Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DAS TRÊS CASTELÃS / Eric de Cys
O SEGREDO DAS TRÊS CASTELÃS / Eric de Cys

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Um menino corajoso e sua irmã gêmea, de férias em busca de aventuras. Perdidos em uma tempestade refugiam-se em um castelo que lhes aguça a curiosidade. Junto com outros amigos descobrem o mistério que envolve as castelãs desse castelo e tentam de todas as formas ajudá-las a recuperar sua posição na sociedade.

 

 

 

 

 

— Bela você está com frio?

Cheio de solicitude, André de Chandolas cobriu os joelhos da irmã com a espessa manta de viagem. Isabela, perturbada, respondeu:

— Não estou com frio... mas... não vá caçoar de mim; estou com um pouco de medo.

O automóvel avançava com dificuldade pela estra­da enlameada; a chuva tornava terrível essa região já tão selvagem do Alto-Vivarais; o forte e gélido vento lançava golfadas de chuva sobre o carro. André en­xugou o vidro com a ponta da luva:

— Onde diabo estamos nós? murmurou. Não estou reconhecendo a estrada... Hei! Vicente! Vo­cê tem certeza de que é este o caminho? D. Isabela está com tanto medo! Será que não existe por aí alguma casa onde pudéssemos nos refugiar até passar a chuva?

Vicente, o chofer, parando o motor, mostrou ao seu jovem patrão um rosto um tanto angustiado.

— Prefiro dizer logo, "seu" André! Acho que es­tamos perdidos!

— Era só o que faltava! resmungou André. Perdermo-nos com tempo bom, vá lá! Mas com essa chuva! Não vai ser nada agradável passar a noite fora de casa. Ainda se eu estivesse sozinho!

— Pare de resmungar, disse Bela alegremente; não adianta de nada e é cacete. Se estivermos perdidos, tratemos de procurar o caminho, e pronto! Se esti­vesse chovendo menos, seria até bem divertido. Procu­re aí no mapa onde estamos.

— Procurar no mapa! É fácil de dizer! Seria preciso enxergar o caminho e está escuro como breu. Você por acaso não está vendo alguma luz, Vicente?

— Não, "seu" André, nada.

Mas não conseguiu terminar a frase; uma faísca elétrica iluminou momentaneamente as trevas, um formidável trovão ecoou e a chuva recomeçou mais forte.

— André, estou com medo! exclamou Bela, agarrando-se ao seu irmão gêmeo.

A intrépida Bela a quem todos tratavam como se fosse um rapaz, mostrava-se agora uma menina igual às outras, pois o primeiro impulso feminino, ante o perigo, é sempre o de pedir proteção.

Os dois meninos se dirigiam ao castelo de Sumène, residência de uma tia, pois seu irmão caçula estava com coqueluche e era preciso evitar o contagio. O Sr. Chandolas queria incutir desde cedo no seu filho a no­ção de responsabilidade, e por isso lhe confiara Isabela; e assim os, dois irmãos, escoltados apenas por um jovem empregado — fiel como o são os montanheses daquela região — atravessavam a Ardèche, em direção ao cas­telo de Sumène.

A viagem a principio fora deliciosa. André, en­cantado com a, oportunidade de "bancar" o homem, e Bela de jantar nas pequenas hospedarias rústicas do caminho; mas, quando, bruscamente, ao calor da noite, uma tempestade furiosa os surpreendeu em plena mon­tanha, o papel de André tornou-se menos agradável, e Bela, a corajosa, não hesitou em declarar bem alto que morria de medo.

— Que azar, murmurou Vicente. Estamos mes­mo numa situação agradável! Será que não existem casas neste país de montanheses?

Vicente, homem do sul, desprezava profundamen­te os nortistas das terras altas.

À luz de um relâmpago, Bela avistou ao longe um vulto escuro, onde brilhava um ponto luminoso.

— Uma casa lá ao longe! exclamou ela. Estamos salvos! . .

— Uma casa? Onde?

— À esquerda. Não estão vendo? Deve ser muito grande, toda preta. Estou vendo luz. Talvez seja Sumène... Suba depressa, André, você está todo molhado. Cubra-se com a manta, senão vai se resfriar.

— Ora! Isso não é nada! O importante é que você esteja abrigada, respondeu o irmão gentilmente. Pode seguir Vicente, mas vai bem devagar, porque deve estar derrapando muito. Que aventura, hein, Bela! Tia Clara vai desmaiar quando lhe contarmos: se tivermos a sorte de ir parar num castelo, você po­deria bancar a princesa errante.

— É mesmo! Um castelo seria ótimo, mas se tiver um telhado, mesmo sem torres, ficarei satisfei­ta... Estou com um pouco de fome, sabe?

— E eu, então! Acho que devoraria um carneiro inteiro com lã e tudo!

— Que divertido! Repetia Bela já sossegada, aconchegando-se ao irmão. Parece até que estamos no teatro, não?

— Não acho, respondeu André, menos imaginati­vo que a irmã. Quando estivermos abrigados, pode ser, mas agora! Recebi uma ducha no pescoço bem desagradável. Ah! Até que enfim chegamos! Não é sem tempo.

O carro parara diante de um grande castelo la­deado por grossas torres. Vicente buzinou com tal violência que imediatamente os cães se puseram a la­drar e apareceram luzes nas janelas. Ouviu-se um abrir e fechar de portas, e depois uma voz feminina perguntando:

— Quem está aí? André respondeu:

— Viajantes perdidos. Nós vamos para o caste­lo de Sumène, é aqui?

A mulher invisível soltou uma exclamação de pena, e acrescentou:

— Vocês estão longe. Entrem, pois com essa chuva vão ficar todos molhados.

A porta se abriu com forte rumor de ferrolhos enferrujados. No limiar apareceu uma velha de rosto enrugado, brilhante, ostentando orgulhosamente o laço das artesianas. Segurava na mão uma lâmpada antiga e ergueu a chama vacilante na direção dos viajantes.

— Oh! Coitados! disse ela. Vocês estão enchar­cados! Entrem depressa. Minhas patroas não estão em casa, mas com toda a certeza não deixariam nin­guém ao relento, com um tempo desses!

Fê-los entrar num grande vestíbulo, e desculpou-se:

— O senhor vai querer se secar primeiro, não é? Só temos fogo na cozinha.

Com a familiaridade respeitosa dos sulistas, acres­centou:

— Se sua mãe o visse assim, ficaria apreensiva. Ao penetrarem na cozinha, guiados pela velha artesiana, Bela e André julgaram estar sonhando.

Essa cozinha, imensa, com uma abóbada semelhan­te à de uma capela, era extraordinária, não somente devido às suas proporções, mas também pelas duas enormes lareiras, das quais só uma estava acesa.

— Sequem-se bem, meninos. Vou preparar vinho quente. Querem comer alguma coisa?

Bela não se fez de rogada para confessar que es­tavam morrendo de fome.

— Mas, talvez seja abuso de nossa parte, objetou André. Não sei a quem pertence este castelo e não gostaria de incomodar seus patrões.

— Qual nada, tornou a artesiana, pondo mãos à obra. Minhas patroas são muito boas! Se eu não lhes oferecesse nada, elas ficariam aborrecidas. Estou sozinha aqui; não poderei servi-los muito bem, mas seu empregado, na certa, me dará uma ajudazinha quando estiver seco...

— Em que lugar estamos? interrogou André.

— Em Maisonseule. Um lindo castelo. Antigamente tínhamos uma quantidade de empregados, mas agora estou sozinha, Não sou nascida aqui, continuou a tagarela artesiana. Sou de Aries. Fui ama da Sra. Maisonseule. Ela me trouxe para cá e aqui fiquei desde que ela morreu. Agora só restam duas cunha­das: D. Tristana e D. Rosamunda.

— Ah! disse Bela, interessada. Duas moças? A boa velha continuou com ar pensativo:

— Tristana e Rosamunda... lindas como flores... coitadas! Enfim, Deus é quem sabe.

E acrescentou num tom dos mais amáveis:

— Bebam um pouco de vinho quente. Pelo fato de termos de ser julgados, não é motivo para morrer antes da hora.

— Claro que não, respondeu André com serie­dade.

Conhecia os costumes daquela região, e aquele modo de falar não o espantava absolutamente.

— Eu, continuou a cozinheira remexendo as pane­las, eu vim de Aries com a patroa. Costumam me chamar de "misé Berto" (D. Berta).

— É um nome bonito, disse Isabela.

— Não é? respondeu serenamente d. Berta. Existem outros mais bonitos, mas esse também não é feio.

E fazendo uma espécie de reverencia na direção da menina, acrescentou:

— A Sra. me dá licença? Vou por a mesa na sala de jantar.

E sem escutar os protestos, saiu. André, já enxuto e reconfortado pelo vinho, via tudo cor de rosa. Declarou estar encantado.

— Como é divertido! repetia ele satisfeito.

— É um verdadeiro romance, acrescentou Bela. Gostaria bem de ver essas moças de Maisonseule: Tristana e Rosamunda, lindas como flores! Talvez sejam infelizes... perseguidas... sei lá; André, você não está, se sentindo como um cavaleiro andante?

— Estou, sim, afirmou André energicamente.

E postou-se orgulhosamente com as mãos na cin­tura.

— Sabe de uma coisa? Deve haver algo de extraordinário neste castelo.

— É a minha impressão, apoiou André. Certa­mente, existe um mistério... um segredo, não sei o que. Você não reparou que existem certas casas in­teressantes, casas que possuem alma?

— Sim, disse Bela.

Ela contemplava o irmão e admirava-lhe as suti­lezas.

— Pois bem! É porque nessas casas acontece­ram coisas surpreendentes, ou então porque seus mo­radores realizaram grandes feitos.

— Ah! suspirou Bela. Acho que a casa de tia Clara será bem menos interessante, com aqueles dois bobocas como Paulo e Manon.

— Voltarei aqui, declarou André, avivando o fogo. O que será que "misé Berto" está cozinhando? Que cheiro tão bom... estou morrendo de fome!

— Está na mesa! anunciou nesse momento, com grande dignidade, a velha artesiana.

 

CAPITULO II

 

UMA PEQUENA DAMA ANTIGA

 

A sala de jantar onde os dois Chandoas foram introduzidos era como uma réplica da cozinha. A um tempo impressionante e quase pobre. As cortinas gastas, o alimento preparado muito simples, mas com certos requintes de serviço que surpreendiam naquela morada antiga e um tanto arruinada.

"Misé Berto" trouxe depois da sopa uma omelete de presunto. Vicente, de pé atrás da cadeira de André, servia seus jovens patrões com o mesmo cerimonial que observava no rico castelo de Chandoas.

Os gêmeos tinham a sensação de estar vivendo um filme cinematográfico, de não serem bem eles, mas outras pessoas, com a impressão cada vez mais viva de que outrora deviam ter-se passado ali aventuras romanescas e que talvez outras fossem ainda se passar, nas quais seriam eles os personagens principais.

Bela, aproveitando-se da ausência da artesiana, e vendo que Vicente se encontrava do outro lado do apo­sento, disse ao irmão:

— Tenho a impressão de ter sido enfeitiçada, e você?

— Eu, replicou o menino com seriedade, não sei muito bem explicar meu pensamento. Acho tudo isso estranho, encantador e um pouco inquietante, e por nada do mundo deixaria de ter vindo aqui hoje!

— Você acha que a velha está mesmo sozinha aqui no castelo? indagou Bela.

André lançou um olhar furtivo para trás.

— Não, disse ele, abaixando a voz. Há pouqui­nho, quando saímos da cozinha, tive a impressão de ter ouvido alguém falar.

— Uma voz de mulher, não é? murmurou Bela.

—Sim. Ela dizia: "Não, não! Não quero que me vejam."

— Esquisito! Talvez seja uma das famosas mo­ças de Maisonseule. Trístana ou Rosamunda... Porque será que ela não quer aparecer?

— Provavelmente é horrorosa! declarou André um pouco decepcionado.

— Qual nada! Lembre-se: "Lindas como flo­res". Gostaria bem de vê-las.

— Eu também... Escute... alguém está se me­xendo...

Pararam de falar e de comer para escutar melhor. Atrás da cortina de tapeçarias percebia-se um ligeiro ruído, como o de uma asa de borboleta... ou de um vestido de seda.

— Eu vou... começou André, levantando-se. Bela deteve-o com um gesto.

— Que idéia! Seria muito indiscreto. Na ver­dade, somos muito tolos! É "misé Berto". Ela está usando um avental de tafetá! Aí vem ela.

A caseira de Maisonseule entrava, trazendo uma cesta de frutas apetitosas, lindamente arrumadas com folhas verdes e pequeninas rosas brancas.

— "Misé Berto"! Exclamou o jovem Chandolas, você é a mais hábil das cozinheiras; merece uma con­decoração.

A velha artesiana sorriu. Com a facilidade de réplica dos sulinos, retrucou:

— Não há perigo que isso aconteça. O rei mor­reu, Deus tenha sua alma!

— Como essas frutas estão bem arrumadas! ad­mirou Bela. Você sabe fazer buquês muito bem!

— Oh! não tenho jeito para essas coisas, disse "misé Berto".— Foi...

Mas parou, enrubesceu e concluiu:

— Foi d. Rosamunda quem as preparou antes de partir.

Os gêmeos, que tinham percebido a hesitação, trocaram uma olhadela. .

— Estou sem jeito de ter dado tanto trabalho, começou a dizer Isabela, e de incomodar suas patroas que não conhecemos. Elas ainda não voltaram? Pa­receu-me ter ouvido vozes.

"Misé Berto" mostrou-se muito espantada.

— A Sra. está enganada; não estou esperando minhas patroas hoje à noite. Foram fazer uma espé­cie de peregrinação em Lalouvesc.

Com um suspiro, acrescentou:

— É coisa daqui. Acreditam que com isso saire­mos mais depressa desse aperto! Eu lhes digo sempre que enquanto não formos às Santas, tudo continuará na mesma!

Uma centelha se acendeu nos belos olhos arden­tes de "misé Berto".

— Sim, é preciso ir rezar às Santas do Mar, quando se está doente ou infeliz. Pensam vocês que nossas santas deixariam de socorrer alguém de Aries que precisasse de auxilio? Qual nada! São boas demais para isso! Eu digo sempre: "Deixem-me juntar o suficiente para fazer essa viagem e verão!" Bela emocionada e um tanto amedrontada, lar­gou bruscamente o pêssego sobre o prato:

— Há alguém doente aqui?

— Qual nada! respondeu "misé Berto" com se­renidade; nós aqui temos saúde para viver cem anos. A senhora não quer comer mais nada? Então vou dar o jantar do chofer: o coitado deve estar morrendo de fome!

Saíram os dois, deixando as crianças intrigadíssimas.

— O que será? interrogou Bela.

— Vê como eu tinha razão? Existe um segredo e temos de descobri-lo, custe o que custar. Ah! Bela, isto tudo é tão interessante, eu... ih!...

Pôs-se de pé bruscamente, todo assustado.

— Que foi? indagou Bela, inquieta.

— Psiu! Não grite! Você espantou-a.

— A quem, a quem? Você está maluco? Bela sacudia com energia o braço do irmão.

— Responda logo! Que foi que você viu? André parecia em êxtase:

— Uma linda dama! Tão linda! Lá atrás da cortina... venha e não faça barulho.

Bem de mansinho, com mil precauções, os gêmeos deslizaram em direção da cortina ainda oscilante. Com gesto rápido, André afastou-a.

Ouviu-se um grito abafado, e entre as dobras da cortina apareceu uma pequenina dama antiga, encanta­dora, da altura de uma boneca. Era pequenina e lin­da, vestida à moda de antanho: uma saia de tafetá ris­cado de verde claro e branco, um lenço de renda ­cobrindo o pescoço e os bracinhos, redondos e rosados como os de uma criança. Sobre os cabelos trazia uma touquinha enfeitada com um laço de fita cor de rosa. Calçava sapatos de seda e escondia o rosto atrás de um leque de marfim.

Diante da expressão espantada dos intrusos, a miniatura pôs-se a rir, com um riso cristalino; depois, curvando-se até o chão numa reverencia, deu meia volta e desapareceu.

Na grande sala, iluminada pela luz vacilante das velas, ficaram apenas os dois jovens viajantes, que se entreolharam e nada mais disseram até o momento em que, amainada a chuva, retomaram o caminho de Sumerie.

 

A Sra. Sumène, apesar do calor que fazia, estava recostada a um divã, entre almofadas macias, escutando com ar preguiçoso o relato que André e Bela lhe fa­ziam do episódio maravilhoso da sua viagem. Aquela noite em Maisonseule não saía da cabeça da romântica Bela, e André não conseguia esquecer a visão cativante da pequenina dama vestida à moda do Império, que lhes surgira de trás da cortina.

— Você conhece as moças de Maisonseule, titia? interrogou Bela, depois que acabou de narrar, tintim por tintim, as peripécias do jantar improvisado.

A Sra. Sumène endireitou uma almofada, apanhou uma pastilha na "bombonière" e retrucou;

— Não, não conheço. Quase não faço visitas. Mas você poderá perguntar a seu tio quando ele voltar de Paris; ele deve conhecer todas as famílias de Vivarais.

Bocejou e disse mais uma vez:

— É tão cansativo para eu ter de sair!

Bela enrubesceu, contrariada; ela esperara um es­clarecimento, e tia Clara não sabia de nada.

A Sra. Sumène, que era muito boa, apesar da sua excessiva indolência, acrescentou após um instante:

— Eu devia ir fazer-lhes uma visita, já que elas os receberam tão bem, mas tenho tão pouca saúde!...

— Oh! titia! Não vale a pena você se cansar tanto por nossa causa, protestou André. Eu poderia ir com Bela, não acha?

— Claro, acudiu prontamente Bela.

A tia sorriu.Tinha uma predileção especial por André, se bem que ele não fosse sobrinho seu e sim de seu marido.

Esse menino encantador, alegre, animado e bem educado, coisa rara em colegiais, tomara para ela o lugar do filho único que morrera pequenino.

— Está muito bem. Vocês irão os dois e podem até levar Paulo e Manon, que gostam tanto de passear.

André fez uma careta.

— Oh! tia Clara, implorou. Será que temos que levá-los conosco?

E depressa acrescentou cortesmente:

— Manon vai achar o caminho muito comprido.

— E você o achará ainda mais comprido, se eu lhe impuser a presença da minha sobrinha. Não pro­teste meu querido. Eu sei que a pobre Manon nem sempre é agradável.

"Ê intragável" pensou André, mas não disse nada.

— E Paulo não tem os mesmos gostos que você.

— Oh! Paulo não é mau de todo, replicou Isabela. É que nós fomos educados aqui no campo, e ele, coita­do, vive trancafiado num apartamento lá na cidade... Nossos hábitos são diferentes. E depois, ele... ele... enfim, ele é um pouco fiteiro.

— Tem medo de tudo, concluiu André, aprovei­tando a parcialidade da tia para exprimir cruamente sua opinião sobre o primo.

A Sra. Sumène riu animada:

— Você é um espartano, André. Já o vi voltar para casa cheio de manchas roxas e arranhões medo­nhos. Coitada de sua mãe! Não compreendo como ela suporta essas coisas. Eu não teria coragem.

— Quer dizer que você gosta um pouquinho deste sobrinho amalucado, não é, titia? Pois bem! Deixe-nos ir sozinhos a Maisonseule, sem os dois molengas... Oh! Desculpe!...

A Sra. Sumène, decididamente de muito bom hu­mor, tornou a rir.

— Compreendi. Podem fazer a visita; transmi­tam às moças de Maisonseule meus cumprimentos e agradecimentos. Se não fosse tão longe, eu os acom­panharia, mas...

— Por favor, não faça isso, replicou com vivacidade jovem Chandolas, preferindo muito mais repre­sentar o primeiro papel; não se incomode por nossa causa, titia.

— Faça como quiser. Será melhor fazer a visita hoje; vocês querem o carro? Ou então...

— Não precisa, nós gostamos mais de andar, não é, Bela?... Até Maisonseule, vamos gastar no má­ximo uma hora.

— Saiam logo, então, e não se demorem; ficaria muito assustada.

Os gêmeos se levantaram de um salto:

— Nós viremos dizer adeus antes de sair, pro­meteu Isabela, desejosa de mostrar sua "toaette".

Rapidamente se dirigiram para os quartos. Na escada, Bela esbarrou com uma menina de dez anos, aborrecida e mal-humorada. Seu vestido, de um rosa muito vivo, tornava-lhe pálidas as faces sem brilho e a enfeiava ainda mais. Ao notar a pressa dos gêmeos, parou.

— Deixe-me passar, Manon, suplicou Bela. Vou-me vestir; nós vamos fazer uma visita e tia Clara re­comendou que voltássemos cedo.

Manon, filha da irmã caçula da Sra. Sumène, lan­çou um olhar antipático a Isabela.

— Uma visita? Onde? Quero ir com vocês, declarou.

Bela ia responder, mas André antecipou-se.

— Ficaria encantado, disse ele, mas é muito longe. Você é capaz de andar duas horas a pé?

— Nunca! Que loucura! O melhor é irmos de automóvel.

— Impossível.

Bela alterou a verdade sem escrúpulo.

— Não há estrada; é preciso ir a pé pelo meio do campo.

— Que terra deliciosa, resmungou Manon. Não entendo como tia Clara passa todo o verão aqui! Se soubesse que ia ser assim, teria ido para Deauville.

— Ainda está em tempo, insinuou Isabela. A estação não acabou.

Manon não ia absolutamente para Deauville, fi­cara até bem satisfeita por poder vir para o campo.

— Está bem, disse, irritada. Já que vocês me abandonam, como sempre, brincarei com Paulo. Nós nos divertiremos muito mais. Brincaremos de...

—... Loto sugeriu Bela com uma doçura pér­fida. Ótimo, Paulo não precisará ter medo de apanhar um resfriado. No entanto, se ele se esquentar muito, não se esqueça de fazê-lo mudar de camiseta!

Manon quase se engasgou de raiva.

— Não senhora, não vamos jogar loto não! Vou fazer uma porção de doces e uma "ilha flutuante" e comeremos tudo. Vai ser bem feito!

— Bom apetite, gritou Isabela, já no alto da es­cada. Que pequena insuportável, essa Manon!

-— Ela é mal educada, constatou André. Você re­parou o modo com que ela responde a tia Clara? Se nós fizéssemos isso o que não diria papai?

— E Paulo, então! Chama a avó de velha! André parou, sufocado.

— Puxa!... Acho bom ele não repetir isso na minha frente! Que pequeno insolente! Olhe aqui, Bela, é preciso causar uma boa impressão em Maisonsieule; ponha o seu vestido branco e vermelho, pois é o que lhe vai melhor.

Com isso, os gêmeos fecharam as portas dos res­pectivos quartos. Com uma rapidez prodigiosa, Bela penteou-se e enfiou o vestido escolhido por André. Era de seda branca com grandes desenhos vermelhos e com­binava com a pele morena e os olhos castanhos da me­nina. Bela não perdeu tempo diante do espelho, esco­lheu entre as suas jóias um colar vermelho, pôs o cha­péu e, imaginando que seria prudente apressar o irmão um tanto vagaroso para se vestir, foi bater à porta do outro quarto.

— Posso entrar? Sou eu, disse ela.

André, em mangas de camisa, todas as gravatas espalhadas na sua frente, estudava as tonalidades com carinho, desejoso de causar boa impressão às castelãs de Maisonseule.

— Qual delas? indagou laconicamente, indicando com os olhos as gravatas.

— Esta aqui, respondeu a irmã.

— Então dê o laço para mim, por favor. Que é isto, Paulo? Entra-se sem bater? Que deseja?

Um menino parecido com Manon, mas muito gordo, o rosto redondo e pálido como a lua, entrou no quarto, atirou-se numa cadeira, e enterrou a cabeça entre as mãos.

— Que é que você tem? perguntaram ao mesmo tempo os gêmeos.

Paulo não respondeu. Levantou somente uns olhos desolados.

André, compadecido, bateu-lhe no ombro, dizendo:

— Vamos, gorducho, que há? Bela, amolada, interrogou:

— Você queria ir conosco? Paulo sacudiu a cabeça e olhou para o céu.

— Você está aborrecido? recomeçou André. E imediatamente enumerou todas as desgraças que poderiam ter aniquilado o menino.

— Miarka lhe mordeu? Você teve medo de alguma cobra? Não consegue fazer sua versão grega?

Tia Clara estava fora de cogitações, pois era a própria indulgência.

— Não, disse Paulo com voz abafada, acho que estou muito doente...

— Vamos, vamos! Um garoto gordo como você! Que mania de achar que está sempre morrendo!

— Não ri não, tornou Paulo tragicamente. Na certa estou com febre: joguei tênis demais. Estou suadíssimo: apalpe minhas costas, para ver.

— Não, obrigado! protestou o gêmeo de Isabela. Dispenso o prazer! Você se cansa um pouquinho e vem logo com este estribilho: "apalpe minhas costas"! Não quero magoá-lo, mas você é exigente, meu caro.

— Palavra... que você não acha que seja grave? interrogou ansiosamente Paulo.

— Santo Deus, é grave, sim. Agora, trate de fazer o testamento e pense em mim antes de dispor da sua coleção de "Volta ao Mundo". Se não tem a quem deixar, aceitarei com prazer, como lembrança sua.

— Não gosto de caçoada, disse Paulo secamente. — Mas é serio! Acho mesmo que você está muito mal, para ir conosco até Maisonseule... duas horas a pé... ou três... quer ir?

— Deus me livre! Que imprudência. Vão vocês sozinhos.

— Então até logo.

Rapidamente André derramou um pouco de per­fume nas mãos e os dois irmãos correram para se des­pedir de tia Clara.

A Sra. Sumène contemplou a sobrinha com certo interesse e o sobrinho com visível prazer.

As duas silhuetas elegantes se perderam ao longe; Bela colhia flores pelo caminho. Andavam a passos largos, pisando os tufos de capim e as frutinhas silves­tres caídas no chão, já embriagados pelos vivos odores da montanha. O vento cantava nos pinheiros, o passeio estava delicioso.

Maisonseule apareceu ao longe com suas linhas majestosas, dominando todo o vale do Doux. As crianças subiram alegremente a ladeira, parando às vezes para admirar a vista maravilhosa do vale de Sumène e procurando distinguir os castelos e granjas espalha­dos nos flancos das montanhas, as torres das aldeias entre os negros, pinheiros e os velhos castanheiros.

Finalmente chegaram ao castelo. André pediu o espelhinho da irmã para verificar se o penteado estava direito. Bela, com o coração palpitante, bateu à porta, que ostentava um velho brasão com as armas de Maisonseule.

Desta vez foi um menino com ares de pastor quem os atendeu. Num francês hesitante, disse que as castelãs não tinham ainda regressado da peregrinação. "Misé Berto" saira para compras na aldeia vizinha, o castelo estava vazio.

Os dois meninos, decepcionados, tomaram o ca­minho de volta.

Bela, fatigada pelo passeio, propôs descansarem num bosque. Ficaram alguns instantes ali, Isabela sen­tada sobre um tronco de pinheiro e André estendido na relva, a seus pés.

— Que coisa aborrecida não termos encontrado ninguém, disse o menino. Paulo e Manon vão ficar en­cantados. São tão maldosos, aqueles dois!

— Eu queria tanto conhecer as castelãs de nomes bonitos, suspirou Bela.

— E eu faria o dobro do caminho para conseguir ver a pequenina dama da outra noite.

Nesse instante uma avelã caiu sobre os joelhos de Bela.

— Tem um esquilo aí por cima, disse ela.

— Precisamos voltar. Sabe, Bela, continuou o menino, apaixonado pela aventura, estou louco para saber por que a velha "misé Berto" quer tanto ir rezar às "Santas do Mar".

Uma segunda avelã caiu dessa vez sobre o peito de André.

— E depois, disse Bela, rindo, você quer, por tudo, apresentar suas homenagens à pequena dama de verde.

Ouviu-se um risinho abafado. André levantou-se, rubro.

— Ela está aí! Murmurou ele.

Ouviram um ligeiro ruído e um vulto pequenino fugiu por trás de uma moita.

— É ela de novo! Oh, André! Que amor! Va­mos depressa para casa; contaremos a tia Clara essa historia; talvez ela se decida a vir até aqui. Gostaria tanto de conhecer essas lindas reclusas de Maisonseule!

 

O almoço estava quase findo. Enquanto serviam a sobremesa, Isabel perguntou:

— Você teve noticias do tio Jaime, titia?

— Tive justamente hoje de manha, respondeu a Sra. Sumène, observando com olho crítico seu sobrinho Paulo, que tomava no pires o seu café com leite... Ele volta amanhã.

— Amanhã! Que bom! exclamou Bela encantada.

— Porque que bom? interrogou Manon com sua voz antipática.

— Ué, disse a menina, porque eu gosto muito do tio Jaime. Ficaria aborrecida se ele se demorasse mais tempo em Paris.

— Dir-lhe-ei isso, falou a tia, sorrindo; ele ficará satisfeito.

— Mas é a pura verdade, disse André. Ele é tão bonzinho para nós e estamos tão bem aqui, titia!

A tia sorriu novamente e admirou o sobrinho, sen­tado diante dela. Esse sentimento inspirou-lhe outro, bem menos indulgente para com o jovem Paulo, sen­tado à sua direita.

— Paulo, disse ela com uma doçura descontente, não se deve ser egoísta; você não deixou leite para André.

Paulo replicou imediatamente com uma calma so­berana:

— E eu com isto?

— André é seu preferido, todo o mundo sabe, acrescentou Manon impertinente.

"Puxa! Se papai ouvisse isso", pensou o "pre­ferido", estupefato.

— Você poderia ser mais cortês, disse simples­mente a tia.

— Ora, em família não há cerimônias retrucou serenamente Manon.

E para demonstrar a inutilidade da cortesia para com a família, apanhou um prato cheio de biscoitos que teria despejado no seu leite, se Paulo, furioso, não ti­vesse protestado. Isso provocou uma discussão que logo degenerou em briga. As palavras mais ofensivas cruzaram-se de parte a parte.

— Deus do céu! Como vocês são impossíveis! gemeu a Sra. Sumène. Manon, largue esse prato e você, Paulo, veja como fala com sua irmã.

"Por que não os expulsa logo da sala? pensou André, horrorizado. Como são mal educados esses dois selvagens!"

Pensou na educação cerimoniosa que recebia e, contemplando os dois brigões, chegou à conclusão de que eram ambos insuportáveis!

"Tia Clara é muito paciente, refletiu Isabela, es­tupefata. Como é possível suportar crianças iguais a essas?"

Vendo que não conseguia nada, a Sra. Sumène virou-se para Isabela:

— O que é que vocês pretendem fazer hoje? per­guntou. O tempo está ótimo, aproveitem para organi­zar um grande passeio.

— A Maisonseule, por exemplo, insinuou Paulo entre duas colheradas.

André, que não esquecera a decepção da véspera, replicou secamente:

— Não irei nunca a Maisonseule com você; teria vergonha de apresentar um garoto assim. Nossos pe­quenos camponeses têm modos melhores.

Paulo juntava a seus numerosos defeitos uma falta de coragem absoluta. Não insistia nunca diante de uma atitude resoluta do adversário; dessa vez, como sempre, voltou atrás.

— Tenho uma idéia, disse Bela. Tio Jaime chega amanhã e ele adora siris; podíamos ir pescar no ribei­rão, pois há lá uma quantidade deles, grandes como lagostas.

— Exagero meridional! caçoou Manon.

Bela lançou-lhe um olhar de desprezo.

—- Não estou querendo dizer que vamos pescar lagostas, mas você, quando fala dos seus quatro pôneis, dos seus dois automóveis, das suas viagens, será que não exagera um pouco?

Manon nunca tivera um pônei e viajava pouquís­simo; enrubesceu e ficou logo com a cara emburrada:

— Não irei, disse ela; prefiro ficar aqui.

— Como quiser, respondeu Bela, encantada. André disse consigo mesmo:

"Se ela fosse, não resistiria à tentação de dar-lhe um banho".

— E você, Paulo, vai ou não vai? Você não tem medo de se resfriar, andando por dentro d’água, ou de ser beliscado... Não vai se cansar de correr?

Paulo, irritado, replicou:

— Você tem a mania de me considerar um molenga. Sou tão bom quanto você, mas...

— Até melhor, disse André cortesmente. Já que você vai, prepare as redes. Posso convidar os quatro Chaseaux, titia?

A família Chaseaux morava em frente do castelo de Sumène. Compunha-se de dois meninos da idade dos gêmeos e de duas meninas um pouco mais moças, todos encantadores e muito bem educados. Eram os companheiros de jogo de André e Bela, que os cha­mavam assim coletivamente: os quatro Chaseaux, mesmo quando uma ou duas unidades estavam indis­poníveis.

A Sra. Sumène conhecia esse modo de designar os jovens vizinhos, porque perguntou:

— Quantos virão hoje?

— Loulou torceu o punho, na certa não poderá vir, respondeu André; e Yeta é muito pequena. Então acho que convidarei o "Esquilo" e Miqueta. Vou agora. Bela e Paulo se encontrarão comigo na ponte.

— Muito bem. Vocês podem lanchar no moinho. Ande Paulo, vá se preparar, senão você se atrasa de novo.

— Ih! Que coisa mais cacete! Vocês estão sem­pre repetindo a mesma coisa! resmungou o interpelado, num tom dos menos respeitosos, saindo da sala.

André, que o seguira, encontrando-o no corredor agarrou-lhe os pulsos e disse com voz baixa e olhos bri­lhantes:

— Olha Paulo, estou lhe avisando, se você tornar a falar nesse tom com tia Clara, dou-lhe uns tabefes, compreendeu?

E desapareceu, deixando Paulo assustadíssimo.

Sem dúvida porque ainda estava um tanto ame­drontado, Paulo se desdobrou em gentilezas para com Isabela durante a caminhada. Fez questão de carre­gar seu casaco, além de todo o material da pescaria. Bela nunca o tinha visto tão atencioso, quis animá-lo nesses bons propósitos e teceu muitos elogios à sua habilidade manual.

Paulo gostava de fabricar uma serie de objetos e trabalhava muito bem em madeira, couro e estanho.

"Se fosse educado de outro jeito, seria bem menos desagradável, pensava Isabela. Não é culpa dele, coitado... Manon é intragável, mas ele não deve ser mau, no fundo".

E caminhando, chegaram ao lugar do encontro. André e dois dos quatro Chaseaux estavam sentados no parapeito da ponte. Eram eles: Miqueta, uma me­nina de clez anos de idade, e Bernardo, a quem chama­vam o "Esquilo", por causa dos seus cabelos cor de folhas secas e da sua espantosa agilidade.

— Bom dia Bela, gritaram os Chaseaux.

— Bom dia, bom dia, replicou Bela.

— Ué, Paulo veio? Onde está Manon?

— Manon não gosta muito de pescar, ficou em casa.

— Não gosta de pescar? repetiu Miqueta espantadíssima. É tão divertido correr dentro d’água!

— Pode-se apanhar um resfriado, objetou Paulo, muito cheio de cuidados consigo mesmo.

— Ora, se a gente sente frio é só se esquentar no sol, não há perigo algum, disse Bernardo. Não seja tão medroso.

— É preciso ser prudente, retrucou Paulo com seriedade. Nunca se sabe...

— O que eu sei é que você nunca morrerá por falta de precauções. Vamos; a caminho! Vou pôr as redes debaixo daquele carvalho grande, é o melhor lu­gar; olhe, as pedras escorregam muito, você não vai conseguir chegar até lá.

— Que graça! Você quer que eu fique no lugar que não tem siris, não é? Vai ser muito divertido!

— Eu? Mas para mim tanto faz! Vá para lá, se quiser, mas será preciso tirar os sapatos, senão você não se equilibra nas pedras; estão lisas como vidro.

Paulo não quis dar o braço a torcer; tirou os sa­patos e pôs-se a andar pelas pedras. No meio do ca­minho escorregou no limo e largou a rede, que rodou rio abaixo, levada pela correnteza.

— Minha rede! gritou ele. Apanhe-a, André, por favor!

André, ocupado em esvaziar sua rede já cheia, fingiu não ouvir.

— Apanhe-a, Bernardo! suplicou Paulo. Venha me segurar, por favor... estou escorregando... Miqueta! Depressa! Dê-me a mão-, eu... ai!...

Miqueta, caridosa, correu para ajudar o infeliz. Estendeu-lhe a mão; Paulo se agarrou a ela com tal força, que arrastou a menina, e os dois caíram sentados dentro d’água.

— Desajeitado! gritou André. Precipitou-se em socorro da amiguinha, enquanto Bela, caída na relva, chorava de tanto rir.

— Que estupidez! Pedir ajuda a Miqueta e ainda por cima arrastá-la para dentro d’água! Você se machucou, Miqueta? Levei um grande susto com sua queda. Coitada! Está toda molhada!

— E que é que tem isso? replicou com desenvol­tura a menina, sacudindo a saia ensopada em cima de Paulo. Está muito calor, num instante estarei seca.

— Vou apanhar uma pleurisia, gemeu Paulo, consternado. Recomendaram-me tanto que nunca mo­lhasse os pés!

— Mas você caiu sentado! replicou Bela, entre dois acessos de riso. Sua calça é que está ensopada!

— O melhor é que ele vá ao moinho, exclamou André com impaciência. Lá tem fogo. Se ele ficar aqui, teremos que ouvir esses lamentos durante uma hora. Ouviu Paulo? Tome o atalho aí à direita, e corra para não se resfriar. Malvina lhe dará vinho quente.

— Vou com ele, disse Bela, compadecida. Venha também, Miqueta. Você está encharcada.

Paulo obedeceu rapidamente, mas Miqueta foi de má vontade. Chegaram ao moinho; uma mulher loura, moça e simpática, estava sentada diante da porta.

— Bom dia, Malvina, disse Bela. Eis aqui dois pobres afogados, você seria muito boazinha se pudesse acender o fogo para esquentá-los.

Malvina se levantou pressurosa.

— Naturalmente, d. Isabela. Entrem, entrem! Tiveram uma ótima idéia de vir aqui hoje, pois acabei de fazer uma torta, e se quiserem poderão comer um pedaço.

Isabela, desfazendo-se em desculpas, segundo as boas normas de educação do lugar, por dar-lhe tanto trabalho, seguiu a moça.

Acendeu-se um grande fogo e Paul tratou cuida­dosamente de se aquecer, enquanto Malvina dispunha os pratos sobre uma tosca mesa de pés retorcidos. De­pois, percebendo que ela se preparava para fazer o café, Miqueta tomou-lhe a máquina das mãos e moeu os grãos.

Quando os meninos chegaram com um cesto cheio de siris magníficos, encontraram a mesa pronta: uma torta apetitosa reinava no meio, escoltada por um pote de barro cheio de mel dourado, e tendo à sua frente uma cesta de ameixas. Malvina queria por força fazer ainda uma omelete de linguiça; foi preciso toda a auto­ridade dos gêmeos para pôr termo a tanta hospita­lidade.

Obrigada a desistir da omelete, a moça não sosse­gou enquanto os meninos não provaram do seu vinho branco. Desculpou-se de não poder fazer nada melhor, mas justamente seu marido tinha ido a Maisonseule buscar uns sacos de trigo e ela estava só.

— É o meu Mario quem prepara a farinha das castelãs, concluiu ela, servindo o café.

— Você as conhece? interrogou André, curioso.

— Não, "seu" André. Ninguém as vê nunca. Não saem de casa.

— Não deve ser nada alegre em Maisonseule, durante o inverno, observou Isabela.

— Certamente não faz calor lá! E depois, é longe... só há mesmo os fazendeiros...

Isabela sentiu um friozinho por dentro. Ima­ginou as misteriosas castelãs isoladas na sombria mansão.

"Se houvesse uma menina, teria pena dela, pensou. Nós que achamos Chandolas tão lúgubre, quando neva! Que diferença, no entanto, de Maisonseule!"

— Outrora, continuou Malvina, minha sogra me contava como era animado o castelo. Sempre cheio de gente e de visitas, mas agora as moças devem se aborrecer muito, ninguém mais vai procurá-las.

— Por quê? Elas são desagradáveis? interrogou Bernardo curioso.

— Não! Claro que não. É que elas não são ricas... dizem que antes da revolução a família era dona de quase todo o lugar, possuíam inúmeras terras de fazendas por trás da montanha. Agora...

Interrompeu um instante sua historia para ofe­recer às meninas um pouco mais de torta.

— Mas, como é que ficaram pobres? perguntou André.

— Não sei, pois não conheço muito bem as pes­soas daqui. Vim das margens do Ródano. Se meu Mario estivesse presente, talvez pudesse contar mais coisas. A bisavó dele sabia muitas historias, pois ela nasceu antes da época do Imperador e conheceu as da­mas e cavaleiros de outrora.

— Gosto muito de tudo quanto é antigo, disse Bela.

— Então, se isso lhe interessa, D. Isabela, vou-lhe mostrar uma caixa que talvez tenha duzentos anos. Meu marido a estima muito, porque pertenceu à sua bisavó.

— Que tal se fôssemos brincar? propôs Paulo. Os bibelôs antigos não o interessavam.

— Daqui a poucos eu quero ver a caixa, respon­deu Bela. Ah! como é estranha! Olhe, André, esta paisagem de palha parece pintada. Posso abrir?

— Certamente, disse a moça satisfeita.

Bela segurou com precaução a caixa preciosa, lembrança dos antigos senhores. No interior havia mi­núsculos compartimentos forrados com fazenda florida, nos quais se viam algumas medalhas e um rosário.

— Não é muito bonita, disse Malvina, modesta­mente, mas é antiga. No outro dia descobri que o fundo levanta, e que por baixo há um pedaço de papel escondido; o senhor pode espiar, se quiser.

André, muito intrigado, apanhou o misterioso pa­pel e, apesar deste estar todo furado, conseguiu com grande dificuldade decifrar o seguinte: Procurar no vestido... aide, costurado, escritura .... ento .... seule. João Luís.

— Que enigma será este? disse ele.

— Não sei. Não vale nada, mas é preciso guar­dá-lo assim mesmo; minha sogra não queria que se mudasse coisa alguma na caixa.

Ela guardou cuidadosamente a relíquia no armá­rio, atrás da estatueta de N. S. de Lourdes e de uma fotografia do marido a cavalo, em seu uniforme de hussardo.

— Obrigada, Malvina, você é muito amável, disse Bela. O lanche estava delicioso! Agora vamos tratar de ir embora... Não podemos atrapalhá-la mais tempo.

Malvina, sorridente, protestou. Estava muito contente por ter recebido a visita das crianças.

— Diga-me uma coisa, Bela, gritou André, cor­rendo para alcançar os companheiros; você não ficou impressionada com aquele papel?

— Fiquei, sim, disse Bela, tem um ar misterio­so... está cheio de coisas estranhas; por que será que a bisavó de Mario fazia tanta questão de guardá-lo? E quem será esse João Luiz? Você conhece algum João Luiz por aqui?

— Não. Mas naturalmente é alguém que já mor­reu. E se perguntássemos a tia Clara?

— Não vale a pena. Ela nunca sabe de nada. Os Chaseaux também não. Eles nem se interessam pelas solitárias de Maisonseule: passam todos os verões aqui e nunca procuraram vê-las.

— Não são como eu! disse André com energia. Bela, removerei céus e terras até...

 

Durante os dias que se seguiram à chegada do tio Jaime, André e Bela esqueceram um pouco o castelo de Maisonseule e seus habitantes. O Sr. Sumène era um tio excepcional, segundo a opinião de todos aqueles que tinham a felicidade de serem seus sobrinhos.

Era, aos olhos de André, o maior sábio do mundo, mas sua ciência, que parecia esmagadora ao rapaz, era perfeitamente accessível. Tio Jaime não se zangava nunca e, no entanto, ninguém ousaria desobedecer-lhe. Era alegre, encantador, original, com uma imaginação fértil que lhe permitia fechar os olhos diante das reinações extravagantes dos gêmeos.

Enquanto sua mulher, horrorizada, se desolava e gemia "Essas crianças ainda se matarão e me farão morrer de susto e ansiedade", o Sr. Sumène retrucava alegremente:

— Fiz o mesmo que eles, minha querida, e, no en­tanto ainda estou vivo. Não se preocupe.

Tio Jaime possuía ainda certos modos que agra­davam a André. Por exemplo, mandava o garoto à aldeia vizinha, dando-lhe cinco francos:

— Olhe você me compre uma caixa de fósforos e guarde o troco.

Sobrinhos que ledes isto vos convenceis de que esse tio não é uma fantasia. Existiu realmente.

Entretanto, depois de ter gozado da presença do tio Jaime, André lembrou-se subitamente da famosa cena da tempestade e da ceia em Maisonseule, e inter­rogou o Sr. Sumène.

— Maisonseule! respondeu este: Lindo castelo, muito importante outrora, e hoje restaurado.

— É, o castelo é muito bonito, mas as moças é que me interessam.

— Claro, mas não as conheço melhor que você; os Gruterie de Maisonseule são uma família nobre, muito orgulhosa e muito empobrecida. Há muito tempo que não recebem mais ninguém. Sei que meu pai os co­nheceu, e devem existir ainda.

Refletiu um pouco. — É isso mesmo, um filho e duas filhas.

— Tristana e Rosamunda, disse André.

— Você sabe os nomes? Quem lhe disse?

— Uma velha artesiana; ela é que nos fez entrar. — Uma artesiana? Bem, é possível. O último Maisonseule casou-se com uma provençal.

— Há lá um casal de jovens?

— Não, o comandante de Maisonseule, que é ofi­cial de marinha, não vem nunca aqui; é viúvo ha alguns anos e suas irmãs não são casadas.

— Gostaria de conhecê-las, disse André. Bela e eu quisemos visitá-las para agradecer a acolhida que tivemos, mas não encontramos ninguém.

O tio pareceu não ter notado a decepção do me­nino; acendeu um cigarro e desdobrou o jornal.

— Tio Jaime, recomeçou André, acha que pode­ríamos voltar lá?

— Lá, onde? perguntou o Sr. Sumène, distraído. — A Maisonseule. Tenho tanta vontade!

Já mergulhado na leitura de um artigo interessante, respondeu o Sr. Jaime:

— Não; as moças de Maisonseule não se dão com sua tia e não recebem ninguém; seria indiscreto. Vocês cumpriram com sua obrigação, a visita foi feita e não se pode nem se deve forçar a porta.

—Que pena! suspirou André. Mas uma vez que não as encontramos, quem sabe se não ficariam até contentes de receber nossa visita?... Isso as dis­trairia.

— É possível que sim. Entretanto, quem tem certeza disso?

— Em todo caso...

— Basta, André, não insista mais!

O tom do Sr. Sumène cortou todas as tentativas do sobrinho, que se retirou sem dizer mais nada.

Não se deve pensar que André e Bela Chandolas, apesar de tão bem educados, fossem perfeitos. Tinham infelizmente uma quantidade de defeitos, como todo o mundo. O seu ponto fraco era a desobediência. Custava ao orgulhoso André deixar de lado um pro­jeto. Cedia diante do pai, mas renunciava a custo a um desejo que tivesse elaborado. A lembrança de que não chegaria nunca a penetrar na intimidade da misteriosa dama do Império que lhe atirara avelãs no outro dia, o consternava.

Apressou-se em transmitir a Bela a resposta ne­gativa do tio. Sua irmã torceu um cachinho de cabelo, sinal de preocupação, e refletiu profundamente.

Bela era igualzinha ao irmão; mas, sendo mulher, possuía além de uma vontade, indomável uma certa astucia que faltava ao seu "duplicata", como às vezes se chamavam.

— Olhe, disse ela, tio Jaime não quer consentir numa nova visita, mas não proibiu um passeio na mon­tanha, não é?

— É, reconheceu prontamente André.

— Pois bem! Nada nos impede de ir colher umas samambaias, por exemplo.

— Mas, não estão em flor agora! objetou inge­nuamente o irmão.

— Meu Deus, como os metanos são bobos! excla­mou amavelmente a irmã. Samambaias ou outra coisa qualquer, é um simples pretexto... pinheiro... flo­res, sei lá o quê? Ou então tirar umas fotografias do bosque. Será que é preciso explicar tudo?

André, confuso e vencido abaixou a cabeça.

— Uma vez lá na montanha, vamos até o castelo. Se não houver ninguém nas imediações, a falta de sorte será nossa. Se encontrarmos uma das moças, você dirá uma frase amável sobre a ceia e a acolhida da outra noite.

— O melhor é você dizer, retrucou prontamente André.

— Está bem, eu digo. Compreendeu?

— Você é genial! disse André com admiração. Não se pode negar que as meninas são muito mais in­teligentes que os meninos.

Bela assumiu uma atitude modesta:

— Mais inteligentes, não; são, porém menos... menos.. . como direi ?

— Astuciosos! completou o menino.

— É isto mesmo. Você, por exemplo, é um amor, é bonito, é...

— Ah! por favor, chega!

— Mas não tem astucia, meu caro, nem um tiquinho. Se não fosse eu!

— Graças a Deus você está sempre a postos, con­cluiu André alegremente. Então está combinado? Vamos à Maisonseule?

Enrubesceu um pouco e acrescentou:

— Olhe, uma coisa me preocupa: se nos vestir­mos muito bem, tia Clara perguntará logo o por quê, e então... Não queria ir mal arrumado... Que po­deremos usar?

Bela pensou um pouco antes de decidir. Exami­nou o irmão dos pés à cabeça, e disse:

— Você porá uma roupa branca. É bonita e não chamará a atenção. Esse problema é dos mais simples. Difícil vai ser despistar Paulo. Ele está ficando muito bonzinho, coitado, mas levá-lo conos­co...

Fez uma careta.

— Muito, fácil: direi que vou visitar Loulou, que está doente, para distraí-lo. Paulo está bem melhor, mas ainda não tem alma de irmã de caridade. Fique sossegada, que ele não irá.

O plano foi executado às mil maravilhas. Nin­guém reparou nos dois conspiradores. Um amigo do Sr. Sumène almoçou no castelo; os dois homens discur­saram o tempo todo sobre a autenticidade de uma cerâ­mica gaulesa e, finda a refeição, não tendo ainda re­solvido o interessante problema, retiraram-se para a biblioteca, onde continuaram a conversa. Tia Clara não se preocupava com as atividades dos sobrinhos, contanto que não a fatigassem com jogos muito baru­lhentos.

Manon, gripada, e em consequência de um mau humor insuportável, estava no quarto; e, como a idéia de visitar e distrair Loulou não agradava muito a Paulo, os jovens Chandolas tiveram a máxima liberdade para executar seu projeto.

Num instante percorreram o caminho já conheci­do, depressa demais até, porque, chegando no bosque, Bela olhou o relógio e declarou:

— É muito cedo para fazer uma visita. Teremos que esperar ainda uma meia hora.

André estava morrendo de ansiedade, queria por força desvendar o mistério.

— Não tem importância, Bela, no campo as visi­tas são feitas bem cedo.

Bela contemplou-o com certo desprezo:

— Meu caro, bem se vê que você não conhece os hábitos da boa sociedade. Sente-se um pouco e des­canse, pois este lugar é muito agradável.

— Não estou cansado. Fique aí, se quiser; eu vou andar até aquela faia grande.

Bela levantou-se:

— Espere que eu vou com você. Recomeçaram a andar. Bela estava maravilhada com as gigantescas samambaias entre as quais avan­çavam. As duas silhuetas claras se destacavam sobre o verde sombrio das plantas. André quis fotografar a irmã, apoiada ao tronco de uma faia majestosa.

— Um pouquinho mais para a esquerda, disse ele; aí seu rosto fica na sombra... para trás... um pouco mais... mais... mais. Ué, Bela... onde vai?

Bela murmurou:

— Depressa! Venha ver, depressa!

— Ver o quê?

Ainda mais baixo, Isabela continuou:

— Ela está aí, dormindo.

Num salto André foi ao seu encontro.

As duas crianças ficaram imóveis, sem fôlego. Sobre a relva espessa, abrigada por uma samambaia, a dama de outrora estava adormecida; devia ser muito jovem essa dama pequenina; suas faces redondas, sua boquinha minúscula, seus braços rosados eram os de uma criança. Desta vez estava vestida de cor de rosa e mais parecia um punhado de flores caído na relva do que uma menina. Dormia calmamente como um bebê no seu berço.

— Meu Deus, como é linda! disse André.

Essas palavras acordaram a menina. Ergueu-se, esfregou os olhos pesados de sono, sorriu, e sem se ame­drontar, contemplou André e Bela, estendendo-lhes as mãos.

— Por favor, ajudem-me a levantar, disse.

— Ela fala! murmurou André, espantado.

A dama riu e com o mesmo risinho lindo da outra vez, perguntou:

— Quem são vocês?

— André Chandolas e essa é minha irmã Isabela.

— Foram vocês que vieram ao castelo na noite da tempestade, não é? "Misé Berto" me disse que vocês eram uns amores.

Contemplou-os com atenção:

— É mesmo, vocês devem ser uns amores. Por favor, levem-me para o castelo, acho que estou meio perdida.

Completamente abobalhados, os gêmeos não di­ziam nada. Essa figurinha singular, do tamanho de uma boneca e graciosa como uma mulher, desconcer­tava-os e os encantava. Subitamente André pensou:

"Deve ser Rosamunda; é anã e é por isso que não queria aparecer".

Desolado, cochichou ao ouvido de Bela:

— É uma das solitárias; é anã! Bela arregalou os olhos:

— Você acha?

Rosamunda, se é que era ela, apanhou no chão seu lenço branco, de franjas, e amarrou o sapato.

— É difícil caminhar sobre as agulhas de pinhei­ro, disse. Tomem cuidado para não cair.

Isabela, intimidada, quase medrosa, balbuciou, cerimoniosa:

— Muito obrigada.

— Geralmente não passeio até tão longe. Escorregou, agarrou-se a André e continuou:

— Hoje fugi. Por favor, dê-me a mão, sim? Fugi. Tia Rosamunda ralhou comigo porque eu não queria dar lição de harpa.

Desta vez a surpresa quase fez gritar os dois ex­ploradores. Tinham ralhado com a princesinha de cor de rosa! Ela recebia aulas! Bela resumiu as impres­sões dos dois numa frase:

— Você é uma menina?

A dama riu alegremente:

— Claro! Mas não sou muito pequena, tenho oito anos. Chamo-me Felisa de Maisonseule, meu apelido é Fada.

— Muito bem achado, declarou André, convicto.

— É, continuou Fada, com seu modo de falar lento e musical; sou uma menina e não uma dama an­tiga. Sou a última Maisonseule.

Para pronunciar isso, arquem gravemente seus lábios de bebê. Essa menina singular encantava, mas ao mesmo tempo quase intimidava os gêmeos; eles, tão desenvoltos e ousados, caminhavam em silencio ao lado da minúscula castelã. Não ousaram se aventurar fora do bosque, lembrando-se das recomendações do tio Jaime. Não queriam por nada ser indiscretos.

Os gêmeos seguiram com o olhar a graciosa si­lhueta cor de rosa que se dirigia para o castelo. Viram a pesada porta se abrir e o fantasma de outrora desa­parecer. Voltaram a toda pressa pelo atalho cheio de pedras. Enquanto desciam a encosta íngreme, André disse satisfeito:

— Desta vez ficamos conhecendo o segredo de Maisonseule!

Bela interrompeu-o com desprezo:

— Meu pobre André, pensei que você fosse mais esperto. O segredo para você era Felisa?

— Ué...

— Então porque "misé Berto" suspirava tanto, dizendo: "Enquanto não formos às Santas, não nos livraremos deste pesadelo..."

— É verdade reconheceu André. Deve existir outra coisa, mas o que seria?

— Não tenho a menor idéia, confessou Bela, mas havemos de descobrir. Se pudéssemos fazer uma vi­sita às tias de Fada, seria bem mais fácil.

— Que coisa mais aborrecida! suspirou André. Será que nunca poderemos vê-las?

— Você já está desistindo? Eu não! Vamos de­pressa, André, temos que visitar Loulou antes de vol­tar. Se pedirem noticias dele, não podemos mentir.

— Apóie-se em mim, recomendou André, o atalho é muito íngreme. Não tenha medo, que meu braço é forte.

Chegaram sem novidades em casa dos quatro Chaseaux. Loulou passara a tarde recebendo diversas visitas e por isso o remorso dos amigos desapareceu na mesma hora.

 

— Ah! até que enfim apareceu! exclamou "misé Berto", cruzando com a menina no vestíbulo. Onde andou? Pensei que tivesse sido devorada pelos lobos.

Felisa respondeu sem se atrapalhar.

— Perdi-me No bosque e dormi um pouco na relva. Os lobos não me devoraram. Onde estão minhas tias?

— D. Tristana está como sempre, às voltas com seus queijos, respondeu com um suspiro a artesiana, e d. Rosamunda está trabalhando no quarto.

Felisa, com esta indicação, subiu a grande escada­ria de pedra e, abrindo uma porta, mostrou seu rostinho animado pelo passeio e seus olhos brilhantes.

— Sou eu, tia Rosamunda, posso entrar?

—Entre, queridinha! Entre, mas feche a porta depressa porque minhas palhas estão voando, respondeu uma voz doce e musical.

Diante de uma mesa repleta de minúsculas caixas e De palhas coloridas estava sentada uma mulher lin­díssima. Rosamunda de Maisonseule era de fato a mais formosa das solitárias. Sua fisionomia era ainda moça, tinha cabelos dourados, olhos azuis imensos, muito doces e sonhadores, mãozinhas encantadoras, cobertas da anéis antigos. Estava vestida de modo estranho com uma roupa de fazenda estampada, em que sobressaiam grandes desenhos em lilás e verde pálido sobre um fundo cinzento — o que lhe dava um ar de rainha.

— Onde andou, sua diabinha? disse ela com um sorriso indulgente. A hora da aula passou há muito tempo, agora não posso mais me ocupar com você; a noite está chegando e preciso acabar estas caixas para amanhã.

— São tão bonitas suas caixas, tia Rosa, disse Felisa, instalando-se diante dela. Esta aqui com esse ramo e aquela grande com uma paisagem tão linda. Que pena que a gente não tenha dinheiro e precise vendê-las! Gostaria bem de ficar com elas para mim.

— Coitadinha, disse a linda moça, eu também gostaria muito de fazê-las para você.

Elisa abraçou-a com carinho.

— Tiazinha, sou uma boba, não preste atenção ao que estou dizendo. Eu também quero ganhar di­nheiro! para Maisonseule, como você e tia Trístana; sou ainda muito pequena para isso, mas deixe que eu ajude um pouco; tomarei cuidado para não estragar seu trabalho.

— Vá brincar meu amor; já é tão triste aqui para você, ficar sempre trancada com suas velhas tias sem amiguinhas da sua idade.

— Não é nada triste, mentiu corajosamente a criança. Prefiro muito mais ficar com vocês do que com outras meninas.

— Como e que você pode saber, se nunca teve amigas? suspirou a castelã.

— Justamente encontrei agora uma menina que é um amor, e seu irmão. Estavam passeando no bos­que e me trouxeram até o castelo porque eu tinha me perdido. Ela chama Isabela e o irmão André. São aqueles que se refugiaram aqui no dia da tempestade; "misé Berto" contou que eram muito bem educados e é verdade, são uns encantos!

Fez uma carinha triste ao pensar que nunca mais veria os hóspedes de um dia.

— Trouxeram você até aqui? interrogou Rosamunda, trabalhando ativamente; por que não os fez entrar ?

— Não tive coragem, confessou Felisa. Acho, no entanto, que eles têm vontade de nos conhecer.

E disse consigo mesma: "Eu também gastaria muito de brincar com eles".

Seus lábios tremeram, mas sacudindo corajo­samente a cabeça, perguntou:

— Tia Rosa, conte-me a historia da sua avó, a refugiada que sustentava os pais fabricando caixinhas como esta.

— Mas eu já contei milhões de vezes! objetou a tia. Era uma menina muito corajosa, como você será um dia, não é?

— Certamente! exclamou Felisa, sacudindo com energia a cabecinha cacheada. Papai é corajoso como os seus velhos tios — os cavaleiros de Malta cujos retratos estão no salão; mas você e tia Tristana tam­bém são por isso quero parecer com vocês.

A tia, emocionada, deu um beijo na minúscula heroína.

— Vovó teve uma boa idéia fazendo essas caixas de palha; são muito bonitas. Você sabe fazer mantei­ga e queijo como tia Tristana?

Sem dar tempo à tia para responder Felisa acrescentou:

— Não, esse trabalho aqui é que é feito para você, pois você é habilidosa como uma fada.

— Quanto elogio! disse uma voz.

Tristana entrou no quarto. Era alta, magra, de cabelos brandos, um semblante expressivo, irregular e atraente.

— Tia Tristana, disse Fada, tornei a ver o meni­no e a menina. Eles me trouxeram até aqui. São uns amores.

— Que menino? interrogou Tristana, deixando-se cair numa cadeira.

— Os sobrinhos do Sr. Sumène, explicou a irmã. As crianças Chandolas que Berto recolheu numa noite de tempestade. Felisa está entusiasmada com eles.

— Você gostaria de vê-los de novo? perguntou Tristana bondosamente.

Felisa abaixou a cabeça sem responder, enquanto duas lágrimas rolaram sobre o vestido de cetim cor de rosa.

— Fada, meu bem, por que é que você está cho­rando.

Tristana, inquieta, pôs a sobrinha no colo.

— O que é que houve, querida...

— Não tenho coragem de dizer... balbuciou a pequena dama de outrora... Vocês ficariam tris­tes...

As duas irmãs entreolharam-se emocionadas e cheias de piedade.

— Eu queria convidá-los a entrar... seria tão divertido brincar com eles... mas vocês tinham dito que nós éramos muito pobres e que não podíamos es­tar recebendo visitas, então, eu... deixei que fossem embora.

Levantou orgulhosamente a cabeça.

— Não faz mal, sabe... não estou triste, não, Quero ser corajosa como vocês!

— Pobrezinha! disse Tristana carinhosamente, você é uma boa menina, uma verdadeira Maisonseule; mas, sabe, Fada, nunca se deve chorar; quando se está triste é preciso sempre sorrir, pois a coragem sozinha não é suficiente, é preciso tê-la com alegria. Estou muito satisfeita em poder proporcionar-lhe um prazer, pois é bem mais fácil receber crianças do que gente grande; embora sejamos pobres, seus amigos serão bem-vindos a Maisonseule. Enxugue os olhos. Do­mingo, se fizer um dia bonito, você pode convidá-los para lanchar aqui e os receberá do melhor modo pos­sível, não é?

—É verdade? Posso mesmo? Oh! Tia Tristana como você é boa! Tomara que não chova domingo! Vai ser tão divertido, mostrarei meus passarinhos e meu jardim a eles. Na certa a menina gosta de flores. Você acha que eles vão poder vir?

— Mas você é que pode saber, replicou Tristana rindo; só você os conhece.

— Imagine continuou Felisa, que eles pensavam que eu era uma dama! No entanto sou pequena, bem menor que Isabela; ela é quase do seu tamanho, more­na e muito bem vestida, e o irmão é tão educado! Gostei muito dele.

— Agora vá brincar lá fora, Fada, aconselhou Rosamunda; preciso acabar essa caixa e você aí com suas historias está me atrasando.

Felisa obedeceu prontamente. Foi para o fundo da varanda que dominava o vale, procurando avistar na massa sombria do arvoredo as altas torres de Sumène.

 

— Então vocês se divertiram com Loulou? per­guntou o Sr. Sumène, vendo seus sobrinhos aparecerem esbaforidos e apressados para não se atrasarem para o almoço.

André olhou para Bela, Bela olhou para André; os gêmeos eram muito independentes, mas incapazes de mentir, mesmo para se livrar de uma encrenca.

— Eu... começou o menino.

— Nós... acrescentou logo a irmã.

O tio franziu as sobrancelhas, e sob o bigode seu lábio se ergueu numa expressão algo irônica.

— Não se zangue tio Jaime, disse prontamente Isabela; fui eu que arrastei André.

Mais uma vez a astucia vinha em socorro da for­ça. Com seu instinto feminino, Isabela percebera que tio Jaime não falaria com a sobrinha do mesmo modo que com o sobrinho.

— Eu estava louca para voltar a Maisonseule.

— Não; fui eu, disse lealmente o irmão, que per­guntei a você como poderíamos ir lá. Prefiro dizer logo de uma vez, titio; se você ficar zangado, pior...

A fisionomia do Sr. Sumène tomou uma expressão aliviada.

— Eu já sabia: vi vocês lá na montanha. Fizeram muito bem em me contar, mas não façam mais isso.

— Que pena, disse Bela. Felisa é tão boazinha!

— Quem é Felisa? perguntou tio Jaime, intrigado. Os gêmeos começaram a falar ao mesmo tempo:

— Oh! Se você soubesse! Palavra, tio Jaime, que não pretendíamos fazer nenhuma visita, só passear e ver se enxergávamos alguém. No bosque foi que en­contramos a dama adormecida. Ela é tão interessan­te! É pequenina e fala como gente grande. André chegou a pensar que fosse uma anã! É uma menina e se chama Felisa; tinha fugido para não dar lição de harpa, e acabara se perdendo. Pediu que a levássemos de volta. Era preciso, não é?

Entre divertido e zangado, o tio fez um sinal de assentimento.

— Então vocês entraram?

— Não, retrucou Bela, você tinha proibido, e, no entanto gostaria bem de conhecer as tias de Felisa. Devem ser encantadoras. Que pena que tia Clara não possa ir vê-las!

— Conheci ligeiramente o comandante, disse tio Jaime. Felisa deve ser filha dele.

— Na certa foi ela que vimos atrás de uma cor­tina na noite da tempestade. É tão bonitinha! Parece uma pintura. Por que será que se veste de um modo tão engraçado? Aliás, fica muito bem assim, acrescen­tou Isabela.

Tranquilizados quanto às consequências de sua excursão, se apressaram a ir contar a nova aventura à Sra. Sumène e a Manon. Tia Clara ouviu-a diver­tida, e Manon com o mau humor habitual.

— Que bobagem, disse ela, andar durante duas horas para um castelo horrível e encontrar um bebê fantasiado; que coisa mais idiota se vestir assim. Será que eles não têm dinheiro para comprar outras roupas? Enchem a pequena de trapos velhos e vocês dois ficam de boca aberta!

— Admiro o que vale a pena, e Maisonseule é um castelo muito bonito.

— Prefiro nossa casa de São Lucas, no Monte Verde, disse Manon. Tem um lago, árvores antigas, uma gruta...

— No aterro da estrada, completou Bela, caçoan­do. É tão grande que a gente bate com a testa quando entra.

— Felisa não é nada ridícula e suas tias são cer­tamente pessoas muito finas, disse André para acabar com a discussão.

Paulo entrou naquele momento, e contrariando seu hábito falou com todas as pessoas. Indiscutivel­mente, o convívio dos jovens Chandolas o tornava dia a dia mais polido e educado. André agora parecia des­culpar seus pequenos defeitos, e quase não caçoou do gorducho quando este anunciou que em consequência de quatro partidas de tênis consecutivas estava com um terrível lumbago.

Durante toda a semana, André e Bela fizeram projetos para convencer tio Jaime que devia visitar Maisonseule; nenhum parecia realizável e já começa­vam a desesperar quando, no domingo de manha, Bela encontrou na caixa do correio uma carta para ela.

— Quem será que lhe escreveu? interrogou An­dré, curioso.

— Sei lá!

Na sua precipitação rasgou o envelope e leu o se­guinte bilhete, escrito cuidadosamente com letra in­fantil :

  1. Bela, minha amiga.

Quer vir brincar comigo, hoje à tarde? "Seu" André também poderá vir se quiser. Desejo muito que ele venha. Minhas tias es­tão com vontade de conhecer vocês dois.

Felisa de Maisonseule

— Que criatura adorável! exclamou André en­cantado.

— É de admirar que ela saiba escrever, não é? Parece uma mulherzinha.

— Vamos logo contar a tio Jaime; pode ser que ele queira ir conosco. Contanto que Manon não in­vente de ir!

Tio Jaime foi obrigado a ler duas vezes o bilhete de Felisa de Maisonseule. André estava tão entusias­mado que não resistiu e foi mostrá-lo a Pauto. Este demonstrou desejo de conhecer Fada, e André, divi­dido entre o desejo de mostrar sua amizade com a jovem castelã ou guardá-la só para si (sentimento muito humano) ficou indeciso. A amável irmã de Paulo a todos surpreendeu ao declarar que iria tam­bém brincar com Felisa.

Tanto seus tios como Bela e André fizeram-lhe um milhão de recomendações sobre a maneira educada e amável de se comportar em sociedade; até o gorducho Paulo suplicou-lhe: "por favor, Manon, não seja an­tipática!"

Em resposta Manon mostrou-lhe graciosamente a língua.

Rosamunda estava sentada na varanda, quando o automóvel dos Sumène parou diante da estrada. Le­vantou-se e veio ao encontro dos convidados com uma elegância tão natural que deslumbrou Isabela Chandolas. Rosamunda, com sua voz harmoniosa e pausada, igual à de Fada, disse amavelmente:

— Então são estes os encantadores amigos de Felisa? Estou muito satisfeita que seus sobrinhos o tenham trazido de volta aqui, Sr. Sumène. Nossas fa­mílias outrora foram íntimas e espero que agora o senhor se lembre sempre do caminho de Maisonseule.

André procurava imitar as boas maneiras do tio; Paulo, encabulado, se escondia atrás de Bela. Quanto a Manon, não achou uma palavra para responder às boas-vindas que lhe davam.

— Minha irmã já vem e Felisa também, disse a linda Rosamunda. Ela está arrumando as flores da mesa, é este o seu trabalho predileto.

— Então foi ela quem arrumou tão bem as rosas brancas com as frutas, no dia em que ceamos aqui? interrogou Bela.

— Certamente, disse a tia sorrindo. A fiel Berto seria incapaz disso.

E assim falando fez que os visitantes entrassem para o salão. Este, como o resto do castelo, era uma mistura de luxo e pobreza. O dourado dos moveis estava descascando, as fazendas esgarçando em certos lugares. Nas paredes, pinturas magníficas ostentavam o esplendor passado. As fisionomias altivas de dois cavaleiros de Malta chamavam logo a atenção.

André, arrebatado, examinava com respeito às pinturas sombrias e vigorosas. A expressão altiva e voluntariosa deixou-o impressionado.

"Que homens! pensou. Deviam ser "os tais".

A seu lado estava Paulo, sentado cerimoniosamente numa cadeira. Manon examinava os moveis com olhar crítico. Sem dúvida estava pensando na sala toda dourada de sua casa em São Lucas, no Monte Verde.

Os gêmeos ouviam com grande atenção a conver­sa do tio e da linda Rosamunda. Compreendiam va­gamente que a vida em Maisonseule era difícil e triste, mas que as duas irmãs enfrentavam tudo com coragem e alegria. André lembrava-se das palavras do tio: "Muito nobre, muito pobre, muito orgulhosa." Sua admiração aumentou consideravelmente.

Manon, com seu ar emburrado, continuava a pas­sar revista nas coisas. Paulo começava a se perguntar se a famosa Felisa não ia aparecer, quando ela afinal entrou na sala. Fez uma reverencia, segurando com a mão a saia verde e branca.

— Que maravilha de menina! exclamou o Sr. Sumène encantado. Depois, inclinando-se diante da linda criança, disse:

— Deposito minhas homenagens a seus pés. Dá-me licença de beijá-la?

Felisa respondeu com um sorriso que abriu duas covinhas nas suas faces redondas.

— Pois não; você é o tio Jaime de Bela, não é?

Levantou-se na ponta dos sapatinhos de cetim, e sacudindo a cabeça, continuou:

— Você é tão grande que não sei como vou fazer! Olhando para André, disse-lhe com um ar gentil, mas um tanto autoritário:

— Ponha-me nesta cadeira.

André obedeceu prontamente, enquanto tia Rosamunda ria dos modos da menina. Felisa envolveu o Sr. Sumène em seus bracinhos de bebê e lhe deu um beijo.

— Querida Fadinha! disse este, emocionado, seu pai é um homem feliz!

— Ponha-me no chão, pediu Fada. Tenho me­do de rasgar meu vestido. Ah! aí está tia Tristana. Podemos ir brincar lá fora?

Tristana desculpou-se alegremente do seu atraso. Mostrou-se muito amável para com o Sr. Sumène e os sobrinhos. Paulo achou-a ainda mais simpática do que a linda irmã. Depois de alguns instantes, Tristana, percebendo os olhares suplicantes de Fada, disse:

— Vocês querem brincar lá fora? Está bem. Vá mostrar seus passarinhos a Bela e traga seus ami­gos de volta às quatro horas, pois tenho um bolo para vocês que fica pronto a essa hora.

Virando-se para o tio Jaime, Tristana acrescentou:

— Tornei-me doceira em sua honra, e por essa razão dentro de cinco minutos terei que ir tomar conta da minha obra. Se por acaso queimar, não me conso­larei nunca. Estamos hoje sem nossa fiel Berto.

— Coitada! disse a bela Rosamunda com doçura. Imagine que fez o voto de fazer uma peregrinação às Santas Marias do Mar, para a nossa felicidade e de Felisa.

Bela parou atrás de um móvel com os ouvidos atentos e o coração palpitante. Seria finalmente a solução do mistério?

— Essa minha irmã! exclamou Tristana, Acre­dita firmemente que conseguiremos encontrar uma escritura de arrendamento que nos devolveria as terras de outrora e tornaria Felisa a herdeira de todas essas propriedades. Pobrezinha, está longe de o ser. Meu avô e meu pai passaram a vida a procurar sem nada descobrir. Eu, por mim, acho que é uma lenda, ou en­tão essa escritura deve ter sido destruída há muito tempo.

— Não creio, disse calmamente Rosamunda. Ca­çoe se quiser, mas tenho certeza de que existe. Onde, porém teria sido escondida? Mistério.

"Uma escritura de arrendamento? pensou Bela. O que será isso?"

O Sr. Sumène parecia muito interessado. Em tom serio replicou:

— Isso é mais do que provável; em que época te­ria sido feito?

— Por favor, disse Tristana, entre divertida e séria, não ajude a alimentar as ilusões de minha irmã. Tenho bastante trabalho em desiludi-la: é a mais ro­manesca das criaturas, vive sempre a imaginar coisas e nunca se preocupa com a realidade. Costumo cha­má-la "mania de romance". Sua maior felicidade consiste em vestir Felisa como as heroínas de suas his­torias.

— Isso lhe vai às mil maravilhas, aprovou tio Jaime.

— Enfim, para encurtar a nossa bela historia, Berto partiu para Aries, enfrentando toda sorte de contratempos, a fim de implorar às três Virgens Marias. É tocante, não é?

— Tenho muita confiança na oração dos humil­des, disse gravemente o Sr. Sumène; nossos camponeses têm uma fé poderosa e inabalável; desejo que D. Berto seja atendida, e se eu puder ser útil em alguma coisa, estou inteiramente à sua disposição.

Isabela escapuliu na ponta dos pés e correu ao encontro do irmão. André acabava de aparecer no terraço.

— Onde é que você estava Bela? Andei à sua procura, disse André.

— Você vai ter que procurar coisa muito mais interessante, murmurou a irmã com os olhos brilhan­tes. Imagine... O segredo... Eu o descobri!

André parou imediatamente:

— Como conseguiu?

— Ouvi as castelãs explicar a tio Jaime por que "misé Berto" fizera a promessa. É para achar um velho papel que lhes traria de volta toda sua fortuna. Tem um nome engraçado, o papel! Você, que é ho­mem, deve estar mais a par do que eu sobre essas coisas: uma escritura de arrendamento. O que é isso ao certo?

Orgulhoso de seu saber, André respondeu imedia­tamente:

— É o aluguel, de uma terra, por exemplo, por um período determinado; cem anos, se quiser. Durante esse tempo a pessoa que aluga pode fazer o que quiser; terminado o período, porém, tudo deve voltar ao pri­meiro proprietário ou a seus descendentes. Compreendeu?

— Muito bem.

— Hoje em dia não se fazem mais negócios desta natureza, mas antigamente usava-se muito. Ouvi pa­pai e tio Jaime falando sobre esse assunto. É isso que as moças de Maisonseule estão procurando?

— D. Rosamunda está, mas D. Tristana não acre­dita que exista coisa alguma. No entanto, acho que é coisa séria, porque tio Jaime ofereceu-se para ajudá-las.

E sonhadora, concluiu:

— Gostaria bem de encontrar a escritura... E você?

— Eu? exclamou André com convicção, remove­rei céus e terras até encontrá-la; será divertidíssimo. Olhe Bela, que tal se fizéssemos escavações sem dizer nada a ninguém? Seria um belo fim para as ferias se encontrássemos a escritura e pudéssemos os dois en­tregá-la a Felisa.

— Ótima idéia! Mas como é que vamos executá-la? Não podemos explorar o castelo, pois não é nossa casa.

André tinha uma imaginação fantástica. Arqui­tetou logo um romance heróico:

— Quem disse que está no castelo? Eu, por mim, acho que está em algum lugar das redondezas. Preci­samos nos informar para saber se as casas do lugar pertenceram outrora aos senhores do castelo; conver­saremos com os camponeses...

— Não vão querer dizer nada! objetou Bela.

— Vão, sim! Eu me encarrego disto. Agora não vá dizer nada a Manon, ela fará logo uma bobagem; nem aos Chaseaux, eles são bonzinhos, mas muito estouvados. Vamos ao encontro de Fada. Na certa Manon está sozinha com ela fazendo alguma das suas. Manon não fizera nada de mais, entretanto não se conteve mais tempo para mostrar seu humor azedo. Fez uma observação desagradável sobre a roupa de Fada e recusou todos os jogos sob pretexto de cansaço.

Tiveram que brincar de "anel" e outros jogos pouco divertidos.

Depois do lanche então foi o cúmulo. Felisa levou seus novos amigos para ver seu viveiro. Era uma imensa gaiola de junco escuro, cheia de pássaros da região.

— O pastorzinho teceu a gaiola, explicou Felisa. Ele é hábil e prestativo, É quem traz os pássaros e me ajuda a cuidar deles.

— Foi ele quem lhe deu estes? Interrogou Manon, mostrando um casal de rolas.

— Foi. Elas são bonitas, não é? E muito mansinhas. Esse aqui é Favorito e essa se chama Amare­linha; cantam de um modo tão suave, vocês vão ouvir.

Aproximou-se da gaiola e arrulhou de mansinho. Os pássaros responderam imediatamente.

— Que amores! Gostaria bem que fossem meus, disse Manon com uma cara de inveja.

Os pássaros beliscavam o dedo de Felisa através das grades.

— Estou louca por eles, continuava Manon, ape­sar dos protestos de Isabela.

— De que você tem tanta vontade? interrogou Tristana que se aproximava sem ser pressentida.

— Das rolas, gosto tanto delas!

— Então, disse Tristana, são suas, já que lhe agradam tanto. Felisa ficará muito contente em oferecê-las, não é, Fada?

A pobre Fada, muito bem educada para protestar, disse gentilmente: — Sim! Mas abaixou a cabeça com o coração bem triste.

— Era só o que faltava, Fada ter que dar os passarinhos! exclamou André.

— Manon não precisa absolutamente deles; por favor, D. Tristana, deixe que Felisa fique com eles.

— Mas eu os dou de muito boa vontade, disse heroicamente a última Maisonseule, estou contente em poder proporcionar-lhe um prazer. Você cuida bem deles, não é?

Bela e André estavam consternados. Aquela Ma­non! Como podia ser tão mal educada! Infelizmente tio Jaime partira antes dos sobrinhos e já não estava ali para impedir que aquele absurdo se consumasse. Puseram as duas rolinhas numa cesta e Manon partiu triunfante, depois de ter agradecido muito sumaria­mente a Fada e a D. Tristana.

Furiosos, os gêmeos censuraram-na asperamente durante todo o caminho de volta. Paulo, rubro de indignação, também reprovou a irmã:

— É sempre assim que ela faz! Disse, furioso. Quer tudo o que é dos outros.

— Nunca vi tamanha falta de educação, disse Isabela. O que é que você pretende dar a Felisa em troca?

— Ué! nada!

— Isto é demais, vociferou André. E Paulo gritou ainda mais alto:

— Será que você não tem vergonha? Se eu fos­se tia Clara lhe passaria um pito terrível. Bela opinião devem ter feito de você em Maisonseule! Já que é tão zuraca, darei um presente a Felisa, e em seu próprio nome, pois não quero que fiquem sabendo até que ponto vai sua má educação. Vou construir para ela uma casinha de boneca de madeira esculpida.

— E eu vestirei as bonecas, disse Isabela. Você é bonzinho, Paulo, sinto muito se fui implicante de­mais, algumas vezes. De hoje em diante vamos ser bons amigos, não é?

 

Numa linda tarde, em fins de agosto, a Sra. Sumène, vítima de violenta nevralgia, trancara-se no seu apartamento. Seu marido partira para a caça de manhã bem cedinho, deixando as crianças entregues a si mesmas.

Estavam todos mergulhados em leituras emocio­nantes, sem pensar em travessuras; mas quando surgi­ram os quatro Chaseaux tudo se transformou.

Os quatro Chaseaux naquele dia eram apenas três: Loulou, Miqueta e Bernardo, este último mais conheci­do pelo apelido de Esquilo.

— Alô! Que é que vamos fazer? perguntaram os recém-chegados.

— Não sabemos! replicaram os sobrinhos do Sr. Sumène.

Bela acrescentou:

— Vocês querem tomar um refresco?

E Manon, amável, uma vez na vida, disse a Mi­queta:

— Que bonito que é o seu cinto...

Isso anunciava uma reunião agradável. Depois que as visitas mataram a sede, Bela tornou a pergun­tar:

— Que poderemos fazer?

— O melhor é irmos para o jardim; é muito ca­cete ficar dentro de casa.

Saíram, sem saber o que fazer. Primeiro foram espiar os cachorrinhos de Miarka; depois se dirigiram para o lado das estrebarias.

Miqueta, vendo estendida sobre a relva uma gran­de quantidade de uma fazenda grossa, perguntou:

— O que é isso?

— Isso, disse Bela, é uma caridade de titia. Ela sempre dá muitas coisas para o orfanato de Santa Clara. Estas fazendas são para as orfãzinhas; foram molhadas e agora estão secando. Tem também uma pilha de cobertores.

— D. Clara é muito boa, constataram os quatro Chaseaux que eram somente três.

— É sim, apoiou André; ela gostaria de ser agra­dável a todo o mundo.

— Esses lençóis dariam umas barracas formidá­veis, disse subitamente Loulou.

Tais palavras foram o bastante para despertar no espírito do jovem Chandolas uma invenção das mais loucas.

— Tenho uma idéia! disse ele. Vamos brincar de peles-vermelhas. A gente se pinta com as tintas de Paulo — você empresta, não é? Arranjaremos umas penas e esses lençóis serão as barracas.

Os Chaseaux aplaudiram a idéia. Bela, prudente, objetou:

— Poderíamos estragar as fazendas,

— Estragar nada! afirmou o irmão. São muito resistentes; tia Clara não compraria um tecido que rasgasse à toa. Vamos depressa; lá na clareira, perto da pedra preta, poderemos armar um acampamento esplêndido!

A idéia era das mais ousadas e, talvez por isso mesmo, ninguém objetou.

Os lençóis das orfãzinhas foram roubados com ra­pidez e discrição. Enquanto Paulo e Loulou carrega­vam as fazendas, André e o Esquilo apanharam alguns cobertores, enquanto as garotas davam conselhos a todos.

— Ponham minha barraca no meio, ordenou An­dré. Sou o mais velho e, por conseguinte serei o chefe. Meu nome será Coração Leal. Bernardo ficará sen­do mesmo o Esquilo.

— Esse nome não é suficientemente indígena.

Bernardo queria coisa mais pomposa.

— Então fica sendo o Esquilo Selvagem. Você, Paulo, será a Raposa Astuta; Loulou, a Gazela Ágil. Está bem assim?

Os homens, disciplinados por natureza, aceitaram o novo batismo sem reclamações; já com as mulheres não se deu o mesmo. Depois de muita discussão, Miqueta foi chamada Filha da Madrugada, Bela, Flor do Orvalho, Manon, Estrela da Noite.

André já estava satisfeitíssimo com a brilhante idéia, mas quando a Raposa Astuta, que tinha sido en­viada até o castelo, voltou com a caixa de tintas para iniciarem a pintura guerreira, então Coração Leal sen­tiu-se verdadeiramente um grande chefe.

Com rapidez prodigiosa Miqueta cobriu as faces do chefe com círculos amarelos e negros, colocou-lhe na testa e no queixo uma estrela branca. Arrumou uma coroa de penas de faisão e enrolou-o numa manta de lã riscada, verde e vermelha. André estava de fato impressionante.

Chegou então a vez de Bernardo. A irmã pintou-lhe o rosto todo de azul, com triângulos cor de laranja e um minúsculo desenho vermelho na ponta do nariz. Miqueta tinha um talento muito pessoal e original; não se repetia nunca. Cada índio recebeu uma pintura diferente.

Bela e Manon se encarregaram de uma tarefa deli­cada: a alimentação. Uma delas penetrou no gali­nheiro, agarrou um frango inocente, torceu-lhe o pes­coço e apossou-se também de alguns ovos; a outra arre­cadou todas as sobras da sobremesa do almoço e arran­jou uma frigideira.

Assim carregadas, voltaram para o acampamento, que já tinha sido armado segundo todas as regras, bem no centro da clareira. André, medonho debaixo de sua pintura, fumava o cachimbo da paz com seriedade ver­dadeiramente indígena. Seus súditos alimentavam o fogo do conselho. O espetáculo era quase grandioso, e até Manon mostrava-se animada.

Havia três barracas, uma para cada casal de Ín­dios. Bela era a "squaw" de Bernardo e Miqueta dividia com André as honras do posto supremo; e por causa disto a discórdia quase se produziu no campo, pois André prometera a metade do saque e do produto da caça dos seus guerreiros como presente para a esposa. Felizmente a fome pôs termo às dissensões, mostrando urgência que havia em preparar a refeição.

O fogo do conselho, transformado em vulgar fogo de cozinha, foi reanimado. O frango foi depenado, limpo, recheado e posto a assar sobre o braseiro. A Sra. Filha da Madrugada, esquecendo a dignidade do seu posto, batia os ovos para a omelete quando de repente a Raposa Astuta empalideceu, a Gazela Ágil agitou-se inquieta e o próprio Coração Leal abandonou toda sua majestade de chefe para exclamar:

— Ih! que espeto!"

Termo nada indígena, nem mesmo muito correto, mas. . . imaginai os sentimentos de um chefe pele vermelha que observa o assado, quando este assado foi... meu Deus, é preciso dizer, meio roubado, e que os "wigwams" foram construídos... Ah! pobres ten­das, feitas com os lençóis destinados ao orfanato de Santa Clara!

Um menino menos decidido que Coração Leal teria atirado longe manta e cachimbo de paz, aban­donado barracas, assado, guerreiros e esposa e fugido a toda pressa.

Coração Leal mostrou-se um verdadeiro chefe. Recuperou a presença de espírito, apanhou o cachimbo e ordenou:

— Coma, calem a boca e digam o que eu disser.

As ordens pareceriam um pouco contraditórias a um espírito crítico. Os índios, não podendo fazer as três coisas ao mesmo tempo, escolheram, a mais simples: não falaram.

A omelete chiava no fogo! As "squaws" tremiam e no fundo do parque tio Jaime apareceu.

— Ufa! fez André com voz gutural.

— Boa tarde, disse o tio com um sorriso nos lábios.

Estava ainda muito longe para poder reconhecer as barracas.

— Meu irmão branco é um grande chefe, declarou Coração Leal com seriedade.

Menos amável o tio respondeu, caindo na garga­lhada:

— Meu irmão vermelho é um monstro de feio! Houve um pouco de alivio. Os peles-vermelhas esperavam ansiosamente a continuação.

— O chefe branco não sente fome? Não sente sede? continuou amavelmente Coração Leal.

— Estou quase morto de fome, respondeu o Sr. Sumène.

— O chefe aceita compartilhar do nosso pão e sal? Será então um hóspede sagrado para mim e para meus guerreiros, nossas esposas e eu mesmo, Coração Leal, seremos sagrados para ele. Tenho dito!

Os guerreiros encheram-se de admiração. Como era inteligente aquele André! Uma vez o frango e a omeleta divididos com tio Jaime, nada mais tinham a recear.

O Sr. Sumène caçara durante todo o dia. Sem dúvida estava com fome, ou então o cheiro da refei­ção indígena pareceu-lhe apetitoso. O fato é que se sentou sobre uma pilha de mantas, e tirando os car­tuchos do fuzil, recomendou a Paulo:

— Vê lá, Grande Serpente! Não vá deixar que o jantar se queime!

Tudo ia às mil maravilhas, O Sr. Sumène já es­tava se servindo da omeleta quando, por desgraça, a esposa do chefe, querendo auxiliar o marido, saiu do "wigwam" e deixou cair o pano úmido da porta da tenda sobre a mão do chefe branco. Este, muito es­pantado, examinou a fazenda e disse num tom de voz subitamente seco:

— Onde acharam isto?

— Eu... mas... balbuciou Coração Leal muito desapontado.

— Ora essa! Onde é que se viu tal coisa? disse o tio Jaime levantando-se. Você enlouqueceu André? Os lençóis, isso passa de todos os limites l Per­dôo muitas tolices suas, mas isto é o cúmulo!

Desta vez tio Jaime estava deveras zangado. Com toda a razão, aliás.

— Não foi só André, titio, disse Isabela.

— Fui eu, sim, respondeu resolutamente o irmão, pois como menino de caráter que era não recuava nunca diante das responsabilidades.

— A idéia foi minha, arriscou Loulou.

— É possível, respondeu o tio severamente, mas André é o mais velho e devia ter juízo.

Oh! desgraçada omelete, se tio Jaime tivesse tido tempo de comer um bocadinho! Infelizmente, nem Co­ração Leal nem seus guerreiros eram sagrados para o terrível chefe branco.

Coração Leal, muito acabrunhado, recebeu ordem peremptória de retirar-se para seu quarto e lá ficar até o dia seguinte.

Inútil dizer que o acampamento foi levantado com extrema rapidez. Na precipitação, os índios esquece­ram a omelete fatal e o frango, e foram — oh ironia — os cachorros do tio que se regalaram com o esplêndido banquete.

Os quatro Chaseaux, com as caras novamente brancas, voltaram a toda pressa para casa; Bela, cons­ternada de ver André pagando por todos, condenou-se voluntariamente a estudar piano durante hora e meia. Manon não fez sacrifícios, mas já tinha sido uma gran­de coisa não ouvi-la acusar os outros.

André, na solidão do quarto, cheio de raiva a prin­cipio, acalmou-se depois, mas começou logo a se entediar.

Foi para a janela e, vendo Miarka, a linda cadela do Sr. Sumène, pôs-se a assobiar baixinho:

— Au-Au-Au, latiu Miarka.

André achou que tinha entonação simpática. "Se pudesse trazê-la para cá!" pensou.

— Hei! Paulo! Paulo! Está ouvindo? Paulo! Olhe aqui! Estou caceteado. Você seria um anjo se me fosse procurar um livro na biblioteca. Mande-o junto com Miarka, dentro de um cesto.

— Mas seu quarto está fechado, objetou Paulo.

— Não faz mal. Tenho uma corda aqui. Amarre o cesto na ponta que eu puxo.

— Está bem, disse Paulo.

Cheio de boa vontade, correu para apanhar o livro, mas teve a infeliz idéia de acrescentar ura bilhete nos seguintes termos:

"Meu caro André,

Estou aborrecido por vê-lo de castigo, sobretudo por causa da visita que Felisa nos fez hoje. Ela ficou com muita pena de não encon­trá-lo. Felizmente, você está passando bem. Eu estou novamente sofrendo com meu lumbago. A saúde é a coisa melhor que a gente tem. Agradeça a Deus de não estar doente e tenha resignação. É certamente para seu bem que você esta sendo castigado.

Seu amigo Paulo"

Escreveu o bilhete no mais lindo papel de carta da irmã, e querendo dar prova da sua grande delica­deza, escolheu um cartão com uma saudade no canto.

Satisfeito, colocou Miarka, livro e bilhete no cesto. Ao receber a mensagem, André quase morre de raiva.

Felisa tinha vindo! Felisa ficara triste com sua ausência! Que azar! Ela, que saia tão raramente de Maisonseule! Quando poderia tornar a vir? Estava tão desesperado, que por um pouco mais teria cho­rado de raiva.

 

O primeiro cuidado de André Chandolas, logo que, recuperou a liberdade, foi de recomeçar a procura da escritura de arrendamento que proporcionaria às soli­tárias de Maisonseule a reconquista do esplendor de outrora.

O papel de detetive exigia mais esperteza do que força, por isso Bela ofereceu sua ajuda com entusiasmo.

Paulo dedicava-se de corpo e alma à construção da casinha de boneca destinada a Felisa. Os gêmeos aproveitaram-se dessa circunstancia para começar as buscas. Entravam em todos os lugares, conversavam fa­miliarmente com os camponeses. André distribuía ci­garros aos homens; Bela afagava as crianças e as en­chia de gulodices. Breve ouvia-se nas redondezas uma serie de elogios sobre os sobrinhos do Sr. Sumène, tão amáveis e simples.

Habilmente, Bela indagava se as casas eram an­tigas, a quem tinham pertencido outrora. Declarou interessar-se por antiguidades, e trepou por escadas im­possíveis até os sótãos, geralmente abarrotados de cebo­las e sementes diversas.

Nem sombra de pergaminho! Se os documentos existiam, os camponeses não os mostravam.

André era especialmente benquisto por uma velha que morava sozinha num casebre inseguro perdido no bosque. Encontrou-a uma noite carregando um feixe de lenha pesadíssimo. Ajudado por Bernardo Chaseaux, André se encarregou do fardo e levou-o até a cabana. A velha camponesa, cheia de admiração e re­conhecimento, pediu a benção do céu para os dois amigos e quis por força oferecer-lhes .uma cidra hor­rorosa que os meninos engoliram heroicamente. Con­tou também a historia dos seus infortúnios. Bernar­do, meio tonto por causa da horrível cidra, escutou dis­traído, mas André, com grande interesse, descobriu que a casa fizera parte da propriedade de Maisonseule. André teve a impressão de que o sucesso das suas pes­quisas estava próximo, e como a velha se lamentasse dos rigores do inverno numa cabana "construída tal­vez ha dez mil anos", ele insinuou:

— A Sra. deve ter muitas coisas antigas no sótão: pratos velhos, ferragens, papeis talvez?

— É coisa que não falta lá. Meu pobre pai — Deus tenha sua alma! — guardava tudo.

André estremeceu. Pediu apressadamente:

— Será que posso dar uma olhadela? As anti­guidades me interessam muito.

A velha achou que o "moço" tinha um gosto muito esquisito. Bernardo teve o mesmo pensamento. Como é que seu amigo podia gostar de remexer em objetos mofados e cheios de poeira? Só em pensar, sentia vontade de espirrar.

0s trastes se limitavam a pouca coisa, e quanto aos papeis, estavam sujíssimos e roídos pelos ratos. André achou que descobrira um tesouro; e propôs adquirir a papelada à velha, que a principio não queria vendê-lo, apesar de saber que não tinha a menor utili­dade a não ser para acender o fogo. Afinal, cedeu-o por dez francos.

O Sr. Sumène, na sua qualidade de sábio, foi cha­mado para dar sua opinião sobre o achado. Deu-a e foi muito decepcionante — acrescentando-lhe a proibição terminante de André recomeçar a explorar os sótãos das redondezas.

— Essa boa gente vai pensar que queremos des­pojá-los dos seus bens. Proíbo que recomece, ouviu?

— Sim, titio, respondeu André muito desapon­tado.

— Por que fez isso? indagou o tio. Está porven­tura organizando alguma coleção?

— Não, respondeu André. Era para me di­vertir.

— Então arranje outra diversão.

Muito aborrecido, o detetive improvisado saiu à procura da irmã.

— Imagine você, disse ele, que tio Jaime me proibiu de insistir em procurar o papel de Maisonseule.

— Você foi dizer a ele que estávamos procurando? Qual, André, você é mesmo um bobo.

— Mas eu não disse nada! É que comprei de uma velha um bolo de papeis antigos, pensando que a escritura estivesse no meio deles; mas não valem nada, e tio Jaime proibiu-me de recomeçar.

Melancólico, concluiu:

— Custaram-me dez francos a brincadeira.

— Eu pago a metade, propôs Bela. André ofendeu-se.

— Mas nós sempre dividimos tudo, insistiu Bela.

— Não quero dividir com você minhas tolices. Bela abandonou a roupa da boneca que estava fa­zendo para Felisa e disse:

— Que é que vamos fazer agora?

— Sei lá!

— Será que teremos que desistir? Gostaria tanto de proporcionar um prazer a D. Tristana! Ela é tão amável! É a minha preferida. E a sua?

André era sensível aos encantos físicos, e Rosamunda, apesar de estar se aproximando dos cinquenta, era tão loura e bela!

Hesitou e disse:

— Gosto das duas igualmente.

— Mas prefere Felisa às outras! disse Bela rindo. E ela não passa de um verdadeiro bebê; quase chorou no outro dia, quando Manon trouxe as rolinhas.

— Manon é intragável, disse André com energia. Ela nem liga mais aos passarinhos. Deixa-os morrer de fome. Ontem eu é que dei de comer aos pobrezinhos.

— Quer dizer, continuou Bela, enfiando a agulha, que não procuramos mais o pergaminho? É pena... imagine... tinha uma idéia... talvez seja bobagem.

— Aposto como é a mesma que tive! O papel de "João Luiz" não é?

— É. Talvez seja bobagem, mas parece-me... André, pensativo, repetiu:

— Procurar no vestido... oide. O que será aide? Escritura... Enio.... seule. Evidentemente é escritura de arrendamento de Maisonseule; mas estará costurada em que vestido? Ah! se pudéssemos desco­brir, a pista desse João Luiz! Pensei logo nele e perguntei à minha velha o nome do seu "pobre pai" que fazia tanta questão daquela papelada.

— Qual era o nome? interrogou Bela.

— Ferdinando! respondeu André desanimado. Não podia ser.

— Tio Jaime talvez saiba quem é esse João Luiz.

— Mas se ele me proibiu de continuar com as pes­quisas não posso ir perguntar-lhe nada, não é?

Houve uma pausa. Depois, Isabela continuou:

— No entanto, temos que encontrar essa maldita escritura. As moças de Maisonseule são tão pobres! Imagine você que Felisa me contou que d. Rosamunda faz caixa de palha para vender, como uma de suas antepassadas fazia, durante a emigração; e D. Tristana faz queijo e manteiga para fora. Ninguém diria, vendo-as tão distintas, tão fidalgas... É formi­dável ser assim?

— É, elas são muito corajosas, observou André com admiração. Daria muita coisa para achar essa escritura... você compreende, se elas recuperassem todos os imóveis, campos e planícies a que têm direito, não pre­cisariam mais viver como solitárias.

Com um suspiro concluiu:

— É. As coisas estão muito mal paradas! Calaram-se novamente. O menino sentou-se no balaustre da varanda e ficou batendo com os calcanha­res, enquanto assobiava uma música de caça.

— Oh, Bela... Você tem pensado no aniversário de tia Clara?

— Claro! Teremos que celebrá-lo condignamente; ela e tio Jaime são tão bons para nós! Eu... você não conta nada?

— Não, prometo que não conto.

— Estou bordando um guardanapinho com filé e bordado inglês.

— Que é isso? perguntou André,

Não tinha muitos interesses nesses assuntos. Bela ex­plicou laconicamente:

— Uns buracos com linha à volta; é muito demorado, mas vai ficar ótimo... Paulo vai lhe dar um cofrezinho de cobre trabalhado; não gostei muito, mas ele está encantado; não devemos caçoar mais dele, é muito bonzinho.

— Ele me escreveu uma carta idiota! disse André com rancor.

— Escreveu a você? Dizendo o quê?

— Que tinha pena do meu castigo, mas acrescen­tou que era bem merecido! Fiquei furioso!

— Não se queixe; você não deve se esquecer de que, por sua causa, tia Clara, bondosa como é, nos obri­gou a comer durante dois dias todos os seus pratos fa­voritos e o pobre Paulo teve que comer duas vezes pudim de abacaxi, que é o doce que mais detesta.

— Bem feito para ele, disse André ferozmente; nunca vi ninguém tão bobo quanto Paulo,

— Mas é mil vezes melhor que Manon; está fa­zendo esforços loucos para reparar a falta de educa­ção da irmã e ser agradável a Felisa.

André suspirou:

— Eu também queria tornar-me agradável a Felisa, mas agora, com a proibição de tio Jaime, não sei como vai ser.

Tossiu duas vezes, enrubesceu e bruscamente con­fessou:

— Sinto-me tal qual como diante do aniversário de tia Clara: atrapalhado, sem saber o que lhe oferecer.

— Flores, naturalmente, sugeriu Bela.

— Ah! Flores! Isso é banal demais; ela vai re­ceber dúzias, muito mais bonitas que as minhas. Pen­sei... não vá caçoar de mim. . .

— Claro que não; pensou o quê?

— Pois é.

André precipitou as explicações:

— A historia de Maisonseule é tão romanesca... que me inspirou um drama formidável; vou oferecê-lo a tia Clara.

Bela ficou esmagada pela revelação. Pobre do seu guardanapinho de bordado inglês! Não pesaria muito, perto do presente de André.

— É boa idéia, não é?

— Muito boa. Tia Clara vai ficar sensibilizada; está adiantado o romance?

— Não muito; comecei-o quando fiquei de cas­tigo; mas não vai ser muito comprido... "Tal livro é bom, mas arrasta-se demais em certos trechos"; é o que tio Jaime sempre diz. O meu não se arrasta, vai depressa... e é um pouco chocante, sabe?

— Passa-se em que época? Na atual?

— Não, situei a historia na Idade Media, por ser mais fácil. Em vez de um pergaminho procura-se uma jóia. E para seguir o estilo do tempo, haverá uma serie de crimes, assassinatos e fantasmas...

— Que idéia estranha! disse Bela, surpresa; eu teria feito alguma coisa de belo e gracioso.

— Ora! replicou o romancista, desdenhoso, isso é bom para mulher, não entendo dessas coisas insípidas Preciso de energia e movimento...

— Apanhe meu carretel, por favor, interrompeu Bela.

André fez o que a irmã pedia enquanto continuava:

— Ah! está infernal a minha historia. Li ontem uma página para Paulo, enquanto nos despíamos, e ele teve um pesadelo horrível a noite inteira!

— Você lê para mim? pediu Bela com os olhos brilhantes.

André só esperava pelo convite:

— Se quiser... Não está adiantado, mas sempre dá para se ter uma idéia. Apenas será preciso escolher um momento em que tio Jaime não esteja; ele pode caçoar de mim, e isso me aborreceria.

Felizmente, no dia seguinte, tio Jaime se ausentou, e a Sra. Sumène, cedendo aos pedidos de Manon, le­vou-a a Valença para lhe encomendar um vestido.

No momento em que André desdobrava o folhetim, os quatro Chaseaux — ao completo, desta vez — apa­receram.

— Vocês tiveram uma boa idéia! disse Bela, recebendo-os. André está escrevendo um livro soberbo, e vai nos ler um pedaço.

— Vocês são medrosos? interrogou o talentoso autor com tom ameaçador.

Os Chaseaux juraram três vezes que não eram.

— Eu sou, arriscou timidamente a pequenina Yeta, de sete anos.

Mas a interrupção não foi ouvida.

— Como se chama a historia? indagou Bernardo. André mostrou-se perplexo:

— Não sei ainda; estou procurando um título im­pressionante, qualquer coisa de trágico.

Yeta, amedrontada, aproximou-se de Paulo.

— Você não gostaria de usar a palavra "fatal"? propôs Miqueta. É diferente.

— É. Uma palavra qualquer que soasse como uma voz da Idade Media. "Fatal" ficaria muito bem.

— Por exemplo: O Estandarte Fatal? sugeriu Loulou amavelmente.

— Péssimo, exclamou o irmão.

Paulo, por sua vez, sugeriu O Visitante Fatal, acrescentando:

— No primeiro capítulo chega um cavaleiro com cara de corvo.

Essas duas idéias não obtendo sucesso algum, ficou decidido que o título permaneceria em branco. A leitura não podia ser adiada de novo, porque tio Jaime podia voltar e atrapalharia tudo. Isabela pro­pôs que subissem ao quarto da torre, peça inabitada que servia como depósito de moveis velhos, onde nin­guém ia e portanto onde não seriam incomodados. Paulo, muito assustado com a idéia de ouvir uma historia de crimes num lugar tão sombrio, fez uma serie de objeções: o assoalho não era sólido, tinham proibido que brincassem lá, Bela ia ter medo... Sem ouvi-lo, todo o grupo começou a subir a escada, André na fren­te, Yeta na retaguarda.

— Não façam barulho, recomendou Bela. Se os empregados nos escutarem...

— É muito simples: tirem os sapatos, ordenou o autor do romance fatal, ou trágico (não se sabia bem como classificá-lo).

Os amigos, encantados com a sugestão, obedeceram; todos se descalçaram, até mesmo o cuidadoso Paulo. A ascensão da torre, naquela estreita escada sombria, acabou de horrorizar a pobre Yeta. Não ousava abrir a boca e agarrava-se a Miqueta, que era mais ousada que os próprios meninos. O quarto dá torre parecia pouco convidativo; iluminado por uma janela estreita tinha um aspecto sinistro. Continha uma cama de baldaquim, muito velha e fora de uso, um armário antigo e duas ou três arcas com pregos de aço. Serviram como assento aos ouvintes; Bernardo, conhecido como o Esquilo, encarapitou-se no alto do armário; André sentou-se na cama com as pernas cru­zadas. Desdobrou o manuscrito e começou:

"Ora, naquele dia da festa da Páscoa o cavaleiro Tristão da Grutesia, senhor de Maisonseule, foi encon­trado na sua cama com a cabeça cortada..."

Imediatamente os assistentes olharam para a cama e depois para a porta. O Esquilo em cima do armário, um tanto amedrontado e esforçando-se para não o de­monstrar, disse:

— Começa bem! continue, meu velho. Miqueta lançou um olhar furtivo atrás de si e insinuou:

— Vocês não ouviram chamar?

— Não, parem de interromper.

"... O sangue inundava o tapete...”

— Como? protestou Loulou; tapetes naquela época? Ponha logo um aquecedor elétrico!

— Você acha? Está bem, substituirei por um tecido qualquer que seja menos pretensioso.

“... e a roupa da dama que sustentava desmaiado o seu senhor..."

— Quem estava desmaiado? A dama ou o se­nhor? Se ele está de cabeça cortada, não pode estar só desmaiado, pobre infeliz! disse um dos Chaseaux.

— Mas, então? observou Miqueta, decepcionada; não é nada trágico.

— Espere, vai ficar.

— Estou com medo, disse Yeta baixinho.

— Vocês não estão compreendendo nada, disse André com certo desprezo; acho melhor explicar a his­toria. Fica mais fácil assim, porque ela não está ainda toda escrita.

A idéia era boa, mas tinha o inconveniente de di­minuir o interesse da leitura.

— É o seguinte: o cavaleiro Tristão não está morto. Alguém entra no seu quarto...

— E lhe torce o pescoço? Você já disse.

— Ih! Loulou, você é pau! ... e lhe da dezessete punhaladas, continuou.

— E nenhuma acerta? Que "barbeiro"!

— Ele não morre porque possui um talismã que lhe foi dado por... não sei ainda por quem, vou procurar.

— Por um eremita, sugeriu Bela.

— Aí está! Por um eremita! De modo que o senhor de Maisonseule sai sempre ganhando...

— Então como é que levou dezessete punhaladas?

— Porque um desconhecido que chegara na vés­pera no castelo, tinha também um talismã.

— Se os talismãs vão lutar um com o outro, como acabará? interrogou o Esquilo com admiração.

— Justamente. André exultava:

— A dama de Maisonseule descobriu ura segredo que pôs o cavaleiro à sua mercê.

— Que cavaleiro?

— Claro que o mau.

— É formidável! exclamou Miqueta cheia de en­tusiasmo.

— De modo que todo o tempo estão se matando. O cavaleiro Tristão ressuscita...

— Ué, mas ele não tinha morrido!

— Pois é ele recupera a saúde. Quer se vingar do cavaleiro desleal — não sei ainda o nome deste — e mata-o!

Virou uma folha e leu:

"O cavaleiro Tristão, tendo invocado a Virgem Maria e suplicado monsenhor São Miguel que ar­massem o seu braço, vibrou um golpe fatal no seu adversário, estendendo-o morto aos pés do conde!..."

— Que conde? perguntaram os ouvintes comple­tamente desorientados.

— O suserano, conde de Poitiefs, que está assis­tindo à briga. Prometeu dar a filha em casamento ao vencedor da luta.

— Mas o cavalheiro Tristão já não é casado? in­dagou Bela, surpresa.

— Ficará solteiro; é mais cômodo assim. A dama do principio, em vez de ser sua mulher, será sua irmã. Vou pôr D. Rosamunda no livro, - ela tem todo o tipo da Idade Media.

Bernardo refletia:

— Esse suserano era um homem de muito boa fé, para prometer a filha a qualquer um! E se fosse o mau que vencesse?

— Ah! Você está me aborrecendo. Deixe continuar:

"O mau foi morto, mas volte..."

— Ele tem um talismã que o protege, constatou Miqueta.

"Uma noite o conde está adormecido no quarto de honra de Maisonseule, quando subitamente é acor­dado por uma mão fria como gelo. Abre os olhos e vê uma sombra envolta num lençol que lhe diz em voz sepulcral: "Conde Aymar de Poitiers, sou a alma Tristão”.

— O que é que há com vocês?

— Estou com medo! murmurou Yeta. Deliberadamente a pequena dirigiu-se para a porta.

Foi uma debandada; Bela e Miqueta voaram atrás dela. Paulo fazia prodígios para alcançá-las, quando o Esquilo, horrorizado, caiu nas suas costas, rolando os dois pelo chão.

— O fantasma! gemeu o infeliz Paulo. Precipitaram-se escada abaixo, galopando a toda pressa; um caldeirão velho e uma trempe de fogão fora de uso, abandonados ali por um empregado desleixado, foram arrastados na passagem pelos fujões, rolando também pelos degraus atrás do bando amedrontado. Tais objetos, pulando de degrau em degrau, faziam um barulho terrível; podia-se pensar que dez cavaleiros estavam em luta com o suserano. A trempe parou no primeiro andar mas o caldeirão foi até embaixo, che­gando no momento exato em que Paulo, vencido e aterrorizado, caía sobre a areia do jardim.

— Que diabo estão vocês fazendo? indagou subi­tamente a voz bem conhecida do tio Jaime.

Paulo atirou-se em seus braços.

Admirado, o Sr. Sumène insistiu:

— Que é que houve?

— O fantasma! choramingou Yeta.

As meninas confessaram terem morrido de medo; os meninos não disseram nada — sentiam-se confusos.

— Por que estão todos descalços? perguntou ainda o Sr. Sumène.

— Ah! é verdade! disse André. Nossos sapatos ficaram lá em cima.

— Vão buscá-los! Não gosto de gente que anda de pé no chão.

Foi preciso obedecer. Paulo deu dois francos a Loulou para que lhe trouxesse as botinas. O Sr. Sumène resolveu deixar para mais tarde o esclarecimento da­quela debandada. Yeta chorava sem parar; Isabela fez a menina beber uma dose respeitável de água de flor de laranja; Paulo quis beber também, e por extraor­dinário que pareça, seus camaradas não caçoaram dele.

André, passado o primeiro momento, sentiu-se orgulhosíssimo de ter produzido um efeito tão grande, Esperava um sucesso sem precedente, e fez os amigos jurarem que guardaria segredo a fim de que a surpresa da tia fosse completa.

 

Paulo terminara a famosa casinha de bonecas e toda a família admirou sinceramente o brinquedo. Felisa certamente ficaria radiante com o lindo chalé desmontável.

Manon, sempre desagradável, passou um dia in­teiro emburrada porque queria ficar com a casinha. Por isso mesmo Paulo não pediu sua ajuda, mas Isabela ofereceu-se de bom grado para confeccionar as cor­tinas dos quartos e os vestidos das senhoras bonecas. André fez questão de comprá-las; ficou resolvido que seriam ditas, mãe e filha, e tia Clara deu toda sorte de retalhos de seda que tinha, para as roupas. Com a ajuda da arrumadeira, Isabela vestiu a mãe e a filha à moda do segundo Império. A mãe, suntuosamente, com uma roupa de tafetá cereja e verde, chapéu com­binando, chalé de renda preta e pequena bolsa no braço, contendo um minúsculo lencinho bordado. A filha, toda de seda azul, com chapéu grande, enfeitado com veludo preto e ramos de miosótis.

O Sr. Sumène gostava de seguir os progressos da instalação das senhoras bonecas. No dia em que os quartos foram mobiliados e que Bela colocou nas jane­las — que se abriam! — as lindas cortinas de "voile" branco, amarradas com fitas vermelhas, tio Jaime foi convidado para vir ver como a casa estava bonita com suas janelas iluminadas!

Muito satisfeito com a habilidade e camaradagem dos sobrinhos, o Sr. Sumène deu umas gravuras anti­gas, pequenas e encantadoras, para enfeitar a sala; e Bela, num arroubo de generosidade, desfez-se de um dos mais lindos bibelôs de sua coleção: um minúsculo copo de cristal da Boêmia, para colocar na mesa central.

Resolveram ir oferecer o presente a Felisa. Manon, naturalmente, recusou-se a tomar parte na visita, mas a Sra. Sumène, para satisfação geral, declarou na hora do almoço que acompanharia com prazer os sobri­nhos a Maisonseule.

Durante o trajeto, as crianças não se cansavam de contemplar o embrulho precioso. André e Paulo ti­nham-no instalado ao lado do chofer, fazendo toda sorte de recomendações.

— Vocês acham que ela vai gostar? indagava Paulo de cinco em cinco minutos.

Tia Clara afirmou que Felisa ficaria radiante; ela mesma, quando pequena, teria ficado louca com um pre­sente daqueles.

"Misé Berto" estava dando comida aos pombos, quando o automóvel chegou diante do castelo. Res­pondeu à Sra. Sumène, quando esta indagou se as moças recebiam:

— Sim senhora. D. Rosamunda está na sala dando aula de música a Fada. Coitada, a pobre me­nina detesta lições de harpa!

— Ah! disse Bela rindo, desta vez ela não fugiu! É ela quem está tocando? Que bonito!

Entrou no castelo com a tia. Os dois meninos apanharam o embrulho com todo o cuidado.

— "Misé Berto": disse o primeiro, isso é uma surpresa para Fada. Será que você pode escondê-la no quarto dela? Ela a encontrará amanhã.

Com o exagero próprio da raça artesiana, a velha juntou as mãos diante do embrulho fechado.

— Que beleza, meu Deus! disse com convicção. Que maravilha!

— É uma casa de bonecas, explicou Paulo. Fui eu quem fez.

"Misé Berto" contemplou-o com admiração e res­peito. Como aquele menino fizera aquilo sozinho? É verdade que ainda não vira a casa de bonecas, mas na certa era magnífica. Felisa ia ficar radiante, seria uma surpresa formidável!

— Enquanto esperam os meninos não querem ir para a sala?

Antes de sair ao encontro da tia, André perguntou:

— Então você já voltou de Aries, "misé Berto"?

— Já, sim, senhor. Fui e voltei; foi justo o tempo de dizer às Santas o que tinha a dizer.

E confidencialmente acrescentou:

— Elas me viram, não é? Falei com elas; não precisavam mais de mim e eu tinha muito trabalho aqui. Minha oração ficou lá: era tudo o que eu queria.

E alegremente concluiu:

— Agora vamos ser socorridas. Os senhores podem entrar.

Os meninos entraram e ficaram maravilhados com o espetáculo que se apresentou diante deles. A mi­núscula herdeira de Maisonseule estava sentada em face da grande harpa dourada. Seus braços brancos e redondos envolviam o instrumento; com as mãos pousadas rias cordas preparava-se, a pedido da Sra. Su­mène, para executar uma das canções antigas e fora de moda que lhe ensinara Rosamunda. Na sua beleza de boneca parecia uma miniatura da tia tão loura, tão rosada, de pé ao lado da menina,

— Oh! exclamou André da porta, que beleza!

— Parece um quadro, acrescentou Paulo.

Foi o bastante para fazer Felisa abandonar seu banquinho.

— Não quero tocar na frente deles, declarou; fico com vergonha.

Os dois meninos afirmaram em vão que não havia motivo para isso e que ficariam radiantes em aplau­di-la. Fada, muito voluntariosa, não quis ceder. André estava louco para ouvir o som da harpa, mas não ousava pedir a Rosamunda que substituísse a sobrinha.

Tia Clara devia pedir, pensava ele. D. Rosamunda deve ficar tão bem, sentada diante da harpa!

Infelizmente, Rosamunda de Maisonseule não se mostrava desejosa de exibir seu talento. Conversava amavelmente com a Sra. Sumène, mas seus olhos esta­vam absortos, suas frases graciosas eram pronuncia­das com indiferença; parecia mergulhada num sonho.

Paulo disse mais tarde a André:

— Ela me dá a impressão da Bela Adormecida.

Talvez ela estivesse pensando nas suas buscas in­frutíferas ou em seus romances preferidos; talvez esti­vesse com serias preocupações — quem podia dizer?

A Sra. Sumène achou-a encantadora, porém intei­ramente diferente das moças que estava habituada a frequentar, Era uma verdadeira solitária que tinha dificuldade para fixar os olhos no mundo real.

Tristana apareceu animada, alegre e viva. Des­culpou-se da demora.

— Estava na "oficina", disse com simplicidade en­cantadora. Amanhã é dia de feira em Lamastre, es­tava fazendo manteiga. É um trabalho pouco romântico, não é verdade?

— Por que? disse sorrindo a Sra. Sumène, cati­vada pela amável Tristana. Maria Antonieta também fazia manteiga.

— Ah! no Triatwn, uma fazenda mais elegante que a minha. Não tenho potes de Sèvres, nem pratos de ouro para guardar meu creme.

— Mas você tem umas fôrmas muito bonitas, in­terrompeu Felisa com seu tom serio de menina sempre sozinha. Gosto muito daquela que tem um caranguejo.

— Um caranguejo! Deve ser divertido traba­lhar com essas fôrmas! exclamou Isabela.

Tristana sorriu alegremente:

— Se soubesse, teria convidado vocês para virem me admirar enquanto trabalhava! Você não é como minha irmã, que suspira quando me vê absorvida com coisas tão prosaicas. Não sei tocar harpa como ela e preciso me ocupar com alguma coisa!

— Os dois trabalhos são simpáticos, disse a Sra. Sumène. Meus sobrinhos as comparam às heroínas dos romances.

— Deus do céu! Não tenho nada de heroína! Tristana contemplou as crianças com ar amedron­tado.

Minha irmã é que tem esse tipo; até seu nome é romanesco: Rosamunda, a loura. Quanto a mim, não sei que idéia tiveram meus pais, dando-me esse nome lúgubre de Tristana, a não ser que tenha sido tristeza de ter uma filha tão feia...

— Isto é que não, protestaram ao mesmo tempo todas as crianças.

As três senhoras riram. Tristana declarou que apesar de velha gostara do protesto unânime.

Felisa, com receio de que insistissem para que tocasse harpa, pediu licença para levar os amigos até o jardim. As tias deram autorização, recomendando, no entanto a Felisa que trocasse seu vestido de tafetá cor de rosa por um mais adequado para os jogos ao ar livre.

— Vocês me esperam um minuto? disse ela aos amigos. Volto já.

Apanhando a comprida saia com as duas mãos, desapareceu no alto da escada como o fantasma de uma menina de outrora.

As moças de Maisonseule estavam expondo à Sra. Sumène sua grande preocupação: a impossibilidade absoluta em que estavam de encontrar o precioso do­cumento tão procurado. A Sra. Sumène, emergindo de sua preguiçosa indiferença habitual, escutava a his­toria com interesse apaixonado, quando, de repente, a porta se abriu, dando passagem a Felisa, vestida dessa vez à moda atual. Uma Felisa vermelha, sem fôlego, palpitante, que gritou:

— Tia Tristana, tia Rosa!... se vocês soubessem, se vocês soubessem!

Pensando ainda na historia, as senhoras supuse­ram que o pergaminho fora encontrado e levantaram-se ansiosas.

— Que surpresa linda!... lá no meu quarto...

Venham depressa!

A Sra. Sumène foi a primeira a recuperar a noção das coisas; sorriu e disse:

— Acho que sei o que é! Você gostou Fada?

— Se gostei! Nunca vi coisa tão linda!... Recuperou o fôlego e explicou:

— Quando entrei no meu quarto encontrei em cima da cômoda uma casa de boneca de verdade, grande, com cortinas na janela, uma sala e duas bone­cas com crinolina e tudo.

— É uma surpresa que meus sobrinhos queriam oferecer a Fada, explicou tia Clara, encantada com a alegria da menina. Paulo fez a casa, André escolheu as bonecas e Bela confeccionou os vestidinhos. Você foi tão boazinha, dando os passarinhos a Manon, que eles acharam este meio para agradecer-lhe. Se você está contente, eles então ficarão radiantes.

— Claro que estou contente.

Felisa, no seu entusiasmo, dava pulos e batia palmas.

— Fizeram tudo isso para mim?... eles são uns amores! Vou agradecer-lhes.

Os sobrinhos de tia Clara não sabiam bem o que estava acontecendo, pois Felisa, não podendo conter sua alegria, abraçou efusivamente os meninos, dando dois beijos em cada um. A pequenina dama de outrora, esquecendo seus modos recatados, gritava alegremente:

— Vocês são tão bonzinhos! Adoro vocês. Compreenderam então que a surpresa tinha sido descoberta.

— Ainda bem que você gostou! disse André; não sabíamos se você gostava ou não de bonecas.

— Vocês estão sempre pensando que sou grande; sou uma menina e vou me divertir imensamente. Pa­rece até uma casa de verdade.

— Foi Paulo quem fez, disse André; ele é muito habilidoso. Eu dei as bonecas e Bela fez os vestidos.

— Não sei como agradecer a vocês.

— Já agradeceu bastante, disse Bela rindo. Nós temos tanto prazer quanto você. Deste modo, quando as ferias acabarem e formos embora, você não se es­quecerá de nós...

— Nunca, disse Felisa impetuosamente; vou ficar muito triste quando forem embora.

Fez uma carinha muito triste, quase chorando. André disse bem depressa:

— Mas as ferias não acabaram, temos ainda tempo para nos divertirmos muito! Voltaremos aqui, e você irá também a Sumène; tia Clara disse que ia convidá-la; vamos fazer um piquenique na cabana de selvagens, no bosque dos Chaseaux. Você irá almoçar conosco, não é, Fada?

— Vou, sim, se minhas tias deixarem.

As tias não fizeram objeção. A Sra. Sumène marcou o piquenique para o dia seguinte, prometendo que o carro traria Fada de volta, e assim as crianças se separaram radiantes, pensando no encontro do dia seguinte.

Felisa sonhou a noite inteira com a casa de bonecas. André, Paulo e Bela contaram com todas as minúcias à amável Manon a alegria de Felisa. Fizeram planos para divertir a menina no dia seguinte, sem desconfiar que o tão esperado passeio iria ter um final muito trágico!

 

— Sabe André? Estou na pista de um "João Luiz".

André, que escrevia com ardor, inclinado sobre a secretária, levantou-se de um salto.

— Você o encontrou? Onde? Quem é? Bela pôs-se a rir.

— Você é um verdadeiro romancista, meu caro! Daqui a pouco ficará achando que a historia do seu livro é a pura verdade. Não achei ninguém, mas vi gravado no interior do relógio da sala um nome e uma data: João Luiz-1787.

— Só isso? murmurou André, decepcionado. Sei quem é esse; é um antigo empregado, o tataravô de Mario; esteve a serviço dos Sumène há mais de quatrocentos anos.

— Pois bem, retrucou Bela, talvez seja ele que coseu a escritura de Maisonseule num vestido.

— Ora, que idéia! disse o gêmeo; corno podia fa­zer tal coisa ? Não era lacaio de Maisonseule e sim de Sumène, logo não podia ter nas mãos os papeis e o castelo. Deixe-me trabalhar; você me interrompeu no momento em que ia descrever a roupa da minha heroína.

— Como é que você vai vesti-la?

Bela, sentada no canto da mesa, balançou a ponta do pé, olhando para André. Este, os dedos enfiados nos cabelos, relia o terceiro capítulo da sua soberba historia.

— Não sei; não entendo dessas coisas de mulher; me dê uma idéia.

Bela refletiu um pouco} puxando um cachinho de cabelo.

— É melhor ditar, sabe, Bela? pediu o jovem ro­mancista.

Bela balançou o pé, tornou a enrolar o cachinho e disse:

— Está pronto ? Bom, lá vai. A dama entrou... — Ela não entra, atalhou André. Ela está senta­da numa cadeira esculpida.

— Não faz mal; assim é mais cômodo para mim; depois você arruma a seu gosto.

"A dama entrou, alta, magra, morena, na sua...

— Ela é loura... arriscou timidamente o autor.

— Não amole!

"Morena, na sua longa túnica vermelha recoberta por outra túnica mais curta, de seda branca tecida com fios de ouro. Umas tiras douradas sustentavam seus cabelos..."

— Tem certeza de que se usava isso na cabeça? observou André.

— Ih! Você é pau, puxa! Pede para ditar e quando dito acha tudo horrível. Se não gosta do ves­tido, arrume a heroína a seu gosto; é mais simples.

— Está muito bem, apressou-se em reconhecer, André. Gosto muito do vermelho e do branco, mas... é que ela é loura... então...

— Então o quê? Faça-a morena, e pronto! André fazia questão dos cabelos louros da sua dama; ficou firme e Isabela, com má vontade, resol­veu mudar a túnica vermelha por uma azul, avisando ao irmão que seria menos bonito.

Isabela estava um pouco irritada; tivera pesadelos a noite inteira, e isso a tornara um tanto mal humorada, Resmungou:

— É sempre assim, você teima, teima, e depois, quando não sabe o que fazer, vem me pedir pra ajudar...

— Você tem toda razão; se não fosse você não sei ó que seria de mim, disse André filosoficamente. Tenho orgulho de ser seu irmão. Mas não se zangue por tão pouco; não vale a pena. Onde estávamos?

"Tiras douradas sustentavam..." Paulo apareceu correndo.

— Que é que há, Paulo?

— Venham ver Felisa, que vem descendo a mon­tanha num carro de boi. Que pena que tio Jaime es­teja caçando, pois ele na certa pintaria o retrato de Fada sentada sobre os sacos de trigo.

Os gêmeos saíram correndo para apreciar o es­petáculo.

Fada de Maisonseule vinha visitar os amigos co­mo uma princesa merovingiana. Gravemente instala­da, ela, a boneca e a sombrinha, sobre uma pilha de sacos de trigo, descia a montanha, seria e digna, sen­tada naquela carruagem rústica, com seu lindo vestido de cambraia. Um velho boiadeiro, erecto e esguio, com um cinto vermelho que lhe apertava a cintura, ca­minhava lentamente diante dos bois enfeitados com pompons vermelhos. Num ranger de ferros e tilintar de guizos, eis que chega ao castelo de Sumène a última herdeira de Maisonseule.

— Felisa está chegando! gritaram os dois meni­nos, atravessando a varanda numa corrida. Venha ver, titia, ela veio de carro de boi.

— Que idéia boba! disse Manon. Era sua expressão habitual.

— Manon, faça um esforço e seja amável! disse gentilmente a Sra. Sumène.

— Que mania de quererem que todo o mundo se desdobre por causa dessa garota. Parece até que é pessoa muito importante, respondeu com insolência a menina.

— Ah! Manon, você é incorrigível, suspirou a tia. Aonde vai?

Manon não respondeu. Queria deslumbrar Fe­lisa e fazer-lhe inveja. Correu ao quarto para pôr o lindo vestido de seda branca, presente de tia Clara.

"Bela vai ficar como está, pensou a menina; os quatros Chaseaux estão sempre vestidos à marinhei­ra; serei a mais elegante. Vão ficar todos cheios de inveja".

Essa reflexão iluminou-lhe a fisionomia mal hu­morada; chegou a falar quase que cortesmente com a empregada para que lhe ondulasse os cabelos; depois empoou o nariz e encheu-se de colares e pulseiras. Assim enfeitada, veio falar com Felisa, que descia do carro.

Fez uma careta de desprezo ao ver a menina, que estava uma gracinha com um vestido de cambraia todo enfeitado de rendas antigas.

— Que faremos hoje? perguntou Paulo, logo que acabaram os cumprimentos.

— Queria ir ver a cabana de selvagens, disse Felisa com os olhos brilhando. Deve ser tão bom brin­car lá dentro, fazer o almoço sobre três pedras, e tudo mais que vocês contaram ontem.

— Então vamos até lá! Justamente Miqueta e Loulou estão chegando para nos buscar. O pai deles está caçando com tio Jaime.

— Crianças, não façam imprudências, recomen­dou a Sra. Sumène logo alarmada.

— Não há perigo, titia, afirmou André. A caça é do outro lado da montanha, ouvi um tiro há pouqui­nho. Você não encontrou caçador algum pelo cami­nho, não é, Felisa?

— Não, nenhum. Por quê?

— Porque estão fazendo hoje uma perseguição aos javalis. Tio Jaime não quis me levar, disse André com rancor. E, no entanto eu atiro bem direitinho. É formidável caçar os animais maiores.

— Seu tio fez muito bem. Ficaria doente de aflição, exclamou a Sra. Sumène com um arrepio. Você caçará javalis com seu pai se ele quiser, mas aqui nunca! Eu me sentiria numa angustia mortal o dia inteiro.

André aborreceu-se de ser considerado como uma criança, ele, o mais velho do bando; às vezes a solici­tude de sua tia o importunava. Apressou-se em levar os companheiros e prometeu olhar bem pelas meninas na montanha.

Os quatro Chaseaux ficaram muito contentes em conhecer Felisa e esta do seu lado nunca se divertira tanto. Aqueles meninos astuciosos e amáveis e aque­las meninas delicadas que a mimavam como uma coisa frágil e preciosa encantavam a jovem reclusa. Quando Fada admirou e elogiou a cabana de ramos construída no bosque, Bernardo e Loulou sentiram-se orgulhosos da sua obra, A cabana não tinha o menor conforto e suas dimensões eram tão exíguas que André não podia ficar de pé no interior, mas, apesar desses inconvenien­tes, Felisa declarou preferir a casinha ao castelo de Maisonseule,

Miqueta, lisonjeada, convidou-a para a inaugura­ção; seria um piquenique e cada um teria que trazer um prato.

Os pais tinham dado licença para o almoço ao ar livre e prometido uma ajuda nas comidas; os meninos tinham se cotizado para comprar uns fogos de artifício, e a festa prometia ser formidável.

Fada, maravilhada com tantas magnificências, prometeu pedir às tias autorização para participar da cerimônia. Enquanto esperavam aquele dia feliz, as crianças resolveram brincar de esconder. Manon pro­testou, por causa do vestido novo, mas suas lamentações não comoveram ninguém. Felisa nem cogitava que pudesse estragar suas preciosas rendas. Bela e as pequenas Chaseaux não se preocupavam com seus vestidos caseiros e resistentes.

Tirou-se a sorte: André, Miqueta e Loulou foram os escolhidos para procurar os outros. Imediatamente os meninos se espalharam em todas as direções, em busca dos melhores esconderijos.

Manon, sempre preocupada com o vestuário, le­vou Felisa para uma clareira muito pouco propicia à brincadeira, mas onde não haveria perigo de rasgar as saias.

Esperavam havia já algum tempo, pouco se diver­tindo, porque Manon detestava Felisa e esta não sim­patizava com a irmã de Paulo. Nada se ouvia; a tur­ma que estava procurando devia estar longe dali. De vez em quando um estalo ou um ruído surdo faziam-nas estremecer.

— Que é que está fungando perto de nós? Disse de repente Felisa, inquieta.

— Nada, retrucou Manon.

E continuou as historias dos bailes infantis, nos quais, segundo dizia, brilhava sempre.

Um estalo mais forte se fez ouvir, seguido pelo latido dos cães ao longe.

— Estou com medo, disse Felisa, trêmula. Quero ir para junto de Bela. Tenho certeza de que tem um bicho enorme aí atrás dessa moita.

-— Medrosa! disse Manon com desprezo; vai ver se eu tenho medo.

Quebrou uma vara de marmelo e pôs-se a reme­xer na moita. O grito que soltou deve ter ressoado por toda a montanha. Um javali furioso atirou-se num ímpeto selvagem sobre as duas crianças horrori­zadas. A corajosa Manon escondeu-se sem hesitação atrás de Felisa. Esta, coitadinha, pregada ao chão pe­lo pavor, sentindo que suas forças a abandonavam, não fazia um movimento.

Nesse minuto, André, que as procurava, ouvindo os gritos, apareceu e atirou-se entre a menina e o ja­vali. O animal, na sua fúria cega, enterrou os dentes na perna do destemido André!

— Manon! Felisa! fujam de uma vez, exclamou o menino, ofegante. Não fiquem aí, fujam!

Apertava os dentes de tanta dor, protegendo a amiguinha do melhor modo possível. Manon fugiu "corajosamente", sem mesmo procurar ajudar Felisa. Heroicamente, André deixava o animal furioso encarniçar-se contra ele. Não tinha uma arma e esta­va quase sem forças quando subitamente um tiro ressoou. O javali, atingido em cheio, caiu fulminado, arrastando na queda o irmão de Isabela.

— Meu Deus! "seu" André! disse uma voz rouca de emoção; matei seu André.

O guarda de Sumène apareceu atrás das árvores. Felisa soluçava de cortar o coração, ajoelhada perto de seu defensor. Seu vestido estava todo manchado de sangue. O pobre guarda ficou desesperado; felizmen­te o ferido, que estava somente atordoado, tranquilizou-o logo.

— Meus parabéns, disse ele, procurando sorrir por bravata; foi um tiro certeiro. Quer me ajudar a levantar? O bicho estragou um pouco minha perna, e está doendo muito. Não sei como poderei andar até o castelo.

— Meu Deus! que medo tive! exclamou o guarda, aliviado. Pensei que tinha matado o senhor, "seu" André! O que não teria dito a Sra. Sumène! A senhorita quer ir avisar ao patrão... Ah! aí vem ele.

O Sr. Sumène apareceu correndo. Encontrara Manon gritando como louca, crente que estava fe­rida também, porque o sangue do primo respingara no seu vestido. O pobre tio Jaime pensou encontrar o sobrinho agonizante; agarrou-o nos seus braços e murmurou, tremendo pela primeira vez na sua vida:

— André, meu filho!...

André sorriu ainda por orgulho, experimentou andar, mas caiu sobre o peito do tio, abafando um ge­mido.

Felisa derramava lágrimas abundantes.

— A culpa é minha, soluçava ela; ele disse para eu ir embora... mas estava com tanto medo que não pude. Ele foi ferido no meu lugar.

— Mas não é nada! protestou André, impaciente. É que... — cerrou os dentes — está doendo um pouco.

Ficou ali sem fôlego, com os olhos fechados, agarrado ao braço do tio.

— Pobre garoto! disse o Sr. Sumène consterna­do. Deve estar sofrendo bastante. O melhor é irmos para Chaseaux, que é mais perto. Felisa vá avisar o Paulo que não assuste ninguém lá em casa. Não vai ser nada, meu filho; eu vou carregá-lo.

Quando André, de curativo pronto e bem embatido, chegou a Sumène, era já muito tarde. Manon tinha contado uma historia horrorosa e trágica do acidente; todos os empregados de Sumène estavam aflitos, sem coragem de avisar à castelã, que recebia calmamente umas visitas.

Tia Clara quase desmaiou quando viu o sobrinho querido naquele estado. Apesar das afirmações reite­radas do marido e do médico que lhe asseguravam que o menino estava passando bem, insistiu em considerá-lo em perigo, e esqueceu-se de sua saúde frágil e de sua indolência habitual para rodeá-lo de pequeninos cuidados e mimos de toda espécie. Tio Jaime quase não podia visitar o doente; sua mulher achava que fazia muito barulho e falava alto demais; perturbando o repouso do seu querido.

A Sra. Sumène sentia um tal prazer em tratar do menino que chegava a achar que ele era pouco exigente e suportava tudo com coragem. Gostaria até de vê-lo chorar para secar-lhe as lágrimas e niná-lo nos seus braços como um bebê. Mas André não sentia vonta­de de chorar e dormia como uma pedra; sentia-se confuso e incomodado de ser o objeto de tanta solici­tude, pois não estava habituado a ser tão mimado. Cada vez que tia Clara vinha acariciá-lo, chamando-o "meu querido", continha com esforço um movimento de espanto.

Bela e Paulo fizeram tudo, de seu lado, para distrair o ferido, mas os esforços do segundo nem sempre eram bem sucedidos. Os quatro Chaseaux vinham também, juntos ou individualmente, visitar o amigo, mas a presença constante da Sra. Sumène os afugen­tava um pouco; perdiam a naturalidade e ficavam du­ros nas suas cadeiras, testemunhando sua amizade com olhares de compaixão.

Um dia, encontrando André a sós, Bernardo, que tinha ido visitá-lo com a irmã, exprimiu sua opinião:

— Eu não me importo de ficar doente, se não me cuidarem demais.

— O que posso fazer? disse André, meio cons­trangido; isso dá prazer a tia Clara. Se fosse lá em casa, eu não seria tão mimado assim. Papai não gosta dessas coisas, mas aqui todo o mundo se esforça para me ser agradável e eu seria muito ingrato se...

— Claro, disse Loulou, claro. D. Clara teria inventado a bondade se ela não existisse, mas mesmo assim tenho dó de você. Isso não o caceteia, meu velho?

A visita terminou aí, porque tia Clara voltou e achou que o convalescente estava falando demais; os quatro Chaseaux partiram, desejando que André se restabelecesse depressa.

Fada, como não pudesse descer da montanha com facilidade, enviou a seu protetor um bilhete traçado em cuidada caligrafia, no qual traduzia toda a sua amizade. Junto, mandou um pacote de manteiga feita pela tia Tristana, um ramo de flores do seu jardim particular e uma pega ensinada, numa gaiola fabrica­da pelo pastor. Explicava em estilo infantil que a manteiga era para ser saboreada; que as flores eram para encantá-lo e a pega para distraí-lo.

André ficou muito sensibilizado com o presente campestre e preferiria morrer a confessar quantas ve­zes relera a carta da encantadora Felisa.

Manon, sempre vaidosa, viu só uma coisa nesse dia trágico: seu lindo vestido de seda recebera uma mancha de sangue que seria difícil fazer desaparecer.

 

André já estava inteiramente bom, mas por pre­caução impediam-no de recomeçar sua vida normal; resignou-se então a ficar estendido num divã com a condição de que o deixassem receber as visitas de pi­jama.

Tia Clara aproveitou a ocasião para presentear o querido sobrinho e encomendou pelo telefone um lindo pijama de seda riscada de três tons de lilá. André ficou tão satisfeito que esqueceu até sua imo­bilidade forçada.

A convalescença deu-lhe ensejo de terminar o so­berbo romance destinado à tia. Bela ajudava-o com seus conselhos, enquanto bordava sem parar o lindo paninho. Paulo trabalhava no seu cofrezinho, aperfeiçoando-o sempre: o aniversário de tia Clara seria celebrado condignamente.

Manon, não é preciso que se diga nada fazia, a não ser criticar todo o mundo. Mostrava-se cada dia mais insuportável. Havia muito tempo que já não ligava para as rolas de Felisa, e um dia deixara fugir a pega de André, que ficou furioso e amaldiçoou a intragável pequena.

A Sra. Sumène, com medo de que a contrariedade fizesse voltar a febre do menino, mandou todos os empregados à procura do pássaro; foi tudo em vão, e André, pensando que Felisa ficaria desolada ao sa­ber o que acontecera com seu presente, jurou que nunca perdoaria a Manon! Paulo juntou-se ao amigo para censurar a irmã; Bela também se meteu, e Ma­non, furiosa, retrucou com as palavras mais ofensivas que encontrou; todo o mundo chorou. A Sra. Sumène queixou-se então ao marido daquela sobrinha tão in­suportável.

Tio Jaime consolou a todos. Via bem que mudar assim a vida daqueles meninos turbulentos e ativos, não dava certo. A prolongação daquele estado de coisas acarretaria a desunião completa das crianças. Deci­diu que André não precisava mais ficar em repouso e autorizou para o dia seguinte a inauguração da cabana dos Chaseaux, permitindo ao sobrinho que saísse um pouco naquele dia para experimentar suas forças.

Logo que André saiu do parque encontrou-se com Mario, o moleiro, que parou a carroça para saber co­mo ia passando o sobrinho do patrão. André de Chandolas era muito popular na região e seu acidente impressionara a todos.

— As moças de Maisonseule tiveram tanto me­do! disse o bom homem; pediam-me sempre noticias suas, "seu" André. Aquelas moças são muito boas e amáveis! A menina então é um verdadeiro anjinho!

André ficou encantado com o elogio feito a sua amiguinha.

— Ah! continuou o moleiro com pesar, as coisas mudaram muito lá em Maisonseule; minha avó conta­va sempre como recebiam tanto e agora só mesmo os pobres é que se lembram do castelo!

— Sua avó morava em Maisonseule?

— Morava, sim, senhor, respondeu Mario espan­tado.

— Meu avô era de Sumène e ela de Maisonseule. Sua mãe tinha sido ama de leite de uma menina cha­mada Adelaide.

"Adelaide... é, pensou André, o vestido de Ade­laide. É isso mesmo".

Em voz alta perguntou:

— Diga-me uma coisa -... você por acaso não tem, guardado no sótão, umas fazendas velhas ou en­tão uns vestidos de antigamente ?

Mario arregalou os olhos espantado e disse que não.

Aliás, alguns anos antes o moinho pegara fogo com todos os moveis; a única coisa antiga que existia lá era a caixinha de palha que a pequena Adelaide dera à sua ama de leite.

"Pronto! pensou André consternado; a escritura estava lá e foi destruída pelo fogo! Que azar!"

Despediu-se rapidamente de Mario e retomou o caminho do castelo. Na estrada encontrou os quatro Chaseaux, representados por Miqueta e Bernardo, que vinham pedir noticias do doente. Ficaram encantados ao saber que a festa seria no dia seguinte, pois tinham justamente feito naquele dia, no castelo, um imenso patê de lebre que daria um ótimo prato para o piquenique. Tia Clara prometeu dar o assado, perdizes frias e uma salada russa. Uma prima velha dos Cha­seaux comprometera-se a dar uns pasteis. Miqueta ia fazer uns ovos nevados e os meninos esvaziaram as carteiras para comprar bombons, além dos fogos... que não se podiam comer. Tio Jaime deu champanha, enfim, seria uma refeição de gala.

— Agora, disse Bernardo, temos que convidar Fada. Se ela não puder vir será uma pena, mas as­sim mesmo é mais educado escrever, convidando-a.

— Quem vai escrever? interrogou Paulo.

— Uma das meninas, naturalmente! replicou An­dré. Nós não podemos escrever a uma moça sem sua autorização.

Felisa era uma moça bem pequenina, mas os gê­meos faziam questão de respeitar o protocolo.

— Felisa é muito cacete, resmungou Manon. Por que é que vocês sempre fazem questão de convi­dá-la? Precisa sempre ter alguém se ocupando dela. Escrevam se quiserem; eu é que não me encarregarei de fazê-lo!

—- Ninguém ia pedir nada a você, afirmou André, que ainda não esquecera a fuga do seu passarinho.

— Você escreve muito mal! acrescentou Paulo. — Não tanto quanto você! Retrucou a irmã.

— Em relação à letra, talvez... mas quanto ao resto! Imaginem que miss Kate é quem prepara as cartas dela no fim do ano!

Manon quase sufocou de cólera.

— Vamos parar? Tio Jaime é que fez seu pro­blema ontem.

Paulo ficou todo vermelho.

— Ué! e que é que tem isso? começou ele.

Miqueta interveio:

— Vocês brigam depois; agora é preciso escre­ver a Felisa. Vocês têm tinta e papel aqui?

— Temos, disse Bela. As coisas de André estão aí. Onde está seu papel de carta? Hum! não é muito bonito; vou pedir o de tia Clara.

— Manon tem um muito elegante, disse Paulo, mas não vale a pena pedir porque ela não empresta.

— Como é que você sabe que eu tenho? interro­gou Manon, desconfiada.

Inocentemente, o gorducho do Paulo contou que tirara uma folha na semana passada para escrever á André.

André caiu na gargalhada. Manon, furiosa, gri­tou:

— Proíbo-lhe que mexa no que é meu, está ouvindo?

Nesse momento Isabela voltou com o papel de carta da tia; instalou-se na secretária e disse:

— Ditem que eu escrevo.

"Querida Felisa", disseram todos ao mesmo tem­po.

— Esse começo é muito banal. Prefiro pôr "Querida Felisa" no meio da carta.

— Mas põe-se sempre "querida" no principio, exclamou Bernardo, O melhor é que André se encarregue disto; estilo é com ele, pois está escrevendo um livro.

André, todo satisfeito, disse:

— Acho melhor mandarmos um convite cerimonioso.

— Mas é que, para comermos na cabana, não pretendíamos usar traje a rigor!

— Não impede que respeitemos os costumes, re­plicou André. Escreva Bela; se não ficar bem, pro­curamos depois outra coisa. Está pronta?

"As senhoritas Chandolas e Chaseaux pedem à senhorita Felisa de Maisonseule que lhes dê a honra de vir jantar amanhã na sua cabana, às sete e meia precisamente."

— Está muito bonito, disse Bernardo impressio­nado, mas não fala nem em você, nem em Paulo, nem em nós.

— Naturalmente, meu velho, respondeu André condescendente. As senhoras é que dão a recepção.

— E Manon?

— Ah! é verdade, Manon... ora, ela não faz questão. Não acha, Paulo?

— Claro, respondeu este.

Entretanto, Bernardo não se resignava em não aparecer no bilhete. Insinuou:

— Você poderia pôr uma palavrinha em nosso nome, Bela. Seria mais educado.

— Não é hábito. (Bela contemplou-o com certa piedade.) Enfim, como Felisa é muito pequena, não prestará atenção a isso.

Acrescentou então no fim do bilhete as homena­gens respeitosas! Dos quatro garotos.

Bela contemplou a carta com satisfação: — Está muito bem; Felisa vai ficar encantada. Vou pedir a titio para pôr um sinete.

— Se você quiser perfumar o envelope, posso dar um pouco do meu perfume, propôs o irmão. Como mandaremos a carta? O carteiro já passou há muito tempo.

Depois de muito pensar, resolveram finalmente, e Bernardo, liberal, pagou ao filho caçula do jardineiro para levar o convite a Maisonseule. Mandar um men­sageiro agradava extremamente àqueles senhores; achavam que era um gesto real.

Já às quatro horas os jovens habitantes de Sumène se haviam transportado para Chaseaux com armas e bagagens. Tio Jaime dissera:

— Divirtam-se como quiserem, cozinhem, mas arrumem-se sozinhos é não incomodem os emprega­dos.

Levaram dentro de umas cestas a louça e a comida. Paulo se encarregou do assado e dos fogos; Manon levou a cafeteira; Bela, a salada russa, e André o bolo.

Chegaram à cabana, que tinha sido decorada para a festa com bandeirinhas multicores e guirlandas de pinheiro. O jantar ia ser dentro de casa, mas, para não haver perigo de incendiar a cabana, o fogo seria aceso fora, em frente à porta. Bernardo e Loulou tinham construído um fogão segundo todas as regras da arte. Quando Felisa chegou, radiante, encontrou o fogo aceso, a mesa posta e os anfitriões prontos para receber o queijo e o creme que ela trazia.

Felisa admirou a habilidade dos amigos que lhe mostraram como esquentar os pasteis sobre uma pedra previamente aquecida.

Os pasteis constituíam o primeiro prato.

— Esquecemos de trazer pratos de sobremesa, observou Miqueta. Como vamos comer os ovos neva­dos?

— Muito simples, disse Loulou. Vira-se o pra­to de cabeça para baixo; a parte funda serve para o creme. Você vê Fada, é tudo bem simples, mas va­mos nos distrair muito.

O dia caía rapidamente, como acontece na montanha; subitamente a cabana escureceu; estavam se divertindo bastante, mas alguns convidados começaram a ficar com medo. Loulou acendeu um lampião de querosene; sua luz pálida clareou um pouco a mesa, enquanto suas sombras se alongavam fantásticas. Paulo e Yeta, os menos corajosos, não se sentiam mui­to sossegados.

A parte sólida do jantar já tinha sido comida; estavam na sobremesa. André serviu o champanha.

A refeição corria alegre, mas ninguém estava dis­posto a deixar a mesa do banquete para ir fazer o café: André, porque não gostava de se incomodar; os outros... meu Deus! Os outros, talvez porque prefe­rissem a presença dos vizinhos.

— Alguém está andando aí fora... disse subita­mente Paulo, empalidecendo.

— Você acha? Cochichou Miqueta.

Só Felisa não sentia medo algum. O que poderia acontecer, se estavam ali aqueles meninos crescidos para protegê-las?

— Alguém está andando aí fora! repetiu Paulo com os olhos esbugalhados e levantando-se.

No mesmo momento, uma coisa pesada caiu sobre o teto da cabana; a lanterna, mal presa, caiu e se apagou.

— Eu me entrego! gritou o "heróico" Paulo.

Uma risada respondeu; abriram a porta da caba­na; alguém do lado de fora riscou um fósforo e uma voz desconhecida murmurou:

— Está escuro como breu.

Todas as meninas imediatamente se agarraram nos vizinhos, gritando por socorro. Paulo atirou-se nos braços de André, que o empurrou bruscamente, indo ele cair no meio da louça, batendo na mesa que cedeu e tombou com barulho assustador.

André, no meio do tumulto, conseguiu, entretanto acender a lanterna. Para surpresa sua viu Tio Jaime com um oficial de marinha. Os dois choravam de tanto rir.

— Papai, gritou Felisa, abraçando o desconheci­do.

— Puxa! Titio, você nos assustou, exclamou An­dré com franqueza.

— Ah! É por isso então que quebraram a louça ? Disse o tio, examinando os estragos. Por que estavam jantando às escuras?

Bela explicou o motivo do susto, dizendo que al­guma coisa tinha caído no teto, apagando a lanterna e que por isso tinham ficado amedrontados, e que Paulo, procurando fugir, derrubara a mesa em pre­juízo da louça.

— Felizmente já tínhamos acabado, concluiu Miqueta.

Tio Jaime explicou aos meninos a presença do Sr. de Maisonseule, que chegara de repente ao castelo e, desejoso de beijar a filha, viera em sua companhia à procura dos meninos.

Os quatro Chaseaux, recobrando a segurança, recuperaram as boas maneiras; não podiam oferecer cadeiras às visitas por causa das dimensões da peque­na cabana, mas o Sr. de Maisonseule, muito divertido com a aventura, aceitou um pedaço de bolo que Isabela lhe ofereceu. As meninas esquentaram o café, enquanto os meninos preparavam os fogos de artifício.

- Tudo correu às mil maravilhas, sem contar que Bernardo e André provocaram um ligeiro incêndio num pinheiro ao lançar um foguete. Em outra oca­sião tio Jaime teria ficado zangado, mas desta vez lembrando-se do ferimento recente do sobrinho, limi­tou-se a proibir que repetissem a façanha e juntou seus esforços aos dos incendiários, muito desapontados, para apagar o fogo.

Foi uma festa memorável, e Felisa teve que fazer a viagem de volta nos braços do pai, pois estava exaus­ta de alegria e felicidade.

 

— André! Paulo. Onde estão vocês?

Manon apareceu no fundo do jardim, gritando com todas as forças dos seus pulmões.

— Paulo! André! Vocês estão escutando?

Os dois garotos, escondidos numa moita, não res­ponderam.

— Deixe-a gritar, disse Paulo; você conhece Ma­non, o que ela quer é nos encontrar e se tia Clara sou­ber que vamos caçar esta noite ficará desolada e brigará conosco.

— E que tem isto? disse André desdenhoso. Paulo o considerava como um herói, porque não tinha medo de ficar no bosque ao cair da noite. Perguntou:

— Não diriam nada, se você fizesse isso na casa de seus pais?

André respondeu que se pedisse licença lha dariam imediatamente.

— Mas nós não pedimos, objetou Paulo; você acha que seu pai não ficaria zangado se você tirasse os cartuchos da gaveta sem licença?

— Papai! exclamou André. Puxa! Levaria um pito dos diabos! Mas tio Jaime não se zanga com tanta facilidade. Fica muito aborrecido quando tem que ralhar conosco.

Manon se afastava, gritando ainda. Ouvia-se "André!" do outro lado do jardim. Paulo refletiu alguns segundos:

— Não sei se você pensa como eu; acho que titio não se parece com ninguém. Ele é tão bom e formi­dável em tudo! Gostaria de parecer com ele.

André achou que era uma pretensão incrível. Contemplou o companheiro com uma surpresa um tan­to irônica.

— Mas, continuou humildemente o garoto, sei muito bem... que não conseguirei. Sou muito me­díocre.

André se arrependeu de tê-lo julgado mal. Bateu-lhe amigavelmente no ombro:

— Você é muito bonzinho, meu velho! Sinto muito se o amolei algumas vezes. Não era culpa sua, se você parecia menos ousado e menos resistente do que nós. Você é educado de outra maneira e fica es­pantado com nossos jogos.

— Não é isso, disse Paulo. Cada um se diverte como quer, mas... eu vejo bem que me faltam coisas que vocês têm. Eu não era amável com tia Clara como você.

Enrubesceu e continuou:

— Eu era, enfim... muito insolente, e você sabe como Manon é intragável.

André concordou que Manon não melhorara nem um pouco.

— Mas você não se parece com ela, disse ele generosamente. E depois, você mudou tanto desde o principio das ferias! Ela... é um pouco...

— Oh! disse Paulo, você pode dizer que ela é "muito"! Eu a conheço.

— É possível, mas não é direito falar mal das moças...

Interrompeu sua frase e, levantando-se num salto, apanhou a espingarda no chão.

— Que é que há? perguntou Paulo, curioso. Aonde vão aqueles homens com a banda e a bandeira?

— Vão pro castelo! Venha logo, são os rapazes da aldeia que vão fazer uma serenata.

— Serenata? Pra que? Repetiu Paulo, ignorante dos hábitos do lugar.

— Pra festa de amanhã, a feira, como dizem. Você não viu os cartazes diante da igreja? Os ho­mens vão circular pelo campo durante a noite, tocando música para as autoridades que lhes dão dinheiro. Venha logo; esconderemos as espingardas na garagem.

Precipitaram-se, correndo de cabeça baixa, e Pau­lo deu um encontrão violento em Manon, que voltava para casa depois da procura infrutífera.

— Desastrada, berrou Paulo, segurando o nariz.

— Bruto, gritou a irmã, esfregando o estômago. Iam continuar a discussão quando a banda da aldeia começou os primeiros acordes de uma valsa.

As três crianças dirigiram-se rapidamente para o castelo. Na entrada, o Sr. Sumène e Bela — as em­pregadas curiosamente amontoadas atrás da porta — escutavam a música a sorrir. Segundo o protocolo local, os músicos honravam com o Hino Nacional o prefeito — representante do governo; para o Sr. Sumène estava reservada uma valsa muito popular; para o Sr. Chaseaux, uma polca e para os outros fun­cionários, menos favorecidos, a "Madelon", uma "Madelon" muito hesitante porque os músicos exaustos perdiam o entusiasmo do começo.

Guardadas as espingardas em lugar seguro, os meninos se apressaram em ir à cozinha, onde o tio servia bebida aos músicos. Estes apertaram a mão aos presentes. Paulo, muito encabulado, não tendo o hábito de falar com os camponeses, procurava imitar André. Este era a segurança em pessoa. Seu desem­baraço maravilhava Paulo e as empregadas. Felicitou os homens pela execução musical e os membros da delegação pelos seus distintivos e condecorações, en­quanto o chefe oferecia bilhete de uma tômbola ao Sr. Sumène.

Tio Jaime, generoso como sempre, comprou os bilhetes da rifa de uma sombrinha destinada à parte feminina da casa. Os meninos reclamaram com insis­tência para que ele comprasse também os de um car­neiro, peça de resistência da rifa.

Tio Jaime pagara para a sombrinha e pagou para o carneiro. Serviram uma segunda rodada de vinho branco à delegação, que partiu sem demora, a tocar a polca para os Chaseaux.

Aquilo parecia tão divertido a Paulo e a André que pediram licença para irem até Chaseaux ouvir a segunda serenata.

A cerimônia do vinho branco, da sombrinha e do carneiro recomeçou. Uma vez terminada, os quatro Chaseaux propuseram aos amigos que poderiam muito bem, tomando um atalho, chegar a tempo do adjunto para ouvir a "Madelon".

Dito e feito. Os meninos tomaram a direção da próxima casa. Esconderam-se atrás de um estábulo e ouviram com grande prazer a célebre marcha.

O luar estava maravilhoso. Os quatro amigos acharam que seria absurdo irem dormir, em vez de aproveitar a bela noite. Percorreram os campos, pas­sando por pequenos atalhos, sempre atrás dos delega­dos. Teriam andado assim a noite inteira, esquecendo a aflição em que ficariam suas famílias, se a delega­ção, exausta, não tivesse a prudência de deixar para o dia seguinte as casas que faltavam.

Então, de repente, André teve a visão muito ní­tida da acolhida que lhes estava reservada. Um cer­to mal-estar os invadiu. Paulo, reclamador como sempre, acabou irritando os companheiros com seus lamentos. Os quatro Chaseaux, que eram só dois, queriam passar a noite nos montes de feno, mas a proposta não resolvia nada. O melhor era voltar o mais rápido possível e reconhecer honestamente o erro.

Enquanto deliberavam, o guarda de Sumène apa­receu com um ar desesperado:

— Miséria de sorte! Eles estão aí! Vocês nos fizeram correr a noite inteira! Já é uma hora da ma­drugada! Isso é coisa que se faça "seu" André? O senhor, já tão crescido, devia ter mais juízo!

André abaixou a cabeça sem dizer nada. Feliz­mente tia Clara não percebera seu desaparecimento.

— Tio Jaime não vai ficar muito zangado, é um encanto de homem. Prefiro me encrencar com ele do que com papai. Puxa! se fosse papai, estaríamos fritos!

Infelizmente, dessa vez, tio Jaime, furioso, es­queceu que era um encanto de homem. Zangou-se e os dois culpados ouviram com tristeza sua voz terrível declarar "que não iriam à feira amanhã e que fossem se deitar depressa!" Os sobrinhos não esperaram segunda ordem e se meteram na cama com rapidez.

André pensou consigo mesmo:

"Amanhã, quando for dar bom-dia a titia, pedi­rei a ela que levante a proibição. Ela é tão boa, que fará isso!"

No dia seguinte, desde cedo, os foguetes rasga­vam o ar anunciando o começo da festa.

Paulo, muito desanimado, começou a se vestir. Olhava com tristeza para a roupa, quando André lhe disse amigavelmente:

— Não fique aborrecido! Nós iremos à feira, você vai ver! Vou pedir a titia.

A fisionomia de Paulo se animou:

— Você acha que ela vai deixar?

— Claro, afirmou o irmão de Bela. Você com­preende, ela não vai querer ser muito rigorosa conosco, quando na certa os Chaseaux nada sofreram, pois, como você sabe, eles não são educados com muita fita. E depois, Felisa vai à missa; ficaria muito decepciona­da se não nos encontrasse.

André foi apresentar suas homenagens matinais a tia Clara, e tão efusivo se mostrou em suas demons­trações de carinho que a Sra. Sumène ficou toda enter­necida. Aproveitando-se do seu bom humor, André fez o pedido, dizendo que tinham feito muito mal e que a culpa tinha sido toda sua, que arrastara Paulo... etc. e tal... e não fariam de novo aquilo.

— Por favor, titia, peça por nós ao tio Jaime, ele não lhe recusará nada. Felisa ficaria tão triste de nos ver castigados!

Tia Clara, sem hesitar, respondeu:

— Está bem, meu querido; vou falar com ele ago­ra. Chame Francisca. Ah, ela já está aí. Vá dizer a seu patrão para vir até cá, Francisca.

André levantou-se de um salto:

— Vou embora! Obrigado, titia!

E desapareceu.

Naturalmente tia Clara conseguiu tudo o que quis, pois, como diziam os meninos, seu marido ficava mui­to amolado sempre que tinha de castigar os sobrinhos. Com a promessa de se corrigirem, os culpados ob­tiveram permissão de gozar com as irmãs os pra­zeres da festa.

Dirigiram-se rapidamente para a feira, pois a hora da missa estava próxima. No caminho encon­traram a família Chaseaux, que ia também para a igreja, André e Paulo procuraram em vão saber como o pai dos amigos recebera o passeio noturno. Bernar­do e Loulou, muito incomodados, não quiseram dar informação alguma sobre a entrevista. André supôs que as coisas não deviam ter corrido muito bem.

No largo da igreja encontraram Felisa, radiante, e "misé Berto" mais digna do que nunca. O Sr. e a Sra. Sumène voltaram para o castelo logo depois da missa. Deixaram os sobrinhos sozinhos, convencidos de que desta vez teriam juiz.

Logo que os tios partiram, André e Bela ficaram satisfeitíssimos: eram os personagens mais importan­tes do lugar; no meio daquela gente boa que os conhecia e os amava, sentiam-se importantíssimos. Andaram em bando entre a multidão alegre de jovens campone­ses em traje de domingo, mulheres, cujas roupas bri­lhantes e coloridas davam uma nota quente e alegre sob o céu azul. Bombas estouravam de todos os lados, os tiros de espingarda das barracas de tiro ao alvo faziam chorar as crianças no colo das mães. Isso, acrescido dos ruídos agudos das bolas de gás que chiavam ao esvaziar-se, fazia uma barulhada ensurde­cedora. Felisa nunca tinha assistido a uma festa des­sas, e se divertia a valer. Bela e Miqueta ofereceram-lhe balas e açúcar cândi.

André e Paulo, ajudados pelos Chaseaux, pro­porcionaram às crianças dos fazendeiros uma rodada nas barracas de tiro.

Manon, com sua insolência e seus ares de desdém, irritava o irmão que, de boa vontade, teria oferecido todo o resto do seu dinheiro para que ela voltasse para casa, pois a menina não se cansava de criticar amar­gamente: eram idiotas as festas do campo! Detestava aquele povo vulgar! Os bombons eram ordinários! Os tiros a incomodavam! Os. . .

— Volte pra casa, se tudo a aborrece! Exclamou Paulo, exasperado. Pare de nos aborrecer, porque estamos nos divertindo!

Manon fez uma careta de mau humor.

— Claro que vou voltar. Estou farta dessa poeira e desses gritos.

André, no entanto, ficou indeciso:

— Ela não pode voltar sozinha para casa, temos que ir embora. Que coisa cacete, justo agora quando vão sortear a rifa. Os homens gostariam que presen­ciássemos.

— E eu com isto? Retrucou Manon. Pouco me importa a rifa! Se você pensa que estou fazendo ques­tão daquela sombrinha horrorosa, está muito engana­do!

As pessoas que escutavam pararam atônitas.

— Como é desagradável essa pequena, disse um homem.

Paulo, que ouvira, enrubesceu. Apertou o pulso da irmã:

— Cale a boca, ouviu ? Ordenou num tom tão au­toritário que Manon, subjugada, nada respondeu.

Neste momento, um garoto veio puxar a manga­do paletó de André que estava ocupado tentando ganhar para Felisa um lindo açucareiro azul e dourado; virou-se imediatamente:

— Que é que há? perguntou, gentilmente. Você está com vontade de atirar?

O garoto protestou:

— Não quero nada, não! Vim só dizer que o senhor ganhou o carneiro. Aí vem ele.

— Que sorte! disse Paulo com uma certa inveja. O amigo contemplou-o, admirado.

— Você está pensando que vou aceitar? Não posso fazer isso.

— E o que vai fazer então?

— Dá-lo de volta. Eles o comerão em minha honra.

As meninas sabiam muito bem que André não poderia agir de outro modo, mas no fundo estavam um pouco triste.

O carneiro era tão bonito! A pequenina reclusa, de Maisonseule acariciava-o com olhares cobiçosos.

O gêmeo de Bela, num gesto magnífico, ofereceu sua prenda ao comitê de organização da festa, que agra­deceu efusivamente.

— Vamos embora, disse Bernardo. Não tenho mais um níquel.

— Nem eu!

— Nem eu! Bela acrescentou:

— Essas festas arruínam a gente, mas são muito divertidas, não é?

— Se são! disse Miqueta. Os pastoresinhos, que nunca têm nada, ficam tão satisfeitos! O ar de felici­dade deles me dá mais prazer do que se recebesse um presente.

— Que idéia, caçoou Manon, irônica. Estavam naquele momento atravessando o largo, onde o povo estava mais aglomerado, e uma velha, que ouvira a menina falar, olhou para ela e disse:

— Escutem só que pequena maldosa. Parece uma vespa.

Falara em dialeto, e Paulo, imaginando o signi­ficado da frase, interrogou Bela, que hesitou e depois explicou, perguntando por que queria saber.

— Foi o que uma velha disse a respeito de Manon, respondeu Paulo.

Isabela achou que a velha tinha toda razão!

 

Para festejar a chegada do pai, Felisa recebeu os amigos por sua vez. O Sr. de Maisonseule inspirava uma grande admiração a André Chandolas. Até aquele dia, tivera o projeto de ser agricultor e viver nas suas propriedades. Desde que conhecera o pai de Felisa, sua vocação começara a se desviar para a marinha. Isso se fez sentir no seu romance porque, bruscamente, o noivo da dama decide tornar-se cavaleiro de Malta e realizar prodígios de coragem no mar.

Uma coisa aborrecia André; era o ceticismo com que o Sr. de Maisonseule escutava as queixas de Rosamunda sobre a famosa escritura de arrendamento. Ele não era da opinião do tio Jaime e tinha certeza de que a escritura nunca existira. Nesse ponto André não pensava como o oficial. Sua imaginação fabulosa com­binava melhor com a de Rosamunda Mania De Roman­ces, como a chamava Tristana por caçoada.

O Sr. de Maisonseule, simpatizando muito com o menino, convidava-o sempre a aparecer. André apro­veitava para explorar os porões e o sótão em companhia de Felisa. Embora, a principio, tivesse assegurado a Bela que o pergaminho devia estar escondido na casa de algum camponês e depois que desaparecera no incên­dio do moinho de Sumène, acreditava agora, com igual convicção, que nunca saira do castelo. Nada descobri­ram, a não ser ratos e morcegos que amedrontavam muito a pobre Fada. Vendo o pavor da amiguinha, André desistiu provisoriamente das buscas e dedicou-se inteiramente à preparação da festa para a Sra. Sumène.

Os quatro sobrinhos de tia Clara sabiam que ia haver um grande jantar, mas isso não lhes parecia su­ficiente. Resolveram acrescentar quadros vivos. Pro­curaram idéias em todos os livros. A História Sagrada forneceu assuntos fáceis de representar. Bela queria fazer Rebeca perto do poço, mas aí surgiu uma séria dificuldade: onde encontrar um camelo? Depois de muita discussão, decidiram que o camelo seria substi­tuído pelo burro do sitio, ao qual juntariam uma cabra e dois carneiros, formando assim um bonito rebanho. Paulo seria Eliezer. Depois fariam a clássica "Gata Borralheira", figurada por Yeta, Miqueta e Manon. O "Príncipe das Folhas" por Loulou; e "Perrette com a vasilha de leite". Era fácil de representar. André, que apreciava os espetáculos de grande efeito, procurou para si algo de assombroso. Gostaria de representar "Mazeppa perseguido pelos lobos", mas era de todo impossível.

Bernardo lhe deu a idéia de alternar os contos de fada e os quadros da Bíblia com algumas cenas tiradas do seu próprio romance "A Jóia Fatal", pois o livro finalmente recebera um título. André ficou tão satis­feito com a sugestão, que repetiu duas vezes:

— Puxa velho! Que idéia formidável! Sabe que você é muito inteligente?

Bernardo sempre pensara que não era muito tolo, mas aquele elogio, mesmo moderado, lhe deu prazer.

— E Fada? exclamou subitamente Isabela. Não podemos esquecê-la; ela gostará muito de representar.

Fada não era difícil de fantasiar: tinha por natu­reza a aparência de um quadro vivo. Os quatro Chaseaux pediram para que ela aparecesse com sua harpa.

— Precisamos fazer sua fantasia junto com as nossas, disse Isabela, que era a encarregada deste setor. Vi no sótão uma mala cheia de vestidos antigos; acha­remos lá tudo o que for preciso.

Miqueta perguntou:

— Vamos então? Está chovendo e não podemos brincar no jardim; os sótãos foram feitos para os dias de chuva.

— Onde vão, crianças ? interrogou tio Jaime, cru­zando com eles na escada.

— Vamos nos divertir no sótão, titio. Miqueta queria ver as roupas antigas; tem um cofre cheio delas.

— Divirtam-se, mas não façam desordem, reco­mendou o tio, pois sinto a consciência pesada por causa dessas roupas.

— Ué, titio, você então estragava esses vestidos quando era pequeno?

— Seu pai e eu, com nossas irmãs e primas, re­presentávamos diversas peças, fantasiados com as rou­pas Luiz XIV, e é incalculável o que estragamos. Acho que vocês não encontrarão muita coisa.

— Mas, outro dia, disse Bela, descobri uma caixa cheia de roupas de criança: saias, corpetes bordados com prata e pedrarias, coisas lindas.

— Que engraçado, disse o Sr. Sumène, onde esta­vam? Não me lembro de ter visto isso.

Subiu com as crianças. Bela abriu a caixa, que encontrara no fundo de um velho baú. Desdobrou um vestido rosa e verde, e um outro de seda azul, bordado a prata. Tudo era do tamanho de uma menina como Felisa. Cada objeto, perfumado de lavanda, estava cuidadosamente arrumado. As meninas soltaram gri­tos de alegria diante de um minúsculo chapeuzinho cheio de rosas, de um pequenino avental de tafetá riscado de azul e branco, de sapatinhos bordados, de um leque, bolsas, etc.

— Isso data dos primeiros anos da revolução, disse o Sr. Sumène. Vou mandar levar esta caixa para baixo; fechem-na e não estraguem nada.

Desceu com essa recomendação.

— Olhem só! exclamou Miqueta, cheia de admi­ração. Uma boneca.

Uma pobre boneca de cera desbotada. Sua cabe­leira loura estava um tanto estragada. Quem a teria guardado ali? Com certeza fora a boneca predileta de alguma antepassada!

— Não ouso apanhá-la, disse Bela, vamos guar­dar tudo e procurar outra coisa. Seria uma pena se estragássemos isso.

Escolheram entre as fazendas antigas, guardadas dentro de grandes sacos, o que poderia servir a seus planos. Logo, os quatro Chaseaux, muito irrequietos, enjoaram daquele divertimento calmo. Desceram, en­quanto os gêmeos arrumavam o monte de coisas espa­lhadas pelo chão.

— É uma pena não podermos vestir Felisa com essas lindas roupas. Ficariam ótimas nela, observou Bela, lançando um último olhar à mala.

— Que fazenda é essa? perguntou André, apalpando um corpete... que coisa dura! Tenho pena das pessoas que usavam isto. Ué! que engraçado! está estalando! Forravam os vestidos com papelão, naquela época?

— Papelão? que loucura! exclamou Bela. Você está querendo dizer tarlatana, não é?

— Nada disso. É papel e dos mais grossos; olha só, está um pouco descosido.

— Parece uma carta, observou Isabela, puxando o papel.

— Desastrada! exclamou André consternado. Você rasgou o corpete e tio Jaime vai ficar uma fera!

Com efeito, Bela desmanchara uma costura. O corpete separou-se em dois, mostrando entre a fazenda de seda bordada e o forro um papel muito duro, do­brado diversas vezes.

— Que será? disse a menina intrigada. Que moda mais esquisita!

André arrancou-lhe o papel das mãos. Empalideceu e soltou um grito:

— Oh! Bela! O segredo de Maisonseule!... Bruscamente sentou-se sobre o monte de fazendas desdobradas.

— O... o quê ? balbuciou Bela, sufocada.

— A escritura... o papel que d. Rosamunda está procurando! É ele certamente. Lembre-se do papel de João Luiz; é isto na certa: "Procurar no vestido de Adelaide". Mas como é que estava aqui? Dizer que passamos .centenas de vezes ao lado dessa mala! Vamos logo mostrar a tio Jaime.

Despencaram escadas abaixo e entraram como dois foguetes rio escritório do Sr. Sumène, gritando ao mesmo tempo:

— Achamos! Está aqui! É o segredo de Maison­seule!

Tio Jaime pensou que os sobrinhos tinham enlou­quecido. Em resposta às suas perguntas só obtinha gritos e exclamações incoerentes. Finalmente os gê­meos se acalmaram um pouco e explicaram como tinham acabado de descobrir o papel no corpete da roupa de criança. André achava que era a escritura de Maisonseule; pediu ao tio para verificar.

Tio Jaime, muito emocionado, examinou o do­cumento. Releu-o duas vezes, depois se virou para os sobrinhos:

— André, vá dizer ao chofer para se preparar. É justo que vocês tenham o prazer de levar tamanha ale­gria às moças de Maisonseule.

— Então, é verdade? Achamos? Ih! Que bom!

No seu entusiasmo, André beijou o tio e a irmã.

Como teria o precioso papel ido parar em Sumène, quando a nota manuscrita pertencia ao moleiro? Era o que intrigava as duas crianças. O Sr. Sumène, posto a par das buscas dos sobrinhos, achou que durante a revolução os Maisonseule, obrigados a abandonar o país, tinham confiado seus papeis preciosos ao fiel em­pregado de Sumène, que era casado com a primogênita da ama da herdeira de Maisonseule. Este, para melhor ocultar o documento, tivera a idéia de escondê-lo cuidadosamente, costurando-o num dos vestidos da pequena Adelaide, que os pais tinham disfarçado em camponesa. E a menina, antes de partir, pusera a querida boneca no cofre, onde estavam aquelas roupas, agora inúteis. O.empregado guardara escrupulosamente o segredo, sem nada dizer a ninguém, nem mesmo à sua mulher. Com sua morte, alguns anos antes da volta da família de Maisonseule à França, todos os indícios da escritura desapareceram.

A pequena Adelaide morrera no exílio e seus ir­mãos não pensaram em reclamar os vestidos. Assim, a escritura ficara perdida.

Chovia torrencialmente quando o automóvel de Sumène chegou ao castelo de Maisonseule. Como da primeira vez, André bateu na pesada porta. "Misé Berto" abriu a janela.

— Deus do céu! exclamou. É o senhor, "seu" André, e D. Isabela, com um tempo destes?

— "Misé Berto", disse André gravemente, as Santas atenderam seus pedidos! Nós trazemos uma grande felicidade a Maisonseule.

A artesiana, trêmula de emoção, levou as crianças e o tio para a sala. Intimidados: os gêmeos não ousa­ram dizer mais nada. Lançaram um olhar suplicante a tio Jaime.

—Não, disse este, não quero lhes tirar esse pra­zer. A herdeira de Maisonseule deve receber seu le­gado. Dêem-lho vocês mesmos.

André obedeceu. Quando Rosamunda viu o pergaminho nas mãos de Felisa estupefata, quase desmaiou. Abraçou os dois irmãos.

— Meus queridos! disse ela.

Tristana apareceu naquele instante, muito espan­tada de ver a irmã enxugando os olhos e tio Jaime beijar Felisa com ar emocionado. Fada explicou com seu arzinho calmo de criança ajuizada:

— Parece que vamos ter muitas terras e muitas casas, tia Tristana. Bela e André encontraram um papel velho, todo sujo, dentro de um vestido de seda. Na certa é um papel de feitiçaria... se vai nos enri­quecer tanto. Eu não me importava de ser pobre, mas tia Rosa está tão contente que está até chorando!

— Vocês descobriram a famosa escritura? ex­clamou Tristana. Ela existia então! Sempre pensei que fosse uma lenda (um sorriso brilhante iluminou sua fisionomia) e acho mesmo muito galante ser desencan­tada por um mágico de quatorze anos! Isso me reconcilia com os romances. O nosso acaba bem demais, e para ser de todo romântico... eu devia lhe dar um anel ou um lenço com minhas cores, André, mas não possuo nem um, nem outro!

Riu-se e continuou:

— E depois já sou muito velha. Felizmente, entre três reclusas, ainda existe uma bem moça para usar fitas.

— Oh! fitas! um menino não saberia o que fazer com elas, objetou Felisa, com a sua seriedade habitual, mas como tia Rosa não vai mais precisar vender as caixas de palha, gostaria de dar uma a André e outra a Bela. Vocês querem?

— Sabe, disse Isabela, recebendo com alegria o presente da amiguinha, foi justamente por causa de uma caixa dessas, feitas por uma de suas antepassadas, que descobrimos o seu tesouro.

— De fato, explicou o irmão diante da surpresa do Sr. Sumène; logo no começo das ferias, fomos um dia lanchar no moinho e Malvina nos mostrou uma caixa dessas. Contou que a bisavó do seu marido fazia muita questão da caixa e me mostrou um pedaço de papel todo rasgado escondido no fundo. Estava escrito: "Pro­curar no vestido... aide... costurado...

escritura .... ento. . . seule..." Naturalmente, não ligamos para aquilo. Depois, quando viemos aqui pela primeira vez, Bela ouviu-as quando explicavam a tio Jaime o caso da escritura perdida. Bela e eu tínhamos jurado procurá-la durante as ferias; exploramos todos os sítios do lugar...

— Então é por isso, interrompeu o Sr. Sumène, que você comprava toda a papelada dos camponeses?

— É, confessou André; perguntava habitualmente se não tinham um parente chamado João Luiz, mas fica­va furioso porque sempre se chamavam Ferdinando, An­tônio, ou... enfim outros nomes. Depois você proibiu que continuássemos nossas buscas! Um dia quase de­sisti, pois Mario me disse que seu bisavô João Luiz se casara com a filha mais velha da ama de Adelaide de Maisonseule. Então pensei logo no papel: "procurar no vestido de Adelaide", e perguntei a ele se não tinha roupas antigas. Ele respondeu: "Não tenho nada an­tigo; o moinho queimou há cinquenta anos com todo o mobiliário". Nesse dia fiquei desesperado! Pensei que nunca mais poderia entregar o pergaminho a Felisa. Depois achamos o vestido e aquelas outras coisas no sótão. E pronto! Ainda estou meio tonto!

— João Luiz pensou que ficariam mais bem guar­dadas no castelo, disse o Sr. Sumène} mas o coitado morreu afogado na represa. Assim, se não fosse a precaução que tomou, deixando o bilhete na caixinha da mulher, a escritura nunca teria sido encontrada... Vocês são uns grandes detetives! Agora é necessário tratar-se da restituição dos bens. Se por acaso o co­mandante precisar de mim, estou inteiramente às suas ordens.

Felisa escutara toda a historia sem compreender grande coisa, a não ser que estavam todos satisfeitos. Disse gentilmente aos amigos:

— Vejo que vocês deram uma grande alegria a minhas tias. Se vocês quiserem se abaixar, darei um beijo em cada um. Gosto muito de vocês, sabem?

 

Já era tempo que chegasse o dia do aniversário da Sra. Sumène, porque, no meio dos preparativos, a exis­tência da boa tia Clara nada tinha de agradável. Com exceção do seu quarto, todas as peças do castelo lhe eram interditadas. Se procurava abrir a porta da rouparia, transformada em oficina de costura, Bela e suas ajudantes gritavam:

— Não pode entrar!

Se queria ir à sala, esbarrava em André que, com todo respeito, convidava-a a continuar seu caminho.

O escritório de tio Jaime estava cheio de presen­tes misteriosos. O jardim pertencia aos Chaseaux, que faziam guirlandas e preparavam a iluminação.

O programa da festa fora todo combinado. Os meninos tinham querido anunciar o nascer do sol com uma salva sob as janelas de tia Clara, mas tio Jaime não consentira. Bela então tivera uma idéia genial: soltariam as rolinhas sobre o balcão, no momento que Francisca abrisse as janelas de sua patroa. Assim, tia Clara receberia junto com o café da manhã os pri­meiros votos dos seus sobrinhos, na forma de bilhetes amarrados com uma fita no pescoço dos passarinhos.

Em seguida ofereceriam os presentes. De tarde, as crianças da escola viriam trazer flores e cumprimentos à castelã. Haveria para elas uma distribuição de doces e brinquedos. As moças de Maisonseule, abandonando sua reclusão, acompanhariam Felisa e seu pai para ce­lebrar ao mesmo tempo o aniversário de tia Clara, o achado dos gêmeos e para aplaudir as representações. Tudo terminaria com uma iluminação grandiosa do castelo e do jardim.

Uma febre geral reinava em Sumène. Paulo es­quecia que, transpirando daquele jeito, podia apanhar um pleurisia ou outra doença mortal. Bela e André não tinham mais tempo de inventar bobagens. Traba­lhava-se demais. O paninho estava acabado, o cofre também. O talentoso autor da "A Jóia Fatal" dava os últimos retoques em sua obra-prima. Recopiara tudo num pergaminho formidável; só lamentava a falta de gravuras, mas Paulo tinha dado a idéia de fazer todas as maiúsculas em letra gótica com arabescos e tinta de cor. André, encantado, multiplicara as letras enfei­tadas. O romance seria um pouco difícil de ler de tanto enfeite que tinha. Na verdade, a ação se desenrolava de maneira tão vertiginosa que o drama tinha propor­ções de novela. Entretanto, o autor, bastante orgu­lhoso, contemplava o manuscrito, dizendo a Paulo:

— Está bonito, não acha?

Os quatro Chaseaux, pasmos de admiração, con­sideravam o amigo com respeito. A "A Jóia Fatal" so­frera uma serie de transformações. No projeto inicial todos os personagens morriam no último capítulo. De­pois, a chegada do Sr. de Maisonseule, cujo uniforme impressionava muito a André, salvara a vida do noivo da heroína. Ele se tornava cavaleiro de Malta e ia guerrear no mar. Finalmente, Bela, tendo afirmado que todas as historias deviam acabar com um casa­mento, André transformara o cavaleiro de Malta em simples cruzado. O herói, depois de realizar verda­deiros prodígios.de bravura, de ter fugido de prisões bárbaras, graças à "Jóia", chegava um belo dia a Maisonseule no momento exato em que a heroína ia ser obrigada a casar com o vilão. O herói matava o rival num duelo, e assim tudo acabava bem, com seu casa­mento.

O grande dia tão esperado chegou finalmente. O tempo estava magnífico. André não fechara o olho a noite inteira. Levantou-se às cinco horas e entrou no quarto de Paulo, que dormia o sono dos justos. André o olhou com desprezo.

"Como é tolo este gorducho, pensou. Dormir desse jeito num dia de festa! E se virasse um jarro d’água em cima dele? Não. Ele gritaria e depois bri­garíamos, e o dia assim começaria muito mal".

Hesitou um pouco, mas sua malicia habitual vencendo-lhe os escrúpulos, resolveu-se: "Qual nada! vou acordá-lo".

Apanhou um apito que comprara dias antes na feira e, aproximando-se do amigo, apitou nos seus ouvi­dos com toda força. O som fortíssimo acordou o dorminhoco.

— Que brincadeira idiota! bradou Paulo, levantando-se bruscamente. Será que você não pode me deixar quieto enquanto durmo?

— Desculpe, disse André, rindo às gargalhadas. Sei muito bem que não devia ter feito isso, mas não pude resistir.

— Isso não se faz, retrucou Paulo, ofendido. Vá embora e deixe-me dormir.

— Você vai dormir agora ? Levante-se logo!

— Não amole, resmungou Paulo, Faz muito mal à saúde a gente ser acordada de repente; pode até dar febre.

— É, e matar também. Vou embora, não quero ter um assassinato na consciência.

Escutou na porta de Bela para saber se a irmã estava de pé. Não havia barulho algum. Sumène pa­recia o castelo da Bela Adormecida. André achou que a família toda era muito preguiçosa.

Passeava melancólico das estrebarias ao jardim quando Paulo apareceu correndo, todo ofegante. Gritou:

— Oh! André, que azar! Venha depressa... André, alarmado, interrogou:

— O quê? Que azar?

— Imagine... Manon soltou as rolas... Foi sem querer! Quando ia amarrar a fita... Agora, como vamos fazer?

— É preciso muita estupidez! disse André furioso. Por que foi ela se meter a fazer tudo, se é tão desa­jeitada ! Agora quero ver! Ia ser tão bonito!

— É, apoiou Paulo, despeitado. Já lhe disse duas vezes que é uma errada. Ficou danada... Está de mau humor.

— Deixe-a sozinha! Só temos uma coisa a fazer. Trepe no telhado e apanhe um casal de pombos.

— Apanhar um casal de pombos? Trepar no telhado? Paulo arregalou os olhos, horrorizado. Tinha medo de vertigem.

— Está bem, disse André, desdenhoso, já que vocês não passam de uns medrosos, eu vou apanhá-los.

Paulo, amedrontado, agarrou-se no seu paletó, pedindo:

— Não faça isso, pelo amor de Deus! Você se mata, e tia Clara vai dizer que a culpa foi minha!

— Deixe-me em paz! resmungou o amigo, de mau humor. Já basta ter que consertar as bobagens de vocês!

Paulo não se sentia culpado; entretanto, vendo o amigo zangado, calou-se.

Quando viu o sobrinho correndo pelo telhado da garagem a perseguir um pombo, o Sr. Sumène pensou que o menino enlouquecera subitamente.

— Você está com vontade de voltar para casa dentro de um caixão! exclamou quando André desceu. Proibo-o de repetir isso está ouvindo? Se a cozinheira precisa de pombos, não cabe a você apanhá-los, su­ponho?

Os meninos resolveram então contar o seu segredo. Explicaram a irreflexão de Manon e seu intento de substituir as rolas pelos pombos.

O Sr. Sumène acalmou-se. Achou a idéia origi­nal e consentiu em segurar os pássaros, enquanto André prendia o bilhete, pois Paulo sofria de uma repulsa instintiva por tudo quanto tinha penas.

Tia Clara ficou emocionada com a gentileza dos sobrinhos. Vestiu-se rapidamente e foi ter com a fa­mília na sala. Bela ofereceu seu lindo paninho, amarrado com fitas cor de rosa. Todos admiraram a pa­ciência e a habilidade da turbulenta menina. Paulo, confuso com a negligencia de. Manon ofereceu o cofrezinho, afirmando que era trabalho da irmã também. Tia Clara admirou conscienciosamente todos os presen­tes, mas quando André lhe entregou por sua vez a "A Jóia Fatal", o entusiasmo da boa tia não teve limi­tes. Beijou-o três vezes e convidou tio Jaime a ma­nifestar também sua admiração.

André, muito satisfeito, explicou:

— Achei que isso ia interessá-la; tem mortes em todas as páginas, mas acaba muito bem.

Tia Clara declarou que guardaria o precioso ma­nuscrito na sua caixa de jóias.

O almoço foi excelente e alegre, embora rápido. Era preciso receber as crianças da escola e lhes dar lanche. Vestidas com suas roupas domingueiras, elas chegaram logo depois, em coluna de dois. As meninas ofereceram flores e os meninos cantaram uma canção regional. Os dois melhores alunos recitaram uma sau­dação com graça encantadora. A Sra. Sumène abra­çou o menino e a menina. Em seguida, seus sobrinhos apanharam os pratos de doce e as cestas de brinquedo e tiveram a alegria de contemplar as carinhas radiantes.

Terminada essa parte do programa, os amigos da família Sumène começaram a chegar. Formavam uma assistência numerosa, à qual logo se juntaram as castelãs de Maisonseule. Era a primeira visita que fa­ziam, depois de muitos anos. Até aquele dia, sua po­breza, orgulhosamente disfarçada, impedia que vives­sem de outro modo a não ser como reclusas. Não saiam mais do velho castelo, de cujo caminho só os mendigos não se tinham esquecido, pois apesar de sua pobreza as moças de Maisonseule davam um jeito de socorrer os que eram mais pobres que elas.

É o que se chama, na Provença, fazer a "esmola florida"; e todas aquelas esmolas floridas, finalmente recompensadas, tinham levado a alegria para a pobre casa. A Santa Maria do Mar tinha feito o milagre. Os viajantes recolhidos num dia de tempestade tinham sido o instrumento da Providencia para sua felicidade.

As encantadoras castelãs que iam retomar seu lu­gar na sociedade e não seriam mais obrigadas à solidão no seu castelo sombrio, apareceram, acompanhadas pelo comandante. A graça de Felisa encantou a todas as amigas de tia Clara e a beleza de Rosamunda fez sensação.

Ninguém, até aquele dia, vira as moças de Mai­sonseule. Os pequenos Chandolas enrubesceram de alegria ao ouvir Tristana relatar suas buscas e o feliz achado, já corria a noticia de que os possuidores das terras de Mai­sonseule iam ser obrigados a restituí-las aos legítimos donos. Essa historia maravilhosa apai­xonava a opinião pública; por isso ficaram todos muito satisfeitos em ouvir a confirmação dos acontecimentos, feita pelos próprios interessados.

Enquanto os convidados se instalavam no salão, onde o palco estava arrumado, os jovens atores foram se preparar. O primeiro quadro foi muito aplaudido. Bela estava ótima como uma oriental, e Paulo muito bem como Eliezer. Tinham-no pintado com ocre e enfeitado com uma impressionante barba negra. O burro representou seu papel de camelo com toda a boa vontade; felizmente só começou a zurrar depois que o pano caiu.

Fada, tocando em sua harpa, obteve o maior su­cesso. Yeta fez de Cinderela, coadjuvada por suas más irmãs, Manon e Miqueta, vestidas à Luiz XIII uma, cor de laranja e azul sobre um avental de brocado branco; a outra, toda de verde bordado com rosas.

Loulou, como Príncipe das Folhas, do célebre conto de fadas, estava encantador. Sua roupa de folhagens, feita com cetim de todos os tons de verde, lhe ia muito bem.

Mas os quadros tirados de "A Jóia Fatal" foram os que mais interessaram a assistência. A Sra. Sumène sentia-se orgulhosa e feliz de ter um sobrinho tão inteligente.

André, não podendo representar Mazeppa perse­guido pelos lobos, amarrado num cavalo selvagem, fi­zera questão de pôr Fada na última cena do romance. Acabara de estrangular Bernardo (o senhor mau), e segurava a mão da dama, enquanto Loulou, transfor­mado no cavaleiro Tristão, contemplava-os com ar emocionado.

André, para sua grande alegria, conseguira do tio Jaime a permissão para usar uma das armaduras da galeria. Ele oscilava sob aquele peso imenso e fran­zia as sobrancelhas o mais que podia para ficar com ar mais viril. Felisa, ao lado de seu cavaleiro, era a noiva mais adorável do mundo. Suas trancas, enro­ladas com fios dourados, caiam sobre a túnica de veludo azul, descrita por Isabela. Levantava seu rostinho serio para o valoroso cruzado e tinha mesmo o ar de quem lhe confiava a mão.

O comandante de Maisonseule estava encantado com a filha e tio Jaime com o sobrinho.

Com tristeza, mas ao mesmo tempo com verdadeiro alivio, o cavaleiro despiu seu artefato de guerra para continuar a festa com a iluminação geral do castelo.

Sumène logo brilhou com milhões de luzes. Pare­cia um castelo de fadas sob a luz alternada dos fogos de Bengala verdes e vermelhos.

Tia Clara tinha sido festejada condignamente, mas também era preciso dar um fecho brilhante a tão movi­mentadas ferias.

 

Bela e André Chandolas e seus amigos se separa­ram com pena. As ferias estavam quase terminadas.

Faltavam dois dias para a dispersão do bando ale­gre. Paulo e Manon partiriam primeiro; os quatro Chaseaux iriam para Valença; os gêmeos voltariam para casa e Felisa ficaria sozinha na sua fortaleza negra no alto da montanha.

Agora, felizmente a vida das lindas reclusas tinha sido modificada. Não haveria mais preocupações na velha casa; a encantadora Fada, transformada em her­deira, fora "desencantada", como dizia "misé Berto". E isso, graças aos seus novos amigos.

Na véspera da partida, o Sr. e a Sra. Sumène acom­panharam os sobrinhos numa visita de despedida a Maisonseule. Entretanto, aquele dia foi menos alegre que os outros; a idéia da separação próxima impedia as crianças de aproveitar a reunião.

Bela exprimiu a tristeza que tinham ao ver esgo­tarem-se aqueles dias de liberdade.

— Não tem o direito de se queixar, disse o tio. Vocês tiveram umas ferias excelentes.

— É mesmo, disse Paulo; umas ferias de livro!

— E que acabam como um romance!,Acrescentou Tristana com sua alegria habitual. Aposto que Rosamunda vai sentir falta do tempo em que contava sua linda historia, agora que ela terminou tão bem!

— Terminou?

A Mania dos Romances sorriu, contemplando a sobrinha.

— Talvez vivamos outro daqui a alguns anos. Nesse momento Felisa disse aos amigos:

— Estou muito triste com a partida de vocês; estávamos tão bem assim! É preciso ficarmos sempre juntos. Quando for grande, você será meu marido; está bem, André?

— Claro que sim! disse André com entusiasmo. Todo o mundo começou a rir e o Sr. de Maisonseule acrescentou alegremente:

— Toque lá, meu genro! Daqui a dez anos fala­remos nisto de novo!

 

                                                                               Eric de Cys 

 

 

           Biblio"SEBO"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades