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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PEÃO / Steven James
O PEÃO / Steven James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

5 de março de 1985
La Cruxis, Mississippi
16h13
Aconteceu no andar de cima da casa dela, depois da aula, numa tarde de terça. Os pais dela ainda estavam no trabalho, como sempre. Por isso, Aaron Jeffrey Kincaid e Jessica Rembrandt tinham a casa toda para si. Como sempre. Quase todas as tardes ficavam ali, se beijando e dando amassos no porão.
Mas hoje era diferente. Hoje era o dia.
Jessie sorriu para o namorado ao destrancar a porta de casa.
– Aaron Jeffrey Kincaid – suspirou ela – eu amo você. – Sua voz soou tão cativante, tão viva. Dizia mais que eu te amo; dizia: acredito em você.
– Também te amo, Jessie. – Ele passou à frente dela e abriu a porta. – Sempre vou te amar. – Ele dizia as palavras suavemente, persuasivamente, mas se perguntava se realmente falava a sério. Se perguntava se a amava mesmo; se algum dia amara alguma coisa.
Ele a pegou pela mão quando entraram na sala de estar. Então, com um movimento suave da outra mão, fechou a porta atrás deles.
Os dois estavam saindo juntos havia quase três meses. A princípio, para ele, tinha sido como qualquer outro relacionamento – depois que a empolgação inicial se esgotara, ele começara a se entediar com ela; começara a se perguntar se não seria mais feliz com outra pessoa. Mas quanto mais tempo ele passava com ela, mais se dava conta de que ela fazia coisas para lhe agradar. Coisinhas pequenas. Ia ver os filmes que ele gostava. Usava as roupas que pedia que usasse. E o deixava fazer coisas com ela, às vezes qualquer coisa que ele quisesse fazer. Portanto, naturalmente, um dia ele começou a se perguntar até onde ela iria para satisfazê-lo, quanto estaria disposta a fazer. Quem não se perguntaria algo assim?
Eles subiram para o quarto dos pais dela. Era lá que ficava a banheira de hidromassagem.
Ele a conduziu pela mão, e ela o seguiu sem nenhum sinal de hesitação em seus passos. Impressionante.
No começo daquele ano, um casal havia sido encontrado num carro. Na garagem. Suicídio duplo. Por isso, vários orientadores foram ao colégio deles conversar com os alunos sobre a morte, a esperança e as razões para viver. Uma orientadora, uma mulher delicada com doces olhos cor de caramelo, o entrevistara individualmente.
– Aaron, você já pensou em acabar com sua vida?
E Aaron a olhara com olhos arregalados e inocentes.
– Bem, como a maioria dos jovens, acho. – Ele estava bancando o ingênuo, procurando compreensão e compaixão nos olhos dela, jogando com ela. – Acho que já pensei nisso; em suicídio, quero dizer. Mas nada sério. Nada específico.
E ela balançara a cabeça e fizera uma anotação em seu caderno.
Então ele se curvou para a frente.
– Tem alguma coisa errada comigo?
Ela sorriu.
– Não, claro que não, Aaron. É perfeitamente normal pensar em acabar com a própria vida, às vezes. Eu ficaria um pouco preocupada se isso jamais tivesse passado pela sua cabeça. – Ela então rira, como se aquilo devesse ser engraçado ou reconfortante ou algo assim. E olhou para ele do outro lado da mesa de forma encorajadora, e ele abriu um sorriso infantil e confiante.
– Obrigado – ele dissera. – A senhora foi muito útil.
E depois disso, os orientadores deixaram seus telefones em cartões e em cartazes nas paredes da escola para os jovens que se sentissem solitários, deprimidos ou precisassem de alguém para conversar.
– Eles vão voltar daqui a dois meses – a diretora disse aos alunos numa reunião na quadra esportiva – para dar acompanhamento a quem precisar conversar mais.
Talvez tivesse sido de tudo isso que ele tirara a ideia – do suicídio duplo, das reuniões e da orientadora com olhos de corça. Era difícil saber. Aaron tentara determinar sua origem exata, mas acabou percebendo que, às vezes, as ideias surgem totalmente formadas, como no caso daquela. E no final, não importa tanto de onde elas vêm, e sim aonde elas levam, o que você faz com elas.
– Tudo vai terminar logo – disse Jessie, quando eles entraram no quarto. A voz dela estava mais agitada agora, alterada. Talvez o medo tivesse começado a surgir.
– Não, tudo vai começar logo. – Ele foi até a janela e fechou as persianas para bloquear o sol quente da tarde. Alguns raios de sol passavam pelos espaços entre as persianas e pousavam sobre os lençóis levemente amassados da cama dos pais de Jessie – faixas de luz e escuridão umas perto das outras, lado a lado. Ele atravessou o quarto zebrado até os braços dela. – Logo tudo vai começar – repetiu. – E então estaremos juntos para sempre, e nada jamais vai conseguir nos separar.
– Estou pronta – sussurrou ela.
– O mundo é cruel – disse Aaron Jeffrey Kincaid.
– O mundo é cruel – repetiu Jessica Rembrandt.
– Mas nosso amor vai nos unir para sempre.
– Nosso amor vai nos unir para sempre...
Aaron puxou a faca de caça de aço polido de sua mochila e levou Jessie até a banheira de hidromassagem. A faca tinha um lado serrilhado e outro perigosamente afiado e curvo. Eles a escolheram juntos na semana anterior, numa loja de artigos esportivos no shopping. Os dois planejavam aquilo havia semanas, para que tudo fosse perfeito.
Depois de encontrarem a faca, Aaron havia mandado que ela a comprasse com dinheiro vivo enquanto ele esperava do lado de fora para “ficar de guarda”. Ele a fizera pensar que tudo havia sido ideia dela. Ele era bom nisso.
Jessie ligou a hidromassagem.
O motor roncou, lançando jatos de água quente aos pés deles.
– Eu vou primeiro – disse ela –, porque te amo. – Sua voz estava tremendo. Sua respiração, ofegante.
– Não, eu vou primeiro. Do jeito que a gente ensaiou.
Eles tiraram a roupa e entraram na hidromassagem. Só duas cabeças e um par de ombros eram visíveis, agora, acima da água espumante e agitada.
Era como os casais faziam na época dos romanos. Amantes sentados nas termas, deixando a água quente ajudar a drenar o sangue de seus pulsos, mergulhando na escuridão de um sono que nunca termina. Ele sabia. Tinha pesquisado. Mas aquilo era ainda melhor. Os jatos da hidromassagem ajudariam o sangue a sair mais rápido.
A água quente começou a desprender vapor.
Aaron apoiou cuidadosamente a lâmina sobre seu pulso esquerdo.
– O mundo é cruel – disse ele, repetindo o mantra que os dois ensaiaram juntos tantas vezes.
– O mundo é cruel – Jessie repetiu.
– Mas nosso amor vai nos unir para sempre.
– Nosso amor vai nos unir para sempre...
As pessoas se surpreenderiam se o vissem ali. Os pais dela nunca nem viram os dois juntos. Mesmo na escola, os dois eram solitários, por isso ninguém prestava muita atenção neles. Tudo era tão perfeito. – Todos vão saber da gente agora – ele disse. – Até que enfim.
Aaron puxou a faca na sua direção, cortando fundo a carne do pulso, e um jato vermelho atravessou a banheira. Uma dor aguda subiu pelo seu braço, mas ele não se encolheu. O corte era perpendicular à veia, para que fosse mais difícil parar o sangramento. Eles haviam ensaiado dessa forma, a melhor forma. A mais rápida.
Ele afundou sem demora a mão na água quente, e imediatamente a água começou a se encher de fantásticas espirais vermelhas. Ele se lembrou de quando via sua mãe adotiva preparar bolos na Califórnia, do corante girando numa tigela de água quente. Ele pensou nela, nos cheiros da cozinha, no som de sua risada, até que seu pulso começou a latejar. Então seus olhos voltaram para a faca que ele ainda estava segurando.
– Devo cortar o outro já? – perguntou ele a Jessica, calmamente. Ela estava hipnotizada, olhando fixamente a água avermelhada que agora envolvia suas pernas e abdômen.
– Não – ela sussurrou. – Precisamos partir ao mesmo tempo. Me passa a faca.
Ele a entregou, pelo lado do cabo, por cima da água fumegante que rodopiava.
– Esta vida é tão imprevisível, Jessie. – Ele dizia as palavras com ternura, calma e suavemente, enquanto o sangue jorrava de seu pulso e se misturava à água escarlate.
– Quem sabe o que o futuro reserva? Seu pai pode arranjar outro emprego e fazer você se mudar pra longe; seus pais podem se separar... – O sangue continuava a rodopiar ao redor dele. – Eu posso morrer num acidente de carro... É melhor assim. É o único jeito. Assim nada jamais poderá nos separar. Assim, estamos no controle do que vai acontecer. Tudo o que importa somos nós. Tudo o que importa é este momento.
– Nosso amor vai nos unir para sempre – sussurrou ela.
– Nosso amor vai nos unir para sempre – disse Aaron Jeffrey Kincaid. Ele levantou a mão e olhou o sangue escorrendo de seu pulso. Olhou as linhas que ele formava pelo seu braço e na água. Olhou os riozinhos de sangue que pingavam do cotovelo e giravam no fluxo de água, por cima das suas pernas, ao redor do seu coração, na direção da sua namorada.
Ela pegou a faca, apoiou a lâmina no pulso esquerdo, ergueu o olhar para ele.
– Para sempre – disse ela.
– Para sempre.
Ela puxou a faca rapidamente sobre o pulso esquerdo e soltou um grito abafado. Ele lhe mostrara o jeito certo de fazer. O corte era mais que sufi-ciente. Eles tinham praticado juntos usando uma faca de mesa para descobrir o ângulo certo. Ensaiaram tudo nos mínimos detalhes. E aquele corte não era o golpe superficial de alguém que estava inseguro. Os paramédicos chamam cortes assim de “marcas de hesitação”. Mas ela não estava nada hesitante. Não, não estava fazendo aquilo só para chamar a atenção. Acreditava em tudo que ele lhe dissera. Ele sabia que ela acreditava. Acreditava em Aaron Jeffrey Kincaid mais do que em qualquer outra coisa no mundo.
– Estou fazendo isto por você, Aaron – disse ela. E a expressão dos olhos dela lhe dizia que era verdade. Ela faria qualquer coisa por ele; fizera qualquer coisa por ele. – Eu te amo.
– Eu sei.
Aaron a viu olhar fixamente para a hidromassagem por um momento. O sangue estava escorrendo de seu pulso aberto agora, jorrando. Girando ao redor dela em correntes escarlates à medida que a vida se esvaía do seu corpo. Ele se perguntou o que ela estaria pensando.
– Estou com medo – murmurou ela.
– Não tenha medo. Vamos ficar juntos agora. Não há nada a temer. Apenas corte o outro pulso como ensaiamos e me passe a faca.
– Nada pode nos separar – ela sussurrou, apertando a lâmina contra o pulso direito. – Nada.
– Nada.
Ela tentou fazer o corte, mas seus tendões estavam danificados. Sua mão tremia.
– Me ajuda – ela disse fracamente.
Ele deslizou para o outro lado da banheira, pegou a mão dela e segu rou a faca com firmeza sobre a pele.
E então ele a puxou.
Ela fez uma careta, depois estremeceu, depois relaxou o braço.
– Obrigada – disse ela.
Ele soltou a mão dela e a faca caiu na água – aquele segundo corte era até mais fundo que o primeiro.
– Não se preocupe – disse ele. – Vou pegar.
A água ficava cada vez mais escura com os jatos da hidromassagem. Rodopiando e jorrando. Um vermelho mais profundo, mais forte. Ela afundara os braços na água e estava um pouco caída para o lado. Sua voz era um fraco murmúrio.
– Me abraça. – Ela tentou abraçá-lo, mas mal conseguia levantar os braços acima da água. O sangue continuava escorrendo dos seus pulsos.
Ele se curvou para perto dela.
– Não há o que temer. – Ele a segurou até que os braços dela caíram na água uma última vez.
Então, em vez de pegar a faca, ele saiu da banheira e pegou uma toalha. Ela fizera mesmo. Fizera exatamente o que ele pedira. Sim, ele tivera que cortar seu próprio pulso, era verdade, e tivera que ajudá-la, mas ela concordara. Ela o ouvira. Fora obediente até o fim.
Ninguém tinha visto os dois juntos. Ele poderia esconder facilmente o ferimento no pulso até que sarasse. Ninguém faria perguntas. Fora até mais fácil do que ele havia imaginado que seria.
O Pai ficaria orgulhoso.
– Vai ficar tudo bem, Jessie – ele disse suavemente, olhando-a. Ele tentou imaginar o que ela sentia naquele momento... a escuridão invadindo seu campo de visão pelas laterais... a imagem do namorado deixando-a sozinha na banheira... a água e o sangue pingando juntos no assoalho.
Água e sangue. Água e sangue.
– Aonde você vai? – Suas palavras eram suaves, inaudíveis. Um sussurro.
Não se preocupe, Jessie. – Ele estava pressionando a toalha contra o pulso para parar o sangramento. – Vai ficar tudo bem.
Sua boca formou uma pergunta silenciosa para ele, mas as palavras não chegaram a sair. Seus braços tremeram levemente e então pararam de se mover para sempre, enquanto Aaron Jeffrey Kincaid, sentado ao lado da água que vibrava suavemente, via sua namorada sangrando até a morte na hidromassagem dos pais.
Ah, sim. O Pai ficaria muito orgulhoso.

 

 

 

 

 

 

1
Quinta-feira
23 de outubro de 2008
Acima das montanhas do oeste da Carolina do Norte
17h31
Eu olhei pela janela do Bell 206L-4 Long Ranger IV, o helicóptero preferido da Patrulha Estadual da Geórgia e do Departamento do Interior, enquanto sobrevoávamos
a divisa montanhosa da Geórgia com a Carolina do Norte. Nuvens escuras cobriam o horizonte.
As cores do outono ainda resistiam sobre as encostas espraiadas dos Apalaches do Sul, embora o inverno tivesse começado a se infiltrar nas elevações maiores. Muito
abaixo de nós, as colinas subiam e desciam, subiam e desciam, passando rapidamente. Por alguns minutos, observei a sombra do helicóptero deslizando sobre as montanhas
e mergulhando nos vales sombreados, como um inseto gigante pairando sobre a paisagem, procurando um lugar para pousar.
Embora estivéssemos no fim do outono, faixas de água agitada se precipitavam montanhas abaixo, a consequência de uma série de fortes tempestades. Na primavera, aquelas
colinas proporcionam a mais fantástica experiência de canoagem em corredeiras de toda a América do Norte. Eu sei. Costumava remar nelas anos atrás, quando passei
um ano trabalhando perto dali como guia florestal para a Escola Outward Bound1 da Carolina do Norte. Agora parecia que aqueles dias pertenciam a outra vida.
Antes que eu me tornasse o que sou, antes de tudo isto.
Mas eu via da janela que as águas não eram azuis como eu as lembrava. Em vez disso, estavam barrentas e agitadas pela chuva recente. Serpenteando para lá e para
cá através das colinas como cobras grossas e inquietas.
Olhei para o meu relógio: 17h34. Pousaríamos dali a dez minutos. O que era bom, porque com aquelas nuvens se aproximando, parecia que não teríamos muito mais luz
solar. Talvez uma hora. Talvez menos.
Meu bom amigo, o agente especial Ralph Hawkins, havia me chamado. Algumas horas antes, eu estava em Atlanta, apresentando um seminário sobre análise criminalística
estratégica para a Conferência Nacional de Metodologia Policial. Mais uma conferência. Mais uma série de palestras. Parecia que eu só vinha fazendo isso nos últimos
seis meses. Claro, eu atuara como consultor em mais de vinte casos, mas nenhum muito importante. A maior parte do tempo, lecionava e pesquisava criminologia. Tentava
esquecer.
Devo dizer que, por mais que minha vida tivesse ficado desnorteada, a maior vítima fora minha enteada de 16 anos – não, 17 – Tessa. Depois do funeral, tentei me
aproximar dela, mas não deu certo. Nada deu. Finalmente, nos acomodamos em nossas rotinas, nossas vidas separadas. Por exemplo: aqui estava eu, no Sudeste, enquanto
ela estava na casa dos meus pais, em Denver.
Ralph não era o tipo de pessoa que perdia tempo ou conversa sendo cordial. Ele fora direto ao assunto ao ligar para o meu celular mais cedo naquele dia.
– Pat, ouvi dizer que você está de volta à ativa.
– Estou tentando.
– Bem, ficou sabendo do que está acontecendo aqui?
– Sim. – Eu acompanhava os boletins dos laboratórios de criminalística das principais cidades e as listas do FBI. Vício profissional. Eu era dependente do PACV –
o Programa de Apreensão de Criminosos Violentos era uma forma de rastrear crimes em várias jurisdições, por isso eu sabia dos assassinatos. Até dos detalhes que
eles não estavam informando ao público. Tinham sido pelo menos cinco até então, só desde fevereiro.
– Vocês acharam mais uma – disse eu.
– Sim. Uns escaladores a encontraram há mais ou menos uma hora. Estamos no local agora e, bom, eu poderia mandar o material por e-mail, mas pra dizer a verdade,
precisava dos seus olhos aqui. Deve ter alguma coisa que não estamos percebendo. A assinatura é igual. É o mesmo cara, Pat. A imprensa chama o cara de Estrangulador
da Fita Amarela.
Ralph sabia que eu detestava quando a imprensa se envolvia. Olhei para o relógio: 16h02.
– Não sei, Ralph...
– Posso mandar um helicóptero buscar você daqui a 20 minutos. Você volta pro seu hotel hoje à noite mesmo. Por isso precisava dos seus olhos já. Vêm mais tempestades
por aí, e não quero perder nenhuma pista. O que me diz?
E eu disse que sim.
Porque eu sempre digo que sim.
– Mande pra mim as fotos que o seu pessoal tirou nos locais dos outros crimes – eu disse –, e vídeos, se você tiver, que eu vou dando uma olhada no caminho.
E agora, menos de duas horas depois de fazer o discurso de abertura para 2.500 profissionais da polícia e de agências de inteligência de todo o mundo, eu estava
num helicóptero, indo me encontrar com Ralph e olhar para o corpo de mais uma garota morta.
Eu estava olhando as fotos dos crimes no meu laptop. Embora tente me distanciar, as imagens ainda me incomodam. Sempre incomodaram. Provavelmente sempre vão incomodar.
Olhei de relance pela janela. A sombra do helicóptero contornou uma estrada e pairou por um momento sobre um carro estacionado num mirante. Um casal de pé perto
do guard-rail pareceu não notar a sombra. Os dois continuaram olhando para as montanhas esparramadas até o horizonte, sem nem suspeitar que uma sombra passava sobre
eles. Sem nem suspeitar.
O assassino nem tentara esconder os cadáveres. Quem estava matando aquelas mulheres queria que elas fossem encontradas. Afinal, o que não faltava nas colinas do
oeste da Carolina do Norte eram lugares para ocultar para sempre um cadáver. Ou uma pessoa. O terrorista Eric Robert Rudolph se escondera ali por 5 anos durante
uma das maiores caçadas da História, e só foi capturado quando foi até a cidade procurar comida numa caçamba de lixo nos fundos de um armazém. Não, nosso homem não
queria se esconder; gostava de se exibir. E havia mais uma coisa. Algo que não fora divulgado para o público, algo muito perturbador. Por isso Ralph me ligara.
Eu me curvei para a frente e gritei para o piloto:
– Quanto falta?
Ele não respondeu, apenas indicou uma montanha próxima e apon tou o LongRanger para uma clareira.
Fechei meu computador. Estava na hora de Patrick Bowers arregaçar as mangas.
2
Um grupo de nuvens escuras e cinzentas se agitava no céu a oeste enquanto girávamos no ar e o piloto baixava o helicóptero até o chão.
Alguém havia cercado com uma barreira de fita policial amarela as árvores ao redor do riacho. A fita farfalhava e estalava no vento provocado pelas pás do helicóptero.
Eu peguei a mochila onde estava meu computador e saltei, usando uma mão para proteger os olhos da nuvem de areia fina levantada pelas hélices. Era como tentar afastar
uma névoa de moscas aguerridas, mas eu não queria esperar nenhum momento além do necessário.
Eu podia ver a figura corpulenta do agente especial Ralph Hawkins agitando sua manopla para o helicóptero, como um guarda de trânsito que tivesse se perdido e ido
parar no alto daquela montanha. Ralph era do tamanho de um urso. Como ex-membro da seleção norteamericana de luta no colegial e ex-patrulheiro florestal, ele ainda
era capaz de se libertar de algemas usando só a força das mãos. Mesmo assim, embora ele medisse mais de 1,82 m, eu era 5 cm mais alto. Ele não se conformava com
isso.
– Pat. – Ele disse meu nome ao mesmo tempo que me estendia a mão. Ouvir sua voz rouca e trovejante me fazia sentir em casa. Trabalhamos juntos em muitos casos para
o Centro Nacional de Análise de Crimes Violentos, do FBI, antes... bem, antes que tudo começasse a desmoronar. – É bom ver você na área de novo.
– Sim – gritei.
Agora as hélices estavam parando, e o vento ao nosso redor voltou ao seu ritmo natural quando as pás diminuíram a velocidade e finalmente ficaram encurvadas e imóveis
acima do helicóptero.
Meia dúzia de agentes usando jaquetas do FBI pretas de nylon andavam pelo alto da montanha, rodeados por um grupo de patrulheiros estaduais entediados e quatro guardas
florestais. A cena me lembrava uma construção no horário do almoço, quando todos ficam parados, esperando que outra pessoa seja a primeira a voltar ao trabalho.
Todos estavam me olhando. Alguns trocavam comentários. Outros davam risadinhas.
Aparentemente, era bastante raro por aqui convocar alguém como eu – por outro lado, podia ser a minha idade. Mesmo tendo trabalhado por 15 anos na polícia, eu só
ia fazer 36 anos em janeiro. E as pessoas costumam me dizer que pareço mais jovem do que sou. Por isso uso sempre barba por fazer. Quando faço a barba, fico com
cara de 20 anos.
Duas pessoas se adiantaram, uma mulher usando jaqueta preta do FBI e um homem gorducho com uma gravata que parecia um babadouro. Ele esticou a mão.
– Dr. Bowers?
– Sou eu. – Apertei a mão dele.
– Xerife Dante Wallace, do condado de Buncombe. – O xerife Wallace parecia o tipo de cara que gosta de ver jogos de futebol sentado no meio do sofá. Os chumaços
de cabelo que despontavam de sua cabeça quase calva pareciam tufos de grama seca.
– Prazer em conhecê-lo – disse eu.
– E eu sou a agente especial Lien-hua Jiang – disse a morena ao lado dele. – Sou a parceira de Ralph. – Elegante. Da mesma idade que eu, talvez alguns anos mais
nova. Asiática. Ótima postura. Parecia uma modelo. Ou uma atleta. Eu me perguntei se ela não teria estudado dança. Seu queixo pequeno tornava seu sorriso ainda mais
amplo. Ela me ofereceu sua mão e balançou a cabeça gentilmente. Bela pegada. Belo corpo.
– Ótimo – eu disse, tentando não encará-la demais. Além disso, estava ansioso para começar a trabalhar antes que as chuvas começassem. – É um prazer conhecer os
dois.
O agente Hawkins me socorreu.
– Tudo bem. Agora que todos já nos conhecemos, vamos dar uma olhada na nossa garota. Ou ao menos no que restou dela.
O Ilusionista observou cuidadosamente Patrick Bowers andando pelo alto da montanha com todos aqueles outros agentes federais e policiais idiotas. Imbecis! Eles jamais
entenderiam. Nenhum deles. Não mesmo.
Ele sabia de Bowers. Oh, sim, sabia tudo sobre Patrick Bowers, PhD. Lera os dois livros dele. Como pesquisa. Ajudaram muito. Um oponente à altura.
O Ilusionista sorriu ao observá-los. Estava feliz. Tão feliz! Quase começou a rir ali mesmo. Mas não riu. Não fez nenhum som. Estava no controle de tudo.
Ele tinha um binóculo Steiner no bolso da jaqueta, mas nem precisava usá-lo. Estava tão perto assim. Tão perto assim de tudo! A maioria dos policiais estava lá parada,
como os completos imbecis e retardados que eram. Oh, ele estava adorando aquilo. Estava adorando cada minuto. Eles se aproximavam da garota. Ele fechou os olhos
por um momento e se lembrou de como tinha sido estar com ela. Sozinho com ela. Sim. Oh, sim. Ela fora a melhor, até agora.
Então ele abriu os olhos e sorriu. Poderia reviver tudo agora, enquanto os via examinando o corpo dela. Poderia reviver tudo, e eles jamais sequer desconfiariam.
3
Segui Ralph através do labirinto de espectadores.
Eu detestava ver tanta gente em volta do local do crime. Quanto mais gente, mais as pistas poderiam ficar contaminadas.
– Vocês trouxeram a cavalaria mesmo, não? – eu disse, apontando para a multidão.
Ele balançou a cabeça.
– Não foi escolha minha. Desde que chegamos, começou um pesadelo territorial. Cadáveres em quatro estados, até agora.
Estávamos perto de Asheville, Carolina do Norte, uma cidade de uns 73 mil habitantes localizada na intersecção de duas rodovias importantes que cruzam o Sudeste.
Três estados, Geórgia, Carolina do Sul e Tennessee, ficam todos a uma hora de carro dali, com a Virgínia, o Kentucky e a Virgínia Ocidental só mais uma hora, se
tanto, ao norte. Até então, cadáveres haviam sido encontrados nas Carolinas do Norte e do Sul, na Virgínia e no Tennessee. Levara um tempo para que a polícia chegasse
à conclusão de que o assassino estava provavelmente agindo a partir desta área.
Ralph se aproximou.
– Estamos fazendo todo o possível pra trabalhar com os locais, mas cá entre nós, seria melhor se eles demitissem metade desse pessoal e simplesmente deixasse a gente
trabalhar. Além disso, de alguma forma, a imprensa descobriu. – Ele apontou para um bando de repórteres confi-nados num canto da área cercada. Depois olhou para
as nuvens cada vez mais pesadas por um momento. – Pelo menos os helicópteros deles não estão sobrevoando a área.
A tempestade estava se aproximando rapidamente. Precisávamos nos apressar.
Apertei o passo e tentei pensar em como poderia poupar tempo.
– Certo, me ponha a par de tudo. O que sabemos? – Eu tinha lido as anotações no voo, mas queria ouvir tudo de novo. Absorver tudo. Para poder procurar padrões.
– Bem, seja quem for esse cara, ele sabe como deixar o local do crime limpo. Não encontramos muita coisa até agora. Ele até lava os corpos, sutura os ferimentos.
Nossa vítima levou seis facadas, mas morreu por estrangulamento, como as outras. Ãhn, quero dizer, pelo menos essa é a conclusão preliminar. Ainda estamos esperando
que o legista confirme.
Balancei a cabeça. O assassino esfaqueara cada uma das mulheres de forma ritual no peito e abdômen, mas o mecanismo da morte em todos os assassinatos até o momento
fora hipóxia cerebral – que é só um jeito mais chique de dizer que o cérebro não recebeu oxigênio suficiente. Apertando a garganta por um certo tempo, você asfixia
o cérebro.
– A primeira foi estrangulada com o fio de um secador de cabelos, não? – perguntou o xerife Wallace, que ofegava ao nosso lado.
– Sim – disse Ralph. – As últimas três, com corda de varal.
– Por que ele mudaria seu modus operandi? – perguntou o xerife.
– Ele chegou preparado na vez seguinte – a agente Jiang disse baixinho.
– Não queria se arriscar. Trouxe sua própria corda.
– Presumo que a estejam examinando? – disse Wallace. – Pra ver se descobrem alguma pista sobre o fabricante?
Ralph pigarreou.
– Já estamos cuidando disso.
O xerife Wallace apertou seu passo balouçante, se esforçando para nos acompanhar. A agente especial Jiang andava ao nosso lado em silêncio, olhando para o céu.
– A corda afundou seis milímetros no pescoço dela – disse Ralph. – Ele pode até ter usado algum meio mecânico para apertá-la.
Senti meus punhos se cerrando. Depois de tantos anos, eu deveria estar acostumado a ouvir detalhes como aquele, mas eles ainda me incomodam. Antes me reviravam o
estômago, agora alimentam minha raiva. Acho que de certa forma isso é bom. Ajuda a me concentrar em capturar esses caras.
– Isso, e encontramos mais uma peça de xadrez.
Me lembrei dos relatórios dos casos que eu lera. No local do primeiro crime, o peão parecera uma ótima pista – a peça era de um jogo de madeira entalhado à mão que
os caras do laboratório conseguiram rastrear até um escultor em Oregon que os fazia em sequoia e despachava para o mundo todo. Os técnicos conseguiram até descobrir
a data em que o jogo fora feito, porque o escultor mudara o tipo de torno que usava dois anos e dois meses antes. O novo torno deixava um corte diferente nas peças
de xadrez, portanto, o jogo que nosso assassino estava usando tinha no mínimo dois anos. Ainda não havia como saber qual dos oito ou nove jogos em questão nosso
assassino possuía, mas o entalhador estava colaborando bastante. No momento, alguns agentes estavam vasculhando os registros dele, verificando todas as pessoas que
compraram seus jogos de xadrez nos últimos cinco anos.
– Que peça ele deixou desta vez? – perguntei.
– Mais um peão. Preto. Que conclusões você tira disso?
– Não sei ao certo. Nenhuma, talvez.
– Como assim? – perguntou o xerife Wallace. – Isso é importante. Ele está tentando nos dizer alguma coisa.
Balancei a cabeça.
– Talvez sim, talvez não. Hoje em dia, muitos assassinos deixam pistas intencionalmente em locais de crimes para despistar os investigadores – sangue, cabelo ou
sêmen de outra pessoa. Já viram episódios de CSI e filmes de serial killers demais. Quanto mais ficamos espertos, mais eles também ficam. Ele pode ter colocado isso
pra nos despistar. Ou, quem sabe, talvez simplesmente goste de xadrez.
Assassinos muitas vezes deixam pistas ou bilhetes provocativos no local do crime. O mais comum são palavras escritas com sangue. Às vezes, uma carta escrita à mão
é descoberta. Normalmente, quando os assassinos deixam alguma coisa, ela está sempre ensanguentada e suja. Eu já tinha visto de tudo.
Mas esse cara não. Ele deixou uma peça de xadrez de sequoia entalhada à mão no local de cada crime executado. As três primeiras eram peões brancos. Agora, estes
três últimos eram pretos.
O que ele está tentando dizer? Que tudo isso é um jogo pra ele? Que tudo é preto e branco? Quem é o peão? Ele é o peão? A vítima é o peão? Talvez a polícia. Talvez
nós sejamos os peões?
E uma fita. Ele amarrava uma fita amarela no cabelo da vítima.
Eu não queria interpretar demais nada disso. O truque é manter tudo em mente enquanto você olha para o panorama geral. Esse é o segredo pra pegar esses caras. Primeiro
você reúne todas as peças, antes de tirar qualquer conclusão. Formule hipóteses, teste-as, revise-as. Jamais, jamais presuma.
Passamos por baixo da fita policial. O corpo estava ao pé de uma árvore a uns vinte metros de nós.
– Pegaram amostras do solo? – perguntei a Ralph.
– Sim. Seis amostras dos arredores. Como me ensinou.
– Ótimo.
Àquela altura, o vento ficara mais forte e as nuvens que víamos no horizonte estavam se amontoando, correndo na nossa direção. Isso não era bom. Nosso local do crime
iria ser inundado em questão de minutos.
– Tirem fotos das colinas – gritei. – Quero todos os ângulos – quero ver o que ele viu. E estiquem uma lona por cima do corpo. Não deixem que se molhe. E a multidão
também. Quero fotos de todos aqui. Vídeo, se possível. Alguém cubra este corpo!
– Senhor, já verificamos o corpo – alguém disse.
– Eu sei – falei, me esforçando ao máximo para continuar respeitoso.
– Mas eu não verifiquei. – Calcei as luvas de látex que sempre carrego no bolso do meu jeans. De repente, fiquei contente por haver tantas pessoas no local. Iríamos
precisar de todas elas para preservar as pistas.
Olhei ao meu redor. Era isso que o assassino estava olhando. Foi isso que ele viu quando a deixou aqui. Por que aqui? Por que você a trouxe aqui?
Corri os olhos pelo horizonte. Montanhas escuras formavam camadas que iam até o céu. Imaginei que num dia ensolarado fosse possível ver trinta ou quarenta quilômetros
em todas as direções. Hoje, com muita sorte, dava para se ver três. Tentei imaginar quais rotas de chegada e partida ele poderia ter usado. A mata próxima era fechada;
o terreno, íngreme. Havia um número limitado de trilhas à disposição.
Não havia nenhum sinal de trânsito de veículos, nem marcas de pneu de um 4x4.
Ele sabia que ia chover? Planejou exatamente assim? Sabendo que iríamos correr por aqui, tentando coletar pistas?
Uma neblina se aproximava agora, envolvendo as árvores, cobrindo os picos mais próximos. Tudo começou a ganhar uma atmosfera fantasmagórica e etérea.
Você a carregou para cá? Por que carregá-la até aqui?
Naquele momento, o piloto do LongRanger se aproximou correndo.
– Senhor, o tempo não está bom. Preciso decolar ou vou ficar preso aqui.
– Eu te dou uma carona até a cidade – o xerife Wallace ofereceu.
Balancei a cabeça.
– Todas as minhas coisas estão em Atlanta. A conferência termina amanhã.
– Você vai dar mais palestras? – perguntou Ralph.
– Não, já terminei, mas...
– Bom, vou mandar trazer tuas malas – disse Ralph. – Fique aqui por uns dias. Dê uma mão pra gente.
Eu detestava ser interrompido num local do crime como aquele.
– Tudo bem, como quiser. – Eu o dispensei com um gesto. Só queria ver a garota. Com isso, o piloto balançou a cabeça e nos deixou.
Àquela altura, alguns agentes haviam esticado uma lona azul por cima de um galho acima dela. Eles não pareciam contentes.
Passei ao lado deles e olhei para ela.
Tinha uns 19 ou 20 anos. Branca. Cabelo loiro. Estava com as costas apoiadas na árvore, posada, com as mãos bem amarradas às costas, provavelmente com o mesmo tipo
de corda que estava afundada em seu pescoço. Ainda estava de jeans e camiseta, o que era consistente – não houvera contato sexual em nenhum dos outros assassinatos.
Fiquei grato ao menos por isso. O algodão de sua camiseta cinza tinha manchas escuras das facadas no tronco.
O assassino havia amarrado um pedaço de fita amarela no cabelo bem escovado dela. Ela estava descalça, como todas as outras vítimas, e usava um anel no terceiro
dedo do pé esquerdo. Havia um pouco de terra dentro das ranhuras do anel. Barro.
Inspecionei os tornozelos dela, puxando delicadamente para cima as barras do jeans. Não havia marcas ou hematomas de amarras. Seus pés não haviam sido amarrados.
– Alguém a mudou de lugar? – perguntei a Ralph.
– Não – disse ele.
Então ela havia sido deixada naquela posição pelo assassino.
Empurrei delicadamente o corpo para o lado. Tocá-la assim, mexer nela, parecia uma espécie de violação. Ouvi uma voz na minha cabeça pedindo a ela que me perdoasse,
que aceitasse meu contato porque ele me ajudaria a encontrar a pessoa que fizera aquilo com ela.
Não havia terra nem detritos nas suas costas, como haveria se ela tivesse sido estuprada aqui ou arrastada pela trilha. Olhei ao meu redor. Se ele não a arrastou,
será que a carregou? Até aqui em cima? Este foi o local primário do crime, afinal? Será que talvez ele a encontrou aqui?
Em algum lugar atrás de mim, o helicóptero rugiu, partindo, mas seu som foi rapidamente engolido pelo vento uivante da tempestade que se aproximava.
O dia estava morrendo ao nosso redor. Puxei minha lanterna Mini Maglite do estojo no meu cinto, liguei-a e estudei o rosto da garota. Seus olhos azuis da cor do
oceano estavam abertos, olhando para a frente. Olhando para a frente para sempre. Não mais brilhantes e vivos, agora enevoados e opacos. Eu me curvei e olhei com
atenção nos seus olhos cegos. Os olhos que viram o homem que a matara. Que o observaram. Uma velha lenda diz que os olhos do morto gravam, como numa fotografia,
o rosto do assassino. Mas não havia nenhum rosto naqueles olhos.
– Ela usa lentes de contato – eu disse, ainda olhando para ela.
Ouvi o xerife Wallace se aproximando.
– Hã?
– Lentes. Esta garota usa lentes de contato.
– E daí?
– A informação que Ralph me mandou não falava de lentes de contato.
O agente Hawkins olhou com raiva para os técnicos da perícia.
– Acho que não notamos.
– Isso importa? – perguntou Wallace.
– Tudo importa – eu disse. O vento jogou um cacho do cabelo da jovem no rosto dela. Eu o afastei. – Já trabalhei num caso em que o assassino pôs lentes de contato
nos olhos de uma garota depois de matá-la. Deixou impressões digitais nas lentes. Tudo importa.
Retirei cuidadosamente as lentes de contato e guardei num saquinho plástico. Em seguida, examinei seu pescoço e suas bochechas e suspirei baixinho.
– Ele a torturou. – Não me dei conta de ter dito aquilo em voz alta até que a agente Jiang se curvou ao meu lado. Senti o perfume do xampu dela. Baunilha.
– Como sabe?
Eu apontei:
– Está vendo esses pontinhos vermelhos? Em volta dos olhos?
– Esses pontos meio arroxeados? – perguntou ela.
– Sim.
– É algum tipo de hemorragia?
– Hemorragia petequial, causada por asfixia. Normalmente, até no estrangulamento, os pontos são pequenos; às vezes, do tamanho de um grão de poeira, e só aparecem
ao redor dos olhos ou pálpebras. Ela tem desses pontos por todo o rosto, até aqui em volta do pescoço e dos ombros. Está vendo?
– O que isso significa?
– Significa – alguém atrás de mim disse –, que ele não só a estrangulou, mas a asfixiou até que ficasse inconsciente e depois a reanimou. Várias vezes. Deve ter
feito isso por um longo período de tempo.
Olhei por cima do meu ombro.
Um homem notavelmente bonito, de 20 e tantos anos, se ajoelhou ao meu lado.
– Agente especial Brent Tucker – ele disse. – Especializado em medicina legal. – Cabelo preto, bem cortado e penteado. Parecia levar a sério seu trabalho e se movia
com a autoconfiança de alguém que está acostumado a acertar de primeira o que faz.
– Sim – eu disse para a agente Jiang. – É isso que significa.
– É o dr. Bowers, não? – perguntou o agente Tucker.
– Sim.
– É uma honra conhecer o senhor.
– Digo o mesmo.
Havia uma peça de xadrez na palma da mão direita da garota. Um peão preto.
– Qual sua estimativa da hora da morte? – perguntei para Tucker.
Ele consultou seu caderno.
– Hmm... tiraram a temperatura dela há 60 minutos... ela está vestida – ele estava pensando alto –, está frio e ventando nesta montanha, e ela não está exposta ao
sol... Eu diria agora de manhã. Talvez entre 8h e 10h.
Fiz que sim.
O xerife Dante Wallace balançou a cabeça.
– Não consigo acreditar que esse cara carregou a moça até o alto desta montanha. Como podem saber que ele não a matou aqui em cima?
Ralph passou a palavra para mim, e apontei para a garota.
– Não há sinais de luta – eu disse. – O terreno não tem rastros. E veja o cabelo dela. Está limpo e bem penteado. Sem folhas. Sem terra. Ela deve ter sido morta
num lugar fechado. – Provavelmente, pensei. Mas o cara pode estar brincando com a gente. Ainda não tenho certeza de nada.
Virei para Ralph.
– Você disse que uns escaladores a encontraram?
– Sim, moradores daqui – ele disse –, pouco antes de eu ligar para você. Já os levamos pro interrogatório. Até agora, parecem bem inocentes.
– Já sabemos o nome dela?
Ralph balançou a cabeça.
– Nenhum documento. Mas ontem denunciaram o desaparecimento de uma garota de Black Mountain chamada Mindy Travelca. Achamos que pode ser ela. Estamos verificando.
– Ele queria que ela fosse encontrada – eu disse.
– Então por que a trouxe pra cá? – perguntou o agente Tucker.
É isso que eu vim descobrir, pensei. Mas não falei. Não falei nada. Apenas me ajoelhei ali e olhei nos olhos imóveis de uma garota que deveria estar dando um amasso
no namorado, estudando para as provas da faculdade, comendo pizza com sua colega de quarto ou no chat com amigos, em vez de estar morta no topo daquela montanha.
A filha de alguém. Alguém perdeu uma filha hoje.
Como eu, pensei, embora Tessa estivesse viva e bem e nem fosse filha minha, tecnicamente. Alguém exatamente como eu.
Estiquei a mão e fechei com delicadeza os olhos da garota que talvez se chamasse Mindy no exato momento em que os primeiros pingos de chuva começaram a cair, como
lágrimas dos olhos de Deus, martelando a lona acima de mim.
4
O Ilusionista os observou embrulhando e removendo cuidadosamente o cadáver enquanto a chuva começava, enquanto a tempestade chegava. Tudo estava acontecendo de acordo
com o plano. Tudo!
Eles levariam no mínimo meia hora para carregar o corpo trilha abaixo até a ambulância. Ele queria poder ficar e assistir ao espetáculo, queria mesmo, mas com a
tempestade chegando e tanto trabalho para fazer, precisava ir embora. Ele olhou para o relógio. Ah, sim, precisava ir andando. Ainda havia muito a fazer naquela
noite.
5
Depois que descemos da montanha, fui de carro com o xerife Dante Wallace até um hotel a uns 13 quilômetros de Asheville. Golpes furiosos de chuva castigavam o parabrisa.
Eu estava perdido em meus pensamentos, olhando para a água escorrendo dos limpadores de parabrisa, quando ele perguntou:
– Então, como você faz?
Eu me virei e olhei para ele na penumbra.
– Como faço o quê?
– Pra ficar perseguindo esses monstros o tempo todo.
Eu considerei o que ia dizer por um momento.
– Bem, tento dizer a mim mesmo que eles são tão humanos quanto nós. Isso ajuda um pouco. Torna o caso mais pessoal.
A tensão endureceu as rugas ao redor da sua mandíbula. Sua voz ficou mais cortante. – Como alguém que estupra bebezinhos ou disseca a esposa e come no jantar pode
ser tão humano quanto eu?
Na verdade, era uma boa pergunta, embora eu jamais a tivesse ouvido exatamente nesses termos. É difícil não pensar nesses assassinos como monstros, alienígenas ou
subumanos; eu mesmo tenho essa dificuldade às vezes.
– Tento pensar nas semelhanças, não nas diferenças, xerife Wallace. Criminosos interagem com o mundo como qualquer outra pessoa. Eles têm padrões, seguem rotinas,
tentam poupar tempo e dinheiro. Comem, bebem, dormem, trabalham, discutem, evitam as coisas de que não gostam, e acobertam as coisas erradas que fazem para não serem
flagrados. Como todos nós. Sei que dizer isso parece frieza e falta de sentimentos, mas me ajuda a pegá-los. Entender como as pessoas agem me ajuda a entender como
os assassinos agem, e isso me ajuda a localizá-los.
Ele dirigiu em silêncio por alguns momentos, absorvendo minhas palavras. Finalmente, ao sair da rodovia, tossiu com força.
– Bem – disse secamente –, o especialista é você. – Alguns minutos depois, ele parou na frente do hotel Comfort Inn. – Não é nenhum Hyatt – ele disse. – Mas acho
que serve por esta noite.
– Obrigado pela carona, xerife.
– Não há de quê... – Ele fez uma pausa hesitante; percebi que pensava em como me tratar – detetive Bowers, agente Bowers, dr. Bowers...
– Pat – eu disse. – Meus amigos me chamam de Pat.
– Certo. Até amanhã, Pat.
– Tudo bem – eu disse.
Então entrei e tentei não pensar no que o assassino havia feito com aquela garota na montanha.
Eu me arrastei para dentro do quarto de hotel e fechei a porta. Ainda conseguia ver o rosto dela, seus olhos imóveis. Com o passar dos anos, tento esquecer os rostos,
mas não consigo. Tantas faces jovens e promissoras. Parece que são sempre as mais atraentes que são assassinadas. A beleza desperta o pior em nós. Seria de se imaginar
o contrário – que os tortos, os deformados, os malfeitos despertariam fúria e terror. Mas eles parecem suscitar apenas compaixão. Não; é a beleza que desperta a
besta. Seja qual for o motivo, a elegância e a graça parecem sempre inflamar a mais profunda ira e a luxúria mais sombria no animal humano.
Estive em centenas de locais de crimes nos últimos 15 anos. Provavelmente milhares. Parei de contar alguns anos atrás, quando cheguei a novecentos. De início, todas
aquelas lembranças me incomodavam. Elas sempre incomodam, a princípio. Todo policial e agente do FBI que já conheci consegue lembrar o primeiro local do crime que
visitou.
Tem alguma coisa na primeira vez que vemos um cadáver. Não é como nos filmes ou na TV. E não é como num funeral, onde tudo foi limpo e sanitizado. É sujo, triste,
desorganizado e você vê o peito que não respira e os lábios que não se mexem e os olhos que não piscam. Corpos são descoloridos, deformados, inchados, e exalam o
fedor da morte. Não há nada de bonito ou glamouroso num cadáver.
Todos se lembram do primeiro cadáver que viram.
Depois de um tempo, as imagens começam a se fundir. Você lembra fragmentos, pedaços – uma mancha de sangue aqui. Um buraco de bala ali. Uma faca jogada na grama.
Um pedaço de tecido rasgado grudado a um fragmento de pele lívida. E se você se esforça de verdade, pode começar a fazer as conexões. Ah, sim, aquela era a menina
de 9 anos que foi raptada de sua casa e encontrada enterrada perto do chalé de pesca do pai dela em Montana... Aquele ferimento de bala lembra o garoto do Arkansas
que estava mostrando a espingarda para o amigo no escritório do pai depois da aula... Aquele alicate é igual ao que o casal do Maine usava para torturar suas vítimas...
Os detalhes se misturam, mas os rostos continuam gravados na sua mente. Você não esquece os rostos.
Tirei os sapatos e tomei uma ducha rápida. Depois liguei a TV. Imagens que não me importavam piscaram para mim. Pessoas de plástico abrindo sorrisos falsos num mundo
de mentira. Fiquei zapeando pelos canais de televendas, o noticiário esportivo do dia, uma reprise de 24 Horas, uma série de comerciais insossos tentando me vender
coisas de que não preciso, e, claro, a propaganda política difamatória da iminente eleição presidencial.
O último canal que sintonizei era uma estação local transmitindo uma matéria jornalística sobre o desaparecimento de Mindy Travelca. Mostraram cenas do pai dela
no jardim de sua casa. Pela posição do sol, imaginei que eles tinham filmado a entrevista perto do meio-dia. Se a moça que tínhamos encontrado era Mindy, ela provavelmente
já estava morta no momento da entrevista. “Estamos torcendo e rezando para que ela esteja bem” o pai dizia para a câmera, tão corajosamente quanto possível, mas
seus olhos o traíam; brilhavam com as lágrimas. Uma menina de uns 8 ou 9 anos correu e pulou nos seus braços.
Aquela deve ser a irmãzinha de Mindy.
– Sabemos que ela vai ficar bem – o homem continuou. – Certo, amor? – A menina fez que sim. – Amamos você, Mindy – ele disse. – Estamos esperando você...
Desliguei a TV. Não aguentei.
Provavelmente iriam mostrar a foto de Mindy num minuto e eu ficaria sabendo com certeza se ela era a moça que encontramos. Mas não consegui assistir. Talvez eu não
quisesse saber.
Fiquei ali deitado de costas, ouvindo os carros passando na rodovia a menos de cem metros dali, olhando as cortinas farfalhando de leve enquanto o aquecedor sob
a janela lutava para lançar ar morno no quarto.
Alguém perdeu uma filha hoje.
Peguei o celular e liguei para os meus pais. Ouvi-o tocar, e então uma voz frágil e familiar atendeu:
– Alô?
– Mãe, sou eu, Pat. Tessa está aí?
– Oh, Patrick. Sim. Vou chamá-la. Só um momento, querido. – Pude ouvir ao fundo que ela chamava Tessa, e então ouvi minha enteada gritando em resposta que estava
ocupada!
Eu a imaginei de pé, ali, gritando com minha mãe. Um estudo em contrastes. Tessa com seu cabelo preto pelo ombro. Minha mãe com seus cachos cor de gelo. A maior
parte do tempo, Tessa gostava de usar camisetas pretas de mangas longas com logotipos cheios de caveiras, de grupos de rock dos quais nunca ouvi falar. Jeans rasgados
com tênis antiquados normalmente completavam seu figurino. Minha mãe sempre usava vestido. Sempre.
Esperei, impotente, enquanto as duas discutiam, até que finalmente ouvi a voz de Tessa.
– O que você quer? – disse ela.
– Não fale desse jeito com sua avó, Tessa Bernice Ellis.
– Eu falo como eu quiser com quem eu quiser. Além disso, ela não é minha avó. Meus avós morreram, lembra?
Ai.
– Eu sei e lamento, mas Martha é minha mãe, e estou pedindo que você a trate com um pouco mais de respeito.
Uma pausa cheia de gelo.
– E então, o que você quer, Patrick?
Eu não esperava que ela me chamasse de pai, mas poderia passar muito bem sem todo aquele veneno em sua voz.
– Eu queria desejar um feliz aniversário.
– Meu aniversário foi ontem.
Claro que eu sabia disso. Claro que sabia. E deveria ter ligado. Não havia desculpa.
– Eu sei, mas não pude ligar, estava numa conferência e aí...
– Que papo-furado. – Ela tinha razão, e nós dois sabíamos disso.
– Olha, sinto muito. De verdade, escuta...
– Não importa. Preciso desligar. Tenho coisas pra fazer. Preciso estudar. Tenho duas provas amanhã. – E então, antes que eu pudesse responder: – Você saberia, se
em algum momento estivesse aqui.
– Escuta, Tessa...
Clique.
Olhei para o telefone. Ah, você se saiu muito bem.
Suspirei.
Alguém perdeu uma filha hoje.
Alguém exatamente como eu.
6
Virginia Street, N3161
West Asheville, Carolina do Norte
22h01
Ele se considerava um mágico. Um grande ilusionista. Gostava de mágica desde criança. Agora você vê, agora não vê mais! Era tudo questão de disfarce, fingimento
e desorientação.
O primeiro espetáculo de mágica de que ele se lembrava acontecera no primário, quando um sujeito visitara a sua escola para apresentar truques aos alunos.
– Vejam como faço um lenço vermelho aparecer do nada – o sujeito dissera através de seu amplificador portátil. E as crianças olharam, como ele mandara, até que o
amplificador barato apitou alto e todas as crianças gritaram junto.
Um momento depois, ele puxou um lenço verde e as crianças riram e apontaram.
– Opa – ele disse. – A-ha. Pronto! – Ele puxou um lenço roxo, desta vez. As crianças riram de novo. Em seguida, um cor-de-rosa. Mais risadas.
– Agora vejam e fiquem maravilhados – ele disse – com Marty o Magnífico tentando realizar seu próximo truque. – Ele mostrou as mãos vazias e depois andou no meio
do plateia até chegar ao Ilusionista. Olhou para o menino, sorriu, esticou a mão e puxou um lenço de trás da orelha dele. Desta vez, era laranja.
As crianças riram quando Marty o Magnífico voltou para o palco, aparentemente bastante desapontado. Ele dobrou o lenço e o enfiou na mão direita. Então, com um floreio,
puxou um lenço azul e o laranja desapareceu. Todas as crianças gritaram, aplaudiram e cochicharam umas para as outras:
– Como ele faz isso? É mágica!
Depois, ele tirou um pombo de dentro de um balão, escapou de algemas e, finalmente, no encerramento do espetáculo, quando estava se curvando para agradecer, puxou
o lenço vermelho do próprio nariz, e as palmas da criançada explodiram.
E foi então que o Ilusionista percebeu que o espetáculo inteiro, do início ao fim, com todos os seus falsos erros e falas irreverentes, fora perfeitamente planejado,
cuidadosamente ensaiado. O próprio espetáculo era uma grande ilusão. E o mágico estivera no controle o tempo todo. Ele aperfeiçoara cada momento para despistar as
crianças. Estava sempre um passo à frente do público. Um passo à frente do mundo.
O segredo estava todo na desorientação. Enquanto vocês olham para esta mão, estou escondendo a moeda no bolso de trás com a outra. Vejam e fiquem maravilhados!
A luz da sala de estar se apagou e o jogo começou. Ele chegou mais perto da janela e esperou. Era mestre em esperar pelo momento certo. Podia esperar uma hora ou
um ano. E isso o tornava o que ele era. O Ilusionista. Sempre um passo à frente do mundo.
O tempo passava e ele esperava. Mais luzes se apagaram no bairro. Os cachorros pararam de latir. Grilos começaram a cantar em toda parte. Ele estava imóvel, sepultado
nas sombras. Sempre nas sombras. Como esses grilos. Um homem que se sentia em casa no escuro.
Finalmente, a luz do quarto se apagou. Minutos se passaram. Depois horas. Ele ficou ouvindo sua própria respiração suave até que a noite parou de se mover e o sono
abriu suas asas sobre o bairro. Finalmente, era hora.
O Ilusionista vestiu sua máscara de esqui e calçou as luvas de látex. Depois, calçou luvas de couro por cima das de látex. Ele sabia que as de látex podiam se rasgar.
Impressões digitais e DNA do suor da ponta dos dedos pode ser retirado de alguns tipos de látex. Também sabia disso. Por isso usava dois pares de luvas.
Ele cruzou o caminho até o jardim e se apoiou na parede de tijolo aparente do número N3161 da Virginia Street. Era uma casa anônima de classe média num bairro anônimo
de classe média numa cidade anônima de classe média.
Mas ela não ficaria anônima por muito tempo.
Ele já sabia do sistema de alarme. E sabia como desarmá-lo. O Ilusionista sabia onde ficavam os detectores de movimento, onde Alice McMichaelson deixava a chave
extra para os vizinhos quando viajava. Ele sabia de tudo.
Houvera uma invasão na empresa de segurança Locust na semana anterior. Um monitor de computador fora roubado. Aparentemente, nada mais fora tocado. Mas ele conseguira
o que procurava. Sempre a desorientação. Olhem para esta mão enquanto ponho a moeda no bolso com a outra. Atentem para a janela quebrada e o monitor desaparecido
e não notem duas folhas de papel faltando na copiadora. Ninguém jamais notaria algo tão pequeno. Além disso, os papéis contendo os códigos de segurança e o esquema
da fiação elétrica da casa dos McMichaelson haviam sido devolvidos na gaveta trancada do arquivo, que era o seu lugar.
Ele olhou para o relógio: 4h03. Perfeito. As pessoas costumam dormir mais profundamente entre 3h e 5h. Viram? Ele sabia disso também. Ele sabia tudo!
Ele foi até o portão dos fundos, passando pelas cadeiras xadrez de jardim estilo Martha Stewart, passando pela churrasqueira a gás, até a porta do pátio, e olhou
para dentro da casa adormecida.
Muita gente esquece de trancar a porta dos fundos e só tranca a da frente e a da garagem, como se um ladrão fosse simplesmente passar pela rua, ver a casa e tentar
abrir a porta da frente. As portas dos fundos são as mais vulneráveis. O Ilusionista também sabia disso. Mas estava preparado, de qualquer forma. Estava sempre preparado.
Ele esticou a mão enluvada e tentou abrir a porta. Ela cedeu facilmente, até mais do que ele imaginara. Uma parte dele estava decepcionada. Era sempre melhor quando
havia um desafio.
Ele atravessou o capacho onde estava escrito “Bem-Vindo” e digitou o código que desarmava o alarme.
Pronto.
Agora ele tinha a casa toda e o resto da noite para si.
7
Uma mesa de jantar oval se estendia diante dele; depois dela, a sala de estar sumia na escuridão. Ele parou e escutou os sons delicados de uma casa lhe dizendo que
tudo estava calmo. Tudo parado.
O Ilusionista atravessou rápida e silenciosamente a sala de jantar e entrou na cozinha, esperando seus olhos se adaptarem à completa escuridão. Os contornos vagos
da mobília da sala se materializaram lentamente à sua direita. À sua esquerda, uma grande abertura escura lhe dizia que o corredor estava lá, mas isso ele já sabia.
Afinal, memorizara a planta da casa.
Ele podia ouvir os sons de um hamster correndo numa roda que rangia num quarto próximo. O quarto de Brenda. Ela tinha 8 anos e acabava de começar o terceiro ano
na Escola Católica St. Catherine, na Sweeten Creek Road. O nome da sua professora era Andrea Brokema, mas todos os alunos a chamavam de professora Andi.
O Ilusionista entrou no corredor e se aproximou do quarto de Brenda. Ela devia estar dormindo com Wally, o leão-marinho de pelúcia que ganhara em seu quarto aniversário.
Ele parou na porta do quarto dela por um momento e ficou olhando para ela dormindo no clarão pálido que entrava pela janela. Wally estava no chão, ao lado da cama.
Hmm. Deve ter caído dos braços dela.
O Ilusionista entrou no quarto dela tão silenciosamente quanto um sonho, pegou o bicho de pelúcia e o colocou delicadamente nos braços da menina adormecida. Precisou
levantar um pouco o pulso esquerdo dela para isso. Ela apertou o boneco e virou para o lado. O Ilusionista sorriu e saiu do quarto.
Pronto. Assim está melhor, Brenda. Muito melhor.
Alguns passos à frente, a luz noturna do quarto de Jacob derramava um brilho esverdeado no corredor. Quanta gentileza sua, pensou o Ilusionista. Providenciando luz
suficiente para que eu enxergue.
Aluno do final do curso primário, Jacob gostava de games do Homem-Aranha, era bom em matemática e artilheiro do torneio de futebol da última primavera. Ele jogava
no time da Andy’s Sub Shop. O Ilusionista sabia de tudo.
Ele também sabia da mãe deles.
Porque, na verdade, era por isso que ele estava ali. Não pelas crianças. Por ela.
Ninguém daria pela falta de uma prostituta desaparecida. Disso ele já sabia. Descobrira isso anos antes, na verdade. Mas a mãe de um craque do futebol infantil que
trabalha na Associação de Pais e Mestres iria encher o noticiário. Especialmente uma tão linda como Alice. Exatamente como ele queria. A mídia adora uma beldade
desaparecida. Especialmente uma mulher branca. Falariam dela por semanas.
Com a ajuda da luz noturna do quarto de Jacob, o Ilusionista conseguia ver as fotografias na parede do corredor... uma de Brenda fantasiada de cenoura gigante para
uma peça escolar... outra dela de pé na praia com uma pá cor-de-rosa na mão... a família toda num estúdio fotográfico... Jacob segurando um peixe perto de um chalé
num lago, com Garrett ao lado dele.
Aquela foto lhe dava nojo.
Garrett.
O homem que trocara Alice por aquela vagabundinha seis meses atrás, e depois continuara aparecendo para ameaçar Alice e as crianças sempre que estava bêbado. Mas
ele não ficara só nas ameaças. Uma noite, quase quebrara a mandíbula de Alice.
Garrett.
O homem que deixara um bilhete na mesa do chefe mês passado, dizendo ao mestre-de-obras que não ia mais trabalhar para um canalha como ele e que estava partindo
para procurar um emprego onde fosse valorizado, em algum lugar mais quente, na Flórida. Não era incomum operários da construção se mudarem para o Sul quando o inverno
chegava, portanto, naturalmente, seu chefe não ficaria muito surpreso. Provavelmente ficaria feliz por não ter de pagar àquele vagabundo do Garrett McMichaelson
as duas últimas semanas de trabalho.
Claro que a letra não era de Garrett.
Mas o chefe não notaria isso.
Garrett, Garrett, Garrett.
No entanto, apesar de incomodar o Ilusionista, a foto também o fazia esboçar um sorriso. Garrett não incomodaria mais Alice. Não invadiria mais a casa bêbado, nem
a empurraria escada abaixo, nem esmurraria seu rosto, nunca mais. Não, ele não incomodaria mais ninguém. Um homem que tratava assim uma mulher não merecia existir.
Um homem tão vil não merecia ser enterrado vivo nas Montanhas Appalachian. Não merecia uma morte tão suave.
Mas o Ilusionista era um homem piedoso.
Esse talvez fosse seu único defeito.
Ele chegara ao fim do corredor agora, e, claro, ali à esquerda, estava o quarto dela. O quarto de Alice. A porta estava fechada.
Andando a passos leves sobre o carpete âmbar que forrava o corredor, o Ilusionista parou na porta do quarto dela. Enfiou a mão no bolso e puxou o saco plástico de
que iria precisar para sua missão.
Seu coração batia mais forte agora. Era sempre assim. Relaxe. Não fique empolgado demais.
Mas era empolgante. Era sempre empolgante!
Do outro lado da porta, ele conseguia ouvir a respiração suave e ritmada de Alice McMichaelson, a recepcionista ruiva de 31 anos do escritório de advocacia Brannan
& Seeley. Fora ali que ele a conhecera. Ele se lembrava de tudo o que acontecera naquele dia. Ela estava usando um vestido amarelo, da cor de uma doce limonada.
E fora nisso que ele pensara ao conhecê-la – nos dois tomando limonada gelada juntos, à sombra de uma grande árvore. Em copos altos. Sob o sol quente da tarde. Sentindo
o cheiro do verão. Olhando nos olhos luminosos e sorridentes dela. Quando conversaram, naquele dia, ele sentira o perfume que emanava do outro lado do balcão. E
enquanto inalava a sua fragrância, aquele se tornara um meio de tocá-la durante toda a conversa, sem que ela soubesse.
Tinha sido delicioso.
Ele abriu a porta devagar e entrou no quarto de Alice.
Com o brilho fraco do poste do lado de fora da janela, podia vê-la deitada de lado, com o cabelo ruivo e volumoso espalhado ao redor de sua cabeça. Naquela luz pálida,
seu cabelo ficava mais escuro, quase da cor de sangue seco. Que estranho pensar nisso agora, que estranho pensar em sangue num momento como esse.
Ele se perguntou o que ela estaria vestindo por baixo do fino lençol que abraçava tão suavemente as curvas de seu corpo. Ele sabia que ela gostava de encomendar
lingeries da Victoria’s Secret. Seu número de cadastro era N672-9843-G. Ele sabia de tudo isso porque vasculhava o lixo dela. Ela sempre punha o lixo para fora uma
noite antes que o caminhão passasse. Quanta sorte dele.
Ele se perguntou como ela estaria vestida agora. Ele só precisava puxar as cobertas. Só precisava tapar-lhe a boca com uma mão e apertar o pescoço dela com a outra.
Ele poderia fazer isso agora. Ali mesmo.
Seu coração disparou. Tudo podia acontecer naquela noite, naquele momento. Como ele imaginara tantas vezes que aconteceria.
A respiração dela não mudava. Era tão suave e ritmada. Como música para seus ouvidos.
Oh, como ele queria tocá-la! Mas ele não se aproximou. Nem se mexeu. Ele estava no controle. Sempre no controle. E não podia tocá-la naquela noite. Ele estava lá
por outro motivo.
A gente se vê, Alice, ele pensou. A gente se vê em breve.
O Ilusionista pegou o objeto que viera buscar, deu uma última olhada em Alice McMichaelson e voltou para o corredor. Ele ouviu o hamster fazendo sua gaiola ranger
antes de digitar o código do sistema de segurança e sair da casa. Então ele voltou para as sombras do bairro adormecido. Ninguém o notou. Ninguém jamais saberia
que ele estivera ali. Ninguém desconfiaria de nada.
Porque ele estava um passo à frente do mundo.
Vejam e fiquem maravilhados!
8
Sexta-feira
24 de outubro de 2008
A 13 quilômetros de Asheville 8h04
A agente Jiang parou o carro na entrada do hotel e eu saí do saguão para encontrá-la. Ralph havia me dito que iria mandar alguém me buscar. Ótima escolha.
– Bom dia, dr. Bowers – ela disse quando me sentei no banco do passageiro ao lado dela.
– Me chame de Pat. Nunca me acostumei com isso de doutor mesmo.
– Hmm. Achei que você teria orgulho disso. – Ela saiu do estacionamento e entrou no trânsito. – Primeiro agente do FBI da história a se tornar PhD em Criminologia
Ambiental.
– É o que dizem. Ainda prefiro Pat.
– Tudo bem, então, Pat. Dormiu bem?
– Na verdade, não – eu disse. – Não tão bem.
Por que você faz isso? Por que não pode ter uma conversa normal, como todo mundo? Anos de aulas noturnas na universidade e pela Internet enquanto trabalhava na polícia
me ajudaram a conquistar um punhado de diplomas ainda bem jovem, enquanto eu trabalhava simultaneamente na área, mas não fizeram maravilhas pelas minhas habilidades
sociais.
Ela me olhou de relance.
– O senhor é sempre honesto, não é, dr. ... hã, Pat?
– Acho que sim. Pelo menos, tento ser.
– Então deixe-me adivinhar – ela continuou. – Seu trabalho é descobrir a verdade. Já é difícil do jeito que é. Você detestaria tornar seu trabalho ainda mais difícil
se escondendo. Não usa máscaras, porque sabe o quanto é difícil arrancá-las dos outros. Deixando que as pessoas o vejam claramente, talvez elas tirem suas máscaras
para você e facilitem um pouco o seu trabalho.
Pisquei.
– É. Acho que sim.
Ela sorriu. Oh.
– Então a nova parceira de Ralph é psicóloga forense2 – falei. – Preciso tomar cuidado com o que digo.
Ela apertou os lábios.
– Ralph me contou sobre suas experiências passadas com psicólogos forenses. Não se preocupe; não vou levar isso em conta. Não sou mesquinha. – Ela apontou para um
copo de café no suporte do lado do passageiro. – Pra você.
– Obrigado. – Eu podia estar agradecendo pelo café ou pela trégua, não especifiquei. Peguei o copo de papel e senti o aroma que saía da fenda na tampa. Bom. Queniano.
Cheirei de novo. Provavelmente do planalto de Nyeri. Tomei um gole. Sim, com certeza uma cepa SL28 das encostas vulcânicas da Cordilheira Kingongo. E, de alguma
forma, ela havia acertado – com creme e mel, sem açúcar. Ah, eu ia ficar mal acostumado.
– Você escolheu bem – disse eu.
– Mountain Java Roasters. Fica aqui em Asheville – ela respondeu. – Ralph me contou que você é exigente com café.
– Ralph te contou muita coisa.
– Ralph me contou o suficiente.
Ela ficou em silêncio, então, e eu queria ser capaz de pensar em algo mais para dizer para preencher o espaço que aumentava entre nós, mas nada me veio à cabeça.
Passamos por um grande hotel de pedra aninhado na encosta das montanhas, e ela disse:
– Aquele é o Hotel Stratford. Todo construído com pedra da montanha atrás dele. 650 quartos. Paredes de um metro e meio de espessura. Sete presidentes já se hospedaram
ali, muitos astros do cinema. Um átrio enorme com jardins suspensos, espelhos d’água, chafarizes. Até um rio artificial com corredeiras. Cada uma das lareiras maiores
pode acomodar troncos de cinco metros.
– E você sabe de tudo isso... como?
– Fiz a excursão de bondinho pela cidade no meu segundo dia aqui – ela disse.
Eu sorri.
– Entendi.
O Hotel Stratford parecia uma fortaleza. Um campo de golfe de padrão internacional ficava em sua base.
– A propósito, se vou chamar você de Pat, você vai precisar me chamar de Lien-hua.
– Pra mim está ótimo.
Depois disso, Lien-hua não forçou mais o papo. Se era por intuição ou apenas por educação, eu não sabia dizer. De qualquer forma, fiquei grato. Isso me dava a oportunidade
de pensar no meu cronograma para o dia. Eu esperava poder pegar alguns arquivos no prédio da administração federal e depois passar o resto do dia visitando os locais
dos crimes desta série. Com o passar dos anos, aprendi que o local e a hora de um crime são dois dos aspectos mais importantes e mais negligenciados de uma investigação.
Visitas aos locais são essenciais para a reconstituição de um crime.
Paramos no estacionamento do prédio da administração federal, e ela se virou para mim.
– Era Mindy mesmo – ela disse em tom neutro, ainda segurando o volante com as duas mãos, os músculos de seus braços esbeltos ficando rijos e tensos. – A garota da
montanha. Mindy Travelca. Confirmamos ontem à noite. Ela tinha 19 anos.
Balancei a cabeça lentamente. Pelo menos agora eu sabia como chamá-la. Pelo menos agora ela tinha um nome.
Enquanto seguia Lien-hua para dentro do prédio, pensei no pai de Mindy sendo entrevistado na TV, nas lágrimas brilhando em seus olhos. E a única coisa pela qual
eu conseguia me sentir grato era por não ter de lhe dar a notícia.
9
Alice McMichaelson gemeu, rolou na cama e olhou para o relógio.
6h27.
Ótimo. Ela ainda podia dormir mais uma hora antes de...
Peraí. Ela piscou. Olhou para o relógio de novo.
8h27.
Quê? Não pode ser.
Ela esfregou os olhos, pegou os óculos no criado-mudo e os colocou.
8h27.
Piscou de novo.
8h28.
Oh, não. Hoje não.
– Jacob – ela gritou. – A gente tá atrasado. Levanta. Brenda!
– Estou acordada, mãe! – A voz confiante de Brenda chegou da cozinha. – Estou acordada faz um tempão.
– Bem, você podia ter me acordado também! – Só depois de dizer isso ela se deu conta do quanto era ridículo pedir que a filha de 8 anos a acordasse para ir trabalhar.
Alice pulou da cama e sacudiu a cabeça. Levantar de manhã nunca fora a sua especialidade mesmo, e desde que Garrett a deixara para ficar com aquela outra mulher,
isso só piorara. Dificuldade para dormir. Pesadelos. E agora, acordar atrasada no seu segundo dia no novo emprego no banco. Nada bom.
O emprego no escritório de advocacia não estava dando em nada. O salário no banco era melhor, e o horário de trabalho também. Ela podia passar mais tempo com as
crianças. Também começara um curso de administração, e o banco a liberava às segundas-feiras para ir às aulas –, mas nada disso iria importar se ela se atrasasse
e perdesse o emprego.
Alice decidiu sair sem tomar banho, jogou longe a camisola e abriu a gaveta das calcinhas.
– Jacob, já levantou?
– Já – foi a resposta sonolenta do outro lado do corredor.
– Não parece.
A cama dele rangeu.
– Levantei.
O tilintar de uma colher numa tigela de cereal na cozinha.
– A gente vai chegar atrasada na escola, mãe? – Brenda falando de boca cheia.
– Eu escrevo um bilhete pra você.
– Ah – disse Brenda. – Não quero perder a hora da biblioteca.
Alice enfiou uma meia-calça.
– Você tá se vestindo, Jacob?
– Tô, mãe! Já levantei, tá?
– Tá, tá.
Alice voou até o armário, pegou um vestido e o enfiou. Sapato. Qual sapato? Não importa. Anda logo. Qualquer um. Preto. Não. A sapatilha marrom. Certo.
Ela entrou no banheiro, segurou uma toalha sob a torneira, esfregou no rosto, passou batom nos lábios.
– Peguem o material de vocês, crianças. A gente precisa sair já.
Ela voltou para a penteadeira. O cabelo tá uma droga. Uma droga! Certo, cadê? Ela vasculhou a penteadeira. Cadê essa escova?
– Brenda, você pegou minha escova de cabelo?
– Não, mãe.
– Tem certeza?
– Tenho.
Alice empurrou sua caixinha de joias, abriu a primeira gaveta para ver se tinha jogado a escova ali dentro, olhou pelo chão. Nada.
8h39.
Hã.
– A gente precisa sair já, Jacob – ela gritou, mas na verdade estava gritando consigo mesma. Ela olhou para o corredor. Brenda já estava esperando em posição de
sentido com sua mochilinha cor-de-rosa. Devia estar acordada desde umas 6h. Jacob, por outro lado, dormiria até meio--dia se ela deixasse.
Alice entrou no banheiro, esbaforida. Precisava escovar o cabelo. Pia. Prateleiras. Nada de escova.
– Você tá pronto, Jake?
– Ainda não tomei café.
– Come uma barrinha de cereal. Precisamos sair já. Vocês fizeram a lição de casa?
– E o nosso lanche? – Perguntou Brenda.
O lanche!
– Eu, hã... – Alice pegou a bolsa, puxou algumas notas e as distribuiu. – Tomem. Comprem alguma coisa quente pra comer.
Jake olhou para o dinheiro.
– Posso comer pizza?
– O que quiser. – Alice entrou no quarto de Brenda e usou a escova da filha para domar seu cabelo. Não ficou bom, mas teria que servir. Ela encontraria sua escova
depois, sem problemas.
Ela empurrou as crianças para a porta, pegou as chaves do carro e pôs todo mundo dentro dele, torcendo para conseguir chegar à sua mesa antes que alguém percebesse
que ela estava atrasada.
O principal escritório regional do FBI na Carolina do Norte fica em Charlotte. Normalmente seria ali que Ralph montaria sua base de operações, mas neste caso, por
causa da proximidade dos crimes, ele se instalara no escritório-satélite de Asheville.
Mesmo na época em que eu morava na região e trabalhava como guia florestal, Asheville me lembrava um pouco de Boulder, Colorado, só que numa escala menor e temperada
com a música e a cultura de Apalache. Como Boulder, o centro da cidade é artístico, tem lojas de artigos importados exóticos, escolas de dança e centros de arte,
hippies boêmios andando por aí, academias com paredões de escalada, cafés diferenciados servindo variedades orgânicas e restaurantes vegetarianos com funcionárias
que não gostam de depilar nenhuma parte do corpo. E pelas ruas você encontra dezenas de jipes e Land Rovers surrados, levando caiaques, esquis ou mountain bikes,
dependendo da estação.
Mas aqui em Asheville você também encontra músicos barbudos tocando saltérios, banjos e rabecas nas esquinas ao entardecer, uma grande população de aposentados e
igrejas de tijolos com torres altas encarapitadas em quase todas as esquinas. Durante os últimos 20 anos, a cidade se tornou um cadinho cultural onde as duas extremidades
do espectro – os fundamentalistas religiosos e os progressistas sociais – se encontram. Às vezes essa mistura é bem interessante.
– Asheville tem mais galerias de arte per capita do que qualquer outra cidade da América do Norte – Lien-hua me contou enquanto passávamos pela segurança do Complexo
Federal Veach-Baley. – E uma das maiores livrarias independentes do mundo.
O passeio de bonde parecia ter sido bastante informativo.
Ralph havia reservado uma sala de conferências perto do escritório do senador, no primeiro andar. Lien-hua e eu entramos, e eu olhei ao meu redor.
Vi que Ralph tinha trazido meia dúzia de computadores, estações de comunicação, quadros de cortiça e lousas brancas. Me senti em casa.
As fotografias das cinco vítimas anteriores estavam bem organizadas na parede. Não eram as fotos dos locais dos crimes, eram os retratos sorridentes e posados nos
quais cada vítima está bem arrumada, radiante e cheia de vida. Fotos de álbuns escolares, férias familiares, coisas assim. Essas são as fotos que passamos para a
mídia. E, graças a Deus, são essas as fotos que todos lembrarão depois. Em vez daquelas que estão gravadas na minha mente. Aquelas que não consigo esquecer.
Coloquei a mochila com meu computador numa mesa vazia e olhei para as fotos das garotas mortas.
A primeira vítima, Patty Henderson, 23 anos, sorria de um jeito maroto com o canto da boca. Ela era loura, de olhos azuis, tinha dentes perfeitos e parecia uma adolescente.
A segunda vítima, Jamie McNaab, de 18 anos, estava sentada num banquinho de madeira sujo de tinta, segurando um pincel. Jamie tinha um rosto alegre de menina e um
sorriso tímido. Uma lata de tinta estava no chão ao lado dela. Dava para perceber que ela estava num estúdio fotográfico. O fotógrafo, provavelmente, retratara centenas
de adolescentes sorridentes posando ao lado daquelas latas de tinta.
Precisamos verificar esse fotógrafo. Pode haver algum tipo de ligação com o estúdio dele. Talvez alguém que trabalha lá, o lugar que revela os filmes ou algo assim.
Alexis Crawford, de 20 anos, vinha a seguir. Tinha cabelo castanho, desalinhado e era bonita de um jeito delicado, mas tinha um sorriso triste e solitário, como
se a vida não tivesse sido fácil para ela. E, no fim das contas, não tinha sido mesmo.
Enquanto eu olhava as fotografias, o agente Brent Tucker se aproximou, colou uma foto de Mindy Travelca e voltou para sua mesa, sem dizer uma palavra.
Em sua foto, Mindy estava sorrindo, como as outras.
Ralph apareceu e me cumprimentou com um movimento da cabeça.
– De quando é a foto de Reinita? – perguntei, voltando a olhar as fotos. Reinita Lawson, de 19 anos, era a quarta vítima e a única negra do grupo. Ela tinha uma
linda pele marrom clara e olhos cheios de sonhos.
Ralph abriu um envelope de papel pardo.
– Um dia antes de ela ser raptada. Ela tinha acabado de postá-la no MySpace. Por quê?
Em sua fotografia, ela estava flertando com a câmera, com a mão esquerda apoiada na bochecha, delicadamente, convidativamente. Seu sorriso tinha um traço de sedução.
Ela era muito linda, mas algo estava errado. Olhei fixamente a fotografia. Percorri seu sorriso, seus olhos, sua mão. Cheguei mais perto.
– Um dia antes? Tem certeza? – perguntei.
Ralph olhou para o dossiê de novo.
– Sim. O que você está pensando?
– Ela não está usando aliança – disse eu.
– Quê?
– Nas fotos do local do crime que você me mandou, ela está de aliança.
Ele folheou uma pilha de papéis dentro de outro envelope.
– Hum – ele disse. – Talvez ela não estivesse usando nesse dia.
– Quando alguém fica noivo, sai exibindo a aliança pra todo mundo. – Eu estava pensando alto. – Claro que ela pode ter ficado noiva depois de ter tirado a foto e
antes de ser raptada. Mas é pouco provável, se ela tirou a foto no dia anterior.
Ele largou o dossiê.
– Então, o que você está dizendo? Acha que o assassino pode ter deixado a aliança como alguma espécie de símbolo? Ele está tentando dizer que é o noivo delas? Que
está se casando com elas, do seu jeito doentio, pervertido?
– Talvez. Não sei. – Olhei para a fotografia por um bom tempo. – Verifique isso pra mim, tá? Descubra se ela estava mesmo noiva de alguém. Se estava, quero conhecer
o cara.
– Pode deixar.
De repente, percebi que eu estava dando ordens.
– Hã, por favor – falei. Oficialmente, eu havia sido convocado como consultor, mas Ralph e eu trabalhamos juntos tantas vezes no FBI que eu parecia continuar de
onde tínhamos parado.
Ele bateu no meu ombro. Quase me derrubou.
– Não se preocupe, está tudo bem. Vamos pegar esse maluco.
Ralph foi fazer alguns telefonemas e eu olhei para a última foto. Bethanie Dixon, 22 anos, era a única outra vítima, além de Patty, encontrada num lugar fechado.
Ela também era a que tinha sido encontrada mais longe, em Athens, Geórgia. O peão e a fita amarela a ligavam ao nosso assassino, mesmo que a distância parecesse
destoar.
Fui arrancado dos meus pensamentos por alguém dizendo o meu nome.
– Dr. Bowers.
Algo naquela voz.
Não, não podia ser ela.
Eu me virei.
Era ela.
Agente especial Margaret Wellington.
E pensar que meu dia estava indo tão bem.
10
– Margaret – eu disse. Sabia que ela iria me corrigir.
– Prefiro que me chame de agente especial encarregada Wellington.
Estendi a mão.
– Desculpe. Acho que esqueci.
Ela ajeitou um tufo de seu cabelo cinza-rato impossivelmente liso e me fuzilou com o olhar. Eu havia esquecido como seus lábios eram estreitos, como seus dentes
eram retos. Em vez de me cumprimentar, ela pôs as mãos na cintura.
– Não, dr. Bowers. O senhor não esqueceu.
Tudo bem. Era verdade. Lembrava o quanto ela odiava ser chamada de Margaret, mas tinha me esquecido que ela estava trabalhando ali, na Carolina do Norte. Fugira
totalmente da minha mente. Óbvio, senão eu não teria aceitado o convite de Ralph para ser consultor no caso. Encolhi a mão. Ela não ia apertá-la mesmo.
Margaret Wellington tinha o costume de inspirar bruscamente pelo nariz, o que dava a impressão de que ela estava constantemente enojada com você. E talvez estivesse
mesmo.
– Quanto tempo faz, dr. Bowers? Quatro anos?
– Faz tanto tempo assim? – disse. – Nem parece.
Ela piscou.
– Sim. Quatro anos. – Ela inclinou um pouco a cabeça. – Então. Como anda o senhor?
– Ocupado. – Aquilo era verdade.
– Ouvi dizer que sua esposa morreu. – ela disse. Eu podia sentir minha raiva crescendo. Ela continuou, sua voz firme e sem emoção. – Muito trágico. E aí transferiram
o senhor para Denver, para uma função burocrática. Deve ter sido duro.
– Eu me ofereci para o cargo no Colorado – falei friamente. O Centro Nacional de Tecnologia Policial e Penitenciária de Denver tinha o programa de mapeamento de
crimes mais avançado do mundo. Eu estava ajudando a integrar a pesquisa do Instituto Nacional de Justiça com a do FBI. – É um trabalho importante, e assim Tessa
pode ficar mais perto dos meus pais.
– Sim, claro. – Finalmente, ela recuou um pouco e até deixou o esboço de um sorriso dançar em seus lábios. – Bem, parece que vou voltar para Quantico assim que este
caso estiver encerrado. Querem que eu volte a lecionar na Academia.
– Parabéns. Sei o quanto isso é importante para a senhora.
– Sim. – Sua voz havia se transformado em gesso. – O senhor sabe. Mordi a língua. Melhor deixar do jeito que estava.
– Nos vemos na sala de reuniões – ela disse por fim, e marchou para seu escritório com divisórias de vidro no canto da sala.
O ar ao meu redor pareceu soltar um suspiro de alívio. Vi Lien-hua olhando de sua mesa, com um ponto de interrogação no rosto.
– O que foi isso?
– É complicado – eu disse. – Ralph, por que não me avisou que ela estava aqui?
Ele abriu um sorrisão.
– Acho que esqueci.
– Tá, então vai ficar me devendo um monte por isso.
– Como assim, complicado? – perguntou Lien-hua.
Suspirei.
– Nós dois trabalhávamos no FBI. Eu lecionava criminologia ambiental, e ela foi nomeada para a área de antiterrorismo...
– Peraí – Lien-hua disse. – Pensei que antes de se mudar pra Denver você morasse em Nova York.
– Eu morava. Ia de avião pra lá e passava umas duas semanas por mês. De qualquer forma, ela estava de olho no cargo de diretora-assistente fazia um tempão, e estava
bem encaminhada pra conseguir, quando...
– Umas provas sumiram – Ralph disse. – Houve uma troca de acusações, e nosso querido Pat notou umas coisas que deixaram a corregedoria muito interessada.
Eu me sentei na mesa ao lado de Lien-hua.
– Como eu disse, ficou complicado. Resumindo, houve uma audiência disciplinar. Tive que testemunhar, e ela acabou sendo transferida pra este escritório-satélite,
pra ficar cuidando de papelada.
– Ela vem culpando Pat por isso desde então – Ralph acrescentou. – E puxando o saco de quem for preciso pra ser transferida de volta pra Quantico. Nem preciso dizer
que ela não ficou nada feliz quando a gente entrou neste caso. Por outro lado, ela quer encerrá-lo o mais rápido possível, porque não fica bem ter um psicopata assassino
à solta na sua jurisdição quando você está tentando impressionar o seu diretor.
Eu me virei para Ralph.
– Peraí, que história foi aquela de “nos vemos na sala de reuniões”?
– Ah, sim. Margaret quer que você apresente um relatório pra equipe sobre tuas técnicas de investigação.
– Quando?
Ele olhou para o relógio.
– Daqui a meia hora.
– Quê? Sem chance. Nem visitei os locais dos crimes. Ela sabe disso. É cedo demais pra fazer qualquer relatório preliminar...
– Só explica o processo pra gente, Pat. Sabe, toda aquela papagaiada de tempo e espaço geográfico.
– Não posso, Ralph. Eu nem... a propósito, falando assim, você faz o meu trabalho parecer tão intrigante e científico...
– Obrigado.
– Preciso de dois dias no mínimo.
– Podemos te dar até o meio-dia.
– Não tem como eu estar pronto até...
– 14h, tá?
– 14h!
– 14h, então – disse Ralph, triunfante. – Boa, garoto. Vou avisar Margaret.
– Quê? Peraí. – Eu me virei para Lien-hua. – O que acabou de acontecer aqui?
– Acho que você vai apresentar um relatório às 14h.
– Eu não concordei com isso, concordei?
– Não tenho certeza – ela disse. – Mas já posso prever que vou me divertir vendo vocês dois trabalhando juntos.
Peguei um punhado de dossiês de cima da mesa e me levantei. Eu não estava acreditando. Chegara ali de manhã planejando visitar os locais dos crimes, e em vez disso
ia ficar preso ali, apresentando um relatório. Odeio apresentar relatórios quase tanto quanto odeio café ruim. Ela apontou para a tela montada na parede.
– Antes que você comece, venha cá um instante. Quero mostrar uma coisa.
– Escuta, Lien-hua, tenho muito trabalho a fazer.
– Espera. Isto pode ajudar você. – Ela abriu as fotos dos locais dos crimes e começou a passá-las. – Ele rapta, tortura, mata as moças e desova os cadáveres onde
nós possamos encontrá-los, certo?
– Sim.
– Onde nós possamos encontrá-los.
– Isso mesmo.
– A maioria dos assassinos deixa o cadáver num lugar fechado, no local primário do crime, ou, quando transporta o cadáver, é para atrapalhar a investigação. Para
ocultar pistas.
Hum. Uma psicóloga dizendo essas coisas.
– Isso mesmo. Bom argumento. Então por que ele quer que as encontremos?
– Certo. É isso que estou me perguntando. E outra coisa que eu notei. Ele começou dominando Patty pela força bruta. Depois passou a dopar as vítimas.
– Não causa tantos problemas – eu disse –, e é mais confiável. Às vezes, bater na cabeça de alguém tem o infeliz resultado de matar a vítima na hora. Não te dá a
chance de torturá-la até a morte.
– Bem, houve um pouco de contaminação nos primeiros testes toxicológicos, por isso só recebemos os resultados corretos ontem. Isto não estava nas informações que
Ralph enviou para você: as drogas usadas em Alexis e Bethanie são diferentes das que foram usadas em Jamie e Reinita.
Ela empurrou o relatório toxicológico na minha direção e eu o peguei.
– É meio estranho ele alternar assim – eu disse. – Parece mais prová vel ele progredir de uma droga para outra, não ficar indo e voltando.
– Foi o que pensei.
– Vamos ver o que a autópsia vai revelar sobre Mindy. Se ela também foi drogada...
Ela passou para a foto de Mindy. Fiquei olhando alternando entre as fotos na parede e a tela do computador e vice-versa. Na foto da parede, Mindy parecia tão viva,
tão atemporal. Tão resistente. E na outra, tão violada, tão indefesa, tão morta; tão totalmente, imutavelmente morta. A vida é tão terrivelmente frágil. Tão fugaz.
Tão breve. É um quebra--cabeças que não consigo começar a entender, nem depois de todos estes anos. Num minuto você está sonhando em escrever um romance, ou se aposentar
mais cedo, ou viajar em férias para Bermudas, e no minuto seguinte você é uma posta de carne fria com uma artéria entupida ou um aneurisma cerebral. Ou o peito cheio
de câncer.
– Você está bem? – Era a voz da agente Lien-hua. Ela estava me encarando. Eu não fazia ideia de quanto tempo havia ficado perdido em meus pensamentos.
– Hã?
Ela apontou para as minhas mãos. Olhei para baixo. Eu tinha cerrado os punhos com tanta força que os nós dos meus dedos estavam brancos. Relaxei rapidamente as mãos,
flexionei os dedos, agitei.
– Sim, sim. Claro. Estou bem. Desculpe. O que você estava dizendo? – Meu coração pulava no peito. Mantenha-se no controle. Não se distraia aqui. Concentre-se. Fique
concentrado.
Lien-hua ficou em silêncio por um momento e depois baixou os olhos:
– Sei o que aconteceu, Pat. Ralph me contou. Eu lamento muito. – Parecia que ela estava sendo sincera.
– Por? – torci para que ela não soubesse.
– Christie.
Ouvi-la dizer o nome de Christie fez meu corpo todo tremer. Eu podia sentir a raiva subindo como uma maré. Raiva dos médicos, de Deus, do futuro, do destino ou de
qualquer outra força cósmica que colabora para ferrar com nossas vidas e rasgar nossos sonhos com tanta eficácia. Nos primeiros meses depois que ela morrera, era
apenas a solidão que me corroía por dentro, mas ultimamente a raiva estava botando a solidão pra correr. Eu não sabia ao certo qual das duas era melhor, raiva ou
solidão, mas a raiva não me deixava tão entorpecido. Portanto, talvez fosse ela que eu preferia. Não sei.
– Eu lamento tanto – ela repetiu.
Eu não conseguia acreditar o quanto eu ainda estava sensível, oito meses depois do acontecido.
– É – falei finalmente. Eu deveria ter imaginado que Ralph iria mencionar Christie para Lien-hua, mas por algum motivo ainda me incomodava ele ter contado. – Eu
também.
– Você está bem pra fazer isso?
– Claro que estou. Sim. Este é o meu trabalho. – Tentei alongar os dedos, arrancar deles os filamentos de raiva. – Então, hã... vamos ver o que o legista vai dizer
sobre Mindy, e aí veremos se o assassino continua alternando as drogas. Certo?
– Certo.
Fiquei pensando no que mais poderia dizer.
– Tá. Vejo você depois.
– Até mais.
Eu continuava tentando relaxar os dedos enquanto me afastava.
A primeira vítima, Patty Henderson, morava em Spartanburg, Carolina do Sul. Ela e o marido tinham dois filhos gêmeos de 4 anos. Inicialmente, o marido fora considerado
suspeito. Esposos, amantes e namorados são culpados em mais da metade dos homicídios domésticos. Eles sempre são suspeitos. Um dos primeiros passos, ao investigar
um assassinato, é inocentar o esposo ou namorado, e em seguida a pessoa que encontrou o cadáver.
Tudo parecia apontar para o marido mesmo. Patty e ele vinham tendo problemas conjugais e fazendo terapia de casal, e então, um dia, ela foi encontrada estrangulada
e mutilada no quarto dos dois. Vai entender. Mas ele fora inocentado. Mais de uma dúzia de pessoas o viram na hora do assassinato num sports bar no centro, e ele
não poderia ter voltado a tempo de matá-la. Os filhos do casal estavam passando a noite na casa da mãe de Patty, portanto, ela estava sozinha em casa. O marido poderia
ter contratado alguém, mas eu duvidava disso. O assassino se dera ao trabalho de puxar os lençóis até o pescoço dela, como se a estivesse ajeitando na cama. Cobrir
um corpo, tipicamente, significa que o assassino sente algum tipo de remorso, ou então que conhece a vítima; que é alguém próximo dela. Um assassino de aluguel não
agiria assim, tipicamente, e com certeza não amarraria uma fita amarela no cabelo dela. Mas se não tinha sido o marido, quem, então?
E havia também o peão branco no chão do quarto. Inicialmente, ninguém prestara atenção nele. Numa casa cheia de crianças, nada nunca é guardado, você sempre encontra
peças de quebra-cabeças, jogos e brinquedos espalhados no chão. Mas o marido finalmente o notara.
– Que esquisito – ele dissera. – Um dos meninos deve ter trazido isso da casa de algum amigo. Não temos nenhum tabuleiro de xadrez aqui.
E então, um mês depois, um casal de velhos encontrou Jamie McNaab num estacionamento, logo depois da divisa estadual, em Smoky Mountains, Tennessee. Nada indicava
um padrão, até que um dos policiais que atenderam a ocorrência notou que ela estava segurando uma peça de xadrez na mão esquerda. Esse também foi o primeiro assassinato
a chamar atenção para a área de Asheville.
Seria de se esperar que a fita amarela bastasse para conectar os crimes, mas essa informação se perdera nos meandros da investigação. Muitos policiais acham que
os procedimentos para fazer relatório ao PACV são um tanto acachapantes e tomam tempo demais, e com várias pessoas preenchendo os formulários, eles nunca ficam tão
completos ou padronizados como deveriam. Muitas investigações sofrem por causa disso.
No caso de Jamie, eu não conseguia deixar de me perguntar se o assassino pusera o peão na sua mão propositalmente, pelo fato da primeira peça de xadrez ter sido
quase ignorada. Aquele pensamento causava calafrios, porque podia significar que esse cara, fosse ele quem fosse, via a coisa toda com um jogo. E queria ter certeza
de que a polícia ficaria sabendo de cada uma de suas jogadas.
Ou algo até mais apavorante: ele poderia ter obtido informações confidenciais sobre a investigação.
Alexis fora encontrada no Parque Estadual Grayson Highlands, pouco além da divisa com a Virgínia. E Reinita Lawson, na Reserva Nacional de Nantahala, no canto mais
a oeste da Carolina do Norte.
A manhã toda trabalhei furiosamente, organizando e filtrando os dados geográficos, comparando-os com dados da distribuição demográfica do oeste da Carolina do Norte,
baixando listas de ligações de celular, gravando dados no meu computador, reunindo todas as informações que me ajudariam a ver o quadro geral dos padrões de movimentação
do criminoso e das vítimas.
Pulei o almoço e, antes que me desse conta, Margaret estava ao meu lado, batendo com os dedos na minha mesa.
– Estou tão ansiosa para ouvir sua abordagem deste caso – ela disse. Não sabia mentir muito bem. – Pronto para apresentar seu relatório à equipe?
– Sim, estou ansioso pra fazer isso. Também não sei mentir muito bem. Juntei minhas anotações e passei por ela, rumo à sala de reuniões. Durante todo o trajeto,
eu podia ouvir os estalos dos saltos dela atrás de mim, me acompanhando.
11
Aaron Jeffrey Kincaid não se considerava um homem violento.
E na verdade, se você perguntasse às pessoas que o conheciam melhor, elas não o descreveriam como violento, de forma alguma. Pensativo, talvez, quieto, quiçá ponderado,
afetuoso, talvez até amoroso.
Sim, elas poderiam até usar a palavra amoroso para descrever Aaron, mas não violento.
Porque na verdade fora o amor que lhe dera a coragem de lacrar seus dois amigos dentro do quarto, 15 horas atrás. O amor por sua família. Por seu Pai. Por seu destino.
Na realidade, ele era um homem determinado. Apaixonado. Essas eram palavras adequadas para descrevê-lo. Determinado, apaixonado e amoroso.
Menos de 36 horas.
Esse era o tempo que restava para Rebekah e Caleb.
Até mesmo agora, quando ele ia ver como estavam, Rebekah apoiava a mão na janela, e Aaron punha sua mão do outro lado do vidro, sobre a dela, como se estivessem
se tocando. Ela não parecia furiosa. Mais em paz do que qualquer outra coisa. Ele acenou para ela.
– Nosso amor vai nos unir para sempre – ela disse silenciosamente para ele. E ele repetiu as palavras para ela sem emitir som, como se ela fosse sua filha e eles
estivessem murmurando orações na hora de dormir.
Ela e Caleb tinham sido até mais fáceis de convencer do que Jessie Rembrandt fora, em 1985.
Foram anos de buscas, de espera e de sonhos. Agora, finalmente, chegara a hora.
Ano passado, finalmente, ele encontrara a pessoa que procurara todo aquele tempo, e o plano fora colocado em funcionamento.
Claro, teria sido ideal tudo acontecer no mês seguinte, no dia 18, e não agora, em outubro. Teria sido perfeito. Mas só terroristas e lunáticos dão mais importância
às datas do que às ações. E Aaron não era nem uma coisa, nem outra. Era simplesmente um homem determinado e dedicado, apaixonado por sua família, realizando seu
destino final.
De certa forma, era uma pena que Rebekah e Caleb fossem perder os acontecimentos da segunda-feira. Mas realmente, não havia outra alternativa. O que precisava ser
feito tinha que ser feito.
Ele tirou a mão do vidro e saiu. O vento do outono estava frio, mas também fresco e convidativo, prometendo uma mudança de estação.
Isso o fazia pensar em todas as coisas maravilhosas que estavam por vir.
12
É por isso que odeio apresentar relatórios. Em geral, esperam que eu resuma todos os meus anos de pesquisa em criminologia ambiental e minha experiência como detetive
e agente do FBI em 20 minutos. E, naturalmente, na maior parte das vezes sou o único dos presentes que acredita que minha abordagem investigativa realmente funciona.
Esse é o X da questão.
Ralph estava de pé no canto, mexendo em alguma coisa, quando entrei na minúscula e apinhada sala de conferências. – O que você está fazendo? – perguntei. Ele tentou
enfiar o objeto no bolso, mas eu vi o que era. – Um PlayStation Portable?
Ele parecia um pouco constrangido e tímido, o que não é fácil para alguém capaz de levantar um caminhão com as pernas.
– Não conta pra ninguém. Tô tentando ficar craque pra ganhar do meu moleque.
– Tony está com 10 anos, certo?
Ralph fez que sim.
– Ainda consigo ganhar dele no futebol, no basquete, na luta livre... Olhei para o tamanho de Ralph.
– Você luta com Tony?
– Sim, claro – ele disse. – Por quê?
Bem, eu pensei, você pesa quase 140 quilos.
Ralph abriu um sorriso de pai coruja.
– Ele é bem forte.
– Oh. – Eu me perguntei quanto Tony teria crescido nos últimos meses.
– Então, ele é muito bom com esses games, por isso tô praticando. Tentando ficar bom o suficiente pra ganhar dele no Sorcerer’s Realm IV. Não conta pra ninguém.
– Prometo.
Ele chegou mais perto.
– Tô falando sério. – Percebi que ele estava.
– Entendi.
Levei alguns minutos para conectar meu computador ao projetor no teto da sala, e quando finalmente ergui os olhos, notei que quase todos os lugares estavam ocupados.
Além dos agentes Hawkins, Jiang, Tucker e Wellington, vi o xerife Wallace e meia dúzia de outros agentes e policiais que ainda não conhecia.
De repente, Margaret se levantou, ajeitou a saia e limpou a garganta.
– Sei que temos muito o que fazer, por isso vamos começar. – Olhei para o relógio de parede. Sim, exatamente 13h59.
O burburinho e as conversas paralelas diminuíram. Dante Wallace e Ralph se sentaram. Brent Tucker se sentou ao lado de Margaret, e eu ocupei a cadeira ao lado de
Lien-hua, mesmo sabendo que iria levantar novamente em breve.
Margaret estava falando com cortesia exagerada.
– O dr. Patrick Bowers fez a gentileza de se juntar a nós e oferecer sua perspectiva... peculiar a este caso. Achei que seria prudente ele descrever os princípios
por trás de sua abordagem... não-ortodoxa de investigação.
– Então ela esticou os lábios num sorriso apertado e condescendente e se aproximou de mim. – Dr. Bowers?
Uau. Que apresentação.
Eu me levantei e balancei a cabeça.
– Sim, obrigado, Margaret. – Com o canto do olho, conseguia ver Lien-hua rabiscando seu caderno, sorrindo. – Para começar – disse –, pelo que vi até agora, o trabalho
de vocês neste caso está sendo meticuloso, profissional e incisivo. Portanto, parabéns. – Alguns presentes emitiram sinais de aprovação meio indiferentes. Eles sabiam
tão bem quanto eu que sem uma prisão ou mesmo um suspeito principal, todos os elogios e tapinhas nas costas do mundo não significavam nada.
Apertei o pequeno controle remoto do meu computador e um mapa tridimensional apareceu na tela de projeção.
– Minha especialidade, como a agente Wellington mencionou, é um tanto peculiar. Eu trabalhei na polícia local, como detetive em Milwaukee e, pelos últimos nove anos,
no FBI. Meu principal interesse é onde e quando o crime aconteceu, e o significado que a hora e o local do crime têm na vida do agressor, ou, no nosso caso, do assassino.
– Criminologia Ambiental – o agente Tucker anunciou. – Ela une os campos da psicologia ambiental e da investigação geoespacial.
– Certo... – disse eu. – Portanto, em vez de me concentrar simplesmente nas evidências científicas ou na patologia específica do agressor, examino o relacionamento
que o agressor tem com sua vítima e com seu ambiente. Pode parecer óbvio, mas todo crime acontece num momento específico, num lugar específico.
Às vezes, quando estou explicando essas coisas, recebo olhares estranhos, e isso já estava acontecendo ali. Algumas risadinhas e olhadelas para o lado, sobretudo
dos policiais locais. Olhei para Margaret. Ela estava me encarando com olhos de granito. O agente Tucker balançava a cabeça e fazia anotações num bloco.
– Eu sei. Parece uma abordagem simplista, mas por que naquele horário? Por que naquele lugar? Por que aquela vítima? Locais têm padrões de uso. Se estudarmos as
áreas associadas com cada crime e a hora do dia em que os crimes aconteceram, teremos um vislumbre do mundo do agressor. As pessoas, tipicamente, desempenham suas
atividades de rotina nos locais mais convenientes. Todos nós fazemos isso. Com assassinos, não é diferente. Como qualquer outra pessoa, agressores reincidentes tendem
a se mover em certos padrões e direções repetitivas a partir de suas residências.
Corri os olhos pela sala para ver como estava me saindo.
Alguns membros da equipe já tinham ouvido aquele tipo de coisa. A maioria dos grandes órgãos policiais, hoje em dia, tem pelo menos um criminalista estratégico,
e quase todos usam alguma forma de mapeamento de crimes ou aplicam os princípios da psicologia ambiental às suas investigações – mesmo que não chamem as técnicas
por esses nomes.
A maioria dos presentes parecia entediada.
Bem, isso não demorou, e você ainda tem 15 minutos.
– Todo assassinato tem no mínimo quatro locais – continuei. – O local do encontro inicial entre o agressor e a vítima, o local da agressão ou do rapto, o local do
assassinato e o posicionamento final do cadáver.
Mudei para uma tela animada que mostrava imagens de satélite da Carolina do Norte, e então usei o cursor para aproximar a parte ocidental do Estado. Movendo o cursor,
eu girava as imagens horizontalmente, e o cursor deslizava como um pequeno avião sobre a paisagem montanhosa tridimensional.
Ouvi alguém atrás de mim.
– É como o Google Earth com anabolizantes. – Risadinhas se espa lharam pela sala.
– Sim – confirmei –, muitos anabolizantes. Este é um dos sistemas de informações geográficas mais bem integrado do mundo. Nós o chamamos de F.A.L.C.O.N.
– O que significa isso? – alguém perguntou.
Eu sorri e olhei para o crachá dele.
– Não sei, agente Stilton. Ainda não bolamos essa parte, só o acrônimo. É assim que o governo funciona. – Recebi alguns grunhidos de aprovação por causa disso. Não
muitos, mas abrandaram um pouco o clima na sala. – É uma colaboração entre a Agência de Segurança Nacional e o FBI – com uma ajudinha dos nossos amigos na NASA e
um certo estúdio de animação. Mas ainda não posso dizer o nome, só depois que o software for lançado.
Ouvi a voz de Ralph.
– Estúdio de animação?
– Precisávamos de alguém que soubesse o que estava fazendo para nos ajudar com a parte gráfica. Eles ficaram felizes por abocanhar um suculento contrato do governo,
e nós ficamos felizes por termos os melhores especialistas em computação gráfica do mundo. Enfim, usando este programa, podemos visualizar qualquer lugar da superfície
da Terra, com margem de erro inferior a meio centímetro. A equipe ainda está pesquisando maneiras de enxergar através das nuvens – ainda não resolvemos isso, mas
está pra acontecer. Esta é só a versão beta. Esperamos ter o protótipo disponível para os órgãos policiais do mundo todo nos próximos dois anos.
Um dos policiais que eu não conhecia falou.
– Isso são imagens de satélite ao vivo?
– Não exatamente – respondi. – Têm um atraso de quatro minutos.
Apertei o controle remoto e um mapa tridimensional apareceu na tela de projeção atrás de mim. Clicando na tela, eu acrescentava novas camadas por cima das anteriores,
cada camada com mais um padrão de círculos, losangos ou triângulos.
– Este primeiro mapa mostra onde encontramos cada um dos corpos – expliquei. – O próximo mapa, aqui – cliquei na tela de novo e os losangos apareceram –, tem as
residências das vítimas. Nos casos em que sabemos onde aconteceram os raptos, fiz esses locais aparecerem como ovais. – Cliquei mais uma vez, e mais uma camada apareceu.
– E, caso o local do assassinato tenha sido identificado, ele está marcado com um losango amarelo.
A essa altura, a tela parecia um pouco sobrecarregada.
– Agora vejam quando faço aparecer as estradas, enfatizando as rotas que proporcionam as evasões mais rápidas e convenientes, e aí comparo isso com a distribuição
de domicílios nas áreas residenciais que estamos examinando... – Uma série de linhas brilhantes apareceram, conectando o amontoado de símbolos e figuras, dando-lhe
sentido, trazendo ordem. – Então, se acrescentarmos o que sabemos sobre os padrões de rotina das vítimas e rotas de deslocamento no momento em que foram raptadas...
– Como sabemos isso? – Margaret perguntou.
– As operadoras de celulares podem rastrear a localização de cada ligação efetuada e recebida por GPS – eu disse. – A maioria dos carros novos também tem GPS, inclusive
o Corolla de Mindy. Baixei os itinerários que Mindy percorreu com seu carro, bem como o horário, duração e local de suas ligações telefônicas nos últimos dias antes
de seu assassinato. Descobri algo interessante.
– O quê? – perguntou o agente Tucker.
– Baseado no que sabemos sobre os padrões de deslocamento das outras vítimas, vocês podem ver que eles se cruzam em quatro áreas distintas: perto do Hotel Stratford,
no parque ao lado do Hospital Mission Memorial, no centro da cidade e perto da universidade. É bastante possível que nosso assassino esteja rondando esses locais,
procurando suas presas.
Cliquei na tela de novo, e desta vez surgiram algumas regiões pulsantes, vermelhas, em forma de cunha.
– Podemos ver que as localizações mais prováveis dos primeiros encontros ou dos raptos ficam aqui, aqui e aqui. – Eu usei uma caneta laser para indicar as áreas
pulsantes do mapa. – Levando em consideração tudo o que sabemos sobre o crime – os padrões observáveis do agressor, o zoneamento urbano, a distribuição demográfica,
as características topográficas, o fluxo de trânsito, as condições meteorológicas no momento do crime – podemos extrapolar o ponto-âncora...
Oh, ótima palavra, Pat. Vai impressioná-los de verdade.
– O quê? – Era o xerife Wallace.
– Extrapolar. Significa...
– Não, esse tal de “ponto-âncora”.
– Oh – eu disse. – Ponto-âncora, certo. Seria a base domiciliar do agressor. Pode ser a casa dele, ou talvez a da namorada ou de um parente. Ou então seu local de
trabalho. Contanto que essa base seja estável, podemos usar os princípios do perfil geográfico para determinar sua localização mais provável.
Eu tomei um gole d’água.
Mais dez minutos e você pode sumir daqui.
– Agressores tendem a não cometer crimes perto demais de suas bases domiciliares, nem longe demais delas. Depois de definir sua área de caça e traçar uma linha ligando
os dois locais de crimes mais distantes, podemos criar o raio de um círculo. – Fiz isso na tela com a caneta laser. – Dentro deste círculo aqui – cliquei na tela,
e um círculo azul apareceu perto do centro do círculo maior – há uma probabilidade de 50% de que esteja o ponto-âncora do nosso agressor.
– Como alfinetes num quadro de avisos. – O policial que disse isso fez questão de falar alto o suficiente para que todos ouvissem.
Eu já ouvira tudo aquilo antes, mas senti minha temperatura subindo mesmo assim.
– Sim, o princípio é o mesmo. Mas não estamos olhando só a distribuição dos crimes, aqui; em vez disso, estamos levando em conta a sequência, a distribuição, a origem
e a cronologia. A ordem dos crimes é significativa. O primeiro crime de uma série muitas vezes é o mais próximo do ponto-âncora do assassino. Depois ele se afasta,
à medida que sua zona de caça vai se enchendo de investigadores. Mesmo assim, os locais de desova dos cadáveres tendem a ficar cada vez mais próximos de seu ponto-âncora,
à medida que ele fica mais confiante, a cada crime que consegue cometer sem ser capturado. Portanto, a cronologia e a localização são significativas. Além disso,
lugares têm significado para as pessoas. Todos vemos o mundo ao nosso redor através da lente das nossas experiências e percepções pessoais. Se eu puder entender
o que os locais desta série de crimes significam para o agressor, isso vai me ajudar a entender que tipo de pessoa estamos procurando. Em vez de perguntar: “Por
que ele fez isso?”, eu pergunto: “Por que ele fez isso aqui?” Por exemplo...
Ampliei uma foto de Jamie McNaab.
– Jamie foi encontrada ao lado de um estacionamento. Agora olhem atrás dela, à direita, ali – apontei com a caneta laser –, estão vendo? Tem uma placa que diz “Permanência
Proibida”. É sutil, mas simbólico. – Mudei para uma fotografia do local onde Reinita Lawson fora encontrada. – Reinita foi encontrada numa trilha que leva às Cavernas
Tombstone3 – também simbólico. Ele está nos provocando.
– Como é que ninguém notou isso antes? – perguntou o xerife Wallace. Antes que eu pudesse responder, o agente Tucker disse:
– Ninguém estava procurando por isso.
Eu queria que ele parasse de fazer aquilo.
– E quanto ao motivo? – perguntou Lien-hua, que tinha parado de rabiscar e estava me olhando com interesse aguçado e talvez uma ponta de antagonismo.
– Deixo os motivos para os psicólogos. – Eu sorri.
Ela não.
– E isso significa...? – Ela deixou sua voz sumir e depois acrescentou:
– O que, exatamente?
Imaginei que alguém fosse fazer essas perguntas, mas por que tinha que ser ela?
– Bem, em vez de sondar a mente dele para tentar adivinhar o que o cara está pensando, eu tento estudar sua vida para descobrir onde ele mora. Acho que investigações
demais são desencaminhadas quando se tenta descobrir o motivo...
– Perdão, dr. Bowers. – Ela pousou a caneta. – O senhor acaba de dizer desencaminhadas por procurar o motivo?
Enfiei o controle remoto no bolso.
– Sim, agente Jiang, eu disse isso. Jurados adoram motivos. Leitores de romances policiais e de mistério também. Sem um motivo, nos sentimos passados para trás.
A trama precisa fazer sentido. Somos viciados em explicações. Mas na vida real, algumas coisas não têm uma explicação simples. Motivos nunca são claros, distintos,
exatos.
– Que história é essa? – Foi o xerife Wallace, desta vez. – Sem um motivo, por que a gente faria qualquer coisa?
Muito bem. Eu não tinha certeza de quando minha apresentação tinha começado a fugir do meu controle, mas aquilo não estava no programa.
– Não estou dizendo que as pessoas não são motivadas a fazer coisas – falei –, mas apenas que o “motivo” não é a bala de prata que certas investigações criminais
pretendem que ele seja. – Olhei ao meu redor. Tive a sensação de estar me afundando mais a cada palavra que dizia. Mas segui em frente, tentando não dar a impressão
de que queria puxar briga. – Por que você se levanta e vai trabalhar todo dia, agente Jiang? Para ganhar a vida? Talvez por obrigação? Por ambição? Por paixão? Para
provar alguma coisa?
– Pra paquerar? – Tucker interrompeu. Algumas pessoas riram. Ele falou em tom de brincadeira, e tive a sensação de que ele estava tentando ajudar a salvar minha
cara, mas Lien-hua apenas o fuzilou com o olhar. Eu queria que ele calasse a boca.
– Pra pegar bandidos – anunciou ela. Sua resposta excessivamente simplista estava carregada de sarcasmo.
– Sim, tudo bem. Mas também para ganhar a vida, pagar as contas, fazer algo que você sabe fazer muito bem... certo?
– Aonde quer chegar?
Por favor, cara. É o seu primeiro dia na cidade. Não comece a fazer inimigos desde já.
– Quero dizer que tudo o que fazemos é um emaranhado de motivos, sonhos, arrependimentos, vergonha, esperança, desejo – tudo isso se sobrepondo e competindo, lutando
pela nossa atenção, pela nossa vida. Assim que tentamos enfiar um crime num pacotinho bonitinho chamado “vingança”, “luxúria”, “raiva” ou “cobiça”, deixamos de perceber
as realidades sutis da vida e tendemos a negligenciar o contexto social do crime.
Lien-hua balançou a cabeça. Ela não estava convencida.
– Mas sem mostrar um motivo claro, quase nunca se consegue uma condenação.
Eu só queria acabar aquele troço e sair para visitar alguns dos locais dos crimes. Senti a raiva despertando dentro de mim. Fica quieta aí. Fica quieta.
– Sim, é verdade – eu disse lentamente. – Mostrar um motivo é útil para obter uma condenação, mas mostrar um motivo é ignorar os outros. A vida nunca é tão simples
assim.
– Mas você não quer conseguir a condenação? – disse ela.
– Meu trabalho não é condená-los, é ajudar vocês a encontrá-los. Citar um motivo pode fazer os jurados se sentirem melhor e deixar os leitores mais satisfeitos,
mas eu não estou julgando o caso, nem escrevendo um romance. A maior parte das vezes, as pessoas não entendem nem as coisas que elas mesmas fazem, quanto mais o
que outras pessoas fazem. E às vezes as coisas acontecem sem nenhum motivo aparente. A vida nem sempre faz sentido. – É. Pessoas que você ama têm câncer e morrem.
Famílias se desfazem. Você perde a direção, o foco, a claridade. A vida fica fora de controle. Sem rima. Sem razão. Sem sentido nenhum...
A sala estava em silêncio. Todos estavam me olhando. Por um momento, me perguntei se não tinha pensado alto, mas aí percebi que devia ter me contido a tempo.
– Quando o assunto é crime – eu disse finalmente –, pode até haver um motivo principal, mas não existe um motivo individual.
Wallace de novo:
– Então, se você não procura motivos, o que procura?
– Padrões. Hábitos. Escolhas. Entender a intersecção deste lugar, deste momento e desta vítima com a vida do agressor.
– Com licença, dr. Bowers. – Ah, sim. Eu devia imaginar que Margaret ia querer entrar na brincadeira, mais cedo ou mais tarde. – Durante séculos, o trabalho investigativo
se concentrou em três coisas: motivo, meios e oportunidade. Está dizendo que trabalhamos errado todos esses anos?
Há quanto tempo será que ela está esperando pra fazer essa pergunta?
– Claro que não, agente Wellington. Um agressor não pode cometer um crime sem a oportunidade de fazê-lo ou os meios de executá-lo. Mas o que levou a essa oportunidade?
Por que ele tinha os meios à disposição naquele momento específico? É isso que eu procuro. Não estou tentando entrar na mente do assassino, estou tentando seguir
seus passos.
– Dr. Bowers – Margaret disse, expirando pelo nariz. Ela olhou lenta e deliberadamente para o relógio. – Tenho uma coletiva daqui a menos de 20 minutos. O senhor
tem algo mais... concreto para acrescentar a esta investigação?
Eu queria ter alguma coisa pra jogar nela. Um rottweiler, por exemplo.
– Na verdade, eu tenho. Estava chegando nessa parte. Deixe-me mostrar como tudo isso vai nos ajudar a pegar este assassino.
13
– Aqui – apertei um botão e iluminei duas regiões do mapa – estão as áreas de busca ideais, os pontos-âncora mais prováveis para nosso agressor. Esta área a oeste
de Asheville e este conjunto de quarteirões no centro. Isso reduz em 84,6% a área de busca. Também vi quantos suspeitos existem até agora – 2.432 nomes na lista
principal. Somente 12% deles trabalham ou moram nestas áreas. Já verifiquei. Isso pelo menos nos dá um ponto de partida.
Alguns dos policiais pareciam aturdidos com a ideia de que, aparentemente, eu sabia do que estava falando. Ralph parecia um pouco confuso.
– Mas por que duas áreas?
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Tucker respondeu por mim.
– Em alguns casos, a matemática de um perfil geográfico apresenta uma solução bipolar; em outras palavras, há dois lugares igualmente prováveis para a residência
ou o ponto-âncora do agressor.
Tudo bem, agora o cara estava realmente me dando nos nervos.
– Isso mesmo – confirmei.
Tucker parecia satisfeito.
– Bem – disse Ralph –, podemos verificar os registros de trânsito para ver se alguém que mora nessas áreas tem uma van Subaru verde como a que os dois escaladores
viram saindo da trilha na montanha onde Mindy foi encontrada.
– Estou cuidando disso – disse um dos policiais que eu não conhecia.
– Sim – acrescentou o xerife Wallace. – E podemos revisar nossas listas de pistas e suspeitos e reorganizar as prioridades. Recebemos milhares de pistas desde que
a investigação começou. Tem sido um pouco massacrante.
– Sim – eu disse. – Verifiquem também se alguém que mora nessas áreas tem antecedentes de espancamentos ou agressões violentas.
– Muito bem – disse Margaret. – Cada um sabe o seu trabalho. Agora vamos fazê-lo direito. – Ela me cumprimentou friamente. – Obrigada, dr. Bowers.
Todos pareciam estar se cumprimentando ou juntando suas coisas. Quando eu ia dizer a mim mesmo que a apresentação não correra tão mal assim, notei Lien-hua.
Ela estava me encarando. Em seguida, se levantou e saiu andando. Memorando mental: da próxima vez, não diga “desencaminhada por motivos” para uma psicóloga forense.
Especialmente para ela.
Tucker olhou para o relógio.
– Tenho umas entrevistas hoje à tarde. Vou conversar um pouco mais com os escaladores que encontraram o corpo de Mindy e depois ver se o legista já terminou a autópsia.
– Certo – disse Ralph. – Quando acha que vai voltar?
Tucker balançou a cabeça.
– Acho que só amanhã. Tenho um compromisso importante com a patroa hoje à noite. Mas acho que chego cedo amanhã.
Enquanto ele se afastava, notei Margaret parada na porta, de braços cruzados.
– Então, dr. Bowers. Antes da coletiva, tenho uma pergunta para o senhor.
– Sim?
– Onde ele vai atacar a próxima vítima?
Balancei a cabeça.
– Alguns teóricos do mapeamento de crimes tentaram a análise preditiva, mas seu sucesso até agora foi limitado. Lamento, agente especial encarregada Wellington.
Posso ajudar a reduzir o âmbito de uma investigação, mas não posso prever o futuro.
– Que pena. – Sua voz estava gelada. – Isso poderia de fato nos ajudar.
Ah, Margaret.
É tão bom trabalhar com você de novo.
Nem acredito que só se passaram quatro anos.
14
Desmontei meu computador enquanto todos voltavam ao trabalho.
Eu não sabia bem o que pensar. Sim, eu tinha apresentado alguns números, dado um ponto de partida, mas era tudo preliminar. Só usei as informações que eles me deram.
Sem visitar os locais, eu não tinha como saber nem se estávamos na pista certa.
Almoço. Era disso que eu precisava. Comida e ar fresco. Esvaziar a cabeça. Além disso, tinha uma certa árvore que eu queria ver. Ver se era real mesmo ou se só existia
na mente de uma louca.
Peguei meu computador e fui para a saída.
Um dos quadros favoritos de Christie no Metropolitan Museum of Art de Nova York era uma obra chamada “Encosta do Hospital”, a pintura de uma enorme faia de longos
ramos feita por Zelda Sayre Fitzgerald, esposa do escritor F. Scott Fitzgerald, que era esquizofrênica. De acordo com o guia do museu de arte, Zelda pintara o quadro
na década de 1940, enquanto estava internada no Hospital Psiquiátrico Highland, em Asheville, Carolina do Norte, onde estava se tratando de esquizofrenia. Naquela
época, Asheville era famosa pelo poder de cura de seu ar fresco da montanha como remédio para todo tipo de doença, mas especialmente a tuberculose, que eles chamavam
de tísica. O guia turístico disse que a árvore existia até hoje.
Highland Park ficava a menos de três quilômetros do prédio da administração federal. Comprei comida mexicana e fui para a rua, grato pela oportunidade de esticar
as pernas.
Enquanto andava pela cidade, tentei captar a atmosfera dos vários bairros – índices demográficos, nível de renda, atitude, essas coisas. Como as pessoas, os bairros
têm temperamentos diferentes. Ao me aproximar de Highland Hill, a atmosfera do bairro começou a mudar de estilosa e sofisticada para melancólica e sombria. E então
eu vi por quê.
Ao virar uma esquina, Highland Hall se erguia ameaçadoramente da colina: fachada de tijolos, linhas retas, imponente, institucional. Suas paredes escuras e manchadas
pelo clima pareciam sugar toda a luz do dia. E, de fato, ao lado do velho hospício crescia uma faia que parecia velha o suficiente para ser a mesma árvore que Zelda
Fitzgerald pintara mais de 50 anos atrás. Na base da árvore, encontrei uma placa:
Em memória de Zelda Sayre Fitzgerald
1900-1948
“Não preciso de nada além de esperança,
que não posso encontrar olhando para trás ou para a frente,
portanto acho que o mais certo seja fechar os olhos.”
– Zelda Sayre Fitzgerald
Zelda faleceu em 1948, junto com mais oito mulheres, quando a ala do hospital em que estavam pegou fogo. Todas morreram asfixiadas pela fumaça. Um cimentado cinza
a oeste do prédio era o testemunho da ala perdida.
Eu só podia imaginar como tinha sido para elas. Presas, morrendo, sabendo que não havia como passar pelas chamas. Fechando os olhos, gritando por ajuda. Dando-se
conta de que ninguém as ouviria. Ninguém jamais as ouviria novamente. Jamais experimentariam a esperança que tentavam encontrar tão desesperadamente.
Eu me sentei perto da árvore por algum tempo, terminando de comer, pensando em Zelda, em Christie e no caso. Notei um corvo pousando no teto do velho hospital, e
ele me lembrou de Tessa. Por alguma razão, ela sempre me fez pensar num corvo tentando abrir as asas. Mas talvez, em vez disso, ela fosse uma pomba coberta de fuligem,
procurando um lugar seguro para pousar.
Era difícil saber o que pensar.
Depois de meia hora, voltei para o prédio da administração federal. Não sobrava tempo suficiente para visitar os locais dos crimes, mas talvez eu pudesse trabalhar
na análise das conexões entre os crimes e depois percorrer a zona de caça do assassino no centro. Eu vira uma academia de escalada quando chegamos à cidade; talvez
pudesse até encaixar uns exercícios na minha agenda.
Deixei a árvore para trás, mas os fantasmas de Zelda e das outras mulheres me seguiram. O eco dos seus gritos e o cheiro fuliginoso da esperança moribunda me acompanharam
de volta para o trabalho.
15
Shopping Hanes
Charlotte, Carolina do Norte
18h52
O Ilusionista olhava pela janela de sua van para a garota que voltava para o carro. Sabia o nome dela – Jolene Brittany Parker. Sabia sua data de nascimento – 17
de junho de 1989. Ela fora um bebê pequeno, nascera pesando apenas 2 quilos e 400 gramas. Mas crescera bastante desde então. Ele sabia tudo.
Ele a observou chegando no carro e abrindo a bolsa para pegar as chaves. Um sorriso se abriu no rosto dele ao ver o espanto nos olhos da moça.
Ela apoiou a bolsa no carro ao lado e a escancarou, como a mandíbula de uma cobra que se desloca e se abre muito, demais, para engolir um roedor trêmulo. Ela virou
a bolsa, que despejou todo o seu conteúdo colorido, mas nem assim Jolene Brittany Parker conseguiu achar as chaves.
Ela devolveu os itens na bolsa, um a um, e começou a se apalpar. Batendo nos bolsos. Virando um pouco a cabeça para olhar num canto do chão. O Ilusionista sorriu.
Ela está pensando: Onde foi que eu enfiei essas drogas de chaves? Sei que deixei na bolsa. Onde podem estar?
Oh, aquilo era bom. Era tão bom que ele mal conseguia aguentar.
Ela olhou dentro do carro. Na ignição. No assento. Não, não tinha deixado lá dentro.
Mesmo sem querer, o Ilusionista deu uma risadinha. Não alta o sufi-ciente para que ela ouvisse, claro. Ele estava a alguns carros de distância, vigiando. Mas não
conseguiu evitar. Aquilo era tão bom!
Ela estava nervosa, como ele sabia que ficaria. Então ele abriu a porta da van e saiu. Ela ainda não o tinha visto; continuava procurando as chaves. Ele sorriu de
forma encantadora, deu a volta numa picape azul e a abordou.
– Tudo bem aí, moça? – perguntou. O Ilusionista estava usando o uniforme dos seguranças do shopping. Ele tinha pensado em tudo.
– Só estou tentando me lembrar onde pus as chaves – ela disse distraidamente, olhando-o de soslaio.
– Talvez eu possa ajudar a procurar? – O sorriso dele era tranquili-zante, genuíno.
– Hã, tá – disse ela sem pensar, voltando a olhar para o chão para ver se não havia derrubado as chaves enquanto vasculhava a bolsa.
O Ilusionista se aproximou dela.
Mas devia haver algo nele. Seu jeito de andar, talvez, ou seu tom de voz, ou sua vontade excessiva de ajudar, mas algo a incomodara. Talvez ela tivesse se dado conta,
de repente, de que falara demais com aquele estranho que a abordara no estacionamento do shopping, porque acrescentou rapidamente:
– Mas acho que deixei as chaves com meu namorado. Ele já está vindo.
Ela apontou para o shopping, para um sujeito que estava vindo na direção deles. O Ilusionista seguiu o dedo dela com os olhos.
Era tudo tão divertido. Tão hilariante! Ele quase começou a rir de novo. Não havia namorado nenhum. Claro que não. Ele sabia de tudo. Ele sabia tudo.
Aquilo era ainda melhor do que ele planejara.
– Bem, então vou esperar que ele chegue aqui. Uma mulher bonita como você não deveria ficar sozinha num estacionamento. Vou precisar ter uma conversinha com ele
sobre como se trata uma mulher. – disse ele sorrindo.
Ele se encostou na porta do carro atrás dele e cruzou os braços. Observando.
Um momento depois, o sujeito virou para o lado do posto de combustível, do outro lado do estacionamento.
– Hum. Parece que ele estacionou longe daqui – disse o Ilusionista, andando rapidamente na direção de Jolene, tão rapidamente que a pegou desprevenida.
Ela estava mexendo na bolsa de novo. Procurando o spray de pimenta?
– Está procurando alguma coisa, Jolene? – Agora ele a estava segurando pelo braço.
Ela mexia desesperadamente na bolsa. Ele podia sentir o corpo dela tremendo em suas mãos. Quase conseguia saborear sua adrenalina. Farejar seu medo.
– Isto, talvez? – O Ilusionista puxou o tubo de spray de pimenta de seu próprio bolso, com o dedo na válvula, e enquanto um grito se congelava nos olhos dela, esvaziou
o tubo no rosto de Jolene Brittany Parker.
Ela abriu a boca para gritar, mas ele a cobriu com a mão e apertou o pano sobre seu rosto antes que ela conseguisse. Ele mantinha a outra mão firme na sua nuca,
apreciando a sensação do cabelo louro e macio entre seus dedos, enquanto ela lentamente perdia os sentidos.
– Pronto. Logo tudo estará acabado – disse, enquanto ela se retorcia fracamente em seus braços.
Finalmente, ela ficou imóvel.
Ele arrastou seu corpo adormecido até as portas da van, abriu-as com uma mão, como praticara tantas vezes, e a empurrou para dentro. Um homem normal teria dificuldades
para levantar uma mulher de 55 quilos com um braço só. Mas ele não. Ele não era um homem normal. Não havia nada de normal nele.
Ele se acomodou ao lado do seu corpo sem sentidos.
– Você não deveria deixar sua bolsa na sala do café. – Ele desenrolou um pedaço de fita isolante. – Algum psicopata assassino pode entrar lá e roubar tuas chaves.
– O Ilusionista sorriu para sua piadinha.
E então, cantarolando baixinho, fechou as portas do veículo e começou o trabalho da noite.
16
Complexo Federal Veach-Baley Asheville, Carolina do Norte 19h37
A análise de conexões era mais complexa do que eu antecipara.
Esfreguei a testa.
Eu tinha passado as últimas horas queimando as pestanas sobre os arquivos, procurando coisas que não se encaixavam ou que se encaixavam bem demais. Como meu mentor,
o dr. Werjonic, costumava dizer: “A vida não é precisa. As peças que se encaixam bem demais revelam que há mais coisas num quebra-cabeças. Continue procurando até
não fazer mais sentido, e então estará mais perto de solucionar o caso.”
E, claro, o tempo todo eu estava tentando evitar os dois maiores problemas típicos de uma investigação tão complexa. Número um: ser soterrado pelos detalhes. Com
tantos crimes assim, comparar as semelhanças e diferenças entre tantas variáveis pode ser massacrante – e é aí que os computadores ajudam. E o número dois: não dar
a devida importância ao peso de cada variável – e é aí que os computadores não ajudam.
E por mais que eu goste de pensar que o instinto não desempenha um papel no que faço, por alguma razão, um detalhe do quinto assassinato ficava voltando à minha
mente, me incomodando.
De acordo com os arquivos, Bethanie Dixon acabara de voltar para casa depois de estudar em algum tipo de faculdade particular no Oeste. O assassino a deixara semimorta
depois de esfaqueá-la e estrangulá-la. Mas, de alguma forma, ela vivera o suficiente para rabiscar duas palavras no assoalho com seu sangue: cavalo branco.
Eu podia entender por que um assassino que deixa peões escreveria uma referência a xadrez com sangue, mas por que a vítima faria isso?
Tentei entender o que isso poderia revelar sobre a ligação entre o assassino e a vítima, mas ainda não fazia a mínima ideia do que aquilo poderia significar.
A frase, junto com o peão no local do crime, motivara toda a força--tarefa a investigar clubes de xadrez e convenções do esporte, sites e fórums enxadrísticos, tudo
isso. Centenas de horas de trabalho haviam sido gastas correndo atrás do aspecto do xadrez. Mas eu ainda não estava convencido de que as palavras e os peões tinham
alguma ligação.
Cavalo branco.
O que isso tinha a ver com o assassino? Com o restante das vítimas?
Suspirei.
Nem ideia.
Além de tudo mais, eu queria resolver as coisas com Tessa, mas não conseguia entrar em contato com ela. Tentei ligar várias vezes, a tarde toda, mas ela não atendia
o celular. Empurrei a papelada para o lado. Quem sabe tentar mais uma vez.
Mas não pelo celular; talvez no telefone fixo dos meus pais. Nos últimos dez anos, os dois até que conseguiram incorporar o computador em suas vidas, mas quando
se tratava de falar ao telefone, eles ainda estavam emperrados na metade do século 20.
Digitei o número. Meu pai atendeu.
– Residência dos Bowers.
– Papai, sou eu.
– Ei, Pat. Tudo bem aí? – Ele percebera a tensão na minha voz depois de ouvir apenas três palavras. Incrível.
– Sim, escuta, eu tô tentando falar com Tessa.
– Ela está no quarto. Acho que vai sair com umas amigas hoje. Tentou ligar no celular dela?
– Tentei o dia todo. Ela não atende.
– Bem, talvez...
Naquele momento, meu celular vibrou. Havia outra ligação em espera. Olhei para o número. Era Ralph.
– Tá. Escuta, dá um abraço nela por mim, tá bem?
– Tudo bem – ele disse, e depois: – mas acho que não é de mim que ela está precisando de um abraço.
Olhei para o celular. Por que ele tinha que dizer isso? Apertei um botão, rejeitando a ligação de Ralph, e encostei o aparelho no ouvido de novo.
– Tá. Funcionou. Pode chamá-la pra mim?
– Claro. – Havia uma ponta de satisfação na voz dele.
Esperei até ela atender.
– Que é?
– Ei, Tessa, pensei muito em você hoje. Lamento de verdade ter faltado no seu aniversário. Lamento mesmo.
Fiz uma pausa; ela não respondeu.
Conseguia imaginá-la com a mandíbula projetada daquele jeito adolescente.
– A gente não pode ao menos fingir que se dá bem de vez em quando? – falei.
– Eu achava que você não gostasse de pessoas que fingem. A raiva começou a se agitar. Mantenha-a enjaulada.
– Escuta, pensei que nas próximas semanas a gente podia passar algum tempo juntos.
– Por quê? Já não tem cadáveres suficientes aí pra te manter ocupado?
Ouvi a raiva rosnando. Calma, Pat. Calma.
– A morte da sua mãe também foi difícil pra mim – eu disse finalmente. Mas só depois de dizer as palavras percebi que Tessa já havia desligado o telefone.
E foi isso. Arremessei o celular contra a parede, e ele se despedaçou numa explosão de fragmentos tecnológicos.
Foi então que Ralph entrou, esbaforido.
– Acho que encontramos alguma coisa! – ele exclamou. – Por que você não atendeu... o que aconteceu com o seu celular? – Ele estava olhando para os pedaços no chão.
– Deixei cair – eu disse. – O que foi? – A última coisa que eu sabia era que ele e Lien-hua estavam investigando pistas referentes ao tipo de corda que o assassino
usara para amarrar e estrangular Mindy.
– Há cerca de uma hora, uma garota saiu de um shopping em Charlotte. – Ele consultou umas anotações. – Jolene Brittany Parker. Trabalha numa loja de roupas lá. Ela
não chegou ao seu carro. Um cara diz que viu alguém com ela. Pode nos dar uma descrição.
Eu estava cansado, frustrado pela minha conversa com Tessa, não muito interessado em ir procurar chifre em cabeça de cavalo do outro lado do estado, e aborrecido
por meu celular não ser à prova de parede.
– Por que você acha que esse caso tem relação com os outros? Ralph fez uma pausa.
– Por nada. Só que ela usa lentes de contato.
– E?
– E elas são do mesmo tipo e grau das que encontramos em Mindy.
– Quê?!
Lien-hua apareceu na porta.
– Mindy não usava lentes de contato. Quando ficamos sabendo desse possível rapto, decidi verificar a receita das lentes da moça. Só por capricho.
– Um capricho e tanto. – Pulei de pé. – O que estamos esperando? Cadê essa testemunha ocular?
– A polícia local o segurou no shopping – disse Ralph. – Isolaram a área. Ele ainda está lá. Devemos trazê-lo pra cá?
– Não. Vamos nós pra lá. Quero falar com ele no local.
– São duas horas de carro – disse Lien-hua.
Balancei a cabeça.
– Tempo demais. De helicóptero dá quanto?
– Vamos descobrir – disse Ralph.
Lien-hua e eu já estávamos a caminho da escada que levava para o heliponto no alto do prédio.
17
Pousamos num hospital perto do shopping e a polícia de Charlotte nos recebeu ali com uma viatura. Alguns minutos depois, estávamos entrando no estacionamento do
Shopping Hanes. Havia um cordão de isolamento na estrada, mas os policiais na entrada abriram caminho para que passássemos.
Eu podia ver qual era o carro dela. Uma equipe de peritos já estava dando duro nele, procurando fibras, coletando impressões digitais. Perto deles, cercado por um
grupo de patrulheiros estaduais, estava um cara que parecia ter uns 18 anos, usando tênis cano alto, jeans desbotado e jaqueta do Detroit Pistons. Estava olhando
para o nada, como se estivesse em choque ou levemente chapado.
– É aquele? – gemeu Lien-hua.
– Acho que sim – disse Ralph. – Quer que eu fale com ele?
– Deixa que eu falo – respondi.
Fomos até ele e eu estendi a mão.
– Meu nome é Patrick – falei, omitindo meu sobrenome. Universitários costumam suspeitar de quem se apresenta dando nome e sobrenome. Parece ostentação de poder.
Eu não queria afastá-lo já de início. – Você é o Andy?
Ele fez que sim e apertou minha mão.
– Ótimo. – Olhei ao meu redor, depois de novo para ele. – Viu alguma coisa aqui no estacionamento mais cedo, correto?
Ele evitava me olhar nos olhos. Ainda não confiava em mim.
– Não sei – resmungou. – Não tenho certeza. Devo falar com um advogado ou algo assim? – Ele estava tropeçando nas palavras.
– Não precisa falar com um advogado, a menos que tenha algo a esconder – Ralph interrompeu, estreitando os olhos. – Você não tem nada a esconder, tem?
– Não. – Respondeu um pouco rápido demais, o que significava que ele tinha, sim.
– Bem, então não tem por que ficar nervoso – eu disse. – Só queremos saber o que você viu. Só isso. Aí você pode se encontrar com seus amigos pra terminar de ver
os Pistons detonando os Hornets no jogo de hoje à noite.
Ele olhou para mim com desconfiança.
– Como sabe de tudo isso?
Apontei para a jaqueta dele.
– O Detroit pega o Charlotte hoje à noite. Você fica tentando não olhar pros quatro caras na multidão atrás de mim, mas está olhando assim mesmo, e já olhou pro
relógio três vezes desde que eu desci do carro. Olha, só quero saber o que você viu, o melhor que conseguir lembrar.
Ele continuava parecendo meio perdido.
Olhei para o meu relógio.
– O jogo ainda deve estar no segundo quarto.
Isso pareceu ajudá-lo a se concentrar.
– Bom, eu tava saindo do shopping, tá ligado? E, hã, vi uma menina bem gatinha, e então...
– Você a seguiu – interrompeu Ralph.
Eu o fuzilei com um olhar e ele ficou quieto.
– Não, por que você tá falando isso? – Aí ele se virou para mim. – Por que ele tá me acusando disso?
– Andy, você está esfregando as mãos. Apoia o peso do corpo ora numa perna, ora na outra. Não quer me olhar nos olhos. Está nervoso, talvez com medo de que, se admitir
que a seguiu, vai virar um suspeito. Mas você não está encrencado com a gente. Não temos nenhum motivo para achar que você quisesse machucá-la; mas alguém pode tê-la
machucado, Andy. O nome dela é Jolene. O nome da garota é Jolene.
Seus olhos ficaram indo e voltando de mim para Ralph, depois ele deu um suspiro profundo.
– Tá. Eu tava seguindo a menina, sim, mas não ia tentar nada. É só que, sabe, achei que ela era gatinha, e tal.
– Me conta do cara que você viu. Aquele que estava parado aqui – andei até o sedã de 15 anos – perto do carro dela.
Ele parecia confuso.
– É, ele tava parado aí. Como você sabe?
– Linhas de visão – eu disse. – Aqui você não fica na luz dos refletores do estacionamento, mas consegue ver a estrada nos dois sentidos, e tem fácil acesso ao carro
de Jolene. – Olhei para Ralph. Sabia que ele estava pensando: Que perda de tempo, Pat. Faz o moleque falar ou deixa que eu cuido dele. Eu faço esse cara falar.
Voltei para perto de Andy.
– Agora, por favor. Apenas me conte o que viu...
– Ele matou a moça, não matou? – Andy começou a tremer.
De início, achei que devia mentir, dizer para ele que estava tudo bem, que a garota estava bem. Mas aí decidi jogar limpo e contar toda a verdade para ele. Cada
minuto que perdíamos diminuía as chances de encontrá-la viva.
– Pode ser, Andy. Ou ele pode querer matá-la. Ajude a gente a encontrá-lo. Por favor. Ajude a protegê-la.
Uma expressão de horror cruzou o rosto dele.
– Cara. Ela tá morta. Eu não consigo.
Lien-hua pôs a mão no ombro dele.
– Meu nome é Lien-hua, Andy, e sei que você acha que não viu nada importante. Mas quero que tente lembrar. Que altura você acha que o homem tinha? Era muito mais
alto que ela ou da mesma altura? Era branco ou negro, talvez latino? Viu o rosto dele, por acaso?
Ele finalmente pareceu recuperar a compostura.
– Ele parecia grande. Alto, quero dizer. E acho que era branco. Tava usando tipo um uniforme.
– Um uniforme? – eu disse. – Como o da polícia?
– Mais ou menos. – Andy apontou para um dos homens uniformizados ali perto. – Como aqueles.
– Segurança do shopping – murmurei. – É isso. Foi assim que ele conseguiu se aproximar dela. – Virei para os policiais que haviam nos trazido para lá. – Quero uma
lista de toda a equipe de segurança do shopping. E dos zeladores também. Qualquer um que possa ter acesso aos uniformes deles.
– Sim, senhor.
– Muito bem, Andy – disse Lien-hua. – Mais alguma coisa? Qualquer coisa?
Ele olhou para a multidão e depois de novo para mim.
– Não sei. Acho que ela tava mexendo na bolsa. É isso. É só. Ela apontou pra mim, vi o cara virando a cabeça na minha direção, mas o rosto dele tava na sombra. Quando
vi o uniforme, achei que ele podia vir me pentelhar, então cortei caminho pelo meio dos carros.
Olhei para o carro dela. Era um Toyota Camry bem velhinho, carro típico de estudante, devia ter mais de 300 mil quilômetros rodados. Eu me ajoelhei e apontei minha
lanterna para baixo do carro, depois para baixo do carro ao lado. Percebi um brilho perto do pneu. Pus uma luva de látex, enfiei a mão na sombra e peguei o objeto.
Um batom.
Ralph se aproximou.
– O que você achou?
Mostrei para ele. Ele se virou para Andy.
– Você disse que ela tava mexendo na bolsa?
– É.
– Por que uma mulher iria ficar mexendo na bolsa ao lado do carro? – perguntei para Ralph. – O que ela estaria procurando?
Ele balançou a cabeça.
– Não sei.
Lien-hua se pronunciou.
– As chaves. Talvez estivesse procurando as chaves.
Por quê? Por que aqui? Por que naquele momento?
– As chaves. Ela estava procurando as chaves – murmurei –, mas não conseguiu achar porque não estavam na bolsa.
– Onde estavam, então? – Lien-hua.
Apontei para uma vaga vazia a uns cinco metros dali.
– Ele pegou. Ele estava com as chaves. E estava à espera dela ao lado do carro. O carro dela é mais velho, provavelmente não tem alarme com controle remoto. Quem
não tem controle remoto costuma tirar as chaves do bolso quando está mais perto do carro. O batom me diz que ela estava aqui, tentando achá-las. Se ela tivesse o
controle remoto, teria procurado o chaveiro antes, talvez no meio do estacionamento. O nosso homem sabia disso. Talvez a tenha escolhido exatamente por causa da
idade do carro. Esse cara é bom.
– Mas por que ele pegaria as chaves dela? – perguntou Lien-hua. – Se sabia qual era o carro dela, por que simplesmente não a agarrou quando ela se aproximou?
Pus o batom num saquinho plástico e pensei por um momento antes de responder.
– Porque queria vê-la procurando as chaves. Ele gosta do jogo. Gosta de ficar olhando. – Quando eu disse isso, um arrepio percorreu minhas costas. – Ele gosta de
ficar olhando – murmurei de novo.
– E? – ela disse. – Então?
Eu me virei. Uma multidão estava atrás do cordão de isolamento da polícia, a uns cem metros dali. Meia dúzia de policiais à paisana já estavam fazendo uma varredura
entre as pessoas. Tantos assassinos e incendiários voltam ao local do crime que já é procedimento padrão fotografar todos os presentes. Mas nosso homem saberia disso.
Ele não estaria na multidão.
Onde mais? Dentro de um carro, talvez? Será que ele estava num dos carros no estacionamento? Subi no capô do carro ao meu lado e corri os olhos pela outra ponta
do estacionamento. Um restaurante Applebee’s. Algumas lanchonetes. Um posto de gasolina.
– Quero toda esta área isolada. Na surdina. Não quero assustá-lo. Ele está aqui.
– Na multidão? – perguntou Ralph.
– Não, não na multidão. Em algum outro lugar.
– Como você sabe? – disse Lien-hua.
– Porque se eu fosse ele, ficaria lá. – Apontei para a área dos restaurantes. – Quero uma varredura de todos aqueles restaurantes. E precisamos nos certificar de
que não há ninguém dentro de nenhum destes carros.
Foi então que eu a vi. Uma passarela que levava do shopping para uma garagem externa. Era perfeita. Você podia ver o estacionamento inteiro, mas depois se abaixar
e escapar nos dois sentidos, para um carro na garagem ou de volta para o shopping. A rota de fuga perfeita.
Enquanto eu corria os olhos pela passarela, um homem de jaqueta de couro e boné de beisebol deu meia-volta de repente e começou a andar na direção da garagem.
Eu apontei e desci do carro.
– É ele.
O sujeito estava apertando o passo agora, quase sumindo de vista.
– Onde? – gritou Ralph, puxando a arma.
– Na passarela. Ali. Corte o caminho dele! – Enquanto dizia isso, eu já estava correndo pelo estacionamento, gritando ordens para os policiais ao redor. – Isolem
aquela garagem. Não deixem ninguém sair!
Alguns policiais me olharam por um momento e depois se juntaram a mim na perseguição.
– Cortem o caminho dele no shopping! – gritei. Os policiais se dividiram e correram para a entrada do shopping.
Entrei correndo na garagem e olhei ao redor. Nada. Então ouvi passos na escada. Eu me curvei, olhei para cima e vi movimento um lance de escadas acima.
– Pare! FBI!
Ele não parou, mas saiu pela porta e desapareceu.
Corri feito um louco escada acima e puxei minha pistola .357 SIG P229. Escancarei a porta e olhei para as fileiras de carros. Ninguém. Ele tinha que estar atrás
de algum carro. Ou dentro de um.
– Saia com as mãos ao alto! – Eu girava a arma diante de mim, segurando-a com as duas mãos, buscando uma sombra, um movimento mínimo, qualquer coisa. – Eu disse
saia com as mãos ao alto! – Minhas palavras ecoaram nas paredes de concreto. Nenhuma resposta. Meu coração martelava no peito. Ele estava ali. Estava próximo. Eu
não sabia se ele estava armado ou não, mas precisava considerar que estava.
A porta de um carro estalou a três carros de mim.
– Largue a arma e levante as mãos – gritei. – Agora!
Pude ouvir a voz chorosa de uma jovem. E depois, a voz de um homem apavorado.
– Não atire, senhor! – Um homem grisalho e acima do peso, de cueca, saiu de um Ford Expedition com as mãos erguidas. – Ela me disse que tinha 21 anos. Juro.
– Voltem pra dentro do carro! – gritei.
– Mas o senhor acabou de mandar...
Ele não terminou a frase. Antes que pudesse dizer mais uma palavra, seu pescoço explodiu num jato de sangue, e um tiro ecoou nas paredes de concreto da garagem.
18
A confusão cobriu o semblante do homem, enquanto ele levava involuntariamente a mão ao pescoço. Ele cambaleou por um momento, depois caiu de cara no chão de concreto.
Um momento depois, a garota estava ao lado do carro, gritando. O tiro partira de algum lugar atrás deles. Eu não tinha avistado o atirador.
– Abaixe-se – gritei para ela. – Volte pra dentro do carro! – Levantei a arma. Ela pulou para dentro do carro e bateu a porta, provavelmente achando que eu tinha
atirado no seu amigo. Eu podia ouvir seus berros enlouquecidos, abafados só um pouco pelas portas do carro.
– Tiros! – gritei. Esperava que algum dos policiais tivesse me seguido para dentro da garagem e pudesse me ouvir. Corri até a vítima. – Repito, tiros!
Por que você atirou neste homem? Por que iria querer matá-lo? Eu con tinuava sem avistar o atirador.
Eu me curvei e pressionei o pescoço borbulhante da vítima com a mão. Ele estava tremendo um pouco, começando a entrar em choque. A bala não atingira o centro do
pescoço, passando pelo lado. Havia muito sangue, mas o ferimento não parecia fatal. Ainda bem que nosso suspeito não era bom de pontaria.
– O senhor vai ficar bem – sussurrei, torcendo para que fosse verdade, o tempo todo de olho nos carros diante de mim. – Fique deitado. Não se mexa. – Com uma mão,
eu pressionava de leve o pescoço do homem para estancar o sangramento, tomando cuidado para não apertar demais e dificultar sua respiração. Com a outra, eu empunhava
a SIG e vigiava a garagem. Um bando de policiais irrompeu pela porta.
– Deita no chão! – eles gritaram.
– Sou agente federal!
– Cala a boca! Larga a arma!
Só então um dos homens me reconheceu.
– Peraí, ele é um dos nossos.
– Chamem uma ambulância – gritei. – E o atirador ainda está no prédio! – Apontei para onde achei que o suspeito tinha fugido, a rota de fuga mais sensata. – Lá embaixo.
Façam uma varredura até a saída.
Os policiais se espalharam e começaram a vasculhar a garagem, carro por carro, enquanto eu ficava com o ferido.
– Aguente firme – eu disse. – O socorro já está chegando.
Por que ele atirou neste cara? Estava mirando em mim? Me errou?
Talvez nosso suspeito não fosse muito bom de pontaria. Talvez. Mas quando considerei as possibilidades, uma ideia macabra surgiu: talvez sua pontaria fosse excelente.
Talvez ele soubesse que se tivesse matado o homem com um tiro no peito ou na cabeça, eu não teria parado para ajudá-lo. Ou que se ele atirasse no braço ou na perna,
o ferimento não seria grave o suficiente para me motivar a parar. Mas se ele o ferisse do jeito certo, eu teria que fazer uma escolha – entre salvar a vida desse
homem ou continuar a perseguição. De alguma forma, ele pensara em tudo isso no breve momento depois que o homem saíra do carro. Isso era possível? Ele podia ser
tão inteligente assim?
Ou talvez ele já soubesse que o casal estaria lá. Talvez tivesse planejado tudo antes. Fiz um lembrete mental para descobrir por que aquele homem e aquela garota
estavam ali naquela noite, naquele horário, naquela vaga da garagem. Mas quanto mais eu pensava a respeito, mais começava a acreditar que o assassino planejara tudo.
Ele pode ter esperado naquela passarela até que eu o visse ali. Ele gosta do jogo. Gosta de ficar olhando.
Comecei a me perguntar como eu poderia pegar um cara capaz de planejar suas jogadas assim. Ele era mais esperto do que eu.
Fiquei com o homem baleado até a ambulância chegar alguns minutos depois. Houve uma certa confusão sobre que paramédicos iriam levá-lo para o hospital – aparentemente,
várias viaturas haviam respondido ao chamado. Finalmente, dois dos homens ergueram o ferido numa maca e o levaram embora. Vasculhamos toda a garagem, o shopping,
o estacionamento, os restaurantes. Nada.
A garota da van ainda estava gritando quando a levaram embora. Fiquei pensando se um dia ela conseguiria não gritar ao se lembrar desta noite. Algumas pessoas conseguem
superar acontecimentos assim e seguir em frente. A maioria de nós não consegue.
Antes de ir embora, examinei o Ford Expedition onde o casal estava. Havia um peão branco no meio do painel.
19
Depois que a busca pelo atirador não deu resultado, percebi que não havia muito que eu podia fazer ali naquela noite. A polícia local não nos queria ali, e embora
pudéssemos ter reivindicado a jurisdição, já estávamos com pouca gente, tentando investigar todos os outros casos. Parecia que a melhor estratégia era deixar que
eles investigassem aquele e nos mantivessem informados. Isso significava que eu podia voltar para Asheville e passar a manhã seguinte montando o quadro geral da
série de crimes.
Como minha camisa estava encharcada pelo sangue do ferido, eu a apresentei como prova e comprei uma blusa de uma das lojas do shopping, que já estava para fechar.
Depois de limpar o sangue das minhas mãos no banheiro, fui assinar a papelada da perícia. Era o que eu estava fazendo quando Ralph se aproximou, balançando a cabeça.
– O que foi? – perguntei.
– Você.
– Eu?
– É, você. Preciso pôr os policiais locais encarregados do caso a par de tudo, Margaret tá lá em Asheville, então você é o responsável.
Eu não gostava do rumo que a conversa estava tomando.
– Responsável pelo quê?
– Por ir falar com o governador Taylor.
– Quê?
Ralph deu de ombros com seu corpanzil, tentando, sem sucesso, parecer impotente.
– Ele ouviu falar da garota; quer saber dos detalhes do caso. Parece que ele vai fazer uns discursos semana que vem sobre a segurança nacional, e não quer ser pego
de surpresa por perguntas sobre psicopatas na sua cidade natal.
Olhei para o relógio: 21h41.
– Ele sabe que horas são?
– Tenho certeza que sim.
– Isso não pode esperar, Ralph?
Ele balançou a cabeça.
– O governador Taylor é o tipo da pessoa que você não manda esperar. Ele está passando o fim de semana em sua residência particular, perto daqui, saindo da cidade.
Apresentar um relatório pra ele não vai demorar muito.
Que lindo. Ele tinha que falar o palavrão que começa com R.
– Eu não sou bom com essas coisas, Ralph. Você sabe o quanto eu detesto...
Mas ele já estava indo embora.
– Leve Lien-hua com você. Ouvi dizer que ele gosta de um rabo de saia.
– Quem gosta de um rabo de saia? – perguntou Lien-hua.
E antes que eu pudesse continuar protestando com Ralph, um carro dirigido por um dos seguranças do governador se aproximou e Lien-hua e eu, relutantemente, entramos
nele.
– Ele mora a alguns minutos daqui – explicou nosso motorista. – Claro que passa a maior parte do tempo em Raleigh, mas gosta de voltar pra casa um ou dois fins de
semana por mês.
Eu o escutava, mas não estava prestando atenção. Estava pensando principalmente em Jolene, no peão sobre o painel do carro e no assassino que era mais esperto do
que eu. Ele pôs as lentes de contato de Jolene nos olhos de Mindy. Por quê? Também me perguntava sobre o homem que ele baleara e a sequência de acontecimentos que
me levaram a estar ao lado dele. Hora e lugar.
Hora e lugar.
Depois de alguns minutos, meus pensamentos migraram para o outro lado do banco de trás, onde Lien-hua observava silenciosamente a noite passando lá fora. Eu estava
um pouco decepcionado pelo carro ser tão espaçoso. Queria que o governador tivesse mandado um veículo um pouco menor. Uma Harley, por exemplo.
Não conversamos até chegarmos ao portão da mansão do governador e passarmos por um dos vigias. Foi então que Lien-hua se virou para mim.
– Bom trabalho entrevistando aquele garoto – ela disse.
– Obrigado. E foi uma boa sacada perceber que ela estava procurando as chaves do carro. E também verificar a receita das lentes de contato. Muito bem.
– Obrigada – ela disse. – Que bom que não me deixei desencaminhar demais procurando motivos.
É. Eu precisava mesmo reformular aquela frase no próximo relatório.
A mansão do governador Taylor ficava afastada da estrada principal, atrás de um bosque de carvalhos imponentes que se espalhavam ao longo da entrada, mal aparecendo
à luz dos faróis. Quando paramos na rotatória em frente à sofisticada residência, soltei um longo suspiro.
– Uau... Talvez eu esteja no ramo errado. Não sabia que o governo da Carolina do Norte pagava tão bem aos seus funcionários.
– Família do ramo do tabaco – nosso motorista disse distraidamente, com sotaque carregado do Sul. – Estão na política desde sempre, mas o dinheiro pra pagar tudo
isto aqui veio dos canudinhos de câncer. – Ele abriu a porta para Lien-hua. – Fico pensando o quanto eu mesmo contribuí antes de parar de fumar – ele resmungou.
Passamos por ele e subimos os degraus até a entrada.
Uma jovem nos recebeu na porta. Vinte e poucos anos, loura, cara de estrela de cinema, usando uma saia que ela devia ter levado uma hora para conseguir vestir. Ela
se apresentou como a assistente pessoal do governador.
– Srta. Anita Banner – ela disse com voz clara e profissional. – Por favor, sigam-me.
Ela nos levou pelo largo corredor até o escritório particular do governador. A srta. Banner transformava cada passo numa dança espanhola. Eu me perguntava quão pessoal
era a assistência que ela dava ao governador. Especialmente tão tarde numa sexta à noite.
Ela pediu que esperássemos um momento na grande sala e passou por outras portas para anunciar nossa chegada ao governador.
Corri os olhos pela sala. Quadros retratando batalhas da Guerra Civil nas paredes: Antietam, Fredericksburg, Bull Run, Chancellorsville4. À parte um peixe enorme
pendurado sobre a lareira, a sala toda parecia decorada para homenagear a guerra – e o Sul. Uma placa sob um dos quadros dizia: “Primeiro em Bethel. Por último em
Appomattox.” Portanto, um tributo aos soldados da Carolina do Norte.
Lien-hua pegou um retrato que estava sobre o piano de cauda.
– Onde será que a esposa e os filhos do governador estão agora?
– Ela levou os meninos para passar a semana em Barbados – respondi. Lien-hua olhou para mim, intrigada.
– Como sabe disso?
– Fico tentado em assombrar você com meus poderes sherlockianos de dedução – eu disse –, mas na verdade ouvi no noticiário ontem à noite, enquanto zapeava pelos
canais. A esposa dele adora aparecer. É 20 anos mais nova do que ele, ex-modelo. Acho que é a primeira esposa de um governador da História que tem seus próprios
paparazzi.
– Oh – disse Lien-hua. Ela não pareceu impressionada.
Genial, Einstein. Da próxima vez, tente assombrá-la.
Naquele momento, a srta. Banner reapareceu e nos conduziu ao escri tório particular do governador.
Ele deu a volta numa imensa escrivaninha de mogno para nos receber. Estendi a mão e me apresentei. O governador parecia ter 50 e tantos anos, mas seu aperto de mão
era firme, de forma quase surpreendente. Tinha olhos frios e calculistas que contrastavam com seu sorriso largo e ensaiado. Ele afrouxara a gravata, mas ainda usava
um terno impecável, que mantinha o caimento perfeito enquanto ele andava pela sala. Um pequeno broche da bandeira confederada5 brilhava orgulhosamente em sua lapela.
Eu ia apresentar Lien-hua, mas ela foi mais rápida, se adiantando e apertando a mão dele.
– Agente especial Lien-hua Jiang. É um prazer conhecê-lo, governador Taylor. – Os olhos do governador se iluminaram ao pegar na mão dela, e não ficaram muito tempo
olhando só a mão.
– Agente Jiang – ele disse com sotaque meloso do Sul –, o prazer é todo meu.
É, pra dizer pouco.
– Governador Taylor – eu disse, acenando para a sala da lareira –, o senhor tem uma coleção de pinturas impressionante.
Ele sorriu discretamente.
– Todo guerreiro precisa ser um estudioso da guerra. – Ele pegou uma garrafa de cima da escrivaninha. – Querem tomar alguma coisa?
Balancei a cabeça. Lien-hua disse:
– Não, obrigada.
– Tudo bem, então. – Ele segurou uma garrafa de conhaque por um momento e encheu seu copo.
– Essa frase – eu disse. – É de Tchekov?
Ele ergueu o copo para mim com um aceno discreto. – É de Taylor – ele disse, piscando para Lien-hua.
Tá.
– Gostei especialmente do quadro de Sharpsburg – eu disse. O Sul muitas vezes usa nomes diferentes do Norte para lembrar as mesmas batalhas. Nesse caso, usei o nome
sulista da batalha de Antietam.
Ele pareceu levemente impressionado.
– Também é um dos meus favoritos.
Mas aí eu estraguei tudo.
– Uma maneira interessante de lembrar a Guerra Civil. – Assim que falei, me dei conta. Bem...
– O senhor não é do Sul, certo, dr. Bowers? – Seu tom se tornara paternal, condescendente. Eu não estava com paciência para aquilo.
– Na verdade, não sou. Nasci em Milwaukee. – Vai, pode dizer. Eu sei que você vai dizer.
Ele sorriu, deliciado consigo mesmo.
– Aqui no Sul, preferimos chamá-la de Guerra Entre os Estados. Ou Guerra de Agressão do Norte...
Eu sabia que ele ia dizer isso.
Não respondi, apenas esperei que ele prosseguisse. Ele continuou:
– Não há nada de civil na guerra, dr. Bowers. Essa expressão é um oximoro – como pobre menina rica, bom ladrão ou nudez recatada. – Ao dar esse último exemplo, ele
olhou de relance para Lien-hua.
– Ou tente agir naturalmente – eu disse.
Ele voltou a prestar atenção em mim, com uma sobrancelha erguida.
– Hã?
– Tente agir naturalmente. Também é um oximoro. Ou alguém age naturalmente ou está fingindo. Não adianta tentar. Devolvi o olhar dele sem titubear.
– Ah, a menos que você seja fingidor por natureza – ele disse, erguendo o copo de leve.
Ou uma verdadeira fraude, pensei, mas consegui ficar de boca fechada.
– Governador – Lien-hua disse –, o senhor queria saber sobre o caso.
– Sim, sim. É claro. – Deixando o copo sobre a escrivaninha, ele se sentou do outro lado, na posição da autoridade. Ele apontou duas poltronas minúsculas diante
dele. Era um jogo de poder, naturalmente.
– Minhas costas doem – eu disse. – Prefiro ficar em pé.
Lien-hua se sentou.
– Então – ele disse –, essa garota que sumiu. O que vocês sabem?
Lien-hua se curvou para a frente.
– Governador, posso perguntar qual o seu interesse nesse caso?
– Relações públicas. – Ele balançou a cabeça de leve. – Um psicopata assassino? Oh, é um pesadelo. – Ele deixou as palavras no ar, como se esperasse que concordássemos
com ele de que suas relações públicas eram de alguma forma mais importantes do que o fato de no mínimo seis jovens terem sido brutalmente assassinadas. Eu não sabia
o quanto mais iria aguentar desse cara.
– Acho que ninguém informou vocês dos telefonemas? – Ele formulou a frase como uma pergunta, embora parecesse uma afirmação.
– Que telefonemas? – perguntei.
– Deixe-me ver, como era o nome dela... Bethanie não sei de quê... Eu me perguntei aonde ele queria chegar.
– Não é Dixon? Bethanie Dixon?
– Sim. Sim. Isso mesmo. Pelo que sei, ela ligou para a nossa central de atendimento uma dúzia de vezes em menos de oito horas. Na noite em que ela desapareceu. Dois
dias depois, foi encontrada morta.
Lembrei que eu tinha visto várias ligações na lista do celular dela ao estudar o caso, mais cedo, mas não tivera tempo de investigar para quem ela estava ligando.
– O senhor tem transcrições das ligações? – perguntei.
– Claro. Gravamos todas as ligações que recebemos. Vou pedir que mandem por fax para o senhor amanhã de manhã. Mas não espere muita coisa. Ela queria falar comigo,
dizia que era urgente. Temia que sua vida estivesse em perigo. A minha também, ao que parece.
– O quê? – perguntou Lien-hua. – Uma ameaça de morte?
– Eu vivo recebendo – ele disse, dispensando a preocupação dela com um gesto. – Mas aquilo foi diferente.
– Ela não estava ameaçando o senhor – eu disse. – Estava avisando.
– Parece que sim.
– Mas sobre quem? – perguntou Lien-hua.
Ele olhou por um momento para a estante e balançou a cabeça.
– Não faço ideia.
Lien-hua se ajeitou na poltrona.
– Senhor, por que não contou isso antes para a nossa equipe?
– Só liguei os fatos quando ouvi o nome dela no noticiário, relacionado ao sumiço da outra garota.
Alguma coisa não estava se encaixando. Alguma coisa não estava certa.
O celular de Lien-hua tocou; ela olhou para o número, pediu licença e foi para a sala ao lado.
– Governador – eu disse –, a expressão “cavalo branco” significa alguma coisa para o senhor?
Ele me encarou. Por um instante, seus olhos pareceram ficar gélidos, reptilianos, depois ele piscou e eles ficaram ternos e amigáveis novamente. Uma transformação
intrigante.
– Isso tem alguma coisa a ver com o caso? – ele perguntou. Estava me sondando, me estudando ao mesmo tempo que eu o estudava.
– Ela rabiscou essas palavras no chão, com seu próprio sangue, antes de morrer.
Eu o observei cuidadosamente.
– Cavalo branco – ele disse pensativamente. – Hum. Não sei. Acho que é uma peça de xadrez. É a única coisa que me vem em mente.
Por que ele não reagiu quando você disse que ela escreveu as palavras com o próprio sangue? Por que não ficou horrorizado? Ele sabe de alguma coisa. Está escondendo
alguma coisa.
O governador tomou um gole do seu drinque e balançou a cabeça.
– Temo que seja só isso. – Ele olhou para o relógio. – Vou passar aquelas transcrições por fax amanhã cedo. E agradeceria se o senhor me mantivesse a par do caso.
Espero sinceramente que vocês encontrem essa garota, Julie...
– Jolene – eu disse.
– Sim. Claro.
Ele se levantou.
Lien-hua voltou para a sala e o governador a olhou se aproximando de nós, molhando os lábios com um movimento veloz da língua. Entrei no meio dos dois e entreguei
a ele o meu cartão.
– E se o senhor se lembrar de mais alguma coisa, vai nos ligar, certo?
– Claro. Oh... – Ele ergueu o indicador e depois mexeu numa das grandes gavetas de sua escrivaninha. – Dois convites – ele disse solenemente. – Para vocês dois.
Ficaria honrado em receber vocês como meus convidados pessoais, segunda-feira, no almoço da premiação anual do Cable News Forum. Vai ser no Hotel Stratford.
Tudo o que ele dizia era mais um jeito de dar tapinhas nas próprias costas.
– Vou fazer o discurso de abertura, o primeiro de uma pequena série sobre o que os Estados podem fazer para combater o terrorismo global. Vou falar no Pentágono
esta semana.
O cara era inacreditável.
– Bem. Parabéns – eu disse friamente. – E obrigado pelo convite, mas infelizmente vamos ter que recu...
Lien-hua me interrompeu.
– Ficaremos honrados – ela disse.
Ele abriu um sorrisão. Não estava olhando para mim.
– Bem – ele acenou levemente para Lien-hua, – então aguardarei ansiosamente sua presença segunda-feira de manhã.
E com isso, a srta. Banner apareceu na porta e nos levou de volta, passando pelos retratos da guerra que não era civil, para o carro.
Da janela do seu escritório, o governador Sebastian Taylor ficou olhando o carro com os dois agentes federais se afastando. Passaram-se quase 30 anos desde a última
vez que ele ouvira as palavras noite branca6. Ele achava que esse capítulo da sua vida estava encerrado de vez. Pelo jeito não estava. Ele apertou o botão do interfone.
– Srta. Banner?
– Sim, senhor? – Era incrível o quanto ela conseguia insinuar só com aquelas duas palavrinhas.
– Preciso de um tempo para fazer umas ligações particulares.
– Quer que eu...?
– São ligações particulares, srta. Banner.
– Sim, senhor. – Uma pontinha de decepção azedou sua resposta. Ele hesitou por um momento e depois acrescentou:
– Me dê 20 minutos. Depois a senhorita pode me ajudar a, hã, revisar meu discurso para o almoço do Cable News Forum.
– Sim, senhor. – Desta vez, suas palavras tinham exatamente o tom que ele esperava. Ele soltou o botão do interfone e pegou o celular. Digitou um número. Esperou.
Um momento depois, uma voz respondeu:
– Número de referência, por favor. – O governador Taylor sorriu. Somente três números de telefone dão acesso a alguém de carne e osso no Pentágono 24 horas por dia.
Ele sabia os três.
– 16-1711AD4 – ele disse.
– Só um momento. – Uma breve pausa acompanhada do barulho de dedos no teclado do outro lado da linha, e então: – Em que posso ajudar, senhor?
– Gostaria de falar com o general Biscayne.
– Lamento, ele já foi embora. Estará de volta na segunda-feira...
– Aqui é Sebastian Taylor, codinome Cipher.
– Claro, senhor. Vou passar a ligação.
– Obrigado.
O governador Taylor esperou enquanto a chamada era transferida, e então ouviu uma voz familiar.
– Sim?
– Cole, aqui é Sebastian. Acho que temos um problema.
20
Alice McMichaelson esfregou os olhos e olhou para o relógio na parede de sua sala de estar.
22h21.
Ela tentou se concentrar nas palavras flutuando na página diante dela, mas quanto mais se concentrava, mais embaçadas elas ficavam.
O terceiro bocejo em três minutos escapou de seus lábios.
Se pelo menos ela não tivesse que trabalhar tanto e pudesse passar mais tempo só sendo mãe.
Mas para sustentar os filhos, ela precisava trabalhar, e para se manter no novo emprego, precisava terminar a faculdade. E para fazer isso, ela precisava estudar,
e em que outro horário poderia ler aqueles textos? Não podia estudar no trabalho, lógico, e à tarde e nos fins de semana as crianças tinham suas atividades. O único
horário disponível era depois de pôr as crianças na cama.
Ela bocejou de novo, ouviu movimento atrás dela e se virou. Brenda estava no corredor, apertando Wally contra o peito.
– O que foi, docinho?
– Wally não consegue dormir. Ele tá com medo.
– Do que Wally tem medo?
Brenda abraçou mais forte seu leão-marinho de pelúcia.
– Dos monstros.
Só por um momento Alice pensou em tentar convencer a filha de que monstros não existiam, mas ela sabia que não adiantaria. Já tentara antes. Fizera o que todos os
pais fazem, abrindo as portas do armário, levantando as cobertas para olhar debaixo da cama.
– Viu? Não tem monstros. Agora vá dormir. – Mas isso nunca funcionava. Toda criança sabe que os monstros conseguem ficar invisíveis, por isso mostrar armários vazios
não adianta nada. Além disso, ela nem tinha energia para tanto naquela noite. Precisava de uma nova abordagem.
Alice se levantou e foi até a filha.
– Monstros, é? Bem, talvez Wally se sinta melhor dormindo num quarto sem monstros.
Brenda parecia confusa.
– Onde?
– No quarto da mamãe. Nenhum monstro pode entrar lá enquanto estou estudando. É uma regra.
– É?
Alice levou a filha pelo corredor.
– Claro.
– Quem inventou essa regra?
Alice tentou pensar rápido.
– Bem, foram os anjos, querida. Monstros não são páreo para anjos, você sabe.
Elas chegaram ao quarto.
– Sei, sim – disse Brenda. – Todo mundo sabe disso.
Alice puxou as cobertas.
– É que os anjos criaram uma regra, há muito tempo, que diz que as mães recebem proteção especial quando estão tentando cuidar bem dos filhos. Nada de monstros no
quarto.
Brenda ficou pensativa por um momento. – É uma boa regra.
– É, sim. Agora deita.
Ela puxou as cobertas até o queixo da filha.
– Mãe?
– Sim?
– Tem uma regra pros pais também?
– Como assim?
Depois de uma pequena pausa:
– Às vezes, acho que o papai deixa os monstros entrarem.
Alice sentiu seu coração batendo forte.
– Sabe, docinho – Alice disse, tão calmamente quanto conseguia –, você só precisa lembrar que os anjos estão protegendo você, e que os monstros estão bem, bem longe.
Agora boa noite.
– Boa noite, mamãe.
Alice beijou a testa da filha e quando ia fechar a porta, a ouviu dizendo para Wally:
– Não precisa mais ter medo. A mamãe falou que os monstros não podem entrar aqui.
Então Alice voltou para a sala, pensando em Garrett. Ela não conseguia deixar de pensar. No início, ele fora tão gentil, meigo, amoroso. Tinha sido um bom pai, de
verdade, ensinando Brenda a ler, levando Jacob para pescar. Estava à disposição dos filhos à noite, deixava os problemas do trabalho no trabalho. Mas aí ele começou
a beber, e tudo virou de cabeça para baixo. Tudo mudou. Ela tentou não pensar nas vezes que o monstro aparecera no seu quarto. Tentou se lembrar apenas das outras
vezes.
Não conseguiu.
Como era possível um anjo e um monstro conviverem dentro do mesmo homem?
E com essa pergunta girando em sua mente, por mais que ela tentasse, não conseguiu mais estudar naquela noite.
Quando entramos no estacionamento do shopping, me virei para Lien-hua.
– O governador Taylor é uma figura, não? – falei baixinho o suficiente para que o motorista não ouvisse.
– É – ela sussurrou. – E ele sabe de alguma coisa. Não entendo como pode estar envolvido neste caso, mas tem alguma coisa a mais acontecendo aqui. Ele está escondendo
alguma coisa. – E então, prevendo minha próxima pergunta, acrescentou: – Ir àquele almoço vai nos dar uma chance de descobrir mais sobre o interesse dele por este
caso.
Ela continuava a me impressionar.
– Ótima ideia – eu disse. – A propósito, foi alguém importante que ligou para você?
Ela apontou para o homem que se aproximava do carro.
– Só Ralph. Nada crucial.
Nosso motorista parou o carro e nós saímos. Depois que ele foi embora, Lien-hua relatou para Ralph o nosso encontro com o governador Taylor. Ele grunhiu um pouco,
balançou a cabeça, pareceu entender tudo.
– Certo – anunciou. – Não sei por que ele agiu assim, mas se pudermos mantê-lo do nosso lado, com certeza só vai ajudar. Vamos encerrar por hoje e dormir um pouco.
– Boa ideia – eu disse. – Escuta, pode me emprestar seu celular? Preciso fazer uma ligação importante. Devolvo para você amanhã.
Ralph resmungou, mas entregou o celular.
– A bateria tá acabando. O carregador ficou em Asheville...
– Não tem problema.
– Tá, mas vê se não “deixa cair”.
– Não se preocupe – eu disse. – Eu nem sonharia em fazer isso. Obrigado.
Ralph e Lien-hua decidiram passar a noite em Charlotte e pôr a polícia local a par de tudo enquanto eu voava de volta para Asheville para começar o trabalho de manhã
cedo.
Enquanto o piloto do helicóptero fazia as verificações de segurança, liguei para Terry Wilson, um amigo da Agência de Segurança Nacional que trabalhara comigo no
projeto de mapeamento por satélite. Eu o peguei quando estava apagando a luz para dormir. Depois de uns cumprimentos rápidos, fui direto ao assunto.
– Terry, preciso de informações confidenciais sobre Sebastian Taylor, o governador da Carolina do Norte.
– Quando você diz confidenciais, está dizendo confidenciais ou confidenciais?
– Estou dizendo que não quero que ninguém mais saiba que você está xeretando. Ninguém.
– Ah, esse tipo de informações confidenciais.
– Pode fazer isso?
– É o que sei fazer melhor. Pra quando você precisa?
– O que você acha?
Ele suspirou.
– Pra ontem.
– Quase isso.
– Tudo bem. Vou ver o que posso fazer. Ligo para você amanhã à tarde.
– Obrigado.
– Vai ficar me devendo essa.
– Eu sempre fico.
Cochilei um pouco no voo de volta para Asheville e tomei um táxi até o hotel. Assim que entrei no quarto, o telefone tocou. Eu não acreditava; parecia que o dia
nunca ia terminar. Atendi.
– Sim? – eu disse, com voz cansada.
– Patrick Bowers. – Programa de distorção de voz. Eu nem conseguia saber se a voz era masculina ou feminina. – Patrick Bowers, PhD.
– Quem está falando?
Uma risada curta e venenosa.
– Ele está bem, espero?
É ele. É o assassino. O Estrangulador da Fita Amarela!
– Dois centímetros pro lado e você ia matá-lo na hora – falei, pensando freneticamente em algum jeito de mantê-lo ao telefone.
– Sim, claro. Mas você e eu sabemos que eu não queria matá-lo – embora pudesse. Eu também estava com o senhor na mira, dr. Bowers.
Ele se considera exímio atirador, talvez um atirador de elite. Ex-militar. Verificar clubes de caça, feiras de armas. Narcisista, gosta de controlar os outros, dominá-los.
Arrogante. Meus pensamentos corriam na minha frente enquanto eu tentava me concentrar na conversa.
– Onde está Jolene? Ela está bem?
– Oh, Patrick, fiquei tão feliz quando vi que você estava ajudando com este caso. Isso aumenta o cacife, não acha?
Embora a voz estivesse alterada, deduzi pelos padrões de pronúncia e pelas pausas que ele crescera no centro-sul ou em algum lugar da Costa Sul. Talvez Nova Orleans.
– Jolene. Eu perguntei sobre Jolene...
– Esqueça a garota, dr. Bowers. Não pode salvá-la. – Ele riu novamente. – Eu a vi primeiro. É tarde demais para ela.
Eu estava respirando mais rápido agora, ficando furioso.
– Como assim, é tarde demais? – Ela está morta? Ele já a matou?
– Esqueça a moça! – ele continuou. – Precisa se preocupar comigo, agora. Tentei esconder minha raiva crescente, tentei me controlar.
– Então quem é você? Diga seu nome e poderemos conversar.
– Por favor, Patrick, não insulte minha inteligência. Me chame de Ilusionista.
– Ilusionista? Você é mágico, então. Como Houdini?
– Não sou como ninguém. Mas isso você já deve saber. Você e aquela sua enteada, Tessa Bernice Ellis. – Um calafrio lento serpenteou pela minha espinha. Antes que
eu pudesse responder, ele concluiu dizendo: – Bem-vindo ao jogo. Logo falarei com você de novo.
– Não desligue...
Mas era tarde demais. A ligação caiu.
Ele sabia sobre Tessa? Como ele sabia sobre Tessa? Liguei frenetica mente para meus pais e pedi que vissem como ela estava. Agora.
Um momento mais tarde, depois que eles verificaram, exigi que fossem passar a noite num hotel. Embora estivessem em Denver, eu não podia arriscar. Depois de alguns
minutos de discussão, disseram que iriam. Eu os fiz prometer. Tessa iria me odiar ainda mais por isso, mas não importava. De alguma forma, esse cara sabia a respeito
dela. Isso significava que ela estava em perigo.
Depois, transcrevi a conversa o mais exatamente que pude, palavra por palavra. Liguei para o FBI para ver se eles conseguiriam rastrear a chamada, mas não descobriram
nada – não que eu acreditasse que conseguiriam. Consultei minhas anotações da conversa de novo para ver se não havia nenhuma lacuna, nada que eu tivesse esquecido.
Ele me conhece, sabe quem sou, o que eu faço. Será que é alguém do meu passado? Ele disse: “Você precisa se preocupar comigo, agora.” Por quê? Ele está atrás de
mim? Eu sou o peão?
– Vou te pegar – eu disse em voz alta. Percebi que estava cerrando os punhos de novo. Só que desta vez não tentei relaxá-los. Era bom estar em chamas por dentro.
Estar de volta ao jogo.
Tentei dizer a mim mesmo que ele estava mentindo, que a garota estava bem, que Jolene ficaria bem e conseguiríamos salvá-la se agíssemos rápido.
Mas não adiantou. Eu sabia que era tarde demais. Ela já estava morta.
21
O Ilusionista deixou Jolene ouvir toda a conversa. Gostou especialmente da expressão no rosto dela quando ele disse que era tarde demais para salvá-la. Ele desligou
o telefone e sorriu.
Ele soltou a mordaça e esperou que ela gritasse, mas em vez disso ela apenas choramingou:
– Por favor, não me machuque, moço. Por favor. – A voz dela estava rouca, seus olhos inchados e injetados por causa do spray de pimenta. – Eu faço o que você quiser
– ela estava chorando, falando aos borbotões, tremendo. Ele gostava disso. – Não vou contar pra ninguém. Prometo. Por favor, me solta. – Oh, ele gostava muito disso.
Ele pôs um dedo sobre os lábios dela.
– Shhh. Quieta agora, Jolene. Eu sei que você vai fazer o que eu quiser. – Seus pulsos estavam amarrados à cadeira onde ela estava sentada, mas ele segurou os dedos
trêmulos dela mesmo assim. Para reconfortá-la.
Fora do chalé, a escuridão caíra havia muito sobre as montanhas. Ela poderia gritar, mas não importava. As paredes eram à prova de som. Além disso, eles estavam
a quilômetros da cidade mais próxima.
Ele soltou a mão dela e foi até o balcão tomar um gole de café. Era tarde, mas ele esperava ficar acordado ainda um bom tempo.
– Sabe quantas pessoas nascem por dia, Jolene?
– Quê?
– 387.834 pessoas, Jolene. E todo dia, 153.288 pessoas morrem. Isso significa que a cada segundo 4,5 pessoas nascem e 1,8 pessoas morrem. A cada ano, a população
do mundo aumenta em mais de 78 milhões de pessoas. E você sabe quantas dessas pessoas são lembradas depois que morrem?
– Por favor, moço. – Ela começou a soluçar baixinho, mas ele não prestou atenção.
– Só um punhado delas, Jolene. Você vive, morre, e o mundo esquece seu nome. A vida é uma piada cósmica. Mas eu vou te tornar memorável. Seu nome vai ficar famoso.
Seu rosto será imortalizado na televisão e na Internet.
Ele andou até ela.
– Em 31 de agosto de 1888, uma prostituta chamada Mary Ann Nichols morreu pelas mãos de Jack o Estripador, o mais famigerado assassino do mundo. Ela foi sua primeira
vítima. Hoje, existem dezenas de sites em memória dela, um fã-clube, e 22 canções foram compostas em sua homenagem. Ela ainda vive. Seu nome continuará vivo para
sempre.
Jolene tremia.
– Moço, por favor...
– Jack o Estripador nunca foi encontrado, Jolene. Hoje existem mais de cem suspeitos. Cada um deles ganhou seu lugar na História. – Ele riu baixinho. – E apesar
do que algumas pessoas disseram, o caso continua sem solução. Ninguém sabe ao certo quem ele era. Nós não lembramos os mortos, Jolene, a menos que eles tenham feito
algo inesquecível. – Ele acariciou suavemente o cabelo dela. – Ou que algo inesquecível tenha sido feito com eles. – Ele se curvou para olhá-la nos olhos trêmulos.
– Oh, sim. Eu vou te dar um presente, querida. A imortalidade. Vou te dar um lugar na História num mundo anônimo. Todos se lembrarão de você por décadas.
– Moço, eu faço qualquer coisa.
Ele pousou o copo e foi até suas ferramentas.
– Já ouviu falar de Boécio, Jolene?
A garota estava chorando, agora, o que tornava mais difícil continuar a conversa. O Ilusionista não gostava disso. Ele pegou uma faca da bandeja – era uma de suas
favoritas – e foi para o lado da sala onde ela estava.
– Eu disse, você já ouviu falar de Boécio?
Ela fez que não com a cabeça, arregalando mais e mais os olhos à medida que ele se aproximava.
– Ele foi um filósofo romano que viveu entre 480 e 524 depois de Cristo e foi falsamente acusado de traição, perdendo seu lugar no Senado. Foi exilado numa caverna
até sua execução. Ele tinha tudo um dia e perdeu tudo no seguinte. Em seu momento de agonia e confusão mais profundas, ele não recorreu aos deuses. Sabe a quem ele
recorreu?
Silêncio.
Ele levantou sua pulseira até o rosto dela. Na fita de metal havia uma só palavra.
– Sophia – ele leu para ela. – A palavra grega que significa sabedoria. Boécio recorreu à filosofia, Jolene. E ela lhe ensinou uma lição de valor inestimável. Uma
lição que o libertou. Sabe qual foi a lição?
Os olhos dela pareceram se iluminar quando ele disse a palavra libertou.
– Por favor, me solta. Eu não vou contar.
Mais uma vez, ele a ignorou.
– Ela lhe ensinou que a fama e a riqueza são deuses fracos, porque são volúveis demais. A melhor professora, a grande instrutora que nos leva à verdadeira sabedoria
é a dor.
– Oh, não. Por favor. Não.
– Oh, sim. O sofrimento é o professor mais fiel, Jolene, porque a dor nos leva à claridade, e a claridade nos leva à verdade. Você concorda com Boécio, Jolene?
– Não sei. – Ela estava tremendo.
– Oh, eu acho que você sabe, sim. Acho que sabe que Boécio está certo, mas passou a vida inteira dizendo a si mesma que a felicidade leva à plenitude. Certo? Estou
certo?
– Acho que sim.
– Estou certo, não estou?
– Por favor...
– Não estou?!
– Sim. – Ele a viu olhando fixamente a faca que era agitada a centímetros do rosto dela.
Ele se aproximou.
– Você está respondendo tão melhor às perguntas agora. Estou muito orgulhoso de você. Por isso, tenho uma última pergunta: você acha que concordo com Boécio?
Ela tremia um pouco, ele podia ver o medo nos olhos dela. O sussurro aterrorizado percorreu seu corpo.
– Sim.
– Mais uma vez, você está correta, Jolene. E agora, eu vou te dar um grande presente.
– Vai me deixar ir embora?
– Oh, não. Infelizmente, não. O presente que eu quero te dar tem dois lados.
– Não...
– Eu vou te dar iluminação e depois imortalidade. E qual é o caminho para a iluminação?
– Não...
Então ele a cortou, o primeiro corte da noite, movendo a faca rápida e profundamente em seu antebraço, abrindo uma ferida vermelha e zangada. Ela soltou um gemido
agudo. Viu o sangue correndo. Começou a hiperventilar.
Ele limpou a lâmina na perna da calça. Sim, ele tinha planos especiais para ela. Não apenas os seis ferimentos das outras mulheres. Muitos, muitos mais.
– Qual é o caminho para a iluminação, Jolene?
– A dor. – Ela fechou os olhos com força. – A dor, a dor, a dor. – Suas palavras se transformaram em soluços estrangulados.
– Sim. Você está certa de novo. Estou muito orgulhoso de você. Agora, que a lição comece.
E ele tinha razão. Ela gritou mesmo. Antes mesmo que a lição começasse.
22
Tessa Ellis esperou até ouvir o som da respiração lenta e ritmada vindo do quarto contíguo do hotel. Então esperou mais alguns minutos, só para garantir.
Seus avós – na verdade, os pais de seu padrasto – pelo menos tinham dado a ela um quarto separado no hotel. Ela exigira isso. De jeito nenhum dormiria no mesmo quarto
com eles. Hã-hã. Sem chance.
– Vamos pedir um quarto com duas camas – Martha propusera, enquanto pegava as chaves do carro. – Patrick disse que é melhor assim.
Patrick disse? Ah, bom, se Patrick disse, então deve ser verdade. Se Patrick se importa tanto com o que é melhor pra todos, por que não está aqui?
– Vou ficar em casa – Tessa disse. – E não me importa o que Patrick diz!
– Por favor – Conor disse delicadamente. Ele sempre parecia se dar melhor com ela do que Martha. – É só por esta noite. – Sua voz era paciente, mas cansada.
– Preciso de privacidade!
E então ele a surpreendeu, concordando.
– Sim, sim. É claro, Tessa.
Ela parou de gritar o suficiente para ver o que ele ia fazer.
Martha Bowers estava encarando o marido. Ele entregou a bolsa para ela. – É claro, Martha. Ela precisa de privacidade. Vamos pedir dois quartos. Não vamos? – E Martha
cedera com um suspiro.
Os quartos eram unidos por uma porta que Conor dissera que precisava ficar aberta.
– Só uma fresta, só por segurança. Eu sei que você entende. Não, ela não entendia, mas o que isso importava?
– Tudo bem. Tanto faz – ela disse finalmente.
Mas não era necessário; ela não estava em perigo nem nada. Afinal, havia dois policiais parados na porta do hotel, num sedã com placas frias. Isso provavelmente
também era obra de seu padrasto, Patrick Bowers. O Sr. FBI... o Sr. Caçador de Psicopatas... o Sr. Vou-Viajar-de-Novo-Neste-Fim-de-Semana-Mas-Você-Vai-Ficar-Bem-com-os-Meus-Pais...
Era bem a cara dele chamar dois policiais pra ajudar a protegê-la, mas não fazer nada pra tentar voltar pra casa ele mesmo.
Ela notara os dois imediatamente. Nos últimos 12 meses, ela se tornara especialista em identificar policiais. Quando Conor a estava levando para o hotel, ela dera
um soco na janela do carro dos policiais. Um deles levou um susto tão grande que derramou todo o refrigerante no colo. Aquilo foi muito legal. Ela fez um gesto obsceno
para os dois. Aquilo foi melhor ainda.
Tessa ficara escutando Martha e Conor cochichando por quase uma hora antes que eles finalmente pegassem no sono. Provavelmente estavam falando dela, mas ela não
tinha certeza. Não conseguira entender o que diziam.
Agora ela estava na escuta de novo, aguçando os ouvidos na escuridão, mas só conseguia ouvir os sons suaves do sono vindo do quarto ao lado.
Tessa se sentou na cama e jogou o cobertor para o lado.
A pálida luz da rua passava pelas cortinas, iluminando só o suficiente para ela enxergar.
No outro quarto, um farfalhar leve. Alguém rolando na cama.
Tessa ficou imóvel.
Esperou.
Silêncio.
Ela desceu da cama e andou na ponta dos pés até a penteadeira, pegou a bolsa e tirou a caixinha de dentro. Então, devagar, delicadamente, entrou no banheiro. Nos
últimos dez meses, ela se especializara em fazer tudo silenciosamente à noite, conseguindo se movimentar no escuro.
Tessa fechou a porta do banheiro. Mesmo se Martha ou Conor acordassem e decidissem dar uma olhada nela, não iriam incomodá-la ali dentro. Mas ela não queria se arriscar.
Por isso trancou a porta. Só por segurança.
Ela puxou a manga do pijama e olhou por um momento o emaranhado de cicatrizes retas na parte de dentro do seu braço direito.
No último verão, ela achara que os avós perguntariam por que ela só usava pijamas e até mesmo camisetas de mangas compridas, mas eles não perguntaram. Basicamente,
deixavam que ela se vestisse como quisesse. Patrick também. Ele estava tão por fora quanto os dois.
Ela abriu a caixinha e tirou de dentro a navalha.
No início, quando ela ouvira falar de autopunição, ou “automutilação”, como algumas pessoas diziam, achara esquisito. Por que alguém se cortaria de propósito? O
que aquilo poderia trazer de bom? Então, uma noite em que ela fora dormir na casa de sua melhor amiga, Cherise – na época em que Tessa ainda morava em Nova York,
é claro –, ela descobriu que Cherise gostava de se cortar e estava fazendo isso havia dois meses, desde que terminara com Adam Schoeneck, que a trocara por uma líder
de torcida segundoanista do colégio East Side High.
– Tipo, quando você tem tanta dor dentro de você – Cherise lhe dissera –, é um jeito de botar pra fora, entende?
Tessa não fazia ideia, mas dissera:
– Sim, entendo. – Que tipo de dor Cherise podia ter? Ela era popular. Seus pais estavam vivos. Ela tinha tudo.
– O corte só arde por um segundo, depois passa. – Cherise estava se olhando no espelho e escovando seu cabelo volumoso, cor de canela. – Mas precisa tomar cuidado
pra não cortar fundo demais, senão vai começar a deixar cicatrizes. Você viu o novo menino que chegou na escola? Oh! Que gatinho. Quer comer pizza? Tô morrendo de
fome. – Cherise tinha um jeito de fazer as coisas mais exóticas parecerem banais, e as coisas mais comuns parecerem empolgantes.
Mesmo assim, por muito tempo, Tessa nem pensara em se cortar. Nem considerara essa possibilidade. Mas então, quando sua mãe fora internada pela primeira vez, ela
ficou com medo e começou a pensar no que fazer. Tudo acontecera tão rápido. Os médicos não contavam muita coisa, mas ela percebia que era grave. Ela jamais imaginou
que sua mãe fosse adoecer, não daquele jeito. Essas coisas só acontecem com os outros, não com pessoas como sua mãe. Não com famílias como a sua.
Mas aí ela descobrira que, às vezes, acontecem, sim.
Quando os tratamentos não funcionaram e sua mãe ficou cada vez mais fraca, Tessa tentara até conversar com Patrick –, mas isso não ajudara muito. Não que ele fosse
mau, nada disso, apenas estava com a cabeça longe. Além disso, eles só se conheciam havia um ano, na época, e ela crescera sem pai mesmo, então sempre fora meio
difícil, para eles, conversar – conversar de verdade. Aí, quando ele passara a ficar totalmente ocupado cuidando de sua mãe, bem, ela sentiu que precisava fazer
alguma coisa por conta própria.
Assim, na noite em que sua mãe começou a quimioterapia, Tessa pegou um estilete e o encostou do lado de dentro da sua coxa direita. Cherise havia lhe mostrado os
melhores lugares para fazer isso sem que ninguém visse, ninguém pudesse perceber.
– Não é meio esquisito você se machucar assim? – Tessa perguntara.
– Não é que você queira se machucar, nada disso – Cherise explicara. – Na verdade, é o contrário. Está buscando um jeito de deixar a dor sair. Tente. Você vai ver.
Dói mais se não fizer.
Aquela primeira vez fora a mais difícil. Tessa nem tinha certeza de que conseguiria. Ela ainda se lembrava de como ficou nervosa ao encostar o aço frio na pele,
tremendo um pouco, se perguntando se aquilo realmente ajudaria, se qualquer coisa poderia mesmo ajudar – e então, finalmente, pressionou a lâmina com força suficiente
para tirar sangue, e aquilo doeu mais do que ela imaginava e sua perna se agitou e ela acabou deixando cair a lâmina, que quase pegou no seu pé.
Mas de alguma forma aquilo ajudou. Sim. De alguma forma, ver aquele riozinho de sangue fizera o que ela sentia por dentro parecer menos fora de controle, menos desesperador,
menos constrangedor e aflitivamente doloroso. Mesmo não conseguindo fazer sua mãe se sentir melhor, mesmo não conseguindo falar com Patrick, pelo menos ela podia
fazer alguma coisa. Pelo menos podia fazer aquilo.
Claro que piorou depois que sua mãe morreu. Foi quando ela passou da perna para o braço. Então tudo fugiu do controle. Ficou bem ruim por um tempo. Mas Tessa sabia
que só estava fazendo aquilo para aguentar. Ela podia parar quando quisesse. Disso ela sabia.
Por isso, agora que estava sozinha de novo e seus avós estavam dormindo no outro quarto e ela sentia aquela dor terrível rugindo em seu coração, Tessa tocou a lâmina
e olhou para as cicatrizes no braço.
Ela viu sua imagem refletida, distorcida e angular na lâmina.
Seu coração estava batendo forte, como sempre.
De que outro jeito alguém podia lidar com toda aquela solidão, aquele desconsolo, aquela dor que não podia ser tocada, contida ou controlada? Você a empurra para
o fundo, torcendo para que ela vá embora, mas ela não vai. Só fica maior e mais feia.
Cortando.
Como cavar um túnel para fora de sua prisãozinha particular, um corte de cada vez. Mas neste caso a prisão é você.
Era quase como gritar ou chorar, mas sem tantas lágrimas e barulho. Essa era a melhor forma de descrever, na verdade. Como era a expressão que Cherise usara? Ah,
sim. Lágrimas escarlates.
Chorar até fugir da prisão, cicatriz por cicatriz.
Quando a vida fugia do controle, você precisava fazer alguma coisa a respeito. Alguma coisa. Mesmo que doesse por algum tempo. Mesmo que deixasse cicatrizes.
Tessa apertou a lâmina contra a pele e puxou.
23
Aaron Jeffrey Kincaid mal encostara a cabeça no travesseiro quando o sonho veio. Era o mesmo sonho. Aquele que ele sempre tinha. Aquele que saíra dos pesadelos do
seu passado e se tornara o pano de fundo da vida para ele, mesmo quando acordado.
É assim que alguns sonhos são. Quer esteja acordado ou dormindo, eles não largam você. Lançam grossas raízes, envolvendo tuas esperanças e desejos, seu passado e
sua dor, seu futuro e seus dias, tornando-se uma parte profunda e certa de você. E, embora ele tivesse o mesmo sonho havia mais de trinta anos, as imagens não se
tornaram esmaecidas ou desbotadas pelo tempo, só mais claras e de alguma forma mais distintas. Mais definidas e precisas do que nunca.
Ele tinha dez anos quando tudo acontecera.
O barulho dos tiros vibrava no ar, ecoando pelo complexo barrento antes de ser engolido pela selva próxima. Depois de cada estampido, uma explosão de guinchos e
chilreios vinha da copa das árvores lá no alto.
O garoto corria com o som de tiros ao seu redor. Corria. Tentando esquecer o que vira, o que ninguém jamais deveria ver.
Corria. Corria. Corria.
Fora assim que o sonho começara – com tiros perto da selva. Ele estava sem fôlego. Ouvia o barulho das armas, alto, muito alto. Mas isso não era nada comparado com
os gritos das crianças. As mais novas eram as que mais gritavam. As pequeninas. Os bebês. Seus gritos se misturavam à música em rotação alterada tocando no sistema
de alto-falantes; a música murmurante, pulsante, quase como uma marcha fúnebre, quase como um serviço religioso horrivelmente mal-sucedido. Algumas pessoas cantavam
junto, outras se abraçavam e se reconfortavam. Algumas mães choravam. Mas era dos bebês que ele mais se lembrava. O som dos pequeninos gritando no crepúsculo.
Ele correu e os gritos o perseguiram enquanto ele pulou a cerca e já caiu no chão correndo do outro lado. Atrás dele, os dois guardas gritavam, mandando-o parar.
Tudo ia ficar bem! Ele devia voltar e se juntar aos outros! As coisas iriam melhorar agora! Se ele apenas parasse de correr!
Mas ele não parou. Correu como jamais correra antes, com os olhos paralisados pelo terror, pela estrada e rumo à selva, onde ele podia se esconder. Como um animal,
ele correu. As árvores já se agigantavam ao redor dele, agora. Ele chegara à beira do mundo. Mergulhou nas sombras, milhares de tons de verde passando diante de
seus olhos. Nem mesmo as chicotadas dos galhos no seu rosto o fizeram diminuir o ritmo.
Um galho perto do seu ouvido esquerdo explodiu.
Em seu sonho, Aaron quase conseguia sentir a nuvem de farpas picando seu pescoço e seu rosto, como acontecera na selva havia tantos anos. Mas ele não parara de correr.
O barulho de outra arma cortou a penumbra. Gritos. Música. Bebês. O rio.
Só um pouco mais longe. Chegar até o rio.
Ele estava quase fora do alcance, agora. Quase a salvo. Só um pouco mais longe e tudo ficaria bem.
Haja o que houver, não pare de correr.
O garoto não estava lá quando tudo começou. Em vez disso, estava brincando sozinho, como muitas vezes fazia, perto de um dos muitos rios que cortavam a selva ao
redor do complexo. Ele gostava de ver as ondas passando, indo na direção de alguma aldeia distante – rumo ao mar perdido em algum lugar fora do alcance de vista.
Ele sonhava com todos os lugares para onde o rio podia fluir, todos os portos que o oceano podia tocar. Terras distantes, exóticas. Terras que ele só podia visitar
com a imaginação. Porque quando você ia para aquela cidade na selva, nunca mais saía dela. Todos sabiam disso. Todos diziam isso. Ela se tornava o seu lar para sempre.
Embora ninguém devesse sair do complexo, seus pais não pareciam se importar com as incursões dele na selva. Deixavam que ele explorasse as margens do rio porque
o amavam. E porque ele não era como as outras crianças. Era diferente. Especial. Predestinado para grandes coisas. Ele sabia que isso era verdade. Eles lhe contaram.
Ele seguiria os passos do Pai um dia.
Até o Pai dizia isso.
Portanto, eles o deixaram ir para o rio mais cedo naquele dia, quando os boatos começaram.
Tudo estava tão tenso, todos tão ansiosos. Cochichando. Balançando a cabeça e depois olhando ao redor para ver se alguém estava olhando. E normalmente alguém estava.
Alguém estava sempre olhando. Ou ouvindo. As coisas seriam diferentes agora que o deputado os visitara, todos sabiam disso. O governo estava chegando. Era só uma
questão de tempo.
Por isso ele saíra para ficar sozinho por um tempo. Mas aí a música começara, os gritos começaram, e foi isso que o trouxe de volta.
Já estava acontecendo quando ele chegou ao pavilhão. Havia tantas pessoas deitadas imóveis no chão que de início ele pensou que talvez tivessem recebido ordens para
tirar uma soneca, e diligentemente, inquestionavelmente, obedeceram, posicionando-se no chão.
Para dormir. Dormir. Dormir.
Então ele viu seu irmão menor e seus pais no chão. Mas eles não esta vam dormindo. Não estavam se mexendo.
Ele ficou olhando mais um pouco, tentando entender o que estava acontecendo, por que aqueles que se deitaram não se levantavam de novo. Algumas pessoas estavam deitadas
quietinhas e mal se mexiam, outras tremiam de um jeito assustador antes de parar de se mexer de vez. Mas nenhuma das pessoas que tomaram a medicação ou aceitaram
as injeções jamais se levantou de novo.
Nenhuma delas. Jamais.
Corra.
Continue correndo.
Precisa continuar correndo.
Ele saltou um tronco no limite da selva, e uma bala o atingiu no ombro esquerdo, derrubando-o no chão numa explosão estonteante de dor. Ele gritou, mas depois se
conteve, tampando a boca com a mão, lágrimas ardendo em seus olhos enquanto ele jazia no chão da selva por um momento e tentava decidir o que fazer. Ofegando. Respirando.
Observando. Se ele não se movesse, talvez pensassem que estava morto. Sim, aquilo podia funcionar. Mas também poderiam verificar, só para ter certeza. O que ele
devia fazer? Queria acordar do pesadelo, mas estava preso dentro dele. Não dá para acordar quando não estamos dormindo. E ele não estava dormindo. Queria estar,
mas a selva era real, como as lágrimas e os bebês e os cadáveres. Tantos cadáveres. Não dá para sair do pesadelo quando você mora dentro dele. Quando ele mora dentro
de você.
Se ele se levantasse, eles atirariam de novo. Sim, isso ele sabia. Sabia que atirariam. Iriam matá-lo. Mas ele precisava se levantar. Precisava! Precisava seguir
em frente para fugir de tudo aquilo. Para longe dos bebês que gritavam. Para longe dos cadáveres silenciosos.
E foi o que ele fez. Ficou de pé. Com a respiração cortada, uma pontada de dor fulgurante percorrendo o seu braço, ele se lançou de pé, enquanto o ferimento do tiro
gritava com ele do ombro.
– Lá está ele! – disse uma voz de algum lugar lá atrás.
O garoto fugiu para o mato enquanto outra bala rasgava as sombras que pareciam aumentar ao redor dele. Os sons da noite começavam a envelopar a selva, agora que
o sol havia afundado entre as árvores. Sons estranhos e primais o rodeavam: insetos raros, pássaros selvagens e os gritos apavorantes dos predadores que preferiam
caçar só no escuro. Nuvens pesadas cobriam o horizonte, escuras, distantes e inchadas no céu, ficando mais cinzentas a cada segundo.
Ele cambaleou até a margem do rio e desabou, zonzo de dor, a água rodopiando suavemente ao seu redor, levando o seu sangue rio abaixo para algum porto distante e
sem nome.
As vozes dos homens o alcançavam, mas estavam mais fracas agora, flutuando no ar.
– Acertei o garoto. Vem. Vamos voltar. Pode haver outros tentando fugir. Ele ouviu as vozes ecoando em algum lugar entre a consciência e a inconsciência, entre o
sono e a morte, entre a noite e o dia. O garoto não conseguia mais saber onde terminava a realidade e começava o sonho.
E então, com o céu escurecendo acima de si, ele fechou os olhos e deixou a noite se erguer com seus dedos escuros, cerrando a cortina e serpenteando cada vez mais
fundo, para a parte secreta de sua alma.
Era aí que o sonho terminava. Era assim que ele acordava toda noite, agora, morrendo à margem do rio, encharcado de água limosa e sangrenta, enquanto a noite penetrava
no seu coração.
Ele jazia na cama, tremendo descontroladamente. Não era mais um menino de 10 anos. Era um homem de 40. Ele aguçava os ouvidos. Nenhum tiro. Nenhum grito. Só os sons
suaves da casa se acomodando e dormindo ao redor dele. E o vento do outono lá fora, atravessando a noite.
Ele largou as cobertas. Uma nesga de lua minguante se via pela janela, mas à luz intermitente das estrelas, seus olhos encontraram a marca do buraco de bala no ombro
esquerdo. A cicatriz que lhe dizia que tudo aquilo era muito mais do que um sonho. Era uma lembrança.
– Logo – ele disse à escuridão –, o círculo vai se fechar. – Com a ponta do dedo, apalpou a borda da cicatriz onde a bala entrara em seu corpo. E para ele, aquilo
era uma prova do seu destino. Apesar de tudo, ele estava destinado a grandes coisas, e nada poderia deter o destino. Seus pais haviam lhe ensinado isso, muito tempo
atrás. E o Pai em pessoa lhe dissera que ele era especial; dissera que ele continuaria o trabalho quando a hora chegasse.
Aaron Jeffrey Kincaid nem se deu ao trabalho de fechar os olhos de novo. Sabia que não conseguiria mais dormir naquela noite mesmo. Não depois do sonho.
Ele rolou para fora da cama e se sentou ao lado da janela, deixando a luz das estrelas acariciá-lo, inspirá-lo, completá-lo. Dali a poucos dias, tudo aquilo por
que ele trabalhara aconteceria. A mensagem reverberaria pelo mundo todo. Até então, o que ele tinha que fazer era apenas ficar alerta e consciente.
Alerta e consciente.
Mais objetivo e concentrado que nunca.
24
– Ele ligou pro seu quarto?! – Precisei afastar o celular do ouvido. Quando Ralph fica nervoso, sua voz faz tanto estrago quanto seu gancho de esquerda. – Como,
em nome de tudo que é sagrado, ele conseguiu o seu telefone?
– Bem – eu estava com o braço totalmente esticado, a essa altura –, imagino que não seja difícil ligar para a recepção de um hotel e ser transferido para um quarto,
quando se sabe o nome do hóspede.
– Como ele sabia que você estava aí?
– Não sei. Pode ter nos seguido do local onde Mindy foi encontrada na quinta, se estava na multidão.
Ralph praguejou baixinho.
– Por que você não me ligou ontem à noite?
Eu não estava mesmo a fim daquilo. Esfreguei os olhos. Não tinha dormido muito. De novo.
– Ralph, não ia adiantar nada. Liguei para o pessoal do laboratório; eles não conseguiram rastrear a ligação. Vou me mudar pro hotel em frente ao prédio da administração
federal agora de manhã. Wallace vai mandar uns caras me pegarem. Ele vai providenciar um carro pra mim.
Ralph grunhiu.
– Já era tempo. – Ele se acalmara o suficiente para que eu colocasse o celular no ouvido novamente enquanto enfiava uma pilha de papéis num dos envelopes de papel
pardo na escrivaninha ao meu lado. Ele devia estar ruminando o que eu acabara de dizer, porque depois de um momento acrescentou: – Isso significa o que eu acho que
significa?
Olhei para a mala e a mochila que estavam à minha espera quando cheguei ao hotel noite passada. Cumprindo sua palavra, Ralph mandara trazê-las. A mala era para trabalho,
a mochila, para lazer. Eu estava planejando havia meses passar uns dias escalando a Garganta Linville depois daquela conferência policial. Mas agora não parecia
que eu teria essa chance.
– Sim. Acho que vou ficar por mais uns dias. Não tenho nada urgente na minha agenda. E esse cara já cometeu dois erros – esperou pela gente no shopping e me ligou
no hotel. Está confiante demais. Talvez ainda consigamos salvar Jolene.
– Se ela ainda estiver viva. – Sua voz parecia sombria.
Eu não sabia se devia contar que o assassino mencionara minha filha, não sabia se Ralph iria querer me tirar do caso. Decidi arriscar; afinal, estava falando com
Ralph.
– Ele sabe que eu tenho uma filha, Ralph. Disse o nome dela. Talvez saiba onde ela está. Preciso ter certeza de que Tessa e meus pais estão seguros.
– Vamos levá-los para um esconderijo do FBI em Denver. Esse era o Ralph. Um bom sujeito.
– Acontece, Ralph, que eu preciso vê-la. – Tive muito tempo para pensar ontem à noite, depois de falar com o Ilusionista. Eu estava tão cheio de adrenalina que precisei
fazer vinte minutos de barras no batente da porta do quarto só para me acalmar. É um ótimo exercício. Mas o certo é usar só as pontas dos dedos. Quando comecei a
me exercitar, levei dois anos para conseguir fazer uma só barra com as pontas dos dedos; mais um ano para conseguir fazer dez. Isso foi há uma década. Melhorei um
pouco desde então.
– Como assim, “vê-la”? – ele disse.
Inspirei lentamente.
– Preciso ver Tessa, Ralph. Pessoalmente. A verdade é que nós dois enfrentamos uma barra. Nunca chegamos a conversar sobre a morte de Christie. E agora, essas garotas
mortas, esse caso... está me afetando. Eu preciso me acertar com ela. Você tem um filho, Ralph, sabe do que estou falando. Meus pais podem ficar lá, mas não Tessa.
Ou eu vou pra Denver passar uns dias, ou o FBI precisa trazê-la pra cá.
– Pat, você sabe que não posso...
– Arranje um lugar seguro pra ela perto daqui, Ralph. – Olhei para a bagagem. – Ou isso, ou vou voltar pro Colorado agora.
Ouvi baterem na porta do quarto e olhei pelo olho mágico. Embora ainda estivesse escuro lá fora, pude ver dois policiais com cara de poucos amigos na minha porta.
Nenhum dos dois parecia ter idade suficiente para fazer a barba. Um deles mostrou umas chaves de carro, balançando--as na frente do olho mágico como se estivesse
tentando hipnotizá-lo. Ah, que bom. Meu carro alugado tinha chegado. Destranquei a porta.
– E então, Ralph? Estou esperando.
Ele praguejou. Às vezes, isso era bom sinal, outras vezes era ruim. Imaginei que daquela vez o momento indicasse que era a meu favor.
– Tá – ele disse. – (Não acredito que estou dizendo isto...) eu vou dar um jeito. Mas assim que vocês resolverem suas diferenças, ela volta pra Denver pra você poder
se concentrar no caso. Ela fica aqui dois dias no máximo.
– Quatro.
– Três.
– Fechado.
Abri a porta e apontei para as minhas malas. O policial que parecia três minutos mais velho fez um sinal para o parceiro, que gemeu, mas finalmente se mexeu para
pegar minha mochila. Peguei a mala, enquanto dava a Ralph o número do voo que eu queria que Tessa pegasse. Ele saía de Denver às 11h20, hora das montanhas, mas por
causa da mudança de fuso horário, só iria chegar em Charlotte às 18h16.
O policial novinho grunhiu:
– O que você tá levando aqui? Tijolos?
– Equipamento de alpinismo – respondi baixinho.
Aí eu disse para Ralph o preço da passagem. Tive que afastar o celular do ouvido de novo.
O policial balançou a cabeça e me seguiu para fora. Voltei minha atenção para a conversa com Ralph.
– Vai precisar mandar um agente de Denver pra acompanhá-la. Não quero que ela fique sozinha nem um minuto. Não com esse sujeito à solta.
– Que legal. Mais uma passagem.
– Ralph.
– Tudo bem – um suspiro. – Mais alguma coisa? Uma viagem pras Bermudas, que tal?
– Ei, seria legal. Talvez mais no inverno.
– Vai rezando.
Depois de me certificar de que veria Tessa à noite, passei para o caso.
– E então, algum progresso? Alguma pista de Jolene?
– Ainda não – ele resmungou. – Eu esperava conseguir imagens em vídeo do nosso homem no shopping, mas as câmeras só cobrem as entradas para o público, não as áreas
de descanso dos funcionários, onde as chaves dela foram roubadas. Mesmo assim, temos algumas pessoas examinando as imagens, só por segurança.
– E a garagem?
– Nada. Não tem câmeras.
– Imaginei. – Abri o porta-malas do carro e pusemos minhas malas dentro.
– A perícia está examinando a bala, mas os exames preliminares parecem mostrar que ela não foi disparada por nenhuma das armas usadas pelos seguranças. A polícia
local está investigando todos eles. Até agora, dois parecem interessantes. Um mora na mesma rua de Jolene. Pensei em ir conversar com ele antes de voltar para Asheville.
Agradeci aos policiais e me sentei ao volante do carro alugado. Eles saíram resmungando um com o outro, obviamente nada contentes em brincar de carregadores de bagagens
logo de manhã.
– Hmm. Bem, pode ir, mas acho que não é ele. Pode haver provas que o incriminem, mas ele vai ser descartado.
– Como assim?
Liguei os faróis e saí para o dia que amanhecia lentamente.
– Não acho que nosso cara seja burro a ponto de ir atrás de uma garota que mora na mesma quadra que ele, ou aparecer nos vídeos do shopping. Ele pensaria em tudo
isso. Além do mais, considere a situação geral. Isso é só uma peça de um complexo quebra-cabeças. Só uma da série. Lembre-se, assassinos predadores costumam expandir
sua zona de caça a cada novo crime; não a reduzem de volta ao bairro onde moram. Mas quem sabe. Fale com o segurança. Veja o que consegue descobrir. A propósito,
como está o cara que levou o tiro?
Ralph grunhiu.
– Vai sobreviver. Mas talvez nunca mais fale. Se o tiro tivesse sido um pouco mais pra direita...
Olhei no retrovisor e notei um par de faróis.
– Eu sei, eu sei. – As palavras zombeteiras do Ilusionista ecoavam na minha mente: Você e eu sabemos que eu não queria matá-lo. – Acho que ele não queria matar o
cara, Ralph. Pode ser um atirador de elite. Vamos pedir que o xerife Wallace investigue isso.
Imaginei Ralph balançando a cabeça do outro lado da linha.
– Tentamos conversar com a garota que estava com o cara que levou o tiro – disse ele –, mas não conseguimos muito. Ela estava muito abalada.
– É? Sério? – entrei na rodovia e troquei o celular de mão.
– Ela não faz ideia de como a peça de xadrez foi parar no carro deles – conseguimos obter isso dela. Já a esposa de Anderson foi muito prestativa. Anderson é o cara
que levou o tiro. Ele leciona Inglês na UNC. A garota é sua aluna.
– Que maravilha.
– Ele dizia à esposa que ia jogar pôquer toda sexta à noite. Parece que eram encontros regulares.
Um padrão. Sim.
Ele sabia. O Ilusionista sabia que eles estariam lá.
– A garota disse que eles começavam no carro e depois iam para o hotel na mesma quadra. Ela disse que isso o excitava.
– Aí já é um pouco de informação demais pra mim, Ralph – eu disse. – Mas aprecio sua meticulosidade. – Depois disso, a conversa minguou. Ambos disséramos quase tudo
o que tínhamos em mente. À minha frente, embora o sol nem tivesse nascido ainda, o horizonte começava a brilhar em âmbar e vermelho.
– Só isso? – ele disse finalmente.
Os faróis me seguiam. Mantinham-se a quatro carros de mim. Havia mais uma coisa.
Entrei no fluxo do tráfego da Blue Ridge Parkway.
– Esse negócio todo das lentes de contato, Ralph...
– Sim?
– Me incomoda. Ele está conectando os crimes pra nós.
– As fitas e as peças de xadrez não bastam?
– Isso é mais profundo. É outra coisa.
– Exibicionismo?
– Talvez. Não sei. Ele roubou as lentes de contato de Jolene e plantou em Mindy. Estava contaminando o local do crime com pistas de uma futura vítima. Nunca vi isso
antes.
Acelerei, ultrapassei alguns carros. Continuei de olho no retrovisor. Ralph ficou em silêncio por um momento; imaginei que estivesse ruminando tudo.
– Mas se era pra ser uma pista pra próxima vítima, não é nem de longe o suficiente pra descobrir quem seria. Sabe, lentes roubadas?
– Mas é isso mesmo. Não acho que ele queira que impeçamos os assassinatos – eu disse. – Acho que ele quer que saibamos que não podemos impedi-los.
O carro que eu estava vigiando ultrapassou alguns carros. Conservou a mesma distância de mim.
– Olha – eu disse –, estou indo para o prédio da administração federal pegar meu laptop – deixei aí na pressa de sair ontem à noite – e depois vou voltar pra dar
mais uma olhada no local onde Mindy foi encontrada. O legista estabeleceu o horário da morte entre as 8h e 11h.
– Nunca entendi por que você acha tão importante ver os locais dos crimes na mesma hora que os assassinatos aconteceram...
– Pra notar coisas. A iluminação, talvez. Os padrões de uso. Você vê o que ele viu. Ajuda a entender o contexto do crime. Escuta, Ralph, acho que estou sendo seguido.
– Quê?
– Um carro. Está atrás de mim desde que saí do hotel. Mas não está sendo espalhafatoso. Seja quem for, tem experiência.
– O que você quer fazer?
– Estou chegando num túnel. Tive uma ideia.
25
Uns quatrocentos metros à minha frente, a estrada desaparecia em um túnel que perfurava a encosta de uma montanha. Pisei no acelerador e aumentei a velocidade. Quem
estava me seguindo ficaria preso no tráfego, e não poderia ultrapassar porque a estrada se estreitava perto do túnel.
Observei quantos carros havia entre nós – quatro – e então entrei no túnel e desliguei as lanternas, para que os carros atrás de mim não pudessem avaliar o quanto
estava à frente. Meti o pé no acelerador e vi os faróis encolhendo atrás de mim. Alguns segundos depois, saí do outro lado da montanha, joguei o carro no acostamento
e dei ré, levantando uma nuvem de poeira.
Agora eu podia ver os carros saindo do túnel, mas eles não poderiam me ver. Esperei. Ele iria sair a qualquer momento, e a situação se inverteria. Eu o estaria seguindo.
Saiu o primeiro carro.
Eu esperei...
Carro número dois.
Segurei o volante com força. Meu coração começou a bater forte. É o assassino? Ele me esperou na porta do hotel depois de me ligar ontem à noite?
Número três.
Eu me preparei para segui-lo. Queria ter conseguido ver o modelo do carro.
Bem, isso eu veria num segundo.
Esperei...
Vários segundos se passaram. O carro não veio.
Esperei mais alguns momentos, depois dei meia-volta e voltei pelo túnel para o outro lado da montanha, mas ele desaparecera. A estrada estava vazia.
Ele deve ter entendido o que você estava planejando quando acelerou. Nem entrou no túnel.
Eu não sabia se devia me sentir decepcionado ou aliviado. Era só mais uma peça do quebra-cabeças que não se encaixava.
Finalmente, voltei pelo túnel rumo a Asheville. Liguei para Ralph e contei o que aconteceu.
– Vou pedir pro xerife Wallace perguntar pros dois policiais... – a voz dele estava cortando – ... ver se algum dos dois notou um carro no estacionamento, ou alguém
seguindo você. – Ele tinha razão sobre o celular. Estava precisando de carga. Urgente.
A estática começou a engolir as palavras dele.
– A ligação vai cair – eu disse.
– Vou mandar... – Ralph continuou falando, mas a voz sumiu no meio da frase.
O celular estava mudo.
Mudo.
Bem, isso era adequado.
Olhei para as montanhas escuras ao meu redor. Acima delas, as nuvens inchadas da madrugada bebiam a luz escarlate do sol que se derramava por cima dos picos. Por
um momento, elas me pareceram cadáveres cinzentos gigantes lambuzados de sangue, pendurados no céu.
Rapaz...
Preciso mudar de emprego.
Liguei o rádio e mexi na sintonia, tentando encontrar alguma música para parar de pensar no caso. Na morte. Alguns fragmentos de música country chorosa surgiram
e depois desapareceram na estática. A maioria das estações transmitia programas evangélicos.
Girei o botão e desliguei o rádio.
Mas era tarde demais. Os versículos da Bíblia que eles citavam trouxeram tudo de volta... eu sentado na dura cadeira laranja num canto do quarto de hospital... vendo
Christie na cama... tendo que ouvir o reverendo Donovan Richman discursando sobre a bondade de Deus, quando eu só conseguia ver uma prova de Sua crueldade bem na
minha frente...
Ela pedira que ele viesse. Christie. Ela frequentava um pequeno templo, e ele era o novo pastor, e assim, quando ela fora internada, pedira que ele viesse.
Reverendo Donovan Richman. Que nome 7.
Outro homem da igreja também veio, um cavalheiro negro aposen tado, Benjamin Grayson. Ele era um dos diáconos, e eu entendi, pelas conversas, que era o encarregado
do “ministério itinerante” que atendia os membros da igreja inválidos e hospitalizados.
A maior parte do tempo, eu ficava sentado no canto, na cadeira laranja, enquanto eles falavam – bem, enquanto Richman falava. O resto de nós basicamente escutava.
Richman estava cheio de clichês sobre por que Deus permitia o sofrimento, e balançava a cabeça em concordância toda vez que Christie murmurava alguma coisa sobre
Jesus ou o céu. Benjamin só ficava sentado, quieto, segurando a mão de Christie, e, às vezes, chorava lágrimas grandes, redondas.
Não sei se era proposital, mas para mim o reverendo Richman fazia a dor de Christie parecer corriqueira, como alguma espécie de lição prática cósmica enviada por
Deus para lhe ensinar algo importante sobre a vida. Eu custo a acreditar que Deus tortura as pessoas para que elas O amem. Não sei muito sobre Deus nem sobre o amor,
mas sei que a tortura não é o que aproxima os dois.
O Ilusionista agitou o mouse e o monitor do computador se iluminou. Os primeiros raios de sol entravam pela janela, desenhando faixas de luz sobre seus dedos. Uma
linda manhã. Linda!
Ele abriu alguns sites armazenados nos seus favoritos e correu os olhos pelas últimas notícias relativas ao rapto de Jolene Brittany Parker. Até baixou alguns artigos
sobre ela. Eram meio padronizados, mas havia alguns até interessantes. Era sempre divertido saber o que as pessoas diziam sobre o trabalho dele.
– Veja isto, Jolene – ele disse por cima do ombro. – Seus pais estão esperando um pedido de resgate.
Nenhuma resposta.
Bem, era de se imaginar.
Ele quase riu alto. Um pedido de resgate! Quem eles pensavam que ele era?
Como se ele estivesse interessado em dinheiro.
Ele tomou um gole de suco de laranja gelado e entrou num chat para aficionados por crimes, onde alguns dos “especialistas” residentes tentavam recortar o perfil
psicológico do Estrangulador da Fita Amarela. Genial, não? Recortar o seu perfil psicológico. Rá. E ele pensara naquilo ali, na hora. Ele era bom a esse ponto!
Ele rolou o texto, lendo as respostas insossas.
Alguém chamado pegaeles16 escrevera que o assassino era “obviamente introvertido, desorganizado e com tendências homossexuais latentes, já que não fez sexo com nenhuma
das mulheres”.
Idiota.
Alguém chamado deadhunter1zero pensava: “O suspeito principal tem experiência militar, provavelmente exonerado com desonra por acessos de violência. Ele mora num
furgão ou num trailer. Tem um subemprego e um pastor alemão.”
De certa forma, aquilo era engraçado. “Ele é branco, tem de 25 a 40 anos”, eles escreviam, “antissocial, divorciado, QI baixo...” Blá, blá, blá. Perfis psicológicos
de boteco. Babacas. Imbecis. Não faziam ideia do que estavam enfrentando.
Ele se perguntou o que a agente Jiang achava dele. Ele sabia o que achava dela. Oh, sim. Sabia exatamente o que achava dela. O quanto poderiam se divertir ao luar,
com as cordas, a fita e sua faca de prata favorita.
Ele podia ver isso agora. O rosto dela. Seu corpo. Os movimentos do pescoço enquanto ela lutava para respirar.
Hmm.
Mas, realmente, era melhor não fantasiar demais com isso agora. A vez dela chegaria.
E havia, claro, o dr. Bowers. Apesar de toda aquela conversa sobre hora, local e geografia criminal – viram só? Ele era poeta também! – Patrick entendia a mente
do assassino. Sim, de alguma forma, ele sabia como era. Talvez por isso fizesse tanta questão de não dar ouvidos aos psicólogos. Porque tinha medo dos seus próprios
motivos, dos canais escuros do seu coração. Havia alguma coisa ali. Sim. Algo a se considerar.
Ele leu mais um parágrafo asinino que dizia que o Estrangulador da Fita Amarela provavelmente provocava incêndios, urinava na cama e torturava pequenos animais quando
criança.
Bem, um acerto em três tentativas não era tão ruim.
Christie morrera numa tarde chuvosa de segunda-feira, exatamente oito meses antes. No final de fevereiro. A primavera estava tentando desabrochar; o inverno, tentando
morrer. Ela faleceu entre as estações, no meio dos espaços vazios do ano.
Um dia antes de sua morte, o reverendo Richman perguntou como eu estava. Quando respondi que estava bem, ele perguntou cortesmente se eu estava pronto para encarar
a morte. Eu disse que estava pronto para a minha, mas não estava para a de Christie, e jamais estaria. Jamais.
Ele não pareceu satisfeito com minha resposta. Tentei agradecer por ele ter vindo e dizer que aquele provavelmente não era o melhor momento para falar de tudo isso,
mas que tanto Christie quanto eu apreciávamos muito sua...
A raiva começava a voltar para a superfície, e mesmo agora eu podia sentir minhas mãos apertando mais o volante.
Porque ele não esquecia o assunto. Ele simplesmente não esquecia o assunto. E me interrompeu no meio da frase.
– Não trate a eternidade levianamente, dr. Bowers. O senhor nunca sabe quando sua hora vai chegar. – Sua preocupação parecia genuína, mas ele escolhera o pior momento
possível.
– Obrigado – eu disse. – Vou me lembrar disso.
Quando estávamos indo para a porta, ele disse:
– O senhor parece um homem instruído; já ouviu falar da Aposta de Pascal?
Claro que eu tinha ouvido falar de Pascal e sua aposta. Blaise Pascal foi um dos maiores matemáticos que já existiram, e um dos meus autores favoritos. Sem seu trabalho
pioneiro, computadores – e a criminalística geográfica – talvez jamais tivessem sido inventados. Foi ele que escreveu: “A única coisa que nos consola de nossas misérias
é a distração. No entanto, essa também é a maior das nossas misérias.” Eu lera essa frase anos antes e jamais a esquecera. Ela parecia resumir a história da minha
vida.
– Sim, eu conheço Pascal – respondi. – Mas nunca fui muito fã da aposta dele. Não gosto da ideia de apostar em Deus.
– Mas por que o senhor não iria querer apostar em Deus?
Respirei fundo. Por um lado, eu acreditava em Deus, mas por outro, não tinha tanta certeza. Tinha minhas dúvidas, especialmente naquele quarto de hospital com Christie.
– Porque eu conheço alguém que apostou. – Falei baixo o suficiente para que minha esposa moribunda não ouvisse. – E Ele a abandonou.
A frase tinha gosto de veneno na minha língua. Eu sabia que eram palavras duras e cruéis, mas não me importava. Richman é que tocara no assunto. Ele forçara a discussão.
– Agora, com licença – eu disse. Comecei a levar o reverendo e Benjamin até a porta.
– Dê uma chance a Deus – Richman insistiu. – O senhor não tem nada a perder.
E aquilo foi a gota d’água.
– A não ser a verdade – retruquei. – É isso que realmente importa, no fim das contas – mais do que aquilo em que acreditamos, mais do que aquilo que nos beneficia.
Esse é o problema da Aposta de Pascal, reverendo. Ela se baseia em recompensas, agora ou na eternidade, não no que é verdade. De acordo com Pascal, se Deus existe
e você acredita, vai pro céu. E se você acredita, mas Ele não existe, pelo menos você pode viver esta vida com paz e esperança. Certo?
Ele fez que sim.
– Mas reverendo – eu disse, – se Deus não existe, não deveríamos acreditar que Ele existe, ainda que isso nos proporcionasse uma vida mais feliz – porque estaríamos
acreditando numa mentira. Vivendo uma mentira. Não quero que minha vida se baseie numa mentira, mesmo se for uma reconfortante. Prefiro apostar na verdade.
Richman abriu a boca para dizer alguma coisa, mas parou. Ele olhou de mim para Benjamin, depois de novo para mim. Não tinha resposta. Nada. Era a primeira vez, desde
que eu o conhecera, que ele ficava sem palavras.
E foi então que Benjamin sorriu e bateu delicadamente no meu ombro.
– O senhor é um homem de muita fé, dr. Bowers.
Suas palavras me derrubaram.
– O quê?
– Tem fé naquilo que é bom – fé na verdade. Muita gente não tem nem isso hoje em dia. Eu admiro o senhor. – E com isso, ele saiu do quarto.
De alguma forma, ele desmantelara tudo o que eu havia dito, todos os argumentos que eu usara, simplesmente concordando comigo.
– Obrigado – balbuciei.
Richman também bateu no meu ombro.
– Ele tem razão – disse. – E o senhor me deu algo em que pensar. Obrigado.
Então ele também saiu, e eu me sentei ao lado de Christie e chorei.
26
O Ilusionista deslizou o teclado para trás e pegou seu diário encadernado em couro.
Chega dos imbecis do ciberespaço.
Hora de registrar as impressões da noite passada enquanto as imagens ainda estavam frescas em sua mente. Jolene. A macia, tímida, apavorada Jolene.
Hora de reviver a longa e deliciosa noite.
Suas palavras fluíam suavemente, rápidas e ágeis sob seus dedos. Era como se sua mente estivesse em chamas, deixando um rastro de pensamentos fumegantes na página.
Trazendo de volta cada emoção, cada sensação da noite anterior. Oh, como ele adorava essa parte do processo, essa reconstituição da noite no papel.
No entanto...
Quando ele pensava em sua noite juntos, por mais agradável que tivesse sido, precisava admitir que também fora um tanto decepcionante. Como sempre. Ela fora a mais
empolgante até agora. Ah, sim, isso era verdade. Mas no fim, era como as outras. Depois que tudo tinha sido feito, quando os últimos estertores acabavam, a sensação
de decepção retornava.
Suas fantasias sobre induzir a morte eram sempre mais emocionantes do que as próprias mortes. A realidade simplesmente não estava à altura.
Mas da próxima vez estaria. Era isso que ele dizia a si mesmo. Era isso que o fazia ir em frente, a esperança – e, realmente, era uma esperança – de que ele finalmente
encontraria o que procurava da próxima vez.
Desta vez.
Com Alice.
Hoje à noite.
O Ilusionista levou quase uma hora para registrar seus pensamentos sobre a noite com Jolene. Até incluiu alguns desenhos. Toscos, sim. Mas bastante memoráveis, e
notavelmente precisos em sua representação da anatomia humana.
Depois, pegou cuidadosamente as duas malas pesadas, saiu e as depositou na parte de trás de sua van. Embora fosse um fim de semana, ele precisava ir trabalhar. Não
o tipo de trabalho de que mais gostava, mas o tipo que todos precisam fazer. O trabalho que paga as contas.
Mas antes de sair para ganhar a vida, precisava fazer umas entregas importantes.
Quando peguei a saída da rodovia, pensei em Tessa de novo. Numa típica manhã de sábado, ela só sairia da cama três ou quatro horas mais tarde. Mas se eu ia passar
a manhã vasculhando locais de crimes onde o celular não pegava, no alto das montanhas, precisava ligar e avisá-la do voo antes de partir.
Mas o celular de Ralph estava sem carga.
Bem, eu ligaria do prédio da administração federal, então.
Eu tinha certeza de que ela não estava feliz por ter sido obrigada a ir para aquele hotel noite passada. Odiava que mandassem nela. Provavelmente até convencera
mamãe e papai a deixá-la dormir num quarto separado. Bem, pelo menos ela não sabe que você mandou uma viatura. Isso realmente a faria perder o controle. Eu só podia
imaginar como ela reagiria quando descobrisse que iria partir para a Carolina do Norte antes do almoço.
Depois de passar pelo Mountain Java Roasters e saborear uma xícara de Tizapa delicadamente equilibrado de El Salvador, estacionei no pátio ao lado do prédio da administração
federal.
Fiquei sentado ali, me fortalecendo por alguns minutos antes de entrar. Vamos ver no que dá. Caçar um psicopata assassino – isso eu conseguia. Acordar uma adolescente
antes das 6h da manhã de sábado, isso sim era assustador.
Empurrei as portas de vidro à prova de balas, entrei no saguão e entreguei minha identidade ao guarda careca sentado ao lado do detector de metais. Ele bocejou para
mim como se isso fosse um cumprimento e olhou para o meu documento.
O caso todo estava rodopiando na minha mente. Eu tinha mais perguntas que respostas. Coloquei minha arma na esteira.
Eu pensava sobretudo em Jolene. Sabia que a patrulha estadual e a polícia de Charlotte estavam fazendo o possível para localizá-la. Mesmo assim, eu queria poder
encontrá-la, ajudá-la, salvá-la, fazer com que nada daquilo jamais tivesse acontecido. E então levá-la de volta para seus pais, seu namorado ou fosse quem fosse,
e rir com eles ao contar que tudo fora um grande mal-entendido, que ela tinha apenas ido passar a noite na casa de uma amiga. Viram? Estava tudo bem.
Mas isso era um sonho, não a realidade. Será que ela ao menos estava viva?... Pelo que estaria passando?... Aonde o raptor poderia tê-la levado?
Eu sei que é sempre melhor evitar pensar nesse tipo de coisas. Melhor se distanciar. Mas, às vezes, você não consegue deixar de pensar. Talvez isso seja o que nos
mantém humanos.
E esse tal de Ilusionista? Que tipo de jogo ele estava jogando? Seria mesmo alguém do meu passado?
Eu só conseguia pensar num sujeito, entre os que eu prendera, inteligente o suficiente para realizar algo tão elaborado, mas ele estava no corredor da morte em Illinois.
Ou ao menos eu achava que estava: Richard Basque, o homem que matara, estripara e comera os intestinos de 16 mulheres na zona rural de Illinois e Wisconsin na década
de 1990. Eu o prendera, no início da minha carreira, quando era detetive em Milwaukee. Lembrando bem, foi nesse caso que conheci Ralph, que era um dos três agentes
destacados para nos ajudar no caso.
Richard Basque. Era melhor verificar isso.
O segurança olhou, sonolento, minha arma passando pela máquina de raio-X, depois me entregou a identidade e me deixou passar.
O prédio ainda estava envolto no silêncio da madrugada. Andei pelo corredor até a sala de conferências, abri a porta e notei Brent Tucker já sentado à sua escrivaninha.
Hum. Ele chegou cedo. Estava ao telefone e me fez um sinal com um dedo, indicando que já ia falar comigo.
Liguei para os meus pais e descobri que, de fato, eles tinham ficado em dois quartos. Por sorte, não precisei acordar Tessa – ela estava no outro quarto. Eu me ofereci
para pagar pelos quartos, e eles, naturalmente, recusaram. Mas concordaram em ficar num esconderijo do FBI por alguns dias. Sim, eles fariam Tessa chegar ao aeroporto
a tempo. Sim, eles cuidariam de tudo. Sim, sim, não se preocupe.
Depois que desliguei e estava pegando meu computador, Brent me chamou.
– Ei, Pat.
– Bom dia – eu disse. – Como foi o encontro ontem?
– Fantástico. – Ele me encarou. – Você parece cansado.
Decidi não contar sobre o telefonema do Ilusionista, o carro me seguindo ou o estranho encontro com o governador. Haveria muito tempo para isso depois. No momento,
precisava chegar ao local onde Mindy fora encontrada.
– Foi uma noite e tanto. – Eu bocejei. – Você soube da garota em Charlotte?
– Sim, Ralph me contou. Alguma novidade?
– Não. Mas parece que é o mesmo cara. Ele também atirou em alguém ontem à noite.
– Ralph me contou. Como ele está?
– Parece que vai ficar bem. Um dia. – Enfiei o computador no estojo, depois apontei para o copo de café vazio na mesa de Tucker. – Você deve ser uma daquelas pessoas
de que ouço falar, que funcionam melhor de manhã.
– Eu queria verificar uma coisa. – Ele puxou uma cadeira ao seu lado.
– Senta aqui, quero mostrar algo para você.
– Não tenho muito tempo. Vou voltar pro local onde acharam Mindy.
– Vai ser rápido. – Tucker montara um tabuleiro de xadrez sobre a mesa. As peças estavam posicionadas como se alguém tivesse parado de repente no meio de um jogo.
– Depois do seu relatório de ontem, fiquei pensando na importância dos locais de desova dos cadáveres.
– E?
– Bem, a latitude e a longitude são representadas por um conjunto de números e graus como... – Ele olhou para seu bloco de notas e leu os números: – 35°35’42,65”N,
82°33’25,96”W – que é onde nós estamos neste momento.
Eu estava ansioso para sair.
– Continue.
– Bem, quando as peças de xadrez são movidas no tabuleiro, os jogadores representam a colocação de suas peças por meio de uma série de números ou letras que marcam
sua posição. Eu estava pensando...
– Ele está mostrando o tabuleiro pra gente! – interrompi.
Tucker fez que sim.
– Isso! Existem vários sistemas diferentes de notação no xadrez. Estou tentando ver se algum deles pode ser transformado em representações numéricas que possam corresponder
à latitude e longitude dos locais de desova.
Eu estava impressionado.
– Bom trabalho. Me avise se descobrir alguma coisa. Acho que você está na pista certa. – Afastei a cadeira para me levantar e esbarrei na mesa. Um dos bispos pretos
caiu. Estiquei a mão e o pus de pé no tabuleiro.
Tucker ficou me olhando.
– Agora você precisa comer essa peça.
– Quê?
– Se estivéssemos jogando xadrez – ele disse com convicção. – Se tocar uma peça do seu oponente, precisa comê-la na jogada seguinte.
Eu tinha dado dois passos, mas parei. Se tocar uma peça do seu oponente... Eu me virei.
– O que você disse?
Ele me olhou sem entender.
– Nos torneios de xadrez. Se você tocar uma peça do seu oponente, precisa comê-la na jogada seguinte ou perde o jogo.
Eu bati com a mão aberta na mesa, derrubando todas as peças do tabuleiro, espalhando-as pelo tampo.
– É isso, Tucker! Ele está tocando as nossas peças e comendo-as na jogada seguinte. Foi isso que ele fez com as lentes de contato. Esticou a mão, tocou a garota
e depois a comeu. Não está vendo? – Olhei para as fotografias das vítimas na parede. – Reinita não estava noiva, certo?
Tucker mexeu numas folhas sobre a mesa. Ele parecia chocado.
– Como você sabe? Isso está no relatório que vai ser apresentado hoje. Margaret ainda nem assinou.
– Não, Reinita não estava noiva – resmunguei –, mas Mindy estava.
– Mindy? – Ele começou a mexer em outra pasta.
Eu peguei um peão e o pus de pé no tabuleiro, uma peça de xadrez solitária no campo de batalha quadrado.
– Ele tocou nossa peça, Tucker. E então, na jogada seguinte, ele a comeu. – Eu peguei o peão e o segurei debaixo da luz.
Tucker soltou lentamente um longo suspiro.
– Há quanto tempo ele está fazendo isso?
– É o que precisamos descobrir.
27
Eu estava dividido.
Por um lado, queria ir para o local do crime, mas por outro, na verdade, não queria ir a lugar nenhum. Se estivéssemos certos sobre o Ilusionista, poderíamos ter
descoberto a grande pista que estávamos esperando.
Tucker começou a puxar os relatórios de cada um dos locais dos crimes.
– Sim. Mindy está noiva de um cara de sua cidade natal – Kevin Young!
– Então – eu disse –, o assassino roubou a aliança de Mindy e pôs no dedo de Reinita. Depois roubou as lentes de Jolene e pôs nos olhos de Mindy.
– Uau. O cara é bom. Ele está costurando todos os casos para nós.
– Sim. Tocando a peça que vai comer a seguir. Precisamos revisar tudo desde o início, todas as pistas materiais. Quero saber há quanto tempo isso vem acontecendo.
– Pode deixar.
Minha mente estava rodando, voando sobre todos os fatos que eu lera até então sobre os casos, se perguntando que outras pistas o Ilusionista poderia ter deixado
para nós. A ordem importa? Qual a importância de uma aliança ou lentes de contato? O que mais ele deixou?
Mas, por mais empolgado que eu estivesse, também sabia que havia pessoas competentes ali que poderiam analisar as pistas periciais melhor do que eu. Além disso,
tinha muito a fazer. Precisava ir embora.
Naquele momento, o xerife Wallace entrou na sala.
– O que vocês estão aprontando? – Sua boca estava cheia de bolo de salsicha; ele trazia na mão um saco cheio de comida do Hardees. Por alguma razão, embora não fossem
nem 8h, ele já estava suando. Manchas úmidas e amareladas se espalhavam das axilas de sua camisa branca.
– Xerife Wallace – eu disse –, preciso que alguns dos seus homens peguem todas as pistas materiais dos casos anteriores.
– Hã? Por quê?
– Concentrem-se em tudo o que foi encontrado nos cadáveres ou perto deles. Qualquer coisa mesmo – anéis, óculos, joias, tipos de batom, roupas. Tucker vai explicar
tudo. Estamos procurando conexões. Tucker, você cuida disso?
– Com certeza.
O xerife Wallace tirou um pãozinho de canela do saco e o enfiou na boca. Parecia perdido.
– Ele está mexendo no tabuleiro – expliquei –, tocando nossas peças, depois comendo-as na jogada seguinte. – Eu me dei conta de que estava dizendo coisas totalmente
sem sentido, pelo menos para alguém que não tinha ouvido nossa conversa.
Então o telefone dele tocou. Ele atendeu, pareceu um pouco confuso e passou para mim.
– É pra você.
– Sim? – eu disse, enquanto Tucker começava a colocá-lo a par de tudo, tentando resumir nossa teoria no menor número de palavras possível. – Bowers falando.
– Aqui é Lien-hua. Estava tentando localizar você. Tentei no seu celular, depois no de Ralph...
– É uma longa história.
– Achei que estivesse a caminho dos locais de desova.
– Estou. Estou indo pra lá.
– Onde você está agora?
– No prédio da administração federal. Estou de saída. – Peguei meu computador e pedi em voz baixa para Tucker me ligar se eles descobrissem mais alguma coisa. Fui
até a porta. – Onde você está? – perguntei a ela.
– Aqui na porta, esperando você.
– Quê? Achei que ainda estivesse em Charlotte.
– Ralph me mandou de volta hoje de manhã. Ele tentou avisar você, mas acho que seu celular morreu.
– Na verdade, foi o dele. Deixa pra lá.
Ela bocejou ao telefone.
– Parece que estou acordada desde que nasci.
– Ainda bem que voltei de helicóptero ontem. Quando Ralph vai voltar?
– Hoje à tarde, depois que acabar de interrogar o segurança. Ele achou que ia ajudar se acompanhasse você, porque estive em todos os locais até agora e... – ela
parou por um momento – sou eu que estou traçando o perfil psicológico do agressor.
Não diga nenhuma bobagem, Pat. Não seja idiota.
– Sim. Que bom. O perfil. Eu adoro perfis.
– Você mente mal pra burro.
– Vou tentar me lembrar disso.
Saí do prédio e fechei meu celular. Peraí, meu não. De Dante Wallace. Tudo bem, eu devolveria para ele depois. Perto dali, Lien-hua estava guardando o celular no
bolso do seu jeans. Ela usava botas de trekking, um pulôver felpudo da North Face e casaco de nylon combinando para enfrentar o ar gelado da manhã. Com as montanhas
ao fundo, parecia a foto da capa de uma revista de aventura.
Que eu assinaria.
– Ele está tocando nossas peças – disse, abrindo o carro.
– Quê?
– Entre aí. Eu explico no caminho.
28
Aaron Jeffrey Kincaid terminou de ler o itinerário confidencial de viagem do governador Taylor para aquela semana e começou a examinar a lista de convidados do almoço
do Cable News Forum. Ele gastara quase 80 mil dólares para obter essas informações de uma mulher chamada Anita Banner, mas elas valiam cada centavo. E quando ele
ficou sabendo que ela também estaria lá, ficou mais contente ainda. Isso eliminaria a necessidade de dar um jeito nela de alguma outra maneira menos sutil.
Ele olhou através do vidro para Rebekah e Caleb.
Os efeitos da bactéria estavam começando a aparecer. Suor, náusea, mudanças bruscas de humor. A erupção cutânea viria logo, depois o sangramento dos intestinos,
dos olhos, e então, finalmente, a falência dos pulmões. Não seria uma morte suave.
Ele olhou para as suas mãos e notou que a manga de sua camisa subira, revelando a cicatriz na parte de dentro do pulso esquerdo. Ele parou e olhou para ela, esfregando
o dedo de leve na pele descolorida.
A marca do verdadeiro amor.
Mesmo depois de tanto tempo, a cicatriz ainda era visível, um rasgo avermelhado de pouco mais de cinco centímetros. O corte fora mais fundo do que ele inicialmente
imaginara, e sem sutura, não cicatrizara de maneira uniforme. Com o passar dos anos, até abrira de novo algumas vezes. E, às vezes, em dias como aquele, ainda parecia
incomodá-lo. Ainda parecia coçar.
Talvez coçasse porque ele estava pensando no amor de novo. Talvez fosse por isso. Ou porque estava pensando na manhã de segunda-feira e em como o destino finalmente
se cumpriria, e sobre sua família, os bebês, os peões que ele mandou Theodore deixar ao lado dos cadáveres das jovens, e em como seria assistir ao noticiário nos
dias seguintes ao almoço, enquanto a doença vazava, viajava, se espalhava de uma família para outra, do marido para a esposa, de um amante para outro, de um amigo
para outro. Um beijo, um espirro, um aperto de mão de cada vez. Pelo mundo todo, equilibrando os pratos da balança.
A lista de convidados do Cable News Forum parecia um Hall da Fama dos líderes mundiais das comunicações e também incluía discursos de senadores, deputados e dignitários
sobre questões relativas à Primeira Emenda8, à iminente eleição presidencial, às diretrizes da FCC9 e vários outros assuntos relacionados com a mídia. Mas, na verdade,
Kincaid não estava interessado em nada disso. Estava mais interessado nos convidados: Juan Carlos Mendez, presidente do Pacific Media Group; Roberta Stratham, presidente
da Satellite Broadcast News, além de todos os principais correspondentes e apresentadores de canais noticiosos a cabo. E, claro, o governador Sebastian Taylor.
Era perfeito. Especialmente considerando o resto da agenda do governador naquela semana – compromissos no Pentágono, no Clube Nacional de Imprensa e uma visita ao
quartel-general da CIA em Langley, Virgínia. De fato, o cronograma de discursos do governador fora um dos motivos que levaram Kincaid a antecipar os planos para
segunda-feira, em vez da data original em novembro.
Ele alisou a cicatriz com o dedo uma última vez. Aquela tarde com Jessie fora a primeira vez que ele vira até onde alguém seria capaz de ir para provar a convicção
de suas crenças. De seu amor.
Mas não seria a última.
Alexis e Bethanie não entenderam isso. Ele tivera que gastar mais 120 mil dólares para dar um jeito nelas e manter os planos em movimento. Mas no final, valera a
pena.
Cada vez que ele tocava a cicatriz, era como se revivesse aqueles momentos com Jessie, aqueles sonhos da juventude, novamente. Acariciando-os.
Alguns momentos são para ser acariciados para sempre.
Ele sorriu, puxou a manga da camisa sobre o pulso, e foi até a Companhia de Transporte Alexander Bros., que enviaria os tonéis de sangue para Theodore.
29
Enquanto seguíamos cada vez mais para o alto nas montanhas, Lien-hua me contou o que eles descobriram sobre Jolene durante a noite – que não era muita coisa. Tentei
manter os fatos do caso de Mindy separados dos de Jolene. Não era fácil, mas essa é a natureza deste trabalho. Muitas vezes, você precisa fazer malabarismo com dois,
três, cinco ou mais casos ao mesmo tempo. Eu quase nunca tenho o luxo de poder pensar em apenas um cadáver ou em um único desaparecido.
Contei a Lien-hua como o Ilusionista estava conectando os crimes para nós, e tentei resumir a teoria da latitude e longitude de Tucker. Ela escutou em silêncio,
depois perguntou:
– Como o agente Tucker sabe de tudo isso? O negócio dos sistemas de notação do xadrez e a regra da peça tocada?
Dei de ombros.
– Não sei. Vai ver que ele joga xadrez.
Mais uma vez, ela ficou em silêncio, pensativa.
Ralph contara a ela sobre o telefonema que eu recebera do Ilusionista na noite anterior. Ela fez mais algumas perguntas sobre isso e anotou observações em seu caderno
enquanto eu respondia.
– Como tudo isso se encaixa no que você sabe sobre o agressor? – perguntei.
– Quase todos os psicopatas assassinos são predadores sexuais, mas esse cara não parece ser. Ele cuida dos corpos, lava-os – e acho que não faz isso só para evitar
deixar pistas materiais. Ele não estupra as vítimas – nem quando estão vivas, nem depois de mortas. Age mais pelo poder e pelo controle do que por sexo. Ligar para
você para provocar é coerente com tudo isso.
E agora, a pergunta principal.
– Então, pode me apresentar o perfil dele?
– Quer mesmo ouvir o perfil psicológico?
Cuidado, Pat.
– Sim. Quero.
Ela hesitou por um momento.
– Hum. Certo. Bem, passei a manhã inteira revisando o perfil, levando em conta o rapto de Jolene. Isso me ajudou a matar o tempo enquanto eu vinha de carro de Charlotte
com dois patrulheiros estaduais bem grandões e peludos. Acho que os dois se chamavam Bubba.
Eu sorri.
– Devo dizer que não gosto de apresentar verbalmente um perfil. Detalhes demais se perdem, são esquecidos, mal entendidos...
– Prometo que nada do que você disser será usado contra você.
– Posso confiar em você?
– Intimamente.
Hum. Não sei se usei a palavra certa. Ou talvez tenha usado.
– Me dê alguns minutos para organizar meus pensamentos. Seguimos em silêncio pela estrada tortuosa que subia a Montanha Arrowhead. Eu estava ansioso para ouvir o
que ela tinha a dizer, mas me obriguei a não incomodá-la. Depois de uns vinte minutos, Lien-hua ergueu os olhos das anotações.
– Muito bem – ela disse. – Vamos lá. Analisando o estilo dos crimes e os dados demográficos da criminalidade nesta região do país, eu diria que ele é branco. Homem,
com certeza. Baseada na sofisticação dos crimes, na organização que ele demonstra e na maneira intrincada de conectar os crimes para nós, eu diria que nosso agressor
não é tão jovem, deve ter 30 e tantos, 40 e poucos anos. É experiente. Estes não são os primeiros crimes que comete, mas ele nunca foi capturado, não cumpriu nenhuma
pena. Trabalha sozinho, não tem um parceiro.
– Como sabe?
– Nosso homem se orgulha do seu trabalho, é seguro, arrogante. Como você notou pelo telefonema dele, é narcisista. Não iria querer dividir os holofotes com ninguém.
Trabalha sozinho. É primogênito ou possivelmente filho único.
– E quanto ao serviço militar?
– Não, ele acha que não está à sua altura. Subalterno demais. Hum. Ela era muito boa.
– Ele não está tentando de forma alguma esconder a identidade das vítimas. Quer que saibamos quem ele matou e até quando elas morreram – embora ainda não saibamos
por quê. Seu comportamento nos locais de desova é muito ritualizado. O posicionamento, a fita amarela, as pistas da vítima seguinte e a peça de xadrez, tudo isso
faz parte de sua assinatura. É tudo muito elaborado, muito específico. Mesmo assim, cada crime é único. E tudo o que ele fez, incluindo ligar para você, revela sua
necessidade de controlar os outros.
– Peraí. Volta um pouco.
– O quê?
– A assinatura. Li umas pesquisas conflitantes a respeito disso. Parece que não é algo tão estável quanto se pensava.
Ela balançou a cabeça para me mostrar que não estava convencida.
– Essas pesquisas ainda são inconclusivas. Basicamente, tudo que um agressor faz no local de um crime que não seja necessário para cometer o crime revela algo sobre
ele, sobre seu passado ou suas prioridades – suas metas. Isso é a sua assinatura. Ele exagera, esfaqueando a vítima mais do que o necessário? Isso revela raiva.
Ele mutila os corpos de um jeito específico, levando alguma lembrança peculiar das vítimas, ou deixando pistas para a polícia? Tudo isso é a assinatura. O modus
operandi se refere mais à maneira como ele comete o crime.
– Mas nem o modus operandi, nem a assinatura são completamente estáticos ou consistentes – eu disse.
– Certo. – Ela tossiu de leve. – Então me deixe fazer um pequeno teste, dr. Bowers. Por que o modus operandi e a assinatura mudam?
Fácil. Sem problemas.
– Bem, em todos os crimes em série existe escalação e adaptação – eu disse. – Além disso, às vezes, os agressores mudam o modo de cometer o crime e o que eles fazem
no local por causa da reação da vítima. Por exemplo, se uma mulher oferece resistência a um estuprador, ele pode levar uma faca para o próximo crime, para ameaçar
sua vítima, ou algum meio de contenção para subjugá-la. Mudanças em sua situação de vida, danos pessoais, traumas, coisas assim afetam assassinos como afetam qualquer
um de nós. Ou ele pode começar a adotar medidas para destruir ou reduzir as pistas materiais depois que se vê sob suspeita, é interrogado ou submetido a um teste
de DNA pela polícia. – Eu parei, pensando. – Certo, como me saí?
– Eu dou para você um B+.
– Como assim? Por que não um A?
Gostei do modo como começamos a tagarelar. Parecia natural, confortável conversar com ela. Virei o carro numa curva da estrada à frente. A luz do sol matinal bateu
no para-brisa.
– Você se esqueceu da experiência – ela disse. – Como em qualquer profissão, ele melhora com a experiência.
Rapaz, e o pior é que eu sabia essa.
– Tudo bem – eu disse. – Você venceu.
Ela consultou mais uma vez suas anotações, sorrindo discretamente.
– Nada de ataques de surpresa, o que me diz que ele consegue conquistar a confiança das vítimas. Deve ter uma boa conversa, muito manipulador. Ele registra seus
crimes, escreve sobre eles. Talvez numa agenda ou um diário, ou até mesmo um blog. Sua necessidade de controlar mulheres me leva a crer que ele foi casado e talvez
ainda seja, mas se é, a esposa não sabe da vida dupla que ele leva. É viciado em poder, dominação e controle, mas a ironia é que, embora se orgulhe de estar no controle,
ele não consegue se controlar. Não consegue parar. Não consegue resistir a se exibir.
Até aquele momento, apesar da minha tendência natural para desconfiar de perfis psicológicos, não conseguia discordar de nada do que ela dissera. Tudo parecia se
encaixar.
– Ele entende de medicina legal, talvez tenha até trabalhado na polícia. Uma observação: à parte o primeiro assassinato, nenhum local do rapto coincidiu com o local
do assassinato ou da desova do corpo. Ele pode estar fazendo isso para nos confundir, ou para se exibir, não tenho certeza ainda. Suas táticas elaboradas de gato-e-rato,
sua capacidade de furtar objetos das futuras vítimas e todo o incidente no shopping demonstram um alto grau de premeditação e versatilidade – invasão de domicílio,
furto, emboscada, rapto, assassinato. Esse homem tem QI alto – acima da média, com certeza, talvez seja até um gênio. Ele conhece bem a área, provavelmente mora
por perto, ou fez o colegial ou faculdade por aqui.
Balancei a cabeça.
– Isso bate com o perfil geográfico. – O acesso à trilha estava logo à frente; diminuí a velocidade e entrei na estrada de terra que levava ao início da trilha.
– Quanto mais longe um corpo está de uma estrada principal, mais provável que o agressor seja um local e conheça a área – eu disse. – Esse é um padrão bem estável
na análise geográfica.
– Dr. Bowers, por que sempre ridiculariza o perfil psicológico, mas depois se refere ao seu trabalho como perfil geográfico? O senhor faz perfis também.
Ai. Essa doeu.
– Não precisa levar para o lado pessoal – eu disse. – Afinal, achei que fôssemos amigos.
Ela limpou a garganta.
– Baseada no modo como ele reagiu a você no shopping, diria que ele tem um emprego que exige juízo e raciocínio rápido. E ele consegue separar essa área de sua vida.
Seus colegas nem suspeitam dos assassinatos. Ele está fazendo isso há muito tempo, Pat, e não vai parar enquanto não morrer ou nós o capturarmos.
Agora ela estava falando a minha língua. Encostei na beira da estrada e parei perto de uma placa que anunciava que tínhamos chegado à Trilha Upper Ridgeline.
Saímos do carro e peguei a minha mochila com o equipamento de alpinismo.
– Acha que vai precisar de tudo isso? – perguntou ela.
– Nunca se sabe – eu disse, jogando a mochila sobre os ombros. – Tem muitos penhascos na área; talvez precisemos ver o local de um ângulo diferente. A propósito,
estou impressionado com seu perfil. De verdade. Estou mesmo. Normalmente, os psicólogos só repetem o que já sabemos sobre um crime. Acho que você descobriu algumas
verdades sobre esse sujeito.
– Ora, obrigada, dr. Bowers – ela disse educadamente. – Então qual é a minha nota?
– B.
– Peraí, eu dei um B+ para você!
Sorri.
– Eu sei. Acho que você dá notas relativas.
O sol brilhava através do céu líquido, dissolvendo a neblina baixa e iluminando a colcha de retalhos de cores do outono que cobria a cordilheira. Algumas nuvens
conseguiram se infiltrar no céu da manhã e estavam vagando a leste de nós. Chovera noite passada, e o chão tinha um cheiro úmido e pungente. Um pouco almiscarado.
Ao meu redor, o brilho do dia, lavado pela chuva, parecia sólido e palpável.
Lien-hua enfiou alguns mapas do Serviço Florestal no bolso, fechou a porta do carro e se dirigiu para a mata.
– Vem – ela disse. – A trilha começa aqui. – Então ela acrescentou: – E eu merecia no mínimo um B+.
30
O Ilusionista largou a mala, tocou a campainha e esperou. Ele entregara o primeiro pacote mais cedo, a caminho do trabalho, mas decidira esperar para levar aquele,
só por diversão. Só para tornar as coisas mais interessantes.
Ele o mantivera no porta-malas do seu carro durante as últimas horas, e só agora, na pausa para o café, tinha saído para entregá-lo. Sim, era um pouco mais arriscado
assim, mas ele não estava preocupado. Nem um pouco. Tudo ainda estava dentro do prazo. Afinal, ele sabia planejar o crime perfeito. Já fizera isso antes. Tantas
vezes antes e nunca fora apanhado. Nunca!
A porta se abriu com um rangido.
– Posso ajudar?
– Sim – disse o Ilusionista. – Você pode morrer. – Então ele puxou sua Glock e meteu uma bala na testa do homem, antes mesmo que ele pudesse parar de franzir o cenho.
O Ilusionista pegou a mala, entrou na casa e fechou a porta. O segredo era não bancar o esperto. Não, criminosos espertos são apanhados o tempo todo. Ele desatarraxou
o silenciador e guardou a arma no coldre. O segredo estava na desorientação. Faça-os olhar para uma mão enquanto esconde a moeda na outra.
Desorientação e planejamento, na verdade. Porque quando eles percebem que a moeda não está na sua mão direita, imediatamente olham para a esquerda. Por isso você
precisa antecipar a reação deles e conseguir mostrar que a moeda também não está na outra mão. Aha! Esse é o segredo. Na verdade, a moeda estava na mão direita o
tempo todo.
Desorientação. Controle. Planejamento meticuloso.
Deixando a mala na entrada, ele arrastou o cadáver do homem pelo corredor, até o armário do quarto.
Para onde você vai direcionar a atenção deles? Essa é a questão. Para onde quer que eles olhem? Como num jogo de xadrez. A vida toda é um jogo complexo de estratégia;
ataques e contrataques, comer e perder peças, preparar-se para o confronto final. Conseguir um novo emprego. Arranjar namorada. Negociar um contrato. A vida se resume
a estudar seu oponente e pensar nas suas jogadas, e então encontrar uma maneira de posicionar as peças em seu favor. E era isso que o Ilusionista fazia como ninguém!
Depois de posicionar o corpo do homem, foi buscar a mala e a levou para dentro do quarto. Só um tolo acharia possível prever todo o jogo antes que o oponente fizesse
sua jogada. Não; em vez disso, os melhores jogadores são aqueles que reagem às ações do outro jogador. O segredo para ganhar o jogo não está em quão bem você consegue
raciocinar, mas em quão bem consegue reagir. Sim. Porque ninguém pode prever todas as possíveis jogadas futuras. Claro que não. Não é possível prever o jogo todo.
Você precisa ser capaz de improvisar. De se adaptar. É aí que a maioria dos assassinos fracassa.
Foi assim que o Unabomber foi capturado. Não conseguiu ficar nas sombras, precisava mostrar a todos o quanto era espertão. E aí escreveu tudo, para o mundo inteiro
ver. Para o irmão dele ver e denunciá-lo. E aí o jogo acabou. Não, você não deve ser esperto. Precisa ser controlado. Antecipação. Reação calculada. Autocontrole.
É assim que você consegue se manter um passo à frente da plateia.
Ele abriu o zíper da mala e retirou o conteúdo. Colocou-o sobre a esteira no canto do quarto e depois se afastou para apreciar seu trabalho. Perfeito.
Depois de Alice, estaria livre para seguir em frente. Não estaria mais sob nenhuma suspeita. Nunca mais. O jogo simplesmente se transferiria para um novo lugar,
um novo tabuleiro, com novos jogadores. Talvez na Califórnia, da próxima vez, pois ele sempre quis visitar a Costa Oeste ou o Oregon. Seria bom seguir os passos
de Bundy e Ridgway 10. Aquele poderia ser o lugar certo para que seu nome fosse mencionado junto ao deles.
Não, espere. Ter o nome deles mencionado junto com o seu. O Ilusionista sorriu. Era quase assustador ser tão bom. Quase apavorante estar tão adiantado no jogo.
Ele pegou a mala vazia e se dirigiu para a porta da rua. A manhã estava fria e silenciosa. Ele abriu a porta e esperou dentro da casa por alguns momentos, observando
os arredores.
A casa proporcionava um esconderijo maravilhoso, e ele tinha certeza de não ter atraído nenhuma atenção, mas era sempre melhor se garantir. Ser cauteloso. Ele se
esgueirou para fora, andou as três quadras até o lugar onde estacionara o carro, deu a partida e voltou para o seu trabalho.
Desorientação.
Prestidigitação.
Vejam e fiquem maravilhados. O espetáculo estava para começar.
31
A caminhada de 2,5 quilômetros em subida, do início da trilha ao riacho onde encontramos Mindy, levaria normalmente meia hora, mas estávamos andando lentamente,
cuidadosamente. Eu estava tentando imaginar o Ilusionista subindo por aquela trilha com Mindy. Você a carregou mesmo até lá em cima? Ou ela foi andando? Nesse caso,
por que ela não tentou resistir? Como a fez confiar em você? Lien-hua falou, fazendo eco aos meus pensamentos.
– Ela andou com ele, não andou?
– Acho que sim. É longe demais para carregar um corpo na subida.
– Ele a forçou? Ele a conteve de alguma forma? – perguntou ela.
– Talvez. Havia marcas nos pulsos dela, mas não eram muito fundas. Não a arrastou. Pode ter amarrado os pulsos dela depois de morta.
– Então como a subjugou enquanto a estrangulava várias vezes?
– Não sei. – Eu tinha começado a ofegar um pouco pela caminhada, mas tentei disfarçar para que Lien-hua não notasse. Parei e ajeitei minha mochila. – Pode tê-la
ameaçado com violência. Ela tinha uma irmã menor, não tinha?
– Sim. De 8 anos.
– Talvez seja isso. Ele pode ter ameaçado machucar a menina. Não sei. Talvez nunca saibamos. – Comecei a andar de novo. – Mas podemos verificar, ver como era o relacionamento
dela com a irmã.
O sol brilhava entre os galhos das árvores, dançando sobre o meu rosto. Andamos por alguns minutos em silêncio, e então Lien-hua disse:
– Achei suas opiniões sobre os motivos muito interessantes, dr. Bowers.
Ah, a apresentação de ontem.
– Quando você diz “interessantes”, quer dizer “fascinantes e instigantes” ou só está usando a palavra “interessante” para tentar discordar educadamente de mim, como
a maioria das pessoas?
– Hum. Já que você expôs desse jeito, escolho a segunda opção.
– O uso “discordo de você, mas não quero puxar briga”?
– Sim. Sinceramente, fico surpresa por você achar que os motivos tenham um papel tão pequeno na vida.
Entramos numa área abrigada por árvores muito velhas; algumas deviam ter mais de 100 anos. Eu podia ver, pela abundância de vegetação mais nova, que o resto da encosta
tinha sido desmatado havia anos. Essas áreas escondidas nas montanhas deviam ser de difícil acesso para os lenhadores.
– Bem – falei –, eu acho que só existem três motivos principais, e nenhum deles ajuda muito, quando se trata de resolver um crime.
– Só três, é? – Percebi um tom divertido na voz dela.
– Sim.
– E quais são eles?
– Desejo, raiva e culpa.
– Só esses?
– Só.
– Só esses três?
– Sim. Pense bem. Considere um de cada vez. Desejo: as pessoas querem fama, sexo, dinheiro ou poder. Até a vingança é uma forma de desejo. Pense em quantos crimes
resultam da luxúria, cobiça, inveja, ciúme ou ambição. Todos apenas diferentes nomes para o desejo.
– Hum – ela concordou. – Certo. E com a raiva concordo.
– Sim. E, claro, há a culpa, que não precisa de maiores explicações. Todos temos que achar uma maneira de lidar com nossos remorsos e vergonhas, senão implodimos.
Ela afastou um galho da sua frente.
– Pode ficar surpreso ao ouvir isto, mas concordo com esses três motivos. Só que acho que você se esqueceu dos dois mais importantes.
– Oh. Eu acho isso muito... – Esperei o galho voltar para o lugar antes de segui-la. – Interessante. E quais são eles?
Ela parou e ficou olhando a trilha por alguns segundos. Por fim, olhou para mim, e pude ver que seus olhos estavam cheios de fundos canais de dor.
– O primeiro é o medo, dr. Bowers. Às vezes, as pessoas fazem coisas terríveis porque foram acuadas. O medo pode nos transformar em pessoas diferentes.
Eu não disse nada, mas as perguntas surgiram na minha mente: Do que você tem medo, Lien-hua? O que aconteceu? Você também fez algo terrível?
– Tudo bem – eu disse finalmente. – Medo. Aceito esse. Qual é o outro? Ela se virou e continuou caminhando.
– Vamos ver se consegue descobrir o motivo mais importante sozinho.
Antes mesmo que eu pudesse tentar adivinhar, chegamos a um promontório bem ao norte do local do crime. A trilha seguia a borda de uma escarpa íngreme e as montanhas
terminavam abruptamente aos nossos pés, abrindo um abismo de dezenas de metros até o rio. Eu não havia notado esse promontório na nossa caminhada até a trilha na
quinta-feira por causa da espessa neblina que precedera a tempestade.
– Sobrevivência? – perguntei.
Ela balançou a cabeça, sua atenção presa pelo panorama.
– Isso se encaixa em desejo – o desejo de viver. Agora, shi... não estrague isto. É lindo.
Segui o olhar dela. O vale se abria diante de nós e se erguia majestosamente, tornando-se montanhas nas cores do outono, infinitas e vivas. Os vales recortavam a
cordilheira, cada um com sua colagem peculiar de sombras, lançadas pela comunidade de nuvens que se juntavam no céu. O brilho do sol acendia cada nuvem, fazendo
com que brilhasse ainda mais sob o céu da cor do aço.
Lembrei que, anos antes, outro guia florestal me contou que “Apalaches” vem de uma palavra indígena que significa “montanhas infinitas”; e olhando para aquelas montanhas,
eu não conseguia deixar de pensar que elas realmente prosseguiam infinitamente no espaço e no tempo – um origami ancestral do planeta, da época em que os continentes
estavam unidos.
A brisa era constante ali, subindo do vale, nos envolvendo; a respiração matinal suave das colinas. Eu me perguntava como seria estar ali quando não havia vento.
Que tipo de solidão deve ser, ter o dia decidindo sua forma ao redor, céu e sombras e picos e vales todos vestidos de um silêncio profundo e primal.
– Talvez por isso ele tenha escolhido este lugar – murmurei depois de alguns momentos.
– Quê? – Ela se virou.
– Pela beleza.
– Você acha que ele escolheu este lugar por causa da beleza?
– Por causa do paradoxo. – Olhei para ela. O vento, soprando por cima do pico, sussurrava em seu cabelo, libertando-o da gravidade só por um momento, espalhando-o
ao redor da sua cabeça em câmera lenta, leve e solto. – Os seres humanos parecem incapazes de apreciar a beleza sem destruí-la. – Eu estava hipnotizado pela imagem
dela. – Esta trilha, por exemplo, cortando a floresta. É a única maneira de experimentar a solidão deste pico. Mas a trilha também mutila aquilo que nos ajuda a
apreciar – a paisagem. Acho que a beleza nos assusta a ponto de nos fazer destruir as coisas que mais admiramos. – Nossos olhos se encontraram por uma fração de
segundo a mais, aquele fragmento de tempo que diz mais do que as palavras conseguem. – Esse é o paradoxo.
Ela desviou o olhar.
– O legista estabeleceu que este foi mais ou menos o horário da morte. – Sua voz se tornara eficiente e profissional. Ela se afastou da beira do abismo, e seu cabelo
voltou ao normal. A vida voltou ao normal.
– Sim – eu disse baixinho. – Vamos lá. – E então segui Lien-hua até o lugar onde Mindy morrera, enquanto pensamentos de morte e beleza, da lembrança de Christie
e da presença de Lien-hua, competiam na minha mente.
32
Entramos na clareira onde Mindy Travelca fora encontrada morta sob uma árvore havia dois dias, e eu deixei minha mochila no chão. Lien-hua andou até o meio da área.
– A equipe da perícia já vasculhou este lugar. Além disso, as tempestades já teriam destruído qualquer pista material. Então o que, exatamente, estamos procurando?
Girei sobre mim mesmo, absorvendo o panorama, as montanhas, a perspectiva, a trilha.
– Não pistas periciais, mas compreensão geográfica. Por que aqui, Lien-hua? Que significado este lugar tem para ele? Um local do crime é tudo o que se relaciona
com o crime. O ar. O vento. O chão. Mas um crime acontece em quatro dimensões, não apenas em três.
Opa. Eu tinha começado a dar uma palestra sem nem perceber.
– A quarta dimensão – ela disse pensativamente. – O tempo, você quer dizer.
– Sim. O tempo. – Eu me encostei na árvore, para ficar na mesma posição em que Mindy estava quando a encontráramos. Olhei para as montanhas. Por que ele deixou você
aqui, Mindy? Por que ele matou você naquele momento? – Um crime acontece tanto no espaço quanto no tempo. E a relação entre esses dois fatores é o que mais me interessa.
Lentes de contato. Ele as deixara nos olhos dela.
Hora da morte: entre 8h e 11h.
Ela desaparecera na tarde de quarta-feira.
Morrera na manhã de quinta-feira.
Ele não a carregara montanha acima.
Ela ligara do celular para a mãe às 15h na quarta, dizendo que estaria em casa na sexta.
O que ele deixou para que você olhasse? O que ele queria que você visse?
Os campos de visão eram importantes para ele.
– Ali. – Apontei para um pico diretamente à nossa frente. – Aquela montanha. Como se chama?
Lien-hua pegou o mapa e levou um momento para se orientar, baseando-se nos arredores.
– Pico Warrior. E... espere... tem uma lenda local sobre ele... um momento. – Ela virou o mapa. – A filha de um chefe Cherokee que morava ali foi raptada por alguns
membros da tribo Catawba e trazida para cá, para a montanha onde estamos agora. – Lien-hua correu os olhos pelo texto impresso no mapa e o resumiu. – O amante dela
veio escondido à noite para resgatá-la, mas caiu numa armadilha. Foi morto, massacrado, e a garota – para não ser obrigada a casar com alguém da tribo Catawba –
se jogou desta montanha, ali onde estão os penhascos, onde estávamos antes. De acordo com a lenda, suas lágrimas, caindo no chão, viraram os vales ao redor destes
picos. E escute só – ela parou para encontrar o trecho, depois continuou lendo –, algumas pessoas dizem que ainda se pode ouvi-la chorando nesta montanha, quando
o vento ajuda.
Um calafrio percorreu meu corpo, enquanto eu ainda estava sentado no lugar onde o corpo de Mindy descansara, olhando para o outro lado do vale, para o Pico Warrior.
– Ele conhecia essa história.
Lien-hua estava quieta, pensativa.
– Ele pôs lentes de contato nos olhos dela, Pat. Queria que pensássemos nas lágrimas dela.
Ele não estava só um passo à nossa frente. Estava uns dois ou três. Lien-hua deve ter pensado a mesma coisa.
– Esse cara é bom.
– Ele a posicionou – eu disse. – Como fez com Jamie perto da placa de “Permanência Proibida” e com Reinita na trilha para as Cavernas Tombstone.
– Nos provocando. Mandando um recado. Tudo isso atiça a fantasia dele. – Lien-hua olhou ao redor. – Bem, este foi mais ou menos o momento em que Mindy morreu. Se
eles chegaram aqui de manhã, ele teria tido tempo suficiente para torturá-la?
– Não, acho que não. Não há horas de dia claro suficientes antes do horário da morte. Não com a extensão das hemorragias petequiais que ela apresentava.
– Então ele passou a noite aqui com ela – Lien-hua disse.
Olhei ao meu redor.
– Isso mesmo. Mas não aqui. Não nesta clareira; é exposta demais.
– Onde, então?
Eu apontei para uma trilha próxima que levava até uma série de penhascos e promontórios visíveis.
– Ali.
33
Pegando minha mochila, segui Lien-hua pela trilha que levava até o início de uma série de penhascos que se elevavam de vinte a trinta metros acima de nós e se estendiam
pela cordilheira. Outra trilha próxima seguia pela base cheia de rochedos dos picos.
– O que está procurando? – perguntou Lien-hua.
– Uma caverna.
– Quê? Uma caverna? Por que uma caverna?
– O anel do dedo do pé de Mindy tinha terra nas ranhuras. Ontem à tarde, comparei as amostras de terra do anel com as amostras que Ralph coletou no riacho. A terra
do anel tem um conteúdo maior de argila que a das amostras. Isso, e o fato do assassino precisar de um lugar por aqui para estar sozinho com ela, me levou a pensar
que ele a matou numa caverna.
– Terra? Diferença no conteúdo de argila? – ela disse, incrédula.
– O que é que tem?
– Pensei que você não se interessasse por pistas materiais, dr. Bowers, só pela compreensão da geografia?
Mas que detalhista.
– Cavernas fazem parte da geografia – afirmei. – Venha ver isto.
Apontei para um caminhozinho que surgia à esquerda. Uma marca funda de salto era visível no barro.
– O rapaz do shopping disse que o sujeito era alto. Se ele a estava carregando ao cruzar o riacho, pode ter deixado essa marca.
– Por que os peritos não encontraram isso?
– Eles não estavam procurando uma caverna.
Não demoramos para encontrar a entrada da caverna, a quarenta ou cinquenta metros dali. A temperatura nas cavernas é relativamente constante; em geral, naquela latitude,
elas são mais frias do que a área ao redor no verão e mais quentes no inverno – uns 14,5 graus. E naquele dia, o ar saindo da entrada da caverna estava se condensando
na manhã fria. Quase como se a Terra estivesse suspirando.
A entrada da caverna tinha uns dois metros de largura. Tirei a mochila dos ombros, peguei a lanterna e olhei para baixo. Ela apontou para a minha lanterna.
– Você leva essa coisa com você o tempo todo?
– A lanterna é a melhor amiga do detetive. Especialmente esta. Corpo de alumínio de alta resistência feito em retífica de precisão, à prova d’água, cabo ergonômico...
Ela balançou a cabeça.
– Meninos e seus brinquedos.
A caverna descia verticalmente para dentro da montanha. Eu não conseguia ver até onde.
– Bem, o que você acha? – perguntei.
– É isolada. Daria a ele a privacidade necessária...
– Não, quero dizer, você quer descer ou eu vou? – Abri a mochila e tirei minha corda de alpinismo, um arreio, alguns mosquetões e fitas de nylon.
– Você sabe o que está fazendo?
– Espero que sim. – Apontei para cima. Uma árvore robusta se estendia sobre a entrada da caverna, com o tronco bifurcado. – Está vendo aqueles galhos? Viu como a
casca está gasta ali?
– Sim.
Passei um laço de fita em cada galho da bifurcação e os uni com dois mosquetões.
– Foi ali que ele amarrou a corda.
– Então você vai mesmo descer?
– De que outro jeito posso ver o que tem lá embaixo?
Passei o meio da corda pelos mosquetões e joguei as pontas na caverna, enfiei as pernas no arreio e passei a corda pelo meu oito, enquanto Lien--hua ficou me olhando.
– Pra que serve isso?
– Isto se chama oito – informei. – A corda passa por ele para criar fricção, e é essa fricção que freia a minha descida. Uso minha mão direita, aqui, como a mão
do freio, para controlar minha velocidade.
Ela olhou para a corda.
– Mas como você vai voltar pra cima?
Peguei um par de ascensores.
– É pra isso que estas coisas servem. Elas deslizam pela corda e travam. Naturalmente, eu também poderia usar prussiks. – Apontei para alguns laços de corda de menor
diâmetro, de dois metros de comprimento. – Prendendo esses laços na corda de escalada com um nó especial, eu crio argolas nas quais posso enfiar os pés. Aí é só
deslizar corda acima a argola na qual não estou pisando. Você troca de uma para outra, pisando e deslizando. Meio que como andar na vertical.
– Bem... – Ela olhou para a boca escura da caverna. – Pode ir você, desta vez. Vou ficar aqui supervisionando.
Verifiquei duas vezes as fivelas e o sistema de engate do meu arreio, segurei a lanterna com os dentes e me joguei para trás dentro da caverna.
O chão da caverna estava uns dez metros abaixo de mim. Nem precisei descer até o fundo antes de começar a imaginar o que o assassino fizera. Tirei a lanterna da
boca.
– Mindy tinha marcas descoloridas nos quadris, não tinha? – gritei para Lien-hua. – E em volta da parte superior das coxas?
– Sim. – A voz dela flutuou até onde eu estava. – O legista não conseguiu entender como elas foram feitas.
A lividez, o acúmulo de sangue sob a pele, começa quando o coração para de bombear sangue pelo corpo e a gravidade o puxa para baixo. Pode começar a partir de trinta
minutos depois da morte. Se ela estivesse presa a um arreio de alpinismo quando morreu, o peso do seu corpo sobre as fitas iria estrangular os vasos sanguíneos,
impedindo que o sangue estagnado se depositasse, deixando a marca das fitas nas coxas dela.
Você a deixou pendurada na corda, não foi? Você a baixou, deixou-a pendurada num arreio, talvez tenha amarrado as mãos dela sem apertar muito. Assim poderia prendê-las
na corda, para que ela não lutasse muito. Tirou as botas dela para que não ficassem resíduos de terra, até lavou os pés dela quando terminou – mas você não é tão
bom quanto pensa. Não esfregou direito o anel do dedo do pé dela.
O chão da caverna fora varrido para eliminar pegadas, mas a varredura também me contava uma história – alguém estava tentando esconder alguma coisa. Havia algumas
manchas escuras na argila perto de uma pedra próxima. Precisaríamos examiná-las, mas desconfiei que aquelas manchas fossem do sangue de Mindy.
Ele poderia ter passado fitas em volta das pernas dela, talvez das panturrilhas. Como ela estava de calça jeans, isso não deixaria marcas de amarras na pele. Sim,
apertadas só o suficiente para controlá-la. Ela não conseguiria dar pontapés nem resistir. Ficaria indefesa. Seria dele. A noite toda.
– Tudo bem aí embaixo? – Lien-hua gritou.
– Tudo bem. Espere aí. – Pensei ter visto algo no canto da caverna. Iluminei a área com a lanterna.
Um pedaço de fita amarela.
– Ele a trouxe pra cá, Lien-hua. Tem água aqui embaixo também. Um laguinho. Aposto que foi ali que ele lavou o cadáver.
Usando os ascensores, escalei a corda de volta para a entrada da caverna. Alguns minutos depois, eu já tinha tirado o arreio e estava guardando meu equipamento.
– Precisamos voltar pro carro e chamar uma equipe pra vasculhar este local – peraí.
– O que foi?
– Olhe seus mapas. Veja se esta caverna aparece em algum deles.
Ela pegou os mapas, olhou um por um.
– Não. Nada.
– Então só os locais a conhecem. Isso restringe ainda mais nossa busca. Ele conhecia esta caverna o suficiente para saber que não seria perturbado aqui, que teria
a noite toda para fazer o que quisesse com ela – eu disse.
– E ele sabe fazer rappel – ela disse.
– Meu Deus.
– Que foi?
Fechei minha mochila e afivelei bem.
– A academia de montanhismo de Wall Street. O carro dela foi encontrado a uma quadra e meia de lá. Eles organizam excursões para estas montanhas. Para as montanhas
e cavernas.
– Como você sabe?
– Visitei a academia ontem à tarde. Me exercitei um pouco lá. – Joguei a mochila sobre os ombros. – Vem. Vamos embora. – Eu me virei, mas Lien-hua já estava correndo
pela trilha, para onde deixamos o carro.
34
Não era fácil correr carregando a mochila, mas por sorte a distância não era grande, e era toda em descida. Em menos de 15 minutos havíamos chegado ao início da
trilha. Joguei a mochila no banco de trás. Ainda estava ofegante pela corrida.
– Ontem à tarde... tirei uns minutos... pra andar pelo centro... e verificar os lugares do perfil geográfico. – Peguei os cardápios e cartões de visita que eu tinha
jogado no carro no dia anterior, junto com o folheto da academia de montanhismo. – Fui pegando tudo isto.
– Você acha que o nosso homem pode trabalhar lá? – perguntou ela.
Entreguei o folheto, apontei para o telefone.
– Veja se consegue falar com eles. Pergunte se... alguém faltou ao trabalho... nos últimos dias.
Abri a porta do carro e peguei meu computador, enquanto ela tentava ligar do celular.
– Sem sinal.
A essa altura, eu já tinha recuperado o fôlego.
– Bem, vamos ver se algum dos guias deles estava no local onde encontramos Mindy. Segure o folheto aqui, perto do computador.
Usando a webcam do laptop, capturei imagens das fotos dos 12 funcionários da academia e carreguei no programa de reconhecimento de rostos que eu tinha instalado
quando trabalhara no Centro Nacional de Tecnologia Policial e Penitenciária de Denver.
Peguei as fotos e vídeos feitos no local onde Mindy fora encontrada, e o computador começou a analisá-los, selecionando um rosto após o outro, calculando, avaliando.
Um momento depois, o computador emitiu um bipe e destacou o rosto de um homem com 91% de probabilidade de identificação positiva.
– Aí está ele – murmurou Lien-hua, apontando para a tela. – O cara do boné de beisebol.
– Não acredito. Ele estava usando o mesmo boné no shopping.
– Joseph Grolin – afirmou ela.
– Ele se acha muito valentão. – Na foto do folheto da academia, ele exibia um sorriso arrogante e barba por fazer mais escura do que o cabelo louro na altura do
ombro. Vinte e tantos, 30 e poucos anos. Usava óculos escuros e, de acordo com a legenda da foto, ele trabalhava como instrutor de escalada nas horas vagas, e sua
ocupação principal era a de jornalista da revista MountainQuest. Era editor de viagens da revista havia quatro anos. Maiores interesses: mergulho, folclore indígena,
esqui na montanha.
Folclore indígena.
Lien-hua apontou para o rodapé do folheto. Dizia: “Todos os nossos guias são altamente treinados e têm certificação em primeiros socorros na floresta.”
– Os cortes – eu disse. – Alguém com essa certificação saberia fazer cortes da profundidade certa. E também suturá-los.
Ela pegou o celular de novo.
– Vai, funciona. Funciona!
– Tente este. – Joguei o celular de Dante para ela enquanto dava a volta no carro e me sentava no banco do motorista.
– Nada – eu a ouvi dizer. – Não acredito que ele estava ali, perto do riacho, o tempo todo. Olhando a gente examinando o corpo.
– Sim – eu disse. – Ele gosta de ficar olhando. Vamos. – Eu dei a partida. – Pode ser que Jolene Parker ainda esteja viva.
35
Voamos montanha abaixo, quase derrapando para fora da estrada duas vezes, quando fiz curvas rápido demais.
– Cuidado – gritou Lien-hua. – Se matar a gente, nunca vamos pegá-lo.
Ela tentou ligar de novo. O celular continuava sem sinal. Asheville estava a 16 quilômetros de nós. Cantei os pneus ao contornar mais uma curva fechada na montanha.
– Calma, Pat. Quero pegar esse cara tanto quanto você. Mas vamos tratar de chegar inteiros.
– Sim. – Tirei um pouco o pé do acelerador. – Tudo bem, desculpe.
Ela balançou a cabeça.
– Nunca vi nada parecido com esse cara. Lendas indígenas, raptos, contaminação de locais do crime, ele planejou tudo. – Ela tentou o celular de novo. Nada ainda.
– Traição – eu disse.
– Quê?
– O motivo que falta – eu disse. – É a traição, não?
– Não. Você trai alguém por causa do desejo, e reage à traição com raiva. Tente de novo. – Ela largou o celular. Nem adiantava ficar tentando ligar enquanto não
chegássemos em terreno plano.
– Curiosidade?
– Isso é uma forma de desejo – você deseja saber como é cometer aquele crime ou como isso irá afetar você.
Fiquei em silêncio. Minhas ideias estavam se esgotando. Pensei em dizer honra ou vaidade, mas elas eram formas de desejo também. Até dever e integridade são desejos
– o desejo de agradar, o desejo de ser virtuoso.
– Hum. Remorso? – questionei.
– É só outro nome para culpa.
Balancei a cabeça. Aquilo era mais difícil do que pensava. Talvez, se pensasse como um psicólogo, eu conseguisse. Por outro lado... todos temos nossos limites.
Lien-hua digitou o número no celular que peguei emprestado do xerife Wallace.
– Finalmente – resmungou, e imediatamente começou a explicar tudo o que descobríramos até então sobre Grolin. Dava para perceber que ela estava falando com Margaret.
Mas quanto mais Lien-hua falava, mais a expressão do seu rosto ficava séria, dura. Ela tentou explicar a situação de novo, com mais ênfase dessa vez, mas novamente
foi interrompida no meio de uma frase.
– O quê? – perguntei. – O que foi?
Lien-hua se inclinou na minha direção e sussurrou entre os dentes:
– Margaret diz que não basta para um mandado de busca.
– Quê? Me dá esse celular.
Lien-hua me passou o aparelho.
– Margaret, Jolene ainda pode estar viva!
– Não levante a voz comigo, dr. Bowers. – Cada palavra era uma pedra cuidadosamente lapidada.
– Escuta...
– Lendas indígenas? – ela exclamou. – Lentes de contato? Escute o que você está dizendo. Não há nada que conecte Grolin com esses crimes. Não vou ligar para um juiz
e pedir um mandado de busca...
– Ele estava no local onde encontramos Mindy, Margaret.
– Com cinquenta outras pessoas – ela disse. – Isso não basta.
– Ele organiza excursões para aquela caverna.
– Você nem sabe se ele esteve naquela caverna. Tudo o que tem é um pouco de barro no pé da garota.
– Precisamos fazer alguma coisa já!
– Escute com atenção, agente Bowers. – Sua voz se tornara de gelo. – Vou pensar em pedir o mandado na segunda-feira, quando o juiz Stephenson voltar das férias,
desde que o senhor me apresente alguma prova real, em vez de apenas conjecturas. Até lá...
– Quê? – eu disse. – A ligação está cortando.
– Espere até... – ela continuou tagarelando. Desliguei o telefone com violência e o joguei no chão. A bateria voou longe. Junto com algumas outras peças.
– Opa – resmunguei. – Odeio quando faço isso.
Lien-hua pegou os vários objetos que tinham sido o celular de Dante Wallace.
– Bela técnica de negociação.
– Hã, eu vou comprar outro pra ele.
– O que ela disse, afinal?
– Disse pra não perder mais tempo. Mandou a gente pegar o sujeito.
– Fiz mais uma curva e acelerei na reta quando a estrada ficou plana. – Ela disse que salvar a vida de uma garota é mais importante do que ficar saltando obstáculos
burocráticos.
Lien-hua olhou para mim. Piscou.
– Ela não disse isso.
– Não – eu disse depois de uma pausa. – Não disse.
Eu não tinha certeza de como Lien-hua iria reagir. Eu precisava fazer alguma coisa. Precisava. Jolene tinha um pai em algum lugar também, como Mindy tinha. Chorando.
Preocupado. Esperançoso. Eu não podia simplesmente ficar sentado esperando, enquanto o Ilusionista torturava e matava outra garota, se talvez ainda pudéssemos salvá-la.
Eu esperava que Lien-hua me apoiasse nisso, esperava mesmo. Se ela não topasse, eu não saberia o que fazer.
Finalmente, com o canto do olho, a vi balançar a cabeça.
– Pena que a ligação caiu bem na hora em que ela ia dizer o que queria que fizéssemos.
– Pois é – eu disse, pisando no acelerador e fazendo mais uma curva. – Pena mesmo.
Lien-hua pegou o seu celular. Com três ligações, conseguiu o endereço de Grolin. Ela pegou um mapa e foi indicando o caminho. Entrei na Highway 70 em direção à Billings
Road, infringindo todas as normas de trânsito que eu conhecia no caminho.
36
Lien-hua fez mais duas ligações.
– Inacreditável! – resmungou.
– O quê? Grolin tem culpa no cartório?
– Duas condenações anteriores. Agressão em 2004; ficou seis meses na condicional e prestou trezentas horas de serviço comunitário. Violência doméstica no inverno
passado. Encheu a namorada de pancadas. Eles moravam em Spartanburg, na época.
– O local do primeiro assassinato.
– Sim. E as épocas coincidem. Dois dias depois que os paramédicos foram chamados para socorrer a namorada de Grolin, Patty Henderson foi morta. A garota não tinha
prestado queixa, simplesmente foi embora. Psicologicamente, isso faz muito sentido – a namorada ir embora seria um exemplo clássico de pressão precipitadora.
– O bastante para fazê-lo explodir.
– Sim, fazê-lo passar do limite.
– Mas e o perfil? Você achava que ele não tinha cumprido nenhuma pena.
– É verdade – ela disse –, mas o histórico de violência faz sentido. Percebi que estava cerrando os dentes.
– Por que eles não prestaram atenção nisso quando verificaram os nomes de todos que estavam no local do assassinato de Mindy?
– Ele é jornalista. Fazia sentido ele estar no local do crime.
– E o que Ralph disse? – Eu ouvira fragmentos da segunda conversa dela, mas não o suficiente para entender a situação geral. – Descobriu alguma coisa interrogando
aquele segurança?
Ela balançou a cabeça.
– Perda de tempo. Mas ele está vindo. Eu o peguei chegando ao prédio da administração federal. Margaret ainda não sabe que ele já voltou. Ele vai nos encontrar na
casa de Grolin. Disse pra gente esperar por ele.
De repente, me dei conta de que o celular de Ralph ainda estava desligado no meu bolso.
– Peraí, que celular Ralph está usando?
– Ele disse que pegou o da esposa quando passou pela cidade.
Balancei a cabeça.
– Ótimo. Então vamos entrar lá com Ralph. – Se Lien-hua e eu fôssemos atrás de Grolin e salvássemos Jolene, tudo ficaria bem. Margaret não iria poder dizer nada.
Mas se Grolin não fosse o nosso homem e nós agíssemos sem um mandado de busca, a cabeça de alguém iria rolar – mais especificamente, a minha. Ralph era melhor em
evitar reprimendas do que eu, especialmente de Margaret. Em todo caso, me sentia melhor abordando um suspeito de assassinato com Ralph ao meu lado. Qualquer um se
sentiria.
A Billings Road ficava no perímetro da cidade e enveredava por 11 quilômetros serra acima.
– Isolada – disse Lien-hua. – É perfeita. A não ser...
Ela nem precisou terminar a frase. Sabia o que ela estava pensando. Essa casa ficava do outro lado de Asheville, quase a 16 quilômetros da área onde eu deduzira
que nosso agressor morava.
– Ele pode ter outra base de onde opera; a casa da namorada, talvez – eu disse. – Ou de um amigo. Vamos pedir para Tucker verificar outras residências que o cara
possa ter usado nos últimos anos.
Ela concordou e ligou para ele.
Quando ela estava encerrando a conversa, chegamos à estrada de terra que levava até a casa de Grolin. Dirigi os quatrocentos metros do acesso e parei perto do jipe
surrado de Ralph, a uns cinquenta metros da casa. Eu podia ver nesgas do sobrado de Grolin à nossa frente, por entre as árvores.
Ralph saiu do carro e fechou a porta silenciosamente.
– Margaret sabe que vocês estão aqui?
– Não – respondi.
– Que bom. Vamos.
Começamos a andar na direção da casa.
– Quando isto terminar – disse Ralph –, vou ter que lembrar a Mar-garet que o mandado de busca não é necessário numa emergência, e se salvar a vida de uma garota
não é uma emergência, eu não sei o que é. – Isso era típico de Ralph. E era bom de se ver.
– Quem trouxe você de Charlotte? – perguntei.
– Dois patrulheiros estaduais.
– Os dois se chamavam Bubba?
– Provavelmente – ele resmungou e Lien-hua sorriu.
– Então, Ralph – eu disse –, como quer fazer isto? – Lien-hua e eu o estávamos seguindo por uma trilha que atravessava a floresta rumo à casa.
– A gente entra rápido e tranquilo.
Eu já tinha visto o que Ralph chamava de rápido e tranquilo. Rápido era uma palavra que eu usaria. Tranquilo não.
Precisei apertar o passo para acompanhá-lo. Apesar do tamanho, ele andava feito uma aranha entre as árvores, o resultado de um período de quatro anos como patrulheiro
florestal.
A manhã estava silenciosa e imóvel. Alguns pássaros cantarolavam nas árvores. Mas eu sentia tudo, menos paz. Meu coração começou a acelerar. Se Grolin estivesse
lá, o caso poderia terminar hoje, ou mudar de um jeito muito ruim.
– Ele é bom de pontaria – eu disse. – Bom a ponto de dar medo. Vamos tomar cuidado.
Ralph conduziu Lien-hua e eu pelos degraus, até a entrada da casa. O lugar fora pintado de branco anos antes, mas agora a maior parte da tinta estava descascando.
Flocos do passado caindo a meus pés. Ralph se aproximou da porta, tirou a arma do coldre e olhou pela janela da frente.
– Mais alguma coisa que eu preciso saber? – Outra pessoa ficaria com medo. Ele só estava coletando informações.
– Ele vai negar tudo – disse Lien-hua, a psicóloga. – É arrogante. Provavelmente vai nos convidar a entrar, mesmo se estiver com ela aí dentro. Ele tem certeza de
que não será apanhado. Pode tê-la escondido em outro lugar. – Ela correu os olhos pelo pátio, depois para o acesso, onde um Fusca estava estacionado. – Tem um carro
aqui, mas não a van Subaru. Talvez ele nem esteja em casa.
– Logo vamos descobrir. – Ralph foi até a porta e bateu.
Nada.
– Olá? – ele disse. Nenhuma resposta. Ele tentou a maçaneta. – Oh, olha só. Está trancada. – Ele se virou para mim, sorrindo.
– Ah, não, nem vem – eu disse. Já tinha visto aquele olhar antes.
Lien-hua olhou para ele.
– “Ah, não, nem vem” o quê?
Ralph deu um passo para trás. Ela se virou para mim.
– Como assim, “ah, não, nem vem”?
– É melhor você sair de perto.
Ralph calculou a distância até a porta e jogou o ombro contra ela. Com o impacto, a porta rachou ao meio. Instantaneamente, Ralph ergueu a arma e entrou. Ouvimos
um estalo acima de nós, de algum lugar no andar de cima.
– Oh, eu adoro meu trabalho – ele resmungou, girando a arma na direção dos degraus e subindo a escada. – Vocês dois, vasculhem este andar. Eu vou subir.
Saquei minha arma e entrei na casa do Ilusionista.
37
O Ilusionista recebeu a mensagem automática e entrou numa área de serviço vazia no trabalho. Ele pegou seu palmtop e assistiu aos agentes arrombando a casa na transmissão
de vídeo da câmera posicionada na mata próxima. Oh, era tudo tão dramático, com aquele agente corpulento rachando a porta, todos sacando as armas. Como eles eram
dedicados.
Ele quase riu. Quase. Era até melhor do que ele planejara, embora tivessem chegado mais rápido do que ele imaginara. Ele não esperava que ligassem os fatos tão rapidamente.
Bem, que bom pra eles. Uma surpresa agradável. Isso só adiantaria um pouco o cronograma.
Mas era uma pena, por um lado, que os três tivessem entrado.
Uma pena os três estarem lá dentro ao mesmo tempo.
Ele mandou o e-mail para a mulher cujo carro ele visitara mais cedo, depois se sentou e esperou. Agora não demoraria muito.
O timer no seu computador começara a contagem regressiva de cinco minutos assim que a porta fora arrombada.
Só restavam 4 minutos e 22 segundos antes que os três agentes federais encontrassem até mais do que imaginavam.
Lien-hua foi para a cozinha e eu me desloquei lenta e metodicamente pelo corredor, encontrei duas portas na outra extremidade, chamei, não houve resposta, me identifiquei
como agente do FBI, abri a primeira porta e saltei para trás, fora do alcance de quaisquer tiros, depois voltei para dentro, segurando a arma com as duas mãos, varrendo
o quarto com ela. O quarto de Grolin. A cama estava desfeita. Equipamentos de montanhismo, arreios, cordas e mosquetões se amontoavam no chão. Parecia que ele estava
fazendo as malas para uma viagem ou então que acabara de voltar para casa.
– Ninguém aqui! – ouvi do andar de cima. O som que tínhamos ouvido antes devia ser a casa se assentando depois que Ralph demolira a porta.
Verifiquei o outro quarto. Um pequeno escritório. Computador. Impressora. Estantes. Escrivaninha. Cartazes de escaladores e alpinistas nas paredes. Um filtro de
sonhos indígena pendurado na janela.
– Ninguém! – gritei.
– Ninguém! – Lien-hua gritou da cozinha.
Depois da varredura inicial, começamos a vasculhar a casa de novo, mais meticulosamente. Eu vira uma janelinha afundada na parede quando nos aproximávamos da casa,
e comecei a procurar a escada para o porão. Seria o lugar perfeito para esconder Jolene.
Ali.
A meio caminho do corredor, depois da cozinha, cheguei a uma porta. Segurei a maçaneta e virei. Trancada. Eu me apoiei nela. Agucei os ouvidos.
– Jolene?
3 minutos e 14 segundos.
Por um momento, pensei em tentar arrombar a porta, como Ralph fizera, mas decidi que era melhor fazer o mínimo de danos à casa e ao meu corpo. Além do mais, isso
de arrombar portas é muito mais difícil do que parece. Corri os olhos pela casa. Uma pilha de extratos bancários presos com um clipe estava em cima da mesa da cozinha.
Peguei o clipe, desentortei, voltei para a porta e enfiei o arame na fechadura. Eu aprendera a arrombar fechaduras ao trabalhar infiltrado numa investigação em 2001.
Muito útil.
A fechadura estalou e a porta se abriu mais rápido do que eu esperava. Como estava apoiado nela, quase desabei escada abaixo. Desajeitadamente, me esquivei para
o lado o melhor que podia, para o caso de Grolin estar armado lá embaixo. Quando nada aconteceu, me debrucei e gritei para a escuridão diante de mim:
– Jolene? – Deslizei uma mão pela parede, procurando o interruptor da luz. Mantive a minha arma erguida na escuridão para o caso de Grolin estar ali. Acima de mim,
eu ouvia os passos de Ralph que vasculhava a casa, procurando sistematicamente, cômodo por cômodo.
Meus dedos acharam o interruptor e eu liguei a luz. Uma única lâmpada se acendeu, bruxuleante, iluminando a escada com um brilho amarelado. O ar que vinha na minha
direção estava grosso com o cheiro de mofo e podridão. Lá embaixo, o chão de terra parecia engolir a escada de madeira abruptamente no meio de um degrau.
– Jolene? – chamei de novo, desta vez mais baixo, com o coração saltando no peito. É para cá que ele as traz. É aqui que ele faz tudo.
Dei um passo adiante na escada. Atrás de mim, a porta se fechou sozinha, rangendo.
Desci os degraus devagar, procurando fios esticados no caminho ou armadilhas. Se Grolin era tão bom quanto achava que era, não ia deixar simplesmente que entrássemos
lá e a encontrássemos.
– Jolene?
Um passo. Outro. Nenhuma resposta. Mas senti um ruído de movimento na escuridão, abaixo de mim. Meu coração disparou.
– Jolene, você está aí?
Nenhuma resposta.
Mais um passo.
Cheguei à base da escada.
38
2 minutos e 25 segundos.
O porão escuro sugava a luz da lâmpada solitária, deixando a maior parte da área envelopada em sombras profundas. Liguei minha lanterna.
O ar lá embaixo estava perceptivelmente mais frio do que no resto da casa. O ambiente lembrava uma caverna.
As vigas pesadas de sustentação enterradas no chão de terra começaram havia muito tempo a ceder com o peso da casa, dando a ilusão de que a casa toda poderia desabar
a qualquer momento. O meio do porão continha um monte de caixas de papelão e móveis arrebentados. Uma velha mountain bike, um par de esquis e uma mochila rasgada
estavam apoiados no monte. Uma bancada ficava no canto direito do porão, sob um quadro de ferramentas coberto de chaves de fenda, martelos, torqueses, serrotes enferrujados
e cinzéis. Ele pode ser carpinteiro. Ou as ferramentas podem servir para outra coisa. Procurar sangue nelas. Cabelos. Impressões digitais.
Eu me virei. À minha esquerda, uma estante de metal estava apoiada na outra parede do porão. Mesmo na penumbra eu podia ver que ela estava cheia de livros acadêmicos
de jornalismo e redação em inglês esquecidos no porão havia muito tempo. Ele é jornalista, escritor. Ama as palavras. Não consegue se desfazer dos seus velhos livros,
mesmo sabendo que nunca mais vai relê-los.
Acima da estante, perto do forro, estava a janelinha afundada que eu vira antes. Estava recoberta de fuligem. Duvidei que algum dia tivesse sido aberta.
– Jolene? – eu chamei, o mais baixo que podia, esperando não assustá--la caso estivesse ali, ferida. – Você está aí? Meu nome é Patrick. Estou aqui pra te ajudar.
Entrar no esconderijo dele daquele jeito me incomodava. A casa gemia, se acomodando nos alicerces, aceitando o peso de Ralph sobre as tábuas do assoalho acima de
mim. Segurei firme minha arma e girei o facho da lanterna pelo perímetro do porão, passando o círculo de luz pela parede.
Andando no porão, notei que não havia teias de aranha lambendo o meu rosto, embora visse aranhas correndo pela bancada.
Alguém estivera lá embaixo recentemente.
– Você está aí? – falei. Rastreei as paredes, procurando sinais de portas ou quartos escondidos. Tentei ouvir um choro abafado, alguém arranhando, soluçando, qualquer
coisa que me indicasse que ela estava ali, ainda viva.
O chão de terra não parecia pisado. Vasculhei o lugar de novo, percorrendo o perímetro. O porão havia sido escavado na montanha e as paredes eram feitas de pedras
do rio. Inspecionei as fendas entre elas, mas não consegui achar nenhum sinal de algum quarto ou passagem escondidos.
Deve ter alguma coisa aqui. Algo que não estou percebendo. Quando olhei ao meu redor, meus olhos pararam sobre a bancada.
Fui até lá e passei o facho da lanterna pela área de trabalho. Alicates. Martelos. Serrotes. Qualquer uma daquelas ferramentas seria muito útil nas mãos de um assassino
sádico. Algumas estavam sobre a bancada, outras, penduradas no quadro, mas nenhuma parecia manchada de sangue ou limpa recentemente.
Então notei uma silhueta no quadro onde a poeira não estava tão grossa.
Está faltando alguma coisa. Tinha alguma coisa pendurada ali. Desenhei o contorno da forma com a ponta do dedo.
Um serrote.
De repente, as palavras dele na noite passada me voltaram à mente: Esqueça a garota. É tarde demais para ela... Eu a vi primeiro...
Ele realmente me avisara: “Eu a vi primeiro” 11.
Meu Deus, não.
Só então percebi um movimento com o canto do olho e me virei, apontando a arma. Um gato mal cuidado saltou do alto da estante e subiu a escada, ronronando, entediado.
Respirei fundo para me acalmar e me pus à escuta, depois da saída do gato, tentando ouvir algum som, qualquer coisa.
– Jolene?
Enquanto via o gato sair, notei um fogão a lenha no canto do porão, provavelmente da época em que queimar lenha era a única fonte de calor para uma casa no meio
da encosta da montanha. Eu não queria olhar dentro dele, mas sabia que era preciso. Naqueles anos todos na polícia, eu vira os muitos modos como os agressores tentam
se livrar dos cadáveres.
O fogão a lenha era uma delas.
Atravessei o porão encardido em alguns passos rápidos e estiquei a mão para sentir se o fogão ainda estava quente.
Estava.
Respirei fundo, quase sufocando com o ar espesso e pungente do porão de Grolin.
Guardei a arma no coldre e enrolei a fralda da minha camisa na mão. Então peguei o puxador do fogão e girei com força. Ele fez um clique e a porta do fogão se abriu.
Um brilho quente e suave saía da abertura. Ele havia queimado alguma coisa ali. Um monte de brasas pegou fogo com a entrada repentina do ar.
Preparado para o cheiro de carne queimada, eu me curvei e olhei dentro do braseiro.
39
59 segundos.
Só um monte de cinzas e carvão em brasa. Nada mais. Nenhum osso, cabelo, dente.
Quê? Um pedaço de papel chamuscado flutuou para fora. Eu o peguei. Parte de um diagrama. Um desenho técnico. Desenho técnico?
Peguei um pedaço de madeira de um monte próximo e afastei as brasas, mexendo-as, procurando os restos carbonizados de Jolene Brittany Parker.
Nada. Nem mesmo um fragmento de roupa.
Quando agentes funerários cremam um corpo, restam fragmentos de ossos. Se Grolin tivesse tentado se livrar do corpo dela ali, teria restado alguma coisa. Mas não
havia nada. Ele não tinha queimado o corpo de Jolene naquele fogão. Eu estava aliviado, mas também frustrado. Onde ela estava? O que ele fizera com ela?
O Ilusionista se curvou para a frente. Ele havia colocado uma microcâ-mera no porão, no alto da estante. O dr. Bowers estava lá embaixo agora, mexendo na pilha de
madeira. Ele tinha encontrado algo perto do fogão.
Mas só lhe restavam 33 segundos.
Não era tempo suficiente para que eles saíssem.
Não. Não era tempo suficiente.
Devolvi o pedaço de madeira no monte, e foi então que notei os fios.
Fios?
Apontei o facho da lanterna para eles.
Oh, não.
Empurrei a madeira para o lado.
Foi fácil demais entrar aqui.
Vi a caixa de metal.
Fácil demais.
Li os números piscando no timer.
Ele gosta de ficar olhando.
14... 13...
– Bomba – eu gritei. Eu me virei. Corri. – Pra fora, já!
Continuei a contagem regressiva na minha cabeça... ... 12... 11...
Voei na direção dos degraus.
... 10...
Saltei escada acima, três degraus de cada vez.
... 9... 8...
– Fora! Ralph! Lien-hua! Bomba! Tem uma bomba aqui!
Saí para o corredor, Lien-hua bem na minha frente.
... 7...
Pelo corredor, rumo à porta da casa.
... 6...
Ralph saltou da escada para o chão.
... 5...
Fora. Na varanda.
... 4...
Saltando. Caindo na grama.
... 3...
Rastejando para a frente. Deitando no chão.
... 2...
Jogando meu corpo sobre Lien-hua. ... 1.
Bum.
11h42, Hora da Costa Leste
Em Charlotte, Carolina do Norte, o governador Sebastian Taylor se viu num espelho e virou a cabeça para decidir qual lado do seu rosto era mais fotogênico.
Em Denver, Colorado, Tessa Ellis balançou a cabeça e arrastou sua mala na fila do balcão de check-in da US Airways.
Em West Asheville, Carolina do Norte, Alice McMichaelson deu uma espiada no livro didático de Administração que tinha no colo, durante uma bola parada, nos últimos
minutos do jogo de futebol do filho.
No balcão de recepção no saguão do Hotel Stratford, Theodore digitou as senhas necessárias para alterar o nome dos funcionários do bufê contratados para o almoço
de segunda-feira.
Na frente do seu computador, o Ilusionista se curvou para a frente com um sorriso satisfeito e ficou olhando a casa explodir.
Senti o calor da explosão passar por cima de mim, chamuscando meu cabelo. Queimando meu pescoço. E então, uma chuva de detritos polvilhou minhas costas, minhas pernas.
Uma tempestade de lascas de madeira em chamas se seguiu imediatamente, chovendo ao nosso redor e sobre nós, trazendo uma dor repentina e ardente no meu ombro.
Mas eu não me mexi. Mantive o corpo estendido sobre Lien-hua, e nem me virei para ver que tipo de objeto se alojara profundamente nas minhas costas, cravado ao lado
da minha escápula. Atrás de mim, ouvi um rugido quando a madeira seca da casa explodiu numa bola de fogo.
Então Ralph apareceu ao meu lado, puxando-nos para a frente, gritando para que nos afastássemos do calor e das chamas. Ajudei Lien-hua a se levantar e cambaleamos
na direção das árvores, depois nos viramos para olhar a casa.
Estava completamente destruída. Qualquer pista dentro dela também estaria destruída.
O celular tocou no bolso de Ralph.
Ele o puxou e atendeu. Praguejou.
– Encontraram a garota – ele disse, sombriamente. – Encontraram Jolene.
– Onde? – perguntei.
– No porta-malas do carro de Margaret.
40
Quando chegamos ao prédio da administração federal, os peritos já tinham isolado metade do estacionamento. Choque, raiva e sofrimento se acumulavam em cada centímetro
do local. Margaret andava de um lado para o outro, balançando a cabeça, com uma mão firmemente plantada na cintura, a outra esfregando a testa. Apesar da fúria que
a orbitava, ela estava pálida.
Quando atravessamos o estacionamento, Ralph cochichou para mim e Lien-hua:
– Ele deve ter colocado o cadáver no porta-malas do carro dela hoje de madrugada, antes que ela saísse para o trabalho. Ela dirigiu para cá com o corpo no carro.
Meia hora atrás, recebeu um e-mail dizendo para olhar no porta-malas.
– Podemos rastrear o e-mail? – perguntei.
– Estamos tentando. Mas pelo modo como foi roteado, parece que o cara sabia o que estava fazendo.
Tucker parou ao lado do carro. Ele fez um gesto para que nos aproximássemos. Seu rosto estava pálido, sem sangue.
– Ele explodiu a casa?
Ralph fez que sim. Olhei para o carro, mas não consegui ver o interior.
– Ela ainda está lá? – Perguntei baixinho para Tucker. Ele não respondeu. Apenas deu um passo para o lado. Entrei no meio dos peritos e olhei dentro do porta-malas.
A parte superior do corpo nu de uma mulher estava no porta-malas do carro de Margaret –, mas só a metade de cima. Jolene havia sido serrada ao meio logo acima da
pélvis. Ela também fora brutalmente torturada: dezenas de cortes se cruzavam sobre seu tronco, seu rosto, seus braços. Seis cortes não bastam mais para ele, pensei.
Apesar do fato de que quase todo o seu sangue fora drenado, uma poça de líquidos escuros pingava do fundo do cadáver e se espalhava pelo estofamento do porta-malas.
Uma estaca de metal de acampamento estava profundamente cravada no peito de Jolene, segurando um bilhete: “DEMOROU DEMAIS. SUA VEZ.” Ela tinha um peão branco na
boca. Uma fita no cabelo.
Minha mente ficou entorpecida, zonza, cheia de culpa e de dor. Pela primeira vez em anos, senti vontade de vomitar no local de um crime. Estava completamente nauseado.
Eu alimentara a esperança de que talvez a encontrássemos viva, a salvássemos, a resgatássemos, esperança, esperança, esperança, tentando me convencer de que o Ilusionista
estava mentindo quando dissera que era tarde demais para salvá-la.
Mas ele não havia mentido. Nem um pouco. Parecia que ele tinha planejado tudo, até sincronizado a descoberta do corpo para coincidir com a explosão.
Resmunguei um pedido de desculpas para as pessoas aglomeradas ao redor do carro e abri caminho por entre a multidão. Eu precisava de ar. De espaço. Na verdade, precisava
vomitar, mas não podia deixar que ninguém me visse. Me escondi atrás de um carro próximo e mal consegui sumir de vista antes de me curvar, regurgitando.
Esvaziei meu estômago no asfalto. Não havia muita coisa nele. Toda a minha vida tinha gosto de bílis. Eu mal conseguia acreditar no que estava acontecendo. Tudo
parecia se despedaçar, minha vida pessoal e minha carreira estavam se descosturando completamente.
Minha enteada me odiava. Aquele assassino zombava de mim. Christie me assombrava. Eu me afastei da poça de vômito e enfiei a mão no bolso para ver se tinha um lenço,
qualquer coisa, mas em vez disso achei o recibo da joalheria. A prova de que realmente me lembrara do aniversário de Tessa, que realmente visitara aquele shopping
em Atlanta no início da semana, que tinha mesmo um presente de aniversário para dar a ela.
Nós comemoramos o dia em que nascemos, momentos de vida nova.
Eu estava distante no aniversário dela.
O assassino mencionara o nome dela.
Tessa.
Ele sabia que eu tinha uma filha.
Concentre-se, Pat. Não deixe esse cara afetar você.
Jolene era filha de alguém. Mindy também. As outras também.
Christie iria querer que encontrasse esse cara, que o prendesse. Que eu fizesse todo o possível para impedi-lo de roubar os aniversários de outras jovens. Outras
filhas como a dela. Como a minha.
“Sabemos que ela vai ficar bem. Amamos você, Mindy”, o pai dela dissera na TV. Ele não sabia que ela já estava morta. “Estamos te esperando...”
Mas como eu poderia pegar esse cara? Ele era mais esperto do que eu, estava sempre um passo à frente.
O único jeito de pegá-lo é parar de jogar segundo as regras dele. Você precisa fazer sua jogada.
Pensei em Jolene, em como seria perder uma filha daquele jeito, mutilada, abusada, massacrada. Eu não conseguia nem imaginar. Naquele exato momento, o Ilusionista
estava em algum lugar, rindo de nós, provavelmente nos olhando, zombando da dor que causava. Eu não podia deixá-lo ficar impune. Não podia.
Com esses pensamentos, a raiva, incandescente e desenfreada, começou a rasgar minha alma. Uma raiva ululante, afiando suas garras; me enchendo. Fervendo dentro de
mim. Afugentando a náusea, afugentando tudo e substituindo com uma tempestade de fúria. A raiva me assustava e ao mesmo tempo me confortava. Nos últimos oito meses,
a ira tinha começado a se sentir em casa dentro de mim.
Você precisa passar à frente dele, Pat. Faça o que você faz melhor.
Olhei para as pessoas que estavam examinando o carro de Margaret. Todas falavam cochichando. Uma mistura de palavras quase inaudíveis flutuava pelo estacionamento
na minha direção. Ouvi alguém murmurar alguma coisa sobre a mídia e sobre mandados, e depois alguém começou a chamar Grolin das coisas que eu estava pensando, mas
apenas ainda não tinha dito.
Eu precisava detê-lo. E eu conseguiria. Por Christie.
Limpei a boca na manga da minha jaqueta, enfiei o recibo no bolso e voltei para o local do crime.
Cheguei bem a tempo de ouvir Lien-hua gemer.
– Ele a serrou ao meio? – A voz dela sumiu no meio da frase e eu quis poupá-la de ver o corpo e as imagens que ela nunca mais conseguiria apagar de sua mente, protegê-la
do seu próprio trabalho, de se tornar mais parecida comigo. Mas não podia protegê-la. Não estava lá para isso.
Alguns minutos depois, Lien-hua, Ralph e eu voltamos juntos para o perímetro do estacionamento. Margaret marchou na nossa direção, trêmula e tensa. Ninguém disse
uma palavra. Então o agente Tucker e o xerife Wallace também se aproximaram, e eu falei baixinho, mas para todos eles.
– Quando ele falou comigo noite passada, se denominou o Ilusionista. Ele me disse: “É tarde demais para ela. Eu a vi primeiro.”
Os dentes de Ralph estavam cerrados.
– O truque da mulher cortada ao meio.
– Isso é doentio – disse o xerife Wallace.
Margaret se virou para Lien-hua.
– Onde você disse que Grolin trabalha?
– Na revista MountainQuest. Escreve a coluna de viagens. Wallace balançou a cabeça.
– Conheço o lugar. Fica na Highway 25, a caminho de Hendersonville.
– Encontrem esse cara. Prendam e tragam pra cá.
Dante se virou para mim.
– Dr. Bowers?
– Sim.
– Pode devolver meu celular?
– Oh, sim. Claro. – Enfiei a mão no bolso, tirei o punhado de peças que foram o celular dele e entreguei.
– Que diabos aconteceu?
Ralph respondeu por mim.
– Ele deixou cair.
– Mais ou menos – resmunguei. – Sinto muito. Vou comprar outro pro senhor.
Ele balançou a cabeça, enfiou as peças no bolso e fez um gesto para dois policiais uniformizados, que o seguiram até uma viatura.
Eu estava me sentindo mal, mas aí Margaret se virou para mim e me preparei para me sentir pior. Tinha certeza de que ela ia me detonar por ter negligenciado suas
ordens e ido para a casa de Grolin.
– Vá cuidar desse ombro – ela disse. – Peça para a equipe médica de emergência dar uma olhada.
Aquilo era uma surpresa. Considerando as circunstâncias, a preocupação dela chegava a ser comovente.
– Vou ficar bem.
– Dr. Bowers, tem um pedaço de madeira saindo das suas costas. Por isso estava doendo.
– Dê um jeito de tirar. Se infeccionar, vai nos custar mais dinheiro. Não quero que o FBI gaste mais dinheiro que o necessário com o senhor.
Ah, bom. Se era por isso.
– Ralph? – ela disse.
– Sim?
– Quero que você faça o interrogatório. – A voz dela era de ferro. Dura e fria.
Ele fez que sim. Ela tentou se manter calma, mas sua voz começou a tremer.
– Sem luvas de pelica, Ralph. Ele pôs aquela garota no meu carro. Ele fez que sim de novo.
– Entendi.
Joseph Grolin, aí vamos nós.
41
Tessa olhava pela janelinha do 737 para os enormes castelos de nuvens ao redor do avião. Corredores brilhantes de vapor e luz se abriam para envolver a aeronave,
para lhe dar as boas-vindas em sua paisagem de conto de fadas. Em outra época, ela poderia ter ficado impressionada, até estarrecida com aquela travessia cheia de
luz filigranada, mas hoje tudo o que ela via era um monte de nuvens idiotas.
Quando era mais nova, ela costumava se deitar de costas na grama, no verão, e olhar para as nuvens com sua mãe, apontando, rindo e encontrando criaturas místicas
no céu; sereias, dragões e fadas. Como todas as crianças fazem em algum momento da vida.
– Olha aquela – ela gritava. – É um unicórnio!
– Sim – sua mãe dizia. – Estou vendo. Estou vendo.
Fosse qual fosse a aparência das nuvens, Tessa sempre conseguia achar um unicórnio.
Mas não mais. Não, hoje havia apenas nuvens no céu. Sem forma e neutras. Nenhum unicórnio. Só uma névoa tênue que a envolvia. De fato, ela não via um unicórnio há
muito, muito tempo. Nem se lembrava da última vez.
Ela deu uma olhada no perfil do homem que a acompanhava. Ele dissera seu nome: agente especial Eric Stanton. Não parecia um agente do FBI, na verdade; parecia mais
um contador. Cabelo repartido de lado, cara de bebê, barba bem feita. Mas ele não usava aliança, e não era tão velho – devia ter uns 22 anos – e poderia até ficar
bonitinho sem a gravata e aqueles óculos de velho, com um cavanhaquezinho... o cabelo um pouco mais bagunçado...
– Sim? – Ele estava olhando diretamente para ela, agora. – Precisa de alguma coisa? – Ele tinha olhos castanhos doces.
– Hã, não. – Ela desviou o olhar para a janelinha de novo. Torceu para não ter ficado vermelha.
– Tem certeza?
– Tenho.
Ele se aproximou. Ela sentiu o cheiro da loção após-barba dele. Eca. Por que ele tinha que usar loção após-barba?
– Tudo bem, bebê?
Bebê!
– Eu tô bem.
– Bom, isso é maravilhoso – ele disse com sarcasmo. – Como seu acompanhante, fico muito feliz em ouvir isso.
Ela o olhou de novo. Onde é que ela estava com a cabeça, afinal! O cara devia ter mais de 30 anos! Velho o suficiente pra ser seu pai. Ela cruzou os braços e o fuzilou
com o olhar. Olhou por um momento para o Sudoku que ele estava resolvendo. Estava lutando com aquilo havia mais ou menos uma hora. Era do nível “especialista”. Hã.
Sei. Ele deveria tentar resolver um do nível “até 2 anos de idade”. Ela o estudou por alguns segundos.
– 6, 9, 8, 4, 1, 3 – disse.
– Quê?
– A última fileira. Complete, acho que o resto você consegue. – Depois de perceber a surpresa dele, acrescentou: – Mas eu não apostaria nisso.
Ele olhou para a folha, depois novamente para ela.
– Como você sabe?
Ela deu de ombros.
– Talvez não seja difícil de resolver para um bebê.
Então ele emitiu um breve som com a boca entreaberta, pediu que ela repetisse os números, olhou para o quebra-cabeças e começou a escrevinhar. Enquanto ele preenchia
os quadradinhos da droga do quebra-cabeças, Tessa se virou para a janelinha e ficou vasculhando o céu à procura de alguma coisa. Qualquer coisa. Mas tudo o que ela
conseguia ver eram quilômetros e quilômetros de nuvens.
42
Alice McMichaelson suspirou e desabou na espreguiçadeira.
Depois de levar Jacob para o último jogo de futebol do ano (eles ganharam por 4 a 3 graças aos dois gols de Jacob), driblar o trânsito, parar na biblioteca para
entregar os livros atrasados de Brenda, pegar outra pilha de livros que ela provavelmente terminaria de ler no fim de semana, passar no McDonald’s para almoçar e
se arrastar por aquele horroroso trecho em obras da Highway 240 West, ela finalmente chegou em casa.
Ufa.
Ela jogou longe os sapatos. Estresse. O problema era esse. Começar num novo emprego, chegar atrasada no trabalho, não dormir o suficiente noite passada, correr pra
lá e pra cá o dia todo com as crianças.
Ela respirou fundo e deixou sua mente voltar para o trabalho. Estava gostando de verdade desse emprego. O banco passava por uma fusão – o Second National havia sido
comprado pela Investimentos Internacionais Montrose no mês anterior, e transferir os arquivos e contas estava sendo um pesadelo, porque os dois bancos usavam programas
de computador diferentes – que grande surpresa. Mas esse era um dos motivos pelos quais eles a contrataram. Precisavam de mais gente para ajudar na transição, e
ela precisava do dinheiro. Garrett nunca pagara pensão, e já era difícil pagar apenas as prestações da casa. Ela precisava segurar esse emprego. Precisava.
Ela suspirou de novo, depois esticou a mão e massageou o pé esquerdo. Ah, isso era bom. À noite, depois que as crianças dormissem, ela poderia estudar um pouco,
se preparar para a prova na segunda-feira. Mas, no momento, era bom simplesmente relaxar.
Jacob deixara seu uniforme de futebol no meio do corredor e sumira no quarto para jogar videogame, e a verdade era que ela não estava nem aí. Alguns minutos antes,
Brenda saíra de seu quarto só o tempo suficiente para encontrar um saco de Cheetos. Alice observou a filha voltando pelo corredor, e depois deixou seu olhar vagar
pela sala de estar. Precisava de uma faxina. Sobretudo de aspirador. Mas, por outro lado, não estava tão ruim. Você é uma mãe sozinha com duas crianças, o que esperava?
Estava se saindo bem. E talvez nem ficasse solteira para sempre. Ainda era jovem o suficiente para recomeçar e não tinha perdido toda a sua beleza – ainda não, pelo
menos. E alguns caras haviam demonstrado interesse por ela, afinal.
Ela afastou um cacho rebelde de cabelo. Mas não encontrara mais aquela escova, e isso a incomodava. Em geral, se orgulhava de saber onde tudo estava na casa.
Bem, não importava. Ela compraria outra escova. Pelo menos ela não teria que acordar cedo pra ir trabalhar amanhã, só levar as crianças pra missa às 10h, e depois
teria o dia todo para relaxar. Ela aguentaria até lá. Sim. Ela dava conta. Dentro de alguns minutos, levantaria e arrumaria a sala de estar. Ela fechou os olhos,
murmurou uma breve oração e massageou o pé, enquanto o fim de semana chuviscava lá fora.
Os anjos estavam ganhando.
Ao menos por enquanto.
43
Ralph sugeriu que fizéssemos uma pausa e nos reuníssemos em meia hora para apresentar nossos relatórios. Assim poderíamos todos nos recompor, reconcentrar, tomar
café, o que fosse. Enquanto cada um ia para o seu lado, pedi que um dos paramédicos desse uma olhada no meu ombro.
Ele puxou a lasca de madeira em forma de punhal que a explosão enterrara 15 centímetros nas minhas costas, limpou a ferida e passou antibiótico no local.
– Você precisaria fazer uma sutura aqui – ele disse. – O músculo está bem danificado.
– Eu vou ficar bem – falei. – Só enfaixe com umas bandagens.
– Você é médico?
– Não, não sou médico. Mas já liderei excursões na floresta. Tive que aprender primeiros-socorros.
– Pode ficar uma cicatriz.
– Não vai ser a primeira.
Ele enfaixou delicadamente a ferida e deu um tapinha no meu ombro sadio.
– Tome cuidado lá fora.
Agradeci e voltei para o prédio para a reunião. Ao passar pelo escritó rio do senador, notei Ralph e Lien-hua parados perto do bebedouro. Água, boa ideia. Enxaguar
a bílis da minha boca. Peguei um copo descartável.
– Tudo bem com o ombro? – perguntou Ralph.
– Sim. Vai ficar bom. Mas está um pouco dolorido. – Na verdade, estava me matando. – Tudo bem com vocês?
Eles balançaram a cabeça.
– Escuta – eu disse –, você achou alguma pista na casa antes da explosão?
Ralph suspirou profundamente.
– Uma jaqueta de couro no armário dele. Parecia aquela que o sujeito estava usando ontem à noite. Não peguei porque ainda não tínhamos o mandado de busca, e não
deu tempo de voltar pra buscar depois que você gritou “bomba”.
– Lien-hua? – perguntei.
Ela balançou a cabeça.
– Não. Nada.
Naquele momento, Margaret e Tucker entraram. Deram um cumprimento geral e silecioso com um movimento da cabeça e foram para a sala de conferências. Ralph se juntou
a eles, mas Lien-hua ficou perto do bebedouro mais um momento.
– Então, sinceramente, tudo bem com seu ombro? – perguntou ela.
– Sinceramente, tá doendo pacas.
– Pacas?
– Minha mãe sempre dizia isso.
– Oh. Bem, é o seguinte. Eu queria dizer... obrigada.
– Por?
– Na casa. Você me cobriu com seu corpo, me protegeu. Não precisava fazer isso.
Ah. Ela percebeu.
– Nem percebi.
– Mas...
– Sim?
– Nunca mais faça isso.
Eu pisquei.
– Quê?
– Não preciso ser protegida, agente Bowers. Sei me cuidar. Sou crescidinha. Entendeu?
– Hã, eu...
– Entendeu?
– Sim – eu disse. Não, pensei. – Espere aí. Está dizendo que não quer que eu te proteja, mas que fica agradecida quando te protejo?
– Eu daria nota A para essa análise – ela disse com um sorrisinho, e se afastou, me deixando plantado lá, sozinho, com um copo descartável vazio na mão. Eu nunca,
nunca vou conseguir entender as mulheres.
Enxaguei a boca, joguei o copo no lixo e segui Lien-hua para a reunião.
Margaret parecia em pior estado que o resto de nós. O rímel borrado marcava seu rosto, e ela olhava para a parede, sem emoções. Um zumbi estava no comando da nossa
equipe. Ralph olhou na minha direção e me passou a liderança da reunião com um aceno.
– Antes de mais nada, todos estão bem? – indaguei.
Cabeças balançando.
– Eu sei que no momento tudo parece apontar para Grolin, mas vamos voltar atrás por um minuto e tentar conservar a objetividade. Margaret, o pessoal da perícia já
está terminando lá fora?
– Sim – ela murmurou. – Depois precisamos mandá-los pra casa de Grolin e pra sua caverna naquela montanha.
Aqueles caras iam merecer cada centavo dos seus salários hoje.
– Agente Tucker?
– Sim?
– Encontrou mais alguma ligação entre os crimes – como as lentes de contato ou a aliança?
Ele balançou a cabeça.
– Vamos precisar de mais tempo para ter certeza, mas não parece haver mais nada. Parece que ele começou a deixar pistas com Reinita.
– Mas e Bethanie? – perguntou Lien-hua. – Ela veio depois de Reinita e antes de Mindy. Por que ele a pularia?
Tucker deu de ombros.
– Não sei.
– Estamos deixando de fora alguma coisa – eu disse. Naquele momento, um dos peritos entrou esbaforido na sala. Todos nos viramos e olhamos para ele. Acho que isso
o intimidou, porque ele se encolheu um pouco e balbuciou:
– Agente especial Wellington, a senhora pediu pra avisar se encontrássemos alguma coisa...
– Sim – ela respondeu, ríspida. – O que é? – Ele se encolheu ainda mais.
– A bolsa dela. Estava no carro com o corpo, enfiada num canto do porta-malas.
– Vamos ver – disse Ralph.
Afastei as pilhas de papéis, canetas e copos descartáveis vazios para limpar a mesa, e o perito derramou cuidadosamente o conteúdo da bolsa de Jolene. O celular
caiu sobre a mesa junto com um chaveiro, um estojo de maquiagem, um pó compacto, alguns recibos amassados, uma carteira cheia de fotos e cartões de crédito, algumas
canetas, uma escova, dois absorventes internos e um talão de cheques. Nós quatro estudamos intensamente os itens.
– Certo – disse Lien-hua. – O que vocês veem?
Ralph balançou a cabeça.
– Qualquer uma dessas coisas poderia ser dela ou de outra pessoa. Não há como saber.
Todos calçamos luvas antes de tocar em qualquer coisa. Tirei os cartões de crédito dela e olhei os nomes impressos.
– Não. São todos dela. – Desamassei os recibos, comparei com os cartões de crédito. – Estes também são todos dela.
– A carteira, talvez? – disse Tucker. – Poderia ser de outra pessoa? Ele quer que saibamos. Não iria deixar algo que não pudéssemos conectar. – Lien-hua virou a
carteira e balançou a cabeça.
– Tem as iniciais dela bordadas... espere aí. – Ela apontou para a escova. – Jolene é loura.
– Sim, e daí? – eu disse.
Lien-hua pegou a escova e a segurou debaixo da luz.
– Esta escova tem fios de cabelo ruivos.
– É isso! – disse Ralph. Ele se virou para Tucker. – Analise isso já. Quero impressões digitais, DNA... – O perito fez menção de pegar a escova, mas Ralph o impediu.
– Sem ofensa, amigo. – Ele apontou para Tucker. – Colete as digitais. Você é o melhor que temos.
– Pode deixar – disse Tucker.
Ele saiu levando a escova enquanto o perito tímido recolhia o resto do conteúdo da bolsa e o seguia para o laboratório.
– Muito bem – disse Ralph. – Vamos ver aonde isso nos leva.
– É possível que seja algum outro objeto da bolsa – eu disse. – Não vamos ficar empolgados demais. De qualquer forma, ele não conectou todos os cadáveres para nós...
– Continuo querendo saber por que ele pulou Bethanie – disse Lien--hua, impaciente. – Ela foi morta entre Reinita e Mindy. Será que ele começou com ela, mas ela
resistiu, e foi por isso que ele não deixou uma pista? Ou foi interrompido antes que pudesse deixá-la?
– Talvez algo tenha dado errado – disse Margaret –, e ele entrou em pânico.
– Ele não entrou em pânico – disse Lien-hua. – Se tem uma coisa que esse cara não faz é entrar em pânico.
– Além disso – falei –, ele já estaria com as lentes de contato; teria chegado preparado para deixá-las, fosse como fosse. Afinal, ele deixou o peão e a fita amarela.
E a aliança aponta para Mindy, não para Bethanie. É como se ele tivesse pulado Bethanie, como se ela não fizesse parte da série.
– Sim – disse Ralph – E se Tucker estiver certo, ele começou a deixar essas pistas a partir de Reinita.
– A ordem importa – eu disse. – Tem alguma coisa na ordem que não estamos notando. – Por que ele começou com Reinita? O que aconteceu? Olhei para o nada, processando
tudo.
Olhei para os rostos na parede. As lindas fotos de mulheres mortas. Alguém já havia acrescentado a foto de Jolene ao conjunto.
Patty. Jamie. Alexis. Reinita. Bethanie. Mindy. Jolene.
Alexis e Bethanie foram as duas vítimas encontradas mais longe de
Asheville.
Talvez ele não tenha pulado Bethanie.
Pensei novamente no porão da casa de Grolin. Na bancada. Na estante. No gato.
Talvez ele não a tenha matado.
O gato. De repente, lembrei algo que ouvira anos antes.
– Só o mais tolo dos ratos se esconderia no ouvido de um gato – resmunguei. – Mas só o mais sábio dos gatos o procuraria ali.
– Quê? – disse Ralph.
Dei a volta na mesa para olhar as fotos no quadro.
– Um ditado que ouvi uma vez. Significa que o melhor lugar para esconder algo, muitas vezes, é o lugar mais óbvio, porque é o último lugar onde qualquer pessoa procuraria.
Margaret olhou para mim, intrigada.
– Estamos procurando o que as vítimas têm em comum, certo? – Corri os olhos pela equipe. – Mas e se só algumas delas tiverem algo em comum? – Apontei para a parede.
– Alexis e Bethanie.
Margaret balançou a cabeça.
– O que está dizendo?
– E se você quisesse matar alguém, mas também não quisesse despertar suspeitas?
– Eu procuraria ter um álibi infalível – ela respondeu. – Não sei o que isso tem a ver com...
Àquela altura, Ralph já tinha entendido. Ele ficou de pé.
– Ou você poderia dar um jeito de não precisar de álibi nenhum.
– Sim – eu disse. – Isso mesmo.
Margaret balançou a cabeça. Ela continuava sem entender.
– Certo – falei. – Suponhamos que eu queira matar Lien-hua.
– Muito obrigada.
– Só para fins demonstrativos. Se fôssemos amigos e ela, de repente, aparecesse morta, eu seria um suspeito, certo?
– Bem, talvez – disse Margaret, olhando para mim com ar zombeteiro. – Se você tivesse motivo, meios e oportunidade.
Então sua língua estava ficando afiada de novo. Bom sinal.
– Certo – continuei. – E se eu tivesse tudo isso, mas ela tivesse sido morta obviamente por outra pessoa, um psicopata, digamos? Com o mesmo modus operandi. A mesma
assinatura. E então?
Tudo começou a se encaixar de repente.
– Um imitador? – murmurou ela.
– Sim – afirmei. – Dois assassinos em vez de um só. Isso explicaria por que o perfil geográfico estava irregular. Também explicaria por que ele começou a conectar
os crimes com Reinita...
– Porque outra pessoa matou Alexis, e ele queria separar seu trabalho daquele do imitador! – disse Lien-hua.
Ralph pegou o envelope de papel pardo que continha os relatórios das autópsias.
– Hum. O padrão de ferimentos é o mesmo em todos os casos, mas parece que os cortes não eram tão fundos em Bethanie e Alexis. – Ele virou a página. – E os peões
– aqueles encontrados com Alexis e Bethanie – foram entalhados no mesmo torno. – Ele estudou as fotos cuidadosamente. – Mas os veios da madeira podem ser um pouco
diferentes. Poderiam ser de um jogo diferente. Vou verificar.
– Por que não notamos isso antes? – perguntou Margaret.
– Porque não estávamos procurando isso – eu disse. – Estávamos presumindo em vez de examinar.
– Espere – disse Lien-hua –, o exame toxicológico, lembra? Drogas diferentes para Alexis e Bethanie. – Ela bateu com a mão na mesa. – Ele não aguenta dividir os
holofotes com outra pessoa.
– Está nos dizendo quais são as dele – resmungou Margaret.
Espere aí. Jamais presuma. Formule teorias, teste-as, revise-as.
– Tudo bem – eu disse. – É só uma hipótese, mas vamos ver o que temos. Se outra pessoa matou Alexis – se descobriu sobre as fitas e as peças de xadrez, não sei como,
mas suponhamos que tenha descoberto – então o Ilusionista...
– Grolin – disse Margaret.
– Seja ele quem for, está acompanhando o caso pelo noticiário, certo, Lien-hua?
– Com certeza.
– Ele fica sabendo desse outro corpo, sabe que não foi ele quem matou, e não quer... como você disse?
– Dividir os holofotes.
– Certo. Então ele decide conectar os crimes para nós de outra forma – uma forma que ninguém poderia possivelmente copiar, deixando pistas das suas futuras vítimas.
Assim, ele continua fazendo seu jogo, mesmo com outra pessoa pondo a mão no tabuleiro e começando a roubar algumas peças.
Todos pareciam acompanhar minha linha de raciocínio.
– Muito bem – eu disse. – Vamos trabalhar em cima dessa teoria, mas antes de tirar quaisquer conclusões, vejamos se a escova de cabelo revela alguma coisa.
Ralph começou a apontar para cada um de nós, como um sargento distribuindo as tarefas de uma planilha.
– Lien-hua, revise o perfil psicológico baseando-se em cinco vítimas, não sete – deixe Alexis e Bethanie de fora. Pat, recalcule os números no seu programa de computador
geo-sei-lá-o-quê. Vamos ver no que isso dá. Vou preparar a sala de interrogatório.
Margaret ficou imóvel ao lado da mesa, atordoada.
– Dois assassinos – eu a ouvi murmurar quando passei por ela, indo para a minha mesa. – E um deles sabe onde eu moro.
44
Aaron Jeffrey Kincaid só conhecera um psicopata de verdade na vida.
Na adolescência, Aaron passara quatro meses num lar coletivo estatal para adolescentes no sul do Mississippi. O Estado não chamava mais esses lugares de orfanatos.
Claro que não. Soava muito negativo. Em vez disso, era um “lar coletivo”. Como se chamar um lugar de “lar” o transformasse num lar. Como se alguma coisa pudesse
fazer isso.
Naturalmente, a ideia continuava a mesma – crianças que perderam os pais e não eram mais bebezinhos lindos e fofinhos que casais pudessem querer adotar moravam juntos
até “ter idade suficiente para se mudar e virar um fardo pra sociedade”. Pelo menos era isso que os funcionários do lar coletivo diziam, quando achavam que as crianças
não estavam ouvindo. Era a ideia deles de piada.
E foi lá que Aaron Jeffrey Kincaid conheceu o psicopata – durante sua estada no Lar Coletivo Oak Island, em La Cruxis, Mississippi.
Sevren era como um lago cinza e frio com correntezas profundas. No primeiro dia de Sevren ali, ele cruzou o caminho de Lucas – um veterano do colégio quase seis
anos mais velho que ele que parecia um gorila – no corredor. Lucas aterrorizava todas as outras crianças, e todas o odiavam, mas nenhuma ousava contrariá-lo.
Os dois alunos ficaram frente a frente, se encarando, nenhum dos dois se mexendo. Nenhum dos dois recuando.
– Saia do caminho – disse Lucas, fuzilando o recém-chegado com o olhar.
Sevren só ficou olhando para ele. Sem expressão. Impassível. Imóvel.
– Saia do caminho, eu falei – rugiu Lucas, chegando mais perto.
Ele empurrou Sevren contra a parede e deu um soco forte no estô mago dele. Enquanto Sevren ofegava, Lucas se curvou.
– Eu soube da sua mãe, garotinho. O que ela fazia pra ganhar a vida. Ela mereceu ser cortada.
E então algo aconteceu. Algo se partiu no menino magrinho que acabara de chegar. Com a rapidez de uma cobra, ele pegou o garoto mais velho pela garganta e apertou.
Lucas espancou Sevren com seus punhos enormes, mas sem nenhum efeito. Cinco outros meninos tiveram que juntar forças para arrancar Sevren de cima dele, e Lucas passou
os quatro meses seguintes no hospital, reaprendendo a engolir.
Naturalmente, as outras crianças ficaram felizes com Lucas fora de cena. Assim, quando a direção perguntou sobre a briga, todos disseram apenas que Sevren agira
em legítima defesa, o que era em grande parte verdade. E em vez de enviá-lo para a detenção juvenil, permitiram que ele continuasse no lar.
Sevren se tornou uma serpente enrolada, sempre observando, sempre avaliando, sempre calculando. Mas o que mais impressionava Aaron não era a força física do seu
colega de quarto, mas sua capacidade de manipular as pessoas, de controlá-las. De fato, ele era quase tão bom nisso quanto Aaron Jeffrey Kincaid.
Quase tão bom, aliás, quanto o Pai.
Mas, claro, não é isso que torna uma pessoa um psicopata, simplesmente ter a capacidade de manipular os outros. Se fosse assim, alguém poderia até considerar Aaron
Jeffrey Kincaid um psicopata. Mas não, a persuasão, embora seja admirável, não basta. Para ser um psicopata, você precisa ser desprovido de empatia. Precisa ter
uma indiferença completa pelo que outras pessoas estão sentindo ou experimentando.
Agora mesmo, Kincaid se lembrou de ter visto pela CNN quando Gary Ridgway, o Matador de Green River, fora capturado em 2001, ao final de 19 anos de matança no Noroeste.
Depois que ele fora condenado por matar 48 mulheres (alegando ter matado outras 41), os investigadores lhe perguntaram o que o tornava diferente das outras pessoas,
e ele resumira tudo em palavras simples:
– Essa coisa de gostar.
Aos psicopatas falta essa coisa de gostar. Eles agem por impulso, não sentem culpa, não reagem emocionalmente como o resto do mundo reage, e têm uma necessidade
insaciável de poder e controle. Alguns não sentem medo. Alguns não conseguem se realizar sexualmente a menos que a outra pessoa esteja sentindo dor, morrendo ou
morta. Em geral, é a agonia dos outros que proporciona o maior prazer aos psicopatas.
Sevren era assim. Sem consciência. Sem culpa. Sem medo. Sem arrependimento.
Dizem que os psicopatas começam a exibir sinais de sua patologia aos 15 anos de idade.
Sevren desabrochara cedo.
Um dia, depois da aula, Aaron se escondera atrás da ala sul do lar coletivo para fumar longe da janela da família que administrava o lar. Era abril no Mississippi.
Quente e úmido. Dava até para sentir o gosto da umidade.
Assim que acendeu o cigarro, ele ouviu sons na floresta próxima. Guinchos. Agudos, primais, inumanos. Os ruídos vinham de uma clareira logo à frente. Aaron conhecia
o lugar. Os adolescentes, às vezes, se encontravam ali, à noite, para beber ou fumar maconha em volta de uma fogueira.
Ele ouviu o som de novo. O que era aquilo?
E então, uma risada. Baixa e calma. E uma voz fria se derramando por entre as árvores.
– Você gosta disso, não?
Aaron percebeu um movimento no riacho e enveredou silenciosa mente pelo caminho.
Mais um uivo, desta vez mais agudo. Definitivamente não era humano. Algum animal.
O que estava acontecendo? Ele precisava ver.
Mas então o guincho foi interrompido abruptamente, engolido por uma erupção de sons estranhos, úmidos, borbulhantes.
– Pronto. Assim está melhor – disse a voz.
Aaron se aproximou e espiou através do mato. Estava perto o suficiente, agora, para ver uma figura ajoelhada, mexendo em algo com as mãos, cantarolando. Aaron não
conseguia ver o que a figura segurava no chão. Aaron deu mais um passo. Quem era? Ele só conseguia ver-lhe as costas.
Talvez tenha sido o movimento, visível com o canto do olho, ou o som abafado dos passos no chão da floresta, mas a figura parou o que estava fazendo. Ficou imóvel.
Aaron também. O tempo parou abruptamente. Para Aaron, aquele momento cheirava a chuva de primavera, flores, terra e sangue, e então a pessoa no riacho se virou lentamente
e se levantou num movimento suave, reptiliano. Aaron o reconheceu na hora.
– Olá, Aaron. – Sevren segurava um canivete sujo de sangue escuro. Mais sangue pingava de suas mãos e antebraços no chão coberto de folhas da floresta. Aaron seguiu
a queda dos pingos de sangue com os olhos. E foi então que viu o que seu colega de quarto fizera com o gato. De alguma forma, a pobre criatura ainda estava viva.
Balançava o que restava de sua cabeça para um lado e para o outro fracamente, finalmente encarando Aaron. O animal tentou olhar para ele. Não tinha mais olhos para
fazê-lo.
– O que está fazendo, Sevren?
– Um pequeno experimento. – Sevren virou um pouco a cabeça para o lado e agitou os dedos, espalhando sangue quente pelas folhas. – Não vai contar pra ninguém, vai?
Por um momento, só por um momento, Aaron pensou em sair correndo. Em algum lugar lá no fundo, sob os estertores do gato agonizante, ele podia ouvir os sons da selva,
os gritos e orações suplicantes das crianças à beira da morte. E os bebês chorando no escuro. Em algum lugar sob os sons.
O sonho o chamava. Ele pensou em fugir de Sevren, daquele riacho, de tudo, escapar como fizera quando tinha dez anos, correndo e correndo e correndo para sempre,
mas desta vez ficou parado. Algo o manteve ali, atraiu seus olhos para a cena horripilante. A voz de Sevren ficou sombria.
– Se você contar, Aaron, talvez eu precise contar o que aconteceu com Jessica. O que realmente aconteceu.
As palavras o atingiram como um soco no estômago, deixando-o sem fôlego para responder.
– Quê? – Aaron procurou os olhos de Sevren. Ele não tinha como saber.
– Jes-si-ca. – Sevren disse o nome lenta e deliberadamente, saboreando cada letra. – O que realmente aconteceu com ela. – Sevren sorriu e passou o canivete no pulso,
não para cortar a pele, apenas para demonstrar que sabia o que Aaron Jeffrey Kincaid tinha certeza que ninguém no mundo sabia. Sevren continuou.
– Eu vi a cicatriz no seu pulso, semana passada, quando você trocava de roupa, e lembrei o que aconteceu com Jessica Rembrandt mês passado. Não foi difícil juntar
as peças. Primeiro pensei que talvez você tivesse planejado se matar junto com ela, e na última hora perdeu a coragem e não conseguiu prosseguir. Mas... não foi
isso que aconteceu, foi? – Ele parou, mas não por muito tempo. Não era uma pergunta, na verdade. – Você convenceu Jessica, certo? – Com as últimas palavras, sua
voz, sua postura, seu tom mudaram de um frio julgamento para uma admiração empolgada. – Você conseguiu convencê-la.
Quando Aaron não respondeu, Sevren balançou a cabeça. Jogou mais sangue das pontas dos dedos.
– Sim. Como imaginei.
Aaron não conseguia pensar em nada para dizer. Não sabia se era raiva ou medo ou nojo o que inundava sua alma.
– Eu a amava – falou, por fim.
Sevren balançou a cabeça.
– Sim – ele disse simplesmente. – Eu sei. – Uma pausa. Então ele continuou. – Bom, se você não contar, eu não vou contar. Vamos ter dois segredinhos entre nós: a
garota e o gato. – Ele pôs um dedo ensanguentado sobre os lábios para simbolizar o pacto de silêncio. – Shi.
Aaron coçou distraidamente a cicatriz recente no pulso. Ele balançou a cabeça.
– Não vou contar.
Sevren olhou para baixo, para o gato que se contorcia, cujas patas ele havia amarrado a quatro estacas. Então ele voltou a olhar para Aaron.
– Jura que quer morrer seco se contar?
Aaron balançou a cabeça. Sevren tirou uma fita amarela do bolso e voltou para o gato. Então ele olhou para Aaron.
– Pode ficar, se quiser. Estou chegando na melhor parte.
E Aaron ficara. Até ele terminar. E depois, até um pouco mais. Tempo suficiente para ouvir Sevren falar sobre sua mãe.
45
Os dois meninos estavam sentados juntos perto da fogueira. Tinham aceso um foguinho e estavam fumando e contando histórias. Aaron contou a Sevren sobre seus pais,
sobre a selva e os bebês e o seu destino.
E então Sevren, enquanto enfiava um galho longo na fogueira, contou a Aaron o que ele vira quando finalmente saiu do armário.
15 de julho de 1981
Memphis, Tennessee
19h17
O menino de 9 anos viu a mãe se curvar sobre ele e sentiu seu beijo úmido na testa. Ela tinha um cheiro doce com aquele perfume.
– Agora fica quietinho como um bom menino e não interrompe o trabalho da mamãe. Entendeu?
O menino fez que sim.
– Sabe o que vai acontecer se você interromper a mamãe?
Ele fez que sim de novo. O ar-condicionado tossiu e engasgou na janela do trailer duplo que eles chamavam de lar. Ela sorriu com sua boca grande e funda. Faltavam
cinco dentes nela.
– Sabia que você ia ouvir a mamãe. Sabia que você ia ser um bom menino.
Mais uma vez, Sevren fez que sim. Ele não queria ser um mau menino. Não gostava do que acontecia com ele quando era um mau menino. Não gostava de ter que passar
a noite trancado no armário. Queria agradar sua mãe, claro que queria, como qualquer bom menino iria querer.
– Venho buscar você assim que puder – ela disse. E então a mudança aconteceu nela, a estranha mudança que a transformava em alguém que ele não reconhecia. Às vezes,
significava que ela não estava tomando os remédios. Outras vezes, que ela tomara demais. Seu rosto ficou terrível e vermelho, sua voz, furiosa e dura. – Não quero
ouvir um pio, garoto! Não ouse dar um pio. Sua mãe tem que trabalhar, entendeu?
Mais um gesto afirmativo. Seus olhos estavam arregalados; seu coração, disparado. E assim, Sevren entrou voluntariamente no armário do quarto e se sentou no chão.
Não iria demorar, se ele obedecesse. Então sua mãe fechou a porta do armário e o trancou. Agora ele não podia sair. Agora ela estava no controle.
Ele olhou para a nesga de luz que entrava pelo vão entre a parte de baixo da porta e o chão. Logo ela sumiria, quando sua mãe apagasse a luz do quarto.
Sevren ouviu a porta do trailer se abrindo, a voz rouca de um homem e as risadinhas joviais de sua mãe fingindo estar interessada nele. Era o trabalho dela. O menino
sabia disso. Então ele ouviu a porta do quarto abrindo e fechando. Alguns minutos depois, a luz do banheiro se apagou e sua mãe começou a fazer o seu trabalho.
E aí vinham os sons que ele não entendia bem. De alguma forma, eram assustadores, lindos, suaves e reconfortantes, tudo ao mesmo tempo. Mas ele não gostava de ouvi-los,
por isso ficava no armário fazendo o que sempre fazia: jogando mentalmente. No início, quando ele era mais novo, era o jogo da velha. Ele fazia os dois lados, primeiro
o lado do X e depois o lado do O, rodando a folha em sua mente para poder ver o jogo da perspectiva do seu oponente, que era ele mesmo, na verdade. Mas ele acabou
entendendo que no jogo da velha, se você sabe o que está fazendo, nunca perde. E como ele jogava pelos dois lados, também nunca conseguiria ganhar. Aquilo o cansou
rápido.
Então ele aprendeu a jogar damas. De início fora muito mais difícil manter todas as peças no lugar em sua mente, lembrar quais ele movera e que peças comera. Ele
demorou muito tempo para conseguir treinar sua mente em lembrar o progresso de todas as pedras vermelhas e pretas enquanto elas se moviam pelo tabuleiro, mas com
o tempo conseguira fazer isso também. Ele tinha muito tempo no armário para praticar quando não fazia o dever de casa ou quando contrariava a sua mãe.
Mas logo ele descobriu que as estratégias para ganhar nas damas também eram limitadas. Portanto, acabou encontrando o xadrez. No xadrez, as possibilidades eram quase
infinitas. E não importava tanto quem fizesse a primeira jogada. Sim, as brancas tinham uma pequena vantagem porque saíam primeiro, mas qualquer um dos dois lados
podia vencer. Qualquer um podia perder. Ele podia realmente ganhar de si mesmo.
Mas naquela noite, a noite do Homem Zangado, algo estava diferente. Normalmente, Sevren era muito bom em bloquear os sons, fazendo com que não parecessem tão reais,
mas naquela noite os sons quebraram a barreira e conseguiram entrar no armário com ele. Havia uma urgência diferente naqueles sons. Viraram gemidos e ameaças, e
ele ouviu sons que não deveria ter ouvido. Sons de pancadas. Sons de coisas rasgando, sons úmidos. E então, um som de corte, de algo se abrindo, que ele esperava
nunca mais ouvir. Tentou cantarolar para bloquear os sons, mas não adiantou.
E ele não se mexeu. Não ousava se mexer até que sua mãe viesse buscá-lo.
Ele esperou, até depois que ouviu a porta do quarto abrindo e fechando, e depois a porta do trailer batendo. Mesmo depois que os sons de gemidos fracos no quarto,
do outro lado da porta do armário, sumiram e tudo ficou em silêncio. Ele continuou esperando. Jogando xadrez. Ganhando. Perdendo. Era tudo a mesma coisa, no final.
Ele esperou e jogou e esperou e jogou. Esperou até não poder esperar mais.
– Mamãe? – ele finalmente sussurrou. Sua voz estava rouca, e nem parecia sair de sua garganta. – Você está aí?
Nenhuma resposta. Nenhum som. Será que ela estava dormindo? Ele não queria acordá-la. Tinha medo do que ela poderia dizer. Mas era estranho ela pegar no sono naquele
momento. Normalmente, ela vinha e destrancava a porta do armário assim que podia, às vezes, até antes de terminar de contar o dinheiro.
– Mãe?
Ele ouviu sua voz ecoar pelo armário, mas nenhuma resposta veio de sua mãe, nenhum som do quarto, a não ser o ar-condicionado tossindo e, com um estertor duro e
metálico, finalmente morrendo definitivamente na janela.
À medida que as horas passavam, seus chamados se tornaram gritos, depois berros e depois uivos, e então tudo simplesmente degenerou em soluços. Ele gritava, implorava
que a mãe viesse, mas ela não vinha. Ele bateu na porta até ficar com as mãos em carne viva, mas ela não respondeu. Por que ela não vinha? Não o amava?
Depois de algum tempo, as lágrimas pararam.
Ele tentou jogar xadrez de novo, tentou imaginar o tabuleiro e as peças, mas em sua mente o tabuleiro havia sido derrubado. Todas as peças estavam espalhadas pelo
chão da sua imaginação. Ele não conseguia mais endireitá-las. Por mais que tentasse, elas continuavam caindo, se derramando pelo chão. Espalhadas. O jogo estava
encerrado.
– Mãe!
Ele se jogou contra a porta do armário, várias e várias vezes, gritando com voz exausta e rouca. Mas sua mãe não respondeu e não veio tirá-lo de lá. Ele tentou virar
a fechadura trancada muitas vezes, mesmo sabendo que não conseguiria abri-la.
Pela manhã, ele não estava mais gritando. Não estava mais batendo. Estava apenas sentado no canto, sentindo o cheiro estranho e levemente podre que vinha do outro
lado da porta. Ele passou aquele dia inteiro no armário.
Oh, como ele queria que o ar-condicionado estivesse funcionando.
Foi no final daquela tarde que ele começou a notar as moscas. Algumas entraram pelo vão da porta e se juntaram a ele no armário abafado. Ele tentou espantá-las,
mas elas zumbiam ao redor dele como uma nuvem raivosa e escura.
Havia muitas moscas.
No terceiro dia, só depois que ele pegou o guarda-chuva que encontrou no canto do armário e usou a ponta para abrir um buraco na madeira que ele aumentou até conseguir
enfiar a mão e destrancar a porta, só então ele conseguiu sair para o quarto.
Só então.
A penumbra conferia a tudo um estranho brilho avermelhado.
– Mãe?
Só então ele viu a cama.
– Você está aí, mãe?
Só então.
Uma forma estava debaixo das cobertas, mas os lençóis estavam enrolados e estendidos sobre o volume inerte de um jeito confuso, desajeitado. Poças e manchas escuras
marcavam os lençóis, a parede e a cabeceira da cama. Moscas andavam na testa de sua mãe, e ele não conseguia entender por que ela não as espantava.
– Que cheiro é esse, mãe?
Ao lado dela estava o lenço amarelo. O seu preferido. Aquele que ela gostava de usar em ocasiões especiais.
– Me deixa ajeitar suas cobertas, mãe.
E foi o que ele fez. Até pegou o lenço amarelo e o amarrou delicadamente naquele cabelo ruivo duro e empapado.
Só então.
– Pronto, mãe. Assim tá melhor. Agora tudo vai ficar bem. – E ele se deitou ao lado dela e a abraçou, enquanto as moscas andavam pelos braços dele.
Só então ele parou de jogar xadrez mentalmente para sempre. As peças haviam caído tão fora de alcance que ninguém jamais as encontraria de novo.
Aaron Jeffrey Kincaid se lembrou dessa história, se lembrou de como conhecera Sevren no lar coletivo, se lembrou de ter visto o que ele fizera com o gato usando
apenas um canivete. Ele se lembrou de tudo isso quando estava na Carolina do Norte no verão passado pesquisando a Q875, porque fora então que ele ouvira falar das
peças de xadrez, dos cortes e das garotas mortas com fitas amarelas no cabelo.
E quando ele ouviu, ele soube. Tinha que ser Sevren. Tinha que ser. O momento era perfeito, na verdade.
Porque quando as jovens do Sudeste começaram a aparecer mortas, ele percebera quase na hora como resolver o problema que surgira envolvendo duas pessoas da família.
A solução parecia bastante clara. Permitiria dar um jeito em Bethanie e Alexis sem chamar atenção indevida para sua família ou para os planos que eles prepararam
tão cuidadosamente.
Ele não precisava garantir que a polícia jamais descobrisse que fora outra pessoa que assassinara duas das garotas. Só precisava ganhar um pouco de tempo. Até 27
de outubro, e então, depois disso, não importaria mais. Porque nas três semanas seguintes haveria tantos outros cadáveres para processar que o mundo nem se lembraria
daquelas duas jovens mortas.
Algumas cicatrizes devem ser acariciadas para sempre.
Oh, sim, o Pai ficaria muito orgulhoso.
46
Não conseguimos encontrar Joseph Grolin.
A equipe do xerife Wallace visitou os escritórios da MountainQuest. Ele grunhiu ao relatar a visita para Ralph e eu: sim, Grolin aparecera para trabalhar naquela
manhã, mas não, não sabiam aonde ele tinha ido. Sim, sabiam o que estava escrevendo: um artigo sobre guias de rafting da Carolina do Norte que passam o inverno trabalhando
nas encostas de Vail, Colorado, como instrutores de esqui, mas não, não tinham ideia de onde ele poderia estar. Sim, ligariam caso descobrissem o paradeiro dele.
Sim, sim, sim, e agora vocês podem sair daqui? Estão atrapalhando nossa produção.
Enquanto isso, uma equipe de peritos vasculhava os escombros da casa de Grolin em busca de qualquer evidência de que ele tivesse levado Jolene para lá. Qualquer
coisa. A última coisa que eu soubera era que eles tinham achado uma câmera de vídeo na mata, com um celular transmitindo as imagens. Eu havia mandado que eles procurassem.
Afinal, imaginei que de algum lugar ele estaria olhando.
Infelizmente, não conseguiram recuperar nada substancial do timer da bomba ou do mecanismo de ignição. Foi uma grande decepção, porque isso poderia nos levar a um
fabricante ou distribuidor de munições.
Brent fez algumas verificações e descobriu que quatro dos corpos haviam sido desovados em destinos populares de escalada abordados em matérias da revista MountainQuest.
Ainda nenhum sinal da outra metade do cadáver de Jolene.
Mas encontraram o outro carro de Grolin – sua van. Estava no estacionamento de um Wal-Mart. O serrote que faltava no porão estava no porta-malas, com o sangue de
Jolene na lâmina.
Uma equipe estava indo de porta em porta no bairro de Margaret para saber se alguém notara alguma pessoa suspeita perto do carro de Margaret, mais cedo. Até aquele
momento, nada. Foi dado um alarme geral sobre Joseph Grolin, e policiais de todo o sudeste estavam à procura dele. Apesar de nossos esforços para manter a investigação
na surdina, assim que os canais de notícias descobriram que Grolin estava listado como “pessoa de interesse” no caso e que sua casa explodira, começou o frenesi
da mídia. Uma hora depois, os principais canais de notícias estavam entrevistando todos que tivessem qualquer coisa a ver com a vida dele, até sua professora do
ginásio. “Como se sente sabendo que conheceu o Estrangulador da Fita Amarela?” Afinal, nas redações jornalísticas, você é culpado até prova em contrário. E continua
sendo manchete até a audiência cair o suficiente ou o próximo crime hediondo acontecer.
Fiz um cruzamento de informações comparando os dias de férias, folgas e faltas do trabalho de Grolin com as datas dos homicídios. Não me surpreendi ao descobrir
que ele estava no trabalho durante as mortes de Bethanie e Alexis, mas parecia estar sempre em campo, pesquisando para algum artigo ou de folga nos dias dos outros
raptos e homicídios.
Ainda não fazíamos ideia de onde ele estava.
No geral, o dia fora uma montanha-russa cansativa de empolgações e decepções, descobertas e frustrações, e no momento eu podia sentir meu corpo entrando em parafuso,
em colapso, física e emocionalmente. Não era um bom sinal. Eu precisava dormir, e ainda precisava enfrentar uma viagem de carro de duas horas para pegar Tessa no
aeroporto em Charlotte.
Também precisava fazer o check-in no meu novo hotel e desfazer as malas que vinham me seguindo pelo país havia uma semana. Avisei Margaret de que iria sair um pouco,
e ela respondera com um aceno de cabeça, sem dizer uma palavra.
– Me liga se surgir alguma novidade – eu disse. Peguei o carregador com Ralph. Ainda estou usando o celular dele.
Mais um aceno silencioso. Ela estava pior do que eu imaginara.
Naturalmente, eu entendia. Encontrar meio cadáver no carro faz isso com a gente.
Deixei meu equipamento de escalada no banco de trás do carro alugado, mas levei o resto da bagagem para o saguão do hotel em frente ao prédio da administração federal.
Um jovem casal de mãos dadas estava atendendo na recepção.
A mulher ria de tudo o que seu parceiro dizia, e quando não estava rindo, sorria para ele de um jeito bastante tímido. De cabeça erguida e peito estufado, ele foi
para o elevador com a pose de um caubói disposto a tocar mil cabeças de gado através do estado por seu amorzinho.
Era encantador. Eles estavam apaixonados. Era perfeito. Tive que desviar o olhar.
Fiz o check-in e fui para o elevador, até o segundo andar, no fim do corredor, suíte 217, enfiei o cartão na fechadura, arrastei os pés sobre o carpete puído e desabei
na cama. Mal me lembrei de pôr o celular de Ralph para carregar antes que meus olhos se fechassem e tudo desaparecesse numa névoa sonolenta.
O sono veio aos trancos e barrancos. Pedaços de sonhos confusos misturados com momentos de vigília, seguidos mais uma vez pelo puxão fraco, incerto e impotente do
sono. Eu fazia planos para ligar para a recepção e pedir que me despertassem... planos para programar o alarme para as 16h, para não perder o voo de Tessa... planos
para olhar meus e-mails... mas os planos logo murchavam e desapareciam, e a escuridão, espessa e profunda, tomava conta de mim de novo.
Sono.
Nos meus sonhos, eu via sobretudo cadáveres. Garotas lindas, graciosas, com as gargantas cortadas e os pulsos algemados. Rindo e flertando num momento, sufocando
e morrendo no momento seguinte. Rostos de vida e máscaras de morte, risadas e lágrimas se sobrepondo numa confusão de sangue e gritos e sonhos de verão. Inchadas
e distorcidas, jovens e atraentes. Olhos que riam. Olhos imóveis me encarando.
Jolene. Mindy. Tessa.
A garota apaixonada do saguão.
Lien-hua.
Christie.
Nos momentos em que meus olhos se abriam, olhava para o relógio na cabeceira da cama e descobria que o mundo desperto avançara alguns minutos, ou até meia hora.
E então eu voltava a mergulhar nos meus pesadelos de beleza e morte.
Um alarme contra incêndio disparou, ou então era o telefone tocando, ou talvez fosse um despertador em algum lugar. Minha mente adormecida não sabia o que era, e
não estava nem aí. Parte de mim combatia a ideia de acordar como se fosse a mesma coisa que morrer. Continue vivo. Continue vivo. Dormir é a única maneira de continuar
vivo. Não acorde. Nunca acorde. O som recomeçou. Persistente. Não desistia. Eu gemi e rolei na cama. Aquilo não parava. Pegar Tessa. Você precisa ir pegar Tessa.
Consegui forçar meus olhos a abrir.
15h45.
O quarto estava em silêncio.
Aos poucos, o espaço e o tempo começaram a fazer sentido novamente. Eu estava num quarto de hotel com paredes verde-musgo e uma cama que rangia. Jolene estava morta
e Christie também. Elas não voltariam mais. Nunca mais acordariam. Nunca mais. Eu não programara o alarme. Não houvera um incêndio. Uma casa explodira pertinho de
mim mais cedo. Meu ombro doía muito, mas muito.
Notei uma luzinha piscando ao meu lado. O celular de Ralph. O toque viera dele. Só um celular tocando. Eu tinha dois recados na caixa postal. O primeiro era de um
número desconhecido.
– Pois não, hã, dr. Bowers, disseram que eu encontraria o senhor neste número. Aqui fala o agente especial Eric Stanton – a, hã, escolta de Tessa, isto é, o acompanhante
dela. Fomos desviados para Chicago por causa das nevascas no meio-oeste – o senhor deve ter visto no noticiário. Bom, não estão autorizando nenhum pouso ou decolagem
no momento. Está tudo parado. Vamos ter que ficar aqui no mínimo até amanhã. Ligo mais tarde, quando tiver mais informações. Vamos passar a noite num esconderijo
do FBI aqui em Chicago. – Ele deu alguns detalhes de onde eles estariam e em qual telefone eu poderia achá-lo, e terminou me garantindo que Tessa estava bem, mas
que ela não queria me mandar nenhum recado.
Bem, isso não era surpresa.
Na verdade, fiquei aliviado por não ter que dirigir até Charlotte naquela noite. Assim meu ombro poderia se recuperar um pouco. Ouvi o segundo recado enquanto andava
pelo corredor, indo buscar gelo para pôr no ombro. Era de Terry Wilson, meu amigo na Agência de Segurança Nacional. Retornei a ligação na hora.
– Ei, Terry, aqui é Pat. Desculpe não ter atendido sua ligação.
– Esta linha é segura?
– Sim, é o celular de Ralph – eu disse. – Sinal codificado no nível 5-C.
– O meu é só 4-D. – Ele pareceu um pouco contrariado. Enchi o balde de gelo.
– O que tem pra mim, amigo?
– Pat, escuta. Sebastian Taylor era espião.
– Quê? – Terminei de encher o balde e me virei para voltar para o quarto.
– Provavelmente da CIA. Talvez da Agência de Segurança Nacional. É meio difícil decifrar tudo isso. Na década de 1970, os diplomatas de baixo escalão que trabalhavam
no exterior, em sua maioria, eram agentes de algum tipo. Lembre-se, era a época da Guerra Fria. A ameaça do comunismo estava em toda parte. A questão é que ele estava
operando na América do Sul em novembro de 1978.
De volta ao quarto, me sentei na cama com as costas para a parede e fechei o saco de gelo.
– E...?
– Já ouviu falar de Jonestown12?
– Jonestown? Não está falando do pessoal que tomou Ki-Suco?
– Sim. Jim Jones e o Templo do Povo, se lembra daquilo tudo?
– Vagamente. – Pus o gelo sobre o ombro e me apoiei na parede. Ardeu, mas de um jeito bom.
– Bem, escuta, Pat. Andei verificando, e encontrei alguns comunicados da CIA originados no complexo de Jonestown. Um chegou às 3h29, na noite da tragédia. De acordo
com os arquivos, no entanto, agentes da CIA só chegaram ao local dois dias depois. Então quem fez aquela comunicação? Também encontrei referências a uma fita, Q875,
relacionada ao nome de Taylor. Mas alguém se esforçou muito para esconder essa relação. Pat, escuta, isso é um barril de pólvora. Muitas operações secretas internacionais
estavam acontecendo naquela época. Não sei ao certo quão fundo você quer fuçar nesse negócio.
– O quanto for necessário pra achar nosso assassino. De alguma forma, Taylor está ligado a essa série de homicídios. Uma das garotas telefonou pra ele, parece que
tentou alertá-lo... oh!
– O que foi?
– As transcrições das ligações dela. Eu devia ter lido hoje de manhã. Tinha esquecido completamente. É que hoje foi... como posso dizer... um dia “interessante”.
– Escuta, o governador é um homem poderoso, Pat. Os democratas estão com a eleição pra presidente de 2008 praticamente no bolso; isto é, estamos a algumas semanas
da eleição, e sei que você viu as pesquisas. Tem gente dizendo que Taylor já está sendo preparado pra ser o candidato republicano em 2012.
– Não se preocupe – eu disse. – Vou tomar cuidado. Ligo para você amanhã de manhã. Preciso verificar umas coisas. Até lá, veja o que mais você consegue descobrir.
Está bem?
– Pat, acho melhor não...
– Terry, hoje achamos o tronco de uma garota no porta-malas de um carro. Alguém a serrou ao meio e de alguma forma o governador está envolvido nisso. Descubra tudo
o que puder pra mim. – Ele suspirou.
– Tudo bem, então, vou fazer isso. Até amanhã.
Desliguei o celular e peguei meu caderno. Eu precisava limpar a mente e processar o que sabíamos até o momento. Mesmo que levasse a noite toda, eu precisava começar
a entender aquele caso.
47
Ao pé das Montanhas Sangre de Cristo
Norte do Novo México
15h55, Hora da Costa Leste
– A previsão é que vamos chegar no Tennessee às 17h de amanhã – Kincaid disse para o monitor de vídeo. Ele viu Theodore fazendo que sim com a cabeça na sala de estar
da casa na Larchmont Street, em Asheville, Carolina do Norte. – De lá, seguiremos de carro. – Ele não queria despertar suspeitas chegando num aeroporto no mesmo
Estado onde ia acontecer o almoço.
– Espero você no aeroporto com o furgão – disse Theodore. – Está tudo pronto.
– Houve mais algum problema?
– Não, Pai.
– Preciso te contar uma coisa. – Sua voz tinha um tom duro de reprimenda. – A segunda garota não estava morta quando você saiu de lá.
Theodore se mexeu na cadeira.
– Eu sinto muito, Pai.
– Mandei pra você os arquivos do caso, até consegui um exemplar do jogo de xadrez certo, falei para você como amarrar a fita, passei todos os detalhes dos crimes.
Você só precisava fazer os locais parecerem iguais aos das outras garotas.
– Sinto muito, Pai. Fiz o melhor...
– Falaremos mais sobre isso quando eu chegar.
Uma pequena hesitação, desta vez.
– Sim, Pai.
Aaron Jeffrey Kincaid encerrou a videochamada e atravessou sua biblioteca até o saguão de entrada.
Com o passar dos anos, o rancho passara de colônia de artistas na década de 1960 a hotel-fazenda para astros do cinema nos anos 1970 e 1980, e depois a lar da escritora
ganhadora do Pulitzer, Olivia Brine, no início dos anos 1990 – e chegara a ser até, durante dois anos, o retiro de fim de semana do bilionário do software Rex Withering,
de quem Kincaid o comprara havia uma década. Mas por mais diferentes que todos os proprietários fossem, eles tinham uma coisa em comum: todos procuravam um lugar
solitário e inspirador ali ao pé das Montanhas Sangre de Cristo.
Kincaid achava irônico que ele e sua família vivessem à sombra de montanhas batizadas em homenagem ao sangue de um salvador.
Ele havia adquirido inicialmente os 1.600 hectares de terra para usar como retiro corporativo para a PTPharmaceuticals, mas depois de vender sua companhia farmacêutica
quatro anos atrás por 650 milhões de dólares, ele fizera do rancho o seu lar e o transformara na moradia de sua família.
Ele saiu e absorveu os aromas de zimbro e pinhão do deserto. O chão arenoso fazia barulho enquanto ele caminhava para o edifício ao lado do curral. Ele enfiou as
mãos nos bolsos da jaqueta. Naquela altitude, outubro era um mês gelado sob os céus solitários e ventosos do Novo México.
Aaron Jeffrey Kincaid escolhera aquela parte do Novo México porque ali no Círculo Encantado o governo deixava todos fazerem o que quisessem. Sim, oficialmente, o
Círculo Encantado recebera esse nome por causa dos 135 quilômetros de estrada que circundavam o Pico Wheeler, a montanha mais alta do Estado. Mas todos os moradores
sabiam que a região se chamava assim, na verdade, por outro motivo. Embora a área tivesse sido colonizada originalmente por missionários católicos, com o passar
dos anos, passara a abrigar uma mistura de vários tipos de espiritualidade que combinavam crenças indígenas com quaisquer aspectos do misticismo oriental que estivessem
na moda. Cristais. Reencarnação. Rituais de wicca13. Qualquer coisa.
Nada daquilo importava para Kincaid. Ele não acreditava em nenhuma dessas coisas. Só estava feliz porque a região era um lugar onde sua família podia desaparecer
por alguns anos enquanto preparava seus planos.
Além disso, por alguma razão, o gado era frequentemente encontrado mutilado naquela região. Alguns diziam que eram os locais que faziam isso para que os turistas
tivessem o que comentar. Outros, que as mutilações eram resultado de encontros com extraterrestres. Para Kincaid, era apenas uma conveniência a mais, já que ele
e sua família precisavam fazer certos testes no gado. Os boatos tornavam mais fácil se livrar das carcaças dos animais.
Aaron Jeffrey Kincaid andou até o edifício especialmente construído à margem do riacho. Era ali que o ambiente de testes havia sido montado. Era ali que Rebekah
e Caleb estavam morrendo de tularemia14.
Embora ocasionalmente o rancho e os prédios circunstantes tivessem hospedado mais de oitenta pessoas, o grupo de Kincaid jamais passara de umas cinquenta pessoas.
Atualmente, contando Rebekah e Caleb, mais as 13 crianças, a família tinha 28 membros.
Com Bethanie e Alexis, teriam sido trinta.
Eram uma família. Sua família.
E por serem uma família, fariam qualquer coisa uns pelos outros.
Rebekah e Caleb estavam sentados juntos no sofá, no ambiente de quarentena. E, como o dr. Andrei Peterov prometera, a infecção bacteriana não apresentara sinais
visíveis até 12 horas atrás.
– Eles ficarão contagiosos quase imediatamente – o dr. Peterov explicou em seu inglês quase impecável. – Embora possam sentir um pouco de náusea, os verdadeiros
efeitos da infecção não serão evidentes senão depois das primeiras 24 a 48 horas. Até lá, claro, será tarde demais para reverter os efeitos – mesmo se os médicos
de alguma forma conseguirem identificar corretamente o agente patogênico.
Depois da Guerra Fria, não era difícil encontrar cientistas russos que ainda simpatizavam com o comunismo, que ainda acreditavam na causa. Muitos ficaram arrasados
nos meses seguintes a 18 de novembro de 1978, quando viram o que os capitalistas americanos haviam forçado uma pequena colônia de comunistas a fazer. Quase mil camaradas
haviam morrido, e o mundo não os lembrava como fiéis dedicados a uma causa, uns aos outros, à compaixão – mas apenas como os membros lunáticos de um culto assassino.
Isso era culpa da mídia. E era por isso que os líderes mundiais da mídia seriam os primeiros a pagar.
Quando a União Soviética desmoronou, a maioria dos cientistas russos que pesquisavam armas biológicas e químicas fugiu para o Oriente Médio ou a Coreia do Norte.
No entanto, um punhado deles se refugiara nos EUA. Kincaid descobriu que não era tão difícil encontrar o cientista certo. Não para quem tivesse dinheiro. Era surpreendente
o que 28 milhões de dólares em dinheiro vivo podiam comprar.
E o dr. Peterov se provara mais que merecedor do seu salário.
Os laboratórios farmacêuticos de Kincaid eram o lugar ideal para aperfeiçoar o processo – tudo em nome da pesquisa e do desenvolvimento. Naturalmente, depois de
vender sua empresa, ele levara aquela pesquisa para seus laboratórios particulares no Novo México.
Mas para que tudo corresse conforme o planejado, ele precisava do agente certo. Bacteriano ou viral, não importava. Simplesmente algo contagioso, pelo ar, se possível.
Indetectável por alguns dias; letal desde o início. E o dr. Peterov lhe entregara o bichinho perfeito.
Rebekah e Caleb estavam abraçados agora, lutando para respirar. Lendo as escrituras sagradas em voz alta, balançando no ritmo das palavras.
Foi ideia do dr. Peterov usar o bacilo gram-negativo chamado Francisella tularensis. Ele fora pioneiro no uso dessa bactéria como arma na Rússia, antes do fim da
Guerra Fria.
– É versátil, capaz de se difundir tanto pela ingestão como em aerosol, fatal em cerca de 35% das vezes, e muito difícil de diagnosticar sintomaticamente – ele dissera
a Kincaid. Juntando alguns genes da febre hemorrágica da Crimeia-Congo (CCHF), ele e sua equipe haviam criado algo quase impossível de se diagnosticar. Muito exótico.
E muito letal.
– E quanto a uma cura? – Kincaid perguntara.
– Não existe nenhuma vacina conhecida contra a CCHF, e a vacina contra a tularemia, a doença causada pela Francisella tularensis, não está disponível para civis.
Naturalmente, desenvolvemos um tratamento, para o caso de sermos expostos, mas sem acesso à nossa pesquisa, o Centro para o Controle e Prevenção de Doenças nunca
vai encontrar uma cura a tempo.
Foram necessários seis anos para descobrir uma maneira de tornar a bactéria contagiosa pelo contato entre seres humanos e torná-la infecciosa o suficiente para elevar
o índice de mortalidade a 85% – um percentual satisfatório, para Aaron Jeffrey Kincaid. Afinal, saber que é muito provável que você vai morrer é mil vezes mais aterrorizante
do que saber que com certeza você vai morrer – porque neste caso você poderia se conformar e ficar em paz; ou do que descobrir que as chances estão a seu favor –
porque aí você poderia sobreviver relativamente bem em negação.
Não, a coisa mais terrível de todas é encarar a vida sem possibilidade de paz ou negação. Sem ter como fugir ou se esconder.
A distribuição parecia ser o principal problema. Inicialmente, ele pensara em usar bombinhas de asma para disseminar a doença – afi-nal, sua companhia farmacêutica
produzia alguns dos mais populares medicamentos para asma, mas seu objetivo não era infectar crianças indiscriminadamente, por isso ele desistira da ideia quase
na hora. Não; ele precisava de um sistema de distribuição mais específico. Pensara em encher os extintores de incêndio com uma versão em aerosol da bactéria e provocar
um incêndio no Hotel Stratford, mas isso parecia complicado demais. Além disso, o hotel era feito de pedra. Finalmente, ele optara por um plano simples. Quase infalível.
Completamente inevitável.
Kincaid olhou para Rebekah e Caleb.
Os efeitos da tularemia-CCHF geneticamente alterada eram bem evidentes, àquela altura: membros que tremiam, ulcerações na pele, gânglios linfáticos inchados, sangramento
pelos orifícios. Era um tanto perturbador de se ver, na verdade. Mas o casal não parecia perturbado ou assustado. Afinal, os dois se ofereceram como voluntários
para aquele trabalho. Para ir embora antes do resto.
Um teste era necessário, afinal, e aquela era a maneira mais fácil de controlá-lo, ali no rancho.
Eles estavam de mãos dadas, olhos fechados, talvez rezando para seu Pai, Aaron Jeffrey Kincaid. Enquanto balbuciavam seus pedidos, uma hemorragia começou nas pálpebras
de Caleb, que vertiam sangue.
Kincaid passara a tarde inteira imerso em pensamentos sobre a selva, vendo os dois morrerem. Os bebês. As seringas e, claro, Jessie Rembrandt e a hidromassagem e
a faca de caça girando lentamente para o fundo da água avermelhada.
E então, finalmente, seus pensamentos se voltaram para Sebastian Taylor, o governador da Carolina do Norte, o responsável por tudo aquilo.
48
Quanto mais me envolvia naquele caso, mais complexo e intrigante ele ficava.
Depois da minha conversa com Terry, passei uns 45 minutos na escrivaninha do meu quarto de hotel, fazendo anotações, traçando linhas para conectar ideias e riscando
páginas inteiras do meu caderno ao eliminar várias teorias. Mal notei como meu ombro ficara entorpecido pelo gelo. Finalmente, sobrou só um saco pingando água, que
eu joguei no lixo.
Primeiro: tínhamos um assassino matando mulheres e deixando os corpos em locais geograficamente significativos. Ele queria que elas fossem encontradas. Estava afirmando
algo para nós, ligando cuidadosamente todos os seus crimes. Além de ser exímio atirador, sabia fazer suturas, ocultar eletronicamente a origem dos seus e-mails e
pode ter crescido na Costa Sul. Pelo modo como as cordas haviam sido amarradas no pescoço das vítimas, ele me parecia ser canhoto. Tinha conhecimentos das áreas
de escalada e cavernas locais e sabia como limpar os locais dos crimes e explodir uma casa.
Um currículo e tanto.
Tentei evitar pensar que fosse Grolin, mas tudo continuava apontando para ele.
Segundo: ainda não tínhamos certeza, mas as pistas pareciam indicar que, em algum momento, outro assassino começou a imitá-lo.
Mas como o imitador ficara sabendo sobre o tipo certo de peça de xadrez, os ferimentos, as fitas amarelas? Os dois assassinos podiam estar trabalhando juntos, claro.
Isso, ou então:
(A) O imitador conhecia o Ilusionista.
(B) Ele vira os arquivos do caso.
Já que eu não tinha como saber se os assassinos se conheciam ou não, só podia investigar a opção B.
Mas será que era possível? Só nossa equipe de investigação tinha acesso aos arquivos do caso. Seria possível que o assassino fosse um membro da equipe?
E quanto à vitimologia do imitador? Como ele estava escolhendo suas vítimas?
Até então, parecia que o imitador tinha feito duas vítimas: Bethanie e Alexis, e talvez outras das quais ainda não sabíamos. Então a pergunta, na verdade, era: o
que Bethanie e Alexis tinham em comum?
Abri os arquivos das duas no meu computador e comecei a comparar anotações, linhas do tempo, relacionamentos. As duas eram do leste, mas de cidades diferentes –
Bethanie de Athens, Geórgia, e Alexis de Roanoke, Virgínia. Ambas fizeram faculdade no oeste por alguns meses. Ambas foram mortas dias depois de voltarem para casa.
Não acredito em coincidências, por isso fiz um lembrete para investigar onde elas haviam estudado. Talvez o assassino tivesse algo a ver com a faculdade.
E também havia o governador Taylor. Como ele se encaixava em tudo isso?
Suspirei e esfreguei o meio do meu nariz.
Bem, como eu não iria para Charlotte naquela noite, talvez pudesse examinar algumas daquelas questões e passar algum tempo refazendo o perfil geográfico baseado
na teoria de que havia dois assassinos em vez de um.
Certo. Ótimo. Um plano. Mas primeiro, antes de mais nada, eu precisava de uma ducha. Depois de subir uma montanha, descer numa caverna, correr até o início da trilha
carregando uma mochila e ficar ao lado de uma casa explodindo, uma ducha parecia uma ótima ideia.
Depois de sair do chuveiro e me enxugar, tirei algumas roupas da mala e notei uma folha de papel caindo no chão.
Eu sabia o que era aquilo. Claro que eu sabia.
A carta de Christie.
Carrego aquele bilhete comigo desde a manhã do Dia dos Namorados em que o encontrei debaixo do meu travesseiro, menos de duas semanas antes que ela morresse. E agora,
como um viciado, eu o pegava. Sabia o que ele fazia comigo quando o lia, mas não conseguia evitar. Ainda o lia quase todo dia. Mesmo sentindo que alguém esfregava
um cacto no meu peito. Porque, de alguma forma estranha, a dor parece ajudar. Ao menos é isso que eu digo a mim mesmo.
Eu me sentei, desdobrei o papel amassado e deixei que meus olhos bebessem as palavras que eu já conhecia de cor.
14 de fevereiro de 2008
Caríssimo Patrick,
ainda consigo ver as luzes da paisagem de Nova York da minha janela. E quando olho além delas, ainda consigo ver você pela primeira vez, toda vez.
Patrick, por favor, não pergunte por quê. Não tente resolver isto. Não sou um dos seus casos. Não existe um criminoso que você possa seguir ou um crime que precise
resolver. As coisas são assim e pronto. Nossas vidas são breves, momentâneas. Agora entendo isso. Não fique com raiva porque meu momento vai acabar antes do seu.
Por favor - não estou tentando ser corajosa. Estou com medo, claro que estou. E confusa e triste e perdida. Dói tanto saber que o maior dos meus sonhos não vai se
realizar - o sonho de envelhecer com você. Mas não posso controlar nada disso. Só o que posso controlar é o que faço com cada momento, com este momento, agora. Posso
ficar amargurada ou agradecida. É a escolha que todos enfrentamos, acho, embora nunca tivesse pensado nisso dessa forma antes. Por isso, fiz minha escolha. Vou ficar
agradecida - por este momento e por cada momento que me resta com você.
Sei que as coisas não vão ser fáceis. Gostaria que elas fossem diferentes, também. Mas você vai ser ótimo com Tessa. Ela te ama de verdade. Ama, mesmo que seja difícil
para ela dizer isso. E ela precisa de você agora. Sei que vocês vão conseguir ajudar um ao outro a enfrentar isto. Não fuja do risco de amá-la. Por favor.
Lembre-se, nossas escolhas decidem quem somos, mas nossos amores definem quem vamos nos tornar. Diga isso a ela, tá? Diga que é algo que a mãe dela queria que ela
soubesse.
E não culpe Deus, Pat. A morte nunca foi ideia Dele. Mas a vida é. Por favor, lembre-se disso. A vida sempre foi ideia Dele.
Ainda consigo ver as luzes de Nova York refletidas nos seus olhos. Sempre vou vê-las. Vou vê-las brilhando hoje à noite. E sempre. Eu te amo, meu namoradão vira-lata.
Sua para sempre,
Christie
Quando terminei de ler, meus dedos estavam tremendo. As lágrimas embaçavam minha visão. As palavras dela me rasgavam o coração e também pareciam me reconfortar.
– Eu sinto muito – murmurei, mesmo sabendo que não havia ninguém ali para me ouvir. Talvez estivesse pedindo desculpas a ela. Não sei. Talvez estivesse dizendo aquilo
para todas as mulheres, garotas, crianças que eu não conseguira ajudar, que não conseguira salvar. – Eu sinto tanto, tanto.
Olhei para o bilhete e notei minhas mãos. A aliança ainda estava no meu dedo; eu nunca a tirara. Tinha guardado as roupas dela também, levando-as comigo para Denver.
A caixa de joias dela ficava na cabeceira da minha cama.
As sombras dela estavam ao meu redor. Traços dela me seguiam por toda parte. Mas ela não estava lá. Só o seu fantasma estava – à espreita, no canto da minha vida.
“Não preciso de nada além de esperança”, Zelda Sayre Fitzgerald escrevera, “que não posso encontrar olhando para trás ou para a frente, portanto acho que o mais
certo seja fechar os olhos.” Às vezes eu tinha vontade de fechar os olhos, como Zelda na ala daquele hospício em chamas, sessenta anos atrás. Fechá-los e nunca mais
abri-los de novo.
“Não fuja do risco de amá-la”, Christie escrevera.
Eu sinto tanto, tanto.
Guardei o bilhete, mas parecia impossível guardar Christie. Um analista me disse uma vez que a depressão é causada pela raiva voltada para dentro.
Eu devia ter muita dessa raiva.
De Deus, talvez, por ter deixado aquilo acontecer, talvez de mim mesmo. Não sei.
Portanto, mais uma coisa, antes de ir para o prédio da administração federal. Eu precisava ver o rosto dela.
Abri meu laptop e olhei para as fotos dela. As fotos bonitas, dela rindo e viva, como as fotos das garotas mortas que passamos para os jornais.
E com cada foto vinha um sentimento, uma lembrança – o gosto primaveril do batom dela, a curva de sua coxa, o brilho que ficava dançando nos seus olhos mesmo depois
que ela parava de rir, o modo como seu cabelo castanho ficava louro sob uma certa luz... jogar gamão naquele café, ficar olhando uma garoa de primavera... o modo
como ela chegava perto – um pouco perto demais – quando queria me contar algo importante... essas eram as imagens que eu escolhera lembrar, embora no final seu cabelo
tivesse caído, suas bochechas tivessem murchado e seus lábios ficado secos, finos e exangues.
Escolhi publicar só as imagens bonitas no meu coração. Acho que é impossível não fazer isso quando se ama alguém.
Por que eu me sujeitava àquilo? Por que não conseguia superar? Por que não deletava as fotos e pronto?
Porque isso teria sido como deletá-la.
E eu não tinha coragem de fazer isso.
Só Deus poderia ser tão cruel, disse uma voz dentro de mim. E me perguntei se era a raiva ou a solidão falando. Acho que não importava. Fosse quem fosse, ainda era
eu.
Fechei o computador e fui até a porta.
Hora de voltar pro trabalho.
Por que ele não morreu? Pensou o Ilusionista. Por que Patrick Bowers não ficou andando pela casa por mais alguns segundos? Facilitaria tanto as coisas. O jogo terminaria
de uma forma tão gloriosa, memorável. Agora, os planos para aquela noite precisavam ser alterados. E Alice teria que esperar até amanhã por seu pequeno encontro.
Era uma pena. Mas ele podia esperar. Ele estava no controle. Além disso, a noite de hoje trazia suas próprias promessas, suas próprias possibilidades. E enquanto
ele pensava em tudo isso, uma ideia lhe surgiu do nada, uma ideia que ele não conseguia tirar da cabeça.
O Ilusionista sorriu e pegou o telefone.
49
O telefone de Aaron Jeffrey Kincaid tocou. Seu número particular.
– Alô?
– Você acertou em quase tudo, Aaron – disse a voz do outro lado da linha. – Mas as peças de xadrez não eram exatamente iguais. E o nó da corda estava do lado errado
do pescoço.
– Quem está falando?
– A princípio, não tinha certeza de que era você, mas quando o segundo cadáver apareceu, eu soube que não poderia ser outra pessoa.
– Sevren?
Uma risada ríspida.
– Já usei muitos nomes nestes anos todos.
Depois de uma pequena pausa:
– Sim. Não estou surpreso.
– Um nome é só outro tipo de máscara.
– Sim, acho que sim.
Mais uma pausa.
– Não foi fácil encontrar você, Aaron.
– Estou tentando me manter longe dos holofotes.
– Sempre vou lembrar os meses que passamos juntos no lar coletivo. Lembra a primeira vez? Na floresta?
– Com o gato?
– Sim. Lembra do que fiz com o canivete?
– Eu lembro.
– Melhorei muito desde aquela época, Aaron.
– Não duvido disso.
– A prática leva à perfeição.
– O que você quer, Sevren?
– Quero que pare de interferir no meu jogo. Ou talvez eu queira que você entre nele pra valer. Ainda não decidi.
– Então. As duas garotas.
– Sim. Você usou o meu trabalho pra esconder o seu. Se lembrou daquelas tardes na floresta, com os animais.
– Não vai haver mais nenhuma. Prometo.
– Mmm. Bem, antes que você jure morrer seco, devo dizer que acho que me usou. E acho que talvez você me deva um favor.
Aaron deveria ter imaginado. De alguma forma, Sevren o localizara. Ele podia contar às autoridades quem Aaron realmente era, e atrapalhar completamente os planos
da família. Tudo poderia estar perdido. Aaron decidiu que precisava avaliar aquela situação com muito cuidado.
– Que tipo de favor você quer? Dinheiro?
– Não, Aaron, não para mim. Quero uma coisa que o dinheiro não pode comprar. Quero que você me ajude a contar uma historinha pra um certo agente do FBI que não sabe
quando deve morrer.
– Estou ouvindo.
E quando Kincaid soube que o agente estava na Carolina do Norte, ele percebeu que era o destino, no fim das contas, que estava reunindo os dois. E ele ficava sempre
feliz em cumprir o seu destino.
50
Quando atravessei a rua rumo ao prédio da administração federal, notei que os peritos haviam terminado de examinar o carro de Mar-garet. Nada restava no estacionamento
para revelar ao mundo que um cadáver estivera ali naquele dia, a não ser um pedaço de fita amarela da polícia voando pelo asfalto. Eu me perguntei como corria o
trabalho da perícia nos escombros da casa de Grolin e na caverna. Provavelmente tiveram que contratar uma equipe de resgate em escaladas para ajudá--los a descer
na caverna.
Ao olhar ao meu redor no estacionamento, notei de relance as cortinas se fechando num quarto no segundo andar do meu hotel.
Espere aí.
Meu quarto ficava no segundo andar.
Contei as janelas.
Nenhuma arrumadeira entraria no quarto tão tarde.
Alguém estava no meu quarto.
Por uma fração de segundo, pensei em entrar no prédio e tentar pedir reforços, mas descartei a ideia imediatamente. Não dá tempo. Quem está no meu quarto já vai
ter ido embora quando a gente chegar.
Atravessei a rua correndo, voei escada acima para o segundo andar e saquei minha SIG.
Abri a porta das escadas e olhei no corredor. Ninguém.
Me esgueirei pelo corredor.
Suíte 231.
Alguém estava seguindo você hoje de manhã quando você chegou.
Suíte 229... 227... 225...
Agora tem alguém no seu quarto.
223... 221... 219...
Levantei a arma.
... 217.
A porta estava fechada, trancada. Encostei o ouvido nela e escutei. Sim, movimento. Alguém estava lá dentro, com certeza.
Enfiei o cartão na fechadura e empurrei a porta devagar. Não conseguia ver todo o quarto, só a entrada. Quem estava lá dentro estava num canto, fora do meu campo
visual, abrindo e fechando gavetas. Limpei a garganta.
– Sou agente do FBI. Tive um dia bem cansativo e estou muito bem armado. Portanto, não se mexa. – Acho que aquelas não são exatamente as palavras que devemos usar,
mas parece que funcionaram.
O som das gavetas parou.
– Se você fizer alguma bobagem, vai morrer – ameacei.
Ouvi a pessoa resmungando alguma coisa.
– Vem pra cá devagar. – Avancei lentamente, segurando firme a arma. – Com as mãos pra cima.
Um homem alto e ossudo, de quarenta e tantos anos, de barba loura desalinhada e orelhas grandes apareceu.
– Não atire! – Suas mãos estavam tremendo. – Sou detetive!
– Quê?
Ele enfiou a mão no bolso.
– Mãos pra cima! Mantenha as mãos à vista.
Ele parou.
– Só estou tentando pegar minha carteira.
– Deixa que eu pego – falei. – Deita no chão. E cuidado com essas mãos. Ele deitou no chão. Senti um cheiro pungente. Urina. O cara molhou as calças. Não era exatamente
o que eu esperava do nosso assassino. Ele estava deitado no tapete agora, com as mãos afastadas.
– Era você hoje de manhã me seguindo de carro?
Ele fez que sim.
Enfiei a mão no bolso dele, tirei a carteira, abri.
– Reginald Trembley, detetive particular? É você?
Ele fez que sim.
Não seja bobo, Pat, tome precauções. Lembre-se, o assassino sabe como se aproximar. Como conquistar a confiança.
Peguei um par de algemas de plástico e as coloquei nos pulsos dele. Apertei bem. Ele grunhiu, mas não me importei. – Isto é só pra gente poder conversar sem que
eu tenha que ficar apontando a arma pra sua cara o tempo todo. Certo?
Ele fez que sim de novo.
Pus a arma no coldre e o revistei rapidamente, para ver se estava armado ou se tinha pegado algo do meu quarto. Ele parecia limpo. Eu o ajudei a levantar e se sentar
na cama, depois perguntei:
– Então, pra quem você trabalha? O que está fazendo no meu quarto?
Ele parecia ter recobrado um pouco da coragem depois de esvaziar a bexiga. Abriu um sorriso irônico.
– Não preciso contar nada.
Eu já esperava.
– Tudo bem. Entendo perfeitamente. – Peguei o telefone do quarto e disquei um número. – Sim, Dante, aqui é Pat. Estou no hotel: quarto 217. Peguei um cara fuçando
nas minhas coisas. Quero que você venha até aqui. Ele não quer falar. Traz as coisas. – Desliguei. Uma onda de medo passou pelo rosto de Reginald Trembley.
– Quem é Dante? – ele perguntou. – Que “coisas”?
Fui até o banheiro, puxei a cortina do chuveiro e voltei para Trembley.
– Dante é um amigo. – Olhei para o relógio. – Ele está do outro lado da rua. Acho que você tem uns dois minutos antes que ele chegue. Se eu fosse você, falaria agora.
Porque quando Dante chegar, as coisas vão ficar complicadas. Dante é muito bom no que faz.
Estendi a cortina do chuveiro no chão, diante de Trembley, e a alisei. Seus lábios estavam tremendo. O cara estava quase chorando.
– Os pais de Bethanie me contrataram – disse ele.
– Bethanie? Bethanie Dixon?
Ele fez que sim. Fui pegar umas toalhas.
– Por quê?
– Acham que ela foi assassinada. Pra que essa cortina de plástico?
– Ela foi assassinada. É pra proteger o tapete.
– Não. Quero dizer pelos membros do culto que ela seguia no oeste. Voltei com as toalhas.
– Culto? Pensei que ela estivesse cursando uma faculdade particular no Novo México.
– Era isso que eles diziam pra esconder as coisas do resto da família. – Ele olhou para a cortina estendida aos seus pés. – Por favor. Não precisa fazer isso.
– Não vou fazer nada, Dante vai fazer. O que mais? Você tem noventa segundos.
A velocidade da fala de Trembley aumentou dramaticamente.
– Bethanie entrou pra um grupo. Não sei quem é o líder, todos só chamam o cara de Pai. Ele diz que estava em Jonestown, sabe Jonestown?
Tirei o ferro de passar roupa do armário.
– Já ouvi falar. Continue.
– Ele diz que tava lá quando era moleque e sobreviveu. Não sei se é verdade ou não. Não precisa desse ferro, ok? Eu tô falando, não tô?
Liguei o ferro na tomada.
– Os pais queriam que eu tirasse a moça do grupo; acho que queriam até processar. – Ele estava falando tão rápido, agora, que eu mal conseguia entender o que dizia.
– Mas aí ele a soltou e ela apareceu morta. Eles têm certeza de que foi o grupo que fez isso, mas a polícia diz que foi um psicopata.
– O que você sabe sobre esse cara que eles chamam de Pai? – Olhei para o relógio. – Um minuto.
– Não sei nada, juro! Não sou tão bom assim. Não descobri muita coisa, e aí quando ela apareceu morta e...
A porta se abriu. Trembley estava tremendo.
– Não, não, por favor. – Ele fechou os olhos.
O xerife Dante Wallace entrou, mastigando um cheeseburger.
– O que está... Que é isso? – ele disse. – Reginald Trembley?
Trembley abriu os olhos.
– Xerife Wallace? Dante é o senhor? – Trembley olhou para mim. – Ele é Dante?
Fiquei olhando, incrédulo, enquanto Dante se abaixava e cortava as algemas de Reginald.
– Vocês dois se conhecem?
– Sai daqui, Reggie – o xerife Wallace disse. – Não quero saber de você atrapalhando esta investigação. Entendeu?
– Sim, entendi. – Reginald Trembley balançou a cabeça, se levantou e saiu tropeçando. Pelo bem dele, eu esperava que tivesse roupas limpas no carro.
– O que está acontecendo? – eu disse. – Ele invadiu o meu quarto.
– Ele é um informante. – Dante olhou para mim. Eu ainda estava com o ferro de passar na mão. – Pra que tudo isso no chão?
– Achei que eu ia derramar alguma coisa – falei. – Ele é detetive particular e informante?
– Olha, Trembley conhece todo mundo. Está na nossa folha de pagamentos há dois anos. Esta região é um dos principais corredores do tráfico de drogas pra Washington
e Nova York pela I75 ou I95, que vêm da Flórida, cruzando a 26 ou a 40. Traficantes de metadona, maconha, policiais corruptos, o que você imaginar. Ele conhece todos.
O cara tem contatos.
– E aí você simplesmente o solta?
– Se o prendermos por uma coisa assim, sairemos perdendo a longo prazo. Ele não roubou nada, roubou?
– Não. Acho que não – falei, suspirando. Desliguei o ferro da tomada. Um passo para a frente, dois para trás. Peguei minha carteira e tirei oitenta dólares. – Toma,
pelo seu celular, Dante. Dou mais para você, se precisar. Desculpa mesmo.
Ele deu mais uma mordida no sanduíche, olhou o dinheiro por um momento e então o aceitou.
– Acho que isso dá. Vou comprar um no caminho de casa. Obrigado.
– Sim.
Ele continuava olhando para as toalhas e a cortina.
– Alguma pista nova no caso?
– Talvez – eu disse. – Vou manter você informado. – Então olhei para o chão. – Melhor guardar essas coisas. Falo com você depois.
Ele olhou para o ferro por mais alguns segundos antes de se virar.
– Tudo bem. Fale mesmo. – Então ele saiu, dando mais uma mordida no seu jantar.
Quando comecei a arrumar o quarto, notei algo no tapete, brilhando sob a luz. Me ajoelhei perto do objeto. Um broche da bandeira confederada.
Como aquele que o governador estava usando.
Deve ter caído da camisa de Trembley quando mandei que ele deitasse no chão.
Decidi que estava na hora de ouvir aquelas transcrições das ligações e ver o que Bethanie tinha a dizer sobre o governador Sebastian Taylor.
51
Assim que entrei no prédio da administração federal, sem perda de tempo, localizei as transcrições dos telefonemas de Bethanie para o escritório do governador Taylor.
À medida que eu lia, percebia que ela estava obviamente aterrorizada, mas também com medo de entrar em detalhes. Talvez temesse algum grampo.
– Diz pra ele que o garoto lembra. Diz que o garoto está vindo – ela repetia sem parar. – Você precisa avisá-lo!
– “O garoto lembra” – murmurei.
Trembley dissera que o líder do culto no Novo México dizia ser um sobrevivente de Jonestown. Ele seria “o garoto”? Terry dissera que o governador Taylor era um agente
da CIA lotado na Guiana na época da tragédia. Esse cara do culto estaria atrás do governador?
Abri meu computador para tentar descobrir que “faculdade” Bethanie e Alexis cursaram no Novo México.
Uma hora depois, estava escuro como breu lá fora, e eu continuava pesquisando, e continuava não encontrando nada. Ouvi passos e levantei a cabeça. Ralph e Lien-hua
entraram trazendo caixas de comida chinesa.
– É a melhor comida chinesa de Asheville – Lien-hua estava dizendo a ele. – O que não quer dizer muito.
Ralph parou abruptamente quando me viu.
– O que está fazendo aqui, Pat? Não tem que ir pegar sua filha no aeroporto?
– O voo dela foi adiado – eu disse. – Chega amanhã de manhã. Lembra quando fui seguido hoje cedo?
Ralph pôs a comida na mesa.
– Sim. Você já sabe quem era?
– Sei. Posso comer com vocês? Estou morrendo de fome.
Entre bocados do mexido de frango e carne do General Tso, eu os informei do que Trembley me contara no hotel e o que Terry me dissera por telefone.
– Jonestown, o governador, os assassinatos, tudo está ligado? – disse Ralph.
– Parece que sim – eu disse. – Li as transcrições dos telefonemas de Bethanie. Ela estava com medo de morrer. E, de acordo com os arquivos do caso, uma das moradoras
do condomínio de Alexis disse que ela parecia nervosa nos dias que antecederam sua morte.
Lien-hua usava os pauzinhos como uma artista usa o pincel.
– Então você acha que talvez esse líder do culto do Novo México estivesse planejando alguma coisa contra o governador, e quando Bethanie e Alexis souberam e tentaram
fugir e avisar o governador Taylor, esse homem, o Pai, mandou matá-las?
Fiz que sim. A teoria explicava muita coisa sobre os locais e datas dos homicídios, mas ainda deixava perguntas importantes sem resposta.
– Devo admitir que é uma obra inacabada.
– Como o Pai descobriu os detalhes dos arquivos do caso? – perguntou Ralph. – Posição dos ferimentos, tipo de corda usada, coisas assim?
Balancei a cabeça.
– Não sei. Alguns detalhes vieram a público, mas não todos.
– Mas por que ter todo esse trabalho de encenar um crime para fazê--lo parecer obra de um psicopata? – perguntou Ralph. – Por que não matá-las apenas e desovar os
corpos?
– A família de Bethanie já estava desconfiada – eu disse. – Por isso Trembley foi contratado. Se ela desaparecesse de repente, isso levantaria ainda mais suspeitas
sobre o grupo, talvez até acabasse com os planos deles.
– E o que sabemos sobre o líder desse culto? – perguntou Lien-hua.
– Quase nada, até agora. Estava tentando encontrar alguma coisa na Internet, mas não achei nada. É como se ele fosse um fantasma. – Suspirei. – Tentei até entrar
em contato com a família de Bethanie, mas eles não retornaram minhas ligações. Podem estar escondidos. Acho que se tivéssemos um pouco mais de informações sobre
Jonestown, isso poderia nos ajudar a entender onde todas essas histórias se cruzam.
Os olhos de Lien-hua brilharam.
– Pensei que você não fosse pedir nunca.
– Como assim?
– Eu pesquisei dinâmicas coletivas e comportamentos de culto para minha tese de mestrado, passei alguns meses estudando o Templo do Povo.
– Está brincando.
– Não. Tive até que fazer o perfil do reverendo Jim Jones.
– Dou o perfil dele numa palavra – disse Ralph. – Maluco. – Ele mordeu um pedaço de frango.
– Se não aprendermos com o passado... – ela começou a dizer.
– Eu sei, eu sei – ele disse. – Estamos destinados a beber cianureto de novo. Lien-hua pousou os pauzinhos.
– Sabe, tem muita coisa sobre todo esse incidente que a maioria das pessoas não sabe.
– Vejamos – resmungou Ralph – tonéis de Ki-Suco misturados com cianureto de potássio e tranquilizantes. Acho que tinha umas novecentas pessoas lá. Eles já tinham
ensaiado o suicídio coletivo. Fizeram fila, tomaram o refresco, morreram na selva. Isso resume tudo. – Ele continuou comendo.
– Não, não e não.
– Quê? – Ele estava de boca cheia. – Como assim?
– O primeiro é só um detalhe técnico – era Flavor-Aid, não Ki-Suco. Segundo: não houve ensaios, ao menos de acordo com os sobreviventes. E terceiro: embora seja
verdade que algumas pessoas tomaram o veneno, muitas delas, para não dizer a maioria, foram assassinadas...
– O quê?! – eu disse. Ela balançou a cabeça.
– Algumas receberam injeções de cianureto, outras foram estranguladas, algumas morreram de ferimentos a bala, outras, atingidas por flechas de besta.
Ralph e eu nos entreolhamos.
– Pensei que todas tivessem tomado o veneno – eu disse. – Suicídio em massa.
– Bebês não cometem suicídio, Pat. Dos 909 mortos, quase trezentos eram crianças, outros duzentos eram anciões. Algumas pessoas estavam dormindo quando receberam
as injeções. Isso não é suicídio. Os paisesguicharam cianureto na garganta dos bebês.
Só pensar naquilo me fazia sentir náuseas.
– Eu nem imaginava.
– Foi o que eu disse; a maioria das pessoas não conhece a história toda. Empurrei o prato. Eu tinha perdido o apetite. Ralph encheu a boca de carne. Nada parecia
afetá-lo.
– Tá – ele disse. – Então conta tudo pra gente.
– Bem... o reverendo Jim Jones fundou o Templo do Povo como uma igreja protestante tradicional na década de 1950. Eles faziam muito trabalho social, derrubavam barreiras
raciais, atraíam muitas minorias, e isso, naturalmente, o tornou popular junto à Câmara Municipal de San Francisco. Mas no fim ele parou de pregar a respeito de
Deus e passou a ensinar uma mistura de pseudocomunismo com socialismo – claro que ele só fazia esses sermões quando as autoridades municipais não estavam presentes.
– Claro – Ralph disse.
– Eu sabia que ele era pastor – falei – mas não sabia que ele era comunista.
– Bem, falava como se fosse, mas para ele, quase tudo o que dizia era para manipular os outros. É difícil saber no que ele realmente acreditava. Depois de um tempo,
a maré política começou a mudar – processos, acusações de abuso de direitos humanos. Jones foi até preso por comportamento lascivo com outro homem.
Ela mordiscou o frango e tomou um gole de sua garrafa de água.
– De qualquer forma – prosseguiu –, ele era paranoico e estava convencido de que a guerra nuclear era iminente – e também queria evitar os processos. Pesquisou os
melhores lugares para se viver no caso de uma guerra nuclear e optou pela Guiana, na América do Sul. Finalmente, ele e seu grupo se mudaram para lá e começaram um
projeto agrícola.
– Um quê? – perguntou Ralph.
– Basicamente, uma comuna. Trabalhavam a terra, cultivavam seus próprios alimentos, coisas assim.
– Portanto, um culto – ele disse.
– Semântica. Chame como quiser, mas a verdade é que aquilo que eles conseguiram realizar em apenas 15 meses não é nada menos do que admirável.
Eu não conseguia acreditar que ela estava falando bem de Jonestown.
– O que há de tão admirável num culto assassino?
– Limpar a terra, plantar, construir, até trabalhar em prol da assistência médica universal. O plano original era ter 500 pessoas morando lá depois de seis a dez
anos, mas em pouco mais de um ano, quase mil pessoas já haviam se mudado para lá – e isso nem incluía os membros do Templo que ainda estavam na Califórnia, esperando
para partir.
– Tudo bem, mas apesar de tudo isso, Jones era evidentemente louco – eu disse. – Certo?
– Claro. Mas também era um gênio. E era capaz de inspirar as pessoas a trabalharem juntas em prol de um objetivo comum, a se sacrificarem pelo bem alheio, a deixarem
de lado o ódio e o preconceito. A maior parte daquelas pessoas em Jonestown pertencia a minorias despossuídas. Ele lhes deu esperança, um lugar no mundo. E tinha
uma capacidade de persuasão assombrosa. Era incrivelmente carismático. As pessoas diziam até que ele fazia milagres – curava o câncer, lia pensamentos, até ressuscitava
os mortos. Claro, alguns desses truques eram fraudes e jogos de ilusão, mas certos milagres ainda não foram explicados.
Arrisquei mais um bocado de comida. Jim Jones, um santo milagroso? Você só pode estar brincando.
– Jones não deixava ninguém sair da cidade. Logo começaram as acusações de abuso, tortura, raptos. Finalmente, Leo Ryan, um deputado do norte da Califórnia, foi
informado de que pessoas estavam sendo mantidas ali contra a vontade, e decidiu investigar. Havia um garoto envolvido, uma batalha judicial pela custódia dele com
uma mulher que deu à luz um filho de Jones e depois abandonou o Templo do Povo. É uma história complicada.
– Simplifique – Ralph disse. Ele estava com a boca cheia de arroz.
– Ryan foi assassinado.
– Quê? – perguntei surpreso. – Na América do Sul?
Lien-hua balançou a cabeça.
– Ele levou uma equipe de TV, se encontrou com Jones e quando ele e seu grupo se preparavam para subir a bordo do avião e voltar para os EUA de uma pista de decolagem
perto dali, alguns homens saíram de um esconderijo e assassinaram o deputado e quatro dos jornalistas. Isso aconteceu num lugar chamado Port Kaituma. Várias outras
pessoas ficaram feridas.
– Não me lembro de ter ouvido nada disso – falei.
– Agora lembro que já ouvi isso – disse Ralph. – Esse nome, Leo Ryan, mas não os detalhes.
Lien-hua prosseguiu.
– Bem, depois da tragédia, a mídia tinha fotos de fileiras e mais fileiras de cadáveres para mostrar ao mundo, e quando optaram pela abordagem do culto assassino,
a maior parte dos acontecimentos que levaram à Noite Branca se perderam no turbilhão.
Eu endireitei o corpo.
– O que foi que você disse? Noite Branca?
Ela pareceu surpresa com a minha reação.
– Sim, Noite Branca. A noite em que todos morreram foi chamada de Noite Branca. – Ao dizer as duas últimas palavras, seus olhos se iluminaram. – Noite branca! –
ela exclamou. – Foi isso que Bethanie escreveu, não foi?
Peguei meu computador e acessei as fotos de Bethanie no local do crime, enquanto Lien-hua explicava apressadamente.
– Jones não gostava da ideia da escuridão ser associada com algo ruim ou mau, porque havia muitos negros no seu grupo. Por isso, sempre que havia uma crise ou uma
tragédia em Jonestown, ele a chamava de “noite branca”. Às vezes, ele mesmo criava as crises – até mandava seus guardas darem tiros por cima do complexo – para que
as pessoas o seguissem, achando que ele era seu salvador.
Nós nos reunimos diante da tela do computador. De fato, o K não era uma letra, só um borrão de sangue do dedo de Bethanie. Mas por causa da ligação com o xadrez,
todos, inclusive eu, presumiram que a palavra fosse “cavalo”.
Jamais presuma. Jamais, jamais presuma. Tive vontade de me pegar a pontapés.
– Então é isso – murmurei. – A Noite Branca. Vai haver outra. O garoto lembra.
Aaron Jeffrey Kincaid olhou pela janela para o céu estrelado do Novo México. Cada ponto de luz perfurava o tecido da noite como a ponta de uma adaga atravessando
veludo negro. Tantas estrelas. Tantos mundos distantes. Tantas adagas perfurando a escuridão.
Ele riscou um fósforo e acendeu as velas perfumadas ao seu lado. Ao fazê-lo, transformou a janela num espelho que refletia chamas dançantes, bem como o interior
da sala.
Ele olhou para a imagem refletida. A sala ainda tinha as marcas de seus predecessores, com todas as suas obras de arte raras e móveis importados da Itália. Bem acima
dele, as vigas originais de faia sustentavam o forro arqueado da sala principal. Mesmo depois de oitenta anos, pareciam tão sólidas e imponentes como sempre foram.
Pena que aquele lugar seria uma pilha de cinzas amanhã à noite.
No espelho escuro, ele viu a porta do outro lado da sala se abrir. Um homem enorme, de peito largo, com a cabeça raspada, marchou para dentro da sala e ficou imóvel,
em posição de sentido, não querendo incomodar o Pai. David tinha 29 anos, jogara por seis anos como zagueiro dos Bengals e depois começara a ensinar artes marciais.
Sua especialidade era quebrar ossos de oponentes usando apenas as mãos.
Kincaid passou o dedo pela cicatriz no seu pulso e olhou para o reflexo do homem estoico na janela escura. Ele sabia que poderia fazer David esperar por uma hora,
um dia, para sempre. David faria qualquer coisa por ele. Como os outros. Kincaid se aproximou de David.
– Meu filho – ele disse. As palavras carregavam a verdadeira afeição de um pai, embora os dois homens não fossem parentes.
Aquele leviatã em forma de homem baixou o olhar em respeito a seu mestre.
– Sim, Pai?
Kincaid pôs sua mão esquerda na nuca de David e acariciou delicadamente os músculos rijos, como um pai faria com seu filho.
– Você entende o que estamos fazendo aqui? Entende de verdade?
David ergueu os olhos para a parede oposta.
– Estamos criando um mundo melhor, Pai. Estamos andando juntos em direção à luz. Estamos completando a revolução, estamos...
Aaron Jeffrey Kincaid interrompeu seu pupilo.
– Fale com o coração, meu filho. Eu já conheço os ensinamentos e os textos. Eu os escrevi.
– Me perdoe.
– Não precisa pedir perdão. Você ia dizer: “um mundo onde a paz possa reinar e aqueles que tiverem escolhido o caminho da unidade possam encontrar a liberdade no
plano mais elevado”.
– Sim, Pai.
– Você conhece as palavras, mas você as entende?
Uma leve hesitação.
– Acredito que sim.
Kincaid passou da janela ao conjunto de fotografias emolduradas na parede. Ele olhou para os rostos sorridentes e alegres dos retratos.
– David, nós estamos semeando crenças, e todos precisamos fazer sacrifícios quando decidimos seguir nossas crenças. Você sabe disso, não?
– Sim.
– Precisamos estar dispostos a pagar o preço que nossas crenças exigem de nós. – Kincaid fez uma pausa e correu o dedo pela face de uma das garotas negras na fotografia.
Ele se lembrava dela. Ananda, um nome hindu que significava “êxtase total”. Os dois brincavam de pega-pega na selva quando eram crianças, antes que ela tomasse a
medicação. Antes que se deitasse no pátio e começasse a se contorcer. Ela foi uma das crianças que não morreram rapidamente.
– David, sabe por que não faltam homens-bomba no Oriente Médio?
David não respondeu rapidamente. Ele parecia ponderar com cuidado as palavras, como se temesse decepcionar seu mestre.
– Porque o ódio deles é tão profundo, Pai?
– Não, David. Porque as crenças deles são tão profundas. O ódio é o resultado das crenças. É o fruto que cai da árvore da fé. Como o amor. As crenças sempre vêm
primeiro. Para mudar o fruto, é preciso mudar a árvore; é preciso mudar as crenças. Uma árvore sempre vai dar seus próprios frutos. Jamais fará outra coisa. O grande
profeta disse uma vez: “Toda árvore boa produz bons frutos; e toda árvore má produz frutos maus.”
– Jesus o Nazareno?
– Sim. O Nazareno.
52
Ralph, Lien-hua e eu acabamos falando sobre o homicídio de Bethanie e a questão da Noite Branca por alguns minutos, mas então Ralph disse:
– Esperem, precisamos manter o foco aqui. O que mais aconteceu na selva, Lien-hua? Mais alguma coisa que possa nos ajudar com este caso?
Ela pensou por um momento.
– Bem, foi com o assassinato do deputado Ryan que as teorias da conspiração realmente começaram. Eu me pergunto se elas poderiam estar ligadas.
– Que teorias da conspiração? – perguntei.
– Bob Brown, um fotojornalista da NBC que foi morto na pista de Port Kaituma, conseguiu gravar os atiradores em vídeo. Algumas pessoas que analisaram a fita dizem
que os assassinos estavam perfilados numa formação militar. O governo sempre alegou que os atiradores eram guardas do Templo do Povo, mas isso nunca foi confirmado.
Oito anos depois, um dos membros do Templo que sobreviveu foi julgado e condenado por seu envolvimento, mas muita gente acha que ele foi só um bode expiatório. Aquilo
envolveu mais do que só um homem.
Lembrei o que Terry dissera sobre o governador Taylor. Que ele estava na América do Sul durante o massacre de Jonestown e era agente do governo, na época.
– Pode ter sido obra do governo? Um ataque profissional? – perguntei.
Lien-hua estava quase acabando de comer seu arroz. Ela balançou a cabeça lentamente.
– Na verdade, algumas pessoas acham que foi. Ryan não era muito amigo da CIA. Alguns anos antes – acho que foi em 1974 – ele foi coautor de um projeto de lei que
exigia que a CIA informasse o Congresso sobre suas atividades secretas. Na época de sua morte, ele tinha outro projeto de lei no Congresso pedindo mais restrições.
Duas semanas depois que ele foi morto, o projeto de lei foi rejeitado na comissão.
– Certo, agora isso está ficando interessante – disse Ralph.
– Tem mais – disse Lien-hua. – A CIA tinha um experimento ultrassecreto de controle mental psicossocial na década de 1970, chamado MK-ULTRA. Parece que ele foi concluído
no ano em que Jones se mudou para a Guiana.
– Bela coincidência – disse Ralph.
– Você está brincando – eu disse. – Controle mental?
– Uma combinação de drogas, hipnose, privação de sono, isolamento, tortura por afogamento, ameaças, lavagem cerebral e pressão social. A CIA sempre se interessou
em descobrir o que é preciso para dobrar a vontade de alguém.
– Bem, mesmo se a CIA estivesse envolvida – eu disse –, aquelas pessoas em Jonestown não eram robôs. Fizeram sua escolha.
– Peraí – disse Ralph. – Lien-hua, você disse que algumas pessoas foram assassinadas. Isso chegou a ser confirmado?
– No início, o legista disse que a causa da morte das pessoas de Jonestown foi injeção de cianureto. Ele chegou a essa conclusão depois de examinar várias vítimas
com marcas de injeção entre os ombros – o único lugar do corpo em que uma pessoa não consegue se injetar sozinha. Cerca de uma semana depois, ele mudou os relatórios
oficiais para indicar que todos morreram ingerindo o cianureto, e essa virou a versão oficial desde então – embora testemunhos diretos mencionem marcas de injeção
nas mãos, pescoço, braços e costas dos mortos.
– Então alguém teve uma conversinha com o Sr. Legista? – disse Ralph.
– Talvez. Ninguém sabe. De acordo com um relato, pelo menos 187 corpos tinham marcas de injeção, e aí eles simplesmente pararam de contar. Ninguém fica com marcas
de injeção entre os ombros por beber refresco com cianureto.
– É verdade – ele disse. – Mais alguma coisa?
– Toda identificação pessoal foi retirada dos corpos antes que eles voltassem para os EUA. Ninguém sabe por quê. E só sete autópsias foram realizadas – dos 909 corpos,
914 se incluirmos o deputado e os repórteres.
– Inacreditável – eu disse.
– É histórico – ela respondeu. – Pode pesquisar. Então, nas semanas e meses que se seguiram ao massacre, várias famílias foram encontradas mortas nos EUA – a maioria
ex-membros do Templo, mais alguns funcionários do governo ligados a Jones e uns agentes da CIA. De acordo com um relato, 16 dos Boinas Verdes que foram destacados
para retirar os corpos de Jonestown se suicidaram nos três meses seguintes à tragédia. Além disso, sempre houve ligações mal explicadas entre Jones e a CIA.
– Espiões, controle da mente, assassinos, um culto suicida, um enorme esforço de acobertamento do governo... – disse Ralph. – Uau... isso daria um videogame e tanto.
Lien-hua e eu apenas olhamos para ele e balançamos a cabeça.
– O que foi? – ele disse, constrangido. – É verdade.
– Mas então – eu disse a Lien-hua – as pessoas acreditam mesmo nessas coisas?
– Algumas pessoas muito influentes acreditam nessas coisas.
– E o que você acha?
Ela respirou fundo.
– A verdade é que ninguém sabe quantos quiseram morrer naquele dia. Havia guardas armados em volta do pátio, com fuzis AK-47. Os seguidores de Jones eram isolados,
territoriais, paranoicos com o governo e, em sua maioria, leais a ele. Você decide – quer levar um tiro nas costas ou se unir ao resto da sua família e dos seus
amigos e dar a “medicação” pros seus filhos? Vai tentar enfrentar toda a comunidade ou deixar alguém que você ama espetar uma seringa no seu braço? Para a maioria
deles, foi no mínimo coerção ao suicídio, quando não assassinato.
– Espere aí – eu disse. – Q875 significa algo pra você? Terry disse que era algum tipo de fita.
Ela tamborilou com os dedos sobre a mesa, pensativa.
– Bem, faria sentido. Jones gostava de gravar os próprios discursos. O governo encontrou centenas de suas mensagens – pronunciamentos, sermões, como quiser chamá-los.
Quando o FBI foi fazer o rescaldo do local, juntou todas as fitas e as arquivou. Então, em 2000 ou 2001, a maior parte delas foi disponibilizada para o público mediante
uma solicitação baseada na Lei da Liberdade de Informação.
– Precisamos ouvir essa fita – eu disse a Ralph.
– Ligue o computador – disse Lien-hua. – Deve estar na Internet. – Enquanto eu fazia a busca, ela continuou: – Por falar em fitas e em Jonestown e na CIA, Jones
de fato gravou seu último discurso, no qual convencia todos a morrerem juntos. Chamam de Fita da Morte. Eu a ouvi para fazer o perfil dele. De arrepiar. Ele chama
a ação de “suicídio revolucionário”. Mas naquela fita ele manda que seus homens tirem Dwyer de lá, ou seja, do pátio.
– Quem é Dwyer? – perguntou Ralph.
– Richard Dwyer era funcionário da embaixada americana na cidade de Georgetown, Guiana. Quase todos acreditam que ele era um agente da CIA enviado para se infiltrar
no Templo do Povo. Mas quando isso lhe foi perguntado durante o inquérito no Congresso, ele disse: “Sem comentários”.
– Inacreditável – resmunguei. – Existem até provas de que havia um agente da CIA lá quando tudo começou.
Não precisamos procurar muito para encontrar a fita Q875. Alguém a disponibilizara online. Baixei o arquivo de áudio e pus para tocar. Era de gelar o sangue. Durante
toda a gravação, ouviam-se locutores de rádio ao fundo, falando sobre a morte do deputado Ryan e os rumores de suicídio em massa no dia anterior em Jonestown.
No dia anterior.
Isso significava que a Q875 fora gravada em 19 de novembro de 1978. Um dia depois que todos em Jonestown já estavam mortos.
Ouvimos a gravação toda. Duas vezes. Depois de novo.
Estática... um locutor de rádio falando da tragédia... uma cadeira rangendo... algumas vozes ao fundo, alguém dizendo: “Shih!”... sons de gente andando, abrindo
e fechando gavetas... alguém espirrando... um locutor mencionando que seriam feitas autópsias em Ryan e nos outros, e então o som de uma das pessoas no chalé resmungando
palavrões... mais notícias sobre Jonestown... alguém dizendo: “Cala a boca!”... uma porta de tela batendo... estática.
– Isso é muito, muito apavorante – disse Lien-hua. – Quem gravou essa fita fez isso com quase mil cadáveres ali perto.
– Será que alguém já fez uma análise de voz nela? – eu disse.
Ralph balançou a cabeça.
– As falas são breves demais.
– Então essa fita foi gravada em 19 de novembro – eu estava pensando alto –, um dia depois que todos supostamente morreram. Por quê?
– O que eu quero saber é – disse Ralph –, se todos em Jonestown morreram no dia 18, quem gravou a fita?
– Que fita? – alguém perguntou da porta.
Todos nos viramos.
Margaret.
Aaron Jeffrey Kincaid, o Pai, o Mestre, retirou da parede a fotografia em preto-e-branco de três crianças sorridentes. Um oceano ondulante de trigo se estendia por
trás delas e acabava na base de uma selva fechada. Ele inclinou a fotografia à luz suave e dançante da vela. Aquelas crianças estavam esperando na fila quando ele
fugiu para a selva. Mesmo agora, trinta anos depois, ele lembrava seus nomes: Jacob, Isaiah e Emilia. Lembrava que os vira rindo e brincando enquanto esperavam sua
vez de beber do tonel, como alunos fazem quando esperam na fila do bebedouro, no recreio.
– Não estamos cometendo suicídio – Kincaid lembrava de ter ouvido Jim Jones dizer enquanto as pessoas se enfileiravam. – É um ato revolucionário. Para mim, a morte
não é algo apavorante, é a vida que é traiçoeira.
A vida é traiçoeira. Kincaid se virou para David.
– Nosso trabalho é semear crenças. E precisamos estar preparados para quaisquer frutos que essas crenças produzam. Tanto na nossa vida como na vida daqueles aos
quais ensinamos. – Ele deixou a fotografia perto de uma das velas.
– Sim, Pai. – A voz de David estava resoluta.
Kincaid sabia que David era fiel de verdade. Já fizera sacrifícios significativos, já provara sua devoção. Sim. Kincaid estava orgulhoso do seu filho.
– E você sabe o resto do versículo, David? O restante das palavras do Nazareno?
Uma breve pausa e então:
– Não, Pai. Me perdoe.
– “Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons. Toda árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo.” Mateus, capítulo 7. – Enquanto
falava, ele olhava atentamente a fotografia. Então se virou e olhou para seu pupilo. – Estamos prestes a lançar a árvore que não dá bons frutos no fogo. Não podemos
permitir que a árvore má cresça mais.
– Sim, Pai.
Kincaid devolveu a fotografia à estante.
– Vou me juntar aos outros em breve, David. Peça que comecem pelas crianças.
– Sim, Pai. – E então, sem dizer mais uma palavra, David se curvou numa profunda reverência e retrocedeu para fora da sala.
Kincaid ficou olhando para ele enquanto saía. Sim, as crenças trazem frutos, e agora o mundo todo veria quão profundas eram suas crenças. A elite da mídia e o governo
dos EUA provariam do fruto amargo que plantaram quando caçaram, perseguiram e depois difamaram sua família.
Por mais alguns momentos, ele olhou a luz das velas bruxuleando e se refletindo. Bruxuleando e se refletindo. Iluminando os rostos das crianças. Então soprou as
velas e ficou mais uma vez sozinho na escuridão, com as estrelas piscando para ele de dentro da noite. Uma família de adagas perfurando o céu. Quantas estrelas havia
no céu, ele não sabia: para ele, havia 909 – uma para cada membro da família que morrera na selva.
Sempre 909 pontos de luz perfurando a escuridão.
E então ele apalpou seu ombro, a cicatriz que começara tudo.
Algumas cicatrizes devem ser acariciadas para sempre.
53
Ralph tratou de pôr Margaret a par de tudo enquanto me afastava para trabalhar no perfil geográfico revisado. Agora tínhamos o dobro de trabalho a fazer. O caso
se dividira em dois: havia o aspecto de Jonestown e o cara da fita amarela. O normal é essas coisas ficarem mais fáceis à medida que você trabalha, não mais difíceis.
Eliminei Alexis e Bethanie da equação e recalculei os números. Os resultados não foram bipolares, dessa vez. Novas áreas de interesse surgiram, muito mais coesas.
Novos nomes flutuaram para o alto da lista de suspeitos.
E o de Grolin era um deles. Passou da 113a posição para a 8a.
Tentei lembrar a mim mesmo que meu papel neste caso era ajudar a direcionar a investigação, não pegar um suspeito específico, mas isso não ajudou muito. Eu queria
pegar esse cara. Quando ele envolveu minha filha, a coisa ficou pessoal. A vida dela podia estar em perigo. Eu detestava pensar no que ele poderia fazer com Tessa
se pusesse as mãos nela.
E não estava muito contente por ele ter tentado me matar com a explosão.
Além disso, ainda não tínhamos pistas de onde o resto do corpo de Jolene poderia estar. Eu quase tinha medo de descobrir. Decidi considerar a possibilidade de que
alguém da nossa equipe fosse o assassino imitador. Levantei os nomes de todos que tinham acesso aos arquivos do caso e relatórios das autópsias e descobri que eram
62 pessoas. Que maravilha.
Ralph se aproximou da minha mesa.
– Como está Margaret? – perguntei.
– Em choque, mas você não ouviu isso de mim, ok?! – disse Ralph.
– Pode deixar.
Ele balançou a cabeça.
– Ela disse que vai cuidar da investigação do culto.
– Quê? – eu disse. Notei Lien-hua se aproximando de nós.
– Sim, foi meio estranho. Quando falei da fita e da ligação com Bethanie e o governador, ela disse que precisaríamos de alguém no comando dessa parte da investigação,
e que ela queria fazer isso. Disse que queria que nos concentrássemos em prender Grolin.
– Vocês não acham isso meio esquisito? – perguntou Lien-hua.
Ele deu de ombros.
– Sei lá. Pat?
– Difícil dizer. Ela pode estar querendo se distanciar do cara que pôs o cadáver no carro dela. Talvez isso a ajude a enfrentar a situação. Talvez ela ache que essa
é a manobra política certa. Vai saber.
– Em todo caso – Ralph continuou –, ela disse que hoje à tarde Brent interrogou a namorada de Grolin, uma enfermeira chamada... – ele consultou seu bloco de anotações
– Vanessa Mueller. Brent disse que a atitude dela era suspeita, muito sobressaltada. Vanessa disse que não fazia ideia de onde Grolin estava, mas Brent a seguiu
a tarde toda, só por segurança.
– Então foi isso que ele fez o dia todo – eu disse.
– Sim. Bem, estou pensando o seguinte: amanhã podemos trabalhar com Margaret e ver no que dá esse aspecto de Jonestown, mas se houver alguma chance de prendermos
Grolin agora, acho que deveríamos concentrar nossos esforços nisso.
– Concordo – eu disse. – Ele é a ameaça imediata, especialmente se vai atacar a ruiva.
– Por falar nisso – disse Lien-hua –, conversei com Brent. Eles ainda estão analisando aquelas digitais. O resultado deve sair amanhã.
– Amanhã já pode ser tarde – disse Ralph. – Como ainda não temos a identidade da próxima vítima, acho melhor ficar de campana na casa da namorada hoje à noite. Pra
ver se Grolin aparece por lá.
– Boa ideia – eu disse.
Ralph coçou a barba do dia que crescera no seu queixo.
– O único problema é que o pessoal de Wallace está todo ocupado – tem um festival de música na periferia da cidade hoje à noite, e a Rede de Ativistas Evangélicos
não gosta dos grupos. Eles já anunciaram que vão protestar e...
– Eu posso fazer – disse a agente Lien-hua.
– Hã?
– A campana.
– Você não está aqui pra fazer campana.
– Hã, eu posso ficar de campana com a agente Jiang – eu disse.
Ele olhou para mim, intrigado.
– Essa também não é sua função.
– Não, tudo bem – eu disse. – Vai ser um lugar sossegado pra pensar nas coisas. Além disso, tirei uma soneca hoje à tarde. Vou ficar bem.
Ele ainda parecia hesitante, mas então bocejou. Trabalhara sem parar o dia todo. Só a menção da campana parecia deixá-lo mais cansado.
– Bom, acho que vai dar certo.
– Ótimo – eu disse.
– Tudo bem. Peguem o turno das 21h à meia-noite – assim ainda vão poder dormir um pouco, mais tarde. Vou pedir que Wallace ache alguém pro turno da madrugada. Afinal,
você vai dirigir até Charlotte amanhã de manhã.
Concordei com um aceno de cabeça.
– Combinem tudo com Tucker – ele disse. – Querem microfones adesivos? – Ralph estava sempre experimentando os novos brinquedinhos dos militares. Os microfones adesivos
ultramodernos vieram de uns amigos dele no Exército. Da divisão de operações especiais. O adesivo é quase transparente, do tamanho de um curativo. Você usa abaixo
da orelha; funciona como transmissor e receptor. Também emite um sinal rastreável de longo alcance. Alta tecnologia, um negócio de primeira. O problema é que o transmissor
digital grava automaticamente cada palavra que você diz. E eu não tinha certeza de que queria isso nesta campana em particular.
– Não, walkie-talkies do século passado – eu disse –, se não for problema pra você.
Ele deu de ombros.
– Por mim, tudo bem. – Bocejou de novo. – Preciso dormir.
– Vá jogar videogame – eu disse.
Seus olhos brilharam.
– Sim. Isso eu posso fazer. – Ele balançou a cabeça. – Tudo bem. Então Tucker pode ficar na escuta aqui, e pediremos que a polícia deixe umas viaturas de prontidão,
pro caso de alguma coisa acontecer.
– Beleza.
– Vejo vocês dois amanhã – resmungou, e se afastou.
Tínhamos menos de uma hora antes do início da campana. Lien-hua foi tomar banho e se trocar. Liguei para Tessa e deixei um recado dizendo que a veria pela manhã.
Então trabalhei mais um pouco analisando os locais dos raptos, e antes que eu percebesse, Lien-hua já tinha voltado e eu estava entrando no carro dela para ir até
a casa de Vanessa Mueller.
54
Lien-hua encostou no meio-fio, desligou os faróis e parou o carro, deixando a chave na ignição para o caso de precisarmos sair de lá rapidamente. Ela estava usando
uma blusa de seda verde. Eu disse a mim mesmo que não deveria prestar atenção nessas coisas, mas não consegui deixar de notar que ela estava linda.
Vanessa Mueller morava num sobrado exótico com molduras pretas e uma ampla varanda. A casa parecia um pálido sonho amarelo ao luar. Ficamos olhando para ela por
alguns minutos. A luz da sala estava acesa, e eu podia ver Vanessa sentada no sofá, vendo TV. Por sorte, a casa dela era em estilo antigo e tinha só uma porta para
a rua, o que facilitava a campana – não era preciso vigiar a porta dos fundos.
Ouvi as chaves tilintando quando Lien-hua esbarrou nelas ao pegar seu café. Ela pigarreou baixinho.
– Então você tem uma filha.
Fiquei momentaneamente confuso. Não me lembrava de ter contado a ela que eu tinha uma filha... ah, sim, Ralph perguntara por que não fui pegá-la no aeroporto.
– Enteada, na verdade. Sim. Ela tem 17 anos. Se chama Tessa.
– Como ela é?
– Bem, é esperta, malandra. Uma sobrevivente. É durona.
– Durona? Mais alguma coisa?
– Hã... ela gosta de usar preto.
– Bem, e o que ela gosta de fazer?
Eu me ajeitei no assento.
– Não sei. Gosta de ouvir música. Sair com os amigos dela. – Aonde você quer chegar com isso?
Lien-hua não disse nada por alguns momentos. Finalmente acrescentou:
– Então vocês não se dão muito bem?
Respirei fundo e lentamente. Caramba, Pat, ela lê você como um
livro aberto.
– Não. Não muito.
Um breve silêncio e então:
– Como ela lidou com a morte da mãe?
Comecei a brincar com a caneta.
– Bem, acho. Não falamos muito sobre isso. Você acha que Grolin vai aparecer?
– Vocês falam disso em algum momento?
Eu estava começando a me arrepender de ter me oferecido para essa campana.
– A morte de Christie foi difícil pra nós dois. A verdade é que Tessa e eu nunca fomos muito próximos, e depois que a mãe dela morreu, isso só piorou...
De repente, senti a mão de Lien-hua apertando delicadamente meu braço esquerdo. Aquilo me perturbava e, de alguma forma, me reconfortava, me trazia de volta para
o momento.
– Desculpa – ela disse –, eu não queria... Não precisamos falar sobre...
– Não, tudo bem – eu disse, mas não tinha certeza de que estava tudo bem. Ela retirou a mão e a apoiou na sua coxa. Inspirei lentamente.
– Uma em cada oito mulheres na América do Norte recebe um diagnóstico de câncer de mama. Sabia disso?
– Não. Não sabia.
– Eu também não sabia. Um ano atrás. – Eu podia sentir o aperto familiar no peito, a sensação desesperada de impotência que você tem ao olhar por cima do ombro para
algo doloroso do seu passado; algo que te assombra, mas que também faz parte de você. Você tenta fugir, mas aquilo está sempre ali, respirando na sua nuca. Não é
verdade o que dizem. O tempo não cura todas as feridas. Às vezes, apenas joga sal nelas e fica rindo enquanto você se contorce.
– E o pai de Tessa?
Balancei a cabeça.
– Ela nunca o conheceu. Christie estava na faculdade quando engravidou. Ele sumiu quando soube. Ela nunca mais viu o cara.
Ouvi Lien-hua se referir a ele resmungando algumas palavras que fiquei surpreso que ela conhecesse.
– Sim. Concordo plenamente. – Tomei um gole do meu café. – E você?
– Eu o quê?
– Nunca se casou?
– Só com meu trabalho.
Tentei pensar em algo apropriado para dizer, mas não consegui. Tomei um gole do péssimo café e quase tive que cuspi-lo. Parecia óleo de motor com gosto de avelã.
Larguei o copo e decidi mudar de assunto.
– Já fez muitas campanas antes?
– Não muitas.
– Quantas?
– Contando esta?
– Sim – eu disse.
– Bem, contando esta, uma.
Eu ri um pouco. A sensação era boa. Ela se virou para mim.
– E você?
– Muitas, nos meus primeiros anos, quando era detetive em Milwaukee. Acho que algumas pessoas se acostumam. Eu nunca consegui. Sou agitado demais. Odeio ficar quieto.
Sempre preciso fazer alguma coisa, resolver alguma coisa. Gosto de campanas tanto quanto gosto de apresentar relatórios.
– Mas você se ofereceu pra ficar aqui hoje.
– Sim. Me ofereci.
Olhei pela janela para a casa de Vanessa. Nenhuma mudança.
Um carro passou por nós, e vimos suas lanternas diminuindo na escuridão. Quando elas desapareceram, Lien-hua disse:
– Acho que ele não vem.
– Quem?
– Grolin. Acho que ele não vai aparecer.
– Oh – eu disse. – Sim, acho que você tem razão. – Olhei para a casa silenciosa. – Então, e você, Lien-hua? Você sabe tudo a meu respeito, qual é a sua história?
– Era uma pergunta inocente.
– Bem, não tenho muita coisa pra contar, acho. – Ela virou o copo de café, tomando lentamente um longo gole. – Me formei na Universidade Estadual de Washington e
fiz mestrado em criminalística. Depois trabalhei por algum tempo como policial na cidade de Washington.
Do outro lado do para-brisa, o vento soltou um punhado de folhas outonais de uma árvore acima de nós e as depositou delicadamente sobre o capô do carro.
– Depois de alguns anos, me inscrevi em Quantico, no Centro Nacional de Análise de Crimes Violentos, fiz um estágio de dois anos e voilá, aqui estou eu.
– Aí está você – eu disse. Estava olhando o perfil dela na penumbra, agora. A luz de um poste próximo passava pelo para-brisa e tocava seu rosto, iluminando seu
queixo, seus lábios, a curva suave de sua bochecha.
Ela largou o copo e olhou na minha direção. Eu não desviei o olhar.
– Bem patético, não? – ela disse.
Não, de jeito nenhum. Bem estonteante, na verdade. Eu me controlei.
– O quê? Sua história?
– Não. Ter que tomar esse café.
– Oh – eu disse. – Sim. É ruim de doer. – Eu continuava olhando para ela, mas consegui notar o vento empurrando as folhas de cima do capô e derrubando-as na rua.
Nós dois desviamos o olhar um do outro.
– Então você faz escalada, é? – ela disse.
– Um pouco. E você?
– Não, nunca tive oportunidade. Pra mim, é mais boxe tailandês.
– Boxe tailandês?
– Sim.
– Hã. Eu sabia que era algo desse tipo.
– Como assim?
– Bom, não sei ao certo como dizer isso... mas... – Ora, anda, fala de uma vez – seu físico, sua presença, o modo como você se move. No início imaginei que você
fosse bailarina ou ginasta.
– Físico? – Ela estava sorrindo com o canto da boca.
Rapaz.
– Eu falei como elogio.
– Você não deveria notar essas coisas.
Eu sorri.
– Sou pago pra notar tudo. – Parecia insinuante quando eu disse, mas não falei com essa intenção.
Ela me olhou com o canto do olho.
– Foi o que ouvi dizer. – Ela achou o copo ao lado de sua perna, pegou, viu que estava vazio, largou de novo. – Você escala muito?
– Já escalei mais. Não vou pros rochedos, bem, faz tempo. – Hesitei, porque a última vez que fui escalar estava com Christie. Não me parecia certo dizer o nome dela
naquele momento.
– Hmm – ela disse em tom neutro. – Sente falta?
– Sinto, sim. Sinto falta dela... disso... Isto é, sinto falta. Sim. – Só quando era tarde demais percebi o que eu tinha falado, tarde demais para retirar o que
eu dissera. Felizmente, por motivos que eu só podia supor, Lien-hua decidiu ignorar aquilo. Começou a me falar dos torneios de boxe tailandês de que participara.
Abri um pouco a janela e uma lufada de ar gelado invadiu o carro. Estávamos sentados ali havia algum tempo. Os vidros começavam a ficar embaçados. Eu não me dera
conta do quanto esfriara lá fora. Estava quentinho dentro do carro.
– A gente podia ir escalar um dia desses – convidei. – Quando tudo isso acabar.
Ela hesitou e depois respondeu:
– Talvez. Quando tudo isso acabar.
– A menos que você tenha outra pessoa – Era uma maneira de perguntar se ela tinha namorado. Ela devia saber que era. Tinha que entender o subtexto. Era boa demais
em decifrar os outros para não entender.
Ela respirou fundo, mas não respondeu. Hesitou.
– Já houve – disse finalmente.
Um momento de silêncio. Havia mais coisas naquela história. Mas eu não insisti. Olhei para a casa de novo. A luz da sala havia se apagado.
55
Um momento depois, a luz no dormitório do andar de cima se acendeu. Vi Vanessa andando de um lado para outro por trás da cortina, gesticulando.
– Você acha que ela está falando ao telefone? – perguntou Lien-hua.
– Parece que sim.
Ficamos a observá-la por um minuto, e então a luz se apagou. Ela ainda estava no quarto. Lien-hua pegou seu walkie-talkie.
– Indivíduo estacionário – ela disse. – Nenhum intruso. Manterei você informado. Câmbio.
– Estou aqui se precisar de mim – Brent respondeu do outro lado. – Câmbio.
Esperei até que ela largasse o walkie-talkie.
– Então, o que mais Ralph te contou sobre a minha vida?
– Pouca coisa... mas ele não precisava contar. – Ela estava sendo evasiva. Um pouco tímida. Comecei a me perguntar se ela tinha se oferecido para a campana só para
ficar a sós comigo. Ah. Peraí. É verdade, eu é que tinha me oferecido pra acompanhá-la.
– Como assim?
– Eu sabia de você. Há algum tempo.
Sorri para ela.
– Sabia de mim?
– Li seus livros. Vi suas palestras em algumas conferências.
– Por que não me disse isso antes?
Ela deu de ombros.
– O assunto nunca surgiu.
– E o que você pensou?
– Sobre?
– Os livros. As palestras.
– Está querendo confete, dr. Bowers?
Corei um pouco e fiquei grato por estarmos no escuro.
– Claro.
– Bem – ela disse, pensativa –, suas palestras são sempre instigantes e profissionais, suas ideias são bem articuladas...
– Mas?
– Eu daria um B para você.
– Nem mesmo um B+?
– Não. Só B. Não concordo com as suas conclusões.
– Sobre perfis psicológicos?
– Sobre as pessoas.
– Pessoas?
– Sim.
Fora do carro, uma lufada de vento fez dançar um conjunto de folhas,
que saltitaram estrada abaixo.
– Como assim?
Ela olhou na minha direção.
– Você ainda não adivinhou o último motivo.
Hesitei.
– Está tentando mudar de assunto? De que conclusões está falando?
– Confie em mim. Tente adivinhar o motivo que falta.
– Tudo bem, mas depois quero voltar a falar disso. Vamos ver. Minhas ideias estão se esgotando. Tá, que tal este: insanidade. Loucura. Alguns crimes são motivados
por uma psicose.
Ela balançou a cabeça.
– Isso não é uma motivação. É um estado. Ele precipita certos comportamentos, mas não é o que os motiva.
– Depressão?
– Também é um estado mental. Aumenta a probabilidade de certos comportamentos, mas não os motiva.
A luz do banheiro se acendeu e um momento depois se apagou. Eu suspirei.
– Não sei, Lien-hua. Desisto.
Ela ficou em silêncio. Eu não sabia ao certo se ela iria me contar o que era ou não, e não fazia ideia do que tudo aquilo tinha a ver com minhas conclusões sobre
as pessoas. Meu braço estava ficando gelado. Fechei o vidro. Finalmente, ela se virou no assento, para poder me olhar de frente.
– Nós não somos simplesmente acumulações de escolhas, padrões, acasos e motivos misturados, Pat. Nosso movimento pelo espaço e tempo não é baseado apenas na eficiência,
benefício, conveniência e conforto.
Na tensão crescente daquele momento, pude sentir a respiração dela se misturando à minha, nossos corações começando a bater em sincronia.
– Então qual é? Qual é o motivo?
Nossos olhares se encontraram.
– É o amor, Pat. Ele muda tudo. É o motivo que você não descobriu. É a raiz de todos os outros, o centro de tudo que fazemos. É a peça do quebra--cabeças que você
sempre parece não enxergar, a mais importante de todas.
Ela não disse as palavras a seguir, mas eu as ouvi tão claramente quanto se ela tivesse dito. Por isso você não conhece sua filha. Por isso não supera a morte da
sua esposa. Medo e amor. Os dois motivos mais importantes. Amor e medo, se entrelaçando no seu coração.
Meu peito apertou, meu coração disparou. Eu me sentia acuado, em chamas e indefeso, tudo ao mesmo tempo, mas também era sedutor ser entendido por alguém. Ela me
conhecia de formas que nem eu me conhecia, mesmo mal me conhecendo, na verdade. O desejo de tocá-la, de ficar com ela, de abraçá-la me esmagava. Eu queria que ela
fosse tudo o que Christie era e mais, mas não queria correr o risco de sentir a mesma dor de novo. E não queria que ninguém substituísse Christie; queria alguém
que me completasse como Christie me completava, mas de uma forma nova. Eu queria amar de novo, confiar de novo, mas não sabia como. Tinha medo de saber como.
Eu estava ficando ofegante.
Normalmente, sei o que fazer e faço, não hesito. Não tento prever o que vai acontecer. Mas naquele momento estava me torcendo todo no escuro. Uma parte de mim estava
apavorada. Outra parte estava apaixonada. Talvez medo e amor fossem apenas dois lados do mesmo motivo, costurando nossas vidas. Às vezes nos escravizando, às vezes
nos libertando. Medo e amor. Amor e medo. Lutando. Beleza e morte.
Lien-hua e Christie.
Senti um nó na garganta.
Por um momento, esqueci a verdadeira razão pela qual estava naquele carro com Lien-hua Jiang.
Esperei como um tonto, como um menino, torcendo para que ela pegasse minha mão, tocasse meu joelho ou me beijasse. Alguma coisa, qualquer coisa. Finalmente, depois
de uma eternidade, vi minha mão ajeitando um cacho de cabelo no seu pescoço. Talvez estivesse apenas pensando naquilo, imaginando, querendo que acontecesse.
Meu dedo roçou na pele dela.
Não, eu não estava só imaginando. Estava acontecendo. Aquilo estava acontecendo.
Ela me observava com um olhar tranquilo. Não fez nada para me impedir. O momento se tornou tudo, afastando o resto do universo, deslizando para fora do tempo. O
ar que expirávamos se encontrava no espaço entre nós, se misturando. Se beijando. Tornando-se uma coisa só.
Ela me deixou passar o dedo no seu pescoço, na direção do seu ombro. Sua pele era macia, elétrica e viva. Um brilho frio entrava pela janela. Vi aquela luz contornando
seu pescoço esguio, rumo aos primeiros botões de sua blusa.
Eu estava inalando toda a culpa, desejo, anseios, perda e medo dos últimos oito meses, e foi demais para mim. Hesitei, e num batimento cardíaco, numa respiração,
tudo mudou. Em algum momento entre as palavras dela e meu toque indeciso, um gelo se acomodou no espaço entre nós. Com precisão delicada, ela se afastou de mim e
olhou pela janela. O tempo voltou a andar. Vi minha mão sumir de vista no assento atrás de mim.
– Desculpe... – Tentei dizer tudo, mas acabei não dizendo nada. – Eu não queria...
– Não podemos. – As palavras dela soaram firmes e definitivas.
Desajeitadamente, encolhi a mão. Ela caiu no meu colo, fazendo barulho, e tentei cruzar os braços, mas meus dedos estavam rijos como tijolos.
– Não sei o que eu...
– Não. Não. – Ela me interrompeu com um gesto. – Não diga isso. Por favor, não diga mais nada. – Suas palavras não tinham farpas, ela não estava tentando me magoar
ou mesmo me repelir, mas havia gelo ao redor delas. Ela se encolhera novamente. Em sua concha. A noite nos envolvia.
Olhei para a frente, para a casa e além dela. Sem querer, esfreguei as palmas das mãos no meu jeans. Meu coração não parava de pular no peito, minha mão não parava
de tremer. O dedo que tocara seu rosto continuava em chamas, formigando com o sabor de sua pele.
O momento foi se prolongando. Eu podia sentir o coração de Lien-hua batendo forte, pulsando em algum lugar ao meu lado, encontrando novamente seu próprio ritmo,
seu compasso particular. Não estávamos mais nos olhando.
– Desculpe, Lien-hua.
– Para. – Então ela respirou fundo, ou pode ter suspirado. Não sei dizer. – Por favor.
Olhei pela janela do lado do passageiro, mas não encontrava nada para focar minha visão. Balancei o meu copo. Terminara o meu café havia muito tempo – só ficara
a borra. Nada que valesse a pena beber. E eu também não queria bebê-la. Queria era dar um tiro na cabeça.
Em algum lugar entre nós havia uma floresta de palavras não ditas. A tensão continuava no ar, mas as palavras continuariam não ditas, por enquanto. Porque naquele
momento a porta da casa se abriu e Vanessa saiu.
– Lá está ela – disse, me curvando para a frente. Nunca na vida me senti tão aliviado e tão decepcionado por ver uma campana chegar ao fim.
Vanessa olhou para os dois lados da rua, parou um momento. Seus olhos pareceram se demorar sobre nosso carro. Então ela andou apressadamente até seu Corvette, entrou
nele e deu a partida.
– Ela não viu a gente, viu? – Lien-hua sussurrou.
– Não – eu disse, da maneira mais confiante que pude. Mas poderia ter visto. Talvez tivesse visto.
Vanessa tirou o carro da garagem.
– Muito bem – eu disse. Fiquei feliz por conseguir controlar minha fala, meus pensamentos de novo. – Hora de agir.
56
Peguei meu walkie-talkie.
– Indivíduo em movimento. Indo para o leste pela Highway 240. Unidade 1 em perseguição. Favor dar instruções.
– Unidade 2 falando – Brent respondeu. – Estou perto. Vou ajudar vocês. Câmbio.
Vanessa seguiu pela Merrimon Avenue e depois virou na East Chestnut. Lien-hua mantinha distância, ficando perto o suficiente apenas para não perdê-la de vista, deslizando
pelo trânsito como uma profissional.
De repente, Vanessa virou à esquerda bruscamente, furando um sinal vermelho.
Lien-hua cantou os pneus, indo para a faixa da esquerda e jogando o carro no cruzamento, na direção de um caminhão que se aproximava. Eu tinha certeza de que ele
iria bater em nós – em mim – mas então Lien--hua apontou o carro para o meio-fio, subiu no gramado não tão bem cuidado de alguém, passou pelo caminhão e voltou para
a estrada.
– Você dirige com atitude – eu disse.
– É porque tenho dois irmãos mais velhos jipeiros.
Ambos havíamos pegado os acontecimentos da campana e engavetado discretamente. Numa gaveta bem fechada. Nada acontecera. A vida voltara ao normal.
Não. Não voltara.
Falei com Brent Tucker pelo rádio.
– O indivíduo virou à esquerda indo para Charlotte. Talvez tenha visto a gente.
– Já vi – voltou a voz de Tucker. – Estou bem atrás dela.
Lien-hua contornou a curva e viu as lanternas do sedã de Tucker sumindo de vista quatrocentos metros à nossa frente.
– Ela está correndo mesmo – eu disse.
Lien-hua afundou o pé no acelerador, e nós voamos pela curva.
– Ela está entrando no campo de golfe Stratford – Tucker informou. – Estou na entrada leste. Vão para o norte e fechem a saída ao norte.
À nossa frente, a estrada bifurcava.
– Pra que lado? – gritou Lien-hua. – Direito ou esquerdo?
– Não sei – eu disse.
– Decida!
Corri os olhos pelas ruas, árvores, a geografia do bairro.
– Direita.
Ela girou o volante e nós saltamos para a faixa da direita. Ela nos levou para uma estreita estrada vicinal e nos deixou na entrada norte do campo de golfe.
– Como você sabia? – ela perguntou quando saímos do carro, pegando nossos walkie-talkies.
– Teoria de viagem. Design urbano. Depois explico...
– Suspeito do sexo masculino. – Era a voz de Tucker. – Em perseguição.
– Masculino? – disse Lien-hua. – Grolin?
– Desconhecido – veio a resposta.
Lien-hua e eu corremos pelo fairway rumo ao buraco 17. Comecei a pensar que teria sido melhor aceitar aqueles microfones adesivos.
– Vanessa está a pé! – gritou Tucker. – Indo para o vestiário.
– Vá para o leste – eu disse a Lien-hua. – Vamos nos dividir e tentar encontrar Grolin antes que ele a encontre. – Lien-hua saiu correndo e sumiu à esquerda, e eu
me embrenhei nas árvores à direita, atravessando um bunker de areia. Eu podia ver uma silhueta cinquenta metros à minha frente, abaixada e se aproximando do vestiário.
Apertei o botão do comunicador. – Tucker, cadê você?
– A oeste do vestiário.
– Acho que estou vendo o suspeito – eu disse.
– Onde?
– Perto dos carrinhos de golfe, no lado sul da...
A silhueta foi para a frente, flutuou nas sombras. Desapareceu.
– Espera! Perdi de vista agora – gritei. Corri, tirando a arma do coldre ao mesmo tempo. – Ele deve estar perto de você.
– Ele está perto da entrada oeste – veio a resposta de Tucker. – Vou entrar lá.
– Espere por Lien-hua! – gritei.
O Ilusionista passou pelas sombras beirando as árvores até o vestiário. Ele tivera que mudar seus planos para aquela noite, se adaptar, mas estava confiante de que
tudo daria certo no final.
Oh, tudo daria maravilhosamente certo.
Olhem pra esta mão enquanto escondo a moeda na outra.
Lembrei a explosão mais cedo. Será que é outra armadilha?
– Espere os reforços – eu disse a Brent pelo walkie-talkie.
– Pegamos o cara – Tucker respondeu. – Vamos prendê-lo.
Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Tucker penetrou as sombras como uma faca e desapareceu através de uma fenda na cerca.
Gente demais no local... comunicação ruim... alguém vai se machucar.
– Recue! – eu disse. – Isole a área!
O Ilusionista sacou sua arma. Agachou-se na escuridão. Esperou.
Ouvi o barulho de vidro se quebrando e virei o canto. Um alarme começou a tocar.
– Ele está lá dentro. Repito, ele está lá dentro.
Eu corri, entrei pela janela quebrada. Agucei os ouvidos.
– Tucker?
Um tiro.
Não!
As luzes de emergência se acenderam, avermelhadas, cobrindo a sala num escarlate pulsante. A sirene do alarme uivava na noite. Era como se eu estivesse dentro de
um coração que batia.
Brum, brum. Brum, brum... Brum, brum. Brum, brum...
Corri para o canto da parede.
Brum, brum. Brum, brum...
O assassino. Ele está aqui.
Então notei um movimento nas sombras.
– Quem está aí? – gritei. Liguei minha lanterna e percorri a sala, lanterna na mão esquerda, arma na direita. – Quem é?
Brum, brum...
Grunhidos graves. Uma luta. Duas silhuetas no canto, no escuro. Movimentos borrados.
Movimentos borrados.
Uma delas era uma mulher. Lien-hua. Eu a vi girar e dar um pontapé em alguém. Ele caiu no chão. Ela sacou a arma, agachou, pronta para avançar. Então, um tiro. Ela
correu para se proteger. Eu me abaixei nas sombras.
– Lien-hua! – gritei.
Mais um tiro. Da sala ao lado. Minha adrenalina estava batendo no teto.
– Lien-hua, você está bem?
– Estou!
– Tucker, cadê você?
Brum, brum. Brum, brum...
Então a pessoa com quem Lien-hua lutara ficou de pé, agitando duas armas, uma em cada mão, correndo na minha direção. Tudo era um borrão, um borrão vermelho.
– Largue as armas – gritei, apontando a minha. Estava escuro demais para vê-lo bem; eu só conseguia ver a silhueta dele na frente da janela. Sons abafados. – Agora!
Largue!
Nenhuma resposta. Ele estava apontando as armas, se aproximando rápido...
Atire nele, Pat, ou você vai morrer.
Antes que eu pudesse puxar o gatilho, ouvi dois tiros vindo da minha esquerda, e a figura foi jogada para trás, desabando no chão. De repente, as luzes estavam acesas
e Tucker entrou correndo, agitando a arma.
– Acertei – gritou. – Acertei Grolin. – A luz vermelha seguia pulsando.
Pulsando.
Olhamos para o outro lado da sala. Havia dois corpos no chão. Um era de Vanessa Mueller, com um tiro no pescoço. O outro era de Joseph Grolin, com o peito sangrando.
A boca dele estava tampada com fita adesiva. Suas duas mãos estavam fechadas e presas firmemente com a fita ao redor dos cabos das armas.
Armas de brinquedo.
57
– Oh, não, por favor, não... – Tucker gemeu. – O que foi que eu fiz?
Lien-hua correu para socorrer Vanessa. Eu corri para perto de Grolin. Ele ainda estava vivo.
– Guarde essa arma – gritei para Tucker. – Já.
Grolin não podia desgrudar as armas das mãos. Não podia largá-las. E não podia tirar a fita adesiva da boca para nos avisar. Tirei a fita do rosto dele, e ele cuspiu
um peão branco ensanguentado.
– Quem fez isso com você, Joseph? – perguntei. – Quem?
Ele engoliu com dificuldade, lutando para respirar.
– Eu não fiz nada com ela – ele conseguiu dizer. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ele estava chorando havia algum tempo, provavelmente sabia que a polícia
estava chegando e estava tentando se soltar.
– Quem? – eu disse. – Quem fez isso?
A luz escarlate pulsava ao nosso redor. Brum, brum. Brum, brum... Ele cuspiu uma golfada de sangue.
– Chame uma ambulância, já! – gritei para Tucker, que estava parado ao meu lado, em choque. Me curvei mais para perto de Grolin. Ele estava tentando dizer alguma
coisa.
Mas era tarde demais. Ele suspirou uma última vez e desmoronou no chão.
Não!
Comecei a fazer massagem cardiopulmonar, mas com dois ferimentos a bala daqueles no peito, não ia adiantar muito. Brum, brum. Brum, brum...
– Precisamos daquela ambulância!
Lien-hua pediu ajuda pelo rádio. Tucker continuava em choque.
– O que foi que eu fiz? – ele balbuciava. – O que foi que eu fiz?
– Por que entrou aqui correndo daquele jeito, Tucker? – gritei. – Por que não esperou?
Sirenes. A polícia estava chegando.
Brum, brum. Brum, brum...
Tentei fazer o coração despedaçado de Grolin voltar à vida. Foi inútil. Joseph Grolin estava morto.
E ele não era o Ilusionista.
Dez minutos depois, a ambulância partiu, levando Vanessa Mueller para o Hospital Mission Memorial. Era bem provável que ela morresse em seu local de trabalho. O
clima no local era pesado.
– Ele correu pra cima de mim – disse Lien-hua. Estava atordoada. Todos estávamos. – Chutei sua mão quando vi que ele parecia estar segurando uma arma. Ele não soltou.
– Cada um de nós vai ter que fazer um relatório completo sobre isto – eu disse. – Entender exatamente o que aconteceu aqui.
– Vocês viram, não viram? – Tucker disse para nós. – Ele estava apontando as armas pra mim.
Eu não sabia o que dizer. Provavelmente Brent não iria ficar encrencado, no fim das contas. Afinal, o cara estava agitando o que pareciam ser duas armas na nossa
direção, e não respondia verbalmente, nem as soltava. Naturalmente, ele não tinha como fazer nem uma coisa, nem outra. Era só mais um dos peões do Ilusionista.
Eu estava começando a achar que todos éramos.
– O assassino nos atraiu pra cá usando Vanessa – eu disse. – Mas ninguém atirou nela, certo?
Todos balançamos a cabeça negativamente.
– Certo – eu disse. – Então ele estava aqui em algum lugar. Vamos pedir que a perícia vasculhe o lugar e a balística verifique a bala no pescoço dela, pra ver se
é igual à que foi retirada do pescoço do cara na garagem.
Então me virei para Tucker.
– Detesto esta parte, mas preciso fazer. Como o agente mais graduado aqui, preciso que me entregue sua arma. Ela foi usada num tiroteio com vítimas, e até que uma
investigação completa possa...
– Eu sei. – Ele jogou a arma na minha mão. – Eu sei. – Seu rosto se anuviou, e eu não sabia se era o choque ou a culpa que estava tomando conta dele. Talvez fossem
as duas coisas. Ele se virou e se afastou, cabisbaixo. Eu o deixei ir. Senti pena dele, estava enojado com tudo o que acontecera. Mas realmente não sabia mais o
que dizer.
Durante as duas horas seguintes, respondi perguntas e preenchi formulários para os policiais que atenderam a ocorrência até não conseguir enxergar direito. Fui o
último da nossa equipe a deixar o local. Depois de pegar uma carona até meu hotel com um dos policiais, desabei na cama. Tentei dormir.
Acabei por fazer barras. Mas meu ombro doía tanto que tive que fazê--las com um braço só. E a cada barra, eu jurava que iria pegar o Ilusionista.
Minha raiva estava temperada com um fogo renovado, e a única coisa que iria apagá-lo seria deter aquele sujeito.
58
Aaron Jeffrey Kincaid parou na porta do salão de reuniões por um momento e escutou.
Do outro lado da porta, podia ouvir um homem falando de forma comedida, calma, prolixa. Ele conhecia a voz. Era a voz do Pai, a voz do reverendo Jim Jones.
E ele conhecia a fita. Era aquela em que o Pai convencia seus seguidores, sua família, a formar uma fila e morrer. Durante todos aqueles anos, Aaron ensinara à sua
família aquelas palavras. Eles as recitavam como bênçãos para as crianças, acreditavam nelas como se fossem preces.
Algumas pessoas a chamavam de Fita da Morte. Kincaid só se lembrava dela como a Mensagem Final.
Ele abriu a porta e encontrou sua família esperando sentada sobre o grosso tapete. Algumas mulheres cantavam um hino antigo, balançando o corpo, de olhos fechados.
Quando ele entrou no salão, toda a cantoria parou. Um dos homens desligou a gravação e os membros da família curvaram a cabeça em sinal de respeito, baixando a testa
até o chão, abrindo os braços, com as palmas das mãos para cima, como asas quebradas. Ele não lhes ensinara aquele gesto; nunca pedira que o fizessem, mas com o
passar dos anos, aquela havia se tornado uma reação natural. Só estavam tentando homenageá-lo, e ele não lhes negaria isso. Não havia motivo nenhum para negar-lhes
isso.
Ele amava aquele grupo mais do que qualquer outra coisa em toda a sua vida – ao menos parecia amor, para ele. Era difícil dizer. Eles haviam lhe ensinado tanta coisa
a respeito de si próprio, tanto sobre as possibilidades que ele tinha. Mas, amor ou não, o que tinha por eles era um sentimento nobre. Disso ele tinha certeza.
– Trinta anos atrás, uma grande tragédia aconteceu – ele começou, e enquanto falava, eles foram se sentando novamente, um de cada vez. – Uma das maiores tragédias
daquela geração. Não precisava ter acontecido. Não havia motivo para que acontecesse. Pais morreram naquele dia, pais que amavam seus filhos. Irmãos e irmãs morreram
naquele dia. Homens e mulheres como nós, que não fizeram nada de errado, que não transgrediram nenhuma lei, que não machucaram ninguém, morreram naquele dia. Gente
de bem. Gente como vocês e eu morreu naquele dia. Naquele dia terrível.
Seus seguidores balançavam a cabeça, concordando, enquanto ele falava. Conheciam bem a história.
– A vida não era uma possibilidade para eles, se não pudessem viver livres. Preferiam atravessar para o outro lado do que viver escravizados pela sociedade que os
acorrentou à repressão, que os odiava por suas crenças. – Kincaid vagava entre eles agora, roçando os dedos em suas faces num ato de bênção silenciosa.
– O único crime deles era acreditar, sonhar e lutar por um mundo melhor. – Ele fez uma pausa. Não era para efeito dramático, embora servisse também para isso. Ele
parou porque as lembranças o estavam alcançando, perseguindo-o como os guardas do Templo do Povo o perseguiram no crepúsculo. Ele se lembrou dos bebês, do rio e
das seringas. – Mas o que mais me parte o coração não é que eles tenham morrido, mas que a memória de suas vidas tenha sido manchada. Todos vamos morrer, mas nossa
memória não precisa ser pisoteada. Meus familiares, meus amigos, foram chamados pelo mundo de seguidores loucos de um culto, ficaram dias apodrecendo ao sol enquanto
o governo dos EUA se preparava para acobertar o próprio papel na destruição deles. – Sua voz engrossou. Seu rosto ficou vermelho de raiva. – A tragédia que lhes
custou a vida foi culpa do governo que os perseguiu. Da cultura que forra seus bolsos com os sonhos dos pobres.
Seus seguidores, seus familiares, manifestaram sua concordância. Aaron Jeffrey Kincaid parou de andar e ficou como uma estátua, como um deus, entre seus seguidores,
entre os verdadeiros fiéis. Um tremor de pura fúria tomou conta dele, mas ele acolheu a raiva, a manteve perto, deixou que ela o informasse, que se tornasse sua
guia.
Ele segurou o queixo de Marcie e delicadamente levantou a cabeça dela para que o olhasse nos olhos. Ela corou por ser escolhida dessa forma pelo Mestre. Algumas
das mulheres começaram a chorar baixinho, enquanto os homens endureciam os olhos e projetavam o queixo, balançando a cabeça. Marcie lhe dera uma filha. Ele sabia
que ela entenderia sobre as crianças. Estava com ele desde o início. Até trabalhara no departamento de pesquisa e desenvolvimento da PTPharmaceuticals antes de entrar
para a família. As lágrimas delicadas nos olhos dela lhe diziam que ele estava certo. Ela entendia. Ela olhou atrás dele, para a porta da biblioteca.
– E assim, para proteger nossas crianças das mãos daqueles que querem tirá-las de nós, daqueles que querem lhes ensinar apenas fraude, perversão e ódio, fizemos
o que era preciso, por amor. Por esperança no futuro. Nós as mandamos para o outro lado antes de nós, para protegê-las da dor que eu carreguei estes anos todos –
ele olhou Marcie nos olhos –, a dor de saber que o mundo cuspiu na memória daqueles que amamos.
Ele olhou para o rosto dela.
– A compaixão e o amor exigem que protejamos as crianças de uma vida cheia de tormentos assim.
Marcie começou a chorar lágrimas discretas e constantes. Mesmo assim, ele não deixou que ela desviasse o olhar.
– Queremos que nossos filhos sofram? Que cresçam ouvindo seus pais sendo desprezados e ridicularizados por suas crenças? Não. Não queremos. Não deixaremos que isso
aconteça, pois amamos demais nossos filhos.
Mais lágrimas vieram. Algumas pessoas arriscaram olhadas para a porta da biblioteca.
– Fizemos com nossos filhos o que nossos antecessores fizeram com os seus. Mas só porque os amamos como eles amavam os seus, para proteger nossos filhos como eles
protegeram os seus.
– Sim – gritou um dos homens. – Sim, Pai!
E então Aaron Jeffrey Kincaid soltou o queixo de Marcie e se dirigiu para a porta da biblioteca. Ele virou a maçaneta e abriu a porta para ver os cadáveres das crianças
com seus próprios olhos.
59
Elas estavam enfileiradas. Em paz e imóveis, finalmente, livres das atribulações e traições da vida. Muito organizadas. Dispostas por idade, com as mais novas primeiro,
os bebês precedendo as outras.
David fora delicado com elas. Poderia tê-las partido ao meio, mas decidira deixar que tomassem a medicação, em vez disso. O dele era um amor puro, cheio de misericórdia
e compaixão. Sim, Kincaid disse a si mesmo, fora uma escolha sábia nomear David como seu auxiliar. Ele escolhera bem. Kincaid se virou para o grupo.
– Elas fizeram a travessia antes de nós. Vão nos encontrar do outro lado. Usamos o termo “morte” para fazer a transição parecer final, mas na verdade ela é um despertar.
E o despertar delas marca o início de um despertar maior do mundo todo.
Sua família gritou, concordando. Todos gritaram, menos Marcie, que olhava atrás de Kincaid, para a biblioteca, com olhos vazios, embaçados.
– O povo de Jonestown morreu porque preferiu escolher seu próprio destino em vez de vê-lo arrancado de suas mãos pelo governo que os caçava como animais, que planejava
abatê-los como cães!
O murmúrio de aprovação que ondulava pelo salão ficou mais alto, finalmente despertando gritos frenéticos. Aaron Jeffrey Kincaid, o homem concentrado e passional,
o homem amoroso, o homem benevolente, deixou que seu punho se cerrasse. Alguns atos eram tão terríveis que era um crime maior conter a emoção do que deixar que ela
ocupasse seu lugar de direito.
– O nascimento é a morte do que é velho. A morte é o nascimento do que é novo. Nós planejamos isto. Nós nos preparamos para esta jornada. Chegou a hora de corrigir
o destino, finalmente!
Kincaid ergueu as mãos para o céu. Todos se levantaram ao mesmo tempo. A expectativa no salão alcançou proporções febris.
– Ele é o nosso Pai! – gritou Aaron Jeffrey Kincaid.
– Ele é o nosso Pai! – os homens e mulheres repetiram em uníssono.
– Sua visão, nossa visão! Seu futuro, nosso futuro!
– Sua visão, nossa visão! – eles declamaram. – Seu futuro, nosso futuro!
– O mundo é cruel! – mentalmente, Kincaid não estava mais no rancho com sua família, estava ao lado da hidromassagem com Jessica.
– O mundo é cruel! – ele ouviu sua família dizer, e se lembrou da selva, dos homens armados, das mãos de Jessica que tremiam e do cais de um rio faminto. Sua primeira
família. O pátio. Aqueles que se deitaram e nunca mais se levantaram.
– Mas nosso amor vai nos unir para sempre! – ele gritou.
– Nosso amor vai nos unir para sempre! – O sangue girando na água. Girando para o futuro. O amor que não pode morrer. Sonhos distantes e bebês moribundos. Uma jornada
pelo tecido da noite.
Aaron Jeffrey Kincaid entregou as seringas contendo o híbrido de Francisella tularensis-CCHF para a sua família. Desta vez, o mundo iria pagar. Desta vez, a revolução
chegaria à sua completude inevitável. E desta vez, muitos mais fariam parte dela.
60
Domingo, 26 de outubro
Cheguei ao quarto de Vanessa no Mission Memorial Hospital alguns minutos antes das 8h para ver como ela estava. Perguntei ao médico que estava saindo se ele achava
que ela iria ficar bem.
– É cedo demais pra saber. – Ele nem tirou os olhos da prancheta para ver quem era. E então se foi, e eu fiquei a sós com ela. Me posicionei numa das cadeiras, ao
lado de um balcão cheio de remédios e uma Bíblia dos Gideões Internacionais.
Eu ligara para Margaret a caminho do hospital, e a conversa fluíra melhor do que eu esperava. Ela só me xingara duas vezes.
– Considero você pessoalmente responsável pelo fiasco de ontem à noite. – A voz dela estava tensa como um cabo de aço.
– Eu já imaginava.
– Você era o agente mais graduado no local.
– Sim, era.
– Relatório completo. Entendeu? Depois veremos o que acontece.
– Tudo bem.
Clic.
Até onde conseguia supor, o assassino ligara para Vanessa e a convencera a ir para o campo de golfe. Talvez tenha ameaçado matar seu namorado se ela não fosse, vai
saber.
Os exames preliminares de sangue do corpo de Grolin indicavam que ele fora fortemente sedado e depois drogado. Aparentemente, o assassino o raptara e o soltara no
vestiário, delirante pelas drogas, com as mãos coladas naquelas armas de brinquedo.
Parecia que estava perseguindo um fantasma.
Eu esperava que Vanessa soubesse o nome dele. Ela estava imóvel, com o monitor emitindo bipes suaves e regulares. Suaves e regulares. Marcando seu ritmo cardíaco.
Corri os olhos pelo quarto de hospital. A cena parecia familiar demais. Uma cama de hospital. Uma mulher moribunda. Cadeiras duras e feias nos cantos do quarto.
A única coisa que faltava era um jovem e fervoroso pastor chamado Donovan Richman.
Naturalmente, dessa vez a mulher não era minha esposa de cinco meses atrás; em vez disso, era a única pessoa que poderia nos levar a um maníaco assassino. Só isso.
Por alguns minutos, fiquei ouvindo a respiração suave e metódica de Vanessa e sentindo o cheiro acre de antisséptico que só os hospitais parecem ter. E a cada momento
que passava, uma nova onda de pesar rasgava o meu peito. Eu estava sentado ali, perdido em pensamentos, quando ouvi a voz de Lien-hua.
– Dr. Bowers?
Eu me virei.
– Sim?
Ela entrou no quarto, pé ante pé.
– Você está bem?
Olhei para baixo. Eu estava segurando a Bíblia dos Gideões; nem havia me dado conta de tê-la pegado.
– Só pensando. Lembrando.
– Christie? – ela disse baixinho.
Eu larguei a Bíblia.
– Um pastor vinha visitá-la, perto do fim. – Eu queria contar tudo para Lien-hua e não queria lhe contar coisa nenhuma.
– Ajudou?
Senti que estava ficando tenso. Lembrar as minhas discussões com o reverendo Donovan Richman me deixava frustrado de novo. Christie. Os médicos. As perguntas...
– Patrick?
Eu pisquei.
– Sim? – Eu fizera aquilo de novo, me perdera em pensamentos.
Vanessa estava imóvel perto de nós. Brum, brum. Brum, brum... Lien-hua se sentou na cadeira diante de mim.
– Você estava me falando do pastor. – Ela parecia ter entrado no modo psicóloga. Talvez estivesse me analisando, fazendo meu perfil. Mas naquele momento isso não
me importava muito. Eu suspirei.
– Acho que ele não se dava conta de quão desesperadora era a situação de Christie, na verdade, porque muitas vezes acabava discutindo comigo. “O projeto é a prova
de que existiu um projetista”, ele me disse um dia, e em seguida desfiou alguns dos argumentos típicos do Projeto Inteligente15 – complexidade irredutível, coisas
assim.
– E?
– Isso foi no dia em que os médicos me contaram que tinham dado a Christie uma dose de um remédio errado, e que o estado dela estava se deteriorando. Por isso, quando
o reverendo Richman veio com essa história, descarreguei a raiva em cima dele. “Tudo bem. Asas e globos oculares, pode ser”, eu disse. Eu queria encontrar uma maneira
de ganhar a discussão, parecia que eu estava perdendo tudo. “Mas se o projeto é a prova de que existiu um projetista, reverendo, permita-me fazer uma pergunta.”
“Qual?” ele disse, e eu falei: “O caos é a prova do quê?”
– E o que ele respondeu?
Olhei de Lien-hua para Vanessa. – A princípio, não disse nada. Eu lhe havia quebrado as pernas, e então ele falou, finalmente: “Não sei, Dr. Bowers. O caos é a prova
do quê?” Mas aí, antes que eu pudesse responder, Benjamin respondeu.
– Espere aí. Quem é Benjamin?
– Um dos diáconos da igreja deles. Vinha junto com o pastor. Normalmente, ele não falava muito, só escutava. Mas naquele dia, respondeu a minha pergunta.
– Sobre o caos?
– Sim.
Passei por Lien-hua e olhei pela janela para as nuvens cinzentas que se espalhavam pelo céu. – Ele murmurou a resposta baixinho. Mas foi como se lesse a minha mente.
– E qual é a resposta? O caos é a prova do quê?
– De nós. Dos seres humanos.
– Oh.
– Sim. Benjamin disse alguma coisa sobre como ele sabia que eu já tinha visto os piores tipos de violência de que os seres humanos são capazes, e ele tinha razão.
Eu vi. Você também viu, Lien-hua, as provas materiais, o mal que os seres humanos fazem uns aos outros... – Deixei que minha voz fosse sumindo.
O monitor cardíaco de Vanessa zumbia.
– E o que mais?
– Ele me disse que também vira o mal: o mal que fazemos a nós mesmos. Nas confissões, lágrimas e orações das pessoas. – Hesitei por um segundo. – Ele disse que a
alma pode ficar tão ensanguentada e dilacerada quanto o corpo. Chamava isso de “o outro tipo de violência”.
– O outro tipo de violência – ela repetiu. Ambos olhamos para Vanessa. Tive a sensação de que Lien-hua estava se lembrando de alguma coisa, revivendo alguma coisa.
– Acho que concordo com ele – ela disse finalmente. Algo no passado a atormentava.
Eu queria perguntar a respeito, mas não era a hora certa. Não falei nada. E talvez devesse ter contado a ela o resto, mas não contei. Talvez devesse ter explicado
que Donovan se aproximou silenciosamente e tomou minhas mãos nas dele. Talvez devesse ter contado que ele fez a oração mais simples que eu já o ouvira dizer, uma
oração por esperança, um apelo por misericórdia para ele e para mim, e que fiquei parado ali, sem nada para dizer, enquanto aqueles dois tentavam passar algo para
mim que meu coração havia perdido – ou que talvez jamais tivera. E o tempo todo Christie estava morrendo ao nosso lado.
Não, vivendo. Ela estava vivendo ao nosso lado.
Eles estavam vivendo ao lado dela.
Era eu que estava morrendo.
– Você tem razão, o caos é a prova dos seres humanos – o pastor Richman sussurrou para mim depois de terminar sua prece. – Mas a esperança é a prova de Deus. Ela
é o projeto mais profundo por trás de tudo, Patrick. A esperança apesar da dor.
Talvez devesse ter contado essas coisas para Lien-hua, mas não contei. Eu disse apenas:
– A alma pode ficar tão ensanguentada e dilacerada quanto o corpo... Sim, acho que também concordo com ele.
Olhei para o relógio e me levantei. Eu precisava ir buscar Tessa.
– A propósito – Lien-hua disse baixinho – olhei a lista das ligações hoje de manhã. A ligação que Vanessa recebeu ontem à noite não veio do celular de Joseph Grolin.
– De volta ao trabalho. De volta ao presente.
– Sabemos quem ligou?
– Não. Era de um número desconhecido – surpresa, surpresa. Mas quando Vanessa estava falando ao telefone em sua casa, estava gesticulando. Acho que a pessoa que
ligou era alguém que ela conhecia.
– Hum. Bem pensado.
– Eu me pergunto por que o assassino se deu a todo esse trabalho para incriminar Grolin, e depois o largou lá daquele jeito para ser baleado.
– Talvez ele quisesse que a explosão de ontem de manhã acabasse com tudo, e quando nós sobrevivemos, ele se adaptou, passou pro plano B. Talvez quisesse eliminar
alguém da nossa equipe – sabia que quem acabasse atirando em Grolin seria afastado do caso por uns tempos. Ou talvez só tenha feito isso porque podia, pela emoção.
Não sei. Escuta. Preciso ir buscar Tessa; você pode tentar localizar o cara do culto do Novo México?
– Pensei que Margaret estivesse cuidando disso.
– Ela está – eu disse. – Mas no momento não sei em quem posso confiar. Então, você pode?
Ela hesitou.
– Vou ver o que posso fazer.
E com isso, saí do hospital para pegar minha enteada, o corvo que fora deixado na minha porta por essa coisa caótica chamada vida.
61
O voo de Tessa estava previsto para chegar às 11h32. Cheguei ao Aeroporto Internacional Charlotte Douglas uns 45 minutos antes e fui até a bilheteria da US Airways.
A mulher atrás do balcão abriu um sorriso automático. Disse palavras automáticas.
– Bom dia, senhor. Já tentou usar nosso quiosque automático de venda de bilhetes, instalado para sua conveniência? Basta passar qualquer cartão de crédito das principais
bandeiras e...
– Vou encontrar uma pessoa: Tessa Ellis. – Mostrei meu distintivo do FBI para ela. – Ela chega de Chicago às 11h30. Quero que ela saia primeiro do avião e que suas
malas sejam levadas lá para fora, para a calçada.
Pela expressão no rosto dela, percebi que eu tinha sobrecarregado todos os seus circuitos. Nenhuma daquelas palavras aparecia no roteiro que ela recebera.
– É um caso muito importante – acrescentei.
– Hã... sim. Deixe-me ver. – Ela tamborilou por um momento no seu teclado de computador, depois desapareceu numa salinha para perguntar ao seu supervisor o que devia
dizer. Um minuto depois, ela reapareceu, com o sorriso novamente afivelado no lugar. – Claro, senhor. As malas dela estarão à sua disposição, senhor.
Balancei a cabeça.
– Obrigado.
Meu trabalho não tem muitas vantagens. Mas, no fim das contas, tem algumas.
Os caras da segurança me perturbaram um pouco quando quis passar com minha arma, mas mostrei meus documentos, identidade, habilitação, falei o nome de solteira da
minha mãe e sua receita de molho favorita e eles finalmente me deixaram passar.
Peguei um café no Chierio’s, o melhor café de qualquer aeroporto do país. Pela acidez natural suavemente cultivada, adivinhei que os grãos vinham da região montanhosa
do sudeste da Colômbia, o melhor país do mundo para o plantio de café. E para outros tipos de plantas também, pelo que meus amigos no Departamento de Combate às
Drogas me contam.
O café estava delicioso. E apesar de todas as coisas que eu tinha na cabeça, depois de três goles percebi que se eu morresse naquele instante, morreria feliz. Algumas
pessoas dizem que eu levo o café a sério demais.
Eu tomei mais um gole do South Mountain Blend do Chierio’s.
Não. Sem chance.
Fui para o Portão C-14.
Alice levou seus dois filhos da Basílica de St. Lawrence, no centro de Asheville, para o carro. Ela começara a levá-los à igreja alguns meses atrás, quando Garrett
saíra de casa. Foram dias muito, muito difíceis, especialmente no início. Ela precisava de força, e desde o início a igreja pareceu ajudar.
O teto da basílica tinha a maior abóbada oval sem colunas dos EUA. A beleza e a elegância a inspiravam, a ajudavam a olhar para o céu de novo. E ouvir os cantos
e as homilias parecia ajudá-la a pensar mais nas coisas que realmente importavam, a odiar Garrett um pouco menos por tudo que ele fizera, a se sentir esperançosa
por sua vida de novo, a confiar no poder do bem sobre o mal, do futuro sobre o passado. Dos anjos sobre os monstros.
Só depois de começar a frequentar a igreja ela se matriculara na faculdade para concluir seu curso. Para recomeçar.
Ela dirigiu da igreja até o Wal-Mart. Precisava comprar uma escova nova antes de voltar para casa.
Eu tinha previsto uma longa espera, mas logo depois que o voo 642 pousou, as portas se abriram e Tessa se aproximou de mim.
Ela estava vestida de preto, como eu esperava. Sempre achei que rosa poderia combinar com ela, mas com batom preto, sombra preta e até as unhas pintadas de preto,
tudo nela parecia manifestar a cor do seu humor, do nosso relacionamento. Preto.
Não estrague tudo, Pat. Não estrague tudo.
– Tessa – chamei.
Ela inspirou devagar e segurou a bolsa com força.
– Patrick.
– É bom ver você. – Eu me aproximei, abri os braços, ofereci um abraço. Ela não se mexeu.
– Por que está fazendo isso comigo?
Senti meus dentes se cerrando.
– Não, Tessa, quando eu digo que é bom ver você, você deve dizer: “Oh, é bom ver você também.” Vamos tentar de novo – é bom ver você.
Coisa mais sarcástica e idiota pra se dizer. Idiota, idiota! Por que você disse isso? Por quê?
Ela balançou a cabeça bem lentamente. Lágrimas começaram a despontar em seus olhos. Eu a fizera chorar em menos de trinta segundos.
– Por que quer estragar completamente a minha vida?! – Ela puxou a alça da bolsa para o ombro e se afastou de mim, pisando duro. Fiquei ali, no rastro da fúria dela,
balbuciando para mim mesmo:
– “Senti sua falta. Que bom que você está bem.” Isso poderia vir a seguir. Seria bom dizer isso também.
O agente Stanton se aproximou de mim.
– E o senhor deve ser o pai.
Não, pensei. Ela não tem pai.
– Padrasto – eu disse. – Sim. Sou eu.
62
Depois que pegamos a bagagem de Tessa na calçada, o agente Stanton nos deixou, prestando uma falsa continência. Imaginei que ele fosse pegar um voo de volta para
Denver, mas não perguntei.
– Tchau, Eric – gritou Tessa com um sorrisinho irônico. – Continue caprichando naqueles quebra-cabeças!
Ele a ignorou. Balançou a cabeça. Continuou andando.
– Que história é essa? – perguntei.
Ela sorriu.
– Oh, nada.
Jogamos a bagagem de Tessa no carro e pegamos a rodovia. Liguei para Terry e ele me passou os resultados de sua pesquisa. Desliguei o telefone e me virei para Tessa.
– Bem, você já comeu?
– Sim. Aonde a gente tá indo, afinal?
– Pra um lugar chamado Asheville. Mas preciso parar em outro lugar antes.
A mansão do governador parecia diferente à luz do dia, mais sulista, de alguma forma. Como se devesse estar no Mississippi, não na Carolina do Norte. Tessa olhou
pela janela enquanto nos aproximávamos.
– Quem mora aí?
– O governador.
– Sebastian Taylor?
– Como sabe o nome dele?
– Não é tão complicado, Patrick. – Ela falava lentamente, como se estivesse explicando algo para um menino de cinco anos. – Sebastian Taylor é o governador da Carolina
do Norte. Nós estamos no Estado da Carolina do Norte. Isso se chama lógica.
– Sim, bem, eu sei, mas acho que fiquei surpreso por você saber o nome dele.
– Por quê?
– Porque a gente mora no Colorado, e a maioria dos jovens da sua idade mal sabe o nome do presidente, que dirá do governador de um estado do outro lado do país.
– Bem – ela disse –, eu não sou como a maioria dos jovens. Eu não sabia ao certo como responder a isso.
– Olha, só preciso falar com ele um minuto. Depois vamos seguir viagem.
– Vai falar com ele sobre o quê?
– O papel dele no massacre de 909 pessoas.
A srta. Anita Banner nos recebeu na porta e, embora seus olhos virassem brasas quando pedi que ficasse com Tessa enquanto eu conversava com o governador, ela concordou.
O governador Taylor estava no salão principal, sentado num dos sofás de couro, quando entrei. Ele tinha óculos de leitura no nariz, um livro aberto no colo e usava
um elegante terno cinza-claro de pelo de cabra.
– Agente Bowers – ele disse em tom neutro. Nem tentou fingir ser educado, desta vez.
Decidi seguir o exemplo dele.
– Você fez a fita.
Aquilo chamou sua atenção.
– Quê?
– A Q875.
Ele esperou, provavelmente para ver se eu não estava blefando.
– CIA. Guiana, América do Sul.
– Do que está falando?
– Da Q875. Mas você cometeu um erro. Você a deixou lá.
O governador Taylor tirou os óculos e limpou as lentes com o lenço. Ele fez isso sem pressa.
– Trabalhei para o Departamento de Estado nas décadas de 1970 e 1980, agente Bowers, pesquisando acordos comerciais na França, Amé-rica do Sul e Espanha. Tudo isso
é público e notório. Pode pesquisar. Lamento, mas estava envolvido com relações exteriores, não com espionagem internacional.
– Codinome Cipher, número de referência 16-1711AD4 – eu disse. Terry é muito bom no que ele faz.
O governador voltou a colocar os óculos.
– Hum... acho que foi o serviço estratégico do Exército ou a Agência de Segurança Nacional. Acertei? Foi lá que você procurou?
– Isso eu não posso revelar.
– Claro que não. – Ele deixou o livro de lado e se levantou do sofá. – Há quanto tempo sabe?
– Pouco mais de uma hora. Falei com minha fonte hoje de manhã. Ele foi muito prestativo.
– Tenho certeza disso.
– Até onde foi aquilo, governador? O senhor fez mais do que gravar a fita? Estava na pista de Port Kaituma também?
O governador deu a volta no sofá, se aproximou de mim e chegou perto o suficiente para que eu sentisse seu hálito de menta.
– Dr. Bowers, já foi pescar no oceano?
– Eu vou descobrir, governador. É só questão de tempo. Já estou sabendo de Trembley, que o senhor mandou que me seguisse.
Ele se virou, foi até a lareira com o peixe gigante pendurado em cima.
– Peixe-espada. Ou talvez marlim, ou tarpão16, como este aqui – ele disse.
– Governador, ouviu o que eu falei?
– Claro que o tarpão costuma ficar mais perto da costa do que o marlim ou o peixe-espada. – Ele recuou para admirar o seu peixe. – Peguei este perto da costa de
Tampa. Nem me dei conta, na época, mas estávamos pescando nas águas mais infestadas por tubarões do mundo, mais até do que a Grande Barreira de Coral17. A maioria
das pessoas não sabe disso. – Ele se virou para mim. – Dr. Bowers, sabe qual é o tubarão mais perigoso do mundo?
Chega de joguinhos. Chega de papo.
– As coisas fugiram do controle, certo? O lugar era uma bomba-relógio e vocês zeraram o timer. Jones implodiu depois do assassinato, e vocês precisavam dar aos seus
supervisores alguma prova de que tinham limpado a sujeira. Mas por que deixou a fita lá? É a única coisa que não entendo.
– O tubarão, dr. Bowers. Tente adivinhar o tubarão.
– Não sei – falei entre os dentes. – O grande tubarão branco. Ele deu um sorrisinho.
– Pois é, a maioria das pessoas acha isso, é o que todos dizem, ou então o tubarão-martelo; mas não. Na verdade, é o tubarão-de-cabeça--chata. Gosta de ficar perto
da costa, e consegue viver tanto na água salgada quanto na doce, é muito adaptável a vários ambientes. É isso que o torna tão letal. – Ele se virou para mim. Seus
olhos se estreitaram, tornaram-se projéteis. A mudança era impressionante. – Dizem que por aqui as pessoas nem sempre pescam o que esperam – ele disse. – Às vezes,
o peixe no anzol se revela um tubarão-de-cabeça-chata. Não é o tipo de peixe que o senhor iria querer puxar para o barco.
Levantei a cabeça.
– Está me ameaçando, governador?
Ele se aproximou ainda mais, e sua voz baixou para um sussurro metálico e monocórdio. Seus olhos eram pedras pretas e frias.
– Se vai pescar nestas águas, é bom que esteja pronto para puxar qualquer peixe que morder a isca.
– Estou pronto – eu disse. – Que venham os tubarões.
– Você nem faz ideia do que está enfrentando.
– Nem você.
Naquele momento, a srta. Banner e Tessa apareceram na porta.
– A mocinha está ansiosa para ir embora – disse a srta. Banner. Imaginei que a srta. Banner estivesse ansiosa para se livrar de Tessa e continuar dando assistência
pessoal ao governador. Observei os olhos do governador Taylor percorrendo a sala e pousando em Tessa.
Juro que se ele sequer olhar pra ela do jeito errado, vou arrebentá-lo.
– E quem é que temos aqui? – ele perguntou.
– Meu nome é Tessa. Então o senhor é o governador Taylor?
– Sim, senhora.
Ela olhou ao redor.
– Belo tarpão.
Você está de brincadeira. O governador sorriu.
– Bem, obrigado.
Os olhos dela correram de um quadro ao outro, analisando-os.
– Então – ela perguntou finalmente –, por que o senhor só tem quadros das batalhas que o Sul ganhou?
Tá bom, aquilo era absolutamente impressionante. Ele hesitou um momento.
– Uma observação... muito astuta, minha jovem. Você é uma garota inteligente. Com certeza, seu pai sente muito orgulho de você.
– Bom – Tessa disse –, isso você tem que perguntar pra ele.
Meu coração se retorceu dentro do peito.
– Vem, Tessa. Já acabei aqui. Vamos embora.
O governador sorriu.
– Dr. Bowers, se o senhor e a agente Jiang não puderem comparecer ao almoço amanhã, eu vou entender.
– Ah, mas nós vamos – eu disse. – Fiquei sabendo que vão servir peixe. Ele expirou pelo nariz, como Margaret fazia às vezes. Que bom. Eu o aborrecera.
– Srta. Banner – ele disse –, por favor, dê à nossa jovem uma das fotos autografadas.
E com isso, a Srta. Banner nos levou para fora sem uma palavra, entregou uma foto para Tessa sem uma palavra, e nos acompanhou até o carro sem uma palavra.
Assim que eu dei a partida, Tessa amassou a fotografia e a jogou pela janela sobre o gramado meticulosamente aparado do governador.
– Não gostei do jeito que ele me olhou.
– Você é ótima para julgar – eu disse. – Continue assim.
Inacreditável. A gente concordava em alguma coisa.
63
Todo o caminho de volta para Asheville, Tessa ficou em silêncio, com seu iPod enfiado nos ouvidos. Peguei minhas coisas no hotel, paguei a conta e dirigi até o esconderijo
do FBI. Tessa e seu iPod me acompanhavam em silêncio.
O esconderijo onde Tessa e eu íamos ficar era um casarão marrom fora da cidade, perto do Rio French Broad. O xerife Wallace destacara os agentes Jason Stilton e
Patricia Muncey para proteger Tessa. Eles estavam à nossa espera na casa quando chegamos. Eu os reconheci da apresentação que fizera na sexta.
– Está esfriando – disse o agente Stilton, jogando o cigarro no gramado e me acompanhando para dentro da casa.
Tessa e seu iPod passaram por nós em silêncio.
– Sim – eu disse, vendo-a passar na minha frente. – O cara do rádio falou alguma coisa sobre neve amanhã de manhã.
O agente Stilton grunhiu, o que acho que significava que ele concordava.
– Não reparem nos brinquedos – disse a agente Muncey quando entramos na sala de estar. – Ainda não arrumamos a casa depois dos últimos ocupantes.
A sala de estar cheirava vagamente a areia sanitária para gatos e talco de bebê. Havia brinquedos espalhados pelo chão, o que tornava a mais simples jornada através
da sala um desafio. Mas um desafio ainda maior parecia ser evitar pisar nos dois gatos que se metiam incansavelmente no meio dos pés de todos, ou apareciam do nada
e se deitavam na sua frente, esperando que você coçasse a barriga deles.
– Um caso de violência doméstica envolvendo um vereador – disse a agente Muncey. – Trouxeram a esposa e os filhos do cara aqui pra protegê-los.
– Levaram as crianças – resmungou Jason Stilton. – Deixaram os gatos.
Tessa tirou os fones do iPod dos ouvidos e se ajoelhou para brincar com a bola de pelos cor de abóbora.
– Oh, eles são tão lindinhos! Como se chamam?
– Esse é Raio-de-Sol, e a preta é Meia-Noite – ele disse.
Eu me ajoelhei para brincar com Meia-Noite. Ela arranhou o ar e chiou para mim.
– Você precisa estender a mão aberta pra ela – disse Tessa, fazendo uma demonstração. – E mais devagar. Assim ela sabe que você não vai machucá-la.
Eu me perguntei se Tessa estava mesmo falando da gatinha. Meia--Noite ronronou, deitou de costas e deixou Tessa coçar sua barriga.
– Viu?
– Nunca iria imaginar que você era fã de gatos, Tessa – falei.
– Eu amo gatos.
– Eu não sabia...
– Tem muita coisa que você não sabe – ela disse em tom neutro. Estava começando a me dar conta do quanto isso era verdade.
– Olá.
Eu me virei na direção da voz e vi que Ralph entrara na sala.
– O que está fazendo aqui? – eu disse.
– Só queria dizer olá pra parte inteligente da família.
– Obrigada – disse Tessa.
– Você se lembra de mim, certo?
Ela fez que sim.
– Agente especial Ralph Hawkins.
– Tio Ralph. – Ele a abraçou.
Então eu a fazia chorar, mas o tio Ralph ganhava um abracinho. Que maravilha. Ela apontou para o bolso dele.
– O que é isso?
– Hã, nada.
Ela fez uma finta para a direita e se curvou para a esquerda, enfiou a mão no bolso dele e puxou o PlayStation Portable. – Massa – ela disse.
– Ei, me dá isso! – Ele tentou tirá-lo da mão dela, mas ela recuou bem a tempo.
– Eu devia ter te avisado, Ralph – falei. – Ela é boa.
– Por que você tá jogando videogame? – ela perguntou. – Pensei que seu trabalho fosse resolver homicídios ou algo assim.
– Todos precisam de um descanso de vez em quando. Agora me dá isso. – Ele tentou pegar de novo e não conseguiu. Suspirou.
– E o que você tá jogando?
Ele desistiu e apoiou um braço na parede.
– Sorcerer’s Realm IV. Não consigo passar pela cripta no Nível 5.
– Sem problemas. Eu ajudo você.
– Você joga?
Ela fez aquela pose sarcástica de adolescente, projetando a cabeça para a frente e fazendo uma voz engraçada.
– Lógico.
– Oh – disse Ralph. – Certo.
Ela se jogou no sofá e ele se sentou ao lado dela. Então ela começou a usar os controles como uma profissional, enquanto ele olhava, submisso.
– Tá vendo essa caverna? – ela disse.
– Sim.
– Então, tem uma passagem secreta ali, mas você precisa decapitar o ogro primeiro.
– Eu não sabia que dava pra decapitar. Sempre dou porrada nele com a clava.
– Não, decapitar é bem melhor.
Fiquei olhando os dois por alguns minutos. Tessa apontando, Ralph balançando a cabeça, seu crânio se movendo para cima e para baixo sobre aqueles ombros gigantes.
Ver Ralph tentando usar seus dedos grossos para apertar os minúsculos controles me fazia pensar em alguém tentando digitar usando luvas de beisebol. Não admirava
ele não conseguir ganhar de Tony.
E de vez em quando, Tessa ria. Pela primeira vez em meses, eu estava ouvindo minha enteada rir. Enquanto mostrava para o meu amigo como se decapitava um ogro.
64
Antes de ir embora, Ralph me puxou para o canto.
– Tucker está de licença disciplinar – ele me contou. – Até conseguirem entender exatamente o que aconteceu ontem à noite.
Balancei a cabeça.
– Sim. Eu já esperava. Alguma notícia de Vanessa?
Ele balançou a cabeça negativamente.
– A última coisa que eu soube era que ela continuava na mesma. Mas a bala realmente era do mesmo tipo. Veio da mesma arma usada no shopping. Escuta, preciso ir,
tenha uma boa tarde com Tessa. Ela é um docinho.
Docinho não era exatamente a palavra que eu usaria.
– Pode deixar.
Então ele se despediu de Tessa e partiu. Fiquei com Tessa e os gatos por cerca de meia hora, depois fui ver meus recados. Três mensagens de voz de Margaret. Hã,
até mais rápido do que esperava. Um recado de Lien-hua. Liguei para Lien-hua.
Talvez devesse ter ficado surpreso quando ela me contou que, duas horas antes, o resto do corpo de Jolene fora encontrado na casa de Reggie Abrams, agente aposentado
do FBI, mas não fiquei.Talvez devesse ter ficado surpreso quando ela me contou que Abrams fora executado com um tiro na cabeça, ou que ele era ex-chefe do FBI no
estado da Carolina do Norte, mas não fiquei.
A única coisa que realmente me surpreendeu foi Ralph não ter mencionado nada disso quando esteve comigo na casa.
Esquisito.
– Descobrimos mais alguma coisa sobre esse culto no Novo México? – perguntei.
– Pouca coisa. O nome do líder é Aaron Jeffrey Kincaid. Ele era dono da PTPharmaceuticals, mas sumiu do mapa depois de vender a empresa alguns anos atrás. Vou mandar
a foto e a biografia dele para você por e-mail. Oh, e tenho um endereço. Acabamos de passá-lo para a polícia local há dez minutos. Estão indo pra lá verificar.
– Me dá o endereço – eu disse, abrindo o meu laptop.
– O que está fazendo? – perguntou Tessa, pegando Raio-de-Sol no colo.
Sim, isso é bom. Ela gosta de videogames.
– Olha só – eu disse, e ativei o F.A.L.C.O.N.
– Você não vai acreditar – Lien-hua disse. – Aqui está o endereço: Walnut Road, 19.654, Taos, Novo México.
– O que tem de tão especial nisso? – Digitei o endereço, e Tessa viu a tela se inclinar e então se aproximar das coordenadas. Primeiro o planeta. Depois o hemisfério.
Depois a América do Norte. O Oeste. O Novo México. As Montanhas Sangre de Cristo.
– Massa – ela disse.
– Bem – disse Lien-hua –, o número de telefone do Templo do Povo era Walnut 1-9654. Ele foi desativado depois da tragédia. Nunca mais foi passado para outro assinante.
– Sutil – eu disse. Mas à medida que a imagem se aproximava, comecei a me arrepender da decisão de ter deixado Tessa assistir.
– O que é aquilo? – perguntou Tessa.
Grandes nuvens de fumaça negra saíam dos seis edifícios.
– O rancho está em chamas – murmurei. – O complexo todo. – Movi o cursor pela tela, inclinando-a, aproximando e afastando a imagem para observar os prédios de vários
ângulos. O vento feroz do deserto, vindo do oeste, alimentava as chamas, transformando-as num inferno branco.
– Tem gente lá dentro? – Tessa perguntou baixinho.
Eu fechei o laptop.
– Tessa, espere um minuto, até eu desligar o telefone.
– Mas...
– Por favor.
– Patrick...
– Agora.
Ela soltou um suspiro entediado, mas finalmente se afastou.
– O que está acontecendo? – perguntou Lien-hua.
– Atearam fogo naquilo tudo – respondi. Afastei a imagem e vi quatro viaturas da polícia correndo pela estrada rumo ao rancho. Dois caminhões dos bombeiros as seguiam
de perto. Contei a Lien-hua o que estava vendo.
– De quando é esse vídeo? – perguntou ela.
Olhei para o relógio do programa.
– De uns cinco minutos atrás. Estamos bem na mudança dos satélites. Espere um pouco. – Aproximei a imagem de alguma coisa no curral. Um animal. Um rebanho inteiro,
na verdade.
Aproximei mais.
Nenhum dos animais estava se mexendo.
Aproximei mais ainda. Mais um pouco.
O gado parecia coberto de feridas. De início, achei que pudesse ser obra dos insetos.
Não, o lugar é alto demais. Faz frio lá nesta época do ano.
– Escuta, Lien-hua, peça pra polícia chamar uma equipe de manipulação de materiais perigosos e se manter longe do gado morto perto do riacho. Se Kincaid está planejando
outra Noite Branca, ele pode ter desenvolvido algum tipo de droga ou agente biológico. Precisamos isolar isso o quanto antes.
Ouvi movimento atrás de mim e me virei. Tessa estava olhando para a tela.
– O que está acontecendo? – ela perguntou.
Fechei o computador de novo.
– Por favor, Tessa, eu já vou desligar o telefone.
Ela não saiu do lugar. Apontei para o sofá.
– Colabora comigo.
Ela balançou a cabeça, se afastou a contragosto e se sentou no sofá, de braços cruzados.
Ouvi Lien-hua chamar Dante Wallace e pedir que ele entrasse em contato com a patrulha estadual do Novo México e com as equipes regionais de manipulação de materiais
perigosos. Então sua voz se aproximou do telefone de novo.
– Pat, estamos na casa de Abrams agora. Você pode vir pra cá?
– Preciso ficar com Tessa hoje à tarde.
– Com quem você está falando? – perguntou Tessa.
Lien-hua continuou.
– Bem, acho que podemos mandar os arquivos para você por e-mail. – Mas você precisava mesmo ir pro local do crime. – Já terminaram de periciar o local?
– Sim.
Balancei a cabeça. Então me segurei.
– Não, acho que não vou poder ir mesmo.
– Ir aonde? – perguntou Tessa.
– Tudo bem – disse Lien-hua. – Então mais tarde eu conto o que encontramos.
Por outro lado, talvez possa deixar Tessa aqui um pouco, brincando com os gatinhos...
– Qual o endereço?
– Que endereço? – perguntou Tessa. – Aonde a gente vai?
Apertei o telefone contra o peito por um minuto.
– A gente não vai a lugar nenhum. Eu preciso ir pro local de um crime.
– Eu nunca estive no local de um crime.
– Não posso levar você.
– Pensei que quisesse ficar comigo.
Rapaz, ela era boa. Era boa mesmo.
– Eu quero, mas... olha, é contra o regulamento.
– Mas se a polícia já terminou lá, que diferença faz?
– Como você sabe que a polícia terminou lá?
Ela virou os olhos.
– Você acabou de perguntar pra mulher se eles tinham terminado, e aí balançou a cabeça – alô?! – Você não iria balançar a cabeça se ela tivesse dito que não. Portanto,
se eles já terminaram, por que não posso ir?
– Como você sabe que estou falando com uma mulher?
– Tá me tirando? Pelo seu tom de voz.
Muito bem, agora era oficial. Ela era melhor investigadora do que a maioria dos agentes do FBI com os quais eu trabalhara nos últimos nove anos.
– Bem – eu disse. – Eu não vou te levar e ponto final.
Parei na frente da casa de Abrams na Cedar Point Avenue e me virei para Tessa.
– Fique no carro.
– Mas aí não vou poder ver...
– Volto daqui a alguns minutos.
– Como é que a gente vai ficar junto com você lá dentro e eu aqui fora?
– Ha! Desta vez, não vai funcionar. – Apontei para os dois agentes do FBI parados na varanda. – Não se preocupe, você está segura. Volto daqui a uns minutos, e aí
poderemos jantar. Comer um filé, quem sabe.
– Eu sou vegetariana.
– Ah, é? Pois eu gosto de carne. Uns hambúrgueres de gato bem suculentos, sempre que possível.
– Isso nem tem graça.
– Espere aqui.
Ela projetou o queixo e afundou no banco. Quando saí do carro, meu telefone tocou.
Margaret.
Ela não perdia tempo.
– Por que você não retorna minhas chamadas?
– Estou meio ocupado, Margaret.
– Você foi ver o governador hoje?
Uau. As notícias correm rápido.
– Eu precisava de uns conselhos.
– Sobre o quê?
– Pesca.
– Bom, escuta – ela disse. – Analisei todos os depoimentos da noite de ontem e estou satisfeita.
Quase deixei o telefone de Ralph cair.
– Está o quê?
– Satisfeita com a reação de Tucker à situação – ela continuou. – Claro que isso terá que passar por todos os canais oficiais, mas ele realmente não tinha escolha,
precisou atirar quando o agressor se recusou a obedecer. Você, por outro lado, não reagiu de forma adequada.
Troquei o telefone de mão.
– Como é que é?
– Quando o agressor estava agitando as armas na sua direção e na direção dos seus colegas, você não atirou. O padrão de procedimento indica claramente...
A raiva aumentando. Aumentando.
– O cara estava segurando armas de brinquedo – exclamei. – E não poderia largá-las, mesmo se quisesse.
– Mas você não sabia disso naquele momento, sabia?
Não perca a paciência, Pat. Não perca a paciência.
– Oh, espere – eu disse. – Entendo. Agora entendi.
– Entendeu o quê?
– Alguém do gabinete do governador Taylor ligou pra você, não foi?
– Dr. Bowers. – Ela estava falando bem lentamente, bem nitidamente. – Espero que não esteja me acusando de agir de forma antiética?
– Por que não? É exatamente o que estou fazendo...
– Bowers, suas técnicas não estão funcionando. Ainda não fazemos ideia de quem seja o assassino...
– Talvez Vanessa possa dizer um nome.
– Ah, você não está sabendo? – A voz dela se tornou fria. Distante. Meu coração ficou apertado.
– Sabendo o quê?
– Ela morreu hoje à tarde, dr. Bowers.
Não.
– Como ela morreu? Quem estava destacado pra vigiar o quarto dela? Quando foi o horário da morte?
– Ela morreu por ter levado um tiro no pescoço, dr. Bowers, quando o senhor caiu numa emboscada com sua equipe. Agora gostaria que o senhor parasse com toda essa
bobagem de Jonestown e cultos assassinos e se concentrasse em encontrar o homem que atirou nela, ou vou retirá-lo do caso. Mais uma mancada e vou mandar você de
volta pra Denv...
– A ligação está cortando, Margaret – eu disse.
– Não desligue na minha cara, dr...
Encerrei a chamada e desliguei o celular de Ralph. Fiquei tentado a arremessá-lo contra a porta da garagem a uns 130 quilômetros por hora, mas me contive a tempo.
65
O xerife Wallace me encontrou na porta.
– Ei.
– Ei. – Evitei falar da minha conversa com Margaret. Eu simplesmente não estava a fim. Olhei para trás dele, dentro da casa. A mancha de sangue na parede e no batente
da porta me diziam onde o atirador e a vítima estavam no momento do assassinato. A mochila de treino de Abrams estava perto da porta, com uma raquete encostada.
Ele devia estar saindo de casa quando foi atacado.
Seguimos a trilha de sangue seco através da casa até o quarto de Abrams. Ele fora arrastado para o armário.
– E o corpo de Jolene? Onde foi encontrado? – perguntei.
– Ali. Em cima da esteira.
– Da esteira?
– Sim.
Da esteira?
– A propósito, não sei se importa agora que Grolin morreu – ele disse. – Mas acabei de examinar os extratos do cartão de crédito dele.
– E?
– Sabe aquela jaqueta de couro que ele gostava de usar? Foi comprada na loja da Gap no Shopping Hanes na primavera passada. Adivinha quem estava trabalhando na loja
naquele dia?
– Jolene.
– É.
Pensei por um momento. Tudo era perfeito demais. Alguém estava incriminando Grolin e planejando tudo havia quase um ano.
– Mais alguma jaqueta de couro foi comprada naquele dia?
– Alguma jaqueta?
– Da Gap. Mais alguém comprou uma jaqueta de couro naquele dia, ou talvez na mesma semana?
Ele parecia perplexo.
– Não sei.
– Descubra.
Lien-hua entrou no quarto. Ralph estava atrás dela.
– Ralph – eu disse. – O que está acontecendo? Por que não me falou deste local quando esteve no esconderijo?
– Pensei que você ia gostar de ficar longe do caso por alguns momentos.
– Por quê?
Ele me dirigiu um olhar duro.
– Eu trouxe Tessa pra cá pra você se entender com ela, certo?
– Sim.
– Então faça isso.
Senti meus dedos se retesando. A raiva começou a se contrair em mim. Raiva de Margaret por ser Margaret. De Tucker por ter se precipitado ontem à noite. Do Ilusionista
por ganhar todas. De Ralph por ter razão.
– Mas você deveria ter imaginado que eu viria pra cá depois de conversar com Lien-hua por telefone...
– Sim – ele disse friamente. – Tem razão. Eu deveria ter imaginado.
– Escuta, pra mim é importante estar no local deste crime. – Eu disse isso alto o suficiente para que todos ouvissem, mas sabia que estava falando comigo mesmo.
Silêncio no quarto. Existem algumas coisas mais importantes do que o local de um crime, ouvi uma voz dizendo dentro de mim. Primeiro pensei que parecia a voz da
minha falecida esposa. Mas então percebi que parecia mais a voz da sua filha única. Tentei espantar esses pensamentos, me concentrar de novo. Ninguém respondeu aos
meus comentários. Continuei:
– Então ele foi baleado ontem de manhã, certo?
– Sim – disse Ralph. Pelo tom de voz, eu podia perceber que ele ainda estava chateado.
Eu me virei e corri os olhos pelo quarto, esperando ver um peão em algum lugar. Quando meu olhar pousou na esteira, não fiquei decepcionado. Um peão branco.
– Mas por que Abrams? – perguntei, exasperado. – Como ele se encaixa nisso tudo? O que sabemos sobre ele?
– Ele construiu sua reputação em 1991 – explicou Lien-hua. – Foi quando a Carolina do Norte passou a fazer parte do Programa de Apreensão de Criminosos Violentos,
do FBI.
– PACV – confirmei.
– Sim. Ele foi o responsável pela entrada da Carolina do Norte no programa.
Parecia que o caso estava se desviando para o lado, perdendo o foco. Comecei a duvidar de que conseguiria pegar esse cara um dia.
– Já temos alguma coisa sobre aquela escova de cabelo? – Eu estava perguntando a todos. – Conseguimos alguma impressão digital? DNA? Qualquer coisa?
– Hmm. – Ralph coçou o queixo. Seu humor parecia estar melhorando. – Até onde sei, Brent estava cuidando disso. Já deveríamos ter algum resultado. Talvez, por ele
estar de licença obrigatória agora, algo tenha se perdido. Vou verificar.
– Eu faço isso – disse o xerife Wallace. Ele se afastou para ligar.
Fui até o armário. O corpo de Abrams já havia sido removido. Uma mancha de sangue seco sujava o tapete.
– Ele o arrastou para o armário – eu disse. – Por que o armário?
– Acho que faz parte da narrativa, da vida imaginária dele – disse Lien-hua. – O primeiro peão foi encontrado num armário, ele estrangulou Mindy naquela caverna...
– Talvez ele se sinta em casa em lugares apertados – disse Ralph.
– Ou talvez goste do escuro – acrescentou Lien-hua.
Eu precisava absorver tudo aquilo. O celular no bolso de Ralph tocou. Ele olhou para o número.
– É a polícia do Novo México – disse. Ele foi para o outro quarto para atender em particular. Eu me virei para Lien-hua.
– Então, o que ele está nos dizendo aqui? – Minha abordagem não parecia estar funcionando tão bem. Talvez a dela funcionasse.
– Ele está escalando rapidamente – ela disse. – De uma série, os homicídios passaram a ser uma matança. Ele nem para mais para descansar. Deixou o corpo de Jolene
com lideranças importantes do FBI do passado e do presente. Talvez esteja querendo dizer: vocês não conseguiram me pegar antes e não conseguem me pegar agora.
– Você acha que ele está na ativa desde 1991? – perguntei.
Lien-hua se curvou, apontou para a mancha de sangue no tapete.
– Talvez. A execução me diz que esta morte não foi nada pessoal, para ele. Foi só para afirmar algo, nada mais. Como Vanessa e o cara na garagem, para ele tudo faz
parte do jogo. Toda e qualquer pessoa é descartável.
Olhei para a esteira.
– E por que ele deixou as pernas dela na esteira? – perguntei. Uma voz veio da porta:
– Pernas numa esteira – alô?! – Correr sem chegar a lugar nenhum. Nós dois nos viramos. Tessa.
– O que está fazendo aqui? – exclamei. – Falei pra você esperar no carro.
– Cansei de esperar.
– Tessa? – disse Lien-hua.
– Sim. E você deve ser a mulher do telefone.
Lien-hua olhou para mim, depois de novo para Tessa.
– Sim. Devo ser. E acho que você pode estar certa.
– Sobre o quê? – eu disse.
– Correr sem chegar a lugar nenhum – ela disse. – Ele resumiu nossa investigação. É isso que estamos fazendo – correndo sem chegar a lugar nenhum.
Eu suspirei.
– Vem, Tessa. Volta pro carro. – Bem, pelo menos ela não contaminou o local. Pelo menos eles já terminaram o trabalho. – E se tivesse um cadáver aqui? – eu disse
a ela. – Como você ficaria?
– Eca. Ia ser nojento. Eu ia vomitar.
– Isso mesmo. Você ia vomitar. Agora vem.
Quando estávamos saindo, pensei uma coisa.
– A propósito, como você passou pelos dois policiais na varanda?
– Posso ser bem convincente quando quero.
Isso eu não podia contestar.
– Você ouviu o que ela disse? – Tessa estava olhando para o tapete ensanguentado enquanto voltávamos para a sala de estar. – Ela disse que eu tinha razão. Sobre
a esteira. Você ouviu?
– Oh. Bem, ela é psicóloga – comecei a dizer. – Não sabe o que está...
Pare, volte a fita. Precisa estender a mão aberta pra ela...
– Hã... foi uma boa observação, Tessa. Acho que você acertou na mosca.
Ela grunhiu.
– Uau, vou até anotar isso. No domingo, 26 de outubro de 2008, Patrick Bowers elogiou sua enteada.
– Tessa – eu disse, com uma ponta de irritação na voz – você sabe o que significa a palavra acerbo?
– Não.
– Bem, o seu humor é acerbo.
Ela parou, cruzou os braços e inclinou a cabeça.
– Isso é tão mentira.
– O quê?
– Dizer que sou ranzinza, amarga e cáustica.
Fiquei olhando para ela.
– Você não disse que não sabia o que acerbo significava?
– Menti.
Os adolescentes não devem ser todos assim. Não é possível.
– Vem do latim – ela disse. – Acerbus. Significa amargo, atroz, sombrio.
– Oh – eu disse. – Que maravilha.
– Fiz dois anos de latim em vez de espanhol no ginásio. O latim é uma língua morta. Achei que ia ser maneiro estudar uma língua que está morta.
Rapaz. Eu queria mesmo assumir a bucha de ser pai dessa garota?
Peraí. Pergunta idiota.
Sim. Mais do que tudo no mundo.
Antes de chegarmos à porta, ouvi Ralph xingando no quarto ao lado. E dessa vez, não achei que fosse um bom sinal.
– Cadáveres – ele disse, alto o suficiente para que minha enteada ouvisse. – Encontraram quinze cadáveres.
66
A cor sumiu do rosto de Tessa.
– O que foi que ele disse?
– Tessa, por isso não queria que você viesse pra cá.
– Não faz isso – ela disse. – Odeio quando alguém me fala “eu te disse”!
– Tá. Olha, desculpa. Por favor. Eu quero acertar as coisas entre a gente. Mas é que... você pode esperar lá fora? Por favor. Por uns minutos.
– Então não me xinga.
– Não vou xingar. Prometo.
Ela se aboletou num balanço na varanda e eu voltei para dentro para dizer a Ralph o que eu achava dele falar palavrões quando minha enteada podia ouvir.
De seu ponto de observação, o Ilusionista olhou a garota balançando para a frente e para trás, para a frente e para trás na varanda. Ele a reconheceu imediatamente
de sua pesquisa. Tessa Bernice Ellis, a enteada do dr. Bowers. Então ele mandara trazê-la da Carolina do Norte para protegê-la. Que lindo.
O Ilusionista fechou os olhos e deixou sua mente voar, seus sentidos sonharem, seus desejos explorarem as possibilidades. Sim, aquilo poderia significar uma conclusão
até mais adequada para o jogo.
Ele examinou a fachada da casa com os binóculos, estudou o carro alugado de Bowers por um momento, tomou nota mentalmente de que o bom doutor trouxera sua mochila.
Devia ser seu equipamento de escalada. Hum.
Ele se permitiu mais um olhar demorado para a garota e então foi para casa pegar seus apetrechos.
Antes que eu pudesse passar um sabão em Ralph, vi a expressão em seu rosto.
– Treze eram crianças – disse ele.
Minha boca ficou seca.
– Treze crianças?
Ele fez que sim.
– Sem fumaça nos pulmões.
– Estavam mortas antes que o incêndio começasse.
– Sim.
– Eles mataram seus filhos? – disse Lien-hua.
– Como em Jonestown – eu disse.
– O prédio ao lado da casa tinha dois cadáveres de adultos – disse Ralph. – Um homem e uma mulher. E o avião particular de Kincaid partiu do aeroporto regional.
Registrou um plano de voo para Seattle.
– Seattle? – eu disse. – O que tem em Seattle?
– Estão verificando.
De repente, a porta se escancarou, e Wallace entrou, agitando seu novo celular.
– O que foi? – perguntei.
– As digitais – ele exclamou.
– De quem? – perguntou Ralph. – De quem são?
Wallace balançou a cabeça.
– Se o assassino tocou na escova, não deixou digitais. Mas acho que podemos ter descoberto sua próxima vítima. Todos os bancários do país precisam registrar suas
impressões digitais, assim, quando acontece um roubo, é fácil descobrir se houve envolvimento de funcionários – uma base nacional de dados tem essas digitais, e
nós...
– Sim, sim, eu sei – rosnou Ralph. O estresse do caso o estava afetando, afetando a todos nós, acabando com a nossa paciência. – Quem é ela? Qual o nome?
– Alice McMichaelson. Trabalha no Second National Bank. Mora na zona oeste de Asheville.
– Ela é a próxima – eu disse.
– Temos o endereço dela? – disse Ralph.
O xerife Wallace o passou para nós.
– Mande policiais pra lá agora – eu disse. – Mas à paisana, pro caso dele estar vigiando a casa. Esta pode ser nossa chance de finalmente chegar na frente dele.
67
Alice McMichaelson estava sentada em sua sala de estar, fazendo contas no seu talão de cheques, quando a campainha tocou. Antes que pudesse se levantar, ela tocou
de novo. Deve ser algum vendedor. Eles nunca desistem? Dá um tempo, hoje é domingo. Talvez, se ela o ignorasse, ele fosse embora.
Trim. Trim. Trim.
Tá bom, saco.
Ela atravessou o tapete e olhou pela janela. Um homem usando calça cáqui, camiseta polo e jaqueta marrom estava na sua varanda. Quando ela empurrou a cortina para
o lado, ele acenou. Alice abriu a porta, mas manteve a corrente presa.
– Sim? Posso ajudar?
Ele levantou a carteira para mostrar o distintivo.
– Madame, sou o agente Lewis, da polícia do condado de Buncombe. Posso entrar?
– Houve algum problema?
– Seria melhor eu explicar aí dentro.
Ela olhou para o carro parado na entrada. Um sedã. Talvez ele estivesse de folga, ou à paisana.
– Por favor – ele disse. – Tem um homem muito perigoso à solta. Achamos que pode estar atrás da senhora. Ele é imprevisível. Pode aparecer a qualquer momento. Precisamos
que vocês saiam daí o mais rápido possível.
– Quem é? O que ele quer comigo?
O homem olhou por cima do ombro e depois para ela de novo.
– Pense na pior coisa que puder. É assim que ele começa.
Ela não fez nenhum movimento para abrir mais a porta. Por que aquele policial estava sozinho? Por que não estava com um parceiro? O homem provavelmente notou sua
hesitação.
– Olhe – disse – achamos que a senhora e seus filhos podem estar em perigo. Mas não posso obrigá-la a fazer nada. Vou esperar aqui na varanda enquanto a senhora
decide. – Ele entregou um cartão. – Tome. Ligue pra este número e vão confirmar que eu sou quem falei que sou.
68
Depois que levei Tessa de volta para o esconderijo, o xerife Wallace me ligou para informar que seus homens haviam feito contato com Alice, mas ela se recusara a
sair de casa.
– Podemos mandar homens pra vigiar a casa dela, mas fora isso, nossas mãos estão atadas.
Pensei na escova de cabelo e nas impressões digitais e fiz algumas ligações. Quando descobri que Alice só estava trabalhando no banco havia menos de uma semana,
tive uma ideia. Liguei para Lien-hua e pus o plano em ação.
Então recebi uma mensagem de texto de Ralph me contando que o governador Taylor iria discursar em Seattle para um consórcio de empresas de tecnologia na próxima
segunda.
Aha. Então é lá que Kincaid pretende atacar.
Pelo menos ainda tínhamos uma semana para achá-lo.
O governador Taylor parou diante do espelho e tentou se concentrar no seu discurso da segunda-feira. Tentou, tentou, tentou, mas as palavras simplesmente não vinham.
– Estamos às portas de um novo capítulo na história da nossa nação – ele disse para o homem elegante no espelho. – Um capítulo definido não pelos estertores do terrorismo,
mas pelas notas de rodapé da liberdade.
Não, isso não. “Notas de rodapé da liberdade”? Horrível. Ele teria de demitir seu redator de discursos amanhã. Ele pegou um lápis. Hã, o estandarte da liberdade?
O toque de clarim da liberdade? O brado retumbante da liberdade? Sim. Assim estava bom. Gostava disso.
Ele rabiscou algumas anotações na página. Gostava de usar lápis em vez de caneta porque muitas vezes escrevia, apagava e reescrevia frases dezenas de vezes. Era
um homem preciso e cuidadoso. Quando Sebastian Taylor fazia alguma coisa, fazia bem. Fazia certo. Era um dos motivos pelos quais era um líder tão bom.
A eleição presidencial seria em menos de duas semanas, e na verdade, ele estava feliz por ver os democratas se saindo tão bem; se os republicanos perdessem essa
eleição, isso lhe daria mais chances em 2012. Dois anos para planejar e dois anos para concorrer.
Na verdade, quatro anos para concorrer. Começando agora. Com os videobloggers e quase tudo o que a pessoa fazia aparecendo na Internet, hoje em dia cada discurso,
cada palavra importava.
Então por que o passado distante e sua carreira anterior se uniram e o assombravam agora, bem na hora em que todo o resto estava dando certo?
Kincaid olhou pela janela do avião para a zona rural lá embaixo.
– David – ele disse, sem se virar para o homem atrás dele.
– Sim, Pai?
– Nunca te contei o que aconteceu no dia 19 de novembro, depois que acordei perto do rio. Está na hora de você saber. – Kincaid esfregou o dedo na cicatriz, acariciando
os momentos, se lembrando de todos. – Como você sabe, um guarda do Templo do Povo me acertou no ombro. Quando acordei, estava em choque, fraco demais para me localizar
na selva. A única coisa que eu podia fazer era voltar ao complexo para pedir ajuda. Imaginei que haveria outros, como eu, que fugiram à noite, que estariam voltando
então, à luz do dia. Achei que talvez eles pudessem me ajudar.
O governador Taylor quebrou o lápis ao meio.
Passaram-se quase três décadas desde a missão. Sim, claro, ele fora encarregado de eliminar o deputado, mas só estava fazendo o seu trabalho. Quando Dwyer estragou
seu disfarce e Jones perdeu o controle, ele precisara tomar algumas decisões instantâneas para minimizar os estragos, para garantir que todas as provas apontassem
para onde deviam apontar.
Foi então que os problemas começaram.
– E houve outros sobreviventes, Pai?
– Não. Esperei a manhã toda. Ninguém voltou. Eu estava sozinho com os cadáveres. Quase todos que eu conhecia estavam mortos. Fui até o hospital – na verdade, era
só uma pequena cabana – e achei uns analgésicos para o meu ombro. Eu não queria chegar perto do pátio, mas também não queria ir embora... não tinha para onde ir,
então passei a maior parte da manhã esperando, tentando não olhar para o pátio. Me escondi quando alguns saqueadores das tribos que moravam na selva passaram por
lá. E então... – A voz de Kincaid ficou mais lenta. Ficou mais monocórdia e dura. – Os membros da Força Guianense de Defesa chegaram. Estavam rindo, meu filho, fazendo
piadas sobre os corpos; sobre minha família e meus amigos. “Os cérebros deles já estavam dormindo, agora os corpos também estão.” Era esse tipo de coisa que eles
estavam dizendo. Mas a palavra que usaram para “dormindo” também poderia ser traduzida como “mortos” ou “sem vida”. Estavam dizendo essas coisas das pessoas que
eu amava, David.
– Sua primeira família.
– Sim. Minha primeira família.
Ele tinha quase terminado de montar a fita quando aquele maldito garoto apareceu.
– Depois que eles foram embora, três americanos chegaram, dois homens e uma mulher, e eu estava quase correndo até eles quando os ouvi conversando. “Não saiu exatamente
como a gente planejava, hein?” E então um deles riu e disse: “Mas não perdemos muita coisa”. Um dos homens disse algo sobre limpar os arquivos, e eles foram para
o chalé do Pai. Eu me escondi nas sombras e os observei. Eles começaram a pegar os arquivos, recolher os cadernos.
– Destruindo provas?
Kincaid balançou a cabeça.
– Sim. Aquelas que levavam ao envolvimento da CIA no tiroteio, imagino. Um rádio estava ligado; eu ouvia notícias dos assassinatos. Queria ver mais, por isso empurrei
uma das portas de tela e acho que eles me ouviram.
Nenhuma testemunha. Aquelas eram suas ordens. Nenhum sobrevivente.
Portanto, quando o garoto abriu aquela porta, o que ele devia fazer?
– Ele pegou uma seringa, David. E começou a correr atrás de mim.
O garoto correu igual um maldito coelho pelo complexo.
Lembrando tudo agora, Sebastian Taylor se dava conta de que deveria ter pegado um dos fuzis AK-47 que ele dera aos seus contatos para que os passassem aos guardas
de Jones. Em vez disso, ele achou que podia acobertar a ação usando uma das seringas. Mas o garoto fugiu. Escapou para a selva.
– Me escondi perto do rio e fiquei olhando para ele através das árvores.
As lembranças voltavam agora aos borbotões, uma imagem puxando a outra, como as páginas de um livro que ele não folheava havia anos. Ele viu os dois outros agentes
saindo do chalé de Jones.
– O que vai fazer com essa seringa? – Felicity disse, entre espirros. Ela era alérgica a metade da vegetação da selva.
– Temos nossas ordens – ele disse. – Cole foi muito claro sobre a nossa missão.
– Você ia matar uma criança!
– Precisamos sair daqui. – Era Tad.
– Ainda não terminei a fita – ele respondeu.
– Eu não vou a lugar nenhum – disse Felicity. – Não acredito que você ia matar um menino. Esta missão toda é um desas... – Ela não terminou a frase. Tad espetara
uma seringa no pescoço dela e empurrara o êmbolo. Ela estava escorregando para o chão, tremendo.
– O que foi que você fez?! – gritou Sebastian.
As convulsões começaram. Felicity não estava morrendo suavemente.
– Ela quase comprometeu esta missão já por três vezes. Não podemos deixar que saibam que um garoto sobreviveu – disse Tad. – E ela iria contar.
– Mas você acaba...
Tad se abaixou e pegou Felicity pelas axilas; ela ainda não estava morta, mas logo estaria.
– Me ajuda a arrastar a desgraçada pro pátio. Ninguém vai ficar sabendo. – Ela estava tentando falar, mas sua cabeça se agitava incontrolavelmente. Não era bonito
de se ver. Tad continuou: – Vamos dizer pra Cole que os homens de Jones chegaram nela primeiro. Contanto que a gente limite o número de autópsias, vai dar tudo certo.
E não vamos falar do garoto, certo? Ele nunca esteve aqui. Lembre-se, nenhum sobrevivente. Entendeu?
Tad também pode falar. Ele pode mencionar o garoto.
– Sim – disse Sebastian, apalpando a seringa em sua mão e olhando para a nuca de Tad. – Nenhum sobrevivente. Entendi.
– Eles mataram a mulher. Deram a injeção nela. Vi quando fizeram isso. E então Sebastian matou o outro americano.
Kincaid fez uma pausa, enfiou a mão no bolso do casaco e tirou uma seringa pela metade num saco plástico.
– Sebastian descartou a seringa. Não sei ao certo por que a peguei, mas as digitais dele estão nela. É hora do mundo saber exatamente que tipo de homem Sebastian
Taylor é.
– O cianureto ainda faz efeito, Pai?
– Bastante. Mandei testá-lo, só para ter certeza.
Kincaid guardou o saco plástico.
– Ele estava voltando para o chalé do Pai quando os helicópteros chegaram.
E então apareceram os soldados da guarda e os Boinas Verdes, e ele tinha que desaparecer. Rápido. Se eles o vissem lá, seis outras missões em dois continentes estariam
acabadas. E assim, ele não conseguiu terminar de montar a fita.
Tudo por causa do garoto.
– Eu conhecia alguns dos membros do Templo que vieram identificar os corpos. Eles me levaram de volta para os EUA, disseram que eu era filho deles.
Finalmente, Kincaid se virou para o seu filho fiel.
– David, quando cheguei nos EUA, a mídia estava dizendo o mesmo tipo de coisa que os saqueadores tinham dito sobre a minha família. O mundo teve trinta anos para
pedir desculpas, e ninguém, à parte alguns sites alternativos e uns poucos livros publicados pelos próprios autores, tentou acrescentar compaixão e humanidade à
história deles, tratá-los com o respeito e a dignidade que mereciam como seres humanos, como filhos do nosso Deus comum.
– E é por isso que os líderes da mídia vão pagar.
– Sim. É por isso que todos eles vão pagar.
O governador Taylor olhou para seu rosto no espelho. Não era o rosto de um assassino, mas de um patriota.
Era isso que ele sempre fora. Um patriota. Um homem que faria o que fosse preciso por seu país. Como os soldados do Sul fizeram na Guerra de Agressão do Norte. Lutaram
pela liberdade – liberdade dos Estados criarem suas próprias leis, governarem a si mesmos. Uma liberdade real. Verdadeira.
Ele sempre fizera o que era necessário para promover a liberdade. É isso que um patriota faz.
E agora? O que precisava ser feito?
Ele só levou um momento para decidir. Ele fez a ligação.
– Sim? – disse a voz do outro lado da linha.
– Sou eu. Tenho o que você quer. Me encontre no quarto 611 amanhã de manhã, no Hotel Stratford. 10h em ponto, antes do almoço. Aí poderemos cuidar de tudo.
– Vai parecer um acidente?
– Não se preocupe. Eu planejei tudo.
Clic.
Sim, Sebastian Taylor faria o que fosse necessário. Era um verdadeiro patriota.
Ele rabiscou algumas anotações na página e continuou preparando seu discurso.
69
O jato de Aaron Jeffrey Kincaid parou numa das pistas particulares nos arredores do Aeroporto Regional das Três Cidades, no nordeste do Tennessee. Era um aeroporto
pequeno o suficiente para que ele pousasse sem a documentação necessária, por meio de propinas, mas grande o suficiente para comportar o seu jato. E ficava perto
de Asheville, menos de uma hora e meia de carro.
Ele desceu do jato e pisou na pista. Inspirou o ar úmido do outono.
Aquela seria a última vez que ele usaria aquele avião. Bem, o jato cumprira seu propósito. Como o rancho. Como Rebekah e Caleb. Como Jessica. Como a família dele.
Tudo tinha um tempo, um lugar e um propósito. O destino era isso.
David estava ao lado dele, guardando o celular no bolso.
– Pai, a casa está pronta.
– Ótimo. Vamos poder descansar e nos preparar para as atividades de amanhã.
Naquele momento, um furgão apareceu na beirada da pista e parou a alguns metros do hangar. A porta do motorista se abriu e um homem magro e de ar preocupado, com
óculos moderninhos, saiu dele, curvando-se numa reverência.
– Pai.
– Theodore – disse Kincaid. – Tudo foi preparado?
– Sim. Os uniformes estão prontos na casa.
David se aproximou do furgão.
– E o carregamento? Já chegou?
– Já está no hotel, Pai.
– Que bom. – Kincaid coçou a cicatriz no pulso. – Agora, acredito que esteja na hora de falarmos de Bethanie. Ela não estava morta quando você a deixou, Theodore.
Uma breve pausa.
– Sim, Pai. Eu sei.
David se posicionou atrás de Theodore.
– Eu dei instruções específicas para você.
– Sinto muito, Pai.
– E assim – disse Kincaid –, agora você tem uma escolha.
Ele mordeu o lábio.
– Uma escolha?
– Quer fazer você mesmo ou quer que David ajude?
Theodore engoliu em seco.
– Pai, por favor, fiz o melhor que pude.
Kincaid esperou em silêncio.
– Por favor, eu...
– Tudo bem então, David.
David deu um passo para a frente e desferiu uma série de golpes de kung fu cuidadosamente controlados que quebraram costelas, esmagaram a traqueia e partiram o pescoço
do jovem que o convidara a fazer parte da família. Tudo acabou em questão de segundos. Ajudar pessoas a fazerem a transição era, afinal, a especialidade de David.
Kincaid olhou o corpo moído se retorcendo na pista úmida. Ele se lembrou do pátio.
Daqueles que se deitaram e nunca mais se levantaram.
Da hidromassagem. De Jessica.
Das palavras do reverendo Jim Jones: “Para mim, a morte não é algo apavorante, é a vida que é traiçoeira.”
– Ponha-o de volta no furgão – disse Kincaid. David e os outros homens obedeceram, arrastando o cadáver fresco para a parte de trás do veículo e jogando-o lá dentro.
– Escondam o avião – disse Kincaid. – E tranquem o hangar.
Então ele entrou no furgão com sua família e partiu para cumprir o seu destino.
70
Alice andou pelo corredor e entrou no banheiro. Estava um pouco nervosa, mas pelo menos seus filhos estavam a salvo, agora. Isso era o que mais importava. As crianças.
Ela as deixara com o agente Lewis mais cedo. Ele prometera que elas estariam a salvo.
Ela ligou a luz do banheiro e olhou seu queixo no espelho. Uma leve cicatriz ainda era visível da vez em que Garrett a atacara e a mandara para o hospital. Sim,
ela sabia como era ser ameaçada por alguém perigoso.
Ela tinha suas instruções e as seguiria. Seguiria todas ao pé da letra.
Alice McMichaelson faria qualquer coisa para proteger seus filhos.
Ela puxou a cortina do chuveiro e abriu a água.
O Ilusionista sorriu.
Agora, então.
Grolin estava morto, e Vanessa falecera mais cedo – que lástima. Ele estava lá quando aconteceu. Tão trágico.
É verdade que ele esperava ter efetuado a morte de Grolin com um pouco mais de elegância, um pouco menos de empecilhos, mas só podia mantê-lo drogado por um certo
tempo.
Além disso, mandá-lo para o vestiário naquele estado delirante fora um golpe de gênio. O sujeito chegara a puxar briga com a agente Jiang! E convidar Vanessa para
o campo de golfe fora arriscado, claro, mas ele precisava atrair os agentes para um lugar que fosse isolado o suficiente para que ele pudesse controlar o que acontecia
e onde o tiroteio pudesse acontecer sem que nenhuma testemunha o visse claramente. Os investigadores idiotas agiram exatamente como ele previra. Jamais conseguiriam
montar todas as peças do quebra-cabeças.
Era nisso que o Ilusionista pensava enquanto observava das sombras, perto da casa de Alice. Ele se lembrou da primeira vez que estivera ali, havia apenas alguns
dias, como fora difícil, naquele momento, dizer não a si próprio, aos seus ímpetos, aos seus desejos.
Mas agora o momento chegara. Finalmente.
Alguns minutos antes, Alice entrara no banheiro. Ele podia ver o vapor embaçando as janelas. Ao pensar nela tomando banho, sua respiração ficou mais profunda, mais
rápida.
Limonada amarela ao sol suave do verão.
Logo. Logo.
Ele esperou. A luz do banheiro se apagou. Com a imaginação, ele a viu sair no corredor e ir para o quarto. E, como num passe de mágica, viu a luz do quarto se acender,
não só na sua imaginação, mas de verdade, e a figura esguia dela por trás das cortinas, tirando a toalha. Esguia. Sim. Aquela era uma boa palavra para descrevê-la.
A palavra certa. A palavra perfeita.
Esguia.
Ele usaria aquela palavra mais tarde, quando fosse escrever sobre ela.
Doce, doce limonada.
Depois de alguns instantes, a luz do quarto se apagou. Ele esperou mais um pouco, mas se cansou da espera. Já esperara o suficiente por Alice. Tempo demais. Estava
na hora de se recompensar por um jogo bem jogado. De aproveitar os despojos da guerra.
Ele deslizou até a casa, suave como uma serpente. Calçou as luvas. Pôs a máscara de esqui.
A porta dos fundos de novo. Desta vez, estava trancada. Que bom. Ele a arrombou em menos de trinta segundos. Desarmou o sistema de alarme.
Dentro.
Ele inalou o aroma da casa, levemente familiar, mas mesmo assim um pouco estranho. Doce e limpo, com traços de fumaça de cigarro da época em que Garrett morara ali.
Ele parou para ouvir. Nada além dos sons de um lar adormecido. Ele avançou pelo corredor. Passou pelo quarto de Brenda. Passou pelo quarto de Jacob. Não havia tempo
de parar e olhar as fotografias. Naquela noite não. Aquela era a sua última jogada. Ele esticara a mão e tocara aquela peça e agora estava na hora de levá-la para
casa, de fazê-la sua.
O Ilusionista abriu delicadamente a porta do quarto e viu Alice deitada na cama. Uma forma imóvel debaixo das cobertas. Ele ouviu uma voz em sua mente, um menino
gritando de dentro de um armário:
– Mãe?
Não.
– Você tá aí, mãe?
Não.
Ele não pensaria nessas coisas. Não precisava pensar, e não iria pensar. Não. Não. Não!
– Que cheiro é esse, mãe?
Mantenha o controle. Um passo à frente. Sempre um passo à frente.
Alice deixara uma fresta da janela aberta e puxara um cobertor de lã até o pescoço. Seu cabelo ruivo se espalhava pelo travesseiro. Ele enfiou a mão no bolso, puxou
o pano embebido na medicação e tentou entrar em sintonia com o ritmo suave da respiração dela. Não conseguiu. Fechou os olhos por um momento para sorver o delicado
perfume que pairava no ar. O perfume dela. Seu perfume adorável. Uma forma de tocá-la.
Esticou a mão. Pegou as cobertas.
Xeque-mate.
Jogou-as no chão.
Achou só uma pilha de travesseiros e uma peruca. Ouviu uma voz feminina atrás dele.
– Não se mexa. Não se mexa ou vai morrer.
Xeque-mate.
Pegamos o sujeito.
Ouvi Lien-hua mandando que ele não se mexesse. Liguei a luz do corredor e saí do banheiro, onde eu estava escondido. Podia vê-la no quarto, de pé, dois metros atrás
do assassino, com a arma apontada para as costas dele.
– De joelhos – ela ordenou. – Agora.
Ele estava imóvel ao lado da cama, com as mãos levantadas. Estava todo vestido de preto. Usava uma máscara de esqui. Eu não podia ver o rosto dele.
– Abra os braços! – gritei. – Completamente. Devagar. – Cautelosamente, dei um passo adiante.
Ele continuou perfeitamente imóvel. Só seu peito se movia.
Por que ele não se move? O que está acontecendo?
– Pegamos o cara – falei no microfone adesivo que estava usando, e ouvi a resposta de Ralph:
– Vamos entrar.
Fora da casa, holofotes se acenderam e os agentes e policiais que tínhamos escondido por todo o bairro ficaram em posição. Alice concordara em nos ajudar.
– Faço o que vocês quiserem – ela disse – para proteger as crianças. – Assim, posicionamos nosso pessoal, deixando apenas espaço suficiente para que o Ilusionista
agisse. O apoio aéreo estava para chegar. Ele não iria fugir.
– De joelhos – Lien-hua gritou. – Agora!
O Ilusionista se ajoelhou devagar. Avancei e apontei minha arma.
– Mandei abrir os braços.
– Bela jogada, Patrick. – Sua voz era um sussurro baixo. Não consegui descobrir se era a mesma voz que eu ouvira ao telefone ou não. Parecia vagamente familiar,
mas era baixa demais para reconhecer. Ele estava movendo as mãos para a cabeça, cuidadosamente. – Mas o jogo ainda não acabou.
Quando seus dedos tocaram a nuca, as luzes se apagaram.
Um movimento perto dos meus pés.
Um brilho de pólvora. Alguém esbarrando em mim.
Eu estava no chão.
Ouvi um gemido.
Um baque.
Um lamento fraco perto do armário.
O som de vidro se partindo.
Um grito.
71
Tessa estava espremida no sofá entre os dois policiais, fingindo que assistia a algum programa ruim na TV com eles. Sentada no sofá, como se estivesse em família.
Vendo TV com dois policiais.
Patético. Como uma família.
Ela pensou em Patrick e na visita ao local do crime mais cedo. E imaginar as pernas de uma mulher morta – as pernas cortadas dela! – na esteira. Era demais. Voar
para lá, encontrar Patrick. Saber daquelas pessoas no incêndio. Demais. Demais mesmo.
Ela vira os prédios queimando no computador dele.
Havia corpos dentro dos prédios.
Gente morta.
Ela precisava se cortar. Hoje mesmo.
Ela se levantou.
– Aonde você vai? – perguntou a agente Muncey.
– Só vou pro banheiro, tá?
Enquanto se afastava, ela ouviu a agente Muncey resmungando:
– Pensei que tinha largado o emprego de babá quando terminei o colegial. – Ela sussurrou as palavras, mas Tessa ouviu. Ouviu cada sílaba.
Tessa trancou a porta do banheiro e tirou a navalha da bolsa.
Liguei minha lanterna. Saltei de pé. Vasculhei o quarto. Ele tinha sumido.
Lien-hua estava caída.
– Lien-hua! – Corri até ela.
Ela se mexeu. Esfregou a cabeça.
– Ele me pegou de surpresa – ela resmungou. Seus olhos recuperaram o foco aos poucos. Ele só a tinha derrubado. Só isso. – Mas consegui acertar dois pontapés nele.
Ela tivera menos de um segundo. Dois pontapés? Impressionante.
– Ouvi um tiro – afirmei.
– Não fui eu.
Eu me virei. A janela estava quebrada. Eu não conseguia ver o suspeito.
– Ele está em movimento. Repito, o alvo está em movimento – gritei no microfone.
Ele tinha passado por mim?
Alice!
Corri para o banheiro.
– Alice?
– Vocês o pegaram? – sua voz estava trêmula.
– Vamos pegar.
Ela me olhou do chuveiro, totalmente vestida, com um colete à prova de balas. Tudo parte do plano. Lien-hua encenara a ducha, depois fora até o quarto para atraí-lo.
Ao menos os filhos de Alice não estavam lá; isso era bom. Proteção federal. Ela se juntaria a eles em alguns minutos. Ouvi tiros lá fora e cheguei na janela bem
a tempo de ver uma silhueta escura saltar uma cerca a três casas de distância e desaparecer. Alguém estava deitado de bruços no jardim. Uma policial.
– Policial ferida! – gritei. Estávamos prontos para conter o assassino, tínhamos bloqueios nas ruas por todo o bairro, mas eu não esperava que ele se movesse tão
rápido.
– Suspeito indo para o sul pela Virginia Street – alguém disse.
– Alguma notícia? – gritei no microfone adesivo. – Alguém? – Ouvi gritos e vozes confusas. Então, a voz de Wallace: – Cherokee Avenue, sentido oeste.
Ele é canhoto... suspeitos canhotos tendem a virar à direita quando fogem, mas quando encontram um obstáculo, viram para a esquerda...
Espere aí, ele sabe disso.
– Vão para a cerca – gritei. – O suspeito vai virar para oeste, através do campo, depois norte na cerca. Cortem o caminho dele. Repito, oeste, depois norte.
Uma voz respondeu.
– Unidade três em perseguição.
Corri para a janela do quarto e olhei para o bairro, tentando me orientar pela paisagem de novo, mapear as ruas e posicioná-las sobre a topografia.
– Todas as unidades no perímetro – eu disse –, o suspeito é branco, 1,85 m, 90 quilos, usa calça e suéter pretos. Armado e perigoso. Abordem com o máximo cuidado.
Se ao menos os quarteirões fossem quadrados aqui. Seria tão mais fácil contê-lo.
– Vão para a Richmond Avenue – gritei. – Ele irá para a floresta a sul-sudeste. Depressa. Se ele chegar ao bairro do outro lado do rio, terá lugares demais para
se esconder. Mantenham suas posições. Controlem todas as saídas.
Olhei para a rua, vi os acessos sendo fechados pelos nossos bloqueios, a fila de lanternas dos carros diminuindo a velocidade à medida que as ruas que davam acesso
ao bairro eram fechadas. Algumas viaturas da polícia corriam para o local, uma ambulância passou piscando e parou ao lado do bloqueio para socorrer a policial caída
no gramado. Naquele momento, os helicópteros chegaram. Tarde demais. Tudo era tarde demais.
Ainda nenhuma eletricidade.
– Podemos ligar essas luzes? – gritei. Ouvi pés se mexendo, alguns policiais procurando a caixa de disjuntores. Então, a voz de Dante no meu ouvido.
– Ele não está aqui. É como se tivesse virado fumaça.
Dei um murro na parede. Ralph entrou, esbaforido.
– Ele chegou ao outro bairro – resmunguei. – Podemos procurar de porta em porta, mas tem lugares demais pra ele se esconder lá. Acho que o perdemos.
Ralph começou a encher o quarto de palavrões.
– O que aconteceu com as luzes?
Balancei a cabeça.
– Ele devia ter um emissor de pulso eletromagnético em miniatura. Talvez o tenha plantado na sala de jantar ou conectado ao sistema de alarme quando subiu. E tinha
o gatilho escondido atrás da orelha.
Ouvi um policial falando na sala de estar.
– Achei o negócio, está aqui!
– Um gatilho atrás da orelha? – disse Lien-hua.
Alguém devia ter encontrado os disjuntores; as luzes se acenderam.
– Não é tão incomum – eu disse. – Homens-bomba, às vezes, passam o fio do detonador pela camisa e o prendem na nuca ou atrás da orelha, assim, se alguém mandar pôr
as mãos ao alto, eles ainda podem detonar o explosivo. Eu não deveria ter deixado que ele aproximasse as mãos daquele jeito.
Ele tinha fugido. De novo. Estava pronto para nós.
Ralph se virou para Lien-hua.
– Você tá bem?
– Estou. – Ela chutou a porta do armário com um grito, partindo-a ao meio. Sua voz parecia em chamas. – Ele estava na nossa mão. Não acredito que fugiu!
Ralph admirou o trabalho dela na porta.
– Belo chute.
Olhei pela janela.
– Graças a Deus, aquela policial estava usando colete à prova de balas. – Um dos paramédicos a estava ajudando a se levantar, levando-a para a ambulância.
– Muito bem, pessoal, escutem – Ralph gritou para o grupo de policiais que estava entrando na casa. – Vamos procurar de porta em porta. Mexam-se!
72
Segunda-feira
27 de outubro de 2008
Asheville, Carolina do Norte
7h51
Joguei minha mala no banco de trás do carro, ao lado do meu equipamento de escalada, e olhei para as manchas cinzentas que deslizavam metodicamente pelo céu. Continentes
escuros pendurados na abóbada celeste. A temperatura estava poucos graus acima de zero; o ar era úmido e pesado. Chuva gelada – ou talvez até neve – estava a caminho.
Eis o que eu sabia:
(1) Eu estava fora do caso. A noite passada fora a gota d’água para Margaret. Ela me responsabilizava pelas mortes de Joseph Grolin e Vanessa Mueller; e, claro,
ontem, quando o assassino fugira – bem, isso também era culpa minha. Assim, Tessa e eu iríamos voltar para Denver hoje. E quando a investigação da Corregedoria terminasse,
eu teria sorte se conseguisse um emprego de guarda escolar num ginásio – ao menos de acordo com Margaret.
(2) Alice e seus filhos estavam a salvo, ao menos por enquanto. Tudo ficara tão explosivo que Ralph mantivera o paradeiro dela em segredo absoluto. Não contou nem
para mim.
(3) O Ilusionista continuava à solta. Não encontramos nem sinal dele noite passada, mesmo depois de vasculhar o bairro inteiro.
(4) Aaron Jeffrey Kincaid e seu grupo não chegaram em Seattle. Foi como se eles tivessem sumido do planeta. Isso me preocupava um pouco, mas parecia que a nossa
equipe ainda tinha uns dias para encontrá-lo.
(5) O café do Mountain Java Roasters acabou no esconderijo do FBI. Só tinha chá.
Eu já podia prever que seria mais um dia difícil.
Eu ainda precisava pegar umas coisas no prédio da administração federal, mas talvez pudesse pegar a caminho do aeroporto. Meus sentimentos? Sinceramente, estavam
todos misturados. Talvez fosse melhor ter ficado no meu escritório em Denver. Eu ajudara a enxugar a lista de suspeitos e definir melhor a área de busca, mas mesmo
assim me sentia vazio, inútil, um fracasso. Sim, eu teria mais tempo para ficar com Tessa, mas queria pegar esse cara. Queria muito.
Eu não sabia ao certo se veria Brent Tucker de novo antes de sair da cidade, então liguei para encorajá-lo. Afinal, estava começando a entender como ele se sentia.
– Você é gente boa, Brent Tucker – soltei, enquanto entrava na cozinha e via Tessa procurando alguma coisa para o café da manhã. – Aprecio seu esforço neste caso.
– Obrigado, dr. Bowers – ele disse. – Foi uma honra trabalhar com o senhor. Espero que um dia nossos caminhos se cruzem de novo. – Depois de alguns minutos, nos
despedimos e desligamos.
– Tem café? – Tessa perguntou, com voz grogue.
– Você toma café? – eu disse. – Ah, é verdade. Uma adolescente do século 21. É claro.
– O que isso quer dizer?
– Nada – eu disse. – Acho que o café acabou.
– Aha. – Ela mostrou uma lata de café que encontrou no armário. – Você quer?
Li o rótulo.
– Hum. Acho que vou tomar chá hoje. Mas faço café pra você, se quiser.
– Eu sei fazer – disse ela.
– Eu sei. Mas me deixa. Por favor. Senta aí. – Puxei a cadeira para ela. Ela hesitou por um momento, depois se acomodou. – Quer cereal também?
– Tanto faz.
Enquanto o café passava, procurei o cereal.
– Então – eu disse. – Já fez as malas?
– Quase. Então o cara escapou, hein? Ótimo. Legal me fazer me sentir ainda pior.
– Sim, mas vão pegá-lo. Tem gente boa trabalhando neste caso... e acho que isso vai me liberar para passar mais tempo com você.
Silêncio. Eu esperei.
Nada.
– O que acha disso?
– Tanto faz.
– Bem, está feliz por ter perdido um dia de aula? – Abri a geladeira e peguei leite e suco de laranja.
Tessa deu de ombros.
Vamos, Pat, pense. Você consegue fazer melhor do que isso.
– Tessa, sabe qual o tubarão mais perigoso do mundo?
Ela grunhiu de um jeito bem adolescente.
– Que papo mais nada a ver.
– Bem, você sabe?
Ela virou os olhos.
– O tubarão-de-cabeça-chata. Todo mundo sabe.
Kincaid levou sua família pela da entrada de serviço do Hotel Stratford. Ele reconheceu os rostos de alguns dos convidados que estavam andando pelo saguão. Embora
a maioria dos hóspedes tivesse chegado na noite anterior para a sessão de abertura, os mais ilustres iam chegar naquela manhã de helicóptero, tentando se antecipar
à nevasca que estava prevista.
A segurança era rígida. Rígida como um cassetete. Detectores de metal foram montados em todas as entradas para o público. Mas ninguém tinha a mínima desconfiança
de Kincaid e sua família.
Afinal, eles foram contratados como o bufê do evento. Estava na hora de preparar a comida.
Abri o armário e peguei uma caixa de cereal sabor manteiga de amendoim.
– Que tal?
Ela balançou a cabeça bem, bem lentamente.
– Sou alérgica a amendoim. Sempre fui alérgica a amendoim. Rapaz.
– Acho que eu esqueci.
– Pensei que você sempre notasse tudo. – É o que dizem.
Silêncio de novo. Então note algo logo.
– Hã, no momento, noto que seu olho esquerdo é um castanho um pouco mais escuro que o direito.
Ela rosnou.
– Brilhante.
Fervi água para o chá e enchi um copo de suco para mim.
– Quer suco de laranja?
– Pode ser.
O café estava pronto. Enchi uma xícara para ela e a estudei por um momento.
– Noto que você está usando mangas compridas de novo, e lembro que vi cicatrizes no braço esquerdo de Cherise quando morávamos em Nova York, então me pergunto se...
Ela manteve o olhar fixo, ficou em silêncio, não olhou para mim. Cuidado, Pat, não estrague tudo.
– Açúcar e leite?
– Puro.
Você pode entrar nesse assunto depois... Estenda a mão aberta para ela... Mais devagar... Assim ela sabe que você não vai machucá-la... Pus o café sobre a mesa.
– Só isso. Só mangas compridas.
Depois de um breve silêncio, ela disse:
– Bem, até agora seus poderes de percepção são sem paralelo. “A garota usa mangas compridas.” Isso deve resolver o caso. Não é à toa que você ganha uma fortuna.
Inspirei um pouco.
– Já pensou em usar outra cor além de preto?
– Por exemplo?
– Não sei. Rosa, talvez.
– Fico melhor de preto.
– Como está o seu café?
Ela tomou um gole.
– Horrível.
Bem, pelo menos ela tinha bom gosto. Encontrei flocos de arroz e enchi uma tigela para ela.
– Noto que você está usando o perfume da sua mãe.
Ela parou com a xícara a meio caminho dos lábios. Então o celular – o celular de Ralph – tocou. Olhei para o número no visor: desconhecido.
Kincaid andava pelo magnífico pátio interno do Hotel Stratford. Era absolutamente arrebatador: jardins suspensos, varandas, passeios, chafarizes. E ao redor de tudo,
um rio artificial com corredeiras e uma piscina sob uma queda d’água de dois metros e meio. Embora a temperatura lá fora estivesse caindo, ali ainda fazia mais de
16 graus. No momento, os funcionários do hotel estavam ocupados armando cinquenta mesas redondas para o almoço, no lado leste do pátio.
E em menos de duas horas, as mesas estariam cheias.
Sim, sua família havia sido infectada e espalharia as bactérias por via aérea para os convidados ao servir a comida, mas ele não iria confiar na sorte.
Voltou para a cozinha, onde sua família estava preparando a carne. Quando Marcie passou, ele acenou para ela. Ela baixou o olhar e acenou respeitosamente em resposta.
Humanos tipicamente contraem a tularemia e a febre hemorrágica da Crimeia-Congo através de carrapatos, mas ambas as doenças também podem ser transmitidas por contato
direto com o sangue de gado contaminado. Ele optara pelo gado em vez dos carrapatos. De fato, contaminara todo o seu rebanho. Agora mesmo, os assados que os convidados
à conferência comeriam estavam de molho no sangue infectado que ele despachara na sexta.
O governador Taylor chegou ao Hotel Stratford e foi para os seus aposentos. A suíte presidencial. “Um nome adequado”, pensou ele, passando o cartão na fechadura.
Anita Banner seguia o governador de perto, usando sua saia favorita, gostando de virar a cabeça de todos os jovens pelos quais passava. Logo ela poderia comprar
uma saia ainda melhor. Aliás, todo um guarda-roupa novo. Toda uma vida nova.
Uma vida finalmente livre das mãos bobas de Sebastian Taylor.
Tessa ficou olhando para ver se atenderia o telefone. Ele tocou de novo. Eu o peguei.
Ela arriscou um bocado de cereal.
Abri o celular e fechei de novo, deixando-o no silencioso. Ela estava seguindo meus movimentos com o canto do olho.
– Por que você não antendeu?
– Eu estava ocupado.
– Fazendo o quê?
– Notando você.
De repente, lembrei as palavras do bilhete de Christie: Não fuja do risco de amá-la...
– Precisamos contar um com o outro – eu disse. Fiquei pensando se Christie não teria deixado um bilhete parecido para Tessa. Nunca perguntei para ela. Conserte isso,
Pat. Vamos.
Tessa estava brincando com a colher.
– Achei na penteadeira.
– Achou o quê?
– O perfume da mamãe. Tudo bem, certo? Eu usar, quero dizer? – Por um momento, ela quase pareceu tímida. Um corvo tímido.
– Sim. Claro. Fico feliz de você usar. De verdade.
– Mesmo?
– Mesmo. É maneiro.
– Maneiro? – ela disse, com um sorrisinho. – Você disse maneiro mesmo?
– Tudo bem? Ainda é maneiro dizer ‘maneiro’?
– Acho que sim – ela disse. – É que fiquei meio surpresa...
Peguei a garrafa de leite e uma pontada de dor atravessou meu ombro. Fiz uma careta e larguei a garrafa.
– O que foi? – ela perguntou.
– Nada.
– É mentira. Não minta pra mim.
– Tem razão. – Minhas costas estavam latejando. – Tá, pra dizer a verdade, machuquei feio meu ombro ontem.
– Fazendo o quê?
– Alguém tentou me matar numa explosão.
– Mesmo? – Ela tomou um gole de café.
– Sim.
– Quem?
Misturei mel no meu chá.
– Não tenho certeza, mas acho bem provável que tenha sido o assassino.
– Oh – ela disse, e então: – Quantas pessoas ele matou até agora?
– No mínimo seis. Talvez mais. Provavelmente mais.
– Então ainda não chegou na média de oito vítimas? A média norte--americana para psicopatas assassinos, quero dizer.
Hesitei.
– Sabe, em algumas famílias este tipo de conversa pareceria um pouco estranho.
– Não nesta – disse ela.
Assoprei meu chá.
– Ainda não chegou em oito. Até onde sabemos.
Nós comemos o cereal.
– Então, por que eles fazem isso? – ela perguntou, depois de alguns minutos. Eu lhe dei minha resposta padronizada.
– Bem, não tento descobrir o porquê. Você se desencaminha fazendo essas perguntas.
Ela fez um som de desdém.
– Sei. Isso é você saindo pela tangente. Sei que deve se perguntar isso. Só pode. Você é curioso demais pra não querer saber.
A xícara tremia nas minhas mãos. As palavras dela bateram fundo.
– Bem, talvez eu já tenha me perguntado, mas no fim das contas, acho que o porquê é fácil: os assassinos querem da vida as mesmas coisas que todos querem – plenitude,
realização, um senso de valor, aceitação, poder...
– Amor.
Fiquei pensando no que dizer.
– Sim. Isso também. Mas eles não sabem o jeito certo de conseguir.
Nem você.
– Ninguém sabe – ela disse. – Pelo menos, não o tempo todo.
Eu não sabia se ela estava dizendo aquilo como uma simples observação ou como algo mais pessoal. Depois de um momento, acrescentou:
– Então, o que nos torna diferentes deles?
Eu ia dizer algo banal, idiota, um clichê. Mas a verdade é que apenas uma linha tênue nos separa deles, e às vezes ela se agita para lá e para cá como uma cobra
na areia. Às vezes pisamos do outro lado dela, todos nós. A curiosidade, talvez. O desejo. A raiva. Vai saber. Mas aqueles que pisam do outro lado com os dois pés
continuam tão humanos quanto nós. Todos são humanos: aquelas pessoas em Jonestown, os assassinos que eu investigo. Estão buscando esperança, procurando amor, tentando
entender as coisas. Como nós. De tantas maneiras, são exatamente como nós. Essa é a verdade mais assustadora.
– Às vezes é difícil saber a diferença – eu disse. – Acho que boa parte dela está, no fim das contas, nas escolhas que fazemos. – Então me lembrei de uma frase que
ouvi uma vez. – Acho que foi Goethe quem disse que todos temos dentro de nós o potencial para cometer qualquer crime.
– Algo assim. – Ela tomou um gole de café.
– O que quer dizer?
– Goethe escreveu: “Não existe nenhum crime do qual eu não me considere capaz.” Ao menos essa é a tradução mais popular.
Olhei para ela por um bom tempo.
– Como você sabia? Como sabe todas essas coisas?
– A Internet – respondeu ela, como se isso explicasse tudo.
– Ah, sim – eu disse. – Já ouvi falar. – Esperei para ver a reação dela.
– E gosto de ler, também. Leio muito. – Ela comeu um bocado de cereal. – Li seus livros.
– Leu? O que você achou?
Ela deu de ombros.
– São legais, acho. Meio chatos.
Tudo bem, então.
Enfiei a mão no bolso. Não sabia se aquele era um bom momento, mas não conseguia pensar em nenhum melhor.
– Ei. Eu trouxe seu presente de aniversário. Desculpe o atraso.
Ela olhou para mim.
– O que é?
– Não vou contar. Vai estragar a surpresa. – Pus a caixinha retangular sobre a mesa. Ela olhou para o presente, mas não o pegou. Eu o empurrei na direção dela. –
Você vai ter que abrir.
Ela o pegou de repente, rasgou o papel metalizado do embrulho, abriu a caixinha cinza aveludada e parou. Nem tirou o colar da embalagem.
– Tem a pedra do seu signo – disse eu.
– Turmalina.
– Sim. Eles tinham outras cores, mas achei que você ia gostar da preta. Ela pôs a caixa sobre a mesa.
– Gostou?
Tessa empurrou a tigela para o lado e piscou, deixando seus cílios subirem bem devagar.
– Então é por isso.
– O quê?
Ela olhou ao redor.
– Isso. Tudo isso.
– Do que está falando?
Seus olhos se tornaram navalhas.
– Por que você não me perguntou se eu queria me mudar pra Denver?
– Como assim?
– Depois que a mamãe morreu. A gente simplesmente pegou e se mudou. Por que você não me perguntou se eu queria me mudar?
– Bem, só achei que seria melhor pra nós dois ter um pouco de espaço...
– Pra nós dois?
– Sim.
– E como você ficou sabendo o que seria melhor pra mim?
– Tessa, eu...
– A gente devia ser uma família. Famílias escolhem juntas o que é melhor pra todos, não só pra quem está no comando.
Suas palavras incendiaram o ar entre nós. Eu não fazia ideia do que dizer.
– Escuta, eu...
– Você me afastou de todos os meus amigos. – Seus lábios tremeram por um momento, e então a barragem se rompeu. – Minha mãe morre e você me faz largar todos que
conheço e me mudar pro outro lado do país, e tudo o que eu sempre quis era uma família como a de Cherise – com uma mãe e um pai – e quando a mamãe conheceu, achei
que isso talvez fosse acontecer, quem sabe eu tivesse alguém pra me ensinar as coisas que um pai ensina pra uma filha – sei lá, sobre a vida, sobre meninos, qualquer
coisa, e talvez você fosse me ver jogar vôlei e me obrigasse a fazer o dever de casa quando eu não quisesse e me dissesse que eu era bonita às vezes e torrasse minha
paciência quando eu quisesse namorar e tirasse minha foto vestida pro baile de formatura e me levasse pro altar um dia quando eu me casasse...
Meu coração estava se quebrando, se partindo ao meio, mas eu me sentia impotente.
– Eu nunca soube...
Àquela altura, lágrimas rolavam pelo seu rosto.
– Você nunca perguntou! – A voz dela estava carregada de dor.
– Eu lamento tanto, Tessa, eu...
Ela pegou a caixa do colar e a jogou no meu peito. O colar de turmalina rolou pelo chão.
– Pode ficar com essa droga de colar, Patrick! – Ela se levantou da mesa. – Não pode comprar o meu amor!
Tessa saiu correndo e eu fiquei ali, embasbacado, parado no tempo. Um silêncio frio engoliu tudo ao redor.
Vá atrás dela. Peça desculpas. Faça alguma coisa!
Eu me levantei e comecei a ir para o quarto dela. Parei com um pé no corredor.
Espere. Você precisa lhe dar espaço. No momento, é disso que ela precisa... lembra? Estenda a mão para ela devagar... Assim ela sabe que você não vai machucá-la.
Talvez eu pudesse ir até o prédio da administração federal, pegar o resto das minhas coisas e depois voltar para me acertar com ela. Eu não queria forçá--la, pressioná-la.
Queria respeitá-la, mostrar que me importava de verdade.
Fui para o quarto de casal, peguei minha carteira e liguei o celular de Ralph na tomada, assim, quando ele o pegasse mais tarde, estaria carregado. Quando passei
por Muncey e Stilton a caminho da sala de jantar, Patricia Muncey me perguntou o que estava acontecendo.
– Volto daqui a uns minutos – resmunguei, preferindo não explicar o que realmente estava acontecendo.
A gata preta quase me fez tropeçar, correndo de mim quando abri a porta da rua. Lá fora, tive que erguer o colarinho para me abrigar da chuva gelada que começara
a se precipitar das escuras nuvens matutinas.
Entrei no carro e peguei o caminho do prédio da administração federal. Ao meu redor, o dia parecia embebido pelo sabor da morte iminente.
73
Tessa desabou na cama, soluçando. Seu coração gritava, doía pedindo amor, mas ninguém ouvia. Ninguém mesmo.
Ela odiava Patrick e o amava ao mesmo tempo. As duas coisas! Queria abraçá-lo e queria enchê-lo de tapas. Não fazia nenhum sentido, mas era verdade. Mas não importava.
Nada importava.
Ela pegou a navalha.
Ela não aguentava mais aquilo. Nada mudara. Ela voara até ali e nada estava diferente. Patrick não era seu pai. Claro que não era. Ninguém era. O que ela estava
esperando, afinal?
Ela ouviu o barulho do motor pela janela e se ergueu da cama bem a tempo de ver Patrick saindo de carro.
Indo trabalhar de novo. Fugindo. Deixando-a sozinha.
Haveria sempre outro assassino em algum lugar. Era isso que realmente importava para ele. Era isso que ele amava. Não ela. Se apenas ela não estivesse na vida dele,
os dois poderiam ser felizes.
Naquele instante, ela soube o que precisava fazer: voltar para Nova York. Pegar carona para a cidade. Talvez pudesse ir morar com Cherise ou com alguma outra amiga.
Ela tinha idade suficiente para trabalhar, se manter sozinha. Só precisava sair de fininho e fugir antes que ele voltasse. Era isso que ele queria, na verdade. Era
o que os dois queriam.
Afinal, não foi culpa dele se apaixonar por uma mulher que tinha uma droga duma filha adolescente. O que ele podia fazer? Aprender de uma hora pra outra a cuidar
de uma adolescente? Gostar de repente da filha também, só porque amava a mãe dela?
Tessa enxugou as lágrimas e correu os olhos pelo quarto. Ela podia resolver tudo indo embora. Era isso que precisava fazer. Ela enfiou a navalha no bolso de trás
do jeans e abriu sua mala. Não podia levar a mala toda, seria óbvio demais. Só a mochila. Só precisava dela. Tirou-a do armário e começou a enchê-la de roupas.
74
Dez minutos depois de sair da casa, cheguei à minha mesa no prédio da administração federal. O burburinho do escritório se transformou em silêncio assim que eu entrei.
Até aí, nenhuma surpresa. Acenei discretamente para as pessoas que me olhavam fixamente e ziguezagueei por entre as mesas até minha estação de trabalho improvisada.
Não vi Ralph, Lien-hua ou o xerife Wallace, só Margaret me olhando através da porta de vidro da sua sala.
Eu a ignorei.
Olhei para a minha mesa. Não tinha muita coisa ali. Uns blocos de anotações, uma foto do meu casamento num porta-retrato, o microfone adesivo que eu usara e que
devia ter esquecido de devolver. Enquanto pegava minhas pastas, papéis e anotações, notei um envelope de papel pardo – o relatório do dia. Não havia nenhum bom motivo
para olhá-lo agora, a não ser o fato de que Margaret não iria querer que olhasse.
Abri o envelope.
A equipe de manipulação de materiais perigosos no Novo México acabara de mandar as amostras de tecido e o laboratório encontrara um agente bacteriano, como eu temia
que fosse acontecer. Tipo patogênico: desconhecido.
Aaron Jeffrey Kincaid se certificou de que os preparativos do almoço estavam indo bem e em seguida se afastou discretamente da família. Ele tinha um papel especial
na narrativa do dia. Havia alguém que ele precisava encontrar.
O telefone sobre a minha mesa tocou. Olhei ao redor. Ninguém mais por perto. Eu deveria deixar que tocasse. Afinal, não trabalhava mais ali. Mas podia ser Lien-hua
ligando para se despedir. Atendi.
– Bowers falando.
– Eu queria Alice. – O mesmo software de distorção de voz da outra vez. Acenei para Margaret, apontei freneticamente para o seu telefone. Ela fez cara feia, mas
finalmente levantou o fone.
– Bem – eu disse. – Acho que ontem à noite você é que demorou demais.
– Como você sabia que eu ia fugir pela Richmond?
– Suspeitos em fuga seguem padrões repetitivos. Você não é nem de longe tão esperto quanto imagina.
Ouvi sua respiração ficar mais intensa. Ótimo. Eu estava conseguindo irritá-lo. Decidi testá-lo. Ver o quanto ele sabia realmente.
– Você matou uma policial ontem. Agora não vão mais se satisfazer em prender você vivo. Entregue-se. Poupe-nos de mais um funeral.
– Todos estamos a caminho de um funeral, dr. Bowers. Não percebeu isso ainda? É só uma questão de hora e local. Você, mais do que qualquer outra pessoa, deveria
saber disso.
Ele não sabe que a policial sobreviveu. Acha que a matou.
– Então é isso? – Eu precisava fazê-lo tropeçar. Entregar alguma coisa. – Somos todos peões esperando para morrer?
Sua voz se tornou ácida.
– Dr. Bowers, minha mãe foi assassinada a sangue frio. Sem motivo. Sem propósito. Ela era prostituta. Sabe o que isso significa, não sabe? Ela era descartável. Quantas
horas você acha que os policiais gastaram procurando o assassino de uma prostituta fuleira que morava num trailer?
Eu não fazia ideia se ele estava dizendo a verdade ou não, mas agi como se estivesse.
– Ninguém é descartável – falei. – E lamento pela sua mãe, de verdade...
– Lamenta nada. Ninguém lamentou. Ninguém lamenta.
– Ela também era um peão, então?
– Somos todos peões.
– Então quem está jogando?
– Deus. Ele nos tira do tabuleiro, um de cada vez, sujando este planetinha patético com os cadáveres de Seus filhinhos amados. Passa toda a eternidade nos matando
pra divertir os anjos.
Suas palavras me deram calafrios. Poderiam ter saído dos meus lábios uma dúzia de vezes nos últimos meses. Pensei em Christie.
Me lembrei do bilhete dela. Só o que posso controlar é o que faço com cada momento, com este momento, agora.
– Nenhum de nós é um peão – eu disse. – Nem você, nem sua mãe.
Ele deu uma risadinha.
– Se eu mato alguém, passo o resto da vida na cadeia ou talvez sou condenado à morte, mas se Deus chega antes de mim, Ele pode continuar no céu e ser idolatrado
por Seus suditozinhos fiéis. Me diga: isso é justo?
– A morte não foi ideia Dele. – Eu quase podia ouvir Christie falando comigo, as palavras do seu bilhete finalmente fazendo sentido, depois de todo aquele tempo.
Eu mal podia acreditar que estava dizendo aquilo, e me perguntava se realmente acreditava. – Mas a vida é. A vida sempre foi ideia Dele.
– A dor foi ideia Dele. Ela nos dá forma. Nos define.
– Não, nós somos definidos por nossas escolhas, nossas prioridades, pelas coisas que amamos...
– Bem – disse o assassino. – Eu sei o que eu amo.
– O quê?
Uma pausa.
– Bethanie e Alexis não eram minhas.
Cansei de jogar do jeito dele.
– Eu sei.
– Não sou desleixado daquela forma. Pressione-o. Faça-o botar uma carta na mesa.
– O que foi, então? Você me ligou pra confessar?
– Eu sei quem é o outro assassino.
É mais um dos jogos dele. Dos truques dele.
– É? Bem, eu estou fora do caso. Conte pra outro.
– Só aceito falar com você...
Bati o fone no gancho.
Pronto. Fiz minha jogada. Vamos ver o que o Ilusionista vai fazer agora.
Tessa terminou de enfiar suas roupas na mochila e ouviu os dois policiais conversando na sala de estar.
– Você consegue se entender com a menina? – o homem falou.
– Claro. Por quê?
– Vou sair pra comprar cigarro. – Era o agente Stilton de novo.
– Não pode esperar mais meia hora? Eles vão partir daqui a uns minutos.
– Meia hora? – ele disse com desdém. – Obviamente, você não fuma.
Tessa escutava com atenção. A agente Muncey suspirou.
– Tudo bem, então. Tanto faz.
– Volto já. – Ele saiu.
Isso tornaria as coisas mais fáceis ainda. Ela só precisava passar por uma policial para seguir para Nova York. Ela viu pela janela o homem entrando no carro e indo
para a rua.
– Bowers – Margaret gritou de sua sala. – O que foi que você fez! – Ela saiu, pisando duro.
Ligue de novo, vamos, ligue...
Olhei para o telefone.
– Ele vai ligar de novo.
– Você desligou na cara dele!
Ligue de novo.
– Ele precisa estar no controle, vai ligar de novo.
Ela estava soltando fumaça, prestes a explodir.
– Me deixa ficar, Margaret.
O telefone começou a tocar.
– Atenda, Bowers!
– Me deixa pegar esse cara.
Ela estendeu a mão para o telefone.
– Ele não vai falar com você. Você ouviu.
Trim, trim. Trim, trim.
– Atenda! – ela gritou.
– Deixe que eu vá atrás dele. Diga que posso trabalhar no caso.
– Não.
Trim, trim.
– Então vou embora. – Eu me virei para sair.
– Tudo bem! Agora aten...
– Diga.
– Pode trabalhar no caso!
Peguei o fone.
– Sim.
– Você não desliga na minha cara, dr. Bowers! – Cada palavra estava embebida na fúria lenta e peculiar do assassino.
– Acho que você não sabe quem ele é – desafiei-o. – Por que me contaria o nome dele?
– Não gosto de dividir o centro do palco.
– Não. Óbvio demais. Você não o entregaria para mim. Você mesmo iria atrás dele. – Tem mais coisa acontecendo aqui...
– Ele é um velho amigo, dr. Bowers. Não seria certo matá-lo. Digamos apenas que fiz uma promessa.
– Quem é ele, então? – Eu o estava testando, naturalmente. Já sabia que o cara era Kincaid.
– Isso eu não posso contar. De qualquer forma, provavelmente ele convenceu outra pessoa a fazer o trabalho sujo; ele é bom nisso. Mas posso dizer uma coisa: ele
estará no Hotel Stratford às 10h da manhã de hoje.
O quê? Não em Seattle semana que vem?
O almoço.
Kincaid vai pegar o governador hoje!
Então o Ilusionista desligou o telefone e o escritório entrou numa atividade frenética, com pessoas tentando rastrear a ligação. Se ele realmente conhece Kincaid,
então Kincaid pode me levar até ele. Margaret avançou na minha direção.
– Nunca mais faça...
Peguei as coisas da minha mesa.
– Vou pro Hotel Stratford.
Ela pareceu ponderar minhas palavras, o assassino, o cadáver no porta-malas do carro dela, suas perspectivas em Quantico, tudo num momento condensado de definição
de carreira, e finalmente concordou com um aceno rápido.
– Tudo bem. Vou pedir que Ralph e Lien-hua encontrem você lá. Tome cuidado.
– Pode deixar. E obrigado.
Ela se virou e foi embora, e foi isso.
Antes de sair, liguei para a agente Muncey para avisar que não voltaria logo, e pedi que ela visse se Tessa estava bem.
– Não se preocupe. Ela está ótima. Está no quarto dela. Fazendo as malas, acho.
– Certo.
Desliguei e apalpei minha SIG P229.
Prenda esse cara, Pat.
Próxima parada, Hotel Stratford.
75
Lien-hua chegou antes de mim no Hotel Stratford e me encontrou na porta.
– Acabo de receber uma ligação da Patrulha Rodoviária do Tennessee – ela disse enquanto entrávamos. – Alguém viu dois caras brigando na pista de um aeroporto regional
perto daqui. A segurança achou o avião de Kincaid. Tinha mais de uma dúzia de bandejas de comida dentro.
– Então ele tem alguns ajudantes. – Pensei por um momento. E aí entendi. – Eles infectaram o gado; você acha que podem ter se infectado também?
– Espero que não – ela disse.
Eu detestava pensar nas consequências caso eles tivessem se infectado. Ralph irrompeu no saguão.
– Vamos. – Ele abriu caminho até o início da fila no balcão da recepção. – Precisamos ver a diretora do hotel, já!
Nell Prescott, presidente e principal executiva da Stratford Enterprises, nos recebeu em sua sala e nos escutou com atenção. Depois de ouvir nossa explicação apressada,
ela nos levou imediatamente para o centro de segurança do hotel. Um painel de monitores de vídeo nos cercava das paredes da sala estreita e pouco iluminada.
Um homem musculoso como um buldogue nos abordou.
– O que está...?
– Sr. Williamson – disse Nell Prescott. – Estas pessoas são do FBI. Temos um problema.
Todo o seu corpo pareceu ficar alerta.
– Que tipo de problema?
Tessa esperou o agente Stilton ir embora, então pegou sua mochila e abriu a porta do quarto.
Ela podia ouvir a agente Muncey vendo TV na sala de estar.
Tessa se esgueirou pelo corredor na direção da porta da rua. Ela se inclinou, pegou a maçaneta e ouviu a voz da policial bem ao seu lado:
– Aonde a senhorita pensa que vai?
Tessa se virou bruscamente e viu a agente Muncey ao seu lado.
– Só vou fazer o meu dever de casa na mesa. Tá?
A agente Muncey indicou com um gesto.
– A cozinha é pra lá.
– Eu sei!
Tessa marchou para a cozinha e jogou a mochila sobre a mesa. Não via o colar que Patrick tentara lhe dar em lugar nenhum. Bem, melhor pra ele. Devia ter levado embora.
Quem se importa.
Aaron Jeffrey Kincaid correu os olhos pelo saguão. Ele não gostava de fazer tudo tão em cima da hora, mas fazia parte do acordo que ele fizera com Sevren para que
seu ex-colega de quarto não o entregasse para as autoridades. Então ele ouviu um homem murmurar seu nome.
Ele se virou e reconheceu seu contato pela descrição que Trembley lhe dera. Kincaid aceitou o pacote e entregou o envelope com o dinheiro. O homem se afastou apressadamente.
Enquanto o via ir embora, Kincaid notou a atividade atrás do balcão da recepção. Dois seguranças falavam em seus microfones, olhando para o saguão com desconfiança.
Então eles já sabiam. Ele não esperava que descobrissem até depois do almoço, no mínimo. Mas não importava. Chegaram tarde demais. As pessoas já estavam se sentando
para comer. Mas ele precisava avisar sua família de que os planos haviam mudado. Eles precisavam ficar prontos para o seu sinal.
E ele precisava achar o governador.
Depois que informamos o sr. Williamson sobre os fatos básicos do caso, ele balançou a cabeça.
– Já varremos o hotel todo. Acredite. O salão de baile, o saguão, os jardins, tudo. Usamos até cães. Está seguro.
Lien-hua balançou a cabeça.
– Não seria um dispositivo explosivo, mas sim algo químico ou biológico. Mais parecido com o que aconteceu em Jonestown.
– Jonestown? – Williamson exclamou, assombrado.
Eu não tinha tempo nem forças para explicar tudo para aquele cara.
– E os dutos de ventilação, do ar-condicionado, essas coisas?
– Já falei – Williamson disse friamente. – Está tudo seguro. Vocês têm um suspeito?
– Aaron Jeffrey Kincaid – eu disse. – Espere. É isso. – Abri meu laptop, acessei a foto de Kincaid que Lien-hua encontrara ontem ao pesquisá-lo. Então ativei o programa
de reconhecimento de rostos e perguntei a Williamson: – Onde posso conectar meu computador aos seus sinais de vídeo?
A agente Muncey se sentou à mesa, ao lado da mochila de Tessa.
– O que está fazendo? – perguntou Tessa.
– Vendo se você precisa de ajuda. Que matéria vai estudar?
– Álgebra. – Tessa jogou o cabelo para o lado. – Ah, sim. Preciso da calculadora. Ficou lá no quarto. – Ela saiu de perto da policial, foi para o seu quarto, pegou
uma calculadora e digitou o número de Cherise no seu celular. Por favor, atenda. Por favor, atenda. Sei que você está aí. Por favor.
Caixa postal.
– Cherise! Preciso que você me ligue, tipo, daqui a um minuto. Por favor. Sei que você está aí. É importante.
Tessa enfiou o celular no bolso e voltou para a cozinha, onde encontrou a agente Muncey abrindo as fivelas da sua mochila.
– Ei – gritou Tessa. – O que está fazendo?
A agente Muncey lançou-lhe um olhar frio.
– Achou a calculadora?
– Larga a minha mochila!
A tela do computador piscou com rostos, nomes, comparações, e então...
Nada.
– Ele está aqui – resmunguei. Mas eu não tinha certeza, não tinha como ter certeza.
– Será que ele não é um hóspede? – disse Williamson. – E está no seu quarto?
– Acesse sua lista de hóspedes.
Ele digitou o nome de Kincaid e então balançou a cabeça.
– Ninguém está hospedado aqui com esse nome.
– Ele usaria um nome falso, quase com certeza – disse Lien-hua.
– Alguma ideia? – perguntou Williamson.
– Jones – eu disse. – Tente Jim Jones.
Williamson digitou, balançou a cabeça.
– Não. Peraí...
– O quê?
– Alguém chamado James Warren Jones está cuidando do bufê.
– É isso! – exclamei. – A comida. Eles vão contaminar a comida. Não deixe ninguém chegar perto da comida!
– Tarde demais – alguém murmurou.
Todos olhamos para os monitores de vídeo. A sala ficou num silêncio de pedra. Nas telas ao nosso redor, os garçons estavam se espalhando como os dedos de uma mão,
servindo comida envenenada para os líderes mundiais da mídia.
76
O celular de Tessa tocou.
– Só um momento – ela disse à policial. – E não mexa nas minhas coisas! – Ela foi para o quarto ao lado e atendeu. – Alô? Cherise?
– O que tá acontecendo, amiga? Não tenho notícias tuas há umas três semanas, e aí de repente você, tipo, “me liga daqui a um minuto”...
– Acho que eu tô encrencada.
– Quê?
– Peraí. – Tessa olhou do canto da parede e viu a agente Muncey de pé, com as mãos na cintura.
– Você não está levando livros na mochila, está? – disse a agente Muncey.
– Tô no telefone – Tessa respondeu secamente.
Então a agente Muncey abriu a mochila de Tessa e derramou suas roupas sobre a mesa.
– Tessa – ela disse. – Desligue o telefone.
– Pare aqueles garçons! – eu disse a Williamson. – E ligue para o Centro de Controle e Prevenção de Doenças. Peça que mandem uma equipe já. Sra. Prescott, precisamos
isolar o hotel e pôr essas pessoas sob quarentena. É necessário. Ninguém sai.
Ela apertou os lábios, mas só por um momento – provavelmente calculando os prejuízos em dezenas de milhões – e então balançou a cabeça rapidamente.
– Eu vou cuidar disso. – Aí estava uma mulher que não tinha medo de tomar decisões.
– Precisamos controlar essa infecção – eu disse. – Isole o hotel.
– Nem sabemos qual é a doença – disse Lien-hua.
– Proponho que a gente pegue Kincaid – disse Ralph, puxando sua arma. – Rápido e tranquilo.
– Esperem, todos vocês. Esperem! – disse Lien-hua. – Lembram o que aconteceu em Waco18? Em Jonestown? Quando esses líderes de culto entram em pânico, muita gente
inocente morre. Eles são paranoicos, delirantes. Quanto mais você aumenta as ameaças, menor a probabilidade de que eles se entreguem. Acho que precisamos negociar.
Ralph estalou os nós dos dedos.
– Pronto pra negociar.
– Espere – eu disse. – Precisamos de Kincaid. Ele é o único que pode impedir isso. Esperem um pouco. O alvo principal dele é Sebastian Taylor. – Eu me virei para
a sra. Prescott. – Onde o governador Taylor está agora?
– Deve estar na suíte presidencial. Fez o check-in hoje de manhã. Suíte 611. – Ela apontou. – Os elevadores ficam no fim do corredor.
Corri para a porta.
– Concentrem-se em interromper esse almoço – gritei para eles. – Eu vou atrás de Kincaid.
Aaron Jeffrey Kincaid bateu exatamente quatro vezes na porta da Suíte 613 e Anita Banner abriu a porta.
– Aí está você – ela disse. – Trouxe o resto do meu...?
Ele entregou um envelope cheio de dinheiro.
– Tem certeza de que consigo entrar no terraço dele pelo seu? Ela balançou a cabeça, contando as cédulas.
– Absoluta. Eu mesma verifiquei.
Ele foi para o terraço.
– Não deixe de descer pra almoçar – ele disse. – O assado está gostoso de morrer.
– Sente-se aí, Tessa – disse a agente Muncey. – Você e eu vamos esperar aqui pelo seu pai. Ele não deve demorar.
77
– Governador Taylor! – Esmurrei a porta. – É urgente. Abra.
O governador abriu a porta, olhou para mim.
– Agente Bowers – ele disse –, como vai a pescaria?
– Não tenho tempo pra isso. – Passei por ele e comecei a vasculhar o quarto. – Alguém esteve aqui, governador? O garoto lembra. O garoto de Jonestown. Aaron Jeffrey
Kincaid. Precisamos impedi-lo...
– Pare aí mesmo – disse uma voz, mas não era a do governador. Espere, eu conhecia aquela voz. Lamentosa. Repulsiva. Incômoda. Eu me virei e vi Reginald Trembley
apontando uma Glock calibre .40 para o meu rosto.
Tessa arrancou sua mochila das mãos da agente Muncey.
– Tá, eu espero. Tanto faz! Mas tira a mão das minhas coisas! – Ela começava a guardar as roupas na mochila quando ouviu a porta da rua se abrindo.
– Jason – gritou a agente Muncey. – Tessa estava pensando em nos deixar.
Passos no corredor, se aproximando da sala de estar. Tessa olhou pela janela. Algo não estava certo.
– Peraí – ela cochichou. – Não tem nenhum carro.
– Quê? – disse a agente Muncey.
Tessa apontou para fora.
– Ele saiu de carro. O carro não está aqui. E a gente teria ouvido o barulho do motor, a porta batendo. – A agente Muncey olhou para ela, intrigada. Tessa balançou
a cabeça. – Não é ele. – Ela começou a recuar pelo corredor, na direção do seu quarto. Só conseguia pensar naquela esteira. Nas pernas.
Passos.
– Não é o agente Stilton – ela sussurrou.
– O que está acontecendo? – A agente Patricia Muncey tinha uma expressão surpresa no rosto. Seria a última expressão que teria na vida.
– Escutem aqui – disse para o governador Taylor e Reginald Trembley. – Vocês dois. Precisamos vasculhar esta suíte. Governador, tem alguém querendo matar o senhor.
– Eu sei – confirmou ele.
– Sabe?
– Oh, sim – disse o governador suavemente. Ele fechou a porta e passou o trinco. – Também andei pescando.
Notei uma bandeja de canapés pela metade.
– O senhor comeu isso? Governador, por favor. Escute...
– Cala a boca – Trembley falou com desdém. – O que acha de ter uma arma apontada para a sua cabeça desta vez, Sr. Agente-Federal-Que-Teve--Um-Dia-Cansativo-E-Está-Muito-Bem-Armado?
– Armado, é? – disse o governador. Ele enfiou a mão no meu coldre e pegou minha SIG. – Hum. Que bela arma.
Tá, aquilo não estava acontecendo exatamente como planejara. Eu precisava esquecer Kincaid por um minuto e simplesmente evitar levar um tiro.
Mantenha-os falando. Precisa mantê-los falando.
Então chegara a isso: morrer ou apresentar um relatório. Que maravilha.
– Quer dizer que você estava jogando dos dois lados, não estava, Trembley? – Eu queria enrolar, naturalmente, para tentar bolar um plano. – Começou investigando
Kincaid para os pais de Bethanie, mas então Kincaid descobriu, certo? Ele fez uma proposta melhor, desde que você levantasse informações sobre os crimes pra ele.
Como estou indo?
Ele abriu um sorriso úmido e viscoso.
– Chega – disse o governador Taylor.
– Mas Kincaid precisava de detalhes, certo? – continuei rapidamente. – Para preparar os assassinatos. Então foi você? Usou seus contatos na polícia para ter acesso
aos relatórios das autópsias e fotos dos locais dos crimes. Tudo faz sentido agora.
– Jason Stilton sempre foi um grande amigo – ele disse, confiante. – Faz qualquer coisa por uma grana.
Quê? Stilton?
– O que você disse? – perguntei.
Stilton estava naquela lista com 62 nomes. Ele tinha acesso aos arquivos do caso.
– Chega! – repetiu o governador.
Tudo bem, cuide de Stilton depois. Agora, continue vivo.
Apontei para Sebastian Taylor, mas continuei falando com Trembley.
– Então você também encontrou Sebastian, não encontrou? Com a ajuda de Kincaid, talvez? Ameaçou expor o papel do governador em Jonestown a menos que ele...
– Digamos simplesmente que o sr. Trembley e eu chegamos a um acordo. – O governador Taylor se virou para Trembley. – Não chegamos?
Com aquele sorriso viscoso.
– Oh, sim.
– Chantagem – eu disse.
– Uma transação comercial – disse o governador. – Agora, dr. Bowers, chegou a hora do senhor morrer.
As costas de Tessa encostaram na parede enquanto a agente Muncey se virava para olhar a porta da rua, no fim do corredor.
E o que aconteceu a seguir foi tão rápido que pareceu uma ação só, com todos os movimentos ligados através do espaço e do tempo por uma corda invisível, mortal.
O som de um tiro atravessou a casa. A agente Muncey foi jogada para trás, olhou para o seu peito, esfregou a mão no suéter, suspirou baixinho, desabou no chão num
anticlímax e se espalhou pelo tapete. Viva num momento, morta no seguinte. Simples assim. Tessa viu tudo acontecer. Sentiu as fibras de sua alma sendo puxadas. Então
ela ouviu um homem chamando do outro lado da casa.
– Sabe quantas pessoas nascem por dia, Tessa?
O tempo todo, enquanto eu tagarelava, estava tentando desesperadamente achar um jeito de sair daquela enrascada. Olhei ao meu redor. Estávamos numa suíte presidencial
com muitos cômodos. À minha direita, um terraço dava para os chafarizes e jardins do átrio. As portas do terraço estavam fechadas. Eu não poderia pular mesmo. Estávamos
no sexto andar.
– Sr. Trembley – disse o governador. – Pode atirar na cabeça dele agora. Cuidado com a pontaria, por favor.
Trembley apontou a arma para mim. Tudo estava acontecendo rápido demais. Eu nem tinha elaborado meu plano de fuga ainda. Isso não era...
Bang.
Tive um sobressalto. Esperava sentir a bala me penetrando. Apalpei meu rosto, olhei meu peito. Quê? Nada.
Então ergui o olhar.
Trembley estava deitado no tapete, morrendo.
– Belo tiro, dr. Bowers – disse o governador, segurando minha arma. O cano estava fumegante. – Parece que o senhor o matou.
E naquele momento me dei conta de que eu poderia ter subestimado Sebastian Taylor.
Tessa desabalou pelo corredor, trancou a porta do banheiro, mas entrou no quarto de casal, deixando a porta destrancada.
– 387.834 pessoas, Tessa – disse o homem que atirara na policial. – E todo dia, 153.288 pessoas morrem. Onde você está, Tessa? Hoje é o seu dia.
Ela ouviu o assassino avançando pelo corredor, mexendo nas portas. Ouviu-o abrir a porta do quarto onde ela dormira na noite anterior.
– Sei que você está aqui, Tessa. – Ele passou para a porta seguinte no corredor. A do banheiro. Viu que estava trancada. – Aha. Aí está você.
Ela se agachou no canto do quarto, perto da penteadeira, tremendo, pegou seu celular, ligou para 911.
– Alô – disse uma voz entediada –, por favor, informe a natureza...
Seu coração estava disparado. Suas palavras saíram aos borbotões enquanto ela tentava respirar.
– Tem um homem... no corredor... tem uma arma.
– De onde está ligando, moça?
– Não sei. Não sei. Estou num esconderijo do FBI. Ligue pro escritório do FBI. Peça pra falar com Patrick Bowers.
– Moça, eu não posso...
Ele estava esmurrando a porta do banheiro, gritando o nome dela.
– Tessa, abra a porta.
– Ele está vindo – Tessa cochichou, desesperada. – Matou a policial que estava me protegendo.
Então ela ouviu um carro parando na frente da casa e a porta do carro batendo.
O agente Stilton.
– Bem – disse o governador. Acho que não vou precisar pagar ao sr. Trem-bley, no fim das contas. Que pena. – Ele largou minha arma, pegou a Glock de Trembley e a
apontou para mim. – E agora é a sua vez, agente Bowers.
Não, não, não. Isso não era bom. Meu coração começou a martelar no peito.
– Então vai atirar em mim? Só isso?
– Oh, não. Eu não faria isso. Não é necessário. Trembley já atirou, pouco antes de morrer.
Nada bom mesmo.
Tessa ouviu a porta do banheiro se partindo. O barulho da madeira despedaçada. Palavrões.
Então o assassino parou. Ele devia ter olhado pela janela do banheiro e visto o carro. Oh, não.
Ela olhou pela janela. O agente Stilton estava se aproximando da casa. Ela precisava alertá-lo. Senão o homem no corredor iria matá-lo também. Ela abriu a cortina
e tentou fazer sinais para o policial, mas ele estava pegando um cigarro e não a viu.
Ela tentou abrir a janela, mas estava emperrada ou trancada. Claro, burra, você tá num esconderijo do FBI! As janelas provavelmente eram à prova de balas e lacradas
para protegê-la. Que ótimo.
Ela olhou para o celular. O visor mostrava “Chamada Encerrada”. Ou tinha ficado sem sinal, ou tinham desligado quando ela parou de falar. De qualquer forma, isso
significava que ela estava morta e enterrada.
Peraí. Se você não pode sair, como o assassino entrou? Arrombou a fechadura? A porta foi deixada destrancada de propósito? Por que alguém a deixaria destrancada?
O agente Stilton parou e voltou para o carro. Devia ter esquecido alguma coisa.
78
– Alguém com certeza ouviu esse tiro – disse para o governador. – Vão procurar o senhor.
Ele balançou a cabeça.
– Acho que não. – Correu os olhos pela suíte. – É a suíte presidencial, lembra? Vidros à prova de balas. Cômodos com isolamento acústico. Bem--vindo às águas onde
nadam os peixes grandes. – Então ele bateu o cano da Glock na palma da mão. – Vejamos... o que acha disto? Agente estressado do FBI que perdeu a esposa e foi relegado
a uma função burocrática por seis meses finalmente volta a campo, mas ainda não se recuperou de seus ataques de depressão. Todos no escritório notaram seu comportamento
inconstante e seus acessos de fúria. Ele inventa uma teoria conspiratória doida sobre o envolvimento do governador da Carolina do Norte na tragédia de Jonestown
uns trinta anos antes, e apesar de ser alertado a desistir dessa empreitada quixotesca por seus superiores, resolve fazer justiça com as próprias mãos e tenta assassinar
o governador no seu quarto de hotel, um dia depois de ameaçá--lo em sua residência particular. Mas por sorte, o detetive particular que o governador Taylor contratara
para investigar o agente descontrolado matou o mesmo antes que ele pudesse realizar seus planos mortíferos. – Sebastian Taylor olhou para o corpo de Trembley. –
Infelizmente para o detetive, o dr. Bowers conseguiu dar um último tiro, matando-o, antes de morrer.
Bem, aquela história me parecia mesmo convincente.
– Não vai dar certo – afirmei.
– Oh, parece que você se esqueceu, eu sou muito bom no que faço.
– Resíduos de pólvora – eu disse. – Estão nas suas roupas, seu rosto, suas mãos.
– Eu estava no quarto quando você atirou. Seria natural haver resíduos em mim.
Era realmente um bom argumento. Que ironia. O local e a hora de um crime iam me levar à morte. Literalmente.
Mantenha-o falando.
– Ainda não consigo acreditar que mesmo você estaria disposto a sacrificar novecentas pessoas inocentes – eu disse.
Ele balançou a cabeça.
– Aquilo nunca foi parte do plano. Você já deveria ter entendido isso. Ryan era o alvo. Sabíamos que poderíamos atribuir o assassinato ao Templo do Povo, desativar
o culto de Jones, mostrar ao mundo como os comunistas eram loucos e instáveis. A morte dos seus seguidores foi apenas uma consequência. – Ele sorriu. – Não sabíamos
ao certo como Jones reagiria, mas imaginávamos que ele se autodestruiria – e ele fez isso. No fim, a coisa simplesmente foi mais longe do que esperávamos.
– É assim que você chama a morte de todas aquelas pessoas? Ir mais longe do que vocês esperavam? Uma consequência? – Senti a raiva andando de um lado para outro
dentro de mim, pronta para atacar. – Vocês o usaram. Usaram toda aquela gente.
– Fizemos o que era preciso. Ryan era uma ameaça ao país, sempre lutando para limitar o trabalho da CIA. Fizemos isso para proteger a liberdade, não para limitá-la.
Apenas criamos a tempestade perfeita e esperamos para ver o que aconteceria. Não fui enviado para entender o que acontecia, apenas para ajudar a redistribuir os
papéis naquela história.
– Remover as provas, deixar os boatos.
– Uma descrição eloquente.
– E quanto à verdade? – eu disse. – Ela não importa?
Ele molhou os lábios com a ponta da língua.
– Os boatos, dr. Bowers, não a verdade, são o que importa no final. Boatos dão início a guerras, derrubam regimes, arruínam casamentos, afundam carreiras. A força
que move o comércio mundial é a insinuação, não a verdade. Tudo, do mercado de ações e de futuros ao preço do petróleo, é determinado por adivinhações e fofocas.
Controle os boatos, dr. Bowers, e controlará o mundo.
– E no caso de Jonestown, vocês controlavam os boatos.
Um sorriso se retorceu em seu rosto.
– Nós os influenciávamos. Afinal, aquela gente se matou mesmo; não tivemos nada a ver com isso. Só o que fizemos foi moldar a forma como a história deles foi contada.
– Ele levantou a Glock, apontou-a para o meu peito. – Do mesmo jeito que vou moldar a forma como a sua história vai ser contada.
Pense rápido... pense rápido...
– Mas então, por que você deixou a fita lá? Me conte pelo menos isso.
– Fui interrompido antes que pudesse terminar de montá-la. – Ele balançou a cabeça. – É simples assim. Alguém apareceu no lugar errado, na hora errada. Odeio essas
interrupções. – Ele fez pontaria.
Mais rápido. Mais rápido.
– Ralph e Lien-hua sabem.
O governador riu com desdém.
– Eles não podem provar nada.
– Não – disse uma voz por trás de mim. – Mas eu posso.
O governador Taylor e eu nos viramos e vimos um homem de aparência gentil, 40 e poucos anos, entrando no quarto de onde ele aparentemente estava escondido, no terraço.
– Olá, cavalheiros – ele disse. – Meu nome é Aaron Jeffrey Kincaid. E eu tenho uma coisa para dar a vocês.
Tessa olhou para a porta, seu coração prestes a explodir. Era a última porta do corredor. O assassino iria tentar abri-la a seguir.
Ligar para 911 não ajudou. Quem? Para quem ela poderia ligar?
Ela viu um celular ligado no carregador em cima da penteadeira. O telefone que Patrick estava usando. Devia ter os telefones de outros agentes do FBI! Ela o pegou.
Estava desligado.
Ela o ligou.
Esperou.
Ouviu o assassino andando no corredor.
Esperou.
Pronto.
Ela olhou as últimas chamadas. O primeiro nome da lista era o de Brent Tucker.
79
O governador girou sobre suas articulações bem lubrificadas e disparou a Glock contra Kincaid, atingindo-o no ombro, jogando-o para o terraço, onde ele bateu no
parapeito e caiu para fora. Um momento depois, ouvi o barulho da água quando ele atingiu o rio artificial, seis andares abaixo. Uma série de gritos ecoou pelo pátio,
dos convidados que viram o que aconteceu.
– Eu devia ter feito isso há trinta anos – disse o governador, olhando para o terraço.
Enquanto ele estava momentaneamente distraído, eu avancei, peguei minha arma, rolei pelo tapete.
– É assim, dr. Bowers – disse Sebastian Taylor de algum lugar atrás de mim –, que se enfrenta um tubarão.
Eu me posicionei atrás do sofá. Encostei as costas nele.
– Sebastian – gritei. – Largue a arma. – Olhei do alto do sofá e me agachei de novo. Ele estava examinando o quarto, procurando por mim, tentando economizar balas,
agora que as portas do terraço estavam abertas e o quarto não era mais à prova de som. Precisava usar bem seu disparo; a segurança chegaria a qualquer momento. –
Você comeu os canapés – exclamei. – Está infectado. Precisamos cuidar de você.
– Infelizmente, não fui eu – ele disse. – Dei os canapés para Anita antes de mandá-la para o seu quarto. Acho que vou precisar encontrar uma nova assistente pessoal.
Tudo bem, ela estava mesmo ficando um pouco velha para mim.
Eu não podia vê-lo; ele estava do outro lado do quarto.
– Governador – eu disse. – Acabou. Eu gravei tudo o que o senhor disse. Estou usando um microfone. – Toquei o microfone adesivo para me certificar de que ele ainda
estava no lugar, abaixo da minha orelha. Eu o grudara depois de pegá-lo da minha mesa, antes de sair do prédio da administração federal. Ninguém estava monitorando
o outro lado no momento, mas tudo o que o governador dissera fora automaticamente gravado.
Cada palavra.
Apesar das interrupções.
É assim que se enfrenta um tubarão.
Brent Tucker... Brent Tucker... Tessa ouvira Patrick falando com ele ao telefone mais cedo. O que Patrick dissera mesmo? Que Brent o ajudara com o caso, que era
gente boa.
Então era amigo de Patrick. Ele podia ajudar. Ela digitou o número. Esperou enquanto chamava. Depressa, depressa, depressa.
Ela ouviu o barulho da fechadura quando o policial que gostava de fumar abriu a porta da rua.
Ouvi a porta batendo ao abrir e arrisquei uma olhada. O governador Taylor tinha fugido.
Uivos e gritos vinham do pátio. Corri para o terraço.
Kincaid caíra na água espumante ao pé da cachoeira. O líquido deve ter amortecido sua queda o suficiente para que ele sobrevivesse. Ele estava de pé, cambaleando.
– O mundo é cruel – estava gritando. – Mas nosso amor vai nos unir para sempre! – E um a um, seu povo, os funcionários do bufê do almoço de hoje, estavam tirando
cápsulas do bolso e enfiando na boca.
Fim de jogo.
Tessa não conseguia acreditar que o assassino não abrira a porta diante dela, a última porta do corredor. Em vez disso, ela o ouviu voltar correndo para o centro
da casa.
O agente Stilton, não! Ele ia matá-lo também.
O celular em sua mão estava chamando, ainda chamando. Atenda, agente Tucker. Atenda!
Aaron Jeffrey Kincaid olhou ao seu redor no pátio. O mundo estava girando. Pessoas gritando.
Ele estava de pé na água. Água rodopiante. Sangue escorrendo do seu ombro.
Sangue e água. Se misturando.
O rio.
A hidromassagem.
Jessica e os dias do amor verdadeiro.
– Sua visão, nossa visão! – ele gritou. – Seu futuro, nosso futuro!
Olhei para os seguranças do hotel correndo para o saguão e ficando confusos, sem saber o que fazer: prender as pessoas que estavam se matando ou tentar acalmar os
hóspedes em pânico, que estavam pagando 1.200 dólares a diária?
– Prendam essa gente! – gritei. A sala estava tomada pela confusão. Pessoas tentavam ir embora, correndo para todo lado. – Contenham todos – berrei. – É uma missão
suicida! Precisamos deles vivos para identificar o vírus!
Você precisa descer lá.
Eu sabia que os elevadores estariam tomados pelos hóspedes, então corri para as escadas, desci para o térreo e voei para o pátio dos jardins suspensos e lagos.
Ao meu redor, caos total.
Tessa prendeu a respiração, esperando o tiro que ela tinha certeza que viria, esperando que o assassino atirasse também no agente Stilton.
Não veio nenhum tiro, e quando o celular vibrou na sua mão, ela quase gritou.
– Alô? Pat? – uma voz disse.
– Não, sou eu – ela gritou. – É Tessa!
– Tessa?
– Sou a filha dele. – Àquela altura, ela estava chorando.
– Você está bem? Onde você está?
– Preciso de ajuda. Tô na casa. Ela tá morta. Alguém morreu. Vem rápido.
– Tudo bem, calma. Vou já pra aí. Estou perto.
80
À direita, vi quatro seguranças tentando derrubar uma montanha em forma de homem, perto da entrada leste do pátio. Ele usava o uniforme do bufê e jogava os guardas
para todos os lados como se fossem bonecos de pano. Quatro contra um, mas eles estavam desesperadamente em desvantagem. Ralph deve tê-los visto ao mesmo tempo que
eu, porque entrou no meio da briga e disse para o sujeito que estava batendo nos outros:
– Meta-se com alguém do seu tamanho, seu frouxo!
Então localizei Kincaid. Ele estava a uns vinte metros de Ralph. Corri na direção dele, mas a multidão estava impedindo a passagem.
Ralph pediu que os seguranças se afastassem e apontou para a cápsula que o sujeito tirara do bolso.
– Não fuja feito um covarde. Lute comigo. Agora. Se eu ganhar, não deixo você morrer hoje. – Ralph estava arregaçando as mangas. – Eu vou prender você, vamos julgar
e jogar você na cadeia pelos próximos quarenta anos, e vai experimentar todas as alegrias do sistema penal americano. Se você ganhar, bem, eu engulo seu comprimidinho.
O que está fazendo, Ralph?
Eu queria ajudá-lo, mas precisava alcançar Kincaid. Abri caminho em meio à multidão, lutando para chegar até ele antes que fosse tarde demais.
Kincaid estava bem na minha frente.
– Seu futuro, nosso futuro! – ele estava gritando.
Ele enfiou a mão no bolso.
Vai pegar uma cápsula. Não o deixe morrer. Precisa descobrir o nome da doença.
Corri até ele, o derrubei e a cápsula que ele pegara voou para o chão de cascalho. Mas não longe o suficiente. Ainda estava ao alcance dele. Enquanto caíamos no
chão, ele se desvencilhou, esperneando e lutando feito um maluco.
– Não faça isso – consegui dizer. – Essa gente é inocente. – Mas ele afundou o cotovelo com uma força esmagadora no meu abdômen. Lutei para respirar. O cara era
mais forte do que parecia.
Ele pegou a cápsula, enfiou-a na minha boca e me deu um forte soco no queixo.
Não engula, Pat. Haja o que houver, não engula!
Tessa esperou um momento. Depois outro. Seu coração não parava de saltar no peito. Ainda nenhum tiro. O assassino devia ter fugido. Então ela ouviu o agente Stilton
reagir ao ver o corpo no outro quarto... o som dele gritando o seu nome... sirenes se aproximando da casa... a porta do quarto se partindo.
– Tessa!
Era ele. O policial que gostava de fumar. Então era isso. Ela estava a salvo. Ia ficar bem. Ia ficar tudo bem.
Eu podia sentir a cápsula amarga se dissolvendo sobre a minha língua.
Tentei cuspi-la. Não consegui. Kincaid estava em cima de mim, possuído, tampando minha boca com a mão.
Então vi um borrão perto do meu rosto, o queixo de Kincaid foi para trás e ele me soltou.
Cuspi a cápsula.
Lien-hua girou com a graça de uma gazela, saltou no ar e atingiu de novo o lado da cabeça de Kincaid com o pé, dessa vez com força suficiente para derrubá-lo. Seu
corpo girou para trás e ele bateu no chão, desacordado. Ela pousou delicadamente, pronta para desferir outro pontapé.
– A – eu disse. Estava tentando recuperar o fôlego. – Eu daria um A para esse chute, com certeza.
– Já era hora – ela disse, correndo na direção de uma mulher que segurava uma cápsula.
Marcie ficou olhando os outros pondo as cápsulas na boca e mordendo... vendo as pessoas que ela amava desabarem no chão com a boca cheia de espuma... vendo suas
convulsões... sua luta para respirar... enquanto morriam.
Serem capturados vivos nunca fizera parte do plano.
Ela olhou para a cápsula em sua mão e ouviu gritos ao seu redor, vozes lhe dizendo o que fazer.
– Tome... Largue isso... Engula... Renda-se... – Mil vozes vindo de todas as direções ao mesmo tempo.
Ela tinha escolha. Precisava escolher.
– Espere. – Uma mulher asiática se aproximou dela com as mãos abertas. – Por favor. Não faça isso. Ninguém mais precisa morrer.
Corri até Kincaid para algemá-lo e ver se conseguia descobrir o nome do vírus, mas quando faltavam poucos passos, ele puxou uma seringa fechada num saco plástico,
furou o saco com a agulha e a enfiou em seu coração.
Não!
Ele procurou alguma coisa no bolso.
– E isto é para... – ele começou a dizer, mas aí as convulsões começaram.
Em todo o meu tempo trabalhando na polícia, nunca vi uma morte tão terrível.
No fim, tive que virar o rosto. Não conseguia olhar. Ergui a cabeça bem a tempo de ver Ralph esmurrando o gorila no estômago. O homem estava arfando, recuando, enquanto
Ralph o castigava, massacrando-o com seus punhos do tamanho de bolas de ferro.
Direto. Cruzado. Finalmente, um gancho de esquerda. Ralph o atingiu com tanta força no rosto que ele girou num instante e, com um som de algo se esmigalhando, bateu
de cara na parede de pedra do hotel e desabou no chão. Ralph passou a mão no rosto para tirar o sangue da boca enquanto o algemava.
– Ah – ele disse. – Do jeito que eu gosto. Rápido e tranquilo.
Tessa olhou ao seu redor na sala de estar.
A polícia e um monte de ambulâncias tinham chegado, e meia dúzia de pessoas que ela não conhecia estavam em volta dela, fazendo perguntas. Puseram a policial baleada
numa maca. Talvez ainda estivesse viva.
– Tessa! – O agente Tucker entrou correndo. – Você está bem?
Ela piscou.
– Cadê o Patrick? – ela disse fracamente.
– Vai chegar a qualquer momento – ele disse. – Não se preocupe, Tessa. Estou aqui pra ajudar você.
– Preferimos morrer livres a viver como escravos – disse Marcie.
– Foi isso que ele disse pra vocês, não foi? – disse a mulher, chegando mais perto. – Kincaid, certo? Ou Jones, talvez? Mas o que você acha? Você pode decidir. A
questão é essa. Um escravo é alguém que não pode mais decidir.
– Para trás!
A chinesa parou.
– Qual o seu nome?
Depois de uma pausa.
– Marcie.
– O meu é Lien-hua. Por favor, Marcie, ajude-nos a proteger essas pessoas. Por favor.
Marcie olhou os seguranças tentando conter os hóspedes nas salas de conferência, controlar o pânico, acalmar as pessoas. Ela pensou na sua filha, deitada imóvel
no chão. Viu o olhar da garotinha quando ela mandou que bebesse a “medicação” na biblioteca.
– Vai doer, mãe? – sua filha perguntara. – Não, amor, não vai doer – Mar-cie dissera – mentira. Ela mentiu para sua filha única porque Aaron Jeffrey Kincaid mandou
que ela mentisse. – Claro que vai doer – ela queria dizer. Mas não disse isso. Disse apenas que não doeria, e então sua filha balançou a cabeça, fechou os olhos
e abriu a boca, uma menininha confiante.
Marcie retrocedeu para a parede do chafariz, ergueu a cápsula.
– Não sobrou mais nada pra mim aqui. Minha filha está morta. Eu a matei.
A mulher, Lien-hua, continuava falando com ela.
– Por favor. Sei que você amava sua filha. Sei disso. Às vezes, quando alguém está com medo, faz algo de que vai se arrepender depois.
– Você não sabe como é...
– Não, não sei... – a mulher disse, e Marcie ficou surpresa por ela concordar. – Nenhum de nós pode saber como é para outra pessoa. É isso que nos torna indivíduos.
Temos cada um nossa dor, nossos erros. Mas podemos estender a mão uns para os outros, ajudar uns aos outros. É isso que nos torna humanos.
– É tarde demais...
Lien-hua apontou para a fila de pessoas sendo trazidas do pátio e levadas às salas de conferência para serem isoladas e tratadas.
– Não é tarde demais para eles, para os filhos deles. Você não precisa fazer o que Kincaid manda. Ele se foi. Você pode decidir. Por favor, ajude-nos.
A cápsula estava na mão de Marcie. Ela a levou até os lábios. Ela precisava decidir. A escolha era dela.
Ela as viu: as crianças na biblioteca. O veneno ainda úmido nos lábios delas. Úmido nos lábios delas. O rosto confiante de sua filha.
Finalmente, com o rosto sorridente de sua filha flutuando diante de si, Marcie deixou o último fragmento de sua antiga vida cair dos seus dedos para o chão.
– Francisella tularensis – murmurou. Notou um homem ao seu lado, um homem alto, com voz áspera. Era quase como se ela estivesse em outro lugar, assistindo a tudo,
uma espectadora observando outra mulher sendo algemada. – Geneticamente reforçada... – ela disse, para o caso de alguém estar ouvindo. Aquilo era bom. Ela finalmente
podia fazer alguma coisa boa com sua vida. Alguma coisa certa. – Combinamos os genes... febre hemorrágica da Crimeia-Congo...
81
Tessa tentou tomar o copo d’água que o agente Tucker lhe trouxera, mas suas mãos ainda tremiam. Ela ouviu um ronronar e notou que Meia--Noite estava se espreguiçando
no chão, aos seus pés. Ela não vira mais Raio-de-Sol depois que a loucura começara.
Ela largou o copo e olhou para o seu colo. Tinha dois celulares – o dela e o que Patrick estava usando. Ela os enfiou em bolsos separados do seu jeans e acariciou
delicadamente o pelo macio de Meia-Noite. Ela só queria sair de lá. Ir para casa. O Sr. Tucker estava falando ao celular.
– Sim, agente Wellington? – ele estava dizendo. – Aqui é Brent. Preciso mandar um recado para Pat. Diga que estou com a filha dele e que ela está bem. Sim. Garanta
que ele receba o recado. Certo. Obrigado.
Ouvi Lien-hua conversando com uma das seguidoras de Kincaid sobre a doença. Ralph estava algemando a mulher. Corri até eles.
– Espere, moça. O que você falou?
– Febre hemorrágica da Crimeia-Congo – ela disse.
– O que é isso? Como você sabe?
– Sou formada... – Seus olhos estavam vazios. – Em microbiologia... – Ela estava falando conosco de um outro lugar. – Trabalhava para o Pai na PTPharmaceuticals...
era pesquisadora... foi lá que nos conhecemos.
Olhei nos olhos dela, tentando ajudá-la a se concentrar.
– Podemos deter a doença? Sabe como tratá-la?
A mulher fez que sim.
– Alteramos a estrutura genética, mas eu trabalhei no projeto. Posso ajudar.
– Solte-a – eu disse.
– É mais um truque – disse Ralph. – Ela vai se matar, como os outros.
– Eu acredito nela – disse Lien-hua. – Acredito em você, Marcie.
Então o nome dela era Marcie. Olhei para ela. Tentei ler seus olhos. Não consegui.
– Por que você nos ajudaria?
– As crianças – ela disse –, minha filha. – Seus olhos começaram a ficar embaçados. – Nenhuma outra criança precisa morrer.
– Ela pode estar mentindo – disse Ralph.
– Não está mentindo – Lien-hua disse baixinho.
Os olhos de Marcie me encontraram e me examinaram.
– O senhor tem filhos?
Uma onda de emoção me submergiu.
– Sim. Tenho – eu disse. – Uma filha. Ela tem 17 anos.
A mulher balançou a cabeça, sorriu.
– Minha filha tinha 7 anos. Eu a amava. – Ela olhou diretamente para mim. – Eu a matei – ela disse, sua voz frágil como vidro –, porque a amava.
Medo e amor, os dois motivos que faltavam, que movem todos os outros. Livres em alguns corações. Distorcidos em outros. Então Marcie começou a chorar, e Lien-hua
estendeu os braços para ela, soltou seus pulsos e a abraçou. O celular de Ralph tocou e ele o abriu.
– É o Centro de Controle de Doenças – ele disse. Falou para eles sobre Mar-cie e depois, relutantemente, passou o celular para ela. – Querem saber o que você sabe.
– Então ele a fuzilou com o olhar. – Sem bancar a esperta, entendeu?
Ela balançou a cabeça e se afastou com ele para um canto mais silencioso do pátio. Naquele momento, Margaret se aproximou correndo de nós. Eu nem sabia que ela estava
ali. Devia ter vindo quando soube de todas as personalidades da mídia presentes.
– Sente-se, Pat. – Não parecia haver raiva na voz dela. Alguma outra coisa. Medo? Preocupação?
– O que foi?
– Sente-se.
– Me conta.
– Alguns minutos atrás, ligaram pro 911 do esconderijo.
– Quê?
– Escute, Tessa está bem. Mas uma policial foi baleada. A agente Muncey.
– Onde está Tessa?
– Ainda está lá. Não se preocupe...
Jason Stilton sempre foi um grande amigo – Trembley disse. – Faz qualquer coisa por uma grana.
– Onde está Stilton?
– O agente Stilton? – Ela me olhou intrigada. – Está lá, Pat. Chamaram uma ambulância. Brent Tucker também está lá. Acabei de falar com Brent. Ele me disse que está
com Tessa. Queria que você soubesse.
Oh, não.
Tudo começou a girar e se encaixar. As peças do quebra-cabeças deslizaram com precisão macabra, estraçalhando minha mente, meu mundo.
– Ele sabia que íamos partir para Denver – balbuciei. – Por isso me ligou hoje de manhã. Ele queria que eu estivesse aqui. Por isso me entregou Kincaid...
– O quê? – disse Margaret.
– O primeiro homicídio – sussurrei – aconteceu dois dias depois que a namorada de Grolin se mudou, depois que ele a espancou... certo?
Lien-hua balançou a cabeça, mas parecia confusa.
– Os ferimentos dela foram tratados, não foram?
– Sim – ela disse. – O que você está pensando? O que é?
– Ele sabia – eu disse. O mundo estava ficando embaçado. Qualquer que fosse o conteúdo daquela cápsula, estava começando a me afetar. Como o assassino consegue fugir?
Ele sempre escapa. No shopping... no campo de golfe... na casa de Alice...
– Ele sabe cortá-las... – eu disse – sabe mantê-las vivas...
– Do que está falando? – Margaret perguntou.
– São as drogas – disse Lien-hua, olhando para os pedaços da cápsula se dissolvendo no chão. – Mandem um médico pra cá! – E em seguida, para mim: – Calma, Pat. Sente-se.
Só o mais tolo dos ratos se esconderia no ouvido de um gato, mas só o mais sábio dos gatos o procuraria ali. Eu me sentia fraco.
– O Ilusionista – murmurei. – Estava escondido no meu ouvido o tempo todo.
E foi então que lembrei que Kincaid, antes de morrer, puxara algo do bolso. Estava escondido em seu punho esquerdo cerrado.
– Tenho uma coisa para dar a vocês – ele dissera para Taylor e eu.
Ele tinha uma coisa para me dar. E eu sabia quem mandara entregar.
82
Tessa estava no sofá, tentando relaxar, recuperar o fôlego. O agente Tucker estava sentado ao lado dela. A casa ficara um pouco mais silenciosa; vários policiais
foram embora quando a mulher baleada foi levada. O agente Tucker pôs a mão no ombro dela.
– Você está bem?
Ela fez que sim.
– Mas estou tremendo.
– É o choque – ele disse. – Precisamos tirar você daqui.
– Ela morreu? – Tessa perguntou baixinho. – Aquela policial?
O agente Tucker balançou a cabeça devagar.
– Infelizmente.
Um paramédico apareceu na porta.
– Todos estão bem aqui?
O agente Tucker segurou Tessa pelos ombros.
– Vou levá-la comigo.
– A equipe do Centro de Controle de Doenças está a caminho – anunciou Ralph. Ele havia deixado Marcie com a equipe do sr. Williamson.
– Ótimo – resmunguei. Eu estava indo na direção do corpo de Kincaid. Ralph apontou para Marcie.
– Eles acham que vão conseguir controlar essa coisa com a ajuda dela. Tratá-la. – Ele olhou para a cena horripilante ao nosso redor. Os corpos do grupo de Kincaid
estavam espalhados pelo pátio. Só o grandalhão e Marcie tinham sobrevivido. – Com um pouco de sorte, ninguém mais vai morrer hoje.
Eu ouvia a voz dele, mas fracamente. Estava sumindo na distância do espaço e do tempo. Não podia ser realmente o que eu achava que era na mão dele. Não podia ser.
Mostrando o tabuleiro... ele está nos mostrando o tabuleiro...
Eu cheguei ao corpo de Kincaid.
O paramédico parecia confuso.
– Os caras lá fora pediram que eu viesse dar uma olhada nela.
O agente Tucker ficou de pé. Frente a frente com o paramédico.
– Vem cá um momento – ele disse.
E então Tessa o viu levar o paramédico para o corredor e sumir de vista.
Brent Tucker está com Tessa...
Eu me ajoelhei, notei uma cicatriz irregular na parte interior do pulso de Kincaid, provavelmente de uma antiga tentativa de suicídio.
Ele atirou no pescoço do homem, mas não o matou... se certificou de que não o mataria... ele sabia onde atirar...
Eu peguei a mão fechada de Kincaid. Meu coração estava gritando. Não, não, não! Meus dedos começaram a tremer.
Ele mexe no tabuleiro, toca uma peça e então a come.
Tessa ouviu um gemido abafado e um leve baque.
Eu abri os dedos de Kincaid.
Vi o objeto.
O colar de Tessa.
– Agente Tucker? – Tessa gritou.
Eu me virei, gritei para Margaret.
– Ligue para Tucker! Já!
Tessa se esticou para tentar enxergar lá fora.
– O senhor está bem, agente Tucker? – Seu coração começou a pular dentro do peito.
Uma voz dentro dela mandou que ela se levantasse. Que saísse. Algo estava errado. Ela tentou ficar de pé, mas ainda estava zonza com o choque. Suas pernas tremiam.
– Agente Tucker?
Margaret tocou no meu cotovelo para me acalmar.
– Não se preocupe, Pat, Tessa está be...
– Eu sei quem ele é! – gritei.
– Olá, Tessa – disse o assassino, o Ilusionista, o garoto que se deitara abraçando o cadáver da mãe, o homem que se sentia em casa no escuro. Ele apareceu na porta,
segurando uma lâmina pingando sangue, e agarrou Tessa, pondo um pano sobre sua boca, rapidamente, tão rapidamente que sufocou o grito dela e a mergulhou num terrível,
terrível sono. Terrível e sombrio.
Mas antes que as sombras se fechassem ao seu redor, ela viu uma última coisa – uma última coisa terrível – um homem tentando se arrastar para dentro, tentando chegar
até ela. Ajudá-la. Em vão. Caindo. Desabando no tapete, com a garganta cortada.
Um homem.
Um homem morto.
O agente especial Brent Tucker.
83
– Não se preocupe, Pat – Margaret disse. – Ela está bem. Os paramédicos estão cuidando dela. – Mas suas palavras mal eram audíveis, flutuando em algum lugar ao meu
lado. Não significavam nada. Porque eu tinha o colar de Tessa na minha mão e nada mais importava.
Ele deixa um objeto da próxima vítima. Minha filha é a próxima.
– Telefone! – gritei, enfiando o colar no bolso. – Me dá um telefone! – Lien-hua me deu o dela. Digitei o número do celular de Tessa. Por favor, atenda. Por favor,
por favor. Tudo girava ao meu redor; eu estava prestes a desabar, zonzo com as drogas.
Estava chamando. Alguém atendeu.
– Olá, Patrick. – Reconheci aquela voz: era o paramédico que cuidara do meu ombro. O paramédico que esperara pacientemente que terminássemos de examinar o corpo
de Mindy, o mesmo que levara a policial ferida para a ambulância na frente da casa de Alice noite passada. Mas ninguém o notara porque era de se esperar que ele
estivesse ali. Porque os paramédicos sempre devem estar no local. Mesmo em Charlotte, em outra cidade, ele podia se misturar e desaparecer no caos que se seguira
ao tiroteio na garagem simplesmente usando seu uniforme. Era o disfarce perfeito porque não era disfarce coisa nenhuma. Ele se tornara invisível usando o mais astuto
dos truques – se encaixando.
Se escondendo no meu ouvido.
– Xeque-mate – ele disse.
Zonzo... zonzo... cambaleando... entreguei o celular para Lien-hua e murmurei:
– GPS... – O mundo estava se fechando. – Rastreie o celular dela pelo GPS... É o param... – comecei a dizer, mas antes que pudesse dizer a eles quem era o Ilusionista,
tudo ficou preto.
84
Tessa abriu os olhos. Ela não fazia ideia de quanto tempo estivera inconsciente.
Algo estava enfiado em sua boca. Algum tipo de mordaça. Dava vontade de vomitar, mas ela tinha medo que, se vomitasse, sufocaria com o vômito e morreria, como aconteceu
com aquele garoto da escola ano passado, naquela festa em que ele ficou tão bêbado que desmaiou e nunca mais acordou.
Nunca mais acordou.
Calma, Tessa. Calma.
Nunca mais acordou.
Calma.
Ela estava deitada de lado. Com as mãos atrás das costas, atadas juntas. Com fita adesiva, aparentemente. Quando ela tentou mexer as pernas, não conseguiu. Seus
tornozelos também estavam amarrados apertados. Pelo menos ela ainda estava vestida – graças a Deus.
Sua mente estava atordoada, confusa. Ela olhou ao redor.
Onde estava?
Numa ambulância. Estava na parte de trás de uma ambulância que rodava por uma estrada cheia de curvas, para as montanhas.
Zonza. Zonza. Ela piscou, tentando se concentrar.
Voltou a perder os sentidos.
Eu acordei, olhei ao meu redor. Vários rostos estavam em volta.
– O cara descartou o celular – alguém disse.
– O paramédico – consegui dizer.
– Ele acordou! – O rosto de Ralph apareceu. – Você tá bem?
Balancei a cabeça fracamente.
– É o paramédico. – Tentei falar, quase não saiu som nenhum. – O
Ilusionista. É ele.
– Alertem todas as viaturas sobre a ambulância! – Ralph gritou. Vi Margaret fazendo a ligação.
– Se é um paramédico, onde está o parceiro dele? – perguntou Lien-hua.
Eu sabia a resposta desde a minha época de guia florestal, e queria dizer a ela que, em regiões montanhosas isoladas, equipes de emergência e paramédicos levam suas
ambulâncias para casa, assim, quando recebem um chamado, não precisam dirigir até a cidade primeiro e podem atender mais rápido. E nem sempre chegam ao local acompanhados
dos parceiros. Eu queria explicar tudo isso, tentei, mas vozes e visões sussurravam para mim, borravam meus pensamentos, distorciam a realidade ao meu redor.
Que tipo de droga era aquela?
– Cadê aquele médico! – gritou Ralph. Então ele olhou para mim. – Foi boa ideia rastrear o celular dela, mas ele jogou fora.
– Onde? – consegui dizer. – Jogou onde?
– West, 240.
Local e hora...
– Há quanto tempo?
Local e hora...
– Faz uns dois minutos.
Como era o nome daquele paramédico? Tentei pensar, tentei me lembrar.
Ele não me disse seu nome. Só falou que poderia ficar uma cicatriz.
– Descubram quem foi enviado para o esconderijo depois que ligaram pro 911 – eu disse.
– Pode deixar – disse Ralph.
– Provavelmente, ele vai trocar de veículo, Ralph. – Eu estava tão fraco. – Não podemos persegui-lo... precisamos chegar na frente dele... – Fraco e com náuseas.
Isso devia estar aparente.
– Precisamos levar você pro hospital – disse Lien-hua.
Bati no meu rosto para despertar. Alguns dos meus pensamentos estavam se alinhando de novo, mas nem todos.
– Não antes de encontrar minha filha – eu disse. – Traz o meu computador. Ficou na sala da segurança.
– Pat... – ela disse.
– Por favor – implorei. – Por favor. Depressa.
Ela saiu para pegá-lo.
– O nome dele é Sevren Adkins – Ralph anunciou. Ele perguntou onde Sevren morava e anotou o endereço. – Mas não podemos rastrear a viatura. É um modelo antigo. Não
tem GPS. – Então ele disse alguma coisa ao telefone e se virou para mim. – Estou falando com o serviço de emergência de Asheville, Pat. Tem mais alguma coisa que
você precisa saber?
– Ele faz parte da equipe de resgate em altitude?
Ele perguntou.
– Sim! – gritou.
Isso explica o uso da caverna.
– Descubra se ele trabalhou em Spartanburg, se foi ele quem atendeu à denúncia de violência doméstica da namorada de Grolin. Quero saber desde quando ele está fazendo
esse jogo.
Um minuto depois, Lien-hua voltou com meu computador. Ativei o F.A.L.C.O.N.
– Hora do pau – eu disse. Digitei o endereço que Ralph me dera. A imagem entrou em foco, se aproximou.
Mostrou nuvens.
Inútil.
Ainda não descobrimos um jeito de enxergar através das nuvens.
Tessa estava sonhando, sonhando, sonhando. O mundo era um borrão. Um sonho embebido em sangue. Ela lembrou que discutiu com Patrick... o colar... a mochila dela...
viu a policial levando um tiro... o agente Tucker tentando ajudá-la... o paramédico.
E então tudo foi engolido pelas nuvens.
Ela agitou a cabeça para clarear as ideias. Sua mente estava cheia de visões de nuvens fofas flutuando, formando fadas e unicórnios e dragões com dentes finos e
cristalinos, e ela podia ouvir a risada de sua mãe de algum lugar próximo, e então estava voltando para casa do funeral da mãe e via sua imagem refletida no espelho
do banheiro, onde ela estava apertando uma navalha no braço e o sangue pingava, caindo, se espalhando pelo seu braço e pelo corredor e sobre uma esteira e por todo
o tapete, e então ele saía do pescoço do agente Tucker, formando desenhos no chão, nuvens no tapete, colorindo o mundo de vermelho com lágrimas escarlates.
Chuva sangrenta.
Calma, Tessa. Calma.
Um terror silencioso e profundo se espalhou sobre ela, caiu sobre ela. Ela estava amarrada. Estava com um assassino. Ela ia morrer.
Estava com medo de fazer qualquer som, temia o que ele faria se descobrisse que ela estava acordada, mas mesmo sem querer, soltou um gemido abafado. O homem que
dirigia a ambulância se virou e sorriu.
– Tessa – ele disse. – Que bom que você voltou.
Ah, então ela estava acordada. Que bom.
Era mais divertido quando elas acordavam antes e tinham mais tempo para contemplar o que iria lhes acontecer.
Ele ouviu um celular tocando.
Quê? Ele já tinha jogado fora o celular da garota. De quem era aquele celular?
Mais um toque.
Ele não verificara os dois bolsos dela, só um. Ela estava com outro celular.
– Sevren morava em Spartanburg – anunciou Ralph, desligando o telefone.
Tentei juntar tudo: ele armara para incriminar Grolin desde o princípio. Era o peãozinho perfeito para Sevren, escrevendo sobre locais na revista MountainQuest onde
Sevren depois podia deixar cadáveres para que nenhuma pista apontasse para ele. E como paramédico, Sevren teria conhecido Vanessa trabalhando no hospital, e poderia
tê-la convencido a ir para o campo de golfe.
Ele está nos mostrando o tabuleiro.
Pensei na teoria da longitude e latitude de Tucker e abri o perfil geográfico e o jogo de xadrez do computador, capturei a imagem do tabuleiro, sobrepus ao perfil
geográfico, ajustei para o tamanho certo. Locais dos raptos, dos crimes. Acrescentei o campo de golfe. O esconderijo do FBI.
Padrões... padrões... padrões...
Eu precisava encontrá-lo. Precisava prever aonde ele iria.
Você não prevê o futuro, Pat. Não consegue fazer isso.
Mas eu precisava.
Sevren parou a ambulância no acostamento. Ainda não haviam chegado ao destino, faltava pouco para que ele pudesse trocar de veículo, mas precisava se livrar daquele
celular. Ele passou para a parte de trás, onde estava a garota.
Tirou o celular do bolso dela, saiu da ambulância e o jogou no despenhadeiro, através da neve úmida que começara a cair nas montanhas. Então voltou para perto dela.
Sim.
Talvez pudesse se divertir um pouco com Tessa, agora que ela estava acordada. Por que não? Fizera por merecer. Olhou para ela se contorcendo por alguns momentos
e então retirou a mordaça.
85
– Pegamos o cara – anunciou Ralph.
– Quê? – eu disse.
– O xerife Wallace acaba de ligar. Patrulheiros estaduais estão na casa dele. Deve ter trocado de veículo, como você disse; a van dele está estacionada na frente
da casa. Eles vão invadir.
– Não! – gritei. – Mande ficarem onde estão. Você se lembra da bomba na casa de Grolin? Se arrombarem a porta, a casa pode explodir. Ele pode estar com Tessa lá
dentro. Seria o final perfeito pro jogo dele. Não podem invadir!
Assim que o paramédico tirou a mordaça, Tessa cuspiu na cara dele. Por um momento, ele pareceu disposto a esbofeteá-la, mas então apenas sorriu e enxugou a saliva.
– Tessa, sabe quem foi Boécio?
Calma. Tessa, calma.
Ganhar dele na esperteza. Era isso que ela precisava fazer. Ganhar tempo. Até conseguir se libertar.
Ela balançou a cabeça.
– Claro. – Tentou soltar as mãos, não conseguiu, mas sentiu algo no bolso de trás do jeans. O que era aquilo?
Sua navalha.
Seus olhos se estreitaram.
– Então diga.
Boécio... Boécio... o nome parecia latino... masculino.
– Um romano – ela disse. – É aquele romano famoso. – Ele só podia ser famoso, afinal, senão o assassino nem se daria ao trabalho de perguntar.
– Sim – ele disse, desconfiado. – E sobre o que ele escrevia?
Ela puxou a navalha e começou a cortar a fita dos pulsos, enquanto tentava adivinhar quem diabos esse tal de Boécio podia ser.
Ralph cancelou a invasão.
– O que você quer que a gente faça, então?
– Espere um momento. – Eu ainda estava grogue.
A cápsula. Você engoliu metade daquela cápsula.
Eu não fazia ideia de que tipo de droga ela continha. Mas era forte. Olhei para os corpos dos membros do culto espalhados ao meu redor.
– Me dá uma injeção de adrenalina – eu disse à médica que finalmente atendera o pedido de socorro de Ralph.
– Precisamos levar você pro hospital – ela disse.
– Ainda não – eu disse, jogando água do chafariz no meu rosto. – Preciso encontrar minha filha.
Ralph se aproximou.
– Faça o que ele pediu, doutora – trovejou. – Agora.
Relutante, a médica me deu a injeção. Olhei para a tela do meu computador.
– Peça que me esperem – eu disse a Ralph baixinho. – Diga que estou a caminho, mas que não devem fazer nada até eu chegar.
– Mas ninguém pode sair do hotel...
Mostrei o colar e falei num sussurro urgente.
– Ralph, ele está com Tessa.
– Você foi exposto à doença.
– Marcie vai nos ajudar, você mesmo disse.
– Pat...
– Ralph, ele vai torturá-la e depois matá-la. Preciso impedir. Você sabe disso. Eu vou pra lá.
Seu rosto se enrugou, depois ficou parecido com aço.
– Sim – ele disse finalmente. – Tudo bem. Pode ir. Vou pedir que esperem por você.
Enfiei o colar no bolso e fui para a cozinha do hotel, imaginando que haveria um portão para entregas que eu pudesse usar e não estivesse muito vigiado. Afinal,
a maioria dos seguranças estava ocupada controlando os hóspedes em pânico. Por sorte, só encontrei um segurança no caminho.
– Sinto muito – ele disse –, o senhor foi contaminado. Não posso deixar que saia... – Meu punho encontrou o queixo dele. Ele desabou.
– Nada pessoal – disse, passando por ele. – Mas minha filha está em perigo.
Abri a porta e corri sob a neve até meu carro.
Tessa pensou e pensou muito.
O cara falou que esse Boécio era escritor. Então ele escrevia sobre o quê?... Sobre o que um romano ia escrever? As guerras? Ele era historiador? Filósofo? Dramaturgo?
Só podia ser uma dessas quatro coisas, não tinha tanta escolha assim pra uma porcaria dum autor romano.
Então ela notou um bracelete no pulso do sujeito. Tinha uma palavra gravada: “Sophia”.
Sophia significa sabedoria... Um filósofo, talvez?... Boécio era um filósofo romano?
Suas mãos estavam quase livres. Quase.
– Sabedoria – ela disse. – Ele escrevia sobre a sabedoria.
Ele acariciou delicadamente a nuca da garota.
– Estou impressionado.
Então seus dedos agarraram o cabelo dela. Tessa gritou. Ele puxou a cabeça dela para trás pelo cabelo, expondo sua garganta. Sua voz penetrou--lhe os ouvidos.
– E qual é o segredo da verdadeira sabedoria, Tessa?
Oh, não. Agora ele pegou você. O segredo da verdadeira sabedoria? Tessa não fazia ideia.
O segredo da verdadeira sabedoria...
Ela tentou falar, não conseguiu. Ele afrouxou um pouco a presa.
Fala alguma coisa. Chuta!
– Amor – ela murmurou. – O segredo é o amor.
– Quase isso – ele disse. – A resposta é dor.
Sevren curvou os lábios num sorriso macabro e disse à garota:
– Claro que vamos nos aprofundar nessa lição quando chegarmos em casa. – Então ele voltou para a cabine da ambulância e pegou a estrada para levá-la até sua oficina.
Pronto. Suas mãos estavam livres.
Agora, as pernas.
Quase no mesmo instante em que saí do estacionamento, me dei conta de que Sevren não iria voltar para casa. Claro que não; seria previsível, óbvio demais. Ele sempre
tentava se manter um passo à frente.
Então ele tinha outro lugar para levar as mulheres. Mas onde?
Pensei no perfil geográfico, no tabuleiro de xadrez. Eu ainda estava deixando escapar alguma coisa...
O ritmo e a cronologia dos crimes... o padrão de distribuição das ações criminosas... a infraestrutura rodoviária... as relações tempo/benefício... itinerários ideais
de viagem. Asheville é oval, rodeada pelas Interstates 26 e 40... cadáveres em três estados...
As peças estavam espalhadas por todo o tabuleiro... Não havia nenhum padrão! Nenhum... os locais estavam espalhados para todo lado...
Exceto num lugar.
Nada acontecia naquele lugar.
Exatamente.
A resposta não era onde as peças estavam colocadas – era onde não estavam. Todos os locais, todas as peças de xadrez estavam amontoadas ao redor de um local onde
nada acontecia. Nenhum homicídio. Nenhum rapto. Nenhuma desova. Todo o resto orbitava ao redor desse vácuo, desse abismo no mapa. Ele tentara ocultar seus rastros,
mas acabara deixando o maior rastro de todos. Esforçando-se tanto para evitar seu ponto-âncora, ele me mostrara exatamente onde ficava.
O Pico Warrior.
Virei o carro e peguei o caminho das montanhas.
Quando Tessa conseguiu soltar suas pernas, já tinha tomado uma decisão. De jeito nenhum deixaria que ele a levasse para a casa dele. Só podia imaginar o que ele
faria com ela lá. Ela rastejou para as portas traseiras e tentou abri-las, mas estavam trancadas por fora. Jogou o corpo contra elas. Nada.
Não, ela precisava sair. Precisava. Mesmo se fosse para morrer num acidente de carro, não podia deixar que ele a levasse para sua casa.
Tessa correu os olhos pelo fundo da ambulância. Viu um dos enormes kits de primeiros socorros. Abriu a caixa, tirou uma tesoura afiada como uma navalha e foi para
a frente da ambulância.
A neve gelada castigava o para-brisa enquanto eu subia pela estrada tortuosa para o Pico Warrior. Todos os patrulheiros estaduais estavam procurando no lugar errado,
mas não tinha como avisá-los. Estava sem celular e sem rádio no carro. Talvez pudessem rastrear o microfone adesivo que eu ainda estava usando. Não tinha certeza
do alcance dele. Só podia torcer.
Por mais que eu quisesse voar montanha acima, precisava tomar cuidado. A visibilidade era baixa e a estrada estava salpicada de poças de gelo enegrecido. Por duas
vezes os pneus perderam aderência com o asfalto e eu quase derrapei para o despenhadeiro.
Então vi a ambulância uns quatrocentos metros à minha frente, mas ela estava andando em ziguezague, como se o motorista tivesse perdido o controle.
O que está acontecendo?
Acelerei.
O efeito da adrenalina diminuíra. Eu estava enjoado de novo, sonolento. Minha visão ficou embaçada. Não podia confiar nos meus sentidos. Precisava chegar até ela
logo.
Eu estava apenas a uns duzentos metros deles quando aconteceu.
A ambulância virou para o lado, derrapou pela estrada gelada, bateu no guard-rail e desapareceu da borda do penhasco.
Não, não podia ter acontecido. Não podia ser real. Eu estava vendo coisas. Tendo alucinações.
Afundei o pé no acelerador, cortando a neve, atravessando um sonho, uma nova realidade que eu estava tentando construir ao meu redor, e quando cheguei ao lugar de
onde eles tinham caído, estava quase convencido de que aquilo não acontecera, de que eu só estava vendo coisas.
Quase.
Mas quando saltei do carro e cambaleei para a beira do precipício, vi que era real, no fim das contas.
Faróis apontavam para mim três metros abaixo. Minha filha e o assassino estavam presos numa rocha.
– Tessa! – Não consegui eliminar o terror da minha voz. – Você está bem?
A voz de Sevren chegou até mim, como veneno, escurecendo o dia.
– Patrick, é você? Eu deveria ter imaginado que acharia... – Mas antes que ele conseguisse terminar a frase, a ambulância virou sobre o rochedo e caiu no coração
do desfiladeiro, levando os gritos da minha filha.
86
– Não! – uivei.
Fiquei esperando o barulho perturbador do metal batendo na rocha, ou o rugido agudo do veículo rolando penhasco abaixo, mas não ouvi nada.
Me debrucei para a frente, mas não consegui ver muita coisa. Desci alguns metros pelo penhasco, me esgueirei até a ponta de uma rocha, segurando raízes salientes,
me curvei e então consegui vê-los. A ambulância estava presa nos galhos de um enorme pinheiro que se projetava da parede do penhasco, vinte metros abaixo. Abaixo
da árvore, o despenhadeiro continuava por cem metros até o vale escavado pelas lágrimas de uma garota Cherokee desesperada.
– Tessa!
– Patrick! – ela exclamou. – Me ajuda, Patrick!
Algo poderoso e profundo se agitou dentro de mim. Algo brilhante, louco e certo. Nada mais importa. Você precisa salvá-la.
– Jogue uma corda – gritou o Ilusionista.
– Ele está ferido, Patrick. Na perna!
– Cala a boca! – E então um som de tapa e um choro fraco.
– Não encoste nela! – O fogo aumentou dentro de mim. A fera da raiva rugiu, se soltou, enlouqueceu.
Embora a neve tivesse diminuído um pouco, eu não podia descer pelo penhasco para ajudá-la – era íngreme e gelado demais para uma escalada sem equipamento. Não havia
tempo para ir buscar ajuda de carro.
– Jogue uma corda – Sevren gritou. – Você está com seu equipamento no carro. Eu vi, quando você estava na casa de Abrams.
Tentei pensar. Tudo estava ficando embaçado de novo.
– Ela sobe primeiro – gritei.
Uma risada, macabra e perversa.
– Eu vou primeiro, ou vou começar a brincar com ela enquanto espero. – Pensei no que ele fizera com as outras mulheres antes de matá--las. – Tenho uma faca – ele
disse. – Sou bom com uma faca.
– Me ajuda!
– Tudo bem! – Subi pelo rochedo de novo. – Não toque nela. Vou pegar uma corda!
Corri até o carro e peguei meu equipamento de escalada. A voz dele me alcançou. Estava mais calma agora, cheia de desejos sombrios. Eu o imaginei olhando para Tessa
enquanto falava:
– Depressa, Patrick. Eu não sou muito paciente.
Um rio de emoções me atravessava. Raiva. Medo. Amor. Ódio. Eu não fazia ideia de quem iria ganhar. Em algum lugar atrás de mim, ouvi a árvore rangendo, um galho
se partindo e caindo no despenhadeiro.
Depressa!
Saquei minha arma e a deixei no capô do carro, tirei o coldre, peguei fitas e examinei a área, procurando algum lugar para amarrar. Algo que servisse de âncora.
Qualquer coisa. Não havia árvores por perto. Eu precisava me apressar.
A única coisa disponível era o guard-rail, mas um longo trecho dele estava amassado pelo impacto com a ambulância. Não havia escolha. Amarrei as fitas numa parte
da barreira que ainda parecia intacta, passei um mosquetão no meio delas e prendi a corda nele. Não era ideal, mas aguentaria nosso peso. Pelo menos eu esperava
que aguentasse. Não havia tempo para duvidar. Só para confiar.
Tirei a mochila com minha outra corda e o resto do equipamento do caminho, e em seguida prendi alguns prussiks e ascensores nas argolas do meu arreio.
– Anda logo! – Sevren gritou. – Senão vou começar a dar umas aulas pra ela. Jogue uma corda e alguns ascensores.
Eu não iria recuar. Tessa era o único motivo de eu querer ajudá-lo, e ele sabia. Se a matasse, nada mais me motivaria.
– Vou descer pra buscá-la, Sevren. Ou você não ganha nada.
Um curto silêncio, e então um grito de gelar o sangue, que cortou o ar até me alcançar.
– Patrick! – Era um grito de dor aguda e terror definitivo.
– Acabei de cortá-la, Patrick. Cortei bem. A artéria braquial, na parte de dentro do braço. Oh, parece fundo. Está jorrando sangue. Pelo meu treinamento médico,
eu diria que ela tem uns quatro minutos antes de morrer de hemorragia. Sou muito bom em calcular o tempo até a morte. Confie em mim.
Meu Deus do céu, por favor. Não, não, não.
Lágrimas de fúria cegante embaçavam minha visão.
– Aperte o ferimento com a mão, Tessa – gritei. – Escute! Você precisa parar o sangramento!
Depressa, depressa, não há tempo.
Não há tempo.
Peguei mais dois arreios e prendi no meu. Então corri para a beira do penhasco e me joguei para longe do rochedo, dentro do despenhadeiro. A corda correu na minha
mão de freio. Eu estava a ponto de perder o controle e descer em queda livre para o vale quando consegui me segurar e controlar a descida. Encostei os pés na parede
rochosa, pulei por cima de uma pedra mais saliente, e mergulhei de cabeça na direção da ambulância.
– Tessa, estou chegando. Mantenha a mão sobre o corte!
87
Um momento depois, cheguei à ambulância e travei a corda, para poder ficar parado no lugar. Pisei cuidadosamente no capô, tentando usar meu peso para estabilizar
o veículo. Ele estava inclinado, mas ainda horizontal o suficiente para que eu ficasse de pé no capô. Só então me dei conta de que tinha deixado minha arma sobre
o carro, no alto do penhasco.
O para-brisa olhava para mim como um olho gigante e estilhaçado. Uma teia de aranha de rachaduras o cobria, emanando do lugar no lado do motorista onde a cabeça
de Sevren batera. Ele me encarava através do vidro como uma cobra de olho num rato do outro lado de um aquário. Uma faixa de sangue escorria da sua testa, fazendo
seu rosto parecer selvagem, primal. Ao lado dele vi Tessa, pálida, chorando baixinho, seu braço esquerdo empapado de sangue. Sua mão direita comprimindo o ferimento.
– Então, me dá um arreio – disse Sevren.
– Vou levá-la pra cima.
– Certo, vamos discutir, então. – Ele olhou para o relógio e depois para o braço de Tessa. – Daqui a alguns minutos não vai fazer mesmo diferença, vai?
A raiva fervendo. Fervendo. Tessa gemia baixinho.
– Tudo bem. Tudo bem.
Eu o amaldiçoei mentalmente, mas não falei nada por medo que ele machucasse mais Tessa. Desci na direção da porta do motorista. O impacto da queda a abrira e ela
estava dependurada pelas dobradiças quebradas. Entreguei um arreio para ele, que começou a enfiá-lo. Seu rosto se contorcia de dor enquanto o fazia. Tessa disse
que a perna dele está ferida. Vi uma tesoura ensanguentada no chão da cabine e uma mancha vermelha se espalhando na perna da calça dele.
Bom trabalho, Tessa.
Ela estava apertando o braço, parando o fluxo de sangue.
– Aguente firme – disse a ela. – Vai dar tudo certo. – Ela fez que sim. Parecia tão frágil. Tão destruída. – Eu te amo – eu disse. – Eu te amo, Tessa Ellis.
Ele se prendeu à corda.
– Muito bem. Me dê os ascensores.
Eu dei.
Pense, Pat. Pense!
Naquele momento, ambos estávamos presos à corda, mas eu estava acima dele, me equilibrando no capô, travando a corda com minha mão direita. Ele não conseguiria subir
enquanto eu não saísse do caminho.
– Agora – ele murmurou, e parecia estar mais fraco pelo esforço de mexer a perna. – Saia do caminho e se solte da corda.
Vamos, Pat. Pense. Faça alguma coisa.
Então ele acrescentou:
– Jogue esse outro arreio fora, senão vou fazer um pouco de hora aqui.
– Precisa me deixar levá-la...
Tessa gemeu e se encostou na porta.
– Você vai matá-la – ele disse em voz baixa. – Agora não vai demorar muito.
Joguei o outro arreio no despenhadeiro. Agora eu não tinha como levar Tessa para cima pela corda. Eu não tinha ideia do que fazer; ela estava morrendo de hemorragia
ao meu lado, mas eu estava impotente para ajudá-la.
Sentei no capô e me soltei da corda. A tempestade aumentara novamente, e o metal estava escorregadio com a neve. Eu a olhava através do para-brisa quebrado, a poucos
centímetros da minha filha, vendo-a morrer. Ouvi um choro baixinho e ela disse:
– Eu também amo você, Patrick. – Então seus olhos viraram. Ela perdeu os sentidos.
– Não!
Sevren riu enquanto saía da cabine.
– Parece que o senhor demorou demais de novo, dr. Bowers.
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– Vou atrás de você – eu disse a ele. – Aonde quer que você vá, vou te encontrar. – Eu estava ficando zonzo de novo. O mundo estava girando. Os sons estavam se sobrepondo
às cores. As drogas. Oh, não. Não agora. O aroma de mil flocos de neve me inundava. Se apenas eu não tivesse esquecido a arma no carro.
– Pois bem, então. – Um sorriso deslizou pelo seu rosto. – Uma revanche.
Ele prendeu um dos ascensores na corda. A náusea tomou conta de mim.
– Acho que vou visitar a agente Jiang hoje à noite... – ele disse.
Tudo era um borrão. Você não pode deixar que ele suba.
– Tenho algumas lições que quero passar para ela.
Faça-o chegar mais perto.
Murmurei para ele.
Ele parou.
– Quê? – disse.
Ele adora controlar os outros. Lien-hua disse que ele precisa estar no controle.
Repeti, baixinho, muito baixinho. Então sorri, depois ri na cara dele. Ele se curvou na minha direção.
– O que você disse?
Eu estava lutando para respirar. Me senti escorregando para a borda do capô. Para a borda do mundo. Estiquei a mão para trás procurando algo onde me segurar. Nada.
Mas em vez de pensar que eu ia morrer, só conseguia pensar que eu falhara com Tessa. Que eu falhara com Christie.
A perna dele está ferida.
Meus dedos encontraram o contorno irregular do para-brisa e eu os dobrei ao redor da fina borda de metal, invocando cada barra que eu fizera na vida com as pontas
dos dedos.
Murmurei de novo. Ele se aproximou, sarcástico.
– Você é patético. Implorando feito um bebê. Eu esperava mais de você. Adeus, Patrick Bowers.
Sim, ele estava próximo o suficiente. Desta vez, eu não murmurei:
– Xeque-mate! – Com um só movimento, girei o corpo na direção dele, virando a perna e enfiando minha bota com toda a força em sua perna ferida. Seu grito foi brilhante,
ensurdecedor e muito agradável. Foi um pontapé ótimo, forte, de quebrar ossos, do qual até Lien-hua se orgulharia. Eu o pegara com a mão de freio relaxada na corda,
e ele cambaleou para trás, oscilou na borda do capô por um momento, e então se precipitou para o vale. Ouvi a corda correndo pelo oito dele e esperei ouvi-lo se
soltar da ponta da corda e mergulhar para a morte, mas de alguma forma ele conseguiu parar a corda, queimando as mãos.
– Bowers! – ele gritou. Sua voz estava cheia de ódio. Mal parecia um ser humano falando. – Você é meu!
Ele vai voltar em um minuto.
Você precisa salvar Tessa agora.
89
Agarrei a borda do para-brisa, com os pés para fora do capô. Meu ombro estava explodindo de dor, mas de alguma maneira consegui me puxar para cima. Ao fazer isso,
o ferimento do meu ombro rasgou e a dor disparou pelo meu pescoço, tomando conta da minha cabeça. Senti o sangue quente escorrendo do corte, encharcando as costas
da minha camisa. Tentei ignorar a explosão de dor, mas quase desmaiei.
A ambulância estava escorregando, tudo estava escorregando. Eu precisava de um lugar para me amarrar, rápido, antes que caíssemos. Apalpei a parede gelada de pedra
ao meu lado. Estava cheia de fendas e rachaduras. Eu precisava enfiar algo numa delas. Qualquer coisa que aguentasse meu peso.
E eu só tinha uma coisa comigo. Minha lanterna.
Peguei-a e bati nela com um dos mosquetões, martelando seu corpo de alumínio de alta resistência feito em retífica de precisão numa fenda estreita.
Usando um dos prussiks, passei um laço em volta dela. Prendi meu arreio no prussik e bati no para-brisa com a mão. Eu precisava acordá-la.
– Tessa! – Bati de novo. Nada. – Por favor! Acorda!
Cheguei mais perto, vi o peito dela subindo e descendo. Subindo e descendo. Ainda estava viva, graças a Deus. A ambulância balançou debaixo de mim. Lá embaixo, eu
podia ouvir Sevren, louco de raiva, gritando meu nome, subindo pela corda, deslizando e prendendo os ascensores. Deslizando e prendendo. Subindo pela corda. Deslizando
e prendendo. Chegando mais perto a cada segundo.
Tessa! Você precisa acordar!
Enfiei a mão pela janela aberta e segurei o ombro dela. Sacudi.
– Tessa!
Seus olhos se abriram por um momento, depois se fecharam.
– Acorda!
Tirei meu cinto e, o mais delicadamente possível, passei-o em volta do braço dela, acima da artéria cortada, apertando-o com força. Um torniquete rudimentar. Talvez
ela perdesse o braço, mas pelo menos o torniquete a manteria viva.
Então murmurei uma prece para o Deus que eu nem sabia se estava me ouvindo. Implorei que os céus ouvissem um sujeito que não tinha o direito de esperar nenhum favor
divino. Por favor. Por favor, ela não merece morrer. Você levou Christie, não a leve também. Por favor, deixe-a viver. Não me importa o que vai acontecer comigo,
apenas a deixe viver.
Eu a sacudi. Eu a amava.
– Tessa!
A neve caía ao nosso redor. Ela piscou e olhou para cima, confusa. Por trás dela, vi as portas traseiras da ambulância se abrindo.
Sevren.
O conteúdo amontoado da ambulância se derramou ao redor dele. Ele apoiou a perna sã no para-choque. Os lábios de Tessa formaram palavras fracas, quase inaudíveis:
– Me ajuda.
Pus a mão sob a axila direita dela. Ao fazer isso, notei que a corda caíra por cima da ambulância e estava agora presa na fresta das portas traseiras abertas. Sevren
estava em cima do para-choque, empurrando-o com a perna. A ambulância começou a balançar.
– Para com isso – gritei para ele. – A corda. Está presa!
Tessa olhou para seu braço que sangrava.
– Meu braço – murmurou. Sua voz era baixa, frágil, de criança. Ela é uma garotinha e eu sou seu pai.
Sevren pulou sobre o para-choque de novo, e a ambulância balançou uma última vez. Agarrei o braço são de Tessa. Nunca vou soltá-la... nunca vou soltá-la...
Estávamos em movimento, em movimento. Escorreguei até a ponta do prussik. Minha âncora aguentou. Minha fiel lanterna.
Segurei mais firme e Tessa deslizou pela janela aberta enquanto a ambulância a cuspia e se afastava de nós, na direção do despenhadeiro. Ao fazer isso, colidiu com
o corpo de Sevren Adkins, alojando-o na fenda entre as portas. Prendendo-o. Esmagando-o. Seus gritos lancinantes me revelaram o quanto seu corpo estava preso ali.
Todo o peso do veículo o estava esmigalhando.
Tessa e eu balançávamos no ar.
– Patrick! – Ela estava suspensa no nada, e eu a estava segurando.
– Estou segurando você, Tessa – gritei. – Não vou te soltar. Prometo! Mas a ambulância ainda estava se mexendo.
Como? A corda amarrada no guard-rail deveria segurá-la.
Oh. O guard-rail.
– Encoste no penhasco! – gritei. Puxei Tessa para os meus braços e a abracei, no exato momento em que o pedaço de metal retorcido que já fora um guard-rail passou
por nós a caminho do fundo do despenhadeiro. Um grito longo e agudo atravessou o vale. O urro de Sevren pareceu manchar o dia, uma cicatriz escura, mais negra que
a meia-noite, nos alcançando de sua descida ao inferno. Durou mais do que eu achei que duraria e terminou com um barulho revoltante, quando a ambulância prensou
o corpo dele contra os rochedos no pé do penhasco.
Abracei Tessa mais forte.
– Está tudo bem agora. Ele se foi. Você está a salvo. – E naquele momento, não senti raiva nem medo. De alguma forma, em algum lugar, eu havia encontrado um fragmento
de esperança ao qual podia me agarrar, enterrado nos montes de raiva. Uma nova âncora.
O caos é a prova dos seres humanos.
A esperança é a prova de Deus.
Bem acima de mim, ouvi a inconfundível voz mal-humorada de Ralph.
– Pat!
Eles nos encontraram. O microfone adesivo!
– Tessa está ferida – gritei. – Depressa!
Ouvi o tilintar dos mosquetões, alguém pegando o resto do meu equipamento de escalada e se preparando para jogar outra corda. Eu estava começando a ficar zonzo de
novo.
– Aguente firme – falei. Ela se agarrou em mim e eu peguei meu último prussik e o usei para fazer um arreio de emergência ao redor da cintura dela, prendendo-o à
âncora.
– Patrick? – ela murmurou.
– Sim?
– Onde você aprendeu tanto sobre escalada?
– Uma coisa chamada experiência.
– Ah, sim – ela disse, com um sorriso fraco. – Já ouvi falar.
– Agora – murmurei – preciso dizer adeus.
– Adeus? Por quê?
– Acho que vou desmaiar.
– Mesmo?
E antes que eu pudesse responder, desmaiei.
90
22 horas depois
Ouvi vozes ao meu redor falando baixinho, vozes respeitosas, e por um momento me perguntei se tinha morrido.
– Parece que ele está acordando – disse uma voz perto dali. Uma voz grave. – Já era hora.
Quando abri os olhos e vi a figura enorme de Ralph ao meu lado, balbuciei:
– Se eu morri e isto é o céu, o que você está fazendo aqui?
– E quem disse que estamos no céu?
Eu pisquei e depois fechei os olhos, ofuscado pelo branco cegante do quarto. Abri um sorriso.
– É bom que não estejamos num hospital. Odeio hospitais.
– Pelo menos desta vez ninguém está morrendo – disse Tessa.
Eu me virei. Ela estava sentada ao lado da janela, com o rosto delineado pela luz do dia. Podia ser um anjo sentado ali – um lindo anjo de cabelo preto, usando uma
camiseta com uma cobra saindo da órbita de um crânio humano. Era uma linda visão, um tanto distorcida e macabra, mas adorável mesmo assim.
– Sabia que você ia acordar. – Era Ralph de novo. – Falei pros médicos não se preocuparem. – Então ele acrescentou, orgulhoso: – Enquanto você dormia, consegui passar
pela cripta.
– Decapitou o ogro, é?
– Sim. Rápido e tranquilo.
– Eu ensinei pra ele – Tessa completou.
– Bem, que ótimo – eu disse, num tom paternal. Notei que o braço de Tessa estava enfaixado no lugar em que o Ilusionista a cortara. Ela não parecia estar sentindo
muita dor, talvez o corte não tivesse sido tão fundo quanto eu pensava. Logo perguntaria a ela. Esfreguei a cabeça.
– Então, quanto tempo fiquei apagado?
– Um dia inteiro – disse Ralph. – Acho que estava precisando do seu soninho de beleza.
– Uau, acho que estava mesmo.
– Eles deram umas coisas bem ruins para você, Pat. – Olhei na direção da voz. Lien-hua era a terceira e última visitante no quarto. Estava sentada no canto, numa
das cadeiras feias obrigatórias.
– Fenilciclidina, também conhecida como PCP – Tessa interrompeu. – É um anestésico dissociativo alucinógeno, como sua prima – a popular, mas menos potente cetamina,
muito usada em raves. Doses a partir de 20 miligramas podem matar, e doses de 150 a 200 miligramas são consideradas incompatíveis com a vida.
– Deixe-me adivinhar: a Internet?
– Precisa mesmo perguntar?
– E quanto havia na cápsula que Kincaid tentou enfiar na minha goela? Lien-hua respondeu:
– Uns 250 miligramas. Se tivesse se dissolvido um pouco mais na sua boca, você não estaria aqui conversando conosco.
– A propósito... – disse Ralph, sério.
– Sim. – Ela baixou os olhos.
– O que foi? – perguntei.
A voz de Ralph ficou mais tensa.
– Pat, acho que você não soube de Tucker... ele não sobreviveu.
A notícia tirou o ar dos meus pulmões, a força do meu coração.
– Morreu tentando proteger Tessa.
Todos ficamos em silêncio por alguns minutos. Pareceram durar para sempre, mas mesmo assim, não o suficiente.
– Como está a esposa dele? – perguntei.
– Sofrendo muito. Eles não tinham filhos. Ele era tudo que ela tinha.
Detestei ouvir tudo aquilo. Brent Tucker era um cara decente. Um bom homem. Meio chato às vezes, entusiasmado demais, mas dedicado. Eu não teria conseguido encontrar
Sevren sem as ideias dele. Eu não sabia o que dizer.
– Vamos visitá-la hoje à tarde – disse Lien-hua. Não sei quanto tempo ficamos em silêncio até que uma enfermeira veio verificar meu ritmo cardíaco e a vida prosseguiu
novamente.
– Encontraram o corpo de Sevren? – perguntei a Ralph finalmente.
– Ainda não.
– Quê? – exclamei. – Ele estava na ambulância quando ela caiu!
– Aquelas coisas parecem tanques de guerra – disse Ralph. – Se ele conseguiu entrar nela, é possível...
– Não – eu disse. – Ele não pode ter sobrevivido.
– Vamos encontrá-lo.
A enfermeira terminou seu trabalho e desapareceu de novo.
– Alguma notícia do governador, então? – perguntei.
Vi Tessa sorrindo.
– A fita – ela disse.
– Quê?
– Do microfone adesivo.
Ralph sorriu.
– Sim, fez muito sucesso na Internet.
Tessa bateu no peito.
– Eu que postei pra ele.
– Em um dia, Sebastian Taylor passou de pré-candidato presidencial a primeiro da lista dos mais procurados pelo FBI. Acho que isso é um recorde. Você precisava ver
o noticiário.
– Não, obrigado.
– A esposa dele voltou de Barbados noite passada e descobriu que seu marido era um assassino da CIA. Ela foi jogada debaixo dos holofotes da mídia internacional.
– Aposto que está se sentindo em casa. – Então tive um pensamento realista. – Sebastian vai ser difícil de encontrar. Ele sabe como sumir do mapa.
– Sim – disse Ralph –, mas também gosta da mídia. Tenho a impressão de que vamos ouvir falar de Sebastian Taylor de novo.
– Chega disso – Lien-hua falou. – Você está bem, Pat? Mesmo? Passou por maus bocados.
– Estou, mas gostaria de um café.
Ela virou para trás e me passou uma xícara do bom: Yrigacheffe cultivado à sombra, da região de Sidamo, na Etiópia. Eu quase conseguia sentir o cheiro das bananas
que cresciam sobre os pés de café. Agora eu estava no céu.
– Creme e mel, sem açúcar – ela acrescentou. – Mas está meio frio. Eu não sabia quando você ia acordar.
Tentei me sentar na cama, fiz uma careta, deitei de novo.
– Você está bem mesmo?
– Quer que eu seja sincero?
– Sempre.
– Vem cá, então.
Ela se aproximou. O aroma de baunilha.
– Sim? – interrogou ela.
Falei baixinho, para que ninguém mais ouvisse.
– Lamento pelo que aconteceu naquela campana.
Uma pausa.
– Não vamos lamentar, vamos só tomar cuidado.
– Tá.
– Fiquei preocupada de verdade com você, Pat. Tive medo que fôssemos perder você. E, bem... – Ela estava procurando as palavras certas. Não encontrou. – Mais uma
coisa. Quando falei dos motivos e mencionei o medo, você conseguiu ver, não conseguiu?
– Ver o quê?
– A história. No meu rosto.
Baixei a voz.
– Alguma coisa aconteceu com você, certo?
Ela ficou em silêncio.
– Quando estiver pronta – eu disse –, se quiser me contar, eu vou ouvir. Pode confiar em mim, Lien-hua.
– Eu sei que posso.
– O que vocês dois estão cochichando? – perguntou Tessa.
– Nada – eu disse.
– Sei... – ela disse, daquele jeito adolescente e maravilhosamente sarcástico.
Lien-hua voltou para a sua cadeira.
– Ei, vem cá, Tessa – eu disse. Bati com a mão no lugar na cama ao meu lado e, um pouco relutante, ela veio se sentar. – Tem uma coisa que sua mãe queria que eu
contasse para você, mas nunca contei. Desculpa, é que eu não sabia se acreditava nisto antes.
– O quê?
– “Nossas escolhas decidem quem somos” – eu disse –, “mas nossos amores definem quem vamos nos tornar.” Ela queria que você soubesse disso. – Parei por um segundo
e depois falei: – Tenho certeza de que ela mesma teria te falado se...
– Ela falou.
– Quê?
– Ela me disse isso. E me falou que um dia você também diria. Quando você finalmente entendesse o que significava.
Tessa esperou por você, Pat. Estava esperando você esse tempo todo.
Respirei fundo.
– Obrigado por ficar comigo até eu ter a chance de dizer.
– Como se eu tivesse escolha – ela resmungou. Mas deixou o esboço de um sorriso cruzar seu rosto ao dizer isso.
Nos minutos seguintes, a agente Jiang me contou que Alice e seus filhos estavam bem, e que Alice até receberia uma recompensa em dinheiro por nos ajudar a capturar
o assassino.
– Ela vai poder trabalhar menos e passar mais tempo com os filhos. Parecia bem empolgada com isso.
– E as pessoas que foram expostas à doença no hotel? E nós todos? Ralph respondeu enquanto mexia nos controles do seu videogame, que começara a jogar enquanto eu
falava com Tessa.
– Com a ajuda de Marcie, o Centro de Controle de Doenças conseguiu nos vacinar. Muita gente ficou doente, mas não houve nenhuma fatalidade até agora. – Então ele
ergueu os olhos do videogame. – Mas sem a ajuda dela, estaríamos todos mortos.
– Ah, sim – disse Lien-hua –, e Jason Stilton vai ver o sol nascer quadrado por um bom tempo. Ele foi encontrado com um envelope cheio de dinheiro e umas desculpas
esfarrapadas. Está sendo acusado de corrupção e participação em homicídio.
– Foi ele que entregou o colar para Kincaid, não foi? – perguntei.
Ela balançou a cabeça.
– Naturalmente, Stilton está dizendo que achava que ninguém ia se machucar, que Trembley apenas lhe propusera um jeito de ganhar um dinheiro fácil entregando algum
pertence de Tessa a um cara num hotel, um cara para o qual Trembley já trabalhara.
Ela parou para organizar as ideias.
– Ah, ia esquecendo, Margaret ligou há algumas horas para avisar que vai voltar a lecionar em Quantico. Parece que o diretor ficou bastante impressionado pela rapidez
da equipe que ela montou em resolver o caso.
– Maravilha. – Balancei a cabeça. – E agora, o que você e Ralph vão fazer?
– Eu vou dar uma olhada num caso em San Diego. Uma série de incêndios criminosos. Querem que eu faça o perfil psicológico do culpado.
– E eu preciso depor numa audiência – Ralph disse, com um profundo suspiro. – Parece que um velho amigo nosso de Illinois conseguiu um novo julgamento.
Estremeci.
– Não Richard Basque?
– Ele mesmo.
– Mas como? Não faz sentido!
– DNA. Ele está lutando há anos por uma reavaliação. Finalmente conseguiu. As amostras não batem. Parece que ele vai ser inocentado.
Que legal. Se havia alguém que eu não queria ver à solta nas ruas de novo era Richard Basque. Ele era um dos dois sujeitos que conheci em toda a minha vida que me
metiam um medo genuíno, profundo, insano. Por sorte, o outro estava morto. Ralph atirara nele num cerco com reféns em 2004. O Ilusionista os seguia de perto em terceiro
lugar.
– A propósito, Pat – disse Ralph –, cadê o meu celular?
– Oh – Tessa murmurou –, então era o seu.
– Como assim, era?
– O assassino... bem... deixou cair.
Vi Ralph se preparando para praguejar.
– Nada disso, na frente de Tessa não – eu disse. Ele se segurou, suspirou e balançou a cabeça. Depois disse algo a Lien-hua sobre o caso do incendiário e uma série
de violações de sepulturas em algum lugar do meio-oeste, mas não prestei atenção. Estava ocupado demais vendo minha filha olhando pela janela. Continuava vestida
de preto, mas vi que tinha pintado uma das unhas de rosa. Ela me viu olhando.
– É um começo – ela disse, olhando para a unha. – Estou me acostumando, mas não fique muito esperançoso.
Decidi perguntar do braço.
– E então, como você está? O braço está bem? Onde ele cortou você?
– Vai ficar bem. – A voz dela se tornou um sussurro. – Mas vai ficar uma cicatriz.
– Bem, isso não é tão ruim. Quando era guia florestal, tínhamos um ditado: “Cicatrizes são tatuagens com histórias melhores.”
Ela sorriu.
– Gostei. – Esticou o braço direito. – Aqui, me ajuda. Puxa a manga pra cima.
Puxei delicadamente a manga dela até o cotovelo e vi as cicatrizes retas no seu antebraço.
Cortes. Então ela se corta.
– Essas têm boas histórias? – perguntei baixinho.
Ela pensou por um momento.
– Não. A maioria tem a mesma história, repetida muitas e muitas vezes. Eu me esforcei para encontrar as palavras certas.
– Bem, talvez possamos escrever uma melhor – falei finalmente.
Ela balançou a cabeça.
– Tá.
Então me lembrei das palavras de Zelda Fitzgerald: “Não preciso de nada além de esperança”, ela escrevera, “que não posso encontrar olhando para trás ou para a frente,
portanto acho que o mais certo seja fechar os olhos.”
Não. Zelda estava errada.
O certo é finalmente abrir os olhos. É a única maneira de encontrar esperança. A única maneira de encontrar qualquer coisa que realmente importe.
– E você, Pat? – perguntou Ralph, interrompendo meus pensamentos.
– Eu?
– O que vem agora pra você? Vai ficar em Denver ou voltar a lecionar na Academia?
– Não sei – eu disse. – Vou ter que discutir isso com o resto da família.
Tessa balançou a cabeça de leve para mim, e eu retribuí o gesto. Momentos se passaram, e isso era legal.
Ela se debruçou e olhou pela janela. Tentei ver o que ela estava olhando, mas não consegui achar o ângulo certo. Finalmente, perguntei o que ela havia encontrado.
– Você não vai acreditar se eu contar.
– Tente.
Ela apontou.
– Um unicórnio. Lá em cima, nas nuvens.
Eu me debrucei o máximo que podia para seguir seu olhar. Não vi o unicórnio, mas vi o colar de turmalina pendendo do seu pescoço, recolhendo a luz do sol de braços
bem abertos. E o colar preto e brilhante parecia se sentir em casa, balançando perto do crânio na camiseta dela.
E então ele pousou de novo.
Bem ao lado do seu coração.
EPÍLOGO
Pentágono
Departamento de Defesa
Subnível 4
16h58
O general Biscayne rabiscou sua assinatura nos últimos dois formulários e estava prestes a sair de trás de sua mesa para voltar para casa quando o telefone tocou.
– Sim – ele disse rispidamente. – O que é?
– Olá, Cole. Aqui é Sebastian.
Um calafrio correu pela espinha do general. Sebastian Taylor lhe dava medo. Sempre dera. Ele desconfiava que Sebastian fosse responsável pelo sumiço de dois agentes
em 1978 e mais alguns nos anos 80, mas nunca conseguira provar. O general Biscayne tentou disfarçar o medo em sua voz.
– O que você quer?
– Você ligou para Margaret Wellington, não ligou?
– Sebastian, eu...
– Mandou que ela deixasse tudo quieto. Que abafasse o caso. Mas você cometeu um erro. Mencionou o meu nome.
Uma pausa. A decisão de pôr todas as cartas na mesa.
– Pode ser. Você é um fugitivo. O que vai fazer a respeito, agora?
– Eu acho, general, que vou pescar.
A ligação caiu.
E com dedos que tremiam, o general pôs o fone no gancho. Então.
Começava agora.
AGRADECIMENTOS
A Internet, grande depósito de conhecimento que é, tem várias autorias para a frase sobre os ratos tolos e os gatos sábios. Assim, meus agradecimentos vão para Andrew
Mercer, Scott Love ou seja quem for que possa ter pensado na frase primeiro.
Além disso, estou em dívida com os seguintes amigos por suas ideias, apoio, pesquisa e encorajamento: Wayne Kirk, Chris Haskins, Lara e Pam Johnson, Michelle Cox,
dr. Todd Huhn, Tammy Edwards, David Lehman, dr. Godwin, dr. Morse, Von Roebuck, dr. Kim Rossmo, Tim Carter, Becky Cox, Steve Kipperman, a Câmara de Comércio de Asheville,
dr. John-Paul Abner, Lee Garner, Shawn Scullin, Alton Gansky, George Hill, Deb Van Horn, Lonnie Hull DuPont, Pamela Harty, Jennifer Leep, Cat Hoort, Kristin Kornoelje,
o Grupo de Escritores de Black Mountain, o Instituto Jonestown e, finalmente, minhas filhas e minha esposa por sua infinita paciência e encorajamento, ah, sim, e
os gentis funcionários da Oasis Coffee Shop por ficarem abertos até tarde.
A TORRE
Os arquivos Bowers
volume 2
PRÓLOGO
Quinta-feira, 5 de novembro de 2008
Washington, DC
17h32
A grande caminhonete parou derrapando no trecho encharcado por uma camada de neve fora de época, e Creighton Melice adentrou a penumbra.
Ele examinou o bairro decrépito de Washington DC. Traficantes de droga nas esquinas. Alguns rostos vazios o observavam através de janelas de edifícios mortos. Sombras
espessas se espalhavam pela rua. Creighton inspirou o ar estagnado. Sim. Estar no centro podre da cidade com o dia morrendo ao seu redor fazia Creighton Melice se
sentir em casa.
Seu advogado, Jacob Weldon, suspirou nervoso pela janela do SUV.
– Então, você quer que espere por você?
Creighton olhou para ele. Weldon. Um homenzinho tímido com olhos arregalados.
– Não, vou ficar bem.
– Tome cuidado. – Weldon parecia aliviado.
– Eu sempre tomo.
Há menos de três horas Creighton estava preso. Cela úmida. Acusações de assassinato em segundo grau – e provavelmente uma longa sentença na cadeia. Mas então, bem
quando Creighton estava ensaiando sua história, Weldon apareceu e anunciou que havia pago a fiança.
– Você é um homem livre. – ele disse.
– Não brinca comigo. – É sério.
– Quem? Quem pagou?
Weldon balançou a cabeça.
– Não sei. Alguém. Um amigo.
Creighton franziu a testa.
– Como você não sabe? Ele não teve que assinar?
– Ele mandou alguém. Um cara grande, que já vi antes, sentado nas preliminares. Mas ele era só um pau-mandado. Outra pessoa pagou a conta.
– Um amigo, é? Bom, nenhum dos meus amigos tem esse tanto de dinheiro.
– Talvez você tenha um novo amigo. Vem, vamos sair desse lugar. Seja quem for, a pessoa quer ver você.
Então eles deixaram a cadeia, dirigiram por um bom tempo para garantir que nenhum policial estivesse tentando vigiá-los, e então chegaram aqui, no número 1311 da
Donovan Street, em frente a esse edifício vazio e cinzento com uma placa torta escrita The Blue Lizard Lounge.
O lugar onde o novo amigo de Creighton havia escolhido para o encontro.
Após o carro de Weldon ter desaparecido na esquina, Creighton vasculhou o chão procurando algum tipo de arma, agarrou uma garrafa de cerveja quebrada e empurrou
a porta de metal desgastada da danceteria. Ela enganchou no trinco por um momento e então se abriu.
Um corredor esticava-se à sua frente, iluminado apenas por um escasso conjunto de lâmpadas penduradas em ângulos estranhos, mais ou menos a cada dois metros.
Ele não gostou nada disso. O encontro. O espaço confinado. Um cara que ele nem conhecia pagando sua fiança. Creighton segurou mais firme o gargalo da garrafa. Ele
havia usado uma garrafa quebrada como arma apenas uma vez. Aquela noite havia terminado bem para ele e não muito bem para o cara que deu em cima da mulher que estava
prestes a se tornar sua namorada. Ele sabia que poderia pelo menos causar tanto dano quanto daquela vez, se fosse preciso.
Enquanto Creighton aproximava-se do fim do corredor, ele pôde ver duas portas, uma de cada lado. Uma única palavra havia sido rabiscada em cada uma das portas. E,
mesmo sendo difícil dizer com certeza por causa da luz fraca, as palavras pareciam ter sido escritas com sangue. Ele esticou sua mão. Sentiu a palavra Dor .
Ainda úmida.
Provou.
Sim. Sangue.
A palavra Liberdade estava pintada na porta do outro lado do corredor.
Creighton olhou para trás. Só um corredor vazio. Ele então checou as portas, procurou por luz vazando sob elas. Nada. Olhou mais uma vez para o corredor.
Nada. Apenas um corredor vazio que terminava ali. Naquelas duas portas.
Liberdade ou dor.
Creighton pressionou seu ouvido contra cada uma das portas. Escutou. Nenhum som. Ele precisava fazer uma escolha. A decisão era fácil.
Creighton escolheu dor.
Com um clique suave, a porta escancarou-se para um vestíbulo estreito. Talvez cinco metros à sua frente uma luz bem focada cortava o centro de uma sala adjacente,
provavelmente a pista de dança abandonada da danceteria. Uma luminária? Por que uma luminária?
Creighton sentiu cheiro de fumaça de cigarro. Alguém o esperava.
Seu novo amigo.
Creighton atravessou o vestíbulo, e assim que chegou na luz forte, uma voz o interrompeu.
– Já foi longe o suficiente. – A voz era alterada eletronicamente, mas para Creighton, quem falava parecia ser um homem. Creighton parou.
No outro lado da sala, cerca de uns oito metros à frente, estava sentada uma figura com uma forte lâmpada industrial de halogênio brilhando por trás de sua cadeira.
Mesmo com a iluminação forte por trás da pessoa, Creighton podia ver que, seja quem fosse, possuía uma arma.
– Você escolheu a porta correta, Creighton.
– Sim. Bom, vamos ver. – Ele cobriu seus olhos e fez um gesto em direção à arma. – Então, você me libertou só para poder atirar em mim?
Uma risada eletrônica reverberou pela sala. A pessoa moveu a arma em direção à garrafa que Creighton estava segurando.
– E você veio aqui só para poder me cortar?
– Talvez.
Uma pausa.
– Quero te oferecer algo.
– Eu não trabalho para ninguém e você não pode me comprar. Então, se você for atirar em mim, atire bem, porque se você só me ferir, vou pegar você. – Creighton ergueu
a arma pontiaguda. – Eu sou muito rápido, e se eu atravessar a sala, vou enterrar isso na sua barriga. O que acha dessa oferta?
– Eu não mereço nem um “obrigado”? Sua fiança não foi pequena, e nós dois sabemos que você não vai aparecer para o julgamento. Foi um belo punhado de dinheiro que
paguei só para você vir aqui e me ameaçar.
Creighton tentou pegar o tom de voz verdadeiro da pessoa, mas seja quem fosse, deveria estar usando um microfone que mudava a afinação e o tom de cada palavra enquanto
ele falava.
– Bom, – disse Creighton – eu nunca pedi sua ajuda.
Uma voz grave veio pelo microfone.
– Sr. Melice, eu estive, como posso dizer, acompanhando sua carreira.
– Então você é um fã. Nossa, que ótimo.
– De certo modo, sim. Sou um fã. Você tem um grande dom.
– Ah, é assim que você chama isso. – Não foi bem uma pergunta. O silêncio tomou a sala. Creighton esperou a pessoa responder, e quando a resposta não veio, Creighton
virou sua cabeça e tocou com a garrafa em sua própria nuca. – A base da nuca, bem aqui, ou talvez a parte de trás da cabeça, seria sua melhor escolha. Porém, dessa
distância, é bom você saber o que está fazendo. Estou me virando para ir embora, agora. Faça o melhor que pode. – Creighton esperava ouvir o clique da pessoa destravando
a arma; isso diria muito, se ele fizesse. Nenhum dos caras com quem ele já havia trabalhado usava a trava de segurança. Creighton deu dois passos. Então ouviu a
voz novamente.
– Eu sei porque você escolheu essa porta.
Creighton parou.
– Posso conseguir o que você quer.
Creighton virou.
– Ninguém pode conseguir o que quero.
– Meu amigo, você não estaria aqui se eu não pudesse. Nunca teria me importado com você. Você que publicou os vídeos. Leio o seu blog. Sei o que você quer.
Creighton queria perguntar como foi possível ligar os vídeos e o blog a ele, mas obviamente isso já havia acontecido e nesse momento isso era tudo o que importava.
– Estou ouvindo.
– Existe algo que gostaria que você me ajudasse a obter. Seu passado, suas habilidades e... seus gostos peculiares... tornam você eminentemente qualificado para
esse trabalho. Quando tiver em minhas mãos, darei a você a coisa que pessoa nenhuma no planeta pode dar.
– O que quer que eu “obtenha”?
Ele movimentou com desprezo o cano da arma.
– Falarei mais na hora adequada, meu amigo. Por enquanto, eu apenas gostaria de saber se você está interessado o suficiente para continuar essa discussão. Caso contrário,
está livre para ir. Vou considerar o dinheiro da fiança como um investimento que não deu certo.
– Livre para ir, é? Assim que eu virar as costas, você mete uma bala na minha cabeça.
– Não, – disse a voz. – Eu escolho a base da nuca ao invés disso. Um calafrio repentino. Erro de cálculo.
– O quê?
Um instante depois, Creighton escutou o estalo simultâneo da arma e a explosão brilhante de vidro ao seu lado. Ele não sentiu o impacto da bala, mas rapidamente
procurou em seu corpo pela ferida, por uma mancha crescente de sangue. Não encontrou nada.
Foi apenas a garrafa. O cara havia atirado na garrafa que estava na mão de Creighton. Bem na base do gargalo.
– Esse tiro – disse Creighton, segurando o pouco que sobrou da garrafa – foi impressionante.
– Se quisesse matar você, – disse a voz, – você estaria morto. Eu quero sua ajuda.
Quando Creighton jogou o resto da garrafa no chão, ele percebeu que cacos de vidro haviam atingido sua coxa. O sangue começou a escorrer de uma dúzia de ferimentos.
Ele esticou sua mão e passou a arrancar os pedaços de vidro de sua perna, pensando no quanto deveria ter doído.
– Como sei que posso confiar em você?
– Não sabe. E não posso confiar em você também. Mas essa é a natureza desses relacionamentos, não é?
Ultimamente, Creighton estivera trabalhando sozinho, mas não havia sido assim sempre.
– Sim – ele disse. – É mesmo.
– Então, você está dentro?
Creighton não respondeu, apenas terminou de remover o vidro da sua perna e jogá-lo no chão. Mas ele também não se virou para ir embora.
– Tudo bem. Bom. Então eu tenho uma surpresa para você.
– E seria?
– Sua namorada. Ela está esperando por você lá fora, no carro. Creighton se endireitou.
– Minha namorada?
– Ãham.
Ele olhou ao redor da sala.
– Onde?
O homem balançou a arma em direção à parede mais distante.
– A porta está ali. As chaves, no carro. Também estão sua passagem de avião, carteira de motorista, crachá de identificação do FBI e um pouco de dinheiro para gastar,
sr. Neville Lewis.
Creighton deixou escapar um suspiro áspero.
– Neville Lewis? Foi o melhor que pôde fazer?
Um estalo de risada eletrônica.
– Vá em frente. Nos falamos em breve. Eu sei que você deve estar ansioso para vê-la.
– Espere. Você sabe meu nome, como eu devo chamar você?
– Você pode me chamar de Shade.
A luz se apagou e Creighton percebeu que não conseguia enxergar nada, exceto o resíduo do clarão e cores movendo-se por sua vista. O corredor por onde tinha vindo
emitia uma luz leve, mas tirando isso, o quarto estava um completo breu.
Ele ouviu um leve ruído de movimento ao lado da cadeira e percebeu que se ele não conseguia enxergar o atirador, o atirador não conseguia enxergá-lo.
Então. Uma chance.
Dê um jeito nesse cara agora. Daí você não terá que se preocupar em confiar nele, ou trabalhar para ele, ou pagar a ele por qualquer favor.

 

 

 

1. N. do T.: Rede internacional de escolas que usa excursões em ambientes naturais para o desenvolvimento e educação de seus alunos.
2. N. do T.: No original, profiler, investigador incumbido de traçar o perfil psicológico do criminoso a partir das informações levantadas durante a investigação.
3. N. do T.: Tombstone, em inglês, quer dizer “lápide”.
4. N. do E.: Referência a quatro batalhas icônicas da Guerra Civil Norteamericana; a de Antietam foi considerada a mais sangrenta de todos os tempos. Estima-se que nela tenham morrido 23 mil pessoas em um único dia.
5. N. do E.: Os Confederados eram o lado sulista da Guerra Civil Americana, seis estados agrários e escravagistas: Alabama, Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Louisiana e Mississipi.
6. N. do T.: Em inglês, cavalo branco (a peça de xadrez) é white knight, e noite branca é white night. A pronúncia das duas expressões é exatamente igual.
7. N. do T.: Em inglês, rich man significa “homem rico”.
8. N. do T.: A Primeira Emenda à Constituição dos EUA garante a liberdade de expressão e imprensa.
9. N. do T.: Federal Communications Commission (Comissão Federal de Comunicações), o órgão do governo que regulamenta as comunicações nos EUA.
10. N. do T.: Referência aos assassinos Ted Bundy, condenado à cadeira elétrica e executado em 1989 por 30 homicídios, e Gary Ridgway, condenado à prisão perpétua por 48 homicídios.
11. N. do T.: Em inglês, o verbo ver (see) no passado é saw, que também significa serrote e serrar. Portanto, a frase “I saw her first” contém um trocadilho: pode significar tanto “eu a vi primeiro” quanto “eu a serro primeiro”.
12. N. do E.: Jonestown foi como ficou conhecido o Peoples Temple Agricultural Project, uma comunidade liderada por Jim Jones. Lá, em 18 de novembro de 1978, 909 pessoas se mataram, num ato chamado de suicídio revolucionário, no que pode ser considerado a maior quantidade de mortes em um evento não-natural até os atentados de 11 de setembro.
13. N. do T.: Seita com crenças baseadas no paganismo e na prática da bruxaria.
14. N. do E.: A tularemia é uma infecção aguda razoavelmente grave. Sua bactéria causadora tem sido estudada por conta de seu potencial uso como arma biológica.
15. N. do T.: Projeto Inteligente (também chamado de Design Inteligente) é uma teoria criacionista segundo a qual certas características do universo e dos seres
vivos são melhor explicadas por uma causa inteligente do que por processos indiretos como a seleção natural.
16. N. do E.: Peixe também conhecido como camurupim ou pirapema, ou ainda pela variação tarpon.
17. N. do E.: Uma imensa estrutura de recifes, localizada na Austrália. Tem cerca de 2.300 quilômetros de comprimento.
18. N. do T.: Referência à cidade de Waco, Texas, onde ficava o rancho-sede da seita religiosa liderada por David Koresh. Em 1993, um cerco do FBI ao rancho culminou num incêndio no qual morreram, além de Koresh, 54 adultos e 28 crianças.

 

 

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