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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O OUTRO / Odette de Saint Maurice
O OUTRO / Odette de Saint Maurice

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Ela seguia-as sempre com o olhar cobiçoso. Uma cobiça que não tinha nada de censurável.

Via-as reunidas, ouvia-as rir a distância e às vezes, quando se aproximava um pouco mais, conseguia respigar palavras soltas de conversas animadas nas quais em geral e principalmente se debatiam os problemas do Liceu, as preocupações dos pontos, a alegria dos bons resultados.

Andavam, aquelas três, quase sempre juntas. E ela bem gostaria de as acompanhar, de pertencer ao grupo. Mas ai! Não havia, em geral, nem aproximação nem ligação entre as alunas de anos diferentes. Aliás o próprio ritmo da vida de todos os dias não o permitia. Muitas delas, há anos ali dentro, nem se conheciam. Não era possível conhecerem-se. Pois se se contavam por centenas!

Cada uma formava o seu grupo, o seu clã, e com ele atravessava, semana após semana, mês após mês, os longos anos de permanência no Liceu. Uniam-se, acompanhavam-se. Por vezes subdividiam-se, formando núcleos estreitos. E o que fora desses estreitos núcleos sucedia, não interessava, não alterava os seus hábitos e a sua forma de agir. Ligavam pouco ao exterior. Isolavam-se, até.

Por isso não havia que estranhar que aquelas três passassem sem notar a cobiça expressa nos lindos olhos azuis da loira sextanista, uma cobiça estranha, sem maldade alguma. Uma cobiça ora cheia de ansiedade, ora cheia de esperança.

 

 

 

 

Certa vez ousara aproximar-se, a loirinha. Tanto que uma das outras, a Inês, reparando na presença insólita não pudera deixar de perguntar, descontente:

- Queres alguma coisa, abelhuda?

Sem se ofender com o vocativo - abelhuda!

- mas com toda a sua timidez (essa timidez que de vez em quando fazia um surto, emergindo da sinceridade, que a caracterizava) ela encolhera-se, abanando a cabeça, recuando. Não tão depressa, porém, que não ouvisse a mais baixinha das três, a Marta, indagar:

- Ela não mora no prédio da Ana?

- Mora, no 4. ? andar - replicara a Inês.

- Mas que mania esta, sempre atrás de nós! - refilara a Cristina.

A pequena, afastando-se, não escutara mais nada. Não sabia se tinham dito mais alguma coisa. Mas sabia que entre ela e as outras não existia qualquer elo de ligação a oferecer-lhe passagem. Podiam ao menos ter sido colegas de alguma das irmãs - da Rita, por exemplo! Mas não! A Rita levava-lhes um ano de dianteira e ainda por cima andara em Letras Nada, portanto, a consentir numa aproximação lógica. Nada. a não ser aquele nome mágico que para ela possuía a força de um íman

- Ana.

Ana Maria.

Ana Maria Ferreira de Macedo, essa que

ela tanto admirava, essa de quem ela tanto desejara ser amiga.

Como gostava de ter entrada franca no lar do Pedro!

E quando pensou no Pedro, o coração deu-lhe um salto no peito, um salto de tal maneira esquisito, de tal maneira impressionante (nunca sentira nada daquele gênero) que pensou, subitamente angustiada "tenho de dizer isto à minha Mãe, talvez seja melhor ir ao Médico, sou capaz de estar doente. "

- e românticamente, lembrou-se de "e se eu morro tão nova, com qualquer coisa de coração?" E viu-se toda vestida de branco, estendida num caixãozinho branco também E o Pedro, à janela de casa, assistindo à partida do féretro e a sentir muita, muita pena, da loirinha do 4. ? andar.

Lá voltava o Pedro à baila, o Pedro - tema dominante de todas as suas idéias Ela bem queria convencer-se de que só se preocupava com o Pedro porque o Pedro tinha nele a presença viva da irmã, da Ana Maria. Mas. Mas agora, aos poucos, na sua inocência total, no seu desconhecimento de assuntos que nunca lhe haviam interessado, principiava a infiltrar-se uma certa estranheza. É que algo a obrigava a reconhecer que pensava muito mais no Pedro do que na Ana. Tinha mesmo a vaga intuição de que agora pensava na Ana para chegar ao Pedro. Fosse como fosse, a verdade é que tudo o que lhe, ou lhes, dizia respeito, a atraía.

Quanto ambicionara - e ambicionava! conhecê-los a fundo, saber pormenores das vidas deles, essas vidas que do 2. ? piso do seu prédio, subiam até ao último como o perfume das flores em jardins na Primavera.

É certo que o Pedro prometera contar-lhe histórias do passado, engraçadas, com interesse, (ainda na véspera, quando lhe telefonara, o repetira- ele telefonava-lhe infalivelmente uma vez por dia, desde que lá fora almoçar a casa, há pouco mais de uma semana). Se ela, porém, convivesse com as amigas da Ana, inteirar-se-ia de muitas mais coisas Porque o Pedro falava predominantemente da Ana, do Rumané (o irmão a seguir à Ana), da Maria Rosinha, que ia fazer brevemente um ano, mas dele próprio pouco, ou nada! Ora se ela convivesse com as amigas da Ana, alguma havia de referir-se ao Pedro e ela poderia ganhar coragem e indagar.

Havia uns factos que adoraria decifrar. Recordava-se bem do reboliço que agitara as turmas das mais velhas, no ano anterior, uns tempos antes da palestra da Ana Maria. Falava-se então muito de uma tal Arabela que Bom, as outras sabiam com certeza. Mas as outras, alheias e indiferentes às perplexidades dela, já iam adiante. E que não fossem! Não podia chegar ao pé das três raparigas e perguntar-lhes de caras "o que foi que se passou com o Pedro e a Arabela? "

De resto, mesmo que se desse com elas, que fosse companheira delas, não as interrogaria. Não seria capaz.

Claro que não seria capaz! Era mais capaz de se dirigir ao Pedro se...

De se dirigir ao Pedro?

Ao Pedro? ? ?

Mau! Estava com visões? Tinha de ir ao Médico, realmente e o mais depressa possível.

Primeiro, fora o salto do coração; agora via o que não era

A algazarra que a rodeava, com vagas de raparigas sucedendo-se umas às outras, na ânsia de saírem, fartas de aulas e cheias de fome, entontecia-a.

Havia risos e gritos. E atropelos. A Marta, a Cristina, a Inês, apesar de terem tomado a dianteira, não iam longe. E não iam longe porque haviam ficado a conversar com mais duas. E ela continuava parada ao topo das escadas, deixando-se empurrar por umas e por outras, sem saber que a empurravam, sequer.

Não conseguia descer. Não conseguia mover-se. Aliás já compreendera que não devia ir queixar-se ao Médico de sofrer de visões. Não se tratava de visão nenhuma.

O Pedro estava ali!

Atravessara a rua, à frente do autocarro que era tomado de assalto pelas que moravam longe do Liceu, e ficara a tagarelar com o grupo da Ana.

Dentro dela, concretizou-se uma explicação. O Pedro viera com certeza esperar alguma das amigas da irmã. Devia estar rondando. qual? Eram todas tão giras!

Com a idéia aceite, sentiu nova picadinha no coração. Tornou a pensar no Médico, com uma súbita e enorme vontade de chorar. Devia ser com medo da morte, a morte que se ela de facto sofresse do coração podia colhê-la de repente, em plena mocidade, a não ser que antes lhe descobrissem a doença e a técnica das transplantações cardíacas evoluísse o bastante para permitir intervenções cirúrgicas efectivamente salvadoras e o Pedro, já então formado

(dali a quatro anos, não era?) a operasse restituindo-a à vida

E via-se estendida na marquesa, com o Pedro, todo de branco vestido, a debruçar-se sobre ela para a arrancar aos perigos que a espreitavam, a todos os perigos.

A realidade colheu-a no meio dessa imagem romanesca. O Pedro não se debruçava para a olhar, o Pedro erguia os olhos para ela com um sorriso transbordante de simpatia e de repente O mundo girou. Rosarinho sentiu calor e frio.

De repente até o barulho à sua volta se tornou harmônico e o autocarro em andamento, apinhado de vultos brancos, resplandecia como um sol para uso próprio.

O Pedro deixara as amigas da irmã. O Pedro aproximava-se dela. O Pedro dizia-Lhe:

- Olá! .

O Pedro interessava-se:

- Então, esse ponto de física, que tal correu?

Rosarinho não podia acreditar. O Pedro ia com certeza voltar para junto das outras. O Pedro só viera cumprimentá-la por cortesia.

Oh, menina céptica à força de ingênua!

A Marta, a Inês e a Cristina afastavam-se já, A Marta, a Inês e a Cristina, passado o espanto inicial sentido ao verem o Pedro à porta do Liceu, vendo-o caminhar para aquela loirinha que costumava segui-las como uma sombra, tinham trocado entre si um olhar de divertida compreensão, dispersando sem quaisquer dúvidas.

Sim. também ela agora sabia. O Pedro estava ali. a esperá-la!. A Ela!

Era a ela, Maria do Rosário de Medeiros de Passos Abegorim (não usava os apelidos Câmara e Sousa que, para conservação e na fase das limitações dos registos haviam sido dados à Rita e à Mirita - só a Lili assinava também Medeiros) que o Pedro Ferreira de Macedo viera.

Só por ela!

Então, descendo os degraus, pôs-se a caminhar ao lado dele, naturalmente. Como se fosse a coisa mais lógica naquele dia enevoado, chuviscoso. E quando percebeu que o Pedro acertava o passo elástico, permitido pela altura das pernas, pelo dela, sempre miúdo e agora mais lento do que o habitual, pôs-se a falar, volúvel e fluente.

- O ponto correu muito bem! Assim que li o enunciado perdi o pouco medo que tinha. Sabia tudo, mas tudo! Só foi pena faltar-me o tempo para acabar umas contas. Mas o que ficou pronto chega e sobra para me garantir a nota de que preciso. E não julgues que me contento aí com um suficiente qualquer. Pelo menos um Bom, apanho! Acho que vale a pena não só conservar o quadro de honra como também ficar habilitada a valer. Não me interessa passar por passar. E fui sempre assim. Dá-me gosto saber que sei! É tão bom pegar num ponto, deitar-lhe uma olhadela e respirar fundo, de alívio, porque se está apto a responder a tudo! Se me acontecesse como a algumas colegas minhas, que abrem a folhinha que as faz tremer e deitam as mãos à cabeça gemendo que "estão arrumadas", acho que morria de desgosto! -e sem

transição, a recordar-se do baque no coração e da dorzinha aguda que sentira há momentos:

- Ó Pedro, como é que se sabe se uma pessoa sofre do coração?

O Pedro ria.

- Muitas vezes pelo aspecto dela.

- Mas os sintomas ?

- Há vários.

- Alguns. ?

- Por exemplo, falta de ar, um cansaço infinito, pés inchadíssimos - e como se adivinhasse os pensamentos de Maria do Rosário, gracejou: - A menina deve estar bastante mal.

- Eu?

- Sim! Esse musculozinho cardíaco não me parece nas devidas condições.

- Oh? Mas eu não sofro de falta de ar, não me canso e nunca trago os pés inchados!

- e pelo sim pelo não mirou-os, parando. Na, não incham! O que às vezes sinto é o coração dàr-me saltos no peito.

- Saltos?

- Saltos, pois! Olha, ainda há bocadinho, quando te vi.

E bumba!

Ela ficou escarlate, reconhecendo que dissera uma inconveniência e que se abrisse a boca para tentar remediá-la só a agravaria, correndo o risco de parecer balhelhas.

No rosto do Pedro espalhara-se um ar de doçura infinita. E essa doçura traduziu-se num gesto de que ele também não mediu todo o alcance. A mão esguia e bonita, firme, -uma mão que inspirava confiança! - estendeu-se para o braço da rapariguinha e apertou-o. Recomeçaram a andar, calados, imersos em pensamentos que nele se iam volvendo raciocínio. Pedro tomava consciência do que se passava, buscando certezas. Não queria enganar-se acerca dos seus sentimentos, nunca maus.

Confundida com o silêncio dele, Rosarinho imaginou que o Pedro levara a mal a frase dela. Impressionara-o desfavoràvelmente, pela certa! Mas, ao mesmo tempo, os dedos dele segurando-lhe o braço eram como que uma afirmação indiscutível de compreensão, de...

Então voltou a carita, erguendo-a para poder fitá-lo, desejando ardentemente perceber os juízos dele. E o Pedro, vendo assim expressivos e sinceros aqueles olhos puríssimos, ousou dizer:

- O salto do coração não é doença, Rosário.

- (que beleza de nome, Rosário símbolo de algo que se toma nas mãos para implorar ou para agradecer felicidade elevando o espírito até Deus em preces doces como o mel! ") -O salto do coração significa que esse mesmo coração está apto a receber o mais maravilhoso dos dons humanos, o dom de amar. e os olhos cor de azeitonas de Elvas desciam fundo nos azuis escuros. - Será assim, Rosário?

E Rosário mulherzinha, Rosário segura de que algo de muito importante estava a passar-se, murmurou:

- Não sei. Não sei nada disso, Pedro!

- Claro que não sabes! E ainda bem que não sabes. porque antes de agora teria sido terrivelmente cedo.

E ela:

- E ainda não é tarde?

- Pelo contrário! De resto não quero que percas tempo a pensar nisto. Quero que estudes, que trabalhes, que prossigas exactamente como até aqui, na tua vida de menina a caminho do destino.

Mas Maria do Rosário já não podia calar a pergunta imensa que lhe subia aos lábios, pergunta tornada necessária pelas palavras do Pedro, palavras de cujo sentido ela ainda só entendia metade.

- Tens por acaso alguma idéia do que possa vir a ser o meu destino?

O Pedro imobilizou-se. Largou-lhe o braço. Depois abriu a mão direita e estendeu-a de modo a colocar-lha bem na frente, oferecida em apoio às mãozinhas femininas.

- Maria do Rosário, o teu destino, creio, vai estar aqui. Há qualquer coisa a advertir-me de que está aqui!

Rosarinho sentiu vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo. Parecia-lhe tão extraordinário o que estava a acontecer! Ela, ela, a garotinha sem pretensões, a miúda que ainda não tinha idade para nada - a eleita do Pedro, o Pedro fascinação, o Pedro sonho, o Pedro ambição, o Pedro ideal O Pedro!

Pois seria ela?

Sorriam um para o outro, sem necessidade de frases. Num sorriso compreensão. Num sorriso decisão.

Quando, sempre a sorrir, desviaram enfim os seus olhos que mutuamente prometiam um Sim. para o altar, um Sim para a vida inteira, estavam mesmo diante das suas casas - a casa adormecida de um, a casa acordada do outro.

À porta, um par jovem que os via aproximar desde há instantes olhava-os com espanto. Era olhado com espanto.

A Lili, incrédula, mirava a irmãzita.

O Júlio, incrédulo, mirava o Pedro.

E de repente, face a face, desataram a rir, todos quatro. A rir, porque rir era a única maneira suficientemente forte de exteriorizarem a sua alegria constatando o que se tornara revelação.

Mas, na Lili e no Júlio, a revelação voltava a confirmar o espanto, dando a este dimensões invulgares. Ela, principalmente, afundava-se em assombro.

Então, a Rosarinho? A sua linda e pequena Rosarinho, simples, natural, doce, infantil - pelo menos na aparência! - conseguira prender as atenções daquele Pedro para quem não havia passatempos? Sim, que o Pedro nunca se aproximaria da Maria do Rosário para se divertir num banal namorico!

E a certeza, dominando o assombro, deu-lhe calma, permitiu-lhe aceitar os factos. Por isso a mão que ela estendeu à irmã não oferecia protecção. Não havia a mínima necessidade de protegê-la, naquele caso. A mão apenas aconselhava equilíbrio, aceitação normal das coisas novas a fim de as tornar estáveis.

- São horas de subirmos! - disse, apertando os dedos que Rosarinho se apressara em poisar aos dela. -Estamos atrasadas em relação às horas normais e se o Pai já chegou deve ter franzido a testa.

Riram outra vez.

Depois os rapazes despediram-se, seguiram rua abaixo, em amena conversa. Elas transpuseram a porta da rua, carregaram no botão da chamada para o elevador. Carregou a Lili. A Lili, que ardia em desejos de perguntar à Rosarinho como fora aquilo arranjado -porque

como principiara sabia ela, ou melhor, que estava a principiar, desde que o Pedro passara a telefonar à irmã - mas não ousava. Parecia-Lhe que interrogá-la seria profanar um sacrário. E a Rosarinho, como se adivinhasse o retraimento gentil, teve uma frase que se diria um propósito de agradecer.

- O seu Júlio é realmente muito simpático, mana!

- Sim, muito! - e, feliz, acrescentou: -E amicíssimo do Pedro!

- É bom que assim seja. As famílias devem estimar-se e ser unidas.

O elevador acabava de parar. Entrando nele, Lili sentia aquela frase ecoar-lhe na alma

- as famílias devem estimar-se e ser unidas.

Pois devem!

Já a mais nova prosseguia:

- Oxalá que a Mirita e a Rita não destoem - e sem transição. - A mana soube que o Zé Chaves veio cá ontem a casa falar com a Mãe por causa da Mirita?

- Sei. A Mãe contou à tia Casimira e a tia Casimira disse-mo a mim.

- E a mim também! - e sorriu. -A tia Casimira não gosta lá muito que a Mãe torça a favor do Zé Mas torce, a mana não acha?

- Acho. e acho que não se deve influenciar a Mirita seja para que decisão for.

O elevador tinha já parado no 4. ? andar. Elas não saíam, entretidíssimas. E a Rosarinho, em muito crescida, dava toda a razão à irmã:

- Acima de tudo o que importa é não atribuirmos os resultados do que nos acontecer a ninguém. Se se for feliz, que se tenha a consciência de que se escolheu o melhor. Se se for infeliz, que os outros não tenham culpa!

Lili suspirou. Depois, pensando que a miúda, falara acertadissimamente, abriu as portas do elevador.

- Passe, querida.

A miúda passou. A outra fechou as portas, dirigiu-se para a de casa, tocou à campainha. Pouco depois a Sofia abria, um sorriso imenso a recebê-las na saudação antiga.

- Olá, lindas!

- Já estão à mesa?

- Não! A Mãezinha está a falar ao telefone.

Leonor Augusta e Maria do Rosário trocaram um olhar de compreensão. A Mãe ao telefone de certo a combinar com as amigas qualquer reuniãozinha Mais um bridge em perspectiva! A Mãe não podia renunciar, não sabia viver sem aquilo. Como se jogar durante tardes inteiras, com prejuízo da assistência que devia dar às filhas (não à casa, que a casa não se ressentia!) fosse essencial! Mal empregadas tardes!

Naquela pena que havia crescido com ela, uma pena que vinha dos tempos em que tinha a intuição de que as coisas não estavam certas, a Lili tornava-se muitas vezes injusta, precipitando-se em chegar a conclusões sem bases concretas. Porque a Mãe não estava a combinar coisa alguma E, ao desligar o telefone, disse às duas filhas, que se tinham aproximado para a beijar.

- O Pai acaba de avisar que também hoje não almoça connosco.

- Continua preocupadíssimo por causa do tal julgamento?

- O Pai do rapaz não o larga.

- Coitado!

- E coitado do vosso Pai! Não há nada a fazer senão justiça!

- Claro! E às vezes fazer justiça dói e cansa!

- É certo. - e mudando de tom rapidamente: - Vá dizer à Sofia que tire a sopa, Rosarinho. E a Lili chame as suas irmãs.

- Onde estão ?

- Julgo que no quarto. E não se demorem que é bastante tarde.

- A Mãe vai sair?

- Vou. A Sara pediu-me que não chegasse depois das três horas por causa da Amélia Abigail que tem sempre que se retirar mais cedo do que nós.

Lili não se apressou em obedecer à Mãe. Qualquer coisa de inútil levou-a a inquirir:

- A Mãe vai jogar?

- Vou, porquê? - e reparando na estranha expressão da filha. -Algum reparo a fazer?

- Não, Mãe, não!

E Dona Teresa Mafalda, com súbita amargura:

- Às vezes julgo perceber que a Leonor Augusta pensa que só tenho deveres e não direitos.

A rapariga mordeu os lábios para conter palavras que não adiantaria pronunciar. Como explicar à Mãe, como? Como fazê-la sentir que as filhas se doíam ao reconhecer, depois da inconsciência da idade infantil, que a Mãe era constantemente dominada por uma ânsia de evasão? Sem mal, mas evasão.

Rugas e queixumes prevaleciam no seu ritmo de existência.

E perdoou-se a si mesma, a Lili, do que momentos antes, uma vez pensado, a levara a admitir que fora injusta. A Mãe não estava de facto a combinar o que quer que fosse Já combinara.

- com licença, Mãe. Vou chamar as minhas irmãs.

Ia a sair da saleta, mas esbarrou com a Rosarinho, que estava à porta, de volta da ordem cumprida.

- Passe, menina.

A garota entrou, foi até junto da Mãe. Leonor Augusta queria afastar-se. Fazer o que devia. Mas não deu um só passo mais. Adivinhava o que ia suceder.

E sucedeu.

- Mãe! esta tarde a Mãe está muito ocupada?

- Saio no fim do almoço.

- Ah! - e toda ela expressava decepção. Leonor Augusta envolveu a irmãzinha num olhar onde surgia um certo desespero. O que a Mãe estava a desperdiçar, sem se aperceber do irreparável!

Pois haveria algo de mais importante que abrir os braços à filha que tinha alegria para dar, essa alegria que sobrava nela, essa alegria que ela queria oferecer à sua Mãe, aninhada, no seu regaço a contar-lhe, a explicar-lhe.

Dona Teresa Mafalda fitou as duas raparigas, ligeiramente surpreendida com a atitude de ambas. Mais com a de Rosarinho.

- Precisa de alguma coisa, a menina?

- Não, Mãe. Não! - e depois, rectificando:

- Ou antes. precisava de falar com a Mãe, mas como não tem tempo paciência!

A Mãe, repentinamente, lembrou-se dos momentos que dias antes passara com aquela filha, tão agradáveis, a conversar. Lembrou-se e não conseguiu evitar um pensamento bastante importuno - se pudesse deixar de sair Mas desistir agora era inviável. As outras deitavam-lhe fogo!

Teve um gesto carinhoso e uma frase conciliadora.

- Fica para amanhã, sim?

- Sim, Mãe! - e depois, com uma naturalidade cujo fundo só a irmã alcançou. -Por acaso a tia Casimira virá cá hoje?

- Não sei. Não telefonou, talvez apareça.

Rosarinho abandonou a saleta. Lili foi prevenir a Rita e a Mirita de que a sopa estava na mesa.

Acharam-se por fim todas reunidas na sala de jantar.

Dona Teresa Mafalda sentou-se.

Rita, de serviço, encheu de água os copos.

Lili, comendo vagarosamente, não conseguia afastar de si um pensamento obsidiante. É que, de facto, não estava nada certo que determinadas mulheres não fossem Mães!

E, mentalmente, enviou um beijo à tia Casimira.

rosas do mundo inteiro

por quem a mão de Deus vela,

qual de tantas, jardineiro,

tem a pétala mais bela?

A que nunca perde o cheiro,

se em noites de nevoeiro

que a geada corta e gela,

não murcha, não perde o cheiro,

se eu a puser à janela;

a que bebe no regueiro

linfa tão pura como ela;

que se levanta primeiro,

de manhã quando vou vê-la,

e, mal o sol se arrepela,

lá no cimo do outeiro,

já o mundo é lindo e ela

tem um riso prazenteiro.

que me afasta o reposteiro

e acorda a minha janela!

Escuta-me, jardineiro: dar-te-ei o meu veleiro, com que venças a procela; as tulhas do meu celeiro onde a semente não grela; o luar que, prazenteiro, ri da noite de aguaceiro e assoma à tua viela; terás riqueza, dinheiro, toda a prata de uma estrela, se souberes, jardineiro, entre todas, qual é ela, a que nunca perde o cheiro se eu a puser à janela; dar-te-ei o mundo inteiro e as outras, menos ela, se souberes, Jardineiro, - se soubesses o canteiro onde eu pudesse colhê-la!

E ficou-se a olhá-la, à espera da opinião dela, suspenso da aprovação.

As palavras dele vibravam no ar, cálidas e perfumadas como as rosas do mundo inteiro. Envolviam-na. E era bom respirar essa atmosfera onde se sentia a alma subir acima do quotidiano.

Atrás da rapariga, no átrio enorme, risos e apelos e conversas cruzavam-se, entrechocando-se. De tudo se falava, ali. De política, muito - alguns intolerantes, com idéias extremistas, preconizando soluções redentoras e utópicas; bastantes conciliadores e atilados, certos. Coisas velhas e revelhas surgiam do fundo dos séculos explicando motins e guerras, tentando impor-se com a força das descobertas. Puerilidades sem nexo e sem interesse divertiam imensos, tomando foros de pilares futuros. Prosápias e fumaças destacavam-se nas expressões intelectualizadas dos que mascaravam mediocridade com afirmativas tendentes a espantar e a chocar os menos evoluídos e os mais inteligentes. E havia ainda o atordoamento dos assuntos neutros, deles sobressaindo os temas desportivos e os cinematográficos!. E também numerosas preocupações sérias entre os que estudavam porque isso lhes parecia o mais importante de tudo para quem anseia chegar e vencer. Mais importante até do que namorar, e não havia dúvidas de que essa era ainda uma mola real capaz de movimentar o resto. Porque, no fim de contas, o amor existe!

E estava ali, no perfume doce que a envolvia

Perante o silêncio que ela não quebrava, o rapaz equivocou-se, numa dedução: - Não gostaste, pois não, Mirita? Talvez sejam de facto banais, insípidos. Ora escuta agora estes, a ver se te agradam mais. - e ia recomeçar a dizer versos com aquela voz ardente que dava a cada palavra a exacta expressão requerida. Mas a Mirita abanou a cabeça, impedindo-o de prosseguir.

- Agora, não, Antônio. Hoje, não! Fica para outro dia.

Ele admirou-se. Mas depois. Depois, seguindo a inesperada direcção dos olhos dela, percebeu que a rapariga se escapava da nuvem de sortilégio em que os seus poemas costumavam envolvê-la. Franziu a testa. Ao mesmo tempo invadiram-no dois sentimentos extraordinários - ânsia de a reter, de não permitir que a desviassem dele, e necessidade premente de saber se ela seria capaz de partir para não voltar. Talvez os dois sentimentos contraditórios afinal se condensassem num único, chamado ciúme.

Agora, não, Antônio. Hoje, não. Fica para outro dia.

Apertou-lhe a mão; desceu a escada, afastou-se sem olhar para trás, rumo ao vasto parque que oferecia sombras acolhedoras aos que desejassem solidão como refúgio. Dentro dele as duas palavras que mais o magoavam "outro dia". Outro dia ou nenhum mais?

Seria destino de poeta roçar o Amor sem o dom de o reter?

Dentro dele, ao lado das palavras que faziam sofrer, uma certeza. Ela seguia para o lado contrário ao habitual. Ela dirigia-se para o Zé Chaves que ele vira perfeitamente, encostado à traseira do seu automóvel. E no entanto ele sabia que não fora o automóvel que atraíra a Mirita. Não, não fora! É que, na rápida constatação daquela presença que tudo perturbava, ele, Antônio Fontemora, pudera captar o desespero que havia nos olhos do outro. Um desespero justificado. A dar-lhe aquela certeza. É que afinal também os que não são poetas podem ter coração! E a Mirita, a dois passos do Zé Chaves, isto reconhecia notando-lhe os lábios a tremer, vendo a angústia dele - essa angústia que vencera toda a anterior arrogância. Porque o convencimento dele só podia afastá-la. Aquela expressão dorida, porém, dera-lhe uma ordem a que ela nem sequer tentara eximir-se. E a humildade do rapaz não era nem postiça nem fabricada. Reconhecia-se tão verdadeira que a Mirita tornou a pensar "os que não são poetas também podem ter coração "

- Desculpa aparecer assim, Mirita. Creio que estou a estragar qualquer coisa.

- Não estás a estragar nada.

- Prometo-te que depois de hoje não volto a importunar-te.

Ela apertou os lábios para conter uma resposta que talvez fosse precipitada. No fim de contas como é que ele podia ter a certeza de que ela não queria que ele voltasse? Se ela própria não estava segura de nada Ou melhor

- não estava segura de nunca mais querer ver o rapaz a cuja presença se afizera há muito tempo.

Ele prosseguiu, ousando um convite:

- Será inconveniente levar-te a casa?

- Não.

Então o Zé Chaves abandonou o poiso onde permanecera mais de meia-hora (isso ela não o sabia) aguardando-a, e abriu-lhe a porta do lado direito. Depois de a ver instalada, deu a volta ao carro, entrou, ligou o motor.

E espantoso! Em vez do arranque barulhento, arrojado, em que ele timbrava, exímio, deixando as pessoas de juízo condoídas de tamanha maluqueira, começou a deslizar devagarinho, devagarinho.

Durante alguns momentos não disse nada. A seguir, tão lentamente como conduzia, pôs-se a falar, primeiro num tom hesitante, depois como se pela primeira vez na vida fosse capaz de deixar que tudo o que ele efectivamente era se traduzisse em palavras.

- Creio que não passo de um falhado sabes, Mirita? Um falhado sem recuperação, O meu destino principiou a ser espatifado pelos outros e agora sou eu próprio que estou a acabar de arruinar-me. Faltaram-me as amarras antes de eu saber para onde queria ir, para onde devia ir. Hoje sinto-me um destroço arrastado por forças contra as quais não posso nada. Durante muito tempo enfiei-me na pele de um boneco cuja aparência me agradava, procurando atordoar-me com as coisas que ao boneco pareciam tornar feliz. Estudava as reacções dele e adaptava-me a todas elas porque no fundo era cômodo não pensar e não sentir por mim. Habituei-me a não fazer senão o que convinha ao boneco mas de súbito qualquer coisa embateu no invólucro, frágil como não podia deixar de ser e desfê-lo! E eu saí do meio dos seus restos nu e desprotegido como quando nasci. É horrível, Mirita, achar-me agora obrigado a olhar de frente uma situação desesperada e desesperante! É que o rapaz que parecia ter tudo afinal não tem nada.

Ela tentou deter o fluxo cadenciado, logo revelador de que não era fruto de um impulso mas sim tradução de um estudo de factos reconhecidos.

- Oh, Zé, por favor! Não tens nada, tu? Mas que te falta?

Como se a não ouvisse, ele continuou:

- Fiz com que toda a gente acreditasse que eu era feliz quando quem era feliz era o meu boneco. e eu andava escondido no seu interior. Tu conheceste muito bem o boneco, habituaste-te a ele, às atitudes dele e desgostaste-te, com razão. Só as pessoas superficiais podiam suportá-lo. O boneco não passava de um modelo estereotipado de uma ventura convencional. Representava o menino rico, despreocupado e irreverente, para quem a vida é um cigarro que se queima entre os dedos, para quem a vida é uma aventura sem conseqüências, para quem a vida é um capricho a satisfazer livremente. O boneco estudava por snobismo; o boneco desejava uma profissão de fachada; o boneco não queria amar; o boneco não queria sofrer. Dentro do boneco encolhia-se o rapaz que fugia de si próprio.

Estavam à esquina da rua dela. Tinham apanhado abertos quase todos os sinais de trânsito e por isso mesmo percorrido rapidamente a distância que medeava entre a Faculdade e a residência.

Parando, o Zé Chaves suspirou.

- Chegaste. Ouviste bastante mas não o suficiente para compreenderes. Paciência! Talvez seja melhor assim. Talvez tudo isto não passe de mais uma prova de egoísmo. Sim. querer atrelar-te a uma manifestação de pena pelo rapaz que andou encolhido dentro de um estúpido boneco. é com certeza egoísmo!

Então, inesperadamente, Mirita estendeu a mão esquerda e colocou-a sobre a direita dele, poisada no volante:

- Quero ouvir tudo o que tens para dizer-me. Agora quero ouvir.

Ele pareceu admirado. E ela prosseguiu:

- Podias convidar-me para almoçar? Ele nem acreditava.

- E os teus Pais?

- Telefono a avisá-los. No fim de contas não tem mal nenhum. e precisamos de resolver!

- Sem dúvida!

E o carro, obediente, recomeçou a marcha.

Agora seguiam pela auto-estrada, ladeando Monsanto, bem encostados à direita, a dar passagem livre aos que tinham pressa. Eles não tinham pressa. Nem o Zé Chaves, que guiava concentrado, de testa enrugada. Dava a impressão de que não dispunha de palavras suficientes para traduzir os pensamentos que o faziam sofrer - o rictus da boca não o ocultava.

Mirita também não falava. Tal como ele, estava dominada pelas idéias que se lhe amontoavam no cérebro. com uma diferença. Enquanto as do rapaz eram feitas de recordações, desânimos e indecisões, as dela erguiam-se todas sobre perplexidades. A rapariga não sabia se estava certa fosse no que fosse. Não sabia, sequer, se agira bem tomando a iniciativa de querer almoçar com ele. Gostaria de discutir as suas imensas dúvidas com a Mãe, mas.

A Mãe! Ora!

Para a Mãe o Zé Chaves representava a fortuna, a vida inteira superficialmente apoiada em bases que no fundo apenas traduziam existir sem a necessidade de trabalhar E isso não contava para quem acima de tudo desejava perceber o que queria o seu coração.

Sem se dar conta do que fazia, pôs-se a roer as unhas.

De súbito, a voz dele soou:

- Não roas as unhas, Mirita.

Vibrara a antiga entonação na voz de comando. Ele reconheceu-o ainda melhor do que ela. Tanto que, vendo-a baixar a mão para o regaço, logo acrescentou:

- Desculpa. Não devo falar-te neste tom. Ela sorriu.

- Não faz mal. De resto eu não quero roer as unhas.

Não voltaram a falar senão depois de entrarem no restaurante, escolhido pelo Zé à beira-mar.

Ela desejou a mesa ao pé de uma das largas janelas envidraçadas e, enquanto ele consultava o "menu", foi telefonar para casa.

A Sofia atendeu-a, alterada:

- Ai, menina, que já estávamos em cuidado! Por que é que a menina se demora assim? Onde é que está?

E ela:

- Já foram para a mesa?

- Já foram? Já vão sair dela! O seu Paizinho tornou a não vir almoçar, lá por causa do tal julgamento, e a sua Mãezinha espera visitas para jogar.

- Ah, bem!

- E a menina. quando é que chega?

- Eu não vou almoçar.

- Não vem almoçar?

- Não. Avisa a Mãe de que almoço perto do Estoril com o Zé.

- An ? E demora-se ?

- Não.

Quando chegou à mesa, o rapaz consultou-a sobre o que preferira:

- Uma sopa de marisco e um bife grelhado. Achas bem ou queres qualquer outra coisa?

- Acho muito bem.

- E vinho?

- Não bebo, Zé, bem sabes. E ele, para o criado solícito:

- Uma cerveja para mim, das grandes. Bem gelada.

Ficaram um diante do outro, sorrindo sem saber porquê. Só sorrindo. De repente, ambos se sentiam bem. Como se não precisassem de falar. Mas precisavam.

O Zé Chaves queria mesmo recomeçar a dizer, mas sentia uma extrema dificuldade em Bom, em arrancar. No entanto, tinha de ser! Tinha de contar, tinha de explicar. Chegara o momento. E, perante a compreensão dessa necessidade, encheu-se de coragem. Numa inspiração funda, cerrou os olhos e lançou-se, principiando:

- Tu conheces mal a minha história, o meu passado. Pouco ou nada te falei de mim, porque até hoje vivi sempre a mostrar as grandezas, ou as baixezas, do meu boneco. E

o meu boneco e eu não somos nada parecidos, pelo contrário. Tudo nos separa. O meu boneco possuía a sua verdade. Eu possuo a minha verdade. Se não, vejamos. Que sabes tu, que sabem todos os que me rodeiam, a meu respeito? Apenas que vivo com os meus avós que são podres de ricos e me estragaram com mimos desde sempre, talvez na tentativa de me compensarem do que não podiam dar-me o amor e a vigilância jovem de uns Pais conscientes. Alguém que não eu, fizera constar que o meu Pai vivia em África ocupado na exploração das propriedades dos meus avós e que a minha Mãe morrera quando eu era bebê.

Os olhos verdes da Mirita, muito abertos, esperavam uma confissão trágica.

Ia haver uma confissão trágica.

- O meu Pai está realmente em África. e realmente a dirigir as fazendas do meu avô. Mas a minha Mãe não morreu, pelo menos fisicamente. A minha Mãe abandonou-nos a todos e fugiu. Foi nesse dia que fiquei órfão. O meu Pai, que ao que soube depois se tornara bastante culpado dos extremos a que se chegou (era um rapaz amimado, volúvel, caprichoso, jogador impenitente) coberto de orgulho e cheio de remorsos pelo mal praticado - mal que embora não perdoe o mal feito pela mulher o racionaliza - obedeceu à intimativa dos meus avós que a todo o custo queriam vê-lo reabilitado da existência dissoluta que até aí levara e foi-se embora para África. Lá ficou. Lá está. Depois disso, vi-o uma única vez. Quanto à minha Mãe, não só nunca mais a vi como não sei dela nem quero saber. Que morra ou que viva, tornou-se-me indiferente. Ou melhor, preferia que já tivesse morrido.

- Zé? . - exclamou Mirita, horrorizada.

- Oh, Zé. como podes dizer semelhante coisa?

Ele, mexendo vagarosamente a colher dentro da taça cheia da sopa colorida que acabavam de lhes pôr na frente, ripostou:

- Não me censures por este sentimento que de certo se afigura inquietante a uma rapariga como tu. É que, Mirita, a mulher capaz de esquecer o respeito que deve a si própria, capaz de desfazer o elo constituído pela sua família, principalmente pelos filhos, não tem o direito de esperar nada. Nada!

- Mas a Mãe é sempre a Mãe!

- Não! A Mãe deixa de ser Mãe quando ao seu egoísmo sacrifica o filho, os filhos. A mulher que me deu à luz podia, cansada de sofrer e em última extremidade, tentar libertar-se de quanto a prendesse a um simulacro de lar, a uma coisa que perdera a razão de subsistir mas de mim, nunca! Porque eu era inocente, eu era puro, eu estava à espera da Vida. e a minha Mãe tornou-me num desgraçado!

- Oh, Zé? Um desgraçado, tu?

- Sim, eu. Porque foi a partir do momento em que soube a verdade que desmoralizei por completo, e me enfiei dentro do boneco odiento que tem convivido contigo. e com outras pessoas. Um boneco que para além de todos os seus defeitos armazenava cepticismo e cinismo impróprios da idade. Um boneco sempre a ver o mal em tudo! No fim de contas apenas me defendia. Porque, como estás agora decerto a compreender, o meu caracter é bem diverso do que se afigurava aos que só me conheciam por fora.

O criado, a pouca distância, observava-os, estranhando que não principiassem a comer. Embora os achasse muito moços, ao vê-los naquela atitude, notando que praticamente só o rapaz falava e num tom tão baixo que ele não apreendia senão uma ou outra palavra solta, pensava lá na sua que devia tratar-se de "um casalinho desavindo. "

Oh, os casalinhos desavindos, raízes de tantos males irremediáveis!

Mirita, encarando-o, tinha os olhos molhados.

- Zé, estás a passar de um extremo ao outro! E não remedeia nada essa tua atitude, deixando-te arrastar por sentimentos negativos. Começaste a condenar-te a ti próprio quando a única coisa a fazer, creio, seria reagires, lutando por ti e para ti, a fim de acertares numa direcção a seguir, a fim de te salvares!

- Até há muito pouco tempo eu não sentia a mínima necessidade de me salvar, pelo contrário. Muitas vezes pensei que o meu fracasso total seria para eles o maior castigo, logo o castigo merecido.

- Odiar não remedeia!

- Eu sei. Mas não se odeia por querer. E de resto eu talvez nem odeie. Talvez apenas e no fundo deseje, infantilmente, que os que foram meus Pais chorem por mim, sofram por mim como eu chorei e sofri por eles. Sabes lá as vezes que acordei de noite, quando era garoto, sufocado em lágrimas, a dar murros na minha almofada, a abafar a desesperada queixa, do meu coração dentro da roupa da cama. "Mãe-Pai!" gritava o rapazinho órfão Sim, gritava! A minha avó, quando me ouvia, levantava-se em sobressalto, vinha a correr para o pé de mim. Eu, pressentindo-a, enrodilhava-me, a fingir que dormia. E ela ia dizer ao meu avô, condoída "este pequeno deve ter pesadelos horríveis!" Chegaram a levar-me ao Médico por causa disso. Sem solução, o caso. Os medicamentos não actuavam.

Calou-se. Principiou a comer enfim. Mirita, que morria de fome, suspirou, abanou a cabeça e comeu também a sua sopa, que achou deliciosa.

Agora, diante de um problema para ela desconhecido, a rapariga alheada das realidades que tão freqüentemente se ocultam no que se ajuíza sem bases, começava a abrir o espírito à percepção de um caso até aí insuspeitado, caso que não devia existir. Mas.

Os casos maus, a par com os casos bons, são a Vida. Uns e outros seguem a par sem se substituírem nem sobreporem. E nem o conhecimento dos maus invalida a importância dos bons, nem a dos bons explica que se ignorem os maus.

Com o bife já partido aos pedacinhos no prato - hábito incorrigível de criança - Mirita aventurou-se a observar, preocupadíssima.

- Sabes, Zé? Há no meio disso tudo uma coisa que não percebo. Por que é que nunca pediste que te mandassem para junto do teu Pai?

- Porque o meu Pai não me queria.

- Pode lá ser!

- Não me queria, Mirita. É medonho, mas certo. A princípio também não entendi a recusa - visto que ao contrário do que supões cheguei mesmo a pedir. Mais tarde vim a compreender. Eu era para o meu Pai a imagem de tudo o que ele desejava esquecer e mais a exprobação, a saudade, o desgosto Porque nele havia ao mesmo tempo a noção dos erros e dos prejuízos. Sabia que procedera de modo a atrair sobre si graves sanções. Essas mesmas sanções, uma vez acontecidas, não podiam senão magoá-lo até à tortura, na duplicação dos remorsos. Uma coisa muito complicada!

- Talvez seja como dizes mas continuo a achar que contra tudo e todos tu devias servir-lhe de consolo, de amparo.

- Sim se ele fosse capaz de esconder no meu peito as suas dores, permitindo que os meus bracitos de criança o ajudassem, acalentando-o. Mas não foi capaz e por isso o erro continuou a alargar-se e apanhou-me na engrenagem.

Parecia mais calmo, como se quanto dissera o houvesse aliviado profundamente, deixando-o mais leve, mais livre.

Agora falava e comia. Parava de falar para comer. E de comer para falar.

- Creio que não sou mau de todo, Mirita. Porque no instante em que os frágeis alicerces da minha conduta ruíram, não fiquei debaixo dos seus escombros. Em vez de sossobrar, emergi!

- Quebrou-se o boneco e tu saíste de dentro dele! - corroborou a Mirita, sorrindo.

- Sim, é isso. - e sorriu também.

E sorrindo, era ainda mais bonito rapaz. Bonito, bonito, bonito.

Mirita pensava, desde sempre, que nele existiam sérios vestígios da realidade dos príncipes encantadores das histórias da sua infância. E naquele momento, então!

Os olhos doirados, de longas pestanas, brilhavam doces e comovidos no rosto magro de feições correctíssimas. Os cabelos de um castanho claro, longos e anelados como de menino pequeno, inspiravam carinho, um desejo enorme de sobre eles estender as mãos em gesto protector. Pobre Zé Chaves! Como ele estava longe do que vivera fechado num boneco arrogante e falso.

Sob a contemplação dela, ele murmura:

- com a pancada brutal, a minha consciência parece que acordou definitivamente. E agora sei. sei o que devo fazer. Quando hoje fui ter contigo à Faculdade, sem a mínima esperança de que me acompanhasses, ia dizer-te adeus.

Ela, arrancada aos seus pensamentos enlevados, estremeceu.

- Ias o quê?

- Dizer-te adeus.

- Dizer-me adeus? Mas adeus. porquê?

- Porque tomei a única decisão razoável e possível. No fim de contas não tenho quaisquer direitos, não posso reivindicar seja o que for. - e após duas garfadas: - Julgo-me diante de um caminho certo exactamente porque adquiri a noção do que sou. E adquirindo esta noção, reconheço que valho pouco, tão pouco que melhor se torna não deitar ramos ao ar.

Assim, de repente, ela não percebeu o sentido da frase:

- Não deitar ramos ao ar?

- Sim, Mirita. Sou tronco de más raízes. Até que ponto haverá em mim, ou continuarão por mim, as taras dos meus? Não ofereço garantias, entendes?

Os olhos de Mirita voltaram a encher-se de lágrimas. E não dominou um gesto nascido no coração. A sua mão direita agarrou a dele, abandonada em cima da toalha.

- Oh, não! Oh, não!

O rapaz, simples e resoluto, continuou:

- Já falei com os meus avós. Eles ficaram tristíssimos mas não se opõem. Compreenderam.

- O que é que tu tencionas fazer?

- vou para África. vou para junto do meu Pai.

- Mas...

- Agora sou um homem, nada há em mim que lhe lembre o petiz que nunca mais viu.

E a Mirita:

- Há, sim. Há os teus cabelos! Naquele retrato que uma vez me mostraste, devias tê-lo tirado aí com uns três anos os teus cabelos eram como são hoje, tal e qual.

- Isso não conta. É pouco demais. Um pormenor de que ele nem sequer deve aperceber-se. De resto, não espero nada de especial. Não busco nem amparo, nem afecto. Apresentar-me-ei diante dele como o simples empregado que serei.

- Então e o teu curso ? Abandonas o teu curso? No 4. ano? Quando tens um futuro tão brilhante diante de ti?

- Brilhante? Brilhante ou fosco, sabe-se lá! Não tenho interesse pelo futuro que se destinava ao boneco! Não escolhi livremente, empurraram-me, acenaram-me com fardas como quem tenta crianças mostrando-lhes lantejoulas. Para quê insistir? Para quê perseguir a miragem dos que me ofereceram orgulho negando-me amor?

- Os teus avós nunca te negaram amor, Zé!

- Não. Mas entregaram-mo em testemunhos que só me fizeram mal, arredando-me de uma honestidade que devia conduzir-me não para um rumo aconselhado pela prosápia, mas sim pela vocação.

- Nesse caso fica tudo perdido?

- Nada do que interessou ao boneco me pode interessar a mim.

- E a tropa? Estavas esperado.

- Tenciono cumprir o serviço militar lá, perto do meu destino. Para o conseguir tentarei pela última vez utilizar as influências do meu avô. Pela última vez. Porque depois, Mirita, depois só quero tornar-me útil, trabalhando de dentes cerrados até conseguir fazer qualquer coisa e merecer esquecer-me de que não soube ganhar a própria felicidade.

Tinham acabado de comer. Nenhum deles pedira sobremesa.

O criado, perplexo, sem entender positivamente nada, apresentava-lhes o café e o Zé Chaves solicitou a conta.

Ele desabafara. Estava portanto tudo dito. Parecia, que estava tudo dito.

Lentamente, como se estivesse a ganhar coragem, Mirita perguntou:

- Isso não é ainda definitivo, pois não?

- É, sim. Já tenho a passagem marcada.

- Coitados deles!

- Como?

- Não pensaste na situação em que os deixas, aos teus avós, Zé? Velhos, sem ninguém, com as suas desilusões e as suas saudades? Foi-se-lhes o filho. Foi-se-lhes a esperança de se verem continuados num lar como deve ser. E agora tu, que eras a última coisa que lhes restava, partes também!

O rapaz pôs-se de pé, abruptamente, como se a idéia que ela lhe erguia diante fosse impossível de encarar. Os punhos cerraram-se-lhe.

- Mas não posso. não posso ficar!. É terrível, mas não posso! Se permaneço aqui, afundo-me. Afundo-me sem remédio!

- Mesmo que eu. ?

Ele não a deixou prosseguir. Pousara na mesa, com gesto largo, duas notas de cem escudos para -pagar. com a mesma mão agarrou-a por um braço e conduziu-a para a saída.

Atrás deles, o criado, perante a gorjeta, dobrava-se em mesuras.

Avançavam para o carro, em passo rápido.

Quando meteu a chave na fechadura, o Zé fitou-a. Estava pálido. Os lábios tremiam-lhe.

- Tu, Mirita, só tens uma coisa a fazer. Esquecer-me completamente e procurar ser ditosa. Não sei se o poeta te serve ou não serve. e desejo muito que não te enganes no caminho a escolher. Não mereces que a vida te atraiçoe.

E ela:

- E se eu entender que o meu caminho não é o Antônio Fontemora?

Ele contraiu os maxilares com tanta força que os ossos rangeram.

- Tens toda a liberdade para decidir.

- Queres que te participe a minha decisão? Ele não respondeu. Ficou por momentos apoiado ao automóvel, de costas para ela. Depois, baixo, disse:

- A minha passagem está reservada para daqui a três semanas. Antes de partir telefono-te e dou-te a morada de lá. Prometo-te. Porque.

Entraram para o carro.

Já estavam a rolar, quando ele concluiu a frase.

- porque eu gosto muito de ti, Casimira.

E até se despedirem, à porta de casa, nenhum deles tornou a falar.

Aquela saída da Rosarinho Abegorim acompanhada pelo Pedro de Macedo dera que falar, no Liceu. Nem a rapariguinha simples e feliz podia imaginar quanto!

As que não tinham visto sabiam pelas que tinham visto e umas interessavam-se outras admiravam-se, quer achando natural quer achando estranho.

Um tipo como o Pedro atrás de uma garota? Que lhe encontraria ele de especial?

Seria para divertir-se? Seria a sério?

Ele, um dos rapazes mais giros da Faculdade de Medicina, pelo qual andavam meias tontas dúzias de moças com predicados mais do que bastantes para cativarem o mais exigente! ? Como perceber que se dispusesse a perder tempo com uma "caixinha de pó de arroz"? E ainda por cima no sexto ano havia raparigas já mulheres feitas, bonitas, elegantes, cuidadas. Mas a Rosarinho, tanto no ar como na maneira de ser, parecia ainda uma miúda! com aqueles longos cabelos loiros e os olhos azuis escuros sempre muito abertos, dir-se-ia uma adolescente de treze ou catorze anos a pasmar diante de tudo.

Não, não podia ser a sério. Não era a sério, pela certa!

A Cristina, a Inês e a Marta pertenciam ao número das que, conquanto bem-intencionadas, mais se admiravam. Na realidade elas conheciam, o Pedro!

Companheiras da irmã dele há anos, haviam podido conviver com ele no Verão anterior, quando, a convite dos Pais da Ana Maria, tinham passado uma temporada na Quinta que eles possuíam na Serra da Estrela, a Quinta de São Boaventura. É verdade que o Pedro estivera muito doente nessa altura, consequentemente em baixa de forma, quase sempre em repouso. Mas sabiam pela Ana que ele não se mostrava introvertido mercê das circunstâncias. Não! O Pedro era naturalmente grave, reflectido, imensamente adulto no que a palavra encerra de consciente e definido em relação ao caracter.

O Pedro atravessara a fase perigosa da adolescência muito cedo, por volta aí dos 12 13 anos (tudo isto lhes fora contado pela Ana, não era invenção) e a sua singeleza de rapazinho bem-formado culminara, desastrosamente, com uma aborrecida história desenrolada já lá ia um ano.

E a estas e a outras coisas elas, as três amigas, debatiam-nas agora, sentadas naquele canto ao pé da janela que dava para o pátio grande do Liceu, inundado pela chuva que caía ininterruptamente desde a madrugada. As colegas de turma encontravam-se numa das salas de estudo, a aproveitar o tempo. Elas costumavam também consagrar essa hora livre (um "furo" entre duas aulas) a revisões e preparação da matéria a seguir-a terrífica Matemática. Que à Marta nada metia medo, mas à Cristina e à Inês! Estavam porém demasiadamente excitadas com a novidade para se concentrarem em números e fórmulas O assunto, emocionante, empolgava-as. Muitas vezes tinham já discutido aquela indiferença do Pedro em relação a namoros, aquela espécie de mágoa ou de frieza em que ele se isolava. É difícil, aos 17 anos, entender a vida sem amor.

bom, que a Cristina não se preocupava nada com problemas desse gênero! Alegre, irreverente, levada da breca, zombava dos sentimentalismos das condiscípulas e das amigas, todas elas mais ou menos tendo como preocupação dominante (dominante em excesso, vá lá! que os dias são capazes de conter tantas outras coisas importantes!) os derriços e os namoricos.

Em geral, as grandes paixões entre os 14 e os 16 anos, não duram mais do que o tempo de luz de um fogo-fátuo, embora de vez em quando aparecesse uma que levava tudo muito a sério! Por exemplo, além da Ana Maria Ferreira de Macedo, que crescera para o Paulo Manuel de Ataíde Lemos, o amigo inseparável e colega de curso do Pedro, havia os casos da Marta e da Inês.

A Marta, no Verão passado, embeiçara-se pelo Domingos, o jovem feitor da Quinta dos Macedos, um rapaz de origem modestíssima, pobre e reservado, mas que segundo ela (e era, uma das ursos da classe) possuía a força e a segurança de um bloco de granito, o que se tornava forte ponto de apoio para uma ventura a dois. Ele, de facto, era bom e dedicado como raros. E a Marta, com a sua inteligência fora

de série e o seu feitio ponderado, não devia já mudar de direcção.

A Inês não dava tantas garantias, mas contudo Depois de, aí entre os 13 e os 16 anos, haver alimentado sonhos cor-de-rosa e azuis em série, desde os utópicos romances arquitectados com inacessíveis astros do cinema e da canção aos devaneios tendo por objecto os irmãos e os primos das colegas (o Pedro fora uma das suas tinêtas) interessara-se pelo Artur Xavier de Sá Ferreira, primo do Pedro e da Ana, o qual, por sua vez, ficara muito encantado com ela. E lá iam seguindo num namoro sereno que por enquanto se tornava impossível prever se chegaria ou não ao casamento. Fosse como fosse o espantoso era o Pedro - antes e agora.

Porque seria que a Rosarinho Abegorim lhe agradara?

E voltavam o assunto por todos os lados, procurando uma explicação que não achavam.

Compêndios no regaço, iam observando a sua surpresa como se estivessem a mirar um caleidoscópio, interessadas na variedade cativante das formas e das cores internas.

Já na véspera haviam telefonado umas às outras para discutir o facto presenciado. Mas nem por sombras ficara esgotado o assunto! Talvez nem viesse a esgotar.

De súbito, a Inês exclamou:

- Vejam!

As outras duas olharam.

Abrira-se uma porta, ao fundo do corredor, a porta do 6. ? A (alínea F.). E por ela saía, justamente, a Maria do Rosário Abegorim.

Vinha escarlate e tão cheia de lágrimas que não dava por nada nem ninguém.

Em qualquer outro dia, as finalistas, se chegassem a reparar nela, limitar-se-iam a encolher os ombros num comentário breve "mais alguma da Olga Violante " (sim, que toda a gente sabia que àquela hora naquela sala para a turma A do 6. ano, alínea F, funcionava, o mau gênio da Professora mais temida do Liceu - e temida não quer dizer respeitada).

No momento actual, porém, era diferente. E como se o tivessem previamente combinado, chamaram ao mesmo tempo:

- Rosarinho!

Rosarinho parou, tentando perceber o que se passava.

E elas, outra vez em coro:

- Vem cá!

E Rosarinho avançou para dentro do seu velho sonho.

Mas o que podia constituir alegria desmedida, não conseguia encontrar forma de concretizar-se.

É certo que as cores vivíssimas se lhe acentuaram mais, chegando ao pescoço e à testa, na emoção experimentada ao ser detida por elas. Mas o que em qualquer outro ensejo a tornaria desatinadamente feliz (os objectos do seu culto ocupavam-se dela pela primeira vez!) sossobrava e caía de rastos frente ao muro do seu pesar. E compreendia-se que a satisfação não vencesse o desgosto. É que o desgosto era bem real!

Aproximou-se delas em passo lento. E logo três mãos afectuosas se lhe estenderam e um lugar no banco lhe foi oferecido.

Rosarinho era nova demais para entender o que se passava, nova e ingênua demais até para querer entender o que de tão típico se encerrava naquela atitude inesperada.

Não, não era maldade mas um certo sentimentozinho chamado curiosidade que em geral domina o caracter da mulher - e todas elas começavam a ser Mulheres! - (e não existirá pura e simplesmente no ser humano um instintivo desejo de contacto com alguém que de repente se destaca do todo a que se não ligava o bastante?).

Quieta junto das outras, que a contemplavam ávidas de perceber, Maria do Rosário não pôde evitar que de dentro dela lhe subisse aos lábios a profunda mágoa num soluço irreprimível. Num soluço seguido de muitos.

E então aconteceu que a Marta, a Inês e a Cristina, vendo-a chorar assim, sentiram a atenção desviar-se-lhes num rumo bem diverso do que as levara a chamá-la. Eram óptimas raparigas. E a bondade nas óptimas raparigas é mais forte do que todas as curiosidades femininas ou instintivas.

- Que é que tu tens, Rosarinho? - perguntou a Inês, dando forma sonora à súbita compaixão de todas.

E a Rosarinho, num lamento:

- Foi ela.

- Claro, já se sabe que ela é a principal fábrica de desgostos cá do Liceu!

- Que é que lhe fizeste, para te mandar sair da aula?

- Pedi uma borracha de tinta à Lucília. Nenhuma fazia a mínima idéia de quem

fosse a Lucília da turma A do 6. ? ano, Alínea F. Mas isso também não importava. Só interessava o caso em si.

- Foi só por isso ?

- Só por isto mas com antecedentes! e explicou: -A Dr. a D. Olga Violante entrou com aquela cara fechada dos dias piores vocês sabem, não é?

Se sabiam!

- Sentou-se, nós sentámo-nos e ela declarou imediatamente que não queria ouvir nem um pio durante o exercício, avisando que a primeira que falasse saía da aula com uma falta de castigo.

- E depois?

- Depois, leu o enunciado, começámos a escrever e vai espirrei! São coisas que acontecem, não?

- Claro!

- Pois. espirrei. e a Dr. a Olga, lá de cima, pígarreou. Fiquei tão atrapalhada -um espirro sempre faz mais barulho do que um pio! - que me baralhei numa dedução e pumba!

- escrevi asneira! Para não riscar por cima, o que dá sempre mau efeito, quis apagar. Foi nesta altura que dei pela falta da minha borracha. O mais baixinho que pude, pedi à Lucília que me emprestasse a dela, que eu via a dois passos de mim. E a Dr.a Olga Violante. aquilo foi logo "saia, Abegorim!" E eu, numa aflição, a querer explicar-lhe o que se passara e ela, impiedosa, a ordenar-me que me retirasse imediatamente se não queria, além da falta de castigo, uma baixa de nota em comportamento! - e fungou. -Imaginem! Uma baixa de nota em comportamento eu!

- Tu és boa aluna, pois és?

- Sou. Estou no quadro de honra desde que entrei para o Liceu. Pelo menos tenho estado que agora nem sei o que vai acontecer!

- Ora, não vai acontecer nada! - serenou-a a Inês. -Todas as Professoras e a nossa Reitora sabem como é a Dr. a Olga Violante. Conhecem-na bem! Não há pessoa mais intransigente, mais incompreensiva, mais dura. Por isso ligam relativamente pouca importância às atitudes dela.

A Cristina apoiou a afirmação:

- Se uma falta de castigo, uma expulsão da aula, se der com as Professoras consideradas justas, exemplares, como a Dr. a Teresa Vermelho ou a S'Dona Maria do Carmo, que são tão rigorosas como generosas, o facto pode ser desagradável.

- É com certeza desagradável nas conseqüências! - corroborou a Inês.

- Claro! - e a Cristina prosseguiu: - Não há ninguém que não saiba que são ambas incapazes de tomar atitudes por capricho ou má-disposição. Logo, se puserem uma aluna fora da aula é porque ela o mereceu e de que maneira! Agora a Olguinha pfff! Não deve nada nem à bondade nem à compreensão!

A Marta tentou suavizar a acusação.

- Coitada, talvez se sinta frustrada! Então a Rosarinho, num desabafo que lhe vinha bem de dentro do coração, disse:

- Mas acaso as pessoas que se sentem frustradas têm o direito de só espalhar dissabores à sua volta?

- Não, mas - e estendendo a mão para a afagar, a Marta acrescentou: -Deixa lá, não penses mais no caso. Não corres perigo!

Rosarinho não se convencia, porém. E, percebendo-o, a outra tornou-se ainda mais firme na garantia que lhe dava:

- Acredita em nós que conhecemos isto como às nossas mãos! Quando aparecer a falta registada, a Senhora Reitora encolhe os ombros e depois, no Conselho, esquecem-se de tomar nota dela. Fica descansada!

Maria do Rosário respirou fundo. Depois enxugou os olhos ao lencito que tirou da algibeira e teve logo a seguir aquele gesto nela habitual - atirou para trás a longa cabeleira.

Foi quando a Inês comentou, olhando o manto doirado que chegava quase à cintura da companheira:

- Que maravilhosos cabelos tu tens!

- São de sonho! - opinou a Cristina, apreciadora.

E a Rosarinho:

- Às vezes pesam-me imenso. E no Verão fazem-me calor. Mas o meu Pai, quando falo em cortá-los, fica zangadíssimo.

- E com toda a razão!

- Se algum dia os cortares, deves aproveitá-los para fazer com eles um postiço! -sugeriu a Inês, que era a que mais se preocupava com a beleza e os cuidados a dispender com o desenvolvimento e a conservação desse precioso ornamento natural.

- Ah pois!

E a Marta, concordando plenamente:

- Uma amiga minha tem um postiço feito com as tranças que cortou aos 12 anos.

- É uma boa idéia, essa dos postiços! A Cristina riu-se:

- Dantes só as pessoas calvas é que punham cabeleiras. Agora usam-se perucas de todas as formas e cores só por gosto!

No convívio ameno e imprevisível, Rosarinho esquecia o pesar conversando com as companheiras, naturalmente.

Os cabelos continuavam a fornecer o tema perucas, postiços, carecas, pouco cabelo.

E o mais a propósito possível, a Cristina a determinada altura pôs-se a contar:

- Vocês querem ouvir uma história divertidíssima acontecida por causa dos cabelos? Mas olhem que é uma história autêntica. com origem numa das partidas mais engraçadas que eu conheço.

As outras estavam interessadíssimas na descrição, fluente e pitoresca.

- Uma das minhas primas tem a mania dos postiços. Possui uns poucos, de vários comprimentos e feitios e entre eles -por sinal é o último que mandou fazer! -um que coloca a meio da cabeça, no alto, claro, e lhe desce até as costas assim no gênero dos cabelos da Rosarinho.

- Até aí não há nada de extraordinário!

- observou a Inês.

- Espera, que o extraordinário não tarda!

- e prosseguiu: -Ora acontece que ela, a minha prima, tem uma amiga que vive em Coimbra e que sofre de um grande complexo de inferioridade por ter pouco e mau cabelo, um cabelo fininho que faz aflição.

- Realmente é bastante desagradável a falta de cabelo! - concordou a Marta, sempre pronta a condoer-se de toda a gente e a entender os males alheios.

- Se é! E fica sabendo que ela está farta de ir aos Médicos e de fazer tratamentos quase sem resultados! Bom, que não é calva, a Maria Isabel, nem nada que se lhe compare. Tem mau cabelo pouco e fino!

- A gente entendeu isso, não precisas de o repetir! - disse a Inês, impaciente. -Conta lá a história antes que toque para o 3. ? tempo!

- Acontece que a Maria Isabel, embora seja uma rapariga esperta e instruída (já anda na Faculdade, an?) não pode ser nem mais simples nem mais crédula.

- O pormenor tem importância para o desenrolar da acção? - tornou a protestar a Inês.

Riram-se todas, incluindo a Rosarinho que aderira totalmente ao ambiente, diluída nas brumas do passado a recordação da Dr.a D. Olga Violante.

- O pormenor tem a maior importância para o desenrolar da acção! - informou a Cristina que imperturbável recomeçou a narrativa no ponto interrompido: -Ora aqui há tempos a Maria Isabel veio a Lisboa por causa de umas freqüências (prescreveu numa cadeira, em Coimbra, e teve de matricular-se como voluntária em Lisboa para poder fazer o exame e passar de ano) e ficou pasmada diante dos longos cabelos que a minha prima, e sua amiga, ostentava.

A Rosarinho interrompeu-a, comentando:

- Mas isso não é motivo para admirações! Eu também tenho longos cabelos e.

- Espera! É que a Irene (Irene é a minha prima!) estivera em Coimbra três semanas antes com os cabelos curtos.

- Curtos?

- Sim, normalmente curtos! Os verdadeiros! Os outros, os compridos, são do postiço.

- Aah!

- Daí o espanto da Maria Isabel quando a viu Ficou de tal maneira atônita que não pôde deixar de se manifestar ante o crescimento efectivamente excepcional. E vai a Irene, e sem mais aquelas, pôs-se a explicar-lhe que o prodígio resultara do uso de um medicamento novo, vindo da América.

- E a tal Maria Isabel acreditou? - inquiriu a Marta.

- Se acreditou!

- Não! - exclamaram a Inês e a Rosarinho.

E largaram todas a rir.

- Esperem, esperem que o caso não ficou por aqui! A brincadeira, surgida por acaso, definiu-se em autêntica partida e tomou proporções! É que a partir daquele momento a pobre Maria Isabel não fazia senão suspirar olhando os cabelos da Irene e repetindo "quem me dera arranjar esse remédio também. Precisava tanto! " E vai então a Irene disse-lhe que ia telefonar à amiga que lhe conseguira o medicamento a ver se poderia obter um frasco para ela. A Maria Isabel até pulou, na alegria da esperança!

- Que maldade! - observou a Marta, sem dominar um sorriso.

E a Rosarinho:

- E depois?

- Depois a Irene engendrou uma mistela com xarope de groselha, vinho do Porto, brandy, uns pingos de limão

- Deve ter ficado a coisa mais enjoativa!

- Enganas-te, Inês! Parecia um coktail, cor-de-rosa e saboroso.

- E a Maria Isabel foi nisso?

- Não podia deixar de ir!

- O quê? Aceitou um remédio sem nome?

- Qual sem nome? Ora oiçam. A Irene

descolou de um frasco antigo um rótulo, cortou cuidadosamente a tira com o nome e colocou-o no frasco quase cheio com o líquido milagroso. - e riu. -O nome era Pirydium, recordo-me perfeitamente.

- Pirydium? Para que serve isso? - quis saber a Rosarinho.

- Acho que é um desinfectante para as vias urinárias.

Os risos tornaram-se gargalhadas.

- Olha se ela se lembrava de ir a uma farmácia pedir "Pirydium!"

- Para evitar o inconveniente é que a Irene lhe afirmou que o remédio vinha da América, trazido por um tio da amiga, que é piloto-aviador.

- A coisa foi arquitectada na perfeição!

- Mesmo assim custa-me a admitir que a Maria Isabel tenha engolido a aldrabice! exclamou a Inês.

- Pois engoliu a aldrabice e engoliu o remédio. Quando regressou a Coimbra ia radiante, com o seu precioso frasquinho. E fiquem sabendo que nesta história ainda há um facto mais espantoso!

- Oh, Cristina? Não me digas que o cabelo lhe cresceu! - observou a Marta.

- Não, crescer não cresceu. Mas tempos depois ela escreveu à Irene a contar-lhe que tinha imenso cabelo novo!

- Ora! Fantasia!

- Ou sugestão!

- Enganam-se. Porque ela veio agora a Lisboa e a minha prima viu com os seus próprios olhos que na verdade lhe estava a nascer muito cabelo.

- Ooh! - protestou a Rosarinho. – Não queres convencer-me de que xarope de groselha com vinho do Porto, brandy e pingos de limão faz crescer o cabelo!

- Não quero convencer-te de coisa nenhuma. Nem a ti nem a ninguém. Mas o certo é que nestas coisas temos de contar com os inimagináveis. E entre o inimaginável existe o factor nervos. O auto-convencimento da Maria Isabel era tão profundo que talvez provocasse uma reacção psicológica.

- uma reacção capilar, queres tu dizer - atalhou a Inês.

- Seja uma reacção capilar dando frutos inesperados e satisfatórios.

Os risos de novo estalaram. Pareciam inextinguíveis!

Por fim, a Rosarinho fez-se ouvir:

- Eu, o que continuo a achar extraordinário no meio disso tudo é a credulidade da Maria Isabel. Custa a crer como se enfia assim um barrete!

- Pois custa mas a verdade é que se enfia e a propósito eu também posso contar um assombroso caso de credulidade, como diz a Rosarinho.

- Conta, Marta, conta! -pediram as outras.

E a Marta, de certo a recordar-se de algo que devia ser muito engraçado, porque os seus olhos brilhavam de puro divertimento:

- Verdadeiramente, até conheço dois casos e não um. Ora escutem o primeiro. Passou-se há uns dois anos. A minha avó paterna falecera há bastante tempo já e a casa onde sempre vivera, numa Quinta no Ribatejo, estava fechada e desmantelada. Fora uma maravilha, extraordinariamente bem arranjada e bem mobilada. Mas as partilhas haviam levado o melhor deixando dentro dela apenas uns trastes de pouco interesse e nenhum valor.

As três raparigas, debruçadas para ela, escutavam-na atentas. Falava bem, a Marta!

- Certo dia, -prosseguiu ela, -os meus Pais decidiram ir até lá para trazerem umas loiças que lhes pertenciam e tinham ficado arrecadadas numa despensa. Levávamos connosco uma prima da minha Mãe, já idosa, que todos nós estimamos muito porque enviuvou novíssima e com as suas poucas habilitações, ao ver-se forçada a trabalhar, não teve quaisquer escrúpulos em se tornar mulher a dias.

- Mulher a dias? - arregalou-se a Inês, para quem a profissão tomava aspectos de uma humilhante subalternidade.

- Exactamente, mulher a dias! E foi mulher a dias até a família decidir em conselho privado tomar conta dela provendo às suas necessidades. É uma pessoa simples, a prima Inocência (reparem que o nome lhe assenta como uma luva!) muito bem formada e nada tola. Bom, mas adiante. O meu primo, Luís Manuel, o filho do irmão da minha Mãe, que também ia connosco, adora fazer partidas e tem um jeito incrível para as arquitectar e desenvolver. Assim, a caminho da velha casa solitária, já ele planeara meter-se com a prima Inocência sem dar parte dos seus planos a ninguém, claro. Mas levava a sua muito bem fisgada.

- Sempre estou para ver o que sai daí! observou a Cristina que principiava a sentir-se cansada de estar tanto tempo quieta.

- Já vais, não ver, mas ouvir, espera! e, sem pressas, recomeçou a descrição. –Eu não sei se já alguma de vocês entrou numa casa fechada há muito e perdida algures. É uma coisa que faz impressão.

- Naturalmente a impressão depende do gênero da casa e da situação do algures.

- e a Cristina, que decididamente não podia continuar sentada, pôs-se de pé diante dela, torcendo-se como se procurasse ter a certeza de que dispunha dos movimentos de todo o seu corpo ágil e magro.

A Marta, que a conhecia lindamente (não havia na aula quem não soubesse o sacrifício que a Cristina fazia para conseguir estar sossegada durante cinqüenta minutos seguidos) não ligou nenhuma à atitude onde não havia nem falta de consideração nem de interesse, e continuou:

- Pois aquela casa fazia imensa impressão. Tinha um ar misterioso, soturno, muito fria, muito húmida Os nossos passos até ressoavam no corredor. A prima Inocência, que é medrosa, ia transida, coitadinha! Em dada altura o Luís chamou-me de parte e disse-me "não te desmanches quando eu te chamar e mais à prima para virem ver uma coisa pasmosa". Calculei imediatamente que era maroteira, mas como as maroteiras dele costumam ter graça e ser inofensivas, não discordei. Decorrido um pedaço, quando já a minha Mãe e a prima Inocência estavam a embrulhar as loiças para as meter nas cestas previamente preparadas para o efeito, ouvimos um apelo do Luís Manuel, vindo do andar de cima.

- Ah, a casa era de dois andares! -exclamou a Inês, como se houvesse descoberto algo de sensacional.

Sem ligar à interrupção, embora rindo pelo tom em que fora pronunciada, a Marta continuou:

- E nesse apelo, dirigido a mim e à prima Inocência, lá vinha o convite para que subíssemos, a fim de ver uma coisa pasmosa. Reboquei a prima e fomos ter com ele precisamente ao quarto que pertencera aos avós, um quarto com as paredes cheiinhas de humidade, todas manchadas e esburacadas.

- Esburacadas? - e a Rosarinho deduziu:

- Então a casa estava mesmo em ruínas!

De novo soou um coro de gargalhadas.

- Não, Rosarinho, em ruínas também não!

- Mas então assim tantos buracos ?

- Os buracos eram buracos de pregos, os pregos onde haviam estado pendurados dezenas de quadros, porque os meus avós tinham a mania dos quadros e uma mania nada má, porque entre os inúmeros que não prestavam havia-os de grande valor, até assinados por Malhoa e por Columbano, imaginem!

- A gente imagina tudo, mas despacha-te lá, que não tarda muito a tocar para o fim do 2. ? tempo e tu ainda vais, ao que parece, a meio da história - advertiu a Inês.

- Pronto, pronto, eu acelero - e recomeçou a contar: - Pois nós entrámos no quarto e calculem só vimos flores!

- Flores? - pasmaram as outras.

- Flores! De todos os buracos onde houvera, ou ainda havia, pregos, saíam flores. Flores que o meu primo fora apanhar na Quinta e ali espetara an?

- An o quê? Onde é que está a graça? indagou a Cristina, sem atinar com a interpretação.

- Onde está a graça? Apenas nisto - a prima Inocência ainda hoje está plenamente convencida de que aquelas flores tinham nascido ali mesmo por causa da humidade.

- Como os cogumelos no campo! - verificou a Rosarinho.

E riram-se a perder.

- É de facto prodigioso como se pode ser tão crédulo! - disse a Inês.

- Todas as pessoas têm um fundo de ingenuidade capaz de se tornar receptivo a uma sementezinha bem lançada! - volveu a mais nova das mais velhas.

Mas a Inês não concordava:

- Olha que não! Quanto a mim, essa ingenuidade resulta sempre de uma certa pobreza de espírito.

- Enganas-te, Inês!

- Engano-me ?

- Enganas-te e eu posso prová-lo contando o segundo caso que conheço e de bem perto.

- Achas que ainda dá tempo ? - inquiriu a Cristina.

- Faltam sete minutos para o primeiro toque. Posso tentar, se querem.

- Queremos, pois!

- Começarei então por garantir que todas as pessoas, em determinadas ocasiões, são susceptíveis de acreditar até no inverosímil. E passo aos factos comprovativos, que desta feita não têm nada a ver com a prima Inocência. O meu Pai - Bom, vocês duas conhecem-no! (-e apontava a Inês e a Cristina, que acenaram afirmativamente -) um respeitável senhor hoje quase sempre grave, sisudo, foi um rapaz levado da breca. E a sua tendência brincalhona de vez em quando vem ao de cima. Ora aqui há tempo - e não muito! saiu, com a minha Mãe, comigo e o meu primo Eduardo, que é rapaz inteligentíssimo e terceiranista de Engenharia, íamos ao cinema, a um dos cinemas novos da parte moderna da cidade. O caminho era directo à Praça Marquês de Pombal e depois pela Av. Fontes Pereira de Melo acima. Estão a perceber? Estavam. E ela prosseguiu:

- Simplesmente a Mãe pedira ao Pai que a levasse primeiro a uma casa de mariscos na qual ela deposita inteira confiança a fim de encomendar umas lagostas para um jantar que ia oferecer já não sei a quem no dia seguinte. A loja, devo esclarecer, fica perto dos Restauradores. Assim o Pai desceu, claro, a Rua Joaquim Antônio de Aguiar virando a seguir para a Avenida da Liberdade. O Eduardo não se conteve "ó tio, olhe que nós vamos para cima e não para baixo O cinema é do outro lado, não se engane!" E então sucedeu que de súbito o demonico matreiro acordou dentro do meu Pai e ditou-lhe uma resposta que depois ele veio a garantir que nem sequer pensara.

- Qual foi a resposta ? - apressou a Cristina.

- Esta "então tu não sabes que não é permitido? ". E o Eduardo "não é permitido o quê? ", "virar à esquerda aqui na praça, "não se pode virar à esquerda? ", "não, quem desemboca da Joaquim Antônio tem de descer a Avenida e ir dar a volta ao Rossio. Tornou-se obrigatório! "

A Rosarinho não se conteve:

- Oh, Marta não vais dizer-me que o teu primo engoliu a explicação ?

- Se engoliu!

- Mas ele não via os outros carros? Marta encarou-a, sorrindo:

- Eu não falei há instantes no inverosímil? Pois quer a gente queira ou não o inverosímil aconteceu! Naquela noite, àquela hora. Não havia, quase às 9 h. um único carro na praça Marquês de Pombal. Ou melhor, atrás do carro do meu Pai seguia um outro, que parecia disposto a contornar a estátua, virando à esquerda. Simplesmente hesitou parou e mudou de direcção, enfiando também pela Avenida da Liberdade!

- Espantoso! - comentou a Inês.

- Espantoso e exacto! E nem vocês podem imaginar o escândalo! Claro que o Eduardo, absolutamente fiado nos factos e ouvindo a explicação que o meu Pai, agüentando a partida, lhe fornecia acerca dessa nova disposição camarária, se insurgiu, barafustando indignadamente contra uma medida tão absurda. Se vocês o ouvissem! "vejam o disparate!" clamava ele. "Obrigar os carros a descer a Avenida e a contornar o Rossio! Para quê? Para aumentar ainda mais a acumulação do trânsito e fazer perder tempo e gastar gasolina etc. etc. etc." E não se calou em toda a noite. Mesmo durante a exibição do filme, nós ouvíamo-lo resmungar. E notem bem que o meu Pai, depois de dar a volta ao Rossio, a sustentar a sua afirmação mas longe de supor que ele ia dar-lhe crédito, esteve parado à porta da loja de mariscos enquanto a Mãe tratava da encomenda.

- Realmente, é muito forte! -disse a Inês, perguntando a seguir: -E quando foi que ele percebeu que fora logrado?

- Oh ? Antes dele perceber, a história continuou.

- Acredito lá!

- Não acredites mas fazes mal porque é verdade!

- Conta! - pediu a Rosarinho, consultando o relógio de pulso.

- Quando saímos do cinema, fomos deixar o Eduardo em casa. Ele mora perto do Lumiar. O meu tio estava no escritório a trabalhar. Como vocês sabem.

- Eu não sei nada! -sorriu a Rosarinho.

- Mas sabem elas! - e continuou: - O meu tio é Advogado e até altas horas da noite prepara as suas defesas, os seus casos.

- O que tem isso a ver com o desfecho da brincadeira? - indagou a Cristina.

- Apenas demonstrar que ele não é nenhum bacôco! Pois o meu primo apresentou-lhe a novidade, tim-tim por tim-tim.

- E o teu tio riu-se-lhe na cara, evidentemente!

- Enganas-te, Inês. Não riu!

- O quê?

- Não riu e acreditou. Piamente! Totalmente! E como está sempre disposto a dizer mal de quanto os outros fazem, porque é adversário político de todas as coisas em vigor, aproveitou para reforçar a sua oposição.

A Cristina comentou, gracejando:

- Há uns que nascem para Fadistas, outros para Futebolistas, outros para Pianistas. O teu tio nasceu para Oposicionista!

Uma campainha estridente retiniu por todo o edifício. E logo aquele grande silêncio povoado que era timbre da casa em pleno funcionamento, se abriu, se rompeu como os diques de uma represa.

Tudo foi tumulto, burburinho, confusão. Abriram-se as portas e por mais que as contínuas tentassem fazer-se ouvir, aconselhando ou exigindo moderação com as frases habituais, os risos, os apelos, as corridas, baralhavam-se em maré crescente que tudo alagava e envolvia.

Muitas atropelavam-se a caminho do portal de saída- as que não tinham mais aulas, como por exemplo as do 5. ? ano, turma A, cruzando-se com as que entravam, as do 7. ?, alínea B, que não tinham aula naquele dia durante os primeiros tempos. E surgiam de todos os cantos as do 6. ?, alínea F, que haviam descansado durante uma hora.

As quatro raparigas foram submergidas por uma autêntica vaga branca - as batas de todas, movendo-se, rodeando-as, sufocando-as.

A Inês, que dizia sofrer de claustrofobia, gritou para as companheiras:

- Vamo-nos daqui! Não posso respirar! Mas era impossível romper pelo meio das outras. Mais valia deixar a onda espraiar-se na debandada.

Muito alto, para se fazer ouvir, a Rosarinho reclamou da Marta o resto da história.

- O resto ? Pois acabou assim - o meu tio na manhã seguinte, ao chegar ao escritório, tratou de discutir a novidade com os colegas pretendendo fazer comício. É claro que os outros iam morrendo a rir, troçando-o pela medida grande ao aperceberem-se da partida de que ele fora vítima! Nem queiram vocês saber a descompostura que o pobre do Eduardo levou! E a verdade é que o meu primo ainda hoje, quando fala nisso, declara não entender como foi que acreditou na invenção do meu Pai! A onda branca começara a perder tamanho e força. Elas puderam enfim dirigir-se para as respectivas aulas.

- Na verdade, -observou a Inês, rendida, - depois de ouvir uma coisa dessas não se pode duvidar de que o incrível sucede!

- Pois! .

Rosarinho estava à porta da sua sala. Nela já não havia nem vestígios do desgosto com que cerca de quarenta minutos antes a abandonara. Continuava escarlate, sim, mas de alegria, de emoção.

As outras despediam-se dela, com beijinhos.

- Tens de habituar-te a procurar-nos! disse a Inês.

- Precisas de conviver connosco! - rectificou a Cristina.

E a Marta, com doçura:

- És uma "amorosidade", Rosarinho! Não me admira que.

bom, nenhuma daquelas frases teria justificação, ditas assim calorosamente a quem ainda há tão pouco tempo fora classificada de abelhuda por uma das que se mostravam agora tão simpáticas. Mas isso que importava se a Rosarinho era feliz, feliz. -ai, tão feliz!.

Avançou para o interior da aula, resplandecente.

A Dr. a D. Olga Violante, que vinha a sair quando ela entrava, mirou-a com um olhar gelado que resvalou por cima dela sem lhe fazer qualquer mossa. E, como se nada se houvesse passado, foi sentar-se no seu lugar.

As colegas, trocando olhares atônitos, cochicharam umas com as outras. Que quereria dizer aquela atitude? Tão descontraída, a sensível da Rosarinho Abegorim que saíra da aula a chorar?

A Rita Mónica, atrás dela, bateu-lhe ao de leve num ombro e perguntou, tentando descobrir o motivo que tão evidentemente transformara o pesar em alegria:

- Rosarinho. que foi que te aconteceu? E a Rosarinho, numa risada:

- Olha. o incrível!.

Rosarinho entrou em casa. ansiosa por comunicar, por dizer que estava feliz embora talvez nem devesse, pois se contasse que se sentia assim alegre apesar de se achar ante a perspectiva de uma falta de castigo por culpa da intransigente (e cruel, o que era bem pior!) Dr. a D. Olga Violante, o ambiente não lhe propiciaria qualquer desabafo.

- A Mãe? - perguntou à Sofia, mal esta lhe abriu a porta.

- Saiu, menina. Acho que foi ao cabeleireiro.

- E as minhas irmãs ? - intrigou-se ela, notando o profundo silêncio.

- Só está a Mirita, no quarto. A Ritinha e a Lili ainda não vieram.

A pequena largou os livros em cima da arca, no corredor; despiu e pendurou a bata (era, desde sempre, a mais arrumada) e foi ter com a irmã.

Mirita jazia na cama, de olhos fechados, ouvindo o seu "lingrinhas" (o inseparável aparelhozito de rádio que a tia Casimira lhe oferecera há meses) com uma expressão tal que a Rosarinho se assustou.

- Tem alguma coisa?

A outra abanou a cabeça, sem descerrar as pálpebras.

Desde a véspera que ela andava assim, cabisbaixa, sucumbida. Ou doente. Ou preocupada.

Rosarinho, que possuía verdadeiro instinto maternal aproximou-se da irmã, poisou-lhe a mão na testa, tateou-lhe o pulso, a ver se ela estaria quente, se teria febre.

- Não estou doente. - asseverou a Mirita.

- Então o que foi que lhe aconteceu?

- Nada.

Não queria falar, pronto! E quando ela não queria falar, não valia a pena insistir porque ninguém conseguia o que quer que fosse.

Deixou-a só.

Estava no quarto de banho, a escovar os cabelos, quando ouviu o elevador descer e subir outra vez. A porta da rua abriu-se logo em seguida, sem que fosse preciso tocar à campainha. A Sofia vigiava. E entraram, casualmente juntas, a Rita e a Lili.

A Rita perguntou, alto, de forma a ser ouvida em toda a casa.

- Quem é que já chegou?

- Eu! - respondeu a Rosarinho, pondo a cabeça fora do quarto de banho. - E a Mirita está no quarto!

- Então venham cá ver!

Pelo tom, percebia-se que a Rita vinha entusiasmada com qualquer coisa. O que seria?

A Mirita não se interessou pelo apelo, visto que não apareceu. Mas a Rosarinho, para quem todas as coisas possuíam o seu encanto próprio, acorreu.

Na saleta, em cima do sofá, havia um monte de embrulhos, com papéis coloridos e laços farfalhudos, alguns.

- Que vem a ser isto? - estranhou a rapariguinha. - Nós não estamos no Natal!

Sim, no Natal é que sempre elas vinham da rua ajoujadas, quase sempre com porcarias, mas ajoujadas!

- São compras da Lili! - declarou a Rita, tão contente como se pudesse ter dito que as compras eram dela.

- Compras da Lili? - e para Leonor Augusta, ufanamente calma. -A mana andou a fazer compras?

- Andei.

- Quando?

- Agora!

- E o seu emprego?

- Ó menina, hoje é sábado, não sabe?

- Sei. (-e antes não soubesse, que o sábado era um dos dias em que a Dr. a D. Olga Violante dava aulas ao 6. A da alínea F.).

- E depois?

- Tenho semana americana, querida!

- Ah!

- Andei a manhã inteira a fazer compras!

- Mostre! -pediu a Rita, desejosa de ver tudo o que ela adquirira.

- Já vai! - e a Lili principiou a desembrulhar os seus "tesouros".

Um vestido de malha castanho, amoroso, com risquinhas de duas cores no corpo e na saia, enviezadas. Fazenda para um saia e casaco, verde-mar. Fazenda para um casaco comprido, beje. Dois pares de sapatos, um castanho, outro preto. Uma linda camisola de lã, estampada, para o saia e casaco verde. Um roupão. E duas carteiras, a dar com os sapatos.

Rosarinho pasmava.

Nenhuma delas possuíra nunca tanta coisa bonita ao mesmo tempo. Nunca. Nunca!. Respeitadoramente, tocava ao de leve com um só dedo nas riquezas da irmã.

- É tudo muito bonito! -disse. -E que janota a mana vai ficar!

- E eu! - exclamou estouvadamente a Rita, agarrando na blusa, colocando-a diante dela e dando uns passos, em exibição. - Logo à tarde empresta-ma, sim?

- Não! - volveu a Lili, deitando a mão à camisola. - Tenha paciência, mas não.

Rita olhou-a, assombrada. É certo que a Lili nunca gostara muito de emprestar as coisas dela - e cada vez gostava menos, já ia havendo os seus sarilhos por causa disso. Também nunca pedia nada emprestado às irmãs. Era extremamente individualista. Mas só ainda uma vez reagira de forma tão categórica e sôfrega à sugestão das cedências. No dia do casaco, e ninguém a tomara muito a sério. Por isso a Rita agora a encarava surpreendida e chocada.

- Essa agora? Não empresta porquê?

- Porque a comprei para a usar com o meu saia e casaco e não acho justo que seja a menina a estreá-la!

E justo não era, de facto. Rita podia ter-se calado, devia ter-se calado, reconhecendo-o. Mas não E replicou:

- Não lhe como a camisola!

- Eu sei que não come.

- Nem a estrago! Além disso acho horrível a Lili ter as coisas e a gente não.

- Horrível?

- Horrível, pois! Não passa de uma egoísta, de uma avarenta e olhe, é uma má irmã! Quer tudo para si e nada para nós!

A Lili, de perturbada, até gaguejava.

- Eu sou uma má irmã só porque comprei umas coisas de que precisava com o meu dinheiro, o dinheiro do meu trabalho, e não admito que a menina as use?

- Quer dizer que até aqui não se importava que a gente vestisse as suas coisas porque lhe eram dadas?

- Rita, está a confundir tudo! De resto eu nunca gostei que usassem o que é meu e ainda há dias tive uma cena com a Mirita por causa disso mesmo Ou não se lembra ? (- se se lembrava, a Rita! -) Mas enfim, ia tolerando, ia admitindo, porque não me sentia no direito de impedir nenhuma de vocês de fazer figura à custa do que afinal provinha de bens comuns, ou seja, das algibeiras do Pai e da tia Casimira.

- Espere aí, Leonor, espere aí. - atalhou a Rosarinho, decidida a não se ver misturada com assuntos que lhe não diziam respeito. Vocês, vírgula que eu nunca vesti nada seu!

- e logo a seguir acrescentou, tentando amenizar a discórdia (aquelas trovoadas não causavam estragos mas eram aborrecidas!) -: Ainda me lembro de uma vez que me apeteceu levar a casa da Alicinha aquele seu vestido azul às pintinhas brancas. Chegava-me quase aos pés e.

E não acabou a frase.

Uma silhueta alta, escura, estava agora por detrás delas. E uma voz grave, austera, indagava:

- Que vem a ser isto?

As três meninas voltaram-se, beijaram o Pai, segundo o ritual. Saudaram-no efusiva e carinhosamente, segundo a verdade dos seus corações. Mas não conseguiram distraí-lo do que o Juiz Abegorim queria saber:

- Que vem a ser isto?

E não havia dúvidas. O isto referia-se à camisola, aos tecidos, aos sapatos, às carteiras.

- São compras minhas, Pai. - elucidou-o a Lili.

- Compras suas?

- Sim, Pai.

- Está aqui muito dinheiro. Onde o tinha?

- Não tinha, Pai.

- Pediu-o emprestado talvez à tia Casimira?

- Não, Pai. Uma colega minha levou-me a uma casa de onde gasta. Comprei tudo a crédito. Pago quando receber o meu ordenado, no fim do mês.

- Paga tudo ?

- Em duas prestações, Pai.

- Não gosto, Leonor Augusta.

Lili corou intensamente, pôs os olhos no chão.

E o Dr. Álvaro Abegorim prosseguiu:

- Não se habitue a fazer compras pensando no que tem de receber.

- Mas eu pago tudo, Pai!

- Por isso mesmo!

- Por isso mesmo?

- A menina paga tudo. e a casa, ou as casas, que a fornecerem, sabendo isso, desejarão vender-lhe mais e sempre mais. E a minha filha, diante das facilidades com que deparará, ir-se-á progressivamente habituando a ter quanto precisa ou apenas deseja. E assim, os seus ordenados principiarão a ficar comprometidos com antecedência, deixará de contar com eles no fim dos meses e o seu poder de compra transformar-se-á numa angústia porque nunca mais disporá de dinheiro livre. Entende o que quero dizer?

- Sim, meu Pai.

- Não a aconselho a que faça deste costume uma regra. Lembre-se sempre de que podem aparecer-lhe despesas com que não conta, despesas que não façam parte do seu orçamento e se tal acontecer não só não terá dinheiro para os restantes compromissos como desequilibrará a vida com sério risco de nunca mais conseguir endireitá-la. - e quase sem transição, encerrando bruscamente o assunto: -E agora vamos almoçar, que são horas. - e afastou-se.

As três raparigas olhavam-no, imóveis.

Quando chegou à porta, o Dr. Abegorim parou, voltou-se para elas. E todas notaram que o Pai tinha um ar terrivelmente cansado. E, notando-o, sentiram-se angustiadas. De súbito, sem qualquer preparação, elas viram o Pai de outra maneira, viram o Pai como ele estava a ficar - um homem que envelhecia!

E quando o Dr. Juiz tornou a falar, as três irmãs aproximaram-se umas das outras, em instintiva busca de apoio.

- Acabou hoje o julgamento do filho do meu amigo Tito Branco. Foi condenado a doze anos de prisão-. Quando recuperar a liberdade, quase não haverá diante dele nenhumas esperanças. Os melhores anos terão passado para sempre, atrás de muros.

E saiu da saleta.

Rosarinho mordeu os lábios, ficou por momentos hesitante e depois correu atrás do Pai.

Lili, vagarosamente, juntou num braçado as suas coisas e levou-as, bem cingidas ao peito.

Rita seguiu-a. E, no quarto dos armários, apontando o monte de preciosidades, perguntou-lhe, humilde:

- Quer que a ajude a arrumá-las?

- Não, obrigada. Depois do almoço venho guardar tudo.

Quando entraram na sala de jantar, a Mirita e a Maria do Rosário já estavam sentadas. Faltava a Mãe.

O Pai não gostava que a Mãe faltasse à hora das refeições. Nunca gostara. Mas acontecia quase sempre quando Dona Teresa Mafalda ia ao cabeleireiro.

Nessas ocasiões o marido procurava reagir ocupando-se mais das filhas, conversando com elas, criando um ambiente o mais agradável possível - o ambiente necessário à solidez do bloco familiar. E, normalmente, o Dr. Abegorim principiava com pequenas interrogações que geravam conversas. Por isso as filhas, segundo o hábito, esperavam.

Mas, naquele dia, o Pai não abriu a boca. As rugas da sua testa estavam fundas como nunca.

A Sofia, que dispensara a Rita da obrigação, servia calada, olhando surpreendida e inquieta as quatro meninas e o amo. Na sua simplicidade não cabia o entendimento do que se passava. Imaginava somente que havia zanga no ar.

Ouvira duas das irmãs discutirem. Depois o Dr. Juiz entrar e falar num tom ríspido.

Que maçada! As pessoas estragam dias de vida sem valer a pena! Quereria dizer qualquer coisa, modificar o ambiente Não sabia como.

Debalde suspirava lançando olhares implorativos às rapariguinhas. Nenhuma lhe prestava atenção. Porque a verdade é que não estavam zangadas. Ninguém estava zangado. Apenas se encontravam dispersos e afastados, tanto como se se achasse cada um em seu ponto do globo. Porque cada um se refugiara no seu mundo íntimo, cheio com coisas que nada tinham a ver com as do próximo.

O Pai preocupava-se com o destino do rapaz que fora obrigado a condenar porque a Justiça assim o exigira e dentro dele tudo era pena ante uma existência despedaçada.

Lili ficara sufocada sob o peso da advertência do Pai, reconhecendo que ele tivera razão em quanto havia dito, e lutava agora consigo própria assumindo o compromisso moral de não repetir o que fizera.

Rita continuava a deixar-se submergir esquecido o bom impulso de momentos- antes - por um sentimento cuja fealdade não reconhecia. Desejava possuir tudo o que pertencia à irmã mais velha e, diante da impossibilidade de uma partilha que a satisfizesse, arquitectava mil maneiras de obter uma situação de favor junto da tia Casimira, muito capaz de se condoer e de a abastecer de forma a que ela não precisasse de cobiçar o alheio.

Mirita perdia-se na dolorosa perplexidade em que desde a véspera ficara vivendo, sem saber de quem gostava e quanto gostava.

Rosarinho evadira-se do que a cercava, voltara ao Liceu, ao convívio das amigas da Ana Maria que conheciam tão bem o Pedro.

Como elas realmente se encontravam distantes umas das outras, as quatro irmãs! E longe daquela mesa que significava - ou devia significar - aproximação!

Por isso não podiam notar os sinais e os olhares da Sofia. Mas algo ia acontecer que as chamaria ao momento exacto!

Algo estava a acontecer enquanto a Sofia voltava a apresentar a travessa dos bifes (de cebolada, deliciosos).

De súbito, os pensamentos dos cinco comensais foram cortados cerces. Violentamente, interrompeu-os e ligou-os um sobressalto comum.

Viera da rua, atravessando a casa, um berro lancinante. Um uivo de bicho em sofrimento intenso, logo seguido de crescentes gritos de criatura humana. E depois, na escada do prédio, um burburinho de choros altos e apelos. Vinham de baixo e pareciam ali no patamar, de tão fortes.

Lili, atordoada, exclamou:

- Que é isto?

E logo a Sofia, mais próxima das realidades que os outros todos:

- Credo? Que teria sucedido?

O Dr. Abegorim levantou-se, correu pelo corredor direito a uma das janelas da frente, seguido pela criada e pelas filhas, duas delas com os guardanapos nas mãos.

Debruçaram-se o Juiz e a Rita, sem descortinarem nada as que estavam atrás. E a Sofia, cheia de lógica, dizia:

- Vamos ver da varanda!

Na varanda cabiam as quatro, à vontade. Mas já o Pai sabia o que se passara.

- Foi um atropelamento.

A Mirita gritou, numa suspeita horrorosa.

- Ai, a Mãe! .

Sim, a Mãe não estava em casa e sabe-se lá o que pode acontecer às pessoas que andam na rua!

Tão rápidas que nunca depois entenderiam como aquilo fora possível, as quatro irmãs acharam-se no passeio rente ao prédio, tendo galgado as escadas aos saltos.

Álvaro Abegorim, grudado ao parapeito da janela, não ousava sequer mexer-se, tentando e temendo perceber, não fosse concretizar-se a medonha hipótese da Mirita. Para os homens fortes há às vezes ocasiões em que são os mais fracos do mundo!

A Sofia, tão debruçada na varanda que corria o perigo de desequilibrar-se, procurava descortinar o que jazia no meio daquele agrupamento que não cessava de aumentar.

O trânsito estava interrompido. Um autocarro de dois andares atravessara-se na faixa de rodagem descendente. Os automóveis, apinhados pela rua acima, ignorando o porquê da longa paragem, buzinavam desesperadamente, atroadoramente. E o círculo de gente não fazia senão aumentar.

A Sofia, que do seu posto de observação via melhor do que o patrão, disse-lhe de lá, pávida:

- Pegaram numa senhora em braços! Trazem-na pra pra dentro de casa!

Álvaro Abegorim percebeu "a senhora". Levou as mãos ao peito. Faltava-lhe o ar. Mas já atrás dele uma vozinha, conquanto alterada, soava como um sinal libertador:

- Foi o Fru-fru, Pai. Foi o Fru-fru que ficou atropelado.

O Fru-fru do 1. ? andar. O cãozinho embonecado, adorado e amimado da sr.a Dona Ester, um fox-terrier com todos os defeitos dos meninos malcriados. O Fru-fru, que fora um cãozinho ágil e elegante e se transformara com o rodar dos anos e o amontoar das guloseimas num ser obeso e ridículo que mal podia andar e descer e subir os poucos degraus da entrada da porta até ao elevador.

A Rita, a Mirita, a Lili e a Alicinha (a amiga da Lili, a vizinha do lado) surgindo logo após a Rosarinho, acabavam de tranqüilizar o Dr. Juiz, com os seus comentários ao sucedido.

- Coitado do Fru-fru! Ficou sem conserto!

- Foi muita sorte ser ele e não a S'Dona Ester, que o trazia pela trela!

- Ora! Não havia razão nenhuma para que fosse a S'Dona Ester. Ela vinha bastante à frente! O Fru-fru, como mal podia andar, ficou para trás e deixou-se esborrachar pelo autocarro!

- A S'Dona Ester podia puxar por ele, se tivesse dado pela aproximação do autocarro!

- Não o viu a tempo!

- Está pitosga.

- Eu ouvi dizer lá em baixo que o Fru-fru se soltara da trela!

Na rua, o trânsito começara a normalizar. O autocarro seguira, continuando a interrompida carreira. Os automóveis circulavam. As pessoas dispersavam.

Um polícia acabava de tomar nota da ocorrência com ar de enfado. Tanta coisa por causa de um cão!

- Realmente! - comentou a Alicinha. Mais cão menos cão tanto faz!

Mais cão menos cão tanto faz. não! Para a sr.a Dona Ester era o seu cão, o companheiro fiel e dedicado desde há muito tempo!.

A Sr. Dona Ester ficara muito cedo viúva. E, sem filhos, sem família, quase, - restavam-Lhe dois sobrinhos-netos que nunca a visitavam e cuja existência ninguém conhecia - dedicara-se àquele bichinho a que só faltava o dom da palavra.

E lá em baixo, no primeiro andar, a pobre senhora não voltava a si do desmaio em que o desgosto a prostrara.

No 4. andar, agora, Pai e filhas dispunham-se a acabar o seu almoço (a Alicinha aceitava um café) quando retiniu a campainha da rua.

A Sofia foi abrir e voltou com o recado aflito:

- É a Georgina, a criada da sr.a Dona Ester. Pede se as meninas fazem o favor de chamar um Médico, que a Senhora não há meio de recobrar os sentidos!

Rosarinho precipitou-se:

- Chamo o SôTôr Graciano, Pai? -(o Sr. Dr. Graciano Mendes era o Médico delas desde pequeninas).

- Talvez seja melhor o Dr. Amaro de Sousa, filha. A S'Dona Ester já não é criança.

Zombeteira, a Alicinha comentou:

- E daí. Já entrou na segunda infância!

Rosarinho fora para o escritório, respondendo ao Pai que lhe perguntava se ela sabia o número:

- Procuro na lista!

A Georgina retirara-se apressada, a cuidar da patroa desfalecida.

O Dr. Juiz e as filhas mais velhas, repelida a travessa dos bifes de cebolada - o resto da vontade de comer fora-se! - só queriam uma laranjita.

No escritório, ao telefone, Rosarinho desesperava-se. O Dr. Amaro de Sousa não almoçara em casa e até à hora do consultório não sabiam onde poderia encontrar-se. Então, resoluta, pensando - e muito bem! - que mais valia um Médico de crianças do que nenhum (aliás não há Médico que mais saiba de clínica geral do que um especialista de doenças infantis, dado que nelas cabem todos os males possíveis e imagináveis!), tentou o Dr. Graciano Mendes. Almoçara a correr e saíra para atender uma porção de chamadas.

E agora?

Um suspiro dilatou-lhe o peito e os lábios deixaram escapar um lamento:

- Que falta nos faz o Dr. Macedo!

O Dr. Rui Manuel de Macedo, o vizinho do 2. ? andar, o Pai do Pedro.

E no olhar da Rosarinho, uma luz de esperança.

O Pedro estava em Medicina. O Pedro talvez fosse capaz. O Pedro com certeza viria!

E não hesitou.

Marcou o número que sabia de cor, o número dos Lemos, em casa de quem ele ficara a viver.

- Tá? O Pedro está?

O Pedro estava. E embora reconhecendo não ser a pessoa mais indicada, depois de ouvir a concisa explicação da Rosarinho, prometia vir imediatamente. Admitia, de resto, que o desmaio da sr.a Dona Ester fosse uma coisa sem importância de maior, mas, se não fosse, ele tomaria as necessárias providências.

- Então? -perguntaram as irmãs, o Pai, a Alicinha e a Sofia, quando finalmente ela reapareceu na sala de jantar.

E a pequena, muito natural:

- Chamei o Pedro.

- O Pedro? - exclamaram cinco vozes, afinadíssimas no tom de surpresa.

- Qual Pedro ? - acentuou o Dr. Juiz.

- O Pedro cá de baixo!

- O Ferreira de Macedo?

- Sim, Pai.

- Oh, filha! mas ele é um simples estudante de Medicina!

- Nenhum dos Médicos estava em casa! e subitamente confusa, percebendo que fizera asneira: -Julguei que ele servisse.

O Pai não se zangou.

- bom. esperemos que as habilitações dele cheguem para tratar de um simples desmaio, se na verdade de um desmaio simples se tratar.

Tratava-se de um simples desmaio. Pelo menos à primeira vista.

Quando o Pedro chegou, a pobre D. Ester, inconsolável mas senhora dos seus cinco sentidos, estendida no sofá da sala de visitas para onde fora transportada, chorava com saudades do seu cãozinho de estimação e com horror da imagem derradeira que lhe não saía da mente.

- Coitadinho do meu Fru-fru! -ia soluçando. - Tão esperto, tão dedicado, tão amigo . Que fim teve, que fim! Quem havia de me dizer, quando saí com ele para o nosso passeio higiênico, (sim, que o passeiozinho diário fazia-nos bem a ambos!) que era a última vez!

E depois de cheirar o frasco dos sais que a Georgina lhe trouxera, continuava, agora exclusivamente para o Pedro que, sentado ao seu lado numa cadeira baixa, a escutava sem dúvida compadecido mas também um pouco divertido com o lado caricato da situação.

- O Pedrinho lembra-se bem dele, pois lembra? Quando era pequeno, o que o menino gostava de o arreliar! Assobiava-lhe de uma certa maneira e o Fru-fru zangava-se e ladrava durante meia-hora seguida! De uma vez até fui pedir à sua Mãezinha que lhe ralhasse, para o Pedrinho se deixar daquelas maluqueiras! (e desfazendo-se em choro) -Ai que bons tempos esses!

O Pedro, entalado, não sabia nem que fazer nem que dizer. De resto não fizera nada e nada dissera, ainda.

O ambiente daquela sala, com as janelas fechadas e o ar compungido das pessoas, parecia-lhe a despropósito. Tanto aparato por causa de um cão!

Mas, de súbito, o coração apertou-se-lhe sob uma chicotada da consciência. Vinha-lhe de longe um grito, um grito perdido no passado "Olha os condecoradores de cães! ".

Sim, alguém um dia achara ridículo que eles tivessem celebrado um feito heróico do grande Serra da Estrela (o bom) que mais tarde, ao morrer de morte natural, os deixara a todos de lágrimas nos olhos.

Sentiu que estava a ser injusto na forma de julgar a dor da pobre D. Ester para quem o Fru-fru representava tanto! E, instantaneamente, deixou-se guiar apenas pela sensibilidade.

As meninas - cinco, com a Alicinha, - que tinham descido em grupo para dar assistência à sr.a Dona Ester, coladas umas às outras no limiar do aposento, notaram que a expressão inicialmente bastante reservada do Pedro se modificara por completo.

A mão esguia e branca do futuro clínico estendera-se para um dos ombros trêmulos da velha Senhora. E a voz harmoniosa, grave, tão agradável de ouvir, soou:

- S'Dona Ester, creio que a Senhora não

sofreu senão um choque nervoso. O pulso está regular e cheio e não vejo motivos para alarmes. Isto digo-o como pessoa e não como médico, visto que por enquanto o que sei e nada é tudo a mesma coisa. Por isso talvez fosse conveniente a S'Dona Ester, amanhã ou depois, ser observada por um especialista de doenças cardíacas. Não quero assustá-la mas na sua idade há sempre que temer complicações.

A pobre D. Ester, que o escutara -o que já era um triunfo! - anuía:

- Pois sim, Pedrinho, pois sim. Na segunda-feira vou ao meu Médico, prometo-lhe.

- Óptimo! E entretanto talvez lhe fizesse bem tomar um sedativo.

- Um sedativo?

- Sim, um calmante. Não tem aí nada ?

- Se não houver disso nesta casa, o meu Pai tem com certeza! Ele é um tipo cauteloso!

- salientou-se a Alicinha.

E a pobre D. Ester, tentando soerguer-se:

- Eu também tenho, eu também tenho e a Georgina sabe onde. Na minha mesa de cabeceira. Ela pode ir buscar o tubo dos comprimidos! - e enxugando as lágrimas: Muito obrigada, Pedrinho. Muito obrigada por se ter incomodado a vir ver-me!

Conseguiu sentar-se no sofá. Depois, esforçadamente, pôs-se de pé. Deu uns passos. Chegou à janela como se fosse olhar a rua, mas logo recuou, apavorada.

- E pensar que nem sequer posso fazer um funeral decente ao meu Fru-fru!

A expressão era dramática. Mas a crueldade juvenil reconhecia, no drama, a tragi-comédia.

Sorriram todos, com a evocação medonha do Fru-fru esmigalhado.

Não. Não tinham sorrido todos.

A Rosarinho não sorrira! Adiantara-se para a desolada Senhora e, passando-lhe o braço pela cintura, carinhosamente, dizia-lhe:

- Não deve pensar nisso. São idéias que nada resolvem.

A Georgina, que saíra, voltava com um tubo de comprimidos e um copo de água.

Foi Maria do Rosário quem ajudou a pobre D. Ester a engolir o medicamento, aconselhando-a logo a seguir, muito mulherzinha:

- Acho que deve deitar-se, agora. Se pudesse dormir, fazia-lhe bem. Sossegava.

- Pois pois sim! Enquanto durmo, não sinto tanto a minha solidão.

E a Rosarinho, espontaneamente:

- Quer que eu fique ao pé de si, S'Dona Ester?

A pobre D. Ester olhou-a bem de frente, numa surpresa que se tornava ternura:

- Não, queridinha. Não quero que estrague o seu dia.

- Não estrago nada! vou buscar os livros e fico ao seu lado, a estudar.

- Não, filhinha, não! Mas muito obrigada por ter pensado nisso. Foi uma boa idéia e as boas idéias, como as boas acções, são sempre recompensadas!

Havia qualquer coisa de profético no tom daquelas palavras.

As outras quatro raparigas gostariam, sem o saber, que elas lhes tivessem sido dirigidas.

  1. Ester encaminhava-se agora, apoiada à Georgina, para fora da sala. Deteve-se junto da porta:

- Não se empatem mais por minha causa, pequeninos. Vão-se embora, vão e mais uma vez agradecida.

Rosarinho adiantou-se, para lhe dar um beijo. E segredou-lhe:

- Se eu adivinhasse que se sentia tão só, já cá tinha vindo muitas vezes! Mas daqui em diante apareço. Prometo!

  1. Ester fitou-a com uma expressão indefinível. Depois, no mesmo tom em que ela falara, volveu:

- Deus lhe pague a intenção, filha. Porque, se não vier, eu compreenderei. - e desapareceu no corredor que era bastante mais escuro do que o do 4. ? andar.

- Bem. -suspirou a Lili. -Acho que podemos voltar para casa.

- Já aqui não fazemos nada! - concordou a Mirita.

O Pedro adiantou-se para elas:

- Será inconveniente que eu suba com vocês para cumprimentar a sr.a Dona Teresa Mafalda e o Sr. Dr. Juiz?

Rosarinho quereria responder, mas a voz não lhe saía da garganta apertada. Felizmente que a Lili tinha outro despacho.

- Claro que pode subir! - redarguiu ela.

- Os Pais vão gostar imenso de vê-lo.

- Não sei se a Mãe já teria chegado do cabeleireiro - observou a Rita.

- Isso não tem a mínima importância! É da maneira que faço um pouco de companhia ao SôTôr.

E subiram, encaixados no elevador, excedendo o número permitido de pessoas mas não o peso!

A Mãe já estava a acabar de almoçar enquanto o Marido lhe narrava o acidente.

Ambos viram entrar com agrado o belo rapaz que lhes era tão simpático.

- Então essa doente, que tal? - quis logo saber o Dr. Abegorim.

O Pedro ria:

- Como estreia, saí-me razoavelmente. Receitei um especialista de doenças cardíacas e um sedativo, que a S'Dona Ester tomou.

E o Juiz:

- A propósito de tomar. você toma alguma coisa? Um café? Um licor?

- Um café, Sr. Dr. se não for muita maçada.

A Rita correu a preparar o café (era o dia dela, de piquete ao serviço de fora). A Lili pediu-lhe:

- Traga também um para mim, se faz favor.

- Trago para todos! - respondeu-lhe a irmã, já próxima da cozinha.

Ficaram a conversar.

Dona Teresa Mafalda, que tinha de ir ao chá de anos da condessa de Ribatorpes - uma contrariedade a que os deveres de uma afeição antiga não lhe tinham permitido eximir-se, dado que ao sábado, dia em que o marido passava a tarde em casa, nunca normalmente aceitava convites de ninguém - retirara-se a fim de vestir-se.

As pequenas rodeavam os dois homens e de vez em quando metiam a sua colherada.

O Dr. Álvaro Abegorim, a propósito da estreia do Pedro, ia também contando histórias dos seus começos, de quando iniciara a sua carreira. E tinha muitas, como toda a gente.

Aquela que estava a recordar era das mais engraçadas - e afirmava-o prazenteiro, contando:

- Imaginem só um jovem Juiz, inexperiente e um pouco intimidado, que vê aparecer-lhe pela frente um indivíduo que lhe aponta um revólver ameaçando-o "o senhor vai julgar-me dentro de cinco dias. Ora eu sou um criminoso nato. se me condenar, eu mato-o! ". Calculem como fiquei! Completara há semanas os 31 anos, tinha a primeira filha, aí a Leonor Augusta, com uns 3 meses. e não era nenhum cobarde! Nunca soube o que fosse ter medo. a não ser de me tornar culpado de qualquer injustiça irremediável. Pois durante horas sofri desesperadamente! O ar do homem não me dava margens a dúvidas. O sujeito devia ser dos que matavam mesmo Portanto, ante mim, só havia duas hipóteses humanas. Perder a honra ou morrer. Claro que das duas hipóteses, uma vez vencido o medo físico, só uma ficava - morreria! Depois de chegar a essa decisão, raciocinei E tratei de saber que espécie de julgamento ia eu ter dentro dos tais cinco dias. De facto, não tivera conhecimento de nada, o que aliás se tornava motivo de estranheza pois a comarca era normalmente calma, havia pouco que fazer e a população não dava origem a questões graves. E Bom, não havia qualquer julgamento! Decidi tirar o caso a limpo e investigar até descobrir quem era o fulano - sorriu, passeando os olhos calmos pelo auditório atento. -Nunca me esquecerei do espanto que me dominou perante a revelação. O tipo era maluco! Um doido, inofensivo, e o revólver não passava de uma pistola de brincar.

Os risos esfuziaram.

- Estão muito divertidos! - disse alguém de súbito, ao pé deles. -Posso rir-me também ou preferem que eu lhes dê motivos para que riam ainda mais?

- Oh, a tia Casimira!

De tão entretidos, ninguém a ouvira entrar. E a tia Casimira dava beijos a toda a gente

- até ao Pedro! - toda ela doçura e comunicação com o seu ar de menina envelhecida cedo demais. E antes que os risos se extinguissem, declarou:

- Agüentem, agüentem um bocadinho e não fechem a boca, porque precisam dela aberta não só para rir mas também para pasmar!

- Porquê, tia Casimira ? - indagou a Rosarinho, aninhada aos pés da tia que se instalara no sofá ao lado do irmão.

- Ora porque há-de ser ? Por causa das minhas eternas distracções!

- O que foi que te aconteceu, Mira? - quis saber o Dr. Abegorim.

- Eu digo, eu digo! - e preparando o efeito.

- Apenas isto - esta manhã perdi-me no Rossio!

- An?

- Ooohü!

E o coro das interjeições prolongava-se.

- Perdi-me no Rossio! Assim, tal e qual!

- Mas como?

- De uma forma muito simples. Precisava de fazer umas compras em certa loja. Mas depois, noutra casa, na montra, vi uns artigos que me interessaram. Entrei. comprei, paguei. e saí, claro. Saí convencida de que acabava de abandonar aquela a que inicialmente tencionava ir! E segui o meu caminho a partir da loja em que não estivera. Vocês começam a perceber? E eis os resultados

- cheguei a uma esquina, olhei e não vi a rua que lá devia estar. "Mau - pensei trocaram as ruas ou quê?" Logo porém admiti que me distraíra, claro, e fizera o caminho ao contrário. Toca para trás. Mas não! A rua diante da qual me achava também não era a que eu procurava! "Estou mais pateta do que nunca" - admiti. "Se continuo assim tenho de consultar um psiquiatra". Parei, tentando orientar-me. Mirei a estátua, as fontes e fiquei sem saber para que lado costuma olhar el-rei o senhor D. Pedro IV!

- Ó Mira, tomasses por ponto de referência o arco da rua Augusta, lá ao fundo, ou o edifício do Teatro Nacional! - disse o Dr. Abegorim.

- Pois, pois! Eu queria ver-te na minha situação, atrapalhada e sendo a despistada que sou Deixei por completo de entender o que me cercava, entendes? Tão perdida em pleno Rossio como se estivesse numa floresta virgem! - e ouvindo as gargalhadas. -Riam, meus filhos, riam. Riam que eu agora também rio Mas naquele momento Jesus! - e afagando os cabelos da Rosarinho, que abafava o riso com ambas as mãos a fim de ouvir o resto da descrição, prosseguiu: -Admita quem quiser que estou a fantasiar ou a exagerar que não me ralo nada. A verdade é esta andei desorientada durante cerca de uma hora, dei não sei quantas voltas ao Rossio e atravessei-o em todos os sentidos.

- E como é que conseguiste sair de lá ?

- Como, Álvaro? De uma maneira muito simples e eficiente. Desisti do resto dos meus afazeres e meti-me num táxi que mandei seguir para a minha casa! Uma vez em segurança no interior do carro apercebi-me do ridículo do sucedido e ri tanto, tanto, tanto, que o motorista ia abalroando um autocarro quando se virou para trás, naturalmente querendo ver se eu tinha ar de alguma maluca fugida de um manicômio!

As risadas não cessavam. Envolviam a tia Casimira, juntavam-se às dela.

Só a Alicinha, com o seu ar pálido e frio tocado de um tom que lembrava o enjôo, deixava transparecer no rosto de boneca um pensamento nada lisonjeiro "como certas pessoas se divertem com coisas idiotas!"

Até é verdade que há muitas pessoas que se divertem mesmo com coisas idiotas!

Desejando um ponto de apoio para mostrar a sua inteligência, emitindo uma opinião diferente da opinião dos outros, a rapariguinha procurou o olhar do Pedro (estava aliás farta de procurar o olhar do Pedro!), mas o Pedro parecia achar imensamente dignos de contemplação os cabelos da Rosarinho que o atraíam como atraíam a mão carinhosa da tia Casimira.

E depois?

Depois o Pedro era também extraordinariamente simples, logo capacíssimo de se divertir com as tais coisas idiotas E ria, como as quatro irmãs Abegorim, como o Dr. Juiz, como a tia Casimira.

Por fim, à tempestade hilariante sucedeu a acalmia e a tia Casimira voltou a falar:

- Não há dúvida que estou balhelhas Não precisam de dizer-mo, que eu reconheço-o! - e suspirou, còmicamente: - A idade tudo trás!

E o Pedro, muito elegante, muito cavalheiro:

- Mas não é a idade a causa dessas distracções, de forma alguma! De resto, a sr.a Dona Casimira não tem idade que justifique a idade.

E a tia Casimira, com aquele espírito que fazia dela a óptima companheira das sobrinhas:

- Mancebo, tome nota de que só dou pelos nomes de Mira ou de tia Casimira Quando lido com os que podem, ou podiam, ser meus filhos, prefiro ouvir dizer "tia Casimira! ".

Todos riram outra vez.

- Bom, tia Casimira, -aceitou ele, sem reservas, - agradeço que assim me dê entrada na família.

- Perfeitamente! E agora tenha a bondade de provar-me que o que disse em relação às distracções e à minha idade não foi um banal cumprimento.

- Ah, mas não foi mesmo e sou capaz de documentar a minha afirmação.

- Pois documente!

- Conheço um rapaz que, no gênero distraído, vai mais longe que toda a gente.

- Mais longe do que eu? É lá possível!

- É.

- Mais longe do que uma pessoa que anda às voltas perdida no Rossio? Oh, Pedrinho! .

- Eu conto e a tia Casimira chega depois a uma conclusão.

- Conte.

A Alicinha, que continuava a julgar aquela já longa cena - longa para a sua impaciência!

- absolutamente despropositada (pois não seria muito melhor que o Pedro a convidasse para ir ao cinema, por exemplo?) tentou, para agradar, fingir-se interessada e disfarçar a sua expressãozinha de fastio.

(Os outros não faziam o menor esforço para estarem atentos. Estavam naturalmente atentos, claro!)

- O incidente que vou narrar é verdadeiro e espantoso e passou-se com um rapaz que andou comigo no Colégio, um moço que é vagamente poeta, vagamente escritor, vagamente estudioso, embora tenha óptimas qualidades. Chama-se Luís Farinha e deve andar agora na casa dos 19 anos. Identifico-o para que não admitam qualquer batota na história ocorrida

- batota da minha parte, evidentemente! Ora tudo aconteceu assim -: o Luís combinara com um colega estudarem juntos na manhã seguinte. Na manhã seguinte, portanto, mal o despertador tocou, às oito em ponto, o nosso rapaz teve como primeiro pensamento o de não se atrasar, comparecendo o mais cedo possível ao encontro a fim de aproveitarem as horas até ao almoço. E, obedecendo ao estipulado, enfiou os calções de banho.

- Os calções de banho ?

- Os calções de banho! A combinação apoiara-se numa ida para a praia, onde estudariam juntos até ao banho. Começam a entender? Assim, toalha turca na mão, livros e cadernos em ordem eis amigo Farinha no seu carrito a caminho do aprazado. Tal qual. a caminho do aprazado! Pouco depois, apeava-se à porta da casa do amigo, subia a escada e batia. A criada estranhou ao ver entrar aquele indivíduo semi-nu.

As pequenas principiaram a rir. O Dr. Abegorim também já sorria. E o Pedro continuava:

- O Luís, imperturbável, entrou, avançou para o escritório, muito seu conhecido, sentou-se, esperou. Instantes decorridos apareceu-Lhe a Mãe do outro, que o fitava como se não pudesse acreditar no que via. Então, de súbito e perante aquele ar espantado, o Luís Farinha sentiu que havia qualquer coisa que não estava certa. Tentou justificar a sua presença àquela hora. "Eu... eu venho estudar com o Rodrigo " E a Senhora "o Rodrigo saiu cedíssimo, dizendo precisamente que ia estudar consigo acho que na praia de Carcavelos " Impossível explicar a atrapalhação dele! Contou-me mais tarde que nunca soube como foi que saiu daquela casa, aterrado ao verificar até onde a distracção o levara.

- Coitado! - disse a Rosarinho. E a Mirita acrescentou:

- A idéia levava-o numa direcção e o hábito noutra.

- São as tais coisas inacreditáveis que sucedem! - opinou a tia Casimira.

- E depois? - quis saber o Dr. Juiz.

- A vergonha dele foi tão grande, tão grande, que só ousou voltar a casa do Rodrigo, a quem naturalmente descreveu o ocorrido, quando a Mãe deste, cheia de compreensão, lhe telefonou a convidá-lo ela própria!

A tia Casimira abanava agora a cabeça, num gesto compassivo:

- Ninguém imagina o que as pessoas sofrem ao reconhecer a situação caricata em que a excessiva distracção as coloca! - e suspirou.

- Mas não há nada a fazer!

A Alicinha. que fizera ao Pedro o favor de sorrir no final da história dele, voltara a afivelar a màscarazinha desdenhosa que, acentuando a sua palidez e a sua frialdade, lhe dava um ar de "farta de tudo. "

- Eu confesso que não compreendo essas distracções parvas! Acho que uma pessoa inteligente deve ter cuidado com o que faz!

Pareceram todos bastante admirados com o comentário.

O Dr. Álvaro Abegorim olhou-a com uma expressão que não pressagiava nada de bom Mas ninguém disse nada, a atenção retida pela entrada sensacional de Dona Teresa Mafalda.

Sensacional, é o termo!

Vinha linda, chiquíssima, com o seu casaco maravilhoso de astracam negro - o casaco que a cunhada lhe oferecera no Natal de há dois anos.

- Então até logo a todos!

As filhas, à uma, levantaram-se, dispostas a segui-la para se despedirem. A Mãe deteve-as com o gesto, um gesto que vinha de trás, de há tanto, de sempre que se achava pronta para sair de casa. Dantes, quando elas se precipitavam para a abraçar, na sua irreflexão de catraias espontâneas, a Mãe costumava detê-las com uma frase seca "não quero que me escangalhem ". As vezes atenuava a intenção com um "guardem os beijos para logo" que já não aliviava a mágoa descida em chicotada. Agora, a frase foi outra. Elas já não lhe saltavam ao pescoço Mas o sentido do que disse continuava a não se ligar com o ambiente simples e afectuoso.

- Não se incomodem, filhas, deixem-se estar. e façam boa companhia ao Pai. De resto e a esse respeito vou tranqüila. - ao de leve, com a mão direita enluvada, tocou a face do marido, que abafou um suspiro. -Tu desculpa, sim, Álvaro? Não podia dizer que não à Ana Margarida! Ficam ao pé de ti as filhas e a tua irmã - e repetiu: - vou descansada.

Iria?

- Casimira, -acrescentou, no limiar da saleta, Dona Teresa Mafalda, - cá te fica a minha gente! Tu tomas conta dela.

A tia Casimira sentiu-se cão de água, pronta a salvar náufragos. Ou galinha a chocar ovos alheios. Mas nenhuma das sensações se tornou pensamento. Eram apenas percepções, olhando, como olhava, o irmão e as sobrinhas.

Dona Teresa Mafalda ia longe. Batera há bastante a porta de casa, seguida pelo ronco do elevador a descer.

Alicinha poisava agora no Pedro um olhar que parecia significar "que janota vai a S'Dona Teresa, heim? ". Mas como não abriu a boca e o Pedro não lhe conhecia as reacções, este, notando-lhe a expressão, encarou-a apenas. apenas surpreendido.

O Dr. Álvaro Abegorim tornou a suspirar. Era a confirmação de uma idéia contida "que pena uma pessoa sacrificar as alegrias da família para passar uma tarde a jogar cartas "

Sim! Ele sabia que os anos de Ana Margarida de Ribatorpes seriam comemorados com uma porção de mesas nas quais elegantemente se jogariam o bridge, a canasta. E não podia deixar, o homem íntegro e inflexível, de considerar "que se diria de um chefe de família que não soubesse senão divertir-se? "

E porque todos haviam calado os seus íntimos reparos, o resto da tarde, em conversa amena, generalizada, decorreu sem novidade.

97

Eram talvez umas 6 h. quando o Pedro decidiu retirar-se, lembrando-se enfim de que tinha muito que estudar.

As meninas dispersaram seguindo cada uma o ritmo da sua vida própria, logo os seus gostos ou as suas necessidades.

A Alicinha voltou para casa, com o narizinho torcido dos dias em que se confessava chatiadíssima.

A Mirita, com um livro de versos (poemas de Miguel Torga) nas mãos, foi estender-se em cima da cama. Leria?

A Rita agarrou-se ao telefone, disposta a pôr os assuntos em ordem com as amigas. Diria a todas o mesmo, claro - porque os últimos acontecimentos ocorridos assumiam papel preponderante na sua existenciazinha ainda sem problemas (o seu curso de línguas não permitia situações de choque, podia até considerar-se bastante insípido).

A Lili saiu. Ia ao cinema com o Júlio (a uma segunda matinée).

Rosarinho agarrou-se aos livros, estudando. Ou melhor, tentando estudar. Porque não conseguia concentrar-se! E em dado momento, tomou uma decisão - ia passar um bocadinho. até ao jantar, com a pobre D. Ester!

A tia Casimira (cão de água ou galinha choca) entretinha-se com a sua renda.

O Dr. Álvaro Abegorim, tristonho e fati gado (mais tristonho do que fatigado) recostara-se numa poltrona e parecia dormitar. Estava bem acordado, porém! Tão acordado que se deixara submergir numa vaga de soli dão.

Na cozinha, tratando do jantar, a Sofia, baixinho, trauteava um fado. E a quadra central, no silêncio da casa, chegava nítida à sala onde os dois irmãos, lado a lado, sentiam passar o tempo.

Quem tem, os filhos crescidos, tem sua vida acabada, pois quem dá tudo o que tem, vê-se mais tarde sem nada!

- Demoraste-te!

- Demorei.

Paulo enrugou a testa, observando o amigo, inesperadamente lacônico.

O Pedro tirou o casaco, que pendurou no seu lugar (mais arrumado que certas meninas), vestiu a camisola de malha que costumava usar em casa, puxou a cadeira e sentou-se à secretária - tudo isto com um ar tão sisudo que o Paulo começou a ficar inquieto.

- Era grave, o estado lá da S'Dona Ester do primeiro andar?

- Não.

- Então?

- Foi só um choque nervoso.

- Ah? -e insistiu: -Como nunca mais voltavas, principiei a ficar em cuidado.

- Estive em casa do Juiz Abegorim.

- A fazer o quê?

- A conversar, naturalmente!

- Pois pois!

Decorridos instantes, com certeza sentindo que se excedera na secura, o Pedro acrescentou:

- São todos muito simpáticos.

- Sim ? A Mãe das raparigas também ?

- A S'Dona Teresa Mafalda não conta.

- Não conta?

- Não!

- Porquê?

- Bem vês. é. é uma mulher que se considera elegante e leva uma existência inteiramente extrovertida.

- A tua Mãe achava péssima a educação que ela dava às filhas.

- As pequenas evoluíram por si próprias. De resto, creio que saem bastante ao lado Abegorim, que é da melhor cepa possível.

- Eu sei, eu sei! O meu Pai diz maravilhas do Dr. Álvaro! Por isso mesmo confesso que não entendo a tolerância que ele manifesta pelo desapego familiar da mulher.

- bom em primeiro lugar; não creio que esse desapego seja real. E em segundo, a admiti-lo que querias tu que ele fizesse, sem criar conflitos irremediáveis ?

- Podia não criar quaisquer conflitos! Bastava-lhe dominar!

Pedro encarou o amigo.

- Paulo. há homens que não possuem a coragem de exercer essa pressão!

- Mas uma pessoa com as responsabilidades dele...

- Talvez por isso mesmo!

- Não percebo!

- Tu não sabes que os Médicos, por exemplo, detestam que em casa lhes falem de doenças? Todos eles têm dificuldade em aceitar que alguém da família precise dos seus cuidados.

- Interpretas essa atitude como uma manifestação de cansaço?

- Não pode ser outra coisa!

- E encontras analogia entre a conduta dos Médicos e a do Juiz Abegorim?

- Sem dúvida! Falta-lhe a coragem, a ele, que passa a vida a impor razões e leis, de submeter a mulher à sua vontade.

- E as filhas ?

- Ainda não cheguei a uma conclusão. Mas, seja como for, elas afiguram-se-me perfeitamente normais. Até mesmo a mais velha!

- A Lili?

- A Lili, que era aqui há anos uma garota impossível, está hoje uma rapariga com muito bom ar, até discreta

- Continua a namorar o Júlio Matinha?

- Acho que sim.

- É singular essa inclinação, da parte dela.

- Apenas se nos lembrarmos dos artifícios que dantes exibia!

- De onde o poder e dever concluir-se que as pessoas, principalmente as do sexo feminino, se modificam, não há dúvida! Umas tantas raparigas que aos 15 anos parecem umas songas-mongas, dão em estouvadas, em pretensiosas e em frívolas. Outras, aparentemente avançadas, desequilibradas e salientes, tornam-se comedidas, sensatas e encantadoras!

- Nesse caso julgas que uma rapariga de 15 anos não está ainda com o seu caracter definido ?

Transparecia na voz do Pedro uma certa ansiedade. Notando-a, o Paulo de relance imaginou que ele estava a pensar na irmã. E disse:

- A Ana Maria não chega a ser uma excepção. Há mais como ela, graças a uma inteligência bem aproveitada, a uma educação bem dirigida e a uma sensibilidade bem desenvolvida. Claro que não abundam, por deficiên cias de várias ordens mas há-as, felizmente!

- Consideras sorte encontrar uma rapariga dessas?

O sorriso alargou-se nos lábios do Paulo.

- Considero, sim. Uma sorte tão grande como alcançar a taluda

- Há horas felizes - observou o Pedro.

- É isso! - e estranhando outra vez o ar do amigo. - Pedro ? O Pedro não lhe respondeu. Estava de costas viradas, as mãos apoiadas na escrivaninha, ligeiramente dobrado.

Então o Paulo, que o conhecia como se conhecia a si próprio, indagou:

- Por qual delas estás interessado ? Decorreram segundos.

Longe, no interior do lar, soou a campainha do telefone.

Por fim, muito devagar, sem mudar de posição, o Pedro respondeu:

- Não estou interessado. Estou apaixonado. O Paulo não se conteve:

- Outra vez ?

Naquele preciso instante alguém bateu à porta do quarto. Era a Joaquina, a criada de fora dos Lemos. Chamava o Pedro para ir ao telefone.

O Paulo não conteve uma ironia:

- Vê lá se é a pequena que morre de saudades!

O Pedro saiu sem redarguir o que quer que fosse.

Demorou-se relativamente pouco. Quando voltou, o Paulo estava ocupado a tirar apontamentos.

Pedro abeirou-se dele, ficou encostado à estante, a olhá-lo. Sentindo-lhe o peso das pupilas que o chamavam com força irresistível, Paulo parou de escrever, ergueu o rosto, encarou-o.

- Queres contar-me alguma coisa?

- Quero.

- Desabafa.

- Lembras-te da Alicinha?

- Sei lá quem é a Alicinha ? Alguma das que andam sempre atrás de ti, na Faculdade?

- Não! A filha do Eng. ? Fontemora. - e como o outro continuasse a léguas de localizar a Alicinha, o Pedro explicou: -Caramba, homem! A Alicinha, a vizinha do 1. ? andar do prédio ao nosso lado, a amiga da Lili!

- Aahahah! - pois, o Paulo sabia perfeitamente de quem se tratava! O que estava era longe de se lembrar naquele momento da rapariga pálida e loira que lhe lançava olhadelas langorosas quando às vezes se cruzavam no vestíbulo do prédio onde morava o Pedro. De resto há bastante tempo que a não via pelo menos desde que a família Macedo partira para Angola. Ou para São Boaventura no começo do Verão anterior.

Assim, intrigado, perguntou:

- A que propósito falas na Alicinha Fontemora ?

- A propósito de que o telefonema que acabo de atender era dela. Vinha convidar-me para ir ao cinema logo à noite.

- Mais uma a desviar-te do bom caminho?

- Parece que sim. Andam as coisas às avessas. Em vez de sermos nós a tentar encantá-las, são elas que pretendem seduzir-nos.

- Está o mundo roto!

- E impossível de coser! - e num encolher de ombros depreciativo: - No fim de contas, que pretendem elas com semelhantes atitudes?

- Casar!

- Olha casar! Se telefonassem a um só, a um determinado, ainda se podia admitir o desígnio. Mas elas. metem-se com uns poucos ao mesmo tempo!

- Jogam em vários números, a ver se algum sai premiado.

- Isto desalenta! Porque essas raparigas não saberão nunca o que na verdade seja gostar, gostar para Amar, gostar para criar a Família!

- Até desalenta por outras razões.

- Quais?

- Não nos inspiram a menor confiança. Dão-nos a idéia de que só querem divertir-se. Afiguram-se irresponsáveis. Para elas nada há sagrado. Saem indistintamente com uns e com outros. Trazem a chave da casa na carteira aos 17 anos, essa chave que antigamente os nossos Pais só alcançavam depois da maioridade.

- É. E em vez de atraírem, repugnam!

- Exactamente!

- Sabes o que a Alicinha, com a voz mais melíflua que possas imaginar, me disse ?. Isto "sabes, Pedro, que estás bestialmente giro? ".

- Só? - e o Paulo soltou uma gargalhada.

- Acho pouco.

- Disse mais.

- Ah. disse mais? .

- Praticamente, declarou-se-me!

- Oh, estraga-corações!

- Olha que não estou a exagerar!

- Acredito!

- Confessou-me que não pensa senão em mim desde que me viu naquela noite de Carnaval, na cena dos supostos ladrões lá em casa.

- Realmente!

- É claro que um sujeito menos digno não hesita em se aproveitar das facilidades que assim lhe são oferecidas, an?

- Tu consideras-te um sujeito digno, claro!

- Claro! Aliás sabes perfeitamente que namorar, para mim, não pode ser passatempo.

- Sei-o há muitos anos. Mas. já agora aviso-te - toma cuidado! - com quê? - com duas coisas. Primeiro vê lá não te metas tanto nas encolhas que possa alguém lembrar-se de dizer mal de ti.

- Mal de mim? Mal de mim em que sentido?

E o Paulo, muito sério:

- Acontece que uma criatura despeitada inventa e põe a circular famas que não devemos desejar ao nosso pior inimigo. Entendes?

- Entendo. E adiante - qual vem a ser a segunda objecção?

- Tu és um pinga-amor.

- Eu sou um pinga-amor ?

- És. E tens uma facilidade imensa para acreditares no inacreditável e ficares pelo beicinho quando nada o justifica.

- Essa agora?

- Pedro. eu já te vi duas vezes enamorado sem qualquer lógica.

- Duas vezes ?

- A primeira, acho que ainda te recordas, no Reichvater, pela Yany'.

- Ora! era um garoto, nesse tempo.

- E quando te embeiçaste pela Arabela, também eras um garoto?

Pedro afastou-se da estante, deu uns passos, foi até à janela, acendeu um cigarro. Depois voltou para junto do Paulo, puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dele.

- Não creio que a situação actual tenha quaisquer pontos de contacto com o que se passou.

Reinou de novo o silêncio. Depois, tamborilando com os dedos na madeira da escrivaninha, o Paulo inquiriu:

- Qual delas vem a ser ?

- A mais nova.

- Qual é a mais nova ?

- A loira, de cabelos compridos.

- Ó pá, mas é uma garota!

- Tem menos um ano do que a minha irmã. O Paulo pensou que, em relação a isso, não tinha objecções a fazer. Logo a seguir, preocupado, quis pormenores:

- A saber, antes de chegar a uma conclusão, ou seja, antes de admitir ou repudiar a tua nova inclinação - por que foi que te sentiste atraído? Pela doçura do olhar? Pela beleza? Pela graça? Pela inteligência? Pela bondade? Ou pela cor dos cabelos visto teres uma nítida preferência pelas loiras ?

O Pedro não acusou o toque da zombaria. E redarguiu, simples:

- Julgo a Maria do Rosário uma rapariga perfeita, uma rapariga tal qual nós as concebemos. Nela tudo é puro, espontâneo, natural, certo.

- Como chegaste a essa conclusão?

- São coisas que se pressentem. O nosso subconsciente adivinha-as.

- O teu subconsciente não me inspira grande confiança

- Paulo, mas porque hás-de estar tão renitente se nem sequer a conheces? Não me achas com direito a encontrar uma rapariga que responda aos nossos ideais e possa vir a fazer de mim um homem feliz, um homem completo? Por favor, Paulo! O teu Pai mereceu a tua Mãe, o meu Pai a minha Mãe, tu a Ana, o Domingos a Marta.

- Não te refiras a casais por constituir. Ninguém sabe o que irão dar.

- Nesse caso duvidas das tuas possibilidades de ventura ao lado da minha irmã?

- Não, não me refiro ao meu caso!

- Então é o Domingos que te preocupa?

- Tenho sérias dúvidas de que entre aqueles dois as coisas possam correr bem.

- Pois eu, pelo contrário, penso que devemos confiar. Aliás, parece-me perfeitamente justo que também ele ache a Sua metade.

- bom admitamos as melhores hipóteses em relação ao caso afectivo do Domingos. Ele é um tipo sensato.

- Eu não?

- Tu, até agora, não acertaste nas tuas inclinações.

- Acabas de empregar a expressão exacta

- até agora - e encarou-o, bem de frente:

- Paulo, peço-te uma coisa. Não penses nada a nosso respeito, a respeito da Rosarinho e de mim, por enquanto. Prometo-te que vou ser totalmente equilibrado. Devo-o ao que devo a mim próprio, mas acima de tudo, devo-o a ela. Muito nova, muito crédula, muito sincera, considero-a uma preciosidade. Tratá-la-ei como tal.

- Já lhe falaste?

- Já.

- E queres que acredite no teu total equilíbrio?

- Como ?

- Pois tu ainda mal a conheces, por assim dizer, e foste revelar-lhe sentimentos acerca dos quais ainda nem sequer podes ter certezas?

- Garanto-te que não fui uma única palavra adiante do que era perfeitamente justo, perfeitamente admissível. Aliás o que existe de parte a parte é, sem dúvida, aquilo a que pode chamar-se uma atracção mútua. Paulo, peço-te! Não descreias do que eu estou a revelar-te! No fim de contas também preciso de amor!

Paulo sorriu. Ia responder-lhe, de súbito comovido, em anuência. Mas não teve tempo porque de novo a Joaquina batia à porta do quarto, a chamar:

- Menino Paulo! Paulinho! (Nunca tivera peneiras, o Paulo, e por isso achava lógico que a Joaquina, que o conhecia aí desde os 13 anos, o tratasse por menino e por Paulinho )

- Entra.

- com licença! - e abrindo a porta, surgiu, de mão estendida. - Uma carta de África!

Mesmo que ela a não anunciasse, ele via-a. E precipitou-se, agarrando sôfrego no sobrescrito azulado, cofre de um tesouro sem preço - notícias da Ana Maria!

A rasgar o envelope, disse para o Pedro, que o encarava à espera de que o bodo fosse repartido entre ambos:

- Carta da tua irmã!

O Pedro sorriu, gracejando:

- Agradecido pela informação! Joaquina, feliz de haver sido portadora daquela alegria para os rapazes, saiu a desejar:

- Oxalá sejam boas notícias! E os dois:

- Obrigado, Joaquininha!

Sempre que o Paulo recebia carta da Ana, o Pedro, se estava presente, ficava suspenso. Ansioso por novas dos Pais, dos irmãos, até das criadas (quase pessoas de família) sentia o coração apertar-se-lhe sob o impulso de uma curiosidade que se tornava angústia à medida que o amigo ia virando as páginas cobertas de uma letra redonda, miúda e irregular - a letra precipitada de quem escreve muito. Não havia nele nenhuma espécie de desgosto, evidentemente. Mas pena de não ter o direito de ler ao mesmo tempo que ele E no entanto sabia que o Paulo, quando chegasse ao fim, voltaria ao princípio para ler tudo outra vez e em voz alta. Era um acto de generosidade a que nada o obrigava se não o afecto que os unia. Certo que ele, Pedro, se recebia carta da Ana fazia logo a sua leitura em voz alta. Mas ele era o irmão, Uma posição bem diferente da do noivo!

Enquanto ia pensando tudo isto, para de novo aceitar a espera, com as saudades dos seus todas a virem à superfície da rotina em que lhe iam decorrendo os dias, deixou-se de súbito afastar do que o rodeava. O espírito, inesperadamente, fugiu-lhe para junto de Maria do Rosário.

Rosarinho! Gostaria de receber uma carta dela. As cartas mostram bastante o que as pessoas são. Diz-se muito ou pouco segundo a riqueza espiritual que se possui. Há quem afirme que a escrever se revela apenas o que a prudência aconselha. Mas na verdade também a escrever se mostra tudo quanto se é capaz de desejar, de querer.

As cartas podem ser extensas ou curtas. Há sempre nelas o traço dominante do caracter de quem as assina.

- Pedro! - e a voz do Paulo vibrava de emoção: -Ouve, Pedro!

- Sim, Paulo.

E o Paulo começou a ler:

Meu Paulo.

Está calor. Calor abafado. Vejo nuvens negras que se aproximam velozmente, sem nós percebermos como, porque não vento. Mas já sei que em breve este negro todo se adensará sobre a cidade e cairá chuva torrencial, chuva como raras vezes acontece, chuva em- ondas que a terra absorve sôfrega como uma boca perdida no deserto. E meia-hora depois há céu azul límpido e da, chuva apenas em nós a idéia de que estivemos a sonhar.

Os dias passam. Passam sem dúvida da melhor maneira e eu cada vez gosto mais de Luanda. Há horas durante as quais tudo corre bem. O Pai chega a casa vindo do Hospital, cuja inauguração oficial se prevê para daqui a um mês, sempre transbordante de emoção. Está a nascer-lhe nas mãos uma obra de que toda a gente beneficiará e de que Portugal poderá orgulhar-se. Anda cansado, mas como aos sábados foge para a beira-mar (alugámos a meia-hora de automóvel uma casita deliciosa) volta retemperado na segunda-feira e recomeça as suas tarefas com redobrada energia. Vestido de claro, a maior parte das vezes de branco, camisas de desporto entre abertas, queimadíssimo, acho-o resplandecente de juventude. Emagreceu um pouco, o que lhe dá ainda melhor aparência, e se não fossem uns tantos cabelos brancos que principiaram a aparecer-lhe nas fontes, eu tinha dificuldade em acreditar que ele tivesse idade para ser meu Pai. É que parece só Pai da Maria Rosa!

Ai, a Maria Rosa!. Está a coisa mais maravilhosa que possas imaginar. Pesa onze quilos, a brutinha! Já se põe de pé no parque e olha para todos nós com um arzinho petulante de menina que se sabe admiradíssima! Gorjeia constantemente e articula uns sons que nós consideramos como palavras. Claro que as únicas palavras reais são mã-mã - pá-pá. e um, estranho Alhiin que eu afirmo ser Ana Maria e o Rumané quer que seja precisamente "Maninho" - imagina só! De facto ele diz-lhe com freqüência "venha cá ao maninho. " mas daí a passar-me à frente há sua distância Os olhos dela estão declaradamente azuis. E aquela penugem loira que tu vias começou a formar uns caracóis decentes, ou seja, uns aneizinhos de cabelo que não se põem de pé na cabeça mas a envolvem num halo doce e macio como as penas de um pintainho. Come lindamente e não dá trabalho a ninguém. Resolve os seus problemas de sono com a chupeta, decisão do Pai receoso de que chupando incessantemente no dedo polegar da mão direita acabasse por deformá-lo. Quando lhe damos algum boneco, fica horas a mirá-lo por todos os lados com um ar perplexo e curioso que nos diverte imenso. Será bisbilhoteira ou apenas uma estudiosa em potência?

O Rumané vai muito bem, sob todos os pontos de vista. Os estudos correm sem novidade. Continua a crescer em altura e em consciência. Está a tornar-se quase tão simpático como o Pedro.

O Pedro sorriu, sob o olhar concordante do Paulo, que logo prosseguiu a leitura:

No entanto não consigo ter com ele as grandes conversas em que eu e o meu irmão mais velho deixávamos que as nossas almas ficassem uma diante da outra. Às vezes preocupa-me pensar que a separação actual pode modificar o entendimento que havia entre nós. Tantos irmãos pela vida fora se tornam quase como estranhos! Criam famílias distintas, interesses novos, e afastam-se, afastam-se Isto horroriza-me, sabes? São sempre aquelas minhas idéias, aqueles meus medos. É claro que no caso dos irmãos, o afastamento é em geral provocado pela forma de ser diferente das novas famílias a que se aliam, tantas vezes sem quaisquer afinidades com aquelas de que partem. Seja como for, acho triste. Claro que connosco é diferente - existes tu. e tu és um irmão do Pedro.

Mas voltando ao Rumané. Não calculas a diferença que ele faz desde que aqui chegámos. Não só esticou (é assim que ele diz) bem à vontade mais uns sete centímetros, como principiou a "mudar de expressão com - imagina tu! - o despontar do buço!. Uns têm barbas tarde demais. Este, então, é precoce. O Pai já o mandou rapar o buço. A voz dá-lhe fífias tremendas, das quais ele é o primeiro a rir. Aliás está cada vez mais compreensivo, embora seja mais duro e senhor do seu nariz do que o Pedro. O pior de tudo é ter principiado com a mania dos namoros. Coitado, a culpa até nem é dele! Mas as garotas daquela idade andam desaforadas como nunca vi. De resto não são só as daquela idade, que as da minha idade chegam a dar-me uma sensação de terem mais dez anos do que eu. São raras as que estudam por prazer. Não, não me dão a idéia de serem estúpidas nem cábulas. Parecem-me, sim, umas raparigas imensamente cansadas, umas raparigas que. que principiam a envelhecer. Nada assume grande interesse para elas, a não ser o elemento masculino. Tudo se processa à volta dos rapazes. Não são como as minhas amigas e eu éramos aí (mesmo admitindo a necessidade de namorar que, por exemplo, a Inês manifestava e se concretizou no meu primo - a propósito digo-te que ela me escreveu transbordante de confiança no Artur, o que me assegura que tudo está a correr bem). Nós considerávamos o amor como a coisa mais bela e séria da vida. Elas, não. Elas vêem o amor como divertimento, paródia, facilidade, dispersão, falta de noção de decoro e de responsabilidade. Nem todas, claro! Mas bastantes! E essas bastantes só querem andar pelas praias, pelas boites, pelos campos de jogos, ocupadas em coisas que nada valem e as gastam antes de tempo. Sim, estas garotas vão sentir-se acabadas quando deviam sentir-se no começo da existência. Porque, quando chegarem aos trinta anos, umas estarão de tal maneira intoxicadas pelo mal e pelo erro que tudo quanto for errado e maléfico lhes parecerá normal, e outras tão saturadas do agradável e diverso que nada terá para elas qualquer encanto. No fundo tenho pena. sabes de quem? Dos rapazes como o Rumané, que ficam com uma, idéia muito má acerca das raparigas, o que dificultará enormemente a verdadeira vida a dois. a vida sobre que se apoia tudo quanto existe de melhor e maior: a família! Se nós pudéssemos cerrar fileiras e conseguir parar esta corrida desvairada que leva certa juventude para um abismo! Claro que digo certa porque se conserva íntegra e pura uma imensa parte dela. Mas essa não anda em exposição permanente. Essa conserva-se recolhida, discreta e só com muita perspicácia se reconhece à primeira vista. Estabelece-se às vezes uma grande confusão e há quem.

não saiba distinguir o trigo do joio, considerando interessantíssimo o que não presta e insignificante o que é válido. Olham, a aparência e não querem saber do recheio. é quase sempre oco o espalhafato!. A minha Mãe já me disse que.

E a propósito, se eu me deixasse de considerações - ai este vicio de escrever!

- acerca de um assunto que talvez me dê para um futuro livro (sabes que tenho um título excelente para debater tão vastíssimo tema - Raparigas de vida vazia, heim) e te contasse que a nossa Rosinha-Mãe continua a mulher mais linda que há? Onde quer que surja, seguem-na olhares de admiração. e de despeito. Imagina que há quem. pense, antes de obter informações, que o casal Macedo só tem uma filha (a Rosinha. ) tão nova a Mãe se afigura! E como anda sempre a tomar vitaminas e aqueles choques que o Pai nos receita e nos fazem tanto bem, conserva uma pele extraordinária, fresca e lisa, que a faz aparentar. põe lá uns trinta e dois anos!. Pena ter emagrecido um bocadinho. Penso que são saudades do nosso Pedro e de quanto não trouxe com ela, à vista. Felizmente que, talvez a desejar compensá-la de tudo o que foi obrigada a deixar, o Pai -marido extraordinário desde sempre! - ainda se mostra mais carinhoso e mais encantador do que dantes.

Como a Mãe dispõe de muitas horas livres (a Arminda e a Laura andam óptimas e "comandam" as quatro criadas negras a que o Pai tem direito como teve direito à casa que habitamos; o mais engraçado de tudo é que a Arminda correu positivamente com o cozinheiro, não permitindo homens na cozinha ) o Pai procura trazê-la com ele o mais possível. Chegam ambos a passar manhãs inteiras no Hospital com a Mãe a ajudar e a procurar resolver problemas de modo a aliviar a responsabilidade do Pai. Para nós, filhos, não há o menor prejuízo no facto. Eu, porque fora do tempo de aulas, quando acabo de estudar, escrevo ou passeio. O Rumané porque anda muito na rua como se depreende do que atrás disse, A Rosinha-Filha porque dispõe da vassalagem da Laura.

Assim, a vida corre-nos bem, a todos, graças a Deus, e vamo-nos adaptando melhor do que o julgávamos a princípio, quando tudo nos metia confusão e as coisas mais simples se afiguravam tremendamente complicadas, pelo menos a mim.

É claro que não vais pensar que acho certo tudo o que me rodeia. Nada pode ser certo sem ti.

Acabo de ter vontade de rir. Sabes por quê? É que, relanceando os olhos por todas estas folhas garatujadas, reconheço que alguém estranho que as lesse comentaria "como se atreve esta rapariga a dizer que tem saudades do noivo só quando se aproxima do termo da carta?" Ou então "será isto uma carta de amor? Não, meu Paulo, eu sei. Não é uma carta de amor mas uma carta cheia de amor e nós reconhecemo-lo com a nossa total sinceridade. Porque falar-te de mim é mitigar a tua, ânsia de aproximação. Porque falar-te desta família que tanto estimas é encher de encanto as horas que lhe seriam dedicadas e estão vazias agora. Porque dar-te assuntos para com o Pedro te ocupares longamente de nós é encurtar a distância e fazer com que os nossos nomes sejam realidade em variações de um tema único. Eu, assim tanto contando, converso contigo. Tu, assim tanto lendo, conversas comigo.

Que importaria que outros achassem pobre e frágil esta carta só porque não repete em vários tons "gosto de ti? O muito que gosto de ti domina a carta inteira e tu sabes que isto é a verdade exacta, o que torna a intenção bem mais importante que as palavras.

A propósito de amor, uma grande novidade. Sabes quem anda apaixonadíssima? A Laura!. Não te rias, duvidando, porque é autêntico! Imagina que a nossa querida Laura encontrou um adorador (adorador, termo exacto!) na pessoa de um enfermeiro do Hospital. É um rapaz de cá, filho de um branco e de uma mulata, bastante escuro de pele mas interessantíssimo. Mede 1 metro e 90 de altura e o Pai afirma que toda aquela extensão humana é preenchida por bons sentimentos, vê tu! E a Laura, que nunca ligou importância a ninguém, acha-se na disposição de casar, com a nossa mais completa aprovação.

Não parece que nisto tudo anda mesmo a mão do Destino? O Destino, que guardou a Laura para o Quico (ele chama-se Francisco Batuco dos Santos) fazendo com que o Quico ao primeiro olhar reconhecesse aquela por quem esperava sem o suspeitar. Repara, Paulo: nesta inclinação mútua não há qualquer coisa que faz lembrar o que também se passou com a Marta e o Domingos?

Tens sabido deles? Da Marta, há mais de um mês que não recebo notícias. O Domingos escreveu recentemente ao Pai, mas só tratava de assuntos da Quinta. Entre esses assuntos de um que nos deixou deveras inquietos. O velho Tomás está muito doente. O Pai receia que seja coisa grave.

Isto de se ser obrigado a aceitar o desaparecimento das pessoas queridas é muito doloroso! E sucede com uma regularidade aflitiva. De vez em quando lá vai um.

Não gosto nada de pensar nisto. Porque se se me instala na idéia, ponho-me a ter medo do que nem me atrevo a formular em palavras.

Não te preocupes, Paulo. Já estou a reagir. Não vou deixar-me torturar pelo sem solução.

Mas assim que tiveres um bocadinho disponível, vai por mim a casa dos meus avós levar-lhes em lembrança este meu pedido. Escrevo-lhes regularmente, mas isso não chega, eu sei. E o que ainda vale é que tanto a avó Teresa como o avó Joaquim são fortes. Fortes até quando pergunto-o a mim mesma.

Seria bem bom que eles quisessem vir para aqui. E até podiam! O avô creio que se deixaria persuadir sem resistência. Mas a avó, estranhamente, prefere não desenraizar. Cada um tem a sua maneira de ser, claro!

É verdade, Paulo, outra novidade e óptima - pelo menos considero-a óptima. Fui convidada por um colega do Pai que é sócio de uma das melhores estações de Rádio de Luanda para colaborar nuns programas destinados às nossas idades. Estou tentada a experimentar as minhas habilidades, embora por enquanto não visione o que possa vir a fazer. Mas. acho que vou ser capaz quando me decidir ao grande arranque: - "É agora. " E se me vir muito aflita, escrevo à nossa Madrinha a pedir-lhe um empurrãozito.

Vocês, aí, têm sabido dEla? Recebemos um postal, há dias, com esta meia-dúzia de palavras "De algures no mundo, a minha saudade de vós". O carimbo era de Copenhague. A Mãe, optimista, garante que Ela qualquer dia aparece aqui sem se anunciar. É capacíssima de nos dar essa alegria, porque nós fazemos parte integrante da sua vida. De resto Ela faz-nos falta a todos, não é? Sem a sua doce companhia, sem a sua compreensão, o seu amparo, os seus conselhos, todos temos qualquer coisa a menos na vida.

Escreve-me, meu Paulo. Mais de cinco dias sem notícias tuas leva-me a sentir uma vontade louca de ir ao correio reclamar: "Os senhores estão a ser pouco eficientes, pois de certo há aí carta para mim e não ma entregam". Por isso, se queres evitar que um dia o impulso me leve a provocar um escândalo, toma providências- nunca mais de cinco dias!

Ana,

Um longo suspiro do Pedro envolveu a ressonância do nome que o Paulo dizia como ninguém "Ana"

ANA!

Sim, sim, era autêntico o que a irmã afirmava no livro dela. Pronunciado pelo Paulo, aquele breve nome de duas sílabas surdas era tão cheio de música!

Música - acordes finais a sublinhar tantas notícias que (oh, que estranha coisa aquela!) em vez de adormentar saudades parecia torná-las de um tamanho que as não deixava continuar guardadas nos corações.

Reinava o sossego.

O que era raro, naquela casa. E não inteiramente agradável.

Em geral havia sempre uma voz, um riso, uma presença. De quando em quando a maior das confusões, no coral das vozes, dos risos, das presenças.

O Dr. Álvaro Abegorim estava habituado ao barulho que, se freqüentemente o incomodava, por outro lado quando deixava de existir, como agora, lhe fazia imensa falta. Por isso já duas vezes, com uma grande sensação de vazio a rodeá-lo, ele se erguera da secretária sobre a qual se inclinava no estudo atento de um qualquer processo para ir à porta do escritório espreitar a casa, procurando calor humano, proximidade de almas.

Na saleta só estava a irmã, absorvida na sua renda - pelo menos aparentemente. Das filhas, nem sinal.

À terceira vez, mais próxima da segunda que a segunda da primeira, não resistiu a perguntar: - As meninas ? Saíram todas ? - Não. - respondeu a tia Casimira. - Só saiu a Lili. As outras estão em casa.

O Juiz conformou se, aceitou o silêncio.

Silêncio que aliás não se eternizaria. Quebrou-o subitamente uma discussão que parecia travada no quarto dos armários. E era tão violenta que a tia Casimira parou de fazer renda e tratou de levantar-se para ir serenar os ânimos exaltados. É que a coisa de certo tinha importância, visto uma das que mais gritava ser a Rosarinho, normalmente a meiga e calma da família. A Rosarinho que, de olhos fuzilantes, insultava - positivamente insultava! - a Rita.

- A isso chama-se um abuso de confiança, sabe? Um autêntico abuso de confiança! E a menina não passa de uma atrevida, de uma gatuna!

Se a tia Casimira, prevendo-lhe a reacção, não agarrasse tão depressa nas mãos da Rita, a Rosarinho amargava aquela afirmação gravíssima.

- Gatuna! Ladrona!

- Maria do Rosário! - exclamou a tia, perplexa e severa. -Isso diz-se?

- Mas, tia - retorquiu a pequena, trêmula de ira, -eu digo a verdade! Ela é.

- Rosarinho? ?

- Eu explico, tia. Eu explico e depois a tia verá se tenho ou não razão.

- Mesmo que estejas cheia de razão, que transbordes razão, não deves exceder-te, ouves?

Rosarinho, rubra, defendeu-se:

- Eu talvez não deva, mas o que não acredito é que a tia, em sabendo porque foi que eu disse o que disse, não ache que se procedi mal tive para isso motivos mais do que suficientes!

A tia Casimira olhava agora para a Rita, esperando que esta tentasse interromper a irmã para se justificar, narrando ela o que sucedera.

Tal não acontecia, porém. A Rita estava de olhos perdidos no vácuo, lábios cerrados num arzinho cínico de que a tia não gostou nada.

E então, voltando-se de novo para a mais nova das sobrinhas, ordenou-lhe:

- Fala. Conta o que se passou.

- A tia sabe que a Lili fez há dias uma porção de compras?

- Sei.

- Entre essas compras, uma camisola de lã, estampada, muito bonita, que a Rita logo cobiçou.

- É hábito velho cá em casa vocês vestirem as coisas umas das outras.

- Eu não visto nada de ninguém! - protestou a Rosarinho.

E a Rita, confirmando o tal arzinho cínico que assumira:

- Por isso reage tão fortemente! Não o faz por virtude mas sim por despeito! Nada lhe serve. Nada lhe fica bem!

- Cale-se! -ameaçou a Rosarinho, de cabeça perdida. - Cale-se, quando não faço queixa ao nosso Pai!

O arremesso sarcástico de uma e a atitude indomável da outra deram à tia Casimira, ainda antes do conhecimento dos factos, a convicção de que Maria do Rosário tinha de certo inteira razão na atitude assumida, por mais condenável que se afigurasse no seu exagero exaltado.

- Meninas, acabem com a zaragata! Maria do Rosário, acalma-te. que eu quero saber o que aconteceu. Vamos, expõe o caso.

- Sim, tia. - e arquejando, a olhar a irmã de soslaio: -De facto, era costume as minhas irmãs trocarem tudo para meterem mais figura.

Mas a Lili, quando trouxe estas coisas novas, declarou que, pela parte dela, isso tinha acabado e que de aqui em diante não emprestava nada a ninguém. Pode ser uma atitude discutível mas ela está no seu direito e acabou-se! Ora a Rita não se conformou e disse logo à Lili que não aceitava a imposição. E vai, a Lili decidiu fechar tudo à chave. Meteu o que está pronto a ser usado, claro (as fazendas não!), nesta gaveta que pediu à Mãe que esvaziasse do que não lhe pertencia, e pumba, uma volta na chave e a chave fora E veja agora a tia o que a Rita fez. Andou a experimentar quantas chaves há cá em casa até descobrir uma que servia, abriu a gaveta e vim dar com ela a surripiar a tal camisola. A tia pode certificar-se da verdade. Ela tem-na escondida debaixo do casaco de malha. Diz que há-de levá-la amanhã às aulas só para se vingar da Lili. Foi por isso que perdi a cabeça. Não admito que uma das minhas irmãs pratique o que eu considero uma indignidade e pronto! O que a Rita fez é uma acção de...

- Basta. Rosarinho.

- Mas...

- Eu disse que bastava, minha querida. Não queiras perder a razão que te assiste.

Rosarinho suspirou fundíssimo. Depois pôs-se a alisar os cabelos com fúria, o que nela era indício de um grande esforço íntimo para conseguir o domínio de si própria.

Então a tia Casimira fitou a Rita, que não modificara a expressão desagradável, e exigiu:

- Dá-me a camisola da tua irmã.

Com uma sacudidela brusca, Rita puxou a camisola de sob o casaco e arremessou-a de tal modo que bateu num dos armários e foi parar ao chão. No mesmo impulso, virou costas e ia sair. Mas a tia deteve-a, agarrando-lhe num dos braços. E agora a sua voz soava autoritária e severa, sem vestígios sequer da doçura de que costumava estar impregnada:

- Apanha a camisola, Rita Isabel! Rita dobrou-se. Apanhou-a.

- Não atires com ela. Entrega-ma. A Rita entregou-a.

- E que nunca mais, Rita Isabel, nunca mais te lembres de abrir qualquer móvel com uma chave falsa. Que isto se não repita, pois não quero ter de envergonhar-me de uma sobrinha. - e largou-a. - Podes retirar-te.

Que sentimentos tumultuariam no coração de Rita, ao abandonar o quarto dos armários?

- Que rapariga esta, que rapariga! Que asneirenta! Ora para o que lhe havia de dar!

- lamentou a tia Casimira. Depois, estendeu a camisola a Maria do Rosário. - Arruma-a, filha. No sítio dela.

- com a chave que não é da gaveta?.

- Custa-te?

- Custa!

- Tens de fazer esse sacrifício - e sorriu.

- Em primeiro lugar para te redimires do muito que te excedeste não sabendo falar à tua irmã. Geralmente, em casos destes, as palavras servem de pouco. Valem mais os actos. Em segundo lugar para. repondo a camisola no lugar dela, evitares um conflito entre as duas.

Rosarinho, ainda rubra, com os olhos marejados de lágrimas, baixou o rosto.

- Sim, tia. - e dispôs-se a cumprir o que lhe era ordenado.

A tia Casimira retirou-se imediatamente, disposta a voltar à saleta, à sua querida renda. Mas parou no corredor, de ouvido atento.

Não podia duvidar. Alguém chorava, com fundos soluços. Seria a Rita? A Rita, com um rebate de consciência? A Rita, a penar pelo que fizera?

Deus, que bom seria!

E porque não havia de ser? Nenhuma das pequenas era má E quem não faz disparates?.

Mudou de rumo, dirigiu-se para o quarto das sobrinhas, pronta a afagar, a acalentar, a perdoar.

Estacou à entrada, numa imensa admiração. Não era a Rita quem chorava!

De bruços em cima de um dos estreitos beliches que lhes serviam de camas a Mirita, agarrada ao "lingrinhas" (o aparelhozito de rádio, seu amigo inseparável) como se este fora calado num acesso de desespero A Mirita naquele estado porquê ? Que teria acontecido? Avançou para a pequena, sentou-se ao lado dela, poisou a mão direita na cabecinha sofredora, acariciando-a.

A tia Casimira era assim. Dava conforto sem palavras. Não forçava a confissão com perguntas que em certos estados de alma só incomodam, só perturbam. Esperava que o desabafo surgisse como conseqüência natural do facto de a criatura se sentir protegida, tendo a certeza de que o silêncio se achava pronto para receber as suas palavras.

E realmente, a pouco e pouco, o choro de Mirita foi-se extinguindo. O corpo delgado deixou de se agitar ao ritmo dos soluços. Uma acalmia sucedeu-se, tão demorada que outra pessoa que não a tia Casimira imaginaria que a rapariguinha se deixara dormir, no cansaço da mágoa padecida.

Algum tempo decorrido, Mirita moveu-se. Depois voltou-se, agarrou na mão da tia, na mão que a acarinhava, e apertou-a ao peito. A seguir poisou no rosto amigo os olhos de pálpebras inchadas e murmurou:

- Ó tia Mira! como eu sou infeliz!

A tia continuava à espera.

- Tão infeliz, tia! Imagine que o Zé vai-se embora! O Zé vai-se embora. vai para África ter com o Pai. Oh, tia!

Só então a tia falou. Para dizer, com entono singular:

- Mas eu supunha que ele já não te interessava, Mirita! ? Pensava que havia outro rapaz no teu coração!

- Oh, tia, é horrível! Eu não entendo nada disto, eu estou desnorteada, eu - e, bruscamente, sentou-se na cama, largou a mão da tia e juntou as dela num gesto de prece indagando ansiosa: -Tia Casimira, será possível gostar de dois rapazes ao mesmo tempo?

A tia pareceu reflectir. Depois volveu-lhe:

- Bom. gostar primeiro de um e de outro depois. é tudo quanto há de mais natural. Agora de dois ao mesmo tempo acho que não, querida!

- Pois eu, tia gosto de dois!

- Mas de quais dois?

- Deles dois! Do Zé e do Antônio!

- Do Zé Chaves e do Antônio Fontemora ?

- Sim - e fungou.

- Não acredito!

- E no entanto parece-me que não há nada mais verdadeiro! Eu, ao princípio, tambem não entendi mas agora sei. agora... agora tenho a certeza!

- Mirita. pode lá ser?

- Pode vai ver que pode! - e começou a explicar: -Eu gosto mesmo do Antônio. Julgava que o Zé deixara de me interessar! Mas depois, quando ele falou comigo. e me disse que ia partir fiquei... fiquei como uma pessoa engasgada. Uma coisa aqui na garganta não passava. Prometi que ia pensar. Estou farta de pensar. Acordo de noite a pensar.

- E então ? Chegaste a alguma conclusão ?

- Hoje! Ele tinha-me garantido que não se ia embora sem se despedir. A passagem estava reservada para daqui a quinze dias, nessa altura faltavam quase três semanas. Esta manhã apareceu-me na Faculdade a participar-me que parte mais cedo. Diz que não agüenta nem quer agüentar esta situação e que prefere renunciar de vez.

- Considero óptima, a decisão. Ficas só com um, que é o correcto.

- Mas eu. eu tenho estado aqui a tentar perceber o que realmente se passa no meu coração e e...

- E ?

- E descobri que não posso viver sem ele!

- Sem o Zé Chaves?

- Sim.

- Pois comunica-lhe o facto e fica o assunto arrumado!

- Não fica, não, tia!

- Não fica?

- Não.

- Porquê, Mirita?

- Porque também não posso viver sem o Antônio!

A tia debruçou-se para ela.

- Filha, quero que olhes bem a direito para mim. Bem a direito! Ora vá Deixa-me tentar encontrar, nas tuas pupilas de rapariga honesta e consciente, o caminho da tua alma. Isso mesmo, assim. E agora, escuta - afirmas que não podes viver sem eles, não é? Pois eu asseguro-te que até podes viver sem ambos!

- Oh, não!

- Oh, sim!. De resto, o que em ti se apaixonou, ou está apaixonado, é a imaginação. E os amores da imaginação são pueris e fictícios. Nada adquire solidez nem profundidade. Ora vamos analisar a situação e tentar compreender as coisas, tais como se apresentam. Tu conheces o Zé Chaves há muito tempo e acostumaste-te a ele. O Zé tornou-se uma pessoa habitual na tua existência, tão habitual que em dada altura te cansou. Porquê?. Porque ele preenchia um espaço superficialíssimo. Nunca ocupou um lugar dentro do teu espírito. Não quis ocupá-lo, possivelmente por te considerar uma espécie de porto de abrigo, com toda a segurança dos portos de abrigo. Cansado de andar lá por fora, ele chegava e ficava até a faina recomeçar. Aconteceu, porém, que o temporal, certo dia, invadiu o pequeno porto e a desordem sobreveio. Presentemente tu estás debaixo da agitação dessa mesma desordem.

- A tia... a tia quer dizer que o Antônio Fontemora foi o temporal?

A tia voltou a sorrir:

- Mais ou menos. E o Zé Chaves só se apercebeu do perigo que corria quando viu perturbada aquela paz sem interesse que vocês andavam a viver. Mas, em relação a ti, suave porto de abrigo, o temporal não passou de uma novidade excitante. No fundo principiaste a sentir saudades da paz à qual julgavas não ligar importância.

- Não é assim, tia! - conseguiu articular a Mirita.

- Não é assim?

- Não, porque a tia sabe a maneira como o Zé lidava comigo. -e prestes a recomeçar a chorar: -Foi isso o que me fatigou, tia. Não foi a paz, não. porque não chegava a haver paz. Pelo contrário! Eu vivia num sobressalto constante pela ignorância de tudo o que me esperava. Compreende?

A tia Casimira aquiesceu.

- Compreendo! E, compreendendo, pergunto-te- a que conclusão chegas?

- à de que, se o Zé se vai embora eu fico louca de dor. Mas. mas se fica o Zé e for o Antônio eu também não agüento o desgosto!

- Como não podes casar com os dois, precisas de escolher um deles.

- Eu sei e era isso que eu queria. Mas não sou capaz, tia Mira. Não sou capaz!

A boa Senhora, de lábios um pouco franzidos, reflectia. Momentos volvidos, inquiriu:

- Mirita, se o Antônio Fontemora deixasse de te ler os seus versos, ou de fazer versos, continuaria a agradar-te?

- Como, tia?

- Sim, achas que se ele não fosse poeta. tu continuarias a suportar com dificuldade a ausência dele? Mirita, tu gostarias do Antônio sem a emoção dos poemas dele a ligá-lo a ti?

- Ignoro-o, tia!

A resposta era franca, mas não esclarecia.

A tia Casimira, mais preocupada do que desejaria sentir-se, ergueu-se, deu uns passos pelo quarto.

Soou à distância a campainha da porta da rua. Nem a tia nem a sobrinha lhe ligaram a mínima importância.

Parada junto da janela, a tia prosseguia:

- Se a indecisão em que te encontras é realmente assim tão grave julgo que não tens qualquer possibilidade de resolver sozinha. Precisas de ajuda.

- E que espécie de ajuda, tia?

- Bem um empurrãozito do Destino! Um empurrãozito do Destino obrigava-te a tomar balanço numa direcção, seja ela qual for. Necessitas de um sinal que te marque o caminho.

No limiar do aposento surgiu a Sofia.

- Sr.a Dona Casimira?

- Sim?

- O menino Zé Chaves pergunta se podem recebê-lo. Diz que vem despedir-se.

Pois.

POIS!

O Zé Chaves viera para despedir-se. Mas pusera-se à conversa com a tia Casimira e com a Mirita, a conversa demorara, depois juntara-se-lhes a Rosarinho, a seguir a Rita - que não acusava quaisquer sinais da tempestade de horas antes - depois apareceram a Lili e Dona Teresa Mafalda (Lili regressada do emprego e Dona Teresa Mafalda de compras para a casa) e por fim saiu do escritório o Dr. Abegorim a passar a mão pela testa num sinal de cansaço autêntico.

E ficaram todos tão entretidos numa troca de impressões amena que se espantaram quando a Sofia surgiu, naquele jeito permitido pela longa vida de convívio, a perguntar:

- Mas então hoje não se janta cá em casa? O Zé Chaves pôs-se de pé, algo confuso.

- Peço imensa desculpa de me ter demorado tanto. Eu vinha só para despedir-me.

- Ah, sim? E então para quando essa partida? - inquiriu o Dr. Juiz, a inteirar-se por fim da situação.

- Depois de amanhã, de madrugada. - e o rapaz estendia a mão para o primeiro adeus. à tia Casimira.

E a tia Casimira prendeu nos dela os dedos dele.

- Tu podias jantar connosco! Se é que o jantar chega!

A cunhada sorriu, encarando a Sofia.

- Disso, ela é que sabe!

- Ó minha Senhora, claro que chega! e a desandar: - vou já pôr mais um lugar na mesa.

A Lili, que estivera distraidíssima, sobressaltou-se:

- Mas esse serviço hoje compete-me a mim.

- Ó menina, deixe-se estar que eu trato de tudo!

O Dr. Abegorim franziu a testa mas não disse nada (aquela mania de aliviarem as meninas!) porque o Zé Chaves, sem ponta de sinceridade, diligenciava escusar-se ao convite:

- Eu agradeço muito, mas é melhor não ficar, vai ser um incômodo!

- Incômodo nenhum! Temos o maior prazer.

Falara Dona Teresa Mafalda.

O rapaz olhou de soslaio para a Mirita. Na luz verde das íris imensas, um pedido irresistível- fica!

E ele:

- Então como não sei quando voltarei nem se voltarei aceito! Mas, se me permitem, vou telefonar aos meus avós, para que não se aflijam com a minha demora.

A Rita não susteve um remoque:

- Modificaste-te muito! Não costumavas preocupar-te com as aflições nem dos teus avós nem de ninguém!

- É certo, Rita. Tenho-me modificado bastante e em muita coisa!

- O telefone está no corredor! - preveniu a Rosarinho, gentil.

- Obrigado. Saíram todos da sala.

À frente, Dona Teresa Mafalda. Depois, o marido. A seguir, a tia Casimira. As pequenas iam atrás, em fila indiana, com a Mirita em último lugar.

A Mirita em último lugar.

Em último lugar e a atrasar o passo. A atrasá-lo cada vez mais. A atrasá-lo tanto que ainda estava próxima do Zé quando este começou a marcar o número de casa dele.

A família desaparecera na sala de jantar.

E ela não conseguia distanciar-se. Não conseguia!

O coração batia-lhe descompassado; um suor frio descia-lhe pelas costas abaixo; uma angústia desmedida avassalava-a, prestes a extravazar num grito Num grito que ela começava a ter a certeza de que ia soltar; um grito que se ouviria em todo o prédio e talvez na rua.

O rapaz ao telefone, mais atendia do que falava. Ele, que fizera a ligação para comunicar algo, estava a receber uma qualquer notícia que o perturbava visivelmente e cada vez mais.

A custo, ia balbuciando:

- Sim, sim, sim.

E ao mesmo tempo que dizia sim, a sua mão direita estendia-se para Mirita e a mão direita de Mirita oferecia-se à dele. As duas ficaram por fim estreitamente apertadas.

Quando ele desligou, olhou-a. Ela não o desfitara, em todo aquele tempo.

Então, emocionado, o Zé Chaves tartamudeou:

- Mirita. sucedeu uma coisa espantosa. Espantosa! Já não parto! O meu Pai acaba de telefonar aos avós a suspender a minha ida porque decidiu vir. Vem aí, Mirita! O meu Pai vem aí! Chega daqui a cinco dias!

E agora não era a mão dela presa na dele, mas ela fechada como o mais precioso bem da vida nos braços dele.

Mirita, rosto apoiado no ombro do noivo

- Noivo, Noivo, Noivo! - sentia vontade de rir e de chorar.

O sinal. O empurrão do Destino. O caminho apontado.

A Sofia, da porta da cozinha, mirou-os surpreendida. Mas não fez qualquer observação. E seguiu, corredor fora, com a terrina da sopa.

Então a rapariga obedeceu ao gesto que a alma lhe ditava. Ergueu-se nos biquinhos dos pés e apoiou os lábios na face dele.

- Mirita, casas comigo ? - perguntou o Zé, a tremer.

- Caso!

- E tens a certeza de não te arrependeres?

- A alegria que acabo de sentir por ficares mostra-me que é de ti que eu gosto e gosto para desejar viver ao teu lado para sempre!

Entraram na sala de jantar de mãos dadas. O Dr. Juiz viu e disfarçou.

Dona Teresa Mafalda viu e pasmou.

A tia Casimira viu e sorriu.

As irmãs viram e riram.

Riram as mais novas - a Rita e a Rosarinho. A Lili não riu. A Lili fez um enorme esforço para não chorar.

Oh, não! Não com inveja, ao reconhecer que a Mirita acabava de encontrar o rumo que ia levá-la à felicidade ambicionada. Mas com pena.

É que se tornava cada vez mais doloroso pensar que só o Júlio não tinha cabimento na família.

Há coisas que as pessoas fazem sem saber porquê, sem nunca encontrarem para elas qualquer espécie de justificação. Até porque entram no domínio do absurdo.

A Rosarinho não costumava andar na rua de cabeça no ar, pelo contrário. Tinha uma maneira muito característica de avançar a direito no seu caminho, sempre a olhar em frente, tão obstinada e fixa que não via nada nem à direita nem à esquerda, o que levara a Mãe a dizer-lhe um dia, a propósito de ela não haver falado a umas pessoas conhecidas com a razão única de que as não vira (passando ombro a ombro!) "a menina parece que usa vendas como os burros "

Podia a comparação não ser lisonjeira (ela rira-se, claro!) mas estava bem feita.

De resto a Rosarinho adoptara aquela forma de circular desde que uma vez, no jardim perto da casa dela, que ficava entre o Liceu e a rua onde morava (um jardim que bem bom era que fosse devidamente policiado, pois não fazia sentido que sendo ponto de passagem de raparigas - ou devendo sê-lo - acoitasse tantos malfeitores) fora vítima de uma grande má-criação de um ordinário qualquer. Como nesse dia se persuadira, com lógica, de que se não tivesse olhado não tinha visto, esforçara-se a partir daí por não ver senão o que lhe surgisse mesmo diante do nariz. E conseguira que a aturada diligência se volvesse em hábito.

Só virava a cara para a esquerda e para a direita quando atravessava as faixas de rodagem, claro E nunca olhava para o ar.

Pois naquela segunda-feira (na véspera não soubera do Pedro) parada no passeio em frente da casa à espera de que os carros em fila a deixassem passar, olhou para o ar!

E, olhando para o ar, viu.

Viu as janelas do andar dos Macedos todas escancaradas!

E do mais profundo do seu ser elevou-se uma certeza que era alegria, alegria de tal maneira vibrante que nem sequer lhe permitiu reflectir para avaliar das possibilidades da crença súbita e dominadora. Certeza concretizada numa afirmação:

- Voltaram!

VOLTARAM!

Naquele voltaram havia um mundo maravilhoso a aguardá-la.

Achavam-se ali de novo a Rosinha-Mãe, a Ana Maria, o Dr. Rui Manuel, o Rumané, a Maria Rosinha Todos. Todos! Incluindo o Pedro.

E agora, quando se cruzassem à porta da rua, conversariam. E subiriam juntos no elevador. E ela podia chamá-lo da janela e, sobretudo, ver de cima a bela cabeça e admirá-la tanto quanto quisesse, porque admirar o Pedro, ver o Pedro, era uma das lindas coisas da vida!

Custou-lhe a dominar-se para não largar a correr pelo meio dos automóveis que subiam e desciam velozes.

Depois, sem pensar sequer no quanto iria afigurar-se insólita a sua aparição naquela casa onde nunca entrara (bom, a ida lá na noite do assalto - noite-princípio de tanta coisa extraordinária! - não contava) precipitou-se, transpôs a porta. Em dois saltos chegou junto do elevador, que estava em baixo. com o coração aos pulos carregou no botão para o 2. ? andar.

Saiu do elevador tão eufórica que nem lhe fechou as portas - o que pouco depois bastante arreliaria a Rita, a chegar para o almoço e a ter de subir pelos seus próprios meios

Diante da porta do lar dos Macedos, premiu o botão da campainha com repetidos toques. E enquanto aguardava tentava imaginar quem viria abrir. A Ana? A Laura? A Rosinha-Mãe? Ou o próprio Pedro?

Foi um bocadinho longa, a espera. Deu-lhe tempo para visionar a cena, ou melhor, as cenas.

Se fosse a Ana, agarrar-se-ia a ela.

Se fosse a Laura, dir-lhe-ia "por favor, deixe-me entrar que morro de saudades! "

Se fosse a Rosinha-Mãe, cair-lhe-ia nos braços a chorar de emoção.

Se fosse o...

A porta descerrou-se.

Enquadrada no rectângulo claro, com o sol do meio-dia a entrar pela casa dentro, uma Senhora de idade, encantadora - a avó Teresa, pronto! - fitava-a sorridente. Conhecia muito bem a menina mais nova do andar de cima.

Enquanto a Rosarinho abria os olhos num pasmo desmedido - aquela presença não a visionara, não! - a avó Teresa perguntou:

- Deseja alguma coisa, minha filha? A pequena gaguejava:

- Eu? eu... bem... eu -e depois, procurando mostrar boa educação: -Eu só queria dar um beijo à Ana Maria!

E a boa Senhora, sem perceber coisa alguma (nunca lhe parecera que a garota fosse tonta!):

- Isso também eu, queridinha. Mas não posso senão mandar os meus beijos por carta tal como as minhas saudades.

Maria do Rosário estava completamente desorientada.

- Mas então ?

- Como?

E ela, na ânsia de decifrar o enigma da casa silenciosa, não resistiu à tentação de dar um passo em frente.

- Eles não estão cá?

- Há muito tempo! -e a avó Teresa, no seu íntimo, principiava a convencer-se do que jamais fora suspeita. As aparências enganam! Na verdade, como supor que aquela rapariguinha tão doce de aspecto, sempre tão composta em suas atitudes, fosse desaparafusada? E como admitir que a família a deixasse andar sozinha?

Na sua expressão divisavam-se os pensamentos que a invadiam.

Rosarinho estava demasiadamente confusa para entender o ar da avó do Pedro. Dentro dela, porém, ia surgindo a noção de que devia explicar a sua atitude sem dúvida estranha. Noção ainda muito débil, muito sem forças para lutar contra o desalento enorme que a avassalava ao aperceber-se de que a imaginação a tornara vítima de um logro.

Teve uma derradeira insistência:

- Mas eles não chegaram esta noite? esta manhã?

Dona Teresa de Macedo retraía-se.

- Por que haviam de ter chegado? Então Rosarinho encostou-se a uma das ombreiras da porta. Desabava agora sobre ela a consciência de que devia fazer algo para se redimir de uma acção transbordante de ridículo.

- Oh, minha Senhora, desculpe! - balbuciou, com os olhos rasos de água. -Foi um disparate meu! Vinha do Liceu. (ando só um ano atrás da Ana Maria, o ano de idade que tenho a menos do que ela) levantei a cabeça por acaso e vi as janelas abertas de par em par e pensei "voltaram! estão em casa!" Desculpe-me, sim?

Também a avó Teresa se sentia arrependida dos juízos feitos. Claro que não se podia nem sequer chamar tonteira ao que não passava de uma ingenuidade. Aliás, a suposição da garota não era tão tola como podia parecê-lo à primeira vista! Pois não era admissível um regresso inesperado ?

E foi toda ela desejo de compensar a Rosarinho do injusto conceito formulado.

- com certeza, filha, entendo perfeitamente Mas na verdade e por muita pena que isso nos cause a todos, a ausência continua. e nesta casa só estou eu! Fiquei encarregada de a limpar, de a arejar, principalmente. Ainda cá não tinha vindo. durante o Inverno não valia a pena, não é?. Hoje, como amanheceu de sol, achei conveniente fazer o que me compete. Porque eu sou...

Maria do Rosário, mais à vontade já, mais tranqüila e estabilizada, atalhou com vivacidade:

- É a avó Teresa, a Mãe do Sr. Dr. Macedo, eu sei!

A avó sorriu:

- Conhece-nos a todos, não?

- Conheço.

- Não admira! Moram aqui há tantos anos.

- Imensos! Tantos que me lembro perfeitamente do Rumané de bibe e do Pedro de calções.

A avó Teresa percebeu, pelas inflexões da vozinha cariciosa, que havia muitas saudades contidas naquela rapariguinha que nunca fora visita ali de casa mas que evocava os seus queridos como se os conhecesse tão bem como ela própria. Muitas saudades. Quase tantas como as que a alagavam.

E, de chofre, a avó Teresa reconheceu que seria bem agradável para ambas conversarem acerca deles, falarem deles, ocuparem-se deles, enchendo com nomes, factos, sentimentos, o lar vazio da sua presença mas repleto da sua autenticidade.

- Quer entrar, queridinha ? Podemos entreter-nos as duas um bocadinho recordando-os, quer?

Rosarinho hesitou, embora desejosa de aceitar o convite.

- Receio incomodar. São horas de almoço!

- Para mim, não! Antes de sair de minha casa tomei uma refeição ligeira, a fim de poder ir ao cabeleireiro quando for daqui, por volta das quatro horas. Por isso até me faz companhia. Ajuda-me a passar o tempo. Agora a filha não sei. ?

A ela, foi-lhe impossível resistir.

- Para mim ainda não é tarde!

Não tardaria a sê-lo. Mas ela gostava tanto, tanto!

E viu-se, junto da avó Teresa, no lar dos Macedos.

Uma infinita doçura invadia-a, deslumbrava-a.

Avançava com passinhos cautelosos, como se entrasse num santuário. Ou antes - como se estivesse a penetrar num palácio de conto de fadas, num desses maravilhosos contos de fadas que ela adorara na infância.

A avó Teresa notou-lhe o sorriso, tão luminoso que irradiava. E ficou sensibilizada.

- Pelos vistos gosta muito dos meus netos?. - observou, enquanto se sentava numa das poltronas da sala e indicava à Rosarinho a outra em frente, entre a janela e o armário-bar.

E a Rosarinho, bem do coração:

- Muito!

- Mas a menina - a menina é a Rosarinho, pois é?

- Sou!

- A menina nunca se deu com eles, pois não?

E a mais sensível das filhas do Dr. Abegorim, a deixar surpreendida a avó do Pedro:

- Às vezes gosta-se mais das pessoas que se admiram do que daquelas que ao nosso lado só servem para nos tornar infelizes ou para nos aborrecerem.

Dona Teresa de Macedo contestou:

- Por Deus, Rosarinho, não creio que essa seja uma frase apoiada em experiência pessoal! Não tem nem idade nem situação para se sentir desiludida!

- Ah, não! Claro que não! Mas leio muito.

Analiso as coisas que oiço contar. E penso! E é por pensar que acho possível gostar muito das pessoas sem se conviver com elas.

- Às vezes gosta-se de ilusões e as ilusões desfazem-se, filha.

- Há pessoas que nunca podem desiludir, S'Dona Teresa. A família Macedo, por exemplo não lhe parece?

- Parece. A mim, parece. Mas enfim eu vejo-os de uma maneira muito especial. O meu sangue corre-lhes nas veias.

- Isso não significa nada. O meu Pai costuma dizer que não é o sangue que faz o amor. A prova está em que, freqüentemente, as famílias não se entendem, não se ligam Dá a impressão de não existirem afinidades espirituais. A propósito disto o meu Pai até diz ainda mais - afirma que o amor vem da convivência, o que justifica esse que une um rapaz e uma rapariga quando se tornam casal.

A avó Teresa continuava a sorrir. A pequena falava com clareza. E embora as idéias fossem do Pai ela expunha-as com tanta convicção que lhes transmitia o calor da sua própria maneira de pensar. E tanto assim era que ela logo exclamou, em vibração crescente:

- Repare, S'Dona Teresa, que a confirmar o que eu disse, há o Pedro!

A Senhora, de relance, não viu nenhuma espécie de ligação.

- O Pedro?. O Pedro como e porquê?

- Então. o Pedro, na convivência, corresponde inteiramente à idéia que se forma dele!

- Aah? Nesse caso a Rosarinho convive com o Pedro?

- Há poucochinho tempo. Há muito poucochinho tempo! Tudo principiou naquela noite de Carnaval, com a história do assalto.

A avó Teresa não sabia nada da história do assalto e a Rosarinho teve de lha contar, tim-tim por tim-tim, desde a descoberta das luzes avistadas de casa do Eng. ? Fontemora pela filha, a Alicinha, até ao cerco montado por decisão do Juiz Abegorim- o que a fez rir a bom rir.

E assim chegou a pequena à explicação necessária: - Foi a partir daí que o Pedro se aproximou um bocadinho de nós. Já lá almoçou em casa, de vez em quando telefona-me e tem ido buscar-me ao Liceu.

A avó do Pedro mergulhou as suas pupilas subitamente cheias de compreensão nessas outras cheias de candura.

- Ah, sim, Rosarinho entendo. Entendo! Sim, estava a entender perfeitamente. Tão perfeitamente que na inteligência receptiva do seu olhar principiou a haver uma profunda preocupação. Tão profunda que se tornou acerada a prescrutar o azul cobalto dos olhos da garota.

O Pedro. o Pedro estaria consciente dos seus actos?

Sob o peso daquela atenção que a não largava, Maria do Rosário, conquanto não abarcasse o que exactamente a motivava, sentiu-se talvez. sim, sentiu-se atrapalhada. É que reconhecia haver feito uma confissão importantíssima, reveladora do que principiara a existir entre ela e o Pedro.

Tão nítidas como se estivesse a escutá-las naquele preciso momento recordou as palavras ditas pelo rapaz nessa manhã de luz e esperança "Maria do Rosário, o teu destino, creio vai estar aqui. Há qualquer coisa a advertir-me de que está aqui" -e o aqui era a mão dele, longa e firme.

E porque se tornava demasiadamente forte o seu desejo de as repetir a Dona Teresa de Macedo, percebendo que o não devia fazer porque aquelas palavras - fossem muito embora o seu tesouro! - não eram só dela, diligenciou fugir à interrogação das pupilas atentas a que a sua alma quereria responder sem reservas. Uma única hipótese - não consentir que a avó do Pedro lesse os seus pensamentos!

Para isso, negar-lhe a própria transparência!

Suspirou. Virou a cara. Pôs-se a mirar tudo o que a cercava, em busca de algo que a ajudasse a fugir ao assunto, que impedisse que ela cedesse às duas pressões que se ligavam entre si - a interna e a externa - e acabasse por se ajoelhar diante da velha Senhora a confidenciar-lhe "adoro o Pedro, adoro o Pedro, adoro o Pedro!"

Uma afirmativa talvez ainda extemporânea, deslocada no momento, capaz de levar quem a não conhecia a supô-la desmiolada.

E a sua procura ansiosa, necessária, foi coroada de êxito.

Qualquer coisa no chão, junto a um dos pés do armário-bar, reteve-lhe justificadamente a atenção.

Essa qualquer coisa, aliás desdobrava-se em duas distintas - a primeira era uma caixita rectangular, uma caixita como em geral são as das ourivesarias; a segunda, presa a uma fita, uma medalha amarelada que parecia de oiro.

Antes que Dona Teresa de Macedo pudesse admirar-se com o gesto impulsivo, Rosarinho dobrou-se e logo mostrou nas mãos abertas a caixa e a medalha, a medalha onde havia letras gravadas de ambos os lados, letras que eram palavras, palavras que se ofereciam à curiosidade da pessoa menos curiosa deste mundo.

Numa face, um nome em letras grandes Bom. Na outra, em letras pequeninas -dos Macedos de São Boaventura agradecidos pelo salvamento do Salta-Pocinhas.

Repetiu a leitura das frases que sabiam a enigma. Depois, liberta do que pouco antes a oprimira, solicitada por um interesse novo, ergueu o rosto para a avó Teresa. E a avó Teresa parecia ou comovida ou muito distante no tempo.

Durante minutos nenhuma falou. Depois, Rosarinho não resistiu a perguntar:

- O que quer isto dizer, S'Dona Teresa? A Senhora estendeu para ela a mão direita, num pedido silencioso que a pequena compreendeu perfeitamente. E a medalha ficou na palma daquela mão que tremia, sob um olhar que era uma verdadeira carícia.

Por fim Dona Teresa de Macedo suspirou e disse:

- Isto, Rosarinho, quer dizer que um dia, há longos anos já, aconteceu uma coisa linda!

- Que significa esta palavra bom?

- bom era o nome de um grande cão da serra da Estrela de que os meus filhos se tornaram donos quando compraram a Quinta de São Boaventura.

- Ah? Um cão muito grande que costumava estar lá em baixo na varanda? - recordou-se a pequena. -Bem sei! Depois um dia nunca mais se viu.

- Voltou para a Quinta. A minha nora e o meu filho reconheceram que o animal, nado e criado em liberdade, por mais estimado e amimado que aqui fosse, se sentia profundamente infeliz preso às grades da varanda.

- E porque é que ele não podia andar à vontade dentro de casa?

- Porque era um bicho enorme e por onde passava, coitado, só fazia estragos. O simples balançar da cauda emplumada provocava acidentes. Por isso de novo o levaram para o mundo dele.

- E o que é que a medalha significa ?

- Justamente o que a frase deixa transparecer - gratidão. - e sem indagar se ela queria conhecer o motivo dessa mesma gratidão, porque na menina tudo era uma ânsia evidente de saber, contou: -Um dia, há bastantes anos, um garotinho travesso lembrou-se de fazer habilidades à beira de um grande tanque de regas, longe das vistas dos Pais que andavam a passear descansadamente pela Quinta acabada de comprar, a Quinta que os deslumbrava.

- A Quinta de São Boaventura ?

- Exactamente! Pois o garoto travesso não fazia a mínima idéia do perigo que corria e podia ter morrido! E aquela manhã luminosa transformar-se-ia numa das mais escuras manhãs para uma família feliz. É que, em dada altura, a criança escorregou e...

- E caiu à água?

- Caiu à água.

- Foi o Pedro ? - e indagou-o alarmada como se, a ser o Pedro, este ainda estivesse em risco de se afogar.

- Não, foi o Rumané.

- E salvou-se?

O quesito, agora, era pateta. Pois se o Rumané existia, graças a Deus!.

Mas nem a Rosarinho nem a avó Teresa pensaram nisso, visto que a resposta se adaptou à pergunta.

- Sim, filha, salvou. E salvou porque Nosso Senhor pusera a trotar atrás do Salta-Pocinhas (chamavam-lhe Salta-Pocinhas porque ele, em pequenino, se ia na rua em dias de chuva tinha de saltar todas as pocinhas que avistava) aquele canzarrão lanzudo e sujo que os recebera hostilmente no dia da chegada à Quinta e afinal veio a mostrar-se o melhor bicho que havia! - e sorrindo à lembrança querida. Sabe o que veio a minha neta a dizer, tentando encontrar explicação para os factos?

Rosarinho limitou-se a mostrar a sua total ignorância abanando a cabeça.

Que fora o Anjo da guarda do Rumané que se metera no corpo do Bom. Realmente, as coisas passaram-se de forma impressionante! Os meus filhos e os pequenos mais velhos só se alarmaram, dando fé do desaparecimento do catraio, quando ouviram os uivos lancinantes do cão. Ao que se supõe, o Bom, quando viu o petiz sumir-se nas águas, atirou-se e conseguiu, puxando-o pelas roupas, atravessá-lo na borda do tanque, com o que o salvou da morte certa. E foi depois disto que o Pedro teve a idéia de condecorar o Bom! O meu filho mandou fazer esta medalha, que prendeu à coleira do Bom. Usou-a até morrer. - e num saudosismo crescente: -Lembro-me tão bem de ouvir contar a cerimônia da condecoração! O banho que lhe deram acho que foi a coisa mais engraçada! -de súbito, pôs-se a rir: -Por causa disso houve depois uma história divertidíssima. De resto, São Boaventura foi, e é, um repositório de coisas maravilhosas. - e encarou-a. -Peça ao Pedro que lhe conte. Ele vai gostar de recordar tudo isso ao pé de si, tenho a certeza. levantando-se, afagou docemente a testa lisa da rapariguinha, os longos cabelos doirados. E acrescentou: -Não estou a mandá-la embora, querida. Mas já passa da hora e meia e em sua casa são capazes de estar preocupados com esta demora, palpita-me que fora do habitual. Rosarinho concordou plenamente.

- Ah, sim! Fora do habitual!

Ergueu-se e, estendendo a face à avó Teresa, disse, com toda a sua sinceridade à flor do rosto:

- Vou-me embora mas com pena. E Dona Teresa de Macedo:

- Com pena porquê?

- Porque me sentia tão bem ao pé de si!

- E não será melhor, nesse caso, em vez de levar pena, levar alegria por me ter conhecido?

Então Rosarinho não se conteve. Num gesto ditado pelo coração, lançou os braços ao pescoço de Dona Teresa, apoiando-lhe num dos ombros a cabeça com aquela ternura que ela nunca dera a ninguém, a ternura pertença exclusiva dos avós - e ela nunca os tivera!

Dona Teresa de Macedo retribuiu o gesto da menina também espontaneamente. Soube-lhe bem ter encostada a si, frágil e suave, a figurinha que, pela atitude, lhe fazia lembrar a ausente, a sua Ana Maria.

E então, docemente, proferiu:

- Sabe, Rosarinho ? Eu também às vezes me sinto muito só. É difícil a certas pessoas viverem com os braços vazios. Sobretudo quando se tem a noção desse mesmo vazio. Eu faço os possíveis por aceitá-lo, por saber aceitá-lo. Tentar não pensar no que nos magoa é a única solução para Suportar. Mas há momentos de fraqueza e desânimo. Quer preenchêlos sendo durante eles a minha neta?

A resposta foi curta. Não havia, porém, outra mais expressiva.

- Sim, Avó Teresa!

Acabavam de se adoptar uma à outra.

- Olha lá, ó Pedro! ?. E o Pedro olhou.

O Paulo, que estivera horas absorvido no minucioso estudo de uma complicadíssima rede de nervos - fiozinhos brancos dispersos num emaranhado de outros de várias cores (isto na estampa do calhamaço para o qual se debruçava, claro!) - fitava agora o amigo como se estivesse a ver qualquer coisa de sensacional. Tinha mesmo o rosto impregnado de um ar de descobridor. E como parecia logicamente impossível descobrir o que quer que fosse numa coisa mais do que sabida -a não ser algum incrível erro de palmatória nas deduções ou na grafia - o Pedro, obedecendo à intimativa, logo olhando-o, aguardava uma explicação.

Aconteceu, porém, que em lugar da explicação surgiu uma pergunta.

- Onde é que tu tens a Crônica ?

O outro pestanejou. Nem sabia a que crônica se referia o Paulo nem compreendia o quesito. E, preocupado com o estado mental do amigo (há quem afirme que o muito estudar prejudica, não é?) redarguiu-lhe com uma outra interrogação:

- Tu. tu sentes-te bem? Não estarás febril?

O Paulo percebeu imediatamente o que o Pedro pensara e largou a rir.

- Homem, não te assustes, que me sinto perfeitamente! E é senhor dos meus sentidos e do meu juízo perfeito que volto a inquirir - sabes por acaso da Crônica?

- Mas que Crônica ?

- A crônica de São Boaventura, escrita por Artur Xavier de Sá! Já entendes ou ainda não?

O Pedro, percebendo enfim, fez coro com ele, rindo. Depois, - rectificou:

- Escrita não! Começada.

- Seja começada! De qualquer maneira, onde estará?

- Algures na minha casa. - e verdadeiramente surpreendido com o inesperado interesse por uma coisa já tão antiga na vida deles:

- Eh, pá mas a que propósito te lembraste agora da Crônica?

- Recordas-te por acaso do apelido dos antigos donos da vossa propriedade?

- Não. Sinceramente, não!

- Qual é o apelido do Dr. Juiz?

- Abegorim.

- Pois Abegorim! - e fitando-o de testa muito franzida pelo esforço empregado num laborioso raciocínio: -E o nome. Abegorim, não te diz nada ?

Pedro esticou os lábios, num trejeito de ignorância. Semicerrou os olhos, a pensar. Depois abanou a cabeça.

- Não!

- Não? . Pois a mim, diz! De repente, confesso que sem saber porquê, a meio deste estudo de nervos que baralha os meus soltou-se este nome como que numa faísca. E com um som familiar um som que tem nele reminiscências. Abegorim. A-be-go-rim É como se o tivesse lido, não sei onde nem quando, mas lido realmente. percebes?

- Se calhar em algum jornal a encabeçar a notícia de qualquer falecimento!

O Paulo estava muito sério.

- Não gracejes, Pedro. Asseguro-te que a recordação vem de longe no tempo. A recordação está funda dentro de mim. Tem raízes!

- e voltou a sorrir, de olhos perdidos no vago.

- No fim de contas era bem engraçado!

O Pedro, apesar da sua tão apregoada inteligência, não atinava.

- Engraçado, o quê?

- Que fosse o mesmo apelido! O apelido dos velhos Senhores de São Boaventura. Por isso te perguntei pela Crônica. Gostava de uma certeza.

O Pedro, finalmente, alcançara o objectivo de todo aquele fraseado. E como não se importava nada de ter um motivo para ir a casa, alvoroçou-se.

- Homem, vamos procurar a crônica de São Boaventura!

- Começada por Artur Xavier de Sá. Ferreira, embora ele não assine o nome!

Riram, jovialmente despreocupados, quase felizes um e outro.

Estavam livres, não precisavam de esperar. Haviam almoçado pouco depois do meio-dia e meia-hora, por necessidade pessoal do Dr. Ataíde Lemos, que tinha de ir a um julgamento fora de Lisboa.

Assim decidiram actuar imediatamente.

E quando a porta da casa dos Macedos se abriu para dar passagem à Rosarinho, saíam do elevador o Pedro e o Paulo.

O espanto foi colectivo. Ficaram todos quatro (com a avó Teresa!) surpreendidíssimos, sem entenderem a razão porque naquele dia àquela hora se achavam uns diante dos outros.

Aparentemente, não havia qualquer motivo, de facto.

Agora, o Paulo sorria, contemplando a Rosarinho com olhos de ver e reconhecendo que, pelo menos no aspecto, ela era em tudo a criatura ideal para estar junto do Pedro.

A Rosarinho, deslumbrada, mirava o Pedro que vinha giríssimo, de sobretudo cor de canela e camisola de gola alta, uma camisola de um verde que tornava quase verdes-esmeralda os seus olhos cor de azeitonas de Elvas.

O Pedro, depois de endereçar à rapariguinha um sorriso carinhoso, avançou de braços abertos para Dona Teresa de Macedo.

- Oh, Avó querida!. Que alegria encontrá-la!

E sucederam-se as explicações.

A avó Teresa contou que viera arejar a casa. A Rosarinho, ruborizadíssima, descreveu o sucedido, sem omitir o mínimo pormenor - desde a doce ilusão suscitada pelas janelas abertas até à realidade ainda mais doce - a conquista de uma não menos doce amizade, a amizade da avó Teresa.

O Pedro disse que vinha à procura da crônica de São Boaventura, escrita (perdão, começada!) por Artur Xavier de Sá, a fim de esclarecer umas certas dúvidas a propósito do nome Abegorim. O Paulo, esse não tinha que justificar-se. Viera acompanhar o seu amigo Pedro.

A busca acerca do apelido Abegorim, claro, interessava a uns e a outros. E a Rosarinho, sem mais se lembrar das horas do almoço e dos problemas familiares, voltou para a sala.

- Onde estará guardada a Crônica? - perguntava o Pedro, verdadeiramente embaraçado.

- O Artur não a terá? - sugeria o Paulo, olhando em volta convicto de que adivinhar é proibido.

- Não, porque o meu Pai guardou-a.

- Então talvez procurando nas gavetas do escritório!

O Pedro dirigiu-se ao escritório, acompanhado pela comitiva alvoroçada.

- Ó Avó! lembra-se de como era ?

- De como era o quê, filho?

- O papel! Cadernos soltos? Um caderno só? com capa? Sem capa?

- Não, Pedro! Não me lembro. O Paulo disse:

- Tenho idéia de que era um caderno de folhas brancas, sem linhas, com uma capa alaranjada. Parece-me que estou a vê-lo!.

Na terceira gaveta da esquerda, na grande secretária de mogno, lá estava arrumado um grosso caderno de capa amarelada (um caderno do tipo daqueles em que a Ana escrevia).

O Pedro pegou-lhe, folheou-o e entusiasmado, começou a ler.

"Crônica dos acontecimentos de São Boaventura, vividos pela Ana, pelo Pedro, pelo Rumané e pelos mais que adiante serão citados, e escrita pelo primo Artur Xavier de Sá. "

- Eureca! - gritou o Pedro, entusiasmado. O Pedro sentou-se à secretária. A avó

Teresa, a Rosarinho e o Paulo debruçaram-se sobre ele, para, enquanto ouviam, lerem com os próprios olhos o mais possível.

". Hoje, quinta-feira de manhã: A Anita subiu a uma macieira e caiu dela abaixo. Não sei como se arranjou, mas todos nós verificámos o acontecimento. Quando subiu, ia de vestido. Quando caiu estava em combinação! O vestido, observámo-lo depois, tinha ficado pendurado, à laia de maçã. A tia Rosinha descobriu que se rasgara de alto abaixo e declarou que a Ana passaria a andar na quinta sempre com calças de rapaz. Etc. etc. etc. "

"Quinta-feira, à noite: Encontrámos na estrada, quando regressávamos de Penarim, de convidar o Dr. Ajuda-te para vir jantar com os tios no próximo domingo, os vizinhos da Quinta Maior, a rapariga e o tal que teve a idéia de regar a pobre Ana com a mangueira, como se ela fosse alguma couve. Os dois patetas viraram-nos a cara. O Pedro acha-os incorrectos e estúpidos como portas, Etc. etc. etc. "

"Sexta-feira, à noitinha: O bom tem estado adoentado durante toda a tarde. A tia Rosinha disse que se ele amanhã não estiver melhor manda chamar o veterinário. Mas o Domingos garante que não é preciso, porque o Bom, quando assim anda avariado e a vomitar pelos cantos, purga-se a ele mesmo, trata-se comendo umas ervas quaisquer que ele lá conhece. e fica mesmo Bom. Etc. etc. etc. "

Foram voltando página após página. Devorando as frases encadeadas com tanta graça como veracidade. Mas, do que desejavam encontrar, nem vestígios!

- Foi confusão nossa! - concluiu o Pedro, desconsolado, ao fechar por fim o caderno. - Ele não fala nos Abegorins!

- Sabes onde se calhar está alguma coisa escrita a esse respeito, Pedro? - lembrou o Paulo. -No documento do tesouro!

- Talvez.

E a avó Teresa:

- Mas o documento ficou no cofre do Banco, juntamente com as jóias do tesouro!

- Não ficaria no contador de pau preto?

- Não, Pedro. Tenho a certeza, porque fui com a tua Mãe arrumar tudo poucos dias antes de partirem.

- Sendo assim nada feito! Continuamos como antes!

- Nada, não, Pedro! -reagiu o Paulo. - Telefonamos para Penarim, o Domingos pergunta à sr.a Joana e pronto!

- A Joana está muito velhota, é capaz de não se lembrar.

- Que idéia! A Joana ainda no ano passado era bem louçã e bem fagueira!

E logo a avó Teresa, numa censura justificadíssima:

- Ó Pedro, a Joana não tem idade para estar tão velha que a memória se lhe fosse!

E o Paulo, corroborando a afirmativa:

- Além disso há coisas que nunca se esquecem!

- Pronto, pronto! - concordou o Pedro, reconhecendo as razões alheias. E, cheio de interesse em esclarecer o assunto, decidiu: -Liga-se para a Quinta e já!

Saíram do escritório, para se dirigirem à sala, onde estava o telefone.

Quando o Pedro ia a levantar o auscultador para marcar o número da interurbana, retiniu a campainha da rua.

- Quem será? - estranhou a avó Teresa.

- Pede tu a chamada, Paulo, que eu abro. E enquanto o Paulo ficava à espera que a menina da rede atendesse (as meninas costumam às vezes demorar imenso a perguntar o que se deseja, ninguém sabe porquê) o Pedro foi à porta.

E diante dele, com uma cara tão séria que intimidava, o Sr. Dr. Juiz Álvaro Abegorim.

O Pedro ficou primeiro surpreendido, depois alarmado.

- Oh, o Sr. Dr. Juiz! Que surpresa! - e sem transição: -Há alguma novidade? Aconteceu alguma coisa?

E o Dr. Abegorim, com toda a imponência das suas razões, sem o cumprimentar sequer:

- A minha filha Maria do Rosário está aqui?

- Está, sim, Sr. Dr. - e logo a seguir, vendo que o Pai da Rosarinho avançava quase a empurrá-lo, pressentindo que algo de muito complicado estava a suceder (o quê, Jesus? ) chamou, precipitadamente:

- Rosarinho! Rosarinho, vem cá imediatamente!

E o seu tom de alarme foi tamanho que não só apareceu a Rosarinho mas também o Paulo e a avó Teresa, investigadores.

Ao dar com os olhos em Dona Teresa de Macedo, a expressão do Juiz Abegorim modificou-se instantaneamente. Sem qualquer lógica, detido como que por uma mão de ferro, exclamou:

- Ah! não fazia a mínima idéia!

Ninguém procurou esclarecer naquele momento a ignorância do Pai da Maria do Rosário, a qual estava como que em cima de brasas reconhecendo as suas faltas, ou antes - a sua falta de comparência em casa à hora do almoço, o que devia ter provocado o mais justificado alarme.

MAS. ?. ?.

Por que viera o Pai procurá-la justamente ali, no 2. ? andar, no lar fechado dos Macedos?

Essa era uma pergunta que, expressa nas pupilas da rapariguinha, só mais tarde viria a tornar-se frase na boca da avó Teresa que por agora se limitava a convidar o Dr. Juiz:

- Tenha a bondade de entrar, sr. Dr. Não há-de ficar no corredor.

Álvaro Abegorim, porém, não avançava. E ele, sempre tão firme, tão seguro, tartamudeava:

- Eu. eu peço imensa desculpa. Venho apenas buscar a minha filha.

Dona Teresa de Macedo encarava-o bem de frente:

- Na realidade creio que devemos todos (e eu, principalmente!) pedir-lhe desculpa do atraso insólito da Rosarinho, mas aconteceram hoje várias coisas imprevistas. A primeira foi eu ter arranjado uma nova neta (a terceira! o que muito me desvanece ) - e enquanto ela cingia a si a Rosarinho, o Pedro envolvia-as a ambas num olhar de infinito encantamento (a avó teria acaso o dom de adivinhar?) - A sua filha, Sr. Dr. ao ver abertas as janelas desta casa supôs que os meus haviam regressado e bateu-me à porta procurando a Ana Maria, essa mocinha de quem, pelo que deduzo, tanta gente tem saudades. Encontrou-me a mim! E ficámos a conversar, esquecidas do tempo. Quando, finalmente, a Rosarinho ia a sair, apareceram-nos o meu neto e o amigo, o Paulo de Ataíde Lemos (-o Paulo dirigiu um cumprimento ao Juiz e o Juiz correspondeu-lhe com um olhar de curiosa simpatia, ciente assim de que aquele rapaz tão seu conhecido de vista era o filho único do Advogado que tanto admirava como homem e como profissional-) que vinham, imagine V. Ex. a, à procura de uma velha Crônica da Quinta de São Boaventura que em tempos parece ter pertencido a um Abegorim.

- A um Abegorim? - balbuciou, ainda não refeito do que o afligira para além de quanto pudesse imaginar-se, o Dr. Juiz.

- Exactamente! Ou melhor, era em busca desta concretização que ambos vinham, pois nenhum deles tinha, ou tem, a certeza do nome do antigo dono da Quinta hoje pertença do meu filho. E seria bem engraçado saber se na verdade a família do Sr. Dr. terá quaisquer ligações com a propriedade actualmente dos Macedos.

O Dr. Álvaro Abegorim, destruídas as razões que ali o haviam trazido, fossem elas quais fossem, estava conquistado e fascinado:

- E encontraram alguma referência?

- Não, Sr. Dr. Juiz. - volveu o Pedro. - A Crônica achámo-la, na secretária do meu Pai. Mas não fala nos Abegorins. Quando o Sr. Dr, tocou à porta, íamos justamente telefonar para a Quinta, a fim de que o nosso feitor, o Domingos Loureiro, pergunte à Sr. Joana, a nossa velha caseira que sempre lá viveu e conhece toda a sua história, o que há a esse respeito.

- Ah, bem Ah, bem! E eu gostava de saber isso pois na verdade há, ou havia, uns familiares espalhados pelo país.

- Vamos pedir a ligação, Pedro? - propôs o Paulo.

A Rosarinho, sem que ninguém tivesse dado por qualquer mudança na sua atitude, estava agora encostada ao Pai, que a segurava pelos ombros, ternamente (ou avaramente?).

O Dr. Abegorim, porém, discordou da sugestão do Paulo.

- Já agora, achava melhor que falássemos da minha casa. A minha Mulher ficou muito preocupada e a Maria do Rosário deve estar a cair de fraqueza.

E a pequena, espontânea como sempre:

- Até estou, Paizinho! Riram-se todos.

A avó Teresa pediu escusa:

- Se não me levam a mal, eu não subo. Tenho hora marcada no cabeleireiro e antes ainda vou com o meu marido ao Médico.

- Está doente, o Sr. Macedo? - inquietou-se o Juiz.

- Doente, doente, não, graças a Deus! com os achaques dos 70 anos. e um reumatismo que se tornou maçador e requer sérios cuidados para não se instalar de vez, perigoso como todos os males crônicos.

- Compreendo perfeitamente!

- Por isso, se me permitem, fico a fechar a casa e os rapazes acompanham o Sr. Dr. Juiz e a menina.

- Com certeza!

Iam despedir-se. Já as mãos se estendiam. E os rostos, do Pedro e da Rosarinho, para um beijo da avó Teresa.

Foi quando esta, de súbito muito séria, dirigiu ao Dr. Abegorim uma pergunta mais do que apoiada em motivos, em factos.

- Desculpe, Sr. Dr. mas eu gostava de saber uma coisa: por que razão veio procurar a Rosarinho aqui em casa, justamente aqui em casa? .

O Dr. Álvaro Abegorim, todos o sabiam, era homem de uma só verdade. E embora naquele instante o coração lhe doesse sob o peso dessa mesma verdade, nem sequer tentou fugir-lhe pelo caminho das evasivas. E assim, encarando Dona Teresa de Macedo, volveu:

- Aqui no prédio ao lado vive uma pequena que é há muitos anos amiga das minhas filhas, melhor dizendo, da minha filha mais velha. Essa pequena está neste momento lá em cima. Apareceu há pedaço e, segundo julguei a começo, levada pela simples curiosidade. Queria saber se as amigas conheciam o motivo porque estavam abertas as janelas deste andar.

A avó Teresa sorriu:

- Nunca pensei que um facto tão banal pudesse suscitar tamanho interesse!

Sem se prender à interrupção, o Dr. Abegorim continuou:

- Nenhuma delas fazia a mínima idéia do que se passava, claro. E acontecera, entretanto, que eu e a minha mulher, e até as meninas, havíamos principiado a ficar deveras surpreendidos e inquietos com a demora da Maria do Rosário, sempre pontualíssima. Sucedeu então o seguinte - quando há poucos instantes eu me decidia a ir procurá-la ao Liceu, a Alicinha, ouvindo-me, declarou que a Rosarinho entrara no prédio há que tempos. - calou-se por momentos, o Juiz, sentindo os olhares de todos pesarem nele como uma recriminação. Depois, concluiu: -Foi depois disso que me decidi a vir bater a esta porta.

Ninguém protestou.

Houvera uma compreensão geral dos factos, dos motivos.

Rosarinho, com os olhos cheios de lágrimas, tinha agarrado na mão do pai e encostava nela a face escaldante, como que a transmitir-lhe a grande certeza que havia dentro dela. Não! Não era rapariga para fazer coisas mal feitas!

Engraçado!

Ela pensara-o, apenas. Mas a frase soara, nítida, firme:

- Ela, não é rapariga para fazer coisas mal feitas!

Dissera-o uma voz masculina. Precisamente a voz do Paulo.

Sim. A voz do Paulo.

Do Paulo.

O Dr. Abegorim bem quereria que as horas não o obrigassem a ir-se embora. Sentia-se tão confortàvelmente instalado, sob tantos aspectos Mas o dever chamava-o.

Tinha um julgamento marcado para as 4h. e eram já 3 h. e 35 m. Não podia atrasar-se mais.

A chamada telefônica para Penarim havia sido pedida, mas estava demorada. Uma qualquer avaria - dissera-o a menina da rede dificultava a ligação.

Cheio de interesse em saber se na realidade existiriam Abegorins ligados a São Boaventura, o Juiz pediu aos rapazes que voltassem à noite, a fim de conversarem com descanso. Ficou assente que ambos viriam tomar o café. Logo, não subsistiam razões para que eles se demorassem naquela casa onde, aliás, se via que eram ambos bem-quistos. De mais a mais que Dona Teresa Mafalda saíra já e apressadamente para um bridge, dissera ela que de grande importância.

A Lili fora-se embora há que tempos. Tinha horas certas para entrar no emprego.

Restavam as mais novas, mas isso não justificava que eles se eternizassem após a recepção da chamada para a Quinta. Tanto mais que, em boa verdade, só o Pedro desejaria não se afastar. Ao Paulo, provavelmente e por mais que simpatizasse com todos - e com todas! tanto fazia. Ou antes, até lhe fazia jeito retirar-se, porque principiara a sentir-se muito pouco à vontade.

que a Alicinha assestara baterias sobre ele e, um tanto desiludida com a falta de atenção do Pedro, procurava captar o interesse do Paulo, salientando-se com intromissões e interrogações e graças sem graça nenhuma que incidiam sobre o noivo da Ana Maria.

Tornava-se tão escandaloso o procedimento da pequena Fontemora, que não só os dois rapazes estavam chocados mas também as próprias raparigas, isto é, a Mirita e a Rita, visto que a Maria do Rosário não dava senão pela presença do Pedro.

Agora sós, os seis conversavam com certa dificuldade, porque o mal-estar crescia de momento a momento.

Alicinha descontrolara-se, era evidente.

E o Pedro e o Paulo olhavam para o relógio com impaciência.

O telefone tocou às 4 h. e 26 m. E mal houve a certeza de que era Penarim a responder, estabeleceu-se um silêncio de expectativa.

O Pedro falava com o Domingos. E o Domingos, em festa, saudava-o de lá longe, na velha casa dos caseiros, toda branca, aninhada entre o frondoso arvoredo, próxima da fonte do Beiral, a poucos metros do solar onde em saudade havia tanto deles.

As perguntas e as respostas cruzavam-se. Do Pedro para o Domingos:

- Como é que vai a Joana? E o Tomás, melhor? E lá em baixo, na vila, tudo bem? Na

Quinta, grandes progressos? Quê? Começas brevemente as obras para a queijaria, grande como o Pai a idealizou? Óptimo, pá, óptimo! Do Domingos para o Pedro:

- Notícias de Luanda, boas ? Não sabe ainda quando vêm de visita? É difícil agüentar a separação ? Eu faço os possíveis por pensar que estão em Lisboa, como dantes. AS coisas com a Marta correm pelo melhor. Devo ir aí na Páscoa, para conhecer os Pais.

E finalmente - e principalmente! - a pensar que a chamada estava a ser realizada à custa do Dr. -Abegorim e ficava cara, o Pedro entrou no assunto que motivara a ligação telefônica.

- Oh, Domingos, escuta uma coisa.

- Sim, Pedro.

- Eu estou a falar-te de casa do Sr. Dr. Juiz e...

- Então o Sr. Dr. Juiz está em Lisboa?

- O quê? Mas o Sr. Dr. Juiz há muitos anos que aqui vive.

- Que idéia, Pedrinho! Ainda na quinta -feira passada eu o vi, em Penarim.

O Pedro ria e os outros queriam saber porque ria ele, mas a urgência de ultimar a conversação não permitia explicações para os que estavam atrás dele. Só para diante, para o bocal que as ia levar direitinhas ao ouvido do Domingos. Entretanto o Paulo apreendera o sentido da súbita hilaridade dos amigos e ria também.

A Alicinha curiosa - só curiosa ? - poisou a mão sobre a dele, a inquirir:

- O que foi?

O Paulo sacudiu-lhe a mão como quem sacode uma importuna mosca e ordenou-lhe baixo mas imperioso:

- Schiu! Caluda! O Pedro dizia:

- Homem, o meu Juiz não é o teu! É daqui e não daí.

- Nesse caso não o conheço!

- Conheces, pois! Vive no 4. ? andar do meu prédio.

- Ah, é o Pai daquelas meninas todas ?

- Justamente. É o Sr. Dr. Álvaro Abegorim.

- Álvaro quê?

- A - be - go - rim.

- Abegorim?

- Tal qual! E olha, é mesmo por causa deste apelido que eu vim falar-te. Preciso que me digas como se chamava o velho dono de São Boaventura.

- Ai, isso não sei, Pedrinho!

- Pois tu não sabes, mas sabe a Joana. Ela não está aí?

- Está ali da porta da cozinha a mandar beijinhos.

- Então pergunta-lhe, vá.

Em pausa, o Pedro distinguia perfeitamente a indagação do Domingos lá para o interior da casa:

- sr.a Joana, o Pedrinho quer saber o nome do antigo dono da Quinta.

Um branco.

Depois, bruscamente, soou-lhe ao ouvido uma voz feminina algo áspera, com muitos xes onde eles cabiam, a falar numa terna exuberâncià:

- Ai, Pedrinho do meu coração!. xão!. Quem mo dera cá! Tantas saudades ("cidades) neste velho peito, Jesus! (Xesus!)

- Pois, minha querida Joana, pois! Eu também tenho saudades. Mas agora responde-me, por favor - como se chamava o antigo proprietário de São Boaventura?

- Era o Sr. D. Miguel, menino. Era o Sr. D. Miguel!

- Não é isso, é o apelido. O apelido de família!

E lá soou a desejada informação.

- Abegorim!

O Pedro saltou na cadeira, virando-se para as meninas e para o amigo.

- Pois! Abegorim!.

As três irmãs abraçaram-se umas às outras, felicíssimas embora incapazes de explicar porque motivo a certeza assim obtida lhes dava tamanha alegria!

E o Pedro, ao telefone:

- Ó Joana, tu conheces bem a história deles?

- Deles quem, menino?

- Dos Abegorins.

- Bem bem. não garanto. Sei o que por aí se contava.

- Então vou pedir-te que me faças uma coisa.

- Tudo o que o Pedrinho quiser, ora essa!

E quando o Pedro desligou, estava combinado que a Joana ia mandar em carta escrita pelo Domingos um relatório o mais circunstanciado possível acerca do ex-dono da propriedade.

Estavam todos entusiasmados com as perspectivas.

Sugerido pelos rapazes, a quem as horas de estudo faziam muita falta, aprazaram mudar a reunião dessa noite para logo que chegasse a carta do Domingos. Nenhum deles duvidou da concordância do Dr. Juiz em relação ao assim estabelecido. Portanto, mal recebesse os esclarecimentos pedidos, o Pedro avisava e marcavam o encontro de que sairia a revelação.

De resto, tanto as meninas como os dois rapazes principiavam a acreditar num parentesco do antigo Senhor de São Boaventura com o Dr. Álvaro Abegorim. O nome nada tinha de vulgar e havia os tais troncos da família espalhados pelo país.

Despediram-se por fim, efervescentes.

A Alicinha saiu, com o Pedro e o Paulo, esquivando-se ao convite da Rita que lhe dizia:

- Fica ao pé da gente!

- Pra quê? Vocês agarram-se aos livros e eu tenho outros planos!

Outros planos! ?

No elevador, o Paulo, um bocadinho malcriadamente, pôs-se a assobiar. Assobiava ainda quando, lado a lado, chegaram os três à porta da rua, dando os rapazes passagem à mocita, como cumpria.

- Então boa-tarde, Alicinha!

- Adeus, Maria Alice.

E ela, sem largar a mão do Paulo:

- O que é que vais fazer agora?

- Estudar! -respondeu ele secamente.

- Não queres acompanhar-me a uma segunda matinée?

- Se já te disse que vou estudar!

- Eu adorava ver "O Cavaleiro do Outro Mundo"

- Detesto fantasmas.

Ela julgou que havia uma probabilidade, ainda. E quis mostrar-se simpática, conciliadora:

- Lá por isso, há mais filmes e bons! Escolhe um a teu gosto!

E ele, com uma rudeza de que não se julgaria capaz:

- Não vou ao cinema contigo, Maria Alice, e acho inconvenientíssima a tua insistência. Entendes-me, creio. Portanto. até mais ver!

E deixando-a especada no passeio afastou-se seguido pelo Pedro que não disfarçava um sorriso onde havia tanta pena como ironia.

A Alicinha -Maria Alice de Mendonça Peres Fontemora- ainda mordia os lábios de fúria e despeito quando por fim se decidiu a transpor a porta de casa. Toda a sua gentileza pálida e loira (muito loira e fria ) se transformara em agressividade. A loira e pálida Alicinha dir-se-ia agora uma pequenina fera capaz de morder.

E entre palavrões impróprios da sua linda boca saíam autênticos rugidinhos.

Mais um que lhe escapava Todos lhe escapavam. E ela não percebia a razão.

Habituada a que os Pais acatassem como leis os seus caprichos, persuadira-se, desastrosamente, de que rapaz sobre o qual incidisse a sua escolha logo lhe cairia aos pés, fascinado e rendido. Por considerar-se linda, imaginara casar muito cedo. E.

E continuava solteira e sem namoro!

Debalde ela mostrava o seu interesse a este e àquele. Nenhum parecia ligar-lhe importância. Nem prender-se a atractivos que ela supunha irresistíveis. De facto, além de bonita e elegante, era rica.

A pálida e loira Alicinha ignorava que às vezes essas qualidades exteriores não bastam. Não bastavam, de certeza, para rapazes como o Paulo e como o Pedro mesmo que para o Paulo não existisse a Ana Maria - uma cer1teza! - e para o Pedro a Rosarinho - uma promessa!

Maria Alice de Mendonça Peres Fontemora não compreendia nada daquilo. E no lar onde tudo tinha mordia agora a almofada do pequeno leito para cima do qual se atirara, carpindo pelo que não estava nas mãos dos Pais conceder-lhe. Insuportável!

Rua fora, a caminho da residência do Paulo, os dois amigos discutiam o incidente, a conduta daquela rapariguinha que lhes fazia lembrar a Arabela. Ambas de aparência delicada e frágil, ambas espiritualmente pouco válidas. Uma diferença a apontar - Arabela era mais esperta. E perseguira um objectivo! A pobre Alicinha menina cheia de dinheiro não passava de uma desmiolada.

- O que mais me espanta - dizia o Pedro,

- é a. assombrosa facilidade com que ela muda o alvo das suas atenções! Há poucos dias fui eu o favorecido com os seus lânguidos olhares. E de chofre e nas minhas bochechas assesta as baterias em ti!

- Pois eu pasmo de mais!

- De quê?

- Da sua falta de decoro! Da ousadia de se adiantar com uma proposta que afinal devia partir de mim. Compete ao homem tomar iniciativas, não à mulher!

- Isso era dantes! Se tu soubesses o que há dias se passou comigo no Hospital! - e sem que fosse necessário o Paulo pedir-lho, pôs-se a contar: - Imagina tu que eu acabava de sair da aula do Pinto Alvarez quando a Micaela uma muito morena, com uns olhos enormes! me chamou para de caras me informar que eu lhe agradava intensamente e por isso me propunha.

O Paulo não ficaria ciente naquele momento da proposta da Micaela, proposta que pelos vistos muito chocara o Pedro. Acabavam de ser interrompidos -e detidos! - por enorme amplexo conjunto. Na verdade os dois braços daquele que assim os abordara ligava-os na mesma explosão de alegria.

E uma voz sonora, agradável, estrepitava:

- Chegaram a tempo, an? Mais um bocadinho e eu já ia longe!

Braços, alegria e voz eram culminados por um rosto feio mas simpático. O todo pertencia a Artur Xavier de Sá Ferreira, o primo direito do Pedro, filho do único irmão da Rosinha-Mãe.

Depois das saudações com várias palmadinhas nas costas, o Pedro comentou:

- Eu mal posso acreditar que tu conseguisses arranjar tempo para nos visitares!

- pá, tive folga, hoje!

- Tiveste folga? - estranhou o Paulo. - Quer isso dizer que concedeste a ti próprio um feriadozito?

O Artur riu-se, boca rasgada quase de orelha a orelha, uns belos dentes de animal sadio todos à mostra.

- Não, não! Estou mesmo de folga!

- Mas as pessoas só folgam quando se encontram muito bem empregadas!

- Pois eu acho-me, se não ainda muito bem, empregado, pelo menos empregado satisfatoriamente e na perspectiva de óptimas realidades. Pelo menos trilho o caminho da esperança!

- Homem, conta!

- Sou Jornalista!

- Lá que sempre tiveste jeito para escrever, é certo! Ainda hoje tive nas mãos a tua Crônica de São Boaventura!

- Deus, como isso vai longe! E como estou perto de tornar em carreira a vocação!

- E a música ? A sua música, senhor Organista? - gracejou o Pedro.

- Parece-te que exista incompatibilidade entre as duas coisas de que mais gosto escrever e tocar? Ou, pelo contrário, completam-se, sucedendo-se uma à outra?

- Talvez realmente se completem! - e, cheio de interesse, reclamou: -E agora o que se passa, vá!

- Eu...

O Paulo atalhou:

- Espera aí, pá! Vamos até casa.

- De lá venho.

- E para lá voltas! Dás meia volta e acompanhas-nos. Não te cansas, aliás, que estamos perto! E ao chegarmos ofereço-te um café feito pela Joaquina, que adquiriu uma prática notável à força de nos aturar as constantes encomendas.

E foi sentado à pequena mesa da sala de estar, com um de facto gostosíssimo café a saber-lhes muito bem, que o Artur contou:

- Pois eu coloquei-me na redacção do Jornal do Meio-Dia! Trabalho diariamente seis horas. Entro às 17 h. e saio às 23 h. Se quiser fazer qualquer coisa extra, tal como reportagens ou contos, por exemplo, ganho pela tabela dos colaboradores eventuais. Como quero, evidentemente, são dois proveitos. Uns cobres a mais e o nome impresso!

- Magnífico! - aplaudiu o Pedro. E o Artur, feliz.

- Na verdade é o meu grande princípio!

Abriram-se-me as portas do mundo onde desejo viver. Ganho dinheiro e ainda por cima disponho de tempo livre para as aulas no Conservatório e para estudar.

- E pagam-te bem?

- Ordenado inicial, três mil e oitocentos escudos.

- Estupendo!

- com os artigos avulso, posso chegar facilmente aos cinco mil. E ainda com outra vantagem - travo conhecimento com gente de um meio de que depende o meu futuro tal qual o ambiciono! Assim deparam-se-me boas perspectivas de vir a colaborar em várias revistas e em programas de rádio.

- Isso significa que dentro de pouco tempo és capaz de ter um ordenadão!

- Bom, Paulo, wm ordenadão talvez seja exagero. Mas enfim, é possível que ganhe o suficiente para poder casar e manter uma vida normalmente equilibrada, até novas coisas surgirem a darem-me mais largas possibilidades. Vocês sabem. eu acredito no êxito do trabalho dentro da profissão de que se gosta! Eu gosto muito de Jornalismo. E tenho umas idéias que, se forem por diante, alargarão os meus horizontes.

Os dois interlocutores estavam boquiabertos. Não. não era pela fé do Artur no seu triunfo. Era por...

- Escuta, pá. - cortou o Pedro. -Eu ouvi mal. ou tu disseste casar?

O Artur não compreendeu o espanto assim manifestado.

- Disse casar, sim.

- Mas casar. quando ?

- Daqui a uns dois anos, ou três, se tudo correr bem.

- Dois anos ou três? E com quem, se faz favor?

- com a Inês? - indagou o Paulo, lembrando-se da última carta da Ana Maria.

- com a Inês, claro! - e sorriu. -Ela é um amor de rapariga! Gostamos verdadeiramente um do outro! - e depois, sem acreditar naquela ignorância total: - Vocês não tinham ouvido uns zum-zuns?

- Homem, -redarguiu o Pedro, franco, - a minha irmã referiu-se ao assunto, há pouco. Mas podia ser fantasia, comunicada pela Inês!

- Não é fantasia.

- Pois ainda bem, mas nós é que não podíamos adivinhar! Tu esqueceste-te de que existíamos!

- Não esqueci nada! De resto. se houvesse esquecimento, olha que podia considerar-se recíproco!

- Como?

- Há quantos meses não vais tu a nossa casa, Pedro?

O Pedro sentiu a razão da censura. -É certo, Artur! Isto é uma engrenagem medonha!

- Pois fica sabendo que os meus Pais já se lamentaram, considerando-se esquecidos por ti.

- Oh, não! Isso não! Peço-te, Artur! Diz ao tio João e à tia Elisa que não me levem a mal a minha falta.

- Ah! reconheces que é falta ?

- Reconheço!

- Ainda bem!

- E a falta. é de tempo. percebes?

- Percebo. E eles também percebem. Mas custa-lhes! Porque, não sei se deste por isso não vais a nossa casa desde o almoço do dia de Ano-Novo!

- Vou lá jantar num destes dias próximos - prometeu o Pedro, repeso dos factos incontestáveis.

Já porém o Paulo o interrompia, desejoso de pormenores:

- E a saber, Artur como é que arranjaste a tua colocação? com uma boa cunha?

O olhar límpido do Artur ergueu-se para o do Paulo.

- Não! Nada de cunhas. Fui o protector de mim próprio!

- Então ainda é possível nesta santa terra vencer-se sozinho? - e o ar desconfiado do Paulo fez sorrir o Pedro e o Artur, que logo lhe ripostou:

- Não sejas tão céptico, pá! Claro que é possível vencer-se por mérito próprio, conquanto se tenha de lutar muito e muitas vezes de se ser tão maltratado que se julgue morrer antes de alcançar. Mas existem várias condições sem as quais NÃO! A primeira requer talento, e olha que não o digo por vaidade! A segunda e restantes exigem força interior, coragem e espírito de decisão. A coisa, de começo, até parece simples. Para ser absolutamente verdadeiro dir-te-ei que me encontro ainda na fase preparatória. As lutas hão-de dar-se mais tarde, quando eu principiar a incomodar os outros, ou melhor, quando os outros começarem a sentir-se incomodados por minha causa. Acontece que estou longe dessa fase. Por ora os que hão-de vir a recear-me e a combater-me por causa desse mesmo receio ignoram se Sou ou Não Sou. - e eis o Artur com aquela força imensa que lhe vinha desde pequeno e fazia com que ele soubesse expor, soubesse dizer, soubesse convencer! - Deixemos porém estas considerações, actualmente sem qualquer interesse. vou descrever-lhes como tudo aconteceu. Há já bastante tempo, eu andava a pensar que não podia, nem devia, continuar a depender inteiramente dos meus Pais. As despesas de um rapaz de 20 anos não são as mesmas de um garoto de 12 ou 13. Nem as despesas nem a mentalidade! E se eu achava desprimoroso, com 15 e 16 anos, e até 17, pedir ao Pai dez escudos para ir a um cinema, agora considero absolutamente impróprio aceitar cinco escudos para um maço de cigarros. Mesmo que o meu Pai fosse rico, isso custava-me Quanto mais sendo um homem que vive com um magro ordenado acrescido com alguns extras que lhe custam em geral noites inteiras roubadas ao sono! Não sou nada o gênero desses filhos que acham que tudo lhes é devido sem mérito próprio, alegando que não declararam querer nascer Nem tão-pouco como uns tantos que entendem que estudar é o máximo que se lhes pode exigir - e reparando no olhar surpreendido do Pedro e do Paulo, acrescentou, precipitadamente: - Olhem que isto não é piada!

- Sossega! - retorquiu-lhe o primo. -Não há razões para piadas.

- Pois não, mas vocês podiam julgar. E o Paulo:

- Não somos desses, felizmente. Artur sorriu, descontraído.

- Óptimo, óptimo! -e logo prosseguiu: Bom, a partir de todas as conclusões que citei, decidi empregar-me. Mas, parafraseando a fala da História da Carochinha naquele disco que nós adorávamos em garotos. - não sei se vocês se lembram?

Lembravam-se, ambos - disseram-no em acenos os dois amigos.

- Pois, parafraseando a tal frase da Carochinha.

E o Pedro, a rir:

- Quero um marido que seja bem a meu gosto! .

- Exacto! E assim, eu repetia aos meus botões - quero um emprego que seja bem a meu gosto. Ora, a-meu gosto, só uma coisa onde eu pudesse ou tocar ou escrever.

- Podias ir para organista de uma Igreja, como o Bach e outros.

- As Igrejas deixaram há muito de ter organistas.

- É pena.

- Pois é! E deste facto resultou que me lembrei de que não seria descabido tentar colocar-me na redacção de um jornal, pelo que tratei de agir.

- De que maneira?

- Fui ao Jornal do Meio-Dia e mandei pedir ao Chefe da Redação que me recebesse. Tive a sorte louca de encontrar aquilo que se chama um tipo às direitas! Expus-lhe o meu caso, falei-lhe das minhas preferências, das minhas habilitações, dos meus sonhos, e acabei por mostrar-lhe uma papelada sobre a qual ele relanceou o olhar. Depois disto o sujeito voltou-se para mim -e declarou-me "veio em boa hora! Estamos pensando em admitir rapazes e raparigas que pretendam dedicar-se à carreira jornalística. Claro que preferimos os casos de vocação! vou tratar do seu assunto com o administrador e, sem querer iludi-lo com esperanças vãs, asseguro-lhe que deve alcançar o que deseja".

- E depois?

- Voltei no dia seguinte para saber a resposta. Estava admitido!

- Parabéns, rapaz! - exclamaram o Pedro e o Paulo.

- Agradeço os parabéns, claro. Mas endereço-os àquele que confiou em mim. Sabem o que ele me disse quando me apresentei ao serviço, há oito dias? Isto "abriu-se a porta para si. Tem na sua frente uma escada alta e íngreme. Suba-a com o seu talento e com o seu trabalho, degrau a degrau, que os lugares cimeiros estão à espera de quem os mereça".

- Bonito! - comentou o Paulo. E o Pedro:

- Sinto-me orgulhoso de ti!

Era tão sincero, que o Artur estendeu as mãos para apertar as dele estreitamente, em comunhão de sentimentos.

A conversa ficou a girar, durante momentos, em torno daquele assunto com tanto interesse e tantas hipóteses.

A sr.a D. Mariana, a Mãe do Paulo, que haviam encontrado a ler um belo romance na sua salinha de trabalho (aquela era uma casa antiga, com imensas divisões) apareceu e, ao inteirar-se do acontecimento que assim os animava, felicitou o Artur com todo o coração.

O tempo ia passando sem ninguém dar por ele.

De súbito, o Artur sobressaltou-se.

- Oh, c'os diachos! Que horas são?

- Seis e meia - elucidou-o o Pedro. E o Artur, a levantar-se:

- E eu que devia estar agora mesmo com um tipo do Teatro!

- Um tipo do Teatro ? Também queres ser actor? - gracejou o Paulo.

- Não, é outra coisa.

- Mais projectos?

- Um projecto tão vago que não vale a pena revelá-lo por enquanto. Depois conto. Não levem a mal, não?

Despediu-se da Sr. D. Mariana. Os rapazes acompanharam-no à porta.

Estava já no patamar, prestes a galgar em descida os lanços da escada, quando olhou para ambos com um súbito fulgor de malícia nas pupilas.

- Ai que até me esquecia!

- O que foi?. O que é?

- Vantagens de ser Jornalista!

Eles não percebiam e mostravam-no na expressão. E o Artur:

- É que tenho uma notícia sensacional para vocês!

- Sensacional ?

- Sim, sensacional. Sensacionalíssima!. Imaginem quem vem aí!

Nenhum deles era perito em adivinhas. O Paulo quis orientar-se.

- Para começar, de onde vem a notícia e a pessoa, pois deduzo que se trata de uma pessoa ?

- Marca um ponto.

- Então de onde vem?

- Não digo, que depois já não tem mérito o acertarem!

O Pedro nunca se divertira com enigmas. Faltava-lhe paciência para suportar essa velha mania do Artur. E protestou:

- Homem, tu sabes que eu não tenho jeito para charadas. Por isso, se tem realmente importância para nós, fala e deixa-te de gracinhas!

O Artur pôs-se a rir.

- Olha se tem importância para vocês? Tem! De resto sinto-me tentado a deixá-los na ignorância até amanhã ao meio-dia.

- Pronto! - assentiu o Pedro. - Nós lemos o jornal, o teu jornal, amanhã.

- Não, eu digo. -e anunciou: -O Vic vem aí!

- Qual Vic ? - indagaram Pedro e Paulo ao mesmo tempo.

- Que Vic há-de ser, meninos? Por intermédio de vocês não sei senão da existência de um E penso que os Vic não abundam por esse mundo fora.

- O.. o Vic Nusen 1. Referes-te ao Vic Nusen? - gaguejou então o Pedro, esbogalhado.

- O Vic Nusen, precisamente! Contratado pela Nova Sociedade de Arte. Toca com orquestra no.

Pedro e Paulo não ouviram mais. Abraçaram-se a ele, radiantes.

- Ó pá, mas é formidável!

- Nós sabíamos que ele tencionava cá vir, mas não supúnhamos que fosse tão breve.

- Pois dentro de um mês aí o teremos. Fui eu que redigi a notícia, ontem à tarde, para a próxima Página Musical, que é muito bem feita e, principalmente, muito bem intencionada. Confiaram-ma, porque sou músico, percebem? E eu, assim que a li, pensei logo que com ela traria a vocês dois uma grande alegria.

- E trazes, pá! Caramba, o Vic em Lisboa! Tornaram a abraçar-se.

E durante alguns minutos só falaram do Vic.

Depois, as sombras que guardavam nas suas recordações, imagens queridas desse Colégio na Alemanha onde tinham passado as férias há anos -o Reichvater- subiram à tona da superfície calma da sua saudade. Uns após outros, emergiam do tempo vivido rostos alegres e simpáticos com nomes nunca esquecidos.

O de Luís Viegas Pastor.

O de Ma-hur.

O de Jean Paul Mignonet.

E, de súbito, na seqüência, um outro que provinha de longe, longe.

- E o Fernando Vasco? Que é feito do Fernando Vasco?

Não recebiam notícias dele, nem o Pedro nem o Paulo, há mais de três meses. A última carta anunciava-lhes a partida do jovem galã francês (camuflagem. ) para as Filipinas, onde ia ser rodado um filme exótico no qual Jacques Bertrand desempenhava o segundo papel masculino.

- Vai escrever qualquer dia! - asseverou o Artur, notando que o amigo e o primo se inquietavam com o já longo silêncio.

- Vai! - concordou o Paulo. - Ele é amigo.

- E se não escrever, aparece quando menos for esperado! - afirmou o Pedro, optimista como sempre. -Ele é assim. E quem diz Fernando Vasco diz aventura, diz inesperado, diz fantasia, diz romance.

- Era um bom rapaz! - comentou o Artur.

- É um bom rapaz! - corrigiu o Pedro. E o Paulo.

- Somos todos bons rapazes, nós. Tinham acendido a luz da escada. Dona Mariana, intrigada com aquela assembléia fora de portas após o jacto de pressa do moço Jornalista, apareceu.

- Artur, o menino já não encontra a tal pessoa! São 19 h. Fique para jantar connosco!

- Não avisei os meus Pais.

- Telefone!

- Fica, pá! - insistiu o Paulo.

Ao Artur, porém, não convinha aceitar o convite.

- Se não levam a mal, deixamos para outro dia! Pelo sim pelo não, vou procurar o tal fulano Se o não encontrar, telefono-lhe e pode ser que nos encontremos logo à noite. Caso contrário, fecho-me a trabalhar. Nada se consegue de válido sem muito esforço e muitas horas de aplicação.

Pedro e Paulo lembraram-se dos livros abertos que desde o almoço os aguardavam baldadamente. Sim, era bom conviver com pessoas agradáveis, deixar correr as horas numa suave indolência Mas também era bom agarrar a vida nas mãos e senti-la segura. Pelo menos o mais segura possível!

E prontos para o embate de que uns saem vencedores - os fortes, os destemidos! - e outros vencidos- os hesitantes, os comodistas! - os três rapazes despediram-se finalmente, dispostos a voltar às obrigações que esperavam por eles.

- Bravo! - aplaudiu o Dr. Juiz, bem disposto. - O rapaz foi cumpridor! de um dia para o outro, as informações pedidas!

E o Pedro:

- O Domingos é assim. com ele tudo caminha num ritmo de segurança que exclui por completo o improvisado e o inesperado.

Estavam instalados na sala - o Pedro, o Paulo, o Zé Chaves e a família Abegorim, incluindo a tia Casimira a quem uma das sobrinhas telefonara para que viesse ouvir ler a carta que talvez confirmasse se eles pertenceriam ou não à família do antigo dono da Quinta de São Boaventura.

Existiria parentesco ou apenas uma fortuita ligação de nomes?

Estavam todos em cima de brasas, ansiosos pela revelação. Todos menos Dona Teresa Mafalda.

Dona Teresa Mafalda parecia descontente, ou incrédula, ou zombeteira. Afinal de contas em que podia interessar-lhe o aclarar do assunto? Alguma coisa se modificaria em relação à sua vida, à sua forma de ser, se por acaso viessem a certificar-se de que um antepassado do marido possuira a Quinta que hoje pertencia aos Macedos?

As filhas não comungavam das reservas maternais. De forma alguma! E aguardavam ansiosamente que o Pedro, sentado próximo do Paulo, junto à mesa de centro, principiasse a leitura, o que não demorou, pois terminada a efervescência dos cumprimentos, acrescida pela presença do Zé Chaves que viera participar a sua imensa alegria devida ao encontro e à descoberta de um Pai encantador - palavras dele! - o rapaz pigarreou, no aclarar da voz, e começou:

- Ora o Domingos, quando chega. vejamos aqui a meio da terceira página, entra verdadeiramente no assunto e diz...

A tia Casimira não aceitou a eliminação de parte da missiva. Podia muito bem acontecer que houvesse qualquer referência, qualquer coisa até nas entrelinhas que tivesse escapado ao Pedro! E requereu:

- A carta inteira, se faz favor. A carta inteira A não ser que traga segredos.

- Não traz segredos. - e sorriu, entendendo-a à légua. -Seja então a carta toda.

E pôs-se a ler, pausadamente.

Caro Pedro.

Isto vai, por aqui.

Depois de uns dias de chuva que impediram os trabalhos, recomeçaram as obras para o estábulo (prenuncio da queijaria!) que se aproxima a passos largos do que o seu Pai havia idealizado. Mas não lhe conte nada quando lhe escrever, peço-lhe. Quero que ele tenha esta grande surpresa no dia em que voltar à Quinta. De resto, e uma vês que ele tudo me confiou, não existem problemas. Como para mim e mais para os meus velhotes pouco é preciso, o rendimento que actualmente se arranca da terra dá para as obras, desde que sejam, vigiadas e realizadas sem esbanjamentos de luxos que pouco adiantam, além de enfeitar. O que importa é o asseio e brancura em edificações práticas e funcionais. Admito o povoamento inicial do estábulo aí com dúzia e meia de vacas de boa raça e à fé de quem sou que havemos de ter a maior vacaria da Beira Alta!

Cada um vive para o seu sonho, não é, Pedro?

Às vezes, sozinho, fico-me a recordar tanta coisa!

Nas minhas noites de solidão (comprei, para entreter os velhotes, a Televisão pequena do Sr. Bento Farmacêutico que desde a morte da tia rica que vivia em Trás-os-Montes só faz compras do mais caro que há e por isso, tendo adquirido um aparelho enorme, me cedeu o velho por quinhentos escudos - uma pechincha, não?) fico às vezes sem poder dormir até de madrugada e volto para trás no tempo. E acontece-me vê-los a todos os daí tais como eram, quando aqui chegaram e eu não passava de um lapuz desconfiado e ignorante.

Eu não passava?

Mas acaso não serei ainda o mesmo Não será vaidade estúpida julgar que me transformei e que evoluí ao ponto de merecer a Marta?

bom, mas agora reparo que não me dispus a escrever-lhe para falar de mim.

Tenho uma missão a cumprir e estou a atraiçoá-la!

Conversei com a Joana acerca da família Abegorim e ela, que nunca esqueceu o Sr. D. Miguel que Deus haja, disse-me tudo o que sabe. E não creio que o que sabe seja na realidade grande coisa.

Mas mesmo assim, esse pouco leva-me a acreditar que o Sr. Dr. Juiz Abegorim faz parte dos Abegorins de cá.

As pequenas aproximaram-se umas das outras, no auge da emoção. O Pai mudou de posição, mordiscando o lábio inferior, logo nervoso. A tia Casimira levantou-se e foi colocar-se atrás da cadeira do irmão, como se precisasse de se apoiar em algo que também vinha do passado, como ela.

O Zé Chaves acendeu um cigarro. Dona Teresa Mafalda encolheu os ombros.

Igual ao que até aí estivera, o Paulo, que já conhecia o teor da carta cuja leitura se ia processando.

Segundo a Joana, a família do solar era nos tempos antigos de muita grandeza. Os antigos fidalgos, o Sr. D. Viegas e o Sr. D. Jerónimo até comiam à mesa do Senhor rei D. Luís I! E já então os dinheiros haviam começado a diminuir a importância destes Senhores que se davam a gastos de quem não receia que se lhe acabe a fortuna. O pior é que desde as invasões francesas ("desde que os franceses vieram por aí abaixo" no fraseado da Joana) as coisas desandaram. Vários Abegorins desses tempos morreram nessas guerras. Outros finaram-se quando foram mais tarde as lutas liberais (a Joana diz "as lutas entre aqueles dois reis que parece que eram irmãos e não se entendiam"). E a família nunca mais levantou cabeça. O Sr. D. Miguel, último de não sei que ramo, veio viver para a Quinta quando casou, ainda bastante moço. Parece que passeava a cavalo e caçava muito. Depois de enviuvar fechou-se em casa, agarrado aos livros, e dentro dela se deixou estar até resolver desfazer-se da propriedade. Os descendentes dos irmãos mais velhos, - uma porção deles, contava-se! - ficaram espalhados por esse país fora e nunca deles houve notícias aqui em São Boaventura.

Com muitas recordações da minha Mãe adoptiva e do Tomás, cumprimentos para a sr.a D. Mariana e para o Sr. Dr. Lemos, e um abraço para o Paulo mais outro para si, despede-se o amigo certo e sempre às ordens.

Domingos

Quando o Pedro declarou "aqui se acaba a carta" num jeito de quem não sabe como romper o silêncio, Dona Teresa Mafalda olhou para ele com um ar significativo. E disse:

- E então? Adianta muito, o que aí se relata? Ou ficaram positivamente na mesma?

- Não! - ripostou a tia Casimira com vivacidade. -Não, Teresa Mafalda, não ficámos na mesma! Porque a minha memória, assim avivada, funciona E recordo-me. recordo-me de ouvir a minha Mãe falar de um irmão mais velho do que ela, que desaparecera sem deixar rasto depois de uma questão com a família acho que por uma história de casamentos. Julgava-se que partira para o estrangeiro. Possivelmente, isolara-se na Serra, em crise de misantropia! Possivelmente. era esse D. Miguel.

E foi então que Dona Teresa Mafalda modificou a sua atitude que até aí fora de nítido desinteresse, se não mesmo reprovação. E, num surto de curiosidade, curiosidade agressiva, nascida de razões particularíssimas, proferiu, olhando alternadamente o marido e a cunhada:

- Muito bem. vamos admitir que esse tal D. Miguel era irmão da vossa Mãe, portanto vosso tio. Como se explica que vendesse a Quinta assim?

- Assim como? - perguntaram vozes.

- Assim!

- Não entendo. - replicou a tia Casimira.

- Pois não há nada mais simples! Apenas formulo uma interrogação - como se explica que o tal D. Miguel pudesse vender a Quinta?

- Oh, Teresa, naturalmente porque era dele! - replicou o marido.

- A que propósito?

- Heim? - tornaram alguns, de compreensão difícil, ao que parecia.

Então Dona Teresa Mafalda resolveu ser explícita.

- O que eu desejo conhecer é a razão por que esse. hipotético tio Miguel se considerou o legítimo proprietário de uma Quinta herdada, vendendo-a a seu bel-prazer, se existiam irmãos, se havia outros Abegorins!

A tia Casimira não sabia responder. Nem as sobrinhas. Nem os rapazes, evidentemente. Mas o Dr. Álvaro Abegorim encontrou uma justificação satisfatória, pelo menos naquele momento.

- Escuta, Teresa Mafalda. Eu ignoro tudo. Nado, como vocês, em suposições. Dentro destas, há uma que tenho de aceitar para réplica da tua dúvida. A Quinta devia estar vinculada aos filhos primogênitos, ou melhor, devia pertencer ao filho primogênito segundo a antiga lei dos Morgadios.

- Essa agora ? Pretendes que nessa altura a Quinta era só dele?

- Pois com certeza! De outra forma não lhe seria realmente permitido desfazer-se da propriedade!

Todos aceitaram aquela interpretação dos factos, todos menos Dona Teresa Mafalda, quase indignada.

- Mas essa lei dos Morgadios era ignóbil!. Despojar os filhos em favor de um só!

- Teresa? Oh, Teresa! Claro que a lei dos Morgadios era, não ignóbil (possuía muitas razões a obrigá-la!) mas injusta segundo o nosso critério de humanidade! Procurava-se com ela defender a integridade dos patrimônios, impedindo as sucessivas partilhas que tudo desmembram tornando em parcelas ridículas as maiores propriedades. Contra as suas inconveniências, mais tarde reconhecidas, o que levou à sua abolição, não vale a pena agora insurgirmo-nos. O que foi, foi!

- Pois foi. mas as conseqüências ainda as sofremos nós!

Reinou por instantes um silêncio de mal-estar.

Depois, a tia Casimira, muito lentamente, disse:

- Precisamos de aceitar outra explicação para o caso.

- Qual?

- Esta, Teresa Mafalda. O tio Miguel (admitindo que fosse realmente nosso tio) podia ter comprado aos irmãos a parte deles, a sua legítima, como se dizia Depois de avaliada, ele teria pago aos outros o que de direito lhes coubesse, tornando-se desta forma no único dono da Quinta.

O silêncio volveu-se ainda mais profundo. Alguns segundos decorridos, Dona Teresa Mafalda falou de novo.

- A tua explicação afigura-se-me mais razoável. De qualquer maneira acho necessário indagar o que foi que sucedeu ao dinheiro da venda!

- Ao dinheiro da venda, Mafalda?

- De certo! Quando esse D. Miguel morreu não devia ter gasto tudo o que recebera! Onde foi parar o que restava?

Só depois de acender e apagar, num gesto de impaciência, um cigarro, é que o Dr. Juiz respondeu à mulher.

- Teresa, nós não temos nada a ver com a fortuna desse parente de cuja existência até agora nem sequer suspeitávamos. Mas absolutamente nada, percebes ? - e respirando como se o ar lhe faltasse: -Aliás, por simples dever de investigação, tratarei de procurar elementos que permitam conhecer o desmembramento da família. Nunca pensei nisso, na dispersão imposta pela vida. Penso hoje, obrigado pelas circunstâncias actuais, de facto merecedoras de atenção. É sempre agradável saber por onde corre o nosso sangue. Mais nada!

Dona Teresa Mafalda dir-se-ia tão sufocada como se alguém lhe houvesse posto a mão na boca. Depois, sem mais palavra alguma, ergueu-se e retirou-se.

Rosarinho doeu qualquer coisa dentro do peito.

A Mãe. a Mãe não devia ter feito nem dito nada do que ficava a magoá-los a todos. Porquê? Para quê?

Havia motivos, havia razões - as dificuldades materiais de sempre! - mas não adiantava erguer uma sombra na harmonia reinante. Nenhuma delas era interesseira.

Quando levantou os olhos do tapete, encontrou os do Pedro fixos nela, tal qual como se ele soubesse exactamente o que ela estava a pensar.

Todos reconheciam que era necessário amenizar o serão, modificar o alvo dos pensamentos de cada um, criar um ambiente mais adequado ao convívio ameno para que se achavam predispostos.

O Paulo fez a primeira diligência e, por não se lembrar de nada mais adequado, principiou:

- A propósito de São Boaventura O Pedro deteve-o.

- Não, Paulo. Mais São Boaventura, não!

- Eu ia contar uma história aquela da dentada do Rumané a um dos rapazes no dia da briga.

- Conta! - pediram as meninas, para as quais tudo o que se referisse à Quinta possuía uma espécie de sortilégio.

O Pedro, obstinado, não deixou.

- Tenham paciência. mas não!

- Que se há-de então fazer ?

- Podíamos jogar qualquer coisa.

- E o quê?

- Um jogo de prendas! - sugeriu a tia Casimira.

O alvitre não foi coroado de êxito.

- Não tem graça, tia! - opinou a Rita.

- E o jogo dos disparates, an?

- Ora, tia Mira! Isso são entretenimentos de meninas de 10 anos! - comentou a Mirita, com plena concordância do Zé Chaves.

- Pois fiquem sabendo que eu, quando rapariguinha aí dos meus 15 anos, era o jogo que mais apreciava! - e sorrindo maliciosamente: - Não vão chamar-me atrasada mental por causa disso, espero.

- Oh!. . - reagiram todos, arredando a suspeita assim posta.

O Dr. Juiz, recostado na sua poltrona e circunvagando o olhar de uns para os outros com bonomia, pronunciou-se:

- Como não chegam a acordo, acho melhor que votem.

- Que votemos?

- Claro! Quem tiver uma idéia, expõe-na e depois votam, cada um na que preferir, evidentemente. A mais votada, como é lógico, toma o seu lugar de vencedora!

- Vamos a votos, vamos a votos! - riram raparigas e rapazes, aplaudindo.

Passada a explosão, ficaram com um ar sisudíssimo, mergulhados em cogitações à procura de algo que possuísse originalidade para se impor à maioria.

E, de repente, a Rita explodiu em gargalhadas.

Olharam-na todos, surpreendidos.

- Porque é que está tão divertida? - indagou a Mirita.

E ela:

- Porque me lembrei de quando éramos pequenas e ficávamos como neste instante, caladas, suspensas. à espera que a Lili sonhasse!.

A Lili desatou a rir também. E as outras duas, logo a seguir, fizeram coro com elas.

Os rapazes pediram explicações. Queriam conhecer o motivo daquela hilaridade repentina e tão contagiosa que a tia Casimira e o Sr. Dr. Juiz também já riam e com gosto.

- Eu conto - disse a tia Casimira por fim. -Eu conto! A Lili certo dia convenceu as irmãs de que sonhava em episódios.

- Em episódios?

- Tal qual, em episódios, como os folhetins Inventava uma história qualquer e ia-a desenrolando vagarosamente, conservando-as presas de um enorme interesse de dia para dia. "aqui termina" - "amanhã continua". As pobrezinhas passavam horas de excitação e de impaciência, aguardando que a irmã tivesse sono e começasse a sonhar E havia encenação!

- Como encenação, S'Dona Casimira? inquiriu o Zé Chaves, que nunca ouvira falar no caso.

- " Assim - a Lili deitava-se e as irmãs sentavam-se no chão, ao lado da cama, atentas, às vezes a roer as unhas de nervosismo. Ela fechava os olhos devagarinho e aos poucos ia começando a ressonar. Chegava a levar nisto um quarto de hora! Depois acordava, sentava-se e narrava mais uma passagem do sonho, quase sempre cheia de pormenores emocionantes.

- Nós andávamos sempre de roda dela a perguntar-lhe "não quer ir dormir um bocadinho, Lili?" - proferiu a Rosarinho. -Eu era muito pequena mas lembro-me perfeitamente de tudo.

E a Mirita:

- Pudera! Ela deixava-nos sempre a aguar pelo resto das histórias!.

- E a história arrastava-se, demorava O pior foi que a Lili, senhora da situação, principiou a especular!.

- Oh, tia Casimira? -protestou a Lili, ligeiramente encavacada.

- Especular, menina, não há outro termo para designar o que fazias.

- E que fazia a Lili?

- Eu lhe digo, Pedro. Tinha exigências que as outras respeitavam porque, dizia ela, se a incomodassem, ou contrariassem, não poderia sonhar. Estão a ver o resultado! A partir de um dado momento, as mais novas viviam angustiadas, com medo que a Lili, por qualquer coisa, as deixasse nesse dia sem o seu episòdiozinho. E a Lili, que devia nessa altura orçar pelos 14 anos.

- 15, tia! Já fizera os 15! -. abusava!

- Eu não tinha a noção do mal!

- Graças a Deus!

- As condições impostas eram assim tão graves, Sr. D. Casimira? - perguntou o Paulo.

- Hum, bastante! Por exemplo requeria que as outras lhe fizessem os trabalhos de casa que no dia lhe competiam.

- Oohü!

- E às vezes também certos exercícios do Liceu.

- Principalmente a passagem de apontamentos - lamentou-se a Mirita. - Eu fui a grande causticada por essa exigência!

Todos riam francamente, divertidos com a história em si e com o embezerramento da Lili.

- Já agora, tia Casimira, conte tudo - desabafou Leonor Augusta, a querer redimir-se pela confissão pública.

- Que tudo?

- Que eu me tornei intolerável ao ponto de me fazer pagar.

- Pagar? - estranharam os rapazes.

- Pois, pagar! Para que os meus sonhos pudessem ser bonitos precisava de bolos, de chocolates, de rebuçados. e elas enchiam-me as algibeiras e as gavetas, renunciando a todas as gulodices para que a mim, graças à fartura, não me faltassem os belos sonhos.

- E como foi que isso acabou?

- Acabou - disse a tia Casimira, - porque ela se esqueceu um dia dos pormenores do episódio que na véspera havia contado e nada batia certo entre eles. E quando deu por isso, a pateta, em vez de arranjar uma explicação para os factos, voltou para trás na tentativa de emendar a asneira.

- E foi aí que nós percebemos que estávamos a ser logradas e exploradas! - encadeou a Rita.

E a Mirita:

- É claro que nos vingámos! E não lhe permitimos que mesmo acordada nos revelasse o desfecho do enredo. Desinteressámo-nos!

Estrepitaram gargalhadas. A Lili, com uma sensaçãozinha de culpa antiga a magoá-la, tentou justificar-se:

- Não há miúda que não tenha a sua idéia completamente disparatada. E nesta casa não fui a única a fazer tolices. As minhas maluqueiras achavam boas réplicas!

- Isso é verdade! - corroborou a Rosarinho, óptima rapariga como sempre. -Pela parte que me toca, então!.

- Eu também fiz muitas! -penitenciou-se a Mirita. -Recordo-me bem daquela vez em que, por causa de uma nota má no Liceu (em Francês!) resolvi suicidar-me!

- Suicidares-te?

- Pois! Escrevi uma carta à família a despedir-me e bebi um tinteiro cheinho!

- Que horror! - exclamaram o Pedro e o Paulo.

O Zé Chaves olhava-a como se sentisse receio de que ela ainda corresse perigo, enquanto a tia Casimira elucidava:

- Fui eu que a levei ao Hospital, onde lhe fizeram uma lavagem ao estômago!

- Uma coisa pavorosa de que nunca me esqueci! - acrescentou a Mirita. -Acabei por me arrepender mil vezes do disparate, tanto mais que o meu Pai me deu nesse dia a maior bofetada de sempre!

- A maior, filha? Acho que foi a única! e após a rectificação, virou-se para os rapazes: - Nunca achei que bater nos filhos fosse sistema de educação!

- Pois não - riu a Rosarinho, travessamente, - mas palavra que ainda sinto arder no sítio onde levei certa ocasião uma destas palmadas!

- Uma palmada? - e via-se que o Dr. Juiz não se recordava. -Quando?

- O Pai não tem idéia?

- Não, Maria do Rosário.

- Conte! -pediram as irmãs, que também não sabiam de que se tratava.

E a Rosarinho:

- De resto foi uma palmada muitíssimo bem aplicada - e descreveu a cena. - Devia eu ter os meus 5 anitos. Havia cá em casa um cãozinho, o Yontchi.

- Ah, sim o Yontchi, pois! Era um basset que me tinham dado.

- Lá a raça dele não sei, Pai! Sei apenas (é como se estivesse a vê-lo!) que era muito comprido, rente ao chão, com a forma quase de um chouriço.

- Como os Pifeis da Dona Redonda! comparou a Rita, perfeitamente lembrada do Yontchi.

- Que é isso da Dona Redonda? - indagou o Zé Chaves.

- Dona Redonda é o nome da heroína de um livro de que nós cá em casa sempre gostámos imenso, escrito por Virgínia de Castro e Almeida.

- Ah, bem sei, li-o em garoto! -disse o Pedro. - E a minha irmã adorava a Dona Redonda, e a Zipriti, e

O Dr. Abegorim, interessado na evocação dos factos que se lhe haviam varrido da memória, evitou que o assunto derivasse:

- Mas então o que foi que se passou, Maria do Rosário?

- O que se passou foi que o Pai deu comigo no quarto de banho, acocoradinha, com o Yontchi bem seguro, pronta a enterrar-lhe um alfinete no dorso.

- Pobre bicho!

- O Pai agarrou em mim e por mais que eu tentasse explicar que só tava a dar uma inzecção ao cãozinho não me livrei da tal palmada.

O Dr. Juiz recordou-se imediatamente.

- Pois, pois, já sei! - e surpreendido: Como tu retiveste a cena!

O Paulo emitiu então o seu parecer:

- Realmente, o hábito de bater não é ideal, mas temos de concordar que às vezes uma palmada tem não só a sua justificação como a sua eficácia!

- E perdem-se algumas que deviam ser dadas! Contra mim falo, que nunca apanhei. Mas reconheço que aí até aos 14 anos fui levado dos diabos e uma tareiazita, ou pelo menos um par de tabefes de vez em quando, não me tinham feito mal nenhum. -a afirmação provinha do Zé Chaves.

E a Mirita, sem disfarçar a ironia - uma ironia temperada de ternura, aliás:

- Só até aos 14 anos é que foste levado dos diabos?

O rapaz deixou passar a alusão, para não perder o fio à meada.

- Certa vez fiz uma coisa que sempre que penso nela reconheço que merecia pelo menos duas boas estaladas.

- O que foi? - perguntaram quase todos.

- Imaginem que eu tinha ido a uma pastelaria com um amigo - andávamos então no Liceu Pedro Nunes. Eu, que fui sempre muito guloso, requisitei um prato com bolos de chantilly - daqueles a que chamam, muito pomposamente, duchesses sabem ?

Claro que sabiam.

E o Zé Chaves prosseguiu:

- O meu companheiro pediu um prego. Trouxeram-nos tudo, incluindo a mostarda, que vinha num cesto de plástico com um bico. Pois são capazes de supor o que me deu na cabeça fazer? - e após uma pausa a deixá-los saborear a expectativa. -Recheei os deliciosos duchesses que não me apeteceu comer com quanta mostarda coube debaixo do creme. Imaginem só a cara das pessoas que vieram a trincá-los!

Ainda riam dessa maldade não tão impune como isso, visto que o Zé Chaves a exprobrava a si próprio, quando a tia Casimira observou:

- Se calhar por causa dessas e outras é que veio a proibição de porem nas mesas das pastelarias os pratos com bolos. Realmente, há que evitar semelhantes partidas!

E o Dr. Juiz:

- Considero essa uma medida higiênica e muito acertada! - e dando por que o relógio carrilhão, no escritório, batia horas. - Ah, meia-noite, já!. - e para os rapazes: -Eu não quero mandá-los embora, an ? Mas amanhã é dia de trabalho e vai sendo tempo de descansarmos.

Eles puseram-se de pé, acto contínuo, a iniciarem as suas despedidas. A tia Casimira disse então:

- bom o meu trabalho de amanhã, igual ao de hoje exige sempre pouco! O que não tem nada a ver com o sono - e para os rapazes: - Se quiserem, levo-os a casa.

O Pedro agradeceu:

- i Muito obrigado, sr.a D. Casimira, mas hoje trouxe o meu carrito, o carrito que a minha Mãe deixou cá ficar. Esteve uns dias na oficina, por causa de uma peça que se partira e estava esgotada, mas já o tenho, felizmente, que bem falta me faz!

O Dr. Juiz sorriu, benévolo e compreensivo:

- Necessidades do tempo presente sobretudo entre os mais novos.

Ninguém rebateu a afirmação. Na verdade, o Dr. Juiz não possuía automóvel.

A tia Casimira voltara-se para o Zé Chaves:

- E tu? Também tens o teu à porta?

- Também, Tia Casimira.

- Vá dizer à Mãe que se vão todos embora.

A ordem do Dr. Álvaro Abegorim fora dada à Rita, que saiu e voltou num instante - enquanto a tia envergava o casaco.

- A Mãe pede desculpa, mas sentia-se indisposta e deitou-se.

O Juiz abafou um suspiro. Era sempre assim. Quando alguma coisa muito a agastava, Dona Teresa Mafalda dizia-se doente.

Que pena!

E para quê? E porquê, perder tão grandes prazeres da vida, às vezes pelo que nada vale ou vale pouco demais?

Findas as despedidas, todos abandonaram a sala.

O Dr. Abegorim foi fechar-se no escritório. Ia pensar, ou escrever, ou inquietar-se, mais uma vez até de madrugada.

Já com a porta da rua aberta, no corredor, Lili chamou o Pedro de parte enquanto os outros, aproximando-se gradualmente do elevador, trocavam as últimas impressões:

- Ouve. queria pedir-te um favor.

- A mim? -e aguardava, fitando-a naturalmente surpreso.

Como ia longe o tempo em que ambos, tão gaiatos, pensavam um no outro sem suspeitarem dessa reciprocidade!

- Pedro, tu conquistaste o meu Pai. Ele gosta muito de ti e também do Paulo. Vocês agradam-lhe sob todos os aspectos. Eu tive a pouca sorte de escolher para meu futuro marido um rapaz por quem o meu Pai não tem qualquer simpatia.

- Estimá-lo-á quando lhe reconhecer as qualidades, descansa.

- Acredito! Mas, entretanto. tu podias falar-lhe nele. Ajudavas-me e ajudavas o meu Pai Aos poucos, ir-se-ia habituando. Faz-me tanta pena ver todos recebidos cá em casa excepto o meu pobre Júlio!

Pedro não quis esclarecer o motivo que levava a Lili a dizer "todos recebidos". Tam-pouco valia a pena Poisado nele, o olhar magnífico de Maria do Rosário era uma explicação de tal forma eloqüente.

E, sorrindo, o Pedro prometeu a Leonor Augusta:

- vou fazer os possíveis!

Minha querida Ana Maria.

Pudessem as palavras escritas, à maneira dos antigos poetas, adoçar a falta que fazemos uns aos outros!

Mas as palavras não podem consegui-lo e talvez seja por isso que tenho deixado passar os dias sem te dar notícias. Muito mais de 15? Deus, será possível?

Aqui perto de mim, o Paulo censura-me (ele que diariamente passa pelo menos meia-hora a escrever-te -nunca percebi como é que os escritores se arranjam para terem sempre que dizer -) e rectifica o meu cálculo. ". Já lá vão três semanas" - afirma, visto que os postais ilustrados rabiscados à pressa não contam. E nem sequer tenho como desculpa o admitir que te encontras integrada no teu ambiente graças às cartas exemplarmente regulares do Paulo visto que assumimos o compromisso formal de não falarmos nós dois se não dos assuntos pessoais, para não invadirmos os nossos mútuos terrenos.

E saber onde começam e acabam os assuntos pessoais quando há tanta coisa em comum a interessar-nos, a ligar-nos?

- Não inventes desculpas, Pedro és tu que estás a dizê-lo!

Baixo a cabeça, entalado: -Mana, perdão Não foi por mal!

E humilde, de mão estendida a suplicar compreensão, tento descobrir por onde hei-de começar.

que. não há dúvida! Estas paragens longas são prejudiciais à perfeita ligação do que ficou para trás com o que há-de vir depois. principalmente a quem não tem bossa de escritor - e na verdade julgo que tu e o Artur absorveram todo o jeito da família para as lides literárias. A propósito do Artur - que me dises à colocação que ele arranjou? E pergunto "que me dizes" porque sei que ele já te escreveu a contar.

Formidável, an?. Há-de ir longe, o nosso primo. E, ao que parece, por um trilho seguríssimo, de mãos dadas com a tua amiga Inês, por quem ele está verdadeiramente enamorado - isto é, enamorado a sério, logo muito calmo, sem os loucos arroubos das paixões que não auguram nada de Bom. Falta quase sempre a esses grandes impulsos aquilo a que se chama alicerces.

E.

Bem, a propósito de paixões a sério! - repara! - tenho uma grande novidade para te dar.

Pois, querida, é isso mesmo! Adivinhaste.

Por quem?

Lembras-te das nossas vizinhas do 4-? andar? Vá, não sejas precipitada, não faças olhinhos matreiros e não digas, a rir-te com covinhas maliciosas muito cavadas nas bochechas: - com que então outra vez a Lili?

Não é nada a Lili outra vez.

A Lili namora o Júlio, o meu amigo Júlio Matinha - o filho da Sr. Januária, é isso mesmo! - (e por acaso até preciso de ver se dou um jeito naquilo, que o Sr. Dr. Juiz não leva a bem o casamento - entendem-se as razões- mas precisa de mudar quanto antes pois na realidade o Júlio é um óptimo rapaz cheio de bons sentimentos não só capaz de ir longe na vida como e principalmente de tornar a Leonor Augusta, nome de baptismo da Lili, inteiramente feliz). Portanto desfaz as covinhas e diz-me cá: - lembras-te da miúda de tranças, uma loirita de olhos azuis escuros, que andava no Liceu um ano atrás de ti? Sim, tu eras já uma mulherzinha, no aprumo e na maneira de ser, e ela não passava de uma catraia. A Rosarinho, pois! A Rosarinho.

Sim, Ana. Gosto deveras da Rosarinho. Ela é qualquer coisa" de muito puro, de muito belo, onde há tanto da nossa maneira, dos nossos ideais, dos nossos sonhos, da nossa concepção da vida - do nosso lar!

A Rosarinho afigura-se-me um desdobramento de tudo o que eu amo. Uma coisa certa e justa - o meu caminho limpo, recto e luminoso.

Tudo começou por acaso, quando ela olhou para mim com a candura da sua maneira de ser onde não cabem idéias preconcebidas.

A medo, sem perceber o que estava a passar-se comigo, principiei a telefonar-Lhe. Depois fui esperá-la à saída do liceu.

Tal como o Paulo ao lado da Ana Maria, passa agora o Pedro ao lado da Rosarinho.

Gosto dela, minha irmã. E ela gosta de mim.

Não me faças discursos com vista a uma prudência sem motivos. Não- armes em Paulo que enruga a testa e me diz, cavernosamente "Duvida de ti, tu que és um apaixonadiço. "

Não o repitas, peço-te, Ana Maria. É que só o tempo provará que nem sequer estou apaixonado. Gosto - o que me parece cem por cento diferente.

E - suplico-te! - também não me chames "pobre Pedro" como a avó Teresa há bocado.

Eu descrevo-te a cena.

A avó telefonou-me. Pressenti-a, logo de início, muito embaraçada. Pois se é transparente, na sua bondade, como uma criança! "Pedro necessito de falar contigo." "Sim, Avòzinha, com todo o prazer!" "Então, vem almoçar comigo." "Certamente e muito obrigado. "

Fui. O avô não estava - creio que intencionalmente precisara de se encontrar com um sujeito por causa de uns dinheiros. Razões especiais!.

Uma vez em tête-à-tête - no aconchego do lar da nossa querida Teresa bonita que até dá gosto -acho que te pareces com ela, sabes - a avó pôs-se a mirar-me de alto a baixo com aqueles olhos meigos que o nosso Pai herdou - e disso não há quaisquer dúvidas. E depois de muito bem me mirar, ei-la que principia: (não garanto que as frases sejam textuais, mas são, isso juro-o, muito parecidas!):

"Pedro, eu sei que tu és um rapaz ajuizado. Mas tens 20 anos e os rapazes de 20 anos, por mais ajuizados, são sempre susceptíveis de não medir o alcance dos seus actos e as conseqüências das suas atitudes. É normal que um rapaz de 20 anos se divirta, namorando. Todos os rapazes de 20 anos se divertem, namorando e é bem bom que o façam, para não quererem recuperar o tempo perdido depois dos 20 - dado que nessa altura o que antes podia ser ingênuo se torna complicado e às vezes sujo. Mas também aos 20 anos é preciso cautela! Todas as cautelas são poucas!. Ora tu, é evidente, estás na idade de namorar e eu até gosto que namores, claro! Mas como ainda te encontras muito longe de pensares em prender-te definitivamente, vê quem namoras, meu pobre Pedro! Não me andes a desinquietar uma menina de bem. "

Aqui interrompi a nossa avó, já com a plena noção do alvo que ela pretendia atingir. E embora me apetecesse gracejar com ela, não o fiz, achando preferível tranqüilizá-la. E volvi-lhe - "Avó, 20 anos já principia a ser idade da razão e um rapaz pode ir deitando os olhos para uma escolha serena e acertada. O Paulo, por exemplo, decidiu-se pela Ana Maria há muito tempo e sem remédio. E ela também se decidiu por ele mais cedo do que o costume - do que não se vislumbra qualquer mal! "

E a avó Teresa que, estou certo, não tencionara pronunciar qualquer nome, retorquiu-me, atraiçoando-se ingenuamente: "Não quererás tu convencer-me de que pensas na Rosarinho para vir a casar com ela?" E eu, como se achasse naturalíssimo aquele descobrir do que não havia razões para ela conhecer: "Porque não, Avó? Não gostas da Rosarinho? "

Ouve agora o melhor. A expressão da avó Teresa mudou, tornou-se enlevada e sorriu: "Oh, Pedro, se fosse a sério, mesmo a sério, palavra que eu não hesitava em me tornar para ela numa verdadeira avó e desde já!. " "Acho muito bem! Podes começar." "Não, Pedro, não posso!" ". Porquê?" ". Ora supõe que eu chamava a menina a mim, que eu a habituava a considerar-se da nossa família, que contribuía para que ela se te dedicasse de alma e coração. e depois tu acabavas com tudo?" Não agüentei mais e interrompia-a: "Oh, Avó, isso não! Tão mal me julgas porquê? Então eu ia perturbar a paz de uma rapariguinha daquelas? Julgas-me um garotão sem escrúpulos, capaz de dar cabo de um botão de rosa, só pelo gosto de o espatifar entre os dedos? Oh, Avó. "

E então abri-me. Falei com toda a lealdade e expliquei-lhe porque é que a Rosarinho constitui o meu ideal de noiva - logo de futura esposa, Há nela muito de uma Rosinha-Mãe, em potência, claro!

Evidentemente que ninguém É aos 16 anos. Todos começam aos 16 anos, mas o que tiverem de ser concretiza-se mais tarde. Assim, a minha Rosarinho contém nela as qualidades que hão-de vir a fazê-la. Percebes?.

Percebes, como a avó percebeu, depois de ouvir o muito que lhe disse e, sinceramente, não sei agora reproduzir. Nem interessa. Porque tudo se condensa nesta afirmação que vem do fundo de mim próprio- estou completa e verdadeiramente seguro de que foi com plena consciência que escolhi a tua futura cunhada no seio da família Abegorim.

E a propósito da família Abegorim. Imagina tu que o Dr. Juiz parece ser aparentado com D. Miguel Abegorim, o último dono de São Boaventura antes de nós. Tal e qual! O nosso vizinho de há tantos anos talvez seja sobrinho do bom velhote que nos vendeu a Quinta. Que me dizes a este golpe de teatro?

Estávamos fartos de saber que no nosso prédio viviam os Abegorins, mas nunca ninguém se lembrou sequer da coincidência dos nomes. E foi o Paulo quem de repente, sem, que nada o justificasse, descobriu a identidade dos apelidos.

Resultado - o Dr. Álvaro Abegorim, solicitado por uma idéia de investigação digna dos maiores encómios, pretende certificar-se do que para ele tem apenas um interesse sentimental. Digo para ele porque para a sr.a D. Teresa Mafalda - que embora me trate com extrema simpatia continua a ser a pessoa menos simpática da família, no que é contrabalançada pela irradiante simpatia da tia Casimira, aquela senhora baixinha com um ar de menina eterna, lembras-te? - o interesse revela-se muito diverso e menos louvável. De facto, D. Teresa Mafalda quer por força que o marido descubra o que sucedeu ao resto dos bens de D. Miguel Abegorim pois, a confirmar-se o parentesco e segundo ela deixa adivinhar (isto sem se lembrar de que há membros da família espalhados pelo mundo) têm direito à herança.

Enfim!

Pessoalmente, acho delicioso pensar que uma Abegorim voltará a pisar o chão dos seus antepassados, a dormir sob os tectos onde com certeza tantos nasceram, e viveram, como o dono daquela camisinha que a nossa Mãe achou guardada no contador de pau-preto.

A vida tem coisas muito engraçadas!

Sei pelo Paulo que a tua colaboração se tornou efectiva no Programa Juvenil de Rádio-Luanda e que os teus primeiros contos, teatralizados, estão a agradar. Parabéns e continua. Só te peço que por melhor que tudo te saia hoje penses que amanhã terás de conseguir mais. Felizmente que és incapaz de te envaidecer e de parar no teu trabalho, ficando a admirar o anteriormente feito. Só assim se alcança uma plataforma colocada mais acima, na rampa íngreme dos que hão-de realizar algo.

Uma novidade -em primeira mão, suponho.

O Artur colocou-se como redactor no Jornal do Meio-Dia. Está radiante e realmente decidido a ficar-se pela escolha da Inês. Aqueles dois também acertaram, creio. E daqui a uns anos, palpita-me que pouquitos, lá iremos ao matrimônio muito bonitos e todos contentinhos.

Resta saber qual de nós dará primeiro o sagrado nó!.

Ai, e a propósito de nó - recebi ontem carta do Fernando Vasco, após um silêncio de mais de três meses. Continua lançadíssimo, mas afigura-se-me um tanto blasé - no que a palavra significa cansaço de fartura. Ele foi sempre aquele rapaz que olhava a vida sem grande entusiasmo. Depois, com o torvelinho de tanta coisa nova, inesperada e magnífica, o gelo fundiu-se em parte. Agora dá-me a idéia de se ter começado - sabes a quê ? - a frigorificar! Fala-me de filmes, da viagem às Filipinas (de que não gostou. ), de wma estadia em casa de uma célebre vedeta italiana que parece deveras empenhada em fazer dele o. quinto marido. Precisamente, o quinto. E ele? Ele próprio, o nosso amigo? Ele, depois desta comunicação, escreve uma frase que me fez rir e transcrevo, para que também a saboreies. - Que penso eu, no meio de tudo isto ? Que a minha futura esposa deve estar ainda a criar-se Na verdade, há no meu subconsciente vozes que me dizem que ela talvez se chame Maria Rosa Ferreira de Macedo. Calcula tu!

Seja como for, transparece uma verdade boa -o rico e célebre Jacques Bertrand não absorveu totalmente o Fernando Vasco que tanto gostou de uma certa menina que eu cá sei, ou melhor, que nós sabemos.

Mudemos de assunto Pois mudemos!

Mais notícias?

O trabalho corre bem. O que estudo, fica cá dentro - gosto de pensar que vou ser inteiramente médico. Compreendes o que quero dizer com esta frase, claro. É isso mesmo. Médico porque terei um diploma e médico porque viverei para Ser Médico, logo para amenizar dores, dar fim a males e prolongar a vida sempre que nas minhas possibilidades caiba servir o meu semelhante.

De saúde, refeito. Como de tudo, bebo pouco, fumo raramente. Aumentei dois quilos desde que vocês se foram embora. Não são visíveis, espalhados neste espaço longo que sou, mas a balança certificou-os. Engordei, mana, apesar das saudades. destas saudades que aqui, em casa do teu Paulo, todos procuram adoçar: estas saudades obstinadas que à noite saem do meu coração e enquanto durmo fazem vela junto dos vossos retratos e de manhã voltam para o seu refúgio permanente e andam comigo por toda a parte.

Ah, é verdade, já me ia a esquecer: vem aí o Vic Nusen! Vem, sim! Não sei ao certo a data da chegada, mas a apresentação dele está marcada para bastante breve.

As minhas futuras cunhadas são umas raparigas muito agradáveis.

Heim? A que propósito me saí com esta frase a despropósito? Ah, não sei, querida! Foi. olha, foi um desabafo. Um desabafo com o qual te vou deixar.

Como parto do princípio de que terás estado a ler a carta em voz alta para que a minha presença espiritual fosse compartilhada por todos, só digo mais isto: considerem-se osculados até eu perder o fôlego!

E saibam que a nossa casa vazia pasma de conseguir sobreviver sem nós lá dentro.

Do teu irmão que te adora

Pedro

  1. S. - Mandem retratos, principalmente da Maria Rosa, para que eu me vá habituando a aceitar uma menininha em substituição do bebê que nunca esquecerei nem me conformarei de não tornar a ver.

Vagarosamente, na tarde já noite, o Pedro, sem reler a carta, dobrou-a, meteu-a no sobrescrito, fechou-a, escreveu o endereço. E ficou-se a olhar o nome e a direcção. E a esquecer-se de que tinha de ir ao correio, absorto em pensamentos que eram outras tantas interrogações.

Tanta coisa à espera dele, deles todos! Tanto a viver, para ele e para os outros!

Mas o quê? santo Deus, o quê? O que se ocultaria nos dias que haviam de vir?

 

 

                                                                                                    Odette de Saint Maurice

 

 

 

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