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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O RIO DE JANEIRO EM 1877 / Artur Azevedo
O RIO DE JANEIRO EM 1877 / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

Comédia de costumes populares, satírica e burlesca de espetáculo, jornada de couplets e coros, visualidades, transformações, em 3 atos, um prólogo e 18 quadros, pelos Senhores Artur Azevedo e Lino d’Assunção. 
PERSONAGENS DO PRÓLOGO: A POLÍTICA  A ILUSTRÍSSIMA  O BOATO  BEDEL  O CITY IMPROVEMENTS  O CORTIÇO  O CAPOEIRA  O BERIBÉRI  O VEÍCULO  O ENGRAXATE  O CARCAMANO  A FEBRE AMARELA  A INUNDAÇÃO  A SECA  A MORTE  UM MÉDICO  A SUBSCRIÇÃO  A CONFERÊNCIA  O POETA  O ANJO DA HUMANIDADE  FÉ ESPERANÇA CARIDADE 
PERSONAGENS DA COMÉDIA: OPINIÃO  UM ESPECTADOR 
(Personagens mudos)
ZÉ POVINHO O BOATO  UM URBANO  A POLÍTICA  CAPOEIRA  CORREIO  COCHEIRO-VEÍCULO  O ANJO DA HUMANIDADE  PRIMEIRO DIRETOR  UM CAIXEIRO  UM TABERNEIRO  MAJOR  TUBO  PROFESSOR PÚBLICO  PRIMEIRO DA CIA. DE CONSUMO  ANÚNCIO  DONDON  UMA SENHORA  UM PADRE  UM MÉDICO  UM HOMEM GORDO OUTRO MAGRO  UM SÓCIO  UM BURRO  CARTOMANTE  SANTINHA  HOMEM DA PERA  PRIMEIRO AMIGO  CRIADO DE GENERAL  PRIMEIRO POETA  SEGUNDO POETA  PRIMEIRO REPÓRTER  SEGUNDO REPÓRTER  ORADOR  PRIMEIRO ADMIRADOR  SEGUNDO ADMIRADOR  GARDEN 
VILA BELA  UM POPULAR  DENTISTA  CACABANA  GLOBO  JORNAL DO COMÉRCIO  DIÁRIO DO RIO  GAZETA  DIÁRIO POPULAR  REFORMA  JORNAL DA TARDE  O SENHOR FILIPE  O TELEFONE  UM SUJEITO  UM CONSERVADOR  O CANAL DO MANGUE  PRIMEIRO GATUNO  UM MOLEQUE  PETIZES 10  JORNAL DO COMÉRCIO E TODOS OS JORNAIS  EMPREGADOS DA ALFÂNDEGA  MASCARADOS  VELHOS  RAPAZES  CRIANÇAS  COMISSÃO DE SENHORAS VENDEDORES  POVO  EMBUÇADOS  GUARDA NACIONAL  TEATRO SÃO PEDRO  IMPERIAL  TEATRO DOM PEDRO II  SÃO LUIS  CASSINO  FÊNIX  GINÁSIO 
CIRCO DE CAVALHINHOS  VARIETÉS ARTE  TOUREIRO  SPETRINI e BLONDINI TONY e BOBE  NOTA DE DUZENTOS MIL-RÉIS UM URBANO Dois esgrimadores, um deles padre.

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PRÓLOGO (GRUTA SOMBRIA)
 
CENA I 
 
BEDEL (espanejando algumas pedras soltas que se acham espalhadas pela cena)    COPLA
 
Vós, que tendes, meus senhores,  bem formadas, boas almas,  aos atores e autores  batei palmas, batei palmas.  De que nos dei uma vaia  livre-nos Deus e o canhoto,  mas pra que a peça não caia,  basta cair-vos no goto. 
 
Hão de convir que é muito original esta ideia de encaixar o couplet final no princípio: mas, como tenho os meus pressentimentos de que o ano de 1877, que principia amanhã, há de andar tudo às avessas, assim faço. De mais, é mau costume pedir palmas no fim da peça; a gente as deve pedir no princípio, antes que o público saiba o que vai ver. O sujeito que vai empenhar-se com o examinador para que lhe aprove o filho plenamente na Instrução Pública, fá-lo sempre antes do exame. Que diabo. O pequeno pode
(Personagens mudos)
 
sair-se mal e então o pedido não tinha pés nem cabeça. (Escarra, tosse, assoa-se) O teatro representa uma gruta agreste em um país inteiramente desconhecido. Nesta gruta é que se costumam reunir, no dia 31 de dezembro, as calamidades brasileiras, a fim de darem conta dos seus trabalhos durante o ano, e predisporem-se para o vindouro. Cena I: Apareço em Bedel e digo: — Agora é que começa a revista. (Põe-se de novo a espanar, noutro tom) Felizmente está terminado o meu serviço. Não tardam aí as calamidades brasileiras. Encontrarão tudo limpo. (Música) Sinto passo, são elas.   
 
CENA II  O mesmo, a política, a febre amarela, ilustríssima, a seca, a inundação, City Improvements, o boato, a capoeira, a subscrição, o beribéri, o cortiço, a conferência, o veículo, o engraxate, o carcamano, o poeta, a morte de braço dado com o médico.
 
CORO Calamidades, ei-las por cá: pestes, moléstias, tudo aqui há. O fim do ano por cá nos traz. Somos, senhores, só coisas más.
 
(A Política senta-se numa pedra mais elevada, ao fundo) 
 
POLÍTICA (ao Bedel)  Não falta ninguém? 
 
BEDEL Não, ao que parece. 
 
POLÍTICA Mas como não gosto de dúvidas, eu, a Política, a principal das calamidades brasileiras, que amo e dirijo todas as outras, ordeno procedas à chamada geral. 
 
BEDEL É já. (Abrindo um livro que tira de trás duma pedra) — Política? 
 
POLÍTICA Presente. 
 
BEDEL A Fome? (Depois de pausa) Não veio! Está jantando talvez. — Febre Amarela? 
 
A FEBRE Presente. (Vem à boca da cena)  Eu não tenho cor Política,  pesar de ser Amarela:  não escolho as minhas vítimas,  ataco a esta e àquela. 
 
BEDEL A Junta da Higiene? (Silêncio) Também não veio. Quer-me parecer que está ocupada com algum parecer. — A Ilustríssima? 
 
ILUSTRÍSSIMA Cá estou (Vem à boca de cena)  Eu amo o povo, senhores,  e as comunidades suas,  mandando calçar as ruas  em que moram vereadores. 
 
BEDEL A Seca? 
 
A SECA Pronto. (Acompanhada de seus horrores)  Quando aos homens faço guerra,  andam desgraças aos molhos,  Secam-se as fontes da Terra,  abrem-se as fontes dos olhos. 
 
BEDEL A Inundação? 
 
INUNDAÇÃO Presente. (O mesmo)  São horrorosos meus feitos.  Ai! que tragédias! que dramas!  os rios saltam dos leitos  e os homens saltam das camas. 
 
BEDEL A City Improvements? 
 
CITY Presente. (O mesmo. Todos tapam os narizes)  Eu cá não sou de modéstias,  do que as primeiras sou mais.  Sou mãe de muitas moléstias  e filhas doutras que tais. 
 
BEDEL O Boato? 
 
BOATO Minio!... Quero dizer, presente!  (Vem à boca de cena e canta em falsete)  Vocês me conhecem? Qual!  Sou o Boato, a mofina;  Tenho mil nomes: verrina,  apedido e etecetra e tal! 
 
BEDEL O Capoeira? 
 
CAPOEIRA Rente! (Ameaça cabeçada noutros personagens)  Eu sou Capoeira  não me assustam, não!  Passo uma rasteira,  tudo vai ao chão.  Puxo uma navalha,  sei desafiar.  Se isto trabalha (Puxa a navalha)  é aí que pinto o sete.  Mato dezessete,  guardo o canivete  e vou descansar. 
 
BEDEL A Subscrição? 
 
SUBSCRIÇÃO Eis-me aqui.  Eu sou a Subscrição,  mas sem a caridade benfazeja,  a grande amolação  que tão somente almeja  a condecoração! 
 
BEDEL A Conferência?  Conferência (Sibiliando os ss)  A última expressão sou da oratória,  tenho feito o diabo a quatro,  já desertei da glória  e ando agora no teatro,  mas é pior e mais pândega  A Conferência da Alfândega. 
 
BEDEL O Veículo? 
 
VEÍCULO Não estou atrasado. 
 
BEDEL Então chegue-se. 
 
VEÍCULO Eu sou o bonde, a carroça,  a andorinha, a diligência  pra dar cabo da existência  dos desgraçados mortais.  Ora acreditais que eu não possa.  que eu não possa.  do que hei feito.  do que hei feito fazer mais. 
 
BEDEL Beribéri? 
 
BERIBÉRI Eis-me!  Eu sou o Beribéri e, como Otelo,  nasci lá nos desertos africanos,  nasci para flagelo dos humanos,  e as mais moléstias meto num chinelo. 
 
Naturalizei-me brasileiro e firmei a minha residência na terra de Gonçalves Dias. Gosto muito do Nordeste, e decididamente não saio de lá. Ainda não passei da Bahia. Não faço casa da corte. 
 
BOATO Isto é, não fazes casos na Corte. 
 
BEDEL O Cortiço? O Engraxate? O Carcamano? O Poeta, a Morte e o Médico? 
 
A MORTE Eu sou a Morte, a mor calamidade. 
 
MÉDICO Juro à fé do meu grau que sou doutor. 
 
AMBOS (abraçando-se e beijando-se) Temo-nos muita amizade, juramos constante amor! 
 
BEDEL Está pronta a chamada. 
 
POLÍTICA Agora que todos estão presentes, podeis falar. 
 
(Todos falam ao mesmo tempo, Bedel agita a campainha) 
 
BOATO À ordem! À ordem! Isto não é república! 
 
POLÍTICA Atenção! (Silêncio) Digníssimas calamidades, é sempre com o mais vivo prazer que ergo neste recinto a minha não autorizada voz. 
 
BOATO (à parte)  Não apoiado. 
 
POLÍTICA (continuando)  Neste momento solene em que ides prestar contas dos vossos trabalhos, espero de vosso zelo e nunca desmentida perversidade, que as referidas contas não sejam contas de grão-capitão, o que não é de esperar da vossa reconhecida atividade! A boa vontade que vos caracteriza dá azo a que eu faça de antemão o melhor conceito de vossas diligências. Está aberta a sessão... 
 
FEBRE AMARELA Peço a palavra. 
 
POLÍTICA Tem a palavra a Febre Amarela. 
 
BOATO (à parte)  Logo vi que era a primeira a falar!... Esta senhora tem raízes no país, por isso lhe concedem a primazia. 
 
POLÍTICA (abraçando a Febre) Fale, cara amiga. 
 
FEBRE Para bem poderes julgar os meus feitos deste ano, basta perceberes a verdadeira estima que me consagra este cavalheiro. (Indica a direita) e todos os seus colegas. Pretendo continuar com a mesma atividade em 1877, se a tanto me ajudar a empresa Gari... 
 
ILUSTRÍSSIMA Se a nobre amiga que me precedeu na tribuna... 
 
BOATO Tribuna é flor de... retórica. 
 
ILUSTRÍSSIMA  ...conseguiu fazer alguma coisa de merecer a pena. Se foram devidos a esforços meus, e da nobre Junta da Higiene... 
 
BOATO Junta que nunca está junta da Higiene... 
 
ILUSTRÍSSIMA Em todo o caso, em 1877 redobrarão as nossas vigilâncias em que pese ao famigerado Cai... 
 
POLÍTICA (com o gesto)  ...pira... para esquerda, basta!! Tem a palavra a Inundação. 
 
INUNDAÇÃO Venho de Portugal, tenho feito por lá alguma coisa pela vida, ou pela Morte. Torno de novo à terra de Camões. Não está cumprida a minha missão naquele reino. 
 
SUBSCRIÇÃO Vá, que eu fico cá para maior flagelo. 
 
BOATO Não tem nada... É viagem que ferve... Ela é viagem na França, agora vai a Portugal... e está aqui na América. Chama-se a isto correr as sete partidas do mundo... és uma Inundação de viagens. 
 
POLÍTICA Tem a palavra... 
 
BOATO Peço a dita. 
 
POLÍTICA Tem a palavra. 
 
BOATO É preciso que 1877 já nos encontre a postos, está prestes a soar a meia-noite. Portanto, peço que passemos à ordem da noite. 
 
POLÍTICA Está bem! Ponhamo-nos de novo a caminho. Tu, Febre, não perca os teus créditos que possuis na Europa. Mata a torto e a direito, e sobretudo agarra-te aos trinta botões. O Ilustríssima, continua a não mandar calçar as ruas e a contratar empreiteiros, a gente de trabalho que faça muito e ganhe pouco. Ó Inundação, faze o que puderes. Boato ataca-lhes as reputações e penetra no íntimo da família para levar-lhes o desespero e a vergonha. 
 
BOATO (tirando dois lenços da algibeira, representando o Desespero e a Vergonha)  Eles cá estão. O Desespero e a Vergonha. 
 
POLÍTICA Ó Capoeira, faze as tuas eternas tropelias, não te amedronte o termo de bem viver, nem que te assentem praça na Armada! Tu, Conferência, amola o próximo! Veículo, continua tua sociedade com os Médicos. (O Médico aperta a mão ao Veículo) Ó Médico, ceifa... Ó Beribéri ceifa... Ó Morte ceifa... Cumpri todos o vosso dever. Ó Seca! A ti está reservado o mais importante papel entre as calamidades que hão de afligir a Nação Brasileira em 1877. Há bom número de anos que não pões em prática o teu valor. Vai agora e tira o ventre de miséria. Escolhe para sede de teu domínio uma província próspera e feliz. 
 
BOATO Goiás, por exemplo. 
 
POLÍTICA O Ceará! Ide, meus irmãos, trabalhai pela Santa causa da desumanidade; quanto a mim hei de contribuir com o que estiver ao meu alcance para a desgraça pública e particular. Ide. 
 
TODOS  Vamos. 
 
 
CENA III  Os mesmos, o anjo da humanidade acompanhado de fé, esperança e caridade.    ANJO Ainda não. 
 
TODOS  O Anjo da Humanidade! 
 
BOATO A estas horas! Quase se pode dizer: é o Bom Anjo da meia-noite. 
 
ANJO (harmonias)  Ó Política, não te iludas,  O Anjo sou da Humanidade,  ao lado estou das três virtudes,  Fé, Esperança e Caridade. 
 
BOATO (à parte)  Isto é um drama do São Luis. 
 
ANJO Querem lutar? Pois bem... lutemos,  eu pelo bem, vós pelo mal.  Parti, partamos, e veremos quem suplantar há de afinal. 
 
POLÍTICA Derrubemos essas virtudes malditas. 
 
TODOS  Guerra... Guerra. (Ameaças de todos os personagens, exceto Boato, que fica de parte) 
 
ANJO Para trás. (Subjugam-se os personagens. Forte na orquestra) 
 
 
ATO I
 
QUADRO II
 
CENA I  Depois da sinfonia, um Espectador, que está num camarote dirige-se ao público naturalmente).
 
ESPECTADOR Parece-me que, desta vez, temos coisa nova. Antes de vir para aqui, tinha dito a um dos meus amigos que creio deve estar aí na plateia: Palpita-me que vou ter uma imitação francesa parecida com a da Madame Angu ou uma tradução, como a da Mulher do Saltimbanco, mais ou menos apropriadas aos acontecimentos passados: mas julgo que me enganei. Errare humanum est. Ainda que me custe a engolir como genuinamente original, aquela esperteza de começar a peça pelo couplet final. Enfim, nihil sub sole novum. Uma das coisas que nunca falham numa revista francesa é o Monsieur du parterre, sujeito que finge ser do público, que fala como por acaso... Bem acredito eu nos tais casos... e que, no fim de contas, não passa de um ator com mais ou menos espírito. Felizmente nesta peça parece-me que estamos livres dele... do ator se entende... porque o espírito é de crer que o haja por atacado e a varejo, apesar da peça não ser do Varejão. Sem querer, falei demais... Não vão agora os senhores pensar que faço parte da peça! Deus me livre, que meu pai não me educou para cômico. Vamos ver o que sai por detrás daquele pano. 
 
(Sobe o pano. Praça, gafanhotos, vaga-lumes, Gatunos, Moleques, Policiais)   
 
CENA II  Gafanhotos e depois (Ilegível)
 
 
CENA III  1º, 2º Gatuno e Zé Povinho.
 
PRIMEIRO GATUNO (deixando cair uma carta no chão)  Lá vai a isca. 
 
SEGUNDO GATUNO (agarra a carta na ocasião em que o 1º vai também para lhe pegar, ficando o 2º com ela)  Largue, que é minha. 
 
PRIMEIRO GATUNO Não há tal! Esta carta caiu-me da algibeira. 
 
ZÉ (que tem visto)  Caiu, que eu vi. 
 
SEGUNDO GATUNO O senhor está combinado com ele! 
 
ZÉ Combinado vá ele. Veja se quer exprimentar a peroba. (Ameaça-o) 
 
SEGUNDO GATUNO A carta é minha, e a prova é que tem dentro uma trancinha. 
 
PRIMEIRO GATUNO A carta caiu-me da algibeira, e não tem nada dentro. 
 
SEGUNDO GATUNO Aposto em como tem uma trancinha. 
 
ZÉ Aposto também eu! Aqui está dinheiro! 
 
PRIMEIRO GATUNO Também eu aposto. Vamos, feito! 
 
ZÉ Quanto vale a aposta? 
 
SEGUNDO GATUNO Duzentos bicos... 
 
ZÉ Case. Os meus aqui estão. Vão para a mão deste cavalheiro. 
 
PRIMEIRO GATUNO Abra a carta. 
 
SEGUNDO GATUNO (abrindo a carta e mostrando uma trancinha)  Ganhei. 
 
PRIMEIRO GATUNO (para Zé Povinho)  Perdemos. 
 
(Os Gatunos saem) 
 
CENA IV  Zé Povinho só; depois Boato, vestido de urbano; Nota de Duzentos Mil Réis que nada fala. 
 
ZÉ (meio atordoado)  Perdemos. É singular este plural. Devia ter dito ganhamos, e perdeu! Querem ver que fui embarrilado? Creio que sim. Pelo sim, pelo não, vou queixar-me à Polícia. (Entra o Boato) Ó camarada. (Boato não responde) Ó seu guita! (O mesmo) Vai a dormir. (Chega-se e grita-lhe no ouvido. O urbano desperta, puxa da espada e põe-se a gritar) 
 
BOATO (com volubilidade)  O que é isso? O que é que é? O que há? Quem foi o ladrão? Onde é o fogo? Onde está a carroça? Que número tinha o bonde? Quantas facadas deu ele? 
 
ZÉ Uma só... mas foi taluda. 
 
BOATO Onde? 
 
ZÉ Aqui. (Mostra o bolso) Duzentos mil réis, Por sinal foi uma nota... 
 
BOATO Uma nota de duzentos. 
 
(Passa uma nota perseguida por um urbano) 
 
ZÉ Olhe, exatamente como aquela!! 
 
BOATO Como aquela? 
 
ZÉ Tal e qual. 
 
(A nota faz negaças ao urbano até sair) 
 
BOATO Mas aquela é uma nota falsa! Você parece-me passador de moeda falsa. Venha à presença da autoridade. Está preso em flagrante de delito! Hum... amanhã dirão os jornais: “graças ao zelo da Polícia, foi preso um dos passadores de notas falsas. A Autoridade segue o rasto de vasta conspiração”. 
 
ZÉ Qual conspiração nem qual carapuças. Conspirando está você contra o meu sistema nervoso. O que me parece é que você está a dormir! 
 
BOATO Insultos! Oh! que parte! 
 
ZÉ Você quer tomar o peso ao cacete. 
 
BOATO Ameaças! Oh! que parte! 
 
ZÉ (levantando a bengala)  E se não se safa... 
 
BOATO (apita) 
 
Vias de fato! Oh! que parte! 
 
 
CENA V  Os mesmos e Política.
 
POLÍTICA Para. 
 
BOATO Manda quem pode. 
 
POLÍTICA O que foi isto? 
 
BOATO Tomei este uniforme de urbano, e acabo de prender um passador de moeda falsa, visto que não podemos agarrar mais nenhum. Agarramos um, prendemo-lo, processamo-lo, levamo-lo ao júri, absolvemo-lo, apelamos, processamo-lo de novo, levamo-lo de novo ao tribunal, condenamo-lo, mas damos-lhe tempo para deitar sebo nas canelas. (Baixo) Mas... esse... coitado... não passou: foi passado 
 
POLÍTICA Nesse caso, retira-te... 
 
BOATO Para onde? 
 
POLÍTICA Vai vestir-te à paisana e assistir às sessões da Câmara. 
 
BOATO Lá vou... lá vou... (Vendo entrar o Capoeira) E vou em boa Companhia. 
 
 
 
CENA VI  Os mesmos e Capoeira.
 
ZÉ (fugindo para o regulador) Ai mau! Ai mau! 
 
CAPOEIRA Vamos à Câmara? 
 
BOATO Eu vou para lá: vem comigo. (Enlaçam-se) Trazes a navalha? 
 
CAPOEIRA Trago. Vamos. É mais perto ir pela estrada do... (Indica à esquerda) 
 
BOATO  ...do que ir pela travessa. 
 
(Saem)   
 
CENA VII  Zé Povinho e Política.
  ZÉ (rolando o chapéu nas mãos)  Eu faltaria ao mais sagrado de todos os deveres se não lhe agradecesse... 
 
POLÍTICA Nada tem que me agradecer. Somos conhecidos velhos. 
 
ZÉ Vossa mercê já andou pela Província? 
 
POLÍTICA Eu ando em toda a parte. 
 
ZÉ Mas nunca tive o gosto de a encontrar! 
 
POLÍTICA Olá! Se tiveste! Sou a Política! 
 
ZÉ Qual! 
 
POLÍTICA Duvidas? 
 
ZÉ Que esperança! Pois se sou uma vítima de tal víbora! Ainda nas últimas eleições, ela me fez gastar bons cobres! E afinal de contas o Sérgio pulou fora como um catita! Foi repelido à correia! Não o quiseram lá! Fora mais fácil meter um prado na Câmara, e não meteram, apesar de vir por obra e graça do Espírito Santo. Mas, apesar disso tudo, em se falando de eleições, sou outro homem; é defeito que me está na massa do sangue. Apesar da Política lá na terra ser velha e feia como o demônio. Você ao menos é toda chique, toda boa, pra não dizer mesmo toda coxa. A coisa por cá parece que rende. 
 
POLÍTICA Qual! Vão-se acabando os privilégios. Já estão inventados todos os melhoramentos. 
 
ZÉ Já eu tenho ouvido falar nisso. Isto por cá vai de vento em popa. É Empresa de Esgotos, Carris de Copacabana. 
 
POLÍTICA Isso anda meio entruviscado. Botanical que dividir a Copacabana; quer ficar com a copa e deixar a cabana aos outros. 
 
ZÉ Quem ocupa a copa esquipa sob a melhor capa! No copus hic labor est. 
 
POLÍTICA Faço como Pilatos, que era homem asseado, e lavava as mãos mesmo quando estavam limpas... 
 
ZÉ As mãos da Política não podem estar muito limpas... Oh! Mas vossemecê traz luvas... e que as não trouxesse! Tinha água da Empresa do Anjo Gabriel... É verdade que a tal água pode untar as suas mãozinhas, em vez de limpá-las... Mas posso saber quem é esse sujeito de quem me livrou? 
 
POLÍTICA É um dos meus mais fiéis aliados: é o Boato. 
 
ZÉ O Boato? 
 
POLÍTICA O “consta-nos”, o “diz-se”, o “ouvi dizer”, o “somos informados com toda a reserva”. Uma espécie de calúnia de Beaumarchais... 
 
ZÉ E você tem conhecimento com sujeito dessa ordem? Que ordem de sujeito! Está sujeito a ser chamado à ordem! 
 
POLÍTICA Está bem: deixa-te de trocadilhos e anda daí a ver a cidade do meu afeto. 
 
ZÉ Aceito. Mas receio que minha mulher, Opinião, vendo-me com vossemecê, faça uma cena dos diabos. 
 
POLÍTICA Acharei artes para livrarmos dela. É ciumenta? 
 
ZÉ Uma víbora! 
 
POLÍTICA E como é que não está contigo? 
 
ZÉ Ficamos de nos encontrar em Botafogo; mas, para aproveitar alguns momentos livre dela, ensinei-lhe o bonde de Vila Isabel. 
 
POLÍTICA Pois amanhã o meu fiel Boato te livrará dela. 
 
ZÉ Mas nada de intrigas. 
 
POLÍTICA Sossega; não há ninguém como a Política para guardar as conveniências. 
 
ZÉ E se todo em todo me não pode livrar dela? 
 
POLÍTICA Quem não pode, trapaceia... 
 
ZÉ Pois também a Política? 
 
POLÍTICA Vem daí, ingênuo e primitivo caboclo. 
 
(Passam ao fundo dois personagens esgrimindo-se com penas de pato. Um deve ser Padre) 
 
ZÉ O que vão fazendo aqueles dois indivíduos? 
 
POLÍTICA São dois amigos meus que estão tratando da Questão religiosa. 
 
ZÉ Pois ainda isso dura? 
 
POLÍTICA E durará. (Vai ao fundo e aperta a mão dos esgrimadores) 
 
ZÉ O que foi vossemecê lá fazer? 
 
POLÍTICA Estavam um pouco cansados; fui lhes dar novas forças. Vamos! 
 
(Saem)   
 
CENA VIII  Opinião, só.
 
OPINIÃO Ora, uma destas só a mim acontece! Ah! que se o encontro dou-lhe Uma sova de o deixar em lençóis de vinho. Larga-se um homem e mais a sua mulher lá dessas terras por onde Cristo nunca andou, para vir à corte opor-se ao concurso de abastecimento de carne verde à capital, sai-lhe pela proa um Berlinch e adeus minhas encomendas! Há de dar bons burros ao dízimo! A sua carne verde faz Febre Amarela! Ao menos há patriotismo nas cores! E o tratante do Zé Povinho mal aqui se apanha, foi uma vez! É capaz de andar rendendo preitos aberta... mente às francesas, e à ida para casa com este sistema, há de ser bonita... Se o apanho...   
 
CENA IX  A mesma, o Boato, à paisana.
 
OPINIÃO (vai sair e encontra-se com Boato)  Vai cego? 
 
BOATO Irribus! Pisou-me o melhor calo! 
 
OPINIÃO Para outra vez, veja por onde pisa. 
 
BOATO O que quer? Venho atordoado com o que me contaram. 
 
OPINIÃO O que foi? 
 
BOATO Dizem que um pobre homem, não vi, mas ouvi dizer a pessoa de confiança, tendo-se perdido esta manhã da mulher... 
 
OPINIÃO O que faz? Valha-me Deus! Mas o marido também se perdeu de mim! 
 
BOATO Da senhora? 
 
OPINIÃO De mim, sim; já lhe disse tim-tim por tim-tim. 
 
BOATO Pare lá com o sino! Enfim! E como se chamava ele? 
 
OPINIÃO Zé Povinho. 
 
BOATO É o mesmo. 
 
OPINIÃO Mas o que lhe aconteceu? Ah! Conte! Céus! Diga! Estou num desespero incrível! 
 
BOATO Pois, minha boa e pobre senhora... 
 
OPINIÃO Estou viúva? 
 
BOATO  Provisoriamente! 
 
OPINIÃO Explique-se ou o agatanho! 
 
BOATO Seu marido, consta fez as malas e sem amá-la... pôs-se a panos mal a mala. (Sai) 
 
 
CENA X  Opinião e Espectador.
 
OPINIÃO Mas isto é horrível! Abandonar-me no meio duma cidade desconhecida em risco de ser cantada... em alguma “ocorrência da rua”. Em verdade, se fora segunda feira: e em prosa, se for a semana. Isto é ignóbil. 
 
ESPECTADOR É muito mais do que a senhora julga! 
 
OPINIÃO É por que terá outra amante? 
 
ESPECTADOR Tem, e a pior de todas... 
 
OPINIÃO Diga-me quem é, porque quero esganá-la! 
 
ESPECTADOR Não fazia nada demais, porque ela tem esmagado a muita gente. 
 
OPINIÃO Quem é ela? 
 
ESPECTADOR A Política; 
 
OPINIÃO Ai, que mulher sem-vergonha. Hei de desmascará-la. 
 
ESPECTADOR Olhe que veio a propósito atrás dele! O seu Zé Povinho estava sossegado, como a linda Inês! 
 
OPINIÃO Então ele não partiu? 
 
ESPECTADOR Qual! A senhora foi vítima da seca... Ai, da seca. Oh! Perdão! Vítima do logro. 
 
OPINIÃO É do que vive aquela sujeita, é de lograr todo o mundo! 
 
ESPECTADOR Se a senhora quer, eu acompanho, até encontrar o homem. 
 
OPINIÃO Com todo o gosto 
 
DUETO Lá vou, lá vou, lá vou sinhá. pois sim, pois sim, pois sim, venha cá.
 
(À parte)  É bem simpático este moço! Parece-me com a Vale, do Teatro São Luiz. Vou enciumar o pérfido e assim que lhe deitar as unhas, deitolhe as ditas e dentes, e ponho-lhe as malas à costas e marcho para Goiás, que é terra de progresso, onde há um cabriolé ganho com o suor do rosto. 
 
(O Espectador desce para o palco) 
 
ESPECTADOR Pronto. 
 
OPINIÃO Principiemos a exploração. (Derretida) Não? 
 
ESPECTADOR Está dito então. 
 
OPINIÃO Onde vamos? 
 
ESPECTADOR Ver a inauguração do plano inclinado para Santa Teresa! 
 
OPINIÃO Plano inclinado? Nunca ouvi falar nisso, senão a respeito das nossas finanças. 
 
ESPECTADOR Essas estão em muito bom pé... Agora em boa mão é que não sei... Ouvi falar aí numa história de dez mil contos, que é um verdadeiro romance. 
 
OPINIÃO Mas então o que é o plano? 
 
ESPECTADOR Venha, e depois lho explicarei. 
 
OPINIÃO Por onde? 
 
ESPECTADOR Metemo-nos no bonde aqui no largo. 
 
 
QUADRO III
 
CENA XI  Espectador e Opinião.
 
(Vista do plano inclinado de Santa Teresa. Coro de inauguração de gente do povo) 
 
OPINIÃO (abanando-se)  Ai tanta gente e o Senhor Zé Povinho nem pintado o vejo. Ai! O que é que vem ali? Nunca vi animal semelhante. 
 
ESPECTADOR Vem aqui por causa de sê-lo.   
 
CENA XII  Os mesmos e o Correio, montado numa tartaruga.
 
(Correio é cercado e cumprimentado por todos os jornais) 
 
OPINIÃO (à parte)  Ele anda tão devagar... (Ao Espectador) Pois o Senhor Diretor é bem ativo e inteligente. 
 
ESPECTADOR Assim é que é o Correio geral! Mais moroso que aquilo só o Telégrafo. 
 
CORREIO Agradeço a pontualidade. Vim um pouco mais tarde, porque tive de fechar a mala para Chapéu de Uvas. Espero que haveis de ficar contente com a convenção de Berne. 
 
TODOS  O quê? 
 
CORREIO Quero dizer que haveis de ficar satisfeitos com o plano, e eu, por meu lado, não hei de ficar no primeiro plano. 
 
ESPECTADOR Não falo da carta; refiro-me ao plano. 
 
CORREIO Desde que se aperte o freio do novo sistema, já não há perigo que as cartas sejam violadas; 
 
ESPECTADOR Mas a que inviolabilidade se refere? 
 
CORREIO À da vida dos que subirem o plano. Já dei ordem para serem carimbados... 
 
TODOS  Carimbados? 
 
CORREIO Todos os bilhetes. Por estas e outras mereço todo o elogio. Na qualidade de Correio Geral e reconhecendo que uma carta levava dois dias para chegar da cidade a Santa Teresa, acho excelente a ideia do plano inclinado! O próprio indivíduo pode levar a sua carta, e entregá-la em mão própria em meia hora. (Sente-se o apoio e grande algazarra do povo) 
 
TODOS  É agora. É agora. Vai subir. 
 
UM MOLEQUE Quer balas, freguês, quer balas? 
 
(Aparece o bonde no plano inclinado. Estão Zé Povinho e a Política) 
 
ZÉ Eu cá estou. 
 
POLÍTICA E eu também. 
 
OPINIÃO (que está à boca de cena)  Lá está o pérfido! Acompanhado duma mulher! Oh! Quero saber quem é! 
 
 
CENA XIII  Os mesmos e Boato.
 
BOATO (ao ouvido da Opinião)  Consta-me... não sei... mas parece-me que é a Política! 
 
OPINIÃO Mas o que vai ele ali cheirar? 
 
ESPECTADOR Não se admire: a Política cá na terra mete o nariz em toda a parte. 
 
OPINIÃO Deus queira que não as meta nas algibeiras do velho. Basta que eu o faça. 
 
ESPECTADOR É limpeza geral! 
 
ZÉ A Opinião! Minha mulher! Ó Senhora Política, mande subir até onde há cabo. Ao cabo do mundo que seja, senão acabo! Ela dá cabo de mim.   
 
CENA XIV  O Veículo e o Anjo da Humanidade.
 
VEÍCULO (entrando desaforado com o tílburi na cabeça)  Maldita invenção do bonde. Até mesmo esta subida já tem condução à noite. Pois bem guerra de Morte! Comecemos por cortar o cabo! (Vai a dirigir-se para o fundo) 
 
ANJO (derrubando-o)  Para trás! As conquistas do Progresso protege-as Anjo da Humanidade. 
 
VEÍCULO Ora esta. Não sei o que tenho. Vinho não é, porque só bebi cachaça. 
 
(Aparece na plataforma do bonde o Anjo, que sobe ao som de gerais aclamações, levando a reboque a tartaruga em que vai montado o Correio) 
 
OPINIÃO Lá se vai o homem pela corda acima. 
 
BOATO E dizem que a coisa vai descarrilar! 
 
OPINIÃO Então lá leva o diabo o velho. (Cai desmaiada nos braços de alguém) 
 
(Mutação) 
 
 
QUADRO IV
 
CENA XV  Caixeiro, só, à porta.
 
(Um botequim, mesas, cadeiras) 
 
CAIXEIRO (à parte)  Estamos hoje em maré de vazante. Não aparece ninguém... Não admira... os fregueses estão metidos aí em algum teatro a ouvir alguma Conferência... E o mais é que estas coisas de Conferência têm feito um mal dos diabos ao comércio. Há estabelecimento por aí que está sempre às moscas, outros estão como Nero. Nem mesmo uma mosca... Todos os fregueses fugiram... foram naturalmente ser oradores de Conferências. Que também não sei por que se não há de chamar de conferentes a esses oradores. Conferente!... Só o título quanto vale! (Ouve-se um trovão) Santa Bárbara!... Lá está Um a orar... Ah! É Um trovão. Ora, ó Lopes... Felizmente lá vem Um freguês, mais do que Um... é Uma Companhia.   
 
CENA XVI  Os mesmos, Diretores da Comanhia de Consumo.
 
PRIMEIRO DIRETOR O senhor é dono desta casa? 
 
CAIXEIRO Por enquanto não, senhor. Sou apenas um dos interessados... em que ela ganhe dinheiro. 
 
PRIMEIRO DIRETOR Pois nós cooperamos o consumo, e vínhamos saber quantas ações quer que reservemos. 
 
CAIXEIRO Para quê? 
 
PRIMEIRO DIRETOR Para comer mais barato do que em qualquer outra parte... tudo puro e sem confeição. 
 
(Os Taberneiros têm estado a espreitar a porta e entram ameaçadores) 
 
CAIXEIRO Mas isto é uma invasão! Estão por acaso suspensas as garantias?... O que é isto, vivemos num império ou numa republiqueta? 
 
PRIMEIRO TABERNEIRO  Nós, os secos e molhados... fazemos de guerra de Morte a essa Companhia, que jurou a nossa ruína. Nós somos o monopólio do bacalhau, a composição do vinho, a farinha avariada, os paios em salmoura podre, o azeite rançoso e todos esses gêneros que fazem tapar o nariz à Junta da Higiene, que emagrecem o povo e nos engordam a nós. Eis o que somos. 
 
CAIXEIRO Pois eu, como cá cheiro, não me cheira essa contenda, e ponham-se todo na rua. Rua! Senhores do Consumo, não me consumam a paciência. 
 
TODOS  Guerra! Guerra! 
 
(Saem em perseguição uns aos outros pela esquerda) 
 
 
CENA XVII  Caixeiro, depois, Zé, Política.
 
CAIXEIRO Além de se não ter fregueses, ainda em cima me cai em casa uma praga destas! Onde estão as autoridades? Já não temos constituição, senão na Praça do Rossio. O país está perdido. (Entra Zé e Política) A nação vai por um plano inclinado. 
 
ZÉ De lá venho eu agora... e gostei. (Entra) 
 
CAIXEIRO Ó coração despaisado... Pois o senhor gosta da desgraça do país? 
 
ZÉ Do país? Quem lhe fala nessas coisas? Eu refiro-me ao plano inclinado de Santa Teresa, e eu mesmos estou inclinado a fazer um plano daqueles lá na terra; mas puxado a burros. 
 
CAIXEIRO A burros?! Queira desculpar. 
 
ZÉ Não há de quê. (À Política) Tomas alguma coisa? 
 
POLÍTICA Isso não se pergunta, eu tomo sempre. 
 
ZÉ Traga-me lá uma cajuada com groselha. (Sentam-se à mesa) Pois gostei da tal caranguejola, é obra acabada... agora o que falta é acabar a obra. 
 
POLÍTICA Não se há de demorar... Eu interesso-me pelo melhoramento. 
 
ZÉ Tu também interessas-te por tudo... és a salvação do Povo... 
 
POLÍTICA O Povo é os meus encantos, a minha teteia... ou em melhor e moderna tradução, o meu bijou... Olha, lá vem um dos meus amigos. 
 
ZÉ Quem? Aquele homem de capote que vem com aquela criançada toda? 
 
POLÍTICA Esse mesmo. Dirige-se para aqui. 
 
CAIXEIRO Estamos arranjados... se nos apanha de jeito, é capaz de nos pedir a camisa.   
 
CENA XVIII  Os mesmos e o Major.
 
MAJOR Meus senhores, venho implorar a sua caridade... Qualquer cosa me serve... Umas calças... até uma casaca me faz conta... mesmo das viradas... se é que há algumas por aqui... 
 
ZÉ (baixo à Política)  Aquilo parece que é contigo. 
 
POLÍTICA Não é, mas faz-me arder... 
 
MAJOR Querem uma amostra do pano? Pois aí vai o pano de amostra. Eu tinha uma casaca. Duma das abas fiz um cueiro... vejam. (Mostra uma criança embrulhada numa aba da casaca) Com outra, arranja-se uma capa como esta. (Vai mostrando o que diz) O que este tem na cabeça é uma manga... cujo canhão disparou... quero dizer, desapareceu... a outra manga deu meias calças para este que está a espera de outra casaca para completar a toalete... e o resto... o casco... desabado... cobre os ombros deste patusco... Vejam pois que as casacas di...abas são casacas Santas... Vamos, meus senhores, qualquer cosa serve. 
 
ZÉ Eu só lhe dei um cheque para o Banco Mauá. 
 
MAJOR Depois que levou o xeque-mate, é quanto de mau... há. 
 
ZÉ Pois se lhe não serve... 
 
(O Caixeiro que tem saído, entra com uma grande porção de roupa velha com que se vestem os pequenos caricatamente) 
 
CAIXEIRO Aqui tem o que há. Por hoje acabou-se a roupa velha cá em casa. 
 
ZÉ É pena, porque o petisco é do gosto. 
 
POLÍTICA E olha que não é mau petisco. 
 
MAJOR Obrigado. 
 
CAIXEIRO Quando o senhor sair condecorado, lembre-se de meu padrinho, que é uma joia e vende as ditas na Rua Estreita de São Joaquim. 
 
MAJOR Agora, rapazes, vamos a outra freguesia. 
 
(Dão a volta à roda da cena, ao som da Marcha) 
 
 
CENA XIX  Caixeiro, Zé, Política, depois Boato.
 
ZÉ É original este tipo! 
 
POLÍTICA As intenções são boas... 
 
ZÉ Já não acontece o mesmo a todos... (Vai sentar-se num banco do que cai a perna) Veja este banco que peça me armou... estava quebrado... não me preveni... convidou-me a sentar, e depois zás... Uma destas faz perder a confiança nos bancos. 
 
(Ouve-se rumor) 
 
POLÍTICA Que rumor é este? 
 
CAIXEIRO É na... o que lá vai. 
 
POLÍTICA O que é? 
 
BOATO Querem saber o que é, não se assustem. Todos os rapazes da Instrução Pública que, em vez de conhecerem os sujeitos da oração... ora... são a atacar todos os sujeitos que passam. 
 
ZÉ Mas então estão incursos nos artigos da Lei. 
 
BOATO São artigos indefinidos ainda. 
 
ZÉ Mas isso não tem nome... Se hão de estudar a gramática e respeitar a regência... 
 
BOATO Fazem-se prosas e fazem o inverso. 
 
POLÍTICA Eu vou sossegá-los. 
 
BOATO Talvez que o seu verbo ativo... 
 
ZÉ  ...os faça concordar... Mas eu creio que fazes mal em te ires meter com os pequenos... lembra-te do ditado: Quem se... 
 
POLÍTICA Qual, de pequenino é que se torce o pepino. 
 
BOATO E ela quer começar a torcê-los de pequenos. Vá, Dona Política... e veja se tem proposições capazes de fazer a concordância geral e pôr o complemento à questão. Não se ponha com interrogações, e ponha ponto na oração. (Política sai. Boato a Zé) Enquanto apeamos, quer tomar café, para depois irmos gozar de uma partida de bilhar? 
 
ZÉ A dinheiro vai... jogo o bilhar por uma partida de café. 
 
BOATO Dizem que tem bom preço este ano? 
 
ZÉ Isto é lá com os comissários... Vamos a isto. 
 
 
CENA XX  Os mesmos, Espectador, Opinião, Tubo e Homem-Canhão.
 
ESPECTADOR Lá está ele... então o que lhe disse eu... encontramo-lo ou não. 
 
ZÉ A Opinião! Estou asseado. 
 
BOATO Coragem. 
 
OPINIÃO Ora, até que tenho o gosto de lhe por a vista em cima... então, como se entende isto, senhor?... Que procedimento é esse? Quando o senhor subiu ao monte... 
 
ESPECTADOR Foi quando ela subiu a serra! 
 
OPINIÃO Vamos é arranjar malas e partir. 
 
ZÉ Partir? 
 
OPINIÃO Pois, por que espera? 
 
ZÉ Por quê?... Ah! Sim... Quero que ande à roda! Comprei um bilhete com duas garantias, par a sorte grande ser mais certa! 
 
OPINIÃO Com a cabeça à roda anda você desde que se apanhou com essas fúrias de cara caiada e de carro à porta! Ah! não sei o que me contou... (Raivosa) Estou sedenta... 
 
BOATO (muito breve)  Rapaz, já um copo d’água. 
 
CAIXEIRO Acabou-se; 
 
TODOS  Acabou-se?! 
 
CAIXEIRO O Fiscal fechou a torneira pela manhã. 
 
ESPECTADOR Deve haver outras... 
 
CAIXEIRO Há, mas são verdes... ou digo, são para os outros. 
 
TODOS  Água, água! 
 
TUBO Pronto. (Mete um Tubo pelo chão abaixo e sai um repuxo) 
 
TODOS  Nada, nada. 
 
TUBO Isto é simples. 
 
BOATO Dizem que não pega... porque é bom! 
 
TUBO Há de sair... 
 
BOATO Olhe, canta-lhe... Quero dizer, toque-lhe a bomba... 
 
TODOS (dando à bomba)  Ajudemos todos. (Dando todos à bomba) 
 
ESPECTADOR Se eu tivesse um talismã, captava como o Vale, na Pera de Satanás. 
 
BOATO Eu também. 
 
ESPECTADOR Vá de valetas. 
 
BOATO De valetas está dito.  Cantam: Talismã poderoso, que opera  com o teu alto poder, maravilhas  a nós todos, que a sede devora  Um pinga vem dar, seja embora  do Cartaxo, do Porto, ou das ilhas. 
 
(Jorra água por um lado e vinho do outro) 
 
BOATO Viva o nosso chafa... 
 
TUBO  ...ris? do progresso?... 
 
BOATO Vivam os Tubos. 
 
TODOS  Vivam. 
 
OPINIÃO Vamos, Juquinha... Agora estou saciada, vamos para a tua terra. (Ouve-se um grande tiro) O que é isto? (Passa ao fundo o Homemcanhão) 
 
ESPECTADOR É o Homem-canhão. 
 
BOATO Homem-canhão... mulheres tenho visto. 
 
ESPECTADOR Um Homem que dispara... e põe logo a andar uma bala de calibre três mil, oitocentos e cinco... 
 
ZÉ Que pena não haver um batalhão destes no Paraguai. 
 
BOATO Para quê? Para se acabar a guerra num dia? 
 
OPINIÃO E para nos livrar dos impostos para ela, que ainda estamos pagando. 
 
(Música fora) 
 
TODOS  O que é isto? 
 
BOATO Isto deve ser... ruim... parece-me que é alguma manifestação qualquer... porque... 
 
ESPECTADOR Desembuche... 
 
BOATO Lá vai... conta-se... dizem que houve uma combinação entre o Diretor do Corpo de Bombeiros... eu não vi... mas afirma-se.   
 
CENA XXI  Anjo, Zé e Espectador.
 
ANJO (aparecendo ao fundo)  Afirma-se que houve um tempo em que os incêndios alteravam e destruíam com uma voracidade assombrosa a propriedade e os bens. 
 
ZÉ Bem me lembro. No tempo em que eram circunscritos. 
 
ESPECTADOR Em incêndio deixa sempre o juízo a arder. 
 
ANJO E que esse tempo, graças à energia, zelo, boa vontade e coragem dum intrépido e benemérito militar, desapareceu... e que, por esse motivo, as Companhias de Seguro lhe vão oferecer uma casa para ele habitar... Não é muito que se dê um lar a quem tantos salvou! 
 
(Ouvem-se foguetes e música) 
 
ZÉ Viva o heróis dos fogos! 
 
TODOS  Viva! (Saem) 
 
(Mutação)
 
QUADRO V
 
CENA XXII 
 
(Vista da praça, a mesma cena do Quadro II. Vendilhões, pretas, rapazes com Gazetas. Ao fundo, um grupo de gente dá atenção ao Preto, que canta alguns trechos de Maria Angu) 
 
(Canção)
 
 
CENA XXIII  Os mesmos e Opinião.
  ZÉ (entra da esquerda)  Para fugir à Opinião tive que também que fugir da Política!...Parece sina... Estou em maré de perder de vista as mulheres... Ora, a minha Opinião, isto é coisa que ora está para o Norte, ora para o Sul... Mas a Política? Segundo me informaram, essa senhora quando se pespega no cachaço de qualquer, não é com duas razões que o deixa. 
 
OPINIÃO (entrando pelo lado. À parte)  Onde estará encafuado aquele maldito Boato? Se o desalmado corre, que ninguém o pode apanhar... (Vendo Zé) Ola Seu Zé Povinho, apanhei-o. 
 
ZÉ Credo, ela! 
 
OPINIÃO Com esta não contavas tu, confessa! 
 
ZÉ Confesso que estou satisfeito. 
 
OPINIÃO Vamos, passa adiante! 
 
ZÉ Onde diabos queres tu que eu vá? 
 
OPINIÃO Vamos embarcar. 
 
ZÉ Ora esta! Ainda não tomei o gostinho... Nem vi os teatros. 
 
OPINIÃO As varietées, não?! Ora, passa adiante de mim. 
 
ZÉ (à parte)  Se fosse a Política que governasse o Zé Povinho, ainda eu iria, mas da Opinião não me importa. Eu hei de me ver livre dela. 
 
OPINIÃO (que tem subido a falar com alguém e desce agora)  Vamos.
 
(Saem) 
 
 
CENA XXIV  A Companhia de Consumo do Pão perseguida pelos Professores Públicos, Boato e Anúncio. 
 
PROFESSOR  Dê cá o pão! Dê cá o pão! 
 
PRIMEIRO DA COMPANHIA  Largue o pão! Largue o pão! 
 
BOATO O que é isto? O que é isto? 
 
PRIMEIRO DA COMPANHIA  Senhores, nós somos a Companhia do Consumo do Pão. 
 
BOATO Ah!! 
 
PRIMEIRO DA COMPANHIA  Andamos à cata de acionistas! 
 
BOATO Fazem mal, fiquem descansados em casa, que eles lá irão ter. 
 
PRIMEIRO DA COMPANHIA  Precisamos de acionistas como de pão para a boca. 
 
BOATO Isso é o que não aprece. Os senhores têm aí para um exército. 
 
PRIMEIRO DA COMPANHIA  Isto é uma amostra do nosso pão. 
 
PROFESSOR Senhor, nós é os pobre Professor público. 
 
BOATO Nós é... sim, senhor. Está se vendo... está se vendo... 
 
PROFESSOR Nossos vencimento foi reduzido! Nós está com fome. Queremos este pão. 
 
TODOS  Queremos este pão! 
 
PRIMEIRO DA COMPANHIA  Mas isto é uma violência. (Frases desencontradas de parte a parte e saem altercando para a direita) 
 
BOATO (só)  Dizem que Jesus Cristo, com cinco pães, deu de comer a cinco mil pessoas. Se fossem todos da Companhia do Consumo, não era milagre nenhum. Aí vem o Anúncio: fujamos deste amolador. 
 
ANÚNCIO (sombrio)  Qual é a melhor cerveja nacional? A Cristiana! Dê-se um prêmio a quem provar o contrário. (Passeia e pára de novo) O melhor favor que se pode fazer a uma senhora é indicar-lhe a casa especial de fazendas pretas. (O mesmo jogo) O rend l’argent a quem comprar por menos. Aux 100.000 Palitots. (Sai majestosamente)   
 
CENA XXV  Zé Povinho (só).
 
ZÉ Então livrei-me dela ou não? A Opinião nunca está com o Zé Povinho, que é o mesmo que dizer que o Zé Povinho não tem Opinião. O que é aquilo? Que povaréu é aquele? 
 
 
CENA XXVI  O mesmo, Dondon, Operários da Alfândega.
 
OS RECÉM-CHEGADOS É um desaforo! É Uma pouca vergonha! 
 
ZÉ Vossas excelências queiram desculpar, mas o que foi que aconteceu? 
 
DONDON Eu lhe conto, cidadão... Antes que tudo, qual é a sua cor Política? 
 
ZÉ O azul. 
 
DONDON Como o azul? Zomba, cidadão? Olhe que lhe desanco com a musa do povo! 
 
ZÉ Perdão, o que foi que perguntou? 
 
DONDON Perguntei-lhe qual era sua cor Política. 
 
ZÉ Pois então desculpe, julguei que me perguntasse qual era minha cor predileta. 
 
DONDON Política. A que corpo pertence. 
 
ZÉ Eu não tenho cor po...lítica. 
 
DONDON Saiba que aquele senhor, ou por outra, aquele charuto que ali passa ao fundo fez umas tantas exigências vexatórias e inconsequentes a esta pobre gente! Fizeram greve... 
 
ZÉ Uma greve é grave... 
 
DONDON Vieram ter comigo, o Tribuno do Povo, o Mimoso das Multidões, o Hirsuto, o Encapotado, e pedirem-me que advogasse a sua causa.
 
Fui a quem de direito... E o que julga o senhor que me respondesse quem de direito? 
 
ZÉ Mandou-o pentear monos... ou pentear-se a si mesmo, que bem precisa disso. 
 
DONDON Nada, cidadão! Disse-me — Por que se meteu nisso: 
 
OS OPERÁRIOS É um desaforo, é uma pouca vergonha. 
 
DONDON Hei de me vingar num seu colega a quem não cansarei de repetir com toda a força dos meus cabelos: — Larga a pasta. (Aos outros) Amigos, segui-me e gritemos todos. 
 
 
CENA XXVII  Política e Zé Povinho.
 
POLÍTICA (ouvindo ainda o coro)  Imbecis, ora querem, ora não querem! (Vendo Zé) Enfim te encontro. 
 
ZÉ Onde andaste? 
 
POLÍTICA Então julgas que sou alguma vadia? Estás muito enganado! A Política não tem descanso. Ainda agora andei atrapalhada, apaziguando uma divergência que se estabeleceu entre um sujeito e um marceneiro... 
 
ZÉ Por quê? 
 
POLÍTICA Porque queria a viva força apoderar-se duma cadeira que estava em sua casa para cobrir de palhinha... e afinal apoderou-se. 
 
ZÉ E quem é esse pândego? 
 
POLÍTICA Um sujeito velho... 
 
ZÉ Desembuche! Quem é esse sujeito velho? 
 
POLÍTICA Não posso dizê-lo para evitar censura. Basta de darmos à taramela. Vamos. 
 
ZÉ Aonde? 
 
POLÍTICA Vamos aí à toa, não nos faltará o que ver. 
 
(Saem) 
 
  CENA XXVIII  Espectador e Boato.
  ESPECTADOR Nada, não me faça entrar na... para cá... olhe que não sou da peça. 
 
BOATO Não faz mal. 
 
ESPECTADOR O empresário pode escamar-se... e com razão, que diabo. Um Homem que sai do camarote e entra no palco. E o demônio do contrarregra onde tem a cabeça?... 
 
BOATO Venha cá... venha cá... 
 
ESPECTADOR De mais a mais, ó Seu Boato, olhe que isto é maçada... o espetáculo pode acabar depois da meia noite... e depois não há bonde. 
 
BOATO Lá vai um vapor. 
 
(Passa um vapor) 
 
ESPECTADOR Agora pergunto-lhe eu: se estando sem vapor fazem tantas vítimas, a vapor com vapor quantas farão? É uma regra de três. 
 
BOATO Quais são os três? 
 
ESPECTADOR Ora esta! sempre é muito tolo!... Uma regra de três é... é... Eu lhe explico... É uma regra sem exceção. Você sabe que não há regra sem exceção. 
 
BOATO Quanto ao número de vítimas não se amedronte. Agora há uma salva-vidas. 
 
ESPECTADOR Mas já está posto em prática? 
 
BOATO Posto em pratos? Em pratos limpos. 
 
ESPECTADOR Em prática! 
 
BOATO Por ora, está apenas posto em teoria. 
 
ESPECTADOR Por força. Nesta terra é sempre assim. Se se tratasse dum salvamortes, já a coisa andava na berra. Mas diga-me cá: Você trata ou não de procurar a Dona Opinião? 
 
BOATO Havemos de encontrá-la nas festas do carnaval. (Vendo cair uma pasta, das bambolinas) Ai! 
 
ESPECTADOR Ai! 
 
BOATO Caiu uma pasta. 
 
ESPECTADOR Coitada! Donde cairia ela? 
 
BOATO Do poder. 
 
ESPECTADOR Então o poder é lá em cima? 
 
BOATO É sim, senhor: dali é que nasce a corrupção dos povos. 
 
ESPECTADOR É de cima. Sei.   
 
CENA XXIX  Espectador e Política.
 
POLÍTICA Ah! Cá está a pobre pasta... Que queda! 
 
ESPECTADOR Mas quem a atirou lá de cima? 
 
Política (Misteriosa) Psiu! Vamos assistir ao carnaval? 
 
(Mutação)   
 
QUADRO VI Sobe o pano do fundo e veem-se diferentes grupos carnavalescos com as bandeiras das várias sociedades. Tocando a orquestra em surdina um cancã.    TODOS (gritando)  Viva a folia! 
 
FEBRE AMARELA (da esquerda)  Bem, a ocasião é propícia para a ceifa. A Febre Amarela vai tirar o ventre da miséria. 
 
ANJO DA HUMANIDADE (do outro lado)  Ainda não há de ser desta vez, peste maldita. Para trás! 
 
(Ficam à boca de cena os personagens últimos e termina o ato com a música do Zé Pereira, e grande algazarra e confusão) 
 
 
ATO II
 
QUADRO VII
 
CENA I  Cartomante e Santinha.
 
(Na Praia do Russel. O mar invade a maior parte da cena. É noite. A Lua está em todo o esplendor. Sente-se amiudadas vezes durante o quadro a bulha dos foguetes e o estalar dos Morteiros. (Entra cada uma por seu lado e ficam separadas) 
 
CARTOMANTE (à parte)  Quem será esta sujeita? 
 
SANTINHA Quem temos de novo? 
 
CARTOMANTE (à parte)  Será concorrente? 
 
SANTINHA (à parte)  Teremos novo milagre? 
 
CARTOMANTE Tenho pena que as minhas cartas não adivinham senão para os tolos, aliás ia já perguntar-lhes porque está esta cara de Morte aqui. 
 
SANTINHA (à parte)  Ah! que se eu não fizesse milagre senão para os parvos, havia de arranjar um ovo que pusesse a andar esta dama!? Será ela da roda cortesã? O melhor é ir ter com ela. (Alto) Nosso Senhor esteja na sua Santa guarda. 
 
CARTOMANTE Eu não creio em Deus... o meu poder vem do inferno. 
 
SANTINHA Credo! Cruzes!... Abre-te núncio! 
 
CARTOMANTE E tanto assim que vim dizer-lhe quem é, com o auxílio das minhas cartas. (Vai para estender as cartas) 
 
SANTINHA Isso para mim já não pega. (Mostra um grande ovo, onde está escrito: Fome, peste e guerra) 
 
CARTOMANTE O quê? O célebre ovo... o prodigioso milagre da galinha Santa... Lavre dois tentos, colega... Venha de lá um abraço. (Abraçam-se) 
 
SANTINHA Você é uma felizona. O seu modo de vida é livre, pode ter letreiro à porta: anuncia o negócio e a ciência em todos os jornais, é consultada por todas as classes e hierarquias, ganha bons cobres... enquanto que a mim foram-se à mão... diziam que faria concorrência à água da gruta, e que, neste tempo de Seca, toda água é pouca... e tão pouca, que até já falta nos incêndios. A não ser alguma devota muito tola — já poucos acreditam em mim... Digame o que faz por aqui? 
 
CARTOMANTE Espero um sujeito que me quer consultar... e, para dar mais aparato à coisa, mandei-o vir aqui. 
 
SANTINHA Pois eu vim do caminho... quero ver o fogo de vistas... sempre nestas multidões se colhem muitas histórias que é bom saber. 
 
CARTOMANTE Seja feliz. 
 
 
CENA II  Os mesmos e Boato.
 
BOATO Ora seja bem aparecida. 
 
CARTOMANTE Já o espero há meia hora. 
 
BOATO Se adivinhasse, como diz, podia ter poupado o trabalho da espera. 
 
CARTOMANTE E o homem? 
 
BOATO Não pode tardar... Quem é esta dama? 
 
CARTOMANTE É a senhora do ovo. 
 
BOATO Bem sei... é a galinha! 
 
CARTOMANTE Não é isso... é a dona possuidora do ovo milagroso. 
 
BOATO Ah! já sei... foi um ovo espertalhão que saiu cá para fora com umas palavras escritas na casca... dona, de maneira que não puderam fazer deles, ovos moles, livrou-se assim até de ser estalado. 
 
SANTINHA Nem assim! 
 
BOATO O quê? Pois foi passado pelas engolideiras. 
 
SANTINHA Não somos nada neste mundo! 
 
BOATO Lá vem ele... e com a mulher. Pode uma de vossemecês encarregarse da mulher e outra do sujeito. Ele não é tolo, mas é ignorante político, aprecia a boa vida, é entusiasta, e gosta de andar arredor da amante, que é pouco mais ou menos como ele... Até a vista. 
 
SANTINHA Como se chama ela? 
 
BOATO Opinião. 
 
CARTOMANTE E ele? 
 
BOATO Zé Povinho. 
 
SANTINHA Creio que há de ser difícil separar a Opinião do povinho. 
 
BOATO Também eu; mas nesse caso separemos o povinho da Opinião. (Sai) 
 
 
CENA III  Cartomante, Santinha, Zé Povinho e Opinião.
 
(Cartomante e Santinha conservam-se um tanto quanto afastadas) 
 
OPINIÃO Bem te dizia eu que nos fossemos embora. Nunca me queres ouvir e agora aí o tens. Esta mania de consultar a Bruxa há de ser como a de comprar o tal bilhete da loteria. 
 
ZÉ Pois sim, mas quem podia adivinhar que havia dois bilhetes com o mesmo número. 
 
OPINIÃO Como eles arranjam essas coisas é que não sei... Foi como a história dos leilões. 
 
ZÉ Não me fales nisso, que é a página negra da minha vida. 
 
OPINIÃO Tudo por dar ouvidos a intrujões. 
 
ZÉ Ora tu sabes que eu andava um tanto quanto necessitado de camisas... era mesmo muito boa pessoa, mas tinha poucas roupas brancas... Passo por uma casa... O leiloeiro gritava: 20 mil réis... 35... e 500 e 600 e... 365, não dão mais? 36, 36, 36, 36. A quem mais lança? Não lançam mais?... Parabéns, Senhor Zé Povinho. Dou o sinal e mandam-me, não uma caixa de dúzia, mas um caixote com uma dúzia de caixas. 
 
OPINIÃO Foi uma boa camisa de onze varas. E ainda não te emendaste... Caíste noutra. 
 
ZÉ E quem não havia de cair. Passo na mesma casa, e o mesmo sujeito gritando: uma caixa de ceroulas, 20$000... levo a caixa... e encontrome... 
 
OPINIÃO Com meia dúzia!! É muito bem feito, que é para não ser tolo... Agora vá ter com sua amiga, a Política, essa vergonha que tem o perdido, e peça-lhe que remedeie o mal. 
 
ZÉ (que vê a Bruxa) 
 
Cala-te, que ali está a Bruxa. 
 
CARTOMANTE Bruxa vá ele... Veja como fala. 
 
ZÉ Com a dita ao bruxo... volto eu... se disse coisa que a escandalizasse. 
 
CARTOMANTE O que faço é filho dos altos estudos da ciência... (A Santinha) Não é verdade? 
 
SANTINHA Assim é... eu, porém, desprezo a ciência e faço tudo com o auxílio do Altíssimo. 
 
OPINIÃO Sim? 
 
SANTINHA É como lhe digo... A senhora quer saber o seu destino... eu faço divina invocação e tudo se me patenteia. 
 
OPINIÃO Ora vejam lá... Estava meio tentada... 
 
SANTINHA É Deus que a inspira... 
 
CARTOMANTE (tem se afastado disfarçadamente com o Zé, e o mesmo faz Santinha com a Opinião)  É como lhe digo... As cartas vão dizer-lhe tudo! (Senta-se e deita as cartas) Longa viagem... mulher feia... 
 
ZÉ (à parte)  Não há dúvida... Foi a viagem que fiz com a minha mulher. 
 
CARTOMANTE (lendo as cartas)  Lá está... dama de paus... feia como é... é perseguida e amada. 
 
ZÉ O quê? Que eu o faça por obrigação, vá; mas, que haja quem tenha o mau gosto de fazer as coisas por devoção... é que me custa a roer. 
 
CARTOMANTE Pois roa a verdade... lá está ele... Valete de copas. 
 
(Continua a cena muda) 
 
SANTINHA Revelam os sagrados espíritos que seu marido trama um divórcio. 
 
OPINIÃO Ah! Patife! 
 
SANTINHA Convém evitá-lo! 
 
OPINIÃO Como? 
 
SANTINHA Despertando nele o ciúme. 
 
OPINIÃO E depois? 
 
SANTINHA Depois há de ser ele quem há de vir com a senhora. 
 
OPINIÃO E posso-lhe afirmar que há de ser bem convidado. Veja o resto. 
 
CARTOMANTE (a Zé) 
 
Ela pretende ir com ele para longes caminhos com muitos dinheiros. 
 
ZÉ Não é minha mulher... É uma nova edição da mulher de Cláudio... 
 
CARTOMANTE A espadilha o afirma. 
 
ZÉ (olhando para a Opinião)  Deixa estar, que eu te arranjarei, mas em tal conjectura, o que hei de fazer? 
 
CARTOMANTE Deixá-la fazer o que ela quiser, e vigiá-la de perto. 
 
ZÉ Acho pouco essa coisa de só vigiar. 
 
CARTOMANTE Enciumá-la a valer... e então verá ela quem voltar ao aprisco. 
 
ZÉ Aprisco não, a casa. 
 
OPINIÃO Há de ser como lhe digo. 
 
ZÉ e OPINIÃO Está tudo acabado entre nós. 
 
ZÉ A senhora é!... 
 
OPINIÃO O senhor é!...   
 
 
CENA IV  Os mesmos, Política e Boato.
 
POLÍTICA Então, o que é isso? 
 
OPINIÃO Olhem quem ela é... a senhora é que é a causadora de tudo isto! 
 
BOATO (a Opinião)  Sosseguem! 
 
OPINIÃO Que sossegue?! 
 
BOATO Aqui estou eu para a amparar. 
 
OPINIÃO Ora deixe-se disso. 
 
BOATO Lembre-se que, se a sigo há tempo, é porque a amo. 
 
OPINIÃO Olhe que meu marido pode ouvir. 
 
BOATO Não tema, porque está entretido com a Política. 
 
OPINIÃO Eu vou lhe arrancar os olhos. 
 
BOATO Vamos antes ver o fogo de vistas. 
 
OPINIÃO Eu é que tenho a vista em fogo... e estou a arder... 
 
SANTINHA (a Opinião)  Faça o que lhe disse, se perde esta ocasião, não apanha outra tão cedo. 
 
OPINIÃO (ao Boato)  Tem razão. Vamos, meu querido. 
 
(Saem de braços dado) 
 
ZÉ (como uma bicha)  Seu querido?! E ela vai com ele! Quem é aquele biltre, que não o conheço à noite? 
 
POLÍTICA O Boato. 
 
ZÉ Eu já o devia conhecer... Mas toma todos os dias uma cara diferente! Mas o que dirá o mundo, vendo a Opinião com o Boato? 
 
POLÍTICA Não diz nada, porque o caso não é novo. Vem comigo. 
 
ZÉ Mas não me dirá que insistência... 
 
POLÍTICA Quero falar contigo a respeito das eleições municipais... e de muchas cosas más. 
 
ZÉ Isso é outro caso... Primeiro que tudo o bem da pátria... 
 
POLÍTICA Oh! Sim!... Abençoado seja o bem da pátria... 
 
ZÉ Que me livra da minha mulher e me dá motivo para um divórcio... Onde vamos? 
 
POLÍTICA Ver o fogo. 
 
(Saem) 
 
CARTOMANTE E nós? 
 
SANTINHA Vamos atrás deles para que nos paguem. De graça é que eu não trabalho... Ora que pouca vergonha. 
 
CARTOMANTE Logo vi que a coisa acabava mal... estando a Política metida no negócio. 
 
(Saem)   
 
CENA V  Espectador, só.
 
ESPECTADOR Safa! Nem aqui me deixam... Sou apoquentado por todos os lados... Eu não pertenço à peça, lá isso é verdade, pois até aqui me perseguem as subscrições. Não vejo surgir ante mim senão vítimas, e a mais vítima de todas é a minha pobre algibeira, que vai ficando visivelmente ética. Depois de tantas subscrições, deve-se abrir uma entre as vítimas, para os que subscreveram para elas... Lá vem mais... por esta é que não estou... Onde me hei de esconder. Ah! ali. (Esconde-se)   
 
CENA VI  Espectador, escondido, Homem da Pera, Amigos.
 
HOMEM DA PERA Obrigado, adeus. 
 
PRIMEIRO AMIGO  Guarde-te bem, para não te acontecer o mesmo que ao inglês. E, assim, que estiveres em Nova Iorque, escreve. 
 
HOMEM DA PERA Adeus... Até a vista, e que os céus me proteja. (Salta para a praia para se meter num bote e os amigos lhe dizem adeus) 
 
AMIGO — Manda notícias. 
 
HOMEM DA PERA Mandarei as notas de viagem e serão verdadeiras como todas as que tenho usado na minha vida. 
 
AMIGO  Adeus... e se encontrares o célebre orador que morreu na África, manda novas dele. 
 
(O barco some-se e os amigos retiram-se)   
 
CENA VII  Espectador e depois Urbano.
 
ESPECTADOR Aquele parece-me que vai sem visto no passaporte... Felizmente vêse livre das subscrições. (Vai passando) 
 
URBANO O senhor viu-o? 
 
ESPECTADOR A quem? 
 
URBANO Ao passador? 
 
ESPECTADOR Eu não vi nada. 
 
URBANO Mas disseram-me que havia de desembarcar aqui; demorei-me demais... encontrei a mulher das cartas e não pude resistir ao gostinho de a consultar. 
 
ESPECTADOR Fez muito bem. 
 
URBANO O diabo é que o perdi de vista. 
 
ESPECTADOR (atemorizado)  Lá vem ele! 
 
URBANO (apitando)  Socorro. 
 
ESPECTADOR Apite. Aliás estamos depenados! 
 
URBANO (tirando sossegadamente o apito da boca)  Mas quem são eles? 
 
ESPECTADOR O povo das subscrições. 
 
URBANO Misericórdia! Salve-se quem puder. (Vai a sair e a cena invade-se de povo) 
 
Coro de Velhos. 
 
ESPECTADOR Retirem-se... eu não posso mais... estou roubado. 
 
(Saem todos)   
 
CENA VIII  Espectador, só.
 
ESPECTADOR Graças a Deus que estou só... que formosa noite!... Que grandioso espetáculo! Parece que a mão caprichosa da natureza se comprouve em acumular as mais pitorescas belezas nesta formosa baía. Que felizes se devem julgar os que vêm naquele barco. (Aparece um barco com alguns personagens) Como desliza sereno... Mas que vejo... Vai se engolfar na ressaca. (Gritando) Metam o leme de encontro. (O barco bate nas pedras) Desgraçados!... Socorro!   
 
CENA IX  O mesmo e Anjo da Humanidade.
 
ESPECTADOR Salvemos aqueles desgraçados. 
 
ANJO DA HUMANIDADE  É tarde! 
 
ESPECTADOR Oh! meu Deus! 
 
ANJO DA HUMANIDADE  São duas famílias de intrépidos trabalhadores riscadas do número dos vivos! oremos por elas. 
 
(Mutação)   
 
QUADRO VIII Sala com alguma mobília e uma cama.
 
(Ouve-se sons marciais de uma banda e vivas fora. Está em cena um Criado muito cansado e de mala em punho e um saco de dinheiro com este letreiro: 10:000$000 Réis. Traz na cabeça uma coroa de louro)   
 
CENA X  Criado, Poeta, Orador, e 1º e 2º Repórter.
 
VOZES FORA  Viva o valente, viva o bravo, viva a nação, viva! 
 
CRIADO (dirigindo-se para o público)  É isto! (Vem descendo; novos vivas) E não há meio de descansar um Homem que tanto trabalhou em honra da pátria. Tem sofrido mais neste pouco tempo que os cinco anos de batalhas e privações. (Vem descendo, novos vivas) Ah! Parece que finalmente o deixaram tranquilo! Deus queira que assim seja! Já me parece maçada. (Põe o saco de dinheiro a um canto) Decididamente a glória é coisa muito incômoda. Já lhe chimparam nas barbas cinco dúzias de poesias, e outros tantos discursos. Está imortalizado em prosa e em verso. É a única desculpa desses maçantes poetas e arengadores: supõem-no imortal e, como tal, isento das consequências da mais tremenda das amolações! Como se enganaram! Mas agora julgo que está livre deles! Amém! (Pega numa bota do General e caem de dentro poesias) Até dentro das botas estão flores e poesias! (Atira com a bota) 
 
PRIMEIRO REPÓRTER (metendo a cabeça por uma das portas e tomando nota) 
 
Descalçou uma bota. (O Criado espirra) Espirrou. (Desaparece) 
 
CRIADO Hein? Então não estou constipado! 
 
POETA (entreabrindo a porta)  Dá licença, General? 
 
CRIADO Quem é? 
 
POETA (desdobrando uma enorme tira de papel)  Ó tu, soldado imortal! 
 
CRIADO Então! lá vem a imortalidade. 
 
POETA (continuando)  ...que vens coberto de glória visitar a Guanabara. Onde te espera a vitória!... 
 
CRIADO Tenho notado que todos estes poetas rimam glória com vitória. 
 
POETA Escuta a voz de um poeta... 
 
CRIADO Tenho a prevenir a vossa senhoria que eu não sou o General, mas sim Criado do Hotel. 
 
POETA Oh! Onde está então sua excelência? 
 
CRIADO A descansar. 
 
POETA Então faça o favor de lhe entregar estes versos: têm a minha assinatura. (Dá-lhe os versos e sai fazendo grandes mesuras) 
 
CRIADO (pega a outra bota e caem versos de dentro)  É isto! mais poesia nas botas! E eu, para vingar-me, meto as botas nas poesias! São detestáveis. (Tira o casaco e aparece um Orador)   
 
CENA XI  Os mesmos e o Orador.
 
ORADOR (entreabrindo a porta)  Dá licença, general. (Entra e tira um papel do bolso) 
 
CRIADO Outro! 
 
ORADOR César, Aníbal, Pompeu, Alexandre, Napoleão e outros quejandos heróis das eras antigas, médias e vindouras não tinham nem o teu valor nem as tuas virtudes. Eles eram usurpadores, e tu não! Tu empunhaste o gládio em prol da absoluta liberdade, e alumiaste a consciência nacional com os clarões de teu valor! 
 
(O Criado tosse) 
 
SEGUNDO REPÓRTER (saindo debaixo da cama)  Tossiu! 
 
ORADOR Imortal... 
 
CRIADO (querendo falar, sem poder) Tenha a bondade de deixar ficar o seu discurso. Quero poupar-lhe o trabalho da leitura. 
 
ORADOR General, eu não entrei ainda em matéria! O melhor ainda não li. 
 
CRIADO Bem vejo que isto promete. Mas o que eu quero prevenir ao senhor é que o general ainda não o ouviu. 
 
ORADOR Não! (À parte) Então é surdo! Esta é que eu não sabia. (Gritando) — César, Aníbal... 
 
CRIADO Eu não sou surdo. 
 
POETA Então não percebo. 
 
CRIADO Pois ainda não percebeu que eu não sou general, nem alferes? Olhe, Sua Excelência está descansando. Se quer, deixe ficar o discurso, que eu lho entrego. 
 
(O Orador entrega o discurso e sai com grandes mesuras) 
 
CRIADO (só)  Safa. Este é pior que todos. Tratemos de dormir, antes que venha outro em prosa com versos. (Abre a boca e entra a bocejar até adormecer) 
 
PRIMEIRO REPÓRTER (dum lado)  Deita-se! 
 
SEGUNDO REPÓRTER (do outro)  Adormeceu. 
 
CRIADO (sonhando) 
 
...Basta. Basta. De cá, eu guardo!... Então o General anda de carro sem cavalos!... Ele vai carregado à mão!... 
 
O POETA DO PRÓLOGO (entreabre a pasta)  Com sua licença. (Desenrola uma tira de papel e lê)  Se eu fosse um vate de inspirada Musa,  Se a lira de Camões tivera,  assim, neste dia, tuas grandes glórias,  tuas vitórias eu cantar quisera! 
 
Pintor se eu fora de gentil pincel,  mago painel esboçaria... 
 
(Criado ressona) — Ah! Dorme! pois espera! (Guarda os versos e percorre a cena) O que é isto? Um saco de dinheiro! Dez contos de réis! Olé! Olá! (Carregando com o saco) Ora! Tu estás coberto de louro! não precisas de louras... (Sai) 
 
CRIADO (sonhando)  Assim, General! Às armas! Às armas! Fogo! (Um Admirador, à palavra “fogo”, assusta-se e cai)   
 
CENA XII  Os mesmos e uma Comissão.
 
UM ADMIRADOR  Bravo! General! 
 
CRIADO (acordando sobressaltado)  Quem é? Quem é? 
 
ADMIRADOR A Comissão! 
 
CRIADO A Comissão! (Salta da cama) Eu vou prevenir Sua Excelência. 
 
ADMIRADOR Dá licença! Ela aí vem! 
 
(Começa a aparecer uma enorme lança, que atravessa a cena de lado a lado. Só depois de ter a lança desaparecido em meio por um lado, aparecem as personagens que seguram no cano pelo outro lado. Admirador, ensaiandose)
 
Em honra de teus feitos, ó soldado,  vencedor! vencedor! gênio imortal,  esta lança te dão alguns sujeitos  Em prova de muita consideração, ó General. 
 
OUTRO ADMIRADOR Este último verso está mais comprido do que a lança. 
 
ADMIRADOR O que abunda não prejudica. 
 
CRIADO Sua Excelência pede o obséquio de passarem à outra sala, onde os espera a todos. 
 
(Todos saem) 
 
TODOS  Viva o nosso herói!   
QUADRO IX
 
CENA XIII  Garden, só.
 
(Vista de rua. Os personagens de costume enchem a rua) 
 
GARDEN (velho americano encostado ao portão fumando) 
 
Oh! Este é o verdadeiro felicidade deste vida. Estar sempre tranquila, ganha dinheiro, dá boa divedendo, serve perfeitamente o público fluminense e mora numa chácara por onde ninguém pode passar para que eu arremata privilégio... Casa esta muito minha. 
 
 
CENA XIV   O mesmo e Zé Povinho. 
 
ZÉ Oh! Monsiú... Vossa senhoria dá licença que eu passe por cá? 
 
GARDEN O que você quer faz? Se quer, vai em novas trilhos... faz favor, volta seu caminho. 
 
ZÉ Nada, não senhor, vou no trilho de minha mulher, que depois de velha deu em gaiteira. Consta-me que ela está lá da outra banda, e, como o caminho mais curto é este... 
 
GARDEN Você pode passa, mas dá cá uma níquel de duzentos réis... 
 
ZÉ Se essa é a dúvida... aqui tem; posso passar? 
 
GARDEN Passa pode. 
 
(Zé sai)   
 
CENA XV  Garden, Vila Bela, depois Povo.
 
GARDEN Este homem está muito minha conhecida. É Mister Zé Povinho. Mim tem-se dado perfeitamente com ele. 
 
(Entra a de Vila Belle seguida pelo povo) 
 
VILA Deixem-me! Deixem-me! Ó da guarda! 
 
GARDEN O que é isso? Não pode passa! 
 
VILA Senhor Garden. Vossa senhoria é que vai decidir. 
 
GARDEN O quê? 
 
VILA Eu, como não ignora, estabeleci nos meus carros um sistema de cobrança que consiste em se pagar a viagem a pouco e pouco. Não quero sobrecarregar as algibeiras dos meus passageiros... quero dizer, dos meus condutores: à maneira que se vai andando, vai-se pagando. Recebe-se a passagem em prestações e a última é quando o carro vai para as estações. Ora, estes senhores, isto é, o Povo não quer. Vim, pois, perguntar-lhe o que o senhor faria no meu lugar. 
 
GARDEN Mim não sabe o que faria... faz sempre o que pública quer... eu tenho passagens de oitenta mil réis, de cem, de duzentos, de trezentos, uma pataca — de pataco não tem — tem só duma cruzada e mim só faz uma cobrança — e meu pública está muito contenta. 
 
POVO Apoiado! Muito bem! 
 
VILA São sistemas americanos que não servem para o Brasil... Eu adotei o sistema austríaco, que é o melhor. 
 
GARDEN Oh! Sistema americano está muito boa. Não está só em bondes, mas em tudo desta vida. Olha, ali vem dentista americano; pergunta se seu sistema de extrai dentes no está very well.   
 
CENA XVI  Os mesmos, Dentista, uma carro encarnado, espelhado e dourado, mal entra, o povo cerca-o. 
 
UM POPULAR Viva o Dentista! 
 
POVO Viva! 
 
POPULAR Viva o nosso doutor! O nosso Salvador, que arranca por favor, nossos dentes sem dor! 
 
VILA (à parte)  O que vale é que a Opinião pública distrai-se facilmente! 
 
DENTISTA É tal senhores, o alegrão  em que este bom povo está imerso,  que até falar só me faz, não  em chata prosa... mas em verso... 
 
VILA Ui! (Vai ao dentista com o boca aberta) — Como o povinho me fez parar o bonde, numa corrente de ar... apanhei uma dor de dentes. (O Dentista tira-lhe um dente) Não é esse, desgraçado! 
 
DENTISTA Já cá está! 
 
VILA Você tirou-me o dente do siso. (Saindo) Ora o que há de ser duma Companhia sem o dente do siso?...   
 
CENA XVII  Os mesmos, Boato e Opinião.
 
OPINIÃO Mas para que tomaste esse disfarce? 
 
BOATO (vestido de urbano)  É o meu fato predileto... E, de fato, é um fato cômodo... por tal sina, que nunca para na cômoda... quero prender este indivíduo. (Aponta para o Dentista) 
 
OPINIÃO Mas o que te fez ele? 
 
BOATO O que me fez? (Neste momento o Dentista tem arrancado dente e queixo a um homem do povo) Está preso! 
 
POPULAR Ai! ai! 
 
DENTISTA Foi sem querer? 
 
BOATO  Está preso, já disse... 
 
DENTISTA Preso por quê? Por ser infeliz numa operação... por que não prende você por dia cinquenta ou sessenta Médicos! 
 
BOATO Não sei cá disso... dizem que você não está examinado. 
 
DENTISTA Veja... E pela Imperial Academia. (Apresenta-lhe a licença) 
 
BOATO Pois sim... mas à cautela, venha para a chácara de Catumbi. (Sai com o povo) 
 
 
CENA XVIII  Opinião, Espectador.
 
OPINIÃO Então, não se vai e... e não me deixa... assim se abandona a opinião a si própria? 
 
ESPECTADOR Ora, até que a encontro! O que tem feito? Onde está seu marido? 
 
OPINIÃO Eu sei lá!... Ah! Que se o apanho... 
 
ESPECTADOR Se quer, procuremo-lo... pouco tenho que fazer. 
 
OPINIÃO Aceito!... Mas para que lado iria ele? 
 
ESPECTADOR Isso agora é que era adivinhá-lo. 
 
OPINIÃO Que pena não termos a Santinha aqui à mão... 
 
ESPECTADOR Assim é melhor, porque poupa esse dinheiro. 
 
OPINIÃO Que se me tem ido de vento em popa por água abaixo por causa da proa do senhor meu marido... Um chaveco avariado que faz água por todos os lados... e que ainda se mete na prosápia de correr com todo o pano na alheta de qualquer fragatinha. 
 
ESPECTADOR Bravo!... Chama-se a isso linguagem pitoresca marítima! 
 
 
CENA XIX  Os mesmos, Garden, depois Cocabana.
 
GARDEN Estar boa tarde, senhores. 
 
OPINIÃO Vossa senhoria viu, por acaso, passar por aqui?... 
 
GARDEN Oh! Eu vi mas não sabe... (Neste meio tempo tem entrado Cocabana, que, sem Garden ver, vai entrando na chácara) Oh! Senhor... que faz vossemecê aqui? 
 
COCABANA Vou passando... não vê? 
 
GARDEN Vejo, mas não quero! Vossemecê sabe que mim tem o privilégio desta chácara... 
 
COCABANA Mas eu tenho a minha casa do outro lado, e, como me dá menos trabalho ir por aqui, pouco ou nenhum caso faço do seu suposto privilégio. 
 
GARDEN Vossemecê não passa. 
 
OPINIÃO Não pode passar sem licença. 
 
ESPECTADOR É questão que deve ser pacificamente decidida nos tribunais! 
 
GARDEN A ele vou! A Senhora Opinião há de ser minha testemunha... 
 
 
CENA XX  Os mesmos, Zé, depois Boato.
 
ZÉ Não a encontrei, 
 
GARDEN Vem cá, homem serve também de testemunha... 
 
OPINIÃO Ai, o patife do meu marido... 
 
ZÉ A pérfida da minha mulher... 
 
COCABANA Cá os meus tribunais são estes. (Apita) 
 
BOATO (vestido de urbano)  O que temos? 
 
COCABANA Quero passar, e este senhor não me deixa. 
 
BOATO (desembainhando a espada)  Quem tem razão? 
 
ESPECTADOR Saiba vossa senhoria que ambos se julgam com ela, e só os tribunais... 
 
ZÉ e OPINIÃO (a uma lado)  É para onde vamos. 
 
GARDEN Oh! Yess. 
 
BOATO Nada de bulha. (Ao Espectador) Quem lhe pediu explicações?... Está preso... (A Garden) E o senhor, deixe passar a mulher, quando não! 
 
GARDEN Ah! Isto é muito mal feito... Eu vai faz bulha na imprensa... 
 
BOATO Faça a bulha que quiser. Vossemecê, como não tem escrúpulos, vá passando. 
 
(A Cocabana vai passando) 
 
OPINIÃO (passando à esquerda)  Eu também vou discutir para a imprensa o procedimento do senhor meu marido... 
 
ZÉ E eu, o da senhora minha mulher... 
 
ESPECTADOR Mas por que vão? 
 
BOATO (ao Espectador)  Deixe-os ir... vamos para o xadrez. 
 
ESPECTADOR Esta só a mim acontece... 
 
TODOS  À Imprensa! (Saem) 
 
(Mutação) 
 
QUADRO X
 
CENA XXI 
 
(Sala, o Jornal do Comércio e o Diário do Rio entram trazendo nos braços o Diário Popular moribundo)
 
JORNAL DO COMÉRCIO Tragamo-lo para esta sala! Pobre pequeno! Tão novo! 
 
DIÁRIO DO RIO Quatro meses apenas! 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Também é bem feito. (Depõe o Diário Popular sobre uma cadeira) Já não há crianças. Este pobre Diário Popular quis principiar por onde os outros acabam! E eu, para chegar ao ponto que estou, meu caro colega Diário do Rio, eu, para ser Jornal do Comércio, para gozar das mil imunidades, com a graça de Deus e dos quinze mil assinantes, principiei assim... depois fui assim... assim... assim... assim... assim... É melhor do que começar assim... e depois ir assim... assim... assim... assim... e desaparecer! 
 
DIÁRIO DO RIO E eu não posso falar assim, porque sou político... todavia reconheço que estes meninos nascem e querem logo ter correspondentes em toda a parte... querem ter sobrado na Rua do Ouvidor. 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Nada; eu principiei por onde devia principiar; pelo princípio; por isso é que, como o outro, Leonardo, soldado bem disposto, Cavalheiro, enamorado, também faço o que posso, não vê?! Tenho lá na redação uns gênios, uns astros... Que astros! 
 
DIÁRIO DO RIO E eu então! Eu sou aquela sanha! Onde meto a mão, ou mesmo, meto o pé, que sanha! E tenho um redator que é uma pimenta. Lá pimenta é. Ou por outra... pimenta lá é! 
 
DIÁRIO POPULAR (despertando)  Ai! (Jornal do Comércio e Diário do Rio aproximam-se) Deem-me... remédios... 
 
JORNAL DO COMÉRCIO (vai a uma mesa, traz alguns frascos de remédios. Lendo as etiquetas)  Assinaturas... (despejando o frasco numa colher) Nem uma gota!... (Tomando outra frasco e lendo) Acionistas... (Mesmo jogo) Nana! (Tomando outro frasco) Anúncios... (Mesmo jogo) Qual! 
 
DIÁRIO DO RIO Esgotaram-se os últimos recursos. 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Pobre Diário! 
 
DIÁRIO DO RIO Pobre xará! Tão bom... tão espirituoso... 
 
DIÁRIO POPULAR Agra!... Agra!... Agra!... Agradecido. 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Coitado! Está a morrer e não diz senão agra... agra... agra... 
 
DIÁRIO POPULAR Agra... agra... agra... agradecido! 
 
DIÁRIO DO RIO Já aborrece tanto agra! 
 
DIÁRIO POPULAR (berra como carneiro) Ré!... Mé!... Dio!... 
 
JORNAL DO COMÉRCIO E, de vez em quando, dá-lhe para berrar como carneiro. 
 
 
CENA XXII  Os mesmos e Filipe.
 
FILIPE Bom dia... Bom dia... Então como vai o doente? 
 
DIÁRIO DO RIO Pode dizer — o moribundo... 
 
FILIPE Se querem, mando chamar por telegrama o meu mano de Araraquara para prestar-lhe os últimos socorros... 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Qual, meu Filipe... de outros socorros precisava ele... 
 
GLOBO (pondo a cabeça da parte de fora)  Posso entrar? 
 
DIÁRIO DO RIO Quem é? 
 
FILIPE É o Globo, 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Entre, colega. (Globo entra) Oh! Você diminuiu? Ainda há três dias era alto. (Baixo a Diário do Rio) É o outro que tal! 
 
GLOBO Mudei de formato, para ser mais cômodo aos meus leitores... e por haver muito mais comodidade de preço... 
 
DIÁRIO DO RIO E como vais de saúde? 
 
GLOBO Assim... assim... os passeios de manhã faziam-me mal... resolvi sair às tardes... E o colega? E este pobre Diário Popular como vai? 
 
DIÁRIO DO RIO Eu assim assim... Estou sentindo umas coisas... não será isso velhice? 
 
GLOBO Qual! — Você está a lavar e durar. E Este pobre Diário Popular, como é que vai? 
 
FILIPE Isto está por momentos, coitado: está a exalar o último salpico... quero dizer, o último suspiro! 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Este Filipe é chamado para o calemburgo. 
 
FILIPE É, não se pode dizer que este não tenha sal nem pico. 
 
DIÁRIO DO RIO (ao Globo) 
 
Como vamos de redatores? 
 
GLOBO Tenho lá alguém, um que em tino não deixa nada a desejar, dou sempre belos frutos aos leitores. 
 
FILIPE Dás mais que frutos: dás boca e uva. 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Este Filipe é os meus pecados. E então hoje parece que estamos em sexta-feira. 
 
DIÁRIO DO RIO Aí volta... Resigna-te, xará, vais encontrar lá no céu o Mosquito, o pobre Mosquito. Ambos vocês gozarão da bem-aventurança eterna. 
 
DIÁRIO POPULAR Agra... agra... agra... 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Aí vem o Agra! 
 
DIÁRIO POPULAR Agra... agradecido! 
 
GLOBO e FILIPE O que é isto? 
 
DIÁRIO DO RIO Só do agra... agra... 
 
(Entram a Reforma e o Jornal da Tarde a disputar) 
 
JORNAL DA TARDE O Ministro fez muito bem! 
 
REFORMA Não fez tal. É um corrupto. É um tolo! 
 
JORNAL DA TARDE Tola é ela! 
 
REFORMA Miserável! 
 
JORNAL DA TARDE Regateira! 
 
REFORMA Olha que te esmurro! 
 
JORNAL DA TARDE Ah! Ele é isso? 
 
(Querem atracar-se) 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Então, o que é isso? Olhem quem está ali moribundo... 
 
JORNAL DA TARDE Vim visitá-lo. 
 
REFORMA Eu também... 
 
JORNAL DO COMÉRCIO (a Filipe)  Quem é aquela sujeita? 
 
FILIPE É a Reforma. Pois não conheces? 
 
JORNAL DO COMÉRCIO É que enxergo mal. E aquele moço que entrou com ela? 
 
FILIPE É o Jornal da Tarde. Esse não admiras que não conheças, porque é novo... É novo, ele é o que diz... A mim não me embaça... (Em segredo) É a Nação... 
 
DIÁRIO DO RIO A nação? 
 
FILIPE É a nação disfarçada de Jornal da Tarde... Não vês que é uma mulher vestida de homem? 
 
DIÁRIO DO RIO Eu logo vi, pelo palavreado, que não podia deixar de pertencer ao belo sexo. (Indo ao Jornal da Tarde) Está conhecido. 
 
JORNAL DA TARDE Oh! Colega, toque lá estes ossos... Então não se esqueceu de mim? 
 
DIÁRIO DO RIO Posso lá esquecer quem combate pelos mesmos princípios... 
 
JORNAL DA TARDE Você agora está muito bonito! 
 
DIÁRIO DO RIO Depois que morreu meu antigo patrão, enfeitei-me todo, não vê! 
 
REFORMA (sentando-se)  Ontem não houve sessão na Câmara Temporária? 
 
DIÁRIO POPULAR Agra... agra... agra... 
 
REFORMA e JORNAL DA TARDE O que diz ele? 
 
JORNAL DO COMÉRCIO É um estribilho que já nos tem maçado deveras! Não diz outra cousa: é agra para cá, agra para acolá. 
 
FILIPE Isto não é nada agra...dável. 
 
(Entra a Gazeta de Notícias)
 
 
CENA XXIII  A Gazeta e os mesmos.
  JORNAL DO COMÉRCIO Oh! Menina Gazeta, como vai? 
 
GAZETA Adeus, honrado colega... Meus senhores! Ó Reforminha, viva! 
 
TODOS  Adeus, Gazeta! 
 
GAZETA Como vai o pobre Diário? 
 
DIÁRIO DO RIO Deixa-o: está descansando... Não lhe bulas, senão dá-nos aí com o agra, que é um nunca acabar. 
 
REFORMA Então, como vais tu por lá, ó Gazeta? 
 
GAZETA Muito bem... Ultimamente então tenho sido muito procurada por causa dos folhetins de costumes... do França! 
 
JORNAL DA TARDE Ora, quem quer saber os costumes da França? 
 
GAZETA Não são da França... 
 
FILIPE São do França Júnior. 
 
JORNAL DA TARDE Ah! 
 
 
CENA XXIV  Anglo Brazilian Times e o Gil Blas aparecem.
 
ANGLO Muito belos folhetins que mim traduz para a língua inglesa... Esta cosse muito apreciada n’Ingliterre. Good morning! 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Ora viva o seu Anglo Brazilian Times 
 
ANGLO Como passe o Popular Diário? 
 
DIÁRIO DO RIO Está sossegando... Não lhe toque senão vem aí o Agra... 
 
ANGLO Oh! Yess. 
 
GIL BLAS Messieurs e medames, bonjour... Ce bon Diário Popular? 
 
GAZETA Oh! Espirituoso Gil Blas... como vais? 
 
GIL BLAS Pas mal... pas mal... Mais le confrére? 
 
GAZETA Está aqui, está com os Anjos. 
 
GIL BLAS Ah! Pauvre garçon!   
 
CENA XXV  República e os mesmos.
 
REPÚBLICA (entrando)  Eu sou a jovem República. Sabia que estáveis aqui reunidos e vinha pedir-vos que protestásseis contra o abuso da Polícia! 
 
DIÁRIO DO RIO O que fez a Polícia? 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Pois há razão de queixa contra Polícia? 
 
REPÚBLICA Sai a passeio e prenderam-me sem motivo. Deveis protestar. 
 
REFORMA Deixe estar, que o negócio fica por minha conta. Que situação! 
 
 
CENA XXVI  Os mesmos, Jornais Caricatos e Imprensa.
 
JORNAIS CARICATOS Onde está o Diário? Queremos vê-lo! Queremos vê-lo! Onde está? 
 
TODOS  Pouca bulha... 
 
DIÁRIO POPULAR Ai, ai... (Cercam todos o Diário Popular. Passa o Apóstolo a jogar pena com o Ganganelli) 
 
A IMPRENSA O que é isto? 
 
TODOS  A Imprensa? 
 
A IMPRENSA Sim, a Imprensa, que recebeu agora a notícia de que estava para morrer aqui um filho que lhe dava tantas esperanças! Pobre Diário Popular! Tão novinho! Que dor a minha: imaginem que acabo de ver morrer um, e venho assistir à Morte de outro... 
 
FILIPE Ah! Sim, o mundo é assim... 
 
JORNAL DO COMÉRCIO Este Filipe é danado! 
 
DIÁRIO DO RIO E quem foi o outro? 
 
IMPRENSA  O Psit! Morreu, coitadinho! 
 
JORNAL DO COMÉRCIO E a Rola? 
 
IMPRENSA  Ah! O A Rola, esse não morre nunca. É do tipo eterno! Pois se foi o A Rola que matou o Psit! 
 
Diário POPULAR Ai... ai... agra... agra... agra...(Expira) 
 
TODOS  Morto! 
 
FILIPE Morreu... e mais o Neves. 
 
IMPRENSA O que me consola é que estou de esperanças... Em 1º de janeiro darei luz à o Cruzeiro, e então, verão vocês o que é Jornal... Bom e de peso. Vamos enterrar o pobre Diário. 
 
TODOS  Vamos! (Saem levando o cadáver) 
 
 
CENA XXVII  O Anúncio.
 
O ANÚNCIO Vantagens quase bancárias. O Dudu vende relógios de outro a três mil e quinhentos réis a oitava e recebe no fim de um ano a quatro mil réis. À Rua da Quitanda, casa do galo que canta. (Vai saindo e volta) Esquecia-me de dizer que a cerveja Cristiana é a melhor cerveja nacional e que a Aída é um batoque. (Sai) 
 
 
CENA XXVIII  Zé Povinho, Opinião, Garden, depois Boato.
 
ZÉ O senhor... Não está ninguém em casa... Onde se meteriam estes tipos da imprensa?... 
 
OPINIÃO Estão talvez na tipografia... 
 
ZÉ Ora os tipões. 
 
GARDEN (entrando)  Estar só?... 
 
BOATO O que pretendem? 
 
TODOS  O senhor aqui? 
 
BOATO Eu estou em toda a parte... mas o meu lugar predileto é na imprensa... imprimo um cunho especial a certas notícias. 
 
OPINIÃO Você o que é, é um clichê!... 
 
BOATO Sai-te daqui, meu pastel. 
 
ZÉ Chamar pastel à minha mulher... se repete a chalaça, vai a um granel de bofetões a menos de real... 
 
BOATO Eu justifico-me... 
 
ZÉ Não quero ouvir nada... Onde está o dono da casa? 
 
BOATO O que pretendem? 
 
GARDEN Eu quer tratar de questão... com outra Companhia... 
 
ZÉ E eu, certos negócios de família... 
 
BOATO A Senhora Dona Imprensa não pode encarregar-se dessa questão... vou mandar-lhes chamar o meu colega a cargo de quem estão esses negócios. 
 
OPINIÃO Então que venha o colega... 
 
 
CENA XXIX  Os mesmos e A Pedido.
 
A PEDIDO (com uma bolsa na mão)  Às suas ordens... a cento e vinte réis cada linha de quarenta letras... e mais dez mil rés para a responsabilidade... 
 
ZÉ Quanto me pode custar? (Fala-lhe ao ouvido) 
 
A PEDIDO Isso é carito... 
 
OPINIÃO (o mesmo)  Por quanto me pode ficar? 
 
A PEDIDO É puxadito... 
 
GARDEN (ao A Pedido)  Vem cá, senhor. 
 
ZÉ A senhora é que tem culpa de tudo isto com os seus caprichos... 
 
OPINIÃO E você? 
 
ZÉ E se nós fizermos as pazes? 
 
BOATO O quê? 
 
ZÉ (a Boato)  Sai-te daqui para fora... 
 
OPINIÃO Eu não faço as pazes nem que você me vista do novo dos pés à cabeça. 
 
BOATO E eu sei onde há excelentes e baratíssimas popelines. 
 
ZÉ Vamos daí. 
 
OPINIÃO Está dito. 
 
(Vão a sair os três) 
 
A PEDIDO Ó senhores?... Venha cá... eu faço abatimento. 
 
ZÉ Adeus, meu amigo, desta vez não tem freguês... Contente-se me viajar por Macaé e Campos, ou entretenha-se com os teatros. 
 
(Saem) 
 
GARDEN Está dito então... 
 
A PEDIDO Não tem nada... Vossa senhoria merece-me toda a confiança... mande os originais. 
 
GARDEN E se tribunais não faz nada?... se imprensa no dá resultado?... Oh! vai faz questão séria. (Sente-se uma salva de vinte e um tiros e, em seguida, grande confusão de jornais. A Imprensa, todos os personagens percorrem a cena alvoroçados, gritando) Chegou Sua Majestade. 
 
IMPRENSA A mim todos. Chegou o momento de saudar o chefe do Estado. Vamos e provaremos assim, como o Brasil sabe honrar o seu primeiro cidadão, e sejam os nossos vivas ao Imperador a manifestação do nosso amor pela pátria. 
 
UMA VOZ Vivam Suas Majestades. 
 
TODOS  Vivam! (Saem)
 
 
CENA XXX  Entram Política, Boato e a Opinião.
 
BOATO (ouve-se o Hino Nacional em surdina. Política entra quase desfalecida encostada ao Boato)  O que tem? Por que treme? 
 
POLÍTICA Não sei, nem mesmo posso explicar o que senti ao ouvir aquela salva. (Torna a si e passeia agitada) 
 
OPINIÃO (ao Boato, espreitando)  É muito bem feito! Então entendia que era só fazer gastar dinheiro ao meu marido e nada mais... 
 
POLÍTICA (que tem passeado agitada)  Aquelas notícias pelo telégrafo! Vamos, nada de desânimo! 
 
(Grande vozeria) 
 
ZÉ (da esquerda, correndo)  São eles, chegaram; estão desembarcando; corramos a vê-los e a ver as festas. 
 
(Saem correndo à esquerda) 
 
POLÍTICA (a só)  E eu a mudar de trajo. 
 
 
QUADRO XI Grande festejo a Suas Majestades Imperiais.
 
(Arco triunfal da Rua Direita) 
 
 
ATO III
 
QUADRO XII
 
CENA I  Vendedores e Povo, Coro de Vendedores. Segue coro de Povo.
 
BOATO Como está tudo deslumbrante! Só não compra quem não quer. E digam lá que a cidade do Rio de Janeiro não possui a flor da gente para o negócio! Eis-me no meu elemento. Gente! Muita gente é o que eu quero! (A uma dama que passa) Dizem que seu marido a atraiçoa... 
 
DAMA Isso é uma calúnia... 
 
BOATO Talvez... mas há vizinhos que o afirmam... 
 
DAMA Se fosse verdade... (Retira-se) 
 
BOATO (a um Padre)  Posso dar-lhe os parabéns? 
 
PADRE  Por quê?! (À direita) Passe bem... 
 
ESPECTADOR Por cá! Saiba que ainda não me pude safar daqui!... Olha que já é estopada! 
 
BOATO Ora então cuida que se não sabe tudo! 
 
ESPECTADOR Tudo?... O quê?... 
 
BOATO O namoro com uma figurante da revista... uma rapariga toda chique que não ganha nada... e só no costume gastou para cima de dois contos de réis! 
 
ESPECTADOR Pois o senhor julga-me capaz duma asneira dessas? 
 
BOATO Pensa que a não vi!... (Faz a cena cômica mudas do namoro) 
 
ESPECTADOR O senhor está zombando comigo. 
 
BOATO Tanto como este cavalheiro... (Passa um Médico) A... quem vou dar os parabéns... 
 
MÉDICO A mim? 
 
BOATO Corre que foi vossa excelência o primeiro colocado no Concurso de Retórica e Medicina... 
 
MÉDICO Não me dá novidade nenhuma... isso eu já sabia. 
 
ESPECTADOR (à parte)  Talvez antes do concurso. 
 
BOATO Assistiu? 
 
ESPECTADOR Não pude. 
 
BOATO Pois perdeu, porque há muito que se não reúnem seis talentos tão belos... Safe-se... lá vem ela. 
 
ESPECTADOR Ela quem? 
 
BOATO A Amarela, a amiga do Filipe e do Barão do Lavra-deus! Estamos no fim do ano e não quer deixar de nos vir fazer uma visita. 
 
(A Febre Amarela passeia por entre os grupos. Entra um Engraxate) 
 
ENGRAXATE Engraxate... senhores. 
 
ESPECTADOR Lustra-me esse verniz! 
 
FEBRE AMARELA Para que está dando o que fazer ao pequeno... Vem comigo... 
 
ESPECTADOR Suspenda! 
 
FEBRE AMARELA Não posso... está rijo demais para o deixar por cá. (Leva o pequeno) 
 
ESPECTADOR Que desgraça! 
 
BOATO É um flagelo livrando-nos do outro. 
 
ESPECTADOR Mas por que não lavam e asseiam estas crianças e as não empregam num trabalho útil? 
 
BOATO Os senhores deles não querem. 
 
ESPECTADOR Os senhores... Pois ainda temos escravatura branca no Brasil?... 
 
BOATO No Brasil, não... Quem as vende são os pais... lá na Europa. 
 
ESPECTADOR Não é possível! 
 
BOATO Pois se quer certificar-se da coisa, leia as Cartas romanas, do Guimarães Júnior, publicadas em folhetins da Gazeta de Notícias, e verá se isso é ou não verdade. 
 
ESPECTADOR E o que faz o governo? 
 
BOATO Ver se se segura no balanço, conforme pode... 
 
UM HOMEM GORDO (à boca)  Vossa senhoria, como bom católico, quer concorrer? 
 
BOATO Para quê? 
 
HOMEM Para a compra dum capacete. 
 
BOATO Para quem? 
 
HOMEM  Para o senhor bispo... Pode lembrar-se de ir pregar outra vez a Santa Rita como no ano passado, e é bom achar-se prevenido para todas as eventualidades... 
 
ESPECTADOR Mas ouvi falar numa mitra. 
 
HOMEM Por fora! 
 
BOATO Pois Deus o favoreça, irmão... nós somos mitrados demais para cair nessas. 
 
HOMEM  Paciência... Iremos a outra freguesia... (Sai) 
 
ESPECTADOR Que maçada!... hein!... Deixaram-nos sem camisa as tais subscrições! 
 
BOATO Lá vem dois indivíduos por quem esperava. 
 
ESPECTADOR Bem sei... Zé Povinho e a Opinião... O senhor tem-se portado mal com ela... procurando estabelecer a desordem no lar. 
 
BOATO A culpa é da minha particular amiga, a Política. 
 
ESPECTADOR Pois faz a sua amiga muito mal.   
 
CENA II Os mesmos, Opinião e Zé Povinho.
 
OPINIÃO Vês, meu tonto... como isto aqui é bonito... É mesmo um paraíso. 
 
ZÉ Para ti... para as minhas algibeiras vai ser provavelmente um inferno. 
 
BOATO Vou ter com eles. 
 
ESPECTADOR Antes diga-me uma coisa que ando há muito para saber. 
 
(Descem e conversam baixo) 
 
OPINIÃO Olhe que lindas popelines. 
 
VENDEDOR E mais baratas do que em qualquer outra parte. (os outros Vendedores tossem todos) 
 
ZÉ Que diabo de catarral é este? 
 
VENDEDOR Inveja... Vejam como essa é bonita... Veja contra abanda de luz para apreciar o fio... 
 
ZÉ Bom fio... 
 
VENDEDOR Desafio a quem vender mais barato e melhor! (Vendedores tossem) 
 
ZÉ Mas o que tem esta gente? 
 
OPINIÃO Deixa-os lá!... Quanto custa o metro? 
 
BOATO É o que lhe digo... A coisa fez uma bulha... deu que falar, mas afinal de contas... 
 
ZÉ Palavra que nunca vi vender tão barato. 
 
(Vendedores tossem) 
 
VENDEDOR Se os colegas soubessem como eu administro as fazendas da minha casa, já não tossiam... 
 
BOATO A polícia mandou recolher todos de que podem lançar mão, e fez bem... uma coisa não tem nada com a outra. 
 
OPINIÃO Bem... Não quero mais nada... Para vender barato, não há como... 
 
BOATO Sociedade com Manel... era como todos acabavam. 
 
ESPECTADOR Nunca doam as mãos da polícia... 
 
VENDEDOR O meu Sócio vai à Alfândega despachar mais fazenda, se quiserem esperar. 
 
(Sai o Sócio; no meio da cena escorrega. Boato e Espectador amparam-no) 
 
ESPECTADOR Escorregou? 
 
BOATO Ia caindo. 
 
SÓCIO Esta empresa Gari, que deixa as ruas cheias de casca de bananas... Ora que bonita queda... escorregar numa banana... Safa! (Ao Boato) Meu querido amigo Boato, já não é o primeiro favor que lhe devo... (Sai) 
 
BOATO (à Opinião)  Então já enfeirou? 
 
OPINIÃO Falta-me uma corrente para o relógio... uma corrente para o leque... uma corrente para o vestido... uma corrente para o chapéu... E a minha peça toda é que ainda se não tenham inventado correntes para os maridos. 
 
ZÉ Era invenção que adotavam logo todas as mulheres velhas... 
 
OPINIÃO Pois adotava eu, sem ser tão velha como o senhor me quer fazer. 
 
BOATO Então a senhora queria trazer seu marido preso como os papagaios? 
 
OPINIÃO E por que não? 
 
BOATO Podia lhe acontecer o mesmo que a um papagaio que eu conheci... 
 
 
CENA III Os mesmos e a Política.
 
POLÍTICA Viva a bela reunião! Salve ilustres amigos meus... Parece que me esperavam... tenho aqui, segundo me consta, um bico de obra a aviar...(Vendo a casa onde comprou Zé Povinho) Ah! É ali. 
 
BOATO (à parte)  Deu-lhe o faro e vai pelo caminho mais perto. 
 
POLÍTICA Nem sempre vou à França por Tavira. (Encaminha-se para a loja onde aparece o Anjo da Humanidade) 
 
ANJO O que pretende? 
 
POLÍTICA Quero saber do dono da casa... 
 
ANJO Nada tem que saber... 
 
POLÍTICA Mas eu cumpro o meu dever... 
 
ANJO E eu o meu... 
 
POLÍTICA Sabe quem eu sou? 
 
ANJO Sei... E é por isso que lhe digo: respeitem-se os princípios... 
 
POVO Apoiado! (Anjo retira-se) 
 
POLÍTICA Não encartei a vasa... ficará para outra vez. 
 
BOATO (à Política)  Deixe a coisa por minha conta! (Alto) Então já sabem que temos crise? 
 
TODOS  Crise? 
 
ZÉ Bem sabemos... É a crise econômica. 
 
BOATO Engana-se, é crise ministerial... 
 
ZÉ Nesse caso, vou-me safando, porque me podem prender para ministro. 
 
(Entra um grupo de velhos) 
 
ESPECTADOR Aqueles é que são os ministros? 
 
BOATO Nada... São os discípulos da escola noturna, vão ouvir as preleções do Doutor Costa. 
 
ZÉ Eu vou também. 
 
BOATO No que sempre aprenderá pelo menos a lavar a casa. 
 
ZÉ E depois, se a lavar, quero ir ao teatro. 
 
OPINIÃO E eu também. 
 
BOATO Pois iremos ao teatro. 
 
 
QUADRO XIII
 
CENA IV  Qualquer cenário. Ao levantar o pano, a cena está escura. Entram Zé Povinho, Opinião e Política. 
 
POLÍTICA Olha que estás hoje mais amolado do que... os artigos sobre a Macaé e Campos. 
 
ZÉ Por que diabo está isto a escurecer? 
 
POLÍTICA Hoje há eclipse da Lua, meu tolo. Olha, falavas dos teatros. Eles aí vem. 
 
(Aparecem os teatros. Espectador num camarote) 
 
ESPECTADOR Não! Lá é que não me pilham! Não saio mais daqui. O Vale fica escamado. 
 
(Coro dos teatros)  
CENA V  Os mesmos, os Teatros e um Toureiro.
 
OPINIÃO Sim, sim; isto é muito cômodo. Em vez de ir a gente aos teatros, os teatros é que vêm à gente. 
 
ZÉ (ao São Pedro)  Quem é você? 
 
SÃO PEDRO  Eu sou São Pedro, o mais antigo depois que morreu o meu colega São Januário. Neste ano tenho andado numa faina como não imagina o senhor, mas não tenho feito nada. Os três castelos de Espanha foram castelos no ar. As inundações de Portugal não me inundaram de notas. A lâmpada maravilhosa não me alumiou como devia. A filha do fogo pegou fogo. A mulher do saltimbanco foi uma mulher perdida. Se não fossem A cabana do Pai Tomás e a Jerusalém libertada... O que seria do velho São Pedro? 
 
ESPECTADOR A cabana do Pai Tomás devia ser proibida pela polícia. 
 
SÃO PEDRO  Por quê? 
 
ESPECTADOR (no camarote)  Fui ver aquilo e levei comigo os meus escravos. Sublevaram-se Todos! Já não bastava a Lei de 28 de Setembro! 
 
SÃO PEDRO  Tive lá uma Companhia de Lisboa: a que representaram com mais arte foi As intrigas no bairro. O mais... meus amigos, não serviu senão para fazer com que o público lastimasse o caso de um talento de primeira água. 
 
ZÉ (ao Pedro II)  E o senhor? Quem vem a ser? 
 
PEDRO II Eu sou o teatro Pedro II, o teatro dos extremos, ou o circo dos saltimbancos, ou a sala da grande ópera. Este ano apareceu por lá uma novidade: as ocarinas sopraram muito, mas não assopraram o público. Depois vieram Fuci, Roles e Mendoros, artistas de primo cartello. Grandes espetáculos a quarenta mil réis por camarote! Lindas óperas, Fausto, Trovador, Aída... Vocês não vieram a Aída? 
 
ESPECTADOR Eu de óperas só conheço A volta de Cogumelo. 
 
PEDRO II Oh! a Aída! A Aída! Que delírio! Que entusiasmo! O Rio de Janeiro era todo Aída! Que furor! A índole deste povo é essencialmente lírica! 
 
SÃO PEDRO  Sim, ganhaste muito dinheiro: porém mais hei eu de ganhar com isto. (Tira do bolso um manuscrito) 
 
PEDRO II O que é isto? 
 
SÃO PEDRO  A viagem ao redor do mundo em oitenta dias. (Mete outra vez no bolso) 
 
CASSINO (arregalando os olhos)  Oh! (Empalma o manuscrito. Tossindo e disfarçando, sobe ao pé de Zé Povinho) Hum... hum... (Dirigindo-se ao Zé Povinho, com volubilidade) Eu sou o Cassino. Andava dantes maltrapilho e malcheiroso... cheirava a angu. As famílias tinham fugido de mim. Os pais não queriam que os filhos me visitassem. A polícia tinha-me os olhos em cima. Andava por lá, apesar de tudo isso, o primeiro cômico nacional... Quando, de repente, um homem limpo enfeitou-me, lavou-me, ensaboou-me, almiscarou-me: as famílias voltaram, os filhos obtiveram de novo licença dos pais para visitar-me, a polícia descansou sobre o meu comportamento... Vejam: ando de casaca, gravata branca, chapéu de pasta... Hein? Que lhes pareço? 
 
ESPECTADOR Quem o ouve falar, não o leva preso. 
 
ZÉ (ao Ginásio)  E você quem é, ó pequeno? 
 
GINÁSIO Deixe-me, homem: eu sou um desgraçado. 
 
ZÉ Sim? 
 
GINÁSIO Tenho caveira de burro! Não sei o que é! Toda a gente foge de mim. Ninguém me quer! 
 
Neste campo solitário  Onde a desgraça me tem,  Falo — ninguém me responde  Olho — não vejo ninguém. 
 
Andou por lá também alguém e foi de ventas à torneira. Pois se caíram nessa asneira! Quiseram ver se faziam alguma coisa com o Frade Negro... 
 
OPINIÃO Irra! Frade e negro de mais a mais! 
 
POLÍTICA O que é que têm os frades? 
 
ESPECTADOR Lá está a Política a defender os frades! 
 
GINÁSIO Nem A porta do Inferno me abriu a do Paraíso! Nem A Irmã do cego... cego estava quem a representou... Nem o Botão de âncora. Nem nada! Agora vivo entregue aos curiosos... preferia estar entregue à curiosidade... Mas qual! Quem me aparece por lá de vez em quando é a distinta atriz fulana de tal, a fazer benefício, com o concurso do distinto amador... 
 
TODOS  Coitado! Pobre Ginásio! 
 
OPINIÃO E o São Luís onde está? (Ao São Luís) Agora conte também sua história. 
 
(Ao mesmo tempo) 
 
SÃO LUÍS Apesar de santo como o São Pedro e de novo como cassino, sou caipora como o Ginásio.
GINÁSIO Apesar de ter santos, ser santo, e de não ser tão novo como o vizinho...
 
POLÍTICA Por quem são, fale cada um por sua vez; não os ouço... 
 
SÃO LUÍS Que quer?... É esta música aqui do lado que nem me deixa ouvir a mim mesmo. 
 
POLÍTICA Pois mande parar a música. 
 
SÃO LUÍS Não posso. Apesar de lhe ter metido uma parede de permeio, ficamos sempre de parede-meia. 
 
POLÍTICA Pois Senhor Ginásio... Conserve-se agora calado como tem estado depois que se abotoou com o botão. 
 
GINÁSIO Que eu julguei ser a minha âncora de salvação. 
 
SÃO LUÍS E que ferrou com você à porta, inferi. 
 
GINÁSIO Desenganado, recorri finalmente ao patriotismo... 
 
POLÍTICA O quê? Pois meteram-me à bulha nos teatros? 
 
ZÉ Ora, senhor! Só vejo lágrimas. 
 
OPINIÃO (ao Alcazar)  E lá?... Quem é? 
 
ALCAZAR Eu sou Santa Isabel. 
 
PEDRO II Olha, morde aqui! Queres passar por Santa Isabel, mas comigo é que não arranjas nada. Tu és, mas é o Alcazar... Podes disfarçar-te como quiseres... hás de ser sempre o Alcazar! 
 
ALCAZAR Para que me andas a descobrir? Se aquela gente sabe quem sou, não aparece por lá... 
 
ZÉ O que é que nos dá de novo, seu Alcazar-Santa Isabel? 
 
ALCAZAR Um drama nacional: A Lei de 28 de Setembro... Não vem? 
 
ZÉ Não gosto de semelhante lei... O que há mais? 
 
ALCAZAR O casamento da filha de Maria Angu. 
 
TODOS  Aí... 
 
SANTA ISABEL Ah! Não querem nada disto? Vou procurar um paio que me empreste dinheiro para montar uma mágica. 
 
ZÉ Veja antes se encontra um mágico que lhe empreste dinheiro para comprar paios e monte uma venda. 
 
SANTA ISABEL  O senhor insulta-me! 
 
ZÉ Ora vá para o inferno. (À Fênix Dramática) E a senhora, tão catita, tão levada? 
 
FÊNIX Eu sou a Fênix Dramática... Tenho tido bons sucessos, graças a Nossa Senhora do Parto, de quem sou vizinha... Dou um prêmio a quem provar o contrário, assim como que a cerveja Glória não é a melhor cerveja nacional. O meu empresário sabe onde tem o nariz. 
 
ESPECTADOR Pudera! Um nariz daquele tamanho! 
 
FÊNIX Sim, senhor! O que está aí a falar! O meu empresário enxerga um palmo adiante do nariz! 
 
ESPECTADOR E há de convir que enxerga muito! Um palmo! 
 
ZÉ (ao Varietés)  E o menino? 
 
VARIETÉS Je suis les Varietés 
 
ZÉ Ai! mau! Não pode dizer isso em português? 
 
VARIETÉS Non, mon cher. Je suis tout français... 
 
ZÉ Então boa noite. No entende franciú. Não me apanhas nenhum l’argent. (Ao Circo) E você, seu gaiato? 
 
CIRCO  Eu sou o Teatro-circo. 
 
ZÉ Ora até que finalmente achei coisa que me sirva! (Abraça o teatrocirco) 
 
ESPECTADOR É! O Zé Povinho não quer saber senão dos cavalinhos! 
 
ZÉ O que me dás para ver? Eu quero coisa boa! 
 
TEATRO-CIRCO  Vais ver. 
 
(Mutação. Aparece ao fundo um pano branco) 
 
 
QUADRO XIV Sombrinhas.
 
(Os teatros arranjam-se dos dois lados da cena. Zé Povinho Admirado) 
 
TEATRO-CIRCO  Vais ver o Blondin! (Passa pelo fundo o Blondin) A Speltrini! (Passa a Spelterini) Tony, o imbecil e Bob, o maluco. (Passam) A romaria ao Vaticano! 
 
(Passa pelo fundo um trem de ferro e, logo depois, sujeitos a correr atrás dele. Passa depois um Padre) 
 
ZÉ Dois sujeitos a pancadas?... 
 
ESPECTADOR Aquilo é um duelo de pau... e chapéu. 
 
 
CENA VI  Os mesmos e a Arte.
 
ARTE (ao fundo)  Zé Povinho! 
 
ZÉ Pronto! Quem é Sua Senhoria? 
 
ARTE Eu sou a Arte. 
 
(Os teatros fogem em debandada, e passam com sombrinha) 
 
ESPECTADOR O Cassino afasta-se: ao que parece despreza a Arte? 
 
CASSINO Já não tenho arte... Trabalho com artes para agradar. 
 
ESPECTADOR E pensas no grande gênero? 
 
CASSINO No grande e espetaculoso... Nisso de ganhar dinheiro sou como Hamlet... To be or not to be 
 
ESPECTADOR Fale-me em português, se quer que o entenda. 
 
ARTE Zé Povinho, vou-te mostrar um trabalho digno do teu apreço! Olha e admira! 
 
(Rompe-se o pano de fundo e aparece o quadro da Batalha de Avaí. Hino Nacional em surdina. Execução da mutação) 
 
POLÍTICA (à esquerda, depois do grupo dos teatros)  Ora! Tem defeitos. 
 
ARTE Poderá não os achar a Política. 
 
(Mutação) 
 
QUADRO XV A Imprensa Nacional.
 
ARTE Aqui tens, Zé Povinho, outra obra de arte digna de ti! É um edifício que honra o país.
 
(A Arte sai) 
 
ZÉ Mas este é mais pequeno que a verdadeira arte. Outro não caberia na porta...   
 
CENA VII  Política, Zé Povinho e Opinião.
 
POLÍTICA Ficaste embasbacado, meu tolo! Sempre és muito lorpa! Pois, anda daí, vem ver como ressurjo os mortos! 
 
OPINIÃO Ressurge os mortos! Credo! 
 
POLÍTICA Acompanhas-me? 
 
ZÉ Como não? Se minha mulher já tivesse morrido é que me não pilhavas lá! 
 
POLÍTICA Vamos! 
 
(Saem) 
 
 
CENA VIII  Uma Russa, seguida por algumas pessoas do povo.
 
RUSSA (lendo)  Mais la femme és la más perfeta creatin of the God! 
 
TODOS  Basta! Basta! Ó Senhor! Que maçada! 
 
ESPECTADOR O que é isto? 
 
RUSSA  La femme... 
 
TODOS  Basta! Basta! 
 
(A Russa continua a falar ao povo, que protesta e foge. Espectador salta ao palco) 
 
ESPECTADOR Nada! Eu quero saber o que é isto! Não está bem explicado! (Agarra um homem do povo que vai saindo por último) Diga-me: o que é isto? 
 
HOMEM  É uma literata lá da Sibéria!... 
 
ESPECTADOR Pois olhe: é bem quente! 
 
HOMEM  Fez-nos, no Teatro São Pedro, uma leitura impossível sobre a mulher... 
 
ESPECTADOR E sobre o homem? Não disse nada? 
 
HOMEM  Saímos desesperados do teatro, e ela entrou a perseguir-nos. Quero ver no que dá isto. (Sai a correr) 
 
ESPECTADOR Que diabo de mulher! O que vem a ser isto!   
 
CENA IX  Espectador, um Sujeito e Telefone.
 
SUJEITO (com o fio e a trombeta do Telefone)  Arrede-se, sim, arrede-se! Ando a fazer experiências do Telefone. 
 
ESPECTADOR O Telefone! 
 
SUJEITO (falando pelo telefone)  Congratulo-me por este melhoramento... 
 
O TELEFONE  Bem, muito obrigado! 
 
SUJEITO  Bem; vou para mais longe. (Sai a correr: pouco depois passa o indivíduo que leva a outra extremidade) 
 
 
CENA X  Espectador e Conservador (com um regador na mão, esbarra no Espectador).
 
ESPECTADOR Olá! Não vê por onde anda? 
 
CONSERVADOR Desculpe, que me caíram as cangalhas. 
 
ESPECTADOR Pode-se saber onde vai com tanta pressa? 
 
CONSERVADOR Onde vou?! Pois o senhor não sabe que sou o Conservador? 
 
ESPECTADOR Então não tem podido ser liberal... 
 
CONSERVADOR Tenho poupado o que me tem sido possível... mas o senhor não entendeu... e sou o Conservador do passeio... 
 
ESPECTADOR É bom vadio. 
 
CONSERVADOR Não me entendeu ainda... do passeio... 
 
ESPECTADOR-PÚBLICO ...e notório é isso. 
 
CONSERVADOR Vou regar, varrer, podar, limpar, pintar... Tenho pintado o sete, mas obrigam-me agora a pintar a grade... 
 
ESPECTADOR Para agradar, pinte; e para pintar, agrade. 
 
CONSERVADOR Não há remédio! Ergueram a vassoura a altura de um princípio! — Adeus, adeus, que já está nomeado o homem do fogo para dar parecer sobre aquilo. (Ouvem-se grandes sopros. O Espectador e o Conservador caem no chão) O que é isto? 
 
(Entra Tufão, e canta a ária do Eólo na Filha do Ar) 
 
ESPECTADOR É um Tufão. (Levantam-se) Não se machucou? 
 
CONSERVADOR Nada, eu sou um alho... 
 
ESPECTADOR (assobia)  Alho. 
 
CONSERVADOR Quer vir até cá? 
 
ESPECTADOR Vamos; não tenho que nada que fazer... não sou da peça... 
 
(Saem. Mutação) 
 
QUADRO XVI Política, Zé Povinho e Opinião. 
 
(Cemitério)
 
POLÍTICA Eis-nos chegados! 
 
OS DOIS  Chegados somos! 
 
OPINIÃO (assustada)  Ai! 
 
POLÍTICA Conduzi-vos aqui para vos mostrar o meu poder sobre os mortos! 
 
ZÉ Até sobre os mortos! A Política é dos trezentos! 
 
POLÍTICA  Vou ressurgir a briosa Guarda Nacional! Vede e pasmai! (Faz acenos. Com grande susto de Zé e Opinião, entram a sair dos túmulos primeiro — oficiais superiores, depois soldados rasos da Guarda Nacional. Marcha fúnebre que descai em marcha bélica. Grande desfilada) 
 
ZÉ Mas eu já vi esta revista de tropas noutra Revista. 
 
(Saem todos ao som da marcha) 
 
 
CENA XI  (Entra um indivíduo embuçado dos pés à cabeça; depois outro; segredamse. Entram a pouco e pouco outros indivíduos. Segredinhos, etc. A orquestra toca a introdução do Coro dos Conspiradores da Madame Angot; os embuçados preparam-se a cantar, mas dizem apenas psiu e saem, ficando apenas um em cena, que é Boato) 
 
BOATO E finda-se o ano sem que se saiba qual é o novo ministério. (Sai) 
 
 
CENA XII  Febre Amarela e Canal do Mangue.
 
FEBRE É o diabo com botas! Que contas hei de dar de mim? Tu é que tiveste a culpa! Maldito Canal do Mangue! 
 
CANAL  Eu! Estou aterrado! 
 
FEBRE Meti-me de amores contigo; gastei todo o meu tempo em pândegas, e esqueci-me de matar alguém. É o diabo! 
 
CANAL  Mas... 
 
FEBRE Vem daí, vem daí, meu sedutor! Agora só para o ano!  (Saem)   
 
QUADRO XVII
 
CENA XIII  Opinião e Zé Povinho entram com malas. 
 
(Sala)
 
ZÉ Basta de vadiação! Vamos! Vamos! 
 
OPINIÃO Não percamos nem mais um instante! Um ano de pândega!  (Vão a sair) 
 
 
CENA XIV  Os mesmos e Anjo da Humanidade (com algumas coroas na mão).
 
ANJO Um instante! Antes de partir, venham comigo depositar coroas nos altares dos heróis que engrandeceram a pátria com o talento e as virtudes, e que nos foram arrebatados pela Morte neste maldito ano que finda. Ao Panteon dos Brasileiros, que bem mereceram da pátria.  
 
(Saem. Mutação) 
 
QUADRO XVIII Pompeu, Pinheiro, Guimarães, Alencar, Gomes de Souza, Zacarias.   (Panteon)
 
ANJO Agora, que acabamos de cumprir um santo dever de gratidão saudemos a aurora do ano novo, para que só traga ao Brasil alegrias, progresso e glória.

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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