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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PRÊMIO / Brenda Joyce
O PRÊMIO / Brenda Joyce

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Devlin O’Neill, célebre Capitão da Marinha Real britânica vive consumido pelo desejo de destruir o Conde de Eastleigh, o homem que assassinou brutalmente seu pai. Depois de levá-lo aos limites da ruína, aguarda o momento de dar o golpe fatal.
E sua oportunidade se apresenta na forma de uma impetuosa jovem americana, sobrinha do Conde, que está disposta a explodir sua vida fria e calculista tranformando-a em chamas.
Nascida e criada em uma plantação de tabaco na Virginia, na América, a órfã Virginia Hughes anseia salvar Sweet Briar, seu amado lar, das dividas deixadas por seu pai. Cheia de coragem, ela embarca sozinha rumo à Inglaterra com a esperança de convencer seu tio a lhe emprestar o dinheiro que necessita. Mas o famoso e implacável Devlin O’Neill a seqüestra. E enquanto permanece em seu poder, Virginia vê seus planos serem frustrados por culpa de uma paixão que pode mudar para sempre o destino dos dois.

 

 

 


 

 

 


5 de julho de 1798
Sul da Irlanda, arredores do castelo de Askeaton.

Gerald O’Neill entrou na casa precipitadamente. Sua camisa, antes branca, estava vermelha. Sua calça de camurça e seu levita azul estavam manchados igualmente. O sangue havia salpicado em sua bochecha e sujado suas costeletas. O ferimento aberto em sua cabeça e os cortes em seus dedos sangravam. Seu coração pulsava com alarmante força e o barulho da batalha e os gritos da morte iminente ressoavam em seus ouvidos.
— Mary! Mary! Desça ao porão imediatamente! — Ele bramou.
Cheio de assombro, Devlin O’Neill não podia se mover. Seu pai estava fora a mais de um mês, desde meados de maio. Mas a cada par de semanas ele enviava notícias e, embora Devlin tivesse somente dez anos era plenamente consciente que ele estava liberando uma guerra. Camponeses, sacerdotes, pastores, cavalheiros, lavradores e nobres haviam se elevado para combater de uma vez por todas os demônios ingleses, a fim de recuperar o que lhes pertencia por direito: a rica terra irlandesa roubada já há um século. Havia muita esperança… E muito medo.
O coração de Devlin pareceu parar enquanto observava seu pai. Sentia-se aliviado por que afinal ele estava ali e ao mesmo tempo, terrivelmente assustado. Temia que Gerald estivesse ferido. Temia algo muito pior. Precipitou-se para ele com um leve grito, mas Gerald não se deteve; aproximou-se do pé da escada e voltou a chamar sua esposa aos gritos. Sua mão não se afastava da bainha que continha sua espada e um mosquete. Devlin nunca tinha visto nele um olhar tão feroz. Santo Deus.
— Nosso pai está ferido? — Perguntou sussurrando, uma miúda voz ao seu lado, e uma mão pequena puxou a manga de sua veste.
Devlin sequer fitou o irmão menor, um menino de cabelo escuro. Não podia afastar os olhos do pai. Sua mente girava como um torvelinho, acelerada. Os rebeldes tinham tomado a cidade de Wexford no início da insurreição e o Condado inteiro havia se regozijado com o fato. Bem, pelo menos a parte católica. Seguira outras vitórias, mas também outras derrotas. Agora os casacas vermelhas estavam por toda parte. Devlin os divisara aos milhares em uma colina, nessa mesma manhã. A imagem era a mais espantosa que havia visto. Tinha ouvido dizer que Wexford havia caído e uma criada dizia que em New Ross havia milhares de mortos. Ele tinha se negado a acreditar… Até esse momento. De repente pensou que provavelmente os rumores a respeito das derrotas e as matanças fossem certos. Pela primeira vez em sua jovem vida via temor nos olhos de seu pai.
— Nosso pai está ferido? — Perguntou Sean outra vez, com voz trêmula.
— Acredito que não. — Disse Devlin. Sabia que devia se mostrar valente, pelo menos diante de Sean. Mas o medo o atendia. Sua mãe desceu correndo as escadas, com sua irmã menor nos braços.
— Gerald! Graças a Deus. Estava preocupada com você! — Ela exclamou pálida como um fantasma.
Ele soltou a bainha de sua espada, para segurá-la pelo braço.
— Leve as crianças para o porão. — Disse Gerald asperamente. — Agora, Mary.
— Está ferido? — Ela perguntou. Os olhos azuis cravados no rosto do marido pareciam cheios de medo.
— Faça o que digo. — Ele respondeu enquanto a empurrava pelo corredor. Meg, a menina, começou a choramingar. — E não a deixe chorar, pelo amor de Deus. — Acrescentou Gerald com a mesma severidade. Olhava para trás, para a porta aberta, como se esperasse ver os soldados britânicos chegar.
Devlin seguiu seu olhar. No céu azul claro se via fumaça. De repente, ouviu o estrondo dos disparos dos mosquetes. Mary abriu a blusa e apertou à menina contra seu seio.
— O que será de nós, Gerald? — Perguntou e acrescentou em voz mais baixa: — O que será de você?
Ele abriu a porta do porão, oculta por uma tapeçaria centenária.
— Tudo sairá bem. — Disse. — Os meninos, você e a pequena ficarão bem. Ela levantou o olhar para ele. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Não estou ferido. — Ele acrescentou com voz pastosa, e lhe deu um rápido beijo nos lábios. — Desçam e não saiam até que eu os chame.
Mary assentiu com a cabeça e desceu. Devlin correu para ouvir retumbar um canhão, muito perto da casa.
— Pai! Deixe que eu vá contigo! Posso te ajudar. Sei disparar…
Gerald se voltou e atingiu Devlin na cabeça. O menino caiu no chão de pedra. Aterrissou sobre as nádegas.
— Faça o que te digo. — O pai bramou e, enquanto corria pelo corredor, acrescentou: — Cuide de sua mãe, Devlin.
A porta se fechou. Devlin piscou para conter as lágrimas de desespero e vergonha e voltando-se para Sean tirou o chapéu. Havia interrogação nos olhos cinza de seu irmão. Devlin se levantou tremendo como um menino pequeno. Não havia duvida sobre o que devia fazer. Nunca tinha desobedecido seu pai, mas não ia permitir que seu pai enfrentasse sozinho os casacas vermelhas.
Se o pai fosse morrer morreria com ele.
O medo quase o fazia desfalecer. Fitou o irmão menor. Respirava trabalhosamente e procurava convencer de que devia comportar como um homem.
— Desça com nossa mãe e Meg. Vá. — Ordenou em voz baixa. Sem esperar para ver se Sean o obedecia, ele atravessou correndo o saguão e entrou na biblioteca de seu pai.
— Vai lutar, não vai? — Sean gritou. Ele o tinha seguido.
Devlin não respondeu. Estava cheio de resolução. Correu ao armeiro que havia atrás da grande mesa de seu pai e ficou paralisado. Estava vazio. Fitou-o, incrédulo.
Então ouviu os soldados. Ouviu gritos dos homens e relinchar dos cavalos. Ouviu o chiado das espadas. O canhão retumbou novamente, muito perto. Disparos de pistolas salpicavam o fogo dos mosquetes. Voltou-se lentamente para Sean e seus olhares se encontraram. Seu irmão estava amedrontado e o mesmo medo acelerava seu coração até lhe deixar sem respiração.
— Estão muito perto, Dev. — Sean disse.
Devlin mal conseguiu articular a palavra.
— Vá para o porão. — Tinha que ajudar seu pai. Não podia deixá-lo morrer sozinho.
— Não vou te deixar sozinho.
— Você tem que cuidar de mamãe e de Meg. — Disse Devlin e se aproximou correndo do banco que havia perto ao armeiro e elevou a tampa. Ficou atônito. Seu pai sempre guardava uma pistola naquela arca, mas ali não havia nada, salvo uma adaga. Uma absurda e inútil adaga.
— Vou contigo. — Disse Sean com a voz quebrada pelas lágrimas.
Devlin pegou a adaga. Enfiou a mão na gaveta da mesa de seu pai e tirou um afiado estilete de abrir cartas. Entregou a Sean. Seu irmão sorriu severamente. Devlin não lhe devolveu o sorriso. Então notou a antiga armadura que havia em um canto do aposento. Contava-se que um célebre antepassado havia ganhado por prestar um favor a uma rainha inglesa. Devlin correu para ela. Sean lhe pisava nos calcanhares, como se estivesse unido a ele por uma corda muito curta. Devlin tirou a espada da manopla e a deslustrada armadura desabou.
Devlin sentiu seu ânimo se elevar. A espada era velha e estava oxidada, mas era uma arma. Tocou sua lâmina e ficou boquiaberto ao notar que de seu dedo brotou sangue. Logo fitou Sean.
Os irmãos compartilharam um sorriso.
O canhão retumbou e a casa tremeu. No saguão. Os cristais se estilhaçaram. Os meninos piscaram duro, mesmo com os olhos enormes de medo. Devlin umedeceu os lábios.
— Sean, você tem que ficar com a mamãe e Meg.
— Não.
Deu-lhe vontade de bater BA cabeça de seu irmão como o pai tinha feito com ele. Mas, no fundo, se sentia aliviado por não ter que enfrentar os casacas vermelhas, sozinho.
— Então, vamos. — Concordou.
Além do milharal que subia para as muralhas ruídas do castelo de Askeaton, a luta era encarniçada. Os meninos, ocultos pelos caules, atravessaram correndo os campos, até que chegaram à última fila de plantas. Devlin se abaixou e se sentiu doente ao observar finalmente o sangrento panorama. Parecia haver centenas, não, milhares de soldados vestidos de vermelho. Os britânicos ultrapassavam e muito às esfarrapadas hordas irlandesas. Estavam armados com mosquetes e espadas. Os irlandeses em sua maioria só usavam uma lança. Devlin contemplou como eles massacravam seus compatriotas. Não um a um, mas aos montes. Seu estômago se revolveu violentamente. Só tinha dez anos, mas era capaz de reconhecer uma matança.
— Pai. — Sean sussurrou.
Devlin se sobressaltou e seguiu o olhar de seu irmão. Em seguida notou um homem que parecia enlouquecido. Montava um cavalo cinza e brandia grosseiramente sua espada, com a qual matou quase que milagrosamente um casaca vermelha e logo a outro.
— Vamos! — Devlin se levantou de um salto e correu para o campo de batalha.
Um soldado britânico apontava seu mosquete a um granjeiro armado com lança e adaga. Soldados e camponeses lutavam entre si afrontosamente. Havia muito sangue e o odor da morte era sentido por toda parte. Devlin se arremeteu com sua espada contra o soldado. Para sua surpresa, a lâmina o atravessou completamente.
Ficou paralisado, cheio de assombro, enquanto o granjeiro rematava rapidamente o soldado.
— Obrigado, moço. — Disse o homem, e jogou o soldado morto no barro.
Um mosquete disparou e os olhos do granjeiro se abriram de par em par, cheios de surpresa. O sangue brotou de seu seio.
— Dev! — Gritou Sean.
Devlin se voltou bruscamente e viu o canhão de um mosquete apontado para ele. Levantou imediatamente a espada. Perguntou-se se morreria. Sua espada não era oponente para a arma de fogo. Mas então Sean, que havia tirado o mosquete do morto, golpeou o soldado por trás, nos joelhos. O soldado perdeu o equilíbrio e errou o tiro. Sean o golpeou na cabeça e o homem caiu no chão e ficou imóvel. Aparentemente havia perdido o sentido.
Devlin se levantou. Custava-lhe respirar. Sem cessar via a imagem do jovem soldado que acabava de ajudar a matar. Sean o fitava apavorado.
— Temos que ir com nosso pai. — Disse Devlin.
Sean assentiu com a cabeça. Estava à beira das lágrimas.
Devlin se voltou e esquadrinhou a massa de homens que lutavam, tentando encontrar seu pai sobre o cavalo cinzento. Mas foi em vão. De repente se deu conta de que a luta começava a amainar. Ficou quieto e observou ao seu redor com os olhos dilatados. Viu centenas de homens vestidos com túnicas marrons estendidos, inertes, sobre o campo de batalha. Entre eles havia dúzias de soldados britânicos, também sem vida e uns quantos cavalos. Aqui e acolá alguém gemia ou chorava fracamente, pedindo ajuda.
Um inglês gritava ordens a sua companhia. O olhar de Devlin percorreu novamente a cena. O campo de batalha se estendeu até as margens do rio de um lado, com o milharal ao fundo e a casa ao sul. Os soldados britânicos começavam a se reagrupar.
— Rápido. — Disse Devlin. Sean e ele correram sobre os cadáveres para o campo de milho, onde poderiam se esconder. Sean tropeçou em um corpo ensangüentado. Devlin o ajudou a se levantar e o puxou até que puderam se refugiar nas primeiras fileiras da plantação de milho. Ofegantes, eles se esconderam. Da ligeira elevação onde se achava o milharal, Devlin notou finalmente que a batalha havia acabado.
Havia muitos mortos.
Sean se abaixou ao seu lado. Devlin sabia que seu irmão estava perto de chorar. Abraçou-o, mas não afastou os olhos do campo de batalha. A casa estava a sua direita, além de um prado. Havia alguns mortos no pátio. Seu olhar se dirigiu de repente para a esquerda. Adiante, não muito longe de onde estavam escondidos avistou o cavalo de seu pai. Ficou rígido. Um soldado segurava o cavalo e seu pai não estava montado.
De repente apareceram vários oficiais britânicos e se aproximaram do animal. Empurravam Gerald O’Neill diante deles, amarrado e a pé.
— Pai. — Sean sussurrou.
Devlin temia abrigar esperanças.
— Gerald O’Neill, acredito? — Perguntou zombeteiro, um oficial que estava a cavalo.
— Com quem tenho a honra de falar? — Perguntou Gerald, no mesmo tom.
— Com o Capitão Lorde Harold Hughes, fiel servidor de Sua Majestade. — Respondeu o oficial com um sorriso frio. Ele possuía um rosto formoso, com o cabelo tão negro que parecia azulado e os olhos azuis como o gelo. — Não se inteirou, O’Neill? Os rebeldes foram vencidos, massacrados. O general Lake arrasou seus míseros aquartelamentos em Vinegar Hill. Parece que o número de baixa no lado rebelde se estima em quinze mil. Seus homens e você são um bando de inúteis.
— Maldito seja Lake e Cornwallis também. — Disse Gerald. Cornwallis era o vice-rei da Irlanda. — Lutaremos até que caia o último homem, Hughes. Ou até recuperarmos nossa terra e nossa liberdade.
Devlin desejou desesperadamente que seu pai não falasse assim com Capitão britânico. Mas Hughes simplesmente encolheu os ombros.
— Queimem tudo. — Ele disse como se falasse do tempo.
Sean gritou. Devlin ficou paralisado pelo desalento.
— Capitão!— Perguntou um oficial jovem. — Queimar tudo?
Hughes sorriu para Gerald, que havia ficado branco como um fantasma.
— Tudo, Smith. Cada campo, cada pasto, cada estábulo, os animais… E a casa.
O tenente se voltou e expediu rapidamente as ordens. Devlin e Sean se fitaram, horrorizados. Sua mãe e Meg estavam na casa. Devlin não sabia o que fazer. Sentia o desejo imperioso de correr para os soldados e gritar: Não!
— Hughes! — Disse Gerald com ferocidade. — Minha esposa e meus filhos estão lá dentro.
— Seriamente? — Hughes não parecia impressionado. — Provavelmente suas mortes sirvam para que outros pensem duas vezes antes de cometer traição.
Os olhos do Gerald cresceram em seu rosto.
— Queimem tudo. — Disse Hughes. — E quero dizer tudo.
Gerald investiu para ele, mas os soldados o detiveram. Devlin não parou para pensar. Voltou-se disposto a correr para a casa. Mas tinha dado somente um passo ou dois quando se deteve em seco. Sua mãe estava na porta aberta da casa, com a menina nos braços. Devlin sentiu tal alívio que cambaleou. Pegou Sean da mão e se atreveu respirar. Logo voltou a observar o pai e o Capitão Hughes.
A fisionomia do inglês tinha mudado. Ele elevara as sobrancelhas e observava com interesse a casa.
— Sua esposa, acredito.
Gerald lutava violentamente com os três homens que o seguravam.
— Maldito canalha. Toque-a e o matarei de uma forma ou outra. Juro.
Hughes sorriu sem afastar os olhos de Mary. Como se não tivesse ouvido Gerald, murmurou: — Ora, ora. Os acontecimentos acabam de tomar outro rumo. Levem a mulher aos meus aposentos.
— Sim, Senhor. — O tenente Smith fez o cavalo se voltar para a casa.
— Hughes! Toque em um fio de cabelo de minha mulher e te cortarei as bolas, uma a uma. — Bramou Gerald.
— Ah, sim? E diz isso um homem destinado à forca… Ou a algo pior? — Ele desembainhou tranqüilamente sua espada e, um instante depois, um só golpe cerceou a cabeça de Gerald.
Devlin fitou horrorizado como caía lentamente o corpo decapitado de seu pai e sua cabeça rolando pela terra, com os olhos ainda abertos e cheios de ira. Voltou-se paralisado ainda pelo estupor, e viu que sua mãe desmaiava. Meg chorava forte e esperneava no chão, junto à Mary.
— Prendam à mulher. — Disse Hughes. — Levem-na aos meus aposentos e queimem a maldita casa. — Ele esporeou a montaria e partiu a galope.
Enquanto dois soldados andavam para a casa, a ciência de que seu pai tinha sido brutalmente assassinado golpeou Devlin como um raio. Meu pai havia morrido barbaramente, assassinado a sangue frio pelo maldito Capitão inglês. Pelo Capitão Hughes.
Ele tinha deixado a espada no campo de batalha. Levantou a pequena e estúpida adaga. Um grito se elevou de algum lugar, em um som monstruoso, agudo, cheio de raiva e de dor. Compreendeu vagamente que aquele som procedia dele. Precipitou-se aos tombos, decidido a matar quem pudesse. A qualquer inglês. Um soldado o fitou com surpresa ao vê-lo correr para ele com a adaga elevada. Alguém golpeou a parte de atrás de sua cabeça e depois do primeiro instante de dor, ele só sentiu negrume… E um delicioso alívio.


Despertou devagar. Sentia uma intensa dor na cabeça, estava com frio, molhado e sentia um temor difuso.
— Dev? — Sean sussurrou. — Você está acordado, Dev?
Notou que os braços magros de seu irmão o seguravam. Um estranho aroma, acre e amargo, impregnava o ar. Devlin se perguntou onde estava, o que tinha acontecido. Então viu seu pai amarrado entre os casacas vermelhas; viu o Capitão Hughes levantar sua espada e cercear sua cabeça. Gemeu e abriu os olhos bruscamente. Sean o abraçou mais forte.
Ao se recordar de tudo lutou para ficar de joelhos. Estavam no bosque e havia chovido há pouco. Tudo estava úmido e frio. Devlin se afastou para um lado e se retorceu de dor, sem chorar, firmando-se à escura terra da Irlanda.
Finalmente se acalmou. Acocorou-se e fitou os olhos de Sean. Seu irmão tinha feito uma pequena fogueira. O fogo permitia ver, mas não esquentava.
— E a mãe? E Meg? — Perguntou com voz rouca.
— Não sei onde estão. — Respondeu Sean com o rosto contraído. — Os soldados a levaram antes que voltasse em si. Eu queria pegar Meg, mas quando você enlouqueceu e o soldado te bateu, eu te trouxe aqui a rastros. Logo começou o fogo, Devlin. — Seus olhos se encheram de lágrimas. — Todo desapareceu. Tudo.
Devlin ficou com o olhar perdido, cheio de pavor. Entretanto, logo voltou em si. Agora, tudo dependia dele. Não podia chorar; tinha que tomar o comando. — Deixe de choramingar como um bebê, — ele disse com voz cortante, — temos que resgatar a mamãe e encontrar Meg.
Sean parou de soluçar imediatamente. Assentiu com a cabeça sem afastar os olhos de seu irmão.
Devlin se levantou. Não se incomodou em sacudir a calça que estava muito suja. Atravessaram a clareira apressadamente. Ao chegar à margem, ele tropeçou.
Uma vasta planície se estendia ante ele e, onde antes havia a casa, se notava uma casca de ovo de paredes de pedra e duas lareiras desoladas. Identificou em seguida o aroma acre. Um aroma de fumaça e a cinzas.
— Morreremos de fome neste inverno. —Murmurou Sean segurando sua mão.
— Voltaram para a fortaleza de Kilmallock? — Perguntou Devlin severamente. A determinação havia ocupado o lugar do medo gélido, do pavor nauseabundo.
Sean assentiu. — Como iremos resgatá-las, Dev? Eles são milhares… Nós, só dois… e somos pequenos.
A mesma pergunta atormentava Devlin. — Encontraremos algum modo. — Respondeu. — Prometo-lhe, Sean. Encontraremos algum jeito.
Era meio-dia quando chegaram ao alto de uma colina de onde se avistava a fortaleza inglesa de Kilmallock. Devlin se desanimou ao notar além das paliçadas, muitas barracas brancas e casacas vermelhas. As barracas dos oficiais, situadas no meio do forte, estavam assinaladas por bandeiras. Devlin começou a pensar como podiam entrar no forte. Se fosse mais alto mataria um soldado para se apoderar de seu uniforme. Pesou a possibilidade de entrar simplesmente pelas portas abertas, com uma carreta, com um comboio ou um grupo de soldados, como se fossem inofensivos.
— Acha que ela está bem? — Sean sussurrou. Seu irmão seguia aterradoramente pálido, com os lábios em carne viva de tanto morder-lhes e os olhos cheios de temor. Devlin estava preocupado de ele cair doente. Abraçou-o.
— Iremos salvá-la e tudo voltará a ficar bem — Disse com firmeza. Mas no fundo de sua alma sabia que estava mentindo. Nada voltaria a ser como antes.
O que teriam feito da pequena Meg? Dava-lhe medo sequer pensar em que tivesse morrido no incêndio. Fechou os olhos com força. Uma terrível quietude se apoderou dele e sua respiração se acalmou pela primeira vez. Suas vísceras deixaram de retorcer. Algo escuro começou a formar em sua mente. Algo escuro, amargo e duro… Algo terrível e implacável.
Sean começou a chorar. — E se lhe fizeram mal? E se… e se… fizeram… o que fizeram ao nosso pai?
Devlin piscou e tirou o chapéu observando friamente o forte. Continuou fitando sem fazer caso de seu irmão, consciente da terrível mudança que acabava de se operar nele. O menino de dez anos desapareceu para sempre. Um homem tinha aparecido em seu lugar. Um homem frio e decidido. Um homem cuja ira fervia sob a superfície e alimentava uma férrea resolução. A força de sua determinação lhe causava assombro. O temor havia desaparecido. Não temia os ingleses, nem à morte. E sabia o que tinha que fazer…, embora levasse anos.
Voltou-se para Sean, que o fitava com seus olhos enormes e cheios de lágrimas.
— Não fizeram mal a mamãe. — Se ouviu dizer com calma. Seu tom era tão imperioso como tinha sido o de seu pai.
Sean piscou surpreso, e assentiu com a cabeça.
— Vamos. — Disse Devlin com firmeza. Desceram a colina e junto à estrada encontraram uma pedra atrás da qual se esconderam. Uma hora depois apareceram quatro carroças cheias de provisões, conduzidos por uma dúzia de soldados a cavalo. — Finja que queremos lhes dar as boas-vindas. —Ele sussurrou.
Saíram à estrada. O sol alto era quente e brilhante. Eles sorriram e saudaram as tropas que se aproximavam. Alguns soldados lhes devolveram a saudação. Um deles lhes jogou um pedaço de pão. Os irmãos seguiram saudando enquanto passavam as carretas, com o sorriso grudado no rosto. Logo Devlin deu uma cotovelada em Sean e os dois começaram a correr atrás da última carreta. Devlin subiu de um salto, voltou e estendeu a mão ao irmão. Sean saltou e Devlin o segurou. Ocultaram-se sob os sacos e se encolheram um ao outro. Devlin sentiu uma satisfação leve, mas feroz. Sorriu para Sean.
— E agora? — Sussurrou seu irmão.
— Agora, esperaremos. — Disse Devlin. Curiosamente sentia uma fria confiança em si mesmo.
Logo que a carreta atravessou as portas do forte, Devlin se atreveu a erguer a cabeça. Notou que ninguém vigiava e deu uma cotovelada em Sean. Saltaram e correram para o lateral da barraca mais próxima. Cinco minutos depois estavam escondidos junto à barraca do Capitão, escondidos atrás de dois barris de água. Apenas sabia de momento, que estavam a salvo.
— O que vamos fazer agora? — Perguntou Sean enquanto limpava o suor da fronte.
— Sssh — Disse Devlin. Tentava descobrir como podiam liberar sua mãe. Parecia impossível. Mas tinha que haver algum jeito. Não tinha chegado até ali para permitir que sua mãe caísse nas garras do Capitão Hughes. Seu pai quereria que a resgatasse… E ele não voltaria a defraudá-lo.
A lembrança pavorosa voltou a assaltá-lo: a cabeça cerceada de seu pai no chão, em meio de uma poça de sangue, com seus olhos grandes e furiosos, quase sem vida. Sua confiança em si mesmo fraquejou, mas sua resolução se fortaleceu até o impossível.
Ouviram vozes. Cavalos se aproximavam a trote. Devlin e Sean cuidaram adiante dos barris. Hughes tinha saído da barraca. Parecia contente. Trazia na mão uma taça de conhaque e ao que parecia lhe interessava a causa daquele alvoroço.
Devlin seguiu a direção do olhar do Capitão para o sul, através das portas abertas do forte pelas quais tinham entrado. Sobressaltou-se. Um grupo de cavaleiros se aproximava rapidamente. O pendão que ondeava acima do cavaleiro que estava na frente era de cor negra, prata e cobalto. Ao seu lado Sean inalou bruscamente. Devlin e ele se fitaram.
— É o Conde de Adare. — Sean sussurrou inquieto. Devlin tampou sua boca com a mão. — Deve ter vindo ajudar. Cale-se.
— Malditos sejam os irlandeses, até os de origem inglesa. — Disse Hughes a outro oficial. — É o Conde de Adare. — Ele jogou a taça de conhaque no chão. Estava visivelmente irritado.
— Fechamos as portas, Senhor?
— Por desgraça, esse homem é amigo de Lorde Castlereagh e faz parte do Conselho da Irlanda. Soube que esteve em um jantar de estado com Cornwailis. Se fechar as portas, ele armará uma boa confusão. — Hughes tinha o cenho franzido e manchas vermelhas haviam aparecido em sua garganta, acima do pescoço dourado e negro de sua casaca vermelha.
Devlin tentou conter sua agitação. Edward de Warenne, Conde de Adare, era seu Senhor. E embora Gerald arrendasse as terras ancestrais que pertenciam a Adare, ambos eram de fato muito mais que proprietário e arrendatário. Frequentavam os mesmos jantares e bailes, às mesmas caçadas e corridas de obstáculos. Adare havia jantado muitas vezes na casa de Askeaton. Diferente de outros grandes latifundiários, ele sempre havia se mostrado justo em seus entendimentos com a família O’Neill. Nunca lhes exigia pagamentos excessivos e nem pedia mais do que lhe correspondia.
Devlin se deu conta que Sean e ele estavam de mãos dadas. Observou quase sem fôlego, como o Conde e seus homens se dirigiam à barraca do Capitão. Não refrearam seus cavalos e os soldados tiveram que se afastar. Finalmente, os cavaleiros se detiveram bruscamente ante Hughes e seus homens. Imediatamente, dezenas de casacas vermelhas armados com mosquetes rodearam os recém chegados.
O Conde esporeou seu cavalo negro para se aproximar do Capitão. Era alto e moreno, de aparência diferente, formidável. Sua presença emanava poder e autoridade. Mas seu rosto era uma máscara de ira.
— Onde está Mary O’Neill? — Ele perguntou secamente. Um manto azul marinho ondeava sobre seus ombros.
Hughes esboçou um sorriso crispado.
— Desconfio que tenha se inteirado da prematura morte de O’Neill.
— De sua morte prematura? — O Conde de Adare desmontou de um salto e se aproximou do Capitão. — De seu assassinato, está querendo dizer. Você matou um de meus arrendatários, Hughes.
— Sim, agora você é papista? O’Neill estava exposto ao patíbulo e você sabe disso, Adare.
Adare fitou-o. Tremia de fúria. Finalmente disse em voz baixa: — Maldito canalha. Sempre resta a possibilidade do exílio e o perdão real. Eu teria movido céus e terra para conseguir. Filho da puta arrogante. — Sua mão se dirigiu para o punho de sua espada.
Hughes encolheu os ombros com indiferença.
— Como dizia, papista e jacobita. Estes são tempos perigosos, meu amigo. Sequer Lorde Castlereagh gostará que se relacione com um jacobita.
Adare guardou silêncio um momento. Saltava à vista que lutava para se dominar.
— Quero à mulher. Onde está?
Hughes vacilou. Seu queixo se enrijeceu. Novas manchas avermelhadas salpicaram seu semblante.
— Não me obrigue a fazer o que desejo. Não me obrigue a matá-lo com minhas próprias mãos. — Disse Adare com frieza.
— Está bem. Não me interessa essa zorra irlandesa. Posso conseguir uma dúzia por um penny.
Aquela ofensa deixou Devlin tão assombrado que sua cabeça deu voltas. Tentaria matar Hughes, mas não foi preciso. Adare percorreu a escassa distância que o separava do Capitão e o enfrentou. — Não subestime o poder de Adare. Sugiro-lhe que cesse em suas ofensas antes que se encontre no comando de um monte de peles vermelhas no Canadá. No dia quinze jantarei com Cornwailis e eu gostaria de nada mais que sussurrar ao ouvido dele alguns feitos extremamente desagradáveis. Entendeu-me, Capitão?
Hughes não disse nada. Seu rosto se tornou avermelhado. Adare o soltou e entrou na barraca. Seu manto escuro ondulava atrás dele.
Devlin e Sean se fitaram. Logo passaram correndo junto a Hughes e entraram na barraca atrás do Conde. Devlin imediatamente notou sua mãe sentada e compreendeu em seguida que ela estivera chorando.
— Mary! — Exclamou o Conde, parando em seco. — Você se encontra bem?
Mary se levantou. Seus olhos azuis se mostravam dilatados e seus cabelos revoltos. O Conde e ela sustentaram o olhar.
— Sabia que viria. — Ela disse com voz trêmula.
Adare se aproximou e a amparou pelos ombros. Tinha os olhos azuis bem focados.
— Está ferida? — Perguntou com mais suavidade.
Ela demorou um momento a responder.
— Não no sentido a que se refere, Milord. — Ela titubeou sem deixar de fitá-lo e seus olhos se encheram de lágrimas. — Ele matou Gerald. Matou meu marido diante de meus olhos.
— Eu sei. — Adare respondeu, angustiado. — Sinto muito. Sinto muito.
Mary estava desfeita. Afastou o olhar, perto de chorar novamente. Adare lhe fez voltar à face e seus olhos se encontraram novamente.
— Onde está Meg? E os meninos?
Ela começou a chorar. — Não sei onde Meg está. Estava com ela nos braços quando desmaiei e… — Ela não pôde continuar.
— Nós a encontraremos. — O Conde sorriu um pouco. — Eu a encontrarei.
Mary assentiu com a cabeça. Estava claro que acreditava que o Conde triunfaria contra toda esperança. Então viu seus filhos em pé junto à entrada da barraca. Os meninos, imóveis como estátuas, observavam a sua mãe e o poderoso Conde protestante.
— Devlin! Sean Graças a Deus! Estão vivos! vocês estão bem! — Ela correu para eles e os abraçou.
Devlin fechou os olhos. Mal podia acreditar que tinha encontrado sua mãe sã e salva. Sabia que o Conde se ocuparia dela a partir desse momento.
— Estamos bem, mãe. — Disse brandamente, afastando-se de seu abraço.
Adare se reuniu a eles e envolveu Mary com o braço, com ar possessivo. Fitou rapidamente os dois meninos. Devlin lhe sustentou o olhar. Uma parte de seu ser desejava se rebelar, apesar de necessitarem desesperadamente da ajuda do Conde. Mas Gerald não tinha sido enterrado ainda, e Devlin conhecia as inclinações do Conde. Há tempo as adivinhava.
— Devlin, Sean, prestem atenção. — Ordenou Adare. — Vocês virão a Adare comigo. Quando sairmos desta barraca monte no cavalo rapidamente, atrás de meus homens. Entenderam-me?
Devlin assentiu com a cabeça, mas não pôde evitar olhar rapidamente para Adare e sua mãe. Em outras ocasiões havia notado como o Conde fitava sua mãe. Mas, naturalmente, muitos homens a admiravam da distância. Antes da morte de Gerald era fácil dizer que Adare admirava sua mãe como tantos outros. Agora, Devlin sabia que se enganara. Alegrava-lhe que o poderoso Conde tivesse vindo em sua ajuda, mas também estava ressentido. O Conde era viúvo e amava Mary. Devlin estava seguro disso. Mas, e seu pai, que sequer ainda tinha sido devidamente enterrado?
— Devlin! — A voz de Adare ressoou como um látego. Seu olhar era afiado. — Mova-se.
Devlin se apressou a obedecer. Sean e ele saíram atrás de Adare e Mary. Abandonaram o amparo da barraca.
Fora, o sol era brilhante. Um silêncio sobrenatural tinha caído sobre o acampamento. Os soldados britânicos tinham formado fileiras ao redor da vintena de homens armados de Adare. Era evidente que o desejo de Hughes era de outra matança nesse dia.
Devlin fitou o Conde. Se Adare estava com medo, não demonstrava. O respeito que Devlin sentia por ele aumentou. Adare se parecia muito com Gerald, e devia ser igualmente valente. Sufocava qualquer temor que tentava se levantar.
O passo de Adare não vacilou quando se aproximou de seus homens. Montou Mary em seu cavalo. Hughes os observava com semblante cheio de ódio. Devlin levantou Sean para um dos cavaleiros e montou de um salto atrás de outro. Sean foi içado à garupa de outro cavalo.
Adare já estava na sela, atrás de Mary. Passeou o olhar pelos meninos e pelas filas de soldados britânicos e finalmente fitou Hughes.
— Você atentou contra o que é meu. — Disse com voz trovejante. — Não volte a fazê-lo.
Hughes sorriu com azedume. — Ignorava que a Madame e você fossem… Íntimos.
— Não distorça minhas palavras, Capitão. — Replicou Adare. — Você matou meu vassalo e queimou minhas terras. Isso é uma afronta para mim e para os meus. Agora deixe-nos passar.
Devlin fitou Adare e Hughes. Os dois homens se olhavam atentamente. Devlin notava que o suor corria por suas costas. Por um instante, o forte ficou tão em silêncio que poderia se ouvir o sussurro de uma folha.
— Afastem-se. — Gritou Hughes finalmente. — Deixem que partam.
A fila de soldados se abriu. Adare levantou a mão esporeou seu cavalo e conduziu seus homens para fora do acampamento, por entre as tropas britânicas. Devlin se aferrou ao soldado atrás do qual montava. Mas voltou os olhos.
Para os olhos azuis do Capitão.
E então começou o fogo.
Começou em algum lugar no fundo de sua alma. Emanou em grandes e negras ondas e se difundiu por seu sangue até consumi-lo. Amargo, vermelho e acre.
Algum dia se vingaria. Algum dia, quando chegasse o momento. O Capitão Harold Hughes pagaria pelo assassinato de Gerald O’Neill.

 

 

 

 

 

 


PRIMEIRA PARTE

A CATIVA

Capítulo 1


5 de abril de 1812
Richmond, Virginia


— Sequer sabe dançar. — Disse uma das jovens damas com desdém.
Enrubescida, Virginia Hughes notava vivamente a presença das doze moças que aguardavam em fila atrás dela no salão de dança. O professor estava lhe ensinando o sissonne ballotté, um dos passos da equipe. Virginia não entendia o passo, mas tampouco lhe importava. Não lhe interessava a dança. Só queria estar em sua casa, em Sweet Briar.
— Senhorita Hughes, você não deve abandonar o dialogo galante nem quando estiver executando o passo. Se não, sua atitude será gravemente mal interpretada. — O professor de dança, um homem moreno e esbelto, a repreendeu.
Na verdade, Virginia não o ouvia. Fechou os olhos e se sentiu transportada há um tempo e lugar bem mais agradável que os formidáveis muros do colégio Marmott, para Senhoritas.
Inspirou profundamente e o aroma embriagador da madressilva a envolveu. Atrás dele chegou o aroma mais forte e potente da negra terra virginiana removida, para a plantação da primavera. Imaginava os campos escuros que se estendiam até onde alcançava a vista, as filas de escravos vestidos de branco e, mais perto, os prados ondulados, as vegetações e os vetustos carvalhos que rodeavam a bela casa de tijolo construída por seu pai.
— Poderia ter construído na Inglaterra. — Seu pai havia dito com orgulho muitas vezes. — Faz cem anos. Ninguém que a observe verá alguma diferença.
Virginia sentia falta de Sweet Briar, mas não tanto como sentia falta dos seus pais. Uma onda de saudade se apoderou dela e ao abrir os olhos se encontrou novamente no horrível salão de dança do colégio a qual havia sido enviada. O professor parecia extremamente zangado; estava com os braços abertos e uma expressão azeda em sua morena tez italiana.
— Por que aperta os olhos assim? — Murmurou alguém.
— Porque está chorando, por isso. — Respondeu outra pessoa com ar altivo.
Virginia sabia que aquela voz era a de Sarah Lewis, a bela jovem loira, que segundo ela mesma era a debutante mais cobiçada de todo o Richmond. Ou seria quando debutasse no final de ano. Virginia se voltou furiosa e se aproximou de Sarah. Virginia era muito miúda e magra; tinha a face pequena e triangular, maçãs do rosto afiladas e brilhantes olhos violetas; o cabelo negro, que lhe chegava à cintura havia sido recolhido minuciosamente para cima, pois ela se negava a cortá-lo. Parecia a ponto de esmagá-la com seu peso. Sarah tinha pelo menos um palmo a mais que ela e era bem mais corpulenta. Mas Virginia não se importava.
Brigou pela primeira vez com idade de seis anos e, quando seu pai interrompeu a briga havia compreendido que estava lutando como uma garota. Depois, para desgosto de sua mãe, havia lhe ensinado a brigar com os punhos, como um menino. Virginia não só podia usar um bom gancho, como também podia acertar com um rifle de caça, o pescoço de uma garrafa a cinqüenta metros de distância. Não se deteve até se encontrar face a face com Sarah, para tanto precisou ficar nas pontas dos pés.
— Dançar é para tolas como você. — Ela disse. — Deveria se chamar Sarah, a bailarina burra.
Sarah proferiu um suspiro de indignação, retrocedeu… E foi às nuvens.
— Senhor Rossini! Você ouviu o que me disse esta lavadeira?
Virginia mantinha a cabeça muito ereta.
— Esta lavadeira é proprietária de uma plantação inteira. Cinco mil acres de terra. E se não me sair mal nas contas, coisa que duvido, isso me torna bem mais rica que você, bailarina idiota.
— Está com ciúme, — zombou Sarah, — porque é fraca e feia e ninguém a quer… Por isso está aqui!
Virginia plantou com firmeza os pés no chão. Algo quebrou dentro dela produzindo-lhe uma dor aguda. Porque Sarah tinha razão. Ninguém a queria. Era sozinha, e por Deus, era muito doloroso.
Sarah notou que havia cutucado a ferida, sorriu. — Todo mundo sabe. Todo mundo sabe que a mandaram aqui até a maioridade. Para tanto restam três anos, Virginia. Estará velha e enrugada quando voltar para sua granja.
— Já basta. — Disse o Senhor Rossini. — Senhoritas, vamos a…
Virginia não esperou ouvir a ordem. Voltou-se e saiu correndo do salão, segura de que atrás de si se ouvia risinhos nervosos. Odiava Sarah, odiava às outras garotas, ao professor de dança. Todo o colégio, e até seus pais. Como podiam tê-la abandonado? Como era possível? Ao chegar ao corredor deixou-se cair ao chão, encolheu os joelhos ao seio e rezou para que aquela dor se dissipasse. Inclusive odiava a Deus por ter levado seus pais de uma só vez naquela espantosa noite de chuva, no outono anterior.
— Oh, papai! — Murmurou contra seu joelho ossudo. — Sinto tanto tua falta…
Sabia que não devia chorar. Preferia morrer a deixar que alguém a visse chorar. Mas nunca havia se sentido tão perdida e sozinha. Nunca antes, na verdade, havia se sentido perdida e sozinha. Só havia conhecido dias ensolarados que passava cavalgando com seu pai pela plantação e as noites em frente à lareira. Enquanto sua mãe bordava e seu pai lia. Sua casa era cheia de escravos, cada um dos quais conhecia desde o berço. Havia Tillie, sua melhor amiga, apesar de ser uma escrava e ter dois anos a mais que ela. Abraçou os joelhos com mais força, respirou fundo e piscou furiosamente. Demorou um bom tempo para recuperar a compostura.
Quando conseguiu endireitou o corpo. O que Sarah havia dito? Que tinha que ficar no colégio até que fosse maior de idade? Mas isso era impossível! Acabava de completar dezoito e isso significava que teria que ficar naquela horrível prisão três anos mais.
Levantou-se sem incomodar em sacudir o pó das saias negras que usava em sinal de luto. Havia passado seis meses desde o trágico acidente de carruagem que cobrou a vida de seus pais e, embora a diretora tivesse expressado seu desejo de que abandonasse o luto, ela havia se negado. Pensava guardar o luto por seus pais durante toda a vida. Ainda não podia entender por que Deus os deixara morrer.
Mas sem dúvida a bruxa da Sarah Lewis não sabia o que estava falando.
Muito alterada, Virginia percorreu apressadamente o corredor recoberto de painéis de madeira. Seu único parente era seu tio, Harold Hughes, Conde de Eastleigh. Depois da morte de seus pais, o Conde lhe enviara suas condolências e, em sua qualidade de tutor oficial lhe ordenado a freqüentar o Colégio Marmott, em Richmond. Virginia mal se recordava daquilo; sua vida então se reduzia a uma mancha de dor e melancolia. Um dia se encontrou no colégio sem se recordar como havia chegado ali. Só recordava vagamente que Tillie havia lhe abraçado uma última vez e que haviam se despedido entre lágrimas. Passada a dor inicial, Tillie e ela tinham trocado uma série de cartas. Sweet Briar estava a cento e trinta quilômetros ao sul de Richmond e a poucos quilômetros de Norfolk. Virginia havia se informado através de Tillie, de que o Conde era o executor de sua herança e que tudo continuaria sendo administrado como antes da morte de seu irmão. Sem dúvida, se ela tivesse razão, Tillie teria lhe advertido das terríveis e cruéis intenções de seu tutor. A menos que não as conhecesse…
Pensar em Tillie e em Sweet Briar a enchia de saudade. O desejo de retornar para casa, de repente lhe tornou avassalador. Tinha dezoito anos e muitas jovens de sua idade já estavam prometidas e até casadas. Antes de morrer, seus pais nunca tinham tocado no assunto de seu casamento, o que ela estava agradecida. Não sabia muito bem o que lhe acontecia, mas o matrimônio e os jovens nunca lhe tinham interessado. Desde os cinco anos, quando Randall Hughes a montou diante dele pela primeira vez em seu cavalo, ela havia trabalhado corpo a corpo com seu pai a cada dia. Conhecia cada palmo de Sweet Briar. Cada árvore, cada folha e cada flor. A plantação tinha cem acres, não cinco mil, mas Sarah Lewis teria que lhe deixar de lado. Sabia tudo sobre o tabaco, produto que se cultivava em Sweet Briar. Conhecia as melhores formas de transplantar os brotos, o melhor modo de cuidar as folhas compiladas, as melhores fatias para vendê-lo. Igual seu pai, ela havia seguido com ávido interesse e fervorosa esperança as flutuações do preço da folha de tabaco. Em todos os verãos, seu pai e ela desmontavam e atravessavam a pé os campos de tabaco. Tocavam as plantas frondosas com as mãos sujas, inalavam seu aroma penetrante e julgavam a qualidade de sua colheita.
Possuía também outros deveres e responsabilidades. Não havia mulher melhor e generosa como sua mãe ou alguém que soubesse mais de ervas e remédios para a cura. Ninguém se preocupava mais com seus escravos. Junto de sua mãe, ela havia atendido muitos atingidos pela febre ou gripe. Nunca tivera medo de entrar nas casas dos escravos quando havia algum deles doente. De fato havia trocado mais de um cataplasma. Embora sua mãe não lhe permitisse assistir aos partos, Virginia observava o nascimento dos potros e tinha passado muitas noites esperando que alguma égua prenhe parisse. Por que não poderia estar em casa agora, percorrendo Sweet Briar com James MacGregor, seu capataz? Que sentido tinha estar naquele maldito colégio? Ela tinha nascido para dirigir a plantação. Carregava Sweet Briar no sangue.
Sabia que não era uma dama. Usava calça comprida desde o momento em que descobriu sua existência, e gostava bem mais do que as saias. E seu pai não se incomodava; orgulhava-se da franqueza de sua filha, de sua habilidade natural para cavalgar e de sua perspicácia. Considerava-a bela, além disso, sempre a chamava de uma pequena rosa silvestre. Mas, todos os pais pensavam isso de suas filhas. Virginia sabia que não era certo. Era muito frágil para que a considerasse bela. Entretanto, não se importava. Sabia ser demasiadamente pronta, para querer ser simplesmente uma dama.
Sua mãe sempre se mostrou tolerante com o marido e a filha. Os dois irmãos homens morreram ao nascer. Primeiro Todd e logo o pequeno Charles, quando ela tinha seis anos. Foi quando então sua mãe começou a fazer vistas grossas ao assunto de calça masculina, cavalos e caça. Passou semanas chorando e rezando na capela da família e finalmente de algum modo, encontrou a paz. Depois disso, seus sorrisos e seu luminoso afeto retornaram… Mas não voltou a engravidar, como se ela e o marido tivessem feito um pacto.
Não compreendia por que uma mulher tinha que desejar ser uma dama. Uma dama tinha que se ater a certas regras. A maioria das regras era exasperante, mas algumas eram simplesmente opressivas. Ser uma dama era como ser uma escrava que não possuía um formoso lar como Sweet Briar. Ser uma dama não era muito diferente de usar grilhões.
Virginia se deteve ante o escritório da diretora. Tinha tomado uma decisão. Já não lhe importava que Sarah Lewis tivesse dito a verdade ou não. Era hora de voltar para casa. Tomar àquela decisão a fez se sentir melhor. Pela primeira vez, desde a morte de seus pais, sentia-se forte… E cheia de coragem.
Bateu na bela porta de mogno.
A Senhora Towne, mulher robusta e agradável, indicou-lhe que entrasse. Seus olhos amáveis sustentaram os de Virginia, nos quais havia uma expressão solene, apesar de que normalmente dançava neles uma luz constante.
— Temo que tenha que aprender a dançar cedo ou tarde, Senhorita Hughes.
Virginia fez uma careta. A diretora era a única pessoa do colégio, que gostava.
— Por quê?
A Senhora Towne pareceu surpresa por um instante.
— Sente-se, querida.
Virginia se sentou. Então se deu conta de que estava com os joelhos afastados e que suas mãos pendiam dos braços da cadeira. Mudou de postura rapidamente, não porque quisesse seguir as normas, mas porque não queria irritar a diretora nesse momento. Juntou os joelhos, uniu as mãos e pensou o quão maravilhoso seria estar no lombo de seu cavalo e vestida com uma calça masculina.
A Senhora Towne sorriu. — Não é tão difícil cooperar, querida.
— Sim. É sim. — Virginia também era muito teimosa.
— Virginia, as senhoritas de boa posição devem dançar. Como, se não souber, vai a uma festa como se é devido, e a se divertir?
Virginia não titubeou.
— Não me interessa as festas, Senhora. Nem a dança. Francamente, é hora de eu ir para casa.
A Senhora Towne a fitou com moderado assombro.
Virginia se esqueceu de se sentar corretamente.
— Não é certo? O que disse a harpia da Sarah Lewis? Não tenho que ficar aqui esquecida e prisioneira, por três anos mais. Certo?
A Senhora Towne estava muito séria.
— A Senhorita Lewis deve ter me ouvido falar em particular com a Senhora Blakely. Querida, o certo é que essas foram às instruções que recebemos de seu tio.
Virginia ficou sem fala, com o olhar fixo na diretora. Demorou um momento para poder raciocinar. Durante um tempo havia temido que o Conde de Eastleigh viesse a ela e a obrigasse a partir para a Inglaterra. Pelo menos não tinha que enfrentar já esse dilema. Mas, acaso ele estava disposto a tê-la mais três anos encerrada naquele colégio? Estava alo há seis meses e já o odiava. Não podia permitir. Oh, não. Voltaria para casa.
A Senhora Towne voltou a falar.
— Sei que três anos parecem muito tempo, mas na verdade, tendo em conta como foi criada, é possivelmente o tempo que necessitamos para instruí-la como é devido para que triunfe na sociedade, minha querida. E há uma boa notícia. Seu tio tem intenção de casá-la assim que cumprir a maioria de idade.
Virginia se levantou, cheia de estupor.
— O que?
A Senhora Towne piscou.
— Devi imaginar que não a idéia lhe agradaria. Toda Senhorita de boa posição tem que se casar e você não é uma exceção. Seu tio pensa em encontrar-lhe um bom marido e…
— Não, e mil vezes não!
Agora foi a Senhora Towne quem ficou sem fala.
A ira consumia a Virginia.
— Primeiro me manda aqui? Logo lhe ocorre me encerrar durante três anos? E logo me mandará a outra prisão? A um matrimônio com um desconhecido? Não! Nem pensar!
— Sente-se.
— Não, Senhora Towne. Algum dia me casarei. Mas por amor e só por amor. Por uma grande paixão, como a de meus pais. — As lágrimas nublaram seus olhos. Não se conformaria com meias medidas. Algum dia encontraria um homem como seu pai, com o tipo de amor que haviam compartilhado tão visivelmente. Não, não se resignaria.
— Sente-se, Virginia. — A Senhora Towne disse com firmeza. Virginia moveu a cabeça de um lado a outro e a diretora se levantou. — Sei que sofreu uma terrível tragédia e todos nós sentimos por você. Acredite-me. Mas você não controla seu destino, minha filha. Seu tio o controla. Se ele desejar que fique aqui até sua maioridade, assim terá que ser. E estou segura de que você acabará sentindo afeto por seu futuro marido, seja quem for.
Virginia não podia falar. O pânico a invadiu. Um desconhecido se acreditava no comando de sua vida! Sentia-se presa, como se estivesse encerrada em uma jaula de ferro ou, pior ainda, em uma jaula inundada no mar, em que se afogava.
— Querida, você deve fazer um esforço para se integrar em nossa pequena comunidade. Você decidiu se mostrar desdenhosa com suas companheiras. Não tentou nenhuma só vez se mostrar amistosa ou divertida. Afastou-se desde o momento em que chegou e permitimos por respeito a sua dor. Sei por que anda de cabeça erguida, mas as moças a consideram altiva e orgulhosa, minha querida. É hora de se corrigir… E de que faça amizades. Confio em que encontre amigas, Virginia. E espero que se destaque nos estudos.
Virginia cruzou os braços. Seria verdade mesmo, que as outras moças a consideravam altiva e orgulhosa? Não podia acreditar. Todas elas a desprezavam porque era do campo, porque era muito diferente delas.
— Você é muito inteligente, Virginia. Poderia se dar muito bem aqui se esforçasse um pouco. — A Senhora Towne lhe sorriu.
Virginia Engoliu a saliva com dificuldade.
— Não posso ficar aqui. E não gostam de mim porque sou diferente. Não sou presumida, nem coquete, e não desmaio se ver um homem bonito.
— Você escolheu ser diferente, mas é uma garota bela e de boa família. Na verdade, o fato não a distingue absolutamente das demais. Deve deixar de ser tão independente e será muito feliz aqui, Virginia. Dou-lhe minha palavra. — A Senhora Towne se aproximou dela e lhe deu alguns tapinhas nos magros ombros. — Estou segura disso. Só quero que se converta em uma boa aluna deste colégio… E que seja uma mulher feliz.
Virginia forçou um sorriso amarelo. Não havia nada mais a dizer. Não ia ficar no colégio, e nem ia permitir que seu tio escolhesse-lhe um marido… E não havia mais o que falar.
A Senhora Towne lhe sorriu com afeto.
— Abandone sua rebeldia, minha querida. Se conseguir obterá grandes recompensas.
Virginia conseguiu assentir com um gesto de cabeça. Um momento depois, a conversa terminou e ela fugiu do escritório. Assim que esteve em sua cama do dormitório comunitário, começou a planejar sua fuga.


Dois dias depois, Virginia fez suas abluções matinais com a maior lentidão que pôde. As outras Senhoritas começavam a sair do dormitório quando ela ainda seguia lavando as mãos. A primeira luz da manhã se filtrava pelas clarabóias do dormitório. Pela extremidade do olho, ele notou a saída das últimas moças do aposento alargado e retangular. A Senhorita Fern se deteve na porta.
— Está se sentindo mal, Senhorita Hughes?
Virginia conseguiu esboçar um sorriso tênue.
— Sinto muito, Senhorita Fern. Hoje me sinto fraca e enjoada. —Ela se apoiou na cômoda que havia junto ao lavatório.
A Senhorita Fern se aproximou e lhe tocou ligeiramente a fronte. — Não tem febre. Mas desconfio que deva procurar o doutor Mills em seguida.
— Acredito que tenha razão. Devo estar incubando uma gripe. Preciso ficar aqui mais um pouco, se não se importa. — Disse Virginia, sentando-se na cama estreita.
— Fique então. — A Senhorita Fern sorriu, percorreu o corredor que havia entre as vinte camas e finalmente saiu do aposento.
Virginia aguardou enquanto contava em silêncio. Um, dois, três. Logo se levantou de um salto e percorreu o corredor apressadamente até chegar à quarta cama. Foi direito à cômoda que havia ali e começou a rebuscar entre as coisas o que não lhe pertenciam. Uma sensação de culpa se apoderou dela, mas ignorou.
Sarah Lewis sempre tinha dinheiro para seus pequenos gastos e ela rapidamente encontrou doze dólares e trinta e cinco centavos. Pegou até o último centavo e deixou uma nota sem assinar. Nela explicava que devolveria a soma assim que o fosse possível. Sentia-se terrivelmente mal por se ver reduzida a uma ladra, e quase sentia como sua mãe lhe recriminava lá do céu.
— Devolverei o dinheiro a Sarah, mamãe. Até o último penny. — Sussurrou cheia de remorsos. Mas não tinha outro remédio. Necessitava do dinheiro para alugar uma carruagem e se hospedar em uma estalagem. Apesar de ser muito valente, não se acreditava capaz de percorrer os mais de cem quilômetros que a separavam de Sweet Briar a pé, sem descansar várias noites ou comer devidamente.
Em seguida olhou debaixo de sua cama. Havia envolvido em seu manto, apesar do tempo estar primaveril e seguia refrescando pelas noites, seus escassos e belos pertences. O camafeu de sua mãe, o cachimbo de seu pai e uma pulseira de crina de cavalo que Tillie lhe fizera quando tinha oito anos. Levava também uma muda de roupas, luvas e um chapéu. Tinha feito uma trouxa amarrada com uma corda, com o manto. Aproximou-se de uma janela que havia a um canto do dormitório, abriu-a e jogou a trouxa na calçada que havia abaixo.
Conseguiu se refrear sem saber como, e descer tranqüilamente as escadas, onde encontrou dois empregados do colégio. Finalmente chegou ao final do corredor. Diante dela se estendia o saguão , uma sala elegante e de tetos altos. Ali, o piso de mármore rivalizava com as colunas de madeira escura e os painéis ainda mais escuros das paredes. A porta principal não era fechada a chave durante o dia, pois nenhuma aluna nunca havia fugido ainda. Virginia fitou atentamente ao seu redor. Aquela era sua oportunidade de fugir, mas se alguém a visse sua viagem acabaria antes inclusive de ter iniciado.
Em outro corredor ressoaram uns passos. Ela retrocedeu e se ocultou em um canto. Não se atrevia a respirar. Ouviu vozes de duas pessoas e reconheceu nelas a do professor de música e do professor de francês. Supôs que se encontrariam no saguão e se dirigiriam onde ela estava, pois todas as salas de aula ficavam as suas costas. Fitou ao seu redor e se deslizou no armário do zelador. Os professores passaram.
Virginia suava. Tinha perdido a paciência. Abriu a porta numa fresta e notou que o corredor estava deserto. Saiu do armário até o saguão e confirmou que tampouco havia alguém ali. Respirou fundo para se encher de ânimo e se pôs a correr. Abriu a enorme e pesada porta principal. Saiu ao sol radiante e sentiu o aroma e inclusive o sabor da liberdade. Deus, que maravilha!
Correu pela alameda e chegou às grades de ferro forjado. Saiu à rua, dobrou a esquina e procurou a trouxa que tinha feito com seu manto. Recolheu-a novamente começou a correr.


— Alegra-me muito que tenhamos podido acompanhá-la na maior parte do caminho, minha querida. — Disse a Senhora Cantwell com um sorriso, enquanto segurava as mãos de Virginia. Já haviam decorrido três dias. Quase toda a primeira manhã Virginia havia caminhando até sair da buliçosa cidade de Richmond. A longa caminhada a tinha deixado faminta e em uma estalagem rural ela conseguiu almoçar e foi como conheceu a família Cantwell.
Os Cantwell, a esposa uma mulher com ar de matrona, seus três filhos pequenos e muito bem educados, e seu marido, um homem grosso e míope viajavam em uma bela carruagem particular. Virginia tinha ouvido de passada sua conversa e se inteirou de que retornavam de Richmond, onde tinham ido visitar parentes do marido que se encontravam mal de saúde. Voltavam agora para casa em Norfolk, o que significava passarem perto de Sweet Briar.
Virginia tinha ajudado um dos meninos a assuar o nariz e em seguida chamara a atenção da Senhora Cantwell. Havia mentido sobre a idade e seu estado civil, explicando que retornava para casa com seu marido, depois de visitar sua mãe doente em Richmond. Dissimuladamente colocara a aliança de sua mãe no dedo, para comprovar sua história. Ao conhecer seu destino, a Senhora Cantwell havia imediatamente lhe ofertado carona. Notava-se que a mulher ansiava ter a alguém que lhe fizesse companhia e a ajudasse com os filhos.
Agora, Virginia mal ouvia a agradável Senhora. Encontravam-se em um cruzamento da estrada, em destaque, o caminho para Sweet Briar. Seu coração batia com tanta força que ela se sentia quase desfalecida. Sua casa estava perto.
— Você fará muita falta. — Acrescentou o marido, a Sra. Cantwell.
Virginia voltou a si. Voltou-se e pegou as mãos da Senhora. — Muito obrigado por me trazer, Lilly. Não sei como agradecer-lhe.
— Você foi tão maravilhosa com os meninos! — Exclamou Lilly Cantwell. — E, se não estivéssemos tão perto de casa, insistiria em levá-la até Sweet Briar, e conhecer seu encantador marido.
Virginia ruborizou, cheia de remorsos. Em um muito curto de tempo havia se convertido m uma consumada embusteira, além de em uma ladra, e detestava.
— Posso lhe escrever? — Perguntou, se deixando levar por um impulso. Em seguida decidiu que escreveria a Lilly Cantwell para lhe contar toda a verdade e agradecer novamente por sua amabilidade.
— Eu adoraria voltar a ter notícias e que sigamos sendo amigas. — Exclamou Lilly com um sorriso.
As duas mulheres se abraçaram. Virginia abraçou logo à pequena Charlotte, tocou na orelha de William e piscou os olhos um olho para Thomas. Agradeceu ao Sr. Cantwell e, enquanto a carruagem se afastava pareceu-lhe lhe ouvir dizer: — Há algo estranho nessa jovem e sigo pensando que é muito jovem para estar casada.
Virginia sorriu. Logo abriu os braços de par em par e ria as gargalhadas enquanto girava sobre si mesma, até que seus pés e os tornozelos começaram a doer, e se sentir tão nauseada que teve que se deixar cair no chão. Deitada, gargalhou novamente. Estava em casa!
Levantou-se rapidamente, pegou sua trouxa e começou a correr pelo caminho de terra. Os dez quilômetros pareciam eternos, mas cada campo de trabalho, cada colina verdejante por causa da primavera e cada riacho lhe fazia apertar o passo. Estava acalorada e sem fôlego quando divisou afinal a placa de madeira que pendia dos dois pilares de tijolo: Sweet Briar. Uma larga alameda de terra conduzia a entrada, subindo por uma colina, até a casa. Ao seu redor se achavam os vermelhos celeiros, as casas caiadas dos escravos e os extensos campos da escura terra marrom. Seu coração retumbava como um tambor. Deixou a trouxa cair, levantou as saias e correu.
— Tillie! — Gritou com todas as suas forças. — Tillie! Tillie! Sou eu! Estou em casa. Tillie!
Frank, o marido de Tillie, estava reparando uma carruagem não muito longe da entrada da casa. Foi quem a viu primeiro. Ficou boquiaberto.
— Senhorita Virginia? É você?
Atrás dele, seus filhos gêmeos a fitavam com os olhos enormes. Logo, pela extremidade do olho, ela notou que a porta principal da casa se abria e Tillie saía à varanda. Mas era muito tarde. Já estava em braços de Frank.
— Perdeu o juízo? — Ele gritou abraçando-a tão forte que a deixou sem respiração.
— Claro que sou eu! Quem seria! — Virginia retrocedeu e para observar o homem enorme.
— Deus todo-poderoso, esse colégio tão fino não fez de você uma dama. — Disse Frank com um sorriso. Seus dentes assombrosamente brancos se destacavam sobre sua pele escura.
— Querer dizer graças a Deus, não? — Brincou Virginia. — Rufus, Ray, venham aqui e me dê um abraço ou não lembram mais de sua Senhorita?
Os meninos, que mal tinham sete anos correram a abraçar suas pernas. Virginia sentiu que seus olhos se enchiam de lágrimas enquanto tentava se abaixar, para abraçá-los.
Logo sentiu Tillie atrás dela e se voltou lentamente.
Tillie sorriu. As lágrimas manchavam sua tez negra. Era tão alta como Virginia, voluptuosa como ela era magra, e muito bonita.
— Sabia que viria a casa. — Tillie sussurrou.
Virginia se aproximou dela. As duas jovens se abraçaram.
Quando pôde controlar suas lágrimas, Virginia retrocedeu, sorrindo.
— Meus pés doem, — disse, — e morro de fome! Como foi a roça? Houve alguma praga? E os flocos? Que aspecto tem? — Sorriu enquanto enxugava os olhos com a manga da roupa.
Mas Tillie não lhe devolveu o sorriso. Seus olhos dourados mostravam uma expressão assustada e solene.
— Tillie? — Perguntou Virginia. Não gostava daquele olhar. Começou a ter medo. — Por favor, me diga que tudo está bem. — De repente, tinha a impressão de que acontecia algo terrível, e sentia medo de saber o que era. Já tinha sofrido desgraça o bastante e não poderia suportar outro golpe de má sorte.
Tillie a segurou pelos braços.
— A plantação será vendida… Com tudo o que contém. E a todos.
Virginia não compreendeu.
— O que acaba de dizer?
— Seu pai estava endividado. Desculpe… O Senhor Hughes estava endividado… E agora seu tio mandou um procurador e ele começou a vender tudo. As terras, a casa, os escravos, os cavalos. Está vendendo tudo.
Virginia deixou escapar um grito. Uma imensa dor atravessou seu peito, mas tão intensa que ela começou a sentir a cabeça rodar. Tillie a amparou pela cintura.
— O que estou fazendo? Você está mais fraca que nunca e com mais fome que um lobo no inverno, e eu falo sobre nossas dores. Vamos, precisa comer algo quente e tomar um bom banho Virginia. Depois conversaremos. E você poderá me contar como é ser uma grande dama.
Virginia não pôde responder. Tinha que ser um pesadelo, um mau sonho… Não podia ser verdade. Sweet Briar não poderia estar à venda.
Mas estava.


Estava com o melhor vestido de domingo de sua mãe. Alisou a saia azul e ajustou o chapéu. A roupa de sua mãe ficava um pouco grande, mas Tillie e outras duas escravas haviam passado a noite costurando para que lhe assentasse à perfeição. Sorriu com valentia para Frank, que a tinha levado a Norfolk. Frank tentou lhe devolver o sorriso e fracassou. Virginia sabia por que. Ele estava triste. Temia que sua esposa e seus filhos fossem vendidos a algum proprietário que vivesse muito longe e ele não voltasse a vê-los.
Mas isso não ia acontecer. Pensava mover céu e terra e, concretamente, pensava comover Charles King, um bom amigo de seu pai e presidente do Banco da Virginia, para impedir que Sweet Briar fosse vendida. Engoliu a saliva. Havia tantas coisas em jogo… Estava mortalmente assustada. Mas Charles King tinha sido um bom amigo da família e agora a veria não como uma menina, mas como uma mulher capaz. Sem dúvida alguma lhe emprestaria os recursos necessários para saldar as dívidas de seu pai e salvar Sweet Briar.
Virginia fechou os olhos com força para se cproteger do sol deslumbrante e seu sorriso vacilou. Deus! Odiava seu tio, o Conde de Eastleigh, um homem que não conhecia. O sujeito sequer se incomodou em lhe falar do estado em que se achava a plantação, apesar de que pertencia a ela! Ou lhe pertenceria, se não mudasse de mãos antes que ela fizesse vinte e um anos.
— Senhorita Virginia, — disse Frank de repente, antes que transpor as portas da imponente fachada de pedra e tijolo do banco.
Virginia se deteve. Estava com o estômago revolto de medo e de angústia. Conseguiu esboçar um pequeno sorriso.
— Pode ser que seja tarde… Embora não acredito...
— Não é isso. — Disse ele asperamente. Era muito alto e extremamente bonito. Tillie havia se apaixonado por ele desde a primeira vez que o vira há quase cinco anos. — Tenho medo, Senhorita Virginia. Medo do que possa acontecer a Tillie e meus filhos, se não conseguir esse empréstimo.
Virginia era bem consciente que era sua responsabilidade salvar Sweet Briar e sua gente, mas de repente a carga a esmagava. Cinqüenta e dois escravos dependiam dela e muitos deles eram crianças. Tillie, sua melhor amiga, dependia dela. E também Frank.
— Conseguirei o empréstimo, Frank. Não tem nada do que se preocupar. — Sua voz deve ter soado enérgica e confiante, porque Frank, cujos olhos pareciam ter aumentado de repente, imediatamente tirou o chapéu ante ela.
Virginia lhe lançou outro sorriso tranqüilizador e, interiormente pediu a Deus um pouco de ajuda. Logo entrou no banco.
O interior era fresco e reinava um ambiente estranhamente solene e aprazível, como o de uma igreja. Em frente à caixa dois clientes aguardavam na fila e atrás do mostrador da recepção havia um empregado. Ao fundo estava Charles King, sentado ante uma mesa. O homem levantou os olhos e a viu. Seus olhos se dilataram cheios de surpresa.
Havia chegado o momento da verdade, pensou ela, levantando o queixo a uma altura impossível. Seu sorriso parecia estranho e quebradiço, colado em sua face, enquanto atravessava o saguão e o espaçoso salão do banco.
King se levantou. Era um homem graúdo, pulcro e bem vestido, que usava uma peruca empoada e antiquada, recolhida para trás.
— Virginia! Querida, por um momento cheguei a pensar que era sua mãe. Deus a tenha em sua glória.
Seu pai lhe havia dito muitas vezes que era igual à mãe, mas Virginia nunca tinha acreditado, porque sua mãe era muito bela, embora ambas possuíssem o mesmo cabelo quase negro e os olhos estranhamente e violetas. Estendeu a mão a Charles e este a estreitou com força, visivelmente feliz em vê-la.
— Uma ilusão de ótica. Acredito. — Disse-lhe e se impressionou com o próprio desempenho. Mas tinha que convencer Charles de que era uma mulher adulta e capaz.
— Sim, acredito. Achei que estava no colégio, em Richmond. Sente-se. Veio ver-me? — Ele perguntou enquanto a conduzia a sua mesa, e à alta cadeira que havia em frente a ela.
— Sim. Francamente, sim. — Respondeu Virginia segurando fortemente a elegante bolsa de veludo negro de sua mãe.
Charles sorriu e lhe ofereceu uma cadeira e uma xícara de chá. Virginia declinou o convite.
— Bem, o que te pareceu à grande cidade, Virginia? — Ele perguntou ao sentar atrás de sua mesa. Sustentava o olhar de Virginia com certa preocupação. Ela sabia que ele havia notado o nervosa estava, devido à terrível tensão de sua dor e à preocupação pelo estado das finanças de seu pai.
Virginia encolheu os ombros.
— Acredito que está bastante bem. Mas você sabe que eu adoro Sweet Briar. Não há nenhum outro lugar que eu goste mais.
Charles ficou observando-a por um momento e logo ficou muito sério. — Sei que é uma jovem muito inteligente. De modo que acredito que esteja inteirada de que seu tio vai vender a plantação.
Ela desejou se inclinar adiante e gritar que o Conde não tinha direito a fazer aquilo. Mas não se moveu. Sequer se atreveu a respirar, até que passou seu arrebatamento de ira. Então disse: — Ele não tem direito de fazer isso.
— Temo que sim. E depois, ele é seu tutor.
Virginia ficou extremamente rígida.
— Vim lhe pedir um empréstimo com o qual saldar as dívidas de meu pai e salvar Sweet Briar da venda e inclusive de sua possível dissolução, Senhor King.
Ele piscou.
Ela sorriu sombriamente. — Ajudei meu pai a cuidar da plantação desde que era uma menina. Ninguém sabe mais que eu sobre plantar, compilar, embarcar e vender o tabaco. Asseguro-lhe, que devolverei o empréstimo por inteiro, com seus devidos interesses, assim que me seja possível, Senhor. Eu…
— Virginia… — Charles King começou a dizer com excessiva amabilidade.
O pânico começou a se apoderar dela. Levantou-se abruptamente. — Pode ser que seja uma mulher e que tenha dezoito anos, mas sei como dirigir Sweet Briar. Ninguém, salvo meu pai saberia fazer melhor que eu. Juro-lhe, que lhe devolverei até o último penny. Quanto necessito para saldar as dívidas de meu pai? — Perguntou desesperada.
Charles a fitava com pena.
— Minha querida menina, suas dívidas sobem à friorenta cifra de vinte e dois mil dólares.
Virginia ficou tão estupefata que seu coração se deteve e seus joelhos bambearam. De repente se achou sentada novamente.
— Não.
— Conversei longamente com o procurador de seu tio. Ele se chama Roger Blount e entendi que retornará a Inglaterra dentro de alguns dias, quando acabar de se ocupar dos assuntos que o trouxeram aqui. Sweet Briar não dá benefícios, Virginia. — Ele prosseguiu com suavidade. — Seu pai sofria perdas constantes. Embora cometêssemos o engano de lhe emprestar semelhante soma em dinheiro a uma moça tão jovem e com tão pouca experiência como você, seria simplesmente impossível que nos devolvesse o mesmo, com os benefícios da plantação. Sinto muito. Vender Sweet Briar é a única alternativa viável e a mais inteligente.
Ela se levantou, horrorizada.
— Não. Não posso permitir que a venda. É minha.
Charles também ficou em pé.
— Sei o quanto te transtorna tudo isto. Ignoro por que não está no colégio, mas é onde deveria estar, Virginia… Embora se desejar posso tentar te encontrar um bom casamento e falar com seu tio. Sem dúvida, resolveria seus problemas…
— A menos que pense me casar com um homem muito rico, não resolve nada. — Ela replicou. — Não posso permitir que Sweet Briar seja vendida. Por que não me ajuda? Eu lhe devolveria esse dinheiro algum dia, de algum jeito. Nunca deixei de cumprir minha palavra, Senhor. Não sabe que é tudo que me resta no mundo?
Ele a fitou atentamente.
— Você tem um futuro extraordinário, minha querida. Disso, te dou minha palavra.
Ela fechou os olhos e tremeu violentamente. Logo fitou seus olhos.
— Por favor, me empreste o dinheiro. Se o Senhor gostava de meu pai e de minha mãe, pelo menos um pouco, me ajude. Por favor.
— Sinto muito. Não posso. Simplesmente não posso emprestar essa soma a uma menina, que não poderia devolvê-lo ao banco em toda uma vida.
Ela não podia se dar por vencida.
— Então, empreste-me a título pessoal. — Suplicou.
Ele piscou.
— Virginia, eu não tenho tanto dinheiro. Sinto muito.
Ela estava atônita. Ele começou a dizer algo a respeito de um novo começo, quando ela se voltou e atravessou correndo o aposento até chegar à rua. Apoiou-se contra um poste, quase sem respiração, e estremeceu convulsivamente. As lágrimas de medo e desespero lutavam para se elevar em seu interior. Aquilo não poderia estar acontecendo, pensou. Era impossível!
— Senhorita Virginia? Você está bem? — Frank a segurou pelo cotovelo. Parecia preocupado e ansioso.
Ela fitou os olhos negros, mas não respondeu… Porque uma idéia acabava de assaltá-la com tanta força que ficou sem fala.
Seu tio era Conde. Os Condes eram ricos.
Pediria emprestado o dinheiro a ele.
— Senhorita Virginia? —Frank se repetiu, lhe apertando um pouco o cotovelo.
Virginia se afastou e fitou a rua cheia de gente sem ver as carruagens e os pedestres que passavam.
Não lhe restava dúvida alguma de que seu tio possuía o dinheiro necessário para salvar Sweet Briar. Ele era sua única esperança. Mas estava claro que não desejava salvar a plantação ou já teria feito. Isso significava que teria que enfrentá-lo diretamente… Em pessoa. Não bastaria uma carta. Havia muitas coisas em jogo. De algum modo encontraria meios para atravessar o Atlântico, embora isso significasse vender parte das jóias de sua mãe. Iria ver seu tio para convencê-lo de que devia salvar a plantação, em vez de vendê-la. Suplicaria, debateria ou argumentaria com ele. Faria tudo, até se casar com um perfeito desconhecido, se o Conde de Eastleigh se comprometesse a saldar as dívidas de seu pai. Virginia compreendeu que devia fazer planos imediatamente, se quisesse ir para a Inglaterra.
Sabia que podia. Como tanto gostava de dizer seu pai, onde havia vontade havia solução.
Ela sempre tivera muita força de vontade. Agora, encontraria uma solução.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 2


1º de maio 1812
Londres, Inglaterra
Sua chegada era anunciada. As pessoas entusiasmadas enchiam as margens do Tamisa enquanto seu navio, o Desafio, abria passo para os cais da Marinha.
Devlin O’Neill se achava em pé, ereto, na fortaleza de popa. Não sorria. Tinha os braços cruzados sobre o peito e sua alta e poderosa figura parecia imóvel como uma estátua. Seu uniforme brilhava em honra a sua volta para casa, se assim podia dizer. Uma casaca azul de cauda adornada com galões dourados nos ombros, calça e meias brancas, e sapatos brilhantes. Usava o chapei de feltro negro com as pontas para fora, pois só os Almirantes gozavam do privilégio de usá-los para trás. Prendeu o cabelo longo, loiro e brilhante, em um rabo de cavalo. A multidão corria pelas margens acompanhando o navio. Algumas mulheres jogavam flores.
As boas vindas a um herói. Pensou sem alegria. Uma acolhida digna de um herói, para o homem que todo mundo chamava de O corsário de Sua Majestade.
Fazia um ano que não pisava na Inglaterra. E se fosse por ele, não pisaria, mas não pudera ignorar a última chamada do Almirantado, a quarta já. Seus lábios se retorceram numa expressão gélida. O que queria era uma cama firmemente cravada no piso e uma mulher que não fosse uma rameira sifilítica, mas seus desejos teriam que esperar. Não lhe interessava o que os Almirantes queriam. Tinha desobedecido a tantas ordens e quebrado tantas normas durante o ano anterior, que podiam exigir sua cabeça por diversos motivos. Sabia também que receberia novas ordens, coisa que estava desejando. Nunca permanecia em um porto por mais de uma semana.
Percorreu o navio com o olhar. O Desafio era uma fragata de trinta e oito canhões, célebre por sua agilidade e leveza, mas, sobretudo, pela extraordinária temeridade de seu Capitão. Devlin era bem consciente de que a visão de seu navio fazia os outros navios mudar de rumo e fugir, por isso preferia navegar a noite. Agora, os marinheiros se encontravam no mastro de proa, afrouxando as velas. Cinqüenta infantes de marinha, com suas casacas vermelhas, aguardavam firmes, em posição, com os mosquetes para o alto, enquanto a fragata avançava para seu ancoradouro. Outros marinheiros permaneciam em pé junto a eles, ansiosos pelo prazer da permissão que logo lhes concederia. Os homens do castelo de proa prepararam as enormes âncoras do navio. No total, três centenas homens aguardavam no convés da fragata. Além dos cais, três modernos navios de duas pontes, vários veleiros, um veleiro e dois navios de guerra que estavam em construção, os telhados e campanários de Londres reluziam no céu azul brilhante.
O ano anterior havia sido muito lucrativo. Um ano de viagens entre o estreito de Gibraltar e Argel, entre o Golfo da Biscaya e a costa portuguesa. Fizera quarenta e oito barragens e capturara mais de quinhentos marinheiros. Suas missões tinham sido rotineiras. Escoltar comboios de mantimentos, patrulhar linhas costeiras e reforçar o bloqueio a França. Pelas noites assaltavam navios piratas franceses despreparados; de dia, se deixava balançar pelo mar. Devlin era já bastante rico antes, mas agora depois de sua última abalroagem, um de navio americano carregado de lingotes de ouro era um homem muito rico.
Finalmente, um sorriso se desenhou em seus lábios.
O menino em seu interior, entretanto, tremia e continuava assustado. O menino se negava a partir. Nem a riqueza e o poder, por maiores que fossem, bastavam-lhe. O menino só tinha que fechar os olhos para encontrar os de seu pai, furiosos e cegos em sua cabeça cortada, sobre a terra da Irlanda, em meio de uma poça de seu próprio sangue.
Devlin havia se alistado na Marinha, três anos depois da insurreição de Wexford, com a permissão e o patronato do Conde de Adare. Adare havia se casado com sua mãe no mesmo ano, embora sua irmã Meg, nunca tenha sido encontrada. O Conde havia inventado um histórico naval para Devlin, que lhe permitira começar a carreira como suboficial de marinha e não como marinheiro raso. Rapidamente se tornara um tenente. Tinha servido uma curta temporada no navio insígnia de Nelson. Na batalha de Trafalgar, o Capitão do veleiro recebeu um disparo e morreu no ato e ele assumiu rapidamente o comando. O pequeno navio só tinha dez canhões, mas era terrivelmente veloz e ele conseguiu aproximá-lo até uma fragata francesa, pelo lado de sotavento. O navio francês se abatia sobre eles a grande altura, seu flanco parecia a ponto de esmagá-los. Mas os canhões do Gazela dispararam a queima-roupa e destruíram as cobertas e os equipamentos de barco, imediatamente deixando aleijado o outro navio, muito maior e mais rápido. Devlin havia rebocado sua presa com orgulho até Leghorn e pouco depois já era Capitão e no comando de um veloz veleiro, O Loretta.
Na época tinha apenas dezoito anos. Após isso havia presenciado muitas batalhas e apreendido um sem número de navios. Mas ainda restava conseguir a maior das presas. Uma presa que não sulcava os mares.
O fogo de uma ira cuidadosamente refreada, que sempre ardia dentro dele, avivou um pouco mais. Devlin o ignorou. Em vez de pensar na vingança que algum dia cobraria na pessoa de Harold Hughes, agora Conde de Eastleigh, observou como o Desafio entrava em seu ancoradouro, entre um veleiro e um navio artilheiro. Devlin fez um gesto ao seu imediato a bordo, um escocês ruivo e apessoado, o tenente MacDonnell. Mac usou a corneta para anunciar a permissão de fim de semana. Devlin sorriu um pouco ao notar que seus homens prorrompiam em gritos e vivas; logo observou como despovoavam as cobertas como se ele desse a ordem de saltar do navio. Não se importou. Sua tripulação era excelente. Meia centena de seus homens estava com ele desde que capitaneou seu primeiro navio; a metade de sua tripulação o acompanhava desde o desabamento do Tratado de Tilsit. Eram bons homens, valentes e ousados. Sua tripulação era tão coesa que nenhum de seus membros vacilava, mesmo se suas ordens parecessem suicidas. O Desafio se convertera no açoite dos mares graças a sua lealdade, confiança e disciplina.
Devlin estava orgulhoso de sua tripulação.
Mac começou a caminhar ao seu lado. Mostrava-se incômodo em seu uniforme naval, que parecia ter encolhido. Tinha a mesma idade que Devlin, vinte e quatro anos, e durante o ano anterior havia se tornado musculoso. Devlin pensava que faziam um estranho casal: o escocês baixo e robusto, com seu cabelo cor fogo, e o irlandês alto e loiro, com seus frios olhos de prata.
— Ah, já não sei como se caminha por terra. — Ele resmungou.
Devlin sorriu. O solo parecia inchar sob eles, tão alto e encrespado como uma tormenta. Deu-lhe uma palmada no ombro.
— Dê-se um dia.
— Um dia e até sete, se não se importar. — Mac sorriu. Tinha todos seus dentes e só um estava careado. — Tem planos, Capitão? Eu estou desejando uma boa rameira. Será a primeira coisa que farei. Acredite-me. — Sua risada era luxuriosa.
Devlin era permissivo com seus homens. Como a maioria dos comandantes de navio, permitia-lhes procurar a companhia de prostitutas nos portos, mas preferia que levassem às mulheres a bordo para que o médico do navio pudesse lhes dar uma boa examinada. Não queria que a sífilis se estendesse entre sua tripulação.
— Estivemos em Lisboa há uma semana. — Disse brandamente.
— Pois parece que faz um ano.
Devlin notou que a carruagem o esperava. Tinha mandado avisar Sean por carta, de que estava a caminho.
— Quer ir a algum lugar, Mac?
MAC ruborizou.
— Não vou à cidade. — Ele respondeu se referindo a West Erid.
Devlin assentiu e lhe recordou que devia retornar a bordo do Desafio uma semana depois, para zarpar ao meio-dia, junto com os trezentos homens que formavam a tripulação. Meia hora depois a carruagem atravessava estralando a Ponte de Londres. Devlin observava uma paisagem que conhecia bem. Depois de passar muitos dias no mar, exposto aos ventos ou em portos exóticos e sensuais do Mediterrâneo, do norte da África ou de Portugal, a cidade lhe pareceu sombria, suja e desordenada. Mesmo assim gostava das mulheres belas e não se conformava com uma prostituta, e seu olhar ocioso pousava nas damas elegantes que circulavam em carruagens ou a pé pelas ruas. Seu sexo palpitava. Tinha enviado várias cartas com antecipação; uma delas, a sua amante inglesa. Esperava ter companhia essa noite e toda a semana.
Em Londres, os escritórios do Almirantado se achavam na Rua Brook, em um imponente edifício de pedra calcária construído meio século antes. Os oficiais, os auxiliares e os anexos entravam e saiam. Aqui e lá, grupos de oficiais se detinham para conversar. Quando Devlin empurrou as pesadas portas de madeira e entrou no vasto saguão circular de teto alto e abobadado muitos se voltaram para observá-lo. As conversas começaram a arrefecer. Um estranho silêncio se apoderou do saguão. Ele achou graça. Ouvia sussurrar seu nome ao seu redor.
— Capitão O’Neill, Senhor. — Um tenente muito jovem, com as bochechas vermelhas o saudou formalmente ao pé da escada de mármore.
Devlin lhe devolveu a saudação com ar despreocupado.
— Tenho ordem de conduzi-lo ao Almirante Saint John, Senhor , — Disse o jovem de face sardenta.
— Faça-o, por favor. — Respondeu Devlin, incapaz de refrear um suspiro. Saint John não era o inimigo. Detestava a insubordinação, mas conhecia o valor de seu melhor Capitão de guerra. O Almirante Farnham, ao contrário, ansiava em submetê-lo a um conselho de guerra e desprestigiá-lo publicamente, e desde a algum tempo contava para tal propósito com o apoio entusiasta do Capitão Thomas Hughes, o filho do Conde de Eastleigh.
O Almirante Saint John o esperava. Era um homem magro, de cabelos brancos. Não estava sozinho. Com ele estavam Farnham, que era mais alto e mais robusto que ele, e tinha muito menos cabelos e o Conde de Liverpool, Ministro da guerra.
Devlin entrou no escritório e os saudou formalmente. Estava intrigado. Não recordava ter visto Liverpool em West Square.
A porta se fechou com força atrás dele. Liverpool, um homem enxuto, baixo e de cabelo escuro sorriu-lhe.
— Faz muito tempo, Devlin. Sente-se. Prefere um uísque escocês ou um conhaque?
Devlin se sentou em uma cadeira macia e tirou o chapéu.
— O conhaque é francês?
O Conde pareceu divertido.
— Temo que sim.
— Então o conhaque. — Disse Devlin estirando diante de si as longas pernas.
Farnham parecia irritado. Saint John se sentou atrás de sua mesa.
— Já se passou algum tempo desde que gozamos uma última vez do privilégio de sua companhia.
Devlin encolheu os ombros com desdém.
— Há muita animação nos estreitos, Milord.
Liverpool serviu o conhaque e deu uma taça a cada um.
— Sim, muito. Em efeito. — Disse Farnham. — Razão pela qual abandonar o Lady Anne é uma ofensa muito grave.
Devlin bebeu um longo gole saboreou cuidadosamente o conhaque pensando que o seu era muito superior, tanto em sua casa como em seu navio.
— Tem algo a dizer em sua defesa? — Perguntou Saint John.
— Na realidade, não. — Respondeu Devlin, e acrescentou: — O navio não estava em perigo.
— O que não estava em perigo? — Farnham se engasgou com o conhaque.
Liverpool sacudiu a cabeça.
— O Almirante Farnham pediu sua cabeça, meu filho. Era realmente necessário abandonar o Lady Anne para perseguir um mercante americano?
Devlin sorriu ligeiramente.
— O Independence estava carregado de ouro, Milord.
— E você sabia quando o divisou a costa de Trípoli? — Perguntou Saint John.
— O dinheiro compra tudo, Milord. — Devlin murmurou.
— Não conheço nenhum outro comandante tão audaz como você. Quem é seu espião e onde está? — Perguntou Saint John.
— Pode ser que seja uma espiã. — Devlin murmurou. E era precisamente a moça de Malte que possuía uma estalagem em que estavam acostumados a abrigar americanos. — E, se emprego espiões temo que isso seja meu assunto e de mais ninguém. E dado que me ajuda no cumprimento de minhas ordens deveríamos deixar morrer o assunto.
— Você não cumpre as ordens! — Gritou Farnham. — Suas ordens eram escoltar o Lady Anne até Lisboa. Tem sorte que o navio não tenha siso acossado por navios inimigos…
Devlin se exasperou finalmente, mas permaneceu comodamente em sua cadeira. — A sorte não tem nada a ver com isto. Eu controlo os estreitos. E isso significa que controlo o Mediterrâneo… Posto que ninguém pode entrar nele sem passar por mim. O Lady Anne não corria nenhum perigo e o fato de que chegasse são e salvo a Lisboa demonstra isso.
— E agora você é grandemente rico. — Liverpool murmurou.
— O espólio se acha nas mãos de nosso agente em Rock. — Devlin disse se referindo a Gibraltar, cujo porto tinha rebocado o Independence. A ele correspondia três oitavos do total do espólio e uma rápida estimativa dessa soma alcançava as cem mil libras. Era mais rico do que qualquer um podia imaginar, e fazia tempo que havia ultrapassado suas próprias expectativas.
— Não me preocupa a sorte do Lady Anne, que afinal de contas é um só navio. — Disse Liverpool. — E embora tenha desobedecido sem rodeios as ordens diretas estamos todos dispostos a passar por alto. Não é certo, cavalheiros?
Saint John assentiu com firmeza, mas Devlin sabia que Farnham teimava em não aceitar. O faro lhe divertiu.
— O que me preocupa é acabar esta maldita guerra. Acabá-la o quanto antes. — Liverpool estava em pé e falava como se estivesse fazendo um discurso ante o Parlamento. — Há outra guerra no horizonte, uma guerra que devemos evitar a todo custo.
— Razão pela qual está você aqui. —Acrescentou Saint John.
Devlin se ergueu na cadeira.
— A guerra com os americanos é um engano. — Ele disse.
Farnham soltou um suspiro.
— Você é irlandês. Segue simpatizando com os jacobitas.
Devlin sentiu desejo de estrangulá-lo. Não se moveu nem disse nada até que a vontade passasse.
— Em efeito. A América é uma nação irmã, igual à Irlanda. Seria vergonhoso guerrear com ela, seja qual for a causa.
Liverpool disse sem rodeios:
— Devemos manter o controle absoluto sobre os mares, Devlin. Sem dúvida você sabe disso.
— Só o egoísmo move suas lealdades. Importa-lhe pouco a Inglaterra. Só lhe interessa a riqueza que conseguiu com sua carreira na Marinha. — Farnham disse com veemência.
— Não estamos aqui para questionar as lealdades de Devlin. — Retrucou Liverpool, em tom cortante. — Ninguém na Armada serviu a Sua Majestade com mais lealdade, mais perseverança e mais eficácia.
— Obrigado. — Devlin disse laconicamente. Mas era certo. Seu histórico de batalhas navais não tinha comparação.
— A guerra não acabou ainda e você sabe, Devlin. Você passou mais tempo que ninguém patrulhando o estreito de Gibraltar e o Mediterrâneo. Mesmo assim, nosso controle sobre essas regiões é indiscutível. Você sairá deste escritório com novas ordens, se me assegurar que as cumprirá devidamente.
Devlin elevou as sobrancelhas com autêntico interesse. Aonde Liverpool queria chegar?
— Prossiga. — Disse.
— Sua reputação o precede. — Disse Saint John. — No Mediterrâneo e em outras costas, qualquer inimigo, qualquer corsário sabe que suas táticas navais são insuperáveis, embora pouco ortodoxas. Todos o temem. Por isso ninguém já lhe apresenta batalha.
O fato era certo, freqüentemente. Devlin estava acostumado a disparar um só tiro de canhão de aviso antes de abordar um navio com seus marinheiros. Estranha vez encontrava resistência. E estava aborrecido de tudo aquilo.
— Entendo que sua fama é tão grande que até perto das costas americanas o inimigo fugirá ao divisar seu navio.
— Estou realmente agradado. — Ele disse.
Liverpool tomou a palavra.
— Estamos tentando evitar a guerra com os americanos. — Ele lançou um olhar a Devlin. — Mandá-lo até lá poderia ser como soltar um lobo em um galinheiro e esperar que as galinhas e os frangos saíssem sãos e salvos. Se o enviarmos ao oeste, quero que me dê sua palavra de que cumprirá as ordens, de assustar o inimigo sem assaltar nenhum só de seus navios, meu filho. Seu país o necessita, Devlin, mas neste caso não valem as táticas de corsário.
Seriamente esperavam que ele partisse para o oeste e atuasse como uma espécie de babá dos mercantes e navios americanos?
— Devo persegui-los, ameaçá-los, fazê-los retornar… E me retirar? — Ele mal podia acreditar.
— Sim, isso é basicamente o que se deseja que faça. Não podemos permitir que nenhuma mercadoria americana entre na Europa. Isso não mudou. O que mudou são as normas de captura. Não queremos nem um só navio mais acessado ou destruído. Não queremos que possam nos atribuir a morte de um só americano mais.
Devlin se levantou.
— Procurem algum outro. — Disse. — Eu não sou o mais indicado para essa missão.
Farnham suspirou, ao mesmo tempo satisfeito e incrédulo.
— Nega-se a cumprir ordens diretas! Quando nos vamos decidir enforcá-lo por insubordinação?
Devlin sentiu desejo mandar que o velho néscio se calasse.
— É um engano, Milord, — respondeu brandamente a Liverpool, — mandar uva sem semente como eu, a semelhante missão.
Liverpool o estudou por um momento. Logo sorriu com certa frieza.
— Eu não acredito. Porque o conheço muito melhor do que você acha. — Ele se voltou para os dois Almirantes presentes. — Nos desculpem cavalheiros?
Ambos pareceram surpresos, mas assentiram e saíram do escritório.
Liverpool sorriu.
— Agora podemos chegar ao âmago da questão, não Devlin?
Devlin levantou os cantos dos lábios como resposta, mas aguardou sem saber se receberia um golpe ou um presente.
— Faz tempo que conheço seu jogo, Devlin. — Liverpool se deteve, para monopolizar. — O sangue dos reis irlandeses corre por suas veias e, quando se alistou na Marinha era tão pobre, como o mais pobre dos irlandeses. Agora tem uma mansão à beira do rio Tamisa, comprou de Adare a casa de seus antepassados e só consigo em estimar a quantidade de ouro que guarda em bancos… E em suas câmaras particulares. Você é tão rico que já não lhe servimos de nada.
— Você me faz parecer muito pouco patriótico. — Murmurou Devlin. Liverpool tinha razão… Quase.
— Mesmo assim, um homem superior como você e de uma excelente família, vive sempre no mar. Vive sempre perseguindo uma presa, sempre em guerra… Nunca em terra firme. Nunca em casa, ante o fogo da lareira… — Liverpool o observou.
Devlin começava a ficar nervoso. Bebeu um gole de conhaque, para dissimular sua inquietação.
— Pergunto-me o que o impulsiona a navegar tão velozmente, tão longe e tão freqüentemente. — As sobrancelhas escuras do Liverpool voltaram a elevar.
— Temo que você tenha me convertido em um personagem novelesco. Sou um simples marinheiro, Milord.
— Acredito que não. Acredito que haja razões muito profundas, graves e complexas que explicam seus atos. Claro que acredito que nunca saberei quais são. — Ele sorriu e bebeu o conhaque.
O menino tremia com autêntico medo. Como aquele desconhecido podia saber tanto?
— Tem muita imaginação, Milord. — Devlin sorriu com frieza.
— Você ainda não subiu a nobreza, Capitão O’Neill. — Replicou Liverpool.
Devlin se ergueu, surpreso. Então seria um presente… Depois de um golpe, pensou.
Em outro tempo, seus ancestrais haviam sido reis, mas um século de roubos os reduzira à condição de granjeiros arrendatários. Ele tinha mudado tudo isso. Seu padrasto lhe tinha vendido Askeaton de bom grado, quando teve dinheiro suficiente para pagá-lo. Havia comprado há dois anos a mansão à beira do rio Tamisa, quando o Conde de Eastleigh se viu obrigado, por circunstâncias econômicas, a colocá-la à venda. Liverpool sabia que Devlin tinha usado a Marinha para conseguir a segurança que acompanhava à riqueza. O que não sabia era quais eram os motivos.
— Continue. — Disse com suavidade, mas tinha começado a tremer.
— Você sabe que há um título nobre ao seu alcance. Só tem que cumprir as ordens.
O menino de dez anos queria um título. O menino que tinha visto seu pai cair vítima de um assassinato a sangue frio queria o título, tanto como desejava a riqueza, porque com seu poder se acharia ainda mais seguro que antes.
Devlin odiava o menino e não queria sentir sua presença.
— Eleve-me à nobreza agora. — Disse. — E salvo que surja algum imprevisto ou as circunstâncias o impeçam, partirei para a América e ameaçarei suas costas sem infligir nenhum mal aos seus navios.
— Maldito seja, O’Neill. —Liverpool sorria. — Trato feito. — Logo acrescentou: — Será Sir O’Neill antes que zarpe a semana que vem.
Devlin não pôde refrear um sorriso autêntico. Sentia-se exultante em pensar que logo o título seria dele. Seu coração acelerou cheio de prazer selvagem, quando pensou em seu inimigo mortal, o Conde de Eastleigh. O homem que havia assassinado seu pai.
— Onde gostaria que fosse sua casa? — Perguntou Liverpool, cordialmente.
— No sul de Hampshire. — Disse Devlin. Desse modo, seu novo imóvel ficaria a uma hora, como muito, das terras de Eastleigh.
Devlin sorriu. Há anos vinha tramando sua vingança. Sabia desde a idade de dez anos, que para derrotar seu inimigo teria que ser rico e poderoso. Uniu-se à Marinha para obter riqueza e poder, sem sonhar que algum dia seria dez vezes mais rico que o homem que planejava destruir. Um título acrescentava mais munição ao seu arsenal, embora já pouco importasse. Eastleigh estava beira da miséria, pois ele estava lhe arruinando-o pouco a pouco há anos.
Seus caminhos se encontravam em Londres, tarde a tarde, em diversos acontecimentos sociais. Eastleigh o conhecia bem. De algum modo havia lhe reconhecido na primeira vez que se encontraram em Londres, quando Devlin com dezesseis anos desafiou Tom Hughes, o filho menor do Conde, em duelo, por causa de uma prostituta. A sorte da moça foi só uma desculpa para machucar seu inimigo mortal sorrindo ao filho, mas o duelo ficou interrompido. Foi somente o princípio do jogo mortal que ele desencadeou.
Seus agentes tinham sabotado as minas de chumbo de Hughes e instigado uma série de greves em seu moinho, e até havia animado seus arrendatários a exigir aluguéis mais baixos, o qual tinha forçado Eastleigh a transigir. A situação econômica do Conde se deteriorou gravemente ao extremo, que se achara ao ponto de vender as terras de seus antepassados. Devlin esperava com impaciência por esse dia; pensava ser ele quem compraria imediatamente as terras. Enquanto isso havia adquirido o melhor cavalo do Conde, seus cães favoritos e sua casa de Greenwich. Mas o golpe de graça havia sido Elizabeth Sinclair Hughes, a segunda esposa do Conde, a Condessa de Eastleigh.
Fazia seis anos que Elizabeth era a mulher que com tanta avidez compartilhava sua cama.
Naquele preciso momento estava aguardando-o. Era hora de partir.


Waverly Hall pertencera durante quase um século aos Condes de Eastleigh até dois anos atrás, quando uma série de infortúnios obrigou o Conde a vender a casa. O enorme edifício de pedra calcária ostentava dois torreões, três andares, um caramanchão, quadra de tênis e jardins que discorriam paralelos à margem do rio. Devlin chegou a sua casa em um iate italiano, capturado no princípio de sua carreira. Percorreu sem pressa o embarcadouro e observou a grama perfeitamente recortada, os jardins de belas formas e as roseiras em flor que subiam pelas escuras paredes da casa. Era tudo muito inglês.
Indiferente a tudo aquilo, Devlin pôs-se a andar pela alameda de ladrilhos que levava a parte traseira da casa, onde um terraço oferecia um panorama espetacular do rio e a vegetação. Um homem se levantou de uma cadeira de jardim. Devlin o reconheceu imediatamente e apertou o passo.
— Tyrell!
Tyrell de Warenne, herdeiro do condado de Adare e meio-irmão de Devlin desceu pelo caminho para lhe dar as boas vindas. Ao igual seu pai, Ty era alto e de cor morena e tinha o cabelo negro como o azeviche e os olhos azuis, extremamente escuros. Os dois homens, tão distintos como a noite e o dia, se abraçaram.
— Que surpresa agradável. — Disse Devlin, contente em ver seu meio-irmão. Aquele encontro conferia de repente atração a sua volta a casa, que até o momento havia lhe deixado indiferente.
— Sean me disse que vinha para cá e como tinha que me ocupar de alguns assuntos na cidade, decidi passar pela mansão para saber havia se chegado. Vejo que cheguei bem a tempo. — Tyrell sorriu. Era perigosamente bonito e suas muitas aventuras amorosas provavam.
— Pelo menos uma vez. — Replicou Devlin enquanto subiam para o terraço. — Como está minha mãe? E o Conde?
— Estão bem, como sempre. Perguntam quando irá para casa. — Disse Tyrell com um olhar penetrante.
Devlin abriu as portas francesas e entrou em um salão enorme e elegantemente decorado. Preferia ignorar o assunto.
— Acabo de aceitar uma missão no Atlântico Norte. — Disse. — Oficial. É obvio. Ainda não recebi minhas ordens.
Tyrell o segurou pelo ombro e Devlin teve que encará-lo.
— O Almirante Farnham está furioso por causa de Lady Anne, Dev. Aonde vou ouço falar disso. Inclusive meu pai se inteirou das maquinações de Farnham contra você. Acreditava que esta tinha sido sua última missão. — Seu olhar era sombrio e recriminatório.
Devlin se aproximou do cordão da campainha, mas seu mordomo se materializou e já sorria como se alegrasse em vê-lo. Devlin sabia que aquele inglês detestava ter um amo irlandês, mas o homem lhe divertia tanto, que ao comprar a mansão havia conservado a seu serviço os criados de Eastleigh.
— Benson, nos traga algum lanche e uma boa garrafa de vinho tinto, bom homem.
Devlin se voltou então para seu meio-irmão. Como o resto de sua família, Tyrell pensava que ele passava muito tempo no mar.
— Ofereceram-me um título nobre, Ty.
Tyrell o fitou um momento, surpreso. Logo sorriu e lhe deu uma palmada nas costas.
— É uma notícia estupenda. — Disse. — Uma notícia excelente!
— Materialista como sou, não podia deixar passar essa oportunidade.
Tyrell o observou um momento.
— Está formando uma tormenta as suas costas. Deve tomar cuidado, Dev. Não acredito que Eastleigh tenha te perdoado por ter comprado esta casa. Tom Hughes tenta promover um conselho de guerra contra você. — Disse. — E difunde rumores abomináveis sobre você.
Devlin levantou uma sobrancelha.
— Não me importa o que diga.
— Seus falatórios poderiam danificar sua carreira. E também poderiam lhe prejudicar. — Tyrell acrescentou.
— Se eu não estou preocupado, por que você estaria? — Perguntou Devlin com calma, mas pensou em Thomas Hughes, quem sequer conhecia o mar, salvo em algum vistoso navio onde o Almirante, outros oficiais e ele viviam como reis. Contudo, Hughes ostentava a mesma classe que ele, embora Devlin soubesse que ele seria incapaz de conduzir um navio de brinquedo no lago de algum parque. Em efeito, o Capitão Hughes passava a vida adulando aos diversos Almirantes aos quais servia. Devlin era consciente de que Tom o desprezava, e aquilo o divertia muito. Lamentava não ter lhe ferido, quando se bateram em duelo por causa de uma rameira.
— Não tenho medo de Tom Hughes. — Disse laconicamente.
Tyrell suspirou enquanto Benson retornava com dois criados, cada um com uma bandeja de prata. Devlin e Tyrell guardaram silêncio. Quando os criados se retiraram, Devlin deu a seu irmão uma taça de vinho e se aproximou das janelas que se abriam para o terraço. Observou a paisagem, mas a visão não o agradou, particularmente. Era impossível não pensar em Askeaton.
Tyrell o seguiu até a janela. Como se lhe lesse o pensamento, disse: — Faz seis anos que você não vai em casa.
Devlin recordava a última vez que havia estado em casa. Lembrava-se do dia e hora, mas sorriu e fingiu surpresa.
— Tanto tempo faz?
— Por quê? Por que evita seu lar, Dev? Maldito. Todos nós sentimos sua falta. E, embora Sean administre Askeaton muito bem, nos dois sabemos que você o faria melhor.
— Não disponho de liberdade para viajar a Irlanda cada vez que desejo. — Murmurou Devlin. Não era exatamente uma mentira, mas estava evitando a pergunta e ambos sabiam. O certo era que podia navegar até as costas da Irlanda virtualmente, sempre que quisesse.
— É um homem estranho. — Disse Tyrell com acuidade. — E não sou eu o único que se preocupa com você.
— Diga a minha mãe que estou muito bem. Capturei um mercante americano que levava ouro para um príncipe da Berberia, um resgate por seus reféns. — Disse Devlin tranquilo. — Com minha parte do saque, eu mesmo poderia liberar um cativo ou dois.
— Deveria dizer isso a você mesmo. — Disse Tyrell com firmeza.
Devlin se voltou. Tinha saudades terríveis de Askeaton, mas durante os anos anteriores havia descoberto que devia evitar seu lar a todo custo. Lá, as lembranças eram muito voláteis e ameaçavam consumi-lo. Ali, o menino continuava vivo.


Horas depois, agradavelmente relaxado após consumir vinho em abundância e depois da partida de Tyrell, para Adare em Mayfair, Devlin começou a subir as escadas. Seus aposentos ocupavam uma ala inteira do segundo andar. Ao tomar posse da casa havia destruído por completo o interior da suíte principal, como se desse modo destruísse também o Conde de Eastleigh. Atravessou tranqüilamente uma pequena sala atrás da outra, sem deixar de pensar a todo o momento, que nem um objeto da casa, fora os livros, lhe dava algum prazer. Mas não havia comprado a casa por prazer. Comprara-a com um só propósito: vingança.
Uma donzela apareceu na porta de seu dormitório. Mostrava-se arrasada. Era muito bonita e Devlin pensou por um instante em convidá-la para sua cama. Mas a moça enrubesceu ao vê-lo e fugiu pelo corredor, com um gemido de surpresa. Devlin observou-a, divertido, e se perguntou o que havia causado a veloz retirada. Seriam tão evidentes suas intenções? Estava muito necessitado de sexo, certamente. Mas não excitado.
Então entrou no dormitório e compreendeu o que acontecia. Uma Vênus loira se sentou no meio da enorme cama. Uma camisola de fino tecido a acariciava e mostrava seus seios volumosos e eretos, e de grandes mamilos escuros, seus quadris arredondados e suas coxas carnudas. E, entre elas, o triângulo vermelho rubi de seu pelos pubianos.
Elizabeth Sinclair Hughes lhe sorriu.
— Recebi sua mensagem e vim tão logo pude.
Devlin sentiu seu membro enrijecer ao observá-la. Elizabeth pertencia ao seu inimigo mortal, um homem sobre o qual estava se vingando lenta, mas implacavelmente, e ela lhe excitava como nenhuma outra mulher.
Era muito bela e seus olhos verdes moveram diretamente para a proeminente frente de sua calça.
— Necessito de seus cuidados, Capitão. — Ela murmurou.
Devlin se aproximou enquanto tirava a camisa. O sangue inflamado enchia seu cérebro. Com ela, chegava a uma luxúria selvagem e incontrolada. A besta sempre escolhia aquele momento para caminhar sobre a terra. Devlin se deitou sobre Elizabeth já ao subir na cama e empurrou-a contra o colchão. Desabotoando a calça penetrou-a abruptamente.
Elizabeth gritou de prazer. Já estava úmida e quente. Devlin se movimentou com fúria. Imagens de Eastleigh povoavam sua cabeça. Com o cabelo grisalho e mais gordo, com cinqüenta anos, como era agora, e também como quatorze anos antes, mais magro, jovem, e cruel. Seu ódio não conhecia limites. Misturava-se ao frenesi do desejo. Sua boca procurou a da Elizabeth. Voltou a penetrá-la com força, mordendo-a, até se converter na besta, na fera. Elizabeth não era consciente disso. Aferrava-se as suas costas suarenta e se retorcia, febril, em seu êxtase.
Ele também desejava se liberar, mas o ódio, o prazer e a luxúria eram tão intensos e tão satisfatórios que se negava a deixar o êxtase lhe consumir. Seguia penetrando-a cada vez mais forte e mais intenso. Suas imundas lembranças, entretanto, possuíam-no como ele possuía Elizabeth nesse momento. Feios e sangrentos, furiosos vislumbres de um passado terrível e escuro que se elevavam. Um menino pequeno, um homem decapitado, uma cabeça cerceada, e olhos cegos, uma poça de sangue.
Esqueceu-se da mulher sob si quando a onda que precedia o clímax, uma onda de prazer intenso e crescente, se converteu em uma corrente de ira e dor. Sentiu-se miserável contra sua vontade, em uma maré que se desdobrava com força, veloz como um vagalhão. Depois da maré as lembranças o alcançaram. Os olhos furiosos e cegos de seu pai o fitavam com reprovação. Deixou-me morrer... Deixou-me morrer. Tentou fugir e foi o que provocou seu clímax.
Não houve nem um momento de paz, nem um momento de alívio. Imediatamente tomou consciência da mulher e do homem que estava aviltando, das pavorosas lembranças que devia enterrar a todo custo. Afastou-se da Condessa. Respirava trabalhosamente. Naquele instante, um vazio doloroso e conhecido se elevava do mais profundo de seu ser e o consumia por inteiro. Um vazio imenso, vasto. Oco.
Devlin se levantou de um salto.
— Santo céu! Qualquer um diria que estava privado de sexo há um ano. — Murmurou Elizabeth com um suspiro satisfeito. Logo o observou com um sorriso leve e feliz, detendo-se em seu estreito quadril e suas robustas coxas.
Devlin mal prestava atenção em suas palavras. Nu, atravessou o aposento e se serviu de uma taça de vinho. Tomou-a de um gole, estremecido como sempre por causa das lembranças que tinha jurado não esquecer. Esvaziou a taça e lutou com a besta até que conseguiu fazê-la retornar a sua guarida.
— Nada mudou. Não é, Devlin? — A Condessa perguntou, se sentando.
Ele se serviu de outra taça de vinho e se aproximou dela. Notava que seu sexo começava a se agitar novamente. Ela fixou o olhar nele e sorriu.
— Está se tornando adivinho, Devlin. Terrivelmente.
— Poderia mudar isso com toda facilidade. — Ele comentou com despreocupação ao lhe entregar o vinho. Logo se deteve para admirar seus seios. — Você não mudou. — Acrescentou.
— E você segue sendo um cavalheiro, apesar de sua reputação. — Ela disse e sorriu, satisfeita. — Estou um ano mais velha, mais gorda e mais fogosa que nunca.
— Não mudou. — Devlin disse com firmeza, mas cuidou as leves rugas em torno dos olhos e a ligeira dilatação de sua cintura. Elizabeth era vários anos mais velha que ele, embora Devlin ignorasse sua idade precisa. Nunca se tinha incomodado em averiguar qual era. Ela tinha duas filhas adolescentes e ele acreditava, embora não estivesse seguro, que a maior tinha quatorze ou quinze anos. Nenhuma delas era filha de Eastleigh.
— Querido, não pode ficar ao meu lado, nenhuma vez? — Ela perguntou deixando o copo, para lhe acariciar a parte interna da coxa.
Devlin se excitou imediatamente.
— Nunca pretendi ser outra coisa que o que sou contigo. Não sou um homem tranqüilo.
— Não. É o corsário de Sua Majestade ou assim ouço te chamar de quando em quando, quando suas façanhas se convertem em tema de alguma conversa durante um jantar. — Ela deslizou a mão para cima e roçou seu membro com o dorso, enquanto brincava com sua coxa.
— Quão aborrecidos devem ser esses jantares. — A Devlin não importava como o chamassem, mas ele não se incomodou em dizer. À Condessa adorava conversa ociosa depois de seus arrebatamentos amorosos. Era dela que procedia grande parte das informações que Devlin tinha conseguido sobre Eastleigh durante os seis anos anteriores, de modo que normalmente ele a incentivava a conversar.
— Senti tua falta, Dev. — Ela murmurou.
Simplesmente não havia nada a dizer. Segurou-lhe a mão e a colocou com firmeza sobre o membro inchado.
— Demonstre-me.
— Fala como todo um comandante. — Disse ela com voz rouca e baixou a cabeça.
Devlin não havia pretendido dar uma ordem, mas o fato já formava parte de sua natureza. Não se movimentou; esperou pacientemente a que ela lambesse e chupasse seu membro enquanto a observava desapaixonadamente. Algum dia Eastleigh descobriria que eram amantes. Só tinha que decidir qual o momento oportuno.
Ela levantou de repente a cabeça e sorriu.
— Algum dia me dirá que também sentiu falta de mim?
Devlin se enrijeceu.
— Existem momentos melhores para se conversar, Elizabeth.
— Ah, sim? Só estamos juntos em momentos como este. Pergunto-me o que pulsa sob seu peito. Às vezes acredito que tem o coração de pedra, Dev.
Seu membro estava a algum tempo completamente ereto e conversar lhe era penoso. Mas disse: — Já te fiz alguma promessa, Elizabeth?
— Não. — Ela se sentou e o fitou. — Mas já faz seis anos e curiosamente me afeiçoei a você.
Ele não respondeu. Não sabia o que dizer. Pela primeira vez em sua vida encontrava-se desconcertado.
— Pode ser que eu esteja apaixonada por você, Dev. — Ela acrescentou com o olhar fixo nele.
Devlin contemplou o atraente rosto, tão delicioso como o corpo e analisou cuidadosamente sua resposta. Não sentia nada por ela, sequer amizade; Elizabeth era um meio para alcançar um fim. Mas não lhe desagradava. Odiava o marido, não a ela. Gostaria que tudo seguisse como estava. Não desejava machucá-la, e não por compaixão. Não era um homem compassivo. O mundo era um campo de batalha e nela, a compaixão era o prelúdio da morte. Não queria feri-la porque ela seguia lhe sendo útil. Queria que estivesse ao seu dispor conforme as suas condições, e não dolorida, furiosa e ressentida.
— Isso não seria muito sensato. — Disse finalmente.
— Não pode simplesmente fingir? — Ela perguntou, melancolicamente. — Mentir pelo menos uma vez?
Ele não vacilou. Esfregou seus lábios com o polegar, ignorou a lágrima que tinha visto formar em seu olho. Deslizou a mão por seu pescoço, seu seio e finalmente, seu mamilo inchado. Sua boca seguiu o caminho marcado pelo dedo. Instantes depois se encontravam novamente unidos em um frenesi. Ele a tomava com ferocidade.
Várias horas depois, Devlin provou a água de sua banheira e a achou quente o bastante. Elizabeth estava se vestindo. Ele entrou na banheira e submergiu na água morna. Depois de meses no mar, a água quente era deliciosa. Finalmente sua mente se encontrava em branco e não havia monstros a derrotar após vários orgasmos.
— Carinho…
Devlin se sobressaltou. Quase adormecera no banheiro. Elizabeth lhe sorriu. Estava elegantemente vestida com um vestido de cor azul safira, adornado com um cós de veludo negro.
— Sinto muito. Não devia te despertar! — Ela exclamou. — Devlin, você está tão irresistível nessa banheira, que poderia agora mesmo entrar nela contigo.
Ele levantou uma sobrancelha.
— Eastleigh não te está esperando?
Ela franziu o cenho.
— Temos planos para jantar. Então ele está me esperando. Só queria dizer que estarei na cidade nesta temporada.
Ele compreendeu. Elizabeth desejava vê-lo outra vez antes que zarpasse. A ele parecia bem.
— Ainda não recebi ordens, — disse com precaução, — então não sei quando começará minha próxima missão.
Os olhos da Elizabeth se iluminaram.
— Amanhã? Pela tarde?
Ele sorriu um pouco.
— Muito bem, Elizabeth. Eastleigh também vai estar na cidade? — Perguntou. A pergunta pareceria inocente a ela. Afinal de contas, qualquer amante se interessava por essas questões.
— Por sorte a resposta é não, então provavelmente poderemos passar a noite juntos.
Ele preferiu não responder. Nunca tinha permitido que uma mulher passasse a noite em sua cama e nunca permitiria.
O semblante da Elizabeth se alterou. Parecia irritada.
— Ele me ordenou permanecer em Londres durante um tempo. É um milagre que você também esteja aqui, então não deveria estar tão ofendido.
— Por quê? — Ele perguntou brandamente.
— A sobrinha americana de Eastleigh vem para Londres. Está a bordo do navio, Americana. Esperamos sua chegada no fim de mês.
Ele se surpreendeu levemente. Sequer sabia que havia uma sobrinha, e muito menos uma sobrinha americana. Pensou por um momento.
— Nunca havia me falado de uma parenta longínqua. — Disse com calma.
Elizabeth encolheu os ombros.
— Acredito que não tinha razão para isso, mas agora ela ficou órfã e vem para cá. Eastleigh pretendia que ficasse lá, em um colégio de Senhoritas, mas imagino que pensa se apegar em nossas saias. Justo o que eu precisava! Uma provinciana inculta! E o que acontecerá se for uma beleza? Tem dezoito anos e Lydia só tem dezesseis! Não quero que uma órfã americana comece a competir com minha filha por um marido e naturalmente, a provinciana deve se casar primeiro.
Bem, Devlin já sabia quantos anos tinha a filha mais velha de Elizabeth. Sorriu com ironia.
— Duvido que ela eclipse suas filhas, Elizabeth. Não, se forem tão belas como você. — Sua resposta foi automática. Estava pensando em outra coisa.
A sobrinha de Eastleigh estava a caminho da Inglaterra a bordo de um navio americano. Ele estava a perto de zarpar rumo ao poente a fim de interceptar o comércio americano. Não devia, entretanto, danificar nenhum navio da colônia. Não queriam à sobrinha na casa de Eastleigh e ficava claro que dentro de pouco, a moça atravessaria seu caminho.
Poderia usar aquela informação para seus fins? Poderia usá-la?
— Muito obrigado, Dev. — Disse Elizabeth. — Me incomoda se encarregar dela. Você sabe o quanto estamos apertados há uns quantos anos. Foi uma coisa atrás de outra. Não podemos se permitir apresentá-la devidamente na sociedade, Dev. Não há mais o que dizer.
Devlin assentiu com um gesto de cabeça. Não sentia remorso. Seguiu pensando e de repente se tornou evidente o que devia fazer.
Talvez Eastleigh não quisesse à moça, mas evitaria um escândalo a todo custo. Ah, como usufruiria atormentando novamente o bojudo Conde! Capturaria o navio, pegaria a garota e obrigaria o Eastleigh a pagar um resgate que não podia se permitir, por uma jovem a quem sequer queria.
Devlin começou a sorrir. Seu coração se acelerou tomado pela excitação. Aquele era um golpe de sorte muito bom para ser certo… E para ficar ignorado.

 

 

 

 

Capítulo 3

 

Fins de maio 1812
Alto mar

Estavam sendo atacados!
Ajoelhada sobre sua cama, Virginia observava atentamente pela única janela do camarote e se segurava com força para não perder o equilíbrio, enquanto o navio corcoveava em resposta ao estrondo dos incontáveis canhões. Estava paralisada pelo assombro.
Tudo tinha começado há algumas horas. Haviam lhe dito que faltava somente um dia para chegar à costa inglesa e que a qualquer momento ela notaria uma gaivota voando no céu azul e nublado. Pouco depois um navio havia aparecido no horizonte, como uma mancha escura e de mau agouro. A mancha se foi tornando maior. Veloz, a favor do vento. O navio Americana deslizava lentamente pelas ondas, de encontro a ele e parecia que os caminhos dos dois navios logo se encontrariam.
Virginia, que estava tomando o sol no único convés do navio logo percebera a inquietação da tripulação. O comandante do navio, um homem já de idade, que antes havia sido Capitão da Marinha, vigiava com seu binóculo o avanço do veleiro. Ela não tinha demorado a compreender que os preocupava a nacionalidade do navio que se aproximava.
— Icem as bandeiras azuis e brancas. — O Capitão Horatio havia dito com firmeza.
— Senhor? Ele usa as barras e as estrelas. — Disse o primeiro oficial, um rapaz muito jovem.
— Bem, — resmungou o Capitão, — então é dos nossos.
Mas não era. A fragata se aproximou até ficar a cinqüenta jardas do navio Americana e havia manobrado até se alinhar com o navio, quando de repente a insígnia vermelha, azul e branca desapareceu sem que fosse substituída por outra. Ordenaram que ela descesse para o camarote enquanto a tripulação corria para os dez canhões do navio. Mas Virginia ainda não tinha chegado à escada quando retumbou um tiro de canhão. Ouviu-se um grande estrondo, mas não houve danos. A bala havia se perdido além do lado da popa.
— Americana... — Ressoou uma voz acima do som da buzina. — Fechem as portinholas e se preparem para serem abordados. Ordena o navio Desafio.
Virginia ficou paralisada, grudada à escada que a levaria para baixo, e voltou o olhar para o outro navio. Um navio enorme, escuro e cheio de mastros. Seu olhar em seguida descobriu o traiçoeiro Capitão. Estava em pé em um pavimento superior e reduzido; sustentava a corneta e seu cabelo era claro e deslumbrante, dourado como o sol. Sua figura era alta e forte. Usava calça branca, botas do Hesse e uma camisa branca e solta. Virginia cravou o olhar nele, hipnotizada por um instante, incapaz de afastar os olhos, e por um momento experimentou uma sensação muito estranha.
Uma sensação indescritível. Como se nada pudesse voltar a ser sentido.
O tempo ficou suspenso. Ela contemplou o Capitão, uma criatura marinha. Logo piscou e só restou seu coração, que palpitava tresloucado, preso de pânico e ansiedade.
— Cesse o fogo! — Gritou o Capitão Horatio. — Não fechem as portinholas!
— Capitão! — Gritou o primeiro oficial, assustado. — É O’Neill, o açoite dos mares. Não podemos enfrentá-lo!
— Penso tentar. — Replicou Horatio.
Virginia compreendeu que não haveria rendição. Necessitava de uma pistola.
Fitou freneticamente ao seu redor enquanto o Capitão do Desafio exigia novamente que se rendessem. Seguiu um momento interminável durante o qual a tripulação do navio Americana se preparou para disparar. E, de repente o mar mudou. Retumbou o espantoso estrondo de um sem número de canhões. O Desafio estava disparando contra eles. O plácido mar inchou violentamente e o navio oscilou e corcoveou, golpeado uma ou muitas vezes pelo fogo inimigo, e enquanto alguém gritava, ela ouviu um terrível grunhido acima de sua cabeça.
Voltou-se ergueu o rosto, para deixar escapar um grito.
Fogo! Horatio gritava, e Virginia contemplou como caía lentamente um dos três mastros do navio Americana, esmagando vários artilheiros em seu caminho. Alguns canhões do Desafio dispararam novamente, mas não juntos. Virginia não vacilou. Ergueu as saias do vestido e correu para os homens caídos. Três estavam esmagados pelo mastro, mas vivos; um, entretanto, parecia morto. Ela tentou mover o mastro, mas não conseguiu. Pegou a pistola do marinheiro morto e voltou correndo até a escada que levaria para baixo.
Não podia respirar. Desceu apressadamente e entrou no pequeno camarote que compartilhava com os únicos passageiros do navio mercante, um casal de meia idade. No reduzido e cansativo espaço do camarote, a Senhora Davies se aferrava a sua Bíblia e rezava em silêncio, com a face decomposta pelo terror. Virginia havia divisado o Senhor Davies tentando ajudar os feridos.
Pegou a Senhora Davies pelo braço. — a Senhora se encontra bem? — Perguntou.
A mulher a fitou, apavorada. Não parecia capaz de ouvi-la ou responder.
Os canhões retumbaram novamente e Virginia ouviu o rangido da madeira ao rachar. Haviam atirado novamente e acertado o navio. Saltou a cama estreita e se segurou a uma corda que pendia, para não cair, e fitou o navio atacante pela janela. O Americana oscilava e ela quase caiu da cama.
Como era possível que acontecesse aquilo? Perguntava-se, inquieta e aturdida. Quem atacaria um navio neutro e mal armado?
A Senhora Davies começou a soluçar. Virginia ouviu suas preces e desejou que ela ficasse em silêncio. O que aconteceria? O que o horrível Capitão queria? Pensava em afundar o navio? Mas era absurdo!
Seu olhar se voltou novamente, instintivamente, para a plataforma em que o Capitão permanecia tão imóvel, que parecia uma estátua. Sabia que ele observava o Americana com a intensidade de um falcão. Que tipo de homem podia ser tão desumano, tão cruel? Virginia estremeceu. O oficial Grier havia se referido a ele, como o flagelo dos mares. O flagelo dos Mares.
De repente, no navio havia se formado um silêncio assustador. Virginia acreditava que o Capitão Horatio não se renderia, e ela tampouco, se estivesse no comando do navio. Examinou a pistola para comprovar se estava carregada e pronta para disparar.
— Pai Nosso que está nos céus, — Gemeu de repente a Senhora Davies, — tem piedade de nós!
Virginia não pôde suportar. Voltou-se, segurou-a pelos braços e a sacudiu com força. — Deus não está aqui hoje! — Gritou. — E não vai nos ajudar! Vão nos abordar. Devem ser piratas. Vamos perder a batalha, Senhora Davies. Será melhor que nos escondamos.
A Senhora Davies apertou a Bíblia contra o peito, paralisada pelo medo. Sua boca se movia incontrolavelmente, formando palavras sem emitir nenhum som.
— Venha. — Disse Virginia com mais suavidade. — Vamos nos esconder lá embaixo. — confiava em encontrar algum canto onde se esconder. Puxou da outra mulher. Mas não resolveu. Não se deu por vencida. Com a pistola na mão, ela subiu ao convés principal e observou a aproximação dos primeiros barcos de abordagem. O’Neill estava em pé na proa de um deles, com as pernas afastadas para suportar as sacudidas das ondas do mar. Virginia vacilou. Por que ninguém disparava nele? Se ela tivesse um mosquete, o homem já estaria morto.
Seus dedos coçavam. As palmas de suas mãos começavam a suar. Não sabia que alcance tinha a pistola que carregava, mas estava segura de que não era muito. Mesmo assim, o homem se aproximava cada vez mais. Por que o Capitão Horatio não disparava nele?
Virginia não conseguiu suportar. Correu a amurada e apontou com muito cuidado.
De repente ele voltou à cabeça, como se seu instinto o avisasse do perigo, e a fitou atentamente.
Bom. Pensou Virginia ferozmente, e disparou.
Errou o tiro por pouco, caindo no mar, adiante do barco. Virginia compreendeu que se tivesse esperado um minuto ou mais teria acertado.
O Capitão tinha os olhos cravados nela.
Virginia se voltou, rodeou a escotilha principal e correu para a escada usada pelos marinheiros. Baixou aos tropeços e compreendeu que se encontrava nos mal cheirosos aposentos dos marinheiros. Por um instante lhe surpreendeu o quanto eram horríveis; logo notou outra escotilha ao fundo. Levantou-a e se encontrou entranhando ainda mais ainda sob o mar.
Não gostava de estar sob o oceano. Não podia respirar e começava a sentir pânico, mas procurou refreá-lo e se esforçou para respirar. Não muito longe havia uma porta aberta, além da qual a escuridão era completa. Virginia lamentou não ter tido a precaução de levar uma vela. Avançou com cuidado e se achou em um pequeno armazém cheio de barris e canastras. Abaixou-se. Notou que ainda levava consigo a pistola, agora imprestável, pois no fragor da batalha não havia pensado em procurar pólvora para voltar a usá-la. Não se desfez dela. Enquanto seus olhos se acostumavam à escuridão segurava-a na mão direita.
Logo seus joelhos cederam. Aquele homem a tinha visto lhe disparar. Estava segura disso. Estava segura de que seu rosto havia mostrado perplexidade.
O que aconteceria a seguir?
No momento em que sentiu que o lugar onde se encontrava estava com água e era mais alto, ouviu os primeiros disparos. Revolveu-lhe o estômago. Os piratas haviam abordado o navio. Matariam a tripulação? O que seria dela? Tremula, se deu conta que a água já chegava aos seus tornozelos.
Enrijeceu-se. Os disparos e o ruído de sabres haviam cessado. Acima dela, o convés parecia em silêncio. Santo céu! Já teria terminado a batalha? Os homens teriam tomado o navio americano tão rapidamente? Virginia calculava que no navio Americana havia uma centena de marinheiros. O silêncio mortal se prolongava. Se ele não tivesse lhe avistado talvez pilhasse o navio e voltaria como uma alma, para o diabo em seu covil. Mas o que você faria se tivesse levado um tiro? Será que a mataria? Dizia-se que assassinar uma inocente moça não tinha sentido. De modo que talvez houvesse esperanças. Por sua vez, se alegrou em ser tão magra que freqüentemente a confundiam com uma menina de quatorze anos, que seu rosto fosse tão miúdo e pálido e seu cabelo rebelde. Felizmente, não se parecia com Sarah Lewis.
Ficou paralisada. Acima dela, a direita, ouviu passos. Começou a tremer. Alguém estava atravessando o local onde os marinheiros dormiam como ela tinha feito, para encontrar o esconderijo. Ainda tremula fitou a escotilha pela qual havia entrado. Seus olhos haviam se acostumado à escuridão, mas ela não avistava nada do outro lado, onde se encontrava a escada de mão que dava acesso ao convés superior.
A madeira rangia.
Virginia fechou os olhos. Em seguida compreendeu que alguém estava descendo a escada. Segurou a pistola com mais força, entre as dobras de sua saia. Aquele homem estava descendo a escada de mão. Sabia.
Ao outro lado da escotilha, brilhou a luz de uma vela por um momento.
Ela piscou. O suor nublava sua visão. Distinguiu uma forma branca do outro lado da escotilha. O homem sustentava uma vela e se voltava lentamente enquanto esquadrinhava minuciosamente o lugar. Ela não podia respirar e temia se asfixiar.
Ele atravessou a escotilha.
Virginia não se moveu.
Ele levantou a vela e avistou-a imediatamente. Seus olhares se encontraram.
Virginia não pôde afastar os olhos. Aquele homem era um monstro desumano, responsável por numerosas mortes e ela não estava preparada para encontrá-lo, face a face. Ele possuía o rosto de um deus grego do Olimpo, um rosto afrontosamente belo, de maçãs altas, firmes e penetrantes olhos acinzentados. Mas a face, aquela face de um anjo era lavrada em granito… Era a face de um demônio do mar.
Era bem mais alto do que esperava, sabia que sua cabeça mal lhe chegaria ao peito, de ombros largos e quadris estreitos. Uma calça ensangüentada cobria suas pernas fortalecidas pelos longos dias passados em alto mar. O sangue cobria também sua camisa de linho branco. Usava uma espada embainhada e uma adaga no cinturão, mas ela não viu nenhuma outra arma.
Mordeu o lábio e respirou fundo. Sua respiração soou alta e áspera no pequeno espaço que compartilhavam. Ela não precisava saber nada mais sobre aquele homem, para compreender que era cruel, desumano, indisponível à bondade ou a compaixão.
Ele rompeu o tenso silêncio.
— Venha aqui.
Ela permaneceu junto a umas cestas empilhadas. Ignorava se podia obedecer, embora quisesse. Não sabia se podia se movimentar. Finalmente entendia o medo paralisante da Senhora Davies.
— Não vou fazer lhe mal. Saia daí.
Seu tom era autoritário. Virginia intuiu que ninguém nunca o desobedecia. Continuou fitando os olhos frios como se estivesse hipnotizada. Ele parecia zangado. Virginia notou de repente, porque ele estava examinando de cima a baixo, sua boca, seu cabelo, seu estreito talhe e suas saias molhadas. Os olhos foram mudando para uma cor cinza tormentosa, seu queixo se flexionava e suas têmporas vibravam visivelmente. Saltava aos olhos que ele não se agradava do que via.
Ela respirou fundo tentando se encher de coragem. Segurava a pistola atrás das costas, entre as dobras de sua saia azul marinho. Umedeceu os lábios.
— O que… O que quer?
— Quero que venha aqui. Nunca dou uma ordem duas vezes e esta já é a terceira. — A impaciência afiava sua voz.
Virginia se deu conta que não tinha escolha.
— O que vai fazer comigo? — Perguntou com voz rouca.
— Vou levá-la ao meu navio. — Ele respondeu pronto e sinceramente.
Ele iria abusar dela… Violá-la. Virginia tentou deixar de tremer, mas não conseguiu. — Você acaba de atacar um navio inocente, conseguiu dizer com aspereza, mas eu sou uma moça indefesa e lhe suplico piedade.
A boca dele se curvou em um sorriso ao mesmo tempo divertido e cruel.
— Não sofrerá nenhum mal. — Ele disse.
Ela se sobressaltou.
— O que?
— Decepcionada? — Ele perguntou.
Ela o fitou atentamente, perplexa, e tentou decidir se devia acreditá-lo ou não. Logo se deu conta de que não podia confiar nele.
— Não vou ao seu navio por vontade própria. — Ouviu-se dizer.
Os olhos dele aumentaram, cheios de surpresa.
— Como disse?
Ela tentou retroceder, mas não havia lugar aonde ir, e as caixas de madeira empurravam suas costas e a mão que segurava a pistola.
Bruscamente, ele começou a rir. Sua risada era áspera, como se lhe custasse. — Atreve-se a me desobedecer? A mim, o Capitão deste navio?
— Você não é… — Ela começou a dizer, mas mordeu o lábio com força. Cale-se. Pensou.
O sorriso dele era duro e seus olhos mais frios que um bloco de gelo. — Lamento dizer o contrário. Sou o Capitão do navio, já que tomei o Americana e sua tripulação se rendeu. — Ele começou a andar em sua direção. — Além disso, não tenho paciência. Temos um excelente vento do nordeste. — Disse, como se o fato explicasse tudo.
Virginia não se moveu. Pensava golpeá-lo com a pistola na cabeça, quando se aproximasse. Mas era tão alto que não conseguiria. Fitou o meio de suas pernas e decidiu golpeá-lo.
O local era tão reduzido que em dois passos ele diminuiu a distância que os separava. O coração de Virginia pulsava tão depressa que lhe doía. Ela ficou rígida ao notar que ele alongava o braço e que sua mão se fechava sobre seu braço. Então lançou a pistola nele.
Ele possuía os reflexos de uma besta selvagem. Saltou para o lado e a culatra da pistola roçou sua coxa, dura como uma rocha, e ricocheteou. Apertou com mais força o braço dela, que gritou.
— Isso foi muito impróprio para uma dama, Mademoiselle.
As lágrimas imediatamente toldaram os olhos de Virginia.
— Mas, o que podia esperar de uma harpia que tentou disparar em mim? — Ele acrescentou.
Ela piscou e fitou seus olhos pálidos e opacos. Então ele sabia. Diziam que os olhos eram o espelho da alma. Se assim fosse aquele homem não tinha alma.
— O que vai fazer comigo? — Murmurou com voz áspera.
— Já lhe disse. Será conduzida ao meu navio. — Ele pegou a pistola e a jogou de um lado. Logo lhe indicou a escada de mão, sem soltá-la.
Virginia não se moveu.
— Por quê? Não sou bonita.
Ele se sobressaltou. Logo, seus olhos se entreabriram como se afinal compreendesse o que ela dizia.
— Por quê? Porque será você minha convidada, Senhorita Hughes.
Ela ficou boquiaberta para ouvir seu nome. O temor se apoderou dela. Um instante depois, seu agudo engenho a salvou. Sem dúvida aquele homem conhecia seu nome, por quer o Capitão ou a tripulação do navio havia dito.
— Sua convidada? Ou sua vítima? — Sussurrou.
— Santo Deus! Você é muito desafiante para ser tão pouca coisa! — Ele a empurrou e Virginia não teve outra opção que mover os pés, um passo após outro. Suas saias molhadas se enrolaram e lhe custou manter o equilíbrio. — Consegue subir a escada ou tenho que carregá-la em meu ombro? — Ele perguntou.
Ela não tinha intenção de deixar se subjugar. Mesmo assim, se ouviu dizer: — Capitão... Senhor, eu estou a caminho de Londres. O assunto que me leva até lá é extremamente urgente. Você deve me permitir continuar.
Ele baixou os braços na intenção de levantá-la. Saltava aos olhos que ele havia perdido a paciência.
Virginia se voltou bruscamente, segurou a escada de mão, recolheu a saia e começou a subir. Mas não ouviu movimento atrás de si e de repente lhe ocorreu uma idéia espantosa. Quando estava quase encima, se deteve e olhou para baixo.
Ele estava observando suas panturrilhas e seus tornozelos, que a calçola deixava a descoberto. Havia em seus olhos um tom estranho. Assustada, ela sentiu que seu coração falhava uma batida.
Ele elevou o olhar.
— Fazia anos que não via uma mulher com esse tipo de vestimenta.
Ela ruborizou e recordou de repente um comentário cruel de Sarah Lewis, quando estava no colégio, em Richmond: Sinto ser que eu a dizer, mas essas coisas já não se usam mais. Suas bochechas avermelharam ainda mais. Deu-se conta que ele tinha começado a subir a escada de mão. Saiu rapidamente pela escotilha, para onde dormia a tripulação do navio.
Sentiu náuseas enquanto atravessava apressadamente o lugar. Era agudamente consciente da presença de seu captor, que a seguia bem de perto, sem lhe deixar chance de fuga. Mas teria que fugir. E logo, verdade? Fugir ou ser reduzida a daquele homem.
Chegaram ante outra escada de mão. Virginia não queria subir primeiro. O pirata a empurrou ligeiramente.
— Suba, Senhorita Hughes.
Ela se atreveu a confrontá-lo.
— Está claro que não é um cavalheiro, Senhor. Mas procure não me olhar.
Uma expressão de incredulidade atravessou o semblante dele, seguida por outra de regozijo e, por um instante Virginia temeu que ele começasse a rir.
— Não me interessam seus encantos, Senhorita Hughes.
— Me alegro. — Replicou ela, encorajada de repente. — Então, me deixe neste navio e permita-me continuar minha viagem enquanto viola outra.
Ele observou-a por um momento.
— Eu lhe disse que seria minha convidada.
— E tenho que acreditar em um assassino?
Ele endureceu a mandíbula.
— Pode acreditar no que quiser, mas não tenho costume de violar minhas convidadas. Francamente, não tenho costume de violar ninguém. Suba a escada.
— Então, a que vem tudo isto? — Ela perguntou confusa.
— Começo a me cansar de sua insolência, Senhorita Hughes.
Virginia compreendeu que aquilo, pelo menos era certo. Recolheu a saia e subiu pela escada, e desta vez se assegurou de não olhar para baixo.
Fora, as nuvens começavam a cobrir o céu azul e o aroma da morte estava por toda parte. Virginia se sentiu doente ao ver cinco cadáveres de marinheiros americanos dispostos pulcramente em uma fileira. Era evidente que seriam jogados no mar. Um deles era o querido Capitão Horatio. Virginia procurou conter as lágrimas. O homem havia sido muito bom com ela. De certo modo recordava a seu pai.
Outros membros da tripulação estavam amarrados. Virginia viu os Davies, que se abraçavam um ao outro. Voltou bruscamente, encolerizada.
— O que vai fazer com o Senhor e a Senhora Davies? Eles também vão ser seus convidados? — Seu tom estava carregado de sarcasmo e repugnância.
— Não. — Ele sequer a olhava. — Mac! Gus!
Adiantou-se um marinheiro ruivo armado com duas pistolas, duas adagas e uma espada seguido por um jovem magro e loiro, também fortemente armado. Ambos estavam manchados de sangue que não era deles.
— Capitão? — Perguntou rapidamente o ruivo.
— Leve a Senhorita Hughes ao Desafio, Gus. Faça com que suas malas a acompanhem. E ordene que ninguém se dirija, olhe ou toque nela, de forma alguma. É minha propriedade e no que se refere à tripulação é como se não existisse. Está claro?
Mac assentiu. — Sim, Senhor.
Gus concordou também, muito sério. Nenhum deles fitou Virginia, sequer uma vez. Ela estava boquiaberta, assombrada. Propriedade pessoal?
— Acreditei que era uma convidada! — Exclamou.
O Capitão não lhe fez conta e Mac e Gus o imitaram.
— Você capitaneará o navio, Mac. — Disse o pirata de cabelo dourado. — Dirija-se a Portsmouth. O agente do governo entregará lá nosso saque. Drogo, Gardener e Smith ficarão a bordo contigo. — Escolheu outros dez mais. — Eu os seguirei. — Disse ele.
Mac piscou.
— Vai conosco a Portsmouth?
Devlin lhe deu uma palmada no ombro.
— Nossos planos mudaram. — Disse com firmeza. — Voltarão a se unir ao Desafio, em Portsmouth.
— Sim, Senhor.
Virginia, que escutava atentamente e não perdia detalhe, sentiu que seu coração bateu forte tombo. Por que ele havia mudado seus planos? Rezava para que não tivesse nada a ver com ela. O que aquele homem pensava fazer com ela? Passou-lhe pela cabeça que estava bem vestida, para que ocorresse ao pirata pedir um resgate por ela. Embora, por outro lado, era a Senhora Davies que usava um colar de pérolas, anéis de diamantes e roupas luxuosas.
O pirata disse: — Senhor e Senhora Davies, sugiro que desçam ao camarote. Devemos nos pôr a caminho imediatamente. Permitirei que desembarquem em Portsmouth.
Aterrorizados, os Davies passaram apressadamente junto ao pirata e desapareceram no convés inferior. O pirata começou a se afastar.
— Capitão O’Neill... Senhor… — Gus se apressou a ir atrás dele. O’Neill não se deteve.
— Pode se dirigir à Senhorita Hughes, com o único propósito de encontrar suas malas e escoltá-la ao meu camarote, Gus. — Ele não fitou Virginia nenhuma só vez. Pulou à parte mais alta da plataforma onde seus canhões haviam causado grandes danos no mastro central e nas velas. Vários piratas pareciam se dispor a reparar os equipamentos do navio.
— Amarrem o mastro principal. — Ele ordenou. — Há boa lona lá embaixo. Troquem a vela de staysail. O resto pode ser remendado. Que todo mundo trabalhe. Têm uma hora. Logo, zarparemos. Não quero perder o vento.
Virginia fitou atentamente a figura alta e arrogante, até que se deu conta de que alguém estava falando com ela.
— Senhorita Hughes, por aqui, por favor. Senhorita Hughes.
Virginia se voltou e fitou o homem loiro que parecia mais jovem que ela. Ela estava com o rosto enrubescido e não levantou os olhos para ela. Levava a sério as ordens de seu Capitão.
— Aonde vamos?
Sem deixar de olhar além de seu ombro, ele respondeu: — Ao Desafio. Onde estão suas malas?
— Embaixo, no camarote. — Disse ela, embora sua bagagem importasse muito pouco.
Gus se voltou, chamou o outro jovem marinheiro e desceu em busca de sua bagagem. Virginia tirou o chapéu junto à amurada, onde um bote balançado nas ondas a esperava. Vacilou, cheia de desespero. O Capitão havia dito que não lhe faria mal. Ela não acreditava. Seria uma estupidez acreditar. Desdenhou a idéia de que talvez quisesse pedir resgate por ela, já que O’Neill não tinha sequer prestado atenção nos Davies. O que pretendia o homem? O que podia querer?
O oceano Atlântico era cinza prateado, muito mais escuro que os olhos de O’Neill e parecia imensamente aterrador. Um passo em falso e ela desapareceria em suas profundezas geladas. Por sua mente atravessou a idéia de que outra mulher saltaria na água procurando a morte, para se salvar dos abusos que possivelmente a esperavam.
Ela se segurou no corrimão com força. Não sentia desejo de morrer e só uma tola escolheria o suicídio, à vida… A qualquer tipo de vida.
— Nem pense... — Disse ele aterrissando como um gato ao seu lado.
Virginia se sobressaltou e fitou os olhos cinza e brilhantes.
Ele lhe devolveu o olhar. Parecia muito zangado. Virginia pensou que não devia se esquecer que aquele homem tinha os sentidos muito afiados, que nada passava por alto com ele. Parecia que tinha os olhos na nuca. Com voz baixa e perversa, quase tão furiosa como a dele, retrucou: — Se eu quiser saltar chegará o momento em que não poderá me impedir.
Ele sorriu.
— Isso é um desafiou ou uma ameaça?
Ela respirou fundo, incomodada por seu olhar, por seu tom de voz e por suas palavras. Então ocorreu algo estranho. Ele estava perto; era alto, viril e autoritário. Virginia compreendeu que ele não permitiria que ela morresse. O fato quase a deixou em fôlego e lhe causou um intenso tremor. Afastou-se imediatamente dele, perturbada e confusa.
— Leve-a ao Desafio. E se acontecer dela sequer olhar para o mar lhe enfaixe os olhos. — Ele disse a Gus.
Virginia o fitou atentamente. Ele lhe sustentou o olhar. Nesse momento, ela compreendeu que perderia qualquer batalha que investisse com aquele homem.
Braços masculinos a carregaram sobre umas costas fortes e duras. Ela deixou escapar um grito, mas era muito tarde. Gus estava descendo a escada de corda que levava ao bote e a segurava como se fosse um fardo cheio de ouro. De cabeça para baixo, Seus olhos se encontraram com os do pirata. Custava enxergar com claridade naquela postura humilhante, mas juraria que ele a observava severamente com o cenho franzido.
Mas, quando se encontrou novamente em posição normal e já sentada no bote, ele havia desaparecido.

 

 

 

 

 


Capítulo 4

 

Do convés do navio Americana o mar parecia bastante plácido. No momento em que o bote foi desamarrado, a pequena embarcação começou a oscilar bruscamente sobre as ondas, enquanto dois marinheiros remavam para o Desafio. Virginia se segurou no barco. Os respingos das ondas lhe molhavam. Um minuto antes, o Desafio parecia muito perto. De repente parecia estar à grande distancia.
Uma onda enorme levantou o barco de remos para o céu. Virginia mordeu o lábio para não chorar. Logo foram lançados ao mar a uma velocidade vertiginosa. Mas não chegaram a submergir. Outra onda espumosa voltou a levantá-los. Virginia não havia comido nada desde manhã, mas notou que corria o risco de vomitar. Conseguiu afastar o olhar da violência do oceano e viu que nenhum dos marinheiros parecia preocupado. Tentou respirar com mais naturalidade, mas foi impossível. Então seu olhar se encontrou com o de Gus.
Ele desviou os olhos imediatamente para o navio, com as bochechas avermelhadas.
Que tolice, ela pensou com aborrecimento, proibir os homens que a fitassem.
— Gus! Como vamos desembarcar? — Gritou-lhe. Tentar desembarcar com as ondas como estavam parecia um suicídio.
Outra onda enorme a ensopou por completo. Gus agia como se não tivesse lhe ouvido. O mar estava muito bravio, entretanto, e Virginia repetiu sua pergunta a plenos pulmões. O moço quadrou os ombros e recusou a respondê-la. Finalmente alcançaram o outro navio. Um marinheiro lhes jogou alguns cabos e fizeram descer uma passarela junto ao navio, o qual respondeu à pergunta de Virginia. Ela estava desejando abandonar a frágil embarcação.
Os marinheiros do navio a observavam com interesse. Seus olhares grosseiros lhe causaram uma feroz satisfação. Mas Gus os repreendeu com aspereza:
— Ela é do Capitão. Ninguém pode falar com ela ou mesmo olhar para ela. Ordens do Capitão.
Quatro olhares luxuriosos se desviaram.
Enquanto Gus a ajudava a subir à passarela, Virginia pensava maravilhada, na autoridade que O’Neill exercia sobre seus homens. Como conseguia incitar neles submissão tão instantânea e tal obediência? Sem dúvida era um Capitão cruel e agressivo.
— Por aqui. — Disse Gus sem fitá-la. Ele havia lhe soltado seu braço, agora que estavam no espaçoso convés principal da fragata, onde o balanço do mar era pouco percebido, inclusive mais que no navio Americana.
Virginia começou a se sentir doente. Passeou o olhar pelo enorme navio pirata e desejou poder conhecer seu destino. Foi conduzida através do convés, onde obviamente já havia se difundido as ordens do Capitão, pois todos a evitavam cuidadosamente. Um momento depois estava em um pequeno camarote com sua única mala. A porta se fechou atrás dela.
Virginia abraçou. Havia acontecido. Era a prisioneira do Capitão pirata, em cujo camarote se encontrava. Estremeceu consciente de que era por causa do frio, pois estava molhada dos pés à cabeça. Piscou forte e percorreu com o olhar seu novo destino. O camarote era quatro vezes maior que o que havia compartilhado com os Davies. Estava luxuosamente mobiliado. Depois da porta havia uma cama baixa de mogno, com quatro colunas, atarraxada ao assoalho e coberta com colchas de seda com estampas de cor vermelha e negra, com rendas douradas. Sobre a cabeceira se amontoavam várias almofadas de veludo vermelho, com bordados dourados, que pareciam orientais. Na parede sobre a cama havia duas pequenas estantes, e dois tapetes persas de cor vermelha cobriam o piso. Uma mesa repleta de livros, mapas e cartas marítimas ocupava um canto do camarote.
Havia também uma mesa pequena e delicada, rodeada por quatro cadeiras altas e de elegante tapeçaria. Um biombo chinês de cor negra, tachado de madrepérola, se erguia contra a parede do outro lado. Na parede parecia ter um armário embutido. Naquele lado do aposento havia também uma banheira de porcelana.
Virginia fez uma careta. Sentia-se terrivelmente intranqüila. Odiava estar nos aposentos de O’Neill, rodeada por seus objetos pessoais, e lhe incomodava muito que aquele aposento fosse bem mais luxuoso que os de sua própria casa. Aproximou-se da cama e se perguntou intrigada, onde dormiria. Sobre uma prateleira havia alguns objetos dobrados. Pareceu-lhe distinguir meias e calções. Havia também um espelho, uma navalha, um grosso pincel de barbear, uma escova de dente e uma terrina de porcelana gravada com ouro. Havia também várias velas em candelabros de prata.
O desalento se juntou ao desassossego.
Na estante acima havia numerosos livros. Seria seu captor um homem culto? Ele mostrava um forte sotaque irlandês, mas possuía também ares de aristocrata. De fato, não se assemelhava absolutamente à imagem que ela tinha de um pirata; não era desdentado e nem sujo, nem cheirava mal. De repente se lembrou que, além disso, ele estava perfeitamente barbeado.
Não podia suportar. O camarote, cheio de sua presença, ameaçava asfixiá-la. Aproximou-se da porta e tentou abri-la esperando encontrá-la fechada. Para sua surpresa, a mesma se abriu imediatamente.
Olhou para fora e notou que no navio Americana os preparativos para zarpar quase estavam concluídos. Estavam desdobrando uma nova vela maior, o qual só podia significar que o navio partiria muito em breve. Oxalá pudesse voltar a bordo, ela pensou.
Saiu do camarote. Estava entardecendo e levantava uma brisa veloz que a gelou ainda mais. Estremeceu, se protegeu com a mão e observou o navio Americana. Já não havia nenhum bote amarrado ao flanco do navio, embora se lhe tivesse ocorrido algum modo de voltar para o outro navio, já era muito tarde. Os navios começavam a se afastar um do outro.
Virginia fitou ao seu redor precavidamente. Alguns marinheiros subiam nos mastros, desdobrando algumas velas e arriando outras, enquanto outros içavam uma âncora imensa. Ninguém parecia ter se precavido de sua presença.
Ela vacilou. Logo o notou na fortaleza e ficou imóvel. Ele estava dando ordens. O forte vento agitava as mechas de seu cabelo, que apesar de presos se espalhavam por seu peito e sua camisa larga e ainda ensangüentada, que definia cada proeminência e cada plano de sua musculatura. Sua presença era imponente. Muito, para ser um granjeiro convertido em pirata. Aquele homem era um aristocrata, pensou Virginia imediatamente. Um aristocrata que caíra em tempos difíceis.
Ele a fitou atento, mesmo a grande distancia.
Virginia mal conseguiu respirar.
Um momento depois, ele lhe deu as costas. O Desafio saltou de repente, como um cavalo na porta de saída de uma pista de corridas. Virginia se viu impulsionada para trás e golpeou contra a parede exterior do camarote.
Gus apareceu a seu lado.
— O Capitão ordena que você permaneça embaixo, Senhorita Hughes. — Disse ele, evitando olhar para ela.
— Então, por que não fecha a porta? — Ela perguntou com aspereza.
— Entre, Senhorita Hughes. Por favor. São ordens do Capitão. — Ele insistiu novamente, ruborizado.
— Gus! — Ela o segurou pela mão. — Não me imposta o que ele ordene. Não é meu Capitão!
Gus piscou e por um momento fitou-a com estupor.
Ela sentiu um leve arrebatamento de euforia.
— Por favor, me observe quando se dirigir a mim. Não sou uma porta. Nem um poste.
Ele ruborizou e afastou o olhar.
— Ordens do Capitão, Senhorita.
— Maldito seja seu Capitão, esse assassino! Que se vá para o inferno, que é onde sem dúvida acabará um dia não muito longe. — Ela exclamou.
Gus se atreveu a erguer os olhos para ela outra vez. — Aproxima-se uma tempestade. Por favor, entre ou terei que levá-la à força.
Virginia proferiu um impropério pouco próprio de uma dama e entrou feita uma fúria no camarote, fechando a porta de repente atrás dela. Esperava ouvir o Gus fechá-la com cadeado, mas não ouviu nada. Estava no meio do oceano Atlântico e não havia nenhum lugar aonde pudesse ir.
Fugiria em Portsmouth.
Virginia se deixou cair em uma das cadeiras. De repente se sentia cheia de excitação. Estavam a um dia de Portsmouth, se não tinha entendido errado. Sem dúvida poderia manter o libidinoso Capitão a raia, um dia inteiro… E enquanto isso lhe ocorreria algum plano.
Portsmouth era na Inglaterra. Encontraria algum modo de viajar de lá para Londres, onde sem dúvida seu tio estava lhe esperando.
A esperança se apoderou dela. E com ela, o alívio.
Finalmente confrontou o fato de que não tinha nada a fazer, exceto traçar os planos. Mas estava ficando gelada e fitou sua mala. Temia se trocar. Dava-lhe medo pensar que o Capitão pudesse surpreendê-la meio nua. Esfregou as mãos e decidiu se concentrar em idear sua fuga.
Minutos depois seus pensamentos se tornaram mais lentos e difusos e seus olhos começaram a lhe pesar, se negando a permanecerem abertos. Finalmente apoiou a cabeça sobre os braços e adormeceu.


— Senhor, ela se acomodou. — Disse Gus.
Devlin o deixava dirigir o leme, mas permanecia ao seu lado cuidando as nuvens, que atravessavam veloz o céu, e a luz cada vez mais cinzenta. Notava claramente a súbita descida da temperatura. Estava se for4mando uma tormenta e seu instinto, afinado por onze anos no mar, dizia-lhe que seria temerosa.
Ainda havia tempo, entretanto, antes que se vissem obrigados a arriar as velas. Confiava em deixá-la para trás, embora o fato o fizesse desviar seu rumo.
E a garota estava em seu camarote. Enormes olhos violetas, indignados e furiosos assaltavam sua imaginação. Olhos que estavam engastados em uma face miúda e de finos traços. Devlin desdenhou as imagens inoportunas e fitou Gus, que havia se ruborizado.
— Ela lhe tem feito passar uns maus bocados, não? — Não podia evitar que o mal-estar de Gus lhe provocasse riso.
Gus titubeou. — É muito valente para ser tão pouca coisa, Senhor.
Devlin se afastou com um suspiro. Valente? Valente era pouco. Os grandes olhos violetas não deixavam de inquietá-lo desde que tivera a má sorte de finalmente encontrar à sobrinha americana do Conde de Eastleigh. Ignorava se seus acessos de fúria lhe divertiam ou se o enfurecia sua falta de respeito e subordinação. A moça era miúda como uma menina de treze anos, mas ele sabia julgar um caráter e se sentiu que ela possuía a coragem de dez homens adultos. Em todo caso, não lhe importava. A jovem era uma refém e um meio para conseguir um fim.
Esperava encontrar uma Senhorita refinada e presunçosa, uma mulher adulta e mundana como Elizabeth. Não esperava um demônio do tamanho de uma pinta de cerveja que tentaria assassiná-lo com um tiro e logo se atreve a atacá-lo com a culatra de uma pistola.
Não tinha graça. Devlin se aproximou de um lado do castelo e aproximou a luneta dos olhos. Uma sensação intensa bulia em suas vísceras, perigosa e ardente. O vírus de um desejo imenso e terrível.
Sua boca se enrijeceu sem alegria ao olhar através da luneta. A sobrinha de Eastleigh era uma tremenda tentação. A sede de sangue que ardia dentro dele parecia bem mais intensa que qualquer desejo que já tivesse experimentado antes, possivelmente porque a garota era só isso, mais menina que uma mulher, e o ato parecia ainda mais desumano e brutal. Sabia que intensificaria a euforia de sua vingança. Mas não havia mentido ao dizer que não tinha costume de violar ninguém, como seus homens não possuíam. O abuso não era permitido. Ele era um homem, não um monstro. De fato, sua mãe, seu pai e seu meio-irmão o educaram para ser um cavalheiro. E acreditava que quando em alguma estranha ocasião assistia um baile ou a uma cerimônia de estado, o consideravam precisamente isso. Mas não era. Nenhum cavalheiro podia triunfar em alto mar, nem em tempo de paz ou de guerra. Nenhum cavalheiro poderia adquirir uma autêntica fortuna capturando um navio atrás de outro. Sua tripulação jamais obedeceria a um cavalheiro. Mesmo assim, desonrar uma virgem de dezoito anos era simplesmente descartado, embora a curiosidade o movesse a pensar no fato.
Baixou a luneta. A reputação da garota ficaria seriamente danificada quando finalmente a entregasse a Eastleigh. Não se importava. Por que importaria? A jovem não significava nada para ele. E, se chegasse a descobrir que Eastleigh possuía algum afeto por ela, lhe agradaria ainda mais danificar sua reputação. Quanto à sua tudo era muito simples. Trazia-lhe e sempre sem cuidado.
Durante a maior parte de sua vida havia sido motivo de falatórios. Quando pequeno, antes do assassinato de seu pai, seus vizinhos eram acostumados a murmurar entre a piedade e o respeito, que ele algum dia deveria ter sido o chefe do clã dos O’Neill. Logo cochichavam a respeito da precária situação de sua família… Ou a respeito dos namoricos de seu pai. Gerald havia sido um bom marido, mas como muitos homens, não tinha sido fiel a sua esposa. E os falatórios não haviam cessado com sua morte. Depois houve mais rumores e mais observações. A maioria delas, desagradáveis e acusatórias. As pessoas comentavam a respeito da conversão de sua família ao protestantismo, sobre o amor de sua mãe por seu novo marido, e depois, inclusive a respeito da verdadeira paternidade de Devlin. Ele havia ignorado todas as intrigas, com os ombros eretos e as bochechas vermelhas.
Agora, os falatórios eram difundidos entre os Senhor es e as damas da alta sociedade. Pessoas que se inclinavam ante ele com a maior deferência e, em que pese tudo, os rumores mal haviam mudado. Cara a cara diziam que ele era um herói e as suas costas pontuavam-no de canalha, libertino e pirata, e enquanto exibiam suas lindas e ricas filhas casadoiras ante ele, nas festas em que o convidavam.
Tampouco importava sua carreira na Marinha. Sua profissão havia sido muito útil, mas tinha para ela sentimentos encontrados. Sua vida eram o vento e o mar, seu navio e sua tripulação. Disso, não havia dúvida. Se sua carreira militar acabasse prematuramente, seguiria sulcando os mares, só que de forma diferente. Não sentia lealdade alguma e nem amor por seus patrões britânicos, mas era um patriota. Faria tudo por seu país, a Irlanda.
Era consciente de que havia descumprido as ordens que havia recebido. Na verdade não só as descumprido-as, como também violado de maneira flagrante. Mas o Almirantado precisava dele, mais que queria sua cabeça; além disso, se ocuparia de que seu novo confronto com Eastleigh se desenvolvesse discretamente e com aparências de venerabilidade. Eastleigh não tinha desejo algum de provocar um escândalo, e Devlin sabia que ele procuraria evitar que o seqüestro e resgate de sua sobrinha se tornassem público. Tinha intenção de concluir o assunto o quanto antes possível, depois de brincar um pouco com Eastleigh.
Devlin sorriu para o céu escurecido.


Virginia ignorava quanto tempo havia passado ou quanto tempo ele estava ali parado, em meio à penumbra, observando-a dormir. Despertou de repente e, ao elevar a cabeça, o avistou. Deixou escapar um gemido de surpresa e se ergueu. Ele a observava com um estranho brilho no olhar. Devlin não se moveu. Permanecia em frente à porta fechada, como se acabasse de entrar no camarote.
Virginia se levantou rapidamente. Sua roupa seguia molhada. Compreendeu que tinha adormecido por pouco tempo.
— Quanto tempo faz que está aí? — Perguntou.
O olhar dele deslizou de seus olhos aos seus seios. Voltou para seus olhos e a seguir ele atravessou o camarote, passando ao seu lado.
— Não muito. — Ele respondeu em tom frio e indiferente.
Virginia se abraçou, ruborizando. Ele havia observado seus seios com lascívia? Ela mal tinha seios? O camarote era muito pequeno para os dois.
— Acreditei que este camarote seria meu agora.
Ele estava abrindo a porta do armário. Voltou-se para ela, com expressão inescrutável.
— E é.
— Então deveria ir.
Ele se voltou para observá-la de frente.
— Alguém alguma lhe disse que tem língua de harpia?
— E você é um grosseiro. Este camarote é muito pequeno para nós dois e… — Ela titubeou e finalmente fitou a camisa molhada e ensangüentada de O’Neill, que mostrava os interessantes ângulos de seu peito. —Você cheira você mal.
— Para sua informação, este é meu camarote e está aqui como convidada minha, Senhorita Hughes. Não mudou sua roupa. Por quê?
Ela piscou. A repentina mudança de assunto e pegava de surpresa. — Não desejo me trocar. — Respondeu com desconfiança.
— Gosta de parecer um gato afogado? — As sobrancelhas escuras se elevaram. — Ou acaso gosta de passar frio?
— Obrigado pela adulação… E pelo sarcasmo.
Ele suspirou.
— Pegará uma pneumonia se não se mudar essa roupa, Senhorita Hughes. E não tenho intenção de deixá-la morrer.
Ela aproveitou a ocasião para perguntar:
— E quais são suas intenções?
A expressão de Devlin mudou; de repente ele parecia visivelmente irritado. Voltou-se parcialmente e, antes que ela pudesse dizer alguma coisa tirou a camisa ensangüentada pela cabeça e a deixou cair no chão. Ela retrocedeu até se chocar com a porta.
— Pelo amor de Deus, o que está fazendo? — Exclamou, com o olhar fixo na costa larga e nua e no vislumbre de seu peito, igualmente largo e duro como uma rocha.
Fitou mais abaixo. Seu abdômen era plano e tenso, marcado por linhas interessantes. Logo começava a ondular. Virginia afastou rapidamente o olhar, mas suas bochechas se avermelharam.
— Sou o bastante sensato para trocar de roupa. — Replicou ele tranqüilamente.
Virginia encontrou olhos cinza e claros e compreendeu que não deveria ter lhe examinado. O desânimo se apoderou dela. A face de um deus, com o corpo de um guerreiro. Tinha visto alguns homens sem camisa em Sweet Briar, mas por algum motivo, ver Frank com o peito nu nunca a tinha incomodado daquela forma.
— O camarote é muito pequeno para os dois. — Se repetiu consciente de que seu coração havia acelerado.
Ele estava com uma camisa limpa nas mãos, mas não se moveu. Virginia deixou de tremer repentinamente quando seus olhares se encontraram. De repente fazia muito calor no camarote. Parecia faltar o ar. Ele tinha o rosto crispado.
— Está me observando novamente.
Ela afastou os olhos.
— Poderia ter me dito para sair. — Ela conseguiu dizer, com o olhar fixo no chão.
— Não imaginava que o peito de um homem pudesse ser tão fascinante para você. — Ele respondeu com aspereza.
Ela levantou o olhar bruscamente. Ele estava de costas, já coberto com a fina cambraia branca. Tirou uma bota e depois a outra. Quando ele chegou ao armário, Virginia vislumbrou um brilho dourado. Depois, uma calça limpa de cor creme apareceu nas mãos de O’Neill.
Ela não disse nada. Voltou-se disposta a sair do aposento.
Ele atravessou o camarote em um instante e colocou a mão sobre a porta, impedindo-a que a abrisse.
— Não pode sair assim.
Seu braço estava por cima do ombro de Virginia e ela notava a proximidade do corpo atrás dela. Não podia se voltar porque, se o fizesse se encontraria em seus braços.
— Não vou assistir como se despe. — Ela disse e seu tom de voz soou estranho e áspero.
— Não peço que olhe, Senhorita Hughes. Desculpe-me. Esqueci o quanto uma mulher de dezoito anos é inocente.
Virginia ficou paralisada. De repente, ele estava representando o papel de um cavalheiro? A incredulidade batalhava em uma enorme confusão. Naquele momento infindável tomou ciência do calor que irradiava do corpo de O’Neill, de que só alguns centímetros os separavam. Ele baixou bruscamente a mão e retrocedeu.
Virginia se voltou lentamente.
Ele ainda estava com a calça limpa na mão. Rompeu o silêncio. Disse com voz suave: — Olhe para outro lado. Acabarei em seguida e poderá mudar de vestido.
— Prefiro sair… — Ela começou a dizer.
— Santo céu, mulher! Tem que contradizer cada palavra que digo? Esse vestido é indecente. — Deslizou o olhar sobre seus seios e os afastou, desabotoando a calça ao mesmo tempo.
Virginia demorou um momento para compreender suas palavras. Baixou os olhos e ficou atônita. A seda molhada do vestido e a camisa se moldavam aos seus pequenos seios, que o espartilho realçava e definia os mamilos eretos com toda claridade. O efeito era tão revelador que ninguém poderia ter dúvida sobre o tamanho e a forma dos mesmos. Ele havia lhe cuidado, com razão. Parecia estar nua. Sentiu-se envergonhada. Ouviu um sussurro de tecido e vislumbrou mais do que deveria, os glúteos duros, panturrilhas e coxas musculosas. Voltou-se. De frente para a porta, respirou trabalhosamente contra a madeira. De repente sentia vontade de chorar.
Havia sido muito valente durante um tempo que parecia interminável, mas sua coragem começava a fraquejar. Tinha que chegar a Londres. Devia suplicar ao seu tio que se compadecesse dela e pagasse suas dívidas. Mas estava a bordo de um navio pirata, no camarote de um pirata que em algum momento falava como um aristocrata. Um pirata que irradiava uma virilidade tão sedutora que pela primeira vez em sua vida, ela tinha consciência do próprio corpo, como nunca tivera antes. Como tinha acontecido? Como?
Ele era seu inimigo. Interpunha-se entre ela e Sweet Briar. Odiava-o apaixonadamente… E não devia achar nada de interessante ou cativante nele. Nada que avivasse sua curiosidade.
— Esperarei lá fora. — Disse ele. De repente ele se encontrava outra vez atrás dela.
Virginia conteve as lágrimas, assentiu e se afastou sem se atrever a fitá-lo. Notou que ele vacilava e a observava atentamente. Ela se aproximou de sua mala e começou a procurar roupa limpa com muito empenho, enquanto rezava para que ele não tivesse visto uma só lágrima. Finalmente ouviu fechar a porta.
Deixou-se cair no chão junto a sua mala e chorou.


O vento soprava com força atrás deles. Devlin tinha pegado o leme, como se desse modo todo pudesse conseguir enfrentá-lo. Segurava-o com a tranqüilidade de quem poderia governar um navio gigantesco com os olhos fechados, se concentrado na tarefa que tinha nas mãos. Deixar para trás a tempestade que os perseguia.
— Conseguiremos? — Perguntou uma voz baixa atrás dele, ao tempo que olhos violetas invadiam sua lembrança.
Devlin relaxou aliviado pela interrupção. Fitou o cirurgião do navio, um homem baixo e robusto, com grandes costeletas e cabelo grisalho e encaracolado.
— Há cinqüenta por cento de possibilidade. — Respondeu. — Saberei dentro de quinze minutos.
Jack Harvey cruzou os braços sobre o peito e levantou o olhar para o céu negro e sem estrelas.
— O que é isso de pegar reféns, Devlin?
Devlin fitou o horizonte acinzentado.
— Acho que uma de minhas loucuras.
— Quem é ela?
— Importa?
— Eu a vi por um momento a bordo do navio Americana. É muito jovem. Cheiro a resgate. Não sei por que. Nunca antes tinha pedido resgate por uma mulher.
— Sempre há uma primeira vez para tudo. — Replicou Devlin, que não tinha intenção de dizer nada ao bom doutor. Absolutamente, nada. — Como estão os feridos?
— Brinkley está morrendo, mas lhe dei láudano e não sabe. Buehler e Swenson seguirão adiante. Ela necessita de atenção médica?
Devlin começou a se irritar.
— Necessita de uma mordaça. Não, ela não necessita de atenção médica.
Jack Harvey levantou as sobrancelhas, surpreso. Logo disse:
— É bonita… E selvagem, não? Santo Deus! Os homens não param de falar que ela tentou disparar em você. É…
— Bobagens! — Exclamou Devlin. — Pegue o leme. Mantenha o rumo. — Ele tocou a bússola com um dedo e atravessou o castelo de popa. Ignorava por que de repente se sentia irritado e raivoso.
— Acredito que não vai me convidar para tomar um gole contigo antes que confrontemos esse vento do demônio. — Disse Harvey elevando a voz atrás dele.
Devlin não se incomodou em responder. Mas era agora ou nunca. Precisava estar com as tripas cheias e dispor de todas as suas forças, se por acaso a tormenta os alcançasse.
Ela estava chorando, quando ele saiu do camarote?
Pouco importava, na realidade. Mulheres eram acostumadas chorar, somente com o propósito de enrolar os homens. Isso ele sabia há muito tempo. Mas como de repente, não importava a ele nenhuma mulher, as lágrimas não surtiam efeito sobre ele.
Abriu a porta do camarote e a notou sentada à mesa, que estava posta com talheres de prata e cristais finos. Havia nela uma travessa coberta que expelia um aroma delicioso. Ela estava terrivelmente ereta, com as mãos unidas sobre o colo. Em seu rosto havia duas manchas de uma intensa cor rosa. Seu olhar que parecia acalorado se chocou com o dele.
Devlin fechou a porta. Ela esboçou um sorriso frio como o gelo.
— Perguntava-me quando retornaria, Capitão.
O prazer formigou as veias de Devlin. Quanto lhe agradava uma boa luta!
— Ignorava que ansiasse por minha companhia. — Replicou ao mesmo tempo em que inclinava galantemente a cabeça.
— Só anseio sua cabeça… Nessa bandeja de prata. — Disse ela com a magnitude de uma rainha.
Ele sentiu vontade de sorrir. Aproximou da mesa precavidamente e notou a fúria em seus olhos.
— Lamento decepcioná-la. Meu cozinheiro é francês. Nessa bandeja se servem bocados bem mais deliciosos.
— Então esperarei com paciência o dia mais propício, que se sirva o jantar que desejo verdadeiramente. — Replicou ela.
Ele recusou-se rir.
— Você não me parece uma mulher paciente, Senhorita Hughes. E como acredito que esse dia que tanto anseia demorará muitos anos a chegar, o que fará em vez de esperar?
— Você tem você razão. Não tenho paciência. Você é um canalha! — Ela gritou.
Ele quase se pôs a rir. Um bastardo, mas bem.
— Ofendi-a de algum modo, Senhorita Hughes?
A risada de Virginia soou quebradiça.
— Você mata a americanos inocentes, seqüestra-me e me torna uma prisioneira. Despe-se diante de mim, me observe os seios, e ainda pergunta se me ofendeu? Que isso! — Ela explodiu.
Ele pegou a garrafa de vinho tinto.
— Permite-me? — Perguntou disposto a lhe servir uma taça.
Ela se levantou abruptamente.
— Você é um oficial! — Ela gritou e ele se enrijeceu, acreditando que ela iria atacá-lo. Mas Virginia se limitou a vociferar: — Da Marinha britânica!
Ele deixou a garrafa e lhe fez uma reverência zombeteira.
— Capitão Sir Devlin O’Neil, ao seu serviço, Senhorita Hughes.
Notou que ela tremia de raiva. Decidiu ceder à tentação e fitar os seios perfeitos.
— Deixe de me olhar! — Ela vociferou. — você cometeu atos horríveis. Atos criminais e atrozes! Explique-se, Capitão!
Ele se deu por vencido. A mulher se atrevia a dar ordens a ele. Era realmente divertido. Ela estava em seu navio, ao seu cargo e lhe dava ordens. Devlin começou a rir.
Virginia ficou imóvel, sobressaltada pela breve erupção daquela risada áspera e de tom estranhamente ríspido. Logo, ainda furiosa por sua traição e o que era pior ainda, por se encontrar em uma situação que não esperava, espetou-lhe: — Estou esperando uma explicação, Capitão.
Ele sacudiu a cabeça e a fitou. Maciamente lhe perguntou: — Não tem medo de mim?
Ela titubeou. Que tipo de pergunta era aquela?
— Seja sincera. — Disse ele como se falasse seriamente.
— Me aterroriza. — Ela se ouviu responder, com o pulso acelerado. Logo se corrigiu. — Aterrorizou-me e tudo por nada, maldito.
Ele elevou as sobrancelhas.
— As damas não amaldiçoam.
— Dá-me igual. Além disso, tampouco me trataram como a uma dama, não é certo?
Ele dedicou-lhe um olhar muito longo e estranho.
— Outro homem já a teria colocado em seu lugar… Nessa cama. Mas não está nela, não?
Ela ficou calada. Seu coração pulsava tão forte que mal conseguia respirar.
— Meu lugar não é… Não é sua cama! — Balbuciou. Terríveis imagens nas quais se via com ele, em seus braços fortes, assaltavam-na.
— Foi um lapso. — As sobrancelhas, mais escuras que o cabelo, se elevaram. — Tem razão. As mulheres fracas são muito incômodas.
Ela o fitou, quase que boquiaberta. Logo exclamou:
— Só tenho quatorze anos, Senhor! Levaria uma menina para sua cama?
Ele a fitou atentamente. Virginia umedeceu os lábios. Estava suando e necessitava desesperadamente que ele acreditasse. O queixo dele enrijeceu. Os olhos se semicerraram e o coração de Virginia saltou.
— Esse jogo é perigoso, Senhorita Hughes. — Disse com suavidade.
— Não é nenhum jogo!
— Seriamente? Então me explique por que estava no navio Americana, sozinha e sem uma dama de companhia.
A mente de Virginia trabalhava rapidamente.
— Tive que mentir ao Capitão Horatio, para conseguir a passagem. — Disse, e sua explicação lhe pareceu brilhante. — Naturalmente, não teria permitido que uma menina viajasse sozinha até a Inglaterra. Disse-lhe que tinha dezoito anos…
Ele a interrompeu com olhar frio.
— Com o vestido molhado não parecia ter quatorze anos, Senhorita Hughes.
Ela se enrijeceu.
O sorriso de Devlin era uma mera tensão dos lábios.
— Sente-se. Por mais interessante que seja esta conversa, vim aqui para jantar. Uma tormenta ameaça nos alcançar e se for acontecer uma noite muito larga espera-me. — Ele se aproximou rapidamente da mesa e lhe ofereceu uma cadeira.
A Virginia demorou a se sentar. De repente odiava sua mentira. Não queria que ele acreditasse de verdade que era uma menina. Mas, por acaso ele acreditaria? Tinha a impressão de que não. O homem não era um pirata. Oh, não. O medo de sofrer um engano voltou a assaltá-la.
— Por que não me disse que é Capitão da Marinha Real?
Ele encolheu os ombros.
— Importa-lhe, por acaso?
— É obvio que sim! — Ela exclamou, fitando-o muito séria. — Porque acreditava ser prisioneira, embora não entendesse o porquê. Agora sei que não sou, embora siga sem entender por que estou em seu navio e não no Americana. Sei que a Marinha britânica captura navios americanos, como você fez. Seu país não sente nenhum respeito por nossos direitos. Mas não estamos em guerra e você não é um pirata. Em certos aspectos somos aliados. É evidente que me liberará em Portsmouth. Era a conclusão que tinha chegado depois de encontrar seu uniforme no armário. Um oficial da Marinha britânica não podia pedir resgate por uma cidadã americana. Mas, o que se propunha o homem?
— Não somos aliados. — Ele respondeu com aspereza.
Aquela não era a resposta que Virginia esperava e não gostou da expressão de seu rosto e nem de seus olhos.
— E não vou liberá-la em Portsmouth.
— O que? — Virginia estava atônita. — Mas…
— Para falar a verdade, vou levar a Askeaton. Já esteve alguma vez na Irlanda, Senhorita Hughes?

 

 

 

 

 


Capítulo 5


Virginia não podia acreditar no que acabava de ouvir.
— Irlanda? Pensa em me levar a Irlanda?
— Não penso, — murmurou ele, — vou levá-la. Agora, sente-se. Tenho intenção de jantar. — Ele ofereceu-lhe novamente a cadeira.
O desconcerto se apoderou dela. — Não estou segura de haver entendido.
— Santo Deus! — Ele exclamou. — O que há a entender? Vou levá-la para a Irlanda, Senhorita Hughes. Na qualidade de convidada.
Ela se esforçava sinceramente para entendê-lo.
— Assim sou sua prisioneira. — Conseguiu dizer com voz rouca.
— Prefiro considerá-la uma convidada. — Ele ficou sério. — Não lhe farei nenhum mal.
— Por quê?
— Isso não importa. Agora, sente-se.
Virginia havia acreditado que o terrível anseio havia passado. Sacudiu a cabeça, se negando a aceitar a cadeira que ele lhe oferecia.
— Não tenho apetite. É um resgate o que busca?
— Você é muito perspicaz. — seu sorriso era frio.
— Eu não tenho dinheiro. Minha herança vai ser vendida a pedaços o quanto antes possível e os benefícios servirão para saldar as dívidas de meu pai.
Ele encolheu os ombros como se não se importasse.
Virginia começou a se assustar, mas conseguiu respirar devagar e com calma.
— Você deixou à Senhora Davies ir embora. Ela era muito mais rica que eu.
— Se pensa morrer de fome, morra você. — Devlin se sentou e começou a servir e revelou um saboroso guisado de cordeiro.
Por desgraça, a visão e o aroma do guisado fizeram com que o estomago de Virginia soasse ruidosamente, mas ele não pareceu notar. Devlin começou a comer com rapidez, como se comer fosse uma missão e ele tinha pressa por cumpri-la. Finalmente bebeu um gole de vinho e a saudou com a taça.
— Um contrabando excelente, lhe asseguro.
Virginia não respondeu. Uma terrível suspeita começava a tomar forma em sua mente. O homem pretendia pedir um resgate por ela, e nada importava sua herança. Conhecia já seu nome já na primeira vez que se viram. Devia conhecer seu tio, o Conde. Deixou-se cair na cadeira que ele havia retirado da mesa. Devlin levantou o olhar, mas não parou de se alimentar.
Entretanto, agora ela estava a salvo, não? O’Neill pertencia à Marinha, embora estivesse a ponto de ser relevado do comando ou algo pior. Ela confiava em que o pendurassem no patíbulo mais próximo. Não era um foragido corrente. Queria um resgate. Um resgate que sem dúvida obteria e dadas às circunstâncias, ela duvidava que a devolvesse ao tio maltratada em algum sentido.
Perguntou-se qual seria o resgate e se seu tio era o bastante rico para pagar e saldar as dívidas de seu pai. Seu desalento era infinito.
— Parece angustiada. — Ele comentou se recostando em sua cadeira. Pelo visto havia acabado de jantar.
— O Senhor não tem princípios. — Disse ela com irritada. — Está claro.
— Nunca disse que tinha. — Devlin a fitou atentamente. — Os princípios são para os tolos, Senhorita Hughes.
Ela o fitou face a face. Inclinou-se levada por um impulso. — Como posso lhe fazer mudar de idéia? — Ela não podia acreditar no que se ouvia dizer. — Meu tio não pode pagar um resgate, Capitão O’Neill. Tenho dezoito anos e não quatorze. — o semblante de Devlin não se alterou. — Farei o que for preciso para que me deixe livre.
Ele fitou-a por um longo momento. — Está me oferecendo o que acredito?
Ela se sentiu doente… Asfixiada… Envergonhada… E resignada.
— Sim. Assim é. — Disse com voz áspera.
Ele se levantou. — A tempestade está sobre nós. Devo voltar ao comando. Não saia do camarote. Uma mulher tão pequena como você cairia na água imediatamente. — ele jogou de um lado seu guardanapo e caminhou até a porta. O assoalho do camarote havia começado a oscilar, como se fosse móvel.
Seria essa sua resposta? Virginia estava aniquilada.
Ele se deteve na porta.
— E minha resposta é não. — Ele saiu do camarote.
Virginia se jogou sobre a mesa, chorando de desespero. Sabia que importava pouco ao seu tio. Ele jamais pagaria o resgate e as dívidas de seu pai.
Por culpa daquele maldito irlandês iria perder Sweet Briar.
A raiva se apoderou dela. Levantou-se rapidamente e atravessou o camarote. Assim que abriu a porta, uma rajada de vento a empurrou até o outro extremo. Nunca havia sentido força tão intensa. Avistou as ondas furiosas do mar, além da amurada. Pareciam se precipitar para ela. Sequer pôde gritar. Estatelou violentamente contra a madeira e as cordas. A dor a cegou. As ondas lhe salpicaram e o vento lutava para jogá-la ao mar. O pânico a consumiu. Não queria morrer!
— Teimosa! — Exclamou O’Neill ao mesmo tempo que seus braços a enlaçavam. Virginia de repente se sentiu envolvida pelo corpo duro e poderoso, enquanto o mar e o vento os rasgavam.
Respirou fundo, incapaz de levantar o olhar, com o rosto apertado contra seu peito. Ele a segurou com força e a arrastou com ele, de cara para o vento. Caminhava com determinação. Um só homem, contra os elementos. Empurrou-a para o interior do camarote e permaneceu um momento na porta, lanhado pelo vento.
— Fique aí dentro! — Ele gritou para se fazer ouvir.
— Tem que me deixar partir! — Ela vociferou. Coisa estranha. Desejava lhe agradecer por ter lhe salvado a vida.
Ele sacudiu a cabeça, lançou-lhe um olhar furioso e atravessou correndo o convés. Depois saltou ao castelo de popa. Havia começado a chover furiosamente.
Virginia permaneceu refugiada no camarote, fora do alcance da tempestade, mas não fechou a porta que o vento mantinha aberta. Finalmente havia compreendido quão forte era o temporal. O navio remontava ondas imensas, como antes o pequeno bote havia feito, se elevando sobre suas cristas e logo se precipitando para baixo. Virginia observou ao seu redor, que por toda parte os marinheiros lutavam com os equipamentos do navio ou subiam pelos mastros. Alguns pendiam deles.
Levantou os olhos, para logo deixar escapar um grito de horror. Um homem pendia de um dos mastros. Virginia compreendeu que ela tinha escorregado e estava a ponto de se precipitar para a morte.
Tinha que fazer alguma coisa, mas não sabia o que. Voltou os olhos para o castelo de popa. Era muito pequena para sequer encontrar o espaço que separava o camarote de O’Neill do lugar onde se achava o Capitão e avisá-lo do que acontecia. Levantou o olhar. O homem havia desaparecido. Sumiu… Se afogou. Suas vísceras se retorceram dolorosamente. O homem tinha desaparecido e ela sequer o ouvira gritar.
Enquanto o navio se sacudia violentamente, ela notou que todas as velas estavam recolhidas, menos uma. Compreendeu em seguida que o marinheiro que havia caído no mar tinha recebido ordem de subir no mastro, para arriar a única vela que seguia desdobrada e tensa.
O enorme navio começou a escorar imediatamente. Virginia caiu e foi empurrada para o outro lado do camarote, até se chocar com a parede, batendo o ombro e a cabeça. Por um momento, enquanto o navio permanecia de lado ou quase ficou ali, incapaz de se mover, atordoada.
Logo se deu conta de que o navio estava virando de lado e não se endireitava em seguida. Olhou para a porta, que seguia totalmente aberta e que de repente parecia se achar acima dela, como o topo de uma colina, em um ângulo pronunciado, provavelmente de quarenta e cinco graus ou mais. O céu negro resplandecia pela escotilha aberta. Todos morreriam. Pensou, frenética. Começou a se arrastar pelo chão, se segurando nos pés da mesa caída e logo a cama. Uma vez alcançada conseguiu estirar o corpo e se segurou. Seus braços protestaram, as articulações de seus ombros rangeram. Arrastou-se lentamente até a porta e, uma vez ali, apoiou as costas em uma parede e os pés na outra, e amedrontada observou ao seu redor.
Os marinheiros lutavam contra a inclinação do navio, cuja parte mais baixa, embora ainda não inundada, batia nas ondas brancas. Virginia então levantou o olhar para os mastros e ficou paralisada.
Não havia dúvida. Era Devlin O’Neill, que com uma adaga entre os dentes estava subindo pelo mastro. Outro homem o seguia. Acima dele, a imensa catraca inchava como se suplicasse à tempestade que fizesse o navio naufragar.
O’Neill morrerá, pensou ela hipnotizada, como o outro homem havia morrido. Escalou o mastro usando somente sua força e sua vontade, para se sobrepor à inclinação do navio, do vendaval e da chuva. A fragata oscilava precariamente de lado.
Virginia contemplava a cena, horrorizada. Mesmo que O’Neill não morresse, eles estavam sentenciados sem dúvida. Nenhum homem poderia se sobrepor ao vento e ao estado em que o navio se encontrava, para cortar a vela.
Viu que O’Neill se detinha, como se estivesse exausto, e que o homem que estava atrás dele fazia o mesmo. Não podia afastar os olhos. Rezava, enquanto os dois homens descansavam brevemente, grudados no mastro inclinado.
Ele seguiu subindo. Alcançou a catraca que havia derrubado o marinheiro e começou a cortar os equipamentos. O outro homem se uniu a ele. Virginia os observava, ansiosamente. Os segundos se tornaram eternos. De repente, a enorme vela de lona desprendeu dos cabos e se perdeu flutuando furiosamente na escuridão. O imenso navio grunhiu e se endireitou sobre a água.
— Meu Deus! — Ela murmurou enquanto observava O’Neill descer precariamente pelo mastro. Estava claro que ele acabava de salvar o navio e à tripulação, e que também havia se atrevido a fazer o que poucos teriam feito. Virginia começou a tremer. O homem desconhecia o medo. Então compreendeu que nunca, em toda sua vida, havia ficado tão assustada.
Ignorava quanto tempo estava ali sentada quando um marinheiro se aproximou dela.
— Entre. São ordens do Capitão.
Virginia não teve tempo para reagir. Foi empurrada para o interior do camarote e o marinheiro teve que empregar toda sua força para afastar a porta da parede de fora, contra o vento, e fechá-la.
Desta vez, Virginia ouviu o estalo da fechadura.
Chegou a tropeços até a cama, se deixou cair nela e perdeu o sentido.


Quando despertou, a luz do sol entrava radiante pelas janelas do camarote. Doía-lhe todo o corpo e sua cabeça pulsava. Sentia os olhos tão pesados que sequer conseguia abri-los. Nunca havia se sentido tão cansada. Encolheu-se sob as mantas, se envolvendo em seu calor. Logo começou a sentir um leve mal-estar. Só a parte posterior de seu corpo parecia estar coberta.
Procurou a manta… E se deu conta de que não estava sozinha.
Literalmente sentiu o corpo endurecer.
Junto a ela descansava um corpo alongado e robusto, que lhe insuflava calor desde os ombros aos dedos dos pés. Sentiu que a respiração suave acariciava seu queixo e que um braço enlaçava sua cintura.
Meu Deus! Pensou. Abriu os olhos, piscando sob o sol do meio-dia, trêmula e enrijecida fitou a mão que descansava sobre seu colo. Sabia quem estava ao seu lado. Observou atentamente a mão de O’Neill, grande, forte e marcada pelo sol. Engoliu a saliva e um estranho e denso calor começou a difundir nas profundezas de seu ser.
«Como isto foi acontecer? Pensou cheia de pânico. Naturalmente, a explicação era simples e ela adivinhou imediatamente. Pouco depois da tempestade se dissipar, ele havia se deitado na cama igual a ela, muito cansado para sequer cuidar se ela estava ali. A idéia, embora provável, não aliviou sua inquietação. De fato, sua agitação aumentou.
Logo uma certeza terrível se apoderou dela. A mão de O’Neill repousava cuidadosamente sobre sua cintura. Não frouxamente ou relaxada pelo sonho, mas com cuidado.
Seu coração começou a pulsar com violência. Ele não estava dormindo. Apostaria sua vida por isso.
Pensou em se fingir adormecida até que ele saísse da cama. Mas seu coração pulsava tão forte que foi impossível; sobretudo, quando notou que a mão dele se fechava sobre sua cintura. Voltou-se bruscamente e encontrou os olhos prateados e brilhantes, na face de um arcanjo. Sustentaram-se o olhar.
Ela não se moveu e não respirou, não soube pensar em algo inteligente a dizer.
Logo o olhar de O’Neill deslizou até sua têmpora, que agora doía intensamente.
— Você está bem? — Ele perguntou sem mover. Seus olhos escorregaram lentamente até sua boca, onde se detiveram por um instante, antes de voltar a fixar nos dela.
O olhar era como uma carícia de seda.
— Eu… — Virginia se interrompeu incapaz de falar. Não podia evitar fitá-lo atentamente. Sua face estava terrivelmente perto da dela. Os lábios firmes não se moviam. Ela voltou a fitar seus olhos. O rosto carecia de expressão; parecia lavrado em pedra, impossível de interpretar, mas seus olhos pareciam brilhar.
Ela se perguntou o que sentiria se a boca firme se suavizasse e cobrisse a dela.
— Salvou-me a vida. — Murmurou, nervosa. — Obrigado.
O queixo dele se crispou e ele começou a se levantar.
Ela o segurou pela mão que estava sobre sua cintura.
— Salvou o navio e a tripulação. Vi o que fez. Eu o avistei lá encima.
— Você está em minha cama, Virginia. E a menos que queira ficar aqui comigo uma hora mais, pelo menos, e deixar para trás o que resta de sua inocência sugiro que deixe me levantar.
Ela ficou quieta. Sua mente trabalhava apressadamente. Seu corpo ansiava ardentemente o contato de O’Neill e sabia. Seria uma estupidez negar. De algum modo, seu heroísmo na noite anterior havia mudado tudo. Ele, de todo modo era perfeitamente capaz de se levantar, embora ela lhe segurasse. Fitou sua boca novamente. Nunca haviam lhe beijado.
Ele saiu bruscamente da cama e, antes que ela pudesse dizer alguma, partiu.
Virginia se sentou lentamente, aturdida. Não sentiu alivio algum. Somente conflito e desconcerto. E, também desilusão. Permaneceu sentada na cama. Começava a se dar conta do que estivera a ponto de fazer. Estivera perto de beijar seu captor. Havia desejado beijá-lo. A incredulidade se apoderou dela e se levantou de um salto para ouvir que batiam na porta. O’Neill nunca chamava.
— Quem é? — Perguntou com bruscamente.
— Gus. O Capitão me pediu que lhe trouxesse água para o banho.
— Entre. — Ela respondeu com voz estrangulada, e se voltou. O’Neill era o inimigo. Havia lhe arrancado contra sua vontade do navio Americana, movido unicamente pela cobiça. Seguia ainda retendo-a contra sua vontade. Interpunha-se entre Sweet Briar e ela. Como poderia ter desejado, mesmo por um instante, seus beijos e suas carícias?
Gus entrou, seguido por dois marinheiros que carregavam baldes de água quente. Gus colocou uma jarra de água fresca sobre a mesa, sem olhar para Virginia. Os dois marinheiros fingiram também que ela era invisível e encheram a banheira.
Que amável, ela pensou, de repente furiosa com O’Neill… E consigo mesma. Nunca, até esse momento, havia desejado beijar algum homem. Tinha que ser culpa do Capitão. Ela estava aturdida por causa do seqüestro, a tormenta e por ele. De algum jeito O’Neill havia conseguido se aproveitar de seu estado confuso. De qualquer modo todo o episódio era inaceitável. Ele era o inimigo e seguiria sendo até que a liberasse. E ela não podia beijar o inimigo. Certamente não.
Além disso, o beijo a levaria sem dúvida a um destino nada incerto. A se converter em sua amante!
— Necessita de algo mais, Senhorita Hughes? — Gus perguntou arrancando- a de suas reflexões.
— Não, obrigado. — Disse ela com excessiva secura. Estava com o rosto em chamas. Estava em chamas. E estava com medo.
Gus se voltou. Os outros marinheiros já haviam saído.
Virginia lutou para dominar seu temor, seu desespero. Recordou-se que devia fugir. Tinha que convencer seu tio que salvasse Sweet Briar. Logo, o pesadelo seria somente, um sonho ruim e passageiro, uma lembrança distante.
— Gus! Onde estamos? Perto da costa?
Ele vacilou, mas não se voltou.
— O vento desviou nosso curso. Estamos muito ao norte da Inglaterra, Senhorita Hughes.
Ela ficou boquiaberta enquanto ele partia, antes que pudesse lhe perguntar até que ponto haviam se desviado para o norte. Suas noções de geografia estavam um pouco oxidadas, mas se recordava vagamente que a Irlanda ficava ao norte da Inglaterra. Ser conduzida a Portsmouth era bem melhor que acabar na Irlanda. Ironicamente, de repente lhe deu medo que O’Neill tivesse mudado de idéia e não conduzisse o Desafio até Portsmouth, em primeiro lugar.
Correu até a de O’Neill e fitou o mapa que havia ali. Demorou um momento em confirmar seus temores. Irlanda ficava ao noroeste da Inglaterra e, se o vento havia lhes levado muito ao norte, a Irlanda ficava justamente em sua trajetória. Mas por outro lado, o quanto poderia a tempestade tê-los desviado? Embora não entendesse de mapas e o que havia acontecido, parecia-lhe que teriam que ter percorrido duzentas milhas ou mais para achar outro país em linha reta.
Fitou o mapa da Inglaterra. Portsmouth não parecia estar longe de Londres. Tentou calcular a distância e chegou à conclusão de que não requeria mais que uma jornada de viagem de carruagem. Pelo menos isso tinha a seu favor, pensou amargamente. Mas, o que faria? Seu olhar caiu sobre a banheira fumegante. Resolveu em seguida não desperdiçar a água. Banhou-se apressadamente temendo que a interrompessem, e esfregou a pele com força para apagar o contato de O’Neill. Saiu da banheira e se secou apenas com uma toalha, de medo que entrasse alguém e a surpreendesse nua. Prendeu o cabelo ainda molhado, em uma trança, e se vestiu com rapidez. Ao se olhar no espelho notou que estava espantosamente pálida, o que tornava seus olhos ainda maiores. O vestido estava amassado e rasgado. Mas o pior de tudo era o ferimento de sua têmpora. Parecia muito profundo. Ao tocá-lo sentiu dor.
Parecia uma lavadeira que, vestida com as roupas de sua Senhora havia participado de uma briga ou uma batalha. Claro que estava em uma batalha constante desde momento em que O’Neill atacou o navio Americana. Aproximou-se da janela e a abriu. Fazia um formoso dia de primavera, o céu estava azul e espaçoso e o mar quase liso. Assombrou-lhe que reinasse aquela calma depois da horrenda tormenta da véspera. Esforçou para conseguir ver alguma coisa de terra firme ou alguma gaivota, mas não avistou nada. Afastou-se da janela aberta e saiu para o convés.
Em seguida divisou O’Neill. Ele estava de costas para ela, junto ao oficial que dirigia o leme. Estava com as pernas afastadas e os braços aparentemente cruzados sobre o peito. Virginia sentiu uma estranha sensação ao observá-lo e se desagradou. Ele se voltou levemente. Parecia ter os sentidos de um tigre selvagem. Seus olhares se encontraram. Ele inclinou a cabeça.
Ela ignorou o gesto e se aproximou da amurada. Só então se deu conta de que estava muito perto. Se ele não tivesse lhe resgatado poderia ter caído na água.
Segurou a amurada, fechou os olhos e levantou o rosto para o quente sol do mês de maio. Mas, no fundo, tremia até a medula dos ossos. Na noite anterior estivera bem perto de morrer. Confiava em que aquela experiência não voltasse a se repetir. A nítida lembrança dos braços de O’Neill envolvendo-a e a sensação de se ver apertava contra seu corpo se apoderaram dela. Ficou bem quieta e deixou que seus olhos se abrissem enquanto pensava que O’Neill era o inimigo e que isso nunca mudaria… Não se ele a libertasse.
— Um belo dia de primavera... — Disse alegremente uma voz desconhecida atrás dela.
Virginia se sobressaltou e se voltou.
Um homem encorpado, de cabelos grisalhos e encaracolado e olhos castanhos vivos lhe sorria. Vestia um casaco escuro, calça e meias. Poderestaria passeando pelas ruas de Richmond, a não ser porque lhe faltavam o chapéu, bengala e as luvas.
— Sou Jack Harvey, o cirurgião do navio. — Ele lhe disse fazendo uma breve reverencia.
Ela sorriu, indecisa. Tinha a impressão de que Jack Harvey era um bom homem… Diferente de seu Capitão.
— Virginia Hughes. — Apresentou-se.
— Eu sei. — O sorriso de Harvey era amplo. — Todo mundo sabe quem é, Senhorita Hughes. Não há segredos a bordo de um navio.
Virginia guardou a informação e sem poder se conter lançou um olhar a O’Neill. Ele seguia no castelo, de costas para eles e parecia alheio a sua presença.
— Como se encontra? — Perguntou Harvey. — Permita-me dar uma examinada em sua têmpora?
— Dói-me um pouco. — Ela concordou fitando seus olhos. — Estou bem, acredito. Nunca antes haviam me raptado.
Harvey fez uma careta enquanto a observava. — Bom, você deve saber que no que se refere a Devlin também é a primeira vez. Ele já teve reféns outras vezes, mas nunca mulheres e ou crianças. Sempre os libera.
— Que maravilha ser uma exceção. — Ela replicou, com azedume.
— Ele lhe fez algum mal? — Harvey perguntou bruscamente.
Ela se sobressaltou e o fitou atentamente. A lembrança do olhar de O’Neill ao se voltar na cama assaltou sua imaginação. Titubeou.
— Você é muito bonita. — Disse o cirurgião, no intervalo que seguiu. — Nunca tinha visto olhos tão extraordinários. Não aprovo que Devlin compartilhe o camarote com você.
Por acaso teria no cirurgião, um aliado do navio? Virginia respirou fundo. Sua mente acelerou. Em seguida, cuidadosamente, provocou o pranto, coisa que nunca antes tinha conseguido fazer.
— Supliquei-lhe piedade. — Ela sussurrou. — Disse-lhe que era jovem, inocente, que estava indefesa. — Virginia se deteve como se não pudesse continuar.
Os olhos de Harvey cresceram, cheios de estupor.
— Não posso acreditar. O bastardo… Seduziu-lhe?
Virginia sentiu que o homem seria um aliado.
— Seduzir-me? Não acredito que seja a palavra adequada.
Ele parecia ter empalidecido sob a pele morena.
— Vou me assegurar que ele a acomode em outro lugar. — ele disse, laconicamente e voltou a cabeça para observar a O’Neill, que seguia de costas para eles, para a proa do navio. — Embora isso não mude o que aconteceu. — Ele continuou visivelmente alterado. — Sinto muito, Senhorita Hughes. Salta aos olhos que é uma dama e, francamente, isto é muito impróprio de Devlin.
Virginia estava segura de que tinha ganhado o cirurgião para sua causa. Fingiu enxugar os olhos e se assegurou que suas mãos tremessem.
— Eu também sinto. É muito urgente que eu chegue a Londres quanto antes. Minha vida inteira está em jogo e agora… Agora duvido que seja capaz de resolver o apuro no qual me encontro. Você é amigo dele? — Perguntou sem se deter para premeditar.
Harvey se sobressaltou e se tornou pensativo por um momento.
— Devlin é um homem estranho. Mantém-se afastado de todo o mundo. Nunca se sabe o que está pensando, o que se propõe a fazer. Estou a três anos servindo sob suas ordens e isso deveria nos converter em amigos. Mas o certo é que sei muito pouco dele. Não mais que o resto do mundo. Todos nós conhecemos suas façanhas e sua reputação. Eu me considero seu amigo. Devlin me salvou a vida em Cádiz. Mas, francamente, se somos amigos nunca tive uma amizade como esta.
Era quase triste, mas Virginia não estava disposta a se deixar levar pela compaixão. A curiosidade a consumia.
— Que façanhas? Que reputação?
— Chamam-no de o corsário de Sua Majestade, Senhorita Hughes. — Disse Harvey, sorrindo como se estivesse em terreno mais firme. — Antepor a presa a qualquer outra coisa, suspeito que o converteu em um homem muito rico. Seus métodos de batalha são pouco ortodoxos, igual suas estratégias… E suas manobras políticas. A maioria dos membros do Almirantado lhe desprezam, pois raramente ele segue as ordens e trata sem cuidado esses velhos caquéticos vestidos de azul. Sequer lhe importa que saibam. Os jornais enchem suas páginas relatando suas façanhas no mar. Inclusive escrevem sobre suas façanhas em terra firme. As páginas da sociedade sempre o mencionam quando está em casa e vai a algum lugar da moda ou baile ou até se visita algum clube. Ele tinha somente dezoito anos em Trafalgar, quando tomou conta de seu navio e destruiu dois navios bem maiores. Em seguida lhe foi concedeu o próprio navio, e isso foi só o princípio. Mas ele nunca aceitará um navio de guerra. Oh, não. Devlin não. — Finalmente, Harvey fez uma pausa para respirar.
— Por que não? Por que não um navio de guerra? — Perguntou Virginia voltando a observar seu captor. A luz do dia reluzia vivamente sobre seu cabelo clareado pelo sol. Aquele homem ia a bailes e freqüentava clubes. Virginia não conseguia imaginar. Ou sim?
Imaginou-o fugazmente com um fraque negro e uma taça de champanhe na mão enorme e elegante, e não duvidou nem por um instante de que as damas presentes se rivalizariam desesperadamente para chamar sua atenção.
Curiosamente, não gostou da imagem nem um pouco.
— Os navios de guerra navegam e combatem em formação tradicional. Devlin é muito independente para isso. Gosta de navegar de seu jeito e surpreender os incautos… Ou enganar os precavidos. Nunca perdeu, Senhorita Hughes. Raramente manobra duas vezes do mesmo modo. Os marinheiros confiam suas vidas a ele. Eu já lhe vi dar ordens que pareciam suicidas e não eram. Ao contrário, lhe conduziam à vitória. A maior parte dos comandantes dos navios foge ou o tentam, quando divisam ao Desafio no horizonte. O’Neill é o melhor Capitão que sulca os mares agora. Lembre-se do que lhe digo. — Harvey sorria. — E não sou o único que pensa assim.
— Você admira esse homem — Disse ela em tom de recriminação. Mas, apesar da animosidade a que se aferrava, também estava impressionada… Pelas façanhas de O’Neill. Não pelo homem.
Harvey levantou as sobrancelhas.
— Sim, admiro-o. Admiro-o profundamente. É impossível não admirá-lo, se a gente estiver sob suas ordens.
— Ontem à noite ele salvou o navio. — Ela comentou. — Por que não mandou outro subir no mastro?
Harvey sacudiu a cabeça.
— Porque sabia que ele podia dar conta da missão. Por isso o admiramos, Senhorita Hughes. Porque ele é um autêntico líder. Assim, como não o seguiríamos?
Ela titubeou. Seu coração estava acelerado.
— Está… Ele é casado?
Harvey se surpreendeu. Logo começou a rir.
— Não! Não me interprete mal. Ele gosta das mulheres e há muitas damas em Londres que gostariam de levá-lo ao altar, mas não imagino Devlin casado. Sua esposa teria que ser uma mulher muito forte para estar a sua altura. — Harvey ficou pensativo. — Não acredito que tenha pensado em casar, se quer que lhe diga a verdade. Mas é jovem. Só tem vinte e quatro anos. Sua vida, acredito, é o mar. Mas acredito que isso poderia mudar algum dia. — Sua voz soava dúbia.
O’Neill parecia tão duro e flexível, como heróico… E também parecia ser muito sozinho. Virginia se surpreendeu estudando-o atentamente outra vez. Ali em pé, governando a enorme fragata com sua presença abrangente, a aura de poder que o envolvia era quase evidente. Virginia retificou imediatamente seus pensamentos. O’Neill não dava a impressão de se sentir sozinho. Na verdade parecia uma ilha e somente uma tola se atreveria a acreditá-lo solitário e frágil em algum sentido.
— Não é um homem mau. — Disse Harvey, brandamente. — Por isso não entendo o que lhe fez e o que se propõe. Certamente, não necessita deste resgate.
Virginia se sobressaltou.
— Está seguro disso?
— Como Capitão, ele recebe três oitavas partes do saque que conseguimos. Sei ao que se dedicou nestes três últimos anos. É um homem rico.
Virginia estremeceu enquanto observava O’Neill, com temor e desalento. Se o homem não andava atrás de seu resgate, o que se propunha, em nome de Deus?
Então resolveu que era o momento adequado. Tocou a mão do cirurgião.
— Senhor Harvey, preciso de sua ajuda. — Disse lastimosamente.


Já tinha tido suficiente. Ardiam-lhe as orelhas como se fosse um menino no colégio. Sabia que estavam falando dele.
— Martin, pegue o comando do navio. — Disse. Ao aproximar do oficial, Devlin se voltou e desceu de um salto do castelo de popa.
Seus olhos cresceram no rosto ao notar sua pequena refém segurando a mão de Harvey. Ela estava com uma expressão imploradora em seus olhos enormes e sua tenra boca tremia. Devlin começou a suspeitar. A moça agia como uma coquete tola e chorosa… E a Senhorita Virginia Hughes não tinha nada de tola, coquete ou chorosa. O que estaria tramando?
Sua irritação minguou e o regozijo ocupou o seu lugar. Se Virginia Hughes mostrava alguma coisa, seria divertida.
Devlin quase sorriu, até que se recordou que na noite anterior havia lhe abraçado contra seu corpo rígido e excitado. Fez uma careta. Nem sequer sabia que Virginia estava na cama, quando exausto depois da tormenta se deixou cair nela. Mas havia sentido sua presença enquanto dormia, porque ao despertar seu corpo o urgia a se aproveitar dela. Por sorte, se orgulhava do domínio que exercia sobre si mesmo. Exercia a autodisciplina desde que era um menino de dez anos. Ignorar suas necessidades físicas não era tarefa fácil, mas não havia dúvida de que devia cumpri-la.
Curiosamente, ela não havia lhe parecido um saco de ossos ao abraçá-la.
Parecera-lhe suave e macia, miúda, mas não frágil.
— Bom dia. — Saudou secamente Harvey e a Virginia com a cabeça, desdenhando seus pensamentos.
Virginia afastou a mão de Harvey. Estava com as bochechas enrubescidas, como se a tivessem surpreendido a meia-noite roubando uma caixa forte. Parecia se sentir culpada. Por Deus, estariam conspirando contra ele, pensou com assombro. A pequena harpia havia enrolado Harvey para que ficasse de seu lado, para que se insubordinasse. Não era uma conjetura. Cheirava a conspiração, do mesmo modo que na noite anterior havia sentido o cheiro da tempestade.
— Bom dia, Devlin. Espero que não se incomode que tenha saído para respirar com nossa convidada. — Harvey lhe sorriu alegremente.
— Por fortuna, minhas ordens não incluíam você. — Respondeu Devlin com calma.
— Claro que não. Sou o cirurgião do navio. — Disse Harvey com bom humor.
Os olhos de Virginia aumentaram de tamanho, ao compreender. — Confio em que essas ridículas ordens não continuem em pé.
Ele a confrontou com o olhar. Virginia era tão miúda que tinha a impressão de que era alto como um gigante mitológico.
— Minhas ordens seguem em pé, Senhorita Hughes. — Não gostava do aspecto do ferimento em sua têmpora. — Quero que se ocupe imediatamente disso, Harvey.
— Vou buscar minha maleta. — Disse o cirurgião, e se afastou.
Devlin e Virginia ficaram sozinhos. Ele a observava atentamente. Ela, entretanto, se recusava a erguer os olhos para ele. Por que seria? Um efeito de sua consciência? De manhã, na cama, ela estivera a ponto de suplicar que a beijasse. Não era tolo. O desejo havia brilhado claramente em seus ansiosos olhos violetas.
— Sente-se culpada? — Ele ronronou. Havia decidido desfrutar da conversa que seguiria.
Ela se sobressaltou.
— Por que teria que me sentir culpada? Você que deveriam se atormentar de remorsos. Claro que, para sentir alguma coisa, primeiro teria que ter um coração.
— Confesso, — ele disse com um sorriso, — carecer completamente de coração.
— O quanto o navio se desviou do rumo? — Disse ela, em tom mais de exigência, que de pergunta.
— Umas cento e cinqüenta milhas. — Ele respondeu notando que ela empalidecia. — Isso lhe preocupa?
Ela o fitou atentamente e finalmente assentiu.
— Aonde nos dirigimos? — Perguntou, muito séria.
Ela era muito atenta. Devlin admirava sua acuidade e resolveu não voltar a subestimá-la.
— É absurdo se dirigir a Portsmouth. Além disso… — Ele sentiu uma pressão no peito, que demonstrava que afinal de contas era capaz de sentir. — Duvido que o navio Americana atraque lá.
Os olhos de Virginia aumentaram. — Não acredita que…?
— Duvido que tenha sobrevivido a tempestade. Nós conseguimos ultrapassá-la com muita dificuldade. O Americana não pode deixá-la para trás. Mac é um marinheiro excelente, mas navegava quase sem tripulação. — Uma leve dor se apoderou dele. Não tentou afugentá-la. Assim era o mar e ele sabia muito bem; cobrava mais vida, do que deixava ilesos. Com os anos havia aprendido que era melhor chorar a perda de seus homens e acabar de uma vez.
— A você não importa. — Disse ela, atônita. — Tem o coração de pedra… Se é que tem coração. — Ela o reprovou. — Os homens… O navio… Estão no fundo do mar por sua culpa.
Devlin se zangou. Segurou-a pela mão tão rapidamente que ela deixou escapar um gemido, mas ele não a soltou.
— Eles estão em um jazigo de água por culpa do temporal, Senhorita Hughes. Dado que não sou Poseidón tive pouco a ver com a origem da tempestade de ontem à noite.
Ela atreveu a sacudir a cabeça, sem deixar de fitá-lo.
— Não! Se não tivesse atacado o navio, se não o tivesse destroçado para me seqüestrar essas pessoas estariam vivas!
A mulher parecia ter a capacidade de provocar sua ira, como nenhuma outra pessoa. Soltou-lhe a mão bruscamente e se envergonhou ao notar que estava avermelhada.
— Se eu não tivesse atacado o navio, o tivesse destroçado e se não tivesse lhe seqüestrado, você estaria no fundo do mar com eles. — Ele se dispôs a se afastar. Passou-lhe pela mente que, se a levasse para a cama, talvez pudesse lhe ensinar o respeito que sem dúvida lhe faltava. Isso e muito mais.
Mas as reflexões de pouco antes seguiam inquietando-o. Voltou-se novamente e a confrontou. — Não conspire com Harvey contra mim. — Advertiu-lhe.
— Eu… Não fiz nada disso! — Ela gritou, visivelmente assustada.
— Embusteira. — Ele sussurrou e se inclinou tanto, que seus rostos quase se tocaram. — Reconheço uma conspiração quando está se formando diante de meu nariz. Você sabe qual é o destino dos amotinados, Senhorita Hughes?
— Aqui não há nenhum motim. — Disse ela.
Ele sorriu com frieza.
— Se enrolar o Harvey com suas argúcias será um motim, minha querida. E costumamos enforcar os amotinados. — Ele acrescentou com deleite, e não era do todo mentira. Não enforcaria Harvey, mas perderia um cirurgião excelente e os bons cirurgiões eram mais difíceis de encontrar que um rubi da Índia.
Ela se afastou e se grudou à parede.
— Tenho algo a lhe dizer. — Disse com ferocidade.
Ele estava para se afastar, como não gostou de seu tom e se voltou, esperando o ataque.
— Desprezo-o. — Disse ela com voz pastosa.
Curiosamente, Devlin se surpreendeu. Não visivelmente, mas no fundo de seu ser. Sentiu que seus lábios se abriam em um sorriso carente de alegria.
— Isso é o melhor que sabe fazer?
Ela pareceu pronta a atacá-lo.
— Não tente. — Lhe advertiu maciamente.
Ela fechou os punhos com força.
— Lamento ter errado o tiro. — Disse de repente. — Tenho boa pontaria. Se tivesse esperado um pouco mais, agora estaria morto.
— Mas não estou. — Ele replicou em tom zombeteiro. As palavras de Virginia tinham um fio cortante que ele se negava a sentir. — A paciência é uma virtude, Senhorita Hughes. E você precisa dela por completo. — Ele se afastou.
— Por que faz isto? O’Neill! — Gritou ela para suas costas. — Harvey diz que é você rico!
Ele fingiu não ouvi-la.
— Canalha. — Disse ela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 6


Jack Harvey subiu os três degraus do castelo de popa. Embora sua aparência seguisse jovial, seguia perplexo por Devlin ter abusado de sua refém. Tinha renunciado, não obstante, seu empenho de chegar a compreender o Capitão.
Devlin estava no leme e se voltou para ouvir os passos curtos e surpreendentemente ligeiros do cirurgião.
— Como ela está? — Ele perguntou.
— Poderia ter levado um ponto ou dois ontem à noite, mas agora já está bastante curada.
Devlin lhe fez um sinal com a cabeça a seu contramestre.
— Pegue o leme. — Ele disse e se afastou. Harvey e ele se encaminharam a bombordo do convés. — Você me olha de forma estranha. — Comentou com calma.
Harvey já não sorria. — Maldição, Devlin. Espero que a garota tenha se machucado ao cair, como diz, e não por outros meios.
Devlin compreendeu imediatamente o que ele insinuava e o fitou atentamente.
— Por Deus! Acredita que a ataquei?
— Não sei o que pensar. — Harvey fez uma careta. — Já não acredito.
Devlin começava a ter uma escura suspeita.
— Seriamente? — Ele segurou Harvey pelo braço e juntos deixaram o convés principal. — Você é um tolo por permitir que uma harpia como a Senhorita Hughes te enrole com seus lamentos, Jack.
Harvey pareceu sobressaltado.
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer, — disse Devlin com voz encrespada, — que ela te enrolou para que me desobedeça, não é certo?
— Devlin… — Harvey balbuciou, empalidecendo.
— Por que lhe traz nas mãos? E me diga, como justifica tentar frustrar meus planos, me desafiar, sendo eu seu Capitão?
Harvey enrijeceu.
— Maldição. Você a seduziu.
Por um momento, Devlin sentiu como se Harvey tivesse lhe falado em um idioma que nunca tinha ouvido.
— O quê?
Harvey piscou outra vez. De repente se mostrava preocupado e incômodo.
— Seduziu-a. — Disse com menos certeza.
Devlin o fitou atentamente enquanto a fúria se apoderava dele.
— Ela lhe disse isso? — Perguntou com aparente calma.
— Bem... — Titubeou Harvey. — Sim.
— Sabe, que você tem sorte de estarmos bem um com o outro. Do contrário, não teria o nariz tão reto. Eu não seduzo virgens. A inocência não me provoca. — Enquanto se explicava se deu conta que havia mudado.
Harvey empalideceu.
— Ai, meu Deus! — Disse.
— Sempre se deixou encantar por um rosto bonito. — Disse Devlin.
Harvey fez uma careta.
— Peço-lhe desculpas, Devlin. Sinto muito.
Devlin não sabia com quem estava mais ofendido, se com Jack Harvey ou com Virginia Hughes. Certamente estava com vontade de estrangular esta última.
— O que estavam planejando?
Harvey seguia pálido. Sacudiu a cabeça.
— Iria conseguir roupas de marinheiro, de algum dos meninos lá de baixo. Quando chegássemos ao porto, eu devia te distrair enquanto ela entrava no bote com outros.
— Quanta astúcia! — Disse Devlin sinceramente.
— Devlin... Sinto muito. Sabia que não era próprio de você, mas todo este assunto é absurdo. Você nunca tinha seqüestrado uma mulher. Por favor, me perdoe. Ela foi tão convincente! E estava chorando, pelo amor de Deus. — Exclamou Harvey, com o olhar cheio de ansiedade.
Não haveria perdão para nenhum dos dois. Devlin disse: — Quando chegarmos a Limerick, terá que encontrar outro navio. A partir deste instante você fica relevado de seus deveres.
Harvey abriu a boca como se quisesse protestar. Devlin o fitou atentamente, desafiando-o em silencio a proferir um só som. Harvey pensou melhor.
— Sinto muito. — Disse.
Devlin se afastou. Já não importava o que Harvey dissesse, pensasse ou fizesse. Sua relação com ele havia terminado.
Virginia sorria enquanto passeava pelo convés, desfrutando de do sol forte e radiante. Era delicioso senti-lo na face. Era delicioso estar viva. Na tarde seguinte chegariam a Limerick e Jack Harvey lhe ajudaria a fugir.
Gargalhou jogando a cabeça para trás, e pensou no quanto gostaria de ver a cara de Devlin O’Neill quando descobrisse que ela havia fugido. Equivocou-se ao pensar que jamais conseguiria ganhar uma batalha. No dia seguinte sairia vitoriosa.
Compreendeu que aquele desejo era sincero e ficou pensativa. Como havia surgido nela o desejo de derrotar Devlin O’Neill? Por que a idéia de vencê-lo lhe produzia um prazer tão intenso? Por acaso seria porque ainda se recordava do instante terrível em que tinha desejado desesperadamente que ele a beijasse? Não queria voltar a sentir aquele desejo, mas a lembrança tinha ficado gravado a fogo em sua memória.
Voltou para se recostar na amurada, ainda pensativa. Fitou o castelo de popa e se surpreendeu em não ver O’Neill. Por que ele não tinha lhe beijado?
Sobressaltou-se e desejou não ter se feito a pergunta. Mas sabia o motivo. Ela era magra, tinha os seios pequenos, a face afilada e angulosa e o cabelo crespo e emaranhado. De repente se sentiu desanimada. Compreendia repentinamente que ansiava que seu arrumado captor lhe achasse bela. Como podia ser tão tola?
Aprumou-se quando o navio oscilou por causa de uma onda, e pensou que logo seria livre outra vez e que com o tempo voltaria para Sweet Briar. Logo já não voltaria a lembrar de Devlin O’Neill. Ele sequer seria uma lembrança longínqua. Mas, por alguma razão, a idéia não a reconfortou. De repente notou que Jack Harvey atravessava o convés. Seu coração bateu forte e o saudou com a mão.
Ele se sobressaltou e mudou de direção, sem lhe devolver a saudação. Nem deu sinais de reconhecê-la. Virginia ficou paralisada. O que estava acontecendo? Cheia de inquietação, não vacilou em correr atrás ele.
— Senhor Harvey! — Exclamou. — Senhor Harvey, espere! — Ele não devia tê-la visto, sem dúvida. Harvey afrouxou o passo e Virginia o alcançou. — Olá. — Disse com viveza, mas ele não respondeu seu sorriso. — Que dia tão formoso. Não me viu saudá-lo?
Ele se deteve e a fitou.
— Sim. Eu vi, Senhorita Hughes.
— Mas não me respondeu. Sequer inclinou a cabeça. — Ela disse lentamente, cheia de temor.
— Estou tremendamente aborrecido. — Ele disse sem rodeios. — Fui relevado de meu posto e quando chegarmos a Limerick serei expulso do navio.
— Oh! — Ela conseguiu expressar, com o coração batendo alucinado.
— Você me mentiu, Senhorita Hughes. Acusou Devlin de um terrível delito.
Ela manteve a cabeça alta.
— Ele cometeu um delito terrível. Eu não fiz nada de errado e ele me tomou por prisioneira contra minha vontade.
— Disse que tinha lhe seduzido! — Exclamou Harvey. — Para que eu o desafiasse e a ajudasse a fugir.
Depois de tudo, havia sido derrotada, pensou ela com tristeza. Sentia vontade de chorar. Mas não chorou. Manteve o queixo bem alto e disse: — Ele abusou que mim, Senhor Harvey.
— Mas não como você disse. Nunca, e lhe rogo que me desculpe, você esteve em sua cama.
— Eu não disse tal coisa. Foi uma conclusão a qual você chegou sozinho. Essas não foram minhas palavras.
Ele piscou.
— Acaso importa? Você sabia perfeitamente a que conclusão eu havia chegado… E a respirou!
— Esse homem é um criminoso. — Disse ela.
— É… Era… Meu Capitão. Agora, por sua culpa terei que procurar outro navio. Senhorita Hughes, desejo-lhe o melhor. Bom dia. — Ele se voltou e se afastou dela.
Virginia começou a tremer. Talvez tivesse sido um engano deixar que Harvey acreditasse o pior, mas estava desesperada. Tinha que fugir. Devia chegar até seu tio. Devia salvar Sweet Briar. Sucumbiu à culpa, mas somente porque Harvey era um homem decente e parecia aborrecido por ter perdido seu posto no navio Desafio.
Não estava certo. Se alguém tinha a culpa era ela. Fitou novamente para o castelo de popa, mas O’Neill não estava lá governando o sol, o céu e o mar. Correu ao camarote.
Ao irromper nele notou-o sentado à mesa. Diante dele havia um prato com queijo e bolachas. Ele não levantou o olhar, enquanto ela o observava com recriminação. Virginia lutou para recuperar o fôlego e a compostura. Logo fechou a porta e se aproximou dele. Devlin elevou finalmente os olhos, mas não se levantou.
— Gostaria de se sentar comigo à mesa e comer alguma coisa? — Perguntou.
Ela moveu a cabeça de um lado a outro.
— Foi minha culpa. — Disse. — Se quer castigar alguém, castigue a mim, não Jack Harvey.
Devlin se recostou na cadeira e depois se levantou, se abatendo sobre ela.
— Nada eu gostaria mais que castigá-la. — Ele disse. — Ocorre-lhe alguma idéia?
O coração dela pulsava grosseiramente. Não pôde dizer nada.
— Permanecerá confinada neste camarote até que desembarquemos. — Disse ele. — Essas são minhas ordens, Senhorita Hughes.
— Não despeça o Senhor Harvey! Ele é seu amigo!
Devlin já estava saindo, mas se voltou para ela.
— Meu amigo? Eu não acredito. — Disse com excessiva suavidade.
— Não. Você está errado. O Senhor Harvey lhe tem muito afeto. Admira-o enormemente. Ele mesmo me disse isso. Era e é seu amigo. — Virginia exclamou.
— Eu não tenho amigos. Nem a bordo deste navio ou de nenhum outro. — Devlin se aproximou da porta.
— Então, me apiedo de você.
Ele se voltou bruscamente.
— Acredita que me compadece.
Virginia se deu conta de que tinha posto o dedo na ferida, embora até esse momento não houvesse precavido que O’Neill possuía um ponto fraco.
— Há alguém no mundo a quem pode chamar de seu amigo, Capitão? — Atreveu-se a perguntar.
Os olhos de Devlin brilharam tornando-se negros como o céu tormentoso.
— Atreve a misturar minha vida particular? — Ele perguntou muito calmamente.
— Não sabia que possuía uma vida particular. — Replicou ela, zangada.
Devlin se aproximou vagarosamente.
— Talvez pense duas vezes antes de envolver os outros em suas argúcias e suas mentiras, Senhorita Hughes. Talvez na próxima vez pense nas conseqüências de seus atos.
— Pode ser que sim. — Ela replicou. — Mas já não se trata de mim. Não posso permitir que, por culpa minhas necessidades você despeça um homem que o considera o melhor Capitão de todos os mares. O Senhor Harvey é seu amigo, Capitão O’Neill. Um amigo leal.
— Era o cirurgião de meu navio e me traiu. Isso não é amizade e nem lealdade. Tem sorte de que não o acorrente e o jogue no calabouço. — sele e aproximou da porta, mas se deteve ali. — Por quê? Por que tentar fugir? Na Irlanda estaria perdida. Pensou sequer no que se propunha fazer? Não lhe fiz mal. Sequer a toquei. Dentro de pouco se reunirá ao seu querido tio. Para que arriscar a fugir? Por que ousar me desafiar?
Virginia o fitou com impotência.
— Porque, — ela conseguiu dizer, — minha vida inteira está em jogo.
Ele se sobressaltou. Ela o fitou por um momento e logo se voltou e se sentou à mesa. Sentiu que o abatimento a envolvia como um manto enorme e pesado, e o ouviu se aproximar da mesa, onde também se sentou.
— Explique-se. — Devlin segurou seu rosto e a obrigou a elevá-lo até que seus olhares se encontraram. — Fale a verdade.
— O que importa a você? — Disse ela fracamente, tremendo.
Devlin soltou-lhe o queixo.
— Não me importa. Mas você se encontra sob minha custódia e tudo o que lhe afete é assunto meu.
Virginia exalou um profundo suspiro, pensou em seus pais e sentiu uma onda de tristeza.
— Nasci em Sweet Briar. — Disse em voz baixa, sem fitá-lo. — É uma plantação perto de Norfolk, na Virginia. Um autêntico paraíso terrestre. — Sorriu um pouco. — Meu pai construiu nossa casa com as próprias mãos e plantou sozinho a primeira colheita. — Ela levantou os olhos e sorriu tristemente para Devlin. — Eu amava muito meus pais. Morreram no ano passado, em um absurdo acidente de carruagem. — Ele não disse nada. Se seu relato havia lhe comovido em algum sentido, ela não notou em seu semblante. Nem um só músculo de sua face parecia ter se alterado. — Sou filha única. Sweet Briar é meu. Mas meu tutor, o Conde, vai vendê-lo para saldar as dívidas de meu pai. — Ela apoiou as mãos sobre a mesa, se firmando a madeira. — Não permitirei.
Ele a fitou atentamente e demorou um momento a se expressar.
— Compreendo. — Disse inexpressivamente. — Pensa deixar o Conde louco até que aceite saldar as dívidas de seu pai e lhe entregar as chaves da plantação.
Aquela era sua última oportunidade. Virginia segurou as mãos de Devlin, levantou o olhos e disse com voz rouca: — Se meu tio tiver que pagar um resgate por mim, jamais aceitará saldar as dívidas de meu pai. Decidiu vender a plantação sem contar sequer comigo, e seria muito difícil persuadi-lo para que mude de idéia, embora não haja resgate. Não sabe disso, Capitão? Não posso sobreviver sem Sweet Briar. Tenho que chegar até o Conde. Não pode haver resgate! Por favor, o Senhor Harvey disse que você é um homem rico. Deixe-me partir. Me leve a Londres, onde confio em que estejam me esperando. Por favor, lhe suplico.
Devlin afastou as mãos e se levantou.
— Sinto muito, — disse tranquilamente, — que você perca sua herança, mas meus planos são inflexíveis.
Ela se levantou com um gemido.
— Sou órfã! Sweet Briar é tudo o que tenho! — Soluçou.
Ele se aproximou da porta.
— Perderei Sweet Briar por sua culpa e seu maldito plano de me seqüestrar. — Ela gritou.
Ele não se voltou, mas ao sair, disse: — Não, Senhorita Hughes. Vai perder Sweet Briar porque, pelo visto seu pai era muito mau homem de negócios.
Virginia ficou sem fôlego ao ouvir a ofensa, mas antes que pudesse lhe lançar um dardo igualmente venenoso, ele saiu e fechou a porta sobre o céu cinza do entardecer.


Virginia havia resolvido que ainda restava um meio de frustrar os planos de O’Neill. Em pé junto à janela do camarote observava os escarpados da Irlanda. Tinha decidido não enfrentar mais O’Neill e havia permanecido no camarote desde a véspera. Mas há algumas horas, quando as primeiras gaivotas apareceram no céu abrira a porta em uma fresta e ouvira dizer que estavam entrando no rio que os conduziria a Limerick, em questão de horas.
Pois bem, já havia passado várias horas. A fragata avançava velozmente pelo rio Shannon. Aqui e ali Virginia distinguia uma casa ou um grupo de choças. A campina irlandesa estava verde e exuberante e em alguns momentos as colinas pareciam salpicadas de ovelhas. Quanto tempo demorariam a chegar ao porto de Limerick? Não tinha nem idéia, mas temia atrasar mais e que seu novo plano fracassasse. Aproximou-se da porta do camarote. Não havia nem rastro de Gus, o rapaz de cabelo loiro. Mas viu Jack Harvey, que estava com um aspecto abatido e severo, em pé sob o castelo de popa.
— Senhor Harvey! Por favor, Senhor. Queria falar contigo.
Harvey a fitou com incredulidade. Acima dele, Devlin se voltou, inclinou a cabeça e disse algo a Harvey que Virginia não pôde ouvir. Harvey se aproximou tão devagar que ela começou a morder o lábio inferior. Logo lhe sorriu alegremente.
— Tenho que lhe suplicar que me faça um favor. — Disse.
— Não vou participar de nenhum outro plano. — Ele começou a dizer.
— Poderia dizer ao Gus que venha até o camarote? Só quero pedir que me traga água para me lavar.
Harvey pareceu aliviado. Assentiu e se afastou. Virginia fechou a porta do camarote e desejou que houvesse outro modo de fugir. Mas Gus era muito magro e embora pesasse alguns quantos quilos mais que ela e era mais alto, teria que lhe servir. Segurou um dos candelabros de prata de O’Neill e se colocou de tal modo que, quando o rapaz entrasse ela ficasse oculta pela porta. Rezava por que Gus chegasse sozinho.
Logo que a chamavam. Ordenou que entrasse e notou em seguida que havia outro marinheiro com ele. Afastou-se da parede ocultando o candelabro a suas costas e sorriu enquanto enchiam a banheira com água quente. Quando se dispunham a partir, ela disse:
— Por favor, espere Gus. Nunca estive na Irlanda e queria lhe fazer algumas perguntas. —Como de costume, ele evitou olhar para ela enquanto despachava o outro marinheiro. Com o coração acelerado, Virginia se aproximou dele. — Tenho entendido que o país em sua maioria é católico. Como poderei encontrar um pastor Batista?
Gus pareceu desconcertado pela pergunta. Titubeou. Virginia se colocou atrás dele.
— Estou seguro de que o Capitão… — Ele ainda disse.
Fazendo uma careta, Virginia o golpeou com o candelabro na parte de atrás da cabeça. O rapaz caiu imediatamente no chão. Ela ficou imóvel. Aterrorizava-lhe tê-lo atacado muito forte, que pudesse matá-lo. Caiu de joelhos e observou que ele respirava. O sangue, entretanto, manchava a parte de atrás de seu cabelo loiro.
— Sinto muito. — Murmurou, abrindo a fivela de seu cinturão. Desabotoou-a e tirou sua calça. A visão das pernas magras, absolutamente não a incomodou. Decidiu levar sua adaga, porque talvez fosse útil. Com maior dificuldade conseguiu lhe tirar a camisa. Pegou um pedaço de corda de debaixo da cama e lhe amarrou os tornozelos e as mãos. A seguir o amordaçou com uma meia.
— Por favor, não me odeie. — Disse enquanto o empurrava para debaixo da cama. Ao vislumbrar um instante sua face pálida, se perguntou se fugir valeria à pena. O rapaz só lhe tinha mostrado respeito.
Virginia tirou o espartilho, o vestido e ficou de camisa e a calçola. Despojou-se dos sapatos e o colocou tudo sob a cama. Vestiu a calças de Gus e finalmente escondeu a trança sob o gorro de lã do rapaz. Logo se examinou e franziu o cenho ao notar que seus pés nus pareciam muito femininos. Notou então que a bainha de sua calçola de renda aparecia sob a calça.
— Maldição. — Resmungou e escondeu a barra. Correu à janela e ficou assombrada. Divisava uma extensa cidade. Uma dúzia de navios de diversos tamanhos ocupava o porto.
Então notou que começava a se formar uma multidão. As crianças saíam da cidade e corriam pela margem do rio gritando alegremente, a cada navio que se aproximava. Seus gritos estavam se tornando mais nítidos e convertendo em vivas e exclamações de júbilo. Ao se aproximarem do navio, Virginia observou que as crianças começavam a acenar com a mão e sorrir. O navio passou junto a eles e Virginia cuidou que eles os seguiam. Logo voltou os olhos para diante.
Numerosas pessoas corriam para as docas. Começou a se inquietar. Algumas daquelas pessoas pareciam ser camponeses, com suas túnicas puídas; outros pareciam bem vestidos, com casacos de lã e meias. Também as mulheres começavam a se juntar.
Virginia estava intranqüila. Ouviu O’Neill dar ordens aos gritos enquanto a velocidade do navio diminuía. Notou que uma mulher de cabelo alaranjado começava a jogar flores no navio. Não havia dúvida sobre o que a multidão gritava. O’Neill! O’Neill! Vociferavam.
Virginia não entendia nada. O navio se movia de lado e ela e ouviu o som de uma enorme âncora que era jogada no rio. Por que aquela gente se alegrava tanto com a chegada de O’Neill? Bem, não importava. Devia se preparar para fugir em seguida. Mas ao entreabrir a porta, compreendeu que importava sim… E muito.
O’Neill estava em pé no castelo de popa, contemplando a cidade e a multidão que havia saído para recebê-lo, como se fosse um rei. Não sorria. Parecia completamente absorto. Sua expressão era estranha, ao mesmo tempo intensa e encrespada. Ela não pôde deixar de se perguntar sobre seus sentimentos.
Então a jovem de cabelo alaranjado atravessou o convés e subiu no castelo de popa. Virginia notou que ela estendia os braços, com um ramo de rosas nas mãos. O’Neill pareceu notar sua presença, bruscamente. Sobressaltou-se e se voltou. A jovem atirou o ramo de flores para um lado, se adiantou, segurou em seus ombros e o beijou na boca. Virginia piscou, atônita. O’Neill abraçou rapidamente à moça e retribuiu. A multidão gritava seu nome uma e outra vez.
Virginia não podia afastar o olhar. Logo seu sentido comum foi em seu resgate. Saiu correndo do camarote e se uniu aos vários marinheiros que deixavam o navio às pressas pela passarela, enquanto o pessoal da cidade subia a bordo da mesma forma.
Ao chegar ao cais, voltou-se. O’Neill tinha afastado à mulher, mas alguém, um funcionário da cidade provavelmente, lhe estendia a mão. O’Neill a estreitou.
Virginia avançou pelo cais, chegou à rua passou entre varias carruagens e entrou em um beco abarrotado de pessoas e cheio de barracas em baixo e moradias encima. Logose pôs a correr.
Devlin encaminhou lentamente para o camarote do Capitão. O povo havia finalmente abandonado o convés e todos seus marinheiros saíram de licença. Sentia-se desanimado. Parecia que fazia uma eternidade desde que, quando pequeno, percorria aquelas ruas com seu pai e todo mundo se inclinava respeitosamente a sua passagem. Parecia ter passado uma vida inteira desde que corria por aquelas mesmas ruas, meio abobalhado, depois do assassinato do pai. Os comerciantes e mercadores o observavam e sussurravam algo piedosamente sobre o pobre menino ou sobre o assunto na colina, em referência ao casamento de sua mãe com Adare.
Estivera em casa somente uma vez desde que entrara para a Marinha, com a idade de treze anos. Já fazia seis anos. Era então era um rapaz de dezoito, apessoado e de olhar frio, que acabava de receber o comando de seu primeiro navio depois da batalha de Trafalgar. Ninguém tinha jogado rosas aos seus pés nesse dia, ao entrar no porto com seu veleiro, nem reunido tanta gente nas docas, para aclamá-lo. Mas todo mundo havia parado para vê-lo passar, a caminho de Askeaton. Houvera rumores, mas ele se negou a ouví-los. Devlin se deu conta de que não estava sozinho. Jack Harvey estava junto ao camarote, fumando um cachimbo.
— E o filho pródigo volta. — Ele disse.
Devlin se deteve. Já não estava zangado com Harvey. Não sentia nada, exceto indiferença.
— Eu não sou o filho pródigo de ninguém.
— É desta cidade.
— Essa gente necessita desesperadamente de um herói. Qualquer um, desde que seja irlandês e católico, mesmo que seja somente um feto de alguma imaginação muito vivida.
— Na frota todo mundo o considera um arrogante. Eu, ao contrário, conheço a verdade. É um dos homens mais modestos que tive a graça de conhecer.
— Está aqui por algo em particular, Jack? Faz seis anos que não vou em casa e quero chegar em Askeaton antes que anoiteça.
— Então acredito que deve se apressar. — Disse Harvey.
Devlin sabia que Harvey desejava prolongar a conversa, mas ele não. Entrou no camarote. E se sobressaltou ao notar seguida que Virginia não se encontrava. Por um momento ficou perplexo e logo, ao compreender que ela havia escapado de algum modo, sentiu uma pontada de admiração por ela.
— Que bruxinha ardilosa. — Resmungou.
Um estranho e estrangulado e ruído saiu de debaixo da cama. Devlin se aproximou e tirou Gus Pierson, nu, preso e amordaçado. Desatou os nós e tirou-lhe a mordaça.
— Foi minha culpa, Senhor. — Disse o rapaz, muito pálido. — Aceito por completo a responsabilidade da fuga da prisioneira. — Ele exclamou, se levantando.
Devlin sentiu vontade de esbofeteá-lo, mas não o fez. Ouviu que Harvey murmurava: — O que fez, de todo o modo. Também vais despedi-lo ou somente o passará pela quilha?
— Conte-me exatamente o que ocorreu. — Disse Devlin, ignorando o sarcasmo do cirurgião e jogando uma camisa e uma calça a Gus. Gus vestiu a roupa e foi enrubescendo, à medida que falava. Quando concluiu, Devlin disse: — Me ajude a encontrar à Senhorita Hughes, Gus. Quando voltar a estar em meu poder abandonará a guarda deste navio. Sua permissão fica suspensa até que ordene o contrário.
— Sim, Senhor. — Gus resmungou, mas parecia aliviado, como se tivesse esperado algo muito pior.
Mas Gus era um bom marinheiro e um rapaz valente. Devlin não o culpava pela fuga de Virginia. Não havia deslealdade alguma ali. Virginia Hughes era simplesmente, muito mais esperta que o rapaz.
— E como vai encontrá-la? — Harvey perguntou. — Certamente já estará a meio caminho da aldeia mais próxima.
Devlin sorriu friamente.
— Equivoca-se. Só há um modo sensato para que a Senhorita Hughes possa chegar a Londres, e é em outro navio. — Harvey levantou as sobrancelhas. — E por acaso o Capitão do Mystere não me convidou para jantar com ele esta noite?
— Começo a compreender. — Harvey murmurou.
— Esta partida é em um jogo de duas pessoas. — Disse Devlin se voltando para Gus. — Faça todos das docas saberem que minha noiva tenta conseguir uma passagem para Londres, e que sua devolução a mim, desconsolado noivo, será generosamente recompensada. Eu mesmo falarei com o prefeito e com a câmara de vereadores da cidade.
Gus se apressou em obedecer.
Devlin saiu do camarote. Harvey o seguiu mais devagar, resmungando:
— Pobre moça. Não tem nada a fazer.

 


Capítulo 7


Algo não estava certo.
Ajoelhada no segundo piso de um estábulo, Virginia observava pela janela que dava à rua estreita e sinuosa. Tinha caído à noite e a rua estava completamente deserta. Estava há várias horas escondida no estábulo no centro da cidade, atrás de uma carpintaria. Em todo o tempo, só avistara dois marinheiros e uma carruagem ou duas. Por que Devlin não organizou uma grande equipe de busca para encontrá-la?
Sem dúvida o ardiloso captor havia descoberto seu desaparecimento pouco depois que ela havia escapado. Certamente tinha organizado seus homens em vários grupos, para procurar minuciosamente pela cidade. Mas ela não tinha visto nenhuma equipe de busca e de seu esconderijo, ouvia as risadas e a música das hospedarias e os botequins do porto. Ouvia sim, alguma conversa entre bêbados nas ruas, alem do beco onde estava situado o estábulo. O que podia significar aquilo?
Levantou-se. Apesar de estar preocupada e receosa sabia que devia continuar adiante. Tinha que encontrar um navio que zarpasse para Londres. Desceu a escada e saiu do estábulo. Começou a andar com passo largo para o porto, segura de que a qualquer momento seu captor dobraria uma esquina e apareceria ante ela. Mas nem O’Neill e nem nenhuma equipe de busca apareceram. Era muito estranho.
Sua inquietação aumentou quando chegou ao cais. Imediatamente notou a escura silhueta do Desafio, que se balançava tranquilamente em seu ancoradouro, enorme e sombrio. As velas arriadas se destacavam vivamente contra o céu negro. Nenhuma lamparina estava acesa no camarote do Capitão, embora uma lanterna assinalasse a presença do vigia. Virginia esperava que Devlin aparecesse repentinamente no castelo de popa, como uma figura fantasmagórica, com sua camisa e sua calça branca. Mas ele não apareceu.
Seu coração pulsava com excessiva força. Por que O’Neill não a buscava? Sua súplica teria sortido efeito, depois de tudo?
Sobressaltou-se ao ouvir vozes atrás dela. Abaixou a cabeça e chegou à porta de uma barraca tentando cuidar os dois homens que passavam.
Eram marinheiros e saltava aos olhos que estavam bêbados. Virginia não os reconheceu. Claro que não podia conhecer toda a tripulação de O’Neill. Correu para eles e baixou a voz ao falar.
— Companheiros, eu estou procurando um navio para voltar para Londres. Sabem qual deles vai para lá?
Os homens se detiveram. Um deles bebia em uma jarra. O maior dos dois falou.
— O Mystere zarpa com a primeira maré, moço. Além disso, ouvi dizer que o Capitão anda carecendo de tripulação e aceita a qualquer um capaz de andar.
Virginia não podia acreditar que tivesse tanta sorte. Sorriu, radiante.
— Oh, obrigado!
O homem aproximou de repente e a fitou atentamente.
— Sua cara não me é desconhecida. Estava no Desafio?
Sem responder Virginia se voltou e saiu correndo, consciente de quão afortunada era porque os dois marinheiros estavam bêbados. O Mystere era um veleiro menor que o Desafio, perto do qual se achava atracado. Virginia subiu correndo a passarela. Um instante depois, o vigia apareceu.
— Meu nome é Robbie. — Ela disse. — Quero zarpar amanhã com vocês, se o Capitão me aceitar.
Um marinheiro ainda jovem apareceu e aproximou dela uma lanterna.
— O Capitão está jantando. — Disse. — Mas a escassez de homens é grande. Venha, Rob. Ele vai querer falar contigo.
Virginia seguiu o outro jovem. Seu coração batia alucinado.
— Quantos anos você tem? — Perguntou o vigia.
— Quinze. — Disse ela depois de uma hesitação.
— Aparenta doze. — O rapaz riu. — Mas não se preocupe. O Capitão Rodrigo não se importará.
Ante o pequeno camarote que se achava debaixo do castelo de popa eles se detiveram. O vigia bateu na porta. Ordenaram-lhe que entrasse e Virginia o seguiu.
— Há aqui um menino que quer zarpar conosco, Capitão.
Um homem largo como um barril, barbado e de olhos penetrantes se achava sentado à uma pequena mesa, comia o que parecia um jantar a base de queijo, pão, cordeiro e cerveja. Fitou Virginia atentamente, que havia ficado junto à porta.
— Aproxime-se, menino. — Disse asperamente o Capitão. — Já navegou alguma vez?
Virginia se adiantou e esquivou seu olhar.
— Sim, Senhor. Estou no mar desde os oito anos.
— Seriamente? — O Capitão do navio limpou as mãos nas coxas e arrotou. — Em quais navios navegaste?
Virginia se sentiu empalidecer. Logo lhe ocorreu uma idéia brilhante e respondeu: — No navio Americana, Capitão.
— Nunca ouvi falar dele.
— O Desafio nos capturou há um par de dias, Senhor. Certamente o Americana agora está no fundo do mar. Não acredito que tenha conseguido superar a tempestade que caiu sobre nós. Eu tive sorte, pois me levaram a bordo do Desafio. — Ela disse e sorriu o Capitão.
— E por que deixou o navio? — Rodrigo a observava com muita atenção. — Muitos de meus homens dariam um braço para navegar com O’Neill.
Virginia titubeou.
— Eu não, Senhor. Ele gosta de moços. Entende-me?.
A larga face do Capitão não mudou de expressão.
— O gosto de O’Neill por mulheres bonitas é bem conhecido. Prende-a, Carlos.
Virginia se voltou no instante em que Carlos, o moço jovem, se equilibrava sobre ela. Passou por baixo de seu braço e correu para a porta.
— Não a deixe fugir! — Gritou Rodrigo. — É a noiva de O’Neill, Maldição! E oferecem uma boa recompensa por ela!
Tudo se encaixou de repente. Pensou Virginia enquanto corria pelo convés. O’Neill não se incomodou em procurá-la, consciente que ela tentaria chegar de navio a Londres. Sentiu ódio por ele enquanto corria para a passarela.
Um grupo de homens que chegava do cais acabava de entrar na passarela. Atrás dela, Carlos gritou: — Peguem essa mulher! É a noiva de O’Neill!
Virginia vacilou enquanto os homens se detinham um momento, sem saber o que fazer, para depois começar a correr para ela. Olhou para trás. Carlos estava a poucos passos em suas costas e sorria. Virginia olhou para direita enquanto os quatro marinheiros corriam para ela.
A água parecia negra e iridescente à luz das estrelas. Reinava a calma. E ela era uma boa nadadora. Equilibrou na amurada e encarapitou-se sobre ela.
— Peguem-na antes que salte! — Gritou Carlos.
Virginia se deteve um momento no alto, tirou a adaga do cinturão, levantou os braços acima da cabeça e saltou.



Devlin caminhava pelas docas, deixando para trás as hospedarias e botequins do porto. Estava de um humor sombrio. Desde que tinha pisado em solo irlandês, cada vez que dobrava uma esquina, quase esperava ver Gerald O’Neill ali parado, disposto a lhe dizer alguma. Mas era só imaginação, naturalmente. Gerald estava morto e diferente da maior parte das pessoas, ele não acreditava em fantasmas. Além disso, o que poderia seu pai querer lhe dizer? Eastleigh estava quase arruinado. Devlin havia resolvido que vê-lo condenado a uma existência mísera seria para um castigo muito mais duro que a morte, e acaso não era vingança o bastante?
Olhos cegos o observavam atentamente, na cabeça cerceada de seu pai.
A lembrança o deixava furioso. Não havia voltado a atormentá-lo desde sua ida para Londres, e sua ausência tinha sido um grande alívio. Mas, acaso ignorava que retornar ao seu lar o desbarataria? O menino havia voltado assustado e inquieto, fragilizado e inseguro. Devlin o odiava. Sempre o odiara. Amaldiçoou em voz baixa.
Não precisava ser açoitado por lembranças do passado, após o desaparecimento de sua prisioneira. E não poderia descansar até que voltasse a tê-la em seu poder. Recordou que não se importaria se Virginia conseguisse fugir; ela era somente um pouco de sal a jogar na ferida aberta de Eastleigh, sem piedade. Mas o argumento não aliviava sua irritação. Virginia Hughes era muito mais que uma presunçosa. Era uma provocação que ele não podia deixar passar.
Enormes olhos violetas o fitavam, imploradores. E ele lembrou suas palavras. Não posso sobreviver sem Sweet Briar. Por favor, me deixe partir. Por favor, suplico-lhe… Se negava a sentir lástima por ela. Certamente não lhe desejava nenhum mal, mas se chamava Hughes e podia lhe ser útil. Entretanto, a seu pesar, tinha que reconhecer que ela era uma vítima inocente de seus planos.
Seus passos se tornaram mais lentos quando se deu conta de que, depois de tudo, se compadecia dela. Não sentia nada por Elizabeth, mas se compadecia de sua cativa, talvez por sua juventude e sua inocência. Ou porque a moça ignorava que Eastleigh não tinha recursos para salvar sua amada plantação. Os olhos violetas voltaram a confrontá-lo abrasadores, e desta vez enternecidos pelo amor.
A fúria aflorou novamente e sua força lhe assombrou. A piedade era uma fraqueza. E, se Virginia Hughes seguia desafiando sua autoridade, ele poderia com toda facilidade tornar seus olhos suaves e nebulosos. Se a dobrasse na cama não haveria mais desafios, mais tentativas de fuga. Depois, ela já não pensaria em fugir.
Nas docas de repente soaram gritos. Devlin se sobressaltou, seus pensamentos eróticos se dissiparam e ele notou que havia certo revôo a bordo do Mystere. Um grupo de homens estava subindo a bordo. Alguém no convés segurava uma lanterna e gritava. Devlin acreditou ouvir seu nome. Logo seu olhar atônito caiu sobre a amurada e imediatamente se deu conta do que acontecia. Virginia estava em pé sobre ela, disposta a se lançar de cabeça nas gélidas águas do rio. Que demônios, ela pretendia?
O coração de Devlin pareceu parar no peito. Começou a correr pelo cais quando a avistou se lançar na água. Antes que se lançasse atrás dela com o coração acelerado pela inquietação, se perguntou se a moça sequer saberia nadar.
Ao entrar na água, sentiu uma pontada de temor. A água estava negra como o breu. Depois de submergir nadou até onde ela havia se jogado, mas não a encontrou. Seguiu afundando até que as algas lhe enredaram as mãos, os braços e as pernas. Se ela ficasse presa nas algas do fundo do rio, não poderia lhe liberar. Devlin seguiu procurando-a, mas de quando em quando só encontrava um pedaço de madeira ou uma pedra.
Com os pulmões a ponto de estalar, não teve outro jeito que voltar à superfície. Ao sair respirou fundo e o ar lhe pareceu frio e doce. Então seus olhares se encontraram.
Ela se mantinha flutuando e ofegando, a alguns metros de Devlin. No corrimão do Mystere havia agora mais lanternas que iluminavam a água em torno deles. Ela parecia tão surpresa de vê-lo como ele a ela.
— Você está bem? — Perguntou enquanto se aproximava e estendia os braços.
Ela respondeu violentamente. Ao segurá-la pela mão, Devlin sentiu que a lâmina afiada de uma faca fazia um corte em seu braço. Ficou estupefato ao compreender que ela tinha uma arma e que estava lhe atacando.
Por um instante, retrocedeu. Os olhos de Virginia pareciam cheios de uma feroz determinação. Enquanto se mantinha flutuando, ela tentou lhe dar outra navalhada, desta vez no rosto. Ele a segurou, frustrando o golpe.
— Jogue a faca. — Advertiu-lhe, enfurecido.
Os olhos de Virginia ficaram enormes, alarmados.
— Não.
Devlin apertou sua mão sem compaixão. Ela gemeu e soltou a faca. Devlin a atraiu para si.
— Estive a ponto de ganhar. — Ela sussurrou e ele se deu conta que as lágrimas brilhavam em seus olhos.
A pontada da piedade surgiu novamente. Devlin a afugentou.
— Sequer se aproximou da vitória, Senhorita Hughes. E nunca se aproximará. Não, se tiver que batalhar comigo.
Uma lágrima rolou pela face molhada de Virginia.
— Algum dia vou dançar com alegria sobre sua tumba, maldito canalha.
— Não duvido. — Ele replicou subitamente consciente que ela tinha entrelaçado suas pernas ao redor de uma das suas. Então a ira se dissipou. E em seu lugar apareceu o desejo.
— O’Neill! Pegue a corda!
Devlin se deu conta que os homens do Mystere lhe jogariam uma corda. Voltou-se e um seio suave se apertou contra um lado de seu peito. O súbito arrebatamento de desejo o deixou assombrado. Segurando Virginia com um braço, ele pegou a corda. Enquanto os aproximavam do navio pareceu-lhe que Virginia começava a chorar, mas não estava seguro. Seus ofegos estranhos e ásperos podiam ser por causa do frio.


Ela não estava chorando quando chegaram ao camarote. Tiritava violentamente enquanto caminhava diante dele. Devlin se aproximou de Gus.
— Esquente algo liquido para ela, antes que se morra de febre.
— Sim, Senhor. — Disse Gus, lançando a Virginia um olhar preocupado. Ela se mantinha de costas, com os braços cruzados. Tremia e seus dentes tiritavam com ruído.
Devlin fechou a porta com a saída de Gus e acendeu várias velas.
— Será melhor que tire essa roupa. — Ordenou e passou a seu lado, para se aproximar do armário. Tirou uma camisa de dormir que nunca havia usado.
— Vá para o inferno. — Ela lhe disse com voz trêmula.
Ele a fitou. A roupa molhada de Gus se apegava a sua pele e evidenciava cada linha de seu corpo, mamilos endurecidos até o estreito talhe, e o vale que delineava seu sexo. Observou-a por um instante enquanto imaginava os pelos negros e sua carne úmida. Pareceu-lhe de repente, que fazia um calor úmido e sufocante no camarote. Sua visão tingiu de vermelho; seu membro endureceu de maneira impossível, lhe produzindo uma dor aguda.
— O’Neill? — Ela sussurrou, com aspereza.
Ele se sobressaltou, ainda sacudido pelo desejo mais intenso que já havia experimentado. Depois encontrou um ápice de prudência e lhe jogou a camisa. Manteve-se afastado dela. Seu coração pulsava com força. Por que proteger sua virgindade? Ela era o inimigo. Poderia possuí-la nesse mesmo momento e satisfazer seu desejo. Seriamente, teria importância? Importava a alguém? Ela era órfã, americana, e para Eastleigh era uma carga. A ninguém importaria que a devolvesse sem sua virgindade.
Mas importava a ele. Importava-lhe, porque era o filho de Gerald e Mary O’Neill, e tinha sido educado para respeitar às mulheres, para distinguir o bem e o mal… E para odiar os ingleses. Deus, sua cativa sequer era inglesa. Pensou com azedume.
Serviu uma dose de uísque escocês e notou que suas mãos tremiam. E não só isso. O sangue continuava apunhalando seu sexo com pressão crescente. Bebeu o uísque de um gole só e serviu outro. Mas não encontrou nenhum calor, nenhum bem-estar.
Sentiu que reinava um terrível silêncio no camarote. Voltou-se. Ela seguia onde ele havia deixado, mas o fitava com os olhos dilatados e fixos. Já não tremia. Não havia vestido a camisa. Devlin compreendeu que ela percebia seu desejo, pois deslizou lentamente seu olhar pela protuberância alongada e dura que pulsava visivelmente sob o tecido tenso de sua calça. Logo voltou os olhos ao seu rosto. Não disse nada, mas suas bochechas tinham uma intensa cor rosada.
— Sou um homem. — Disse ele. — E você uma mulher. Simples assim. — O quanto mentia maciamente.
Ela umedeceu os lábios e demorou alguns momentos antes que se expressasse.
— Você vai... — Titubeou. — O que vai fazer?
— O que quer que eu faça? — Ela ouviu-o perguntar.
Os olhos de Virginia aumentaram, surpresos. — Não sei. — Murmurou.
Ele se ouviu rir, incrédulo. Os mamilos de Virginia seguiam tensos e duros.
— Acredito que esteja mentindo, Senhorita Hughes. Acredito que esteja ardendo por minhas carícias, como ardia ontem.
Ela se enrijeceu.
— Não é certo.
— O que você deseja não importa. — Devlin serviu outro uísque. Começava a se divertir. Aproximou-se dela e lhe ofereceu o copo. — Perdeu todos os seus direitos quando se atreveu a me desafiar.
— Nunca tive nenhum direito.
— Possuía muitos, mas perdeu-os um a um. Beba. Vai ajudá-la a gerir calor.
— Já não tenho frio.
Ele quase aspirou bruscamente, porque as palavras pronunciadas com tanta inocência inflamavam-no ainda mais. Levantou-lhe o queixo com a ponta dos dedos.
— Beba. — Disse com suavidade, e então decidiu tocá-la. Acariciou lentamente o lábio inferior com o polegar.
Ela inalou e começou a respirar com excessiva rapidez. O calor e a umidade se espessaram e mal cabia no aposento. O lábio inferior de Virginia era carnudo, firme e úmido. Sua boca havia se entreaberto para ele. Uma neblina vermelha turvou novamente a visão de Devlin. Um beijo. Pensou. Somente um beijo longo, lento e premeditado. Que mal poderia fazer? Mas segurou a mão de Virginia, levantou-a e aproximou o copo de sua boca.
— Confie em mim, pelo menos nisto. — Murmurou com voz densa. Ela bebeu. Não um sorvo, mas vários. — Não é a primeira vez que prova o uísque. — Disse ele, surpreso.
Ela apertou com força o copo contra o seio. Entre seus pequenos seios.
— Meu pai gostava muito e freqüentemente me deixava tomar, quando minha mãe não notava.
Algo se retorceu dentro dele como uma faca.
Gerald havia lhe ensinado a carregar um mosquete aos seis anos; sorria e lhe sussurrava: — Mamãe me matará se souber disso, então nenhuma palavra sobre isto. Certo?
— Amava muito seus pais. — Ouviu-se dizer.
— Sim. — Ela sussurrou e baixou o olhar para a bebida. Seus olhos novamente aumentaram no rosto e suas bochechas se ruborizaram ao advertir sua aparência. — Oh! — Ela elevou os olhos, perplexa e atemorizada.
— Eu estou desfrutando imensamente — Ele replicou. Ela bebeu um pouco mais de uísque e lhe entregou o copo vazio. Voltou-se para se afastar. — Sabe, Virginia? — Devlin comentou com ar despreocupado, — tenho a impressão de que você não é nenhuma dissimulada.
Ela não respondeu, mas se inclinou devagar para recolher a camisa. A mente de Devlin corria, célere. O que ela estava tramando agora? Perguntou-se e ao apurar o uísque de Virginia notou que afinal ela relaxava. Ansiava descobrir o que ela se propunha ela, fosse o que fosse, e decidiu não tentar sequer adivinhar. Ela o fitou de soslaio por um momento. O coração de Devlin pulsou com força; aquele era o olhar de uma cortesã, não de uma órfã de dezoito anos.
Então, Virginia tirou a camisa de Gus. Sob ela usava a camisa intima, mas poderia estar nua. Tornara-se pela metade para ele, de forma que observava o quanto queria. Logo seu coração parou quando ela tirou também a camisa molhada. Ficou imóvel.
A sua frente estava um perfil perfeito, nariz delicado e lábios carnudos, seios pequenos e eretos, um torso esbelto e um ventre plano.
Consciente de que Devlin a observava atentamente, Virginia vestiu sua pela cabeça. Por um momento, seus braços nus e esbeltos ficaram erguidos e seus pequenos seios se empinaram, sua costa arqueou e seu umbigo apareceu acima do cós da calça de Gus. A determinação de Devlin se desapareceu. A camisa macia e limpa escorregou sobre a cabeça e o seio de Virginia. Logo, ela introduziu as mãos sob ela e tirou a calça de Gus e a calçola de renda com um só movimento. O sangue palpitava no sexo de Devlin e em seu cérebro.
— Obrigado pela camisa limpa, Capitão. — Disse ela sorrindo e se aproximou dele.
Devlin se achava preso em um estupor induzido pelo desejo. Mas mesmo assim perguntou-se, se estava em meio a um sonho, pois havia se tornado muito irreal. Virginia havia se transformado de repente em uma sedutora. Sorria brandamente e parou a sua frente, nua sob sua camisola.
— Gostou de beijá-la? — Ela perguntou. — A mulher do cais.
— O que? — Ele perguntou, se dando por vencido. Pousou as mãos sobre sua cintura e a apertou contra seu sexo, exatamente no lugar que lhe correspondia.
Ela deixou escapar um gemido de surpresa e seus olhos se dilataram. Devlin sorriu ferozmente e deslizou as mãos por suas nádegas. Segurou-as com força e a elevou. Virginia se segurou em seus ombros, fechou os olhos e gemeu profundamente. Possuía o rosto de um anjo e ele não podia negar que já se encontrava a beira de um clímax arrebatador. Era a mulher mais bela que havia contemplado; notou desde o instante em que a avistou na amurada do navio Americana, apontando para ele uma pistola ridícula e imprestável.
Devlin a segurou pela nuca, desejando que estivesse com o cabelo solto, e fez o que desejava fazer mais que qualquer outra coisa. Apoderou-se de sua boca. Ela gemeu novamente quando ele cobriu seus lábios e os abriu. Devlin não esperou; sua paciência desintegrou. Beijou-a com ânsia, profundamente. Ela gemia enquanto ele a inclinava sobre a cama. Devlin se tendeu sobre ela e continuou beijando-a, tentando tocá-la e saborear todas as suas curvas. As mãos de Virginia se fecharam sobre seu cabelo úmido e suas coxas envolveram as pernas de Devlin. Ele começou a esfregar seu sexo, com seu membro ereto. Duro.
Virginia tentou afastar os lábios de sua boca, desesperadamente. Surpreso, ele notou que ela estava beira do clímax. Soltou seus lábios e a fitou. Ela levantou os olhos para ele, com uma expressão selvagem e difusa.
— Por favor… — Gemeu, se retorcendo sob seu membro.
— Será um prazer. — Disse ele e sobre ela se esfregou contra seu corpo varias vezes, roçando sua carne fremente, enquanto ela se aferrava as suas costas e aos seus ombros e os arranhava. Devlin a observava, incapaz de fazer outra coisa que contemplar sua expressão. Quando notou que seus olhos se abriam de repente, quando o ardor aflorou nos olhos violetas e ela se arqueou, gemendo e indefesa, a tensão se tornou impossível de resistir. O dique rompeu. Obstinada a ele, Virginia gemia impudicamente enquanto ele estremecia, possuído por espasmos tão repentinos e incontroláveis como os dela.
Os gemidos de Virginia se dissiparam. Devlin jazia sobre ela e respirava com aspereza, absolutamente perplexo. Acabava de dar um terrível passo em falso e sua pequena cativa havia alcançado o clímax sem o menor esforço de sua parte. Ainda perplexo se afastou dela e se sentou bruscamente. Não se atrevia a fitá-la. Nem pensar. Levantou-se bruscamente, pegou roupa limpa do armário e se despiu com rapidez.
Bloqueou implacavelmente qualquer pensamento e se concentrou na tarefa que tinha nas mãos. Abotoou a calça, mas sentia o olhar de Virginia fixo nele. Zangou-se ainda mais. Estava quase furioso, e sabia que não devia olhar para ela. Mas finalmente uma idéia se introduziu em sua mente. Provavelmente aquele devia ter sido seu primeiro clímax…
Voltou-se seus olhos se encontraram.
— Foi sua primeira vez?
Ela estava sentada contra os travesseiros. As mechas de seu cabelo negro desciam ao redor de seu rosto delicado. Os olhos enormes estavam cravados nele. Com sua longa camisa, ela parecia terrivelmente ingênua.
— O-o quê? — Seu rosto começou a ruborizar.
— Foi a primeira vez que te aconteceu um orgasmo?
— O-org-orgasmo? — Ela parecia aturdida.
— Alcançar o clímax. — Ele acrescentou furioso com ela e consigo mesmo, com Eastleigh e com o mundo. Aproximou-se. — Alcançar o clímax… A petite mort, como o chamam os franceses. Significa ter um orgasmo, se a gente quer ser clínico.
— Refere ao que aconteceu afinal? — Ela não afastou o olhar.
Ele assentiu com a cabeça. Sentia de repente o desejo de jogá-la de sua vida a chutes. — Quando começou a gritar como uma rameira. — Disse com frieza e odiou a si mesmo por ser tão cruel, ao mesmo tempo em que desejava, impotente, ser ainda mais.
Ela engoliu saliva.
— Sim.
O alívio se apoderou de Devlin… O que só aumentou sua fúria.
— Lembre-me de nunca voltar a te oferecer uísque. — Disse.
— Isto não teve nada a ver com o uísque. — Ela lhe disse, trêmula . — Senão contigo.
Ele se afastou. Não queria ouvir uma só palavra mais.
— Nunca haviam me beijado, Devlin. — Disse ela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 8


Virginia chegou à conclusão que odiava seu vestido de seda azul escuro e a casaca negra que o acompanhava, quase tanto como o odiava. Observava seu pálido reflexo no espelho de Devlin. Era manhã. Tremeu e desejou que ele estivesse morto.
Mas resolveria o que, exatamente? Ela seria livre sim, para ser infeliz ao seu modo, mas não se livraria de sua lembrança.
Ruborizou-se. Estava lhe acontecendo algo espantoso. Pelo menos parecia claro. Porque embora nenhuma mulher pudesse ser imune a um homem como Devlin O’Neill, só a uma tola, depois que a retivesse contra sua vontade teria ocorrido provocá-lo que a beijasse.
— Está preparada? — Ele perguntou de fora do camarote. A noite anterior não havia dormido no camarote. E havia fechado o camarote com chave ao partir.
O pior de tudo pensou Virginia enquanto se perguntava quem era realmente a mulher lasciva que a observava do espelho e que ansiava ainda por suas carícias. Queria saber havia se imaginado ocorrido. Sem dúvida, que a agitação de se encontrar em seus braços, de sentir sua boca e seu corpo sobre o dela, não tinha sido tão viva como se lembrava. Tinha que ser um terrível engano.
Ele estava vestido com uma casaca cinza pálida que harmonizava com seus olhos, calça de montar e botas muito gastas. Parecia impaciente. Seus olhares se encontraram imediatamente no espelho. Virginia não conseguiu respirar. Ele a fitou de cima a baixo.
— Faremos com que engomem sua roupa em Askeaton. Venha. A carruagem espera.
Virginia mordeu o lábio, se voltou e passou ao seu lado com toda cautela, como se temesse que ele a abraçasse… ou ela abraçá-lo. Os olhos de Devlin se semicerraram enquanto a fitava.
— Esqueça o que aconteceu ontem à noite. — ele lhe disse, de repente. — Foi um engano e não voltará a acontecer.
Ela se voltou bruscamente.
— Por que não?
— Então está ansiosa para esquentar minha cama? Um breve encontro e já mudou de déia?
— Não importaria que compartilhasse minha cama. — E era a terrível verdade.
Os olhos de Devlin se dilataram. — Não quer ser virgem e casta em sua noite de casamento? — Ele perguntou finalmente, gravemente.
— Nunca pensei nisso. — Disse ela com sinceridade.
Ele se sobressaltou.
— É a única coisa que as mulheres pensam, com o que sonham, para o que vivem…
— Eu não! — Replicou ela, zangada. — Não tenho intenção de me casar, a menos que encontre o amor que meus pais compartilharam.
Ele a observava com estupor. Mas logo se atreveu a rir. — Ninguém se casa por amor. — Disse friamente. — Se é que essa emoção existe.
Ela sentiu vontade de lhe dar um chute na canela. — Meus pais se amavam e casaram por amor. Lamento que seus pais não se amassem. — Disse, zangada. — Pode ser que isso explique sua crueldade e sua falta de compaixão.
Ele se aproximou bruscamente e se abateu sobre ela.
— Não volte a mencionar meus pais. Não é assunto teu. Entendeu-me?
Ela recuou. Como era possível que o tivesse enfurecido tanto?
— Poderia ser mais sincero.
— E tenho que te lembrar que desde que esteja a bordo de meu navio, ninguém, inclusive eu foi cruel contigo? A menos que considere uma crueldade a doce morte que experimentou ontem à noite…
— Deixar-me, com a curiosidade de saber como se sente uma mulher quando o ato se culmina de verdade, isso sim foi cruel. — Virginia se ouviu dizer. Ele pareceu atônito. Então ela compreendeu que havia ruborizado. — Não deixo de me perguntar como seria…
Devlin a pegou pelo braço e a arrastou do camarote. — Lamento que não possa controlar seus pensamentos. — Disse laconicamente.
— Não pode se zangar agora que tenho curiosidade, quando é tudo culpa sua! — Ele gritou.
— Culpa minha? — Devlin a levou pela passarela. — Acredito que foi você quem me seduziu, Senhorita Hughes.
— Tenho dezoito anos. Nunca tinha beijado ninguém. Como te seduziria? — Diante deles estava uma carruagem e um cocheiro com libré. Um grande cavalo cinza estava selado e preso na parte de atrás da carruagem. Virginia compreendeu que a carruagem era para ela e o cavalo para ele. Que delicioso seria voltar a montar. Pensou. Mas imediatamente lembrou que não diria a Devlin que era uma magnífica amazona, no caso de novamente se apresentasse a oportunidade de fugir.
Devlin a ajudou a subir na carruagem. Ela se atreveu a fitar os olhos cinza e frios. Ele continuava zangado com ela. Era simplesmente ridículo.
— Espere. — Disse brandamente, antes que ele pudesse afastar. Ele se deteve impaciente, com o queixo endurecido de tensão. — Por que é tão terrível o que aconteceu ontem à noite? Acaso não gostou? Pareceu-me que sim. Claro, que eu não tenho experiência, mas…
Devlin de repente fechou a porta em seu nariz.
— Bom dia, Senhorita Hughes.


Virginia observava tudo pela janela da carruagem, com avidez. Embora o dia estivesse acinzentado e ameaçando chover, a paisagem era uma sucessão de colinas verdes belas e férteis, pastos e campos de lavoura. Passaram por algumas granjas pequenas, onde todas as casas eram pequenas e pareciam idênticas. Diante deles, Virginia divisou uma igreja de pedra e, mais adiante alguns outros edifícios de aspecto imponente que ela não pôde distinguir.
De repente Devlin se aproximou da janela, que estava aberta apesar do dia frio.
— Aqui é Askeaton. — Disse com orgulho. — Todas estas terras, até onde alcança a vista, me pertencem.
— É muito bonito. — Ela lhe sorriu. — Me lembra Sweet Briar, Devlin.
Ele a fitou atentamente e logo, bruscamente, se adiantou galopando.
Agora ele se enfurecia mais facilmente que antes, quando haviam se visto pela primeira vez, pensou, e colocou a cabeça para fora da janela a fim de poder observá-lo. Notou então que os edifícios mais adiante pertenciam a uma casa Senhorial. Distinguiu vários estábulos, algumas casas menores, uma bela mansão rodeada de jardins em flor, e na distância uma velha torre ou um castelo. Acelerou-lhe o coração. Sentia curiosidade em conhecer o lar de Devlin e sua família… Se tivesse família, claro.
A carruagem se deteve diante da casa Senhorial. Virginia não aguardou o cocheiro Le abrir a porta e desembarcou rapidamente. Devlin em pé, com as mãos na cintura observava a casa e os prados que a rodeavam, os edifícios pelos quais acabavam de passar, mas logo se voltou a examinar a casa. Virginia não conseguia adivinhar o que ele estava pensando. A casa de três pisos parecia muito nova, com exceção feita das duas chaminés e uma parede exterior. As trepadeiras subiam pelos muros e de um lado havia um caramanchão.
A porta se abriu saiu por ela e um homem alto, moreno e musculoso.
— Dev!
Seu captor se voltou. Atenta em sua expressa,o Virginia ficou sem fôlego, pois seu semblante refletia uma alegria pura e radiante. Ficou bem quieta enquanto o mais jovem dos dois homens descia correndo pelo caminho de pedras.
— Sean! — Disse Devlin com voz rouca.
Os dois homens se abraçaram fortemente. Virginia se aproximou um pouco. Aquele devia ser seu irmão. Eram de idades muito parecidas e Sean era também muito bonito, com os mesmos olhos cinza, inconfundíveis, embora seu cabelo fosse quase negro. Eles se separaram.
— Já era hora, por Deus! — Sean exclamou com um sorriso.
— Sim, já era hora. — Disse Devlin. — A casa está com muito bom aspecto, Sean. Está claro que foi bem construída, e eu gosto da porta nova.
— Pois espere até ver o saguão. Acredito que gostará dele. — Sean se deteve de repente e seus olhos se dilataram ao avistar Virginia. — Temos uma convidada?
Devlin se voltou e Virginia recebeu o calor de seu sorriso. O sorriso fez com que um terrível desejo brotasse de dentro dela.
— Sim, temos uma convidada. — Disse ele, estendendo a mão. — Venha Virginia. Quero que conheça meu irmão, Sean. — Disse ele, e seu belo sorriso se dissipou. Mas seu tom conservava ainda uma leveza que ela não havia percebido antes.
Virginia compôs um sorriso e se aproximou.
— Olá. — Disse.
— Oxalá soubesse que teríamos companhia. — Disse Sean com preocupação. Seu olhar, surpreso oscilava entre Virginia e Devlin. — Mas acredito que Fiona poderá preparar o quarto amarelo em seguida.
— Esta é a Senhorita Hughes, Sean. Senhorita Virginia Hughes, de Sweet Briar, na Virginia.
Virginia notou que Sean se sobressaltava.
—Senhorita Hughes? — Ele repetiu
Por que ele se surpreendera tanto com seu nome? Perguntou Virginia, desconcertada.
— Vamos tomar um vinho. Temos muitas coisas que conversar. — Disse Devlin dando uma palmada nas costas do irmão. Mas Sean continuava olhando atentamente para Virginia… E não parecia feliz.
De repente soou um grito feminino. Virginia se assustou e então notou que uma mulher de cabelo negro saía correndo da casa. Por um instante distinguiu um cabelo denso e liso, muito negro, uma figura voluptuosa e um enorme sorriso, enquanto soavam novos gritos de alvoroço. Enrijeceu ao ver que a mulher parava em frente a Devlin. Sua blusa decotada quase deixava seus seios a descoberto. Era morena e tão sensual que quase parecia espanhola ou cigana.
— Milord! Bem vindo! Oh, Capitão O’Neill! Bem vindo! —Ela gritou como se estivesse a ponto de saltar em seus braços… E em sua cama.
Virginia cruzou os braços e franziu o cenho. Um olhar de surpresa atravessou o rosto de Devlin.
— Fiona?
— Sim, Milord. Sou eu! — Gritou a jovem juntando as mãos. — Quanto tempo, Milord! Estou tão contente que tenha voltado! Todos nós estamos, Senhor Capitão! O herói de Askeaton voltou! Estamos tão orgulhosos de você!
— Obrigado. — Disse Devlin cortesmente.
— O que posso fazer por você, Milord? — Ela perguntou, e seu tom não deixava margens a dúvidas. Virginia se convenceu de que aquela mulher já tinha desfrutado do amor de Devlin no passado e pensava voltar a desfrutar, muito em breve.
— Acompanhe à Senhorita Hughes à habitação de convidados. Por favor. — Disse Devlin. — E lhe leve uma bandeja com um lanche quando estiver instalada.
Fiona piscou e fitou a Virginia pela primeira vez. Seu olhar deslizou pela figura da recém chegada, voltou a subir e imediatamente se tornou desdenhosa. Voltando para o Devlin, ela sorriu.
— É obvio, Milord. Alegro-me tanto em voltar a vê-lo… — Ela fez uma reverência e Virginia pensou que os seios dela sairiam da blusa, mas não aconteceu.
— Também me alegro muito em estar em casa. — Disse Devlin. Ele examinava a casa, como se inspecionasse cada palmo dela. Sua expressão era um pouco mais suave que de costume. Fazia-lhe parecer humano.
Virginia quase relaxou. Devlin não parecia ter notado que Fiona era muito bonita e voluptuosa, e que estava ansiosa entrar em sua cama. Mas, por que se preocuparia? Na noite anterior ela o tinha seduzido. Não precisava ter mais experiências com homens para saber que Devlin O’Neill havia se sentido tão arrebatado como ela.
— Connor, pegue as malas da Senhorita Hughes. — Ordenou que Sean a outro criado. — Por favor, acompanhe à Senhorita Hughes ao quarto amarelo, Fiona. E traga flores. — Acrescentou.
Fiona assentiu sem olhar para ele. Só tinha olhos para Devlin. Ele se voltou de repente e se aproximou de Virginia.
Ela não se moveu.
— Não há aonde ir. Até onde alcança a vista, estas terras pertencem para mim e ao meu padrasto, o Conde de Adare. Entendeu-me, Virginia? — Ele perguntou em tom ameaçador.
Virginia recordou facilmente que ele havia frustrado sua tentativa de fugir em Limerick. Não lhe restava dúvida que tentar fugir dele, no coração de suas posses, seria inútil. Sorriu-lhe.
— Não tentarei fugir outra vez. — Disse com suavidade. Sentia muita curiosidade, para tentar fugir novamente. A notar que havia lhe surpreendido, acrescentou: — Te dou minha palavra.
Por um momento, Devlin a fitou atentamente. — Rogo que repense o que se propõe a fazer. — Disse secamente.
— Como sabe que me proponho a fazer alguma coisa? — Ela perguntou com doçura. Mas era certo que pensava fazer. Antes de abandonar Askeaton e a Irlanda desejava experimentar tudo o que havia descoberto entre os braços poderosos de seu captor… E ainda mais. O anseio que Devlin havia despertado nela era muito grande para ficar ignorado ou para resistir a ele.
— Você é muito ardilosa e teimosa para se dobrar sem mais, as minhas ordens. — Ele respondeu devagar.
— Isso era antes… E agora é outra coisa. — Ela murmurou depois de vacilar um momento. — Pode ser que aceite suas ordens, Sir Devlin.
Devlin se inclinou para ela. — Nem pense em voltar a me tentar.
— Por que não? — Replicou ela em um sussurro.
Ele pareceu completamente surpreso.
— Porque sou muito mais forte que você, Virginia. E sugiro que não se esqueça disso. — Ele lhe lançou um olhar duro e começou a caminhar para seu irmão, que os ouvia absorto.
Mas Virginia começava a compreender seu captor. Sorriu tão docemente como antes.
— Nunca disse que não era. — murmurou.
Ele se sobressaltou, mas não se deteve. Sean parecia muito inquieto. Finalmente seguiu seu irmão para dentro da casa. Virginia começou a sorrir. De algum modo parecia ter ganhado o último confronto. Logo levantou os olhos e se deparou com os olhos negros e hostis de Fiona.


Era notório que quarto amarelo não era usado há anos. Junto à porta de um espaçoso dormitório com as paredes pintadas de um tênue tom dourado, Virginia observava como Fiona sacudia com raiva os travesseiros, das quais saía o pó.
Observou ao seu redor. O aposento era muito mais luxuoso que a seu em Sweet Briar. A cama com dossel tinha uma colcha de veludo dourado e cortinas que combinavam recolhidas com cordões de cor dourada como o ouro. Um tapete amarelo e marrom cobria grande parte do assoalho, um pouco arranhado, mas brilhante. A lareira tinha um suporte de ébano lavrado e junto a ela havia um divã de aparência macia e uma poltrona. Vários quadros antigos e paisagens adornavam as paredes. Virginia se aproximou de uma janela e deixou fugir uma exclamação de prazer. A visão era admirável. Seus olhos percorreram os campos ondulados, a série infinita de pastos verdejantes e as colinas e finalmente, chegaram até a margem nua do rio. A sua esquerda se encontravam as ruínas de um castelo de pedra.
Virginia encostou-se ao marco da janela. Irlanda a atraía de algum modo, tanto quanto sua casa, embora a paisagem fosse muito diferente. Perguntou-se como se sentiria se conhecesse Askeaton em outras circunstâncias. Provavelmente não gostaria de partir.
Fiona tinha parado de arrumar o leito. Virginia se afastou da janela e a encontrou fitando-a com hostilidade. Devia ter a idade de vinte e cinco anos, pensou Virginia.
— Eu gostaria de tomar chá ou um lanche. — Disse Virginia como se fosse Sarah Lewis e estivesse no Colégio Marmott.
Fiona ficou rígida.
— Trago em seguida. — Ela disse, mas não se moveu.
— E gostaria de algumas rosas do jardim. — Acrescentou Virginia exagerando seu tom. — Ah, o vestido! Ajude-me a tirá-lo. Terá que engomá-lo em seguida.
Fiona parecia disposta a lhe arrancar os olhos.
— Será sua esposa? — Perguntou irada.
Virginia se sobressaltou, mas logo encolheu os ombros com indiferença. Sua esposa. Algum dia, Devlin O’Neill assentaria a cabeça, teria esposa e filhos. Por que aquela idéia a cativava? Quando esse dia chegasse estaria em casa, em Sweet Briar, e provavelmente fosse uma velha de cabelo branco. A agitação que experimentava a pouco tempo e que parecia brotara cada vez que pensava em seu captor, se apoderou dela com força. Finalmente levantou o olhar.
— Possivelmente — Conseguiu dizer com presteza. Fiona se sobressaltou, carrancuda. — E você? Foi sua amante? Pareceu-me a princípio, mas ele não te reconheceu, então já não estou segura.
Fiona se aproximou dela devagar.
— Fazia seis anos que ele não vinha a casa. — Ela sibilou. — Eu era uma menina naquele tempo, naquele tempo, só tinha quinze anos e lhe entreguei minha virgindade. Agora sou uma mulher e conheço alguns truques que ele gostará. Estou segura disso. Estou desejando que chegue esta noite, Senhorita. Morro de vontade de lhe dar prazer. Amanhã ele nem se lembrará de seu nome.
Virginia enrijeceu. Temia que Fiona tivesse razão. Odiava imaginar que Devlin teria sido o primeiro amante da criada. Provavelmente ele sentisse nostalgia de sua aventura amorosa.
— Quantos anos você tem? — Fiona perguntou com desdém.
— Vinte. — Mentiu Virginia.
Fiona girou os olhos.
— Parece que tem dezesseis. Permita-me lhe dizer algo, Senhorita. Ele nunca a olhará, como a mim. É muito fraca. Os homens gostam das mulheres com carne nos ossos. Pelo menos, um homem como ele. — Ela segurou os grandes seios, sorriu e suspirou.
Virginia lhe deu as costas. Sua confiança se dissipara por completo. A quem pretendia enganar? Se Devlin pudesse escolher procuraria Fiona. Não restava nenhuma dúvida. Devia se alegrar. Mas não se alegrava. Estava confusa e sentida. Fiona zombou dela.
— Busque outro, Senhorita. Aqui em Askeaton nós não gostamos dos ingleses e seus ares de grandeza. Aqui não há lugar para você e os de sua estirpe. Volte para onde veio. — Fiona saiu do aposento, triunfalmente.
Virginia correu atrás dela.
— Sou americana! Americana, e não inglesa!
Mas, se Fiona importou, não deu amostras. Seu passo não vacilou enquanto percorria apressadamente o corredor. Virginia voltou a entrar em seu quarto e fechou a porta. Notou que Fiona não tinha lhe ajudado a se despir e Enem havia levado o vestido amarrotado. Nem pensava em lhe levar água, comida, flores ou qualquer outra coisa. Pegou uma pequena cadeira e a aproximou da janela. Permaneceu sentada em silêncio, contemplando com desânimo a paisagem e pensando em seu captor.


Devlin serviu duas taças de uísque. Sean o observava com olhar sombrio e zangado. Devlin lhe ofereceu uma taça sem lhe emprestar atenção. Seu olhar percorreu a biblioteca e se dirigiu logo às portas francesas e ao terraço que se estendia do outro lado. Que agradável era estar em casa.
Gerald lhe sorriria cúmplice. Nenhuma palavra disto a sua mãe. Ouviu-me?
Devlin se aproximou das portas do terraço. Em vez sorrir, bebia.
Os olhos de seu pai, grandes e furiosos, fitavam-no do vulto sanguinolento que tinha sido sua cabeça.
— Vais se explicar? É a filha de Eastleigh? Já não te basta estar se deitando com sua mulher? — Sean perguntou, enfurecido.
Devlin afastou a espantosa lembrança e elevou a taça para Sean.
— É sobrinha de Eastleigh. É americana e órfã.
— Isso explica tudo. Que demônios pretende? — Sean perguntou. — E quantos anos tem? Você seduziu uma moçinha? — Ele parecia incrédulo.
Devlin estudou o conteúdo de sua taça com aparente indiferença.
— Ela tem dezoito anos e não, não a seduzi. — Disse, e se perguntou o que diria seu irmão se lhe dissesse que talvez fosse ela quem decidiria seduzi-lo. — Pedirei um resgate por ela, Sean. — sorriu. — Eastleigh está para ser preso por causa de suas dívidas. Não pode se permitir pagar um resgate, e menos ainda o resgate que penso em pedir. — Ele sorriu. — É bem possível que para liberar a sua sobrinha tenha que vender Eastleigh. Este pode ser o momento que estávamos esperando.
— E a vingança é minha, disse o Senhor. — Sean replicou com aspereza. — A vingança pertence a Deus, não a você. Este é o momento que você esperava, não eu. — Deixou a taça sem tê-la provado.
— Pode que ser não compartilhe meu entusiasmo, mas faço isto tanto por mim como por você. — Disse Devlin abrindo a porta e respirando a brisa limpa da primavera. Não queria discutir com Sean por causa de sua vingança com o Conde de Eastleigh. O assunto era velho e fatigante. A cada vez que via o irmão, uma ou duas vezes ao ano, dependendo de quão freqüentemente se encontrassem em Londres ou em Dublin, o assunto sempre vinha à tona.
— Faça por você mesmo. Deus, quando deixará nosso pai descansar em paz? — Perguntou Sean e em seguida acrescentou: — Graças a Deus, mamãe e Adare estão em Londres.
Devlin se voltou, zangado.
— Gerald nunca descansará em paz e você sabe disso. Quanto a nossa mãe, não tem por que se inteirar do assunto.
Sean o fitou com irritação.
— Se o espírito de nosso pai vaga pela terra é porque você não o deixa descansar em paz. Santo Deus! Você deixou o homem na ruína. Quando se deterá? Quando se desfará dessa obsessão e encontrará um pouco de paz?
— Talvez, se tivesse tão boa memória como eu você também gostaria de se vingar. —Devlin retrucou.
O olhar de Sean se gelou. — Acha que não desejaria recordar esse dia? Você fala como se eu tivesse perdido a memória de propósito. Não sei por que a mente me falhou assim, mas não me acuse de complacência por não recordar o dia terrível em que nosso pai foi assassinado.
— Sinto muito. — Respondeu-lhe, Devlin. Às vezes sentia remorso por ser o único que perseguia o fantasma de Gerald, pois seu irmão e sua mãe não pareciam sofrer como ele sofria.
— E a Marinha? O Almirantado vai permitir uma coisa desta, que seqüestre a uma americana e ataque à aristocracia inglesa? — Sean perguntou.
— Eastleigh não permitirá o seqüestro se torne público. Seu orgulho o obrigará a pagar pela liberdade de Virginia. Estou seguro de que ninguém se inteirará deste pequeno jogo.
— Pequeno jogo? Abusar de uma moça inocente é um pequeno jogo? Nosso pai está se revolvendo em sua tumba neste preciso momento. Você foi muito longe! — Exclamou Sean. — E o que me diz da Senhorita Hughes? Se ela procurar às autoridades, você poderia perder a cabeça. E não digo metaforicamente.
Devlin pôs a mão sobre o ombro rígido de Sean.
— Não tenho intenção de perder a cabeça, Sean. — Disse com suavidade.
— Acha-se invencível. Mas não é.
— Confie em mim. Eastleigh vai querer saldar este assunto em seguida. Seu orgulho é a única coisa que lhe resta.
Sean o fitou com expressão áspera e angustiada.
— Não aprovo sua conduta, Devlin. Deus! Sequer sei mais quem você é. — Sean se desesperou de repente.
— Sou seu irmão.
— Sim, meu irmão. Um estranho que nunca vejo, pois que está claro que estas terras lhe aborrece. Diria que não pode ficar aqui nem duas semanas. É pouco mais que um desconhecido obcecado pela vingança. Compadeço-me de você, Devlin.
Devlin proferiu um som zombeteiro, apesar de já se sentir incômodo.
— Deveria reservar sua compaixão para quem a necessite. Talvez para a bela Senhorita Hughes?
Sean não se alterou.
— Não negarei que a acho extraordinariamente atraente. Só espero que nunca necessite de minha compaixão, Dev.
— Quando chegar a conhecê-la melhor, descobrirá que não é o tipo de mulher da que alguém se compadece. — Devlin quase sorriu ao pensar na coragem de Virginia.
Fez-se silêncio. Devlin se voltou e encontrou Sean observando-o atentamente, com os olhos enormes e escrutinadores.
— Quase parece sentir algum afeto. — Disse.
Devlin vacilou.
— Não lhe tenho afeto, Sean. Mas, francamente, a coragem dela é assombrosa, embora temerária.
— Então, admira-a. — Disse Sean em voz baixa.
Devlin começou a se impacientar.
— Já basta de falar da Senhorita Hughes! Esse assunto me cansa. Quando Eastleigh pagar seu resgate, ela partirá. Até então é nossa convidada. — Ele enfatizou o plural deliberadamente fitando atentamente o irmão. Depois acrescentou brandamente: — Sua lealdade a mim está acima de seu nobre sentido da honra e de sua desaprovação, não é certo? — Sean cruzou os braços sobre o peito, visivelmente irritado. — Sean?
Seu irmão falou com aspereza.
— Sabe que jamais te trairia, embora me indigne o que pensa fazer.
Satisfeito, Devlin se aproximou da bandeja de prata com as garrafas e os copos que havia em cima do aparador e se serviu de outra taça. O silêncio se prolongou.
— Está bem. — Disse finalmente com um suspiro. — O que acontece? O que deseja me participar?
— Se Eastleigh estiver tão empobrecido, o que te faz pensar que pagará um resgate por sua sobrinha americana, que provavelmente nunca a viu?
Devlin o fitou atentamente.
— Ele pagará.
— E se não pagar? — insistiu Sean.
Devlin sentiu que todo seu ser se endurecia.
— Então terei que provocá-lo publicamente até que não tenha mais remédio que resgatar nossa pequena convidada. Até que se converta em uma questão de honra.
— Para destruir Eastleigh terá que destruí-la também, não é certo? Como pode viver em sua pele? — Sean exclamou.
— Muito facilmente. — Disse Devlin, mas até ele sabia que sua resposta era falsa.
— Você é um canalha. — Disse Sean.

 

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 9


A casa parecia terrivelmente silenciosa, pensou Virginia ao entrar no grandioso saguão. Havia passado a tarde percorrendo os jardins e visitando os estábulos, onde Devlin tinha alguns cavalos excelentes. Sobretudo, uma bela égua baia. O anoitecer se aproximava rapidamente. Virginia havia se banhado em água perfumada e se vestiu um dos trajes de noite de sua mãe que Tillie havia arrumado apressadamente, antes de sua partida de Sweet Briar. O vestido era de seda rosa brilhante, com pequenas mangas bufantes e decote baixo. Virginia havia se irritado para arrumar os pesados cabelos. Se tivesse sorte as presilhas permaneceriam em seu lugar até que ela as retirasse, nessa noite.
Perguntava-se onde estaria seu captor.
Atravessou o saguão e se parou diante de duas portas abertas que conduziam a outro aposento, menor e mais íntimo, com paredes de cor verde musgo. Um homem se levantou de um sofá de brocado escuro. Era Sean.
— Oh, não sabia que havia alguém aqui. — Disse Virginia. — Espero não incomodar.
Ele se adiantou. Estava vestido com uma casaca de noite azul, calça de cor clara e meias. Seu olhar era de franca admiração enquanto lhe sorria.
— Não seja por isso, Senhorita Hughes. Depois, já quase é hora do jantar. Gosta de um xerez ou prefere um pouco de champanhe?
Ela também teve que admirá-lo. Com o cabelo negro e seus claros olhos acinzentados ele era tão bonito como seu irmão mais velho. Igual a Devlin era alto, de costas largas, pernas alongadas e quadris estreitos. Seu corpo parecia tão musculoso como o do irmão.
— Eu adoraria uma taça de champanhe. — Disse ela.
Sean serviu rapidamente duas taças da garrafa que havia sobre o aparador e lhe deu uma.
— Está arrebatadora com esse vestido, Senhorita Hughes. — Disse.
A ela pareceu que Sean se ruborizava.
— Deve me chamar Virginia, Senhor O’Neill. E muito obrigado. — Virginia titubeou. — Este vestido pertencia a minha mãe.
— Sinto muito sobre seus pais. — Disse ele imediatamente. — E, por favor, me chame Sean.
Ela se surpreendeu e fitou os olhos cinza, amáveis e preocupados.
— Sabe sobre meus pais? — Virginia perguntou.
— Dev mencionou que você era órfã.
Ela assentiu.
— Foi um acidente de carruagem, no outono passado.
— Às vezes não há modo de compreender os intuitos de Deus.
— Não estou segura de acreditar em Deus. — Ela replicou.
Os olhos de Sean ficaram enormes. — Pois é uma lástima. Mas confesso que houve momentos em que eu também tive minhas dúvidas.
— Então devemos ser dois humanos inteligentes. — Disse ela com um sorriso.
Ele retribuiu o sorriso. Virginia gostou de sua risada, que era cálida e agradável, muito diferente do som estranho que Devlin fazia nas estranhas ocasiões em que parecia tentar sorrir.
— Você e ele não se parecem em nada, não é?
— Não. — Sean a estudou atentamente.
— Como é possível? Não são quase da mesma idade?
— Eu sou dois anos mais novo. — Sean lhe respondeu. — Devlin cuidou de mim quando nosso pai morreu. Essa é uma das razões que explicam nossas diferenças.
— E as outras? — Ela perguntou decidida a averiguar o quanto pudesse a respeito de seu captor. Ele sorriu ironicamente e encolheu os ombros. — Não entendo Devlin. — Ela prosseguiu. — É muito valente, isso está claro, quase temerário, acredito… — Ela se recordou como ela havia desafiado o temporal para salvar seu navio... — E isso não é muito humano, não acha?
— Ele não tem medo. — Concordou Sean. — Acredito que a ele não importa viver ou morrer.
Virginia o fitou estranhamente.
— Mas ninguém deseja morrer.
— Não disse que deseje morrer, só que a idéia não o assusta como aos outros simples mortais.
Virginia considerou a idéia e imediatamente compreendeu que Sean tinha razão.
— Mas, por quê? Que tipo de homem mostra indiferença pela própria vida?
Sean guardou silêncio. Virginia compreendeu de repente a única resposta possível: só um homem profundamente ferido ou amargurado seria tão indiferente a vida. Estremeceu e bebeu rapidamente seu champanhe. Quão complexo era Devlin O’Neill.
— Seus homens o respeitam e admiram. — Disse quase para si mesmo. — E na cidade parecem considerá-lo um herói. Eu mesma vi o quanto é hábil no mar, então entendo que seus homens o admirem. Mas, e na cidade?
— Você sente muita curiosidade por meu irmão. — Comentou Sean.
— Sim, é certo. Afinal de contas ele capturou o navio em que eu estava e logo me capturou. Simplesmente, não entendo por que quer pedir um resgate, quando salta aos olhos que não necessita o dinheiro.
— Talvez devesse perguntar a ele. — Disse Sean.
— Pode ser que eu pergunte. —Virginia replicou, pensativa. — Embora esteja segura de que não fará mais que se zangar. É um homem colérico. Por que ele é assim? Você não é. Vejo bondade em seus olhos.
— Eu não sou Capitão de navio e nem vivo no mar onde é crucial manter uma disciplina que, uma vez perdida, se torna impossível recuperar. — Sean suspirou então. — Há uma diferença fundamental entre nós. Quando éramos pequenos vimos nosso pai ser brutalmente assassinado por um soldado inglês. Devlin nunca esqueceu esse dia. Eu não me lembro nada dele.
Aturdida, ela o fitou tentando compreender.
— Quantos anos ele tinha?
— Dez anos e eu oito. Após isso Devlin foi como um pai para mim. Sempre teve muito presente em suas responsabilidades como chefe do clã dos O’Neill aqui, no sul da Irlanda.
— Que horror! — Disse Virginia em voz baixa. — E que afortunado é você em não se lembrar. Não posso imaginar como me sentiria se tivesse visto meu pai ser assassinado. Acredito que tentaria matar o assassino. — De repente, a personalidade de seu captor começava a ter sentido. Era lógico que era um homem duro e frio. Havia aprendido uma lição brutal quando pequeno, uma lição que obviamente havia afetado seu caráter. Talvez por isso tivesse escolhido a vida dura e desumana da marinha.
— Então, pode ser que tenhamos mais coisa em comum do que acreditam. — Devlin murmurou.
Virginia se voltou e o viu na porta, com ar despreocupado e tão esplendidamente vestido como seu irmão, embora usasse seu uniforme naval. Com sua casaca azul marinho cheia de botões e galões dourados e sua calça branca compunham uma figura muito atraente, tanto que o coração de Virginia pareceu parar no peito. Já não havia comparação possível entre os dois irmãos. Sean podia possuir uma honestidade e uma bondade essenciais que Virginia duvidava que Devlin tivesse alguma vez, mas Devlin exercia sobre ela uma fascinação impossível, como se ela fosse uma traça e ele uma chama fatal. Estremeceu e confiou em que aquele símile não fosse de algum modo, uma premonição.
— Lamento o assassinato de seu pai. — Se ouviu dizer.
Ele encolheu os ombros, se aproximou e lhe lançou um olhar frio e indiferente.
— A vida é cheia de surpresas, não? — Seu olhar se deslizou lentamente sobre sua face, seu cabelo, seus ombros nus e finalmente, sobre seu decote.
O olhar avivou Virginia, como suas carícias haviam feito na noite anterior. Ela abriu a boca para falar, mas não saiu nenhum som.
— Sean, acompanhe Virginia. — Disse Devlin.
Virginia se sobressaltou, surpresa e decepcionada e quando se voltou, Sean lhe ofereceu o braço com expressão resignada. Ela se apressou em sorrir, mas seu olhar seguiu Devlin, que havia passado ao seu lado e lhes dava as costas enquanto se servia de uma taça de champanhe.
— Não é preciso que se mostre feliz. — Disse Sean. — Seus sentimentos são claros, Virginia.
Ela fixou rapidamente sua atenção nele.
— Não sei a que se refere.
— Confio em que chegue à hora em que possa falar francamente com você, porque temo que haja algo que devo lhe dizer, Virginia.
Ela não gostou de seu tom e nem de sua expressão, e assentiu vagamente. Não queria seguir conversando sobre o assunto.




— Alguns cultivadores protegem os brotos com uma rede fina de algodão. — Disse Virginia alegremente, com os olhos cintilantes. — Mas é muito caro e na verdade, em Sweet Briar não é necessário, pois não faz tanto frio. Nós usamos uma capa fina de palha e vegetação. O verdadeiro problema é transplantar. Terá que pulverizar o solo, nivelá-lo e curá-lo. Para isso queimamos os campos a cada primavera. E depois mantê-lo bem úmido. É crucial que as sementes se distribuam uniformemente. Por isso o fazemos todo o trabalho à mão.
Sean sacudiu a cabeça com admiração.
— Há algo que não saiba sobre o cultivo do tabaco, Virginia? — Seus olhos dançavam.
— Estou segura de que sempre haverá alguma coisa. — Virginia lhe sorriu. Sean lhe devolveu o sorriso. Devlin se achava em sua cadeira à cabeceira da longa mesa, completamente calado. E embora sua expressão e sua atitude seguissem aparentando indiferença, ele estava irritado com seus dois acompanhantes. Seu olhar se movia lentamente sobre Virginia, que parecia ter se esquecido de sua presença durante o jantar. Claro que seu irmão mostrava abertamente sua admiração, de uma maneira cavalheiresca e atenta, e era talvez o interlocutor mais cativo que ela nunca tinha tido. Virginia parecia cobiçar cuidados como um jogador cobiçava uma jogada premiada, pensou ele com azedume.
Seu olhar pousou no pequeno e arrebitado nariz de Virginia, em sua boca carnuda, no decote amplo de seu vestido e nos pequenos seios que se apertavam contra o espartilho. Estirou as longas pernas sob a mesa e procurou ignorar a ardente pressão em seu membro. Só ele sabia o quão fogosa ela era. O quanto facilmente avivava sua paixão.
Nunca haviam me beijado, Devlin.
A pressão de repente se tornou explosiva. Devlin se removeu em sua cadeira. O quarto de Virginia era do outro lado da casa, que para ele uma sorte. Porque apesar de sua resolução em não repetir o ocorrido da noite anterior, se sentia muito tentado. Somente uma carícia e ela não voltaria a pensar em seu irmão.
Devlin fez uma careta. Sean e ela contavam histórias a respeito de Askeaton e Sweet Briar. Tinha que admitir que as coisas que Virginia contava eram interessantes de certo modo, e até amenas. Agora que a conhecia, embora ainda pouco, nenhuma só de suas anedotas o surpreendia.
— Ainda não posso acreditar que seu pai tenha te ensinado a disparar um mosquete quando tinha sete anos. — Sean comentou.
Virginia sorriu pela enésima vez na noite.
— Minha mãe ficou furiosa quando soube. Depois disso, meu pai teve que lhe levar flores e agrados durante um mês para voltar a cair em suas graças.
Sean também gargalhou.
Virginia ficou séria.
— Sinto falta deles. — Disse.
Devlin se sobressaltou quando Sean alongou o braço por cima da mesa, para cobrir a mão de Virginia. Ficou rígido enquanto seu irmão dizia:
— É um assunto terrível, mas com o passar do tempo será mais fácil.
Ela sorriu levemente.
— Já é algo mais fácil, mas acredito que sentirei falta deles até que morra. Sem eles, Sweet Briar nunca mais será o mesmo.
Sean afastou a mão.
— Você sente muito a falta de sua plantação?
— Às vezes. — Disse ela. — Principalmente e madrugada. Mas… — Ela se animou— Eu gosto da Irlanda! Há algo nela que me lembra minha terra, embora o clima seja tão distinto. Pode ser que seja a vegetação. Aqui tudo é tão cheio de vida… Em casa também é assim.
— Eu gostaria de visitar Sweet Briar algum dia. — Disse Sean.
— E eu adoraria que viesse. — Replicou Virginia, visivelmente feliz.
Já tinha tido o bastante. Por acaso sua pequena refém achava seu irmão atraente? Na noite anterior havia estado em sua cama, em seus braços. Estaria desenvolvendo um novo idílio diante de seus olhos? Devlin se levantou bruscamente, empurrando a cadeira para trás.
— Vou fumar. — Anunciou, e procurou não olhar para nenhum dos dois.
— Espero que seu tabaco seja da Virginia. — Disse ela docemente.
Ele se enrijeceu. E, pela extremidade do olho notou que Sean continha o riso e trocava um olhar com ela. Se voltou.
— Não é. É cubano. Boa noite. — Agradou-lhe notar que ela fechou o semblante ao ouvir suas últimas palavras; logo fitou sobriamente seu irmão. — Acompanhe-me. — Ordenou.
Quando saía ouviu Sean proferir: — Sua Senhoria ordenou.
Virginia soltou um risinho.
— Esta noite ele está de mau humor.
— Ele sempre está de mau humor. — Replicou Sean.
Devlin decidiu fingir que não os ouvia. Os dois haviam bebido champanhe o bastante para afundar um navio. E mesmo assim Sean parecia muito interessado e isso era simplesmente inaceitável.
Ao chegar ao escritório, ele pegou um charuto, serviu um conhaque e começou a fumar. Mas exalar profundamente não aliviou sua tensão.
— Capitão. Senhor. — Sussurrou uma mulher.
A irritação de Devlin se dissipou ao se voltar e encontrar Fiona.
Sorriu-lhe. Estava vestida com uma blusa branca e uma saia escura. A blusa mostrava a forma de seus seios. Mostrava sob o tecido as grandes aréolas de seus mamilos. Devlin a fitou atentamente pela primeira vez, desde a sua volta. Era muito bonita e voluptuosa. Lembrava-se vagamente de umas quantas noites tórridas passadas no leito com ela há muitos anos. E, embora não a desejasse, certamente Fiona apresentava uma solução para o problema em evitar a Virginia durante as longas e escuras horas da noite.
— A cozinha está limpa e seus aposentos preparados. — Disse ela com o olhar fixo nele. — Posso fazer algo mais pelo Senhor, antes de ir para a cama?
Ele tomou a decisão imediatamente.
— Sim. Vá ao meu quarto. Subo em seguida.
Ela se limitou a sorrir. — É obvio, Capitão. — Ronronou e lhe lançou um olhar cheio de promessa e se afastou rebolando os quadris.
Devlin quis comparar a largura daqueles quadris com as de certa Senhorita, mas se negou. Nessa noite satisfaria sua luxúria como os Senhores da casa haviam feito durante séculos: com uma criada bonita, bem disposta e insignificante.
Sean, que parecia estar a um bom momento na porta, soltou um suspiro zombeteiro. Devlin não fez conta. Deu-lhe um charuto e o acendeu. Enquanto seu irmão exalava a fumaça serviu-lhe o conhaque.
— Parece encantado com nossa pequena convidada. — Disse.
Sean exalou e respondeu:
— Quase estou.
— Não se afeiçoe muito. Ela perderá sua querida Sweet Briar e me culpará por isso. Não resta nenhuma dúvida.
— É certo. Vai culpá-lo e com toda razão, acredito. Ma, certamente não me culpará.
Devlin se sentou na beira da mesa. — Encontrarei uma herdeira para você. — Advertiu seu irmão.
— Não necessito de uma herdeira. Você jamais ficará em casa para dirigir Askeaton. Algum dia precisarei de uma esposa que me ajude aqui.
— Refere-se a uma mulher que entenda de colheitas, de negociados e carregamentos? — Devlin começava a se zangar.
— Talvez. — Sean se aproximou. — Dev, eu a acho atraente e diferente de você, não estou utilizando-a para um fim espantoso… Para cobrar uma vingança pessoal. Depois de conhecê-la um pouco melhor, acredito que deveria pôr fim nesse plano miserável e ajudá-la a chegar até Eastleigh. Quem sabe? Pode ser que ele também fique encantado e salve suas terras.
Devlin estava furioso. Se não havia entendido errado, seu irmão estava se apaixonando por ela.
— Não, nada mudou. Guarde seu coração e tome cuidado. Ela não é para você. É uma ferramenta. Uma ferramenta que estou usando enquanto conversamos. Só isso. Entendido?
Sean também estava furioso.
— Eu lhe disse esta tarde, que sequer conheço mais. Então, como vou entendê-lo? Mas me cansei que suas ordens. Não sou um marinheiro de seu navio! Se desejo muito admirar à Senhorita Hughes é assunto meu, não teu.
— Você está indo muito longe. — Devlin se levantou e ambos ficaram cara a cara. Eram da mesma estatura. — Desde quando te dou ordens? Estou a seis anos fora de casa. Provavelmente te vejo uma vez ao ano em Londres. Alguma vez te dei ordens, irmãozinho? Até ontem, tenho que te recordar que esta casa é minha? Que as terras me pertencem? Tudo isto é meu se morrer sem herdeiros. Só então será seu.
— Ameaça me jogar fora daqui? — Sean estava atônito. — Você pode que comprar as terras de Adare com seu maldito dinheiro, mas sem mim Askeaton não seria nada. Eu cuidei esta terra e a tornei fértil. Você não teria nada s aqui em mim e sabe muito bem disso.
Devlin inalou com força, assombrado pela intensidade da ira de Sean e da própria. Como havia chegado a aquela terrível discussão? A imagem de Virginia abrasava sua lembrança.
— Sean, — segurou o braço de seu irmão e se sobressaltou, mas não se afastou, — você tem razão. Sem você esta casa seria uma casca de ovo queimado, os campos estariam ermos e sem vida, e não seriam mais que pântanos. Sei disso e valorizo cada dia que fica aqui em meu lugar, plantando e colhendo nossas colheitas, arrecadando nossas rendas e alimentando nosso gado. Avalio o que tem feito. Você é meu irmão. Não devíamos brigar.
Sean concordou, pálido.
— Sei o quanto trabalhou para poder comprar Askeaton e a casa de Greenwich, e todos os tesouros que temos aqui e acolá. Sei que é o Senhor desta casa, Dev. Não quero ocupar seu lugar. Deus! Quero que tenha uma esposa maravilhosa e filhos lindos que herdem tudo o que ganhou... E tudo o que te pertence por direito como filho mais velho de nosso pai.
— Isso, eu também sei. — Disse Devlin, relaxando somente um pouco.
Sean lhe sustentou o olhar. Com muita precaução, disse: — Mas voltaremos a brigar, porque jamais aprovarei o que está fazendo e a crueldade com que está usando Virginia.
— Não se apaixone por ela. — Devlin se ouviu dizer.
— Pode ser que seja muito tarde. — Sean respondeu depois de uma hesitação. Devlin ficou aturdido, como se tivesse sofrido um disparo. — Vou para a cama. — Disse Sean apagando seu charuto. Sorriu um pouco, mas seu sorriso era forçado. Saiu do aposento.
Um silêncio profundo se apropriou do escritório. Devlin se sentia amargurado. Até essa noite, Virginia não havia sido mais que um peão em sua partida de xadrez com Eastleigh. Agora tinha a impressão de que havia se convertido em uma víbora temível, escondida entre suas fileiras.
Mas não podia mudar seus planos. Cobriu os olhos por um momento. Doía-lhe a cabeça. Passeou ansiosamente pelo escritório e deixou à ira lhe tomar. Deu-lhe a boas vindas. Nessa noite, Virginia estivera perigosamente perto de flertar com Sean. Seus cuidados, seu riso e a ávida conversa haviam enfeitiçado completamente seu irmão. Convertera-se em um problema. Um problema que ele devia resolver em seguida. Quanto antes se livrasse dela, melhor para todos.
De repente ela apareceu na porta. Devlin se enrijeceu. Ela não sorriu, mas disse em voz baixa: — Faz uma noite bela. Vamos dar um passeio, Devlin?
— Não. — Ele respondeu com aspereza. Ela se sobressaltou. — Entre. — Disse ele, seguro do que devia fazer para frustrar qualquer flerte entre seu irmão e ela. Enquanto ela entrava, com os olhos dilatados e receosos, ele passou rapidamente ao seu lado e fechou a porta.
— O que aconteceu? — Ela perguntou com cautela.
— Não se aproxime de Sean.
— O que? — Ela exclamou, surpresa.
Devlin segurou-a pelos ombros. Sua ira se converteu em algo totalmente distinto. Seu sangue, vermelho e quente, palpitava.
— Permita-me que repita. Não se aproxime de Sean.
— Não sei o que está pensando, mas seja o que for está equivocado! — Ela exclamou, com os olhos muito abertos.
— Seriamente? A ultima coisa que preciso é que meu irmão se apaixone por você. Expliquei-me com claridade? — Quando descobriu que cada vez a segurava com mais força, já era tarde. De algum modo suas mãos cobraram vontade própria e a apertaram contra o corpo duro e excitado.
— Devlin… — Ela sussurrou com voz gutural e carregada de desejo.
Ele sentiu uma onda de euforia. Agora ela já não pensaria em seu irmão.
— Quer saber de um fato interessante? — Perguntou com aspereza enquanto lhe dava uma palmada no traseiro e a apertava contra sua ereção, contra a qual ela começou a se esfregar. — Não acredito que me seja difícil fazê-la se esquecer de Sean completamente… Querida.
Os olhos de Virginia começavam a embaciar. Segurou-se aos ombros dele. Respirava trabalhosamente e estava com o rosto em chamas.
— Não desejo Sean. — Disse com voz rouca. — Desejo você.
Devlin a apertou contra seu peito e se apoderou de seus lábios. Obrigou-lhe a abri-los. Enquanto sua língua buscava a dela, a de Virginia veio ao seu encontro. Logo, sentiu que as mãos pequenas deslizavam sobre sua cintura. O desejo o cegava por completo.
— Não, aqui. — Pegando uma das mãos de Virginia conduziu-a até o duro vulto de seu membro excitado. Ela deixou escapar um gemido de surpresa e ele quase se pôs a rir, mas a dor e a pressão eram tão intensas que não conseguiu emitir nenhum som. Com a garganta fechada moveu a mão de Virginia ao longo de seu membro e quando ela fechou os dedos ao redor do mesmo, lhe fez deitar no assoalho, se colocou sobre ela e voltou a apoderar de sua boca. Por um instante não houve mais em que pensar.
Ela se agarrava aos seus ombros e gemia. Ele beijou sua garganta, baixou-lhe o espartilho e despiu os seios perfeitos. E enquanto observava um dos mamilos eretos, duas imagens assaltaram sua mente. Eastleigh, gordo e grisalho, e Sean, moreno e furioso.
O que estava fazendo?
Estava tão cheio de ira que nem sequer podia pensar com claridade. Havia acontecido tão rápido e tão furiosamente, que sequer era sedução. Por culpa dela e de Sean estivera a ponto de possuí-la violentamente. Havia jurado devolvê-la ilesa a Eastleigh e, não obstante, havia perdido os estribos.
Ela segurou seu rosto entre as mãos enquanto se retorcia sob ele.
— Apresse-se. — Suplicou.
Devlin fitou novamente o mamilo ereto, o seio pequeno e cheio, e lutou desesperadamente contra a pressão crescente de seu sexo, contra a neblina vermelha que crescia em sua mente e contra a ânsia frenética. Estava fora de si. Perplexo, subiu-lhe o vestido, cobriu seus seios e de alguma forma conseguiu se levantar.
Que demônios, acabava de acontecer? A mulher lhe tinha levado a um ponto antes nunca alcançado. Havia desbaratado por completo o domínio que tinha sobre si.
Sem se atrever a olhar para ela, se dispôs a sair do aposento. Ouviu-a sentar no chão.
— Devlin! — Ela exclamou. — Volte. Por favor.
Ele apertou o queixo e não titubeou.
— Não pode me deixar assim! — Ela gritou.
Ele subiu de dois em dois os degraus das escadas, apressadamente. Logo percorreu o corredor. Quando chegou à porta de seu quarto, tinha a impressão de ter recuperado o controle sobre si mesmo, pelo menos na aparência… Mas não de tudo.
Não queria que ninguém tivesse poder sobre ele, em nenhum sentido, e menos ainda sua prisioneira. Entrou em seu quarto fechou a porta rapidamente e tirou a casaca azul. Estava ainda excitado e tirou sua calça, mas não encontrou alívio.
— Deixe que eu te ajude com isso. — Fiona se aproximou dele, completamente.
Devlin parou em seco e a fitou com surpresa. Esquecera-se dela por completo dela.
Fiona lhe sorria enquanto se aproximava. Seus seios pesados balançavam. Antes que pudesse se recordar que ela estava ali porque ele mesmo havia pedido, ela caiu de joelhos e lhe desabotoou habilmente a calça.
Inalou bruscamente quando seu membro foi liberado e voltou a respirar quando ela o introduziu na boca, até a garganta.
Enormes olhos violetas, desfocados e velados pelo desejo encheram sua mente quando fechou os olhos. Segurou com força a cabeça da Fiona e, enquanto ela sugava seu membro como se quisesse engoli-lo inteiro, mas sua mente traiçoeira imaginava outra mulher de joelhos, executando aquele mesmo ato. Uma mulher miúda e delicada, de uma beleza impossível e desafiante. O cabelo liso e espesso que tinha na mão se tornou suave, encaracolado e sedoso. A língua grande se tornou pequena e afiada. Lábios carnudos e macios como casulos de rosa envolveram seu membro. Com as mãos, urgiu Virginia a se apressar e acabar de uma vez.
O dique se rompeu. Ele deixou escapar um gemido e quando acabou, se aproximou da cama onde se sentou, respirando com dificuldade, assombrado pela intensidade de seu orgasmo. Ela se aproximou dele por atrás. De repente, Devlin sentiu seus seios enormes em suas costas e se enrijeceu ao se dar conta que Fiona estava em sua cama. De que era Fiona quem acabava de lhe aliviar e não Virginia Hughes. Ela começou a se esfregar sedutoramente contra ele.
— A noite não fez mais que começar, Milord. — Ela ronronou.
Ele ficou ali sentado, quase zombando de si mesmo. Como podia ter pensado, embora por um instante, que Virginia podia executar tal ato? Não era sequer uma questão de inocência, mas sim de tamanho… Dela e dele.
Mas o regozijo incipiente desapareceu. Nunca antes havia experimentado tal prazer. E ao recordá-lo, a lembrança de Virginia voltou a assaltá-lo com toda força e imediatamente seu membro se enrijeceu.
— Sabia que voltaria para mim, meu Senhor. — Disse Fiona.
Devlin se voltou e a empurrou contra a cama, de costas. E, fechando os olhos, montou-a.


Devlin passeava pela casa, alterado.
Os sucessos das últimas horas o atormentavam e parecia persegui-lo um fantasma cuja presença era tão perturbadora como toda a noite.
Era como se Gerald o tivesse seguido do cais de Limerick e se negasse a deixá-lo.
Com uma garrafa de bom conhaque francês na mão, Devlin fitou atentamente o armeiro montado sobre a parede. Uma vez, há séculos, havia lhe encontrado vazio em um terrível momento de necessidade.
Quando deixará seu pai descansar em paz?
Devlin bebeu. A garrafa estava já meio vazia. No dia seguinte pagaria caro. Odiava pensar em Gerald. Odiava todas e cada um das lembranças, as boas eram inclusive piores que as ruins… Por isso nunca ia para casa.
Os olhos cegos e cheios de fúria se tornaram zombeteiros.
— Deus... — Murmurou Devlin. — Sua hora chegará. — Bêbado se deteve ante o enorme fogo que bramava na grande lareira.
O salão pareceu brilhar com um fulgor trêmulo entre a penumbra, mas ninguém lhe respondeu. Não esperava resposta, certamente. E, além disso, não acreditava em fantasmas. Mas mesmo assim, a sala lhe parecia cheia e cansativa. Não se sentia sozinho.
A vingança pertence a Deus, não a você. Como pode viver em sua pele? Como?
Devlin caminhava pelo grande salão, se perguntando se sua consciência havia decidido, finalmente aparecer. O salão havia sido mobiliado com dinheiro ensangüentado. Decorado com elegância era um testemunho das centenas de navios que havia atacado, saqueado e destruído no mar. Dos milhares de marinheiros que havia aprisionado, das centenas deixadas para trás, mortos e sepultados pelo mar. Sua casa era tão luxuosa como a de qualquer Lorde Almirante. Tinha intenção de empreender a reconstrução do velho castelo em ruínas que havia atrás da casa. Agora possuía os recursos necessários. Sua última presa, carregada de ouro, havia lhe convertido em um homem muito rico.
Basta! Deixe-o!
Devlin se ergueu como se tivesse recebido um disparo. Teria jurado que acabava de ouvir a voz colérica de seu pai retumbar no aposento. Passeou lentamente o olhar pelo enorme salão, mas ele estava vazio e em silêncio. Através de uma das altas janelas avistou a noite e as estrelas. Estava sozinho. Sua imaginação estava lhe pregando peças, com o passado. Ou tinha consciência, apesar de tudo.
Mas a estranha sensação de não estar sozinho persistia.
Deixe-o.
Devlin se sobressaltou. Havia realmente ouvido a voz ou era sua imaginação ébria e nada mais? Mesmo assim era um bom conselho. Vagar pela casa de madrugada era tão inútil como navegar contra o vento. Dirigiu-se para as escadas, mas continuava com a sensação. A sensação de que alguém o vigiava. Negou-se a olhar para trás.
E a última coisa que pensou antes de dormir foi que não retrocederia nunca até que Eastleigh estivesse morto.

 

 

 


Capítulo 10


Virginia se deu conta que estava morta de fome. Deu outra palmada na pequena e bela égua baia e saiu da cavalariça, Abandonou os estábulos. Fazia uma manhã bela. O céu era de uma cor azul profunda e sem nuvens e o sol brilhava. Havia se levantado ao amanhecer e tinha saído passear pelo campo e explorar as ruínas do velho castelo que havia atrás da casa. O lar de Devlin era muito formoso e as ruínas haviam despertado sua curiosidade. Havia nelas algo de romântico e comovedor.
Pôs-se a andar pelo prado, a caminho da casa, consciente de que um novo tremor havia se despertado nela. Tinha visto Devlin somente uma vez, fugazmente. Estava galopando em seu cavalo por uma colina ao longe. Parecia que tinha saído cedo para um passeio. Sobre o enorme cavalo, ele compunha a mesma irresistível figura que no alto do castelo de popa de seu navio. Seguia sendo um enigma, simplesmente impossível de compreender. De algum modo ele havia lhe acusado de se mostrar muito cordial com Sean? Havia acontecido tudo tão depressa no escritório, quando se atreveu a pedir que desse um passeio com ela à luz da lua… Ele havia se enfurecido. Mas, por quê? Sean era um jovem muito amável e lhe agradava sinceramente. Havia gostado de jantar com ele. Confiava em que algum dia ele a visitasse em Sweet Briar. Mas Devlin não participara da conversa e também parecia acreditar que ela tinha algum interesse romântico em seu irmão. Era um absurdo! Como podia pensar algo parecido, dada a intimidade que haviam compartilhado? Talvez temesse que enganasse Sean, para que ele lhe ajudasse a fugir, como havia feito com Jack Harvey.
Afrouxou o passo, pensativa. Era impossível não recordar tudo o que acontecera na noite anterior. Sua face começou a arder lentamente. Quando ele a estreitara nos braços e lhe beijara, sua prudência desapareceu rapidamente. Exatamente como na outra noite, no navio. A febre e o frenesi que Devlin despertava nela eram simplesmente assombrosos. E, de certo modo, também temíveis. Porque, quando ele a beijava e a excitava, todo o resto carecia de importância. Por que Devlin surtia tal efeito sobre ela?
Era um homem cativante e atraente, poderoso e terrível, mas ela era sua prisioneira e não sua convidada. Devlin se interpunha entre ela e Sweet Briar e ela estava começando a esquecê-lo, como se tivesse todo o tempo do mundo para desfrutar do interlúdio de seu cativeiro, antes de salvar a plantação. Tinha que ser mais forte, mais firme e mais resolvida.
Mesmo assim, Devlin não era um pirata e nem um louco. Não lhe tinha feito mal nenhuma só vez e era evidente que tentava respeitá-la. Mas havia quebrantado a lei ao seqüestrá-la e ao avassalar com toda arrogância o navio Americana. Tinha cometido pelo menos dois delitos, e Virginia chegava sempre à mesma conclusão. O Americana estava no fundo do mar, ela era sua prisioneira e não tinha direito de cobiçar seus abraços.
Provavelmente era uma sorte que ele tivesse decidido pôr fim ao acontecido na noite anterior. Sua saída apressada era quase cômica à luz da manhã, e Virginia sorriu ao se recordar. Mas antes não havia achado graça. Na noite anterior havia se sentido desesperada e abatida, e mais confusa que nunca.
Entrou na casa. Começava a se sentir amargura. Precisava saber por que Devlin arriscava sua carreira por um resgate que não necessitava. E, apesar de estar desfrutando de sua estadia em Askeaton, tinha que chegar até o Conde de Eastleigh. Se quisesse ter um lar aonde voltar devia se concentrar, se armar de resolução e esquecer a apaixonada atração que Devlin e ela pareciam compartilhar.
Atravessou o saguão e se perguntou se Devlin já teria voltado de seu passeio. Tinha visto Sean a cavalo um momento antes, pelo mesmo caminho que Devlin havia tomado. Entrou na sala de refeições e descobriu que havia café da manhã somente para uma pessoa. Suspirou dividida entre a desilusão e o alívio.
Saqueou o cesto de pão cedendo à fome. Começou a comer uma fatia de pão com passas, fresco e recém saído do forno, pegou um pastel e começou a subir a escada. Decidiu deixar de pensar em Devlin O’Neill. O que faria seria vestir a calça de montaria que tinha levado consigo e dar um longo passeio a cavalo pelas terras dos O’Neill.
Acabou o pão e estava começando comer o pastel quando entrou em seu quarto. Fiona estava arrumando a cama e cantarolando. Abrira todas as janelas para que entrasse o ar quente da primavera. Virginia não lhe fez caso e se aproximou do armário passa pegar sua mala.
— Bom dia. — Disse Fiona alegremente. Virginia se sobressaltou. Lentamente, com a calça na mão e as botas de montar, se voltou. Fiona lhe sorriu.
— Trouxe-lhe rosas do jardim. — Ela disse e assinalou um ramalhete de rosas que havia em um vaso.
A inquietação de Virginia se converteu em temor.
— Obrigado. — Disse com precaução. — Me ajuda a me tirar o vestido?
— Claro! — Fiona atravessou virtualmente correndo o aposento e Virginia vislumbrou sua expressão beatífica, antes de voltar. Enquanto a outra lhe desabotoava os botões e a ajudava a tirar o vestido, disse:
— Está muito contente esta manhã.
Fiona sorriu.
— Faz bom dia, não?
Virginia teve um mau pressentimento. Vestiu a calça, as botas de montaria, altas e gastas, e uma camisa de algodão singela, que se fechou distraidamente.
— Recebeu boas notícias? — Perguntou enquanto colocava as botas.
— Acredito que estou apaixonada. — Confessou Fiona sorrindo e cheia de felicidade.
Virginia se sentou, sobressaltada, e a fitou com estupor.
— Apaixonada?
Fiona assentiu ansiosamente, e juntou as mãos.
— Foi como eu havia sonhado. Quero dizer que ele foi como tinha sonhado. Oh, Deus! Foi maravilhoso. Que homem! Tão forte e tão incansável… — Ela titubeou no fim. Tinha as bochechas acaloradas e um olhar nebuloso.
— Você… Você e Devlin…? — Virginia conseguiu dizer enquanto o conteúdo de seu estômago se revolvia.
— Sim. — Disse Fiona. — Ele me fez amor toda à noite. O homem é um garanhão. Nunca, nunca tinha estado com um homem como ele, e não sei como me vou conseguir esperar até a noite.
Devlin havia se deitado com Fiona. Virginia se sentou na beira da cama, atônita.
— Seu membro é tão grande, — sussurrou-lhe Fiona, — que quase não me cabe na mão.
Na noite anterior Devlin havia lhe beijado e abraçado e logo tinha corrido para Fiona.
Virginia estava a ponto de vomitar. Seu coração começava a se romper. De algum modo conseguiu sorrir enquanto se levantava.
— Me alegro por ti, Fiona. Formam um bom casal.
— Verdade? Ele tão loiro e eu tão morena… — Disse a outra com as mãos enlaçadas.
Virginia saiu do aposento tão rápido como lhe permitiram suas pernas. Começou a correr assim que chegou a escadas Não podia respirar e seu coração se rasgava horrivelmente. Os solados macios de suas botas escorregaram e ela caiu, deslizando sobre parte dos degraus. Deteve-se ao chegar embaixo, ofegando asperamente. Estupefata. Logo conseguiu se levantar e saiu correndo pela porta. Vomitou na roseira mais próxima.
Quando acabou saiu da casa a tropeços e se sentou. Estava tremendo. Passou algum tempo antes que pudesse dominar suas emoções e só então começou a se enfurecer. Devlin e Fiona mereciam um ao outro! Ela era uma rameira… E ele seu digno cliente. Não lhe importava. Tinha sua virgindade intacta, graças a Deus. Não, graças a Fiona.
Odiava-os. Como ele pudera recorrer a Fiona, depois de estar com ela? Como? Conseguiu se levantar com muita dificuldade. Era melhor assim. Logo voltaria para Sweet Briar e nunca mais teria que ver Devlin O’Neill.
Como... Como, como tinha sido capaz?
— Porque ela é bonita e eu sou feia. Por isso. — Extravasou raivosa. Deixou a casa para trás com fúria e entrou nos estábulos. Encontrou uma sela que parecia algo menor que as outras, pegou uma brida e uma manta e selou rapidamente à pequena égua baia. Começara a chover. Segurou as rédeas da égua e ao lhe acariciar o pescoço caiu uma gota em suas mãos.
— Quão doce você é. — Disse e logo levou a égua para fora, onde o céu era azul. Aquilo a desconcertou. Naturalmente, não estava chovendo. Eram somente suas lágrimas que não cessavam de cair.
Perguntou vagamente havia se se apaixonado por Devlin O’Neill, aquele monstro.
Montou na égua e deixou as rédeas frouxas. Um momento depois se afastou de Askeaton, galopando pela campina irlandesa.
A égua a levou por um caminho sinuoso que atravessava um arvoredo salpicado pelo sol. Virginia havia recuperado o domínio e se sentia aliviada por isso. Ela era uma mulher independente, que os homens tratavam sem cuidado. Era uma mulher que só se interessavam por sua plantação e seu lar. Havia passado a meia hora anterior ideando novas formas de fugir. Sairia da Irlanda a cavalo e embarcaria em alguma cidade costeira do este. Assim que tivesse ocasião entraria às escondidas na biblioteca e procuraria mapas que pudessem ser de ajuda. De repente a égua relinchou.
Virginia se sobressaltou. Estava tão ensimesmada que não se deu conta de que havia saído do bosque. Deteve a égua imediatamente, receosa e alerta. Encontrava-se em uma colina que aparecia perto de uma pequena granja. Uma casa de lavoura ocupava o centro do imóvel. Junto a ela havia vários celeiros, uma horta, alguns campos de cultivo e um prado aberto onde pastava uma dúzia de vacas. Virginia divisou imediatamente o cavalo de Devlin.
Ergueu-se alarmada e uma nova onda de ira a invadiu. O cavalo estava preso diante da casa, junto outros quatro animais corpulentos de trabalho. Diante da casa havia também três caleças. O que estava acontecendo? Não acreditava que o granjeiro estivesse celebrando uma festa. Recordou-se que não lhe importava o que Devlin fizesse e nem com quem. Dispôs-se a retornar ao bosque quando notou as outras montarias em frente à casa. Aquele alazão não era o de Sean? O que estava acontecendo ali?
Virginia pensou. Sabia instintivamente que estava acontecendo algo estranho. Desmontou, atou a égua junto a uma árvore e a deixou pastar. Desceu a colina e atravessou a clareira correndo até chegar aos muros da casa. Aproximou de uma janela, às escondidas. Seu coração pulsava com força insuportável. A janela não tinha vidro e estava totalmente aberta.
Dentro, muitos homens gritavam formando uma grande barafunda. O que podia ser aquilo? Abaixou-se até que seu queixo ficou ao nível do marco e olhou para dentro.
Imediatamente viu uma vintena de homens. Eram camponeses e granjeiros. Sean estava em pé junto a um padre católico. Levantava as mãos e pedia silêncio. Em seguida divisou Devlin sentado na primeira fila. Desconcertada, não conseguia imaginar que tipo de reunião seria aquela.
— Por favor, cada um tem um turno. — Dizia Sean com autoridade.
As vozes se converteram em murmúrios mal-humorados.
— Tim McCarthy. — Disse Sean. — Deseja dar sua opinião?
Um homem enorme, de cabelo grisalho e desordenado, se adiantou.
— Não são mais que mais mentiras. Sempre foram. Os ingleses só servem para mentir, para isso e roubar nossas terras.
— Isso, isso! — Bramaram todos.
Virginia se levantou, atônita. Seria por acaso, uma reunião política?
— Prometeram-nos nossos direitos. Os mesmos direitos de qualquer protestante, em 1800, com a União. E o que nos deram? Por acaso algum católico se senta na Câmara dos Comuns? Algum católico serve ao rei? E eu ainda tenho que fazer esse maldito juramento, se quero comprar minha terra… Terra que na verdade é minha! — Gritou Tim McCarthy.
Todos começaram a falar com mesmo tempo. Sean levantou as mãos outra vez.
— Um a um.
— Já estamos nos reunindo há dois anos. — Prosseguiu Tim. — E para que? Temos que tirar esses malditos ingleses da Irlanda! E este é o momento! Porque nada mudará a menos que lhes ensinemos que não podem seguir pisoteando os direitos dos católicos!
Ressoou um estrondo de vivas.
Virginia mordeu o lábio para não fazer nenhum ruído. Aquilo parecia muito perigoso. Parecia traição. E o que faziam Devlin e Sean ali, pelo amor de Deus? Ignorava a que direitos em concreto se referia Tim McCarthy, mas sabia que a Irlanda formava parte da Grã-Bretanha, e que um irlandês não deveria falar em se livrar dos ingleses.
Devlin se levantou de repente. Antes que pudesse se aproximar de Sean começaram outros vivas.
— O’Neill! O’Neill! Hurra! — Gritavam todos. Virginia se grudou à parede, trêmula e na expectativa. Estaria Devlin comprometido naquela conspiração contra o governo e os ingleses? Como podia ser? Ele era Capitão da Marinha britânica!
Devlin havia se unido a Sean no soalho. Todos ficaram em silêncio. Virginia se segurou ao batente, cativada.
— Entendo sua impaciência. — Disse Devlin lentamente enquanto percorria o aposento com o olhar, cravando os olhos em todos e cada um dos pressente. — Mas uma rebelião só traria morte e dor. Minha família sabe por experiência.
Ouviram alguns murmúrios de assentimento… E também de raiva.
— Mas, o que podemos fazer? — Gritou alguém. — Eu não posso pagar minha renda, que se triplicou desde o ano passado.
Soou um coro de assentimentos. Sean levantou as mãos para pedir silêncio e os outros calaram imediatamente. Devlin começou a falar enquanto seguia percorrendo todos os homens com o olhar… E então descobriu a Virginia. Seus olhos ficaram enormes.
Ela se afastou de um salto e se grudou à parede. Maldição!
Depois não teve tempo de pensar em nada. Enquanto se afastava correndo da casa ouviu que Sean dissolvia a reunião. Atravessou a clareira, tropeçou e caiu. Ao se levantar voltou os olhos para trás.
Devlin estava atrás dela e muito perto. Alguns homens haviam saído da casa e começava se ouvir uma temível gritaria.
— Um espião! É um espião! Um espião inglês!
Virginia se assustou. Aterrorizada, ia começar a correr quando Devlin saltou sobre ela. Ambos caíram. Devlin se inclinou e ela aterrissou em seus braços. Um momento depois, estava deitada de costas e Devlin se abatia sobre ela.
— Seguiu-me até aqui? — Perguntou. Ela viu raiva em seus olhos e, pela primeira vez desde a captura do navio Americana sentiu medo verdadeiro.
— Não! Saí para cavalgar, vi seu cavalo… Pensei que era uma festa! — Ela gritou.
— Idiota! — Disse ele entre dentes.
Virginia fitou além de seus olhos cinza. Estavam rodeados por numerosos homens enfurecidos. Alguns deles carregavam mosquetes; e outros carregavam lanças. Todos pareciam dispostos a usar suas armas contra ela. Sean abriu passo entre eles.
— Não está acontecendo nada, rapazes. — Disse, sorrindo. — Não é mais que um pequeno mal-entendido.
O medo de Virginia não conhecia limites. Sabia o que havia presenciado. Aqueles homens queriam se levantar contra o governo inglês e tirá-los da Irlanda. Era traição. Sabia também o que acabava de ver. Tinha visto muito mais que ira. Avistara o temor. Estavam furiosos e desesperados e temiam que o que ela pudesse saber.
— É um espião! — Gritou algum.
Ouviu-se um coro de assentimentos.
Virginia fitou os olhos de Devlin tentando não se deixar dominar pelo pânico. Devlin lhe lançou um olhar raivoso. Logo se levantou e puxou para que levantasse.
— É uma moça! — Gritou um dos homens.
— O espião é uma mulher! — Acrescentou outro.
— A Senhorita Hughes é nossa convidada. Não uma espiã. — Disse Sean.
Virginia assentiu e umedeceu os lábios ressecados.
— Não sou uma espiã. — Disse. — Vi o cavalo de Devlin e…
Devlin a puxou tão forte que lhe fez mal. Parecia querer lhe dizer que ficasse em silêncio.
— É inglesa! A moça é inglesa! — Exclamou alguém.
Virginia se sobressaltou.
— Enforquem-na! — Tim McCarthy se adiantou. — Ela sabe muito.
Virginia fitou Devlin, aturdida, mas ele não fez caso e deu um passo à frente. — Hoje ninguém será enforcado. — Disse autoritariamente. — A Senhorita Hughes é americana, não inglesa. E é minha noiva.
Os homens ficaram em silêncio, mas dúzias de olhos a fitaram cheios de surpresa.
Virginia se aferrou à esperança que lhe oferecia.
— Sim. — Disse, dando um passo adiante. — Devlin é meu noivo e só vim para…
De repente Devlin a segurou pela mão e sufocou suas palavras com um beijo.
Virginia deixou escapar um gemido de surpresa. A boca de Devlin era dura, furiosa e lhe fazia mal. Seus braços eram como barrotes de ferro de uma jaula. Ouviu vagamente alguns murmúrios as suas costas. Tentou se afastar, mas ele a segurou com mais força. Então ela notou seu desejo. Um desejo ardente, que não deixava dúvida alguma a respeito do estado de seu corpo. Virginia esqueceu imediatamente a terrível reunião que acabara de presenciar.
Enquanto a boca de Devlin começava a suavizar fazendo que seus lábios se abrissem instintivamente, ela pensou em Fiona. Ele introduziu a língua dentro de sua boca. Fiona…
Na noite anterior, Devlin estivera na cama com a criada.
Virginia lhe mordeu a língua.
Ele se afastou surpreso, mas não gritou e nem a soltou. Virginia o fitou com fúria… Ele correspondeu da mesma forma.
— Solte-me. — Ela murmurou em voz baixa e ameaçadora.
— Nem sonhe, minha doce e pequena noiva. — Ele sorriu e voltou a se inclinar sobre ela. Mas desta vez antes de beijá-la, sussurrou: — Finja que me quer, chèrie. Sua vida poderia muito bem depender disso.
Virginia sentiu verdadeiro desespero enquanto os lábios de Devlin roçavam sua boca e suas mãos deslizavam sobre suas costas e ainda mais embaixo. Mas ele tinha razão. Estava presa.
— Beije-me. — Ele ordenou de modo que só ela pudesse ouvi-lo.
Toda a dor que ela tinha acreditado estar encerrada em algum lugar longínquo do qual jamais sairia voltou a se abater sobre ela de repente. Sabia que devia beijar Devlin para que seus espectadores acreditassem que seu compromisso era certo. Mas não podia. Era-lhe impossível beijar um homem enquanto chorava.
E ele sabia. Seu corpo se enrijeceu, seus ombros e suas costas se ergueram. Suas mãos ficaram quietas. Virginia conseguiu finalmente lhe dar um beijo fraco e penoso com a boca fechada. Ele se afastou e a fitou atentamente. Ela quis mandá-lo para o inferno, mas não se atreveu. Os homens que os rodeavam guardavam silêncio. Virginia compôs um sorriso frágil e patético. O olhar fixo de Devlin se avivou. Alguém gritou alegremente:
— O Capitão O’Neill tem noiva!
Outros repetiram o grito.
Devlin sorriu com frieza. Envolveu-a com um braço de tal modo que não pudesse se mover nem um centímetro se ele não permitisse. Fitou à multidão, que já não parecia desconfiar dela.
— Minha pequena noiva não pode esperar que eu voltasse para casa. — Disse com um toque zombeteiro.
Soaram risadas masculinas e broncas.
— Ela guardará segredo, Capitão? — Perguntou McCarthy.
Devlin lhe sorriu friamente, lhe lançando uma advertência.
— Ela jamais me trairia, Tim.
O outro assentiu com a cabeça lentamente, sem sequer olhar para Virginia. Seu olhar fixo em Devlin parecia carregado de esperanças.
— Vamos. — Disse Sean, que acabava de aparecer com seu cavalo e o de Devlin. Sorria placidamente, mas Virginia advertiu uma expressão de receio em seus olhos cinza. Por um momento, enquanto ele a observava notou o quanto ele se parecia com Devlin. Seu olhar era igualmente frio e controlado. Virginia percebeu uma nova desconfiança e certa hostilidade. Suspeitaria dela? Perguntou-se, surpresa. Ou era dos homens da reunião que não confiava?
As mãos de Devlin se fecharam ao redor de sua cintura e antes que pudesse protestar estava montada sobre seu cavalo. Ele montou atrás dela e esporeou o animal.
— Como chegou aqui? — Ele perguntou com voz crispada. Antão estava zangado, pensou ela com satisfação, e se recordou novamente de Fiona.
— A cavalo.
— Verdade? E quem te deu permissão para isso?
— Ninguém. — Ela respondeu com azedume.
Devlin ficou calado. Virginia compreendeu que ele acabava de avistar a égua baia, que seguia pastando no alto da colina.
— O que te propõe, Virginia? — Ele perguntou.
— Nada.
— Me alegro, porque hoje não tenho paciência para você. — Ele se deteve bruscamente junto à égua.
Virginia fez gesto de descer, mas ele não permitiu.
— Você vem comigo — Disse e logo desmontou e desatou à égua.
— Nem sonhe! — Ela gritou.
Ele a fitou com o cenho franzido. Depois disse lentamente: — Sou eu quem está zangado, Virginia. Estava me espiando. O que ouviu?
— Tudo. — Respondeu ela levantando o queixo.
Devlin sorriu tão cruelmente que ela estremeceu.
— Então pode ser que nunca abandone Askeaton, minha querida.
Ela ficou boquiaberta.
— Não fala sério!
— Falo sim.
— Mas, e meu resgate?
— Seu resgate tem muito pouca importância, comparado a isto. — Ele respondeu. — E é meu dever proteger Sean e os outros.
A mente de Virginia trabalhava a toda pressa.
— Não ouvi nada.
Ele montou atrás dela.
— Não é que acaba de dizer.
— Menti. Não ouvi nada. De verdade.
— Embusteira. Pequena e linda embusteira. — Ele ainda não tinha tocado no cavalo. — Por que não me beijou quando lhe pedi? Sua vida pendia por um fio e era uma ordem, não um pedido.
— Eu não recebo ordens de você. — Ela conseguiu dizer.
— E por que chorava? — Ele perguntou depois de um momento, muito irritado.
— Tinha areia nos olhos. — Replicou ela.
Devlin a fitou inquisitivamente.
— É uma péssima embusteira, Virginia.
— Então, por que acredita que estou zangada? — Ela perguntou com falsa doçura.
O olhar penetrante de Devlin não vacilou.
— Não sei. Mas averiguarei. — ele esporeou bruscamente a cavalo e a segurou com força quando o cavalo partiu a galope.
Ela conteve as lágrimas. Fizeram o resto do caminho em meio a um tenso e incômodo silêncio.


Sean estava esperando Devlin quando este entrou na biblioteca. Tinha o quadril apoiado na beira da mesa e os braços cruzados sobre o seio. Sua fisionomia estava séria.
— O que fez com ela?
— Está em seu quarto. Connor tem ordens de vigiar cada um de seus movimentos.
— Talvez devesse ficar encerrada a chave. — Disse Sean, secamente.
Devlin quase sorriu. Serviu um conhaque e lhe ofereceu outro, mas Sean o recusou.
— Acreditava que estar passeando.
— O que será que ouviu? — Perguntou Sean com aspereza e sem sorrir.
— Não sei exatamente, mas penso averiguar de um modo ou outro.
— Maldição! —Sean explodiu de repente e se afastando da mesa começou a caminhar pelo aposento. — Que demônios, ela estava fazendo na granja do Canaby?
— Provavelmente nos seguiu. — Disse Devlin.
— E o que vai fazer agora? Pelo amor de Deus, não pode devolver-lhe a Eastleigh.
Devlin se sentou em uma grande poltrona de couro e estirou as pernas, com a taça na mão.
— Terei que devolvê-la cedo ou tarde.
Sean o observava com surpresa e o cenho franzido.
— Essa reunião era um ato de traição e você sabe, embora ainda não haja nada planejado. Poderíamos perder tudo. E você, um oficial da Marinha, poderia acabar pendurado no mastro de seu navio por isso, e não falando pelo maldito resgate.
— É mais provável que cortem tua cabeça e a trespassem em uma lança. Você é o chefe.
— Parece divertido? — Sean estava atônito. — Esses homens procuram esperança, Devlin. Eu tento dar-lhes. Está retendo Virginia contra sua vontade, Devlin. E agora ela tem informação muito grave que pode usar para nos afundar.
— E o que sugere? Que a jogue no fundo do mar? — Mas Sean tinha razão. Virginia tinha que manter a boca fechada, embora o que havia presenciado parecesse bem pior do que era em realidade. Ele sabia pelas cartas de Sean, o quanto sua gente estava furiosa e desesperada, e que uma ou duas vezes ao ano ele faziam uma reunião. Sua chegada havia precipitado a de hoje. Mas os homens não estavam planejando uma insurreição. Eram granjeiros e camponeses, mais interessados em dar o que comer a suas famílias que perderem a vida. Só queriam ouvir o que Devlin tinha a dizer. Tal como dizia Sean, eles precisavam abrigar alguma esperança.
— Não se preocupe, Sean. — Disse, tentando apaziguar seu irmão. — Não permitirei que Virginia lance os britânicos contra vós. Se for necessário lhe direi a verdade. Que nossa gente está furiosa e faminta, mas que não permitiremos que exploda uma rebelião.
Sean não parecia convencido.
— Não acredito que Virginia esteja de humor para escutar nada do que diz.
— Ouvirá. — Disse ele, e ficou sério. O que acontecia com Virginia? Por que tinha chorado?
Sean vacilou.
— Devlin, acho que tenho a solução no que se refere a Virginia.
— Diga-me, por favor.
— Um de nós deveria se casar com ela. — Devlin derramou sua bebida. — Falo sério.
Devlin deixou a taça sobre a mesa e limpou a mão na calça.
— E quem vai ter a honra de fazer dela uma feliz, amorosa e leal esposa? Oh! Deixe-me adivinhar. Você, acredito.
— Eu me casaria com ela se estivesse disposta. Mas não é a mim quem deseja.
— Não vou me casar com uma órfã americana sem dinheiro, Sean. — Replicou Devlin. Seu coração palpitava com velocidade alarmante.
— Por que não? É você quem está maltratando-a. Só você pode arrumar as coisas.
— Você está falando sério? — Devlin não conseguia entender a sugestão de seu irmão. Era absurda. Virginia iria com Eastleigh assim que ele cobrasse o resgate e se ele vendesse sua plantação, sem dúvida viveria na Inglaterra, com sua família.
— Já te disse que sim. Não desejo abandonar Askeaton e você certamente não vai querer perder a cabeça. — Sean lhe lançou um olhar acre e seguiu passeando pelo aposento.
— A única coisa a que não estou disposto é a perder minha cabeça. — Disse Devlin com ironia. — Deixe de se preocupar. A Senhorita Hughes não nos acusará de nada. — Sean o fitou diretamente. Devlin não gostou do olhar atento. — O que foi agora?
— Se não quer se casar com ela me dê permissão para cortejá-la. — Devlin se sobressaltou. Sean começou a ruborizar. — Sei que já esteve em sua cama. Poderia mentir. Dizer que não me importa, mas me importa. Entretanto, se não voltar a se repetir posso esquecer. Dê-me permissão para cortejá-la, para ganhar seu amor. Para me casar com ela.
— Não.
Sean se sobressaltou. Devlin havia respondido sem refletir. Mas, em que pesasse sua raiva começava a pensar que a idéia de Sean não era tão má. Primeiro podia pedir resgate por ela e arruinar Eastleigh, e logo Sean poderia casar com ela, ganhando sem dúvida seu amor e sua lealdade. Mas Sean podia encontrar melhores partidos. Confiava em que assim fosse.
— De modo que se antepõe ao desejo de usá-la como um brinquedo, a minha felicidade? — Sean perguntou com frieza.
— Meu desejo é que se case com uma rica herdeira. — Respondeu Devlin, sem vacilar.
Sean se aproximou dele.
— Ah, sim? Seriamente? Pois eu não acredito. Acredito que fala por seus baixos instintos. Pense. Pense de verdade e logo me dê uma resposta. — Sean saiu do salão.
Devlin o assistiu se afastar, pensativo. Seu arrebatamento de ira o incomodava. Sean estava errado. Não pretendia que Virginia fosse um brinquedo em suas mãos. Para falar a verdade, a idéia de seu irmão era excelente e ele sabia que valia a pena considerá-la com vagar. Levantou a taça e examinou seu conteúdo. Tentava não pensar na Virginia se retorcendo freneticamente em sua cama, não recordar o toque de seu corpo pequeno e esbelto. Por que não cedê-la a Sean? Pelo menos as intenções de seu irmão eram nobres. E Virginia merecia um bom homem como seu irmão. Certamente, não merecia o que ele estava lhe fazendo.
Um casamento entre a Virginia e Sean resolveria muitos problemas. De fato, inclusive encobriria os delitos que havia cometido e ele poderia continuar levando a mesma vida, indefinidamente.
Sua vida parecia se estender diante ele imensamente, como a linha sombria e cinza de uma velha ruela calçada romanas, nunca usada e insuportavelmente lúgubre, insignificante, triste e plaina, sem fim próximo.
Angustiado, se aproximou da janela. Preferia morrer degolado por um assassino no dia seguinte, a seguir levando uma existência que era na verdade, uma interminável farsa.

 

 

 


Capítulo 11

Não foi permitido a Virginia sair de seus aposentos durante todo o dia, sequer para fazer as refeições. Enviaram-lhe o jantar em uma bandeja de prata. A injustiça do castigo a fez arder de raiva toda à tarde. Só tinha saído para dar um passeio a cavalo. De imaginasse o que acontecia naquela granja teria se mantido afastada dela. Toda a culpa era de O’Neill, por se deitar com Fiona. Se ele não fosse tão canalha, ela não teria cavalgando tão longe e nem por tanto tempo.
Devlin teria falado a sério, que não lhe deixaria sair de Askeaton se tivesse ouvido o que os homens conversavam? Virginia estremeceu. Devlin havia se arriscado muito para raptá-la e pedir um resgate, e ela duvidava que estivesse disposto a renunciar a ele. Mas também havia dito que tinha que proteger Sean e os outros. Protegê-los do que? De que os capturassem por traição ao seu país?
Virginia se achava em pé junto a uma janela aberta, vestida com uma camisola de algodão. Sabia que olhava para o rio, embora não pudesse vê-lo, e que mais alem se encontrava o oceano Atlântico e seu lar. Uma terrível angústia se apoderou dela. Queria voltar para casa. A nostalgia a surpreendera, despreparada. Era tão vasta e intensa como quando se achava trancada no colégio Marmott, em Richmond.
Alguém bateu na porta. Virginia não teve tempo de responder quando Devlin entrou no quarto.
Ela ficou paralisada um instante.
— Fora daqui! — Gritou, furiosa.
Ele lhe dirigiu um olhar inescrutável.
— Temos que conversar sobre certos assuntos. — Disse cuidadosamente.
Ela se aproximou da cama, segurou a jarra de água que havia sobre o criado mudo, levantou-a e se voltou para jogá-la em Devlin. Confiava em acertar cabeça e se tivesse um pouco de sorte o mataria no ato. Ele se adiantou com um salto e a segurou pela cintura.
— Solte isso. — Advertiu-lhe.
— Vou soltá-la, — ela lhe mostrou os dentes, — sobre sua cabeça. — e tentou jogar. A lembrança dele e de Fiona nus e entrelaçados em um abraço apaixonado alimentava sua ira, como nenhuma outra coisa podia.
— Já Basta, Virginia. — Disse ele com calma, e lhe apertou ainda mais a mão.
Virginia o fitou com raiva. Temia tornar a chorar e disse: — Está bem. — Ela soltou a jarra, mas esta não quebrou. A alça se soltou e a água salpicou os pés nus dela e as botas de Devlin.
— Deduzo que segue zangada. — Disse ele, e afrouxou a mão, sem soltá-la.
— Quão astuto você é, Capitão. — Ela bufou com ironia. — Agora, me solte. Está me machucando.
— Também parece magoada. — Ele comentou e Virginia notou que seu olhar pousava um instante no decote de sua camisola. Tentou soltar o braço, mas não conseguiu.
— Por que estaria amargurada? Eu estava a caminho a Londres para me ocupar de assuntos pessoais de suma importância, quando fui seqüestrada e tirada à força de meu navio. Logo fiquei presa em seu camarote, a sua mercê, e agora estou presa a chaves, neste aposento. Magoada? Oh, não.
— Quero falar contigo. Se voltar a me atacar ficará presa toda a semana.
— Você é tão canalha como diz todo mundo diz. — Replicou ela com um olhar gélido.
Ele encolheu os ombros e a soltou. Virginia se afastou bruscamente.
— Está mais zangada comigo agora, que quando capturei o Americana. Esta tarde estava chorando e agora outra vez. Por quê? E não me diga que tem areia nos olhos.
— Não, desta vez é pó o que tenho nos olhos. — Disse ela com falsa doçura. — Agora saia de meu quarto!
— Acredito que não. — Devlin a observou sem sorrir.
— Mas Fiona está te esperando. — Assim que as palavras cáusticas saíram de sua boca, Virginia se arrependeu tê-las pronunciado.
Ele ficou calado, mas ela advertiu um brilho de surpresa em seus olhos. Ruborizou e se afastou da cama e dele. Aproximou-se da lareira e fingiu contemplar as chamas. Por que havia dito aquilo? Agora, ele acreditaria que estava com ciúme, quando não era certo.
— O que acaba de me dizer? — Ele perguntou.
Ela cruzou os braços com força e seguiu olhando as chamas. As lágrimas velavam seus olhos. Por quê? Diga-me só por que. Não me deve pelo menos isso?
Não ouviu Devlin aproximar dela e se sobressaltou quando ele tocou seu cotovelo.
— O que disse? — Ele perguntou novamente.
— Nada. — Ela apertou com firmeza os lábios. Seu coração pulsava desbocado.
— Não. Disseque Fiona estará esperando. Esperando onde? E a quem?
Ela se voltou a fim de observá-lo. Em sua mente u voz lhe advertia de que não dissesse o que ansiava, mas ela não fez conta.
— Não me importa se vai para sua cama, Devlin. De fato, me alegro. Oh, ele tem o membro tão grande que quase não me cabe na mão! — Ela soltou imitando a voz da criada. Os olhos de Devlin se abriram de par em par, cheios de surpresa. — Oh, ele é tão incansável como um garanhão! — Ela ainda alfinetou sabendo e sentindo que seu rosto estava em chamas. — Oh, estou taaao apaixonada! — Fitou-o com fúria.
Ele guardou silêncio. Virginia teve de repente uma terrível suspeita e o fitou mais atentamente. Então notou o brilho de regozijo em seus olhos.
— Está zangada comigo porque me deitei com uma criada? — Ele perguntou com calma. — Está com ciúme de Fiona?
— Eu não estou com ciúme! — Replicou ela. — Estou aliviada. E acredito que errou de quarto. — Ela sorriu ampla e falsamente. Ele ficou fitando-a um momento. — Fora! — Gritou ela.
— Tentei tratar você como trataria a qualquer convidada, Virginia. Mas nós dois sabemos que está aqui contra sua vontade. Deveria se alegrar que me entretenha com uma criada.
Virginia sabia que devia tomar cuidado, mas não pôde se refrear.
— Me alegro. E já lhe disse isso. Acredito que deveria voltar para ela agora mesmo! — Ela gritou, e notou com horror que as lágrimas saltavam de seus olhos. Ele não dizia nada. — Por que me olha como se estivesse louca? — Perguntou com um soluço estrangulado, e se sentiu ainda mais envergonhada.
— Não te entendo. — Disse Devlin brandamente. — Você é minha prisioneira. Como pode estar com ciúme? Isso significaria que sente algo por mim.
— Não estou com ciúme. — Virginia se afastou. Estava a beira do pranto.
Ele segurou seu braço e a fez voltar. — Está chorando outra vez.
— Não estou! Não me importa e nem me importa se prefere Fiona! — Ela gritou.
Devlin elevou seu queixo.
— Só um tolo preferiria essa criada, a você.
Ela estava segura de que não tinha ouvido bem.
— O que?
— Não prefiro Fiona. De fato havia até me esquecido por completo — Ele titubeou. — Lamento que ela tenha sido tão desavergonhada com você, Virginia. Também havia me esquecido que te dei seu primeiro beijo.
Ele nunca antes havia lhe falado com tanta sinceridade. Virginia mordeu o lábio e logo disse: — Mas eu não o esqueci.
O queixo de Devlin se enrijeceu.
— Queria te falar de um assunto importante, mas está claro que este não é o melhor momento.
Ela sacudiu a cabeça e lhe tocou o braço.
— Acreditei que você gostasse dela. — Ela se ouviu dizer com voz implorante.
Ele ficou tão imóvel que sequer parecia respirar. Suavemente, após uma larga pausa, ele disse: — Os homens usam as mulheres constantemente. Não significa nada. É um meio para atingir um fim. Fiona estava ansiosa para me agradar. Não foi eu quem recorreu a ela. Não a busquei, mas necessitava de uma descarga física. Lamento que tenha sentido ciúmes, não era essa minha intenção. Para te ser justo, até tinha esquecido por completo o incidente.
Ela sacudiu a cabeça, incapaz de compreender. Estava com a face molhada pelas lágrimas.
— Eu pensei que você gostasse.
Duas manchas rosadas e pálidas apareceram por um instante nos maçãs do rosto de Devlin.
— Você é uma bela mulher. Não sou imune a isso. Nós dois sabemos.
Ela levantou o olhar. De repente tomava ciência dos batimentos de seu coração, lentos e profundos, do quanto era tarde, do quanto tudo estava escuro e silencioso e do desejo que nunca se extinguira. Estava a sós com Devlin no quarto iluminado somente por algumas velas e o fogo da lareira e ele acabava de dizer que a achava bela.
— Ainda me deseja? — Murmurou, embora de alguma forma conhecesse a resposta.
Ele sustentou-lhe o olhar, sem vacilar.
— Sim.
Virginia se inclinou.
— Não te entendo, Devlin. Por que me deixou e foi com ela? Eu estava em seus braços…
— Não fui com ela. Ela estava me esperando em meu quarto, Virginia. Eu tinha esquecido que estava ali.
— Por que me deixou? — Ela soluçou, com as mãos sobre seu peito.
Ele sorriu finalmente, embora seu sorriso fosse leve e parecia cheia de más intenções.
— Sou filho de Mary e Gerald O’Neill. — Ele disse, como se isso explicasse tudo. Mas não se afastou dela. Virginia sentiu que seu peito subia e descia mais rapidamente que o normal.
— Isso não explica nada.
— Uma vez tive uma irmã. — Disse ele, endurecendo a mandíbula. — Se tivesse sobrevivido poderia ser como você, a filha de um latifundiário. Uma mulher decidida, valente e bela.
E Virginia compreendeu finalmente.
— Tentava me respeitar, respeitar a memória de sua irmã e os ensinamentos de seus pais. — Ele não disse nada. — Por isso me deixou. Para preservar minha inocência. Fiona estava em seu quarto quando você subiu… Ela não significa nada. — Virginia ofegou.
— Vejo que está se convertendo em uma mulher do mundo. — Ele replicou e afastou as mãos de Virginia de seu corpo. — Nada mudou. Minha resolução segue em pé. Não vou seduzi-la e não serei seu primeiro amante. Boa noite. — Devlin atravessou o quarto e se dirigiu à porta.
Passou pela mente de Virginia que Fiona visitaria a cama dela mais uma vez, se já não estivesse nela. Não podia suportar aquela idéia… Como não podia suportar que Devlin a deixasse nesse instante.
— Não quero seu respeito. — Se ouviu dizer. Ele vacilou, mas não se voltou. — Quero saber como é Devlin. — Acrescentou brandamente. Seu coração pulsava enlouquecido. Ele proferiu um som áspero e segurou o trinco da porta. Ela Engoliu a saliva e acrescentou: — Ensine-me. Ensine-me tudo o que possa agora, esta noite… Ensine a mim. Não a ela.
Ele se voltou com a face crispada e os olhos dilatados.
— Não consegue se dominar? — Perguntou com aspereza.
— Por que lutaria contra isto? — Então ela notou o que esperava. Aproximou-se dele, segurou-o pelos ombros e se inclinou para seu corpo duro e excitado. — Só as damas como Sarah Lewis sabem se dominar. — Murmurou.
Por um momento ele notou a indecisão em seus olhos. Por um momento notou a batalha que ele travava. Sorriu um pouco e acariciou sua face. Seu coração pulsava freneticamente, como as asas de um pássaro enjaulado.
— Devlin…
Devlin a abraçou e se apoderou de seus lábios. Virginia deixou escapar um gemido ao sentir seu membro ereto. Ele baixou as mãos, grandes e atrevidas. Seu corpo poderoso estava rígido pela tensão.
— Rápido. — Ela conseguiu dizer enquanto a neblina do desejo se elevava e crescia. — Rápido, Devlin!
De repente se achou em seus braços e Devlin a depositava sobre a cama.
— Nunca conheci uma mulher como você. — Disse com o olhar fixo no dela.
Virginia tentou sorrir e fracassou.
— Bem.
Devlin tampouco sorriu. Seus olhos flamejavam. Abriu-lhe as coxas com os joelhos e disse:
— Ontem à noite desejava isto.
Ela se lembrou imediatamente e exclamou: — Sim!
Ele lhe soltou as mãos e bruscamente rasgou sua camisola em duas.
Surpresa, Virginia fico imóvel, quase assustada. Observou que com o olhar ele estudava cada palmo de seu corpo nu, desde as pequenas esferas de seus seios, com os mamilos duros e crespos, até o triangulo de suas coxas abertas. Neles, seus olhos se detiveram.
Ela começou a ruborizar. Nunca tinha estado tão exposta. Sentia-se a sua mercê e estava difícil respirar. Só sentia desejo. Um desejo que acreditava impossível.
— Você é tão bela. Tão pequena… — Ele murmurou com voz pastosa, finalmente elevando o olhar. — Não te farei mal.
Virginia sabia que nunca esqueceria aqueles olhos. Sabia que tinha sido uma tola em se preocupar com Fiona. Sabia de algum modo, instintivamente e sem dúvida alguma, que aquele homem a desejava como nunca desejaria outra mulher. Ele esboçou um sorriso e Virginia deixou escapar um gemido de surpresa quando sentiu que ele tocava seu sexo.
— Isto me pertence. — Disse ele maciamente, mas em tom de advertência.
Ela só pôde assentir, assombrada. Logo sentiu que os dedos de Devlin deslizavam sobre sua intimidade, em seus grandes lábios, e pelo interior da fenda que se abria entre eles. Deixou escapar um leve grito, fechou os olhos e se arqueou indefesa contra ele.
— Devlin… — Murmurou. — Oh, Devlin, me ajude!
Ele abriu seu sexo, deslizou os dedos pelas suaves dobras e suas curvas escorregadias, até que Virginia se convenceu de que não poderia mais suportar. Então sentiu seus lábios.
Ao princípio, acreditou que estava acontecendo um engano e se enrijeceu, paralisada. Abriu os olhos. Estava segura que Devlin não estava beijando seu sexo. Elevou parte do tronco e notou assombrada que ele estava com a cabeça entre suas coxas. Não havia dúvida que eram seus lábios que lhe acariciavam.
Então sentiu sua língua. Uma carícia atrás da outra. Sua visão se obscureceu.
A língua se movia segura e profundamente acariciando o broto de carne escondido entre suas dobras mais grossas. Começou a desfalecer. O desejo era tão intenso que afogava seus sentidos e lhe impedia de respirar.
— Venha para mim, pequena. — Ele murmurou. Sua língua movia sobre sua carne estimulada como um látego de seda, insistente, brutal, e suave.
A escuridão se prolongou. Logo, Virginia se viu arrojada fora dela, para a luz brilhante. Abraçou-se a ele soluçando de prazer, assombrada, possuída por um êxtase determinante. Soluçava enquanto ele seguia lhe lambendo, até que finalmente começou a flutuar.
Não soube quanto tempo passou flutuando fora de seu corpo, nas nuvens, mas pouco a pouco recobrou a consciência de si mesma. Cada centímetro seu sexo estava inchado e inflamado e a língua de Devlin seguia acariciando-a. Seus lábios se moviam sem cessar, em um frenesi selvagem, como se estivesse beijando sua boca. Agora com o prazer havia também dor.
Ela não sabia suportaria outra vez.
— Devlin… — Ofegou.
Ele não se deteve. Sua língua se movia de cima e a baixo, como a de um cão sedento.
— Devlin… — Ela suplicou tentando afastá-lo, mas sua língua penetrou-a ainda mais profundamente. Quis atraí-lo para si, mas ele se limitou a mordê-la, em uma advertência que ela entendeu.
— Não posso. — Ofegou enquanto o prazer e a dor se misturavam tão estreitamente que já não sabia se vivia ou morria, nem onde começava uma coisa e acabava outra.
— Pode sim, carinho. Claro que pode. — Disse ele abrindo seus grandes lábios com os dedos e passando a língua em círculos ao redor de seu túrgido broto, distendendo-o. Ela gritou.
Ele suavizou sua carícia e ela explodiu. Seu corpo girou fora de controle e voou nas alturas. E ainda seguia ali quando a boca de Devlin encontrou a sua e seu corpo a esmagou contra o colchão.
— Virginia… — ofegou ele.
Imediatamente, ela sentiu a enorme ponta de seu membro na entrada de seu sexo e se sobressaltou. Abriu os olhos de par em par e o fitou. Notou a ferocidade da luxúria e nada mais naquele olhar ardente. Não viu amor.
— Virginia… — Devlin a beijou, e ela provou pela primeira vez o sabor do próprio sexo. As robustas coxas de Devlin a imobilizavam. De repente sentiu a pressão insistente de seu membro.
O pânico se apoderou dela. O membro era muito grande. Ela só tinha dezoito anos. Ele era seu seqüestrador. Ela tinha medo e não estava preparada. E se Devlin não a amasse?
Mas o ardor de Devlin inflamava seu corpo e sua mente.
— Não, Devlin — Disse.
Mas era simplesmente muito tarde. Ele soltou um gemido e a penetrou rompendo a barreira de sua virgindade lhe causando uma dor breve e ardente. Logo, Virginia sentiu o membro enorme e duro dentro de si, preenchendo-a, lhe fazendo mal. Enrijeceu, fechou os olhos, piscou para conter as lágrimas de um desespero repentino.
Ele ofegava, sem se mover. Todo seu corpo tremia. Virginia seguia paralisada pelo estupor, capaz somente de sentir como seu membro distendia suas vísceras. Devlin continuava quieto, mas tremia, quando de repente beijou sua têmpora. Ela abriu os olhos de par em par.
— Devlin… — Murmurou e se perguntou se tinha imaginado o beijo terno.
Sua resposta foi abraçá-la com mais força. Ela tomou ciência de que se achava envolta em seus braços musculosos. Imersa neles; depois sentiu que ele palpitou enorme e duro, insistentemente dentro de seu corpo, mas a dor estava se dissipando. O ardor começava a difundir lentamente de dentro dela. Sentiu que a boca de Devlin se movia novamente. Desta vez sobre sua face. Logo, ele se moveu. Afastou muito devagar e com a mesma lentidão voltou a penetrá-la. O corpo de Virginia começou a acostumar, a esquentar e se estirar intensamente.
— Ah! — Ela ofegou surpresa, enquanto Devlin voltava a penetrá-la.
Pareceu-lhe sentir que ele sorria contra sua face.
— Respire, pequena. — Ele sussurrou e voltou a entrar nela, desta vez não tão devagar.
Enquanto aquele homem a enchia por completo, uma onda de intenso prazer a embargou. Perplexa, enquanto o prazer ameaçava afogá-la em seu negrume deslizou as mãos pelas costas tremulas de Devlin.
Ele gemeu em um som afogado, rouco e viril. Os quadris de Virginia começaram a se movimentar em um ritmo que respondia ao dele. Queria que Devlin entrasse mais dentro dela, mais rápido e mais forte. Urgia-o a seguir. E ele sabia. Ofegava seu nome e a penetrava com força. Os espasmos começaram e a febre do desejo se converteu em um anseio entristecedor. Virginia gritou e abraçou os ombros largos e procurou seus lábios.
— Rápido, Devlin. Rápido! — Gemeu.
Ele voltou à cabeça para apoderar de sua boca em uma cópula tão urgente e frenética como a que provocava. Virginia sentiu que seu corpo se rompia em mil pedaços. Mesmo assim foi consciente do momento preciso em que lhe brindou com sua semente. Sentiu que o membro se expandia de maneira impossível e logo notou que Devlin se convulsionava em seus braços. Abraçou-lhe com força acariciando suas costas, enquanto ele seguia estremecendo.
Quando terminou, ela ficou quieta, assombrada, consciente do homem que estava pesadamente sobre ela, que seguia dentro dela, já não tão duro e nem tão enorme. Estreitou-o em seus braços, comovida como nunca tinha sonhado em estar. Era o correto, pensou ainda atônita. Com razão havia lhe desejado tanto. Nada podia ser mais lícito que aquele instante. Ela ali deitada e entre seus braços, saciada e repleta. Unidos ainda como um só ser.
Sentiu em que instante ele voltava a ser dono de si mesmo. Seu corpo se enrijeceu. Ele se movimentou e se afastou dela rompendo a união de seus corpos.
Ela permaneceu imóvel e sem poder impedi-lo, somente cabeça para observá-lo.
Devlin deitara-se de costas com os olhos fechados. Estava ainda vestido, embora sua calça estivesse aberta e sua camisa amarrotada. Seu peito subia e descia trabalhosamente. Ela contemplou o perfil perfeito, já enrijecido por emoções que não se atrevia a adivinhar. Mas já sabia o que Devlin estava pensando.
— Devlin… — Sussurrou, preocupada de repente. Estavam às margens de uma felicidade intensa e não devia se preocupar. Não, depois do que acabava de acontecer, da beleza do que haviam compartilhado um momento antes. Sem dúvida ele sentia o mesmo.
Mas ele não respondeu e nem abriu os olhos. Virginia sabia que não estava dormido. Repentinamente desejou que ele lhe acariciasse o braço, o cabelo, que lhe sorrisse um pouco e a tranqüilizasse dizendo que ele também se sentia simplesmente no paraíso.
A cama baixou quando ele se sentou. Ela também se sentou. Esperava que Devlin se voltasse para ela, que dissesse alguma coisa. Aguardou, mas ele se levantou sem olhar em sua direção. Ela acreditou ver sua fisionomia rígida e desencaixada por causa da irritação e, talvez pela ira.
— Devlin? — Sussurrou novamente com voz frágil e suplicante.
Ouviu o sussurro do tecido enquanto ele a calça e arrumava a camisa. Devlin a fitou. Sua face era suave e inexpressiva.
— Durma, Virginia. — Disse ele. Ela o fitou atentamente. Suas palavras desapaixonadas eram para ela tão dolorosas como uma punhalada. — É tarde. — Ele acrescentou com um sorriso forçado.
Oh, Deus! Por que ele se comportava como se nada tivesse acontecido? Por que não estava feliz?
— Devlin… — Começou a dizer, aterrorizada de repente. Mas ele já estava atravessando o quarto. — Devlin? — Virginia não podia acreditar que ela a deixaria sem uma palavra amável, sem um beijo. Sem sequer um olhar.
Ele se deteve na porta, mas não se voltou.
— Sinto ter lhe feito mal. — Ele então disse e saiu.




Devlin atravessou a casa com passo vigoroso e decidido, se negando a pensar. Tinha fracassado na hora de cumprir a promessa que havia feito a ela e a si mesmo. Havia falhado com seus pais. Com sua mãe viva e seu pai morto. Tinha fracassado. No fim havia sido preso de um anseio impossível de controlar. Nunca antes havia sentido aquela urgência e jamais voltaria a senti-la.
Deteve ante a porta fechada do quarto de Sean. Não notava a madeira, mas somente olhos violetas, grandes e frágeis. E ouvia somente os frenéticos gemidos de prazer de Virginia e suas súplicas. O que estava lhe acontecendo? Algo tinha começado a rachar dentro dele enquanto se encontrava dentro de Virginia; algo havia se quebrado, quase como um moribundo em um infinito túnel negro avistasse finalmente uma luz distante.
Não gostava daquilo.
Não gostava nem um pouco.
Deu-se conta de que estava diante da porta do quarto de seu irmão. Ainda ouvia os gemidos de Virginia. Ainda podia saboreá-la, inclusive sentir seu cheiro através de seu corpo. Se ousasse atravessar a escuridão se apoderaria daquela luz ao longe. A idéia cintilava e parecia chamá-lo. Devlin afastou para o lado seus terríveis pensamentos e se concentrou em um assunto muito mais importante. E se tivesse lhe engravidado?
Lembrou-se que não estaria perto para averiguar.
Tomou a decisão, impiedosamente. Em todo caso a possibilidade de que ela pudesse estar grávida confirmava sua resolução. Bateu na porta duas vezes.
Sean a abriu vestido unicamente com seu calção. Dava a impressão de que devia ter estado profundamente adormecido. Mas fitar Devlin seus olhos cresceram no rosto.
Devlin tentou lhe sorrir, mas não conseguiu.
— Está bem. — Ele disse.
— O que? — Sean perguntou. Saltava aos olhos que sabia o que seu irmão acabara de fazer.
— Tem minha permissão para cortejar Virginia. Corteje-a, seduze-a, ganhe seu amor... A mim dá no mesmo… Mas no fim se casará com ela.
Sean ficou boquiaberto.
Devlin fechou a porta de repente.

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 12


Virginia estava a ponto de chorar.
Não sentia que tinha dezoito anos, por mais que já fosse uma mulher. A menininha que havia sido outrora havia retornado confusa e ferida. Deitada, ainda se esforçava para compreender o que acabara de acontecer. Tinha deixado que Devlin O’Neill fizesse amor com ela. Tinha permitido que o homem que havia lhe seqüestrado e a retinha como prisioneira lhe fizesse amor, e havia sido tudo que esperava e muito mais. Mas Devlin havia saído do quarto como se seu encontro amoroso não significasse nada para ele.
Negava-se a chorar. Tentava compreender Devlin. Esforçava-se em desculpá-lo. Era tarde. Estava cansado. Conforme tinha entendido, o ato amoroso deixava os homens exaustos. No dia seguinte ele lhe sorriria e a levaria a algum canto onde podia beijá-la e abraçá-la e dizer que estava apaixonando por ela.
Virginia gemeu. Sentou presa pelo medo. A quem pretendia enganar? Nem sequer conhecia estranho que tinha tomado uma posse tão completa de seu corpo. E o que sabia dele não lhe permitia abrigar muitas esperanças. Devlin era um homem valente, mas duro e frio. Acabava de abandonar sua cama sem um só gesto ou uma palavra de afeto. E na noite anterior havia estado com outra mulher.
O que havia feito? Por que tinha lhe atraído a sua cama? Sabia muito bem que havia lhe seduzido, apesar de sua inexperiência. Agora, simplesmente não conseguia entender como conseguiu tomar tal atitude. Devlin era seu captor, um homem de coração de ferro. Mas, santo céu! O que acontecera tinha sido mais que maravilhoso. Tiinha sido o correto. Mas estava confusa e angustiada. Nunca havia se sentido tão perdida e sozinha.
Se ele houvesse dito somente uma palavra amável antes de sair tão intempestivamente… Se tivesse lhe beijado ou abraçado... Se tivesse feito somente uma carícia terna… Finalmente, uma lágrima escorregou por sua face. Enxugou-a com raiva. Ela era forte e não choraria por algo que havia desejado tanto. Além disso, talvez no dia seguinte Devlin lhe sorrisse de verdade, e bastaria. Um sorriso para lhe mostrar que importava um pouco, depois de todo o acontecido.
Então se deu conta que lhe causava pavor voltar a vê-lo cara a cara. Aterrorizava-lhe saber que não seria amável ou pior, que se mostrasse indiferente. Voltou a se deitar de costas. Em meio ao estado confuso em que se encontrava, somente uma coisa lhe parecia clara. Devia voltar para casa. Se partisse tudo voltaria ao seu lugar. Certo? Mas sequer sabia se ainda possuía um lar e se conseguisse sair da Irlanda de algum modo, o que aconteceria com Devlin O’Neill? Fechou os olhos. E se não voltasse a vê-lo?
Compreendeu então que não suportava a idéia.


Não lhe surpreendeu descobrir que sua porta não estava fechada a chave e que não havia ninguém do lado de fora. Observou o corredor deserto e aguçou o ouvido. No dia anterior Devlin havia ordenado a Connor que montasse guarda diante de sua porta. Era evidente que seu castigo havia terminado. Lógico, depois do acontecido na noite anterior.
Era meio-dia. Não tinha conseguido conciliar o sono até o amanhecer e acabou por dormir até tarde. Cuidadosamente embelezada com um vestido cinza de gola alta desceu a escada, cheia de tensão. Devlin e ela eram amantes? Era por acaso, a querida de Devlin O’Neill?
O que ele diria, o que faria quando se encontrassem? Aterrorizava-a o primeiro encontro. Intimou-se a fitá-lo nos olhos, sorrir alegremente e saudá-lo como se nada tivesse acontecido. Como se não lhe desse pavor o que ele poderia fazer ou dizer. Intimou-se a sondá-lo com cuidado, sem lhe oferecer nenhum indício a respeito dos próprios sentimentos. Porque se ele não se mostrasse amável, não queria que soubesse o quanto tinha lhe afetado seu encontro amoroso. Não queria que ele adivinhasse o alcance de suas emoções. De fato, lhe dava medo reconhecer o que escondia seu coração.
A casa estava em silêncio. Virginia apareceu na sala de refeições e notou que o bufe do café da manhã havia sido retirado há tempo. Estava com muita fome, mas tentaria esquecer-se dela. O escritório de Devlin era no fundo do corredor. Apertou o passo, mas logo teve que se lembrar que não devia correr. Devia se acalmar e respirar. Para sua surpresa a porta do escritório estava aberta e o aposento vazio.
Desanimada observou a grande mesa em que tinha visto Devlin trabalhar. Entrou logo no salão ao lado, mas também estava vazio. Abriu às portas que davam para o terraço de tijolo e fitou os prados ondulados. Notou que um cavalo e um cavaleiro se aproximavam. Saiu da casa através do terraço. Seu coração voava cheio de uma emoção que não conseguia dominar.
O cavaleiro ainda estava longe e ela não conseguia distinguir seus traços. Deteve-se diante os estábulos e esperou, retorcendo-as mãos. Logo notou o vulto cinza e branco pela extremidade do olho. Confirmou surpresa que o cavalo de Devlin estava em sua baia.
Se não havia saído para cavalgar, onde ele estava? Seu coração repicava agora, como um tambor. Talvez tivesse saído em outro cavalo, pensou preocupada de repente, sem saber por que. Saiu do estábulo e vacilou. Era Sean quem estava desmontando no pátio, não Devlin.
Conseguiu respirar fundo para se acalmar e compor um sorriso antes de se aproximar dele.
— Bom dia, Sean. — Disse alegremente.
— Boa tarde. — Ele respondeu sem olhar para ela e entregando as rédeas do alazão a uma jovem. — Leve-o para dar um passeio, para se refrescar, Brian.
— Sim, Senhor. — Disse o rapazinho e saiu com o cavalo suarento.
Virginia continuou sorrindo enquanto seu pulso batia freneticamente. — Gostou do passeio? — Perguntou.
— Sim. — Disse ele caminhando para ela, mas com o olhar atento na casa.
Virginia começou a se alarmar. Pôs-se a andar ao seu lado. Observava o perfil duro, tão parecido ao de Devlin. Sean parecia queimado pelo sol ou estava ruborizado. E era evidente que não queria olhar para ela. Ela engoliu a saliva. A primeira coisa que lhe veio à mente foi que Sean sabia de algum modo, o que tinha acontecido. Mas rapidamente descartou a idéia.
— Está tudo bem? — Perguntou com cautela.
— Sim. — Sean a fitou, finalmente. Logo fixou o olhar em sua boca, mas logo o afastou.
Virginia tinha os lábios inchados e estava segura de que Sean não só o notava, mas também entendia perfeitamente o porque.
— Sabe de Devlin? — Perguntou com voz aguda, a beira da histeria.
— Sim. — Sean de repente parecia zangado. Apertou o passo e a deixou atrás.
Ela teve que correr para alcançá-lo.
— Não parece estar em casa e…
— Não está.
Ela se deteve.
— O que?
Sean não parou.
— Foi embora.
A mente de Virginia congelou.
— Embora? — Ela praticamente grasnou.
Sean se voltou de repente, com violência.
— Ele partiu. Não está aqui — Disse. Estava com o rosto avermelhado.
Ela Engoliu a saliva com esforço.
— O que quer dizer, Sean?
O olhar furioso de Sean se chocou com o dela.
— Ele foi para Londres nesta manhã.
Virginia deixou escapar um grito. Por um instante o mundo se tornou cinza, escureceu. Tornou-se negro. Quando se recuperou parcamente estava em braços de Sean e ele a fitava com preocupação. Ela fez uma débil ameaça de afastá-lo. Sean não permitiu. Segurava-a em pé com firmeza, enlaçando-a firmemente em seu braço.
— Você quase desmaiou.
Ela fitou seus olhos, consciente de que os dela estavam cheios de lágrimas.
— Foi para Londres?
Sean assentiu com expressão severa e angustiada. O coração de Virginia se abriu. Devlin havia ido embora e nem lhe dera adeus. Não importava o bastante para ele, para merecer uma despedida.
— Ele vai voltar? — Murmurou.
— Não sei. — Disse Sean. — Disse que enviaria recado.
Ela o fitou atentamente. Seu corpo estremecia e sua boca tremia. A mulher de dezoito anos havia desaparecido. Uma menina pequena ficava em seu lugar, quebrada e confusa. Abandonada e sozinha. Cheia de temor.
— Sinto muito. — Disse Sean. — Poderia matá-lo com minhas próprias mãos. Meu próprio irmão, o monstro que não entendo.
Ela gemeu. Lutava contra as lágrimas. Resistia-se a chorar. Para Devlin não importava que tivessem feito amor. Ele havia ido embora.
— Sei o que ele fez, Virginia. Sinto muito.
Ela fitou os olhos cinza, tão parecidos com os do irmão, exceto porque refletiam compaixão e dor. Sean segurava suas mãos firmemente.
— Sabe? — Ela sussurrou enquanto começava a chorar.
— Vi Devlin ontem à noite. — Ele respondeu. — Era evidente. Mas seu segredo está a salvo comigo.
Ela fechou os olhos e encolheu os ombros.
— Não me importa. É melhor assim. Se Eastleigh pensa em me casar com algum desconhecido, poderei dizer simplesmente a verdade sobre acontecido e ninguém vai querer me desposar. — Mas sim, importava. Sentia uma dor espantosa. Tinha que partir. Tinha que estar sozinha.
— Não se atormente. Não foi tua culpa. É jovem e inexperiente, uma presa perfeita para alguém como Devlin. Como uma moça iria resistir ao encanto de meu irmão? — Seu riso era áspero. — É em momentos como este que o detesto. É melhor que tenha ido embora. Devemos acreditar em que não retorne nunca.
— Não diz isso de coração. — Ela conseguiu dizer.
— É o que sinto agora. A verdade é que meu irmão daria sua vida por mim e o amo. Mas nunca o perdoarei por isso. — os olhos de Sean eram negros como o mar tormentoso.
Virginia voltou a sentir o golpe da imensa traição. Devlin havia ido embora e levara sua inocência. Ela não importava. Era um monstro e não um homem.
— Tenho que me sentar. — Disse com voz estrangulada. — Não estou bem.
— Parece que vai desmaiar outra vez. — Disse Sean com amargura e levantando-a nos braços entrou na casa.
Virginia não teve forças para resistir. Era muito tarde para fazer algo a respeito. Estava com o coração quebrado porque tinha cometido a tolice de se apaixonar por um homem cruel.




Virginia perdeu a conta dos dias. Chovia quase todo o tempo. Sean a deixava por conta e ela passava as manhãs a cavalo, quando o céu estava espaçoso. Passava as tardes vagando pela casa ou lendo algum dos muitos livros que havia na biblioteca. Sean se esforçava em evitá-la, apesar de antes ter se mostrou galante, amigável e afetuoso. Virginia jantava em uma bandeja em seu quarto. Pensava em fugir e tentou uma só vez. Encontrou algumas moedas nos aposentos de Sean, onde se atreveu a entrar sem permissão. Vestida como um rapaz levou a égua baia e encontrou o caminho para Wexford, a centenas de milhas a este. Era outro dia cinzento e chuvoso. Esperava encontrar facilmente o caminho, mas no primeiro cruzamento das estradas se desorientou, pois não havia nenhum sinal. Podia escolher entre o norte e o sul, mas Wexford ficava a este, em linha reta. Deduziu que devia se dirigir para a direita ou seja, ao norte. Muitas horas depois notou que se direcionava diretamente para o norte, entrando no coração da Irlanda, e se perdeu. Estava molhada e com frio, tanto que pensou em retornar. E a pequena égua estava cansada e começava a fraquejar. Mas não teve como voltar. Era tarde, já a última hora. Deteve em uma hospedaria do caminho, para pedir indicações que só confirmaram sua suspeita de que havia se perdido. Foi então que Sean apareceu em um cavalo negro, furioso e impaciente. Mas em vez gritar com ela, não disse uma palavra. Reservou dois quartos e no dia seguinte retornaram a Askeaton em meio de um tenso silêncio.
Quando a casa se tornou visível, Sean deteve a montaria. Virginia parou também e seus olhares se encontraram.
— Quero sua palavra, — disse ele com veemência, — de que não tentará fugir outra vez. Se não terei que voltar a te trancar sob chave.
Aquela era sua primeira conversa autêntica desde o dia da partida de Devlin.
— Não te entendo. — Disse Virginia lentamente. — Você disse uma e outra vez que desaprovava o que seu irmão está fazendo, e ainda assim não vai olhar para outro lado, para que eu possa fugir?
Ele estava muito sério.
— Jurei para Devlin que te manteria a salvo em Askeaton e o farei.
— Não tem coragem para enfrentá-lo. — Disse ela.
A expressão de Sean se endureceu e seus olhos cintilaram.
— Devlin quer que nos casemos.
Virginia ficou atônita. Sem dúvida tinha ouvido errado, certo? Mas as paredes de seu mundo, já frágeis, começaram a cair.
— O quê!
— Ele acredita que o melhor seria que depois do resgate, nós nos casássemos. — Disse ele.
Virginia não podia absorver as palavras, a idéia. Aturdida pelo golpe esporeou à égua, que partiu a galope para a casa. Seria entregue ao irmão mais novo. Devlin a usara uma vez e agora pensava em deixar-lhe para Sean.
Ao chegar à casa desmontou e entregou a égua a um rapaz do estábulo. Sean chegou a galope atrás dela e desceu do cavalo.
— Eu sei. É inexplicável.
— Afaste-se de mim. — Ela o advertiu enquanto caminhava a passos decididos para a casa. Não podia respirar e uma névoa avermelhada se formava em seus olhos. A dor e a raiva se misturavam se tornando impossíveis de separar. Se não havia odiado Devlin antes, odiava-o agora.
A lembrança da noite tórrida e luxuriosa embargou-a e ela desejou que as imagens fossem fruto de sua imaginação e não de um passado muito real e recente.
Estava desejando que a resgatassem.


Nessa noite, Sean foi ao seu quarto. No corredor, ele lhe perguntou cortesmente se podia descer para jantar. Virginia o fitou do refúgio de seu quarto, obstinada à porta aberta. Ele parecia preocupado, com sua expressão já característica, mas também indeciso.
— Não faça isto. — Disse ela.
— Não estou fazendo nada. Mas, depois do que Devlin fez lhe tratei de forma intolerável. Quero começar do zero. Eu não sou o inimigo, Virginia. Na verdade sou seu amigo.
Ela se abraçou. Seus olhares se encontraram.
— Por que me deu as costas quando estava destroçada, quando necessitava de um amigo? — Sussurrou.
— Porque eu também sofria. — Ele respondeu depois de um momento de hesitação.
Virginia demorou um segundo para compreender. Estava insinuando Sean, que sentia algo por ela e que o fato de Devlin tê-la seduzido tinha acabado com suas esperanças?
Ele sorriu amavelmente.
— Acredito que seja hora de assinarmos uma trégua. Além disso, estou muito só na sala de janta, noite após noite. Sinto falta de suas histórias tão divertidas.
Ela se sentiu comovida. Pousou a mão sobre seu braço.
— Eu também sinto. Não é você quem odeio.
— Eu sei.


As semanas se converteram em um mês e logo em dois. Virginia jantava com Sean a cada noite e depois de algumas semanas a tensão tinha desaparecido. Ela começou a ansiar a saída da tarde para compartilhar com ele o jantar delicioso e a conversa que nunca se esgotava. Sean trabalhava duramente para levar adiante o imóvel e durante as noites lhe contava sobre os problemas que enfrentava e seus êxitos, grandes ou pequenos. Freqüentemente sua conversa tomava um rumo político. Liverpool, homem que Sean parecia ter em alta estima havia formado um novo gabinete e era agora o primeiro-ministro. Em meados de agosto, se inteiraram pelo Dublin Times, que os Estados Unidos haviam declarado a guerra a Grã-Bretanha. Forças britânicas haviam tomado um pequeno assentamento ao noroeste, e um esquadrão britânico havia capturado o Nautilus, um navio da Marinha americana.
Virginia não saía de seu assombro.
— Como pode pensar seu país em nos reduzir novamente a um estado de colônia? — Ela exclamou.
— Não pensamos converter novamente aos Estados Unidos em uma de nossas colônias. — Respondeu Sean. Não queríamos esta guerra. Já temos guerra suficiente com o que acontece na Europa. Os responsáveis por isto são seus falcões da guerra, Virginia.
Virginia sabia algo sobre a política americana, mas pouco sobre falcões de guerra.
— Meu pai era um homem muito inteligente e repetia freqüentemente que a Grã-Bretanha não sentia respeito por nossos direitos, que deseja recuperar seu status como mãe pátria e que nunca nos permitiria o livre comércio. Quantos navios americanos foram capturados por sua Marinha? Quantos americanos como eu foram seqüestrados nesses navios… E resgatados? Você sabe quanto dinheiro tem nos custado a política de restrições ao comércio em seu país? — Replicou ela.
— Por desgraça deseja alimentar e vestir Napoleão e aos seus exércitos, Virginia. — Disse Sean com calma. — E isso não se pode permitir.
No final nenhum dos dois ganhou o debate e foi estabelecida uma trégua, mas após isso ambos seguiram com avidez as notícias da guerra. Pouco depois aconteceu um massacre de índios no forte americano de Dearborn e a captura britânica de Detroit. A nova guerra, tão insignificante para Grã-Bretanha e tão importante para os Estados Unidos, não ia bem para os americanos. Não houve notícias de Devlin. Nenhuma só carta. Se o sequestro progredia, ele não os mantinha informados.
Virginia começou a acompanhar Sean aos campos a cada dia e quase chegou a esquecer que seu amigo tinha um irmão. Parecia certo afinal de contas, que o tempo curava todas as feridas. De alguma forma parecia ter enterrado a lembrança de Devlin em um lugar escuro e remoto. Entretanto, no fundo de seu coração sabia que era o único homem que nunca poderia esquecer.
Numa noite, em meados do mês de setembro, Virginia desceu para jantar e ouviu vozes desconhecidas no salão principal. Relaxou o passo ao se dar conta que uma mulher e um homem conversavam amigavelmente com Sean. Intrigada por saber quem seriam as visitas se deteve antes de entrar. Seus olhos se viram atraídos imediatamente por um homem alto e moreno, de pele bronzeada e majestoso porte. Seu olhar se fixou então em uma mulher alta, com o cabelo muito loiro, voluptuosa e elegante em seu traje. Seu coração saltou no peito, pois a reconheceu imediatamente. Devlin O’Neill se parecia tanto com ela que não restava dúvida alguma que era sua mãe. O que significava que o homem alto e moreno que a acompanhava devia ser Edward de Warenne, o Conde de Adare.
Virginia pensou em fugir antes que a vissem e alegar uma enxaqueca, pois estava segura de que jantariam ali. Mas já era tarde.
— Virginia… — Sean, que já tinha lhe visto sorria amplamente. Seus olhos brilhavam. — Venha conhecer meus pais, lady Mary de Warenne e meu padrasto, Lorde Adare.
O casal se voltou simultaneamente e Virginia se encontrou diante de olhares penetrantes. Por um momento esteve segura de que a estudavam minuciosamente. Adiantou-se devagar, cheia de inquietação e temor. Mas Mary sorriu.
— Olá, Virginia. Retornamos ontem de Londres e tão logo ouvimos a notícia, nos apressamos a vir.
— Milady… — Disse Virginia fazendo uma reverência.
— Típico de Devlin não dizer nenhuma palavra. — Disse Adare enquanto a fitava com atenção.
Virginia se voltou para Sean, confusa. Ele também parecia desconcertado.
— Como está Devlin? — Perguntou secamente.
— Metido até o pescoço em uma confusão que ele mesmo causou. — Disse Adare com severidade. — Voltaram a lhe acusar de desobedecer a ordens diretas. Correu o rumor de que havia atacado um navio americano.
— O que aconteceu? — Perguntou Sean, muito sério.
— Houve um conluio preparado pelo Almirante Farnham, com a ajuda de Tom Hughes. Devlin alegou ter ido de encontro de um navio mercante americano com dificuldades e insistiu em que não havia atacado nenhum navio americano. Vários de seus homens atestaram que era verdade. O navio, o Americana, naufragou ao que parece em uma tormenta e não houve sobreviventes. Farnham foi vencido por dois votos a um, e a moção para que se celebrasse um conselho de guerra foi rechaçada.
— Meu Deus. — Murmurou Sean, muito pálido.
Adare levantou a mão.
— Ele está sob avaliação e foi enviado para escoltar um comboio a Espanha. Meu filho tem nove vidas… E já usou dez.
Virginia suava profusamente. Já tinha uma explicação para a prolongada ausência de Devlin. Ela não ia desculpar seu comportamento, mas em um cantinho de seu coração se alegrava por que, se ele sentiu vontade de retornar a Askeaton foi impedido.
— Ele voltará logo? — Perguntou com nervosismo.
— Não saberia dizer. — Disse o Conde com amabilidade.
Mary lhe sorriu.
— Bom, espero que sim. Ou acaso espera que seu irmão lhe faça companhia enquanto navega pelo mundo? — Virginia estava cada vez mais inquieta. — Felicidades, minha querida. — Disse Mary segurando suas mãos. — Me alegro muito pelos dois.
— O-o Oquê?
Sean disse o mesmo. Adare sorriu.
— Estamos muito contentes… E aliviados, tenho que acrescentar, pois é a ultima coisa que esperávamos.
Virginia tinha um mau pressentimento. Fitou Sean em busca de ajuda.
Ele pigarreou.
— Como se conheceram? Podemos saber? — Mary perguntou enquanto dava o braço a Virginia.
A ela não lhe ocorreu uma resposta inteligente. E Mary se referia a Devlin… Não?
Adare tocou o ombro de Sean.
— Já que Devlin não teve a amabilidade de nos informar de que vai se casar perguntarei a você. Quando será o casamento? Há algo planejado? Sabe que a sua mãe adoraria ajudar a organizar os festejos.
— O casamento… — Disse Sean com precaução, muito avermelhado.
— Sim, o casamento de Devlin. A primeira coisa que ouvimos quando chegamos em casa foi que Devlin está noivo. Assim que descemos do navio em Limerick, o prefeito foi nos parabenizar… Todos os cavalheiros e os comerciantes também. — Adare fitava Sean atentamente. — O que está acontecendo, Sean? Parece nervoso.
Sean e Virginia se olharam, impotentes. Mary deixou de sorrir.
— Está acontecendo alguma coisa? — Ela se voltou para o filho. — Sean?
Virginia respondeu, por que Sean parecia incapaz de articular alguma palavra.
— Sinto muito, não sou a noiva de Devlin. Houve um terrível mal-entendido.
— Não entendo. — Mary estava pálida.
— Bom, isso explica por que Devlin não disse nenhuma palavra quando o vimos em Londres. — Adare estava sério e contrariado. — Temo perguntar então, o que está acontecendo. Você é convidada de Devlin? — Seu olhar se entreabriu. — Não nos apresentaram adequadamente.
Virginia não queria desgostar Mary de Warenne, mas não tinha outra opção. — Não sou uma convidada. — Disse.
— Não entendo. — Mary murmurou.
— Você não é uma convidada. — Disse Adare, lentamente. Ele se voltou para Sean. — É sua esposa, então?
— Não. — Sean respondeu, ruborizando. — Talvez seja melhor que sentem-se, pai.
— Tenho um mau pressentimento. — Disse Adare.
— Virginia é a sobrinha do Conde de Eastleigh. — Sean murmurou.
Um terrível silêncio dominou o aposento.




Pelas portas abertas do terraço Virginia observou o Conde abraçar sua esposa. Mary chorava. Virginia notou que Sean se aproximava dela pelas costas e um momento depois sentiu a mão dele sobre o ombro. Voltou-se para ele.
— Agora sabemos por que Devlin não pediu resgate por ti. — Disse ele brandamente. — Estava muito ocupado se defendendo de um conselho de guerra.
— Eastleigh acredita que provavelmente estou morta. Sem dúvida pensa que estou no fundo do mar, com o navio Americana. — Disse Virginia, inquieta.
— Certamente. — Sean concordou.
— Por que sua mãe está tão desgostosa? — Perguntou. — Ninguém lhe falou do resgate.
Sean titubeou.
— Em parte ela deseja muito que Devlin encontre a felicidade.
— A Devlin não interessa a felicidade. — Respondeu ela, irritada.
— Tem razão. — ele concordou. — Mas ela é mãe e quer que seus filhos sejam felizes.
— Pareceu-me que os dois ficaram atônitos ao saber que sou sobrinha de Eastleigh. — Disse Virginia. Sean encolheu os ombros. — Te perguntei uma dúzia de vezes por que Devlin fez isso e você se nega a responder. Agora pergunto outra vez. Por que está lady Warenne tão angustiada? Por que quase desmaiou ao ouvir o nome de Eastleigh? Tem tudo isto a ver com meu tio? — Prguntou.
— Sim.
— Não entendo. — Disse Virginiase surpreendendo.
— Eastleigh nem sempre foi Conde. Harold Hughes era na realidade o filho do meio do último Conde. Era Capitão do exército, uma profissão muito comum entre os segundos filhos. — Explicou Sean laconicamente.
Ela seguia sem entender o que ele queria dizer.
— O que tem tudo isso a ver comigo… E com seu irmão?
Ele fez uma careta.
— Harold Hughes serviu na Irlanda, Virginia. Foi ele quem assassinou nosso pai.
Aturdida, Virginia gritou. Sean a segurou. Ela buscou amparo em seus braços.
— Trata-se então da morte de seu pai? — Então ela entendeu tudo. — Meu Deus! Não se trata de resgate, mas de uma vingança.
Ele assentiu com a cabeça. E a magnitude de tudo aquilo, a absoluta ironia da situação se tornou evidente para a Virginia. Pôs-se a rir. Ria freneticamente porque Devlin era um tolo. Oh, sim!
— Virginia, você está ficando histérica. — Disse Sean com cautela enquanto tentava levá-la em direção a poltrona.
— Eu acredito que não! — Ela gritou, mas deixou conduzir. — Seu irmão é um tolo, porque a Eastleigh eu importo um nada, e menos ainda importaria se fosse refém de alguém.
Sean a obrigou a sentar e se afastou. Virginia seguiu gargalhando, pois agora era ela quem ria por último. O tiro havia saído pela culatra, para Devlin. Sean retornou. Parecia muito preocupado. Deu-lhe uma taça de conhaque. Virginia a rechaçou.
— Não notou? Não há vingança. Se Devlin quer ferir o Conde de Eastleigh, não será através de mim.
Sean se sentou a seu lado e segurou as pequenas mãos entre as suas, grandes e fortes. Virginia pensou nas mãos de Devlin e se enrijeceu. Lentamente fitou os olhos de Sean.
— Não. Há anos Devlin está destruindo metodicamente o Conde de Eastleigh. A esse homem já não resta mais que um imóvel, com uma renda muito pequena. Ele não pode se permitir pagar seu resgate. Se pagar terá que vender tudo o que lhe resta. Estará acabado e meu irmão terá vencido.
Ela o fitou com assombro e logo afastou as mãos.
— E o Conde terá que pagar?
— Se converterá em uma questão de honra.
— Que tipo de homem destrói uma mulher inocente, a fim de vingar seu pai? — Perguntou, aturdida.
— Meu irmão, — revidou Sean voltando a segurar a mão de Virginia, apertando firmeza, — não te destruiu. Você não está grávida. — Ele falava em voz baixa. — Não voltará a te tocar. Eu te prometo. Muito em breve tudo isto terá acabado. Um dia será só uma vaga lembrança.
Virginia continuava fitando-o, mas já não avistava Sean, mas Devlin e começava a compreender por que seus olhos eram ser tão frios, que mostravam total falta de compaixão ou bondade. Ele não era um homem corrente. Estava obcecado com a vingança e qualquer meio lhe parecia válido para consegui-la.
— E sua carreira? Sem dúvida enfrentará uma corte marcial por me seqüestrar.
— Eastleigh já caiu em ridículo muitas vezes por causa de Devlin. — Sean lhe respondeu. — Ele é muito orgulhoso para procurar às autoridades, Virginia.
Ela ficou quieta. Compreendeu então que tinha nas mãos a possibilidade de acabar com Devlin O’Neill. Sean lhe sustentou o olhar. Sem dúvida, ele também sabia.
Mary e o Conde entraram repentinamente. Mary já não chorava. Os dois estavam terrivelmente sérios. Enquanto a fitavam ela afastou a mão de Sean, e se levantou devagar.
Mary esboçou um sorriso.
— Por favor, pequena. Venha sentar comigo aqui fora. Está uma noite muito agradável.
Virginia desejou poder se desculpar, pois estava segura de que Mary queria manter com ela uma conversa muito íntima. Dirigiu a Sean um olhar suplicante, mas ele encolheu os ombros. Como não lhe restava outra opção saiu para o terraço com Mary. A outra mulher se deteve junto à balaustrada e a fitou. Virginia levantou os olhos para as estrelas, em vez de confrontar seu olhar. Mas era impossível subtrair-se à bondade e a compaixão que fluíam dela, como de um anjo terrestre.
— Menina, — disse brandamente a Condessa, — como posso te pedir perdão pelo que meu filho tem-lhe feito?
Virginia teve que fitar seus olhos. A compaixão de Mary punha em perigo sua compostura.
— Não é culpa sua.
Mary não pôde falar durante algum momento.
— Amo meus dois filhos com todo o meu coração. Desejo que vivam em paz e que sejam felizes. É muito difícil aqui na Irlanda, se conseguir uma vida assim. Sean, eu acredito, se aproximou o bastante. Mas Devlin… Devlin foi para o mar ainda um jovem. São raras as vezes que o vejo. Escolheu uma vida sem alegria, em alto mar, uma vida de guerra, destruição e morte. Ele vive com sua dor, alheio ao mundo e às pessoas, como se fosse uma ilha, como se não necessitasse da companhia dos homens, nem do amor ou da sorte. — Mary fechou os olhos e as lágrimas correram por sua face. — Rezei tanto por ele…
Virginia sentiu também acabaria apor chorar.
— Talvez não necessite nem de companhia e nem amor — Disse livremente.
— Ele pode ser frio, — disse Mary fitando-a nos olhos, — mas é um homem. Um coração palpita em seu peito. Claro que necessita de companhia e amor. Todos nós necessitamos dessas coisas. — Virginia não estava segura de que Mary de Warenne tivesse razão. — Me acordo de madrugada, angustiada por ele. Cem vezes voltei a dormir chorando. Meu marido me diz que ele é um homem adulto e que em muitos sentidos deveríamos estar orgulhosos dele. Ele cresceu sem nada. Éramos muito pobres, então. Agora tem esta casa tão bela, as terras que durante gerações pertenceram aos O’Neill e aos FitzGerald, e possui muitos navios excelentes, sua própria frota, além de uma casa maravilhosa em Greenwich. Recentemente foi elevado à nobreza. — Ela sorriu entre lágrimas. — Agora é Sir Devlin O’Neill.
— É um homem muito poderoso. — Disse Virginia com a voz enrouquecida.
— Sim. Ele é. — Mary segurou suas mãos. — Mas não é cruel. Certo? — Ela perguntou, implorante.
Virginia a fitou atentamente, incapaz de responder durante um instante. Finalmente sussurrou:
— Não no sentido ao qual se refere.
— Ai, Jesus bendito! O que ele lhe fez? — Soluçou Mary.
— Estou bem. — Ela mentiu, angustiada.
Mary a observou atentamente, aflita.
— Eduquei meus filhos para que respeitassem às mulheres. — Ela disse. — Ele a respeitou?
Virginia não sabia como responder. Se Mary lhe fizesse a pergunta na véspera da partida de Devlin teria respondido afirmativamente e sem hesitações. Mas agora a dor voltava de repente e troava em seus ouvidos, ensurdecia-a. Uma neblina se elevou ante seus olhos e a cegou por um instante. Ele havia partido sem sequer lhe dizer adeus. Seguia lhe doendo e se isso não fosse crueldade, o que seria?
Mary compreendeu. Levou a mão ao peito, trêmula. Depois se voltou.
— Se não o amasse tanto, eu o repudiaria… Meu próprio filho, sangue de meu sangue. — Mary se voltou para ela. — Está grávida? — Virginia negou com um gesto de cabeça. Mary se aproximou dela e posou a mão sobre sua face. — É uma jovem bela. — Sussurrou. — O quer?
Virginia se sobressaltou. Logo disse:
— Por favor, não posso responder a mais perguntas. — Ela se afastou bruscamente, mas logo se voltou. — Lady de Warenne, Devlin não me fez mal, seriamente. Acredito que tentou ser o homem que você quer que ele seja. Mas… Simplesmente aconteceu. — Ela sabia que estava defendendo Devlin. Sacudiu a cabeça com veemência, cheia de angústia, porque sua defesa seguia sendo inexplicável. — Já não sei mais nada. Só sei que devo ir para casa. — Ela se voltou, entrou na casa e correu em refugiar em seu quarto.

Na carruagem, Edward abraçou e a atraiu para si. Mary se voltou para ele, apoiou a face em seu peito e fechou os olhos. Ele podia sentir sua angústia e embora quisesse Devlin como se fosse seu filho odiava a dor que ele causava a sua esposa. Desejava ter o poder de remediar tudo. A ironia irredutível que enfrentava muitos homens poderosos era que podiam governar um reino e seus súditos, mas não um filho rebelde.
— Não se preocupe mais esta noite. — Sussurrou. — Amanhã falaremos disto e decidiremos o que se tem a fazer.
Mary não respondeu. Ele a sentiu tremer e compreendeu que estava chorando outra vez. Inclinou-se e lhe beijou a têmpora. Ela procurou sua mão e a apertou.
— O que faria eu sem você? Eu te amo, Edward. Amo-o muito.
Uma velha emoção se apoderou dele. Havia se apaixonado por Mary no preciso instante em que a conheceu, quando Gerald seu arrendatário levou sua noiva em sua casa. Ela estava com dezessete anos. Naquela época, ele também estava para se casar. Passou onze anos admirando Mary a distância, sem nunca fazer um comentário ou um gesto inapropriado, enquanto ela dava três filhos ao seu marido e sua própria esposa lhe presenteava com três formosos filhos varões e uma filha. Naqueles anos havia desenvolvido respeito e admiração por seu arrendatário, além de uma cautela receosa. Ouvia rumores de que os Defensores haviam chegado a Wexford, de que seu poder e seu entusiasmo estavam aumentando. Sempre havia favorecido a emancipação plena dos católicos, pois acreditava que o fato permitiria que a Irlanda se fortalecesse econômica e politicamente. Outros discordavam. Alguns temiam perder o poder e as terras se uma vez legitimados em seus direitos, os católicos procurassem restaurar seus antigos privilégios.
De vez em quando jantava com Gerald e Mary se desculpava amavelmente para que eles pudessem conversar. Gerald nunca havia suspeitado que ele fosse apaixonado por sua mulher. Já Mary, sabia. Havia sentido desde o começo e desde então sempre havia mantido os olhos baixos cada vez que ele estava presente, como se temesse que somente um olhar compartilhado pudesse conduzi-la a um terrível engano.


Algum tempo antes da insurreição de Wexford, Edward descobriu que Gerald fazia parte da conspiração. Discutiram ferozmente, tanto quer quase trocaram agressões e Edward exigiu que ele se mantivesse a margem do conflito. Dias antes que os rebeldes tomassem a cidade de Wexford, Gerald chegou ao galope em sua casa. Parecia enlouquecido.
Adare saiu para recebê-lo no pátio, aterrorizado ante a idéia de que algo espantoso tivesse acontecido a Mary ou as crianças. Gerald desceu do cavalo e o segurou pelas lapelas da casaca.
— Necessito que jure que cuidará de minha mulher e meus filhos, Edward.
— O que diz? — Edward estava atônito.
— No caso de… — Gerald o fitava com selvagem atenção. — Eles somente poderão recorrer a você. Prometa-me. Jure que velará pelo bem-estar deles, que não permitirá que morram de fome. E… — Ele titubeou. — Jure que encontrará outro marido para ela. Um homem bom e decente.
Sua esposa havia morrido há alguns anos, ao dar a luz a sua segunda filha, que tampouco havia sobrevivido. Ele ainda chorava sua morte e não sonhava sequer com o que lhe proporcionaria o futuro.
— Mantenha-se afastado da rebelião. — Ele ordenou-lhe. — Você tem uma família maravilhosa, uma boa esposa, e eles o necessitam vivo.
— Meu país precisa de mim. — Replicou Gerald. — Prometa-me, Edward!
Ele prometeu. Mas não era necessário, porque de todo modo teria movido céus e terra para proteger Mary e as crianças.
Havia sido um golpe terrível do destino. Primeiro a morte de sua esposa e mais tarde o assassinato de Gerald pelos britânicos. Mas agora, quase quinze anos depois, tendo conseguido uma felicidade pessoal e uma alegria que nunca havia acreditado possível, não conseguia imaginar sua vida sem Mary. Acariciou novamente seu cabelo e murmurou: — Vamos enviá-la a Eastleigh. Amanhã me ocuparei de tudo.
— Não! — Mary se sentou bruscamente, com os olhos muito abertos.
— Não? Carinho, Devlin a reteve contra sua vontade. — Disse ele com suavidade.
— Devlin a seqüestrou e a retém como refém. — Disse Mary com firmeza. — Não é preciso fazer rodeios comigo!
Ele sorriu, compungido, e lhe apertou a mão.
— Só quero evitar mais sofrimento a você. — Disse.
— Eu sei. — Soluçou ela. — Mas e Virginia? Ninguém vai economizar sofrimento a ela? Não vai obter justiça?
Ele escrutinou seus olhos azuis.
— O que ronda por sua cabecinha?
— Devlin fará o que é certo. — Disse ela com firmeza. — Dê um jeito neste assunto, do único modo possível.

 

 

 

 

 


Capítulo 13


Devlin contemplava o dia cinzento, com os olhos semicerrados.
Diante dele, o caminho que levava a Limerick serpenteava entre campos de lavoura recém segados e suaves colinas nas quais se encontravam os muros de pedra. Ficou um momento observando tudo, enquanto permanecia sentado sobre a montaria. Teve o bom cuidado de não permitir que nenhum sentimento o embargasse. E conseguiu. Desta vez não se sentia reconfortado em voltar para casa. Era simplesmente outra missão que devia cumprir.
Esporeou ao cavalo até que o mesmo trotasse. Sabia que na curva seguinte avistaria suas terras. Mas isso não o importava. Dominava-se com mão férrea. Nunca antes havia se sentido tão dono de si.
Dobrou a curva e finalmente se permitiu sentir um prazer leve e ocioso ao ver os campos segados que se estendiam nus e pardos diante dele. Um muro de pedra cortava o mesmo. Devlin conduziu a montaria para ele e quando o animal vacilou esporeou-o a seguir adiante, urgindo-o com as pernas. O cavalo saltou o muro e baixou a terra bruscamente. Quando recuperou o trote, Devlin lhe deu uma palmada para agradecer sua coragem.
Diante dele se estendia um campo com a terra removida. Viu dois cavalos que pastavam em seu confine e imediatamente esquadrinhou os arredores em busca dos cavaleiros. Ao avistar duas figuras junto à margem de um riacho, totalmente envolvidas em uma conversa, se deteve bruscamente com o coração acelerado. Uma das figuras era o bastante alta para ser um rapaz e Devlin soube sem indício de dúvida de quem se tratava. Seu ânimo escureceu. Enrijeceu as pernas com tanta energia que o cavalo partiu a galope. Puxou as rédeas para detê-lo e o animal recuou. Não podia afastar os olhos de Virginia e seu irmão.
Recordou-se que era capaz de dominar seus homens, seu navio e seu inimigo. Que dominava sua vida a mais de dez anos, e nunca de maneira mais efetiva que o verão e o outono anteriores, enquanto patrulhava as costas da Espanha, vigiando os estreitos. Seu coração, que pulsava tresloucadamente zombava dele.
Também havia dominado seus pensamentos. Durante os cinco meses anteriores, não havia pensado em nada mais que em sua missão. Com punho de ferro tinha sufocado qualquer pensamento inoportuno e o relegara às sombras do passado, aonde pertencia.
Havia retornado por uma única razão, sabendo de que era plenamente dono de si mesmo. Pensou com firmeza que não se importaria com o que estivessem conversando. Refreou o cavalo e continuou observando-os. Estavam muito longe para que distinguisse seus traços ou sua expressão. Só notava que Virginia também usava calça clara e botas de montar de cano alto, até o joelho. Parecia ter o cabelo para trás, não sabia se solto ou recolhido em uma trança. Enrijeceu-se e procurou algum indício aparente de gravidez, mas de tão longe era impossível notar.
Sua boca retorceu com irritação. Aquela absurda atração fazia parte do passado. Estava seguro do fato. Quando se encontrassem cara a cara sentiria por ela o mesmo que por Elizabeth ou Fiona.
Estava farto de pensar. Fez voltar o cavalo voltar e galopou para Askeaton.


— É uma receita secreta, — estava dizendo Virginia quando entraram na casa, — da bisavó de Tillie.
— Tillie, a sua melhor amiga, a escrava? — Perguntou Sean, que ia atrás dela. Levava nas mãos uma dúzia de espigas de milho.
Virginia assentiu com a cabeça, acalorada pela recente galopada.
— Eu fiscalizarei os preparativos da comida. — Disse Virginia. Estava com água na boca em apenas pensar no pudim de milho que comeriam nessa noite. — Que sorte que ainda tinha um pouco de milho.
Sean sorriu e disse alguma coisa, mas Virginia que acabava de sair para o salão não o ouviu. Devlin estava em pé no corredor.
Ela se deteve e Sean se chocou com seu corpo. Ela mal se deu conta. Seu coração parou no peito. Mal conseguia respirar. Devlin permanecia tranqüilamente parado e a observava sem pressa. Era evidente que estava esperando-a. Estava com as robustas coxas afastadas, como se estivesse governando seu navio. Seu olhar não vacilou ou se afastou de seu rosto.
Virginia respirou com dificuldade e sentiu que os pulmões lhe ardiam. Seu coração pulsava agora com força e lhe causava uma nova queimação, uma nova dor. Começou a tremer. Voltou e notou que Sean havia deixado cair às espigas de milho. Inclinou-se para recolhê-las, inalou com força e então notou o quanto suas mãos tremiam. Tentou pensar em alguma coisa, mas seus pensamentos eram incoerentes e frenéticos. Oh, Deus. O que faria agora?
— Devlin, — disse Sean em voz baixa. Enquanto falava com o irmão ele se inclinou e segurou o braço de Virginia para que ela se levantasse, — não sabíamos que havia voltado. — Ele não a soltou.
Não houve resposta ao seu comentário. Virginia se voltou presa da angústia e notou que ele lhes sorria. Seus olhares se encontraram. Ele não havia mudado. Era sedutor, poderoso e magnético. Seguia cativante. Oxalá tivesse mudado…
— Não enviou recado. — Disse Sean que continuava fitando-o como hipnotizado.
— Não sabia que tinha que te advertir de minha volta. — Replicou Devlin com calma.
Virginia não podia afastar os olhos dele. Todos os momentos que tinha passado a sós com ele voltaram a assaltá-la.
— Olá, Virginia. — Disse Devlin. Ela não podia falar, então tentou assentir com a cabeça. — Sean. — Acrescentou ele com uma inclinação de cabeça.
Sean se moveu finalmente, se aproximando dele lentamente.
— Nosso pai esteve aqui o outro dia. Inteirei-me de sua travessia… e do que aconteceu. Alegra-me que tenha voltado.
— Verdade? — Perguntou Devlin com acusada frieza.
Sean enrijeceu.
— Sim. — Ele respondeu observando Virginia e o irmão. Virginia era consciente de que continuava paralisada. Embora continuasse atônita, sua mente começava a funcionar novamente. Não esperava voltar a ver Devlin. E havia se conformado. Ele tinha lhe machucado até o inexprimível, mas estava segura de ter se recuperado, de que o tempo curava todas as feridas. Mas agora que ele havia voltado e estava somente a alguns passos dela se dava conta de que nada havia mudado. Era como se os meses não houvessem passado. Suas feridas que havia cicatrizado somente na superfície, se abriram novamente. Como podia tê-la deixado assim? Como?
Sean exclamou algo de repente e partiu, deixando-os com os olhos cravados um no outro.
— Está com bom aspecto. — Devlin comentou, com tom nem indiferente e nem interessado.
Ela respirou fundo. Será que ele se recordava de alguma coisa, no mínimo? Como podia ter se esquecido!
Devlin se aproximou.
— Deduzo que Sean e você estão se dando bem.
Ela ficou rígida.
— Ele se converteu em um bom amigo. — Disse. A ele não pareceu importar, pois encolheu os ombros. Ela umedeceu os lábios. — Seriamente… Seriamente disse a ele que devíamos nos casar?
— Sim. Disse.
— Você não tem coração? — Ela murmurou.
— Acredito que sabemos a resposta a essa pergunta.
— Então, não pode me mostrar nem um pouco de compaixão?
— Não sei o que deseja de mim, Virginia. Lamento que tenha passado tanto tempo aos cuidados de meu irmão, mas a guerra atrasou minha volta. — Disse ele desapaixonadamente.
Ela se sentiu aturdida. Ele não se lembrava, certo? Seria possível que ela fosse tão insignificante, tão pouco digna de se lembrar?
— O que Sean e você estavam fazendo? — Ele perguntou com despreocupação.
— Eu… O que? — Virginia piscou. — Nós íamos fazer pudim de milho. Quero dizer... Ia ensinar a receita à cozinheira.
Uma sobrancelha corada se elevou e ele não disse nada. Virginia não se moveu. Era possível, se perguntava abatida, que ainda sentisse alguma coisa por aquele homem? Fazia cinco meses que não o via. Ele havia lhe abandonado cruelmente depois do momento mais significativo de sua vida. Desde sua chegada não havia lhe mostrado nenhum indício de afeto, sequer uma saudação dirigida unicamente a ela. Mas ela sentia em seu interior uma tensão desesperada e sabia, por desgraça, o que significava.
Significava que queria que Devlin dissesse que importava a ele. Que lembrava de cada instante de seu encontro amoroso, como ela, e que queria lhe implorar perdão.
— Pudim de milho. — Ele murmurou. — Que interessante.
Na defensiva, ela manteve a cabeça ereta. Mas ele não diria nada sobre seu passado. Ela já sabia.
— É delicioso. Se pensa ficar para jantar sem dúvida você gostará. — Como era difícil manter a voz e orgulho firmes.
As duas sobrancelhas se elevaram. Ele parecia divertido e levemente incrédulo.
— Esta é minha casa. Tinha intenção de jantar antes de ir embora amanhã.
O coração de Virginia parou de repente.
— Você… Vai embora amanhã?
— Vamos amanhã. — Disse ele e finalmente seu olhar deslizou sobre ela. Ele observou seus olhos e sua boca onde se deteve um momento, para logo descer pela camisa de algodão branca que cobria seus seios. Desceu o olhar sobre o cinturão marrom sem fivela, pela calça que cobria suas pernas magras. — Me surpreende muito que Sean a deixe andar por aí vestida dessa forma.
Se ele sentia alguma atração não deixava transparecer nada. Nem em seu tom de voz ou em sua expressão, sobretudo em seus olhos, que pareciam planos e opacos. Sem vida.
— Vamos embora amanhã? — Virginia perguntou, atônita.
— Sim. — Devlin se voltou e se aproximou das janelas altas, onde se deteve de costas para ela e contemplou, aparentemente, os prados e as colinas distantes. — Eastleigh duvida de sua existência.
Sua mente estava confusa.
— O que?
Ele não se voltou. Continuou olhando pela janela e sua voz carecia de inflexão quando voltou a falar.
— Mandei o pedido de resgate, de Cádiz. Eastleigh assegura que você se afogou, como todos outros, a bordo do navio Americana. Vamos a Southampton para mostrar de uma vez por todas que está viva e bem de saúde.
Então o momento de seu resgate havia chegado. Virginia estava tão embargada pela dor e a agitação que não conseguia assimilar o assunto, apesar de significar que estaria bem mais perto de voltar para casa. Curiosamente, em certos sentidos, Askeaton havia se convertido em seu lar.
Mas aquele não era seu lar. Seu lar era Sweet Briar, e ainda restava a possibilidade de que não tivesse sido vendido, o que acreditava que provavelmente pudesse encontrar um modo de salvá-lo. Já não confiava na ajuda de seu tio. Evidentemente os planos de Devlin, embora adiados pela guerra, não haviam se alterado. Ela não sabia o que dizer, porque não desejava falar do resgate.
— Sean virá conosco? — Perguntou finalmente, aflita.
— Quer que ele vá?
Haveria uma nota estranha em sua voz?
— Claro que sim. — Ela respondeu enquanto escrutinava seu olhar. Mas ele se voltou de costas novamente.
— Necessito dele aqui. — Devlin continuou. — Prepare-se para sair depois do café da manhã. — Ele concluiu e se afastou.
Ela ficou olhando-o, estupefata. E logo a magnitude do que tinha acontecido se abateu sobre ela de repente. Devlin havia voltado e não tinha pronunciado nenhuma só palavra sobre o acontecido entre eles. E com a compreensão chegou a raiva. Começou a caminhar atrás dele.
Encontrou-o servindo um uísque no salão. Sem elevar o olhar, ele levantou um copo vazio.
— Quer uma taça? — Ele perguntou com tranquilidade.
Virginia não parou até que chegou em frente a ele e o obrigou a fitá-la.
— Não, não quero uma taça. E insisto em que Sean venha conosco.
Ele baixou lentamente o copo e elevou os olhos.
— Você não está em situação de insistir em nada.
— Será minha companhia. — Disse ela com voz irritada. — Me nego a passar um só minuto a sós contigo.
Ele se levantou devagar e, naturalmente, diminuiu-a, fazendo que se sentisse miúda e vulnerável.
— Não tem com o que se preocupar.
— Tenho muito com o que me preocupar. — Ela gritou e se deu conta que estava ofegando. Mas o certo era que duvidava que tivesse algo com o qual se preocupar, já que ele não parecia se recordar sequer tê-la tocado, e muito menos ter lhe feito amor.
Ele sustentou seu olhar.
— Sean fica aqui.
— Então eu não vou. — Ela gritou tão bobamente, como uma criança.
— Não se preocupe. — Ele resmungo levantando o copo e bebendo um gole. — Voltará a se reunir com ele… Quando eu tiver acabado.
— Não se lembra, não é? — Ela perguntou e seus dentes começaram se chocar. De repente fazia muito frio no salão. Estava com frio. De fato, estava gelada.
Ele bebeu seu uísque como se não tivesse lhe ouvido.
Virginia segurou seu braço e para sua própria surpresa o uísque respingou nos dois.
— A noite que passamos junto. À noite em que me fez amor… — Disse ela, impaciente.
O queixo de Devlin endureceu e ele afastou a mão de seu braço.
— Quer me dizer alguma coisa?
— Lembra-se ou não?
— Não. — Ele murmurou.
Virginia o esbofeteou com todas as suas forças.
A bofetada ressoou no silêncio oco do salão.
Ela retrocedeu surpresa pelo que havia feito. Mas finalmente uma luz havia aparecido nos olhos de Devlin, apesar de não ser a luz que ela desejava ver. Seu olhar queimava cheio de fúria. Pelo menos, pensou Virginia, seus olhos já não eram opacos e inermes.
Ela se sobressaltou. Ofegava pesadamente esperando que ele lhe devolvesse o golpe. — Que tola fui em acreditar que o sexo significava alguma coisa para você!
Mas ele se limitou a dizer com dureza: — Sexo não é amor.
Ela gemeu. Suas palavras eram bem mais brutais que qualquer golpe.
— Acredito que te devo uma desculpa. — Disse ele laconicamente.
Era muito tarde. Virginia sacudiu a cabeça e lágrimas saltaram de seus olhos. Voltou o corpo para fugir dali. Mas ele a segurou e a obrigou a fitá-lo novamente.
— Solte-me. — Ela o advertiu com um soluço.
A mandíbula de Devlin se flexionava uma e outra vez.
— Sinto muito. — Ele disse. — Acredito que já lhe disse isso. Agora volto a dizer. — Mereço teu desprezo. Não tinha o direito de tocar em um terreno que homem algum ainda havia tocado. Agora, — ele acrescentou com firmeza, — seria possível que o passado permanecesse no lugar ao qual pertence? No passado?
— Sim, por favor. Que assim seja! — Tremula, ela lhe respondeu com os punhos fechados junto ao corpo. Sua ira era tão intensa que se parecia assustadoramente com ódio. E a dor continuava lhe rasgando por dentro. Sabia que devia se afastar dele.
O olhar de Devlin vacilou. A tensão se apropriou de seu semblante. Quando ela se dispunha a sair do aposento, disse: — Amanhã depois do café, Virginia.
Era uma advertência, para que estivesse preparada.
Ela o fitou mais uma vez, por um só um instante.
— E se eu estiver grávida? — Sabia muito bem que não estava, mas ansiava machucá-lo, embora somente um pouco, pelo que ele havia lhe feito.
Devlin ficou paralisado e lentamente se voltou.
— Está? — Perguntou. Os músculos de seu queixo mostraram um leve espasmo. Seus olhos eram agora de um tom tormentoso e ameaçador, sinal de que afinal de contas sentia alguma coisa.
— Não. — Replicou ela entre dentes. E perdendo o orgulho, gritou: — Você foi embora sem sequer me dizer adeus!
O corpo de Devlin endureceu, preso de ira. Uma ira que ele parecia decidido a refrear.
— Por que faz isto? — Perguntou. — Você não tem orgulho? Sou um canalha. É simples assim. Existe um provérbio, que você deveria levar em conta, Virginia. Não desperte um cão que dorme.
— Eu não sou um cão e o que fizemos não foi dormir.
— Vou levá-la a minha casa, perto de Southampton. As terras de Eastleigh ficam a cinco milhas ao norte. Vou mostrá-la a ele, pedir o resgate e então lhe deixarei partir. Não lhe basta isso? Você recuperará sua liberdade. — Disse ele, com os dentes apertados.
— Não é o bastante. — Virginia se ouviu dizer. E o orgulho zombou dela.
Devlin se sobressaltou.
— Então sinto muito, porque isso é a única coisa que vou lhe oferecer.
Ele saiu com passos decididos e Virginia se deixou cair em um divã. Cobriu o rosto com as mãos e lutou para não chorar. Devlin havia se negado a falar do passado e as respostas que tinha lhe dado eram as que ela não queria ouvir. Mas simplesmente era muito tarde. A verdade, a verdade de Devlin era brutal.


Devlin entrou no quarto principal e se deteve em seco. Estava alterado, tanto que não conseguia se controlar. Maldição! Tinha que se controlar. Não era momento de ceder e permitir que os olhos violetas e doloridos o perseguissem… Novamente.
Tremia no fundo de seu ser e resistia a pensar. Segurou no poste da cama. Se imaginasse que seu controle se tornaria em pedacinhos novamente, jamais teria voltado. Teria ordenado a Sean que a conduzisse até Southampton.
— Devia ter avisado que voltaria.
Devlin se voltou aliviado pela interrupção e encontrou a seu irmão na soleira do aposento. Sean parecia aborrecido, irritado.
— Não tem nada a esconder. Eu lhe dei a permissão para fazer o que quisesse. Já está lhe fodendo? — Ouviu-se perguntar.
E uma imagem sórdida o assaltou. Sean tenso sobre ela, penetrando-a.
Sean se equilibrou sobre ele.
De certo modo sabia que o Sean faria… E era precisamente o que necessitava. O murro de seu irmão o lançou sobre a cama, onde seguiram lutando como se ainda fossem meninos. Devlin sempre tinham gostado das brigas. E a Sean também. Usando toda sua força, ele conseguiu deitar seu irmão de costas, mas com o esforço caíram ambos no chão. Sean levou a pior parte e deixou escapar um grunhido.
Devlin caiu escarranchado sobre ele e sorriu com frieza.
— Bastava um sim ou um não.
— Maldito canalha sem coração. — Sean gritou e um murro acertou o queixo de Devlin e o lançou de costas no chão.
Seus olhos soltavam faíscas e ele se alegrava disso. Mas levantou o joelho e golpeou Sean no estômago. Sean soltou um gemido e caiu. Devlin se levantou, elevou-o e o empurrou de costas contra parede. Seguraram-se um no outro ofegando como touros raivosos.
Sean conseguiu se soltar e acertou outro golpe no queixo de Devlin.
Devlin retrocedeu animado quando a dor explodiu em sua face. Deteve-se e esperou seu voltar a golpeá-lo com todas as suas forças. Devlin gemeu e cambaleou, dobrando-se.
— Brigue, filho de uma cadela! — Gritou Sean.
Devlin já não queria brigar. Queria receber uma surra monumental. Ergueu-se, sorriu e se deu conta de que estava o lábio partido.
— Você gosta de seus gemidos? — Ronronou, provocando. — E qual nome ela murmura quando goza, o teu ou o meu?
Sean voltou a atacá-lo. A cabeça de Devlin retrocedeu, bateu na parede e a dor estalou em seus olhos. Sinto muito, Virginia. Ele pensou de repente e a angústia atravessou seu coração. Não sou o homem que você quer que eu seja.
Sean o segurou pela camisa.
— Acredita seriamente, que se eu o atacar você vai se redimir pelo que fez a ela? Maldito seja, Devlin. Maldição!
Devlin sorriu para o irmão.
— Um murro a mais?
— Vá para o inferno! — Replicou Sean entre dentes e soltando-o, se afastou.
Devlin tocou o lábio com a língua e descobriu que sangrava. Sean estava apaixonado por Virginia. Estava claro, muito mais que antes.
Será que dormiam juntos?
Aproximou-se do espelho que havia sobre o aparador e ignorou por um momento o pano molhado em água fria que Sean lhe oferecia. Seu olho estava inchando, mas talvez não se fechasse. Finalmente aceitou o pano e o levou ao olho.
Lembrou-se que queria que Virginia se apaixonasse por Sean ; aprovava a união. O casamento resolveria um monte de problemas e o deixava livre para fazer o que lhe agradasse, o resto de sua vida.
Bom, não de todo livre. Havia uma coisa que nunca mais poderia fazer. Seria levar Virginia para a cama. Mas se tratava disso precisamente, não?
— Eu não gosto que me manipulem. — Disse Sean.
— Você se deita com ela? Parece-me certo. — Acrescentou rapidamente.
Sean fez uma careta.
— Não.
O arrebatamento encheu o coração de Devlin, para seu desalento.
— Pois deveria. — Disse tocando o queixo dolorido. — Esperava o golpe de um menino.
— Já não sou um menino. Por que teve que nos surpreender? — Estava claro que Sean não queria falar sobre se deitar com Virginia Hughes.
— Então há um nós? — Perguntou Devlin rapidamente. Sean torceu os lábios.
— Virginia me importa muito, Devlin. Mas não, não existe um nós. Você lhe fez muito mal quando partiu. Era ela quem precisava ser advertida, não eu.
— Não sei por que, mas não acredito. — Disse Devlin enquanto o observava.
— Pode acreditar que eu a deseje muito. — Replicou Sean com aspereza. — Mas só sou seu amigo.
— Não olha como um homem olha para uma amiga. — Comentou Devlin.
— E você pode fingir indiferença para ela, mas eu farejo a luxúria. — Replicou Sean, enfurecido.
— Equivoca-se. — Replicou Devlin brandamente, mas os dois sabiam que era uma imensa mentira. — E não quero discutir contigo. Você é meu irmão. Estamos do mesmo lado.
— Já não. Não depois do que tem feito. Deixe-a livre, Devlin. Esqueça-se do resgate. Deixe-a em paz e vá embora de Askeaton.
— Não posso. Amanhã vou levá-la até Wideacre.
O rosto de Sean se crispou.
— Se voltar a lhe fazer mal, eu o matarei.
Devlin o fitou atentamente, tentando se decidir se Sean falava sério, se amava Virginia ao ponto de antepô-la a sua família. Sean ruborizou.
Um terrível silêncio desceu entre eles.
— Confio que não tenha falado a sério. — Devlin disse finalmente. — Depois do resgate, ela pode retornar… Contigo.
— Eu estou falando sério. Sugiro que procure outra, com quem se deitar.
Devlin sorriu, mas o sorriso lhe pareceu uma careta. Começou a andar pelo aposento, alterado. Tentava se convencer de que era o que queria, a união entre Sean e Virginia, mas agora a idéia lhe parecia vã e mentirosa. Odiou a idéia de vê-los juntos, por mais que lutasse contra o ódio. Claro que o ódio era o sentimento que melhor conhecia.
Finalmente suspirou e se sentou. Se depois de cobrado o resgate, Virginia resolvesse retornar a Askeaton para ficar com Sean, ele daria sua bênção, gostasse ou não.
— Passei os três últimos meses patrulhando a costa da Espanha de dia e capturando alguns navios franceses à noite. Capturamos quatro navios nesse tempo. Quatro navios e oitocentos homens.
— Diz-me isso, por quê?
Devlin o fitou.
—Em todo este tempo não pensei nenhuma só vez em Virginia. Olhos que não vêm, coração que não sente. — Não disse a Sean quanta disciplina havia lhe custado.
— Quão orgulhoso deve estar de si mesmo.
Devlin observou os olhos pétreos de seu irmão.
— Sinto o que fiz. Meu arrependimento é muito grande.
— Então talvez devesse dizer isso a ela.
Devlin se sobressaltou.
— O que conseguiria com isso?
Sean gemeu, exasperado.
— O que conseguiria? Você lhe rompeu o coração. Provavelmente possa ajudar a repará-lo.
— Sean, lamento não concordar. Não pude romper seu coração. Ela é minha prisioneira, não minha amante.
— Agora sou eu quem não concorda. Ela está apaixonada por você. — Disse Sean.
Devlin o fitou com o cenho franzido e tão pasmado que durante um momento não pôde pensar com coerência.
— Quão tolo você é. — Disse Sean em voz baixa.
— Não — Disse Devlin, alterado. — Você está errado. Virginia é curiosa, independente e apaixonada. Isso é tudo. Se ela acredita que me quer, se equivoca. É desejo, nada mais. Qualquer afeto de sua parte se deve ao fato de ser o primeiro.
—Devlin é possível que alguma mulher queira algo mais de você que seu corpo, sabia? — Disse Sean lentamente
— Sim. Uma mulher pode querer riqueza, poder, posição e a segurança que eu poderia lhe dar. — Devlin estava irritado. Levantou-se rapidamente e jogou para um lado o pano ensangüentado. — Não esperava isto de você.
— E o que esperava? Cumprir a façanha e partir sem mais? Obrigá-la a me escolher? Ou me entregá-la sem pensar em seus sentimentos? Ela não é Elizabeth! Não se parece em nada com Elizabeth! Virginia não poderia fingir ser o que não é sequer por um momento. Virginia mostra abertamente seus sentimentos. Carrega o coração na mão! O que esperava?
— Por desgraça, eu não pensava e nem esperava nada. — Disse Devlin, e se sentou bruscamente. Seu coração ousou acelerar e burlar de sua aparente calma. Seu corpo tremia. Atreveria a confessar a verdade, não para seu irmão, mas para si mesmo? — Perdi o controle por completo. — Disse lentamente. — Jurei que não faria nada com ela. Jurei que não a tocaria. Naquela noite perdi os estribos. Nunca antes havia me acontecido. Maldição! Desonrei uma mulher inocente! — Devlin sentiu uma angústia impossível de ignorar. Cobriu o rosto com as mãos. Havia abusado de uma jovem inocente. Havia desonrado Virginia Hughes. Gerald se devastaria se retorcendo em seu tumulo. E... Santo Deus! Sua mãe romperia o coração se alguma vez descobrisse a verdade.
— Então você é humano, depois de tudo. Diga-lhe o que me disse, que sente muito. Diga que tem remorsos e que a acha tão bela que não pôde se refrear.
Devlin resmungou uma maldição.
— Eu não sou um poeta, Sean.
— Então diga algo amável com suas próprias palavras.
— Já disse. — Sua resolução não vacilaria agora. Não voltaria a se aproximar de Virginia e certamente, não voltaria confrontar o vergonhoso passado.
— Diga-lhe outra vez.
— Rotundamente, não.
Sean suspirou como se admitisse sua derrota. Mas lentamente, disse: — Talvez devesse refletir sobre o que significa essa falta de controle.
Devlin se levantou.
— Significa que ela me provoca de forma antinatural.
— Que teoria tão conveniente. — Sean murmurou.
Mas Devlin andava pelo aposento como se estivesse co convés de seu navio, e não o ouvia. — Passei estes últimos meses exorcizando sua lembrança de uma vez por todas. — Disse para si mesmo. — Se posso derrotar a qualquer comandante francês, posso derrotar a mim mesmo.
Sean sorriu um pouco.
— Pode ser que não possa derrotar certa mulher.
— Duvido. — Finalmente, ele estava furioso.


Virginia pensou em não descer para jantar, mas resolveu que isso a faria parecer infantil e zangada. E não estava zangada. Estava magoada, furiosa e decidida a não permitir que Devlin soubesse quanto tinha lhe ferido. Examinou seus quatro vestidos, embora já soubesse que não tinha escolha pegou o de seda rosa com o decote baixo e um arremate de renda negro. Aquele era o que mais lhe favorecia. Sabia que estava bonita e confiava que Devlin a notasse e se arrependesse de tudo. Apertou o vestido com força e se voltou para se olhar no espelho. O que estava fazendo? Se Devlin não houvesse voltado…
As coisas tinham estavam indo bem ultimamente. Estava contente, quase feliz. Tinha conseguido esquecer e enterrar o passado. Agora se sentia doente. Tinha um nó no estômago e mal podia respirar. Devlin consumia novamente todos os seus pensamentos e todo seu tempo, contra sua vontade. Pelo menos, pensou com irritada enquanto examinava seu pálido reflexo no espelho, ele havia admitido que havia merecido a bofetada. Pelo menos era o bastante honesto para assumir que errara. Mas ela jamais admitiria suas desculpas, sinceras ou não.
Não devia usar seu único vestido sedutor.
Mas não estava tentando seduzi-lo. Não tinha intenção de percorrer novamente o caminho. Provavelmente Devlin continuaria o homem mais interessante e perturbador que jamais havia conhecido, além do mais cativante, mas não voltaria a cometer o mesmo engano. O sexo não é amor. Tinha sido tola uma vez, mas não voltaria a ser. Quanto havia lhe doído àquelas palavras.
Queria que Devlin reconhecesse que também havia sentido paixão, que se importava com ela. Mas os sentimentos não aconteceriam num futuro próximo e nem nunca, e ela continuava uma tola em pensar que Devlin poderia admirá-la com o vestido, quando estava claro que ela já não lhe achava atraente.
Puxou o cordão da campainha. Queria tomar um banho. Um frio gélido parecia acometê-la. Atreveu-se a confrontar seus pensamentos mais escuros. Devlin não havia admitido nada do que ela esperava, em segredo, porque era um homem do mundo e ela não era mais que uma das muitas mulheres que ele havia usado.
Compreendeu que estava amadurecendo, porque não derramou uma só lágrima.


Se Devlin se surpreendeu ao vê-la, não demonstrou. Inclinou a cabeça cortesmente, sentado no sofá de brocado cor esmeralda, com as pernas cruzadas. A calça de cor suave delineava cada um de seus músculos. Não havia se incomodado em trocar as botas altas por meias e sapatos. Usava uma casaca de veludo azul marinho, colete de brocado azul safira e cinza, uma camisa de cor marfim com detalhes nos punhos e no pescoço e por fim um laço cuidadosamente preso.
Ele sequer a fitou. Continuou bebendo seu vinho tinto, preso em seus pensamentos. Mas Virginia o observava atentamente. Devlin havia se metido em uma briga. Estava com o olho esquerdo arroxeado e inchado, igual ao mesmo lado de seu queixo. O que havia acontecido?
Distraiu-se de sua observação ao notar que Sean se levantava e saía ao seu encontro. Ele sorriu, mas a fitou inquisitivamente.
— Estou bem. — Disse ela a sua pergunta tácita e se voltou novamente para Devlin, para logo se reprimir com firmeza. Não se importava se ele havia brigado até mesmo com o diabo.
Sean sorriu novamente e lhe apertou a mão.
— Amanhã ele a levará até a casa de campo. É perto de Eastleigh. Está previsto encontro com seu tio. Parece-te bem, Virginia? Sente com ânimo, para tanto?
Ela assentiu com um gesto de cabeça e fitou seu captor, que finalmente os observava. O rosto implacável não mostrava expressão alguma. Passou-lhe pela cabeça que podia frustrar seus planos facilmente, alegando que jamais tinha ouvido falar de Virginia Hughes e assegurando ser outra pessoa. E se realmente quisesse frustrar suas ambições poderia procurar às autoridades, logo que estivesse livre. Devlin passaria anos na prisão, a menos que também tivesse um plano para aquela contingência.
Nenhuma alternativa lhe dava prazer algum. Só queria ir para casa… Se sua casa existisse ainda. Diferente de Devlin, ela tinha coração. E um coração humano e generoso. Nunca lhe faria mal premeditadamente e menos ainda por vingança.
— Você está linda esta noite. — Disse Sean e logo acrescentou: — Você sempre está bela, Virginia.
Algo em seu tom fez com que ela se sobressaltasse e fitasse seus olhos.
— Se você se mostrar muito amável poderá me fazer perder a pouca compostura que me resta. — Virginia sussurrou. Sean esboçou um sorriso.
— Não, por favor. Você se importaria em sair um pouco lá fora comigo, Virginia? Temos que conversar.
— Agora? — Ela sabia que já eram sete horas. Sempre jantavam a essa hora.
— Por favor.
Algo acontecia. Ela assentiu e escrutinou seu semblante para ver se notava nele alguma evidencia sobre o assunto que conversariam. Ignorava o que rondava pela cabeça de Sean.
Devlin murmurou: — Por mim, não se preocupem.
Ela pensou em mandá-lo para o inferno e o fitou com irritação. Ele a saudou com o copo e logo pegou um jornal de Dublin.
Fora, a noite estava esplêndida. Estrelas começavam a surgir na imensidão azul e negra do céu. Para surpresa de Virginia, Sean a segurou pelos braços.
— Sentirei saudades. — Ele disse com veemência.
Os olhos dela se dilataram.
— Eu também de você. — Disse.
Seu olhar a estudou.
— Não quero que se preocupe com Devlin. Converti-me em seu protetor, Virginia. Não tem que temer outro episódio, como o da última vez. Não permitirei e… — Sean titubeou.
Ela começava a se emocionar, além do que podia expressar.
— E?
— E ele está decidido a tratá-la com todo o respeito que você merece.
Curiosamente, a pontada de desalento que sentiu era ao mesmo tempo forte, desagradável e surpreendente.
— Duvido que ele tenha dito isso.
— Não foi necessário. Ele está muito arrependido, Virginia…
— Não diga! Se esse homem se preocupar com o que fez, por que o fez e como foi, que ele me diga.
— Pode ser que nunca tenha coragem. — Disse Sean em voz baixa.
Virginia se sobressaltou. Devlin era o homem mais valente que conhecia. De que diabos, Sean estava falando?
Ele lhe tocou a face.
— Tenho que te perguntar algo Virginia.
Ela desconfiou no momento, apesar de Sean ter se convertido em seu melhor amigo.
— Ainda o ama? — Ele perguntou.
Virginia gemeu, surpresa. Estava tão surpresa que demorou um momento a lhe responder.
— Sean… — Ela segurou sua mão e a afastou da face. — Não amo esse homem. — Disse com ferocidade. — Pode ser que durante um instante, eu tenha acreditado por engano que o amasse. Nem sequer o conheço! Ele me tratou abominavelmente. Disso não resta nada. Absolutamente nada! — Exclamou.
Mas as imagens de Devlin O’Neill assaltaram sua lembrança. Lembra-se dele forte e orgulhos, sobre o castelo de popa do Desafio, o açoite dos mares; recordava-o fitando com orgulho feroz e dizendo que todas aquelas terras, até onde abrangia os olhos, lhe pertenciam. E finalmente se lembrava do corpo robusto e excitado sobre o seu e os olhos brilhantes e velados pela neblina enlouquecedora da paixão.
Tentou respirar e se acalmar. Devlin nem sempre havia lhe tratado abominavelmente. Tratara-a bem até… Se tinha coragem em lembrar e assumir devia admitir que ela o seduzira, sem sequer imaginar o que significaria seu triunfo.
— Temo que não acredite. — Sean murmurou e suas mãos deslizaram ao redor dela.
Perplexa, ela se enrijeceu.
— O que está fazendo?
— Tentei com todas minhas forças pensar em você somente como uma amiga, Virginia. — Disse ele devagar, sem afastar o olhar dela.
E à luz difusa do entardecer, Virginia notou nos pálidos reflexos cinza de seus olhos, todos os seus sentimentos. Diferente dos de Devlin, os olhos dele refulgiam cheios de dor, de sinceridade e de algo muito mais intenso que a amizade. Sean estava apaixonado por ela. As mãos dele se crisparam.
— Sempre serei seu amigo. — Disse ele, severamente. — Mas quero saber se há alguma possibilidade de que possa esquecer Devlin e o que compartilhou com ele. Se há alguma esperança, por menor que seja, de que pense alguma vez em mim como algo mais que um amigo.
Virginia se sentiu aturdida. Não sabia o que dizer. E estava tão comovida que segurou entre as mãos, o rosto belo e forte, de traços tão duros e angulosos como os de seu irmão, um rosto terrivelmente parecido, salvo pelo cabelo e as sobrancelhas escuras. Ela, entretanto, nunca havia confundido os dois irmãos, porque os olhos de Sean refletiam sua alma, coisa que não acontecia com Devlin.
— Não sei... — Começou a dizer com voz rouca. — Estou muito surpresa…
As mãos de Sean se introduziram entre os cabelos que ela tinha deixado soltos e os afastou para trás.
— Menti ao meu irmão. — Ele disse asperamente. — Estou apaixonado por você, Virginia.
Suas palavras eram um terrível detonador. Ela também o amava, mas não desse modo… E que tola era por não querê-lo como homem. Porque o conhecia a perfeição. Sean era incapaz de cometer uma traição, mas podia amar uma mulher profundamente e para sempre.
— Não posso, Sean. — Não atrevia a admitir sequer ante a si mesma.
Ele assentiu em um gesto. Sem dizer nada. Mas a sustentou um momento mais antes de deixar suas mãos. Ela as segurou imediatamente e as apertou.
— Não me deixe agora! Preciso de você, mais que tudo!
— Eu sei. — Ele sorriu, a principio com tristeza; depois, seu riso se tornou amargo. — Sempre poderá contar comigo, Virginia. Mas não irei contigo e Devlin para Wideacre. É uma péssima idéia. Prefiro não estar com vocês.
— Mas…
— Não... Deixe-me terminar. Faz tempo que quero te falar com franqueza.
Ela se enrijeceu, mas assentiu, pois devia. O que mais podia ele lhe dizer, depois de semelhante declaração?
— Devlin não é mau. Mas no dia em que assistiu o assassinato de nosso pai, ele mudou. Esse foi o dia em que deixou de sorrir, o dia em que seu riso desapareceu. O dia que se obcecou com a vingança. Ela Engoliu a saliva e assentiu outra vez. Era impossível não sentir pena dele, mas se armou de coragem para não sentir.
— Estou lhe contando tudo isto porque o amo, Virginia. Como minha mãe e meu padrasto, eu também me preocupo com ele. E pela vida que esbanja. Sua carreira naval? A Marinha não importa a ele, Virginia. E sente muito pouca estima pela Grã-Bretanha.
Ela pensou na reunião secreta que havia presenciado.
— Mas, por quê?
— Um homem como Devlin pode se tornar rico e poderoso na Marinha e como pode ver, isso é exatamente o que ele tem feito. Usou a Marinha para conseguir riqueza e poder, suficientes para destruir Lorde Eastleigh. — Ela estremeceu. — Ele se alistou aos treze anos. Seu plano de vingança começou nesse dia, Virginia.
— Meu Deus! — Ela começava a compreender a magnitude da obsessão de Devlin.
— Ele morreria por mim, por nossa mãe, por nosso padrasto e nossos meio-irmãos. E o faria de coração. Morreria para salvar seu navio e seus homens. Morreria pela Irlanda. Mas acredito que esse valor temerário não conta neste caso.
— Não. — Ela sussurrou cativada, apesar de saber o quanto perigoso era se deixar dominar por uma fascinação tão intensa. E aonde Sean queria chegar?
— Ele é poderoso, rico e temerário. É admirado aonde vá, como um grande Capitão. É respeitado e temido ao mesmo tempo. Mas não é amável. Sua capacidade em ser morreu no mesmo dia que nosso pai.
— Sinto muito. — Ela se ouviu dizer.
— Não sinta. Tampouco ele é um monstro desalmado e sei que sabe disso. Virginia. Amo ao meu irmão o bastante para dizer a você que acredito que talvez haja esperança.
— Esperança? — Ela repetiu.
Ele a segurou pelos ombros.
— O Devlin que eu conheço jamais sucumbiria seu desejo por uma moça inocente. Deus! Nós nos criamos com uma meio-irmã, que juramos proteger. E o que é mais importante ainda é que no dia que nosso pai morreu, nossa irmã menor foi abandonada pelos ingleses. Ela foi abandonada para que morresse queimada no fogo que eles haviam acendido. Eu não me lembro de nada disso. Mas Devlin se lembra de tudo. Ele jamais se aproveitaria de uma mulher inocente. Para falar com franqueza, se ele necessitasse de uma mulher, seria de uma criada como Fiona.
— O que tenta me dizer? — Ela sussurrou tremendo, temerosa e estranhamente cheia de esperança.
— Acredito que você chegou a uma parte dele, que perdeu há muito tempo, e acredito, não, espero e reze por isso, que ele pode voltar a encontrar essa parte de seu ser e voltar a tirá-la à luz de um novo dia.
— O que?
— Ele está arrependido. — Disse Sean. — Ele me disse e eu o conheço bem. É a verdade. Mas isto não acabou. — Ela só podia olhar para Sean e ouvir. — Meu irmão não lhe sente indiferença. É uma farsa. Um fingimento. Uma imensa representação teatral. Se não o odiar, se pode perdoá-lo talvez seja você quem pode ajudá-lo a reencontrar sua alma.
— Está… Você está louco?
Ele sorriu e a soltou.
— Estou triste.
Ela se apressou em abraçá-lo. Estreitou-o com força.
Em seus braços, Sean sussurrou: — Meu irmão necessita do amor de uma boa mulher e e se você não pode me amar, talvez possa dar a ele outra oportunidade.
Virginia começou a tremer.
— O que me está pedindo? — Murmurou.
— Estou te pedindo que salve meu irmão.

 

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 14


Virginia observou pela janela da carruagem, Sean que a saudava do pátio com a mão, enquanto saíam de Askeaton e à medida que a carruagem avançava pelo caminho, a casa e ele foram se tornando menores, até que finalmente a figura de Sean desapareceu. Virginia estava com um pavoroso nó na garganta. De repente sentia com toda claridade que uma parte sua não queria partir. Sean lhe faria falta ou a segurança, a proteção e o conforto, a amizade que tinha desfrutado e encontrado em Askeaton?
Ou acaso lhe causava medo o que o futuro lhe proporcionaria?
Estou lhe pedindo que salve meu irmão.
Virginia inalou tão fortemente o ar frio e úmido, que lhe fez arder o peito e os pulmões. Já não se via nada mais que os campos segados e os bosques por entre os quais a estrada serpenteava. O pânico se apoderou bruscamente dela. Não quero salvar ninguém e muito menos a ele! Pensou, acalorada.
Lançou uma rápida olhada em seu captor. Devlin estava sentado junto a ela no assento traseiro. Sua presença a diminuía a ao interior da carruagem que era muito pequena para os dois, por mais que entre eles ainda ficasse uns quantos centímetros. Acredito que você chegou a uma parte dele perdida há muito tempo. Virginia fez uma careta. Desejava cobrir ouvidos, como faziam as crianças quando não queriam ouvir alguma coisa, mas não deteria a voz de Sean, que falava com tanta força em sua mente. Ele não se sente indiferente. É uma farsa. Fingimento. É uma imensa apresentação teatral. Gemeu internamente. Por que Sean insistia para que ela reconfortasse seu irmão, o abrandasse e curasse suas feridas? Por quê? Por que não encomendar a monumental tarefa a uma mulher mais forte, mais experimentada e feminina? Não queria ser a salvadora de Devlin. Sean estava iludido se pensasse que ela era a única pessoa que poderia ajudar aquele homem a recuperar sua humanidade. Meu irmão necessita do amor de uma boa mulher… Virginia gemeu em voz alta. Conteve-se e sufocou o som com algum atraso.
Sentiu o olhar de Devlin fixo nela. Pareceu-lhe frio, sereno e terrivelmente indiferente. Atreveu a fitá-lo de soslaio, com as mãos juntas sobre o colo.
— Está se sentindo mal? — Ele perguntou.
— Eu… Estou com uma terrível dor de cabeça.
Seus olhares se encontraram, mas só por um instante. Ele aceitou a desculpa e voltou a olhar distraidamente a paisagem pela janela. Havia começado a chover fortemente.
Virginia contemplou o perfil de Devlin, o ângulo de seu nariz e as altas maçãs de seu rosto. Seu coração encolheu com uma tensão que conhecia muito bem e que começou a crescer dentro dela. Seguia se sentindo terrivelmente atraída por ele, contra toda lógica e sentido comum. Era como se Devlin fosse um ímã poderoso e ela um diminuto pedaço de metal. Sentia a atração que emanava dele. Como o oceano, seu corpo emanavam ondas que quebravam sobre ela e tentavam arrastá-la mar dentro.
Era uma lástima, pensou. Mas Sean estava errado em muitos aspectos. Para Devlin, ela era indiferente, não importava. Não podia ser uma farsa. E ela não era a mulher capaz de conduzi-lo novamente até sua alma perdida. Mas todo mundo merece uma segunda oportunidade. O que pode perder, meu carinho? Virginia se sobressaltou. Era como se sua mãe, sorridente e benigna, acabasse de lhe falar.
— Aqui não temos médico de bordo, mas se doer muito eu sei onde está o láudano.
Ela se voltou para fitá-lo, consciente do quão dilatados devia estar seus olhos. Ele semicerrou os seus. Devlin usava seu uniforme da Marinha, que fazia com que sua presença se tornasse ainda mais imponente, mais formidável e inclusive, mais sedutora.
— Não necessito de láudano. — Ela murmurou.
Sua mãe tinha sido a pessoa mais bondosa que havia conhecido. Nenhum necessitado ficava desprotegido, se dependia de Elissa Craycroft Hughes. As crianças eram sua principal preocupação. Num domingo do mês fazia a longo viajem até Richmond para que seu pai fizesse concertos no orfanato da cidade, enquanto Virginia e ela repartiam bolachas e brinquedos feitos a mão para as crianças. Um domingo sim e outro não iam à igreja de Norfolk. Depois do sermão se misturavam as pessoas e Elissa sempre perguntava dos mais pobres, como estavam e o que necessitavam. Gente orgulhosa e estranha, raramente admitia a falta de alguma coisa, que não fosse saúde. Entretanto, Elissa sempre sabia o que se necessitava, fosse um cataplasma dos que ela mesma fazia ou uma camisa recém lavada e remendada. Por último paravam na igreja dos negros. Virginia sempre esperava chegar a tempo de ouvir os hinos e as danças. Elissa era recebida com o mesmo calor como se fosse uma escrava. Nunca chegava de mãos vazias; e sempre se inteirava se a vovó Jojo necessitava de um par de sapatos novos ou se o menino Big Ben tinha febre outra vez. E algum forasteiro necessitado que aparecesse em Sweet Briar nunca era tratado com má vontade.
— O que está acontecendo, Virginia? — Ele perguntou, finalmente. — Está ansiosa para finalmente conhecer seu tio?
Ela se sobressaltou.
— Não, estava pensando em minha mãe. — Disse lentamente, consumida ainda pelas lembranças, e lhe sorriu. Ele desviou o olhar imediatamente.
Sua mãe. Pensou Virginia contra a vontade etária de acordo com Sean. Sobretudo porque, sua filha não era imune a Devlin. Suspirou e finalmente fitou abertamente seu captor. Seu coração deu um leve santo no peito.
— Ontem à noite sentimos sua falta no jantar. — Murmurou, pois Devlin havia ficado imerso em seu escritório no que parecia nos livros de contas do imóvel.
Ele se removeu e voltou e voltou a cabeça fixando sobre ela um olhar frio.
— Duvido.
No passado, uma reposta tão fria teria machucado Virginia. Mas agora entendia Devlin um pouco melhor. Quando criança havia perdido bem mais que a infância, no dia em que seu pai foi assassinado. O que ela presenciava desde o momento em que o conhecera era resultado disso. As cicatrizes de Devlin O’Neill eram muito profundas. E Sean estava certo. Ele não era mau. Nunca tinha visto uma amostra de crueldade, de sadismo ou maldade nele. O que tinha visto era uma disciplina inflexível, imposta sobre outros e sobre si mesmo. E o que não tinha visto era sinal algum de alegria, nenhuma só vez em todo o tempo que havia passado com ele.
Sentia-se dividida e confusa. Não sabia que atitude tomar e ignorava se queria sentir compaixão por ele, mas quisesse ou não, o fato era que sentia.
— Sabe que estou me sentindo como um inseto sob uma lupa, Virginia?
— Sinto muito. — Ela lhe sorriu um pouco. — Estava doente?
Ele suspirou, irritado, e disse laconicamente: — Estava com enxaqueca. — Devlin respondeu e logo se voltou para a janela outra vez.
Ela começou a rir.
Ele a fitou com o cenho franzido.
Virginia se conteve, abriu bem os olhos cheios de inocência, e disse: — Os homens não têm enxaqueca, Capitão!
Ele se limitou a fitá-la com grande frieza.
Nessa manhã ele estava com o humor pior que o costume. Ela decidiu não se incomodar. — E embora tivessem, — ela prosseguiu, — jamais a cabeça doeria assim.
— Pode me dizer, por favor, — Ele replicou com azedume, — por que estamos tendo esta conversa?
Ela o confrontou. Seu coração estava acelerado no peito. Estava com a sensação de compartilhar a carruagem com um leão perigoso, que podia decidir lhe arrancar a cabeça com uma mordida a qualquer momento, na menor provocação. — Bom, resta mais de uma hora para chegar a Limerick e estamos presos em uma carruagem muito pequena. Estava tentando ser amável.
— Não é necessário.
— E ontem à noite você não jantou com seu irmão e comigo. — Ela acrescentou.
— Queria deixar que jantassem sozinhos pela última vez. — Disse ele, zombeteiramente.
Ela piscou.
— Seriamente?
— Meu irmão está apaixonado por você, Virginia. — Ele replicou. — Sem dúvida, depois da doce cena de ontem à noite, até você é consciente disso.
Ela se sobressaltou.
— O que?
Devlin lhe sorriu, mas não havia alegria em seu sorriso e ela compreendeu que ele estava zangado. Estaria se referindo à conversa que tinha tido com Sean no terraço, antes do jantar? Estaria lhes espionando?
— Que cena?
Ele prorrompeu em uma áspera gargalhada.
— Vamos, por favor. Estou me referindo quando abraçou… Ou era ele quem te abraçava?
— Estava nos espionando? — Ela exclamou atônita, se erguendo no assento. Logo sentiu que suas bochechas esquentavam.
— Eu não estava espionando ninguém, Virginia. — Disse ele, asperamente. — Queria respirar o ar noturno, mas vocês estavam tão encantados que decidi não sair. Fazia uma noite perfeita para um casal de pombinhos.
Ela ficou boquiaberta. Sua mente funcionava a toda velocidade.
— O que ouviu?
— Não ouvi nada. — Disse ele em tom cortante. — Desfrutou de seus beijos, Virginia? — Ele perguntou de repente.
Ela soltou um grito de surpresa. Então compreendeu o que a cena devia ter lhe parecido… Como se fossem amantes em um abraço prolongado. — O que aconteceu ontem à noite fica entre Sean e eu. — Conseguiu dizer, ainda assombrada. — E não é assunto teu.
— Mas eu aprovo a união. — Replicou ele. — Sempre a aprovei e de todo coração.
Ela ficou rígida, ofendida por suas palavras. Logo recordou que ele havia dito que Sean estava apaixonado por ela… E tinha razão. Fitou-o atentamente. Estaria com ciúme? Assim que o pensamento veio-lhe a mente, quase começou a rir. O ciúme era fruto do afeto ou do amor, e aquele homem não sentia nada por ela, embora Sean pensasse o contrário. Então disse cuidadosamente: — Sean é só um amigo. Um bom amigo. O mais querido amigo.
Ele proferiu um suspiro desdenhoso. Estava o rosto tão tenso que sua pele parecia estirar sobre os músculos.
— Mas você tem razão. Por infelicidade ele sente por mim algo muito forte. Algo que eu não compartilho.
— Por que não?
— Por que não? — Ela exclamou surpresa e logo se zangou. Tanto que teve que fechar as mãos. Devlin fixou o olhar nela e depois voltou aos seus olhos. — Eu não sou uma mulher qualquer. Ou acaso esqueceu que me tirou a virgindade, Devlin?
Ele se sobressaltou. Sustentou seu olhar e Virginia notou o quanto ele era muito mais dono de suas emoções que ela.
— Como vou esquecer? — Ele perguntou. — Se você me recordar o fato constantemente?
Virginia sentiu vontade de esbofeteá-lo. Mas não o fez. — Acredito que nessa noite você arruinou qualquer possibilidade de que me apaixone algum dia por Sean.
— Por quê?
— Por quê? — Virginia estava estupefata.
— Sim. Perguntei-lhe por que. O passado tem que permanecer morto e enterrado, Virginia. Muito em breve você será livre para ir onde desejar. Entristeceu-se muito em abandonar Askeaton… E Sean.
Virginia ainda incrédula vacilou, dolorida e furiosa. Ele não lhe é indiferente. É uma farsa. Um fingimento.
Não podia acreditar em Sean, mas, santo céu! Quanto o desejava. Entretanto, se para Devlin ela importava alguma coisa, por que lhe fazia aquilo? Por que a empurrava para o irmão? Enquanto o fitava tranquilamente, disse: — Há magia em Askeaton, Devlin. Nos cinco meses que passei lá cheguei a senti-lo como meu lar.
Os olhos cinza se tornaram ilegíveis. Logo a boca se torceu na paródia de um sorriso.
— Bom. Isso é bom, porque quando o resgate for cobrado, felizmente poderá retornar. Se é o que deseja.
— Consciência pesada? — Ela perguntou. — É o que te impulsiona agora? Acredita que vai conseguir que seu irmão repare o dano que me causou?
— Basta. — Disse ele, com aspereza.
— É isso, certo? — Disse ela, assombrada. — Consciência pesada! Você tem coração, apesar de tudo! Disse que o sentia… Sean diz que você se arrepende. Até disse que merecia a bofetada. Então você sabe que se comportou como um monstro. Mas jamais me proporá casamento… Não por que eu queira! — Acrescentou apressadamente. — Mas, se Sean propusesse seria conveniente para você! Poderia esquecer que um dia se converteu no tipo de homem que sua mãe não reconheceria, que sua mãe…
Ele a segurou pelos ombros.
— Basta.
Ela enrijeceu. A força de suas mãos fez com que seu coração parasse e por um instante, seu corpo se movimentou para o dele, como se esperasse que ele atraísse para si e a beijasse. Em seguida sua mente lhe disse o contrário. Ela se afastou. Com a mesma prontidão ele a soltou, apesar ter o olhar fixo em sua boca.
— Nunca volte a falar de Lady de Warenne. — Ele a advertiu.
Ela vacilou.
— Eu a conheci.
Ele empalideceu.
Oh, Oh, Oh! Aquilo era muito interessante!
— É uma mulher muito agradável. Gostei muito dela. — Disse Virginia suavemente.
— Matarei Sean. — Disse ele.
Ela o segurou pelo braço, mas ele estava muito perto e era muito viril. Não seria uma boa idéia. Então afastou rapidamente a mão.
— Não foi culpa de Sean. Eles foram nos visitar, logo que se inteiraram de nosso compromisso.
— De nosso compromisso? — Ele perguntou, atônito.
Virginia o fitou atentamente e teve que fazer um esforço para não sorrir. Havia conseguido desequilibrar Devlin e era maravilhoso. Não respondeu. Aguardou astutamente.
— Nós não estamos comprometidos. — Disse ele com voz estrangulada.
Ela estava desfrutando o momento. Se pudesse gravaria em uma pedra. Sorriu e encolheu os ombros, se negando a esclarecer o mal-entendido.
— Céu santo! As pessoas... — Disse ele. — Toda a cidade deve acreditar que você é minha noiva.
— Acredito que sim. — Ela murmurou.
— E por que sorri dessa maneira? — Ele instigou-lhe. — Nós dois sabemos que inventei essa historia para salvar seu formoso pescoço.
Devlin gostava de seu pescoço?
— Meu pescoço te parece formoso?
— Minha mãe e Adare continuam acreditando?
Ela suspirou.
— Não, Devlin. Não é o que acreditam.
No interior da carruagem se fez um tenso silêncio. Virginia o observava. Os olhos cinza eram duros e inflexíveis. Ela estremeceu. — Sean escolheu suas palavras com cuidado. — Ela logo se deu por vencida. — Bom, o que você esperava? Tomar como refém à sobrinha de seu inimigo e enganar sua família que vive a poucas milhas de distância? — Ele proferiu um palavrão. — Todo isto é culpa sua. — Ela lhe recordou docemente.
Devlin lhe lançou um olhar lúgubre.
— O quanto antes eu arruinar Eastleigh será melhor. Será melhor que vá embora o quanto antes. — Ele acrescentou sombriamente.
As palavras a machucaram e embora soubesse que não devia deixar se afetar por elas, certo modo a desanimaram.
— Tem razão. — Disse cuidadosamente. — Quando pagarem meu resgate voltarei para Sweet Briar. Quero voltar. — Mas a verdade era que não havia pensado muito em sua casa nos últimos meses. As lembranças de que em outro tempo havia sido sua casa começavam a lhe parecer vagas e distantes, substituídos pela vida cotidiana que havia compartilhado em Askeaton com Devlin e Sean. — Se é que ainda existe. — Acrescentou com amargura.


Uma vez no mar, com as velas mestras desdobradas, o Desafio rumou para o sul lutando contra o vento e as ondas. Voltar ao camarote de Devlin não agradava Virginia. Sua presença estava por toda a parte, poderosa, densa e forte. Sentou-se à mesa aflita, tomada pelo desconcerto e as dúvidas mais terríveis. Uma parte dela desejava domar à fera e com o tempo chegar a curá-la, mas não confiava em si mesmo, e a insistência de Devlin em que se casasse com seu irmão não melhorava as coisas. Suspeitava que ele se sentia culpado, mas era tão arrogante e tão insondável que a fazia se sentir terrivelmente insegura e ingênua.
Nessa noite jantou sozinha. Não lhe surpreendeu que seu captor tentasse evitá-la. Depois de jantar vestiu uma casaca e saiu do camarote.
Devlin estava junto ao leme, embora não fosse ele quem pilotava o navio. Encontrava-se ao lado de um marinheiro que ela conhecia, com as pernas musculosas afastadas. Seu corpo estava voltado para a proa observando as estrelas brilhantes. Virginia vacilou. Logo se dirigiu ao castelo de popa. Ao subir as escadas ele se voltou. Ela deu o último passo esperando que ele lhe ordenasse voltar, mas Devlin a fitou aos olhos e se limitou a inclinar a cabeça. Virginia se aproximou dele.
— Faz boa noite para navegar. — Sussurrou. Ele fitou a lua e assentiu com um gesto de cabeça.
— Sim. Teremos uma brisa moderada durante uma hora ou duas e a aproveitaremos.
Virginia o observou enquanto ele olhava para diante. Havia tirado o uniforme da Marinha a algum tempo e usava somente uma camisa solta, calça e botas. Quanto gostaria de estar em seus braços novamente. Sobressaltou-se cheia de remorsos e desanimada, por causa dos pensamentos extraviados e inoportunos. Era o último lugar no qual pensava se encontrar! Havia aprendido a lição e muito bem.
— Não desceu para jantar. — Disse brandamente.
— Comi aqui mesmo. — Devlin não a fitou enquanto lhe respondia.
Ela resolveu desfrutar a noite, as estrelas, o vento e o mar. Até da insossa companhia. Não era má aquela vida, pensou, em navegar pelo mundo dia e noite.
— É tão livre… — Murmurou.
Ele não respondeu. Havia cruzado os braços sobre o peito.
Virginia se sentiu repentinamente assaltada por uma idéia e se voltou parar observá-lo.
— Acha que pode deixar para trás suas lembranças da infância? — Seria isso o que Devlin se propunha? Fugir do passado disfarçando-se em Capitão da Marinha? — Que conveniente. — Disse. Ele pareceu perplexo. — Quero dizer que esta é uma vida sem família e sem responsabilidades. Se quisesse poderia sempre seguir navegando pelo mundo.
Sem olhar para ela, Devlin disse ao contramestre: — Eu tomarei o leme, Red.
— Sim, Capitão. — Disse Red se afastou.
Virginia observou as grandes mãos se fecharem sobre o leme, firmes e seguras, nem rígidas e nem suaves. Ficou sem fôlego. Afastou o olhar, respirou fundo e se sentiu de repente desfalecida pelo mais ardente desejo. Suas mãos haviam pousado sobre ela do mesmo modo.
— Acho que deveria descer. — Disse ele secamente, sem voltar o rosto para ela… Foi como se adivinhasse o que ela pensava.
— É uma ordem? — Ela perguntou. Mas sabia que a revelação era certa.
Ele voltou finalmente à cabeça e seus olhares se encontraram. Devlin pareceu vacilar.
— Não.
— Não?
Seu queixo vibrava. Não havia dúvida.
— As noites são longas.
Ela começou a sorrir.
— Não te incomoda minha companhia.
— Conquanto que fique calada.
Seu sorriso se tornou mais amplo. Como Devlin fazia seu coração cantar e dançar tão rápido!
— Quer que te faça companhia. — Ela brincou.
Pareceu-lhe vê-lo refrear um sorriso.
— Não lhe disse isso. Mas não me importa que fique, se ficar calada. — Ele reafirmou a última palavra.
— Prometo-lhe. — Virginia sorriu e se inclinou sobre a amurada, para contemplar as estrelas. — Se eu fosse um menino poderia ser marinheiro. — Disse pensando em voz alta.
— Não, não poderia.
Ela se voltou, e apoiou de costas na amurada e o fitou.
— Duvida? — Perguntou com ar desafiante e rezou para que a conversa que tanto estava desfrutando continuasse amena.
— Você adora a terra. — Ele acrescentou, pensativo. — Pode pensar que é como o mar, mutante e caprichoso, sempre livre. Mas na verdade você é como a terra escura e profunda, sólida e imóvel.
Ela o fitou atentamente.
— Como você está equivocado, Devlin. Você é como a terra. Não eu. — Ele se surpreendeu. — Sempre quis ser marinho? — Ela perguntou consciente da profunda tensão que havia entre eles.
— Não.
Ela inclinou a cabeça.
— Não? Você se importaria em explicar?
Ele pareceu acariciar o leme enquanto pilotava o navio. Passado um momento, suspirou. — Askeaton está a séculos nas mãos de minha família. Eu pensava fazer o Sean que faz.
Ela ficou calada. De repente notou que estava lhe tocando a mão. O desejo a invadiu, mas procurou ignorá-lo.
— E então seu pai morreu e tudo mudou.
— Meu irmão tem a boca muito grande. Que mais ele te disse?
— Disse-me que você usa a Marinha para se tornar rico, para destruir o assassino de seu pai. Meu tio.
Ele a fitou atentamente.
— E tem razão.
Ela lhe sustentou o olhar, desafiante.
— Se espera que eu desmaie, não me conhece absolutamente.
Ele pareceu sorrir na escuridão.
— Jamais esperaria que desmaiasse, Virginia. — Ele murmurou.
Ela guardou silêncio. Havia percebido claramente o tom sedutor e sensual de sua voz e tremeu ao recordar que não devia acabar novamente na cama dele.
Ele pigarreou.
— E o que fará depois do resgate, Virginia? — Perguntou.
Sua pergunta a surpreendeu. Fitou os olhos inquisitivos e umedeceu os lábios.
— Irei para casa. É obvio.
Ele se voltou e a fitou atentamente. Ela sustentou o olhar. O desejo de Devlin de casá-la com o irmão pendia entre eles, tacitamente. Ela disse com voz baixa e cautelosa:
— Não retornarei a Askeaton, apesar de quase considerá-lo meu lar.
Ele fitou as ondas ligeiramente espumosas, além da proa do navio. — E se tiverem vendido Sweet Briar? — Perguntou depois de um momento.
Estavam tendo uma conversa séria e sincera. Ela titubeou.
— Não podem vendê-la, Devlin. Sweet Briar é meu por direito. — Disse com firmeza.
— Se o venderam terá que enfrentar isso. — Disse ele, fitando-a. — Fiz algumas averiguações em Londres a um mês e ainda estava a venda.
Ela sorriu, aliviada.
— Graças a Deus!
— Se não tiver mais casa para voltar, pode ser que tenha que ficar na Inglaterra com seu tio.
— Não! — Ela fitou o perfil duro. — Isso nunca. — Acrescentou com veemência. Vacilou e disse: — Eu retornarei para casa, de todo modo.
— E o que faria?
Ela se sobressaltou.
— Não sei. — Virginia levantou os olhos e o encontrou estudando-a com atenção. — Já se passaram cinco meses desde que cheguei à Irlanda, Devlin. Uma menina teimosa e mimada, cheia de ingênuas esperanças zarpou no navio Americana, mas voltará uma mulher. Uma mulher adulta que conheceu um pouco do mundo. Se Sweet Briar foi vendido irei a casa de qualquer modo e encontrarei algum jeito de ganhar a vida.
Ele demorou um momento em responder e quando o fez sua voz soou serena.
— Você segue uma menina, Virginia. Mal tem experiência. Não poderia encontrar trabalho como professora ou governanta. — Disse Devlin. — Tampouco te vejo como costureira. O melhor que pode fazer é se casar.
Ela inalou bruscamente.
— Com Sean?
Ele pareceu endurecer a fisionomia. Mas seu olhar seguia atento nela.
— Com Sean… Ou com algum americano.
— Se me casar alguma vez será por amor.
Ele proferiu um suspiro áspero.
— Como dizia, você continua uma menina. Uma menina iludida.
Ela se enrijeceu, enfurecida.
— Claro que pareço uma menina aos seus olhos enfastiados e mundanos. Mas quando estava contigo em uma cama não lhe pareci isso.
As mãos de Devlin se crisparam sobre o leme, seus dedos branquearam.
Ela vacilou, indecisa. Sua ira se dissipou imediatamente. Não queria brigar com ele. Queria prolongar a conversa despreocupada, mas sincera e agradável. Queria que fossem amigos. O rosto de Devlin pareceu ruborizar. Por um momento, ela não soube se era por irritação ou por vergonha.
— Sempre temos que voltar ao passado?
Ela compreendeu que tinha cometido um engano. Mas não podia evitar dizer o que sentia.
—Me diga uma coisa, Devlin. Por favor. — Virginia se ouviu pedir, com orgulho e dignidade. — É muito importante para mim. Como pôde me deixar assim depois do que aconteceu?
O brilho prateado dos olhos de Devlin não deixava lugar a dúvidas.
— Tinha assuntos pendentes em Londres. — Ele respondeu. Os dois sabiam que era mentira.
— Covarde. — Disse ela.
Ele se ergueu bruscamente. Voltou-se devagar e fixou nela um olhar incrédulo.
— Do que acaba de me chamar?
O coração de Virginia se acelerou, cheio de alarme.
— Você me ouviu. — Conseguiu dizer.
— Um homem morreria por dizer tal coisa. — Ele replicou brandamente, como se não tivesse lhe ouvido.
— Acredito que tenho sorte em não ser um homem. — Disse ela com fingida alegria.
Ele não sorriu.
— Enfrentei frotas inteiras sozinho, Virginia. E escolhi brigar, não fugir. Pode ser que seja um canalha sem coração, mas não sou um covarde.
Ela umedeceu os lábios. Seu coração batia com força em seu peito.
— Ao que se refere ao coração, você é um covarde. — Ele replicou com firmeza. — E navega por estes mares somente para fugir. — Os olhos de Devlin cresceram no rosto, cheios de incredulidade. Ela pensou que tinha ido muito longe e voltou atrás. — Mas só é desumano por causa das terríveis circunstâncias do assassinato de seu pai, que por desgraça, presenciou. Isso deixaria cicatrizes em qualquer pessoa, Devlin. — Disse atropeladamente. — Agora te entendo melhor.
Devlin se inclinou para ela. Seus olhos cinza pareciam enormes e incrédulos.
— Se tanto sabe sobre meu caráter saberá também que espera mais de mim do que posso dar, Virginia. Espero sinceramente que retorne a Askeaton depois de seu resgate, que se case com Sean e que o passado fique enterrado para sempre. Como deve ser. — ele se levantou. — Red! — Bramou. — Acompanhe à Senhorita Hughes até o camarote.
O contramestre o atendeu.
— Não! — Ela se manteve em seu lugar. Queria salvar aquele homem, mas temia que fosse impossível. — Agora te entendo, Devlin. Entendo sua raiva para com meu tio, sua sede de vingança. Faça o que fizer, diga o que quiser, mas não sou o inimigo. Eu sou sua amiga!
Devlin disse secamente para o contramestre: — Leve-a.
— Sim, Senhor. Senhorita Hughes? O Capitão diz…
— Não tenho medo de você, Devlin O’Neill. — Ela exclamou interrompendo o marinheiro. — Mas, pelo visto, você tem de mim.
Devlin havia lhe dado as costas, mas logo se voltou.
— Por que se empenha em me provocar? — Ele se inclinou para ela e soltou o leme, que Red segurou, sobressaltado. — Sugiro que reflita sobre sua situação, Virginia. Convém a você, me temer.
— Não me assusta. — Ela mentiu. — Sinto a morte de seu pai. Isso é a única coisa que queria te dizer.
Devlin a pegou pelo braço e a entregou a Rede.
— Tire-a de meu castelo de popa. — Disse.




29 de outubro de 1812
Eastleigh Hall, sul de Hampshire.
William Hughes, herdeiro do condado de Eastleigh, entrou nos aposentos de seu pai sem bater na porta. Era um homem de trinta e cinco anos, já mostrando um ventre levemente saliente. Vestia uma casaca vermelha e calça escura e em seus dedos luziam numerosos anéis. Tinha o cabelo negro e abundante e sua face atraente parecia acalorada.
— Pai! — Gritou. Os olhos de cor azul pálido exibiam um brilho excitado.
Harold Hughes, o Conde de Eastleigh, em outro tempo havia sido o vivo retrato de seu filho. Agora era um homem corpulento e extremamente grosso. Por causa do uso freqüente do tabaco sua pele mostrava um aspecto pastoso. Usava o cabelo cinza recolhido para trás e suas costeletas eram fartas e longas. A primeira vista parecia um homem rico e bem vestido. Mas um segundo olhar revelava que sua antiga e rica casaca de veludo dourado estava rota e opaca. Sua calça ostentava várias manchas que as criadas não conseguiam disfarçar e suas meias estavam cuidadosamente ao contrário, para não deixar a descoberto o estado puído. Os sapatos brilhavam, mas estavam muito arranhados e o solado tão fino que começava a abrir brechas.
Eastleigh estava sentado à mesa da saleta que se comunicava com o quarto principal, e William não imaginava o que poderia estar escrevendo, que tivesse tanta importância. William administrava o imóvel, ou o que restava dele, junto com Harris, o mordomo. Qualquer queixa pelos compromissos sociais que seu pai se negava a atender recaía sobre sua esposa. Seu pai levantou os olhos e deixou a pluma de lado.
— Pai! — William se deteve junto a mesa e notou com certo desgosto que o pai estava escrevendo uma carta a um trapaceiro, e que se tratava de um assunto sobre carreiras de cavalos.
Com calma, Eastleigh juntou as mãos diante do rosto.
— Parece aborrecido, William. Traz-me más notícias?
William estava furioso. Estavam a beira da ruína mais espantosa, por culpa de um só homem… Não sabia por que o Capitão Devlin O’Neill havia se empenhado em afundar à família Hughes. No mês anterior haviam recebido uma carta absurda do homem, onde dizia estar de posse de sua prima americana em sua casa da Irlanda, na qualidade de convidada. Ao que parecia havia lhe tirado do navio Americana antes que o mesmo afundasse, salvando assim sua vida. Por mais generosa que seja minha hospitalidade, logo chegará a hora em que a Senhorita Hughes desejará se reunir com sua família da Inglaterra, ele havia escrito. Estou seguro de que tal encontro poderá ser de completa satisfação de ambas as partes.
William ignorava o que queria dizer com aquela estranha afirmação. Seu pai tinha lido a nota, rasgado-a e jogado os pedaços no fogo. Havia mostrado um completo desdém e se negava a falar sobre o assunto. De fato, ele jamais falava nada que tivesse relação com O’Neill, desde que se vira obrigado a lhe vender sua casa de Greenwich.
— O Desafio acaba de atracar no porto de Southampton, com esse lunático do O’Neill, pai. Só me ocorre que tenha vindo visitar sua nova casa de campo. Será que pensa em passar uma temporada em Wideacre, a somente algumas milhas daqui?
Eastleigh se levantou e pôs a mão sobre o ombro de seu filho.
— Ele tem todo o direito de residir em Wideacre, se é o que deseja.
Cheio de impaciência, William se afastou e começou a caminhar pelo aposento.
— Maldição! Sabia que só era questão de tempo essa escória aparecer por aqui, para contar vantagem diante de nosso nariz. Deve ter pensado em se instalar em Wideacre. Malditos sejam esses idiotas do Almirantado! Malditos sejam, por deixá-lo fugir outra vez! Não sei como fracassou a… Tom nos jurou que daria tudo certo!
Eastleigh flexionou as mãos diante de si.
— Não entendo por que está tão alterado. Não é problema nosso que ele viva tão perto de nós.
William se voltou, perplexo.
— Esse homem nos roubou a casa de Greenwich! Vive lá como um maldito rei! Roubou a amante de Tom e esfregou em sua cara. E eventualmente que sei que a Condessa… — Ele se deteve.
— A Condessa o que? — Eastleigh perguntou fracamente, elevando as sobrancelhas.
William o fitou atentamente, tremendo de raiva. Logo se interrompeu fechando a boca. Um ano antes havia descoberto que sua madrasta tinha uma aventura com o homem que tanto odiava. Mal pode acreditar. Ficou alterado ao ponto de reprová-la. A Condessa tinha negado tudo, mas ele conseguira contratar um espião que lhe confirmou o que já suspeitava. Ignorava por que a cada passo o maldito pirata, um pirata e não um Capitão da Marinha, estava sempre como um enorme espinho cravado em seu flanco. Era como se O’Neill fosse um inimigo jurado da família Hughes, mas isso é obvio, não tinha sentido.
E o que significava a ridícula carta?
William fez uma careta.
— Nada. — Disse. — Você esqueceu a carta absurda? — Perguntou com mais calma.
— Claro que não. Talvez se proponha a trazer pra a filha de meu irmão a nossa porta. Se estiver viva, se seriamente não se afogou estamos em dívida com ele por tê-la salvo. Não é certo?
— Virginia Hughes estava no Americana e o navio afundou, pai. Naufragou em uma tempestade e não houve sobreviventes. — Enfurecido, William se voltou para o pai. — Devlin O’Neill atreve a assegurar que ela está viva e que é sua convidada. Começo a suspeitar que seja uma fraude. Essa mulher vai querer se passar por minha prima para nos tirar algum dinheiro. Mas não temos nada a lhe dar, naturalmente. — Acrescentou em tom de advertência.
— Não temos nada a lhe dar, mas se estiver viva talvez ele mereça uma recompensa. — Disse Eastleigh tranqüilamente enquanto brincava com o abridor de cartas de sua mesa. Era uma adaga pequena, com o cabo de madrepérola.
William sentiu vontade de arrancar o cabelo.
— Pai! O’Neill a anos está tentando afundar esta família. Roubou o que mais queríamos, e acaso sabemos o por quê? E agora te ocorre oferecer uma recompensa? Isto é uma fraude, pai. Virginia Hughes está morta. Não houve sobreviventes e essa mulher é uma atriz que O’Neill instruiu para nos tirar mais sangue, como uma sanguessuga.
— Você tem muita imaginação, meu filho. — Respondeu-lhe Eastleigh se aproximando da janela, com a pequena adaga na mão. Fitou as pradarias que em outros tempos eram bem cuidadas e agora a vegetação tomava conta, pois não podiam se permitir mais que um jardineiro. Os jardins que antes eram transbordantes de flores e cores agora estavam abandonados e sem vida. Tocou a adaga com um dedo e foi recompensado com o brilho do proprio sangue. Sorriu.
— Mandarei avisar Thomas, — decidiu William, — porque duvido que num gesto de boa vontade O’Neill nos convide para freqüentar Wideacre, a fim de conhecer a impostora. Nossa prima está morta e de qualquer maneira não temos meios para mantê-la. Estou errado, pai? —William não se importava em nada se a garota fosse sua prima ou não. O que a ele concernia sua prima estava morta, circunstância extremamente afortunada, tendo em conta o estado das finanças e o fato de que a moça havia ficado órfã de repente e ainda não tinha idade para casar. A seu modo de ver, O’Neill não trazia nada bom e a mulher era uma impostora.
Mas, por quê?
Por que O’Neill, por mais controvertido que fosse havia se decidido brincar com a família Hughes?
Eastleigh se voltou.
— Está bem. Avise o Toni. Juntem suas cabeças e lamentem nossa má sorte. — Ele sorriu, mas o sorriso não chegou aos seus olhos.
William proferiu um suspiro de exasperação, se voltou e saiu apressadamente do aposento.
Então a fúria explodiu. Eastleigh cravou a adaga na parede, em uma parte que necessitava urgentemente de uma pintura. E ficou fitando a arma que tremulava.
— Então pensa em me apunhalar novamente, bastardo? — Disse. — Pouco me importa se minha sobrinha vive. Não pagarei o resgate que tão amavelmente solicita. — Ele arrancou a adaga da parede. — Meus filhos são idiotas. Eu, não. Esta guerra não acabou ainda.
E Eastleigh se imaginou decapitando Devlin O’Neill, como havia decapitado seu pai há muitos anos. Seria para ele um infinito prazer.

 

 

Capítulo 15


— Não sei por que não podemos parar em sua casa antes de visitar meu tio. — Disse Virginia com voz premeditadamente baixa. Haviam demorado dois dias e meio para em chegar Southampton e era já tarde. Desde que havia se atrevido provocar Devlin no castelo de popa do navio, duas noites antes, mal tivera ocasião de saudá-lo antes que ele se afastasse. Devlin não tinha jantado, dormido ou feito qualquer outra coisa em seu camarote, como na primeira viajem no Desafio. Cada vez que ela saia no convés com a esperança ter com ele outra conversa civilizada, Devlin estava ao leme do navio. Mas pelo que pode entender ele havia ordenado que não lhe permitissem acesso ao castelo de popa, pois sempre alguém se apressava em lhe cortar o passo. Estava com medo, pensava ela, ou sentia um completo desinteresse por sua companhia.
Devlin não lhe respondeu. Estavam no saguão principal da mansão de Eastleigh. Virginia notou o quanto a casa estava suja e pensou no quanto necessitava de qualquer ajuda que seu tio pudesse lhe oferecer. Sem poder evitar retorcia as mãos, mas ansiava causar uma boa impressão. E se o assunto do resgate fosse resolvido imediatamente? Fitou Devlin, estranhamente perturbada. Se fosse resolvido passaria a noite em Eastleigh e duvidava que voltasse a ver Devlin O’Neill. Seu coração encolheu em seu peito. Já restava qualquer divida a respeito de seus verdadeiros sentimentos por ele. Estou te pedindo que salve meu irmão.
Virginia sentiu vontade de dizer a Sean que não podia salvar seu irmão, se ele sequer se dignava a manter uma conversa com ela.
— Preciso me assear um pouco, Devlin. Seriamente. — Disse.
— Você está perfeitamente bem, Virginia. — Ele replicou, mas deu para ela notar que ele estava com a mente em outro lugar. Estava tão absorto que não tinha voltado os olhos para ela nenhuma vez.
Ela tremeu.
— Quero causar boa impressão. — Murmurou. — Embora não importe a você.
Ele a fitou finalmente e lhe sustentou o olhar.
— Por quê? Eastleigh não é mais que um assassino e você sabe disso.
Ela engoliu saliva. Agora que se aproximava a hora da verdade, se sentia enjoada. Respondeu-lhe: — Necessito da ajuda dele. Você sabe disso. Ou ele me ajuda ou perderei Sweet Briar. E não conheço os pormenores da morte de seu pai, mas duvido que fosse intencional Devlin. Estou segura de que foi um acidente. Um acidente que com o passar dos anos, você recriou como um ato premeditado.
Os olhos de Devlin flamejaram.
— Quando um homem usa sua espada para decapitar sua vítima, ele faz com premeditação, Virginia. — Devlin disse friamente.
Ela ficou tão assombrada que não pôde se mover. A imagem de uma grotesca decapitação a assaltou.
— Seu pai… Foi decapitado?
A fisionomia de Devlin se mostrava afrontada e sua voz exsudava veneno.
— Sim. Decapitado. Não recriei sua morte com minha imaginação. Presenciei-a com os próprios olhos, assim como minha pobre mãe.
— Meu Deus! — Ela murmurou. Pegou sua mão apertou com força.
Ele a fitou por um momento e logo a afastou.
— Este não é momento e nem o lugar para falar da morte de meu pai. Certo? Pode saudar seu tio e seu primo como queira, mas eu falarei com eles.
Ela seguia impressionada. Sua compaixão tanto por Devlin como por sua mãe não tinha limites. Seu tio havia feito aquilo? Como era possível? Começava a compreender verdadeiramente a profundidade das feridas de Devlin. E Sean acreditava que havia esperanças?
De repente, um homem bonito e de porte régio, trajando uma casaca vermelho escuro entrou no aposento. Seus olhos azuis claros mostravam frieza quando se aproximou deles. Sua expressão era autoritária. Virginia se sobressaltou, apesar de saber que não podia ser seu tio. O homem mostrava trinta anos, no máximo.
— Capitão O’Neill. — Ele se expressou com um sorriso, que era mas uma forma de mostrar os dentes. — Bem vindo a Eastleigh. — Ele fez uma reverência.
Devlin inclinou a cabeça e respondeu cortesmente.
— Boa tarde, Milord. Acabamos de chegar a Hampshire e estamos a caminho de minha casa em Wideacre — Sua boca torceu no que poderia ter sido um sorriso, embora Virginia soubesse que era uma mera contorção dos lábios. — Sua prima expressou tanta vontade de se reunir com sua família, que simplesmente não pude me negar aos seus desejos. Apresento-lhe à Senhorita Virginia Hughes.
William a fitou com uma expressão de moderada surpresa e elevou as sobrancelhas escuras.
— Mas soubemos que ela havia se afogado junto ao navio Americana! — ele exclamou. — Ouvi dizer que não houve sobreviventes!
— Equivoca-se. Como pode notar, a Senhorita Hughes está viva. — Os olhos de Devlin pareciam dançar de regozijo.
— Sou sua prima. — Conseguiu dizer Virginia, apesar de desejar não estar ali. — Não me afoguei, como pode ver.
William a fitou com semblante comicamente estudado. Seus olhos eram duros, mas sua face, que compunha uma expressão de surpresa, não era.
— Como pode ser? — Seu tom era visivelmente zombeteiro. — A Marinha disse que o Americana naufragou em uma tempestade. Foi uma declaração oficial. Não houve sobreviventes.
Devlin parecia incrédulo.
— Acusa você à Senhorita Virginia de traição, de fraude?
Virginia sentiu que suas bochechas ardiam.
— Eu não acusei ninguém de nada. — Respondeu William com um sorriso amplo e colado. — Peço-lhe desculpas, Senhorita... Hughes, se dei essa impressão.
— Houve uma sobrevivente. — Respondeu Devlin com suavidade, antes que Virginia pudesse falar. — Sei com toda segurança, pois fui eu mesmo quem a conduziu do navio Americana, ao meu navio.
— Bem, — William sorriu novamente, — quão estranho é tudo isto! Ao que parece temos duas declarações contraditórias.
— Sugiro que avise o Conde. — Disse Devlin. Não era uma sugestão, mas claramente uma ordem.
— Acredito que avisarei. — Replicou William e aliviado saiu às pressas do saguão.
Devlin fitou a Virginia com os olhos semicerrados, especulativos e satisfeitos. Mas Virginia estava envergonhada.
— Ele acredita que sou uma impostora. — Murmurou.
Devlin sorriu.
— Ele sabe que é sua prima. Entretanto, insistirá em que te afogou para evitar o resgate e qualquer apoio econômico que te deva, com todo direito.
— Não podia esperar isto? — Ela perguntou, suplicante. O olhar de Devlin endureceu.
— Não. Já esperei muito. Acredito que queira conhecer o Conde. E abraçar sua liberdade.
Ela inalou asperamente.
— Não assim. Observe o quanto estão pobres! — Ela exclamou, assinalando o saguão. Algumas lajes de mármore do assoalho estavam gretadas e descascadas. As paredes necessitavam de uma boa pintura, e uma examinada no salão ao lado mostrava um local cheio de legados familiares, nenhum deles novos. Todos estavam estragados e opacos. Como seu tio pagaria as dívidas de Sweet Briar, e menos ainda seu resgate? Virginia estava desolada. Já não parecia haver já possibilidade alguma de salvar suas terras.
Soaram passos na longa escada a sua direita. Virginia se voltou e observou que por ela descia um homem alto e corpulento, com o cabelo grisalho. Atrás dele estava William. O homem tinha o olhar fixo em Devlin, que também o fitava atentamente. Por um momento, Virginia sentiu uma tensão abrasadora no aposento, uma hostilidade que flamejava. Logo, seu tio sorriu com expressão benévola.
— Capitão O’Neill. — Disse, se aproximando. — Que amável de sua parte vir nos fazer uma visita.
— Milord. — Devlin respondeu calmamente, e executou uma ligeira reverência.
O Conde de Eastleigh se voltou para Virginia, que se apressou em se inclinar.
— E esta é minha sobrinha?
Virginia se adiantou bruscamente.
— Milord! Sim, sou eu. Sou Virginia Hughes, a única filha de seu irmão.
O olhar de Eastleigh era penetrante. Virginia se enrijeceu imediatamente, alarmada instintivamente. Mas ele seguiu sorrindo.
— Disseram-me que não houve sobreviventes. — Ele disse com suavidade.
Ela respirou fundo, mas não deixar de pensar no estranho efeito que o homem, seu tio, havia provocado nela.
— O Capitão O’Neill me salvou a vida, Milord. Não somente uma vez, mas duas vezes. Ele… levou-me a bordo de seu navio quando se tornou evidente que chegaria uma tempestade e que estaria mais segura no Desafio. — Jamais diria a ninguém que Devlin havia assaltado o Americana. — Se não fosse por ele estaria morta. A tormenta foi tão violenta que estive a ponto de cair pela amurada… Mas ele me resgatou novamente. Sou bastante agradecida a ele. — Disse precipitadamente consciente de que Devlin a observava com surpresa. Negava-se a fitá-lo, mas agora ele sabia que jamais diria a ninguém o que tinha realmente ocorrido.
Eastleigh a fitou de cima a baixo.
— E, durante todo este tempo você foi a convidada de meu amigo, o Capitão. É verdadeiramente maravilhoso.
Ela vacilou.
— Não sou uma convidada. — Murmurou, mas Eastleigh parecia não ouvi-la. Fito ao Devlin. Ele tinha os braços cruzados e em seus olhos brilhava uma luz voraz. — Senhor! Milord! Tio! — Ela não conseguiu se refrear e segurou as mãos grossas e húmias de Eastleigh. — Diga-me que minha casa está intacta, por favor.
O Conde afastou as mãos e fitou seu filho.
— Já foi vendida a plantação?
— Por desgraça, não.
Virginia esteve a ponto de proferir um soluço e cobriu o coração desbocado com a mão.
Os três homens a fitaram e logo Devlin disse: — Desejo falar com você em particular, Milord.
Eastleigh seguiu sorrindo.
— Temo que tenham chegado tarde a um jantar. Sugiro-lhe que venha ver-me em outro dia desta semana.
Devlin esboçou um sorriso gélido.
— Insisto em que me conceda um minuto de seu tempo.
Eastleigh pareceu uma estátua, até que respondeu tão apressadamente que Virginia teve que aguçar o ouvido: — Cansei-me de seus jogos. — Ele disse com suavidade. — Na verdade estou farto deles.
— A menos que queira que o mundo inteiro conheça as indiscrições da Condessa, sugiro-lhe que me conceda um momento.
Virginia ignorava o que Devlin dizia, mas William deixou escapar uma exclamação de surpresa. Ela o fitou e notou que ele estava pálido e Eastleigh avermelhava, quase a beira da apoplexia. William se adiantou.
— Chamarei um oficial! — Exclamou. — Este homem não pode entrar em nossa casa, nos mostrar uma impostora e fazer acusações contra a Condessa.
— Ainda não fiz nenhuma acusação. — Disse Devlin. — Simplesmente ameacei fazê-la.
— Não chamará um oficial. — Disse Eastleigh. — Ocupe-se de seus assuntos, O’Neill e vá embora... Antes que eu mande que o joguem daqui.
Devlin se mostrava claramente divertido.
— E como o faria, exatamente? — Ele começou a rir.
Virginia observava o absurdo de tudo aquilo. Como aquele homem já avançado em idade e seu afetado filho pudessem desafiar um homem como Devlin, que não pensava um momento na hora de atacar e destruir navios inofensivos. Aproximou-se dele, apressadamente.
— Deveríamos ir.
Mas ele não a ouvia. Ninguém a ouvia. Devlin disse: — Virginia deseja se reunir com sua família… Com você. A fama de sua generosidade o precede, Milord. E eu queria falar com você a respeito da natureza da recompensa que sem dúvida gostará de me oferecer. — Ele parecia rir.
Eastleigh continuou sem se mover. Dava a impressão que não se atrevia a estrangular Devlin, por mais que desejasse. Estava totalmente avermelhado.
— Recompensa? — Exclamou William. — Santo céu, este homem quer pedir um resgate! Você quer um resgate! — Ele gritou e logo acrescentou: — Sua cabeça rolará por causa disso! Sequer você pode raptar uma mulher como minha prima, pedir um resgate e sair ileso. — William parecia de repente exultante.
Eastleigh e Devlin se fitaram. Nenhum deles sorria e se seus olhos fossem adagas já teriam morrido.
— Não chame o oficial. — Disse Eastleigh finalmente. — E você William, não falará sobre o que aconteceu, com ninguém. Nem sequer com seu irmão. Ouviu-me?
— Mas… — William balbuciou.
— Não procuro um resgate. — Disse Devlin com excessiva suavidade. — Quero unicamente que me reembolsem os gastos. Chamaremos de recompensa. Quinze mil libras bastarão. — Ele se voltou. — Vamos, Virginia. Nossos assuntos aqui se concluíram… Por hora.
Devlin a pegou pelo braço. Ela olhou para trás e viu Eastleigh possuído por uma raiva impotente e William assombrado. Quinze mil libras. Era uma imensa quantidade de dinheiro. Uma soma que evidentemente, Eastleigh não possuía.
Estavam na porta quando Eastleigh gritou:
— Não vamos pagar! Desta vez você perdeu, O’Neill. Não quero à garota e não vou pagar nenhum resgate. Pode ficar com ela. — Ele rompeu a gargalhar.


Virginia se encolheu na carruagem. Devlin havia ordenado que prendessem seu cavalo na parte de atrás da carruagem e estava sentado ao seu lado. Depois de fechar a porta se recostou no assento de couro e bateu com o punho na parede. A carruagem partiu pela avenida pavimentada.
Virginia o observava com os olhos dilatados pelo assombro. A expressão de Devlin era dura. Seus olhos mostravam frieza sem igual. Parecia pensativo. Mas se a conversa ou a negativa de Eastleigh em pagar seu resgate havia lhe desanimado, ela não soube decifrar. Estremeceu. O que aconteceria a partir de agora? Não lhe restava apenas dúvida que Eastleigh havia falado seriamente, até a última palavra. Ao Conde não importava se ela vivesse ou morresse. Não sabia se continuava presa ou em liberdade. Virginia nunca tinha visto olhos tão frios… Com exceção dos de Devlin.
Estremeceu novamente. Por alguma razão os olhos de Eastleigh eram piores. Duas coisas haviam ficado claras. O ódio de Devlin era ilimitado, mas Eastleigh por sua vez odiava-o ferozmente. E ambos se encontravam em um impasse, já que Devlin exigia um resgate que Eastleigh se negava a pagar. Se pudesse fazer com que Devlin mudasse de atitude…
Haveria algo que pudesse impedi-lo de extrair de seu inimigo, um resgate? Não acreditava e se desesperava por isso.
— Devlin, isto tem que acabar.
Ele a fitou.
— Acabará quando eu quiser. Nem um momento antes.
Ela ficou rígida. O olhar de Devlin era gelado.
— E se sente satisfeito? Agrada-lhe o que está fazendo? Meu tio está na miséria! Está claro que você o arruinou. Por que continuar? Quem escolheria viver assim, uma vida de ódio e vingança? — Exclamou.
Algo brilhou no olhar de Devlin. Sua boca se crispou.
— Uma vez te ouvi dizer que se alguém tivesse assassinado seu pai mataria essa pessoa com as próprias mãos.
Ela o fitou atentamente. Era certo que havia dito aquilo a Sean.
— Não estou segura de que tenha falado a sério.
— Você falou sério. Neste caso não somos tão diferentes, Virginia.
— Somos muito diferentes! Eu tenho motivos de sobra para te odiar e me vingar. Mas não te odeio… Nunca te odiarei. E nunca direi a verdade a ninguém, sobre o que tem feito. Nego-me a percorrer o caminho da vingança, Devlin. Simplesmente, me nego.
O semblante de Devlin endureceu enquanto a ouvia e observava.
— Devo isso ao meu pai.
— Seu pai está morto! Há anos, teu pai está morto! — Ela não podia se dar por vencida ainda. — Não existe resgate, Devlin. Mesmo que tivessem eles ainda pensariam se pagariam. Você que sem dúvida sabe muito bem julgar às pessoas, deve ter se dado conta disso.
Ele já não a olhava. Era evidente que não tinha intenção de responder.
Virginia se voltou, desesperada. Estava com um mau pressentimento. Sabia que Devlin estava tramando alguma coisa e o que fosse, infundia-lhe pavor. Entretanto, não havia nada mais que pudesse dizer. Não era capaz de persuadi-lo para que depusesse de sua atitude, para que mudasse de vida. Sean estava errado! Talvez Devlin estivesse ficando louco. Acaso não era a obsessão, um desequilíbrio mental? E o que seria dele no fim? Se não lhe importasse… O filho de Eastleigh avisaria às autoridades? Devlin não tinha medo de acabar na prisão? Ela sabia o quanto ele amava o vento e o mar e estava convencida que o cárcere acabaria com ele.
Mas se ele não temia à morte, talvez tampouco temesse a prisão. Certamente não parecia preocupado por seu futuro. Santo céu! Era ela que se preocupava com o futuro dele tendo o próprio com que se preocupar. Um futuro que parecia muito sombrio.
Já haviam deixado para trás a casa de Eastleigh. Colinas verdes e sulcadas de velhos muros de pedra e flores silvestres margeavam a estrada. Atravessaram uma bonita aldeia cheia de pequenas casas de pedra caiadas, e passaram junto à igreja construída nos tempos dos normandos. Minutos depois desviaram a estrada principal e transpuseram os oxidados portões de ferro forjado. Virginia avistou uma agradável pradaria e uma modesta casa de pedra de dois pisos, com dois aposentos, provavelmente ao largo. Atrás dela havia uma cocheira também de pedra, igualmente caiada. Virginia se surpreendeu com a pequena e ruinosa casa de campo. Não podia ser a casa de Devlin. Deviam ter errado de direção.
Mas Devlin a ajudou descer, irritado. Deu uma observada na casa e a ela passou impressão de que ele não nunca tinha visto antes. Então compreendeu que não haviam errado o endereço. Com a mão sobre seu braço, ele a conduziu pelo caminho de pedra. Pelo menos as rosas que floresciam a um lado da casa eram bonitas. Ela pensou.
A porta dianteira se abriu antes que chegassem e dela saíram um homem e uma mulher.
—Capitão O’Neill? — Perguntou a mulher alta e morena, amadurecida, bastante magra e de traços aquilinos. Usava o vestido negro e severo de uma criada.
Ele assentiu com a cabeça.
—Senhora Hill, a governanta, acredito?
Ela esboçou um sorriso crispado.
— Sim. Estávamos esperando-o. Espero que a casa e as terras o satisfaçam, Capitão.
— Logo saberei. — Ele respondeu ambiguamente.
— Senhor? Sou o mordomo, Tompkins. — Disse o homem baixo e bem vestido, que permanecia junto à governanta. Usava uma casaca de lã negra. — Nos alegramos muito de que finalmente tenha vindo, Capitão.
Devlin resmungou algo.
— Recolham a bagagem e levem-na aos meus aposentos. — Ele disse.
Virginia se sobressaltou. E suas malas?
—Permitam-me apresentar à Senhorita Hughes.
A governanta e o mordomo sorriram a Virginia. A governanta parecia nervosa e mostrava um sorriso afiado, mas o mordomo parecia justamente o contrário. Na verdade era bastante jovial.
— Que não falte de nada à Senhorita Hughes. — Disse Devlin. — É minha convidada e todos os seus desejos dever ser satisfeitos.
Virginia o fitou atentamente. Um mau pressentimento começava a se apoderar dela. O que ele estava tramando?
— E onde levamos as malas da Senhorita, Senhor? — Perguntou Tompkins.
As sobrancelhas escuras de Devlin se elevaram com surpresa.
— Aos meus aposentos, naturalmente. — Ele respondeu.
Seguiu-se um momento de surpreso silêncio.
Virginia abriu a boca para protestar, mas Devlin segurou sua mão e a levou aos lábios. Virginia se perguntou se estava sonhando. Ele sorriu e lhe beijou a mão. Os lábios lhe pareceram quentes e firmes sobre a pele. Seu corpo reagiu imediatamente. Somente pôde pensar no que ele estava fazendo. E por que, santo céu?
— Aos seus aposentos, Senhor? — Tompkins conseguiu perguntar, ruborizando.
— A Senhorita Hughes vai compartilhar meus aposentos, sim. — Disse Devlin, e sorriu afetuosamente para Virginia.
Com o coração acelerado, ela adivinhou de repente o que aconteceria a seguir.
— Devlin… — Conseguiu expressar, a título de um frágil protesto.
— Cale-se, meu bem. — Disse ele. E sorriu aos criados. — Apresento-lhes à Senhorita Virginia Hughes, minha amante, Senhora Hill e Senhor Tompkins.

 

 

 

 


Capítulo 16

SEGUNDA PARTE
O PACTO

Virginia sabia que sua surpresa era evidente. Sentiu que se mostrava boquiaberta, com os olhos fora das órbitas. Só teve um instante para reagir, entretanto durante esse instante a Senhora Hill adotou uma atitude severa, enquanto o Senhor Tompkins ruborizava.
— Vamos, querida. — Continuou Devlin, lhe puxando pela mão.
Qual seria o jogo agora?
A ira se apoderou dela, como uma onda ardente. Negou-se a acompanhá-lo e fixou em seu captor um olhar que esperava ser fulminante. Mesmo assim, sua incredulidade não tinha limites. O que Devlin se propunha fazer?
Ele a levantou nos braços e entrou na casa.
— Não discuta. — Ele murmurou. — E não esperneie.
— Farei algo melhor que espernear. Deixe-me agora mesmo ou…
Ele a beijou.
Virginia não poderia ter ficado mais surpresa. Endureceu o corpo, mas a boca de Devlin era terrivelmente familiar para ela. Enquanto esperneava e o golpeava com os punhos, seus lábios se abrandaram. Sentiu que ele abria a porta e seu coração o recebeu e depois começou a pulsar em um ritmo mais pressuroso e insistente. A boca de Devlin cobria a sua e exigia que se abrisse e lhe franqueasse a passagem. Quanto desejava se render… Sua ira se dissipou, assim como todos os seus pensamentos. Seus lábios se abriram. Suas mãos apertaram os ombros de Devlin. A língua dele penetrou em sua boca.
Virginia experimentou um desejo tão agudo que lhe atravessou o coração.
Ele elevou a cabeça enquanto subia as escadas e seus olhares se encontraram. Devlin estava com os olhos cinza um pouco velados, mas fora disso, ela não conseguiu adivinhar o que ele estava pensando, muito menos o que se propunha a fazer. E o que fazia ela devolvendo seus beijos, enquanto todo o seu corpo ardia preso de um desejo desesperado? Ele se deteve no patamar afastou finalmente os olhos dela e fitou a sua volta.
— Desça-me, Devlin. — Disse ela com mais calma do que sentia. Seu sexo estava inchado, como uma terrível testemunha de como facilmente aquele homem podia excitá-la. Mas não estava disposta a compartilhar sua cama, por mais que ele tentasse seduzi-la, por mais que lhe dissesse.
Como resposta, Devlin empurrou com o ombro a primeira porta e observou o interior do aposento. Logo retrocedeu.
— Cale-se. — Disse secamente. — E deixe de se retorcer. — Ele se aproximou da porta seguinte.
— Não estou me retorcendo. — Disse ela quase sem fôlego. — E eu…
Entraram no aposento seguinte e a deixou no chão. Virginia roçou a parte mais fascinante de sua anatomia e ficou imóvel. Ele também estava excitado. Ainda a desejava. Como se arrumaria? Devlin se voltou e fechou a porta. Confrontou-a e disse em voz baixa: — Isto não é mais que uma farsa. Dormirei no… — ele fitou ao seu redor e concluiu, resignado. — Chão.
— O que? — ela exclamou se dando conta que o quarto principal, se fosse aquele, tinha uma bela cama de quatro colunas e um divã, dois criados mudos, um penteador, e uma lareira. Nada mais.
Devlin se aproximou dela.
Virginia ficou tensa. Ainda estava ofegante e continuava desejando com desespero não queimar em seus braços.
— O que propõe, Devlin? — Perguntou em voz baixa.
— Por infelicidade terei que provocar seu tio, para que pague o resgate. — Disse ele sinceramente. — Você viverá em meus aposentos como se fosse minha amante e em público agiremos como um casal de amantes, muito desavergonhados. Confio em que coopere, Virginia. — Ele a advertiu— e vou lembrá-la que lhe convém ficar livre em seguida. Quanto antes Eastleigh chegue à conclusão de que não pode consentir que se exiba tão abertamente como minha amante, poderá retornar a sua casa… Ou o que queira fazer. — Boquiaberta, Virginia simplesmente o ouvia. — A principio pensei em jogar com ele desta maneira. — Devlin estava muito sério. — Mas para falar a verdade, agora lamento que ele não queira me pagar imediatamente, para que acabemos com isso de uma vez por todas.
Ela demorou um momento a entender todo o plano e sua compreensão tornou impossível ouvir as últimas palavras.
— Vamos fingir que somos amantes, compartilharemos este quarto, você me desonrará aos olhos de todos, mas não vai compartilhar minha cama? — Ela ouviu com incredulidade o estremecimento de dor na própria voz. O que sugeria Devlin superava o incrível. Era mais que monstruoso. Pretendia desonrar seu bom nome e exibi-la na sociedade como sua amante. Estava aniquilada.
— Em essência, se trata disso sim. — Ele respondeu com as mãos nos quadris e as fortes coxas afastadas. De fato, parecia preparado para confrontar uma tempestade.
— Um cavalheiro não vive abertamente com uma mulher que não seja sua esposa. Um cavalheiro não vai à casa de seu vizinho acompanhado de sua amante.
— Não há outra saída.
— Como pode me fazer isto? — A ela custava até respirar. Aquela era a prova definitiva de que Sean estava errado e Devlin não sentia nada por ela. Ele estava disposto a usá-la sem piedade e arruinar seu nome. Tudo para conseguir o resgate. Talvez seja você quem pode ajudá-lo a encontrar sua alma. Rotundamente, não. Pensou Virginia, em resposta às terríveis palavras de Sean. Para Devlin, ela não importar o mínimo, se ele propunha destruir sua reputação daquela forma. Para usá-la de maneira tão premeditada, não podia restar alma a salvar. Estava horrorizada.
— Você sabe o que me impulsiona a fazer isto. — Disse ele com aspereza. — Não desejo te fazer mal, mas não tenho escolha. Não vim até aqui para permitir que Eastleigh zombe de mim e se negue a pagar o resgate. — Ele se voltou como se não pudesse seguir fitando-a. Bem, eram imaginações dela.
— Eles estão arruinados! É evidente que não podem pagar! — Virginia teve que se sentar, pois suas pernas pareciam amolecidas. — E mesmo que pudessem, como pode me fazer isto?
— Eles podem vender o imóvel, Virginia. Ou mesmo pedir emprestado. Inclusive poderiam vender Sweet Briar. A mim pouco importa o que façam. — Ele se dirigiu à porta com passadas duras. Mas logo se voltou. — Nós sabemos que a você não importa o que as pessoas pensem. Você passou cinco meses em Askeaton, sem vigilância alguma. E isto facilita as coisas. Sei que gostaria que eu a tornasse minha amante, de verdade. Então deixe de fingir estar magoada e raivosa. — Concluiu tremulo, inexplicavelmente..
Virginia ignorava por que ele estava tão alterado e já não lhe importava. E se seu tio vendesse Sweet Briar para pagar seu resgate?
— Ninguém sabia que eu estava em Askeaton e os aldeãos acreditavam que era sua noiva. Estou magoada, Devlin. — Ela disse com toda a dignidade que foi capaz. — Me dói saber que você se importa tão pouco com minha reputação que é capaz de me exibir como sua amante só para conseguir o que deseja. Sente-se no direito arruinar minha vida só para se vingar.
Devlin estava tão furioso, que por um momento a fitou atentamente. E o que notou foi a expressão mais dolorida e vulnerável que nunca havia contemplado. As lágrimas enchiam os olhos violetas. Virginia o observava como se ele a tivesse traído. Imediatamente odiou a si mesmo pelo que estava fazendo… Mas não tinha escolha. Ou tinha?
Pensou por um momento, consciente que sentia o estranho impulso de se negar a continuar, de deixá-la partir e acabar de uma vez por todas com o que estava fazendo.
Logo lhe veio à mente a fria risada de Eastleigh, seguida da pavorosa lembrança dos olhos cegados de seu pai fitando-o do chão. Eastleigh não podia vender. Teria que fazer justiça.
— Está se dando muita importância. Na verdade estou te economizando uma humilhação. Não vou convertê-la em minha amante. E quando isto acabar, se você desejar direi a todo mundo que não era mais que um embuste para humilhar seu tio. Mas já que pensa em retornar a sua casa, o que aconteceu aqui não tem importância. Lá, ninguém saberá o que aconteceu. — Devlin sabia que a argumentação era patética.
Ela levantou o queixo, mas sua voz soou suave, apenas audível.
— Se fôssemos amantes de verdade, você defenderia minha reputação e ninguém nunca saberia de nossa relação.
Devlin se sentiu como se acabasse de receber fisicamente um golpe severo. Ela tinha razão.
— Não consigo notar a diferença. — Mentiu. — Não há outra saída.
— Sempre há outra saída, Devlin. Embora me use tão cruelmente, o que te faz pensar que eles pagarão, embora possam vender minha casa e pedir emprestado o dinheiro? — Ela exclamou.
Devlin caminhou para a porta, sem olhar para ela. Não conseguia.
— Será uma questão de honra. — Disse. — Eles pagarão. Eu me assegurarei disso. — Ele saiu tão rapidamente como se sair assim pudesse esquecer o espantoso plano que havia colocado em marcha. Um plano que de fato destruiria Virginia Hughes de uma vez por todas.


Virginia estava assustada.
Estava claro como a água que Devlin estava tão obcecado em se vingar que nada ou ninguém poderia atravessar em seu caminho. Era também evidente que Sean estava muito enganado. Ela não podia mostrar a luz de uma vida diferente a Devlin, porque se ele não estivesse completamente perdido restaria ainda um pouco de remorso pelo que estava fazendo. Ela não tinha visto nele nem um só indício de culpa. Só sentira sua determinação absoluta. Mas Devlin O’Neill era um professor na hora de dominar suas emoções.
Estou pedindo que salve a meu irmão.
— Deus, Sean! — Gemeu Virginia batendo na água de seu banho, que de repente sentiu que já estava fria. — Devlin não tem salvação! — Um estranho desânimo a embargava. Não haveria modo de ajudar Devlin? Estaria alguém a salvo, enquanto ele vivesse e respirasse? Virginia fechou os olhos com força. Todos os atos de Devlin lhe faziam sofrer e apesar de tudo, não podia odiá-lo. Por mais absurdo que fosse.
Estava perdida. Convertia-se novamente na menina, confusa e ferida. Não sabia o que fazer. Estava sendo engolida por seu captor, cujos atos defendia a si mesma, e em segredo ainda confiava em ser capaz de salvá-lo de si mesmo. Mas, havia algo que pudesse fazer? Desde o momento em que Devlin havia atacado o navio Americana, ela não tinha sido mais que um peão movido de um lado a outro, à sua vontade. E agora o jogo havia tomado outro rumo, que demonstrava sua indiferença para com ela.
Virginia suspirou. Começava a tremer. Devia odiá-lo por torná-la novamente prisioneira e pela proposta exibi-la para todos como sua amante. Devia odiá-lo por muitos motivos, mas não conseguia. Absolutamente. Sentia uma profunda compaixão por ele. Compadecia-se do menino que havia assistido o assassinato de seu pai e do homem em que ele se converteu.
Saiu da banheira, se envolveu em uma toalha e se postou diante da lareira do quarto. Contemplou as chamas dançarinas, mas só via Devlin. Como antes, não tinha escolha. Somente podia acompanhar o jogo e ver aonde ele o conduziria. Era forte o bastante para tanto. Em parte Devlin tinha razão. A ela não importava o que os outros pensassem... Bem, pelo menos, não muito. De repente, se enrijeceu. Por que não ser mais ardilosa que ele? Por que não seguir o jogo e ganhar a partida?
Assombrada por suas reflexões, Virginia começou a se vestir enquanto pensava com grande atenção. Queria ser livre e queria recuperar Sweet Briar, mas não era isso o que mais ansiava. Reconheceria a si mesma, o que seriamente queria? Por infelicidade, o que mais desejava era Devlin. Seu coração se encolheu ao tomar ciência do que exatamente queria dele e se sentiu desfalecer. Seus joelhos fraquejaram. Vestida unicamente com sua camisa de dormir e sua calçola de renda levantou o espelho e confrontou. Seus olhos violetas pareciam enormes e manchas rosadas e manchavam sua pele. Queria que Devlin pensasse que era bela. Queria que ele se sentisse tomado pela paixão e, sobretudo, queria que ele a amasse.
Queria seu amor.
Aterrorizada, conseguiu se aproximar tremula do divã, onde se sentou. A maioria das pessoas que conheciam Devlin assegurava que ele era incapaz de amar. Como podia ser tão tola? Por acaso atreveria a esperar o impossível? E o que era mais importante, se atreveria a tentar conquistar o amor dele? Mordeu o lábio e seus olhos se encheram de lágrimas. Sequer era bonita, embora fosse evidente que ele a achava atraente. Tampouco era uma Mademoiselle, coisa que ele já sabia. Como podia conquistar um homem como ele? Mas que alternativa tinha? Ser resgatada e livre para poder retornar para casa ou ficar e se casar com seu irmão?
Seu corpo tremeu. Não por estar molhada e com frio. De alguma forma, em algum momento e algum lugar entre o Americana e Wideacre havia se apaixonado por Devlin O’Neill, e nada voltaria a ser a mesma coisa. Não havia escolha. Teria que fazer o que fosse possível para salvar sua alma… E conquistar seu amor.


Quando desceu, Virginia estava muito preocupada e cabisbaixa. Suas novas e terríveis certezas e seu plano recém elaborado consumiam seus pensamentos. Seus passos vacilavam cheios de apreensão.
— Precisa de alguma coisa, Senhorita Hughes?
Ao ouvir a voz firme da Senhora Hill, ao mesmo tempo condescendente e obsequiosa, ela se voltou sobressaltada.
— Meu vestido azul e a casaca que o acompanha precisam ser lavados, se for possível. — Respondeu com um sorriso amável.
— Certamente. Mandarei à criada verificar. — a governanta esboçou um sorriso tenso. Quão carregado parecia seu semblante! Seus olhos escuros refletiam sua reprovação, como espelhos. Virginia lhe devolveu o sorriso, agradeceu-lhe e acrescentou: — Onde está o Capitão?
— Na biblioteca. — Respondeu a Senhora Hill.
Virginia fitou seus olhos e notou a sagacidade espelhada neles, como se suspeitasse que ela estava querendo se reunir com seu captor por alguma razão ilícita e sexual. Afastou-se, perturbada. Surpreendia-lhe notar que não lhe agradava ser julgada e desprezada. Mas ao mesmo tempo se lembrou que não se importaria com o que pensassem dela e que as opiniões da governanta não tinham nenhuma importância. No colégio todo mundo a fitava por cima do ombro e a considerava uma camponesa e ela não havia se importado.
E pensasse bem e com condescendência lhe era uma situação muito conhecida. Durante toda sua infância haviam lhe acusado de ser mais um menino que uma menina, de ser masculinizada com sua calça comprida e de sempre estar sobre o lombo de um cavalo. As observações maldosas e os comentários confundiam-na então, mas agora não havia nada de errado no julgamento da severa governanta.
Virginia afugentou rapidamente as más lembranças. Sua infância já estava longe e só lhe restava um futuro incerto. Tudo para não falar de um presente ainda mais precário, pensou com certa amargura.
Atravessou as portas abertas de um salão decadente, com um descolorido sofá de veludo dourado, cortinas em um sóbrio tom mostarda e cadeiras estampadas de uma cor marrom, com motivos de seda. A porta seguinte levava a um escritório no qual havia uma mesa de tamanho médio a um canto e um sofá verde escuro em frente à lareira. Todas as paredes estavam cobertas por estantes abarrotadas de livros. Com o fogo da lareira e o sol que ainda teimava em manter claridade, além dos prados de alta vegetação, o aposento era muito agradável.
Devlin, que se encontrava sentado no sofá e com um copo de uísque na mão fitava absorto o fogo, se voltou para ela. Seus olhares se encontraram. O coração de Virginia bateu forte no peito. Ele mostrava estar de mau humor. O que poderia significar? Ela se pôs em alerta. Ele continuava a lhe observar, com expressão severa e desestimulada. Logo seus olhos passearam sobre ela. Virginia se ateve instantaneamente e sua tensão, já intensa, aumentou.
— Você está muito sério. — Ela murmurou, ainda na porta, sem se atrever a entrar. Acreditava seriamente, em continuar no jogo e ganhar? Poderia conseguir que ele a amasse?
Ele se levantou e inclinou a cabeça.
— Gosta de um uísque, não? Eu lhe ofereceria, mas o que há no aparador está quebrado.
Virginia se lembrou dos poucos goles de uísque que havia compartilhado com ele, em seu camarote do Desafio.
— Não, obrigado. — Sorriu com cautela.
Os olhos dele se dilataram no rosto sério e Virginia compreendeu que ele percebia sua determinação. Logo a fitou pensativamente, como um grande leão que se mostrasse não estar satisfeito e nem faminto, mas muito capaz de dominar sua presa.
— Já não gosta de um bom uísque ou de repente está com medo, Virginia?
Ela entrou no aposento. Nunca recusava um desafio.
— Estou segura que seu uísque seja bom. — Sorriu novamente. — Estou surpresa. — E estava. — Não consigo te entender e, além disso, seu mau humor se tornou ainda pior, coisa que parecia impossível.
Ele se limitou a fitá-la com a mesma intensidade que antes. Ele havia tirado o uniforme e usava somente uma camisa de seda de fina qualidade, com a gola aberta, calça e as botas. Como de costume, a calça se ajustava sedutoramente em suas coxas musculosas.
— O Conde de Eastleigh não está acostumado a me deixar de bom humor.
— Não está gostando da caçada? Você não gosta de assediar um homem velho e gordo?
Ele a fitou enquanto se aproximava do aparador, um móvel enorme e pesado, simplesmente horroroso.
— Estou gostando da caçada. Claro que estou. Mas se você se atreve a sentir piedade desse assassino, sugiro que guarde suas opiniões. — Ele lhe entregou um copo de uísque.
— Não me apiedo dele. — Disse ela brandamente. — É de você que sinto piedade.
Ele fitou-a por um momento. Virginia esperou que ele se alterasse. Ma ele não se alterou. Encolheu os ombros e disse: — Já conversamos sobre isso antes. Se acha que vai me fazer ficar zangado está enganada. Pense o que quiser. Não me importo. Além disso, os criados esperam que desfrute de minha companhia. — Devlin bebeu seu uísque e se serviu de outro.
— Só te acompanho porque não há outro lugar aonde e nada mais a fazer. — Disse ela com voz baixa, embora não fosse certo. Ela se sentou a um canto do sofá.
Ele sorriu finalmente e também se sentou. Seu corpo dominava o sofá, o aposento e a ela.
— De verdade? Francamente, acredito que minha companhia te agrada. — Disse, semicerrando os olhos. — Embora não entenda o porquê. — Ele acrescentou com um murmúrio sedoso.
Virginia se sobressaltou e ficou ainda mais rígida e apreensiva.
— Você está bêbado, Devlin?
Ele a saudou com o copo.
— Só um pouco.
— Somente uma tola procuraria e desfrutaria de sua companhia. — Ela replicou acalorada sabendo que sem dúvida Devlin possuía muitas mulheres ao seu dispor.
— Então há muitas tolas, acredito. — Replicou ele com voz suave. Outro meio copo de uísque desapareceu.
Será que ele estava tentava se embebedar? E se estivesse, por que? E o mais importante, a quantas mulheres se referia?
— Quantas?
— Quantas... O que?
— Quantas mulheres desfrutaram de sua companhia? — Atreveu-se a perguntar… Porque simplesmente por que devia.
— Como? — Os olhos de Devlin se dilataram no belo rosto e ele pareceu dividido entre a incredulidade e o regozijo. — Você está perguntando, quantas mulheres esteve na minha cama? — Sua voz soava estrangulada.
— Sim. Acredito que sim. — Respondeu ela e juntando as mãos com força sobre o colo piscou furiosamente. Sentia que começavam a enrubescer.
Ele se pôs a rir. Sua risada soava áspera, mas não desagradável.
— Acredito que o que mais eu gosto de você é sua curiosidade. — Ele disse. — Porque é única. — Sua risada se extinguiu. Mas havia sorrido com autêntica alegria, que e o coração dela começou a pulsar tresloucado. Nunca tinha visto um homem tão bonito. — Não, esqueça o que disse. O que eu gosto é de sua franqueza. Alguma vez te ocorreu não dizer tudo o que pensa, deseja e sente?
Ela piscou, trêmula. Não só havia feito Devlin rir, de verdade, como também estava lhe lisonjeando. Ele gostava de sua curiosidade e sua atitude diante das coisas! Sabia ele por acaso, o que estava fazendo? Seria outro jogo ou finalmente estava relaxado e de guarda baixa, graças ao uísque? Será que Devlin gostasse dela, mesmo que fosse somente um pouco?
— Quanto você já bebeu, Devlin?
— Um uísque ou dois. — Disse ele com suavidade. — Está bem. Este é o terceiro. Não, é o quarto. Mas não estou bêbado, Virginia. Eu não me embebedo.
— Eu acredito. — Replicou ela. Seus olhares se encontraram e se sustentaram. Os olhos de Devlin se tornaram suaves. Não havia neles um só indício de frieza. Era como se de repente ele sentisse afeto por ela. Virginia se sentiu tão ditosa que mal pode respirar.
— Ninguém gosta de franqueza. Até meus pais se desesperavam.
Ele sorriu novamente.
— Você é imprevisível. Nunca sei o que vai fazer ou dizer. É interessante.
O coração de Virginia se acelerou.
— Então você gostou um pouco, afinal? — Bom Deus! Havia mostrado em sua voz, um tom carregado de esperança? Confiava em que não.
Devlin afastou o olhar do dela e se levantou lentamente, como um leão preguiçoso que se propunha a se alimentar. Lançou-lhe um olhar sedutor, enviesado e simples e começou a se aproximar lentamente.
— Quantas perguntas. — Ele murmurou e logo acrescentou: — Pedi a Tompkins que fosse até o Desafio buscar um pouco de vinho. A cozinheira preparou um cervo e acredito que um Cabernet iria bem para acompanhá-lo. Mas como sei que você prefere o vinho branco, então pedi que trouxesse também. — Ele fez uma pausa, fitou-a de frente e apoiou o quadril no aparador. Sua postura era ao mesmo tempo indolente e sedutora.
Ela se levantou rapidamente.
— Não mude de assunto.
Ele baixou as pálpebras.
— Houve muitas mulheres, Virginia. Não levo em conta. — Ele murmurou.
Quão ardiloso ele era evitando o assunto que ela tanto ansiava conversar.
— Não é o fim do mundo, que o grande Capitão O’Neill sempre tão frio goste de outro ser humano. — Ela provocou.
Ele elevou as pálpebras e descobriu o brilho de seus olhos acinzentados. Logo desviou o olhar.
— Você é como um cão com um osso. O que quer que eu diga? Que é bonita? Que desejo seus beijos? Que não posso viver sem você? Temo que, embora te ache interessante e imprevisível, não sou desses homens que se prostram diante uma mulher, que anseiam o amor verdadeiro ou outra frescura semelhante. Deixe estar.
Ela o fitou atentamente e engoliu saliva. Devlin era muito ardiloso. Era como se ele conhecesse seus pensamentos e suas emoções.
— Foi você quem começou isto. — Ela começou a dizer. — Nós sabemos que não sou bela, então não estou lhe perguntando se pareço bem. Também sabemos que você necessita de pouco para se excitar, então está claro que anseia por meus beijos… Ou algo parecido. E quanto a vivermos juntos, por acaso está mais louco do que acredito? É obvio que você pode viver sem mim, sem Sean e sem ninguém! Você é uma ilha, Devlin. Uma ilha em si mesmo e todo mundo sabe disso. — Virginia gostou do tom áspero de sua voz e da firmeza de sua reprimenda.
Ele se limitou a fitá-la durante um momento, tão intensamente que Virginia retrocedeu.
— Não. Temo que seja você quem começou isto, ao querer algo de mim que não posso te dar, Virginia. — Seu tom era suave, mas firme e muito sincero.
Virginia se abraçou enquanto sustentava seu olhar. Estaria Devlin lhe dizendo, que alguma vez a amaria? Poderia ser tão intuitivo? Seria o álcool o que lhe permitia falar com ela com tanta franqueza?
— Não sei a que se refere. — Murmurou com esforço.
Ele encolheu os ombros com um leve sorriso. Com aquele gesto, ele parecia querer dizer que não acreditava nela nem por um momento.
Uma idéia assaltou então a Virginia. Uma idéia maravilhosa que talvez a ajudasse a obter seu propósito.
— Mas há algo que quero, Devlin. — Disse. Ele a observou com um meio sorriso nos lábios, aguardando. — Há algo que quero de você e que sei que pode me dar. — Ela acrescentou com firmeza sentindo que seu semblante se mostrava tenso.
— Oh! Intuo uma nova batalha. Querida, você não pode ganhar, então não pense sequer em tomar a ofensiva. — ele sorriu, mas ela notou o receio em seus olhos. Então compreendeu que, bêbado ou não, Devlin seria sempre um adversário temível.
— Eu não sou sua querida. — Sussurrou.
— Claro que é… Aos olhos de todos. —Seu tom suave era uma carícia mortífera.
Ela umedeceu os lábios enquanto rezava com todas as suas forças e se perguntava se Devlin tentava seriamente em seduzi-la, apesar do que havia dito previamente.
— Quero sua amizade, Devlin. Nada mais que somente sua amizade.
Os olhos dele se dilataram e semicerraram, rapidamente.
— Um novo golpe. — Murmurou, inclinando a cabeça com admiração. — Como dizia, sempre imprevisível. Parece-me que não.
— Não! Deve me ouvir! — Virginia se aproximou finalmente dele e segurou sua mão.
Devlin fitou primeiro sua face e depois a mão pálida. Deixou escapar um suspiro de incredulidade.
— Virginia... — Ele a advertiu e se tornou claro que a dança de sedução havia acabado.
Ela insistiu cheia de valentia.
— Quero sua amizade, entregue livremente, até que o resgate seja pago e eu esteja livre para voltar para casa.
Ele a fitou atentamente.
— Eu não tenho amigos.
— Isso é ridículo!
Ele levantou as sobrancelhas.
— Sean é seu amigo.
Devlin se afastou lentamente dela e cruzou os braços sobre o peito largo.
— Sempre interessante — Disse com suavidade. Depois, seu tom se endureceu. — Pressinto uma negociação. Adiante, negocie.
Ela umedeceu os lábios. O olhar de Devlin pousou em sua boca. Ela notou, mas vagamente, pois seu coração pulsava com violência inoportuna.
— Em troca desta amizade farei tão bem meu papel, que até você acreditará em sua desavergonhada amante.
Devlin a fitou com absoluta surpresa.
Ela sorriu, saboreando seu momento de triunfo.
— Certo? Este jogo acabará bem antes se eu cooperar. Estou lhe oferecendo algo mais que cooperação. Estou te oferecendo participação plena.
Devlin lhe sorriu lentamente, mas o sorriso não alcançou seus olhos, que continuaram sombrios e pensativos.
— Sei o quanto você é inteligente. — Disse. — E sei que tem algum plano sobre o qual assenta este acordo. Seja como for o que pensa conseguir, na verdade fracassará… Se não for o que eu quero.
Ela encolheu os ombros, tomada pelo desejo de vencer.
— Façamos o acordo, então.
— Paciência, querida. Paciência é o que deve aprender se verdadeiramente quer jogar suas cartas no jogo da vida.
Ela suspirou exasperada, apesar de que no fundo encontrava-se bem perto da euforia.
— Trato feito ou não? — Perguntou.
— Trato feito. — Ele respondeu com suavidade e um sorriso ligeiro. — Deixe-me adivinhar. Vamos selar o acordo com um apertão de mãos? — Seu tom seguia suave, mas zombeteiro.
— Acredito que não. — Disse Virginia com descaramento enquanto se aproximava, sem acreditar que tivesse tanto coragem. — Nós o selaremos com um beijo.
Notou pelo sorriso de Devlin que ele havia pensado a mesma coisa. E ele esperou.
O coração de Virginia pulsava com tanta força que ela se sentia desfalecer. Ficou nas pontas dos pés e se firmou em seus ombros. Sentia-se tão feliz que sequer lhe incomodou que ele não fizesse esforço algum para se inclinar para ela. Levantou o rosto e fechou os olhos. A última coisa notou antes de ter fechado os olhos foi o olhar acinzentado de Devlin, de repente vivo e brilhante. Ele também o desejava. Moveu com firmeza os lábios contra os dele.
Ele permaneceu completamente imóvel.
Com a língua ela abriu a fenda que formavam seus lábios apertados e quando ele cedeu sentiu verdadeira euforia. Deslizou a língua para dentro de sua boca, procurando a dele.
Devlin fechou a mão sobre sua nuca com força e imediatamente a inclinou para trás e afundou a língua em sua boca. No preciso instante ele se apropriou do beijo, marcou-a a fogo e deixou que soubesse. A ela não importou. Apertava-se contra seu corpo e lhe deixava liberdade absoluta para que fizesse o que quisesse. E quando o beijo ardente e ansioso terminou, ele levantou a cabeça e a fitou atentamente.
— Seja qual for o jogo, querida, é perigoso.
Ela sorriu com ferocidade enquanto tremia em seus braços.
— Só quero sua amizade, Devlin. — Disse.
Ele resmungou, zombeteiramente.


Assim que a porta abriu, Virginia fingiu estar adormecida. Quieta e deitada de costas, ela aguçou o ouvido. Como não ouviu passos deduziu que Devlin estava na porta, observando-a.
Ele suspirou e entrou, fechando a porta.
— Sei que está acordada, Virginia. Está ficando roxa. — Ele provocou. Sustentava uma vela na mão.
Ela se sentou. Era meia-noite. Estava tentando dormir a duas horas, mas sua cabeça se negava a cooperar. Já não se sentia confusa, mas assustada. Seu medo era uma sensação clara e precisa, como se estivesse à beira de um precipício, sobre um lago, se preparando para mergulhar nas profundezas gélidas e desconhecidas lá embaixo. Só podia pensar no que estava fazendo. Acreditava poder ganhar a partida? Acreditava seriamente que podia ganhar seu amor? Tinha alguma oportunidade de fazer Devlin se apaixonar por ela? E como, em nome de Deus, iriam compartilhar o quarto? Ocorria-lhe um modo bem melhor de passarem a noite no mesmo quarto… Embora continuasse decidida a não cair novamente na cama dele.
— Vejo que me fez a cama. — Disse Devlin enquanto observava o monte de lençóis e travesseiros que havia no chão. — Que atenta.
Ela abraçou e puxou os joelhos junto ao peito e o observou pegar um lençol e estendê-lo. Quando a cama improvisada ficou pronta, Devlin se sentou na única cadeira do aposento e tirou as botas. Quando a segunda caiu no chão com um golpe seco, levantou o olhar. Seus olhos estavam duros e semicerrados.
— Não torne isto mais difícil, Virginia.
— Por que não? — Replicou ela. — Você tornou minha vida muito mais difícil.
— Não vamos compartilhar essa cama. — Devlin se levantou e desabotoou a camisa.
Ela observava hipnotizada a pele dourada que lentamente estava se descobrindo.
— Exato, não vamos compartilhá-la. Tudo não é mais que uma farsa. Sei disso, melhor que você.
— Seriamente? — Estava claro que ele não lhe acreditava.
— Pensa em se despir totalmente? — Virginia perguntou quase sem fôlego enquanto ele atirava a camisa para o lado.
Ela se assegurou de não respirar forte, mas Devlin era um Adônis de uma beleza impossível; seu corpo era duro e musculoso, cada um de seus músculos parecia perfilado e esculpido.
Ele apagou as velas sem olhar para ela.
— Vou dormir de calça, se por acaso isto a tranqüiliza.
— Que grande alívio! — Brincou ela. Seus olhos logo se acostumaram à escuridão e sob a luz da lua que entrava pela janela o observou tranqüilamente deitado sobre os lençóis brancos, com um braço jogado sobre a cabeça. Logo se perguntou se ele estava já dormindo, pois Devlin não se movia.
— Devlin…
Ainda imóvel, ele disse: — Sim, Virginia?
— Está pensando no que penso… Mesmo um pouquinho?
— Não. — Ele respondeu com calma.
Ela o fitou com incredulidade.
— Claro que está! Como, se não sabe o que estou pensando?
— Está pensando em voltar para casa. — Ele replicou com suavidade. — Boa noite, Virginia. — Era uma advertência.
Ela abraçou os joelhos com mais força. Seu pulso estava célere. Depois, disse brandamente: — Não estou pensando em voltar para casa. Estou pensando no beijo da biblioteca.
— Boa noite, Virginia. — Disse ele com firmeza.
Ela suspirou exasperada, irritada e se deitou de costas. Em seguida a lembrança dos olhos de Devlin, iluminados pelo desejo, encheu sua mente, seguido pela imagem dele sem a camisa. Seu corpo respondeu por completo a imagem. Mordeu o lábio com força. Como iria dormir com ele ali no chão, uma tentação como nenhuma outra? E por que tinha que se sentir tão tentada? Tinha um plano. Um plano que a assustava, mas que, não obstante, pensava levar em prática. Seriamente importaria em ser sua amante, tanto na realidade como na ficção?
Importava-a, pensou. Importava-lhe muito, que Devlin lhe entregasse seu amor além de seu corpo. Suspirou. Devia se resignar a uma batalha muito longa e penosa. Uma batalha contra a si mesma.
— Virginia. — Disse ele em tom de advertência. — Você está se comportando como uma menina.
Ela se sentou e se aproximou da beira da cama, de onde podia observá-lo claramente.
— Como estou me comportando como uma menina? Não posso dormir contigo aí no chão!
Ele seguiu deitado, mas agora com os olhos nela.
— Você não quer dormir, — ele resmungou, — Quer conversar… Entre outras coisas.
— O que outras coisas iria querer, Devlin? — Ela perguntou com inocência, sorrindo.
— Conte ovelhas. — Disse ele com firmeza. — Ou melhor, conte folhas de tabaco. Boa noite, Virginia.
— Acredito que estou ficando um pouco louca. — Disse ela, pensativamente. — Deve ser isso. Porque há seis meses eu estava no navio Americana. Você e eu não nos conhecíamos. Não. Na verdade eu estava no horrível colégio para Senhoritas, em Kichmorid. Depois de me raptar, você me levou a Askeaton e fez o que quis comigo e me abandonou. Entregou-me ao seu irmão e agora aqui estamos, como dois amantes… Ou quase.
— Santo céu! — Reclamou Devlin. — Vamos conversar assim a cada noite?
— E depois de tudo, mesmo assim gostou do meu beijo. Naturalmente me nego a voltar a sua cama.
Ele se sentou. O lençol deslizou até seu colo descobrindo o robusto peito e o ventre fibroso e plano.
— Você é muito fantasiosa, Virginia. Parece ter uma idéia fixa. E depois querida, fui eu quem entreteve a você, não ao contrario.
Virginia pensou então em sua boca e sua língua contra seu sexo e não pôde respirar.
Ele se levantou rapidamente.
— Vou lá embaixo ler um momento.
Aquilo não ia funcionar, pensou ela, enquanto o observava sair. Ele estava excitado. Sua calça estreita e clara mostrava dúvidas, a linha rígida de seu sexo.
— Você lastima que Fiona não esteja aqui. — Se ouviu dizer.
— Sim. É uma lástima. — Ele replicou atravessando o quarto sem se voltar para ela.
— Isto não vai funcionar, Devlin. É simplesmente impossível que você e eu compartilhemos o quarto. Tem que dormir em outra parte. E ao diabo os criados!
Ele se apoiou contra a porta fechada respondeu-a.
— Os criados mexericam. Apostaria minha fortuna que a Senhora Hill vai dizer a todo mundo o quão desavergonhado e bárbaro é seu novo amo irlandês. Então terá que funcionar. Funcionará, mas só se você tentar, Virginia. Só se tentar não pensar em seu apaixonado temperamento.
— Como você faz? — Ela perguntou em tom suave e desafiante.
— Como eu faço. — Disse ele com um sorriso que não era mais que uma revelação de seus dentes. — Se chama força de vontade, Virginia. E embora esteja consciente de que nunca te ocorreu exercitá-la, agora é um bom momento para começar.
— Não é culpa minha. — Ela lhe recordou.
— Deite-se, feche os olhos e conte ovelhas, Virginia. Ovelhas… Ou fardos de tabaco, se preferir… Ou navios de guerra. Estou seguro de que poderá descansar. — Devlin saiu do aposento.
— O tabaco não se embala. — Ela resmungou contrariada, mas voltando a se deitar e cruzando os braços, estranhamente feliz. Não custava tanto provocar Devlin, pensou. Gostava de provocá-lo. E ele a achava atraente. Disso não havia dúvida.
Fechou os olhos e começou a contar folhas de tabaco. Mas o tabaco se dissipou, substituído por uma deslumbrante imagem de Devlin O’Neill. Virginia sorriu de repente. Talvez seu plano funcionasse, depois de tudo.

 

 

 


Capítulo 17


— Senhorita Hughes? A Senhorita tem visitas no salão. — Disse Tompkins.
Virginia havia se despertado bastante, pois havia demorado horas em se acalmar e conciliar o sono. Ao despertar, o quarto estava vazio. Já era meio-dia e ela estava passeando pelos prados que se estendiam atrás da casa, depois parou no terraço que havia na parte posterior. Sorriu para Tompkins.
— Visitas?
— Sim. — O Mordomo lhe devolveu um sorriso radiante.
Ele não parecia absolutamente com a horrível Senhora Hill, que ela havia visto de passagem nessa manhã. A governanta tinha comentado que o café da manhã seria servido das oito às nove horas, o que explicava o aparador da pequena sala de refeições estar vazio. Negou-se a olhar para ela, como se somente fitá-la pudesse convertê-la também em uma amante. Virginia havia procurado ignorar o ruído de seu abdômen e pedira amavelmente um pouco de café, uma torrada e chocolate. Uma criada havia lhe levado o café da manhã, pois estava claro que à Senhora Hill achava degradante servir a amante de seu Senhor.
Enquanto se aproximavam das portas do terraço, Virginia perguntou: — Há quanto tempo você está aqui em Wideacre, Tompkins?
— Dez anos. — Ele respondeu alegremente.
— E gosta disto?
— Sim, eu gosto. Minha esposa morreu há muito tempo. Minhas duas filhas estão casadas e têm filhos. Wideacre se converteu em meu lar. — ele encolheu um pouco os ombros, ruborizado.
— Você trabalha maravilhosamente. — Ela lhe assegurou entrando o salão.
Devlin estava conversando com um cavalheiro e sua esposa, uma mulher bonita e roliça. Virginia se deteve assim que o avistou e durante um momento admirou-o com sua fina casaca marrom e a calça escura. Nunca havia lhe visto com uma casaca informal. Apenas se notava a diferença, pois ele continuava um homem impressionante.
Ele a viu e sustentou seu olhar. Virginia se perguntou se na noite anterior ele havia subido novamente ao quarto. Ao adormecer, ele ainda não havia tornado. Seus aposentos. Os aposentos dos dois. Ainda lhe parecia impossível acreditar, igualmente o estado de seu coração, agora que havia assumido seus piores medos e seus sonos mais profundos.
— Entre, Virginia. — Disse Devlin, sorrindo. — O nobre Senhor Pauley e sua esposa foram amáveis em nos visitar.
Virginia titubeou consciente do jogo ao qual deviam se entregar. Na verdade, Devlin já havia começado ao chamá-la por seu nome de batismo em um tom tão íntimo. Tanto o cavalheiro como sua loira esposa a observavam com curiosidade, sorrindo. Virginia compreendeu que eles ainda não sabiam que ela era uma mulher desonrada.
Ela mudaria isso. Sorriu e se aproximou de Devlin, ficou nas pontas dos pés e lhe deu um beijo na face. Sua pele era cálida e suave e mostrava que havia se barbeado a pouco. O coração de Virginia acelerou ao afastar os lábios, mas respondeu-lhe com voz aveludada e sem nenhum esforço: — Bom dia, querido.
Ele se sobressaltou, mas logo lhe segurou a mão e a levou aos lábios lhe dando um beijo.
— Está arrebatadora, Virginia. — Ele murmurou. — Vejo que perdeu a hora, ao se levantar tarde. Não há dúvida de que merecia o descanso.
Eles continuavam sustentando o olhar.
— Estava tão cansada que simplesmente não conseguia me levantar. — Ela sussurrou e decidida a suplantá-lo acariciou-lhe a face. Somente uma vez.
Devlin se sobressaltou. O fato não causou satisfação a Virginia, entretanto, pois a intimidade fingida havia lhe acelerado o coração. Era como se fossem amantes de verdade e naquele breve instante pareceu-lhe que estavam sozinhos.
— Permitam-me apresentar à Senhorita Virginia Hughes, de Sweet Briar, na Virginia. — Disse Devlin lhe enlaçando o braço.
O casal ficou com os olhos enormes e atentos neles. Depois sorriram rapidamente, ao mesmo tempo.
— É um prazer conhecê-la, Senhorita Hughes. — Disse o cavalheiro, que observava um e outro. Virginia sabia que ele tentava adivinhar qual era a relação que os unia.
— O prazer é meu. — Replicou como se fosse uma aluna exemplar do colégio Marmott. Estendeu-lhe a mão e ele roçou o ar com os lábios, sem chegar a beijá-la. Virginia se voltou para sua esposa. — Olá, Senhora Pauley. Vivem perto daqui?
— A poucas milhas. — Respondeu a loira procurando sorrir, sem conseguir.
— O Capitão nos disse que acabam de chegar. — Disse Pauley arrumando a gravata.
— Sim, chegamos ontem. Passei os últimos cinco meses na casa de Devlin, na Irlanda. — Disse Virginia fitando Devlin de soslaio.
Ele elevou as sobrancelhas, divertido. Seu jogo já não parecia surpreendê-lo.
— Enquanto eu patrulhava as costas da Espanha. — Ele suspirou profundamente, como se tivesse sentido saudade em cada dia que esteve longe.
A Senhora Pauley mostrava o rosto avermelhado, mas fixou os olhos azuis em Devlin.
— Ouvimos muito falar de você, Capitão. É você um herói para todos nós.
— Sim, Senhor. — Acrescentou seu marido. — Nos agrada muito saber que agora possui uma casa aqui.
— Obrigado. —Devlin agradeceu.
— Quanto tempo pensa em ficar? — Perguntou o cavalheiro.
— Acredito que uma semana. Não mais, sem dúvida. — Disse Devlin.
Virginia se surpreendeu.
— Só uma semana, Devlin? — Perguntou com suavidade.
Ele a atraiu para si.
— Já tomou gosto por minha pequena casa de campo, como de Askeaton?
Virginia sorriu. Estava virtualmente em seus braços, aconchegada contra ele, na robusta curva de seu abraço. Sentia-se a vontade.
— Temo que sim… Querido. — Respondeu-lhe.
Pauley pigarreou. Ou talvez tenha se engasgado. Virginia notou que seu rosto estava da cor de uma beterraba.
— Estão… Vocês estão noivos? — Sua esposa conseguiu perguntar, com expressão de encantamento.
— Noivos? — Devlin repetiu a pergunta. Virginia notou incredulidade em seu tom de voz e se enrijeceu, mas sorriu e levantou o olhar para ele. Devlin elevou as sobrancelhas. — Acho que não sou dos que se casam.
A loira os fitou com espanto. Assim como seu marido.
Virginia rompeu o silêncio.
— Sou simplesmente sua amante. — anunciou com descaramento e sentiu que Devlin se alarmava.
— Acredito que o que Virginia quis dizer é que somos velhos amigos. — Murmurou.
— Claro... — Resmungou Pauley, que decididamente parecia engasgado.
Virginia se voltou para ele e depois para sua linda esposa. Seu estupor e desconforto eram evidentes. Ela sabia o que estavam pensando, o que desfilava nesse momento por suas mentes. Ela vive com ele como amante? Deus! É uma vergonha. Quando fixaram os olhos nela notou que a surpresa e a consternação se transformavam em censura. Sorriu com valentia.
Porque, na verdade não lhe importava. Certo?
Afastou-se de Devlin e se aproximou de uma mesa, onde começou a brincar com alguns bibelôs. Não se sentia envergonhada ou consternada, repreendeu-se com veemência. Havia postado muita coisa em jogo. Era somente um jogo, um pacto entre Devlin e ela e se ganhasse conseguiria a liberdade e seu amor.
Nada mais importava.
Tompkins chegou com o serviço de chá cheio e uma bandeja de pasteizinhos. Virginia sentiu o impulso de sair para respirar ar puro. Por sorte Devlin rompeu o silêncio, cada vez mais tenso.
— Soube que existe m mercado maravilhoso todos os domingos na aldeia.
— Oh, sim. — Exclamou a Senhora Pauley, sorrindo aliviada. — Deve ir, Capitão. Vá mesmo. Há bolos feitos em casa deliciosos, um urso que dança, cavalinhos para as crianças e um de nossos marceneiros sempre expõe suas mercadorias. Ele faz baús preciosos, de todos os tamanhos e cheios de encaixes pequenos e escondidos. Deveria levar a Senhora Hughes… Virginia… A Senhorita Hughes, quero dizer. Estou segura de que gostará. — Ela exclamou atropeladamente, com a face tomada pela vergonha.
Virginia desejou fugir. Sentia-se muito infeliz, mas ainda pior era usar aquela boa gente, a fim de cumprir o plano obsessivo de Devlin, e humilhá-los daquele modo. Entretanto, fitou-os sorrindo e disse: — Eu adoraria ir, querido. — Então se deu conta que Devlin se voltou, para observar um prato de porcelana.
— Gostarão muito. — Disse Pauley teimosamente. — Acho que devemos ir, Beth. Já roubamos bastante tempo do Capitão.
— Sim, certamente. — Disse Beth Pauley lançando a Virginia um olhar de fascinação e espanto.
Devlin se voltou e estreitou a mão do cavalheiro.
— Voltem outra vez. — Convidou amavelmente e Virginia não soube se ele se expressava com sinceridade. — Foi um prazer, Senhora Pauley. — Ele se expressou com tanta galanteria, que Virginia ficou boquiaberta.
A Senhora Pauley ruborizou, mas de prazer e Virginia compreendeu que ela havia se agradado dele.
— Venham à feira, Capitão. — Disse ela com olhos ternos e brilhantes.
— Faremos todo o possível. — Ele respondeu. Logo fitou para a porta, onde Tompkins havia aparecido como por arte de magia. — Acompanhe o cavalheiro e sua esposa, Tompkins.
Virginia havia composto um sorriso. Observou a saída apressada do casal. Devlin se aproximou da porta e a fechou para que ficassem sozinhos. Voltou-se para ela e já não sorria. Seu semblante estava tenso. Observou-a pensativamente.
— É boa jogadora, Virginia.
— Mas?
— Mas, como te disse ontem à noite, é sempre muito franca.
Ela não queria que ele a repreendesse nesse momento.
— Você gosta que eu seja franca. Você mesmo disse.
— Você é minha querida amiga, Virginia. Não minha amante. Trata-se de gente boa, da sociedade, não de um tugúrio de jogo. O cavalheiro quase tem uma apoplexia por sua culpa. — Ele se voltou bruscamente.
Ele estava agindo como se não gostasse das próprias regras.
— Sinto muito. Ignorava que teria que medir minhas palavras. Desculpe-me, Devlin. Ontem à noite não dormi bem e acredito que vou me deitar um pouco. — Ela evitou seus olhos.
Devlin não respondeu. Ele também evitava olhar para ela.
Virginia se aproximou da porta tentando não se apressar, apesar de estar tão angustiada que precisava fugir para poder racionalizar sua angústia e prosseguir audazmente com seu plano. As palavras de Devlin a detiveram em seco.
— Amanhã vamos a minha casa de Greenwich. — Disse ele.
E agora aconteceria o que? Ela se perguntou com o coração tomado pela preocupação. Encolheu os ombros sem olhar para trás.
E quando saía, ele acrescentou: — Estou seguro de que haverá mais visitas, Virginia. Então se prepare. — Seu tom era estranhamente sério. Finalmente, ela se deu por vencida e fugiu.


— Virginia, venha conhecer Lorde Aston e o Senhor Jayson.
Eram cinco horas da tarde. Virginia conseguia manter seu sorriso por simples força de vontade. Após a visita dos Pauley haviam recebido outras quatro. Três casamentos e o pároco da aldeia. Cinco longas e intermináveis representações. Cinco sorrisos, beijos e provavelmente dezenas de adjetivos cariciosos como, querido e querida, ditos um ao outro. Em algum momento entre o meio-dia até essa hora, seu coração havia sido coberto de gelo e todas suas emoções haviam sido substituídas por uma somente: o pavor. Permanecia paralisada na porta do salão enquanto os três homens a observavam.
Os dois cavalheiros que tinham ido visitá-los pareciam fitá-la com excessiva avidez. A expressão de Devlin parecia inescrutável, embora ela sentisse sua impaciência. Como se atrevia a se impacientar com ela? O primeiro sintoma de ira se agitou dentro dela. Estava fazendo o possível para representar seu papel naquele jogo endiabrado, que antes lhe tinha parecido tão engenhoso. Não sabia então o quanto lhe doeria.
De repente Devlin estava ao seu lado.
— Você está bem, querida? — Perguntou, cheio de preocupação.
Ela não conseguiu fitá-lo.
— Estou bem… Querido.
Devlin a abraçou, ansiosamente.
— Lorde Aston, Senhor Jayson, quero lhes apresentar minha querida amiga, Senhorita Virginia Hughes, de Sweet Briar, Virginia. — Disse cortesmente.
Os dois homens se aproximaram rapidamente e Lorde Aston, um cavalheiro loiro e de olhos castanhos se inclinou sobre sua mão.
— Encantado em conhecê-la, Senhorita Hughes.
Virginia se sentia como se estivesse em um sonho; era simplesmente insuportável. Então se deu conta que Aston continuava segurando sua mão. De repente se sentiu como um osso disputado por dois cães… Ou como uma rameira que passava de mão em mão. Tentou se afastar e fracassou.
— Meu tio é bispo de Oxford. — Disse Aston com um sorriso e olhar penetrante. — Já esteve alguma vez em Oxford, querida? Eu adoraria mostrar-lhe as campinas, se passar por lá por acaso por.
Virginia Engoliu a saliva e replicou: — Adoraria visitar Oxford, Milord. Se alguma vez apresentar a ocasião.
Ele sorriu avidamente.
— Bom. Talvez quando o Capitão O’Neill se reincorporar ao serviço, você possa prolongar sua estadia aqui em Wideacre. A Senhorita cavalga? Temos cavalos excelentes.
— Sim, cavalgo. — Respondeu ela, mecanicamente.
— Oh, quero lhe apresentar meu bom amigo, Ralph Jayson. — Exclamou Lorde Aston.
— Achei que nunca se afastaria. — Resmungou Jayson, mas lançou a Virginia um sorriso pícaro. Levantou sua mão. — É um imenso prazer conhecê-la, Senhorita Hughes. E se Aston é sobrinho de um bispo, eu possuo várias fábricas e moinhos. Tenho uma casa maravilhosa ao sul de Londres e na próxima vez que você for a cidade deve me visitar ou comparecer a um de nossos bailes. — Suas covinhas se acentuaram.
— Eu adoraria. — Ela conseguiu dizer, de algum modo. Sabia o que queriam aqueles homens. Desejavam usá-la como acreditavam que Devlin estava. Queriam-na em suas camas.
— Minhas festas são célebres. — Jayson acrescentou, quase conspirativamente. — Prinnie está acostumado a comparecer.
Virginia ignorava a quem ele se referia.
— Prinnie?
Devlin se inclinou para ela.
— O príncipe de Gales, querida. O príncipe regente. Virginia é americana e acaba de chegar a nosso país. — Explicou Devlin.
Os dois jovens puseram-se a rir.
— Foi um dia muito longo e não me encontro bem, Devlin. — Disse ela de repente. — Foi um prazer conhecê-los. Desculpem-me — Ela se voltou para os cavalheiros e sem esperar resposta saiu apressadamente do aposento.


Virginia pediu água quente para o seu banho. Estava terrivelmente cansada. Quando a banheira estava cheia e a criada havia saído, se inundou na água fumegante. Recostou-se com os olhos fechados e tentou com todas as suas forças não pensar e nem sentir. Era impossível.
Sabia que seria doloroso ser exibida como amante de Devlin, mas não tinha intuído que a degradação e a vergonha fossem tão profundas e nem adivinhado o alcance de sua angústia. Já não se sentia como uma amante. Sentia-se como uma prostituta.
Recordou-se que ela tinha procurado aquele pacto porque tolamente havia se apaixonado por ele. Havia completado o primeiro dia de seu acordo e Devlin tinha conseguido o que pretendia, o condado inteiro parecia saber quem ela era. Ela não tinha nada, pois não se achava mais perto de ser sua amiga. E depois da última visita, depois de ser ver apresentada de forma tão violenta a Aston e Jayson, homens libidinosos, já não sabia se queria ser sua amiga. Pensando nisso começou a chorar.
Mas logo se enfureceu. Estava furiosa consigo mesma por ser tão tola e fraca. Enxugou os olhos, se negando a derramar qualquer lágrima, enquanto se lembrava que Devlin O’Neill parecia capaz de machucá-la a cada passo, como ninguém mais podia. Já sabia disso antes e agora sabia melhor ainda. O que faria a respeito?
Poderia se render… Ou lutar.
Ele entrou sem chamar.
Virginia deixou escapar uma exclamação de surpresa e procurou ansiosamente à toalha. Devlin parou em seco. A toalha estava em cima de uma cadeira, muito longe para que a alcançasse. Virginia levantou o olhar. Devlin não estava muito longe da entrada do quarto e observava o pequeno quarto onde ela se banhava. Virginia entrou ainda mais na água. Não estava segura de que a banheira escondesse seu corpo do olhar de Devlin. Confiava em que ele saísse.
Mas ele se aproximou lentamente da porta aberta, com um olhar fixo e cintilante.
Virginia tentou se mostrar despreocupada.
— Desculpe-me, Devlin. Estou no banho.
Ele apoiou o ombro no marco da porta e fitou o interior da banheira. Parecia quase sorrir.
— Notei.
Virginia sentiu que seu rosto ardia. Baixou o olhar e notou que a água não escondia nada. Seu corpo inteiro aparecia claramente visível e seus seios pareciam quase flutuar.
— Eu gostaria de um pouco de intimidade. — Conseguiu dizer.
Ele cruzou os braços e a observou, sem desviar o olhar de seu rosto. Depois de alguns segundos tensos e intermináveis, ele levantou os olhos.
— Estava chorando?
— Caiu espuma em meus olhos. — Disse ela rapidamente. — Acaso importa?
— Não. — O queixo dele endureceu. Não fez gesto de sair e a observou com mais intensidade que antes. — Mas se estava chorando quero saber o porquê.
Ela estava com os mamilos tensos. Desejava se proteger.
— Eu não estava chorando. Por favor, me alcance à toalha. — Disse com calma.
Ele baixou as pálpebras e ocultou o brilho de seus olhos. Aproximou-se da cadeira onde ela havia deixado a toalha e ao fazê-lo se aproximou perigosamente da banheira. Levantou a toalha e a desdobrou para ela. Virginia respirou fundo. Não tinha intenção de sair da banheira e permitir que ele a envolvesse na toalha.
— Dê-me a toalha.
— É claro. — Ele murmurou e se aproximou da banheira.
Virginia se sentou, segurou a toalha e a arrancou de suas mãos. Envolveu-se rapidamente o corpo nu, ainda até o joelho na água.
Devlin estendeu o braço para ela.
— Não. — Disse ela rudemente.
Ele ficou imóvel e com o braço estendido, mas sem tocá-la. Mas logo a segurou pelo braço.
— Quero somente ajudá-la a sair, para que não caia e bata a cabeça.
— Que amável. — Disse ela em tom irritado.
— Nunca pretendi ser amável.
— Agora somos amigos.
— Um simples trato não faz uma amizade.
— Então agora é filósofo? — Replicou ela furiosa e tentou afastá-lo.
— Saia da banheira, Virginia. — Disse Devlin com o semblante tenso.
Ela saiu e assim que pôs os pés no assoalho de madeira, ele a soltou.
— Não sabia que seria tão duro! — Ela gritou. Ele fitou-a em silêncio. — Esses homens fizeram me sentir como uma rameira.
Ele vacilou.
— Sinto muito.
— Seriamente? — Ela gritou, enfurecida.
— Sim. Sinto muito.
— Que grande alívio para mim. Existe um pouco de compaixão dentro de você. — Virginia replicou e passando a seu lado entrou no quarto.
Ele a seguiu.
— Mudei de idéia. Não vamos ficar nos aqui muito tempo. Em Londres tudo será mais fácil.
— Por quê? — Ela se voltou e o confrontou. — Porque ali há muitas amantes… E muitas rameiras?
— Você não é uma rameira, Virginia.
— Diga isso a Lorde Aston e ao seu amigo. — Como ele continuava fitando-a, ela provocou-lhe: — E também a você mesmo, já que me olha como se fosse.
A expressão de Devlin endureceu.
— Nunca te observei como uma rameira. Ninguém sabe melhor que eu que era virtualmente virgem. Ninguém.
Ela somente pode observá-lo atentamente, pois ele quase vociferava. O que significava aquela perda de controle?
Ele se acalmou.
— Eu não estava te olhando como se fosse uma prostituta.
— Ah, não. Estava com os olhos em meus seios e meu… — Não pôde continuar. Sentiu que seu rosto lhe ardia.
— Só estava admirando uma bela mulher. — Devlin replicou e saiu do aposento.
Virginia entendeu finalmente as palavras dele. Correu até porta e o assistiu se afastar, cheia de estupor.


Quando seu irmão, que acabava de chegar de Londres entrou na biblioteca, William deixou a pluma, mas não se levantou. Fitou o homem esbelto e bonito, com os olhos de um tom de azul claro, característicos dos Hughes, e franziu o cenho. Thomas Hughes, Lorde Capitão da Marinha Real brilhava em seu uniforme naval. Ele jogou as luvas sobre a mesa.
— Espero que haja uma boa razão para que tenha me feito vir até Eastleigh, Will. — Disse Tom, sem rodeios.
— Mandei-te uma carta há uma semana! — Exclamou William, se levantando rapidamente.
— Tinha assuntos pendentes no Almirantado, que não podia se descuidar. — Replicou Tom com ar sombrio. — Estamos em guerra Will ou já esqueceu? Para falar a verdade, estamos liberando duas guerras. Os malditos colonos se encorajaram depois de todos os protestos que ninguém deu crédito. Soube das últimas notícias? Perdemos o Macedônia e o Frolic.
Will se acalmou.
— Não, não sabia nada. Eram dois navios de guerra de Sua Majestade?
— Eram fragatas, Will. Os dois. É espantoso, mas os malditos colonos parecem saber navegar e o que é pior, também sabem combater. — Tom se afastou do irmão e começou a andar pelo aposento.
— Foi uma simples questão de sorte. Estou seguro. É impossível que a Marinha americana, que conforme tenho lido tem somente meia dúzia de navios velhos, enfrente nossa frota e sobreviva.
— Concordo… Almirantado pensa o mesmo. — Tom se voltou e afastou as pernas. — Mas no mês passado capturaram o Detroit, o Guerriere e o Caledonia. Entretanto, estamos lhes derrotando no Canadá.
— Isso também é surpreendente. — Murmurou William, pois todo mundo que conhecia parecia acreditar que a campanha terrestre no Canadá era uma causa perdida, dado que os britânicos e seus aliados índios se achavam em franca desvantagem numérica e a questão dos fornecimentos era insolúvel.
— Liverpool chegou ontem. O Almirante Saint John me pediu que assistisse à reunião. Ele sempre está colocando o nariz em nossos assuntos! Não quero mais derrota no mar. Nossas perdas estão deixando-o furioso — Disse Tom, com aspereza.
William se ergueu, assaltado por uma idéia.
— Na verdade, pode ser uma boa notícia.
— Como? — Tom se sentou em uma poltrona de damasco vermelha, grande e descolorida.
William se aproximou da lareira vazia e geada.
— Pedi que viesse, porque O’Neill se instalou em Wideacre, embora conforme entendi ele planeja partir para Londres depois de amanhã.
Tom soltou um suspiro desdenhoso. O ódio enchia seus olhos.
— Ignore esse maldito bastardo.
— É um pouco difícil, tendo em conta que ele retém nossa prima na qualidade de refém e exigiu um resgate. E a exibe por todo Hampshire como sua amante. — Disse William com um sorriso acre.
— O que? — Tom ficou em pé bruscamente.
— Acredito que me ouviu muito bem. — Disse William, friamente. — O filho de cadela vive abertamente com ela. É um escândalo. E exige quinze mil libras. Quinze mil libras!
Tom empalideceu.
— O canalha a exibe diante da boa sociedade e arrasta nosso nome pelo lodo desonrando a todos indiretamente. Até o momento tenho conseguido ocultar este escandaloso assunto de nosso pai, mas mais cedo ou mais tarde ele se inteirará. Recebo de três ou quatro visitas por dia e todos querem saber algo sobre minha prima. A coisa se tornou violenta e humilhante. Terá que impedir esse lunático que siga adiante com este jogo sujo. Naturalmente não vamos pagar nenhuma libra pela garota.
— Deus! Que demônios quer O’Neill? além do resgate? Por que nos acossa deste modo? Eu sabia que ele era a escória, mas desonrar uma jovem dessa maneira… E ele sabe que não temos dinheiro!
— Oxalá eu soubesse por que ele nos escolheu como vítimas. — Resmungou William. — Mas não há nenhuma explicação possível.
Tom cruzou os braços.
— Você sabe que em junho o Almirantado esteve a ponto de processá-lo. Ele voltou a desobedecer ordens e não chegou a completar sua missão. Mas de algum modo conseguiu se livrar da corte marcial. A Condessa segue dormindo com ele?
— Retornou ontem da cidade. Estou seguro de que tenha voltado porque O’Neill anda por perto. — Replicou William.
— Estou farto de O’Neill. Primeiro ele toma minha amante, depois nossa madrasta e agora nossa prima. Quem será a seguinte? Nossa meio-irmã? Esse homem tem alguma razão para fazer isto e acredito que já é hora de averigüemos qual é.
— Acredito que talvez eu tenha a solução, Tom.
— Fale.
— Enviem a O’Neill para a América. A Marinha está perdendo a batalha no mar. Quem melhor para enfrentar os americanos? Acaso não é ele o açoite dos mares? Não é o invencível? — William sorriu. — Farnham ainda te ouve.
— É uma idéia brilhante. — Disse Tom. De repente, um movimento lhe fez sobressaltar. Voltou para seu pai em pé na porta. — Pai!
Eastleigh sorriu ao filho caçula. Sua expressão era ilegível. Também não se sabia a quanto tempo estava ali.
— Thomas! Não sabia que tinha vindo da cidade. Que maravilha. Quando chegou? — Ele entrou no aposento, com os olhos semicerrados. Seu tom, como sempre, evidenciava uma nota sardônica.
Tom beijou seu pai na face, cortesmente.
— Já faz algum momento. Você me parece bem, pai. — Ele mentiu, pois Eastleigh havia voltado a engordar desde o verão.
— Estou muito bem. — Eastleigh replicou fitando William de soslaio. — Ainda não estou no túmulo. Do que estavam falando? Ouvi-os mencionar nosso novo vizinho, o heróico Devlin O’Neill? — Sua voz transbordava sarcasmo.
Os olhos de William e Tom se encontraram. O herdeiro do Conde respondeu: — Você não faz nada, pai. Nada. Enquanto O’Neill nos desonra com essa relação ilícita. A situação é crítica e já estamos todos em ridículo. Mal posso levantar a cabeça quando estou em público.
Eastleigh sorriu.
— O único tolo é O’Neill. Por mim, ele pode passear com essa desavergonhada por toda a corte real, que não lhe ajudará em nada.
Tom e William se fitaram novamente. Tom deu um passo adiante.
— Esse homem nos odeia, pai. Isso é claro. E agora, o que está claro também que você o odeia. Por quê? Por que, pai? Maldição! Você nos deve uma explicação… Se é que há alguma.
— Ele roubou-me o cavalo mais veloz, os melhores cães e minha casa favorita. E agora tem em sua cama à filha de meu irmão, e vocês ainda perguntam por que o odeio? — As sobrancelhas densas se elevaram. — Tenho razões de sobra para detestar esse homem que diz ser um cavalheiro e não é mais que um pirata.
— Não. — Tom confrontou o pai, com as pernas afastadas. Tinha o corpo mais pesado e era mais baixo. — Por que tenta ele te castigar? E a nós? Por quê?
— Porque é um maldito selvagem. Somente por isso. Exatamente igual ao pai, — Replicou Eastleigh.
William e Tom trocaram um olhar de surpresa.
— Conheceu seu pai? — Perguntou William, com genuíno assombro.
— Se o conheci? — Eastleigh agora sorria largamente. — Eu o matei, moço. E com o maior sangue-frio.


Ela se negava a acreditar, simplesmente.
A Condessa de Eastleigh permanecia sentada rigidamente em sua carruagem particular, com o brasão de seu marido gravado em ouro, de cada lado. Estava usando um suntuoso vestido de seda vermelho rubi, de amplo decote e manto negro. Estava com as mãos enluvadas entrelaçadas sobre o colo e lhe custava respirar. Era impossível, certo?
Tinha ouvido o rumor em Londres, da boca de uma amiga que suspeitava que havia adivinhado sua aventura com Devlin. A amiga, lady Farthingham, havia mencionado durante o chá que o Capitão O’Neill se encontrava em sua casa de campo em Hampshire, e ao que parecia, com uma nova amante com quem vivia abertamente. Elizabeth não tinha dado crédito as suas palavras, embora naquele momento o sorriso houvesse congelado em seu rosto e seu coração estava acelerado. Devlin era muitas coisas, mas também era um cavalheiro, e cavalheiros não viviam com uma mulher, se não estivesse unido a ela pelos laços do matrimônio. Havia encolhido os ombros diante de Celia e dito que duvidava que Devlin passasse muito tempo em sua casa nova, pois conhecia bem o lugar, que estava completamente arruinado.
E o conhecia bem, por que era perto de Eastleigh. Estivera em Wideacre muitas vezes antes que o antigo proprietário falecesse sem deixar herdeiros. Devlin havia mencionado também uma ou duas vezes a casa, nas ocasiões em que havia lhe encontrado em Londres durante o verão, tempos difíceis para ele, pois estava imerso em uma vida onde a sobrevivência estava em jogo. Falava da velha casa com bem pouco interesse. Em certa ocasião havia murmurado, que duvidava que alguma vez chegasse a vê-la.
Há dois dias, entretanto, ela ouvira contar novamente que Devlin estava em sua casa de campo em Hampshire. Havia se sentido surpresa e consternada. Ela estava em Londres… E ele se encontrava a poucas milhas de sua casa em Eastleigh. Saiu da festa cedo. Havia ordenado a sua criada que fizesse suas malas e no dia seguinte haviam retornado a Eastleigh.
Custou-lhe um árduo esforço não correr para Wideacre assim que chegara, pois não só tinha que visitar o marido e se interessar por sua saúde, como também por suas duas filhas que amava muito e sentia falta. Havia mostrado interesse pela saúde de Eastleigh e passado o dia com as meninas. Foi seu enteado William quem deixou cair à bomba.
— Acredito que já tenha ouvido falar de nosso novo vizinho, Elizabeth.
Ela estava sentada fora observando como suas filhas montavam e saltavam uma série de pequenos obstáculos. Aplaudia com entusiasmo. Sem olhar para William, perguntara: — O que disse? — Sentia um profundo desagrado por seu enteado mais velho.
— Ora, vamos! — Ele se sentou junto a ela e estirou as longas pernas.
— Lilás é uma grande amazona.
Ele fitou Elizabeth desde tão perto que ela se sentiu incômoda.
— Nós dois sabemos por que se apressou a voltar para casa em meio à temporada.
— William, eu não tenho nem idéia do que você está falando. — Havia replicado e se levantando começou a se abanar. — Lilás! — Gritou enquanto a filha se aproximava com o alazão, para perto do terraço. — Foi maravilhoso. Simplesmente maravilhoso!
— Obrigado, mãe — Lilás sorriu, radiante. Seus olhos azuis brilhavam. Logo fez o cavalo voltar e se afastou a trote. Era evidente que queria voltar a causar boa impressão.
William se levantou também, muito perto. — Devlin O’Neill está vivendo em Wideacre. Instalou abertamente sua amante lá. — Ele sussurrou e sua boca virtualmente roçou sua orelha.
O coração de Elizabeth parou de bater.
Agora avistava os pilares de tijolo e o caminho diante dela. Sentia o coração bater na garganta. E queimava. Era um engano, pensou. Um terrível engano. Devlin não podia ter uma amante em Wideacre. Ela era sua amante!
Naturalmente sempre soubera que havia outras mulheres. Mas a ela não importavam as rameiras espanholas ou sicilianas. Não lhe interessava o que Devlin fazia quando passava longos meses em uma missão. Entretanto lhe importava e muito, o que ele estava fazendo agora.




Virginia tinha saído da casa a horas e havia dado um longo passeio pela aldeia. Ao entrar no caminho que a levaria a casa, notou a carruagem estacionada diante dela e ficou paralisada. Começou a sentir um temor, que afugentou com firmeza e severidade. Já havia passado três dias desde que receberam a primeira visita e após houveram muitas outras. Pelo que parecia, metade de Hampshire sabia que o célebre Capitão O’Neill estava vivendo abertamente com sua amante e todo mundo tinha ido averiguar com os próprios olhos. Virginia acreditava estar representando bem seu papel. Mantinha a cabeça alta, o tom suave, chamava Devlin de querido, tocava e beijava-lhe a face e os fofoqueiros iam embora contentes. Devlin estava satisfeito. Só ela sabia o quão duro estava sendo fazer tudo aquilo.
Detestava cada momento. Vivia como um peixe em um aquário. Ou pior ainda, como uma mulher nua em um aquário, observada com terrível cobiça pelos libertinos. E Devlin não parecia pouco importar. Claro que ela jamais lhe deixaria saber que o jogo havia se convertido para ela em uma espantosa humilhação.
Deteve-se, contemplou a casa de pedra e se abraçou. Não se sentia com ânimo de representar novamente seu papel ou se ver submetida novamente ao julgamento severo de seus visitantes. Estava pensando em voltar e prosseguir seu passeio, quando fixou o olhar no escudo da carruagem.
Conhecia-o bem. Seu pai tinha um livro de brasões e havia lhe mostrado ainda criança, o brasão dos Eastleigh. Seu coração se encolheu. Não sabia se ficava alegre ou angustiada. Mas Eastleigh devia ter ido pagar o resgate. E provavelmente fosse hora de se dar por vencida e retornar para casa. Uma parte dela gritava por dentro negando-se a semelhante covardia. Virginia ignorou o silencioso grito, mas ao se precipitar para a casa se perguntou o quão fácil ou difícil lhe seria afastar de Devlin O’Neill.
— Eles estão na biblioteca, Senhorita Hughes. — Disse Tompkins, com olhar de surpresa. E não sorria.
Virginia se deteve, confusa. Devlin sempre recebia às visitas no salão. E Tompkins sempre sorria.
— Está acontecendo alguma coisa? — Atreveu-se a perguntar.
O sorriso do mordomo finalmente apareceu, terrivelmente forçado.
— Claro que não. Mas se trancaram lá. — ele acrescentou, com intenção.
Virginia já estava para sair. Voltou-se e fitou o mordomo.
— É meu tio, o Conde de Eastleigh? — Perguntou.
— Não. É a Condessa. — Disse Tompkins.
Virginia piscou. Que estranho, pensou. Imediatamente imaginou uma mulher mais velha, gorda e grisalha como o marido. Mas talvez a Condessa tivesse ido pagar o resgate, já que o Conde parecia mal de saúde. Aproximou-se da biblioteca e começou a abrir a porta. Ouviu a voz suave, perfeita e sensual de uma mulher que não era nem velha e nem frágil. Era a voz de uma mulher jovem e angustiada. Virginia ficou paralisada.
— Não o entendo, Devlin.
A Condessa o chamava pelo nome? Virginia fitou para além da porta que estava aberta apenas alguns centímetros e ficou boquiaberta. Uma mulher loira e muito bela , o bastante maior para ser a esposa de William Hughes e não do Conde de Eastleigh, se encontrava em frente a Devlin, visivelmente irada. Era realmente encantadora; possuía uma figura voluptuosa e sedutora e seu rosto era de uma beleza assustadora. Angustiada, Virginia fitou Devlin, cujo rosto era uma máscara impossível de decifrar. Seu coração começou a pulsar com violência.
— É certo? — Perguntou a Condessa em voz baixa tocando o peito de Devlin. Não, Deus! Não. Pensou Virginia. Não pode ser.
— Temo que sim, Elizabeth. — Disse respondeu e se afastou. A mulher gemeu suavemente e sua face enrubesceu. Fitou Devlin cheia de dor e trêmula. Uma mulher com o coração partido.
— Mas eu sou sua amante. — Ela disse. — E de repente você me troca por outra, de qualquer jeito?
— Sinto muito. — Respondeu-lhe Devlin, enquanto lhe oferecia um conhaque. — Nunca te fiz promessas, Elizabeth. Acredito que as coisas mudaram.
Virginia se segurou na porta. A amante de Devlin era esposa de Eastleigh? Aquilo era tão espantoso que não podia acreditar! Apesar de se compadecer profundamente pela Condessa, se sentia doente. Jamais poderia competir com uma mulher daquelas.
Elizabeth aproximou o conhaque de seu seio voluptuoso e quase nu. Seus dedos estavam brancos. Sua palidez era cada vez maior.
— Sei que nunca fez nenhuma promessa. Oh, Deus. Ainda não o entendo. Por alguma razão, acreditei que aqui na Inglaterra desejava somente a mim.
— Talvez você deva se sentar. — Disse Devlin amavelmente, mas de forma impessoal.
— Estou apaixonada por você, Devlin. — Soluçou ela.
— E eu te disse uma vez que não seria sensato.
— Oh, Deus. — De repente, ela pareceu a ponto de desmaiar e se sentou com ajuda de Devlin. Segurava com força o copo de conhaque, mas não bebia. — Você não se importa. Não se importa absolutamente, não é?
O queixo de Devlin vibrava.
— Já lhe disse que as coisas mudaram.
— Não. Você nunca teve coração. Eu simplesmente rezava para que não fosse certo. — Ela se levantou, com os olhos dilatados e úmidos. — Quem é ela? Uma atriz? — A Condessa se aferrava a sua dignidade com grande esforço. Deixou o conhaque sem tê-lo provado. — Você vive abertamente com ela. Trocou-me por uma rameira qualquer? — Os olhos finalmente se encheram de lágrimas.
— Não vai querer fazer uma cena, Elizabeth. — Disse Devlin com calma.
— Claro que quero! — Ela gritou. — E quero conhecer a mulher pela qual me trocou tão cruelmente!
— Temo que não seja possível. — Ele replicou. — Sinto ter lhe feito mal. Provavelmente deva ir embora antes que diga algo do qual se arrependa amanhã.
— Eu fui sua amante durante seis anos, e isso se acabou assim, de qualquer jeito?
Virginia sufocou um grito e de alguma maneira empurrou a porta e caiu dentro do aposento. Aterrissou no chão, não muito longe dos pés dos amantes.
Levantou os olhos lentamente.
Devlin havia elevado as sobrancelhas e a Condessa a fitava atentamente, ainda angustiada e atônita.
— Espreitando, Virginia? — Ele disse enquanto a ajudava se levantar.
Virginia quis lhe perguntar novamente por que tinha feito aquilo. Por que fazia aquilo? Quantas pessoas inocentes deviam sofrer para que ele vingasse seu pai? Mas era incapaz de falar.
— É ela? — Gritou a Condessa. — Mas é uma menina!
Virginia tentou manter a compostura.
— Tenho dezoito anos. — Disse e logo fez uma reverência. — Milady …
A Condessa cobriu a testa com a mão e se voltou. Virginia fitou Devlin. Desejava repreendê-lo e lamentava com desespero ter conhecido aquela mulher. Não sabia o que fazer.
A Condessa de Eastleigh havia sido amante dele por seis anos. Virginia continuava perplexa e angustiada. Devlin nunca se apaixonaria por ela, se não havia se apaixonado pela Condessa.
Um terrível silêncio havia cansado sobre eles. Devlin o rompeu falando com voz baixa.
— Virginia, a Condessa está de saída. Por que não sobe alguns minutos? Subirei em seguida.
Antes que Virginia pudesse responder com a negativa que estava na ponta da língua, a Condessa se voltou.
— Virginia? Você se chama Virginia? — Seu olhar se tornou ferozmente acusador, quando se voltou para Devlin. — Não é a minha sobrinha, certo?
— Acredito que seja. — Respondeu Devlin e pareceu se preparar para a reação dela. A Condessa soluçou. Virginia não podia suportar mais. Correu para ela e disse: — Por favor, sente-se. Você sofreu uma impressão terrível. E não tem que se preocupar. Na verdade ele não me ama… Sequer importo… Absolutamente nada.
A Condessa piscou fitando-a com os olhos cheios de lágrimas e lhe disse: — Por que é tão amável comigo?
Virginia inclinou a cabeça.
— Porque você tem razão. Devlin não tem coração e ninguém merece que o rechacem dessa maneira. — Virginia fitou Devlin com raiva. Ele estava muito sério, como se o assunto o desagradasse ou lhe fizesse infeliz.
A Condessa enxugou os olhos e a fitou atentamente.
— Pensávamos que havia se afogado.
— Não. Fui conduzida ao navio dele e…
Devlin lhe segurou pelo braço.
— Não precisa aborrecer à Condessa com os detalhes. — Disse ele, em tom de advertência.
Ela o fitou com recriminação e tentou se soltar.
— Você é um canalha. Solte-me!
Devlin se sobressaltou e a soltou.
Virginia lhe lançou outro olhar venenoso. Provavelmente, finalmente viria a odiá-lo.
Ele se dirigiu à Condessa, mas não afastou o olhar de Virginia.
—Tenho que lhe pedir que vá embora, Elizabeth.
— Sim. É hora de eu partir. — Ela replicou, mas olhava intensamente para Virginia, tanto que esta esqueceu o quanto estava furiosa com Devlin e começou a sentir temor. Finalmente, a Condessa fitou Devlin. — Você lhe fez algum mal?
Ele levantou as sobrancelhas.
— Absolutamente.
A Condessa se voltou para a Virginia.
Ela se ruborizou.
— Estou bem… Dado as circunstâncias.
— Duvido, se souber o que significa, Virginia. Mas você é muito jovem em espírito senão em idade, para um homem como Devlin. Temo por você, minha querida.
Virginia não sabia o que dizer.
— Ladra, mas não morde. — Ela respondeu-lhe confiando em que seu tom de voz fosse leve. Logo acrescentou: — Quase nunca.
A Condessa voltou a fitar os dois.
— Não cometa o terrível engano que cometi. Não se apaixone por ele. Ele nunca lhe corresponderá. — Seu sorriso era triste quando saiu do aposento.
É muito tarde, pensou Virginia aproximando da porta, para contemplar a saída da Condessa, admirada por sua dignidade e seu orgulho. Sentia-se terrivelmente triste.

 

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 18


Devlin passeava rigidamente pelo salão de refeições, tomado pela tensão. Fitou seu relógio. Já eram mais de sete horas. Fitou a porta por onde Virginia não aparecia.
A mesa estava posta com cristais finos fina, porcelana delicada e talheres dourados, tudo procedente de seu navio. Das bandejas cobertas o vapor saia entre os candelabros. Virginia chegaria tarde. Estava evitando-o.
Já o evitava a três dias, desde a visita de Elizabeth, mas era melhor assim, pois cada vez lhe era mais trabalhoso se dominar quando estava ao seu lado. Estava cada vez mais difícil se servir dela insensivelmente, como um instrumento de vingança. Sabia muito bem que seu pacto, a farsa estava custando um terrível preço a Virginia. Sentia remorso, apesar de não querer sentir. E depois, em Londres tudo seria mais simples. Só tinha que lembrar do humor zombeteiro de Virginia ou o desejo sincero de amizade, sua paixão ou sua raiva, para dolorosamente desejar deixá-la em liberdade. Se a deixasse livre toda tentação desapareceria.
Os homens a faziam se sentir como uma rameira. A culpa o atendia. Era uma emoção que raras vezes o visitava. Havia desejado estrangular Aston e Jayson, mas tinha conseguido representar seu papel no jogo. Agora, os olhos sem vida de Gerald pareciam acusá-lo de pérfido em vez de lhe suplicar justiça.
Doíam-lhe as têmporas. Aproximou das portas do terraço esfregando o pescoço como se o gesto pudesse dissipar o torvelinho e a tensão de seu corpo e de seu ser. De sua mente. O olhar acusador de Gerald havia se transformado nos grandes olhos de Virginia, igualmente acusadores, dilatados pela dor, com a expressão que conhecia tão bem. Desejava sinceramente que ela não tivesse chegado a tempo de conhecer Elizabeth. Lamentava não ter conseguido lhe economizar aquela tarde.
Mas ela havia pensado em oferecer amizade e consolo a Elizabeth. Era a mulher mais imprevisível que já tinha conhecido. E também a mais bondosa e sincera. Nua, possuía seios pequenos e perfeitos, pernas longas e esbeltas e entre meias, a tentadora fenda abrigada entre os pelos negros. Sabia que Virginia ignorava o quanto era difícil era viver com ela daquele modo. Ela não sabia que ele dormia na biblioteca e que só procurava o leito improvisado antes da alvorada. Havia deixados os criados acreditar que sofria de insônia e que trabalhava de madrugada.
Finalmente subiu as escadas com veemência. A culpa continuava lhe atacando. O caminho de sua vingança, antes liso e suave, havia se convertido em uma estrada torcida e pedregosa. Estava fazendo o que tinha que fazer. O que o pai queria que fizesse. Estava cumprindo com seu dever como filho de Gerald O’Neill. Não havia alternativa. Não para ele. Sua vida estava condenada ao ódio e a vingança. Somente Sean tinha direito ao amor e a uma família.
Tropeçou nos degraus. No que estava pensando, pelo amor de Deus? Em família e amor? Esses conceitos não tinham nada a ver com ele, nem nunca teriam.
Estava inquieto. A voz suave e chorosa de Elizabeth ressoava em sua mente, junto ao conselho que dera a Virginia: Não se apaixone por ele. Ele nunca lhe corresponderá.
Confiava sinceramente que Virginia ouvisse o conselho.
Pensou em chamá-la. Pensou em surpreendê-la no banheiro e finalmente entrou sem se anunciar. Mas Virginia estava na cama, com sua camisola infantil e um xale. Estava lendo um livro.
Sorriu-lhe. Um sorriso desolado.
— Sinto muito. Não vou descer para jantar. Acho que não tenho apetite. Pelo que parecia, ela já não estava furiosa com ele.
Parou aos pés da cama. A camisola podia ser infantil, mas ele conhecia cada palmo do corpo perfeito que havia sob ela. Um corpo que pertencia a uma mulher.
— Está doente?
— Não. — Ela fechou cuidadosamente o livro. — Alguma vez a amou, não?
Ele não queria voltar a falar de Elizabeth com ela.
— Não.
— Ela também fazia parte de sua vingança?
— Sim. — Devlin sentiu o rosto se contrair em uma careta.
Ela respirou fundo e empalideceu.
— É repugnante, Devlin. Espantoso e repugnante.
— Sim? — Ele começou a se zangar. — Ela gostou de cada momento que passou em minha cama. Não houve fingimento, nem insinceridade e nem promessa alguma de minha parte. Ela se atreveu a atravessar a linha. Uma linha que eu havia deixado clara. Ela se atreveu a apaixonar. Lamento que tenha se apaixonado. Também lamento tê-la machucado, mas não vou pedir desculpas pelo que fiz. Eastleigh merece tudo o que eu lhe faça e muito mais.
— Então por que não o mata, corrija um engano com outro e acaba de uma vez por todas com esta loucura? — Gritou ela, se sentando. Seu peito subia e deixava e sua face estava ruborizada.
— Pensei nisso. — Disse ele com a esperança de impressioná-la, sabendo de que conseguiria. — Mas decidi há muito tempo que a morte era muito boa para ele.
— Então pensa lhe fazer sofrer. — Ela sacudiu a cabeça como se não conseguisse entendê-lo. — Por favor, diga-me que lamenta sinceramente ter usado Elizabeth como fez.
— Não lamento. Não fui seu primeiro amante, Virginia. Não fui sua primeira relação adúltera. Ela queria meus cuidados e deixou bem claro isso. Não foi muito diferente de nosso pacto, Virginia. — Sabia que a fitava com irritação. Cada vez lhe era mais difícil falar com ela, como fazia com todo mundo. Virginia fazia reagir nele, sentimentos que ninguém mais conseguia. Era terrivelmente perturbador.
— Era diferente, porque você sabia o que ela sentia. Meu Deus! Foram seis anos! Você fez amor com essa mulher durante seis anos! — Ela exclamou. Duas manchas rosadas coloriam sua face.
— Nunca fiz amor a ela ou a ninguém. — Ele replicou e no instante em que as palavras saíram de sua boca, se sentiu envergonhado.
Ela estava pálida. Levantou o queixo e manteve a cabeça alta.
— Claro que não. — Ela murmurou.
Devlin sabia que havia lhe ferido e se odiava. Odiava. Odiava ter sido ele a lhe arrebatar a inocência e mostrar a paixão. Odiava que ela fosse agora tão vulnerável. Mas o que mais odiava era que ela desejasse que lhe fizesse amor. Sabia sem nenhum indicio de dúvida, que o amor não era para ele.
— Nós fizemos um trato, Virginia. Minha amizade por sua farsa. — Ela o fitou atentamente. — Não pense em pedir nada mais, que não posso e nem quero lhe dar. — Advertiu-lhe premeditadamente segurando a moldura dos pés da cama com a mão. Seus dedos ficaram brancos.
— Só te pedi amizade, Devlin. Você se engana se acredita que quero algo mais. O que outra coisa iria querer, dona de minha sã consciência, de um homem que me seqüestrou e me fez prisioneira?
Seu orgulho sempre tinha impressionado Devlin. Agora também o aliviava.
— Amanhã iremos a Londres. — Disse.
— Não. Quero que dizer uma coisa. Você esteve tão ocupado me exibindo como sua amante, que não teve ocasião de me mostrar nem um pouco de amizade. Compartilhar o jantar não conta, sobretudo quando passa o tempo refletindo enquanto bebe vinho e fita a comida com irritação.
Ele se sobressaltou, mas logo dominou o sorriso que teimava aflorar em sua face.
— Tem razão. — Ele replicou, aliviado e surpreso ao mesmo tempo.
— Reconhece que este foi um pacto unilateral?
— Sim.
Os olhos de Virginia se dilataram e seu semblante suavizou. Um brilho apareceu em seus olhos. — E o que vais fazer a respeito, Capitão? — Ela perguntou em tom zombeteiro.
O coração de Devlin deu uma estranha acelerada no peito.
— Quando chegarmos a Londres vou levá-la às compras, à feira e ao teatro. Talvez a leve ao hipódromo e remediarei essa imensa injustiça. — Replicou e sentiu o sorriso querer aflorar em seus lábios. Era agradável compartilhar um bom momento com ela.
Virginia sorriu, e foi como se o sol nascesse no céu cinza da Irlanda.
— Sim, já está na hora. — Disse.
Ele titubeou.
— Está segura de que não quer descer para jantar comigo? — Perguntou com suavidade e, curiosamente, a resposta lhe importava muito.
Ela ficou calada. Logo mordeu o lábio e assentiu com a cabeça.
— Dê-me alguns minutos para me vestir.
Devlin saiu curiosamente feliz.


Londres. Virginia já havia visto ilustrações e esboços e seu pai lhe contara muitas histórias. Sempre tinha sonhado de algum dia visitá-lo. Haviam chegado à poucas horas depois de sair de Southampton ao amanhecer. Agora tremia de emoção junto à janela da carruagem, enquanto era conduzida pela cidade, a caminho de Greenwich, onde Devlin possuía uma casa junto ao rio. Não podia afastar o olhar do que era oferecido aos seus olhos. Nunca tinha visto tantas carruagens luxuosas, cavalheiros bem vestidos e tantas damas belas. A rua pela que passavam estava repleta de lojas refinadas e elegantes hotéis. Virginia estirou o pescoço para observar duas vezes uma dama embelezada por um chamativo e marcante vestido rosa e sombrinha da mesma cor. Voltou para Devlin e perguntou quase sem fôlego: — Acabo de ver uma prostituta?
— Ou uma descarada amante de algum cavalheiro. — Disse ele com um sorriso.
O sorriso era espontâneo e sincero, e o coração de Virginia se encolheu ao devolvê-lo. Tentou pensar que Devlin se serviu cruelmente da Condessa, enquanto que a pobre mulher estava apaixonada por ele, mas o pensamento não surtiu efeito algum. Suspirou e voltou a observar a rua. Estavam passando diante várias mansões elegantes e luxuosas, todas com jardins de grama imaculada, plantas, estátuas de pedra e fontes. Virginia sorriu e sacudiu a cabeça.
— Diria que toda a riqueza do mundo reside aqui. — Disse.
— Uma parte importante dela, sim. — replicou Devlin. — Mas há também uma pobreza espantosa. Jamais a levaria por onde a miséria que convive lado com lado com a opulência que está presenciando.
Ela o fitou, muito séria.
— Por que não? Em meu país também existe uma horrível pobreza. Simplesmente, não temos tantos exemplos de uma riqueza tão suntuosa.
— Você é uma dama e devemos proteger o belo sexo de certas imagens, Virginia.
Ela revirou os olhos, exasperada.
— Oh, por favor. — Ele o fitou com os olhos semicerrados, consciente que Devlin lhe sorria como se estivesse gracejando. Seu coração acelerou um pouco. Somente um pouquinho. — Em casa nós distribuíamos o que podíamos, aos pobres. Minha mãe exigia e naturalmente, meu pai ficava feliz em agradá-la. Você faz obras de caridade, Devlin? — Virginia se deu conta que a pergunta era terrivelmente importante para ela.
— Sim, mas dou meu dinheiro aos pobres da Irlanda, Virginia. Os ingleses podem se ocupar dos seus.
— A enfermidade e a fome não conhecem fronteiras nacionais. — Ela replicou já se voltando e observando uma rua que corria à margem do rio Tamisa. Junto dela se alinhavam casas ainda maiores e luxuosas. — Já chegamos?
— Em seguida estaremos lá. — Disse ele com um sorriso em seu tom estranhamente apaziguador.
Ela o fitou.
— Não fique condescendente comigo, como se eu fosse uma criança.
— Hoje você está tão deslumbrada como uma criança.
— Eu odiava Wideacre! — Assim que as palavras saíram de sua boca, Virginia lamentou tê-las dito. — Quero dizer… — Ela o fitou novamente, ruborizada. Não queria que ele adivinhasse o quão horrível tinha sido para ela ser exibida daquele modo, acima de tudo em Hampshire. — Quero dizer que prefiro estar em Londres, já que nunca tinha visitado a cidade.
Mas ele havia se voltado e observava a cidade, de sua janela.
Virginia teve ocasião de contemplar o belo perfil, e seu corpo se enrijeceu deixando-a confusa e sem fôlego. Alguma vez esqueceria à Condessa, o quanto havia sido maltratada, o quanto havia sofrido e o quão sensual era? Então por que ainda desejava estar nos braços de Devlin? Por que seu coração não podia pular essa parte e avançar para terreno mais seguro? Tampouco nunca poderia esquecer a advertência da Condessa.
— Você precisa de um vestido novo. — Disse Devlin de repente. — Verei se Madame Didier pode nos receber amanhã.
Ela piscou.
— Não necessito de roupa nova. — Era uma mentira terrível. Agora que já não vestia calça comprida e bota fazia muita falta um vestido bem cortado. Possivelmente dois.
— Terá que tomar o chá da tarde... Esse tipo de coisas que a sociedade faz. Terá que ir a algum ou outro. — Disse ele. — Necessita de alguns vestidos para o dia e um para a noite. Para um baile.
Vestido de baile? Mas se ela não sabia dançar!
— Pelo jeito que você fala dá a impressão de que vamos passar uma temporada na cidade.
— Ficaremos aqui o tempo que for preciso. — Disse ele com firmeza.
Ela não pensava a comparecer em nenhum baile. Ou talvez pudesse aprender a dançar de algum modo, somente para poder ir a um baile em Londres e contar a Tillie? Começava a se preocupar. Não queria parecer uma camponesa! Agora lamentava não ter prestado atenção no professor de dança, do colégio de Richmond.
— O que houve, Virginia?
Ela fitou os olhos cinza e inquisitivos.
— Nada! — exclamou. — Eu adoraria ir a um baile. Em casa celebrávamos muitos e adoro dançar. — Ela acrescentou.
Ele levantou as sobrancelhas mostrando uma mistura de incredulidade e regozijo, que ela conhecia já muito bem.
— Já chegamos. — Disse.
Ela se voltou e olhou pela. Sufocou uma exclamação de surpresa.
No contorno do rio e da linha do horizonte de Londres havia um castelo. Pelo menos foi o que lhe pareceu Waverly Hall, uma gigantesca casa de pedra calcária adornada de cada lado por torreões. Os jardins eram magníficos. Virginia nunca tinha visto algo tão colorido em pleno outono. Avistou então um gramado onde uma rede o atravessava. Voltou e segurou o braço de Devlin.
— É o que acredito? — Perguntou. — É uma quadra de tênis?
Ele sorriu.
— Sim.
— Quero jogar — nunca antes tinha jogado tênis, mas lhe parecia muito divertido.
— Pode jogar tênis o quanto quiser, Virginia. Esta casa é sua agora.
O alvoroço de Virginia se dissipou. Por um instante havia se esquecido de seu trato, porque Devlin estava lhe tratando tão amavelmente, como se fosse seu amigo de verdade. Mas possuíam um acordo e ele iria lhe comprar roupas novas e levá-la a festas. Pensava exibi-la por Londres e humilhá-la, até que Eastleigh capitulasse e pagasse seu resgate.
Afastou-se dele.
— Esta não é minha casa. É minha prisão, mas tinha esquecido, e não é boa idéia. — De repente, a dolorosa tristeza que a afligia desde dia interior, depois de observar à Condessa partir, assaltou-a novamente.
— Tenta pensar nela como se fosse seu lar. — Disse ele em voz baixa.
Virginia mal conseguiu lhe sorrir.


Um mordomo de semblante extremamente severo os fez entrar. Virginia ficou boquiaberta ao ver o imenso saguão com seus tetos altos, seu lustre de cristal e as obras de arte. Deus! Devlin era ainda mais rico do que ela acreditava.
— Bom dia, Senhor. Alegra-nos que tenha voltado. — Disse o mordomo enquanto cuidava do chapéu e das luvas de Virginia e logo as de Devlin.
— Esta é a Senhorita Hughes, Benson. Que levem sua bagagem aos meus aposentos. Iremos compartilhá-los. — Disse Devlin.
O mordomo sequer pestanejou.
— Sim, Capitão.
Virginia se sentiu atraída por um quadro de grandes dimensões que representava uma batalha antiga. Soldados a cavalo, possivelmente gregos ou romanos, invadiam uma cidadela cheia de mulheres assustadas e crianças chorosas. A cena era pavorosa, mas impactante e executada com mestria. Virginia contemplou o quadro, maravilhada.
— Ty! — Disse Devlin com surpresa.
Virginia se voltou e notou o homem na porta d frente, iluminada pelo sol.
— Dev! — O desconhecido se adiantou e ela reconheceu imediatamente nele o filho do Conde de Adare. Era muito parecido e mostrava a impressão de autoridade. O cabelo castanho e a atitude eram notórios. Virginia observou com curiosidade como eles se abraçavam e chegou à conclusão de que eram mais que meio-irmãos. Saltava aos olhos que eram verdadeiros amigos. Logo o homem que Devlin se referiu como Ty retrocedeu e a fitou com curiosidade.
— Virginia. — Disse Devlin, lhe estendendo a mão com um sorriso.
Ela duvidou, porque novamente parecia que Devlin fosse verdadeiramente seu amigo. E de repente desejou que fosse. Que ele pudesse ser um amigo sincero, mesmo que não chegasse nunca a amá-la como mulher. Ela se conformaria com aquela migalha.
— Virginia. — Ele repetiu. Mas não havia impaciência em sua voz.
Ela se aproximou. O homem alto e moreno a fitava diretamente, como se a esquadrinhasse por dentro e por fora. Virginia sentiu que ruborizava. Devia representar também seu papel ali? Deteve perto de Devlin, mas ele não a abraçou como fazia quando executavam a farsa em Wideacre.
—Senhorita Virginia Hughes. — Disse com suavidade.
Ty inclinou a cabeça. Flexionava o queixo e seus olhos ficaram sombrios. Virginia notou que ele estava zangado quando se voltou para Devlin sem dizer nada, como se não se atrevesse a pronunciar uma só palavra.
— Meu meio-irmão, Tyrell de Warenne. — Disse Devlin a Virginia.
Ela compreendeu então, que com a família não seria necessário representar a farsa.
Tyrell a fitou e fez uma reverência.
— Peço-lhe desculpas, Senhorita Hughes. Sua beleza me deixou sem palavras.
Ela piscou e lhe sorriu, aliviada por não ter que fingir.
— Duvido.
Ele se ergueu.
— Como diz?
Ela mordeu o lábio.
— Quero dizer, muito obrigado.
Devlin sufocou o riso.
— Sean fala maravilhas de você. Envia-lhe suas mais afetuosas lembranças. — Acrescentou Tyrell sem olhar uma só vez para Devlin.
Virginia sentiu o coração se contrair um pouco. Sorriu com certa tristeza.
— Como ele está?
— Bom, se você se refere ao seu estado de saúde, — disse Tyrell, — ele está bem.
Ela fitou seus olhos. Sabia aquele homem, que Sean estava apaixonado por ela? Ou que estivera? E por que se mostrava zangado com Devlin?
— Quando o viu? Em Askeaton?
— Sim. Há quinze dias. Jantamos juntos. — Tyrell introduziu a mão em sua bela casaca quase negra e tirou um envelope lacrado. — Para você, Senhorita Hughes.
Ela pegou a carta, notou que estava em seu nome e reconheceu imediatamente a letra de Sean. Não sabia se devia se preocupar ou se alegrar. Então notou que os homens estavam lhe observando. A expressão do rosto de Devlin se tornou distante.
— Obrigado por me entregá-la. — Ela disse a Tyrell. Logo, se voltando para Devlin acrescentou: — Sua casa é bela. Nunca tinha visto nada parecido. Vou sair para conhecê-la um pouco, enquanto seu irmão e você conversam.
Devlin se limitou a assentir com a cabeça. Virginia segurou com força a carta e saiu pressurosa.
Tyrell fitou Devlin e finalmente permitiu que a ira aflorasse em seu semblante.
— Ela vai compartilhar seus aposentos? Ouvi um rumor disparatado de que estava vivendo abertamente com uma mulher em Hampshire, mas não dei crédito, Dev.
— Tome cuidado por onde pisa, Ty. — Devlin o advertiu e entrou no salão ao lado. Observou o outro lado do aposento, as grandes janelas que davam acesso ao terraço e de onde podia observar Virginia, que estava abrindo a carta com um dedo. Por tinha tanta pressa?
A ira se apoderou dele.
Era uma carta de amor. Estava seguro que era. E Virginia havia se emocionado tanto ao recebê-la, que não pode esperar para lê-la.
— Em que demônios está pensando, Dev? — Perguntou Tyrell, se detendo ao seu lado. Ele também observava Virginia que tinha começado a ler a única folha da carta. Era evidente que sua mão tremia, pois o papel ondulava nela como uma bandeira.
— Acredito que com quem eu me deite não seja assunto teu.
— Ora, vamos! Então pensa em me tomar por tolo! — Tyrell parecia incrédulo. — Ela é a sobrinha de Eastleigh. Sei com toda certeza que você continua por esse caminho tortuoso e destrutivo.
— A única pessoa que se acha no caminho da destruição é o próprio Eastleigh. — Disse Devlin com mais calma da que sentia. Acreditou notar que os ombros de Virginia tremiam. Estaria chorando?
— Sean está apaixonado por ela. Seria capaz de trair seu irmão?
Devlin afastou finalmente o olhar de Virginia e esteve perto de atacar Tyrell. Ty era tão alto como ele, mas mais corpulento e também mais forte em uma briga, embora não mais rápido. Nunca haviam trocado murros.
— Deixe tudo como está, Ty.— Devlin o advertiu, mas só podia pensar em Virginia, que estava lá fora chorando sobre a carta de Sean.
— Não. — Tyrell estava tento e um fulgor feroz brilhava em seus olhos quase negros. — Sou seu irmão e não vou deixá-lo. Sean me falou de seu absurdo plano de pedir resgate por ela. Vocês saíram de Askeaton faz há semanas. Onde está o resgate, Devlin? Por que agora ela é sua amante, quando deveria estar com seu irmão?
A fúria de Devlin não conhecia limites, porque Tyrell tinha razão. Presa de uma vermelha neblina, ele viu a imagem de Virginia e Sean unidos em um impudico abraço.
— Ela fica comigo e fará o que eu quiser. Até que eu queira. — Replicou.
Tyrell o segurou pelos ombros.
— Nunca te vi assim, tão irracional e tão furioso. Não posso acreditar que seja capaz de destruí-la deste modo. Meu irmão jamais faria tal coisa! O que acontecerá quando tudo acabar? Acaso acha que ficará livre? — Tyrell gritou.
Devlin se afastou. As palavras de Sean ressoavam repentinamente em sua mente. Irá destruí-la, não? Primeiro Sean e agora Tyrell. Deus, o que estava fazendo? Sabia de sobra que Virginia não merecia ser um peão em seus planos de vingança.
— Virginia sobreviverá. — Disse com azedume. — Depois do resgate cuidarei de tudo.
— E como fará? Vai se casar com ela para salvar sua reputação?
Devlin se sobressaltou e seu coração se acelerou incontrolavelmente.
— Não. — Se ouviu dizer. Mas Tyrell tinha razão. Até o momento não havia confrontado toda a verdade. Somente um casamento salvaria Virginia dos falatórios que tinha feito recair sobre ela.
A família e o amor não eram para ele.
Sua vida era a destruição e a morte.
Tyrell lhe fez voltar.
— E o que me diz de sua carreira? Agora pende por um fio! Um só passo em falso e estou seguro de que acabará diante de um conselho de guerra. Esse seqüestro é um ato criminoso, Devlin. Não me diga que não sabe. A muitos homens enforcaram por menos.
Devlin se afastou.
— Não me enforcarão. — Ele replicou sobressaltando-se, porque, além de Tyrell e através das janelas notou que Virginia estava pálida e imóvel como uma estátua.
Tyrell seguiu seu olhar. De repente disse: — Você está apaixonado por essa moça? — Seu tom refletia incredulidade.
Devlin retrocedeu.
— Não!
— Sei... — Tyrell o fitou pensativo, mas logo perguntou: — Eastleigh pagará?
— Pagará. Quando eu tiver acabado. — Perturbado, Devlin começou a andar pelo aposento.
— Como pode fazer isto a ela, Devlin? — Perguntou Tyrell. — Observe. — ele assinalou as janelas com a cabeça. Lá fora, Virginia tremia e cobria o rosto com as mãos. — Ela está chorando. Ela está chorando, Devlin. Sei que você se incomoda, porque te conheço melhor que ninguém. Melhor inclusive que Sean. E sei que você não é cruel. Não de todo, pelo menos.
— Está bem. — Replicou Devlin, com aspereza. — Está bem! Incomoda-me, sim! Está já satisfeito? Maldição.
Tyrell se sobressaltou. Devlin se aproximou do aparador e se serviu de um uísque, com mão trêmula. Ignorou Tyrell e procurou refrear sua ira e outras sensações, mais insistentes e perturbadoras, que não desejava experimentar e nem compreender. Virginia chorava por causa de Sean. Seria possível que estivesse com ciúme?
A emoção lhe era desconhecida. Nunca tinha sentido ciúmes de nada ou ninguém. Mas a ira abrasadora, unida ao tremor do medo e a dúvida, parecia suspeitosamente, ciúmes.
— Merda. — Devlin jogou o copo com todas as forças à parede. O copo se quebrou com um estrondo que ressoou como um disparo.
— Nunca tinha lhe visto perder os estribos, Devlin. —Tyrell murmurou. — Desde o dia em que meu pai o trouxe para casa quando tinha dez anos, quando Gerald recém havia morrido, você foi a pessoa mais estóica e desapaixonada que conheci.
Devlin fez um gesto de chateio. Não sabia o que responder, pois não havia resposta possível.
Virginia entrou correndo na sala.
— Meu Deus! O que aconteceu? Vocês estão bem? — Ela exclamou, com as bochechas acaloradas, mas não molhadas de lágrimas.
Devlin tampouco pôde lhe responder. Não podia acreditar que podia sentir tanta raiva, que estivesse com ciúme. — Pois era o que sentia. Um ciúme raivoso. Observou-a. com incredulidade.
— Pareceu-me que alguém disparou um mosquete. — Disse ela com ansiedade.
Devlin se voltou. Continuava sem poder falar.
— Ninguém disparou. — Tyrell respondeu com calma. — Pode procurar Benson e lhe dizer que houve um acidente? — Ele sorriu-lhe amavelmente.
Virginia assentiu com um gesto de cabeça, antes de se voltar assustada para fitar as costas de Devlin. Logo saiu apressadamente do aposento. Devlin se serviu de outro copo e desta vez, bebeu.
Tyrell se aproximou.
— Vejo que tudo não é o que parece. — Ele disse em voz baixa colocando uma mão sobre o ombro de Devlin.
Este a sacudiu.
— Tudo é exatamente como parece. — Ele replicou. Começava a recuperar seu férreo domínio. — Quer uma dose? — Perguntou com mais tranquilidade do que sentia.
Tyrell de Warenne soltou um suspiro zombeteiro.
— Para falar a verdade, sim. — Ele fez uma pausa e depois continuou. — E também gostaria de ficar para jantar. — Acrescentou.


— Fogaças de pão quentes! Roscas e pães doces! Pão suíço!
Virginia tropeçou e procurou a mão de Devlin. Estavam caminhando por Regent Street, que conforme Devlin havia lhe dito era o melhor lugar para fazer compras, de toda a cidade de Londres.
— Arrumam-se cadeiras! — Gritava um vendedor de rua que atravessou em seu caminho e se inclinou diante de Devlin, que não estava de uniforme, mas com uma bonita casaca azul marinho de veludo. — Concerto qualquer tipo de cadeira, Milord. — Disse o homem.
— Não, obrigado — Respondeu Devlin amavelmente e para não soltar a mão de Virginia empurrou-a suavemente para que passasse junto ao vendedor.
— Peixes! Lindos peixes dourados para a Senhora! — Gritou uma senhora de idade, agitando diante deles uma bacia. — Formosos peixes! Peixes para a Senhora!
Devlin sorriu a Virginia e a afastou também da peixeira.
Mas ela retrocedeu.
— Vamos ver os peixes!
— Virginia… — Ele começou a dizer.
— É meu turno. — Ela lhe recordou com um sorriso, e se afastou. — Posso ver seus peixes, Senhora?
A velha senhora sorriu e baixou a bacia para que ela observasse os numerosos peixinhos que nadavam dentro dela, entre eles um casal com raias brancas e negras.
— Que lindos. — Disse Virginia.
— Custa um penny a dúzia. — A mulher lhe sorriu.
— Virginia, por favor, não me diga que vamos comprar peixes. — Reclamou Devlin, mas parecia divertido.
— Não, não. Obrigado. — Ela se desculpou ante a vendedora.
— Fogaças de pão quente! Roscas e pães doces e pão suíço!
Devlin a fitou sorrindo. Ela se negou a caminhar e pediu: — Por favor…
— Menos mal que não é gorda. — Disse ele, e se aproximou do homem dos doces. — Qual vai ser desta vez? — Virginia, você já comeu uma rosca e um pão doce no espaço de uma hora.
— Provarei uma parte de pão suíço. — Disse ela, embora não tivesse idéia do que era.
Devlin pagou o vendedor e ofereceu a Virginia um pão doce quente e dourado, que ela provou com ânsia.
— Humm — Ela murmurou e para seu horror, logo notou que estava com boca cheia.
Ele sacudiu a cabeça e começou a rir.
— Vamos. Demoramos uma hora para percorrer somente uma quadra.
Mas Virginia soltou um pequeno grito e lhe entregou pão suíço e correu para uma grande vitrina.
— Olhe, Devlin! — Então ela exclamou. — Olhe essa renda negra! É linda!
Devlin se aproximou segurando ainda o pão, com um guardanapo de papel.
— Quer comprá-la? — Perguntou enquanto examinavam a vitrina da loja de tecidos.
Ela queria. Oh, quanto desejava aquela renda negra, para enfeitar um vestido vermelho! Fitou Devlin quase sem fôlego. Iriam juntos a um baile e dançariam toda a noite… Logo pensou na Condessa. Ficou séria. A quem pretendia enganar? Ela não era das mulheres que usavam renda preta ou vermelha.
— Não. Acredito que não. — Disse.
— Por que mudou de idéia tão rápido? — Ele perguntou observando-a com atenção.
— Não... Não acredito que seja… Apropriado. Mas é bonita. — Acrescentou melancolicamente.
— Venha. Temos que ir a nossa entrevista com Madame Didier. — Disse ele puxando-a pelo braço.
Ela o observou enquanto caminhavam pela rua. Estava com o coração acelerado. Devlin segurava seu braço como se verdadeiramente fossem amantes… Ou mesmo, marido e mulher.
— Sabe que qualquer pessoa pensaria que somos amigos, de verdade? — Disse ela, hesitante.
— É seu turno, Virginia. — Ele lhe recordou com facilidade. — Está se divertindo?
Ela teve que sorrir.
— Como não me divertiria? Esses pães deliciosos… Vendem de tudo na rua, não é? Vi um homem vendendo areia! Ele vendia tijolos de areia. — Ela exclamou.
— São usados para limpar as facas. — Respondeu-lhe, Devlin. Logo perguntou com bastante despreocupação: — Bom, o que Sean te dizia?
O passo de Virginia vacilou. E ela titubeou, não sabendo como devia responder.
A carta de Sean havia lhe reconfortado e ao mesmo tempo enchido-a de tristeza. Ele não lhe falava de seus sentimentos, mas estava claro que continuava profundamente preocupando por ela e, depois de lhe contar tudo que tinha acontecido em Askeaton durante sua ausência, dizia-lhe que já não era o mesmo sem ela. Virginia sabia o que Sean dizia nas entrelinhas. Que sentia falta dela. Ler a carta lhe fizera sentir saudade dele, mas a saudade que se experimentava por um amigo querido. Não por um amor. Era maravilhoso ter notícias, mas também era terrivelmente triste, pois lhe recordava um tempo que tinha sentido aflição, embora se negasse a admitir. Havia ficado muito só naqueles cinco meses em Askeaton.
A carta havia lhe servido para reafirmar o que sentia por Sean. Nunca quisera como um amor, mas sim como a um amigo, e esperava que algum dia ele se apaixonasse perdidamente de uma mulher que lhe correspondesse da mesma forma.
— Não é assunto seu, Devlin. — Disse com um suspiro.
— É sim. Para falar a verdade sou responsável pelo bem-estar e a felicidade de meu irmão desde que tinha oito anos. Mas não se incomode em me revelar seus segredos, já que posso adivinhar quais são.
— Então agora é adivinho? — Virginia sorriu e confiou em poder mudar de assunto.
— Absolutamente. — Respondeu ele, mas sorriu.
O ateliê não era como Virginia esperava. Havia imaginado uma pequena loja cheia de mesas e mulheres costurando industrialmente. Ao contrário, uma jovem de cabelo vermelho, muito bela e esplendidamente vestida abriu-lhes a porta e os fez passar ao salão, com seu assoalho de madeira polida e belos tapetes persas. As paredes dos dois lados estavam cobertas por vitrines que mostravam chapéus, luvas, bolsas e um e outro lenço ou um pingente. Em frente a eles havia uma escada que levava ao andar de cima.
—Capitão O’Neill? — A ruiva sorriu para Devlin. Seu sotaque era francês.
— Madame Didier? — Ele perguntou com certa surpresa. Aquela jovem não podia ter mais que vinte e um ou vinte e dois anos.
— Sou Mademoiselle Didier, sua sobrinha. — Respondeu a ruiva, com olhar não pouco sedutor e logo se voltou para Virginia. — Senhorita Hughes, acredito?
Virginia assentiu e seu olhar passeava sucessivamente da elegante e sedutora francesa, às belas confecções exibidas no salão. Era impossível se decidir entre observar à sobrinha de Madame Didier ou o que se vendia na loja.
— Capitão, Mademoiselle, por favor. Venham. Minha tia está a vossa espera.
Devlin pousou a mão sobre a parte baixa das costas de Virginia e ela o precedeu pela ampla escada, seguindo Mademoiselle Didier.
O salão de cima tinha o assoalho de mármore e várias poltronas elegantes. Uma mulher de meia idade, cabelo escuro, atraente e de bela figura saiu de outro aposento.
— É um grande prazer conhecê-lo por fim, Capitão O’Neill. — Ela cumprimentou, se aproximando com um amplo sorriso. Seu sotaque era mais pronunciado que o de sua sobrinha. Devlin se inclinou sobre sua mão.
— O prazer é inteiramente meu, Madame. Agradeço-lhe muito que tenha nos recebido com tanta urgência.
— Você não tem que esperar, Mon Capitão. — Ela se voltou para Virginia. — Mademoiselle! Que pequena beleza. Será muito fácil e um grande prazer. Olhe, Sofie! Olhe!
Seguiu uma série de palavras em francês. As duas mulheres sorriam. Virginia ruborizou. Sentia-se tola e assustada. Desejava que não falassem o quanto era bela, enquanto Madame a fazia passar ao quarto ao lado.
— Deseja ficar e avaliar nossas decisões ou deixará a escolha dos vestidos e os tecidos às Senhoras? —Madame Didier perguntou, com olhos cintilantes.
— Vá! — Virginia apressou em dizer enquanto Devlin sentava em uma delicada poltrona de veludo verde. Ela o fitou, boquiaberta.
Ele lhe devolveu um sorriso indolente.
— Prefiro ficar, Madame. Virginia necessita de certo número de trajes para o dia e algum vestido de noite. Provavelmente dois. Prefiro que use tons que combinem com seus olhos. A cor violeta ou ametista ficariam perfeitas, a meu ver.
Virginia sabia que estava de queixo caído, mas não conseguia disfarçar. Devlin iria ficar? Ela provaria os vestidos e isso significava se despir até certo ponto.
— E o vermelho rubi, Mon Capitão. E o prata, naturalmente. — Madame Didier estalou os dedos e Sofie levantou uma peça de tecido prateado e iridescente que ondulava e brilhava ao simples toque do ar.
Os olhos de Devlin brilharam.
— Oh, sim. — Ele disse imediatamente. — Eu gosto desse.
Virginia ficou calada. Fechou a boca e o observou atentamente, enquanto Madame soltava uma exclamação de alegria e Sofie jogava a peça de tecido sobre os ombros e o colo de sua nova cliente. Ele a observava com indolência e sorria, mas em seus olhos não havia nada de indolente. O brilho que havia neles era intenso. Virginia ficou com a boca seca. Devlin queria vesti-la com o tecido prateado e evidenciava que a idéia lhe parecia excitante. Ela engoliu a saliva.
— Por que não faz suas sugestões e nos deixa sozinhas um momento, Devlin?
— Prefiro ficar. — Ele se acomodou mais tranqüilamente na pequena poltrona.
Madame gorjeava alegremente.
— Sofie, onde está o rouge noir?
Sofie encontrou imediatamente a peça e com um sorriso levantou um tecido de cetim muito belo, de cor vermelha escura.
— Observe este, mon Capitão! — Madame Didier exclamou.
Virginia quis dizer que não podia se vestir com um tecido daquele, que era para uma mulher como Mademoiselle Didier ou como a Condessa.
Devlin assentiu com um gesto de cabeça. Seus olhos pareciam ainda mais quentes e brilhantes.
Madame Didier deu uma ordem em francês a Sofie e esta começou a desabotoar a casaca escura de Virginia enquanto sua tia se sentava e começava a tomar notas.
Virginia sufocou um gemido.
— O que… O que está fazendo? — Perguntou com receio.
— Você deve se despir. Temos que tirar suas medidas. — Disse Sofie suavemente, enquanto lhe desabotoava as costas do vestido.
Virginia fitou Devlin, em busca de ajuda. Mas não pode esperar ajuda dele, já que havia se limitado a cruzar as pernas.
— Não se preocupe comigo. — Ele murmurou e pareceu relaxar disposto a desfrutar do entretenimento.
Virginia sentiu que a parte de trás de seu vestido se abria e notou o toque delicado dos dedos de Sofie. Estava surpresa, mas não zangada. Os olhos de Devlin continuavam brilhando e o que estava lhe acontecendo a deixava quase sem fôlego. Seu coração pulsava muito forte. Engoliu a saliva, levantou os braços e deixou que a sobrinha da costureira lhe tirasse o vestido pela cabeça. Madame Didier elevou o olhar de suas notas e estalou a língua ao notar sua roupa intima, ultrapassada. Então, Virginia não só estava com a face ruborizada, como também o resto do corpo.
Observou ao seu redor, no acaso de poder abrir alguma janela, mas não havia nenhuma.
— Ainda é a moda na América. — Ela mentiu, sobre a roupa intima e lançou um olhar a Devlin.
Ele não havia lhe ouvido, pois estava obviamente distraído. Tinha o olhar fixo em seus tornozelos, protegidos pelas meias de seda. Depois, seus olhos deslizaram até seus mamilos que naturalmente estavam duros e cobertos somente pelo fino algodão da camisa.
Antes que ela pudesse piscar, Sofie tirou-lhe também a camisa, de forma que ela ficou unicamente de espartilho e a roupa intima. Seus seios estavam nus e elevados pelo espartilho. Ela ficou perplexa por um instante. Seu rosto queimava, quando lentamente fitou Devlin. Claramente, ele a observava com intensidade. O ar pareceu condensar na sala. Tanto, que estava difícil respirar.
— Capitão? —Sofie chamou Devlin e antes que Virginia pudesse reagir colocou o tecido de cetim vermelho sobre seu seio e disse com suavidade: — Imagine, Capitão. Imagine.
Virginia mordeu o lábio para afogar um gemido. Cada palmo de seu corpo estava excitado e tenso.
— Agrada-me muito — Disse Devlin com excessiva tranqüilidade e a voz um pouco enrouquecida.
O cetim vermelho foi afastado.
— Mademoiselle precisa de roupa íntima. — Madame Didier se levantou. — Dois espartilhos. Um preto e outro branco, enfeitados de fitas e rendas. E uma combinação para cada um. Oui?
Sofie sustentava uma peça de renda negra e enquanto Devlin parecia assentir com um gesto de cabeça, ela jogou-a sobre o seio de Virginia. Ela não teve que olhar para saber que a renda era transparente.
Devlin mostrava um olhar arrebatado.
— O Capitão está contente? — Sofie perguntou com lisura.
— Muito.
A renda desapareceu e foi substituída por uma fita muito fina de cor marfim e, quando esta desapareceu várias fitas em diferentes tons de marfim, creme e rosa escorregaram pelos seios de Virginia.
— Oui? — Madame perguntou com experiência.
Virginia tentou engolir saliva, mas as fitas eram de seda e lhe era tão difícil engolir como respirar.
Devlin assentiu. Já não falava. Seu olhar deslizou sobre as fitas, sobre os seios de Virginia e finalmente para sua face.
Ela não podia afastar os olhos.
— Usem todas com o tecido de cor marfim. — Ele disse.
— Soberbo, mon Capitão. — Disse Madame, com entusiasmo. — É a última moda, oui?
— Sim. — Respondeu Devlin.
— Queria lhe mostrar uma coisa. Uma seda para roupa intima. É muito especial. Mademoiselle adorará. Está lá embaixo. Um moment, s'IL vous plait .— Madame Didier saiu da sala.
Virginia se perguntou como sobreviveria a demora de tirar suas medidas.
Sofie sustentava agora diante dela uma seda rica e resplandecente de cor vermelha escura. Uma sensação de vazio se apropriou de Virginia enquanto Devlin assentiam com a cabeça, muito devagar. Desta vez, Sofie não afastou o tecido.
— A que altura, mon Capitão ? — Sofie perguntou com voz sedosa enquanto ajustava o tecido, para que somente as curvas mais proeminentes do seio de Virginia se destacassem. — Pour o jour?
— Mais embaixo. — Ele disse.
Virginia se sentia possuída por uma espécie de transe sexual. Piscou. Não sabia se estava horrorizada ou não. Nunca havia usado decote baixo, e muito menos, tão baixo como aquele.
— Assim? — Perguntou Sofie depois de baixar o tecido uns quantos centímetros.
— Muito bem. — Disse Devlin com voz densa. E de repente ele começou a conversar em um fluente francês.
— D'accord. — Replicou Sofie lançando um olhar a Virginia e saindo pressurosamente, fechando a porta as suas costas.
Virginia fitou os olhos de Devlin enquanto ele se levantava lentamente. Ela se voltou e, cheia de ansiedade pegou o tecido que havia mais perto, a fim de se cobrir. Mas sabia o que iria acontecer.
— Não. — Ele ordenou.
Ela ficou paralisada, com a peça de seda na mão. Estava com os mamilos dolorosamente endurecidos e o sexo inchado.
Devlin pegou o tecido de seda de sua mão.
— O que faz? — sussurrou ela com voz rouca e os olhos muito abertos.
— Você é muito bonita… — Respondeu Devlin deslizando mãos sobre seus seios e apertando-os com força.
Virginia tentou ficar quieta, mas fracassou. A sensualidade que vinha crescendo dentro dela aflorou de repente. Gemeu e fechou os olhos enquanto Devlin lhe esfregava seus mamilos até que ficassem mais duros e mais tensos que antes, até que ela tremeu, indefesa e começou a gemer. O sexo inchado e palpitante exigia alívio.
— Olhe para mim. — Ele ordenou em voz baixa.
De alguma forma os olhos de Virginia obedeceram. Abriram-se. Seus olhares se encontraram. Os olhos de Devlin eram chamas prateadas. Ele sorriu um pouco, se inclinou e tocou um de seus mamilos com a ponta da língua.
Virginia gemeu e segurou sua cabeça. Tentou dizer-lhe que não fizesse aquilo, em um canto de sua mente sabia que Madame ou Sofie podiam surpreendê-los, mas não pôde. Enquanto lhe lambia o mamilo, ela começou a se retorcer. A explosão era iminente.
Então sentiu que as mãos de Devlin deslizavam até sua cintura e começavam a lhe baixar a roupa intima. Mesmo envolta em uma neblina de luxúria, ela conseguiu se preocupar com o que Devlin fazia. Como se lesse seus pensamentos, ele murmurou junto ao mamilo inchado e dolorido: — Deixa que eu te dê prazer, querida.
— Aqui não. — Ela conseguiu murmurar.
Mas ele já estava com o rosto encostado ao seu umbigo e ela o sentiu sorrir através do espartilho que usava.
— Não nos incomodarão. — Ele baixou sua roupa intima que logo caiu ao redor dos tornozelos de Virginia. Virginia se segurou em seus ombros e febril cravou-lhe as unhas neles e o empurrou para baixo.
— A paciência é uma virtude. — Ele lhe recordou enquanto deslizava o rosto para baixo, até esfregar a bochecha seu monte de Vênus.
— Oh, Devlin. — Ela soluçou.
Ele beijou seu púbis, repetidamente.
Ela desabou.
Devlin a tomou em seus braços e a depositou sobre os montes de tecidos de seda e cetim e quando ela se abriu, ele afastou as grossas dobras de seu sexo e inseriu sua língua neles.
Virginia se arqueou, soluçou e explodiu. Transformou-se em pedacinhos e voou muito alto.
— Devlin!
Ele lambeu profundamente seu sexo e o acariciou suavemente, enquanto ela explodia novamente, soluçava, gemia e tremia como uma folha verde ao vento.
Quando começou a flutuar, a mente de Virginia pareceu voltar à vida. Sufocou um grito e abriu os olhos. Continuava ainda de costas sobre os tecidos, nua, salvo pelas meias e o espartilho. Devlin estava entre suas coxas, que seguiam impudicamente abertas para ele. Começou a fechá-las, mas ele pôs a mão sobre seu sexo.
— Não.
O desejo se avivou novamente. Ela permaneceu quieta, ofegando.
— E se…? — Começou a dizer.
Ele começou a brincar com as dobras de seu sexo, colocando os dedos entre seus pelos.
— Não nos interromperão.
Virginia quis protestar, mas esqueceu o assunto e se arqueou contra sua mão. Ele a penetrou com os dedos. Já não havia barreira. O prazer de senti-lo dentro, embora fossem somente os dois dedos, era tão intenso que tudo pareceu desaparecer.
— Pode vir outra vez para mim, pequena? — Ele perguntou com voz áspera.
Ela fitou seus olhos e encontrou uma labareda de prata.
— Por favor… Coloque mais… Aí… — Murmurou.
Ele a apertou com veemência e ela viu que o suor corria por sua testa. Mas não lhe bastava aquilo. Sabia o que queria. Começou a se sentar e ergueu os braços para ele. Roçou com a mão o membro rígido e duro, apertado contra a calça clara… Mas ele lhe afastou a mão.
Ela o fitou, surpresa. Ele seguiu movendo os dedos com força dentro dela.
Virginia gemeu e se deixou cair sobre o monte de tecidos e fitas. Os dedos de Devlin se moviam cada vez mais, longos e fortes, uma e outra vez. Ela era vagamente ciente que Devlin estava com o olhar fixo nela. Sabia que se estava se comportando sem pudor algum, mas começou a se retorcer e suplicar.
— Por favor, Devlin. Por favor, venha dentro de mim… Por favor…
Ele gemeu e se inclinou sobre ela. Virginia sentiu os lábios dele sobre os seus. Sua língua penetrou seus lábios enquanto a mão dele seguia acariciando-a. Ela compreendeu que precisava. Que queria. Que devia ter mais ainda.
De repente, a mão de Devlin desapareceu. Ela estava em seus braços e seu membro esfregava contra seu sexo. Ela gemeu, segurou em seus ombros e explodiu em mil pedaços várias vezes, enquanto ele se esfregava contra ela seguidamente, ofegando e murmurando seu nome.
Virginia permaneceu por longos momentos estendida sobre os suaves tecidos de seda e cetim do chão. Devlin jazia sobre ela e respirava trabalhosamente, sem se mover, ainda excitado. Ela sentiu se ruborizar. Começou a pensar, se encher de dúvidas e se preocupar.
Ele se sentou. Ela procurou seu olhar. Os olhos de Devlin escorregaram sobre seu corpo. O rubor salpicava as altas maçãs de seu rosto.
Virginia se sentou e pegou um corte de tecido se cobriu. Estava perplexa, mas não envergonhada. E queria mais, muito mais.
— É um pouco tarde para isso. — Disse ele olhando o tecido de seda rosa que ela sustentava.
Ela umedeceu os lábios. Ainda ansiava senti-lo dentro de si, mas não só com os dedos.
— Desejava fazer tudo outra vez. — Disse ele em voz baixa fitando seus olhos. — Você é incrivelmente apaixonada, Virginia.
Suas palavras foram diretas ao coração de Virginia.
— E seu prazer? — Ela perguntou em voz baixa, cada vez mais emocionada. Mas nem sequer a união de seus corpos, bastaria. Se ele estendesse a mão e a acariciasse com verdadeiro afeto…
Mas Devlin encolheu os ombros e se levantou.
— Sobreviverei.
Ela também se levantou. Negava a se sentir desiludida. Rapidamente vestiu a roupa de baixo.
— Está parecendo um canhão. — Conseguiu dizer dando-se por vencida. Estava decepcionada.
— O que? — Ele perguntou, surpreso.
Ela não respondeu. Não entendia por que Devlin não sentia algum afeto por ela. Por que tinha que ser simplesmente sexo. Nunca entenderia a linha que ele havia traçado e nem seu significado.
— Quero dizer que lamento que você não goze.
— Já lhe ouvi. — Ele disse e sorriu. — Os homens gostam que apreciem o tamanho de seu membro.
— Estou segura de que muitas o admiraram. — Ela o fitou de frente. — Estou confusa, Devlin.
Sua máscara reapareceu.
— Não fique. Só foi um… Momento. Não deve ficar confusa.
— Sou tão bela, que quase perdeste o controle?
— Francamente, sim.
Ela o fitou, pasma. Disposta a lhe reprovar que se ele estivesse zombando dela, mas em seguida compreendeu que não se tratava de uma zombaria.
— Fala a sério? — Perguntou.
— Sim. — Devlin franziu os lábios, indeciso. Mas logo lhe respondeu: — Sim, seriamente.
Virginia sorriu, cheia de alegria.
— Mas…
Devlin lhe tocou os lábios.
— Por que não aceita o elogio e desfruta dele?
Ela sorriu. Seu coração parecia a ponto de explodir, de tão cheio de música. Devlin achava-lhe bela. Sua decepção evaporou.
— Sabe que acho que é o que vou fazer.


Capítulo 19


No Regent Street reinava a calma quando abandonaram a loja de Madame Didier. Era tarde restavam alguns vendedores. Algumas tendas já haviam fechado e restavam poucos transeuntes, todos eles cavalheiros.
— É mais tarde do que acredito? — Perguntou Virginia. Devlin havia se ausentado o resto da sessão de medidas, não sem antes explicar com detalhes a Madame Didier, como queria que desenhasse e adornasse seus vestidos.
— São quatro horas, mas nestas horas as madames da boa sociedade estão se preparando para seus compromissos da tarde. — Ele respondeu com tranqüilidade.
Ela tentava não fitar seus olhos, mas era impossível, do mesmo modo que não podia evitar pensar em suas carícias. Sentia-se trêmula. O que devia fazer agora? Como deveria proceder a respeito de seu pacto, que para ela já não era um simples jogo, mas que significava muito mais? Deveria estar contente por Devlin lhe achar o bastante bela para quase perder o controle e, embora aquilo a agradasse se sentia tomada pelo desânimo.
— Terá belos vestidos, Virginia. Sei que não se interessa por moda, mas pode ficar com eles quando for embora.
A ira voltou de repente e Virginia não pôde refreá-la.
— Não quero os vestidos, Devlin.
Ele vacilou e confrontou, no meio da rua.
— Mas eu estou lhe oferecendo.
— E esse grande gesto faz com que se sinta menos culpado? — Replicou ela com amargura.
Devlin a fitou atentamente. Ela ruborizou e desejou não ter falado.
— Deveria me sentir culpado? — Ele perguntou lentamente, como se escolhesse as palavras com cuidado. — Por te dar prazer?
— Por tudo. — Replicou ela com ardor.
— Te dar os vestidos não tem nada a ver com a culpa. — Disse ele. — Você me parecia entristecida. Confiei em te levantar o ânimo.
— Poderia voltar a me dar prazer. — Disse ela, irritada. — Isso sem dúvida serviria.
Ele se surpreendeu. Virginia se afastou lamentando suas palavras. Além disso, o êxtase que Devlin procurara lhe dar era a ante-sala da dor. Lamentava não ser uma mulher do mundo e não ser capaz de desfrutar de seus favores sem ansiar tolamente por seu amor. Se pelo menos ele se sentisse culpado por se servir dela…
— Senhora! Olhe os cachorrinhos bonitos que vendo! São lindos! Venha vê-los!
Virginia piscava para conter as lágrimas. Levantou os olhos e se encontrou com a cara de um cachorrinho negro e gordinho, com as orelhas enormes e caídas e grandes olhos castanhos. Sua língua era rosada.
— Bonito, não? — Disse o homem desdentado. Mas Virginia não lhe prestou atenção. O cachorrinho se retorcia alegremente como uma extensão de sua cauda. Ela sorriu e o pegou. Aconchegou-o ao seio e aproximou o rosto de seus pelos. Era suave e quente. Virginia o abraçou com força e de repente desejou estar em Sweet Briar, onde sua vida tinha sido tão simples e ditosa. As lágrimas começaram a correr livremente. Apertou novamente o cachorrinho e este lhe lambeu a face. Ela levantou o olhar, veementemente.
— Quero este cachorrinho, Devlin. — Ela disse e o fitou , como se o desafiasse a dizer não.
— Estou errado ou é um dinamarquês.
Virginia lhe sustentou o olhar.
Sem afastar os olhos dos dela, Devlin suspirou e disse: — Quanto?
— Um xelim, Senhor.
Devlin deu algumas moedas ao homem.
— Cinco pennys e se considere um afortunado.
— Está bem, Milord! — O homem sorriu e retornou junto aos outros cachorrinhos, que dormitavam em uma cesta.
Virginia se voltou, apaziguada.
— Obrigado. Eu gostei dele, seriamente.
Devlin vacilou. Logo ele também pareceu se apaziguar.
— Bem. Alegro-me. — Disse e sentiu que sorria um pouco. Mas havia mentido. A culpa persistia envenenando-o como uma ferida.


Os dias seguintes passaram devagar. Não receberam visitas e a mansão era tão extensa que Virginia não tinha dificuldade alguma em evitar Devlin, o que agora parecia que devia fazer a todo custo. Ele, por sua parte, não procurava sua companhia. Só compartilhavam o jantar em meio a um tenso silêncio. Ela começou a educar o cachorrinho. Depois disso receberam uma visita.
Virginia havia gostado do apessoado meio-irmão de Devlin, que tinha a mesma idade que ele. Ao se inteirar de sua chegada correu para saudá-lo. Devlin e ele estavam falando em voz baixa. Devlin estava vestido com seu uniforme da Marinha. Surpresa ao vê-lo tão bonito, Virginia se deteve na porta e eles se voltaram. Tyrell acabava de dizer algo sobre o presidente Madison. Ela estava segura.
— Sinto muito. — Disse ela quase sem fôlego e procurou não voltar o olhar para Devlin enquanto se perguntava se ele partiria para cumprir alguma missão oficial. — Me inteirei que havia chegado Lorde de Warenne. Não queria interromper.
— Não está interrompendo nada. Só estávamos falando das eleições presidenciais em seu país. — Devlin lhe sorriu, mas seu olhar, direto e firme parecia esquadrinhá-la em busca de alguma emoção. Foi difícil romper o olhar.
— Olá, Milord. — Disse ela finalmente, dirigindo um sorriso a Tyrell.
— Senhorita Hughes. — Ele lhe sorriu com afeto.
— O presidente Madison foi reeleito? — Ela perguntou, esperançada.
— Por infelicidade, sim. — Replicou Devlin. — A notícia acaba de chegar.
— É um bom presidente. — Disse ela com fineza. — Muito preparado e capaz. — Ela acrescentou.
— Seu presidente, tão preparado e capaz, declarou a guerra a Grã-Bretanha, apesar de o Conselho Privado ter derrogado os decretos reais, coisa que tanto ele como a maioria de seus compatriotas nos exigiam, para impedir a guerra absurda em que estamos.
Virginia o fitou com irritação.
— Esta guerra não acontece somente pelo comércio e pelo desejo da Inglaterra de impedir que nos convertamos em uma nação rica e forte.
— Calma... Calma. — Murmurou Tyrell.
Ela o fitou também, com aborrecimento.
— Esta guerra acontece por que seu país tenta nos reduzir novamente de fato, embora não de direito, ao status de colônia.
— Esta guerra se deve a muitas coisas. Entre elas, que a partida republicana a está usando para favorecer sua agenda política, esmagar os federalistas e conservar o poder. — Replicou Devlin.
— Nega que Grã-Bretanha deseje que sejamos uma colônia pobre? — Ela exclamou.
— Não, não nego. Mas Grã-Bretanha não tem desejo algum de guerra. Virginia, o governo britânico deseja que a Irlanda seja submetida e naturalmente, deseja o mesmo para seu país. Mas aqui ninguém sonha sequer em voltar a se apoderar das colônias americanas. Isso não é mais que propaganda de seus falcões da guerra.
— Você está equivocado. A Grã-Bretanha é um país imperialista. — Replicou ela com veemência.
— Permite-me responder? — Perguntou Tyrell, tranquilamente. Ele sorria e olhava de um ao outro.
— Por favor. — Disse Devlin com um suspiro.
— Os americanos são tão imperialistas como os britânicos, Virginia. Todo mundo sabe que sua política agrária acontece para conquistar o Canadá e se expandir nessa direção.
— Estamos sofrendo derrotas terríveis no Canadá. — Disse ela com mais calma. Lia os jornais diariamente e de algum modo as reduzidas forças britânicas em território canadense haviam conseguido o impossível: derrotar repetidamente às tropas americanas. — Mas ninguém quer apropriar se dos territórios britânicos no Canadá. Só queremos comercializar livremente, sem que sua Armada nos impeça. É nosso direito.
Tyrell fitou Devlin.
— Até que enfim encontrou a forma de seu sapato, Dev?
— Talvez. — Disse ele com despreocupação, enquanto examinava algumas coisas que havia sobre sua mesa. Logo levantou os olhos. — Queria me ver?
Ela titubeou.
— Só queria saudar seu irmão.
— Isso é tudo? — Seu semblante se suavizou.
Ela ficou vermelha.
— Sim. É tudo, na verdade. — Ela lhe respondeu e o fitou mais atentamente. — Por que está de uniforme? Vai partir?
— Não, Virginia. Não vou embarcar. Tenho uma reunião na cidade. Decepcionada?
Ela conteve o fôlego.
— Não. — Reconheceu finalmente.
Ele levantou as sobrancelhas com morna surpresa e lhe sustentou o olhar. Virginia se voltou com o coração acelerado. Alegrava-se tolamente por que Devlin não partiria ainda. Sorriu para Tyrell de Warenne.
— Ficará para jantar conosco? Adoraríamos que jantasse.
— Será um prazer, Senhorita Hughes. — Tyrell fez uma reverência.
Ela sorriu calorosamente.
— Estupendo. Agora, me desculpem... — Ela se dirigiu à porta.
— Virginia… — Disse Devlin.
Ela vacilou e se voltou.
— Sim? — Virginia se viu obrigada enfrentar os olhos fixos nela.
— Amanhã haverá um baile na casa de Lorde Carew, em Londres. Aceitei o convite.
Virginia sentiu o coração se encolher no peito e de repente se sentiu enjoada.
— Não tenho o que vestir. — Ainda não estava preparada. Não depois do que acontecera no dia que visitaram a loja de Madame Didier e da solidão que vinha sentindo ali, na casa de Greenwich. Não lhe ocorria nada pior que ser exposta ante todos, como uma qualquer.
— Três de seus vestidos chegaram hoje, incluído o vestido prateado de baile. — A mandíbula de Devlin se flexionava com um esforço que ela não entendia. Virginia tentou sorrir, mas nada conseguiu. — Sairemos amanhã às sete horas. — Ele concluiu.


— Você está com bom aspecto, Devlin. Como sempre. — Disse o Conde do Liverpool.
Devlin inclinou a cabeça e entrou no escritório do primeiro-ministro. Liverpool informou seu escriturário de que não queria interrupções e fechou a porta as suas costas.
— Chá? Conhaque? — Perguntou.
— Não, obrigado.
— Gostou de sua estadia em Hampshire? — Liverpool lhe indicou uma cadeira.
Devlin se sentou, igualmente o Conde.
— Foi agradável, sim. — Ele mentiu. Confiava em não voltar a pisar em Hampshire nunca mais… A não ser para cobrar o dinheiro do resgate.
— Soube que está com uma amante arrebatadora, uma americana. — Disse Liverpool.
— Sim. — respondeu Devlin sem alterar. — Então as más línguas seguem fofocando.
— Pelo que sei, aqui na cidade existe uns quantos corações quebrados. — Replicou Liverpool. — Podemos ir logo ao assunto?
— Por favor.
— Tom Hughes está pressionando para que eu te destine ao palco de operações americano, Devlin. Napoleão está se retirando da Rússia e seu exército está muito quebrantado. As poucas tropas que restaram foram dizimadas e morrem de fome. De modo que eu aprovo a idéia com entusiasmo… Apesar do fiasco da primavera passada.
— Não me causa nenhum conflito entrar em batalha com os americanos. — Disse Devlin enquanto a primeira onda de excitação se apoderava dele. Entrar em batalha era justamente o que necessitava para tirar Virginia da cabeça e os estranhos sentimentos e idéias que ela despertava nele. — Sofremos graves perdas no mar. Provavelmente eu possa dar uma mudada na situação.
— Sim, essas perdas me preocupam. Entretanto, minha preocupação agora é dupla. Essa americana… Representa algum problema para você?
— Em que sentido?
— Pode ser que sua lealdade para seu país seja forte. E que sua lealdade para com ela seja também. Não queria mandá-lo em uma guerra contra os compatriotas dela, se não estiver disposto.
A boca de Devlin se curvou.
— Milord, — ele disse, — minha amante é uma mulher única e fiel ao seu país, mas meus sentimentos por ela não interferirão no cumprimento de meu dever.
— Esperava que fosse essa a sua resposta. Agora, me responda a outra coisa. Não consigo entender por que Hughes está tão empenhado que lhe enviemos ao Atlântico norte. Sei que vocês não se dão bem, mas tem que haver alguma razão mais que explique esta aversão, além do velho assunto da atriz francesa. Tem alguma idéia?
— Era húngara. — Disse Devlin suavemente. De qualquer modo, Liverpool se inteiraria da identidade de Virginia depois do baile de Carew, então disse: — Pode ser por que minha amante é sua prima.
— Como diz? — Exclamou Liverpool.
Devlin encolheu os ombros.
— Gostei de uma jovem encantada e acredito que seja a sobrinha de Eastleigh.
Liverpool o fitou atentamente, atônito.
— Devlin, você acaso não tem honra? Isso é desprezível.
— Acredito tenho pouca honra, mas respondi a sua pergunta.
Liverpool, que continuava perplexo levantou-se, assim como Devlin.
— E Eastleigh permite esse… Atropelo?
— Não lhe resta alternativa, na verdade. — Devlin encolheu os ombros.
— Esta conduta é simplesmente intolerável. — Disse Liverpool com firmeza. — Pode ser que não se importe, mas como oficial da Marinha de Sua Majestade, se espera que seja um homem de honra e um cavalheiro. Eastleigh insistirá em que se case com ela… E eu também.
Devlin enrijeceu e seu coração tropeçou. Vai se casar com ela para salvar sua reputação? Tyrell havia perguntado. Mas sem dúvida bastaria deixá-la livre. Se fosse necessário, se asseguraria de que ela retornasse a América, onde sua reputação não ficaria danificada.
— Quando me serão entregues as novas ordens? — Perguntou secamente enquanto pensava em Sweet Briar. O imóvel teria sido vendido? Se tivesse Virginia não teria para onde voltar.
— Dentro de uma semana ou duas.
— Ela estará livre quando eu começar minha missão — Disse. — Matrimônio está descartado. — Liverpool o olhava visivelmente surpreso e irritado. — Algo mais? — De repente odiava a si mesmo. Um homem de honra se casaria com Virginia para retificar seu engano. Claro que um homem de honra jamais teria se servido dela como ele havia feito.
— Nunca te entendi. — Disse Liverpool com esforço. — Mas é um oficial excelente. Prestou grandes serviços a seu país, e não sinto mais que admiração e respeito por seu padrasto, Adare. Estou desconcertado. Um oficial de alta classe da Marinha de Sua Majestade ciente que está destruindo a honra de uma mulher… É incompreensível.
— Sugiro-lhe que convoque uma corte marcial para quando acabar minha missão. Mas agora precisa de mim, James. Outra vez. — Devlin se inclinou em uma reverência e saiu.


Virginia contemplava seu reflexo em um espelho oval. Mal podia acreditar que a bela e sedutora criatura que fitasse do espelho fosse ela. Simplesmente, não parecia possível.
— Oh, Senhorita Hughes. — Disse Hannah, a criada. — O Capitão não poderá voltar a olhar para outra, depois de disso.
Ao fitar à mulher esbelta e embelezada com um vestido de gaze e mangas abalonadas de veludo prateado, Virginia quase acreditou. Voltou para observar seu perfil. Seus seios pareciam voluptuosos com o vestido e se notava vivamente a roupa intima nova, pecaminosamente negra e sensual, rematada com fitas e renda. Deveria se sentir como uma prostituta, tendo em conta a roupa intima que vestia, mas não se sentia assim. Estava muito assustada com a noite que a aguardava, e só sentia ansiedade e desânimo.
— Está muito elegante, Senhorita Hughes. O Capitão ficará orgulhoso. — Murmurou Hannah.
Pelo menos não parecia uma qualquer… Ou uma mantida. Tocou a faixa de renda prateada e cheia de contas que adornava seus cabelos, bem mais elegante que um turbante ou uma touca. Só lhe faltava um colar e os brincos. Mas não atrevia a se queixar. Como confrontaria a companhia de damas e cavalheiros mais elegantes e aristocráticos de Londres? Como?
— Chegaremos tarde, Virginia. — Disse Devlin. Ela fitou o espelho e o avistou parado na porta aberta. Os olhos de Devlin cresceram em seu rosto ao vê-la e deslizaram de sua face, até seu seio. — Volte-se. — Ele disse, suavemente.
Ela compreendeu então que seus olhos brilhavam de admiração. Obedeceu. Queria tirar importância daquele momento, e de todos os que sem dúvida a noite lhe proporcionaria. Fez uma reverência.
— Espero que aprove o trabalho de Madame Didier. — Disse com um sorriso forçado.
— Sim. Está aprovado. Agrada-me muito, Virginia. Esta noite será a mulher mais bela da noite. — Ela soltou um suspiro incrédulo. Devlin esboçou um sorriso. — Pode se retirar. — Ele disse à criada. Ela inclinou a cabeça e saiu com os olhos baixos. Ele então se voltou para Virginia e disse. — Venha aqui.
Virginia não ousou desobedecer ou perguntar o por que. Aproximou-se dele. Devlin sorriu um pouco e levantou as mãos, e por um instante ela pensou que ele lhe acariciaria a face. Mas ele lhe prendeu um brinco em cada orelha e depois colocou um colar em seu pescoço. Virginia baixou o olhar e escapar fugir um gemido de surpresa ao ver tantos diamantes ao redor de sua garganta.
— O que é isto?
— Gostou? — Ele perguntou enquanto suas mãos se moviam sobre os ombros de Virginia.
Ela se voltou para o espelho. Devlin estava atrás dela, com as mãos sobre seus ombros. Centenas de diamantes de diferentes tamanhos e lavrados em forma de estrela pendiam de seu pescoço e combinavam com os brincos. Engoliu em seco.
— Sim. — Ela respondeu e se perguntou quando Devlin havia adquirido o colar e por que. Sem dúvida não havia comprado só para ela… Para que ficasse. Não podia lhe perguntar.
— Vamos? — Ele perguntou novamente, soltando-a. Depois ajeitou um xale prateado sobre seus ombros.
Ela assentiu, respirou fundo e começou a tremer. Oxalá fossem a outro lugar, pensou, e não como um cavalheiro e sua amante.
— Não ficaremos muito tempo. — Ele murmurou enquanto a conduzia para fora do aposento, como se adivinhasse seus pensamentos. — Um só minuto já seria muito. Ela se refreou para não lhe responder. Devlin lhe lançou um olhar estranho. — Prometo que isto acabará logo, Virginia. — Disse.


A mansão de Lorde Carew parecia um palácio. Situada nos subúrbios de Greenwich e rodeada por um extenso parque arborizado, que podia albergar facilmente três casas como a de Devlin. Quando a carruagem de Devlin entrou na alameda deixando para trás um labirinto e um jardim de estátuas, Virginia avistou diante deles, as carruagens mais esplêndidas que nunca havia contemplado e o temor a paralisou. Enquanto esperavam seu turno, perguntou:
— Quantos convidados haverá?
— Acredito, que várias centenas. — Respondeu Devlin.
Ele não voltou a falar. Sentado ao seu lado, com as longas pernas cruzadas, ela estava tão bonito como sempre em sua uniforme de festa. Virginia se sentia imobilizada. Custava-lhe respirar. Devlin não parecia notar. Parecia distraído, mas ela ignorava o que podia lhe preocupar tanto. Sua tensão parecia semelhante à dela… E desmentia sua aparente indiferença.
Meia hora depois a porta de sua carruagem se abriu e um lacaio ajudou-a descer. Devlin desceu depois. Começaram a subir a ampla escada de pedra que conduzia à entrada principal, atrás de outros tantos convidados.
— Que alegria vê-lo outra vez, Capitão O’Neill.
— Lorde Arnold, lady Arnold. — Devlin se inclinou diante do sorridente casal. — Permita-me lhes apresentar minha querida amiga, a Senhorita Virginia Hughes.
Virginia sentiu que suas bochechas lhe ardiam quando dois pares de olhos cheios de curiosidade cravaram nela. Lorde Arnold fez uma reverência. Sua esposa se limitou a inclinar a cabeça.
— Boa noite para um baile. Não lhe parece, Senhorita Hughes? — Arnold sorriu.
Ele ainda ignorava a vergonhosa posição de Virginia. Ela assentiu com a cabeça.
— Excelente, sim. — Conseguiu responder e a lady Arnold, mas esta se limitou a observá-la atentamente, sem dizer nada, com um sorriso cortês nos lábios.
Entraram junto com os Arnold. Devlin e Lorde Arnold começaram a conversar sobre uma moção aprovada recentemente pela Câmara dos Comuns. Virginia fitou o teto, boquiaberta. Possuía vários metros de altura e, mais à frente do vasto saguão principal havia um salão de baile ainda maior. Ali, mais de duzentos convidados se misturavam e o local parecia animado pelas cores vivas dos vestidos das damas e as centenas de contas de cristal dos lustres.
— Então é você americana. — Disse lady Arnold quando se detiveram na fila de recepção.
Virginia se sobressaltou e engoliu a saliva.
— Sim. — Sabia que havia ruborizado. Mas, acrescentou: — Não há locais como este de onde procedo.
— E de você onde procede, querida?
— Da Virginia, Milady . — Ela aguardou a seguinte pergunta, terrível e inevitável.
— E como é que se encontra na Inglaterra?
Virginia umedeceu os lábios.
— Meus pais morreram. Meu tio é o Conde de Eastleigh e vim passar um tempo com ele.
— Lamento muito sobre seus pais. — Disse lady Arnold.
Virginia pensou que sob os olhos tão brilhantes havia bondade.
— Sim, obrigado.
— E o Capitão O’Neill? É um amigo da família? — Virginia titubeou. — Não quero parecer intrometida, certamente, mas nunca tinha visto o Capitão em companhia de uma mulher solteira.
Virginia umedeceu os lábios.
— É muito amável. Eu… Hospedo-me em Waverly Hall.
As sobrancelhas de lady Arnold se elevaram com moderado interesse.
— Ah, sim. A casa que ele comprou de seu tio. Sua família vive lá?
— Acredito que não. — Respondeu Virginia. E, simplesmente não pode mais suportar. — Desculpe-me, mas o Capitão me chama de Lady Arnold. — Ciente da surpresa de sua interlocutora, ela se aproximou apressadamente de Devlin. Lançou-lhe um olhar escrutinador. — Acho que esta noite não vou representar direito o meu papel. — Disse secamente.
— Esta noite não é preciso que represente nenhum papel, Virginia. — Ele replicou. — Só tem que ficar comigo, ao meu lado, até irmos embora. — Devlin afastou os olhos, como se não pudesse olhar para ela. — Lorde Carew, — ele fez uma reverência diante de um cavalheiro robusto e adiantado em anos. — permita-me lhe apresentar minha querida amiga, a Senhorita Virginia Hughes.


Virginia estava com uma dor de cabeça espantosa. Mantinha-se afastada e contemplava os muitos convidados que dançavam. Não recordava os passos da dança, enquanto na pista os homens e as mulheres formavam filas e os casais giravam e voltavam a se reunir depois. Devlin conversava com vários cavalheiros, a certa distância, e Virginia sabia por seus constantes olhares que os homens conheciam perfeitamente qual era a posição que ela ocupava. Sentia-se muito infeliz.
— Gosta de dançar?
Ela se voltou e confrontou o semblante sorridente de Tyrell de Warenne.
— Milord! Acredito que esqueci os passos. — Confessou. Logo notou que havia se esquecido de fazer uma reverência e se apressou a emendar seu engano.
Ele a tocou para impedir que se inclinasse.
— Por favor, Senhorita Hughes. Acredito que nos conhecemos o bastante bem, para economizar essas formalidades.
Ela se sentiu aliviada.
— Vocês ingleses são tão formais. — Ela explicou. — Para mim foi duro me acostumar.
— Sim, imagino. — Disse Tyrell amavelmente, com um sorriso benévolo. Ofereceu-lhe o braço. — Quer dar um passeio pela galeria?
Ela fitou Devlin, que havia se voltado para eles.
— Duvido que ele permita. Não fui o suficientemente exibida.
O sorriso do Tyrell se desapareceu.
— Posso falar com franqueza, Virginia?
Ela se enrijeceu.
— Por favor, faça-o.
— Toda minha família está furiosa com Devlin por sua conduta, e o fato de que tenha te trazido aqui é o menos importante.
Ela ficou boquiaberta. Notou que Devlin abandonava o grupo de cavalheiros e se dirigia tranqüilamente para eles. Mas não se engano. Advertia a determinação de seus passos e sentia sua resolução.
— Só quero lhe dizer que justiça será feita, Virginia. Dentro de pouco será compensada por tudo o que teve que sofrer. Meu pai se encarregará disso.
Ela ignorava ao que ele se referia. Uma compensação? De repente a esperança se apoderou dela. Será que eles lhe ajudariam a pagar as dívidas de seu pai? Isso sem dúvida seria uma compensação por tudo o que havia passado!
Devlin se deteve e pegou seu braço.
— Tenta me roubar o afeto de Virginia?
— Como se você sentisse algum respeito por seus afetos, Devlin. — Respondeu-lhe Tyrell.
Devlin inclinou a cabeça enquanto Virginia ignorava a conversa. Estava pensando na compensação que logo seria dela. Afinal parecia que sua terrível má sorte estava para mudar.
— Dançamos? — Devlin perguntou quase cerimoniosamente.
Ela se sobressaltou.
— Menti a você. Não sei dançar. Nem um só passo.
Ele sorriu. E o calor de seu sorriso alcançou seus olhos.
— Dançar me aborrece. Quer que te traga um pouco de champanhe ?
Ela assentiu com um gesto de cabeça e desejou que ele tivesse sugerido ir embora. Sentia afortunada-se por ter escapado de algum encontro desagradável e humilhante. Devlin se afastou. Tyrell disse:
— Vejo que está você ocupada, então boa noite. Confio em que logo nos vejamos. — Ele fez uma reverência.
Virginia sorriu, se inclinou diante ele e o observou se afastar. De repente ficou verdadeiramente sozinha. Era uma sensação estranha, se achar rodeada de trezentas e cinqüenta pessoas e, entretanto, permanecer terrivelmente sozinha. Quando Devlin e Tyrell, se3 afastaram vários grupos de convidados se voltaram para ela, que tinha a clara sensação de que era o tema de mais de uma conversa. Algumas senhoras reunidas em grupos observavam atentamente e conversavam muito depressa enquanto se abanavam. Virginia se convenceu que estavam falando dela.
Deu-lhes as costas e se encontrou de frente a três belos cavalheiros que lhe sorriram ao mesmo. Ela deu um passo para trás. Eles se aproximaram. O que estava mais perto, um cavalheiro de trinta anos mais o menos e um chamativo cabelo vermelho, lhe fez uma reverência.
— Não acredito ter o prazer de conhecê-la. — ele disse.
Ela muniu-se de coragem e respondeu: — Não, acredito que não. Sou Virginia Hughes.
— John Marshall, aos seus pés. — Disse ele com outra reverência. — Você é americana?
— Sim. — Disse ela. — Mas vim a Inglaterra para visitar meu tio, o Conde de Eastleigh. — A história já havia dado resultado e ela decidiu continuar usando-a.
— Eastleigh é seu tio? — Marshall parecia encantado. — E veio você esta noite no grupo do Capitão O’Neill?
Virginia ignorava se o cavalheiro sabia que chegara como única acompanhante de Devlin.
— Sim. — Seu sorriso era forçado.
— Permita-me lhe apresentar meus bons amigos, Lorde Halsey e Lorde Ridgewood.
Virginia sorriu e saudou galantemente os cavalheiros enquanto eles se inclinavam diante dela. Sentia-se rodeada pelo inimigo.
— E como é que conhece você o maior e mais notório herói de guerra da Grã-Bretanha? — Perguntou Ridgewood. Era alto e pálido.
— Ora, vamos, George. Todos nós sabemos que O’Neill sempre reserva às mais bonitas. — Marshall sorriu e os outros o acompanharam. Logo, com um sorriso que não iluminou seus olhos, ele acrescentou: — Não é nenhum segredo que O’Neill e o primo da Senhorita, Tom Hughes, não se gostam. Acho interessante que você acompanhe a uma festa, o maior inimigo de seu primo.
Virginia encolheu os ombros, indefesa.
— A Senhorita Hughes e o Capitão O’Neill são grandes amigos… Pelo menos é o que sei. — Disse Halsey com um sorris, e deu uma cotovelada em Ridgewood. — Bons amigos. Você reside em Waverly Hall, não é?
— Sim. — Virginia conseguiu dizer e sentiu ódio por eles e também por Devlin. Não podia suportar mais. Não havia ganhado sua amizade. O pacto só funcionava para ele. Estava farta.
— Posso visitá-la Senhorita Hughes? Amanhã, talvez? — Perguntou Marshall se inclinando para ela.
— Desculpem-me. — Disse Virginia e voltando o corpo saiu correndo entre a multidão.
Custava-lhe ver. O salão era um borrão de vermelhos brilhantes, de dourados e púrpuras, de azuis e verdes misturados a cor negra dos trajes engomados dos cavalheiros. As lágrimas velavam seus olhos e ela mal podia respirar. Fazia um calor tão sufocante no salão … Se pudesse, por arte de magia, se encontrar do outro lado do oceano em sua casa na Virginia…
A justiça será feita. Logo será compensada.
A singular afirmação de Tyrell de Warenne lhe produziu certa sensação de alívio enquanto entrava rapidamente na galeria que havia à frente do salão de baile. Alguns convidados passeavam por ela. Virginia avançou apressadamente pela galeria e entrou em outra galeria mal iluminada, pelo lado da casa. A luz procedia em sua maior parte, de uma fileira de enormes janelas, da lua e das estrelas. Agradecida por finalmente se encontrar só, Virginia se aproximou de uma janela e se apoiou no parapeito de pedra. A dor lhe atravessava o corpo como uma faca. Tinha que fugir. Não podia continuar assim.
Continuou respirando até que parou de ofegar, até que a dor se dissipasse. Se pudesse odiar Devlin… Sabia que devia odiá-lo, mas simplesmente não podia.
Estou lhe pedindo que salve meu irmão.
Virginia soluçou. Devlin não tinha salvação. Havia ficado espantosamente claro. Doía-lhe tanto o estômago que ela se abraçou se dobrou cintura.
— Mas é a minha queridíssima prima americana.
Virginia se ergueu e soltou uma exclamação de temor. Lentamente, se voltou. Era um oficial da Marinha. Forte e bonito, ele se encontrava sorrindo em frente a ela. Ele lhe fez uma reverência.
— Lorde Capitão Thomas Hughes. — Disse. — Estou encantado de conhecê-la, por fim.
Virginia precisava de ar.
— Milord. — Ela respondeu com cautela enquanto olhava freneticamente ao seu redor. Mas não havia nem rastro de Devlin.
— Parece assustada.. — Ronronou Tom Hughes. — Mas sem dúvida minha querida prima não tem medo de mim — Ela não podia falar. Pressentia a terrível intenção de seu primo e retrocedeu até se chocar com o parapeito da janela. — Está gostando do baile, Virginia?
— Des… Desculpe-me. — Ela murmurou e conseguiu passar ao seu lado. Mas ele a segurou pelo braço e a fez voltar com violência, empurrando-a contra a beirada de pedra da janela.
— Gosta tanto do baile como da cama do Capitão O’Neill?
Ela soltou um leve grito, assustada e tentou se afastar.
— Solte-me. Está me fazendo mal, Senhor!
Ele a apertou com mais força e se inclinou para ela.
— Ouvi dizer que ele é apaixonado como um touro. É o que você gosta? O que quer? Minha priminha… Minha rameirinha...
Virginia sentiu que a dor lhe atravessava o braço e pensou que desmaiaria.
— Por favor… — gemeu.
— Oh, sim. Sim. A palavra que eu tanto ansiava ouvir. — Ele a puxou e antes que Virginia se desse conta estava lhe beijando.
Ela tentou lutar. Mas Hughes a apertava brutalmente contra a parede de pedra com seu corpo e mordia sua boca com tal violência que ela soluçou imediatamente. Ele introduziu a língua entre seus lábios e ela sentiu náuseas. Enquanto ele se apoderava de sua boca, ela notou que sua mão se introduzia dentro de seu vestido e apertava um de seus seios, esmagando-o. A dor voltou a explodir dentro dela. Então sentiu o membro ereto contra sua coxa e o uma névoa negra começou a envolvê-la. Lutou contra ela, como tentava lutar em vão contra ele. Mas ela a mantinha cravada à parede enquanto a manuseava. Virginia não duvidava que se desmaiasse, ele a violaria. Entretanto, começou a afundar nas profundezas.
— Vou matá-lo.
As ferozes palavras de Devlin atravessaram a escuridão e de repente, Tom Hughes desapareceu. Virginia caiu no chão, ainda soluçando, com o seio e o braço doloridos. Ouviu um homem gritar. Aterrada, levantou o olhar. Hughes jazia no chão e acima dele havia sangue sobre a parede.
Ela começou a compreender. Devlin havia chutado Hughes.
— Levante-se, covarde. — Devlin provocou, em tom muito macio.
Virginia devia detê-lo. Ele havia falado seriamente. Mataria Hughes. Mas ela ainda não podia falar.
Hughes ficou de quatro.
— Não é mais que uma puta. — Ele cuspiu sangue.
Devlin o fez se levantar e o jogou contra a parede de pedra. Logo o segurou enquanto caía e levantou-o novamente lhe acertando um murro na face. Algo se quebrou.
Virginia ignorou a dor e se levantou.
— Pare, Devlin! Pare!
Mas Hughes, mesmo com a face ensangüentada sacou sua espada. Virginia mal podia acreditar no que via. Devlin sorriu.
— Um passo em falso. — ele disse. Sua espada ressoou ao abandonar a bainha. Os dois homens começaram a dançar calmamente ao redor um do outro, possuídos por intenções mortais.
— Não, Devlin! — Virginia gritou.
Ele não dava amostras de ouvi-la. Insinuou uma vez. Hughes interpretou mal seu movimento e tentou deter o golpe. Devlin investiu contra ele e lhe rasgou o uniforme. Brotou sangue. Hughes gritou.
Tyrell. Virginia saiu correndo e entrou na galeria, fitou febrilmente ao seu redor e só quando estava em meio à galeria se deu conta de que as pessoas a observavam, boquiabertas, enquanto corria. Notou então em que tinha o cabelo solto e o vestido rasgado. O ocorrido estava terrivelmente claro. Mas sua evidente perdição não importava nesse momento. Deteve-se na porta do salão de dança e notou a enorme multidão e se desesperou. Devlin mataria Tom Hughes, ela sabia, e seria enforcado por isso. Então avistou Tyrell no meio do salão, dançando com uma bela loira.
As pessoas se voltavam para ela. Muniu-se de coragem, levantou as saias e se pôs a correr.
— Milord de Warenne!
Tyrell, que estava em frente a sua parceira de dança, se enrijeceu. Ela gritou novamente.
— Tyrell! Milord! Socorro!
Ele se voltou. Então a vistou e seus olhos se dilataram. Correu para ela. Os pares que dançavam pararam bruscamente.
— O que aconteceu? Está ferida?
— Devlin vai matar Tom Hughes no corredor atrás da galeria. — Ela soluçou.
Tyrell saiu correndo como um raio. Virginia correu atrás dele, consciente de que um pavoroso silêncio havia caído sobre o salão. Era tarde para preocupar. Atravessou o salão, atrás de Tyrell rumo à galeria.
No corredor já se ouvia os dois homens ainda lutando. Hughes estava coberto de sangue. Devlin seguia impecável em seu uniforme. Seu adversário apenas se mantinha em pé. Atacaram-se e de repente a espada do Hughes tilintou no chão, caindo longe de seu alcance. Devlin apoiou a ponta da espada sobre seu peito, onde permaneceu imóvel. Devlin sorria cruelmente.
— Já basta. — Disse Tyrell, se colocando atrás dele.
Hughes estava de costas contra a parede e cambaleava, como se estivesse a ponto de desmaiar. A multidão que se reuniu atrás a Virginia murmurava e lançava exclamações de espanto. Devlin tinha o rosto tenso e crispado, coberto por uma máscara que Virginia não nunca tinha visto antes. Ela compreendeu que Devlin ansiava matar. Seu sorriso era mais que gélido. Era aterrador.
— Eu acredito que não. Acredito que seja a hora de que Tom Hughes morrer.
— E tudo por essa zorra? — Conseguiu dizer Hughes.
Quando Devlin se dispôs a dar a estocada mortal no coração do Hughes, a multidão gritou e Tyrell o segurou pela mão. O deteve.
— Não faça isso.
Devlin mostrava um sorriso selvagem.
— Afaste-se de meu caminho.
— Não vai matá-lo. — Replicou Tyrell enquanto segurava com força sua mão. Virginia fechou os olhos e rezou. — Não vale à pena. Ele não matou Gerald, Devlin. Não é ele quem você procura. — Acrescentou Tyrell em voz baixa .
Virginia abriu os olhos e notou que Devlin, enlouquecido como um selvagem, continuava suspenso no sinal de matar.
— Virginia não está ferida. — Acrescentou Tyrell ainda em voz mais baixa.
O rosto de Devlin se enrijeceu por inteiro. Fitou-a um instante, voltou a olhar Hughes e de repente seu corpo relaxou. Ele deu um passo para trás. Os convidados que observavam a cena suspiraram aliviados. Virginia sentiu que seus joelhos fraquejavam.
Então uns quantos oficiais correram para atender Hughes. Devlin embainhou a espada, voltou-se. Aproximou-se dela.
— Você está bem? — Ele perguntou sem tocá-la, enquanto seus olhos moviam sobre sua face e seus cabelos e pousavam finalmente em seus lábios, que Virginia sabia estar ensangüentados. Ele notou então o decote rasgado do vestido e seus olhos voltaram a gelar.
Virginia ficou sem fala. Conseguiu assentir, incapaz de afastar os olhos dele. Nesse instante, Devlin era o porto mais seguro que havia conhecido. O queixo dele enrijeceu e seus olhos obscureceram. Envolveu-a com o braço.
— Vamos para casa. — Ele disse.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 20


Virginia não conseguia parar de tremer. Sabia que era uma tolice. Estava machucada, mas fora isso não era ela que tinha saído pior. E não queria que Devlin visse o quão covarde era. Entretanto, os tremores não cessavam. Revolveu-lhe o estômago enquanto a carruagem avançava velozmente, estralando. Fechou os olhos e se segurou no assento.
— Virginia… — Disse ele brandamente.
Ela não queria falar. Duvidava que pudesse. Continuava muito perto da histeria. Abraçou-se e se encolheu em um canto, afligida por outras imagens. Devlin queria matar Hughes. Ela tinha visto em seus olhos.
— Em seguida chegaremos em casa. — Disse ele com voz estranha, como se sentisse inseguro.
Ela assentiu, mas não abriu os olhos. Devlin parecia estranhamente preocupado e ela temia voltar a chorar. Claro que ele quisera matar Hughes. Havia levado toda a sua vida queimando no desejo de vingar de Eastleigh e de tudo que fosse dele.
— Está passando mal, Virginia?
Ela negou com a cabeça e não era mentira, na realidade.
Doía-lhe o seio e a mão, mas somente isso. Devlin parecia querer saber o que lhe acontecia. Mas ela não podia lhe dizer.
Tom Hughes a tinha tratado como a rameira que todo mundo acreditava ser. Ela jamais poderia voltar a jogar e se isso significava perder qualquer oportunidade de conquistar o amor de Devlin, que assim fosse. De toda maneira havia ficado claro como a água, que não restava mais alma com a qual ele amar uma mulher, e muito menos a ela. O quanto facilmente foi despertou nele o desejo de matar!
— Chegamos. — Disse ele com voz azeda.
A carruagem havia parado. Virginia abriu os olhos e avistou Waverly Hall. Um lacaio se apressou a lhe abrir a portinhola da carruagem. Devlin lhe ajustou o xale de cetim para ocultar o vestido rasgado. O coração de Virginia encolheu. Por que ele se incomodava? Ela sabia que seu lábio cortado delatava a calamidade que havia sofrido. Quis lhe agradecer, mas não conseguiu falar. Levantou-se e deixou que o lacaio a ajudasse a descer diante da escada de pedra da casa.
Devlin desceu de um salto atrás dela, como um gato. Virginia se sentiu arrastada no tempo para outro lugar, para o convés do navio Americana, quando presa a amurada contemplava o oceano e se perguntava qual seria seu destino nas mãos daquele Capitão pirata. Se pensa saltar na água, pense duas vezes. Não te deixarei morrer.
Que estranho. A voz de Devlin pareceu transpassar a noite, como se Virginia estivesse novamente no navio e ele se encontrasse atrás dela e acabasse de pronunciar as mesmas palavras. Devlin a segurou com cuidado pelo braço e Virginia se apoiou pesadamente nele. Uma vez no saguão, ele disse a Benson: — Envie Hannah imediatamente ao meu quarto com água quente, toalhas e conhaque. A Senhorita Hughes sofreu uma queda.
Benson assentiu com a cabeça e partiu pressuroso. Agora que Devlin pretendia proteger sua reputação? Perguntou-se Virginia sentindo vontade de chorar. Ele levantou de repente nos braços e começou a entrar no saguão.
— O que faz? — Ela conseguiu dizer. — Posso andar.
— Faço o que desejei fazer desde que perdoei a vida de Tom Hughes. — Ele replicou, com aspereza.
Finalmente Virginia o fitou enquanto subiam as escadas. Devlin estava o rosto tomado pela ira e o arrependimento e, pensou ela, também pela angústia. Seus olhos se encontraram. Ele não disse nada, nem ela tampouco. Virginia compreendeu perplexa, que Devlin sofria. Ele abriu a porta com a ponta do pé, atravessou a pequena sala de estar e entrou no quarto principal. O fogo da lareira queimava alegremente e as cobertas da cama estavam afastadas. Devlin a depositou sobre ela e lhe tirou o xale.
— Ajudarei você a tirar esse vestido antes que Hannah chegue. — Ele disse sem olhar para ela.
Virginia notou que ainda estava se abraçando, que ainda tremia, e que não tinha frio. Por que Devlin tomava suas dores? Na manhã seguinte, toda a sociedade saberia a notícia.
— Volte-se, por favor. — Disse ele brandamente.
Virginia se sobressaltou. Logo replicou com voz rouca: — Nunca te ouvi dizer esta palavra, por favor.
Devlin enrijeceu.
— Essa é uma palavra que raras vezes sinto necessidade de usar. Virginia… — Ele se interrompeu.
Ela o fitava atentamente. Sabia que ele estava preocupado, que se sentia incômodo e que desejava dizer alguma coisa. Seu coração saltou no peito, esperançoso.
— O que está acontecendo, Devlin?
Seguiu-se um instante de silêncio. Depois ele disse com aspereza: — Sinto muito.
O coração de Virginia estremeceu com tanta força que não restou dúvida alguma do que continuava sentindo por ele. Nada havia mudado. Ainda o amava. Abriu a boca para dizer que não era culpa dela… Mas era. Tudo era culpa dela.
— Por favor, volte-se. — Repetiu ele em tom tão áspero como antes.
Virginia mudou de postura e ele lhe desabotoou habilmente o vestido. Quando o tirou ela começou a desfazer o penteado, ciente da presença de Devlin, que se afastara para deixar o vestido sobre o respaldo de uma cadeira. Seguiu-se um longo silencio. Virginia acusava agudamente seu estado seminu. Estava com sua roupa intima nova. Usava a camisa de baixo, o espartilho e a calçinha de seda negra, adornados com fitas rosa e marfim. Precisava se cobrir, pensou, aguilhoada por uma repentina urgência.
— Você poderia… — Interrompeu-se, umedeceu os lábios e tentou novamente. — Você poderia me alcançar uma camisola?
Ele a fitou por um instante, mas se notou em sua roupa intima, não deu a entender. Abriu o roupeiro no instante em que bateram na porta.
— Entre. — Ele disse rapidamente e Virginia pensou perplexa, que ele parecia aliviado.
Hannah entrou carregando uma bandeja com uma bacia cheia de água e toalhas. Devlin deslizou uma camisola de seda violeta sobre os ombros de Virginia e ela a fechou com firmeza, mais tranqüila.
— Ai, meu Deus! — Hannah murmurou. — Você caiu! Quanto sinto! — Ela exclamou deixando a bandeja sobre a cama. — Um minuto, Capitão.
Ele assentiu com a cabeça e Hannah se aproximou da porta e pegou outra bandeja que um criado segurava fora da porta, esta com uma garrafa de conhaque e duas taças. Devlin pegou uma toalha, umedeceu-a e fitou Virginia diretamente.
— Está com sangue no lábio. — Disse.
Virginia o observava atônita por causa de seu jeito. Seu coração batia enlouquecido. Ele se sentou ao seu lado e limpou seu lábio com delicadeza. Ela não podia respirar. O que Devlin estava fazendo? E por quê?
Ele levantou-lhe o queixo, observou sua boca por um momento e logo buscou seus olhos.
— Acredito que ficará com o lábio inchado uns quantos dias.
Virginia não sabia o que dizer. As carícias de Devlin eram extremamente suaves. Ela nunca tinha visto aquela faceta dele. Se não estivesse tão angustiada teria se sentido especial.
Hannah retornou com duas taças. Devlin assinalou o criado mudo com a cabeça e ela deixou as taças nele. Ele levantou a mão de Virginia, ainda dolorida. E ela notou que seu semblante voltava a endurecer e seus olhos se tornaram negros. Devlin resmungou uma maldição.
— Não é para tanto. — Mentiu ela enquanto seu coração pulsava com espantosa força.
Ele levantou o olhar.
— Não uma ova. Acredito que ele pretendia parti-la em duas com as mãos. Foi uma sorte para ele que não fizesse isso.
Virginia lhe fitava, atenta. Importava a Devlin. Não havia outra explicação para sua atitude.
Devlin lhe deu uma taça.
— Beba. Vai te ajudar. Aconselho-a que beba tudo. Dormirá como um bebê. — Acrescentou tentando sorrir. Mas fracassou e se deu por vencido.
Virginia bebeu um gole, ainda mais assombrada e incrédula. Sentia finalmente um broto de esperança. Mas, como poderia estar acontecendo aquilo? E se estivesse errada? Devlin lhe tinha feito mal tantas vezes, que já não atrevia a abrigar esperanças de que algum dia ele chegasse a amá-la. Mas, o que então significava sua atitude? Aquele homem não conhecia o que era culpa.
Devlin se levantou.
— Nesta noite dormirei em um quarto de convidados para não te incomodar, Virginia.
Ela piscou, desalentada. A última coisa que queria era ficar sozinha, embora ele dormisse no sofá da pequena sala ao lado, como estava acostumado a fazer.
— Coloque compressas frias na mão dela Hannah, por favor.
— Sim, Senhor. — Sussurrou Hannah.
Virginia umedeceu os lábios.
— Não, Devlin. — Virginia disse com voz rouca. Ele se enrijeceu. — Não quero ficar sozinha esta noite. Por favor, fique comigo. — Ela soluçou baixinho e seus olhos se encheram de lágrimas.
Os olhos de Devlin se dilataram e seu semblante mostrou uma expressão bem mais severa que antes. Parecia incapaz de falar.
— Irei buscar gelo. — Hannah murmurou e saiu discretamente do aposento.
Virginia não podia se mover. Observava Devlin enquanto as lágrimas corriam por seu rosto. Desejava parar de chorar, que Devlin a aconchegasse em seus braços com carinho. Ele continuava rígido, preso em um conflito que ela não conseguia entender.
— Virginia, — ele lhe disse com voz rouca, — tudo isto é culpa minha. Usei-a com a maior falta de vergonha. Sinto muito. — Ela gemeu tomada pela surpresa. Ele fechou os olhos, como se estivesse sofrendo e se sentou junto a ela. Segurou suas mãos. — Não pedirei seu perdão, porque não o mereço, pequena.
— Está perdoado, Devlin. — Ela murmurou imediatamente.
As aletas do nariz de Devlin se inflamaram indicando uma profunda emoção e ele buscou seus olhos sem soltar suas mãos.
— Como pode ser tão generosa depois do que tenho lhe feito passar? Tom te atacou por culpa de nossa farsa. Da farsa em que eu me empenhei em montar. Deus! Oxalá o tivesse matado. — Ele exclamou.
Virginia nunca havia lhe visto tão emocionado. Devlin era um homem que só expressava ira.
— Não aconteceu nada. — Ela murmurou com voz rasgada. Ele lhe apertava com força as mãos. — Ele não me violou.
Os olhos de Devlin se dilataram em seu rosto.
— Era isso o que ele pretendia? Em um corredor onde podia passar qualquer pessoa?
Virginia notou fúria em seus olhos e titubeou ao responder.
— Acredito que sim.
Ele se levantou de um salto.
— Vou matá-lo.
Ela se levantou também, confusa.
— Por mim?
— Por que não? — Ele perguntou, um pouco surpreso.
Ela o fitou atentamente.
— Por seu pai.
A fisionomia de Devlin relaxou.
— Isto não é por meu pai.
Ela se sentiu confusa. As palavras de Devlin haviam surtido sobre ela o efeito mais profundo e perturbador. Deixou-se cair sobre os travesseiros. Não se tratava da sua vingança.
— Devo ir, — Disse ele de repente.
— Não! — Os olhos de Virginia se turvaram. — Por favor, não me deixe agora.
Ele a observou. Virginia lhe sustentou o olhar e estendeu a mão, implorando que ele se aproximasse. O semblante de Devlin seguia tenso e Virginia advertiu a batalha que liberava em seu intimo.
— Por favor, Devlin. — Ela murmurou. — Por favor, fique. Por favor, me abrace… Somente um pouco. — Sua voz baixou.
Ele se aproximou, sentou ao seu lado e pegou suas mãos novamente.
— Você me pede muito agora. — Advertiu-lhe.
Ela negou com um gesto de cabeça e se inclinou para ele apoiando o rosto em seu peito. Sentiu que ele enrijecia o corpo. Ouviu-o respirar fundo e sentiu sua mão em suas costas. Quase sorriu em meio ao seu choro. A mão de Devlin lhe acariciou as costas e ela deixou escapar um suspiro estrangulado.
— Por favor, não chore. — Disse ele com voz suplicante. — Já passou. Agora está a salvo e daremos um fim a este jogo absurdo.
Ela levantou o rosto e o confrontou.
— Já não posso continuar assim… É muito doloroso.
Ele assentiu com a cabeça. Seu olhar era estranho, parecia quase umedecido. Logo se inclinou e beijou levemente seus lábios.
— Acabou, Virginia. Dou-lhe minha palavra. — Disse.
Sua voz parecia carregada de arrependimento e de desejo. Virginia o abraçou enquanto ele a beijava novamente, com delicadeza. Um profundo suspiro escapou dos lábios dela. As lágrimas cessaram e seu corpo enrijeceu por inteiro. Os lábios de Devlin se detiveram e ela então abriu os seus, procurando outro beijo.
Ele permaneceu quieto por um momento. Virginia o beijava cada vez mais apressada, e cada fibra de seu corpo se enrijecia de desejo, porque sua vida inteira havia ficado reduzida a aquele único momento. Ansiava fundir-se a ele. Nenhuma outra coisa importava e sabia que naquela união, não existia nada mais. Nem a vingança de Devlin, nem a violação que ela estivera a ponto de sofrer ou as humilhações do mês anterior. Nada mais existiria, salvo Devlin, ela e o amor.
— Não. — Disse ele. — É perigoso, Virginia. — Ela introduziu a língua em sua boca e ele se enrijeceu novamente. Ela gemeu e lambeu seus dentes, o interior de sua boca e seus lábios. — Não posso... — Sussurrou ele empurrando-a suavemente para a cama. Seus olhos brilhavam. — Não posso prometer que seja capaz de me refrear.
Virginia negou com um gesto de cabeça. Não queria que ele se refreasse. Abraçou-o pelo pescoço e fez com que inclinasse a face para ela. Ele gemeu e se apoderou de sua boca freneticamente, apesar de se conter temeroso em lhe machucar. Ela sentiu que o corpo forte tremia pelo esforço.
Ele abriu a casaca e perguntou: — Estou te machucando? — Não quero te machucar.
— Não está me machucando. — Respondeu ela enquanto desabotoava seu colete e o tirava. Tirou-lhe a camisa da calça, com sua ajuda. Depois a gravata, que jogou a um lado.
Virginia gemeu ao se deparar com o torso nu. Tocou seu peito e acariciou os músculos tensos e duros como rochas. Ele se apoderou novamente de sua boca e enquanto a beijava com paixão, abriu seu xale, afastou-o e levantou-lhe a camisa intima. De repente, ele paralisou. Virginia baixou o olhar e então notou que estava com o seio machucado.
— Meu Deus. — Ele murmurou.
Ele estava sentado com as pernas afastadas sobre ela e se mostrava visivelmente excitado. O desejo de Virginia era tão intenso que fazia seu corpo tremer. Sabia que Devlin quase tinha perdido o controle. Sabia que fariam amor. Pegou a mão dele e cobriu com ela o seio machucado. Ele gemeu sufocado, quase um grito.
— Não pode me deixar agora. — Ela murmurou.
Devlin fitou os olhos dela, cheio de angústia e paixão. Ela pegou sua mão e a colocou sobre o outro seio, esfregando com ela o mamilo ereto. Devlin inspirou bruscamente. Depois, estreitou-a novamente em seus braços e seus lábios se encontraram. Virginia compreendeu que havia vencido. Segurou-o com todas as suas forças.
Devlin lhe arrancou o xale e a camisa intima e beijou seus seios, já deslizando a mão sobre seu ventre, para a calça de seda. Virginia proferiu um gemido e fechou os olhos quando ele introduziu a mão sob o tecido e tocou a carne quente e ansiosa, que palpitava contra seus dedos.
Devlin emitiu um som estrangulado. Ela ouviu cair seus sapatos no chão e sentiu que ele tirava a calça e as meias. Logo sentiu as pernas nuas e fortes junto ao seu corpo o membro tenso e aveludado, duro como a rocha. Gemeu em um suave grito. Ele sorriu, se inclinou e beijou seu sexo.
Virginia quis retê-lo, mas ele lhe escapou e baixou a calça de seda e a jogou no chão. Ela o fitou. Completamente nu Devlin era todo poder, todo músculo, forte e enorme. Ele sorriu-lhe levemente com um triunfo selvagem e se deitou sobre ela.
— Não quero te fazer mal, carinho. — Ele murmurou com seriedade.
— Não fará. — Ela conseguiu lhe dizer.
Devlin esboçou um sorriso, pois os dois sabiam que era mentira, sendo ela tão miúda para ele tão grande.
— Virginia… — Ele gemeu e a beijou lentamente.
Ela respondeu o gemido quando Devlin apoiou a ponta de seu membro contra seu sexo. O prazer era tão intenso que se tornava quase insuportável. Devlin se esfregou contra ela várias vezes e murmurou:
— Está pronta para mim, carinho?
Virginia se limitou gemer.
— Acredito que sim. — Disse ele com voz rouca movendo-se sobre ela outra vez. Seu corpo inteiro se estremeceu. Depois ele a penetrou. Virginia se enrijeceu por um instante. — Carinho... — gemeu ele contra sua têmpora enquanto entrava lentamente nela.
Virginia gemia enquanto ele a penetrava pouco a pouco. Quando lhe pareceu que Devlin não podia continuar avançando o abraçou, ofegando fortemente, tensa como o couro de um tambor.
— Relaxe, pequena. Deixe-me te dar prazer. — Ele pediu e começou a se mover.
Virginia cravou as unhas em suas costas e estava para lhe pedir que parasse, quando seu corpo se rendeu e uma onda de prazer ardente começou a se apoderar dela. Gemeu surpresa, enquanto Devlin a tomava lenta e ritmicamente, estremecido pelo esforço de se refrear.
O prazer cresceu a um ponto inconcebível. Virginia rodeou seus quadris com as pernas e ele gemeu de prazer. Devlin começou a tomá-la com mais força e mais profundamente. Sim, ela conseguiu pensar, e já tomada pelo êxtase cravou as unhas em suas costas exigindo mais. Ele obedeceu. Voltou a penetrá-la profundo e Virginia gritou embargada pelas ondas sucessivas de prazer. Devlin continuou penetrando-a e ofegava, gemendo: — Carinho... Deixe-me te dar mais.
Ela gemia. Quebrava-se e se elevava acima da terra. Devlin continuou fundo nela. Seu corpo inteiro, rígido e escorregadio, tremia convulsivamente enquanto ele se movia. Virginia retornou flutuando à cama e, ao recuperar finalmente a razão, se surpreendeu com profundidade da paixão que acabava de experimentar e pela intensidade de seu amor. Era uma imensa onda que rompia sobre ela e a atravessava como o orgasmo havia feito. Estou irremediavelmente apaixonada, pensou, tomou ciência que ele estava dentro dela, duro. Observou o rosto belo.
Devlin estava com os olhos fechados e o rosto crispado. O suor corria por suas têmporas e sua testa. Ele estava possuído pelos estertores do desejo. Virginia sentiu que seu clímax se aproximava. Seu coração encolheu no peito e seu ventre estremeceu. O desejo, sempre incipiente, começou a palpitar em seu intimo, ao redor do membro de Devlin.
— Oh! — Murmurou com leve surpresa.
— Dará prazer… A mim outra vez? — Ele perguntou com voz densa.
Ela tentou assentir, mas não conseguiu. Devlin se inclinou e a beijou com ânsia. Cobriu seu rosto de beijos, lambeu-lhe o mamilo e o mordeu enquanto continuava fundo dentro dela. A pressão aumentou rapidamente. Virginia não podia se mover. Devlin sorriu levemente e se afastou. Ela proferiu um gemido de protesto, mas ele se inclinou e lambeu seu sexo. Penetrou-o com a língua e quando ela começou a se sacudir, se elevou e penetrou-a novamente, empurrando-a contra o cabeceira da cama. Ela voltou a explodir ao sentir que o membro dele começava a pulsar. Um momento depois, Devlin soltou um grito sufocado.
Virginia pareceu flutuar durante muito tempo. Quando sua mente começou a trabalhar novamente sentiu o corpo de Devlin sobre o dela, as pernas entrelaçadas, a mão dele sobre seu ventre, muito perto de seu sexo e o amor que inchava dentro de seu peito. Não queria sentir mais nada, mas logo o temor e a preocupação começaram a se apoderar dela. Aquilo já tinha acontecido uma vez antes e ela nunca esqueceria a dor que tinha sofrido depois.
Estava nua ao seu lado. Suas mãos, juntas uma da outra mal se roçavam. Virginia compreendeu que Devlin estava acordado e pensativo como ela. O temor enrijeceu cada fibra de seu ser. Fechou os olhos um momento e rezou. Logo voltou o rosto e o fitou.
Devlin fitava atentamente o teto. Por um instante Virginia sentiu a intensidade de seu próprio amor, quando ele se voltou para fitá-la. Seu coração parou. Notou que Devlin a esquadrinhava com o olhar.
— Te machuquei? — Ele perguntou em voz baixa.
Talvez... Talvez aquilo fosse um novo começo.
— Não. — Murmurou.
Ele sorriu um pouco, se voltou, atraiu-a para si e beijou sua têmpora. Virginia se sentiu desfalecer de alegria.
— Está se sentindo bem? — Perguntou depois de um momento.
Virginia estava com o rosto sobre seu peito e o braço dele enlaçava seu corpo. Temia voltar a chorar, se conversasse. Demorou um momento a responder: — Estou bem.
Ele vacilou e logo seus dedos começaram a passear pelo braço dela, antes voltar a beijar seu rosto. Virginia temia se movimentar e romper aquele instante.
— Talvez eu deva dormir na sala de estar. — Disse ele.
Virginia se sobressaltou e levantou o olhar para ele. Devlin mostrava um olhar grave, mas havia nele um brilho que ela reconheceu imediatamente.
— Por quê?
A boca de Devlin se torceu.
— Temo que com uma vez não seja o suficiente, pequena. Desejo-a outra vez, mas não quero machucá-la.
Virginia adivinhou o que ele se referia e seu coração encolheu. Sorriu-lhe, insegura, e deslizou a mão sobre o ventre tenso até mais abaixo. Devlin se sobressaltou.
— Virginia…
Ela começou a acariciar o membro aveludado.
— Não vai me fazer mal, Devlin. Posso ser miúda, mas não sou de porcelana.
Ele não disse nada. Virginia parecia fascinada pelo que se atrevia a fazer, mas levantou o olhar. Devlin tinha os olhos fechados, cerrados e começava a respirar rapidamente.
— Devlin? — Ela perguntou enquanto movia a mão para acariciar brandamente seu peito.
Ele segurou sua mão e voltou a colocá-la onde estava antes.
— Não pare. — Pediu com voz espessa.
Virginia vislumbrou de repente um indício do poder que podia alcançar. Seria possível que uma simples carícia paralisasse Devlin? Ele parecia se esforçar para conversar!
— Não pare, Virginia. — Ele se repetiu, e sua voz era tão densa que ela não distinguiu se era uma ordem… Ou uma súplica. Estava atônita. — Por favor. — Ele insistiu.
Ele estava lhe suplicando? Devlin cravou o olhar nela. Logo, Virginia esboçou um sorriso e começou a acariciá-lo novamente. Ele ofegava e se estirava para trás. Seu peito subia e descia com esforço.
— Santo céu! — Exclamou Virginia cheia de excitação e lhe sorriu com malícia.
— Bruxa. — Ele replicou com aspereza.
Virginia sorriu e o beijou. Devlin proferiu um gemido e a fez voltar o corpo bruscamente. Virginia se achou de repente de costas, com as pernas afastadas. Devlin estava sobre ela e disposto a penetrá-la com ferocidade.
— Pequena perversa. — Ele reclamou.
Ela se começou a rir e o atraiu para si. Depois, sua risada se extinguiu.


Já estava no meio da amanhã. Devlin estava sentado atrás de sua mesa na biblioteca, com um copo vazio de uísque diante ele. Virginia havia adormecido ao amanhecer e ele havia lhe deixado sozinha sem fazer ruído, convencido de que não poderia dormir.
Sentia-se confuso, fragmentado, triste. Custava-lhe respirar. A tensão dominava seu corpo como se não houvesse se saciado sexualmente nenhuma só vez. Sequer tinha que fechar os olhos para ter Virginia em seus braços, sorrindo-lhe com ternura e com um brilho amoroso no olhar.
O que estava lhe acontecendo? Ao vê-la atacada por Tom Hughes sentiu desejo de matar o homem por ousar manchar o que era dele, por se atrever a fazer mal a ela. Mas a raiva assassina não tinha nada a ver com a morte de seu pai, mas com seus sentimentos para com Virginia. Agora tremia violentamente. Não se enganava. Virginia não era dele e nunca o seria. Entretanto, jamais havia tocado ou beijado uma mulher como naquela noite e, apesar de se dizer que não significava nada, no fundo sabia que não era assim. De alguma forma a admiração por sua cativa havia se convertido em algo muito… Pior.
Procurou uísque e encontrou o copo vazio. Fitou-o irritado. O uísque não apagaria o que havia feito desde o momento em que havia tornado-a prisioneira com intenção de se servir dela para sua vingança. Desde o instante em que a viu no navio Americana soubera que não devia raptá-la. O fino instinto de guerreiro havia lhe dito que devia evitar a jovem a todo custo. Mas se manteve fiel a uma maldição fatal. E agora sua sorte estava lançada e tinha chegado ao momento final.
Levantou-se amaldiçoando. Não podia continuar submetendo a Virginia ao seu capricho. Não podia seguir usando-a para aquele plano perverso. Desejava ansiosamente nunca não ter feito amor com ela. Família e amor não eram para ele.
Eastleigh ainda teria que pagar, pois sua vingança quase chegava ao fim, mas Virginia havia pagado bem mais do que devia e ele odiava a si mesmo por tudo o que havia lhe feito. Aproximou-se da lareira onde ainda brilhavam as brasas da noite. Tinha recebido suas novas ordens e logo zarparia rumo à América. Antes, entretanto, devia libertar Virginia e levá-la para a casa. Em Sweet Briar, nenhum falatório mal intencionado a macularia. Na verdade, certamente esqueceria tudo dentro de poucos meses.
Quase sentia que dentro de seu peito o diabo partia seu coração em dois. Está apaixonado por essa garota? Tyrell havia lhe perguntado. Não estava. Nunca havia experimentado essa emoção, nem nunca experimentaria. Disso estava seguro. Voltou para sua mesa e tentou se convencer, que uma vez que Virginia estivesse em casa, em sua plantação, seus caminhos não voltariam a se encontrar. Quase doente começou a escrever instruções para que seu advogado comprasse Sweet Briar anonimamente, do Conde de Eastleigh. Daria a plantação de presente a ela, em uma fútil tentativa de reparar o mal que havia lhe feito. Não procuraria seu perdão. Não o merecia.
E quando Virginia fosse embora, ele acabaria com Eastleigh de um modo ou outro. Porque o jogo havia trocado e ele já não tinha nada a perder.


Virginia interrompeu indecisa a caminhada, diante da porta fechada da biblioteca, onde haviam lhe dito que Devlin estava. Era quase meio-dia e fazia pouco que estava acordada. Não fazia outra coisa que pensar em seu amante. Na noite anterior, Devlin havia feito amor com ela. Sabia. Sabia como o ar que respirava estava cheio de oxigênio. Tudo havia mudado entre eles. Ela ignorava por que. Só sabia que devia correr novamente para seus braços, para se assegurar de que aquela noite não havia sido um sonho. Vacilava, entretanto, porque sua longa história havia lhe ensinado o quanto imprevisível e cruel Devlin podia ser.
Finalmente alisou o formoso vestido e bateu na porta.
— Devlin?
Não houve resposta. Abriu a porta e observou o interior do aposento. Estava vazio. Notou então um monte de cartas sobre a mesa, uma delas aberta, e uma xícara com seu pires. Entrou e ao se aproximar da mesa notou que a xícara esta pelo meio. Tocou-a. Estava morna. Devlin acabara de sair. Logo seu olhar pousou na carta que estava aberta no meio da mesa. Seus olhos se dilataram. Levantou o olhar, mas não avistou Devlin. Sentindo-se algo culpada levantou a carta e leu.

De Lorde Almirante Saint John ao Capitão Sir Devlin O’Neill. Waverly Hall,
Greenwich 20 de novembro de 1812
Capitão O’Neill
Dê-se por informado do seguinte: suas ordens consistem em zarpar em 14 de dezembro para as costas de Maryland e Virginia, onde começará o bloqueio das baías de Delaware e Chesapeake em colaboração com os navios de Sua Majestade Southampton, Java e Peacok. Todos os navios americanos serão capturados e registrados. Posteriormente serão tomadas as decisões que se considerem oportunas. Se algum navio americano, incluídos os que não pertencem à Armada, mostrar indícios de resistência armada, será apressado e destruído. Terá que evitar o possível o enfrentamento armado com civis americanos. Qualquer suspeita de conivência militar por parte de ditos civis americanos será investigada e tratada de acordo com as leis de Sua Majestade.
O honorável Lorde Almirante Saint John
Almirantado
13 Brook Street
West Square

Virginia tremeu violentamente e deixou a carta sobre a mesa. Brevemente Devlin partiria para a guerra. Duas semanas depois. Estremeceu, doente de medo de que lhe acontecesse algo. Respirou fundo e lembrou que Devlin conhecia a guerra desde que era um rapazinho de treze anos. Mas, não serviu nada lembrar. Temia por sua vida.
Logo pensou no resto das ordens. Segurou-se à cadeira. Deus! Devlin guerrearia contra seu país. Tinha ordem de capturar e destruir qualquer navio americano que apresentasse resistência. Devlin lutaria contra seu país e sua gente, a escassas milhas de sua casa. De repente se tornou terrivelmente claro que havia uma guerra no Atlântico e em solo americano. Uma guerra entre seus dois países.
— Virginia…
Ela se sobressaltou e o observou se aproximar. Engoliu a saliva e disse: — Não queria bisbilhotar. Estava te procurando. Vi suas ordens.
Ele se deteve e fitou a carta aberta.
— Minhas ordens são secretas. — ele a fitou atentamente.
— Sinto muito. — Virginia mal podia respirar. Não sabia o que fazer ou dizer. — Vai partir?
— Sim. — Ele a fitava severamente. — Assim que for possível.
Suas palavras foram um duro golpe. Virginia se segurou na cadeira.
— Assim que seja possível?
O olhar de Devlin não vacilou.
— Sim.
Sem dúvida aquilo não significava nada. Não tinha nada a ver com ela, nem com a noite que haviam compartilhado. Ela umedeceu os lábios. Seu coração pulsava com violência.
— Não pode atrasar um pouco?
— Acredito que não. — Devlin a observava, muito sério. — Vou te levar para casa… Na Virginia.
Virginia sentiu que sua alma caía aos seus pés.
— O que?
Ele tinha uma expressão ainda mais grave que antes.
— Encontrarei outro modo de arruinar Eastleigh. É hora de você ir embora.
Virginia se deixou cair na cadeira. Estava atônita. Ele iria se desfazer dela? Depois de tanta paixão, tanto amor?
— Mas…
— Mas, o que? — Ele perguntou com voz cortante.
— Mas ontem à noite… — Disse ela, implorante. — Agora tudo é diferente… Não? — Ela tentava não chorar.
Devlin se serviu de uísque, sem olhar para ela. Suas mãos tremiam?
— Você será liberada. Isto não mudou.
Ela se sentia devastada.
— Mas, — replicou, gelada por dentro, — ontem à noite fizemos amor.
Ele tomou um gole de uísque.
— Não siga por aí. — Ele a advertiu.
Virginia conseguiu se levantar se segurando à mesa.
— Sei disso. — Ela insistiu, teimosa.
Devlin a finalmente confrontou-a com o rosto fechado e uma expressão muito parecida com a da noite anterior depois do baile.
— Não quero voltar a fazer mal a você, Virginia.
— Pois não me faça isso. — Ela gritou.
— Por que continua me pedindo o impossível? — Ele perguntou. — Por que não nos esqueçamos disto? Devolverei Sweet Briar a você. É o que você quer!
Ela o fitou atentamente. Seu coração começava a se romper em pedaços.
— Não é o que quero. — Murmurou.
Ele se enrijeceu visivelmente zangado.
— Não peça algo que eu não possa te dar.
As lágrimas começaram a cair. Virginia não pôde detê-las. Quase sentia ódio por ele.
— Então ontem à noite não significou nada?
Ele jogou os ombros para trás.
— Diverti-me muito, Virginia. E sei que você também. Mas não significou nada. — Ela deixou escapar um gemido sufocado. Se estivesse mais perto teria esbofeteado o belo rosto. — Ontem à noite não devia ter me deixado levar pela paixão. Você é muito jovem e inocente para compreender os homens, Virginia. E eu só sou um homem. Não sou um romântico. Sinto muito. Lamento que pense que ontem à noite tenha significado algo mais. Agora, tenho um navio a atender. — Ele quadrou os ombros, se voltou e se dirigiu à porta.
Ela conseguiu levantar.
— Que estranho, — ela disse com rigidez. Ele se deteve, mas não se voltou. — Dizem que o amor e o ódio são as duas faces da mesma moeda. Antes nunca havia entendido. — Ele se enrijeceu ainda mais… Se voltou e a fitou. Virginia sorriu sem alegria. — Ontem à noite me entreguei a você, com alegria e amor. — E ele a fitava inexpressivamente. — Hoje só resta a ódio. — Mesmo enquanto se ouvia dizer as terríveis palavras desejou não tê-las proferido. Odiava também a si mesma, por sua crueldade.
O rosto de Devlin se crispou e ele fez uma reverência. — Está em seu direito. Bom dia, Virginia. — Devlin saiu do aposento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 21


Devlin subiu de dois em dois os degraus da escada do Almirantado. Sua boca formava uma linha severa. Fazia apenas uma hora que havia recebido aviso sobre reunião. Esperava tal aviso. Afinal de contas, toda a Londres devia ter sido informada sobre o acontecido na noite anterior, e os velhos cavalheiros de azul não seriam menos.
Outros oficiais e seus ajudantes entravam e saíam. Devlin não saudava ninguém, pois não enxergava ninguém. Um belo rosto de pele pálida e olhos violetas furiosos o atormentavam. Ontem à noite me entreguei a você com alegria e amor. Hoje só me resta ódio. Sentiu uma terrível pontada no peito ao recordar as palavras dolorosas de Virginia, mas se alegrava ferozmente que ela tivesse recuperado a razão. Só merecia seu ódio e se sentia aliviado por ela deixar de lhe implorar que a amasse.
— Capitão O’Neill. — Um jovem tenente o esperava ao pé da escada de mármore.
Devlin afastou de si a lembrança de Virginia. Não podia, ao contrário, afugentar tão facilmente suas emoções. A culpa e o arrependimento continuavam lhe torturando. Acenou calmamente a saudação tenente. Por dentro, sua mente continuava um torvelinho.
— O Almirante Saint John o espera, Senhor. — Acrescentou o jovem oficial.
Devlin precedeu o jovem pelo corredor, bateu na porta do escritório de Saint John e recebeu ordem de entrar. Saudou-o elegantemente e não mostrou indício algum de surpresa ao notar que o Almirante Farnham estava presente. Tirou a boina e a colocou sob o braço e seguiu em posição de sentido.
— Sente-se, Capitão — Disse Saint John com expressão séria.
Devlin assentiu e sentou em uma cadeira. Saint John se sentou atrás de sua mesa, enquanto Farnham se acomodava em uma cadeira próxima.
— Lamento muito tê-lo chamado aqui hoje. — Disse Saint John com gravidade. — Sobretudo depois da desafortunada visita do verão passado. — Devlin não disse nada— Há quem me chamou a atenção sobre os acontecidos de ontem à noite, e com toda razão. Quer explicar, Devlin?
— Na verdade, não.
Saint John suspirou.
—Tom Hughes levou doze pontos. Está com cabeça contundida e afirma que você o atacou injustamente. O que tem que dizer a seu favor?
— Ele está tão bem que foi capaz de me acusar? — Devlin sorriu finalmente. — Deveria ter infligido feridas bem mais graves.
Saint John se levantou de um salto.
— Isso não tem graça. É uma conduta imprópria de um oficial, Senhor.
Devlin também se levantou.
— E agredir uma nobre dama é próprio de um oficial?
Saint John se ruborizou.
— Rogo-lhe me perdoe, mas uma mulher sem virtude não pode ser nobre.
Devlin enrijeceu, assaltado de repente por uma ira que tentou dominar.
— A Senhorita Hughes é a sobrinha do Conde de Eastleigh. É uma dama virtuosa e nobre.
— Nega que seja sua amante? — Perguntou Farnham em tom acusatório.
Devlin não vacilou.
— Nego, sim. Acredito que haja boatos mal intencionados. A Senhorita Hughes é minha convidada e nada mais.
Farnham soltou um suspiro.
— Todo mundo sabe que ela é sua querida, Capitão. Uma mulher sem virtude. Sem dúvida foi ela quem provocou Tom.
— Não foi. — Negou Devlin friamente tentando sufocar o desejo de golpear o rosto avermelhado de Farnham. — É a conduta de Hughes que terei que questionar.
— Você estava lá no momento? — Perguntou Saint John.
— Não.
— Hughes diz que ela o incitou abertamente. Sugeriu que se encontrassem mais tarde, hoje provavelmente. Mas foi tão sedutora que ele perdeu a paciência. Foi então que você entrou em cena.
A fúria de Devlin não conhecia limites.
— E o que é a palavra de uma rameira contra a palavra de Tom Hughes, não?
— Essas são palavras deles, não minhas. — Replicou Saint John. — O modo em que agrediu Tom supera os limites da conduta que se espera de um cavalheiro. É minha última advertência, Devlin. Um incidente mais e você enfrentará você uma corte marcial. Não há lugar na Marinha de Sua Majestade para rufiões e libertinos.
Devlin sabia novamente que aquela era uma batalha que devia perder. Ninguém havia mudado. Os Almirantes detestavam sua insubordinação e sua independência, mas no fim sempre o deixavam livre. Não se atreviam a prescindir de seus serviços. Daquela vez, entretanto, não sentiu satisfação alguma. Pelo contrário, se sentia doente.
Era hora de que Virginia partir. Na Inglaterra, graças a ele, não havia futuro algum. Um homem de honra simplesmente se casaria com ela. Os pensamentos o surpreenderam. Desdenhou-os imediatamente. Um homem honorável jamais teria se servido dela de maneira tão abominável.
— Está claro, Capitão? — Perguntou Saint John.
Devlin sobressaltou-se e inclinou a cabeça.
— Completamente.
— Bom. — Saint John se adiantou, sorrindo. — Aceita um conhaque? — Ele perguntou. Devlin assentiu. Três taças de conhaque foram servidas e repartidas. Depois de beber um gole, Saint John disse: — Recebeu suas ordens?
— Sim.
— Quando poderá zarpar?
— Como sugeriu, dentro de duas semanas, Senhor.
Saint John assentiu com um gesto de cabeça.
— Tente acelerar a partida, Devlin. Hoje soubemos que os americanos capturaram o Swift. Não sei como conseguiram, mas neste momento eles dominam o mar. Conto com você para mudar isso o quanto antes, meu filho. — Ele saudou Devlin com a taça.
Devlin baixou a sua e fez uma reverência.
— Certamente, Milord. — Concordou. — Farei o que estiver ao meu alcançe.
Saint John sorriu feliz.


— Que demônios, aconteceu? — Perguntou friamente o Conde de Eastleigh ao seu filho caçula.
Tom Hughes estava na cama, com o torso e um braço enfaixados.
— Minha cabeça dói, pai. Importa-te em não gritar? — Ele pediu.
Eastleigh o fitou.
— Não estava gritando.
William se encontrava ao seu lado, muito pálido.
— Isto é simplesmente insofrível.
— Cale-se. — Eastleigh fitou o filho caçula. — São graves os ferimentos?
— Sobreviverei. — Respondeu-lhe Tom e seu rosto se contraiu. — E aquele porco só levou uma bronca. Foi ver Saint John e só levou uma bronca.
— Certamente está subordinado. — Replicou Eastleigh quase cuspindo as palavras. — Ou tem muita sorte. — E ela iria mudar, ele pensou consigo.
— Isto é intolerável! — Bramou William. — Lorde Livingston não quis receber minha esposa outro dia. Sempre haviam lhe recebido em sua casa. Lady Livingston adora Cecily! Mas agora os melhores amigos nos abandonaram. Afinal de contas, temos uma rameira na família. Isto é insuportável. Tem que parar!
— Reconheço que não acreditei que ele fosse capaz de levá-la ao baile dos Carew. — A repugnância de Tom era evidente.
— E teve que provocar uma briga com ele? — Perguntou Eastleigh em tom gélido.
— Foi ele quem me atacou. — Exclamou Tom, indignado. — Ela é nossa prima… E é muito bonita. Pareceu-me que tinha todo o direito de provar seus encantos. Mas o selvagem me atacou!
— Não fez mais que atiçar os boatos. — Eastleigh mantinha a aparência calma, mas por dentro fervia. Concordava com os filhos. Teria que parar os pés de O’Neill. Mas como? Estava seguro de que nada, exceto a morte, o faria abandonar seus planos de vingança.
William se sentou.
— Finalmente recebemos uma oferta por Sweet Briar, embora o comprador deseje permanecer no anonimato. Vamos vender o imóvel pela metade de seu valor no mercado.
— Eu não sabia! — Tom sorriu, encantado. — Isso vai nos tirar dos apuros por tempo. Deve estar entusiasmado, pai.
Eastleigh não lhe ouvia. Na verdade, seus filhos eram tolos. Idiotas. Mas ele não era embora fosse mais velho, empobrecido e obeso. Já havia matado uma vez com o mesmo remorso que se esmagava uma mosca. Os irlandeses eram selvagens, em sua maioria. Ele nunca havia sido partidário da emancipação dos católicos e desprezava tolos que a defendiam. Nenhum católico devia ter o direito de votar ou de possuir terras… E nenhum católico devia ser tão rico e poderoso como aquele selvagem O’Neill. O que importava se voltasse a matar novamente? Tinha muito pouco a perder.
Eastleigh começou a fazer seus planos.


Virginia estava junto à janela, contemplando o Tamisa ao entardecer. Era a hora do jantar, mas não tinha intenção de descer. Embora já não sentisse ódio, jamais poderia odiar Devlin O’Neill, seu coração estava quebrado definitivamente. Sorriu com tristeza e amargura ao recordar a conversa da manhã… E os momentos vividos em seus braços na noite anterior. Já estava cansada, entretanto. Tudo estava acabado e devia voltar para casa.
Ouviu vozes no terraço sob sua janela e se sobressaltou, pois ignorava que teriam convidados. Ouviu as vozes conhecidas de um homem e uma mulher. Seu rosto esquentou. Reconheceu imediatamente a voz da mulher. Oh, não! Pensou. Era Mary de Warenne e o homem que a acompanhava não podia ser mais que o Conde de Adare. Logo chamaram a sua porta. Virginia se voltou com inapetência.
— Entre.
Hannah lhe sorriu.
— O Capitão quer que desça para jantar, Senhorita. Seus pais estão aqui.
Virginia sorriu com amargura.
— Estou com dor de4cabeça. — Disse. — Apresente-lhes minhas desculpas e diga que esta noite não descerei para o jantar. Por favor, Hannah.
— Quer que lhe traga alguma coisa? — perguntou Hannah, preocupada.
— Não tenho apetite. — Respondeu Virginia.
Depois que a criada saiu, ela se aproximou do divã e se sentou. Colocou Arthur, o cachorrinho, no colo e ficou observando o fogo enquanto o acariciava. Escondeu o rosto nos pelos macios, mas não chorou. Sua dor era mais intensa que nunca, porque havia se permitido abrigar esperanças e sonhar com o amor de Devlin. Que iludida tinha sido. Devlin não possuía um coração. Era incapaz de amar a alguém. Havia lhe demonstrado de uma vez por todas. Ela ansiava para que chegasse o dia em que Devlin O’Neill não fosse mais que uma lembrança vaga. E esse dia chegaria, afirmava-se, embora demorasse algum tempo.
Ao pensar nisso se sentiu mais angustiada e triste ainda, que antes.
— Virginia?
Virginia se voltou, sobressaltada. Mary de Warenne estava na porta, vestida um traje de noite, de seda de cor de gengibre. Sorria.
— Chamei-lhe várias vezes. Sinto muito. Como não respondia me ocorreu entrar para saber como estava. Você está bem?
Virginia se levantou.
— Dói-me a cabeça, mas logo passará. — Respondeu laconicamente.
Mary sorriu.
— Posso entrar?
Virginia não teve outra atitude, que assentir.
— Entre, por favor. — Murmurou fracamente.
Mary entrou e fechou a porta. Deteve-se junto à Virginia e lhe lançou um olhar interrogador.
— Como você está, querida?
— Acredito que estou um pouco gripada. — Virginia conseguiu responder.
Mary esquadrinhou os olhos.
— Soube que você e meu filho estão vivendo juntos abertamente.
Virginia ruborizou.
— A Senhora é muito franca.
— Estou muito envergonhada. — Disse Mary, em tom suave. — Eduquei Devlin para que distinguisse o bem do mal e tratasse às mulheres com respeito. — Virginia retrocedeu. — Acho que ele se serviu de você, da maneira mais espantosa. — Acrescentou Mary. Virginia se voltou. A angústia havia voltado a se apoderar dela e ameaçava romper seus diques. — Estou verdadeiramente furiosa com ele. Mas o que quero saber é se ele lhe fez mal… Além de romper seu coração.
Virginia se voltou, gemendo surpresa.
— Não posso responder a isso. — Disse.
— Acredito que essa resposta basta. — Disse Mary com suavidade e se aproximou dela. Antes que Virginia pudesse reagir, ela a abraçou. — Tenho estima por você, minha filha.
Virginia sabia que não devia chorar. Logo notou como Mary havia se referido a ela, se sobressaltou.
— O que disse?
Mary sorriu e lhe afastou algumas mechas de seu cabelo, dos olhos.
— Eu te chamei de minha filha. Porque muito em breve você será minha filha. Edward e eu o conversamos longamente. Meu filho fará o que deve ser feito. — Virginia sacudiu a cabeça, cheia de incredulidade. — Ele se casará contigo, Virginia. Não tema. E lhe tratará com o respeito que se deve a uma esposa. Disso não me resta nenhuma dúvida. — Disse Mary com firmeza. — Edward está falando com ele agora. — Ela sorriu esperando que Virginia mostrasse o quanto havia ficado feliz.
Mas Virginia não pôde falar durante um instante. Estava perplexa. Imaginou-se por um momento com seu vestido de noiva e Devlin com seu uniforme de gala diante do sacerdote. Logo afugentou a terrível imagem. Finalmente replicou com voz rude: — Obrigado, Milady .
— Venha, vamos descer. — Disse Mary, enlaçando-a.
Virginia implorava a ajuda do céu.
— Milady. — Ela conseguiu dizer, — esta noite realmente devo ficar na cama. No meu estado seria uma companhia muito pobre me unir a vocês.
Mary lhe beijou a testa.
— Entendo-a. Farei com que subam com um pouco de comida. Virginia…
Ela se voltou para não fitar seus olhos.
— Sim?
— Tudo sairá bem. Estou segura disso. — Disse Mary.
Virginia não pôde assentir. Mary saiu e fechou a porta com delicadeza. Virginia se deixou cair em uma poltrona. Nada sairia bem. Era simplesmente muito tarde. Não se casaria com Devlin nem que fosse o último homem sobre a face da terra.


Devlin ofereceu ao padrasto uma taça de vinho tinto e se sentou em uma poltrona que havia por perto. Edward provou o vinho e disse: — É delicioso.
— Sim, em efeito. — Respondeu Devlin enquanto observava a porta aberta. Mas nem sua mãe e nem Virginia apareciam. Não tinha visto Virginia desde a conversa da manhã e não podia negar que sentia desejo de vê-la. Confiava sinceramente em que ela havia se recuperado.
— Soube que recebeu novas ordens. — Edward comentou deixando o copo.
— Sim. Vou viajar dentro de duas semanas. Vou participar de nossa guerra com os americanos.
— Que ironia, não? — Disse Edward. — Os triunfos no Canadá, onde nos superam em número e os reversos no oceano Atlântico, sendo a potencia naval do mundo.
— Os americanos são duros e valentes. — Replicou Devlin. Os olhos violetas cheios de ódio cintilavam em sua lembrança. Removeu-os, sentindo uma pressão no peito.
— E o assunto de ontem à noite?
— Perguntava-me se já havia sido informado. — Replicou Devlin, e se preparou para a reprovação que sem dúvida viria.
— Pelo amor de Deus, o que esperava aparecendo com ela desse modo, Devlin? — Havia censura no tom do Edward.
Devlin se levantou bruscamente, com o vinho na mão.
— Saint John me chamou hoje. Já ouvi tudo o que tinha que ouvir. Sim. Cometi um engano e lamento sinceramente. Mas Hughes recebeu uma surra… Que é o que merecia.
— E Virginia? — Edward se levantou. — O que ela merecia? — Devlin enrijeceu. — Ou melhor, o que merece?
— Sou bem consciente que agi de forma vergonhosa, Edward. Virginia não merece que a use em meus planos de vingança. Mas confio ter corrigido meu engano. — Ele fitou os olhos do Conde de Adare. — Comprei Sweet Briar e penso dar de presente a ela. Quando zarpar, a levarei para casa. — Disse laconicamente.
— O filho que eu eduquei sabe o que essa moça merece e não é precisamente que a joguem sobre o tumulo ensangüentado de seu pai.
— Lamento o que tenho feito. — Disse Devlin com aspereza. — Não é o bastante ter comprado Sweet Briar para ela?
— Isso, quem tem que responder é você.
Devlin fitou os olhos cintilantes.
— Você conhece a vida que escolhi. Sabe o homem que sou. Não sou um homem de família, Edward. — Disse.
— Mas seu pai não te educou para ser um canalha. Educou-o para que fosse o homem de família de que acaba de falar.
Devlin acusou o golpe. Edward tinha razão.
— Não coloque meu defunto pai nisto. — Disse com voz cortante.
— Por que não? O assassinato de seu pai está na medula de todo este assunto. Deus! Ele morreu há quinze anos! Quando vai deixá-lo descansar em paz? Quando? — Devlin se voltou, tremendo. Não podia se desprender do passado. Não tinha forças para tanto. — Só há um modo de compensar à Senhorita Hughes, e você sabe muito bem. — Acrescentou Edward suavemente as suas costas.
Devlin sabia. Já sabia há tempo. O único modo de remediar o que havia feito a Virginia era se casar com ela. Os olhos violetas relampejaram diante dele. Hoje só resta o ódio.
Ódio. Tanto ódio… Era o único sentimento que conhecia e o que mostrado a Virginia.
— Duvido que ela me aceite. — Se ouviu dizer.
— Claro que aceitará! Vai se casar com ela, então?
Devlin fitou seu padrasto e desejou sinceramente ser outro homem. Um homem incapaz de cometer uma vingança cruel e desumana. Um homem capaz de se desprender de seu passado fantasmagórico. Um homem digno do amor de Virginia. Mas ele não era. Nada havia se resolvido. Nada ainda havia acabado.
— Quando se cansará dessa terrível obsessão? Quando se dará conta que tem a oportunidade de ser feliz? Quando vai preferir a sorte, à dor? — Perguntou Edward em tom moderado. — Quando decidirá a viver, Devlin?
— Se você tivesse sido assassinado como foi Gerald. Tyrell, Rex e Cliff fariam o mesmo que eu para se vingar. — Devlin respondeu se referindo aos três filhos do Conde.
— Espero que não. — Replicou Edward. — Você sabe o que deve fazer. Imagino que no fundo sabia desde o começo.
Mary entrou silenciosamente no aposento e fechou a porta, as suas costas.
— Devlin, eu o amo como somente uma mãe pode querer a seu primogênito, mas neste caso se trata do bem e do mal. Da honra, a desonra e o dever. Se você é verdadeiramente meu filho, o filho que eu criei, fará o que convém à honra e reparará o mal que fez à Senhorita Hughes. — As lágrimas dançaram em seus olhos. — Sei que honrará Virginia com o matrimônio… Eu sei. — Ela acrescentou.
Devlin estava perdido. Não podia negar nada à mulher que lhe tinha dado a vida, e que o criara, amara e protegera até os treze anos, antes que se mandasse para o mar. Não podia defraudar sua mãe, que por algum motivo conservava a fé nele, e ambos tinham razão: aquele era o único modo de desculpar o engano que havia cometido. Ontem à noite me entreguei a você com alegria e amor. Devlin fechou os olhos com força. Não queria tudo aquilo. Não necessitava de alegria e nem de amor, mas sem dúvida podia se casar com Virginia e manter a distâncias entre eles. Podia se casar com ela e prosseguir com seus planos de vingança. Na verdade, nada mudaria, salvo o título de Virginia e o fato de que a partir de então ficaria permanentemente com ele.
— Devlin… — Disse Mary.
Ele se voltou e fitou os olhos de sua mãe. Fazendo uma reverência, acalmou-a: — Vou me casar com Virginia. Preparem tudo, que comparecerei.
Mary proferiu um leve grito e correu para abraçá-lo. Lágrimas umedeciam seu rosto.
— Ela será uma esposa maravilhosa, carinho. Estou segura disso.
Devlin assentiu. Sentia-se aturdido. E curiosamente, também aliviado. Tinha pensado em devolver a plantação de tabaco para Virginia, para não vê-la nunca mais. E agora tinham adiante uma vida inteira a compartilhar.
Deus! Teria que tomar cuidado ou acabaria caindo realmente sob seu feitiço, pensou com uma pontada de incerteza e temor.
— Temos que preparar o casamento, Edward. — Disse Mary já cheia de alegria. — E quase não temos tempo! — Ela sorriu a Devlin. — Espero que se casem nas próximas duas semanas, antes que zarpe no Desafio, Devlin.


Para Devlin era impossível se concentrar na tarefa que tinha nas mãos. Seu contramestre havia lhe apresentado uma lista de fornecimentos que devia autorizar, mas as palavras se embaralhavam diante seus olhos. A mais estranha sensação de alívio o consumia. Não conseguia esquecer que se casaria com Virginia antes que o Desafio empreendesse a travessia do oceano.
Finalmente afastou a lista de fornecimentos. Demônios! Onde Virginia estava? Até compreendia que na noite anterior tivesse alegado uma enxaqueca e jantado em seus aposentos. Mas já era meio-dia e tampouco ela havia descido para tomar o café da manhã. Entretanto, ela não era preguiçosa. O mais provável era que tivesse saído cedo para dar um longo passeio. Em todo o caso, ela seguia lhe evitando e ele de repente sentia a necessidade de vê-la, para falar sobre o futuro. Sem dúvida poderiam chegar a um acordo que beneficiasse os dois. Sentia a necessidade de que assim fosse e pensava deixar claro que a relação mudaria muito pouco, fora de seu status oficial. E o que era igualmente importante, que sem dúvida ela estaria encantada com o casamento iminente e já não o odiava.
Benson apareceu na porta. Devlin se enrijeceu e se ajeitou na cadeira. Havia esperado que fosse Virginia. Mas William Hughes entrou no aposento. Devlin se levantou, surpreso. Hughes inclinou a cabeça, parodiando uma reverência. Devlin o imitou, porem cauteloso.
— Que surpresa inesperada! — Murmurou. O que William Hughes queria?
— Podemos economizar as galanterias? — Replicou William, que permanecia muito rígido onde Benson o havia deixado.
— Oh, não sei. — Respondeu Devlin saindo de atrás de sua mesa. William parecia consternado. Mas, por que razão? Sua curiosidade não tinha limites. — Aceita um conhaque? Uísque? Vinho? — Ofereceu e William fez um gesto de desdém. Devlin sorriu. — Como seu irmão está de saúde?
William pareceu engasgar.
— Basta de fingimentos! — Ele exclamou. — Já tive o bastante! Você manchou o bom nome dos Hughes pela última vez. Vim lhe fazer uma oferta, O’Neill.
Com um sorriso frio e as mãos unidas às costas, Devlin retrucou: — Sou todo ouvidos. — O covarde de Eastleigh teria enviado o filho em seu lugar?
William lhe estendeu uma nora de um banco.
— Isto é o único que tenho. Não são as quinze mil libras, mas por outra parte uma soma absurda. São três mil libras para liberar minha prima.
Devlin não fez gesto de pegar o pedaço de papel. Estava atônito. Quase se pôs a rir, pois sem dúvida o dinheiro que ele estava oferecendo viera dele, pois procedia da venda de Sweet Briar.
— Seu pai sabe o que me oferece?
— Por acaso importa? — Perguntou William, causticamente.
Devlin encolheu os ombros e pegou o papel.
— Na verdade, não.
William o fitou com verdadeira repugnância e saiu do aposento. Devlin sorriu maciamente e se perguntou o que Hughes faria quando se inteirasse de suo casamento. Fitou o relógio de sua mesa. Era quase uma hora da tarde. Saiu à porta.
— Benson? — Chamou.
O mordomo apareceu como por arte de magia.
— Sim, Capitão?
— Desejo falar com a Senhorita Hughes.
Benson assentiu e se afastou apressadamente. Devlin retornou a sua cadeira e observou a primeira lista que tinha à mão, mas depois de um momento suspirou e a deixou novamente sobre a mesa. Falar com Virginia sobre o casamento havia se convertido em um assunto da maior urgência. Será que ela estaria doente? Ou teria resolvido dar um passeio até Londres? Levantou os olhos quando Benson entrou.
— Ela vai descer?
— Ela não estava em seus aposentos, Senhor. Mas encontrei isto sobre a cama. Está dirigida ao Senhor. — Benson lhe entregou uma carta lacrada.
Devlin se levantou abruptamente e quase lhe arrancou a carta da mão.
— Isso é tudo. — Replicou secamente.
Benson saiu e fechou a porta, e Devlin rompeu o lacre e abriu a carta.

5 de dezembro de 1812
Querido Capitão O’Neill:
Não posso me casar com você. Quando receber esta carta espero já ter ido embora. Cheguei à conclusão, depois de refletir um bom pouco, que meu comportamento foi estúpido ao extremo. É decididamente é hora de voltar para casa.
Arrependo-me de muitas coisas. Nossa incapacidade para forjar uma amizade sincera é a principal entre elas. Lamento também as duras palavras que lhe disse ontem. Por favor, entenda que não lhe guardo nenhum rancor e que, em face das circunstâncias, não lhe desejo nenhum mal. Ao contrário. Considero-o um amigo, embora o sentimento não seja mútuo. E lhe desejo o melhor, sempre.
Tenha a amabilidade de dar lembranças a sua família, que tão amável foi comigo.
Atentamente,
Virginia Hughes

 

 

 

 

 


Capítulo 22


A Condessa de Eastleigh não estava segura de ter ouvido bem o criado.
— Como disse? — Perguntou com os braços carregados de flores que havia recolhido na estufa. Deixou-as cuidadosamente sobre a grande mesa da cozinha.
— A Senhorita Virginia Hughes está aqui, Milady . — Respondeu o criado vestido de libré.
Elizabeth o fitou atentamente por um momento, procurando que seu semblante não se alterasse. Entretanto estava atônita. O que podia querer a amante de Devlin? Por que estava lhe procurando? Haviam retornado a Wideacre. Por quê? Soubera sobre o sórdido acontecimento do baile de Lorde Carew e continuava sem saber o que pensar a respeito . Claro que já tinha assumido que não conhecia homem que durante seis anos tinha sido seu amante.
Ela ainda não havia se recuperado de seu rechaço ou pior ainda, de que tivesse usado-a de maneira tão ruim para seqüestrar à sobrinha de seu marido. Se não fosse o ódio que sentia por William teria exigido que ele explicasse o que significava tudo aquilo. Se não fosse uma esposa infiel teria perguntado o mesmo a Eastleigh. Mas não podia se aproximar nem de um ou do outro.
Entretanto, não era tola. Tinha sido a amante de O’Neill. Agora, a sobrinha de seu marido ostentava a duvidosa honra e Devlin havia comprado Waverly Hall de família anos atrás. Elizabeth começava a suspeitar que tudo fazia parte de um plano horrível.
— Traga um refresco, Walden. — Ordenou depois de tomar uma decisão. Vencida pela curiosidade, tirou o avental, lavou as mãos e saiu da cozinha.
Virginia estava no salão amarelo, um aposento bonito e espaçoso, embora um pouco ruinoso. Estava com um vestido de cor lilás claro e um manto negro. Havia recolhido o cabelo cacheado para trás. Estava rígida, ereta, como se tomada por uma tensão extrema, mas ao observar o rosto pálido e sem cor e os grandes olhos se deu conta, horrorizada, de ela estava com o coração partido.
Seu coração pulsou forte no peito e de repente o desejo de reconfortar a jovem se apoderou dela.
— Senhorita Hughes. — Sorriu com naturalidade ao entrar em salão.
Virginia tentou lhe devolver o sorriso, mas evidenciou uma careta.
— Lamento incomodá-la, Milady. — Disse em voz baixa e rouca.
— Não me incomoda. — Disse Elizabeth, e lhe indicou que se sentasse. — Embora confesse estar um pouco surpresa com sua visita.
Virginia sorriu e sentou na beira de uma cadeira. Elizabeth também se sentou.
— Está em Wideacre? — Perguntou amavelmente.
Virginia negou com a cabeça e alisou a saia do vestido, com o olhar cravado no colo. O silêncio imperou. Elizabeth se compadeceu terrivelmente por ela. Parecia abatida e confusa. Pelo menos sou uma mulher casada, pensou. Uma mulher com experiência e capaz de suportar a dor. Sem dúvida Devlin havia sido o primeiro amante de Virginia. Não era de se surpreender que estivesse destroçada. Será que Devlin também havia lhe abandonado?
Virginia levantou os olhos e mordeu o lábio.
— Vim suplicar sua ajuda, Milady. — Murmurou.
Elizabeth não pôde suportar. Estendeu o braço e segurou as mãos de Virginia.
— Sabe que somos sua família, minha querida. Dadas as circunstâncias, não tinha pensado nisso, mas agora ao vê-la tão entristecida me lembrei. Claro que a ajudarei, se estiver em meu alcance.
Virginia parecia a prestes a chorar.
— Devo retornar para a América. — Ela soltou. — E não tenho dinheiro para a passagem. Se pudesse você me emprestar prometo-lhe que devolverei.
Elizabeth desejava sinceramente ajudá-la, mas emprestar dinheiro, com sua situação tão escassa estava descartado.
— O que aconteceu, menina?
Virginia sacudiu a cabeça como se não pudesse falar.
— Devo ir para casa.
Elizabeth vacilou e escolheu suas palavras com cuidado.
— Devlin não te deixa partir? Sem dúvida ele tem dinheiro de sobra para sua passagem.
O rosto de Virginia endureceu.
— Eu fugi, Milady. Fugi que ele e devo abandonar o país imediatamente, antes que ele me encontre.
A Condessa levantou as sobrancelhas, presa de vivo interesse.
— Mas, não o amava?
— Sim. —Respondeu Virginia, com orgulho.
— Ele a maltratou em algum sentido?
Os olhos de Virginia dilataram em seu rosto.
— Não lhe parece abuso o bastante, ser exibida diante de todos como sua rameira? — Ela exclamou.
O linguajar surpreendeu a Elizabeth.
— Nunca entendi seu comportamento. — Ela disse, com precaução.
Virginia se levantou. Fitaram-se por um momento.
— Não me corresponde explicar os motivos. Nego-me a me misturar entre suas famílias. Somente lhe peço que me empreste o dinheiro para a passagem de volta a América. Não posso continuar assim!
Elizabeth também se levantou.
— Ainda assim o ama. — Disse.
Virginia negou com a cabeça.
— Não. Meu coração foi quebrado pela última vez. Só resta a dor.
Elizabeth estava novamente tão comovida, que mal podia falar. Acariciou a face de Virginia.
— Por quê? Por que ela a tratou tão vilmente?
— Quando eu for embora poderá perguntar a ele. — Respondeu Virginia, teimosamente.
— Primeiramente eu e logo você. Devlin vive em Waverly Hall. Esteve a ponto de matar Thomas. Quase suspeito que ele tem algo contra minha família. — Ela sorriu fracamente. Virginia a fitou. Os olhos da Condessa cresceram no rosto. — É isto! — Ela exclamou.
— Deve perguntar a ele. — Replicou Virginia com firmeza. — Pode me emprestar o dinehro, para que consiga a passagem?
— Oxalá eu pudesse ajudar. — Disse Elizabeth em voz baixa, ainda aturdida pela idéia de que a conduta de Devlin fizesse parte de uma imensa revanche. Nesse caso, ter compartilhado sua cama com ela durante seis largos anos não teria nada a ver com amor ou desejo, mas algo totalmente distinto. — Não tenho o dinheiro, minha querida.
Virginia pareceu desanimada.
— Poderia pelo menos me enviar de volta a Londres em uma carruagem? Usei os poucos xelins que tinha para chegar até aqui.
Isso ela podia fazer.
— É claro. Voltará com ele, depois de tudo?
Virginia se sobressaltou.
— Isso nunca! — Exclamou.
— Milady... — O mordomo apareceu com o carrinho do chá.
Elizabeth quase se alegrou com a interrupção.
— Vamos tomar um pouco de chá? — Ela sorriu. — Nosso cozinheiro faz doces deliciosos.
— Acho que tenho que voltar à cidade imediatamente. — Disse Virginia.
Elizabeth resolveu que o melhor era que ela partisse quanto antes.
— Traga a carruagem e diga a Jeffries que leve a Senhorita Hughes a Londres Walden.
— Sim, Milady. — Disse Walden saindo apressadamente.
Elizabeth serviu uma xícara de chá.
— Está segura de que não quer uma xícara de chá antes de voltar?
Virginia negou e se aproximou da janela e observou lá fora. Elizabeth lamentou suas más maneiras e bebeu seu chá. Sim. Virginia sem dúvida era muito bela, mas não era essa a razão para que Devlin tivesse tornado sua amante. Não. Devia ter algo a ver com uma espécie de vingança contra sua família. Não havia outra explicação.
Dez minutos depois, Virginia se encontrava no carro da Condessa. Envolta em um xale de seda. Elizabeth lhe acenava com a mão enquanto a carruagem se afastava pela avenida. Logo deixou de sorrir e entrou rapidamente em casa.
— Walden, onde está o Conde?
— Foi dar um passeio com os cães. — Respondeu o mordomo.
— E William?
— Na biblioteca, Milady.
O coração da Condessa se acelerou. Desprezava William e freqüentemente o temia, mas não tinha escolha. Atravessou a casa, pressurosa. A porta da biblioteca estava fechada. Elizabeth vacilou um momento e logo entrou. William estava sentado à mesa, com uma pluma na mão. Exasperado com interrupção, ele levantou a cabeça.
— Precisava falar com você. — Disse ela fechando a porta as suas costas.
Ele levantou as sobrancelhas.
— Seriamente? Que estranho. — Ele replicou e se levantou. Seu olhar deslizou sobre ela, libidinosamente.
Elizabeth sentiu vontade de vomitar.
— A Senhorita Hughes acaba sair daqui.
Os olhos de William se dilataram.
— O que ela queria?
Elizabeth encolheu os ombros. Jamais diria nada sem decidir antes cuidadosamente a quem poderia ajudar e a quem machucar.
— O que tem O’Neill contra nós?
— Em geral ou em particular? — Ele perguntou com frieza.
Elizabeth não entendeu.
— Acredito que está acontecendo algo estranho. Primeiro eu, e agora minha sobrinha. Depois Waverly Hall. Também ouvi dizer que quis matar Thomas no baile de Lorde Carew. Pode explicar isso? — Elizabeth estava atônita.
William se afastou da mesa. Ela se enrijeceu ao notar que ele se aproximava.
— Há pouco a entender agora, não é… Mãe? Cansou-se de você e preferiu outra bem mais jovem e bonita. — Elizabeth sentiu seu rosto esquentava. William permanecia a poucos centímetros de distância. — Ele pediu um resgate pela Senhorita Hughes.
Ela ficou surpresa.
— O que?
— Sim. Tudo é muito simples, minha querida madrasta… E matreiro. Ele a manteve prisioneira e quando nos negamos a pagar o resgate decidiu destruir a reputação de nossa família.
Elizabeth estava atônita.
— Ela nunca foi sua amante, na verdade…
— Oh, foi sua amante, sim. Acredito que seja é óbvio. Mas não teve nada a ver com amor ou sequer com luxúria. Pode ficar tranqüila. Você perdeu unicamente por uma questão de vingança. Seu querido marido matou o pai de O’Neill há muitos anos, e agora estamos pagando por sua morte.


Escondida por entre as árvores, Virginia tremia. A garoa havia se convertido em chuva. Lamentava não ter aceitado o chá e os bolos que a Condessa havia lhe oferecido, pois não tinha comido nada durante todo o dia. Lamentava mais ainda os apuros econômicos da Condessa. Estava claro que Elizabeth era uma mulher compassiva e que teria lhe ajudado, se pudesse. A carruagem havia lhe deixado diante da casa dos De Warenne em Mayfair. Depois de vê-la se perder ao longe saltara o muro de tijolo e atravessara os jardins sem se afastar das árvores, mas talvez por causa do mau tempo não avistasse ninguém. Já era tarde e estava exausta. Tyrell de Warenne era sua última oportunidade.
Confiava em poder encontrar com ele em segredo. Pensava esperar que ele saísse da casa. Mas, e se ele não saísse essa noite? Pensou em dormir nos estábulos e tentar abordá-lo no dia seguinte. Mas seus dentes tiritavam por causa do frio e seu esconderijo entre as árvores, não muito longe dos estábulos, mal a resguardava.
Não se atrevia se movimentar. Tinha que falar com Tyrell nessa mesma noite, se fosse possível. Não sabia quanto tempo estava esperando quando finalmente notou alguma atividade na casa. Apareceu um criado com um formoso cavalo. A chuva havia cessado, embora o céu continuasse coberto. Virginia ignorava quem estava na casa, mas duvidava que o Conde saísse sozinho e a cavalo àquela hora. Quase gritou de alegria ao ver que Tyrell descia a escada da casa protegido por uma capa escura arremessada sobre os ombros.
Ele se dirigiu ao pátio que havia em frente dos estábulos e pegou as rédeas do cavalo. Enquanto conversava com o criado, Virginia se levantou e o observou por um momento. Voltou a olhar para a casa, mas não viu ninguém mais. Com o coração acelerado saiu de entre as árvores e correu para ele.
O rapaz estava partindo e Tyrell parecia disposto a montar. Ambos a avistaram ao mesmo tempo. Os olhos do Tyrell cresceram em seu rosto.
— Virginia? — Ele exclamou incrédulo.
Ela tentou sorrir, coisa que não lhe foi fácil, pois tremia quase que convulsivamente.
— Por favor, espere Milord. Preciso desesperadamente falar com o Senhor.
Ele devolveu as rédeas ao criado e se aproximou dela rapidamente.
— O que está acontecendo, em nome de Deus? Está gelada, molhada. Como chegou até aqui? Veio a pé de Waverly Hall? — Ele exclamou. Estava visivelmente preocupado.
Virginia conseguiu sorrir.
— Só estou com um pouco de frio. — Mentiu. — Por favor, Milord, preciso falar-lhe imediatamente.
— Podemos conversar o assunto que desejar, mas primeiro você deve entrar, vestir roupa seca e sentar diante do fogo. — Disse Tyrell.
— Não! — Gritou ela retrocedendo quando ele segurou seu braço.
— Como? — Ele se sobressaltou.
Virginia engoliu saliva.
— Não posso entrar.
Ele a fitou com atenção. Sua expressão se tornou séria.
— Por que não?
Ela respirou fundo e tentou confiar nele.
— Eu fugi. — confessou com voz rouca. — Fugi de Devlin e rogo que guarde meu segredo e me ajude a voltar para a América.


Sentada na biblioteca, em frente ao fogo, Virginia bebia uma xícara de chá quente aromatizado com um pouco de uísque. Estava com um vestido da Condessa e enrolada em uma manta. Os Condes haviam saído para jantar fora. Quando finalmente começou a sentir calor tomou ciência de seu cansaço, que não era só físico. Parecia emanar de seu coração e provavelmente de sua alma. Tyrell havia se mostrado atencioso ao extremo. Ela sabia que ele a ajudaria. Talvez no dia seguinte empreendesse a travessia do oceano.
Nunca mais voltaria a ver Devlin.
Seu coração se contraiu. A tristeza a afogava. Mas era o que queria. Queria fugir dele para sempre e não voltar a vê-lo nunca mais. Ou talvez quando estivesse casada e apaixonada por um homem bom e heróico e fosse bela e feliz, Devlin compreendesse o que tinha perdido. Fechou os olhos. Não vou voltar para Waverly Hall. Não posso odiá-lo, mas já não o amo. Quero voltar para casa. As palavras, fortes até para si mesma soaram-lhe terrivelmente vazias. Suspirou e levantou os olhos.
Tyrell passeava pelo aposento, com a fisionomia séria. Virginia estava tão cansada que não lembrava exatamente o que havia lhe dito ao entrar na casa. Ele se deteve diante ela.
— Virginia… — Ela se firmou nos braços da poltrona, incapaz de sorrir. Ele tampouco sorria. — Terá que avisar Devlin. Se fugiu ele deve estar louco de preocupação.
— Não! — Ela exclamou, alarmada. — Acredite, não importo a ele. Estou segura de que ele se alegra.
— Você me parece amargurada. — Ele replicou, fitando-a com atenção.
— Não estou. — Ela replicou, mas suas palavras soaram mentirosas.
— Não entendo. Meu pai anunciou a notícia ontem à noite. Em minha opinião é uma notícia maravilhosa.
— Não vou me casar com ele. — Virginia voltou a replicar entre dentes.
— Por que não? — Perguntou Tyrell.
— Que por que não? — Ela exclamou. — Devlin me raptou, me manteve prisioneira e exigiu que vivesse com ele abertamente… Não fui mais que um peão em sua vingança.
— Você está furiosa e triste e não lhe reprovo. Devlin a tratou desumanamente, mas aceitou se casar contigo e me parece que é justo.
— Justo para quem? — Ela exclamou. — Ele não quer se casar comigo. Justo para mim? Devlin não me quer! — Ela gritou e tremula, acrescentou: — Só quero voltar para casa.
Ele parecia consternado.
— Acredito que tua ira está ganhando a partida. É o único modo de salvar sua reputação.
— Não me importa minha reputação.
Ele estava muito sério.
— Então é uma sorte que a mim importe e também ao meu pai e minha madrasta. — Seu tom se suavizou. — Todos nós temos muito carinho por você, Virginia. E Devlin é um solteiro muito cobiçado. Deve se casar… E por que não contigo? — Tyrell sorriu. — Tem muito caráter. Acredito que farão um bom casal.
Ela se levantou de um salto.
— Bom casal! Não quero passar minha vida com esse homem! Não suporto sequer a idéia de voltar a vê-lo!
E no dia seguinte, sem dúvida voltaria a vê-lo. Oh, Deus. Seriamente seria capaz de fazer uma coisa dessa? Uma parte dela não podia imaginar uma vida sem Devlin O’Neill.
— E que esperas que eu faça? Esconde-la aqui? Enviá-la América?
— Por favor, Milord. Empreste-me o dinheiro da passagem. Prometo lhe devolver, mesmo que leve algum tempo — se sustentaram o olhar um momento. Ele desviou os olhos.
— E aonde irá quando chegar?
— A Sweet Briar.
— Sweet Briar pertencia ao seu tio e pelo que sabemos, ele já a vendeu. Você já não tem lar aonde voltar. — Disse ele com os olhos cintilantes. — Isto é um disparate, Virginia. Não sso tomar parte nele.
— Você se nega a me ajudar? — Ela perguntou atônita.
Ele a fitou severamente.
— É o seu bem-estar que me preocupa, Virginia.
— Não, não é certo! — Ela exclamou, furiosa e aflita. — Você é minha última esperança! Não enxerga? Não me casarei com aquele homem! É simplesmente intolerável, depois do que ele me fez!
Devlin entrou na biblioteca. Jogou o manto úmido para trás e fez uma breve reverencia.
— Lamento que opine dessa maneira, Senhorita. — Disse com olhos cintilantes.
O coração de Virginia pareceu parar. Retrocedeu atemorizada e perplexa. Ele parecia furioso, quando inclinou a cabeça para Tyrell.
— Ordenei aos meus homens que rastreassem as ruas de Londres em busca dela. Devia adivinhar que ela a procuraria. Obrigado por me avisar, Ty.
— Você tem muitos enganos a reparar, Devlin. — Disse seu meio-irmão. — Ela está furiosa contigo, e com razão.
— Sei disso. — Replicou Devlin fitando Virginia novamente.
Ela compreendeu que, enquanto tomava banho e mudava de roupa, Tyrrell tinha enviado recado a Devlin.
— Você me traiu! — Virginia exclamou tremendo de raiva. — Acreditei que era meu amigo. Confiei em você!
— Sou seu amigo, Virginia. — Tyrrell lhe respondeu com expressão compungida. — Penso sinceramente no que mais convém a você. E acredito que com o tempo vai me agradecer.
— Você não é meu amigo. — Ela murmurou, ainda surpresa.
Tyrell fez uma reverência e saiu. Devlin fechou a porta e voltou a olhar para Virginia.
— Que loucura é esta? É Pensa em se matar?
— Não. — Respondeu ela entre dentes. — Só quero evitar me casar contigo!
— Contraindo uma pneumonia e morrendo? — Ele perguntou.
— Você tampouco quer se casar! Mande-me para casa, Devlin. E nós ficaremos livres.
— Acredito que dei meu consentimento a este casamento.
Ela enxugou as lágrimas.
— Não entendo por que razão.
Devlin estava com o rosto tenso, mas não vacilou.
— Porque tenho razão.
— Tem razão? Agora aceita a culpa e a responsabilidade de seus atos?
— Sim.
— Você está mentindo! — Ela se aproximou. — Você não tem remorso e nem consciência!
Devlin permanecia imóvel. Demorou um pouco a responder e quando o fez foi lentamente, com o máximo cuidado.
— Na verdade, você está errada, Virginia. Sinto-me culpado há algum tempo. Na outra noite, na casa de Lorde Carew tornou-se impossível continuar negando. Arrependo-me de ter usado você, como tenho usado. — Ela já não conseguia respirar direito. Seria certo? — Sinto ter metido você nisso. — Ele acrescentou evidenciando a característica fisionomia séria. — E agora pagarei o preço por ter me servido de você tão cruelmente. É o que faria um homem de honra.
Ela temia acreditar… E se recordou que a mudança de opinião não tinha nada a ver com o amor. Mas pelo menos evidenciava que Devlin tinha uma consciência ou uma alma.
— Vejo que está surpresa. — Continuou ele meio em tom de brincadeira dirigida a si mesmo, quando se aproximou da mesa onde estavam as garrafas de licor. — Eu também estou.
Ela o fitava com perplexidade enquanto ele se servia de uma taça. Estava atônita e não sabia o que pensar ou sentir. Devlin parecia arrependido. Arrependia-se sinceramente. Mas o que isso mudaria? Ele havia lhe ferido diversas vezes. Sabia que aceitasse se casar com ele voltaria a se machucar uma e outra vez.
Devlin a fitou com uma taça na mão.
— Minha mãe está organizando o casamento para doze de dezembro. Dois dias antes de eu zarpar.
O pulso de Virginia acelerou.
— Vi suas ordens. — Disse ela, irritada. — Você vai entrar na guerra contra meu país. Que tipo de casamento é esse?
— Sim. Mas neste conflito, nossas lealdades não estão divididas.
Gelada, ela tremeu outra vez. Sabia que estava perdendo, que havia perdido cada batalha que tinha liberado contra Devlin.
— Não posso me casar contigo, Devlin. Nem agora e nem nunca.
Devlin se levantou. Seguiu-se um terrível silêncio. Ele a fitou durante longo tempo, com uma severa máscara sobre o semblante, impossível de decifrar. Deixou sua taça cuidadosamente.
— Meu arrependimento é sincero. Lamento todo o ocorrido e desejo reparar o que fiz. Quero salvar sua reputação.
Ela sentiu vontade de chorar.
— Seu arrependimento chega muito tarde, Devlin.
Ele cravou nela um olhar interrogador.
— Nem sempre me odiaste.
Ela enrijeceu.
— Não se trata de ódio. Minha carta era sincera. Não o odeio, Devlin. Mesmo com tudo o que fez.
— Então aceite se casar comigo. Tyrell tem razão. É o melhor para você.
— Quero ir para casa. — Virginia se ouviu dizer, quase tolamente, com voz trêmula, depois respirou fundo e acrescentou: — Sabemos que eu te amei e quis que você me correspondesse. Mas você não pode me oferecer amor, não é?
Ele negou com a cabeça.
— Não.
— Não. — Ela repetiu com amargura. — Agora me propõe casamento. Simplesmente não posso aceitar. Você me fez mal pela última vez. — Concisa, ela continuou. — Se deseja aliviar sua consciência me envie para casa como uma mulher livre.
— Não posso.
— Claro que pode. Você é o homem mais poderoso e independente que conheci. — Virginia se deu conta de que estava chorando.
Ele se aproximou de repente. Virginia se enrijeceu quando ele parou a sua frente e fitou seus olhos com seriedade.
— Não venderei Sweet Briar.
Ela ficou paralisada.
— O que?
— Não venderei Sweet Briar.
— Não venderá Sweet Briar? Não… Não te entendo.
— Sente-se — Ele ordenou já lhe conduzindo a uma cadeira. Ela estava tão atônita que não protestou. — Comprei a plantação, Virginia. — Ele explicou. — Eu a comprei para lhe dar de presente e também num esforço em reparar o mal que te causei. — Virginia se sentiu desfalecer. Não compreendia suas palavras. — Será seu presente de casamento.


TERCEIRA PARTE

A NOIVA

 

Capítulo 23

Faltavam apenas alguns dias para o casamento.
Virginia nunca havia se sentindo tão impotente, como um peão indefeso. Já tão perto o casamento era impossível não reconhecer que se Devlin a quisesse, mesmo um pouco que fosse se sentiria exultante em casar com ele. Mas ele não a amava de modo algum. Até poucos dias atrás a intenção dele era mandá-la para casa e acabar com ela de uma vez. Ainda lhe doía lembrar-se disso. E quanto ao fato de ter comprado a plantação com intenção de lhe presentear era o indício de uma chantagem envolvendo a oferta, de certo modo um grande gesto. Sweet Briar seria um presente de casamento… E ela não tinha que se perguntar para saber que, se não casasse com ele não haveria tal presente. Não podia se sentir descontente com o presente, mas lamentava que não tivesse acontecido sem ameaças subseqüentes. E não podia recusá-lo. Devlin estava saldando as dívidas da plantação e em alguns dias Sweet Briar voltaria afinal para suas mãos. Iria se casar com um homem que a assustava. Um homem obcecado pela vingança, que ela continuava amando contra toda a esperança. O futuro era incerto e se mostrava escurecido pelas dúvidas. Bem, pelo menos teria um lugar onde se refugiar, se alguma vez precisasse.
Adotou a atitude mais precavida. Fechou-se em si mesma. Dormia até tarde e se retirava cedo. Inundava-se na leitura. Tentava não pensar e quando acontecia voltava à mente para Sweet Briar e em que algum dia seus filhos herdariam a plantação. Mantinha a distância com Devlin, consciente que sua proximidade lhe fazia sofrer. Ele passava quase todo o dia no navio ou no Almirantado, se informando a respeito da marcha da guerra. Virginia suspeitava que ele a evitava e desconfiava que o iminente casamento lhe fosse extremamente penoso. Ele jantava fora quase todas as noites, enquanto ela permanecia sozinha em uma enorme e vazia sala de jantar. Quando seus caminhos se encontravam agiam com a formalidade usada por desconhecidos, fato que a aliviava ao extremo, por mais estranho que fosse.
Mary de Warenne era um problema bem diferente. Virginia gostava da mãe de Devlin e suspeitava que, em outras as circunstâncias, elas poderiam ter se convertido em grandes amigas. Mary preparava alegremente o casamento e a visitava com freqüência para que ela aprovasse cada detalhe. A cerimônia aconteceria na velha capela de sua casa em Mayfair e só os membros mais próximos da família assistiriam. O banquete se celebraria em Harmon House. Seria servido salmão, faisão, cervo e champanhe francês. Para Virginia tudo parecia bom. Finalmente restava a questão de seu vestido.
A costureira de Mary estava fora de si, de tanta alegria. Virginia concordava quando lhe mostravam rendas, lantejoulas e sedas… Ignorava por completo como seria o vestido e não se importava. Por que não organizavam o casamento, que ela apareceria na hora combinada e a deixavam em paz de uma vez?
Mas não podia ser desagradável com Mary. Custava-lhe um grande esforço, mas sempre era educada, cordial e em geral, bastante amável. Mas assim que a mãe de Devlin saia, ela se encerrava em seu quarto, respirava fundo e conseguia evitar, de algum modo, o desejo terrível de chorar.
Era meio-dia. Virginia sabia que dia era. Contava os dias com a precisão mórbida de um prisioneiro que aguardava a guilhotina. Era dia nove de dezembro. Três dias depois percorreria o caminho que a levaria ao altar. Seu estomago se encolheu somente em pensar. Sentiu uma pontada dolorosa em seu abdômen.
— Virginia? — Mary bateu na porta de seu quarto. — Trouxe o seu vestido! Tem que vê-lo. Posso entrar?
Virginia estava sentada junto à janela, contemplando as pradarias e o rio. Levantou-se com o coração na mão.
— Entre. — Respondeu.
Mary entrou. Trazia nos braços um enorme vulto de tecidos.
— É lindo! Você tem que provar. — Ela se aproximou e lhe beijou a face. Estava com o rosto iluminado e seus olhos brilhavam. Mary uma mulher muito bela.
— Não acredito que deva. — Disse Virginia lentamente. Pressentia que teria que fazer um enorme esforço para conservar a compostura se provasse o vestido. Mas, como evitar?
— E se for preciso fazer algum acerto? — Mary exclamou enquanto colocava o vestido sobre a cama e começava a afastar o papel marrom que o protegia. — Olhe! Olhe, Virginia! — Ela exclamou.
Virginia se abraçou, se sentindo indisposta. Mary levantou um vestido de seda branca e ela se obrigou a olhar. Quase hipnotizada observou o vestido de decote quadrado e mangas longas, coberto por uma capa de renda e pedraria. A saia era ampla, enorme, e a cauda longa e elegante. Compôs um sorriso. Sentia-se doente.
— Muito bonito. — Murmurou. Como poderia estar acontecendo aquilo? Como? Estava para se casar com Devlin... E ele não a amava.
— Você será a noiva mais bela que Harmon House nunca viu. — Disse Mary. — Deixe-me te ajudar a se despir.
Virginia se voltou e observou pela janela o iate elegante que havia atracado no píer da casa. Piscou para reter uma lágrima e se perguntou vagamente quem teria chegado. Um homem saltou do iate para o embarcador e sua figura lhe era terrivelmente familiar. Ficou paralisada. Ele atravessou o caminho de pedra e começou a caminhar em direção a casa, com passos rápidos.
— Sean! — Ela gritou. E cheia de alegria abriu a janela e o saudou com a mão. — Sean!
Ele a ouviu, pois levantou o rosto e lhe devolveu a saudação.


Virginia deixou Mary e o vestido e desceu a escada atropeladamente. Ao atravessar o salão notou vagamente à presença de Devlin na biblioteca, conversando com alguém. Não sabia que ele estava em casa, mas pouco importava. Abriu rapidamente as portas do terraço e correu para fora. Sean estava subindo a escada do pátio e sorriu-lhe.
— Quanto me alegro em vê-lo! — Ela exclamou e se jogou em seu braços, enlaçando-o pelo pescoço.
Notou que ele endureceu o corpo, mas se sentia tão a salvo, tão segura e querida, que não se importou e continuou grudada a ele. Finalmente ele lhe deu alguns tapinhas nas costas, quase como se sentisse violento.
— Não é este o recebimento que esperava. — Ele murmurou.
Virginia então notou que ele não havia lhe abraçado e se afastou, sorrindo.
— Estou tão feliz que esteja aqui!
Os olhos acinzentados de Sean percorreram sua face. Ela sorriu novamente e lhe tocou a face. Sean se afastou e pegou sua mão com delicadeza.
— Vai deixar o noivo com ciúme. — Ele disse com voz tensa. Virginia voltou à cabeça em direção a casa e notou a queda de uma cortina. Voltou-se novamente para Sean e encolheu os ombros.
— Sei que isso não é possível. — Disse.
Ele seguia observando-a com atenção.
— Você está bem? — Ele perguntou, preocupado. Ela não podia falar. Sacudiu a cabeça. — Venha, — Sean a soltou e pousou uma mão em suas costas, — vamos dar um passeio pelo jardim.
Parecia que ia chover, mas ela concordou distraidamente. Sean tirou a capa e a jogou sobre os ombros.
— Não me parece uma noiva muito feliz. — Comentou enquanto desciam a escada de pedra.
— Ninguém lhe contou? — Ela perguntou quase que histérica e amargurada. — Devlin decidiu se redimir e fazer o que é certo. Afinal, ele decidiu salvar minha sórdida reputação.
Sean se deteve e a fitou.
— Parece-me muito zangada.
— Sean… — As lágrimas ameaçavam cair. — Estou mais que zangada. Vejo-me obrigada a aceitar um casamento sem amor, com um homem que não posso suportar.
Ele a fitou atentamente e resmungou uma maldição.
— Acreditei que estivesse apaixonada por ele, Virginia. Quando estava em Askeaton parecia que saia faíscas de seus olhos.
— Você vê faíscas agora? — Perguntou ela.
Ele apertou os lábios.
— Não. Não as vejo.
Virginia lhe deu o braço e começaram a caminhar outra vez.
— Tentei fugir, mas Tyrell me traiu e avisou Devlin. Ele comprou Sweet Briar e deixou bem claro que se me casar com ele, a plantação será o presente de casamento.
Sean interrompeu a caminhada.
— Ele a chantageou, para que aceite? — Ele estava perplexo.
Virginia vacilou.
— Não exatamente. Mas a sugestão era clara. Sweet Briar será meu presente de casamento. Se ele quisesse me dar o presente livremente poderia simplesmente ter assinado a escritura.
Sean a observou novamente por um momento e logo disse: — Ouvi dizer que vivia abertamente com ele, que era sua amante. Acreditei que casamento era o que meu irmão devia fazer.
Ela titubeou. Não podia dizer a Sean que ela e Devlin haviam representado uma espantosa farsa. Será que Sean ainda a amava? De repente temia que ele a amasse. Seria um engano lhe complicar em suas preocupações. Finalmente disse: — Não quero me casar com ele, mas tampouco tenho escolha.
Sean lhe levantou o queixo.
— Antes você o amava. Pode dizer sinceramente que já não o ama?
Ela abriu a boca, mas não proferiu sequer uma palavra. Uma terrível sombra obscureceu os olhos de Sean, e Virginia compreendeu que seus sentimentos por ela não haviam mudado.
— O que eu sinto não importa. — Virginia disse, finalmente. — O que importa é que ele me fez mal uma e outra vez. Não posso suportar mais, Sean. Não suporto sua espantosa indiferença!
Sean engoliu em seco, mas logo disse com voz tensa: — Não acredito que Devlin sinta indiferença por você, Virginia. Conheço meu irmão. Ninguém o conhece tão bem como eu. Se ele não desejasse se casar contigo, nada poderia persuadi-lo. Nada e nem ninguém.


Era o dia de seu casamento.


Logo amanheceria. Virginia permanecia sentada junto à janela e observava a chuva cair. Tentava imaginar que tipo de mulher teria sido se quando menina tivesse assistido a decapitação de seu pai. Era-lhe impossível, mas acreditava que teria reagido como Sean, relegando o que acontecera ao esquecimento.
Devlin se lembrava de tudo. Diferente do irmão, ele havia passado os quatorze anos anteriores idealizando a vingança contra o assassino de seu pai. Virginia estremeceu. O que acontecera tornaria qualquer ser humano, em desumano, mas o homem que havia se deitado com ela depois do baile de Lorde Carew não era um homem desumano, disso estava segura.
Resistiu em pensar novamente nessa noite, mas de repente não podia pensar em outra coisa. Fechou os olhos, confusa. Podia fugir ou ficar. Poderia aceitar o casamento com um homem frio e vingativo ou ter fé. Se fugisse certamente fracassaria, mas a fé lhe augurava um futuro cheio de sofrimento, a julgar pela história decorrida.
A lógica lhe dizia que não tinha mais recurso que ficar e aceitar o casamento com um homem sem coração, sem esperar nada em troca e mais, fora de Sweet Briar. Como suportaria semelhante vida? Estremeceu novamente, com a alma gelada. A lembrança de seus pais brincando, se beijando ou fazendo uma carícia furtiva quando acreditavam que ninguém os observava assaltava sua memória.
Deus! Devlin e ela não haviam trocado uma palavra desde o dia espantoso em que ele quase a obrigou, mediante chantagem, a aceitar sua união. Uma coisa ficava bem clara. Não poderia suportar um casamento mecânico com um homem que todo mundo considerava cruel e desumano. Portanto, deveria continuar abrigando a tola esperança, de algum modo salvar sua alma. De repente, compreendeu a coragem que precisava reunir para percorrer o caminho para o altar.
Era hora de manter uma conversa civilizada com Devlin. Descalça, ela atravessou o aposento. Sabia que Devlin não tinha subido. Desceu a escada, convencida de que o encontraria na biblioteca.
A porta estava aberta. Um enorme fogo crepitava na lareira. Devlin estava sentado à sua mesa, com uma pluma na mão. Ele levantou os olhos, surpreso. Virginia sorriu. Seu sorriso lhe pareceu amargo, mas não se daria por vencida. Tentaria ser uma verdadeira esposa para ele, por mais coragem que precisasse.
Devlin cuidou a camisola branca de algodão e renda e os pés descalços.
— Virginia…
— Pensei que poderíamos conversar… Se você tiver tempo. — Virginia acrescentou, com apreensão.
— Você vai se resfriar. — Devlin exprimiu, se levantou e deixou a pluma a um lado.
Mostrava a barba por fazer e a camisa meio aberta e amarrotada. O coração de Virginia saltou no peito. Devlin emanava um aspecto perigoso e terrivelmente sedutor.
Ela entrou no aposento e parou diante do fogo, de costas para ele. Notava seu olhar cravado nela e não atrevia a voltar à cabeça. Ouviu Devlin se aproximar. Finalmente levantou os olhos para ele. Devlin a fitou. Ela então notou que ele tinha uma manta nas mãos.
— Posso?
Ela assentiu com a cabeça, e ele depositou sobre seus ombros, a manta de lã vermelha.
— O que queria me falar às cinco e meia da manhã? — Ele perguntou com tom seco e algo zombeteiro.
— De nosso casamento. — Ela conseguiu dizer. Ele assentiu evidenciando a mandíbula tensa e os olhos cintilantes. Ela titubeou. — Estive pensando em fugir outra vez, mas descartei.
Ele se apoiou no suporte da lareira.
— Continue.
— Tenho a intenção de tirar o máximo de partido de nossa situação.
— É o razoável. — Disse ele.
— Como agiremos? Em outro tempo éramos quase amigos. — Ela balbuciou mais apreensiva. Engoliu a saliva e segurou sua mão. Ele enrijeceu o corpo. — Podemos ser amigos. Estou segura disso. Estive muito zangada nestas últimas semanas, mas pensei em tudo e agora quero começar novamente. Hoje vamos nos casar. Que melhor alicerce para um casamento, que a amizade? — Ele se limitou a fitá-la, como se estivesse hipnotizado. — Devlin?
— Trata-se de uma cilada? — Ele perguntou com cautela.
— Não — Ela se apressou em dizer. — Não posso me casar com um homem com quem não possa rir ou conversar. Não posso me casar com um homem e lhe dar filhos se não podermos passear pelo parque e cavalgarmos juntos e, em geral, desfrutar de uma camaradagem prazerosa. Vamos compartilhar a vida, Devlin. Vale à pena sermos amigos.
Ele guardou silêncio por um longo momento.
— Ema vez você já me pediu amizade e eu falhei contigo miseravelmente, Virginia. É muito valente e ousada ao me pedir isso outra vez.
— É pedir muito? — Ela exclamou. — Está me dizendo que não quer que sejamos amigos? Que só quer compartilhar minha cama e se sentar diante de mim na hora do jantar? Não posso aceitar isso, Devlin — Ela advertiu.
Ele observava-a.
— Quais seriam os requisitos para nosso matrimônio, então? Risos, conversas, longos passeios e cavalgadas pelo campo?
Ela respondeu com grande dignidade: — Eu não posso suportar uma união fria e estéril, Devlin. Sem dúvida me conhece bastante bem para saber disso.
— Duvido que seja fria ou estéril, — Replicou ele rapidamente.
— Está evitando minha pergunta. — Disse ela com toda a calma de que foi capaz.
— Sim, acredito que sim. — Parece acreditar que sou um cavalheiro ocioso, que ficarei em casa a sua disposição. Dois dias depois de nosso casamento vou para a guerra, Virginia. Minha travessia durará pelo menos seis meses. — Ela se sentiu abatida. — Mas quando retornar, — acrescentou ele seriamente, — daremos longos passeios e cavalgaremos, se é o que deseja. E se você disser algo divertido, — ele provocou com olhar intenso, — farei tudo o que esteja ao meu alcance, para sorrir.
Ela se sentiu tomada pelo alívio.
— Obrigado, Devlin.
Ele esboçou um sorriso e logo sacudiu a cabeça.
— Você continua imprevisível, Virginia.
— Então você não se aborrecerá. — Replicou ela. Devlin tentaria ser um verdadeiro marido para ela! A alegria começou a se apoderar dela. Devlin era teimoso, mas tinha dado o braço a torcer. Havia transigido. Tentaria.
Ele sorriu um pouco.
— Quero que saiba uma coisa, Virginia. Comigo terá tudo o que necessitar. Já deixei claro ao meu administrador que não deve faltar nada a você, se tiver algum problema, você pode recorrer a Adare, Tyrell ou Sean. Ainda não conhece Rex ao Cliff, mas são igualmente nobres.
A alegria de Virginia se dissipou em parte. Nem todas as suas necessidades seriam supridas, a menos que Sean tivesse razão e ela pudesse salvar a alma de Devlin. Mas já tinha conseguido o bastante por um dia, e se negava a pensar mais nisso.
— Obrigado, Devlin. — Ela agradeceu, sorriu e se voltou para sair.
— Virginia… — O tom de Devlin se suavizou enormemente. Ela se voltou. — Agora que tive tempo para pensar... Não me desagrada esta união. Acredito que no fim nos entenderemos muito bem. — Ele mostrou a sombra de um sorriso, com olhar interrogador.
Virginia sustentou-lhe o olhar, surpresa. O sorriso de Devlin era leve, mas sincero e de algum jeito a deixou sem fôlego. Ele parecia alarmado por causa da pequena confissão. Virginia se voltou. Um terrível perigo continuava a lhe espreita. Um leve sorriso, um olhar terno fazia com que logo a esperança se apoderasse dela. Aceitar o casamento, amar um homem que se negava a corresponder seus sentimentos e que vivia para o ódio e a vingança era uma loucura de sua parte. Mas o coração humano desconhecia a lógica.
Virginia sabia que jamais daria Devlin por perdido.


A marcha nupcial havia iniciado.
Devlin sentiu o coração se contrair e pulsar em ritmo vertiginoso. Encontrava-se diante do altar da capela de Harmon House. Seu irmão Sean era o padrinho. Os únicos convidados eram seus meio-irmãos Tyrell, Rex e Cliff, que se encontravam na primeira fila junto a sua mãe e sua meio-irmã Eleanor, que acabava de chegar de Bath. Voltou-se. Estranhamente lhe faltou o fôlego, e de repente lhe pareceu que o tempo ficava em suspense.
Virginia avançava lentamente pelo corredor, guiada por seu padrasto.
Ele observava. De repente sentiu temor de sua noiva, a mulher mais bela que já havia contemplado nunca. Os olhos enormes e violetas permaneciam fixos nele enquanto ela se aproximava passo a passo. Não conseguia respirar. Estava perto de casar e sua vida nunca mais seria a mesma. O tumulto em seu coração se intensificou. A ansiedade se apoderou dele. Não poderia se tornar vítima do encanto de Virginia. Pensou aterrorizado. Nada havia mudado. Havia lhe prometido longos passeios, cavalgadas pelo campo e diálogos, mas dois dias depois iria para a guerra e ficaria seis meses sem vê-la. Sentia-se aliviado, mas por insensato que parecesse ainda se sentia mais desiludido.
Virginia parecia à visão de um sonho em seu vestido branco e brilhante. Um véu muito fino cobria sua face. O cabelo longo, encaracolado e salpicado de diamantes caía tumultuosamente sobre seus ombros. Não conseguia afastar o olhar. Havia tantas lembranças… Virginia em pé junto a amurada do navio Americana apontando uma arma para sua cabeça. Ou em seu camarote, orgulhosa e desafiante, exigindo saber de suas intenções. Virginia em Askeaton, inefavelmente bela, lhe oferecendo seu corpo e suplicando seu amor com o olhar. Nesta mesma manhã, em sua camisola, tão esbelta como uma menina, lhe oferecendo uma trégua e um casamento real, se ele se atrevesse a aceitar.
Não merecia uma mulher como ela. Nunca tinha merecido. Nunca a mereceria. Mas era já muito tarde para voltar atrás. Suando fechou os olhos. Seguiria a corrente, cumpriria suas normas e a honraria como seu companheiro, amante e o pai de seus filhos, mas não necessitava nem de amor e nem de felicidade.
Virginia parou ao seu lado e Edward se afastou. Ela o fitou, cheia de expectativa. Ele estava tão perplexo que sequer pôde esboçar um sorriso. Inclinou a cabeça. Insegura, ela fitou o sacerdote. Padre McCarthy fez um gesto e ambos se ajoelharam enquanto ele iniciava o oficio. Devlin não ouviu nenhuma palavra do que ele disse. Sentia vivamente a presença de sua noiva e era consciente da oportunidade que lhe era oferecida. Estava em uma encruzilhada. Havia duas direções que sua vida podia tomar.
O amor e a felicidade… Ou a vingança e o ódio.


O reduzido cortejo nupcial se transladou a um dos salões de Harmon House onde em uma longa mesa foi servida um bufe o bastante copioso para cinqüenta convidados e incluía um resplandecente bolo de casamento. Uma pequena orquestra tocava em um canto do salão. Virginia continuava perplexa e mal podia falar. Devlin e ela estavam casados. Havia acontecido realmente.
Piscou firmemente ao observar a mão esquerda, onde uma singela aliança de casamento confirmava que, em efeito, havia se casado. Sentiu os joelhos fraquejarem e estava dificil respirar. De fato, se sentia quase margeando o desfalecimento.
Não se arrependia de ter casado, mas se perguntava o que o futuro lhes proporcionaria e rezava tolamente para que algum dia todos os seus sonhos se tornassem realidade. Voltou os olhos para o outro lado do salão.
Vestido em sua uniforme de gala, Devlin bebia champanhe junto aos seus meio-irmãos. Virginia havia conhecido Rex, o irmão do meio e Cliff, o caçula, horas antes do casamento. Como Tyrell, eles eram altos e de cor morena. Rex era militar e se destacava em seu uniforme vermelho adornado com galões dourados e numerosas medalhas. Era Capitão, como Devlin, mas de um regimento de cavalaria. Virginia recordava vagamente que no ano anterior ele havia sido ferido em Salamanca.
Do Cliff sabia muito pouco. Seu cabelo era quase loiro e ele mostrava uma aparência de arrogância. Ouvira alguma coisa a respeito de navios e o mar do Caribe e havia chegado à conclusão que ele se dedicava ao comércio marítimo. Não parecia um comerciante, entretanto, pois seu porte lhe recordava Devlin. Os três irmãos De Warenne eram perigosamente atraentes, cada um a sua maneira.
Devlin a fitou de repente e seu coração se deteve. Sustentaram-se pelo olhar, mas nenhum dos dois sorriu.
Essa noite era a noite de casamento. Parecia ter passado uma eternidade desde que estivera pela última vez em seus braços, e a idéia de estar ao seu lado lhe provocada contrações em seu intimo. Uma imensa onda de desejo ameaçava lhe desfalecer.
— Ele é tão bonito! Não me imagino com um marido assim.
Virginia pestanejou e fitou à moça que era possivelmente dois anos mais nova que ela. Era terrivelmente bela, com as maçãs do rosto salientes, olhos ambarinos e cabelo loiro escuro, quase da cor do mel. Sorria para Virginia, cheia de ilusão.
— Sou Eleanor de Warenne. — Ela se apresentou com uma gentil reverencia. — A meio-irmã de Devlin.
Virginia se inclinou diante dela.
— Desculpe-me. — Ela se manifestou voltando o olhar para Devlin. Ele estava conversando com Cliff, mas voltou os olhos para ela imediatamente. A sensação de desejo aumentou. Precisava estar em seus braços o quanto antes. Tentou sorrir para Eleanor. — Alegro-me muito em finalmente te conhecer. Não passou esta temporada em Bath?
Eleanor murmurou uma afirmação. Virginia a fitou mais atentamente. A moça observava Sean com as bochechas mais ruborizadas que antes. Logo se voltou para ela.
— Está nervosa com a noite de casamento? — Ela perguntou com franqueza.
Virginia se surpreendeu. Para falar a verdade estava muito nervosa.
— Francamente, sim. — Disse em voz baixa. E voltou a olhar para Devlin.
Sean apareceu de repente ao seu lado.
— Vejo que finalmente conheceu Eleanor. Se acredita que vai convencer Virginia para que te conte da noite de casamento está equivocada, Eleanor. — O tom de voz era morno, mas o olhar não o era. Logo ele sorriu a Virginia. — Ela tem somente dezesseis anos e certos assuntos não são recomendáveis para os seus ouvidos.
O sorriso de Eleanor se dissipou e ela enrubesceu.
— Farei dezessete anos dentro de três meses. — Exclamou. — Já não sou uma menina! Agora sou uma Mademoiselle… Uma Mademoiselle com pretendentes. Pergunta a quem quer em Bath. — Levantando-as saias do vestido, ela se afastou apressadamente.
Sean suspirou e a seguiu com o olhar. Parecia estranhamente pensativo. Logo ofereceu uma taça de champanhe a Virginia.
— Parece exausta. Quer que chame Devlin?
Virginia sorriu indecisa. Se chamasse Devlin talvez encontrassem uma desculpa para partir.
— Sim. Seria ótimo. — Conseguiu responder. Estava difícil respirar.
Sean fez uma reverência e se afastou deixando-a sozinha. Ela bebeu um gole de champanhe com a esperança de se refrescar um pouco. Mas a multidão que enchia o salão se converteu em muitas faces. Devo me sentar, pensou. Mas, antes que pudesse se mover, a taça caiu de seus dedos e estatelou no piso.
Virginia fitou a mancha, aniquilada e sua visão pareceu obscurecer. Que estranho! Conseguiu pensar enquanto o salão parecia dançava e escurecia. Vou desmaiar, ainda teve tempo de pensar.
— Virginia! — Devlin gritou.

 

 


Capítulo 24


Devlin sentiu o coração parar. Ajoelhou-se junto a sua esposa e buscou rapidamente seu pulso. Era constante e firme. Uma onda de alívio o embargou. Virginia somente havia desmaiado. Ergueu-a nos braços e se voltou à família ao seu redor.
— Ela desmaiou. Acredito que já teve o bastante por hoje. — Levantou-se pressuroso. Virginia era leve como uma pluma.
— Ela suportou muita pressão. — Mary murmurou muito pálida. — Meu Deus. Eu não devia ter me empenhado nesta cerimônia tão precipitada.
— Não é culpa sua, carinho. — Disse Edward abraçando-a.
Com a Virginia inerme em seus braços Devlin se dirigiu para a porta. Sean o alcançou e Devlin fitou seus olhos. Seu irmão parecia angustiado.
— Quer que eu peça a uma criada que suba com sais aromáticos?
— Faça isso. —Devlin respondeu em tom algo cortante. Sabia que os sentimentos de seu irmão não haviam mudado, do mesmo modo que sabia que Virginia deveria ter se casado com alguém como ele.
— Devlin! — Sua mãe colocou sais aromáticos no bolso de sua casaca. — Ela não se alimentou direito. Precisa de repouso e alimento.
Ele assentiu e saiu do salão. Enquanto subia as escadas, fitou o rosto de Virginia e seu coração amainou inexplicavelmente. Ela merecia um homem como Sean, mas estava presa a ele. De repente sentiu o desejo de compensá-la. O quarto estava cheio de flores. Devlin depositou Virginia na cama já desfeita, e ela começou a se movimentar. Ele se sentou ao seu lado e aproximou o sal de seu nariz. Virginia gemeu e abriu os olhos bruscamente. Fitou-o surpresa, por um momento. Logo tentou se sentar. Devlin a segurou por ombro e a obrigou a permanecer no leito.
— Fique quieta um pouco. — Ele disse com suavidade, tomado por um estranho e terno afeto. Era ciente que o medo persistia, mas de alguma forma havia conseguido afastá-lo para um lado. — Você desmaiou.
Ela esboçou um sorriso.
— Sinto muito. Não sou de desmaiar.
Ele descobriu que sua boca se curvava e de repente lhe tocou a face.
— Foi um dia difícil. Sei disso. Virginia, eu… — Devlin se interrompeu sem saber muito bem o que dizer. Um terno sentimento enchia seu peito e desejava contar a ela.
— O que? — Ela perguntou em um murmúrio.
Devlin vacilou. Em sua mente ferviam pensamentos incoerentes. Sentia um calor estranhamente terno e familiar.
— Tentarei ser um bom marido.
Os olhos de Virginia se dilataram por um momento e depois ela sorriu.
— Não posso pedir nada mais. — Disse.
Ela era tão bela, autêntica... Tão única… E era dele.
Devlin se sentiu congratulado quando se inclinou sobre ela, enquanto ao seu redor tudo desaparecia. O tempo pareceu ficar mais lento. Virginia, que não se movia sustentou-lhe o olhar até que seus lábios se encontraram.
Um som áspero escapou dele quando segurou seu rosto entre as mãos e lhe abriu suavemente os lábios. Vagarosamente suas bocas se fundiram e as línguas se entrelaçaram. Acariciou-lhe os ombros, os braço. O anseio o invadiu e o fez tremer. Fazendo um desonesto esforço afastou-se dela.
— Vou deixá-la descansar. — Disse bruscamente, disposto a se levantar.
Virginia segurou-lhe o braço com surpreendente força.
— Não.
— Virginia... — Disse ele. — Você desmaiou. Quero fazer o que é certo.
Virginia estava com o rosto rosado e as pupilas dilatadas.
— Estou bem, Devlin. — Insistiu.
— Temos toda uma vida pela frente… — Devlin começou a dizer.
Ela o segurou pelos ombros e o beijou nos lábios. Sua boca se movia com insistência e sua língua pedia passagem. Ao notar que ele não lhe respondia mordeu-lhe o lábio. Devlin perdeu o domínio. Empurrou-a sobre a cama e se apoderou de sua boca. Sabia o que aconteceria e uma sensação assustadora se apoderou dele. Abraçou-a com força e a beijou ainda mais profundamente, se fosse possível. E a tormenta desandou.
Seus pensamentos se dissiparam e com eles desapareceu toda lógica. Só sentia um imenso desvario, uma mistura de desejo, exaltação e outra coisa, algo diferente, que nunca havia sentido. Algo que crescia de maneira impossível e se expandia dentro dele. Crescia e consumia todo seu ser. Virginia gemia fracamente e abraçava freneticamente suas costas. Ele encontrou os pequenos botões das costas de seu vestido.
— Rápido. — Ela pediu.
Devlin não podia falar. A emoção o impedia. Respirava forte enquanto lhe tirava o vestido, a camisa intima, o espartilho e finalmente, a calçola de renda. Levantou-se abruptamente. Nua, ela se sentou. Estava vestida somente com as ligas, as meias e os brincos de diamante. Enquanto ele arrancava a roupa, ela o observava. Os pequenos seios subiam e desciam e os mamilos pareciam alongados e avermelhados. Assim que tirou toda a roupa lhe estendeu os braços. Permaneceu imóvel por um momento embargado por uma sensação de euforia bárbara e selvagem. Aquela mulher lhe pertencia. Por acaso não sabia, desde o primeiro encontro?
Então se aproximou dela. Empurrou-a brandamente sobre o leito. Esboçou um sorriso e ela correspondeu. Afastou suas coxas e se esfregou contra ela. Virginia deixou escapar um gemido.
— Olhe para mim. — Pediu em um sussurro e começou a penetrá-la lentamente.
Ela gemeu novamente. Devlin a observava e se enchia de alegria. Virginia mostrava os olhos frágeis e estava acalorada. Finalmente, quando sentiu estar todo dentro dela notou seus olhos se dilatarem, cheios de surpresa e profundo prazer.
Novamente a euforia o invadiu e junto com ela, sentiu amor. Começou a se mover lentamente.
Virginia fechou os olhos e aceitou seu ritmo. Os corpos se enrijeceram. Devlin a abraçou com força enquanto tentava refrear a necessidade de explodir. Já sabia o que queria, pelo resto da vida. Beijou seu rosto, seu pescoço e sua têmpora, enquanto ela gemia e lhe suplicava cravando as unhas em suas costas. Logo ela proferiu um gemido de surpresa, abriu os olhos de repente e ofegou: — Ainda te amo.
Devlin enrijeceu e a estreitou nos braços enquanto ela alcançava o clímax, incrédula e aturdida. As palavras ressoavam em seus ouvidos. Ainda te amo. Não conseguiu mais se refrear. Abraçou-a com força ao sentir o corpo se convulsionar repetidamente, enquanto as palavras de Virginia se repetiam musicalmente como uma cantilena em sua mente.


Estava sentado na poltrona junto ao fogo que ardia apenas na lareira. Estava vestido com seu uniforme naval, com o chapéu negro sobre o joelho. Observava sua esposa com atenção. Virginia dormia com um sorriso doce no belo rosto. Ainda tinha alguns diamantes presos no cabelo. Havia feito amor com ela durante duas noites e um dia inteiro e ainda a desejava.
Eram cinco horas da manhã do dia 14 de dezembro. Uma hora depois zarparia para a América. Não queria deixar a sua esposa. Não queria partir.
Levantou-se. Que disparate era aquele? O que estava lhe acontecendo? Ele era um soldado e naturalmente desejava ir para a guerra.
Ela suspirou enquanto dormia. O coração de Devlin se contraiu de repente. Deus! Já estava com saudade e ainda não havia partido. O que era aquilo? Devia partir. Talvez agora estivesse casado, mas sua esposa não podia abrandar sua alma e mudar seu caráter, suas predileções. As emoções que experimentava desde o casamento não eram para ele. Não estava apaixonado. O amor não era para ele. Uma vez que zarpasse e se convertesse novamente em parte do vento e do mar deixaria de se sentir como um tolo romântico. Deixaria de sentir saudade de Virginia.
O que significava que era hora de ir. Mas não era fácil… Pensou nas batalhas passadas e sangrentas e o cansaço se apoderou de seu espírito. Aproximou-se bruscamente da cama e contemplou o rosto angelical de Virginia, consciente que desejava memorizá-lo. Por um momento pensou em despertá-la, mas não o fez. O feitiço dela era muito forte.
Cobriu-a com as mantas até os ombros. Ela suspirou novamente e sorriu sem se despertar. O coração de Devlin se contraiu novamente. O monstro do medo se apoderou dele. Aquela mulher era sua esposa. O matrimônio poderia mudar tudo. Enquanto contemplava a Virginia, se deu conta de que ansiava ficar.
Voltou-se bruscamente e abandonou sua noiva adormecida, com passos decididos.
Mais tarde se arrependeria disso profundamente.


Virginia sonhou que Devlin havia partido. Estava em um lugar aconchegante e feliz e de repente se sentiu gelada até os ossos. Encontrava-se em uma praia observando o Desafio se afastar. Horrorizada, gritou.
Acordou nua e sentada na cama.
— Devlin? — Chamou-o, já compreendendo que tinha tido um pesadelo e sentiu alívio. Mas ao afastar as mantas notou que estava sozinha. — Devlin? — Começou a sentir um vazio enorme dentro do peito. Começou a tremer. O relógio do aparador marcava cinco e meia da manhã.
Era 14 de dezembro.
Devlin devia que zarpar nessa manhã.
Mas não partiria sem lhe dizer adeus. Envolveu-se em uma manta da cama e correu para a sala de estar, mas estava vazia. Cheia de espanto correu ao armário, abriu-o e se vestiu tão rápido como pôde. Com os sapatos na mão pôs a correr escada abaixo.
Uma criada atravessava o saguão.
— Rosemary! Onde está o Capitão? Ele já foi?
A donzela pareceu surpresa.
— Há alguns minutos, Senhora.
Virginia ficou imóvel, atônita, com os sapatos e as meias na mão. Devlin já havia saído? Assim, sem uma palavra? Por que não lhe havia dito adeus?
— Preciso de uma carruagem. — Disse com ansiedade. Sentia o coração contraído. Sentou-se em uma cadeira enquanto a criada se afastava apressadamente vestiu as meias e calçou os sapatos. Pensou em como Devlin havia lhe abraçado e como adormecera em seus braços. Recordou a afirmação de que seria um bom marido para ela. Enxugou as lágrimas. Por que ele não tinha lhe despertado, para lhe dizer adeus? Outro momento terrível lhe veio à memória, quando se sentiu amada por ele com urgência e ternura, só para encontrá-lo frio e indiferente no dia seguinte.
Sentiu-se doente. Era impossível que Devlin voltasse a se retirar novamente para o lugar horrível, frio e sem alma no qual tinha vivido até então. A idéia lhe era insuportável. Tinha que encontrá-lo. Devia lhe dizer adeus. Devia ver seu sorriso cheio de ternura uma vez mais e se convencer de que juntos haviam superado a terrível tempestade. Que a luz radiante de um novo dia os aguardava do outro lado. Se não fosse assim não sobreviveria os seis meses seguintes.
Meia hora depois, com velocidade sua carruagem atravessava o estaleiro e Virginia olhava pela janela e, quando a carruagem finalmente parou, ela quase foi despejada dela. A sua frente havia um navio enorme que não reconhecia. Havia outros navios alinhados no cais, mas nenhum deles era o Desafio. Seu coração doía quando levou a mão aos olhos para protegê-los do sol do amanhecer. Seu olhar alcançou além do cais e ela soltou um grito.
A algumas jardas de distância, o Desafio deslizava lentamente pelo canal, rumo ao porto aberto. E não havia como confundir à figura alta e galharda que permanecia em pé, imóvel, sobre o castelo de popa.
Virginia pôs-se a correr pelo cais agitando freneticamente o braço.
— Devlin! Devlin! — Ela gritou.
Mas o navio continuou avançando para o horizonte e ele não se voltou nenhuma só vez para olhar para trás. Os passos de Virginia vacilaram. Deteve-se sem fôlego e contemplou desesperada o navio que se afastava.


Devlin se encontrava no castelo de popa e sentia um estranho impulso de olhar para trás, para o estaleiro. Tinha por costume permanecer junto ao leme e esquadrinhar o horizonte. Mesmo assim, não conseguia se desprender do desejo de olhar para trás, como se pudesse ver sua esposa uma última vez.
— Bom dia para navegar, Capitão. — Disse Red com as mãos no leme.
— Sim, um bom dia. — Uma fresca brisa espumava as ondas. Depois de tanto tempo em terra firme, ele deveria se sentir eufórico por zarpar novamente. Mas não estava. Suspirou finalmente e olhou para trás.
Mas o estaleiro era já um borrão de formas e cores. Logo, um brilho de luz no convés inferior captou sua atenção. Voltou-se. Um marinheiro lhe apontava com um mosquete. O tempo pareceu parar. Compreendeu que se tratava de uma tentativa de assassinato. Sabia que morreria. E enquanto sua mente lhe dizia que devia saltar e sabia que seria inútil, também soube que o assassino havia sido enviado por seu mortal inimigo, o Conde de Eastleigh.
Ao retumbar o disparo o navio se sacudiu empurrado por uma súbita rajada de vento. Devlin já havia se equilibrado já sobre a ponte. Sentiu uma queimação na parte superior do braço. Acabava de usar outra de suas vidas. Ao deslizar pelo assoalho de madeira do convés uma ira selvagem se apoderou dele. O assassino tinha errado o tiro, mas somente por causa do vento. Ainda no chão, tirou sua pistola e gritou: — Peguem esse homem! — Rolando para o lado carregou rapidamente a arma e voltou os olhos para o lugar onde esperava que estivesse o assassino. Não se equivocara. O sujeito tentava carregar o mosquete, freneticamente. Gus e outro marinheiro partiram para ele, pelas costas. Devlin se sentou no momento em que o assassino apontava novamente e quase que simultaneamente, dispararam um no outro. O assassino recebeu um disparo na perna, proferiu um grito e caiu. Devlin jogou a pistola para um lado, tirou o sabre, atravessou correndo a cobertura e saltou no convés.
— Quero-o vivo! — Gritou enquanto Gus e outro marinheiro seguravam o homem ferido. Devlin se deteve diante dele, cheio de fúria.
— Está ferido, Capitão... — Perguntou Gus enquanto os outros marinheiros se aproximavam.
— É só um arranhão. — Ele respondeu brusco. Golpeou o assassino sob o queixo com a bota e o homem caiu de costas. Gemendo de dor, ele fitou Devlin com os olhos muito abertos.
— Piedade, Capitão. Só fiz o que me ordenaram! Pagaram-me para fazê-lo! Tenha piedade, eu lhe suplico. Tenho mulher e três filhos, todos famintos, por favor…
Devlin apoiou o pé sobre seu peito.
— Quem te enviou?
Olhos frenéticos cravaram-se nos seus.
— Não sei. Ele não me disse seu nome! Espere!
Devlin pisou seu peito com força.
— Sugiro que pense com atenção. — Disse Devlin.
— Ele não me disse seu nome. —O homem ofegou. — Mas sei quem era! Era um Lorde, Capitão. Vi o brasão de sua carruagem e perguntei quem era depois de que ele saiu.
— Quem era?
— Eastleigh. Era Lorde Eastleigh, Capitão. Por favor... Por favor, me perdoe à vida.
Devlin analisou friamente a súplica.
— Levem-no ao calabouço. Que o cirurgião do navio se dele ocupe.
— Sim, Senhor. — Disse Gus.
Devlin se voltou. Estava agitado e furioso com ele mesmo. Estava pensando em sua esposa como um colegial e refletindo sobre o amor, quase com alegria, quando um inimigo mortal queria lhe destruir. Sua conduta quase havia lhe custado à vida.
O aviso chegava a tempo. Estava casado, mas nada havia mudado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 25


Hannah bateu na porta de Virginia.
— Senhora O’Neill? Lady de Warenne está lá embaixo, a sua espera. — A moça sorriu, indecisa.
Virginia havia retornado de sua tentativa frustrada de se despedir de Devlin e se refugiara imediatamente em seus aposentos. A tristeza a dominava. Havia se deitado. Tentava colocar na cabeça que seis meses não era tanto tempo, mas cada segundo que passava sentia mais saudade de Devlin. O medo pugnava dentro dela, junto com o desconcerto. E se ele fosse ferido ou algo pior? Por sorte estava tão esgotada, que finalmente acabou adormecendo. Despertara a uma hora se sentindo mais composta e descansada. Tomara banho e se vestira. Estava alegre por que sua sogra tivesse aparecido para visitá-la, pois sentia tão vivamente a ausência de Devlin que a casa lhe parecia espantosamente vazia.
Correu ao encontrou de Mary que estava sentada em um dos salões, bebendo uma xícara de chá. Assim que viu Virginia, ela se levantou e a fitou inquisitivamente. Virginia perdeu imediatamente o aprumo. Ficou imóvel e as lágrimas começaram a descer por sua face.
— Oh, querida. — Mary sussurrou se aproximando dela. — O que aconteceu, menina? — Ela abraçou-a. — Acreditei que hoje a veria feliz. Por favor, não me diga que Devlin tornou a te fazer mal.
Virginia conseguiu sacudir a cabeça.
— Não, não. Ele não fez nada errado. Só partiu esta manhã sem me dizer adeus, mas não é o que me angustia. Sinto falta dele, lady Adare. Tento não me perder, mas não sei como vou sobreviver a estes seis meses sem ele. — As duas mulheres se fitaram. Virginia enxugou os olhos. — Sou uma tola. Sei disso.
Mary segurou o rosto de Virginia entre as mãos.
— Não. Você não é uma tola. Você está apaixonada e eu me sinto muito feliz, minha querida.
Virginia mordeu o lábio.
— Sim, estou apaixonada, Milady. Mais que nunca, acredito.
Mary sorriu, feliz.
— Não dê muita importância a esta partida tão apressada. Os homens podem ser uns tolos. Estou segura de que ele não queria te incomodar despertando na alvorada ou alguma outra tolice. Devlin não é romântico em modo algum, mas acredito que a ama. De fato, estou quase segura disso.
Virginia se deixou embargar pela esperança.
— Você acredita?
— Ele não afastava os olhos de você durante a cerimônia. Nunca vi um homem tão cativado.
Virginia se emocionou.
— Eu acredito que ele tem afeto por mim, sim. — Confessou. — Mas, como vou superar estes seis meses?
— Muito facilmente. — Replicou Mary. — Deverás viverá em Harmon House. Não pode ficar aqui sozinha. Rex não vai partir até Ano Novo e Cliff passará o inverno na cidade. E, além disso, tem Eleanor. Agora ela é sua irmã e deveriam se conhecer melhor antes que retorne a Bath. — Mary sorriu com um brilho nos olhos. — Não há alternativa, querida.
Virginia se sentiu profundamente reconfortada e se atreveu a segurar a mão de sua sogra.
— É a Senhora é muito boa, Milady . Posso lhe falar com franqueza?
— Fale, por favor. —Mary respondeu.
— Já me sinto como se fosse sua filha.
Mary a abraçou com força.
— E é, querida. Claro que é.


Havia duas salas de jantar em Harmon House. A família se reunia no menor. Mary e Edward se sentavam nos extremos da mesa, sempre vestidos formalmente. Virginia se encontrava sentada entre Cliff e Tyrell. Eleanor, Rex e Sean se sentavam em frente. A conversa se desdobrava vivamente ao seu redor. Eleanor falava com sua mãe, Tyrell e Edward conversavam sobre censos e Cliff e Rex debatiam a respeito da política financeira de Napoleão. Virginia sorria, alegre. Devlin tinha uma família maravilhosa, da qual ela fazia parte.
Notou que Sean a observava e lhe sorriu. Ele correspondeu ao sorriso e desviou os olhos. de repente Eleanor se voltou para a Virginia com expressão alegre.
— Soube que você passou bastante tempo em Askeaton quando Devlin estava em Londres. Você gostou? Eu acredito que é uma das partes mais bonitas da Irlanda.
Virginia baixou o garfo e sorriu.
— Gostei de muito. É lindo.
— Tanto como sua casa na Virginia?
— Sim. — Por um momento Virginia se sentiu comovida pela lembrança. — Sweet Briar é um lugar maravilhoso. Mas em Askeaton há melhores rotas para andar a cavalo. — Ela sorriu para Sean, se recordando dos longos passeios que haviam compartilhado.
Eleanor fitou-os, confusa.
— Esqueci-me que… Enquanto Devlin esteve fora, você só teve Sean por companhia.
Virginia se sentiu incômoda. Não sabia o que dizer. Sean ignorou a conversa e continuou concentrado em sua comida.
— Faz anos que não cavalgo em Askeaton. — Comentou Cliff tranquilamente. Embora parecesse perfeitamente relaxado, Virginia compreendeu que ela havia ido a seu resgate. — Sean tem cavalos excelentes, não?
Ela o fitou. Cliff de Warenne era um jovem inquietante, e Virginia sabia que ele desfrutava dos favores de certa viúva conhecida. Agradeceu por ele ter reconduzido a conversa.
— Sim, são ótimos. Em Askeaton há alguns cavalos magníficos. Sobretudo, Bayberry. — Ela acrescentou e sorriu ao se recordar da égua.
Sean a fitou finalmente.
— Ela é tua. — Disse ele, de repente. — Aceite-a como meu presente de casamento, Por favor.
Virginia ficou tão surpresa que não pôde dizer nada. Eleanor voltou a observar um e outro, com perplexidade.
— Mas você a criou! E vai dar de presente se à Virginia?
Sean a fitou.
— A Virginia adora a égua.
Eleanor se levantou de repente.
— Desculpem-me. Parece-me que estou com uma terrível dor de cabeça. — E saiu correndo do salão.
Virginia piscou. O que tinha acontecido?
Sean suspirou.
— Sempre me esqueço que Eleanor estava presente no dia que a égua nasceu. Ela ajudou-me a trazê-la ao mundo. — Sean se levantou muito sério. — Perdoem-me. — Ele concluiu e saiu.
Edward parecia perplexo.
— O que está acontecendo, Mary? Por que Eleanor está tão desgostosa?
Tyrell disse pensativamente:
— Que coisa tão estranha. Eleanor passou a vida procurando irritar Sean…
— E agora está com ciúme de Virginia. — Rex acrescentou calmamente e saudou Virginia com a taça de vinho, antes de beber.
Virginia fez ameaça de protestar, mas Cliff concluiu com calma: — Sean deveria beijá-la. Isso resolveria o problema… Embora provoque outros novos. — Ele sorriu.
— Já é suficiente! — exclamou Mary. — Benson, sirva o seguinte prato, por favor.


Os dias passavam lentamente, mas sem um momento de aborrecimento. Virginia saía a cavalgar pelas manhãs com um ou outro irmão de Devlin, embora nunca com Sean. A tarde, junto com Mary e Eleanor visitavam alguma amida da mesma ou ficava em casa para resgatar Rex de algumas das muitas damas que apareciam para visitar ele e Cliff. Estava claro que Cliff tinha uma aventura não muito discreta com lady Arlette, a viúva. Cliff lhe recordava Devlin, pois não parecia se preocupar absolutamente com sua reputação.
As noites eram para os eventos sociais que transcorriam em casa ou na cidade. Brevemente Virginia foi aceita novamente na sociedade graças à influência da família De Warenne. Iam a jantares, a festas beneficentes ou bailes. Só uma vez se tropeçou com William Hughes e sua esposa e houve entre eles uma educada e apressada troca de saudações.
Conheceu outros membros da família De Warenne e aprendeu um pouco mais sobre a história da família. O fundador da linhagem havia lutado nas filas de Guillerme, o Conquistador. Antes, um normando sem terras, ele contraiu matrimônio com uma rica herdeira saxã e com o tempo, recebeu o título de Conde. Um de seus descendentes emigrou para a Irlanda com a esperança de obter terras e honras, e como conseqüência disso surgiu o ramo Adare da família. O ramo original da linhagem, cravado em Nortumbria, acumulou excessivo poder, granjeou os receios da monarquia e acabou perdendo suas terras e títulos depois de uma sangrenta rebelião. Mais tarde, alguns De Warenne se converteram em ricos comerciantes ou conseguiram recuperar pequenos latifúndios, enquanto outros emigravam para a América, para formar novas fortunas. Era uma família extraordinariamente interessante.
Virginia sentia muito a falta de Devlin. Não havia recebido nenhuma só linha dele. Seguia as notícias da guerra com vivo interesse, embora soubesse que muitas eram já antigas. Sentia dolorosamente suas lealdades divididas.
— Vou matá-lo se ele não lhe escrever. — Sean lhe disse em fins do mês de janeiro.
— Não vejo como ele mandaria uma carta. — Contestou Virginia. Sofria tanto que teve dias em que a saudade se tornava dolorosa. Uma carta era tudo que precisava para que a separação fosse mais suportável. Contava os dias que faltavam para a chegada dele. Devlin tinha prometido voltar em meados de junho.
— Nossos navios vão e vêm constantemente. — Disse Sean. — Não há desculpa.
— Ele está na guerra, Sean. — Replicou ela em voz baixa.
Ele sorriu um pouco.
— Voltarei para Askeaton. Estou fora há muito tempo. Agora você está em boas mãos, Virginia. Todo mundo a ama. Você se converteu em uma filha a mais.
Virginia sentiu um sincero prazer.
— Quero muito a sua família, Sean. Sinto que este é meu lugar.
— Sim, é seu lugar. E sabe que se tiver algum problema pode recorrer a qualquer um de nós.
— Sim, eu sei. — Ela confirmou.
Sean vacilou.
— Eleanor e você se transformaram e grandes amigas. Alegro-me. Ela é tão jovem… — A voz de Sean baixou.
— Claro que somos amigas. Ela é como uma irmã para mim. — Disse ela suavemente. — E cada vez que você me olha, ela o vigia- como um falcão.
Ele pareceu muito surpreso e fez uma careta.
— Não acredito. — Sean lhe beijou a face. — Quero que me prometa que não duvidará nem um momento se necessitar de alguma coisa. Agora você tem uma verdadeira família e a nenhum de nós falta coragem, lealdade ou determinação.
— Duvido que precise recorrer ao cavalheirismo dos De Warenne. — Virginia brincou.
Ele se pôs a rir calmamente. Virginia compreendeu que seu coração estava curado e se sentiu feliz por ele.

 

Capítulo 26


1 de janeiro de 1813
Querida Virginia:
O Novo Ano chegou e confio em que esta carta a encontre com boa saúde e melhor ânimo. Como se sente em Waverly Hall? Imagino que minha mãe e você já se tornaram amigas e espero que não duvide em procurá-la se precisar de alguma coisa. Confio também em que meus irmãos não tenham lhe afligido com suas personagens. Como foi o inverno? Enquanto atravessávamos o Atlântico fez um frio atroz, mas era de esperar. Agora nos aproximamos das costas de Nova Jersey e até agora notamos pouca ação. Os homens estão animados, embora se aborreçam cada vez mais, pois não estão acostumados a tanta inatividade e anseiam enfrentar o inimigo. Tenho um novo cirurgião, Paul White, um cavalheiro que você acharia divertido se chegasse a conhecê-lo. Ele toca o violino e com ele entretém os homens por horas e horas.
Por favor, dê lembranças a minha família. Desejo a você, um feliz Ano Novo.
Sinceramente teu,
Devlin O’Neill

Virginia recebeu a carta de Devlin em cinco de fevereiro. Estava tão emocionada que correu para os seus aposentos. O coração martelava em seu peito enquanto lia rapidamente. Depois leu com mais vagar. Desejava que Devlin dissesse que sentia sua falta. Que estava com vontade de voltar para casa. Mas alguma vez, Devlin havia se mostrado propenso a intimidades? Então por que o faria por carta? Virginia suspirou e se deu por vencida. Sentia-se feliz porque Devlin havia tomado a iniciativa de lhe escrever. E havia feito algumas pergunta, de modo que obviamente esperava uma resposta.


5 de fevereiro de 1813
Querido Devlin.
Fiquei muito feliz ao receber sua carta e mais ainda ao saber que sua tripulação e você estão bem. Fiz amizade com sua mãe com Eleanor. No mesmo dia de sua partida sua mãe insistiu em que eu me mudasse para Harmon House, coisa que fiz. Sinto muito carinho por toda a sua família. Rex se apresentou no exército e Cliff logo partirá para a Martinica (eu ignorava que ele tem uma plantação de açúcar e um engenho por lá). Sean retornou a Askeaton, então de repente a casa parece vazia. Tyrell continua aqui, mas só o vejo rapidamente, pois ele parece preocupado por seus assuntos. Sua mãe e seu padrasto se encontram bem de saúde. Eleanor partirá logo para Bath para se reunir com os Hinckley, embora haja certa controvérsia a respeito se deve retornar ou não. Oxalá ficasse, pois gosto muito do tempo que passamos juntas.
Sentimos sua falta no Natal. Sua mãe preparou um jantar esplêndido, com comida suficiente para um regimento. Eleanor e Sean discutiram, como sempre, a respeito de sua volta a Bath, onde ao que parece ela tem muitos admiradores para uma moça de sua idade (pelo menos na opinião de Sean. Cliff convidou Lady Arlette, a viúva, para jantar conosco, para desalento de sua mãe. Os homens passaram boa parte do tempo conversando sobre Napoleão e a situação na Europa e de como devia ser a paz por lá. Todos evitaram amavelmente o assunto da guerra americana o que suspeito que por deferência a mim.
Sua família é maravilhosa. Sua mãe me deu de presente um medalhão com um retrato seu, que se converteu em um tesouro para mim. Eleonor me presenteou com um xale e algumas luvas, seus meio-irmãos um leque e Sean um livro. O livro é sobre a história da Irlanda e é fascinante. Sean também e deu Bayberry de presente de casamento. A égua já está aqui e então cavalgo a cada manhã, chova ou faça sol.
Dei lembranças de sua parte a sua família. Desejo a você muita saúde e ânimo. Que Deus guarde seus homens e você e os mantenha a salvo.
Seu amante e esposa,
Virginia

Virginia sabia que podia passar meses antes que recebesse resposta de Devlin, mas se sentiu desiludida quando chegou a segunda semana de março, sem ter notícias. Faltavam dois dias para seu aniversário e desejava tolamente que Devlin pudesse estar em casa para celebrar com ela.
— Não se desespere. — Disse Mary, abraçando-a. — Logo terá notícias dele.
Virginia lhe sorriu.
— Assim espero. — Ela tocou o ventre em um gesto inconsciente. Começava a pensar que estava grávida. Seu período não aparecera desde a partida de Devlin e a possibilidade de ter em seu ventre um filho de Devlin lhe causava ao mesmo tempo, felicidade e desassossego. Ansiava ter um filho dele, mas sua relação continuava sendo nova e frágil, e era muito cedo para ser colocada a prova. Provavelmente Devlin não estivesse preparado ainda.
De fora soaram os cascos de um cavalo.
— Pode ser que seja o correio. — Ela exclamou e correu à janela. Seu coração pareceu parar no peito.
O cavaleiro que desceu do cavalo usava uma capa azul marinho sobre o uniforme da Marinha e cobria a cabeça com um chapéu negro de oficial. Virginia o reconheceu mesmo antes que ele se voltasse e sufocou um grito.
— O que ouve? — Perguntou Mary.
Era Devlin. Virginia não conseguiu responder. Ele se voltou. A capa ondulava sobre seus ombros. Ele usava calça branca botas de cano longo, que estavam manchadas de barro. Caminhou para a casa e Virginia se segurou no parapeito da janela, se sentindo desfalecer. Devlin havia voltado para casa.
A porta se abriu de repente. Devlin atravessou-a ficou paralisado ao vê-la. Ela sequer conseguiu sorrir. Seus olhares se encontraram. Virginia não conseguia respirar. Amava-o tanto, que doía. Os olhos de Devlin queimavam.
— Virginia… — Ele tirou o chapéu e fez uma reverência.
Ela se inclinou diante ele.
— Não… Não o esperávamos tão cedo.
Devlin esboçou um sorriso.
— Decidi perseguir um navio mercante americano através do oceano.
Os olhos de Virginia se dilataram.
— Que… Oportuno.
Ele sorriu.
— Pareceu-me ser.
Será que ele estava tentando lhe dizer que havia perseguido um navio através do oceano, só como desculpa para retornar para casa, para vê-la? Enquanto a idéia desfilava atropeladamente por sua mente, Devlin se aproximou e lhe beijou a face. Ela fechou os olhos e notou que sua face lhe queimava. Ele se voltou e saudou a mãe.
— É maravilhoso. — Ela lhe disse abraçando-o. Logo sorriu e acrescentou: — Tenho que fazer uma visita, apesar do mau tempo. Edward não está em casa. — Mary acrescentou intencionalmente. Logo saiu da sala.
Virginia mordeu o lábio. Devlin entregou a capa e o chapéu a um criado.
— Recebi sua carta. — Disse ele enquanto percorria seu rosto com o olhar.
— Espero que tenha se reconfortado um pouco em alguma fria noite no Atlântico. — Ela conseguiu dizer.
— Reconfortou. — O sorriso apareceu breve e forçado no rosto de Devlin. .
Virginia ruborizou. O criado saiu do salão e eles ficaram a sós. As lágrimas enchiam os olhos de Virginia.
— Alegra-me tanto que esteja em casa…
Ele vacilou, como se desejasse dizer alguma. Virginia não se moveu. Logo, ele fez uma careta, se aproximou dela e a segurou pelos braços.
— Também me alegro em estar aqui. — Disse com certa aspereza.
Ela engoliu a saliva e se atreveu a confessar: — Senti sua falta, Devlin.
O semblante de Devlin se contraiu. Ele atraiu-a para si e se apoderou de seus lábios. Virginia sufocou um gemido entranhando-se em seus braços, onde se sentiu amada e a salvo. Sua boca era voraz e ela lhe correspondia com idêntico frenesi, cheia de alegria ao notar que estava enormemente excitado. De repente, Devlin a levantou nos braços.
— Onde é seu quarto? — perguntou.
Virginia se abraçou a ele.
— Estamos na casa de seus pais, Devlin!
— Não me importa! Não posso esperar nem um minuto mais para estar contigo. — Ele subiu a escada apressadamente, com ela em braços. Seus olhos cintilavam quando disse: — Acreditei que quando estivesse no mar estaria livre. Mas me equivoquei.
Ela piscou. O que ele queria dizer?
— Não deixei de pensar em você, Virginia. — Devlin parecia muito sério. — Você me aparecia em cada momento. Até nos sonhos eu a via.
Virginia se sentiu feliz. Sorriu e replicou com ternura: — Acho que estamos empatados.
Os olhos de Devlin brilhavam quando alcançavam o patamar.
— Qual quarto?
Virginia já se sentia em chamas.
— A terceira porta à direita. — Conseguiu responder.
Ele empurrou a porta e a conduziu à cama. Depositou-a sobre ela e se sentou a seu lado.
— Você está tão bonita como sempre. — Ele disse com voz densa enquanto lhe acariciava a face. — Esperava que estivesse pálida por causa do inverno. Mas seu rosto está colorido como uma flor.
Ela vacilou, quase a lhe dizer que suspeitava que pudesse estar grávida, mas pensou melhor. Não estava segura e o momento não era o mais adequado.
— Não estou florescendo. Estou ruborizada, Devlin. — replicou.
Ele sorriu e começou a desabotoar os botões de seu vestido.
— Nunca esteve mais bela. — Devlin disse enquanto baixava o vestido até a cintura. Seus olhos cintilavam quando fixaram nos seios mais cheios que antes, acariciados pelo tecido fino da camisa intima. — Você floresceu, Virginia. — ele murmurou.
— Quanta impudicícia. — Ela provocou, quase sem fôlego.
Devlin tirou-lhe a camisa intima e a jogou para um lado.
— Eu lhe ensinarei o que é impudicícia, Senhora. — Devlin respondeu a provocação enlaçando-a e aproximando o rosto dos seios que começou a sugar. Virginia se sentiu quase desfalecida ao sentir que uma onda de desejo se apoderava dela.
— Não quero te fazer mal — Disse ele enquanto pegava sua mão e a guiava para seu membro. Virginia sufocou um grito ao sentir como palpitava o membro dele palpitava. — Mas hoje tenho pouca paciência.
— Não me fará mal — Ela murmurou. — Por favor, apresse-se!
Devlin tirou-lhe rapidamente o vestido. Virginia o contemplou enquanto ele a despojava do resto de suas vestes e compreendeu que nunca o tinha visto tão possuído pela paixão. Quando estava protegida somente pelo espartilho e as meias, ele pousou a mão sobre seu sexo. Uma expressão de triunfo brilhou em seus olhos.
— Abra as pernas. — Ele pediu e ela obedeceu imediatamente. Devlin se inclinou sobre ela e esfregou o rosto sobre seu púbis.
Virginia gemeu, sobressaltada pelo prazer e a excitação.
— Ande logo, Devlin. — Ela ofegou.
A boca de Devlin começou a se mover sobre seu sexo, lenta e minuciosamente. Sua língua a pressionava, insistente. Virginia começou a se desmanchar em pedaços. Gemeu e cravou as unhas em seus ombros.
— Oh, pequena. Espere-me. — Ofegou ele. De repente Virginia sentiu que seu membro deslizava profundamente dentro dela. Mas era muito tarde e ela se deixou arrastar pelo prazer mais intenso que jamais havia conhecido.
Devlin penetrou-a mais fundo, gemeu asperamente e um instante depois se desmanchou dentro dela. O corpo enorme se enrijeceu de prazer, para depois se convulsionar sobre ela. Quando terminou, ele se deitou de lado e a atraiu para si.
Virginia sorriu ao voltar a si e apoiou a face sobre o peito duro. Devlin a abraçava com força e a beijava seguidamente. Mas seus beijos não eram tão ternos. Ela compreendeu em seguida que ele seguia excitado e preparado para possuí-la novamente. Beijou seu peito outra vez e cheia de ousadia segurou seu membro na mão.
— O que é isto? — Perguntou maliciosamente.
Ele começou a rir.
— Acredito que você sabe.
— E se esqueci?
Ele sorriu com perversidade.
— Então terei que lhe recordar querida. — Ele respondeu já se deitando sobre ela e penetrando-a novamente.


Virginia estava sentada diante da penteadeira, completamente vestida. Estava arrumando o cabelo. O reflexo de Devlin apareceu no espelho quando ele parou na porta do quarto de se vestir. Também estava vestido, mas com roupas civis. Virginia sentiu que ruborizava.
Era a manhã seguinte da chega de Devlin e eles continuavam em Harmon House. Só haviam se tinham levantado da cama porque ela tinha insistido em que descessem antes que acabassem escandalizando toda a casa. Devlin lhe sorriu através do espelho e se aproximou. Virginia colocou a última presilha.
— Hoje me sinto como uma esposa de verdade. — Disse com voz baixa.
Devlin pôs as mãos em seus ombros.
— Eu esperava que ainda se sentisse como uma recém casada.
Ela notou pelo espelho que seu rubor se intensificava.
— Uma recém casada muito feliz. — Murmurou.
Devlin se inclinou e beijou-lhe a nuca descoberta.
— E satisfeita, espero.
Ela se voltou no tamborete.
— Você já sabe o quanto estou satisfeita.
— Você é uma pequena desavergonhada. — Devlin disse sorrindo.
Ela se levantou e se entranhou em seus braços.
— E espero que o agrade.
Ele vacilou.
— Agrada-me muito, Virginia.
O coração de Virginia explodiu em uma canção. Significaria o que ela acreditava: que Devlin estava começando a amá-la, mesmo que fosse somente um pouco? Ele colocou a mão no bolso da casaca.
— Tenho algo para você. — Disse.
Virginia o fitou com surpresa ao notar que tirava do bolso uma caixinha de veludo.
— O que é?
— Seu presente de aniversário.
Virginia sentiu que seu coração havia parado. Fitou-o, trêmula.
— Mas… Como sabe que é meu aniversário?
— É amanhã, não? — Ele sorriu levemente. — Amanhã você completa dezenove anos. É já uma mulher do mundo. — ele provocou em tom levemente zombeteiro.
Ela sorriu. Sentia vontade de chorar de alegria.
— Como… Como sabe?
— Preocupei-me em averiguar. Abra-o. — Disse com ternura.
— Não deveria esperar até manhã?
— Estou seguro de que manhã choverá muitos presentes e não me resta nenhuma dúvida que minha mãe já preparou uma festa.
— Não. Pedi-lhe que fosse uma celebração íntima, só para a família. Rex voltou para a Espanha e Sean está em Askeaton, então seremos bem poucos da família. — Ela levantou a tampa da caixa e gemeu de assombro ao se deparar com um formoso colar de ametista incrustado de diamantes.
— É lindo, Devlin! — Ela exclamou.
— Encarreguei que o fizessem para você, antes de zarpar. — Disse ele com um sorriso leve e satisfeito. — Queria algo que combinasse com seus olhos.
— Devlin… — Virginia o abraçou novamente. — Este é o melhor aniversário que tive. Obrigado. Obrigado pelo colar e obrigado por voltar para casa.
Ele titubeou.
— Tinha que voltar. Feliz aniversário, Virginia.


Nesse dia, mais tarde, Virginia ouviu risadas masculinas e reconheceu a voz de Devlin entre elas. Deteve-se ante a porta do salão e sorriu. Seu marido parecia feliz. Enchia-a de alegria ouvi-lo rir com seus irmãos. Preparava-se para entrar, quando Tyrell disse:
— E a guerra? Ouvi rumores de que será atacado toda a baía de Chesapeake.
Virginia enrijeceu e seu sorriso desapareceu. Até esse momento havia se negado a pensar no fato de que Devlin acabava de retornar de uma guerra contra seu país. Desde sua volta não havia lhe perguntado nem um só detalhe sobre sua missão, nem ele havia lhe contado nada. Aguçou o ouvido, com o coração triste.
— Acho que não posso falar de assuntos qualificados, Ty. — A voz de Devlin tinha um estranho tom. — Mas acabo de receber novas ordens. A guerra está cada vez mais intensa.
Virginia sentiu seu coração doer. Durante a ausência de Devlin se falou sobre bloqueio à baía de Chesapeake, que era onde se encontrava Sweet Briar, mas tinha sido tudo. O que Devlin queria dizer agora? E a que rumor Tyrell se referia? De repente temeu por Tillie e Frank e por toda a Sweet Briar. E se Devlin acabara de receber novas ordens, significava que já estava se preparando para partir, mesmo após ter chegado no dia anterior?
Sentiu-se consternada e inconscientemente tocou o ventre. E se estivesse grávida? Finalmente estavam se apaixonando e tinham um futuro a compartilhar. Simplesmente não havia lugar para uma guerra em suas vidas. E menos ainda uma guerra contra seu país.
Pensou por um momento e finalmente correu à biblioteca. Da porta viu os papéis sobre a mesa. Encolheu-lhe o coração e embora soubesse que não devia ler documentos secretos, correu à mesa. Os papéis que havia sobre ela não lhe interessaram, entretanto, e abriu a gaveta do centro. Em seguida encontrou o que estava procurando. Seu coração quase parou de bater. Sua compostura desapareceu. Tremendo, pegou a carta e leu.

Do Lorde Almirante Saint John ao Capitão Devlin O’Neill
Waverly Hall
18 de março de 1813
Capitão O’Neill:
Dê-se por informado do seguinte: você zarpará no dia 24 de março com destino à baía de Chesapeake, onde se apresentará ante o Almirante Cockburn. Junto com o Almirante deverá destruir qualquer navio de guerra americano que encontre a sua passagem. Incluindo os que se encontrarem atracados nos portos. Destruirá qualquer depósito suspeito de albergar fornecimentos americanos, mesmo os de terra firme, e qualquer granja ou feitoria envolvida em esforço de guerra. Fará o que estiver em seu poder para desmantelar por completo o complexo comercial costeiro americano. Exige-se completa discrição em relação aos meios necessários para levar a cabo as ordens acima citadas. Recomenda-se vivamente prestar ajuda aos escravos fugitivos, especialmente a fim de que sirvam de guias aos nossos homens através das campinas americanas. Evite o confrontamento com civis americanos, mas qualquer suspeita de colaboração com o exército, da população civil, será considerada uma grave ameaça militar e tratada como tal.
O honorável Lorde Almirante Saint John
Almirantado
Brook Street
West Square

Virginia ficou paralisada de estupor.
— Virginia?
Tremula, ela levantou o olhar e avistou Devlin na porta. Sobressaltou-se, mas conseguiu deixar a carta na gaveta. Seu coração pulsava tresloucado.
— O que está fazendo? — Ele perguntou sem mover.
Virginia tinha ignorado até esse momento, o alcance de suas ordens. Como Devlin podia participar naquela destruição, tendo se casado com ela? Engoliu a saliva e o fitou. Estava gelada até a medula dos ossos.
Devlin caminhou para ela lentamente. A máscara em seu rosto que Virginia confiava não voltar a ver era evidente.
— Você leu minhas ordens? — Ele perguntou com voz suave.
— Sim. — Ela sussurrou. Sentia-se perto de um desmaio. — Não vá, Devlin! — Ela gritou de repente. — Preciso de você aqui! Demita-se. Renuncie ao seu posto. Não volte para a guerra! Não posso suportar!
Ele vacilou.
— Só os covardes evitam seu dever, Virginia.
— Todo mundo sabe que você não é um covarde! Meu Deus! Você demonstrou sua coragem centenas de vezes. — A ela custava pensar com claridade, de tão aturdida que estava por causa conteúdo de suas ordens.
— Virginia, — ele replicou com olhar interrogador, — sou um Capitão da Marinha. Sabia disso quando nos casamos. Lamento sinceramente que nossos países estejam em guerra, mas esta guerra passará.
— Depois de quantas mortes? Quantos americanos já morreram por tua culpa, Devlin? — Virginia gritou sem poder evitar.
Devlin ficou rígido.
— Não sei.
— Eu acredito. — Não desejava atacá-lo e sabia que o estava fazendo. Rodeou a mesa e parou diante dele. — Fomos felizes juntos, por fim. Esta guerra se interporá entre nós.
O rosto de Devlin se alterou.
— Só se você permitir. Maldição! Não devia ter lido minhas ordens.
— Não. Não devia. Devlin, por favor! Não vá à guerra contra meu país!
Ele proferiu um som áspero.
— Você está angustiada e com razão. Mas não permita que a guerra se interponha entre nós. É a única coisa que lhe peço.
Ela guardou silêncio. Sentia-se doente. Devlin segurou sua mão.
— Está bem. Não deixarei que a guerra se interponha entre nós. — Confirmou e desejou fervorosamente que fosse possível.
A máscara de Devlin desapareceu e ela notou que ele estava aliviado.


Virginia teve que se sentar. Estava à beira das lágrimas. O salão transbordava de risos e alegria. Respirou fundo e o percorreu com o olhar, mostrando um sorrindo. Era à tarde do dia de seu aniversário. Junto à lareira, Edward, Tyrell, Cliff, Devlin e Sean bebiam champanhe e conversavam relaxadamente. Devlin, que vestia roupa de patrício nunca havia ficado tão bonito. Sentiu seu olhar, quando ele se voltou para ela e sorriu. Virginia lhe devolveu o sorriso. De repente se sentia cheia de desejo.
Estava tentando fazer o que Devlin havia lhe pedido. Custava-lhe um árduo esforço, mas procurava não pensar na guerra. Estava decidida a desfrutar do tempo que ficariam juntos. Seus sentimentos para com ele não haviam mudado. Simplesmente, amava-o. E muito. E ele tinha razão. Não devia permitir que a guerra se interpusesse entre eles. Sobretudo, porque nessa mesma manhã havia confirmado que estava grávida. Tinha ido ao médico, o que só Mary sabia. Seu bebê nasceria em outubro.
Sorriu e tocou o ventre. Daria a notícia a Devlin antes que ele partisse. Seu coração bateu forte. Fitou Devlin. Confiava em que ele se alegrasse. E rezava por não estar viúva quando desse a luz ao seu filho em outono.
— Pergunto-me se alguma vez alguém gostará tanto de mim, para me presentear um colar que combine com meus olhos. — Disse Eleanor que estava sentada junto à Mary no divã verde, junto à poltrona que Virginia ocupava.
— Logo chegará a hora. — Mary murmurou. — Esse colar é perfeito para Virginia. Acentua verdadeiramente a estranha cor de seus olhos. — Mary fitou a Virginia com expressão de cumplicidade e ela compreendeu que ela estava pensando no bebê.
— Pressinto algum segredo. — Devlin murmurou com tom suave e sedutor.
E nesse momento o Conde de Eastleigh entrou no salão.


Virginia se assombrou. Não conseguia entender o que o Conde fazia ali. Ele entrou e estava fazendo uma reverência. O que ele queria? Devlin se adiantou para ele, mas Cliff e Tyrell o seguraram. Seu rosto havia se transformado em uma máscara. Edward cortou imediatamente a passagem do Conde.
— Você não é bem recebido nesta casa, Eastleigh..
— Adare. — Cumprimentou Eastleigh, com olhos frios como o gelo. — Sem dúvida, não me convidarem para a festa de aniversário de minha sobrinha é uma desafortunada idéia... O mesmo fizeram ao não me convidar para seu casamento. Só vim desejar a Virginia um feliz aniversário. Inclusive trouxe um presente para ela. — ele se voltou e fez um gesto ao criado que o acompanhava e sustentava um grande pacote nas mãos.
Devlin se desprendeu de seus irmãos e se adiantou com olhar frio.
— Ora... Ora... — Ele disse ao homem que queria ver. — Não se surpreende em me ver, Milord?
Os dois homens se confrontaram com o olhar. Eastleigh mostrou os dentes em uma paródia de sorriso.
— Por que que me surpreenderia vê-lo na festa de aniversário de sua esposa? Ouvi dizer que havia retornado, O’Neill. Parabenizo-o por um matrimônio tão vantajoso. — De repente, ele se voltou para Virginia e inclinou a cabeça. — Felicidades, querida.
Um calafrio atravessou as costas de Virginia. Ela sentiu desespero ao fitar os dois homens. Se não estivesse errada, algo terrível estava para acontecer. Adiantou-se rapidamente.
— Obrigado, tio. O senhor é muito amável em ter vindo.
Devlin a segurou pelo braço.
— Economize palavras hipócritas. — Devlin repreendeu Eastleigh, friamente. — Meu padrasto tem razão. Não é você bem-vindo. Mas, antes que saia quero lhe fazer uma pergunta. Quer saber o que aconteceu ao seu assassino?
Virginia sufocou um grito. Assassino? Do que estava Devlin falando?
— Meu assassino? — Eastleigh começou a rir. — Não conheço nenhum assassino. Alguem esteve tentando te matar, O’Neill? — E sorriu novamente. — Por que acredita que fui eu? Você tem você inúmeros inimigos.
Devlin se inclinou para ele, sorrindo.
— Seu assassino falhou. Mas lhe recomendo que cubra suas costas, Eastleigh. Eu também posso jogar essa partida.
Virginia gritou, mas ninguém pareceu ouvi-la.
— Isso é uma ameaça? Decidiu me matar? Não basta ter me arruinando? — Ele voltou a sorrir. — Pode ser que você deva cobrir a costas, O’Neill. Não eu — Eastleigh se voltou e se inclinou para Virginia. — Espero que você goste de seu presente de aniversário. — Depois dessas palavras, ele se voltou e saiu.
Virginia o observou enquanto ele se afastava. Devlin se voltou para ela. Sua expressão era tão dura e desumana que infundia temor. Quando deixaram de ouvir os passos de Eastleigh, Virginia se voltou. No salão reinava uma atmosfera gélida e tensa.
— Vou me livrar disso. — Disse Tyrell, levantando o pacote.
— Não! — Devlin se aproximou e rasgou o papel. Sob ele havia um quadro.
Virginia mal podia respirar. Começava a sentir se enjoada.
— O que é?
Devlin soltou um áspero suspiro.
— Livre-se dele. Queime-o. — Disse.
— Não! — Virginia o afastou e observou o quadro. Um belo quadro que retratava seus pais. Sua mãe, muito bela, trazia nos braços um bebê que só podia ser ela. Os dois se encotravam diante de uma casa que Virginia reconheceu imediatamente. Era Eastleigh Hall. E junto a eles se achava o Conde de Eastleigh, jovem e bonito. Não restava dúvida de qual era o significado daquele presente. Era uma Hughes. Era a sobrinha do Conde e nada poderia mudar o fato, sequer seu casamento com Devlin.
— Vou me livrar dele. —Tyrell repetiu observando a reação de Virginia, que assentiu, aturdida. Ele saiu com o quadro.
—Vamos sair por um momento, Mary. — Disse Edward, se detendo na porta. — Venha conosco, Eleanor .
Mary sorriu, compungida. Tinha lágrimas nos olhos.
— Sinto muito. A noite não saiu como eu esperava…
Virginia pegou suas mãos.
— Não tem importância. — Ela murmurou. — Foi maravilhosa. De verdade.
Quando eles saíram, Cliff se aproximou de Devlin.
— Não deixe que ele o provoque. — Disse a Devlin, que não lhe respondeu. Enfurecido, ele olhava enfurecido pela janela. Cliff se voltou para a Virginia. — Você está bem?
Ela assentiu, mas era mentira.
— Deixe-nos a sós, por favor. — Ela conseguiu dizer.
Cliff vacilou. Depois fitou o irmão e saiu. Devlin e ela ficaram sozinhos. Ele continuou olhando pela janela como se não notasse sua presença. Ela sentia seu ódio e sabia que ele estava planejando algo terrível. Sentia-se doente. Aproximou-se dele, tremendo.
— Ele tentou te assassinar? — Perguntou.
Ele a fitou finalmente.
— Lamento que tenha ciência disso agora. Não importa. Ele fracassou.
— Claro que importa! — Ela gritou.
— Virginia, eu sobrevivi. A absurda tentativa falhou.
— Desta vez! — Ela sabia que estava ficando histérica, mas sentia tanto medo que não podia pensar com claridade. — Mas, o que acontecerá da próxima vez?
— Ele não é o primeiro inimigo que deseja minha morte. — Disse Devlin com cuidado, procurando sua mão.
Ela retrocedeu.
— Isto já foi muito longe! Foi você quem começou tudo e olhe o que aconteceu. Agora está em perigo!
A ira ardia lentamente.
— Eu não comecei isto, minha querida. Ele começou tudo há quinze anos.
— E justifica?
Devlin se inflamou.
— Não estou em perigo, Virginia. — Ele replicou. — Há muito tempo sei cuidar de mim mesmo. Nenhum assassino assalariado vai acabar comigo.
Virginia sentiu vontade de chorar. Iriam sempre viver assim? E o que aconteceria quando o bebê nascesse? Algum dia encontraria um assassino em seu quarto? E se Eastleigh se vingasse em seu filho? Não podia viver assim.
Devlin se voltou bruscamente para a janela. Virginia saiu correndo do aposento e começou a chorar. De repente se encontrou na biblioteca. O aposento estava cheio da presença viril e poderosa de Devlin. Se lhe contasse sobre o bebê, ele mudaria de atitude? Sem dúvida compreenderia que não poderiam trazer um filho a um mundo cheio de ódio e vingança. Estava aterrorizada.
Devlin olhava pela janela, mas não nada, a não ser a escuridão. Tremia de raiva, mas sentia um vazio no peito. Conhecia a sensação: era medo. Sabia que Virginia estava angustiada e que tinha saído do aposento. Teria compreendido finalmente que tipo de homem ele era? Um homem de sangue-frio e com o coração cheio de ódio?
Os dias anteriores haviam lhe parecido um conto de fadas ou um sonho. Não reconhecia o homem que ria com tanta freqüência e que não pensava em outra coisa que não fosse sua esposa. Havia saboreado a felicidade. Inclusive havia sentido o brilho da alegria. Os sentimentos lhe eram desconhecidos e temíveis, mas também estranhamente doces. Pela primeira vez em sua vida, se sentia amado e o que era mais importante, sabia que não estava sozinho.
Agora, Virginia sentia medo e aflição. A mulher mais corajosa que havia conhecido ansiava por amor e risos, não guerra e ódio e acabava de fugir dele. Se tivesse coragem de confrontar a verdade deveria reconhecer que lhe aterrorizava perdê-la.
Sabia que não se merecia aquela vida. Era um sonho. Um dia abriria os olhos e tudo teria desaparecido. Desapareceria a sorte, a paz e Virginia.
Recordou-se que era acima de tudo, um soldado, e que só conhecia a vida em uma guerra constante. Havia se casado com ela com intenção de que nada mudasse e nos poucos dias que tinham passado juntos, tudo tinha mudado… Quase tudo. Virginia havia lhe ensinado uma forma diferente de viver, e uma parte dele ansiava desesperadamente se apoderar dela. Mas a outra parte parecia bem mais forte, mais desumana e mais empenhada que nunca na vingança. E essa parte sabia que devia acabar com Eastleigh de uma vez por todas e deixar que seu pai descansasse finalmente em paz.
Nunca havia se sentido mais dividido. Respirou fundo e saiu atrás de Virginia. Deteve-se na porta da biblioteca. Virginia estava junto à mesa. Quando ele se voltou notou que as lágrimas banhavam seu rosto. Desejou enxugá-las, mas não se moveu.
— Sinto que seu tio tenha estragado sua festa de aniversário, Virginia. — Disse com cautela.
Ela umedeceu os lábios e demorou um pouco para lhe responder.
— Estes últimos dias foram maravilhosos, não Devlin?
Ele se sobressaltou.
— Sim, foram. — Respondeu receoso.
Ela forçou um sorriso.
— Já não é hora de esquecer e perdoar? Não é hora de pensar em tudo o que temos, em tudo o que poderíamos ter? Um futuro maravilhoso nos espera…
— Está indo muito longe. — Ele a advertiu. Não aceitaria ser dirigido por sua esposa como uma marionete. Ela se enrijeceu.
— você não me deixa acabar de falar...
— Não há nada a falar. Pelo menos, sobre Eastleigh. Esta batalha tem que acabar… E para a minha satisfação, Virginia.
Ela o fitou com os grandes olhos úmidos. Estava muito pálida.
— Há algo que eu não te disse, Devlin.
O coração de Devlin bateu forte. Não gostava de seu tom e nem sua expressão. Que terrível noticia ela lhe daria?
— Diga. — Disse. Ela se segurou à mesa.
— Nós vamos ter um bebê.
Por um momento, Devlin se sentiu aturdido. Seu coração então acelerou.
— O que?
— Por favor... — Pediu ela com voz rouca. — Me prometa uma vida de paz e felicidade. Prometa-nos uma vida assim!
Devlin se sobressaltou, mal capaz de compreender o que Virginia havia dito. Ela estava grávida. Fez rapidamente o cálculo. Seu filho devia ter sido concebido no mês de dezembro, depois de seu casamento. Deus! Iria ser pai. Era muito cedo! Imediatamente, a expressão zombeteira de Eastleigh assaltou sua mente.
— Suplico que renuncie sua sede de vingança, Devlin. — Ela começou a chorar. — Não posso dar esta vida ao meu filho! Não sente isso? Preciso que escolha.
Novamente Devlin demorou em compreendê-la. Tremia. Sé em pensar no bebê e no fato de ter um inimigo desumano ficava tremulo. Escolher? Ela queria que ele escolhesse? Então compreendeu a horrível verdade. Respirou fundo e foi tomado pela ira.
— Não me faça isto, Virginia. — Pediu. Não havia escolha alguma a fazer. Ainda não!
— Deve escolher! — Ela gritou tremendo incontrolavelmente.
— Não me peça isso! — Ele ordenou, como se estivesse no castelo de popa de seu navio. E sentiu que tudo começava a dissolver. A alegria, o amor e o medo…
— Deve escolher. — Virginia sussurrou. — Não permitirei que nosso filho viva rodeado de ódio. Não vou colocar a vida de nosso bebê em perigo. Escolha, Devlin. Escolha-nos. O bebê e a mim!
Mas ele não podia escolher. Não podia. Sentiu que seu coração se desmanchava. Toda emoção se congelou e desapareceu.
— Não, por favor! — Ela implorou e correu para ele. — Não se afaste de mim agora! Não, depois de tudo o que compartilhamos. Não, agora que estou grávida. — Ela segurou sua mão e a levou a.
Ele fitou o ventre ainda plano, mas só sentia um enorme vazio. Não sentia amor e nem sorte, somente um sentimento desapaixonada que seu inimigo havia lhe deixado quando tinha dez anos.
— Pode optar por nós… Ou por sua vingança. Mas não pode ter as duas coisas.
Ele baixou a mão e se voltou.
— Sinto muito. — ele disse, e logo concluiu. — Você já sabia como era quando se casou comigo.
Ela sufocou um grito.

 

 

 

 

 

Capítulo 27


Virginia ficou de cama o dia todo, prostrada por uma dolorosa enxaqueca e um profundo desânimo. Não chorava. Estava paralisada de medo. Devia pensar no bebê. Deus! Que tipo de pai seria Devlin? Se ela não o amasse tanto… Mas o amava. Sempre o amaria.
Não sabia o que fazer e Devlin partiria novamente três dias depois. Encontrava-se me frente à porta fechada de seu quarto, vestida para o jantar. Não havia tornado a ver Devlin desde a discussão da véspera. Ele não havia dormido em sua cama e ela tinha evitado sua presença. Devlin continuava seu marido e a criança que carregava em seu ventre sempre seria dele. Mas ela já não estava com ânimo de transigir, pelo bem de seu casamento, para estar com ele. Tinha a impressão que seu casamento se transformava em cinzas diante de seus olhos.
Abriu a porta e desceu, tremendo de preocupação apesar de que tentar se mostrar natural. Para sua consternação ouviu vozes no saguão. Tyrell e Cliff estavam tomando um aperitivo com Devlin, antes do jantar. Virginia desejou que não ficassem para jantar. Aproximou-se lentamente do salão. As portas estavam abertas e ela avistou os três homens sentados tranqüilamente com uma taça de vinho na mão.
Tyrell e Cliff se levantaram o vê-la. Devlin se levantou também, mas mais devagar, e não a fitou. Seus irmãos fizeram uma reverência, mas seus sorrisos se dissiparam.
— Boa noite. — Disse ela com a cabeça ereta.
— Está tão encantadora como sempre, Virginia. — Murmurou Cliff.
Ela agradeceu.
— Confio em que continuem jantando. — Ela disse consciente que estava sendo tão insincera como ele.
Cliff fitou Tyrell.
— Acredito que temos outros compromissos. — Ele respondeu.
— Sim. — Acrescentou Tyrell observando Devlin sombriamente, que permanecia imóvel como uma estátua. — Cuide de sua esposa. — Ele concluiu. Os irmãos se inclinaram diante de Virginia, deixaram suas taças e sairam.
Virginia se enrijeceu ao ficar a sós com seu marido. Devlin tinha o rosto coberto pela máscara que ela tanto odiava. Estendeu o braço para ela.
— Acredito que o jantar já esteja servido, Senhora. — Disse.
Ela se sobressaltou.
— Você nunca me chamou de Senhora. — Conseguiu dizer.
Os ombros de Devlin se aprumaram.
— Não pretendia ofendê-la — ele replicou como se ela fosse uma estranha.
— Não me faça isto, Devlin. — Ela murmurou.
O rosto de Devlin se fechou hermeticamente.
— Não sei a que se refere. — Então ele assinalou o saguão. — Vamos? — Sem esperar resposta pegou-a pelo braço. Ela sentiu angústia. Assim seriam as coisas entre eles, a partir de então? Uma pantomima de matrimônio? Uma relação fria, formal e tensa?
— Só te pedi que abandonasse o ódio, Devlin. Pelo bem de seu filho. — Ela sussurrou.
Ele se pôs a andar como se não a ouvisse. Mas Virginia se negou a segui-lo e afastou o braço. Devlin se deteve e a fitou.
— Vamos jantar? — Perguntou.
— Assim, não. — Respondeu ela, abraçando-o.
Devlin inclinou a cabeça.
— Então, vou sair. — Ele disse. Virginia se sobressaltou, surpresa. — Acredito que vou ao encontro de meus irmãos no White's. — Ele inclinou a cabeça e partiu bruscamente.
Ela observou sua saída, pasma. E nessa noite, Devlin não voltou.


Chegou à alvorada, escura e amarga.
Devlin havia passado os dois dias anteriores fora de casa. Virginia soube por um criado que ele estava dormindo em seu navio. Pelo menos ele não tinha recorrido a outra mulher, pensou. Mas seu matrimônio havia acabado. Ela sabia. Parecia não haver possibilidade alguma de salvá-lo. A tristeza de Virginia era infinita. Não tinha apetite e nem dormia as noites. Chorava com freqüência e não fazia caso dos olhares preocupados de Hannah.
Em sua camisola observava o reflexo pálido no espelho do penteador. Sabia que Devlin zarparia em breve e imaginava se ele não se despediria dela. Ele já havia machucado seu coração, mas nunca dessa forma.
Não podia continuar assim.
Bateram na porta. Virginia se voltou, se perguntando o que a criada poderia querer numa hora tão incerta. A porta abriu e avistou Devlin na soleira, vestido com seu uniforme e o chapéu na mão. Surpresa, não pode deter o tremor. Ele mostrava uma expressão dura.
— Vejo que não a despertei. — Ele disse fixando olhar rapidamente na aparência descuidada de Virginia. — Zarpo dentro de uma hora e vim me despedir.
Ela queria suplicar que ele voltasse a amá-la. Queria lhe dizer que podia viver com sua sede de vingança, se significava tanto para ele. Mas não disse. Não se moveu, pois sequer podia respirar.
A mandíbula de Devlin se endureceu.
— Como está?
Ela desejou gritar, que estava morrendo por dentro, minuto a minuto, mas somente fitava o belo rosto. Mas, finalmente disse: — Tão bem como possa esperar.
— E o bebê? — Ele perguntou com voz cortante.
Ela respirou fundo procurando manter a compostura.
— Bem, acredito.
Ele assentiu e guardou silêncio, como se quisesse dizer algo que lhe custava muito. Virginia rezou. E se enganou. Ele simplesmente disse:
— Voltarei dentro de seis meses, acredito. Que Deus lhe guarde, Virginia. — Depois das simples palavras ele lhe fez uma reverência, se voltou e saiu.
Ela quis correr atrás dele e pedir que se cuidasse, mas suas pernas não lhe ajudavam. Oh, Deus. Devlin iria embora assim? E nunca mais voltasse a vê-lo? E se a guerra o vitimasse?
Correu até a janela e o avistou caminhando para a carruagem. Abriu a janela com esforço. A carruagem começava a se afastar.
—Que Deus te proteja, Devlin! — Gritou, mas não soube se ele a ouviu.
Nesse mesmo dia, mais tarde. Virginia se encontrava no salão de Harmon House, retorcendo-as mãos com nervosismo. A partida de Devlin havia sido um golpe terrível… Mas agora ela sabia o que devia fazer.
Cliff entrou no aposento, sem pressa, com ar indolente.
— Queria falar comigo, Virginia? — Perguntou com um sorriso suave.
Ela assentiu com a cabeça, umedeceu os lábios e perguntou: — Poderia fechar as portas?
Surpreso, Cliff se voltou e fez o que ela pedia.
— Isto é muito estranho... — Depois ele disse oferecendo uma cadeira. — Por favor.
— Prefiro ficar em pé. — Ela sussurrou, cheia de desespero.
— O que está acontecendo? — Ele perguntou, interrogador.
— Estou grávida. — Respondeu Virginia. Ele se sobressaltou. — Estou grávida e devo voltar para Sweet Briar, onde nasci, para ter meu filho. — Cliff parecia atônito. — Você tem uma frota de navios. — Ela continuou. — Sem dúvida, algum deles atracará em algum porto americano. Por favor, lhe suplico que me deixe viajar em um desses navios.
Ele estava visivelmente perplexo.
— Você vai fugir de meu irmão?
Virginia enrijeceu. Não era assim, mas não se iludia. Duvidava que alguma vez pudesse recuperar o que tinham tido tão brevemente. Mesmo assim, não pretendia abandonar seu marido. Só queria voltar para casa. Seu país estava em guerra, Sweet Briar estava em perigo e seu bebê deveria nascer lá, onde não estaria sozinha.
— Virginia. — O tom do Cliff se tornou amável. — Não posso te ajudar nisso.
Ela respirou bruscamente e se sentou. Logo cobriu o rosto com as mãos.
— Amo seu irmão. — Sussurrou sem levantar o olhar. — E sempre o amarei. — Então ela ergueu o rosto e fitou Cliff. — Supliquei que esquecesse a vingança pelo bem de seu filho. E ele se negou. Agora devo pensar em nosso bebê. Para mim, nosso bebê vem em primeiro lugar.
Cliff estava muito sério.
— Concordo, naturalmente. Devlin deve abandonar essa obsessão… Mas duvido que possa.
— Ele não consegue. — Ela sussurrou tentando conter as lágrimas. — Me deixou isso muito claro. E agora também está em guerra contra meu país, talvez até contra o lugar onde nasci. Não posso ficar aqui, Cliff. Se você não me ajudar procurarei outro navio. Vou para casa ter meu filho e se a guerra se aproximar de Sweet Briar, a defenderei, mesmo que tenha que me defender contra Devlin. Agora já não tenho escolha.
Cliff a observava pensativamente. Demorou um momento para lhe responder, antes de suspirar.
— Sei que fará o que diz. Gostaria te acompanhar até Sweet Briar, para vê-la chegar sã e salva. Antes que procure outro navio. Zarparia na semana que vem rumo a Martinica, onde comprei uma plantação de açúcar, mas vou levá-la para casa primeiro. — Ela sufocou um grito de alívio. — Mas não manterei isto em segredo — ele acrescentou. Ela ameaçou protestar. — Não! — Cliff a interrompeu com os olhos azuis cintilantes. — Você é a esposa de meu irmão. Devlin tem direito de saber onde você está. Sobretudo agora que está grávida. Eu a levarei até Sweet Briar, mas direi a Devlin, Virginia.
Virginia sabia que não seria sensato protestar. Pegou as mãos grandes mãos de Cliff e segurou entre as suas.
— Obrigado, Cliff. Obrigado.
Cliff mostrava uma expressão séria.


Já estavam no mês de maio. A travessia transatlântica havia sido lenta e difícil. As tempestades e os ventos desfavoráveis tinham atrasado o avanço do veleiro de Cliff. Por duas vezes haviam evitado os navios americanos. Cliff tinha cedido seu camarote a Virginia e se mostrava educado e cortês, mas procurara manter distância. Para Virginia tinha sido um alívio. Estava sempre com o humor sombrio e não havia sentido desejo de confiar em alguém.
Virginia segurava cachorrinho Arthur, que compartilhava com ela o assento da carruagem aberta que havia alugado em Norfolk. Com a outra mão se firmava à porta da carruagem, que avançava a tropeços pela avenida, além da qual sua casa se elevava esplendorosa. Sorriu, chorando ao mesmo tempo. A casa continuava esplêndida como sempre, alta, imponente, acolhedora. Estava voltando para casa, depois de tanto tempo e era a primeira vez que realmente sorria desde que havia deixado a Inglaterra. De algum modo conseguiria criar sozinha ao filho de Devlin.
Continuou sorrindo e chorando. Pensar em Devlin lhe provocava uma terrível aflição. Contemplou os campos, ainda sem semear e de repente sentiu vontade de caminhar por eles. Desejava inspecionar os brotos e calcular que colheita poderia esperar no fim do verão. Não esperava grande coisa, já que a plantação havia passado quase um ano a venda. Mas Sweet Briar já estava livre de dívidas e se fosse necessário, poderia pedir dinheiro emprestado para passar o inverno.
Uma sensação de alegria a atravessou como a brisa fresca e limpa que soprava depois de uma tempestade de verão. Respirou fundo. O ar denso e salobro, para ela como um elixir. Pela primeira vez em meses. Sentiu fome.
Uma figura alta e magra apareceu no alpendre. Virginia sorriu e saudou Tillie com a mão enquanto a carruagem parava diante da casa. Daria conta Antes tinha duvidado de suas forças, mas de repente sabia que Sweet Briar a salvaria e também a seu filho.
Tillie não se moveu. Parecia paralisada enquanto observava-a abismada. Virginia desceu.
— Tillie! — Ela gritou sentindo que a semente da felicidade começava a espalhar suas raízes.
— Virginia! — Gritou Tillie em resposta. — Virginia! É você! — Levantando as saias do vestido, ela desceu correndo ao encontro de Virginia e se abraçaram. — Não tinha noticias suas desde que recebi sua carta em fevereiro. — Tillie exclamou segurando o rosto dela entre as mãos. Virginia havia escrito para contar que Devlin havia comprado e lhe dado a plantação como presente de casamento. — Por que não me escreveu que viria? E por que está branca como um fantasma… E tão fraca?
Virginia a abraçou outra vez.
— Não tive tempo de escrever. — Ela explicou.
— E você viajou sozinha, com o cachorro? — Tillie a abraçou e surpresa sentiu o volume de seu ventre. — Você está grávida? — Virginia assentiu com a cabeça, incapaz de falar. Seus olhares se encontraram. Tillie levantou as sobrancelhas, desconcertada. — O que aconteceu?
Virginia engoliu saliva.
— Meu casamento acabou, Tillie. Voltei para ficar.


Virginia ocupou seus dias administrando Sweet Briar, mesmo em seu estado e os constantes protestos de Tillie. Não queria saber nada da guerra, mas era impossível evitá-la, agora que estava em casa. Em território canadense havia combates sem descanso. Quatro escravos de Sweet Briar tinham fugido, assim como outros muitos em todo o condado. Rumores lhe chegavam que os casacas vermelhas os animavam a fugir, que inclusive que os mesmos combatiam em suas filas. Havia também uma terrível escassez dos mantimentos mais básicos. Aonde ia o principal assunto era o preço dos mantimentos mais elementares, que já ninguém podia se permitir. Em Sweet Briar não havia açúcar e as geléias de Tillie eram amargas.
No final do mês de maio, Virginia começou a se sentir mal. Sentis leves enjôos e lhe era difícil respirar. Temia adoecer se não descansasse. Tillie a repreendia constantemente e não lhe permitia sair de casa. Virginia cedeu consciente de qual era o verdadeiro motivo de sua repentina doença. No dia anterior na igreja ouvira o comentário que o navio Desafio espreitava as costas de Maryland.
Virginia mostrava o melhor que podia que havia esquecido por completo Devlin e seu casamento. Mas pensava nele todos os dias e o medo por sua vida pugnava dentro dela com a tristeza que dominava sua alma.
Era um dia quente e úmido. Virginia se abanava junto à janela de seu escritório, quando notou que Frank cavalgava apressadamente para a casa. De repente o medo a dominou e ela saiu ao seu encontro.
— Frank!
Ele desmontou e subiu correndo ao alpendre, com o semblante tenso.
— Senhorita Virginia…
— O que aconteceu? — Seu coração se contraiu cheio de temor. — É Devlin, não é?
— Ele capturou o Independence, Senhorita Virginia! Os casacas vermelhas abordaram o navio em menos de um quarto de hora!
Virginia se segurou em seu braço. Devlin havia capturado um dos mais importantes navios americanos de guerra.
— Ele destruiu o navio? — ela conseguiu perguntar, aturdida.
— Não. — Respondeu Frank. — Ele o levou para o norte, para Halifax, como saque.
Ela assentiu. Sentia-se no limiar de um desmaio. Devlin estivera tão perto… E sentia tanto sua falta que sofria noite e dia, apesar de seu marido estar combatendo contra seus compatriotas.
— Claro. Tola de mim. — Ela disse e procurou aquietar sua respiração.
— Mas isso não é o pior, Senhorita. No povoado se fala em invasão.
Virginia ficou rígida.
— Uma invasão, aqui?
— Dizem que os ingleses tomarão Norfolk a qualquer momento e nós estamos muito perto da cidade, Senhorita.
Virginia voltou o corpo para a casa. Seu coração pulsava tão forte que ela se assustou. O suor molhava sua fronte. As tropas inglesas chegariam até ali, queimando e saqueando tudo, como haviam feito mais ao sul e ao norte? Será que Devlin participaria da invasão? Será que ela corroa perigo em Sweet Briar? Haviam reunido um pequeno arsenal se por acaso fosse necessário defender a plantação, mas rezava para que não chegasse a tanto. Deveria se acalmar e se manter forte, pelo bem de Frank e de todo o pessoal de Sweet Briar que confiava nela. Sentou-se na cadeira de balanço do alpendre e tentou em vão se abanar.
— Nós estamos a oitenta milhas da cidade, Frank. Mesmo que tomem a cidade, aqui estamos a salvo. Nossa tropa e o exército não os deixarão chegar tão longe. Era uma mentira. O exército teria outras coisas a fazer se houvesse uma invasão e Virginia sabia que a tropa era composta por velhos e jovens. Homens muito novos. Mas não podia permitir que Frank notasse seu medo. Sorriu-lhe. — Poderia me trazer um copo de limonada?
Ele vacilou. Logo sua expressão se relaxou. Assentiu, tocou a boina e entrou na casa. O sorriso de Virginia se dissipou. Segurou aos braços da cadeira de balanço e contemplou seus campos amados. De repente, a guerra lhe parecia muito próxima. Fechou os olhos e imediatamente se apoderou dela o pressentimento de que muito em breve voltaria a ver Devlin.


Virginia despertou bruscamente de um horrível pesadelo. Tinha o corpo coberto de suor e seu coração pulsava freneticamente. Enquanto se sentava na cama, em meio às sombras do aposento, notou que tinha sido somente um sonho. Tocou o ventre. Seu filho continuava ali. Deitou-se novamente e esperou que sua respiração se aquietasse. Fazia muito calor e embora as janelas estivessem abertas, não havia brisa. Arthur, que dormia aos pés da cama, se levantou abruptamente e começou a grunhir. Virginia se alarmou. O cachorro correu para a janela e apoiou as patas no parapeito. Voltou a grunhir ameaçadoramente.
Virginia se ergueu, cheia de temor. Acendeu rapidamente uma vela e se aproximou da janela. À noite, entretanto, parecia tranqüila. Arthur voltou a grunhir. E então Virginia ouviu a aproximação dos cavaleiros. O medo se apoderou dela. Arthur começou a ladrar.
— Cale-se. — Ela ralhou, pois ao esquadrinhar as sombras avistou o brilho de uma tocha. Os rumores de uma invasão continuavam, mas os britânicos avançavam de dia, não de noite.
Virginia correu até a cama e tirou uma pistola de debaixo do travesseiro. Suas mãos tremiam e ela demorou um momento em carregá-la. No corredor encontrou Tillie e Frank, que carregava um rifle de caça.
— Vem vindo cavaleiros. — Sussurrou Tillie.
— Eu os avistei. — Respondeu Virginia sem levantar a voz. — Sabem quantos são?
— Quatro ou cinco. —Frank lhe respondeu.
Eles se fitaram por um momento, tentando decidir o que fazer. De repente ouviram que os cavalos se detinham diante da casa. Alguém bateu na porta. Virginia se sobressaltou e fitou Tillie. Quase desfaleceu de alívio.
— Os ingleses não batem na porta. — Disse. — Vou abrir.
— E pessoas de bem não sai fora a estas horas. — Replicou Tillie segurando-a pelo braço.
Tillie tinha razão.
— Se esconda entre as sombras, Frank. Não duvide em disparar se notar que nossos visitantes têm más intenções.
Os visitantes continuavam esmurrando a porta. Virginia desceu lentamente a escada cheia de receio, seguida pelos dois escravos. Ao seu lado, Arthur grunhia. Virginia correu à porta.
— Um momento! — Gritou deixando a vela no chão. O bebê escolheu esse momento para dar seu primeiro, um golpe forte e estranho, e ela vacilou surpresa. Mas não podia parar para pensar no pequeno milagre. Escondendo a pistola entre as dobras de sua camisola, abriu uma fresta na porta.
Na porta havia um homem que reconheceu em seguida, apesar da escuridão. Ficou paralisada, mas Arthur saiu contente meneando a cauda.
— Pare! — Disse Devlin e afastou o cão que havia saltado sobre ele. Fechou a porta as suas costas. O cão se sentou sem deixar de menear a cauda.
Virginia começou a tremer.
— Sempre abre a porta a estranhos? — Ele perguntou.
Ela umedeceu os lábios e murmurou:
— Soldados inimigos não batem na porta.
Devlin inclinou a cabeça e deslizou o olhar sobre seu ventre. Ela desejou segurar sua mão e levá-la ao ventre, mas se deteve.
— Como você está? — Ele perguntou com voz suave.
Virginia então se deu conta que tremia violentamente. Por que Devlin tinha vindo lhe ver? Tinha arriscado sua vida só para vê-la?
— Estamos bem, o bebê e eu. — Conseguiu responder. Estava tão surpresa que não podia pensar com claridade, mas dentro dela começava a florescer a semente a esperança. Devlin estudava atentamente seu rosto.
— Cliff me disse que estava aqui. Deu-me vontade de matá-lo, até que compreendi que você teria procurado outro navio no qual vir. Isto é um disparate, Virginia.
Ela se abraçou.
— Eu nasci aqui, Devlin. E nosso filho nascerá aqui também.
Ele não parecia satisfeito.
— A guerra está muito perto. Arrisquei a vida de quatro homens para vir até aqui. — Ele disse rapidamente. — Vim dizer que fique em Sweet Briar durante a próxima semana. Estou falando sério, Virginia. Não saia da plantação. — Ele a advertiu.
Algo terrível estava para acontecer e ele sabia o que era.
— Por quê?
— Sabe que não posso dizer, mas Sweet Briar ficará a salvo.
Ela mordeu o lábio até sangrar.
— E por que... — Estava ficando difícil conversar. — Por que minha casa ficará a salvo?
— Porque eu exigi. — Ele replicou.
Ela assentiu com a cabeça, alegre. Mas seu temor era maior que a alegria.
— É Norfolk? Tomarão a cidade?
— Sabe que não posso dizer mais nada.
Ela assentiu e fechou os olhos por um momento. Devlin não podia abraçá-la, mesmo que fosse somente uma só vez?
— Uma semana?
— Pode ser que seja mais. Dependerá de fatores que não posso controlar. — Ele a observava com atenção. — Mandarei um aviso quando for seguro sair da plantação.
Virginia se apoiou pesadamente na parede. O desespero havia se apoderado dela. Se a maldita guerra acabasse… Provavelmente teriam uma oportunidade.
Ele vacilou.
— Quero que me dê sua palavra de que me obedecerá esta única vez, Virginia. Sua vida e do bebê pode depender disso.
Ela sabia que ele logo partiria. Seu desespero aumentou.
— Está bem... Devlin?
Ele mostrava uma mascara severa no rosto.
— Devemos ir.
— Não quer descansar… Aqui? — Ela umedeceu os lábios. Desejava que ele ficasse.
— Não posso. O campo está cheio de espiões. — Ela assentiu já tomada pela angústia. — Tenho que ir. — Ele se repetiu, com aspereza. Seu rosto parecia cheio de angústia. Afastou rapidamente o olhar, como se quisesse se recompor e depois voltou o olhar para ela. — Tenho uma pergunta a te fazer.
Ela quis suplicar novamente para que ele não a deixasse, mas sabia que ele deveria partir o quanto antes, pois seus homens e ele podiam ser capturados e enviados a prisão. Respirou fundo.
— Faça.
— Você me abandonou?
Ela o fitou, perplexa. Havia o abandonado. Estava claro. Mas não por escolha. Tudo havia mudado desde sua volta a América… E no fundo, nada havia mudado. Virginia não vacilou. Não teve que pensar na resposta. Seu coração respondeu por ela.
— Não, Devlin.
O semblante de Devlin enrijeceu. De repente, ele a tomou nos braços e a apertou com força, estreitando-a contra o peito largo. Virginia deixou escapar um gemido quando seus lábios se uniram. Entre os braços poderosos ela se sentia a salvo. Compreendeu então que Devlin a amava. Beijaram com frenesi, uma e outra vez. Finalmente Devlin se afastou, inclinou a cabeça diante ela e saiu.
Ela permaneceu imóvel por um instante, perplexa e a beira das lágrimas. Logo correu atrás dele, mas se deteve no alpendre e se segurou no corrimão enquanto ele montava no cavalo.
— Cuide-se, Devlin. Muito. — Disse com voz densa.
Devlin fez o cavalo fazer a volta a fim de olhar para ela.
— Faça o que me prometeu. — Ele pediu.
— Dou-te minha palavra. — Ela sussurrou.
Ele a fitou um momento mais. Depois partiu a galope, acompanhado de seus homens.

 

 

 

 

 

 

Capítulo 28


A ofensiva sobre Norfolk fracassou rapidamente. Embora os britânicos iniciassem um ataque tanto por mar como por terra, uma grande tempestade do verão impediu o desembarque da metade dos efetivos de infantaria, e os que conseguiram chegar em terra foram dizimados pelo denso fogo de artilharia dos regulares americanos. Depois de duas horas, os ingleses se retiraram.
A notícia da vitória americana se espalhou rapidamente pelo campo e chegou a Sweet Briar no final do dia. Virginia se encontrava mal outra vez. Estava na cozinha, com Tillie, abanando-a. Fazia muito calor e quando Frank entrou sorrindo para lhes dar a notícia do triunfo, ela mal respirava. Quando Frank começou a contar, tudo escureceu ao seu redor e ela começou a cair.
— Frank! Ajude-a! — Gritou Tillie.
Virginia lutou contra a escuridão e tentou respirar. O último pensamento que lhe veio a mente é que precisava de seu marido. Logo, a escuridão se apoderou dela. Despertou lentamente em sua cama, em sua roupa intima, com uma compressa fria sobre a testa. Tillie estava ao seu lado e se mostrava assustada. Virginia notou que já respirava com normalidade e inalou com força. Uma onda de alívio a invadiu. Logo sorriu.
— Tillie, meu bebê deu outro chute. — Ela havia sentido justo antes de desmaiar.
Tillie não sorriu.
— Tem que ver um médico, Virginia. Você desmaiou e bateu a cabeça com força no chão. Mandei Frank procurar o doutor Barnes.
Virginia fechou os olhos. Os ataques de fraqueza estavam cada vez mais freqüentes. Estava com medo. E se voltasse a desmaiar? Fitou Tillie.
— Você tem razão. Preciso de um médico. Alguma coisa está me acontecendo. Temo pelo bebê, Tillie.
Tillie se levantou abruptamente.
— Eu sei o que está acontecendo. Você precisa de seu marido em casa. Ele quebrou seu coração e agora você está doente. Como ele pode te tratar assim? Como pode lutar contra nós? — Ela gritou.
Virginia não soube o que responder. Suspeitava que Tillie tivesse razão. Cada vez que ouvia falar de Devlin ou de suas façanhas, não podia respirar e se enjoava. Pelo que parecia, não suportava a angústia de saber onde estava seu marido e o que ele fazia. E depois de vê-lo na semana anterior amava-o mais ainda e a separação também era mais dolorosa que nunca.
Mas quando o doutor Barnes foi visitá-la no dia seguinte, insistiu que seu estado se devia ao cansaço, a gravidez e à angústia da guerra.
— Fique na cama se não querer perder o bebê. — Ele ordenou com firmeza antes de partir.
Virginia fitou Tillie.
— Estamos no fim de junho. O bebê não nascerá até outubro. Não posso ficar na cama por três ou quatro meses.
— Terá que ficar, goste ou não. — Tillie vacilou. — Acho que deveríamos avisar o Capitão que doente.
Virginia ficou paralisada.
— Não estou doente. E Devlin já tem muitos problemas em que pensar.
— Ele deveria saber. — Disse Tillie, obstinadamente.
Virginia acariciou Arthur, que havia subido na cama.
— Quero ver outro médico, Tillie. É o que vamos fazer. — Sem dúvida não terei que ficar meses de cama. Sem dúvida, tudo ficará bem.
Tillie suspirou.
— Você continua tão teimosa como uma mula.
Virginia a observou sair do aposento e se recostou nos travesseiros. Ansiava, em parte, fazer o que Tillie dizia, mas Devlin estava muito ocupado. Além disso, estavam separados… E ela era orgulhosa. Mas Devlin se tinha feito o possível para vê-la uma vez. Possivelmente faria novamente.


Hampton era uma cidade pequena e aprazível, comparada a Norfolk. Dias depois, Virginia se sentiu com forças para fazer a curta viagem até lá. Frank conduzia a carruagem e Tillie estava sentada junto a ela. Virginia não tinha sofrido nenhum outro ataque. Fazia um belo dia de verão, quente, mas não úmido. O céu estava muito azul e não tinha nuvens.
— Chegamos com uma hora de antecipação. — Comentou Virginia.
— Vamos dar um passeio antes de ir ver o doutor Niles?
— Por que não? — Virginia esboçou um sorriso. Provavelmente um passeio pela tranqüila cidade a ajudasse a deixar de pensar em Devlin.
Desembarcaram da carruagem não muita longe de uma casa de penhores.
— Espero aqui? — Perguntou Frank.
— Por que não vai procurar a farinha, enquanto nós damos uma volta? Vá nos buscar na casa do doutor Niles dentro de duas horas. — Disse Virginia. Tinham encomendado um saco de farinha na semana anterior e Tillie tinha prometido lhe fazer um bolo.
Frank assentiu e se afastou com a carruagem. Virginia e Tillie se detiveram ante a vitrine da casa de penhores, para elas admirarem um par de brincos com topázios que sem dúvida ficariam muito bem em Tillie. Ao sugerir A Tillie que entrassem, elas ouviram uma explosão muito perto. Virginia sentiu o corpo endurecer, atemorizada.
— O que foi isso? — Tillie perguntou, pálida.
— Não sei. — Disse Virginia já pegando a mão de Tillie da mão e saindo correndo pela rua. Ao dobrarem a esquina avistaram a enseada e mais à alem a baía do Chesapeake. O coração de Virginia parou no peito.
— Santo Deus! — Murmurou Tillie.
Virginia observou horrorizada, que os dois enormes navios que entravam na enseada se encontravam perigosamente perto da praia. Deles descendiam dúzias de botes a remos, todos lotados de soldados vestidos de vermelho. De repente, os navios dispararam no rumo da cidade. Virginia e Tillie gritaram e se esconderam. Naquela mesma quadra uma casa havia acabava de ser atingida. Elas correram a se esconder atrás do muro de um edifício.
— Estão nos atacando! — Exclamou Tillie.
Virginia estava atônita. De repente, um grupo de milicianos veio correndo do fundo da rua em direção a elas, armados com mosquetes, pistolas e alguma ou outra espada. Os dois navios dispararam novamente. A primeira bateria de barcos se encontrava quase na margem. Virginia fitou a fragata mais próxima. Reconheceria o Desafio de qualquer distância. Era Devlin.
Tillie se levantou e correu para os milicianos.
— O que está acontecendo? — Ela perguntou enquanto segurava-o pelo braço.
O rapaz, que não tinha dezoito anos, se deteve e a fitou com expressão nebulosa.
— Está atacando a cidade. São O’Neill e Cockburn. Devem ser pelo menos mil homens e nós só temos a tropa para defender a cidade! — Ele afastou ao Tillie e correu atrás de seus companheiros.
Virginia se levantou pálida de espanto. Voltou-se no momento em que o primeiro contingente de soldados de infantaria saltava da embarcação. Soaram novos tiros de canhões. Tillie e ela correram para se refugiar no edifício mais próximo. Escondidas observaram a fumaça que começava a se elevar pelo lado norte da cidade enquanto os canhões seguiam ressoando.
— Temos que encontrar Frank e voltar para casa. — Disse Tillie com energia.
Mas Virginia não se moveu. Pensava em Devlin em pé no castelo de popa do Desafio, ordenando aos seus homens que atacassem sua cidade, sua gente, a Tillie e a ela mesma. O bebê deu um chute e ela se levou a mão ao ventre. Sentia-se doente. Como havia chegado àquele terrível momento, seu casamento e seu amor?
— Vamos, Virginia. — Disse Tillie, agarrando-a do braço.
Virginia deu uma última olhada à praia, onde ainda na havia aparecido à tropa para deter os assaltantes. Centenas de casacas vermelhas corriam pela praia. Logo chegariam à cidade. Voltou e começou a tremer.
— Vamos. — Disse com brusquidão.
De mãos dadas elas correram pela rua e dobraram a esquina. Em seguida se detiveram, pois centenas de soldados britânicos, incluídos alguns a cavalo, desciam pela rua rapidamente. A tropa que se preparava para lhes confrontar, com apenas um punhado de homens, fazia uma patética resistência. Virginia ficou paralisada enquanto presenciava a massacre que acontecia diante seus olhos. Um a um os milicianos americanos foram caindo. Virginia nunca tinha visto tanta morte e tanto sangue. Sentiu náuseas e segurou o ventre, vagamente consciente de que as lágrimas corriam por face.
Devlin formava parte daquilo. Virginia se voltou e vomitou. Tillie a segurou.
— Temos que ir. — Tillie sussurrou com ansiedade. — Eles estão perto!
O coração de Virginia pulsava tresloucado. Correram por onde haviam chegado. Ao dobrar a esquina se encheram de espanto.
— eles devem ter planejado um segundo assalto pela retaguarda. — Sussurrou Virginia, tremendo.
— Como saímos daqui? Não podemos deixar Frank. — Tillie soluçou.
— Venha. — Disse Virginia. Não podiam ficar onde estavam tão perto da batalha. Correram rua abaixo. Atrás delas, um edifício estalou em chamas. Entraram em outra rua e se apegaram ao muro de tijolo de uma casa. Centenas de soldados britânicos lutavam com um punhado de milicianos. Depois de um momento nem um só miliciano estava em pé e um rio de sangue descia pela rua. Virginia sentiu novamente náuseas. Tillie soluçava em silêncio. Como fugiriam?
— Virginia. — Gritou Tillie, lhe dando uma cotovelada.
Virginia seguiu seu olhar e ficou imobilizada de espanto ao avistar um oficial montado, vestido com a casaca azul da Marinha britânica.
— Ali! — Gritou o oficial.
Virginia se sobressaltou notando que um homem saía de um estábulo. Conhecia-o bem. Era John Ame, o ferreiro de Hampton, que sustentava um rifle. Quando o levantou inúmeros mosquetes dispararam. O homem caiu. Uma mulher gritou e saiu correndo do estábulo. Virginia gritou: — Não, Martha! — Mas era já tarde. Martha se debruçou sobre o corpo do marido e Virginia se voltou para o soldado apontava seu mosquete para ela. O soldado disparou e matou à mulher. Virginia não podia mover. Tillie a puxava pela mão.
— Estão matando gente inocente. — Disse com voz rouca. — Temos que ir.
Virginia se voltou e procurou o oficial a cavalo. Encontrou-o imediatamente e sufocou um grito. Era Thomas Hughes. Fitou-o do outro lado da rua e um calafrio lhe percorreu as costas. O que Hughes estava fazendo ali? Mas não podia parar para pensar nele. Tillie a puxava e gritava para que corresse. Virginia se deu conta de que as tinham visto. uns quantos marinhe se tornaram para ela. Virginia e Tillie puseram a correr enquanto eles começavam a disparar.


— Deus! — Exclamou Devlin, montado sobre o cavalo que havia arrebatado sumariamente de um civil. A cidade estava um inferno. As ruas estavam cobertas de cadáveres tanto de milicianos, como de mulheres e crianças. As forças que atacavam eram formadas por dois mil soldados, para assegurar uma vitória rápida e decisiva depois da humilhação em Norfolk. Devlin tinha visto muitos soldados voltar loucos da batalha, mas não esperava ver o espantoso massacre que estava presenciando. Logo tinha chegado o rumor ao Desafio, que a infantaria britânica estava desmandando, principalmente pelos franceses lutavam com eles, prisioneiros de guerra que se alistavam para evitar o cárcere. Duvidava, entretanto, que a culpa fosse dos franceses: suspeitava que Cockburn havia dado origem aquele açougue. Nesse preciso momento, um grupo de soldados, em sua maioria bêbados, estavam destroçando uma loja. Os edifícios próximos estavam em chamas e no meio da rua havia uma mulher e uma criança, ambos mortos.
— Tenente! — Devlin gritou furioso, a um dos oficiais britânicos.
O oficial montado a cavalo se aproximou dele.
— Sim, Senhor?
— Detenha esses homens e prenda-os todos. — Ele ordenou.
— Mas Senhor! — O jovem oficial estava perplexo.
— Dispare neles se for necessário! — Disse ele sinistramente. — Que todas as tropas retornem aos seus postos. Nosso trabalho aqui acabou. É evidente que ganhamos. — Ele se sentia doente, mas afugentou o sentimento. Voltou ao cavalo decidido a inspecionar a cidade. Mas era impossível. As tropas britânicas corriam enlouquecidas por toda parte. Devlin pensou em Virginia. Aquele era seu lar. A cidade era tão perto de Sweet Briar, que sem dúvida ela a visitava com freqüência. Pelo menos, pensou com acrimônia, sua esposa não tivera que contemplar aquela matança. A cidade não parecia ter salvação. No cair da noite, a metade estaria reduzida a cinzas e lhe assustava pensar no número de mortos. Não pela primeira vez, agradeceu aos céus que Virginia estivesse sã e salva em Sweet Briar.
Começava a entardecer. A batalha havia acabado com exceção a alguns incidentes isolados. A maioria das tropas já estava sob controle. Devlin desmontou. Dúzias de civis e milicianos estavam mortos ou agonizantes na rua. Os médicos britânicos atendiam aos seus. Devlin se voltou para o outro lado da rua e de repente seus olhos ficaram enormes. Pareceu-lhe reconhecer o escravo. Então se lembrou que o tinha avistado somente uma vez, a noite, escondido no saguão de Sweet Briar. Atravessou correndo a rua ensangüentada.
— Espere! — O negro se voltou e pôs a correr. — Pare, Maldição! Para antes que eu dispare! — O homem se deteve e levantou as mãos. Devlin se aproximou dele. — Volte-se. Não vou te fazer mal — Ele disse. O homem obedeceu. — É de Sweet Briar?
Ele assentiu com a cabeça, com os olhos enormes de medo e surpresa.
— E você é o marido da Senhorita Virginia. O Capitão. — Ele respondeu.
Devlin assentiu. Uma terrível suspeitava começava a assaltá-lo.
— Ela está a salvo, não está? Ela me obedeceu quando lhe disse que ficasse em casa?
Os olhos do homem se encheram de lágrimas.
— Não, Senhor. — Disse. — Ela veio consultar um médico. Está doente há a algum tempo. Então começou a luta e não sei onde ela está.
Devlin sentiu que sua mente escurecia. Pela primeira vez em sua vida conheceu o horror.
— Ela está aqui? — Gritou. — Minha mulher está aqui agora? — O homem assentiu. — Onde? — Ele perguntou preso de um temor que nunca tinha conhecido antes. — Onde a viu pela última vez? — Devlin se deu conta que estava sacudindo ao escravo.
— Eu o levarei lá, Senhor. — Disse o homem.
Correram juntos através da cidade em chamas. Pareceu passar horas até chegarem a loja com a vitrine quebrada e tinha sido saqueada por completo, mas Devlin sabia que não havia demorado muito.
— Deixei-as aqui e fui comprar farinha. — Disse Frank em meios a um soluço.
Devlin ficou gelado por dentro. Sacou lentamente sua espada e fitou ao redor. As ruas estavam cobertas de cadáveres. As estrelas começavam a apontar no céu, seguidas pela lua cheia. Sentia-se impotente. Se ela estiver morta, eu morrerei, pensou. E matarei o culpado. Mas, acaso não era ele o responsável? Se não fosse por sua negativa em renunciar à vingança, Virginia se encontraria a salvo em Waverly Hall.
— Me ajude a encontrá-la. — Ele pediu.


— Acredito que já podemos sair — Disse Virginia com voz rouca.
Elas haviam passado todo o dia escondidas no vão de uma casa. De onde estavam avistaram a morte, destruição, assassinatos e violações. Estavam com os rostos, as mãos e as roupas salpicadas de sangue. Em certo momento os soldados se voltaram para a casa, mas não se incomodaram em observar o vão onde elas se escondiam, aterrorizadas. A casa parecia ter se salvado milagrosamente das chamas, enquanto meia cidade ardia ao seu redor.
Tremiam incontrolavelmente. Virginia permanecia em um estado de choque. Mesmo assim, pensava em Devlin. Ele podia ser desumano, mas estava segura de que jamais teria engendrado o massacre que tinha acontecido.
Fitou Tillie. Sua amiga estava com o cabelo alvoroçado, o vestido rasgado e manchado de sangue e lodo, e um olhar alucinado. Virginia compreendeu que devia estar com o mesmo aspecto.
— Vamos tentar sair? — Perguntou em um sussurrou. Cada vez que a casa rangia, ela sobressaltava e elevava a pistola que tinha tirado de um homem morto.
Tillie assentiu com a cabeça. A rua estava deserta. Dois edifícios continuavam queimando. Atravessaram em silêncio a casa e saíram, apertando suas pistolas contra o peito. O medo, a fumaça e o cheiro da morte dificultavam suas respirações. Virginia conteve as lágrimas.
— Quantos morreram e para que? Pelo livre comércio? Pelas terras no Canadá? Por que? — Ela exclamou, tremendo convulsivamente.
Logo ouviram vozes de homens bêbados se aproximavam.
— Cale-se. — Disse Tillie com aspereza. — Não diga nada até que estejamos em casa, a salvo.
Presa novamente pelo medo, Virginia se inclinou para ela e sussurrou:
— Temos que encontrar Frank.
Os olhos de Tillie se encheram repentinamente de lágrimas.
— Sabemos que ele não pode estar vivo.
Virginia resistia em acreditar. Provavelmente Tillie estava com a razão. Puseram-se a caminhar pela rua, com passos céleres. Virginia procurava ignorar a dor em seu ventre. Havia sentido pequenos cãibras durante todo o dia e o bebê não deixava de lhe chutar o ventre. Por favor, agüente firme. Ela pedia em silencio. Só um pouco mais e estaremos em casa a salvo. Junto a Tillie, ela corria e desejava que Devlin aparecesse e as salvasse, que lhe dissesse que havia se equivocado. Queria que ele lhe dissesse que ainda a amava e que salvariam seu casamento.
Elas viraram a esquina e se encontraram face a face com cinco homens vestidos de casacas vermelhas. Voltaram e começaram a correr. Um homem lhes cortou o passo de repente, com a espada em riste. Virginia levantou instintivamente a pistola e apontou. Então notou uma casaca azul, os botões dourados e os galões. Notou os olhos claros e acinzentados e o rosto de expressão dura. Começou a tremer e sua mão oscilou.
— Virginia... — Disse Devlin surpresa. — Baixe a arma. — Ele baixou a espada.
Devlin… Aturdida, ela começou a baixar a pistola.
— Devlin — Ela sussurrou de repente tomada pela alegria. Um instante depois estava em seus braços.
Mas o semblante de Devlin se alterou bruscamente. Seus olhos dilataram e ele levantou a espada.
— Virginia! — Ele gritou.
E, nesse instante, ela percebeu a presença hostil as suas costas. Antes que pudesse reagir, alguém a segurou por atrás. Ao se voltar encontrou os olhos frágeis, o sorriso desdentado e a casaca vermelha do homem. Outros soldados estavam com ele. Um deles atacava Tillie.
— Devlin! —Virginia enquanto tentava freneticamente se soltar. De repente, o soldado afrouxou os braços e proferiu um uivo de dor. Um líquido quente a salpicou. Aturdida, notou que a mão que apertava seu seio havia sido separada do braço e o soldado olhava estupefato seu ombro sem braço. Um sabre assobiou e a cabeça do soldado desapareceu.
Virginia se afastou cambaleando enquanto o corpo mutilado caía aos seus pés. Voltou e avistou Devlin atacando outro soldado, cheio de ira. Enquanto ele o atacava, ela caiu de joelhos e se afastou como pôde. Quase paralisada pelo terror, se voltou e viu quatro soldados mortos não muito longe de ali. De repente, Tillie apareceu junto a ela. Mas Virginia só tinha olhos para Devlin.
— O’Neill. — Sussurrou uma voz na noite.
Virginia reconheceu aquela voz, percebeu o perigo e quis advertir Devlin. Mas tudo dava voltas ao seu redor e ela teve que procurar onde se apoiar. Conseguiu levantar o olhar. E a última coisa que avistou foi Thomas Hughes em pé atrás de Devlin, que sorrindo levantava seu mosquete e apontava para sua cabeça. O disparo de sua pistola foi o ultimo som que ouviu, antes de tudo escurecer.

 

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 29


O sonho era terrível. Por toda parte havia soldados que matavam uns aos outros, e Devlin estava do outro lado de uma muralha de fogo e gritava para ela, que não se atrevia a correr para ele. Desesperada, estendeu-lhe os braços. Entre eles, o fogo rugia.
— Devlin! — Ela soluçou.
— Fique tranquila.
Virginia sufocou um grito e abriu os olhos. Compreendeu imediatamente que estava em seu quarto em Sweet Briar, e em sua cama. Voltou à cabeça e murmurou:
— Devlin? — Precisava dele. Nunca tinha precisado tanto.
Tillie apertou sua mão e lhe acariciou a fronte.
— Você está acordada. — Ela disse com suavidade.
Virginia piscou. Uma terrível aflição começava a se apoderar dela.
— Está… Devlin está aqui?
— Não, carinho. Ele não está.
Virginia fechou os olhos e a lembrança fantasmagórica da batalha de Hampton assaltou sua mente. De repente avistou Thomas Hughes apontando a arma para a cabeça de Devlin.
— Onde está Devlin? — Soluçou enquanto seu coração pulsava alucinadamente, cheio de terror. — Por favor, me diga que ele está bem!
— O doutor Barnes deixou láudano para você. Espere que te darei um pouco. — Disse Tillie, pegando uma xícara de chá onde sem dúvida havia dissolvido a droga.
Virginia lhe afastou a mão e a xícara caiu no chão.
— Onde está Devlin? Ele está vivo?
As lágrimas desciam pelo rosto de Tillie.
— Não sei... — Ela soluçou. — Alguém lhe disparou nele por atrás… E eu já não vi mais nada. Tinha que te tirar de lá.
Virginia se sentou. O bebê escolheu esse momento para dar um chute. Ela levou a mão ao ventre e tentou se acalmar pelo bem de seu filho, mas foi impossível. Devlin não poderia morto.
— Era Tom Hughes. — Ela disse horrorizada. — Eu o vi. Ele disparou em Devlin pelas costas. — E finalmente Virginia começou a chorar. Fechou os olhos e tentou respirar. Lembrou-se que deveria manter a calma. A dor e o medo não lhe serviriam de nada nesse momento. Se Devlin estivesse vivo tinha que encontrá-lo. Tinha que encontrá-lo, mesmo que estivesse morto. Mas não estaria morto!
— Me ajude a me trocar. — Disse.
— Deve ficar na cama até que nasça a criança! — Tillie gritou-lhe.
— Meu marido pode estar morto — Disse Virginia em voz baixa enquanto se levantava, se segurando na cama. — Pode vir comigo ou ficar aqui. Mas vou encontrar meu marido, seja como for.
Era uma tarde luminosa e morna. A cidade estava tomada pelo cheiro da morte. Os britânicos haviam partido, naturalmente, pois a enseada e a baía pareciam desertas. O exército americano tinha montado um forte improvisado nos subúrbios da cidade, com um campo de prisioneiros e um hospital de campanha.
Virginia se sentia fraca e caminhava abraçada com Tillie. Frank ia atrás delas, sempre vigilante. Às portas do acampamento, um soldado havia lhes tinha indicado o Capitão Lewis, o comandante do destacamento. Virginia se aproximou dele. Procurava com todas suas forças manter a compostura e queimava de resolução. Encontraria Devlin. E o encontraria vivo.
Lewis estava conversando com vários oficiais que se afastaram quando Virginia parou diante dele. Não era muito maior que ela. Tinha o cabelo loiro, os olhos azuis e as bochechas queimadas pelo sol. Sua expressão se tornou áspera ao fitá-la.
— Deixe-me adivinhar. — Disse ele, com esforço. — Você perdeu seu marido, um irmão ou seu pai. Aqui está a lista. Mas não está completa.
Virginia pegou a folha de papel que ele havia recolhido da mesa que usava.
— Meu marido é um oficial britânico, Senhor. Pode ser que saiba se foi capturado ou se está morto. — Virginia estava surpresa com sua calma, ao conversar com o oficial. Era como se estivesse flutuando fora de seu corpo, pois não se atrevia a sentir. Se sentisse se tornaria em pedaços. Ficaria louca e não encontraria Devlin.
O Capitão elevou as sobrancelhas, interessado.
—Ele se chama Devlin O’Neill e é Capitão.
Virginia levantou a cabeça com orgulho.
Ele cerrou a mandíbula.
— O’Neill? O Capitão do Desafio, o homem que fez isto? — Lewis assinalou para os feridos sobre mantas e macas, gemendo e pedindo ajuda, que estava atrás deles.
— Meu marido jamais ordenaria semelhante ataque.
— Ah, não? — O cepticismo do Lewis resultava óbvio. — Não vi seu nome nas listas.
Ela baixou o olhar. Havia uma lista de mortos e outra de feridos.
— Diz que estas listas estão incompletas?
— Estão.
— E o os prisioneiros de guerra?
Ele fez uma careta zombeteira.
— Só há um pouco.
Ela engoliu saliva.
— Eu gostaria de ver os mortos, aos feridos e os prisioneiros, Capitão.
Ele encolheu os ombros.
— Se encontrar a O’Neill em nosso poder me tornará um homem muito feliz. — O homem replicou e se voltou. — Sargento Ame! Acompanhe à Senhora O’Neill ao necrotério e deixe-a dar uma volta pelo hospital e o campo de prisioneiros.
Um homem corpulento se aproximou correndo.
— Sim, Senhor. — Ele respondeu fazendo uma saudação militar. — Por aqui, Senhora.
Virginia e Tillie seguiram o sargento. Quinze minutos depois, Virginia se encontrava muito enjoada, mas segura que Devlin não estava entre os feridos do hospital de campanha.
— Ele não está aqui, sargento. — Disse Tillie. — Podemos ver os prisioneiros?
Ele assentiu e as conduziu novamente ao centro do acampamento.
— O necrotério é ali. — Ele disse assinalando uma fileira de corpos envoltos em lençóis. Virginia parou em seco.
— Não posso. — Ela disse já perto de perder a serenidade.
— Eu irei. Posso identificar o Capitão. — Frank se apressou a dizer.
— Deus o abençoe. — Virginia murmurou.
Frank retornou meia hora depois com aspecto macilento, apesar da pele escura.
— Vi todos eles. — Ele disse com voz rouca. — O Capitão não está entre os mortos, Senhorita Virginia.
Virginia, que estava sentada em uma cadeira que o sargento lhe cedera amavelmente, começou a chorar.
— Graças a Deus. — Murmurou. Tentou manter a compostura, mas o esforço a fez tremer. Ainda havia esperança, e ela se aferrou a ela.
— Venha por aqui, Senhora. — Disse o sargento com amabilidade.
Do outro lado do acampamento haviam levantado uma pequena paliçada. Virginia entrou com o sargento Ame. Percorreu com o olhar os escassos prisioneiros reunidos. A metade levava casaca vermelha e a outra estava de camisa. Nenhum só usava casaca azul. Virginia se voltou. Se Devlin não estava morto e nem se encontrava entre os feridos ou os prisioneiros, significava isso que havia retornado ao Desafio? Estremeceu cheia de alívio.
— Virginia? — Disse uma voz de homem que lhe era conhecida. Ela se voltou, assombrada. — Virginia Hughes? É a Senhorita?
Um dos prisioneiros se aproximava com as mãos atadas. Os olhos de Virginia cresceram no rosto ao reconhecê-lo. Era Jack Harvey, o antigo cirurgião do Desafio.
— Senhor Harvey! — Ela exclamou, e correu para ele.
Ele sorriu como se alegrasse em vê-la.
— Vê-la é um grande prazer para olhos cansados, Senhorita Hughes.
— Senhor Harvey... Encontra-se bem?
— Não estou ferido… E tentei oferecer meus serviços aos americanos muitas vezes, mas não se confiam em minhas habilidades. — Os olhos escuros mostravam uma expressão sombria.
Ela se voltou.
— Guarda! Este homem é um bom médico e um excelente cirurgião. Terá que deixar que ele atenda os feridos!
O guarda se limitou a resmungar alguma coisa. O sargento Ame pareceu voltar à vida.
— Falarei com o Capitão Lewis. — Disse. — Necessitamos de todos os médicos que possamos conseguir.
Harvey sorriu a Virginia com melancolia e apertou-lhe a mão.
— O que faz você aqui, Senhorita Hughes?
Ela adotou uma expressão séria.
— Agora sou a Senhora O’Neill, Senhor Harvey.
Os olhos do médico cresceram, com genuína surpresa. Logo esboçou um sorriso.
— Agora tudo faz sentido. Nunca tinha visto Devlin tão alterado por nada ou ninguém.
Ela segurou sua mão.
— O senhor viu Devlin? Ouvi dizer que dispararam nele. Estou desesperada. Preciso encontrá-lo… Rezo para que esteja vivo. — Virginia respirou fundo e procurou manter a pouca calma que lhe restava. Harvey vacilou e Virginia compreendeu que ele devia saber alguma coisa. — O que aconteceu? O que teme me dizer?
— Ouvi dizer que haviam detido o Capitão, Virginia. O Almirante Cockburn em pessoa o prendeu. Parece que ele ficou louco e assassinou seus próprios homens. — Ele fez uma careta. — É absurdo. Não pode ser certo, certamente, mas é o que se diz por aqui.
— Ele foi detido? — Ela sufocou um gemido, apesar de se sentir feliz por ele estar vivo. — Onde o enviaram?
— Soube que está no calabouço do Desafio. — Jack Harvey respondeu.


— Viverá, Capitão — Disse Paul White, o novo cirurgião do navio.
Devlin estava sentado na estreita do calabouço de seu navio. White acabava de lhe enfaixar o ombro direito. O ferimento lhe doía, mas a ele pouco importava. Sabia que não era grave. Por sorte, seu instinto havia lhe advertido da presença de um inimigo e se voltou a tempo. Se não fosse por seu sentido, Tom Hughes o teria assassinado.
Não lhe restava dúvida alguma que Hughes havia lhe seguido até ali com a única intenção de matá-lo. Mas isso não o intimidava. Porque aquela última batalha havia reduzido sua vida a uma só coisa: sua esposa. Seguia com a imagem de Virginia vindo ao seu encontro, pelo canto da rua. Depois assaltada pelos soldados. A mera lembrança bastava para enchê-lo de espanto. Se tivesse lhe perdido não teria poderia suportar. Jamais se recuperaria da dor de perdê-la. Para salvá-la mataria todos os casacas vermelhas em Hampton, se fosse preciso.
Fechou os olhos, estremecendo. Ela não havia sido violada. Não tinha morrido. E... Deus! Não havia mais tolo que ele. Havia sacrificado seu amor e seu casamento, por causa de sua maldita vingança. Agora, agradecia Deus por Virginia estare viva. Antes de ser detido avistou Frank e Tillie a levarem.
Levou as mãos à face. Necessitava desesperadamente de sua esposa. Necessitava de seu perdão e de seu amor. Isso era o que havia lhe ensinado aquela última batalha. Tinha dedicado sua vida ao ódio e a morte. Mas já não queria mais isso. Escolheria a sorte e o amor… Se Virginia o perdoasse e o aceitasse novamente.
— Quer um pouco de rum para acalmar a dor, Senhor?
Devlin fitou o cirurgião. A intensa dor que sentia estava agasalhada em seu coração, e só Virginia podia aliviá-la.
— Não.
A porta do calabouço ressoou ao abrir. Ambos avistaram as botas reluzentes que desciam pelos degraus, seguidas por calça branca, casaca azul com botões dourados e um sem-fim de galões e medalhas. O Almirante Cockburn fitou Devlin e Paul White enquanto um jovem oficial descia atrás dele. Era Thomas Hughes. Devlin fitou o filho de Eastleigh e notou com certa surpresa que não sentia ira. Não sentia raiva. Não sentia nada absolutamente, salvo uma estranha indiferença… E um vivo desejo de encontrar sua esposa.
— Como está Devlin? — perguntou Cockburn dirigindo ao White.
— Ele está com o ombro muito inchado e um bom golpe na cabeça, Senhor. Mas dentro de alguns dias poderá voltar ao serviço. Se não estivesse no calabouço, quero dizer. — Corrigiu-se, White.
Devlin se levantou devagar e pegou sua camisa manchada de sangue. Que estranha era a indiferença que sentia. Que estranha indiferença e que grande alívio. Sentiu o sorriso aflorava em seu rosto ao se voltar para Cockburn e Hughes, enquanto abotoava a camisa. Havia escolhido a sorte e o amor.
Os olhos turvos de Hughes se dilataram, cheios de surpresa e desconcerto, quando seus olhares se encontraram. Devlin desviou os olhos. Estava impaciente para continuar com sua vida, mas ainda tinha que prender alguns fios soltos. Devia isso a Virginia e a seu futuro filho.
— Deixe-o livre. — Disse Cockburn.
— Mas Senhor! — Exclamou Hughes. — Ele matou soldados britânicos!
Devlin não disse nenhuma palavra enquanto saía da cela, seguido por White.
— Conversaremos no convés. — Replicou Cockburn com firmeza, e dando meia volta começou a subir a escada diante deles. Devlin ignorou Hughes, que o fitava abismado e seguiu o Almirante até o convés principal, onde a brisa era suave e o céu azul e brilhante. Na verdade, o céu nunca tinha lhe parecido tão luminoso e nem tão azul.
Observou rapidamente ao seu redor. Imediatamente reconheceu o lugar onde se encontravam, além da desembocadura de Chesapeake, aproximadamente a uma milha da costa da Virginia. Notou que se dirigiam para o sul, a três ou quatro nós de velocidade. Poderia chegar em Sweet Briar em questão de duas horas. Mal podia esperar.
— Ficarei livre? — Ele perguntou enquanto Tom Hughes se reunia a eles.
— Sim, ficará. Em toda batalha ocorrem incidentes desgraçados, meu filho. Que me crucifiquem se vou perder meu melhor Capitão por culpa de uns quantos descarados. Além disso, qualquer homem teria agido como você para proteger sua esposa. — Hughes parecia aniquilado. — Foi um triunfo magnífico. — Continuou o Almirante. — Informarei com todo detalhe a atuação do Desafio e de seus homens. Bom trabalho, Capitão. Muito bom trabalho — Cockburn lhe sorriu.
Devlin não queria conservar sobre a espantosa batalha de Hampton. Ansiava partir. Fitou o rosto de seu comandante e chefe.
— Apresento-lhe minha demissão, Almirante.
Cockburn ficou boquiaberto. E o mesmo ocorreu a Hughes.
— O que? — Exclamou o Almirante.
Devlin sorriu.
— Acredito que me ouviu bem, Senhor. — Disse. — Desculpe-me, mas vou para casa. — Devlin deixou aos dois homens fitando-o com incredulidade e se dirigiu ao seu camarote. Algo leve e alegre se agitava em seu peito, como uma vela empurrada por uma brisa suave.
Não sabia nada a respeito da felicidade e do amor, mas sem dúvida Virginia poderia acostumá-lo. Começou a sorrir. Ainda sorrindo, ele se sentou à sua mesa, escreveu sua carta de demissão num abrir e fechar de olhos. Depois a dobrou e selou. Retornou a cobertura e entregou a carta a Cockburn.
— Recomendo que entregue o comando do Desafio a Red Barlow. — Ele disse.
Cockburn estava lívido.
— Se não o conhecesse bem diria que é você um covarde, Capitão. — Cockburn replicou e fez um gesto aos seus homens indicando que queria retornar ao seu navio. Logo se afastou.
Devlin encolheu os ombros com indiferença. Voltou e fitou Tom Hughes.
— Tenho algo para você. — Disse com tranquilidade.
— É um truque? Se for é muito ardiloso. — Disse Hughes, que observava alarmado as mãos de Devlin, como se esperasse aparecer uma adaga delas.
— Acabaram-se os truques. Acabou o jogo. — Replicou Devlin. — Estou perdendo tempo. Pegue isso. — Ele entregou um papel que havia redigido no dia anterior, enquanto estava no calabouço.
— O que é isto? — Hughes perguntou, receoso.
— Uma escritura de propriedade. — Disse Devlin e respirou uma baforada do doce ar da Virginia. — A escritura de Waverly Hall. Não a quero. É sua. — Hughes o fitou boquiaberto. Devlin lhe fez um gesto a um marinheiro, que se aproximou correndo. — Vou para a terra. Prepare um barco. — Seu coração acelerou ao pensar em ver Virginia novamente.
— Sim, Senhor! — O marinheiro se afastou correndo.
— Você vai nos devolver Waverly Hall? — Hughes o tinha seguido até a amurada do navio.
— Sim. Estou devolvendo.
— Não o entendo.
— Não tem importância. — Devlin observou a praia de areia e o bosque que havia ao longe, pensando novamente na Virginia.
— Claro que importa! — Gritou Tom Hughes. — Meu pai matou o teu. Você dedicou sua vida para se vingar. Roubou-nos a casa, converteu minha madrasta em sua amante, desonrou minha prima, me deu uma surra e eu quase o matei no outro dia. Claro que importa!
Devlin sequer se incomodou em olhar para Tom. O barco que tinha pedido descia para as ondas e seu coração pulsava velozmente, cheio de excitação.
— Já não quero mais vingança. — Disse. — É outra coisa o que quero.


Virginia estava esgotada. A carruagem parou diante da casa e ela estava tão cansada que ficou ali, observando as colunas brancas do alpendre. Pelo menos Devlin não estava entre os mortos. Mas agora era prisioneiro. Prisioneiro de sua própria gente.
Tillie lhe deu uma palmada no braço.
— Enviaremos uma carta ao Almirante Cockburn em seguida. Você é esposa do Capitão. O Almirante tem que dizer como e onde ele está. — Ela disse com firmeza.
Os olhos de Virginia se encheram de lágrimas.
— Ele estava me protegendo. Devlin matou aqueles soldados só para me proteger. Se eu disser isto ao Almirante, sem dúvida ele o soltará.
— Primeiro temos que escrever para ele. — Disse Tillie. E de repente ficou rígida.
Virginia advertiu sua surpresa e se voltou para a casa. E ali, em pé no alpendre, ela teve a visão mais bela que já havia visto. Gritou incapaz de se mover, enquanto Devlin descia os degraus do alpendre com o olhar fixo nela.
— Devlin… — Virginia conseguiu dizer, cheia de alegria.
Ele se aproximou da carruagem e tomou suas mãos. Seu rosto estava marcado pela emoção.
— Graças a Deus, você está bem. — Ele sussurrou, com voz rouca.
Virginia não conseguia falar. Estava tomada pelo assombro, pois nos olhos de Devlin lágrimas brilhavam também. Ele sorriu um pouco e tocou sua face.
— Nunca tinha passado tanto medo, como quando encontrei Frank na cidade e ele me disse que você estava lá, Virginia — Devlin não pôde continuar, pois sua voz não mais saia.
Abismada, Virginia observava lágrimas que desciam por sua face.
— Você está chorando! — Ela sussurrou.
Ele assentiu, incapaz de falar. As lágrimas continuavam descendo pelo rosto queimado de sol quando ele abriu a portinhola da carruagem, pegou Virginia nos braços e a depositou no chão. Depois, apertou-a com força contra o corpo alto e poderoso.
— Você quase morreu, Virginia. Foi minha culpa. Por causa de minha maldita sede de vingança, ontem esteve perto de morrer em Hampton. Tudo o que sofreu foi por mim. Sinto muito. Sinto muito. Mas não basta uma simples desculpa.
Ela acariciou a face úmida.
— Não me arrependo de nada do que compartilhamos, Devlin. — E era certo. Amava-o tanto que guardava como um tesouro cada lembrança, tanto os bons como os maus ou os doces e os amargos momentos.
Ele sacudiu a cabeça.
— Nós dois sabemos o quanto você é generosa, e que não mereço sua bondade. — Devlin vacilou e Virginia tremeu sob suas mãos. — Quando vi o soldado te atacar fiquei louco de raiva. Estava disposto a matar qualquer casaca vermelha que ficasse em meu caminho. Nunca havia ficado tão cego de raiva… Exceto quando Tom Hughes te assaltou no baile. Senti o mesmo desejo de matar… Porque te amo, Virginia. — Ele confessou.
Ela ficou calada. Seu coração pulsava com tanta força que seu corpo tremia violentamente.
— Você me ama? — Ela perguntou e mesmo aturdida, a felicidade começou a se apoderar dela.
Ele assentiu com um gesto de cabeça, sorrindo por entre lágrimas.
— Na verdade, eu a amo há muito tempo, quase desde o começo, desde a primeira vez que a vi. Mas, tinha muito medo, Virginia… Eu tinha muito medo de você. Temia escolher o amor e a felicidade, porque só conhecia a vingança e o ódio.
— E agora? — Ela conseguiu perguntar, maravilhada.
— Ainda tenho medo, mas a dor da nossa separação tem me sido insuportável. Não posso ficar mais longe de você. — Ele confessou com simplicidade. — Você pode me ensinar a viver com alegria, Virginia? Pode me ensinar a amar?
Virginia não saía de seu assombro.
— Posso te ensinar todas essas coisas, Devlin. — Ela murmurou. — Isso significa… O que Penso? — Dava-lhe medo abrigar esperanças.
Ele assentiu gravemente e outra lágrima rolou por sua face.
— Você me pediu que escolhesse e eu escolhi errado. Agora sei. Assim escolherei você e nosso filho, Virginia.
Virginia soluçou e Devlin a abraçou com força durante um longo momento. Quando voltou a falar, sua voz soou como um rouco sussurro.
— Acabou, Virginia. Entreguei a escritura de Waverly Hall Hughes a Hughes. Tudo acabou, meu amor. — Virginia chorava contra seu peito, mas lágrimas de alegria e felicidade. — Pensei em pedir seu perdão. — Disse ele. — Não lhe pedirei, porque não o mereço, mas farei tudo que me pedir, embora nada possa te compensar pelo que aconteceu. — Ele a fitou e seus olhos se encontraram. Os de Devlin cintilavam cheios de amor, mas também de medo. — Retornará a mim, como minha esposa?
Ela sorriu e lhe acariciou o rosto.
— No fundo eu nunca te deixei, Devlin. Meu coração é teu desde os primeiros dias, quando me tornou prisioneira e me levou para o Desafio.
Ele vacilou.
— Eu a amo, Virginia. Sei que não posso viver sem você. Agora eu sei.
Ela se sentia feliz.
— Já o perdoei, Devlin. Não posso te culpar por escolher uma vida de ódio e vingança, depois do que aconteceu com seu pai.
Ele assentiu com a cabeça.
— É hora de deixar Gerald descansar em paz. E eu também quero paz, Virginia. Necessito de paz, tanto quanto necessito de você.
Virginia sorriu, cheia de alegria.
— Então, começaremos novamente?
— Sim, — Disse ele com suavidade, e beijou meigamente suas mãos. Logo a fitou atentamente e disse: — Renunciei ao meu posto.
Virginia ficou boquiaberta. Devlin sorriu lentamente e depois respirou fundo. Ambos contemplaram a bela casa de tijolo e os campos que se estendiam alem.
— Sweet Briar tem um bom aspecto — Ele disse com calma enquanto passeava o olhar pelos campos verdes. Logo baixou o olhar para ela e segurou sua mão. Seu sorriso era morno, doce. — Acredito que deveríamos dividir nosso tempo. A metade do ano aqui e a outra metade em Askeaton.
— Você passaria a metade do ano aqui? — Ela perguntou surpresa.
— Você gostaria que assim fosse, meu amor? — O sorriso de Devlin se tornou mais amplo.
— Muito. — Ela sussurrou. Sabia que com Devlin ao seu lado, Sweet Briar voltaria a ser um lugar próspero. Fiscalizariam os campos de tabaco e encheriam a casa crianças. Mas ela também amava Askeaton, pois durante os muitos meses que tinha passado ali como refém dele havia chegado a considerar a casa como seu lar. Logo, os escuros e antigos salões de Askeaton estariam cheios de amor e de risos. Com o coração palpitando de emoção ela apertou a mão de Devlin.
— Sou muito feliz.
— Então eu também sou. — Ele a tomou nos braços e beijou sua fronte com ternura. — Senti sua falta, Virginia. Daqui em diante satisfarei todos os seus desejos.
Virginia começou a sorrir.
— Isso eu duvido. Não sei por que… Capitão.
— Estou falando sério — Ele replicou com tal ardor que Virginia alargou o sorriso.
— Então desejo que entre, para que eu possa te apresentar a todos como meu marido.
Ele fez uma reverência e lhe lançou um olhar sedutor, que não deixou dúvida a respeito do que desejava fazer… E o quanto antes.
— Depois de você, meu amor.
Ela pegou sua mão e o novo Senhor de Sweet Briar e sua esposa entraram na casa, sorrindo.
Finalmente o futuro lhes sorria, luminoso e radiante.
Virginia mal podia esperar.

 

 

                                                   Brenda Joyce         

 

 

 

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