Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ROMANCE DE CLARINHA / Odette de Saint Maurice
O ROMANCE DE CLARINHA / Odette de Saint Maurice

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

De pé na estreita ponta do reduzido promontório formado pelas rochas ao avançarem pelo mar dentro, mais vestida pelo sol do que pelo traje azul que lhe moldava as formas elegantes, esboçou alguns movimentos ginásticos, capazes de lançá-la ao banho antes do tempo.

Flexível, calcanhares unidos, peito erguido na inspiração, abriu os braços, levantou-os a toda a altura e depois inclinou o busto, o corpo, até juntar os dedos esguios ao solo pedregoso. Outra vez erecta, tornou a dobrar-se, braços agora estendidos para os lados, levantando a perna direita à retaguarda até a colocar em posição paralela à linha da cabeça, equilibrando-se o melhor possível na esquerda retesada e formando assim uma espécie de balança. Depois, num gesto de pueril satisfação, deu alguns saltos que fizeram esvoaçar os cabelos de tonalidades acobreadas e quedou por fim imóvel, de mãos poisadas nos quadris. Respirava a plenos pulmões, como sentindo um intenso prazer em aspirar as emanações salinas.

- Que bom! - exclamou então, deleitada. - Isto agrada-me tanto! Que maravilha sentir-me integrada na natureza forte, indomável! O mar... o meu amigo mar! Tão grande como as minhas ambições, tão vasto como os meus sonhos ilimitados!...

- e após um arrebatado gesto para os horizontes, que não podia cingir, talvez apontando algo que jazesse invisível, continuou a rir, quase a cantar, entre dois suspiros de evidente satisfação: - Se a alguém fosse dado contemplar-me neste momento diria perante a minha atitude "que comediante! Estará a ensaiar alguma nova peça... a pregar aos incautos... ou é maluca?... - e de súbito um tanto enervada: - É isto! São parvos ou são maus! Não percebem!... E é triste, triste, reconhecer que a nossa sinceridade, a Verdade dos nossos pensamentos revelada em toda a sua plenitude causa normalmente uma desagradável impressão de artifício, por tão pouco vulgar... Vá lá a gente, livre das brilhantes roupagens dos preconceitos, mostrar-se tal qual é a esse mundo de baixezas, de vícios, onde cada qual parece disposto a ver retratados nos outros os próprios defeitos! - e numa repentina lembrança: - Espera... onde foi que li isto? Não é original da minha cabeça!... - mas logo, presa da reflexão íntima, prosseguiu: - Mundo falso, mundo agreste, onde todos se disputam, onde todos ambicionam o prejuízo alheio em favor do seu lucro... Mundo de mentiras, invejas e ódios... Mundo que me obrigas a detestar-te porque te vou entendendo e quanto mais entendo mais detesto! Por isso te fujo e fugirei, porque tu não podes compreender-me, porque tu não sabes acolher os meus ideais, porque tu ririas dos meus anseios, porque em mim só vês o invólucro exterior quando acima de tudo sou Alma! Por isso te fujo e fugirei, porque em ti devo ser o que tu queres e não o que eu sou, porque tu me tornarias infeliz e aqui, sozinha, vibro à beleza que me envolve e na qual me integro e canto e rio ou choro sem me tornar reparada ou criticada! Não consigo ser-te superior porque não tenho forças para arrostar com as tuas opiniões. Portanto evito-te... e sinto-me bem! Oh! Fosse eu expressar-me junto de ti como o estou fazendo agora! De que forma olharias para mim!... E afinal... não considero nenhuma insensatez falar comigo mesma, dizendo aos meus ouvidos aquilo que me vai cá dentro... É maravilhoso pertencer ao meu verdadeiro Eu e viver com ele! Ah, sim, sim! Muito gosto disto! - logo a seguir, como se quisesse sacudir a importuna amargura que ameaçava apoderar-se dela, sacudiu a bela cabeça e aprestou-se para novos movimentos ginásticos que por certo lhe desentorpeiam corpo e espírito. Mas suspendeu-se a meio, galvanizada por uma repentina sensação de estar sendo observada. Era a certeza de um olhar pesando sobre ela, deslizando-lhe ao longo da pele e provocando-lhe um arrepio que dir-se-ia secreto, aviso da vigilância de que se tornara alvo. Dessa corrente magnética, pelo sub-consciente registada com espantosa nitidez, resultou voltar-se inesperada e impulsivamente, entre confusa e inquieta, a inspeccionar os arredores.

Não lhe mentira a singular advertência do instinto e nem teve de procurar muito para verificá-lo.

A cerca de três metros de distância, contemplando-a, achava-se um jovem de calça branca e camisola amarela.

A primeira reacção da rapariga à desagradável surpresa foi de cólera contra o atrevido que se permitia analisá-la tão impertinentemente. Mas por igual sucumbida ante a audácia que a afrontava, não teve ânimo para descerrar os lábios e castigar como devia o insolente que pelos vistos se entretivera a desfrutá-la. Mesclava-se-lhe a ira de inexprimível vergonha, talvez por ter servido de distracção ao desconhecido que entretanto permanecia sereno, como se considerasse muito natural a ousadia de continuar fixando-a.

A verdade, porém, é que ele devia já ter notado a irritação daqueles olhos altivos, olhos de cor indefinida na sombra das pestanas enormes, que defrontavam os seus erguidos a cavar sulcos de expressivo descontentamento na testa ampla. E então, pretendendo com certeza dissipar-lhe o desagrado, aventurou-se a dirigir-lhe um cumprimento banal, enquanto avançava ao seu encontro.

- Bom-dia! Passou bem?

Porque não respondeu ela, se jamais recusara a salvação fosse a quem fosse? A verdade é que tinha a língua como que pegada ao céu da boca! E não proferiu uma palavra, não esboçou um gesto, continuando a fitar o audacioso que se autorizara surpreendê-la numa crise de autenticidade.

E ele, sincero, a esforçar-se por cativá-la:

- Perdoa-me se lhe disser que o amor que vota à Natureza é idêntico ao que eu próprio experimento?

Mas, longe de se deixar conquistar, ela mais se distanciava nos píncaros das suspeitas. Que tipo incorrecto! Insistir em falar-lhe quando perfeitamente devia reconhecer que a sua presença a incomodava! Poderia ainda desculpar-lhe a primitiva indelicadeza atribuindo-a a justificada curiosidade. Assim, não! Ele estava-se tornando intolerável e pela certa não era boa pessoa... Porque, se fosse, cessaria acto contínuo a detestável insistência!

Mortificada, sem saber como livrar-se do intruso que parecia decidido a encetar diálogo, indiferente a que ela o animasse ou deixasse de animar, baixou o rosto, julgando perceber que ele troçava intimamente da sua desastrada atitude. Sentia-se

invadida por uma desesperada ânsia de fugir, visto não poder sumir-se pelo chão abaixo...

Mas... fugir para onde? Não podia alcançar o atalho sem passar rente a ele e temia que um semelhante atrevido, possivelmente capaz de tudo, lhe embargasse o caminho, cortando-lhe a retirada.

Olhou a praia distante, com os pequenos toldos alvejando, e a grande toalha azul, deixando ver os peixes miúdos que a sulcavam em todas as direcções, que dela a separava. E a grande toalha azul estendida a seus pés seduzia-a intensamente, como meio de evasão em que não iria ser perseguida...

Já o desconhecido, longe de poder suspeitar-lhe os pensamentos, se abeirava dela, no intuito de a persuadir a uma conversa. O bastante para a decidir, alheia a quaisquer sensatas considerações!

Uma reviravolta, um salto, um mergulho - pff, ff ff, ff f! - nas águas que fizeram remoinho e lá mais adiante inspirando avidamente o ar bendito que lhe restituía a vida e nadando com movimentos desordenados e rápidos que mais a cansavam do que levavam...

Do cimo do rochedo, ele via-a afastar-se, atónito daquela resolução que não lhe fora dado prever e sorrindo... talvez daquela inesperada manifestação de selvajaria!

Mas longe estava agora a rapariga de pensar em volver os olhos para o promontoriozito; pouco lhe importava que estivesse ou não a ser desfrutada! Empolgavam uma enorme fadiga. O esforço dispendido para ritmar os movimentos aumentava-lhe a canseira em vez de lha diminuir. E depois as águas, que vistas de cima tão quietas pareciam e na verdade se encrespavam sob o ventinho que as fustigava manso mas constante,

batiam-lhe na cara e no nariz, enchiam-lhe de zumbidos a cabeça,

punham-lhe ardências na boca, sufocando-a, roubando-lhe a respiração. A breve trecho começou a sentir-se exausta, com dores fortes nos braços e nas pernas. Não nadava, sapateava nas ondas que a envolviam; esbracejava; debatia-se. Segredou-lhe a força da conservação que ia soçobrar e então, desesperadamente, tentando, por um golpe de raciocínio, empregar as últimas energias para conseguir flutuar, lançou um brado incoerente - pois quem podia ouvi-la naquela solidão marulhenta?

- Socorro! Socorro!

Mas não ficou sem resposta, como seria de prever. Retorquiu-lhe imediatamente uma voz sonora, uma voz que lhe extinguiu a continuação do apelo, uma voz que lhe faria medir mais assisadamente as consequências da sua precipitação...

- Então que é isso?... Um momento só!... Estou aí a chegar... Coragem!

Instintivamente, voltou um pouco a cabeça e avistou-o cortando a água com naturalidade idêntica à de qualquer mortal cortando o ar das ruas... e vinha a falar-lhe sem detença, no visível intento de animá-la.

- Quando saltou para a água, vi logo que ia haver asneira! Caiu mal, afundou-se demais e nadou com tamanha pressa que parecia estar-se treinando para a corrida dos mil metros em crawl... - chegara já ao lado dela, tentando serenar-lhe a crescente angústia com a certeza de um apoio. - À cautela, atirei-me eu logo de seguida... Se fosse ter a lembrança de se afogar, nunca me perdoaria. A culpa era minha... Creio que a assustei, não sei bem porquê. Seria pela cor da minha camisola? Há pessoas que embirram com o amarelo! Ou terei cara de lobisomem? - e ria com tanta simplicidade que, mau grado seu, ela sentia dissipar-se-lhe o rancor que se percebera a votar-lhe.

Então, para corresponder ao auxílio prestado, quis dizer alguma coisa, sem má-vontade, antes mostrando um certo interesse por ele. E entre duas goladas de água e dois batimentos de desequilíbrio, indagou:

- Que fez à sua roupa?

O rapaz nadava agora à sua beira, pouco se movendo a fim de a acompanhar na lenta progressão.

- Ficou em cima das pedras. Depois virei buscá-la. Foi uma sorte trazer o slip vestido, porque de contrário... não sei se seria tão pronto a lançar-me à água. Não tenho jeito para terra-nova... - e mostrava uns dentes brancos e fortes no rosto moreno. - Assim foi só antecipar o banho...

Ela sorria à franqueza da expressão cortês e, animada pela tranquilizadora presença, tentava aguentar-se melhor. Contudo o seu cansaço não passava despercebido ao companheiro.

- . Espere aí, não se esforce mais! - disse. - Agarre-se a mim.

Ela discordou, numa derradeira tentativa para mostrar-se forte.

- Obrigada, não é preciso.

Mas ele, muitíssimo autoritário, falava de uma maneira que não admitia fácil réplica.

- 'Deixe-se de prosápias e agarre-se. Deite a mão ao meu ombro e deixe-se rebocar.

E ela, inesperadamente submissa, obedeceu. Mas o balanço da água e os gestos desastrosos atiravam-na de encontro ao corpo dele, não a deixando seguir apenas na esteira do nadador. Colava-se-lhe. Então, aflitíssima, vivamente incomodada, gritou:

- Oh, meu Deus! Assim não! - e em rebeldia, soltou-se, pelo que, perdendo a estabilidade, desapareceu na água.

Um braço vigoroso e irritado trouxe-a à superfície sem contemplações nem etiquetas.

- É completamente doida! Quer morrer?

- Cuspinhando de olhos fechados, doridos no ardor provocado pelo sal, sentindo-se segura pelo queixo, lamuriou um protesto mais frágil - porque se sentia deveras atrapalhada...

- Mas não posso ir encostada a si!...

Mais valera não ter descerrado as pálpebras ao terminar a frase, tal foi a expressão de desdém com que defrontou nas pupilas que a flagelavam sem a mínima simpatia.

- 'Oiça, menina. Neste momento não saberá esquecer que sou um homem para somente recordar que não passo de um ser humano que não pode deixá-la afogar-se?

O orgulho feminino, por instantes adormecido, voltou a manifestar-se, desperto pela chicotada e encabritou-se, esquivo.

- Não se aflija, que nado sozinha.

Largou-a ele imediatamente, com um risinho zombeteiro.

- Nesse caso vou já para terra porque nado depressa. Não pretendo

- impor-lhe a minha companhia e a comboiá-la não estou disposto, porque fico gelado e não vale a pena sacrificar-me por quem não precisa de mim...

E ela, sem quebrar o tom agastado:

- Pois desapareça!

Ele deu duas braçadas mais fortes.

- Boa-tarde! - e como derradeiro aviso em que se livrasse de quaisquer responsabilidades: - Olhe, é flutuar até que lhe mande um barco!

Ao vê-lo afastar-se resoluto, a rapariga sentiu, por um segundo, uma louca vontade de gritar, de pedir-lhe que a levasse, fosse como fosse, porque tinha medo de ficar ali abandonada.

Mas a indómita altivez amordaçava-a, não a deixando de forma alguma manifestar a sua fragilidade...

Então, conformada, alongou-se melhor, toda estendida de costas, de braços em cruz, corpo extremamente leve, abandonada ao baloiço das águas. E de pálpebras cerradas, aguardou.

Tudo silêncio em derredor. Apenas o murmúrio doce das vagas cantando-lhe aos ouvidos misteriosas melopeias nas quais o seu espírito concentrado queria adivinhar poéticas frases de amores lendários, amores de cavaleiras que andavam no mar à conquista da glória para depô-la como suprema oferenda aos pés da bem-amada... E na alma romântica, embalada pela canção discreta, o fulgor de um indistinto desejo - "ser também a bem-amada de um moderno cavaleiro que lutasse para conquistá-la! "...

 

Do tonto divagar - ilusões sem vultos, nuvens esfarrapadas no infinito de quiméricos anseios - veio despertá-la o barulho surdo, cadenciado, das pás cortando as águas e a voz jovial do remador.

- Atão, menina Clarinha, naufragou?...

- Era tempo de chegar! Eu não aguentava mais!

Já à sua beira o bom do Ti Jaquim, risonho entre barba e bigode de oito dias, grandes olhos afectuosos de lobo do mar afeito a mais amar a vida por mais enfrentar a morte, na sombra rude do boné negro enterrado sobre a cabeleira hirsuta a censurava:

- Más porque num aceitou que Sor Doitor a lebasse prá terra?... Olhe que ele é home pra rebocar duas galinhas acanto mais uma franganita cumá menina! - e estendia-lhe os braços paternais, a fim de a ajudar a subir para a aiola.

Ela quis explicar-se, protestar razões que pudessem parecer razoáveis (reconhecia que fora totalmente caricata! mas mais não soube que balbuciar.

- Receei abusar da amabilidade dele!

- O velhote indignou-se.

- Cais quê! Aquilo é home às deretas, num dêxa ninguém àsmíngua sem ajuda! Tamém aqui, nesta auguinha santa, não hi prigo. Mas i no outro ano, teve um sujêto que num sábia nadar e quis fazer de valente... Foi o bom e o bonito! Boltou-se o charuto, o tipo andou praí à deriva... Pois antes dos banhêros, já o Sor Doitor ia à busca dele! É o que lê digo! Aquilo é nome às deretas!

Instalada à ré, no duro banco incómodo, a rapariga estendia-se, procurando refazer-se, aconchegada pela voz cantante e expressiva do banheiro, tão engraçada nos seus típicos comentários. Depois,

arrancando-se ao indefinido sortilégio que a avassalava, e talvez um pouco nervosa, sorriu.

- Paciência! Agora já não tem remédio e eu prefiro assim. Devo a vida ao Ti Jaquim!

O velhote flagelou-a com nova recriminação - vogais muito abertas, consoantes muito nasaladas:

- Mas tamém que ideia foi essa de vir a nadar de tam longe?

Clara voltou o rosto, ruborizada até às orelhas.

Afinal, verdade verdade, nesse dia apenas cometera imprudências, imprevidências e incoerências... Tudo rimando e tudo certo!...

E teve de confessar:

- Sei lá! Apeteceu-me!

Soou pronta réplica.

- Querem ber que não tarda a bir a nadar do farol? - e ria, mostrando os dentes sadios no rosto curtido pelos ardores de longos estios e pelos bastos invernos passados sobre o mar.

Impulsionado pelos braços vigorosos do banheiro, o barquito deslizava rápido e acercava-se da praia.

Moída, Clara fechava os olhos, abandonada à tépida e reconfortante carícia do sol. Depois, de súbito, descerrou as pálpebras e soltou uma pergunta inesperada e resoluta, que brotava naturalmente do intenso labor do cérebro excitado.

- No fim de contas, quem é essa criatura excepcional a quem o Ti Jaquim chama Doutor?

Joaquim fitou-a pasmado, tanto pelo tom agressivo como pela indagação que se lhe afigurava destituída de senso.

- Hom essa! Chamo? Chamo porque ele é! Doitor, pois!

- Formado em quê? - e sem esperar resposta, com arzinho desdenhoso: - Naturalmente em medicina! Todos os meninos bonitos usam o DR na frente do nome e são médicos. É vulgar!...

Joaquim abanava a cabeça, lentamente.

- Na... Acho que é Doitor nas letras... Pio menos é o que dizem por i...

- - Hum, hum! - comentou ironicamente, como apostada em diminuir a figura que o velhote prestigiava: - Curso que dá para morrer de fome...

Ti Jaquim não lhe respondeu. Primeiro por lhe parecer que a jovem banhista estava a ser muito descrente em relação a títulos afamados nos quais ele, o pobre pescador, via ganhos chorudos atraídos pelo vocativo pomposo; segundo porque a aiola estava rente à praia e era preciso

virá-la com jeito, não fosse alguma onda traiçoeira apanhá-la de flanco e voltá-la sem contemplações...

O filho, um rapazote esgalgado, assas indolente de maneiras e em cujo olhar nostálgico se diria gravado o perene saudosismo dos mareantes, aproximara-se para ajudar a manobra, enquanto uma chusma de petizada, grulhenta e já maliciosa, metida na água até à cintura, se pendurava às bordas da embarcação, chispando comentários.

- Olha a gaja que tava a fazer-se forte! - bradava um azougado petiz de cabelos anelados.

E os outros todos, mais ou menos em coro, perguntavam-lhe "se não tinha morrido"...

- Eh, Damião!... - bradou o velho banheiro. - Anda-me di... Deita a mão à aiola e ajuda a menina a descer!

Não era preciso.

Mordendo os lábios - adivinhava igual à da garotada a curiosidade das famílias pacatamente instaladas sob a protecção dos toldos! -, Clarinha saltou ágil do barco.

De pé, a poucos metros de distância, apoiado a um remo que enterrara na areia, perfilava-se o moço doutor, tão impassível como se não desse pela rapariga, não a visse e não se apercebesse de que afinal ela lhe devia agradecimentos.

E ao verificar isto mesmo, Clara foi aguilhoada por azeda lembrança que ainda mais a indispôs. Agradecer-lhe?... Não faltava mais nada! Pois se fora ele o responsável por tudo aquilo, ele e a sua incorrecção! Não ia perdoar-lhe o susto padecido, susto que ninguém se lembraria de considerar disparatado. Não podia adivinhar, naquela solidão, que ele fosse boa pessoa... se é que de facto o era!

Mas a consciência que no fundo tinha do ridículo de quanto sucedera encolerizava-a agora não só contra ele mas também contra os inocentes mirones que a fitavam num pasmo crescente.

Sacudiu-a, em novas ondas, o fundo orgulho. E, de cabeça sobranceiramente levantada num propositado desafio, a mostrar ao pretensioso cavalheiro quanto o desprezava e às respectivas basófias, levou caminho de forma a passar-lhe bem pela frente... Queria significar-lhe assim, em toda a sua atitude hostil, que nada, mas absolutamente nada, a obrigaria a saudá-lo!

E seguiu adiante como se ele não existisse.

O rapaz, que a viu passar, sempre muito direita, e afastar-se pelo meio das barracas, entreabriu os lábios num sorriso depreciativo, comentando a meia-voz:

- Irra! Toleirona por sete!

Mal imaginava ele a cena que se desenrolava a pouca distância, com a toleirona.

A toleirona que, ao entrar na barraca onde guardava a roupa, mal fechara sobre si a porta de lona, acolchetando-a apressadamente, teve um impulsivo gesto, transbordante de vergonha e desespero. Levou as mãos às faces que sentia escaldantes e encontrou-as molhadas. Limpou-as afadigadamente, repetidamente, sem conseguir que as lágrimas deixassem de correr. Sem conseguir dominar a crescente irritação que sentia contra si própria, irritação que julgava desatinada e não lhe permitia encarar de ânimo leve o sucedido! Não lhe permitia encarar de ânimo leve o sucedido nem render-se à evidência das palavras que ia resmungando.

- Que tolice!... Como se isto tivesse alguma importância! Sempre sou muito parva!

Era uma tolice. Não tinha importância nenhuma. Estava a ser parvíssima. Mas... em certas ocasiões... vão lá dizer à alma que escute a voz da razão!

 

Cabelos entrelaçados e presos na nuca com dois travessões de tartaruga, trigueira sem cores falsas que lhe animassem o semblante, florida e singela no vestidinho de tecido barato, Clarinha acenou um adeus à Mãe e correu ladeira abaixo, risonha e despreocupada.

Uma tarde de repouso, uma noite bem dormida e uma luminosa manhã esplendidamente passada (sem avistar, nem de longe, o responsável das amarguras da véspera! haviam bastado para que nela se extinguisse todo e qualquer vestígio de mal-estar. Voltara a ser a rapariguita que se escondia pelo meio dos penhascos como um animalzinho esquivo a quem as criaturas humanas afugentavam na sua timorata desconfiança, um animalzinho fugindo a convívios e procurando isolar-se o mais possível talvez para mais intensamente se sentir viver. Aliás não o fazia por índole. Era sociável e não evitaria companhias se não receasse os conhecimentos rápidos que se às vezes evoluem para a amizade leal muitas outras quedam em banalíssimas afeições sem esteios e de fáceis ruínas, porquanto ninguém pode adivinhar o quilate da personalidade em que à primeira vista até realçam encantos. Na verdade existem simpatias espontâneas que se tornam sinceras e duradouras. Maria Clara

acreditava-o. Mas intuitivamente, receava as amizades de ocasião, preferindo evitá-las a correr os riscos de lhes sofrer a derrocada. Ela sabia que os afectos são como as crianças. Nascem, avolumam-se com o tempo, com o tempo se aperfeiçoam e definem. Mas, como as crianças, quantas morrem antes de atingida a idade da razão! Aliás, também das amizades mesmo sólidas, mesmo crescidas, algumas se vão desprendendo e ficando pelo caminho, quais portentosas árvores cerceadas pelas tempestades dos invernos sucessivos. E cada uma delas, para um coração sensível, leva ramos de lágrimas e saudades... Isto o que tornava arisca a bonita Maria Clara, a quem bastavam os afectos possuídos, nos quais sabia perfeitamente segura a fé depositada. Dos novos, com seus cortejos de dúvidas e decepções, temia-se. Algumas desilusões sofrera e não queria armazenar mais. Pelo que fugia dos lugares concorridos, onde a conheciam e onde a breve trecho, mercê da sua mocidade esplendorosa e do seu feitio cativante, se tornava alvo de atenções e simpatias que frequentemente só conseguiam cansá-la, por interesseiras e estorvantes. E tanto mais medo sentia pelas simpatias fáceis quanto fáceis as via surgir na sua frente, quase a mendigar-lhe sorrisos. Sorrisos que nem eram propriamente pedidos a ela, mas ao seu nome em evidência... E era habitual! Cercavam-na, cumulavam-na de lisonjeiros cumprimentos, e a jovem Pianista, de há muito, talvez desde sempre, deles se aborrecia, graças à sadia visão com que fora dotada pela natureza. Na realidade detestava esses louvores de compêndio, louvores baseados mais na intenção do aproveitamento pessoal do que na admiração verdadeira, essa que não nasce do que se ouve dizer aos outros mas do que realmente se conhece e aprecia.

Assim, para evitar forçadas convivências e consequentes maçadas, ela andara nesse ano em busca de uma praia recatada dentro dos veraneios possíveis, procurando um lugar fora das selecções mundanas onde o seu nome já resplandecente fosse grilheta a manietar-lhe os impulsos alegres com suspeitas de um exibicionismo que odiava, ou a julgá-la numa reserva destinada a evitar comentários que a agastavam. Sem dúvida que poderia, pela indiferença, tornar-se superior aos dizeres alheios, mas contrariava-a enormemente saber que os seus mínimos actos eram observados e discutidos, o que a forçaria, para de forma alguma dar nas vistas, a uma passividade que lhe magoava o feitio exuberante.

Queria rir, correr, cantar, como outra rapariga qualquer. Que a olhassem de longe, não se importava, mas que pretendessem assenhorear-se da sua personalidade roubando-lhe o direito de ser nova como as novas - isso não admitia!

As duas almas que dir-se-ia possuir numa espécie de desdobramento dessa tão grande que a animava, apenas se manifestavam em toda a plenitude na confiança absoluta ou no isolamento. Nos meios estranhos, mostrava-se uma criaturinha bem-educada, sorrindo a propósito e a propósito guardando a sisudez de uma verdadeira mulher... quando na realidade a moça-menina que habitava dentro dela adorava as mais travessas brincadeiras da idade. Mas... quem tomaria a sério uma concertista que não mostrasse compositora acertada?

Raros são os que sabem entender que a sensibilidade é tanto maior quanto mais amplamente reage à gama das harmonias da vida, quer em tom, quer em som. E Clarinha vibrava com todas as manifestações das formosuras da Natureza! E, para livremente, poder entregar-se - livremente e sem preocupações - ao prazer favorito de ser o que na verdade era, escolhera aquela praia considerada solitária, onde não a reconheceriam facilmente e onde portanto sem constrangimentos podia ser Ela, Ela com os seus vinte anos tão conscientes de quanto podiam realizar!

Acima de tudo, Maria Clara conservava-se modesta, modesta para os seus familiares, para os amigos que a cercavam, para os mais simples com quem privava, para os que apreciava e admirava. Perante vaidosos indiferentes comportava-se de modo bem diverso! Era uma pessoa altiva, distante. E assumindo uma atitude tão contrária à sua índole, bem fundo entretanto crescia nela o aborrecimento...

Clara Évoracima detestava passear em triunfo a Artista que em si existia e a quem bastavam os Recitais e os Concertos que iniciara aos dezassete anos, quando na Alemanha findara o curso de piano (virtuosismo) laureada com o primeiro prémio de uma famosa Academia, Recitais e Concertos que de sobejo a impunham, provando o seu enorme talento e granjeando inenarráveis aplausos à sua arte convicta e pessoal.

Nessas ocasiões aceitava, desdobrada em emoção e interesse, os maiores cumprimentos, as ovações delirantes, as frases de entusiasmo dos críticos mais exigentes aos quais a revelação da juvenil Pianista libertava do mais arreigado cepticismo. E acolhia respeitadoramente a onda curiosa que a envolvia e se apoderava da sua mocidade.

Sóbria e delicada, sorria a tudo e a todos. Depois, muito cansada, fechava-se no quarto e só abria a porta quando a Mãe vinha ameigá-la como nos seus tempos de garota. Então distendia-se rindo de quanto lhe sucedera, falando nos próprios êxitos como se fossem os de uma irmãzinha estremecida. Na realidade, Clarinha não chegava a pasmar dos elogios que recebia porquanto nela tudo surgia espontânea e verdadeiramente natural! E por isto se aprontava sem ansiedade para as suas apresentações em público. Ao enfrentar o teclado não se lembrava senão de que ia viver torrentes de harmonia, usufruindo o dom de arrastar consigo centenas de almas, suspensas das suas execuções.

Envolviam-na altas simpatias. O nome do Pai, afamado Pintor (quantas obras-primas assinadas por Alberto Évoracima! escudava-a como preciosa armadura, mas no alvo proposto e conquistado era ela, só ela, quem conquistava os próprios loiros. Um dos seus mais recentes triunfos, esse que lhe trouxera lágrimas da mais pura comoção, fora o penúltimo Concerto realizado no Teatro de S. Carlos, com a colaboração de uma celebrada orquestra holandesa dirigida por um Maestro eminente. Dignara-se assistir o Sr. Presidente da República que, no final, cativado pelo talento da Artista e sabendo-a genialmente vocacionada, prometera com o seu alto patrocínio conseguir que fosse outorgado por um importante organismo do Estado uma bolsa de estudo que lhe permitisse um estágio na principal Academia de Viena de Áustria e de onde, atingido o máximo aperfeiçoamento, seria fácil Clara Évoracima habilitar-se a concorrer aos maiores concursos internacionais.

A rapariguinha quisera, presa de arroubado agradecimento, ajoelhar ante o Chefe do Estado, figura que pela sua individualidade marcante, pelas suas venerandas qualidades, pela simpatia irradiante da palavra e da inteligente bondade, lhe inspirava a mais carinhosa veneração. Mas Sua Excelência impedira-a do gesto expressivo e, abraçando-a, profetizara-lhe uma carreira belíssima.

Apercebendo-se da vertiginosa ascensão de Clarinha, havia quem a julgasse protegidíssima, quem a supusesse feita pela publicidade, quem lhe atribuísse montes de toleimas... Os íntimos, esses não tinham ideias erradas acerca dela. E tanto reconheciam a grande Artista na menina bem-educada que para todos sabia ser amável como nessa mocita de cabelos acobreados que ia agora ali a correr, ladeira abaixo, contente e despreocupada...

E que feliz ela nesse momento de facto se sentia!

O céu era um manto tingido em diluída anilina azul. O ar estava puro. O sol, descendo para o ocaso, alagava de cores fantasistas a linha do horizonte, ébrio de doçura como páginas de Chopin...

E ela impregnava-se dos ritmos e das sonoridades que a envolviam em sentimentos incomparáveis de paz e de bem-estar.

A maravilhosa orquestra da Natureza inebriava-a com as suas deslumbrantes execuções. Ê que até nos rostos glabros, rudes, dos valorosos pescadores aos quais se tornara familiar o cântico das ondas bravias, amigas da arte do grande Wagner, Clarinha sabia encontrar o expressivo ressoar das poderosas forças da criação.

E presa de entusiasmo, satisfeita de se integrar nesse ambiente que a seduzia, tinha vontade de erguer a voz, cantando um vitorioso hino de juventude por cima do conjunto áspero do falar das gentes unido ao ribombar contínuo do oceano. Mas calava o impulso, risonha olhando para tudo ver e para de tudo se agradar.

Em breve foi integrada no aglomerado dos que se apinhavam à chegada do peixe - uns curiosos de saberem se havia fartura, outros negociantes que vinham comprá-lo tendo deixado no largo próximo os grandes caminhões onde depois levariam, empilhada em caixotes, a fauna saborosa que abasteceria os mercados das cidades e das povoações limítrofes. Havia também humildes compradores (fornecedores das aldeias vizinhas) cujo único meio de transporte era um pacífico burrico que ao lado do amo se esfregava na areia, regaladamente, em gozo da momentânea folga.

Um destes animais arrancou cintilações de surpresa aos olhos de Maria Clara, que seguia observando o meio com espírito sagaz de analista e apreciadora. Tratava-se de um asno cinzento, gordo e luzidio, que tasquinhava carapaus com prazer visível e idêntico àquele com que daria cabo de algum molho de cenouras, talvez intimamente filosofando, enquanto pachorrento abanava as orelhas ponteagudas, sobre o imenso gosto de encher o estômago...

Por aqui e por além havia grupos de mulheres, saia de cima arregaçada até ao ventre, discutindo umas a abundância de caracóis que invadiam os campos e outras a carestia da vida, ao lado das velhotas que abriam os tabuleiros de doces baratos à cobiça dos garotos que iam pedinchando uns tostões para contentarem a gula.

Sentados no chão, à distância, os pescadores conversavam na sua fala gutural emitida entredentes, veloz como quem não pode desperdiçar tempo, difícil de perceber para os intrusos... E os intrusos (banhistas indiscretos) misturavam-se a toda aquela multidão através da qual passavam, com aspecto sobranceiro, dois guardas que fiscalizavam o peixe.

Em baixo, rente ao mar, alinhavam-se as embarcações que os homens despejavam, arrastando pela praia as fitas delgadas e compridas dos peixes-espadas que depunham na areia em extensa fila, perto de um barbudo que fazia os montículos estreitos e alongados sobre os quais seriam estendidas as pescadas.

Havia abundância de gorazes e de reluzentes sardas. E em enormes caixotes torciam-se os linguados.

Safios enormes, ao lado de uma toninha arpoada, alvejavam. E duas lagostas agitavam-se ao lado de uma santola, numa ceira com meia-dúzia de pargos.

À roda e pelo meio do povoléu continuavam girando os guardas-fiscais, atentos a que todas as legalidades se cumprissem.

Maria Clara, vagarosa, seguia vendo, ouvindo e tudo apreciando, encantada com a rica variedade de tipos e costumes com que defrontava.

Abeirou-se por fim do monte das pescadas, curvou-se, pegou numa

tomando-lhe o peso e procurando descortinar o dono.

- É acoli o do boné preto... - elucidou-a um rapazelho que andava a estender peixes-espadas.

Agradecida a indicação, acercou-se do velhote rubicundo que cofiava a barba negligentemente, em vaga monotonia, e dirigiu-se-lhe com o melhor dos sorrisos.

- Senhor Pescador, vende-me esta pescada?

O homem volveu-lhe um distraído olhar, meneando a cabeça.

- Só côa licença do guarda. - fora da lota não podia ser de outra forma.

- Eu vou pedir.

Voltou triunfante, com a permissão concedida.

- Quero a que escolhi.

O Pescador pegou no belo peixe, sopesando-o atento: - Quatro notas.

- De quanto?

- De cem, ora não há! -'Nada menos?

- Pegue ou largue.

Era boa, mas não barata. E Clarinha esboçou uma careta... Diacho! O velho tinha palavra de rei... Recebera porém ordens expressas e devia

cumpri-las. A Mãe dissera "quero uma pescada, mas Pescada!" - e acentuara - "se for preciso paga mais caro, mas compra capazmente"...

Sendo assim, pronto! Resolvendo, não transgredia as ordens, O dinheiro entregue, o troco de quinhentos escudos arrecadado e a pescada cautelosamente segura pela cabeça com as pontas dos dedos...

Afastou-se do aglomerado do povo, ergueu o rosto para a muralha de onde Helena ficara contemplando o evoluir da filha, e mostrou-lhe, radiante, a compra efectuada.

- Chega, Mãe?

Mas de súbito, sem que reflectisse, sem que raciocinasse, sem que o quisesse ou soubesse porquê, a alegria despreocupada abandonou-a como ilusão irremediavelmente desfeita. E isto porque no mesmo olhar abarcara, a pouca distância da Mãe, o sorriso trocista, de certo veraneante que tão antipático se lhe tornara...

 

Só depois de haver pesquisado a praia de ponta a ponta e de se assegurar de que não andava por ali, em situação de lhe espiar os movimentos, o importuno cuja presença de tão estranha forma a incomodava, se decidiu a deixar cair o roupão, pudicamente envergado, e a meter um pé na água.

com gesto infantil, arrepiando-se, levou a mão à boca e recuou com um "ui! ".

A poucos passos dela, um tipo baixo, de óculos, cabelo resguardado por uma touca verde - o que o distinguia dos demais rapazes - observando-lhe o manejo permitiu-se, com a liberdade concedida pelo meio, dirigir-lhe a palavra. Muito timidamente, aliás. Numa pergunta hiper-banal.

- Está gelada, não está?

Certamente porque não fora apanhada em flagrante delito de sentimentalidade, como dois dias antes, Clarinha não mostrou o ar agressivo que assumira para com o embirrento espectador dos seus exercícios e dos seus desabafos. E mirando o rosto engraçado sob a estranha frase, respondeu, bem-disposta como geralmente andava, à indagação inofensiva:

- O sol é que está muito quente e torna a transição desagradável, não acha?

O desconhecido meneou a cabeça e, aproximando-se um pouco, sentenciou:

- V. Ex.ª devia lançar-se de repente, sabe? Custa menos! Devagarinho, o frio parece que nos chega à alma.

Clarinha volveu-lhe uma curiosa olhadela, divertida com o tom cerimonioso, completamente desusado, em que ele se lhe dirigia. Mas tornada afoita pela delicadeza do rapaz, foi sincera, justificando-se.

- 'Tenho medo de entrar de repente! Não sei mergulhar e atrapalho-me.

- Aqui não há perigo! Temos pé até bastante longe. - e com uma mesura, de cómico efeito dentro da água que subia de mansinho a alagar as sombras de ambos, recortadas na areia: - V. Ex.ª devia treinar-se na natação!

A rapariga não se ofendeu com a insinuação, embora compreendesse que esta aludia discretamente - muito discretamente, ao seu recente "naufrágio". E respondeu sem rodeios, mostrando que o entendera e aproveitando o ensejo para desmistificar o acontecimento que a tornara alvo das atenções que tanto a contrariavam:

- "É certo! Fiz uma figura ridiculíssima, anteontem. Julguei-me forte... e soçobrei!

Dir-se-ia que o mancebo não desejava prolongar aquela evocação, como se adivinhasse o quanto encerrava de desagradável. E assim, sem se demorar no assunto, limitou-se a declarar:

- Não admira! Está a aprender sozinha, sem orientação... E todos nós, aqui na praia, temos seguido com bastante interesse a forma como V. Ex.ª faz progressos!

Abrindo uns grandes olhos de espanto, Maria Clara encarou-o.

- Que diz? - indagou, estupefacta. - Então... observam--me? Tanto se importam comigo?

Respondeu-lhe uma frase tão correcta como ambígua.

- 'A curiosidade é um defeito muito generalizado... - e acrescentou: - Espero que não se ofenda!...

Tinham avançado na água e Clarinha, de rosto ligeiramente contraído, principiou nadando, seguida pelo inesperado companheiro que, primeiro algo receoso, depois mais à vontade por se reconhecer atendido, principiou a dar-lhe algumas indicações cordatamente aceites e seguidas pela rapariga, que lhes reconhecia a justeza.

- Não dobre tanto os dedos... nem os abra... Isso! Assim custa-lhe menos a cortar a água. Curve os braços e não os levante tão alto... E não se precipite!... Não se precipite nunca! Mais seco o golpe das pernas... Não, não faça os movimentos tão rápidos! Isso, muito bem... muito bem! E agora respire normalmente. Endireite o corpo... não deixe as pernas obliquarem... Vá!... Certo! Encolhe, estica, encolhe estica... Exactamente! Ora vê? Vê como vai bem?...

Obedecendo aos conselhos, Clarinha ia adquirindo à-vontade e achava-se muito melhor e menos cansada ao executar os movimentos de acordo com as indicações que lhe corrigiam as naturais deficiências. Ai! Se quisera aprender a nadar em criança, não teria feito a exótica figura de

pseudo-afogada... Mas sempre o frio a detê-la, a embaraçá-la... Enfim, paciência! Já não havia remédio! E agora, na primeira vez em que o Dr. Salva-Vidas, (este o nome com que, inesperadamente, dera por si a designar, esse que não esquecia) ali tomasse banho, estaria apta a mostrar-lhe que também sabia aguentar-se nas águas...

A inteligência de Maria Clara auxiliava-a a aperfeiçoar a execução dos ensinamentos colhidos. E, de facto, adiantava-se com certa rapidez e muito mais facilmente do que até então.

A seu lado, sempre obsequioso, o rapaz da touca ia-lhe anotando os progressos. E, ao aproximarem-se de um barquito ancorado, advertiu-a de que seria conveniente descansarem um pouco.

Maria Clara concordou. E agarrada à borda da embarcação, corpo baloiçando na suave ondulação do mar, olhou a praia pela primeira vez depois que se entregara à sua aprendizagem. Admirada, não conteve uma exclamação:

- Oh! Estamos tão longe!

A seu lado, o improvisado Professor ria, era amável.

- V. Ex.ª nada tão sem esforço! Ê imensamente habilidosa! Também não admira. Tudo se deve esperar de uma pessoa de talento!

Só então a rapariga encarou, atenta, a fisionomia do companheiro, a quem até aí mais ouvira do que olhara. E contemplou com súbita malícia, os olhos pequeninos que a divisavam por detrás das lentes molhadas - um conjunto assaz cómico... E riu também, divertida tanto pelo reparo como pela elogiosa frase escutada.

- Mas quem lhe disse que eu sou uma pessoa de talento?

- Ê... é uma coisa que se vê!

- Clarinha não respondeu.

Gozava uma sensação de bem-estar inefável, deliciosa. Estava vivendo com intensidade o prazer de ser nova, de ser bela, de parecer talentosa e, em especial, o prazer de se entregar à carícia da água a que o seu corpo se abandonava confiante. Silenciosa, abstraía de tudo, esquecia o próprio companheiro, algo distanciado mas também suspenso do barco e que, ao

vê-la prolongar aquele mutismo tratou de se fazer lembrado, arrancando-a ao entorpecimento que se esculpia na expressão do rosto sereno. E fê-lo com uma pergunta banal, mas imperiosa.

- Minha senhora, desculpe-me a indiscrição. Mas... como se chama?

Maria Clara, de pronto desperta, soltou um suspiro, de pesar pelo encantamento quebrado e de desconfiança. Porque razão procurava ele saber-lhe o nome? Que interesse podia haver num apelido, quando a criatura em si nos defronta, quando se vibra na exuberância alegre da fuga aos estafados costumes da sociedade?

Esteve para se calar, ou para mentir. Mas pareceu-lhe inútil

o desvio. Ninguém deve renegar a marca que o Destino lhe apôs. Aliás. Seria aquela uma curiosidade inocente? Contudo, na intenção de não expressar tão completamente o seu nome bem conhecido - para se esquivar ao que mais andava evitando (mais vale prevenir do que remediar. ) - declinou por extenso a identidade, menos divulgada.

- Sou Maria Clara de Castro Bártolo ÉvoraCima. - Évoracima! Évoracima! Apelido por demais raro para passar despercebido! E entre duas exclamações triunfantes, o mancebo respondeu-lhe com a síntese do seu nome, nome de cartaz, nome consagrado.

- Oh, ah! Pois claro! É Clara Évoracima Não nos enganámos!

Num gesto inconsciente e alheada do frágil apoio que a protegia das águas, sempre dispostas a engolir incautos, a rapariga abriu as mãos, mergulhou, voltou a participar do debate, movendo-se e equilibrando-se por fim, boiando na água que bebera, enquanto mortificada se queixava:

- Oh, Céus! Tudo se sabe! E quando eu tanto queria passar despercebida!

O mancebo, cujo auxílio pronto não fora necessário, inclinava o rosto para ela, atencioso e humilde.

- Porquê, minha senhora?

Clarinha foi franca, desabafou.

- Porque farta de salamaleques ando eu! Quando sabem quem sou não me largam mais. Analisam-me os gestos, espiam-me as acções, comentam-me como se eu fosse um bicho raro, e perco todo o meu à-vontade! Consequentemente, passo a viver como num palco, tenho de manter a reserva imposta pelo facto de nos encontrarmos em exposição. Preciso de me contrariar de me tornar menos expansiva, de representar, em suma, mascarando de circunspecção a minha alegria para que amanhã não seja prejudicada com esta frase: quê? uma Pianista? Uma garota que vive às corridinhas? - e com desespero - Confesse que foi pouca sorte.

Haviam recomeçado a nadar, agora na direção de terra. E, como se não tomasse muito a sério o aborrecimento assim demonstrado, antes o considerasse espirituoso gracejo, o interlocutor mostrava-se prazenteiro.

- Oh, Srª Dona Clarinha! Mas creia que a sua alegre mocidade apenas inspira simpatia! Não imagina como a todos nos fascina com a sua maneira de rir, tão espontânea...

- Ai de mim! - gemeu Maria Clara. - Doravante serei mais comedida! - e comicamente trágica: - Mataram-me! - depois, inquiriu: - Por favor... quem lhes disse que eu era... eu, Sim, porque você já sabia...

- Ora... V. Ex.ª atrai as atenções gerais!... - e como visse que se enrugavam as sobrancelhas da nadadora, acrescentou apressadamente: - Perdoe-me que lho diga e acredite que o faço sem intuitos galanteadores, mas a sua beleza, a sua graça isolada, acorrentam todos os olhares... Só há três dias, porém, um rapaz irmão de uma senhora que se encontra num toldo pegado ao meu nos disse, ao vê-la atravessar a praia "sabem quem ali vai? Clarinha Évoracima! ". Ninguém podia crer, evidentemente! Não a conhecíamos senão de nome e... e...

- Aí está a razão do que lhe afirmei há pouco! Custava-lhes a ligar o nome à pessoa! Achavam-me nova e descontraída demais...

- Não, não, não é bem isso!... Simplesmente nos parecia um grande, um extraordinário favor da Providência! E procurámos a certeza!

Maria Clara olhou-o de soslaio. Mau! Já começava?... E, num tom reservado, após meia-dúzia de braçadas, indagou:

- Que obtiveram como...

- Por intermédio do Director do Jornal cá da terra que também a reconheceu e vai até publicar uma notícia referente a V. Ex.ª...

Maria Clara sufocava.

- Oh! Que publicidade!

Alargando mais o sorriso, o rapaz continuou:

- E foi então que acreditámos no tal favor da Providência! V. Ex.ª desculpar-me-á?... É uma grande ousadia! Mas o meu grupo decidiu abordar V. Ex.ª, não só com o desejo de a conhecer mas também para lhe solicitar um obséquio... E encarregaram-me de lhe falar...

com expressivo desalento, Maria Clara murmurou:

- E eu julgando que desinteressadamente viera corrigir as minhas deficiências natatórias!...

O nadador embaraçou-se, gaguejou.

- Oh, peço-lhe mil desculpas! Eu fui sincero... porém na verdade também não tinha outra maneira de me aproximar...

A Artista, procurando pôr-se de pé e encontrando areia onde firmar-se, começou a andar na posição vertical e condoeu-se de tanta atrapalhação.

- Muito bem, senhor... - e relanceou-lhe um olhar que o convidava a também declinar a identidade, o que ele fez imediatamente.

- Octávio dos Santos Labercinho. Sou alentejano.

- Muito bem, Labercinho, desculpo-o, e não vale a pena tamanha perturbação! Simplesmente... sou a dizer-lhe que não vejo em que possa tornar-me útil ao seu grupo!

Octávio Labercinho, que a secundara na verticalidade, inclinou-se com uma expressão tão atarantada que Clarinha desatou a rir.

- Minha senhora... se V. Ex.ª me autoriza a revelar o que pretendemos da sua bondade...

Ela interrompeu-o.

- Pelo amor de Deus, não use de tanta cerimónia! Ora olhe para mim!... - e muito séria: - A minha idade infunde assim tanto respeito? Saiba que completei há pouco vinte anos!... E gosto que me falem como se fala às raparigas! Trate-me como trata as outras, ouve, Labercinho?

Labercinho fez nova mesura.

- 'No entanto... é diferente!... V. Ex.ª é uma ilustre menina com quem muito nos honra conviver!

Ligeira expressão de enfado ensombrou a fisionomia de Clarinha, uma expressão que dir-se-ia traduzir: "vê como eu tinha razão em temer que me conhecessem? Tornam-se maçadores, quase todos, à força de pretenderem ser atenciosos...". Contudo os lábios apenas articularam um:

- E depois?

O tom e a interrupção mostraram claramente a Octávio Labercinho que mais valia abandonar os cumprimentos e entrar no assunto. Ela voltara a enrugar as sobrancelhas...

Prosseguiu então (e embora incapaz de modificar o tom formal), enquanto os dois continuavam a avançar, já completamente fora de água:

- É o seguinte, minha senhora. Costumamos realizar todos os anos uma festa de beneficência a favor dos órfãos dos Pescadores, festa para a qual pedimos e obtemos o concurso de generosos Artistas. Vamos levar essa festa a efeito dentro de semanas. E seria para nós um extremo benefício se V. Ex.ª se dignasse dar-nos a sua preciosa colaboração... - e aparando o olhar contrafeito de Maria Clara, encadeou muito depressa:

- Oh, não pedimos muito... um só trecho que tocasse!... O seu nome no programa garantir-nos-ia a casa cheia! E as pobres crianças mais lucrariam...

Maria Clara sentiu que a última frase pulverizava o edifício das recusas. Tratava-se de uma festa a favor dos que precisavam! E nunca a Pianista se reconheceria o direito de negar o seu auxílio aos que dele pudessem colher benesses. Não havia nenhuma espécie de vaidade, de ostentatório altruísmo, nessa forma de pensar, apenas o gosto da solidariedade e o amor ao próximo. Fora sempre assim! Convite de outra forma esboçado seria infalivelmente repelido! Mas dir-se-ia que Labercinho adivinhara o

"abre-te, Sésamo" para a sua aquiescência...

Acederia, portanto, embora quisesse e estivesse decidida a somente descansar e tão cedo não desejasse enfrentar o público.

E Clarinha quebrou enfim o silêncio que mantinha Octávio Labercinho em grande ansiedade, sem ousar quebrar-lhe a visível meditação.

- " Seja, Labercinho. Contem comigo.

Na sua alegria, o "professor de natação" parecia querer ajoelhar na orla da praia.

- Oh, minha senhora! V. Ex.ª é de uma bondade! Muito obrigado! Os meus amigos vão ficar radiantes. E V. Ex.ª permite que lhos apresente, não é verdade? Hão-de querer todos exprimir-lhe a sua gratidão!...

Contrariada ante a ideia de ver rompida a barreira levantada entre si e os vizinhos, a rapariga protestou:

- Não, não!... - mas para adoçar a negativa que parecia desconsolar o rapaz: - Por ora não... Bem vê! Gosto muito de andar só... não desejo ser forçada a nenhuma convivência...

O rosto magro de Octávio exprimiu certo desalento, logo atenuado pela satisfação do triunfo conseguido.

- 'Minha senhora... V. Ex.ª manda! A sua presença a todos encantaria... mas V. Ex.ª dispõe! No entanto não posso deixar de lhe oferecer, pondo-o às suas ordens, o modesto piano do nosso Grémio. Quererá talvez experimentá-lo... possivelmente tocar um pouco... Os Artistas não gostam de estar privados muito tempo do exercício da sua arte...

Era verdade e Maria Clara reconhecia-o bem, porque já sentia saudades do teclado submisso e obediente sob os seus dedos ágeis... Estava aguardando que o Pai conseguisse alugar-lhe um Piano de estudo, que ainda não aparecera, (tornava-se inviável trazer na bagagem de Verão o seu belo piano de cauda... Por isso a tentação engrandecia a oferta...

Uma última reserva impediu-a contudo de logo aceitar a amabilidade.

- Mas o Grémio é frequentado... não poderei estudar à vontade!...

- Depende da hora, minha senhora, depende da hora! Perto do jantar, por exemplo, aquilo fica deserto. V. Ex.ª manda conforme lhe convier...

Maria Clara anuiu por fim, com evidente satisfação: - Nesse caso... agradeço-lhe muito! Aí pelas sete da tarde...

- Quando quiser!

- Então, antes do jantar, vou até lá. - e sorrindo: - Confesso a falta do piano... mas ainda não descobrimos quem possa alugar-nos um! Talvez o Labercinho tenha facilidade e possa indicar alguém...

- Alugar um piano Mas, por Deus, minha senhora, para quê? O do Grémio está sempre ao dispor de V. Ex.ª, inteiramente às suas ordens, e temos imenso prazer em que se digne aceitar a nossa humilde colaboração!

Então Clarinha estendeu-lhe a mão delgada, de veias azuis sob a pele que o sol mal doirara e já seca pelo ar morno, que Octávio apertou alvoroçado. E disse:

- Labercinho, fico-lhe muito obrigada pela atenção mas peço-lhe que se resolva de vez a abolir esse detestável V. Ex.ª com que me trata...

- Mas então... então... como hei-de...

- Como há-de... Sou Clarinha, pois não sabe?

O mancebo, de vivo contentamento, corou. Clarinha! Ia poder chamar Clarinha à insigne Artista! Que honra! Como os outros iriam admirá-lo... e talvez invejá-lo! Porque Clarinha era também e além de tudo uma lindíssima rapariga...

- Seja... Srª... Clarinha! - e dobrou-se em dois, noutra reverência. E porque se dobrou em dois não pôde ver o sorriso divertido que entreabrira os lábios femininos. Quando se endireitou com um suspiro feliz, já Clarinha ia distante, pelo meio dos toldos.

E ele empertigou a silhueta franzina que dir-se-ia ter crescido pelo menos uns cinco centímetros...

 

Devagar, pisando com segurança, subiu os degraus que levavam ao palco, encostou-se ao piano e circunvagou pela sala o olhar pesado de íntimas reflexões.

Quantas vezes - quantas! - e em que diversidade de circunstâncias ela se vira assim, mãos no teclado branco, contemplando maior ou menor multidão, em súbito nervosismo, em fugaz excitação, sentindo-se diminuir e quase fraquejar ante as centenas ou milhares de pupilas que a fitavam para depois esquecer tudo - exterior, assistência, mundo! - ao dedilhar o instrumento querido, a alma embalada pelo ritmo apaixonado da sita música, da música passada ou recriada pelas fulgurações do seu talento!

E no entanto sofria à ideia de que, antes e depois de cada execução, devia encarar toda aquela gente primeiro desconfiada e depois rompendo em aplausos delirantes que iam envolvê-la na carícia longa de uma admiração sem limites! Não eram esses, porém, os instantes com mais fervor apreciados. O êxito alcançado, a forma segura e inconfundível como desfazia naturalmente as reservas iniciais, não a inebriavam; tampouco a consagração pública a sacudia em frémitos de orgulho. Perante a revoada de palmas que lhe sublinhava as interpretações, quedava como que espantada e quisera, mal acabava de tocar, sumir-se para além dos reposteiros...

Mas enquanto imprimia às teclas o movimento fantástico da orgia dos sons, numa exuberante riqueza de tonalidades e expressões, o seu à-vontade era completo, pois se alheava de quanto não fosse a harmonia em que se arroubava num domínio raro, numa consciência espantosa do significado devido a cada nota. Só tinha dificuldade em entrar e sair do palco e em receber as ovações que confundiam!

Porque na verdade era delicioso - e coisa alguma podia haver melhor! - sentir associadas ao próprio encantamento, comungando consigo na embriaguez das simpatias, ardendo no mesmo ideal, tantas e tantas almas...

E as melodias que a ligavam a quantos a ouviam formavam um laço tão fascinador que, graças a ele, Clarinha podia depois e sem vacilação suportar os instantes de contrariado enleio.

Sabia que servia a Arte interpretando-a publicamente, reconciliando com ela muitos espíritos foragidos. Procurava humanizar as suas interpretações, dar-lhes sempre mais colorido, polarizá-las, levá-las a todos os entendimentos. E a sua maior alegria encerrava-se, por isso mesmo, nos Recitais pela Rádio! Durante eles, milhares de pessoas - porque não milhões, se a Rádio é Universal? - inteiramente desconhecidas, escutavam-na sem a verem, e tudo nela se alava feito som, em frases ternas e expressões românticas que iam espalhar-se pelos corações dos que absorviam os cânticos despertos sob o império de uns dedos espirituais...

Vendo-a de cabeça baixa, pensativa contemplando a sala vazia Octávio Labercinho, que solícito se apressara em abrir janelas e luzes, supô-la medindo o aspecto geral do salão e dirigiu-se-lhe, inquieto.

- Acha isto muito pobrezinho, não é?

Arrancada à abstracção em que mergulhara e temendo haver sido indelicada com o seu prolongado silêncio, Maria Clara retorquiu precipitadamente:

- De forma alguma, não pense tal! Pelo contrário! Nunca julguei que numa terra tão pequena pudesse haver uma Associação montada como esta!

Labercinho sorriu penhorado, envaidecido.

- Ainda bem que não lhe desagrada! Sabe como conseguimos arranjar isto? Graças a meia-dúzia de amigos sinceros que nos dão todo o seu apoio! E se não nos faltar a ajuda deles, esperamos tornar tudo ainda melhor! - e esticava o pescoço acima da base do estrado, engrossando a voz débil, de timbre agudo, que fazia eco na sala vazia.

Maria Clara, rindo, comentou:

- Mais e melhor, não é assim? Mas deve ter cuidado! Às vezes a ambição acaba entravando-nos os passos. Por mim prefiro o "muito bom" em acções do que o "óptimo" em projectos!... É a minha tradução do provérbio francês "lê meilleur est l'ennemi du bien"...

Logo se arrependeu da citação, receando que Labercinho a julgasse pedante, a ela que detestava alardear cultura de almanaque. E

inclinando-se imediatamente para o instrumento que parecia esperá-la ansioso, declarou, sem aguardar resposta: - vou tocar um bocadinho.

Afastou o banco, de assento redondo, desandando-o para o nivelar até à altura conveniente, sentou-se e dedilhou o teclado de lês a lês em fogosa escala de terceiras cromáticas. A seguir, brandamente, suavissimamente, enternecidamente, olvidando tudo o que não fosse a música, a sua grande companheira, a sua dilecta amiga, principiou tocando. E no ar sereno ergueu-se a melodia esfumada, dolorosa, lembrando recolhida prece, da Sonata ao Luar.

Inclinada para diante, de rosto pendido e olhar perdido em horizontes íntimos, talvez seguindo a trajectória nostálgica dos sons, a sua figurinha gentil perdia contornos, como que se diluía num monumento de sonho. Desaparecera a mulher. Ficara a alma dominando o conjunto num halo sublime.

Coisa alguma, naquela execução extraordinária, podia deixar indiferentes os que no peito conservam imorredoiras as hastes da sensibilidade. Comovia e empolgava, transmitindo intactas as vibrações experimentadas, como se dela emanassem fluidos magnéticos que tudo fossem conquistar.

A sala deserta encheu-se de murmúrios, de confissões. Era como se, avassalando-o, pairasse agora no lugar modesto o espírito do grande Beethoven, chorando agonias de um amor despedaçado.

Artista genuína, Clara Évoracima transformava as harmonias em pinceladas de uma tela magnífica onde os mais esquivos pormenores escorriam beleza.

E a Pianista, desprendendo-se, alheando-se dos possíveis egoísmos, ia dar-se a quantos desejassem purificar-se no culto ao supremo Criador das maravilhas da Vida.

Terminado que foi o Adágio da Sonata, humano na sua transcendência, quedou a jovem um momento como que fatigada. Na verdade, absorvida pelo cântico divinal, prolongava os segundos inefáveis, prolongava-os liberta de si própria, uma vez que nada a apressava, que nada a chamava ao presente.

De facto, em volta dela reinava profundo silêncio. Na rua, apenas a voz cristalina de um garoto chamando outro.

E a Artista não se constrangeu. Passou as mãos pelas faces, vagarosamente, como se nelas houvesse lágrimas nascidas da emoção. E talvez porque o espírito vibrátil lhe pedisse após a tristeza a alegria, após o recolhimento a sumptuosidade das grandes sonoridades, atacou, plena de maestria, a Rapsódia Húngara Nº 8 de Liszt, obra de augusta amplitude de rendilhados, de magníficos aparatos, de ogivas, de capitéis, que ora se expande em tímidas observações, ora grita fantasias de ímpeto e revolta, ora canta hinos de estonteante júbilo. E sob as mãos que a faziam reviver sem dificuldades, sem hesitações, sem receios, ela, a Rapsódia, alastrava no espaço livre.

Findo o trecho, sem se deter, Clarinha iniciou uma dança alegre e festiva, um rodopio bem português onde havia sinos de aleluia e gargalhadas de moças bonitas - música por ela meses antes composta, na sequência de um bailarico a que assistira em terras do norte.

Ouviam-se as chinelinhas batendo no solo ao compasso da cantiga; percebia-se o esvoaçar das saias rodadas e garridas solevando o pequeno avental onde bordado se inscreve a palavra base dos sentimentos lusitanos - AMOR.

Ficou a jovialidade tilintando no ar quando os sons morreram num acorde vibrante como triunfante grito saído de peitos cansados mas felizes.

Depois, lentamente, Clarinha foi tomando consciência do ambiente, foi sendo restituída ao que a cercava. E o ambiente era povoado e nele rumorejavam inesperadas vozes que a aplaudiam.

De facto e pouco a pouco, atraída pela música esplendorosa que se evolava através das janelas abertas, numerosas pessoas haviam entrado e festejavam agora, discretas mas espontâneas, a Pianista que se erguia pálida, grave, surpreendida com o imprevisto auditório. A Pianista que ia sorrir num gesto de surpresa e de cortesia mas não chegou a entreabrir os lábios.

Ao fundo da sala, encostado à parede, antepunha-se-lhe um vulto, um vulto que magneticamente lhe prendia o olhar, um vulto onde havia um rosto sério iluminado por duas pupilas que se fixavam nela ardentemente.

Mas nessa expressão ela não atentou, nem poderia fazê-lo ainda que o quisesse! O sentimento invencível arrastava-a.

E jamais Clarinha se mostrara tão nervosa - inexplicavelmente nervosa! - após qualquer exibição, como nesse momento, findo o reduzido Concerto ante um público modestíssimo...

- Vamos embora. - disse baixo mas impetuosa a Octávio Labercinho. - Detesto a curiosidade!

E foi de cabeça orgulhosamente levantada, sem um cumprimento, como se na verdade fosse intratável à força de soberba, que desceu as escadas de pedra abertas para o largo fronteiriço.

Os Pais, que por casualidade haviam entrado a meio do improvisado Recital, ficaram-se a olhá-la com expressão inquieta. É que Maria Clara nem sequer dera por eles!

 

Alberto Évoracima poisou os olhos acinzentados, nebulosos como dia a ameaçar chuva, no rosto da esposa que o fitava suspirando.

Prosseguia na conversa encetada, quiçá reflectindo em voz alta, quiçá reflectindo por ambos.

- Esta rapariga apoquenta-me. É estranha demais! Tem atitudes e pensamentos de pessoa experiente, envelhecida na luta pela existência, cônscia de deveres e responsabilidades. De repente e em contrapartida, momentos há em que se transforma por completo e afigura-se-me então não ter mais senso do que uma garota de oito ou nove anos! Que temperamento singular! Reparaste, ontem à tardinha? No palco, transfigurada, como sempre! Modificou-se-lhe por completo a expressão, o rosto afilou e, de tão dilatados, parecia haver apenas olhos naquele semblante de menina. Os cabelos soltos lembravam os de um anjo! À noite, quando fomos dar aquela voltinha, falou-nos com acerto da sua visão do futuro, dizendo que pretende viver a sua Arte sem fantasias que espantem os ignorantes mas não lhe garantam a ascensão. Veio para casa cismática e silenciosa. E agora de manhã apareceu-nos como um perfeito diabinho! Cabelos arrepiados, calças de homem, camisola ao ombro, cajado na mão... para ir explorar, segundo afirmou, "os mistérios da costa esquerda"... Alguma coisa nela recordava a Clarinha de ontem? Algum traço indicava ser a mesma?

- Não! - confessou Helena, contemplando o marido como quem sempre vive adorando. - Não! E sou incapaz de saber com quem se parece ou a quem sai.

- Não se parece com ninguém, não sai a pessoa alguma! Ê Ela! - proferiu o Pintor, inclinando a cabeça formosa onde havia fios brancos, sinais de uma vida mais vincada pelas preocupações do que pelos anos. E quase emocionado, acrescentou:

- Clarinha personifica um beijo! - e logo em seguida, na tradução do íntimo meditar: - Sempre nos adorámos, Helena, e os temperamentos dos nossos filhos, apaixonados e profundos, espelham decerto a imensidade do nosso mútuo querer. São mais do que nós porque são o nosso próprio Amor, são almas que traduzem as emoções das nossas almas extasiadas!

Helena continuava a encarar o marido com a gratidão de quem nunca precisou de olhar por outros olhos, de ouvir por outros ouvidos.

- É isso! E são extraordinários! Tão extraordinários que chego a pasmar da bela realidade!

Évoracima sorria, enlevado.

- Sim, podemos sentir-nos gratos à Providência. A poucos Pais será dado reunir um semelhante rancho e tão unido! Ainda agora, quando viemos... Julgo estar a ver o olhar bondoso do Gonçalo, afirmando que não podia acompanhar-nos para aqui mas alegrando-se por trazermos a Clarinha, necessitada de repouso e ar do mar! E lá ficou, entre quatro paredes!...

- O Gonçalo não vive para ele...

- Não... nem se reconhece o direito de abandonar o trabalho e o estudo. Há homens, talvez remindo o egoísmo universal, que não pertencem a si próprios, que se dão ao bem alheio e consideram uma traição fugir, por pouco que seja, ao dever aceite. Ele é um destes eleitos! E repara, Helena, repara como ambos, tanto o Gonçalo como o Adriano, apesar de totalmente diversos nos feitios, se entendem bem e como se unem para adorar a irmã! - Alberto erguera-se, aproximara-se da esposa e - afagava-lhe os cabelos castanhos que emolduravam um rosto onde - mal-nascentes rugas punham breves sombras de idade ao canto dos olhos rasgados.

Helena apoiou:

- Tanto um como outro a consideram uma criança merecedora de todos os mimos e atenções!

- Como nós dois, afinal! Quando ela é uma autêntica mulher!

- Não consigo chegar a essa conclusão... Dá-me vontade de a embalar como noutros tempos... E de ralhar ao Adriano pelas tropelias... E de libertar o Gonçalo das preocupações do seu trabalho...

- Pobre Mãezinha, tão perplexa em face das três personalidades criadas no seu regaço!...

Tentara gracejar, mas vibrara-lhe na voz o toque de irreprimível comoção.

- Queres que te diga? - declarou então Helena, com inesperada melancolia. - Chego a pensar que não terei a ventura de conhecer netos!

- E desejava-los?

- Decerto!

Évoracima, na linha do auto-domínio, pôs-se a rir.

- Para quê? Para que eu me sinta velho?

- Oh, não! - protestou a mulher, num adorável gesto de amuor. - Nada disso! Tu não és velho... nós nunca seremos velhos! A mocidade está no nosso espírito que não se alquebrará nunca! - e explicou: - Gostava de ter netos, sim, para sermos continuados, para assistirmos à perpetuação dos nossos, para eu voltar a cingir nos braços o tenro corpito de um bebé que ainda fosse meu!... Mas desespero! O Gonçalo vive como se não houvesse mulheres à face da terra. O Adriano...

E o marido, animado:

- Já sei o que vais dizer! Para o Adriano sobejam as mulheres! Namora todas, gosta de todas, por ele e pelo irmão, o que se torna contraproducente. E quanto à Clarinha...

Helena interrompeu-o:

- A Clarinha nem se lembra de que existe um sentimento chamado Amor!

Em baixo, na porta que dava para a rua, houve de súbito, a chamar-lhe a atenção, um grande reboliço de pancadas, campainhadas e chamamentos joviais, ritmados pelos passos da serviçal apressando-se para atender o visitante que se permitia fazer semelhante alarido.

Helena pôs-se de pé imediatamente, no olhar uma viva cintilação que mais realçava a juventude conservada no rosto e na figura.

- É o nosso Adriano! - e, seguida pelo marido, correu para fora da saleta onde acabavam de tomar o pequeno almoço. Mal transposto o limiar, foi colhida pelos braços de um mocetão que a levantava no ar:

- Mãe... minha gracinha!

E as mãos da Mãe, radiantes e enternecidas, em resposta apertaram a loira cabeça do rapaz de compleição atlética como poucas se encontram e uns olhos azuis alegres e folgazões, na sua cor de faiança preciosa iluminando as faces escanhoadas onde a barba deixava um tom doirado.

Embalando Helena de encontro ao peito, Adriano ia discursando numa voz bem modulada que devia saber comandar, exactamente como devia saber exprimir toda a doçura do mundo.

- Sabes uma coisa, minha linda Mãe Não consigo perceber porque razão tu, tão pequenina, me deixaste crescer tanto!

Felicíssima dessa ternura gentil, felicíssima dessa força que brotara da sua fragilidade, Helena ria e tentava ralhar com ele.

- . Vamos, Adriano! Tem juízo! Larga-me, sim?

- 'Não!... Não posso largar-te sem me responderes! Vim propositadamente para que me informes da origem de um tamanho contraste!

E ela, beijando-o:

- Olha, meu ruim, foi exactamente para isto... para me trazeres ao colo e assim me pagares as vezes que carreguei contigo!

- Dou-me por satisfeito com a explicação! - e, cautelosamente, depô-la no sobrado, para em seguida se dirigir ao Pai, a quem tocou ser apertado com tanto vigor de encontro ao sadio arcaboiço que teve de protestar:

- Eh lá, rapaz... não me metas as costas dentro! - e batendo-lhe uma palmada no ombro: - Rijo, heim?

Miravam-se ambos, satisfeitos de se verem. A estatura do mancebo dominava a de Alberto, cuja silhueta, alta sim, mas esguia, ficava a perder de vista junto desses ombros de gigante.

No entanto, imperava-lhes no desempeno a mesma linha de raça, no olhar azul a mesma nobre franqueza com a mesma forma de erguer a cabeça - semelhança extensiva à própria Maria Clara.

Já as pupilas de Adriano circulavam investigadoras por toda a pequena casa.

- E a boneca - indagou. - Onde está a Clarinha? Que é feito da minha Artista predilecta?

Vibrara a pergunta em frémito de adoração pela irmãzita preciosa e o Pai abriu os braços num gesto enfático de ignorância.

Dentro do lar, o insigne Évoracima nunca fora, nem pretendera sê-lo, mais do que o excelente, o incomparável amigo que infunde tanta confiante amizade como respeitoso carinho. E assim continuava o melhor companheiro dos filhos, que o procuravam sempre certos de compreensão, quer expressa em indulgência quer encerrada em conselhos preciosos que mais ninguém poderia dar-lhes.

A acompanhar a atitude fraterna, já o grande Pintor declarava:

- Sei lá da Clarinha! Ainda há pouco falei à tua Mãe. Saiu estranhamente equipada, julgo que para ir à conquista do desconhecido!

- Do desconhecido... ou de um desconhecido? - gracejou o Aviador.

O Pai encolheu os ombros.

- Impossível adivinhar! Quem pode prever o futuro?...

- Adriano franziu a testa.

- Mau!...

- Atalhou a Mãe, numa risada:

- Oh, não te aflijas! A tua irmã mantém-se inacessível!

- Felizmente!

Expressara-se ele com inesperada dureza, uma dureza que lhe alterara o semblante, impregnando-o de gravidade. De facto Adriano não tolerava a ideia de que um intruso viesse apoderar-se da menina da família,

levando-lhe a irmãzinha por quem bebia ares e ventos, a amiga ideal com quem lhe era dado falar e brincar livremente. A menina da casa, a SUa menina, a pequerruchinha que ensinara a andar como pacífico miúdo mais velho uns anos, a donzelinha que de nenhuma sofria confronto, única a quem podia falar - por ele e por elas! - sem ilusões de namoro ou fogachos amorudos...

Adriano sentir-se-ia realmente espoliado de um bem pessoal no dia em que, à sua, Clarinha preferisse outra presença, mais inebriante e dominadora.

Por isto sobremaneira o alegrava a esquivança da rapariga a todos os pretendentes, quase agreste no desejo de a ver tornar-se velha celibatária. Costumava pedir-lhe:

- Fica para tia, Clarinha! Arranjo uma dúzia de meninos e dou-tos para criar...

E Clarinha ria e afirmava aceitar a proposta. Mas agora, ante o comentário da Mãe, Adriano ficara inesperadamente inquieto.

- Verdade, Leninha? - era por Leninha, que a tratava muitas vezes, familiarmente. - Acaso há moiro na costa?

Leninha, divertida, ripostou:

- Não, meu ciumento, descansa! A Clarinha prefere ser a mentora dos teus doze filhos a dar-me os netos que desejo.

O rapaz, alegre mas fingindo-se escandalizado, protestou:

- Ora essa!... Então os meus filhos não serão teus netos?

- Os teus filhos? Tu queres um filho em cada continente... já vês! Preferia os de Clarinha, eram mais da casa... Mas que hei-de fazer? A tua irmã continua bicho do mato e foi...

- à conquista das rochas! - concluiu Alberto Évoracima. Adriano empertigou-se, orgulhoso.

- É digna de mim!

- Como? Tornaste-te bicho de mato, tu?... Tu?... - e este tu era. significativo.

Adriano riu-se.

- Não, não sob esse aspecto... Mas na audácia! Valorosa mocinha! Ainda hei-de fazer dela uma Aviadora!

- Credo! - balbuciou a Mãe, horrorizada ainda que sabendo-o a chalacear. - Cala-te com semelhante disparate! Bem me basta que andes sempre nas nuvens para nunca trazer o coração em paz!

- Pois devias trazer!

- Como seria possível Constantemente a lidares com a morte... - e o seu olhar velava-se de angústia.

O filho acariciou-lhe a ponta do nariz.

- Ora, Mãe! com a morte lidamos nós todos a toda a hora, a todos os momentos! Só os mortos a não receiam, porque já morreram. - e dando uma reviravolta, para mudar de pronto o assunto pesado: - Meus caríssimos amigos, logo à mesa palestraremos mais. Já os abracei, vou-me agora à procura da Clarinha. Há duas semanas que não vejo a petiza e - palavra! -, tenho saudades! A feiticeira!... Até o padre capelão perdão, o mano Gonçalo, suspira pelas suaves melopeias que às vezes lhe retardam a solução dos mais complicados problemas. Claro que isto chama-se "amor à destruição". - E olhando em volta: - Onde posso despir esta farpela e transformar-me no banhista mais elegante desta praia inexistente no mundo moderno?

A Mãe conduziu-o ao quartinho preparado para recebê-lo e do qual, daí a nada, regressou cheio de frescura, de calças e camisa brancas, brandindo nas mãos o slip e a toalha.

- Que tal? Estou aceitável? - e sem esperar resposta beijou o Pai e a Mãe e precipitou-se para a escada. Mas antes de sair deteve-se e olhou para o patamar, de onde o Pintor e a mulher o contemplavam embevecidos.

- 'vou em busca da boneca... mas não só! Entretanto aproveito para dar uma volta por aí... Quero averiguar se há garotas a quem valha a pena dedicar um olhar e fazer pé... de tenente! - e sem atentar na expressão comicamente ofendida que Helena erguera para o marido, desapareceu, belo como um jovem deus de irresistível poder.

 

De fraga em fraga, Adriano ia saltando. Já por duas vezes quedara de mão convexa sobre os olhos, tentando descobrir ao longe uma silhueta que o orientasse. Debalde!

Atravessara a praia no seu passo elástico de bom ginasta, lançando, a fim de não desperdiçar tempo, mortíferas olhadelas para as que dos toldos ou da beira da água respondiam com pupilas surpreendidas ao inesperado aparecimento do desconhecido que a todas parecia render seu preito de homenagem.

Loiras ou morenas, altas ou baixas, gordas ou magras desde que o palminho de cara fosse apresentável... - Adriano sentia que lhes queria muito, sem excepção, lá de dentro, devotadamente, pronto a sentar-se no meio delas como um anjo entre os serafins...

E ao deixar para trás o areal com o seu variado sortido de raparigas, o moço Aviador resmungara um comentário oportuno:

- Diacho!... Eu a julgar isto um deserto e sai-me um oásis benéfico!... A escolha é que me vai dar um trabalhão! Vamos ver se ao menos arranjo uma em cada extremidade... E parto a cara ao primeiro rival que me defronte! Quero conquistar os corações das meninas veraneantes... e também me fazem conta os das da região!... Mas fica para logo. - concluíra. - Agora preciso de descobrir a miúda.

Continuava a avançar, abandonando as rochas pelo caminho de cimento que serpenteava ao longo das penedias esguias, sobranceiras ao mar, costeando-as até à minúscula praiazinha onde apenas se encontravam misantropos ou namorados.

Para o lado esquerdo espraiava-se o oceano de um azul infinito, limitado na curva do horizonte pelo céu de pálida turmalina, doirado ao centro pelo esplendor do sol, todo inteiro glorificando a natureza e reflectindo-se nas pupilas deleitadas do mancebo.

Parou um momento, enchendo o peito, com expressão de profundo contentamento, do ar puríssimo que transbordava iodo e luminosidade. Depois continuou a progredir.

Ao longe, em frente, as águas ondulantes eram cortadas pelo promontório agudo sobre o qual se erguia o farol.

- Hei-de lá ir. - pensou. - A miúda acompanha-me, que tem boas pernas!

E de chofre, ao tornejar um rochedo, parou. Parou olhando duas de facto magníficas pernas, modeladas em calças verdes e abertas em ângulo agudo; duas belas pernas retesadas pelo esforço de aguentarem o busto inclinado e que se percebiam tão bem feitas como as de uma estátua clássica.

Um lenço colorido tapava os cabelos da desconhecida, sem no entanto impedir que Adriano logo reconhecesse a irmã, entregue aos exercícios ginásticos, feitos ao ar livre, como ele próprio aconselhara.

Sentindo-se orgulhoso de ver tão escrupulosamente seguidas as suas prescrições, aproximou-se tossicando, a dar sinal de presença.

E foi o bastante para que a rapariguinha, notando o ruído insólito, se desequilibrasse, como que sobressaltada, voltando-se para ele em jeito de quem vai abalar acto contínuo... Mas não o fez.

A pessoa que assim a surpreendia no seu retiro não a afugentava, pelo contrário! Então fulgurou-lhe no olhar a chama da alegria e precipitou-se para os braços que se lhe estendiam.

- Adriano!

- Queridíssima!

com idêntico ímpeto se enlaçaram, com idêntica e enternecida vaidade se miraram, radiantes por estarem juntos, radiantes por se saberem tão dignos um do outro e ambos dos nomes herdados, radiantes por se acharem fortes e saudáveis, frutos da mesma árvore, alimentados pela mesma seiva.

- Adriano! - repetiu Clarinha, extasiada, apertando entre as palmas das mãos o rosto do irmão e beijando-o na testa repetidamente, depois de muito o puxar para que se dobrasse. - Como foste bonzinho vindo ter comigo!

- E assustaste-te, minha cabritinha! Parece que a primeira impressão não foi muito agradável...

- Pudera! Se julgas que me dá gosto ser surpreendida em plena sessão de cultura física! Este foi o sítio mais escondido que encontrei! E se fujo do mundo, - acrescentou, enfática, - não é para o mundo vir ter comigo!

- Incluis-me?

- Oh, não, de forma nenhuma! Tu não és o mundo! És apenas o meu amado...

- Sim, sim... - resmungou Adriano, fingindo-se zangado. - Se fosse como dizes estavas ajuizadamente à minha espera, em casa, e não me obrigavas a perder, em tua busca, um tempo precioso. O tempo que podia empregar na conquista das veraneantes - e, petulante, concluiu: - Deixei-as todas a suspirar por mim!

- Tolo! - ralhou a irmã. - Detesto-te quando falas assim!

- Ai, detestas-me? É essa a paga que recebo de te haver preferido? Estou vendo que mais valia não sair daquele manancial de coisas bonitas.

- Adriano!... Mau, mau... - e puxava-lhe as duas orelhas simultaneamente, com simulada energia. - Tu não vais obrigar nenhuma rapariga a

- apaixonar-se por ti, ouves? Sê compassivo!

- Obrigar? - e mostrando-se compungido, repetia; - Obrigar! Quem fala nisso? Eu não obrigo ninguém! Elas apaixonam-se voluntariamente.

Maria Clara soltou-o e estendeu um dedito ameaçador.

- Mano... assim não vale! Deixo de te falar! Proibo-te que faças a corte às pobres raparigas!

Ele estendeu o beiço inferior, num protesto.

- Oh, Deus! Sempre a mesma insistência? Mas pretendes que eu morra de inacção!

Então, perante o ar contrito e mortificado do Aviador, ela desatou a rir.

- Não, não, rapaz! Vive, diverte-te... mas com critério! Põe os olhos no edificante exemplo de Gonçalo!

- Gonçalo, o Monge! Consta-me que vai para um ermitério...

- Caluda! - e o semblante agora sisudo expressava o desejo de não ouvir gracejos acerca da austeridade do irmão mais velho. - Tem juízo e dá-me notícias dele.

- Acho que se encontra prestes a descobrir um pó maravilhoso. - E sob a atenção de Clarinha, concluiu: - Um pozinho especial para deitar nos olhos das meninas demasiadamente espertas como certa Pianista que eu conheço...

- Oh! Tu és terrível! - e voltou-lhe as costas.

- Adriano sentou-se no banco próximo, esculpido na própria

rocha que lhe servia de espaldar e docel, e puxando a irmã pelo cinto das calças fê-la instalar-se-lhe ao lado. Depois, passando-lhe afectuosamente o braço em torno dos ombros, acrescentou com expressão repesa:

- Não te amofines, Clarinha. Prometo contar-te a verdade. O Gonçalo...

- Mau! Que nova asneira vou escutar?

- Asneira nenhuma, asseguro-te. Falo-te a sério. O Gonçalo estuda um bacilo qualquer que, segundo afirma, deve ter influência directa no cancro.

- Oxalá! - balbuciou ela, seduzida pela esperança. - Deus o ajude!

Logo Adriano prosseguiu:

- Parece que ele tem grande fé nesta descoberta, se resultar como pensa... - e vendo significativamente entreabertos os lábios de Clarinha, atalhou: - Oh, oh... não me peças explicações Já sabes que nada percebo do assunto! Mas afirmo-te - e dizia-o com uma seriedade que mais realçava a beleza do semblante másculo - que o nosso irmão é a glória da família! Pôs a inteligência que Deus lhe deu ao serviço dos fracos e dos oprimidos pelos males da humanidade.

Clarinha corroborou:

- Tens imensa razão! - e afagando a face escanhoada de Adriano, ternamente encostada a ele, continuou: - Mas tu também nos dás muita honra!

- Eu? - e ria-se jovial, bem outro na expressão travessa que o infantilizava. - Eu, o estouvado O irreverente O doidivanas

- Tu, sim!

- Ah, pois! Eu até ando a ver se as aves me recebem na sua real academia... - e beijando-lhe a mãozinha carinhosa: - Mas pagarei gentileza com gentileza, asseverando que tu nos ilustras grandemente!

Aflautara a voz, pusera os olhos em alvo e Maria Clara, divertidíssima, como de costume, com as humorísticas saídas do irmão, frequentes mas sempre cheias de novidade e imprevisto, indagou:

- Porquê? Eu, porquê?

- Porquê - e em tom declamatório recitou: - Porque tens o condão sublime de te desencorporizares e seres alma nas harmonias que falam à nossa alma!

- Muito bem! - aprovou Clarinha, de olhar cintilante. - Verifico que te tornaste Poeta...

- Poeta? Eu? Oh, não! Sacrilégio! Que horror! Antes idiota toda a vida!

A rapariga protestou:

- 'Mas os Poetas, os verdadeiros Poetas, não são entes ridículos, são criaturas de eleição que sentem mais profundamente a beleza das coisas e sabem traduzi-la em palavras de mágica sonoridade... tal como os músicos a dizem nas ondas musicais. Entendidos?

Vendo-a sonhadora, de pálpebras semi-cerradas, Adriano soltou uma risada e deu-lhe um piparote na face.

- Toma! - disse, maliciosamente. - A minha musa doeu-se! - e como Clarinha se levantasse, em negativa, agarrou-lhe nos pulsos e prendeu-a, obrigando-a a ficar de frente para ele. - Eu também sinto a beleza das coisas, menina, também quando lá ando em cima e vejo a terra como um objecto de brincar, percebo que tudo em mim vibra de emoção e de arroubo! Mas não faço versos...

Falara com entono despreocupado, mas sob o aspecto folgazão perpassara a realidade de um profundo enternecimento que, talvez envergonhado da própria fraqueza, procurava esconder-se.

Docemente, os lábios de Clarita poisaram na testa do irmão.

- Que grande alma a tua, meu Adrianinho! Ficaram assim durante segundos.

A pouca distância, na curva do caminho que para além continuava, dois olhos zombeteiros contemplavam-nos avançando, avançando até passarem diante deles e seguirem...

E então, como dois namorados surpreendidos, Adriano e Maria Clara desprenderam-se e fixaram o indiscreto que se permitira mirá-los com evidente insolência.

Na garganta da rapariga ficara preso um grito, enquanto o Aviador crispava os punhos para conter o ímpeto de esbofetear esse que se permitira lançar-lhes tão enraivecedora olhadela, expressiva de incorrecção. com que direito ousara aquele idiota fitá-los como se os censurasse?

Já o tipo se sumira para além das rochas e ainda Adriano ruminava o furor experimentado. - "Ora esta! Pois não seria livre de abraçar a irmãzinha quando muito bem lhe aprouvesse? Talvez que o outro se julgasse com mais direitos... Atrevido!".

E de repente largou a rir, a rir divertido sob a pressão da impagável ideia que lhe acudira à mente.

- Se calhar julgou que éramos dois apaixonados e... e achou que eu lhe estorvava os planos!...

Mas as gargalhadas extinguiram-se-lhe breve. Maria Clara estava lívida, trémula, as pupilas fixas no ponto por onde o outro seguira e desaparecera.

O espanto cavou rugas na testa de Adriano.

- Que tens tu, mana? - inquiriu, puxando-a para que voltasse a sentar-se junto dele.

Foi repelido com inesperada violência.

- Deixa-me! Acabaram-se as brincadeiras!

- Porquê? Fiz-te algum mal?

Maria Clara parecia completamente fora de si, numa atitude inexplicável.

- Não! - volveu, com aspereza e sem qualquer atenuante. - Mas deixa-me! Quero que me deixes sozinha!... Vai-te embora!

- É uma ordem?

- É!

Então, lentamente o irmão pôs-se de pé e, olhando-a sério, dominando-a pela elevada estatura bem aprumada, poisou-lhe as mãos nos ombros e num timbre quase severo, bem diverso do tom ameno empregado momentos antes, inquiriu:

- Clara... mas que é isso? Porque estás assim excitada? Que te aconteceu? - e como o olhar da irmã se desviasse, angustiado, insistiu, espiando o semblante inquieto: - Maria Clara, responde! Que há? Porque te alteraste dessa forma? Acaso... acaso aquele indivíduo...

- Cala-te! - implorou Clarinha. - Não faças suposições absurdas! - e num assomo de energia quis fitar as pupilas de Adriano, mas viu-as tão inquisitoriais que não teve a força de lhes sustentar o clarão e desviou as dela.

Nem a si própria saberia explicar as impressões que a sacudiam! Tão diversas, tão bruscas e incompreensíveis!

Então, com o mesmo entono ríspido, imperioso, Adriano comentou:

- Disseste bem. Qualificaste as minhas suposições como devias. Absurdas! Nem por sonhos pensar que poderias deixar-te seduzir por um qualquer imbecil que te dirigisse duas olhadelas provocantes. - E de rosto contraído, do alto dos seus direitos de irmão mais velho: - Proibo-te de dar atenção seja a quem for!

- Mas...

E ele, sem lhe permitir que protestasse:

- Lembra-te sempre, Maria Clara, do meu exemplo. Divirto-me com todas e não me prendo a nenhuma. Entendido?

Vivo rubor tingiu as faces da rapariga, que ripostou, inconscientemente revoltada:

- Mas se todos fossem como tu não havia casamentos!

- Adriano nem pestanejou.

- Quando eu escolher noiva, não será entre essa raparigada semi-nua que namora quem calha e não gosta de ninguém e muito menos do palerma que lhe cai na rede com destino a alimentá-la. São todas como as aranhas que devoram os maridos! Elas não os comem mas sugam o proveito do trabalho em que os desgraçados se esfalfam para as trazer fartas e luxentas, sem ao menos receberem para compensação um pouco de carinho desinteressado! E tu, Maria Clara, tu, aqui, és como as outras! Não trazes nas costas o emblema das tuas virtudes. Qualquer um pode divertir-se contigo, percebes? Até porque... porque nós, os homens, muitas vezes, na nossa inconsequência, confundimos tudo! Além disto há ainda, aos milhares, inferiores que não se detêm nem diante de uma mulher digna e não sabem respeitar escrúpulos seja de quem for. E não se adivinha sob que invólucros esses miseráveis se ocultam! Por isso, Maria Clara, ao primeiro que se lembre de querer agradar-te, castigo-o com duas vergastadas no lombo. Ê só ir a casa e trazer uma bengala do Pai. Contigo, não brincam! - e agarrando-a por um braço, vigorosamente: - Clarinha, dá-me a tua palavra de honra em como não dás atenção a ninguém... - e acentuara o ninguém.

Tão vibrante tirada impressionara Clarinha que, desejosa de fugir ao formal interrogatório que a magoava mais do que o irmão podia supor, atingindo-a em cheio com a pertinência das suas razões, tentou sorrir, pacificá-lo.

- Fico para tia dos teus doze catraios, descansa.

No olhar de Adriano fugiu um relâmpago de contrariedade.

- Não se trata disso. Hás-de casar, mas serás escolhida dentro do nosso lar, no seio da tua família, por quem seja digno de ti.

- Nesse caso - insurgiu-se ela inesperadamente, - não sou livre de amar quem eu quiser?

Adriano soltou um oh! de significativa estranheza e baixou o rosto, meditativo.

- Bem! - disse, após alguns instantes de reflexão. – Ama à tua vontade! Irei procurar esse cavalheiro. Se te merecer, que te namore, mas não com olhos que zombem de ti na minha frente!

Perplexa com a repentina conclusão, e aflita, (Adriano não era homem de duas palavras! Clarinha agarrou-se a ele, na ânsia de o persuadir da insensatez do propósito.

- Mas eu juro-te que não há nada entre mim e o rapaz que passou!

Como o irmão continuasse porém a fitá-la desconfiado, sentiu necessidade de afastar qualquer suspeita ocultando o incidente que entre ela e... e o outro, embora e com seu total desagrado, havia gerado um contacto... inesquecível. E aventurou-se a assegurar, numa inútil mentira:

- Nunca trocámos uma frase!... Asseguro-te que estás enganado! - e atabalhoava-se, na pressa da justificação. - Eu até embirro com ele! Acredita que embirro! E ele se calhar também antipatiza comigo... - e procurando justificar a si própria o indizível constrangimento experimentado desde o primeiro instante: - Ele olha assim para toda a gente... como se desdenhasse, se troçasse! É antipático e detesto-o! Aí tens a verdade!

Não era a primeira vez que Maria Clara afirmava detestar certas pessoas... mas Adriano tinha a impressão de que, agora, não era como ela dizia.

Não insistiu, contudo, e os seus dedos esguios afagaram os sedosos cabelos da irmã.

- Seja, acredito-te! E ponto final. Falemos de outras coisas.

- Pois sim, mas não aqui. - E para tornar razoável o protesto - Porque já são horas do banho! Vamos andando, vamos?

Puseram-se a caminho. Na praia, os olhos inquietos de Clarinha, sob a disfarçada vigilância do Aviador, investigaram as imediações. Nem sombras do belo tenebroso! E um inconsciente suspiro de alívio lhe brotou dos lábios.

Fora sincera, aliás, em parte da explicação fornecida a Adriano.

Pungia-a, desde que o sentira cruzando o seu, a recordação do singular olhar desse estranho. Receava encontrá-lo de novo, frente a frente, carregado de censuras e perguntas, censuras e perguntas que ela não entendia nem sabia decifrar. E ao mesmo tempo tinha a certeza de que lhe seria infinitamente grato divisar, ainda que ao longe, no recorte doirado daquela moldura de luz, a silhueta altiva, chocante.

Mas que era aquilo? Que necessidade avassaladora havia sido essa de ocultar do irmão o ridículo conhecimento estabelecido, como se quisesse defender o estranho da ameaça tantas vezes escutada por causa de um ou outro pretendente mais atiradiço, ameaça quase sempre proferida com entono divertido mas que lhe parecera ter escutado mais categórica e inflexível "dou-lhe duas vergastadas no lombo... ".

Oh, não, não! Não tornaria a afirmar a Adriano que considerava incorrecto, insolente, o desconhecido. Não diria! Porque... porque ela própria não estava muito convencida de que ele merecesse a dureza da classificação só por causa daquele olhar, daquele olhar extraordinário...

E no fim de contas e fosse como fosse, ela não tinha o direito de lhe causar o mínimo aborrecimento!

E agora mar, céu, praia, vila, tudo se esfumava para compor a figura que crescia, crescia sem cessar, transformando-se no Infinito para a rapariga tão apavorada diante de tamanha grandiosidade que às águas do Oceano iria confessar num inesperado mergulho:

- Isto é uma loucura... não entendo o que se passa... mas eu creio que... que vou amá-lo!

 

Octávio Labercinho afadigou-se para alcançar o vulto que passava lesto pela frente das janelas.

- Maria Clara... Clarita... Clarinha... se me dá licença... - não se percebia se pedia licença para abordá-la ou para tratá-la pêlo nome próprio, abandonado o incrível Excelência que de facto não assentava àquela rapariga de olhar surpreso, graciosíssima no seu vestido cor de rosa.

- Diga, diga, Labercinho!

Ele aproximou-se, dobrou-se em dois.

Podia fazer-me o obséquio de subir um instante à nossa sede, para lhe apresentar a Florência de Resendos, que é uma das organizadoras das nossas festas e está ansiosa por conhecê-la? É só um momentozinho... - e dirigia-lhe um sorriso implorativo, estendendo a mão para a escada de pedra que levava ao salão do Grémio.

Clarinha consultou o relógio de pulso - contraste vivo entre a fortaleza do cabedal e a suavidade da pele macia - onde os ponteiros haviam já iniciado a descida e por delicadeza, acedeu:

- Pois sim, mas não prometo demorar-me! O meu irmão espera-me Vai-se embora na carreira das seis...

- Oh, mas ainda tem tempo! - garantiu Octávio, que anelava provar a sua influência junto da Artista.

Ela resignou-se. Ligeira, galgou os degraus, precedendo o rapaz e estacou no limiar a aguardar as formalidades.

A poucos passos de distância, um grupo feminino à frente do qual se destacava uma rapariga morena de belos cabelos negros e sorriso alegre - um semblante agradável, sem dúvida.

Seguiu-se o costumado "se me permite... fulana de tal... e mais sicrana... e mais beltrana...

Ao cabo de minutos, Maria Clara conhecia Dona Maria Carlota de Resendos (figura com todo o aspecto de somente decorativa) as duas filhas, a trigueira Florência e a adolescente Leonor (talvez uns quinze anos) e uma prima de perfil grego que ao rir abria a boca de orelha a orelha, de nome Fausta Irene - Irene a Fausta, lhe chamavam, graças aos vestidos espaventosos que usava.

Após o ritual, Clara foi envolvida pela solicitude das novas companheiras, ufanas de travarem conhecimento com a jovem Pianista que demais a mais se lhes afigurava gentil, sem audácias exibicionistas, muito mais modesta na aparência do que uma banalíssima Irene - a Fausta! -, grandiosa apenas no cintilar dos olhos perspicazes e sem dúvida bem bonitos.

Quem mais sobressaía nessa atitude eram as duas raparigas mais velhas e essas bastavam para atordoarem Maria Clara, girando em seu derredor e falando como se quisessem multiplicar-se...

Dona Maria Carlota e Leonor conservavam-se à parte, semelhantes na timidez de uns suaves olhos castanhos. As outras não se calavam um quarto de segundo.

- Você será o número colosso do programa!...

- Tenha lá paciência e desculpe a sem-cerimónia...

- Estamos deslumbradas! Graças a si os pobres vão ficar milionários!

- Uma festa de arromba! Há-de vir gente de todos os lados!

- Até da cidade, garanto-lhe! Aliás você já está habituada a isto!...

- Aposto que o seu êxito vai ser retumbante!

- Tudo o mais passa à categoria de complementos, verá!

- Olhe, tenho uma ideia! Não podia você tocar o Bolero de Ravel num ambiente propício Nós fazíamos cenário à volta do piano, vestidas a rigor... com mantons de Momitta, rosas vermelhas nos cabelos e mantilhas. Mantilhas sobre grandes pentes... Que diz? Não acha giro?

As frases chocavam-se, ultrapassavam-se, açambarcavam os ouvidos de Maria Clara.

A proposta final partira de Fausta Irene, arrancando exclamações entusiásticas a Octávio, que tudo escutava deleitado, e obrigando Clarinha a enrugar a testa... Pois assim pensavam aquelas duas que o Bolero de Ravel, para realçar, carecia de semelhante intermédio cómico? Ou desejariam apenas saborear migalhas de um festim de glória?... Clara Évoracima, bem podia conceder-lhas! Mas...

E conquanto lhe desagradasse o alvitre, ela, que se entregava à música como libertação suprema das realidades e agora se via constrangida a prestar-lhes atenção, foi condescendente e generosa, sem se comprometer, porém.

Sorriu - mas quem a conhecesse leria desdém, ou talvez piedade, no sorriso de aquiescência.

- Pois sim. Depois combinamos!

- Rejubilaram as outras e choveram convites.

- Você tem de ir lanchar a nossa casa! Não calcula quanto estimamos conhecê-la!

Até calculava E tentava livrar-se da avalanche temida.

- Não gosto de incomodar, receio ser importuna...

- Não diga tolices!

- Fausta!

- Você tem de aceitar, não é?

- E vai fazer-nos companhia, na praia!

- Ainda não sabíamos quem você era e já simpatizávamos consigo!

- Fazia-nos impressão vê-la tão solitária!...

- Naturalmente você não gosta de se relacionar à toa e faz muitíssimo bem! Não sabemos de onde vêm as pessoas!...

- Nós também somos muito esquisitas!

- Mas agora a Clara já sabe quem somos, não é?

A Clara dizia a tudo que sim, num aceno maquinal, pensando confusa "meu Deus, que mal fiz para que me não deixem em paz? Porque se importam comigo se lhes não disse que me canso de estar só? " e cheia de íntimo pesar "adeus, sossego querido! A minha arte é a tua sombra ameaçadora! Mal se revela, ai da tranquilidade! Adeus, feliz Clarinha despreocupada! Vais de novo ser a Évoracima que vive ao agrado da sociedade e não ao próprio! ".

No belo rosto permanecia, contudo, o sorriso da primorosa educação. Resignava-se à comédia surta e dispunha-se a obter a recompensa entretendo-se a observar e a analisar as personagens.

Por fim, na abundância de indagações que ficavam sem resposta - talvez por aquelas que as formulavam se contentarem com o tumulto pessoal! -, Maria Clara logrou fazer-se ouvir, declarando sonoramente que tinha de se ir embora por necessidade de comparecer à partida da camioneta das seis "como o havia comunicado ao Labercinho". E por um escrúpulo de delicadeza acrescentado que "assim se via forçada a perder a satisfação de mais uns minutos de convívio"... A tal hipocrisiazinha de que só os brutos se julgarão dispensados...

Foi quando, inquisitorial e intrigada, uma cabeça loira assomou à porta.

- Clarinha! Que estás tu aí a fazer?

E a cabeça loira, após a indagação, logo avançou, surgindo toda a elegante figura de Adriano, sem dúvida atraído pelo íman dos sorrisos que imediatamente lhe saudaram o aparecimento mas explicando à irmã "que lhe ouvira a voz e por isso subira a fim de a avisar de que eram horas de abalar, o que muito sinceramente o penalizava... ". E fitava, risonho, as três jovens desconhecidas, repetindo o significativo "sinceramente... ".

Presas na garganta, Maria Clara sentia as gargalhadas vibrarem e fazia desesperados esforços para manter a compostura. Ou não conhecesse por demais o namoradeiro do irmão...

- Maria Clara - ia continuando o Aviador, galantemente inclinado diante do elemento feminino -, não te parece que devo ralhar contigo Sabias da existência destas flores e negavas-me o prazer de lhes saborear o perfume? Desde quando me ocultas as tuas amigas?

Cintilavam de malícia as pupilas do jovem, mas só Clarinha sabia interpretar o brilho intenso que despediam, magnetizando os olhos das incautas.

Foi Irene - a Fausta! - quem lhe retorquiu acto contínuo, volúbil e cantante:

- Não ralhe, não ralhe com a sua irmã, Tenente! Também nós só há pouco viemos à fala... e a propósito de uma festa de beneficência que vamos realizar e na qual ela se digna tomar parte! Aliás fique sabendo que não o dispensamos a si!

E ele, rindo:

- Para vender bilhetes?...

Já Clarinha lhe respondia, explicando:

- Eu estava a despedir-me, Adriano. Ia a caminho de casa quando o Octávio Labercinho, que te apresento... - e os dois rapazes apertaram-se as mãos, dobrando o oficial um pouco a desempenada estatura para o vulto franzino que se empertigava - me chamou para me pôr em contacto com este simpático grupo que...

E ele, vivamente:

- Que sinto imenso gosto em cumprimentar! Lamento apenas que me não seja dado usufruir tão adorável companhia! Sigo para a capital daqui a instantes, mas voltarei o mais rapidamente possível, prometo!

- Acredite que será para nós um grande prazer!... - e os olhos de Fausta Irene erguiam-se arrojados para o rosto dele.

- Então, até breve!

Despediram-se. Clara agradeceu os novos convites para se reunir com elas e, de braço dado com Adriano, saiu.

- Que tipo bestial! - exclamou Irene com entusiasmo, mal os dois irmãos desapareceram - É uma tara!

Octávio olhava-a entre surpreendido e embezerrado. Talvez por se aperceber da futilidade (ou leviandade? dessa que fora na praia a sua primeira simpatia do ano...

Entretanto, em direcção à camioneta, estacionada a alguns metros de distância, o Aviador ia comentando, animadíssimo:

- Sabes o que te digo Tenho para me entreter! Vai ser uma conquista tripla! A dos olhos ramalhudos não me dará trabalho. As outras... a ver vamos! Oxalá que resistam, para ser mais excitante! - e com um suspiro jocoso - Ai, que pena não poder cá ficar hoje! Visiono a empresa tão agradável... Mas não faz mal! Talvez consiga voltar depois de amanhã... e macacos me mordam se me não faço adorar!...

Vibrante, Maria Clara protestou:

- Adriano, não sejas maluco!

Ele fez uma careta, simulando inocência.

- Mas, querida, para eu não ser maluco hão-de elas dar o exemplo do juízo!

- Mas que mal fizeram as pobres?

- Que mal fizeram Olharam-me! Olharam-me!

- E, de súbito, Maria Clara dir-se-ia sufocada.

- E... e... olhar as pessoas é alguma loucura?

- O irmão riu-se.

- Oh, pateta! Depende!... Mas lembra-te de que foi olhando o Papá Adão que a Mamã Eva o levou a comer a maçã...

 

Sumira-se na curva a desengonçada camioneta onde seguiam, além do irmão e até meio-caminho, os Pais, de visita a velhos amigos que descansavam entre o remanso dos pinheirais que estrada fora vestiam colinas e bordejavam coloridos vales.

Clarinha quedou imóvel, pensando. Que fazer? Voltar à praia Receava encontrar as novas amigas e ser assediada por amabilidades que a entedeavam. Estava pouco disposta a aturar tagarelices escusadas! Bem lhe bastaria nos dias seguintes, quando a correcção não lhe permitisse esquivança...

Deu uns passos, hesitante. Era ainda relativamente cedo, o dia

estender-se-ia, pleno de luz, por mais umas duas horas. Podia na verdade aproveitar o tempo.

Chegara junto da curva para lá da qual vira desaparecer o grande veículo roncante e bamboleante, quase arrependida de não haver decidido acompanhar os Pais. Para que ficara? Bem... para evitar a teimosa persistência do Geraldinho, o magrizela quezilento que entendia dever fazer-lhe a corte só porque a conhecera criança! Mas... ora! No fim de contas podia ele nem estar em casa! Fizera tolice!

Contrariada, resolvia ir meter-se em casa quando avistou, entre duas habitações e alcandorada no monte sobranceiro, a imponente massa do velho castelo, arrendada pelas ameias, alongada nas muralhas que subiam às suas quatro torres, maciças e altaneiras no topo das escarpas rudes. Foi quando lhe veio aquela ideia. Porque não?... Seria tão agradável! E se o pensava há tanto, eis azado o ensejo!

Ensismada, murmurou:

- Castelo de outrora onde viveram os que a morte sepultou no esquecimento, a visitar-te me levam os meus passos vagabundos... Subirei a íngreme ladeira que a ti conduz, em busca de que me compenses os esforços dando-me a visão bela e incomparável dos horizontes largos, dos mares amplos, dos panoramas grandiosos e assim me erguer acima das misérias quotidianas, das vidas mesquinhas. E o meu espírito, qual nauta arrojado, pairará com aladas velas sobre a vista soberba que me ofertares...

Lançada, do fundo da alma, a ardente invocação, forçada a cerrar os lábios para que deles não continuassem a escapar-se as palavras tumultuosas e impulsivas, dirigisse para o caminho que dias antes lhe fora indicado como sendo o melhor e mais breve para a fortaleza que lá em cima desafiava a sua curiosidade, parecendo chamar por ela.

Às suas belas pernas, rijas e fortes, não aterrava a perspectiva da ascensão ao longo do atalho aberto entre tojos, silvas e pedregulhos. Upa, upa!

Parando de quando em vez, a respirar fundo, ela subia, subia sempre.

Chegava-lhe aos ouvidos o ruído monótono e plangente de um moinho a girar, velas em cruz rodando no espaço, gemendo como se lhe competisse chorar as canseiras da humanidade que trabalha, que nunca pode deixar de trabalhar.

- Ui! - balbuciou ela, mordida a pele por um involuntário arrepio. - Que lúgubre isto deve ser no Inverno! com chuva a cair, o vento a soprar... e o cemitério além!... Que melancolia!

Mas, naquela tarde de sol pujante e fecundo - abençoado criador das forças da terra! - a descer nos espaços azuis, não cabiam visões tétricas na imaginação fértil de uma rapariga de vinte anos.

E Clarinha prosseguia a escalada. Ia já muito alto, admirando a estrada negra-azulada que serpenteava entre os vales que subiam depois aos dorsos áridos dos montes escalvados, inóspitos, como se o fogo dos estios os tivessem amaldiçoado.

Abriu-se-lhe na frente um arruinado arco dando acesso ao interior do castelo.

- Será por aqui a entrada?

Uma lagartixa fugiu a correr pelo meio do tojo; duas borboletas brancas dançavam, beijando-se na claridade do seu noivado.

Longe o bulício do mundo. Longe as tragédias humanas. Longe quanto é vil e recorda as trevas.

Maria Clara dominava os horizontes, encostada às pedras carcomidas pelos séculos, pedras que talvez relembrassem passadas glórias, quando os canhões, outrora sepultos na inteligência dos homens que mais tarde sairiam do Nada para ao Nada mais facilmente lançarem outros homens, lhes garantiam a impunidade.

Dom Afonso Henriques, o rei fundador, que de montante em punho afirmava a robustez da raça perfeita - raça de raças valorosas e dominadoras -, criando a Pátria que o céu coroaria de honra e triunfo, o conquistara aos moiros - rezava a História. E os moiros, fugindo, haviam deixado no arruinado castelo a saudade fatalista a mirar-se nas águas do Oceano que lhe beija a fímbria da existência.

Suspirando, a rapariga embalada na ilusão transpôs a entrada.

E as pedras antigas, surpreendidas pela aparição, umas às outras segredavam perguntas "quem será? Moira encantada ou princesinha antiga que regressou à vida? "... Para moira faltava-lhe a tez morena e os olhos negros. Para princesinha de lenda, onde estavam os vestidos roçagantes e os toucados caprichosos?

As pedras não entendiam! Semelhante às moçoilas do campo que ali passavam a caminho dos povoados e dos lares, não era... Então?

Talvez uma donzela de estirpe fidalga, dessas que os trovadores cantavam! Sorria como elas, andava como elas, vestia de cor de rosa como elas... Ou seria uma figura de conto infantil, fada-menina que viera passear ao entardecer...

E as pedras mais não sabiam do que ter pena de perder de vista a encantadora aparição, a sumir-se lá adiante, cada vez lá mais adiante...

Agora, Clarinha quedara-se olhando. à direita, a ermida branca, edificada no século anterior, sem requintes de arte mas expressiva de fé. Singela como a alma do povo que tece poesia em redondilha maior enquanto os letrados espantam as turbas compondo-a em caprichosos alexandrinos. Uns fazendo versos para letrados, outros para os meninos cantarem na escola à hora do recreio.

À esquerda ficava o cemitério das gentes humildes a quem a morte agasalha nas campas rasas. Em torno, tudo cercando, acessível por degraus de pedras semi-esboroados, a muralha da qual se avistava a praia, a vila arejada onde moram pescadores, pobres que arriscam a vida para terem nas mesas de pinho os sobejos do que à custa de mil esforços e sacrifício angariam para a mesa dos ricos.

Assim era a humildade das gentes do mar na vila de Sesimbra, a autora descreve tal a conheceu.

Casinhas brancas - uma porta e uma janela -, barcos donairosos, ruas estreitas e mal calcetadas. Todo um ar modesto e digno que se enfeita de rosas silvestres mal desponta o Verão e os banhistas acorrem a regalar-se com o que para os mais pode chamar-se mágoa em Invernos desgraçados.

Mal a temperatura suaviza, abrem grémios e arremedos de clubes, armam-se bailaricos, onde a mocidade desperdiça a benção do iodo que revigora os corpos indo para lá suar e tressuar, jogar e namorar - fugindo à calma das noites enluaradas onde, ao ar livre, o Amor nunca é sentido como passatempo...

Terrinha modesta, qual noiva de um pescador sempre no mar, sobre este vive debruçada esperando constantemente o seu regresso...

Contemplá-la lá de cima, vê-la no seio das montanhas que a abrigam do vento norte, fora o maior desejo da vagabunda. E ei-la a realizá-lo, trepando o primeiro lance da muralha, seguindo por ele adiante, atenta e enlevada.

Bordejou o cemitério, dando um olhar piedoso e uma prece recolhida à memória desses que ninguém conhece mas tiveram alma como as celebridades. Criaturas simples que viveram sem outra ambição que a de ver medrar a vinha, a oliveira, o trigo... E morreram convencidos de terem lugar no Céu. com certeza, por justos e humildes!

Lábios murmurando a oração, a rapariga continuou seguindo a muralha. Não tardou em ultrapassar o eemiteriozinho obscuro, de ciprestes sobreando a própria luminosidade.

Imobilizou-se por fim, Maria Clara. Que lindíssimo panorama desfrutava!

Lá no fundo do vale, airosa e louçã, Sesimbra descia até à massa escura do orgulhoso forte colado ao oceano, ali submisso como adorador que se roja aos pés dessa que suavemente tenta seduzir até no Inverno, altaneiro e fero como senhor absoluto, a ela se lançar no ímpeto bravio da conquista fatal.

Longe, longe a tocar o céu, o mar azul. E nele, aqui e além, manchas escuras, movediças no balanço perene, indicando as redes das armações onde há-de cair o peixe que os barquitos depois irão procurar.

No remanso das águas, alongadas à beira do areal, embarcações que vistas do alto pareciam não ter mais tamanho que essas outras com que as crianças brincam. Para os lados da serra, em frente, os cumes agrestes confinando a abóbada celestial. Para a direita, o braço alongado e protector do farol e a dentadura rochosa da costa.

Como era bom estar ali e aspirar o aroma puro da natureza próspera e deliciar-se na contemplação do que arroubava os olhos e sentir-se em êxtase na ventura de compreender a beleza universal!

Inebriada pelas sensações que a invadiam, Clarinha apoiou-se às ameias entre as quais espreitava - minúscula naquela imensidade! - e cerrou as pálpebras.

O silêncio infinito e a serenidade empolgante apoderavam-se-lhe da alma e dedilhavam-na com toques de estranha sonoridade. E a íntima melodia tornava-se de súbito numa espécie de cântico salmodiado pelo amargor da solidão que esmaga os afectivos...

Aquilo tudo era excessivamente belo, tão excessivamente belo que seria divino poder ofertar a alguém a emoção que a dominava. E ela estava só demais! Só demais e forçada a pensar... Como seria bom apoiar a cabeça num ombro querido e dividir com outro ser de igual vibratilidade o festim do momento incomparável!...

No espírito de Clarinha surdia agora um desejo. Um desejo ainda indeterminado, mas veemente.

- Quem me dera partilhar isto com ele... com Ele!... - E não era nenhuma das figuras familiares a que vinha encher-lhe a alma! Não, não era! Mas... o ele evocado desenhava-se em contornos nítidos, tracejando uma fisionomia máscula cujo olhar a fascinara e... e... e...

Céus! Mas que forças encerraria aquele olhar? Que forças, para assim a transtornar? Quando, naturalmente, jamais seria amada por ele! Quando, certamente, jamais voltaria a encontrá-lo!

E então, naquele exacto momento, sucedeu que alguém, tão baixo como se temesse quebrar a profunda quietude, disse junto dela:

- Boa-tarde!

Quem fora? O próprio sonho?

Ou... Seria demasiado estranha, seria demasiado fantástica a ligação entre a imaginação e a realidade... E, para convencer-se de tal não valia a pena nem sequer voltar a cabeça. Era melhor continuar divagando

Estava completamente atordoada, num estado de espírito indescritível. E permanecia imóvel, fixa na paisagem, impossibilitada de compreender a autenticidade do que de singular e maravilhoso estava a acontecer-lhe.

Porque um braço a rodeava pela cintura e um ombro lhe oferecia repouso e uma quente mão a forçava a levantar o rosto...

Foi quando enfim O viu! Viu-O. Contemplou-O. Avidamente, arroubada perante esse olhar que se iluminava de ternura... de paixão... de desvairamento...

Ah, as belas pupilas que já não riam nem troçavam! Como lhes queria!

E nunca, nunca soube explicar a si própria como tudo se passara. Apenas lhe seria dado recordar a impressão violenta, desconhecida, simultaneamente doce e torturante, de uma pressão de fogo sobre a sua boca trémula.

E foi essa percepção extraordinária que a arrancou ao instante vivido, furtando-se-lhe no tumulto de princípios que acordavam desordenados.

- Meu Deus! - pensou num relâmpago a razão em combate com os sentimentos. - Mas que vai ele julgar de mim?...

E a ideia tamanha sacudidela lhe desferiu nos nervos que impetuosa se libertou dos braços que se diria não acreditarem sequer na possibilidade daquela fuga.

Ficaram assim frente a frente, encarando-se, ele surpreendido, ela suplicante.

Depois, cedendo ao espanto, os lábios viris articularam a frase interrogativa.

- Porque me repele? Porque me detesta?

Os olhos femininos recusavam-se à interrogação. Clarinha não podia convencer-se de que era de facto a ela a ela, CLARA ÊVORACIMA! - que tudo aquilo estava acontecendo. Não! Tratava-se de um sonho que se tornava um pesadelo...

Ele, à beirinha dela, insistia porém:

- Diga-me, diga-me porque me repele! Porque me detesta! Responda-me!

E ela, para o impedir de tocar-lhe:

- Vá-se embora!

Mas já ele voltava a abraçá-la, num delírio.

- Não me fujas, não me evites! Pois não sabes que te adoro? Desde o primeiro minuto... não sabes? Amo-te!

Confissão estonteante, confissão temível, acabando de desvairar a que em relâmpagos via luzirem as estrelas do céu e as labaredas do inferno mas logrou triunfar do avassalante torpor e brutalmente, magoando-se, lutar para soltar-se. E conseguindo-o. Conseguindo-o porque já ele, numa terrível mutação, a flagelava com uma frase tão cáustica e amarga quanto pouco antes em cada sílaba só havia calor, só havia ternura, só havia lume de alma.

- Ah, sei... é por causa do tal... do que estavas a beijar!... Por causa dele me desprezas. O Sr. Adriano de Castro pesa muito na vida de Clara Évoracima!... Mas nós estamos sós!

Adriano. Adriano de Castro. Adriano que estivera falando nos homens sem escrúpulos!...

Batia cada vez mais acelerado o coração da rapariga. Alais acelerado, sim, mas acelerado pela evocação do fugaz encontro da véspera, agora iluminado por uma claridade imensa que lhe mostrava a extensão do equívoco! Sim, o equívoco! O engano tremendo!... Porque... porque eles não usavam apelidos iguais!... Ele era de Castro - o sobrenome da Mãe. Ela, Évoracima. - o sobrenome do Pai. Uma combinação para não darem demasiadamente nas vistas com a insistência da repetição...

E então, inesperadamente, Maria Clara rompeu em gargalhadas, nervosas sim mas divertidas também...

Ele, interdito perante a insólita reacção, largou-lhe as mãos de que se apoderara, talvez receando-a enlouquecida. E Clarinha recuou uns passos sem que ele a seguisse. Ele que repentinamente caía em si, por certo repeso do movimento inesperado que brotara da violência dos seus mais íntimos sentimentos. com efeito, algo lhe passara pela cabeça, algo de tão anormal como se naquele lugar pairasse qualquer sortilégio...

Maria Clara deixara de rir. Deixara de rir para, altiva e donairosa, pronunciar com voz nítida:

- Não esquecerei o que me disse! Espero da sua dignidade que me repita essas palavras lá em baixo, na vila, quando tornarmos a encontrar-nos! - e voltando-lhe as costas, largou a correr, retrocedendo no caminho tão descansadamente percorrido momentos antes. E ia desatinada, na ânsia de poder isolar-se na alegria da ingénua vingança premeditada, vingança que decerto encheria de confusão esse que então sim, então havia de pronunciar-lhe ao ouvido a frase há pouco referida, a frase que une as almas aos4 pares. "Amo-te! "...

Que maravilha!

Chegou a casa esfalfada, despenteada e um tanto dorida.

Descera correndo o monte e correndo seguira até casa. Soltara-se-lhe na carreira a trança em que apanhava os cabelos e não quisera deter-se para de novo a prender. Mas ao olhar duas vezes para trás, no temor (e no inconsciente desejo) de se ver seguida, escorregara e caíra, ferindo nas pedras os joelhos e as palmas das mãos. A tudo insensível, continuara sempre avante, sem atentar em ninguém, sem olhar a coisa alguma.

Se o Universo cantava dentro dela um hino de amor e ventura, hino que seria doravante o seu anseio, a expressão máxima que buscaria alcançar na realização espontânea da mais bela obra de arte - que importava tudo o mais?

Vivendo dentro do mundo que se erguera por obra do Destino, bem frágil seria o seu esplendor se através dele pudesse ver além...

Bastava-lhe!

 

Em casa, de semblante carregado - horas a marcarem noite embora o sol ainda mostrasse um resto de dia - em regresso inesperado motivado pela ausência forçada dos amigos chamados à cidade por doença na família, o Pai esperava-a agastado com a demora, tanto mais que Helena, conhecedora do génio aventureiro da filha, havia já manifestado as suas preocupações.

E ao vê-la surgir em semelhante desalinho, o coração da Mãe, presagiando as desgraças temidas palpitou acelerado.

- Que te aconteceu, filha?

E ela abria uns grandes olhos espantados, inocentes, procurando resposta adequada.

Na verdade... que lhe acontecera? Que coisa maravilhosa... ou horrível?

Alberto Évoracima, desagradado pelo que parecia confirmar qualquer aventura perigosa, impacientava-se.

- . Onde foste - inquiriu austero, voz inflexível de quem não tolera esquivança à lisura dos actos. E muito raramente o Pai se expressava nesse tom...

Maquinalmente, Clarinha articulou a frase verdadeira que lhe badalava no íntimo mas cujo significado só a ela própria pertencia.

- Venho do castelo, Pai. Fui ver o castelo!

Acaso não poderia o Pai contemplar nos seus olhos, o reflexo das deslumbrantes paisagens que admirara, extasiada?... Não! O Pai não via coisa alguma nessas pupilas fulgurantes... porque ela não as erguia para ele.

E o Pintor, que bem teria gostado de ver o que ela vira, indignou-se.

- Que disparate! Ires sozinha para um tal sítio! Endoideceste, Maria Clara? Caminhos de cabras, locais ermos... - e ralhava como a uma garotinha, a garotinha que ela costumava ser para o seu afecto extremoso, embora o não fosse mais...

- Olha as tuas mãos! As tuas mãos, Maria Clara! Em que estado as puseste! Caíste, não foi? Caíste e se te ferisses seriamente, quem te acudiria? Se partisses um braço? Se ficasses inutilizada para o teu Piano? E se algum malfeitor te atacasse?

Ela permanecia de cabeça baixa, mas não como nos tempos de criança, em que a mais ligeira repreensão, talvez pelo hábito de as não ouvir, tanto a magoava. E em vez de desprenderem lágrimas caudalosas, os seus olhos iam continuando resplandecentes... cada vez mais, cada vez mais... As palavras do Pai soavam-lhe como através de sinos em aleluias. E pensava, num turbilhão "que engraçado! Um malfeitor!... Não pode saber que o encontrei... que encontrei um ladrão que me levou o coração para sempre, pagando-o com... com um beijo! "...

Levantou finalmente a cabeça. E tanta alegria lhe inundava o peito e subia aos lábios, que não pôde mais sustê-la e desatou a rir, a rir nervosamente, excitantemente, em grandes froixos que não reprimia.

Oh! Ela bem sabia que talvez não devesse achar graça ao que se passara. Talvez lhe ficasse bem revoltar-se com o que fora um autêntico atrevimento... Mas ela amava-o! E ele amava-a!... Quando se aclarasse o equívoco, como ambos seriam felizes! Como ela seria venturosa, não tardaria muito pela certa!

Ouvindo-a rir assim, surpreendia-se a Mãe, abismava-se o Pai - que alteou a voz, ainda mais ríspido.

- Maria Clara! Desde quando ris porque te censuro? Desconheço-te e isso desagrada-me. Quererás dominar-te e explicar-me o teu procedimento?

A intempestiva alegria de Clarinha principiou enfim esmorecendo. Não, não pela reprimenda! Apenas porque...

Sim, era isso! Descia agora sobre o seu encantamento o pano sombrio do terror... Terror, terror, terror! Se a sua fuga fosse mal interpretada por ele Ou se viesse a ser mal julgada, por uma consciência severa, a momentânea fraqueza demonstrada? Podia tê-lo afastado de si para sempre!

E tão grande foi o choque sentido perante a ideia do hipotético repúdio que, no mesmo instante, medindo melhor a insensatez com que procedera, a boca lhe tremeu, as faces lhe descoloriram e as lágrimas brotaram de entre as pálpebras cerradas, tudo acompanhado de um baixar de cabeça infinitamente humilde.

Julgando o pranto originado pela severidade paterna, logo se condoeu a Mãe, que ergueu um mudo apelo à benevolência do marido. Uma benevolência que não precisava de estímulos para se manifestar. Alberto, perfeito conhecedor do espírito impressionável da rapariga, reflexo da sua prodigiosa sensibilidade, não suportava que a filha chorasse.

Evidentemente, nem ele nem Helena podiam adivinhar que Maria Clara não prestara atenção a uma única das palavras que haviam sido pronunciadas, vivendo entregue apenas às reacções do seu próprio mundo...

Ninguém possui o condão de saber o que regista o cérebro atrás de olhos amados. O espírito é um criador tão livre que só nas próprias crenças pode algemar-se...

E assim, na inquietação de ter provocado o desgosto de Clarinha, a mão cariciosa do Pintor se afundou entre os cabelos desordenados da filha.

- Vá, não precisas de chorar! Basta que não repitas a extravagância de hoje! Acabaram-se as lágrimas, menina! - e terno como sempre: - Dá cá um beijo e vai-te arranjar para jantarmos que são mais do que horas.

Maria Clara não deu resposta, não esboçou uma pergunta nem sequer estranhou a presença com que não contava e só no dia imediato teria explicação. Enxugou as faces e obedeceu, instintivamente, a quanto lhe era dito. A sua expressão reservada, porém, mostrava aos Pais que ela ficara melindrada... Mas porque, segundo o habitual, depressa a nuvem se desfaria, ambos sorriam indulgentes, sem apreensões.

Tarde na noite, sentada na cama, de mãos entrelaçadas e fronte melancólica, Clarinha tentava acalmar e reflectir.

- Porque me afligi - repetia a si própria, procurando libertar-se de medos e de esperanças e recuperar o bom-senso normal. - Estar a preocupar-me por causa de um erro da parte dele!... Tenho de ser sincera e de encarar a realidade!

Ele disse que me amava... que me quere... Portanto o engano será destruído amanhã! Amanhã, logo, ele saberá que o Adriano... o Adriano de Castro é meu irmão... saberá que somos ambos de Castro Évoracima... e virá pedir-me desculpa... e eu tudo perdoarei e ele repetirá o que disse... e eu responderei que... Ah, meu Deus, valei-me!...

Procurava libertar-se de medos e de esperanças. Desejava recuperar o bom-senso normal. E misturava reflexões com preces... e um sorriso principiava desanuviando o semblante aureolado pela nuvem dos cabelos soltos.

Quando finalmente se aconchegou na roupa, as pálpebras fecharam-se docemente sobre um olhar límpido por detrás do qual despontava a luz de uma visão resplandecente...

 

Rodeavam-na, disputavam-na, ensurdeciam-na com perguntas, exclamações e risos, envolvendo-a numa atmosfera de entusiasmo que tanto a enfastiava como divertia.

- Diga, Clarinha... Acha que o seu irmão vai entrar na nossa festa?

- 'Não sejas chata, Fausta! Já falaste nisso vinte vezes!

- Tenho receio que ele não aceite!

- Aceita! Tenho a certeza de que ele aceita!

- Pedes-lhe tu?

- Pedimos as duas!

- Tá bem! E você Maria Clara, promete advogar a nossa causa?

- Dá-nos todo o seu apoio, dá?

- Que coisa espantosa, Clarinha! Os seus olhos são tal qual os do seu irmão! Que uma rapariga os possua tão bonitos, não admira, mas num rapaz é pouco vulgar!

- Também reparaste na linda cor que têm?

- 'Reparei, pois! Como tu, que não tens feito outra coisa senão gabá-los!

- É que na verdade são maravilhosos!

- E você sente-se orgulhosa do seu irmão, Clarinha Sente! Não podia deixar de ser!

- Olha que pergunta! E depois ele não é somente um belo rapaz, é também um destemido Aviador!

- Um herói!

- Uma figura de romance, das que nos prendem a imaginação porque por onde passam semeiam o amor!...

- Oh, oh! Vê se ele te escolhe como eleita!... O pior é se já está preso noutro lado...

- Hum... não deve estar!... Os tipos como ele não gostam de se comprometer novos. Até aposto que o Adriano não namora ninguém!

- É questão de lho perguntares quando ele voltar.

- Julgas que não sou capaz de o fazer?

- Lá isso és... e pode muito bem ser que ele venha a gostar de ti!...

- Ou de ti!...

Enquanto as duas estouvadas, Florência e Fausta Irene (a Fausta... assim se entusiasmavam e querelavam, Clarinha, silenciosa, ia sorrindo intimamente ao prestigioso encanto do irmão que só de passagem pudera deixar embebidos na sua recordação dois espíritos femininos. Ele é que tinha razão!

Na verdade, outro Adriano não seria fácil de encontrar!... Conquistador experiente, capaz de a todas trazer no coração, de gostar de todas e de simultaneamente para todas compor uma estonteante corte (ainda que estivessem juntas, de tal modo as ofuscando que nada mais nenhuma via além do belo fascinador, ficando assim impossibilitadas de notarem o quanto repartia as meigas olhadelas) o irmão bem justificava o temor das mamãs sensatas...

E o sorriso de Maria Clara, definindo-se, tornava-se inequivocamente irónico. E Leonorzinha, a irmãzita de Florência, como garota sem importância considerada pelas outras, ali estiraçada na areia, ao lado dela, surpreendeu-lho e interpretou-o. Interpretou-o, compreendendo o quanto a irmã e a prima estavam a tornar-se ridículas, pelo que, justamente quando elas menos esperariam ouvi-la, as admoestou:

- Meninas! Que insuportáveis são! E tu, Flor, não sarrazines a Fausta! Ela é livre, pode gostar de quem quiser!

Brusca alteração modificou a expressão de Florência que logo - como se nas palavras que ouvira existisse qualquer exprobação que em cheio a atingia - se voltou para a irmã, colérica.

- Ora não sejas atrevidinha, não? Continua lá a sonhar com o príncipe encantador que te há-de sair numa rifa e não te metas nas conversas das mais velhas!

Leonor encolheu os ombros, sem dar mostras de se ter ofendido com a admoestação - talvez por não lhe ligar mais do que a merecida, nenhuma importância.

- Ah, sim? Pois olha que a Maria Clara está a rir-se de vocês!...

- Oh, eu? Porquê? - tentou protestar Clarinha, sentindo-se corar diante da perspicácia da inimaginada observadora.

A rapariguinha meneou a cabeça cheia de caracóis negros, naturais, que a coroavam dando-lhe a mais deliciosa das aparências - lembrava um querubim! - e redarguiu:

- Porquê? Naturalmente porque elas ainda não tiveram outro assunto de conversa que não seja o seu irmão e você deve achar inconveniente tanto interesse por um rapaz que mal conhecem!

Havia expressivo azedume na voz de Florência quando, a essa desassombrada opinião que obrigara Maria Clara a fitar com nascente consideração o vulto franzino de Leonorzinha, replicou:

- Que tola! Ninguém pode recriminar uma simpatia que nasce espontânea!

Fausta Irene, que se conservara prudentemente calada, observou de súbito, com alegre sobressalto:

- Meninas, atenção!... Aproxima-se o objecto da disputa!

- Voltaram-se todas, surpreendidas, embora Clarinha menos

do que as outras... Manifestaram-se Florência e Fausta Irene, com demonstrações de júbilo.

- Oh, Adriano! Bem-vindo!

- Que gentil foi voltando assim depressa!

O sorriso de Clarinha evoluíra para malicioso, talvez reproduzindo a expressão do rapaz, impecável no fato claro de desporto, que se aproximava em passo elástico, cadenciado.

De si para si, a jovem Artista pensava:

- Ei-lo que chega armado até aos dentes! Agradou-lhe a ideia da dupla conquista e não descansou enquanto não teve licença para vir entregar-se às delícias da praia... Elas que se acautelem!

Mas de súbito, pasmou-lhe o olhar contemplativo. É que, após haver cumprimentado as duas primas em entusiasmo digno daquele com que o recebiam, Adriano, inacostumadamente grave, inclinava-se para Leonor que se sentara comedida e não fizera qualquer movimento para o acolher, apenas estendendo agora num gesto banal a mãozinha delgada.

- Céus! - pensou Maria Clara, alarmada. - Quererá ele que a garota se apaixone também? Como sabe adaptar-se a todos os géneros, ama ao sério...

Não pôde continuar o raciocínio porque dois sonoros beijos lhe estalavam já nas faces.

- Garota, você hoje está muito bem vestida, muito dama da corte!...

Era verdade. No seu vestido azul-marinho, de pregas fartas, Maria Clara recobrara o porte donairoso - tão arrapazado em horas despreocupadas quão senhoril se ela atravessava um palco, de saia roçagante, para agradecer as ovações do público.

Mas Clarinha, impressionada com o último reparo feito sobre uma atitude de que discordava - Leonor parecia-lhe completamente diferente das outras duas! - não mostrou a boa disposição habitual, ripostando sisuda:

- Se soubesse que vinhas hoje, ter-te-ia ido esperar.

- Adriano era demasiado esperto para não perceber o oculto

sentido da frase da irmã. E as suas pupilas ainda mais fulguraram.

- Queres ralhar-me pela surpresa, minha adorável maninha?

A reflexão bastara para que também ela o entendesse. Conheciam-se demasiado para que o contrário pudesse dar-se...

E de forma a ser ainda e só por ele interpretada, Clarinha volveu:

- Por ora não, não vejo de quê! Esperando que não tenha de fazê-lo... - e ameaçava-o graciosamente, de dedo estendido, enquanto o mancebo, rindo com o seu irresistível à-vontade, se instalava entre Fausta e Florência.

Foi quando, do lado oposto àquele de onde surgira o irmão, se veio aproximando uma silhueta que, imediatamente reconhecida por Maria Clara - embora só a visse alongada em sombra na areia - a esta acelerou o ritmo do coração.

- "Meu Deus! - pensou. - Mas... ele virá falar-me aqui?... Ousará..."

Como que atraídos poderosamente, os olhos dela não logravam desfitar agora esse que continuava a ser um desconhecido e, desde a hora que longínqua não ia, se tornara senhor da sua existência. E via-o de rosto duro, um ríctus amargo aproximando-lhe as sobrancelhas fartas, fixando alternadamente e enquanto avançava ora a ela ora ao loiro Aviador.

Adivinhava-o preso de uma raiva surda - talvez a raiva do ciúme! - e notou-lhe a expressão má, de sarcástico dominador que despreza o mundo porque em seu espírito de singulares capacidades o compreende indigno de perdões.

Mas, triunfante por livre de quaisquer sustos, em Maria Clara tudo cantava vitória. Sabia que dependia dela conceder-lhe o fim de quaisquer dúvidas!... Uma convicção efémera! Porque já uma surpresa violenta sobre ela descia.

Ouvira Leonor rir. E viu-o, acto contínuo a seu lado, inclinar-se para a rapariguinha que o Saudava em jeito da maior familiaridade. Sim, familiaridade. Porque era para a pequena e para as outras que ele se vinha dirigindo!

- Viva, Duarte! Até que enfim apareces! Tens andado muito fugido!...

Entretidíssimas com Adriano, só agora davam pelo recém-chegado, cujos olhos cáusticos tão ameaçadoramente fitavam o Aviador que este, notando-lhes o peso mal para ele levantara a cabeça, não hesitou em responder-lhes com intemerato semblante. A distrair um e outro daquela agressividade latente, a voz jovial de Fausta saudando-o e a atitude de Florência que langorosa lhe abria os braços.

- Oh, Duarte, que ausência! Estou zangada contigo, sabes? Ontem passei a tarde à tua espera e tu nada! Nem sinais de vida!

Apenas o interpelado viu Clarinha voltar precipitadamente o rosto alagado pelo rubor em expressiva confusão que aliás ninguém saberia interpretar, ainda que a notassem!...

Entretanto respondia Duarte à que o incriminara:

- Atraíu-me um certo passeio e optei! De resto e pelos vistos nenhuma de vocês se aborrece longe de mim! Têm um novo companheiro, que não deve eximir-se a entre tê-las...

E a animosidade não cessava de aumentar entre os dois homens, pelo que imediatamente comentou em tom de evidente desagrado:

- Entreter as pessoas não é a única arte em que sou exímio. Também sei experimentar os punhos na cara dos insolentes.

Fitaram-nos inquietas e perplexas as raparigas.

Temerosa de algum conflito, cuja verdadeira origem só ela conhecia - ai de Duarte (que bonito nome! se Adriano suspeitasse do que se passara! -, Clarinha poisou uma das mãos sobre um ombro do irmão, indiferente ao olhar carregado e inquiridor de Duarte que se diria sufocado ao notar-lhe o gesto.

- Meu Deus, Adriano!... - disse. - Quebras lanças por ninharias!

- Se te apraz, censura-me! Já agora!

Clarinha leu-lhe nas pupilas iradas a confirmação de que ele não perdoara ao outro a cena da ante-véspera. Ficara a remorder-lhe o ânimo e não o deixaria quedo, a ele que nunca perdia tão completamente a cabeça como ao supor que algo atingia a sua predilecta...

Já Duarte, porém, com requintada ironia - que não disfarçou - e tal como se se divertisse num jogo arriscado, inclinando-se para Maria Clara, observava:

- Por quem é! Não pense que julgo dirigidas a mim as palavras do seu... do seu... - e hesitava intencionalmente, ferindo-a com o olhar acerado.

Então, serenamente, radiosa de poder esclarecer a situação, forçando-o ao respeito que lhe devia no reconhecimento do erro cometido, Clarinha proferiu, em jeito de natural apresentação:

- Do meu irmão, Adriano de Castro Évoracima.

Foi imediata e tremenda a transformação de Duarte. Ficou muito sério, entreabriu os lábios... e o seu rosto magnífico exprimiu tanta consternação, tanto pesar e tanto arrependimento que Maria Clara, generosa, sorriu como que a tranquilizá-lo acerca dos sentimentos que lhe votava, plenos de simpatia e de... de...

Não tardaria Duarte com certeza a pedir-lhe perdão do seu arrojo baseado em falsas convicções e também ela teria ensejo de se desculpar da primitiva grosseria com que o tratara.

Mas de pouca duração seria o contentamento da jovem, que não tardaria em apreender o significado da contracção dolorosa que empedernia as feições do mancebo.

Florência continuava a falar, com expressão lamurienta.

- Oh! Não vão zangar-se antes de se conhecerem, não? Vá, deixem-me apresentá-los! Clara Évoracima, a grande Pianista e o irmão, o Adriano de Castro... Duarte Zêzere, meu noivo...

Transtornou-se o rosto de Maria Clara, em repentina expressão de horror; descomedidos se abriram, cheios de espanto e agonia, os lindos olhos azuis; pálidas como cera ficaram as faces pouco antes da cor das rosas... E quando os seus dedos foram tocados pela mão masculina ela mal reteve um grito de dor!

Felizmente para ela todos os outros riam e tagarelavam. Adriano, aquietado face à situação, tornara-se acolhedor e entusiasta, arrastado na engrenagem de uma conduta inconfessavelmente mais excitante ainda...

Quanto a Duarte Zêzere, sem uma palavra, sentara-se contemplando o mar, parecendo brincar com a areia... A essa, na verdade, esmagava-a sob o império da raiva que sentia contra si próprio, vítima de odiosa miragem que o tornara culpado de uma perfídia, de uma vilania que o atordoava!

E talvez não só...

 

Abençoada alegria a de Adriano, espalhando-se em torrentes de palavras, em risos, em comentários de inexcedível graça, em impagáveis anedotas, em frases de total domínio! Graças a elas, que envolviam Florência e Fausta no mesmo fluido, duas almas podiam alhear-se da existência prometedora que as rodeava para se entregarem à cruel angústia que se apoderava do terreno conquistado no lance comum.

Maria Clara, face à desilusão agreste, vergava.

A valorosa, cujo indefeso coração de pronto se rendera ao amor, sem lutas nem desconfianças, encontrava-se junto de um abismo que requeria muita prudência e muita coragem para ser ladeado sem perigo. Eis o que o Destino tivera para dar-lhe em troca do sossego procurado!

Duarte Zêzere, esse, mau grado o orgulho masculino a tudo sobranceiro, sentia o peso das repreensíveis atitudes que, sem qualquer justificação razoável, se permitira assumir. Procedera de maneira infame e não lhe tranquilizava a consciência o pensar que outro podia cair em idêntico logro.

Um homem digno é o sempre e em qualquer emergência e nunca terá de arrepender-se ante os ditames da honra, que todos ouvem desde que não estejam completamente mergulhados em abjecção e ignomínia.

E o pior... o pior de tudo, ainda, é que nessa brincadeira em que o capricho se ascendera num rápido voluteio, a borboleta fútil queimara as asas. E o mancebo reconhecia que Maria Clara não surgira em jeito de ninfa graciosa que momentaneamente lhe retivera a atenção mas sim como mulher ideal, essa que mal ousara imaginar em raras crises de sentimentalismo, considerados tão ridículos e incoerentes na vida prática onde os devaneios não acham nem lugar nem realização, a mulher em cuja existência não acreditaria nunca e agora ali surgia luminosa a acordar-lhe no peito um amor soberano.

Mas... a sua palavra estava desde há dois anos empenhada com Florência, não por encanto espiritual mas por anseio e comodidade futura, inerente a qualquer homem. Ela ou qualquer outra, seria idêntico, e se a escolhera fora porque a sua mocidade exuberante a tornara notada na sociedade em cuja órbita se movia. Talvez, analisando-a a frio, pudesse encontrar-se-lhe qualidades capazes de lisonjearem a vaidade do homem que busca na companheira uma presença de efeitos agradáveis. E isso bastava a quem de forma alguma suporia vir a sentir de outra forma.

Admitira, racionalmente, que lhe seria fácil quedar-se por ali. Para encontrar futilidade, gorjeios de passarinho e ignorância do lado sério da vida, não precisava de ir mais longe, entregue a experiências que o aborreciam, porquanto elas às vezes dão-se aos choros, às exigências, aos protestos, e ele, em seu natural egoísmo, detestava complicações.

Detestava complicações! Que tremenda ironia!

Detestava complicações e enredara-se numa a que não descobria porta de saída...

Andara voluntariamente cego até então ou o Destino assim quisera as coisas? E para quê? Para o castigar da insensatez do seu critério?

Ei-lo noivo de Florência e conscientemente incapaz de um rompimento miserável...

No entanto Desejara erguer as pupilas, olhar Maria Clara de frente, porém não se aventurava. Conhecia-lhe a expressão de nobre independência que tanto o fascinara e temia vê-la impregnada pelo desprezo de que a alma dela transbordaria. Conhecia-lhe a expressão de convicta alegria que tanto o seduzira e temia vê-la marcada pela revolta que não podia deixar de avassalá-la.

Clarinha odiá-lo-ia com um ódio justo - porque outro sentimento não merecia inspirar o homem que tão baixo se colocara no duplo erro de a julgar pela mais falsa das aparências e de se mostrar em posição dúplice quando ela se revelava digna da coroa branca das imaculadas!

A pouco e pouco, mas com energia, Maria Clara ia entretanto reapoderando-se da calma graças à qual sem tardar assumiria a atitude indiferente que lhe competia hastear no instante difícil em que o seu coração precisava de envergar a armadura dos bravos... Sofrer - mas não permitir que o sofrimento transparecesse. Chorar - mas depois, nunca de modo a levar aos lábios dele o sorriso frio e zombeteiro que devia tê-la posto de sobreaviso e mais não fizera do que apaixoná-la! Rasgar o lencinho inocente que apertava nas mãos - mas sem que ele visse constrangida a boca que na véspera beijara...

Fora troçada. Talvez fosse caluniada, pela fraqueza que tinha explicação no amor - Amor que ele não conheceria porque havia sido condenado à morte no primeiro frémito de vida.

Porque fugira ela à regra de conduta anteriormente traçada? Porque aceitara conviver com aquela gente?

Ter tido forças para se manter na posição primitiva... e poderia levar intacto, inviolado, o sonho embalador!...

E bem fundo na alma, gemia "Vida! Porque me dás a tortura de uma paixão inútil aqui, onde vim procurar sossego e paz... ".

Vencida finalmente a íntima perturbação, levantou a cabeça, prestando atenção à tagarelice do irmão que arrebatava as auditoras com a sua fluência habitual. E no meio do seu tumulto interior, outra ideia perpassou "o mau do Adriano, que não cessa de atormentar os corações femininos e talvez procure seduzir essa que, sem culpa, me lança na amargura! ".

E a sua inteligência ciciava agora "porque me trouxeste aqui, Vida, se eu apenas pedia tranquilidade?"

E foi então que recebeu uma como que assombrosa resposta!

Adriano falava, falava, falava... mas os seus olhos submissos rendiam-se na contemplação de um rosto sisudo, que só se lhe mostrava de perfil e cujas pupilas se conservavam perdidas no mar azul, tão indiferentes e suaves como suave e indiferente aos problemas das criaturas se mantinha esse Oceano que parecia um lago sem cóleras.

E que expressão singular a do irmão naquele instante! Dir-se-ia admirado desse alheamento a que não estava habituado e ao mesmo tempo sedento de uma atenção que não lhe pertencia. E era simultaneamente alegre e pensativa, a expressão, como se um secreto deslumbramento principiasse a nascer na sua alma perante um sorriso que não surgia... Interesse real ou desejo de mais uma vez dominar resistências e depois seguir além buscando novas sensações?

Clarinha não poderia chegar a qualquer conclusão. Dirse-ia que lhe estavam vedadas as reflexões, para ser totalmente espectadora e apreender situações sem tempo para as classificar.

Florência e Fausta Irene acabavam de pôr-se de pé; desnudamente elegantes aprestavam-se para o banho.

Adriano, com certa negligência, como se não ligasse importância às próprias palavras, voltou-se para a silenciosa Leonor que permanecia imóvel e sempre como que indiferente a tudo, indagando:

- Tu não tomas banho com a gente?

E a resposta peremptória da voz cantante, a que não correspondeu o mais leve movimento de cabeça, foi:

- Eu nunca tomo banho.

Entre duas risadas para as outras, o Aviador insistiu:

- Porquê? A água faz-te cócegas?

Franziram-se as sobrancelhas de linhas harmoniosas, traduzindo certo afastamento. Depois, voltando à natural descontracção, por alheada dos desígnios alheios, uma breve mas firme:

- Faz. Nas plantas dos pés.

A declaração, desconcertante, teve como consequência ver cair-lhe ao lado, de joelhos, o entusiasta mancebo, estimulado pela sacudidela.

- Oh, Leonorzinha, que vergonha! O que a menina tem é medo do mar! Medinho do bom!

E ela:

- . Nenhum medo! Nem do mar nem de nada. Não sei o que isso é!

Uma declaração positiva e dita dignando-se olhá-lo pela vez primeira com os olhos verdes, muito lindos e doces apesar da secura das palavras.

Adriano sentia algo de muito estranho apertar-lhe a garganta. Perdera a vontade de seguir as duas sereias que falavam arrebatadamente no seu desejo de mergulhar no líquido fresco que as afagaria no remanso da sua ondulação...

Leonor afastava-se já, buscando o sol. E, repentinamente, Adriano achou que também devia fazer-lhe muito bem repousar debaixo dos raios do astro que subia no esmalte do céu. Achou que devia fazer-lhe bem e estendeu-se ao lado dela, ripostando à frase que o perturbara:

- Gosto de saber-te assim corajosa! E será um prazer admirar-te e aplaudir-te em qualquer façanha digna da tua intrepidez! - e como finalmente um leve sorriso entreabrisse os lábios pequeninos, prosseguiu, ainda mais encalorado: - Aceitas uma exibição que me convença?

- Uma exibição?

- Sim, uma prova!

Inesperadamente travessa, Leonor pôs-se a rir, familiarmente.

- Sujeito-me à exigência... desde que não molhe os pés por causa das cócegas...

De lado, desdenhosa - ou não percebesse que a desvanecedora atenção do Aviador lhe fugia a caminho da irmã considerada sem importância. - Florência comentou:

- Deixa-a falar, Adriano! Ela de coragem só conhece a palavra. O resto é miaúfa, miaúfa igual à dos miúdos!... Não entra nem num bote! E para atravessar o rio, fecha os olhos!

Ficou muito corada, a atingida.

- Que exagero! - replicou. - Nunca fechei os olhos em cima da ponte!

- Mas quando te aproximas dela gemes a dizer que antes querias ficar em casa! Ou não?

- Ora! Isso aconteceu uma única vez e porque eu estava com dor de cabeça!

Florência não se compadecia.

- Vá lá... posso dizer a verdade! Do rio não tens grande medo, mas do mar!... - e para o oficial que, de expressão reservada, seguia o debate: - Calcule, Adriano, que nós queríamos dar um passeio para assistir ao levantar das redes e ela, feita desmancha-prazeres, recusou-se terminantemente a acompanhar-nos! E depois jura e trejura que não sabe o que seja medo!...

Então a adolescente empertigou-se e, numa espécie de vibrante desafio, declarou:

- Pois vou quando vocês quiserem! Hoje mesmo! Tá certo?

Fausta Irene e Florência prorromperam em clamorosas demonstrações de discordância, no propósito evidente de a meterem a ridículo.

- Oh, não! Não aceitamos semelhante responsabilidade! És capaz de morrer de susto!...

- Temos de levar Médico assistente, que tu adoeces pelo caminho!...

Leonor não lhes retorquiu. Voltou-se para Adriano e, como se estivesse certa de que ele a compreenderia e auxiliaria, implorou num timbre meigo que contrastava com as vozes ásperas das duas estouvadas:

- Sr. Tenente, interceda por mim, peço-lhe! Troçam-me implacavelmente desde que no ano passado, num charuto, vi jeito de nos voltarmos, tantas cabriolas fizeram! E mergulhos forçados não me agradam. Elas nadam mal, as desgraças sucedem, não é? Mas hoje estou disposta a mostrar que efectivamente não sou nenhuma medricas e vou com elas para a armação. É a tal prova... - aqui, a voz tremeu-lhe imperceptivelmente e após breve hesitação concluiu: - No entanto, como elas são amalucadas, eu agradecia ao Sr. Tenente se quisesse acompanhar-nos. Talvez goste do passeio... evitando que elas cometam alguma imprudência!

Estralejaram gargalhadas.

- Receias que te atirem pela borda fora?

- Só com escolta, Leonor? Não confias em nós?

- Olha que o senhor tenente não está disposto a tomar conta de bebés...

Mas o senhor tenente dirigiu-lhes um olhar que sustinha novos sarcasmos e, poisando a mão no braço de Leonor, expressivamente maravilhado por aquela frescura tão sem artifícios, declarou:

- vou com o maior prazer, Leonor, podes ficar sossegada. A tua irmã e a tua prima não te arreliarão. Eu tomo conta de ti... e delas!

O tom afável acabou de conquistar a confiança e a simpatia da rapariguinha, que o encarou cheia de gratidão - ou não estivesse ela habituada a que Fausta Irene e Florência a atormentassem considerando-a uma espécie de gata borralheira.

E enquanto Adriano assim cativava essa Leonorzinha que a princípio nem se dignara olhá-lo, no costume e no intuito de permanecer alheia à reconhecida estouvanice das companheiras- às quais, aliás, também se julgava inferior, pelo que sempre se mantinha delas distanciada! -, a utilíssima Florência delirava ante a perspectiva do passeio em companhia do Aviador - sem se lembrar sequer de que a ficava devendo à irmãzita... E expandia em entusiasmos.

- Oh, que rica tarde vamos passar! Depressa! Temos de procurar o Sr. Joaquim, a ver se ele nos arranja um mestre que nos leve... Venha, Adriano. Venha daí! - e de súbito, voltando-se para Maria Clara, a quem até então não ligara importância, como se a esta bastasse comparticipar da que atribuíam ao irmão, indagou, no mesmo jovial tom de comando: - E você, Clara? Também vai, pois vai?

Bruscamente interpelada, Clarinha, a quem fora salutar aquele período de reflexão, volveu naturalmente, em obediência a um impulso sem premeditação (pois de forma alguma previra o convite):

- Não... eu não posso acompanhá-las. Desculpem!

Nenhum pesar, nem sequer por delicadeza, Florência manifestou. Limitou-se a perguntar ao noivo se ia ou ficava. Duarte disse que ficava.

Clarinha abafou um suspiro. Agradar-lhe-ia em absoluto uma tarde passada sobre o mar. Na verdade com que se esquivara ao passeio existira o temor de que lhe fosse imposta a presença, agora penosa ao máximo, de Duarte Zêzere. Não voltaria, porém, com a palavra atrás...

O irmão levantara-se para seguir Florência e Fausta Irene que sem mais delongas pretendiam conseguir a realização dos seus intentos. E Zêzere aproveitou para se retirar, depois de dirigir a Maria Clara um cerimonioso cumprimento.

Foi assim que a Pianista ficou só com Leonor. E com esta, singelamente principiou conversando.

Trocaram impressões, cruzando pontos de vista sobre os assuntos que abordavam, e uma verdadeira simpatia nasceu entre as duas raparigas, fazendo com que horas depois Clarinha recomendasse ao irmão, notando-lhe o crescente entusiasmo:

- Peço-te que não brinques com a Leonorzinha! É pura e confiante como uma criança.

E, repentinamente muito sério, o Aviador respondeu-lhe, bem longe de gracejar como era seu hábito quando lhe ouvia alguma advertência no género:

- Mas, garota, acaso julgas que não tenho coração?

- Clarinha sorriu-lhe, enternecida mas ainda não desarmada.

- Oh, não! Sei que tens... um coração onde as paixões cabem às dúzias!...

- Mas que só elegerá uma noiva!

E com esta frase que podia permitir as mais extraordinárias interpretações, Adriano partiu para a tarde náutica...

 

Quatro horas da tarde.

Céu de um azul intenso, violento, onde fulge o sol que desce em torrentes de oiro derretido sobre a praia flamante de toldos brancos que abrem na areia oásis de sombra.

Zumbem moscas bailando no ar.

As silhuetas dos barcos perfilam-se ao longo das muralhas que defrontam o mar, sereno e harmonizado à tonalidade do docel que envolve a terra, enovelando espuma de encontro ao silêncio da costa ébria de calor.

Modificou-se como que por encanto a doçura da manhã que tem luminosidade e esplendor mais esbatidos, mais delicados.

Para leste e este erguem-se os montes pardos, maciços, sobressaindo como vigoroso desenho na diafaneidade da atmosfera.

Ao longe, cortando o amplo panorama, o farol atento escutando as preces da água que num murmúrio eterno lhe diz: "não te esqueças de brilhar, logo à noite, quando não houver luz no céu. O meu destino feroz, implacável, agradece-te que o livres de ser novamente assassino". E o farol, bondosamente, atende as preces da água.

Para trás, fronteira ao Oceano, lá no topo, arrogante por lhe ficar inacessível, entre dois ciprestes melancólicos uma das torres do castelo. E ao longo da marginal, as redes, secando, espalham o cheiro acre do peixe.

Mesmo em frente, sobre as ondas maneirinhas, oscilam donairosas as traineiras, as aiolas, as canoas, os vaporzinhos do alto... E em direcção ao areal vem correndo uma embarcação a remos, vigorosamente conduzida por um esbelto rapaz cujos músculos retesados denotam o esforço dispendido.

Na orla do mar movem-se silhuetas plenas de viço, trepidando impaciência, rodopiando, agitando no ar os braços nus, os chapéus de abas largas e os lenços berrantes. Riem, cantam, irradiam fulgor, como possuídas pela necessidade imensa de transmitirem à natureza a animação que as empolga.

Pernas dentro de água, Florência e Fausta Irene incitam o Barqueiro a aproximar-se mais veloz.

- Eh lá!... Rápido... Força!

Adriano comparticipa do frenesim... mas poisa o olhar húmido de invulgar ternura no rosto, também risonho, de Leonor, que na verdade, vencida a reserva natural - feita de qualquer coisa simultaneamente muito arisco, muito ingénuo e muito senhoril- se revela uma companheira adorável, tão adorável quão toda a sua figurinha.

De mãos nas algibeiras das calças, o rosto tisnado ainda mais escurecido pela barba crespa de alguns dias, cachimbo pendente dos lábios grossos de bonacheirão, o Jaquim vai falando depois de inspeccionar os horizontes com ares entendidos.

- Isto é capaz de virari o tempo!... Pralém estão a aparcer nuvens... se calhari vem aí um ventania que faz dançar! as barcaças... As meninas deviam levar lans!...

Já Florência replica, indignada:

- Lãs, com um sol destes? - e depois de baldamente pesquisar o firmamento: - Onde estão as nuvens?

E Joaquim, de indicador espetado, aponta. E todos vêem então que a nascente, há na verdade ténues farrapinhos brancos- farrapinhos das ligaduras de um soldado que morreu e subiu aos céus remindo os pecados dos homens que o mataram...

Leonor dá razão ao velho lobo do mar e agita o saco de lona que não larga, apesar dos remoques ouvidos desde casa.

- Trago aqui os nossos casacos!

Fausta ri mais, chapinhando, salpicando os circunstantes, que protestam.

- Devias ter trazido também alguns cobertores!

Como que contagiada pelas forças joviais que a rodeiam, a primita faz uma careta engraçada.

- Rala-te! A verdade é que o Sr. Tenente também trouxe camisola de lã!

Adriano mira o agasalho que Maria Clara o obrigara a envergar.

- A minha irmã deixava-me lá sair sem isto!...

- Leonor aprova.

- Só mostra que é ajuizada.

- Pelos vistos como a Leonor... - e uma expressão deleitada inscreve-se nas feições do rapaz ante o confronto simples que a ambas harmoniza no mesmo afectuoso paralelo de desvelos sensatos.

Após hábil manobra, o barquito aproa. Já instaladas, Fausta e Florência incitam Leonor a que suba.

- Vamos, salta!... Agora, enquanto o mar não vem!

- Mordiscando os lábios, Leonorzinha avança, decidida a meter os pés na água apesar do longo arrepio que a assalta. Mas no momento exacto em que o mar vai cobri-los, dois braços fortes levantam-na e colocam-na dentro do bote.

Aplausos das mais velhas, riso satisfeito da mais nova.

- Obrigada, Sr. Tenente! É muito amável!...

E ele, carrancudo mas com um olhar doce que atenua a sisudez, instala-se na frente dela, segurando os remos que o rapazito lhe entrega à ordem do Joaquim, tão prazenteiro como os que embarcam e refilando:

- Pois sim, pois sim... Eu é que não acho nada amável essa forma de me tratar como se eu fosse um velho! Faz com que me sinta deslocado!...

- Oh! - exclama a pequena, fitando-o penalizada, para depois começar a rir, percebendo o alcance da frase. - Nesse caso?...

- Nesse caso... troque o cerimonioso tratamento de "Sr. Tenente" pelo meu nome próprio. Ou não gosta?

Leonor sorri. Não disfarça a alegria que a invade.

- Oh, gosto imenso! - e as suas faces lembram pétalas de cetim: - Mas... não me atrevo!

- Atreve sim! Sob pena de eu a tratar e pôr Vossa Excelência...

Fausta Irene, desmiolada como sempre, bate palmas, indaga:

- E nós?... Nós podemos chamar-lhe Adrianinho?...

Ele continua a sorrir... e o seu olhar não se desvia da linda rosa púrpura que abriu pétalas naquelas faces deliciosas.

- Podem, mas não divulguem a permissão... que isto não é para toda a gente!

com vigorosas remadas, o barco parte dançando. O formoso ramalhete grita adeus ao velho Joaquim, que da praia lhes acena, comentando intimamente, com a instintiva sagacidade alerta:

- Bonitas até ali!... Mas parece ca mais novinha é quem leva o coração do rapaz. E nam há que apontari nada a ele! Bonito moço! Tem cara de valente e nam conheço nenhum mais sem toleima!... - e num sonho vago: - Dava gosto, se os meus fregueses começassem todos a casari...

Do barquito, as raparigas vêem mover-se os beiços rudes, no solilóquio, mas nada ouvindo, interpretam a seu modo as expressões dele e bradam, mãos em porta-voz:

- Tudo há-de correr a contento!

- Ninguém enjoa, vai ver!

E aquela encosta rente ao vaporzito de cinco ou seis metros de comprido por dois ou três de largo, alto de um homem acima da linha de água, flamejante no mastro garrido, todo abalado pelo teuf-teuf contínuo do motor que anuncia a largada prestes.

Da amurada, um esgalgado rapazola de olhos bonitos num rosto desfavorecido lança mão à proa da barquinha.

Em salto de acrobata, Adriano acha-se a bordo do "Deus te guie" - nome pintado a negro à proa. Rápido, ajuda Florência a subir. Mas há um incidente quando Fausta Irene poisa um pé no "Deus te guie". Certamente porque o rapaz dos olhos bonitos afroixa a pressão, cansado do esforço, a aiola alarga as sacudidelas, desviando-se um tanto e obrigando as pernas da rapariga a um afastamento de cujos resultados trágicos

- um mergulho inesperado! - a salva o braço vigoroso do Aviador, sustentando-a no desequilíbrio e puxando-a para cima.

Grande susto e depois gargalhadas.

Em baixo, resta Leonor de testa franzida e narizito algo arrebitado... E ninguém a convence a galgar a barreira. Se lhe acontece o mesmo que à prima?

E esquiva-se à autoridade de Adriano, que procura convencê-la a subir.

- Vem sem medo! Eu não te largo...

- Na... pode cair comigo!

- Riem todos.

Então Adriano pula para a aiola e, intimando Leonorzinha a aquietar-se - irresistível! - levanta-a no ar e sobe com o seu precioso fardo nos braços.

Pela segunda vez a transporta, totalmente confiada à sua força. E como é bom sentir apoiada a si aquela fragilidade enternecedora!

Trémula, ajeitando os cabelos que o vento desalinha, Leonor observa, em tom agastado:

- Era lindo, se íamos ambos parar à água!

- Que tinha? Nado por dois!

- E as minhas cócegas? - Os risos confundem-se.

Agora sentam-se todos quatro no chão, rentes à amurada, e depois de admirarem o regresso à praia do barquito que os trouxera dirigem a atenção para os homens da companha que a remos se aproximam nas barcaças negras, chatas, de bojos largos.

O "Deus te guie" atira-lhes as amarras que os levarão a reboque, motor sacudido por um frémito longo. Teuf-teuf!. Têêêêuf!... E ei-lo tomando a dianteira, ei-lo puxando os companheiros onde quinze homens, máscaras duras e impressionantes, seguem mazombos, certamente intimidados sob a observação das belas raparigas.

- Não estão à vontade, coitados! - cicia Leonor, instalada entre a irmã e a prima.

Adriano, a quem aquela escolha de lugar arreliara, replica desdenhoso:

- A menina julga que os homens, quando vêm para o mar, têm muito que dizer? Sabem lá se levarão peixe, se o trabalho vai ser compensado, se o esforço a dispender será coroado de êxito! Pensam! E quem pensa não desperdiça palavras.

Florência tirita.

- Não tarda que bata os dentes como castanholas.

- Fizeste bem em trazer roupa, Leonor. Está a levantar-se um taro!...

- Quem diria, lá na praia... - corrobora Fausta, envergando o casaco.

Adriano encolhe os ombros.

- Isto no mar é assim! Vocês bem ouviram o que o Joaquim disse... E olhem que ele teve razão! Já há mais nuvens acasteladas e estou a ver uns carneirinhos que presagiam uma rica ondulação!

Fausta Irene sorri.

- Tem piada, que vista de terra a água parece que nem se mexe e afinal está sempre a bulir!

- Nada no Universo é imóvel! - responde o mancebo, grave. - Os próprios montes encerram o trabalho laborioso das fontes e da vegetação que lhes rompem os flancos.

- E os rochedos?... - indaga Leonor. - Também se movimentam?

- Sabe-se lá! Talvez encerrem diamantes em lenta transformação.

De repente jubilosa, a rapariguinha aponta:

- Reparem, que engraçado! Como a praia vai ficando pequenina! Os toldos, tudo!... Dir-se-ia o reino de Liliput...

- Que era onde a menina devia viver!...

Mas ela não se zanga com a irónica alusão de Adriano à sua minúscula estatura. Limita-se a uma careta.

E o vaporzito, cheio da tagarelice constante das jovens passageiras, vai singrando - teuf-teuf! - a balançar, a cortar as ondas verde-negras e não azuis como de longe se diriam sob o reflexo luminoso do céu.

O recorte da costa distancia-se mais, e mais, e mais...

O vento, cada vez mais violento, sopra implacável. E o rapazote dos olhos bonitos, que segue molemente apoiado à caixa do motor - teuf-teuf - torce o nariz para o animado grupinho.

- 'Tiveram pouca sorte! Isto vai haver dança... Ele já está a picar!

Entretanto o barco detém-se, lançando a âncora.

- Que pena! - lamenta Leonor, o queixinho roliço na concha formada pelas palmas das mãos. - Gostava de ir para onde se não visse terra!...

E Florência, a desenvolta Florência, a intrépida Florência, que se desequilibrara ao pretender levantar-se e ficara muito pálida, agarrada ao mastro, balbucia, extinta a anterior boa disposição:

- Ba parva! Não achas que já basta, este bailado?

- Então, adivinhando-lhe a fraqueza, Adriano aconselha:

- É melhor sentares-te, Florência!

Ela obedece e fica de costas voltadas, apoiada à outra borda, silenciosa, de pálpebras descidas.

Fausta nem sequer tenta erguer-se. Emudecida, desliza suavemente para o pavimento inferior e, junto da prima, agarra-se desesperadamente à amurada, toda sacudida pela ondulação que ainda mais forte se sente depois que o barco parou, ondulação que lhe transmite as vibrações ao estômago...

Da popa, o rapazote ri-se para Leonor e Adriano que se conservam no mesmo poiso, serenos e fortes.

- As meninas vão enjoar! - sentencia, de lá. - Isto não é pra todos!

Adriano lança uma olhadela irónica às duas raparigas e, aproximando-se da mais nova, que intemerata permanece ao lado dele, observa:

- Então tu, a que não gosta de água, aguentas-te melhor do que as sereias?

De expressão contristada, Leonor replica:

- Acho que sim e graças a Deus! - e num tom afável, acrescenta: - Seria muito enfadonho para si ver-se na companhia de três inválidas!

Adriano meneia a cabeça.

- Desde que estejas presente, não me aborreço, tenho a certeza! Apenas lamentava que a tua indisposição não te deixasse gozar este magnífico espectáculo. Vê! Vê e admira! Começa a faina...

Falara em tom grave, sincero. E Leonor sem vislumbres de hesitação o registou emocionada.

E fica olhando como ele pedira.

Junto do Mestre, um barco ficara, só com um Pescador dentro, velho de expressão ainda viril, cachimbo entre os dentes e gorro de lã preta enfiado sobre a grenha hirsuta, o qual prendera à beira da embarcação uma ponta da rede de sombra lançada abaixo para atrair o peixe e fazendo semicírculo de modo a que, penetrando, aquele não se lembre de dar a volta e sair pelo mesmo lado... Depois puxarão a rede central da armação, que é côncava, e na qual há-de vir... o que Deus quiser!

Agora, os demais barcos alinham-se em frente, buscando, com os ganchos (uns paus terminados em ferros de ponta curva), puxar as cordas da rede. E aos poucos, os homens, grandes aventais de oleado a cobri-los, debruçados para as águas, músculos túrgidos no esforço brutal, alheios à perigosa inclinação dos bordos, vão içando as malhas, lentamente, puxando as de baixo, sempre as de baixo, e à força de as ir estreitando aproximando-se mais e sempre mais do Mestre e do outro barquito onde o solitário vai fumando e olhando com filosófica indiferença a cena que só a profanos apresenta novidade.

Leonor e Adriano, absolutamente concentrados, não desviam as pupilas do espectáculo. Quase inconscientemente, acercaram-se da amurada, para melhor verem. E encostados um ao outro recebem nos rostos a lufada da brisa cortante, salgada, que lhes traz às bocas o gosto do mar sem fim.

- Ala-arriba!... Leva agora!... Eh, força! Lá vai... lá vai... ala-arriba! Ala-arriba!

Grita cadenciada, rítmica, amenizando a luta dos homens que gemem sob o peso violento...

Enche a amplitude esse vozear harmónico, entusiasta, esforçado, hino do trabalho que prossegue. Ala-arriba!

Adriano sorri, deleitado. Também ele, lá em cima, entre as nuvens, costuma animar-se com o incitamento tão genuinamente português "Ala-arriba, meu rapaz! Toca a subir! ".

Adriano sorri... e não dá conta de que o seu braço envolve os ombros da companheira estreitando-os carinhosamente.

Também ela não se apercebe da atitude dele, porque se deixa estar enlaçada, presa num único pensamento "haverá peixe? Haverá peixe?".

Enfim, vem o fundo da rede à superfície. Desapontamento! Apenas umas dúzias de sardinhas - pedacinhos de prata rebrilhando, saltando, sacudindo escamas, no efeito maravilhoso de um fogo-preso à luz do sol.

Todos se calam, tristes mas resignados pela repetição frequente. Leonor, compadecida, lamenta baixinho:

- Tanto trabalho para nada! Pobrezinhos!

O arrais toma nas mãos os peixitos cintilantes e atira-os para dentro do vapor.

- É pra provarem!...

As sardinhas torcem-se, agonizantes.

Leonor recusa-se a olhar a que Adriano toma nos dedos. Pois o bichinho também está a sofrer!...

- É um afogamento fora de água!... - diz.

Os homens afastam-se de novo, os braços voltam à traça primitiva.

- Para quê - indagam os dois assistentes.

E o rapazote dos olhos bonitos, imóvel no seu poiso - não o perturba o ondular do naviozinho! -, explica:

- Pra fazer a segunda levada! Pode calhari estari algum peixe metido na sombra!

com mútuo enlevo, Leonor e Adriano encaram-se. E uma compreensão desponta no gosto de sentirem que por largo tempo ainda continuarão assim, lado a lado, felizes dessa felicidade que desperta suave, insinuante, avassaladora.

Um gemido arranca-os à deliciosa sensação que os domina. E só então - eles, que no seu egoísmo de venturosos se haviam desviado de quanto não lhes dissesse respeito! - se lembram de Fausta Irene e de Florência.

Do lado oposto, lívidas, trémulas, sem vislumbres do costumeiro aprumo, as duas enjoadas têm arrancos desesperados sobre a água do Oceano, a bela água tentadora que rente à praia lhes embalava os corpos e agora lhes desfaz os estômagos...

- Meu Deus! Como elas estão!

De gatas, a fim de não perder o equilíbrio, Leonor arrasta-se para junto das aflitas, tentando confortá-las. Obriga-as a deitarem-se no chão, encostadas uma à outra.

Tiritam, a má disposição aumentando o frio que paira na atmosfera salina.

E ela, generosamente, despe o seu próprio casaco para melhor aconchegar Fausta, cujos lábios arroxeiam. E fica desabrigada, os braços nus, o peito exposto ao vento sob a leveza do vestido de algodão.

Deslumbrado, Adriano vê-a agir. Que doçura de intenções, que harmonia de gestos, que singeleza de atitudes nessa criaturinha tão expressivamente feminil!

Decorrem momentos. Depois, impotente para mais fazer pela irmã e pela prima, Leonor volta para junto do moço Tenente, esfregando os braços com energia, friccionando as faces, tentando combater o frio, arrepiada dessa humidade que a penetra e enregela.

- Se eu adivinhasse, trazia mais agasalhos!

- E elas, que não queriam nenhuns, açambarcaram todos!... - regouga o Aviador, mal-humorado de a ver exposta à intempérie por culpa das duas estouvadas. - Deviam sofrer os resultados da sua imprevidência!

- Oh, não! - protesta a rapariguinha. - Coitaditas! Bem lhes basta o enjoo... Deve ser terrível! O que vale é isto prometer amainar... Pois não lhe dá a impressão de estarmos mais quietos?

Como resposta à percepção, filha do sincero desejo de que tal sucedesse para melhoras das companheiras, uma vaga alterosa embate no frágil vaporzito imprimindo-lhe fortíssimo estremeção.

- Ai, ai... - sussurra a gemebunda Florência. - Se isto se volta, Deus meu! Nem podia nadar...

- Não volta nada, esteja tranquila. - assevera então Adriano com autoridade, apiedado mas invencivelmente divertido com a transformação das raparigas.

Que pesar, verdadeiro pesar, só o experimenta ao notar o semblante crispado de Leonor que gela, a respeito de toda a vontade de reagir.

E o rapaz nem hesita.

- Tu não podes continuar assim! - e intima: - Aproxima-te. Chega-te bem para mim. O mais que possas.

- Para quê? - e os lindos olhos, inocentes e ansiosos, interrogam os dele.

- Não vou consentir que apanhes alguma pneumonia e não sou tão altruísta que me resolva a sofrer os resultados da imprudência alheia!

Abre o casaco e, resoluto, acabando com a resistência que diminui,

força-a a aninhar-se no abrigo que assim lhe oferta, guardando-a muito aconchegada entre os seus braços que se fecham sobre ela, estreitando-a ao peito.

E sem o mínimo pensamento reservado, abafa-a, lealíssimo, fraternal, dando-lhe todo o seu calor.

E Leonor, cabeça abandonada no ombro forte, sorri ao sorriso que a fascina e ao amor que nasce.

 

- Oh, meu Deus! Que sensaborona tens estado hoje! Que sorumbática! Sentes-te doente? - e passando da contrariedade à inquietação, Helena debruçou-se para o rosto macilento onde os belos olhos pareciam maiores pela fixidez de mirarem no vago o que só eles viam.

- Não tenho nada, Mãe! - assegurou contudo e energicamente a rapariga. - Estou óptima como sempre!

- Então porque motivo passaste a tarde fechada nesta casa onde se abafa? Vem ao menos dar uma volta comigo! Olha, vamos esperar o teu irmão! Os Pescadores não devem tardar...

Clarinha abanou a cabeça, esquivando-se.

Reflectia.

"Pois quê... estivera durante toda a tarde esplêndida de sol encafuiada nessa casa onde realmente se abafava, para não se encontrar com ele... e havia agora de sair, agora que era quase certo vê-lo pela beira-mar aguardando a chegada da... da noiva? Não, mil vezes não! Bem sabia que se tornava inevitável um próximo cruzamento entre ambos - não porque se recusasse a juntar ao sacrifício máximo os sacrifícios grandes e pequenos do que lhe encantava a existência, apenas porque a própria estreiteza do ambiente assim o condicionaria mas ao menos que tivesse tempo de acalmar, de encarar a frio a situação e, especialmente, de se habituar à ideia de enfrentá-lo como a qualquer estranho, sem que alguma coisa traísse a sua íntima perturbação! Sim, habituar-se à ideia de vê-lo, eis o que urgia, para não estremecer quando o olhar arrogante se permitisse fixá-la... Não bastava recordar que nessa manhã, aliás e subitamente, o olhar arrogante fora humilde, implorativo... Não, isso não bastava para serená-la! Porque até mais temia encontrá-lo assim, correndo o perigo de enternecer-se sob o olhar que, altivo ou modesto, ordenando ou suplicando, seria sempre irresistível!

Quando a mulher ama, tudo tem riscos...

- Então, vens ou não - repetiu a Mãe, impaciente notando que ela não parecia disposta a mover-se.

- Não, Mãe, não saio. Não me apetece. Sinto-me bem aqui.

Alberto apertou o braço da mulher, risonho, condescendente.

- Deixa-a, Helena, não insistas! Vamos nós dois divagar por aí como dois noivos...

E saíram.

Ouvindo a porta da rua bater ao fechar-se, Maria Clara suspirou, aliviada. Só agora, em todo esse dia tão longo, conseguia ficar só. E precisava tanto de se sentir à vontade, para entender a extensão da sua mágoa!

Deus do Céu! Que resultaria de tudo aquilo?

Ainda se Adriano não convivesse com aquela gente, se Adriano a não arrastasse, inadvertidamente, para a companhia da noiva de Duarte!

E todo o seu ser estremecia ao pronunciar secretamente o nome que doravante, e embora não quisesse reconhecê-lo à intransigente razão, seria para ela supremo refúgio e suprema tortura!

Sim, o que lhe alagava a alma não era momentânea ilusão destinada a morrer pela falta do combustível afectivo.

Conquanto nunca tivesse amado, conquanto nunca olhar algum tivesse ficado preso em saudade ao seu olhar, sabia avaliar os sintomas inequívocos do amor. E sabia avaliá-los porque, mãos sobre o piano, interpretando páginas de beleza imortal, vibrava nas emoções que os sons traduziam! E esses sons tumultuavam-lhe agora na alma feitos acordes de veemente paixão, uma paixão que para todo o sempre ficaria sinfonia incompleta...

Entregue às suas magoadas reflexões, permanecia encostada à mesa da sala de jantar, ausente de quanto não falasse das suas esperanças irremediavelmente desfeitas.

E nisto, devagarinho, uns lábios escaldantes depuseram-lhe na nuca um beijo que lhe arrancou assustado protesto.

- Adriano! Só fazes tolices!

Mas não adiantou a censura, tão cheio de surpreendente e ignorada felicidade se lhe revelava agora o rosto do irmão, que se lhe ajoelhava diante e transportado a cingia pela cintura.

E aquela efusão, comunicando-se-lhe aos nervos excitados, obrigou-a a descer das regiões pelas quais andara pairando.

- Que tens tu? - inquiriu, por completo restituída ao querido rapaz. - Vejo-te transfigurado! Assim te agradou o passeio?

Adriano semi-cerrara as pálpebras e, com profunda comoção, murmurou:

- Se tu soubesses... se tu soubesses!... - e depois: - Ouve, tenho de te contar... - e deitou a cabeça no regaço dela, que se pôs maquinalmente a afagar-lhe os cabelos doirados. Mas, em vez de falar como anunciara, mantinha-se tão evidentemente entregue aos seus devaneios que Maria Clara decidiu adiar para mais tarde a confidência que afinal - bem podia

- receá-lo! seria possivelmente idêntica a tantas escutadas. E contudo em Adriano havia outra expressão, outra maneira... Ou seria ela própria, modificada em seu mundo íntimo, que em derredor achava transformações na realidade inexistentes?

Procurou afastar de si o irmão e levantar-se. - Vamos, sonha à vontade e, quando acordares, desabafa. Por agora, deixa-me. vou pedir o teu jantar. Adriano reteve-a, prendendo-lhe as mãos.

- Não, não quero jantar, não tenho vontade de jantar! E por quem és, garota, não quebres a poesia em que vivo com uma chamada ao materialismo alimentar!

O tom pueril obrigou Clarinha a sorrir, não obstante o íntimo sofrimento que dir-se-ia suavizar-se ao contacto da transparente alegria do Aviador.

- Mas que há, nesse caso? O mar pôs-te lírico?...

- Que há Perguntas-me o que há Apenas esta coisa simples, natural, que me transforma por completo. Estou enamorado...

Agora menos indulgente, Maria Clara bateu compasso no sobrado, em ritmo de indignação.

- Mais uma vez?

Respondeu-lhe um olhar mortificado.

- Eu não disse apaixonado. Disse enamorado!

- Bem...

- Enamorado... pela primeira vez! - e sublinhava: - Enamorado, percebes? Amo! Amo porque encontrei uma criatura deliciosa, um expoente de ingenuidade, de pureza... Amo Leonor! Sim, Leonor, essa Leonor de rosto pequenino que parece uma adolescente... Diz, Clarinha, diz! Já algum dia viste uma rapariga assim? com uns olhos tão lindos, um corpito tão harmonioso, um sorriso tão cândido?

Atingida por uma profissão ardorosa no momento em que se debatia contra o seu amor impossível, invencivelmente magoada pelo que noutra ocasião a impeliria a acolher jubilosa a ventura do irmão e agora lhe surgia como um desfalque aos seus bens maiores, bens sem os quais ficaria demasiadamente só, Clarinha apenas balbuciou:

- Dantes eu era superior a todas!

- E continuas a sê-lo. - corroborou Adriano, longe de suspeitar o drama que ia afastar dele a irmã estremecida. - Continuas a sê-lo de tal forma que ainda me custa reconhecer que finalmente encontrei uma mulher como tu, semelhante a ti... e que me é destinada! Sempre duvidei de achar essa que mereceria a minha adoração! Quem me diria a mim, Clarinha - e apertava nos seus os dedos gelados da Pianista -, que vinha encontrá-la aqui, nesta terra que declarei capaz de matar-me de aborrecimento? E é a ti que devo agradecê-lo, irmãzinha! A ti!

Clarinha não sabia de palavras para dizer. Assustava-se com o que lhe ia na alma; desconhecia-se! E só decorridos alguns minutos conseguiu tartamudear:

- 'Então... é sério? - e martelavam-lhe o peito as sílabas da intolerável confissão.

Entregue ao seu enlevo, Adriano não dava fé da alteração de Maria Clara, não se apercebia da estranheza daquela atitude reservada.

- Se é sério? Seriíssimo! Completamente sério! Adoro-a! Não penso em mais nada! Só por ela me sinto vivo! Quero cinquenta vidas para lhas entregar todas e em cada uma a possuir! Só a ela! A ela sempre!

Então uma das mãos de Maria Clara soltou-se das dele e foi suster-lhe na boca o ímpeto da alma.

- Não brinques com o coração dessa rapariga! - aconselhou, levemente rouca e obedecendo a indefinível sentimento que nem seria capaz de dizer se era piedade pela outra ou por si própria. - Respeita o muito que nela admiras. Não apagues o brilho das qualidades que lhe reconheces! Não vás divertir-te como é teu costume. Vocês, os homens, são tão inconscientes...

Adriano pareceu melindrado.

- Maria Clara? Desde quando aprendeste a menosprezar-me? Se te afianço que amo essa criaturinha ideal! - e mais vibrante: - Se te afirmo que vou casar com ela!

Clarinha recuou, contemplando-o com intraduzível amargura.

- 'Acho tudo tão rápido!... - e a tormenta crescia nela, devastadora.

Quem, no entanto, teria coragem de acusar essa rapariga, que via aniquilados os seus mais legítimos anseios de ventura, de ser vencida por reacções que não nobilitam ninguém mas são humanas? Quem ousaria censurá-la por se achar transbordante de inveja e rancor? Sim, inveja e rancor!

Inveja dessa que ia ser ditosa. Rancor contra essa que vinha furtar-lhe uma afeição no momento exacto em que mais precisava de carinho para suportar a cruel provação. Inveja dessa alma de rapaz que se dedicava lealmente, dessa ventura que não encontraria obstáculos. Rancor porque tudo quanto a outra ia possuir lhe era vedado, a ela!

E do que sofria apenas culpava o parzinho cuja felicidade maravilhosa a ultrajava. Não o culpava, ao outro, nem culpava a própria fraqueza... Como criticá-la? Clarinha era apenas... uma criatura viva!

Mas, de chofre e sob o riso triunfante do irmão, a verdadeira índole da rapariga, bondosa e franca, insurgiu-se contra a densa negridão que a envolvera e foi com verdadeiro horror que reconheceu os insidiosos pensamentos que a haviam dominado. Então, num desespero cujos limites eram os do arrependimento sincero, procurou varrer para longe a recordação tenebrosa que jamais evocaria sem a noção de um pesadelo medonho.

Inveja e rancor... contra o seu irmão, o seu querido irmão! Não, nunca! Apenas tinha de agradecer à Providência por ali, onde ela viera encontrar penas, ele receber alegrias!

Diligenciou então concentrar-se na fluência de Adriano, e esquecer-se de si, e fugir aos raciocínios que porventura a levassem a de novo ser má como há pouco - tão má! E essa baixeza momentânea, que seria única na sua vida, quanto Maria Clara se penitenciaria, sem se perdoar que a tivesse sentido!

Insuspeitoso de quanto se passava no espírito da irmã, Adriano continuava desenrolando o filme apoteótico das suas reflexões.

- 'Queres tu saber, garota? O que mais depressa me conquistou foi ver como ela era diferente de toda essa raparigada que por aí abunda! Olha a irmã e a prima! Perfeitos exemplares do que afirmo. Podem ser aliás muito boas raparigas, não contesto! Eu, porém, não casava com nenhuma delas!

Não casava com nenhuma delas? Então... e Duarte casava? DUARTE casava?

Numa grande necessidade de não reconhecer moralmente apoucado o seu ídolo, Clarinha precipitou-se numa inesperada defesa.

- Acho que estás a ser demasiado cruel! Elas... elas são mulheres como todas!...

Adriano sorria, mal atentando na entonação dolorosa de Maria Clara.

- Ê possível que tenhas razão!... Mas asseguro-te que não me arriscava...

A alma de Clarinha, liberta de umas tantas impressões não conseguia soltar-se de outras. E, mal contendo a ansiedade que a atormentava, disse, num gracejo que sabia a queixume:

- Que falta de caridade, irmãozinho! Olha o que podem dizer de mim!...

O inebriante estado psíquico de Adriano continuava a não deixar que ele percebesse que havia lágrimas nas palavras de Clarinha. E ria,

abraçando-a com vigor redobrado.

- O que podem dizer de ti? Que és um amor de rapariga, um anjo, uma perfeição!...

Ela debruçou-se para os belos olhos azuis, ergueu-lhe a cabeça para melhor o fitar, buscando alívio.

- Julgas que não posso inspirar falsos conceitos?

- Tu? Nunca!

A afirmativa, vibrante de inconfundível sinceridade, serenou-lhe em parte o receio de ter provocado com alguma leviandade a insólita atitude de Duarte Zêzere. Mas, tranquilizado esse terror, nascia outra convicção que de novo e talvez ainda mais fundamente abria a chaga do desgosto. Sim, era preciso arrancar de si aquele sentimento inspirado por um objecto indigno!

E não conseguia! Não conseguia reagir àquela imensa confusão de percepções que se amalgamavam e confundiam e dilaceravam!...

- Não dizes nada, maninha? Estás com ar preocupado... Olha lá, que é que tu tens? - o silêncio de Clarinha forçara-o a reparar enfim na expressão invulgar do lindo semblante, expressão que noutro ensejo lhe teria saltado aos olhos ao primeiro relance. - Aconteceu-te alguma coisa?

Para a rapariga tornar-se-ia pior se ele insistisse e a examinasse perspicaz. Não, de forma alguma queria que Adriano desconfiasse fosse do que fosse!

E, ruborizando-se, mau grado seu, protestou vivamente:

- Não, nada... Estava a pensar! - aliás era uma resposta verdadeira soando a falsa.

Mas Adriano, desejoso de encerrar-se na comodidade do seu enlevo, estava naturalmente predisposto a aceitar quaisquer explicações. E um sorriso confiante entreabriu-lhe de pronto os lábios espirituosos.

- E em que pensavas No meu casamento? - pois não seria natural que somente houvesse cuidados pela fortuna do menino amimado que ele sempre fora...

Maria Clara baixou os olhos. Nesse momento o irmão parecia-lhe distante do herói generoso que sempre admirara, descendo do seu pedestal e surgindo como um apaixonado piegas, egoísta e fútil.

Recusou-se porém a aceitar a visão cruel que dir-se-ia caprichar em afastá-la cada vez mais do estreito convívio de sempre. E esforçou-se por confiar cérebro e alma àquela satisfação que devia torná-la radiante, associando-se-lhe, renunciando a si própria e existindo somente para o idílio a que ia assistir.

Então, valorosa e após um suspiro que era como que a despedida às suas insólitas preocupações, emitiu, aliviada porque já não mentia:

- Sim, em parte! Mas também me lembrava do quanto é incompatível a tua vida de aventuras com o romântico desejo de possuir uma mulher encantadora. Quando fores Pai deverás remodelar a tua profissão.

- Eu Ora! Como se não houvesse muitos Aviadores casados!

- E muitíssimos órfãos de Aviadores!

Adriano, a quem as palavras da irmã atingiam em cheio, tornou-se sombrio. Era maçadora, aquela rapariga, com a mania de se armar em conselheira!

Pôs-se de pé, começou a passear de um lado para o outro, e sob o olhar que o seguia atento.

- Maria Clara... não sejas disparatada! Perigos toda a gente corre! - e mal refreando a inesperada impaciência que o assaltara: - Não te preocupes com isso! A Leonor há-de habituar-se à ideia de que tanto pode perder o marido num desastre de avião como num acidente de automóvel. E o seu amor terá a têmpera magnífica que não leva o objecto amado a descer nem uma polegada nos ideais que o nobilitam! - depois estacou, passou a mão pelos cabelos e, numa reviravolta bem peculiar ao seu espírito irrequieto, bradou: - E venha agora o jantar, garota! E nada de sustos! Verás que chego a bisavô!

 

A caminho da praia, óculos escuros destinados a protegerem os olhos da claridade excessiva (ou a defenderem-nos de qualquer indiscreta análise... Clarinha experimentava uma certa calma, calma que lhe adviera do azul vastíssimo do mar - imensidade que reduzia a nada as suas preocupações.

Interregno bendito, que a revivificava e banhava de novas energias!

Pareciam-lhe agora muito recuados os acontecimentos da véspera, não chegava a compreender as razões porque se privara de uma bela tarde ao ar livre, quando tudo o que a atormentara tinha na vida a... a importância de uma sardinha caída de qualquer atafulhada barcaça! E na calmaria dessa manhã amorosa, afigurava-se-lhe desatinado dar lugar no coração à amargura. Quanto maculasse a gratidão devida às maravilhas da natureza transbordante de viço, era sacrilégio! Ou valerá a pena sofrer, quando a existência aparece, em colorido e forma, tão bela?

Aquele dia que rompera lindo exigia que um corpo jovem fosse inteiramente jovem, entregando-se ao sol no contentamento de sentir tanta seiva dentro de si, no contentamento de sentir sorrisos nos lábios húmidos, no contentamento de sentir nos olhos as cintilações da esperança.

Na verdade que bom ser nova e bela e sensível e ter alma e ver o mar ondulando e os pescadores na praia e o peixe na areia! Que bom seguir por ali fora sem perguntar o que havia para trás nem o que se encontrava para a frente! Que bom sentir os desejos resumidos e abarcados no quadro límpido que se envolve num olhar!

Nessa hora doce, Maria Clara gostaria de rir para quem passava ao seu lado, gostaria de saudar quem a fitava, simples como é simples a terra na sua força vitoriosa e espontânea de comunicação. Ah! Se Duarte agora se cruzasse com ela, pela certa o cumprimentaria também sem hesitações. E porquê também? Pois não seria natural...

Mas Ai, mas...

Já a euforia se lhe abeirava da consumpção, Da desaparição Porque à beira dela uma bem lançada silhueta se desenhava em sombra.

O mar continuava lindo, mas ouviam-se-lhe os cantares traidores. O peixe abundava, mas os pobrezinhos sem dinheiro não o alcançariam nunca. Os Pescadores despiam-se de atractivos gloriosos e tornavam-se homens iguais aos outros que como os outros mourejam para alcançar o pão de cada dia. A vida, com todos os seus problemas, continuava para além dos horizontes... e Clara Évoracima revivia para os cuidados.

Tudo no rápido instante em que ao seu lado se desenhou uma silhueta bem lançada - a sombra toldando a luz!

Saudou-a a voz que temia ouvir.

- Bom-dia, Maria Clara.

Sem raciocínio, ia fugir, mas a figura esbelta embargava-lhe os passos e ela imobilizou-se, enquanto num tom de vincado retraimento Duarte falava.

- Uns minutos, peço-lhe! Desde ontem procuro ter consigo um encontro sem testemunhas. Não a vi em toda a tarde. Não me evite agora!... - e como ela o fitasse tendo nos olhos a mais franca censura, ele baixou a cabeça, sem quaisquer vestígios da antiga sobranceria. - Compreendo perfeitamente que me despreze e não pretendo minimizar a minha culpa. Podia tentar justificar o meu equívoco mas se o fizesse ultrajava-a... É certo que a supus comprometida com outro... Nada justifica o erro das minhas atitudes. Sei portanto que nem me assiste o direito de esperar o seu perdão... e no entanto sem ele sentir-me-ei viver no inferno dos remorsos!

Clarinha encarava-o sem ânimo para repeli-lo - aquele ar abatido que mostrava angústia, tornando-o mais humano e mais digno, volvia-se num apelo desmedido ao amor que ela tinha para oferecer-lhe!

A custo, mas generosa, tentou aligeirar a situação.

- Não era... não era totalmente descabido pensar que éramos...

Mergulhando nas pupilas assustadas o olhar sombrio, ele interrompeu-a.

- Coisa alguma releva a minha conduta lá em cima...

A rapariga esboçou um gesto, como a pedir "não falemos em tal", mas Duarte Zêzere não a atendeu. Parecia necessitado de castigar-se com palavras agrestes que ela jamais poderia ou saberia dizer-lhe e das quais inteiramente se reconhecia merecedor. - Quero fazer-lhe uma confissão, Maria Clara. Confissão que não atenua o meu procedimento... explica-o! Depois, inteligente como é, compreender-me-á! Não discorde, por favor! Eu disse inteligente com bases e asseguro-lhe que não costumo conceder favores a quem os não merece. Quando a vi... tomei-a por uma rapariga de hoje, segundo o pior dos conceitos. - E impregnava-se-lhe a voz de uma sinceridade que dava a cada frase um sentido irreversível. - Porque me enganei... como enganei? Porque só mais tarde reparei num pormenor que devia ter-me logo saltado aos olhos!... A Maria Clara procurara a solidão e não o exibicionismo... e eu fora de um imperdoável atrevimento perturbando a sua tranquilidade. Na ocasião, porém, não reflecti. Nem quando você, imprudente e resoluta, me fugiu. Teimei em considerar os factos como evidente manobra de coqueteria.

- E depois?

Inesperadamente, ela, que sentia a vontade como que paralisada sob o império dessa outra que a impedia de reagir, formulava uma pergunta, uma pergunta ansiosa.

- Depois? - murmurou Duarte. - Depois, quando "a ouvi tocar, fiquei suspenso. Disseram-me então o seu nome. O seu

nome que Sabe ao que me levou! Errei estupidamente! Que quer? As mulheres notáveis, ainda mais do que as outras, são assediadas pelas mais falsas e absurdas suposições! E aqui tem -

tornei-me vítima de um complexo de miragens. E a realidade deformada fez de mim um joguete. Acredite Lamento imenso tudo o que sucedeu!

Estavam ambos voltados para o mar, lado a lado, e quem passava, vendo-os tão serenos, tão comedidos nas atitudes, bem longe se acharia de imaginar que um drama ameaçava aqueles dois corações.

Baixinho, mas com nobreza, tentando libertar-se da fascinação que a submergia, Maria Clara indagou:

- " Já se convenceu de que eu sou apenas... - e não sabia concluir a própria defesa.

Mas Duarte Zêzere, em nítida apreensão dos temores dela, proferiu com ímpeto:

- De que a Maria Clara é uma rapariga credora do maior respeito e da ternura mais casta, uma jovem senhora como duvidamos de encontrar perante tanta mentira e tanta hipocrisia? Precisa de perguntá-lo?

- Oh! - e na sua infinda perturbação, apenas soube titubear: - Não é como afirma! Há muitas raparigas como eu...

- Haverá! Mas vivem tão escondidas que é difícil descobri-las. Você tem um irmão... ele não lhe conta?

com espantosa nitidez, Clarinha lembrava agora certas frases tantas vezes escutadas a Adriano. Sim, assemelhavam-se às de Duarte, traduziam o mesmo juízo impiedoso... Seria então a verdade, a triste verdade? Havia-As... mas difíceis de descobrir?

Ante o silêncio que se prolongava, Duarte insistiu:

- Maria Clara... acaso nunca ouviu o seu irmão falar como eu?...

Um afirmativo aceno de Maria Clara e Duarte soltou uma risadinha.

- Pois é! E em compensação pululam as outras, as que não medem o mal que causam às demais e a elas próprias, alcandoradas nas mais irrisórias e pouco dignificantes liberdades. nós, um dia, cansados da procura infrutífera, acabamos por nos deixar prender estupidamente! - depois, mudando de tom, prosseguiu: - Recaio na incoerência! As mulheres são como os homens. Boas e más segundo os desígnios profundos, incomensuráveis, do Destino, que amalgamam tendências, hereditariedades, educações, raças até, criando todos os géneros e gerando todos os excessos. Não se deve julgar na generalidade!

E Maria Clara, ultimamente surpreendida da facilidade com que ouvia e se dispunha a responder a esse para quem imaginara nunca mais poder olhar, deu por si a dialogar.

- É isso! Tem muita razão. Talvez nós não sejamos inteiramente nem culpados nem responsáveis dos nossos actos. No fim de contas não devo a mim própria o que sou... Herdei tanto! Herdei tudo!...

Duarte contemplava-a com tão evidente ternura que Clarinha só não se apercebia porque ainda não levantara as pupilas da areia que obstinadamente fixava, escassos metros abaixo dela.

- Você é extraordinária, Clarinha! Admiro-a!...

- Não julgue que sou perfeita!

- Para mim, é-o!

Só alguns momentos decorridos, num esforço enorme para sem violência dizer o que devia, Maria Clara acrescentou, numa voz que pouco a pouco se tornava natural:

- Está a fazer-me lembrar o meu irmão Adriano, que desesperava de encontrar UMA que fosse o que ele sonhava... - e ficou de boca aberta, restituída com brutalidade à noção das conveniências pela frase que estivera prestes a articular. O irmão desesperava. O irmão encontrara. Precisamente a irmã da noiva dele...

Duarte, ensismado, mais parecia no entanto ouvir o seu coração do que a ouvira. E dizia agora tão próximo dela que Maria Clara lhe recebia o hálito no rosto:

- Eu encontrei o meu ideal, Maria Clara. Encontrei-a! A si! E amo-a! Houve? Amo-a!

Igual à, de lá de cima, a frase mágica soara...

Ela ficou como que resplandecente, escutando em si própria o eco das sílabas entontecedoras, sentindo-se irresistivelmente atraída para o peito másculo onde seria tão bom poisar confiante a sua cabecinha enamorada. E porque não... se ele a amava?

Mas, em repentino sobressalto, crispou a mão que ia estender-lhe, recuou num protesto de todo o seu ser e, severamente, inesperadamente, proferiu:

- Cale-se! Como ousa falar-me assim... quando... quando vai casar com outra?...

Então, pálido e grave, ele exclamou:

- Eu não deixo que me considere um patife!... Sei-me com o direito de falar como falei.

- Direito?

- Sim, direito! Porque estou disposto a recuperar a minha palavra e a oferecer-lhe a vida inteira, que tão pouco vale em confronto com a sua, a sua que eu não mereço porque não posso subir até si, antes devo pedir-lhe que desça até mim...

Sucedeu então que uma coragem enorme aprumou a rapariga cujos olhos fuzilaram de indignação, instantaneamente apagada toda a fraqueza amorosa. A verdadeira Maria Clara, recta, límpida, intransigente, vencia a sentimental e romântica que envergonhada se sumia no segredo da alma grande. E foi com voz altiva, voz que o afastava para tão longe que a distância aberta entre ambos parecia intransponível, que ela o deteve.

- É inútil continuar, Duarte Zêzere. Não pense que eu aceite o que se me afigura uma autêntica infâmia. A sua sugestão ofende-me. Acaso me julgará capaz de aceitar que troque a sua noiva por um banal capricho de praia, um capricho que amanhã nem recordação deixará em si? Continua a errar se me julga tão cínica, ou tão ingénua, que acedesse a semelhante combinação! Pois quê? Supondo que eu tivesse sentido por si qualquer simpatia (- e aqui acentuara a frase, instintivamente necessitada de defender o seu Eu-), - crê que essa simpatia sobreviveria ao conhecimento exacto da sua personalidade acomodatícia?

Viu-o recuar, lívido.

- Não se banalize dessa forma, Maria Clara! Falei como falei porque me inspirou um Amor-Paixão, Amor-Paixão que há-de triunfar de quantos obstáculos possam levantar-se-lhe na frente!... Entende?

Um estóico sorriso entreabriu os lábios de Clarinha cuja sincera indignação transbordava, abafando todos os demais sentimentos.

- Que lamentável insistência num homem que não é livre!...

- Duarte não conseguia desfitar o rosto contraído.

- E isso que importa? Alguém é culpado de amar? Não! - e com violência, proferiu: - Você, queira ou não queira... gosta de mim!

Não perpassara na afirmativa qualquer orgulho, apenas a convicção que talvez representasse o último recurso para a luta. Ela, porém, criara defesas. E foi dura.

- Basta! Nem mais uma palavra, por favor!

Impulsionado pela dor que o torturava, Duarte perdera entretanto a noção da mais elementar delicadeza. E excedeu-se, pronunciando concentradamente, como a eternizar o que dizia:

- Faça o que fizer, Maria Clara, perdurará entre nós o beijo que trocámos lá no alto!...

Então, com os lindos olhos alagados em espanto, ela balbuciou, sufocada:

- Oh! Como se atreve a evocá-lo? Detesto-o! Agora... detesto-o!

Ele nem vacilou.

- Não quis ofendê-la mas apenas mostrar-lhe que é inútil repelir as verdades dos nossos corações. O amor tudo vence! Há-de ser minha, Maria Clara!

E ela inclemente:

- 'Passe bem, Duarte Zêzere! Já o ouvi tempo demais. Agora só espero que me deixe em paz.

Esperava que ele a deixasse em paz.

E onde, a paz?

 

Ia a transpor a porta quando a voz, por seu mal tão conhecida, a deteve num apelo abafado.

- Maria Clara, se não se importa...

Voltou-se.

Era (afinal e quisesse ou não reconhecê-lo! tão ditosa nos raros instantes em que os olhos de ambos se encontravam mais raros ainda porque a sua vontade lhe impunha a obrigação de fugir-lhes, desde há oito dias, desde que Duarte lhe reafirmara esse amor que a todo o transe procurava abafar. Mas não era possível! Há razões que, por muito fortes que sejam, não vergam movimentos ditados pelo subconsciente...

E embora se sentisse com energias suficientes para repeli-lo, chegava a temer perdê-las, tanto precisava de se defender dele... e de si!

Não que Duarte Zêzere tivesse voltado a assediá-la com quaisquer insistências, mas havia a demonstração eloquente, embora muda, dessa ternura que ela não podia aceitar! E que imprudente ele se mostrava! Tanto que muito fácil se tornava as raparigas notarem a conduta de Duarte, pois desde que ela estivesse presente ele pouco falava e quando o fazia para responder ao que lhe diziam era sempre com entono tão distante, tão aborrecido, que não animava ninguém a dirigir-lhe a palavra. No entanto, se acontecia ficarem os dois em repentino colóquio - que diferença! Ele imediatamente dominava o diálogo como... como a dominava a ela, em jeito de quem vence por direito natural...

E não havia que evitá-lo, por mais que o diligenciasse. Não conseguia eliminar esses encontros, cujo sabor agridoce era sonho e tormento, sem evidenciar a anormalidade da atitude. Porque, sozinha, teria forças e razões bastantes para se manter à distância. Mas existia Adriano! Adriano que sem cessar a arrastava para o grupo de Leonor, ao qual, evidentemente e com a mesma simplicidade, Duarte se juntava.

Em horas de solidão, Maria Clara, entregue a reflexões cruéis, reconhecia-se culpada por falar-lhe, por ouvi-lo, por sorrir-lhe... E não achava resposta para as suplicantes perguntas "como proceder? como agir? como evitar? como libertar-me? ".

O sentimento que tentava arrancar de si pungia-a incessantemente e a desdita presente tomava a forma de uma expiação. Amá-lo era a sua cruz! Mas porquê? Porquê?

Na sua atormentada consciência, um voto constante "ao menos que nunca, NUNCA!. Florência pudesse julgá-la capaz de pretender-lhe roubar o noivo! Que descansasse a outra; ela não seria capaz de construir felicidade sobre ruínas. E negava-se a reconhecer que essa outra não passava de uma fútil caprichosa que apesar de comprometida não desdenharia Adriano, se Adriano não se houvesse embeiçado pela irmãzinha gentil e inocente...

Assim, avaliando Florência por si própria e procurando convencer-se de uma profundidade de sentimentos cuja simples enumeração muito surpreenderia a alvejada, dispunha-se a sacrificar-se por ela e, estribada na sua decisão, recusava-se a meditar no problema de Duarte.

E agora, ao ouvi-lo reprimia o íntimo sobressalto, voltando-se como se a presença dele ali fosse inesperada. E não era! Nem era!

No sorriso masculino, tímido, contrafeito, a justificação.

- O convite foi para todos, Clarinha... embora você preferisse ver-me excluído...

- Porque diz isso?

- Porque sei que a minha presença a desgosta.

- Até não!... - e corrigindo a inflexão: - Subamos, - está bem?

Mas o rosto de Duarte denotava a mais inabalável resolução.

- Não suporto mais a sua atitude! Não podemos ser... nem amigos...

Ela fez um imenso esforço para dar-lhe a noção de um desprendimento absoluto.

- Penso que sim!... - e procurava ser natural, verdadeira. - De resto eu falo consigo como com outra pessoa qualquer, sempre que se apresenta ensejo...

Procurava ser natural, verdadeira. O coração palpitava-lhe e os lábios sofriam-lhe as pancadas, tremendo, tremendo... Duarte contemplava-a num brando ar de censura.

- Como pode ser má sem percebê-lo! A Maria Clara sabe perfeitamente que me fere com essas palavras...

Então a voz feminina deixou-se velar pela dor e, sem conseguir manter a atitude simulada, explodiu num lamento.

- Que posso eu dizer-lhe?

- Clara! - e o nome dela, pronunciado com veemência, traduzia o fervor de uma alma ardente que não se conformava com os motivos da própria destruição.

Por sorte (ou pouca sorte), detendo uma insistência tão custosa de suportar - porque tão difícil se tornava resistir-lhe tendo dentro de si o maior cúmplice dele! - houve a súbita intervenção de Fausta Irene que do alto das escadas os interpelava, ainda oculta pelo cotovelo do patamar.

- Que diacho estão vocês a conspirar aí escondidos?

Maria Clara estremeceu, lançando a Duarte um olhar alucinado "vê o que faz" e, voltando costas, precipitou-se degraus acima, tentando, com uma enérgica chamada à vontade, mostrar-se despreocupada.

- Trocávamos... impressões!

Mas as pupilas aceradas e malévolas de Fausta farejavam qualquer coisa... E durante a tarde inteira, completamente abandonada pelos rapazes que só possuíam olhos e ouvidos para outras, ela teve tempo de sobra para examinar, com a perspicácia dos invejosos, aqueles dois que desde há dias lhe estavam causando estranheza. Examinando-os lograva aperceber-se do lado falso da alegria de Maria Clara e da taciturnidade de Duarte Zêzere. A imprudência deste, aliás, era o que mais despertava as atenções, e Fausta não tardou em convencer-se de que andava por ali grossa novidade...

E não hesitou - agarrou a suspeita pelos cabelos.

Agarrou a suspeita de que a sua perfídia extrairia glórias, ela a quem sempre as vantagens de Florência ofuscavam, ela que anseava por se desforrar de Adriano que lhe preferira Leonor, ela que sentia o ódio do abjecto contra o digno ao contemplar Clarinha. E abalançou-se.

com arzinho sarcástico, voltou-se para Florência.

- Flor... já notaste como o Duarte está pensativo? Dir-se-ia que paira nas regiões imateriais de qualquer melodia!...

A alusão fora tão certeira que Duarte e Maria Clara se viraram para ela, na simultaneidade de um sobressalto.

Florência, por demais estranha à situação (nunca fora muito sagaz), desatou a rir.

- Deixa-o lá! Se é em melodias que se perde, não tem importância.

Fausta Irene enrugou a testa, irritada com a despreocupação. Mas logo decidiu atingir novo alvo, (não lhe passara despercebido o involuntário movimento de Clara! e voltando-se para a Pianista indagou:

- Está de acordo com a opinião da minha prima, você que é artista? Acha que não tem importância que um homem entregue todos os seus pensamentos à arte dos sons?

Maria Clara não teve maneira de encobrir o rubor que lhe tingia as faces, em reacção que tanto podia ser de protesto como de confusão - a forma de interpretá-lo caberia à qualidade do observador. E o observador - a observadora - não a desfitava... Clarinha sentia-se como se a sua alma se apresentasse nua perante Fausta Irene. Mas tentando esforçadamente aparentar indiferença, solveu:

- Se tal coisa não prejudicar outros deveres, considero-a inofensiva!...

Fausta encolheu os ombros, longe porém de desistir do seu intento, resolvida mais do que nunca a concluir a sondagem que a deleitava ante a intriga entrevista e na qual poderia chapinhar que nem um pato na água suja.

- Deveres? - comentou. - Você acredita de facto na existência de deveres"!

- Decerto! - afirmou Clara, agora categórica: - Acredito, sim! Porquê?

Uma expressão zombeteira entreabriu os lábios da outra que deu meia-volta e, aproximando-se de Adriano, que não cessava de arrulhar com Leonor, declamou, enfática:

- O Amor nunca se sacia! Quando sobre nós adeja, o deus de todas as cegueiras escolhe os corações mais fortes para despedir as suas flechas que neles deixam o mal incurável... diverte-se assim a experimentar o seu poder! - e outra vez para Clara, mais ambígua do que estouvada: - Pás vrai, Clarinha?

As palavras de Fausta Irene haviam sido de mestra. Em maldade. E atingiram em cheio o objectivo visado.

Incomodadíssima, Maria Clara, que jamais mantivera qualquer situação menos límpida, foi incapaz de dominar-se e, sob o olhar triunfante da intriguista, levantou-se, murmurando:

- Não sei responder-lhe, Fausta Irene! Talvez por inexperiência...

A cena despertara as atenções gerais.

Toda a gente as fitava enquanto Fausta desprendia uma sonora risada.

- Ah, ah, ah! Tem graça! Ao vê-los aos dois tão cabisbaixos... você e o Duarte É realmente divertido e induz em erro, não lhe parece? Lembram dois apaixonados!...

O ataque fora tão directo que Maria Clara compreendeu perfeitamente que a partir daquele momento o seu segredo já o não seria para aquele maléfico espírito incapaz de recuar perante qualquer golpe, mesmo que este pudesse assumir proporções catastróficas. Florência, essa não atingira ainda a finalidade da prima, mas percebendo que algo de desagradável ocorria, poisou no noivo um olhar desconfiado.

Então Duarte, que até aí desprezara as insinuações de Fausta,

manifestou-se. Apanhara-lhe as intenções, estava apto a responder. E serenamente, elevando um secreto apelo que em transmissão de pensamento fosse aquietar a angústia que divisava no rosto da bem-amada, pronunciou a réplica susceptível de acalmar as suspeitas desencadeadas.

- Que eu esteja apaixonado, julgo-o lógico! vou casar!... Quanto a Maria Clara, não podemos exigir-lhe que só pense em nós...

Se por um lado aquela explicação ia tranquilizar Clarinha, permitindo-lhe recuperar o sangue-frio, por outro não destruía o seu sofrimento, antes o aumentava. Pelo que, sem defesa, experimentando a mais intensa necessidade de um apoio afectivo, ela atravessou a sala para ir

encostar-se à cadeira do irmão, como implorando o socorro dessa amizade inalterável. Inalterável, sem dúvida!

Mas... quão egoístas os namorados! Aquele Adriano que tão bem saberia, com uma só palavra, colocar Fausta Irene no justo lugar, não mostrava nem sequer ter-se apercebido do despique...

 

- Flor, preciso de falar contigo. Já to disse e torno a repetir-to!

Deixando sossegadamente cair na areia o roupão, Florência encolheu os ombros.

- Fala, homem! Não tenho os ouvidos tapados!

- Vamos dar uma volta pelos rochedos.

Flor pôs-se a rir, ajustando as fitas no chapéu.

- Ah, bom! Nesse caso temos conversas de arrulho, que os outros não podem ouvir?

Enervado face a tanta leveza de espírito, Duarte protestou:

- Por favor! Não se trata de conversa que os outros não podem ouvir mas sim de uma conversa que só a nós interessa.

Sempre com o mesmo vagar, Florência apertava agora sob o queixo as pontas do lenço colorido, estendendo o beicinho como que intrigada.

- Ih, Que ar circunspecto! Aconteceu alguma coisa?

E ele, com entono onde perpassava o reflexo de uma decisão:

- Talvez.

Então, bruscamente silenciosa, a rapariga começou a andar ao lado do noivo, nesse passo cadenciado que tão bem realçava o donaire do corpo, elegantíssimo.

Caminhavam rentes à água que aljofrava de espuma a areia empapada.

Duarte procurava os termos para abordar o assunto que lhe estrangulava toda a acção, sentindo dissipar-se-lhe a coragem de dizer abertamente a essa moça sem dúvida superficial mas também honesta, a essa moça que o modernismo das concepções estragava e no entanto nem por tal surgia menos digna de felicidade, que a rejeitava, que a lançava para fora da sua vida! Sempre a conhecera estouvada e algo inconsciente, talvez fosse tarde para lhe dizer que não a aceitava tal qual ela era!

E realmente... não, Não! Face àquela despreocupação tranquila não se achava capaz de lhe gritar: "aborreço-te... nunca te amei... o nosso noivado foi um erro que eu cometi... Julgando que não podia existir alguém como Ela... Fui louco... e hoje adoro-a e não te quero a ti. Acabou-se tudo entre nós!"

Essas as palavras que durante horas e horas estudara... decorara... e não podia pronunciá-las, não podia.

Sentia ainda na boca o sabor dos lábios frescos de Florência e percebia que não seria capaz de acabar de chofre com um namoro de dois anos, um namoro ainda por cima desenrolado com inalterável constância. Tornar-se ia duro demais para a rapariga que, dentro da sua maneira - por ele aceite nunca lhe dera motivos de queixa.

Onde? Onde razões suficientes?

O peso do silêncio de Duarte acabara por finalmente chocar Florência.

Estavam agora encostados a um barco e ele não desfitava o mar.

Então Flor, num movimento rápido, saltou para a barcaça e aí, sentada na borda, estendeu a mão para os cabelos do noivo.

- Duarte. que tens tu?

Que tinha ele? Vontade de fugir para uma grande solidão com a bem- amada, indiferente a tudo quanto se lhe afigurava falso, convencional e ali o retinha numa passividade incoerente E recebeu, numa onda, o desejo bruto de magoar, de ofender a culpada (inocente da situação.

- Tenho que não posso ver-te assim!

- assim como? - pasmou ela.

- Assim, nua!

- Nua, Eu? Que exagero! - e descendo do poleiro, indignada - Estou decentíssima!

- Porque não sabes o que seja o decoro!

- Oh - e tão surpreendida como se houvesse sido esbofeteada, Florência encarava-o sem atinar com possibilidades de entender aquela atitude. Pelo que, atarantada, se queixou:

- Tu. tu nunca te manifestaste contra o uso deste fato!

Raivando ante o que tão difícil se lhe tornava, Duarte regougou, em aceitação da realidade:

- Tudo isto. tudo isto é absurdo!

Ela moveu a cabeça, possivelmente acenando um não às ideias que a salteavam. Depois, fitando-o, disse:

- Sim, é absurdo. E agora percebo que a Fausta tinha razão. toda a razão! Ela bem me avisou!

Numa esperança de que Flor viesse ao encontro dos factos para tudo simplificar. Duarte provocou-a.

- De que te avisou a Fausta? Diz De que foi?

- E ela, num trejeito desolado:

- De que tu mudaste desde que a conheces! E que salta aos olhos a corte que lhe fazes. - E inacreditavelmente benévola - Isso não é bonito, Duarte!

Era demais!

Sim, ela vinha ao encontro do assunto, ela oferecia-lhe o ensejo de o abordar e ser sincero... mas minando-lhe a coragem de destruir o tremendo obstáculo com a mais inesperada das atitudes. Ele aguardava tudo. - exprobações, ameaças, lágrimas... Aquela expressão de vítima indefesa... isso nunca!

Onde diacho fora ela desencantar semelhante arma que não lhe cabia no feitio... Fora acaso rebate do instinto avisando-a de que devia ser prudente... e manhosa?

Desesperado, sentia uma espécie de cobardia pesar-lhe nos pulsos como grilhetas, entregando-o sem defesa a Flor, que aproximara o rosto até quase tocar o dele e lamuriava:

- 'Duarte... não acredito que sejas capaz de uma tal acção! Eu não quero ficar sem ti... É ela que te desafia, a Fausta preveniu-me!

Duarte aventurou-se:

- Proibo-te que a culpes!

Em repentina violência, que lhe tremia na voz sentindo que ele, desculpando-a, se confessava, Florência modificou-se por completo. E atacou.

- Proibes-me que a culpe? Mas perdeste o juízo! Pois se tens falado com tantas raparigas desde que nos namoramos e nunca te deu para andar atrás de nenhuma, que desejas que eu pense hoje É que as outras não se atreviam a olhar-te como ela! As outras sabiam-te noivo e tinham consciência... e ela não! Ela, ah!... E não hei-de culpá-la?

Nenhum deles lhe havia pronunciado o nome, mas ambos sabiam perfeitamente a quem se referiam.

Ficaram a olhar-se, muito sérios. Em seguida, num impulso meio espontâneo meio artificial, Florência lançou-lhe os braços ao pescoço,

aconchegou-se-lhe nesse gesto confiante que até aí sempre fizera terminar a seu contento quaisquer dissenções, gesto em que lhe ofertava os lábios para o beijo da paz, em que dava a face para as carícias da boca que depois subiria a afagar-lhe as pálpebras com ternura...

E estreitava-o, na ânsia de reconquistá-lo.

Como exigir-lhe, a ele, que resistisse, que tivesse a energia de repudiar esse amor que se revelava inalterável?

Inconsciente, cedendo ao encanto que o envolvia, cingiu-a também. Mas não a beijou. Murmurou apenas, apoiando a fronte à testa ampla, como se consolasse uma criança:

- Não, não tenhas medo, Florência...

Percebendo nessa inesperada reserva que, apesar de tudo, ele deixara de lhe pertencer, Flor desprendeu-se, articulando pausadamente:

- Duarte... penso que és um homem de bem. Espero que não me obrigues a mudar de opinião!... - e sem a nada mais atender, partiu praia fora, para o lado dos banhos, deixando-o na maior das indecisões.

 

Alterou-se Maria Clara ante a surpresa que lhe trazia uma espécie de mau pressentimento.

Um pouco abaixo, ao meio da escada, Florência, janotíssima, convidava-a afável:

- Lembrei-me de vir desafiá-la, Clarinha! A Fausta saiu com os namorados, o Duarte deve andar por aí solitário, como é seu hábito desde há uns tempos... E eu decidi aliciá-la para uma volta. Até ao castelo, por exemplo. Agrada-lhe?

Clarinha hesitava. Podia ser alucinação dela, sem dúvida, mas naquele convite, formulado com um sorriso que se diria ambíguo, parecia-lhe notar qualquer coisa de agreste, qualquer coisa que talvez brilhasse ameaçadoramente nas pupilas semi-veladas pelos cílios compridos. Mas não se escusou. Seria indigno dela recuar, se acaso Florência procurasse de facto uma explicação.

Aliás, uma explicação de quê? Que tinha a dizer-lhe? Não se sentia culpada fosse do que fosse!

E aceitou com naturalidade.

- Pois sim. É só o tempo de mudar de sapatos! Não quer entrar, enquanto?

- Não vale a pena.

Em breve estavam a caminho, ambas airosas, bonitas.

Maria Clara atendia à conversação despreocupada da companheira, respondia, esforçava-se por se mostrar alegre, mas pulsava-lhe na alma o terror de voltar lá acima - lá, a esse ponto inolvidável onde vivera momentos inesquecíveis, ao lado da prometida de Duarte Zêzere.

Quisera, sim, repetir a peregrinação, mas sozinha, para chorar longe do mundo o seu amor condenado...

Iam seguindo rentes às valetas, para se precaverem do trânsito incessante, crescente nas horas da lota.

A subida ia-se tornando cada vez mais íngreme e agora, ladeando o vale pouco fecundo, pouco arborizado nas faldas dos montes escalvados, elas calavam-se, um tanto ofegantes sob o sol da tarde que atingira a plena maturidade.

De súbito, apontando um marco de pedra que muito bem podia servir-lhes de banco, Florência parou.

- Sentamo-nos um bocadinho?

- Pois sim.

Voltaram costas à estrada, instalaram-se, mediram a profundidade que se lhes abria aos pés.

Persuasiva, quase meiga, Florência preveniu:

- Tenha cuidado, Clarinha, não caia! Podia partir uma perna e Deus me livre! Seriam capazes de me acusarem de a ter empurrado...

Maria Clara sentia-se gelar naquele intenso calor que lhe humedecia a fronte. Não! Por mais que o desejasse - não podia vencer o tal pressentimento... Havia um propósito oculto na atitude de Florência! Mas qual? E porquê? Onde pretendia ela chegar E porque não a atacava de frente - o que se tornava mil vezes preferível?

Reconhecia-se numa posição falsa e, tão recta em todos os seus actos, sofria dessa treva que não obstante a sua desculpa era sempre treva!

Tentou gracejar, vencer a suspeita, convencer-se de que apenas a sua consciência visionava perigos.

- Valha-me Deus! - disse. - Quem iria julgá-la tão má?

- Nunca se sabe!... - e riu, num riso que soava falso. - Sempre é bom acautelarmo-nos contra os malefícios de que os outros nos julguem capazes...

Clarinha encarou-a.

- Espero não lhe causar aborrecimentos. A não ser que eu desmaie!...

Então Flor, secamente, disse:

- E porque não? Às vezes, sob uma comoção violenta, há quem perca os sentidos...

Passou veloz um camião levantando nuvens de poeira. Logo após uma mulherzinha atrás do burrico - toc-toc -, deu-lhes a salvação.

Depois, abruptamente, em desafio directo, sem tergiverções, Florência inquiriu:

- Maria Clara, tenciona roubar-me o noivo?

Foi tão violento o choque - muito mais violento do que jamais a rapariga o previra! - que de nada lhe serviu a lenta adaptação ao convencimento que se lhe insuflara no espírito. Vacilou, empalideceu e passou a mão pelos cabelos, sem saber como fugir à acusação, sem saber como defender-se. E a outra, escarninha:

- Vê... Eu não lhe disse que (precisava de ter cuidado? Se caísse agora, eu considerava-me responsável!...

com grande esforço, Maria Clara reanimava-se, libertando-se do braço que viera ampará-la, solícito mas traidor. Num gesto maquinal, porém, torcia os dedos, apertando-os convulsivamente. E a sua atitude, sem que o fosse, tornava-se confissão.

Não tardou que Flor prosseguisse:

- Oiça, Maria Clara. Estou a avisá-la duplamente. Livro-a de partir a cabeça, tanto aqui como no que diz respeito ao Duarte, não caia em qualquer esparrela... Os homens são todos uns machões... - e sorria, parecendo gentil: - Ele, nesse ponto, não é melhor do que os outros! Pode dizer-lhe até que a ama, enganando-a! Seria apenas mais uma de quem se riria... e acho que você não merece tal...

Clarita, num trabalho intenso de raciocínio, desconhecia-se. Que tinha, que se passava de anormal em si para suportar aquela hipocrisia

mantendo-se muda e queda como se consciente de erros, ela, que estava inocente?

E causava-lhe uma estranha dor ouvir tais referências ao seu amado. E sentia um louco desejo de gritar a Florência que não acreditava em nada do que lhe escutava. Mas tudo nela silenciara. Não transmitia, apenas captava.

- Você sabe que estamos noivos há dois anos, pois sabe Durante este tempo, confesso-lhe que vários zum-zuns chegaram ao meu conhecimento. Contudo nunca liguei, pois embora se namorem muitas só se casa com uma! E o Duarte vai casar comigo! Percebe? - e sublinhando a frase: - Desculpe estas minhas palavras... mas enfim, como lhe disse há pouco... os homens são homens, nós umas parvalhonas sentimentais... e você podia sofrer qualquer dissabor... Assim, fica prevenida, não se pode queixar!

Sob aquele olhar pesado de ironia, Maria Clara debatia-se num verdadeiro pânico interior. Um pânico atroz de que só se libertaria fugindo... Mas fugir... sair dali... como? As pernas tremiam-lhe, recusavam-se a aguentá-la. E ela estava incapaz de explicar o que mais a fazia sofrer, se a suspeita com que fora atingida, se a voz da consciência acusando-a de tudo aquilo merecer, se a revolta vendo confirmada a ruína do seu incompreensível amor. Talvez fosse tudo amalgamado...

- Não se sente bem, Clarinha? - indagou Florência, que lhe notava a agitação com a perspicácia aguçada. - Apoie-se em mim, querida... Ajudo-a no que for preciso.

Então, de chofre, como em afluxo de personalidade, Clarinha recobrou o ânimo. E voltando-se para Florência, dominando-a enfim com o fulgor dos belos olhos que principiavam a cintilar, proferiu:

- Não preciso de si para nada e sinto-me perfeitamente, descanse. - e numa justificação, inesperadamente calma: - Apenas fiquei surpreendida com as suas inquietações. Durma tranquila. Nunca tencionei roubar nada a ninguém! - e talvez porque expressava a verdade, todo o tumulto interior se lhe apaziguava. Pelo que pôde afastar-se alguns passos, percebendo, no baixar da cabeça da rival feliz, que ia ser senhora da situação, o que lhe deu a segurança para acrescentar, enormemente digna: - Compreendo agora o móbil deste passeio. Não valia a pena, Florência! Não precisava de me ofender com as suas suspeitas, acredite. Mas, porque desabafou, considero o assunto arrumado e proponho-lhe que retrocedamos. A farsa chegou ao fim.

Sentindo-a distante e inacessível, Florência foi empolgada por uma vaga de autêntico ciúme. E num tom hostil disse, erguendo-se também:

- Ainda bem que assim é! Porque eu sabia vingar-me! Asseguro-lhe que o seu Adriano não tornava a encontrar a minha Leonor!...

Estupefacta pelo que a ameaça revelava de insensibilidade, ela, a admirável rapariga que pela ventura alheia a sua própria sacrificava, pareceu incrédula.

- Oh! Como faria isso, estando eles apaixonados como estão?

A outra casquinou:

- Eu curava a minha irmã! Todas as paixões se curam!

- Maria Clara nada replicou. Estugou o passo, sob a agulheta da hipótese malfazeja. Tinha pressa de se livrar da outra. Pressa de reconhecer que, por ela, não havia o irmão de temer fosse o que fosse. Adriano podia entregar-se livremente ao afecto que o monopolizava. E Leonor não conheceria o veneno das dúvidas e dos ódios... Nenhum mal, por ela, os fustigaria!

 

Alberto Évoracima tremia.

- É que fiquei desnorteado ao vê-lo assim! Nem imaginam... O rapaz ardia em febre! Ele trabalha demais, esfalfa-se demais! - e numa explosão de mágoa onde havia também orgulho - Fui encontrá-lo agarrado aos livros, no meio do laboratório! Não imaginam o susto, quando cheguei a casa e, depois de o ter chamado em vão, fui encontrá-lo inanimado no meio dos frascos, dos ferros e das drogas!... Como um herói que tomba no seu posto! E eu pensei... sei lá! Pensei numa experiência fatal... num veneno descoberto... Senti-me enlouquecer!

Helena afagou o rosto do marido, refreando "a inquietação para o acalmar.

- Devias ter-me telefonado imediatamente!

- Lembrei-me lá de telefonar-te! Só pensei que era preciso um Médico, e foi tudo quanto diligenciei conseguir. Um sarilho! O Macedo, fora. O Oliveira, fora também. Fora o Carvalho Pires e o Fausto de Azevedo. Todos a veranear! Todos a gozarem férias enquanto o meu pobre filho, vítima da sua dedicação à carreira de que fez um sacerdócio, estava ali a morrer!

E o Pintor gesticulava, ainda convulso da angústia em que vivera durante as horas anteriores.

Bebeu uma gota de água do copo que a filha, solícita, lhe aproximou e depois, um pouco mais sereno, prosseguiu:

- Encontrei finalmente o Marques Ferreira. Estava no consultório. Foi ele quem nos valeu! Tomou todas as providências, orientou-me, restituiu-me o equilíbrio mental... - e apertando as mãos da esposa, que baixava os olhos rasos de lágrimas: - O golpe, de tão rude, fez-me vacilar a sério. Caramba! Nunca poderia supô-lo da minha habitual resistência. Será isto de estar ficando velho? - e sacudindo a bela cabeça onde a cabeleira parecia mais branca, murmurou: - Agora para lá está o rapaz, com medicamentos uns atrás dos outros...

Baixinho, Maria Clara indagou:

- E que tem ele, Pai?

- O Médico assegurou-me que nada de grave... - e Évoracima,

- apercebendo-se de que urgia serenar aquelas almas aflitas, conseguiu sorrir. - Mas foi um bom susto! Um bom susto que o nosso Gonçalo nos pregou, espero que sem consequências. Mas nem quero pensar no que poderia suceder se eu não tivesse ido a casa! Mera coincidência... ou designação do Destino.

E se vim aqui foi para levar uma de vocês comigo. O pequeno o meu pequeno, - o Cientista já célebre que para o Pai extremoso seria sempre o garotinho a quem dera o ser! -) precisa de assistência constante. Lembrei-me de contratar uma Enfermeira... mas... - sentia-se que repugnava àquele homem generoso perturbar as férias de quem tanto as merecia. Já Helena, com sentida emoção, rebatia a hipótese.

- Uma Enfermeira? Quando ele tem Mãe? Nunca! vou arranjar umas coisas para levar e partimos imediatamente. Ê um instante!

Foi então que Maria Clara disse:

- Pai... Mãe... se não discordam... vou eu!...

- Tu - e no olhar agradecido de Helena a decisão: - Não, filhita. Agradeço-te, mas a Mãe sou eu... É lá o meu lugar!

A rapariga não se deixou persuadir. Também resolvera.

- Nesse caso, vamos as duas.

- Ah... não sei... - e consultando o marido: - Achas conveniente, Alberto?

O Pintor encolheu os ombros.

- De inconveniente só vejo uma coisa - viemos porque ela precisava de ar de mar... não há portanto critério algum em que vá meter-se numa casa fechada, privando-se do iodo que lhe é tão necessário...

A Mãe aprovou:

- Sou da mesma opinião. Parece-me preferível ficares, Clarinha. Sempre fazes companhia ao Adriano...

O Aviador, até aí calado, aplaudiu a ideia.

- Óptimo! Vamos divertir-nos à brava, sem que ninguém nos incomode... - e a sua despreocupação seria estranhada se não lhe dessem a interpretação exacta - reflectia o desejo de sacudir o peso dos cuidados.

Clarinha, porém, obedecendo sem dúvida a uma directriz acabada de nascer mas já amadurecida, não se deixou persuadir. E asseverou convicta:

- Acreditem que não posso ficar! - e num tom meio jovial meio amargo: - Hão-de reconhecer que não sou competente para tomar conta deste maluco que só pensa na namorada e que me abandonaria à minha sorte com a maior das sem-cerimónias!...

Ninguém notou a ansiedade oculta naquelas palavras. Adriano, ligeiramente agastado, encolheu os ombros.

- Nada posso fazer se te lembras de ser invejosa! É natural que pense nela em primeiro lugar...

- Certamente! E com os Pais aqui acho muito bem! Mas estando eu só, não! Morria de aborrecimento. - E suavemente - Depois, julgo que o Gonçalo ficará satisfeito de me ter ao pé dele para lhe ler os seus queridos alfarrábios...

A Mãe relanceou a Alberto um olhar perquiridor.

- Que dizes?

- Que faça a vontade dela!

Adriano sentara-se a um canto, amuado - porque para ele, no seu egoísmo de apaixonado, só o próprio sonho contava.

- Pois! A menina vira costas e... eu? Fico privado do que me agrada, não?

Ela voltou-se, dorida pelo tom agreste que pela primeira vez escutava.

Que mudança a do irmão, em tão pouco tempo! Nunca ela supusera que um amor recente pudesse afectar as velhas e inalteráveis afeições! Nem o estar sendo verdadeiro lhe servia de desculpa para tamanha alteração, porquanto o lugar futuro de Leonor não podia prejudicar o das amizades de sempre - exactamente como as amizades de sempre de modo algum podiam tornar-se nocivas a esse lugar futuro, antes se abriam para entre elas gostosamente acolherem a recém-chegada. Tudo portanto surgia do próprio temperamento de Adriano, temperamento que, não obstante a nova faceta que o estava caracterizando - fidelidade! - continuava arrebatado, volúvel, caprichoso, exageradíssimo, e ei-lo agora provando-o de forma iniludível!

Não, na realidade aquele Adriano não era o Adriano que dias antes seria o primeiro a voar para a cabeceira do irmão enfermo.

Num receio inconsciente, Clara pensava "não irá fazer de Leonor uma infeliz? Amanhã, seduzido por outra imagem, não a esquecerá como hoje nos esquece, a nós? ". Mas, afastando os importunos temores, aproximou-se do Aviador e limitou-se a murmurar, obstando a ressentimentos:

- Sinceramente, não percebo porque hás-de ir atrás de nós! A Conceição fica, acho eu!...

O Pai corroborou a afirmativa.

- Claro. A Conceição fica!

- Os olhos do rapaz cintilaram.

- Ah, bem! Acabarei nos braços da velha ama a estação de Verão! - mas logo, talvez porque no rosto da irmã lesse qualquer recriminação, tentou justificar-se: - Maria Clara... tu compreendes, não é? Também um dia

- hás-de sentir como eu... e deixarás Pai, Mãe e irmãos pelo braço do que então será tudo para ti... Ou não?

Os Pais haviam saído do aposento.

E, do soluço que brotou dos lábios de Clarinha, nunca Adriano conheceria a significação. Ele não podia adivinhar que a irmã enterrara um amor cheio de nobreza e altruísmo - um amor que nunca seria confiado ao seu espírito tão distanciado que já nem se importava que a garota seguisse um destino aparte...

 

Transpunha a porta de casa, essa porta que um mês antes franqueara de alma desanuviada, e tinha ainda diante dos olhos, como que pegada à retina, conjuntamente com a de Octávio Labercinho, lamentoso pela ruína da festa arquitectada, as expressões escarninhas de Florência e de Fausta Irene afirmando-lhe quanto lastimavam perder a preciosa companheira... Mas, como bálsamo inefável, valia-lhe trazer também, a ressoar nos tímpanos, a doce voz de Leonor que lhe afirmava "hei-de estimá-la muito, Clarinha. Acho-a tão bondosa! ".

E na mente gravado - suprema tortura - estava ainda o rosto transtornado de Duarte, entre as duas raparigas, desejando-lhe boa viagem. Voto banal transmitindo a mensagem de um espírito que procurava ser entendido...

De quanta coragem precisara para não dar o espectáculo da sua miséria, da que devia partir, ela que sofria ao cumprir um dever, obedecendo a um duplo e generoso impulso...

Encolhida num canto do automóvel viera durante o percurso a meditar, absorta. Felizmente que os Pais, preocupados com a doença de Gonçalo, não lhe haviam prestado atenção. Nem implicado com o mutismo dela. Se fosse obrigada a falar, na tensão em que permanecia, era capaz de ter rompido em gritos, em gemidos, em ais...

Desconhecia-se por completo! Na verdade, também ela estava transformada! E não fora por Florência que deixara de dizer a Duarte "faça a sua vontade... eu fico à sua espera!". Calara-se porque... porque tinha medo até do som da própria voz, porque acreditava tornar-se merecedora de um castigo do céu com esse amor que julgava pecaminoso, amor por coisa alguma justificado, amor por coisa alguma explicado!

E não conseguira a mínima paz interior quando transpôs o limiar do quarto do irmão e sobre o vulto amodorrado se inclinou.

Gonçalo, inteiramente lúcido, ao contemplar-lhe o semblante alterado, tão alterado como o da Mãe, e julgando-se objecto do cuidado que ambas expressavam, procurou tranquilizá-las, em voz débil mas explícita:

- Não se assustem!... Foi apenas um esgotamento cerebral de que não tratei a tempo. Mas já passou, já estou melhor. Escusavam de vir, queridas! - e as mãos, longas e espirituais, apertaram carinhosamente as das duas mulheres. - Deviam ter ficado na praia. Esta menina precisa de ar puro! - e diligenciava sorrir a Clarinha que, tristonha, contemplava o irmão mais velho.

Era tão alto - agora comprido - como Adriano, mas mais magro e mais trigueiro, o rosto ascético banhado pelo clarão extraordinariamente profundo de uns olhos de cor incerta...

Adriano personificava quanto fosse bulício, dinamismo, heroísmo turbulento e cego. Gonçalo a reflexão, o intimismo, a seriedade de ideias e de sentimentos.

Durante alguns dias - infindáveis! -, Gonçalo teve a irmã à cabeceira, sempre desvelada, impondo-lhe silêncio constante, vigiando-o sem desfalecer e só o largando à noite, quando o cedia à Mãe.

Mas o Médico em breve o declarou "convalescente" e os dois irmãos puderam conversar, ele recostado nas almofadas amontoadas, ela num tamborete aos pés dele.

E naquela tarde, após ter saído para ir buscar-lhe um caldo, Clarinha veio encontrá-lo a ler.

Ralhou:

- Queres piorar, não?

- Gonçalo fitou-a ternamente.

- Já estou recuperado, queridinha!

- Pois sim, mas ainda com os ossos a furarem-te a pele! Vais recair!

- Não! A vida não tarda a normalizar-se. Amanhã começo a levantar-me e dispenso os teus serviços.

Ela fitou-o, inquieta.

- Dispensas?

- Decerto, Clarinha. Perturbei estupidamente as tuas férias. Há mais de uma semana que estás aqui... mas ainda podes aproveitar o resto de Setembro.

Ela protestou:

- Mas eu não quero voltar para a praia!

Fora tão impulsiva que surpreendeu o irmão, o qual a fixou detidamente, observando-a com essa perspicácia que Maria Clara nunca soubera iludir. Era como se as pupilas dele entrassem na alma dela...

- Aproxima-te, minha linda! - disse por fim, como sempre que pretendia obrigar a orgulhosa a confessar-se-lhe. - Aproxima-te, dá-me a tua mão e explica-me. Porque é que não queres voltar para a praia? Tu, que tanto gostas do mar?

E Clarinha, de repente, sentiu-se invadida por uma necessidade enorme de desabafar, de extravazar tudo o que a pungia. Mas os lábios, renitentes, fechavam-se ainda, enquanto as mãos, maquinais, subiam a poisarem-se no seio, sobre o coração.

Forçando-a a sentar-se-lhe ao lado, Gonçalo continuou, nesse tom grave que inspirava tanta confiança:

- Ouve, Clarinha. Desde que vieste que te estranho. Apesar do meu abatimento, sempre te analisei... Tu não voltaste como foste! Qualquer coisa mudou em ti, dando-te uma expressão nova, mas não feliz. Que sucedeu, irmãzinha? Que se passou contigo? Não queres desabafar com o teu amigo Gonçalo?

- Amigo? - balbuciou enfim Maria Clara, principiando a distender-se. - Oh, sim, sim, sim!... - deixou-se escorregar do banquinho, ficou de joelhos à beira dele, agarrando-lhe os dedos como em ânsia de salvação. - Gonçalo... que horror! Eu amo... é que eu amo...

Dissera-o entre arquejos, mas o terrível da sua confissão não o entendia Gonçalo que, atribuindo aquela reacção ao inesperado dos factos, sorria ao perguntar-lhe:

- E amar é crime?

- Sim, é! Quando se ama quem não se deve... quem nos está interdito... quem não pode pertencer-nos...

- Mas... que problema vem a ser o teu, Maria Clara? - tornou-se cava a voz máscula, no súbito receio da verdade. - Acaso estou entendendo? Amas um homem que não é livre?

Soou veemente a réplica.

- Não... não é o que tu pensas... mas... se fosse... amá-lo-ia da mesma forma! Era inevitável, tinha de ser, porque é aquele por quem eu esperava!

- Pobre de ti!... - e sentia tremer as mãos que o agarravam, crispadas.

Ah! Para a sua doce Clarinha assim desvairar, quanto não sofreria!

Pois ele iria sondar a ferida, meter-lhe o bisturi, arrancar o mal do seu covil, limpar o pus, desinfectar, sarar!

- 'Mas... se não é o que penso, nada o afasta de ti, suponho...

- Ele diz que me ama também!

Diante do contrassenso, Gonçalo quase duvidava da sanidade mental da irmã, uma ruga de apreensão cavada entre as sobrancelhas.

Já porém ela explicava e apressadamente, no desejo de contar tudo, uma vez que principiara:

- Escuta. Escuta e compreenderás! Ê que ele está noivo de outra e eu não quero que ele desmanche o casamento... Não quero! Não quero mas sou cobarde, não sei contemplar a felicidade dela, não sei.

Agora que o drama assumia proporções infinitamente mais reduzidas, Gonçalo acalmava. Se não passava daquilo, não teria demasiada importância. Clarinha, tão nobre de carácter, deixar-se-ia curar.

Observou então:

- Sendo assim, amiga, bastará que te domines e esqueças quem porventura nem tornarás a ver!

- Julgas isso? Julgas isso porque eu não te disse tudo! E não sabes dar valor a este suplício de se querer tanto, tanto, a alguém que sempre - há-de viver longe e perto de nós. Eu nem sei explicar! Sei apenas que o dever me destroça!

Soerguendo-se nas almofadas, Gonçalo proferiu, com certa indignação:

- Maria Clara, em nome da nossa amizade, ordeno-te que afastes de ti essa imagem que te enlouquece. Promete-me que nunca mais verás esse homem!

- Que nunca mais verei... - e tremia convulsivamente. - Oh, Gonçalo... ouve... ouve... Tu não sabes tudo, não sabes! Tu não sabes que ele é o futuro cunhado do Adriano!

- O futuro cunhado do Adriano?

- Percebes agora? Como hei-de fazer para não voltar a encontrá-lo? Torna-se inevitável, mais dia menos dia, em reuniões de família, em visitas... Como evitá-lo? Como desculpar-me se não comparecer?

Recaiu nos almofadões a cabeça do Cientista e sobre os olhos inquietos desceram as pálpebras fatigadas.

O noivado de Adriano! Esse noivado precipitadíssimo que não pudera deixar de criticar quando, exuberante, a Mãe pouco antes lho descrevera; esse noivado que o levava a criticar o senso do irmão, que de estouvado emergira inconsequente...

E porque desse noivado incrível resultava o mal da irmã, foi contra ele que volveu a zanga.

- O Adriano endoideceu! Comprometer-se com uma pateta que mal conhece...

Mas sucedeu que Maria Clara foi capaz de por instantes se esquecer de si própria, pedindo:

- Não sejas injusto! A Leonor é encantadora e considero-a inteiramente digna de nós... - logo porém voltou ao assunto que a apunhalava: - E depois, não se trata do caso dele, mas do meu! Suplico-te, Gonçalo, suplico-te que me ajudes, que me dês coragem!

Gonçalo desejaria talvez um prazo para coordenar impressões. Forçado a responder, hesitou.

- Coitadinha de ti!

Mas ela confiava totalmente na força espiritual do irmão.

- Aconselha-me, Gonçalo!

- Ainda que te exija uma obediência total, se eu entender que daí provirá a tua libertação?

- Sim, sim! Obedeço! Obedeço com certeza!

- . Antes, quero saber pormenorizadamente tudo o que se passa.

E Maria Clara descreveu quanto lhe enchia cérebro e alma. Havia uma espécie de amarga volúpia em recordar o passado recente e já desfeito. No tumulto dos sentimentos, não diminuía culpas - se é que as havia! - nem consequências. Não omitiu uma só passagem, nem essa que lhe ressuscitava nos lábios o ardor de um beijo profano.

E sobre a pobre cabecinha desolada baixaram finalmente as mãos compadecidas do Médico. Depois, como se não tivesse escutado coisa alguma e nada houvesse que objectar, ele disse:

- Maria Clara, considero chegado o momento de iniciares os teus preparativos... Tens a bolsa de estudo à tua espera. Está na hora de partires para Viena.

Percebendo-o de relance, Clarinha gemeu:

- Pois achas...

- Sim e quanto antes, a retemperares-te na tua arte, a aproveitares o galardão que o teu talento mereceu, a resgatares o teu comodismo. Encontrar-te-ás mais artista arrancando da alma as emoções que nela vibram; porás as tuas dores ao serviço da inspiração; do teu padecer extrairás o que sublimará a tua obra. És feliz possuindo um tamanho refúgio! - falava devagar, imprimindo a cada palavra o vigor que devia inscrevê-la na alma espelhada nas pupilas que o fixavam. - Irás assim que tiveres tudo em ordem. Viverás entregue a ti própria, reeducando a tua força de vontade. Para o teu trabalho chamarás a ti todas as tuas energias, todas as tuas forças, tão precisas para te firmares na difícil carreira. E de tanto pensar em quanto te exige, esquecer-te-ás de ti própria!

Calou-se. Compreendia o sofrimento dessa que tanto merecia ser ditosa e por quem ele tudo faria. Mas uma vez que o Destino queria sacrificá-la, ao menos lutaria com ela, ajudando-a a libertar-se da temerosa loucura. E, no futuro, melhores dias surgiriam!

Clarinha sentia estrebuchar em si a derradeira cobardia essa recôndita esperança de que, enquanto andasse lá por longe, tudo viesse a

consertar-se...

Venceu-a num impulso de libertação. Sim, partiria, partiria imediatamente. Precisava de vencer, precisava de ser capaz de vencer!

E aderiu.

- Sim, Gonçalo, eu vou... com alegria... e fé... e ânimo... vou! - mas ele não distinguiu as palavras. Tinham sido proferidas num soluço.

 

Era a primeira entrada oficial em casa dos futuros sogros.

O convite havia sido feito para jantar e a Maria Clara não seria permitido esquivar-se à cerimónia que devia reuni-los. Nunca o Pai lhe aceitaria qualquer pretexto, por melhor rebuscado. E o olhar do irmão mais velho, que lhe lia na alma a fraqueza, volver-se-ia severo e hostil se a reconhecesse trânsfuga.

Apelando para todas as suas forças, resignara-se.

Mas como tudo lhe custava agora, na casa da sua meninice que se lhe volvia estranha porque a não adivinhava!...

Criara-se para ela um ambiente difícil desde que anunciara a sua decisão de partir para a Áustria em aproveitamento da bolsa de estudo que lhe fora conferida. Havia sentido o embate violento das reacções contra as quais apenas a sustentava o amparo espiritual de Gonçalo. A Mãe, que sempre desaprovara a ideia (no fundo da alma era contrafeita que Helena aceitava a exigência da profissão que ia levar-lhe a filha para um mundo em que ela não estaria presente), diante da sua inadiável concretização confinava-se num ressentimento que entre ambas abria barreiras de indiferença, sem dúvida aparente mas nem por isso menos dolorosa.

O Pai, naturalmente mais compreensivo, curvava a cabeça sem uma palavra. E face a essa atitude silenciosa de conformação, Clarinha voltaria a adiar a sua partida se Gonçalo não corresse a apoiá-la, a encorajá-la, asseverando aos Pais que velhos e estafados preconceitos não podiam tolher nenhuma carreira e muito menos a que imporia uma vocação como a de Clara Évoracima - tão autêntica que não havia hipóteses de a guardar em egoísmos.

E o Pintor resignara-se. Helena, porém, sofrera um rude golpe na sua autoridade e não se rendia.

Pelo que, chorando às escondidas, mostrava um semblante carregado de censuras e tão distante que a filha mal ousava beijar-lhe a fronte. E isto quando ela tanto precisava de se lhe lançar nos braços

explicando-lhe o que se passava e a urgência de cumprir o próprio destino para não sofrer ainda mais!

Adriano, esse, pensando só na futura mulher mas desleixando esta pelos treinos para o grandioso Festival de Aeronáutica em que decidira tomar parte antes do casamento (tão ambicioso de mais glória nos louvores dos estranhos que se alheava das súplicas da noiva que debalde lhe pedia renúncia à carreira temida), limitara-se a dar-lhe os parabéns pela decisão que, afirmava, lhe abriria de par em par as portas da celebridade mundial.

Tudo para Maria Clara se tornava doloroso. De facto, noutra ocasião muitos dos pormenores que a feriam talvez lhe passassem despercebidos. Talvez até lhes achasse graça. Mas na situação actual só sabia penar. Atravessava um período terrível. E, para lograr coragem, refugiava-se no gabinete do Cientista que a animava e lhe incutia fé no porvir, convencendo-a a suportar todos os embates de maneira a chegar até ali...

Até ali.

E, lembrando-o, mais uma vez se encheu de energia.

Não podia ficar mais tempo encostada àquela porta, arriscando-se a que a julgassem espiando, ela, que só pretendia cobrar as forças que lhe haviam faltado ao ouvir "as vozes alegres que se aproximavam. Passou a mão pelos olhos, ajeitou o cinto vermelho do vestido negro, único pormenor que realçava o trajo severo, e entrou na sala resplandecente, com a luz dos candelabros todos acesos a nimbá-la de chofre numa claridade que na figura sombria fazia sobressair a massa fulva dos cabelos. E era impressionante a sua figura de total fragilidade e total altivez. Porque de súbito, Maria Clara foi capaz de pisar o chão com a segurança do dever cumprido.

Foi saudada com amabilidade e a todos retribuiu sem perturbação.

Duarte não estava. À última hora, inventara algo que o impedira de aparecer.

Maria Clara compreendera-lhe a delicadeza e, mentalmente, agradeceu-lha. Muito embora fosse terrivelmente difícil pensar que talvez nunca mais o visse...

Após as primeiras efusões, Gonçalo, pálido e sério, aproximou-se dela. Seria talvez para a amparar. Mas, num tom de orgulho e elevação, dizendo - como que para obrigar todos os presentes a admirá-la e a respeitá-la:

- Eis a Artista que vai encher de glória o nome da família

Porque lhe adivinhara a intenção de vencer quem ousasse desafiá-la, Clarinha fitou-o, balbuciando:

- Oh, Gonçalo!... Que exagero!

Um significativo sorriso pairava nos lábios do irmão, que prosseguia:

- Vieste a tempo de satisfazer a curiosidade dos nossos amigos e vais responder tu própria às perguntas que me foram dirigidas. Não quis

- tirar-te esse gosto.

- Nesse caso, que desejam saber? - e inquiriu-o com simplicidade, o olhar suportando o acerado olhar de Florência.

Logo volúbil se fez ouvir, com gestos largos, já a pretender captar as atenções do Médico, Fausta Irene, alardeando uma intimidade inexistente:

- Ouvimos na Rádio e lemos nos Jornais que a Maria Clara parte brevemente para o estrangeiro... É exacto?

- É! - confirmou.

- E demora-se?

- Demoro-me.

Fausta bateu palmas, ostensivamente.

- Que maravilha! Viver em terras de gente! Quem me dera! - e no jeito de todos os que mal ouvem falar nos países alheios logo apetecem o que geralmente desdenham nos próprios - Há-de trazer-me umas encomendas, sim? Eu estou capaz de morrer de inveja! O que vai divertir-se!

com mal disfarçado azedume, retorquiu-lhe Gonçalo, a quem aquelas manobras repugnavam:

- A Clarinha não vai divertir-se, vai trabalhar!

- E ela, afectadamente, de olhos em alvo:

- E enriquecer!

- Pelo menos conquistar a sua independência e ser Alguém! Nem a toda a gente é concedido um futuro assim esplendoroso.

Fora tão explícita a censura que Maria Clara não pôde deixar de sorrir ao ver Fausta Irene corar, atingida em cheio pelo castigo.

Azeda, ergueu-se a voz de Florência, intimamente despeitada contra os êxitos dessa que responsabilizava pela flagrante deserção do noivo.

- Nesse caso, a Maria Clara não assiste nem ao casamento da Leonor nem ao meu... - e a intenção da frase só a alvejada podia entendê-la, julgava ela.

Fugaz desvairamento perpassou nas pupilas de Clarinha. Fugaz porque a pressão do braço de Gonçalo imediatamente lhe restituiu a presença de espírito graças à qual respondeu com naturalidade:

- Ao de meu irmão, de certeza não. Parto um mês antes. Ao seu, ignoro. Casa antes ou depois?

A outra encolheu os ombros, petulante.

- Ainda não sei. Mas o Duarte anda ansioso pelo nosso dia! - e esticava o rosto, no intuito de acentuar a vingança.

Gonçalo sentiu ímpetos de a esbofetear. Acalmou-o uma intervenção inesperada.

Leonor, que até aí parecia atenta ao entusiasmo do noivo descrevendo proezas aeronáuticas, refutava já a afirmação da irmã.

- Duarte, ansioso? Imagina! Ele nem fala nisso! - e numa instintiva necessidade de repor as coisas nos seus devidos lugares: - O Duarte é um noivo muito esquisito. Foge da nossa casa como se fosse a de um pestífero... e quando entra mostra uma destas pressas em sair!... - e voltada para o Aviador: - Eu não suportava semelhante coisa, Adriano! Quando tu me trocas pelos teus motores e pelas tuas asas, fico tão triste! Que faria se fosses como ele! Morria de desgosto! Não... até nem morria! Convencia-me de que não gostavas de mim e preferia não casar a forçar-te a promessas que se transformassem para ti numa prisão!

Face à nobre concepção da rapariguinha brilharam de franco entusiasmo os olhos de Gonçalo, satisfeito ao ver Florência morder os lábios, raivosa. Isto enquanto Maria Clara, a louca Maria Clara, vibrante de uma ventura feita da embriaguez da alma que para a renúncia leva o tesoiro de uma certeza balsâmica, se o braço dele a não sustivesse, talvez corresse a abraçar-se a Leonor gritando-lhe a sua gratidão por essas palavras que iam ajudá-la a suportar o exílio.

Agora podia acreditar que Duarte gostava dela com verdade... e essa crença aplaudia a sua coragem de fugir!

 

Em redor da mesita florida pelas bonitas xícaras de porcelana e enfeitada por bolos variados e apetitosas torradas, sentavam-se dois casais.

Um embevecido, de olhos nos olhos, alagado no amor que o levava para essa região imaterial onde reina a suprema ventura de se não desejar mais do que se tem...

O outro... como dois estranhos!

As pupilas de Florência, buscando as de Duarte que indiferentes se perdiam na contemplação das flores azuis do papel que revestia as paredes, brilhavam sim, mas de furor. No peito da rapariga, diante de tal placidez, crescia uma intenção que não ia permanecer muda durante muito mais tempo.

Na realidade, ela nunca o amara, mas sentia-se agradada pela figura, pelo prestígio desse namorado que sempre se mostrara indulgente para com as suas perrices de rapariga em parte estragada pelos exageros da própria educação.

Agora, face a esse novo homem, de rosto contraído e expressão distante achava-se como que na frente de um belo desconhecido que debalde tentaria conquistar. E a noção do fracasso dos seus planos magoava-lhe, não a alma, mas o orgulho, enquanto a felicidade da irmã a aguilhoava. Face ao contraste, odiava aquele abandono, aquela confiança, aquela ternura que se isolava e arrebatava.

Nesse instante, considerando Adriano caricato, almejava que Duarte o imitasse...

Dantes, seria bem possível! Agora!... Oh, agora!

E pensar que fora ela quem, no desejo de gozar a própria independência durante mais algum tempo, expusera a Duarte a sua vontade de retardar aí por uns dois anos o casamento! E ele acedera sem relutância. E ela sem perceber que essa adesão talvez já significasse pouco interesse por ela. Fossem lá dizer a Adriano que esperasse mais um mês!...

O seu amor-próprio sofria. Sofria ainda mais por saber que Duarte lhe fugia seduzido agora por outra imagem! E decidia- não! Não o perderia. Não cairia no ridículo da noiva desdenhada, conquanto bem compreendesse a puerilidade da ameaça por ela dirigida a Maria Clara, a essa ideal Maria Clara que ia partir para longe, que não tentava disputar-lhe o homem amado, tornando-se assim ainda mais poderosa com a sua auréola de dignidade!

Como se chegara àquela situação? Não podia sabê-lo, não podia

suspeitá-lo... porque nada vira, nada observara. Reconhecia apenas que ele pensava na que ia ausentar-se e talvez coisa alguma continuasse a retê-lo junto de si...

Que fazer? Como agir?

Se ao menos pudesse suplantar a outra, tornando-se desejada... Mas desperdiçara tempo demais com leviandadezinhas, com provocaçõezinhas e... e nenhuma atenção prestada ao seu papel futuro!

De cabeça inclinada, meditativa, viu a serviçal retirar a mesinha do chá, deixando-os de novo sós na penumbra discreta do aposento.

Intensa fadiga lhe descia agora pelos nervos, acabando de perturbá-la. Quisera, na quebreira intensa, reclinar-se em dois braços amorosos... E... e porque não?

Devagarinho, foi apoiar o rosto no ombro de Duarte, erguendo a mão para acariciá-lo.

E, arrancado à teimosa observação das flores do papel, ele sobressaltou-se tentando repeli-la num movimento impulsivo.

Atingida em cheio pelo gesto eloquente, Florência apenas semi-cerrou as pálpebras. Mas toda a momentânea fraqueza passara. Estava senhora de si e da ambição cada vez mais forte de recuperá-lo. E não se afastou dele um milímetro.

- Duarte... será possível que já não gostes de mim nem um bocadinho?

Ele crispava os maxilares. Pois como ousava ela semelhante pergunta sabendo tudo o que lhe ia na alma? Como se obstinava num desígnio impossível, recusando-se a devolver essa palavra que ele não ousava quebrar com grosseria porque sempre fora um homem de carácter?

Florência continuava na posição assumida, sem ligar ao olhar turvo que a envolvia.

E foi essa atitude de aparente meiguice que obrigou os outros dois a baixarem do seu voo pelas esferas do sonho.

Arredondaram-se os olhos de Leonor e sorriu divertida a boca de Adriano.

Percebendo-se contemplada (talvez troçada), Florência corrigiu a posição, com grande alívio de Duarte, que se endireitou na cadeira passando a mão pela fronte, a repelir o nevoeiro que lhe toldava a clarividência.

Então, para quebrar o mal-estar que a todos invadia sem que bem soubessem porquê, Florência, entre agreste e escarninha, comentou:

- Que silêncio! Isto parece uma velada de defuntos!...

Leonor, que era um nadinha supersticiosa, ouvindo essas palavras que ecoavam singularmente no ambiente de facto pesado, arrepiou-se.

- Cala-te! Olha para o que havia de dar-te!

- A mais velha não a poupou.

- Não te assustes, que não sou agoirenta. Deus me livre de perturbar a tua ventura dizendo-te que não é próprio estar assim agarrada ao noivo...

Leonor protestou.

- Porquê? Tem algum mal? E que tivesse! Preciso de o sentir bem perto de mim, porque daqui a bocado já me deixa para ir voar... - e lamentosa: - Começam hoje os voos nocturnos de treino... Não gosto nada!

Flor não se comoveu.

- Deixa-o ir! Os homens gostam de andar nas nuvens. Não vês o Duarte? Durante a tarde não se dignou descer da peregrinação pelas alturas! Dá cabo da paciência a um santo!

Duarte encolheu os ombros mas, sentindo pesar nele o olhar de Adriano, um tanto investigador, sofreu como que uma violenta fustigadela. E decidiu arrostar com a ira de Florência não fosse esta acusá-lo... sabia lá de quê?

E exclamou:

- Nem sempre se anda com vontade de rir!

- Podias não rir mas dar fé da minha existência...

Pressentindo borrasca, Leonor e Adriano calaram-se, fugindo à tentação de tomar em partido.

E Duarte sentia-se prestes a explodir!

Aquela situação prolongara-se demais, tornava-se intolerável e reconhecia que ia resolvê-la a bem ou a mal, rompendo com tudo de um momento para o outro. Dominara-o até ali a intenção de se portar correctamente. Como, porém, continuar suportando essa rapariga que, fugindo a toda a prudência, não o poupava a alusões? Quando devia calar-se, reduzir-se, para não o afrontar...

Pôs-se de pé, aproximou-se da janela e, de repente, sentiu na nuca a respiração de Florência. Não se voltou. Ficou ouvindo.

- Duarte... palavra que não compreendo a tua indiferença... - e falava cônscia de estar jogando a última cartada. - Nenhum homem trata assim aquela que se destina a ser a sua futura companheira.

Dentro das algibeiras das calças, ele cerrava os punhos.

- Lastimo não saber desempenhar a teu gosto o meu papel.

- Que não te desagradaria se estivesse no meu lugar outra mais semelhante no temperamento às doidices do Adriano!

Fora drástica. Duarte, rodando nos calcanhares, encarou-a de pupilas fuzilantes.

Mas antes que ele proferisse qualquer palavra, soou, desta vez irritada, a voz de Adriano.

- Menina... toma cuidado com a língua! Estás a ser indelicada para a tua irmã e para mim!

Rispidamente, Duarte esclareceu:

- O despeito cega-a!

Extremamente pálida, de cabeça perdida, Florência sibilou:

- Idiota! Julgas que preciso de ti para alguma coisa? Julgas? Ignoras os que me seguem, os que dirigem galanteios, os que afirmam amar-me? Quantos homens me admiram e cobiçam, mendigando a esmola da minha atenção? Um, dois? Dezenas, meu rico, os que eu quiser! - e no auge da exaltação, gargalhou: - Se eu te deixasse agora, serias substituído, logo, imediatamente, compreendes?

Defrontavam-se como dois contendores querendo ferir-se de morte.

E tudo se precipitaria.

Leonor, aflita, correu a pendurar-se no braço da irmã, mas foi sacudida.

- Oh, mana!... - protestou a rapariguinha, magoada. - Isso não se diz!... Isso não se faz!...

Florência desvairava, na fúria do desaire.

- Faço e digo o que me apetece! Ouves bem, Duarte O que me apetece!

Nas pupilas de Duarte luzia já a chama da libertação. Ah, sim, agora que tinha um pretexto, daria o último arranco! E esse seria breve e até silencioso. Mas definitivo. Pelo que, voltando costas, saiu porta fora.

E Adriano veria a inacreditável cena reviver no olhar de Maria Clara, ao narrá-la estouvadamente, com a pormenorização do egoísta, se não estivesse a pensar somente em si e nos êxitos da aventura que o esperava...

 

A chuva molinhenta principiara a cair, espalhando cinza na tarde que breve seria noite fechada.

Volveu para o meio da casa, acendeu a luz e relanceou em derredor o olhar vago.

Sobre a secretária, cintado ainda, o Jornal do dia. Nem sequer o lera. Para quê? As notícias de sempre, quiçá cheias de interesse para muitos, para ele vazias de sentido. E depois, que lhe importavam as tragédias do mundo, se se debatia na da própria existência?

Sentou-se à escrevaninha, mãos primeiro inertes depois erguidas para a cabeça, a servirem-lhe de apoio.

No cérebro, um turbilhão de pensamentos, tantos que lhe era impossível seguir um, firmar-se nele, desenvolvê-lo.

Poisava o olhar num montinho de cartas, todas fechadas, junto do tinteiro. Tinham chegado diariamente, uma após outra, e não abrira nenhuma, até que cessaram. E deixara-as tal qual. Para quê mexer-lhes? Adivinhava o que traziam dentro após essa de rompimento que escrevera, finalmente encontrada a razão - grande para qualquer, enorme para ele.

Não desconhecia que Florência se dizia arrependida. Mas nem lhe interessava perdoar nem deixar de perdoar. Não a queria- era tudo!

Agora ninguém podia acusá-lo. Havia testemunhas dos seus motivos e tinha a consciência tranquila. Em semelhante emergência nenhum homem digno reagiria diversamente!

Mas... para que lhe servia a liberdade reconquistada, sim, para quê? Sabia que ela, a bem-amada, não desceria do pedestal, não aceitaria a ruptura, não quereria entrar na sua vida após tudo quanto sucedera. Maria Clara era forte e persistente e o orgulho da sua alma bem formada não se coadunaria com as censuras que a noiva repudiada podia dirigir-lhe. Assim, como alegrar-se de poder agora dispor de si? Ah! Se tivesse acontecido mais cedo!... Impulsionada por branda mão, a porta abriu-se e a figura da Mãe, sempre meiga e pálida, avançou no escritório.

- Duarte... não vens jantar?

- Abanou a cabeça - que não!

Havia dor e ansiedade nas faces da velha senhora; distinguia-as sem a olhar. Mas nem coragem possuía para tranquilizá-la de tão cheio do desânimo gerado na realidade de não achar solução para tudo aquilo!

Aparecera-lhe como refúgio partir, partir para muito longe, para onde pudesse esquecer-se de que encontrara a mulher que julgara loucura idealizar, a mulher que amara como nunca supusera que fosse possível amar e tivera de perder - sem ninguém ser verdadeiramente culpado!

Compassiva e terna, a Mãe, falou de novo sem poder calar a inquietação.

- Que tens, filho?

Ergueu os olhos para a companheira estremecida, a carinhosa protectora da sua infância, a explicadora dos seus estudos, a sua santa Mãezinha- como tantas vezes lhe chamava num impulso de sincero fervor. Hesitou. E se... se como dantes, garoto rebelde ou vítima de injustiças, lhe pedisse conselho e opinião Tanta vez escutara palavras de incitamento e amparo!

"Cumpre, cumpre durante as tuas obrigações! Quando cumprimos as nossas obrigações seguimos pelo caminho que maior número de benefícios pode acarretar para os que nos cercam, embora a nós possa tirar alegrias..."

Recordava-o... ou ouvira-o?... Não sabia dizê-lo! Sabia apenas que a Mãe, como a própria Maria Clara, lhe apontaria a renúncia.

E isso não, isso não! Que não lhe falassem mais do que hoje não compreendia - o sacrifício próprio no respeito aos indiferentes!

E, bruscamente, repeliu a suave pressão das mãos maternas.

- Deixe-me, por favor. Deixe-me!

Tomou-o um imediato remorso ao vê-la sair, dolorida e silenciosa. E, no auge do nervosismo, sem perceber como agir, levantou-se, rodeou a secretária, parou e depois, num gesto maquinal, agarrou num Jornal, desdobrou-o, folheou-o. E saltou-lhe à vista, na terceira página, um perfil encantador.

Sem que a sua vontade entrasse em acção, leu:

Parte amanhã para o estrangeiro a afamada pianista Clara Évoracima...

Parte amanhã... O resto não importava. Partia amanhã... Amanhã!... Amanhã, daí a horas! Dentro de pouco tempo. Dentro de pouco tempo Maria Clara seguiria para longe, para muito longe, para onde a glória seria maior do que a saudade...

Ah, mas ele não queria! Ele não consentiria em tal!

Que se fosse, mas que soubesse que ele não estava na disposição de

perdê-la, que soubesse que ele defenderia a sua ventura, que soubesse como ele se revoltava de a saber distante, talvez diante de um novo amor e novas esperanças, quando ele tinha o direito de construir a felicidade de ambos!

Tudo experimentava. Cólera, raiva, ciúme, dor e desespero. Alucinava!

Quisera ir ao encontro dela, dar-lhe ordens, dominá-la, impor-lhe a sua lei. Encerrá-la numa casa, escondê-la de olhos profanos, convencê-la de que nada subsiste face aos direitos do homem totalmente apaixonado.

Deu meia-volta, impetuoso. O telefone... O telefone ali à beira dele para a derradeira tentativa. O telefone que talvez tivesse o poder de a persuadir com o último apelo...

Folheou a lista, a relembrar o número. Depois, nervosamente, discou-o.

Agudo, sarcástico, agrediu-lhe os tímpanos o sinal de impedido. Bateu o pé, furioso. Um minuto de atraso parecia-lhe irremediável, E repetiu a marcação, duas, três, cinco, dez, vinte vezes. Devia ser Adriano a namorar!...

Só meia-hora mais tarde uma voz masculina atendeu e era realmente a do Aviador. Ele não se escondeu - declinou a identidade, pediu-lhe que chamasse a irmã.

Decorreram segundos, longos como de agonia.

Adivinhava (desejava! correndo ao aparelho uma Clarinha pálida, arquejante... Mas foi um timbre sereno que indagou:

- Quem fala?

- Clarinha?

- Sim.

Clarinha ficou a escutar dentro de si o eco da afirmativa escusada. Reconhecera-a tão bem! E balbuciou, julgando inútil dizer o seu nome:

- Sou eu!

Nada atraiçoou o pulsar do coração feminino que se fechava em mágoa e protesto maiores do que a doçura de escutá-lo.

Para quê? Para que lhe falava ele? Para após um desnecessário diálogo lhe deixar na boca o fel das palavras inúteis, das palavras que só lhe fariam mal?

Mas, porque à força de sofrer aprendera a dominar-se, não deixaria que a comoção se evidenciasse, permitindo-se firmeza na réplica banal (tentativa de evitar pela indiferença o que ia ser doloroso para ambos) que o feriu e não logrou efeito.

- 'Que deseja, Zêzere?

Ele, mais fraco do que ela, não sustinha a dor que lhe tumultuava no peito.

- Clarinha, é tudo quanto tem para dizer neste momento?

- Ela obstinava-se.

- Não compreendo!

- Compreende, sim! - e o seu apelo vibrava num frémito desvairado. - Sei que parte amanhã... e não posso acreditar! Diga-me que é mentira. Diga-me que é mentira, por favor!

A despeito da vontade tensa, Clarita sentia-se afundar. Mas conseguiu resistir.

- Parto sim. De manhã cedo.

- Não, Maria Clara! - e havia exigência na súplica. - Não destrua o nosso futuro! Acabou tudo o que parecia separar-nos...

Foi interrompido, quase com secura.

- Engana-se. Tudo subsiste.

- Não, não! Maria Clara! Fique... ou prometa voltar para mim!

- De forma alguma. - e com nobre coragem, encadeou: - Não vale a pena insistir, torna-se cruel para ambos. Não abandono a minha decisão. É irrevogável.

- Mas...

- Oiça! - e incitada pela ideia que a animava: - Não pense mais em mim...

- Clara, não posso viver sem o seu amor!

- Está a desvairar.

- Assim lhe sou indiferente?... O eu ser infeliz nada lhe importa?

A injustiça da suspeição revoltou-a e pondo a alma a descoberto, retorquiu:

- Sabe perfeitamente que a palavra ventura foi riscada do meu futuro depois que o conheci.

- Clarinha...

- Adeus... Duarte!

- Clara! Dê-me uma esperança! Não pode haver nada que a faça regressar para ser minha mulher?

- Nada, nada! - e com a mais extraordinária entonação de renúncia: - Siga o seu destino que eu terei forças para seguir o meu! - e cortou a ligação.

Fora uma atitude grandiosa... mas dos seus olhos corriam lágrimas em fio!

Então Gonçalo, que a seguira e tudo escutara, ofereceu-lhe o resguardo dos braços abertos. E afagando-a comovido, aplaudiu-a.

- Procedeste bem, irmãzinha!

Ela acenou que sim, mas não lhe ocultou o íntimo desalento.

- É... mas não fui sincera! E se tu soubesses quanto sofro... Vejo tudo negro à minha volta!

E inesperadamente, com ardor concentrado, a voz máscula ciciou-lhe ao ouvido:

Eu sei, Clarinha. Porque também sei o que é amar sem

esperança.

Como? Ele também? Impulsionada pela surpresa, fitou o irmão e... e ao encontrarem-se-lhes os olhos mais não foi preciso para Maria Clara entender o que parecia inverosímil e tão inesperadamente sucedera. E tornando a poisar a cabeça no peito amigo, chorou por ambos.

 

As ovações estrugiam ainda, clamorosas, entusiásticas, fazendo curvar a graciosa Pianista cujo talento arrebatara a assistência nesse primeiro Concerto que apresentava ao público a Artista portuguesa.

O belo salão regurgitava.

Mestres e alunos tornavam-se ferventes admiradores dessa rapariguinha que logo de início soubera maravilhá-los e agora os arrebatava como sensacional intérprete de Haydn, de Mozart e de Bach, essa rapariguinha que sabia comunicar às portentosas criações dos mestres a riqueza inesgotável da sua sensibilidade, a qual lhe permitia a execução tão pura quão profunda de todas essas obras-primas.

No final do Concerto, extra-programa, Clara Évoracima Clará Ivôrràcimá, como rumorejavam pelo salão) vira-se ainda obrigada a executar peças nacionais de Viana da Mota e Hernâni Torres, finalizando com a Rapsódia Portuguesa, do segundo, tão magnificente nessa exuberância característica das nossas canções e da nossa alegria sentimental, que a sala, de pé, numa apoteose - não são os estrangeiros avaros de premiar quem sabe cativá-los - manifestava o seu agrado e a sua adesão.

Nostalgia, arroubo, mocidade, ternura, na fulgurante gama das sonoridades, haviam-se evolado da alma da jovem para os ouvidos dos deslumbrados onde se diria que para sempre ficariam retidos.

E essa noite de glória em terra alheia trazia-lhe à mente, numa saudade viva, a recordação de outros festivais, quando, findas as palmas dos assistentes, ia receber ovações menos vibrantes mas não menos sinceras nos abraços dos Pais, dos irmãos, dos amigos...

Agora, quantos lhe eram queridos estavam longe. E os Pais

- a Mãe, especialmente, - recalcando as lágrimas por essa filha que alcunhava de ingrata, essa filha cuja partida a deixara mergulhada em pesar... e ela bem o sabia! Estavam todos longe e conformados. Até o Gonçalo, esse Gonçalo que seguia a par e passo o evoluir do seu destino e achava que não havia para ela nenhuma outra situação possível. Até o querido Adriano, apaixonado em demasia para perder tempo a recordar a irmã ausente.

E ao outro... ao outro... que centrava toda a sua melancolia... quanto o desejaria ali, diante dela, a aplaudi-la com os olhos e os braços à espera da felicidade num amor sem fim!

Tão intensa foi a evasão do seu espírito que gemeu, ainda inclinada sob os aplausos que não findavam mais:

- Meu Deus... para quê este triunfo se não tenho a quem o ofertar? Ah! Se me fosse dado fazer um sacrifício, o maior dos sacrifícios que pudesse ser-me imposto, para merecer depois a suprema ventura!

Voto inconsciente da alma enlouquecida, que terrível ia ser o seu cumprimento no holocausto proposto!...

Principiava a serenar a multidão e, da porta, um chamamento

- Fraúlein...

Olhou. Um Porteiro acenava-lhe com um papel dobrado.

Um papel dobrado. Um telegrama!

Quem se teria lembrado dela? Quem lhe desejaria êxito ou visionando-o a felicitaria?

Então, num repente, sob os olhares enternecidos dos admiradores que acorriam a felicitá-la e do próprio Director que vinha dar-lhe os parabéns, abriu o telegrama.

Fez-se terrivelmente pálida... e nos peitos solícitos que se aproximavam para a amparar, perdendo os sentidos sob a violência do choque, apenas ciciou:

- Não, não, meu Deus! Isto não!

 

Cingiu-a convulsivamente e entre soluços e lágrimas em fio pediu-lhe que não chorasse mais, que tivesse coragem. E pedindo-lhe que não chorasse e tivesse coragem tremia e soluçava. Oh, que horror! Que pesadelo medonho, de que não acordava!

A partida, o avião que passava entre nuvens e parecia quieto e nunca mais chegava; a entrada em casa; o ataúde negro coberto pela bandeira de honra; os gritos, os gemidos e o pranto. E a Mãe, agarrada a ela numa aflição sem limites. E o Pai, apertando-lhe as mãos com as mãos geladas. E a certeza de nunca, nunca mais o ver!

- Adriano!

Adriano, o moço belo, atlético, caprichoso, estouvado e tão amado, para sempre jazia inerte, despedaçado na bruteza do choque com a terra desse avião que se despenhara lá de cima ninguém sabia porquê!

- Adriano! Adriano!

Ai, quão excessivo o preço feito ao regresso da pobre torturada! Um preço que ela não aceitaria nunca! O irmão estremecido! Ele!... Inconsciente, leviano, ingrato, era o companheiro de tantos alegres sorrisos, de tantas infantis amarguras... Adriano!

E não parava de chorar, pedindo à noivinha desbotada como flor murcha que não chorasse mais!

Discretamente, sem coragem, sem energias, agora que para sempre Adriano, vítima das suas ambições e das suas audácias, jazia no frio sepulcro que o Pai mandara há anos edificar, insuspeitoso de que um filho iria ser dele o primeiro habitante, Gonçalo afastara-se, levando na alma, além do seu desgosto enorme! o desgosto de ver entregue à dor sem linite a mulher para quem sonhara a ventura ideal...

Leonor. Essa Leonor que tivera o condão - como se de facto o Amor andasse no ar a transtornar caprichosamente as almas e a tecer fios invisíveis contra todas as determinações de lhe iluminar o coração...

Mas como lembrar-se de júbilo perante a clareira aberta, se a liberdade dela representava a perda do irmão indulgentemente adorado? E se essa mesma liberdade a cruciava? Esperar que a mágoa sarasse? Nem sequer lhe passava pela ideia!

Também a Gonçalo o Destino, com os seus desígnios que encaminham as vidas em ritmos insondáveis, alanceava no intenso drama afectivo.

E a mão delgada de Maria Clara não parava de afagar os cabelos anelados da que já não seria sua irmãzinha.

- Vamos, querida... Tem resignação! Deus não o quis na terra, chamou-o para si, não devemos desesperar-nos! Rezemos pela sua eterna paz.

Os dedos de Leonor crispavam-se no colo que a acolhia como nenhum, mais compassivo talvez porque mais sofredor. E o seu espírito abria-se para esse outro ao qual, no minuto da suprema angústia, se sentira presa por indissolúvel laço de afecto, brotando da intensa comunhão de sentimentos.

- Oh, Clarinha... - soluçava. - Não posso, não posso! É horrível! Não foi Deus, não! Foi ele! Tanto lhe pedi que não entrasse naquilo... que ficasse ao pé de mim... Tanto desejei que não voasse mais!... E ele teimou... Oh, Clarinha! Foi assim que o perdi! E porquê? Porquê aquele desastre brutal? Horas antes estava ao meu lado... e saiu risonho, animado, a gracejar... Não, não posso! Se ao menos a morte me levasse também!

Maria Clara tapou-lhe a boca. - Isso não se diz, Leonor!

- Sofro tanto!

- "Também eu, querida, e não me revolto dessa maneira! Tu perdeste o noivo, eu fiquei sem um irmão...

- Não é a mesma coisa! Não, não é! - e na sua dor imensa, protestou: - Não compares... Não sabes o que é este pavor de ter perdido aquele que era o futuro, que era a esperança. Aquele por quem se aceitam rindo agonias e dores!... Eu... eu agora não sei viver!

De si para si, abismada pela revelação do que apesar de tudo não suspeitara tão profundo, pensava - "Senhor... que dedicação espantosa! Que alma capaz das maiores renúncias em defesa do seu amor!" - e pedindo perdão mentalmente à sombra fugidia - "Seria Adriano digno de um tão grande afecto? Saberia ele guardá-lo Não o despedaçaria, levianamente, ao longo da vida? Não o desprezaria? Acaso ele a amava espiritualmente... ou somente enfeitiçado pela beleza passageira?"

Das reflexões íntimas, justas e clarividentes, arrancou-a Leonor numa enorme queixa.

- Não me compreendes, Clarinha! E não porque ainda não encontraste o homem que te acompanhará na existência! Perdeste um irmão, que não te faz falta para a tua própria ventura. Mas eu Não vês que tudo acabou para mim?

Na sua revolta, sem tal pressentir, Leonor ferira duramente a que procurava confortá-la.

E então, disposta a sacrificar-se por ela e a incutir-lhe resignação sem destruir a imagem idolatrada, Clarinha sussurrou, implorativa:

- Leonor... não fales assim, peço-te! És muito nova, nada conheces da vida... não sabes se deves amaldiçoar ou venerar a mão da Providência. Ninguém sabe! A vontade de Deus escapa muitas vezes ao nosso entendimento de egoístas. Podes lamentar-te e lamentar o que perdeste, mas desesperar... não! Lembra-te de que fizeste tudo para impedir que ele partisse para sempre! Tranquiliza a tua consciência na certeza de que ele morreu feliz... E não vejas o teu amanhã aniquilado. - e tentando reagir contra a depressão avassaladora: - Também para ti haverá o esquecimento da tragédia... e novos sonhos principiarão. As revoltas ficam no passado, porque o tempo adormenta a dor mais viva.

Ulcerada pela recordação das suas ilusões desfeitas, falara contudo sem grande convicção. E a réplica de Leonor, demasiadamente nova e apaixonada para entender a sensatez de tais palavras, acabou de aluciná-la.

- Não... cala-te... Isso não se dará nunca!... Pensas assim porque não sabes o que é o amor! Se soubesses percebias que um amor verdadeiro não pode ser substituído! Oh! Tu hás-de ser feliz... mas eu, eu nunca!

- Leonor! - e forçando-a a erguer os olhos para ela, segurando-lhe a cabeça entre as mãos: - Não... nunca... eu também não!... Sei, sei o que é amar, sim, sem esperança e sem remédio. Eu sei, Leonor, eu sei! - e dando vazão à torrente desencadeada. - Eu estou condenada a passar ao lado do homem amado vendo-o pertença de outra e sem poder esquecê-lo porque a vida não deixa!... Tu, Leonor, choras o noivo que o túmulo roubou. Eu choro aquele que todos os dias morre para mim e eu não teria o direito de chorar se morresse... - e soluçando: - E agora vê... vê qual de nós é mais infeliz!...

Ante a confissão, pasmaram os olhos de porcelana, que a febre secava. E a rapariguinha começou a tremer.

- Clara... Clara... preferias chorá-lo... morto?...

Maria Clara já não podia pensar e, completamente desnorteada, vacilou ante o quesito.

- Não sei, não sei! É um tormento vê-lo ao meu lado como te estou vendo a ti... e recear trair este amor que não consigo dominar... e saber que odeio essa a quem ele vai conceder a felicidade que eu ambicionava! Ê pavoroso, sinto que me afundo nesta loucura, sinto que me torno desprezível... Ai, Leonor!... - e o pranto não parava.

Leonor contemplava-a como duvidando do que ouvira.

- Não... - tartamudeou. - Não pode ser como dizes...

- Mas é! - e, num ímpeto, acrescentou: - E consome-se-me o coração numa esperança a que não dou guarida porque a considero criminosa e dela a consciência me castiga... sem me libertar...

Então a mãozinha de Leonor aferrou-se-lhe no braço.

- 'E eu daria tudo para estar no teu lugar! Tê-lo vivo embora longe de mim, ou vê-lo de quando em quando para ter a suprema dita de saber que Existia e era Feliz!

Cessaram, como que por encanto, as lágrimas de Maria Clara, que fitava com singular expressão a cabeça dolorida da rapariguinha... tão superior a si própria!... E compreendendo pela primeira vez que a sua desventura estava longe de pertencer às desventuras cósmicas, murmurou:

- Leonor... de uma forma ou de outra, é a vida sem ele!

- E a figurinha negra:

- Sim, é a vida sem ele!... Nada mais conta! - e mais nada acrescentou sob o silêncio da que respeitava o transbordar daquele sofrimento que seguia pelo destino junto ao seu.

Foi quando, inesperadamente, atrás delas soou uma voz familiar e que no entanto pelas entonações emocionadas lhes pareceu estranha.

- Nenhum coração deve descrer da felicidade e perder a fé e perder a esperança. As horas más não são eternas. Não o serão para si, Maria Clara, nem para ti, querida irmãzinha...

Voltaram-se as duas, violentamente surpreendidas. E defrontaram com uma Florência que trazia no semblante uma profunda gravidade e no olhar uma expressão cheia de ternura! Uma Florência desconhecida que para elas avançou até poisar as mãos, uma em cada cabeça.

E como nenhuma delas falasse, aquela nova Florência prosseguiu

- Eu não sabia o que era o amor nem o que ele podia fazer sofrer. Só o compreendi ao avaliar a dor da minha Leonor. E sujeito-me ao castigo que a minha ignorância mereceu. Aceito-o sem protesto. Eu que fui poupada às leis do seu império pela minha cegueira, abençoo agora o pesar que me resgata... e só por ele não invejo o que diviso nos vossos rostos ao advinhar como pode ser grande a ventura que os braços têm o direito de cingir... Não invejo, não! Porque me tornei culpada de não ter sabido guardar o que podia pertencer-me e perdi sem que a minha alma vibrasse. Padecia apenas vaidade e despeito... Quanto a vocês duas, melhores dias virão! Para ti, Leonor, haverá paz e depois futuro. Os mortos nada pedem além de saudade e tu cumprirás a tua sina de mulher.

- Oh, não! - discordou Leonor.

Mas Florência dir-se-ia impulsionada por singular visão.

- Sei o que digo. Cada hora tem as suas directrizes marcadas. Hoje choras, amanhã sorrirás. A vida é assim. - e voltando-se para Maria Clara: - Quanto a si, Maria Clara, já nada há que a impeça de ser ditosa.

Clarinha esboçou um gesto, como a mandá-la calar, mas Florência nem sequer permitiu que a interrompesse e continuou, com mais vigor:

- Ouvi tudo o que disse e lamento não haver entendido mais cedo. Desculpe-me! Ouso crer que o seu amor se tenha purificado na luta e no sacrifício, tornando-se mais límpido e mais merecedor de triunfar. Nada a separa desse que ama e também não encara a existência sem você. - e notando o espanto que alagava os olhos de Clarinha, frizou: - Sim, podem ser felizes! Eu quero que sejam felizes! Quero-o sinceramente e peço-lhe que me acredite. - e as suas pupilas fixavam lealmente essas outras onde brilhava uma infinita gratidão.

- Oh, Florência... eu... eu não sei...

- Não precisa de saber senão isto, Clara. Sou eu que lhe peço que seja a mulher de Duarte.

Sufocada, Leonor agarrou-se-lhe ao pescoço.

- Quê?... O Duarte?... Então... era por isso?...

- A irmã baixou a cabeça.

- Sim, era por isto! Ele foi sincero para mim e eu não queria perceber a força que os atraía um para o outro! Não queria ver que era tarde para mim...

Maria Clara pôs-se de pé, num sentido repúdio.

- Mas eu não aceito, Florência, eu não aceito... eu não quero que sofra!

- Que eu sofra? - e os seus olhos castanhos nunca tinham sido tão belos, iluminados por uma luz que os transfigurava. - Se lhe digo que é essa a minha actual felicidade! Não vai recusar-ma, não?

Recusar-lha? Não, não era possível!

E, num impulso irresistível, Clarinha cingiu-a num longo abraço. Abraçaram-se, as duas. E Leonor contemplava-as boquiaberta, até sentir vontade de dizer o que lhe ia nascendo no coração. E disse, por fim, estoicamente.

- Clarinha, Deus seja louvado por te poupar a mais sofrimento!

- Alegrar-me-ei, por mim e pelo Adriano, ao ver-te feliz! E nunca mais maldirei a provação que Deus pôs como preço à tua ventura...

Preço terrível, preço que Maria Clara não quereria aceitar... mas contra o qual não havia reclamações. Achava-se diante de um rumo definido, para cujo traçado nada influíra.

Febrilmente, estreitou nas suas as mãos das duas irmãs.

- Eu... eu não sei dizer o que sinto... a ti, Leonor... e a si. Flor, tão bondosa para mim...

- Não, Maria Clara, bondosa não! Eu não sou bondosa... - e num sorriso que realçava com estranha graça o rosto sem pintura: - Sou interesseira! É que também espero merecer para a minha irmã a protecção divina...

Duas cabeças se poisaram nos ombros dela, cansadas de sofrer.

Cansadas? Não! Uma já se endireitava, obedecendo às ordens da Vida, na ressurreição de todos os sonhos.

 

CONCLUSÃO

Se o tempo não pára!... Se não pára e não conserva coisa alguma! Se destrói e mata e remoça e transforma e cria e aniquila e despedaça e dá vida e segundo a segundo faz correr os séculos!...

Uma sala confortável, batida pelo quente sol da tarde. Muitos brinquedos pelo chão. Cadeiras estofadas, garridas. E num canto móveis que devem servir a liliputianos...

Noutro canto, um berço onde dorme, de mãos gorduchas abandonadas sobre a cambraia do lençol, um homem de amanhã, lindo de encantar.

No chão, sentada, uma menina de aproximadamente três anos, evidenciando semelhanças com a beleza romântica das princesinhas. Cabelos loiros e olhos azuis, uns olhos enormes, maravilhosos. Uns olhos cheios de inteligência.

Em frente da pequerrucha, ajoelhada a amimá-la e a entretê-la, um vulto de rapariga gracioso apesar da severidade do trajar - toda de preto.

Leonor brinca com a afilhada, a Nininha, que completa três reboludos anitos naquele dia de Primavera, aniversário tanto mais radioso quanto celebra o quinto do casamento dos Pais.

Sim, já passou bastante tempo e parece que foi ontem que Maria Clara e Duarte transpuseram o portal da Igreja transbordante do perfume das rosas brancas, tão inebriados que todos os olhos se quedavam a admirar com emoção o parzinho recém-unido.

E já havia ali dois petizes deliciosos... e falava-se num terceiro...

Clara Évoracima, a Pianista cujo coração se entregara totalmente aos afectos de mulher e de Mãe, dedilhava agora uma sinfonia maravilhosa na harpa dos esponsais!

Cinco anos!

Cinco anos que essa outra noiva entregue à dor vira passar, afastando cada vez mais a figura insinuante que a arrebatara nos seus dezasseis anos para um amor sem felicidade; cinco anos que lhe haviam amodorrado as lembranças sem do peito arrancar o pesar.

Mas a vida manda!

E a despeito dos seus sentimentos, Leonor não podia roubar a juventude ao rosto que se tornara mais reflectido na sua pureza, nem fugir ao doce enleio da amizade que lhe tributavam naquele lar, nem recusar o conforto da suave afeição, protectora e forte, que encontrara no padrinho de Nininha (Adrianinha), esse Gonçalo de olhar sonhador e alma generosa.

Era ali que vinha receber o sol da alegria de que todo o ser verdadeiramente humano necessita para não morrer ao abandono.

No seu lar adensara-se uma nostálgica sombra que não sabia dissipar, ela que fora a única a ficar para dar luz à velhice dos Pais e não sabia cumprir esse dever...

A casa, dantes tão sonora e festiva, jazia taciturna como os carácteres dos donos, desde que o sorriso espontâneo voara dos lábios da filha mais nova, desde que Florência, em abnegada resolução, partira a caminho de África a entregar-se às missões missionárias.

A própria Fausta Irene, única que ainda tinha a força de quebrar a melancolia, apesar de fundamente impressionada com tudo quanto sucedera, havia debandado pelo braço de um jovem diplomata, após precipitado casamento, em direcção à América, onde realizaria finalmente os seus sonhos de mundanas grandezas.

Sim, no lar desertado restava ela como esteio de derradeiras ilusões... Ilusões que os Realenga iam confidenciar, em amizade estreitada, aos Évoracima que, após o tremendo golpe, rejuvenesciam para a adoração dos netos.

Cinco anos!...

Ai, o tempo implacável!... Nada poupa, nada respeita... Destrói, aniquila, sacrifica... mas também cria... Sim, mata ê dá vida!

E Leonor continua a brincar com Nininha... e riem as duas...

Da porta vem de súbito uma gargalhada cristalina e uma reclamação.

- Olhem a desvergonha! A minha filha daqui a pouco gosta mais da madrinha do que da Mãe!...

É Maria Clara que entra, radiosa, pelo braço de Duarte, que a cinge com os extremos da paixão que perdura. Já Leonor discorda:

- Fazes o favor de não ser egoísta?...

- Clarinha dobra-se para ela.

- Não, querida, não sou egoísta! Eu só quero ver-te feliz! - e abafa um suspiro e muda de tom antes que se humedeçam os olhos azuis. - Mas agora tem paciência. Roubo-te a Nininha por uma hora.

- Porquê? - insurge-se a madrinha.

- Porque o Duarte vai dar-lhe como prenda de anos todos os brinquedos que lhe apetecerem!... - e sorri. - Uma maluqueira como outra qualquer!

- Pois!... E depois queixam-se porque a estrago com mimos, eu!

Nesse ambiente, a felicidade desanuvia-lhe a alma. O sorriso não abandona os lábios da formosa mamã.

- Tu ficas a tomar conta do Antoninho. Ainda preciso de passar pela Emissora por causa do programa do concerto.

- Sempre aceitas?

- Claro!

- e é Duarte que o afirma. Sim, Duarte sabendo que a sua adorada Clarinha não esquecia a Arte que tanto contribuíra para a entregar ao Amor. Sabendo-o e sempre deliciado a ouvi-la recolhido, num êxtase de admiração e de orgulho...

Maria Clara levanta a filha do chão, entrega-a ao marido e, enquanto ele sai com a criança, inclina-se de novo para Leonor.

- O Gonçalo não deve tardar. Ficas tu para recebê-lo. - e sem ocultar o desejo sincero que a invade: - Peço-te que oiças o que ele tem para te dizer...

Leonor não pode protestar. Clarinha foge, ligeira. E ela fica pensativa, o olhar melancólico poisado no rosto sereno de Antoninho.

Na casa, o rumor da vida quotidiana.

E ela apoia agora a cabeça no bercinho onde o pequenino continua adormecido.

De pé, enquadrado pelas ombreiras da porta, um vulto masculino desenha-se e permanece, imóvel, o olhar comovido afagando a cabeça da guardiã cujos lábios se descerram para a terna melopeia de uma canção de embalar.

Será possível, Deus do Céu? Haverá dias venturosos esperando-os? Deve confiar no que Maria Clara lhe afirma? Ele também pode ser feliz, tornando-a feliz?...

Docemente, a voz de Gonçalo faz-se ouvir.

- Estás a treinar-te para mamã, Leonor?

Volta-se a rapariga, num sobressalto logo dominado pela invencível amargura com que move a cabeça.

- Mamã - murmura. - Mas eu nunca o serei!

- Porquê?...

E sem mais nada esperar, vem ajoelhar-se ao lado dela, na confissão que traduz toda a fé da sua alma onde cabe um só amor.

- Leonor... há tanto que espero, há tanto que peço a Deus por ti!... - pálido, obedecendo a misteriosos desígnios, abre o coração em palavras que não premeditara e contêm extraordinárias vibrações. - Amo-te, Leonor! E sei que involuntariamente o tenho demonstrado! Quando te salvei daquela doença que te acometeu após... o desastre, não foi a minha ciência, foi o meu amor! E acima de tudo ambiciono que não julgues criminoso o meu anseio!... Não influí no desenrolar dos acontecimentos. Para os evitar daria o meu sangue, gota a gota! Mas Deus não o quis!... Não o quis e quis que eu te estimasse... não como estimo a Maria Clara, mas... Leonor, deixa-me tentar fazer-te ditosa como sonho!... Deixa-me estreitar-te nos meus braços e dizer-te que é tua a minha vida inteira! Não me destruas a esperança!... Temos abordado juntos tantos assuntos, o nosso entendimento não pode ser mais perfeito... Sei compreender-te... tu és a companheira que um homem como eu deseja alcançar... - e mais baixo, mais veemente: - Sim, Leonor, tu tens de cumprir a tua missão... não deves tentar

- eximir-te a ela... E Ele mesmo, do além, há-de abençoar-nos... há-de compreender-nos... Leonor, se não quiseres amar-me, não to exigirei. Não te pedirei que o esqueças, porque também sempre o relembrarei. Daremos a um filho nosso o nome dele... Leonor... confia de mim os teus dias!... Aceita o caminho aberto na nossa frente!...

Suspenso, lábios entreabertos, olha-a pleno de tanto respeito como ansiedade.

Ela tenta fugir às pupilas sequiosas, esquivar-se à avalanche enternecedora que lhe põe no corpo estranha lassidão e que em derradeira teimosia não quer ouvir...

Ah, mas essa amizade, essa amizade forte a que sabe poder apoiar-se, hoje, sempre... Amizade firme, calma, tão diferente!

Sim, há muito que ela aguenta a luta íntima, a luta que não consegue vencer. Há muito que o trabalho de reconstrução principiou. Há muito que sentira o belo edifício erguer-se-lhe no peito. Há muito que reconhecera a submissão dominadora de todas as antigas revoltas. E a vontade torna-se impotente para repelir o que lá vem. A vontade muda de direcção. E tudo se torna serenidade, confiança, paz...

O silêncio que ela mantém arranca dos lábios masculinos um novo apelo, fervoroso.

- Leonor... não recuses!... Sê razoável!... Acorda dessa nostalgia, suplico-te! Que hei-de dizer-te para te convencer? Eu só te peço que me deixes amar-te... e... se puderes... que sejas muito minha amiga...

Amiga?... Amiga?

Porque não, meu Deus, porque não? E, de repente, os braços dela erguem-se cingindo, palpitantes, a cabeça austera.

- Basta, Gonçalo, basta!... A tua causa está ganha. Não resisto, não posso... e não tenho remorsos! Do passado resta a saudade e a lembrança. Nada mais quero recordar, nada mais... Sofri quando era ainda uma garota... agora sou uma mulher... e dou-te a minha existência. E saberei merecer a tua bondade, porque eu também gosto muito de ti!...

E junto desse berço onde um bebé dorme, a Vida junta num só dois corações dedicados, dois corações que tinham de se encontrar porque uma vontade mais forte adejava sobre os seus Destinos.

 

 

                                                                  Odette De Saint Maurice

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades