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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEDUTOR / Madeline Hunter
O SEDUTOR / Madeline Hunter

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Diane Albret é órfã e passou a maior parte da sua vida num colégio interno. Sem mais família, está habituada a receber apenas uma visita: Daniel St. John, o seu irresistível tutor. Ao longo do tempo, ele visitou-a sempre uma vez por ano. Mas o seu mais recente encontro reserva-lhe uma surpresa: Daniel esperava encontrar uma menina e Diane é já uma bela e carismática jovem mulher. Ele aceita retirá-la da clausura do colégio e levá-la consigo para Londres. Porém, ambos têm planos que preferem manter em segredo.
Diane está decidida a descobrir o que se passou com a sua família, que nunca chegou a conhecer. Só Daniel pode revelar o que ela tanto deseja saber, mas ele tudo fará para que o passado permaneça secreto, pois os seus efeitos representam uma ameaça fatal para a vida de ambos. Por seu lado, Daniel está subtilmente a usar a inocência da sua protegida para uma vingança que planeia há mais de uma década. Mas a crescente proximidade entre ambos ameaça dificultar-lhes os planos e, pouco a pouco, eles apercebem-se de que têm mais em comum do que julgavam. Poderá um novo amor triunfar sobre ódios antigos?

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 1
1818
O Homem Diabo tinha chegado. Madame Leblanc ameaçara mandá-lo chamar e, pelos vistos, acabara, mesmo por fazê-lo.
Diane ficou a ver a carruagem abrandar e parar em frente à entrada da escola. Verde e dourada, madeira muito trabalhada, puxada por quatro corcéis brancos. Podia
ser a carruagem de um príncipe.
Ele nem sempre se apresentara em tão grande estilo. Alturas houvera em que viera a cavalo, e uma vez a pé. Houve um ano em que não veio de todo. Madame Leblanc estivera
prestes a enviá-la para o orfanato dominicano dos pobres, até que chegara uma mulher que pagara para ela ficar mais algum tempo.
Uma sensação acre revolvia-lhe o estômago. Um tutor que só fazia visitas anuais, por dever, não iria gostar de ser chamado por causa de um desastre.
Subitamente, o plano audaz que ela havia arquitetado afigurava-se-lhe inútil. Confrontando-se com o inevitável, concluíra que o destino lhe determinara um futuro
que ela, demasiado covarde, não tomara a iniciativa de abraçar.
De olhos na carruagem, sentiu a sua frágil coragem abandoná-la. O santuário que era esta escola podia ser solitário e pequeno, mas era seguro. A demanda que clamava
por ela podia esperar.
Talvez até pudesse ser ignorada, com o tempo.
O Homem Diabo desceu da carruagem, esplêndido, de casaco azul-profundo e botas de cano alto. O vento soprava-lhe no cabelo escuro. Não trazia chapéu. Nunca usava
chapéu.
Nem sempre parecera tão rico. Ela lembrava-se vagamente de anos em que parecera quase rústico. Tinha havido uma altura, há muito tempo, em que ela julgara que ele
estava doente. Rico ou pobre, os encontros deles seguiam sempre o mesmo padrão. Ele olhava para ela, quase nada, e fazia as perguntas dele.
Estais a ser bem tratada? Tendes alguma queixa? Estais a aprender as vossas lições? Que idade tendes agora?
Ele não ligava às respostas. Ela dizia-lhe o que ele queria ouvir. Exceto uma vez. Ela tinha sido vergastada por uma transgressão que não cometera e, aquando da
visita dele, a humilhação ainda estava muito viva. Fez-lhe queixa, num impulso. Surpreendentemente, nunca tinham voltado a açoitá-la. Antes de se ir embora, ele
proibiu-o, para grande frustração de Madame Leblanc. Dali em diante não podia ser fisicamente castigada sem a permissão dele.
Razão pela qual ele havia sido chamado.
com passadas largas, ele dirigiu-se para a entrada. Ela mal lhe viu o rosto, mas o que viu daquele semblante sério foi suficiente para saber com certeza de quem
se tratava.
- Denunciai-me e eu mato-vos.
O sussurro hostil arrancou Diane aos seus pensamentos. Rodou imediatamente sobre os calcanhares.
Madame Oiseau, a professora de música, fitava-a com olhos fulminantes, da porta que tapava com o corpo. Baixa e franzina de estatura, constituía, ainda assim, uma
barreira eficaz. Os seus olhos reluziam como dois pedacitos de carvão naquele rosto bem desenhado. O seu cabelo escuro parecia emaranhado, como se de manhã se tivesse
arranjado a correr.
- Não duvideis que o faço, Diane. Aceitai o castigo, ficai em silêncio, e eu serei vossa amiga. Senão... - Ergueu eloquentemente as sobrancelhas.
Um arrepio percorreu Diane, como se o próprio Mal lhe respi-
rasse para o pescoço.
- Ninguém acreditará em vós - continuou Madame. - E quando acabar, ainda estaremos cá as duas. Sois esperta que chegue para fazerdes a escolha acertada. - Abriu
a porta. - Descei quando vos chamarem. Eu levo-vos.
Atónita, Diane ficou a vê-la sair.
Passou os olhos pelo quarto espartano, procurando conforto nos objetos familiares. Podia parecer estranho, mas gostava da cama dura e da colcha velha, da cadeira
de madeira e da secretária simples. O guarda-fatos precisava de uma pintura e, com os anos, a bacia cor-de-rosa ficara bastante lascada. Os confortos físicos eram
poucos, mas o tempo fizera do quarto estreito o centro da sua vida. Era o único lar de que conseguia lembrar-se.
Imaginava-se a viver neste quarto durante alguns anos mais. Não feliz, mas satisfeita. Não era um futuro assim tão mau, mesmo com aquilo que enfrentava hoje, mesmo
com Madame Oiseau por perto. A alternativa surgia diante dela como um vazio interminável, escuro e imperscrutável.
As velhas perguntas começaram a intrometer-se, privando o aposento do seu parco conforto. Interrogações da sua infância, nunca proferidas e nunca respondidas. Quem
sou eu? Porque vim para aqui? Onde está a minha família? Durante alguns anos deixara de fazer estas perguntas, mas recentemente as interrogações haviam regressado,
mais audíveis e mais veementes, até se tornarem um cântico silencioso, um eco, numa parte funda do seu coração.
As respostas não estavam aqui. Saber a verdade significava abandonar este pequeno mundo.
Ela só precisava de agarrar a oportunidade que o destino havia criado.
Deveria fazê-lo? Deveria deixar-se à mercê do Homem Diabo?
- ..se ela permanecer impune, tenho de insistir que parta. Não posso deixar que a virtude das minhas raparigas seja corrompida...
Madame Leblanc prosseguia com o seu discurso em tom grave. Absorto em pensamentos sobre os assuntos inacabados que deixara em Paris, Daniel St. John mal a ouvia.
Qualquer coisa a propósito de um livro. Claro que a rapariga teria livros. Tratava-se de uma escola.
Ele forçou-se a prestar atenção à professora grisalha e avantajada, interrompendo o fluxo contínuo. - A vossa convocatória dizia que o assunto era sério, madame.
Presumi que ela adoecera e estava às portas da morte.
Fora um inusitado golpe de sorte a carta tê-lo sequer encontrado em Paris. O certo é que não planeara interromper a sua visita para fazer esta viagem. Estava aborrecido
por ter sido incomodado a propósito de um assunto de tão pouca importância. - Se ela tiver infringido as regras, tratai disso como é hábito. Como eu vos pago para
fazer. Não havia necessidade de mandar chamar-me.
Madame Leblanc baixou a cabeça e lançou-lhe um olhar furioso.
- Esta transgressão requer mais do que pão e água durante alguns dias, msieur, e vós destes ordens expressas para ela não ser castigada com a vergasta sem a vossa
permissão.
- Dei? Quando foi isso?
- Há anos. Eu disse-vos que semelhante brandura vos traria desgostos, como agora se vê.
Sim, ele recordava vagamente a expressão grave do rosto da criança, pedindo-lhe que fizesse justiça. Não se lembrava de ter dado instruções sobre o assunto. Se tivesse
sabido que se revelaria de tal forma inconveniente, não teria sido tão generoso.
Endireitou-se na cadeira, preparando-se para revogar a ordem. O seu olhar recaiu sobre a vara de salgueiro pousada na secretária. A memória de olhos chorosos e de
uma voz embargada a acusar Madame Leblanc de brutalidade injustificada voltou-lhe à memória.
- Dissestes algo a propósito de um livro. Deixai-me vê-lo.
- Mesieur, não será necessário. Asseguro-vos que é de tal natureza que, no mínimo, só pode ser proibido.
- Isso pode querer dizer que se trata apenas de um volume de poemas de Ovídio ou o panfleto religioso de um dissidente. Gostaria de o ver e avaliar por mim próprio.
- Não acho que...
- O livro, madame.
Ela foi até um armário. Utilizando uma das várias chaves que trazia num cordel à volta do pescoço, destrancou-o e pegou num volume pequeno e vermelho. Atirou-lho
e retirou-se para junto de uma janela. Colocou-se de costas voltadas para ele, assim condenando a literatura que ele tinha nas mãos.
Ele abriu-o com um movimento rápido e viu imediatamente porquê.
Não era literatura. A bem dizer, não tinha uma palavra. O fino volume continha apenas gravuras que mostravam relações carnais em toda a sua inventividade.
Folheou-o. As coisas começavam com bastante simplicidade, mas tornavam-se cada vez mais atléticas. Para o final, havia algumas representações que lhe pareceram completamente
impraticáveis.
- Estou a ver - disse ele, fechando ruidosamente o livro.
- Deveras. - O tom dela dizia que ele tinha visto mais do que era necessário.
- Mandai chamar a criança, madame.
O rosto dela iluminou-se de satisfação. - Gostaria que estivésseis aqui quando se fizer. Ela deve saber que vós aprovais.
- Mandai chamá-la.
Madame Oiseau entrou com Diane.
Como era esperado, um visitante aguardava no gabinete da diretora. O Homem Diabo reclinava-se na cadeira de Madame Leblanc, por trás da secretária de madeira. Madame
Leblanc estava
ao lado dele, hirta, um pilar de censura. Estavam pousados dois itens na secretária impecável. Uma vergasta e o livro.
Como era típico, Daniel St. John mal olhava para ela. Parecia um tanto aborrecido e muito entediado. Ela quase contava que ele bocejasse e pegasse na caixa do rapé.
Na verdade, ele não tinha aspeto de diabo. Ela dera-lhe aquele nome quando era pequena por causa dos olhos. Escuros e intensos, eram emoldurados por sobrancelhas
despenteadas nas pontas. Aqueles olhos conseguiam trespassar uma pessoa se ele estivesse a prestar atenção.
Como ele nunca o fazia, ela já não os considerava assim tão assustadores.
A boca dele apresentava-se numa linha direita, dura e carnuda; mas, na verdade, estava sempre assim. Mesmo quando sorria, a boca só se curvava o suficiente para
sugerir que o que quer que estivesse a diverti-lo era qualquer coisa só dele. Juntamente com os olhos e o rosto esculpido, fazia-o parecer cruel. Talvez fosse. Ela
não fazia ideia. Ainda assim, suspeitava que as mulheres o consideravam muito atraente, e talvez até julgassem aquela dureza apelativa. Ela vira Madame Oiseau derreter-se
toda na presença dele.
Ele não era tão velho como ela certa vez achara. com o amadurecimento dela, ele rejuvenescera. Ela reparava agora que ele não podia ter mais de trinta anos, o que
lhe pareceu verdadeiramente peculiar. Ele havia sido adulto durante toda a vida dela e. devia ser mais velho.
Era fácil esquecer o quão duro ele podia parecer. Todos os anos, os meses esbatiam-lhe a memória. Ao vê-lo agora, sabia que o seu plano tinha sido estúpido. Ele
não aturaria mais inconvenientes e ela seria deixada ali, aguardando a vingança de Madame Oiseau.
- Msieur soube do vosso comportamento deplorável - informou Madame Leblanc. - Está chocado, como seria de esperar.
Ao ouvir a descrição da sua reação, ele esboçou um dos seus sorrisos sardónicos. Bateu levemente no livro. - Há alguma explicação? í!í ?
Madame Oiseau aproximou-se, relembrando-lhe a ameaça que fizera. Madame Leblanc fitava-a com olhos furiosos, desafiando-a a atrever-se a inventar desculpas. O Homem
Diabo parecia indiferente, como sempre. Queria despachar o assunto para poder ir-se embora.
Diane fez a sua escolha. A escolha segura, covarde. - Nenhuma explicação, msieur.
Ele ergueu os olhos para ela, subitamente atento. Durou apenas um instante. Voltou a afundar-se na cadeira e fez um gesto impaciente a Madame Leblanc.
As duas mulheres prepararam a divisão para o castigo. Um genuflexório foi arrastado a custo para o centro do gabinete e uma cadeira colocada à sua frente. A diretora
pegou na vergasta e fez sinal à pecadora para se colocar em posição.
O Homem Diabo limitava-se a continuar sentado, perdido nos seus pensamentos, de olhar fixo na secretária, ignorando a atividade à sua volta.
Ele ia ficar. Madame Leblanc insistira que ele presenciasse tudo.
Diane já sabia que ficar significaria castigo. Madame Leblanc acreditava sinceramente que o pecado merecia o açoite e não reservava a vergasta apenas para as alunas.
Vários meses antes, uma serviçal de idade madura fora apanhada a sair à socapa para se encontrar com um homem e havia-lhe sido aplicada a mesma justiça.
A ferver de humilhação e rezando para que ele não saísse daquele torpor, Diane aproximou-se do genuflexório. Subindo para a plataforma, apoiou as ancas ao apoio
almofadado para os braços, dobrou-se e agarrou-se ao assento da cadeira para se equilibrar.
Madame Oiseau levantou-lhe cerimoniosamente a saia do vestido sem formas. Madame Leblanc exortou-a, como era hábito, a rezar e pedir perdão.
A vergasta abateu-se sobre as suas nádegas expostas. Novamente. Ela cerrou os dentes de dor, sabendo que era vão. Iam açoitá-la sem misericórdia, até ela pedir o
perdão divino.
- Parai. - A voz dele rasgou a tensão que enchia a sala. Madame Leblanc aproveitou para dar um último açoite.
- Eu disse para parardes.
- Msieur, tem de...
- Parai. E saí.
Diane começou a endireitar-se.
Madame Oiseau empurrou-a para baixo. - Parece que o tutor dela está tão indignado que se sente na obrigação de ministrar ele próprio o castigo, Madame Leblanc -
disse, com falinhas mansas.
- É apropriado para um pecado destes, não é?
Madame Leblanc debatia-se numa série de murmúrios. Madame Oiseau deu a volta ao genuflexório. As duas mulheres saíram.
Ela ouviu-o levantar-se e caminhar na sua direção. Esperou que ele despachasse rapidamente o assunto. Suportaria de bom grado qualquer dor só para pôr fim à humilhação
que sentia, ali naquela posição, seminua.
A saia flutuou para baixo. Um aperto firme tomou-lhe o braço.
- Levantai-vos.
Ela endireitou-se e compôs o vestido largo. Combatendo a humilhação, olhou-o de frente.
Ele voltara a sentar-se à secretária. Sem ponta de tédio, agora. Decididamente a prestar atenção. Aquele olhar sombrio deixou-a perturbada.
Ele indicou o livro. - Onde o arranjastes?
- Isso importa?
- Eu diria que sim. Pus-vos numa escola que é praticamente uma redoma. Acho curioso terdes encontrado uma coisa assim.
A ameaça de Madame Oiseau retinia-lhe nos ouvidos. Ela era mulher para o fazer. Matar alguém. E quando isso acontecesse, o Homem Diabo não se importaria minimamente.
Ficaria grato por lhe pouparem a viagem todos os anos.
- Roubei-o.
- A um livreiro?
- Roubei-o e Madame Leblanc encontrou-o entre os meus pertences. É tudo o que interessa. A Madame diz que desculpas e explicações só tornam o pecado pior.
- A sério? Que disparate. Compreendeis por que razão Madame ficou tão chocada por terdes este livro?
- As mulheres estão despidas, por isso presumo que seja sobre pecados da carne.
A resposta pareceu diverti-lo, como se lhe tivesse ocorrido uma réplica acertada mas a guardasse para si. - Acredito que roubastes este livro mas julgo que foi a
alguém daqui. A Madame Leblanc?
Ela abanou a cabeça.
- Também não me pareceu. Foi a outra, não foi? A que não cabia em si de contente por vos deixar a sós comigo. - Ele trespassou-a com aqueles olhos. - Dizei-me, já.
Ela hesitou. Na verdade, ele não queria saber dela. Era a primeira vez em anos que olhava sequer para ela decentemente.
Estava a fazê-lo, sem dúvida. Incisivamente. Profundamente. Provocava-lhe desconforto.
Ele havia-a ajudado, daquela vez que se queixara. Talvez se lhe dissesse ele concordasse em não dizer nada e as coisas pudessem continuar como antes. Ou, se ele
a denunciasse, quem sabe Madame Leblanc acreditasse nele e Madame Oiseau fosse dispensada.
Havia algo na sua expressão que indicava que ele descobriria a verdade, de uma maneira ou de outra. Algo determinado, implacável até, ardia naqueles olhos diabólicos.
Preferia-o, de longe, aborrecido e indiferente.
- Pertence a Madame Oiseau, tal como adivinhastes - disse ela.
- Há uma rapariguita, de catorze anos no máximo, a quem ela o tem mostrado. A rapariga contou-me que Madame Oiseau lhe descrevera as riquezas reservadas para uma
mulher que fizesse coisas daquelas. Eu fui ao quarto de Madame e peguei nele. Eu estava à procura de uma forma de o trazer cá para baixo, para o lume, mas Madame
Oiseau queixou-se que lhe tinha desaparecido um broche
e os quartos das raparigas foram todos revistados. - Encontraram o livro no meu.
- E o broche, nem vê-lo, pois não? -Não.
Os olhos dele estreitaram-se, pensativos, ao percorrer o corpo dela, detendo-se no seu rosto. Tentava decidir se ela dizia a verdade.
- com que idade estais?
A pergunta anual, lançada agora, sobressaltou-a. - Dezasseis.
- Falastes da vossa amiga que tem catorze como se fosse uma rapariguinha.
- Comporta-se como uma.
Ele examinou-a lenta e cuidadosamente. Nunca tinha olhado para ela durante tanto tempo nem com tanta minúcia. Nunca ninguém o havia feito.
- Trouxe-vos para aqui, quê, há dez anos? Doze? Foi logo a seguir a... Éreis uma rapariga nessa altura, mas não uma criança. O olhar dele foi de encontro ao dela,
frontal. - Que idade tendes?
O seu plano tonto concretizava-se apesar da sua covardia. Só que agora ela não queria.
- Dezasseis.
- Não tenho paciência para mulherzinhas que tentam fazer de mim idiota. Julgo que, se desfizermos essas tranças infantis e vos soltarmos o cabelo, e se vos apresentardes
noutra coisa que não esse vestido, saberemos a verdade.
- A verdade é que tenho dezasseis anos.
- Deveras? Satisfazei-me a curiosidade, então. - Indicou a cabeça dela. - O cabelo. Soltai-o.
Amaldiçoando-se por ter atraído a atenção dele, puxou pelas fitas que prendiam as tranças. Desfazendo-as e penteando-se com os dedos, soltou o cabelo, que lhe caiu
em ondas à volta do rosto e pelo corpo abaixo.
O seu olhar duro suavizou-se, o que devia tê-la tranquilizado, mas o efeito foi o oposto. Sentiu um arrepio de temor nas costas.
- Que idade tendes? - Desta vez a voz era mais suave, sem dureza.
Agora é que a deixara apreensiva. - Dezasseis.
- Tenho a certeza de que não. Suspeito que tenhais concluído que era do vosso interesse mentir. Mas deixai-nos ter a certeza. O vestido, mamselle.
- O vestido?
- O vestido. Tirai-o.

CAPÍTULO 2
Ela estava de frente para ele, com o cabelo cor de avelã sobre o corpo ágil. Os lábios haviam-se entreaberto, desorientados, e os olhos contemplativos estavam arregalados
do choque. com aquela expressão, parecia quase tão jovem quanto alegava ser.
- Tirai-o - repetiu ele.
- Não conseguis ver a minha idade pelo... com dezasseis anos já...
- A mulher não para de se desenvolver tão cedo. Há uma diferença entre a voz de uma rapariga e a de uma mulher, e a vossa tem uma ressonãoncia madura. Também há
diferença nos corpos, especialmente nas ancas. As que acabo de ver parecem-me demasiado redondas para dezasseis anos. Despi a roupa para eu poder verificar se a
minha impressão
fugaz estava correta.
O rosto dela tingiu-se de vermelho-escuro. Centelhas de indignação brilhavam-lhe nos olhos escuros. Por momentos ele pensou que ela fosse corresponder à sua invetiva
e começasse a despir-se.
Nisto, as chamas desapareceram e o olhar dela acalmou.
Subitamente ela fez-lhe lembrar o pai dela. Não havia razão nenhuma para que isso o incomodasse, que raio, mas fora sempre assim e, num repente, ele perdeu todo
o interesse pelo jogo que iniciara com ela.
- Tenho vinte anos.
Não parecia uma pessoa que tinha acabado de ser desmascarada. O seu tom de voz sugeria que ela havia tomado uma decisão qualquer.
Ele sentiu uma pontada de receio.
- Madame Leblanc sabe a vossa verdadeira idade?
- Nunca chegou a perguntar-me a idade quando vim para aqui. Eu era pequena e iletrada e puseram-me com as mais novas. Ainda assim, ela sabe contar os anos.
- Mas nunca mencionou o assunto do vosso futuro comigo.
- Não era do interesse dela fazê-lo. Vós continuastes a pagar as propinas. Eu avancei no currículo mais rápido do que a maioria. Há três anos passei para a frente
da sala de aula e comecei a ensinar o que tinha aprendido.
- Muito conveniente para Madame Leblanc. Ainda assim, vós também nunca mencionastes o assunto. Na verdade, mentistes-me anteriormente a este propósito e acabais
de voltar a fazê-lo.
-Já vi raparigas saírem aos dezoito. Não achei que me deixásseis continuar aqui se soubésseis que tinha atingido a maioridade. Por isso, quando perguntáveis, dava-vos
a mesma idade durante vários anos antes de voltar a envelhecer.
Ela tinha sido muito esperta, constatou Daniel. Mais esperta do que seria de esperar numa rapariguinha.
Ele fazia as viagens anuais à escola com uma má vontade sombria e dilacerante. Eram como proclamações de deveres adiados e fomes por saciar, do tempo a passar e
de demandas por cumprir. A responsabilidade que tinha nisto apenas vinha lembrar-lhe que não teria paz até acabar o que havia começado anos antes. Mesmo quando falava
com ela, ano após ano neste escritório, mantinha-se em grande parte inacessível.
Ela vira-o assim absorto e interpretara-o como indiferente, e tirara partido disso.
Uma bonita cor assomou-lhe ao rosto na admissão da culpa.
- Peço desculpas pelo engano, mas este é o único lar que conheci. Tenho aqui amigas, e uma espécie de família.
Lar. Família. Um sorriso pequeno, melancólico, acompanhou estas palavras.
Ela dispusera-se a ser açoitada para preservar o pouco que tinha das duas coisas.
Ele desejou imediatamente não ter deixado a curiosidade seguir o seu rumo. Ali, a olhar para o seu bonito rosto, ele esquecera-se da pessoa com quem lidava. Por
momentos, tratara-se de um homem a brincar com uma mulher atraente e comprazendo-se em demasia com o desalento dela.
- Esqueceremos esta conversa, mamselle. Podereis ficar, sim. Não diremos nada sobre a vossa verdadeira idade e eu continuarei a pagar a propina. A seu tempo, Madame
Leblanc provavelmente começará a compensar-vos pelos vossos deveres e passareis oficialmente para a frente da sala de aula.
Ela começou a andar pela sala, devagar, tocando distraidamente na estante envidraçada e no genuflexório de veludo. - É tentador, não o negarei. Mas o livro... Madame
Oiseau... Agora não há como ser a mesma coisa. Por vezes os acontecimentos conspiram para forçarem uma pessoa a fazer o que tem de ser feito. - A sua marcha lenta
conduziu-a de volta à secretária. - Não, já há muito que é tempo de eu sair daqui. Devo pedir-vos ajuda, contudo. Muito pouca, prometo-vos. Sou boa professora nas
matérias que se esperam de uma governanta. Se pudésseis ajudar-me a encontrar uma colocação, ser-vos-ia grata.
- com certeza que será possível. Conheço algumas famílias em Paris que...
- Preferiria Londres.
A rapidez e firmeza com que o disse avivou-lhe o instinto. Até onde iria a sua memória?
- Penso que posso conseguir melhores condições em Londres
- prosseguiu ela. - Vão pensar que sou francesa. Deve contar para alguma coisa.
Vão pensar que sou francesa. Sem dúvida que se lembrava do fundamental.
- Paris seria mais fácil.
- Tem de ser Londres. Se não me ajudardes, desenvencilhar-me-ei sozinha.
Ele imaginou-a a chegar a Londres sem proteçáo e sem orientação. Iria meter-se imediatamente em apuros. E acabaria por o meter a ele em apuros.
- Não posso permiti-lo.
- O que vós permitis não é relevante, msieur. Estou nesta escola por caridade vossa, sei disso. Mas encontro-me numa idade em que, na verdade, vós não tendes mais
obrigações para comigo, nem eu para convosco. Se as circunstâncias me impuseram que tivesse coragem, corajosa serei. Tenho de ir ao encontro da minha vida e tenciono
ir para Londres.
Tenho de ir ao encontro da minha vida. Ele ficou em estado de alerta.
Como acontecia com frequência, produziu-se um estado de agilidade mental que imediatamente clarificou certas coisas. A mente dele transformou facilmente uma complicação
imprevista numa oportunidade. Oportunidade esta que poderia mitigar a fome e dar a demanda por concluída.
Estava ali de olhos nele, aguardando a sua resposta. Orgulhosa. Determinada. Mas nem de perto tão confiante como queria fazer parecer. Nem de perto tão corajosa.
Por vezes os acontecimentos conspiram para forçarem uma pessoa afazer o que tem de ser feito.
Não podia ser mais verdadeiro.
Até onde iria a sua memória? Não teria importância. E se, como ele suspeitava, ela tivesse esperança de ficar a saber tudo, tudo estaria acabado antes de ela sequer
se aproximar. Entretanto, ele podia tê-la debaixo de olho.
Ele estudou-lhe a constituição ágil e o corpo que pouco se distinguia por baixo do vestido largo. Imaginou-a num vestido creme
da última moda. Algo cativante e modesto ao mesmo tempo. O cabelo para cima e uma única jóia fina no pescoço, com aqueles olhos contemplativos a espreitar daquele
rosto de porcelana, natural. Encantadora, mas jovem. Fresca e vulnerável, mas sem ser uma jovenzinha tonta.
Sim, serviria. Esplendidamente, na verdade.
- Falarei com Madame Leblanc e explicarei que partireis hoje comigo. Discutiremos os pormenores da procura de uma colocação para vós quando chegarmos a Paris.
Diane dobrou as suas poucas peças de roupa e acomodou-as na mala que Monsieur St. John tinha mandado buscar à sua carruagem. Eram todas demasiado infantis para uma
governanta. Teria de arranjar uma maneira de o retificar.
Da gaveta pequena da sua minúscula escrivaninha retirou uma Bíblia Inglesa. Era um dos dois vestígios da sua vida antes daquela escola.
Enfiou a mão até mesmo ao fundo da gaveta e agarrou num lenço amarfanhado. Pegou nele e o seu conteúdo caiu em cima da escrivaninha. Um anel de ouro rolou e rolou
antes de se deter, direito. Um pedacinho de papel tombou ao lado dele.
Usara o anel no polegar durante vários anos, todas as noites, quando ia dormir. Depois chegara o dia em que esta ténue ligação com as memórias de infância falhara
e elas se haviam tornado fragmentos dispersos de imagens e sensações. O ritual de colocar o anel já não tinha sentido e ela deixara de o fazer.
Não tinha de ler as palavras escritas no papel. Eram do Homem Diabo, o único bilhete que alguma vez lhe enviara. Viera com o anel, certo ano, na festa da Natividade,
explicando que o anel pertencera ao pai dela e que ele se lembrara que ela poderia gostar de o ter. Ela duvidava que ele se lembrasse sequer de ter tido este gesto.
Havia sido há anos. Talvez a segunda ou terceira Natividade que ela ali passara. Não conseguia lembrar-se exatamente.
Enfiou o anel e o papel na mala. Teria de perguntar a Daniel St. John como tinha ficado na posse dele.
E dela.
A porta do seu quarto abriu-se e Madame Leblanc entrou. com passos decididos, avançou até à janela e espreitou para fora com; olhos críticos. - Tomai o vosso tempo.
Deixai-o esperar.
- Se esperar demasiado tempo talvez parta sem mim.
- Ele não partirá sem vós. Confiai nesta velha se ela vo-lo diz. Não vivo em ignorância do mundo, nem dos homens. - Voltou-se abruptamente e apontou para a cama.
- Sentai-vos.
Diane sentou-se obedientemente. Madame Leblanc começou a andar para a frente e para trás diante dela, abanando a cabeça.
- Às vezes isto acontece. Uma das minhas órfãs sai para se tornar governanta ou viver com um parente, mas eu sei que há mais. Pressinto-o. Que Nossa Senhora me perdoe,
não é de bom grado que dou o conselho que estou prestes a dar, mas não estaria a cumprir o meu dever para convosco se não o fizesse.
- Não é necessário, madame. A vossa formação foi mais do que completa.
- Nisto não. - Cruzou os braços sobre o peito substancial. - Propriedade e jóias, na vossa posse. É isso que tendes de exigir. Legalmente na vossa posse, para não
haver equívocos.
- Ele não tem por que ser tão generoso.
- Mas terá. Deu-se conta que vós já tendes idade suficiente... e aquele livro. Agora ele julga que estais recetiva. Devia ter pensado nisso, mas com a desilusão
do vosso pecado não o fiz.
- Afligis-vos por nada. Ele concordou em ajudar-me a procurar uma colocação e eu ficarei bem.
- Ele tenciona arranjar-vos trabalho, Diane, mas não aquele que pensais. Quer-vos para amante. - O seu olhar desceu, severo, mas a sua expressão suavizou-se imediatamente.
- Olhais para mim com um ar tão perdido? Nem sequer sabeis o que isso quer dizer, pois não?
Diane acreditava que tinha um ar perdido, pois não tinha grande certeza do significado daquilo, a não ser que era pecado.
- O livro, Diane. As imagens terríveis do livro. Aqueles são os deveres de uma amante, e sem o benefício do casamento.
Lembrou-se das estranhas gravuras. Sentiu o rosto ficar quente.
- Decerto estais equivocada.
- Estou há mais de cinquenta anos nesta Terra. Sei reconhecer o interesse pecaminoso de um homem quando o vejo. Ah, os seus modos descontraídos escondem-no melhor
do que a maioria, mas ouvi o que agora vos digo. Tendes de proteger o vosso futuro. Propriedade e jóias. Fazei-o pagar caro por cada liberdade que lhe concederdes.
Diane escorraçou as imagens do seu pensamento. Madame podia ter cinquenta anos, mas não tinham sido muito vividos, e ela falava sempre mal dos homens. - Tenho a
certeza de que estais enganada.
- Ele é rico. Irá seduzir-vos com luxos e gentilezas, e depois...
Diane levantou-se. - Agradeço a vossa preocupação, mas a minha associação com Monsieur St. John será breve.
Madame Leblanc ajudou-a a fechar a mala. - Não vos esqueçais de rezar as vossas orações. Todas as noites. Talvez aí, quando a proposta chegar... Talvez.
Diane pegou na mala. Não estava muito pesada. Mesmo assim, carregá-la para fora do quarto não ia ser fácil. Nem deixar Madame Leblanc, apesar de toda a sua rigidez.
- Agradeço-vos o vosso cuidado, madame. Impulsivamente, a formidável mulher envolveu-a num abraço. Nunca tinha feito aquilo. Ninguém tinha, tanto quanto Diane
conseguia lembrar-se. Evocava sensações indefinidas, da segurança e acolhimento de outros abraços, há muito tempo.
Deixou-a sem respiração. O calor e a intimidade surpreenderam-na e emocionaram-na tanto que lhe vieram lágrimas aos olhos. O contacto humano mitigava o estranho
vazio que trazia no coração, mas também o fazia doer.
Subitamente, as pequenas crueldades ao longo dos anos não
pareciam muito importantes. Madame fora o que tivera de mais próximo a uma mãe.
O momento de ternura deu coragem a Diane. Virou a cabeça e falou ao ouvido da outra mulher. - O livro. Roubei-o a Madame Oiseau. Ela mostra-o às raparigas.
Afastou-se e dirigiu-se rapidamente para a porta, conseguindo apenas vislumbrar a expressão de choque no rosto de Madame Leblanc.
Madame Oiseau esperava por ela no andar de baixo. Enfiou um braço à volta da cintura de Diane e conduziu-a para a porta.
- Subestimei-vos. - Era toda sorrisos, como se de repente se tivessem transformado em grandes amigas. - Quem diria que existia uma mente tão astuta a trabalhar por
trás de modos tão recatados. bom trabalho, Diane.
- Penso que agora me sobrestimais.
- Dificilmente. Mais sois jovem de mais para apreciar a vitória que vos aguarda. Ignorante de mais para colher tudo o que podeis. Deveis escrever-me para vos aconselhar.
Podemos ajudar-nos uma à outra e tornar-nos ricas com a vossa esperteza.
- Não quero a vossa ajuda.
- Continuais orgulhosa. Demasiado orgulhosa para uma órfã sem passado. Demasiado orgulhosa para os mercadores burgueses e advogados para os quais a maior parte das
outras foi.
Saíram para o pórtico. Um vento agreste levantava-lhes a beira das capas de musselina.
Daniel St. John estava descontraidamente encostado à carruagem, com os olhos fixos no chão.
Madame Oiseau inclinou a cabeça. - Um homem excitante. Talvez perigoso. Não nasceu na riqueza. Por baixo daquela atitude elegante e descontraída brota vitalidade
de mais para tal. Conseguiu ser aceite nos melhores círculos, porém. As mulheres permiti-lo-iam,
para o manter por perto, e até os homens ficariam intrigados. Os olhos dela estreitaram-se. - Fazei-o esperar.
Primeiro Madame Leblanc e agora Madame Oiseau. - Visto que já passei a porta é demasiado tarde para estar com isso agora.
Madame Oiseau riu-se, o que fez com que aqueles olhos diabólicos se erguessem e pousassem nelas.
- Talvez não preciseis de grandes conselhos - ponderou Madame. - A vossa ignorância dará conta do recado igualmente bem.
A um gesto de Daniel, um lacaio aproximou-se e pegou na mala. Madame Oiseau recuou até à porta. - Lembrai-vos do que vos disse. Escrevei-me.
O lacaio abriu a porta da carruagem. Daniel estendeu o braço, para a ajudar a entrar. Não parecia demasiado perigoso. Na verdade, neste momento, com a brisa a revolver-lhe
o cabelo curto e escuro, parecia bastante jovem, e quase afável.
Quem sou eu? Como vim parar aqui? Onde está a minha família?
Pelos três degraus de pedra abaixo, lá foi, com o coração a bater de apreensão. Atravessou o único chão firme que conhecia, em direcão a um mar de incerteza.
Lá, o Homem Diabo aguardava que ela se reunisse a ele.

CAPÍTULO 3
A morada citadina parisiense devia tê-la surpreendido mais. Foi esta a primeira reação de Diane ao ver a fachada bege de pedra e as pilastras elegantes, tão diferentes
do frio mamarracho de calcário que era a sua escola. Devia ter-se sentido minúscula. Estranhamente, acabou por lhe ser reconfortante.
Talvez fosse porque chegar àquela porta significava já não ter de dividir a carruagem com Daniel St. John.
Havia sido uma viagem longa, silenciosa. Ele não fizera muitas tentativas de conversa e ela, nervosa, não tinha feito perguntas. A maior parte do tempo, o seu olhar
vivo estivera fixo na paisagem em movimento, a sua mente claramente ocupada com alguma coisa.
Por várias vezes ela olhara na sua direção e deparara com ele a observá-la de uma forma que a fez pensar se a distração dele teria alguma coisa a ver com ela. A
carruagem tornava-se subitamente muito pequena durante aquelas inspeções. Pior, era-lhe impossível desviar o olhar. Ele provavelmente considerou insolente da parte
dela que o observasse tão abertamente como ele a observava a ela.
A casa estava situada entre outras casas igualmente sóbrias e delicadas no seu estilo clássico. A rua inteira estava ladeada por edifícios daqueles. Toda aquela
parte da cidade.
Daniel reuniu alguns papéis para os quais havia olhado esporadicamente e voltou a enfiá-los numa pasta. O olhar dela deparou com uma capa vermelha, fina e familiar,
por baixo das folhas arrumadas.
- Roubaste-lo. - A surpresa fez com que as palavras lhe saíssem de chofre.
- É uma forma peculiar de quebrardes o silêncio, uma acusação de roubo. Madame não me avisou que éreis impertinente.
- O silêncio não foi só da minha parte. Vós também não me dirigistes a palavra desde que saímos da escola.
- Passei a maior parte da viagem a decidir o que fazer convosco.
- Ides procurar-me uma colocação de governanta, recordais-vos?
- Claro. De governanta. Agora, sobre a vossa acusação, o que roubei eu?
Ela indicou a pasta. - O livro. Ainda o tendes.
- Ah, o livro. Parece ter saído comigo da escola. Um descuido acidental, não vos parece? Suspeito que, com o tempo, acabasse por desaparecer do armário de Madame
Leblanc, regressando às mãos da outra.
- Fizeste-lo para proteger as outras raparigas, é o que dizeis. Foi muito gentil da vossa parte. Adverti Madame Leblanc acerca de Madame Oiseau, mas não me parece
que ela tenha acreditado em mim.
- Uma vez que Madame Oiseau é quem está ao lado dela agora, é provável que não.
- Devíeis queimá-lo. Não tem valor nem utilidade para ninguém.
- Agradeço-vos a vossa orientação, mas pergunto-me se tereis avaliado corretamente o seu valor.
Tirou o fino volume da pasta.
Parecia que ia abri-lo, mesmo à frente dela.
- Já parámos, nísieur. Não devíamos sair?
- Um minuto. Primeiro temos de decidir o destino a dar a este livro - informou. - A encadernação é couro do melhor. As gravuras
estão coladas nas pontas. Está bem feito e não ficou barato. É um erro dizer que não tem valor, penso eu.
- Não me referia à encadernação e o resto, mas às imagens.
- Pode ser que algumas páginas tenham mapas ou poemas, em vez de gravuras eróticas. Queimá-lo pode ser precipitado. - Abriu-o, para verificar.
A ideia de examinar aquelas páginas, ali, naquele preciso momento, quase de joelhos encostados aos dele dentro da carruagem, aterrorizava-a. - Asseguro-vos que contém
apenas daquelas imagens.
- A sério? Como sabeis?
Ela sentiu um rubor assomar-lhe ao rosto.
- Para saber com certeza que contém apenas imagens, vós teríeis de o ter folheado página a página, antes de tentar atirá-lo ao lume. - Ergueu os olhos para ela.
- Foi o que fizestes?
O rosto dela escaldava. Ela tinha folheado cada página, com um misto de curiosidade e choque e horrível fascinação. Foi o que fizestes? - repetiu ele.
- Claro que não.
Saiu-lhe aquele sorriso jocoso. - É um alívio ouvi-lo. Se tivésseis, poderia arrepender-me de ter interrompido as vergastadas, lá na escola.
O que teve o efeito de a fazer pensar no castigo, e no que ele tinha visto. Lembrou-se subitamente que uma das imagens continha uma mulher numa pose algo semelhante.
Ela queria desaparecer pelo chão adentro. O facto de ele estar a observar a reação dela com interesse não ajudava.
E aquele livro... Agora ele julga que estais recetiva.
Oh, Céus!
Nesse preciso momento, um lacaio abriu a porta da carruagem. Daniel saiu e ajudou-a a sair.
Não tinha reparado que Paris tinha hospedarias tão elegantes
- disse ela.
- Tem, mas esta não é uma delas. É a minha casa. - Começou a encaminhar-se para a casa.
Ela ergueu os olhos para a fachada bege, depois para o Homem Diabo, e depois para a sua mala, que estava nas mãos do lacaio. A conversa sugestiva sobre o livro das
gravuras atravessou-lhe o espírito e colidiu com memórias das advertências de Madame Leblanc.
Ocorreu-lhe que nunca pensara muito bem nos pormenores desta aventura.
Ele parou e olhou para trás, curioso, para a jovem ali parada, como se tivesse ganhado raízes.
- Eu, bem... ha... pensei que ficaria numa pensão. - Na verdade, ela não havia pensado minimamente sobre o sítio onde ia ficar, mas permitir-se viver nesta casa
afigurava-se-lhe agora algo muito estúpido.
- Não é necessário. Aqui há quartos mais do que suficientes.
- Sim. Claro. Bem vejo. No entanto, sentirei que imponho a minha presença.
- Disparate. Além disso, enfiar-vos num quartinho minúsculo de residencial ou hotel seria inconveniente para nós. Vinde comigo.
Inconveniente?
Muito nervosa, agora, seguiu-o. Juntos, subiram os oito degraus brancos até à porta da frente.
- A bem da simplicidade, diremos aos criados e aos meus amigos que sois uma prima do campo, que está de visita.
- E sou? Uma prima? Uma vossa familiar? -Não.
Não era muito, mas era um começo. Pelo menos agora sabia o que não lhe era.
Naquelas circunstâncias, porém, a ausência de um laço de sangue não era boa notícia. Como não o era a noção de que ele havia engendrado uma mentira para explicar
a sua presença na casa dele.
A porta abriu-se. A casa era convidativa. Diane entrou, ponderando se se despojava da sua inocência ao fazê-lo.
Daniel deixou a sua capa nas mãos de um criado que aguardava.
- Onde está Mademoiselle Jeanette?
- Na sala de estar sul, senhor.
Daniel conduziu-a para o patamar arredondado de uma escadaria de mármore. - vou apresentar-vos à minha irmã.
Invadiu-a uma sensação de alívio. Se as intenções de Daniel St. John não fossem honradas, certamente que nunca a traria para aqui, para onde a sua irmã também vivia.
Sentiu-se uma rainha ao subir aquela escadaria, cuja largura e elegância faziam com que uma pessoa se esticasse e. endireitasse mais. Os seus pés enterravam-se silenciosamente
numa faixa espessa de carpete florida, discreta, que se estendia pelo seu centro.
A sala de estar maravilhou-a. Entrar nela era como entrar num recanto do Céu.
Deslumbrada, assimilou-a numa série de impressões fugazes. Não era quadrada, mas sim octogonal. Toda clara e suave. Grandes espelhos em quatro paredes refletiam
a luz que entrava, abundante, por uma única janela comprida. Gavinhas douradas emolduravam-nos e serpenteavam pela cornija como outras tantas delicadas videiras.
Um quadro oval no teto alto estava posicionado entre caixotões. Mobiliário discreto, elegante, pequeno para a escala e decorado em tons pastel, preenchia o espaço.
Uma mulher incrivelmente bela, de cerca de quarenta anos, com cabelo preto e pele branca, estava sentada numa cadeira perto de uma lareira minúscula.
Não era só uma irmã; era uma irmã mais velha. Uma mulher madura. Diane sentiu-se ainda mais tranquila.
Ao atravessar a sala, parecia a Diane que tinha nuvens sob os seus pés. Então teve um vislumbre de si própria nos espelhos e aterrou de imediato. A sua capa gasta,
touca de musselina e tranças parvas passaram quase indistintas, quatro vezes refletidas. Parecia uma camponesa nesta sala.
- Jeanette, esta é Diane Albret.
- Trouxeste-la convosco. - Não era uma pergunta, mas a inflexão da voz carregava um apontamento de surpresa.
- Foi necessário.
Jeanette pegou na mão de Diane e indicou-lhe que se sentasse num banco estofado à sua beira. - Sois muito bem-vinda, querida.
- Agradeço-vos mademoiselle. Não imporei a minha presença durante muito tempo. Msieur ofereceu-se para me ajudar a encontrar um lugar como governanta em Londres.
Daniel instalou-se numa cadeira, que imediatamente acolheu o seu corpo ágil e postura descontraída, sem dúvida porque sabia que de nada lhe servia resistir. E ele
dominava o compartimento inteiro dessa mesma maneira. Até as gavinhas douradas pareciam refrear a sua exuberância por deferência.
- Na realidade, só daqui a várias semanas estarei de regresso a Londres, por isso esses planos terão de ser adiados. Espero que não vos importeis demasiado. - Falou
distraidamente, enquanto arranjava o punho do casaco. Atrasar os planos dela era a menor das suas preocupações, e, quer ela se importasse ou não, de somenos importância.
- Entretanto, a minha irmã acompanhar-vos-á, e tereis oportunidade de visitar esta cidade. Paris não é um sítio por onde alguém se limite a passar, a não ser que
tenha assuntos urgentes a tratar noutro lado.
- Não era minha intenção solicitar a vossa hospitalidade durante tanto tempo.
- Não será nenhuma imposição, pois não Jeanette? Vós tereis prazer em levá-la a passear, não é verdade? Usufruí da vossa estadia connosco. O tédio de uma vida de
governanta aguarda-vos. Depois de anos naquela escola, deveis a vós própria um interregno prazeroso antes de vos acorrentardes a uma existência tão miserável.
Ele fazia o futuro que ela escolhera parecer terrível. Não era possível rebater o seu raciocínio.
Especialmente se o único argumento em que ela conseguia pensar não fazia sentido. Era difícil explicar o que ela própria não compreendia. Mas aquela longa e silenciosa
viagem de carruagem imbuiu a associação dos dois de uma certa... intimidade. A conversa sobre o livro aumentou a familiaridade e acrescentou uma nota de perigo.
Fê-la sentir-se desconfortável na altura e, apesar da presença de
Jeanette na casa ser reconfortante, ainda surtia esse efeito. A ideia de passar semanas na casa de Daniel St. John perturbava-a.
Jeanette fez deslizar um longo xaile de seda para o colo. - Daniel, chamai Paul. A nossa convidada parece muito cansada. Eu levo-a para o quarto dela para ela poder
descansar e refrescar-se.
O tal Paul revelou-se alto e forte como uma torre. A elegância da sua libré azul de criado não lograva esconder a sua solidez térrea. O cabelo ruivo, penteado com
aprumo, não suavizava as suas feições vincadas.
Cuidadosamente, com uma gentileza que parecia peculiar para a sua corpulência, enfiou os braços por baixo de Jeanette e ergueu-se, segurando-a como a um bebé.
- Para o quarto chinês, Paul. Diane, vinde connosco, por favor. Subiram outro lanço de escadas, não tão grandioso mas, ainda
assim, impressionante. Uma fileira de janelas altas no último patamar dava para um jardim. Pararam diante de uma porta grande e pesada que Paul abriu com facilidade,
apesar do seu fardo.
O quarto cheirava a cedro. Todo decorado a azul e branco, lembrava a Diane os vasos de porcelana expostos nas melhores montras de Rouen. Tinham muitas peças semelhantes,
só que estas pareciam ser muito melhores. Soube sem que ninguém lhe dissesse que eram muito preciosas e que se partisse alguma preferiria morrer.
Paul instalou Jeanette numa cadeira à lareira e baixou-se para avivar o lume. A seguir retirou-se, posicionando-se do lado de fora da porta aberta.
- Como podeis ver, sou aleijada - disse Jeanette. - Resultado de um ferimento, há alguns anos. Graças à força de Paul, porém, não preciso de ser uma reclusa inválida.
Todos estão habituados a vê-lo transportar-me e não vos causará embaraço.
- Será a minha presença que atrairá olhares curiosos. O vosso irmão disse que eu devo alegar ser vossa prima. Os vossos amigos ficarão chocados ao ver que têm parentes
tão pobres e de tão pouca educação.
Jeanette chamou-a para si e inspecionou-a mais minuciosamente do que havia feito no andar de baixo. - Não é assim tão pouca. Aquela escola ensinou-vos o básico e
rapidamente aprendereis o resto. A vossa aparência, no entanto... Direi à minha criada que venha fazer alguma coisa a esse cabelo antes da refeição da noite. Começaremos
a tratar do resto amanhã.
- Não há necessidade. Por favor. Ficarei nesta casa até chegar a altura de viajar para Inglaterra.
- O meu irmão tem negócios a tratar aqui. Apesar de esta ser uma das suas casas, ele faz a vida dele em Inglaterra e as suas visitas aqui são sempre muito preenchidas.
Se andardes sempre pelos cantos, ele não gostará de ser lembrado de que vos causa transtorno. O sorriso dela sugeria que desagradar a Daniel St. John não era a opção
mais avisada.
Entrou uma criada com a mala.
- vou deixar-vos descansar. A minha moça virá mais tarde, para vos ajudar a desfazer a mala e a vestir. Mais uma vez, dou-vos as boas-vindas. Fico satisfeita que
tenhais vindo.
Paul levou-a. A porta fechou-se. Diane sentou-se na cadeira que Jeanette acabava de deixar e aproximou-a da lareira. O calor abundante que emanava do fogo era delicioso.
Ficou de olhos fixos nas chamas. Não se atrevia a olhar para mais sítio nenhum. Era demasiado, aquele quarto. Já via os vasos de porcelana partidos. A frontaria
da casa não a deixara muito impressionada, mas o interior sim, sem dúvida.
Várias semanas, dissera Daniel. Talvez mais, deixara entrever Jeanette. E a seguir uma vida de tédio.
Ela não tinha a certeza de que experimentar este luxo fosse uma boa ideia. Estar no meio de tanta riqueza podia tornar o que existira antes, e o que existiria depois,
uma fonte de descontentamento.
Irá seduzir-vos com luxos e gentilezas, e depois...
Ridículo. Um homem destes não tinha necessidade nenhuma de alguém como ela. Nem as semanas seguintes seriam produto da
sua generosidade. Simplesmente não lhe era conveniente viajar para Inglaterra naquele momento.
O calor do fogo abriu caminho até aos seus ossos, anulando o arrepio que ela conhecera durante a maior parte da vida. Fechou os olhos e apreciou a sensação. O calor
envolveu-a como braços, reconfortando-a.
Veio-lhe subitamente uma memória, de outra longa viagem de carruagem, interrompida por uma travessia de barco. De medo e de solidão a subjugá-la finalmente durante
uma noite interminável, com ela encolhida ao canto de um espaço negro e oscilante. De braços que lhe pegaram no escuro e a puxaram para si, chorando, num casaco
de lã.
Talvez aquela memória escondida de infância explicasse o à-vontade de hoje na carruagem.
Não, não completamente. Por uma razão: ela já não era uma criança e ele não a tratava nem lhe falava como tal. Foi aquela mudança abrupta que a fez sentir-se desconfortável
com ele. Ainda assim, a memória aliviou um pouco a sua apreensão.
Deixou-se adormecer ao encontro da imagem de um jardim repleto de vinhas douradas.
Estava sentada na cadeira em frente à lareira, à espera de ser chamada para a refeição. O cabelo parecia-lhe um bocadinho instável, assim encavalitado no cimo da
cabeça. Depois de a criada terminar, o seu reflexo mostrou-lhe uma estranha, alguém mais velho do que a imagem que tinha de si própria.
A porta abriu-se, mas não se tratava de um criado. Era Daniel.
- Jeanette pediu-me para vir ver como estáveis, para lhe poupar a. subida. Estais confortável aqui? Estais ambientada? Ajudaram-vos a. arrumar as vossas coisas?
Ela ergueu-se e colocou-se de frente para ele. - Na verdade, perguntei-me se haveria outro quarto.
- Este não é do vosso agrado?
- Preferia algo mais simples. Mais pequeno. Não estou habituada a quartos assim.
- Os mais pequenos estão no andar de cima e são utilizados pelos criados. Dificilmente vos poremos lá.
- Não vejo porquê.
- Porque não sois uma criada. Sois uma convidada.
Ele entrou no quarto e olhou em redor, curioso, como se verificasse novamente as suas proporções e a sua opulência. A sua expressão tornou-se compreensiva.
Dirigiu-se para uma mesa perto da cama de dossel, onde estava um daqueles vasos tão bonitos. - Chegai aqui.
Ela não se mexeu. Não conseguia, e não era só porque o quarto a intimidava.
O espaço não era tão grande que uma pessoa pudesse esquecer-se de que era um quarto de dormir. O quarto dela, e ele estava lá dentro e não devia estar de todo, mesmo
tratando-se da casa dele. Ninguém lhe ensinara esta lição. Mas ela sabia-o. Uma aceleração peculiar do sangue, um movimento diferente no ar, uma acentuação da familiaridade
da carruagem - a presença dele produzia uma torrente de efeitos que a advertiam que não era
correto.
- Chegai aqui - repetiu ele, pegando no vaso precioso. Como ela não obedecesse, foi ele até ela. - Não podeis passar
as próximas semanas amarrada a essa lareira. Acabareis por ter de vos deslocar.
- Aqui está quentinho. É o único conforto que agradeço ou do qual necessito. Na verdade, é um luxo maravilhoso.
- Não havia lareira no vosso quarto da escola? Não, imagino que não. E as que houvesse noutras partes seriam pequenas. A Madame justificaria o desconforto como sendo
bom para a alma.
Ele estava junto dela, com o vaso despreocupadamente aninhado num braço. - Pegai nele.
Ela hesitou. Ele colocou-o nas mãos dela. Era muito mais leve do que ela esperava. Frágil.
-Agora, deixai-o cair.
Chocada, arregalou os olhos para ele.
- Deixai-o cair.
Ela olhou para os ladrilhos de cerâmica por baixo dos seus pés.
- Partirá.
- Deixai-o cair. -Não.
As mãos dele tomaram as dela. Ficaram ali um bocado, o calor das palmas dele envolvendo as mãos dela, a pele áspera dos seus dedos roçando-lhe os pulsos. O toque
fê-la sobressaltar-se. Uma onda profunda de intimidade desprendia-se desse contacto.
Ela olhou para ele, surpresa. Algo imperscrutável cintilava nos seus olhos, o que a deixava ainda mais sobressaltada.
Ficaram muito tempo com as mãos dele em concha por cima das dela e do vaso. Demasiado tempo. Ou talvez não tivesse sido mais do que um instante. Ela não sabia dizer.
A consciência que tinha dele e do contacto físico entre os dois enchia tão completamente os momentos que ela não tinha noção de quanto tempo havia passado.
Os dedos dele mexeram-se. Forçou as mãos dela a soltarem-se.
O vaso escorregou. Ela ficou a vê-lo, horrorizada, cair nos ladrilhos e estilhaçar-se.
- Agora já partistes um e não tendes de ter medo de o fazer outra vez. São apenas objetos, Diane. Objetos sem vida e sem emoção. Não têm valor a não ser o de nos
servir com a sua funcionalidade ou beleza. Só um tonto se deixa governar por eles.
Falou com suavidade e gentileza. Mais gentileza do que ela conseguia lembrar, como se partilhasse um segredo importante.
Ele ainda tinha as mãos dela nas dele, e a pressão dos seus polegares provocava estranhas pulsações nas palmas das suas mãos. Surgiu um novo brilho nos olhos dele
e as pulsações espalharam-se. Aos seus braços. Ao seu sangue. À sua respiração e à lareira e ao ar. Ao quarto todo.
Outro instante suspenso. Assombroso. Irresistível e confuso.
Um pouco assustador, mas tingido de uma excitação perigosa, como quando se olha para baixo, de uma grande altura.
Ele largou abruptamente as mãos dela, quebrando o feitiço. Rodou nos calcanhares e dirigiu-se para a porta. - Parti um todos os dias se precisardes. Desfazei o quarto
se vos convier. - A voz dele era áspera, fazendo-a perguntar-se se teria imaginado o que acabava de acontecer.
Ele deteve-se ao chegar à porta e olhou para trás. Um pequeno tremor daquela pulsação passou novamente para ela. Como um eco. Ou o chamamento de uma voz distante.
- As vossas intenções, Daniel. Gostaria de as ouvir agora.
- Dizei-lo num tom acusatório, Jeanette. Estou magoado.
- Magoar-vos não está ao alcance de ninguém.
- Talvez não, mas se estivesse, seria ao vosso.
Ela recuou. Reclinou-se na cadeira e o seu rosto perdeu a expressão severa. - Porque a trouxestes para aqui?
- Disse-vos, foi necessário. - Explicou o pequeno drama que tinha havido na escola e a descoberta da verdadeira idade de Diane.
- Suponho que nunca atentei a que os anos passam para ela tanto quanto para nós. E ela parece muito jovem, a não ser que observemos de perto.
- Talvez também tivésseis julgado conveniente não ver que ela estava crescida e que era necessário fazer alguma coisa com ela.
Ele ignorou o comentário. - De qualquer forma, ela estava a ganhar coragem para sair da escola. Seria apenas uma questão de tempo. Londres, disse. Para ir ao encontro
da vida dela.
- Oh, Céus.
- Exatamente.
O rosto de Jeanette estava desdobrado em cinco, o original multiplicado pelos espelhos. Ele não gostava desta sala de estar antiquada com a sua mobília frágil e
reflexos incessantes. Os seus gostos pessoais eram mais refreados, mas este era o reduto de Jeanette e ela
havia-o decorado para criar um mundo privado. Preenchera-o com a luz e a beleza da sua infância e ele não lhe levava a mal nem a despesa nem a opulência. Construir-lhe-ia
um palácio inteiro cheio de gavinhas douradas se isso escorraçasse a escuridão das suas memórias.
-Tencionais mante-la aqui para sempre? Ela pensa que vai para Londres.
- E irá, mais cedo ou mais tarde. Preciso apenas de algum tempo para tomar umas providências relativamente a Dupré primeiro. Depois posso voltar a minha atenção
para Inglaterra, e para Tyndale.
A cabeça escura de Jeanette inclinou-se para trás de surpresa. Havia preocupação a toldar-lhe os olhos verdes. - Daniel...
- Não vos preocupeis. E não interfirais.
Pensativa, compôs o longo xaile à volta dos ombros. Ele esperou enquanto ela analisava o pouco que sabia e depreendia o resto. Ele nunca lhe explicava grande coisa,
mas ela via sempre tudo.
- Ela é adorável - comentou. - Em bruto, mas isso facilmente tem remédio. Eu tratarei do assunto.
- Não puxeis demasiado o lustro. Obscurecerá o que está lá por natureza.
Ele não precisou de dizer mais nada. Ela compreenderia.
Aconchegada e satisfeita, com as longas pontas de seda do xaile mesmo no sítio certo, endireitou-se um pouco mais. - Passaram tantos anos que pensei que tivésseis
desistido. Que estivesse terminado. Mas se tomais providências relativamente a Gustave Dupré, imagino que não.
- Não está terminado.
- E quando voltais a vossa atenção para Inglaterra pensais ver uma forma de dar o assunto por concluído? Planeais tentar derrubar Andrew Tyndale? Não gosto disso.
Não quero isso. Ele é irmão de um conde. Não vale a pena o risco. Poderíeis perder tudo, até a vossa vida.
- Conquistei tudo o que tenho para poder dá-lo por concluído. Vale definitivamente o risco.
- Não quero que aconteça nada de mal a esta rapariga para meu benefício.
- Não se trata apenas de vós. Se acreditais nisso estais enganada e esquecestes demasiado.
- Não esqueço nada. Ainda assim...
- Disse-vos para não interferirdes. - Vislumbrou-se a próprio, olhos e rosto subitamente endurecidos, nos malditos espelhos. Forçou o rancor a aplacar. - Ela não
será lesada de forma nenhuma. Não o permitirei.
- Como sempre, estais muito seguro de vós. Talvez, como sempre, seja como planeais. Por isso coloquemos de parte as minhas preocupações mais abrangentes. Não me
inquietarei com elas até ter razão para o fazer. No entanto, a mulher em mim dá por si a interrogar-se também sobre algo muito mais pequeno e mais comezinho.
Jeanette raramente se preocupava com coisas pequenas e comezinhas. Ele atendia a que ela já não tivesse de o fazer. - O que é?
- Pedistes-me para tomar conta dela. Ela será responsabilidade minha e vós sois um sedutor lendário. Por conseguinte, o dever obriga-me a repetir a minha primeira
pergunta, mas neste contexto mais pequeno e mais comezinho. Quais são as vossas intenções?
Ele riu-se, para indicar que a pergunta era completamente absurda.
Ela não reagiu. Conhecia-o demasiado bem e provavelmente vira que não era de todo absurda.
- Ela tem os olhos do pai. Julgais que conseguiria querê-la, tendo isso presente? - Fora o que dissera várias vezes a si mesmo durante aquela longa viagem de carruagem.
Exceto algumas vezes, quando ela olhava para ele daquela maneira firme, frontal, e ele se esquecia de ver a semelhança durante largo tempo.
Como agora mesmo, lá em cima no quarto chinês.
- Não é muito apaziguador - replicou Jeanette. - Mas se planeais aquilo que penso, precisareis dela inocente. Isso deverá travar-vos, caso alguma vez vos sintais
tentado.
- Agora magoais-me verdadeiramente. Não corrompo jovens.
- Há coisas que nem vós conseguis planear, Daniel. Coisas que nem vós conseguis controlar.
- Talvez, mas os meus apetites não estão entre elas. Não sou completamente diabólico. - Levantou-se, preparando-se para sair, aborrecido com as insinuações dela.
Que ele tivesse de facto sido recentemente comandado por algo difícil de controlar não lhe melhorava a disposição.
Ela riu-se. Os espelhos mostravam-nos de frente um para o outro, ela abanando a cabeça, divertida, e ele a olhar para baixo, uma torre alta e sombria maculando este
pequeno e luminoso mundo pastel.
- Ah, Daniel - disse ela com um suspiro. - Não estou a insinuar que sois diabólico. Estou a sugerir que sois um homem normal. Mas quiçá este seja um insulto maior.

CAPÍTULO 4
Gustave Dupré sacou dois tomos das suas prateleiras e colocou-os cuidadosamente na sua secretária, posicionando-os e abrindo-os de forma a criar uma disposição aleatória
que testemunhasse desorganização académica. Era importante que certo tipo de visita percebesse que este se tratava do escritório de um homem ocupado cujo intelecto
evoluído não gostava de distrações de natureza mundana.
Neste momento aguardava uma visita assim.
Olhava com ternura as muitas encadernações de pele nas suas prateleiras de mogno enquanto procurava o volume seguinte. Era uma biblioteca científica sem igual, a
inveja de todos os que o conheciam. Não viera Fourier em pessoa pedir-lhe livros emprestados? Tinha gostado de o fazer esperar só um bocadinho antes de o receber,
especialmente atendendo a que tinha sido Fourier quem, há tantos anos, encontrara a falha naquela prova matemática com que Gustave esperara garantir fama.
Sim, ele comprazera-se em humilhar Fourier. Só um bocadinho, claro. Eram irmãos de armas agora na ciência, iguais em estatuto e reputação. Outra prova garantira-o
a Gustave, uma prova que nem Fourier conseguira minar.
Adrian, o seu novo secretário, entrou na biblioteca. - A carruagem dele está aqui.
Gustave acomodou-se na cadeira por trás da secretária. - Trazei-o quando ele chegar.
- Quereis que fique?
A impertinência deixou Gustave arrepiado. Adrian atrevia-se a sugerir que ele, Gustave Dupré, precisava do conselho de um rapazola acabado de sair da universidade?
Se não tivessem sido tantos os filhos da França mortos em combate, ele não se teria visto forçado a recorrer a este arrivista inglês. Na semana anterior, o rapazote
chegara a ter o desplante de corrigir o latim que Gustave usara num tratado. Desde então, Gustave detetou uma falta de deferência. O que era uma insolência, visto
que Adrian era de sangue duvidoso e tinha a aparência de um cão de rua. O rapaz tinha sorte em ter sequer colocação, quanto mais a de secretário de um dos maiores
cientistas do Continente.
Por outro lado, o visitante fizera referência a textos estrangeiros. Sem dúvida que uma pessoa daquelas consideraria o latim uma língua estrangeira.
- Podeis ficar. Talvez aprendais alguma coisa. - A sua escrita em latim podia ter algumas escorregadelas, mas a leitura era inigualável. Talvez tivesse oportunidade
de pôr o secretário no lugar dele.
Adrian saiu e regressou logo, transportando três livros encadernados. Um homem alto, de cerca de trinta anos, entrou atrás dele.
Daniel St. John aceitou as boas-vindas de Gustave e sentou-se na cadeira ao lado da secretária. Adrian pousou a sua carga e afastou-se para junto da parede.
Gustave examinou a sua visita. Para um homem que tinha feito fortuna no comércio, St. John estava muito apresentável e ostentava uma dignidade arrogante. bom, o
dinheiro podia fazer isso, até certo ponto, tal como os estudos. Já ouvira falar de St. John, mas nunca se tinham encontrado.
- Foi generoso da vossa parte receber-me - iniciou St. John.
- A vossa carta, com a descrição daqueles livros raros, intrigou-me. Duvido que resulte em alguma coisa, mas decidi que vale a pena olhar para eles. Dizei-me onde
os encontrastes.
- Um dos meus barcos esteve no Mediterrâneo Oriental. O capitão, como favor ao sultão turco, concordou em proporcionar a travessia para o Egito a um membro da corte
real. Infelizmente, o ministro morreu a bordo. Os livros foram encontrados entre os seus pertences.
E Daniel St. John não procurara nem devolvê-los à família do passageiro nem ao sultão. Não admirava que os livros lhe estivessem a ser oferecidos em privado e com
discrição.
- Ouvi falar na vossa biblioteca - prosseguiu St. John. - E apesar de eu não fazer a mínima ideia do que se trata, o livro de cima parece abordar algo científico.
- Levantou a capa do volume mais fino. - Vede. Tem desenhos e números; não são só palavras.
- Não é um livro impresso. É um manuscrito.
- Sim. Não o referi? Não referira. Que idiota.
Gustave aproximou o livro de si. A escrita não era latim, mas sim árabe. Raios, ele não sabia nada de árabe.
Estudou as fórmulas matemáticas e as imagens. Folheou o livro.
Uma imagem minúscula a um canto chamou-lhe a atenção. Mostrava filas de cilindros, ligados por linhas. Bem, aquilo parecia-lhe familiar. O sangue começou a acelerar
por razões que ele não sabia nomear. Lembrava-lhe a maneira como se sentira quando estava próximo da conclusão daquela malfadada prova.
Forçou uma expressão neutra. Não lhe seria nada benéfico revelar o seu interesse. St. John provavelmente pediria uma fortuna por algo que alguém quisesse verdadeiramente.
O seu secretário insolente esticou o pescoço para espreitar para o livro. Sentindo um assomo de generosidade docente, Gustave chamou-o.
- Árabe - disse Adrian, assombrado.
- Uma observação brilhante.
- Aprendi algumas coisa por mim próprio. - O dedo de Adrian deslocou-se até uma linha de rabiscos. - Consigo traduzir-vos parte disto.
Gustave fechou violentamente o livro, quase esmagando o dedo intruso. - Msieur St. John, teríeis a bondade de nos deixar a sós por um momento?
St. John retirou-se graciosamente. Quando a porta se fechou atrás dele, Gustave voltou-se para o empregado. - Não tenhais a presunção de me dar instruções. Nunca.
Especialmente na presença de outros. Empreguei-vos apesar da vossa história ambígua e de não terdes fortuna, mas há outros à espera para ocupar o vosso lugar.
- As minhas desculpas. Pensei apenas que podia ajudar se soubésseis sobre que era o manuscrito.
Gustave abriu o livro no ponto em que ficara. Aqueles cilindros.. porque lhe pareciam tão familiares?
Bem, de que servia ter um secretário se não rendia o dinheiro que pagávamos por ele? - Pronto - disse a Adrian. - Dizei-me o que tirais daqui.
De testa franzida, o jovem debruçou-se sobre os pontos e traços.
- Não me parece que seja apenas científico, mas também mecânico. Parece ter alguma coisa a ver com ferro.
O coração de Gustave deu um grande salto. Sentia o sangue a correr no couro cabeludo e por todos os membros. Ficou de olhos cravados nas páginas, virando-as uma
e outra vez.
De repente compreendeu o porquê daquele desenho lhe parecer familiar. Ele possuía outro manuscrito que continha uma imagem semelhante mas menos desenvolvida, e que
também falava de ferro. Conseguia vê-lo na prateleira de cima por trás dele, fino e gasto, há anos sem uso, cheio dos rabiscos ambíguos e incompletos de um homem
a quem o tempo rareava.
A excitação quase lhe rebentou o coração. Pareceu-lhe que ia desfalecer. Teve de se conter para não saltar e agarrar aquele velho manuscrito, para se certificar
de que estava certo.
Só se controlou porque Adrian estava ali. Iria necessitar da ajuda do secretário com o árabe, mas não podia deixar Adrian ficar a saber a real natureza deste texto.
Se ele estivesse certo, o nome Gustave Dupré seria imortalizado para todo o sempre.
Também se tornaria num dos homens mais ricos do mundo.
Um lume brando crepitava na lareira. Numa mesa ao lado da cama estava pousado um tabuleiro. Diane sentia o cheiro do cacau no vapor que saía da chávena. No seu terceiro
dia ali encontrara Daniel a beber daquela bebida no jardim e ele pressionara-a a provar um trago do fluido rico e espesso. Ele achara divertido o prazer que ela
retirara da bebida e desde então todas as manhãs lhe traziam uma chávena de cacau.
Um pequeno ritual instituíra-se no início de cada dia. Ela bebia o cacau enquanto o lume na lareira aquecia o quarto. Em seguida, a criada voltava e ajudava-a a
lavar-se e vestir-se. Descia então para a sala de pequeno-almoço, onde Jeanette ia ter com ela e conversavam sobre os planos para o dia. Daniel nunca lá estava.
Quando chegava a altura de ela sair do quarto, já ele tinha saído há muito para a cidade para fazer o que quer que fosse que fazia.
Havia manhãs em que o ritual se alterava um pouco. Se Jeanette estivesse demorada em descer, Diane ia dar um passeio. Ninguém lho proibira, mas de qualquer forma
ela esgueirava-se da casa pela porta da criadagem, e sentia-se muito audaz e madura passeando entre as multidões da cidade.
Pegou na chávena frágil e deixou-se envolver pela riqueza do aroma. Bebericou a substância agridoce.
Não teria dificuldade em acostumar-se a isto.
Contemplou o cacau. De uma cor rica, um sabor delicioso, muito caro. Deslizava, espesso, pela garganta, originando uma sensação de bem-estar. Tal como tantas outras
coisas nesta casa, era uma distração luxuosa e sensual.
Sim, podia acostumar-se a estas coisas, e quando assumisse a posição de governanta, o regresso das privações deixá-la-ia carente.
Atirou a roupa da cama para trás e saltou para o chão. Hoje náo ficaria deitada na cama como uma rainha à espera dos criados.
Arranjou-se ela própria e demorou muito menos do que demorava com a criada. Escovou o cabelo, prendeu-o num puxinho na nuca e examinou o efeito no espelho. Não era
muito elegante, mas serviria.
A sala do pequeno-almoço não estava vazia como ela esperara. A expectativa de se esgueirar para um passeio morreu ali.
Paul estava sentado à mesa numa postura muito descontraída para um criado. Ao seu lado, a terminar a refeição, estava a presença sombria de Daniel St. John.
A conversa deles chegou até ela enquanto atravessava a porta e se dirigia ao aparador.
- Tudo está no lugar - disse Daniel. - Devo saber hoje o momento exato de prosseguir. Está pronto?
- Só é necessário acrescentar os pormenores, logo que tenhais o desen...
Ela estava de costas para eles, mas sabia que a sua presença fora notada. Imaginou a mão de Daniel a erguer-se num gesto que interrompesse a frase.
Sentiu uns sons arranhados atrás dela. Serviu-se de pãezinhos e concedeu-se o luxo de um bolinho doce. Voltou-se, esperando encontrar a mesa deserta.
Não estava. Paul saíra, mas não Daniel.
Ele sujeitou-a a uma inspeção preguiçosa. O olhar dele demorou-se no seu cabelo o tempo exato para ela desejar tê-lo arranjado devidamente.
Ela náo podia ficar ali como uma criança apanhada a surripiar comida. Sentou-se à frente dele.
Ele serviu-lhe café de um grande bule de prata que estava na mesa. - As vossas visitas à cidade estão a ser do vosso agrado?
- Estais a ser bem tratada? Tendes alguma queixa? Estais a aprender as vossas lições?
O olhar dele recaiu então sobre ela muito diretamente.
- As perguntas. Da escola - explicou ela, demasiado consciente do embaraço que a atenção dele ainda provocava. Continuais a fazê-las, de certa forma.
- E estais a ser bem tratada?
A cadência deixou bem claro que falava agora do seu cuidado e tratamento.
- Muito bem. Também aprendo as minhas lições. E uma espécie de educação, o que a vossa irmã faz comigo, não é? As visitas a esta cidade fina e aos seus muitos lugares.
As lições de dança duas vezes por semana. As instruções gentis quanto ao comportamento. Até as muitas visitas a lojas são lições de gosto.
- Desagrada-vos?
- Só uma freira não gostaria. Serei a mais exímia e elegante governanta de Inglaterra.
- Um comportamento refinado só poderá aumentar as vossas probabilidades de colocação.
- Procurarei colocação junto de uma família endinheirada, não de um duque.
- bom, talvez consigais uma melhor agora.
Talvez, mas não serviria. Ela não tinha nascido num mundo tão elevado. As respostas que procurava, não conseguiria encontrá-las lá.
Vendo bem, ele podia nem sequer estar a referir-se a um lugar de governanta. Os avisos de Madame Leblanc não paravam de fazer eco na sua mente, quando atentava à
generosidade e à formação que dispensavam com ela. Concluíra que era um disparate, mas às vezes aquele homem olhava para ela de uma forma que a fazia recordar aquele
momento arrebatador no seu quarto no primeiro dia. Nada mudava na expressão dele, mas havia a sensação de uma centelha de tempo a expandir-se numa eternidade igualmente
magnética.
Sozinha com ele, ali, voltava a acontecer o mesmo.
Ela forçou-se a olhar para o prato, para quebrar aquele feitiço.
- Seja como for, por vezes ainda sinto que estou numa escola.
- Uma mais confortável, espero. Condescendei com a minha irmã. Ela nunca teve uma protegida antes e está a dar-lhe grande prazer.
Seria razão suficiente para colocar de parte as suas apreensões. Contudo, não conseguia afastar a ideia de que não era realmente a protegida de Jeanette, mas dele.
- Paul é inglês, não é? - perguntou, para desviar a conversa de si. - Quando entrei estavam ambos a falar inglês.
-É.
- E vós? Ele fala francês com sotaque, mas vós não.
- Sou um cidadão do mundo, mas sou francês de nascimento. Passei muitos anos entre pessoas que falavam inglês. Ambas as línguas me são naturais e provavelmente penso
em mim mais como inglês do que como francês nesta altura.
- Deve ter sido estranho durante a guerra.
- Passei pouco tempo num e noutro país durante a guerra. Geralmente estava nas índias Orientais ou no Oriente.
A maior parte do tempo. Mas não todo. Uma vez por ano regressava a França e visitava uma escola em Rouen. Ela duvidava que ele regressasse especificamente para aquilo.
A disponibilidade dele para falar sobre si próprio deu-lhe ânimo. Sentia curiosidade acerca dele há anos.
- O vosso nome. St. John. Madame sempre o pronunciou à francesa, Saint-Jean, mas uma vez vi-o escrito e era inglês.
- Fui abençoado com um nome que é muito adaptável.
- Também eu. Albret. Madame sempre o disse como Al-brey, mas eu sabia que ela estava enganada e que o "t" devia ouvir-se, porque sou inglesa.
- O que vos faz pensar assim?
O que a fazia ter tanta certeza daquilo? Não eram só os fragmentos de memórias antigas, e de atravessar as águas enquanto rapariga. Ela não podia jurar qual era
a língua que tinha sido falada naqueles nebulosos pedaços da sua vida. - Sonho em inglês.
- Os vossos sonhos não mentem. Sois inglesa, de facto. Faláveis inglês na escola?
- Madame era grande apoiante de Napoleáo e recusava-se a ouvir essa língua, mesmo como lição.
- Perdeste-lo, então? Exceto nos vossos sonhos? "Tenho uma Bíblia que está em inglês. Leio-a em voz alta todas
as noites.
- Claro, a Bíblia.
Ele pareceu recuar, como se a menção da única coisa que ela trouxera com ela para França tivesse aberto uma porta que ele queria manter fechada.
Ela continuou a insistir. Era a única oportunidade que ela tivera em duas semanas para fazer as suas perguntas. - Como foi isso, msieurí Como é que aconteceu, trazerdes-me
para França? Dizeis que não sois meu parente.
Ela não conseguiu obter resposta. Mal terminou de falar, Paul apareceu com Jeanette nos braços e Daniel voltou deliberadamente a atenção para a irmã.
Paul sentou Jeanette numa cadeira e preparou um prato para a sua senhora.
- Ficareis contente por saber que em breve tiraremos Diane de dentro daqueles sacos de batatas horrendos. A prova final é hoje comentou Jeanette.
Paul colocou o prato à frente dela. - Infelizmente, mademoiselle, teremos de adiar a excursão. Msieur solicitou que lhe fizesse um serviço - explicou. Jeanette lançou
ao irmão um olhar acutilante. - bom, pode esperar até outro dia.
- Não será necessário - afirmou Daniel. - Eu não tenho planos para a tarde. Acompanhar-vos-ei.
Ninguém pareceu surpreendido com a sugestão. Era óbvio que Daniel transportava a irmã pela cidade uma vez ou outra.
Desviando a atenção da sua refeição, Jeanette interveio. - O vosso cabelo, Diane. Que vo-lo arranjem para podermos ver bem como vos ficarão os vestidos.
Diane esquecera-se do cabelo. Pediu licença e retirou-se.
Daniel pôs-se de pé e juntou-se-lhe. Caminharam ambos pelo
corredor até à grandiosa escadaria. - A minha irmã é demasiado rigorosa. O vosso cabelo está um encanto assim mesmo.
Ela sentiu o coração aos pulos com o elogio, mesmo sendo uma mentira galante.
- Falaremos inglês daqui para a frente para voltardes a acostumar-vos. Precisareis dele quando voltardes a Londres - disse ele, passando para a língua dos seus sonhos.
Ela ficou contente com a prova de que a viagem para Londres não tinha sido esquecida. - Quando eu disse que sonhava em inglês vós parecestes compreender. Sonhais
em francês?
- Nem sempre. Contudo, há outras alturas em que os meus pensamentos são apenas franceses.
- Quais?
Haviam chegado a uma das portas do corredor e ele parou.
- Quando estou em perigo. Só me vem francês à cabeça nessas alturas.
A calma alusão ao perigo espantou-a. Ele falava como se fosse
comum ocorrer.
Ele abriu a porta. Ela entreviu um escritório de homem.
No olhar de Daniel surgiu uma expressão divertida, de quem se lembrava de alguma coisa. - E quando faço amor. Agora que penso nisso, é sempre em francês.
- Demasiada renda, Jeanette. Dizei-lhes que tirem essa tralha daí.
- Se continuardes assim, Daniel, será preciso mais uma semana até ela poder sair de casa à noite.
Diane estava em exposição na saleta da modista, no Falais Royale, envolta em seda violeta-escura. Podia até ter achado graça ao espírito fraterno que aquela querela
revelava, se não fosse ela a boneca pela qual lutavam.
Era assim que se sentia. Uma boneca a ser vestida. Não uma boneca fina, com rosto e mãos de porcelana como convinha àqueles
vestidos, mas uma simples boneca de trapos que nunca estaria bem dentro deles.
Daniel parecia compreendê-lo melhor do que Jeanette.
Os gostos pessoais da irmã pendiam para o dramático, e os modelos tinham sido encomendados em conformidade. Agora Daniel exigia que todos fossem despojados de metade
dos seus ornamentos.
Ele estava de pé à janela da saleta do último andar, o rosto esculpido ainda mais atraente naquela difusa luz setentrional. A maior parte do tempo contentava-se
em espreitar a agitação dos jardins lá em baixo. Cada vez que ela surgia do quarto do fundo da modista num novo conjunto ele olhava, via-o, via-a, e emitia a sua
ordem, voltando-se novamente para a cidade em movimento.
Ele olhara novamente, visto que a irmã resistira. - Duvido que as mulheres levem muito tempo a tirar aquilo. Conseguem entregá-los num dia ou pouco mais. Não é verdade,
madamé!
A modista deu-lhe logo razão. A presença de Daniel transformara a artista orgulhosa numa funcionária submissa.
Ninguém sequer perguntara a Diane a sua opinião sobre os vestidos.
Ela foi até um longo espelho e contemplou-se. O violeta-escuro fazia sobressair os braços e o pescoço, tão pálidos. O decote quadrado e descido revelava mais corpo
do que ela alguma vez deixara a descoberto. A renda bege tornava a sua pele ainda mais branca, e a cintura alta acentuava-lhe o volume dos seios.
Olhos escuros espreitavam num rosto delicado, quase infantil. Aqueles olhos pareciam demasiado grandes e algo assustados, e revelavam que a estranha não era de todo
uma mulher do mundo, apesar dos sofisticados atavios.
O espelho estava de frente para a janela. Um movimento refletido chamou-lhe a atenção. Daniel já não olhava para a cidade, mas para ela. Visto que estava afastado
para um dos lados, ele não reparou que ela conseguia ver o que ele fazia.
A expressão dele desconcertou-a. Algo tinha entrado nos seus olhos e confundido os seus traços. Algo vagamente perigoso e perdidamente hipnótico. Endurecia-o e suavizava-o
ao mesmo tempo.
Ela sentiu o coração na boca. Não conseguia desviar o olhar, mesmo que algo dentro dela a avisasse para correr o mais depressa que conseguisse.
Ela alisou a seda, para esconder a reação. No reflexo, o olhar dele desceu lentamente até à renda proibida do decote, e voltou a subir. Chegou ao cabelo dela, habilmente
arranjado num penteado de festa apropriado àquela seda. A mão dela dirigiu-se instintivamente para lá.
Jeanette deve ter visto o gesto. - Tende-lo em demasia. Mesmo que seja atraente assim, a moda agora é mais chegado à cabeça. Vamos cortá-lo.
- Não. - A ordem, e era definitivamente uma ordem, veio do único homem ali.
Diane voltou-se. - Penso que prefiro o decote com renda. Gostaria de a manter assim.
Jeanette ergueu uma sobrancelha na direção do irmão. A modista começou a explicar o erro que tinha sido a renda.
Aqueles olhos diabólicos luziram com a consciência de que tinha sido desafiado. - Se é o que preferis, claro que pode ficar. É o vosso vestido, afinal. Podeis escolher
aquilo que quiserdes.
Diane voltou para o quarto do fundo para envergar a extravagância seguinte. Na realidade, não queria saber da renda, nem este vestido viria a ser realmente dela.
Esta prova clarificava-o de formas que ela não conseguia definir com clareza..
Pensou nos vários itens que começariam a invadir o seu armário. Roupas para a manhã e a tarde, para visitar amigos que ela não tinha, e para ir a jantares para os
quais não recebera convites.
Ela suspeitava que os amigos e convites seriam providenciados e escolhidos tão cuidadosamente quanto os próprios vestidos. Em breve usaria este guarda-roupa fabuloso.
De manhã à noite, seria a estranha ao espelho.
A boneca de alguém.
Lembrou-se da expressão de Daniel no espelho e do magnetismo que lhe conferira. Se ele tivesse levantado a mão para a chamar, ela poderia não ter tido a capacidade
de não obedecer ao que quer que ele solicitasse. Ela não tinha qualquer prova de que ele quisesse de facto alguma coisa dela, mas mesmo assim...
Irá seduzir-vos com luxos...
Olhou para a pilha de vestidos. Ela devia ir até lá fora e recusá-los a todos. Ela devia sair daquela casa. Ela devia...
Os assistentes da modista apresentaram-lhe um vestido de passeio de musselina amarela. O tecido suave era mais adorável do que seda. Começaram a fazer deslizar o
modelo estreito pelo seu corpo.
Daniel iria gostar deste. A simplicidade dele agradar-lhe-ia.
Estes pensamentos surgiram-lhe, suscitando um sorriso.
A sua reação deixou-a consternada.

CAPÍTULO 5
No dia a seguir à visita à casa de modas, Jeanette ficou de cama com dores de cabeça e Diane deu por si sem nada para fazer. Estava um dia bonito e límpido, não
muito frio, por isso pegou num livro da biblioteca e foi para o jardim ler.
Virara apenas duas páginas quando sentiu uma intromissão na paz do jardim. Erguendo os olhos, deparou com Daniel a observá-la. Estava em frente a uma fila de roseiras
sem flores, cujos ramos nus criavam uma moldura de linhas quebradas, espinhosas, à volta do seu vulto escuro.
Aproximou-se. - Ledes por prazer ou porque estais entediada?
- Um pouco de ambos.
- Então o prazer pode esperar enquanto aliviamos o tédio. Decidi que o dia está bonito de mais para se passar em negócios e chamei a carruagem. Visitaremos as Tulherias.
Ela baixou os olhos para a sua velha capa. - Tenho de recusar. As minhas coisas novas ainda não chegaram.
Ele tirou-lhe o livro das mãos. - É só um passeio de carruagem. Não tendes de parecer uma duquesa.
Ela acompanhou-o pela casa, pensando que seria melhor não voltar a andar de carruagem sozinha com ele. Nunca chegara a recuperar da longa viagem desde Rouen.
A carruagem aguardava em todo o seu esplendor. Daniel colocou-se em frente a ela e as rodas giraram.
Aquela sensação de familiaridade, de intimidade, correu imediatamente ao encontro dela mal a porta fechou.
Desta vez, ela não se deixaria perturbar pela proximidade. Exigiria informações e ele não teria como escapar. Fora conveniente Jeanette ter ficado com dores de cabeça
num dia em que Daniel não estava ocupado com negócios, e Diane não tencionava perder a oportunidade.
Ele olhou de relance para ela, quase nada, para ajuizar do seu conforto, e em seguida dirigiu o olhar para a cidade que passava para lá da janela.
Desta vez não, Monsieur St. John.
- Como me encontrastes?
- Estava a passar pelo patamar e olhei pelas janelas e vi-vos no jardim.
- Não estava a falar de me encontrardes no jardim. Refiro-me ao passado. Como vos tornastes meu tutor?
Ele dirigiu a atenção para ela. - Não sou vosso tutor, pelo menos não legalmente.
- O que só me deixa mais curiosa.
- Imagino que sim. Conhecia o vosso pai de negócios. Um dia recebi uma carta dele, escrita à pressa. Dizia que tinha sido chamado para fora do país abruptamente
e pedia-me para cuidar de vós até regressar.
- Foi gentil da vossa parte acederdes.
- Eu não podia recusar, uma vez que ele já tinha saído quando recebi a mensagem.
- Devíeis ser um bom amigo, se ele vos fez um pedido desses.
- Nem tanto. Sempre suspeitei que ele se lembrara de mim porque eu estava em Londres e tinha disponibilidade.
Então o pai dela havia-a deixado ao cuidado de um simples conhecido, um homem muito jovem que provavelmente maldisse aquela obrigação.
- Devíeis ser muito jovem para um fardo semelhante.
- Em algumas coisas. Noutras, de todo.
Ela não esperara que a história fosse tão embaraçosa. - Porque não me mandou ele para a família dele?
- Acredito que ele estava afastado da família. Quanto à família da vossa mãe, penso que também não era conveniente. Ela tinha morrido, e o vosso pai nunca falava
dela.
Fazia sentido. Diane tinha memórias vagas do seu pai, do seu cabelo escuro e olhos azuis. Lembrava-se principalmente da expectativa que acompanhava as visitas ocasionais
e da alegria de ter a atenção dele. Não tinha destas recordações de uma mãe. Tinha havido uma mulher mais velha, contudo, que a sua mente via com mais clareza do
que ao seu pai. Ao que parecia, não era sua avó.
- Porque não me devolvestes ao meu pai?
- Não podia. Encontrei um casal mais velho que tomasse conta de vós, mas depois não me chegou mais nada, e ninguém tinha notícias dele, e compreendi que teria de
tomar outras providências. Tendo em conta a guerra...
O seu tom calmo dizia-lhe a verdade que as suas palavras evitavam.
A desoladora realidade atingiu-a numa série de impactos, como se alguém lhe batesse repetidamente no peito.
O pai dela estava morto.
A mãe também.
Ela tentou aplacar as investidas violentas, mas os golpes continuavam a vir.
Não tinha família.
Não havia razão para ir à procura da vida dela, porque não havia nada a encontrar.
O vazio que existia dentro dela nunca seria preenchido da maneira que sonhara. Agora aquele vácuo tremia, como se se tivesse soltado um grito de lamento que não
parasse de ecoar.
Admitir a verdade deixou-a terrivelmente desolada. Baixou os olhos para Daniel não conseguir ver a sua reação.
- O nome dele. Qual era o nome do meu pai?
- Jonathan.
- Era agricultor?
- Trabalhava em transportes marítimos.
- Lembro-me do campo.
- Ele tinha uma casa no campo, onde vós vivíeis.
Ela olhou de relance para ele. Os seus olhos rasos de água turvavam-lhe o rosto. - Tinha? A casa já não está lá?
Ele hesitou visivelmente. - Ele sofreu alguns revezes antes de isto acontecer.
Mais turvo ainda. Quase só via água. Nem a casa existia já. Não a esperava absolutamente nada em Inglaterra.
Sentiu a garganta muito apertada e quente e o seu peito horrivelmente pesado. Desejou estar de novo na escola, no seu quarto tacanho e familiar. Desejou estar em
qualquer outro lado que não nesta carruagem grandiosa com Daniel St. John.
O choro silencioso continuava a ressoar. Nunca antes se apercebera da vastidão daquele vazio, de toda a ausência. Os sonhos infantis tinham-no impedido de crescer,
mas ela nunca mais seria capaz de o ignorar.
Este pensamento derrotou-a. Cerrou os dentes para combater as lágrimas, mas elas não deixaram de correr. O grito era cada vez mais alto.
Um movimento intrometeu-se no embalo da carruagem. Um corpo sentou-se ao lado dela e braços fortes puxaram-na para si.
Ela encostou-se a ele e chorou desalmadamente, para cima de um casaco de lã.
Devia ter-lhe mentido.
Devia ter-lhe contado a fantasia elaborada que engendrara. Tê-la-ia posto à procura em todos os lugares errados, mas teria tido esperança ainda.
Face aos seus olhos sinceros e profundos não conseguira fazê-lo. Havia omissões flagrantes no seu relato, mas só uma parte não fora verdade, e ele contara aquela
mentira para a poupar à pior parte.
Ele segurou-a nos braços enquanto ela chorava, oferecendo o parco reconforto que é a compaixão de um estranho. O choro dela tocou-o mais do que ele queria. Ele conhecia
o frio isolamento que acompanha a constatação de que se está só no mundo. A diferença era ele ter sido rapaz quando deparou com ela, e o tempo esconde estas coisas.
Nunca passam, porém. Se não fosse Jeanette, teria vivido com aquele vazio a sua vida toda.
Devia ter mentido e tê-la deixado procurar uma família carinhosa, perdida por uma reviravolta do destino. Devia tê-la deixado acreditar um pouco mais.
As lágrimas dela converteram-se em fungadelas. Diane endireitou-se, com uma última lágrima a serpentear-lhe pela face. Ele observou o rasto que deixava na sua pele
adorável e algo além de compaixão se espalhou dentro dele.
A imagem dela no espelho da modista no dia anterior apossou-se da sua mente. Também a sua reação, e a pequena fantasia do vestido violeta a deslizar-lhe pelo corpo.
Passou os lábios por aquela lágrima.
Ela virou para ele aqueles olhos brilhantes. Aqueles olhos cautelosos e curiosos. O beijo confundira-a, como se sentisse que fora mais do que compaixão a provocá-lo.
O seu lábio inferior ainda tremia do esforço para conter a emoção. Esteve muito perto de o beijar também.
A carruagem parou com um esticão que o fez voltar à razão.
Amaldiçoando-se silenciosamente, e refreando tanto a empatia como o desejo, libertou o braço e abriu a porta. Saiu e ofereceu-lhe o lenço dele. - Limpai os olhos.
Vamos andar, e sentir-vos-eis melhor.
Subitamente a familiaridade parecia menos perigosa. Aquele pequeno beijo não a assustara tanto como devia ter assustado. Havia gentileza nele, como houvera no seu
abraço.
Também existira outra coisa, porém. Nele, e nela. Algo daquilo que ela vira no espelho, e da forma como ela reagira. Como uma fina camada de aguarela, esbatia os
limites da relação deles e mudava-lhe o tom. Diane limpava os olhos e perguntava-se se Daniel St. John saberia repor a distância entre eles.
Ele ajudou-a a sair da carruagem e passearam juntos. Os jardins tinham buxo e trepadeiras o bastante para nem tudo estar despido. Outras pessoas aproveitavam o dia
e uma linha de carruagens aguardava pelos muitos visitantes que pintalgavam a paisagem. Apesar da frescura do ar, um cheiro a terra anunciava a chegada da primavera.
- Jeanette não tem nenhuma dor de cabeça, pois não? - A verdade ocorreu-lhe placidamente, como se a intimidade da carruagem lhe tivesse proporcionado novas percepções
deste homem. - Nem me vistes no jardim por acidente. Organizastes tudo para eu poder fazer as minhas perguntas.
- Sabia que tínheis curiosidade. Qualquer pessoa no vosso lugar teria. Se evitei dizer-vos antes, agora sabeis porquê. Receio ter destruído o vosso sonho de visitar
Inglaterra.
- Não é culpa vossa. Mesmo sem o sonho, irei para lá. É o lugar onde nasci.
com a marcha e silêncio subsequentes, ele conseguiu de facto tornar as coisas mais distantes. Fê-los regressar onde haviam estado. Fez-lhe pena sentir aquela envolvência
a passar. Por algum tempo, tornara o vazio um pouco mais pequeno.
O novo rei, reposto no trono pelos conquistadores da França, estava nos jardins naquele dia, rodeado por uma comitiva de nobres e senhoras. Também se via o duque
de Wellington, igualmente rodeado de senhoras. Daniel identificou-os e também indicou outros notáveis, tanto famosos como infames.
Daniel contava com alguns deles entre os seus amigos. Podia fazer de Inglaterra a sua residência principal, mas era conhecido em
Paris. Aristocratas de chapéu alto e colarinhos firmes e jovens dandies aperaltados em vistosos coletes de seda. Ele apresentou-a como sendo uma prima do campo.
com uma mirada à sua aparência pobre, os amigos dele aceitavam a sua insignificância.
Damas belas e elegantes agraciavam-no com sorrisos calorosos e olhares de apreço. Por duas vezes, mulheres com expressões mais mundanas envolveram-se em conversa
com ele. As acompanhantes delas ocupavam Diane enquanto Daniel era cuidadosamente afastado para algumas palavras em privado.
Algo na maneira como ele olhou para a segunda, e na forma como ela lhe devolveu o olhar fez Diane pensar no livro de gravuras. Ocorreu-lhe uma imagem chocante de
Daniel a fazer aquelas coisas com aquela mulher.
E depois, num repente, viu-o a fazê-las com ela.
Repeliu a imagem, mas tornou-se muito difícil continuar a caminhar ao lado dele. Observou disfarçadamente o seu perfil. A sensação daquele pequeno beijo regressou,
provocando-lhe um formigueiro na face. Sentiu o calor agreste das mãos dele nas dela naquele primeiro dia no seu quarto, e o tempo começou novamente a esticar e
a converter-se numa pequena eternidade...
- Diane!
O chamamento arrancou-a ao seu vergonhoso devaneio. Uma mulher jovem, esplêndida com seu cabelo louro e vestido de lá cor-de-rosa, vinha na sua direçáo com os braços
esticados. Um homem robusto de cabelo claro seguia no seu encalço.
- Diane, sou eu! Margot!
Margot tinha saído da escola de Madame Leblanc no ano anterior.
Diane aceitou o abraço, e em seguida afastou Margot de si para uma inspeção. A lã rosa era de boa qualidade e a touca de aba confecionada com perícia. Jóias caras
completavam o efeito. Margot emanava beleza e sofisticação, em pé de igualdade com qualquer dama das Tulherias.
Desta vez foi Diane a ser puxada de parte enquanto o acompanhante entretinha Daniel.
- Margot aproximou a cabeça. - Mãe do Céu, Diane, aquele é o Homem Diabo. Saístes da escola para viverdes com a família dele, agora?
Diane fez uma careta. Sempre se referira a Daniel daquela forma e, na escola, as raparigas tinham adotado o tratamento. - Por pouco tempo. Procurarei colocação como
governanta logo que chegarmos a Inglaterra.
Margot revirou os olhos. - Que vida infernal. Espera até verdes o que acontece.
- Vós saístes para serdes governanta e não parece que a vossa vida seja, de todo, infernal. Parece que vos saístes muito bem.
A mão de Margot foi até ao colar que trazia e depois ao chapéu.
- Msieur Johnson é muito generoso. Dissestes que viajais para Inglaterra? Msieur vive em Inglaterra, embora me tenha comprado uma pequena residência para quando
estamos de visita aqui.
- Então talvez nos vejamos em Inglaterra.
- Oh! Que não espere até lá, especialmente se fordes enclausurada como governanta quando lá estiverdes. Tendes de me visitar uma tarde e contar-me tudo sobre as
outras raparigas.
- Se Msieur Johson é inglês, tendes então muitos amigos ingleses lá?
- Claro que sim. Paris está cheia de ingleses nos dias que correm. Gostaríeis de conhecer alguns? Quereis que vos convide para um dos meus petits salans.
- Acho que ia gostar disso. - Daniel dissera que o pai dela trabalhara em transportes marítimos. Era de supor que alguns dos ingleses que estavam agora em Paris
se houvessem movimentado nos mesmos círculos. Um deles poderia saber mais sobre a família de Jonathan Albret do que Daniel aparentava saber.
O reencontro dramático com que ela tinha sonhado nunca se daria, mas encontrar família, ainda que os parentes fossem distantes,
seria pelo menos alguma coisa. Haveria alguma raiz a ligá-la a alguém, a algum lado.
Os acompanhantes aproximaram-se. Margot voltou a encostar a cabeça à orelha de Diane. - O Homem Diabo era assustador quando éramos crianças, mas é muito excitante
depois de se crescer. O meu coração bate desenfreadamente. É de espantar que não desmaieis quando ele olha para vós.
Monsieur Johnson deve ter visto o entusiasmo de Margot. Deu-lhe o braço e afastou-a educadamente mas com firmeza, para continuar a andar.
- Uma amiga da escola? - perguntou Daniel quando voltavam para a carruagem. - Deve ser agradável voltar a vê-la depois de cumprimentar tantos estranhos.
- Muito agradável. - Lembrou as jóias e o vestido de Margot.
- Msieur Johnson não é marido dela, pois não?
- Não. A minha irmã pode explicar-vos essas coisas.
Ela suspeitava que Daniel, sendo homem, soubesse explicá-las melhor. - Pergunto-me porque não. Ele parecia afetuoso. Na verdade, parecia encantado.
- Há muitas razões para situações dessas. Ele pode já ter esposa, e ela ser doente, louca ou fria. Ou estar muito longe, uma noiva oriental. Ou talvez considere
a vossa amiga desadequada para casar.
Ela pensou na atenção feminina que Daniel recebera no dia de hoje. Pensou que algumas daquelas mulheres deviam ter sido as suas Margots. Talvez a última ainda fosse.
Só que ele não se mostrara tão arrebatado com elas como Monsieur Johnson com Margot.
- Tendes uma esposa que esteja doente ou muito longe?
- A vossa pergunta é impertinente. Mas não, não tenho.
- Então deveis fazer parte dos homens que não encontraram uma mulher adequada para casar.
Chegaram à carruagem. - Sou um homem que se considera a si próprio inadequado. Ao não escolher casar, poupo uma grande dose de dor a alguma mulher.

CAPÍTULO 6
Oguarda-roupa chegou. Os convites também. As roupas faziam toda a diferença. Os amigos de Jeanette começaram a tratá-la menos como a uma criança e tornaram-se menos
cautelosos nas suas conversas. Certo dia, Daniel voltou a acompanhá-la até às Tulherias e desta vez os homens elogiaram-na e as mulheres observaram-na com mais atenção.
Uma pessoa que usasse chapelaria fina deixava de ser insignificante.
Só Daniel não parecia reparar. A julgar pela atenção que ele lhe dava, ela bem podia estar ainda com o seu vestido largo e as suas tranças. Era sempre educado, mas
qualquer pessoa ficaria a pensar que aquela intimidade na carruagem nunca ocorrera.
Apesar do seu recém-adquirido estatuto, Diane não se sentia realmente confortável nos salões e jantares a que ia com Jeanette. Por isso, quando chegou a carta de
Margot a convidá-la a visitá-la, ficou grata pela oportunidade de passar algum tempo com uma velha amiga.
No seu vestido amarelo, desceu até à saleta de Jeanette para informar a sua anfitriã dos seus planos para a tarde. Encontrou Daniel com a irmã. Sentia-se ali uma
atmosfera desagradável, como se ela tivesse entrado no meio de uma discussão.
- Estais encantadora, Diane - disse Jeanette, avaliando-a com apreço. - Está mesmo encantadora, não está Daniel?
Ele estava à janela, tapando parte da luz, a olhar para o exterior. Olhou por cima do ombro. - Sim, mesmo encantadora.
- Penso que vou ficar em casa hoje, Diane - disse Jeanette.
- A semana passada deixou-me exausta. Não vos importais, pois não?
- De todo. Por coincidência, recebi um convite de uma amiga e gostava de a visitar. Ela vive perto e estou a pensar ir a pé.
Isto arrancou Daniel à sua distração. - Tencionais visitar Margot? Não me parece apropriado. - O seu tom de voz dava a entender que o assunto estava encerrado e
que ela não faria a visita dela.
- Agradeço a vossa preocupação, msíeur, mas Margot e eu iremos falar dos velhos tempos, não dos recentes. Penso que interrompi uma conversa, por isso sairei agora
e regressarei dentro de algumas horas. - Ela deixou o seu tom de voz indicar que faria mesmo a visita, ainda que a ele lhe desagradasse.
- Não interrompestes nada importante - retomou Daniel. - Na realidade, o assunto éreis vós. Hoje à noite vou à ópera, e vós ireis comigo. Por favor regressai da
vossa visita a tempo de vos preparardes. Além disso, se ides a pé, levai um criado para vos acompanhar.
Diane pediu licença para sair, satisfeita por escapar à atmosfera tensa da saleta. Duvidava que o assunto da discussão deles tivesse sido ela. Ela não tinha importância
nenhuma e não seria matéria para uma discussão.
Também não conseguia ignorar que não tinha sido convidada por Daniel para ir à ópera, mas que isso lhe fora ordenado.
As multidões no Palais Royale irritavam Gustave Dupré. A forma como a guerra reduzira a população de Paris deixara-o mal habituado. Agora, com a paz, com a derrota,
as arcadas clássicas que cercavam os jardins estavam a abarrotar não só de franceses mas também de ingleses e prussianos de todas as classes. Muito especialmente
os soldados do exército ocupante, que parecia não terem
nada a fazer a não ser passear por Paris. Num dia bonito como aquele, com o sol a aliviar o vento gelado que ainda se sentia, seria difícil encontrar um lugar num
café ou num banco nos jardins.
Surpreendeu-o, portanto, deparar com vários bancos vazios. Além disso, num sítio cobiçado, de onde se conseguia ver as senhoras elegantes a passear lá perto sem
ter de suportar o barulho dos restaurantes. Estava apenas um homem sentado no do meio, a ler um livro.
Gustave apressou-se a sentar-se no banco de pedra. Bengala direita entre os joelhos para apoiar as mãos, refastelou-se ao sol. Tentava fazê-lo todos os dias em que
este brilhava. Estava convencido de que lhe estimulava a mente.
Hoje também esperava que o acalmasse. Antes do dia de amanhã, saberia se estava certo sobre o manuscrito que comprara a St. John. Saberia se a sua vida mudaria para
sempre.
Aproximaram-se duas jovens adoráveis. Gustave contava que elas ocupassem o banco vazio, ou que talvez até se sentassem no seu. Para sua surpresa, algo as fez recuar.
Gustave verificou as roupas. Talvez as calças...
- Estais apresentável, Gustave. É a mim que elas evitam.
A cabeça de Gustave voltou-se de rompante. O rosto do homem que estava sentado no banco ao lado ergueu-se do livro que lia. Emoldurado por fios compridos de cabelo
escuro e decorado com um bigode antiquado, mostrou um sorriso cínico.
Não admira que aqueles bancos todos estivessem vazios. Gustave começou a preparar-se para se levantar e partir.
- Não sejais um hipócrita insuportável - rosnou o vizinho.
- Não seria avisado insultardes-me.
Gustave estacou. Voltou a sentar-se. Olhava com determinação na direçáo da arcada, para que quem estivesse a ver soubesse que ele não procurava nenhuma associação
com o homem à sua esquerda.
- Não há cumprimentos, Dupré? Não vos chegais a mim em nome dos velhos tempos?
- Não cumprimento traidores.
- Céus, traçais linhas muito ténues. Sem dúvida que a vossa análise racional encontrou maneira de colocar algumas coisas numa categoria e coisas semelhantes noutra.
- Não tenteis arrastar-me na vossa queda atual, Hercule. Todos sabem que vendestes informação aos Ingleses. E por isso que até eles vos desprezam agora. Aceitaram
de bom grado o que lhes oferecestes, mas não querem ter nada a ver com um homem tão indigno.
- Napoleão estava a ficar doido, Gustave. Ia destruir a França com a sua fome de poder. O homem que foi para Elba não foi o mesmo que sagrámos imperador. Perdera
toda a noção da realidade.
- Então agora sois médico.
- Sou um soldado que venerava um herói, só para o ver tornar-se um tirano. Não me arrependo do que fiz. Uma coisa é certa, não falta lugar em qualquer lado que vá
hoje em dia.
Gustave quase ripostou que Hercule não fizera nada daquilo pela França. Fizera-o numa busca pervertida de glória. Fora estúpido ao ponto de pensar que os Ingleses
o enalteceriam quando tudo terminasse. - Atreverdes-vos a ficar em Paris, onde todos sabem, é algo que me ultrapassa.
- Estou em Paris para tentar descobrir como ficaram todos a saber. Eu tratava apenas com um homem, um coronel que morreu em Waterloo. Tenho curiosidade em saber
com quem ele falou, e quem me traiu.
Gustave batia com a bengala com irritação. Ergueu-se, presumindo que sair naquela altura não constituiria o insulto a que se referira a ameaça de Hercule. - Um bom
dia para vós. Se voltarmos a encontrar-nos, não espereis que me dirija a vós.
- Claro que não. Passados vinte e quatro anos, não há razão para isso mudar. - O riso de Hercule acompanhou Gustave enquanto este se afastava. Como a sua pergunta
final. - Ah! esqueci-me de vos perguntar, Dupré. Como continua a vossa famosa biblioteca?
A casa de Margot era pequena mas tinha bom aspeto, e estava localizada num bom bairro, não muito longe da de Daniel. A própria Margot tinha uma aparência bela e
madura, de vestido azul e colar de prata. Propriedade e jóias, na vossa posse. Se Margot algum dia recebera instruções de Madame Leblanc, era claro que as seguira.
Diane mandou a sua companhia regressar a casa de Jeanette. Ela e Margot passaram uma hora entregues a boas recordações e depois decidiram ir caminhar para um parque
ali perto.
- Trouxe-vos aqui porque há uma coisa que quero que vejais disse Margot. - Encontro-me aqui com uma amiga nova algumas vezes. O nome dela é Marie. Ali está ela,
com aquelas duas crianças, Marie é governanta da família de um homem ligado ao governo inglês.
- Pelo vosso tom de voz, dir-se-ia que está morta.
- É como se estivesse. Só falamos aqui, já que ela não tem liberdade para visitar amigas nem as receber. Trata das crianças de manhã à noite, e depois de eles irem
para a cama, dão-lhe outros trabalhos, cerzir e coisas parecidas. Quando saí da escola fui governanta durante vários meses, por isso sei do que falo. Felizmente
conheci Msieur Johnson, um dia num parque como este, e fui salva.
- Então Madame Oiseau não vos arranjou o encontro com Msieur Johnson?
- Aquela ave de rapina? Ela ofereceu-se, mas as raparigas que fazem uso do serviço dela recebem muito menos, dado que os seus protetores também pagam à Madame. Na
realidade, senti-me insultada e chocada com a sugestão. Três meses a viver a vida da Marie e o choque perdeu o efeito.
Diane tentou imaginar-se no lugar desta governanta. A ideia de não ter tempo para si e do pouco contacto com as pessoas deixou-a desalentada. Para começar, como
poderia indagar sobre os seus parentes se nunca falasse com ninguém?
Tentou convencer-se de que a aparição desconsolada de Marie não tivera qualquer efeito na sua reação, mas deu por si a acariciar a musselina macia por baixo da sua
capa.
Um oficial inglês aproximou-se de Marie. O que quer que tenha dito obteve reação imediata. Ela virou-se abruptamente e começou a levar as crianças dali. O riso do
oficial fazia-se ouvir até o sítio onde Diane estava.
- Claro que alguns dos homens que se conhece em jardins não são cavalheiros, seja qual for o seu nascimento. Alguns não são tão atenciosos como Msieur Johnson -
avisou Margot. - E importante ser capaz de ver a diferença.
Margot conduziu a conversa para tópicos mais agradáveis. Discutiram lojas e chapelarias e Diane descreveu o guarda-roupa que tinha chegado. Margot ergueu as sobrancelhas
em apreço face à litania de luxos.
Margot pegou na mão dela e começou a dirigir-se para fora do parque. - Devemos regressar. Convidei alguns amigos para vos conhecerem e provavelmente chegaram cedo.
Ingleses, como pedistes.
Um pequeno grupo de carruagens perfilava-se à porta de Margot.
Uma tinha um aspeto demasiado familiar. Pertencia a Daniel e o próprio estava comodamente encostado a ela.
- Msieur St. John veio buscar-vos ele próprio. Muito atencioso e cavalheiresco. E, tal como as prendas ricas que me descrevestes, desnecessário.
- Talvez pensasse que me atrasaria a voltar. Está combinado irmos ao teatro hoje à noite.
As sobrancelhas de Margot voltaram a erguer-se.
- Tenho de ir.
- Não. Entrai e vinde conhecer os meus amigos.
- Eu devia...
- Vinde. Deixai-o esperar...
Margot não convidou Daniel a entrar. Mal mostrou ter reparado na sua presença. Conduziu Diane para dentro da casa, onde os amigos dela estavam a beber vinho.
Era um grupo atraente de gente jovem. Os quatro homens eram ingleses. Monsieur Johnson não estava presente.
Margot levou Diane para um banco corrido colocado à frente da janela. Olhando por cima do ombro, Diane viu Daniel ainda encostado à porta da sua carruagem. Margot
trouxe consigo um dos homens, que praticamente empurrou para o banco, para junto delas.
Apresentou-o como sendo Monsieur Vergilius Duclairc, irmão de um visconde inglês, e depois deixou-os a sós.
Monsieur Duclairc era um homem jovem, atraente, de tipo moreno e traços bruscos, com uns deslumbrantes olhos azuis.
- Viveis em Paris, como aqueles outros vossos conterrâneos? Diane indicou os outros três homens que andavam de volta das mulheres.
- Estou apenas de visita, por pouco tempo, para visitar a cidade e ir ao teatro. Não pertenço aos abutres que vieram regalar-se com a vossa nação derrotada, mamselle.
Seria mais regalar-se com as mulheres que a derrota lançara no desespero, prometia o seu tom de voz.
- Conheceis bem Margot?
- Conhecemo-nos através de amigos há alguns dias e ela teve a amabilidade de me convidar hoje.
Diane olhou rapidamente para Margot que, apesar da conversa, mantinha o banco da janela debaixo de olho. - Para me conhecer?
- Não sei. Parece que poderá ter sido essa a intenção dela, não é verdade?
Sim, era verdade. Primeiro Madame Oiseau, e agora Margot. Talvez a sua amiga pensasse naquilo como uma forma de salvação.
Monsieur Duclairc estava certamente à altura dos padrões de Margot. Diane tentou imaginar como seria ser a Margot dele. O seu rosto ficou vermelho e uma sensação
desagradável apertou-lhe o estômago.
- Penso que seria para me conhecer, para que eu pudesse bombardear-vos com perguntas. Irei para Londres em breve, para assumir uma posição de governanta.
- Se tiverdes perguntas sobre a cidade, terei todo o gosto em responder-lhes.
- Não é esse o tipo de pergunta a que me refiro. Também irei à procura da família de alguém. Talvez tenhais ouvido falar deles. O nome é Albret.
- O vosso nome. Parentes vossos? ; -Sim.
- Não me lembro de alguma vez ter conhecido ou ouvido falar de alguém com esse nome. Tenho muita pena. É uma família londrina?
- Não sei ao certo. Um dos filhos trabalhava em transportes marítimos. Talvez não vos movais nos mesmos círculos, sendo vós irmão de um visconde.
- Talvez. No entanto, há formas de se procurar pessoas, se soubermos o nome delas. O dono de um barco teria de preencher determinados documentos. Se fizesse um seguro,
os agentes teriam de saber a localização da casa dele, por exemplo. Seria um início.
Monsieur Duclairc parecia interessado na ideia de desvendar um quebra-cabeças. Diane perguntou-lhe como localizar os agentes que seguram navios.
Quando ele começou a responder, fez-se silêncio na sala e a voz dele de repente pareceu muito alta. Em frente a eles erguia-se uma sombra ameaçadora. Ela levantou
os olhos, que incidiram diretamente no rosto de Daniel St. John .
Monsieur Duclairc pareceu surpreendido. Depois sorriu. - St. John. E uma feliz surpresa ver-vos. Não vos sabia em Paris.
Daniel dirigiu-lhe um sorriso glacial. - Nem eu a vós, Duclairc. Vejo que já conheceis a minha prima.
Olhos cautelosos resvalaram na direção dela. - Vossa prima?
- Minha prima.
- Não fazia ideia, garanto-vos.
- Espero que não.
Margot tinha procurado uma posição de onde conseguisse observar. Os olhos dela resplandeciam de triunfo. Subitamente, Diane
compreendeu. O pobre Monsieur Duclairc não passara de um peão no jogo da sua amiga. Ela sentara-os à janela, onde Daniel conseguia ver o vestido amarelo ao lado
do casaco escuro.
Daniel estendeu a mão. - Vinde, Diane.
Chamava-a como a uma criança malcomportada.
- As minhas desculpas, Msieur Duclairc. O meu primo às vezes esquece que sou maior de idade.
- Duclairc sabe muito bem que já não sois uma menininha, minha querida.
Ela ignorou-o e à mão dele. - Dizeis que visitais Paris para ir ao teatro, Msieur Duclairc. Talvez nos vejamos novamente. Obrigada pelo vosso conselho sobre Londres.
- Foi ter com Margot, deu um beijo à amiga e encaminhou-se para a porta.
Daniel não foi logo atrás dela. Ela olhou para trás e viu-o a falar discretamente com Monsieur Duclairc. Pareceram-lhe dois homens que esclareciam algumas coisas.
Daniel apanhou-a quando descia para o piso inferior. Agarrou-lhe o cotovelo com firmeza, e não era só para a apoiar. - Não volteis a fazê-lo.
- Fazer o quê? Visitar uma amiga?
- Deixar-me à espera.
- Não vos pedi que viésseis buscar-me, nem vós me indicastes que o faríeis. Não podeis esperar que eu anule os meus planos meramente porque convém aos vossos impulsos
caprichosos.
- Mandei preparar a carruagem e vim para não terdes de regressar a pé. Fazia-se tarde e tendes de vos preparar para hoje à noite.
- Posso escolher não ir hoje à noite à ópera. Não é que tenha recebido algum convite.
Um lampejo no olhar dele mostrou que o sabia, mas a sua expressão mal se suavizou. - Então convido-vos agora, condescendei.
Não era um verdadeiro convite. Não mesmo. Diane voltou a ter aquela sensação de ser uma boneca. Aumentou a irritação que sentia e o constrangimento por ter sido
arrastada assim dali para fora. - Vós não fostes convidado para o salon de Margot e foi rude
da vossa parte terdes aparecido. A vossa irmã ensinou-me bem isso, juntamente com tudo o resto.
A expressão dele tornou-se severa. - Apareci porque era óbvio que a vossa amiga estava a exibir-vos a Vergil e aos outros como potencial amante. Foi ignorante da
vossa parte terdes vindo aqui de visita e estúpido da minha não o ter impedido. - Abriu a porta da carruagem. - É altura de a minha irmã vos explicar algo mais além
de maneiras de parecer elegante. Mas dar-vos-ei a primeira lição. Há homens que têm prazer em serem fantoches de mulheres bonitas e que acham divertido o tipo de
jogo de Margot. Eu não sou um deles. Digo-vos novamente: não volteis a fazer-me esperar.

CAPÍTULO 7
Ela fê-lo esperar. Daniel andava para a frente e para trás na biblioteca, vestido para o serão. Primeiro vieram dizer que haveria atraso porque a criada não tinha
acertado com o penteado, e depois porque se encontrou um pequeno rasgão no vestido.
- Ela está a fazer de propósito - disse Daniel a Jeanette, que lia um livro perto da lareira.
- É a primeira vez que vai ao teatro e quer estar perfeita. Tende alguma consideração.
Jeanette podia deixar-se enganar, mas ele não. Era um desafio deliberado, uma forma feminina de se desforrar da discussão da tarde.
- Ela não volta a visitar aquela mulher. Não foi só café entre amigas. Estavam lá outras pessoas.
- Entenda-se, homens. - Jeanette ergueu os olhos do livro.
- Se me tivésseis avisado a respeito desta Margot eu teria desincentivado a visita, mas não tínhamos autoridade para a proibir. Talvez tenha sido bom ela ter ido.
Não há como estar a salvo destas coisas, aqui ou em Londres. A sua falta de fortuna fá-la-á vulnerável. Não a quero ignorante, Daniel. Poderia ser catastrófico.
- Então falai com ela sobre isto tão francamente quanto falais sobre sedas e toucas.
- Tenho toda a esperança de que a visita a Margot lhe tenha ensinado muito.
- Talvez não como vós antevistes. Margot pode ser má influência.
- Se uma tarde com a amante de um homem é má influência, não posso imaginar o que passar semanas comigo possa ter sido.
- Jeanette, não...
- A conversa está acabada, querido irmão. Ficai descansado que a instruirei quanto à proteção adequada da sua virtude. - Fez menção de virar a página do livro, mas
não antes de lhe lançar um olhar astucioso.
E estava tudo lá. Jeanette sabia. Via-o na sua indiferença forçada a Diane. Reconheceu a impaciência daquela noite por aquilo que ; era, e percebera no seu agastamento
quando regressara de tarde mais do que a preocupação de um tutor.
Ele recordava-se da raiva irracional que aumentara ao observar o vestido amarelo instalado perto de um casaco escuro. Ainda bem que era o jovem Duclairc. O seu estado
de espírito era tão negro que se fosse outro homem bem que lhe podia ter dado uma tareia. Se Duclairc acreditara ou não na parte da "prima" não importava. Retirar-se-ia
em qualquer dos casos.
Mas e os outros? E haveria outros, indubitavelmente.
Recordou a si próprio que era aquele o plano e que ele devia estar satisfeito pelo seu sucesso. A reaçáo pessoal era apenas uma complicação imprevista, que ele se
encarregaria de vencer.
Diane entrou na biblioteca. Não houve trompetes, não se sentiu nenhum aroma floral no ar, mas ele soube imediatamente da chegada dela, apesar do seu passo silencioso.
Olhou para ela e ficou com a boca seca.
Ela estava um bocado rígida, encantadora na incerteza do efeito que provocava. O vestido violeta e a renda bege faziam a sua pele parecer porcelana clara. O seu
cabelo abundante, levemente preso, implorava que mãos de homem o desfizessem. As outras mulheres que estivessem na ópera constituíam apenas um ramo de flores
caótico. No meio dessas florações, Diane seria uma discreta rosa, as suas pétalas ligeiramente entreabertas um convidativo prenúncio do que estava para vir.
Era o plano, e estava a resultar.
Só que o homem errado tinha-se deixado arrebatar.
- Serve, Daniel? - perguntou Jeanette.
- Claro, mas nunca houve qualquer dúvida em relação a isso. Parece-me, contudo, que devo levar a minha espada para a proteger dos admiradores.
Era o tipo de coisa que um primo diria, gracioso e inofensivo, educadamente galante. Ele duvidava que tivesse soado tão neutro quanto ele planeara, porque um rubor
profundo subiu pelo pescoço de Diane até ao rosto. Por um instante, quando ele se aproximava para a escoltar até à carruagem, o olhar dela embateu nele daquela maneira
cautelosa e provocante.
Era a parte verdadeiramente infernal de tudo isto. Não era só Jeanette a saber. Diane também sabia. Podia não compreender, mas sentia. Assustava-a.
Era compreensível.
Ela precisou do percurso inteiro até ao teatro para recuperar daquele olhar.
Durara apenas um instante, quando ele viera na sua direção, mas o seu coração parara durante uma eternidade, assim lhe pareceu. Quando voltou a senti-lo pulsar,
não descansou até chegarem à ópera, porque o magnetismo imperioso ainda emanava dele como uma força de atraçáo.
A opulência do teatro e a pompa da multidão desconcertaram-na. Só conseguia olhar, e olhar, e tinha a certeza de parecer uma criança de olhos arregalados.
Foi uma noite de deslumbramento e esplendor. Diane flutuava ao lado de Daniel como num sonho. Os amigos dele visitaram o camarote, alguns que ela já tinha conhecido,
como Vergil Duclairc,
mas a maior parte não. No jantar sumptuoso, entre atos, espiou algumas das amigas de Jeanette com homens que não eram os maridos. Ao contrário dela e de Daniel,
era notório que não estavam na companhia de primos.
O ambiente deixou-a tão hipnotizada que Daniel deixou de surtir o mesmo efeito. O assalto contínuo aos seus sentidos deixou-a tonta, e os olhares e cumprimentos
lisonjeadores dos homens faziam-na sentir-se audaciosa. A seguir à refeição, ela e Daniel deram por si sozinhos no camarote pela primeira vez em toda a noite.
- Porque me trouxestes aqui? - inquiriu ela.
-Jeanette não viria. Não é tímida em relação à sua doença, mas ser transportada ao colo para dentro de um teatro é exposição de mais até para ela.
- Porque não trazer a vossa Margot? Parece que há homens que o fizeram.
- Trouxe-vos porque me pareceu que pudésseis gostar. Nunca estivestes na ópera antes, pois não? - Fez uma pausa. - Imagino que no vosso caso inocência não signifique
ignorância, mas foi outra pergunta impertinente, e julgo que vós sabeis disso.
- Descobri que obtenho respostas francas quando sou impertinente.
- Então talvez devêsseis fazer essas perguntas à minha irmã. É mais apropriado ser ela a explicar-vos como funciona o mundo.
- Tenho perguntas a que Jeanette não sabe responder.
Começou então o segundo ato. A exuberância distraiu-a. A música maravilhosa fluía numa corrente emocional para dentro dela. com a experiência, suspeitou, não reagiria
tão profundamente, mas esta era a sua primeira vez e ela não possuía defesas contra esta comovente invasão dos seus sentidos.
Quase se esqueceu do homem sentado à sua direita. Poderia tê-lo feito completamente se ele também se tivesse esquecido dela. Mas ele olhava para ela periodicamente.
Ela conseguia senti-lo.
- Que perguntas? - A pergunta sussurrada surgiu mesmo na última cena.
Ela continuou com os olhos fixos no palco. - Já que perguntais, há algo que me tem ocupado a noite toda. Hoje à tarde dissestes que Margot tinha andado a exibir-me
como mais uma mulher disponível para o ofício de amante. A que propósito andais a exibir-me vós, msieurí
Não, não era ignorante, apesar daqueles anos todos passados naquela escola. Era demasiado esperta para tal.
Ela absorveu tudo, vendo com clareza apesar do esplendor ofuscante. O seu deleite era infantil mas as suas observações eram muito maduras. Por detrás daqueles olhos
cintilantes, ele via a mente dela a colocar tudo no seu lugar e a absorver as realidades que vibravam à luz dos candelabros.
Assim era mais difícil. A ignorância tê-lo ia desencorajado em absoluto. Podia ter fingido que ela ainda era uma menininha, para todos os efeitos. Mas o entendimento
que tinha do mundo conferia-lhe a presença de uma mulher e contrastava com a sua inocência de forma manifesta e perigosamente provocante.
Talvez ele o tivesse pressentido naquele dia na escola. Os seus instintos deviam tê-lo informado. Era isso que a tornava tão perfeita para o papel.
Mas parecia que ela poderia estar a revelar-se demasiado percetiva. com que propósito andais a exibir-me?
Ao sair com ela, reconheceu que a resposta à pergunta não era a que ele tinha como verdadeira.
O serão agradara-lhe mais do que se lembrava ter acontecido no passado. Nem mesmo a companhia de uma Margot predileta, a forma escorreita como Diane se referia às
amantes, alguma vez lhe agradara assim tanto.
Não a exibia apenas a bem da educação dela, para lhe dar um pouco de refinamento e à-vontade com a riqueza e a alta sociedade. Fazia-o porque se deleitava com a
companhia dela e em ser visto ao seu lado. O mundo podia pensar neles como primos, mas ele sabia
que o não eram. Estava incrivelmente orgulhoso dela e reagira às reações que ela suscitava nos outros homens de uma forma que era imediata e pessoal. E possessiva.
,
Não era assim que deveria passar-se. Refletia sobre isso en quanto saíam do teatro para aguardar a carruagem.
Uma multidão ocupava o espaço. Não eram só os espectadores que se aglomeravam, mas também habitantes da cidade que tinham vindo encher o olho com as carruagens e
os vestidos. Alguns destes últimos gritavam insultos aos muitos homens estrangeiros que saíam do teatro, frequentemente com mulheres parisienses pelo braço. A nata
da sociedade francesa sobrevivera à guerra bastante intacta, mas as pessoas comuns de Paris ainda sentiam as privações e não viam com bons olhos os conquistadores
ocupantes.
Vendo a sua carruagem a aproximar-se, Daniel conduziu Diane para fora do aglomerado de pessoas.
- Sanclare. - A palavra furiosa, rosnada como uma maldição, fez-se ouvir sobre o barulho. Daniel desviou-se quando um homem esfarrapado, de barba, se lançou através
da multidão com uns olhos fulminantes.
Dominado pelo instinto, Daniel agarrou em Diane para a proteger do perigo. Alguém lhe deu um encontrão, colocando-a fora do alcance dele, e fazendo-a ir na direção
do atacante, que a empurrou para o lado e continuou a avançar, voltando a rosnar a palavra.
Uma faca levantada. Daniel agarrou no braço arqueado e projetou o punho com toda a força. A faca caiu ao chão e o louco tombou. Daniel afastou a arma com um pontapé.
A rapidez com que tudo aconteceu foi tanta que as pessoas que estavam perto reagiram apenas com surpresa e imobilidade. Agora a multidão era um pandemónio. Formou-se
um círculo de curiosos à volta de Diane. Ignorando a voz interior que o avisava para agarrar o atacante, Daniel abriu caminho por entre os corpos e caiu sobre um
joelho ao lado de Diane.
Ela estava muito abalada, e ofegante com o choque. Atravessou-o uma onda de terror quando uma mulher gritou que a faca
tinha cortado o braço a Diane. Enquanto outros homens abriram caminho e chamavam a carruagem, ele pegou nela.
À luz do candeeiro da carruagem ele viu que o corte não sangrava muito e que era apenas um arranhão. A agitação do corpo que carregava dizia-lhe, porém, que noutros
aspetos dificilmente saíra incólume.
Pô-la dentro da carruagem, tirou a capa e aconchegou-a à volta dela.
- Quem... porque...
- Um louco, talvez zangado com os Ingleses. Provavelmente pensou que eu era um deles pelo corte da minha roupa.
Ela puxou a capa mais para si. - Estou com tanto frio, de repente.
Ele puxou-a para o colo dele para que ela soubesse que estava em segurança. Para que ele soubesse que ela estava em segurança.
Ela respirou fundo várias vezes para se acalmar. - Sinto-me tão estúpida. Não fiquei muito magoada mas não... Sinto-me como se tivesse estado a um passo da morte.
É uma tolice estar assim tão perturbada mas...
Ela tinha estado a um passo da morte. Pensar nisso fê-lo arrepiar-se. Sentiu que ela acabava de tomar consciência do mesmo, e que ficara ainda mais assustada.
A face dela nem a um centímetro estava do rosto dele. Ele roçou os lábios nela. - Não é uma tolice terdes reagido assim.
É normal. Mas agora estais em segurança.
Estamos na carruagem, a caminho de casa, e ele já se foi.
Ela chegou-se mais para perto e ele apertou-a mais contra si. Lentamente, como um véu que desce, os tremores esmoreceram. Ele inalou o aroma da água de violetas
e o corpo dela tornou-se presente de uma forma imperativa. A preocupação e o alívio ficaram tingidos de outras reações. A consciência mútua daquele estreitamento
tomou conta da carruagem, fazendo do silêncio uma presença audível.
Ele depositou um beijo naquele cabelo de seda, para a tranquilizar. Ela ficou muito quieta por um instante. Depois a cabeça dela
virou-se para ele. Ele não conseguia ver a expressão dela no escuro, mas não teve dificuldade em imaginar a sua desorientação cautelosa.
Se não fosse o perigo que acabavam de enfrentar, ele talvez tivesse resistido. Se o destino não a tivesse colocado nos seus braços, ele poderia ter dado atenção
à voz da razão, à litania de razões que fazia daquilo um erro desastroso.
Em vez disso, deu o passo que complicaria tudo, e talvez desfizesse planos elaborados há toda uma vida.
Beijou-a.
Ela devia ter adivinhado o tipo de beijo que seria. Mesmo antes de os lábios dele tocarem os dela, ela deveria ter sabido que iriam desassossegá-la. O ar carregado
e os braços dele apertados à sua volta haviam-na advertido. Como também a pequena eternidade que se espalhou em redor deles quando ele olhou para ela.
Ele teria parado se ela se tivesse desviado. Não duvidava disso. Mas o abraço dele fazia-a sentir-se muito segura e o beijo também. Alarmante, mas sobretudo doce
e meigo.
Não por muito tempo.
Mudou de formas que ela não podia ignorar. A pressão quente tornou-se insistente, depois exigente. Ela permitiu porque não sabia como recusar. Uma parte nova dela,
deslumbrada, não queria fazê-lo.
A sua reação, a excitação empolgante e a profunda comoção interior explicavam tanto. Tudo. O porquê de se sentir nervosa quando estava a sós com ele. A razão pela
qual o seu olhar intrigante a deixava atrapalhada. O poder por detrás da sua presença magnética. O beijo foi uma pequena concretização de uma expectativa inominável
que ela há semanas sentia em relação a ele.
Teve o efeito de um encantamento. A sensação de intimidade era maravilhosa. Despertou partes do seu corpo e do seu coração que ela não sabia poderem mostrar-se tão
vivas. Foi a coisa mais assombrosa e transformadora que alguma vez lhe acontecera.
Ele não parou. Aquele beijo tornou-se múltiplo, e cada um deles a queimava, a sobressaltava de novo. Nos seus lábios e no seu rosto e no seu pescoço. Inúmeras descargas
de prazer confundiram-lhe os sentidos, num caos de deslumbramento.
A pequena infinidade cresceu e cresceu até o que estava a acontecer se converter num sonho que se desenrolava na escuridão eterna de uma carruagem silenciosa. Na
sua mente nada entrava além daquele assombro.
Os dentes dele roçavam-lhe pela orelha, provocando-lhe arrepios deliciosos pelo corpo inteiro. O abraço dele descia-lhe pelo flanco, e ela sentia a pressão no tecido
grosso da capa. - Ainda estais com medo?
- Não... sim... um pouco.
- De mim, agora?
Ele acariciou-lhe o rosto, e a mão dele desceu, suave, até ao pescoço. O efeito daquela carícia sinuosa era inacreditável.
- Provavelmente é sensato.
Ela não conseguiu atentar àquele pequeno aviso. As sensações que lhe raiavam a pele distraíam-na demasiado.
Como também o beijo seguinte. Se as palavras dele sugeriam que ela pusesse um fim àquilo, as suas
ações exigiam que não. As carícias exploratórias dos dedos dele
na sua pele conduziam-na a uma loucura maravilhosa. A paixão dele estava toda nas sua ações
- eram dela os arquejos e suspiros que enchiam a carruagem.
Ele tocou na boca dela. Incitou os lábios a abrirem-se. Dedos a deslizar pelo seu cabelo, segurando-a com firmeza, dentes brincalhões, provocando-a com pequenas
mordidelas. com um movimento rápido, a língua dele tocou na dela e depois entrou.
A intimidade invasiva enviou-lhe tremores viscerais e profundos até às ancas. Teve o efeito de uma declaração inequívoca daquilo que estavam a fazer e uma advertência
mais direta do que a das suas palavras.
O calor do seu amplexo e a beleza desta pequena união venceram-na. Nunca na vida a tinham tomado nos braços, muito menos
desta forma. Nunca fora desejada por ninguém. Nunca se sentira tão viva na sua essência. Um suspiro de alívio pungente sufocava-a. Queria ficar aninhada para sempre
nesta ligação humana.
Ele continuou a tomar mais e mais. Mais do seu corpo e da sua vontade. Ele tinha-a num sítio pequenino repleto de prazer, onde a sua noção de si se turvava.
- Ainda tendes frio?
Ela abanou a cabeça. Podiam estar deitados na neve que ela não teria frio.
Ele retirou-lhe a capa e deixou-a cair ao chão. Enquanto a beijava profundamente, os seus dedos desataram o laço da capa dela e afastaram-lhe as abas do corpo. Ela
foi sacudida por um arrepio que nada tinha a ver com temperatura.
O peito dele esmagava-lhe o braço. Sem pensar, ela tirou-o de lá e abarcou-lhe os ombros.
Era notória a mudança que o abraço mútuo provocou nele. Os beijos dele tornaram-se insistentes e as suas carícias mais arrojadas. O corpo dela deleitava-se desavergonhadamente
com as descobertas dele. Uma ardência no seio que não estava encostado ao peito dele, ressentindo-se da falta de contacto. Toda ela incitava silenciosamente a mão
dele a mover-se de diferentes maneiras.
Como se ele a tivesse ouvido, as suas carícias desceram. com gestos longos e afogueados que penetravam a seda fina, tocava no corpo dela com uma intimidade escandalosa.
Inclinando a cabeça, percorreu, com beijos, a pele que o vestido deixava exposta, e depois o próprio vestido. O calor da respiração dele chamava-a e ela curvava-se
para se aproximar. A boca dele brincava no seu peito, mordiscando através da seda, aproximando-se do mamilo.
Ficou louca. Nunca pensara que existisse algo tão bom e tão urgente. O prazer, e o desejo crescente, venceram-na por completo.
E ele deu-lhe mais. O braço que a rodeava mudou-a de posição, para ele conseguir abarcá-la com mais segurança. Ao mesmo tempo que lhe estimulava um seio com a boca,
a sua mão deslizava até ao
outro para o provocar. Arrancava gemidos dela com meiguices e incitava-a a abrir mão de si própria a favor da deliciosa euforia.
Ela não conseguia resistir ao que estava a acontecer. Não sabia como. Não queria.
Ele parou e olhou para ela. Ela sentiu nele um crescendo de tensão, que hesitou para logo se avolumar ainda mais. Ele lançou a mão para trás e bateu na parede da
carruagem.
Depois beijou-a profundamente e acariciou-a com uma mão possessiva que não conhecia comedimento. A pequena pausa repusera nela um pouco de discernimento, porém.
A realidade intrometeu-se por um instante. Viu sem margem para dúvidas o que estava a acontecer e não pôde ignorar as implicações escandalosas da forma como ele
agora a manipulava.
Ele voltou a envolver-lhe o seio com a boca e acariciou-lhe as pernas mais acima. Ela deu por si novamente a vacilar, no limiar do abandono total. O seu corpo queria
desesperadamente sucumbir e algo selvagem na sua alma também. O prazer que sentia prometia-lhe que seria maravilhoso. Mas outra voz, que mal sobrevivia, avisou que
seria perigoso.
Ela forçou-se a tirar o braço de cima dos ombros dele. Afastou-se. - Não devemos. Vós sabeis que não devemos.
Precisou de toda a força que tinha. Havia demasiado nela que se rebelava contra aquela recusa e desejava que ele não a aceitasse.
Ele olhou para ela. Ainda tinha a mão na sua coxa, acordando expectativas que ela não se atrevia a reconhecer. Mesmo hesitando, ele incitava-a.
Se ele voltasse a beijá-la, ficaria desfeita.
Ele deixou-a ir. - Claro. Tendes razão. O perigo levou a melhor sobre os dois. As pessoas muitas vezes esquecem-se delas próprias em alturas destas.
Ele transferiu-a do colo dele para o assento ao seu lado e voltou a colocar-lhe a capa por cima. Ela sentiu o coração pesado. Ele apresentara uma desculpa para os
dois, mas principalmente para ela.
Ele voltou a dar uma pequena pancada na parede, não se afastou nem passou para o outro banco. Até deixou o braço à volta dela. Parecia que o fazia por gentileza,
para ela não se sentir tão constrangida.
Ela sentiu-o colocar alguma distância entre eles, apesar da proximidade. Antes de a carruagem abrandar e parar ela soube que ele tencionava manter o que acontecera
no tempo e no espaço em que eles o tinham vivido.
Ela devia estar grata, mas quando ele a ajudou a sair e a acompanhou até à porta, uma tristeza pesada alojou-se no seu coração.
Na entrada, as velas mal lhe iluminavam o rosto quando a conduziu até à escada.
- Devíeis ir para o vosso quarto, Diane. Chamai uma criada para vos tratar do braço.
As suas ações eram descontraídas e educadas como sempre, as suas palavras calmas e inofensivas. A sua compostura deixou-a muito admirada. Ela mal conseguia respirar.
Apressou-se a subir a escadaria. A meio do caminho, olhou para trás. Daniel não se retirara. Observava-a com uma expressão que lhe deixou as pernas bambas.
Não parecia nem de perto tão contido como as suas ações e palavras. Uma especulação masculina inflamava-lhe o olhar, perigosamente.
Ela logo compreendeu o significado daquela primeira pancada na parede da carruagem. Aquele toque fora o sinal para o veículo continuar a andar e não voltar a casa.
Se ela não o tivesse impedido...
com o rosto a arder, subiu mais depressa os degraus, um pouco preocupada com a possibilidade de ouvir os passos dele atrás dela.
Estivera perigosamente perto de ser violentada naquela carruagem.

CAPÍTULO 8
Daniel avançava, silencioso e invisível, pelas ruas escuras da cidade adormecida. Tentou limitar os seus pensamentos ao assunto que tinha entre mãos, mas estes continuavam
a esquivar-se para a doce paixão de uma jovem numa carruagem escura.
Amaldiçoava-se. Era indesculpável que esta noite, de entre todas as noites, se tivesse deixado distrair pelo prazer. Teria bastado um impulso inconsequente para
ter destruído tudo. Se tivesse permanecido naquela carruagem, o atraso teria comprometido não um mas dois objetivos.
Ele nunca perdia o controlo de coisa nenhuma, muito menos da luxúria. Agora quase acontecera, o que o deixava furioso.
Tentou agarrar-se à raiva, mas as memórias não paravam de se sobrepor, suavizando o rancor com a sua brisa suave, distraindo-o da sua determinação.
Parou na sombra de uma porta. Nunca conseguiria cumprir o trabalho desta noite naquele estado. As lembranças dos suspiros e da suavidade de Diane iriam torná-lo
descuidado.
Praguejando mais, forçou-se a tomar um caminho diferente. As pernas levavam-no, mas o seu espírito rebelava-se.
Foi dar a um sítio que nunca visitava a não ser quando precisava de ser lembrado de quem era sem contemplações. A sua carruagem
nunca passava por aquela praça e ele passava sempre à distância de pelo menos três ruas. Evitava a própria cidade de Paris por causa deste lugar. Estava definitivamente
contrariado por ter de lá ir naquele momento, para alimentar o fogo da sua resolução e para se punir por ter esquecido por breves instantes a razão pela qual ainda
vivia sequer.
Encostou-se a um muro e ficou a olhar a escuridão, para um ponto muito específico. Sabia exatamente onde era, a quantos passos. Era apenas mais um grupo de pedras
de calçada entre muitos outros, a sua horrível história arrastada para o esquecimento, gasta por milhares de pés.
Invadiram-no memórias. Velhas memórias, vívidas de mais, atendendo ao tempo que tinham. Memórias de horror e terrível impotência. Sons feios e visões mais feias
ainda, e olhos que refletiram o início do terror num último olhar.
Ele não ficou muito tempo, mas podia ter-se passado uma vida inteira. Tinha-se passado uma vida inteira. Ele evitava este sítio em particular, mas a sua alma nunca
estava longe dele.
A seguir, dirigiu-se para o destino quase esquecido enquanto teve Diane nos braços, e ao propósito quase abandonado pelo impulso de a possuir.
A casa estava escura, cheia do repouso da noite. Daniel examinou a fachada até às pequenas janelas das águas-furtadas acima dos beirais. Na escuridão, percebia-se
uma luz pequena e bruxuleante numa delas.
Foi por um beco até às traseiras da casa. Tirou o casaco e deixou-o cair por detrás de um arbusto. Procurando com as mãos as juntas fundas das pedras angulares,
subiu pela parede.
Não tinha colete a tolher-lhe os movimentos. A sua camisa preta não refletiria o luar. Era uma forma escura avançando a pulso sobre uma massa escura.
Alcançou o segundo andar e rateou à procura da janela à sua esquerda. Os seus dedos agarraram a saliência do peitoril por baixo da janela entreaberta. Acabou de
a abrir lenta e cuidadosamente, transpô-la e entrou no quarto.
Na lareira, ainda ardiam as últimas brasas, mas ele não precisava delas. Reconheceu o seu destino pelo seu bizarro perfil, no topo de uma mesa comprida. Afundada
numa cadeira ao seu lado estava a forma adormecida de um homem demasiado ansioso para ir para a cama, mas exausto de mais para se manter acordado.
Daniel examinou o mecanismo. Dois cilindros apoiados numa estrutura de madeira e fios que iam até uma panela de líquido. Fazendo uso de um pau, afastou os fios da
panela, memorizando as posições corretas. Depois mergulhou os dedos no líquido e tocou numa peça sólida e quadrada de metal. Sentiu-lhe a forma, registando mentalmente
o canto rombo e as incisões ligeiras na superfície.
Pôs a mão no bolso e retirou outra peça de metal com marcas idênticas. Trocou-a pela que tinha por baixo dos dedos, devolveu os fios ao seu lugar e regressou à janela.
Esgueirou-se para o exterior, deparando com as marcas dos seus pés nas pedras rústicas. Fechou a janela. De manhã estaria trancada.
Deixou-se cair ao chão e regressou pelas ruas escuras. A parte dele estava feita. A vaidade encarregar-se-ia das coisas a partir dali.
Agora, trataria de concluir o resto.
A praga distorcida de um louco ecoava-lhe na cabeça. Devia concluí-lo rapidamente, também, porque o tempo podia estar a esgotar-se.
Tudo tinha mudado e Diane não podia fingir que não.
Daniel agia como se aquele lapso de tempo na carruagem não tivesse ocorrido, mas o regresso da sua polida indiferença desta vez não chegava para os fazer regressar
ao ponto anterior. O que eles tinham feito pairava no ar durante as refeições e nos breves períodos
em que ela estava na sua companhia, e ocupava os seus pensamentos mesmo quando estavam longe um do outro.
Ela náo conseguia conter uma nova suscetibilidade à presença dele. O magnetismo estava sempre lá, fazendo o seu coração bater mais forte. Ele nem sequer precisava
de olhar para ela para se dar o início de uma daquelas infinidades. Estava sempre à espera que ele se aproximasse dela e a beijasse. Preocupava-a que ele lhe aparecesse
à porta do quarto.
Pior, não estava completamente certa de recusar aquele beijo, ou até mais do que isso. Não se ele a fizesse sentir o que ela tinha sentido naquela carruagem.
O que significava que ela não podia, em boa consciência, ficar mais tempo naquela casa.
Durante as suas incursões sociais com Jeanette, fez saber que não seria adversa a uma posição como dama de companhia ou governanta se alguma das amigas de Jeanette
soubesse de alguma situação semelhante. Deixou claro que preferia uma família inglesa. Assim poderia mais tarde ser levada para Inglaterra e entretanto podia travar
conhecimento com pessoas que tivessem conhecido uma família chamada Albret.
Uma semana depois, desceu para a sala do pequeno-almoço e deparou com Daniel, que fazia uma das suas raras aparições matinais. Jeanette e ele estavam sentados tranquilamente.
Diane juntou-se a eles, mas fez-se silêncio após as cortesias iniciais.
Por fim Daniel pediu licença. - Quando tiverdes acabado, Diane, gostaria que viésseis até à biblioteca. Há algo que preciso de vos dizer.
Ela náo se apressou a terminar. Provavelmente ele ia desculpar-se e apresentar mais desculpas para ambos. Ela preferiria evitar o assunto por completo.
Jeanette chamou Paul. Enquanto o criado erguia a sua senhora nos braços, ela olhou para Diane. - O meu irmão adiou assuntos importantes para falar convosco. Por
favor náo o façais esperar tempo de mais.
Ela tê-lo-ia deixado à espera para sempre, não fora aquele pedido contundente.
Encontrou-o na biblioteca, sentado à lareira. Tinha sido lá colocada outra cadeira, para ela. Ele parecia absorto com alguma coisa, muito à semelhança da viagem
de Rouen.
Ela pensou na frequência com que via aquela expressão, até às refeições, às vezes, enquanto conversava com Jeanette. O seu ar de indiferença podia ser parcialmente
explicado pela impressão de que parte da sua mente estava sempre ocupada com outros assuntos. Cismava em alguma coisa e ela duvidava que essa coisa fosse Diane Albret.
Negócios? Fretes? Não lhe parecia. Era mais profundo e mais antigo. Era algo muito mais pessoal. Estava sempre lá, uma força sombria que o seu corpo e a sua presença
emitiam como uma energia mal contida.
Ela sentou-se. Ele lançou-lhe um olhar, para depois voltar os olhos para o lume.
- A minha irmã diz-me que vós tendes pedido às amigas dela para procurarem informação sobre uma colocação para vós.
- Pareceu-me que era a coisa sensata a fazer. Há aqui muitas famílias inglesas.
- A maior parte está ligada ao exército ou ao governo. Pode passar muito tempo até irdes para Inglaterra.
- Então terei de esperar. Pelo andar da carruagem, também esperarei muito tempo se ficar nesta casa.
- De todo. Informei Jeanette hoje de manhã que partiremos para Londres dentro de alguns dias.
Ficou espantada. Não houvera indicação de semelhantes planos. Parecia estranho anunciar uma partida tão subitamente.
- Gostaria que reconsiderásseis a decisão de vos lançardes por aí sozinha. Também gostaria de propor uma pequena alteração nos vossos planos, uma vez chegados a
Inglaterra.
- Que tipo de alteração?
- Uma que vos será apelativa, espero. Um lugar melhor para vós do que o de governanta.
Ela preparou-se para o que viria. Não conseguia acreditar que ele fosse tão arrojado.
- A minha irmã ganhou estima por vós. Desta vez ela irá comigo. Não se sentirá confortável a andar para aqui e para ali como faz em Paris. Uma companhia aliviar-lhe-á
o isolamento.
Ela ficou a olhar para aquele homem atraente e confiante, descontraidamente sentado na outra cadeira. Não admira que Jeanette estivesse tão calada ao pequeno-almoço.
A irmã dele provavelmente suspeitava do que ele andava a tramar.
Talvez Jeanette não se limitasse a suspeitar. Talvez soubesse. Era uma triste ideia. Diane tinha ganhado muita estima por Jeanette. Fora um pouco como ela imaginava
que seria ter uma irmã. Não lhe agradava a ideia de que talvez Jeanette tivesse andado deliberadamente a prepará-la para ser amante de Daniel.
Pelo que Daniel propunha, e considerando o que se passara entre eles na carruagem, era aquela a verdadeira posição que a aguardava em Inglaterra.
Não a chocou tanto quanto devia. Parte dela aguardara esta proposta durante a semana inteira. Talvez o mês inteiro. Ainda assim, desejava que não fosse verdade.
Tingia toda a gentileza e maculava toda a generosidade e tornava o que tinha acontecido depois da ópera uma sedução calculada.
Também a indignava que Daniel pensasse que ela era estúpida ao ponto de não ver o estratagema por detrás de tudo.
- Continuaríamos em Inglaterra como temos feito aqui?
- Sim.
- Eu seria livre de fazer visitas e ter amigos? Vós providenciar-me-íeis guarda-roupa e outras necessidades?
- Claro.
Aquela calma absoluta irritou-a. Ele podia pelo menos estar um pouco contristado. - O que me acontecerá quando a vossa irmã regressar a Paris e já não houver necessidade
de mim?
- Nessa altura tereis várias opções, incluindo a opção original de
ser governanta. Podeis sem dúvida fazer companhia a outra senhora. Podeis casar, o que não é uma perspetiva real se fordes governanta. Daniel St. John aparentemente
não era nenhum Monsieur Johnson.
- Se eu aceitar esta colocação, não estarei em condições para mais tarde ser governanta, dama de companhia e, muito especialmente, esposa. Depois dessa posição,
ninguém pensaria em mim para nenhuma da outras, e vós sabeis disso. Podíeis pelo menos ter a decência de fazer como os outros homens e oferecer-me propriedades e
jóias, ou uma morada.
Ele olhou para ela com um ar perplexo, e depois divertido. Ela tinha definitivamente toda a sua atenção.
- Compreendestes-me mal, Diane.
- Compreendo-vos muito bem. O meu coração sempre compreendeu, mas ignorei as provas. Tendes sido excessivamente generoso e fizestes-me conhecer luxos e confortos
para lá da minha imaginação. Tenho um guarda-roupa capaz de fazer inveja à filha de um conde. Sou apresentada como uma senhora e vivo como tal. Madame Leblanc avisou-me
das coisas antes de eu me ir embora convosco, e percebo agora que ela estava correta.
- Percebo o aspeto que isto pode ter aos vossos olhos, especialmente depois do que aconteceu na carruagem.
- Pois claro. Posso não ser muito vivida, mas também não sou estúpida como uma couve.
- Assevero-vos novamente que me haveis interpretado mal. Nos olhos dele pairava divertimento e também uma ternura
encantadora.
Assolou-a um pensamento terrível. Talvez ela tivesse compreendido mal.
- Falais mesmo de eu ser dama de companhia da vossa irmã, e nada mais? É tudo o que esperareis de mim?
- É tudo o que esperarei de vós.
Varreu-a uma onda de humilhação. Já era mau o suficiente tê-lo acusado de uma coisa daquelas, mas ter-se enganado...
Tapou o rosto com as mãos e riu-se da sua figura. - Eu... Oh, Céus... isto é muito constrangedor...
- Não há razão para vos sentirdes constrangida. - Ele falava e agia com uma gentileza que ela nunca lhe tinha visto. - Interrogais-vos sobre as minha intenções.
Não vo-lo censuro. As últimas semanas devem ter-vos confundido. Qual seria o propósito de toda a generosidade? Porquê transformar-vos numa senhora se procuráveis
apenas ser governanta?
- Tem sido peculiar, e exatamente como Madame previra.
- Depois eu fui ao encontro da previsão na semana passada. Juro-vos, não se trata de um esquema elaborado para vos enfiar na minha cama.
Ela enrubesceu profundamente e sentiu-se grata quando ele se ergueu e se aproximou da lareira.
De olhos postos no fogo, Daniel falou. - Provavelmente devia admitir que essa generosidade não tem sido sem proveito para mim, tal como acontecerá com a vossa presença
na minha casa de Londres. Sou um homem de negócios. Mulheres da família e esposas são muito úteis a homens como eu. A debilidade da minha irmã faz com que não atraia
a atenção de homens que para mim seria vantajoso conhecer. Vós atraireis, em Londres como aqui. Não há nada de sórdido nisso. É assim que o mundo funciona. com uma
prima encantadora na vida social, os meus círculos alargar-se-áo, é tudo.
- Esperais que eu encoraje estes homens?
- De todo. Acontecerá sem esforço da parte de ninguém. Surgirão admiradores. Eu travarei conhecimento com eles e os pais e os tios deles. Jogaremos cartas em clubes,
far-se-ão negócios, e para vós não haverá diferença.
Diane limpou dos olhos lágrimas do seu riso constrangido.
- Agradeço-vos a explicação. É certo que confere mais sentido às últimas semanas. Depois do que Madame disse... bem, parecia que... e depois a ópera... mas vejo
que foi realmente consequência do perigo. Sossega-me saber que não pensais em mim dessa maneira.
Ele voltou-se. - Eu não disse que não penso em vós dessa maneira. A leveza, de Diane desapareceu com uma inspiração cortante.
- Não há razão para ter medo, Diane. O facto de termos dado um primeiro passo não obriga a que eu dê mais nenhum. Sois encantadora e, tal como a maioria dos homens,
reparo e reajo, é tudo.
- Se eu continuar a viver em vossa casa, pode ser muito. Dizeis que não esperais nada mais de mim. Agora quero honestidade total. Querereis algo mais? Madame tinha
razão? Pensais propor-me ser vossa amante?
- Não é minha intenção. Quanto àquilo que penso, nem sempre o controlo.
Aquela resposta ambígua não a deixou descansada. Nem a expressão dele. O coração dela batia com um receio e uma excitação que ela não queria reconhecer.
- Se de facto o pedisse, o que diríeis? - Falou como se desse voz a uma curiosidade inofensiva.
Ela ficou a olhar para ele, aparvalhada.
- Porque se pensasse que diríeis sim, poderia sentir-me muito tentado.
- Quero a promessa de que, se eu ficar com Jeanette, nunca cedereis a essa tentação.
- Não posso fazer-vos semelhante promessa. Tal como a maior parte dos homens, costumo deixar a progressão destas coisas à mulher, como fiz convosco naquela noite.
Vós não queríeis realmente parar e poderia sem dificuldade ter terminado de forma diferente. Um beijo mais, uma carícia mais... o facto de eu não ter dado esse passo
deve deixar-vos mais descansada do que qualquer promessa leviana.
- Deixais-me estupefacta. Começais por me dizer que não esperais nada de mim, e logo em seguida que se assim não fosse eu também não resistiria.
- Pedistes honestidade, e é o que vos dou.
Honestidade de mais. Era constrangedor presenciar uma descrição tão desbocada da sua fraqueza. Além disso, a indicação de
que o futuro da sua virtude estava completamente nas suas mãos não a sossegou.
Porque ela tinha sido fraca, e ele perturbava-a tanto que não sabia se voltaria a ser forte.
Pousou o olhar no colo, onde os seus dedos se contorciam, muito à semelhança do confuso emaranhado das suas reações e emoções.
- Diane. - Pedia calmamente a atenção dela. Uma palavra imperativa e meiga ao mesmo tempo.
Ela ergueu os olhos. Ele estava de pé à lareira, misterioso e perigosamente belo. As chamas espreitavam-lhe à volta das pernas como se o fogo lhe tivesse dado substância.
O olhar dele atraía inexoravelmente a sua atenção.
Veio-lhe à memória o nome de infância que lhe atribuíra, mais apropriado do que alguma vez pensara. Homem Diabo. Príncipe da tentação.
- Diane, quereis que dê esse passo? Quereis ser minha amante? O choque quase a deixou sem fala. - com certeza que não. Ele aproximou-se dela. Ela encolheu-se na
cadeira numa tentativa vã de manter alguma distância.
Ele levantou-lhe o queixo e olhou para o fundo dos seus olhos, tornando-a incapaz de qualquer resistência. O seu polegar áspero roçou-lhe o rosto e um temor escandaloso
desceu-lhe até ao coração.
- Mentis. Não tendes certeza de todo.
Ele largou o queixo e dirigiu-se para a porta.
- Considerai a proposta da minha irmã. É a oportunidade de terdes algum tipo de vida. E estais a salvo de mim. Por muitas razões.

CAPÍTULO 9
Diane, esta é a condessa de Glasbury - disse Jeanette. A visita que estava sentada na sala de estar de Londres tinha cabelo escuro e pele clara e olhos que brilhavam
de ternura. Era muito mais nova do que Jeanette, não muito mais velha do que a própria Diane. Não parecia nem de perto tão orgulhosa como as condessas francesas
que Diane tinha visto nas Tulherias ou na ópera.
Os olhos podiam ser amigáveis, mas não deixavam de a examinar.
- Que jovem encantadora sois, Diane. Atrairá atenções como um íman, Jeanette. Conto que os meus irmãos se enamorem mal a vejam.
- Por sinal, um já a conheceu - interveio Daniel.
Diane voltou-se para a janela. Não reparara em Daniel quando entrara na sala.
- Um dos irmãos da condessa é Vergil Duclairc, que já conhecestes em Paris - explicou.
-Já conheceis Vergil? Que maravilha. Aguardamos que regresse de Paris a qualquer momento, e assim haverá um rosto que vos é familiar.
Diane duvidou que a condessa se mostrasse tão entusiasmada se conhecesse as circunstâncias daquele primeiro encontro, e o propósito do petit salon de Margot.
- A condessa aceitou ser vossa acompanhante sempre que fordes a reuniões e bailes - explicou Jeanette.
- Só até conseguirmos persuadir-vos a vós a ir, Jeanette - disse a condessa. - Dou um jantar esta semana, na quinta-feira. Daniel, talvez vós e a vossa prima queiram
juntar-se a nós. Enviarei imediatamente o convite e conto com a vossa confirmação. Teria sido dirigido mais cedo se tivesse sabido que estáveis de regresso a Londres.
- Inclinou-se para Diane, como se fizesse uma confidência. - Não será um grupo grande. Ireis achá-lo uma iniciação fácil.
A condessa despediu-se e saiu. Diane tentou assimilar que acabava de se transformar na protegida de uma condessa inglesa. Não fazia sentido. Em Paris, Jeanette movia-se
em círculos elevados, mas não os mais elevados. Os seus amigos eram ricos e alguns eram pequenos aristocratas, mas ela não estava entre as mulheres que jantavam
com a aristocracia.
- A condessa é muito generosa - disse ela. - Acho que vou estar a mais. Não me enquadro no jantar dela, e todos ficarão a saber.
- Não será o que esperais. A condessa está um pouco outrée. O facto de eu ser amigo dela comprova-o - avançou Daniel. - Ela prefere os círculos mais democráticos
aos estritamente convencionais, e ainda bem que assim é, pois os melhores não a aceitam.
- Porque não?
- Separou-se do marido.
- Hipócritas insuportáveis - ripostou Jeanette. - Uma mulher deixa um marido infame e é punida. Nem sequer foi por outro homem. E as mulheres que a caluniam de dia
andam de cama em cama à noite. Os Ingleses são um povo assim. Continua a espantar-me que consigais viver no meio deles, Daniel. Pelo menos em França não fazemos
uso desta pretensão de grande moralidade quando nós próprios não somos melhores.
Daniel ignorou a explosão da irmã. - A condessa é uma de várias mulheres da sua posição que têm um grupo de amigos muito diverso, Diane. Achareis os serões divertidos
o bastante, mesmo se nunca entrardes no Almacks.
Jeanette revirou os olhos. - Graças a Deus. É o pior dos piores.
- Talvez a condessa tenha razão, mamselle, e acedais a acompanhar-me em alguns destes serões - disse Diane.
- A vida social inglesa não me interessa. No entanto, não há razão para vós penardes por causa dos meus caprichos, e o meu irmão cuidou que assim não fosse.
Ele não cuidara apenas do seu divertimento. Cuidara que ela fosse exibida, para atrair os homens que poderiam beneficiá-lo.
Diane estava determinada a não se deixar esquecer das razões de tanta generosidade.
Jeanette parecia agitada. Desde que haviam zarpado de França num dos navios de Daniel que estava irritadiça. Piorara quando tinham chegado à casa de Londres, um
dia antes.
- Talvez queirais ir apanhar ar ao jardim, Diane - disse ela.
- Quero falar com o meu irmão sobre uma coisa.
Era a primeira vez que lhe pedia tão claramente para sair. Diane pediu licença e retirou-se.
Algo mudara desde a chegada a Londres. A relação entre irmão e irmã tinha azedado.
- Não volteis a fazer isso - sibilou Jeanette.
Daniel ouviu o tom mordaz e viu os olhos inflamados. Ele lamentava o desassossego dela, mas não conseguia evitar pensar que uma Jeanette ofendida e zangada era melhor
do que uma Jeanette a vogar pela vida numa nuvem de memórias parisienses.
- Nunca mais convideis os vossos amigos para me visitar desta maneira. Receber a condessa em Paris é uma coisa, e isto é outra. Concordei cá voltar, passados estes
anos todos, por causa de Diane e por vossa causa, mas deixei bem claro que não sairia desta casa. Não quero estas mulheres a tentarem levar-me a melhor, sejam elas
condessas ou mulheres de armadores ou vossas amantes.
- Não há mal nenhum em aceitar visitas, mesmo se não sairdes. Não é saudável para vós ficardes completamente reclusa.
- Não me digais o que fazer. Não vos atrevais. Nunca esqueçais
que sou a única mulher do mundo que não vos venera. Paul e Diane serão companhia que chegue.
- E quando alguém fizer uma visita a Diane? Está destinado a acontecer, mais cedo ou mais tarde.
- Jurastes que Tyndale nunca viria aqui.
- Ele não virá, mas espero que outros sim.
- Então serei a presença cinzenta a ler um livro num canto. Ele pedira-lhe um grande sacrifício, exigindo-lhe que viesse.
Doía-lhe vê-la debater-se com as emoções que Inglaterra evocava.
Ele aproximou-se e pousou-lhe a mão em cima do ombro. Ela ergueu os olhos para ele. A raiva dissipou-se do seu rosto, revelando as verdadeiras emoções que a dominavam.
Ele deu-lhe umas pancadinhas no ombro para a reconfortar. Ela inclinou a cabeça até se encostar a ele, e o seu toque tornou-se um abraço.
- Não estou a ser justa - anunciou ela. - Caiu tudo em cima de vós, e eu não devia queixar-me por algum desconforto. Espero apenas que termine depressa.
- Tão depressa quanto for possível, querida.
Ela fungou. Daniel estava contente por não conseguir ver as suas lágrimas, ou as tentativas de as reprimir.
- Há uma coisa, Daniel. Disse-o no início e volto a dizê-lo agora. Não quero vê-la magoada de forma alguma. Ganhei afeição por ela. E sei que a quereis, mas não
pode ser.
Não pode ser. Não precisava que Jeanette lho dissesse. Ecoava na sua cabeça dia e noite. Principalmente de noite.
Em Paris podia ter sido, e quase foi. Sentira-se francamente tentado a pôr de lado tudo o resto para o fazer. Ainda se sentia, por vezes, quando a via, como hoje,
a entrar na sala de estar, tão delicada na sua beleza contemplativa.
Era fácil esquecer tudo nessas alturas. Quem ela era e de onde a conhecia e que ela podia ser o meio para cumprir rapidamente o objetivo de uma vida.
Deixou Jeanette e foi para o jardim procurar Diane, apesar de não dever fazê-lo.
Não fazia sentido. Não podia ser. Foi de qualquer maneira.
O jardim era maior do que o de Paris, e menos formal. Adequava-se à casa e à rua de Mayfair, na qual se perfilavam outras fachadas imponentes. A sua disposição natural
e livre, ao estilo inglês, agradava-lhe.
Na rua havia vizinhos que não gostavam que ele ocupasse aquela morada. Aqueles que, ao contrário da condessa de Glasbury, se importavam muito com a forma como a
pagou. Ele sabia que parecera um arrivista quando tomara posse da casa, o caso do armador que caíra de paraquedas no meio dos seus superiores, onde não era desejado.
Ele não se importava com coisas daquelas e ignorá-las-ia mesmo se se importasse. Estava ali por uma razão.
Deparou com Diane sentada num banco por baixo de uma árvore despida, embrulhada no seu velho casaco da escola. Tinha melhores agora, e ele perguntou-se porque teria
escolhido aquele. Nem sequer a tapava devidamente, e só lhe chegava a meio das pernas.
Parou e ficou a olhar para ela. Ela devia ter tido um casaco mais apropriado na escola. Ele deixava lá dinheiro todos os anos para as coisas dela, mas nunca investigara
se era realmente gasto para o seu conforto. Ao que tudo indicava, muito dele não fora, se aos vinte ainda usava um casaco que provavelmente lhe fora comprado aos
treze.
Bem-vinda ou não, era responsabilidade dele e não tinha tomado conta dela muito bem.
O que era outra razão para não poder ser.
Caminhou em direçáo a ela.
Ela acompanhou a sua aproximação, com olhos que pareciam quase tão acusadores como os de Jeanette.
- Forçaste-la a vir para aqui, não foi? - Arremessou a pergunta ainda antes de ele chegar perto dela. - Não estou aqui para a acompanhar. Ela está aqui para me acompanhar
a mim.
Depois de um ataque daqueles, sentar-se ao lado dela estava fora de questão. - Ela está aqui porque eu precisava de ter Paul comigo, e ela tornou-se dependente dele.
- Então Paul deve ser mais do que um criado que serve de ajuda a uma mulher inválida.
Ele contara com conversa amena e o prazer involuntário da sua companhia, não esta inquirição incisiva. Ocorreu-lhe a mesma ideia da ópera, que, apesar da sua inexperiência,
as suas perceções eram muito certeiras.
- Paul é muito mais do que um criado. Conheço-o há anos e esporadicamente presta-me outros serviços para além de ajudar a minha irmã. É um dos poucos homens em que
confio plenamente. Na verdade, nunca deixaria um mero criado auxiliá-la como ele faz. Então, há mais perguntas ou acusações que queirais fazer?
Ela inclinou a cabeça. - Sim. O que é aquele barulho? Falava de um burburinho distante que chegava com a brisa de forma regular. Tornara-se tão trivial que ele já
nem sequer o ouvia.
- Uma manifestação. Agora acontecem com alguma frequência. Há insatisfação com as políticas governamentais.
- Deve ser muito grande, se conseguimos ouvi-la. As de Paris não eram tão barulhentas.
- Em Paris havia um exército ocupante para garantir que não
o eram.
Ela olhou para o lado, para uma sebe espinhosa que dividia o jardim ao meio. - A condessa parecia ter muita familiaridade convosco. É a vossa Margot? Não receeis
que a vossa resposta possa chocar-me. Paris, e a tagarelice dos amigos de Jeanette deixou-me enfastiada muito rapidamente.
- Porque perguntais?
- Estou curiosa.
- Porque estais curiosa? Ela encolheu os ombros.
- Se eu disser que sim, sentireis ciúmes?
- Claro que não.
- Não consigo pensar em mais nenhuma razão para essa pergunta, Diane.
Ela corou profundamente. Ele observou com agrado o rubor a espalhar-se e pensou que seria muito agradável percorrer o mesmo caminho com os lábios.
Ela reparou no olhar dele e aquela expressão desconfiada assomou-lhe aos olhos. Não era tão cautelosa e inocente como nos primeiros dias em Paris.
Ela mostrou um sorriso quase provocante. - Não sentiria ciúmes, mas tranquilidade.
A audácia da referência surpreendeu-o. Ele não contava que ela voltasse a mencionar suspeitas relativamente às suas intenções.
Esteve muito perto de lhe dizer que as coisas não funcionavam daquela forma, que um homem podia ter dez Margots e ainda cortejar outra.
- A condessa é apenas uma amiga. Quanto ao facto de vos tranquilizar, a minha palavra terá de servir. Agora, se as vossas perguntas terminaram, deixai-me a mim fazer
algumas. O vosso quarto é adequado? Estais satisfeita?
- Tendes alguma queixa? Estais a aprender as vossas lições? Ela utilizou as inflexões dele para repetir as velhas perguntas da escola, e até se atreveu a imitar-lhe
a voz.
Olhou para ele com uma expressão endiabrada que o fez rir.
Ela também riu.
Foi um momento maravilhoso, um pedacinho de euforia. Ele não duvidava que ela zombava de outras coisas além das perguntas dele. Ela via o absurdo daquilo. Mantinham
aquelas pequenas formalidades de anfitrião e hóspede, de tutor e tutelada, para conter o perigo.
Mas ela sentia-se atraída pelo perigo. com aquela pergunta impertinente, esvoaçara ao redor do fogo dele, sem sequer reparar que fora atiradiça com aquela referência,
o seu sorriso e o seu riso.
- O meu quarto é bastante apropriado e estou bastante satisfeita. No entanto, estou curiosa sobre esta vida social que planeastes
para mim. Um grupo muito diverso, chamastes-lhe. Não é um círculo pequeno, espero?
- De todo. Porque perguntais?
- Um círculo pequeno não me conviria, nem um que fosse apenas composto pela alta sociedade. Estou aqui por uma razão, além de acompanhante da vossa irmã e isco para
os vossos negócios.
- Que razão é essa? Obter casamento? - Disse-o com ligeireza, esperando vê-la rir outra vez.
- Saber da minha família.
Não era algo que ele quisesse ouvir. Talvez até tivesse preferido ouvir que ela procurava marido. - Pensei que havíeis concluído que não há nada a saber.
- Os meus pais podem estar mortos, mas a minha história não. Tenciono começar a investigá-la amanhã.
Raios. Ele imaginou as suas perguntas educadas a todas as pessoas daquele círculo variado e fluido da condessa de Glasbury. Era possível que ela acabasse por obter
informação bastante para causar precisamente os problemas que ele esperava evitar.
- Por exemplo, Mister Duclairc disse que, se o meu pai era armador, os navios dele podiam ter sido segurados. Tenciono descobrir se assim foi. Onde devo dirigir-me
para saber isso? Sendo vós próprio armador, deveis saber.
Seria imaginação sua que ela o observava cuidadosamente enquanto aguardava a resposta dele? Talvez fosse. Talvez não. Por um instante, os olhos dela recordaram-lhe
os do pai. Já não acontecia há muito tempo.
O prazer galante que sentira com a conversa morreu. Ver aquela semelhança erigiu um muro que o riso nunca conseguiria escalar. Nem mesmo o desejo.
Ele acolheu a barreira de bom grado. Era bom ser lembrado da razão primeira pela qual não podia ser.
- com certeza que sei onde ir. Se puderdes esperar alguns dias, levo-vos eu próprio aos escritórios dos agentes de seguros, para poderdes fazer as vossas averiguações.
A expressão dela iluminou-se de deleite. - Ides ajudar-me?
- Claro. Bastava pedirdes.
Ela nunca lhe parecera tão feliz. Parecia que ia abraçá-lo, tal era a gratidão. Deixou-o aliviado e desapontado que ela não o fizesse.
Ele despediu-se, e ela agraciou-o com um sorriso deslumbrante repleto de renovada confiança e convicção. Provocou vagas considerações sobre formas de a fazer olhar
assim para ele eternamente.
Paul aguardava-o dentro de casa. Entregou-lhe uma carta que tinha chegado.
Daniel leu a mensagem. - vou até Hampstead hoje à tarde. Quero que fiqueis aqui com a minha irmã, Paul. Será necessário algum tempo até ela se sentir confortável
sem um de nós por perto.
- Pode nunca chegar a sentir-se confortável sem nós. Não aqui. Não, não aqui. Daniel olhou pela janela. Diane ainda estava
sentada no jardim, perdida nos pensamentos dela. Perguntou-se o que ocuparia a sua mente. Sonhos de triunfo na sociedade londrina? Duvidava que fosse isso.
- Relembrai os criados daqui sobre o quarto de Diane, Paul. É para fazer o mesmo que em Paris. O fogo deve estar sempre aceso durante o dia, mesmo quando ela está
para fora. Não deve nunca regressar e deparar com uma lareira fria.
Os dois homens dirigiram-se um para o outro com sabres, executando uma dança de rigor e perigo.
Daniel observava da entrada da sala de jantar de Hampstead, despojada de mobília e rústica no seu encanto Tudor, onde reverberava o bater do aço.
Não observava muito o espadachim alto, magro, de cabelo a fazer-se grisalho, o que estava vestido com calças fora de moda e colete de seda azul. Os movimentos dele
criavam linhas fluidas de poesia, e os seus olhos escuros e frios permaneciam impassíveis.
Era o outro, o de cabelo louro com um corte da moda, que absorvia a sua atenção. Vestido para o combate de camisa e calças
apenas, acometia com tanta sofreguidão que um olho menos experiente poderia presumir que ganharia. A sua expressão refletia determinação e nuances de ferocidade.
Daniel suspeitava que, se ocorresse um acidente no treino e se fizesse sangue, este homem não iria importar-se. Desde que, claro, o sangue não fosse dele.
O treino terminou. O homem louro limpou a testa com uma toalha e caminhou em direção a Daniel.
Não houve qualquer contacto entre ambos porque nunca tinham sido oficialmente apresentados. Irmão de um conde e membro do Parlamento, Andrew Tyndale marcava lições
privadas para não ter de se misturar com o sortido de jovens e arrivistes que frequentavam a academia de esgrima de chevalier Corbet.
Daniel examinou Tyndale subtilmente quando este passou. O homem tinha uma cara que inspirava confiança. Uma cara que fazia homens poderosos ouvirem e bispos acenarem
com a cabeça em assentimento face às opiniões ponderadas que saíam da sua boca. Aquele rosto garantira a Tyndale uma reputação inabalável. Se começava algum rumor
sobre ele, bastava olhar para aqueles olhos honestos para ver que não era verdadeiro.
Fora isso que acontecera dois anos antes, quando um camponês escocês acusou Tyndale de violar a sua jovem filha. Antes que se tornasse num escândalo, Tyndale convenceu
todos os que importavam que tinha estado numa caçada a vinte quilómetros da quinta da rapariga.
Contudo, Daniel não duvidava da veracidade das acusações. Sabia que Tyndale tinha pendor para raparigas inocentes. Chegara ao seu conhecimento que o respeitado membro
do Parlamento fazia uso de uma procuradora escrupulosamente discreta que lhe encontrava virgens com alguma regularidade. Daniel também sabia que não era o medo da
doença que fazia Tyndale privilegiar inocentes.
Desembainhando o seu próprio sabre, aproximou-se do chevalier.
- Ele é bom - disse, indicando a direção que Tyndale seguira.
- Ávido de mais, porém. Uma cabeça fria é tudo num duelo real, quando a vida está por um fio.
- Foi sempre o que ensinastes, Louis.
- Não basta ter perícia. A mente desempenha o seu papel, e é essencial ter sang-froid.
- Um sentimento muito francês. - Daniel rodou o braço para aquecer. - Muito ancien regime.
Louis sorriu. - O que esperáveis?
- Nada menos. Pensastes em regressar, tendo em conta a restauração da monarquia e Luís Filipe no trono?
- Passaram anos de mais. Um velho chevalier francês sai-se melhor em Inglaterra. Presumindo, claro, que agora não presenciemos uma revolução aqui. Seria cómico,
não? Ter escapado de uma enquanto jovem para em velho vir morrer noutra.
- Há desassossego, mas duvido que a Bretanha esteja ameaçada pela revolução.
- Eu não estou tão certo. Este governo é estúpido. Esta Corn Law1, por exemplo. Nunca é boa política matar os pobres à fome. Será que o mundo nunca aprende? - com
um movimento do braço, afastou o mundo e a política. - Chega. Comecemos. Sou mau filósofo mas um excelente professor da espada. Ficar-me-ei por aquilo que sei.
Daniel preparou-se. Louis estava a ser falsamente modesto. Era um belíssimo filósofo, e a sua mente conseguia penetrar até ao âmago de um problema tão depressa quanto
o seu sabre conseguia destruir o braço a um homem.
Daniel estava contente por Louis não se juntar aos aristocratas franceses que afluíam a Paris para reclamar os seus direitos, agora que Bonaparte de lá saíra. com
o passar dos anos, Louis tornara-se tanto um conselheiro como uma consciência. Ele quereria o amigo por perto nas semanas vindouras.
1 Taxas alfandegárias impostas aos cereais importados, para impedir a baixa de preço do cereal produzido internamente. (N. da T.)
Louis entregou a caixa que continha as pistolas. A sua expressão revelava a sua falta de estima por elas. - Coisas horríveis. Grosseiras e insatisfatórias.
- Verdade - aquiesceu Daniel. - Mas também eficazes e úteis. Quando Daniel carregava a caixa para o parque atrás da velha
casa, um cavaleiro apareceu a trote no caminho. Daniel reconheceu o jovem de rosto inglês e olhos escuros, estrangeiros.
Vira-o no escritório de Gustave Dupré, em Paris.
- O que fazeis aqui, Adrian?
- Vergil e os outros ficaram de vir ter comigo. - Por Vergil e os outros, referia-se aos jovens aristocratas que se reuniam na casa de Louis para praticar antes
de voltarem a Londres para jogar e beber. Apelidaram-se a si próprios Sociedade de Duelos de Hampstead e Daniel tornara-se algo parecido a um membro periférico.
- Não me referia ao que fazeis aqui, mas em Inglaterra. combinámos que ficaríeis em França pelo menos mais um mês.
- Dupré dispensou-me. Decidiu que não precisa de um secretário neste momento.
Daniel continuou a avançar pelo parque com Adrian no seu encalço. - É conveniente. Evita a desconfiança do momento em que acabásseis por sair pelo vosso pé.
- Foi o que pensei. Embora me deixe sem emprego.
- Isso será retificado logo que se saiba que regressastes. Castlereagh encontrará algo para fazerdes.
Pararam numa clareira protegida por um grupo de árvores. Daniel entregou-lhe uma folha de papel e Adrian levou-a para uma árvore, a vinte passos.
- Cabeça ou coração, Daniel?
- Cabeça.
Daniel abriu a caixa. Colocada em cima das pistolas estava uma pequena bolsa de veludo azul. Praguejando, enfiou-a no bolso.
Sabia que continha cem libras. Quando dera esta propriedade a Louis, dez anos antes, recusara qualquer pagamento. O velho chevalier tinha outra coisa em mente, porém,
e as notas de cem apareciam com
regularidade, mas nunca diretamente na sua mão. Se pretendiam ser renda ou tinham em vista a compra, Daniel não sabia.
- Pronto - disse Adrian.
Daniel passou-lhe para as mãos uma das pistolas e carregou a sua. Estavam virados para a árvore, onde o papel fora preso à altura da cabeça de um homem.
Adrian disparou. A bala bateu baixo e longe de mais, arrancando um pedaço do tronco da árvore.
- Continuais um atirador terrível.
- Ter-lhe-ia acertado no ombro.
- No ombro esquerdo, o que significa que ele ainda pode devolver o tiro. Tendes de acertar ou na cabeça ou no coração, Adrian. A cabeça ou o coração.
Daniel levantou a sua pistola e fez mira. - Porque é que Dupré já não precisa de secretário?
- Eu não expliquei? Vai ficar sem escrever tratados durante uns tempos. Veio para Inglaterra.
Os olhos de Daniel voltaram-se subitamente para Adrian ao disparar a pistola. O tiro falhou, redondamente.
Adrian apontou para o papel branco imaculado. Os seus olhos escuros tinham um brilho matreiro. - Parece que falhastes, Daniel. Lembrai-vos. A cabeça ou o coração.
- A minha presença em casa dele tornou-se um estorvo. - Explicou Adrian, quando regressavam à casa. - Era óbvio que ele guardava um grande segredo e fazia planos
importantes. Receou que eu ficasse a sabê-los.
- Mas porquê vir para Inglaterra? Devia estar a preparar-se para anunciar a sua descoberta em Paris, para lembrar ao mundo o brilhantismo do espírito francês.
- Não estou convencido de que ele tencione anunciá-la em Paris. Não estava a escrever nenhum tratado e até faltou a várias assembleias científicas importantes.
- Trouxe o manuscrito com ele?
Adrian encolheu os ombros. - Talvez pense combinar aqui uma demonstração. Lembrar ao mundo o brilhantismo francês é tanto mais eficaz se for feito na capital do
conquistador de França.
Se Adrian estivesse certo, seria perfeito. A humilhação do fracasso seria duas vezes maior do que em Paris. Seria um castigo adequado para um homem cuja vaidade
obliterara a própria humanidade.
Infelizmente, duvidava que essa fosse a intenção de Dupré. O mais provável era ele ter algo muito diferente em mente, e Daniel suspeitava do que seria.
A vaidade sucumbira a um vício mais poderoso. A ganância.
Daniel perguntou-se se aquilo prenunciaria sarilhos.
A Sociedade de Duelos desmontava dos cavalos quando chegaram à casa. Vergil Duclairc acenou-lhe e dirigiu-se a eles com Julian Hampton, o jovem advogado que Daniel
usava agora nos negócios.
- Juntais-vos a nós, St. John? - perguntou Vergil.
- Já tive a minha lição. Devo voltar à cidade. - Era a verdade, mas de qualquer forma ele não teria ficado. Evitava ser absorvido pelo grupo, por mais que invejasse
a camaradagem entre eles. Tinha de facto muito pouco em comum com eles em termos de história, objetivos ou profissão.
Como acontecia nos seus círculos sociais e com os seus vizinhos de Mayfair, movia-se entre eles, mas não fazia realmente parte deles. Além do mais, eles eram filhos
da sua própria classe e quando chegasse a altura isso seria mais importante do que qualquer amizade com pessoas como ele. Nunca ficariam ao seu lado contra um dos
seus. Se ele permitisse que estas amizades crescessem, acabaria por ter de haver traições.
Vergil e Hampton iam para a casa. Daniel apanhou Adrian antes de este lhes seguir no encalço.
- Se conseguirdes resistir a alguma missão que vos seja proposta pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, gostaria de contar com os vossos serviços durante mais
algum tempo. Descobri onde Dupré está alojado. Mantende-o debaixo de olho, se puderdes.

CAPÍTULO 10
O problema com o dinheiro é que nunca se tinha que chegasse. Sentado no jardim, bebericando chá, AndrewTyndale considerava esta verdade infeliz. Não precisava de
ir espreitar as contas para saber que estavam a ficar mais magras do que ele gostaria. ,
Desde o dia em que atingira a maioridade que a sua cabeça fazia um balanço contínuo.
O destino desferira-lhe um golpe cruel ao fazê-lo irmão de um conde em vez de o ser ele próprio. Pior, além de agarrado, o seu irmão revelara-se robusto e viril.
Agora tinha três robustos sobrinhos entre ele e o título.
Isso nunca deixara de o incomodar, mas tinha aprendido a traçar o seu próprio caminho. Exercia mais poder na Câmara dos Comuns do que o irmão na dos Lordes. Através
de investimentos hábeis e de um casamento lucrativo, construíra a sua própria riqueza. Claro que tudo tinha dependido da jogada ousada que fizera enquanto jovem.
Sem isso, não teria tido dinheiro para aqueles investimentos. Katy nunca teria olhado para ele sem a fortuna que tão inesperadamente fizera.
Memórias de Katy insinuaram-se na sua mente. Franzina, bonita, com um jeito infantil. Durante alguns meses pareceu-lhe que era um homem diferente. Infelizmente,
depressa descobrira que ela
também era estúpida e cansativa, e que ser um homem diferente não era muito interessante. Ela choramingava quando estava infeliz, o que significava que choramingava
muito. Quando ela finalmente morrera, ficara aliviado por se ver livre dela.
O mordomo aproximou-se com o correio da manhã. Andrew viu rapidamente os convites. Parou num com uma caligrafia familiar.
Conforme era de esperar, não havia palavras, apenas uma data. Aguardava-o uma diversão muito especial na noite seguinte.
Sentiu água na boca ao imaginar o presente. Esperava bem que desta vez Mrs. P tivesse encontrado uma que fosse mesmo virgem. A última rapariga não era, tinha a certeza,
apesar dos gritos dela em contrário e das palavras de Mrs. P. Pousou a carta e tentou conter a excitação que a expectativa lhe despertou no baixo-ventre.
O mordomo voltou, parecendo consternado. - Está um cavalheiro a perguntar por vós. Disse-lhe que não recebíeis, mas ele é insistente.
- É uma hora incivilizada para visitas, por isso não pode ser um cavalheiro.
- Claro. Ele diz que se cruzaram no passado. Apresentou-lhe a salva.
Exasperado, Andrew pegou no cartão. Quando olhou para ele, o seu sossego sofreu um pequeno revés. Não via o nome, nem o homem que lhe correspondia, há mais de vinte
anos.
Debateu a possibilidade de continuar com a dissociação. A curiosidade levou-lhe a melhor, porém. Tal como a suspeita e a preocupação.
- Levai-o para a biblioteca. Irei atendê-lo.
Gustave Dupré examinava as prateleiras da biblioteca. Incluíam uma coleção previsível de clássicos e algumas obras-primas modernas da história natural. Era o tipo
de mostra intelectual de homens que se consideravam letrados, mas que não punham os olhos num livro desde a universidade.
Eram livros de encadernações muito caras, tal como a divisão e a casa em que se encontravam. Andrew tinha-se saído muito bem. Mas também ele tinha o tipo de mente
que encontrava sempre lucro em qualquer situação, e ia atrás dele. Gostava de dinheiro para lá do bom-tom. Podia correr-lhe o melhor sangue nas veias, mas o seu
coração era de um mercador.
Gustave admitiu a contragosto que Andrew também tinha talento para executar planos com precisão, e para incutir o tipo de confiança nas pessoas que assegurava que
os planos resultariam. Ele próprio não tinha essa capacidade e qualidade.
Razão pela qual estava ali naquele dia.
- É uma surpresa voltar a ver-vos, Dupré. Combinámos não voltarmos a encontrar-nos.
Gustave virou-se abruptamente. Não gostava de ser apanhado de surpresa, e lembrou-se de queTyndale, com aquele seu jeito sossegado, conseguia ser esquivo. Lembrou-se
de que aqueles planos por vezes tomavam um rumo diferente do que as pessoas esperavam, porque era frequente Tyndale guardar para si algumas informações.
Não desta vez.
- Decidi visitar Londres. Afinal, está metade de Inglaterra de visita a Paris - gracejou Gustave.
- Se saístes da vossa biblioteca para investigar a minha, deve haver melhor razão do que umas férias.
A referência à sua biblioteca deixou Gustave desconfortável. Não era muito correto da parte de Tyndale falar dela. A tentação de retribuir com uma alusão semelhante
aos ganhos pessoais de Tyndale quase levou a melhor sobre ele.
Gustave decidiu ir direito à razão pela qual quebrara o velho acordo. - Fiz uma descoberta da maior importância. Uma descoberta que mudará o mundo tal como o conhecemos.
- Era a primeira vez que o punha em palavras e elas saíram-lhe com a força da sua excitação retraída. Ele quisera inexpressividade, como se para ele uma descoberta
daquelas fosse um acontecimento quotidiano.
Tyndale manteve-se impassível. Pegou na sua caixa de rapé e tirou uma pitada. - Náo pode ter sido assim tão significativa. Se tivesse sido teria lido sobre isso.
Outra prova?
Gustave sentiu-se ruborizar ao ouvir mais esta alusão ao passado. - Não lestes sobre isso porque não disse a ninguém.
- Porque não? A vossa reputação é o vosso maior cuidado. O reconhecimento é para vós o que a terra é para outros homens.
é o que são para vós as notas de cem e as virgens. - Não revelei esta descoberta porque tem uma aplicação prática. Uma aplicação revolucionária.
Gustave conseguira captar a atenção de Tyndale. Fez uma pausa dramática. - Esta descoberta fará dos homens que a possuírem homens ricos.
Tyndale assimilou a informação pegando noutra pitada de rapé.
- Quão ricos?
- Não é possível calcular, imenso. No entanto, para explorar esta descoberta é preciso dinheiro.
- E por isso viestes até mim. Porque não fazer a oferta a um dos vossos conterrâneos?
Gustave sorriu, sentindo-se bastante esperto. Quase tão esperto como Tyndale conseguia ser. - Porque sei que não vos atrevereis a trair-me.
Os olhos de Tyndale ficaram gélidos. - Ameaçais-me, Dupré?
- Reavivo-vos a memória.
- De quanto necessitará a descoberta?
- Calculo que cinco mil chegarão, para convencer os industriais da sua aplicação prática.
- Cinco mil, fora de hipótese. Equivocais-vos quanto à minha posição financeira.
- Depois de saberdes o que está em jogo, encontrareis forma de conseguir o dinheiro.
Tyndale não parecia impressionado. A sua atenção começou a dispersar-se. Gustave duvidou estar a conduzir muito bem a discussão.
Devia ter acenado primeiro com o prémio e ter sido mais específico antes de mencionar as cinco mil libras.
Tyndale olhou para ele, examinando-o minuciosamente. Gustave observou a ideia de lucros imensos resgatar-lhe o interesse.
- Falai-me desta vossa maravilhosa descoberta, velho amigo.
Gustave hesitou. Colocá-la em palavras seria perder algum do controlo. Ele não tencionava ser um daqueles homens que não via um franco pelo seu trabalho científico.
Sabia por experiência que também não podia confiar em Tyndale. Por um instante, interrogou-se se a ameaça de expor o que se passara anos antes seria suficiente para
manter este homem honesto.
Respirou fundo. Falaria a Tyndale da descoberta, mas sem lhe revelar os pormenores da sua concretização.
Taças de cristal e garfos de prata.
Bailes e festas e visitas vespertinas.
Ponche e cacau, bolos e chá.
A condessa de Glasbury mantinha Diane ocupada todos os dias, todas as noites. A condessa, ou Penelope, como ela pediu a Diane que a tratasse, podia ser marginal
para alguns, mas a maior parte das salas de visitas de Londres abriam-se para ela entrar. Diane conheceu duquesas e poetas, produtores de espetáculos e condes.
A época começara e Londres era só animação. Nas grandes casas de Mayfair e Grosvenor Square, nos camarotes de teatro e nas salas de jantar, desfilava uma colorida
procissão de privilégio.
Era suficiente para uma rapariga perder a cabeça.
Era suficiente para silenciar as perguntas e encobrir o vazio.
Era suficiente para fazer com que ela não se importasse que a ajuda de Daniel para descobrir a sua família fosse continuamente adiada. A desilusão de cada manhã,
ao constatar que ele já tinha saído da casa, dissipava-se rapidamente nos preparativos para mais visitas e festas, na atenção inebriante de homens, novos e velhos,
e na ilusão de que era aceite e de que este era o seu mundo.
Mas era uma ilusão. Diane admitiu-o para si própria uma noite enquanto a criada lhe arranjava o cabelo para um baile. De olhos no espelho, vendo as tranças espessas
a serem amassadas e presas, a alegria frívola desapareceu num piscar de olhos.
Ficou a contemplar as suas próprias feições e, como acontecia tantas vezes na escola, revirou a mente em busca de memórias de olhos e lábios parecidos. Às vezes,
quando o fazia, vinham-lhe imagens fantasmagóricas daqueles olhos a devolverem o olhar, mas já não refletidos num espelho.
As pessoas a quem era apresentada tinham todas laços de parentesco com outra pessoa que ela já tinha conhecido. Havia laços de nascimento e casamento, de estudos
e de política. Ela não tinha laço nenhum. Não com a condessa, certamente. Nem mesmo com Jeanette e Daniel, apesar da mentira de ela ser prima deles.
Despachou a criada e abriu a janela para deixar entrar o friozinho do começo da primavera. Caía a noite e lá em baixo no jardim brilhavam luzes cor-de-rosa e douradas.
Ouvia-se o burburinho de um tumulto ao longe, e notas agudas transportadas no vento.
Era mais uma manifestação. As salas de visitas e os teatros podiam ser um desfile de alegria, mas nas ruas arrastava-se outro drama, de frustração e descontentamento.
Os sacrifícios de guerra tinham sido estoicamente suportados, mas depois de vários anos de paz as pessoas rebelavam-se contra as privações continuadas.
Ela já se acostumara àquele som, mas hoje fizera as vezes de um valente toque de trombeta, chamando-a ao seu verdadeiro destino.
Levou a mão ao cabelo e ao vestido. Encheu a cabeça de imagens maravilhosas e excitantes das duas semanas anteriores. Não ajudou. Era como se estivesse de volta
à escola, ao lado da bacia lascada, de tranças e vestido largo.
O vazio avolumou-se, extravasando do sítio onde ela o continha. Cresceu até lhe tomar conta do coração. Naquela ausência gritava uma solidão tão intensa que as lágrimas
lhe vieram aos olhos.
Nem todas as festas do mundo conseguiriam preenchê-lo, fazê-lo desaparecer.
Diane mal tinha tempo de recuperar o fôlego no baile de Lady Starbridge. Jovens faziam fila para lhe serem apresentados e lhe pedir uma dança. A condessa de Glasbury
cumpria o seu dever de acompanhante.
Daniel mantinha debaixo de olho o sítio ao lado das janelas do terraço onde a condessa era o centro das atenções. Viu-a desencorajar um cavalheiro com fama de libertino
e favorecer em seu lugar o filho quarto de um baronete, um homem de pouca fortuna, que não veria a prima de um armador como estando muito abaixo dele.
A sua reaçáo foi irritação imediata, e teve de desviar o olhar para conter os ciúmes. Tornava-se mais complicado fazê-lo, mas dificilmente poderia dizer à condessa
que Diane não devia ser empurrada para homens elegíveis. Fazer de casamenteira era parte do encanto de se apresentar alguém à sociedade.
Diane aceitou a proposta para dançar e deslizou para o seu ângulo de visão. Era uma valsa, e o filho quarto do baronete sorria ao fazê-la girar à volta do salão.
Diane parecia tão feliz, estava tão adorável, que Daniel não conseguia tirar os olhos dela.
A sua visão do baile logo se converteu numa névoa de vestidos coloridos e luzes a tremer, de corpos turvos e movimentos flutuantes. Só uma figura continuava distinta.
Diane converteu-se numa bela mulher que deslizava numa aguarela.
De súbito, outro vulto fez-se presente. Do outro lado do salão destacou-se um homem, imóvel e vívido, um intruso no sonho nebuloso. Os seus olhos também seguiam
Diane. Estava tão absorto a examiná-la que não reparou que Daniel o observava.
O resto do salão perdeu substância. Até Diane se esbateu. Daniel via o homem e as minúsculas centelhas nos seus olhos que, quase invisíveis, teciam cálculos.
Pois bem. Acontecera.
Diane captara a atenção de Andrew Tyndale.
Um grito rebelde cresceu no peito de Daniel. Cerrou os dentes
e manteve os olhos fixos na única pessoa que agora existia na sala além de si.
Vieram-lhe outras imagens, daquela cara e daqueles olhos noutra sala, noutra altura. De um sorriso sincero e uma voz apaziguadora que ofereciam salvação. De confiança
nascida do desespero. De gente boa a esquecer-se que às vezes o mal não se faz anunciar, e que os demónios têm a mesma forma que os anjos.
As memórias sufocaram a rebelião e lembraram outras emoções, de amargura, e uma determinação tão fria que lhe cristalizou o sangue.
Vós não me conheceis, mas eu conheço-vos. Sei o que fizestes. Sei o que sois.
A música terminou. O olhar de Tyndale seguiu um rasto até às janelas do terraço.
Forçando-se a desviar a atenção de Tyndale, Daniel deparou novamente com Diane. Era a sua marcha que Tyndale observava e Tyndale começou a caminhar na direção da
condessa.
Daniel usufruiu de um instante de sombria satisfação. Depois, abruptamente, inexplicavelmente, perdeu por completo o controlo da determinação e das memórias. Um
caos de energia primitiva fê-lo andar.
Tyndale podia esperar. Tudo podia esperar. Esperara anos. Décadas. Mais um mês ou dois não importaria.
Chegou às janelas antes de Tyndale. O filho quarto do baronete não se tinha retirado e cavaqueava com a condessa e com Diane. Daniel posicionou-se de maneira a que
os três formassem um círculo protetor à volta de Diane, que Tyndale só com indelicadeza conseguiria desfazer.
A condessa apresentou Daniel ao adulador parceiro de dança de Diane. Ele fingiu ter prazer em conhecer um Christopher Meekum vermelhão, de fartas bochechas e olhos
redondos.
Diane pediu logo licença para sair da divisão. A condessa decidiu ir também. Quando passava, Diane inclinou a cabeça para Daniel. "
- O irmão mais velho está envolvido com canais para o norte
- sussurrou por trás do leque.
Alertava-o para os negócios que poderiam ser feitos e os benefícios de ter travado conhecimento com este admirador. Tentava cumprir o seu lado do acordo.
Ela não fazia ideia de que o faria, só que não da forma que esperava.
Ao vê-la afastar-se, sentiu uma dor queimar-lhe o peito. Por um instante, detestou-se tão completamente quanto detestava Tyndale.
- Pergunto-me porque farão sempre aquilo? - cogitou Meekum.
- Aquilo o quê?
- Retirarem-se juntas. Já reparastes que nunca é só uma. Quero dizer, nunca levo companhia quando... bem, vós sabeis.
- Fico contente em sabê-lo. Quanto às senhoras, suspeito que vão juntas para poderem falar em segredo.
- A sério? Sobre o que achais que falam?
- Sobre nós. -Nós?
- Homens.
- Pois. Céus. - Meekum ficou a assimilar a surpreendente sugestão. - Pergunto-me o que dirão.
- Nada de bom.
O que deixou Meekum ainda mais admirado. Mudou de posição, para poder olhar para Daniel mais diretamente.
- Trabalhais em transportes marítimos, não é verdade? - Era um daqueles homens que dizem tudo num tom jovial e caloroso. Na melhor das circunstâncias, e esta estava
longe de ser uma delas, Daniel achava aqueles homens irritantes.
- Sim.
- O que transportais?
- Tudo o que seja legal e pague bem, exceto ópio e escravos.
- bom, ouvi dizer que há bons lucros com o primeiro. Não sei muito sobre o outro.
- Há sempre lucro na miséria humana.
- A minha família também trabalha com transportes. Apenas investimentos, obviamente. Não é como vós, claro.
- Claro.
Meekum ficou atrapalhado e tossiu algumas vezes. Daniel duvidou que fosse por ter reparado que acabava de ser insultuoso.
- A vossa prima é, ha... uma mulher encantadora, St. John. Mais sorriso e mais excitação. - Gostaria de a visitar, se aceitardes as minhas atenções.
- Não sou eu quem tem de as tolerar. Se ela estiver disposta a aceitá-las, está para lá dos meus poderes detê-lo.
- Esplêndido! Não tendes ideia de como fico feliz. Ela é tão encantadora, tão fresca e doce, ao contrário de algumas destas raparigas. Muitas delas são demasiado
orgulhosas, é o que digo.
- Sim, ela é um encanto. Facto que torna tudo tão, tão triste.
- Triste?
- Trágico. Vede, ela não tem fortuna. - Daniel abanou a cabeça.
- Parece-me que nunca casará.
- Não tem fortuna?
- Nem uma libra no nome dela.
- Nada?
- Sem um único centavo.
Meekum coçou a cabeça e ponderou as más notícias. - Mas vós sois... quer dizer, todos presumiram... certamente tencionais dar-lhe uma ajudinha?
- Fá-lo-ia se pudesse. Constrange-me dizer que me encontro de mãos atadas. O irmão dela receava que ela fosse cobiçada apenas pela sua fortuna se eu lhe desse um
dote, e fez-me prometer nunca o fazer. Queria ter a certeza de que, se algum homem a pedisse em casamento, o faria apenas por amor.
Meekum sorria e deixava de sorrir, sorria e deixava de sorrir.
- Um nobre sentimento, mas talvez um pouco precipitado.
- Foi exatamente isso que eu disse. bom, ele era um grande sonhador. Morreu antes de me libertar da minha promessa, por isso aqui estamos.
As senhoras estavam de regresso. Meekum observava Diane a aproximar-se. - Por Zeus! É mesmo trágico.
- Sim. É mesmo.
Mal Diane e a condessa se reuniram a eles, a música recomeçou.
- Outra valsa - disse a condessa.
O filho quarto do baronete olhou desconsoladamente para Diane.
- Dar-me-eis a honra, condessa? - perguntou. A condessa acedeu alegremente.
- E vós, Diane? Tendes uma dança para o vosso primo? - As palavras tinham saído antes que Daniel se tivesse decidido a dizê-las.
Ela corou o suficiente para indicar que ambos sabiam bem de mais que não eram primos. com um sorriso maroto que fez Daniel desejar debicar-lhe os lábios, ela anuiu.
O salão voltou a desvanecer-se quando ele a conduziu. Rodopiavam na confusão de cores esbatidas. Ele percebia que ela tentava não olhar para os seus olhos, mas acabou
por o fazer. Depois disso, a dança tornou-se um lugar muito privado em que nada existia para além deles os dois. Nem sequer o passado que ele vingava nem o futuro
que engendrava.
Daniel saiu da biblioteca e dirigiu-se para o andar de cima. A noite tornara a casa silenciosa. Imaginou Diane a dormir na sua cama, saciada com o seu baile triunfal.
Ele queria ir até lá, queria-o mais do que alguma vez esperara querer visitar o quarto de uma mulher. Não podia, claro. Por muitas razões, não podia ser.
Admitir que desejava que pudesse ser levou-o a um quarto diferente, não muito longe do de Diane.
Abriu a porta e entrou na saleta. Não era toda clara e cintilante como a de Paris. A mulher que a usava agora não a tinha decorado. Ele forçara-a a deixar o seu
mundo de sonho pastel e luminoso e a ir para o dele, cauteloso, calculado, real.
Abrindo outra porta, entrou no quarto de dormir de Jeanette.
Acercou-se da cama e da sombra escura que vislumbrou no seu interior.
Estacou.
A sombra era grande de mais. Larga de mais. Quando os seus olhos começaram a adaptar-se à escuridão, percebeu que dormiam dois corpos na cama.
- Não o acordeis - sussurrou Jeanette.
Daniel não estava seguro de conseguir falar, muito menos acordar alguém.
- Dai-me o meu robe, em cima do banco - comandou, sentando-se.
Ele fê-lo e ela vestiu-o.
- Vamos para a saleta - continuou ela.
Ele pegou nela e levou-a para uma cadeira do quarto ao lado. Ela instalou-se, com a pose de uma rainha. Daniel acendeu uma vela.
- Estais chocado - retomou ela.
- Estou surpreendido.
- Porquê? Porque Paul é de baixo nascimento ou porque eu sou aleijada?
- Não sei porque estou surpreendido, apenas estou.
- Deve ser uma emoção pouco usual em vós. Destes-vos a grandes trabalhos para nunca serdes apanhado de surpresa.
Era uma emoção invulgar. Mas não desagradável, tinha de admitir.
- Não lhe direis nada sobre esta vossa descoberta, Daniel. Ele venera-vos, e qualquer indicação de que estais desagradado ou irritado iria magoá-lo.
- O que poderia eu dizer? Não sois uma criança inocente.
- Não propriamente.
- Não quis dizer que...
- Ambos sabemos o que quisestes dizer, e não me insultastes.
Ficaram sentados em silêncio, ela aguardando que ele lhe dissesse porque a tinha procurado.
Ele teve dificuldade em explicar. Não tinha a certeza da razão que o levara lá. Apenas lhe parecera algo muito necessário quando estava na biblioteca a beber porto
e a tentar avaliar o que tinha vivenciado durante as últimas horas.
- Ele viu-a hoje? - A pergunta saiu grave e tranquila. Era mesmo de Jeanette, saber sem que lhe dissessem.
- Sim.
- Houve apresentação?
- Ainda não. - Em breve haveria, contudo. Não duvidava. Fora apenas a sua interferência contínua durante o serão que a demorara.
- Hesitais?
- Não. - Mas era verdade. Por todas as razões erradas. Razões que passariam rapidamente, deixando-o revoltado consigo próprio e ainda dominado por memórias das quais
não era possível escapar até serem aniquiladas.
- E então viestes até mim para reforçar a vossa determinação disse ela. - Vamos, acendei mais velas, irmão. Devo levantar a camisa para verdes as minhas pernas?
Ajudará? Agora é o papel que tenho nisto, não é? Sempre foi. Recordar-vos, não fôsseis esquecer.
- Que raio de coisa para se dizer.
- É? Então porque voltáveis todos os anos a França durante a guerra, quando fazê-lo era tão perigoso e difícil?
- Para vos ver. Para ter a certeza de que estáveis bem e éreis bem tratada.
- Não duvido dessas razões. Mas conseguis dizer em verdade que não há outras? Que ver-me, visitar Paris, até ir àquela escola, não era tudo necessário para alimentar
a vossa raiva, para não a deixar morrer?
- De todo.
- Oh, Daniel. Como é que um homem que é tão implacavelmente honesto em tantas coisas pode ser tão cego em relação a si
próprio. Só pusestes a rapariga numa escola francesa para terdes outra razão que vos forçasse a regressar. ,
Ele ergueu-se e virou as costas às acusações dela. - Pu-la lá porque saberia que de qualquer maneira regressaria para vos visitar, diabos. Deveria ter-vos deixado
a ambas aqui em Inglaterra? Teríeis ficado satisfeita? Tendes medo até de sair desta casa.
- Falai baixo. Ides acordar Paul.
- Que me importa se o acordar? Ele anda a dormir com a minha irmã, raios. Não estou para me importar se ele perde um pouco de sono.
- Céus, estais mesmo chocado. Seria fascinante se não fosse tão ridículo.
Estaria chocado? Seria essa a fonte daquela irritação que lhe fervia na garganta?
- Não, acho que percebi mal. Não estais chocado. Estais incomodado. Presumistes que me dominava também, essa necessidade de vingança. Esperáveis que aceitasse que
a minha vida estava acabada? Que definhasse enquanto esperava que vós concluísseis o assunto? Esperáveis que renunciasse à felicidade, como vós fizestes? Ou talvez
presumísseis que, por causa destas pernas, eu não tinha outra escolha?
- Então sois livre e eu sou um escravo, é isso?
- Livre não. Trazei-mo e eu enfio-lhe uma bala no coração e vou alegremente à forca. Mas não espereis que viva o tempo que me foi dado sem outro propósito a não
ser esperar pela oportunidade de disparar a pistola.
- Meu Deus, estais aleijada por causa dele. Como podeis viver com outro propósito?
Ela esticou os braços e abanou a cabeça. - Voltai a pôr-me lá. Só viestes aqui para vos convencerdes a usar a rapariga como engodo. Vejo que mais uma vez fui tudo
o que esperáveis que eu fosse.
- Vim aqui para falar com a minha irmã, é tudo.
- Levai-me para lá. Sem barulho, por favor.
Ele pegou nela e levou-a para a cama. Paul continuava a dormir, com o rosto vincado entre as almofadas, os seus ombros nus visíveis acima do lençol.
Jeanette tirou o robe e deixou-o cair ao chão. Daniel virou-se.
- Daniel.
O sussurro apanhou-o junto à porta.
- Daniel, há muitas formas de se ser aleijado. Eu esqueceria tudo se conseguisse voltar a sentir as minhas pernas mexerem-se. Se o pulsar do vosso coração vos tenta
a fazer o mesmo, não vos sintais culpado.

 

 

CONTINUA