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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PECADOR / Josiane da Veiga
O PECADOR / Josiane da Veiga

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Só havia um Deus.
Essa verdade absoluta havia sido dita a Cedric de Bran, marido de Rainha Esmeralda, pelos mantenedores Masha, Cashel e Bran, durante a empreitada do homem atrás da esposa.
Os que até então o povo idolatrava como deuses eram apenas criações, os primeiros criados pelo verdadeiro, aqueles que deviam ajudar o povo a manter-se no caminho certo.
O Criador se sacrificou para dar imortalidade a estes. Seu desejo era que sua criação fosse feliz.
Mas, algo saiu errado.
A condição humana se corrompeu.
Há muitas eras, antes mesmo da divisão de castas, nos tempos que Masha, Bran e Cashel andavam entre os seus, ensinando-os a amar e a desempenhar o papel de honra ao Criador, foi que ele surgiu.
Ele não tinha nome. Não de início, ao menos.
Começou como uma fagulha acesa no coração de um dos descendentes dos deuses, e logo se alastrou.
Foi ele que dividiu os Reinos entre puros e imundos. Foi ele que matou os profetas. Foi ele que, após o Reinado de Cedric de Bran, passou a despejar ódio sobre os bastardos. Foi ele que desunia a todos. Foi ele...
Tudo ele...

 


 


O que era um sentimento isolado tomou forma, corpo e alma. Viveu em muitos indivíduos, renascendo e morrendo durante batalhas, enquanto instigava o povo a lutar, a odiar, a cometer o pior.

Foi ele.

O Maligno.

E, por causa dele, os Deuses mantenedores precisavam se sacrificar.

Há muito lutaram para não ter que chegar tão longe.

Mas, não havia mais escolhas.

Era a hora de o Maligno pagar pelos seus erros.

Chegava a hora de o Deus Criador voltar a viver.


Capítulo 01

 


É L E N

 

-- A raça humana é má -- a voz firme e convicta ecoava pelos labirintos do jardim cheio de flores diversas, causando um frio na espinha feminina.

Agachada atrás de uma roseira, segurando o braço dolorido, a mulher escondida tentava respirar pausadamente, antes que seu perseguidor a visse e avançasse contra ela.

Ergueu a mão, afastando dos olhos uma mecha dos longos cabelos escuros. Era pálida como a neve. O olhar, num tom cobre mesclado ao verde, denotava seu sangue miscigenado. Sua família era assim, uma união de povos que se fundiram através dos tempos. Além, era fruto do amor verdadeiro que atravessava as eras, culminando em sua figura firme e decidida.

-- Muitos dizem que todos nascem bons, e que é o sistema que os corrompe -- Iwan, o Rei ruivo dos Reinos cruzou próximo de si. Ele tinha nas mãos uma espada empunhada e nos lábios uma linha dura e seca, denotando o quão sério o assunto lhe parecia. -- São todos tolos, Élen -- afirmou, avançando contra um arbusto, fazendo com que sua espada cortasse um tanto de galhos. Vendo o lugar vazio, ele prosseguiu sua caminhada, ainda em busca da mulher. -- Você já viu crianças atirando pedras em pássaros? O que os animais fizeram a elas? Elas fazem isso porque machucar dá gozo, ferir causa contentamento, o poder em destruir transforma seus egos e lhes alimenta.

A mulher agachada sentiu o braço arder mais. Pouco antes, Iwan havia lhe alcançado com a espada. Ele era um professor rígido e autoritário, nunca lhe poupava nos treinos, e a feria se ela se distraísse.

-- O sistema não nos muda. Revela-nos.

Por fim, ele surgiu diante dela. Seus olhos úmidos, prevendo mais uma derrota, fez o Rei baixar a espada.

-- Vai chorar Élen? -- retrucou, bravo. -- O que você é?

-- Sua sobrinha -- retrucou a filha de Lyanna e Benjamin, diante do tio. -- Mas, não sou mashiana, nunca conseguirei dominar com armas.

-- Idiota! -- bramou. -- Pensa que apenas os mashianos são fortes? Pensa isso de seus avôs Joshua e Norman? Pensa isso de sua avó, Melissa?

Ela negou, erguendo-se.

-- Vai se esconder, então, atrás de uma feminilidade? Por ser mulher é fraca? É isso?

-- Meu tio...

-- Você será a Rainha, Élen! -- o monarca baixou o tom. -- Se for se vitimar, acabará sendo morta pelos que desejam o trono. É isso que quer?

Sem filhos, Iwan havia escolhido a filha única de sua irmã para governar o Reino tão logo lhe entregasse a Coroa. Há muitas eras uma mulher não regia. Iwan sabia que cada passo que Élen avançasse, seria seguido por muitas pessoas ansiosas por ver a família real cair do poder.

-- Você acha que é fácil governar os Reinos, Élen? -- voltou a retrucar. Exigia uma resposta. -- Acha que o povo é bom?

Ela negou.

-- Apenas algumas pessoas -- respondeu.

-- Apenas algumas pessoas -- confirmou o homem. -- Vai encontrar muito do que não presta. E nem todos permitirão que desista da batalha.

Compreendendo a missão do tio, ela ergueu a espada.

-- Lute, Élen -- ele ordenou. -- Lute pelos deuses, pelas pessoas boas, e pela criação. Existe muita maldade, mas os Reis devem ser o escudo da bondade. E nenhum escudo consegue proteger se tiver rachaduras.

Erguendo a espada, a mulher voltou a lutar.


Iwan ergueu os olhos em direção ao irmão. Liam surgia perante ele com vários pergaminhos, denotando que, naquele dia, teriam muito trabalho a cumprir.

Não que fosse novidade. Anos e anos de Reinado ainda não resolvera metade dos problemas que os Reinos tinham quando assumiu o trono.

Não por sua culpa. O Rei Iwan sabia ser o povo o maior responsável. Havia corrupção e ganância impregnada no sangue, como uma maldição alastrada pelos seus regidos.

Quando assumiu, retirou o título de nobreza de muitos, após descobrir os diversos casos de roubo que os parentes praticavam contra o povo. No lugar desses, elevou a cargos de confiança pessoas que aparentavam ser decentes, apenas para descobrir, mais tarde, que o poder os corromperia também.

-- Más notícias? -- indagou ao irmão.

Liam sentou-se diante do Rei, e largou os pergaminhos na mesa real. Naquela sala, onde outrora Cedric de Bran governou o Reino, onde Brione libertou os imundos, e onde então Iwan deu perdão aos bastardos, agora tudo que restava parecia a dor do fracasso.

-- Você não faz ideia -- o negro retrucou, num suspiro longo.

À noite, Iwan de Masha orava a sua deusa, questionando-a dos motivos de ter-lhe dado um Reino, obrigando-o a viver longe dos pais - Elisabeth e Joshua haviam se mudado para Castelo Negro há alguns anos - e da irmã - que vivia em Nunemesse desde seu casamento com Benjamin. Contudo, Masha permaneceu em silêncio.

Dessa maneira, ele seguiu a vida. Ao seu lado restava Liam, seu irmão e alma gêmea, que passou a viver com ele e para ele, dividindo todas as obrigações que compunham a regência.

Algum tempo depois, Élen também veio morar no castelo. A decisão partiu da própria, pois mesmo Iwan não tendo filhos para deixar o legado, ele não queria obrigar a sobrinha a tão terrível fardo.

Desde então, Iwan a preparava. Não a poupava de nada, porque sabia que a vida não pouparia. Se ela tivesse que ser ferida, que fosse por ele, que a amava. Não pelos rivais, que estavam a postos, esperando o momento para derrotar Élen e usurpar o poder.

Os anos foram passando, dessa maneira, quase que se arrastando. O treinamento duro acabou por render frutos. Élen podia não ser ruiva e temperamental, mas tinha capacidade de governo e técnica com a espada.

E, acima de tudo, tinha os dois tios que lhe seriam conselheiros e o forte nome dos Clark ao norte, filhos e netos de tio Andrew que eram fieis à Coroa.

-- Quais as más notícias? -- indagou por fim.

Liam estendeu-lhe uma missiva vinda de Cashel.

-- Isso só pode ser brincadeira -- Iwan resmungou, amassando o papel.

-- Acredite, não é. O filho de Angus informou que esse grupo está fazendo saques e aterrorizando os navios que chegam à terra de Cashel. Além disso, invadiram algumas aldeias e expulsaram os brancos que lá viviam.

De tudo que Iwan enfrentava, desde que assumiu o Reino, aquela com certeza era a pior novidade: Uma seita nas montanhas alegava que o Rei Cedric de Bran havia traído os deuses com a intenção de casar-se com uma imunda, mudando para sempre as leis angariadas na história daquele mundo.

Lugus, retratado pelos livros sagrados como um Rei cruel e sanguinário, era visto agora como um salvador, único que se opunha a fornicação de carne entre puros e imundos.

-- Eles querem uma raça pura, novamente? -- Iwan indagou, como se não acreditasse.

-- Dizem que negros devem se casar apenas com negros e conceber crianças negras. Caso nasça alguma branca, deve ser imediatamente eliminada. Assim, com algum tempo, conseguiriam a limpeza racial que tanto almejam.

Iwan afundou o rosto entre as mãos.

-- Estou cansado -- disse ao irmão de pele escura. -- Exausto desse mundo torpe, desse povo cruel.

-- Não é hora para isso -- Liam contrapôs. -- Precisa agir. Não pode permitir que eles persigam casais inter-raciais.

O Rei concordou. Era hora de aquela seita descobrir que o Rei ruivo não deixaria impune a maldade.

 

Ela era linda.

Liam sorriu diante da figura altiva no jardim de Lyn. Em pé, o corpo ereto, ela parecia focada num canteiro de rosas, observando a beleza como se não percebesse que sua figura completava a visão magistral.

-- Uma moeda por seus pensamentos -- Liam murmurou, e sorriu quando o olhar de Élen cruzou com o dele.

-- Meu tio -- ela murmurou, dando os ombros. -- Minha mente está em branco -- contou. -- Em nada penso, além da responsabilidade que está diante de mim.

-- Está sendo bem preparada para isso -- Liam lhe apertou os ombros. -- Será uma grande Rainha.

Havia incredulidade no olhar feminino.

-- Muitos desejam o trono, mas vejo tio Iwan tão amargurado com ele.

-- Não é fácil assumir uma responsabilidade dada pelos deuses, mas se fomos escolhidos, é porque é nosso destino, e devemos cumpri-lo.

Ela concordou.

-- Eu sei, meu tio.

Liam sorriu-lhe mais uma vez, antes de beijar-lhe o topo da cabeça e se afastar. O olhar dela seguiu a figura carinhosa até vê-lo desaparecer entre os pilares do castelo. Então, suspirando, voltou à atenção as flores.

Se não fosse da família real, gostaria de ser uma florista, daquelas que passam os dias com as mãos na terra, a ajeitar as plantas.

Da avó Melissa herdou o dom com a flora, conhecendo bem cada erva e o benefício que ela poderia dar. Em outra época, em outra situação, seria uma sacerdotisa. Agora, infelizmente, precisava cumprir com sua herança.

Não foi por vontade própria que pediu aos pais para deixá-la ir morar na corte. A verdade é que, desde que passou a compreender o tamanho e o peso do sangue que corria em suas veias, soube que tinha um destino a cumprir.

Nenhuma de suas antepassadas, incluindo as rainhas Esmeralda e Brione, até mesmo suas avós, Melissa e Elisabeth, haviam fugido das cargas que o destino lhes impunha. Não seria ela a dar-lhes a vergonha do medo.

Subitamente, um movimento ao lado fê-la dar de cara com um homem bonito, alto e negro. Sua aparência surreal lhe tirou o ar.

Quis falar, indagar quem era, o porquê estava ali - lugar proibido a alguém fora do núcleo familiar - quando o sorriso dele a manteve em total silêncio.

-- Vim vê-la antes de tudo começar -- ele disse, e sua voz trouxe comoção a Élen.

Sentiu o coração bater forte e lágrimas formando-se em seus olhos.

-- Não fique preocupada. Tudo ficará bem -- ele afirmou. -- Eu te amo, mãe.

E sumiu.

No mesmo instante, a mulher caiu no chão, desmaiada.


Capítulo 02

 


G I D E O N

 


Havia um ar gélido e mortal, que parecia cruzar com o vento pelas enormes montanhas de pedras, e adentrar as cavernas escondidas, lugares onde muitos viviam e tramavam contra o Rei, na terra do Deus Cashel.

Mais que isso, existia uma revolta pelos direitos retirados, pelos aspectos que haviam levado todos até aquela brecha do tempo, onde seus nomes não mais impunham o respeito devido, e seu legado havia se perdido sobre as ordens do maldito Rei ruivo de Masha.

Talvez você não entenda como tudo se sucedeu, mas explicarei:

Quando Iwan de Masha assumiu o trono, percebeu a corrupção penetrada nos Reinos. Ora, se os monarcas que viviam em Bran enviavam moedas e ouro até os dois continentes - Masha e Cashel - por que então o povo passava fome?

Ao chegar ao lugar para investigar, Iwan, ainda muito jovenzinho e assustado com o tamanho da responsabilidade à sua frente, assombrou-se com o que encontrara.

Os valores chegavam, realmente. Mas, ao invés de comida para o povo, seus parentes e senhores dos feudos investiam tudo em casas de banho com águas termais, onde copulavam como animais, saciando seus desejos mais profanos.

Não, não era apenas um desfile de paus e bucetas esfregando-se em piscinas límpidas. Era o gozo regado a vinho, sem pudores, enquanto crianças estertoravam pela falta de pão, e velhos morriam em dores agoniantes pela falta de médicos.

Francamente, Iwan estava pouco se fodendo para o que faziam de suas vidas íntimas. Se quisessem trair-se em casamentos, trocarem de parceiros como de roupa, e praticarem todo tipo de orgias inimagináveis, isso era problema deles.

A coisa mudava de figura quando o povo tornava-se vítima. Como Rei, ele não podia aceitar.

Ele jamais aceitaria.

Ordenou castração. O pai, que na época o acompanhava, achou que mutilar os parentes era demais. Então, ele os destituiu de seus títulos, passando os mesmos a outras pessoas, gente que demonstrava preocupação com o povo, e mais vontade de serem bons senhores feudais.

Houve uma época de abonança, após isso. Contudo, tão logo esses primeiros senhores feudais morreram e seus filhos assumiram o comando, as coisas, aos poucos, pareciam voltar às práticas insanas.

Nesse ínterim político, nasceu Gideon. Neto de um antigo senhor feudal, jamais soube que o avô perdeu as terras porque, além de roubar o Reino, ainda mandava capturar meninas bonitas, juvenis, para servir aos amigos homens convidados para seu clube do prazer.

Nuas, as garotas ainda sem pelos em suas partes baixas andavam entre homens velhos, servindo-lhe bebidas e sentindo suas mãos asquerosas a tocar-lhes o corpo.

Iwan ficou possesso ao saber disso. E, aquele homem covarde viu-se sendo rebaixado ao nível mais baixo possível, a limpar os esgotos e as ruas para poder comer.

Iwan não pensou, ou não se ateve, de que ao rebaixar os homens, levava consigo os seus entes. O pai de Gideon, ainda criança na época, logo foi deixado pelo genitor, pois não mais poderia ser sustentado por esse. Assim, cresceu na rua, roubando para comer, até conhecer um dos muitos homens do clero que também perdeu seu cargo durante a revolução dos bastardos.

Aquela seita, chamada de Sangue Escuro, acabou por atrair os muitos que odiavam o novo Rei. Aos poucos, seus dogmas e regras começaram a tomar forma e, nesse ambiente, Gideon foi criado pelo pai ladrão, já que a mãe submissa morreu logo após seu parto.

O pai também morreu, quando ele chegava à puberdade, e o rapaz viu-se a ter aqueles homens e mulheres que compunham a comunidade como sua família, e o sacerdote líder como seu único apoio mental e moral para um novo apogeu.

Tão logo aprendeu a andar, começou a servir no templo montado ao Deus Cashel dentro das cavernas. Conhecia as Escrituras e, em especial, as que antecediam a maldita Rainha Esmeralda, Aquela que tudo mudou.

-- Antes dela -- o sacerdote Vougan lhe explicara -- cada povo tinha seu próprio Rei, sua própria lei. Ninguém se misturava, e havia misericórdia em cada lugar. Braianos casavam-se com braianas, e nasciam crianças de cabelos negros e pele branca. Assim também em Masha, com os ruivos. E aqui, conosco, os negros. Mas, então, Brione de Cashel, a antiga e devassa Rainha, teve como amante Iran, o ruivo, e dessa união maldita nasceu a imunda Esmeralda. Ao invés de livrar-se da criança, ela a criou e, após muitos anos, a abominação casou-se com o Rei de Bran, Cedric. É verdade que o monarca não sabia que se tratava de uma imunda antes do casamento, mas ali ele já começava a quebrar as leis, porque aquela mulher era ruiva.

Os pássaros cantavam fora da caverna, e o olhar da criança Gideon arregalava-se diante de tanta maldade dos antepassados.

-- Mas, quando ele descobriu a verdade, mentiu sobre um encontro com os deuses, para confortar seu pecado. Dissera a quem quisesse ouvir que os Deuses não consideram imundos os híbridos. O único que parecia ver a verdade foi Lugus, o antigo Rei, marido de Brione, que havia sido traído pela mulher maldita. Contudo, ele perdeu a guerra, e foi morto em combate pelo próprio filho, Randu, que também se acostava com branca.

Gideon recordava-se da forma como o sacerdote baixava a fronte, em agonia e revolta.

-- Até mesmo sodomia tornou-se permitido. Príncipe Cael assumiu uma união com outro homem. E foi assim que tudo caiu em desgraça.

Conforme os anos passavam, Gideon, mais e mais, se afundava na certeza de que Esmeralda e seus descendentes (entre eles, o atual Rei), eram os culpados por todas as mazelas que enfrentavam.

Aos quinze anos, ajudou um grupo de homens da comunidade no seu primeiro saque a um navio mercantil. Aos dezoito, já havia matado seu primeiro homem, com um ferimento à espada. Aos vinte e três já liderava a frente Sangue Escuro e, agora, aproximando-se dos trinta anos, ele aceitava que não bastavam os roubos, eles precisavam de um plano mais elaborado para destruir a monarquia, e dar independência a terra de Cashel, expulsando os brancos.


O cheiro de sangue invadiu suas narinas.

Ao longe, era possível ouvir os gritos desesperados, femininos e masculinos, enquanto o fogo crepitava sobre as casas de madeira e a multidão corria em direções desencontradas.

-- Não toquem nas mulheres negras -- Gideon ordenou. -- Nem machuquem as crianças dessa cor. Cada homem negro que capturarem, verifiquem se está casado com branca. Se estiver, mate-o. Se não estiver, deixe-o livre. -- Seus conselhos eram ouvidos a longa distância. -- Aos demais, dei-lhes o fio da espada, numa morte rápida e sem dor.

Um gemido feminino chegou até ele, e o rapaz volveu o olhar para um casebre. Abriu a porta de entrada, e viu um dos seus homens, Elimas, a tentar abrir as pernas de uma mulher ruiva.

Puxou-o de cima da mulher e lhe desferiu um golpe seco contra o rosto.

-- Vou matá-la depois -- o homem retrucou, numa desculpa que não servia ao líder.

-- Mancharia sua honra num sangue branco? -- retrucou, revoltado. -- Que lixo de homem é você?

Depois, volveu-se para a mulher e lhe decepou a cabeça, num golpe firme e rápido.

 

Sentado no centro da aldeia que queimava, o jovem Gideon encarava os corpos sendo sepultados.

O ouro e os pertences que haviam sido roubados estavam empilhados em seus cavalos, e tudo parecia apenas mais um dia comum em seu afazer de limpeza racial.

Contudo, havia um oco, um vazio sobrenatural que o fazia encarar um corpo pequeno e infantil de um menino de cabelos negros e pele pálida.

Morto, o olhar da criança parecia adentrar o dele, e Gideon precisou desviar, pois não queria ser intimidado pelos demônios que podiam tentá-lo na sua sagrada missão a Cashel.

Elimas se aproximou, estendendo a ele um copo de vinho. O sabor amargo lhe fez bem.

-- Deixe uma missiva ao Rei pregado na árvore de fronte à aldeia -- ordenou. -- Diga-lhe que não iremos parar enquanto todos os brancos não forem expulsos e o Reinado seja devolvido aos descendentes de Lugus.

Vougan, o sacerdote, se autodenominava ao cargo. Dizia ser filho de uma mulher que tinha o sangue real nas veias. Ninguém o questionava.

-- Acha que o Rei Iwan irá aceitar?

-- Ele tem sangue quente, não ficará calado diante das mortes. Até então, os roubos o mantiveram em alerta, mas não com raiva. Agora, os assassinatos o farão reagir.

-- Uma guerra é tudo que você deseja? -- o outro indagou, e Gideon o encarou, sombrio.

-- Tudo que eu desejo é cumprir a vontade de meu Deus, Cashel. E o farei.

O assunto estava encerrado.


O sorriso amistoso do sacerdote Vougan foi a primeira visão que teve ao adentrar na galeria de cavernas onde sua comunidade se escondia.

Muitas mulheres se aproximaram dos cavalos, a fim de pegar o espólio daquele dia de luta. Mas, ao contrário dos outros homens que pareciam orgulhosos da pilhagem, Gideon estava amuado e com o olhar inseguro.

Vougan logo o levou consigo até o templo, onde pararam diante de uma estátua de Cashel.

-- O que lhe aflige, meu filho? -- indagou o mestre, disposto a ajudar seu coração em conflito.

Porque isso era nítido. Havia uma guerra no âmago de Gideon.

-- Meu senhor -- murmurou. -- Espíritos das trevas me atormentam em dúvidas.

-- De que tipo?

-- Penso se não é cruel matar as crianças e as mulheres, apenas por causa da cor.

Vougan apertou seu ombro, parental.

-- Você é meu orgulho, jovem. Será o líder dessa comunidade, quando eu me for. Precisa ter certeza do caminho que toma.

-- Sim, eu sei.

-- E sabe que os brancos invadiram nossa terra e roubaram-na de nós? Que usaram nossas mulheres e misturaram nosso sangue?

O rapaz assentiu.

-- Às vezes a justiça exige sangue, Gideon -- o mestre afirmou. -- Seu sacrifício é em nome de uma raça pura que voltará a governar Cashel.

Houve um breve silêncio após isso. Gideon, pelo que sabia, não tinha sangue real e não sabia se Cashel o queria por Rei. Mas, aceitava a tarefa porque sua fé era maior que suas dúvidas.

-- Nyala está na idade de se casar -- o homem remeteu a uma bela jovem de pele escura e de olhar amendoado. -- E eu penso que você também precisa constituir uma família.

Algo no íntimo de Gideon revoltou-se contra a ideia.

Não que Nyala fosse feia. Ao contrário, bem da verdade ele até aceitava as investidas femininas que ocorriam nos festivais a Cashel. Nunca negou-se a espreitá-la e a esfregar-se nela, escondidos, pelas matas.

Mas, a ideia de desposá-la lhe dava aversão.

Porque sempre soube... Havia algo além do prazer físico em uma união de sangue e amor. Nas noites sombrias daquele continente, enquanto olhava as estrelas, ele aguardava ansiosamente por alguém que não conhecia, mas sentia.

-- Eu acredito que não seja o momento certo -- negou-se.

-- Gideon...

-- Estamos em guerra e eu não quero pensar em nada que não seja a batalha.

Dando por encerrado o assunto, o jovem saiu do templo deixando para trás um sacerdote por demais insatisfeito.


Capítulo 03

 


C O R A G E M


O breu noturno era visível de sua janela. As cortinas bailavam com aquele leve vento que adentrava seu quarto, tocava sua pele, arrepiando-a por um frio desconhecido.

-- Eu sei o que vi -- Élen insistiu, diante de um homem de olhar verde e descrente.

-- Minha querida...

-- Era um homem negro, alto e muito belo.

-- Sim, seu tio Liam -- Iwan perseverou. -- Ele mesmo salienta que havia acabado de falar contigo.

A moça remexeu a cabeça, como se não conseguisse acreditar que o Rei realmente a cria tão tola.

-- Eu sei que é um momento difícil para ser Rainha, Élen. -- Iwan murmurou, como se as palavras precisassem ser ditas com extremo cuidado. -- Eu entenderei se quiser voltar para Nunemesse e ficar com seus pais.

-- Vê-me tão fraca assim?

-- Fraca? Amor familiar não é fraqueza -- negou. -- Eu daria a vida para passar meus dias em Castelo Negro, tendo a companhia de minha mãe e meu pai, que já são velhos demais para enfrentar a estrada e vir me ver; ou ir ter com Lyanna, minha amada irmã, naquelas terras quentes de Masha. Infelizmente, o dever vem em primeiro lugar.

Ela sabia disso. E era esse o motivo que a fazia não fraquejar.

-- Também sou fiel aos deuses -- ela retrucou. -- Meus pais não tiveram outros filhos, Liam e você não se casaram, não constituíram família. Para quem ficará seu legado?

-- Não quero que seja uma obrigação.

-- Não é -- a moça negou. -- É amor, meu tio -- afirmou. -- Amor a ti e a nossa família, a nossa história, aos nossos antepassados.

O homem ergueu-se e curvou-se sobre a cama, a fim de beijar a testa da sobrinha.

-- Você é forte, Élen -- ele elogiou, depois de alguns segundos. -- É diferente de suas avós e mãe, mas é forte a sua maneira.

Quando o Rei saiu de seu quarto, a moça sentiu-se lacrimejar.

 

-- Talvez -- o tom masculino invadiu o salão real -- devesse tentar dialogar com eles.

Iwan de Masha mantinha as missivas vindas de Cashel esmagadas nas mãos, em tremor frequentes.

-- Dialogar com fanáticos?

-- Uma saída sem guerra.

-- Eles mataram crianças! -- berrou, erguendo-se de sua cadeira real e caminhando em caminho incerto pelo salão. -- Mataram crianças de colo -- completou. -- Arrancaram bebês dos ventres das mães brancas. Mataram mulheres e homens que viviam em casamento entre raças. Como dialogar com homens assim?


As notícias que chegavam ao castelo de Bran não traziam eufemismos. A realidade crua era atirada contra o Rei.

E, talvez por isso, ele não se controlou ao falar:

-- Ordenarei uma cruzada contra esses desgraçados. Quero todos mortos.

-- Apesar do que fizeram -- Liam negou. -- Não é certo. Um Rei nunca deve buscar resolver as questões através da espada.

-- Quer que eu responda essa situação ultrajante com conversa?

-- Quero que lhes dê uma chance de perdão. Que se redimem, que sejam presos e paguem pelos crimes cometidos. Mas, não assassinato. Você estará alçando ao nível deles -- projetou. -- Será um Rei temido e ninguém consegue reinar por medo.

Uma vez, na juventude que outrora passara, Iwan jurara a Deusa Masha que sempre ouviria o irmão. Até então, nunca se arrependeu do fato, mas agora sentia uma vontade absurda de mandar às favas aquele conselho e resolver a questão através da guarda real.

-- O que sugere? -- indagou, contudo.

-- Irei a Cashel -- Liam avisou. -- Terei com esses guerrilheiros e levá-los-ei a julgamento. Iremos organizar o Reino sem mais derramamento de sangue.

Um som na porta fez ambos os homens girarem naquela direção.

-- Eu devo ir -- anunciou Élen.

Iwan soltou uma sonora gargalhada, enquanto Liam negou com a face.

-- É perigoso e...

-- E eu sou mulher? -- ela indagou, cética. -- Eu, aquela que sempre insistiram que jamais seria fraca por conta da condição sexual? -- Era um chute certeiro. -- Eu serei a Rainha dos Reinos e devo assumir mais responsabilidades além das teóricas. Irei com a guarda real até Cashel e resolverei a questão.

Iwan ficou circunspecto ao perceber que ela falava sério.

-- Você entende os riscos?

-- Meu tio...

-- Você não está preparada -- interceptou-a. -- Ainda é jovem...

-- O senhor nem barba tinha quando Masha o escolheu. E eu fui treinada desde a infância. Preciso conhecer os Reinos, e preciso fazer isso logo. Um dia chegará o momento de assumir o trono, e só terei capacidade para tal se tiver experiências aquém dos livros.

Iwan parecia dividido. Ele encarou Liam, que também estava em forte conflito. Ora, ele amava a sobrinha e a queria a Rainha mais forte que ela pudesse ser. Mas, deixá-la ir de encontro a homens maus não fazia parte de seus planos.

-- O que direi aos seus pais? -- o múrmuro do Rei denotava o quanto aquilo o angustiava.

-- Dirá que eu escolhi, como futura Rainha, resolver os problemas que ocorrem nos Reinos, assim como o senhor, quando jovem.

A menção da viagem ocorrida tantos anos antes não pareceu confortá-lo.

-- Mas eu fui com meu pai, meu irmão... E, agora, não poderei acompanhá-la...

-- Eu posso -- Liam se ofereceu. -- Élen sabe lutar -- ele disse aquilo com o tom decisivo. -- Não é frágil, nem fraca. É aguerrida e quer ser uma boa rainha. Tenho orgulho dela.

O negro volveu-se para o ruivo.

-- Ela tem o sangue de Esmeralda. O seu sangue. -- Apontou. -- Vejo nela cada pedaço que tanto me orgulha em nossos pais. Contemple a coragem de mãe Lis, a determinação de pai Joshua. Pelo lado paterno, a valentia de Norman e a dedicação de Melissa. Você entende? Desde sempre, sabíamos que haveria um momento que nossa Élen seria colocada à prova, e esse momento é agora.

O Rei voltou-se para a sobrinha.

-- Tem certeza? -- questionou.

-- Se eu fosse homem o senhor estaria tão receoso?

A questão teve o efeito desejado. Iwan nunca a inferiorizou por ser mulher. Ao contrário, mesmo naquele mundo extremamente cruel com as mulheres, ele creditou a sobrinha palavras de incentivo e de esperança.

-- Organizarei uma frota armada -- confirmou, por fim. -- Você liderará pela primeira vez um corpo de homens, e terá que ter pulso firme para impedir que cometam exageros.

Ela concordou.

-- Seu tio Liam a acompanhará, pois é sua primeira missão e precisamos ser precavidos -- ele explicou. -- Mas, eu confio em ti e sei que fará o que for necessário.

Curvando-se, Élen beijou as mãos do Rei.

Ela não sabia, mas aquele beijo selava seu destino.


Capítulo 04

 


C A P T U R A


O silêncio naquela cadeia de montanhas foi quebrado pelo galope desenfreado de um cavalariço que vinha rapidamente com o rosto afogueado pelas novidades.

O povo vivia escondido nas montanhas. Não apenas dos inimigos, mas também do frio. Não que Cashel fosse uma terra gelada como o norte de Bran, mas estavam no inverno e, agora, o vento gélido cortava as paredes das rochas, fazendo todos procurarem refúgio em meio as brechas das pedras, entre fogueiras altas enquanto sentavam-se ao redor delas e discutiam o que se seguiria.

O mensageiro galopou quase em descontrole. Na parte frontal das cavernas, numa clareira de poucos metros, ele enfim deixou o cavalo e correu até o lugar onde morava Gideon.

Logo, entregou a ele uma missiva. Eram notícias vindas do norte.

-- O Rei mandará a sobrinha e o irmão juntamente com a guarda real para nos caçar? -- indagou a ninguém em especial, apenas como se estivesse a formular seus pensamentos.

Subitamente, sorriu.

-- O que acha, Gideon? -- o mensageiro não escondia a preocupação.

-- Acho que teremos muito a comemorar, quando tudo se findar.


O sacerdote Vougan encarou o jovem que liderava Sangue Escuro. Havia no olhar de Gideon uma certeza de vitória que o animou.

-- Sequestrar a sobrinha do Rei? -- murmurou a ideia, como se estivesse a absorvê-la. -- Sabe que não será fácil.

-- Não será fácil se desembarcarem, pois então a guarda real se unirá a guarda que permanece em Cashel. Mas, se atacarmos no mar, antes de sua chegada, podemos capturar a mulher.

Era uma boa ideia. Contudo, precisava ser mais bem trabalhada.

-- Haverá retaliação.

-- Meu mestre, o Rei não se atreverá a fazer nada contra o grupo enquanto mantivermos a sobrinha em cativeiro. Exigiremos, assim, que todos os brancos saíam de nossas terras, que as terras de Cashel fiquem livres desse sangue sujo.

Vougan bebeu um pouco do vinho que havia sido roubado de uma das aldeias. O calor do líquido fermentado inundou sua mente.

-- E o que faremos com ela depois de alcançarmos nosso objetivo?

-- A devolveremos ao Rei.

-- Tao logo isso ocorra, com a sobrinha protegida, Iwan de Masha buscará vingança.

-- Então a manteremos cativa até o fim dos dias do Rei. Se ele atacar, ela morre.

Aquela frieza no semblante e nas palavras masculinas parecia mel para Vougan. Ele amava cada detalhe do plano.

-- Se fosse há alguns anos, era um plano impossível. Mas, desde que Tigre do Mar aposentou-se, está mais fácil atacar a frota real via marítima.

Gideon assentiu.

-- O senhor concorda, então?

-- Eu sei que é o melhor líder que essa causa poderia ter, Gideon -- Vougan assentiu. -- Cashel não poderia ter escolhido melhor. Pegue a puta branca e a capture. Vamos mostrar ao Rei que o sangue de Cashel ferve em nossas veias.


A imensidão do mar tocava o coração de Élen profundamente. Pensou no avô, Joshua, e em suas andanças pelas águas, onde, pirata, cometia suas barbáries em nome de uma vingança infundada.

Estaria ela agora traçando o mesmo caminho? Entendia que os negros sentiam-se desfavorecidos por brancos morarem em suas terras, mas, ao mesmo tempo, não eram todos frutos dos mesmos deuses, nascidos mediante o mesmo amor?

Por que precisavam dividir as terras, quando podiam compartilhá-la?

Ela jamais entenderia isso. Como Rainha entendia o papel que precisava desempenhar para manter a ordem. Mas, como mulher, perguntava-se porque todos não podiam viver em paz?

Sentiu a presença de alguém ao seu lado, e logo os braços de tio Liam a tocaram.

Achegou-se a ele, como fazia desde menina, e sentiu seu beijo gentil na têmpora, como um sopro de amor a acalmá-la.

-- Não quero a guerra -- Ela murmurou. -- Mas, entendo que, diante do que estiver no meu caminho, será o destino que terei que traçar.

Ele assentiu. Desde que deixaram Bran, semanas antes, em muitos momentos Élen ficava em silêncio, parecendo ouvir a própria consciência.

-- Nunca matei um homem, meu tio -- contou o que tanto a angustiava. -- Não sei se estarei preparada para o sangue do povo escorrendo entre meus dedos.

-- Ninguém nunca está, Élen -- Liam murmurou.

-- Queria ser como Esmeralda -- ela sussurrou. -- Corajosa ao ponto de nada temer.

-- Não fique se espelhando em rainhas que já se foram. Você é outra pessoa. E cada pessoa tem sua própria força. Sabe, muito ouvi sobre a fraqueza de mãe Elisabeth, mas quando conheci sua avó, ela se mostrou a mulher mais corajosa e brava que jamais encontrei. Sua outra avó, Melissa, enfrentava a crueldade do pai para cuidar de enfermos, e sua bravura era tamanha que o próprio Bran a protegeu, quando precisou. A coragem nem sempre é demonstrada pelas atitudes visíveis, pelo erguer de uma espada. Muitas vezes, calar-se diante de um acontecimento, ou sofrer em silêncio para vermos felizes aqueles que amamos, é a coragem mais intensa e a bravura mais exemplar.

A mulher fechou os olhos, descansando no corpo másculo e quente.

-- Eu o amo -- ela murmurou. -- Muito obrigada por tudo.

Liam sorriu.

-- Você é a minha princesa.

Aquele momento de carinho foi cortado pelo grito seco no ar.

Élen e Liam se separaram a tempo de ver um dos marinheiros caído no chão, com uma flecha cravada na barriga.

-- O que está acontecendo? -- Liam indagou, mas não era necessário.

Estranhamente, naquela manhã fria, onde o mar estava coberto pela névoa, não era visível nenhuma embarcação próxima. Mas, tão logo cordas foram atiradas da parte inferior do casco, sendo projetadas para cima e correndo pela proa, Liam entendeu que o bando vinha em pequenos barcos até eles.

Eram muitos. Mais do que a frota que agora seguia em Avassalador.

-- Élen, esconda-se na cabine -- ordenou, puxando a espada.

Mas, ela não era mulher de fugir. Não depois de ter passado uma vida toda em treinamento para momentos como aquele.

Era o momento de provar aos homens que um dia comandaria que era a Rainha certa para proteger os Reinos.

Retirando a espada da bainha, ela atacou o primeiro homem que conseguiu subir a proa.

Houve um tilintar de espadas, enquanto se enfrentavam com bravura. Logo, Élen entendeu que tudo que o tio Iwan a ensinou, agora, lhe era útil. Em pouco tempo ela cravou a espada na barriga do homem e partiu para o próximo.

De repente, um cântico baixo. Era apenas uma voz murmurando uma melodia. Élen volveu o olhar procurando o dono do som, atraída de tal forma que jamais conseguiria explicar, mas logo outro homem a atacou.

Ergueu a espada, colocando toda a força naquele golpe.

"Virgem, virgem... minha mãe".

O que diabos era aquela música?

"Quando as flores desabrocharem;

Quando a lua estiver cheia no céu;

Seu amor a tomará, e então estarei em ti;

Minha mãe...".

Matou o homem à sua frente com nítida pressa, enquanto os ouvidos tentavam buscar o local de onde vinha à canção.

Porém, ninguém mais além dela a ouvia.

Por quê?

Abruptamente, o viu.

Sentado em uma mesa do convés, uma flauta nas mãos, tocando a melodia com carinho, os olhos fixos nela.

Logo o reconheceu. Aquele homem há havia buscado no jardim, meses antes. Agora, estava ali... Como?

Tudo ao seu redor ficou esquecido. A luta, a guerra, o fogo que a tomava em meio ao combate.

Apenas, o queria. Tocar seu rosto, abraçá-lo, sentindo-se cheia de um amor que nunca nutriu por nada ou ninguém até aquela visão.

"Eu te escolhi;

Minha mãe."

A melodia fê-la dar passos cada vez mais rápidos em sua direção.

"E quando tudo terminar;

Cashel é o nome que me dará".

E então sumiu.

Com a espada baixa, estirada ao lado do corpo, os olhos transbordando de lágrimas e uma potente ansiedade a tomá-la, Élen quase curvou-se diante do conflito em seu coração.

Contudo, porém, segundos depois sentia uma espada em sua garganta.

Um homem atrás dela agarrou-a, puxando-a, sem dar-lhe espaço para mais nada além do rendimento.

Logo, o corpo feminino se debateu, mas ele era forte.

-- Élen -- ouviu o grito do tio Liam, mas havia mais que a força do homem mantendo-a parada.

Era o destino.

Enquanto o negro a levava para o barco baixo, ancorado ao lado de Avassalador, ela o viu.

E aquele olhar era o encontro de duas almas formadas no mesmo barro.


Capítulo 05

 


O S P R I N C Í P I O S


Ela sentiu o impacto da madeira do pequeno barco contra as costas.

Gemeu baixo, enquanto percebia um corpo grande e forte atrás de si, a fim de prender suas mãos. Ficou em súbito desespero e tentou se defender.

Momentos depois foi apagada por um forte soco contra a face.

Não soube quantas horas levou até os olhos abrirem novamente. Dessa vez, carregada em uma praia por um negro de ombros largos e fortes, ela sentiu-se zonza e desamparada.

Por alguns segundos, pensou ser tio Liam, ou o homem que seus olhos viram em momentos de alucinações, mas logo ateou-se de que não era nem um nem o outro.

Ele a largou na areia, enquanto voltava-se para outros homens.

-- Quantas baixas? -- indagou.

A voz dele era máscula e grave. Seu timbre fez Élen estremecer.

-- Três -- outro homem respondeu.

-- E do lado deles?

-- Nenhuma baixa. Quando perceberam que estávamos de posse da mulher -- apontou o dedo para ela --, recuaram, temendo machucá-la.

O homem que momentos antes a carregava, agora ria, satisfeito. Era uma exultação eloquente, mal contida.

-- Eu sabia que iriam acovardar-se quando percebessem que a vida da sobrinha do Rei corria perigo. Todos temem a reação de Iwan de Masha.

Repentinamente, um som cortou o ar, completamente incoerente a situação do momento.

Era o riso debochado da mulher retida, que fez o homem captor encará-la como se estivesse diante de uma louca.

-- Você acha que Iwan de Masha deixará isso impune? -- Élen questionou. -- Tocou seus dedos sujos de sangue inocente na sobrinha amada dele. Será destruído. Aguarde e verá.

O homem pareceu surpreso. Apesar de amarrada, ela ainda era atrevida e proferia ameaças. Agachou-se diante do corpo feminino, mantendo o sorriso calmo nos lábios.

-- E o que ele fará? Qualquer tentativa de trazer a sobrinha para o seio da família estará te condenando à morte.

-- Acha que eu temo a morte? Meu sangue é o sangue de Esmeralda.

Aquela arrogância febril era algo completamente impróprio para uma mulher na situação de Élen.

Bem da verdade, o sangue feminino jamais estivera tão aquecido quanto àquele instante.

Mas, entendeu ela momentos depois, seu fervor de Masha manifestou-se exatamente no tempo certo, o tempo que precisava acontecer.

Apesar dos cabelos negros, frutos de Bran, ela vinha de uma linhagem antiga, descendente da antiga Deusa. Sempre culpou-se mentalmente por não ser impetuosa como suas ascendentes. Mas, agora, no momento da dificuldade, sentiu-se corajosa.

A menininha que o Rei criou acabava de tornar-se mulher.

E o homem negro sentiu aquilo. Seu olhar tornou-se mais sombrio e, por fim, ele afastou-se.

-- O que farão com ela? -- Uma voz feminina chegou até Élen e ela visualizou uma linda negra ao longe, a conversar com o homem que antes a interceptava.

-- O futuro dela está nas mãos do mestre -- respondeu.

Um mestre?

De alguma maneira, não era uma surpresa. Apenas sacerdotes munidos pelo ódio conseguiam guiar o povo a cometer barbárie. Poucos tinham tamanha capacidade de fazer lavagem cerebral e dominar a vontade de seus seguidores.

-- Não acho certo capturá-la. E se o demônio seduzir a todos nós? -- a mulher murmurou, o tom trazendo um traço de pânico.

O olhar de ambas se encontrou. Élen soube que, para aquele olhar, ela era uma rival. Quase gargalhou, diante do pensamento desajustado da outra.

-- Não seja ridícula. Nenhum membro de Sangue Escuro macularia sua alma com essa imunda.

Séculos após Esmeralda de Cashel, outra Rainha recebia tal título? Élen não segurou mais a risada. O sangue dela parecia fogo.

-- Imundo é quem mata inocente -- rebateu, sem piedade. -- Cada um de vocês é culpado de muitas maneiras pelas atrocidades que ocorrem em Cashel, e não ficarão impunes.

-- Muito corajosa para alguém que está completamente presa.

-- Não se engane. Correntes não podem me deter.

O homem negro aproximou-se rapidamente dela. Com um forte soco em seu rosto, ele enfim a desacordou.

Capítulo 06

 


A S C A V E R N A S D E C A S H E L


Vougan acendeu um incenso diante da estátua negra do Deus Cashel. Suas mãos, em movimentos retos denotavam concentração, enquanto seus lábios mexiam-se rapidamente, parecendo professar uma reza. Mas, logo a interrompeu pela chegada do jovem que liderava Sangue Escuro.

Sorriu à visão esplendida da mulher branca desacordada, carregada nos braços pelo líder Gideon.

-- Você entende? -- murmurou. -- Essa mulher é mais do que uma branca. É a maior das imundas. É a mistura do sangue dos três deuses, uma abominação.

Gideon assentiu.

-- Devíamos matá-la -- murmurou o jovem. -- Para que nunca procrie, não mais contamine o santo solo dos deuses com seu sangue imundo.

Vougan aproximou-se. Tocou a face feminina, marcada pela agressão outrora cometida. Ela estava desmaiada, e parecia ter reagido a captura.

-- Não sejamos precipitados. Iwan de Masha não é qualquer inimigo. O homem é um demônio encarnado.

Gideon suspirou.

-- Ela estava nos braços de um negro, quando a vi -- contou. -- Que vergonha, um homem tão preto quanto qualquer um de nós, tocando com seus lábios limpos a pele dessa mulher.

-- Deve ser Liam, filho adotivo de Elisabeth e Tigre do Mar, irmão do Rei. Para ele, somos todos iguais.

-- Mas não somos todos iguais! -- Gideon reagiu.

As palavras carregadas de ódio animavam o coração do sacerdote.

-- Sua devoção será recompensada por Cashel, Gideon -- afirmou. -- De todos que já professaram nossa fé, nenhum jamais foi tão fiel as nossas leis quanto tu.

-- Não faço mais que a minha obrigação, mestre -- murmurou.

Houve um suspiro longo de Vougan.

-- Amarre a mulher na caverna onde vive -- ordenou.

-- Ela viverá comigo? -- suas palavras eram carregadas de descrédito. -- Não quero isso.

-- Exatamente por esse motivo. Você está tão enojado que a beleza dessa fêmea não irá te cativar.

-- Beleza?

Gideon volveu o olhar para baixo. A mulher tinha o nariz arrebitado e os lábios generosos. Algumas leves sardas sobre o nariz, e as sobrancelhas bem delineadas. Sim, poderia ser bonita, caso sua pele não fosse clara.

-- Ninguém nesse grupo é tão fiel e forte quanto você para resistir a ela. Já pensou se algum dos homens a viole? Manche seu sangue com essa imundície? Você sabe que já precisou evitar estupros nos assaltos as aldeias.

Gideon estava ciente disso.

-- Por isso muito me agradaria seu casamento com Nyalla -- completou o sacerdote, aproveitando-se da oportunidade.

-- Sabe que estou focado, no momento, em vencer essa batalha que é mais que física, é espiritual.

Vougan assentiu.

-- Cuidado com as palavras engenhosas desse demônio -- apontou para Élen. -- Não se deixe ludibriar. Muitas vezes o mal se transveste de bem, de inocente, para fazer cair até o servo mais fiel.

Gideon curvou-se. Depois, se afastou.

Mestre Vougan não precisava se preocupar. Ele não sentia absolutamente qualquer desejo pela imunda.

 

De todas as recordações felizes de Élen, a maior parte delas foi fruto da vivência com os avôs.

Não que os pais não tiveram importância em sua vida. Ao contrário, pai Benjamin a havia ensinado a andar a cavalo e a falar com determinação diante de qualquer pessoa, e mama Lyanna sempre a colocava para dormir cantando cantigas que remetiam aos antigos Deuses.

Suas avós também eram especiais. Na infância, durante os verões quentes de Masha, Melissa a ensinava sobre o poder de cura das plantas, e durante o inverno, Elisabeth lhe mostrava como bordar e dançar.

Mas, foi com os avôs que ela teve as melhores experiências. Norman levava sua neta para cavalgar entre as regiões de Gaia, mostrando a ela onde havia encontrado os Deuses e como havia chegado até ali após anos de tortura por ser bastardo. Suas narrativas lhe determinavam, lhe davam coragem, porque sabia ser sangue daquele sangue, fruto daquela carne, e jamais o decepcionaria.

Já Tigre do Mar lhe levava a navegar. A fazer os nós exigidos nos navios, a falar grosso com os marinheiros, a jamais sentir-se pequena, não importava a dificuldade que sua beleza frágil poderia denotar.

De alguma maneira, quando acordou naquele lugar iluminado apenas por tochas, cercado de pedras das paredes ao teto, e de aparência pobre e humilde, foi a força dos avôs que emergiu nela, sabendo que eles também já haviam passado dificuldades, já haviam sido presos, anos em clausura e, mesmo assim, tiveram força para lutar contra o inimigo.

Élen era a união de Masha, Cashel e Bran. Era o final de uma linhagem que remetia a coragem e a garra. Subitamente, todos os seus muitos medos a deixaram. A mulher soube que, enquanto estivesse ali, ela não facilitaria em nada a vida dos desgraçados captores.

Sentou-se. As mãos nas costas, presas. Os braços latejando tanto contra a sua face.

Um úmido na boca fê-la lamber o lábio. Sentiu o gosto do sangue seco, e começou a planejar seus próximos passos.

Não podia ficar ali, parada, a espera de socorro. Seria a futura Rainha, precisava de algo para conseguir escapar.

Ela lutaria contra os homens. Só cairia em batalha.

Precisava de uma espada! Contudo, como? De que maneira adquiriria uma arma?

Talvez a sedução? Havia funcionado com Brione de Cashel...

Negou com a face. Em suas mais de duas décadas de vida jamais seduziu nem uma mosca. Não tinha aquele talento, era como tio Iwan, imprópria para as festividades e os flertes na corte.

Não era à toa que ele não havia se casado, e ela parecia seguir para o mesmo caminho.

O som na entrada na caverna fê-la desviar os pensamentos. Logo, seus olhos cruzaram com o homem que a havia raptado.

Houve fogo em brasa naquela troca de olhar. O começo do ódio nascente e de um sentimento avassalador.

-- Você vai queimar -- ela ameaçou.

De muitas maneiras, estava certa.


Aldair, filho mais velho e sucessor de Angus na liderança de Cashel, estendeu a mão para Liam, enquanto parecia transparecer a preocupação pelo sucedido momentos antes.

Naquela manhã, assim que desembarcaram no cais de Cashel, as novidades correram até o homem. Agora, no castelo onde regia Cashel, ele não escondia a preocupação para o visitante.

A sobrinha do Rei havia sido capturada pelos rebeldes que já provocavam muita dor de cabeça no regente de Cashel.

-- Iwan de Masha mandará matar a todos -- murmurou ao negro, que não sabia ao certo o que responder.

Logo Liam adentrou o salão real e sentou-se na cadeira onde o irmão costumava repousar sempre que vinha até ali. Buscou por papel e o tintureiro. Precisava escrever uma missiva à Iwan, para que logo soubesse que as coisas se complicaram.

-- Eles já pediram o resgate? -- indagou, antes de começar a escrever.

-- Até agora não tivemos nenhuma informação.

-- Mas sabe onde se escondem?

-- As montanhas são um amontoado de labirintos difíceis -- Aldair comentou. -- Não temos certeza, mas sabemos que estão nas cavernas. Pretende atacar?

Liam negou.

-- Não posso colocar a vida de Élen em risco. -- Suspirou fundo. -- Como pude falhar tão gravemente...?

-- Se a moça é parecida com o tio, seria difícil mantê-la em segurança -- apontou, tentando ser complacente nas palavras.

-- Nunca o foi -- Liam negou. -- Enquanto esteve em Bran, parecia insegura e triste pelo destino. Mas -- as imagens pareceram voltar a sua mente, os segundos que antecederam o ataque e a febril reação feminina assim que avistou os inimigos --, no momento em que os rebeldes adentraram Avassalador, ela mudou completamente. Seu olhar, sua feição, até mesmo a maneira de respirar... Era como se fosse outra mulher. Alguém até então desconhecida para mim.

-- Outra mulher?

-- Mãe Elisabeth diz que existe uma mulher antes e outra depois da maternidade. Era como se Élen fosse mãe, naquele instante. Não mais a menina insegura, e sim uma leoa a proteger a cria.

-- Mas, é casta, não?

-- Nunca teve homem -- afirmou com convicção. -- Sempre temi pelo futuro do Reino, já que ela se mostrava como Iwan; então, para quem deixaria a Coroa?

Em seguida, Liam respirou fundo.

-- Se não foi a maternidade, o que a mudou de forma tão impactante?

Aldair deu os ombros, incerto.

-- Precisamos entrar em contato com os rebeldes e descobrir o que querem para soltar Élen.

-- Não será fácil. São fanáticos.

-- Eu sei disso.

-- Preocupa-me o destino da moça -- confessou. -- E o meu. Iwan não perdoará...

-- Fala como se meu irmão fosse um monstro. Iwan sabe que não foi culpado pelo que se sucedeu.

Aldair tentou se convencer disso.

-- Esses rebeldes se alastraram sobre minha regência. Devia ter mandado puni-los antes.

-- Não é hora para culpa. É hora para fazermos algo em prol do bem de Cashel.

Baixando a fronte, pôs-se a escrever. Em seu íntimo, rezou para que Masha contivesse a gana de Iwan, ao descobrir o fato.

Os rebeldes não faziam ideia do quanto Iwan poderia ser cruel. E eles se arrependeriam quando soubessem.


Capítulo 07

 

D I F E R E N Ç A S


Ele era alto. Provavelmente o homem mais alto que ela já havia conhecido. Também era bonito, apesar de Élen não estar disposta a contemplar a aparência de alguém.

A noite já havia caído, mesmo não sabendo as horas, ela sentia a friagem noturna sobre a pele, arrepiando-a.

O homem, do outro lado da caverna, mexia um caldeirão, como um sacerdote em um ritual. Logo percebeu que era alimento.

Depois, ele volveu o olhar em sua direção. Era gélido e odioso, como se a culpasse por todo o mal do universo.

Mais tarde, o negro aproximou-se, libertou suas mãos e lhe ofereceu o caldo que cozinhava.

Ela ficou enojada, não porque parecia sujo, mas porque sua raiva havia dominando-a completamente. Um sentimento que jamais havia sentido antes, uma vontade absurda de saltar em cima daquele homem e matá-lo com as próprias mãos.

-- Qual seu nome? -- indagou, contudo, não porque a interessava, mas porque queria falar para evitar que o ódio a dominasse completamente.

-- Eu sou Gideon.

Era um nome incomum. Não que aquilo importasse.

-- Sou Élen -- disse, numa apresentação nem um pouco pueril.

-- Não me importa o nome de uma imunda.

Ela riu. Estranhamente, subitamente e sem esperar. Simplesmente a risada desabrochou de seus lábios e escapou de sua boca, em deboche.

-- Você não teme os deuses por falar tal coisa?

-- Sou fiel a Cashel -- retrucou, sério.

Enfim, ela pegou o recipiente de madeira onde o caldo estava servido. Viu pedaços de cenoura boiando sobre a água.

-- Fiel a Cashel? O que Ele diria em vê-lo falando assim de outra pessoa.

-- É o que você é.

-- Nunca leu as escrituras? Não existem imundos.

-- Li as escrituras. As verdadeiras. As anteriores a adulteração cometida pela sua família, seus antepassados. Sabemos que Cedric de Bran estava tão encantado por uma vadia imunda que mentiu sobre uma visão com os deuses e modificou as leis em benefício próprio, para ficar casado com a mulher.

Aquilo estava completamente fora de qualquer contexto. De toda a verdade. Cedric de Bran jamais quis se casar com uma mashiana, e o início de seu casamento com a Rainha Esmeralda foi - conhecidamente - difícil, já que ambos tinham temperamento explosivo.

-- Vocês são loucos -- ela acusou, num insulto desmedido. -- Loucos.

O homem deu os ombros como se as palavras dela não significassem nada. Logo voltou para próximo de seu caldeirão e voltou a mexer no ensopado.

Élen não queria comer, mas a barriga roncou e estava tão frio que o simples fato de segurar aquele recipiente aquecido já era agradável.

Sorveu o líquido e gostou do sabor. Poderia até elogiar, não fosse a enorme necessidade de atirar o prato na cabeça daquele desprezível.

-- Sabe o que meu tio fará a ti? -- indagou, debochada, apenas para vê-lo se descontrolar, para que saltasse em cima dela, perto o suficiente para que ela pegasse a faca que estava em sua cintura.

-- Iwan de Masha não fará nada, tendo eu a sua sobrinha cativa.

-- Ele vai castrá-lo -- contou, rindo. -- Depois pegará seu pau e enfiará em sua garganta, fazendo com que você sufoque com seu próprio pênis.

O homem a encarou, espantado. A própria Élen não entendia como podia ter pronunciado tais palavras.

-- Você é bem corajosa para quem está completamente a mercê de um homem desconhecido.

-- Eu sei seu nome -- ela apontou. -- Posso dizê-lo para Bran, quando encontrá-lo após minha morte. Ele se vingaria de tudo, por mim.

Subitamente, um riso invadiu a caverna. Era a primeira vez que Élen via aquele homem demonstrando qualquer sentimento além da raiva e da apatia.

E ela entendeu que podia temer a situação que se encontrava, mas, definitivamente não temia o homem que a capturou e a mantinha presa.


Élen viu o sol pela primeira vez desde a captura, cinco dias após ser mantida presa nas montanhas.

Provavelmente o homem negro, chamado Gideon, percebeu que o frio parecia ter se enraizado na mulher, e achou melhor tirá-la da caverna e levá-la até a parte exterior, onde a colocou sentada num vão entre as pedras, exatamente em um lugar em que o sol adentrava e a tocava, trazendo um calor acalentador.

Com as mãos e pés amarrados, a princesa imaginava como faria para escapar daquele lugar. Todas as suas provocações ao homem não surtiram efeito. Em nenhum momento Gideon fez menção de se aproximar para uma briga. Mantinha dela uma distância segura, e jamais a deixava sozinha com qualquer objeto que poderia servir de arma ou que pudesse cortar as cordas.

Definitivamente, estava começando a ficar desesperada.

Foi a aproximação de outra mulher que lhe trouxe uma bendita ideia. Quem sabe não poderia criar uma amizade e conseguir ajuda para escapar?

-- Olá -- cumprimentou, assim que a outra agachou-se ao seu lado, e arrumou hidromel para ela.

-- Gideon mandou lhe dar para espantar doenças -- disse, fria.

-- Agradeço muito. Como se chama?

O olhar negro contra o seu a arrepiou.

-- Não direi meu nome a uma imunda.

E então afastou-se. Élen suspirou profundamente, percebendo que não seria nada fácil adquirir qualquer simpatia daquele povo.

Pareciam cegos. Não viam que ela tinha olhos, mãos, boca, nariz, e todos os membros como cada um deles? Por que algo tão insignificante quanto a cor de sua pele causava neles tamanho horror?

Afinal de contas, com certeza a maioria deles tinha sangue branco correndo nas veias. Podiam ter a pele escura, mas seus antepassados deviam ter se casado com outras raças.

Arqueou as sobrancelhas quando notou que seria fácil uma criança branca nascer naquela aldeia... Foi nesse exato momento que notou que todos os pequenos que cruzavam diante dela eram negros.

Ao longe, homens e mulheres trabalhavam como em qualquer lugar nos Reinos, e alguns riam, como gente comum.

Contudo, não era comum. Nada ali estava certo.

-- O que fazem quando nasce uma criança branca? -- ela questionou a um homem que se aproximou pouco depois.

Pelas vestes, notou ser um sacerdote.

-- Brancos são mortos assim que nascem -- ele apontou, um sorriso maligno na boca. -- Não queremos crianças doentes aqui. É uma limpeza necessária.

Élen sentiu-se mal.

-- A cor de uma pessoa não é uma doença.

-- A mistura de raças é uma execração terrível -- murmurou. -- Você não entenderia porque é fruto da mais terrível das abominações.

 

-- O Mal -- Vougan advertiu, alto, em sua celebração ao Deus Cashel -- nunca tem aparência terrível. Porque o feio não nos conquista. É a pureza no olhar, a docilidade nos lábios, que nos leva a decadência.

Os membros do grupo religiosos assentiram, numa confirmação de compreensão.

-- Temos dentro de nossa aldeia um demônio de aparência bela e jeito com as palavras. Esse maligno fará de tudo para conquistar a simpatia de vocês, para que percam sua alma. Não confiem nela.

Enquanto os múrmuros de resignação tomavam conta dos homens e mulheres, um, em especial, sentado na terceira fileira, parecia desconfortável.

Élen não era assim, doce. Ao contrário, já havia feito ameaças claras a ele, e numa das noites que levou-lhe um cobertor, ela quase cuspiu em seu rosto.

Era um desencontro com suas crenças, e Gideon baixou a face, rezando baixo a Cashel.

Não podia vacilar. A limpeza da terra sagrada do Deus negro dependia muito de sua firmeza em lidar com aquela mulher intensa.


Capítulo 08

 


O C O M B A T E


Élen recostou as costas nas paredes, sentindo os braços arderem pelo tempo que não se mexia.

O captor costumava levá-la para fora algumas vezes no dia, para que pudesse ser agraciada com um banho de sol, e respirar ar puro. Também sempre lhe alimentava, não apenas com caldo, mas com frutas. Apesar de nitidamente desprezá-la, ele tinha a decência de não deixá-la a mercê da fome.

Contudo, ela trocaria todas as caminhadas e caldos servidos por um único banho, pois não havia se banhado desde que chegara ali. Seus parentes, ao contrário de muitos nobres, costumavam se higienizar diariamente, e ela cresceu com o mesmo costume. Porém, Gideon não parecia disposto a levá-la até um rio.

Enquanto os pensamentos vagueavam nessa direção, percebeu que aquela tribo era muito limpa. Eles mantinham sanitários longe das cavernas, e também sempre se lavavam. Não fediam a suor, como muitos habitantes de Masha e Bran.

Notou também que eram bem organizados, as mulheres e crianças sempre ocupados com as plantações pequenas, hortas entre pedras, que criavam para ter mais do que a caça que os homens provinham.

Além de caçar ou pescar, os homens estavam sempre em treinamento. Assemelhavam-se a uma guarda real, e o homem grande, Gideon, era um líder forte e autoritário.

Ele nunca sorria, contudo. Nunca. Estava sempre carrancudo, olhando tudo com raiva, mesmo as pessoas do seu clã. Élen pensou que ele não podia ser diferente, já que havia vivido sob o domínio do ódio aos brancos e da aversão aos mesclados.

Pensou um pouco em si mesma. Desde que havia chegado ali, estava dominada pelo mesmo sentimento. Tudo que experimentava era a intensa necessidade de ferir, de vingar-se pelo atrevimento de tirá-la dos braços de seus amados tios.

Por quê?

O que havia naquele pedaço de terra que a impelia a dizer coisas que, outrora, jamais escapariam de seus lábios. Pensou em si mesma uma semana antes, uma jovem doce, temerosa pelo futuro. Era o oposto da mulher que sentia o sangue ferver numa raiva crescente.

Alguém entrou na caverna. Élen demorou a perceber ser um desconhecido, um homem que ainda não havia se apresentado a ela.

Estudou-o. Magro, alto, atlético e até bonito. Na cintura, aquela faca grande que todos usavam, menor que uma espada, mas maior que as facas comuns.

Mas foi o olhar masculino, carregado de desejos que não conseguiam ser escondidos, que fê-la ter uma interessante ideia.

Aquele homem estava ali porque a queria. E, pelo brilho de seu olhar, e o volume de suas calças, a queria muito. Pelo jeito, nem todos os homens da aldeia a consideravam tão imunda a ponto de ser indiferente aos desejos masculinos.

-- É isso que veio buscar? -- ela murmurou, abrindo as pernas, ajeitando-se de modo que o vestido subisse um pouco e ele pudesse ver a palidez das coxas.

Nem precisou de um segundo chamado. Segundos depois, o homem estava diante dela, respirando rápido e fundo, pronto para fodê-la.

De nada adiantou.

Na tenra idade, ainda muito jovenzinha, tio Iwan a ensinou a lutar com as pernas. Nem era complicado, impulsionava o quadril para cima, prendia a cabeça dos homens entre suas pernas, e segundos depois girava, com toda força que pudesse.

Ela havia feito o golpe milhares de vezes no passado. Mas, jamais imaginou que um dia aquilo lhe seria útil.

Assustado, o homem tentou lutar, mas logo percebeu que qualquer movimento poderia fazer as coxas quebrarem seu pescoço. Então, ergueu as mãos, tentando apertar a garganta da mulher. Surpreso, a viu se projetando para trás. Logo entendeu, ela levava as mãos amarradas até sua faca, esfregando as cordas na lâmina afiada.

Com as mãos livres, enfim Élen pegou a faca grande. Ergueu-a, apontando para o homem, enquanto se afastava.

Naquele instante percebeu que ele iria gritar, denunciando seu audacioso plano. Aproximou-se rapidamente, e chutou seu pênis. Quando ele se agachou pela dor, a descendente de Esmeralda bateu a bainha com força contra sua cabeça.

O homem ficou desacordado imediatamente.

Enfim, estava livre. Ao menos, das cordas. Agora, precisava atravessar a aldeia e correr entre as montanhas. Sabia se guiar pelo sol, tinha certeza que poderia voltar para junto dos seus.

Todavia, ao chegar à entrada, deu de cara com Gideon. O negro pareceu surpreso, os olhos arregalados logo foram em direção ao tapete onde ela dormia. Viu seu companheiro lá, apagado, e entendeu que houvera uma luta.

-- Solte a faca -- ordenou. O tom nunca perdia a calma.

-- Me obrigue -- ela devolveu.

Gideon parecia não acreditar no tamanho de sua insolência. Logo, ergueu a espada contra ela, e avançou.

Élen entendeu que, por ser mulher, ele maneirava na intensidade dos golpes, e lembrou-se de Iwan, dizendo para nunca se vitimar pela sua condição. Ficou furiosa, portanto, por ele considerá-la fraca, e resolveu agir com inteligência.

Foi rápida, avançou em passos retos, tentando encontrar brechas enquanto dançava a faca por espaços curtos.

Queria furá-lo. Queria muito furá-lo.

Contudo, ainda assim, ele era superior. Apavorou-se, odiando a si mesma por não ter se empenhado mais no treinamento, quando foi projetada para o chão.

O rosto sujou-se com a terra batida, e ela sentiu a lâmina da faca dele na sua nuca.

-- Me mate -- ela ordenou.

-- Uma imunda não me dá ordens -- contrapôs, puxando as mãos dela e voltando a atá-las.

Élen sentiu lágrimas nos olhos. Mas, negou-se a chorar.

Não era do pranto que precisava e sim de um novo plano. Se não vencia Gideon pela força, teria que achar outra saída.

Ela jamais se renderia.


A mulher que havia aparecido dias antes e lhe dado hidromel, surgiu novamente na caverna, dias após a fracassada tentativa de fuga de Élen.

Era linda, isso ficou evidente. Sua pele de ébano contrastava com a roupa clara. Seus olhos pareciam dois poços profundos, repletos de mistérios, e seu andar denotava alguém que era forte, mesmo que sua feminilidade a fizesse aparentar uma fragilidade que só existiria nos pensamentos dos homens que sonhavam com aquela mulher.

-- Ei -- a princesa gritou, tentando chamar sua atenção. Quando o olhar da outra foi em sua direção, sua voz fraquejou. -- Por favor, me ajude.

A negra negou com a face, e depois agachou-se diante da fogueira. Parecia ansiosa para limpar tudo e sair dali.

-- Por favor -- Élen implorou, e só então se permitiu chorar.

Houve um suspiro de resignação. Subitamente, a outra se aproximou.

-- O que você quer?

-- Água -- explicou. -- Água para me limpar. Eu não suporto mais meu cheiro.

A mulher de pele escura pareceu pensar. E havia conflito e medo em sua mente. Afinal de contas, aprendeu desde a infância que diante de si estava o mal encarnado, o fruto da abominação. Mesmo assim, ao pedir ajuda, aquela mulher branca não se assemelhava ao demônio.

-- Espero que você vá embora logo -- murmurou, e era sincera.

-- Te incomoda me ver na casa do seu homem?

Élen havia visto a mulher e Gideon próximos várias vezes. Logo percebeu que poderia haver algo entre eles. Usar aquela tática poderia lhe trazer benefícios. Se a mulher se enciumava o suficiente para detestá-la, talvez a ajudasse a fugir.

-- Você acha que eu o amo?

E não era isso mesmo?

-- Mestre Vougan diz que Gideon deve ser meu marido.

-- E o que pensa disso?

-- Penso que farei tudo que Cashel quiser, me sinto honrada em cumprir sua vontade.

Élen negou.

-- Cashel nunca obrigaria uma mulher a viver ao lado de um homem que ela não ama.

A outra pareceu estudar as palavras. Logo depois, negou veementemente com a face.

-- Demônio, quer me fazer fraquejar em minha fé?

Naquele instante, Élen sentiu pena dela. Alguém que havia perdido algo tão simples e valoroso quando a decisão da própria vida.

-- Só quero me limpar -- choramingou. -- Minha pele está tão suja que sinto como se tivesse caído num balde de azeite. Minha cabeça coça, e mal consigo suportar meu próprio odor. Tenha piedade.

A mulher se afastou.

Élen entendeu que ali não havia misericórdia em ninguém.


Contudo, ela voltou. Com o olhar acuado, parecendo ser perseguida por demônios, e com uma culpa resplandecendo no olhar, a mulher negra surgiu com uma lata de água quente, e um sabão de cor amarelada.

-- Eu sou Nyalla -- disse a Élen, no tom uma culpa palpável. -- Trouxe um pano, para que possa esfregar o sabão e passar na pele. Ajuda a limpar. -- Curvou-se para soltar as cordas da outra. -- Mas, eu juro que se você tentar fugir, jamais farei qualquer ato de bondade novamente.

Élen assentiu. Estava tão agradecida que uma fuga sequer cruzou seus pensamentos.

Quando as mãos tocaram a água, ela sentiu-se lacrimejar pela primeira vez. Algo tão pequeno quanto um banho tinha agora um significado tão forte que mal conseguia acreditar.

Talvez, pensou, sacrifícios fossem necessários para moldá-la como Rainha.

Esperançosa por esses pensamentos, ela puxou a blusa, desnudando-se da cintura para cima. Esfregou o pano molhado e quente embaixo dos braços, sobre os seios, e atrás da nuca.

Não poderia lavar o cabelo, mas os penteou com os dedos molhados, tentando limpá-los um pouco. Nesse momento, Nyalla surgiu por trás, derramou um copo de água quente sobre suas madeixas.

Aquele ato de bondade trouxe novamente a Élen doce à tona. Parecia que sua verdadeira personalidade, até então afogada em ódio, retornava. Aquela mulher que poderia vê-la como uma rival e, contudo, tratava-a com piedade, fê-la lembrar-se pelo que lutava.

-- Muito obrigada -- murmurou.

-- Eu me banho duas vezes por dia -- Nyalla comentou, rindo. -- Fico imaginando como me sentiria se não pudesse me limpar.

Houve uma troca de risos, interrompida pela chegada de um homem.

Élen imediatamente ergueu as mãos e cobriu os seios de aréolas escurecidas. Seus olhos focaram em Gideon e no quanto ele parecia espantado por ver aquela confraternização feminina.

Soube, tão logo o olhar dele deixou-a e encarou Nyalla, que a mulher seria punida. Então, postou-se à sua frente.

-- Você não vai tocar um dedo nela -- jurou.


Capítulo 09

 


C O T I D I A N O


"Você não vai tocar um dedo nela".

Aquela frase ecoou pelas paredes da caverna, formando um eco que parecia se intensificar a cada segundo.

Gideon tentou manter a calma.

Que tipo de homem aquela imunda pensava que ele era? Achava que iria bater em Nyalla porque a jovem negra fora seduzida por suas palavras de demônio?

Nyalla era inocente. Élen, a princesa, é que era capaz de fazer qualquer um perder a cabeça. O fato de a mulher negra estar ali provava que a imunda não engodava apenas aos homens.

Percebeu-a corajosa, com os seios cobertos. Eram grandes, e as mãos pequenas só conseguia cobrir as aréolas negras. Aquela visão o deixou desconfortável, e ele focou-se em sua fé para não pestanejar diante de suas reações humanas.

-- Saia -- ordenou a Nyalla.

Ninguém se mexeu.

-- O que fará a ela? -- a negra indagou, fazendo o coração do homem fraquejar.

Havia bondade ali. Preocupação. Empatia. Apesar daquele canto em meio às montanhas estar carregado de um ar sinistro, uma aura maligna, aquele pequeno ato de coragem e compaixão conseguiu romper tanta maldade.

A atmosfera mudou de tal forma que ficou palpável.

Incomodado, transtornado e confuso, quem acabou saindo foi Gideon. Dando às costas as mulheres, ele buscou refúgio de sua mente em conflito.


Os deuses tinham muitas formas de suprimir o mal. O amor era o sentimento mais nobre e usado, mas a verdade é que a amizade poderia ser ainda mais poderosa em destruir o Maligno.

E quando acendeu-se aquela fagulha de simpatia entre as duas mulheres, enfim o fogo de Cashel conseguiu acalentar os corações, varrendo um tanto o gélido daquele lugar manchado de ódio.

O fardo de Élen aliviou-se. A companhia diária de Nyalla acabava por trazer-lhe conforto. Elas não trocavam muitas palavras, pois ainda havia na mulher negra um sentimento de aflição por estar caindo nas teias do demônio, mas não conseguia esconder a felicidade por enfim ter conhecido uma amiga.

-- Quando eu me for, a levarei comigo -- Élen disse, certa vez.

Sair dali, daquele mundo onde não tinha voz, onde tudo se remetia a cumprir a vontade da religião, e tomar as rédeas da própria existência pareceu instigante e arrebatador a outra.

Nyalla não disse, mas soube que seguiria com a branca, onde quer que ela fosse. Porque, bem da verdade, no fundo, estava exausta de ser exatamente a boa moça que mestre Vougan queria.

Contudo, não podia demonstrar isso. Se o sacerdote desconfiasse que o demônio branco a estava enfeitiçando e - pior! - que ela estava aceitando cair em sua teia emaranhada de liberdade, só Cashel sabia os tipos de penitências e flagelos que seria submetida para limpar sua alma.

Então, discretamente, sorria em direção à outra quando vinha lhe trazer água ou comida, e aquiescia diante do sacerdote quando ele lhe comentava sobre os cuidados que devia tomar diante da branca.

Também havia os comentários sobre Gideon. De forma extremamente bem calculada, palavras soltas sobre a necessidade dos dois firmarem um compromisso eram jogadas contra ela. Deixava a cargo dele espantar aquelas ideias.

Gostava do homem. Era bonito e a fazia estremecer. Mas casar-se com ele era demais. Não queria. Só o faria se Cashel não lhe deixasse escolhas. Como Gideon titubeava sempre que o assunto vinha à tona, de alguma maneira, ela soube que era Cashel respondendo suas preces noturnas.

-- Você cresceu aqui? -- Élen lhe indagou numa das manhãs que lhe trouxera frutas.

-- Meus pais morreram quando eu era criança, e mestre Vougan me acolheu.

-- E é feliz?

A negra não respondeu. Deu os ombros, insegura.

-- O que é a felicidade?

Era uma pergunta que Élen não saberia responder. Contudo, viu-se a dizer:

-- Um dia, um homem negro que jamais havia encontrado antes, surgiu diante de mim. Na verdade, ele me apareceu duas vezes, em momentos distintos, e o olhar que me destinou trouxe tanta alegria em minha alma que eu não saberia expressar. Acho que aqueles breves segundos foram felicidade.

Outro sorriso. Agora também compartilhavam um segredo.

Nyalla soube mais que nunca que era Cashel respondendo suas inquietações.


Nyalla estava enfeitiçada pelo demônio branco. Contudo, o que devia fazer? A negra era sua amiga desde a infância. Queria-a muito bem, e sabia que Vougan não deixaria impune tal desgraça caindo sobre a aldeia.

Estaria certo manter silêncio? Gideon estava a cada dia mais afligido pelas suas inquietações.

Se um lado seu lhe dizia que a vontade do Deus Cashel estava acima de tudo, outro lhe remetia ao olhar doce e sensual daquela mulher que dividia o teto com ele.

As ameaças dela não o incomodavam. Na verdade, tudo nela lhe indicava o contrário.

Sempre foi um homem orgulhoso por não cair em teias de desejo, mas apercebeu-se a observar-lhe as formas enquanto dormia. De um dia para o outro, passara a interessar-se pelo seu tom de voz e, então, sem que notasse, aos poucos, deixava as cordas mais frouxas, lhe levava mais tempo que o necessário para o sol, e lhe dava mais comida que o suficiente para mantê-la viva.

Se não conhecesse sua própria honra, diria que estava protegendo aquela ameaça. De forma discreta, quase imperceptível a qualquer olhar, estava cuidando para que o tempo que a branca estivesse ali fosse o menos difícil possível.

Quando menos esperava, veio o inevitável: estava pensando em como deixá-la livre.

Tão logo esses pensamentos cruzaram sua mente, exatamente em meio a um assalto em uma vila, ele se condoeu e se culpou.

Estava pecando. Pecando por causa dela.

Precisava de remissão, precisava das palavras de mestre Vougan que o tirassem do terrível sentimento que passava a nutrir pela rainha ilegítima dos Reinos.


-- Irei em peregrinação pelas aldeias, espalhar a palavra de Cashel -- Vougan lhe comentou, assim que o viu. -- Precisamos aumentar o número de adeptos e levar a salvação a todos...

Havia voltado naquele dia e ido em busca do sacerdote. Contudo, tão logo o viu, as palavras travaram-se em sua garganta e ele não pôde dizer nada do que o incomodava.

-- Crê-se seguro para ficar sozinho com o mal encarnado e ainda cuidar dos seus? -- o sacerdote inquiriu.

Percebeu no tom a absoluta confiança que tinha em sua capacidade.

-- É claro, meu senhor. -- Curvou-se, beijando as mãos do outro.

A convicção em sua voz era falsa. Estava a cada dia mais seduzido pelo que representava a mulher presa em sua caverna.

Aquilo estava errado. Muito errado.


Capítulo 10

 


A M U L H E R É L E N


O sol já havia nascido e morrido entre as brechas das montanhas muitas vezes desde que Élen fora trazida até aquele lugar. Com o tempo, passara a parar de contar os dias, entregue subitamente à desesperança de um dia escapar dali.

Como estariam os tios, diante disso? Provavelmente, Liam se culpava e Iwan estava possesso. Só Bran saberia o que ele faria as pessoas daquele lugarejo quando tomasse ciência de seu cativeiro.

No fundo, apiedava-se. Quanto mais tempo ficava ali, mais percebia que a influência religiosa do sacerdote havia dominado suas mentes e tornando-os pessoas que jamais seriam, caso vivessem em outro lugar.

E como culpá-los? Às vezes Élen ouvia os discursos inflamados. Eram tão sentimentais e dominantes que ela se via questionando a si mesma, sua natureza e sua família. Precisava de muita força moral para não cair na lábia de Vougan.

Seus pensamentos foram cortados pela entrada de Gideon.

Não o havia visto naquele dia. Nyalla passara o dia consigo, e havia se ido antes do pôr-do-sol. A noite já era breu absoluto quando o homem adentrou no lugar e a encarou.

Ficaram alguns segundos medindo o olhar. Logo ele o desviou. Então rumou até seu canto, e deitou-se nas camadas de tecido que serviam de leito.

Não diria nada? Sempre a inquiria sobre algo. Naquela noite, sequer trocariam ofensas?

Sentiu-se decepcionada, e ao mesmo tempo, febril. Despejar a raiva nele era a única coisa que ela tinha, e agora parecia ser renegada a seu único alento.

-- Diga-me, Gideon -- ela provocou, do outro lado da caverna. -- O que fará quando Rei Iwan chegar a Cashel?

Imaginou se ele lhe responderia. Levou um certo tempo, mas enfim as palavras vieram e ela sentiu-se estranhamente aliviada.

-- Não me preocupo com isso.

-- Meu tio não irá te poupar.

-- Ainda tenho sua vida nas mãos e posso me defender.

-- Sou uma Rainha.

-- É uma mulher -- ele retrucou. -- Pode saber usar armas e até a língua afiada para me desestabilizar, mas não deixa de ser uma fêmea frágil que eu derrubei no primeiro golpe.

Só então percebeu que ele havia sido o homem que a pegou em Avassalador. Naquele desencontro total de espadas, não havia se dado conta até então que Gideon era o primeiro, além do tio, a derrotá-la com a espada.

Afinal, ela não contava a luta na caverna. Naquela ocasião, sua arma era uma simples faca grande.

-- Não me derrubou. Estava desconcentrada.

-- O resultado continua sendo o mesmo.

-- De igual para igual, com espadas, eu te venceria.

De alguma maneira, ele não duvidava. Mas, preferiu sorrir, desdenhando da habilidade que ela dizia ter.

-- Você vai me matar, Gideon? Como matou as mulheres e crianças brancas que encontrou na aldeia?

-- Cumpro a vontade de Cashel.

-- O mais bondoso dos Deuses jamais ordenaria assassinato.

-- Às vezes, numa revolução, o sangue precisa ser derramado.

Ela sentiu os olhos úmidos.

-- Você acredita mesmo nisso?

Aquela pergunta ecoou dentro dele, instigando suas dúvidas, corroendo sua alma.


Lis, o segundo maior navio do Reino, despontou no horizonte, fazendo o coração de Liam acalmar-se depois de dias em agonia.

A enorme embarcação, cujo nome homenageava a mãe do Rei, cruzava as ondas com rapidez usual, denotando sua magnitude naquele porto um tanto empobrecido.

Logo um pequeno barco trouxe à terra a comitiva real, formada pelo Rei e três guardas. Era pouca gente, mas Iwan nunca precisava mais do que isso.

Tinha o dom da espada e o sangue quente de quem sabia se proteger. Tão logo saltou para o cais, seus braços buscaram o irmão, num abraço saudoso e preocupado.

-- O que descobriu? -- inquiriu logo, pois estava nervoso.

-- Está nas cavernas. Pegamos um dos homens deles a nos espionar. O prendemos, mas ele não diz muito.

Iwan assentiu, compreendendo.

-- Vai dizer -- afirmou. -- Pode acreditar que vai dizer.

Mais tarde, ao adentrar no calabouço do feudo regencial, ele encarou o homem cuja identidade era Elimas. O nome e o lugar da aldeia haviam sido as únicas coisas ditas por aquele rapaz de bonita aparência, mesmo sobre forte ameaça de tortura.

Agora, contudo, Elimas sabia que falaria mais do que devia. Não porque sentia-se inclinado a isso, mas porque o olhar verde-esmeralda de Iwan de Masha arrepiaria até mesmo um morto.

-- Diga tudo que sabe, e talvez eu tenha misericórdia -- o Rei ruivo ordenou, sem rodeios.

O negro sentiu-se lacrimejar.

-- Não sei muito -- antecipou-se. -- Na única vez que estive com sua sobrinha, ela me seduziu e, quando me aproximei, me deu uma chave de pernas que quase me matou.

Liam abriu a boca, espantado. Iwan, ao contrário, não conseguia esconder a satisfação.

-- Élen nunca se rebaixaria em seduzir um homem indigno como você -- Liam despejou, o ultraje era nítido em seu tom.

-- Para bater nele, eu diria que ela faria qualquer coisa -- Iwan negou. -- Brione de Cashel também se submeteu para conseguir a espada para a filha, Esmeralda.

Liam conhecia a história. Mas, uma coisa era as lendas narradas nos livros, outra era sua sobrinha doce e gentil a tentar enredar um homem para vantagens.

-- Onde ficam as cavernas?

-- Ao sul. Perto do lugar onde outrora ficava o castelo do Rei Lugus.

Era um local inóspito, e sem ambiente propício a agricultura. Por que se enfiariam ali?

-- Se atreve a mentir para mim? -- Iwan aproximou-se repentinamente, segurando-o pela camisa. -- Tragam-me uma faca. Castrarei esse desgraçado com minhas próprias mãos.

-- Não, Rei ruivo, não! -- implorou Elimas. -- Juro que é verdade. Mestre Vougan usa o lugar porque se diz descendente do antigo Rei de Cashel. Foi lá que ele montou a aldeia de Sangue Escuro.

Iwan o soltou.

-- O que mais sabe?

-- O líder do movimento é um jovem chamado Gideon -- contou. -- Estamos todos sob suas ordens.

-- É ele que ordena o ataque aos brancos?

-- É ele que cumpre a vontade do Deus Cashel.

Como era difícil dialogar com fanáticos.

-- Essa não é a vontade de Cashel.

-- Mestre Vougan afirma...

-- Eu vi com meus próprios olhos a Deusa Masha e posso garantir...

-- Talvez Masha seja uma cadela que traiu a vontade dos outros Deuses, mas Cashel jamais aceitaria tal ultraje. Brancos e negros vivendo juntos, como irmãos...

Era mais que uma alusão aos Deuses, àquela afronta era direta aos irmãos que regiam os Reinos. Iwan olhou para trás e percebeu Liam lívido pela coragem naquelas palavras.

-- Ele pediu -- Iwan murmurou.

-- Por favor -- Liam se interpôs. -- Releve suas palavras, é apenas um coitado.

-- Se a ofensa se limitasse a nós dois, eu perdoaria, mas jamais permitiria a um homem chamar Masha de cadela e deixá-lo sem ao menos um soco...

Liam fechou os olhos diante dos sons que se seguiram.

 


Os olhos límpidos de Élen arregalaram-se diante da narrativa. Perto dela, Nyalla deu um sorrisinho malicioso, e depois mordeu uma maça.

-- Não acredito -- a princesa retrucou.

-- Mas é verdade -- a outra deu os ombros. -- Eu juro que é.

Lá fora, a réstia de mais um dia de sol que se findava, parecia acariciar a entrada da caverna. Livre das amarras, Élen apenas olhava para aquela saída sabendo-se incapaz de escapar, mesmo sem as cordas.

Em tudo, porque não podia decepcionar a confiança da outra. Nyalla a desamarrava todos os dias, e dividia as horas com ela. Preferia passar o resto da vida ali, presa, do que trair aquela amizade.

-- Só em se esfregar? -- indagou, ainda incrédula.

O risinho da outra voltou. Era a primeira vez que Élen tinha uma conversa dessas.

-- Sei que não parece verdade, mas juro que é. Quando um homem te encosta contra uma árvore, algo nele, lá embaixo, fica bem firme, e basta você se esfregar bastante nisso que sente uma sensação incrível, como se perdesse o ar, como se fosse para outro mundo.

Seria difícil encarar Gideon depois do que Nyalla lhe contara.

-- E Gideon também sente?

-- Eu sei lá o que ele sente? -- Nyalla deu os ombros. -- Pouco me importa, contanto que dê a mim aquele prazer -- riu novamente. -- Mas, fazemos isso de roupa, porque sem roupa só é permitido entre marido e mulher.

Os pais e os avós então também faziam isso sem roupa?

-- Eu acho tudo tão estranho.

Parecia um mundo além de tudo que ela conhecia. A vida era mais simples sem esses rompantes de sexualidade.

-- Você nunca olhou pra ele?

-- Olhar para ele? -- Élen arregalou os olhos.

-- Gideon é grande, com músculos firmes, e muito bonito. Nunca sentiu-se tentada a tocá-lo?

Élen enrubesceu.

-- Ele é meu inimigo!

-- Eu aposto que ele já olhou para você -- a outra pareceu nem lhe ouvir. -- Eu percebo como ele olha rápido e depois foge com os olhos, porque sabe que é tentadora demais para um homem suportar.

Subitamente o olhar de Nyalla brilhou.

-- Oh! Não seria esse o caminho mais fácil para escaparmos daqui?

Do que ela estava falando?

-- Você quer dizer...?

-- Seduza-o.

O máximo que Élen sabia sobre seduzir um homem era que devia abrir as pernas para ele. Isso tudo porque ela lera em um livro. De resto, não fazia ideia.

-- Eu acabo de ter uma ótima ideia -- Nyalla bateu as mãos, feliz.

Na verdade, a ideia não era dela. Foi imposta pelo destino. O começo de uma sensação avassaladora.


Capítulo 11

 


O B E I J O


Nyalla a havia deixado com as mãos desamarradas naquela noite. Mais que isso, havia lhe passado as poucas instruções que sabia sobre o que uma mulher devia fazer a um homem para que ele - em suas palavras - comesse na palma de suas mãos.

-- Ainda mais um homem como Gideon -- a negra havia rido, maliciosa. -- Ele mal se permite qualquer ato além do que faz comigo. Aposto que nunca sentiu algo realmente forte por qualquer mulher.

Élen não acreditava que o líder de Sangue Escuro fosse sentir qualquer coisa por ela. Ao contrário do que pensava Nyalla, o homem não demonstrava nada além da absoluta indiferença.

Mas, ela precisava tentar. Jogar com as armas que tinha era uma marca de família. Como Esmeralda havia ensinado muitos anos antes, o fim justificava o meio.

Gideon surgiu pouco depois do sol se pôr. Havia se banhado, o corpo ainda um tanto úmido, o semblante mais displicente que o normal, e as roupas um tanto coladas no corpo.

Pela primeira vez, Élen lhe observou as formas. Ele tinha um tórax muito definido, marca de que era um soldado bem treinado. Os braços eram fortes, bem do tipo que uma mulher gostaria de se esgueirar, sentir-se protegida. E, caso sorrisse alguma vez, ela até considerou que poderia ser simpático.

Mas, em tudo, ele era a personificação da lealdade a Vougan. Firme, incapaz de expressar sentimentos, alheio a qualquer coisa, até mesmo a sua inocência de mulher.

Mas, Nyalla lhe disse que aquilo era uma faceta que se desvanecia quando a dupla se encontrava na mata.

Era um risco que Élen precisaria correr.

Gideon deitou-se em sua manta e pareceu preparado para dormir. Como costumava fazer nas últimas noites, pareceu não disposto a conversar com ela.

-- O clima está diferente aqui -- ela comentou, puxando assunto, mas também dizendo algo que era real. -- Parece menos sobrecarregado.

-- Mestre Vougan partiu em missão religiosa.

A justificativa dele fez ambos arregalarem os olhos. Especialmente o homem. Quando imaginaria que a simples presença do sacerdote fosse tão pesada que tornasse viver naquela região algo extremamente difícil?

-- Você têm pais, Gideon? -- ela indagou. -- Família?

Ele negou.

-- Por que o interesse?

-- Você parece muito sozinho -- o múrmuro feminino fez o antebraço do homem se arrepiar.

Segundos depois, ele lhe dava as costas e encarava as pedras geladas daquele paredão.

Estava nervoso. Mais que nunca. Ficar próximo daquela mulher estava tirando a razão daquele simples soldado.

Élen, às vezes, mudava o tom. Da gritaria histérica a quase simpatia. Aquilo era extremamente desafiador e inebriante.

Sentia-se um terrível traidor de sua fé por estar a cada dia mais encantado e deslumbrado com aquela mulher.

Fechou os olhos. Precisava dormir. Esquecer-se daquele cheiro feminino de flores. Esquecer-se daquele tom de voz capaz de tornar o mais rígido guerreiro em um garotinho ansioso por algo como amor.

Amor...

Abriu os olhos.

Só havia um amor. Era o de Cashel. Apenas o Deus negro daquela terra sagrada merecia sentimentos. Todo o resto era um logro do mal, um caminho errado que ele poderia se arrepender tremendamente por seguir.

Subitamente, deu-se conta de um movimento as suas costas. Girou-se rapidamente, preparando-se para um ataque, quando percebeu ser Élen a curvar-se sobre ele.

Ficou paralisado. Mal conseguia respirar. Sentiu a boca úmida e gentil dela tocar levemente nos seus lábios e foi incapaz de resistir.

Fechou os olhos novamente.

Era pecado. Pecado!

Tornou-se o mais vil pecador quando seus dedos cruzaram pelas madeixas lisas e negras, segurando a cabeça feminina, curvando a fronte, encaixando-se melhor naquela boca perfeita.

Um suspiro baixo e feminino fez seu corpo tremer.

Era tudo tão perfeitamente alinhado pelo destino, tão singelamente encaixado, como se Élen estivesse pronta para ser sua, desde o sempre, e agora o acaso apenas se cumpria.

Afastou-a, assustado, repentinamente.

O que diabos era aquilo? O que aquele demônio branco estava fazendo consigo? Desde quando se deixava enredar por artifícios femininos?

Percebeu o olhar dela tão assombrado quando o seu.

A mulher afastou-se, de súbito, e voltou para suas mantas. Deitou-se, encolhida, como se culpasse-se pelo ato tanto quanto ele.

Gideon encarou o teto e imaginou o que tudo aquilo significava.

Temia a resposta mais que as batidas potentes do seu coração.


Os dias estavam mais frios. Ela percebia que o inverno se intensificava em Cashel desde que os dias se tornaram mais curtos e as manhãs mais geladas.

Encolheu-se no sol, pensando onde estava Nyalla. Queria poder contar a amiga tudo que se passara e pedir seus conselhos.

Subitamente, deu-se conta de um murmurinho do outro lado da aldeia. Era muita gente correndo em direção a uma caverna, alguns olhares aflitos e o desespero estampado nas palavras dos mais velhos.

-- Ninguém sobrevive. -- Entendeu a frase, entre muitas vozes, como uma profecia maldita que estava a se cumprir.

Ergueu-se. Sem as cordas, tinha liberdade de passos, mas não sabia se Gideon a permitiria sair do local onde ele a deixava para aquecer-se.

Mesmo assim, teve coragem. Seu instinto lhe dizia que alguém precisava de ajuda, e ela não negaria seu amparo.

Quando a perceberam, abriram caminho. Apesar de chamá-la de imunda, era nítido que a viam como a Rainha que era.

Uma criança jazia em mantas, ardendo em febre. Élen agachou-se diante do menino, colocando a mão em sua testa, e compreendendo que, caso não agisse, aquela criança não veria o nascimento de um novo dia.

-- Quando começou? -- indagou a uma mulher próxima.

Todos pareceram reticentes de falar com o demônio, mas a mãe do menino, em sua urgência de cura, logo se viu admitindo:

-- Ontem ele não conseguia engolir. Dizia que mesmo a saliva doía em sua garganta.

Élen compreendeu imediatamente. Abriu delicadamente a boca da criança e percebeu a garganta inchada e vermelha.

-- Esquente a água -- pediu. -- Apenas ao ponto de deixá-la morna. E me traga sal.

Ela tinha tanta convicção do que fazia, que todos viram-se a cumprir suas ordens sem questionamentos.

Élen fez o menino sentar, e o amparou nos braços como avó Melissa costumava fazer aos doentes de Nunemesse e Gaia.

Logo um recipiente foi entregue a ela. A água estava aquecida, e Melissa derramou o sal dentro, mexendo.

-- Quero que gargareje e depois cuspa, está bem? -- disse à criança.

O menino tinha em torno de dez anos. Ele assentiu e fez o que ela ordenou. No terceiro gargarejo, seu cuspe veio com sangue e pus.

Todos ficaram em estado de choque.

-- Ferva água e consiga flores de alteia -- ordenou. -- Perto dos rios de Cashel costumam florescer até mesmo no inverno.

A mãe assentiu, e logo várias pessoas partiram do lugar.

-- Vai ficar tudo bem -- ela beijou a testa da criança, com a gentileza de sua avó. -- Logo estará brincando novamente.


-- Ela não é um demônio -- Nyalla apontou. -- É uma sacerdotisa.

Desde que Gideon havia voltado da caça, a amiga surgiu diante dele, com o olhar estanhado, contando sobre o dia que transcorrera e em como Élen havia salvado a vida de um dos meninos.

-- Quantas crianças perdemos quando as gargantas fecham? Em um dia ela conseguiu fazer o menino engolir novamente.

Gideon não conseguia responder. Havia verdade nas palavras da negra, mas também havia os ensinamentos enraizados por mestre Vougan em seu coração.

Afastou-se, pensando no beijo que haviam trocado na noite anterior.

Mulher nenhuma havia feito aquilo com ele. Despertado aquela urgência, aquela necessidade febril de mais e mais.

-- Gideon -- Nyalla insistiu. -- Você sabe o que significa?

-- Cale a boca.

-- Não existem imundos! Mestre Vougan...

Ele ergueu a mão para estapeá-la pela blasfêmia, mas baixou-a em seguida. Não... Não faria isso a única amiga que tinha naquele lugar. Não faria isso a alguém que dizia exatamente o que o seu pensamento também lhe corroía dia e noite.

-- Pergunte a Cashel -- ela murmurou.

-- O quê?

-- Cashel sempre responde a nossas preces.

O homem afastou-se. Nyalla já estava condenada. Estaria ele também?


O peixe assado cheirava bem. Aquele odor delicioso adentrou a caverna, e logo Gideon estendeu a ela um pedaço do assado, envolto em folhas de bananeira.

Estava salgado, e ela gostou muito. Gemeu baixo, sentindo a carne derreter em sua boca.

-- Obrigado -- ouviu o murmuro masculino.

O coração dela passou a bater mais forte.

-- Pelo quê?

-- Por ter salvado a vida do pequeno.

Élen desviou o olhar. Sentia uma ânsia jamais experimentada antes. Era como se o visse pela primeira vez! Era como se visse a si mesma pela primeira vez! Era como se estivesse se tornando mulher.

-- Falarei do que fez a mestre Vougan quando ele retornar.

-- Seu mestre condenará o menino -- ela afirmou. -- Ele prefere vê-lo morto a salvo pelas mãos de uma mestiça.

Talvez fosse a veracidade na voz, talvez fosse os questionamentos que seu coração desempenhava há dias, mas simplesmente Gideon se viu sem palavras diante dela.

E se estivesse certa? Tudo que ele fizera em nome de sua fé... Teria perdão?

O olhar deles, fixo um ao outro, parecia trocar muitas palavras. Gideon temia cada uma delas, então logo se afastou.

Naquela noite, ele não retornou a caverna.

O céu sem lua cheia estava se findando.

Repentinamente, Élen lembrou-se da canção:

"Quando as flores desabrocharem;

Quando a lua estiver cheia no céu..."

E temeu tremendamente o próximo verso.


Capítulo 12

 


A E S C O L H A D E N Y A L L A


Havia momentos que Liam, em sua trajetória de vida, realmente questionava se Iwan era definitivamente sua alma gêmea.

Os irmãos eram completamente opostos.

Enquanto um conseguia ser calmo e gentil, o outro era descontrolado e impulsivo. Masha havia dito que eles se completavam, mas aqueles dias que se seguiram a captura de Élen estavam fazendo o homem de pele escura examinar o fato.

O rapaz que prenderam não havia dito muito além de que as cavernas onde a sobrinha era mantida como refém se localizava próximo do antigo castelo de Lugus.

Depois disso, eles receberam uma missiva onde ordenavam que todos os brancos saíssem de Cashel.

Ordenavam...

Liam suspirou ao pensar na forma como Iwan leu a palavra, a maneira como ele rasgou o papel e jurou vingança.

-- Temos que pensar em Élen -- disse ao irmão ruivo, tentando conter sua personalidade.

-- Élen deve estar rezando para que eu coloque fogo em tudo, mesmo que ela morra.

Aquela frase muniu Liam de raiva. A sobrinha era o futuro deles. De toda a família. Toda a geração que viveu até então culminava em Élen. A falta de filhos de ambos os homens havia dado a jovem um fardo por demais pesado. E Iwan, contudo, sequer parecia se importar com isso.

Brigaram pela primeira vez. Liam queria que avisassem Benjamin e Lyanna, assim como o pai deles, Joshua.

Iwan se recusou. A sobrinha agora era responsabilidade dele, e ele resolveria a questão.

-- Nosso pai está velho -- apontou. -- Já nos criou, deixe-o viver seu resto de tempo em paz.

Paz era exatamente o que Joshua não teria ao saber o que se passava com a família.

Mas, Iwan era o Rei. Sua palavra era lei. Não havia o que meditar diante disso. Apesar dos conselhos, ele ordenou uma caçada nas cavernas, ordenou um aumento da guarda em Cashel, e a proteção das aldeias onde moravam brancos.

-- Se atacarem -- disse a um corpo de homens --, matem esses desgraçados sem piedade.

Não devia ser daquele jeito. Devia haver diálogo. Mas, a passagem dos dias também fulminou a pouca paciência de Iwan.

Agora, cavalgavam entre uma cadeia de montanhas, observando atentamente a tudo, tentando encontrar pistas que os levassem a Élen.

-- Tem noção de que essas pessoas são manipuladas? -- Liam indagou ao irmão, assim que os cavalos deles ficaram lado a lado. -- Provavelmente há crianças, mulheres...

-- Eles precisam pagar pelos seus crimes -- perseverou.

-- O líder religioso que os manipula e o líder da aldeia que organiza os ataques -- apontou. -- Esses são os homens que precisam ser presos e julgados. Mas, não por nós. Precisa levar o caso a uma junta de conselheiros reais, permiti-los defender-se.

-- Isso levaria muito tempo.

-- Isso se chama justiça, Iwan. Massacrar uma aldeia de pessoas o tornará um Rei tão impiedoso quanto eles acreditam que seja.

Iwan puxou as rédeas do alazão, parando o animal. Liam o imitou. Ambos, parados naquele vão de terra, pareciam avaliar as palavras.

-- Não sei se meu ódio me permitirá piedade.

-- Então deixe que eu fale por ti, meu irmão.

Iwan o encarou. A troca de olhar foi significativa.

-- Eu vivo por ti -- Liam afirmou. -- Eu luto tuas lutas e sofro tuas dores. Se te condenar na iniquidade, pagarei o preço contigo, porque te seguirei ao inferno, se preciso for. Mas, antes me deixe tentar fazer o certo.

Fazer o certo parecia um preço alto a se pagar. Mas, Iwan assentiu, diante da angústia nos olhos daquele a quem ele tanto amava.


A cadeia de montanhas havia ficado para trás. Na margem do rio, em uma clareira vasta, o ar parecia mais puro e a vida mais livre.

Nyalla curvou-se diante de um arbusto. Colher as framboesas era algo que fazia com prazer. Qualquer ofício que a tirasse da aldeia lhe dava deleite.

Mesmo depois da chegada da branca que passou a ter profunda amizade, viver entre os seus ainda lhe causava aversão.

E ela nem sabia o porquê...

Todas as noites, rezava a Cashel. Mestre Vougan dizia que as dúvidas e as incertezas deviam ser sanadas dentro do templo, onde ele, como representante de Cashel, explicaria em detalhes o plano divino. Contudo, Nyalla não se sentia à vontade para desabafar. Então, mesmo sabendo ser um pecado, quando se deitava a noite, murmurava ao Deus Negro palavras que a comoviam e a culpavam.

Por que não se sentia parte daquele plano iluminado de salvação? Não devia ela desejar casar-se com Gideon e ser a esposa de um poderoso líder?

Por que olhar o horizonte e imaginar ser dona de seus passos a emocionava tanto?

Mordeu uma das frutas, sentindo o suco doce nos lábios. Ao longe, o sol parecia prestes a se pôr, e ela sabia que devia voltar logo para a aldeia.

Foi quando volveu em direção às montanhas que o viu.

Era alto. Forte. Imponente.

A pele negra como a sua trazia uma luminosidade semelhante ao divino. Seu sorriso era doce, tanto quanto seu olhar. Mais, havia um sentimento de profunda familiaridade em seu semblante, como se ele fizesse parte de sua vida, como se ela já o tivesse visto muitas vezes.

Sentiu-se curvar diante dele. Estava completamente emocionada, não conseguia sequer falar. Porém, momentos depois, a mão estendida fê-la erguer-se novamente.

-- Não se curve -- ele murmurou. -- Não sou o Criador.

Nyalla não entendia o significado das palavras, tampouco importou. Tudo que sentia era aquela sensação de paz, como se enfim tivesse chegado a um porto seguro.

-- Eu te ouvi -- o Negro disse e, depois, segurando o braço dela, começou a caminhar sem destino. -- Ouvi todas as suas palavras.

-- Me perdoe por duvidar...

-- Questionar move o balanço da justiça. Todos que seguem algo sem sequer perguntar se o que fazem é certo ou errado já estão errando. Suas dúvidas foram o suficiente para que eu chegasse até aqui.

Era um elogio?

Se era, então tudo que Vougan pregava era mentira?

-- Contudo, minhas palavras para ti, agora, não podem ser questionadas, entende?

-- Sim, meu Deus Cashel -- ela assentiu.

-- Mesmo que doa em seu coração?

-- Eu cumprirei sua vontade.

-- Mesmo que a dúvida paire sobre ti?

-- Eu cumprirei sua vontade -- repetiu, convicta.

Ele suspirou.

-- Vai doer, Nyalla. Especialmente porque você ama Élen, mesmo que ainda não saiba disso. Contudo, é necessário. É muito importante que faça o que eu ordeno. Um dia Élen a perdoará. Quando tudo se explicar, ela entenderá.

O coração de Nyalla pulsou com intensidade. O medo era visível em seu semblante feminino.

-- Não volte às montanhas -- Cashel apontou a direção oposta. -- Caminhe dois quilômetros. Logo chegará a extremidade que limita o mar.

Ela sabia disso, conhecia aquela região como a palma da mão.

-- Lá encontrará o que precisa.

-- E quando encontrar, o que devo fazer?

O rosto volveu para ela. Havia piedade em Cashel. Nyalla soube que o propósito dos deuses, naquele instante, não era belo nem gentil.

Ela lacrimejou quando ouviu as suas ordens seguintes.


Aquela mulher era tudo que Nyalla acreditava ser na personificação de Masha. Cabelos longos, vermelhos como o sangue, encaracolados e vibrantes, a pele pálida como se jamais tivesse sido tocada pelo sol, e o olhar tão verde-esmeralda que era de se crer que talvez fosse a própria pedra a estar ali, no lugar dos olhos.

A mulher estava sentada próximo de um barco que havia ancorado. Pela mercadoria que escapava dos sacos e era jogada ao canto, Nyalla soube que aquela embarcação havia vindo das terras quentes.

E, talvez por isso, desacostumada ao frio, a mulher ruiva estava encolhida embaixo de mantas, com o queixo tremendo, e o olhar um tanto assustado.

-- Você é Mah? -- indagou a negra, não querendo ter dúvidas.

A outra assentiu.

-- Eu estava à sua espera -- murmurou. -- Estou há meses à sua espera -- completou.


Capítulo 13

 


A T R A I Ç Ã O


A caverna de Nyalla estava aquecida por uma fogueira que ela havia feito antes de sair para colher framboesas, e havia mantido com o carvão achado entre as rochas.

Mah aproximou-se da fogueira, estendendo as mãos, parecendo sentir um alento por aquele calor, sequer suspeitando que a sua simples presença ali poderia significar a morte de ambas.

Nyalla havia voltado com a outra tão logo o sol desapareceu e as pessoas se recolheram. Envolveu-a em mantos escuros e, com nítida preocupação, conseguiu cruzar pela aldeia e adentrar sua caverna.

A branca e ruiva com ela era um mistério que a mulher de pele escura mal conseguia disfarçar o interesse em desvendar.

-- Será hoje? -- a ruiva indagou.

Elas não haviam trocado muitas palavras desde que saíram da praia.

--Sim, irei preparar o chá com as ervas que Ele me indicou.

-- "Ele" você quer dizer...?

-- Sim, Cashel.

Não houve descrença no olhar.

-- Como chegou até nossas terras? -- indagou, diante da ruiva enigmática.

-- Minha história não é confusa, apesar de surpreendente. Creio que ninguém mais além de ti conseguiria acreditar.

-- Conseguir acreditar?

-- Você foi ao meu encontro porque Ele mandou. O outro Ele também veio a mim, em Masha, e me deu a mesma ordem cerca de um ano antes.

-- Deixou tudo, então? Para cumprir a vontade de Bran?

-- Meu tudo era apenas o puteiro que eu servia aos homens.

Uma prostituta? Nyalla ficou espantada.

-- Um dia Ele, Bran, chegou ao local e me pediu. Não percebi quem era, até nos encontrarmos sozinhos no quarto. Então veio às ordens. Ordens muito estranhas, mas eu jamais iria questioná-las.

Por que Bran e Cashel queriam uma prostituta para aquele serviço?

-- Então está nessas terras há tanto tempo?

-- Desde que soube que a sobrinha do Rei havia sido raptada, soube que era o sinal e ia todos os dias a praia, a sua espera.

-- Disseram-lhe que eu iria?

-- Sim. Nyalla é seu nome, não? Disseram que Nyalla me levaria até o destino final.

As dúvidas corroíam Nyalla. Por que Deuses tão honrados haviam escolhido uma puta e uma jovem como ela para tal tarefa? Os detalhes lhe causavam aversão. Especialmente porque envolviam Gideon - seu único amigo - e a Élen, a quem ela já nutria intensa afeição.

-- Por que a mim? -- a dúvida que a martelava surgiu nos lábios da ruiva. -- Por que a mim? Uma simples puta?

Então Nyalla entendeu a resposta que a muito parecia escondida em sua alma.

Os deuses olhavam para o coração.


Nyalla adentrou a caverna de Gideon com um cântaro cheio de chá. Sorriu para os dois, tentando disfarçar o tremor nas mãos.

Era tarde, mas ela sabia que nenhum deles havia dormido porque os Deuses assim o disseram. Então, rumou até os copos de madeira e encheu um deles com o chá.

Levou até Gideon.

-- Não quero, obrigado -- ele murmurou, concentrado em fiar a lâmina de uma faca.

-- Por favor, fiz com carinho -- insistiu.

Displicente, o homem segurou o copo e bebeu um gole. Depois, deixou-o de lado.

-- Te esperei o dia todo -- Élen murmurou, assim que se aproximou.

-- Fui colher framboesas -- disse, mostrando os frutos a outra, oferecendo-lhes.

-- Senti sua falta -- a branca murmurou.

-- Eu também -- havia culpa naquele tom, e Élen a encarou. Porém, Nyalla insistia em desviar o olhar.

Se Gideon não estivesse ali, Élen inquiria sobre a situação. Mas, na presença do homem, tudo que fez foi aceitar os frutos.

-- Precisamos conversar -- murmurou.

Queria contar sobre o beijo. Estava apavorada. Não apenas pela situação, mas pela maneira como seu coração disparou no momento.

-- Nós iremos nos ver amanhã -- Nyalla murmurou, como se sentisse sua necessidade.

A outra assentiu.

No outro canto, Gideon bebeu mais um gole do chá. Nyalla logo se afastou e rumou para o lado externo da caverna.

Lá, a ruiva a aguardava.

Mudas, as duas mulheres sentaram-se no chão e esperaram.

Não demoraria muito para o chá fazer efeito.


Gideon ergueu-se e rumou até as pedras aquecidas onde Nyalla havia deixado o chá. Serviu-se novamente, gostando muito do sabor.

Era doce, um toque de mel. Onde será que a amiga havia conseguido? Provavelmente, tinha framboesa, pois ele percebeu Élen mastigando a fruta do outro lado da caverna.

Subitamente deu-se conta de como o suco avermelhado deixava os lábios femininos mais apetitosos. Desviou o olhar, sentindo aquela chama crescente tomando conta de si.

Estava nervoso. Ansioso. Desde a noite que trocaram o beijo ele não tinha paz. Tentava não olhar para a branca, mas não conseguia resistir.

Sentou-se em suas mantas, e voltou a afiar a faca.

Élen estava silenciosa. Também parecia envergonhada pela situação que criaram.

Contudo, uma parte de si, uma pequena parte de si, insistia que eram apenas um homem e uma mulher dividindo um espaço pequeno e que tudo que acontecera era consequência da natureza que os guiava a isso.

Provavelmente, quando ela fosse levada a outro local, esquecer-se-ia rapidamente da boca apetitosa, dos olhos negros e misteriosos, do cheiro que...

Sentiu-se endurecer.

Foi tão rápido que perdeu o ar. Largou a lâmina de lado, puxando as cobertas sobre o colo, tentando deitar e acalmar-se antes de fazer uma besteira.

Conteve um gemido. Os pensamentos em desalinho o levavam a mulher que estava quieta, em seu próprio canto. Repentinamente, ele podia vê-la de uma forma nova, nua, deitada abaixo dele, deixando com que sua pele clara fosse tocada por seus dedos negros e masculinos.

Aquele contraste de peles fê-lo cobrir a boca. Precisava se manter firme, o corpo estava quase o guiando até Élen.

Ele nunca estuprara uma mulher em toda a sua vida. Jamais faria isso, nem mesmo ao demônio branco.

Repentinamente, mais alguém entrou na caverna. Não conseguiu forças para se erguer e interceptar a visita.

Era ruiva, linda, alta e de porte naturalmente sedutor.

A ruiva encarou Élen, que pareceu tão assustada quanto ele pela presença inesperada. Contudo, em seguida, a mulher volveu para Gideon e sentou-se sobre ele.

-- O que está fazendo? -- teve forças para perguntar.

-- Quem sabe? -- ela murmurou, agarrando seu mastro duro e o guiando para si.

Estava sem as calçolas, nada abaixo do vestido, e Gideon não conseguiu esconder o gemido alto quando sentiu a ponta de seu pênis tocando a entrada da vagina úmida da outra.

-- Quem é você?

-- Não precisa saber. Só preciso da sua semente.

Com o canto dos olhos, Gideon percebeu Élen a observar a cena, embasbacada. Viu as lágrimas, e quis parar. Não porque não sentisse o prazer enquanto o corpo feminino da ruiva movia-se para cima e para baixo, mas sim porque percebia as lágrimas espessas nos olhos gentis da morena a observar a cena.

E ela parecia mumificada. Nada dizia ou fazia além de derramar suas lágrimas, como se sentisse o peso daquele ato, daquela traição.

Traição? O que Gideon era para ela além de seu raptor? Contudo, enquanto o gozo vinha repentino, fruto de seu corpo em estado crítico de excitação, ele trouxe a culpa ao coração.

Tão logo derramou-se, a mulher se ergueu.

O vestido escondia o sêmen que escorregava nas pernas, e o olhar dela focou-se na outra, em estado de choque.

-- Não se preocupe -- ela murmurou a morena. -- Eu nada significo.

E saiu da caverna.

Gideon, cambaleante, pensou em ir atrás dela. Como aquela mulher desconhecida havia entrado na aldeia? E por quê? Qual a finalidade de deitar-se com ele?

Contudo, seu pensamento logo desviou-se para Élen. Ajeitou as calças e tentou se aproximar dela.

-- Eu não sei o que...

Sua explicação perdeu-se no safanão que recebeu na cara. O rosto desviou-se para o lado, mas ele nem pensou em retribuir a agressão.

-- Desgraçado -- ela disse, alto. -- Eu te odeio.

Era a maior mentira de todas. Sua própria ação denotava outra coisa.


Capítulo 14

 


A T R I N D A D E


Arturo, um dos velhos anciões de uma aldeia próxima do cais estendeu um cálice de vinho para Mestre Vougan.

O homem bebericou a bebida amarga, enquanto meditava perante as palavras do outro.

Aquilo não era nada bom...

-- Como soube das novidades? -- indagou.

-- Meu sobrinho comprou porcos criados em Castelo Branco, a região fria das terras do Deus Bran. Quando voltou, veio a mim, pasmo pela audácia da nova senhora do lugar.

-- Lana é o nome dela, não?

-- Casou-se há menos de um ano com o neto do falecido Andrew Clark. E deu à luz há alguns dias, já blasfemando.

-- O que se esperar dos Clark? Lembra-se de que Andrew havia casado com a própria cunhada, a tal Elisabeth de Brace? Aquela linhagem suja da falecida rainha Esmeralda não irá parar de pecar enquanto viverem.

O outro assentiu, concordando.

-- Mas jamais imaginei que chegariam a tanto -- murmurou, também bebericando o vinho.

Vougan apertou os lábios, incomodado.

Não previa aquilo, e sabia o que significava o desfecho. A tal Lana Clark, nova senhora do Castelo Branco, havia batizado o filho recém-nascido com o nome de Bran. Dissera que era uma homenagem ao Deus do norte, mas Vougan sabia que não era verdade. Ninguém até então havia tido a audácia de usar o nome dos deuses em seus próprios filhos. Lana o fez porque provavelmente recebera ordens divinas.

Se um dos deuses pediu aquilo, significava o quê?

-- Bran com certeza não deixará essa blasfêmia impune -- o homem prosseguiu, interrompendo os pensamentos de Vougan.

-- Ninguém sabe o que Bran fará. O Deus Bran é um mistério a ser revelado.

A última descendente direta de Esmeralda estava em suas mãos. O plano de mantê-la cativa pareceu perder a importância. Precisava matá-la antes que acontecesse uma tragédia.

Élen precisava morrer antes que fosse tarde demais...


-- O que fará agora? -- Nyalla indagou a mulher, diante de um navio que se preparava para zarpar.

-- Voltar à minha terra -- Mah murmurou. -- Fiz o que mandaram, agora preciso retomar minha vida.

A negra assentiu.

-- Mantive-me pura enquanto estive aqui, conforme ordenado. Havia guardado algum valor para sobreviver sem precisar me deitar com homens. Mas, estou quase sem condições. Preciso voltar às docas, voltar a fazer o que sei fazer.

-- Eu sinto muito.

E era verdade. Pelo olhar trocado entre as duas, havia aquela fagulha de empatia que não permitia mentiras.

-- É moça pura, não? -- Mah indagou.

-- Sou sim. Já estive com homens, mas nunca fiz nada além de carícias.

A ruiva sorriu.

-- Não se deite com qualquer um -- aconselhou.

-- Você o fez?

-- Como você acha que fui parar nas docas?

Um dos marinheiros tocou uma sineta, num aviso claro de que passageiros deviam subir a bordo.

-- Boa sorte -- Nyalla desejou.

-- Para nós duas -- Mah sorriu. -- Cuide dela. -- pediu. -- Da moça dos cabelos negros.

A outra concordou.

-- Com a minha vida.

E mais uma vez a verdade foi professada naquele instante.


O homem que Nyalla encontrou ao retornar a aldeia em nada se assemelhava ao guerreiro poderoso e autossuficiente com o qual era acostumada.

O olhar de Gideon estava assustado, ansioso e preocupado.

-- Onde esteve? -- ele foi um tanto rude na indagação.

-- Levantei cedo para caminhar e procurar ervas -- ela mentiu.

Gideon pegou em seu braço e guiou-a até a caverna de Nyalla. Para os aldeões, situação comum e até normal, já que todos desconfiavam que era questão de tempo para que os dois jovens se tornassem um casal assumido. Contudo, o coração de Nyalla disparou de puro medo.

Gideon sabia ser ela a responsável pelo que se sucedeu? Se sabia, o que faria?

-- Uma mulher branca apareceu ontem na minha caverna -- contou, tão logo ficaram sozinhos. Nyalla acalmou-se imediatamente, percebendo que ele desconhecia seu envolvimento. -- Ruiva. Não sei como entrou... Não sei o que aconteceu... Estou sem saber como caí em tal armadilha...

-- O que houve?

Era uma pergunta que ela não queria fazer, mas não havia escolhas.

-- A mulher se deitou comigo, em frente à Élen.

Pobre Élen. Testemunha passiva de um ato assim...

-- Você é nojento... -- Nyalla disparou, sem controle. -- Como pôde? Não se envergonha?

-- Não entende? Não tinha controle sobre meu corpo. Nem entendo como uma branca apareceu e se deu para mim, daquela maneira. Não entendo como pode ter acontecido tal coisa. E, pior, não entendo porque me sinto tão culpado por Élen. Não consigo encará-la, sinto uma vergonha profunda, como se desejasse a morte.

Nyalla tentou desviar-se dele para ir até a mulher, saber como ela estava. Mas, foi segurada pelo braço.

-- Sei que mestre Vougan sempre desejou que nós nos casássemos. Até tentamos algo mais carnal, escondidos, não me culpo, nem me envergonho, porque nosso carinho sempre foi um alento em minha alma. Mesmo que não tenha dado certo entre nós, é minha amiga, Nyalla. Por favor, eu preciso de você...

A mulher quase estendeu a mão para tocar o rosto amargurado. Enfim, apiedou-se. Mas, sua ação foi interrompida pelas muitas vozes que chegavam até ele.

-- Mestre Vougan voltou -- ouviram os gritos.

Por algum motivo, ambos ficaram pesarosos pela notícia.


O certo - se é que o certo ainda existisse naquela terra esquecida - era narrar imediatamente os eventos transcorridos ao líder espiritual. Gideon sabia disso. Mas, por algum motivo inexplicável, tanto ele quanto Nyalla permaneceram em silêncio diante do homem.

-- Soube que andam muito juntos -- Vougan apontou. -- Isso me alegra demasiadamente. Estão se entendendo?

O silêncio de Gideon não o surpreendeu, pois o rapaz era discreto. Nyalla apenas assentiu, envergonhada.

-- Como foi a peregrinação, mestre? -- o líder de Sangue Escuro indagou.

-- Levei a palavra de Cashel a terras afastadas, mas, na volta, tive uma visão importante que me fez apressar os passos para cumprir a vontade do Deus que servimos.

-- Uma visão?

-- Cashel apareceu para mim -- Vougan afirmou, sem medo.

Nyalla soube que era mentira no instante que as palavras foram professadas. Contudo, que atitude tomar? Permaneceu em silêncio, a ouvir o restante.

-- Lembra-se do que me disse, jovem Gideon, quando trouxemos a imunda?

Gideon estremeceu. Nyalla sentiu aquilo e levemente se inclinou para ele. Tocá-lo, mesmo que delicadamente, era uma forma de demonstrar sua amizade.

-- Vai matá-la? -- Gideon questionou.

-- Devia tê-lo ouvido, meu filho -- Vougan concordou. -- Você me aconselhou, mas eu, cego espiritualmente, não percebi Cashel falando por sua boca. Precisei sair em peregrinação para entender os sinais.

Caminhou até um incenso e o acendeu diante da estátua de Cashel.

-- Amanhã, ao nascer do sol, queimaremos a imunda.


-- Que bela ideia a sua -- Nyalla ironizou.

Gideon escondeu o rosto entre as mãos. Afastados da aldeia, em meio a uma floresta fechada, onde outrora eles tinham encontros amorosos, os dois agora confabulavam sobre a atual situação.

Ela estava em pé, diante dele que, sentado em uma rocha, parecia mitigado.

-- Eu era outro homem.

-- O que te mudou?

-- O que mudou você? -- ele retorquiu. -- O certo e o errado não fazem mais sentido para mim.

Assumir aquela ideia diante de Nyalla era um cruzar de fronteiras na vida de Gideon. Agora o líder não poderia retroceder. Cada silaba saída de seus lábios indicava sua traição a Vougan.

-- Vamos fugir -- Nyalla agachou-se, repousando as mãos em seus joelhos.

-- Roubar Élen?

-- Vougan não desconfia de nós.

-- Sim, eu sei -- ele assentiu. -- Mas, deixar o resto do povo a sua mercê? Esse homem é um lunático. Ele me dominou por anos, e fiz coisas imperdoáveis em nome da minha lealdade a ele. Não posso permitir que as demais pessoas tenham o mesmo destino.

-- Primeiro deixaremos a princesa em segurança com sua família. Depois, voltaremos para enfrentá-lo.

Era o ideal. Gideon sabia, e viu-se assentindo. Contudo, repentinamente, a ideia de afastar-se de Élen lhe trouxe desapontamento.

-- Uma pena que uma das últimas lembranças que ela terá de mim será de um homem sem escrúpulos que se deita com qualquer uma diante dela.

Aquelas palavras fizeram Nyalla perceber que ele estava apaixonado. Ela sorriu.

-- Quem sabe tenha outras memórias -- murmurou. -- A vida gosta de pregar suas peças.

 

O vento gelado daquela região bateu contra os cabelos ruivos de Iwan, balançando-os ao vento.

Seu irmão Liam o olhou ao longe, com um meio sorriso no rosto, tentando transmitir força e tranquilidade àquele que, sabia, estava a um passo de explodir.

-- Onde esteve? -- Iwan indagou.

O outro deu os ombros.

-- Resolvendo um problema com os soldados.

Já estavam na sexta galeria de cavernas a investigar e nem sinal da sobrinha. Iwan parecia um tanto derrotado.

-- Problemas?

-- Você sabe... Nem todos concordam com a sua forma de tratar os animais.

Devia, realmente, ter sido uma surpresa aos homens saber do apreço do Rei pelos cavalos. Havia, literalmente, ficado furioso quando percebeu um dos cavaleiros a bater com força nas ancas de um dos animais para que galopasse mais rápido.

-- O que dizem?

Não perguntou por interesse. Perguntou porque queria desviar os pensamentos sombrios da mente. Sua preocupação com Élen estava ultrapassando sua sanidade.

-- O que sempre dizem? -- Liam não parecia preocupado com o fato. -- Animais são animais.

-- Não é o óbvio? Animais são animais, homens são homens.

-- Para alguns, é difícil entender porque você dá prioridade à raça não humana.

Aquela característica de Iwan havia sido herdada de Masha. Os irmãos desconheciam, mas a Deusa Ruiva amava os animais mais do que amava a humanidade.

-- Porque nós somos a bosta cagada dos deuses! -- berrou. -- Quando eu digo que animais são animais, não é em tom de desprezo. Ao contrário, eu os considero superiores a essa porcaria que chamamos de raça humana. Diga-me, Liam, não seria tão mais belo o mundo se nossa raça não existisse?

-- Não fique criando ideias que não demorará em ordenar execuções em massa -- o outro retrucou.

-- Resolveria todos os nossos problemas!

-- Está aflito por Élen -- seu tom permanecia calmo. -- Não diga besteiras, pode ofender aos deuses.

-- Os deuses me abandonaram...

-- Masha ama você.

-- Não me ouve mais. -- Do Rei impiedoso, agora parecia um garotinho. -- Rezo em todos os momentos por um sinal, uma luz... Mas, minha Deusa ruiva parece ter se esquecido de mim.

-- Como se isso fosse possível...

Subitamente, o homem negro abraçou o irmão.

-- Lembra-se do que ela disse? Ela está no afeto nutrido por aqueles que se amam. Agora, nesse instante, ela está aqui, entre nós.

Iwan aceitou o abraço.

-- Terei que narrar aos pais de Élen o que aconteceu... Passou-se tempo demais.

-- Não desista. Ainda temos montanhas a percorrer. Não aflija Lyanna sem a certeza do ocorrido.

O Rei volveu para a próxima cadeia de montanhas.

-- Apenas uma luz... -- murmurou. -- Um único sinal e eu encontrarei minha sobrinha...


Capítulo 15

 


A F U G A


Élen sentiu o corpo balançar como se houvesse urgência em fazê-la acordar. Abriu os olhos, um tanto confusa com a situação, quando percebeu ser Nyalla a despertá-la.

-- Vista isso -- a mulher a cobriu com uma capa de capuz. -- Vamos fugir -- disse rápido.

Os olhos da princesa, imediatamente, volveram para a entrada da caverna, a procura de Gideon. Ao percebê-lo à porta, notou que o homem sabia do plano e o apoiava.

Aquilo significava o quê? Seria uma armadilha ou enfim a consciência do outro pesara e ele notou que tudo que dissera e fizera até então ia contra os princípios de Cashel?

Era difícil confiar nele. Mais, era difícil até mesmo olhar para ele. Especialmente depois da cena pavorosa que ela fora obrigada a presenciar. Mesmo assim, era uma chance e Élen precisava aproveitar.

-- Estão todos dormindo -- Gideon murmurou, entregando a ela uma espada. -- Sairemos discretamente. Se necessário, defenda-se, mas não mate ninguém.

Ele sabia que Élen tinha técnica com a arma, e entregar a espada a ela era uma demonstração de confiança. A mulher reconhecia o fato, e o agradeceu.

-- Devo poupar a vida daqueles que me capturaram e me mantiveram reclusa por todo esse tempo?

-- Nunca se esqueça que essas pessoas são inocentes -- Nyalla apontou. -- Enganadas por Vougan. E, como Rainha, é seu dever salvar seu povo.

As palavras cavaram fundo no coração de Élen, trazendo a ela uma enorme coragem.

O breu noturno a atingiu junto com o frescor da madrugada. Caminharam pelo centro da aldeia, tentando não fazer barulho, prontos a escapar.

Só conseguiram respirar devidamente quando atingiram os limites do lugar. Enfim, o ar pareceu mais solto e o coração dela parou de pulsar descontroladamente.

Estava livre...

-- Não podemos fracassar -- Gideon disse, andando à frente daquela fila reta. -- Quando Vougan souber de nossa traição, ordenará nossa morte -- ele se dirigiu a Nyalla.

A negra assentiu.

-- Você se arriscou por mim? -- As palavras da outra mulher voltaram para Nyalla. -- Por quê?

A outra sorriu.

-- Você me prometeu liberdade -- disse, mentirosa, porque não era em pensamentos mesquinhos que sua mente se focava.

-- Obrigada.

Élen podia não ouvir as palavras sentimentais, mas reconhecia o anseio. A mulher de pele escura era para si o que Liam era para tio Iwan. Irmãs de alma.

O labirinto de cavernas e montanhas foi cruzado por toda a madrugada. Apesar de não ter feito exercícios físicos por dias, Élen não se cansou da caminhada. O alívio era tamanho que ela rumava firme e rápido, atrás do homem grande, preparando-se mentalmente para voltar para casa e retomar o controle do Reino.

-- Vougan vai pagar -- ela murmurou para si mesma. -- Esse maldito vai pagar...

Ambos os jovens que a acompanhavam ouviram as palavras, mas nenhum a retrucou. Até porque sabiam que ela tinha razão.

O dia já havia amanhecido, quando se aproximaram de uma vertente de água e decidiram descansar um pouco. Haviam deixado muitas léguas para trás, e queriam se reabastecer do líquido antes de prosseguir.

-- Como você foi parar nas mãos de Vougan? -- Élen questionou a amiga, tão logo sentaram-se em uma rocha.

Gideon se afastou o suficiente para manter vigília no ponto mais alto.

-- Minha história não difere das demais -- Nyalla murmurou. -- Meu avô era um rico e próspero senhor feudal quando Iwan de Masha assumiu o Reino. Por suas práticas sexuais com crianças, foi destituído de seus bens, e logo abandonou a família. Minha mãe era sua filha menor, e ficou sozinha na rua, quando foi encontrada por Vougan. Ela morreu alguns anos depois, e Vougan cuidou de mim assim como cuidou de Gideon.

Não devia estar sendo fácil para os dois terem traído aqueles que conheciam por pai. Élen apiedou-se.

-- Por que quis fugir?

-- Sempre soube que havia algo errado. Dentro de meu coração... Sempre soube.

-- Mas, não Gideon?

-- Gideon sempre idolatrou Vougan. Eu temia que nós nos casássemos e ele descobrisse minhas dúvidas e me delatasse. Mas, por Cashel, Gideon não se interessou por mim.

Élen segurou as mãos da outra, transmitindo força.

-- O que fê-lo mudar de ideia?

-- Você -- Nyalla afirmou, com convicção. -- Você fê-lo questionar sua vida. Um questionador nunca permanece em uma seita por muito tempo. Você foi como uma cortina abrindo-se e mostrando a verdade para Gideon.

-- A verdade?

-- Não somos todos iguais, apesar de nosso tom de pele diferente?

Élen assentiu, feliz pela compreensão da outra.

-- Devemos prosseguir -- Gideon avisou, voltando-se para as mulheres. -- Quanto mais conseguirmos nos distanciar, melhor.

As duas colocaram-se em pé.

-- Há essa hora Vougan deve estar acordando -- Nyalla murmurou. -- Qual será sua reação?


Um dos homens aproximou-se de Vougan, parecendo conflituoso.

-- Vi Nyalla indo à caverna de Gideon, ontem à noite -- admitiu. -- Pensei que enfim estavam se acertando...

-- Ambos me traíram, então -- o mestre admitiu, a voz seca e sem emoção. -- Ambos seduzidos pelo demônio branco.

Vougan afastou-se da caverna vazia. Naquela manhã, ao ir de encontro à sobrinha do Rei, seu propósito era um ritual de sacrifício que impressionaria a todos da aldeia.

Contudo, a mulher havia escapado. Pior, ajudada por dois de seus pupilos dos quais nutria a mais absoluta confiança.

Era muita traição...

-- O que devemos fazer, mestre?

Vougan voltou-se para o homem. Atrás dele, sua guarda pessoal parecia pronta a receber ordens.

-- Gideon e Nyalla estão perdidos para nós. Seduzidos pelo pecado, eles se entregaram a degradação. Devem matá-los juntamente com o demônio.

Todos assentiram. Apesar de terem pelos dois jovens negros o amor de uma família, a obediência a Cashel sempre vinha em primeiro lugar.


O homem estendeu a ela um copo com sopa quente.

Diante da fogueira, camuflados por uma caverna, enfim Élen encarou Gideon.

Não entendia a própria mágoa, mas aceitou o alimento evitando contato visual com o outro. Nyalla ergueu-se da manta e se afastou, parecendo disposta a deixá-los sozinhos.

Quando ela sumiu na escuridão da noite, Élen deu-se conta de que era a primeira vez desde que fugiram que não tinham a outra por perto.

-- Para onde iremos?

-- Nos esconderemos na mata e prosseguiremos até chegarmos ao porto do leste, onde os barcos de Bran ancoram todas as semanas.

-- Os barcos de Bran?

-- Não é garantido qualquer outro. Seus parentes, os Clark, costumam entregar os porcos por aquele canal. Só podemos contar com eles para uma saída segura.

-- Mas, e as cidades? Existem guardas reais...

-- Você não entende, não é? Vougan tem contatos em cada canto de Cashel. Existe gente poderosa que participa da seita secretamente. Enquanto simulam ficar chocados pelo que ocorre aos brancos nas aldeias, comemoram a matança.

Subitamente, Élen deu-se conta de algo.

-- O que será de ti?

-- O que você acha?

Ele podia estar ajudando a futura rainha dos Reinos agora, mas ainda era um assassino.

-- Posso te conceder o perdão real...

-- Você acha que eu quero isso? -- ele indagou, ofendido. -- Desde que percebi a verdade, tudo que faço é me culpar pelos atos que pratiquei. Pagar pelos meus crimes será um alívio do qual não irei me abster.

Quase sem intenção, Élen levou uma das mãos ao rosto agoniado do homem. O olhar deles afundou-se um no outro, como se conseguissem compartilhar a dor e o medo do que o futuro lhes reservava.

Momentos depois, foi a vez dos lábios trocarem um cálido beijo. Em tudo, a mente lhes dizia que aquilo era um erro, algo sem futuro, sem a possibilidade de dar certo.

Mas, a futura Rainha dos Reinos e um dos assassinos mais procurados de Cashel não conseguiam evitar o desejo e a volúpia que os tomava.

Enquanto o corpo masculino, aos poucos, puxava o da mulher contra si, os braços envoltos na cintura fina, a boca afundando-se na dela, Gideon entendeu que morreria por Élen.

Desde que a viu... Era sua sina.

Ela o mudou. Ela o tornou o homem que agora conseguia distinguir o bem e o mal. Ela... Ela...

O gemido baixo feminino quase fê-lo perder a razão. Porém, o som de passos a entrada da caverna acabou por separá-los.

Enquanto Élen permanecia parada no mesmo lugar, Gideon caminhou para o outro lado, próximo da fogueira, parecendo querer aquecer as mãos.

Como se precisasse! Todo o corpo masculino estava em brasa ardente.

-- Talvez devêssemos dormir de dia e caminhar à noite -- Nyalla comentou, adentrando o ambiente, ignorando a sensação de que algo ocorrera ali.

-- Por que diz isso?

-- As noites de lua cheia se aproximam. Logo, poderíamos andar sem problemas, sem perigos e, ainda assim, camuflados. Além disso, dormir escondidos em cavernas durante o dia é mais seguro.

Quando a lua estiver cheia no céu;

Seu amor a tomará, e então estarei em ti;

A voz adentrou a mente de Élen e ela precisou se firmar contra as pedras para não cair.

-- Algum problema? -- Nyalla percebeu imediatamente sua reação.

Élen negou.

Aqueles pensamentos não deviam ter espaço no atual momento que viviam.

Precisava voltar para Bran e começar um plano para retalhar Vougan.

A terra de Cashel precisava de sua regente mais forte que nunca.


Capítulo 16

 


A P A I X Ã O


Vougan não deixaria impune tamanha ofensa ao seu sacerdócio.

Tão logo soube da traição de dois de seus jovens enviou por pombos missivas à todas as aldeias próximas. Seus guardas caçavam Élen, mas o povo devia ajudar a interceptar os traidores.

Obviamente, nenhum dos fugitivos sabia disso. Mesmo que Gideon e Nyalla desconfiassem do tamanho do poder que Vougan mantinha, não imaginavam o quão em perigo estavam desde que decidiram fugir com a futura Rainha.

Mesmo assim, aqueles primeiros dias de fuga acabou sendo estranhamente normal. Escondidos entre as montanhas, o trio andava pouco, se esquivava diante de qualquer som, e aproveitava cada pedaço do tempo para trocarem ideias e conversar sobre a vida diferente que viveram.

-- Gostaria de conhecer a terra de Masha -- Nyalla assumiu, após a amiga narrar sobre sua terra natal. -- Nunca senti esse tipo de calor.

-- Mas, às vezes, incomoda. Especialmente quando se avança para o interior e os rios rareiam. O calor sufoca, a água falta...

-- Como Iwan de Masha resolve esse tipo de problema? -- Gideon cortou, subitamente curioso. Água não era exatamente um elemento em falta nas terras de Cashel.

-- Poços -- explicou. -- Ele mandou cavar a terra até achar água. Também criou estradas circulares de pedras, que levam a água até as cidades.

-- Como assim?

-- Não sei explicar direito. Mas, meu tio mandou construir uma rede de drenagem, que faz um caminho dos rios até as aldeias. Ajuda muito, mas ainda precisa de melhoramentos.

Gideon assentiu.

-- Seu tio é um homem inteligente.

O coração de Élen pulsou com força diante do elogio. Para um homem que, até poucos dias, negava a regência de Iwan, ela via as palavras como um alento.

Tudo, aliás, era inacreditável. O mesmo homem que a havia capturado era o que lhe dava a liberdade.

Mais alguns dias, e eles aproximaram-se de uma cidade portuária.

Era o momento de buscar pelos barcos de Bran. Havia esperança e ansiedade no semblante de Élen.

-- Irei à aldeia -- Nyalla disse, num fim de tarde. -- Chamarei menos a atenção.

-- Não é seguro -- Gideon negou.

-- Você é muito conhecido -- a negra apontou. -- Serei discreta. Verei se existem barcos de Bran ou a perspectiva da chegada de algum para os próximos dias.

Após a mulher se afastar, ficaram Gideon e Élen naquele silêncio constrangedor em que muito poderia ser dito, mas pouco seria aconselhável.

Ele pensava muito nela. Nos beijos trocados, no seu gosto, na pele suave que poucas vezes seus dedos tocaram.

Ela só pensava nele. A cada dia mais. A cada ato de coragem, de bravura, a cada demonstração de gentileza, desde estender a mão a ela ou Nyalla para cruzarem um rio, até ir buscar algo para comerem quando as percebia com fome.

-- Existe uma cascata de águas quentes aqui perto -- o tom dele fê-la erguer a cabeça.

-- Não devíamos esperar Nyalla?

-- É perto -- insistiu. -- Vamos montar acampamento lá. Em breve ela deve retornar e irá imaginar que fomos para lá.

 

Élen fixou os olhos na imagem exuberante e prendeu o ar. Estava diante de uma das mais belas cascatas do Reino, que cortava um trecho de Cashel, servindo de vertente aos povos que residiam próximo, e trazendo vida aquele canto de rochedos sem fim.

Cansada pela caminhada longa, aproximou-se da água, curvando-se sobre a fonte, estendendo a mão para o líquido transparente, usando as mãos em concha para beber e hidratar-se, sorrindo pelo pouco de alento que recebia desde que havia deixado a vida tranquila e bem provida do castelo do tio.

Pensou em Nyalla. Esperava que a amiga voltasse logo. A mulher havia saído um pouco antes do anoitecer, e a lua cheia já se fazia presente no céu. Preocupava-se de que algo lhe acontecesse. Nyalla não sabia dominar as armas, e ninguém sabia ao certo o que Vougan havia ordenado aos seus em relação à garota.

Se algo acontecesse à mulher, Élen nunca se perdoaria.

-- Pode me agradecer mais tarde.

O tom charmoso e pastoso fê-la girar o corpo. Encarou Gideon, subitamente desejosa de correr até ele e enchê-lo de beijos pelo presente. Contudo, havia regras que não deviam ser quebradas e tudo que fez foi devolver o sorriso.

-- Como sabia que havia um lugar tão bonito aqui perto?

Gideon deu os ombros.

-- Nasci em Cashel, conheço cada canto desse lugar.

-- Foi realmente um presente uma cachoeira de águas termais. Nem sei qual foi a última vez que tomei um banho quente.

O homem baixou a face, um tanto constrangido.

-- Eu peço desculpas. Sei que foi por minha causa.

Élen gargalhou, surpreendendo-o.

-- As coisas são como devem ser. Se era meu destino conhecê-lo, e a Nyalla, o que importa as circunstâncias? Assim, tudo que devo fazer é agradecê-lo, não? - mordeu o lábio inferior, disposta a mudar o tom da conversa. -Foi uma agradável surpresa passarmos por esse lugar.

Assim, com a luz da lua a refletir nos cabelos negros, Élen parecia quase divina. Após a ajuda que ele havia lhe dado, quando fugiram de Sangue Escuro, ela passou a ser mais simpática, sem aqueles rompantes de ódio que costumava destinar a ele.

Foi então que percebeu que aquela mulher de olhar doce e gentil era a verdadeira Élen, que, só então, se mostrava a ele. Não a mulher feroz, mas sim a delicada e feminina.

Fraquejou, diante da imagem que tanto o atraia. Tentou desviar as vistas, mas era quase impossível.

Élen tinha uma mística que parecia arrebatá-lo de tal maneira que era complicado até mesmo respirar perto dela.

Percebeu-a curvando-se novamente, com a atenção a água. De tal modo, buscou por gravetos e organizou uma fogueira.

A noite estava fria. Mesmo com o risco, precisavam se aquecer.

Rapidamente, com técnica, ele organizou o alimento que os nutriria naquela noite. Um caldo grosso, feito com ervas e legumes. Era tudo que tinha conseguido levar de sua caverna na aldeia.

Após algum tempo, Gideon caminhou em passos lentos até ela, estendendo uma concha de madeira. Élen a segurou, vendo-a preenchida pelo alimento.

A mulher tomou um gole e sentiu que o gosto era suave.

-- Eu vou deixá-la sozinha para que possa se banhar - Gideon avisou-a. - Mas ficarei perto, pois não é seguro.

Quando ele lhe deu as costas, algo instintivo a Élen a guiou. Segurou o braço masculino, sentindo o corpo inteiro se arrepiar numa urgência desconhecida e vexante.

Gideon se deixou ser puxado. Naquele momento, mal conseguia raciocinar, completamente absorvido pela aura mística que Élen o havia enredado.

Entraram juntos na água quente, ainda vestidos, ainda absorvidos pelo que quer que fosse que os guiava um ao outro.

O homem aproximou o corpo, sentindo a pele feminina arrepiada contra ele, uma tentação que era incapaz de resistir. Mas, foi a mulher que deu o primeiro passo na intenção de despi-lo.

O tórax musculoso, o peito masculino, aquela masculinidade latente tornou-a imóvel, deixando ao líder toda a incumbência. Não que Gideon fosse assustador, mas ele era pecaminoso demais para seus dedos inseguros.

Então, foi ele que pegou sua mão e a levou até seus músculos, deixando com que a unha resvalasse pela pele, fazendo com que um gemido baixo escapasse dos lábios de ambos.

O que era aquilo? O que era aquele desejo tão poderoso que os tornava incapazes de fugirem?

Um por um, os botões da camisa feminina foram abertos. Depois, os dedos artísticos puxaram o cós da saia, numa clara conotação de posse e poder. Élen suspirou, excitada, enquanto sentiu Gideon descer junto com a vestimenta.

A água chegava à canela deles, e ela podia ver o homem baixar-se a altura do seu quadril. Enrubesceu, querendo fechar os olhos, mas as sensações potentes não conseguiram dissuadi-la a permanecer observando o movimento do macho.

De calçolas, o viu ajoelhado a sua frente, e imaginou o que ele faria.

O que acontecia a um casal quando chegavam àquele momento?

Aliás, o que estava ocorrendo com eles, ali?

Por algum motivo, Élen pensou que era errado. Que deviam ser casados para desfrutar daquelas sensações, mas, ao mesmo tempo, desde que sentiu a água quente aquecê-la, ela pouco se importava com os padrões morais com os quais vivia.

Percebeu Gideon olhando para seu rosto, como se estivesse medindo-a, adivinhando-lhe os pensamentos. Mas, realmente, nada na sua expressão denunciava seus planos.

-- O que foi? - Gideon riu baixinho, aproximando o rosto de seu centro e esfregando o nariz sobre o montinho feminino nas calçolas. - Você está pensando em fugir de mim? - mordeu levemente a pequena elevação, molhando o tecido com sua saliva.

Élen gemeu alto, levando as mãos até o rosto de Gideon. Queria - exigia! - que lhe tomasse na boca, naquele segundo.

Porém, Gideon estava completamente focado em outra coisa. Levando a mão até a borda da calçola, ele enfiou os dedos dentro do tecido. Em segundos, os polegares massageavam as nádegas de Élen, enquanto seu nariz continuava a tocar seu centro.

O calor se tornou insuportável, e logo ele a despiu daquele tecido.

-- Gideon - implorou.

Para seu alívio, ou não, Gideon se ergueu e segurou suas mãos. De dedos entrelaçados adentraram mais para dentro do lago. Ao fundo, o eco da água batendo nas pedras parecia uma música gentil a coroar aquele momento.

Élen sentia as pernas cambaleando de desejo, o corpo inteiro num fogo crescente.

Afundando na água aquecida, Élen sentou-se, os olhos fechados, entregue aquele prazer. Mas, a calma não durou muito e logo sentiu o corpo de Gideon buscando o seu, numa ânsia desesperadora, num desejo incontrolável.

-- Eu preciso de você - ele murmurou, abrindo-lhe as pernas e acomodando-a contra uma rocha, forçando seu corpo contra o dela.

-- Precisa? - provocou. - Por quê?

A mão de Gideon fez uma concha sobre o seio rígido. Élen gemeu baixinho e, num impulso, tentou abraçar Gideon, mas foi levemente afastada.

-- Gideon... - o bico adorável fez Gideon rir.

Gideon ergueu o quadril de Élen, encaixando-o diretamente sobre seu mastro. Mordeu o lábio inferior enquanto adentrava no corpo, e gemeu alto quando atingiu a extensão desejada.

Levantando os olhos, observou Élen. Ela nunca estivera tão sensual, tão felina, tão perfeitamente feita para Gideon. A forma como projetou o corpo para trás, a maneira como se abriu para ele, determinada e entregue ao mesmo tempo, a delicadeza de sua expressão contrastando com a feminilidade de seus seios duros que subiam e desciam sobre água cada vez que Gideon entocava rapidamente para dentro, enfim... Tudo isso só deixava ainda mais claro o quanto um pertencia ao outro de uma forma que jamais outra pessoa poderia pertencer.

Quis ardentemente puxá-la, arrebatar seus lábios, provar seu gosto.

-- Gideon! - Élen gritou, e a mente de Gideon retornou ao sexo. - Aí... Aí... Mais forte - indicou o caminho como se aquele trajeto já houvesse sito feito entre eles muitas vezes, como se fosse um retorno ao lar. - Você está no lugar certo... - balbuciou. - Aí é bom...

Gideon riria se já não estivesse tão próximo de um forte orgasmo. Jogando o corpo para frente, ele abraçou Élen, enquanto todo o corpo balançava pelas ondas de prazer. Pouco tempo depois, Élen também estremecia de uma forma intensa.

Era a primeira vez dela, ele sentiu. Como pudera sentir tanto prazer se todas as virgens com quem ele estivera antes sempre sentiam dor e medo ao se deitar com ele?

Élen o abraçou, apertada contra seu corpo. Ele buscou sua boca e eles trocaram um beijo intenso. Entendeu, ali, que foi a certeza que ela projetava no homem que tornou-a tão decidida e confiante em entregar-se.

Mesmo após o deleite, o corpo de Élen ainda tremia. Gideon o abraçou carinhosamente, beijando sua testa suada.

-- Você está bem? - indagou.

Élen sorriu diante da pergunta. A cabeça projetou-se para trás quando a boca máscula buscou seu pescoço, num carinho gentil.

Seus olhos firmaram-se na lua cheia que brilhava no céu.

-- Estou cansada - ela gemeu contra seu pescoço.

Ele riu baixinho.

-- Também estou cansado.

Erguendo o corpo da companheira, ele a levou até a fogueira. Ajudou-a a secar-se e a vestir-se. Depois, deixou-a sobre uma manta a fim de descansar e foi montar guarda.

No rosto, um sorriso feliz e satisfeito como nunca até então.

Na mente, uma certeza, não a entregaria a família. Élen era dele, casar-se-ia com ela, teria filhos com ela, e ninguém jamais a tiraria dele.


Capítulo 17

 

O A T A Q U E


A névoa que vinha do mar parecia inundar o cais e trazer um tom misterioso e amedrontador ao local.

Desde que Iwan de Masha havia assumido o trono, não era tão perigoso uma mulher andar sozinha em lugares como aquele. Poucos homens arriscavam ter o pênis arrancado para cometer um estupro. Nyalla conhecia as leis, e sabia que, apesar de sua beleza, e dos olhares lascivos destinados a si, eles tentariam as prostitutas e não se atreveriam a tocar nela.

Iwan de Masha era cruel. Suas leis eram duras. Quem as violava, sentia o peso da sua justiça. Apesar de tudo, subitamente deu-se conta de que, aquela rigidez estava a proteger os mais fracos.

-- Boa noite, senhor -- aproximou-se de um braiano.

O reconhecia não apenas pela aparência, mas também pela roupa.

-- Boa noite, senhorita -- o homem curvou a face.

-- Sabe de algum barco com destino a Bran que partirá em breve?

-- Pretende ir para as terras frias?

-- Dizem que há emprego nas fazendas ao norte.

-- Sempre há emprego, especialmente nos castelos Branco e Negro. No primeiro, em questão, desde que Lorde Brian Clark assumiu posição, as coisas estão bastante vantajosas para quem tem vontade de trabalhar.

-- Ele paga bem?

-- Para quem não é preguiçoso, é um emprego dos sonhos.

Nyalla, subitamente, deu-se conta de que queria aquele emprego dos sonhos. Ela queria ser dona da própria vida, fazer as próprias escolhas. Ajudar a salvar a rainha talvez lhe valesse um trabalho honesto em Bran.

-- Mas, sabe como o chamam? -- o homem prosseguiu.

-- Na verdade não sei muito do que se passa em Bran.

-- O chamam de Perverso. E é porque Lorde Clark é duro quando se trata das leis e normas do seu povo.

Aquilo não era problema para ela.

-- Quando o barco partirá? -- insistiu.

-- Já partiu, moça -- o outro deu os ombros. -- Mas virá outro, em poucas semanas. Com certeza conseguirá passagem.

Péssima noticia! Péssima!

-- Há braianos por aqui? -- indagou. -- Companheiros seus?

-- Oh, não sou braiano. Nasci em Cashel, apesar de branco -- ele riu. -- Mas, sim, trabalho para os Clark. Mas, não do Castelo Branco e sim do Negro.

-- A família real?

-- Sim, os pais do Rei Iwan.

Era uma ótima notícia.

-- Sabe o que aconteceu com a Rainha, não?

-- Com a Rainha? -- suas sobrancelhas curvaram-se. -- Fala da princesa Élen? Pelos céus, tudo que sabemos é que ela está em Cashel com o tio, Liam.

Então Iwan de Masha não havia dado a notícia aos seus? Mah provavelmente soubera o que ocorrera através dos deuses. Estavam mantendo segredo na certeza de que encontrariam Élen antes de enervar a família.

-- Você tem companheiros? Homens armados?

-- Só eu -- deu os ombros. -- Por que indaga?

Subitamente, ficou apreensiva. Percebeu alguns homens andando pelo cais, sem, contudo, parecer notá-la. O ar gelado doeu sua garganta e ela sentiu-se mal.

Precisava voltar para junto dos amigos. Afastou-se do homem sem despedir-se.


Élen sentou-se sobre a manta assim que ouviu o som de passos. O coração aos saltos acalmou-se tão logo percebeu ser Nyalla.

Gideon, que estava de guarda, aproximou-se da amiga e a abraçou. Havia ficado preocupado por sua demora, mas agora que a via bem, entendera que havia sido uma boa ideia Nyalla ter ido até o cais.

-- E então? -- questionou, ansioso. -- Há barcos para Bran?

-- Só dentro de algumas semanas -- ela negou. -- Mas, não percebi movimento suspeito no cais, talvez as notícias de Sangue Escuro não tenham chegado aqui.

-- Acha mesmo que Vougan não mandou missivas? -- ele duvidava. -- Se ainda levará algumas semanas para a chegada de braianos, o melhor é encontrarmos uma caverna e nos escondermos.

A negra assentiu, concordando. Élen logo se colocava em pé, guardando a manta em uma pequena bolsa que eles haviam trazido consigo.

O que havia acontecido na ausência da negra fora imediatamente sentida por ela assim que o olhar das duas mulheres se cruzou.

Era nítido pelo tom rubro da pele de Gideon, e a malícia estampada nos olhos de Élen que eles não haviam aproveitado sua ausência para descansarem.

Lembrou-se imediatamente de Cashel, e os olhos correram para o ventre feminino. Se tudo havia saído conforme acreditava, naquele instante...

O som de um grito de guerra cortou o ar, fazendo com que o trio se agitasse imediatamente, interrompendo os pensamentos gentis de Nyalla.

Gideon estendeu uma espada a Élen e começou a levar as mulheres ao lado contrário do som. Não foi o suficiente. Logo, um homem com uma máscara de barro surgia diante dele, balançando sua espada, pronto para o ataque.

Eram membros de Sangue Escuro, os homens com os quais Gideon cresceu, liderou e considerava irmãos.

-- Lembro-me do que disse -- ouviu a voz de Élen, ao longe. -- Mas, eu vou lutar e matarei quem for para salvar a Nyalla e a mim mesma.

Entendeu o recado. Era uma guerra, e ele tinha que escolher um lado.

Nyalla não sabia lidar com armas e ficou atrás da outra. Logo, um dos soldados avançou. O som estridente das espadas ecoou pela noite. Eram muitos, mas Élen era bem treinada.

Enquanto Gideon avançava pela direita, ela protegia a retaguarda.

Corpos caiam conforme a espada cruzava as armaduras. Um a um, o coração de Gideon sentia cada ferimento como se os golpes fossem contra sua própria pele.

Aquele grupo, com dez homens, perdeu a vida em menos de quinze minutos de combate, especialmente pela garra da mulher criada por Iwan de Masha.

Assim que o último deles caiu ao chão, Élen volveu para Nyalla.

-- Você está bem? -- indagou à amiga.

Quando a negra assentiu, Élen voltou-se para Gideon, na intenção de perguntar a mesma coisa. Contudo, uma flecha cortou o ar, cravando nas costas de Nyalla.

-- Não! -- o grito angustiado da Rainha seguiu-se a queda da negra no chão.

Por alguns segundos que pareceram se arrastar, Gideon permaneceu estático, como se não acreditasse naquele pesadelo. Em seguida, contudo, seu olhar seguiu em direção ao arqueiro, último dos homens combatentes, e ele cegou-se.

Correu até o outro, que logo derrubava o arco no chão e retirava a espada da bainha, pronto para o duelo.

As espadas se atracaram, mas a força de Gideon, somada ao ódio, sobressaiu-se. Dois golpes, e enfim ele decepou a cabeça do homem que, um dia, jurou proteger até a morte.

Aqueles homens no chão... todos eles que agora jaziam sobre sangue... Eram seus homens. Ele os havia treinado, ele havia compartilhado com eles conversa e alimento, esperança e sonhos... E, agora, eram seus inimigos de morte.

Sentiu as lágrimas derramarem pelo seu rosto e correu até as mulheres.

Élen abraçava Nyalla, o choro incontido a fazia soluçar.

-- Por favor, não morra, não morra -- pedia baixinho.

-- Me seguiram -- o som fraco denotava a responsabilidade nas palavras. -- Não percebi que haviam me seguido... A culpa é minha...

-- Não, nunca -- Élen negou. -- Me escute -- implorou. -- Você foi a melhor coisa que já me aconteceu...

Aquela declaração de amor parecia tão fraternal e gentil que Gideon logo se curvou também, a segurar os dedos negros da mulher belíssima.

-- Élen -- a voz tornou-se mais fraca. As mãos de dedos magros e curvilíneos tocaram o ventre da futura rainha. -- Cashel é o nome que lhe dará.

E então fechou os olhos para sempre.


Capítulo 18

 


O R E I


-- Élen -- o homem sacudiu o corpo da mulher, tentando fazê-la soltar o cadáver.

-- Não vou deixá-la -- negou a de cabelos negros e pele clara, num murmuro apagado.

O som de passos o alertou. Havia mais homens. Muito mais.

-- Ela vai nos perdoar, Élen -- ele disse, tentando lhe trazer a razão. -- Nyalla deu a vida para que você se salvasse, não desperdice seu sacrifício.

Mesmo assim, os dedos não faziam menção de soltar o corpo feminino. Foi preciso que ele a forçasse, erguesse seu corpo e a colocasse sobre os ombros.

Os olhos de Élen observaram Nyalla dormindo para sempre, e numa última despedida ela jurou que jamais a esqueceria.

-- Um dia... -- murmurou. -- Um dia iremos nos encontrar novamente...


O sol nasceu e morreu no horizonte por várias vezes até que enfim Gideon voltou a se sentir seguro.

No primeiro dia, esconderam-se entre o vão de rochas, temendo até mesmo respirar, enquanto ouviam os passos e os gritos de guerra ao longe.

Morte a imunda!

Gideon abraçava Élen sempre que tal grito era disparado, lembrando-se de que, no passado, seria ele a dizer tal coisa.

Quantas pessoas haviam perdido a vida desde que ele assumiu a militância?

Centenas, pelas suas ordens. Vinte e cinco, pelas suas mãos. Sim, ele se lembrava de cada pessoa, cada criança, homem ou mulher que havia matado apenas pelo tom da pele, pelo cabelo ruivo ou pelo olho verde.

Nunca se perdoaria... Nunca!

Deu-se conta, então, que era assim que o mal vencia. Nunca combatia de frente, usava da fé cega para manipular as criaturas a agirem uma contra a outra.

Se eram todos uma mesma raça, porque guerreavam entre si? Não devia estar juntos, unidos, tentando tornar o mundo um lugar melhor?

 

Caminhou em passos retos para dentro da caverna e curvou-se diante de um amontoado de madeira carbonizada.

-- Já faz muito tempo desde que teve alguém aqui -- disse a ela, ao sentir a lenha fria. -- Estaremos seguros por enquanto.

O silêncio foi sua resposta.

Quando se voltou para o outra, contudo, quase perdeu o ar. Élen estava sentada em uma rocha solta, os pés no chão, o olhar fixo nele. Estava nitidamente desnudada de toda sorte de orgulho ou avareza. Era apenas uma mulher frágil e desesperada, em choque, sentindo a dor que parecia insuportável a tomá-la, e a torná-la pequena diante dos fatos.

Igualmente, tão recatada que a noite em que estiveram nas termais parecia um sonho idílico que já se fora. Sua postura denotava seu estado de nervos, e Gideon se condoeu.

O que se passaria na mente conflituosa daquela mulher? Sua dor por Nyalla teria fim?

Lentamente o homem se aproximou. Ajoelhou-se diante de Élen, submerso em seu olhar. Se havia dor lá, Gideon teve a resolução de que iria desaparecer. Ele provaria a Élen de todas as formas, que podiam superar, que iriam superar, toda e qualquer desgraça que os acometera.

Nyalla morreu por eles. Seu sacrifício jamais seria em vão. O que quer que fosse que a amiga estivera pensando ou planejando, ele daria àquela história o final feliz que precisava.

-- Você é linda... - disse, sincero. - Céus, não existe nada tão preciosa em todos os Reinos quanto você.

Beijou as coxas de Élen. Depois descansou a cabeça no colo feminino, respirando fundo.

Sentiu quando a morena acariciou sua face e depois afundou os dedos por entre suas madeixas. Fechou os olhos, suspirando feliz. Élen o amava. Ela nunca dissera. Não precisava. Ele sabia.

Devagar, ergueu um pouco o rosto, e aproximou a boca do ventre feminino. Nyalla dissera que havia uma criança ali. Seu filho, e de Élen. Apesar de a possibilidade ser remota, ele creu com fervor nas palavras.

Percebeu que Élen segurou a rocha, mantendo-se firme no lugar. Ergueu o olhar e a viu com os olhos apertados, os dentes mordendo os próprios lábios, como se estivesse a conter uma poderosa sensação de sofrimento.

Ergueu-se mais e a tomou nos braços, num abraço cúmplice e amigo.

-- Você vai sobreviver -- jurou. -- Eu te levarei até os seus, nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida.

-- Não posso perdê-lo também -- sua voz era franca e gentil. -- Prometa-me que não morrerá...

Era uma promessa que ele não podia fazer. Aliás, como poderia jurar qualquer coisa? Nyalla sonhara com a liberdade e agora jazia em um chão barrento, abandonada.

Subitamente, deu-se conta dos sonhos que a amiga não viveu e sentiu os olhos trasbordando em lágrimas. Nyalla morreu sem conhecer a felicidade, e ele não seguiria esse caminho. Sabia que Vougan não tardaria em colocar suas mãos sobre ele, então, queria aproveitar cada segundo, cada momento que pudesse, ao lado da mulher que agora o encarava com resignação.

Levantou-se e retirou a calça com os olhos fixos na outra. Élen, imediatamente, ficou pronta para ser amada, a respiração irregular, a pele avermelhada de paixão.

-- Por favor... Agora... - a voz masculina parecia implorar.

Gideon a viu erguendo-se e arrancando a blusa e as saias. Diante dela, Gideon a aguardou despir-se inteiramente antes de tomá-la nos braços, beijar-lhe a boca, e descê-la ao chão.

 

***

 

Os joelhos de Élen fincaram-se no solo. A morena permaneceu com o corpo superior ereto, sentindo os dedos negros circularem sua cintura, enquanto a boca de Gideon deslizava pela sua nuca. Sem sentir, arrebitou o bumbum, a altura perfeita para Gideon.

Ele estava atrás dela, também de joelhos, beijando-lhe, buscando-lhe, enquanto as mãos passeavam pelo ventre e seios.

Sentiu a ponta da carne de Gideon encostando-se a si. Gemeu de antecipação, completamente sorvida pelo instante.

-- Você está pronta? - Gideon murmurou.

Élen sentiu Gideon afastando o pênis, e ficou decepcionada. O que importava? Por que Gideon tinha que ser tão detalhista? Estava disposta a voltar-se para trás e reclamar, quando sentiu as mãos de Gideon apalpar seu bumbum, abrindo-o. Pouco depois um dedo avançava contra sua entrada feminina, num movimento de vai e vem que lhe corroeu.

Por alguns instantes ficou estática, completamente chocada. Quando o espanto passou, tentou fugir, mas ele a prendeu no lugar.

-- Élen, o que foi?

-- O que você está fazendo? - indagou, num sussurro.

-- Preparando você.

Preparando para que diabos? Eles já haviam feito amor e não precisaram daquilo. Aliás, o que diabos era aquilo?

Élen espantou seus pensamentos.

-- Eu não entendo...

-- Você não gostou? - Gideon interrompeu o movimento.

Era adorável, admitia. Gideon estava vermelho, respirando ofegante, completamente nu e excitado, e ainda assim conseguia ser atencioso e preocupado.

-- Foi estranho - assumiu.

-- Élen - Gideon aproximou-se, beijando-o nos lábios -, nada é estranho entre nós.

Élen sorriu. Não era bem isso que esperava. A verdade era que a sensação não era ruim, nem incomoda... só espantosa.

-- Você já fez isso com outra pessoa, Gideon? - a pergunta escapou.

Nunca falaram sobre o passado. Deu-se conta que pouco se conheciam. Aquilo simplesmente não importou.

-- Esse sentimento que parece me salvar e me destruir ao mesmo tempo -- ele disse, emocionado --, só senti por você.

Élen sorriu diante da explicação, trazendo Gideon para si. Beijou-lhe os lábios, deixando que os corpos se tocassem, na já conhecida ânsia. Em poucos segundos, não havia mais espaço para constrangimentos ou questões. Tudo que cabia ali era a paixão que nutriam.

Gideon adentrou dois dedos em Élen, parecendo ainda incerto sobre o momento devido da penetração. Élen respirou fundo, experimentando a sensação em completa entrega. As mãos perfeitas de Gideon pareciam ter o dom de arrebatá-la.

Quando a pélvis de Élen começou a pulsar, Gideon soube que estava pronta. Ficou de joelhos entre suas pernas, erguendo a coxa na altura correta para que sua vagina ficasse exposta.

-- Gideon - gemeu.

Vagarosamente, Gideon começou a enfiar seu mastro para dentro de Élen. A ardência que Élen sentiu não foi nada comparada a sensação de êxtase que veio em seguida. Não demorou muito e Gideon começou a dançar, num vai e vem que ia de vagaroso à rápido em segundos, e depois voltava a sua lentidão. Ele a estava enlouquecendo com aquele ritmo desconexo, perfeito, delicioso.

-- Gideon - implorou. - Mais... forte...

As unhas cravaram nos ombros másculos. Sentiu Gideon ronronar como um gatinho para, logo em seguida, gemer alto, sem embaraço nenhum.

-- Élen, não aguento - Gideon disse. - Preciso meter mais forte... Se doer, me diga.

Nunca diria. Nunca iria fazer nada para que Gideon saísse de si. Precisava do néctar de Gideon como precisava do ar em seus pulmões.

O quadril de Gideon começou a mover-se com mais fúria. Logo, ele retirou o pênis de si e a colocou de frente a ele, deitando-a rapidamente. Os dois se abraçaram, embalados pela música de seu próprio prazer assim que o mastro voltou ao seu lugar perfeito.

Élen gozou sem qualquer ajuda. O corpo, exausto, perdeu a rigidez e ela sentiu-se pesar sobre o chão. Todavia, o homem ainda não havia atingido ao clímax. Percebendo que Élen não iria poder ajudá-lo, forçou com as mãos as pernas da mulher, e deixou o caminho livre para seu próprio pênis.

As ondas de prazer vieram sem aviso, enlouquecendo-o. Ele gemeu alto enquanto preenchia o interior de Élen com seu próprio sêmen, sujando-a, melando-a, com sua semente clara.

Caiu, esgotado, sobre o corpo feminino. Élen o abraçou beijando sua testa, e Gideon sentiu uma súbita vontade de chorar.

Aquela felicidade era tão perfeita que parecia irreal.

Pessoas como ele não nasceram para a felicidade, ele sabia. Mas, o pênis dolorido e o corpo ainda pulsante deixavam claro que a cena realmente havia acontecido.

-- Eu te amo - Gideon disse pela primeira vez. - Eu te amo, Élen... - ergueu o corpo e encheu a face da mulher de beijos.

Uma estrela cadente cruzou o céu naquele instante. Era Nyalla, feliz pelos amigos.

 


Os olhos do Rei Iwan pareciam incrédulos diante da miséria e tristeza que impregnava aquele lugar.

Naquela manhã um dos soldados surgiu diante de si, comunicando que havia, por fim, encontrando o local onde a seita se reunia.

Ordenou um massacre, mas voltou atrás em suas palavras quando constatou que quase todos ali eram crianças e mulheres de olhares apáticos e assustados, guiados por um líder destrutivo e odioso.

-- Você é Vougan? -- indagou, assim que o sacerdote foi atirado aos seus pés. -- Onde está o tal Gideon?

Aqueles dois homens eram o foco principal de sua vingança.

-- Ele me traiu -- o sacerdote contou. -- Ele roubou a cadela branca e fugiu.

Aos poucos, o sacerdote se ergueu. Parecia pomposo, mesmo diante do Rei que provocara.

-- Curve-se diante de mim -- Iwan ordenou, não porque o perdoaria, mas para desacreditá-lo diante do povo alienado.

-- Nunca me curvaria diante de um imundo.

Liam surgiu atrás do Rei. Sentia a respiração rápida de Iwan e quis contê-lo. Mas, já era tarde demais.

-- Quebrem os joelhos dele -- ordenou a um dos soldados.

Houve um choro desesperado envolta do grupo de homens, mas Iwan não desviou o olhar. Com uma marreta, um dos soldados postou-se atrás de Vougan e lhe bateu nas dobras, com força, fazendo o sacerdote descer.

-- Desgraçado, onde está Gideon?

-- Já lhe respondi.

Iwan avançou, mas a mão quente de Liam o segurou.

-- Chame uma das crianças, e lhe pergunte.

O olhar de Iwan tentou amenizar. Precisava manter o controle. Precisava de Masha para que sua mente lhe trouxesse paz.

Logo, surgiu diante de um garotinho negro que chorou ao vê-lo se aproximar. Aquilo lhe comoveu, percebendo o quanto as pessoas assustavam-se diante de seu caráter violento.

-- Olá -- ele tentou sorrir, daquele jeito estranho que só ele tinha. -- Venha cá, criança.

O menino negou, mas Iwan insistiu.

-- Venha, não lhe farei nenhum mal.

Por fim, ele achegou-se ao Rei.

-- Como se chama?

-- Abeo.

Iwan sorriu diante da palavra.

-- Abeo? É um nome muito bonito, sabia? Os antigos costumavam falar sobre um profeta com esse nome que trouxe grande felicidade ao seu povo.

Aquelas palavras brandas pareciam amenizar o medo do pequeno.

-- Diga-me, Abeo -- murmurou. -- Onde está seu líder, Gideon?

-- Foi com a moça que me curou a garganta -- ele contou. -- Nyalla também foi com eles.

Liam puxou o irmão, deixando o garoto.

-- Parece que o sacerdote diz a verdade. Isso quer dizer que Élen conseguiu abrir os olhos desse tal Gideon.

Um riso maquiavélico surgiu diante deles. Era Vougan que ironizava a situação.

-- Abriu os olhos? Ela o enfeitiçou, a imunda!

-- Imunda? -- A palavra trazia ódio a Iwan. -- Imunda? Somos todos iguais!

-- Jamais!

-- Se eu te matar agora e abrir seu corpo, estará pulsando um coração igual ao que existe em mim. A cor do seu sangue é vermelho como o meu. Nós dois precisamos do mesmo ar para respirarmos, da mesma água para nos hidratarmos, somos uma mesma raça, diferente apenas pelo tom da pele!

Aquelas palavras pareciam surpreender a todos, membros ou não membros daquela seita. Liam sorriu diante delas.

Contudo, Vougan ergueu uma lâmina. Mesmo impossibilitado de avançar, ele parecia uma ameaça.

-- Acha que pode me machucar com uma faca? -- Iwan riu. -- A mim? O escolhido de Masha?

-- O maligno vencerá! -- Vougan gritou e cortou, em seguida, a própria garganta diante dos olhos espantados do Rei.

 

O maligno vencerá...

A mulher gritou em sua agonia de parto.

O maligno vencerá...

-- O ombro não quer passar -- a parteira avisou, nervosa.

-- Me corte então -- a braiana daquelas terras frias gritou.

-- Não posso fazer isso...

-- Não quero que meu bebê morra.

O maligno vencerá...

O bebê não morreu. Definhou ela, a mãe, sobre um amontoado de sangue.

A parteira encarou o corpo morto com tristeza, enquanto segurava a pequena garotinha de cabelos negros nos braços.

O maligno vencerá...

-- Asya deve ser seu nome -- a parteira disse, triste. -- Nascida em momento de pesar.

O maligno vencerá...

O maligno para sempre vencerá...


Capítulo 19

 


O R E E N C O N T R O


Liam aproximou-se do irmão, trazendo no rosto uma nítida preocupação.

-- Missivas foram enviadas a toda parte -- comunicou. -- Em breve alguém nos dará pista de onde está Élen.

-- O sacerdote desgraçado fez a mesma coisa, e também há pessoas a caçando para matá-la.

-- Mas o tal Gideon está a protegê-la -- interveio. -- Além disso, você a criou, a educou, a treinou. Acha mesmo que será assim tão fácil eliminá-la?

Iwan observava a cadeia de montanhas ao longe. Naquela manhã, partiram da aldeia, deixando alguns soldados com a missão de levar aquelas pessoas a cidades para serem reintegradas a sociedade.

Salvar Élen era prioridade, e encontrar Gideon também. O homem devia saber quem eram os traidores que agiam a surdina, ajudando a seita. A pena seria a morte para tais seres.

-- Odiada por ser branca -- murmurou.

-- A religião pode ser uma arma perigosa -- o irmão apontou.

-- Parece mais um movimento social -- ele resmungou. -- Falavam de Cashel, mas ignoraram todas as leis de amor e paz que o Deus Negro indicava.

Iwan volveu para o outro.

-- Amar você, meu irmão, é um pecado tão grande para eles que me torna sujo como o esterco.

-- Eles não sabem o que dizem...

Liam o abraçou. Sabia que o contato corporal era a única maneira de abrandar a raiva do ruivo.

-- O que fará com o tal Gideon? -- indagou. -- Ele é um criminoso, mas também salvou Élen...

O Rei desfez o abraço e voltou a andar.

-- Ainda não sei. Todavia, como Rei, o que me resta senão a justiça?

 

Ao longe Gideon forçou as vistas. Adiante o mar parecia em fúria, e os navios ancorados bailavam sobre aquelas ondas fortes.

-- Há um navio com um castelo na bandeira.

O estandarte balançava pelo vento forte. Aquele navio pertencia às terras de Bran.

-- Branco ou preto?

-- Branco...

-- São meus parentes -- Élen apontou. -- Os Clark.

Gideon assentiu.

-- São de confiança?

-- O atual senhor se chama Brian, é neto de Andrew, irmão de meu avô, Joshua. A casa Clark jurou lealdade a meu tio há muitos anos, e sempre manteve os votos. Sei que posso confiar neles.

Então, era chegada a hora de ele entregá-la em boas mãos e voltar para junto dos seus.

Élen sentiu aquilo e segurou o braço do homem.

-- Não permitirei que se vá.

-- Não posso abandonar meu povo nas mãos de Vougan.

-- Vão matá-lo.

-- Então que eu mate Vougan antes.

Lágrimas espessas escorreram pelo rosto feminino.

-- Não... Não aceito. Já perdi Nyalla, não te perderei também.

-- Precisa entender...

-- Eu entendo -- ela afirmou. -- Eu entendo que sou a futura Rainha dos Reinos e é meu dever lutar contra a força de Vougan. Eu aceitarei sua ajuda, que lute ao meu lado, mas me recuso a te deixar ir a uma missão suicida.

Era a primeira vez que alguém se preocupava com ele. Aquilo comoveu o homem.

-- Élen... -- murmurou.

Fez menção de beijá-la, quando percebeu um grupo de homens aproximando-se do local onde estavam.

Era uma estrada cercada de árvores. Creu estarem seguros ali, para observar. Não estavam. Rapidamente, retirou a espada da bainha. A mulher fez o mesmo ato.

De costas um para o outro, ele prepararam-se para defenderem-se. Não tardou e um mascarado avançou, entre os arbustos.

Depois outro. E outro. Uma infinidade de homens usando negro e máscaras pareciam formigas sobre um amontoado de mel. Élen segurava a espada com as duas mãos. Tanto ela quanto Gideon tinham habilidade e lutavam com toda força que tinham.

Mais que isso, havia a raiva, o ódio, o desejo de vingança. Aquele grupo representava a ceifa na jovem vida de Nyalla. Élen nunca conseguiria perdoá-los.

Subitamente, Gideon precisou avançar. Muitos homens investiam sobre ele, num desejo nítido de matá-lo também. Não era preciso pensar muito para entenderam sua ligação com a branca e agora desejavam destruir aquele pecador.

Nesse momento, alguém chutou o joelho de Élen por trás. Ela desequilibrou-se, e sentiu-se tonta. Caiu de joelhos na terra barrenta. De relance, percebeu seu algoz erguendo a espada.

-- Élen! -- o grito de Gideon antecedeu o inevitável.

Naqueles breves segundos, Élen volveu para ele. Seu olhar denotava o amor que sentia pelo homem. Fora tão pouco tempo ao seu lado, mas cada segundo lhe valeu tudo.

Não havia arrependimentos. Todos os desejos de seu coração, ela os viveu com e por Gideon.

Contudo, a morte não veio. O fim não caiu sobre ela. Ao contrário, o guerreiro negro de máscara de barro foi atingido por uma flecha entre as costelas, e gemeu, antes de cair no chão.

Com as vistas nubladas, Élen percebeu um homem branco, grande, lindíssimo como avô Joshua. Os cabelos negros denotavam sua descendência braiana, e o olhar cruel não escondia seu sangue de Masha.

-- Élen? -- ele indagou, a surpresa era nítida em seu olhar.

Ela queria dizer muitas coisas para aquele homem, mas não era o momento. Percebeu que, com ele, surgiam vários homens das terras de Bran.

Em pouco tempo, aquele exército os havia salvo.

 

-- Não faz muitas semanas, passei pelo litoral de Castelo Negro e vi seu avô. -- O homem comentou, oferecendo a ela um pedaço de peixe. -- Ninguém suspeita que você tenha sido capturada.

-- Com certeza meu tio Iwan não quis preocupar os pais. Meus avôs já estão velhos...

-- Mas ele devia ter avisado o resto da família. -- Seu tom não escondia o desgosto. Brian Clark era assim, sempre dizendo o que pensava sem se importar muito em como suas palavras seriam recebidas. -- Teríamos organizado uma armada e vindo ao seu socorro.

-- O Rei sabe o que faz... -- ela negou. -- Nunca duvide disso.

O homem assentiu, a contragosto. Depois, seu olhar voltou-se para o outro homem ali, sentado diante da fogueira.

-- Você era da seita Sangue Escuro, então?

-- Sim.

-- E por que não foge? Não sabe que o Rei Ruivo mandará matá-lo assim que o pegar?

-- Não fugirei da justiça. Nem do Rei, nem dos casheanos que, por ventura, aparecerem.

Élen cortou aquele assunto estranho.

-- Gideon salvou minha vida.

-- Uma vida que não teria sido arriscada caso ele não há houvesse capturado.

-- Era para ser assim! -- ela insistiu. -- De que outra forma eu teria conhecido Nyalla?

-- Por que essa mulher é importante?

O parente sabia ser desagradável quando queria.

-- Nunca entenderia... Nunca entenderia o que eu sentia quando olhava para ela... -- Depois, ela encarou Gideon. Nada disse, mas ele sabia que havia amor para ele também.

-- Está enganada, eu entendo.

A mulher pareceu surpresa. O primo afastado era um homem um tanto avarento e grosseiro de modos. Não fora uma ou duas vezes que ele havia despido palavras desonrosas em sua presença. Mas, naquele momento, seu olhar representava outra coisa.

-- Eu me casei -- contou.

-- Eu sei disso -- ela riu. -- Tio Liam foi à seu casamento, não lembra?

-- Pelos céus, não me lembro de nada que não seja Lana vestida de noiva -- ele riu. -- E você? Por que não foi?

-- O Rei precisava resolver alguns problemas em Masha e eu fiquei para auxiliá-lo.

-- Que mentirosa -- ele murmurou. -- Sei muito bem que Iwan e você detestam festas.

Ela riu diante da veracidade das palavras.

-- Enviarei mensageiros aos quatro cantos de Cashel, para avisar seu tio que está em segurança -- ele contou. -- Enquanto isso, aproveite a hospitalidade de Maldito.

-- Maldito? -- Gideon indagou.

-- Meu navio -- Brian riu. -- O desgraçado já me deixou na mão tantas vezes que lhe dei esse nome.

-- Por que não se desfaz dele.

-- Porque eu nunca abandono nada, mesmo que me cause dor ou raiva.

Era um homem incomum, pensou Gideon. Volveu-se para Élen e entendeu que ela estava em segurança. Ficou aliviado.


Passou-se um par de dias até o exército real surgir no cais daquele canto isolado de Cashel.

Élen foi a primeira a vê-los. Todas as manhãs ela sentia o estômago embrulhado e um vômito doentio a tomá-la, então acabava de pé muito cedo, e ia caminhar pelo convés.

Os cabelos vermelhos do tio a fizeram lacrimejar. Não se conteve, abandonou o barco, saltando para o cais, correndo em sua direção.

Iwan a segurou nos braços com força, beijando seus cabelos, aspirando seu perfume, apertando-a contra si, agradecendo a Masha por aquele presente sem preço.

-- Está machucada? -- indagou. As lágrimas a tomá-lo. -- Lhe fizeram algum mal?

Não teve tempo de negar. Logo, o outro tio apareceu, e ela correu para Liam.

-- Nós a procuramos tanto... tanto -- o negro murmurou contra seus ouvidos. -- Nunca desistiríamos.

-- Eu sei, meu tio -- ela sorriu. -- Eu os amo.

-- Amamos você também...

Naquele instante, outra pessoa surgiu entre o núcleo familiar. Os tios de Élen encararam o homem de porte forte, atlético, aguerrido.

-- Eu sou Gideon. -- Sua apresentação era corajosa. -- E estou aqui para ser julgado por Vossa Majestade.


Capítulo 20

 


C A S H E L


Meses depois...

Ao longe, havia um burburinho de chuva a cair, como numa tempestade contida, um choro dos céus que representava bem o sentimento da mulher sentada à direita do Rei.

O ventre de Élen havia se avantajado nos últimos meses.

A descoberta da gravidez não foi uma surpresa para a mulher, porque ela soube, desde o exato momento que havia se dado a Gideon, que havia uma luz em si além do amor que nutria por ele.

A felicidade não foi dividida pelos tios. A palavra - se é que tal seja uma palavra - correta para descrever Iwan seria "emputecido". Sim, ele havia ficado puto de raiva, espumando de ódio, Liam mal havia conseguido conter sua gana de ir até o negro de Cashel e enfiar sua espada no reto dele.

Contudo, Gideon, preso em sua cela nas masmorras mal conseguia esconder o sorriso diante do fato. Uma parte de si, uma pequena e incrível parte de si, depressa passava a ser vida no ventre da única mulher que ele havia amado.

Agora, diante da mulher que ele via pela primeira vez desde que chegara a Bran, ele mal conseguia esconder as lágrimas.

Queria tocar seu ventre, beijar seu filho, abraçá-la e agradecê-la pelo presente. Mas, sabia que não poderia passar pela experiência.

Era o julgamento. Sua condenação à morte. Assassinatos cruéis e frios como os que ele havia realizado por tempos em Cashel não lhe dariam outra chance.

-- O conselho chegou a um consenso? -- Iwan indagou ao grupo de homens velhos que julgava os crimes do jovem guerreiro.

-- A pena de morte é a única pena justa -- um dos anciões se ergueu, fazendo com que o coração de Élen quase parasse de bater. -- Contudo, o homem também fez o bem. Foi graças a ele que nossa futura Rainha está a salvo, e é dele o fruto que ela carrega no ventre. Assim sendo, daremos a ele a pena de um ano recluso por cada vida que tirou.

Gideon poderia mentir. Dizer um número inferior ao de sua contagem mental. Mas, ele não faria aquilo. Nunca mais dormiria em paz se o fizesse.

-- Não há números de vidas ceifadas sobre minhas ordens -- advertiu. -- Mas, sobre minhas mãos, são vinte e cinco.

Vinte e cinco anos preso no calabouço do castelo. Vinte e cinco anos sem poder amar Élen, senti-la... Vinte e cinco anos que não teria o filho, não o veria dar os primeiros passos, nem apaixonar-se pela primeira vez.

-- Que assim seja -- Iwan disse, alto, encerrando o assunto.

Élen sentiu as lágrimas deslizando pelo rosto enquanto soldados levavam Gideon de sua frente. Ela engoliu o choro, sentindo a mão quente do tio a tocar a sua.

-- Seus pais logo chegarão para vê-la -- Iwan murmurou. -- Mantenha-se firme porque Benjamin e Lyanna ficarão revoltados ao sabê-la mãe sem marido.

A moça concordou.

-- Mas, eu tenho seu apoio -- ela balbuciou. -- Isso me basta.

-- Tem meu apoio para amar esse homem também -- Iwan a surpreendeu. -- Um homem que aceita pagar pelos seus crimes ao invés de viver ao lado da mulher que ama e do filho que gerou nela, é um homem no qual eu teria apreço de pai.

 


Elen adentrou o local escuro. Ficou defronte a uma cela e através das grades ela observou Gideon. Sorriu para ele, deixando claro que não o abandonaria ali, mesmo que se passasse toda uma vida.

-- Seus pais já chegaram? -- ele indagou, aproximando-se das grades, estendendo a mão para ela.

Os dedos negros tocaram o ventre. Ela pousou a mão sobre a dele.

-- Minha mãe desmaiou e meu pai quer matá-lo.

-- Eu imaginei. Se for uma menina, e algum homem fizer a ela o que eu fiz a você, eu agiria da mesma forma.

Élen sorriu.

-- Eu o perdoo -- disse, segura. -- Eu te amo.

-- Eu a amo também -- ele devolveu. -- Quando esses anos tiverem fim, nós teremos uma vida.

-- Eu sei...

A mulher se aproximou das grades e o beijou. Mal podiam se tocar entre os ferros gelados, mas era um alento que ao menos pudesse visitá-lo.

-- Se for menina, poderia chamá-la de Nyalla? -- ele pediu.

-- Se fosse menina, seria esse o nome dela. Mas, será um homem.

-- É mesmo? -- ele brincou com a intuição feminina.

-- Foi a própria Nyalla que me disse.

-- Nyalla era sábia. Tenho certeza que ela acertará.

Os últimos momentos da amiga surgiram em sua mente. Mais que isso, o encontro com aquele homem negro misterioso ocorrido há tanto tempo também. Repentinamente, Élen entendeu o inevitável.

 


Os gritos ecoaram pelos corredores do castelo. Lyanna levou uma toalha úmida até a testa da filha, tentando ajudá-la a ficar mais confortável. A parteira, aos pés da princesa, tentava forçar a barriga para facilitar a saída do bebê, mas o parto, que já demorava horas, parecia ainda mais difícil.

-- Ele precisa nascer -- Élen gritou. -- Ele precisa nascer! Muitos foram os sacrifícios para que ele viesse a esse mundo -- sua voz parecia transtornada. -- Se preciso, corte minha barriga.

-- Não -- a mãe negou.

-- Estou te pedindo.

-- Não deixarei que essa criança venha ao mundo sem mãe. Faça a sua parte -- Lyanna disse, firme, como costumava ser quando se irritava. -- Força!

Momentos depois, o grito forte de um menino ecoou pelo quarto.

"Cashel é o nome que me dará".

-- Ele é negro como o pai -- Lyanna pegou a criança, apertando-a nos braços. -- É lindo... -- Subitamente, ficou assustada. -- Não tem nada de Masha ou Bran. Parece com meu irmão Iwan, um puro.

Élen sorriu diante do fato.

"Cashel é o nome que me dará".

O maligno havia acabado de perder a guerra cósmica. O bem venceu.

 

 

                                                   Josiane Biancon da Veiga         

 

 

 

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