em outro local.

— Cavalheiros, se eu realmente quiser alguma coisa, os senhores não terão poder para impedir-me de obter o que desejo.

A dor que ricocheteou no rosto de Sterling foi tão intensa quanto a de sua cabeça ao atingir o chão. Ele não vira o movimento de Jim e muito menos o punho dele vir pela lateral no que era seu calcanhar de Aquiles. Jim ajoelhou-se a seu lado e, com a mão do tamanho de uma pata de elefante, agarrou-o pela camisa e sentou-o.

— Se a fizer sofrer, eu o matarei.

Jim soltou-o e Sterling bateu novamente com a cabeça no chão. Jim levantou-se, saiu da biblioteca e os passos pesados reverberaram pelo chão.

Jack ajoelhou-se ao lado de Sterling.

— Greystone, nunca se esqueça de que viemos das ruas. Quando Frannie era pequena, não podíamos impedir que a fizessem sofrer e nós quatro fizemos um juramento. Nós morreremos antes de deixar mais alguém magoá-la e esse é um voto que manteremos a qualquer custo.

Sterling continuou deitado muito tempo após a saída de Jack e entendeu ter acertado em uma coisa. Eles a amavam.

O que não o confortou, mas o fez ainda mais determinado em possuí-la.

Após fazer a última anotação no livro caixa, Frannie assoprou a tinta para secá-la mais depressa. Os números eram atordoantes. Empregada no Dodger's havia dez anos e parceira de Jack fazia cinco, deveria estar acostumada ao montante de dinheiro desperdiçado pelos homens no jogo.

— Frannie, a casa sempre acaba ganhando — Jack Dodger dissera quando ela inicialmente questionara o empenho dele em abrir uma casa de jogos — e, no final, é isso o que importa.

Suspirou e deixou na mesa a caneta com ponta de ouro — um presente de Jack que gostava de objetos finos e sabia que ela não gastaria em supérfluos — e fechou com cuidado o volume. Jack gostava de tudo muito limpo e arrumado, e nisso eles combinavam. Na certa era por terem crescido na imundície.

O escritório era decorado com simplicidade. Uma escrivaninha, duas poltronas, um sofá onde ela às vezes descansava e prateleiras onde estavam enfileirados os livros de contabilidade que forneciam a história do estabelecimento.

Eram quase duas da manhã. Embora estivesse cansada, gostava de trabalhar à noite. Fazer a contabilidade em horários tardios a deixava com tempo livre para planejar o lar das crianças que pretendia abrir em breve. A mobília chegaria no começo da semana seguinte e ela precisava contratar empregados. Resolveu deixar a tarefa para o dia seguinte, pois ainda tinha assuntos pendentes.

Abriu o volume onde havia inscrito a contabilidade dos sócios e começou a fazer anotações quanto aos membros devedores. Quando as costas começaram a latejar, endireitou-as, bocejou, espreguiçou-se e...

Uma silhueta grandalhona assomou à porta. Ela riu e assumiu uma posição mais decorosa.

— Não deixe de relaxar por minha causa — Jim Swindler disse ao entrar.

O paletó marrom dele não era bonito, mas combinava com seu comportamento modesto. Tinha cabelos castanhos espessos, olhos verdes e não aparentava ser ameaçador em sua simplicidade. Na verdade, ela o considerava o mais inteligente e perigoso de todos.

— Eu fazia um intervalo antes de estudar as contas dos fregueses — ela explicou.

— Você faz isso em horários esquisitos.

— Não mais do que você. Está trabalhando agora, Jim?

— Jack pediu-me para fazer averiguações de caráter pessoal em relação à herança que recebeu. Eu apresentei um relatório do que descobri e aproveitei para ver como você estava passando.

— Eu vou bem, Jim.

Ele anuiu, pôs as mãos nos bolsos do paletó e tirou-as.

— Alguém a tem aborrecido?

Uma pergunta estranha.

— Está se referindo a alguém em particular?

— Não, simples curiosidade. — Ele adiantou-se e depois recuou como se temesse assustá-la. — Quero que saiba que estarei disponível caso precise de alguma coisa.

— Talvez eu necessite de sua ajuda para reunir os órfãos quando chegar a hora.

— Isso nem se discute. Estou guardando uma lista de meninos que foram para a prisão e o tempo em que ficarão detidos. Cuidarei dos mais jovens, os que podem ser recuperados e os trarei para você.

Frannie sorriu.

— Para mim isso significa muito, Jim. A mobília chegará na próxima semana, você estará livre para ajudar?

— Pode contar comigo.

— Obrigada. Eu me sinto culpada por ainda não ter resolvido o assunto de como abrigar as crianças abandonadas nas ruas, embora tenha os meios para isso.

— Você está trabalhando muito nisso, Frannie.

— Porque essa é uma coisa que desejo demais. Há muito tempo venho pensando, planejando e finalmente a meta está para ser concretizada. Mandarei avisá-lo assim que chegar a hora.

— Esplêndido. — Jim deu um sorriso brilhante, o que raramente fazia. — Estou ansioso para ajudá-la. — Ele fez menção de tocar no chapéu, mas como não o estava usando, fez uma mesura desajeitada. — Eu a verei em breve.

Ele saiu com uma rapidez que a espantou. Frannie não entendia por que Jim era desajeitado com ela e não com os outros. Talvez por ser dois anos mais moço e ela ter cuidado mais dele do que dos demais. Lembrava-se do dia em que Jack e Luke o tinham trazido para a casa de Feagan, logo após o enforcamento do pai de Jim. Ele se conservara tão quieto que ela temeu por um mutismo permanente pelo choque. Naquela noite, depois de todos terem ido para a cama, ela escutara choramingos e deixara o conforto dos braços de Luke e fora segurar Jim enquanto o menino dormitava. Ela entendia a dor da perda.

As crianças que moravam com Feagan haviam perdido algo de muito valor que alguns ainda procuravam. Não era o caso de Luke. Ela sorriu. Nunca o vira tão feliz como no casamento.

E pensando em Catherine, lembrou-se do irmão dela. Passara pouco mais de uma semana após o casamento, ela não podia esquecer Sterling. Por uma escada posterior a que os fregueses não tinham acesso, ela e Jack podiam chegar a um balcão pouco iluminado de onde podiam observar o movimento do salão sem serem vistos. Nas duas vezes em que procurara por Sterling, não o vira. Mesmo sem saber o que faria se o visse, sentiu-se desapontada por sua ausência. Seria ele tão bonito quanto sua lembrança? Ou seria muito perigoso?

Sterling estaria ansioso por uma resposta dela? Ele desconfiaria que a mesma seria negativa? Deveria dizer pessoalmente a ele caso o visse? Ou seria melhor mandar uma carta? Talvez o silêncio fosse a melhor solução.

Frannie refletia sobre os métodos com a mesma frequência como pensava na resposta. Jack estava certo e ela teria de retrucar com uma sonora negativa, mas Sterling a intrigava. Não havia explicação lógica para o fato. Os dois pertenciam a mundos opostos. Mas por que ele fora o único que atraíra sua atenção em meio a tantos convidados que lotavam o salão de Luke? E o mais importante. Por que fora notada, apesar de todos seus esforços em contrário?

Por que os homens podiam procurar os prazeres com várias mulheres e elas tinham de conhecer apenas um? Porém na região de Londres onde ela e os amigos haviam crescido, as garotas ficavam com um rapaz por algum tempo e depois se envolviam com outro. Sua amiga Nancy fizera isso e não fora repudiada. Frannie supôs que o preço para ser aceita na sociedade fosse seguir as regras de boa conduta e que as damas deveriam preservar sua castidade, o que para ela seria impossível.

Ela fora violada fazia dezoito anos. Ao longo do tempo, os pesadelos sobre aquela noite terrível haviam diminuído, mas a lembrança ainda não se apagara. No entanto ela não temia os homens e conhecia a paixão e a ternura que acontecia entre homens e mulheres.

Jim fizera questão de mostrar a ela, alguns anos atrás. O Dodger's tinha uma sala de observação onde os homens que desejavam demonstrar suas proezas atuavam com uma dama de sua escolha enquanto clientes observavam escondidos em cantos escuros ou através de discretos olhos-mágicos. Jim a convidara a espiar enquanto ele fazia amor com uma jovem.. Fazer amor fora o termo que ele empregara para explicar como poderia ser o relacionamento. Aquela noite ele dera um presente espantoso.

Frannie sempre soubera que sua experiência aos doze anos não fora normal e depois de observar Jim com Prudence, perdera sua relutância em relação aos homens. Ainda assim, não conhecera nenhum homem com quem desejasse fazer amor. Até conhecer Sterling Mabry, um duque, e o último homem que ela deveria desejar.

Seria o toque do proibido que a atraía ou haveria algo mais?

Céus, ela acabaria louca de tanto pensar nisso e seria mais sensato verificar os registros de devedores!

Nesse momento, percebeu uma anotação feita com a letra quase indecifrável de Jack. Então era isso!

Frannie pegou o volume, saiu de sua sala e entrou na de Jack, que também trabalhava até tarde. Ele estava sentado atrás da escrivaninha, fazendo contas.

— O que significa isso? — ela indagou, brusca, e levantando a brochura.

— O que? — Ele franziu a testa. Ela largou o livro em cima do dele.

— Aqui diz que Greystone foi excluído do quadro de associados.

Jack virou-se para trás, pegou uma das garrafas e encheu o copo que estava em cima da mesa.

— Não gosto dele.

— Jack...

— Frannie. — Ele bebeu o uísque e fez menção de servir-se novamente, mas Frannie agarrou o copo.

— Mas que droga, Frannie! — Jack recuou, pegou um pedaço de papel e enxugou as gotas espalhadas. — Este é meu melhor uísque, por que desperdiçá-lo?

— Todas as suas bebidas são as melhores. Eu o aviso de que vou reintegrá-lo na lista dos frequentadores.

— Eu desfarei tudo. — Ele a fitou com raiva.

— Você não pode cancelar o registro de cada homem que se interessa por mim. — Nenhum manifestara vontade de conhecê-la melhor até o momento, mas ela precisava dar importância à frase.

— Ele fez mais do que demonstrar interesse.

— Sei que está tentando proteger-me e eu o amo por isso, mas você está errado. Sei como me defender.

Jack fitou-a por um momento e Frannie sabia que ele desejava prosseguir a discussão.

— Devolva-me o copo.

Frannie obedeceu. Jack jamais admitiria seu erro, porém o fato de mudar de assunto significava uma vitória para ela. Além disso, Jack tinha assuntos importantes para resolver. Um de seus clientes, o duque de Lovingdon, deixara para Jack todas as propriedades não vinculadas aos bens inalienáveis. E Jack, desconfiado como sempre, suspeitou de sua boa sorte e pretendia analisar cada aspecto do legado.

— Você mandará uma mensagem a Greystone ou eu mesma terei de fazê-lo?

Jack não respondeu, mantendo o olhar feroz.

— Suponho que eu terei de tomar a iniciativa. Greystone será incapaz de decifrar sua letra. Você não fez nada com ele, fez?

— Não fiz.

— Jure.

— Por Deus, Frannie, eu disse que não. — Ele a fitou.

— Você ainda carrega o punhal que dei?

Frannie bateu no quadril onde uma bainha estava escondida sob a saia.

— Sempre.

— Faz muito tempo que não nos exercitamos. Poderíamos fazê-lo amanhã, para ter certeza de que você não esqueceu como usar a arma.

— Sei como usá-la.

— Lembre-se, o objetivo não é ferir, mas matar. Não se preocupe pelo fato de ele ser um maldito nobre. Jim dará um jeito nas investigações.

Jack sugeria que ela matasse Sterling? Uma sugestão primorosa.

— Se Greystone pretendia aproveitar-se, ele o teria feito na biblioteca quando... — Frannie deu-se conta de ter falado demais.

— O que ele fez na biblioteca de Luke?

— Conversou.

— O que ele disse?

— Que eu era interessante. — Ela pegou seu livro e apertou-o junto ao peito. — Devo interrogá-lo a respeito de seu encontro com a jovem duquesa de Lovingdon?

— Isso é diferente. A viúva não está tentando tirar vantagem de mim.

Frannie anuiu. Por mais estranho que pudesse parecer, ela não tivera a impressão de que Sterling quisesse aproveitar-se dela. Ele queria dar e receber algo que poderia ser agradável para os dois.

— Boa noite, Jack. — Ela se virou e...

— Frannie, meu coração está no lugar certo. Era muito difícil ficar com raiva dos meninos.

— Eu sei.

Frannie voltou à sua sala e escreveu oito cartas endereçadas a Sterling até finalmente encontrar os termos certos que não fossem exagerados nem pouco ilustrativos, e que não denunciassem seus próprios sentimentos sobre a situação. Aquela era uma questão de negócios.

Ela levantou-se da cadeira e atravessou a sala. Pegou a capa que estava pendurada perto da porta, jogou-a sobre os ombros, saiu do escritório e foi para o vestíbulo que nunca permanecia muito sossegado. As atividades exuberantes do salão de jogos que tinham lugar atrás da porta fechada dos fundos ecoavam pelo prédio. Ela já se acostumara com os ruídos e mal os escutava. Do lado oposto do saguão ficava a porta que dava para fora.

Ela a destrancou e foi para a varanda onde a lamparina acesa lançava uma luz fantasmagórica na alameda escura. Trancou a porta e, sem pegar a lamparina, atravessou o caminho que conhecia como a palma da mão. Seu quarto ficava à esquerda, subindo a escada. Usou outra chave para abrir a porta e entrou. O apartamento de Jack era contíguo ao dela, mas ele não ficava ali desde que herdara a bela residência de St. James.

Ela fechou e trancou a porta, foi até a mesa que ficava a um canto do cômodo e acendeu uma lamparina. Com um suspiro, pendurou o manto e começou a tirar a roupa enquanto caminhava para o local onde dormia. O recinto era pequeno e simplesmente mobiliado como seu escritório. Havia um sofá, uma cama, uma penteadeira, algumas cadeiras e duas mesas pequenas. Ela não precisava de muito para ser feliz.

Frannie se lavou, vestiu a camisola, sentou-se junto à penteadeira e começou a escovar os cabelos. Detestava aquela cor e o excesso de cachos que os tornavam rebeldes. Imaginou se Sterling os considerara sem graça. Inclinou-se em direção do espelho. Os olhos verdes eram o que tinha de melhor. Lembrou-se da frequência com que Sterling os fitara. Poderia ele perder-se naquele olhar? O que ela teria de fazer para que isso acontecesse?

Contudo não queria que ele se perdesse apenas no olhar, e sim nela, o que era um desejo perigoso.

Ela gemeu, levantou-se e levou a lamparina até a mesa de cabeceira. Deitou-se sob os lençóis, apagou o pavio e olhou a escuridão acima de sua cabeça. Logo veio a imagem de Sterling vindo por cima dela, despido e exibindo a pele bronzeada.

Com mais um gemido, ela se virou de lado. Quando conseguiu adormecer, sonhou que mandara para ele uma carta diferente da que escrevera. Uma onde estava escrita apenas uma palavra.

Sim.


Capítulo Três


Catherine encontrava-se sentada na biblioteca que fora de seu pai e agora então pertencia a Sterling, e reparava nas mudanças de seu irmão que estava em pé junto à janela bebendo conhaque e olhando o sol do entardecer. Os cabelos dourados dele haviam escurecido, o que o fazia parecer mais velho do que seus vinte e oito anos. Os ombros estavam mais largos como se ele houvesse enfrentado trabalhos pesados nas viagens pelos continentes. Havia uma pequena cicatriz abaixo do olho esquerdo e Sterling perdera a capacidade de sorrir.

De todas as mudanças que haviam ocorrido durante os anos em que ele se ausentara, a última cortava o coração.

— Então você tratará disso? — ela perguntou ao irmão.

Assim que ela fizera o pedido, ele se levantara da poltrona que ficava atrás da escrivaninha, servira-se de uma dose de conhaque e fora até a janela.

Ele se virou e fitou-a, como se duvidasse da sanidade dela.

— Deixe-me ver se entendi. Você pretende que eu tome providências para que as duzentas libras mensais estipuladas por nosso pai em testamento para serem dadas a você sejam transferidas para a srta. Frannie Darling.

— Exatamente.

— Ela a está chantageando?

— Não seja tolo, Sterling, é para o orfanato dela! Entendo que eu poderia dar a ela o dinheiro, mas dessa maneira parece mais eficiente, e ela saberá que pode contar com a quantia todo dia primeiro de cada mês.

O pedido dela servia como desculpa para visitá-lo e talvez para atraí-lo de volta à sociedade. O fato de Catherine precisar de uma desculpa para ver o irmão era um atestado da tensão existente no relacionamento de ambos. Afinal, ele era seu irmão e ela não o vira nem uma vez nas duas semanas que se seguiram ao casamento. Na verdade, ela não vira mais ninguém.

— Papai queria que você tivesse dinheiro para manter sua independência — Sterling afirmou.

— Estou casada com um dos lordes mais ricos da Inglaterra...

— O que não garante sua independência.

Era uma verdade irrefutável. O desejo dela em ajudar a duquesa de Avendale a escapar de um casamento horrendo levara Catherine à porta de Luke Claybourne.

— Sinto muito, Catherine, mas não posso alterar a vontade de papai, mesmo a seu pedido. Poderá chegar uma época em que você precisará ter seus próprios meios de sobrevivência. Enquanto isso, mande a quantia desejada para a srta. Darling, se não precisa do dinheiro.

— Por que você é tão teimoso? O dinheiro é meu e posso fazer com ele o que eu quiser.

— Como seu irmão, estou encarregado de assistir ao seu bem estar e impedi-la de agir erroneamente.

— Não mais, Sterling, lembre-se de que estou casada. E quanto ao amor por mim ou por outra pessoa? Eu soube que você esteve em Londres por no mínimo quatro meses e mesmo assim não visitou nosso pai. Não era segredo que ele estava doente e você sabia disso.

— Mandou fazer verificações?

Não propositadamente. Mas desde que seus amigos mais recentes conheciam o lado obscuro de Londres, ela contava com informações úteis algumas vezes.

— Estou tentando entender o que aconteceu com o irmão que me deu de presente uma pedra mágica para proteger-me dos pesadelos quando eu acordava chorando como uma criança depois da morte de mamãe. Não tenho certeza se ainda o conheço.

— Pois dê graças a Deus.

— O que está querendo dizer com isso?

Ele foi até o aparador e tornou a encher a taça.

— Assunto encerrado? Não pela metade.

Catherine levantou-se da poltrona com graça e decidiu usar uma tática diferente. O título de Sterling era um dos mais poderosos da Inglaterra, o que acarretava influência e valor. O pai deles ficaria muito desapontado se Sterling vivesse à margem de seu potencial.

— Você não gostaria de fazer-nos companhia amanhã? Claybourne e eu vamos ao orfanato ajudar Frannie a receber a mobília. Um par de mãos extras será bem-vindo.

— Você não está sugerindo que eu me rebaixe a ponto de me engajar em um trabalho manual, está?

— Estou sugerindo que se envolva em uma obra benemérita. Frannie pretende estabelecer um lar para cem crianças.

— Não sei o que tenho a ver com isso.

— Se você não entende, certamente não poderei explicar. — Decidida a não recuar diante do tom de enfado, ela rodeou a mesa, abriu uma gaveta e tirou uma folha de papel.

— O que está fazendo?

Ah, finalmente uma ponta de interesse. Talvez nem tudo estivesse perdido.

— Vou escrever o endereço com esperança de que você mudará de ideia e virá nos ajudar. Descobri, Sterling, que se envolver nesse tipo de trabalho pode mudar a perspectiva de vida.

— Não preciso mudar nada.

Catherine estava certa de que se tratava de um engano. Ela escreveu o endereço, deixou a caneta de lado e aproximou-se do irmão.

— Eu gostaria de saber a respeito do que você e papai discutiram.

Catherine acreditava que a atual atitude de Sterling estava de alguma forma relacionada com o que acontecera antes de ele partir. Ele e o pai haviam se envolvido em uma forte discussão em uma noite. Ela escutara o ódio ecoar pelas paredes, mas não entendera as palavras. Na manhã seguinte recebera uma carta de Sterling pedindo para ela não se preocupar, mas que ele decidira viajar pelo mundo. Ela não o vira mais até depois da morte do pai. Sterling desviou o olhar.

— Como eu disse antes, Catherine, isso não é de sua conta.

— Por quê? — Ela viu o músculo do queixo dele se mover. Tocou no braço dele e sentiu-o retesar-se.

— Eu o amo, Sterling. Se eu puder fazer alguma coisa...

— Deixe-me em paz.

— Então você não está em paz? Sterling suspirou.

— Você se tornou uma jovem irritante.

Ela sorriu com esperança de tocar o local onde antes existira um coração.

— Você não tem ideia do quanto.

— Mais um motivo para eu não atender a seu pedido e não permitir que seu dinheiro seja desviado. Claybourne se cansará de você em pouco tempo.

Ela riu.

— Ele gosta que eu seja voluntariosa e determinada. Eu gostaria que você o conhecesse melhor.

— O conde diabólico? Ele é um, assassino, Catherine.

— Sim, ele matou um homem...

— O tio dele.

— ...por um bom motivo — continuou ela. — Não há nada que eu não admire em meu marido. Acho que os dois se dariam muito bem, se você desse uma chance.

— Pelo contrário, acho que ele não gostaria de mim, assim como seus amigos me detestam.

Ela franziu a testa.

— Por que tem essa impressão dos amigos dele?

Sem comentários, Sterling voltou até a janela, com a taça novamente cheia.

— Se precisar de mim, mande me avisar. — Catherine pegou a pequena bolsa da mesa ao lado da poltrona onde estivera sentada.

— Cuide de sua vida, Catherine, não preciso de você.

— Nós sempre precisamos uns dos outros, Sterling.

— Pois eu espero que tal coisa não aconteça comigo. Sim, seu irmão precisava de algo ou de alguém, pensou

Catherine com amargura antes de sair.

Frannie Darling.

No momento era que Catherine mencionara aquele nome, Sterling desejou que a irmã fosse embora. Ele saboreou as imagens de Frannie que vieram à sua mente e apesar das ameaças que recebera, não estava disposto a desistir de tornar-se íntimo dela.

Depois da saída de Catherine — felizmente ela não viera antes das marcas do encontro desagradável com Jim desaparecerem — Sterling trocou o conhaque refinado por uma garrafa de uísque e foi para o jardim.

Frannie Darling.

O nome desencadeava em sua mente as poucas memórias dela que estavam guardadas.

Uma noite com ela era tudo o que ele desejava. O que era essa loucura que o atingira desde que a conhecera? Os cabelos de Frannie eram rebeldes como se ela estivesse na cama, os olhos verdes como a primavera, os lábios carnudos e maduros prontos para serem saboreados. O sabor dela cedera lugar ao conhaque que vinha bebendo em um esforço para calcar a impaciência enquanto ela analisava a proposta dele.

Havia poucos dias recebera uma mensagem de Frannie e uma ansiedade fora do comum o acometera. Até abrir a carta.

Caro Duque de Greystone,

Sua adesão como membro do clube Dodgers foi restabelecida.

Sem mais para o momento, Frannie Darling.

Extremamente formal. Nem uma indicação referente à sua proposta. Desde então, não conseguia esquecê-la.

Largou-se no banco nos fundos do jardim e levou a garrafa aos lábios. Uma maneira nada civilizada de beber, mas ultimamente ele se sentia à margem da civilização.

Sterling passara aquelas duas semanas dentro de casa esperando que sumissem os hematomas do olho e da face. Por seu status, não precisava despertar suspeitas nem boatos sobre o envolvimento em alguma briga, ainda mais com o aspecto de um perdedor. Bom Deus, ele por pouco não fora atacado por um gorila na África e fora atacado por um tigre na Índia, mas nenhuma dessas criaturas parecera tão perigosa quanto Jim Swindler.

Se ao menos ele tivesse percebido a aproximação do golpe, poderia ter se desviado ou se defendido, mas nada pudera fazer. O que o levou a refletir que no final de sua adolescência, sua visão começara a dar sinais de cansaço. No começo parecera um fato sem importância e ele tivera dificuldade para enxergar à noite. Os óculos de nada adiantaram e a visão periférica começara a desgastar-se até ele ter a impressão de usar antolhos permanentes. Testara seus limites durante suas viagens de maneira que não poderia fazer em Londres ou em suas propriedades rurais. Aquela altura, tinha dificuldade em admitir que não podia mais controlar alguns aspectos de sua vida.

Talvez fosse esse o motivo por ter se oposto ao pedido de Catherine. Ele não queria que a adorável Frannie ganhasse independência financeira e rejeitasse sua proposta. Ela teria de precisar muito da ajuda dele, assim como ele desejava ficar com ela. O dinheiro era um forte incentivo. Se fosse ao orfanato, teria oportunidade de relembrá-la da oferta. Poderia até sugerir uma ajuda aos órfãos...

Frannie encararia a atitude como um insulto? Ela imaginaria que a aceitação de um presente dele seria uma troca para uma noite de prazer em seus braços? Talvez devesse esperar um pouco mais de tempo do que o planejado, mas acabaria por seduzi-la. No futuro, não poderia ter tudo o que quisesse, mas esse tempo ainda não havia chegado.

Satisfeito com os rumos de seu plano, tomou o restante do uísque e recostou-se no banco. Teve um momento de pânico ao notar a escuridão. Fora uma tolice sair tão perto do anoitecer. Ficara tão absorto ao pensar em Frannie que não notara a luminosidade diminuir.

Levantou-se e focalizou as luzes das janelas de sua casa, mas teve dificuldade em visualizá-las. A noite era sempre mais difícil de se locomover, mas se fosse devagar...

Parecia que ele ia mais devagar à medida que o tempo passava. Não fora uma extravagância a ânsia por Frannie. Ele precisava se casar enquanto ainda podia dar a impressão de não ter problemas de visão. O que significava que precisava provar com urgência as delícias de todos os detalhes sensuais de Frannie Darling.

Sterling não esperava a longa fila de carroças dos quais seu cocheiro teve de desviar-se para atravessar os portões do orfanato. Também não poderia supor que esse lar para crianças nas cercanias de Londres fosse tão grande e exibisse tão bela arquitetura. Como não imaginara que houvesse tantas pessoas carregando mobília para dentro.

O cocheiro parou a carruagem e Sterling desejou não ter vindo. Por sua visão prejudicada, multidões haviam se tornado a maldição de sua existência.

Um criado abriu a portinhola e Sterling não chegou a pedir ao homem que ordenasse ao cocheiro a volta para casa. Ele viu Catherine e ela também o viu. A alegria da irmã somente aumentou sua inquietação.

— Oh, Sterling, você veio!

Ela se aproximou correndo e Sterling entendeu que não havia escolha. Teria de aguentar por alguns momentos todas aquelas pessoas e a agitação barulhenta. Apeou com agilidade e virou a cabeça para ver se os criados já haviam desembarcado da carruagem e estavam aguardando ordens. Refletiu que Frannie ficaria satisfeita pela generosidade dele em oferecer a ajuda de sua criadagem...

Estupidez. Por que sentia essa necessidade absurda de impressionar uma mulher das ruas? Seria suficiente desejá-la. A maioria das mulheres se sentiriam lisonjeadas com sua atenção e nada mais exigiriam.

Catherine parou diante dele. Ela usava luto pela morte do pai e o vestido dela mais parecia o de uma criada. Ela estava com o nariz e uma das faces sujos, e os cabelos pareciam a ponto de despencar dos grampos. Entretanto ele nunca a vira mais feliz.

— Eu trouxe criados para ajudar — Sterling disse com rispidez.

— Percebe-se. Frannie vai adorar. Vamos entrar, quero que ela veja que você está aqui.

— Você disse a ela para me esperar? — Se ele mudasse de ideia, ela certamente ficaria desapontada.

— Claro que não, mas ela é guarda-livros e tem por costume anotar tudo. Por isso ela vai querer saber que você veio ajudar.

Enquanto o conduzia para a entrada, Catherine tagarelava sobre o trabalho que precisava ser feito. Sterling entendeu por que Catherine queria que seu dinheiro fosse para esse empreendimento. O custo de manutenção seria imenso e Frannie certamente precisaria de financiamento para a obra. O salário dos guarda-livros não era tão grande.

Enquanto eles entravam no prédio, Luke Claybourne que se preparava para sair, parou.

— Vossa Graça, que surpresa inesperada.

— Por sua própria natureza, as surpresas são inesperadas — Sterling afirmou, aborrecido por Luke parecer tão à vontade nesse meio, enquanto ele se sentia tão fora de seu elemento.

— Se quiser, deixe seu paletó no canto do escritório, arregace as mangas e...

— Eu trouxe alguns criados.

— Frannie ficará contente com mais pessoas para trabalhar.

— Onde ela está? — Catherine perguntou.

— Acho que está lá em cima, mas vai descer logo.

— Quero que ela saiba da presença de Sterling.

— Milorde sabe que ela é muito preciosa para nós — Luke disse com olhar estreitado.

Outro aviso? Ele não sabe que já recebi um?

— Assim como Catherine é para mim — Sterling respondeu.

Catherine suspirou.

— Não sei por que os dois sempre têm de desconfiar um do outro.

Talvez por eles conhecerem o pensamento masculino. Sterling, aborrecido pelo encontro, resolveu ir embora, mas de repente tudo mudou. Ele olhou na direção da escada e viu Frannie em um dos degraus do meio. Jim Swindler, que vinha na frente, parou e olhou para trás.

A memória de Sterling não fizera justiça a Frannie. Pessoalmente os cabelos dela eram de um vermelho intenso e seu olhar era ainda mais verde. O vestido, abotoado até o queixo, deixava tudo para a imaginação de um homem, fazendo-o refletir se tudo em que pensava existiria na verdade sob as camadas de tecido. Nada seria mais satisfatório do que abrir cada um daqueles botões e descobrir os tesouros ali ocultos.

Jim olhou para Sterling, disse qualquer coisa para Frannie que fitou o amigo e sorriu. O movimento vagaroso dos lábios de Frannie deixou Sterling com vontade de ajoelhar-se. O que haveria de errado com ele? Frannie nem se preocupava em derramar seu charme e assim mesmo ele estava encantado.

Frannie recomeçou a descer os degraus acompanhada por Jim que, atento, tentava descobrir o estranho elo que parecia unir Sterling a Frannie. Sterling sabia não contar com a aprovação dele e deu-se por satisfeito que os hematomas houvessem sumido.

— Vossa Graça — Frannie cumprimentou Sterling com uma leve mesura e parou diante dele.

Como Catherine, ela estava com uma mancha na face, e Sterling levou as mãos às costas para não ser tentado a limpar a sujeira que aumentava ainda mais o encanto dela.

Sterling fez uma reverência.

— Srta. Darling, eu trouxe seis criados para ajudá-la em sua tarefa.

— Muita bondade sua. — Frannie virou-se ligeiramente. — Vossa Graça já foi apresentado ao inspetor Swindler da Scotland Yard?

— Já nos conhecemos — Sterling respondeu, seco. Frannie franziu a testa ao fitar com suspeita os dois homens.

— Entendo. Milorde gostaria de ver o que estamos fazendo?

— Nada me agradaria mais, obrigado. — Talvez eles pudessem dispensar algumas formalidades.

— Jim, por favor, você poderia dar instruções aos criados de milorde?

— Seria melhor eu ficar com você. — Embora falasse com Frannie, ele continuava a analisar criticamente Sterling.

— Estaremos bem, não se preocupe. Quanto mais pessoas trabalharem, mais cedo a arrumação será concluída e eu poderei cuidar da internação dos órfãos. — Ela tocou no braço de Jim e Sterling teve uma necessidade irracional de impedir o gesto. Não queria que ela encostasse em outros, mas apenas nele. — Por favor.

Jim anuiu.

— Não posso recusar nada, sabe disso.

Ele se afastou, mas apertou o ombro de Sterling na passagem. Embora devesse ter antecipado que uma demonstração dessas aconteceria, Sterling continuou impávido como se preferisse ignorar o aviso implícito.

— Vamos voltar ao trabalho. — Catherine passou o braço no de Luke e afastou-se com ele.

Sterling ainda não tivera tempo de julgar o relacionamento da irmã com o marido, mas pelo visto ela não se constrangia de dar algumas ordens e seu cunhado não se importava em segui-las.

— Lá em cima ficam os dormitórios e será enfadonho visitá-los — Frannie explicou assim que os amigos se afastaram.

— Nunca achei dormitórios enfadonhos.

Frannie corou, olhando o chão, e Sterling desejou ter mordido a língua antes de falar. Ele a deixara envergonhada. Trabalhar no Dodger's, onde era muito comum mulheres fazerem companhia aos homens, na certa a deixava ciente do que acontecia entre os casais. Ela ainda se lembraria da proposta dele?

— Suponho que eles devem ser parecidos uns com os outros.

Frannie franziu o cenho e Sterling imaginou que ela estivesse tentando decifrar se ele se referia à familiaridade dela ou dele com dormitórios.

— Por onde a senhorita sugere que comecemos?

— Se quiser me acompanhar. — Ela o conduziu a um vestíbulo e abriu uma porta que dava para um recinto com prateleiras na parede.

— Deve ser a biblioteca — ele disse. — Adoro bibliotecas.

Frannie tornou a corar e foi até uma janela grande por onde se divisava um jardim com vários homens cuidando da terra. Pelo visto Frannie estava determinada a deixar o orfanato o mais parecido possível com um lar. Sterling pensou em fechar a porta, mas depois dos avisos que recebera seria melhor tomar cuidado para não ofender ninguém nem causar má impressão. Além disso, se fechasse a porta, poderia ser tentado a não agir como um cavalheiro, pois na presença dela seu desejo se exacerbava.

— Estou surpresa com seu comparecimento — ela falou em voz baixa e olhou-o. — Suponho que milorde veio para ter uma resposta.

— Para falar a verdade, não sei por que vim. — Ele se aproximou da janela e fitou Frannie. — Isso é mentira, sei por que vim. Eu queria vê-la novamente.

— Estou todas as noites na casa de Jack Dodger e cuido da contabilidade dele, como deve saber.

— Creio que se eu tentasse percorrer os corredores barrados aos fregueses, encontraria resistência. Diga-me, srta. Darling, onde mora?

— Tenho um apartamento nos fundos do Dodger's.

Sterling ouvira contar que Jack providenciava acomodações para alguns de seus empregados. Na certa ela gastava cada centavo de sua remuneração com o asilo. Sterling observou os jardineiros cavando e plantando.

— Eu não esperava nada tão... esmerado. O terreno, o prédio... não podem ter custado barato. Como pensa mantê-los?

— Temos benfeitores. Luke, em particular, é muito generoso. Vossa Graça não se interessaria em fazer uma doação?

O verde do olhar travesso de Frannie adquiriu um brilho ainda maior. O sol, que estivera ausente da outra vez em que os dois estavam junto a uma janela, derramava- se sobre seu rosto. Algumas sardas salpicavam o nariz levemente arrebitado. Sterling pensou em desabotoar os dois primeiros botões da blusa só para ver o pescoço dela. Ansiava por uma noite com Frannie sem problemas de horário.

— O quanto agradaria, srta. Darling?

Frannie passou a língua nos lábios que ele desejava experimentar novamente,

— Estamos falando sobre uma contribuição para o orfanato, não é?

— Sim.

— Isso viria sem condições nem expectativas de receber algo em troca?

— Quem sabe um sorriso serviria como pagamento. Quanto vale um sorriso para a senhorita?

Frannie não pôde esconder o desapontamento e Sterling ensimesmou se a ofendera.

— É errado estabelecer um valor para coisas que não devem ter preço.

— Tudo tem seu preço, srta. Darling. A senhorita devia estar ciente disso, pela maneira como a foi criada.

— É muita presunção de sua parte, Vossa Graça, acreditar que sabe a maneira como fui educada.

Sterling pensou em uma imprecação. Frannie estava certa, ele nada sabia sobre a realidade da vida dela.

— Acho que consegui ofendê-la.

— Nós tivemos origem em mundos diversos. Vossa Graça nunca se desfez de nada pelo simples prazer de doar?

— Mesmo assim é possível haver uma permuta. Pode- se doar alguma coisa e em troca receber alegria.

— Por esta noção, ver o sorriso poderia ser a única recompensa e não deveria requerer pagamento.

— A senhorita é muito inteligente. Muito bem, doarei quinhentas libras para sua causa.

— Obrigada, Vossa Graça, e por isso eu deverei sorrir de coração.

Um sorriso radiante iluminou o rosto de Frannie. Sterling gastaria dez vezes mais para não apagar aquele sorriso, mas desconfiava de que o dinheiro não era a chave para o coração de Frannie. Ele se assustou. Não era o coração dela que o interessava, mas sim as curvas, a pele, o calor...

Antes de convencer-se para não agir com insensatez, ele a beijou e não foi surpresa descobrir que os lábios de ambos se ajustavam perfeitamente. Havia duas semanas sonhava com esse momento. Frannie tinha gosto de limão e açúcar. Podia apostar que o antigo conde de Claybourne não era o único a gostar de balas. Com um gemido surdo, Frannie abriu a boca para Sterling e ele esqueceu de tudo exceto da maravilha de tê-la novamente nos braços.

Frannie ajustava-se de encontro a ele como nenhuma antes o fizera e como se pertencesse. Sterling recriminou-se por não ter fechado a porta antes.

Ela o abraçou pelo pescoço e entrelaçou os dedos em seus cabelos. Sterling sentiu o desejo invadi-lo com uma ferocidade cega; precisava conhecer a paixão de Frannie em toda plenitude.

Arfante, Frannie afastou-se e ele só pensava em abraçá-la e carregá-la até o coche. Ele precisava levá-la para a cama e possuí-la aos poucos. O fogo da paixão do olhar dela aumentava as chamas do próprio desejo. Estivera com mulheres em todos os países por onde viajara, mas não se lembrava de querer nenhuma mais do que a ela.

— Venha comigo. — Sterling mal reconheceu como sua a voz baixa e rouca.

Frannie sacudiu a cabeça.

— Não posso. Tenho responsabilidades aqui. — Ela tocou o queixo dele como se quisesse outro beijo, mas deixou cair a mão.

Sterling acariciou a face.

— Acho que menti sem intenção. Parece que vim para saber sua resposta e agora a tive.

Ela abriu a boca para responder...

— Frannie?

Ela assustou-se com a voz de Jim. O inspetor estava na entrada e flexionava as mãos.

— Temos algumas poltronas que não sabemos onde deixar.

— Verei isso pessoalmente. — Apesar das palavras de dispensa, Jim continuou no mesmo lugar, e Frannie voltou a atenção para Sterling. — Se me der licença, preciso tratar de alguns assuntos.

Sterling gostaria de impedi-la de afastar-se.

— Sim, claro.

— Por favor, sinta-se à vontade para visitar nossas dependências. — Frannie admirou-se pela calma que demonstrava. Deu um passo adiante e olhou para trás. — Encontre-me no jardim em dez minutos e terá sua resposta.

Sterling observou-a afastar-se no vestido simples que, por algum motivo, já não parecia tão simples. Ela tocou no braço de Jim e o carinho entre os dois foi evidente. Sterling flexionou os dedos e pensou que poderia derrubar o inspetor com apenas um soco. Ele se tornara possessivo como jamais ocorrera.

Jim fitou Sterling com raiva e seguiu Frannie até o saguão. Sterling voltou a observar o jardim e pressionou a palma na janela fria, porém seu sangue não parou de ferver. Apenas um fato resolveria a situação: uma noite com Frannie Darling.

Frannie encomendara a mobília, planejando exatamente onde colocar cada peça e naquele momento ela fitava a poltrona amarela de plush, sem saber se a mesma fora destinada à sala de estar, à biblioteca ou a algum escritório. Ela não conseguia raciocinar.

Vira nos olhos de Sterling que ele pretendia beijá-la e em vez de desencorajá-lo ou escapar, ela ficara onde estava e recebeu com prazer a boca que devastara a sua. Ainda podia sentir o gosto, o cheiro e a pele de Sterling.

Ela queria estar com ele no jardim e desejava coisas que não poderia ter.

Escutou uma tossidela e virou-se. Jim esperava por uma resposta e a analisava com desconfiança.

— Na biblioteca — ela decidiu depressa, pensando que poderia mudá-la de lugar mais tarde. — Com licença...

Frannie não chegou a dar dois passos e Jim se pôs diante dela, sem esconder a preocupação. O que não era exatamente uma novidade, pois ele sempre a olhava como se ela fosse um cristal pronto a se romper.

— Ele não é um dos nossos — Jim afirmou em voz baixa.

— Catherine também não é, mas ela e Luke se dão muito bem.

— Porque ele é um deles.

Frannie não podia recriminá-lo, porque pensara a mesma coisa durante o casamento. Ela entendia e agradecia a preocupação dos amigos, mas havia momentos em que desejava liberdade absoluta, embora na única vez em que procurara liberdade o final fora um desastre. Provavelmente, a situação com Sterling acabaria da mesma maneira: com tristeza.

— É tão óbvio o que Greystone deseja ou Jack deixou escapar algum indício?

Ele contraiu o maxilar e ficou vermelho, e Frannie pensou na animosidade que ela sentira entre os dois homens.

— Você conversou com Greystone? — ela o provocou.

— Enviei uma mensagem.

— De Jack.

— De nós dois.

Frannie os amava, mas eles tinham de entender que ela era uma mulher adulta capaz de tomar suas próprias decisões.

— Diga-me, por favor, qual foi a mensagem?

— Para ficar afastado de você.

O fato de ele ter obedecido até aquela data despertou uma suspeita.

— O que foi que fizeram com ele?

Ele cerrou os dentes e olhou por cima da cabeça dela. Frannie sentiu um misto de raiva, pavor e desapontamento.

— Você o machucou?

Jim jamais mentiria para ela.

— Não tanto como eu poderia ter feito — ele a fitou —, nem tanto como eu gostaria.

Eles haviam enfrentado juntos uma infância difícil, mas algumas vezes ela se cansava deles.

— Você confia em mim, Jim?

— Com a minha vida.

— Então acredite que saberei resolver o assunto.

— Não quero que você sofra. Ela sorriu com doçura.

— Também não quero sofrer.

— Greystone não gostará do que você está fazendo. Um dos meninos que trarei para cá esteve três meses na prisão por roubar uma coroa. O pior é que ele não sabe a diferença entre um xelim e uma coroa. Meus companheiros de trabalho acham que estarão pondo um fim no crime ao prender essas crianças por ninharias como roubar uma maçã. Você deveria perguntar a seu duque quantas maçãs ele roubou.

— Ele não é meu duque e por que ele haveria de roubar?

— Pergunte a ele.

— Na biblioteca. — Frannie apontou a poltrona. Ele anuiu e ela teve certeza de que era a contragosto.

— Obrigada, Jim, por se importar comigo.

Frannie encontrou Sterling no pátio, olhando o trabalho dos jardineiros e teve a impressão de que ele desejava dar conselhos. Por que os homens eram tão implicantes?

Ela se aproximou, mas Sterling, absorto na tarefa dos homens que cavavam o solo; não percebeu sua presença, dando a ela a oportunidade de observá-lo. Ele tinha traços bem definidos, nariz aquilino e queixo forte. E uma pequena cicatriz na face, da qual ela não se lembrava. Seria uma consequência da visita de Jim Swindler?

Os cílios era mais escuros do que os cabelos e ela refletiu se os cabelos escureceriam com o tempo. Eles se tornariam grisalhos ou brancos? A cor grisalha era mais distinta. Afinal ele viajara pelo mundo e assumiria seu lugar na Câmara dos Lordes. Sterling era um homem que faria toda a diferença se ele se empenhasse. Sua determinação era evidente pelo interesse com que verificava uma tarefa tão simples como cavar a terra, excluindo todo o restante.

— Não creio que essas flores terão um perfume tão inebriante quanto o seu — ele disse em voz baixa.

Sterling tinha o poder de fazer o coração de Frannie disparar, sem encostar nela.

— Eu pensei que nem houvesse notado minha presença. Ele virou ligeiramente a cabeça para ela e sorriu.

— Estou sempre consciente de sua proximidade.

Frannie gostaria de ter mais experiência com flertes para jogar no mesmo nível.

— Nosso pequeno jardim deve empalidecer se comparado com todas as plantas exóticas que milorde viu em suas viagens.

— Nada é mais bonito do que um jardim inglês... exceto a mulher que está dentro dele.

A satisfação aqueceu as faces de Frannie, mas ela crescera em um mundo onde cada palavra, ato ou proeza era um estratagema para ganhar alguma coisa a que não se tinha direito.

— Vossa Graça, eu nunca me deixei impressionar por falsas lisonjas.

— Eu me entristeço por entender que a senhorita rotula minhas palavras como não verdadeiras. Isso me leva a crer que não está ciente de sua atratividade. Eu asseguro, srta. Darling, que a acho adorável. — Ele se inclinou para sussurrar: — Não tenho por hábito beijar bruxas.

Frannie evitou dar risada, procurou não se deixar seduzir e sentiu-se corar.

Sterling deu-se conta da proximidade dos jardineiros e conduziu Frannie para um local onde não pudessem ser ouvidos.

— A senhorita tem um belo pedaço de terra.

— Meus planos incluem um bom espaço. — Frannie se sentiu mais à vontade falando sobre seu trabalho. — Quer conhecer a área?

Ela desejava afastar-se dos camaradas, por intuir que a conversa se tornaria muito pessoal. Sterling ofereceu- o braço e ela não se surpreendeu com a firmeza do mesmo. Sentira a energia dos braços dele quando ele a enlaçara. Ah, como ela gostaria que o fato se repetisse!

— Vossa Graça está em boa forma — ela afirmou quando começaram a andar.

— Eu escalei uma montanha, srta. Darling

— Verdade? Ele sorriu.

— Bem, pelo menos era uma colina muito alta.

— Nem posso imaginar as coisas que Vossa Graça já viu.

— Elas foram realmente notáveis, mas de novo, não tanto como a senhorita.

Frannie tornou a corar.

— Perdoe-me, srta. Darling, mas gosto de vê-la enrubescer. Não imaginava que uma pessoa criada nas ruas pudesse corar com tanta facilidade.

— Eu era bem jovem quando deixei as ruas.

— Mas elas nunca a abandonaram completamente, não é? — Sterling fez um gesto largo para encampar as terras que a ela pertenciam. — Esse seu trabalho diz tudo.

Frannie ficou impressionada com a sensibilidade de Sterling que entendia a importância de seus planos.

— Tem razão, um lar para os meninos é apenas o começo.

— Ela apontou o oeste. —Ali planejo construir um dormitório para meninas. E com o aumento das crianças, construiremos uma enfermaria e uma escola. No momento, teremos de usar recintos do prédio atual para essas finalidades, mas acabaremos ficando com espaço pequeno, o que não me deixa satisfeita. Eu preferia que não houvesse órfãos nem crianças perdidas.

— E por que fez deles a sua causa?

Frannie não sabia se Sterling se interessava verdadeiramente pelo assunto ou se pretendia apenas prolongar o passeio. Mas ela aprendera a nunca perder uma oportunidade e se pudesse fazer um duque se interessar por sua causa, estaria um passo adiante rumo à vitória. Afinal ele, como Luke, ocupariam um lugar na Câmara dos Lordes. Seus órfãos seriam defendidos, pelo menos, por duas vozes.

— Meus amigos mais queridos são órfãos e se não fosse por Feagan, eles teriam vivido ou provavelmente morrido nas ruas.

— A senhorita não é órfã?

Como responder a isso? Seria melhor ter sido abandonada ou ter um pai desonroso? Por que se importava com a opinião de Sterling sobre ela ou sua família? Talvez por ele saber quem eram seus pais, avós e ancestrais durante várias gerações. Assim como Luke tinha dentro de casa retratos de seus antepassados, Sterling também deveria ter.

— Não sei se eu era órfã ou se fui roubada. Isso também acontece, sabia? Homens roubam crianças para servir a seus propósitos nefandos. Mesmo Feagan, que nos deu casa e comida, ficou conosco pelo que poderíamos fazer por ele. Quando não se faz parte das ruas, não se pode saber quantas crianças perdidas vagam por elas. Mesmo os que não são órfãos, têm pais horríveis. Aquele é um mundo de medo e de imundície, e uma criança não tem condições de escapar dele. Elas acreditam em promessas que jamais serão cumpridas e acabam na prisão. São transportadas para colônias penais. Com meu empreendimento, poderei ajudar mudar o destino de algumas crianças e não posso deixar de acreditar que a Inglaterra será melhor por isso.

Como de costume, Frannie se inflamava tanto com o assunto a ponto de ficar sem ar. Eles pararam de andar e Sterling postou-se à frente dela. Frannie lembrou-se de que ele já fizera isso antes para poder encará-la. Era uma atitude que a agradava. Sterling não desviava o olhar quando conversava.

— A senhorita vem fazendo um trabalho admirável.

— Não faço isso para receber elogios. Não me importo nem um pouco se o crédito de minha obra for para outra pessoa. Eu me preocupo apenas com as crianças.

— E eu receio estar competindo com outros homens por sua atenção. O inspetor Swindler, por exemplo.

— Jim e eu somos apenas amigos.

— Não sei se essa é a opinião dele.

Claro que era. Ou não? Mas Jim não era o motivo de ela finalmente ter decidido qual resposta daria ao duque.

— Minha resposta à sua proposta é "não". Sabe a que...

— Sei exatamente qual foi minha pergunta e a senhorita foi a única a quem propus isso. — Ele não pareceu ter raiva, mas sim desapontamento. — Terá de perdoar- me, srta. Darling, mas não sei por que uma noite em meus braços roubará algo que pretenda completar com bom êxito.

— Uma garota nas ruas não dá importância a deitar-se com um homem. Vim das ruas, mas gosto de pensar que não estou mais lá.

Sterling anuiu.

— Eu a ofendi com minha proposta.

— Não, por mais estranho que possa parecer. Sinto- me lisonjeada, mas quando eu me deitar com um homem, prefiro que ele me queira por mais de uma noite.

— Isso poderá ser arranjado.

Frannie não podia explicar por que ele a atraía ou por que ela achava deliciosa aquelas palavras depravadas. Até mesmo Luke, que já propusera casamento, nunca deixará transparecer que a desejava. Sterling a desejava, mas não a amava. Talvez não tivesse nenhum tipo de afeição por ela. Mas a desejava e ser desejada era uma experiência nova para ela.

— Vossa Graça é encantador, mas não creio que combinemos.

— Se Claybourne não estivesse vindo para cá, eu poderia tentar convencê-la do contrário com outro beijo. Mas como eu insisti para que ele se casasse com Catherine depois de vê-los aos beijos, suspeito de que ele possa não compreender uma paixão que eu não possa controlar.

Fosse ou não verdade, Sterling acabava de confirmar que casamento jamais seria uma opção para eles. Ele queria seu corpo, mas não seu coração e, no entanto, ela não se sentia insultada. Frannie era realista e não uma sonhadora. Entendia que eles vinham de esferas diferentes.

Sterling ergueu a mão e beijou os dedos.

— Se mudar de ideia...

Frannie viu o olhar escurecido e teve uma resposta sobre a qual matutara. Ela recusara, mas ele voltaria a insistir.


Capítulo Quatro


Desapontado com a resposta de Frannie, Sterling decidiu prosseguir com sua vida e resolver assuntos mais importantes. Por esse motivo aproveitou para ir ao baile daquela noite, pois a temporada estava próxima de terminar. Queria verificar o que se passava com as jovens aristocratas que ainda estavam no mercado matrimonial. Essas festas eram destinadas a exibir a última safra das donzelas em idade de se casar.

Considerando o que ele tinha para oferecer, achava que não devia sonhar muito alto. Mas sob outra perspectiva, sua esposa seria a mãe de seu herdeiro e sua companheira. E, se fosse o caso, ainda poderiam ter mais um filho. Como desprezava o primo que ficaria o título se não houvesse herdeiro legítimo, Sterling pensava em uma mulher de boa cepa.

Observou os casais que circulavam numa pista de dança e considerou que desposar uma jovem sem atrativos seria um erro, pois elas sempre pareciam agradecidas demais. Precisava de uma jovem segura que desse valor a si mesma. Era imperativo que não exigisse amor e que não se apaixonasse por ele. Amá-lo seria um caminho certo para o desastre.

Embora não pudesse ver quem se aproximava, a fragrância exagerada anunciou bem antes a chegada.

— Vossa Graça?

Sterling virou-se e sorriu para a anfitriã.

— Lady Chesney.

A dama sorridente igualava o marido em volume corporal, o que não era para se surpreender. A residência dos Chesney tinha a melhor cozinha de Londres.

— Sentir-me-ei honrada em apresentar algumas damas que estão precisando de parceiros para dançar.

— Agradeço sua oferta, mas tenho as pernas enferrujadas. Prefiro observar o baile.

— Ah, Vossa Graça, lembro-me de como era arrojado nas pistas de dança. Não se pode esquecer os dons naturais.

— Lady Chesney, esta é a primeira recepção a que compareço desde meu retorno a Londres. Prefiro voltar sem pressa à vida social.

— Mas este é um baile, Vossa Graça. Lady Charlotte é uma ótima dançarina. Tenho certeza de que milorde apreciará rodar com ela...

— Não quero dançar — Sterling retrucou com certa rudeza, sabendo que seria incapaz de movimentar-se com elegância.

Lady Chesney levou a cabeça para trás, arregalou os olhos e Sterling fez uma mesura.

— Peço perdão, mas ainda estou de luto pela morte de meu pai. Eu não me sentiria bem se me divertisse dançando.

— Claro, desculpe-me. Eu não pensei nisso.

— Tenho certeza de que algumas pessoas devem estar estranhando minha presença, sendo que meu pai faleceu há pouco mais de um mês, porém — ele olhou em volta e inclinou-se para a dama como se fosse contar um segredo — estou pensando em casar-me e não quero esperar a próxima temporada para fazer a escolha.

Os olhos dela brilharam de alegria.

— Não se preocupe, Vossa Graça. Os homens são perdoados por não levarem o luto tão a sério quanto as mulheres.

— Para mim o luto é muito importante, mas tenho um dever com meu título e meu pai esperava que eu o honrasse.

— Ninguém ousará questionar sua dedicação ao dever e se correr a notícia de que Vossa Graça pretende casar- se, não faltarão interessadas. Agora se me der licença, preciso cuidar de meus outros convidados.

E espalhar o boato de que ele procurava por uma esposa. Ótimo. Como Catherine estava honrando o período de luto, ela pouco poderia ajudá-lo. Nesse caso não restava alternativa a não ser apelar para outros, pois necessitava encontrar uma esposa com urgência.

Seu pai, o infeliz, estivera certo. Procurar prazeres e viajar pelos continentes o deixara em uma posição delicada, mas ele não se arrependia.

Voltou sua atenção para a pista de dança, decidido a escolher uma mulher bonita. Afinal, teria de deitar-se com ela. Seria preciso que ela fosse segura, pois teria necessidade de energia no futuro. De preferência que confiasse em si mesma, para desprezá-lo quando a verdade viesse à tona, resolvida a continuar com a própria vida.

Nada de culpa. Ele a deixaria em Londres e se mudaria para o campo. Ele e o pai haviam discutido sobre isso também. Seu lugar será na Câmara dos Lordes — ele dissera.

Ou no inferno.

Viu lorde Canton e lorde Milner caminharem em sua direção e anuiu. Gostava dos dois. Frequentara o colégio com eles e muitas vezes os acompanhava em jogos de cartas no Dodger's.

— Greystone, velho amigo — Canton falou. — Será que ouvi bem? Está procurando por uma esposa?

Lady Chesney não perdera tempo.

— Não deveria ter anunciado isso, meu caro — Milner declarou. — As mamães vão esperar o mesmo de nós.

— A temporada está quase no final e não tenho muito tempo. Pensei que a franqueza aceleraria o processo.

— Por Deus, Greystone, essa não é uma conversa para um homem de vinte e oito anos. E é muito jovem para ficar atado à mesma mulher todas as noites — Canton avaliou.

— Cavalheiros, aprendi uma coisa nas minhas viagens. A vida é muito instável e não pretendo deixar o ducado cair nas mãos de meu maldito primo.

— Tem toda razão — Canton murmurou. — Wilson Mabry é um canalha.

— Essa afirmativa é generosa demais. — Wilson personificava os sete pecados capitais.

Canton e Milner voltaram a atenção para a pista de dança.

— Minha irmã ainda não está comprometida — Canton alegou. — Tenho certeza de que meu pai não se oporia se você fizesse a corte.

— Gosto de sua irmã, Canton, mas ela não consta de minha lista de prováveis noivas.

Canton virou a cabeça e fitou Sterling com olhar interrogador. Sterling deu de ombros.

— Eu me conheço e sei que me faltam qualidades para marido. Suponho que sua irmã vai querer no mínimo afeição, se não amor de verdade, no casamento e eu seria incapaz de suprir essa fantasia. Procuro uma mulher que se contente em cumprir com seus deveres sem se queixar, nem espere mais do que poderei dar.

— Lady Annabelle Lawrence se enquadra em seus requisitos — Milner afirmou, estremecendo. — Pelo que ouvi contar, ela é fria como gelo e quer um marido que não interfira em sua vida.

— Onde está ela?

— Ali — Milner apontou. — Dançando com Deerfield. Sterling olhou o casal. O semblante de lady Annabelle não deixava dúvidas quanto à sua alta classe, o que seria muito útil no caso de herdeiros, mas até lá a vida seria miserável. Ela era bonita, tinha cabelos negros...

Um clarão vermelho passou diante de seus olhos e a dama atraente foi esquecida enquanto ele perscrutava a multidão com desespero...

Recriminou-se. Ela não estaria ali. Frannie não frequentava esses círculos sociais, embora uma vez ele tivesse convivido com o dela.

— Quer que o apresente? — Canton perguntou.

— Agora não, agradecido. Vou sair um pouco para tomar ar.

Assim que ele chegou ao terraço, entendeu a tolice de estar ali. No escuro, era mais difícil enxergar. Com cuidado, caminhou até a beira da varanda, apoiou os dedos na parte superior da grade de proteção e suspirou,

Ninguém tinha cabelos vermelhos tão vibrantes como os de Frannie, a única a quem desejava com ardor, embora pudesse escolher qualquer mulher em Londres. Frannie não só aparecia em sonhos, como também em plena luz do dia.

Naquela noite viera à residência dos Chesney para distrair-se e esquecer a necessidade feroz de vê-la, mas um relance de vermelho a trouxera de volta à sua mente. O mais estranho era pensar não apenas no prazer que desfrutaria, mas no que poderia dar a ela. Ele usaria as mãos e a boca para despertar a paixão, faria com que o desejo a queimasse para ela gritar o nome dele.

Aquilo era uma insanidade. Se pudesse vê-la e beijá-la mais uma vez, talvez pudesse continuar com sua vida.

— Aqui! Ela está aqui!

Frannie apressou o passo para acompanhar o menino que agarrara sua mão na rua e a puxava para a travessa. Ela quase terminava sua ronda noturna pelos cortiços, procurando por crianças que precisavam do que ela tinha a oferecer, quando o menino se aproximara dela.

— A senhora é o anjo vermelho que leva os meninos para um lugar melhor?

Frannie costumava usar os cabelos soltos quando vinha para aquela região de Londres, para se distinguir dos outros. Ficava satisfeita de ser conhecida como aquela que ajudava as crianças. Àquela altura ela já recolhera oito, mas sua fama certamente se espalhava.

— Sou, você quer vir comigo?

— Não, mas Mick... acho que ele está morrendo. Frannie acompanhou-o e logo chegaram perto de Mick. Ela se ajoelhou ao lado do menino que estava deitado de lado e enrolado como um caracol. O garoto tremia de febre e apresentava contusões e hematomas, e ela temeu que o primeiro menino estivesse certo.

— A senhora pode ajudá-lo? — o amigo perguntou.

— Sim.

Ou pelo menos William Graves poderia. Como se sentiriam os pobres e indigentes se soubessem que o homem que curava suas doenças e não aceitava pagamento também era médico da rainha? Frannie virou-se e segurou o braço do mais velho.

— Eu ajudarei seu amigo se você vier comigo.

— Não posso fazer isso, Sykes me mataria.

Ela não se surpreendeu ao descobrir que Sykes era o pai de rua deles. Os dois meninos preenchiam os requisitos exigidos por ele. Eram pequenos e magros. Ela também reconheceu as marcas de espancamento que ele deixava nas crianças.

— O que seu amigo fez de errado? O menino mexeu-se, constrangido.

— Ele não roubou lenços suficientes.

Na certa o menino não atingira a quota exigida. Sykes provavelmente o acusara de ser preguiçoso e decidira matá-lo para dar um exemplo aos outros. Ele não dava valor à vida das crianças. Aliás, não dava valor à vida de ninguém, exceto a sua própria.

— Juro que não deixarei Sykes machucá-lo.

O menino sacudiu a cabeça, desvencilhou-se e sumiu na escuridão sem que Frannie pudesse detê-lo. Com muito cuidado, ela ergueu nos braços o garoto ferido. Com a ajuda de Bill, ela o salvaria.

Mais tarde ela voltou às ruas infectas à procura de mais meninos, principalmente os que trabalhavam para Sykes. Como não podia impedir a brutalidade dele, tiraria de sua proteção o maior número possível de garotos.

Na semana seguinte ao baile, Sterling perdeu uma quantidade razoável de dinheiro nas mesas de jogos, com esperança de ver Frannie. Não teve sorte. Não a viu nem recuperou as apostas perdidas.

Aquela noite não era exceção. Sterling comprara as fichas a crédito, mas nesse ponto o estabelecimento era civilizado. No final do mês era mandada uma conta para os devedores. Considerando-se a reputação de Jack Dodger, Sterling duvidava de que alguém se negasse a pagar a dívida. Caso isso acontecesse, ele imaginou se Frannie, por ser guarda-livros, cobraria a conta pessoalmente. Isso daria a ele a oportunidade de vê-la, pois ficar ali jogando não adiantara. Ele não se concentrava no jogo e seu estoque de fichas definhava.

Por sua visão limitada, talvez nem a visse passar e, quando a visse, seria tarde demais. Várias vezes ele considerara a hipótese de entrar nos escritórios, mas vira Dodger abrir a porta com uma chave que tirara do bolso, o que dava a certeza de que ela permanecia trancada. Sabia que a escada externa dava acesso ao apartamento de Frannie e pensara em esperá-la na viela, mas ela já dera a resposta. Devia respeitar a decisão e preocupar-se mais com seus assuntos.

Contudo o fervor com que ela falara dos órfãos o atormentava. Haveria algo na vida com que ele se envolvesse tão apaixonadamente? Claro que seu título era importante e suas propriedades eram fontes de orgulho. Mas nada o consumia com ardor semelhante ao que Frannie empregava para ajudar os órfãos.

Sterling estava acostumado com damas que discutiam assuntos corriqueiros como modistas ou chapéus. Supunha que Frannie não tivesse tempo nem paciência para frivolidades. Ela era apaixonada por tudo que fosse importante em relação a seu trabalho

Ele queria ser importante para ela.

Havia deixado os criados trabalhando no asilo até que toda mobília fosse colocada no lugar certo, de acordo com o gosto de Frannie. Ela mandara uma mensagem cortês em agradecimento por ele ter cedido, como empréstimo, empregados tão eficientes.

Ele enviara para Frannie quinhentas libras e ela escrevera prometendo fazer bom uso do dinheiro.

As cartas eram precisas, sem emoção, indicando que ele prosseguia com sua vida, como deveria ser.

Uma sensação estranha o invadira várias vezes.

— No Dodger's há olhos-mágicos? — Sterling perguntou sem tirar os olhos das cartas.

— Eles estão por toda parte — o conde de Chesney respondeu.

— Também aqui no salão de jogos?

— Sim, nas galerias de cima com cortinas. Pelo que ouvi contar, a área é acessível somente pelos fundos e para Dodger.

E para sua guarda-livros.

Sterling mirou uma parte da galeria situada nos fundos e na sombra. Como não notara aquilo antes? Apesar da distância e da obscuridade...

Frannie deu um pulo para trás da pequena abertura pela qual vinha espiando. Estava quase certa de que Sterling a vira espreitando. Sentira o olhar dele como se estivessem juntos na galeria, ele passando o dedo no pescoço dela.

Naquela noite ele estava muito elegante. Vestia casaco verde-escuro, colete preto e calça cinza-claro. Teria ele passado a noite em companhia de uma dama antes, de vir jogar? Não agradava imaginar que Sterling pudesse estar na companhia de outra mulher, o que era uma tolice de sua parte. Afinal, ele era um duque, acabaria se casando com uma aristocrata e apenas desejava uma noite de prazer. Ela, por outro lado, tinha poucas dúvidas de que passaria horas plena de ternura, com palavras encantadoras, toques sensuais e beijos loucos. Seria uma noite que a deixaria com vontade de ter outras iguais. Seria melhor ter uma noite e sempre desejar outra ou imaginar a vida inteira como poderia ter sido aquele encontro?

Ela conhecera muitos meninos de Feagan, mas nenhum deles causara o desejo que se enovelava dentro dela. Quando dera a resposta para Sterling, pensara que poderia afastar-se e nunca mais pensar nele. Em vez disso, via-se imaginando se não cometera um engano.

Se fosse esse o caso, teria coragem de admitir o erro para si mesma e para ele?

O barulho no pub era estridente, mas Feagan, sentado no canto escuro tomando gim, apreciava as arruaças e as atividades turbulentas. Sentia cada vez mais solidão em sua morada tranquila depois que suas crianças o haviam abandonado, no entanto ele não pensava em substituí-las. Transformá-las em gatunos eficientes demandava muito trabalho. Ele conseguia manter-se trabalhando sozinho. Precisava de pouco para viver. Um pouco de gim ou rum quando a situação permitia, um bom tabaco para seu cachimbo, roupas para agasalhar do frio os ossos doloridos, um ensopado quente de vez em quando e um teto para se abrigar da chuva. Na verdade, ele se considerava um homem afortunado.

Uma sombra grande e desajeitada bloqueou a pouca luminosidade, e ele ergueu o olhar. A única coisa que Feagan temia era o homem diante dele.

— Olá Sykes, a que devo o prazer de sua visita?

Sykes puxou uma cadeira, sentou-se e inclinou-se para a frente.

— Você precisa falar com sua menina. Ela está interferindo em meus negócios.

— Frannie?

— Sim, ela vem percorrendo os cortiços e levando meus aprendizes. Você sabe muito bem quanto trabalho está envolvido em treinar um garoto.

Feagan tomou um gole de gim. Sua Frannie sempre tivera bom coração. Suspeitava de que os meninos tinham ficado com ele por causa de Frannie e que muitos o haviam abandonado depois de ela ter ido embora.

— Não sei como poderei ajudá-lo. Eu não a vejo desde que ela partiu com aquele maldito lorde.

— Você sabe tudo sobre todo mundo. Sabe onde ela está ou pelo menos como mandar um aviso. Diga a ela para deixar meus meninos em paz. Ela que pegue outros, mas não os meus.

Feagan passou a mão áspera sobre os lábios rachados.

— Direi a ela.

— Faça isso. Eu odiaria que algo desagradável acontecesse com ela.

Sykes foi embora antes que Feagan pudesse responder com outro aviso.

— Frannie, Frannie... — Ele espiou para dentro do copo.

— Em que tipo de encrenca você se meteu agora?

Frannie andava pelas ruas de sua infância com o capuz do manto sobre a cabeça. Era cedo para os mais atrevidos aparecerem e tarde para os gatunos e prostitutas agirem. Imaginou o que Sterling pensaria se ela o trouxesse até ali e mostrasse de onde ela viera.

— Que tal uma rapidinha na viela? — um homem perguntou, bloqueando sua passagem.

— Não, obrigada. — Ela tocou no punhal escondido e empurrou o camarada com o ombro para passar.

— Você não é daqui. — Ele tornou a impedi-la de andar.

— Na verdade sou.

— Pois mais parece uma dama da nobreza.

— Vou me encontrar com um homenzarrão de mãos grandes que adora apertar o pescoço das pessoas. Portanto acho melhor deixar-me passar.

— Eu não o vi, mas ficarei feliz se...

— Ah, ali está ele. Com licença.

Frannie correu, mas o homem não a seguiu nem havia nenhum sujeito enorme à sua espera. O maior homem que ela conhecia era Bob Sykes e ela certamente não tinha vontade de se encontrar com ele.

Passou por meio da multidão e permaneceu alerta, sempre consciente dos ladrões de bolsa, embora não carregasse nada de valor quando vinha àquela parte de Londres.

Ela sentiu dedos magros e fortes que a puxavam para a travessa e puxou o punhal, mas logo reconheceu de quem se tratava.

— Feagan.

— Olá, Frannie querida.

— Você me assustou. O que está fazendo aqui?

— Tenho algo para você. — Ele empurrou um menino pequeno e esquálido para a frente. — Charles Byerly.

Fazia dezessete anos que ela não via Feagan. Os cabelos vermelhos dele haviam perdido o viço e seu rosto estava mais enrugado. De alguma forma esperava que ele permanecesse da mesma forma. Recriminou-se por não haver confiado nele. O olhar poderia ter mudado, mas o caráter fora esculpido em pedra e nunca se alterara.

— Como é que você sabia que eu estava à procura de órfãos?

— Escuto coisas.

Frannie agachou-se na frente do menino.

— Olá, Charley, eu sou Frannie e darei um lar.

— Não preciso de lares. Feagan bateu na cabeça do menino.

— O que eu disse, garoto? Tenha modos. Charley fitou Feagan com obstinação.

— Você tem pai ou mãe? — Frannie quis saber.

— Se ele tivesse, eu não o teria trazido — Feagan protestou.

— Charley? — Frannie insistiu.

— Não tenho ninguém e não preciso de ninguém. Frannie segurou a mão do garoto. Não queria ficar naquele local por mais tempo.

— Quanto devo, Feagan?

— Frannie querida, por que estragar nosso encontro? Por que acha que eu espero uma recompensa?

— Porque com você sempre há uma forma de pagamento. Você não tem natureza caritativa.

— Mas que jovem decidida. Frannie procurou no bolso oculto.

— Tenho somente uma coroa.

— Ora, mas isso é muito bom, obrigado. Ela deixou a moeda na mão estendida.

— Gaste com consciência, Feagan.

— É o que sempre faço.

Ela se virou para ir embora, mas ele a segurou pelo braço.

— Sykes veio me procurar — Feagan cochichou. — Será melhor deixar os meninos dele em paz.

— Eu pego os garotos onde os encontro e não pergunto a quem eles pertencem.

— Frannie querida, não seja tola em meter-se com Sykes. Ele se tornou mais desprezível com o passar do tempo. Esqueça o grupo dele.

Mesmo na escuridão da travessa, Frannie viu a preocupação nos olhos verdes de Feagan tão parecidos com os seus. Ela se inclinou e beijou a testa.

— Não o provocarei de propósito.

— Boa menina. — Ele deu um sorriso torto.

Enquanto se afastava com Charley, ela jurou para si mesma que não deixaria de acolher um menino só porque ele tivera o azar de cair sob o jugo de Sykes.

Sterling se enganara. Apesar de muitos de seus pares terem ido para o campo após o término da temporada, a Grande Exposição ainda estava lotada. Durante o verão ele ouvira contar sobre o número espantoso de pessoas que haviam visitado o local. Por sua visão diminuída, não se sentia bem no meio de aglomerações, por isso imaginara que aquela ocasião seria mais favorável. Fora um julgamento errôneo.

Como era teimoso não ordenou ao cocheiro que voltasse para casa, mesmo ao ver a fila de pessoas que se acotovelavam para entrar no Palácio de Cristal. Uma coisa era confrontar-se com o inimigo, outra bem diferente era recuar depois da confrontação feita. Sua vista ainda não estava tão ruim a ponto de ele desistir e fugir com o rabo entre as pernas.

Portanto, enfrentou a multidão e caminhou devagar pelos corredores, que, felizmente, eram bem largos. Se colidia com alguém, desculpava-se afirmando que estava enfeitiçado pelas maravilhas diante dele.

Mesmo para quem vira o Taj Mahal como ele, era fascinante observar a estrutura de metal e vidro onde estavam expostas culturas representativas do mundo inteiro. Ele pensou tratar-se de algo mais majestoso do que todo o conteúdo. A mais pura ingenuidade inglesa.

Sterling olhou ao redor para decidir que direção tomar e concluiu que era uma maravilha estar vivo. Dentro daquela construção magnificente, o homem mais simples teria uma pequena visão do que era o mundo além das fronteiras inglesas. Observou com satisfação a surpresa das pessoas que se extasiavam, assim como ele.

Sentiu um movimento no paletó e pensou em quem teria batido. Virou-se. Ninguém estava perto dele, mas viu um menino sair correndo. Enfiou a mão no bolso... vazio.

— Você aí. Pegue o ladrão.

O menino continuou a correr e Sterling disparou atrás dele. Era apenas um lenço e Sterling tinha dúzias deles, mas sentiu-se revoltado pelo princípio do ato.

— Peguem o menino! Polícia! É um ladrão!

Muitas pessoas olhavam ao redor, confusas e as que tentavam pegar o garoto, agarravam o vazio, pois o menino era muito rápido.

Se Sterling não houvesse perambulado pelos continentes, carregando um rifle pesado ou suprimentos indispensáveis, teria ficado tonto enquanto perseguia o pequeno gatuno irritante. Porém o menino tinha uma vantagem. Desviava-se das pessoas com eficiência, enquanto Sterling julgava mal a proximidade delas, tropeçava e escutava gemidos espantados quando elas recuavam. No íntimo, sabia que a perseguição seria inútil, mas estava determinado a não deixar escapar o menino esperto que precisava de uma lição.

Sem saber como, o duque venceu as dificuldades e agarrou o pequeno marginal no momento em que ele se escondia atrás de uma saia escura. Com muita raiva, Sterling agarrou-o por trás do colarinho, puxou-o pelo peito magro e ergueu-o.

— Solte-me! Solte-me!

— Seu pequeno malandro, eu o levarei para a prisão. — Sterling deu meia-volta e viu-se de frente com os olhos verdes que atormentavam seus sonhos.

— Vossa Graça. — Frannie sorriu com delicadeza, obviamente encantada em vê-lo, assim como ele também se encantava.

— Srta. Darling.

O menino lutava para desvencilhar-se, mas não conseguia virar-se para causar algum malefício a seu captor. Sterling viu-se tentado a soltar o diabinho, só para poder beijar a mão de Frannie e cumprimentá-la da maneira correta. Quanta ironia. Passara tantas noites no Dodger's, esperando vê-la nem que fosse de relance e acabara por encontrá-la na exposição.

— O que foi que Charley fez agora?

Sterling olhou o menino, examinou os circunstantes e notou que mais três garotos do mesmo tamanho estavam ao redor das saias delas.

— Ele é seu?

Frannie anuiu, constrangida.

— O que você fez, Charley?

— Nada. — Charley parou de lutar e pendeu a cabeça como se estivesse sem forças.

— O que você fez, Charley? — Frannie repetiu. — Se Sua Graça tiver de me contar, você passará o resto da tarde na carruagem com o sr. Donner.

— Oh, não. Com ele não.

— Charley. — A voz séria e desapontada de Frannie fez Sterling ter vontade de confessar alguma coisa só para vê-la sorrir de novo...

— Peguei um lenço — Charley resmungou. Frannie estendeu a mão.

— Tudo bem por aqui?

Sterling virou-se depressa ao ouvir a voz grossa. No meio de tantas pessoas, ele não ouvira a aproximação de um guarda, por quem ele procurara havia poucos minutos. O oficial poderia prender, o garoto, levá-lo para a prisão e puni-lo por seus delitos.

— Está tudo em ordem, policial. Apenas um dos meninos ficou um pouco mais exaltado no meio de tanta gente, mas eu já dei um jeito nele. — Sterling decidiu não denunciar o garoto para cair nas boas graças de Frannie.

— Muito bem. — No alto de sua importância, o policial se afastou.

Sterling virou-se para Frannie que o fitava com gratidão.

Ele não queria agradecimento, mas sim paixão, fogo, desejo.

— Vossa Graça, o senhor pode largar Charley, seu braço já deve estar cansado.

— Sou muito mais forte do que pareço, srta. Darling.

— E rápido também — Charley murmurou.

— Ele fugirá, se eu o soltar? — Sterling perguntou.

— Não. Você não fará isso, não é, Charley? Se o fizer, ficarei muito desapontada.

Charley sacudiu a cabeça e, para surpresa de Sterling, ele não saiu do lugar quando foi deixado com os pés no chão. Frannie estendeu a mão de novo.

— Devolva o lenço, Charley.

O menino devolveu o que antes era um lenço imaculado e agora não passava de um pedaço de pano amassado. Sterling esperava não precisar do lenço antes de voltar para casa.

— Vossa Graça, eu o lavarei e passarei antes de devolvê-lo.

— Está certo. — Sterling analisou os garotos que se esfregavam nas saias dela. Um era mais alto do que os outros, dois tinham cabelos negros e Charley ostentava cabelos castanhos.

— Essas são suas crianças?

— Sim, do meu orfanato. Sempre que tenho tempo, trago alguns para verem a exposição. Nós íamos almoçar quando perdi Charley de vista. Eu agradeço por tê-lo trazido de volta. — Frannie relanceou um olhar ao redor como se fosse pedir que roubasse o diamante Koh-i- noor que estava na mostra.

— Nós vamos fazer um piquenique e eu gostaria de convidá-lo para desfazer a má impressão do problema que Charley causou. Vossa Graça aceitaria?

Sterling fez uma mesura.

— Eu adoraria, srta. Darling.

Sentada na manta que estendera sobre o gramado, Frannie mal podia acreditar que Sterling aceitara o convite e que estava deitado de lado a meio metro de distância. Ele desabotoara o paletó bege, deixando à mostra o colete amarelo-claro e a gravata verde combinava muito bem com sua tez bronzeada.

Donner, o cocheiro de Luke e o criado, vigiavam os meninos que corriam pelo parque para gastar energia. Frannie reconhecia que era difícil para os meninos ter um bom comportamento, confinados dentro da exposição. Eles eram recém-saídos das ruas, acostumados a correr para todos os cantos sem a supervisão de adultos e muito amadurecidos para a idade.

— Tenho de me desculpar de novo. Sinto muito por Charley ter levado seu lenço.

Sterling mordeu um pedaço de queijo.

— Eu, não. A senhorita tem ideia de quanto dinheiro gastei jogando no Dodger's, na esperança de vê-la por um instante?

— Cinco mil libras.

Ele arregalou os olhos e ela deu um sorriso travesso.

— Eu sou a guarda-livros.

A risada profunda de Sterling envolveu-a como se ele a tivesse abraçado. Logo ele ficou sério e a encarou.

— Confesso que estou intrigado, srta. Darling. A senhorita deve ter algum interesse em mim ou não teria se lembrado de quanto dinheiro eu perdi, não é?

— Eu nunca disse que não me interessava por Vossa Graça. Na verdade, se considerarmos nossos encontros, é fácil deduzir que expressei meu interesse por milorde.

Ele se apoiou no cotovelo e veio para mais perto dela.

— Diga-me uma coisa, a senhorita esteve me espionando durante minhas visitas ao clube?

Frannie teve vontade de segurar o rosto dele entre as mãos e beijá-lo. Seria uma atitude decorosa para uma dama? Ele a julgaria mal ou ficaria satisfeito como ela ficara?

— Por que milorde pensou nisso?

Sterling passou a ponta de um dedo na palma de Frannie e subiu até o pulso. Ela imaginou se ele podia sentir os batimentos acelerados.

— Algumas vezes tive a impressão de que a senhorita me observava.

Frannie refletiu se apertara demais o espartilho, pois a respiração se tornava difícil.

— Eu tive curiosidade em saber se Vossa Graça retornaria ao Dodger's após o incidente desagradável de sua suspensão do quadro de associados. Só isso.

Sterling ergueu a mão e beijou-a no centro da palma.

— Imaginei que uma criança das ruas fosse uma mentirosa de gabarito.

Em geral ela era, quando podia se concentrar, o que não acontecia na presença de Sterling.

— Não é muito cavalheiresco acusar diretamente uma mulher de mentirosa.

Sterling passou a língua na pele de Frannie, saboreando-a.

— A senhorita me parece não se importar com o que dizem às suas costas, e prefere que a desfeita venha pela frente.

Frannie sentiu o rosto em fogo e para retomar o equilíbrio, procurou desvencilhar-se. Escutou a risada profunda e observou os meninos que se divertiam em desabalada carreira. Ela conseguira trazer, de volta a alegria deles, ajudada pelo próprio sofrimento.

— Milorde não está se comportando como um cavalheiro.

— A senhorita prefere que eu seja um? — Sterling sentou-se e os ombros deles quase se tocaram. — O que a senhorita desejava quando me espiava pelo olho-mágico?

— Era através da cortina.

— De uma galeria oculta?

— Não tão oculta quando se sabe. Costumamos observar por ali os trapaceiros e os desordeiros.

— Em qual categoria eu me encaixo?

Frannie fitou-o e surpreendeu-se ao notar que ele se divertia.

— Está caçoando de mim?

Sterling inclinou-se por cima dela, arrancou uma flor amarela e roçou as pétalas no queixo delicado.

— Sinto-me lisonjeado pelo fato de a senhorita achar que valia a pena observar-me. Talvez agora, possa reconsiderar minha proposta.

Ela segurou a flor antes que ficasse louca de desejo por imaginar as cadeias que ele seria capaz de fazer.

— Continuo com a mesma opinião.

— Uma pena. — Ele não pareceu desapontado, mas sim descrente.

Frannie lembrou-se de quando podia mentir com maestria. Estaria perdendo o jeito ou ele era capaz de ler seus pensamentos?

— A carruagem é sua? — Sterling perguntou com o pulso apoiado na perna erguida.

Frannie adorou a mudança de assunto.

— É de Claybourne e ele me empresta quando preciso. Ainda não tive dinheiro para comprar uma e, além disso, há o problema dos cavalos.

— A senhorita não gosta de cavalos?

— Não me agrada gastar dinheiro para cuidar deles. Prefiro gastar com as crianças.

— A senhoria devia ter seus próprios filhos.

Ela riu, procurando ignorar o desapontamento que sentia havia anos. Era uma tolice, pois ela sabia que qualquer um dos meninos de Feagan ficaria feliz em ter um filho com ela. Mas Frannie queria mais. Ela pensava em uma família construída com amor.

— Eu já passei da idade de pensar em casamento. — Ela observou os garotos brincarem de pegador. — Londres tem muitas crianças que precisam de auxílio e minhas intenções vão além de alfabetizá-los, pois quero dar a eles condições de conseguir um bom emprego. A pobreza é terrível. — Ela sacudiu a cabeça. — Perdoe-me, mas creio que a reforma social é necessária, por isso me inflamo e acabo falando coisas que talvez não interessem.

— Srta. Darling, tudo a seu respeito me interessa.

— Tenho de avisá-lo de que não me encanto facilmente com palavras. Prefiro ações.

O olhar de Sterling escureceu e Frannie entendeu que escolhera muito mal as palavras quando ele falou em voz baixa e sensual:

— Estou de pleno acordo. Talvez mais tarde...

— Vossa Graça é um nobre e eu sou uma plebeia. Nem mesmo tenho certeza se amizade entre nós seria permitida.

— A senhorita é amiga de Claybourne.

— Isso é diferente, ele já foi um de nós. Não se dá as costas a quem se deve muito.

— Então terei de encontrar uma maneira de a senhorita tornar-se minha devedora.

Frannie esperara que eles se despedissem depois do lanche, mas ele não foi embora e ajudou-a a agrupar os meninos quando eles ficaram impacientes. A paciência dele com os garotos a surpreendia.

Eles foram ver um elefante empalhado e Sterling ajoelhou-se ao lado dos meninos para contar que já montara em um. Eles ficaram boquiabertos e de olhar arregalado.

— Milorde teve medo? — Charley perguntou.

— Nem um pouco. Ele é muito grande, mas aprendemos na floresta que nem sempre o maior é o mais perigoso. Existe um que é o mais astucioso, inteligente esperto.

— Quem poderia ser. Sterling sorriu.

— Eu, é claro.

Os meninos gargalharam e Frannie riu. Sterling levantou-se e estendeu o braço que Frannie não hesitou em aceitar.

— Então milorde é a fera mais perigosa da floresta.

— Isso sem contar que eu carregava um rifle. Eles retomaram o passeio.

— Milorde realmente não teve medo?

— Algumas vezes eu ficava aterrorizado, mas esse era o objetivo.

— Vossa Graça procurava ficar com medo? — Ela não podia imaginar que alguém se pusesse deliberadamente em risco.

— Eu pretendia testar minha coragem e minha determinação. Foi uma viagem de descobertas, principalmente as que fiz em relação a meu íntimo. O que me foi revelado do mundo foi simplesmente um bônus.

— E o que descobriu acerca de si mesmo?

— Que não sou tão fraco como eu acreditava que fosse nem tão forte como eu esperava ser. Montei um elefante, mas não quis enfrentar o tigre. — Ele parecia desapontado consigo mesmo.

— O que prova que milorde era na verdade o animal mais, inteligente e perigoso da selva.

Ele sorriu.

— Não creio que eu tenha pensado no assunto nesses termos. Suponho que teria sido uma tolice acabar como jantar deles.

— Fico feliz que isso não tenha acontecido. — Frannie também sorriu.

— Eu também, srta. Darling, ou eu teria perdido esses preciosos momentos a seu lado.

Eles chegaram à mostra do Egito, onde Sterling discorreu a respeito das pirâmides e das esfinges, com a excitação costumeira com que se referia às suas viagens, e Frannie ficou fascinada com tudo o que ele vira e fizera.

Finalmente eles deixaram o recinto da Grande Exposição e chegaram à carruagem onde Donner os aguardava.

— Vossa Graça teve uma vida fascinante.

— Haverá algum sentido em ter outra espécie de vida?

— Sempre ouvi dizer que Vossa Graça era um homem que priorizava os próprios prazeres.

— É bom saber que os boatos nem sempre estão errados. E por falar em meus próprios prazeres... embora o piquenique tenha sido adorável, isso não reparou o mal do pequeno patife ter roubado meu lenço.

Enquanto os meninos subiam na carruagem, Frannie admoestou-se por estar antecipando outra proposta não apropriada.

— E o que repararia o erro de ele ter surrupiado um pedacinho de seda, Vossa Graça?

— A ópera.

— Como é?

— Venha comigo à ópera esta noite e poderemos jantar mais tarde. Caso contrário, serei obrigado a mandar um policial ao orfanato para prender Charley.

— Milorde não faria isso. Ele deu de ombros.

— A senhorita está querendo arriscar o acerto quanto à natureza do meu caráter?

— E eu que já estava começando a gostar de milorde.

— Frannie virou-se.

— Mandarei meu coche buscá-la no Dodger's às sete. Ele era mesmo arrogante. Com a ajuda do criado,

Frannie pôs o pé no degrau e olhou por sobre o ombro.

— Sete e meia.

Sterling deu um sorriso vitorioso que a deixou zonza pela antecipação. Frannie recostou-se no assento, sem se recordar da última vez em que estivera tão alegre.

— Srta. Frannie, por que está sorrindo feito uma tola?

— Charley indagou.

Porque estava descobrindo que adorava atenções masculinas, ainda mais quando elas provinham do duque de Greystone.

Frannie vestia-se com simplicidade e não contava com a ajuda de criadas. Mas naquela noite, pediu a colaboração de uma das meninas de Jack.

Sentada em um banco, segurava o espelho revestido de prata, presente de Luke, e avaliava a habilidade de Prudence em domar seus cabelos vermelhos. Um coque simples na nuca não era o que ela queria para essa noite.

Frannie não duvidava para onde aquele encontro a levaria. A lugar nenhum. Ele era um duque e ela... Frannie Darling. Porém teve de admitir que existia uma atração entre ambos jamais experimentada por ela. A maneira como Sterling a olhava — como se quisesse devorá-la — de início a assustara, mas naquela altura a deliciava. Gostava de escutar as histórias que ele contava, ficava fascinada com os cuidados que ele dispensava aos meninos e encantava-se com o brilho demoníaco de seu olhar quando a tocava de maneira ousada. O piquenique fora uma das experiências mais sensuais de sua vida e tudo o que ele fizera fora dar atenção à palma de sua mão. Ela queria atenções semelhantes por toda parte.

Era uma libertação descobrir-se desejando atenções masculinas. Mesmo que não passassem de um beijo, pela primeira vez ela desejava partilhar com um homem as intimidades de sua vida. Era estranho ter crescido rodeada pelos meninos de Feagan e nunca ter sentido aquele despertar da feminilidade. Os risos, as provocações e os olhares deles não incitavam a nenhuma das emoções turbulentas desencadeadas por Sterling. Mesmo quando ele não a tocava, era como se o fizesse. Não entendia por que ele era tão diferente dos outros homens de sua vida nem por que ansiava pela afeição dele.

Frannie sempre preferira vestidos que não chamassem a atenção, mas que fossem confortáveis. E naquela noite, Deus que a perdoasse, ela não queria parecer uma jovem comum.

Havia um ano, Jack — que gostava de cores vibrantes

— a presenteara com um vestido verde-esmeralda. Uma vez, sozinha no quarto, experimentara o traje e rodopiara, fingindo ser o que não era: uma dama. Era um vestido que acentuava suas curvas e ela sentiu calor ao imaginar a mão grande de dedos esguios percorrendo as linhas de seu corpo.

— Quem é o cavalheiro que conquistou sua preferência? — Prudence perguntou.

Espantada por sua fantasia — jamais as tivera envolvendo homens —, Frannie não quis responder para não ouvir a outra dizer que o conhecia, que ele era ótimo de cama e que na semana anterior se deitara com ele.

— Vamos lá, sabe que eu guardarei segredo.

Frannie olhou para o espelho que estava em seu colo e passou a ponta do dedo nos desenhos intrincados de seu dorso.

— Greystone.

— Não o conheço.

O alívio envolveu Frannie. Prudence supervisionava todas as meninas. Se ela não o conhecia, as outras provavelmente também não haviam estado com ele.

— Ele é cliente?

— Sim, é. — Frannie virou-se na banqueta e olhou para Prudence. — Não diga nada para Jack.

Prudence fez bico com os lábios polpudos que certamente haviam beijado muitos homens.

— Eu já afirmei que não direi nada.

— Eu sei. Era só para enfatizar, pois Jack não aprovaria.

— Então ele deve ser um nobre. Jack não gosta de cavalheiros com título.

— Ele é um duque. — Frannie sentiu-se compelida a confessar.

— Deus do céu!

Frannie levantou-se e começou a andar de um lado a outro, nervosa.

— Prudence, será que estou cometendo um grave erro?

— Depende de sua expectativa. É como digo para minhas meninas, não esperem casamento e você sabe disso.

Frannie inspirou fundo, tentando acalmar as batidas desordenadas do coração.

— Eu sei.

Encostou-se na penteadeira e analisou Prudence. A outra era dois anos mais jovem do que ela, mas seu rosto revelava a dureza da vida que enfrentara antes de vir para o Dodger's. Os cabelos loiros caíam pelas costas e ela sempre usava seda que ondulava a seu redor e que poderia facilmente deslizar por seu corpo com um movimento de ombros.

— Prudence, você já esteve com um homem sem ser a pagamento?

— Sim.

— Você se sentiu suja depois?

Prudence atirou a cabeça para trás e deu a risada rouca e gutural pela qual era conhecida.

— Claro que não! Foi maravilhoso. Ele foi deportado para a Austrália. Algumas vezes eu sonho que ele voltará para mim. As jovens sempre sonham. — Ela olhou para Frannie e bateu a escova na palma da mão. — Quer algumas dicas para não engravidar?

Frannie riu com a ideia de levar aquilo até o ponto de se arriscar a uma gravidez, sacudiu a cabeça, mas anuiu em seguida. Feagan dera conhecimentos, afirmando que talvez nunca os utilizassem, mas o saber sempre tinha suas vantagens.

— Provavelmente não precisarei de nenhum preventivo, mas eu só penso em Greystone e imagino o que será se ele fizer mais do que beijar.

— Ah, ele já a beijou, não é?

Frannie se sentia dez anos mais jovem, livre e sem preocupações. Teve uma vontade absurda de rir como vira uma jovem fazer enquanto passeava de braços dados com seu amado, um perdido no olhar do outro. Ah, que tolice experimentar tal estouvamento nessa idade!

— Não ouse contar para Jack.

— Nem sonhe com isso. Vamos, agora queira sentar-se para eu terminar de penteá-la e eu direi o que sei.

O que ela sabia, envolvia a colaboração de um homem. Frannie não podia imaginar-se discutindo temas tão íntimos com Sterling, mas se ela não tocasse no assunto, provavelmente não faria nada com o duque.

Então por que se preocupar tanto? O penteado alto estava lindo, com fitas verdes entrelaçadas. Prudence conseguira encontrar — sabe-se lá onde — tiras da mesma cor do vestido que deixava exposta boa parte dos ombros. Sterling sentiria vontade de beijá-los? Ela gostaria disso? Chamou a si mesma de covarde e pegou um xale de seda. Calçou as luvas brancas de pelica que haviam sido dadas pelo avô de Luke anos atrás. Precisava de algo mais. O que seria?

Lembrou-se do presente que Feagan dera na despedida. Ela e os outros estavam de mudança para a residência urbana de Claybourne, abandonando Feagan. Ela não quisera ir, mas ele havia insistido.

— Você terá uma vida melhor, Frannie Darling. E não ensinei sempre que se deve procurar a bolsa maior em vez de a pequena?

Abriu a pequena caixa de madeira entalhada e dali tirou um colar de pérolas.

— Uma pequena lembrança para você não se esquecer de mim.

Além da roupa do corpo, fora a única coisa que ela trouxera do cortiço. Seu vestido fora queimado naquela noite, depois da sujeira ter sido escovada de seu corpo. Ela nunca usara as pérolas, por temer que estas tivessem sido roubadas por Feagan e que pudessem ser reconhecidas. Tolice, pérolas não tinham marcas de identificação. Ela estava nervosa e precisava de algo que a recordasse de Feagan.


— Você é tão boa como qualquer outra — ele dissera certa vez.

Frannie suspirou e guardou o sentimento junto com as outras memórias preciosas.

Já escurecia quando ela pegou a pequena bolsa, deixou o apartamento e fechou a porta.

Ela não se sentia tão apavorada, nem tão excitada desde o dia em que ela, Luke e Jack haviam saído da casa de Feagan ao amanhecer para ir a uma feira. Ele não teria se incomodado se houvesse sido avisado. Feagan poderia pensar que eles pensavam em roubar bolsos. Na noite anterior, enquanto contavam moedas, Frannie separara um coroa para eles se divertirem sem medo de serem presos. Em vez de roubar, haviam comprado comida. Apesar da alegria, temera que Feagan descobrisse a moeda que faltava e ficasse desapontado com ela. Uma coisa era roubar de estranhos, outra bem diferente, roubar dele.

Era como se sentia agora. Excitada pelo que a aguardava e apavorada. Não queria desapontar os meninos de Feagan caso eles descobrissem seus planos, pois certamente não os aprovariam quando soubessem que nada resultaria daquele encontro. Ela representava uma pequena diversão para um nobre inglês. Mesmo que ele a tratasse como uma dama no começo, ela acabaria como uma vaga memória, se tanto.

Frannie estava no meio da escada quando viu Sterling, iluminado pelo lampião pendurado na porta dos fundos do Dodger's. Apesar da pouca iluminação foi possível reconhecê-lo pela largura dos ombros, quadris estreitos e a elegância usual.

Como ela se atrevia a sair com um homem desses?

— Srta. Darling. — Ele fez uma reverência e estendeu a mão para ajudá-la a descer os últimos degraus.

Frannie sentiu os dedos longos e fortes, e seu coração deu um solavanco, apesar dos dois usarem luvas. No último degrau, ela pôde fitá-lo, olhos nos olhos.

— A senhorita está linda — Sterling falou em voz baixa e sensual.

— Qualquer um fica bonito nas sombras. — Por que ela estava sem ar, como se houvesse descido a escada correndo?

Sterling sorriu e seus dentes brancos brilharam apesar da obscuridade da rua. Teria suposto que ela poderia desmaiar devido ao nervosismo?

— Meu coche está à espera.

Frannie desceu o degrau, mas Sterling a impediu de continuar.

— Relaxe, srta. Darling. Esta noite será apenas a ópera e o jantar.

— Estou sabendo disso e não tenho planos para mais nada.

Dessa vez o sorriso de Sterling pareceu chamá-la de mentirosa, mas ela não o desafiou. Apesar da insegurança, pusera na bolsa o preservativo que Prudence dera... por precaução.

Não saberia dizer se sentia alívio ou se ficava desapontada ao pressupor que o mesmo não seria usado.

Dentro do coche, eles se sentaram em lados opostos enquanto percorriam as ruas de Londres. Ele não afastava dela o olhar e ela teve de desviar o seu, pois se sentia acalorada. Não experimentara essa mudança inexplicável em seu corpo com nenhum dos meninos de Feagan, nem mesmo quando eram pequenos e dormiam no mesmo catre. Essa consciência da atração masculina só acontecia na presença de Sterling.

Era apavorante e a intrigava.

— Vossa Graça sabia que Luke pediu-me em casamento? — Frannie procurou distrair a mente. — Foi como ele e Catherine se conheceram. Ela teria de ensinar- me o comportamento de uma dama da nobreza.

— Eu não sabia disso. E por que não se casou com Claybourne?

— Estou bem consciente de que não pertenço à aristocracia.

— No entanto está aqui, com um aristocrata.

— Nós dois sabemos, Vossa Graça, que casamento não é o que passa pela mente.

O olhar de Sterling escureceu e ele a fitou desde os cabelos presos no alto da cabeça até o bico dos sapatos recém-engraxados.

— Não, o casamento não é o que tenho em mente.

Sem querer, Frannie anuiu, sem saber com o que concordava e sem se ofender com a sinceridade de Sterling. Pelo menos ela sabia em que terreno pisava.

Mas nada indicava que tivesse a chave para a solução do problema.

Foi um milagre Sterling ser capaz de andar sem tropeços até o coche, depois de perder o fôlego ao ver Frannie descer a escada. Fora somente no caminho para casa, depois de ter feito o convite, que ocorrera que ela poderia não ter um traje apropriado para ir ao teatro. Pensara em pedir a Catherine um vestido emprestado — as duas tinha porte físico semelhante —, mas seria um risco Luke descobrir do que se tratava e Sterling acabar com outro olho roxo. Decidira que seria uma delícia andar com ela de braço dado, independentemente do que estivesse vestindo.

Em vez disso, descobrira que Frannie era uma beldade estonteante. Felizmente a lamparina do coche permitia que ele se deslumbrasse com tanta beleza.

Frannie se calara após a confirmação de que um matrimônio não estava nos planos dele, mas ele pretendera apenas ser honesto. Nunca usara de falsas promessas para atrair uma dama e não pretendia começar com Frannie. Ela merecia muita consideração. Na verdade, merecia muito mais.

— Vossa Graça nunca viu uma mulher em trajes de noite?

— É evidente que sim, mas eu a estou admirando. Nunca a vi vestida de maneira tão provocante. Por que não usou esse vestido no casamento de minha irmã?

— Era o dia de Catherine e ninguém mais deveria chamar a atenção. Além disso, ele é um pouco audacioso para tais ocasiões.

— Gosto de audácia em mulheres.

Frannie deu um sorriso leve, um som surpreendente e bem mais adorável do que a melhor orquestra que ele já vira.

— Vossa Graça deveria medir as palavras ou poderei tomá-las ao pé da letra.

— Pois eu adoraria, srta. Darling.

— Parece que Vossa Graça está flertando comigo, mas não se esqueça de que vim esta noite somente por sua ameaça de mandar prender um de meus órfãos.

— Apenas parece? Então deverei esforçar-me mais para que não haja dúvida.

— Pois eu preferia que não se esforçasse tanto.

— Muitas mulheres ficariam lisonjeadas por ter um duque para levá-las à ópera.

— Por que não convidou uma delas?

— Nenhuma me intriga tanto quanto a senhorita.

— A paixão tem vida curta.

— Pelo contrário, conheço homens que tem a mesma amante durante anos.

Frannie olhou pela janela e Sterling analisou seu perfil e a curva elegante do nariz. Ele gostaria de sentar-se ao lado dela, beijá-la do ombro até o ponto sensível atrás da orelha e sentir nos lábios a circulação acelerada. Porém ele temia apressar-se, assustá-la e perder a recompensa máxima, pois Frannie poderia fugir tão depressa como Charley fizera.

Por outro lado, queria apreciar com ela a ópera e o jantar. Sem dúvida desejava Frannie em sua cama, mas não era só isso. Ele almejava mais. Queria guardar lembranças dela que nunca procurara em outra mulher.

— Por que acha que mulheres se submetem a ser amantes em vez de esposas? — Frannie indagou em voz baixa.

— Algumas vezes essa é a única maneira de ter alguém na vida, quando as circunstâncias prescrevem que o casamento deve ser por causas diversas do amor.

Frannie voltou-se para Sterling.

— Milorde já amou alguém?

— A senhorita deve estar se referindo a algo diferente do amor fraterno que sinto por Catherine. — Foi a vez de ele olhar pela janela. — Uma vez pensei amar uma mulher, mas o sentimento se transformou tão depressa em aversão, que nem tenho certeza que se tratou de amor.

— O que aconteceu?

— Eu disse a ela a verdade.

— Sobre o quê?

Sterling virou-se para fitar Frannie.

— Sobre mim, srta. Darling. Apesar de meu status e de minha riqueza, não serei um marido adequado. Considere-se feliz por não haver esperança de casamento entre nós.

— Qual é o problema? — Ela franziu a testa.

— Srta. Darling, tenho intenção de seduzi-la e minha experiência assegura de que contar a verdade não e o melhor caminho para seduzir uma mulher.

— Pois prefiro ser sincera e revelar que não tenho a menor intenção de ser seduzida.

— Adoro um desafio, srta. Darling.

— Não esquecerei, Vossa Graça.

— A senhorita está nervosa por jantar em minha residência mais tarde?

Frannie sacudiu a cabeça e o encarou.

— Não.

— Não conheço nenhuma mulher que sustente meu olhar com tanta frequência.

— O olhar de um homem é muito significativo. Pode denunciar raiva, vingança ou orgulho. Os orgulhosos são os mais fáceis de serem despojados.

— Pensei que fossem os mais difíceis.

— Em geral eles não contam que tiveram seus bolsos saqueados, por temer que isso os faria parecerem tolos. Então eles simplesmente repõem o que foi furtado.

— A senhorita diz isso com orgulho, como se acreditasse que furtar é honroso.

— Não posso negar que sempre tive uma certa satisfação em ser perita no que eu fazia. Eu fui a única das crianças de Feagan que não teve ameaça de prisão.

— Devem ser seus olhos. Desconfio de que mesmo se fosse presa, a senhorita poderia convencer um juiz a soltá-la.

— Já me disseram que os olhos são meu melhor atributo físico.

— A senhorita não tem espelho?

— Eu o uso muito pouco.

Fascinante. Sterling jamais conhecera uma mulher que não ficasse horas diante de um espelho.

— Qual a causa dessa aversão?

— No espelho vejo meus olhos e neles está refletido meu passado onde há muitas passagens que prefiro esquecer.

— E é o passado que faz da senhorita uma mulher fascinante.

Sterling se encantava com cada aspecto de Frannie. Era provável que retardasse a ocasião de levá-la para a cama para desfrutar de mais momentos como aquele. Ao mesmo tempo em que pensava nessa estratégia, ele a desejava demais e não poderia esperar muito tempo para possuí-la.

O coche parou diante da Ópera Royal Italian. Quando ele deixara a Inglaterra, o espaço chamava-se Teatro Covent Garden. Nada permanecera igual durante esse período. O criado abriu a porta, Sterling desceu e estendeu a mão para Frannie.

— Já esteve em uma ópera antes? — ele perguntou.

— O antigo conde de Claybourne me trouxe uma vez. Fiquei atônita com os figurinos, com os atores e cantores. Foi inacreditável.

— Fico feliz em ouvir isso. — Ele a conduziu até o saguão, imaginando por que não se lembrara da multidão que esperava para ocupar os lugares e lamentou a perda de tempo em concentrar-se nos arredores. — Detesto ópera.

Frannie parou de andar e Sterling teve de fazer o mesmo. Com alguma sorte poderiam ficar ali até que a maioria das pessoas fosse em busca de seus assentos.

— Então por que viemos?

— Foi a única possibilidade que me ocorreu para que a senhorita concordasse com o convite.

Sterling não soube dizer se ela se sentia lisonjeada ou se estava com raiva.

— O avô de Luke também não ficou até o fim e saímos no meio do espetáculo. Não tenho certeza se deverei fazê-lo ficar — ela afirmou com um sorriso atrevido.

— Se agradar, aceitarei minha punição sem queixas e até aplaudirei no final, mas devo confessar que tê-la ao meu lado fará tudo suportável.

— Milorde tem muita prática em lisonjear uma dama.

— Devo admitir que me destaco nessa arte, mas não cometa o erro de pensar que falo o que não penso.

— Vossa Graça deve querer... querer muito o que deseja para assistir à ópera até o fim.

— Para ser honesto, srta. Darling, desde que voltei para Londres, os melhores momentos que passei foram no piquenique dessa tarde. Pensei em prolongar as horas agradáveis e por isso estamos aqui.

Sterling não soube se a havia agradado, porque algo ao longe chamou a atenção de Frannie e ela sorriu. Sterling virou a cabeça e viu Marcus Langdon — primo de Luke e anteriormente herdeiro do título — caminhando na direção deles acompanhado de lady Charlotte Somner, filha do conde de Millbank. Marcus não se parecia com Luke, talvez pela infância totalmente diversa que haviam tido.

Sorridente, Langdon fez uma mesura.

— Vossa Graça.

— Sr. Langdon... lady Charlotte.

— Vossa Graça. — Charlotte derreteu-se em um sorriso.

— Srta. Darling. — Langdon beijou a mão de Frannie.

— Que prazer em vê-los. — Ele se virou para a dama a seu lado. — Lady Charlotte, permita-me apresentar a srta. Frannie Darling.

Charlotte, embevecida em contemplar Sterling, não tomou conhecimento da apresentação.

— Vossa Graça não pode imaginar minha satisfação em encontrá-lo. Venha jantar conosco uma noite dessas para nos encantar com histórias de suas viagens.

Langdon pareceu desconcertado com o comportamento rude de Charlotte.

— Lady Charlotte, a srta. Darling é uma das amigas mais queridas de meu primo, o conde de Claybourne.

— Ah, então ela é uma daquelas pessoas?

— E que pessoas são essas, lady Charlotte? — Frannie não permitiu que Sterling a defendesse. — As pessoas que se preocupam com os pobres e indigentes de nossa sociedade? As que veem o sistema judiciário e penal como injusto?

— São as que carregam sujeira das ruas em suas roupas. Se me der licença, preciso ir à sala das damas. Ficar aqui me fez sentir impura. — Charlotte se virou e afastou-se.

— Ah, Senhor — Langdon gaguejou. — Srta. Darling, minhas desculpas mais sinceras. Vossa Graça, eu não podia imaginar...

Frannie tocou o braço.

— Não se preocupe, sr. Langdon. É uma pena que alguns tenham essa péssima opinião a meu respeito, mas posso assegurar de que não perco o sono por isso.

— Mesmo assim, meu primo...

— Nada direi a ele.

Langdon suspirou, aliviado e Sterling entendeu que ele deveria ter receio de enfrentar a cólera de Luke Claybourne. Não o culpava, pois ele mesmo recebera a visita de Jack Dodger e Jim Swindler.

— A senhorita é muito bondosa — Langdon afirmou.

— Nada disso. Não se pode ser responsável pelas ações alheias. Aproveite a ópera.

— A senhorita também. — Ele anuiu para Sterling. — Vossa Graça.

Langdon afastou-se para ir ao encontro de Charlotte com quem decerto se desiludira. Uma pena para ela, na opinião de Sterling, pois ouvira dizer que Langdon fora empregado por seu primo com um salário muito vantajoso.

— Isso costuma acontecer com frequência? — Sterling perguntou a Frannie.

— Não, porque eu me mantenho afastada da aristocracia o mais possível.

— Não nos comportamos de maneira tão abominável.

— Não todos, mas a grande maioria. Vamos procurar nossos lugares?

— A senhorita não preferia ir embora?

— De jeito nenhum. Posso estar ferida, mas não me nego a carregar a espada.

— A senhorita é notável. Sinto-me honrado em estar a seu lado esta noite. — Ele estendeu o braço e adorou sentir o dela que nele se apoiava.

— Vamos ver como se sentirá amanhã, quando os boatos se espalharem.

— A senhorita é céptica quando se trata da aristocracia.

— Apenas realista.

As palavras dela o abalaram. Afinal não dissera a mesma coisa para Catherine?

Sterling conduziu Frannie até a escada e descobriu que era mais fácil se mover com ela a seu lado.

— No casamento de minha irmã, quando seus amigos a rodearam, eles na certa procuravam protegê-la dos comentários maldosos dos convidados.

Eles caminharam até o camarote de Sterling onde se sentaram.

— Quando eu era bem mais jovem e morava na residência dos Claybourne, o avô de Luke organizou um chá da tarde nos jardins com algumas meninas da minha idade. Elas eram lindas e chegavam em coches e carruagens. As risadas delas eram doces e suaves, bem diferentes das risadas ásperas que se ouvia nos cortiços. E por isso achei que gostaria de todas. Elas não encostaram em mim e ensinaram-me que palavras podiam ferir como facas. Elas queriam saber como era a vida nos cortiços e cometi o erro de contar que eu dormira com Luke, Jack e Jim, e que algumas vezes eu ainda dormia com Luke. Elas transformaram o fato em algo hediondo e eu era inocente. Dormir nos braços de alguém pode ser muito gostoso, mas eu não tornei a repetir a situação sem, no entanto, contar a eles o motivo. Deixei que as meninas tolhessem minha naturalidade.

Frannie contava os fatos sem demonstrar emoção, mas Sterling sabia que ela devia ter sofrido muito. Frannie possuía uma bondade que excedia a de qualquer pessoa que ele conhecia. Não podia imaginá-la trazendo intencionalmente sofrimento a alguém. Teve vergonha de admitir que poderia conhecer muitas que zombariam dela.

— Diga-me quem são e eu tratarei de adverti-las. Frannie sorriu.

— Isso foi há muito tempo, Vossa Graça, e eu não guardo rancor, mesmo admitindo que às vezes eu gostaria de ter alguém dormindo comigo.

Sterling passou o dedo enluvado no braço descoberto de Frannie.

— Podemos remediar isso, até esta noite, se quiser.

— Tenho a impressão, Vossa Graça, de que pretende fazer muito mais do que dormir.

— A senhorita deveria encarar isso como um cumprimento. Desde que voltei para a Inglaterra, não fiz essa proposta a nenhuma dama.

— Admirável, em princípio. — Ela deu um sorriso malicioso. — Porém suspeito que milorde não considera todas as mulheres como damas.

— Muito poucas, de fato.

As luzes foram apagadas e Sterling amaldiçoou a escuridão. Nem as luzes que iluminavam o palco diminuíram a escuridão do camarote. Ele não podia ver Frannie com clareza. Podia apenas sentir a fragrância doce, memorizar o contorno de sua silhueta e sentir o calor do corpo ao lado do seu.

Ele se inclinou para o lado.

— Fique descansada, eu a considero uma dama — ele cochichou.

— Uma que milorde deseja levar para a cama.

Sterling tirou a luva e passou o dedo no ombro exposto pelo xale que deslizara um pouco.

— Isso não é um insulto, sou muito exigente.

Sterling estava perto o suficiente para ouvi-la engolir em seco.

— Eu também sou, Vossa Graça.

Sterling cessou a carícia e recostou-se na poltrona. Frannie não cederia com facilidade, mas ele gostava de um desafio.


Capítulo Cinco


No intervalo da ópera, Frannie resolveu ser misericordiosa e sugeriu que fossem embora. Ela queria evitar a aglomeração das pessoas e não era capaz de apreciar o espetáculo com Sterling olhando para ela e não para o palco. Não se aborrecia por ele não afastar o olhar. Na verdade, o fato a agradava, mas ela encontrava dificuldade em descontrair-se, imaginando aonde o jantar os levaria.

O coche chegou a uma curva larga e Frannie teve a primeira visão da residência Greystone. Ela sempre considerara magnífica a mansão dos Claybourne, mas a de Sterling era muito maior e mais elegante. À porta do coche foi aberta e Sterling saiu antes de estender a mão para ela. Decidida, Frannie pôs a mão na dele e permitiu que ele a ajudasse a descer do veículo. Impressionada pela magnificência da habitação, ela o seguiu pelos degraus largos e lembrou-se de que Catherine havia vivido ali. Poderia considerar que estava visitando a casa de uma amiga que tinha um irmão encantador e perigoso.

No interior da residência, Sterling a levou por corredores e ela procurou não parecer pasma diante dos retratos dos antepassados que guardavam grande semelhança com ele. Deveria ser maravilhoso conhecer suas origens, enquanto ela só tinha conhecimento da própria existência. Quem seria sua mãe? Uma mulher casada, uma criada, uma dama? Alguém a teria amado? Ou era o que Frannie temia. Ser o resultado de um encontro violento que sua mãe não desejara e ninguém quisera a criança?

Sterling a levou até uma sala pequena que parecia deslocada em uma residência de amplas dimensões. Dentro havia poltronas estofadas e um sofá. Na lareira o fogo crepitava e ao lado havia uma mesa redonda com uma toalha de renda. A luz das velas estrategicamente dispostas deixava a maior parte do recinto nas sombras, exceto a área onde deveriam jantar. Pelas cortinas abertas podia-se ver um jardim iluminado por lampiões. A um canto da sala, um homem estava em pé, segurando um violino. O coração de Frannie bateu em descompasso. Ela não sabia exatamente o que esperar. Enquanto ela havia morado com os Claybourne, o jantar era em geral servido formalmente em uma sala grande. Ela não antecipara um clima tão romântico. Estava consciente de que Sterling a desejava na cama, mas o cenário sugeria muito mais do que uma cópula rápida.

Frannie assustou-se quando Sterling encostou em seu ombro para tirar o xale. Ele deveria ter feito um sinal, pois o som suave do violino começou a ecoar pela sala.

— Calma, srta. Darling — ele sussurrou por trás e junto ao ouvido dela. — Nós vamos apenas jantar.

Frannie anuiu e olhou para Sterling. Os preparativos a deixaram nervosa por recear haver se enganado quanto às intenções dele. Se Sterling a envolvesse em romantismo, ela seria capaz de afastar-se da cama dele sem um sentimento grande de perda?

— Vossa Graça teve muito trabalho.

— Não tive nenhum. — Ele deu um sorriso malicioso. — Meus criados, sim. Presumo que a senhorita aprovou os esforços deles.

— Tudo é adorável em demasia.

— Fico satisfeito que tenha gostado. — Sterling levantou a mão dela e começou a tirar a luva.

— Posso fazer isso — Frannie alegou, sem ar.

— Eu preferia fazê-lo, se a senhorita não tivesse objeções.

Frannie negou com um gesto de cabeça e a pulsação acelerada ao sentir os dedos cálidos tocarem sua pele. Nem mesmo notara quando ele tirara as luvas. Parecia que ele também tinha dedos leves. Embora ainda não lamentasse a decisão de aceitar o jantar, tinha certeza de que ele poderia ser mais perigoso do que qualquer um dos homens que pudesse encontrar na rua em sua peregrinação atrás dos órfãos.

Depois de tirar uma luva, ele beijou a ponta dos dedos antes de se voltar para a outra mão. Ela o imaginou tirando seu vestido e beijando cada lugar que era revelado.

Sterling tirou a segunda luva e deixou-as sobre o xale, levou Frannie até a mesa e puxou uma cadeira de onde ela poderia ver o jardim.

— A música dá um toque agradável — Frannie afirmou ao sentar-se, sem conseguir aparentar a indiferença que pretendia para dar sofisticação a si mesma.

— Não gosto de silêncio. Na selva é um sinal de perigo.

— Ele fez um sinal com a cabeça e de repente o vinho foi vertido nas taças e a refeição começou a ser servida.

— Como é a selva?

— É quente. Muitas árvores e vegetação, trepadeiras, gritos dos macacos e cricrilar de insetos. De repente tudo fica quieto e sabe-se que um predador está por perto.

— Milorde ficava apavorado?

— Na verdade, fortalecido. Era desafiador, tanto física como mentalmente. Apesar de termos guias, lorde Wexford, meu companheiro de viagem, e eu muitas vezes atacávamos por nossa conta. E quase fomos mortos uma ou duas vezes. Mesmo assim foi excitante.

— Vossa Graça ficava excitado com a possibilidade de ser morto?

— Sei que parece uma tolice ou talvez uma imprudência, mas nós nos sentíamos como se estivéssemos reduzidos a mais elementar luta pela sobrevivência. A vitória é embriagadora.

— Milorde andou mesmo em cima de um elefante?

— Sim e sobre um camelo que sacudia demais. Pensei que fosse perder todos os meus dentes.

Frannie riu.

— Nem posso imaginar como isso deve ser diferente do que temos aqui.

— Tenho alguns desenhos de minhas viagens. Se quiser, posso mostrar depois do jantar.

Frannie mal percebeu um criado tornar a encher sua taça com vinho, o prato sendo removido e outro sendo trazido.

— Não imaginei que Vossa Graça fosse um artista — ela disse, enquanto provava a carne.

— Amador, eu asseguro. Wexford entende de fotografia, mas ele teve dificuldade em fazer criaturas selvagens ficarem quietas. No entanto, captou a imagem de belas paisagens. Bem, chega de falar de mim, srta. Darling. — Ele a fitou por cima da borda do cálice, enquanto bebia o vinho. — Estou interessado em escutar suas histórias.

— Depois de tantas viagens, milorde vai achar enfadonho o que tenho para contar.

— Pois eu digo que nunca fiquei tão intrigado a respeito de uma mulher. Os malandrinhos que a acompanhavam hoje, em particular Charley, tem um pouco de maldade dentro deles. Como vieram parar sob seus cuidados?

— Se uma criança é presa e Jim acredita que ela pode se modificar, ele a traz para mim. Os quatro de hoje estiveram em uma prisão e quero que eles vejam que a vida é bem melhor do que o cortiço.

Sterling roçou as costas da mão com o polegar e Frannie admitiu que era um conforto hipnótico fitar os olhos sérios dele.

— Tenho interesse por crianças que foram levadas ao crime, pois são as mais vulneráveis. Se forem apanhadas, as punições podem ser severas, mesmo que os crimes cometidos sejam ínfimos. — Ela se lembrou do comentário de Jim. — Vossa Graça já roubou uma maçã?

Ele continuou os movimentos vagarosos com o polegar, enquanto tomava mais um gole de vinho.

— Sim, por que a pergunta?

— Milorde não acha isso errado?

— Eu devia ter uns oito anos e... tratava-se de um jogo.

— As últimas palavras foram ditas em tom mais baixo como se um entendimento o atingisse. — Suas crianças criminosas acreditam estar fazendo um jogo.

— Na maioria dos casos. Quando uma criança é muito pequena, ela acha que deve fazer o que é ensinado, por exemplo o bolso se destina a guardar objetos que devem ser furtados. Da mesma forma como o estabelecimento do merceeiro poderia ser destinado para diversão: pegar uma maçã e apostar que o merceeiro não o pegará. Se ninguém diz à criança que isso é errado, como ela poderá saber?

— Mas se o objeto não pertence...

— Uma criança não tem posses e não entende de propriedade. Quando é apanhada, vai para a prisão ou é deportada por roubar uma maçã ou uma bobagem qualquer que não vale nem meio xelim. As punições são sempre severas e execráveis quando se trata de crianças, e eu fui criada nesse mundo. Felizmente o homem que ficou comigo não batia em crianças, embora tenha nos ensinado a roubar e usava nossas habilidades para encher os bolsos com moedas. — Frannie sacudiu a cabeça. — É difícil quando se ama uma pessoa que é reconhecidamente corrompida.

Sterling passou os nós dos dedos na face de Frannie.

— Estraguei uma noite que prometia ser agradável.

— Não, fui eu quem estragou tudo. As crianças são a minha paixão e eu me empolgo quando falo nelas.

— Essa sua paixão que me intriga — Sterling afirmou, sério. — Quer dar um passeio no jardim antes de eu levar para casa?

Então ele pretendia apenas levá-la à ópera e para jantar. Frannie deveria sentir-se aliviada, mas temeu que ele pretendesse atraí-la para a cama sem parecer muito óbvio. Certamente não seria naquela noite.

— Posso ver antes seus desenhos?

Sterling ordenou que se limpasse a mesa, dispensou o violinista, pegou os desenhos e dois cálices de conhaque. Ele nunca oferecera conhaque a uma mulher, mas Frannie aceitou sem hesitar o que o fez supor que ela bebesse ocasionalmente. Afinal ela trabalhava em um estabelecimento onde se vendiam bebidas alcoólicas em abundância.

Eles se sentaram no pequeno sofá. A arte de sedução de Sterling não tivera o efeito esperado. Àquela hora Frannie já deveria estar nos braços dele, mas era impossível negar que havia muito ele não passava uma noite mais agradável.

— Um leão — Sterling afirmou ao mostrar o primeiro desenho.

— Ele parece tão... régio — Frannie comentou. Agradou-o Frannie perceber o que ele tentara capturar: a essência do animal.

— Por isso o chamam de rei da selva. Quando ele ruge, um frio percorre a espinha, independentemente de quem seja. E quando se olha para ele... tem-se a impressão de que existe muito orgulho imbuído nele.

— Pensei a mesma coisa de milorde quando o vi na recepção do casamento. — Frannie corou e olhou-o de lado.

— Vossa Graça se comporta com grande dose de uma confiança que Luke apenas agora começa a demonstrar. Milorde não questiona a deferência que é devida.

— Não a mim, mas a meu título.

— Mas Vossa Graça representa o título, não é?

Sterling anuiu com gesto de cabeça. Ele nunca questionara que um dia ficaria com o título, mas então imaginou se ela seria mais receptiva se ele não fosse um duque.

— Vossa Graça sabe quem é sua família e de onde ela vem há gerações. Também deve apreciar o legado que foi entregue. Quanto a mim, é como se antes não houvesse ninguém.

Sterling não podia conceber como seria não conhecer os ancestrais. Devia ser um vazio imenso saber que se brotou do nada.

— Deve existir uma família Darling a quem você pode pertencer. Seu amigo inspetor pode fazer averiguações.

O riso que sugeria um menosprezo a si própria tocou o coração de Sterling. Ela era encantadora em sua sinceridade e falta de arrogância.

— Não tenho a menor ideia de quem eu seja. Sempre fui chamada de Frannie Darling e supus que esse fosse meu nome. É muito fácil uma pessoa mudar de localização em Londres e assumir uma identidade diferente. Feagan sempre mudava o nome de uma criança que ele recolhia, como forma de proteção e permitir a ela um recomeço.

Sterling pôs a braço no encosto do sofá e passou o dedo na pele alva do ombro desnudo, e teve uma ideia dos tesouros que a roupa escondia.

— Então a senhorita realmente nada sabe a respeito de seus ancestrais?

— Nada. Nem mesmo se isso é uma bênção ou uma praga. Luke pertence à nobreza, o pai de Jim foi enforcado e Jack foi vendido pela mãe. Meus pais teriam sido de alta classe e eu fui roubada ou eles pertenciam à escória da sociedade? Não sei.

Se Sterling estivesse pensando em um compromisso permanente com Frannie, o que seria improvável, o relato dela o teria feito reconsiderar. Os nobres se casavam com nobres, com uma pessoa que tivesse uma herança em comum, com entendimento e apreciação pelo status ocupado. Ele não se considerava melhor do que ninguém, mas carregava a responsabilidade pelos que o haviam precedido e assegurado a ele privilégios especiais, requerendo certos deveres e comportamento, com não poucas expectativas.

— A senhorita gostaria de saber? — ele perguntou.

— Suponho que depende da resposta.

— E qual delas seria de sua preferência?

— Não tenho certeza. As duas deixam muito a desejar.

Frannie queria desviar-se do assunto de seu passado. Virou a página do bloco e deparou-se com um macaco pequeno.

Sterling achava aborrecido falar de suas viagens; que- ria falar de Frannie e conhecer todos os aspectos de sua vida. Mais do que isso, queria vê-la sorrir de novo. Com esse intuito aceitou mudar o assunto para um terreno mais seguro e menos excitante.

— Esse pequeno animal nos adotou e vez por outra, vinha para meu ombro.

— Milorde é talentoso para capturar imagens.

Ele sempre observava o mundo à sua volta e gostava de desenhar o que via. Supunha que esse passatempo fora um dos motivos que o fizera notar uma mudança gradual em sua vida. Foi quando se dera conta da diminuição de seu campo visual.

— Sempre gostei de desenhar. — Sterling passou a ponta do dedo pela clavícula de Frannie. — Eu teria um grande prazer em retratá-la.

— Não sei se me agradaria posar.

— Talvez eu consiga convencê-la do contrário, durante meu objetivo de fazê-la aceitar outras coisas.

Sterling segurou o pescoço e Frannie arregalou os olhos verdes antes de estreitá-los em provocação. Ele prometera comportar-se naquela noite, mas parecia impossível manter a palavra. Embora julgasse que Frannie perdera a inocência, a cada momento captava sinais da mais pura ingenuidade em um sorriso ou em um flerte inseguro. Ela era uma combinação de sobrevivência e bondade, ousando e inventando suas próprias regras quando as existentes não convinham. Com o polegar, ele acariciou a pele suave sob o queixo e sentiu a pulsação dela se acelerar.

— Srta. Darling, eu gostaria de refazer nossos planos para esta noite.

— Ah?

Frannie ficou arfante e seus batimentos triplicaram de ritmo. No olhar dela, nenhum medo, apenas a antecipação que o encorajava a continuar.

— A ópera, o jantar... e um beijo.

O leve gesto de anuência de Frannie passaria despercebido para outro homem, mas Sterling estava acostumado a esmiuçar o mundo ao seu redor, a reunir os menores detalhes para o dia em que as minúcias ficassem perdidas para ele.

Sterling pretendia ser gentil, mas o vestido sedutor causara imagens provocantes e o beijo não pôde ser contido. O mais estranho foi seu coração disparar quando ela o acolheu. Durante suas viagens, tivera centenas de mulheres em seus braços. Mulheres de todos os países e muitas delas, exóticas. No entanto nenhuma despertara seu desejo com tanta ferocidade como acontecia com Frannie. Ele varreu a boca de Frannie com a língua e refletiu que apenas uma parecera tão doce e tão quente. Afastou-se da boca e deslizou os lábios pelo pescoço lânguido. Ouviu-a gemer e notou que ela atirava a cabeça para trás a fim de facilitar o acesso. Depois ele mordiscou a ponta da orelha.

— Quero soltar seus cabelos.

A anuência veio em forma de um suspiro.

Sterling soltou os grampos que prendiam os cabelos sedosos e, com habilidade, afrouxou as fitas que foram atiradas no chão. Ele segurou, as mechas que despencavam, deslizou uma parte sobre um dos ombros e os cabelos se aninharam no colo de Frannie.

— Gloriosos — ele murmurou.

— São rebeldes.

— Eu gosto de rebeldia. — Ele sorriu.

Faminto, ele tornou a beijar os lábios, desconfiando de que ela não fosse inocente. Ninguém podia conservar a ingenuidade trabalhando em uma casa como o Dodger's. No entanto ele sentiu uma hesitação nos movimentos de Frannie como se ela receasse tocar nos dentes dele com a língua ou explorar a boca como ele fazia com a dela. Ele teve vontade de dizer que não encontraria falha no que ela fizesse, mas não ousou quebrar o encanto do momento. Sterling ergueu a mão, aconchegou o seio dela em sua palma e deliciou-se com o peso. Roçou o polegar sobre o mamilo, sentiu-o endurecer e desejou deslizar a língua nele. Fez uma trilha úmida de beijos pelo pescoço de Frannie, passou a língua na cavidade de sua base antes de descer, deslizar o dedo para dentro do corpete e abaixá-lo, expondo o busto alvo e o mamilo róseo.

Arfando, Frannie deixou pender a cabeça para trás, perdida em bem-aventurança.

Com facilidade, Sterling virou-a, deitou-a de costas no sofá, ajoelhou-se a seu lado e recriminou-se. Não queria que seu relacionamento com Frannie se assemelhasse às centenas de casos que tivera antes. Não queria que nada fosse fácil. Sua Frannie Darling era diferente em aspectos que ele não podia compreender, mas que desejava explorar a seu bel-prazer.

Frannie segurou o rosto de Sterling e beijou a boca com intensidade voraz. Sua resistência o fizera duvidar de que ela o desejava com o mesmo fervor que o inundava. Mas ali estavam a paixão, o desespero, a necessidade de ser tocada.

Sterling interrompeu o beijo, mordiscou o queixo antes de dar atenção ao seio exposto.

— Perfeito — ele sussurrou antes de sugá-lo.

Frannie olhou para Sterling e agarrou-se nos ombros dele. Ela era indomada como os animais selvagens que ele vira na selva. Não se assemelhava a uma jovem decorosa. Nada a impedia de passar os dedos nos cabelos dele e no peito sob o colete. Era como se desejasse tocá-lo por inteiro e estivesse frustrada por encontrar tão pouca cútis exposta. No entanto Sterling tinha certeza de que não se deteria, se tirasse as roupas. Ele romperia a promessa. Ele a possuiria ali mesmo e que se danassem as consequências. Não convencido de que Frannie desejava tudo o que ele poderia dar, Sterling deslizou a mão por baixo da saia dela e acariciou a perna.

Frannie fez um movimento brusco e choramingou quando ele alcançou o centro doce de sua feminilidade e ele a acalmou, beijando o rosto. Ela estava úmida, quente e pronta para receber o que ele não poderia dar sem remorso. Sterling nunca hesitara com uma mulher, nem questionara seus atos, muito menos quisera que uma delas iniciasse o que ele alegremente terminaria. Frannie estava perdida de paixão, fervente de desejo, mas Sterling não desejava que ela tivesse remorsos nem que fosse além do que ela esperava.

Frannie colou-se em Sterling, contorcendo-se de encontro a ele, enquanto ele usava os dedos e a boca para aumentar a satisfação. Ela arqueou as costas, prendeu a respiração e Sterling beijou-a, engolindo o gemido de prazer, ciente de que o corpo dela pulsava de encontro a seus dedos, o que arrancou dele um gemido profundo de aprazimento.

Sterling nunca dera prazer sem nada receber em troca, mas naquela noite parecia imperativo não tomar posse completa, mesmo que isso o deixasse com uma ânsia insuportável. Ao recuar, ele viu o assombro e as lágrimas, e ela virou o rosto.

— Não me evite — ele pediu.

— Você disse que seria apenas um beijo.

Sterling segurou o rosto, virou-a para ele e deu um sorriso torto.

— Eu me entusiasmei com a vontade de dar prazer.

Frannie apertou os olhos e uma lágrima deslizou por seu rosto. Sterling abaixou-se e limpou-a com um beijo.

— Não há motivo para chorar, doçura.

— Eu nunca... eu não sei... — a voz de Frannie fazia supor que ela estivesse contendo o choro.

— Ninguém deu prazer antes? — Sterling indagou, atônito.

Frannie meneou a cabeça. Ele fitou as pernas que apareciam sob a saia erguida.

Ela seria virgem? Como poderia ser, se ela trabalhava no Dodger's?

Como guarda-livros e não como meretriz, idiota!

— O que há com você? — ela perguntou em voz baixa.

— Como é?

— Você não... não quis... — O rubor das faces de Frannie escondia as sardas.

— Eu prometi que não passaria de um beijo, e mantive a promessa. — Sterling beijou as pontas dos dedos. Não era para admirar que os outros estivessem tão empenhados em protegê-la.

Dentro do coche, Sterling a segurava como se odiasse a próxima separação. Frannie não esperava por aquilo, mas nada a respeito do duque correspondia às suas expectativas.

— Quero vê-la de novo — Sterling afirmou.

— Creio que não seria conveniente. Pertencemos a mundos diferentes. No seu eu viverei apenas uma noite, e no meu milorde será destinado às lembranças.

— Pensei que depois do que houve entre nós, você poderia me chamar de Sterling.

— Nós não somos iguais — ela declarou com um aperto no coração.

Eles fizeram o restante do trajeto em silêncio, o que a fez acreditar que estava certa. Independentemente dos sentimentos que florescessem entre eles, a posição na sociedade determinada pelo nascimento haveria de separá-los.

Por fim, chegaram ao Dodger's e Sterling acompanhou-a até o apartamento.

— Srta. Darling, agradeço por aceitar meu convite para esta noite. Seu pequeno diabrete não será preso.

Frannie tirou a chave da pequena bolsa, destrancou a porta e olhou por sobre o ombro.

— Para ser franca, Vossa Graça, desconfio de que ele sempre esteve a salvo desse destino.

Sterling não teve tempo de negar ou confirmar a veracidade das palavras de Frannie. Ela entrou, fechou a porta e trancou-a. Depois de um longo momento, ela escutou-o descer a escada. Teve vontade de abrir a porta e convidá-lo a entrar.

Aquela noite ele a brindara com um presente extraordinário. Seus sentimentos a respeito de Sterling haviam se aprofundado. Se nada acontecera, não sabia como tivera coragem de fechar a porta para ele.

Sentiu a pele sensível ao se preparar para dormir. Tirou do bolso do vestido que usara na exposição, o lenço que teria de lavar e passar. Entrou na cama, apagou a lamparina e virou-se de lado, pressionando o lenço no nariz e inalando o cheiro de Sterling. O que acontecera seria o máximo que teria do duque.

E apesar de ser confortante, era uma triste verdade.

— Vossa Graça, que prazer receber sua visita — lorde Millbank disse ao entrar na sala de estar onde Sterling aguardava enquanto era anunciado.

— Milorde.

— Eu estava ansioso para encontrá-lo e escutar os relatos de suas viagens. Por favor, sente-se, fique à vontade e conte-me tudo. Pedirei um chá...

— Esta não é uma visita social.

Millbank alisou para trás os poucos fios de cabelo de sua careca.

— Não?

— Não. Fui à ópera a noite passada.

— Programa horrível. Acredito que a ópera foi criada pelas mulheres para atormentar os homens.

— Independentemente disso, sua filha também estava lá.

— Qual delas? — Ele estreitou os olhos, duvidando de que Sterling conhecesse todas.

— Lady Charlotte.

— Ah, sem dúvida ela estava com o sr. Marcus Langdon. Creio que ele gosta de minha filha, mas se o senhor tem interesse — ele piscou —, ela estará de volta logo depois das visitas matinais. A mãe dela ficará encantada em acompanhá-los a uma caminhada ao jardim.

— Meu interesse em sua filha se origina no fato de ela ter insultado uma dama que estava em minha companhia, o que não é muito diferente de ter me ofendido. Eu não gosto de insultos.

O homem arregalou os olhos.

— É evidente que não. Nem sei onde Charlotte estava com a cabeça.

— Por favor, queira informá-la de que não se aproxime de mim, caso nossos caminhos voltem a se cruzar.

— Esteja certo de falarei com ela. Obrigado por me avisar.

— Tenha um bom dia, Millbank.

Sterling deu três passos em direção da porta antes de Millbank perguntar.

— Posso perguntar quem era a dama?

— O mais importante foi ela ser minha dama — Sterling respondeu sem se virar.

O que, ele refletiu pouco depois no coche na volta para casa, eram palavras corajosas, considerando-se que Frannie insinuara que ele não deveria procurá-la mais. Seria preciso fazer o que fosse possível para mudar a opinião dela sobre o assunto, porque ele pretendia terminar o que começara naquela noite.

Sterling chegou em casa e foi surpreendido ao encontrar Catherine e o marido esperando por ele na biblioteca. E pela seriedade de ambos, era evidente que não se tratava de uma visita corriqueira. Luke estava perto da janela, com os braços cruzados, como se pretendesse apoiar Catherine em suas reivindicações. Ela estava em pé diante da escrivaninha e, conforme seu estilo, foi direto ao assunto.

— Sterling, ouvi um boato de que esteve acompanhando Frannie à ópera a noite passada.

Sterling sentou-se na poltrona atrás da escrivaninha com pose de pouco-caso e olhou para Catherine, o que resultou em perder Luke de vista. Terrível. Sem mudar de posição, não podia manter os dois no mesmo ângulo de visão e distanciar-se pareceria estranho. Tinha certeza de que o pai jamais dissera a Catherine a respeito da condição que rotulara de vergonhosa e uma desgraça para a herança da família, como se Sterling perdesse propositadamente a visão aos poucos.

— Não deveria estar no campo, Catherine?

— Houve um incêndio na casa da herdade e até que os reparos sejam efetuados, ficaremos em Londres.

— Está certo. — Sterling virou-se para Luke. — Lembro-me de que Avendale morreu nesse incêndio, mas não entendi por que ele os visitava. Ele não fazia segredo em sua descrença de que você fosse o herdeiro ao título Claybourne e advogava que o mesmo fosse dado a Marcus Langdon.

— Não estamos aqui para falar sobre Avendale — Luke afirmou. — Viemos tratar do boato que envolve Frannie.

Sterling fitou-o com olhar contundente e revirou os olhos para a irmã.

— O caso proveio de alguém confiável?

— Lady Charlotte — ela respondeu.

Sterling deveria ter imaginado. Visitas matinais. Apesar do adiantado da hora, deveria ter falado com Millbank depois de deixar Frannie em casa.

— Espero que aquela mulher detestável seja sua amiga.

— Então é verdade? Estão correndo rumores que Frannie é sua amante, por terem ido ao teatro sem acompanhante.

Embora fosse previsível, Sterling suspeitava de que o boato se espalhara mais pela diferença social entre eles do que pela falta de dama de companhia. Seria preciso encontrar uma maneira de abafar os comentários. Ele desejava Frannie, mas não à custa de prejuízos à reputação dela, embora nada revelasse à irmã nem ao cunhado.

— No meu entender, ela tem quase trinta anos, idade em que uma acompanhante se torna desnecessária.

Na verdade, essa tola regra de etiqueta existia.

— Sterling, os seus vinte e oito anos...

— Então sou eu quem precisa de acompanhante?

— Não seja tolo, estou me referindo ao fato de Frannie ser mais velha.

— Não entendo qual o problema.

— Em geral os homens não procuram mulheres mais velhas para se casar e aí reside mais um motivo para boatos.

Outra bobagem. Embora homens procurassem sempre mulheres mais jovens, não se tratava de uma regra imposta. Sterling ouviu o tilintar de cristais e virou-se. Luke servia uísque em dois copos.

— Sinta-se em casa — Sterling ironizou.

Luke foi até a escrivaninha lembrando a Sterling uma pantera que vira certa vez pronta para o ataque. Luke segurou um copo, deixou o outro diante de Sterling e sentou-se na beira da mesa.

— Beba. Vossa Graça vai precisar disso.

Sterling não experimentara a dura existência das ruas, mas vivera momentos cruciais em suas viagens e chegara perto da morte algumas vezes. Isso fazia uma pessoa desenvolver um entendimento aguçado de seus limites e um profundo respeito por sua resistência.

— Por acaso envenenou o uísque? Asseguro de que a ameaça é desnecessária. Já recebi aviso de Dodger e Swindler.

Luke bateu o copo no de Sterling e tomou o uísque. Onde se encontrava, Sterling podia ver a irmã e o cunhado. Catherine, que parecia tentada a interferir, deu as costas e saiu de seu campo de visão. O que agradou a Sterling que queria concentrar-se em Luke. O casamento com Catherine, porém, não o tornara confiável.

Luke inclinou-se para a frente e apoiou o antebraço na coxa.

— Vossa Graça quer saber por que matei o segundo filho do conde de Claybourne, um homem que, à época, eu não sabia tratar-se de meu tio, e que agora nem quero reconhecer como tal?

Então era isso. A confirmação para o que a maioria dos londrinos acreditava ser verdade. Mas como Luke nunca enfrentara um julgamento nem fora condenado, alguns se prevaleciam da dúvida. Como se poderia receber com satisfação um assassino nas fileiras da mais alta aristocracia?

— É mais fácil roubar de um morto.

— Ele estuprou brutalmente Frannie.

As palavras tiveram o impacto de um soco no estômago de Sterling e ele sentiu a vista escurecer.

— Ela estava com doze anos — Luke continuou, ocultando a fúria sob a voz uniforme — e foi vendida a uma casa de má reputação especializada em virgens. Ele foi o primeiro e, que eu saiba, o único. Assim, nós a cercamos como se faria com uma borboleta ferida, jamais a tocando por medo de machucá-la ainda mais, esperando que um dia ela voltasse a voar. Se você ousar fazê-la sofrer, por menor que seja o motivo, terá de se haver conosco. Mesmo que Graves não tenha vindo para dar sua advertência, não o desdenhe. Ele tem um bisturi que pode alcançar o coração sem que a vítima perceba.

— Nunca tive intenção de fazê-la sofrer — ele repetiu o que dissera a Jack e Jim.

— Muitas vezes causamos sofrimento sem intenção, portanto esteja avisado. Ela é mais preciosa para nós do que as joias da coroa para a rainha.

Luke levantou-se e andou rumo à saída.

— Claybourne! — Sterling chamou e ficou em pé enquanto Luke parou e virou-se. — Em minhas viagens pelo mundo encontrei muitas espécies de borboletas, criaturas delicadas, mas que não devem ser subestimadas. Observando-as aprendi uma lição valiosa. Muitas vezes se rodearmos uma borboleta muito de perto, nós a impedimos de voar.

Luke analisou-o por um momento como se procurasse um argumento convincente. Acabou por anuir com brusquidão e esperou por Catherine que se aproximara de Sterling. O recinto era bem grande e onde os irmãos se encontravam, Luke não ouviria o que falassem.

— Sterling, ela não é da nobreza.

— Sei disso, Catherine, não se preocupe. Tenho muitas restrições em relação a uma esposa e a srta. Darling não se adequaria ao posto.

Para o bem dele. Sterling não queria testemunhar o mesmo desapontamento nos belos olhos verdes que vira nos de Angelina quando ela soubera da verdadeira condição de seu sentido de vista. Não, ele precisava de uma esposa que não despertasse nenhum sentimento se ela resolvesse se divertir.

— Não quero vê-los sofrer... — Catherine espiou o marido — Claybourne pediu a mão de Frannie em casamento e ela recusou. Um de seus motivos foi ela não querer fazer parte da aristocracia.

Sterling estreitou os olhos.

— Não pense jamais que foi esse o motivo por ele se decidir para seu lado, Catherine. Ele a adora.

Catherine deu um sorriso radiante e apertou o braço.

— Sei disso, Sterling, eu apenas quis contar o que eu sabia. Mesmo que não esteja pensando nela como esposa, algumas vezes os sentimentos podem sobrepujar a razão. Tenho grande apreço por Frannie, mas também acredito que se você pensa em qualquer relacionamento com ela que não seja platônico, ambos sofrerão.

— Sua preocupação foi convenientemente anotada.

Catherine ficou na ponta dos pés e beijou-o na face antes de ir ao encontro do marido. Assim que eles saíram, Sterling duvidou de que eles houvessem expressado essa mesma preocupação para Frannie. A mensagem era só para ele e fora clara.

Pare de persegui-la ou...

Sterling sentou-se em sua poltrona e, com mão trêmula, pegou o copo de uísque que Luke servira. Tomou tudo de um só gole. Recostou-se, fechou os olhos e lutou para controlar os tremores que o invadiam. Não pelas ameaças que Luke fizera, mas pela revelação a respeito do homem que ele assassinara e pelo que o lorde fizera com Frannie.

Ela era uma criança!

Sterling saiu da poltrona com tanta força que por pouco não a derrubou e procurou um lugar para bater o punho. Acabou por pegar um vaso que trouxera da China e jogou-o na lareira.

— Oh, Deus. — Ele se largou em uma cadeira e escondeu o rosto entre as mãos. —Ah, Frannie, minha doce Frannie.

Ele queria abraçá-la. Ela tivera a inocência roubada. Pensou no espanto nos olhos dela, nas lágrimas quando dera prazer...

Gostaria de mudar o passado de Frannie, mas ao mesmo tempo refletiu que fora o passado que a transformara na mulher que o fascinava. Doçura e determinação férrea.

Mesmo aceitando que não poderia ter uma noite com ela, desejava milhares.


Capítulo Seis


Uma semana após a ópera, Sterling passou um bom tempo sentado na biblioteca iluminada apenas pelas chamas da lareira. Mandara flores para Frannie, sem incluir cartão. Não saberia o que dizer. Ela crescera em um espaço violento que ele não podia compreender. Embora ele também enfrentasse problemas, não havia termo de comparação entre a vida deles.

O mais sensato seria deixar Londres e ir para o campo, cuidar de suas propriedades, frequentar festas, conhecer algumas jovens...

Levantou-se. Passava da meia-noite. Iria para o Dodger's, perder algum dinheiro e pensar que Frannie o contaria.

Foi para o saguão e parou. De quem fora a ideia de apagar as lamparinas? Pensou em voltar para a biblioteca onde tocaria a campainha para acordar o mordomo. Pediria que iluminasse a casa e aprontasse uma carruagem. Nesse instante, escutou alguém se mover furtivamente.

Sabendo que o vestíbulo ficaria mais claro à medida que se aproximasse do centro, caminhou sem fazer ruído naquela direção e os sons ficaram mais fortes quando cruzou um canto...

— Droga!

Pelo tamanho e pelo timbre de voz, tratava-se de uma criança cujos contornos apareciam por causa de uma lamparina coberta em três lados e a luz em direção única. Com uma velocidade incomum que o lembrou a de Charley, o diabrete saiu correndo e Sterling foi atrás dele.

— Pare, garoto! Wedgeworth! Um ladrão entrou em casa!

O pequeno malandro abaixou a luminária e apagou a chama, mas a luz fraca que vinha da cozinha evitava a escuridão total. A cozinheira, felizmente, devia ter escutado o grito de Sterling e a comoção que se seguiu foi geral. Ela apareceu carregando uma lamparina e um pau de macarrão, e sua silhueta avantajada ocupou a entrada.

O menino gritou, virou-se e começou a correr de um lado a outro para evitar ser agarrado. Sterling, por sua vez, conseguiu agarrar as costas do casaco do garoto, mas logo descobriu que ficara na mão apenas com a roupa. Patife astucioso!

Sterling correu atrás dele, disposto a não deixá-lo escapar.

— Vossa Graça, Jenkins o agarrou! —A voz de Wedgeworth ecoou pela residência.

A cozinheira iluminou o recinto e Sterling apressou-se na direção de onde Wedgeworth chamara. Encontrou-o no hall em direção à biblioteca. Um criado vestindo apenas calça e com o cabelo desgrenhado segurava o garoto que esperneava.

— Mandaremos buscar um policial — Wedgeworth disse.

— Não — Sterling retrucou. — Tenho algo em mente para o pequeno gatuno.

Srta. Frannie,

Creio estar em posse de algo que pertence. Meu coche está à sua disposição. Greystone.

Frannie, sentada à escrivaninha de sua sala no Dodger's, leu a mensagem e olhou o relógio de bolso em ouro que viera junto. Ela reconheceu o brasão, embora não estivesse familiarizada com o escudo de armas das famílias nobres. Fora o que ela tirara do colete de Sterling durante a festa de casamento.

Por que ele teria mandado a peça para ela? Por que ele não a trouxera pessoalmente em vez de insinuar que ela deveria ir à casa dele? Sabia o que ele desejava e também o significado oculto atrás do envio do relógio. Ela teria de devolvê-lo para recuperar o que estava em mãos dele.

Uma permuta.

Ela fechou o relógio dentro da palma e imaginou poder sentir o calor da peça que estivera dentro de um bolso. Absurdo. Fazia tempo que Sterling o mandara.

Por que isso acontecia justo quando ela finalmente conseguira sonhar menos com ele, quase não espiava o salão de jogos à sua procura, nem pensava nos prazeres que desfrutaria se entrasse na casa e na cama dele à meia- noite? Em virtude de algumas palavras escritas, ela se recordava de tudo o que lutava para esquecer e queria rever Sterling com um desespero que a apavorava.

Aquela hora da noite ninguém a veria subir no coche que portava o escudo de armas do ducado. E se a vissem, o que importava? Damas de companhia, etiqueta e comportamento apropriado eram tão estranhos para uma egressa das ruas quanto muito dinheiro.

Frannie fitou o rapazinho de olhar arregalado que trouxera a missiva. Thomas Lark estava no Dodger's havia poucos meses e era outro órfão trazido por Jack que sempre providenciava emprego para garotos promissores. Para Thomas, ele conseguira um local para se esconder.

— O cavalheiro que deu isso a você veio pela porta da frente?

— Sim, senhora.

— Alguém mais sabe sobre isso?

— Não, senhora.

Então ninguém interferiria. Ela anuiu, tomando uma decisão.

— Diga a ele para trazer o coche até a saída dos fundos.

Ele concordou com um gesto de cabeça e saiu correndo para executar o pedido, sempre ansioso para agradar.

Frannie fechou o livro contábil no qual estivera trabalhando. O restante das contas poderia esperar até o dia seguinte. Por enquanto estava ansiosa para descobrir o que Sterling planejava.

Ou pelo menos era a desculpa que pretendia dar a ela mesma. Não queria admitir a ansiedade que a invadira. Desde a noite que ele a apresentara às maravilhas da paixão, esquecendo as próprias necessidades, Sterling não voltara ao Dodger's. Mandara flores e nada mais. Não a pressionara para tornar-se sua amante. Não podia negar o desapontamento que sentira ao supor que ele desistira de possuí-la.

Estava consciente de que um casamento entre eles seria inviável. Um nobre jamais ofereceria casamento a uma mulher das ruas ou a uma guarda-livros de um estabelecimento de jogos. E mesmo se ele demonstrasse desejo de se casar com ela, não a agradaria viver em meio à nobreza.

Mas a intimidade por apenas uma noite, deitar-se nos braços dele, sufocar-se em seus beijos, tocar na pele bronzeada enquanto ele acariciava a sua, dar tanto prazer como o que ele proporcionara...

E era no que ela refletia todas as noites, agarrada no lenço dele como se o pedaço de seda tivesse o poder de trazê-lo de volta.

Decidida, levantou-se, atravessou a sala, pegou o manto pendurado ao lado da porta, colocou-o sobre os ombros, abriu a porta, foi até o saguão e saiu. Do lado de fora, ergueu a barra das saias e foi até o coche onde um criado a esperava ao lado da porta fechada que exibia o brasão ducal. Sem dizer nada, ele abriu a portinhola e ajudou-a a subir.

Frannie sentou-se, desapontada por não ver Sterling. Na certa o serviçal entregara a mensagem. No piso do veículo havia um tijolo quente, o que a deixou mais animada. Sterling pensara em seu conforto.

Com um cambaleio, o coche partiu. De repente, Frannie lembrou-se de que deveria ter se arrumado um pouco, trocado de roupa ou prendido os cabelos. Sem escova, nada poderia fazer com as mechas rebeldes. E por que se importar com a impressão causada em Sterling?

Contudo ela queria que ele a visse como uma mulher desejável, não como os meninos de Feagan a viam.

Frannie tinha certeza de que até mesmo Luke, que a pedira em casamento, jamais imaginara deitar-se com ela. Ou Jim, que vez por outra deixava cair a armadura e demonstrava o quanto a amava, a enxergava como um animalzinho de estimação que precisava ser cuidado. Jamais para compartilhar sofrimentos, adversidades e alegrias. E certamente não para se perder em um selvagem abandono sexual.

Nenhum deles jamais a fitara como Sterling, que sempre parecia despi-la com o olhar. E ela imaginava os prazeres ainda maiores que ele poderia proporcionar com as mãos e a boca que ela tão bem conhecera.

Pensando que tudo aconteceria com os dois desnudos, Frannie sentiu muito calor e encostou a face na vidraça fria. Não queria chegar afogueada e, de repente, preferia voltar. Por que não tinha energia para resistir a Sterling?

Tarde demais. O coche parou e Frannie percebeu que se tratava da entrada principal e não a dos criados para manter o caso em segredo. Seria por respeito ou Sterling nem ao menos se importava com a reputação dela se a vissem chegar ali bem depois da meia-noite?

A porta do coche foi aberta e o criado estendeu a mão para ajudá-la a descer. Ele abriu a porta principal da residência e Frannie precedeu-o, notando que o mordomo a aguardava.

— Srta. Darling. — Ele fez uma leve mesura. — Sua Graça a aguarda na biblioteca. Por favor, queira acompanhar-me.

Frannie, surpresa com o número de criados que estavam acordados àquela hora, seguiu-o pelo grande saguão e um criado abriu a porta da biblioteca. Um movimento junto à janela dos fundos chamou a atenção. Era Sterling.

Por um segundo, enquanto se aproximava, ela pensou ter visto um lampejo de satisfação no olhar dele que logo se apagou. Ela deu-se ao luxo de observá-lo. Nunca o vira sem casaco nem colete. Sterling tinha ombros largos, mesmo sem a ajuda de camadas de tecido. Frannie lembrou-se de ter se agarrado neles nos arroubos de paixão e de como pareceram poderosos. Os cabelos desalinhados o deixavam mais jovem e ela, em um súbito acesso de ciúme, desejou que ele os houvesse desmanchado e não uma mulher.

— A senhorita deseja beber alguma coisa? — A formalidade de Sterling deixou-a confusa.

Seria ele o mesmo homem que engolira seus gemidos de prazer?

— Não, obrigada. — Ela bebera com os meninos várias vezes, mas queria manter o raciocínio perfeito. Algo entre eles mudara e não na direção que ela esperava. — Seu bilhete dizia...

— Falaremos sobre isso em um minuto. Por favor, sente-se.

Sterling indicou duas poltronas próximas à janela, sem dúvida mais seguras do que um sofá, mas Frannie não estava certa de que desejasse segurança. Ela sentou-se em uma e ele logo ocupou a outra.

— Como tem passado? Presumo que, por ter chegado tão depressa, eles a tenham encontrado no Dodger's.

Frannie procurou não demonstrar frustração pelo tom imparcial que se usava entre estranhos.

— Sim, eu estava trabalhando. Em geral vou ao orfanato durante o dia e tenho empregados que ficam lá o tempo inteiro. — Por que se ater a assuntos insignificantes? — Não o tenho visto no Dodger's ultimamente.

— Achei que seria melhor afastar-me.

Frannie teve vontade de perguntar o motivo, mas a naturalidade existente entre eles já não existia e fora substituída por uma cortesia rígida.

— Recebi suas flores.

— Não me lembro de ter mandado um cartão.

— Não mandou, mas quem me enviaria flores?

— Espero que tenha gostado delas.

— Muito. Obrigada. — Por que o constrangimento e a formalidade? — Ah, seu relógio. — Frannie tirou-o do bolso e estendeu a mão.

Sterling segurou o relógio e balançou-o diante do rosto.

— Era de meu pai e creio que foi um presente de minha mãe. Pelo que me lembro, ela gostava muito de ser uma duquesa.

— Não posso imaginar.

— Ser um a duquesa? — Sterling fitou-a.

— Gostar dessa condição social. Para falar a verdade, não invejo os nobres. Não posso imaginar nada pior do que viver a sua vida.

— E eu não posso imaginar nada pior do que viver a sua. Por que Sterling a fitava como se procurasse alguma evidência?

Oh, Deus! Sterling passara a olhar para ela como se fosse um dos meninos de Feagan que não a tocavam com receio de que ela se quebrasse. E pior. Ela tinha certeza de que ele lamentava o tempo que haviam passado juntos e a intimidade que haviam partilhado.

— Claybourne contou — ela falou em voz baixa, sabendo que ele fora o mais afetado pelo horror que ela enfrentara — a respeito do incidente infeliz de minha juventude.

— Incidente infeliz? É como você se refere...

Sterling levantou-se da poltrona, agarrou uma estatueta de porcelana, foi até a lareira e atirou a peça no fogo. O ruído da porcelana que se espedaçava ecoou de maneira pavorosa no silêncio da noite. De cabeça baixa e agarrado ao consolo da lareira, Sterling contemplou a destruição.

Frannie ficou em pé e aproximou-se dele.

— Sterling, está tudo bem.

Ele se virou e o coração de Frannie confrangeu-se ao ver a angústia estampada em sua face.

— Tudo bem? Juro por Deus que se o infeliz não estivesse morto, eu o mataria.

Trêmula pela evidência daquela emoção crua e legítima, Frannie acariciou a face hirsuta. Sterling pôs a mão sobre a dela e beijou a palma.

— Sim, o caso ocorreu há muito tempo.

— Você era uma criança.

— Não sou mais.

— Se tivesse me contado, eu teria sido mais cuidadoso. Frannie sacudiu a cabeça.

— Você foi o primeiro a olhar para mim como se eu fosse desejável. Por que eu haveria de perder isso?

Próximo ao desespero, Sterling tomou-a nos braços e beijou-a com sofreguidão. Frannie sentiu o gosto de uísque e grande excitação. Pelos movimentos da língua, pelos gemidos que ecoavam no peito de Sterling e pela pressão das mãos em suas costas, era evidente que ele ainda a desejava. A ansiedade de Frannie era imensa e ela nem se importava se ele não a desejasse para sempre.

Ela passou as mãos pelos ombros dele, sentindo a energia dos músculos que se agrupavam no esforço de não deixá-la escapar. Desejava Sterling e tudo o que ele fazia.

Sterling recuou, arfante e encostou a testa na de Frannie.

— Essa não foi a razão por que a mandei chamar.

Ele olhou para a porta, decidindo se a pegava no colo para sair dali e Frannie entendeu, atônita, que não se rebelaria. No olhar do duque, ela leu a indecisão. Ou ele permaneceria um cavalheiro ou aproveitaria a situação.

Frannie precisou o momento em que a nobreza de caráter foi vitoriosa. Um traço de lamento e perda passou pelo olhar de Sterling antes da aceitação do correto, e ele fitou-a.

— Não se engane, Frannie, eu ainda a desejo como jamais desejei outra. Mas agora não é o momento certo.

— Sua mensagem dizia que você estava em posse de algo que me pertencia. — Frannie procurou ocultar o desapontamento com a decisão dele.

Sterling passou o dedo nos contornos do rosto de Frannie como se quisesse memorizar os traços.

— Creio que sim. Venha comigo e eu mostrarei.

Ele ofereceu o braço e conduziu-a para fora da biblioteca. Atravessaram vários corredores até chegarem à cozinha. Junto à mesa dos criados, um menino muito magro comia um pedaço de torta de carne.

— Oh!

Sterling observou Frannie correr e abaixar-se ao lado do garoto. Ele não podia imaginar a força de vontade que fora necessária para Frannie deixar o passado para trás. Certo que tudo ocorrera havia muito tempo, mas ela vivenciara um fato terrível. Quanto mais tempo passava na presença de Frannie, mais ele se sentia humilhado. Alguma vez ela chegara a priorizar a si mesma em vez de pensar nos outros?

Ela passou os dedos nos cabelos longos e escuros do menino como se não estivessem infestados de piolhos.

Alguém, a cozinheira ou Jenkins, limpara o rosto dele que era rosado e pálido.

Frannie voltou-se para o duque com olhar interrogativo.

— Ele invadiu minha casa — Sterling comentou. Ela se virou para o garoto.

— Como é seu nome?

Ele enfiou mais um pedaço de torta na boca e Sterling perguntou-se como a bochecha não estourava.

— Pobrezinho — a cozinheira comentou. — Ele está comendo assim desde que passei a alimentá-lo. Esse é o terceiro pedaço de torta.

— Mastigue a refeição e responda a pergunta da dama — Sterling ordenou.

O garoto engoliu e Sterling admirou-se por ele não engasgar.

— Jimmy — ele resmungou e pôs mais comida na boca.

— Quem é seu pai de rua? O menino sacudiu a cabeça.

— Sei que você não planejou este roubo sozinho. Ele sacudiu de novo a cabeça.

— Você conhece Feagan? — ela perguntou. Ele balançou a cabeça mais uma vez.

— Fiz parte do bando dele. Sou Frannie Darling. O menino arregalou os olhos, horrorizado.

— Sykes disse que a senhora era um demônio.

Sterling observou o queixo de Frannie contrair-se e supôs que ela conhecesse o tal de Sykes e não gostasse dele, ou não a agradara ser comparada ao diabo. Ainda que, Deus o ajudasse, Sterling pensava a mesma coisa, mas de modo bem mais lisonjeiro. Ela estava vestida com simplicidade e os cabelos não estavam bem presos, ameaçando soltar-se a qualquer hora. Ele rezava para que isso acontecesse; assim poderia enterrar os dedos nas mechas sedosas.

Queria abrir os botões do punho de Frannie, beijar a cútis pálida que ali encontrara e sentir nos lábios a pulsação acelerar-se. Gostaria que ela fosse tão carinhosa com ele como era com o garoto, e queria inundá-la de carícias.

Frannie levantou-se e caminhou até Sterling, sem esconder a preocupação.

— O que pretende fazer com ele?

— Suponho que entregá-lo à senhorita.

Pelo alívio e gratidão que viu no olhar de Frannie, o duque esperava descobrir milhares de garotos em sua residência.

— Eu gostaria de levá-lo para o orfanato. Vossa Graça me permitiria usar seu coche?

— Farei melhor do que isso, eu a acompanharei. Enquanto o coche se dirigia para os arredores de Londres, Sterling refletiu sobre a inutilidade de prolongar sua permanência ao lado de Frannie. Os pensamentos dela concentravam-se no menino estendido no assento que estava com a cabeça em seu colo, enquanto ela passava a mão nos cabelos sujos. O garoto lembrava um filhote de cão sem raça, imundo e mal-cuidado. Ele comera e viera comendo até alcançar a carruagem. Sterling queria acreditar que o menino fosse um pequeno meliante, mas era visível que o pobrezinho estava esfomeado. Seus braços pareciam duas varetas e Sterling não podia imaginar que ele pudesse carregar o mata-borrão para fora da casa, mas os bolsos dele diziam o contrário.

— Foi muita bondade sua não mandar prendê-lo — Frannie disse em voz baixa.

Sterling pedira para o criado acender a luminária do coche para assegurar-se de que Frannie ficaria mais à vontade e que o garoto não pudesse achar um meio de fuga, no que ele certamente era artista. Além disso, a luz dava a oportunidade de vê-la mais claramente, ainda que as sombras trabalhassem contra ele.

— De que adiantaria eu agir dessa forma se seu amigo da Scotland Yard o libertaria e entregaria?

Frannie sorriu, dando razão a ele em acreditar naquelas palavras e olhou para o menino que parecia adormecido.

— Então ele faz parte do bando de Sykes? — Sterling perguntou.

Frannie não respondeu à pergunta.

— Quantos anos acha que ele tem?

— Talvez uns cinco.

— Eu diria oito, talvez nove. — Frannie parecia confiante na dedução.

— Ele é muito pequeno.

— Mas é assim que Sykes gosta que eles sejam.

Frannie levantou o olhar onde Sterling leu tristeza profunda e fúria. Ela era uma mulher capaz de sentir paixões discrepantes e de senti-las simultaneamente. Conhecendo seu passado, ele seria tão canalha a ponto de ainda desejá-la na cama? Sabendo que não poderia casar- se com ela, ele seria um patife de querê-la em sua vida.

— Ele vasculha as ruas para encontrar os menores meninos e batalha para mantê-los pequenos. Ele os alimenta apenas para que sobrevivam. Acho que esse entrou na sua casa pela chaminé ou por alguma janela que raramente é fechada por ser considerada muito pequena para permitir a entrada de alguém. Esse é o motivo por que Sykes trabalha com afinco para eles ficarem sempre pequenos.

Enquanto falava, Frannie não deixava de acariciar os cabelos do menino.

— Ele os aterroriza para que cumpram suas ordens. Eles não conhecem o carinho nem a bondade. Se adoecem, não recebem conforto nem comida, por não estarem trabalhando para o próprio sustento.

— E ele se refere a você como um demônio?

Frannie deu um sorriso largo, e Sterling deduziu que era do agrado dela saber que incomodava Sykes.

— O demônio pode assumir as mais variadas formas — ela afirmou.

— Você o apunhala.

— Dou um lar e um porto seguro a seus meninos quando posso encontrá-los.

— Ele parece uma pessoa detestável e não haverá de apreciar o que você vem fazendo.

Com semblante determinado, ela ergueu o queixo.

— Sei o que é temer pela vida e não me acovardarei diante do caminho correto.

— Mesmo se isso puser em risco sua vida?

— Não seja melodramático. Há muitas crianças abandonadas e Sykes sempre encontrará outra. — Frannie fitou o menino adormecido em seu colo. — Este me pertence.

— Acha que poderá modificá-lo?

— Ele ainda é muito novo e sua alma não está perdida. Os mais velhos, que já conheceram a prisão, são mais difíceis de alcançar.

— Conheço as ruas de Londres e há centenas de crianças perambulando por elas. Não é possível salvar a todas.

— Não, mas se eu puder salvar esta, por enquanto será suficiente.

E quanto à Frannie Darling?, ele quis perguntar. Quem a salvará?

Frannie se entregava aos outros. Sterling gostaria que ela pensasse primeiro nos próprios prazeres, como ele.

Sterling olhou pela janela quando o coche fez a curva e passou pelos portões do orfanato. Os lampiões a gás iluminavam o caminho ascendente de pedras arredondadas. Quando o veículo parou, o menino se mexeu.

— Eu o levarei — Sterling ofereceu-se quando a porta foi aberta e ele desceu.

Virou-se e pegou o garoto que se agarrou nele instintivamente com as mãos no pescoço e as pernas ao redor da cintura. Sterling ficou parado, atônito de ver que a criança não pesava quase nada. Ele era magro, mas dessa forma... Na certa não tinha oito anos.

— Sterling? — Frannie indicou o caminho para a porta bem iluminada.

— Espero que ele não tenha pulgas ou piolhos.

— Pode ficar descansado, não notei nenhum desses. Frannie tirou uma chave do bolso e abriu a porta. Entrando,

Sterling espantou-se com a mudança ocorrida. O ambiente era aconchegante, com plantas no chão e quadros nas paredes. Lamparinas com chamas baixas estavam espalhadas ao redor. Um homenzarrão com mãos enormes levantou-se de uma poltrona como se saísse das profundezas do inferno.

— Srta. Frannie.

— Boa noite, sr. Bates. Como estão as coisas?

— Tudo em ordem. A senhora está trazendo mais um...

— Sim, estou. — Frannie virou-se para Sterling. — O sr. Bates é o guardião noturno.

Como Cérbero guardando os portões de Hades, Sterling pensou, ainda que ali eles estivessem mais próximos do paraíso. Frannie tocou no braço de Sterling.

— Nós o deixaremos em um quarto aqui em baixo. Amanhã, quando tivermos oportunidade de dar um banho e conversar, ele será transferido para um quarto com outro garoto.

Ela caminhou, seguida por Sterling, até um quarto com uma cama e uma poltrona confortável. Acendeu a lamparina da mesa de cabeceira e Sterling deitou com cuidado o menino que pretendera roubá-lo, pensando na ironia do fato.

Sterling recuou e observou Frannie tirar os sapatos surrados muito grandes para os pequenos pés sujos. Como se lesse os pensamentos do duque, ela pegou um sapato e tirou de dentro um bolo de jornal amassado. Frannie estremeceu. Pelo menos ele tinha sapatos.

Ela não tirou a roupa dele e cobriu-o com uma manta. Tocou nos cabelos do garoto, inclinou-se e beijou levemente sua testa.

— Bons sonhos.

O menino murmurou qualquer coisa ininteligível e começou a ressonar.

Frannie acenou com um gesto de cabeça e eles voltaram ao corredor.

— Sempre que venho aqui à noite, dou uma volta pelos quartos. Eu gostaria muito que você me acompanhasse.

Como isso prolongaria o tempo ao lado dela, ele anuiu. Frannie pegou uma lamparina de uma mesa próxima e conduziu-o até a escada.

— Você vem aqui todas as noites? — Sterling perguntou, enquanto subiam os degraus.

— Nem sempre. Depende da hora que termino meu trabalho no Dodger's. Em geral fico no meu apartamento e venho para cá durante o dia para ver o que está acontecendo, ficar com as crianças — ela o fitou por sobre o ombro — e para verificar a contabilidade, como parece ser meu destino.

No pavimento superior, todas as portas estavam abertas e ela entrou no primeiro quarto. Dois meninos dormiam em camas separadas. Duas pequenas arcas, na certa com os pertences deles, estavam aos pés de cada cama. Frannie se abaixou e beijou um e depois o outro. Nenhum se mexeu e Sterling imaginou que deviam estar acostumados a receber beijos angelicais enquanto dormiam.

Em todos os quartos, ela cumpriu o mesmo ritual. Sterling acabou se sentindo inútil e segurou a lamparina para contribuir de alguma forma com a ronda. Dessa maneira ele podia direcionar a luz mais para Frannie do que para as crianças, permitindo vê-la melhor. Frannie não fingia. Ela gostava daqueles meninos de verdade e procurava dar uma vida melhor. Quanto mais ela amaria os próprios filhos? Seria infinita sua capacidade de amar?

Sterling espantou-se com o número de meninos.

— Onde os descobriu? — ele perguntou depois de ela dar o último beijo e eles começarem a descer a escada.

— A maioria me encontrou. Enquanto Sykes me chama de demônio, outros se referem a mim como um anjo. Nas ruas eles ficam sabendo que aqui acharão um santuário onde ninguém mais os fará sofrer. Alguns não acreditam nisso e outros acham que não têm mais nada a perder. E Jim também fica sabendo quem foi preso. Ele trás para cá as crianças depois de elas terem sido castigadas.

Claro. O inspetor da Scotland Yard. Sterling nunca pensara que chegasse a ponto de competir com um plebeu pela afeição de... Deus o ajudasse!... Uma plebeia. E isso em nada denegria a imagem de Frannie.

Ele deixou a lamparina na mesa junto à entrada e saiu, feliz por Frannie acompanhá-lo. Cada momento com ela o fazia desejar mais.

— Não vi Charley, onde ele está? — Sterling perguntou. Frannie sorriu com simpatia.

— Consegui encontrar uma família decente para ficar com Charley Byerly.

— Deus os ajude.

— Ele não é tão mau. Há poucos dias eu os visitei e ele está se ajustando muito bem.

— Então além de tudo o que você faz, ainda procura encontrar lares para os meninos?

— Sim.

— Você é extraordinária. Posso levá-la de volta ao Dodger's?

— Não, mas eu agradeço. Farei companhia a Jimmy ou ele ficará assustado ao acordar em um local estranho.

Sterling achou melhor não insistir.

— Então me perdoe por um prazer.

Frannie não teve tempo de compreender o significado da frase. Sterling abraçou-a e beijou-a. Frannie deu um gemido baixo, mas não se opôs. O beijo foi mais carinhoso, diferente do que acontecera na biblioteca, quando Sterling estava desesperado. Ele queria mais de Frannie do que podia ter e mais do que merecia. Frannie queria que ele a desejasse e isso acontecia com uma força que o aterrorizava.

Sterling afastou o rosto e segurou o queixo.

— Muita coisa permanece sem solução entre nós, mas jamais pense que não a desejo. Durma bem, Frannie.

Logo depois, recostado no assento do coche, Sterling pôs o polegar no bolso do colete e sorriu. O relógio não estava lá. Frannie o tirara em um convite que ele pensava aceitar.

Frannie sentou-se ao lado da cama, com a luz baixa, à espera de Jimmy acordar. Ela conhecia o terror dos meninos pelo castigo prometido por Sykes caso eles não voltassem. Quando adolescente, Sykes fora um valentão. Adulto, transformara-se em monstro que só pensava em si mesmo. Ela não o via desde os doze anos, mas ouvia falar muito nele e em suas andanças pelos cortiços à procura de órfãos.

Enfiou a mão no bolso e tirou o relógio de Sterling. Queria vê-lo de novo e tinha fé de que ele entendesse a mensagem.

O duque jamais poderia entender como ela se comovera por ele ter mandado chamá-la em vez de recorrer a um policial. Se ao menos ela pudesse convencer outros a fazerem o mesmo. Se essas crianças jamais tivessem a experiência da prisão ou do castigo... e seu o seu trabalho pudesse fazer a diferença.

Sem perceber, adormeceu. Acordou com o pescoço doendo e o sol entrando no quarto. Jimmy ainda dormia.

— Srta. Darling?

Frannie sorriu e olhou a entrada onde se encontrava a sra. Prosser, diretora do orfanato.

— Bom dia.

A sra. Prosser fez uma mesura. Frannie não conseguira convencê-la de que ela não merecia nenhuma reverência.

— Perdoe-me incomodá-la, mas um cavalheiro deseja falar.

O sorriso de Frannie aumentou. Sterling não perdera tempo, viera buscar o relógio e talvez tomasse o café da manhã com ela. Mas quando entrou no saguão, ficou desapontada. Um homem de baixa estatura, grosseiro e careca a aguardava, apertando o chapéu nas mãos rachadas.

— O que deseja, senhor?

— Sou um sapateiro e estou aqui para ajudá-la, senhora. Sua Graça, o duque de Greystone, contratou-me para fazer calçados para os meninos.

Frannie sentiu lágrimas umedecerem seus olhos diante de mais uma amostra da generosidade de Sterling.

— Verdade?

— Sim, senhora. Sempre que um menino precisar de um par de sapatos, a senhora mandará me avisar e virei aqui para tirar as medidas. Sua Graça pagará por todos os calçados que a senhora precisar.

— É muita bondade dele.

— Sim, senhora. Eu trouxe muitas folhas de papel e se a senhora chamar os garotos, começarei a tirar as medidas e voltarei ao trabalho em minha loja.

Frannie pediu a alguns empregados para reunir as crianças e voltou ao quarto onde Jimmy dormia, e descobriu que ele não se encontrava lá.

— Sra. Prosser?

A diretora entrou no quarto.

— Pois não, senhora.

— A senhora viu o garoto que estava neste quarto? Alguém foi dar banho nele ou coisa parecida?

— Não, senhora. Quando saí, ele estava dormindo.

Mesmo antecipando que de nada adiantaria, Frannie mandou o pessoal à procura dele no prédio e nas redondezas por mais de uma hora. Ninguém viu sinal do garoto. Ela sentiu que desapontara não apenas Jimmy, mas também Sterling.


Capítulo Sete


Na travessa escura, Sterling pôs instintivamente a mão no bolso do colete, antes de lembrar-se que a falta do relógio era o motivo para ele estar ali no momento. Tinha como hábito tirar o objeto, abrir a tampa e verificar as horas, mesmo que o escuro impedisse de vê-las claramente. Instruíra o cocheiro para deixar o veículo na rua, no final da viela. Não queria que o avistassem, caso Jim ou Jack estivessem por perto. Havia também a possibilidade de ele ter interpretado mal o fato de Frannie pegar um objeto seu. Talvez ela pretendesse vendê-lo para comprar comida para o pequeno marginal que invadira sua casa.

Ou, como esperava que fosse, era possível que se tratasse de um convite. Ele entrara no Dodger's e interrogara um dos rapazes que por ali circulava. O funcionário confirmara que Frannie estava trabalhando. Com um pouco de sorte, ela terminaria logo e ele a convidaria para jantar em sua casa ou para um passeio de coche. Ela insinuara esse encontro e ele se alegrara com a iniciativa.

Desde a visita de Luke, Sterling ficara indeciso quanto a seus sentimentos. Tendo em conta o passado de Frannie, seduzi-la pensando no próprio prazer parecia um erro. Não podia negar que ainda a desejava, mas reconhecia que não a queria apenas por uma noite. Gostaria de fazê-la esquecer o horror do passado e apresentá-la aos prazeres sensuais que ela deveria ter conhecido.

Poderia torná-la sua amante, prover fundos para o orfanato, tirá-la do Dodger's. Durante anos encontrariam uma felicidade satisfatória. Era provável que ele teria de casar-se com a filha de algum nobre, mas era de conhecimento público que muitos homens tinham esposa e amante. Assim era a vida. Ainda havia o problema de atrelá-la a um cego, negar o casamento que ela merecia e também filhos que a mereceriam. Não, fazê-la sua amante não era o caminho certo. Seria muito egoísmo.

Mesmo que sempre pensasse primeiro nos próprios prazeres, quando se tratava de Frannie, os interesses dela se sobrepunham aos dele.

A porta foi aberta e Frannie saiu na varanda. Depois de trancar a porta, pôs na cabeça o capuz do manto. Uma iniciativa estranha sendo que o apartamento dela era tão próximo. A noite era fria, mas...

Ela correu pela alameda e passou pela escada que conduzia à sua habitação. Para onde ela iria?

Sterling não tinha o costume de investigar a vida alheia, mas Frannie parecia não desejar ser descoberta. Ele recriminou-se pela interferência e foi atrás dela. Poderia tratar-se de uma coincidência, pois seu coche estava bem na esquina.

Frannie apressara-se para terminar o trabalho. Queria visitar os cortiços enquanto as crianças ainda estavam em pé, os homens não se encontravam completamente bêbados e as mulheres não haviam levado seus últimos clientes para a cama. Passara o dia tentando localizar Jimmy, sem sucesso. Mas à noite a atmosfera era diferente. Por vezes Feagan também circulava pelas ruas. Se pudesse encontrá-lo, certamente o convenceria a ajudá-la. Ele conhecia todos os cantos e embora seu corpo já estivesse curvado pela idade, ainda era um homem inteligente.

Ao chegar no final da travessa, seu coração acelerou- se. Alugaria um cabriolé e...

Alguém a puxou por trás e jogou-a contra a parede. Frannie não teve tempo de se defender. O homem pressionou o corpo contra o dela, prendeu-a no lugar e com uma das mãos levantou a saia.

— Tenho um recado de Bob Sykes — o homem falou, exalando um forte hálito de bebida e dentes estragados.

— Deixe os garotos em paz.

— Solte-me! — Frannie procurou afastá-lo.

Ele comprimiu violentamente o joelho no meio das pernas dela.

— Não até eu ter a recompensa por estar entregando a mensagem. Sempre tive vontade de experimentar uma mulher bonita.

Ele segurou o queixo e tentou beijá-la, enquanto a tocava com a outra mão...

Não, não, não!

De repente, Frannie estava novamente com doze anos e lutava, lutava...

Tudo aconteceu em segundos. Ela debateu-se contra o abismo escuro no qual desejava cair, puxou a faca e atacou- o.

O sujeito gritou e largou-a. Ela escutou um ruído surdo quando a faca atingiu algo duro e o impacto repercutiu em seu braço.

Soou um gemido.

Ela ouviu a respiração difícil e sentiu que seguravam o ombro. Sob a luz pálida de um distante lampião a gás, viu-se diante de Sterling que apertava as costelas, enquanto o sangue escoava por seus dedos.

Frannie percebeu que alguém se mexia e que o outro homem fugia.

— Isso ainda não terminou, Frannie Darling — o atacante gritou antes de desaparecer na escuridão ao redor do prédio.

Frannie soltou a faca e apertou a mão de Sterling. Ele murmurou uma imprecação e ela sentiu o sangue quente que escorria. Muito sangue.

— Santo Deus! Está muito ferido! Será que conseguirá subir a escada? Preciso ver o ferimento e...

Sterling abraçou-a pelo pescoço e puxou-a para perto dele.

— Se eu tiver de morrer — ele disse com voz rouca —, quero que seja com o gosto de seus lábios.

Sem a cortesia usual, Sterling beijou-a e Frannie refletiu que ele não poderia estar mortalmente ferido se ele a segurava com força e o beijo revelava tanta paixão.

Por um capricho do destino, Sterling puxara o marginal de cima dela no momento em que ela se preparava para enfiar a faca na ilharga do camarada. Sterling, por seu heroísmo, estava sangrando e muito.

Frannie empurrou-o.

— Seu tolo, vai sangrar até morrer.

— É apenas um arranhão.

— Então é um tolo ainda maior por deixar-me preocupada. Acha que consegue subir a escada?

— Sim.

Frannie pôs um dos braços nas costas de Sterling que se apoiou no ombro dela. Eles cambalearam em direção da escada. O peso de Sterling aumentava a cada passo, como se ele estivesse perdendo as forças junto com a hemorragia. Não era um simples arranhão. Se fosse, a mão de Frannie não estaria encharcada de sangue. No meio da escada, ele caiu de joelhos,

— Acho que me enganei — ele murmurou.

— Seria indigno para milorde morrer aqui. Ele riu baixo.

— Eu não seria nada se não fosse digno.

— Ainda bem que você acha graça.

— Não de todo.

Sterling agarrou-se no corrimão para subir e eles bordejaram para cima. Quem os visse pensaria que estavam embriagados. Eles chegaram ao alto e Sterling recostou-se na parede enquanto Frannie tirava a chave do bolso e abria a porta.

Ela o ajudou a entrar em seu apartamento.

Da mesma forma que o escritório, o local era pouco mobiliado. Ela pensou no sofá, mas decidiu-se pela cama. Seria mais confortável e ele poderia deitar-se. Sterling sentou-se na beira da cama e Frannie afastou-se para pegar toalhas. Ao voltar ajoelhou-se diante dele. A roupa de Sterling estava ensopada. Muito sangue. Era no que ela conseguia pensar enquanto procurava estancar o sangramento.

— Isso não me dá boa impressão.

— Foi só um corte, embora esteja doendo demais. Terei de lembrar-me de... nunca mais tentar salvá-la.

— Não posso acreditar que você se aproximou no momento em que eu investia. Eu não o vi.

— Estamos quites, pois também não vi a faca. De forma nenhuma.

— Posso... desabotoar seu colete e erguer a camisa?

Sterling concordou, empalidecendo à medida que o tempo passava. Com cuidado, ela agiu depressa. O corte dava má impressão, era longo, profundo e atingira a ilharga. Por sorte, não se via outra coisa a não ser o sangue.

— Deite-se. Mandarei alguém chamar Bill.

— Bill? — Sterling arfava de dor e com um gemido surdo, esticou-se na cama de Frannie.

— William Graves. Ele é médico.

— Ah, eu sei. Ele cuidou de Catherine.

— Esse mesmo. Espere aqui enquanto tentamos localizá-lo. Sterling teve vontade de rir com a ordem, pois não poderia se mexer, mesmo se quisesse.

Frannie deu um passo e virou-se.

— O que você estava fazendo aqui?

— Vim buscar meu relógio. Achei que pegá-lo... fosse um convite.

Frannie havia esquecido do caso. Tirou o relógio do bolso onde a peça estivera guardada durante todo o dia, deixou-o na palma de Sterling e fechou os dedos sobre o mesmo.

— Era — ela sussurrou e beijou a testa. Mas não certamente para o que ocorrera.

Frannie enviou um empregado à procura de Bill e foi até o escritório de Jack onde ele se encontrava ao lado de Jim. Eles a acompanharam na volta ao apartamento. Apavorada, ela continuou a pressionar toalhas no ferimento e estas continuavam a se encharcar de sangue.

Sterling, com dificuldade para respirar, fazia caretas e arfava. O queixo cerrado com força fez Frannie temer pela ruptura de algum dente. Seria mais fácil não sentir culpa, se ele não a olhasse tão fixamente. O olhar azul demonstrava o sofrimento.

— Sinto muito — ela disse, pesarosa.

— O que você sente? — Jack perguntou, de braços cruzados ao pé da cama. — Você estava tentando se proteger e não é sua culpa ele estar no caminho.

Um canto da boca de Sterling tremeu e Frannie imaginou se ele queria rir. Ela apostava que no futuro o duque não acharia engraçado o acidente, caso sobrevivesse.

— Você prefere que eu segure a toalha no ferimento? — Jim perguntou a Frannie.

Sterling fitou-a com intensidade e agarrou o pulso para não deixá-la sair, como se ela pretendesse abandoná-lo.

— Não, eu sou responsável por isso. Cuidarei dele. Frannie gostaria de passar as mãos pelos cabelos dele, acariciar o rosto, encostar a testa na sua e desculpar- se novamente. Mas seria inútil ele sobreviver e ser atacado por Jack e Jim.

— Onde está Bill?

Foi como tê-lo atraído e Bill entrou no quarto.

— O que está acontecendo? Disseram-me que Frannie estava ferida.

— Não se trata de Frannie — Jack disse e virou-se para ela. — Oh, Deus, você está ferida? Nem me ocorreu perguntar.

— Estou bem.

Exceto por alguns hematomas e arranhões que Frannie não quis citar para não desviar a atenção de Sterling que precisava de assistência imediata. Ela se virou para Bill e explicou o que ocorrera. Seu movimento sacudiu a cama e Sterling gemeu, embora não quisesse demonstrar a extensão de sua dor.

— Deixe-me ver, Frannie. — Bill aproximou-se.

— Está sangrando demais.

— Às vezes o mais raso dos ferimentos dá a impressão de ser muito grave. Posso examiná-lo?

Frannie anuiu e recuou, deixando de fazer pressão com a toalha. Afastou-se, foi abraçada por Jim e escondeu o rosto no ombro dele, sentindo-se confortada. Ele procurou afastá-la da cama, mas Frannie não podia nem pensar em sair dali.

— Tenho de ficar por perto, Jim. — Ela se soltou e voltou para a cama. — Bill, você precisa de mais luz?

— Sim, por favor.

Frannie ergueu a lamparina da mesa de cabeceira e segurou-a sobre Sterling para que Bill pudesse enxergar melhor.

— Viu como está horrível? — ela falou com o médico.

— Não creio que esteja tão ruim. — Bill pressionou o peito de Sterling e ele prendeu a respiração. — Está doendo, Vossa Graça?

Sterling fitou-o com olhar feroz.

— É, vejo que sim, foi tolice minha perguntar. Deve ter afetado um pouco as costelas. Você o pegou de jeito, Frannie.

— Eu tentava matá-lo. — Ela fez uma careta. — Bem, não Greystone, mas o homem que me atacou.

— E quem era ele? — Jack quis saber.

— Não sei.

— Como não sabe? Você conhece todos os frequentadores do clube.

— Ele não era um de nossos clientes.

— O que ele queria?

— O que um homem quer quando atira uma mulher contra a parede?

— Você o reconheceria se o visse novamente?

— Não podemos deixar o interrogatório para depois?

— Ela fitou Jack com raiva.

— Quanto antes sairmos à procura dele, será maior a possibilidade de o encontrarmos para uma conversa séria.

Frannie olhou para Jim. Ele era da Scotland Yard e deveria estar fazendo as perguntas.

— Não importa quando teremos as questões respondidas — Jim falou com calma. — Eu o encontrarei e tomarei conta dele.

— Não faça nenhuma tolice.

— Tente lembrar-se da aparência do camarada.

— Sei apenas que era moreno, mas o instinto de sobrevivência não me permitiu ver detalhes.

— Talvez o duque tenha reparado.

— Não, estava muito escuro. — Sterling deu um assobio por causa dos procedimentos de Bill.

— Vossa Graça, procure ficar imóvel — Bill avisou-o.

— Vou ter de tirar suas roupas, depois dar alguns pontos e enfaixar as costelas.

Sterling anuiu.

Com a ajuda de Jim, Bill tirou o casaco, o colete e a camisa de Sterling, todos de confecção fina. Frannie, preocupada com o ferimento, nem ficou envergonhada ao ver Sterling de peito nu e apenas refletiu que a estrutura física dele era tão perfeita quanto seu traje.

— Mas o que é isso? — Jack perguntou.

Frannie deu a volta para ver do que se tratava. Nas costas de Sterling havia uma pintura. Era uma criatura incomum que lançava fogo pela boca e estava com as asas abertas.

— É uma tatuagem — Sterling explicou e deitou-se de costas.

— Nunca vi nada parecido.

— Vá ao Japão. — Sterling arqueou uma sobrancelha como se Jack não soubesse onde estava situado o Japão.

— Do outro lado do mundo.

— Frannie, aproxime mais a lamparina — Bill pediu, atraindo a atenção de todos para o problema mais premente.

— Ah, sim, desculpe.

Ela se ajoelhou ao lado da cama, segurando a iluminação de maneira mais adequada e sentiu-se enjoada ao ver o que Bill estava fazendo. Ela desviou a vista e deu com o olhar sofredor de Sterling. Gostaria de desculpar- se novamente, mas temeu aborrecê-lo. Para segurar a mão de Sterling, teria de rodear Bill ou ir para o outro lado da cama. O fato de Jack e Jim estarem observando deixou-a inibida e ela imaginou que poderia deixar escapar. Ela não podia esquecer que Sterling era um duque. Não se casara com Luke por ele ser um conde e no caso de Sterling era ainda pior. Além de ser um duque, ele fora educado e treinado para assumir sua posição. Ele transpirava sangue azul na maneira como se comportava, na postura e nos movimentos. Mesmo naquela altura, ele suportava a dor apenas fazendo caretas.

— Vossa Graça, vamos tentar sentá-lo — Bill avisou. — Por precaução, prefiro enfaixar as costelas.

Frannie afastou-se para que ele pudesse jogar as pernas para fora da cama. Teve a impressão de que sua cama diminuíra com Sterling deitado nela. Assim que se sentou, ele voltou a fitá-la, como se ela tivesse o poder de aliviar o sofrimento dele.

Bill terminou os procedimentos e deu um pouco de láudano para Sterling.

— Sei que Vossa Graça passou por um grande desconforto. O medicamento deverá acalmar sua dor no caminho para casa.

— Quer dizer que ele está em condições de ir embora? — Frannie perguntou.

— Tenho certeza de que ele tem um coche com boas molas. O trajeto será suportável.

— Eu preferia que Greystone ficasse aqui para eu poder cuidar dele.

— Frannie, ele não corre risco de morte. Admito que o ferimento poderá infeccionar, mas...

— É meu dever. Eu deveria cuidar dele, apenas por algumas horas.

— Não tenho objeções — Sterling declarou.

Frannie ficou encantada, embora a voz de Sterling denunciasse sofrimento.

— Então está combinado — ela disse.

— Não sei se é uma boa ideia — Jim declarou. — Sua reputação...

— Por acaso você vai percorrer Londres para espalhar boatos?

— Não, Frannie, mas...

— Oh, Deus, Jim, agora não — ela pediu. — Ajude-me a trocar a roupa de cama.

Quando eles terminaram, Sterling deitou-se de costas e fechou os olhos. A respiração dele não estava tão difícil, mas ele continuava pálido. Depois de argumentar e insistir, Frannie conseguiu convencer Jack e Bill a saírem. Agradava a preocupação dos amigos com ela, mas não queria que eles a pajeassem como se ela fosse uma menina pequena. Jim foi um pouco mais persistente.

— Tem certeza de que não está machucada? — Jim olhou-a de cima a baixo.

Frannie olhou o vestido manchado de sangue.

— Por favor, fique um pouco com ele. Vou me lavar e trocar de roupa.

Frannie não se incomodava em lavar-se e trocar de vestido perto de Jim, separada dele apenas por um biombo. Eles haviam dormido no mesmo quarto e tomado banho junto quando eram crianças. E Sterling adormecera.

Sterling abriu os olhos e não viu os amigos de Frannie. Na certa tinham ido embora. Ele apenas viu a silhueta de Frannie atrás de um biombo. Ela ergueu um braço acima da cabeça e passou a outra mão nele. Deduziu que ela se lavava. Mesmo vendo apenas sua sombra, entendeu que ela estava despida. De imediato, sentiu o corpo enrijecer-se dolorosamente, mas não perto do ferimento, quando ela moveu as mãos pelos ombros e abaixou-as...

— No lugar de Vossa Graça, eu tornaria a fechar os olhos. Sterling virou a cabeça para descobrir que seu pior pesadelo estava sentado a seu lado. Jim não tirava os olhos dele.

— Seria uma infelicidade se Graves houvesse se enganado a respeito da gravidade de seu ferimento e Vossa Graça de repente morresse. Frannie ficaria muito desapontada — Jim comentou.

— E você não gostaria de vê-la desapontada.

— Esse é o único motivo por Vossa Graça ainda estar respirando.

— Para alguém que deve sustentar a lei, suas ameaças são um tanto desordenadas.

— Quando se trata de Frannie, tenho minhas próprias leis.

— Como eu já afirmei antes, não tenho intenção de fazê-la sofrer. Esta noite eu poderia ter salvado a vida dela e espero apenas uma ponta de reconhecimento.

— Essa é a diferença entre nós, Vossa Graça. Se eu salvasse a vida de Frannie, jamais esperaria agradecimentos, nem mesmo os desejaria.

Frustrado, Sterling sacudiu a cabeça.

— Não importa o que eu faça, Swindler, você sempre achará errado. Vá para o inferno.

Jim riu baixo.

— Eu o levarei comigo.

— Já estou lá, Swindler.

Jim pareceu surpreso e estreitou os olhos.

— Não achei que o ferimento fosse tão sério.

— Isto — Sterling espiou as ataduras ao redor do peito — não é nada. Você se vangloria em pensar que o demônio visita apenas os pobres e os destituídos. Honestamente, inspetor, começo a me aborrecer com sua visão farisaica de que apenas você sabe o que é o inferno.

Jim não chegou a responder. Frannie saiu de trás do biombo, vestida de preto, como se Sterling já tivesse morrido e ela estivesse pronta para o funeral. Sterling desejava vê-la vestida de verde ou de preferência sem nada.

— Vossa Graça já acordou.

— Acabei de abrir os olhos. Frannie sorriu para Jim.

— Obrigada por cuidar dele enquanto eu me arrumava. Agora já pode ir, está dispensado.

— Frannie, não creio que seja sensato deixá-la sozinha...

— Jim, estou com meu punhal. — Ela bateu no quadril.

— Ele já está consciente que sei como usar a arma. Além disso, ele arriscou a vida e por isso merece um pouco de confiança.

Antes de se levantar, Jim destinou a Sterling um último olhar rancoroso capaz de matar um incauto. Foi até a porta e parou para tocar na face de Frannie.

— Cuide-se.

Frannie seguiu-o até a porta, sorriu e empurrou-o delicadamente até a varanda. Entrou e trancou a porta. O seguidor de Sykes fugira, mas não custava prevenir-se caso ele retornasse. Com um suspiro de cansaço, ela foi até a cama, observada por Sterling.

— Esse inspetor... a ama — Sterling afirmou.

— Assim como os demais meninos de Feagan. — Frannie fez pouco-caso das palavras dele e sentou-se.

— Não como ele.

— Somos amigos, nada mais.

— Por que mentiu para eles? — Sterling jogou os pés para o lado da cama e sentou-se. — Você sabe quem a atacou e também não ignora o que ele queria.

— Não o conheci e eles se preocupariam à toa.

— Eu não estava tão perto para escutar tudo, mas ouvi o nome Sykes. Ele tem algo a ver com o garoto?

— É possível. Jimmy fugiu. Passei o dia todo nos cortiços à procura dele e vim embora com quatro meninos, mas sem Jimmy. Presumo que Sykes estivesse do lado de fora de sua residência ontem à noite e provavelmente viu quando nós levamos o menino para o orfanato. Ele pode ter me visto entrar em sua casa e ter me reconhecido. Não sei. Talvez Jimmy tenha dito alguma coisa.

— Por que não explica isso para Swindler? Ele poderia prender esse tal de Sykes.

— Não é contra a lei fazer ameaças.

— Ele mandou alguém para machucá-la.

— Não tenho prova de que Sykes está por trás disso. Não vi direito o assecla dele, portanto não há testemunhas. Mesmo se eu soubesse quem me atacou e Jim o localizasse — Frannie meneou a cabeça — ninguém testemunharia contra Sykes. Ele é a encarnação do demônio.

Frannie não gostou da maneira como Sterling a analisava, como se pudesse ler seus pensamentos.

— Você nada contou a eles por saber que tentariam resolver o problema.

— E por isso correrão riscos. E porque...

— Por quê?

— Quais deles o ameaçaram?

Frannie viu um músculo do queixo de Sterling pular. Homens! Sempre orgulhosos. Eles queriam resolver os próprios problemas, não demonstrar fraqueza, não pedir ajuda. Por que não entendiam que, às vezes, uma mulher sentia necessidade da mesma consideração?

— Todos — Frannie disse com convicção.

— Não é verdade. Frannie anuiu, pensativa.

— Bill não faria isso, por ser médico. Ele não pode ver ninguém sofrer. Mas os outros... Eu amo os rapazes e sempre os amei. Mas às vezes sinto como se eles me sufocassem.

— A ajuda deles é necessária.

Frannie sabia disso, mas ela também queria sua independência.

Sterling segurou a mão e passou o polegar sobre os nós dos dedos de Frannie. Ele procurava qualquer desculpa para tocá-la, como se a proximidade agradasse tanto a ele como a ela.

— Venha ficar na minha casa por alguns dias.

— E ir para sua cama?

— Não, a menos que seja essa sua vontade. — Sterling gemeu, pegou a camisa e começou a vesti-la. — Depois de ser atacada esta noite, tudo poderá ficar... mais difícil.

Frannie piscou para afastar as lágrimas. De certa forma não fora como antes, mas assim mesmo as memórias terríveis haviam voltado.

— Você quase me matou, o que poderia ser trágico. Frannie sorriu.

Como ele podia fazê-la rir e chorar ao mesmo tempo?

— Sei que se sentirá culpada por isso e ainda terá de se preocupar com esse tal de Sykes. Como poderá raciocinar com clareza, Frannie? Ele não ousará procurá-la em minha casa. Mesmo que ele a tenha visto a noite passada, não imaginará que eu a convidei para voltar.

— Meus órfãos...

— Sobreviverão alguns dias sem a sua presença e os empregados cuidarão deles. Além do mais, preciso de uma enfermeira para ajudar-me na recuperação e você será a pessoa ideal. Quando foi a última vez que teve alguns dias sem se preocupar com nada?

Ficar na casa dele acarretaria outro conjunto de preocupações. Poderia ficar ao lado dele e não o desejar?

— Meu coche está esperando no final da rua.

— Pobre cocheiro...

— Ele está acostumado a esperar até a madrugada quando é necessário e eu o pago muito bem por isso. — Ele enrolou na mão o colete e o casaco. — Venha comigo, senão terei de ficar aqui. Não se ofenda, mas aqui falta comodidade. Dodger está se aproveitando de sua bondade e precisa elevar seu salário. Posso mandar meu advogado discutir o assunto com ele.

— Não tenho queixas em relação a meu pagamento. — Pela primeira vez, viu as próprias acomodações pelo olhar de Sterling. Eram bastante... depressivas. — Meu dinheiro tem um destino melhor no orfanato.

— Mas sacrificar tudo...

— Não sacrifico o que eu realmente desejo. — Exceto Sterling.

Ela estava argumentando para não ir, quando era isso o que ela mais desejava.

— Venha comigo. Meus criados e eu a encheremos de mimos.

— Vossa Graça é quem deve ser cuidado. Sterling sorriu. Frannie caíra na armadilha dele.

— Ótimo. Permitirei que cuide de mim.

— Eu o levarei até sua casa — ela concedeu.

— E ficará.

— Até a madrugada, só para ter certeza que você está bem. O sorriso de Sterling era de quem conseguira o que queria.

Quando chegaram à residência dele, ele ajudou Frannie a descer do coche e afirmou em voz baixa e sensual.

— Felizmente você não especificou qual madrugada.

Eram quase duas da manhã, mas o mordomo de Sterling saudou-os na entrada do saguão. Pegou o agasalho de Frannie, além do colete e do casaco amassados. A camisa suja de sangue não foi tirada e o pobre homem assustou-se.

— Por Deus, Vossa Graça. Mandarei buscar seu médico imediatamente.

— Não há necessidade, Wedgeworth. Já fui atendido e não há nada mais com que se preocupar. A srta. Darling ficará esta noite nos aposentos de lady Catherine. Peça a uma das criadas que a atenda no que for necessário.

— Sim, Vossa Graça.

Parecia estranho, mas Frannie não se sentiu constrangida quando Sterling a conduziu escadaria acima rumo ao pavimento onde se encontravam os quartos de dormir. Pensou na última vez em que estivera ali e no que acontecera. Ele podia dizer que nada esperava dela, mas era mentira, o que também não a aborrecia. A sinceridade com ela mesma a fez admitir que estava ali porque nada poderia recusar a Sterling.

— Eu mencionei o quanto estou feliz por tê-la aqui? Ela o fitou e sorriu.

— Não creio tê-lo ouvido comentar isso.

— E quero que se alegre por ter voltado à minha casa.

No alto da escadaria havia um corredor tão largo que, apesar de mesas e cadeiras alinhadas nas paredes, permitia livre trânsito de pessoas. Frannie imaginou que, durante os bailes, as damas ali trocassem confidencias enquanto retocavam a toalete.

— É este o aposento — ele a conduzira até uma porta aberta.

Ela espiou o forro artístico, a grande cama de dossel, um luxo que ela não tinha desde que deixara a residência dos Claybourne.

— É magnífico.

— Mesmo sem ser de seu gosto?

— Sim, mas eu me adapto.

Com o canto do olho, Frannie viu uma mulher caminhar com calma pelo corredor depois de subir pela escada dos fundos que era a de serviço. Frannie surpreendeu-se por Sterling não se virar diante da aproximação da jovem.

— Vossa Graça. — A moça fez uma reverência respeitosa. Foi então que Sterling tomou conhecimento dela.

— Agnes, quero que atenda às necessidades da srta. Darling enquanto ela estiver aqui.

— Pois não, Vossa Graça.

— A srta. Darling fará uso do guarda-roupa de lady Catherine.

— Isso não será necessário — Frannie protestou.

— Fique à vontade, mas saiba que Catherine deixou roupas que não voltará a usar. Os trajes dela, assim como tudo nessa casa, poderão ser utilizados a seu bel-prazer. — Sterling deu um passo à frente, tomou a mão e beijou-a. — Frannie, agora vou me recolher e deixá-la fazer o mesmo.

Sterling parecia exausto e ela entendeu que o sangramento devia tê-lo enfraquecido.

— Eu tomarei conta de milorde.

— Será melhor dormir primeiro. Swindler me matará se a senhorita adoecer. Além disso, preciso me lavar e tirar as roupas sujas de sangue.

Frannie anuiu e viu Sterling dirigir-se a um quarto do outro lado. Ela planejara ficar até a madrugada e não pensara em dormir ali. Escutou um ruído, virou-se e viu Agnes tirando uma camisola de uma gaveta aberta.

— A senhora gostaria que eu mandasse preparar um banho? — Agnes deu um sorriso tímido.

— Ah, é muito tarde para se preocupar com isso.

— Se a senhora quiser, não será incômodo nenhum. Frannie pegou a camisola e surpreendeu-se com a maciez do tecido.

— Volte para a cama, eu mesma me trocarei.

— Mas Sua Graça...

— Ele não ficará sabendo. Agnes fez uma pequena cortesia.

— Sim, senhora. Obrigada, senhora.

Frannie trocou-se, escovou os cabelos e foi para a cama. Depois de olhar por alguns minutos o sobrecéu, virou-se de lado e observou a luz que entrava pela janela. Seria do luar ou de um lampião? E o que isso importava? Se ficasse na residência de Sterling até a madrugada, certamente o sol não entraria no quarto.

Afastou as cobertas para um lado, saiu da cama, foi até o corredor e encostou a palma na porta dos aposentos de Sterling. Pensou como ele distraíra os meninos com suas histórias na exposição, em como mandara chamá-la em vez de um policial, quando descobrira o menino em sua casa. Sterling também dera muito prazer na noite da ópera e se arriscara naquela noite.

Sterling a deixara confiante como mulher e, mesmo que não se casasse com ela, outro poderia fazê-lo. Mas a vida era precária e oportunidades nem sempre apareciam. Sterling era um homem de quem ela gostava muito. Talvez o pouco fosse suficiente para ela.

Frannie abriu a porta e entrou. Sterling fitou-a imediatamente, o que a fez supor que não o acordara.

— Vim ver como está passando. — Ela foi até a cama.

— Está com muita dor?

Ele negou com um gesto de cabeça.

— Meu criado de quarto deu-me um pouco de láudano.

— Então você não deveria estar com problema de insônia.

— E quanto a você?

— Estou ótima, ainda mais com a certeza de que está tudo bem com você.

— Você me disse uma vez que acha confortante dormir, e apenas dormir, com alguém. Se quiser, estou de calça... — Sterling levantou as cobertas à guisa de convite.

— Desconfiava que eu viria.

— Eu tinha esperança que o fizesse.

Frannie deixou a lamparina na mesa, deitou-se na cama ao lado dele, pôs a cabeça em seu ombro e Sterling abraçou-a.

— Viu só? Eu disse que ficaria mais confortável aqui — Ele arrastou as palavras por efeito do medicamento. — Quero conhecê-la de verdade, Frannie. Apesar de ter agido como se o ataque de hoje afetasse só a mim, sei que deve ter-se sentido apavorada com isso.

Frannie acariciou o peito.

— Creio que eu estava furiosa. Sempre tomo muito cuidado quando vou até os cortiços e assim mesma fui surpreendida. E tive vontade de acabar com ele diante da menção a Sykes.

— Essas visitas aos cortiços são sempre feitas à noite? Teria de mentir para ele.

— Frannie? — Sterling cutucou-a no braço.

— Algumas vezes.

— Sozinha?

— Mas que insensatez, Frannie, por acaso não sabe o perigo que isso representa?

— As crianças não se aproximarão de mim se eu não estiver sozinha.

— Eles não são mais importantes do que você. Contrate uma pessoa que possa perscrutar a área sem ser visto, mas que não a perca de vista.

— Você está se tornando tão opressor quanto os meninos de Feagan.

— Por que você está se tornando muito preciosa para mim. — Sterling beijou-a no alto da cabeça. — Por favor não ande mais sozinha por lá.

Frannie anuiu. Era mais fácil quebrar promessas quando eram mudas.

— O que é o desenho das suas costas? — Frannie mudou de assunto.

— Um dragão.

— Por acaso o viu em suas viagens? Eles existem?

— Pelo que eu saiba, só em lendas. Segundo uma delas, São Jorge matou um dragão.

— Não sei nada a respeito.

— Talvez eu conte a história algum dia.

— A tatuagem vai desaparecer?

— Não.

— Então por que permitiu que fizessem o desenho?

— Pelo que eu me lembro, eu estava bêbado e achei que seria uma boa ideia.

— E por que um dragão?

— Simbologia. Todos nós temos de enfrentar um dragão vez por outra.

— Então não se trata de uma coisa boa.

— Depende se o derrotarmos e tudo fazia sentido quando eu estava embriagado.

— Você matou o seu?

— Na época, pensei que sim.

Sterling acariciava o braço enquanto falava, e Frannie desejou que seu vestido não tivesse mangas. Deitar-se ao lado do duque era diferente do que se deitar com os meninos quando era criança. O corpo e a fragrância eram de um homem.

— Eu podia tê-lo matado — ela considerou de repente.

Sterling ficou imóvel. Depois a abraçou com força.

— Mas não matou e mesmo que o houvesse feito, não teria sido sua culpa.

— De qualquer forma eu poderia ser executada por matar um lorde.

— Swindler não teria deixado isso acontecer.

Era verdade, Jim a protegeria, como fazia com tantos outros.

— Não me agradaria se você tivesse morrido.

— Eu também não gostaria de morrer.

Frannie sentiu o peito dele erguer-se como se estivesse no meio de um suspiro e parar de repente pela dor do ferimento.

— Não sei se eu diria o mesmo há um ano — Sterling acrescentou.

Frannie ergueu-se em um cotovelo e fitou as pálpebras pesadas.

— É estranho ouvir isso. Nas piores fases de minha vida, nunca desejei a morte.

— Como pode ser tão otimista, mesmo vendo coisas tão terríveis?

— Feagan costumava dizer: Frannie querida, não importa quão ruim esteja a situação, ela sempre pode piorar ou melhorar. Esperar o pior não a desapontará e esperar o melhor sempre a deixará na expectativa. Prefiro esperar o melhor.

— Onde você se escondia quando eu era um jovem raivoso?

— Provavelmente na mansão dos Claybourne, usufruindo o que havia de melhor, sem que isso me agradasse. Eu tinha saudades de Feagan e Claybourne proibia que o visitássemos. — Frannie ajeitou-se novamente no calor do ombro de Sterling. — Contudo tenho certeza de que isso não impedia Jack de voltar lá. Ele não gostava de receber ordens.

— Aposto nisso.

— Ouviu falar que ele se casou recentemente?

— Não. Quem haveria de querê-lo? Frannie riu.

— Eu o aconselho a ter melhor opinião a respeito de meus amigos.

— Talvez eu o faça quando eles pararem de me ameaçar.

— Eles continuam a ameaçá-lo?

— Ultimamente, não. E quem é a infeliz dama?

— A viúva de Lovingdon.

— Olívia? Mas que surpresa.

— Nem me fale, mas parece que são muito felizes.

— A felicidade dos outros a delícia.

— Sem dúvida e não é como deve ser?

— Pois eu nunca me preocupei muito com isso. Frannie desenhou círculos no peito de Sterling.

— Eu deveria deixá-lo dormir. Sterling segurou mão de Frannie.

— Fique comigo.

A respiração de Sterling ficou mais lenta e uniforme. Frannie entendeu que se ele acordasse primeiro, não se aproveitaria dela. Luke garantira isso revelando a Sterling o passado dela, mas esse conhecimento talvez nem fosse necessário. Embora ele fosse um lorde e acostumado ao poder, era também um cavalheiro.

Assim, ela adormeceu pensando que Sterling era seu cavalheiro.

Sterling acordou deitado na parte sadia do corpo, abraçando Frannie e com a mão no busto dela de forma inocente, em uma posição que jamais estivera com outra mulher. Sempre tocara em uma mulher com desejo e propósitos. Admitiu que gostaria de tocá-la novamente dessa maneira. Mas teria de ser no compasso de Frannie, quando ela estivesse pronta. Frannie estava de costas, aconchegada em seu corpo e a reação dele não era tão inocente. Ele se afastou um pouco, pois não desejava que ela acordasse e se sentisse importunada pela ereção.

Com um suspiro, Frannie tornou a se aconchegar.

Que situação. Ele tentava ser um cavalheiro e ela o provocava. Ele concentrou-se no som da chuva batendo na vidraça, o que o fez pensar em água, no banho que Frannie tomara, em como vira a silhueta dela atrás do biombo e sentiu-se ainda mais excitado. Começou mentalmente a catalogar todos os tesouros que trouxera de suas viagens: vasos, estatuetas, cerâmicas e joias. Seu corpo começou a responder à falta de imagens excitantes. Lembrou-se das sacudidelas da viagem sobre o camelo. Pensou no medo que o invadira quando fora atacado por um tigre e Wexford o matara. Se houvesse morrido, teria perdido a sensação maravilhosa de estar deitado com Frannie nos braços, sentindo a fragrância dela, o corpo separado do dela apenas por uma fina camada de tecido.

Sterling disse uma imprecação quando a dor retornou.

— Você sempre acorda de mau humor? — Frannie perguntou.

— Há quanto tempo está acordada?

— Não muito.

Frannie afastou-se dele e saiu da cama. As cortinas estavam fechadas, mas a lamparina acesa permitiu-o vê-la claramente.

— A despeito do que aconteceu na minha adolescência, não receio intimidades. Tenho medo de falta de honestidade. Seja sempre honesto comigo.

Sterling fitou-a de alto a baixo.

— Eu a desejo... desesperadamente. Frannie sorriu com malícia.

— Eu sei. Infelizmente para você, estou com vontade de tomar o desjejum.

Sterling deitou-se de costas, começou a rir e amaldiçoou a reação infeliz que causava dor nas costelas.

— Ou talvez fosse felizmente. Ele a fitou.

— Não me faça rir.

— Ficarei até a madrugada de amanhã.

Frannie saiu do quarto, Sterling fitou o dossel púrpura e planejou a recuperação mais rápida de que se tivera notícia.

Sterling prometera mimá-la e por isso pediu para que o café da manhã fosse servido na cama, mesmo que fosse na dele e com a bandeja de comida entre eles. Frannie estava sentada aos pés da cama, usando um dos vestidos mais simples de Catherine, enquanto ele estava recostado nas almofadas na cabeceira. O criado trocara suas ataduras e o ajudara a vestir calça limpa e uma camisa folgada que o deixava à vontade.

— Suponho que por trabalhar no Dodger's, deve estar familiarizada com os comportamentos mais inadequados — Sterling afirmou, espalhando geleia na torrada.

— Também fiz um juramento para manter segredo sobre o que eu via. Jack sempre fez questão de garantir a privacidade de nossos clientes.

— Uma pena. Imaginei que você conhecesse histórias fascinantes.

— Bem... creio que poderei contar uma. — Frannie sorriu, matreira.

— Diga. — Sterling endireitou-se.

— Uma noite, por volta da meia-noite... — Frannie sacudiu a cabeça — não sei se devo contar.

— Nada direi a ninguém.

— Promete?

— Prometo.

— Está bem. — Frannie ficou séria, o que aumentou a ansiedade de Sterling. — Foi uma vergonha. Lancei no livro uma coluna errada de números, Jack descobriu e fiquei mortificada.

— Números...

— Sou a guarda-livros e, em regra geral, os números não se comportam tão mal.

— Então você mantém-se absorta na contabilidade e nunca espiou pelos olhos-mágicos?

— As pessoas têm direito à privacidade e a ter segredos.

— Isso é desanimador. Tenho visto mulheres dançando quase sem roupas.

Foi a vez de Frannie endireitar-se.

— Verdade?

Sterling anuiu e mordeu um pedaço de torrada.

— Elas são capazes de ondular os ventres como se fossem cobras. Muito interessante. Você deveria pensar em convidá-las para trabalhar no Dodger's. Acredito que os cavalheiros nem pensariam em sair.

— Uma sugestão pertinente. — Frannie deixou o prato de lado, levantou os joelhos e abraçou-os. —Nem posso imaginar tudo o que você já viu.

— Foi realmente maravilhoso. Meu pai não concordou com minha decisão de partir e discutimos muito sobre isso. Ele afirmou que se eu partisse, nunca mais desejaria me ver. Ele achou que eu estivesse priorizando minhas vontades, esquecido de meus deveres, com o que de certa maneira eu até poderia concordar. Ele não me entendia e garantiu que eu poderia conhecer o mundo mais tarde.

— Com certeza ele não falava sério quanto a não vê-lo mais.

— Voltei para a Inglaterra quatro meses antes de ele morrer. Vim visitá-lo e Catherine não se encontrava em casa. Meu pai estava enfermo e não falava, mas a enfermeira disse que ele se comunicava com os olhos. Porém, como dissera antes, ele se recusou a olhar para mim.

Sterling não pretendia contar a Frannie que o pai se envergonhava pelas limitações do filho. Talvez ele mesmo se envergonhasse. Frannie trabalhava na ruas sombrias de Londres e ali ele também poderia ser cego-a despeito de todo bem que sua visão limitada impunha.

— Pelo menos você conheceu seu pai.

— Sim e suponho que haja consolo nisso. Frannie encostou o queixo nos joelhos.

— E por ter voltado, você se ocupará com seus deveres.

— Exatamente. Terei uma vida tediosa, mas não filhos que possam aborrecer-me.

O riso de Frannie foi forçado e Sterling compreendeu que, devido às circunstâncias, não deveria conversar com ela a respeito da mulher com quem deveria casar-se, mas ela pedira honestidade.

— Frannie, eu não sou o marido ideal.

— Está se subestimando, embora eu nada espere de você. Pode ficar descansado. Nunca sonhei em tornar-me duquesa.

— Pensei que todas as jovens sonhassem em casar-se com um duque.

— Oh, não. Eu preferia um rei — ela caçoou,

— Creio que Ana Bolegna pensava o mesmo. Frannie riu e Sterling adorava ouvi-la rir.

— Ah, você é impossível. Sorrindo, Sterling deu de ombros.

— Está certo, rainha Frannie.

— Ah, que tolice! Na verdade, não me vejo casada.

— Seus órfãos preencherão sua vida?

— Acredito que sim. — Frannie olhou pela janela. — Eu deveria estar procurando outras crianças.

— Nesse tempo horroroso? Na certa elas deverão estar dentro de casa.

— Se tiverem lugar para ir. — Frannie suspirou. — É bom ler o tempo, não é? Você lê muitos livros?

— Não tantos como eu costumava. Ultimamente e leitura têm-me deixado com dor de cabeça.

— Óculos poderiam ajudar. Sterling não queria negar o fato.

— Vou pensar nisso.

— Você gosta de Dickens?

— Achou as histórias dele bastante tristes.

— Creio que ele escreve sobre o que sabe. Talvez eu leia para você hoje à tarde.

— Eu gostaria muito.

Frannie saiu da cama e reuniu os pratos vazios.

— Chame um criado — Sterling disse.

— Posso fazer isso sozinha. Ele segurou o pulso.

— Frannie, por que insiste em lembrar-me das diferenças que existem entre nós?

— Estou lembrando a mim mesma para permanecer honesta com você a respeito do que e de quem eu sou. Eu só fingia ser o que não era quando queria enganar alguém para conseguir o que eu queria. Você sabe que há pessoas que bondosamente acolhiam um soldado abandonado pela sorte? O soldado e sua pequena filha. E enquanto a família generosa estava dormindo, juntávamos o que eles tinham de valor e nos esgueirávamos noite adentro. Nunca se esqueça que já fui um dos gatunos que você prefere manter longe de sua casa.

— E eu fui um jovem que priorizava seus próprios prazeres em detrimento dos deveres. Nós todos mudamos, Frannie, e recompensamos nossas falhas passadas. Você roubava e eu desapontei meu pai. Agora você faz boas obras e eu honrarei minhas responsabilidades e meu título. A sua feição atual é que me intriga e desperta meu interesse de forma incomum.

— Não quero aparentar algo que não sou nem seria capaz de ser. Não quero enganá-lo.

— Você faz tão pouco de mim a ponto de acreditar que posso ser facilmente enganado? Fui desencorajado várias vezes e assim mesmo você acabou na minha cama. E a meu convite, segundo me recordo.

— Isso poderia fazer parte de meu plano bem concebido. É como trabalhamos. Nós fazemos a pessoa acreditar no que precisamos para poder tirar vantagem.

Sterling soltou o pulso, recostou-se nos travesseiros e abriu os braços.

— Pode tirar quantas vantagens quiser.

Frannie olhou-o por inteira e o corpo de Sterling reagiu no mesmo instante. Ele a observou engolir em seco e passar a língua nos lábios. Depois ela pegou a bandeja e piscou.

— Está vendo? Agora você não está em posição de impedir-me de tirar os pratos e era isso o que eu desejava.

Sterling riu. Ele não acreditava nela, mas se era esse o jogo, ele concederia a derrota para sair vitorioso mais tarde.

— Descanse agora, milorde, para recuperar suas forças.

Sterling observou-a sair do quarto e fechou os olhos. Frannie estava certa. Ele precisava recuperar rapidamente as forças. Os minutos se escoavam e uma vez que ela fosse embora, seria muito difícil fazê-la voltar.


Capítulo Oito


Enquanto Sterling descansava, Frannie foi para sala que se projetava para o jardim com três paredes de janelas e um telhado de vidro onde a chuva batia e reverberava. Ela desejava fugir não apenas dele, mas, sobretudo, de si mesma. Poderia ela olhar-se no espelho depois de se entregar a um homem que jamais a desposaria e com o qual ela não pretendia se casar? Seria tão errado querer saber o que era ser desejada ao menos uma vez na vida?

Sterling era um homem de paixões, de aventuras e a desejava. Isso havia sido mais do que evidente quando ela acordara naquela manhã e sentira a pressão nas nádegas.

A proximidade de Sterling a entusiasmava.

Sterling não se importava com o passado dela, nem que ela tivesse sido uma gatuna. Frannie jamais gostara dos tempos em que Feagan fingia ser um soldado, quando as pessoas eram bondosas com eles e, como retribuição, elas ficavam sem seus pertences. Mesmo sabendo por instinto que cometiam erros, ela fazia tudo para agradar Feagan.

Ela usava a desculpa que o avô de Luke proibia as crianças de visitarem Feagan para explicar por que nunca mais o vira. Na verdade ela se envergonhava das coisas que Feagan pedira para fazer. Em parte esse era o motivo por ela gastar tão pouco com si mesma e ter tão poucas coisas. Quando era menina, apossara-se do que não pertencia e naquela altura, tentava redimir-se. Se pudesse ensinar crianças a não violarem a lei, se pudesse provê-los com bons exemplos a serem seguidos, se pudesse desfazer as lições que haviam aprendido...

Talvez não se sentisse tão manchada pelo passado e pela associação com Feagan.

— Eu gostaria de um dia de sol para fazermos um piquenique no jardim — Sterling disse ao sentar-se ao lado de Frannie.

— Gosto de chuva. — Ela sorriu. — Devo ser a única pessoa da Inglaterra a ter essa predileção.

— Acho o mau tempo melancólico.

— Prefiro pensar nele como um período destinado à reflexão.

— Você é uma eterna otimista. E sobre o que estava refletindo?

— Nada importante. Como está se sentindo agora?

— Um pouco dolorido, mas confiante que a sobrevivência será meu futuro.

Pelo olhar estreitado e pela testa franzida, Frannie deduziu que a dor não o abandonara. Por que os homens sempre davam a impressão de serem fortes?

— Quero agradecê-lo novamente por mandar o sapateiro.

— Isso melhorou sua opinião a meu respeito?

— Sim.

— Então valeu a despesa.

— Estive pensando em fazer placa com o nome de nossos beneméritos para pendurar na parede. Seria um bom gesto de reconhecimento, não acha?

— Prefiro ficar no anonimato. Fiz isso por sua causa e não pela glória.

— E eu que pensei que você houvesse tomado essa atitude pelos meninos.

Sterling mirou a chuva e corou ligeiramente, mas Frannie suspeitou que isso nada tivesse a ver com o ferimento. Sterling fizera isso por ela, para agradá-la e conseguir seus favores. Outro ramalhete de flores não teria o mesmo efeito. Para ela significava muito ele entender o que era importante para ela e o que não era;

— Gostaria de vestir-se para jantar esta noite?

— Sim. Encontrei um vestido de Catherine que me servirá perfeitamente.

Ele a fitou.

— Fico feliz com isso. Pedirei à cozinheira para fazer algo especial. Existe algo que não a agrade?

— Pela infância que eu tive, fico agradecida por qualquer tipo de refeição.

— Vejo que não é difícil agradá-la.

Frannie tentou se lembrar de que ele era um duque, mas com a chuva que os impedia de sair, era como se o mundo real não os rodeasse. Por algumas horas poderiam fingir que pertenciam ao mesmo universo.

— Temos algum tempo antes do jantar — alegou. — Quer que eu leia para você?

— Somente se nos sentarmos no sofá para que eu possa esfregar seus pés enquanto estiver lendo.

Frannie sorriu.

— Sterling, nós fizemos um trato.

O jantar foi servido no mesmo cenário íntimo de antes, mas sem música. Menos velas foram acesas, pouco se falou e parecia que não se respirava. Frannie imaginou se o corpete um pouco apertado a fazia perder o fôlego, mas desconfiava de que o motivo era a maneira de Sterling a olhar, como se ela fosse uma sobremesa apetitosa.

Ele se vestira com a mesma formalidade usada na ópera, atraente como sempre. Por cima da borda da taça de vinho ele a analisava com langor, o que fazia brilhar e escurecer o azul de seu olhar. Era uma combinação estranha e inebriante saber que ela o afetava daquela maneira.

Frannie tomara banho antes e experimentara todos os perfumes dos frascos que enfeitavam a penteadeira de Catherine até encontrar um que a fizesse lembrar-se de ninfas brincando em um jardim. Preferia fragrâncias leves, talvez porque em sua infância tivera de usar perfumes fortes que mascaravam o cheiro fétido dos cortiços. Naquela altura, ela procurava comportar-se de maneira oposta ao que fora acostumada a fazer antes.

Mesmo assim, sentia-se mal preparada para o momento.

— Relaxe, Frannie — Sterling aconselhou-a com voz calma que teve o poder de tranquilizar o coração disparado. — Nada acontecerá esta noite contra sua vontade.

— E se não acontecerem coisas que você deseja?

— Ficarei desapontado, mas sou capaz de suportar um desapontamento. Você não terá de conviver com a noção de que foi forçada a agir contra sua vontade. — Sterling compreendia o significado do que dissera. — Nada será como antes.

— Eu não estaria aqui se essa não fosse minha expectativa. Sterling bateu a taça de vinho contra o dela que permanecia ao lado do prato.

— Eu agradeço por estar preocupada com a minha recuperação.

— E eu estou satisfeita por seu ferimento não ser tão severo como eu imaginava.

— Sou duplamente agradecido. Suponho que Swindler deve estar procurando pelo culpado.

— Provavelmente. Mesmo sem uma descrição detalhada ele conseguirá descobrir o assaltante. Ele é um perito nesse assunto.

— Você o admira. Frannie ficou séria.

— Admiro todos os meninos de Feagan.

— Eu acho que eles parecem mais os meninos de Claybourne do que os de Feagan. Claybourne acolheu todos, não foi?

— Sim, mas Feagan ensinou-nos sozinho e Claybourne contratou tutores. É muito fácil realizar alguma coisa quando se tem meios para comprar o necessário.

— Você também admira Feagan.

— Não sei se admirar seria a palavra certa. — Frannie pensou no assunto. Alguns aspectos de Feagan a desapontavam, mas não podia negar que ele cuidava das crianças que levava para casa. — Suponho que seja. Ele nos ensinou artes questionáveis, mas de certa forma nos deu um lar. Tenho pensado em dar o nome dele ao orfanato.

— Lar das Crianças Feagan? Ele merece essa honra?

Frannie tomou dois goles de vinho. Embora soubesse que Sterling desejava apenas uma noite de amor, sentiu-se na obrigação de perguntar.

— Sua consideração por mim diminuiria se soubesse que eu acredito na possibilidade de ser filha dele?

Sterling pensou, girando a taça de vinho.

— Posso acreditar que uma pessoa eleve seu status na sociedade baseando-se em seus ancestrais, mas ultimamente aprendi a julgar o indivíduo por seus méritos e realizações.

Frannie sorriu.

— Um ponto de vista incomum, bastante raro eu diria.

— Se ele fosse seu pai, não teria dito nada?

— Foi o que imaginei e uma vez perguntei para Jack que sabe de muitos segredos.

— O que ele disse?

— Evitou responder e não tenho certeza se foi por achar que eu me desapontaria com uma resposta, qualquer que ela fosse ou se estava tentando me proteger.

— Os segredos sempre acabam descobertos.

— Você também tem segredos, Sterling?

— Todos nós temos segredos.

Frannie não podia imaginar que os dele fossem quase tão sombrios quanto os dela.

Sentada diante do toucador e vestida com uma das camisolas de Catherine, Frannie escovava os cabelos. Cem escovadelas. Essa fora uma das regras de Feagan. Ela sempre se perguntava se alguma mulher escovara os cabelos diante ele. Feagan a amara e fora amado por ela. Ele, porém, nada revelara sobre o passado. Mas naquela noite ela não queria refletir sobre suas origens. Estava interessada apenas no presente.

Sterling se despedira dela na porta do quarto, dando a impressão que não viria procurá-la.

Ele nunca se casaria com ela e, portanto, deixara a decisão de passarem ou não uma noite juntos ao encargo dela. Frannie olhou-se no espelho. Procurar por vontade própria um homem que não faria dela uma mulher honesta...

Porém não seria mais desonesto negar a si mesma o prazer que desejava tanto? Depois da ópera, Sterling a fizera experimentar uma pitada do prazer que ela encontraria nos braços dele.

Havia dezoito anos um homem a deflorara e ela trancara em um canto escuro de sua mente a repugnância daquelas mãos rechonchudas beliscando e puxando, o corpo que se cravava no dela, a dor, do sangue, o eco dos próprios gritos e das risadas hediondas dele...

Então as lembranças retornavam, esperando serem substituídas por algo forte que as destruísse.

Sentado em uma poltrona ao lado da lareira de seus aposentos, Sterling olhava as chamas que diminuíam como sua visão. Além dessa pouca luminosidade, apenas uma lamparina acesa ao lado de sua cabeceira. Vestia calça e as ataduras de seu ferimento ao redor do peito.

Desde o momento em que beijara Frannie na biblioteca de Claybourne, pensara em seduzi-la, em levá-la para a cama. No entanto ele fora o seduzido para tornar-se um homem melhor. Decidira deixá-la ir, sem ter o gosto de uma apreciação plena. Ela o rebaixara além da conta com

Dickens, com os órfãos, e com sua habilidade de deslindar intenções nobres mesmo naqueles com passado criminoso. No mundo da aristocracia, havia o certo e o errado, o bem e o mal. O universo de Frannie não admitia o absoluto; era o mundo cinzento como o dele estava se tornando. A ironia não escapou a Sterling. A noite, nada era claro. As linhas ficavam borradas e as sombras removiam definições.

Os sonhos de Frannie levavam-na às partes mais escuras de Londres onde ele não podia segui-la nem mantê-la em segurança. Os sonhos de Sterling haviam deixado de existir havia muito. Cumpriria seus deveres e assumiria suas responsabilidades, mas não poderia levar Frannie com ele. Mesmo se desejasse incluí-la, Frannie não desejava a vida de um aristocrata. Ele não podia ignorar o legado que recebera. Para honrar seu título, pagará um preço muito mais alto que seu pai poderia ter imaginado.

Escutou o clique da porta sendo aberta e uma onda de satisfação atingiu-o. Mesmo se Frannie estivesse ali apenas para dormir em seus braços, ele se contentaria com isso. Adotaria a tendência de encontrar alegria nos pequenos prazeres. Dormir com ela aninhada a seu lado era a maior das doçuras.

Sterling deixou a taça de conhaque sobre uma pequena mesa, ficou em pé e virou-se. Frannie estava ao pé da cama, abraçada em uma das colunas. Descalço, ele caminhou em cima do tapete grosso e aproximou-se dela.

Frannie olhou-o sem. apreensão ou dúvida.

— Quero uma noite com você — ela sussurrou.

Sterling não estava preparado para a força daquelas palavras que o atingiram no coração. Até aquele momento estivera enganando a si mesmo por acreditar que poderia viver sem Frannie porque nunca esperara possuí-la. E ali estava ela, uma mistura de inocência e coragem que o encantava como nenhuma outra.

— Então você terá uma noite.

Ele não podia negar a ela mais do que podia negar a si mesmo. Enlaçou-a, abaixou a cabeça e beijou-a.

Frannie acolheu-o como o ar que respirava ou o sol que a aquecia. O sabor do conhaque era um afrodisíaco que incendiava as chamas do desejo que se espalharam por seu corpo, aquecendo-a no íntimo e lambendo a ponta de seus dedos. Ela deslizou-os pelos braços desnudos de Sterling e sentiu os músculos ondularem. A energia de Sterling era palpável e sua determinação, evidente. O beijo dele foi mais agressivo do que os anteriores, como se com a rendição de Frannie, a fera que estivera aguardando, deslanchava.

Com a respiração ofegante, Sterling fez uma trilha de beijos quentes pelo pescoço de Frannie, lambendo e mordiscando.

— Diga-me para parar se eu a estiver assustando, e saiba que não a farei sofrer, mas também não poderei agir com gentileza. Eu a desejo demais e fui muito paciente.

Sterling uma vez a advertira não ser mais civilizado.

Então Frannie entendeu ao que ele se referia, quando o tecido que os separava foi rasgado e caiu a seus pés antes de ela se dar conta do que ele pretendia. E com a fera satisfeita, ele a tocou com mãos gentis que acariciaram suas curvas. O mais estranho era ela não se sentir exposta nem ter vontade de cobrir-se. Em vez disso, preferia acender mais velas para revelar a ele o que tinha a oferecer. Se antes se envergonhava de sua feminilidade, agora a glorificava.

— Meu Deus, você é tão linda como imaginei. — Sterling fitou-a. — Diga-me o que não quer.

— Não quero que me trate como se eu fosse vulnerável ou pudesse quebrar. Quero ser como qualquer outra mulher que você tenha conhecido.

— Você é completamente diferente delas. Jamais cometa o engano de achar que é igual a elas ou que poderia ser.

Sterling tornou a beijá-la profundamente e o busto de Frannie achatou-se de encontro ao peito dele. Ela deslizou as mãos por suas coxas e entre elas até encontrar, através da calça, o que a estivera pressionando pela manhã. Sterling deu um gemido grave, interrompeu o beijo e ficou imóvel para dar a ela a liberdade de explorar e fazer o que quisesse.

Frannie passou a língua pelos lábios e, com a boca seca, olhou para o volume rijo embaixo da calça. Nem por um segundo teve dúvida do poder que se escondia atrás da braguilha deformada e admirou-se que os botões ainda estivessem no lugar.

— Eu não causarei sofrimento — Sterling disse com voz rouca enquanto a beijava na testa.

— Eu sei.

Frannie estava consciente da tensão muscular de Sterling, das gotas de suor que cobriam o pescoço e ele segurou o primeiro botão...

— Farei isso — ela o interrompeu, afastou a mão dele e com um simples movimento os botões pipocaram, gratos pela liberdade.

Frannie notou que ele nada usava sob a calça, mas não se assustou. Apressou-se em revelar o que o tecido escondera. Sterling tirou a calça e ficou em pé diante dela, ereto, orgulhoso e magnífico.

— Você também é lindo. — Frannie fitou-o.

A preocupação que ela vira no olhar de Sterling desaparecera. Rindo, ele a ergueu nos braços.

— Vamos passar horas maravilhosas, Frannie — ele afirmou ao deitá-las nos lençóis frios de cetim.

Frannie era mais bela do que Sterling imaginara e mais corajosa do que ele ousara esperar. Ela não viera para a cama carregando as experiências dolorosas do passado. Frannie era tímida, mas não o evitava com falsa vergonha. Ela o recebeu como se fosse a cortesã mais refinada, com um sorriso sedutor e braços abertos.

Frannie viera não pelo dinheiro que ele poderia fornecer, mas sim pelo prazer que cada um poderia dar ao outro. Sterling jamais desejara tanto uma mulher e seu corpo ardia pela necessidade de possuí-la, mas sem pressa. Seria apenas uma noite, mas poderia durar a vida inteira. Ele nunca encontraria outra mulher mais corajosa, determinada e fascinante do que Frannie. Os momentos passados na ausência dela eram vazios. Deitou-se ao lado dela e enquanto se acariciavam, ele procurou não pensar na perspectiva do vácuo sem fim que o aguardava.

— Imagino o que aconteceria com sua pele clara se fosse submetida ao sol do deserto — murmurou.

— Quer dizer tirando a roupa? E por acaso você fez isso?

— Uma ou duas vezes. — Ele deu um sorriso malicioso. Frannie acariciou a coxa, os quadris e se deteve, fazendo cócegas.

— O que é isso? — Frannie sentou-se e olhou as nádegas de Sterling.

Com cuidado, ela passou os dedos sobre cinco cicatrizes desiguais que marcavam o quadril em sentido descendente.

— Foi um tigre — Sterling respondeu. — Eu só o vi quando ele estava por cima de mim. Felizmente lorde Wexford é um exímio atirador.

— Você poderia ter sido morto.

— Em vez disso, uma pele de tigre está enfeitando o piso do gabinete de Wexford. Pensei que mulheres gostassem de cicatrizes.

— Não me importo com a aparência delas, mas não me agrada saber que você foi ferido com gravidade.

A afirmativa de uma jovem que trazia cicatrizes internas. Sterling segurou o pescoço e voltou-a de novo para o travesseiro.

— Como você pode ter tanta bondade e nenhuma amargura?

Frannie não respondeu e Sterling beijou-a. Ele conhecera intimamente muitas mulheres durante suas viagens, mas não desejara nenhuma com essa intensidade. As outras tinham sido fantasias passageiras e Frannie era muito mais do que isso. Frannie era o motivo por ele se esconder pelas vielas e alimentar os ladrõezinhos. Ela o fizera entender o que levava um homem a matar.

Antes dela, suas emoções haviam permanecido adormecidas. Ele jamais conhecera com tanta intensidade a raiva, o ciúmes, a alegria... e o amor.

Os pensamentos dele vacilaram. Não era amor o que sentia. Podia ser estima, paixão, mas não amor. Nenhum vínculo tão permanente. Frannie iria embora e não levaria seu coração. Mas enquanto ela estivesse em sua cama, ele faria de tudo para proporcionar lembranças inesquecíveis.

Frannie deduzira que Sterling fosse um homem sujeito a paixões, mas ela não esperava aquela maneira de acariciá-la. Ele era incansável e não apenas com as mãos, mas também com a boca.

Sterling rodeou o mamilo com a língua até endurecê-lo e depois o sugou gulosamente. Frannie passou os dedos nos cabelos de Sterling, enfiou as unhas nos ombros dele e passou a sola de um pé na sua panturrilha. O prazer refluía até ela pensar que ficaria louca pela vontade de realização. Sterling, paciente, se deteve no outro seio. Ela, egressa das ruas, jamais conhecera tanta reverência, especialmente de um homem que estava tão acima da ralé.

Na cama de Sterling, Frannie encontrou o inesperado. Receber e doar-se sem egoísmo, e um senso de igualdade difícil de explicar. Ele conhecia o passado dela, mas por nada haver testemunhado não havia a obsessão da culpa do que não fora capaz de impedir. Sterling não a tratava como uma porcelana delicada. Ele apertava, bajulava e a beijava no colo, no quadril e na coxa.

Sterling levantou a cabeça e sorriu com malícia irresistível que prometia aventuras, delícias e beijos do sol. Cutucou a coxa com gentileza e Frannie abriu-se para ele. Sterling movimentou-se e não deixou de beijá-la até ficar acomodado entre as pernas dela. Depois se abaixou devagar.

Frannie pensou que ficaria com receio ou pelo menos precavida, mas entendeu com surpreendente clareza que confiava em Sterling e que ele nunca a faria sofrer. Jamais causaria desconforto, nem trairia esses sentimentos ternos que a haviam trazido até aquela cama, sendo que ela jamais faria o mesmo com outro homem.

Então Sterling acariciou-a intimamente com a língua. Frannie suspirou de prazer, arqueou as costas e levantou os quadris. Ela imaginou que seu corpo fosse o mundo e que Sterling estivesse viajando por ele, experimentando-o em toda sua extensão. Se fizesse o mesmo com ele, Sterling a acusaria de devassa?

Ah, e o que importava isso se ele fazia o corpo dela cantar em uma progressão tornando sua respiração desarmônica e rápida? Os seios de Frannie ficaram ainda mais firmes e o ventre retesou-se. Sterling criava, com a boca e as mãos, sensações mais vividas das que experimentara no sofá. Onde estaria o duque egoísta que só pensava nos próprios prazeres? Ele estaria se comprazendo tanto quanto ela?

O prazer aumentou e as perguntas perderam o sentido.

— Oh, Deus, você deveria parar agora. — Frannie enterrou os dedos nos ombros dele.

Sterling riu e sua respiração fez cócegas nela, antes de retornar onde estivera. Frannie queria chorar e rir ao mesmo tempo... o cataclisma atingiu-a e ela começou a gritar. Gritava para ele parar e para prosseguir. Gritava o nome dele enquanto o prazer a atingia.

Frannie voltou a si, trêmula. Sterling lambeu-a de baixo para cima até chegar à boca que beijou vorazmente, como se quisesse provar o que ela acabara de experimentar.

Ele beijou as faces e os lóbulos das orelhas.

— Adoro os sons que você faz — afirmou, na certa achando deliciosos os gritos dela.

Sterling mexeu-se para fitá-la nos olhos e Frannie viu neles a mais absoluta alegria de quem se doara sem nada exigir. O pescoço e os ombros dele brilhavam de suor. Frannie passou as mãos nas costas de Sterling e sentiu a tensão de seus músculos.

— Isso não é tudo... — ela disse, arfante.

— Não é, mas será se você assim o desejar.

Frannie procurou compreender o sentido daquelas palavras. Sterling garantiria o prazer dela em detrimento de si mesmo? As palavras que ele dissera na biblioteca assumiam um novo significado. Ele pedira para ser amante dele. Doar-se sem nenhuma expectativa de receber?

Frannie sacudiu a cabeça.

— Eu quero tudo. Eu quero você.

— Então você terá. — Um sorriso triunfante iluminou o rosto de Sterling.

Ele mudou de posição e inclinou-se na direção da mesa de cabeceira. Frannie escutou uma gaveta sendo aberta e Sterling puxou algo de dentro...

Frannie entendeu que se tratava de um preservativo.

Era um momento estranho para se sentir desapontada, mas admitiu a sensatez do gesto. Ela chegou a apreciar o esforço para protegê-la do escândalo, embora não pudesse negar um desejo súbito de trazer ao mundo um filho de Sterling.

Fascinada, ela o observou cobrir-se. Os dois se entreolharam quando Sterling se ergueu sobre ela e iniciou uma penetração vagarosa. A rigidez não provocou desconforto, mas sim uma sensação de prazer à medida que ele se aprofundava. Essa satisfação e essa posse eram a demonstração do homem que desejava partilhar seu corpo.

— Eu a estou machucando? — Sterling perguntou com olhar semicerrado.

Frannie meneou a cabeça.

— Não.

— Quero ouvi-la gritar novamente meu nome, mas de prazer e não de agonia.

— De novo?

— Sim, de novo. — Ele sorriu.

Saciada, Frannie não se julgava capaz de fazer nada além de acariciar as costas, enquanto Sterling se impelia de encontro a ela. Mas os movimentos dele despertaram-na novamente e a surpresa a deixou arfante. Sterling aumentou o ritmo e o poder de suas investidas até a cama bater na parede. Frannie agarrou-se nas nádegas dele, sentido a força e o poder de sua masculinidade.

Os movimentos de ambos continham selvageria e com essa incivilidade, ele a levou novamente às alturas e ela tornou a gritar o nome dele.

Quase ao mesmo tempo ele a chamou em um grunhido, atirando a cabeça para trás, o corpo arqueado investindo, tremendo e se sacudindo.

Sterling largou-se sobre Frannie e escondeu a face na curva do ombro dela. Frannie ouviu a respiração difícil, sentiu os tremores que se sucediam e o próprio corpo que estremecia mais do que na vez anterior. Ela imaginou se uma pessoa poderia morrer de tanto prazer.

Frannie adorou o peso do corpo sobre o seu e passou os dedos com leveza nas costas de Sterling.

— Está fazendo cócegas — ele murmurou.

Maliciosa, Frannie passou os dedos pelas costelas e Sterling deu um pulo.

— Você é uma feiticeira. Espere um pouco.

Ela teria rido se não estivesse tão exausta. Sterling saiu de cima dela e foi até o quarto contíguo. Voltou com uma toalha e, com carinho, limpou o suor do corpo de Frannie. Depois veio para a cama e puxou as cobertas por cima deles.

Frannie deitou-se sobre o braço de Sterling e escutou as batidas fortes do coração do amado. Quando a respiração dele se normalizou, ela ergueu a cabeça e fitou- o rosto. Ele adormecera e as linhas de preocupação haviam sumido. Ela sentiu lágrimas nos olhos ao entender que cometera um grande engano ao procurar Sterling.

Naquele momento, Frannie temeu ter se apaixonado pelo duque de Greystone.

Frannie não teve noção da hora quando acordou, deitada de bruços e espalhada na cama de Sterling que não se encontrava ao seu lado. Mesmo de olhos fechados, sentiu a ausência dele. Estaria tudo terminado entre eles?

— Não se mexa.

Frannie abriu os olhos. Sterling estava sentado em uma cadeira próximo à cama, de pernas cruzadas que serviam de apoio para sua prancha de desenho.

— O que está fazendo?

— Eu a estou desenhando.

— Você desenha toda mulher com quem se deita? Sterling levantou a cabeça, como se algo ocorresse.

— Na verdade, não. Você é a primeira que eu pretendo me lembrar.

As palavras a encantaram e tornaram ainda mais difícil não se mover, sendo que desejava sentar-se em seu colo e beijá-lo ruidosamente.

— Por mais quanto tempo terei de ficar imóvel?

— Mais um pouco e depois mostrarei o que fiz.

— Você não mostrará a ninguém mais, não é?

— De jeito nenhum. Estes vão para minha coleção particular.

— Estes?

— Você me proporcionou uma noite de prazer e eu não pretendia passar a maior parte dela dormindo.

Frannie abafou a vontade de rir e ficou quieta. Jamais conhecera nenhuma pessoa que a fizesse sentir-se tão apreciada. Os meninos de Feagan gostavam do que ela fazia, mas não se lembrava de ter encolhido os dedos dos pés quando eles a fitavam.

— Você é capaz de pintar um auto-retrato? — ela perguntou,

— Não. E para que eu haveria de querer isso?

— Você poderia dá-lo para mim. Sterling sorriu.

— Tenho certeza de que encontraremos algo que a satisfaça.

— Todas as pinturas daqui são tão grandes que se tornaria difícil guardá-la em uma coleção particular.

Sterling piscou para Frannie e ela teve a impressão de que se transformava em uma bola de prazer.

— Encontraremos alguma coisa — ele insistiu.

Frannie surpreendeu-se com os desenhos, quando Sterling deitou-se na cama para mostrá-los. Eles se recostaram nos travesseiros, enquanto ele mostrava um por um.

Seus pés, um cruzado sobre o outro.

— Você esfrega seus pés enquanto dorme — ele afirmou.

— Deve ser um hábito. Quando eu era menina, passava frio. O carvão era uma raridade na casa de Feagan.

— Se eles esfriarem antes de você sair da minha cama, encoste-os em mim e isso os aquecerá.

O lençol enrolado sobre suas costas, um ombro exposto.

— Você tem ombros lindos. — Sterling se inclinou e beijou um deles.

— Você é um ótimo artista.

— Eu pratico bastante. Meus desenhos jamais serão expostos em um museu, mas eles ajudam-me a relaxar.

— E você precisa relaxar depois do que fizemos antes? Sterling enrolou no dedo os cabelos de Frannie.

— Não, eu estava literalmente derretido na cama. A mão dela dobrada sob o queixo.

— Este é meu favorito — Sterling afirmou. — Um misto de inocência e sensualidade. Imagino com o que estaria sonhando.

— Provavelmente com você.

— Não se lembra exatamente?

— Eu raramente me lembro dos sonhos.

Sterling brindou-a com um olhar engraçado antes de atirar os papéis no chão e puxá-la para debaixo dele.

— Você disse uma noite, mas ela ainda não terminou.

Ainda não. Frannie deu um suspiro e Sterling beijou-a.

Frannie planejara sair de madrugada, mas antes de o sol se erguer no horizonte, Sterling fazia amor com ela novamente e sem pressa. Por ser a última vez, os dois saboreavam cada toque e cada beijo. Frannie deixou a cama de Sterling quando o café da manhã já estava pronto.

Eles se vestiram e desceram juntos para a sala de almoço. Ele contou suas peripécias de como aprendera a montar um camelo. Frannie riu tão alto que não conseguiu comer. Ela adorava o sorriso de Sterling e a alegria que iluminava seu olhar. Ela amava...

— Vossa Graça, sinto perturbá-lo, mas o inspetor Swindler da Scotland Yard está aqui — o mordomo anunciou.

Frannie sentiu um nó no estômago. Seu mundo mágico se despedaçava com a realidade.

— Mande-o entrar — Sterling ordenou e apertou a mão de Frannie. — Tudo dará certo.

Frannie anuiu e ficou em pé junto com Sterling. Jim entrou na sala e parou de repente ao vê-la. Ela viu o desapontamento da expressão de Jim e calculou que não era preciso ser um gênio para descobrir o que ali acontecera. Estaria evidente no corar dela, impossível de esconder?

— Inspetor, não gostaria de tomar o desjejum conosco? — Sterling perguntou.

— Não. Eu apenas... nós estávamos preocupados a seu respeito, Frannie. Não sabíamos...

— Deixei um recado na mesa de Jack. — Ela escrevera que sairia para cuidar de Sterling, o que indicava seu paradeiro.

Não havia motivo para preocupação... exceto que ela prometera voltar na véspera. Jim anuiu.

— Então você está bem?

— Muito bem, obrigada.

— Perdão por haver perturbado sua manhã. — Jim se virou e saiu da sala.

— Jim! — Frannie jogou o guardanapo sobre a mesa e correu atrás dele.

— Frannie! — Sterling chamou-a, mas ela não deu atenção.

Frannie correu pelo corredor, alcançou Jim no saguão e segurou o braço dele.

— Jim.

Ele a fitou e Frannie notou preocupação e sofrimento nos olhos verdes. E raiva também, como se ele não soubesse exatamente o que sentir, assim como ela.

— Frannie, ele não se casará com você.

— Estou consciente disso.

Jim olhou o chão, sem querer fitá-la e Frannie teve certeza de que ele lutava com as próprias emoções. Apesar da vontade de confortá-lo de alguma forma, estava certa de que isso não o agradaria no momento. Ele a fitou, com todo amor que sempre sentira por ela.

— Mesmo se o filho dele estiver crescendo em seu ventre, eu me casarei com você.

Jim foi até a porta que o criado abriu e foi embora sem se virar para trás.

Oh, Deus, o que ela fizera? Por que nunca vira isso antes, por que não reconhecera a profundidade de seus sentimentos?

— Está tudo bem com você? — Sterling chegou por trás e pôs as mãos em seus ombros.

— Agora preciso ir — Frannie disse com lágrimas nos olhos.

— Mandarei aprontar o coche.

Frannie anuiu refletindo sobre o que haviam feito e sobre o que teriam de fazer. Sterling virou-a devagar e abraçou-a. Ela inalou a fragrância dele e absorveu sua energia. Levantou a cabeça e Sterling abaixou a dele para...

— Obrigada, Vossa Graça.

Sterling engoliu em seco e soltou-a devagar.

— O prazer foi meu, srta. Darling.

Frannie deixou-o em pé no hall de entrada e subiu para trocar-se. Vestiria as próprias roupas e voltaria para seu mundo. Seu coração doía tanto que dava a impressão de que se romperia a qualquer instante. Choraria mais tarde no seu apartamento onde ninguém pudesse ouvi-la e rezou para que suas lágrimas um dia secassem.


Capítulo Nove


Frannie suspirou, apoiando o cotovelo na mesa e o queixo na palma. Em vez de fazer a contabilidade, estivera escrevendo Greystone, Sterling, duque em um pedaço de papel. Escrevera até duquesa, mas rasurara a palavra. Jamais seria a duquesa de Greystone.

Havia duas noites, desde que voltara da residência de Sterling, fora um sem-número de vezes até a galeria oculta para ver se ele se encontrava nas mesas de jogo. Como não o vira presumia que ele também poderia estar escondido.

Jack nada perguntara sobre o motivo de sua ausência. Ele se tornara menos crítico e passara a aceitar mais a nobreza desde o casamento. Jim não aparecera. Frannie esfregou a testa. Receava o encontro com ele, se é que o mesmo aconteceria. Ele deveria estar constrangido por ter revelado os sentimentos. E, por mais que ela quisesse, não poderia retribuir essa espécie de afeição.

Pensou em falar com Luke. Embora ele a houvesse pedido em casamento, ele não a amava verdadeiramente. Fora um entusiasmo de juventude e, felizmente, Catherine entrara na vida de Luke que passou a entender o erro que cometeria.

Considerou também a hipótese de conversar com Catherine. Afinal, Sterling era seu irmão, mas Frannie desconfiava de que a intimidade entre eles diminuíra.

Sentiu-se cansada. Não dormia bem por causa dos sonhos com Sterling que a atormentavam. Neles, Sterling repetia os jogos eróticos em que ela acabava gritando o nome dele. Em alguns sonhos, ela se entregava à devassidão e era Sterling quem gritava o nome dela.

Frannie levantou-se da cadeira e deu uma última olhada ao redor do escritório arrumado e simples. Na certa acabaria levando os livros contábeis para o orfanato onde poderia trabalhar e ficar com as crianças todas as noites, em vez de visitá-los durante o dia. O local de trabalho não importava, contanto que desempenhasse as tarefas.

Foi até o saguão, endireitou o punhal sob a saia, pegou no bolso a chave da porta e destrancou-a. Não se acovardaria diante dos capangas de Sykes. Se alguém a atacasse, ela revidaria.

Nos degraus do lado de fora pouco iluminados pela lamparina, ela fechou e trancou a porta. Esperou um pouco para a vista acostumar-se à obscuridade e à neblina:

— Frannie?

Ela escutou o sussurro quase desesperado de quem não sabia se desejava ser ouvido. Virou-se, pegou a lamparina e levantou-a. Embora houvesse reconhecido a voz, a cautela era necessária.

— Nancy?

Uma mulher saiu das sombras. Apesar de ser apenas dois anos mais velha do que Frannie tinha o rosto e os olhos encovados, e manchas de ferimentos nas faces.

— Como vai você?

Elas tinham sido amigas nas ruas, mesmo estando sob a proteção de diferentes pais de rua. Quando Nancy fizera doze anos, havia ido morar com um garoto três anos mais velho, Bob Sykes. Não era incomum as meninas se juntarem a meninos pouco mais velhos do que elas e que poderiam oferecer proteção. Para os meninos, ter uma amante era um símbolo de realização. Frannie sempre soubera quem eram os garotos que tinham uma namorada fixa, pois eles andavam com arrogância e o conceito deles crescia entre os colegas pela demonstração de masculinidade.

Frannie não vira Nancy desde que fora raptada e vendida como prostituta. Ela e Nancy haviam planejado entrar em um teatro às escondidas para assistir a uma peça muito comentada por Nancy. E aí começara a desgraça. Nancy conseguira escapar e Frannie fora levada para um inferno.

— Estou bem, Nancy, e você, ainda com Sykes?

— Ah, sim. Ele não é uma pessoa que aceita desistência, não é? Você continua trabalhando para Dodger?

Nancy estava abaixada, com receio da luz e Frannie recuou. Ela sabia o que era não querer ser vista. As roupas de Nancy estavam em mau estado, mas tinham sido passadas para dar boa impressão. E embora fosse noite, Nancy usava um chapéu que estava torto sobre os cabelos presos para cima.

— Sim, ainda estou com Dodger — Frannie respondeu.

— Temos uma cozinheira que prepara comida toda a noite, o que faz os cavalheiros continuarem jogando nas mesas. Vamos para a cozinha e verei o que há para comer.

— Não, obrigada, não se preocupe. Aquele lorde idoso que a levou ensinou-a a falar muito bem.

— Ele me ensinou muitas coisas.

— Então não foi tão ruim o que aconteceu naquela noite. Frannie havia sido brutalizada. E dizer que isso não fora tão ruim era o mesmo que comparar uma facada no coração com a picada de um alfinete no dedo.

— Eu sobrevivi. — Frannie olhou ao redor. — Está muito úmido aqui fora por causa do fog. Pelo menos vamos nos abrigar em meu apartamento.

— Ouvi falar que você está recolhendo órfãos — Nancy apressou-se em falar.

— Sim, eu...

— Então leve este. — Nancy literalmente jogou nas pernas de Frannie um menino que estivera escondido nas sombras.

— Ele é um dos meninos de Sykes e se você ficar com ele, posso trazer mais.

— Nancy...

— Por favor, ele também é meu filho e quero algo diferente do que a rua para ele. Ele se chama Peter e é um bom menino.

Frannie abraçou o garoto e, apesar de ele usar um casaco, foi possível perceber que era somente pele e ossos. Sykes se empenhava em manter os meninos pequenos e desnutridos para poderem entrar nas casas por pequenos espaços e abrir a porta da frente para ele.

— Venha conosco, Nancy. Providenciarei um porto seguro para você e o menino.

— Imagine, estou com Sykes desde os doze anos e ele não me deixará ir embora tão facilmente.

— Posso arrumar um emprego no campo... — Frannie fitou o rosto enrugado de Nancy.

— Você sempre foi tão linda. — Nancy disse em tom de penitência. — Por favor, acredite, eu não queria fazer aquilo.

— Aquilo o quê?

— A culpa foi de Sykes. Ele me garantiu que faríamos um bom dinheiro vendendo você para aquela velha e nunca vi um centavo daquilo.

Frannie sentiu-se congelar. A velha de cabelos grisalhos que dirigia o prostíbulo para onde ela fora levada? Ela se agarrou ao menino para manter-se em pé.

— Você parece assustada, Frannie. Não sabia? Frannie sacudiu a cabeça.

— Não.

— Você sempre foi tão esperta que calculei que soubesse. Não use isso contra meu menino.

— Eu jamais descontaria os pecados da mãe em uma criança. Você sabe o que fizeram comigo, Nancy?

— Posso imaginar.

— Não, não pode.

— Suponho que deve ser bem parecido ao que Sykes faz comigo todas as noites. Ele é um animal, um cão. Alguém deveria matá-lo. Se puder, eu trarei mais garotos.

Frannie não chegou a responder. Nancy eclipsou-se na escuridão e os passos rápidos se perderam no nevoeiro espesso. Frannie abaixou a lamparina e olhou o menino.

Era Jimmy.

O pequeno gatuno estava de novo na cozinha de Sterling, sentado à mesa dos criados, comendo vorazmente.

O fato de Frannie tê-lo trazido para ali em vez de levá-lo para o orfanato era sintomático. Infelizmente ela não dissera quase nada e Sterling sentiu que a preocupação de Frannie era muito mais angustiante do que haver descoberto quem eram os pais do menino.

— Então ele é filho de Sykes? — Sterling repetiu.

— Sim, de acordo com Nancy.

— Isso explica por que ele não gostou da tentativa de ficar com o garoto.

— Desculpe-me tê-lo trazido para cá, mas se eu o levasse para o orfanato, Sykes poderia ir buscá-lo.

Sterling fitou-a e viu no olhar de Frannie a confiança absoluta de que ele seria a solução adequada.

— Se ele ficar aqui e dormir em uma de minhas camas, terá de tomar banho primeiro. Não me importa a hora.

O sorriso de Frannie aqueceu o coração de Sterling. Incrível. Haveria alguma coisa que poderia negar a ela? Ele já a deixara partir uma vez e não sabia se poderia fazer aquilo de novo. Observá-la afastar-se fora a pior coisa que já acontecera.

— Acho que a senhorita deveria ficar aqui esta noite.

A Sterling não agradava a ideia de ela sair sozinha. Além disso, ela seria capaz de ir ao cortiço para tirar satisfações de Sykes. Por mais que ele não gostasse dos amigos dela, pensava em alertá-los a respeito do ocorrido. Não, Frannie veria isso como uma traição. Ele deveria contratar guardas para acompanhá-la.

— Se Vossa Graça não se incomodar...

— Eu não teria oferecido se me incomodasse. Outra coisa, trabalhar no Dodger's é muito arriscado, pois Sykes sabe onde encontrá-la.

Ela sorriu.

— O Dodger's me proporciona os meios para minha obra com os órfãos. — Ela olhou para Peter. — Não deveríamos deixá-lo comer tanto esta noite.

— Concordo. Uma torta é tudo que ele vai conseguir. Frannie apertou a mão de Sterling e foi o mesmo que apertar o coração dele.

— Sei que não agrada ter gatunos em sua casa, mas eu darei um jeito ele não roubar nada. Sterling acariciou- a face.

— Ele a trouxe de volta e por isso pode levar o que quiser.

O riso doce afastou um pouco as preocupações de Frannie, mas elas voltaram logo e com força. Sterling notou o fato e admitiu que teria de descobrir do que se tratava.

Ele acordou o mais novo de seus criados e mandou-o preparar o banho para o garoto. Enquanto Frannie esfregava o visitante, Sterling foi até seu quarto de infância pegar uma camisola. A roupa ficaria larga, mas não importava.

Quando voltou para baixo e entrou na cozinha, o menino estava fora da água e Frannie o enxugava.

— Calma! A senhora está tirando minha pele!

— Pare de se queixar — Sterling respondeu por Frannie. — Saiba que já paguei muito dinheiro para belas damas me enxugarem.

Frannie, corada, virou a cabeça para fitá-lo e ele sorriu.

— Alguns países têm costumes adoráveis. — Sterling ergueu o traje de dormir. — Ele poderá vestir esta. — Com a ponta do sapato ele cutucou os trapos. — Essas provavelmente serão queimadas.

— Sem dúvida. — Ao pegar a roupa entregue por Sterling, Frannie deixou cair a toalha.

Sterling não pretendia demonstrar espanto, mas por Deus...

— Ele é esquelético...

— É.

Sterling viu algumas marcas na ilharga e no ombro, e virou o menino.

— O que é agora? — o pequeno gritou.

Sterling ignorou-o e avaliou as cicatrizes que se entrecruzavam nas costas do menino.

— Quem o chicoteou?

Frannie mandou-o erguer os braços e enfiou o camisolão sobre sua cabeça.

— As autoridades — ela respondeu em voz baixa. — Parece que ele foi preso por roubar meio xelim. Em vez de mandá-lo para a prisão, açoitaram-no.

— Mas... ele é uma criança.

— Alguns cavalheiros apreciam mais os xelins.

— O que tem isso? — O garoto cruzou os braços magros sobre o peito fundo. — Eu não chorei.

— Quantos anos você tem?

— Não direi nada, maldito nobre.

— Ele tem oito — Frannie respondeu. — Podemos ajeitá-lo em uma cama?

— Sim, claro.

O quarto escolhido por Sterling ficava no pavimento inferior, na direção do seu, o que facilitaria para Frannie verificar o estado do garoto quando quisesse. Além disso, um criado ficaria dentro do quarto para impedir o menino de sair.

Sterling fitou o garoto que parecia ainda menor naquela cama enorme e a maneira carinhosa de Frannie passar os dedos nos cabelos escuros.

— Peter, você tem de ficar aqui, pois é o que sua mãe deseja. Amanhã tomaremos um belo café da manhã e arrumaremos algumas roupas apropriadas. Tudo vai dar certo. Não é preciso ter medo.

— Não tenho medo de nada.

— E não fuja de novo, está bem?

O menino deu de ombros, anuiu e virou-se, tudo ao mesmo tempo. Frannie levantou-se e sorriu para Sterling.

— Isso não foi bem uma promessa, foi? — Sterling perguntou.

Frannie negou com um gesto de cabeça antes de sair e Sterling parou ao lado do criado.

— Na certa haverá problemas — ele disse em voz baixa.

— Sim, Vossa Graça — o serviçal anuiu.

— Mande me avisar diante de qualquer anormalidade.

— Sim, Vossa Graça.

Sterling entrou nos seus aposentos e encontrou Frannie sentada no sofá diante da lareira onde o fogo baixo crepitava. Os pés descalços estavam sobre o assento e ela esfregava os braços como se estivesse com frio. Ele foi até a mesa onde ficava o conhaque, serviu duas doses generosas e sentou-se no sofá.

Frannie aceitou uma das taças e bebeu antes de segurá-la com as duas mãos sobre a coxa, com olhar longínquo.

— Diga-me o que há de errado — Sterling pediu.

— Não acha que Peter merece que se preocupem com ele? Sterling passou a ponta do polegar entre as sobrancelhas cerradas.

— Sei que outra coisa a preocupa. Por que não me diz do que se trata?

Frannie sacudiu a cabeça.

— Nada que eu fique sabendo poderá alterar... a afeição que sinto por você.

— Você sente afeição por mim, Sterling?

Na verdade era muito mais do que isso, mas admitir o fato os levaria a uma barreira intransponível e tornaria tudo mais difícil.

— Eu me preocupo muito com você, Frannie e não gostaria de vê-la infeliz. O menino tomou banho, alimentou-se, está em uma cama decente e voltou aos seus cuidados. Isso deveria ser um motivo de alegria. Frannie, minha querida, por que está tão triste?

Frannie apertou os olhos, tomou mais um gole de conhaque e virou-se para Sterling.

— Nancy era minha... amiga e não uma das crianças de Feagan. Mas ela estava nas ruas e era uma de nós. Ela era dois anos mais velha do que eu e aos doze ela foi morar com Sykes. As meninas de rua fazem isso como uma maneira de sobrevivência. Mas nós éramos amigas.

Amigas.

A palavra pareceu engasgá-la.

— Vocês eram amigas. Por acaso brincavam juntas? Frannie riu e sacudiu a cabeça.

— Na verdade, tratava-se de uma maneira de conseguir algumas moedas. Eu tinha duas caixas de fósforos que oferecia aos pedestres. Todos me ignoravam por eu ser uma pedinte. Eu batia em uma pessoa ao acaso e deixava as caixas cair na terra. Eu começava a chorar e Nancy, a gritar que nossa mãe me mataria. O camarada em que eu batia logo nos pagava condignamente para acalmar- nos. Nós representávamos muito bem.

— E por isso você se achou na obrigação de ajudar o filho dela?

Sterling limpou a lágrima que deslizava pela face de Frannie e acariciou o pescoço.

— Frannie...

— Um dia ela me falou sobre uma apresentação teatral e disse que conhecia um sujeito que permitiria nossa entrada no teatro pela porta dos fundos. Feagan sempre me dizia que a noite era perigosa e para eu sempre voltar antes do escurecer. Mas eu queria ver a peça e fiquei com Nancy até a noite. Enquanto andávamos por uma travessa, alguém pulou diante de nós, pôs um saco em minha cabeça e eu gritei para Nancy correr...

Frannie soluçou e mais lágrimas deslizaram por sua face. Sterling tirou a taça das mãos dela e deixou-a na mesa ao lado da sua. Cedeu à vontade de confortá-la, por saber que o relato não terminara. Ah, como ele gostaria de afastar o sofrimento que via naqueles olhos, mas até não saber o motivo...

— Durante todos esses anos, Sterling, pensei merecer o que aconteceu comigo.

— Ninguém merece uma coisa dessas. Frannie meneou a cabeça.

— Não obedeci a Feagan e fiquei na rua até a noite. Quando me levaram, achei que fosse um castigo. Quando Luke matou Geoffrey Langdon e foi preso, pensei que fossem enforcá-lo por minha causa. Você nem pode imaginar como eu me sentia culpada.

— Frannie, você não tem de se culpar por coisa nenhuma. Frannie limpou as lágrimas com as costas da mão.

— Esta noite, Nancy me disse que ela e Sykes tramaram tudo para que me pegassem.

— Santo Deus, Frannie. — Sterling levou-a para o colo dele e embalou-a enquanto ela chorava.

— Eles sabiam o que aconteceria e fizeram tudo propositadamente.

Sterling controlou a fúria que o acometia. O momento não era para desatinos, era preciso cuidar de sua preciosa Frannie e consolá-la.

— Não sei para onde fui levada. Tiraram minhas roupas e amarraram-me a uma cama. Aquele homem horrível ria e me examinava. Eu tinha de ser virgem, pois virgens não têm doenças. Alguns homens só aceitam deitar-se com donzelas.

As lágrimas de Frannie ensopavam a camisa de Sterling.

— Pensei que eu já havia afastado de mim todo o horror, mas é muito mais triste saber que alguém planejou isso contra você.

— Se algum dia eu encontrar Sykes, eu o matarei. Frannie se afastou para fitá-lo.

— Eles o enforcarão e ele não vale isso. Ajude-me a esquecer, Sterling. Ajude-me a enterrar de vez essas memórias horríveis. Dê-me algo belo para lembrar.

Frannie encostou os lábios nos dele. Sterling duvidou do acerto da ideia, mas não teve coragem de negar o pedido. Levantou-se do sofá, ergueu-a nos braços e levou- a até a cama.

Sterling não poderia ter sido mais terno. Da outra vez quando haviam se deitado juntos, não houvera interferência de sombras do passado. Nessa noite ele se esmerava em apagá-las com leveza, embora com maestria.

Sem pressa, ele tirou as roupas e beijou cada ponto de pele que ficava exposta. Seu olhar era um misto de carinho e desejo. Frannie percebeu que Sterling ainda a desejava, apesar de tudo o que ela revelara. Esquecido das próprias ânsias, ele usava as mãos e a boca com adoração...

Frannie o tocou com cuidado semelhante, embora ele não fosse frágil, mas aquela noite requeria algo diferente do que eles haviam compartilhado antes.

Sterling sabia exatamente quando provocar, beijar ou murmurar palavras doces junto ao ouvido de Frannie. Eles estavam em sintonia perfeita, sem necessidade de rapidez ou desespero.

Sterling deitou-a de bruços e beijou-a ao longo da espinha. Friccionou as costas, apertou as nádegas, beijou-a atrás dos joelhos. Massageou os pés, as panturrilhas, as coxas... até ela se descontrair a ponto de imaginar que não poderia mais ficar em pé. Puxou-a para cima dele e Frannie montou-o, envolvendo-os com a cortina de cabelos. Sterling entrelaçou os dedos nas mechas, abaixou a cabeça de Frannie e beijou-a com paixão, mas ainda sem pressa. Frannie não pensava em nada, exceto em Sterling, em seus afagos reverentes e a maneira como a fazia esquecer do mundo.

Eles se encontravam em um mundo particular, onde somente eles existiam. Não havia nobreza, nem menina de rua. Eram apenas Frannie e Sterling. Nenhuma diferença e apenas um objetivo comum: dar e receber prazer.

Sterling levantou-a pelos quadris e abaixou-a até ser envolvido por ela e preenchê-la. Frannie sorriu, beijou o peito e sentiu a vibração nos lábios quando Sterling ronronou como o leão que desenhara.

Frannie cavalgou-o, observou o prazer do rosto dele e experimentou a força dos dedos nos quadris. O prazer aumentou e tornou-se quase insuportável. Ela escondeu a face no pescoço dele para camuflar os gritos de abandono. Segurando-a, Sterling investia e movia-se aos solavancos debaixo dela.

Pouco depois, ela não conseguiu entender onde ele encontrava forças para acariciar as costas. Frannie adormeceu sentindo os carinhos de Sterling e ouvindo as palavras apaziguadoras que ele murmurava em seus sonhos.

Sterling viu Frannie abrir os olhos quando o sol começava a espiar por entre as cortinas.

— Bom dia. — Ele passou a mão nos seios de Frannie.

— Bom dia. — Ela suspirou e espreguiçou-se.

Sterling deitou-se por cima de Frannie e penetrou-a, aninhando o rosto no pescoço dela.

— Você é deliciosa.

Ele se balançou de encontro a ela, observando o sorriso de contentamento.

— Esta é uma bela maneira de saudar a manhã — Sterling sussurrou.

Frannie acariciou as costas e apalpou as nádegas.

— Adoro quando você está dentro de mim. — Ela gemeu e virou a cabeça para o lado. Arregalou os olhos, enrijeceu-se, gritou e enterrou as unhas na pele de Sterling.

Ele também virou a cabeça para o lado.

— O que é isso nas suas costas? — Peter perguntou.

— Não é de sua conta. Mas o que está fazendo aqui, pirralho?

— Estou com fome.

— E o sujeito que está em seu quarto? O menino ergueu os ombros ossudos.

— Ele continua dormindo. Sabe que o senhor não está fazendo nada certo?

— Como é? — Sterling espantou-se.

— O senhor deveria fazê-la gritar. Minha mãe sempre grita.

— Bem, não estou surpreso com sua revelação, mas estou fazendo amor com a srta. Darling, o que requer certa fineza que certamente seu pai não possui.

Frannie começou a rir e o que prometia ser a manhã mais adorável que Sterling já experimentara morreu na praia. Agarrou o lençol para cobrir Frannie, saiu de cima dela e sentou-se, amarrando outra ponta do lençol nos quadris.

— Não está horrorizada? — ele perguntou. Frannie fez um gesto negativo com a cabeça.

— Nos cortiços, as crianças costumam dormir com os pais e às vezes na mesma cama.

Era para admirar-se que eles tivessem mais filhos depois do primeiro.

— Peter, vá para a cozinha e procure algo para comer. E não ouse fugir. Se você fizer isso, mandarei esse monstro das minhas costas buscá-lo.

O garoto arregalou os olhos.

— Ele é de verdade?

— Apenas lembre-se do que eu disse.

— Posso conhecê-lo?

— Depende se você ainda estiver aqui quando eu descer para tomar o café da manhã.

— Estarei, prometo.

O menino saiu correndo com as pernas finas.

— Onde é que vai encontrar um dragão? — Frannie perguntou.

— Eu me preocuparei com isso mais tarde. Pelo menos por enquanto, ele não fugirá.

Frannie passou os dedos nas costas de Sterling.

— Você estava fazendo amor comigo de verdade? Sterling deitou-se de novo sobre ela.

— Se você teve de perguntar, sem dúvida não fiz a coisa certa. Deixe-me tentar com mais empenho antes de ir atrás de um dragão.

Sterling fez amor verdadeiro com Frannie duas vezes. Depois ela foi ao quarto de Catherine para se arrumar. Encontrou um banho preparado e ensaboou-se devagar.

Ela não queria pensar em Sykes, mas preocupou-se com uma possível retaliação se ele descobrisse o paradeiro do filho. Quanto a Nancy, a moça enfrentava o que merecia. Mas logo mudou de ideia. Ninguém merecia Sykes.

Apesar da rebeldia de Peter, Frannie acreditava que o menino poderia ser redimido, mas o que a surpreendia era a comunicação que começava a se desenvolver entre Peter e Sterling. Para um homem que proclamava desprezar os ladrãozinhos, ele parecia ter se afeiçoado ao garoto.

Depois do banho, Agnes ajudou-a a pentear os cabelos e escolheu um dos vestidos de Catherine para uso doméstico. Era azul-marinho, recatado, mas provocante.

Frannie refletiu que Sterling na certa se arrumara mais depressa do que ela.

Surpreendeu-se ao não encontrá-lo na sala de almoço.

— Sua Graça já tomou o café da manhã? — ela perguntou a um dos criados.

— Sim, senhora.

— Por favor, onde poderei encontrá-lo?

— Não sei, senhora. O sr. Wedgeworth deve saber.

— E onde ele está?

— Creio que deve estar falando com a cozinheira a respeito do almoço.

De fato, Frannie encontrou-o na cozinha.

— Srta. Darling, o desjejum não a agradou? — ele inquiriu, preocupado.

— Estava ótimo, obrigada. — Embora não houvesse comido, estava ansiosa para falar com Sterling. — O senhor sabe onde posso encontrar o duque?

— No ateliê. Quer que a acompanhe até lá?

— Sim, por favor.

O ateliê ficava na parte de cima de uma das alas que ela não conhecia. As paredes externas eram de vidro e os raios de sol criavam um halo ao redor de Sterling que estava sentado atrás de Peter. O menino usava calça, mas uma camisa que alguém arrumara para ele estava amarrotada no chão.

Sterling, segurando uma paleta, pintava um dragão nas costas do garoto.

— Ele precisa de muito fogo — Peter anunciou.

— Sim, mas terá de se satisfazer com o que eu der e ainda agradecer — Sterling respondeu.

— Por favor, sir?

Sterling tremeu os lábios como quem se divertia, satisfeito por ter conseguido um pouco de cortesia do garoto.

— O fogo pelo ombro será suficiente?

— Sim.

Frannie atravessou a sala e parou ao lado de Sterling.

— O que está fazendo?

— Acabo de iniciar Peter na Ordem do Dragão. Ele fez um juramento para ficar onde a srta. Darling, que é a rainha da ordem, determine que ele fique.

— Espero que eu possa ficar aqui. — Peter virou a cabeça para trás.

— Fique quieto, rapaz — Sterling repreendeu-o, adiando a resposta.

Frannie comoveu-se. Ficar ali não era uma das opções.

— Terei de revisar minha contabilidade — ela anunciou, evitando desapontar Peter. — É um dragão espetacular. Eu não sabia que milorde também pintava a óleo. — Ela olhou as paredes. — São seus trabalhos?

— São. — Sterling deixou a paleta sobre uma mesa. — Fique sentado, Peter, enquanto a tinta seca.

— Sim, senhor. Sterling levantou-se.

— É surpreendente o que a dignidade de cavaleiro faz em prol da cortesia.

— Ele é um bom menino que não teve oportunidade de demonstrar seu caráter.

— E quem o ensinará como agir?

— Eu tentarei.

— Ótimo. Frannie, se quiser, pode olhar meus trabalhos.

Frannie começou a andar ao redor da sala e Sterling, que parecia preferir paisagens, seguiu-a. Ela parou ao lado de uma pintura que retratava montanhas, árvores e um lago em primeiro plano. Não parecia um local de civilização, mas tinha um toque especial.

— É lindo.

— É a primeira propriedade de meus ancestrais.

Frannie foi até o quadro seguinte que exibia o mesmo cenário.

— Essa é sua vista favorita?

— Está vendo este salgueiro? — Ele indicou um arbusto do outro lado do lago. — Papai plantou-o depois da morte de mamãe. Sempre pensei nele como a árvore de minha mãe e a cada ano eu registrava seu crescimento. Sempre no aniversário de sua morte, eu montava o cavalete e pintava o local.

Frannie observou as pinturas alinhadas em ordem.

— Gostei de seu trabalho — ela afirmou ao chegar à última tela.

— É mesmo?

— Nas primeiras pinturas foi retratado o cenário global do campo. Com o passar dos anos, a árvore passou a ter maior destaque, à medida que ela crescia.

— Genial, não é? — ele perguntou, sem entusiasmo.

Frannie virou-se para encará-lo, para ver se era uma ironia.

— É, sim. Imagino deve ter começado a pintar muito jovem. Vejo mais de doze telas.

— Bem mais e acho que está certa. Minha perspectiva do mundo mudou nesse tempo. — Sterling virou-se. — Vamos ver o estado do dragão.

— Preciso voltar ao orfanato.

— Iremos juntos. — Sterling fitou-a por sobre o ombro. — Prefiro que não vá sozinha a lugar nenhum.

Frannie não tinha intenção de tornar-se prisioneira, mas só por um dia não faria mal.

Mais tarde naquela noite, Frannie fechou as brochuras contábeis. Os números se juntavam uns aos outros, talvez pelo cansaço excessivo. Se não fosse pela grande quantidade de dinheiro envolvido, ela poderia deixar os lançamentos se acumularem, mas se não os mantivesse em dia, ficaria sempre atrasada. Chegou a considerar a possibilidade de entregar a incumbência para outra pessoa, mas era imprescindível que o menor número de pessoas soubesse quais eram os valores que mudavam de mãos no Dodger's.

Ela passara a maior parte do dia no orfanato ao lado de Sterling e Peter.

— Se o forçar a ficar aqui — Sterling comentou —, acabará transformando o local em uma prisão para ele.

— Concordo, mas prometi a Nancy que cuidaria dele.

— Talvez ele possa ficar na minha casa até você encontrar quem queira adotá-lo.

Frannie ficara sensibilizada com a oferta. Olhou no pequeno relógio de cima de sua mesa. Era quase meia-noite. Quando Sterling a deixara — com relutância — no Dodger's, ela prometera que estaria em casa àquela hora. O coche que ele mandaria já estava esperando na travessa.

Em casa. Não era sua casa, mas seria um abrigo para Peter até o menino perder o pavor e acostumar-se ao orfanato enquanto ela não achasse uma pessoa para ficar com ele.

Com o canto do olho notou um movimento, fixou-se na entrada e levou um susto. Inspirou fundo para se acalmar, afastou a cadeira e levantou-se.

— Olá, Jim. Há quanto tempo está aí?

Frannie não o via desde a manhã em que ele interrompera o desjejum na residência de Sterling. Jim estava com péssima aparência, como se não houvesse dormido desde aquele dia.

— Há alguns minutos. Não conheço ninguém que se concentre tanto no trabalho quanto você.

— Pois eu estava pensando exatamente na minha falta de concentração. Como tem passado?

Jim ergueu os ombros largos.

— Sinto muito, Frannie, pelo que eu disse outro dia.

— Não se desculpe. — Frannie parou em frente da escrivaninha. — Sei que você teve boa vontade e apreciei sua vontade de casar-se comigo caso eu me encontrasse em dificuldade.

— Mesmo se não for por isso. — Jim sorriu. — Eu sempre a amei, Frannie. Você foi a razão de eu ter ficado com Feagan, mas eu sabia que você amava mais Luke e Jack do que a mim.

— Não seja tolo, eu amo vocês todos... como irmãos.

— Não penso em você como uma irmã e também sinto por isso, mas não se pode mandar no coração. Você o ama?

Não foi necessário perguntar a quem ele estava se referindo. Frannie pressionou a mão na boca e sentiu as lágrimas se formarem.

— Deus me ajude, Jim, mas eu o amo mesmo sabendo que ele não se casará comigo. Você estava certo. E, por favor, não adiantará interferir. Eu não me casaria com Greystone, mesmo se ele pedisse. Ele é um duque e não quero ser uma duquesa. Continue sendo meu amigo, Jim, pois tenho pressentimento de que precisarei de meus amigos.

— Eu jamais a abandonaria. Sé você pensar o contrário, estará me ofendendo.

Frannie aproximou-se dele, ficou na ponta dos pés e beijou a face.

— Obrigada.

O constrangimento dos dois fez Frannie entender que eles nunca mais poderiam desfrutar de uma amizade espontânea.

— Bem, é tarde, e preciso ir embora.

— Certo, eu o verei outro dia.

Jim virou-se para sair, e Frannie pegou o manto.

— Ah — Jim disse, já na porta. — Lembra-se de Nancy que conhecíamos desde pequenos?

Frannie parou, segurando a capa de encontro ao peito.

— A Nancy que morava com Sykes?

— Ela mesma. Nós a encontramos boiando no Tâmisa.

— Morta?

Jim anuiu com seriedade.

— A julgar pelos ferimentos ao redor do pescoço, é provável que tenha sido estrangulada.


Capítulo Dez


Jack nem chegou a adormecer depois de ter feito um amor apaixonado com a esposa Livy. Escutou um assobio e retesou-se. Ela, que estava aconchegada nele e cobria peito com os cabelos castanho-avermelhados, percebeu o movimento e mexeu-se.

— O que foi? — ela murmurou.

— Preciso verificar uma coisa. — Jack beijou o alto da cabeça e saiu debaixo dela. — Continue dormindo.

— Jack?

— Fique quietinha — ele sussurrou no ouvido de Livy.

— Tenho certeza de que não é nada.

Jack vestiu a calça e uma camisa antes de sair do quarto e descer. Mesmo após alguns meses de ter recebido como legado aquela mansão em St. James, ele custava a acreditar que tivesse a felicidade de ter Livy como sua esposa. Ao alcançar o grande vestíbulo, pensou em abrir a porta da frente e verificar do lado de fora a origem do assobio, mas suspeitava de que o autor da façanha já estivesse dentro da casa.

Fechaduras nunca tinham sido empecilhos para Feagan. Jack o conhecia muito bem e supôs que o encontraria na biblioteca onde ficavam guardadas as bebidas.

Encontrou o antigo, protetor servindo-se de uísque, vestido com o capote que conhecera melhores dias e com o chapéu de feltro de copa alta que ele usava mesmo dentro de casa.

— Feagan.

— Ah, meu Dodger, não vou me demorar. Espero não ter perturbado o que poderia ter sido uma noite agradável.

— Feagan olhou ao redor. — Você conseguiu uma bela casa.

— Que o senhor certamente já visitou na minha ausência. Portanto, seu velho malandro, o que está fazendo aqui? — Jack aceitou o copo de uísque que Feagan oferecia.

— Estou preocupado com minha querida Frannie. — Feagan completou outro copo com a bebida. — Sykes espalhou a notícia de que pagará bem pela morte dela.

— Mas por que cargas d'água Sykes pretende que a matem?

— Frannie está interferindo nos negócios dele, tirando os meninos da rua.

— Pois então você mande dizer por aí que se alguém tocar em um só fio de cabelo dela... droga, ela foi atacada outra noite. Cheguei a concordar com Frannie que se tratava de um acaso, um ataque de algum ladrão.

— Ela deve ter dito isso pelo sentimento de culpa por Luke ter matado um lorde. Na certa não queria vê-los metidos em encrencas que os levassem à forca.

Jack praguejou. Devia ter desconfiado de que ela quisesse proteger a todos, menos a ela mesma.

— Torne público que seus rapazes farão dos cortiços um inferno se tocarem nela.

— Já fiz isso, mas desconfio de que não adiantará. Vocês saíram do cortiço, mas Sykes continua no mesmo local. Meus novos meninos não o conhecem, mas sabem que Sykes é um demônio.

Jack tornou a praguejar. Independentemente do que fizessem, do degrau que haviam escalado, do sucesso que houvessem atingido, os cortiços sempre os puxavam para trás.

— Está bem, reunirei todos, apareceremos no seu bar preferido amanhã à noite e faremos com que os novos meninos tenham uma ideia do que somos capazes.

— Para falar a verdade, tenho receio de que seja tarde demais.

Jack sentiu um aperto no estômago.

— Feagan, o que você ficou sabendo?

— Que pretendem matá-la esta noite.


Frannie admitiu que deveria ter contado a Jim que Sykes na certa matara Nancy, mas havia assuntos mais prementes para resolver. Precisava tirar Peter e as outras crianças de Londres. E para isso teria de pedir ajuda a Sterling e não a Jim.

Além disso, se Jim soubesse o que ela suspeitava, faria perguntas e tentaria protegê-la, mas não havia tempo para isso. As crianças tinham prioridade sobre todo o restante.

Abriu a porta dos fundos e deu um grito ao ver um homem alto e moreno parado. À sua espera.

— Perdão, querida, mas eu não pretendia assustá-la. — Sterling abraçou-a.

— Eu não o esperava.

— Eu a avisei de que não a deixaria andar sozinha. Você está bem? Parece trêmula.

— Sykes matou Nancy.

— O quê? Frannie anuiu.

— Jim contou-me. Acharam o corpo dela no rio Tâmisa, mas tenho certeza que foi Sykes. Eu não deveria tê-la deixado voltar, deveria ter insistido...

— Frannie, querida, você não é responsável por todas as maldades que são cometidas contra os outros.

— Eu sei, mas fiquei tão furiosa com ela...

— Por um motivo justo.

— Ela não merecia isso. Onde está Peter?

— Estava dormindo quando saí.

— Deixou alguém tomando conta dele?

— Não, ele prometeu não sair.

— Ah, Sterling, uma criança não sabe o que é prometer.

— Então vamos para casa, ver como ele está.

O coche transitava com rapidez e Sterling abraçava Frannie.

— Sterling, sei que é pedir muito, mas não poderíamos levá-lo para sua propriedade rural?

— Acha mesmo isso necessário? Por que Sykes pensaria que o garoto está conosco?

— Nancy pode ter dito a ele, não sei. Apenas acho que Peter não está seguro em Londres.

— Então o levaremos para o campo. Frannie apertou a mão de Sterling.

— Eu gostaria de levar também as outras crianças.

— Quantas são?

— Trinta e seis. Sei que são muitas, mas pode ter certeza de que elas não roubarão nada.

— Frannie, eu não me preocupo com isso, estou pensando em acomodações. Tenho mais duas carruagens que poderão levar o pessoal que trabalha no orfanato. Temos um carroção usado para transportar nossos pertences para a temporada de Londres e levar tudo de volta. Creio que esse veículo acomodará as crianças. Será desconfortável para eles se chover, mas será apenas um dia de viagem, se sairmos cedo.

Frannie abraçou-o com força pela cintura.

— Não imagina o quanto sou grata.

— Por acaso imaginou que eu me omitiria?

— Eu sabia que poderia contar com você.

Dois meses antes, Sterling não teria feito isso. Antes disso, só se preocupava com os próprios prazeres e não dava importância aos órfãos da rua. Ele tinha de admitir, havia sido um homem bem egoísta e vazio.

Quando chegaram à residência de Sterling, Frannie subiu a escada correndo, enquanto o duque falava com Wedgeworth sobre os preparativos para a viagem com o carroção e as carruagens.

— Sterling!

Ele olhou para cima e ao ver Frannie, imaginou o que acontecera.

— Ele foi embora.

Eles procuraram por toda parte e até no ateliê onde Sterling deixara o menino pintar com carvão antes de dormir.

Por um momento Frannie analisou a figura do desenho de Peter. Linhas duras, olhos redondos e negros, dentes pontudos.

— Deve ser algo que aparece em pesadelos — Sterling comentou, tão constrangido como ficara ao ver o desenho pela primeira vez.

Que tipos de pensamentos sombrios passam pela cabeça de Peter?

Frannie deu um sorriso triste.

— É Sykes. — Ela se virou, rumo à porta. — Preciso ver o que se passa no orfanato.

— Posso imaginar que ele vá atrás do filho — Sterling admitiu enquanto a seguia escada abaixo —, mas os outros...

— Você não entende Sykes. Quando eu tinha doze anos ele me disse que me desejava para ser sua garota e tentou me beijar. Acertei nele um pontapé e afirmei que preferia morrer. Sykes garantiu que havia coisas piores do que a morte e suponho ser esse o motivo por ele ter arranjado minha pequena jornada ao inferno.

— Você não me contou sobre isso.

— Lembrei-me do fato esta noite quando soube da morte de Nancy.

— Cada vez gosto menos desse sujeito. Talvez Swindler possa dar um jeito nele.

— Não sem provas. Sykes se esconde nas sombras e é muito difícil de encontrar.

O que dava a ele uma vantagem sobre Sterling.

Eles saíram e desceram os degraus. O coche estava esperando, mas Sterling não viu o cocheiro nem o criado. Deviam estar tomando chá na cozinha.

— Tenho de avisar o cocheiro.

Frannie chegou ao final da escada antes de Sterling e ele notou que dois lampiões de gás não estavam acesos.

Onde estava Frannie? Ela estava no campo de visão dele e de repente desaparecera atrás da cerca viva.

— Wedgeworth! — Sterling gritou a plenos pulmões e desceu correndo a escada.

Ele amaldiçoou a escuridão que a engolira, viu a sombra se mover... e um gemido feminino.

— Frannie!

Escutou passos rápidos que vinham da mansão.

— Vossa Graça!

Mais luz vinha em sua direção e ele pôde distinguir as formas. Dois homens estavam curvados sobre alguém...

— Frannie!

Os dois homens saíram correndo.

— Peguem os canalhas! — Sterling gritou para seus criados, enquanto se ajoelhava ao lado da mulher ferida.

— Santo Deus, é a srta. Darling — Wedgeworth disse, segurando a lamparina no alto.

Sterling não pôde responder por causa das lágrimas que tolhiam a garganta. Pegou Frannie no colo com cuidado, levantou-se e engoliu o medo.

— Quando Catherine desmaiou, Claybourne mandou um dos criados chamar o dr. Bill Graves.

— Sim, Vossa Graça. Deve ter sido Jessup.

— Mande-o imediatamente à procura de Graves.

A imobilidade de Frannie assustou Sterling e ele mantinha os dedos pressionados na leve pulsação do pescoço para certificar-se de que ela estava viva. Frannie apresentava um grave ferimento na cabeça. Uma das criadas o ajudara a pôr nela uma camisola para deixá-la mais confortável. Pelos hematomas era evidente que haviam batido nela. Ah, se ao menos os tivesse visto e se não houvesse parado na escada! Se ao menos sua visão fosse melhor à noite. Se...

Mandar o criado chamar Bill foi como avisar todos por telegrama. Luke, Catherine e Jim chegaram logo depois, seguidos rapidamente por Jack que trouxe com ele um homem que Sterling considerou de aparência suspeita e que foi apresentado como sendo Feagan. O homem idoso, apoiado na bengala, observou Frannie que estava com os cabelos espalhados no travesseiro. Aquele era o sujeito que Frannie pensava ser seu pai. A julgar pela maneira como a fitava, como se perdê-la acabaria por matá-lo, era possível que ela tivesse razão.

— Frannie levou uma pancada violenta na cabeça. — Bill inclinou-se sobre ela e abriu uma pálpebra fechada de cada vez. Endireitou-se e olhou em volta. — Quero que todos, exceto Catherine, saiam para que eu possa fazer um bom exame.

Várias bocas se abriram...

— Os senhores o ouviram — Catherine protestou com energia. — Vão embora e depressa. Uma demora poderá prejudicá-la. Quando soubermos de mais alguma coisa, nós os encontraremos na biblioteca.

Sterling escutou os outros se afastarem, mas continuou ao lado da cama, fitando Frannie.

— Sterling, você também precisa sair. — Catherine tocou seu braço.

— Deixe-nos a sós por um momento. Ela anuiu e levou Bill até a sala de estar.

Sterling curvou-se e murmurou junto à orelha de Frannie.

— Por favor, minha doce Frannie, não permita que Sykes a leve. Juro que jamais deixarei que ele torne a machucá-la.

Ele a beijou na testa. Não foi o suficiente, mas era tudo o que tinha para oferecer.

— Não vi ninguém rondando a casa — Sterling disse pela enésima vez.

Ele não estava acostumado a defender seus atos e procurou ser amável, convidando a todos para tomar uísque e o que mais desejassem na sua biblioteca. Parecia que todos desejavam determinar sua responsabilidade na tragédia.

— Como isso é possível? — Jim perguntou com raiva aparente depois de um interrogatório tedioso.

— Chega! — Jack gritou. — O que aconteceu não tem volta. De agora em diante teremos de protegê-la melhor.

— Sykes provavelmente não a perdoou — Feagan disse.

— Só há uma maneira de evitar que ele nunca mais volte a atacá-la.

— E qual é? — Sterling perguntou.

Jim fitou-o como se ele tivesse perdido o juízo.

— Nós o mataremos — Feagan disse com simplicidade.

— E como faremos isso? — Sterling não acreditou na própria pergunta.

— Primeiro teremos de encontrá-lo — Luke afirmou.

— Não se pode ir até a casa dele e esperar por ele nas sombras como ele fez com Frannie? — Sterling indagou.

— Alguém como Sykes não costuma divulgar o endereço — Jim disse. — Ele trabalha em segredo e contrata sequazes para fazer o serviço sujo, a menos que seja muito pessoal. Nesse caso ele mesmo pode resolver o assunto, mas ninguém ousa trair Satã, pois sua vingança é cruel.

— Precisamos atrair Sykes em uma emboscada — Jack argumentou. — O problema é ele nos conhecer e saber de nossa afeição por Frannie. Não confiará em nós se pedirmos um encontro.

— Ele não me conhece — Sterling falou e seguiu-se um silêncio total na sala.

— Pode dar certo — Feagan disse após alguns instantes, coçando a barba.

Sterling esperava que ali não houvesse piolhos, mas não se importaria de enfrentá-los se isso significasse não perder Frannie.

— Como assim? — Jim indagou, impaciente.

— Sykes não é apenas um ladrão, mas fornece garotos para outros no negócio. Certo? Certo. Por isso espalharemos um boato que um tal de senhor... — Feagan olhou para Sterling como se estivesse avaliando seu valor

— Knight? Acho que dará certo. Um tal de sr. Knight está precisando de um menino experiente em entradas furtivas e gostaria de falar com o sr. Sykes.

— Sykes não se encontrará com ele sem antes fazer uma verificação — Luke interveio.

— Claro que não. Ele não é nenhum tolo. Nós ficaremos escondidos observando tudo. Sykes acabará aparecendo porque o sr. Knight insistirá em fazer o negócio pessoalmente com ele. Quando ele aparecer, tomaremos conta dele.

Carrancudo, Jim fitou Sterling.

— Precisamos ter certeza se Vossa Graça compreendeu perfeitamente o que estamos propondo.

— Posso assegura de que não sou o tolo que os senhores pensam que sou. Servirei de isca e quando a presa a engolir, os senhores o matarão. E quero crer, inspetor, que por suas investigações, o senhor concluirá que se tratou de um acidente.

— Ou defesa própria. — Jim deu de ombros.

Luke, sentado na beira da mesa, inclinou-se para a frente.

— Greystone, é preciso entender que não é fácil conviver com a responsabilidade da morte de um homem na consciência. Essa não é uma decisão que deve ser tomada com rapidez nem com raiva.

Sterling fitou Feagan.

— Pode espalhar o boato.

Sentado ao lado da cama, Sterling segurava a mão de Frannie e com o polegar acariciava os nós dos dedos. Segundo Bill, ela acabaria acordando. Frannie saíra do episódio com duas costelas quebradas, várias escoriações, mas sem graves ferimentos internos. Bill creditou a Sterling o fato de tê-la encontrado em tempo.

Mas todos na biblioteca haviam reconhecido a desesperada tentativa de Bill de culpar um camarada sem nome e sem rosto pela condição terrível em que Frannie se encontrava, sendo que todos sabiam quem era o criminoso. Um homem que não via sua mão se a estendesse para o lado. Um homem para quem o escuro era o maior inimigo. Claro que eles não sabiam dessas particularidades que Sterling também não pensava esclarecer. Ele não teria de ver Sykes uma vez que conseguisse atraí-lo, a menos que Sykes pretendesse atirar nele, o que era uma possibilidade. Muitas vezes usara rifles na África, mas também chegara a usar uma pistola que era mais fácil de esconder.

Algumas vezes um dos homens vinha substituí-lo ou entrava para dizer que nada se ouvira falar sobre Sykes. Na certa um encontro demoraria de vinte e quatro a quarenta e oito horas para ser marcado.

Sterling reconhecia a imprudência de envolver-se, mas ele não protegera Frannie quando deveria tê-lo feito. E faria o impossível para que ela fosse resguardada para sempre, independentemente do preço a pagar.

Escutou passos leves, olhou por sobre o ombro e viu Catherine. Ela puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dele.

— Como ela está?

— Ainda está dormindo.

— Mas ela acordará. — Catherine apertou a mão.

— Pode confiar neles, Sterling.

— Não creio nisso. Eu não ficaria surpreso se Swindler usasse a oportunidade para que eu fosse enforcado. Ele tem uma péssima opinião a meu respeito.

— Eles a amam.

— É muito fácil gostar de Frannie.

— Você a ama, Sterling? Ele anuiu.

— Ela é tão bondosa, Catherine. Jamais conheci ninguém tão altruísta. Seria preferível ela pensar mais um pouco em si mesma e eu poderia ensiná-la a ser mais egoísta.

— Era por isso que você e papai brigaram?

— Em parte. Catherine, quando voltei para Londres, vim vê-lo, mas ele não me recebeu.

— Por que você não veio falar comigo?

— Porque você estava se saindo muito bem sem a minha presença e eu só complicaria o assunto.

Catherine acariciou o braço do irmão.

— Está certo, acredito no que está me dizendo.

Eles ficaram em silêncio por algum tempo. Sterling pensava em escovar os cabelos de Frannie, em deitar-se a seu lado e abraçá-la... uma última vez. Depois que o assunto Sykes fosse resolvido, tudo mudaria. Ele sabia o que teria de- fazer, mesmo contra sua vontade. O estranho era Frannie tê-lo modificado a ponto de torná-lo o homem que seu pai idealizara.

— Sterling, sei o que pretende fazer, mas há muitos perigos envolvidos. Se algo acontecer a você, não haverá herdeiros.

— Temos nosso primo.

— Wilson? Você não o tolera.

Sterling ficou em silêncio. Nada, nem mesmo seu título era mais importante do que a mulher que estava em sua cama. Catherine abraçou-o e encostou a cabeça em seu ombro.

— Sterling, para mim parece que você finalmente voltou para casa.

Sterling teve de admitir que parecia mesmo um facínora. Não dormira, nem se barbeara, o que o deixava com aspecto grosseiro. Não se barbear fora ideia de Jack e a falta de sono resultará das horas passadas ao lado da cama olhando para Frannie. Queria demais vê-la acordada, mas assim pelo menos não teria de mentir para ela. Frannie não aprovaria o que ele se preparava para fazer, porém era preciso agir dessa forma para o bem dela e talvez um pouco por si mesmo.

Nada perguntara sobre a procedência das roupas sujas que Jim trouxera e que provocavam coceiras. Mesmo assim não parecia um mendigo, mas também não com o homem que se vestia com um dos mais exclusivos alfaiates londrinos.

Feagan mandara avisar que o sr. Knight deveria ocupar uma mesa de canto no bar às dez da noite. Alguém o encontraria lá.

— Provavelmente não será Sykes — Jack explicou quando ele, Jack, Luke e Feagan aguardavam na travessa escura a aproximação do horário. — Deverá ser um dos lacaios dele e Vossa Graça terá de insistir que deseja falar pessoalmente com Sykes. Procure falar sem muita fineza.

— Eu planejava imitá-lo.

— Na verdade, milorde terá de ser um pouco mais rude — Jack disse. — Lembre-se, nós todos tivemos um certo nível de educação.

— Posso falar do jeito que for necessário — Sterling respondeu, arrastando as palavras.

Jack sorriu.

— Nada mau. Faremos que se torne um dos meninos de Feagan.

— Não, obrigado. Esta é uma performance de uma noite. — Sterling olhou para Jim. — Por falar nisso, Frannie está convencida de que Sykes matou Nancy. Ela entregou o filho para Frannie cuidar.

— Maldição.

— O menino esteve em minha casa, mas acabou fugindo. O nome dele é Peter, mas diz chamar-se Jimmy, Deus sabe lá o motivo. Quando resolvermos o caso de Sykes, seria melhor procurá-lo. Frannie ficará muito feliz se o encontrarem.

— Por que Vossa Graça não o procura?

— Não planejo encontrar-me com Frannie depois deste caso encerrado.

Jim agarrou Sterling pelo casaco emprestado e afastou-o dos outros.

— Ela o ama — Jim afirmou com o rosto a centímetros de Sterling.

— Sim, e essa é uma infelicidade para ela. Pelo que me lembro, você garantiu que se casaria com ela e você é um homem honrado. Tome conta de Frannie e faça o que estiver ao seu alcance para fazê-la feliz. — Sterling passou por Jim e quase o derrubou. Tratou de sair da travessa antes que os outros pudessem reagir.

Ele acabara de representar o papel mais difícil da noite. Fingir que Frannie nada significava para ele. O resto seria bem mais fácil.

Frannie sentiu forte dor de cabeça e apesar da luz que machucava seus olhos, reconheceu a cama de dossel de Sterling. Por que estava tão dolorida?

Escutou alguém dizer suavemente que ela havia acordado e viu Catherine curvar-se sobre ela.

— Olá, Frannie, como está se sentindo?

— Parece que fui moída.

— Lembra-se do que houve? — Bill perguntou, aproximou uma lamparina de seu rosto. Frannie tentou virar a cabeça, mas ele segurou-a pelo queixo. — Fique quietinha e responda.

— Eu... — ela procurou lembrar-se. — Estávamos procurando Jimmy... Peter.

— A última coisa de que se recorda é estar no orfanato?

— Não. Estávamos aqui.

— Aqui onde?

— Você não sabe onde estamos? Bill sorriu.

— Eu sei, mas você levou uma pancada na cabeça e quero ter certeza de sua percepção.

— Estamos na casa de Sterling. Onde ele está?

Bill deu uma tossidela e deixou a lamparina na mesa.

— Você está dormindo há quase vinte e quatro horas e eu gostaria que tentasse tomar um pouco de caldo quente. Catherine, providencie isso para nós.

— Volto em instantes. — Ela saiu do quarto. Frannie assustou-se.

— Onde está Sterling?

Bill sentou-se na beira da cama.

— Frannie, está lembrada do que houve?

Ela sentou-se depressa e precisou agarrar mão de Bill, pois teve a impressão de que sua cabeça se partiria ao meio.

— Ele está morto? Oh, não, meu Deus! Não!

— Ele está bem, Frannie. — Bill apertou a mão, pôs alguns travesseiros atrás da cabeça dela e deitou-a. — Você se lembra de terem sido atacados?

— Não.

— Lembra-se de Sykes?

— Quem poderia esquecer aquele monstro?

— Ele quer assassiná-la, Frannie.

— Ele matou Nancy. — De repente a recordação apareceu muito nítida.

— Não posso afirmar nada, mas sei que ele jurou matar você. Por isso os outros estão tentando atraí-lo para uma cilada.

— Outros? — Frannie apertou os olhos, tentando lembrar-se dos nomes. Como pudera esquecê-los? — Luke, Jack e Jim. — Anuiu e abriu os olhos. Eram três, embora chegasse a pensar que Luke não fazia mais parte do grupo. Fora um engano. Sempre que um estivesse em apuros, os outros largavam tudo para ajudar. — Mas onde está Sterling?

— Com os outros.

Aquilo não fazia sentido.

— E onde estão os outros?

— Já disse, procurando Sykes.

— Nas ruas, nos cortiços?

— Sim.

— Não. — Frannie tentou sair da cama, mas Bill a impediu.

— Cuidado, Frannie. Vai se machucar.

— Ele não é um dos nossos. Ele nunca...

— Por isso ele é uma isca perfeita. Sykes não o conhecerá. Frannie bateu o punho fechado no ombro de Bill que se levantou e recuou.

— Você melhorou depressa, querida.

— O que foi planejado?

— Frannie...

— Diga logo.

Frannie horrorizou-se ao escutar a explicação. Sterling não era como eles. Se houvesse uma pequena falha, ele poderia ser morto.

Sentado em um canto escuro, Sterling olhava para fora. Nessa posição poderia ver quem se aproximasse de lado e, quando o camarada se sentasse, ficaria em seu ângulo de visão.

O salão estava lotado e o bar recém-polido que se estendia pela largura do recinto parecia novo. Sterling tomava a cerveja devagar para não chamar a atenção e para manter o raciocínio perfeito. Trazia uma pistola no bolso do casaco. Ocorrera que se Sykes fosse o primeiro a aparecer, ele poderia simplesmente atirar no sujeito. Mas como havia muitas pessoas no recinto, não poderia arriscar a vida de inocentes, embora duvidasse de que naquele ambiente de mau gosto houvesse muitos inocentes.

Recriminou-se por esse pensamento de mente estreita que também considerara o casamento de Catherine como um desastre. Em vez disso, ela se unira a um homem que não se importava com o custo pessoal ao distribuir as inúmeras recompensas. Rotulara os três e Luke como sujeitos pouco acima de marginais e estava descobrindo o que Catherine já sabia. Eram pessoas extremamente leais. Wexford também faria o necessário para proteger Sterling? Ou ele só agiria como fosse conveniente?

Sabia que era injusto julgar Wexford pelos padrões estabelecidos pelos amigos de Frannie. A vida dele nunca estivera exposta aos mesmos perigos. Dera a volta ao mundo à procura de excitação, mas seu coração nunca batera tão forte como naquele momento.

— Sr. Knight?

Sterling levantou o olhar. Não era Sykes, era um homem loiro.

— Quem é você?

— Um assistente do sr. Sykes. — O homem puxou uma cadeira e sentou-se.

— Está perdendo seu tempo, não falo com assistentes — Sterling esmerava-se no sotaque das ruas.

— O sr. Sykes não fala com camaradas que não conhece.

— Ele virá se estiver interessado em ganhar dez mil.

— É muito dinheiro.

Sterling deu um sorriso arrogante e tomou um gole de cerveja.

— Qual é o negócio? — o homem perguntou

— Seu nome é sr. Sykes? O homem olhou ao redor.

— Volte amanhã.

— Não.

O homem o fitava como se estivesse com uma pistola apontada no peito e Sterling deu de ombros.

— Preciso do garoto hoje, tenho um compromisso.

— Não parece que tenha planejado bem o encontro.

— Planejei tudo muito bem e com rapidez. Assim as chances de sermos descobertos são menores.

— É um homem cauteloso, sr. Knight.

— E muito perto de tornar-me rico. O sujeito anuiu e cocou a barba rala.

— Está certo. Encontre-me na travessa atrás do bar em dez minutos. Eu o levarei ao sr. Sykes.

O sujeito foi embora e Sterling tomou o restante de cerveja. Como de hábito, procurou o relógio para conferir a hora e lembrou-se de que não o havia trazido. O brasão poderia tê-lo denunciado. Poderia dizer que o roubara, mas resolvera não arriscar. Se sobrevivesse, queria entregá-lo ao filho e, se não o tivesse, deixaria em sua mesa com um recado para Frannie.

E ela só saberia o quanto fora amada, depois da morte dele. Calculou que haviam se passado dez minutos e saiu pela porta da frente. Ficou parado por alguns segundos como quem se orientava e levantou a gola do casaco para evitar o frio da noite. Era o sinal que o contato havia sido feito e que o encontro fora arranjado.

Foi até a esquina e entrou na travessa. Não chegou a dar dois passos. Foi agarrado e encostado no muro, de costas para quem o pegara.

— Calma, sr. Knight. — Era a voz do homem loiro. — Estamos procurando suas armas.

— Tenho uma.

Ele foi virado e defrontou-se com um gigante. Aquilo não era uma maravilha?

— Você não acha que eu viria desarmado a esta região londrina, não é? Espero que me considerem um pouco mais esperto.

O homem apontou com a cabeça.

— Por aqui.

Sterling seguiu-o pela travessa até uma escada onde estava sentado um homenzarrão vestido de preto e com os cabelos negros caídos nos olhos. A semelhança do desenho de Peter era notável. Ali estava o pusilânime Sykes.

— Dê-me a arma, Tiny.

O gigante entregou a pistola para Sykes. Sykes virou a arma de um lado a outro, examinando-a sob a pouca luminosidade da lamparina que estava acima dele.

— Muito boa.

Sykes olhou para Sterling e deu um sorriso maldoso.

— Tire o chapéu, sr. Knight.

— Por quê? — Sterling estreitou os olhos.

— Porque gosto de ver a cara do homem com quem vou negociar.

Sterling deu de ombros, como se isso pouco o incomodasse, e tirou o chapéu.

— Jimmy! — Sykes gritou.

Um menino raquítico saiu de trás da escada onde se ocultava nas sombras. Era Peter.

Sterling acreditou que não poderia haver melhor coincidência para o ardil.

Assim que Peter se aproximou, Sykes puxou-o de encontro a sua perna.

— Já o viu antes, garoto?

Peter olhou para cima e analisou Sterling de vários ângulos.

— Não, senhor.

Sterling procurou não demonstrar alívio. Por seus trajes, o garoto não o teria reconhecido?

— Posso ir embora? — Peter perguntou.

— Vá. — Sykes não pareceu contente com a resposta do menino.

Peter passou correndo e Sterling pediu a Deus para que Jim o visse e o agarrasse.

— Meu filho. Eu o chamo de Jimmy e sua mãe deu o nome de Peter, mesmo sabendo que eu não gostava do nome. O que fazer com uma mulher que não faz o que a gente quer?

— Matá-la — Tiny afirmou e deu uma risadinha ridícula para um homem daquele tamanho.

— Cale a boca, Tiny, ou eu o matarei também — Sykes respondeu antes de voltar a falar com Sterling: — Sr. Knight, já deve ter percebido que não sou homem com quem se deve indispor. Conte-me sobre o assalto que está planejando.

Sterling gostaria de poder enxergar nas sombras para saber se os outros estavam por perto.

— Já ouviu falar no diamante Koh-i-noor que está exposto no Palácio de Cristal? É o maior diamante do mundo.

— Claro. — Sykes levantou-se com um sorriso largo. — O senhor planeja furtá-lo?

— Exatamente.

— Então vamos.

— Mande esses dois embora. Sykes pareceu hesitar.

— Se quiser, pode apontar a pistola para mim, sr. Sykes. Sykes anuiu.

— Vocês dois, podem entrar. Sterling escutou os passos se afastarem,

— Bem? — Sykes provocou-o.

— É muito simples. Você irá direto para o inferno. Sterling sentiu o calor antes de escutar o estampido.

Não que isso importasse. Ele se jogara sobre Sykes e o derrubara. O primeiro soco no queixo de Sykes devia tê-lo entorpecido, pois ele mal se mexeu.

Sterling não soube quantas vezes atingiu Sykes antes de alguém puxá-lo para trás.

— Espere, ele não está morto! — Sterling protestou.

— Você não tem de matá-lo — Luke ajoelhou-se a seu lado. — O que ele disse será suficiente para enforcá-lo, segundo Swindler.

Sterling sacudiu a cabeça.

— Não será preciso acabar com Sykes se a lei pode fazer isso por nós — Luke afirmou com calma. — Confie em mim, Greystone. — Se não tiver de matá-lo, não terá vontade de fazê-lo.

— Ele machucou Frannie.

— Ela vai se recuperar. Frannie nunca mais olhou para mim do mesmo jeito depois que matei Geoffrey Langdon. Ela também se acha culpada.

Sterling anuiu. Se fosse melhor para ela... De repente ele sentiu uma dor violenta que ameaçava derrubá-lo.

— Onde está Swindler?

— Aqui. — Jim ajoelhou-se ao lado de Sterling. — Levamos o menino.

Sterling agarrou a camisa de Jim, disse uma imprecação e caiu para trás levando Jim com ele.

— Nunca a faça chorar.

Ele não soube se Jim anuiu, porque mergulhou na escuridão.


Capítulo Onze


Sterling acordou com o ombro latejando e a cabeça doendo. A primeira pessoa que viu foi Jim que, aos pés da cama e com os braços cruzados na altura do peito, fitava- o sem a habitual desconfiança.

— Como está Frannie? — Sterling resmungou.

— Por que não pergunta diretamente? — uma voz suave retrucou.

Sterling virou a cabeça para o lado. Frannie estava sentada na lateral da cabeceira, em uma poltrona onde um homem com visão normal poderia tê-la percebido antes. Frannie acariciou os cabelos dele, assim como fazia com os órfãos por quem daria a vida. Ela segurou a mão de Sterling, ergueu-a junto aos lábios e beijou-a, sem se importar com as lágrimas que molhavam os dedos dele.

— Não chore, Frannie.

— Você poderia ter sido assassinado, seu tolo. — Ela entrelaçou os dedos nos cabelos dele e virou a cabeça para falar com Jim. — Quer trazê-lo?

Jim saiu.

— Quem? — Sterling perguntou.

— Peter. Ele tem se preocupado muito com você. — Frannie afofou alguns travesseiros atrás de Sterling e ajudou-o a sentar-se.

— Há quanto tempo estou dormindo?

— Três dias e sua febre somente cedeu ontem à noite. Foi muita sorte, pois houve uma hemorragia no local onde a bala atravessou seu ombro, mas Bill deu um jeito em tudo.

Sterling anuiu, exausto. Frannie apoiou no braço a cabeça dele e segurou um copo de água para que ele pudesse beber. O menino apareceu e Frannie segurou-o antes de ele pular na cama.

— O senhor vai ficar bom? — Peter indagou. Sterling anuiu.

— Por que você mentiu para Sykes?

— Ele não é um dragão. — Peter balançou a cabeça.

Sterling achou graça.

— Não é, e você não devia ter fugido.

— Eu não queria ir embora, mas eles vieram me buscar.

— Eles não farão mais isso, não é, Swindler? Jim postou-se de novo aos pés da cama.

— Não. Sykes está preso e não vai sair mais.

Sterling não duvidou da determinação daquela voz. Mesmo se o tribunal não julgasse Sykes culpado, Jim daria um jeito para ele jamais sair da prisão. Se ele não o fizesse, o duque de Greystone o faria. Esperava nunca vir a arrepender-se de não ter matado Sykes quando tivera a oportunidade.

Frannie abraçou Peter.

— Agora diga até logo para o duque.

— Até logo, sir.

— Comporte-se, Peter.

— Jim, por favor, leve-o — Frannie pediu.

Jim anuiu, virou-se, mas tornou a olhar para Sterling.

— Você não é tão ruim para um camarada que não foi criado nas ruas. Tive muita honra de lutar a seu lado.

Sterling não chegou a retribuir o cumprimento. Jim levou Peter para fora do quarto e fechou a porta.

Sterling virou-se para Frannie, sempre bela, e desejou poder acreditar que ela não correria mais perigo. Mas era de se prever que ela continuasse a peregrinação pelos becos de Londres.

— Você continuará as visitas aos cortiços, não é? Frannie olhou para as mãos entrelaçadas e fez um gesto positivo de cabeça, antes de fitar Sterling.

— É onde as crianças se encontram.

E onde ele não poderia protegê-la. Tivera sorte com Sykes, mas sua experiência com o carteado do Dodger's afirmava que a sorte era uma amante volúvel.

Sterling se recuperava aos poucos e os dias transcorriam com felicidade. Frannie trazia as refeições, dava banho em Sterling e todas as noites eles dormiam abraçados.

Quando se sentiu mais forte, ele começou a andar pela residência e mais tarde pelo jardim, onde Peter costumava encontrá-lo.

Eles pouco conversavam, mas havia se formado uma camaradagem inexplicável entre os dois. Sterling sentiria falta quando o menino fosse embora, e isso aconteceria bem antes do que ele gostaria.

Sentada no terraço, Frannie observava Sterling, sempre atraente, e o menino abandonado passearem pelo jardim. Era curioso como se formara um laço de união entre duas pessoas tão diferentes.

O tempo da plebeia com o duque também se esgotava. Não faziam amor desde o encontro dele com Sykes, e Frannie podia sentir que ele recuava. Por sua vez, ela lutava para proteger o coração, temendo que fosse tarde demais.

Desde o começo, soubera que Sterling seria um acréscimo temporário em sua vida e passara a aceitar o inevitável. Algumas vezes, à noite, no escuro, morria de vontade de revelar que se apaixonara por ele, mas isso faria a despedida muito mais difícil.

— Preciso voltar aos cortiços — Frannie disse para Sterling durante o jantar daquela noite. — E eu gostaria que você viesse comigo.

— Creio ter provado que não sirvo como protetor.

— Você provou que arriscaria sua vida por mim e isso não é irrelevante.

Sterling meneou a cabeça e fitou o alimento do prato.

— Você deveria pedir a Swindler para acompanhá-la.

— Tenho de conversar com Feagan e estou certa de que o encontrarei em seu pub favorito. —Frannie queria Sterling a seu lado. — Não me demorarei por lá e eu gostaria muito de ter sua companhia.

Sterling concordou, como se intuísse a importância do assunto.

— Mandarei aprontar o coche.

O trajeto foi tão calmo como o transcorrer dos dias, mas pelo menos Sterling a abraçava. Como sempre, ele sentia quando ela precisava de conforto.

Depois de muitos tropeços, paradas e reinícios, o cocheiro manobrou o veículo pelas ruas mal conservadas até chegar ao local onde Frannie esperava encontrar Feagan. Tudo havia se deteriorado desde o tempo em que ela estivera ali, acompanhando Feagan para todos os lados, pois ele alegava que não queria perdê-la de vista. Frannie não demorou em localizá-lo, por conhecer a mesa preferida dele. Ela sentiu um aperto no coração ao ver sozinho a um canto um homem que fora rodeado por crianças.

Ele levantou o olhar e deu um sorriso torto.

— Frannie, querida, a que devo esse prazer?

Sterling puxou uma cadeira e ela sentou-se ao lado de Feagan.

— Vossa Graça, o senhor me pagaria um drinque? — Feagan perguntou.

Sterling fitou Frannie e ela concordou.

— Um excelente cavalheiro — Feagan disse assim que Sterling se afastou — e gosta de você.

— Você quase o matou.

— Não me culpe, a ideia não foi minha, foi dele.

Feagan nunca assumia responsabilidade. Quando um dos meninos era preso, a culpa era sempre do garoto por ter sido imprudente, não de Feagan que o enviara para o perigo.

Sterling voltou, deixou um caneco diante de Feagan e sentou-se ao lado de Frannie. Sob a mesa, segurou a mão de Frannie para dar forças.

Frannie engoliu em seco e deu um longo suspiro.

— Feagan, você é meu pai?

Feagan deu uma risadinha e esfregou a mão na boca.

— Frannie, querida, de onde você tirou uma ideia tola como essa?

— Eu sempre pensei... que você fosse meu pai.

— Não, você é muito fina e não poderia ter sido gerada por um sujeito como eu. Eu a encontrei em um cesto na entrada de uma varanda e a levei. Você sabe como sou. Quando vejo algo fácil de surrupiar, não hesito.

Frannie não sabia se estava desapontada ou aliviada.

— Eu o amo de qualquer maneira — ela declarou com um sorriso terno.

— Eu também a amo, minha doce menina. — Feagan piscou para ela, ergueu o caneco e tomou a cerveja.

O encontro estava terminado. Sterling levantou-se e puxou a cadeira de Frannie.

Do lado de fora, Frannie comprazeu-se com o ar frio da noite.

— Você acredita nele? — Sterling perguntou.

— E você? — Frannie fitou-o.

— Não sei.

Frannie inspirou fundo.

— Não importa. Será como ele quer me fazer acreditar.

— Frannie?

Ela pressentiu o que viria pelo tom de voz de Sterling.

— Amanhã partirei para o campo.

— Esse é um adeus? — ela perguntou.

— Sim.

— E Peter?

— Ele ficará com você. Afinal você é a rainha dos dragões. Sterling se esforçava para suavizar algo que partia o coração dela.

— Ele se tornou muito apegado a você. Ele foi avisado sobre a separação?

— Peter sabe e entende.

Então o garoto era mais inteligente do que ela.

Naquela noite eles fizeram amor e houve uma certa rudeza, como se ambos quisessem agarrar-se a uma coisa que jamais poderiam segurar.

Mais tarde, um nos braços do outro, a ocasião foi agridoce. Frannie sempre temera o momento em que não poderia mais fazer parte da vida de Sterling, mas não esperava que isso a fizesse sofrer tanto.

Sterling acordou na manhã seguinte e não encontrou Frannie na cama. Seria inútil procurá-la. Ela tinha ido embora e levara Peter. A ausência deles o fazia experimentar um grande vazio na alma.

Deu um berro de desespero e sua angústia ecoou pelo quarto, sem trazer conforto.

Frannie fechou o volume contábil com um suspiro de cansaço. Sterling partira havia um mês para o campo. Naquele dia não pensava nele pelo menos durante meia hora. A cada dia acrescentava um minuto até que não se lembrasse mais dele.

Peter se adaptara à vida do orfanato, o que a alegrava. Não imaginava como faria se não tivesse o amor do garoto.

Percebeu que havia alguém na entrada. Levantou a cabeça, viu que era Jim e levantou-se da cadeira.

— Você sabe que não precisa levar-me até o orfanato todas as noites.

— Mas eu gosto de andar na sua carruagem elegante.

O veículo chegara uma semana depois que ela deixara a casa de Sterling. Ela não suportaria despedir-se dele e por isso se afastara sem dizer adeus.

Ela recebera uma mensagem simples trazida pelo cocheiro.

Para que você possa sempre viajar com segurança. Não se preocupe, eu providenciarei a manutenção dos cavalos. Greystone.

Jim ajudou-a a pôr o manto sobre os ombros.

— Teve notícias dele, Frannie?

— Não e eu nem as esperava, pois Sterling foi para o campo. Você sabe que a nobreza não suporta Londres no inverno.

— Nunca me dei conta disso. Frannie riu.

— Faz tempo que não a ouço rir — Jim comentou.

— Então deveria frequentar mais o orfanato. As crianças são uns amores e me divirto muito com elas.

Quando chegaram ao orfanato, um criado ajudou-a a descer. Frannie caminhou em direção ao prédio e ao chegar mais perto, apressou-se. Era sempre bom voltar para casa.

O conde e a condessa de Claybourne têm o prazer de convidá-lo para uma palestra do sr. Charles Dickens a realizar-se no dia 15 de dezembro de 1851.

Após o evento haverá recepção e baile, teremos satisfação de receber sua doação em forma de brinquedo que será encaminhado ao Lar das Crianças Feagan na manhã de Natal.

A pequena temporada ocorria em dezembro, quando os lordes retornavam a Londres para uma rápida sessão no Parlamento. Sterling divertia-se ao saber que Catherine, com um pequeno empurrão de Frannie, planejava aproveitar a oportunidade para praticar uma obra benemérita. Ele não sabia se tomava o convite que recebera como um presente ou uma punição.

Sterling se recuperara do ferimento e fora para o campo assim que seu estado de saúde permitirá. Pensara que se afastar de Londres o ajudaria esquecer Frannie, mas lembrava-se dela o tempo inteiro, mesmo quando caminhava pela propriedade até a exaustão.

Por meio de Charles Beckwith, o advogado da família, mandara elaborar um documento assinado por Catherine, autorizando-o a enviar mensalmente uma quantia para o orfanato como ela pedira. As doações pessoais de Sterling eram anônimas, exceto pelos calçados providenciados pelo sapateiro que recebia imediatamente após cada remessa de serviço. Com a chegada do inverno, pelo menos os pés das crianças ficariam aquecidos.

Em Londres, quando dormia em sua cama, Sterling tinha a impressão de sentir no travesseiro o perfume de Frannie. Ela fora mais um presente em sua vida pelo qual não sabia se deveria agradecer, pois a falta que sentia dela era imensa.

Ele calçou as luvas brancas no saguão, enquanto os criados carregavam os cem conjuntos de aquarela que ele havia comprado para as crianças. Depois de ler o convite inúmeras vezes, pensara em não comparecer, mas sua ausência não seria bem interpretada. Em primeiro lugar não se ignorava o convite de uma irmã e, além disso, quando se ostentava um título tão respeitado como o seu, era importante apoiar eventos de caridade. Essa seria uma declaração que obras sociais valiam seu tempo e davam créditos. Como ele e Luke vinham delineando uma legislação que protegiam as crianças, era realmente imperativo tornar-se público que ele acreditava no próprio trabalho. E haveria melhor maneira de divulgar isso do que comparecer ao evento?

Tudo daria certo e ele não ficaria por muito tempo na recepção. Falaria alguns minutos com Frannie, perguntaria por Peter e sairia.

Frannie, ao lado de Catherine, saudava os convidados, todos em trajes de noite. Ela usava um vestido roxo que mandara fazer para a ocasião, pois ela queria que o lar das crianças se orgulhasse dela. Seu nervosismo, porém, nada tinha a ver com a grande quantidade de nobres ali presentes, mas sim com o temor de que Sterling viesse e ela fosse incapaz esconder a falta que sentia dele.

Catherine dissera que Sterling estava muito bem no campo, mas não dera detalhes. Frannie não ficara sabendo se ele encontrara outra pessoa e se estava feliz, o que a deixaria mais satisfeita. Acima de tudo ela desejava a felicidade de Sterling.

Os convidados chegavam, entregavam os brinquedos que eram levados pelos serviçais a outro recinto e acompanhavam Frannie até o salão onde cadeiras haviam sido dispostas em fileiras e um atril fora colocado à frente de todos.

Ela viu um rosto na multidão que entrava e sorriu.

— Sr. Dickens, é muito bom vê-lo.

— Srta. Darling, está adorável como sempre.

— Bondade sua, sr. Dickens. Permita-me pegar seu chapéu e seu casaco. — Ela o conduziu para longe da aglomeração e entregou os pertences dele ao mordomo.

— Sr. Dickens, nem sei como agradecer por aceitar o convite desta noite. Veja quantas pessoas vieram para escutá-lo — Frannie comentou.

— Fico muito contente em ajudar sua causa. — Dickens olhou por sobre o ombro de Frannie e deu um sorriso largo.

— Sr. Dodger, pensei que já houvesse sido deportado.

Jack deu risada ao lado da esposa e de Henry, o enteado de cinco anos.

— Ah, sr. Dickens, o senhor sempre subestimou minha habilidade de sair de um aperto. Por favor, lady Olívia, permita-me apresentar o sr. Charles Dickens.

— Sinto-me honrada, senhor — Livy disse.

— E meu enteado, o duque de Lovingdon. Sr. Charles Dickens.

Dickens fez uma mesura.

— Vossa Graça.

— Sei que crianças não foram convidadas, mas como Henry é apaixonado por sua obra, sr. Dickens, implorei a Catherine que fizesse uma exceção — Jack explicou.

— Então gosta de minhas histórias, Vossa Graça? Henry anuiu.

— Posso fazer uma pergunta? — o menino indagou.

— Sem dúvida, Vossa Graça. Henry apontou para Jack.

— Ele é o Artful Dodger? Dickens abaixou-se.

— Vossa Graça, escrevo ficção. Os personagens de meus livros não existem, mas se existissem — ele piscou — acredito que ele poderia ser Artful Dodger.

— Eu sabia!

— Está vendo aquele cavalheiro?

— Lorde Claybourne? Dickens anuiu.

— Ele seria Oliver.

— E a srta. Frannie?

— Ela seria cada uma das ternas jovens que aparecem na história.

Henry deu boas risadas e Frannie desejou que as crianças de seu orfanato também chegassem a rir com tanto abandono.

— Sinto interrompê-los — Catherine aproximou-se —, mas creio que está na hora de começarmos.

Frannie apertou a mão de Dickens.

— Vou apresentá-lo à plateia.

— Será ótimo.

Frannie foi até o salão na companhia de Catherine.

— Seu irmão...

— Não veio, sinto muito. Eu esperava...

— Ele deve estar muito ocupado.

— Ou talvez ele tenha voltado ao campo

— Claro. — Era onde ele preferia morar.

Eles foram até o atril e Catherine bateu palmas, pedindo a atenção da plateia.

— Eu e meu marido, lorde Claybourne, agradecemos a todos pela presença e esperamos que aproveitem a noite. Como patrocinadores entusiasmados do Lar das Crianças Feagan, levaremos os brinquedos trazidos esta noite para as crianças na manhã de Natal. Para muitos deles será a primeira vez que receberão um presente. Agora eu gostaria de apresentar a srta. Frannie Darling, que é a proprietária e a administradora do Lar.

Os presentes aplaudiram e Frannie desejou que não o houvessem feito. Ela ficava muito nervosa quando as atenções se concentravam nela, mas sua intenção era deixar as crianças orgulhosas.

— Obrigada. — Frannie teve a impressão de que sua voz soava como o coaxar de um sapo e deu uma tossidela...

Foi então que ela o viu em pé nos fundos do salão, ao lado da porta. Sterling estava muito elegante e Frannie pensou que se acalmaria se falasse apenas para ele...

— Eu me criei nas ruas de Londres e fui uma órfã que não conheceu os pais. Feagan foi o pai de rua que me deu um lar em troca do que eu conseguisse com furtos e mentiras. Talvez pareça estranho eu ter dado o nome de um fora da lei a um orfanato, mas ele não foi um criminoso para mim, pois eu não conhecia outra coisa. Ele me alimentou, me vestiu e deu-me um lugar para dormir. Quando eu tinha doze anos, o antigo conde de Claybourne me acolheu e foi só então que aprendi que roubar era errado. O atual conde de Claybourne não sabe disso, mas recentemente eu comprei terras onde pretendo construir outro lar para crianças e a este darei o nome em homenagem ao seu avô.

Frannie foi novamente aplaudida e Luke, que estava nos fundos do salão, ergueu a taça de champanhe em homenagem a ela com fisionomia de satisfação.

— As crianças da rua não somente são pobres de posses, mas também de espírito. Tenho esperança de que esses lares deem a eles o que cada criança merece: um lugar aprazível para viver. Assim, a condessa de Claybourne e eu agradecemos pelos brinquedos que foram trazidos e pela alegria que eles proporcionarão. E agora, para a alegria de todos, apresento o sr. Charles Dickens.

Novamente espocaram aplausos. Dickens aproximou- se e beijou Frannie no rosto. Ela ouvira falar que Dickens, como ela, também não gostava da nobreza. Por isso, o fato de ele ter vindo tinha muita importância. Quando o conhecera, ela era uma menina e ele, um jovem que percorria os cortiços à procura de histórias.

Beirando a parede, ela caminhou até os fundos do salão. Ao chegar perto de Luke, ele a puxou e abraçou-a.

— Meu avô teria gostado disso — ele sussurrou para não incomodar a palestra sobre Contos de Natal que Dickens iniciara.

Frannie anuiu e relanceou um olhar pelo salão.

— Ele veio e já foi embora — Luke afirmou. Frannie sorriu para esconder o desapontamento.

— Vou até o salão de baile, verificar se tudo está pronto.

Entretanto ela não fez o que disse, mas sim atravessou o corredor rumo à biblioteca. Hesitou diante da porta por causa das memórias do encontro com Sterling naquele dia chuvoso. Porém, queria lembrar-se de tudo e dele.

Abriu a porta, entrou sem fazer ruído e fechou-a.

Várias lamparinas estavam acesas, assim como os lampiões a gás do jardim. As cortinas estavam abertas e Sterling olhava para fora, com as mãos às costas. Ele a fitou por sobre o ombro e ensaiou um sorriso.

Frannie temeu que ele escutasse as batidas fortes de seu coração. Com a maior calma possível para o momento, ela se aproximou de Sterling que tornou a mirar o gramado sobre o qual a neve caía em flocos.

— Começou a nevar. Nós paramos para ajudar um cocheiro que estava com a carruagem atolada. Por isso cheguei tarde.

— Fico feliz que tenha vindo. Eu estava nervosa até que o vi.

— Nem posso acreditar que você conseguiu trazer Charles Dickens aqui para dar uma palestra. Você o conheceu por intermédio do conde de Claybourne?

— Não. Na verdade foi Feagan quem nos apresentou. O sr. Dickens fazia uma pesquisa sobre a vida nos cortiços e por isso nos entrevistou. Segundo ele, fomos retratados em suas histórias, mas eu não vejo as semelhanças.

— Não as li. Talvez eu contrate alguém para ler os contos.

— Ler ainda o deixa com dor de cabeça?

— Elas pioraram. Bom, mas como está Peter? Encontrou uma família para ele?

— Não e decidi que ele ficará comigo. Prometi a Nancy cuidar dele e manterei a promessa. Atualmente ele e eu moramos no orfanato, mas mandarei construir um pequeno chalé para nós. Ele será o filho que eu nunca tive.

— Certamente Swindler dará filhos.

— Não me casarei com Jim.

— Ele não fez uma proposta?

— Não, pois ele sabe qual será a resposta. Eu não o amo como marido e aceitar seria injusto para ele. — Frannie resistiu à vontade de abraçá-lo e suspirou. — Como tem passado?

Finalmente Sterling a fitou e Frannie contemplou os belos olhos azuis que a perseguiam nos sonhos.

— Estive pensando sobre o dia do casamento de Catherine e na facilidade com que você levou meu relógio — Sterling comentou.

— Por Deus, não me lembre disso. Nem sei por que tomei aquela atitude. Sinto-me envergonhada...

Sterling tocou os lábios dela com a ponta do dedo, pois nenhuma lembrança de Frannie era desagradável.

— Você conseguiu fazer o mesmo com meu coração, não é, Frannie? Você o roubou e eu não percebi o que acontecia.

As emoções fortes que se desenhavam na fisionomia de Sterling levaram lágrimas aos olhos de Frannie e deixaram seu coração com a esperança de que pudesse existir um sentimento maior e verdadeiro entre eles.

— Oh, Sterling, eu...

Antes que Frannie pudesse confessar seu amor por ele, Sterling pressionou novamente o dedo nos lábios dela.

— Eu imaginei que, mantendo distância, meu coração voltaria a me pertencer.

Frannie meneou a cabeça.

— Enquanto eu estiver em posse dele, não o devolverei.

— Mas terá de fazê-lo.

Ele se voltou novamente para o jardim e Frannie pensou que ficaria despedaçada se perdesse Sterling. Ela jamais havia conhecido tanta solidão como depois que ele fora para o campo. Os sonhos de ajudar os órfãos perdiam importância em comparação ao sonho de tê-lo de volta à sua vida. Frannie queria poder falar com Sterling a qualquer hora do dia ou da noite. Gostaria de ter novos projetos para dividir com ele. Necessitava vê-lo e sentir- se observada por ele. Desejava adormecer e acordar ao lado dele.

— Sterling...

— Frannie, eu ficarei cego.

Ela sentiu uma forte dor no peito, sem entender direito ao que Sterling se referia.

— Agora não posso vê-la. Você está observando o jardim?

— Não, estou olhando para você.

— Olhe para o jardim.

Frannie obedeceu, embora quisesse continuar a fitá-lo

— Pode me ver? — ele indagou.

— Sim, com o canto do olho. — Ela se virou e viu-o olhando para ela.

— Assim eu posso vê-la — Sterling afirmou com um sorriso de autodesvalorização. — Mas não a enxergo com o canto dos olhos, isto é, não vejo os lados. E no escuro, perco ainda mais a visão.

— O que houve? Isso aconteceu por causa do encontro com Sykes? — Ela ficou horrorizada ao pensar...

— Não. Isso vem acontecendo já há algum tempo. Você se lembra de minhas pinturas do salgueiro?

— Sim, e como passou a focalizar apenas a árvore.

— Afinal, não sou um artista tão talentoso. Quando eu estava com vinte e um anos, notei que eu não desenhava as paisagens como antes, embora estivesse sempre no mesmo local. Comparei os últimos trabalhos aos anteriores e vi que as diferenças entre eles eram sutis, mas em relação ao primeiro e ao último... Envergonho-me de admitir que a primeira reação foi de puro medo.

Frannie ergueu a mão para acariciar o rosto ou os cabelos, mas abaixou-a por não saber se seria bem acolhida.

— Não se pode culpá-lo por isso. Você já consultou um médico?

— Muitos em diferentes cidades da Grã-Bretanha e nos vários países do mundo. Não há esperança de cura. Minha visão diminuirá até desaparecer totalmente.

— Em quanto tempo?

— Não sei, pode levar anos.

— Por isso você foi contra os desejos de seu pai e resolveu viajar pelo mundo.

— Sim. Eu não sabia por quanto tempo minha autonomia de oportunidades permaneceria íntegra, pois a janela de minha visão se fechava aos poucos.

— Catherine sabe disso?

— Não. Estou quase certo de que meu pai carregou para o túmulo a vergonha de minha imperfeição.

— Ele não poderia se envergonhar de algo sobre o qual você não tinha controle.

Sterling fitou a neve que caía.

— É onde você está enganada. Na verdade ele afirmou preferir que seu segundo filho tivesse sobrevivido e o primeiro, morrido. Eu nunca disse nada a Catherine. Ela adorava meu pai e achava que ele não tinha defeitos. Ele também a adorava e eu seria incapaz de manchar as memórias de minha irmã.

E ele se dizia um homem que via apenas os próprios interesses?

— Você me contou que pensava ter amado uma mulher, mas que ela descobriu sua deficiência.

— Foi Angelina e eu a cortejava. Ela adorava dançar e para mim era muito difícil conduzir uma dama pelo salão de baile por causa da visão estreita. Ela começou a ficar ofendida porque eu não dançava e quando expliquei o motivo, ela começou a interessar-se por outro. Felizmente ela não espalhou a notícia e por isso tenho de agradecê-la.

— Ela não o merecia.

A risada de Sterling foi dura.

— Nenhuma mulher merece.

— Isso não é verdade.

Sterling fixou o olhar em Frannie e segurou o rosto.

— Na noite em que fomos atrás de Sykes, deixei uma carta para você ficar sabendo que havia roubado meu coração com a mesma facilidade com que roubara meu relógio. E nessas semanas em que estive no campo, pensei na injustiça de não contar o quanto eu estava apaixonado por você.

Frannie pôs a mão sobre a de Sterling, virou o rosto na palma e beijou-a no centro.

— Sterling, eu também o amo muito.

— E por isso, minha querida, eu não posso me casar com você. Não quero tornar-me um peso no futuro.

— Mas que absurdo! Você se tornará um duque poderoso, um marido e um excelente...

Sterling tornou a impedi-la de falar com o dedo em seus lábios.

— Frannie, você se expõe a perigos para ajudar os órfãos e eu nem mesmo posso ver se alguém pretende atacá-la. O escuro, doçura, é meu inimigo.

— Então não irei mais a lugares perigosos.

— Com o tempo, você se ressentirá comigo.

— Nunca. Contratarei uma pessoa para fazer a busca por mim e encontrarei solução para qualquer empecilho.

— Você não gosta da aristocracia.

— No entanto esta noite falei com várias damas que foram muito amáveis, bem diferentes das jovens tolas que encontramos por aí.

— Se formos a bailes como os de hoje, terei de contentar-me em observá-la dançar com outros homens, sabendo que jamais poderei conduzi-la pelo salão.

— Não diga bobagens, claro que você pode dançar.

— Você não escutou o que eu disse? Dançar comigo será tropeçar nas pessoas...

— Então eu conduzirei. — Frannie estendeu o braço para ele. — Podemos fazer isso, Sterling.

Ele olhou a mão estendida.

— Eu o amo, Sterling, com todo meu coração. Ele voltou a fitar Frannie.

— Angelina também me amava.

— Se ela o amasse, ela não o teria abandonado por uma bobagem como dançar. Vamos fazer uma tentativa esta noite e se não der certo, não dançaremos mais. Eu posso viver sem dançar, mas não poderia viver sem você.

Sterling considerou o assunto por alguns instantes, suspirou, para em seguida fazer uma mesura.

— Srta. Darling, queira conceder-me a honra da próxima valsa.

Frannie sorriu.

— A honra, Vossa Graça, é toda minha.

Sterling não estivera preparado para o impacto de tornar a ver Frannie. Os cabelos dela haviam sido presos para cima, o vestido era vaporoso e ela estava bem à vontade. Mesmo que Frannie não se importasse em dançar, ele gostaria de tentar.

Os acordes da valsa começaram e Sterling conduziu-a até a pista de dança.

— Sterling, mantenha os olhos fixos nos meus — ela recomendou.

— O que não será difícil, pois você está deslumbrante esta noite.

— Mandei fazer esse vestido com esperança de chamar sua atenção, caso você resolvesse vir até aqui.

— Mesmo vestida com simplicidade, você chamou minha atenção no casamento de Catherine. — Apesar da estranheza de deixar-se conduzir por Frannie, Sterling não achou errado.

— Deve ter sido por causa de meus cabelos. Jamais gostei da cor deles.

— Pois eles me encantam. E não é que você sabe conduzir muito bem?

— É por que sou boa no jogo de truques.

— Como assim?

— Quando se apresenta uma ocasião para um furto, em geral se usa um parceiro. É preciso aprender a ler a situação rapidamente e saber o que seu parceiro irá fazer. Não queira jamais fazer um jogo quando Luke e Jack estiverem presentes. Eles sempre sabem o que o outro está pensando. De qualquer forma, dançar é como um truque. Você segue seu parceiro ou deixa que seu parceiro o siga.

— Vejo por cima de seus ombros que há muitas pessoas dançando.

Frannie deu um sorriso brilhante.

— Sim, e não tropeçamos em ninguém.

— Creio que isso vai mudar.

Frannie ficou surpresa quando Sterling parou de repente, sentindo uma pessoa esbarrar nele. Os casais se afastaram, Sterling ajoelhou-se em uma das pernas e Frannie arregalou os olhos.

Sterling percebeu que as pessoas paravam de dançar, que a música foi interrompida e que a expectativa tomou conta de todos. Solene, ele segurou a mão de Frannie.

— Srta. Frannie Darling, poderia conceder-me a honra de tornar-se minha esposa, minha duquesa e meu amor?

A respiração entrecortada de Frannie não foi a única que ele ouviu, mas era a que importava.

— Sim! Sim! — Frannie respondeu, radiante e com lágrimas nos olhos.

Sterling ficou em pé, tomou-a nos braços e beijou-a.

Sem a presença de Frannie, os últimos meses tinham sido um verdadeiro tormento. Sterling viajara pelo mundo em busca de algo que nem podia identificar. E, naquela noite, pela primeira vez, entendeu o estivera procurando. A mulher que estava dentro do círculo de seus braços.

No dia seguinte, Sterling recebeu um pedido para encontrar-se com Luke e chegou à casa dele no horário combinado. Na biblioteca, ele não esperava encontrar Luke, Dodger e Beckwith, o advogado de sua família que parecia trabalhar também para algum dos cavalheiros. Frannie estava presente e parecia um pouco exausta.

— Suponho que o motivo desse encontro seja para advertir-me sobre o comportamento de um bom marido ou algo parecido, mas não entendo a necessidade de um advogado.

— Precisamos fechar um acordo sobre o legado — Luke explicou.

— Os senhores estão pensando em dote? Pois eu asseguro que o mesmo é desnecessário. Não há o menor problema se Frannie não trouxer nada para o casamento.

— Viram? Eu não disse? — Frannie interveio. — Avisei- os que de isso não seria necessário.

Luke suspirou.

— Frannie, isso é imprescindível, pois você não poderá casar-se sem nada.

— Espere um pouco — Jack falou, descruzou os braços e descontraiu-se. — Vossa Graça acha que ela iria ao seu encontro sem nada?

— Além do salário desprezível que você vem pagando para ela fazer a contabilidade. Sei que Frannie pratica a caridade com essa quantia. Qualquer que seja o salário, eu estabelecerei um subsídio no mesmo valor para Frannie gastar como aprouver. Podemos fazer um contrato por escrito, se você quiser. E se ela ainda não o fez, deverá avisar que não mais cuidará de seus livros contábeis.

Frannie deu um passo adiante e pôs a mão em seu braço.

— Sterling, não sou paga para fazer o serviço contábil, pois ele é de minha responsabilidade.

Sterling fitou Jack com raiva.

— Seu canalha. Durante todo esse tempo aproveitou-se...

— Não, Sterling. — Frannie apertou o braço até ele tornar a fitá-la.

— Nós três somos sócios em vários empreendimentos. Na verdade, cuido da contabilidade que trata da minha empresa, da nossa empresa. Tenho bastante dinheiro.

— Que se tornará de Vossa Graça uma vez que se casar com ela, a menos que definirmos um acordo — Luke declarou.

— Estou recomendando que as finanças atuais de Frannie, assim como o dinheiro futuro que receberá dos negócios, sejam aplicados em um depósito que será administrado por ela — Beckwith afirmou.

Sterling deu de ombros.

— Para mim tanto faz, não estou casando com Frannie por causa do dinheiro dela. — Beijou a mão de Frannie, — Vou me casar com ela porque a amo.

Frannie deu um sorriso irresistível.

— Em todo caso, seria justo você conhecer a quantia.

— Frannie ficou na ponta dos pés e cochichou um número que o abalou.

— Dois milhões? — Sterling perguntou com voz rouca.

— Com erro provável de duas libras para mais ou para menos.

— Se isso se tornasse de domínio público, todos os lordes disponíveis da Inglaterra cairiam a seus pés.

— Por isso mantivemos o segredo — Jack disse. — Assim evitamos os caça-dotes.

— De pleno acordo. Agora me mostre onde devo assinar — Sterling piscou para Frannie —, embora eu não possa dar a mesada inicialmente planejada.

Frannie abraçou-o pelo pescoço.

— Prometo que jamais deixarei de amá-lo.

— Enquanto eu puder, darei tudo o que você desejar.

Na carruagem aberta de Luke, Frannie e ele atravessaram as ruas de Londres rumo à igreja onde ela se casaria. Frannie usava um vestido branco, véu e grinalda de flores de laranjeira. Catherine seguia adiante em outra carruagem, mas o filho deles nascido na primavera ficara em casa com a babá.

Frannie e Sterling haviam seguido a etiqueta recomendável, esperando para casar-se em junho. Não houve necessidade de licença especial nem de arranjos apressados. Nenhum rumor ou escândalo. Nenhum filho chegaria antes da hora, mas se dependesse de Frannie, o rebento viria exatamente nove meses após o dia do casamento. Fora uma tortura não dormir com Sterling durante tantos meses.

— Frannie, você está linda — Luke assegurou.

Na falta de um pai, Luke a levaria ao altar, o que parecia estranhamente apropriado, embora ele houvesse sido o primeiro a pedir a mão em casamento. Era difícil acreditar que o motivo da recusa fora ela temer a solidão de entrar no mundo da aristocracia.

— Você também está muito atraente, embora um pouco cansado — ela o provocou.

— Meu filho não é de muito dormir à noite e eu acordo toda vez que ele chora.

— Daqui a alguns anos as andanças noturnas continuarão a mantê-lo acordado.

— Você tem razão. Catherine advertiu-me que ele tem jeito de malandro.

— Jack me disse que não deixará a filha sair de casa até os quarenta anos. — Emily, que tinha o nome da avó paterna, nascera no final da primavera e com apenas alguns momentos de vida conseguira dominar o pai.

Luke deu risada.

— Você o viu alguma vez tão encantado? Ele deve pensar que é o único pai do mundo a ter uma filha.

Frannie não comentou que Luke agia como se fosse o único homem a ter um filho.

— Ele dispensou todas as moças do Dodger's — Frannie comentou. — Ele sempre fez questão de pagar- bem para que não precisassem recorrer a outros expedientes para se sustentar. Elas vão trabalhar no orfanato, mas continuarão a receber dele os salários.

— Para um homem que apenas se preocupava em ganhar dinheiro, ele certamente mudou muito.

— Ele pode permitir-se isso, Luke. Nós todos podemos e temos uma boa vida, em conjunto.

— Estou de pleno acordo.

Por mais que sua vida houvesse prosperado, Frannie antecipava que a mesma se tornaria muito melhor e com muito mais alegria ao ser compartilhada com Sterling. Ficaria com ele dia e noite, conversariam muito e fariam amor. Dariam longos passeios, ela veria o mundo através dos olhos de Sterling e o ajudaria a ver através dos dela quando chegasse o momento.

Ao se aproximaram da igreja, Frannie apertou a mão de Luke e inspirou fundo. Havia muitas carruagens na rua e uma multidão no gramado.

— A igreja já deve estar lotada — Luke comentou.

A lei não permitia cerimônias religiosas privativas. Qualquer um, mesmo sem ser convidado, poderia comparecer. E o casamento de um duque atraía muitos curiosos.

— Você não tem de suportar isso, Frannie. Podemos seguir adiante e vocês se casarão no campo.

Frannie fitou-o e sorriu, com lágrimas nos olhos.

— Sterling convidaria o mundo inteiro, se pudesse. É a sua maneira de confirmar que não há dúvida de que sou a esposa que ele deseja. Ele é um duque e escolheu a mim. Eu o amo demais e atravessaria o inferno por ele. — Ela inspirou fundo. — O que são centenas de pessoas comparadas a isso?

— Nada, na verdade. — Luke abraçou-a pelos ombros.

Parcialmente escondido atrás de um olmeiro, Feagan sorriu com malícia. A elite sempre atraía uma multidão. Seus dedos ansiavam para esvaziar os bolsos alheios mais próximos, mas ele agarrou a bengala, inclinou-se para a frente e maldisse os olhos embaçados. Não queria admitir que a umidade neles fosse por ver Frannie saudando as pessoas com confiança ao lado de Luke.

Frannie aproximou-se dos degraus da igreja e Feagan viu que ela usava o colar de pérolas que pertencera ao amor de sua vida.

Ele espiou o céu claro e sem nuvens.

— Você está vendo, Mags, a nossa menina? Está maravilhosa e vai ser uma duquesa. — Ele sacudiu a cabeça, assombrado. — Eu prometi que tomaria conta dela e talvez eu tenha feito a coisa certa.

Quando o casal entrou na igreja, Feagan foi embora claudicando, em direção aos cortiços.

— Tenho muitas saudades suas, Mags, minha querida. Acho que não vai demorar muito para nos encontrarmos.

Mas até lá... bem, sempre havia um bolso pedindo para ser depenado.


Frannie estava em pé na proa da embarcação que singrava os mares, com os cabelos ao vento. Sterling e ela passariam alguns dias no sul da França. Ela nem acreditava que estivesse em um navio sobre as águas.

Sterling soltara os cabelos e estes flutuavam livremente ao redor de seu rosto. A cada momento, Frannie voltava-os ao lugar e eles tornavam a esvoaçar.

— Está gostando? — Sterling acariciou o pescoço.

— É maravilhoso.

Após a cerimônia de casamento, houve uma recepção na residência de Luke com a presença de muitas pessoas. Até lady Charlotte comparecera, embora Marcus Langdon aparentemente tivesse desistido dela.

O momento mais difícil fora aceitar os cumprimentos de Jim, que não escondia a tristeza.

— Jim, eu não seria a pessoa certa para você. Tenho certeza de que acabará encontrando sua metade da laranja. — Frannie percebera que ele não acreditava na afirmativa.

Finda a recepção, Sterling a levara até o navio.

— Você ficará encantada quando a noite chegar — ele afirmou. — Teremos lua cheia e muitas estrelas.

— Não sei nadar.

— Felizmente não terá de fazê-lo. Quando voltarmos para casa, eu a ensinarei a nadar.

Eles permaneceram no deque durante uma hora antes de ir para a cabina onde passariam a noite. Após tantos meses de ansiedade, as roupas foram jogadas no chão depois de ser rapidamente tiradas. Em seguida eles se largaram na cama estreita em um emaranhado de braços e pernas.

— Teremos acomodações muito mais adequadas na França — Sterling garantiu, beijando o pescoço.

— Nada me importa, contanto que eu esteja a seu lado, Sterling.

— Você deve saber que, como minha esposa, deverá comprar uma grande quantidade de roupas.

— Já mandei fazer cinquenta trajes.

Ele beliscou a lateral do busto de Frannie.

— Não é para os órfãos e sim para você.

Frannie segurou o rosto dele com as mãos em concha.

— Eu não comprava roupas porque não havia ninguém que eu pretendesse impressionar. Mas fique tranquilo, daqui por diante tenho intenção de deixá-lo de queixo caído.

— Ótimo, embora eu sempre vá preferi-la sem nada.

Sterling beijou-a carinhosamente enquanto eles se apalpavam e acariciavam para recordar os contornos já conhecidos. Frannie inclinou-se para beijar a longa cicatriz por ela causada na ilharga de Sterling e depois beijou a marca deixada pelo tiro. Sterling beijou a cicatriz na testa de Frannie, mas nenhuma das mudanças alterava os sentimentos deles... ou melhor, apenas os aprofundava. Eles haviam sobrevivido e sempre sobreviveriam.

Quando Sterling a possuiu, o calor de ambos foi idêntico e os uniu ainda mais.

— Você é deliciosa — ele murmurou junto à orelha de Frannie. — Quente, úmida e macia. É a primeira vez que tenho um relacionamento sem proteção e devo dizer que gostei muito, muito. Posso afirmar ainda, minha duquesa, que vamos ter muitos filhos.

Frannie riu e abraçou-o com as pernas, apertando o corpo até Sterling gemer de prazer. Duquesa. Ela não poderia imaginar que agradaria ouvir a palavra aplicada a si mesma. E o que mais a encantava era a ideia de ter filhos de Sterling.

— Espero que eles se pareçam com o pai,

— E eu, que se assemelhem à mãe.

— Mal posso esperar, Sterling, para dar um filho.

— Terá de esperar nove meses no mínimo.

— Apenas nove meses. Deus, eu sou muito feliz e o amo demais.

— Eu a amo com todo meu coração.

Sterling começou a se impulsionar de encontro a Frannie e as sensações explodiram em uma realização gloriosa.


Epílogo


Extraído do diário de Frannie Mabry, duquesa de Greystone.

Minha lembrança mais preciosa é de Sterling, com lágrimas nos belos olhos azuis, segurando nosso primeiro filho instantes após o nascimento. Sterling insistiu em ficar perto de mim durante o parto, apesar de a atitude não ser considerada elegante. Ele não quis deixar de testemunhar nenhuma parte da vida enquanto ainda podia enxergar sua glória.

Sterling também viu o nascimento de nosso segundo filho e de nossa única filha. Dançou com ela na noite em que a jovem foi apresentada à sociedade e no dia em que ela se casou com o duque de Lovingdon. Embora sua visão houvesse diminuído consideravelmente quando nosso primeiro neto nasceu, Sterling ainda foi capaz de contemplar o rostinho enrugado e rir com felicidade.

Nossos problemas diminuíram após a prisão de Bob Sykes. O julgamento não foi favorável, pois uma das principais testemunhas contra ele foi um duque pertencente a uma linhagem antiga e influente, e cujo título estava entre ao mais poderosos da Grã-Bretanha. A outra testemunha foi um inspetor da Scotland Yard muito respeitado e que tinha a misteriosa habilidade de decifrar assassinatos com o mínimo de indícios.

Jim sempre me dizia que eu não deveria assistir a um enforcamento, mas como estes ainda eram públicos em 1852, quando Sykes ficou pendurado ao vento, Sterling e eu observamos, de um quarto alugado de onde se avistava a prisão de Newgate, a justiça ser feita. Talvez tenha sido uma falta de generosidade de minha parte ter grande satisfação ao ver um homem tão desprezível balbuciando incongruências entre soluços e lágrimas, e se sujando antes de o laço ser posto em seu pescoço. Nunca mais presenciei um enforcamento. Jim estava certo. É uma coisa horrível de ser vista, mas eu dormi melhor à noite por saber que pessoas como Bob Sykes jamais ameaçariam nossas vidas nem as das crianças órfãs.

Sterling e eu adotamos o filho de Nancy. Nunca pensei em Peter como filho de Sykes e o menino nunca demonstrou a maldade que caracterizava seu pai. Eu contei muitas histórias bonitas sobre sua mãe e ele só ficou sabendo que o pai tivera um fim prematuro e trágico. Peter trouxe muitas alegrias a nossas vidas e éramos muito gratos por tê-lo conosco.

Durante muito tempo, nossa família viajou pelo mundo. Sterling e eu construímos mais dois orfanatos e um lar para mães desamparadas. Nossas obras de caridade foram muitas e entre elas incluímos o legado de Feagan que dera uma casa para crianças abandonadas. Permaneceu um mistério se ele era ou não meu pai, mas embora ele sempre negasse o fato, não acreditei muito nele. O mundo dele era de decepções e artimanhas. Mas mesmo se ele não fosse meu pai de acordo com a lei, ele foi meu pai de coração.

Jim, ou sir James como ele passou a ser conhecido depois de receber a comenda de cavaleiro, continuou a ter um lugar muito especial em meus afetos. Uma vez, quando nos encontramos, ele afirmou que a melhor coisa que eu havia feito foi não me casar com ele. Talvez tivesse dito isso por estar apaixonado por uma mulher que o adorava como ele merecia.

Sterling perdeu completamente a visão quando estávamos já idosos e nos contentávamos em ficar, sentados em nosso jardim, refletindo sobre o que havíamos feito de maravilhoso e excitante em nossas vidas. Ele não viu meus cabelos ficarem grisalhos. Para Sterling, eles continuavam a ser de um vermelho brilhante. Eu o vi envelhecer com graça e dignidade. Ele se apoiava em mim, muito mais em mim do que na bengala, o que era muito justo, porque quando mais precisei, ele sempre me protegeu. Todos os dias, eu pensava que não poderia amá-lo mais do que já amava, mas no dia seguinte eu sempre comprovava meu erro, pois eu acordava amando-o sempre um pouco mais.

Eu nunca tive vontade de fazer parte da aristocracia, mas não posso negar que, com Sterling a meu lado, eu me sentia feliz.

— A vida é uma viagem, Frannie querida — Feagan me dissera uma vez. — Escolha bem aqueles com quem irá viajar.

Como sempre, tenho seguido os conselhos de Feagan.

 

 

                                                   Lorraine Heath         

 

 

 

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