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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DE THUNDER POINT / Jack Higgins
O SEGREDO DE THUNDER POINT / Jack Higgins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O facto de Martin Bormann, secretário particular de Adolf Hitler, poder ter fugido de Berlim na madrugada do dia 2 de Maio de 1945 sempre serviu de base a muitas conjecturas. Estaline pensava que ele tinha sobrevivido. O motorista de Bormann, Jacob Glas, jurou que o vira em Munique depois da guerra. E havia também o oficial das SS que insistia que Bormann fugira da Noruega num submarino, com destino à América do Sul, no fim da guerra.
Se Bormann escapou na realidade, que segredos terá levado consigo? E poderão as provas que os corroboram ter sobrevivido - no fundo de um destroço fantasmagórico nas águas revoltas de um local chamado Thunder Point?

 


 


PRÓLOGO
Berlim - Bunker de Hitler
30 de Abril de 1945

A cidade parecia estar em chamas, qual inferno na Terra, o chão estremecia com o explodir das bombas e o fumo pairava na alvorada como uma cortina negra. Os Russos
tinham já assumido formalmente o controle da parte oriental de Berlim, e os refugiados, transportando tudo o que conseguiam dos seus haveres, avançavam pela Wilhelmstrasse,
próximo da Chancelaria do Reich, na esperança de chegarem de algum modo ao Ocidente e aos Americanos.
Berlim estava condenada - toda a gente o sabia -, e o pânico era terrível de se ver. Nas proximidades da Chancelaria, um grupo de SS detinha todos quantos estivessem
fardados. A menos que conseguissem justificar as suas acções, esses indivíduos eram imediatamente acusados de deserção e enforcados. Um morteiro zuniu, disparado
ao acaso pela artilharia russa. Ouviram-se gritos de aflição e as pessoas dispersaram.
A própria Chancelaria fora atingida e desfigurada pelo bombardeamento, mas nas profundezas da terra, protegidos por trinta metros de betão, o Führer e o seu estado-maior
continuavam a trabalhar num mundo subterrâneo auto-suficiente que se mantinha ainda em contacto, via rádio, com o mundo exterior. Os outrora magníficos
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jardins da Chancelaria estavam agora um caos de árvores desenraizadas e ocasionais crateras de morteiro. Apenas uma bênção: a actividade aérea era escassa - a chuva
intensa limpara, por ora, o céu de aviões.
O homem que caminhava por aquele jardim destroçado parecia estranhamente indiferente ao que se passava, nem sequer pestanejando quando um novo morteiro aterrou do
outro lado da Chancelaria. Quando a chuva aumentou de intensidade, limitou-se a levantar a gola, acendeu um cigarro e continuou a andar. Não era muito alto, tinha
ombros fortes e feições grosseiras. Teria passado despercebido no meio de uma turba de operários ou de estivadores - nada de distintivo, nada de notório. Nele tudo
era banal, desde o sobretudo coçado a dar-lhe pelos tornozelos até ao boné deformado.
E, no entanto, esse homem era o Reichsleiter Martin Bormann, o homem mais poderoso da Alemanha a seguir a Hitler. A grande maioria do povo alemão nunca ouvira falar
dele, e menos ainda o teria reconhecido se o visse. Bormann optara deliberadamente pelo anonimato, limitando-se a exercer o seu poder a partir da sombra. Mas agora
tudo isso terminara. Estava tudo acabado, e aquele era o fim último das coisas.
Um cabo das SS saiu do bunker e fez-lhe continência.
- Herr Reichsleiter, o Führer solicita a sua presença no gabinete.
- Pois sim. É para já.
Quando Bormann bateu à porta do gabinete e entrou, o Führer estava sentado por detrás da secretária a analisar uns mapas com uma lupa. Ergueu o olhar.
- Ah, Bormann, é você. Não temos muito tempo. Os malditos Russos não tardam, mas não me hão-de encontrar à espera deles. Vou suicidar-me.
- Esperava que reconsiderasse, que fugisse para a Baviera.
- Não. Já decidi. Mas você, meu amigo, tem uma tarefa a cumprir.
Hitler levantou-se e contornou a secretária em passo arrastado. Tinha a cara encovada e as mãos tremiam-lhe quando pegou nas de Bormann. E, no entanto, ainda se
sentia a sua força. Bormann comoveu-se.
- Tudo o que quiser, meu Führer.
- Sabia que podia contar consigo. - Tornou a arrastar-se até à cadeira. - A Kameradenwerk. Eis a sua função, velar pela sobrevivência do nacional-socialismo.
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Hitler inclinou-se e de baixo da secretária tirou uma pasta estranha, de um prateado-baço. Bormann reparou na insígia da Kriegsmarine gravada no canto superior direito.
Hitler abriu-a.
- O que aqui está dentro virá a revelar-se útil a seu tempo. - Pegou numa capa de couro. - Pormenores de contas numeradas em vários países da América do Sul e nos
Estados Unidos. Em todos esses sítios temos amigos que apenas aguardam notícias suas.
- Mais alguma coisa, meu Führer? Hitler pegou num dossier grande.
- Chamo-lhe o Livro Azul. Contém os nomes de vários membros das classes altas britânicas que simpatizam com a nossa causa. Também aqui estão alguns dos nossos amigos
americanos. E por último, mas não menos importante... - Estendeu outro envelope por cima da secretária. - Abra-o.
O papel era de uma tal qualidade que quase parecia pergaminho. Fora redigido em inglês em Julho de 1940 no Estoril, em Portugal, e era dirigido ao Fuhrer. A assinatura
era de Sua Alteza Real o Duque de Windsor. Sua Alteza concordava em ascender ao trono da Grã-Bretanha na eventualidade de uma invasão bem-sucedida.
- O Protocolo Windsor - limitou-se Hitler a dizer.
- Será isto verdade? - perguntou Bormann, estupefacto.
- Himmler jurava pessoalmente por isto. Ele instruiu os agentes destacados em Portugal na altura para abordarem o duque.
"Ou disse que tinha instruído", pensou Bormann para consigo. Aquele animalzinho manhoso sempre fora capaz de tudo e mais alguma coisa.
O Führer tornou a arrumar os papéis na pasta.
- Estas pastas fazem parte do equipamento normal de todos os comandantes de submarino. Completamente herméticas, à prova de água e de fogo. - Fê-la deslizar por
cima da secretária. - Agora é sua.
- Há uma questão, meu Fuhrer - disse Bormann após uma pausa. - Como é que saio daqui? Nós estamos cercados.
- É muito simples. Vai de avião, descolando da Avenida Leste-Oeste. Falei pessoalmente com o comandante da base da Luftwaffe em Rechlin. - Hitler relanceou o olhar
por um papel que tinha na secretária. - Um tal capitão Neumann ofereceu-se como voluntário para voar até cá de noite e aguarda neste momento as suas ordens naquela
garagem grande em casa de Goebbels, perto da Porta de Brandeburgo. Transportá-lo-á até Rechlin e reabastecer-se-á para o voo directo para Bergen, na Noruega. Você
segue viagem de submarino
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até à Venezuela, onde faz escala. Estão aqui todos os pormenores. - Entregou-lhe um envelope. - Há-de encontrar também aí dentro a minha autorização pessoal assinada
e vários passaportes falsos.
- Parto então esta noite? - perguntou Bormann.
- Não. Parte dentro de uma hora - replicou Hitler calmamente. - Graças à chuva torrencial e às nuvens baixas, não há neste momento patrulhamento aéreo. O capitão
Neumann acha que pode surpreendê-los por completo, e eu concordo. Tenho plena confiança de que será bem-sucedido.
Perante aquilo, não havia argumento possível, e Bormann anuiu.
- Com certeza, meu Führer.
- Nesse caso, só mais uma coisa - retorquiu Hitler. - Está ali uma pessoa no quarto. Vá chamá-la.
O homem com quem Bormann deparou envergava um uniforme de tenente-general das SS. Havia nele algo de familiar e, por qualquer razão, Bormann sentiu-se extremamente
perturbado.
- Meu Führer - disse o homem, e fez a saudação nazi a Hitler.
- Notou a parecença, Bormann? - perguntou Hitler.
Foi então que Bormann se apercebeu da razão por que se sentira tão desconfortável. Não havia dúvida - o general parecia-se realmente com ele.
- O general Strasser tomará o seu lugar aqui - disse Hitler. - Pode manter-se nos bastidores até que se dê a debandada geral. Na confusão da partida, é muito pouco
provável que alguém repare. - Voltou-se para Strasser. - É capaz de fazer isto pelo seu Führer?
- De todo o coração - retorquiu Strasser.
- Óptimo. Nesse caso, agora vão trocar de uniformes. Podem usar o meu quarto. - Contornou a secretária e tomou as mãos de Bormann nas suas. - Prefiro despedir-me
já, meu velho amigo. Não voltaremos a ver-nos.
Apesar da sua natureza cínica, Bormann sentiu-se incrivelmente emocionado.
- Hei-de ser bem-sucedido, meu Führer. Tem a minha palavra.
Precisamente meia hora mais tarde, Bormann deixava o bunker, com um pesado sobretudo militar de cabedal por cima do seu uniforme das SS e levando consigo um saco
de viagem militar que tinha dentro a pasta. Num dos bolsos, levava uma pistola Mauser com silenciador. Contornou o Tiergarten - dando-se conta de que havia gente
por todo o lado, principalmente refugiados -, atravessou a
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Porta de Brandeburgo e depressa chegou a casa de Goebbels. A casa estava danificada, mas o vasto edifício da garagem parecia intacto. Bormann abriu cautelosamente
a pequena porta. Lá dentro estava escuro, e uma voz gritou:
- Alto.
As luzes acenderam-se, e Bormann deparou com um jovem em uniforme de capitão da Luftwaffe, de pé junto à parede, com uma pistola na mão. Ao meio da garagem vazia
encontrava-se um pequeno avião de reconhecimento Fieseler Storch.
- Capitão Neumann?
- General Strasser? - O jovem ficou aliviado e guardou a pistola no coldre. - Tenho estado à espera dos Russos desde que aqui cheguei.
- Acha que temos hipóteses de levantar? O jovem sorriu.
- Costuma ter sorte, general?
- Sempre.
- Óptimo. Atravessaremos a rua até à Porta de Brandeburgo. Daí, descolo no sentido da Coluna da Vitória. Coisa que eles não esperam, já que o vento sopra na direcção
errada.
- E isso não é perigoso? - perguntou Bormann.
- Sem dúvida nenhuma.
O Storch roncou rua abaixo, dispersando refugiados atónitos à sua frente, e de súbito estavam no ar. Bormann não se deu sequer conta de qualquer disparo do solo.
A chuva caía copiosamente.
- Deve ser um homem com sorte, Herr Reichsleiter - disse o piloto.
Bormann voltou-se bruscamente para ele.
- O que foi que me chamou?
- Lamento ter dito o que não devia - retorquiu Neumann -, mas conheci-o em tempos numa cerimónia de imposição de condecorações em Berlim.
Bormann deixou a coisa passar.
- Não se preocupe.
A segunda parte da viagem foi particularmente difícil, cruzando em direcção à costa oriental da Dinamarca e atravessando o Skagerrak para norte. Quando chegaram
à base de Bergen, estava escuro como breu e frio, muito frio - granizo misturado com chuva. Um controlador de pista guiou-os com uma lanterna em cada mão até ao
local de estacionamento, depois afastou-se. Bormann reparou num
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Kübelwagen que avançava para eles. Parou do lado contrário ao dos aviões estacionados, que eram vários. Neumann desligou o motor.
- Deixe que eu levo o seu saco.
Bormann desceu, e Neumann passou-lhe o saco.
- Foi pena ter-me reconhecido - disse Bormann, e, tirando a Mauser do bolso, matou-o com um tiro na cabeça.
O HOMEM que se encontrava junto do Kiibelwagen era um oficial da Marinha.
- General Strasser?
- Exactamente - retorquiu Bormann.
- Korvettenkapitán Paul Friemel. - Friemel esboçou uma continência. - Comandante do U-180.
Bormann atirou o saco para a parte de trás do Kiibelwagen e ins-talou-se no lugar do passageiro. Quando o outro tomou o seu lugar ao volante, o Reichsleiter perguntou-lhe:
- Está pronto a fazer-se ao mar?
- Sem dúvida, general.
- Óptimo. Nesse caso, largamos imediatamente.
- Às suas ordens, general - respondeu Friemel, e arrancou. Bormann respirou fundo: sentia-se o cheiro a maresia no ar.
Acendeu um cigarro e recostou-se no banco, olhando as estrelas e recordando Berlim como um mero pesadelo.
1992
UM
Pouco faltava para a meia-noite quando começou a chover, e Dillon parou o Mercedes na berma da estrada, ligou o interruptor da luz interior e examinou o mapa. A
fronteira jugoslava devia estar muito próxima. Dillon assobiava baixinho. Homem baixo - pouco mais de um metro e sessenta e cinco -, com o cabelo quase branco de
tão louro, envergava um velho blusão de aviador de couro preto e uns jeans azul-escuros. Voltou a arrancar e ligou a telefonia, assobiando de quando em quando, até
que deparou com uns portões e abrandou para ler o letreiro: ferhing aero CLUB. Entrou e seguiu por um carreiro, até que viu o aeródromo lá em baixo.
Apagou os faróis e parou. O local tinha um aspecto miserável - dois hangares, três barracões e um vacilante simulacro de torre de
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controle -, mas via-se luz num dos hangares. Engatou o ponto-morto, largou o travão e deixou que o Mercedes deslizasse silenciosamente colina abaixo. Tirou uma Walther
PPK da pasta de executivo que estava sobre o assento, enfiou-a no cós das calças e atravessou a pista à chuva.

O hangar era velho, mas o avião que estava lá dentro, um bimotor Cessna 441 Conquest de turbo-hélice, tinha bastante bom aspecto. Em cima de uma escada, um mecânico
de fato-macaco trabalhava no motor de bombordo. A porta da cabina estava aberta, e vinham dois homens a descer a escada.
- Acabámos, Dr. Wegner - gritou um deles em alemão.
Um homem de barba saiu do pequeno escritório que havia a um canto do hangar.
- Está bem, podem ir. - Enquanto os outros se afastavam, ele perguntou ao mecânico: - Há algum problema, Tomic?
- Nada de grave, Herr Doctor, só umas afinações.
- O que não servirá de nada, a não ser que esse tal Dillon apareça - comentou um homem novo envergando um casaco de marinheiro que entrou nesse momento.
- Constou-me que ele é incapaz de resistir a um desafio - disse Wegner.
- Um mercenário - continuou o jovem. - É a isso que estamos reduzidos. Ao tipo de homem que mata por dinheiro.
- Há crianças a morrer do lado de lá da fronteira - observou Wegner. - Elas precisam do que vai neste avião. Para isso, era capaz de contratar o próprio Diabo.
- O que, provavelmente, terá mesmo de fazer.
- Isso não é lisonjeiro - gritou Dillon em excelente alemão. - Mesmo nada lisonjeiro. - E saiu do escuro do outro lado do hangar.
- Mr. Dillon? Sean Dillon? - inquiriu Wegner em inglês.
- Assim o dizem. E quem vem a ser o senhor, meu velho? - Tinha a pronúncia característica do Ulster.
Dr. Hans Wegner, da Assistência Medicamentosa Internacional, e este é Klaus Schmidt, da nossa delegação em Viena. Herr Schmidt fez duas vezes a viagem por estrada
com remessas de medicamentos.
- Então, porque é que o não faz desta vez? - perguntou Dillon.
Esta zona da Croácia está actualmente sob disputa - disse Schmidt. - Há intensos combates entre sérvios, muçulmanos e croatas.
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- Compreendo. Portanto, cabe-me a mim conseguir por ar o que você não consegue por estrada?
- Mr. Dillon, daqui até Sabac são quase duzentos quilómetros, e o corredor aéreo continua aberto. Este avião atinge mais de quatrocentos e oitenta quilómetros por
hora. O senhor põe-se lá em vinte minutos.
Dillon soltou uma gargalhada.
- E óbvio que não percebe absolutamente nada de aviões. - Apercebeu-se de que o mecânico sorria do cimo da sua escada. - Ah, então fala inglês, meu velho.
- Um pouco.
- Tomic é croata - esclareceu o Dr. Wegner. Dillon olhou para cima.
- Qual é a sua opinião?
- Eu estive na Força Aérea - disse Tomic. - Conheço Sabac. É uma pista de emergência, embora de asfalto de boa qualidade. Seja como for, o terreno é montanhoso,
densamente arborizado e a previsão meteorológica é uma desgraça. Como se isso não bastasse, a Força Aérea continua a patrulhar a zona regularmente.
- Com caças MiG? - perguntou Dillon.
- Exacto. Mas talvez você tenha uma atracção pela morte.
- Basta, Tomic - disse Wegner, furioso.
- Ah, já houve quem me dissesse isso. - Dillon riu-se. - Mas adiante. E melhor dar uma vista de olhos às cartas de navegação.
- A nossa gente de Viena deixou isto bem claro: os seus serviços são puramente voluntários - disse Wegner ao entrarem no escritório. - Todo o dinheiro que conseguimos
angariar é-nos necessário para os medicamentos e apoio médico.
- Entendido - disse Dillon.
- Quando é que parte? - perguntou Wegner.
- Antes do alvorecer. É a melhor altura de todas e a mais calma.
- Porque é que faz isto? - perguntou Schmidt, francamente curioso. - Não compreendo. Um homem como o senhor!
- Bem, como disse o bom do doutor, acho difícil resistir a um desafio.
- E era capaz de arriscar a vida por isso?
- Ah, sem dúvida, e já me esquecia. - Dillon sorriu, e a sua expressão sofreu uma mudança espantosa, tornando-se de uma calorosa e enorme simpatia. - Eu sou o último
dos grandes aventureiros. Agora, seja bom rapazinho, deixe-me sossegado e deixe-me ver para onde é que vou.
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Pouco antes das 5, Dillon postou-se à entrada do hangar com Wegner e Schmidt e olhou lá para fora. A escuridão continuava impenetrável.
- Em que pé estão as coisas? - gritou Dillon a Tomic.
- Em perfeita ordem de marcha - respondeu ele, emergindo da cabina.
- Ah, bem, então é melhor não perder tempo, como dizia o ladrão ao carrasco. - Dillon encaminhou-se para o Conquest, subiu as escadas e examinou o interior. Estava
cheio de compridos caixotes verde-azeitona com letreiros em inglês: ROYAL ARMY MEDICAL CORPS.
Schmidt foi ao seu encontro.
- Temos uns fornecedores peculiares.
- Bem pode dizê-lo. O que é que está cá dentro?
- Veja com os seus olhos. - Schmidt desapertou os fechos do caixote mais próximo e retirou uma folha de papel parafinado, deixando à vista caixas e caixas de ampolas
de morfina. - Do lado de lá da fronteira, Mr. Dillon, eles têm por vezes de agarrar as crianças quando as operam, devido à falta de anestésico. Isto tem-se revelado
um substituto extremamente eficaz.
- Acredito - assentiu Dillon. - Agora, volte a fechá-lo, e eu ponho-me a andar.
Schmidt fez o que lhe mandavam, depois saltou para o chão. Enquanto Dillon recolhia as escadas, Wegner disse:
- Deus o acompanhe, Mr. Dillon.
- Provavelmente, é a primeira vez que faço uma coisa que Ele aprovaria - respondeu Dillon, e fechou a porta.
O Cessna rolou até ao extremo da pista, virou-se contra o vento e em seguida arrancou. Passados um ou dois segundos, o avião tinha desaparecido, e o som dos motores
começava a desvanecer-se.
- Tem alguma hipótese? - perguntou Wegner, voltando-se para Tomic.
- Um homem e peras. - Tomic encolheu os ombros. - Quem sabe?
- Vamos tomar um café. Temos muito que esperar.
- Já lá vou ter depois de arrumar as minhas ferramentas - retorquiu Tomic.
Viu-os dirigirem-se para o último barracão e esperou até que tivessem entrado, antes de se precipitar para o escritório. Pegou no telefone e discou uma longa série
de números.
- Daqui major Branko - respondeu uma voz em servo-croata.
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- O Cessna Conquest acabou de descolar. Eis a sua frequência de rádio.
- O piloto é alguém que conheçamos?
- Chama-se Dillon, Sean Dillon. Irlandês, creio eu.
- Bom trabalho, Tomic. Far-lhe-emos uma calorosa recepção.

Dillon estava em dificuldades - nuvens densas e turbulências de nevoeiro apenas lhe permitiam uma visão intermitente dos pinhais que sobrevoava.
Tirou um cigarro da cigarreira, acendeu-o e ouviu nos auscultadores uma voz num inglês com forte sotaque.
- Bem-vindo à Jugoslávia, Mr. Dillon.
O avião apareceu a estibordo, relativamente próximo, deixando ver bastante bem as estrelas vermelhas da sua fuselagem - um MiG-21.
O piloto do MiG tornou a transmitir.
- Rume a um dois quatro, Mr. Dillon. Vamos dar a um castelo bastante pitoresco. Chama-se Kivo.
É o quartel-general dos serviços de informação desta zona. Estão à
sua espera.
Dillon virou para o novo rumo, subindo para dois mil pés quando o tempo limpou um pouco e assobiando baixinho para si mesmo. Uma cadeia sérvia não era coisa que
se recomendasse, mas não parecia restar-lhe alternativa. Então, a cerca de três quilómetros de distância, viu um castelo de conto de fadas à beira da floresta, com
uma pista de aterragem bem visível junto dele.
- Tirado de um conto dos irmãos Grimm - disse Dillon para o microfone. - Só nos falta um ogre.
- Oh, também temos disso, Mr. Dillon - retorquiu o piloto do MiG. - Agora desça calmamente, e eu despeço-me de si.
Dillon puxou o manche para trás e aumentou a potência, subindo a toda a pressa, e o piloto reagiu violentamente.
- Dillon, faça o que lhe mando ou rebento consigo. Dillon ignorou-o e estabilizou aos cinco mil, e o MiG, já no seu encalço, aproximou-se e disparou. O Conquest
vacilou quando os projecteis lhe perfuraram ambas as asas.
Dillon precipitou-se em descida, estabilizando a dois mil pés, sobre a orla da floresta. O MiG aproximou-se de novo, disparando agora as suas metralhadoras, e o
pára-brisas do Conquest desintegrou-se, deixando entrar chuva e vento num ruído ensurdecedor. Dillon manteve as mãos firmes no manche, com a cara ensanguentada devido
a um estilhaço de vidro.
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- Ora então vamos lá ver o que vales - disse ele.
Afundou o nariz e mergulhou, e o MiG seguiu-o, uma vez mais disparando. O Conquest estremeceu, deixando morrer o motor de bombordo quando Dillon nivelou a quatrocentos
pés. Atrás dele, o MiG, sem tempo para desfazer o mergulho, precipitou-se floresta dentro, explodindo numa bola de fogo.
Dillon reduziu potência e continuou a descer. Acabaram por ser os pinheiros a salvá-lo, retardando-lhe a progressão de tal forma que, quando ele encontrou uma clareira
para aterrar de barriga, já a sua velocidade não era muita.
O Conquest ressaltou por duas vezes e por fim estremeceu, imobilizando-se. Dillon saltou de lá de dentro, rolando sobre si mesmo, e já de pé, em corrida, torceu
o tornozelo direito, pelo que tornou a cair. Levantou-se e afastou-se a coxear, mas o Conquest não se incendiou.
Do outro lado da clareira surgiram alguns soldados. Um jipe emergiu das árvores por detrás deles, de capota descida, e Dillon apercebeu-se de que lá dentro vinha
um oficial em pé. Os soldados continuavam a aparecer, alguns com dobermans que ladravam raivosamente e puxavam pelas trelas.
- Vá lá, Mr. Dillon, seja razoável - gritou em inglês uma voz a um megafone. - Não quer que lhe solte os cães.
Dillon parou, depois voltou-se e coxeou até à árvore mais próxima. Tirou um cigarro da cigarreira de prata, acendeu-o e esperou por eles.
Formaram um semicírculo, de armas apontadas a ele. O jipe parou com um solavanco, e o oficial, um homem com cerca de trinta anos, de ar apresentável e belas feições
morenas, olhou-o de cima.
- Então, safou-se, Mr. Dillon - comentou num inglês irrepreensível. - Felicito-o por isso. A propósito, o meu nome é Branko, major John Branko. A minha mãe é inglesa.
Não me diga. - Dillon sorriu. - Arranjou aqui uma boa série de biltres, major, mas de qualquer modo Cead míle fáilte.
- E o que quer isso dizer, Mr. Dillon?
- Ah, é "cem mil saudações" em irlandês.
- Que sentimento encantador. - Branko voltou-se e dirigiu-se em servo-croata a um enorme sargento de ar feroz, que sorriu e saltou para o chão. - Permita-me que
lhe apresente o sargento Zekan. Acabo de lhe dizer para lhe oferecer cem mil saudações.
A coronha de uma carabina AK atingiu Dillon no lado esquerdo, cortando-lhe a respiração. Ao cair, o sargento deu-lhe uma joelhada
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na cara. A última coisa de que Dillon teve consciência foi dos cães a ladrarem, dos risos, e em seguida só restou a escuridão.

O sargento Zekan empurrou Dillon ao longo do corredor e por um lanço de escadas de pedra acima. No topo, havia uma porta de carvalho com gonzos de ferro. Zekan abriu-a
e fê-lo transpô-la. Dava para uma sala de vigas de carvalho, paredes de granito, com tapeçarias penduradas aqui e ali. Um toro ardia numa lareira aberta, diante
da qual estavam espojados dois dobermans. Sentado a uma enorme secretária, Branko lia um processo, enquanto bebia de uma taça de cristal. Ao seu lado, um balde de
gelo com uma garrafa de champanhe dentro. Olhou de relance para cima e sorriu. Depois, encheu outra taça.
- Krug, o seu preferido, ao que me consta, Mr. Dillon.
- Há alguma coisa que não saiba a meu respeito?
- Muito pouca. - Branko ergueu o processo, depois deixou-o cair em cima da secretária. - Os serviços de informação da maior parte dos países cooperam entre si, mesmo
quando os países o não fazem. Sente-se e tome uma bebida.
Dillon sentou-se na cadeira e aceitou a taça que Branko lhe estendia. Esvaziou-a de uma só vez, e Branko atirou-lhe um cigarro do maço de Rothmans, tornando a encher-lhe
a taça.
- Lamento aquela pequena demonstração de violência de há pouco. Foi só para agradar aos meus rapazes. Afinal de contas, o senhor custou-nos um MiG e um piloto.
Dillon tomou um pouco mais de champanhe.
- Quem é que me denunciou? - Franziu o sobrolho. - Tomic. Só podia ser Tomic, não é verdade?
- Um bom sérvio. Mas como é que um homem como o senhor se meteu nisto?
- Quer dizer que não sabe?
- Mr. Dillon, eu sabia que o senhor vinha aí, mas nada mais.
- Eu estava em Viena a passar uns dias, a gozar os prazeres da ópera. Sou fã de Mozart. Durante o primeiro intervalo, choquei no bar com um homem com quem tinha
tido negócios. Ele contou-me que fora abordado por uma organização que precisava de ajuda, mas tinha poucos recursos.
Branko acenou com a cabeça.
- Ah, agora entendo. Uma boa acção num mundo mauzinho, como dizia Shakespeare? Todas aquelas pobres criancinhas a implorarem ajuda? Tão cruéis, os Sérvios!
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- Não há dúvida de que tem o dom da palavra, major.
- Uma mudança de ares para um homem como o senhor, estou em crer. - Branko abriu a pasta. - Sean Dillon, natural de Belfast, foi viver para Londres em miúdo, pai
viúvo. Aluno da Royal Academy of Dramatic Art aos dezoito anos. O seu pai voltou para Belfast em 1971 e foi morto pelas tropas pára-quedistas britânicas.
- Está mesmo bem informado. - Alistou-se no IRA Provisório, recebeu treino na Líbia por cortesia do coronel Khadaffi e nunca voltou atrás. - Branko virou a página.
- Acabou por romper com o IRA.
- Uma cambada de velhinhas.
- Beirute, OLP, o próprio KGB. Não há dúvida de que prodigaliza na oferta dos seus serviços. - Subitamente, Branko riu-se de espanto. - O ataque submarino daquelas
duas canhoneiras palestinianas em Beirute em 1990: foi você o responsável? Mas isso foi para os Israelitas.
- Cobro preços muito razoáveis - comentou Dillon.
- Fluente em alemão, espanhol, francês, árabe, italiano, russo ... ah, e irlandês. E, apesar de tudo, aceitou este caso de uma cambada de amadores bem-intencionados
e gratuitamente?
- Todos nós cometemos erros.
- Não há dúvida de que você cometeu um, meu amigo. Sabe, aquelas caixas que trazia no avião? Ampolas de morfina por cima, mísseis Stinger por baixo.
Dillon não conseguiu evitar uma gargalhada.
- Essa agora, quem teria imaginado.
- Dizem que você nunca viu o interior de uma cela. Já não é assim, meu amigo. - Branko abriu uma gaveta e atirou uma caixa de dez maços de Rothmans sobre a secretária.
- Vão fazer-lhe falta.
Dillon sentiu a mão de Zekan puxá-lo para cima e empurrá-lo em
direcção à porta.
- Mais uma coisa, Mr. Dillon. Aqui, o pelotão de fuzilamento tem que fazer todas as manhãs. Espero que não se deixe impressionar por isso.
- Ah, sim. Limpeza étnica, não é isso que lhe chamam?
- Temos muito pouco espaço, é só isso. Durma bem.

Em 1972, ciente do efeito crescente do terrorismo em tão numerosos aspectos da vida, tanto a nível político como a nível acional, o primeiro-ministro britânico de
então ordenou a constituição
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de uma pequena unidade de informação de elite, simplesmente conhecida pelo nome de código Grupo Quatro. Cabia-lhe resolver todas as questões relacionadas com o terrorismo
e a subversão nas Ilhas Britânicas, respondendo apenas perante o gabinete do primeiro-ministro.
O brigadeiro Charles Ferguson chefiava o Grupo Quatro desde a sua criação. Tinha um gabinete no Ministério da Defesa, sobranceiro à Horse Guards Avenue, e estava
ainda a trabalhar à secretária, às 9 da noite, quando alguém bateu à porta.
- Entre. - Ferguson levantou-se e foi até à janela: era um homem corpulento, de duplo queixo e cabelos grisalhos desalinhados, envergando um fato largo e deformado.
A porta abriu-se atrás dele. O inspector Jack Lane, o homem que entrou, estava no final da casa dos trinta, vestia um fato de tweed e usava óculos. Após alguma negociação,
Ferguson tomara-o de empréstimo à Secção Especial da Scotland Yard para lhe servir de assistente pessoal.
- Tem alguma coisa para mim, Jack?
- Rotina, sobretudo, meu brigadeiro. Diz-se que o director-geral do Serviço de Segurança continua descontente com a recusa do primeiro-ministro em abolir o estatuto
especial do Grupo Quatro.
- Santo Deus, será que essa gente nunca desiste? Concordei em mantê-los informados na base do estritamente necessário e de manter contacto com Simon Cárter, o director-adjunto,
e com aquele parlamentarista de título rebuscado.
- Sir Francis Pamer. Ministro-adjunto no Ministério do Interior.
- Exactamente. Pois bem, será essa a cooperação a que terão direito. Mais alguma coisa?
Lane sorriu.
- Na realidade, guardei o melhor para o fim. Dillon, Sean Dillon?
Ferguson voltou-se.
- O que é que se passa com ele?
- Recebi uma informação dos nossos contactos na Jugoslávia. Dillon despenhou-se num avião ligeiro esta manhã, supostamente transportando auxílio médico, só que afinal
eram mísseis Stinger. Está detido em Kivo. Está aqui tudo. - Estendeu uma folha de papel.
Ferguson estudou-a e acenou com a cabeça, satisfeito.
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- Vinte anos, e nunca viu o interior de uma cela de prisão.
- Pois bem, está agora dentro de uma. Elaborei este relatório para o caso de querer dar uma vista de olhos.
- Agora não vale de nada. Você conhece os Sérvios, Jack. Mais vale metê-lo no arquivo morto e ir para casa.
Lane saiu, e Ferguson dirigiu-se ao armário das bebidas e serviu-se de um whisky.
- À tua, Dillon - disse em voz baixa. Deu um gole e regressou à secretária.
DOIS
A leste de Porto Rico, nas Caraíbas, ficam as ilhas Virgens, em parte sob domínio britânico, como sejam Tortola e a Virgem Gorda. Do outro lado ficam St. Croix,
St. Thomas e St. John, orgulhosamente americanas. St. John é provavelmente a ilha mais idílica de todas as Caraíbas, mas não naquela noite, quando uma tempestade
tropical - a cauda do tufão Abel - varreu toda a antiga povoação de Cruz Bay, impelindo a chuva através dos telhados das casas, enquanto a trovoada rugia nos céus.
Para Bob Carney, adormecido na sua casa, em Chocolate Hole, do outro lado de Great Cruz Bay, o barulho era o de artilharia ao longe. De súbito, estava no meio do
velho pesadelo de sempre - granadas de morteiro caindo por toda a parte, fazendo estremecer o chão, e os gritos dos feridos e dos moribundos. Soltou um grito de
horror e sentou-se repentinamente na cama.
Acendeu a luz de cabeceira e olhou para o relógio: 2.30 apenas. Suspirou e levantou-se, depois arrastou-se no escuro, casa fora, até à cozinha e tirou uma cerveja
do frigorífico. Extremamente bronzeado, tinha cabelo louro desbotado devido à exposição regular à água do mar e ao sol. Com um metro e setenta e três, tinha um corpo
de atleta, o que não era de surpreender num instrutor de mergulho profissional.
Atravessou a sala de estar e abriu uma janela. A chuva escorria do telhado, e os relâmpagos ribombavam ao longe, sobre o mar. Bebeu um pouco da sua cerveja, depois
pousou a lata. Era melhor dormir um pouco mais. Ia sair com um grupo de mergulhadores às 9.30.
Nesse mesmo instante, na sua casa, na orla de Cruz Bay, em Gallows Point, Henry Baker estava sentado no seu escritório a ler à luz
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do candeeiro de secretária. Tinha a porta que dava para a varanda aberta, porque gostava da chuva e do cheiro do mar. Aquele cheiro entusiasmava-o, fazia-o voltar
aos tempos da sua juventude e do serviço militar na Marinha durante a Guerra da Coreia. Chegara a primeiro-tenente e fora mesmo condecorado com a Estrela de Bronze.
Podia ter seguido carreira. Mas havia que pensar na casa editora familiar, em Nova Iorque, nas responsabilidades e na mulher com quem prometera casar-se.
A vida não lhe correra mal. Não tinha filhos, mas fora feliz com a mulher, até que um cancro a levara aos cinquenta anos. A partir daí, perdera o interesse pela
empresa, e de bom grado aceitara uma proposta de compra que o deixara podre de rico e sem interesses aos cinquenta e oito anos de idade.
Uma viagem a St. John fora a sua salvação. Iniciara-se no mergulho com Bob Carney, e a sua prática tornara-se uma obsessão. Vendera a casa, perto de Nova Iorque,
e mudara-se para St, John. Aos sessenta e três anos de idade, tinha uma vida agradável e que valia a pena viver, embora Jenny tivesse também alguma coisa a ver com
isso.
Estendeu a mão para a fotografia dela. Jenny Grant - vinte e cinco anos, uma expressão calma, uns olhos enormes sobre malares salientes, cabelo curto preto. Havia,
no entanto, uma certa apreensão naquele olhar. Baker relembrou o primeiro encontro de ambos em Miami, quando ela tentara seduzi-lo num parque de estacionamento,
com o corpo a tremer-lhe por falta da droga de que necessitava.
Quando ela desmaiara, Baker levara-a para o hospital, pagara-lhe a recuperação, dera-lhe a mão, porque não havia mais ninguém. Era a história do costume. Órfã, fora
criada por uma tia que, aos dezasseis anos, a pusera fora de casa. Com uma voz razoável, lá conseguira ir vivendo a cantar em bares. Depois, as más companhias haviam
apressado a sua queda.
Ele levara-a consigo para St. John. O arranjo resultara perfeitamente e numa base estritamente platónica. Ele era o pai que ela nunca conhecera; ela era a filha
que lhe fora negada. Ele investira num café e num bar na baía, que se chamava Jenny"s Place. O investimento revelara-se um enorme sucesso. A vida não podia correr
melhor, e ele ficava sempre acordado à espera dela. Foi nessa altura que ouviu um jipe parar lá fora. Ouviu-se a porta de entrada, ela entrou e beijou-o na cara.
- Santo Deus, aquilo lá fora parece um dilúvio.
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- De manhã há-de limpar, vais ver. - Pegou-lhe na mão. - Vou mergulhar cedo, mas venho para almoçar lá em baixo, no café.
- Só gostava que não mergulhasse sozinho.
- Jenny, eu sou um mergulhador de recreio. Não necessito de
descompressão, porque não passo dos limites, exactamente como Bob Carney me ensinou. - Apertou-lhe a mão. - Agora, deixa-te de preocupações e vai para a cama.
Ela beijou-o na cabeça e saiu. Ele levou o livro para o sofá junto à janela e estendeu-se confortavelmente. Passado um pouco, os olhos fechavam-se-lhe e o livro
escorregava para o chão.
Acordou em sobressalto. A luz irrompia através das venezianas. Deixou-se ficar deitado durante um bocado, depois levantou-se e foi até à varanda. Já era madrugada,
a alvorada irrompia no horizonte, mas estava tudo estranhamente calmo e o mar parecia um espelho. Perfeito para mergulhar, absolutamente perfeito. Correu para a
cozinha e preparou café e sanduíches de queijo, depois meteu-as num saco e pegou no casaco.
Desceu até ao porto. Chegado ao cais, saltou para o seu bote pneumático, ligou o motor fora-de-borda e ziguezagueou por entre os inúmeros barcos até chegar ao dele,
o Rhoda, uma lancha de pesca desportiva de onze metros baptizada com o nome da mulher. Subindo para bordo, verificou o equipamento, largou a amarração, depois subiu
a escada de acesso à flying bridge e ligou os motores. Os motores roncaram, e Baker aproou o Rhoda ao mar aberto com franco prazer.
Tinha todos os seus locais de mergulho preferidos por onde escolher, mas o mar estava tão calmo que ele foi direito ao largo, rumo a sul, e acelerando o Rhoda até
aos quinze nós, serviu-se de um pouco de café e puxou das sanduíches. Agora, o Sol já nascera, o mar estava do mais perfeito azul e a toda a sua volta viam-se os
picos das ilhas. Melhor não podia haver. Caiu numa espécie de sonho acordado, e só uma boa meia hora mais tarde é que verificou a sua posição.
- Oh, não - murmurou. - Já devo estar umas doze milhas ao largo.
é, perto daquele assustador local em que o fundo simplesmente mergulhava seiscentos metros a pique até às profundezas, à excepçao de Thunder Point, onde nunca ninguém
mergulhava, pois era o recife mais perigoso da zona. Poucos sabiam sequer onde ele ficava, e, em geral, o mar era ali suficientemente turbulento para manter qualquer
um à distância. Mas não naquele dia. Estava um
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espelho. Baker nunca vira nada assim. Apoderou-se dele um entusiasmo súbito e ligou a sonda à procura do fundo, desacelerando; depois, avistou-o - as linhas amarelas
irregulares no ecrã.
Desligou o motor e deixou-se ficar à deriva, verificando a leitura de profundidade até ter a certeza de que se encontrava sobre a crista do recife, a vinte metros,
e depois largou ferro. Tirou a roupa e vestiu o seu fato de mergulho cor de laranja e azul e em seguida montou rapidamente o equipamento. Prendeu o computador de
mergulho Marathon ao tubo do manómetro de pressão, após o que envergou o colete de mergulho, a garrafa e prendeu ao cinto de chumbo um saco de mergulho em rede com
uma lanterna. Calçou um par de luvas de mergulho e as barbatanas e ajustou a máscara, após o que deu simplesmente um passo em frente para a água.
O mar estava inacreditavelmente límpido e azul. Começou a descer, seguindo a corrente da âncora. A sensação de flutuar no espaço era, como sempre, espantosa - um
silencioso mundo só seu. O recife em que a âncora estava presa era uma floresta de coral e de algas, com peixes de todas as formas possíveis. Verificou o computador
de mergulho, que indicava a sua profundidade e o tempo que podia permanecer em segurança debaixo de água. Estava a vinte metros.
Havia uma corrente relativamente forte. Sentia-a a puxá-lo para o lado, mas não era isso que ia impedi-lo de dar uma espreitadela ao enorme abismo. A orla do recife
definia-se claramente. Prosseguiu caminho até aos vinte e cinco metros e começou a percorrê-la longitudinalmente.
Viu que havia danos consideráveis no coral, com grandes secções arrancadas recentemente, presumivelmente durante o furacão. Um pouco mais adiante, desaparecera todo
um troço, deixando à vista uma enorme saliência rochosa mais abaixo. Havia aí qualquer coisa. Baker aproximou-se cautelosamente.
Foi então que teve não só a maior emoção da sua carreira de mergulho, mas também o maior choque de uma já longa vida. Aquilo que estava pousado na saliência, em
parte suspenso sobre o abismo de seiscentos metros, era um submarino.
Durante o seu serviço na Marinha, Baker fizera um curso de instrução a bordo de um submarino e assistira a filmes de instrução, sobretudo da altura da II Guerra
Mundial. Reconheceu de imediato aquilo para que estava a olhar. Era um submarino alemão Tipo VII, o vaso mais comum da Kriegsmarine. A torre de comando estava incrustada
de vegetação marinha, mas conseguia ainda distinguir-se
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o número que tinha de lado - 180. Cerca de dois terços do barco estavam assentes na rocha, e a proa projectava-se no vazio.
Ele desceu até ao cimo da torre de comando e agarrou-se ao corrimão da ponte. Atrás, encontrava-se a plataforma elevada da peça de 20 mm, e à proa ficava a peça
de convés, incrustada de esponjas e corais de cores diversas. O navio tornara-se um habitat, tal como todos os destroços marinhos, e por todo o lado havia peixes
- lúcios de cauda amarela, anjos-do-mar e outros. Verificou o computador: vinte minutos, no máximo, antes de ter de subir.
Espreitou para estibordo e viu um grande rasgo irregular de uns quatro metros e meio no casco. Os pobres-diabos deviam ter-se afundado como uma pedra. Desceu e apontou
a luz para dentro da sala de comando. Distinguiam-se perfeitamente os tubos do periscópio, mas o resto era um caos de metal retorcido. Hesitou, depois entrou.
Tanto a porta hermética de ré como a de vante estavam fechadas. Experimentou a roda de abertura na de vante, mas estava irremediavelmente corroída. Havia umas garrafas
de oxigénio, até mesmo um cinturão com munições, e - o mais patético de tudo - umas ossadas humanas no sedimento do chão.
Voltou-se para sair, e a luz incidiu em qualquer coisa a um canto, algo de muito semelhante à pega de uma mala. Estendeu a mão, o sedimento agitou-se e Baker deu
consigo a segurar numa pequena pasta metálica. Era o suficiente como recordação. Saiu através do rombo, deixou-se flutuar pela borda do recife acima e chegou à âncora
com cinco minutos de sobra. Idiota, disse para consigo, correr um risco daqueles.
Chegado a bordo, impôs-se seguir a rotina do costume. Libertou-se do equipamento, secou-se com uma toalha, vestiu-se. Serviu-se de um pouco de café. Só depois passou
vigorosamente uma escova de arame pela pasta incrustada, e imediatamente se apercebeu de que era de alumínio. Quando a superfície começou a definir-se, apareceram
a águia e a suástica da Kriegsmarine alemã. Procurou uma chave de parafusos grande, forçou-a por cima do fecho e conseguiu abrir a pasta. O interior estava totalmente
seco. O conteúdo era constituído por umas quantas cartas e um diário de cabedal encarnado com uma insígnia da Kriegsmarine gravada a ouro.
O diário estava escrito em alemão, língua que Baker não entendia. O primeiro assento era de 30 de Abril de 1945, e Baker reconheceu nele o nome de Bergen. Sabia
que se tratava de um porto na Noruega. No frontispício havia um assento que compreendeu -
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"Korvettenkapitän Paul Friemel, U-180", obviamente o comandante e dono daquele diário.
Baker folheou as páginas, frustrado pela sua incapacidade de decifrar o que quer que fosse. Havia vinte e sete assentos, por vezes uma página inteira por dia. Outras
vezes, havia anotações para indicar a posição, e Baker reparou que a viagem levara o submarino a fazer-se ao Atlântico e a rumar a sul, para as Caraíbas.
O último assento era datado de 28 de Maio de 1945. Henry Baker tinha dezasseis anos quando a guerra acabara e lembrava-se de que Adolf Hitler se suicidara a 1 de
Maio, e a capitulação ocorrera pouco depois. Se assim fora, o que estava o U-180 a fazer nas ilhas Virgens a 28 de Maio?
Folheou uma vez mais as páginas e um nome chamou-lhe a atenção: Reichsleiter Martin Bormann. A excitação de Baker era intensa. Martin Bormann. Teria ele acabado
por fugir do bunker ou havia morrido em Berlim? Quantos livros haviam sido escritos acerca disso? Virou a página ao acaso e outro nome lhe surgiu: duque de Windsor.
Baker ficou atónito, com a garganta seca. Depois, voltou a enfiar o diário na pasta, ligou os motores e levantou ferro.
Do que quer que se tratasse, era coisa da grossa, não podia deixar de ser. Tinha em mãos um submarino alemão que se afundara nas ilhas Virgens três semanas após
o fim da guerra e o diário íntimo de um comandante que fazia referência não só ao homem mais poderoso da Alemanha nazi a seguir a Hitler, mas também ao duque de
Windsor.
- Meu Deus, no que me terei eu metido? - murmurou.
Podia dirigir-se às autoridades, evidentemente. À Guarda Costeira. Mas a descoberta fora sua - o problema era esse - e estava relutante em abrir mão disso. Mas então
o que fazer? Depois, lembrou-se.
- Garth Travers, é claro. - E soltou uma sonora gargalhada, acelerando os motores ao máximo.
Em 1951, enquanto tenente da Marinha Americana, Baker fora destacado como oficial de ligação para um contratorpedeiro da Royal Navy britânica. Ele e Garth Travers,
oficial de artilharia, tinham constituído uma sólida amizade. Travers tivera uma carreira brilhante. Reformara-se como contra-almirante. Desde então, escrevera vários
livros sobre aspectos navais da II Guerra Mundial e traduzira uma obra alemã sobre a Kriegsmarine. Era ele o homem certo, não havia dúvida.
Perto da costa de St. John, Baker avistou outro barco de pesca
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desportiva - o Sea Raider, o barco de Bob Carney - que se aproximava rapidamente. O barco abrandou, virando na sua direcção, e Baker abrandou também. Havia quatro
pessoas à popa envergando fatos de mergulho.
- Bom dia, Henry - gritou Bob Carney da ponte. - Por onde é que andou?
- French Cap. - Baker não gostava de mentir a um amigo, mas não tinha alternativa. - Condições óptimas. Um espelho.
- Óptimo. - Carney sorriu e acenou. - Passe bem, Henry.
Em Londres, chovia. A chuva batucava nas janelas da casa de Lord North Street, onde Garth Travers estava sentado numa cadeira junto à lareira do seu escritório,
de paredes forradas de estantes, a ler The Times. Quando o telefone tocou, fez uma careta, mas levantou-se e foi até à secretária.
- Quem fala?
- Garth? Daqui Henry, Henry Baker. Travers sentou-se.
- Henry, meu velho traste. Estás em Londres?
- Não, estou em St. John. Estou com um problema, Garth. Pensei que talvez pudesses ajudar-me. Descobri um submarino alemão.
- Descobriste o quê?
- Um submarino alemão, sem tirar nem pôr, aqui nas Virgens. O número da torre de comando era 180. É um Tipo VIL
O próprio Travers ficou extremamente entusiasmado.
- Mas porque carga de água é que ninguém o descobriu antes?
- E um sítio muito perigoso, Garth. Ninguém lá vai. Está meio assente numa saliência da rocha que ou me engano muito, ou estava protegida por uma protuberância.
Há danos recentes à face do rochedo provocados por um furacão.
- E em que condições está ele?
- Há um rombo no casco e consegui entrar na sala de comando. Encontrei lá uma pasta de alumínio à prova de água.
- Com uma insígnia da Kriegsmarine?
- Exactamente!
- Fazia parte do equipamento. O número era 180? Espera um instante. Comprei um livro que menciona todos os submarinos armados pela Kriegsmarine.
Baker esperou pacientemente até Travers voltar.
- Estamos com um problema, meu velho. Tens a certeza de que era um Tipo VII?
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- Absoluta.
- Bem, o 180 era um Tipo IX, enviado de França para o Japão em Agosto de 44. Afundou-se no golfo da Biscaia.
- Ai sim? Pois bem, e o que dizes tu a isto: encontrei o diário pessoal de um tal Korvettenkapitän Paul Friemel dentro da pasta, e o último assento tem a data de
28 de Maio de 1945. Temos, portanto, um submarino alemão com um número falso que se afunda nas Virgens três semanas depois do fim da guerra.
- Não há dúvida de que é intrigante - comentou Travers.

- E ainda não ouviste o melhor. Lembras-te daquela história sobre a fuga de Martin Bormann de Berlim? Pois bem, eu não sei alemão, mas consigo ler o nome dele e
o do duque de Windsor.
Travers respirou fundo.
- Eu tenho de ver esse diário, Henry.
- Foi o que eu achei - retorquiu Baker. - Há um voo que sai de Antígua às oito da noite, hora local. Devo conseguir apanhá-lo. Talvez me pudesses dar um pequeno-almoço
tardio.
- Cá fico à espera - disse Travers.
A BEIRA-MAR estava agitada em Cruz Bay, uma pitoresca vilazinha absolutamente encantadora, com o seu eterno ar de ligeira decadência, ao jeito da maioria dos portos
das Caraíbas. O Jenny's Place ficava do outro lado da marginal. Havia uma escada a dar para a varanda e um letreiro de néon por cima da porta. Lá dentro, havia divisórias
de encontro às paredes formando privados, mesas de tampo de mármore e um pavimento de ladrilhos pretos e brancos, e bancos altos junto ao comprido bar de mogno.
Quando Henry entrou, Billy Jones, o barman, um negro alto e corpulento de cabelo grisalho, limpava copos. Tinha a pele cicatrizada em volta dos olhos e o nariz achatado
característicos de um boxeur profissional. A sua mulher, Mary, era a gerente. Billy sorriu.
- Viva, Mr. Henry. Vem à procura da Jenny?
- Exacto.
- Foi até lá abaixo à lota escolher o peixe para esta noite. Não deve demorar. Posso servir-lhe alguma coisa?
- Só um café, Billy. Tomo-o lá fora. Sentou-se à varanda, numa cadeira de bambu, a beber o café, tão absorto nos seus pensamentos que não reparou na aproximação
de Jenny. - Já voltou - disse ela, subindo as escadas. Envergando uma
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t-shirt e uns blue jeans, tinha uma figura muito esguia. Franziu a testa. - Algum problema?
- Tenho de ir a Londres - respondeu ele. - Esta tarde. Jenny sentou-se ao seu lado.
- O que se passa, Henry?
- Aconteceu uma coisa quando estava a mergulhar esta manhã, uma coisa incrível. Descobri um destroço a cerca de vinte e cinco metros de profundidade.
- É louco. - Agora, Jenny estava zangada. - Mergulhar a essa profundidade sozinho e com a sua idade. Onde foi?
Baker hesitou. Ela ficaria numa fúria se soubesse que ele estivera a mergulhar num sítio como Thunder Point, e por enquanto queria manter o local em segredo, pelo
menos até ter falado com Travers.
- Só te posso dizer, Jenny, que descobri um submarino alemão de 1945 e que consegui entrar lá dentro. Estava lá uma pasta à prova de água. Dentro dela encontrei
o diário do comandante. Está em alemão, mas reconheci uns nomes: o de Martin Bormann e o do duque de Windsor.
Jenny parecia ligeiramente desorientada.
- Henry, o que é que se passa?
- É isso que eu gostaria de saber. - Pegou-lhe na mão. - Lembras-te daquele meu amigo inglês o contra-almirante Travers?
- O da Guerra da Coreia? Claro. Apresentou-mo quando estávamos em Miami e ele se encontrava lá de passagem.
- Telefonei-lhe há pouco. Ele tem todo o género de registos sobre a Kriegsmarine. Verificou-me o navio. Na torre de comando está pintado 180, mas o 180 era um navio
de tipo diferente e naufragou no golfo da Biscaia em 1944.
Confusa, Jenny abanou a cabeça.
- O que é que isso quer dizer?
- Durante anos, circularam histórias sobre Bormann, publicaram-se dúzias de livros, todos eles dizendo que ele não tinha morrido em Berlim, que tinha sobrevivido.
Havia pessoas que o avistavam, ou diziam que o avistavam, na América do Sul.
- E o duque de Windsor?
- Quem sabe? - Baker abanou a cabeça. - Eu só sei que descobri o submarino, Jenny. Eu, Henry Baker. Ouve, eu não sei o que está no diário, mas talvez ele venha a
alterar a História. - Levantou-se e foi até ao corrimão, agarrando-se a ele com ambas as mãos.
Jenny nunca o vira tão entusiasmado.
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- Quer que vá consigo?
- Não é preciso. Volto dentro de uns dias.
- Muito bem. - Ela conseguiu fazer um sorriso. - Nesse caso, ajudo-o a fazer as malas.
TRÊS
Eram 10 horas quando se ouviu a campainha da porta na casa de Lord North Street. Garth Travers deparou com Henry Baker à chuva, com a pasta numa das mãos e uma mala
de viagem na outra.
- Meu caro amigo - disse Travers -, entra antes que te afogues. Depois, mostro-te o teu quarto. É o dia de folga da mulher-a-dias, por isso é à moda da Marinha.
Entraram para a cozinha, grande e confortável, e Travers pôs a chaleira ao lume. Baker pousou a pasta em cima da mesa.
- Cá está ela.
- Fascinante. - Travers examinou a insígnia. - Posso?
- É para isso que aqui estou.
Travers abriu a pasta. Examinou as cartas num ápice.
- Isto devem ser lembranças da mulher, pelo aspecto. - Voltou a sua atenção para o diário e folheou-o. - Bela caligrafia e perfeitamente legível. Não podem ser mais
de trinta páginas.
- Pelo que me lembro, o teu alemão é fluente - comentou Baker.
- Como se fosse a minha própria língua, meu velho. Eu digo-te o que vou fazer: vou traduzi-lo imediatamente para o meu processador de texto. Não deve levar mais
de uma hora e meia. Prepara tu o pequeno-almoço. Há fiambre e ovos no frigorífico, a lata do pão está ali. Quando tiveres acabado, vai ter comigo ao escritório.
Saiu, e Baker, aliviado por tudo estar em boas mãos, entreteve-se a preparar o pequeno-almoço. Enquanto comia, leu o exemplar de Travers do Times dessa manhã. Passada
talvez uma hora, arrumou tudo e dirigiu-se ao escritório.
Travers encontrava-se diante do processador de texto a olhar para o ecrã, com uma expressão de grande concentração.
- Está quase - disse ele.
Baker sentou-se. Estava em picos, e, passado um bocado, Travers levantou-se com um suspiro.
- Acabei. Vou imprimir.
- Diz alguma coisa de interessante?
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- Interessante? - O contra-almirante soltou uma gargalhada. - Isso é dizer pouco. É sensacional. A questão está em saber o que vais tu fazer com ele.
- O que diabo queres tu dizer?
- Vê por ti. Eu vou fazer mais um pouco de café - retorquiu Travers. Quando a impressora parou, entregou as folhas a Baker, que se instalou na cadeira que estava
junto à lareira e começou a ler.

Bergen, Noruega, 30 de Abril de 1945. Eu, Paul Friemel, inicio esta narrativa dada a estranheza da missão que me cabe cumprir. Deixámos Kiel há dois dias neste mesmo
navio, designado por U-180, número de um navio abatido à frota. O meu passageiro chegará esta noite, proveniente de Berlim, e traz uma ordem directa escrita pela
mão do Führer. Dele, saberei qual o nosso destino...
Recebi ordens para seguir para o campo de aviação, onde um Fieseler Storch pousou. Passados uns minutos, apareceu um oficial em uniforme de general das SS. Entregou-me
um envelope lacrado. Quando o abri, a ordem do Führer dizia o seguinte: "O Reichsleiter Martin Bormann age por minha autoridade numa questão essencial para a continuidade
Do Terceiro Reich. O senhor colocar-se-á sob a sua autoridade directa, nunca esquecendo o seu juramento solene ao seu Führer como oficial da Kriegsmarine, e acatará
as suas ordens em todas as situações."
O Reichsleiter perguntou-me se eu aceitava a sua autoridade, e eu anuí. Deu-me instruções no sentido de, relativamente aos meus oficiais e à tripulação, ser dado
a conhecer como general Strasser.
1 de Maio. Atribuí ao Reichsleiter o camarote do comandante, a bombordo, à ré daquilo que neste navio passa por ser a messe dos oficiais. Ao deixarmos Bergen na
maré da noite, fui por ele informado de que o nosso destino era a Venezuela.
3 de Maio. Recebi de Bergen, por rádio, a surpreendente notícia da morte do Führer a 1 de Maio, combatendo corajosamente no comando das nossas forças em Berlim.
Transmiti as tristes notícias ao Reichsleiter, que as recebeu com uma calma surpreendente. Deu-me ordens para fazer correr a notícia pela tripulação, salientando
que a guerra continuava.
8 de Maio. Recebemos esta noite a mensagem de que eu estava à espera. A Alemanha foi derrotada. Reuni-me com o Reichsleiter, que insistiu em falar à tripulação.
Deu a conhecer a sua identidade e a autoridade que lhe fora conferida pelo Führer. Salientou que nada restava na Alemanha para nenhum de nós e que havia amigos
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à espera na Venezuela. Era difícil rebater este raciocínio, e, no geral, os meus oficiais e a tripulação aceitaram-no.
21 de Maio. Uma noite extraordinária para mim. O Reichsleiter apareceu ao jantar nitidamente embriagado. Mais tarde, convidou-me para os seus aposentos, onde puxou
de uma garrafa de whisky e insistiu em que lhe fizesse companhia. Bebeu sem moderação, falando muito acerca do Fuhrer e dos últimos dias no bunker de Berlim. Quando
lhe perguntei como é que tinha fugido, contou-me que tinham usado a Avenida Leste-Oeste como pista de descolagem. Nesse momento, tirou um dos seus bornais de debaixo
do beliche e puxou de uma pasta de comandante da Kriegsmarine igual à minha.
Por aquela altura, estava já muito bêbado e falou-me de uma organização chamada Linha de Odessa, estabelecida pelas SS para permitir a fuga àqueles que eram essenciais
à continuação da luta. Continuou então a falar da Kameradenwerk - Acção pelos Camaradas -, instituída para dar continuidade às ideias do nacional-socialismo depois
da guerra.
Abriu a pasta e tirou uma capa, a que chamou Livro Azul. Disse que continha uma lista de membros da aristocracia inglesa que tinham apoiado o Fuhrer secretamente
e também de muitos americanos. Mostrou-me depois um papel que disse ser o Protocolo Windsor, um acordo secreto com o Fuhrer, assinado pelo duque de Windsor a seguir
à queda de França. Nele, o duque concordava em aceder ao trono de Inglaterra na eventualidade de uma invasão alemã bem-sucedida. Nesta altura, a bebedeira do Reichsleiter
era tal que tive de o ajudar a deitar-se no beliche. Adormeceu instantaneamente e eu examinei o conteúdo da pasta. Os nomes da lista do seu Livro Azul nada significavam
para mim, mas o Protocolo Windsor parecia perfeitamente genuíno. A única coisa que, para além disso, havia na pasta era uma lista de contas de banco numeradas e
a ordem do Fuhrer. Fechei-a e voltei a pô-la debaixo do beliche.

Nessa altura, Garth Travers reapareceu, e Baker deteve-se.
- Cá está o café. Já acabaste?
- Acabei de ler o que Bormann lhe contou no dia 21 de Maio
- O melhor ainda está para vir, meu velho. Continua.

25 de Maio, Quinhentas milhas a norte de Porto Rico, o Reichsleiter informou-me de que era necessário fazer uma escala antes de
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chegarmos ao destino e pediu a carta das ilhas Virgens. A que ele indicou era uma ilha pequena, Samson Cay.
27 de Maio. Emergimos ao largo de Samson Cay às 21 horas. Viam-se algumas luzes em terra. O Reichsleiter pediu que o levassem a terra num dos botes pneumáticos,
e eu providenciei para que o imediato, Schroeder, o levasse. Antes de partir, chamou-me aos seus aposentos e disse-me que esperava encontrar amigos em terra, mas,
por precaução, não levava nada de importância consigo. Deixou-me um envelope fechado que, disse, daria os pormenores do meu destino na Venezuela, se qualquer coisa
corresse mal, e o nome de um homem a quem entregar a pasta. Disse-me que mandasse Schroeder buscá-lo às 2 horas e que, se ele não estivesse na praia, eu devia assumir
o pior e partir. Envergava roupas civis.
28 de Maio. Meia-noite, Uma calma pouco natural. Relâmpagos ao longe, no horizonte, e trovões distantes. Estou preocupado com a pouca profundidade das águas aqui
na laguna. Estou a escrever à mesa de cartas enquanto espero pelas informações meteorológicas do oficial de rádio ...
Informação via rádio de St. Thomas indica tufão em rápida aproximação. Temos de nos fazer a águas profundas e submergir para podermos sobreviver. O Reichsleiter
terá de se haver sozinho.

- Só que não sobreviveram, os pobres-diabos - disse Travers quando Baker levantou os olhos. - O tufão apanhou-os enquanto eles ainda estavam vulneráveis. Deve ter
aberto o rombo no recife onde tu o encontraste.
- Calculo que sim - disse Baker. - Depois, presumo eu, a corrente deve tê-lo arrastado para aquela rocha por baixo do ressalto.
- Ainda não me deste uma localização - censurou Travers.
- Pois; bom, isso é cá comigo - retorquiu Baker. Travers sorriu.
- Compreendo, meu velho, mas não posso deixar de chamar a atenção para o facto de que esta batata é muito quente. Primeiro, tudo leva a crer que temos provas, passados
quase cinquenta anos, de que Bormann escapou de Berlim. E mais do que isso! Estas pastas são feitas para resistirem, o que significa que a de Bormann está ainda,
quase com certeza, no camarote do comandante, com o Livro Azul, o Protocolo Windsor e a ordem de Hitler. Mesmo passados todos estes anos, esses documentos provocariam
um alarido dos diabos, Henry, especialmente isso do Windsor.
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- Não é minha intenção provocar esse género de problemas - retorquiu Baker.
- E se mais alguém descobre o submarino?
- Já te disse que não vai lá ninguém.
- Pode ir alguém, Henry, tal como tu foste.
- Em condições meteorológicas muito pouco usuais - disse Baker. - O sítio é mau, Garth, acredita. Outra coisa: o diário dizia que o compartimento do comandante fica
atrás da messe, a bombordo. Não se pode lá entrar. A escotilha de vante está tão corroída que soldou.
- Há sempre uma forma, Henry. Sabes bem isso. - Travers matutou, franzindo o sobrolho por um instante, e depois disse: - Olha, eu gostava de mostrar o diário a um
amigo meu, o brigadeiro Charles Ferguson. Talvez ele tenha alguma ideia. Trabalha nos Serviços de Segurança.
- Está bem - disse Baker. - Mas a localização continua o meu pequeno segredo.
- Claro. Podes vir comigo, se quiseres.
- Não. Acho que vou tomar um banho e talvez dar um passeio. Foi uma viagem longa. Posso encontrar-me com ele mais tarde, se achares necessário.
- Como queiras - disse Travers. - Bom, deixo-te. Sabes onde está tudo.
Na elegante sala do seu apartamento da Cavendish Square, Ferguson lia, sentado no sofá, com Travers em frente dele. Por fim, Ferguson recostou-se.
- Bastante estranho, não é?
- Então, acreditas?
- No diário? Santo Deus, se acredito. Enfim, tu obviamente que respondes pelo teu amigo Baker. Ele não é um trapaceiro ou coisa que o valha?
- Evidentemente que não. Estivemos juntos na Guerra da Coreia. Foi presidente de uma editora extremamente respeitada até há uns anos.
- E não te revela a localização?
- Oh, isso é bastante compreensível. Parece ter voltado à meninice com esta espantosa descoberta. - Travers sorriu. - Há-de acabar por nos dizer. Então, e tu o que
achas? Sei que isto não é propriamente da tua área.
- Acho que está perfeitamente dentro da minha área, Garth,
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porque eu trabalho para o primeiro-ministro. E acho que ele devia ver isto.
- Há uma questão. Se o Bormann desembarcou nessa tal Samson Cay, tinha de haver uma razão. Isto é, com quem diabo ia ele encontrar-se?
- Talvez consigamos descobri-lo. Vou pôr o meu assistente, o inspector Lane, a tratar disso. Investigação de rotina. - Ferguson tornou a meter os papéis que constituíam
o diário dentro do respectivo envelope. - Vou mandar o meu motorista levar isto a Downing Street. Estritamente reservado ao primeiro-ministro. Depois, logo vejo
quando é que ele nos pode receber.
Dirigiu-se ao escritório, e Travers foi até à janela, atravessando a sala, impaciente, e olhou lá para fora. Continuava a chover - um dia perfeitamente desgraçado.
Quando se virou, Ferguson estava de volta.
- Só nos pode receber às duas, mas vai dar-lhe uma rápida vista de olhos quando o pacote chegar. Tu e eu, meu velho, vamos almoçar ao Garrick. Disse ao Lane que
estaríamos por lá.
No Garrick, comeram empadão de carne e rim, sentados frente a frente na sala de jantar, e tomaram depois o café no bar, onde Jack Lane foi ter com eles.
- Ah, cá está você, Jack. Descobriu-me alguma coisa? - perguntou Ferguson.
- Nada de especial, meu brigadeiro. Samson Cay é propriedade de um grupo hoteleiro americano chamado Samson Cay Holding. Têm hotéis em Las Vegas, Los Angeles e na
Florida, mas Samson Cay parece ser o porta-estandarte. Um refúgio para milionários.
- E durante a guerra, Jack?
- Sempre existiu uma espécie de hotel. Nessa altura, era propriedade de uma família americana de nome Herbert. Samson Cay fica nas ilhas Virgens Britânicas, sob
administração de Tortola. Segundo os arquivos públicos, durante a guerra o hotel esteve vazio. Uns pescadores de Tortola iam lá ocasionalmente, um casal de caseiros,
mais nada.
- Não ajuda, mas, em todo o caso, muito obrigado, Jack. Fez um excelente trabalho. Pode ir andando, ajudar a tornar a velha Grã-Bretanha num sítio mais seguro para
se viver.
Lane saiu com um sorriso, e Ferguson virou-se para Travers.
- Muito bem, meu velho, Downing Street está à nossa espera.

O primeiro-ministro estava no seu gabinete, sentado à se-
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cretária, quando um funcionário os anunciou. Levantou-se e cumprimentou-os.
- Brigadeiro.
- Sr. Primeiro-Ministro - retorquiu Ferguson. - Posso apre-sentar-lhe o contra-almirante Travers?
- Claro. Queiram sentar-se, meus senhores. - O primeiro-mi-nistro sentou-se de novo à secretária. - É incrível, este caso. Fez muito bem em trazê-lo à minha atenção.
A propósito, sei que tem tido os seus problemas com os Serviços Secretos, brigadeiro, mas acho que este é um daqueles casos em que devíamos honrar o nosso acordo
de mantê-los informados. Lembra-se de ter concordado em manter-se em contacto com o director-adjunto, Simon Cárter, e com Sir Francis Pamer?
- Sem dúvida, Sr. Primeiro-Ministro.
- Depois de ler o diário, mandei-os chamar. Têm estado lá em baixo a analisá-lo. Vêm agora a subir.
Passado um instante, a porta abriu-se, e o funcionário anunciou os dois homens. Simon Cárter andava pela casa dos cinquenta. Era um homem baixo, de cabelo já completamente
branco. Sir Francis Pamer tinha quarenta e sete anos, era alto e elegante e vestia um fato de flanela azul. Trazia uma gravata dos Guards, graças a três anos como
subalterno nos Grenadiers, e tinha um ligeiro sorriso permanentemente fixo ao canto da boca, num tique que Ferguson achava extremamente irritante.
Houve troca de cumprimentos e em seguida sentaram-se.
- Então, meus senhores? - inquiriu o primeiro-ministro.
- Partindo do princípio de que não se trata de uma falsificação - retorquiu Pamer -, é fascinante.
- Explicaria muitas coisas acerca da lenda de Bormann - interpôs Simon Cárter. - Arthur Axmann, o líder da Juventude Hitleriana, disse ter visto o cadáver de Bormann
estendido junto à Estação de Lehrter, em Berlim. A seguir à fuga do bunker.
- Neste momento, tudo leva a crer que o que ele viu foi alguém parecido com Bormann - disse Travers.
- É verdade - concordou Cárter. - O facto de Bormann se encontrar nesse submarino explicaria os numerosos testemunhos de que tinha sido visto na América do Sul.
- Antes de ser executado, Eichmann disse aos Israelitas que Bormann estava vivo - acrescentou Pamer. - Por que motivo haveria ele de mentir quando confrontado com
a morte?
- Tudo isso é muito interessante, meus senhores - interveio o
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primeiro-ministro -, mas, francamente, acho que a questão de saber se Martin Bormann sobreviveu ou não à guerra é puramente académica. Imaginem o escândalo que provocaria
a revelação pública de que o duque de Windsor tinha assinado um acordo com Hitler.
- Pessoalmente, acho mais do que provável que esse pretenso Protocolo Windsor viesse a revelar-se uma fraude - comentou Pamer, dirigindo-se ao primeiro-ministro.
- Talvez, mas os jornais teriam um dia em cheio, e, francamente, a família real já teve escândalos que chegassem neste ano que passou - replicou o primeiro-ministro.
Fez-se silêncio.
- O senhor está a sugerir que tentemos recuperar a pasta de Bormann antes que alguém o faça? - perguntou Ferguson num tom contido.
- Acha que era capaz de tratar disso, brigadeiro? Mas Simon Cárter protestou:
- Devo recordar-lhe, Sr. Primeiro-Ministro, que este submarino se encontra em águas territoriais dos EUA.
- Pois bem, eu não creio que tenhamos de meter nisto os nossos primos americanos - atalhou Ferguson. - Caber-lhes-iam todos os direitos ao destroço. Imagine o que
conseguiriam pelo Protocolo Windsor em leilão.
- Vejo-me forçado a protestar, Sr. Primeiro-Ministro - insistiu Cárter. - O objectivo do Grupo Quatro é o combate ao terrorismo e à subversão.
O primeiro-ministro levantou uma mão.
- Exactamente, e poucas coisas me ocorrem de mais subversivas para o interesse da nação do que a publicação desse tal Protocolo Windsor. Trate de tudo o que for
necessário o mais depressa possível, brigadeiro. E mantenha-nos ao corrente.
- Então, o assunto está inteiramente nas minhas mãos? - perguntou Ferguson.
- Tem total autoridade. - O primeiro-ministro levantou-se. - E agora terão de me desculpar, meus senhores. Tenho uma agenda carregada.

Desceram os quatro até aos portões de segurança, na confluência da Downing Street com Whitehall, e pararam no passeio.
- Com os diabos, Ferguson, você arranja sempre maneira de conseguir o que quer - disse Cárter. - Agora veja se nos mantém
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ao corrente. Venha daí, Francis. - E afastou -se em grandes passadas.
Francis Pamer sorriu.
- Não leve aquilo muito a peito, brigadeiro. Acontece que ele o detesta. Boa pescaria. - E precipitou-se no encalço de Cárter.
Travers e Ferguson desceram Whitehall à procura de um táxi.
- Porque é que o Cárter te detesta assim tanto? - perguntou Travers.
- Porque acontece eu conseguir frequentemente aquilo em que ele falha e porque eu estou à margem do sistema e ele não suporta isso.
- Mas Pamer parece um tipo bastante decente.
- Dizem que sim. Parece que é muito solicitado pelas senhoras. Uma das mais antigas baronias de Inglaterra. Acho que ele é o décimo segundo ou o décimo terceiro.
Tem uma casa magnífica no Hampshire.
- E então que relação tem ele com as questões dos Serviços de Informação?
- O primeiro-ministro nomeou-o adjunto do Ministério da Administração Interna. Uma espécie de faz-tudo itinerante.
- E o Henry Baker? Achas que ele te diz onde está o U-180?
- Claro que diz. Tem de dizer. - Ferguson acenou a um táxi que descia a rua. - Anda daí, vamos a isto, temos de falar já com ele.
Depois do banho, Baker estendera-se um bocado em cima da cama e adormecera ferrado. Quando finalmente acordou, passava pouco das 2. Apressou-se a vestir-se e desceu.
Não havia sinais de Travers, e ainda chovia com intensidade quando abriu a porta da rua. Apesar disso, decidiu ir dar um passeio. Vestiu um velho impermeável que
estava no armário, pegou num guarda-chuva e desceu as escadas. Sentia-se bem; afinal, a chuva sempre o fizera sentir-se assim e estava ainda entusiasmado com o rumo
que as coisas tinham tomado. Virou para Millbank e parou a observar os Jardins de Victoria Tower e o Tamisa.
Em St. John, por razões obscuras, as pessoas conduzem pelo lado esquerdo da rua, como em Inglaterra, e contudo, naquela chuvosa tarde londrina, Henry Baker fez o
mesmo que a maioria dos Americanos teria feito antes de atravessar a rua. Olhou para a esquerda e atravessou-se no caminho de um autocarro da London Transport que
vinha da direita. A ambulância chegou passados
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minutos, mas não importava, pois ele estava morto quando chegaram ao serviço de urgência.
QUATRO
Em St. John, passava pouco das 10 da manhã quando Jenny Grant entrou no café. Billy, que estava a varrer o chão, ergueu o olhar e esboçou um sorriso. Mary Jones
surgiu ao fundo do bar.
- Telefone para si no escritório, Jenny. É de Londres, Inglaterra.
Jenny sorriu instantaneamente.
- Henry?
- Não, querida. É uma mulher. Vou arranjar-lhe um café. Jenny passou por ela e entrou, e Mary deitou um pouco de água na máquina do café. Ouviu-se um grito estridente
vindo do escritório. Alarmados, Mary e Billy acorreram ali.
Jenny estava sentada por detrás da secretária com um ar aturdido, segurando o telefone na mão.
- O que é, querida? Conte à Mary.
- É uma agente da Polícia a falar da Scotland Yard - suspirou Jenny. - O Henry morreu. Morreu num acidente de viação. - Desatou a chorar descontroladamente.
Faltava pouco para as 5. Travers esperava no átrio da morgue, na Cromwell Road. Passados minutos, Ferguson entrou em passo rápido.
- Desculpa deixar-te à espera, Garth, mas têm de fazer uma autopsia para averiguações e é preciso uma identificação formal.
- Falei com a rapariga com quem Henry vivia, Jenny Grant. Ela ficou extremamente abalada, mas deve chegar amanhã.
- Está bem, mas eu consegui uma ordem do tribunal a autorizar-te a fazeres a identificação. - Ferguson tirou um papel do bolso interior do casaco. - Portanto, vamos
a isto.
Nessa altura, surgiu um funcionário em uniforme.
- O professor Manning está à espera. Por aqui, por favor.
Havia na casa mortuária quatro mesas operatórias de aço inoxidável. O corpo de Baker estava deitado sobre a mais próxima. Um homem alto e magro com bata de cirurgião
esperava-os.
- Viva, Sam. Obrigado por teres vindo - disse Ferguson. - Apresento-te Garth Travers.
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Manning cumprimentou-os, e Ferguson puxou de uma caneta.
- O contra-almirante Travers identifica formalmente este homem como sendo Henry Baker, cidadão americano residente em St. John, nas ilhas Virgens Americanas?
- Identifico.
- Assina aqui.
Travers assinou, e Ferguson entregou o impresso a Manning.
- Aqui tens. - E fazendo sinal a Travers, dirigiu-se para a porta.
- Foi um choque e peras - disse Travers. - Ainda não me capacitei bem do que aconteceu.
- Deixa-nos numa situação bastante interessante - comentou Ferguson.
- Como assim?
- A localização do U-180. Será que morreu com ele?
- Claro - retorquiu Travers. - Já me esquecia.
- Em contrapartida, talvez a tal rapariga a saiba.
- E se não souber?
- Nesse caso, terei de arranjar uma solução.
Francis Pamer fizera uma viagem rapidíssima no seu Porsche descapotável até à sua casa de campo, em Hatherley Court, no Hampshire. Subiu a grande escadaria até ao
apartamento da mãe, absorto em pensamentos importantes.
Quando bateu à porta do quarto e entrou, deparou com a mãe recostada na magnífica cama de dossel, com uma enfermeira fardada ao lado. Lady Pamer tinha oitenta e
cinco anos muito frágeis e estava de olhos fechados.
Ele dirigiu um meneio de cabeça à enfermeira.
- Pode fazer um intervalo. Quero conversar um pouco com ela. A enfermeira saiu, e Pamer sentou-se na cama e pegou na mão da mãe.
- Como é que está, minha querida? - perguntou ele.
- Francis, que adorável surpresa. - A voz de Lady Pamer estava muito sumida.
- Tinha de tratar de umas coisas, mãe, por isso pensei em vir vê-la.
- Foi simpático da tua parte, meu querido.
- Estive a pensar em Samson Cay hoje. - Pamer levantou-se e acendeu um cigarro. - Foi a sua mãe que trouxe Samson Cay para a família? Não estou enganado, pois não?
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- Foi, sim, querido. O pai dela, George Herbert, deu-lha como presente de casamento.
- Fale-me de novo acerca da guerra, mãe - pediu ele. - E sobre Samson Cay. Quando é que foi para lá?
- Em Março de 1945. Tu tinhas nascido em Julho, e aqueles terríveis foguetes alemães não paravam de cair sobre Londres. O teu pai estava preocupado, por isso arranjou-nos
passagem num barco para Porto Rico. Quando chegámos a Samson Cay, estavam lá um homem de idade e a mulher. Pretos. Muito simpáticos. May e Joseph Jackson. - A voz
dissipou-se.
- Teve algumas visitas, mãe? Lembra-se?
- Visitas? Só Mr. Strasser. Um homem encantador. O teu pai disse-me que ele era capaz de aparecer. E apareceu uma noite. Disse-me que o tinham trazido num barco
de pesca de Tortola, e então veio o tufão. Terrível. Estivemos dois dias na cave.
- O que é que se passou depois?
- Ele ficou connosco até Junho, creio. Depois, chegou o teu pai.
- E Strasser?
- Foi-se embora a seguir a isso. Tinha negócios na América do Sul, e a guerra na Europa tinha acabado, pelo que nós voltámos para Inglaterra. Churchill tinha perdido
as eleições, e o teu pai já não estava no Parlamento, por isso viemos viver para aqui, meu querido. - A sua voz tornou-se arrastada, ganhando em seguida novo ímpeto.
- Passámos tempos tão difíceis ... Sabe Deus como te mantivemos em Eton. Que sorte tivemos quando o teu pai conheceu Mr. Santiago. As coisas magníficas que eles
fizeram em Samson Cay. Agora, é a melhor estância das Caraíbas.
Fechou os olhos, e Pamer aproximou-se e tapou-lhe as mãos com a coberta.
- Agora durma, mãe. Vai fazer-lhe bem.
Fechou a porta com cuidado, desceu ao andar de baixo, dirigindo-se à biblioteca, e arranjou um whisky. O teor do diário chocara-o para lá das medidas, mas a verdade
estava agora clara. O seu pai, um membro do Parlamento Britânico, tivera ligações com o Partido Nazi. O seu envolvimento devia ter sido considerável. Todo o caso
com Martin Bormann e Samson Cay era disso prova.
O sangue gelou-lhe nas veias. Pôs-se a deambular pela sala, olhando para os retratos dos seus antepassados. Quinhentos anos, uma das famílias mais antigas de Inglaterra.
Era ministro-adjunto, tinha todas as perspectivas de promoção, mas se Ferguson conseguisse recuperar a pasta de Bormann, estava acabado. Não havia
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qualquer razão para duvidar que o nome do seu pai aparecesse no Livro Azul de simpatizantes nazis. O escândalo acabaria com ele. Mas o que fazer?
A resposta era surpreendentemente simples. Max - Max Santiago. Precipitou-se para o escritório, procurou o número da estância de Verão de Samson Cay, fez a ligação
e perguntou por Carlos Prieto, o director-geral.
- Carlos? Daqui Francis Pamer.
- Sir Francis. Que prazer. Em que posso servi-lo?
- Ouça, Carlos, eu preciso de falar urgentemente com o Señor Santiago. Sabe, por acaso, onde é que ele está?
- Com certeza. No Ritz de Paris. Negócios, ao que sei.
- Deus lhe pague, Carlos. - Pamer nunca sentira um tal alívio. Pediu à telefonista para lhe ligar ao Ritz de Paris e olhou para o
relógio: 5.30. Esperou impacientemente até que ouviu o recepcionista no auscultador, e imediatamente perguntou por Santiago.
- Daqui Santiago - atendeu uma voz em francês. - Quem fala?
- Graças a Deus. Max, sou o Francis. Tenho de me encontrar consigo. Surgiram problemas, problemas muito graves. Preciso da sua ajuda.
- Tenha calma, Francis, tenha calma. Onde é que você está?
- Em Hatherley Court.
- Consegue pôr-se no Aeroporto de Gatwick às seis e meia daí. Terei lá um charter à espera. Jantamos juntos, e você pode contar-me tudo.
O telefone deu um estalido. Pamer tirou o passaporte da secretária e uma carteira de traveler's cheques. O telefone tocou, e ele correu a atendê-lo.
- Até que enfim - disse Simon Cárter. - Tenho andado à sua procura por toda a parte. Baker morreu. Acabei de o saber por Ferguson.
- Santo Deus. E a localização do U-180 morreu com ele?
- Bom, o certo é que não a disse a Travers, mas parece que a namorada, uma tal Jenny Grant, chega amanhã de avião. Ferguson espera que ela saiba. Seja como for,
mantenho-o informado.
Em casa de Garth Travers, na Lord North Street, Ferguson e o almirante acabavam de revistar a mala de Baker.
- Não estavas à espera de encontrar a "focalização desse tal recife escondida entre as roupas dele, pois não? - perguntou Travers.
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- Já aconteceram coisas mais estranhas - retorquiu Ferguson. - Podes crer.
Foram até ao escritório, e Ferguson olhou de relance para o diário.
- Copiaste isto aqui para o teu processador de texto, presumo?
- Ah, sim. Dactilografei a tradução directamente.
- Tira a disquete do computador e mete-a na pasta, bem como qualquer cópia que tenhas.
- Francamente, Charles, isso é um bocado demais depois de tudo o que eu fiz, e de qualquer forma isto era propriedade do Baker, no sentido jurídico do termo.
- Pois deixou de ser. - Ferguson deu-lhe uma palmada no ombro. - Deixa lá. Vai ter comigo ao Piano Bar do Dorchester às oito. Bebemos qualquer coisa.

Santiago estava no terraço da sua magnífica suite no Ritz. Era um homem de uma altura impressionante, com o cabelo ainda completamente preto, apesar da idade. Tinha
uma expressão calma e dominadora e uns olhos negros atentos.
Voltou-se quando a criada de quarto fez entrar Pamer.
- Meu caro Francis, que alegria vê-lo. - Tinha um inglês irrepreensível. - Ora sente-se e diga-me lá qual é o problema. Uma taça de champanhe?
Pamer aceitou de bom grado a taça de cristal. Enquanto ele falava, Santiago manteve-se calado.
- Se esta coisa alguma vez vier a saber-se... o Bormann na ilha, a minha mãe, o meu pai... - disse Pamer.
- Ora, a sua mãe não fazia a mais pequena ideia de quem era o Bormann. O seu pai, é claro, toda a vida foi fascista. Teve sérias ligações com a Alemanha nazi antes
da guerra, mas nessa altura muitos membros do aparelho de Estado inglês as tinham. E porque não? Qual era a pessoa sensata que queria ver uma cambada de comunistas
chegarem ao poder?
- Está a dizer que sabia que o meu pai tinha esta ligação com Martin Bormann?
- Claro. O meu pai, em Cuba, também estava envolvido. A Kameradenwerk, a organização instituída para tomar conta do movimento na eventualidade de uma derrota na
Europa, era, continua a ser uma rede a nível mundial.
- Não acredito.
Hrancis, como é que pensa que o seu pai manteve Hatherley
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Court? E você estudou em Eton? E se alistou nos Grenadier Guards? Ao longo dos anos, foi-lhe permitido, digamos, dar uma ajuda em certos negócios. Quando a minha
família saiu de Cuba, foram-nos disponibilizados fundos nos Estados Unidos. Eu criei a cadeia de hotéis, consegui meter-me em certas formas lucrativas de tráfico
ilegal.
- Ouça, eu não quero saber disso.
- No entanto, gosta de gastar o dinheiro, Francis. - Santiago sorriu pela primeira vez. - O complexo de Samson Cay convinha-nos perfeitamente. Um recreio para milionários.
Uma magnífica cobertura.
- E se alguém a investiga?
- A Samson Cay Holding é como uma boneca russa, uma companhia dentro de outra. O nome Pamer não aparece em nenhum dos conselhos de administração, e teria de recuar-se
muito no tempo para encontrar o nome Santiago.
- Mas a família da minha avó era a proprietária original!
- Os Herberts? Ouça, o nome da sua mãe era Vail. O da sua avó era Herbert, admito, mas duvido que estabeleçam qualquer relação. Em todo o caso, mandarei a minha
gente verificar os arquivos de Tortola. Se houver alguma coisa, fazemo-la desaparecer.
- Consegue fazer isso? - perguntou Pamer, aterrorizado.
- Eu consigo fazer tudo, Francis. Bem, e esse tal contra-almirante Travers ... qual é a morada dele?
- Lord North Street.
- Óptimo. Vou mandar alguém fazer-lhe uma visita, embora, pelo que conheço do Ferguson, seja de calcular que ele já não tenha o diário.
- A sua gente vai ser discreta? Não queremos um escândalo.
- É exactamente isso que você vai ter se não formos os primeiros a deitar a mão a essa coisa. Vou pôr os meus homens a investigar a tal Jenny Grant. Esperemos que
ela nos diga qualquer coisa.
Pamer sentiu-se mal.
- Ouça, não vão fazer-lhe mal nem coisa parecida?
- Pobre Francis. Que homem sem carácter você é.

O Piano Bar do Dorchester estava concorrido quando Garth Travers entrou, e de Ferguson nem sinal. O criado arranjou-lhe uma mesa de canto e ele pediu um gin tónico
e descontraiu-se. Ferguson chegou passado um quarto de hora e foi ao seu encontro.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Travers.
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- Aconteceu. Lane consultou a British Airways. Jenny Grant vem no voo 252, chegando a Gatwick às nove e cinco da manhã. -Pobre rapariga - comentou Travers.
- Vais convidá-la para ficar em tua casa?
- Evidentemente.
- Calculei isso - assentiu Ferguson. - Dadas as circunstâncias, acho que seria melhor ires buscá-la. O meu motorista tem o Daimler em tua casa às sete e meia.
- Perfeito. Queres que ta leve imediatamente?
- Oh, não. Dá-lhe tempo de se refazer. Eu posso vê-la mais tarde.
- E o submarino, o diário? Digo-lhe alguma coisa?
- Não. Deixa isso comigo. - Ferguson sorriu. - Agora, acaba isso e eu convido-te para jantar.
O Daimler chegou pouco antes das 7.30. Travers deixou um bilhete à mulher-a-dias a explicar a situação e correu escada abaixo. O carro arrancou, passando por uma
carrinha da British Telecom. A carrinha avançou rua fora e estacionou diante da casa.
Dela saiu um técnico de telefones. Tinha o nome Smith impresso no bolso do fato-macaco. Percorreu a passagem de acesso à cozinha, partiu o vidro com a mão enluvada,
que introduziu na abertura, abrindo a porta. Passado um instante, apareceu à porta de entrada, e da carrinha saiu outro técnico. Tinha no bolso o nome Johnson.
Uma vez dentro de casa, vasculharam meticulosamente o escritório do almirante, revistando tudo quanto era gaveta, tirando os livros das estantes, à procura de sinais
de um cofre, que não encontraram.
- É tempo perdido - acabou por dizer Smith. - Não está cá. Desligou da ficha o processador de texto do almirante e levou-o, metendo-o na parte de trás da carrinha.
- Vê se há alguma televisão ou vídeo na sala de estar - disse ele, já novamente dentro de casa. - Depois, leva esta máquina de escrever.
Johnson fez o que ele lhe mandava. Quando voltou, Smith estava
a atarraxar o auscultador do telefone.
- Estás a pôr uma escuta no telefone? Será bem pensado? Com o tipo de gente com que estamos a lidar, gente da Secreta ... eles não
são tolos.
- Ouve, Mr. Santiago quer resultados, e com ele não se brinca, podes crer. Agora, vamos pôr-nos a andar.
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A carrinha afastou-se, e quando a mulher-a-dias entrou, passados minutos, não deu por nada de estranho. Entrou na cozinha, pousou o saco em cima da mesa e reparou
no bilhete do almirante. Enquanto o lia, apercebeu-se de que havia uma aragem, voltou-se e viu o vidro da porta partido.
- Oh, meu Deus! - exclamou, horrorizada.
Foi ver a sala de estar e imediatamente se deu conta da falta da televisão e do vídeo. O estado do escritório confirmou os seus temores, e ela ligou imediatamente
para o serviço de emergência da Polícia.

Travers reconheceu Jenny Grant de imediato quando ela apareceu no átrio de chegadas de Gatwick, empurrando a sua mala num carrinho. Vestia um casaco de tweed a três
quartos sobre uma blusa branca e uns jeans, e as olheiras davam-lhe um ar cansado e tenso.
- Jenny? - disse ele. - Lembra-se de mim? Garth Travers?
- Claro que lembro. - Ela tentou sorrir, mas não conseguiu.
- Está com um ar exausto, minha querida. Venha, tenho um carro à espera.
O motorista pôs a mala de Jenny no porta-bagagem do Daimler, e Travers sentou-se ao lado dela no banco de trás.
- Espero que fique em minha casa, naturalmente, se achar bem - disse ele enquanto se afastavam.
- É muito simpático. Faz-me um favor? - Jenny quase que implorou. - Conta-me exactamente o que aconteceu?
- Pelo que as testemunhas contaram à Polícia, Henry olhou pura e simplesmente para o lado errado e atravessou em frente do autocarro. - Travers pegou-lhe na mão.
- Que maneira tão estúpida de morrer. - Ela falava com ira. - Um homem com sessenta e três anos que insistia em mergulhar todos os dias, às vezes em condições perigosas,
e morrer de maneira tão corriqueira.
- Bem sei. A vida, por vezes, tem dessas tristes ironias.
- Há uma coisa de que eu gostava, almirante.
- De quê?
- De vê-lo - limitou-se ela a dizer.
- Eu já calculava. É para lá que nos dirigimos.

A funerária era bastante agradável, considerando aquilo que era. A sala de espera era forrada a madeira 4, estava pejada de flores. Apareceu um homem de idade, de
fato e gravata pretos.
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- Posso ajudá-los?
- Mr. Cox? Eu sou o almirante Travers e esta é Miss Grant. Creio que estava à nossa espera.
- Sem dúvida - murmurou ele.
Cox indicou o caminho para uma sala retirada, a que dava acesso um corredor da parte de trás. O caixão era de mogno e extremamente simples. Henry Baker tinha um
ar muito calmo na morte, de olhos fechados, o rosto pálido. Jenny pôs-lhe uma mão na cara, deslocando ligeiramente a gaze.
- Eu, se fosse a si, miss, não mexia. - Cox compô-la de novo com cuidado.
Ela ficou confusa por momentos.
- Teve de ser autopsiado, minha querida - elucidou Travers. - É uma exigência do tribunal. Vão abrir um inquérito judicial, compreende.
Ela esboçou um aceno de cabeça.
- Não tem importância. Ele já cá não está. Podemos ir-nos embora, por favor?
A surpresa na Lord North Street foi o carro da Polícia. Travers correu escada acima, com Jenny no seu encalço. Entrou no vestíbulo, seguiu o som das vozes e deparou
com a sua mulher-a-dias e uma jovem mulher-polícia na cozinha.
- Ah, Sr. Almirante - lamuriou-se a mulher-a-dias quando ele entrou. - Uma desgraça. Roubaram a televisão, o seu processador de texto e a máquina de escrever. O
escritório está numa tal confusão!
- Almirante Travers? - perguntou a agente. - Temo bem que tenha todas as características de um típico assalto diurno, Sr. Almirante. Conseguiram entrar por esta
porta. - Apontou para o buraco no vidro.
- Estupores - bramou Travers. - Suponho que não haja grande hipótese de os apanhar.
- Duvido, Sr. Almirante. Francamente, duvido. Agora, se eu pudesse recolher todos os pormenores daquilo que falta ...
- Sim, com certeza. Dê-me só um instante. Peço desculpa por isto - disse ele, virando-se para Jenny. - Vou fazer uma chamada e volto já.

- Parece-me um assalto típico, meu brigadeiro - comentou Lane. - Tem todos os indícios. Só levaram o género de artigos
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portáteis que podem converter-se em dinheiro rápida e facilmente.
- Se eles andavam à procura de mais qualquer coisa do que televisores - comentou Ferguson -, foi uma sorte eu ter ficado com o diário ao Travers.
- Acha mesmo que pode ter sido isso, meu brigadeiro?
- Aprendi há muito tempo a desconfiar das coincidências, Jack.
- Mas como é que eles podiam saber do diário?
- Sim, realmente, essa é que é a questão. - Ferguson franziu o sobrolho. - Tenho estado cá a pensar, Jack. Vá à Lord North Street. Arranje um dos seus velhos amigos
especializados em aparelhos de escuta para dar uma volta por lá.
- Acha mesmo que...
- Eu não acho nada, Jack. Limito-me a considerar todas as hipóteses. Agora, ponha-se a andar.
Lane saiu, e Ferguson ligou para a Lord North Street e falou com Travers.
- Como está a tua hóspede?
- Óptima. Está a aguentar-se extraordinariamente. Ferguson olhou para o relógio.
- Leva-a a minha casa por volta do meio-dia e meia, mas não digas nada. Deixa tudo comigo.
Travers pousou o telefone e dirigiu-se para a sala de visitas, onde Jenny tomava um café.
- Peço desculpa por tudo isto - disse ele. - A culpa não é sua.
O almirante sentou-se.
- Daqui a pouco, saímos para almoçar, mas gostava de a apresentar a um velho amigo meu... o brigadeio Charles Ferguson.
Imediatamente Jenny teve um pressentimento.
- Ele conhecia Henry?
- Pessoalmente, não.
- Mas isto tem alguma coisa a ver com Henry?
Ele esticou o braço e deu-lhe uma palmadinha na mão.
- Cada coisa a seu tempo, minha querida. Confie em mim.

Na sala de estar da Cavendish Square, Jenny estava sentada junto à lareira, de frente para Ferguson, e Travers encontrava-se de pé à janela.
- Compreende, pois, Miss Grant - disse Ferguson -, que terá de haver um inquérito judicial depois de amanhã.
- E depois posso tomar posse do corpo?
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- Bem, na verdade, isso cabe ao parente mais chegado.
Ela abriu a carteira, tirou um papel e passou-lho.
- Há coisa de um ano, Henry começou a mergulhar a sério. Um dia, quase ficou por lá e redigiu uma procuração em meu nome.
Ferguson deu-lhe uma vista de olhos.
- Parece-me em ordem. Farei por que ela chegue ao médico legista - disse ele. - Miss Grant, Mr. Baker disse-lhe por que motivo vinha a Londres?
Jenny fitou-o.
- Porque acha o senhor que foi?
- Porque ele descobriu o destroço de um submarino alemão algures ao largo de St. John. Ele falou-lhe disso?
Jenny respirou fundo.
- Sim, com efeito falou. Disse-me que estivera a mergulhar e que tinha descoberto um submarino e uma pasta.
- O que mais lhe disse ele?
- Bem, que havia um diário em alemão, que ele não compreendia, mas que tinha reconhecido o nome de Martin Bormann e... do duque de Windsor. Ouça, eu sei que isto
parece um completo disparate, mas...
- De todo, minha querida. E onde foi que ele descobriu esse tal submarino?
- Não faço ideia. Ele não quis dizer-me.
Fez-se um silêncio, enquanto Ferguson deitava um olhar a Travers.
- Tem a certeza absoluta disso, Miss Grant?
- Claro que tenho. Ele disse-me que por enquanto não me queria contar. Estava excitadíssimo com a descoberta. - Deteve-se, franzindo a testa. - Diga-me uma coisa,
brigadeiro, o que é que se passa? Isto tem alguma coisa a ver com a morte de Henry?
- Não, de modo nenhum - respondeu ele suavemente, e acenou com a cabeça a Travers.
- Jenny - interveio o almirante -, a morte do pobre Henry foi perfeitamente acidental. Temos muitas testemunhas. Não passou de um acidente.
- Então, não faz ideia de onde esteja o submarino? - insistiu Ferguson.
Jenny encolheu os ombros.
- Francamente não sei. Se quer a minha opinião, terá de ser algures bem ao largo.
- Ao largo? O que quer você dizer?
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- Na sua maioria, os locais de mergulho ficam dentro de um raio razoável. Um submarino alemão por descobrir desde a guerra ... - Ela abanou a cabeça. - É coisa que
só podia acontecer se ele estivesse bem longe.
- E não tem ideia de onde?
- Não. Lamento, mas não sou grande mergulhadora. Ferguson dirigiu um olhar a Travers e levantou-se.
- Muito obrigado pela sua colaboração. Reconheço que não é boa altura, mas você tem de comer. E se me deixasse convidá-la, a si e ao almirante Travers, para jantar
fora esta noite?
- É muito simpático da sua parte - respondeu ela depois de uma hesitação.
- Ora essa. Mando o meu carro buscá-los às sete e meia. - Acompanhou-os à porta da rua. - Até logo.
Meia hora depois, Ferguson estava a tomar uma xícara de chá, absorto nos seus pensamentos, quando Lane chegou. O inspector deixou cair um aparelho de escuta de metal
preto em cima da mesa de café.
- Tinha razão, meu brigadeiro. Estava isto no telefone do escritório.
- Com que então - disse ele, pegando no dispositivo - a trama adensa-se.
- Repare, meu brigadeiro, Baker sabia do diário porque o descobriu, a rapariga porque ele lhe contou e ao almirante, a si, ao PM, ao director-adjunto, a Sir Francis.
- Fez uma pausa. - Mas quem é que dele sabia que depois fosse assaltar a casa do almirante Travers?
- É como uma teia de aranha - suspirou Ferguson. - Há muitas linhas de comunicação entre toda essa gente.
- Talvez fosse melhor pensarmos em meter os Serviços de Informação nisto.
- Não me parece, mas vou telefonar a Simon Cárter e a Sir Francis e dizer-lhes que a rapariga não sabe qual é o local.
- Mas, e depois?
- Não tenho a certeza. Temos de mandar para lá alguém procurá-lo.
- Alguém que perceba de mergulho?
- É uma ideia, mas se há para aí tanta tramóia em acção, alguém que seja um vilão tão grande como o inimigo. - Ferguson fez uma pausa. - Correcção ... pior do que
o inimigo.
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- Como? - Lane parecia confuso.
Ferguson desatou a rir.
- Meu caro Jack, a vida é um delicioso mar de surpresas, não é? Passei anos a ver se prendia bem preso alguém que positivamente detesto, e de repente descubro que
ele é exactamente aquilo de que eu preciso.
- Não estou a compreender.
- Há-de compreender, Jack, há-de compreender. Alguma vez foi à Jugoslávia? Partimos ao romper do dia. Mande preparar o Learjet. Destino: Castelo de Kovi. Diga-lhes
que se entendam com o Estado-Maior Sérvio.
CINCO
Dillon dormitava na sua tarimba, em Kivo, quando o barulho de um avião o despertou. Foi até à janela gradeada e, ao espreitar sobre os muros, viu um Learjet aproximar-se
e aterrar, depois avançar pista fora e desaparecer de vista.
O grito de uma voz de comando ergueu-se no ar, vindo lá de baixo, do pátio, e ouviu-se o crepitar de tiros. Dillon só conseguia avistar parte do pátio, mas viu aparecerem
os soldados, e o som dos risos chegou-lhe lá acima - presumivelmente, o general a esvaziar celas de novo. Interrogou-se quantos teriam acabado de encontro ao muro
desta vez.
- Desta vez, estás metido numa alhada, meu velho - murmurou. - Numa valente alhada. - Foi buscar um cigarro.
Em Paris, Santiago ia a sair da sua suite para um almoço quando o telefone tocou. Era Francis Pamer.
- Francis, o que é que me conseguiu?
- Cárter falou com Ferguson. Diz que a rapariga ignora a localização do submarino. Baker não lhe disse onde está aquilo.
- E a rapariga? Onde está ela instalada?
- Em casa do almirante Travers. Amanhã há um inquérito judicial.
- Compreendo - disse Santiago.
- O que é que acha, Max?
- Em relação à rapariga? Não sei. Pode estar a mentir, e só há uma forma de o descobrir: interrogando-a convenientemente, é claro. Um pouco de persuasão faz maravilhas.
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- Valha-me Deus, Max... - começou Pamer, e Santiago interrompeu-o.
- Limite-se a manter-me informado em relação aos planos de Ferguson. Eu falo com a minha gente em San Juan, digo-lhes para aprontarem o Maria Blanco para se fazer
ao mar. Mal saibamos que ele tenciona levar a cabo qualquer tipo de operação nas Virgens, largo para Samson Cay e uso-o como base.
- Max - interveio Pamer -, se isto vem a lume, estou acabado.
- Mas não há-de vir, Francis, não se preocupe. Estou ansioso por vê-lo no Governo. É muito útil ter um amigo ministro do Governo Britânico.
Dillon estava a ler um livro quando a chave rodou na fechadura e o major Branko entrou.
- Ah, cá está você - disse ele. Dillon deixou-se ficar deitado.
- E onde haveria eu de estar?
- Trago-lhe uma visita. Não é propriamente um velho amigo, mas, se fosse a si, ouvia o que ele tem para lhe dizer.
Desviou-se para o lado, e Ferguson entrou, seguido por Jack Lane. Branko saiu, fechando a porta atrás de si.
- Caramba, Dillon, mas você está óptimo. - Ferguson sacudiu com o chapéu o pó da única cadeira e sentou-se. - Nunca estivemos propriamente frente a frente, mas imagino
que saiba quem eu sou.
- O maldito do brigadeiro Charles Ferguson - retorquiu Dillon. - Chefe do Grupo Quatro.
- E este é o inspector Jack Lane, meu assistente por empréstimo da Secção Especial da Scotland Yard, logo não gosta de si.
A expressão de Lane era de pedra.
- Não me diga! - disse Dillon.
- Olhe para ele, Jack - continuou Ferguson. - O grande Sean Dillon, rei dos assassinos, melhor do que Carlos, o Chacal, segundo alguns.
- Estou a olhar, meu brigadeiro, e apenas vejo mais um assassino.
- Ah, mas este é especial, Jack ... o homem das mil caras. Podia ser outro Lawrence Olivier se não tivesse esta queda pelas armas. Diabos, Dillon, tem-nos dado que
fazer.
- É um prazer.
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- Mas agora está atrás das grades - disse Lane.
Ferguson assentiu com um aceno de cabeça.
- Vinte anos sem lhe conseguirmos deitar a mão, e onde vem ele acabar? Você deve ter perdido a cabeça, Dillon. Abastecimentos médicos para os doentes e moribundos?
Você?!
- Todos nós temos dias maus.
- E também mísseis Stinger, o que quer dizer que não tinha verificado a carga convenientemente. Deve estar a perder o jeito.
- Muito bem, acabou-se a festa - interpôs Dillon. - O que é que pretendem?
Ferguson levantou-se e foi até à janela.
- Eles têm fuzilado croatas lá em baixo, no pátio. Uma destas manhãs, há-de chegar a sua vez, Dillon. A menos que seja razoável, claro.
Dillon tirou um cigarro de um dos maços de Rothmans e acendeu-o com o seu Zippo.
- Quer dizer que tenho alternativa? - perguntou calmamente.
- Podia dizer-se que sim. - Ferguson tornou a sentar-se. - Você fez um trabalho debaixo de água para os Israelitas, fez ir pelos ares barcos da OLP ao largo de Beirute.
Ora, eu tenho um trabalho que talvez necessite de um homem com os seus peculiares talentos, um homem que consiga dar conta de si se as coisas derem para o torto.
Uma coisa é certa, exige conhecimentos de mergulho.
- E onde é que tudo isso se passa?
- Nas ilhas Virgens Americanas. A escolha é sua, Dillon. Pode ficar cá e ser fuzilado ou voltar para Londres comigo.
- E o que tem o major Branko a dizer acerca disso?
- Por aí, não há problema. Ele está farto desta confusão jugoslava. Vou arranjar-lhe asilo político em Inglaterra.
Dillon hesitou.
- Sabe que a minha cabeça está a prémio no Reino Unido.
- Passa-se-lhe um pano por cima. Tem a minha palavra, o que muito desagrada aqui ao inspector Lane. Isto quer dizer, evidentemente, que terá de fazer exactamente
aquilo que lhe mandarem.
- Evidentemente. - Dillon pegou no seu blusão de aviador e vestiu-o. - Às suas ordens.

Dillon acabou de ler o diário e fechou-o. Lane dormitava, com a cabeça sobre uma almofada. Ferguson estava sentado do outro lado da coxia. O irlandês estendeu a
mão para a caixa do bar e preparou um whisky num copo de plástico.
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- Então, essa tal mulher de que falou, a Jenny Grant ... Diz ela que Henry Baker não lhe transmitiu a localização do submarino?
- Exacto - suspirou Ferguson.
- Se ela não sabe onde ele está, o que é que espera de mim?
- Que vá para as ilhas Virgens e o descubra. St. John é um sítio encantador.
- Brigadeiro - retorquiu Dillon pacientemente -, o mar é grande. Mesmo com boa visibilidade, pode não se ver um navio a menos de cem metros.
- Alguma coisa lhe há-de ocorrer, Dillon. Não é esse o seu talento especial?
- Caramba, é muito comovente a fé que tem em mim. Bem, vamos lá ao que importa. A morte de Baker foi mesmo um acidente?
- Isso está absolutamente fora de dúvida. Há testemunhas. Devo acrescentar que o motorista não teve qualquer culpa.
- Muito bem, e quanto ao assalto, ao aparelho de escuta no telefone?
- Isso cheira-me a esturro - admitiu Ferguson. - Tudo me diz que anda por aí alguém e que o que anda a preparar não é boa coisa.
- Mas o que é? - perguntou Dillon. - A questão é essa.
- Tenho a certeza de que você há-de descobrir a resposta.
- Então, quando é que parto para as Virgens?
- Não tenho a certeza. Dentro de dois ou três dias. Logo se vê. - O brigadeiro ajeitou uma almofada atrás da cabeça.
- E onde é que fico enquanto estiver por Londres?
- Arranjo-lhe maneira de ficar em casa do almirante Travers. Pode pagar a estada vigiando a rapariga. Agora, cale-se, seja bom rapaz. Preciso de passar pelas brasas.
- Ferguson cruzou os braços e fechou os olhos, depois murmurou: - Ah, Dillon, só mais uma coisa.
- O que é?
- O homem com quem você falou em Viena e que o pôs em contacto com o Dr. Wegner em Fehring ... Trabalhava para mim. Mandei-o montar-lhe a armadilha, depois arranjei
quem o denunciasse aos Sérvios.
- Acredite ou não, brigadeiro, isso já me tinha ocorrido. Presumo que os mísseis Stinger tenham sido ideia sua.
- Eu queria vê-lo atrás das grades, compreende - respondeu Ferguson. - Lembro-lhe de que este caso nada tem a ver com isso. Sorte a sua ter surgido esta situação.
- Ou ter-me-ia deixado a apodrecer.
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- Não propriamente. Eles tê-lo-iam fuzilado mais tarde ou mais cedo.
- Ora, mas agora o que é que isso importa? - comentou Dillon, e fechando os olhos deixou-se adormecer.
Na Lord North Street, um pouco antes das 6, Dillon estava sentado à mesa da cozinha e observava Jenny Grant a servir o chá. Acabara de lhe ser apresentado, já que
Ferguson estava fechado no escritório com Travers. Ela voltou-se e sorriu.
- É irlandês, mas tem um sotaque diferente.
- Irlanda do Norte - explicou ele.
- A terra do IRA?
- Exacto - retorquiu calmamente.
Jenny sentou-se em frente dele e deu um gole no chá.
- Estarei enganada ao presumir que o brigadeiro quer que olhe por mim, Mr. Dillon?
- E porque é que havia de pensar uma coisa dessas?
- Porque o senhor parece esse tipo de homem.
- E como é que sabe essas coisas, Miss Grant?
- Eu conheci homens de todo o género, Mr. Dillon, em geral do género errado. - Fez uma pausa. - Henry livrou-me de tudo isso. - Olhou para cima, e os seus olhos
estavam brilhantes. - E agora foi-se.
- Mais uma chávena? - Dillon estendeu a mão para o bule. - E o que é que faz em St. John?
Ela respirou fundo e esforçou-se por se controlar.
- Tenho um café-bar chamado Jenny"s Place. Tem de ir lá um dia.
- Sabe que mais? - Dillon sorriu. - Estou capaz de aceitar.
No escritório, Travers estava horrorizado.
- Santo Deus, Charles, do IRA? Estou verdadeiramente chocado.
- Podes ficar chocado quanto queiras, Garth, mas ele é muito, muito bom. Tenciono mandá-lo para St. John logo que tenha as coisas em ordem.
- Está bem - concordou Travers relutantemente. Ferguson levantou-se.
- Se a rapariga perguntar alguma coisa, eu mandei Dillon dizer-lhe que é um mergulhador que eu arranjei para dar uma ajuda.
- Achas que ela acredita nisso? Parece-me bastante esperta.
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- Não vejo porque não. Ele é mesmo mergulhador, entre outras coisas.
O brigadeiro saiu primeiro e dirigiram-se para a cozinha, onde Dillon e Jenny continuavam sentados à mesa.
- Pronto - disse Ferguson -, eu estou de saída. Encontramo-nos para jantar às oito. No River Room do Savoy.
- Isso é coisa de casaco e gravata, e eu só tenho a roupa que trago no corpo - comentou Dillon.
- Está bem, pode ir às compras amanhã - respondeu Ferguson num tom cansado. - Tu podes com certeza arranjar-lhe um blazer para hoje, Garth. Até logo.
A porta da rua bateu atrás dele, e Dillon sorriu.
- Sempre com pressa, aquele homem.

Ferguson ainda lá não estava quando o almirante, Dillon e Jenny chegaram ao River Room. O chefe de mesa conduziu-os à deles.
- Suponho que podemos tomar qualquer coisa - sugeriu Travers.
Dillon voltou-se para o escanção.
- Uma garrafa de Krug corrente.
Jenny vestia uma simples blusa branca e uma saia preta.
- Está muito bem - comentou Dillon. O seu sotaque mudara, e ele era agora um perfeito gentleman inglês.
- Alguma vez é o mesmo durante cinco minutos que sejam? - perguntou ela.
- E isso não seria uma maçada? - Estendeu-lhe a mão e conduziu-a à pista de dança. - Vamos dançar.
- Sabe que também não está nada mal - observou ela.
- O blazer serve-me, mas acho a gravata da Royal Navy um pouco fora de propósito.
- Ah, já percebo. Não gosta de instituições?
- Não é verdade. A primeira vez que vim ao River Room pertencia a uma instituição célebre, a Royal Academy of Dramatic Art.
- Está a brincar comigo? - retorquiu Jenny.
- Não. Frequentei-a durante um ano e ofereceram-me trabalho no National Theatre. Participei na Dama do Mar, de Ibsen.
- E depois?
- Ah, havia compromissos de família. Tive de ir para a Irlanda.
- Que pena! O que é que tem feito intimamente? Por uma vez, ele disse a verdade.
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- Transporte aéreo de medicamentos para a Jugoslávia.
- Ah, é piloto!
- Parte do tempo. Já fui muita coisa: rei, capitão, soldado, ladrão. E mergulhador.
- Mergulhador? A sério? Não está a gozar comigo? Sabe, se alguém me pedisse para conjecturar em relação a si, eu diria que era militar.
Dillon esboçou um meio-sorriso.
- Agora é que me descobriu a careca.
- Então, tenho razão. - Ela estava deliciada. - Em tempos foi soldado.
- Suponho que se pode dizer que sim.
A música parou. Levou-a de novo para a mesa e pediu licença para ir buscar cigarros ao bar.
- Não faz sentido envolver-se muito com ele, minha querida - disse Travers enquanto ele se afastava. - Não é do seu género.
- Oh, almirante, eu acho-o muito simpático. Tem andado a fazer transporte aéreo de medicamentos para a Jugoslávia e em tempos foi militar.
- Militar do maldito IRA - bufou Travers.
- Não está a falar a sério - disse ela, franzindo a testa.
- Um tipo infame - retorquiu Travers. - Só aqui está porque Charles fez com ele um acordo para descobrir o submarino.
- Não posso acreditar.
Ao sair do bar, Dillon encontrou-se com Ferguson, que vinha a chegar, e dirigiram-se juntos para a mesa.
- Está muito bem, minha querida - cumprimentou Ferguson.
- A propósito, o inquérito judicial é amanhã às dez e meia.
- Lá estarei - disse Jenny. - Quando é que posso tratar da cremação?
- É isso que quer?
- As cinzas dele, sim - disse ela calmamente. - Não pretendo fazer cerimónia religiosa. Henry era ateu.
- Ah, sim? - Ferguson encolheu os ombros. - Bem, amanhã, suponho.
- Óptimo. Se pudesse tratar disso, ficava-lhe muito agradecida. - Estendeu a mão a Dillon. - Gostava de dançar outra vez.
- Sorriu. - Não é todos os dias que tenho a oportunidade de dançar o fox-trot com um guerrilheiro do IRA.

Não havia mais de cinco ou seis pessoas na pequena sala
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apainelada a carvalho do Tribunal de Westminster na manhã seguinte. Jenny estava sentada na primeira fila, juntamente com Tra-vers e Ferguson, e Dillon de pé lá
atrás. Smith e Johnson entraram e sentaram-se do outro lado da coxia em relação a ele. Ambos estavam decentemente vestidos, de casaco e gravata, mas para Dillon
um olhar bastou. Vinte anos de vida pouco respeitável tinham criado nele um certo instinto para aquelas coisas.
- Levante-se o tribunal. O juiz de Sua Majestade - gritou o escrivão do tribunal.
O juiz era já velho, com o cabelo muito branco. Abriu a pasta que tinha à sua frente.
- Este é um caso pouco frequente, e decidi que, em consequência disso, não era necessário júri. O brigadeiro Charles Ferguson encontra-se no tribunal?
Ferguson levantou-se.
- Sim, Meritíssimo.
- O senhor apresentou uma notificação de tipo D acerca deste caso em nome do Ministério da Defesa, e este tribunal aceita que deve haver razões para tal, as quais
afectam a segurança nacional. Aceito a ordem e farei que conste do processo. Que fique também claro para qualquer elemento da imprensa aqui presente que a informação
de pormenores relativos a qualquer caso que esteja ao abrigo de uma notificação de tipo D é um crime punível com prisão.
- Muito obrigado, Meritíssimo.
- Dado que as declarações das testemunhas prestadas à Polícia parecem perfeitamente claras, só preciso da identificação oficial do defunto para poder encerrar este
caso.
Travers avançou até ao estrado, e o juiz passou os olhos pelos documentos.
- Foi o senhor, contra-almirante Garth Travers, quem fez a identificação oficial? - Travers assentiu. - Miss Jenny Grant encontra-se no tribunal? - Jenny levantou-se,
acanhada, e o juiz disse: - Tenho uma procuração em seu nome. Deseja reclamar o corpo?
- Sim, Meritíssimo.
- Que assim seja e que fique registado. O meu escrivão redigirá a autorização necessária. Apresento-lhe as condolências do tribunal, Miss Grant.
- Muito obrigada.
- Levante-se o tribunal. O juiz de Sua Majestade - gritou o escrivão depois de ela se sentar.
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Todos se levantaram, e o juiz saiu.
Travers e Jenny passaram por Dillon e saíram em fila juntamente com as outras pessoas, enquanto Ferguson ficava com o escrivão do tribunal.
Dillon encontrava-se ao cimo da escadaria quando Ferguson foi ter com ele. Smith parara um pouco mais à frente, junto à paragem de autocarro, para tirar um cigarro,
e Johnson estava a acender-lho.
- Conhece aqueles dois? - perguntou Dillon ao brigadeiro.
- Devia conhecer? - inquiriu ele.
Nesse momento, o autocarro parou, Smith e Johnson entraram e ele arrancou.
- Sempre confiei na minha intuição, brigadeiro, e ela diz-me que temos ali uma boa parelha de vilões.
- É possível que tenha razão. Por outro lado, há muita gente que assiste a todo o género de sessões no tribunal por mero passatempo.
O Daimler parou, e Lane saiu e foi ter com eles. Ferguson entregou-lhe a ordem do tribunal.
- Dê isto ao velho Cox. Diga-lhe que gostávamos que a cremação fosse esta tarde. - Olhou Jenny de relance. - As três, está bem?
Mais pálida do que nunca, Jenny assentiu.
- Sem dúvida.
Ferguson voltou-se para Lane.
- A propósito, estavam dois tipos no tribunal em relação a quem Dillon tem suspeitas.
- Como é que ele sabe? - perguntou Lane. - Usavam chapéu preto?
- Ouviram o homem? - ripostou Dillon. - Que sentido de humor!
Lane carregou o sobrolho, tirou um envelope do bolso e ergueu-o.
- Conforme mandou, sir. - Depositou-o na mão de Dillon. - E muito mais do que ele merece.
- Ora então o que temos nós aqui? - perguntou Dillon.
- Você precisa de roupa, não precisa? - interpôs Ferguson. - Aí dentro tem um cartão de crédito para si e duas mil libras.
- Óptimo - disse Dillon. - Nesse caso, vou andando às compras.
- Dillon - disse Ferguson -, há-de precisar de roupas leves. E se não for muito incómodo, tente arranjar qualquer coisa que lhe dê um ar de gentleman.
- Espere por mim. - Jenny virou-se para Travers. - Eu vou
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com Dillon. Ajuda-me a passar o tempo. Encontramo-nos em casa, almirante.
Dillon e Jenny foram ao Harrods. Acabaram no bar do andar de cima, com dois sacos cheios de compras - um fato cinzento e um blazer, um casaco de linho, calças e
camisas. Dillon pediu duas taças de champanhe e sanduíches de salmão fumado.
- Você gosta de champanhe - comentou Jenny. Ele sorriu.
- Como disse em tempos um grande homem, só há duas coisas na vida que nunca nos deixam ficar mal: o champanhe e os ovos mexidos.
- Isso é ridículo. Os ovos mexidos depressa secam e perdem qualidade. Seja como for, então e as pessoas? Não se pode confiar nelas?
- Nunca tive grande oportunidade de o descobrir. A minha mãe morreu ao dar-me à luz, e eu era o primogénito, por isso não tenho irmãos.
- Não se referiu ao seu pai.
- Foi morto em 71 em Belfast. Foi apanhado no fogo cruzado de um tiroteio. Mortalmente atingido por uma patrulha do exército britânico.
- Por isso alistou-se no IRA. Armas e bombas: achou que era essa a resposta?
- Como Lenine disse em tempos, o objectivo do terrorismo é aterrorizar. E a única forma pela qual um país pequeno pode ter esperança de lutar contra uma grande nação.
- Tem de haver melhor forma - disse ela. - As pessoas, essencialmente, são decentes. Como Henry, por exemplo. Eu era uma vagabunda, Dillon, uma drogada que batia
as ruas de Miami. Então, apareceu Henry Baker, um homem íntegro e carinhoso. Ajudou-me a reabilitar-me, levou-me para St. John para viver com ele, montou-me o negócio.
- Estava à beira das lágrimas. - E nunca me pediu nada em troca, Dillon. Não é estranho?
Uma vida passada grande parte em fuga e desafiando a sorte deixara a Dillon pouco tempo para mulheres. Mas agora, ali sentado diante de Jenny Grant, sentia uma espécie
de calor e uma ternura que eram novos para ele. "Não te apaixones por ela, Sean, vá lá, sê bom rapaz", pensou ele, mas chegou-se à frente e pousou a mão sobre a
dela.
- Isso há-de passar, minha querida. Tudo acaba por passar: é a
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única coisa certa nesta porca desta vida. Agora, coma a sanduíche. Há-de fazer-lhe bem.

O crematório ficava em Hampstead - uma construção de tijolo encarnado rodeada de choupos, canteiros de rosas e de todo o género de outras flores. Após a cremação,
Travers e Jenny entraram no Daimler. Dillon parou ao cimo das escadas. Estava um carro estacionado à entrada da alameda, com Smith de pé ao lado a olhar para eles.
Dillon reconheceu-o imediatamente, mas nesse instante Smith entrou no carro e arrancou à pressa.
- Um daqueles dois tipos que vi no inquérito estava ali agora mesmo - comunicou Dillon a Ferguson quando ele saiu do edifício. - Acaba de arrancar. Num Renault azul,
acho eu.
- A sério? Tirou a matrícula?
- Não tive hipótese de a ver. Não parece muito preocupado!
- Porque é que havia de estar? Tenho-o a si comigo, não tenho? Ora entre lá para o carro, seja bom rapaz. - Enquanto se afastavam, Ferguson deu uma palmadinha amistosa
na mão de Jenny. - Sente-se bem, minha querida?
- Sim, estou bem. Não se preocupe.
- Tenho estado cá a pensar - continuou ele. - Se Henry não lhe comunicou a localização do submarino, não se lembra de mais ninguém com quem ele possa ter falado?
- Não. Se não me disse a mim, então não disse a ninguém.
- Não há, por acaso, algum outro mergulhador que possa ajudar?
- Bem, há sempre Bob Carney - disse ela. - Ele conhece as ilhas Virgens como a palma da mão. Foi ele quem ensinou Henry a mergulhar. Tem a concessão dos desportos
aquáticos na Estância de Caneel Bay e passa a maior parte do tempo a ensinar turistas, mas é um mergulhador a valer, o melhor das Caraíbas.
- Portanto, se alguém puder ajudar, o mais provável é que seja ele?
- Creio que sim, mas aquilo é muita água!
O Daimler virou para a Lord North Street e parou. Travers foi o primeiro a sair e estendeu a mão a Jenny.
- Dillon e eu temos que fazer - disse Ferguson. - Vemo-nos mais logo.
Dilon virou-se, surpreendido.
- O que vem a ser isto?
- Tenho hora marcada para um encontro com o director-adjunto
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dos Serviços de Segurança, Simon Cárter. Talvez seja divertido você ir comigo. No fim de contas, há anos que ele anda a tentar deitar-lhe a mão.
- O senhor é um homem perverso, brigadeiro - disse Dillon. Ferguson pegou no telefone do carro e ligou para Lane, no Ministério da Defesa.
- Jack, um americano chamado Bob Carney, residente em St. John. Tudo quanto consiga arranjar. Talvez a CIA possa ajudar.
Ferguson e Dillon avançaram lentamente em fila, à espera de entrar na Câmara dos Comuns.
- Você, ao menos, está com um ar respeitável - comentou Ferguson, apreciando o blazer assertoado e as calças de flanela cinzenta do irlandês.
- Graças ao seu cartão de crédito - retorquiu Dillon.
- Dá-se conta de que está com uma gravata da brigada da Guarda?
- Claro, não queria deixá-lo ficar mal, brigadeiro. O seu regimento não era o dos Grenadiers?
- Tratante insolente!
O brigadeiro apresentou o seu cartão de segurança na portaria e encaminharam-se para o átrio principal, depois percorreram um corredor e desceram as escadas que
davam para o terraço sobranceiro ao Tamisa.
Havia por ali muita gente, alguns de copo na mão, saboreando uma bebida. A Ponte de Westminster ficava ao lado esquerdo, o Embankment, na outra margem do rio. Uma
fila de candeeiros altos, de estilo vitoriano, alinhava-se no parapeito.
- Lá estão eles. Porte-se bem - disse Ferguson, enquanto Dillon acendia um cigarro com o seu Zippo.
- Farei os possíveis - retorquiu Dillon, enquanto Simon Cárter se aproximava com Sir Francis Pamer.
- Cá está você, Charles - disse Cárter. - Andávamos à sua procura.
- Há gente por toda a parte - observou Pamer. - Ora então o que é que se passa, brigadeiro? Qual é o ponto da situação?
- Bem, vamos sentar-nos e eu conto-lhes. Aqui o Dillon é o nosso homem no terreno.
Pamer abriu caminho até ao bar do terraço. Ele e Cárter pediram gin tónico, Ferguson, scotch. Dillon sorriu ao caiado com todo o seu charme.
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- Um whisky irlandês com água lisa. Bushmills, se tiver.
Acentuara deliberadamente o seu sotaque do Ulster, e Carter franziu o sobrolho.
- Você disse Dillon? Não creio que nos conheçamos.
- Não - respondeu Dillon amavelmente. - Embora não por falta de vontade da sua parte, Mr. Cárter. Sean Dillon.
Cárter ficou muito pálido e voltou-se para Ferguson.
- Isto é alguma brincadeira? Sean Dillon? Ele é quem eu penso que seja?
- Actualmente, está a trabalhar para o Grupo Quatro - elucidou Ferguson calmamente.
Quando o criado trouxe as bebidas, Cárter fervia.
- Você vai longe demais, Ferguson - disse ele logo que o criado desapareceu.
- Sim, estão sempre a dizer-me isso. Mas vamos ao trabalho. Para lhe resumir aquilo que se passou, houve um assalto na Lord North Street, que pode ou não ter sido
genuíno. Com efeito, descobrimos um aparelho de escuta no telefone. Tem agentes seus a trabalhar no caso?
- Evidentemente que não. Caso contrário, ter-lhe-ia dito.
- Interessante. Quando estávamos no inquérito judicial sobre Baker, esta manhã, Dillon reparou em dois homens que lhe deram que pensar. Voltou a ver um deles mais
tarde no crematório.
Cárter carregou o cenho.
- Mas quem poderia ser?
- Quem sabe? Mas essa é mais uma razão para ter Dillon envolvido no caso. A rapariga continua a insistir em que não sabe qual é a localização do submarino.
- Você acredita? - interveio Pamer.
- Eu acredito - ripostou Dillon. - Ela não é do género de mentir.
- E você ia saber disso, claro - comentou Cárter com azedume.
- Mas ela deve saber qualquer coisa - disse Pamer. - No mínimo dos mínimos, deve ter alguma pista.
- Para já - retorquiu Ferguson -, temos de partir do princípio de que não tem.
- Então, o que é que vai passar-se a seguir? - perguntou Cárter.
- Dillon segue para St. John e começa a investigar lá. A rapariga referiu-se a um mergulhador, um homem chamado Bob Carney,
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amigo íntimo de Henry Baker. Ao que parece, ele conhece a região como a palma da mão. Ela pode fazer as devidas apresentações convencê-lo a ajudar.
- Mas não há qualquer certeza de que ele consiga encontrar aquilo - observou Pamer.
- Só nos resta tentar, não é verdade? - Ferguson olhou para o relógio. - Temos de ir andando.
Levantou-se e foi à frente. Pararam junto ao muro no extremo do terraço.
- Então, é tudo? - inquiriu Cárter.
- E - retorquiu Ferguson. - Dillon e a rapariga partem amanhã ou depois. - Fez sinal a Dillon. - Vamos andando.
Afastou-se, e Dillon inclinou-se sobre o parapeito e olhou lá para baixo, para a água acastanhada do Tamisa.
- Uns quatro metros e meio, diria eu, Mr. Cárter. Toda aquela segurança à entrada e aqui nada.
- O rio tem dois nós de corrente - disse Pamer. - Não é que eu saiba nadar, mas deve ser o suficiente para manter os lobos à distância.
Quando Dillon se afastou, Cárter disse:
- Arrepia-me pensar neste patifório por aqui em liberdade. Ferguson deve estar doido.
Pouco passava das 6, e Dillon estava no escritório a ler o jornal da tarde quando tocaram à campainha. Ele foi à porta, abriu-a e deparou com o velho Mr. Cox segurando
numa caixa de cartão.
Cox entregou-lha.
- As cinzas. Estão dentro de uma urna. Os meus cumprimentos a Miss Grant.
Dillon fechou a porta. O almirante fora ao clube, mas ela estava na cozinha. Dillon chamou-a e Jenny apareceu. O irlandês mostrou-lhe a caixa.
- Mr. Cox veio trazer-lhe isto.
Deu meia volta, entrou no escritório e pousou a caixa em cima da mesa. Ela estava a seu lado, a olhar para a caixa, depois abriu-a cuidadosamente e tirou uma urna
de metal escuro com uma placa de latão que dizia henry baker 1929-1992.
Deixou-se cair numa cadeira e começou a chorar, angustiada.
- Reduz-se tudo a isto, uns gramas de cinza numa caixa de metal.
Dillon pousou-lhe as mãos nos ombros durante um bocado.
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- Chore à vontade. Faz-lhe bem. Vou arranjar um café. - Voltou-se e foi até à cozinha.
Ela deixou-se ficar ali sentada, e era como se não conseguisse respirar. Tinha de sair, precisava de ar. Levantou-se e tirou o velho impermeável do almirante do
cabide da entrada. Tinha começado a chover quando abriu a porta. Avanvou passeio fora em passo rápido, e Smith, sentado na carrinha, saiu e seguiu-a, com Johnson
no seu encalço.
Dillon passou pela entrada a caminho do escritório, com a caneca de café na mão. Entrou, pousou a caneca e voltou à entrada.
- Jenny? - chamou ele, depois reparou que a porta estava entreaberta.
Vestiu o blusão de voo e saiu. Dela, nem sinal. Tinha de adivinhar; virou à esquerda e correu passeio fora.
À esquina, parou, olhando para esquerda, depois para a direita, e viu-a lá ao fundo. Ela esperava por uma aberta no trânsito, viu uma oportunidade e atravessou a
correr para os jardins de Victoria Tower, junto ao rio, com Smith e Johnson atrás dela. Dillon soltou uma praga e desatou a correr.
Jenny encostou-se ao parapeito sobranceiro ao Tamisa e respirou fundo várias vezes para se acalmar. Pressentiu movimento atrás de si, virou-se e deparou com Smith
e Johnson.
Percebeu imediatamente que estava em maus lençóis.
- O que é que querem? - perguntou ela, e começou a afastar-se cautelosamente.
- Não é preciso entrar em pânico, querida - disse Smith. - Só queremos ter uma conversinha, fazer-lhe umas quantas perguntas.
Jenny começou a correr, e Johnson avançou para ela como um raio, agarrando-lhe os braços e empurrando-a para trás de encontro ao parapeito.
- Ora bem, em relação ao submarino: não estás à espera que acreditemos que não sabes onde ele está?
Ela tentou debater-se.
- Vá lá - interveio Johnson -, responde ao homem ou levas um tabefe.
- Larguem-na - gritou uma voz. - Afinal, não se sabe por raio de sítios vocês andam. Ela ainda é capaz de apanhar qualquer coisa.
O Zippo de Dillon reluziu enquanto ele acendia um cigarro. O irlandês avançou, e Smith foi ao encontro dele.
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- Se queres encrenca, vais tê-la, minorca. - Smith desferiu um possante soco.
Dillon esquivou-se para o lado, e, agarrando-lhe o pulso, torceu-o de tal forma que Smith gritou de dor, caindo sobre um joelho. Dillon brandiu o punho num golpe
de martelo de tremenda força no braço esticado, partindo-o. Smith soltou novo grito e caiu sobre o flanco.
Johnson atirou Jenny para o lado e sacou de uma automática do bolso. Dillon atirou-se a ele como um relâmpago, bloqueando-lhe o braço, de modo que o tiro se perdeu
no chão. Dando meia volta, rasteirou o outro e deu-lhe um pontapé com tal violência que lhe partiu duas costelas. Depois, pegou na pistola de Johnson e acocorou-se
a seu lado.
- Para quem trabalhas tu, meu menino? Johnson cuspiu-lhe na cara.
- Como queiras. - Dillon rodou-o, encostou-lhe a boca da arma à parte posterior do joelho e disparou. Johnson soltou um grito terrível.
- Queres que faça o mesmo ao outro?
- Não - gemeu ele. - Trabalhamos para Max Santiago.
- A sério? - disse Dillon. - E onde é que eu posso encontrá-lo?
- Vive em Porto Rico, mas ultimamente tem estado a viver em Paris.
- E foram vocês que fizeram o trabalho na Lord North Street?
- Fomos.
- Idiota - disse Smith. - Cavaste a tua própria sepultura. Dillon atirou a pistola por cima do parapeito para o Tamisa.
Virou-se e deparou com Jenny a olhar para ele, esgazeada. Pegou-lhe no braço.
- Venha, querida, vamos para casa. - Deixaram os jardins e pararam à borda do passeio por causa do trânsito. - Você está bem? - perguntou Dillon.
- Que género de homem é você para fazer aquilo, Sean Dillon?
- Eles ter-lhe-iam feito pior, meu amor. - Pegou-lhe na mão e atravessou a rua a correr com ela.
Ao chegarem a casa, Dillon foi à cozinha e pôs a chaleira ao lume. Fez mais café e pôs as canecas num tabuleiro. Quando ia ter com Jenny ao escritório, apercebeu-se
de que ela estava ao telefone.
- British Airways?... Qual é o último voo desta noite para
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Paris?... Nove e meia?... Pode reservar um lugar?... Grant, Jennifer Grant. Pousou o telefone e voltou-se quando Dillon entrou. Ele colocou o tabuleiro em cima da
secretária. - Anda a fazer de detective?
- Já não aguento mais. Não entendo o que é que se passa. Ferguson, você e agora aqueles homens e aquela arma. Seja como for, eu ia-me embora, mas vou pôr-me a andar
já, enquanto posso.
- Para Paris? - perguntou ele. - Eu ouvi-a ao telefone.
- Isso é só um ponto de escala. Há uma pessoa a quem quero levar isto. - Pegou na caixa que continha as cinzas. - A irmã de Henry. Eu sou provavelmente a única pessoa
que sabe que ele tinha uma irmã.
- Entendo.
Ela olhou de relance para o relógio.
- Sete horas. Consigo chegar a tempo, mas não diga nada a Ferguson antes de eu partir. Ajude-me, Dillon, por favor.
- Então, vá buscar as malas. Eu telefono a chamar um táxi e acompanho-a.
Ela saiu à pressa. Dillon suspirou e disse num murmúrio:
- Seu palerma chapado, o que é que te deu? - E pegou no telefone.
A sala de espera da pequena clínica privada da Farsley Street estava muito silenciosa. Smith encontrava-se sentado numa cadeira de espaldar, com o braço direito
ao peito envolto em gesso. O Dr. Shah entrou - era um pequeno paquistanês de cabelo grisalho que envergava barrete e bata verdes.
- Como está ele? - perguntou Smith.
- Tão bem quanto seria de esperar com uma rótula partida. Vai coxear para o resto da vida.
- O porco do irlandês - murmurou Smith.
- Vocês não conseguem deixar de meter-se em alhadas, pois não? Mr. Santiago sabe disto?
Smith ficou assustado.
- Isto não tem nada a ver com ele. Não, não, isto não. - Levan-tou-se. - Vou para casa. Venho cá amanhã.
Shah viu-o transpor a porta da rua, depois dirigiu-se para o seu gabinete, pegou no telefone e ligou para Santiago, em Paris.

Havia pouco tráfego, e às 8 horas estavam em Heathrow. Jenny
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levantou o bilhete no balcão das reservas e foi tratar das formalidades de voo. Parecia estar mais bem disposta.
- Vejo que se sente melhor - observou Dillon.
- É bom estar novamente de viagem, fugir de tudo isto. O que é que vai dizer a Ferguson?
- Em relação a si, até amanhã de manhã, nada.
- Por essa altura, já eu estarei bem longe. E você?
- Próxima paragem, St. John. Amanhã ou depois.
- Vá ter com Bob Carney. Diga-lhe que vai da minha parte e apresente-se a Billy e Mary Jones. Estão a gerir o bar enquanto eu estou fora.
- E você? - perguntou ele. - Quando é que volta?
- Francamente, não sei. Dentro de uns dias, uma semana. Logo vejo como me sinto. Hei-de ir procurá-lo, se você ainda estiver em St. John.
O voo foi anunciado, e eles desceram à sala de embarque.
- Peço desculpa se lhe criei problemas com o brigadeiro - disse ela.
- É um prazer - tranquilizou-a ele.
- Você é um tipo fantástico, Dillon. - Deu-lhe um beijo na cara. - Assustador, admito, mas é bom tê-lo do meu lado.
Dillou viu-a partir, depois encaminhou-se para a fileira de telefones mais próxima e ligou o número da Cavendish Square.
- Brigadeiro, descobri quem é a oposição.
- Bravo, Dillon - disse Ferguson. - Quem é?
- Max Santiago. Vive em Porto Rico, mas ultimamente tem estado em Paris. A propósito, foram também eles que fizeram o assalto. Tive uma pega com os nossos dois amigos
do tribunal.
- Estou a ver. Espero que não tenha morto ninguém...
- E eu faria uma coisa dessas, brigadeiro? Bem, o assunto está entregue.

Jack Lane, recentemente divorciado, vivia num apartamento nas proximidades de Hampstead. Estava a preparar uma piza congelada no microondas quando o telefone tocou,
e ficou aborrecido.
- Jack? Daqui Ferguson. O Dillon teve uma pega com aqueles dois tipos suspeitos do tribunal. Trabalham para um tal Max Santiago, de Porto Rico, ultimamente a viver
em Paris. Vá até ao escritório e veja se os Serviços de Informação Franceses têm alguma coisa sobre ele. Depois, tente a CIA, o FBI. Ele há-de aparecer no computador
de alguém.
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IMAGEM
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- Sim, senhor. - Lane pousou o telefone com um suspiro. Ora, paciência, não tinha nada de melhor para fazer e podia sempre comer peixe com batatas fritas a caminho
do ministério.
No seu apartamento, Smith estava a sentir-se muito mal. Doía-lhe imenso o braço e ia já num segundo whisky bem servido quando o telefone tocou.
- Tens alguma coisa para mim? - perguntou Santiago.
- Ainda não, Mr. Santiago. - Smith tentou desesperadamente arranjar qualquer coisa para dizer. - Talvez amanhã.
- O Shah telefonou-me. Johnson levou um tiro e tu tens um braço partido. Parece que disseste "O porco do irlandês". Presumivelmente, Sean Dillon?
- Pois foi, Mr. Santiago, tivemos uma briga com ele. Apanhámos a rapariga, não sei se está a ver, mas ele conseguiu saltar-nos em cima. Estava armado.
- Não me digas! - comentou Santiago secamente. - E o que foi que tu disseste quando ele te perguntou quem era o teu patrão?
- Eu? Absolutamente nada. Foi o Johnson que... - Smith calou-se.
Fez-se silêncio durante um momento, e depois a chamada caiu.
Mais assustado do que alguma vez tinha estado, Smith fez a mala com uma só mão e foi buscar as mil libras que guardava dentro de um açucareiro para qualquer eventualidade.
Passados dois minutos, afastava-se na carrinha.
Depressa apanhou o jeito de manobrar o volante com uma só mão, mas a chuva não ajudava, é claro, e a seguir a Watford enganou-se num desvio. Depois, acenderam-se
uns faróis atrás dele e um veículo aproximou-se demasiado rapidamente. Um enorme camião guinou, batendo-lhe de lado, e a carrinha atravessou uma sebe e deu duas
cambalhotas por um talude com cinco metros. Parou completamente amolgada, e Smith, ainda consciente, sentiu o cheiro de gasolina a pingar, ao mesmo tempo que ouviu
um ruído de passos a aproximarem-se. Alguém riscou um fósforo e a gasolina eclodiu numa bola de fogo.
Na clínica, Shah dirigiu-se ao pequeno dispensário que havia ao lado da sala de operações. Montou uma seringa e encheu-a de um frasco que tirou do armário de medicamentos.
Quando abriu a porta do fundo do corredor, Johnson dormia. Shah destapou-lhe o antebraço esquerdo e espetou a agulha. Johnsoft inspirou profundamente várias vezes,
depois parou por completo.
SEIS
Jenny Grant parou o carro alugado em frente ao Convento das Irmãzinhas dos Pobres na aldeia de Briac, na Normandia. Guiara toda a noite e estava completamente exausta.
Os portões de ferro encontravam-se abertos. Ela entrou e estacionou o carro num carreiro circular em frente do magnífico edifício antigo. Uma jovem noviça ancinhava
a gravilha.
Jenny saiu com a urna na mão.
- Gostaria de falar com a madre superiora. É urgente. Vim de muito longe.
- Creio que está na capela - disse a jovem num inglês perfeito. - Vamos ver, sim?
Conduziu-a por agradáveis jardins até a uma capelinha. A porta rangeu ao abri-la. Era um local de sombras, com uma imagem da Virgem Maria pairando à luz das velas
e cheiro a incenso. A noviça entrou e murmurou qualquer coisa à freira que estava ajoelhada em oração diante do altar, depois voltou.
- A Madre vem já.
A noviça saiu, e Jenny ficou à espera. Passado um bocado, a madre superiora levantou-se e dirigiu-se a ela. Era uma mulher alta, que aparentava os seus cinquenta
anos, com uma expressão de suave serenidade.
- Em que posso ajudá-la?
- Irmã Maria Baker?
- Exactamente. - Parecia confusa. - Conheço-a?
- Chamo-me Jenny, Jenny Grant. Henry disse-me que lhe tinha falado de mim.
- Mas é claro! - A Irmã Maria Baker sorriu, depois fez um ar preocupado. - Passa-se alguma coisa, pressinto.
- Henry morreu há uns dias num acidente em Londres. - Jenny estendeu a urna. - Trouxe-lhe as cinzas dele.
- Oh, meu Deus. - A Irmã Maria tinha o sofrimento estampado na cara e fez o sinal da cruz. - Que descanse em paz. Foi muito amável da sua parte.
- Sim, mas não foi só por isso. - Jenny desfez-se em lágrimas e sentou-se no banco mais próximo. - Aconteceram tantas coisas tão horríveis!
A Irmã Maria pousou-lhe uma mão na cabeça.
- Conte-me, minha querida.
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Quando Jenny terminou, parecia haver um enorme silêncio na capela.
- É mistério sobre mistério - disse a Irmã Maria. - Só uma coisa é certa: a infeliz descoberta desse submarino é de uma importância crucial para muita gente.
- Eu sei - retorquiu Jenny. - Eu tenho de voltar para St. John, quanto mais não seja para ajudar Sean Dillon. Ele é um homem mau, Irmã, no entanto foi bom comigo.
- Tudo isso pode esperar, minha querida. - A Irmã Maria pô-la de pé. - Precisa de uns dias de descanso, de tempo para reflectir. Vamos lá arranjar-lhe um quarto.
- E saíram juntas, deixando a capela entregue ao silêncio.
Quando Dillon se apresentou no apartamento da Cavendish Square, pouco antes do meio-dia, Ferguson estava sentado à lareira passando os olhos por um dossier. Jack
Lane estava de pé junto à janela, a olhar lá para fora.
Ferguson olhou friamente para cima.
- Ao que andamos nós a brincar, Dillon?
- Ela queria ir-se embora, brigadeiro. Estava farta, é tão simples quanto isso. O ataque daqueles dois gorilas foi a gota de água.
Lane interrompeu-o.
- Andámos a investigar. Ela alugou um carro em Paris. Mas não conseguimos encontrar qualquer menção ao facto de Baker ter uma irmã.
Dillon encolheu os ombros.
- Quando estiver preparada, ela volta para St. John. Entretanto, cá nos havemos de arranjar. Não se pode ter tudo na vida.
Ferguson deixou-se ficar sentado a olhar para ele, completamente fulo.
- Pelo menos temos uma espécie de pista - disse então. - Conte-lhe, Jack.
- Max Santiago é o motor de um grupo hoteleiro dos Estados Unidos: Florida, Las Vegas, vários outros sítios - disse Lane. - Uns quantos casinos. Tem um iate avaliado
em milhões de dólares, o Maria Blanco. Prováveis ligações com o cartel da droga colombiano.
- A sério? - Dillon sorriu. - O cão!
- Vai mais longe. Em relação à Samson Cay Holding Company, tivemos de procurar em três empresas associadas até darmos com o nome de Santiago.
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- Samson Cay? - Dillon inclinou-se para a frente. - Ora aí está uma coisa muito interessante. Uma relação directa. Mas porquê?
- Santiago tem sessenta e três anos - explicou Lane. - Pertence a uma antiga família aristocrática de Cuba. O pai era um general de Batista. A família safou-se por
um triz em 1959, quando Castro tomou o poder. Foi-lhes concedido asilo político nos Estados Unidos e por fim cidadania, mas, segundo o FBI, tinham pouco mais do
que as roupas que levavam no corpo.
- Compreendo - disse Dillon. - Então, como é que o bom velho Max criou uma cadeia de hotéis avaliada em milhões? O esquema da droga é muito mais recente.
- Bom, de acordo com a CIA - esclareceu Lane -, o pai dele era amigo do general Franco, de Espanha, e era um fascista absolutamente fanático.
- O que poderá fornecer a ligação com Bormann - rematou Ferguson.
- Agora entendo - assentiu Dillon. - A Kameradenwerk.
O brigadeiro anuiu.
- É mais do que provável. Santiago e o pai chegam à América completamente lisos e, no entanto, conseguem deitar mão aos avultados meios necessários para se estabelecerem
como hoteleiros. Sabemos que o Partido Nazi transferiu milhões para todo o Mundo para possibilitar a continuidade da sua obra. - Encolheu os ombros. - Tudo conjecturas,
mas fazem sentido.
- Excepto numa coisa - disse Dillon. - Como é que Santiago soube que Baker descobriu o U-180? E como é que soube da vinda dele a Londres, da sua estada em casa do
almirante, da Jenny, de mim?
- A seu tempo, havemos de encontrar a resposta - retorquiu Ferguson. - Mas, por ora, só nos resta prosseguir com o trabalho. Você parte amanhã: British Airways para
Antígua, depois para St. John. O seu disfarce é simples: você é um ricaço irlandês, dono de uma companhia de electrónica em Cork. Quando chegar a Antígua, estará
um hidroavião à sua espera, um Cessna 206.
- Conheço o tipo - respondeu Dillon. - Já pilotei aviões desses.
Ferguson passou-lhe uma pasta de arquivo.
- Dois passaportes: irlandês e britânico em seu nome. Licença de piloto comercial CCA, com selo de hidroavião. Também estão aí os seus bilhetes e traveler's cheques.
Fica instalado em Caneel Bay,
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uma das melhores estâncias de veraneio do Mundo. Um paraíso numa península privada nas proximidades de Cruz Bay.
- Portanto, ponho-me lá - anuiu Dillon. - E depois o que é que faço?
- Isso é consigo - respondeu Ferguson. - No entanto, sugiro que contacte esse tal mergulhador, Bob Carney. Ele é dono de uma empresa chamada Paradise Watersports,
sediada na estância. Leva aí uma brochura.
Dillon procurou a brochura e deu-lhe uma vista de olhos. O capitão Bob Carney, sentado ao leme de um barco, tinha bom ar, era extremamente bronzeado e muito bem
constituído.
Lane abriu outra pasta.
- Nasceu no Mississipi em 48. Um ano na Universidade do Mississipi, depois marines no Vietname. Foi ferido, recebeu duas Purple Hearts, a Cruz de Mérito. Depois
disso, concluiu um bacharelato em Filosofia e fez um ano de pós-graduação em Oceanografia. Tem carta de patrão até mil e seiscentas toneladas, comandou cargueiros
no golfo do México, foi soldador e mergulhador nas plataformas de petróleo. Foi para St. John em 79.
- Aí tem, pois, o seu homem - disse Ferguson. - Vai ter de o conquistar para o nosso lado, Dillon. - Suspirou e levantou-se. - Não o verei quando você partir, por
isso suponho que devíamos despedir-nos em estilo. Traga Travers ao Garrick para jantar às sete e meia. Mas agora vai ter de me dar licença.
Foi no aconchego de um bar perto do Ministério da Defesa que, cerca de uma hora mais tarde, Ferguson fez o ponto da situação a Simon Cárter. No fim do relato, Cárter
deixou-se ficar sentado, meditativo.
- Essa coisa do Santiago é muito interessante. O seu amigo Lane é capaz de ter razão, a perspectiva fascista, o general Franco e tudo isso.
- Não há dúvida de que encaixa, mas Dillon tem razão. Nada explica como é que Santiago parece estar tão bem informado.
- Nesse caso, o que é que tenciona fazer em relação a ele?
- Oficialmente, não posso fazer nada - respondeu Ferguson. - Ele é um cidadão americano, um homem de negócios multimilionário e extremamente respeitado. O material
dos arquivos do FBI e da CIA é confidencial.
- E, seja como for, nós não queremos envolver os Americanos nisto.
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- Deus nos livre, isso é a última coisa que queremos. - Ferguson levantou-se. - Informe Pamer do ponto da situação.
- É claro que informo - retorquiu Cárter. - Talvez esse tal
Carney, o mergulhador de que você falou, possa dar uma pista ao Dillon.
- Mantê-lo-ei ao corrente - disse Ferguson, e saiu.
Devidamente ataviado com o seu blazer e a gravata da Guarda, Dillon seguiu Travers pela imponente escadaria do Garrick Club até ao bar, onde Ferguson os esperava.
- Ah, ei-los! Achei que podíamos tomar um pouco de champanhe, Dillon, só para lhe desejar bon voyage. Você prefere Krug, se bem me lembro.
Sentaram-se ao canto da sala, e o barman levou-lhes a garrafa, abriu-a, encheu as taças e retirou-se. Ferguson tirou um envelope do bolso e estendeu-o.
- Só para o caso de as coisas darem para o torto, tem aqui o nome de um contacto em Charlotte Amalie, a principal povoação de St. Thomas. É aquilo a que poderia
chamar-se um negociante de "material".
- Material? - Travers parecia estupefacto. - Porque diabo há-de ele precisar de material?
Dillon meteu o envelope no bolso.
- O senhor é um tipo encantador, almirante, e que assim se conserve por muito tempo.
Ferguson brindou a Dillon.
- Boa sorte, meu amigo. Bem vai precisar. - Esvaziou a taça. - Agora vamos sentar-nos.
Qualquer coisa no seu olhar dizia a Dillon que havia mais do que aquilo, muito mais, mas levantou-se obedientemente e seguiu-os para fora do bar.

No Convento das Irmãzinhas dos Pobres, Jenny estava sozinha na capela sentada em frente do altar a meditar. A porta rangeu e entrou a Irmã Maria Baker.
- Cá está você. Devia estar na cama.
- Eu sei, mas estava agitada e queria pensar numas coisas. A Irmã Maria sentou-se ao lado dela.
- Como seja?
- Em Dillon, por exemplo. Ele fez coisas terríveis. Foi membro do IRA, por exemplo, e quando aqueles homens me atacaram, na
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noite passada - teve um calafrio -, foi de uma frieza tão cruel, tão insensível, e no entanto, para mim, foi a simpatia em pessoa e tão compreensivo.
- E então?
Jenny virou-se para ela.
- Eu não sou uma boa cristã. Na verdade, quando Henry me encontrou, era uma enorme pecadora. Mas eu quero realmente compreender Deus, sinceramente quero. Porque
é que Deus permite a violência e o homicídio? Porque é que ele permite a violência em Dillon?
- Deus permite o livre-arbítrio, minha filha. Dá-nos a todos uma opção de escolha. A si, a mim e aos Dillons deste Mundo.
- Talvez - suspirou Jenny. - Mas vou ter de voltar para St. John, não só para ajudar Dillon, mas também, de certa forma, por Henry.
- Porquê esse sentimento tão forte?
- Porque Henry não me disse realmente onde descobriu o tal submarino alemão, o que significa que o segredo deve ter morrido com ele. E, no entanto, eu tenho a nítida
sensação de que não morreu, de que a informação se encontra em St. John, mas não consigo raciocinar. As coisas não me ocorrem.
Estava novamente descontraída e a Irmã Maria disse:
- Já chega. Precisa de dormir. Uns dias de descanso operam maravilhas. Depois, há-de lembrar-se daquilo que agora não lhe ocorre, garanto-lhe.
Pegou-lhe na mão e conduziu-a lá para fora.

Graças ao vento a favor, o voo para Antígua levou pouco mais de oito horas, e quando aterrou ainda não eram 2 da tarde, hora local. Estava calor, muito calor, especialmente
em comparação com Londres. Dillon sentia-se bastante animado e dirigiu-se em grandes passadas para o edifício do aeroporto, à frente de toda a gente. Ao chegar à
entrada, viu uma jovem negra de uniforme azul-claro com um letreiro com o nome dele.
- Dillon sou eu - disse ele, detendo-se.
Ela sorriu.
- Eu chamo-me Judy, Mr. Dillon. Acompanho-a à imigração e por aí adiante, e depois levo-o ao seu avião.
- Está em representação dos operadores de viagem?
- Exactamente. Há uns impressos a preencher, mas podemos tratar disso enquanto esperamos pela bagagem.
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Passados vinte minutos, já ela o conduzia em direcção à pista, com um mecânico de nome Tony ao seu lado. O Cessna estava estacionado ao lado de diversos aviões privados.
Parecia ligeiramente deslocado devido aos flutuadores, de cuja parte inferior emergiam as rodas.
- Voa que é uma maravilha - comentou Tony enquanto arrumava as malas de Dillon. - Há na cabina um livro de bordo com todas as cartas e a sua rota assinalada até
Cruz Bay. Leva cerca de hora e meia.
- Fica em território americano - explicou Judy -, mas os serviços de alfândegas e de imigração estarão à sua espera na rampa de Cruz Bay. Ah, e há-de lá estar um
jipe. - Judy sorriu. - Acho que é tudo.
Dillon instalou-se rapidamente no lugar do piloto. A torre deu-lhe ordem para descolar, e ele avançou até ao extremo da pista. Houve uma breve pausa, depois o sinal
de descolagem, e ele acelerou os motores, troando pista fora, e puxou o manche para trás rigorosamente no momento certo. O Cessna ganhou altitude sem esforço sobre
o azul do mar.

Uma hora mais tarde, Max Santiago aterrava em San Juan, onde passou a alfândega acompanhado por um funcionário do aeroporto, dirigindo-se aonde o seu motorista,
Algaro, o aguardava com o Mercedes preto.
Extraordinariamente possante, Algaro tinha cerca de um metro e setenta e três e o cabelo cortado tão curto que quase parecia careca. Uma cicatriz ia-lhe do olho
direito até à boca. Era de uma total dedicação a Santiago, que, prodigalizando doações a funcionários corruptos, o safara da prisão perpétua por esfaquear até à
morte uma jovem prostituta.
- Bons olhos te vejam, Algaro - disse Santiago. - Tudo preparado, conforme eu pedi?
- Sim, señor. Emalei as roupas habituais e levei-as esta manhã Para o Maria Blanco. O capitão Serra está à sua espera.
- Óptimo.
Os carregadores arrumaram a bagagem. Quando se puseram em marcha, Algaro observou Santiago pelo espelho.
- Algum problema, señor?
Santiago riu-se.
- Parece que cheiras os problemas, Algaro.
- Pois se é para isso que o senhor me paga!
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- Nem mais. - Santiago escolheu um cigarro de uma cigarreira de ouro e acendeu-o. - Há um problema, sim, meu amigo, um problema chamado Dillon.
- Posso saber quem é ele, señor?
- Porque não? Provavelmente, hás-de ter ... como direi?... de me tratar dele, portanto ouve com atenção. Este homem é bom, muito bom.

Estava uma tarde perfeita, com apenas uma nuvem aqui e ali no imenso céu azul, enquanto Dillon sobrevoava as ilhas a cinco mil pés. Puro gozo, o mar lá em baixo
mudando constantemente de cor - ora verde, ora azul -, um barco de vez em quando, os recifes e baixios perfeitamente visíveis daquela altitude. A espinha dorsal
das Virgens ergueu-se da névoa de calor para o saudar: St. Thomas a bombordo, o corpo mais pequeno de St. John a estibordo, Tortola na cauda. Examinou a carta e
viu Samson Cay a sul, abaixo de Tortola.
Dillon chamou o Aeroporto de St. Thomas e recebeu ordem de aproximação a Cruz Bay. Descobriu-a sem dificuldade e planou até uma amaragem perfeita. Dentro do porto,
avançou, fez descer as rodas e subiu a rampa. Desligou o motor.
O pessoal da imigração verificou-lhe o passaporte, enquanto os homens das alfândegas lhe davam uma vista de olhos à bagagem, afastando-se depois com expressões benevolentes.
Outra jovem de uniforme, desta vez cor-de-rosa-vivo, fê-lo assinar pelo jipe, disse-lhe que voltasse à esquerda junto a um centro comercial chamado Mongoose Junction
e seguisse pela estrada principal até Caneel Bay.

O Maria Blanco custara a Santiago dois milhões de dólares e era o seu brinquedo preferido. Tinha, evidentemente, tudo o que de luxo se possa conceber e precisava
de um capitão com uma tripulação de cinco ou seis membros.
Santiago estava sentado a uma mesa no convés superior saboreando o sol e uma xícara de um café excelente, com Algaro de pé atrás dele. A sua frente, estava sentado
o capitão, Julian Serra, um homem corpulento, de barba preta, em uniforme. Tal como a maior parte dos seus empregados, Serra trabalhava para Santiago havia anos,
tendo participado com frequência em actividades altamente duvidosas.
- Portanto, está a ver, meu caro Serra, estamos com um problema
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em mãos. Dillon irá provavelmente abordar esse tal mergulhador, Bob Carney, quando chegar a St. John.
- É sabido que os destroços são difíceis de encontrar, señor - disse Serra. - Há peritos que me dizem por vezes tê-los perdido por uma questão de metros. Não é fácil.
Há para ali muita água.
- Concordo - respondeu Santiago. - Ainda assim, acho que a rapariga deve ter uma resposta, mas pode demorar a voltar. Entretanto, surpreenderemos Mr. Dillon tanto
quanto possível. - Sorriu a Algaro. - Achas que consegues tratar disso?
- Com todo o prazer, señor - replicou Algaro.
- Óptimo. - Santiago voltou-se para Serra. - E quanto à tripulação?
- O Guerra, como imediato. O Solona e o Mugica, como de costume, e dois bons mergulhadores, conforme pediu: Javier Noval e Vicente Pinto.
- São de confiança?
- Sim, señor. Absolutamente. Santiago acabou o café.
- Pronto, então mãos à obra.

Dillon afeiçoou-se a Caneel desde o princípio. Estacionou o jipe e, carregando as malas, seguiu o caminho até à recepção. Num promontório acima dele havia um magnífico
restaurante circular, aberto. A vegetação era luxuriante. Palmeiras por toda a parte. Lá em baixo, Caneel Bay. Viam-se na doca barcos de vários tipos. Junto de outro
restaurante, uma simpática praia delimitada por palmeiras, pessoas gozando ainda o sol na tranquilidade do fim de tarde, dois ou três praticantes de windsurf ao
largo.
Dillon foi andando até chegar ao átrio da recepção. Uma recepcionista levou-o até à sua cabana num pequeno autocarro gratuito. Os jardins eram uma perfeita delícia
- neles não só havia amplos relvados e palmeiras, como todo o género de inimagináveis plantas tropicais. A recepcionista parou ao lado de uma construção de dois
andares de telhado plano, rodeada de árvores e arbustos.
- Aqui estamos, cabana sete - disse ela. - Duas unidades: sete D e sete E.
Abriu a porta para um pequeno vestíbulo, enfiou a chave na fechadura do 7D e entrou. Havia uma magnífica casa de banho, uma zona de bar e um espaçoso quarto-sala
com uma mobília extremamente agradável, pavimento de ladrilho, cadeiras confortáveis e um sofá. Em cima da mesa de café, estava um telefone celular.
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- Agrada-lhe? - perguntou ela.
- Eu diria que sim. - Dillon meneou a cabeça para a enorme cama. - Deve ser preciso ser corredor olímpico para apanhar a mulher naquela coisa.
Ela riu-se e abriu a porta dupla que dava para o grande terraço. Havia um declive relvado, árvores e uma pequena praia lá em baixo. Três ou quatro iates de grande
porte estavam ancorados a certa distância da costa.
- Paradise Beach - disse ela.
Bateram à porta, e ela foi supervisionar o empregado que deixava a bagagem.
- Foi muito simpática - disse Dillon, despedindo-se dela.
Dirigiu-se para o terraço e ali ficou a olhar para a água. O seu reluzir acabou por ser demasiado tentador, e, entrando, Dillon desfez as malas e procurou uns calções
de banho. Passado um bocado, precipitava-se pelo declive relvado abaixo até à pequena praia. A água era incrivelmente quente e muito límpida, e Dillon nadou indolentemente
mar adentro em direcção aos iates amarrados, virando para trás quando estava a cerca de cinquenta metros da praia. Nas suas costas, o Maria Blanco contornou o cabo
e largou ferro cerca de trezentos metros ao largo.
Um pedido de informação telefónico de bordo para terra confirmara que Dillon tinha chegado a Caneel Bay e estava alojado na cabana 7.
- Quero que vás a terra esta noite - disse Santiago, que se encontrava ao parapeito da popa, a Algaro. - Vê o que Dillon está a engendrar. Se sair, segue-o.
- Arranjo-lhe algum problema? - perguntou Algaro, esperançado.
- Uma coisa ligeira, Algaro. - Santiago sorriu. - Nada demais.

Dillon não estava com disposição para nada de demasiado formal, e vestiu uma camisa leve de algodão branca e umas calças de linho creme, dirigindo-se a Caneel Beach
na escuridão da noite. Chegado ao Terrace Restaurant, apresentou-se ao chefe de mesa e este indicou-lhe um lugar. A ementa era tentadora. Pediu escalopes de peixe
grelhados e uma salada, seguidos de cauda de lagosta das Caraíbas. Uma aceitável meia-garrafa de Veuve Clicquot completou o quadro.
Terminou por volta das 9 e foi até à recepção. Algaro estava
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sentado num maple de couro a olhar para o New York Times. A funcionária de serviço era aquela que o levara à cabana. Sorriu-lhe.
- Está tudo bem, Mr. Dillon?
- Perfeito. Diga-me uma coisa, conhece um bar chamado Jenny"s Place?
- Claro que conheço. Fica à beira-mar, imediatamente a seguir a Mongoose Junction, no caminho para a cidade.
Ele agradeceu-lhe e afastou-se, e, caminhando ao longo do cais, acendeu um cigarro. Algaro saiu atrás dele e precipitou-se pelo parque de estacionamento até um Land-Rover.
Felipe Guerra, o imediato do Maria Blanco, estava sentado ao volante.

Dillon passou de automóvel pelo centro comercial Mongoose Junction, localizou o Jenny's Place, depois deu a volta e regressou ao parque do Junction. Caminhou na
noite quente ao longo do porto, subiu as escadas, deitou um olhar ao letreiro de néon vermelho e entrou.
Descobriu um banco vago no bar e esperou até que Billy Jones estivesse disponível.
- Whisky irlandês, um qualquer, com água.
Dillon reparou em Bob Carney, sentado na outra ponta do longo balcão, reconhecendo-o da fotografia da brochura. Carney estava a falar com uns homens com ar de marinheiros.
Billy trouxe-lhe o whisky, e Dillon disse:
- Billy Jones?
- E você quem é? - perguntou o outro, apreensivo
- Chamo-me Dillon, Sean Dillon. Estou instalado em Caneel. Jenny disse-me que viesse cumprimentá-lo.
- Jenny? - Billy carregou o sobrolho. - Quando é que esteve com Miss Jenny?
- Em Londres. Fui com ela à cremação de Henry Baker.
- Foi? - Billy chamou a mulher, que se aproximou. - Esta é a minha mulher, Mary. Conte-lhe o que acaba de me dizer.
- Estive com Jenny em Londres. - Dillon estendeu a mão. - Sean Dillon. Estive no funeral, não que houvesse muito para fazer. Ela disse que ele era ateu, por isso
limitámo-nos a comparecer à cremação.
Mary benzeu-se.
- Que Deus o tenha em paz, mas na realidade ele pensava assim. E Jenny, o que é feito dela? Onde está?
- Está um pouco transtornada. Disse-me que Baker tinha uma
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irmã. Não me disse onde, limitou-se a voar para Paris com as cinzas. Mary franziu a testa.
- Quando é que ela volta?
- Disse que precisava de uns dias para se recompor. Como acontecia eu vir para cá, ela pediu-me que viesse cumprimentá-los.
- E eu agradeço-lhe - disse Mary. - Temos estado tão preocupados! - Um cliente chamou de uma das mesas. - Tenho de ir.
Ela afastou-se em passo rápido, e Billy sorriu.
- Eu também, mas vemo-nos depois. Deixe-se estar, homem, deixe-se estar.
Foi servir três clientes que protestavam, e Dillon saboreou o seu whisky e olhou em redor. Algaro e Guerra estavam num compartimento de canto, aparentemente envolvidos
em conversa. Os olhos de Dillon mal se detiveram, e, no entanto, ele reconheceu Algaro da recepção do Caneel - o cabelo cortado à escovinha, a cara de poucos amigos,
a cicatriz.
- E qual é a tua ideia, pequeno? - murmurou Dillon para consigo, já que aprendera à sua custa a nunca acreditar em coincidências.
Carney estava agora sentado sozinho, com o banco ao seu lado vazio. Dillon avançou ao longo do bar.
- Importa-se que lhe faça companhia?
O bronzeado da cara intensificava-lhe o azul dos olhos.
- Devia importar-me?
- Dillon, Sean Dillon. - O irlandês içou-se para o banco. - Estou instalado em Caneel. Jenny Grant disse-me que o procurasse.
- Conhece Jenny?
- Estive com ela em Londres - disse Dillon. - O seu amigo Henry Baker morreu lá num acidente.
- Ouvi falar disso - disse Carney.
- Jenny foi lá para o inquérito e o funeral. Apanhou o avião para Paris para levar as cinzas à irmã dele. Disse que estaria de volta dentro de uns dias.
Carney deu um pequeno gole na sua cerveja.
- Então, está cá de férias?
- Mais ou menos isso. - Dillon acendeu um cigarro. - Estou interessado em fazer um pouco de mergulho e Jenny disse que você é o melhor que há.
- Foi simpático da parte dela. E você é bom?
- Desenrasco-me. Mas estou sempre disposto a aprender.
- Muito bem. Vemo-nos no cais de Caneel às nove da manhã.
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- Vou precisar de equipamento.
- Não há problema. Eu abro a loja.
- Óptimo. - Dillon hesitou. - Diga-me uma coisa. Está a ver os tipos sentados no compartimento do canto? Por acaso sabe quem eles são?
- Sei - disse Carney. - Trabalham num grande iate a motor de um tipo chamado Santiago. Está habitualmente fundeado em Samson Cay. O mais novo é o imediato, Guerra.
O outro dá pelo nome de Algaro.
Dillon levantou-se.
- Então, até amanhã. - E saiu.

Dillon deixou Cruz Bay, reduzindo para subir a colina sobranceira à povoação. Ao chegar ao cimo, deu-se subitamente conta dos faróis que se aproximavam atrás dele
a grande velocidade. Esperava ser ultrapassado, não foi, e quando o veículo lá detrás se aproximou perigosamente, percebeu que estava em apuros. Imediatamente antes
de o Land-Rover lhe embater, Dillon carregou a fundo no acelerador e afastou-se.
O Land-Rover era mais rápido e subitamente pôs-se ao seu lado. Dillon captou um breve vislumbre da cara de Algaro, e então o Land-Rover guinou para cima dele e ele
saiu da estrada para o mato.
Rolou para fora do jipe e escondeu-se atrás de uma árvore. Subitamente, troou um disparo de caçadeira, e os chumbos cortaram os ramos sobre a sua cabeça.
Fez-se silêncio e depois ouviu-se uma gargalhada.
- Bem-vindo a St. John, Mr. Dillon - gritou uma voz, e o Land-Rover afastou-se.

Em Londres, eram 3.30 da manhã quando o telefone tocou à cabeceira da cama de Charles Ferguson. O brigadeiro acordou no mesmo instante e estendeu a mão.
- Daqui Ferguson.
Dillon encontrava-se no terraço com uma bebida numa mão e o telefone celular na outra.
- Sou eu - disse ele. - Estou a telefonar-lhe das tranquilas ilhas Virgens, que não são assim tão tranquilas.
- Por amor de Deus, Dillon, sabe que horas são?
- Sei. São horas de fazer algumas perguntas e, espero, de obter umas quantas respostas. Dois gorilas acabam de pôr-me fora da estrada, meu velho, e adivinhe quem
eles eram? Tripulantes do iate do
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Santiago, o Maria Blanco. Dispararam também um tiro na minha direcção.
Ferguson sentou-se.
- Tem a certeza?
- Claro que tenho. Ouça, quero saber o que se passa. Só estou neste maldito sítio há umas horas e eles já me conhecem pelo nome. Diria que estavam à minha espera.
Como é isto possível, brigadeiro?
- Não sei - respondeu Ferguson. - É tudo o que posso dizer por enquanto. Já está instalado?
- Estou com uma vontade louca de rir, brigadeiro - disse Dil-lon. - Mas, sim, estou instalado e vou amanhã mergulhar com o Carney.
- Óptimo. Então, continue e tome cuidado.
- Tomo cuidado? É tudo quanto tem a dizer?
- Deixe-se de choraminguices, Dillon - retorquiu Ferguson. - Você ainda está inteiro. Eles estão a tentar assustá-lo, só isso.
- "Só isso", diz ele.
- Deixe o caso comigo. Eu depois digo qualquer coisa. - Ferguson pousou o telefone e deixou-se ficar para ali deitado, a pensar naquilo.
Dillon olhou para a baía, onde se viam luzes em alguns dos barcos. Não gostara do tiroteio. Fizera-o sentir-se vulnerável. A resposta para isso consistia numa visita
ao especialista de "material".
SETE
Eram 9 HORAS da manhã seguinte quando Ferguson chegou a Downing Street. Um funcionário conduziu-o ao andar de cima e levou-o ao gabinete, onde o primeiro-ministro
estava sentado à secretária a assinar documentos uns atrás dos outros. Ele levantou os olhos.
- Ah, ei-lo, brigadeiro. O director-adjunto e Sir Francis não me largam por causa desta coisa das ilhas Virgens. É verdade que contratou esse tal Dillon?
- É, sim - respondeu Ferguson calmamente. - Ele é o homem certo para aquele trabalho. Acredite que não acho nada de admirável no passado de Dillon, Sr. Primeiro-ministro.
Ele é apenas um mercenário.
- Não posso dizer que me agrade.
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- Se quiser, posso mandá-lo regressar, mas, para ser franco, isto é um trabalho sujo, e desde a nossa última conversa tornou-se claro que as pessoas com quem ele
terá de lidar jogam realmente muito duro.
- Entendo. - O primeiro-ministro suspirou. - Muito bem. Deixo a coisa ao seu critério, mas tente fazer as pazes com Cárter.
- Tentarei, Sr. Primeiro-Ministro - disse Ferguson, e retirou-se.
Jack Lane esperava-o no Daimler.
- Afinal, o que era? - perguntou ele enquanto se afastavam.
- Ele tem uma certa razão, evidentemente.
- O senhor conhece a minha opinião. Eu sempre fui contra. Não confiaria minimamente no Dillon.
- Há uma coisa interessante no Dillon: ele sempre foi conhecido por ter um certo sentido de honra. Quando dá a sua palavra, mantém-na.
Ferguson pegou no telefone do carro e ligou para o gabinete de Cárter. Não estava. Encontrava-se na Câmara dos Comuns, com Pamer.
- Faça-lhe chegar imediatamente um recado - disse Ferguson à secretária. - Diga-lhe que preciso de os ver aos dois urgentemente. Vou ter com eles ao terraço da Câmara
dentro de um quarto de hora.
A chuva fustigava o Tamisa numa morrinha miúda, deixando o terraço vazio. Ferguson encontrava-se junto ao parapeito segurando um grande guarda-chuva de golfista,
e Lane abrigava-se com ele.
- Ah, aí está você.
Voltaram-se e viram Cárter a chamar da entrada. Abriu um guarda-chuva preto e foi ter com eles, acompanhado de Pamer.
- Não está agradável aqui - comentou Ferguson.
- O que é que quer agora, Ferguson? - perguntou Cárter.
- Fui falar com o PM. Sei que você andou outra vez a fazer queixinhas, meu velho. Não lhe serviu de nada. Ele disse-me para ir avante.
Cárter estava furioso, mas conseguiu controlar-se e olhou de soslaio para Lane.
- Quem é ele?
- O inspector Lane, cedido pela Secção Especial.
- É contra os regulamentos. Você não pode fazer isso.
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- É capaz de ser, mas eu não sou marinheiro do seu navio. Eu mesmo comando o meu, e já que tenho pouco tempo, vamos ao trabalho. Dillon chegou ontem a St. John.
Foi atacado por dois elementos da tripulação do Santiago, que o atiraram para fora da estrada e dispararam um tiro contra ele.
- Meu Deus! - disse Pamer, horrorizado.
- Ele está bem? - perguntou Cárter, de cenho carregado.
- Está. É uma bola de borracha, o nosso Dillon: faz sempre ricochete.
É interessante como sabiam quem ele era e que já lá estava.
- Ouça - começou Pamer -, espero que não esteja a sugerir a existência de qualquer falha de segurança da nossa parte.
- Cale-se, Francis - disse Cárter. - Ele tem razão. Esse tal Santiago está demasiado bem informado. - Voltou-se para Ferguson. - O que vai fazer em relação a isso?
- Na verdade, estava a pensar em fazer umas curtas férias - respondeu o brigadeiro. - Sabe como é, sol, mar e areia, palmeiras ondulantes ...
Cárter anuiu com um aceno de cabeça.
- Mantém-me informado?
- Claro. - Ferguson sorriu. - Vamos, Jack. Temos muito que fazer.
Ferguson entrou para o banco traseiro do Daimler e deitou uma olhadela ao relógio.
- São dez e picos, Jack. Quero o Learjet pronto para sair de Gatwick antes da uma. Prioridade máxima.
- Quer que vá consigo, meu brigadeiro?
- Não. Você vai ter de aguentar o barco.
- Vai precisar de alojamento. Eu trato disso.
- Reservei quarto no tal Caneel quando fiz a marcação para Dillon - replicou Ferguson, abanando a cabeça.
- Quer dizer que estava à espera que acontecesse aquilo que aconteceu?
- Qualquer coisa do género.
- Meu brigadeiro - disse Lane, exasperado. - Ouie é que se passa realmente?
- Quando você descobrir, Jack, diga-me.

Santiago estava sentado à mesa, à popa do Maria Blanco, a saborear o seu pequeno-almoço ao sol matrítino quando Algaro lhe levou o telefone.
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- É Sir Francis - disse ele.
- Aqui, está uma manhã magnífica - disse Santiago. - Como é que está Londres?
- Fria e húmida. Reuniões intermináveis. Ouça, Max, Ferguson contou-nos que Dillon foi atacado em St. John.
- A minha gente só lhe deu um pequeno apertão, Francis. No fim de contas, como você mesmo deixou claro, chegou-lhes aos ouvidos que ele sabia da minha existência.
- Sim, mas aquilo que Ferguson quer agora saber é como é que você sabia quem era Dillon e que ele tinha chegado a St. John, e assim por diante. Disse que você estava
demasiado bem informado.
- Ele sugeriu de que forma pensava que eu estivesse a obter a minha informação?
- Não. Mas disse que ia ter com Dillon a St. John.
- Ai sim? Isso vai ser interessante.
- Ouça, Max - insistiu Pamer, desesperado -, eles sabem do seu envolvimento. Quanto tempo levará a que saibam do meu?
- Você não está no conselho de administração de nenhuma empresa, Francis, nem o seu pai estava. Não há qualquer menção do nome Pamer em lado nenhum.
- Mesmo assim, estou preocupado - disse Pamer. - O que é que eu faço?
- Mantenha-me informado, Francis, e mantenha a coragem.
Guerra foi até Caneel Beach num bote de borracha com um dos mergulhadores, Javier Noval. Envergavam calções, T-shirts e óculos escuros - dois autênticos turistas.
Ziguezaguearam por entre outras embarcações de pequeno porte que se encontravam na doca e aportaram ao cais.
- É ele - disse Guerra a Noval quando Dillon apareceu envergando um fato de treino preto e levando consigo duas toalhas. - Vamos.
Bob Carney estava a carregar garrafas de ar comprimido para o convés de um pequeno barco de mergulho de cerca de oito metros. Viu Dillon e acenou, depois foi ao
encontro dele. Passaram pelo pneumático e afastaram-se em direcção à praia. Noval acendeu um cigarro e seguiu-os.
Passada meia hora, Noval voltou para o bote.
- O outro chama-se Carney - disse ele a Guerra. - É ele que tem a concessão de mergulho aqui. Dillon estava na loja com ele a comprar equipamento. - Olhou para cima.
- Lá vêm eles.
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Dillon e Carney passaram no cais e entraram no barco de mergulho. Carney ligou o motor, e o barco saiu para a baía.
- É melhor dizermos a Santiago o que se passa - disse Guerra.

O barco de mergulho, Privateer de seu nome, voava a vinte nós sobre o mar agitado. Dillon agarrava-se firmemente.
- Tem tendência para enjoar? - perguntou Carney.
- Que eu saiba, não - gritou Dillon, sobrepondo-se ao barulho do motor.
- Óptimo, porque é mais provável que isto piore do que melhore.
As vagas avançavam imponentes, longas e abruptas, e o Privateer subia-as e mergulhava do outro lado. A dada altura, aproaram a uma ilhota e entraram nas águas mais
calmas de uma baía.
- Congo Cay - disse Carney. - Um belo local de mergulho. - Largou ferro. - De oito a trinta metros. Muito pouca corrente. Se não quiser ir muito fundo, pode manter-se
sobre o recife.
Dillon equipou-se rapidamente. Carney prendera já as garrafas aos coletes de mergulho e ajudou Dillon a envergar o dele, sentado na borda do barco.
- Encontramo-nos junto ao ferro.
Dillon anuiu com um aceno de cabeça, colocou a máscara, certificou-se de que o ar afluía sem dificuldade ao bocal e deixou-se cair de costas para a água. Ficou em
sustentação por baixo da quilha do barco até avistar a corrente da âncora e seguiu-a até ao fundo. Carney desceu por entre um cardume compacto de peixes prateados
para ir ao seu encontro.
Carney fez-lhe sinal com o indicador e o polegar de que estava tudo bem, e Dillon seguiu-o enquanto ele nadava ao longo do recife. Havia esponjas de um amarelo-vivo
e de forma tubular por toda a parte. Os afloramentos de coral eram multicores e de uma enorme beleza, e a dada altura Carney parou, de dedo apontado, e Dillon viu
uma enorme jamanta passar ao longe, com as barbatanas ondulando em câmara lenta.
Foi um mergulho calmo, agradável, mas sem nada de mais, e passada cerca de meia hora Dillon seguiu Carney pela corrente acima e veio à tona. Carney içou-se, com
a facilidade da experiência, pela borda à popa, puxando em seguida o seu equipamento. Dillon juntou-se-lhe logo a seguir.
Carney levantou ferro.
- Gostou do mergulho?
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- Foi bom - retorquiu Dillon, encolhendo os ombros, e acendeu um cigarro.
- O que quer dizer que gostaria de um pouco mais de excitação. - Carney ligou o motor. - Muito bem, vamos lá a um dos meus mergulhos para gente crescida.

Passaram por acaso à vista do Maria Blanco, que continuava ancorado ao largo de Paradise Beach. Guerra encontrava-se na ponte de comando, perscrutando a zona com
uns binóculos, e reconheceu o barco.
- Largaram ferro - disse ele ao capitão Serra - e içaram a bandeira de mergulho.
Serra folheou um guia dos locais de mergulho das ilhas Virgens.
- Carval Rock - informou. - É aí que estão a mergulhar. Algaro entrou e segurou a porta a Santiago, que envergava um blazer azul e um boné de capitão, com a pala
guarnecida a dourado. Serra entregou-lhe os binóculos.
- Carney e Dillon estão a mergulhar ali - apontou Serra.
- Não pode ser ali, pois não? - perguntou Santiago.
- Nem pensar - respondeu Serra. - Milhares de pessoas mergulham ali.
- Pouco importa - retorquiu Santiago. - Arrie a lancha e vamos dar uma vista de olhos. Veremos do que esses seus dois mergulhadores, o Noval e o Pinto, são capazes.
Mas diga-lhes que se limitem a dar uma olhadela. Nada de complicações. Deixem Carney e Dillon em paz.
O rochedo era magnífico, emergindo de um mar revolto, gaivotas pousadas na crista ao vento forte.
- Carval Rock é um mergulho avançado - disse Carney. - Tem umas belas ravinas, tem fendas, um ou dois túneis e uns magníficos penhascos rochosos. O problema é a
corrente.
Carney envergou o equipamento. Dillon debruçou-se para lavar a máscara e viu uma lancha branca aproximar-se.
- Temos companhia. Carney voltou-se para ver.
- Duvido. Nenhum professor de mergulho que eu conheça traria hoje os alunos a mergulhar. Devem ir para um sítio mais fácil.
As vagas estavam enormes. Dillon saltou borda fora e começou a descer pela corrente da âncora, surpreendido com a força com que a água o empurrava. Chegado ao fundo,
parou. Notou uma irrupção
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de bolhas brancas à sua esquerda e uma âncora a descer. Carney aproximou-se e acenou em direcção à rocha.
Dillon seguiu-o, lutando contra a corrente ao longo de um canal profundamente talhado entre as rochas. Havia nele uma espécie de soleira. Carney deteve-se por um
bocado, depois transpô-la. Dillon forçou com as mãos a passagem por entre as rochas, centímetro a centímetro, com penosa lentidão, e subitamente viu-se do outro
lado e num outro mundo, precipitando-se para o meio de um cardume de atuns. Havia peixes de todas as cores, bonitos, cavalas e barracudas, algumas com mais de metro
e meio de comprimento.
Dillon virou-se e viu Noval e Pinto tentando transpor a fenda. Noval quase o conseguiu, depois largou-se e foi empurrado de encontro a Pinto, voltando ambos a desaparecer
do outro lado.
Camey avançou, e Dillon seguiu-o até aos vinte e cinco metros, sendo então apanhados pela corrente num violento remoinho de três nós que os arrastou na vertical
ao longo da frente da parede rochosa. Foram cercados por nuvens de peixes prateados pairando no espaço - o sonho dos sonhos. Dillon nunca se sentira tão entusiasmado.
Depois, a corrente afrouxou e ambos prosseguiram ao longo do fundo, chegando enfim à âncora.
Subiram lentamente.
Carney debruçou-se sobre a amurada para pegar na garrafa de Dillon, e o irlandês içou-se para bordo.
- Absolutamente maravilhoso! Carney sorriu.
- Não foi mau, pois não?
Voltou-se e fitou a lancha, ancorada para bombordo, que balouçava no mar agitado, presa à sua corrente de âncora.
- O que terá acontecido aos dois mergulhadores? - interrogou Dillon.
- Não conseguiram, suponho. - A lancha girou sobre si mesma, mostrando o painel da popa. - Aquela é a lancha do Maria Blanco - acrescentou Carney.
- A sério? - Dillon observava-a junto à borda. Imediatamente reconheceu Algaro. Depois, Santiago saiu da casa do leme. - Quem é o tipo de blazer e boné? - inquiriu
Dillon.
Carney dirigiu o olhar para a lancha.
- É o dono, Max Santiago.
Num impulso, Dillon levantou o braço e acenou. Santiago retribuiu o cumprimento, e nesse momento Noval e Pinto apareceram à tona.
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- Está na hora de irmos para casa - disse Carney.
- Onde é que o Maria Blanco fundeia quando está por cá? - perguntou Dillon no caminho de regresso. - Caneel Bay?
- Mais provavelmente, ao largo de Paradise Beach.
- Seria possível irmos lá espreitar?
Carney fitou-o, depois desviou o olhar.
- Porque não? Você é que paga.
Chegados a Paradise, Carney desacelerou, e o Privateer aproximou-se do Maria Blanco.
- Cá está ele - disse Carney.
Dois tripulantes que trabalhavam no convés olharam para cima com ar de indiferença quando eles passaram.
- Aquela coisa deve ter feito uma certa mossa na carteira de Santiago! - disse Dillon. - Eu diria que uns dois milhões.
- Pelo menos - anuiu Carney.
Carney acelerou a toda a força à vante e rumou a Caneel Beach. Dillon acendeu um cigarro e encostou-se à parede da ponte de comando.
- Há muitos destroços interessantes por aqui?
- Alguns. Há um velho cargueiro ao largo de Buck Island, que é um conhecido local de mergulho, e o General Rodgers, que a Guarda Costeira afundou.
- Não. Eu estava a pensar em qualquer coisa de mais interessante. Isto é, seria possível haver um destroço num recife algures ao largo que nunca tivesse sido descoberto?
Carney abrandou, entrando na baía.
- Tudo é possível. O mar é grande.
- Portanto, poderia haver qualquer coisa à espera de ser descoberta?
Carney olhou para ele.
- Mr. Dillon, eu não sei o que se passa aqui. Só sei com certeza que o senhor é um óptimo mergulhador, e isso admiro eu. Não sei o que significa toda esta conversa
acerca de destroços e não quero saber, já que aprecio a minha tranquilidade. Mas vou dar-lhe um conselho: o seu interesse por Max Santiago é capaz de não lhe fazer
muito bem à saúde. Tenho ouvido coisas acerca dele que não me agradam. A forma como ele faz dinheiro, por exemplo.
- Agente hoteleiro, ao que me constou. - Dillon sorriu.
- Existem outras formas que envolvem a actividade nocturna de pequenos aviões ou lanchas rápidas para a Florida. - O Privateer acostou ao cais. - Quer voltar a mergulhar
comigo?
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- Pode contar com isso. E talvez possa convidá-lo para um copo esta noite no Jenny"s Place?
- Estou lá todas as noites - respondeu Carney.

Charlotte Amalie, em St. Thomas, era uma povoação fantástica, fervilhante de actividade. Do outro lado do porto estavam ancorados dois paquetes de cruzeiro. A beira-mar
era marginada por edifícios brancos e de tons pastel - havia toda a espécie de lojas e restaurantes.
Estava calor, muito calor, as pessoas apinhavam-se nos passeios, o tráfego avançava lentamente pelas ruas estreitas, mas Cane Street estava calma e sombria quando
Dillon lá chegou. A casa que procurava ficava na outra ponta da rua. Pintada de branco, tinha à frente um pequeno jardim. Um homem negro já velho, de cabelo grisalho,
estava sentado num baloiço de varanda a ler o jornal.
Quando Dillon se aproximou, o velho levantou os olhos.
- Posso ajudá-lo?
- Procuro Earl Stacey - retorquiu Dillon.
- Não me vai estragar o dia com contas, pois não?
- Ferguson disse-me para vir ter consigo. O homem sorriu e tirou os óculos.
- Tenho estado à sua espera. Vamos entrando. - E foi à frente. Lá dentro, Stacey abriu uma porta, acendeu uma luz e desceu umas escadas de madeira que davam para
a cave. Havia prateleiras até ao tecto onde estavam empilhados frascos de tinta. Stacey estendeu a mão e soltou um ferrolho,
abrindo as prateleiras como uma porta e deixando entrever outra divisão.
- Entre para a minha sala de visitas. Vamos lá a saber o que você quer, homem.
Na sala havia toda a espécie de armamento, carabinas, espingardas submarinas, caixas de munições.
- Primeiro, a carabina - disse Dillon. - Armalite, talvez. Gosto da coronha dobrável.
- Tenho aqui uma AK de combate com coronha dobrável e carregador de trinta munições. - Stacey estendeu a arma.
- Sim, há-de servir - disse Dillon. - Dois carregadores de reserva. Agora preciso de uma Walther PPK e de um silenciador Carswell.
- Arranja-se. - Stacey abriu uma grande gaveta, escolheu uma Walther e passou-lha para que ele a examinasse. - Mais alguma coisa?
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Havia um coldre de plástico barato com a coronha de uma pistola à mostra, e Dillon ficou intrigado.
- O que é aquilo?
- É um ás na manga. Aquela banda metálica na parte de trás é um íman. A arma não tem lá muito bom aspecto, é uma ponto vinte e dois semiautomática belga, mas eu
preparei-a para balas dum-dum.
- Fico com ela. Mais uma coisa. Tem algum explosivo C4?
- Não, mas tenho uma coisa tão boa como isso: Semtex. - Stacey tirou uma caixa da prateleira. - Vai usá-lo debaixo de água?
- É só para abrir um rombo num destroço.
- Então, precisa de lápis-detonadores químicos regulados para oito minutos e meia hora. - Colocou os diversos artigos dentro de um bornal militar verde-azeitona.
- É tudo?
- Um visor nocturno e uns binóculos davam jeito. Stacey abriu outra gaveta.
- Aqui tem.
- Óptimo - disse Dillon.

Dillon caminhou ao longo do pontão até ao ferry para Caneel. O comandante encontrava-se junto à prancha de embarque quando ele subiu.
- Largamos em breve. Parece que vem alguém do aeroporto. Dillon entrou para a cabina principal e aceitou um rum que um dos elementos da tripulação lhe ofereceu.
Estava sentado a saborear a sua bebida quando um autocarro se aproximou. Ouviu-se a prancha de embarque a ser recolhida.
Os motores puseram-se em marcha. Dillon consultou o relógio: 5.30. Pousou o copo de plástico em cima da mesa, acendeu um cigarro e ao mesmo tempo deu-se conta de
que alguém se deixava cair ao seu lado.
- Que engraçado encontrá-lo, meu rapaz - disse Charles Ferguson. - Um calor dos diabos, hem?

Dillon tomou um banho rápido ao largo de Paradise Beach, ciente de que o Maria Blanco continuava ancorado lá fora. Depois, voltou para a cabana, tomou um duche e
vestiu umas calças de linho azul-escuro e uma camisa de manga curta de algodão branco. Saiu, atravessou o vestíbulo e bateu à porta do 7E.
- Entre - gritou Ferguson.
Dillon entrou. O apartamento era idêntico ao dele. De pé em frente ao espelho, envergando umas calças cinzentas e um blazer azul-escuro, Ferguson passou a gravata
dos Guards por um primoso
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nó à Windsor. Pegou num panamá e numa bengala de cana com castão de prata.
- Nunca reparei que necessitasse de bengala - comentou Dillon.
- Comprei-a durante a Guerra da Coreia. Miolo de aço com contrapeso de chumbo na ponta. Ah, e tem aqui um dispositivo bastante simpático. - Rodou o castão e puxou
de um punhal de aço de vinte e cinco centímetros de comprimento.
- Muito interessante - observou Dillon.
- Pois, enfim, sempre estamos em terreno desconhecido.
- Na sua opinião, qual deve ser o próximo passo? - perguntou Dillon.
- Bom, agora que você já se equipou no Stacey, suponho que esteja ansioso pela confrontação, um tiroteio no OK Corral?
- Limitei-me a tomar as minhas precauções - retorquiu Dillon. - E, obviamente, preciso do Semtex para abrir uma entrada no submarino.
- Se o encontrarmos - interpôs Ferguson. - E da rapariga, nem sinal.
- Ela há-de acabar por voltar. Entretanto, gostava de levar as coisas por diante com o Carney. Ele é-nos realmente indispensável.
- Mas como é que devemos abordá-lo? Será que uma oferta em dinheiro ajudava?
- Acho que não. Ou muito me engano, ou Carney é o género de homem que só faz uma coisa se realmente quiser, ou se a considerar justa.
- Oh, sorte! - suspirou Ferguson. - Deus me livre dos românticos deste mundo. - Olhou para o relógio. - Do que eu preciso agora é de me alimentar, Dillon. Onde é
que vamos?
- Podíamos ir lá acima à sala de jantar Turtle Bay. É mais formal, ao que me constou, mas excelente. Acabei de reservar uma mesa.
- Então, óptimo. E veja se enfia um casaco, santo Deus.

LÁ fora, na escuridão crescente de Caneel Bay, um bote pneumático encostou ao costado do barco de pesca desportiva de Carney, o Sea Raider. Algaro subiu a bordo,
transpondo a amurada, e entrou na ponte de comando, tirou uma caixinha electrónica do bolso, estendeu a mão por baixo do painel de instrumentos até detectar metal
e colocou a caixa no lugar, presa pelo seu íman.
Num instante, estava de volta.
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- Agora, o Privateer - disse ele, e Serra deu a volta e dirigiu-se ao barco de mergulho.

Envergando um fato de linho branco, Max Santiago estava sentado no bar de Caneel Bay tomando uma bebida mentolada quando Algaro entrou.
- Correu tudo bem? - perguntou Santiago.
- Perfeitamente. Pus um aparelho em cada um dos barcos. Ferguson já deu entrada, certifiquei-me no balcão de reservas. Dillon marcou uma mesa para dois lá em cima,
em Turtle Bay.
- Óptimo - retorquiu Santiago. - Talvez fosse divertido ir ter com ele.
O capitão Serra entrou.
- Mais alguma ordem, señor?
- Se Dillon fizer o mesmo que no outro dia, é capaz de passar pelo Jenny's Place - comentou Santiago. - Vá buscar alguns dos homens e leve-os para Cruz. Podem dar
largas às energias, se é que me faço entender.
- Perfeitamente, señor. - Serra sorriu e saiu.
No Convento das Irmãzinhas dos Pobres passava já da meia-noite, e Jenny Grant não conseguia dormir. Quando finalmente dormitou, teve um sonho meio a dormir, meio
acordada. Sonhou com o submarino alemão em águas sombrias e com Henry mergulhando. Querido Henry. Que tolice ter ido mergulhar e logo num sítio perigoso, inabitual,
onde normalmente as pessoas não iam ... Tinha de ser!
Acordou imediatamente.
- Oh, meu Deus, é claro! É tão óbvio! - disse em voz alta, no escuro.
Tinha de voltar para St. John.

Ferguson estava sentado no terraço de Turtle Bay fitando as ilhas ao longe. Pareciam recortes negros projectados de encontro ao céu manchado de laranja, enquanto
o Sol ia descendo.
- É verdadeiramente extraordinário - comentou ele, dando um gole num ponche de fruta.
- O Sol morrendo sumptuosamente - murmurou Dillon.
- Santo Deus, você tem queda literária, meu rapaz. Dillon rasgou um sorriso.
- Para ser franco, eu sou um génio literário, brigadeiro. Repre-
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sentei o Hamlet na Royal Academy. - A sua voz mudou subitamente para uma notável imitação da de Marlon Brando. - "Eu podia ter sido alguém. Podia ter sido um contendor."
- Deixe-se de sentimentalismos comigo nesta fase da sua vida, Dillon. Nunca vale a pena olhar para trás. Tenho a certeza de que sabe isso.
Santiago entrou pelas arcadas, com Algaro no seu encalço. Percorreu o terraço com o olhar, avistou Dillon e Ferguson e aproximou-se.
- Mr. Dillon? Max Santiago.
- Eu sei quem é, señor - replicou Dillon em excelente castelhano.
Santiago pareceu surpreendido.
- Felicito-o, señor - respondeu ele na mesma língua. - Uma tal fluência é rara num estrangeiro. É um prazer vê-lo em Caneel Bay, brigadeiro - acrescentou em inglês.
- Bom jantar, meus senhores - e foi-se embora, seguido por Algaro.
- Ele sabia quem o senhor é, sabia que cá estava - disse Dillon.
- Dei por isso. - Ferguson levantou-se. - Vamos jantar. Estou a morrer de fome.
A comida era excelente, e Ferguson deliciou-se. Começaram por escalopes de peixe grelhados com molho de piripiri e açafrão, seguidos por uma salada César e faisão
estufado. Ferguson devorou tudo, depois mandou vir chá.
- O que está a fazer o nosso amigo Santiago? - perguntou ele a Dillon.
- A jantar atrás de si, à ponta do jardim.
- Está, obviamente, a acossar-nos, Dillon, e quer que nós o saibamos. Temos de conversar com Carney. Você sabe onde ele possa estar?
- Sei, pois.
- Óptimo. - Ferguson levantou-se e pegou no panamá e na bengala de bambu. - Então, toca a andar.

Dillon entrou no parque de estacionamento de Mongoose Junction, desligou o motor e colocou a semiautomática belga, com o coldre, sob o tablier. Percorreram o paredão
até ao Jenny"s Place. Lá dentro, somente quatro mesas estavam ocupadas, e Carney estava sentado a uma delas. O capitão Serra e três dos seus homens estavam num compartimento
de canto. Dillon reconheceu Guerra da primeira noite.
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- Viva. - Mary Jones aproximou-se, e Dillon sorriu.
- Vamos sentar-nos com Carney. Champanhe, um qualquer!
Carney estava a acabar um bife com batatas fritas e tinha uma cerveja pousada ao lado.
- Mr. Dillon? - interrogou quando eles se aproximaram.
- Um amigo meu, o brigadeiro Charlei; Ferguson - apresentou Dillon. - Podemos fazer-lhe companhia?
Carney sorriu.
- Estou impressionado, mas devo adverti-lo, brigadeiro, de que só cheguei a cabo nos Marines. Sentem-se.
Santiago entrou, seguido por Algaro, e Serra e os outros levantaram-se.
- Temos companhia - disse Dillon a Ferguson.
O brigadeiro virou-se para olhar.
- Ah, que maçada - comentou.
Billy Jones trouxe uma garrafa de Pol Roger dentro de um balde de gelo, abriu-a e depois dirigiu-se ao compartimento para receber o pedido de Santiago. Dillon serviu
o champanhe, ergueu o copo e disse qualquer coisa em irlandês.
- O que diabo está você a dizer, Dillon? - interpelou-o Carney.
- É irlandês, a língua dos reis. Um brinde muito antigo: "Que o vento sopre sempre a teu favor." Adequado para um comandante. Afinal, você tem carta de patrão de
alto mar, entre outras coisas, não tem?
Carney franziu o sobrolho, voltando-se depois para Ferguson.
- Vamos lá ver se eu consigo encaixar as coisas. Ele trabalha para si?
- Por assim dizer.
Nesse momento, ouviu-se uma voz de mulher a protestar:
- Não faça isso, por favor!
A empregada que servia as bebidas à mesa de Santiago era uma rapariga franzina, loura, bastante engraçada. Era muito jovem, com um ar muito vulnerável. Algaro estava
a passar-lhe a mão pela perna.
- Odeio ver aquilo! - disse Carney, e a expressão endureceu-se-lhe.
A rapariga retirou-se, com a tripulação a rir-se, e Santiago olhou para o compartimento, directamente para Dillon. Sorriu, voltou-se e sussurrou a Algaro, que anuiu
com um aceno de cabeça e se levantou.
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- Bem, vamos a ver se mantemos a cabeça fria - disse Fergu-son.
Algaro atravessou a sala até ao bar e sentou-se num banco vazio. Quando a rapariga passou, pôs-lhe um braço à volta da cintura e murmurou-lhe ao ouvido. À beira
das lágrimas, a jovem debateu-se para se libertar.
Dillon olhou para o outro lado da sala. Santiago ergueu o copo e dirigiu-lhe um brinde. Carney levantou-se, pegou na cerveja e avançou para o bar. Afastou a rapariga,
despejou a cerveja por cima de Algaro e voltou para o seu lugar.
Toda a gente parou de falar, e Dillon tirou a garrafa do balde de gelo e tornou a encher o copo do brigadeiro.
- Seu vermezinho - bradou Algaro. - Vou partir-te um braço por isto.
Avançou para a mesa em passo rápido, e Carney voltou-se, preparando-se para se defender. Mas foi Dillon quem atacou primeiro, virando a garrafa ao contrário e partindo-a
na têmpora de Algaro, espalhando o champanhe. Algaro levantou-se, apoiado à borda da mesa, e Dillon atingiu-lhe o joelho de lado com um pontapé. Algaro soltou um
berro e tombou.
Os outros elementos da tripulação tinham-se levantado, pegando um deles numa cadeira, e Billy Jones precipitou-se de trás do balcão com um taco de basebol na mão.
- Larga isso ou chamo a Polícia. Ele estava a pedi-las. Levem-no daqui para fora.
- Nada de encrecas - disse Santiago em castelhano. - Peguem nele e vão-se embora.
Guerra e Pinto ajudaram Algaro a levantar-se e levaram-no lá para fora com os outros. Santiago pegou no copo, esvaziou-o e saiu.
- Ponha a refeição na minha conta, Billy - disse Carney, levantando-se. - Estou a ficar demasiado velho para este tipo de diversões. Vou para casa dormir. Foi muito
interessante, brigadeiro.
- Gostava de ir mergulhar amanhã de manhã - disse-lhe Dillon, enquanto ele se encaminhava para a porta. - Está disponível?
- Às nove. Encontramo-nos na doca - respondeu Carney, e saiu.
O seu jipe estava no parque de estacionamento de Mongoose Junction. Ele foi até lá e estava a abrir a porta quando uma mão o agarrou pelo ombro, obrigando-o a voltar-se.
Guerra socou-o na boca.
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- Ora muito bem, meu canalha, vamos lá ensinar-te a ter maneiras.
Serra encontrava-se a um ou dois metros de distância, apoiando Algaro, com Santiago a seu lado. Guerra e os outros atiraram-se a Carney. Carney deu-lhe um soco no
estômago e atingiu Pinto na cara com uma cotovelada, mas depois caíram-lhe todos em cima. Agarraram-no no chão, prendendo-lhe os braços, e Algaro arrastou-se até
junto deles.
- Ora então... - disse ele.
Nesse momento, Dillon e Ferguson dobravam a esquina. O irlandês atirou-se em corrida contra Algaro, que estava a levantar um pé para esmagar a cara de Carney, desequilibrando-o,
e deu um soco no queixo do homem mais próximo. Carney levantou-se imediatamente. Quando Serra avançou, Dillon e Carney prepararam-se para se defenderem, de costas
para o jipe. Subitamente, ouviu-se um tiro e ficaram todos imóveis. Ferguson tinha a semiautomática belga na mão.
- Ora vamos lá a deixar-nos de brincadeiras palermas, sim? - disse ele.
- Voltem para a lancha - disse Santiago em castelhano, depois de uma breve pausa. A tripulação afastou-se contrafeita, arrastando os pés. - Fica para a próxima,
brigadeiro - concluiu ele em inglês, e seguiu-os.
Carney limpou um pouco de sangue da boca com o lenço.
- Alguém é capaz de ter a amabilidade de me explicar o que se passa?
- Pois é, comandante Carney, precisamos de conversar - assentiu Ferguson rapidamente. - E quanto mais cedo, melhor.
- Está bem, eu rendo-me. - Carney sorriu com um ar infeliz. - Sigam-me, vamos até à minha casa. Não fica muito longe.
- Isso do submarino é a coisa mais estranha que já ouvi - disse Carney -, mas é perfeitamente possível. Eles andaram por estas águas durante a II Guerra Mundial.
- Abanou a cabeça. - Hitler no bunker, Martin Bormann. Se Bormann não se afundou com o navio, isso explicaria todas aquelas ocasiões em que foi visto desde a guerra.
- Bom - interveio Dillon. - Portanto, você aceita a existência do U-180. Mas onde estará ele?
Deixe-me ir buscar uma carta. - Carney saiu e voltou com uma carta, que desenrolou. - Se o tal furacão que eles mencionam
102
deu a volta, o que por vezes acontece, e se se aproximou vindo de leste, o submarino teria sido arrastado algures para sudoeste de St John.
- Indo acabar aonde? - perguntou Ferguson.
- Por certo que em nenhum sítio habitual. Quero com isto dizer que não seria num sítio em que as pessoas mergulhem. E digo-lhes mais: teria de ser numa profundidade
inferior a trinta metros. Henry era um mergulhador de recreio, o que significa que não é necessário fazer qualquer descompressão. Ora, o limite máximo para esse
tipo de mergulho são os quarenta metros, e a essa profundidade só disporia de dez minutos no fundo antes de ter de voltar à superfície.
- Nesse caso, está a dizer que ...? - perguntou Dillon.
- Para descobrir o destroço, entrar lá dentro, vasculhar e descobrir esse tal diário ... - Carney encolheu os ombros. - Eu diria que ele esteve uma meia hora no
fundo, pelo que a sua profundidade seria provavelmente de vinte e cinco metros ou coisa assim. Ora, os professores de mergulho passam a vida a levar turistas até
profundidades dessa ordem. É por isso que o destroço tem de estar num local bastante pouco usual.
- O senhor deve ter uma ideia - interveio Ferguson.
- Na manhã seguinte ao temporal, Henry saiu tão cedo que estava de volta pela hora em que eu ia a sair com um grupo. Cruzámo-nos um com o outro, e eu perguntei-lhe
por onde tinha andado. Ele respondeu que estivera no French Cap. - Carney abanou a cabeça - Eu vou muito ao French Cap, é um magnífico local de mergulho, mas se
o destroço lá estivesse, já teria sido descoberto.
- E capaz de imaginar mais algum sítio?
Carney franziu o sobrolho.
- Há o South Drop. Pode ser um sítio desses: uma longa escarpa descendo até aos cinquenta metros.
- Podemos ir lá dar uma vista de olhos? - perguntou Ferguson.
Carney voltou a analisar a carta.
- Não sei. Estritamente falando, isso fica em águas territoriais dos Estados Unidos.
- Ouça, por favor - disse Ferguson. - Nós não estamos a fazer nada de mal. Há documentos no U-180 que podiam dar ao meu governo motivos de preocupação. Só queremos
recuperá-los o mais depressa possível e sem fazer mal a ninguém.
- E Santiago, onde é que ele entra?
- Anda obviamente atrás do mesmo - retorquiu Ferguson. - Porquê, não sei ainda, mas hei-de saber, prometo.
103
- Você gosta de cinema, Carney - disse Dillon. - Santiago e o seu bando são os maus da fita, os mafiosos.
- E eu sou um dos bons? - Carney soltou uma gargalhada. - Ponham-se a andar e deixem-me dormir. Encontramo-nos às nove horas.
OITO
Estava uma bela manhã quando Dillon e Ferguson desceram até ao cais. O Sea Raider estava acostado, e Carney carregava as garrafas de ar comprimido.
- Bom dia - gritou ele. - Hoje, pensei em irmos no Sea Raider. O senhor é bom marinheiro, brigadeiro? - perguntou ele, virando-se para Ferguson.
- Meu caro amigo, acabo de passar por uma loja para comprar uns excelentes comprimidos para o enjoo, dos quais tomei não um, mas dois.
Ferguson entrou a bordo e subiu a escada de acesso à ponte de comando, onde se sentou com solitário aparato numa das cadeiras rotativas, enquanto Dillon ajudava
Carney com as garrafas. Concluída a tarefa, Carney subiu as escadas, foi ter com Ferguson e ligou os motores. Quando se afastaram do cais, Dillon entrou na cabina.
Enfiara o seu equipamento de mergulho dentro do bornal militar verde-azeitona. No fundo, estavam a carabina de assalto AK e a sua semiautomática belga. Dillon tacteou
por baixo do painel de instrumentos até dar com metal e fixou aí o coldre magnético com a arma.
Depois, subiu as escadas e juntou-se aos outros.
- Qual é o nosso rumo?
- Praticamente, sul, passando o estreito Pillsbury, depois sudoeste, para French Cap. - Carney sorriu a Ferguson quando o barco começou a levantar com as ondas ramo
ao largo. - Sente-se bem, brigadeiro?
- Quando não sentir, digo-lhe. Presumo que tenha pensado na eventualidade de ser seguido pelos nossos amigos do Maria Blanco.
- Por enquanto, não vi nada. Hão-de usar a lancha branca que vimos em Carval Rock. Há binóculos no armário.
Dillon tirou-os, ajustou a ocular e olhou para a ré.
- Nem sinal.
- Ora, acho estranho - observou Ferguson.
104
A lancha vinha lá, claro, só que uma boa milha mais atrás, com Serra ao leme. A seu lado, Algaro. Noval e Pinto atarefavam-se à popa com o equipamento de mergulho.
- Não há hipótese de os perdermos? - perguntou Algaro.
- De maneira nenhuma - retorquiu Serra. - Queres ver? - Ouvia-se um pingue-pingue regular e monótono vindo do painel que ele tinha à sua frente. Quando Serra virou
o leme, o ritmo do som aumentou, parecendo enlouquecer. - Vês? Isto diz-nos que lhe deixámos o rasto.
- Para onde vão eles? Fazes ideia? - perguntou Algaro. Serra tirou o guia de locais de mergulho da prateleira, abriu-o e examinou o mapa.
- O único assinalado aqui ao largo chama-se South Drop. - Folheou o manual. - Cá estamos nós. Há uma cordilheira a vinte metros de profundidade. É relativamente
frequentado.
- Há anos que alguém teria dado com o submarino - observou Noval.
- Seja como for, gostava de dar uma lição àqueles porcos - retorquiu Algaro.
Pinto consultou o guia.
- Parece ser um bom local de mergulho - disse ele a Noval -, só que têm sido assinalados por lá tubarões dos recifes.
- São perigosos? - perguntou Algaro.
- Depende. Se forem agitados, podem constituir uma verdadeira ameaça.
Algaro sorriu maliciosamente.
- Ainda temos algum daquele isco fedorento que vocês levaram ontem quando foram pescar? - perguntou ele a Noval.
Noval destapou um enorme balde de plástico. O cheiro era nauseabundo. Pedaços de peixe à mistura com entranhas, carne podre e óleo.
- Isso atrairia os tubarões num raio de milhas aqui à volta - disse Algaro.
Noval fez um ar horrorizado.
- Dava com eles em doidos.
- Óptimo. Então, fazemos o seguinte - Algaro voltou-se para Serra: - Quando eles pararem, damos-lhes tempo para mergulharem. Depois, avançamos a toda a velocidade,
despejamos este nojo borda fora e pomo-nos a andar. - Tinha um sorriso de completa felicidade. - Com um pouco de sorte, talvez Dillon fique sem uma perna.
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O Sea Raider estava fundeado, baloiçando na ondulação agitada. Uma refrega rodopiava, trazendo uma cortina de chuva e neblina. Ferguson estava sentado na cabina
a ver os outros prepararem-se.
Camey apertou o cinto de chumbo e voltou-se para Dillon.
- A propósito, você ficou com as minhas luvas de mergulho. Acho que lhes pegou ontem por engano, e eu fiquei com as suas. - Vasculhou o bornal de Dillon e deparou
com a carabina. - O que é isto? - perguntou, tirando-a cá para fora.
- Uma precaução - respondeu Dillon, calçando as barbatanas.
- Uma AK-47 é mais do que mera precaução. Eu estive no Vietname, Dillon. Já usei uma igual. - Camey tornou a enfiar a AK no bornal, depois abriu o paiol e tirou
um longo tubo com uma pega numa das pontas. - Agora, limito-me a usar uma pistola eléctrica ... quando os tubarões se tornam demasiado curiosos.
Dillon foi o primeiro a descer. Chegado à âncora, voltou-se e viu Carney aproximar-se, com a pistola eléctrica na mão esquerda. Carney acenou e avançou ao longo
do recife, detendo-se à beira de uma grande escarpa. A água era de uma transparência absoluta, e Dillon via a uma grande distância a escarpa dissipando-se lá em
baixo. De súbito, um tubarão passou-lhes perto. Camey voltou-se e fez um gesto de indiferença; Dillon seguiu-o.

Dando-se conta de que o vento trazia chuva, Ferguson refugiou-se na cabina, procurou o termo e serviu-se de uma caneca de café. Parecendo-lhe ouvir qualquer coisa
- um ruído surdo -, dirigiu-se à popa e pôs-se à escuta. Ouviu-se um ronco súbito quando Serra acelerou a lancha ao máximo e irrompeu da cortina de chuva. Ferguson
praguejou e precipitou-se para o bornal, dando-se conta de que os homens despejavam um balde para a
água. Quando empunhou a AK, já eles tinham desaparecido.
Dillon apercebeu-se de que alguma coisa se passava lá em cima, à tona de água, olhou e viu a quilha da lancha avançando a grande velocidade e em seguida o isco a
cair. Uma barracuda precipitou-se como um raio sobre um pedaço de carne. O irlandês sentiu um puxão no tornozelo, olhou para baixo e viu Camey acenar-lhe para que
descesse. Quando Dillon chegou junto dele, o americano estava espalmado contra o fundo. Mais acima, as águas agitaram-se, e um tubarão arremeteu como um torpedo.
Tal como Camey, Dillon deitou-se de costas, e olhava para cima quando um outro tubarão inflectiu
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na mesma direcção, de mandíbulas abertas. E então, para seu horror, um terceiro acometeu como um relâmpago. Um deles mordeu a barracuda, apanhando-lhe todo o corpo,
de que só deixou a cabeça a tombar na água.
Carney voltou-se para Dillon, apontou para a corrente da âncora, do outro lado da falha, e fez-lhe sinal para que se mantivesse junto ao fundo. Um tubarão passou
por ele a rasar com um ímpeto tremendo, deu a volta e acometeu de novo, quando Carney, que se encontrava por cima dele, junto ao cabo, disparou a pistola eléctrica.
Ouviu-se uma explosão: o tubarão afastou-se, vacilante, deixando um rasto de sangue.
Outros dois cercaram-no. Depois, um deles arremeteu de mandíbulas abertas. Mais ou menos a meio da corrente, Dillon viu o terceiro tubarão juntar-se ao retalhar
do que estava ferido. O sangue na água parecia uma nuvem. Dillon veio à tona ao lado de Carney e içou-se para bordo.
Sentou-se no convés, rindo nervosamente.
- É frequente isto acontecer?
- Há uma primeira vez para tudo. - Carney tirou a garrafa de oxigénio. - Nunca ninguém me tinha feito isto. - E voltando-se para Ferguson: - Presumo que tenha sido
a lancha. Fizeram um bom trabalho a perseguirem-nos sem darmos por isso.
- Quando peguei na AK, já tinham desaparecido - disse Ferguson.
- Devia ter-lhe dito, brigadeiro - observou Dillon. - Tenho o meu trunfo de manga guardado aqui por baixo. Talvez lhe tivesse chegado mais depressa.
Passou a mão por baixo do painel de instrumentos para procurar a pistola e tocou com os dedos no aparelho de escuta. Desprendeu-o e estendeu-o a Carney.
- Fomos sabotados, meu velho. Não admira que lhes tenha sido tão fácil seguirem-nos. Provavelmente, fizeram o mesmo ao Privateer.

A lancha acostou, e Serra e Algaro subiram a escada do Maria Blanco. Santiago encontrava-se debaixo do toldo da coberta de ré.
- Pareces satisfeito, Algaro - disse ele. - Andaste outra vez a matar gente?
- Espero que sim. - Algaro relatou os acontecimentos dessa manhã.
Santiago abanou a cabeça.
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- Duvido que Dillon tenha sofrido qualquer mazela que lhe fique para a vida. Esse tal Carney sabe muito do negócio. - Soltou um suspiro. - Não há nada a fazer até
a rapariga voltar. Voltamos para Samson Cay, Serra. Estou cansado deste sítio. Informe o Prieto da nossa chegada e telefone a um dos seus amigos pescadores de Cruz
Bay. Quando a rapariga chegar, onero ser informado imediatamente.

Quando Carney levava o Sea Raider em direcção a St. John, um iate a motor aproximou-se a grande velocidade. Carney apercebeu-se de que era o Maria Blanco.
- Olha, olha - disse ele. - O nosso querido amigo Santiago deve estar de partida para Samson Cay.
Carney aproximou de tal forma o seu barco que lhes foi possível verem Santiago à popa com Algaro.
- Tenham um muito bom dia - cumprimentou Dillon, debruçado sobre a amurada, e Ferguson levantou o seu panamá.
Santiago levantou-lhes o copo.
- O que foi que eu te disse? - perguntou ele a Algaro. - Provavelmente, os tubarões saíram-se pior.
Nesse momento, Serra aproximou-se com o telefone portátil.
- Uma chamada de Londres, sñnor: é Sir Francis.
- Francis - disse Santiago -, como está?
- Queria saber se já tinha descoberto alguma coisa.
- Não, mas não tem de se preocupar. Está tudo sob controle.
- Acaba de me ocorrer uma coisa. Não sei porque é que não pensei nisto antes. Os caseiros do antigo hotel de Samson Cay eram um casal negro de Tortola, May e Joseph
Jackson. Ela morreu há uns anos, mas ele ainda lá está.
- Compreendo - disse Santiago.
- O que eu quero dizer é que ele estava lá quando Bormann ... Percebe onde eu quero chegar. Peço desculpa, devia ter pensado nisso antes.
- Lá isso devia, Francis, mas não tem importância. Eu depois ligo-lhe.

Mais tarde, Dillon estava deitado numa espreguiçadeira na varanda da cabana quando Ferguson apareceu.
Acabo de me lembrar de uma coisa - disse o brigadeiro. - Esse tal refúgio de milionários em Samson Cay ... talvez fosse divertido ir lá jantar. Confrontar a raposa
na sua toca.
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- Por mim, acho bem - disse Dillon. - Podíamos ir de avião, se quisesse. Eles têm uma pista de aterragem. Passei-lhe por cima à vinda para cá, e o Cessna pousa tão
facilmente em terra como na água.
- Talvez consigamos convencer Carney a ir connosco. Passados dois minutos, Ferguson estava a falar com o administrador, Carlos Prieto.
- Daqui fala o brigadeiro Charles Ferguson. Estou hospedado em Caneel. Gostávamos de ir até aí de avião esta noite e ficar para o jantar. Seríamos três.
- Lamento, Sr. Brigadeiro, mas a sala de jantar é reservada aos nossos hóspedes.
- Que pena. Não me agrada nada desiludir Mr. Santiago.
- Mr. Santiago está à sua espera?
- Confirme com ele.
- Um instante, Sr. Brigadeiro. - Houve uma ligeira pausa enquanto Prieto telefonava a Santiago para o Maria Blanco. - Estaremos à sua espera às seis e meia, sete
horas, Sr. Brigadeiro.
- Óptimo. - Ferguson estendeu o telefone celular a Dillon. - Diga a Carney para ir ter connosco às seis ao Jenny"s Place com a melhor farpela que tiver - instruiu
ele, e saiu.
Eram 7 da tarde quando Jenny Grant chegou ao Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Entregou o carro alugado e fez reserva no primeiro voo para Londres. Havia lugar
no voo da manhã seguinte de Gatwick para Antígua. Com sorte, estaria em St. John ao fim da tarde.
Era a primeira vez desde a morte de Henry que se sentia bem e também um pouco excitada, e estava ansiosa por chegar a St. John para ver se tinha razão. Procurou
um telefone e ligou para o Jenny"s Place. Foi Billy quem atendeu.
- Billy? Sou eu, Jenny. Estou no Aeroporto de Paris. Volto amanhã, via Antígua. Vemo-nos por volta das seis.
- Que bom, Miss Jenny. Mary vai ficar muito contente.
- Billy, foi aí ter consigo um homem chamado Sean Dillon? Eu disse-lhe para ir à sua procura.
- Veio, veio. Tem andado por aí de barco com Bob Carney; ele e um tal brigadeiro Ferguson. Na verdade, acabo de falar com Bob e ele diz-me que vão encontrar-se aqui
os três, às seis.
- Óptimo. Dê um recado meu a Sean Dilleti. Diga-lhe que estou de volta porque acho que talvez saiba onde é que ele está.
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- Ele, quem? - perguntou Billy.
- Não importa. Diga-lhe só isso.

Quando Ferguson e Dillon entraram no Jenny"s Place, o movimento de fim de tarde enchia já meia casa. Bob Carney estava encostado ao balcão, envergando umas Calvas
de linho brancas e uma camisa azul, e tinha um blazer pousado no banco ao seu lado. Ferguson pousou a sua bengala de bambu em cima do balcão.
- Champanhe, patrão - pediu ele a Billy.
- Calculei que quereriam isso. Tenho aqui mesmo à mão uma garrafa de Pol Roger geladinha. - Tirou-a debaixo do balcão. - Agora, a surpresa que tenho estado a guardar.
- E que surpresa é essa? - perguntou Carney.
- Miss Jenny telefonou de França, de Paris. Deve estar de volta amanhã por esta hora. - Billy fez saltar a rolha com o polegar e encheu três copos. - Deu-me um recado
especial para si, Mr. Dillon. É para lhe dizer que acha que talvez saiba onde ele está. Isso faz algum sentido para si?
- Todo o sentido do mundo.
Ferguson ergueu o copo e brindou aos demais.
- Às mulheres em geral, meus senhores, e a Jenny Grant em particular. Magnífico. - Esvaziou o copo. - Bom. Vamos à luta - e encaminhou-se para a rua.
O pescador que estava ao fundo do balcão levantou-se e saiu atrás dele. Dirigiu-se ao telefone público e ligou para o Maria Blanco. Santiago estava no seu camarote
quando Serra entrou com o telefone.
- O meu informador diz que a rapariga chega amanhã à noite.
- Interessante - comentou Santiago.
- E isso não é tudo, señor. Ao que parece, mandou um recado a Dillon a dizer que acha que é capaz de saber onde ele está.
Santiago pegou no telefone.
- Daqui Santiago. Ora repita-me lá a sua história. - Santiago ouviu e disse por fim: - Bom trabalho, meu amigo. Será recompensado por isso. Mantenha os olhos abertos.

Estava uma noite clara e refrescante - condições climatéricas perfeitas. O voo do Cessna decorreu sem qualquer incidente, e quinze minutos exactos depois de deixar
Cruz Bay, Dillon fazia a sua primeira passagem por cima de Samson Cay. O Maria Blanco estava ancorado lá em baixo, a trezentos metros de terra. Viam-se
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inúmeros iates, e na praia algumas pessoas gozavam ainda o pôr do Sol.
Carlos Prieto saiu pela porta da recepção e olhou para o céu quando o Cessna passou lá por cima. Junto às escadas estava estacionada uma velha carrinha Ford com
um negro já idoso encostado a ela.
- Joseph - disse Prieto -, vai buscá-los à pista e traz-mos cá.
- É para já. - Joseph instalou-se ao volante e arrancou. Quando Prieto deu meia volta para voltar para dentro, apareceu Algaro.
- Ah, cá está o senhor. Tenho andado à sua procura. Temos por aí algures um velho chamado Jackson, Joseph Jackson?
- Temos sim, senhor. Era o condutor daquela carrinha que acaba de arrancar para a pista. Precisa dele?
- Não é nada de urgente - disse Algaro, e voltou para dentro.
Dillon desceu, executando uma aterragem perfeita, virou contra o vento e desligou o motor.
- Nada mal, Dillon - comentou Ferguson. - Não há dúvida de que você sabe pilotar um avião.
Saíram todos, e Joseph Jackson foi ao encontro deles.
- O carro está à espera ali adiante, meus senhores. Eu levo-os ao restaurante. Chamo-me Joseph Jackson. Tudo quanto queiram é só dizer. Ando por esta ilha há mais
tempo do que qualquer um.
- Ah, sim? - perguntou Ferguson. - Por acaso, não esteve por cá durante a guerra? Ouvi dizer que não havia cá ninguém.
- Não é bem assim - contradisse Jackson. - Havia aqui um velho hotel que pertencia a uma família americana, os Herberts. Durante a guerra, esteve desocupado, mas
a minha mulher e eu olhávamos pelas coisas.
Tinham chegado à carrinha quando Ferguson perguntou:
- Herbert, diz você? Eram eles os donos?
- O pai de Miss Herbert deu-lho de presente de casamento quando ela se casou com um tal Mr. Vail. - Jackson abriu a porta. - Ela depois teve uma filha. - Era óbvio
que o velhote estava a exibir-se.
- Então, Miss Herbert tornou-se Mrs. Vail, senhora que teve uma filha chamada Miss Vail? - disse Dillon enquanto entravam na carrinha.
Jackson ligou o motor e continuou a tagarelar enquanto se afastavam.
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- Só que Miss Vail depois tornou-se Lady Pamer. O que acham os senhores disso? Uma autêntica fidalga inglesa, tal qual nos filmes.
- Miss Vail tornou-se Lady Pamer? - interveio Ferguson. - Tem a certeza?
- Pois então eu não a conheci? Veio para cá no fim da guerra com o bebé, o pequeno Francis. Em Março de 45.
Fez-se um silêncio pesado.
- Esteve cá mais alguém nessa altura? - perguntou Dillon.
- Um cavalheiro alemão chamado Strasser. Apareceu por aí uma noite. Sir Joseph veio de Inglaterra em Junho e a seguir Mr. Strasser desapareceu.
Tinham chegado à entrada principal. Ferguson puxou de uma nota de dez libras e estendeu-a a Jackson.
- Muito obrigado.
- Obrigado eu - retorquiu Jackson. - Quando quiserem ir-se embora, estou às ordens.
Pararam os três ao fundo das escadas.
- Ora, agora já sabemos como é que o Santiago anda tão bem informado - comentou Dillon.
- Deus do céu! - exclamou Ferguson. - Um ministro da Coroa e uma das mais antigas famílias de Inglaterra!
- Encaixa tudo, brigadeiro - disse Dillon. - E quanto a Cárter?
Ferguson suspirou.
- Apesar de eu me estar borrifando para ele, é um patriota à moda antiga, honesto até mais não.
Carlos Prieto apareceu ao cimo das escadas.
- Sr. Brigadeiro Ferguson, que prazer. O senor Santiago aguarda-os no bar.
A sala do bar estava cheia de gente com ar de rica, como seria de esperar em tal sítio. A faixa etária tendia mais para o velho do que para o novo, especialmente
a dos homens, americanos na sua maior parte. Predominavam as calças de xadrez, imitação do escocês, fazendo sobressair barrigas generosas, e os casacos de smoking
brancos.
Santiago estava sentado num compartimento junto ao balcão, com Algaro debruçado sobre ele. Levantou-se e estendeu a mão de forma cortês.
- Meu caro brigadeiro Ferguson, que enorme prazer.
- Señor Santiago - retorquiu Ferguson formalmente -, há
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muito que anseio por este encontro. - Apontou para Algaro com a bengala de bambu. - Mas precisamos mesmo de ter esta criatura presente? Quer dizer, ele não poderia
ir dar de comer aos peixes ou coisa assim?
Algaro estava com ar de ter vontade de o matar, mas Santiago riu-se.
- Pobre Algaro. Receio que ele requeira um certo hábito ...
- O malandrete - disse Dillon, sacudindo um dedo para Algaro. - Agora, sê bom rapaz e vai ver se chove ou coisa assim.
Santiago voltou-se e dirigiu-se-lhe em castelhano.
- Ora então cá estamos nós - disse Ferguson quando Algaro saiu. - E agora?
- Um pouco de champanhe, talvez, um jantar agradável? - Santiago acenou a Prieto, que estalou os dedos para um criado que segurava uma garrafa de Krug dentro de
um balde de gelo. - Podemos ser civilizados, não é verdade?
O criado encheu os copos, e Santiago ergueu o dele.
- À sua, brigadeiro Ferguson, ao sucesso do Grupo Quatro. E à
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sua, capitão Carney, herói de guerra, patrão de alto mar e lendário mergulhador. E ainda à sua, Mr. Dillon, que por único rival só teve Carlos, o Chacal.
- Quer dizer que sabe tudo a nosso respeito - disse Ferguson. - Muito impressionante. Deve precisar desesperadamente daquilo que está dentro do submarino.
- Ponhamos as cartas na mesa, brigadeiro. Ambos queremos o conteúdo da pasta de Bormann. O senhor não quer que ele vá parar onde não deve. O velho escândalo de sempre,
as parangonas nos jornais. Ambos queremos o mesmo. Eu também não quero que isso aconteça.
- Quer dizer que a obra continua - disse Ferguson. - Os Kameraden? Quantos são os nomes incluídos nessa lista, nomes famosos, nomes antigos que prosperaram desde
a guerra à custa do dinheiro nazi?
- Vá lá - disse Santiago -, isso importa assim tanto, passados todos estes anos? - Bebeu mais um pouco do seu champanhe.
- Importa, sim - respondeu Ferguson. - Essa é que é a questão.
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Se a rede persiste ao longo dos anos, se os filhos, os netos, nela se vêem envolvidos, gente colocada em altos cargos, políticos, por exemplo. Imagine o que era
ter alguém bem colocado no seio do Governo: que útil isso seria.
Santiago sorriu.
- Julguei que conseguisse ser razoável, mas vejo que não. Eu não preciso de si, brigadeiro. Eu tenho mergulhadores e um vasto fornecimento de explosivos a bordo.
Os meus homens sabem o que estão a fazer. - Levantou-se. - Mas isto não nos está a levar a lado nenhum. Podemos ao menos jantar como homens civilizados. Por favor,
meus senhores, façam-me companhia.

A carrinha Ford parou ao lado da pista de aterragem. Algaro estava sentado no banco da retaguarda, atrás de Joseph Jackson.
- Era aqui que o senhor queria ficar?
- Acho que sim - disse Algaro. - Aquela gente que levou do avião, o que é que lhe pareceu?
- Uns senhores simpáticos - disse Jackson.
- Não. O que eu quero saber é se fizeram perguntas. Jackson começou a sentir-se pouco à vontade.
- A que género de perguntas se refere o senhor?
- Eles conversaram consigo, você conversou com eles. Acerca de quê?
- Bem, o senhor inglês... estava interessado nos velhos tempos. Eu disse-lhe que fui aqui caseiro durante a Grande Guerra.
- E o que mais lhe contou?
- Nada, juro. - Agora, Jackson estava assustado. Algaro apertou-lhe a parte de trás do pescoço.
- Conta!
Jackson tentou libertar-se.
- Falei-lhe dos Pamers.
- Conta - disse Algaro. - Conta tudo. - Deu-lhe umas palmadinhas na cara. - Não há problema. Só quero que contes a verdade.
Coisa que Jackson fez, e quando acabou, Algaro passou-lhe um braço pelo pescoço, pôs-lhe a outra mão em cima da cabeça e torceu, partindo-lhe o pescoço com limpeza.
Deu a volta, abriu a porta e empurrou o corpo para o exterior, deixando-o ficar com a cabeça mesmo por baixo do carro, junto à roda de trás. Puxou de uma faca e
esvaziou o pneu, levantou o carro com o macaco e tirou a roda. Quando deu um pontapé no macaco, a traseira da carrinha caiu em
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cima de Jackson. Algaro tirou o pneu sobresselente e pousou-o no chão. Depois, encaminhou-se para o Cessna.

O jantar estava excelente: asas de galinha com queijo Roquefort, sopa de frutos do mar, seguida de salmonete assado no forno. Ninguém pediu sobremesa. O criado serviu
café e chá, e nesse momento Algaro apareceu à entrada.
- Têm de me desculpar, meus senhores. - Santiago levantou-se e foi ao seu encontro. - O que é?
- Descobri quem era Jackson, era o tolo do velho que conduzia o táxi.
- E o que é que se passou?
Algaro contou-lhe resumidamente.
- Mas agora os nossos amigos sabem que Sir Francis está envolvido.
- Isso não faz diferença nenhuma, señor. Nós sabemos que a rapariga volta amanhã. Sabemos que ela crê saber onde está o submarino. Quem é que precisa dessa gente?
- Algaro - disse Santiago -, o que é que tu fizeste? Quando Santiago voltou para a mesa, Ferguson levantou-se.
- Magnífico jantar, Santiago, mas realmente temos de ir andando.
- Que pena. Foi uma experiência muito agradável.
- Foi, não foi? A propósito, tenho aqui uns presentes para si. - Ferguson tirou os dois aparelhos de escuta do bolso e pô-los em cima da mesa. - São seus, penso
eu. Dê cumprimentos meus a Sir Francis da próxima vez que falarem, ou posso eu dar-lhe a ele cumprimentos seus.
- Que forma elegante de dizer as coisas - disse Santiago, e sentou-se.
Quando chegaram à entrada principal, depararam com um Prieto de ar exaltado.
- Peço desculpa, meus senhores. Não faço ideia do que aconteceu ao táxi.
- Não tem importância - disse Ferguson. - A pé, pomo-nos lá em cinco minutos. Muito boa noite. O jantar estava magnífico.

Foi Carney quem reparou na carrinha junto à pista.
- O que é que se passa ali? - disse ele, e gritou: - Jackson? Não teve resposta. Aproximaram-se e imediatamente deram com o corpo.
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- Pobre diabo - disse Carney. - O macaco deve ter cedido.
- Incrível coincidência - observou Ferguson.
Dillon anuiu.
- Ele fala-nos de Pamer, e é tiro e queda: morre.
- Se Santiago sabia qualquer coisa em relação a ele, porquê esperar até agora? - objectou Carney.
- Mas não sabia - disse Dillon. - Até alguém lhe dizer.
- Refere-se a esse tal Pamer? - perguntou Carney. -
- Sim. Não é perfeitamente horripilante? - perguntou Ferguson. - Só mostra que não se pode confiar em ninguém hoje em dia. Vamos pôr-nos a andar.
Subiu com Carney para os bancos de trás do Cessna, e Dillon pegou numa lanterna e efectuou uma inspecção externa.
- Parece estar tudo em ordem.
- Não creio que o Santiago queira matar-nos por enquanto - opinou Ferguson. - Todas aquelas brincadeiras de mau gosto têm sido por provocação, mas ele ainda precisa
de nós para o conduzirmos ao submarino. Portanto, vamos andando, Dillon.
Dillon rodou a chave. O motor animou-se com um ronco. Ele verificou os manómetros.
- Combustível e pressão de óleo parecem bem.
Percorreu a pista com o Cessna e elevou-se na noite, virando para o mar alto.
Estava uma noite magnífica, as estrelas reluziam no céu, e lá em baixo o mar e as ilhas eram banhados pela intensa brancura do luar. St. John assomava lá adiante,
e foi então que tudo aconteceu - o motor falhou, engasgou-se e começou a dar rates.
- O que é que se passa? - perguntou Ferguson.
Dillon verificou os instrumentos e examinou a pressão do óleo.
- Estamos com problemas - disse ele. - Ponham os coletes salva-vidas.
Aos novecentos pés de altitude, o motor morreu por completo e a hélice parou. Dillon comandou o avião num mergulho acentuado.
- Temos Reef Bay mesmo em frente - disse Carney.
- Certo - anuiu Dillon. - Cá vamos nós.
A superfície da baía não parecia muito encapelada. Dillon fez uma aproximação para o que parecia ser uma aterragem perfeita e imediatamente qualquer coisa correu
mal. O avião tropeçou para a frente, depois afocinhou e mergulhou na água.
A água parecia vidro negro. Estavam já Completamente submersos e continuavam a afundar-se, tendo ainda muito ar na cabina.
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Dillon sentiu a água subir-lhes pelos tornozelos e de súbito a chegar-lhe ao peito, e as luzes do painel de instrumentos apagaram-se.
- Deus nos valha! - gritou Ferguson.
- Quando houver água suficiente para igualar a pressão, conseguimos abrir a porta - disse Carney. - Preparem-se para sair.
O Cessna pousou num trecho de areia limpa do fundo da baía, saltitou um pouco, depois assentou de lado. Os raios da lua cheia penetravam no mar, e, olhando pela
janela da carlinga quando a água lhe chegava ao pescoço, Dillon ficou surpreendido com o alcance visual de que dispunha.
- Respire fundo, brigadeiro - ouviu a voz de Carney a dizer. - Vamos subir juntos.
Ele próprio respirou fundo, abriu a sua porta, estendeu a mão para o suporte da asa e içou-se para o exterior. Viu Carney agarrado à manga do brigadeiro, tomou impulso,
apoiando os pés na asa, e começou a subir. Tudo aquilo parecia decorrer em câmara lenta, como se, curiosamente, se passasse num sonho, e então Dillon irrompeu à
tona de água e inalou profundamente o ar salgado.
Carney e Ferguson flutuavam a alguns metros de distância. Dillon nadou em direcção a eles.
- Estão bem?
- Dillon - disse Ferguson, ofegante -, devo-lhe um jantar. Devo-lhes um jantar aos dois.
- Dessa não escapa - disse Dillon. - Pode ser outra vez no Garrick.
Deram meia volta e nadaram em direcção à praia, Carney e Dillon um de cada lado do velho brigadeiro. Arrastaram-se para fora de água e sentaram-se na areia a recuperar.
- Há uma casa relativamente perto daqui - disse Carney. - Conheço bem os donos. Eles levam-nos ao povoado.
- E o avião? - perguntou Ferguson, exausto.
- Há uma firma de salvados em St. Thomas. Eu falo esta noite para casa do dono. - E voltou-se para Dillon. - O que é que se passou?
- A pressão do óleo enlouqueceu e foi isso que parou o motor.
- Devo dizer que a sua amaragem deixou muito a desejar - observou Ferguson.
- A amaragem foi boa - retorquiu Dillon. - As coisas só azedaram no último instante, e tem de haver uma razão para isso. Lembra-se de ter dito que achava que ele
não nos queria matar por enquanto, brigadeiro?
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- E então? - perguntou Ferguson. - O que quer você dizer com isso?
- Pois bem, eu acho que ele acaba de o tentar.

JÁ em Caneel, de regresso à cabana, Ferguson estendeu a mão para o telefone celular.
- Que horas são? - perguntou ele a Dillon.
- Quase meia-noite.
- Cinco da manhã em Londres. Horas de acordar. - E digitou o número de casa de Jack Lane.
Lane acordou com um resmungar, acendeu a luz de cabeceira e pegou no telefone.
- Daqui Lane.
- Sou eu, Jack - disse Ferguson. - Ainda está na cama? Tenho trabalho para si. Descobri como Santiago conseguia estar tão bem informado. Não lhe passava pela cabeça
que fosse através de Sir Francis Pamer, pois não?
- Santo Deus. - Lane sentou-se. - Mas porquê? Ferguson fez-lhe uma breve narrativa do que tinha acontecido, culminando na queda do avião.
- Dedique-se à família Pamer, Jack. De onde é que veio o dinheiro de Sir Joseph? Como é que Sir Francis consegue viver como um príncipe? Use as fontes habituais.
- Muito bem, meu brigadeiro. Vou pôr as coisas a andar imediatamente.
- Portanto, isto está tratado - disse Ferguson a Dillon. Carregou novamente nas teclas do telefone. - Mr. Prieto, fala Charles Ferguson, de Caneel. Tivemos uma noite
magnífica, um jantar excelente. Agradeça por mim a Mr. Santiago. - Pousou de novo o telefone.
- Diga-me uma coisa - disse Dillon. - Desde o princípio que o senhor sabia que viria a St. John, antes mesmo de eu cá chegar e de se tornar óbvio que Santiago sabia
quem eu era e do motivo por que eu cá estava.
- O que significa que...
- Que sabia que Pamer estava por detrás de qualquer coisa de errado antes de eu sair de Londres.
- É verdade - admitiu Ferguson. - Só não tinha quaisquer provas.
- Mas como é que soube?
- Por exclusão de partes. Afinal, quem é que sabia do caso?
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Henry Baker, a rapariga, o almirante Travers, eu, Jack Lane, você e o primeiro-ministro. Todos nós estávamos automaticamente postos de parte.
- Pelo que apenas restavam Cárter e Pamer.
- Cárter, como já lhe disse, é de uma total honestidade.
- Restava apenas o bom do Sir Francis.
- Exactamente, e isso parecia absurdo. - O brigadeiro sorriu. - Mas, meu caro, como creio que disse em tempos o grande Sherlock Holmes: quando se esgotam todas as
possibilidades, a resposta tem de estar no impossível.
NOVE
Na manhã seguinte, Santiago tomou um banho de mar, depois sentou-se, meditativo, na popa debaixo do toldo a tomar um café com torradas. Algaro esperava pacientemente
junto à amurada.
- Pergunto-me o que terá corrido mal - disse Santiago. - Afinal de contas, não seria teu cometeres um erro, Algaro.
- Eu sei o que faço e fiz aquilo que era necessário, señor, acredite, e eles sobreviveram. Malditos! - disse Algaro colericamente.
O capitão Serra apresentou-se.
- Alguma ordem, señor?
- Sim. - Santiago voltou-se para Algaro. - A seguir ao almoço, levas o Guerra e vais na lancha a St. John. A rapariga deve chegar por volta das seis da tarde. Vê
se descobres o que é que ela sabe.
Tudo era malícia no sorriso de Algaro.
- Às suas ordens, señor. Santiago voltou-se para Serra.
- Sou capaz de querer voltar para o nosso ancoradouro de Paralise esta noite. Depende do evoluir dos acontecimentos. Seja como for, ligue-me para Londres, para Sir
Francis.
Demorou vinte minutos, mas Serra localizou Pamer numa festa n' Hotel Dorchester.
- Max, como é que estão as coisas? - perguntou Pamer.
- Conseguimos localizar o Jackson, o velho de que você falou. Que memória! Lembrava-se de 1945 ao mais ínfimo pormenor. - Oh, não! - bradou Pamer.
- Felizmente, ele teve um acidente e foi desta para melhor. - Por favor, Max, eu não quero saber disso.
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- Não seja tolo, Francis. Não é altura para fraquezas. O velho Jackson contou tudo o que sabia a Ferguson. O que é bastante lamentável.
- Ferguson sabe? - Pamer sentia-se em estado de choque. - Da minha mãe e do meu pai, de Samson Cay, de Martin Bormann?
- Temo bem que sim.
- Mas o que é que você vai fazer?
- Livrar-me dele, obviamente. Da mesma forma que de Dillon e de Carney. A rapariga chega esta noite e tenho a informação de que ela sabe onde está o submarino.
Depois disso, não terá qualquer utilidade, é claro.
- Não, por amor de Deus - implorou Pamer com um arrepio súbito. - Acabo de me lembrar de uma coisa. Esta manhã a minha secretária reparou em indícios de que me andavam
a controlar as actividades financeiras através de computador. Eu não achei nada de especial. Afinal, quando se é ministro, eles fazem essas verificações para nossa
própria protecção.
- Muito bem. Descubra imediatamente a fonte e informe-me. - Santiago estendeu o telefone a Serra. - Sabe, Serra - disse ele -, é para mim um constante motivo de
surpresa a frequência com que me envolvo com gente estúpida.
Quando Ferguson, Dillon e Carney se dirigiam para Reef Bay no jipe deste último, viram o Cessna suspenso na ponta de uma grua à popa de um rebocador a escorrer água.
No convés estavam três homens de fato de mergulho e um de camisa de ganga e jeans. Carney assobiou. O homem acenou, depois saltou para um bote que se encontrava
junto ao costado do barco e arrancou para terra.
Avançou praia acima com a bengala de bambu de Ferguson na mão.
- Isto é de algum dos senhores? - perguntou ele, dirigindo-se a Carney.
- Estou em dívida profunda para consigo - disse Ferguson, estendendo a mão.
Carney apresentou-os.
- Qual é o veredicto?
- Não há dúvidas. - O capitão do salva-vidas voltou-se para Dillon. - Não é de admirar que o seu manómetro do óleo tenha perdido a cabeça. O bujão saltou. Uma pressão
dessa natureza habitualmente só é gerada quando há água no óleo em quantidade suficiente para entrar em ebulição e se transformar em vapor.
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- Não é um pouco estranho tanta água no óleo? - perguntou Carney.
- Não me compete a mim dizê-lo. O que é certo é que algum vândalo pretendia fazer-vos mal. Alguém andou a fazer das suas com um machado nos flutuadores. Por isso
é que a amaragem deu para o torto. - Abanou a cabeça - Vocês tiveram imensa sorte.
Quando Pamer ligou para Santiago, já era noite em Londres.
- Não podia ser pior - disse ele. - Aquele rastreio de computador foi autorizado pelo inspector Lane, assistente do Ferguson.
É uma investigação financeira que vai até muito atrás, Max. Estou liquidado.
- Mantenha a calma. Tendo em conta a altura em que Ferguson descobriu a sua implicação, é impossível que tenha falado com Cárter ou o PM, senão você já o saberia.
Ferguson não abriu o jogo. E eu mando alguém tratar do Lane.
- Por amor de Deus, não faça isso - murmurou Pamer. - Não suporto mais carnificina.
- Veja se de vez em quando se comporta como um homem - disse Santiago. - Uma vez que tenhamos a pasta, o Protocolo Windsor deve vir a revelar-se muito útil e deve
haver muita gente que daria tudo para esconder o facto de os pais aparecerem no Livro Azul. - Soltou uma gargalhada. - Não se preocupe, Francis. Muito havemos nós
de nos divertir com isto.
Eram 5.30 quando Jenny entrou no ferry para Cruz Bay. Até ao Jenny"s Place eram apenas umas centenas de metros à beira-mar, e quando ela entrou, havia já várias
pessoas ao balcão, encontrando-se Billy Jones do lado de dentro. Deu a volta ao balcão para ir ao seu encontro.
- Viva, Miss Jenny! Que bom vê-la de volta.
- Olá, Billy! Deu o meu recado a Sean Dillon?
- Claro que dei. Quer entrar em contacto com ele? Ele deu-me um número de telefone. - Foi até atrás do balcão e abriu a caixa registadora. - Cá está.
Mary transpunha nesse momento a porta da cozinha e ficou especada.
Jenny, voltou! - Deu-lhe um beijo na cara e segurou-a de braços estendidos. - Está com péssimo aspecto, querida.
Jenny sorriu-lhe.
- Nunca me senti tão cansada na minha vida.
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- Está a precisar é de comer, tomar um banho quente e de uma noite de sono.
- Isso é uma óptima ideia, Mary, mas eu tenho que fazer. Não diria que não a um cafezinho no escritório. Quero fazer um telefonema.

Algaro e Guerra tinham conseguido a morada de casa de Jenny Grant, em Gallows Point, através do seu contacto em Cruz Bay. Assistiram à acostagem do ferry e ao desembarque
dos passageiros. De vinte passageiros, apenas cinco eram brancos, três dos quais homens. Como a outra mulher tinha pelo menos sessenta anos, não restava dúvida quanto
à identidade da mais nova, que trazia a mala. Seguiram-na a uma distância discreta e viram-na entrar no café.
- Agora, o que é que fazemos? - perguntou Guerra.
- Esperamos - retorquiu Algaro. - Mais cedo ou mais tarde, ela há-de ir para casa.
Guerra encolheu os ombros, acendeu um cigarro e foram ambos sentar-se num banco.

- Daqui fala Dillon.
- E a Jenny. Acabo de chegar. Como têm andado as coisas?
- Bom, digamos que animadas. Tinha gente à espera quando cá cheguei, Jenny. Aquele tal Santiago tem andado por aí num iate a provocar o maior número de encrencas
possível.
- Porquê?
- Quer a pasta do Bormann. É tão simples quanto isso.
- Mas como é que sabe da existência do submarino?
- Houve uma fuga de informação do lado de lá, em Londres. Você tinha razão em relação a Carney.
É um tipo e peras, mas não conseguiu resolver o problema. Você acha
mesmo que pode ajudar, Jenny?
- É só uma ideia, tão simples que tenho medo de lha contar, portanto deixemos isso para quando nos encontrarmos. Só preciso de um duche quente e de me arranjar.
Encontramo-nos todos aqui no bar às sete e meia.
- Por mim, está bem.

Quando Jenny saiu do bar, Billy Jones acompanhou-a, levando a mala. Algaro e Guerra seguiram-nos até Mongoose Junction, vi-ram-nos entrar num jipe e arrancar.
- Aposto que ele vai levá-la a casa - disse Guerra.
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Algaro anuiu.
- Vamos andando a pé. Não é longe. Quando lá chegarmos, já ele se deve ter ido embora. Nessa altura, apanhamo-la.
- Não há sinais de Dillon nem dos outros dois, o que significa que ela ainda não teve hipótese de falar com eles.
- Talvez nunca venha a ter - comentou Algaro, sorridente. - A caminho.

No Ministério da Defesa, um pouco antes da meia-noite, havia ainda luz nas janelas do gabinete de Ferguson. Jack Lane concluiu a sua leitura preliminar dos primeiros
elementos a sair do computador, e que leitura interessante eles constituíam! Mas já fizera o bastante para uma noite. Enfiou-os na pasta, pô-la dentro da gaveta
com fechadura de segredo da sua secretária, pegou na gabardina e saiu.
Saiu pela porta da Horse Guards Avenue e avançou passeio fora. O jovem que se encontrava sentado ao volante do Jaguar roubado, do outro lado da rua, examinou a fotografia
com uma lanterna e ligou o motor. Lane olhou para a direita, mas tinha muito tempo para atravessar. Ouviu-se um ronco súbito. O inspector virou-se, tarde demais,
e o Jaguar embateu-lhe com uma violência tal que ele teve morte instantânea.
O jovem saiu para se certificar de que Lane estava morto, voltou para o carro e arrancou. Passados cinco minutos, abandonou o Jaguar numa rua lateral nos arredores
do Strand e afastou-se em passo rápido.

Em Gallows Point, Jenny tomou um demorado duche quente e lavou a cabeça, enquanto lá em baixo Billy varria o alpendre da entrada. Algaro e Guerra observavam dos
arbustos que havia ali perto.
- Raios o partam, porque é que ele não se vai embora? - bradou Algaro.
Passado um bocado, Jenny apareceu no alpendre. Vestia umas calças de linho claras e uma blusa de manga curta. Estava com um ar fresco e descontraído.
- Agora está melhor - disse Billy.
- Estou. Na verdade, sinto-me outra vez como se fosse gente. Agora, vamos, Billy.
Entraram no jipe e afastaram-se, e os dois homens saíram para a
estrada de terra.
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- E agora? - perguntou Guerra.
- Apanhamo-la depois - disse Algaro. - Para já, vamos até ao bar.

Estava quase escuro quando Dillon e Ferguson entraram no Jenny"s Place e depararam com a proprietária sentada ao balcão com Bob Carney. Ferguson levantou o chapéu.
- Miss Grant.
Ela estendeu a mão. Dillon segurou-lha durante um bocado, e verificou-se um certo embaraço entre eles.
- Correu tudo bem?
- Correu. Estive com a irmã de Henry. Peço desculpa por ter sido tão misteriosa. A verdade é que ela é freira. Das Irmãzinhas dos Pobres.
- Não fazia ideia disso - disse Carney.
- Não, Henry nunca falava dela, achava que ela estava para ali a enterrar-se para nada. Isso levou à ruptura entre eles. - Jenny respirou fundo. - Temos assuntos
para discutir.
- É verdade - disse Ferguson. - Somos todos ouvidos.
- Sim, Jenny. - Carney estava já entusiasmado. - Onde é que está o U-180?
- A resposta certa é: não sei - limitou-se ela a dizer.
Da expressão de Ferguson transpareceu uma certa consternação.
- Não sabe?
Dillon deteve-o, pondo-lhe uma mão no braço.
- Dê-lhe uma hipótese.
- Ponhamos as coisas nestes termos. Acho que talvez saiba onde é possível encontrar essa informação. - Jenny voltou-se para Carney. - O Rhoda ainda está fundeado
no porto, Bob. Leva-nos até lá?
- Claro, Jenny. - Carney levantou-se.
- O Rhoda? - perguntou Ferguson.
- O barco de Henry - explicou Carney. - Bom, vamos andando.
Desceram as escadas para a estrada e percorreram o paredão até ao cais. Algaro e Guerra viram-nos descer para um bote. Carney sentou-se à popa, ligou o motor fora-de-borda
e dirigiram-se para o ancoradouro.

Carney acendeu a luz da cabina e todos eles se juntaram lá dentro.
125
- Bom, Miss Grant - disse Ferguson -, estamos aqui todos, portanto o que é que tinha para nos dizer?
- É só uma ideia. - Jenny voltou-se para Carney. - O que é que muitos mergulhadores fazem a seguir a um mergulho, Bob?
- Referes-te à verificação do equipamento...
- Algo de mais elementar. Estou a pensar nos detalhes sobre o mergulho.
- Onde diabo quer ela chegar? - perguntou Ferguson.
- Acho que já percebi - disse Dillon. - Muitos mergulhadores escrevem diários de mergulho.
- Nisso, Henry era muito meticuloso. Habitualmente, guardava-o aqui dentro. - Jenny abriu o pequeno armário junto à roda de leme e imediatamente o encontrou. Estendeu-o
a Dillon. - Temo poder estar enganada. Leia você.
Dillon virou as páginas e leu a última.
- Diz que ele mergulhou a vinte e cinco, vinte e sete metros, num sítio chamado Thunder Point.
- Thunder Point? - bradou Carney. - Nunca me teria passado pela cabeça.
- O último registo diz o seguinte: "Lúcios de cauda amarela, anjos-do-mar, carpas douradas e um submarino alemão do Tipo VII, o U-180, num rebordo da parede leste."
- Graças a Deus - disse Jenny. - Eu tinha razão. Ferguson esfregou as mãos.
- Agora vamos ao que importa.
- Parece surpreendido com a localização - disse Dillon, diri-gindo-se a Carney.
- Thunder Point fica a cerca de doze milhas da costa. Fica longe de quase tudo. Nunca lá mergulhei. Ninguém mergulha; é o recife mais perigoso da região. A corrente
é tremenda.
- Pergunto-me porque é que Henry tentou sequer um mergulho - disse Jenny.
- O mar nessa manhã, a seguir ao temporal, estava mais calmo do que alguma vez vi - recordou Carney. - Suponho que ele tenha ido até lá pelo puro gozo de andar de
barco e descoberto que as condições estavam excepcionais.
- Bom - disse Dillon -, segundo o contra-almirante Travers, e ele falou muito com Baker, Bormann ocupava o camarote do comandante, na parte da frente do navio. O
único acesso é pela escotilha de vante, e Baker disse a Travers que ela estava soldada pela corrosão.
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- Muito bem - comentou Carney. - Então teremos de rebentar com ela.
- Eu arranjei Semtex e lápis-detonadores químicos - disse Dillon.
- Então, quando é que vamos? - perguntou Ferguson.
- Isso é com Carney - retorquiu Dillon. - O perito é ele. Carney acenou com a cabeça.
- O Santiago já não nos pode seguir, por isso podíamos sair à meia-noite, a coberto da escuridão, e mergulhar logo ao amanhecer.
- A mim parece-me bem - disse Dillon.
- Óptimo. Esta tarde deixei o Sea Raider em Caneel Bay, portanto podemos partir de lá. Você terá de ir buscar o tal Semtex de que falou.
- Mas não é para já - disse Ferguson. - Por agora, vamos jantar. Toda esta excitação provocou-me um senhor apetite.
Algaro e Guerra estavam à espreita quando eles voltaram para o bar. Passado um bocado, começou a chover, e abrigaram-se debaixo de uma árvore.
- Isto vai levar toda a noite? - perguntou Guerra.
- Leva o tempo que for preciso - retorquiu Algaro.
Lá dentro, jantou-se bem, e estavam no café quando o telefone celular de Dillon tocou. O irlandês atendeu, depois passou-o a Ferguson, do outro lado da mesa.
- É para si. Alguém de Londres. O brigadeiro pegou no telefone.
- Daqui Ferguson. - Ficou à escuta e de súbito ficou muito pálido e os ombros descaíram-lhe. - Peço desculpa - disse ele, abatido. Levantou-se e saiu.
- Que diabo se terá passado? - perguntou Carney.
- Bem, seja o que for, não é nada de bom - retorquiu Dillon. Nesse momento, Ferguson voltou e sentou-se.
- O meu assistente, Jack Lane, morreu.
- Oh, não! - bradou Jenny.
- Atropelamento seguido de fuga por volta da meia-noite. A Polícia encontrou o carro, com sangue por todo o lado. Roubado, evidentemente.
- Mais uma notável coincidência - comentou Dillon. - Ele estava à perna de Pamer, e num abrir e fechar de olhos é morto numa rua de Londres.
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Foi a primeira vez que ele viu despontar verdadeira raiva na
expressão de Ferguson.
- Isso não me tinha escapado, Dillon. Hão-de pagar a conta deles por inteiro, acredite. - Respirou fundo e levantou-se. - Vamos andando. Vem connosco, minha querida?
- Acho que não - respondeu Jenny. - Mas vou até Caneel vê-los sair. Só quero dar uma palavrinha à Mary.
Dirigiu-se à cozinha, e Dillon acenou a Billy, que estava na outra ponta do bar.
- Você e Mary podem passar a noite em casa de Jenny? - Tirou a semiautomática belga do bolso. - Fique com isto.
- Está assim tão feio? - perguntou Billy.
- Está muito feio.
- Nesse caso, isto é melhor. - Billy tirou um Colt automático .45 de debaixo do balcão.
- Óptimo. Tenha cuidado. Até amanhã.

Na cabana, Dillon foi buscar o bornal militar verde-azeitona com o Semtex, os detonadores, a AK, a Walther e o respectivo silenciador.
- Vamos voltar para a guerra? - perguntou Ferguson.
- Espero bem que não. Carney e eu já vamos ter o suficiente com que nos entreter só com o mergulho, mas se for preciso, está aqui tudo.
- Acha que conseguem fazer isto?
- Logo se vê. Sinto muito pelo Lane, brigadeiro.
- Também eu. - Ferguson tinha uma expressão triste. - Mas não perdem pela demora, Dillon, prometo-lhe. Bom, mãos à obra.
Carney levara o Sea Raider para o extremo do cais. Jenny estava sentada num banco a olhar lá para baixo, para o barco, enquanto o capitão verificava as garrafas
de ar. No bar do Terrace tocava um trio, e a música e os risos pairavam no ar da noite. Ferguson desceu para bordo, e Dillon voltou-se para Jenny.
- Você está bem?
- Optimamente - respondeu ela.
- Agora já falta pouco - disse ele. - Como dizia um poeta, todas as dúvidas debeladas, toda a paixão exaurida.
- E depois o que é que vai fazer? - perguntou ela. Dillon deu-lhe um beijo fugidio na cara.
- Menina, não pode deixar um homem recobrar o fôlego? - Tirou a semiautomática do bolso. - Meta isto na carteira e não me
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diga que não sabe o que fazer com ela. Puxe a segurança, aponte e dispare.
Ela aceitou-a com relutância.
- Acha que é necessário?
- Nunca se sabe. O Santiago já se nos antecipou demasiadas vezes. Billy e Mary tencionam ir passar a noite consigo.
- Você pensa em tudo, não pensa?
- Tento pensar. Seria preciso um homem dos valentes para se meter com Billy.
Desceu para bordo.
- Solta-nos as amarras, Jenny - pediu-lhe Carney.
- Tenha cuidado, minha querida - gritou Ferguson.
Jenny levantou um braço, enquanto o Sea Raider se afastava em direcção ao largo. Dillon olhou para trás e viu-a de pé junto ao candeeiro, à ponta do cais. Depois,
ela deu meia volta e afastou-se.
Subiu o caminho de acesso ao parque de estacionamento. Algaro e Guerra tinham estado à espreita na sombra e seguiram-na.
Havia ainda algumas pessoas no bar quando ela entrou, e Mary estava a ajudar uma empregada a levantar as mesas. Aproximou-se da ponta do balcão, e Billy foi ter
com elas.
- Então, já partiram? - perguntou ele.
- É verdade.
- Vai dizer-nos do que andam eles à procura, Miss Jenny? Não há dúvida de que anda toda a gente a agir de forma misteriosa.
- Talvez um destes dias, Billy, mas por enquanto não. - E soltou um bocejo.
- Não a apoquentes com perguntas tolas. Ela precisa de dormir. - Mary voltou-se para Jenny. - Mr. Dillon pediu-nos para passarmos a noite em sua casa e é isso que
vamos fazer.
- Está bem - respondeu Jenny. - Eu vou andando para casa.
- Devia esperar que fechássemos. São cinco minutos - disse Billy.
Ela abriu a carteira e tirou a semiautomática.
- Tenho esta coisa, Billy, e sei como usá-la. Não há-de haver problema. Até já.
Passados cinco minutos, estava em casa. Entrou e trancou a porta atrás de si, depois subiu as escadas, exausta. Estava muito calor no quarto, e Jenny dirigiu-se
às janelas da varanda e abriu-as. Tombaram uns quantos grossos pingos de chuva, e então caiu uma bátega de água como acontecia frequentemente à noite naquela
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época do ano. Ela ficou na varanda a gozar a frescura, depois voltou-se e deparou com Algaro e Guerra à entrada do quarto.
Era como se estivesse a sonhar, mas aquela cara medonha, o cabelo rapado e a cicatriz do olho à boca diziam-lhe que não. E apesar do seu cansaço, Jenny surpreendeu-se
a si mesma ao precipitar-se, passando por eles, de rompante para a porta. Quase o conseguiu, mas Guerra agarrou-a pelo pulso e fê-la dar a volta. Algaro atingiu-a
violentamente na cara, depois atirou-a para cima da cama. Jenny tentou tirar a arma da carteira. Algaro arrancou-lha da mão, virou-a de cara para baixo e torceu-lhe
o braço para cima. A dor foi terrível e ela soltou um grito.
- Estás a gostar, hã? - Algaro estava a divertir-se e atirou a arma fora. - Vamos experimentar outra coisa.
E nessa altura a dor foi a pior coisa que Jenny alguma vez sentira, e ela gritou a plenos pulmões. Algaro virou-a para cima, tornou a esbofeteá-la com violência
e puxou do bolso uma navalha de ponta e mola. Quando fez saltar a lâmina, Jenny reparou que era aguçada como uma navalha.
- Agora, vou fazer-te umas perguntas. - Passou-lhe a lâmina pela cara e picou-a de forma a fazer sangue. - Se te recusares a responder, corto-te o nariz, e isso
é só para começar.
Ela era apenas um ser humano e estava completamente aterrorizada.
- Tudo - suplicou.
- Óptimo. Onde é que podemos encontrar o destroço do U-180?
- Em Thunder Point - sussurrou ela.
- Vimo-los partir. Foram para lá mergulhar, certo? Ela hesitou, e Algaro tornou a esbofeteá-la.
- Sim - assentiu Jenny.
Ele deu-lhe uma palmadinha na cara, foi até à porta e fechou-a. Voltou-se, e o seu sorriso era a coisa mais cruel que Jenny alguma vez vira.
- Não disseste que farias tudo? - E começou a despir o casaco. Ela soltou novo grito, completamente histérica, levantou-se de
um salto, correu direita à varanda, embateu na balaustrada e saltou por cima dela, aterrando lá em baixo, no jardim.
- Deixa-a ficar para ali - disse Algaro. - Assim parece que foi um acidente. Agora vamos pôr-nos a andar.
Jenny ficou ali deitada, com a chuva a cair-lhe na cara. Passados cinco minutos, Billy e Mary Jones viraram para o caminho de entrada e encontraram-na estendida
na relva. Mary caiu de joelhos e
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tocou-lhe na cara. Nesse momento, Jenny gemeu e mexeu ligeiramente a cabeça.
- Graças a Deus! - exclamou Mary. - Está viva. Telefona para o médico.
DEZ
Santiago pousou o telefone.
- Thunder Point - disse ele a Serra.
- Teremos de analisar a carta, senor. - Santiago seguiu-o até à ponte, e Serra acendeu a luz que ficava por cima da mesa de cartas. - Ah, sim, aqui está.
Santiago passou os olhos pela carta, franzindo ligeiramente a testa.
- Dillon e companhia vão a caminho. Conseguíamos batê-los se partíssemos já?
- Duvido, señor, e aquilo é mar aberto: eles avistavam o Maria Blanco a milhas.
- Tem razão - disse Santiago. - Acho que vamos deixá-los fazer o trabalho por nós. Se forem bem-sucedidos, isso fará que se sintam bem. Hão-de voltar contentes,
talvez mesmo ligeiramente desprevenidos por acharem que ganharam o jogo.
- E nessa altura, senor?
- Logo se vê. Volte para St. John e fundeie ao largo de Paradise Beach.
A cabeça de Jenny estava voltada de lado, assente numa almofada. Ela estava muito pálida e nem se mexeu quando o médico lhe deu uma injecção.
- O que é que acha, Sr. Doutor? - perguntou Mary.
- Não há indícios óbvios de ossos partidos, mas é sempre de considerar fracturas em cabelo. Esperemos que pela manhã tenha recuperado a consciência. - O médico abanou
a cabeça. - Depois, transferimo-la para o Hospital de St. Thomas. Aí, poderemos examiná-la convenientemente. Fica com ela esta noite?
- Billy e eu não saímos daqui - disse Mary.
- Óptimo. A menor alteração, chamem-me.

Por volta das 3, entraram numa refrega violenta, insinuando-se a chuva por baixo do toldo da ponte, picando-lhes a cara como alfinetes. Carney desligou o motor.
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- É melhor irmos lá para baixo um bocado. Aliás, sabia-me bem um intervalo para o café.
Na cabina, Dillon procurou o termo e umas canecas.
- É altura de discutirmos como vamos fazer a coisa - continuou Carney. - Para um mergulho sem descompressão a vinte e cinco metros, podemos lá estar quarenta minutos.
- Portanto, um segundo mergulho seria problemático? - perguntou Dillon.
- Não percebo - disse Ferguson.
- O ar que respiramos compõe-se de oxigénio e azoto - explicou Carney. - Quando mergulhamos, a pressão leva a que o azoto seja absorvido pelos tecidos orgânicos.
Quanto maior é a profundidade, maior absorção há. Se ficarmos lá em baixo durante demasiado tempo ou viermos à superfície demasiado depressa, ele pode formar bolhas
nos vasos sanguíneos e nos tecidos, o que é perigoso. Podemos evitar isso limitando o tempo de permanência no fundo, principalmente no primeiro mergulho. Da segunda
vez, talvez precisemos de uma paragem de segurança a cinco metros para descomprimirmos lentamente.
Dillon acendeu um cigarro, fazendo cintilar o Zippo.
- Vamos mesmo ter de nos despachar a encontrar o raio do submarino.
- E colocar a carga no primeiro mergulho - completou Carney.
- Baker disse que ele estava assente numa saliência da parede leste.
Carney anuiu num aceno de cabeça.
- Não vamos perder tempo em mais sítio nenhum. - Engoliu o café. - Se tivermos sorte e descermos logo - sorriu -, somos capazes de entrar lá dentro num ápice e voltar
à superfície em vinte minutos.
- O que faria uma grande diferença para o segundo mergulho - disse Dillon.
- Sem dúvida. - A chuva tinha parado. O mar estava calmo de novo, e Carney olhou para o relógio. - São horas de irmos andando, meus senhores. - E tornou a subir
a escada de acesso à ponte.

A oriente, o Sol nascia à medida que o Sea Raider se aproximava de Thunder Point, com Carney à sonda.
- Lá está - disse ele, olhando para as linhas amarelas dentadas no ecrã. - Vá para a âncora - ordenou ele a Dillon. - Vou ter
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de manobrar um pouco para você acertar naquela crista a vinte metros.
Havia uma forte ondulação, e o barco, com os motores engatados, mantinha-se no lugar. Dillon sentiu o ferro a agarrar, gritou a Carney e o americano desligou os
motores. Carney desceu as escadas.
- Está uma corrente de três nós pelo menos.
- Devo dizer que a água parece excepcionalmente transparente - disse Ferguson. - Consigo ver o recife.
- Isso dá-me uma ideia - observou Carney. - Vou dar uma volta por ali para localizar o bordo da falésia. Com sorte, talvez consiga avistar o submarino. E mantendo-me
a pouca profundidade, isso não afectará o mergulho mais logo.
Puxou o fecho de correr do fato de mergulho, e Dillon ajudou-o a pôr a garrafa de ar. Carney colocou a máscara, sentou-se no banco de popa do barco e deixou-se cair
para trás. Cem metros mais adiante veio à tona e agitou os braços.
- Aqui!
Ao leme, dentro da cabina, Dillon ligou os motores.
- Tente levantar ferro, brigadeiro. Eu ando um bocado à vante. Ferguson deitou mãos à obra, enquanto Dillon procurava dar-lhe alguma folga. Por fim, resultou. O
brigadeiro soltou um grito de triunfo quando a âncora apareceu à superfície. Dillon deu um pouco de gás e avançou em direcção ao americano.
- Largue ferro aqui - gritou Carney quando eles chegaram junto dele.
Ferguson assim fez. Dillon desligou o motor, e Carney contornou a plataforma de mergulho e subiu para bordo.
- Estamos mesmo por cima do rebordo - disse ele. - Quase que jurava que consigo ver qualquer coisa saliente para lá de um ressalto da rocha. Vamos lá ver o que você
tem dentro do saco, Dillon.
Dillon tirou o bloco de Semtex, cortou um pedaço grande e enro-lou-o em longas salsichas. Carney optou pelos detonadores de oito minutos. Dillon enfiou tudo no saco
de mergulho, e Carney ajudou-o a envergar o equipamento. Depois, entregou-lhe uma lanterna à prova de água.
- Encontramo-nos junto ao ferro. Atenção à corrente. Dillon fez um aceno de cabeça, sentou-se na bancada e deixou-se cair para trás.

A ÁGUA era de uma extraordinária transparência e muito azul. Lá

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em baixo, a crista estava coberta de coral e esponjas em tons difusos de laranja. Enquanto Dillon esperava junto à âncora, passou um cardume de barracudas, e havia
alguns lúcios lá por cima.
A corrente era forte, tão forte que, quando ele se agarrou à corrente da âncora, ficou estendido de lado. Carney apareceu, flutuando, e acenou-lhe. Dillon foi atrás
dele, verificando o computador de mergulho. Chegados aos vinte metros, seguiu-o ao longo do rebordo da escarpa submarina, olhando a imensidão azul lá em baixo, e
viu à sua esquerda a grande mancha em que o coral tinha desaparecido e a massa do U-180, cuja proa emergia do ressalto rochoso.
Desceram até à torre de comando e da plataforma da peça superior baixaram até ao rombo de cinco metros do casco. Dillon ficou em sustentação enquanto Carney entrava
e verificou o seu computador de mergulho, constatando haver deixado o Sea Raider havia sete minutos. Acendeu a lanterna e entrou a seguir ao americano.
Carney estava agachado junto à escotilha circular de vante, tentando, sem êxito, girar a roda de abertura. Dillon abriu o saco de mergulho, tirou o Semtex e entregou-lhe
um rolo. Juntos cumpriram a tarefa, encarregando-se Dillon da parte de cima da escotilha e Carney da parte de baixo, comprimindo o plástico até perfazerem um círculo
completo. Carney estendeu a mão enluvada, e Dillon entregou-lhe dois paus de detonador. Carney partiu o primeiro e introduziu-o no Semtex na parte de cima. Imediatamente
surgiu uma pequena espiral de bolhas. Fez o mesmo em baixo.
Dillon olhou para o computador: dezassete minutos. Carney acenou-lhe com a cabeça, e o irlandês saiu através da fenda, elevou-se até à borda do penhasco, foi direito
à âncora e subiu corrente acima, levando Carney no encalço.

- Encontraram-no? - perguntou Ferguson.
- Exactamente como Carney disse - retorquiu Dillon. - Entrámos num ápice e tornámos a sair. Tudo em vinte minutos, nem mais. Vinte minutos!
Carney substituía as garrafas de ar por umas novas.
- Há vinte anos que mergulho e nunca vi nada de parecido. Dillon acendeu um cigarro.
- Morde-te de inveja, Santiago.
Subitamente, a superfície do mar elevou-se, esparramando a agua. A espuma irrompeu em círculos concêntricos divergentes por sobre a ondulação. Ficaram os três a
observar junto à amurada até a agitação diminuir.
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- Já está - disse Carney por fim, e voltaram a envergar o equipamento.
Dillon seguiu-o na descida, dando-se conta de um movimento na água, como de ondas de choque, que antes não existia. Carney ficou em suspensão sobre o rebordo da
falésia, e quando Dillon chegou junto dele, apercebeu-se do problema. A explosão fizera levantar a popa do submarino. A proa, que sobressaía sobre o abismo de seiscentos
metros, estava a cair.
Agarraram-se à balaustrada da torre, ao lado da peça, e Dillon sentiu mesmo o navio a mexer-se. Se a popa subisse mais uns centímetros, o U-180 resvalaria para o
esquecimento. Dillon não conseguia aceitar isso.
Virou-se para descer, mas deu-se conta de que a mão de Carney o retinha. Conseguiu libertar-se com uma pirueta e, dirigindo-se para a fenda do casco, impeliu-se
para o interior da sala de controle. Estava tudo num caos devido aos efeitos da explosão. Acendeu a lanterna e avistou o buraco rasgado no sítio onde estivera a
tampa da escotilha.
Lá dentro estava escuro, muito mais escuro do que ele esperara. Assestou a lanterna e, ao impelir-se através do rombo, apercebeu-se de um estranho rangido, ao mesmo
tempo que o navio balançava. Tarde demais para retirar.
A sala de rádio e a cabina de som ficavam à direita; os alojamentos do comandante, do lado oposto. Havia aí um armário de metal, uma porta pendente, a estrutura
de um beliche. Percorreu o aposento com o feixe da lanterna e viu-a pousada a um canto, coberta de sedimento - uma pasta metálica.
Passou-lhe uma mão por cima, provocando um reflexo prateado-baço. Nesse momento, o chão inclinou-se alarmantemente e tudo pareceu deslocar-se. Dillon foi de encontro
à antepara, largando a pasta. Pegou-lhe de novo e dirigiu-se para a escotilha. O seu colete ficou preso e ele estacou, debatendo-se freneticamente, ciente de que
o barco continuava a inclinar-se. Então, Carney esgueirou-se rombo dentro para o soltar.
O americano voltou-se e avançou para o rombo no casco, e Dillon foi-lhe no encalço, todo o navio resvalando agora, produzindo estranhos rangidos de metal a raspar
no rebordo. Carney transpôs a abertura, deixando-se levar em direcção à superfície, e Dillon subiu para se lhe juntar à beira da escarpa. Quando se viraram para
olhar para trás, a grande silhueta em forma de baleia do U-180 deslizava pelo rebordo e mergulhava no vazio.
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Chegados à corrente da âncora, Dillon verificou o seu computador. Mais vinte minutos, o que estava perfeito, e seguiu lentamente corrente acima. Mas Carney não queria
correr riscos. A cinco metros de profundidade, parou, e Dillon colocou-se a seu lado, com a mala na mão direita. Podia apostar que Carney sorria.
Ali ficaram durante cinco minutos, depois vieram à tona junto à popa para darem com Ferguson ansiosamente debruçado para o mar.
- Santo Deus, parecia o fim do Mundo - disse ele. - O mar teve uma erupção. Parecia ter entrado em ebulição. O que é que aconteceu?
- O submarino estava assente num ressalto, brigadeiro, como sabe - disse Carney. - A força da explosão fez que ele começasse a mexer-se. Mas este idiota decidiu
entrar apesar de tudo.
- Saquei a pasta, não saquei? Depois, todo o navio começou a resvalar, arrastando-me com ele porque fiquei preso na escotilha. Um louco destravado de nome Bob Carney
é que me puxou.
Carney olhou borda fora.
- Uma grande queda. É a última vez que alguém há-de ver o U-180. É como se nunca tivesse existido.
- Ah, existiu, sim - retorquiu Ferguson. - E nós temos isto para prová-lo. - E levantou a pasta, pálido de excitação.
A pasta não tinha muita sedimentação agarrada, e a sua superfície foi surpreendentemente fácil de limpar; a insígnia da Kriegsmarine gravada no canto direito estava
perfeitamente nítida. Carney abriu os fechos e tentou abrir a tampa, depois fez força com a faca na fechadura. Ouviu-se um estalido, e a pasta abriu-se.
Os documentos encontravam-se dentro de envelopes fechados. Ferguson abriu o primeiro, tirou uma carta e passou-a a Dillon.
- O especialista em línguas é você.
Dillon leu em voz alta as ordens pessoais de Martin Bormann.
- A assinatura é de Adolf Hitler - disse ele, devolvendo-a.
- A sério? Isso havia de valer uns milhares num leilão do Christie"s. - Ferguson estendeu um envelope grande. - Veja lá este.
Dillon tirou lá de dentro uma volumosa capa. Folheou algumas Páginas.
- Isto deve ser o Livro Azul, uma lista alfabética de nomes, Coradas, um parágrafo por baixo de cada uma, uma breve súmula acerca do indivíduo.
- Veja se Pamer está aí.
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Dillon depressa o verificou.
- Está. "Major, Sir Joseph Pamer, Military Cross, membro do Parlamento." Diz que é politicamente idóneo e totalmente dedicado ao nacional-socialismo. - Passou os
olhos por várias outras páginas e assobiou baixinho. - Eu sei que não passo de um pacóvio irlandês, brigadeiro, mas alguns dos nomes que aqui estão nem o senhor
imagina. Parte da nata de Inglaterra. E alguns americanos também.
Ferguson deitou um olhar a umas quantas páginas com uma expressão grave.
- Quem teria imaginado? - Estendeu outro envelope. - Veja lá este.
Continha diversos documentos, e Dillon deu-lhes uma breve vista de olhos.
- São pormenores de contas de banco numeradas na Suíça, na América do Sul e nos Estados Unidos. Mais alguma coisa?
- Só isto. - Ferguson passou-lhe o sobrescrito. - E isso sabemos nós o que deve ser, o Protocolo Windsor.
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Dillon tirou a carta, escrita em inglês num papel de magnífica qualidade, quase pergaminho, e leu-a em voz alta.
- Santo Deus - exclamou Carney. - Se isso for autêntico ...
- Exactamente. - Ferguson voltou a enfiar a carta no respectivo envelope. - Se for autêntico. Os nazis eram mestres consumados em falsificações. - Mas tinha a tristeza
estampada no rosto ao fechar a pasta.
- E agora? - perguntou Carney.
- Voltamos para St. John, Dillon e eu fazemos as malas e voltamos para Londres. Tenho um Learjet à espera em St. Thomas. O pnmeiro-ministro é um homem que gosta
de ouvir as más notícias sem perda de tempo.

O Maria Blanco fundeara a meio da manhã ao largo de Paradise oeach, e Algaro e Guerra tinham-se dirigido imediatamente para lá na lancha. Sentado à sua enorme secretária
no salão, Santiago escutou enquanto eles recapitulavam os acontecimentos da noite anterior, depois voltou-se para Serra.
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- Diga-me qual é a sua opinião, capitão.
- Aquilo fica longe, senor, e no regresso navegarão sempre contra o vento. De qualquer maneira, eu diria que hão-de estar de volta muito em breve.
- Então, o que é que fazemos - perguntou Algaro. - Apanhamo-los esta noite?
Santiago abanou a cabeça.
- Não. Segundo as nossas informações, Ferguson tem um Learjet pronto a descolar em St. Thomas. Temos de agir em cima do acontecimento. Tu e o Guerra vão a terra
num dos botes, vestidos de turistas. Deixam o pneumático junto da cabana número sete. O Serra dar-vos-á um walkie-talkie a cada um para que possam comunicar. Tu,
Algaro, ficas junto à cabana. Tu, Guerra, vais até Caneel Beach, e quando o barco de Carney chegar, avisas Algaro. Ferguson e Dillon têm forçosamente de ir à cabana
para fazer as malas. E então que atacas. Quando estiveres de volta, piramo-nos daqui para fora. Lembra-te de que a pasta é perfeitamente identificável, é de alumínio.
- Regressamos a San Juan, señor? - perguntou Serra.
- Não - retorquiu Santiago. - Samson Cay. Quero ter tempo para pensar na próxima jogada. O conteúdo daquela pasta pode dar à minha vida um sentido completamente
novo, Serra. - Abriu uma das gavetas da direita. Lá dentro encontravam-se várias pistolas. Escolheu uma Browning High Power e empurrou-a para Algaro. - Não me deixes
ficar mal.
- Não hei-de deixar - disse Algaro. - Se eles tiverem a mala, havemos de trazer-lha.
- Oh, claro que a têm. - Santiago sorriu. - Tenho plena confiança no nosso amigo Dillon. É um rapaz com sorte.

Quando o Sea Raider acostou a Caneel Bay, Guerra viu Dillon prender as amarras, voltar a bordo e depois tornar a sair com o bornal numa das mãos. Ferguson vinha
atrás dele, transportando a pasta, com Carney ao seu lado.
Guerra pôs um chapéu branco que, com as abas para baixo, lhe ocultava parcialmente os traços, ajustou os óculos escuros e avançou praia acima em direcção ao ponto
em que surgia o passadiço de acesso ao cais. Chegou quase ao mesmo tempo que os outros três e que uma recepcionista que lhes acorrera ao encontro vinda do átrio
da recepção.
- Ah, capitão Carney, vi-o chegar. Há um recado urgente para
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si. Billy Jones pediu que lhe transmitisse que Jenny Grant teve um acidente na noite passada. Caiu de uma varanda em casa. Ainda lá está. Vão transferi-la dentro
em breve para o Hospital de St. Thomas.
- Meu Deus! - exclamou Carney, e acenou com a cabeça para a rapariga. - Eu trato disso.
- Mais um acidente - disse Dillon em tom azedo, e entregou o bornal a Ferguson. - Vou vê-la.
- Pois claro, meu rapaz - replicou Ferguson. - Entretanto, eu vou voltar para a cabana, tomar um duche, fazer as malas e por aí adiante.
- Até logo. - Dillon voltou-se para Carney. - Você vem?
- Evidentemente - replicou Carney, e afastaram-se em passo rápido em direcção ao carro estacionado ali perto.
Ferguson seguiu o caminho que levava às cabanas fronteiras a Caneel Bay. Guerra parou, resguardado por uns arbustos, e, usando o walkie-talkie, estabeleceu contacto
com Algaro.
- Ferguson vai a caminho. Os outros foram ver a rapariga.
- Foram o quê? - Algaro ficou abalado, mas depressa se recompôs. - Está bem, vai ter comigo ao lado de baixo da cabana.

Ferguson encostou a pasta ao lado da escrivaninha. Devia estar satisfeito, disse para consigo, mas acontecera tanta coisa. Joseph Jackson, pobre velhote, e Jack,
o melhor polícia com quem alguma vez trabalhara. E agora Jenny Grant. Santiago tinha muito de que dar contas. Trancou a porta de entrada, depois dirigiu-se para
a casa de banho e ligou o chuveiro.
Guerra e Algaro entraram no vestíbulo. Guerra tentou abrir a porta com cuidado. Abanou a cabeça, e Algaro dirigiu-se para o exterior. Não havia ninguém por perto,
e o luxuriante jardim protegia muito das vistas. Por cima deles, sobressaía uma grande varanda.
- E fácil - disse Algaro. - Sobe para esse muro, agarra-te à árvore e eu faço-te um estribo com as mãos. Consegues chegar ao parapeito. - Entregou-lhe a Browning.
- Eu espero à porta.
Segundos depois, Guerra estava na varanda. De Ferguson nem sinal. Guerra girou a maçaneta da porta, que se abriu. Puxou da Browning, dando-se conta do barulho do
chuveiro, percorreu o quarto com o olhar e, não deparando com qualquer sinal imediato da Pasta, dirigiu-se à porta de entrada e abriu-a. - Não encontro a pasta -
sussurrou ele.
140
Mas Algaro encontrou, avançou em passo rápido para a escrivaninha e pegou-lhe com ar de triunfo.
- É isto. - Pegou na Browning. - Vamos.
Ao voltarem-se para a porta, Ferguson surgiu, vindo da casa de banho num roupão de turco. A surpresa estampou-se-lhe imediatamente no rosto, mas não perdeu fôlego
com palavras - atirou-se pura e simplesmente a eles. Algaro atingiu-o na têmpora com a Browning e, quando Ferguson caiu sobre um joelho, arremessou-o de flanco contra
a parede.
- Vamos! - gritou, e arremeteu porta fora.
Ferguson conseguiu levantar-se. Atravessou o quarto, cambaleante, abriu a porta da varanda e saiu a tempo de ver Algaro e Guerra a correrem em direcção ao pequeno
areal. Empurraram o pneumático para a água, ligaram o motor e afastaram-se da praia. Foi então que, ao levantar os olhos, Ferguson se apercebeu de que o Maria Blanco
estava ancorado ao largo.
Furioso, foi buscar os binóculos e assestou-os no iate. Viu Algaro e Guerra correrem ao encontro de Santiago, que estava sentado debaixo do toldo, com o capitão
Serra ao seu lado. Algaro pôs a pasta em cima da mesa. Santiago pousou-lhe as mãos em cima, depois voltou-se e dirigiu a palavra a Serra. O capitão afastou-se, seguindo
para a ponte. Passado um momento, começaram a levantar ferro.
E então algo de estranho aconteceu. Com se se apercebesse de estar a ser observado, Santiago levantou a pasta com uma mão e acenou com a outra.

Foi Billy quem abriu a porta da casa de Gallows Point a Dillon e Carney.
- Bons olhos os vejam - disse ele.
- Como é que ela está? - perguntou Carney.
- Não está lá muito bem. Mary e eu encontrámo-la quando vínhamos de carro para cima depois de fecharmos. Mary vai para St. Thomas com ela.
- Ela consegue falar? - perguntou Dillon enquanto subiam as escadas.
- Falou há cerca de uma hora. Foi por si que perguntou, Mr. Dillon, mas não disse grande coisa.
Billy saiu.
- Tem a cara em muito mau estado - observou Carney.
- Eu sei - retorquiu Dillon num tom severo. - E não ficou
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assim devido a um acidente. Se ela tivesse caído de cara de uma altura daquelas, teria ficado com ela completamente desfeita. - Pegou-lhe na mão, e ela abriu os
olhos.
- Dillon?
- Exactamente, Jenny.
- Desculpe, Dillon, desculpe tê-los deixado ficar mal.
- Não deixou, Jenny. Nós descobrimos o submarino. Carney inclinou-se sobre ela.
- E encontrámos a pasta de Bormann.
Ela não sabia propriamente o que estava a dizer, mas prosseguiu:
- Eu disse-lhe, Dillon, eu disse-lhe que vocês tinham ido para Thunder Point.
- Disse a quem, Jenny?
- Ao homem da cicatriz, da cicatriz grande. - Apertou-lhe a mão. - Ele magoou-me muito. Nunca ninguém me magoou assim. - Fechou os olhos e deixou-se adormecer.
Quando Dillon se voltou, a raiva na sua expressão parecia uma
criatura viva.
- Algaro ... é um homem morto. Juro. - Passou de raspão por Carney e dirigiu-se para a porta. - Seria provavelmente meia-noite quando ele descobriu que tínhamos
ido para Thunder Point, e não houve qualquer sinal de confronto, nem lá nem à volta. - Deteve-se. - Temos de voltar depressa para Caneel.

Quando Dillon bateu a porta do 7E, Ferguson abriu, segurando um pano carregado de cubos de gelo de encontro à cabeça.
- O que é que se passou? - perguntou Dillon.
- O Algaro, foi o que se passou. Eu estava no duche e a porta trancada, mas saí da casa de banho e lá estava ele com um dos outros cúmplices. Fiz o que pude, Dillon,
mas ele tinha uma Browning. Deu-me com ela na cabeça.
- Deixe ver. - Dillon examinou a contusão. - Podia ser pior.
- Eles tinham um pneumático na praia e zarparam em direcção ao Maria Blanco. Estava ancorado lá adiante.
Dillon puxou os estores.
- Pois bem, já não está.
- Para onde será que ele foi? - Ferguson carregou o cenho. - Vi Al garo entregar-lhe a pasta com estes binóculos.
- Eu disse a Carney para dar uma vista de olhos pela praia e que nos encontraríamos com ele no bar - disse Dillon. - Vamos, é melhor irmos dar-lhe a má notícia.
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Ferguson e Dillon partilhavam uma mesa no canto mais escuro do bar. O brigadeiro saboreava um grande whisky com gelo, ao passo que Dillon se contentava com uma água
mineral e um cigarro. Carney avançou em passo rápido ao encontro deles.
- Então? - perguntou Dillon.
- Informei-me junto de um amigo que estava a pescar ao largo. Passaram por ele rumo a sueste, o que quer dizer que vão a caminho de Samson Cay.
- Óptimo - riu-se Dillon. - Tenho-o na mão.
- O que diabo quer você dizer? - perguntou Ferguson.
- Esta noite, o Maria Blanco há-de estar fundeado ao largo de Samson. Nós entramos a coberto do escuro e eu vou buscar a pasta.
Ferguson soltou um suspiro.
- Você não desiste facilmente, pois não, Dillon?
Dillon serviu-se de um pouco mais de água e ergueu o copo.
- Nunca vi razão para isso.
ONZE
A noite caía enquanto Dillon e Ferguson esperavam no banco do cais de Caneel, com o saco pousado no chão entre ambos.
- Ora cá está ele - disse Ferguson, e apontou. Dillon viu o Sea Raider aproximar-se, passando lentamente por entre os iates ancorados. - Por aquilo que eu conheço
do Santiago, estaria em crer que ele está preparado para repelir abordagens. Você acha mesmo que consegue sair-se desta?
- Tudo é possível. - Dillon sorriu. - Anime-se, brigadeiro. Não tenciono morrer em Samson Cay. Afinal, estou ansioso por voltar a jantar consigo no Garrick Club.
Quando o Sea Raider entrou na doca, Dillon saltou a distância que o separava do molhe e em seguida atirou um cabo ao brigadeiro. Carney desligou os motores e desceu
a escada enquanto eles procediam à amarração.
- Já reabasteci, portanto podemos partir quando quiserem.
- Muito bem. - Ferguson passou o saco a Dillon e transpôs a amurada. - Nesse caso, acho que seria melhor irmos andando.
- Com certeza - retorquiu Carney -, mas gostaria de saber como é que vamos resolver esta situação. Mesmo no escuro, só podemos aproximar-nos sem sermos vistos até
um certo ponto.
- A mim parece-me que a solução lógica seria aproximarmo-
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-nos por debaixo de água - retorquiu Dillon. - Só que em relação a isso não há "nós", Carney. Santiago e a sua gente são tipos perigosos e eu também. Pergunte ao
brigadeiro. É assim que eu ganho a vida, e isto é tarefa para um só homem.
- Ouça cá - bradou Carney -, eu sei aguentar-me à bronca.
- Acredito, e você tem as medalhas para o provar, mas o Vietname era diferente. E se eu lhe dissesse que tenho andado toda a vida na guerra? Que quando tinha idade
para andar a sair com raparigas, andava a combater numa guerra em que o campo de batalha eram os telhados e becos, fugindo às tropas pára-quedistas britânicas pelos
esgotos de Belfast?
- O que é que está a tentar dizer-me? - perguntou Carney.
- Que quando eu transpuser a amurada do Maria Blanco, matarei quem quer que se atravesse no meu caminho. - Dillon encolheu os ombros. - Eu sou capaz de o fazer sem
hesitação e não creio que você seja, e graças a Deus por isso.
Fez-se silêncio. Carney voltou-se para Ferguson, que esboçou um aceno de cabeça.
- Temo que ele tenha razão.
- Está bem - concordou Carney relutantemente. - Eu aproximo-me do Maria Blanco tanto quanto nos for possível e fundeio. Depois, levo-o lá no pneumático do Privateer.
Apanhamo-lo no caminho. - Dillon tentou falar, mas Carney interrompeu-o. - Nada de mas. E assim que vai ser.
- Está bem - retorquiu Dillon. - Seja feita a sua vontade.
- E, Dillon, se alguma coisa der para o torto, eu entro. Carney subiu a escada para ligar os motores, e Dillon desamarrou os cabos. Passado um bocado, dirigiam-se
para a baía.

Santiago estava sentado no salão a ler os documentos da pasta de Bormann pela terceira vez. A informação era tão surpreendente que as possibilidades de aproveitamento
eram intermináveis. Nunca nada o havia fascinado tanto na vida. O Livro Azul era o mais interessante. Todos aqueles membros do Parlamento, pares do reino, gente
das mais altas posições na sociedade, que tinham apoiado, embora secretamente, a causa do nacional-socialismo. Pegou no telefone e ligou para Francis Pamer, que
foi todo ouvidos.
- Max, aconteceu alguma coisa?
- Bem pode dizê-lo. Tenho-a comigo, Francis, aqui mesmo em cima da secretária: a pasta de Bormann, e o Koverttenkapitän Paul Friemel tinha razão. O Reichsleiter
não estava só a falar por falar
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quando se encontrava bêbedo. Está tudo aqui: a ordem de Hitler, as contas de banco, o Protocolo Windsor.
- Caramba! - disse Pamer.
- E o Livro Azul, Francis, absolutamente fascinante. Tantos nomes célebres e um pequeno parágrafo explicativo sobre cada um deles. Há aqui um interessante: "Major,
Sir Joseph Pamer, Military Cross, membro do Parlamento, Hatherley Court, Hampshire, politicamente idóneo, dedicado à causa do nacional-socialismo."
- Não - gemeu Pamer. - Não posso acreditar.
- Pergunto-me o que é que a sua associação conservadora local faria com isto. Seja como for, ainda bem que fui eu a apanhá-la e não outra pessoa.
- Você vai destruí-la, evidentemente - disse Pamer. - Isto é, vai destruir toda essa porcaria.
- Eu cá tratarei de tudo, Francis. Como sempre. - Santiago pousou o telefone e desatou à gargalhada. Estava ainda a rir quando o capitão Serra se aproximou.
- Tem alguma ordem, señor?
Santiago olhou para o relógio. Passava pouco das 7.
- Tenho. Vou a terra durante umas horas e janto no restaurante.
- Muito bem, señor.
- E certifique-se de que o convés é vigiado esta noite, Serra. Só para o caso de os nossos amigos resolverem fazer-nos uma visita.
- Não se preocupe, señor. Hei-de tomar todas as precauções.
- Óptimo. - Santiago pegou na pasta. - Prepare a lancha.

O Sea Raider aproximou-se sub-repticiamente da parte ocidental de Samson Cay, do outro lado do cabo em relação à estância de veraneio. Carney desligou os motores
e desceu as escadas, enquanto Dillon largava ferro. Carney consultou o relógio.
- Dez horas. Quando é que você vai?
- Talvez daqui a uma hora. Logo se vê. - Dillon entrou na cabina, pegou no saco, tirou a carabina AK-47 e passou-a a Ferguson. - Pelo sim, pelo não.
- Esperemos que não. - Ferguson pousou-a em cima do banco.
Dillon tirou a Walther de dentro do saco, examinou-a e enfiou-a dentro do saco de mergulho juntamente com o silenciador Carswell Enfiou também o que restava do Semtex
e dois lápis detonadores de trinta minutos. Depois, sorriu.
- Saque aí do termo, brigadeiro, e tomfemos um cafezinho. A seguir, passamos à acção.
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Carney contornou o cabo devagar com o bote pneumático, resu-mindo-se o seu ruído a um murmúrio na noite. Havia iates dispersos pela baía aqui e ali e algumas embarcações
mais pequenas. Fundeado a trezentos metros da costa, o Maria Blanco era de longe o maior.
Carney desligou o motor e ajustou ma par de remos às forquetas.
- O resto do caminho é à força de braço - disse ele. - Talvez consiga levá-lo até cinquenta metros do barco sem ser avistado.
- Perfeito.
Dillon tinha já colocado o colete e a garrafa de ar e um gorro de mergulho de nylon preto. Tirou a Walther do saco de mergulho, atarraxou o silenciador e enfiou-a
dentro do colete.
- É melhor rezar para que ela não lhe falhe - disse Carney enquanto remava. - A água provoca estranhos efeitos nas armas.
- Com a Walther não há problema - retorquiu Dillon. - É um Rolls-Royce.
Não conseguiam ver-se um ao outro, os respectivos rostos eram uma mancha difusa no escuro.
- Você gosta mesmo deste tipo de coisas? - perguntou Carney.
- Não estou certo de que gostar seja propriamente a palavra certa.
- Eu conheci tipos assim no Vietname. Principalmente das Tropas Especiais. Não paravam de receber missões difíceis, e acontecia uma coisa estranha: acabavam por
querer mais. É isso que você sente, Dillon?
- Há um poema de Browning, qualquer coisa sobre o nosso interesse por estarmos do lado perigoso das coisas. Nos meus primeiros tempos no IRA, vivi mais num dia do
que antes vivera num ano em Londres.
- Eu entendo. É como estar-se metido num género de droga, mas só há uma forma de isso acabar: de costas numa qualquer sarjeta de Belfast.
- Oh, não se preocupe com isso - retorquiu Dillon. - Esse tempo já lá vai. Nunca hei-de voltar a isso.
Carney fez uma pausa, fungando.
- Acho que sinto o cheiro a fumo de charuto.
A lancha de Santiago surgiu do lado oposto de uns quantos iates e dirigiu-se para o fundo da escada iluminada do Maria Blanco. Guerra e Solona encontravam-se na
coberta, cada um deles armado com uma carabina M-16. Guerra correu escada abaixo para amarrar
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a lancha, e Santiago, fumando um charuto cubano, subiu para a coberta seguido de Algaro.
- Parece que leva uma pasta - observou Carney. Dillon colocou o visor de infravermelhos.
- Tem razão. Provavelmente, tem medo de a perder de vista.
- E agora? - perguntou Carney.
- Esperamos um bocado para eles se acomodarem.

Dillon focou o visor de infravermelhos e distinguiu Solona por entre as sombras junto ao salva-vidas da proa. À popa, Guerra estava sentado debaixo do toldo a fumar
um cigarro, com a carabina em cima da mesa.
Dillon estendeu o visor a Carney.
- É todo seu. Eu vou andando.
Deixou-se cair para trás, mergulhou a cerca de três metros e meio de profundidade e aproximou-se do iate. Veio à tona junto à popa da lancha, que se encontrava amarrada
ao fundo da escada. Subitamente, Solona apareceu lá em cima, na plataforma. Dillon submergiu quando ele começou a descer. Solona deteve-se a meio da escada e acendeu
um cigarro, o fósforo tremeluzindo. Dillon emergiu, tirou a Walther do colete e estendeu o braço.
- Aqui - sussurrou ele em espanhol. Solona ergueu os olhos, e a Walther, com o seu silenciador, cuspiu quando Dillon o alvejou no meio dos olhos. Solona caiu de
lado para trás, escorregou por cima do corrimão e caiu à água de uma altura de três metros e meio.
Guerra levantou-se.
- Eh, Solona, és tu?
- Si - sibilou Dillon. - No hay problema.
Ouviu Guerra percorrer o convés lá em cima. Submergiu e nadou até à proa. Enfiou a Walther no fato de mergulho, depois tirou o colete e a garrafa de ar, prendeu-os
à corrente da âncora e içou-se por ela acima, deslizando para dentro do barco.
Deitado no seu beliche, Algaro envergava apenas uns calções devido ao calor sufocante. Tinha a vigia aberta e ouviu Guerra chamar Solona. Ouviu também a resposta
de Dillon. Guerra tornou a chamar em voz baixa:
- Solona, onde estás?
Algaro pegou no revólver e saiu.

Guerra dirigiu-se para o convés e chamdu, com a M-16 a postos.
- Aqui, amigo - disse Dillon, e quando Guerra se voltou,
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alvejou-o duas vezes no coração, atirando-o para trás de encontro à antepara.
Dillon avançou cautelosamente. Não ouviu qualquer barulho atrás de si, mas de súbito deu-se conta do cano de um revólver encostado ao seu pescoço. Algaro esticou
o braço e pegou na Walther, depois atirou a sua arma borda fora.
- Volta-te. Vou dar-te dois tiros no bucho para levar muito tempo.
Dillon voltou-se e com o braço esquerdo desviou o direito de Algaro para o lado, fazendo que a Walther disparasse para o convés.
- És bom a bater em mulheres - disse o irlandês. - Que tal és com um homem?
Algaro rodopiou, exercendo toda a sua força, e empurrou Dillon para trás de encontro à amurada de proa. Dillon deixou-se cair sobre a borda, arrastando Algaro consigo;
o mar era território seu.
Ao mergulharem, Algaro começou a debater-se, e Dillon agarrou-o bem, puxando-o para baixo, sentindo a corrente da âncora nas costas. Agarrou-se a ela com uma mão
e passou um antebraço pela garganta de Algaro. A princípio, Algaro debateu-se com extrema violência, batendo os pés, mas depressa perdeu forças. Por fim, imobilizou-se.
Com os pulmões quase a rebentarem, Dillon desapertou o cinto de pesos. Colocou-o à volta do pescoço de Algaro, prendendo-o à corrente da âncora.
Veio à tona, inalando grandes golfadas de ar. Ocorreu-lhe então que Carney devia estar a observar através do visor nocturno, voltou-se e acenou, depois içou-se de
novo pela corrente acima.

Manteve-se a coberto das sombras, avançando convés fora até chegar ao salão. Olhou pela vigia e viu Santiago sentado à secretária, com a pasta aberta, a ler. Dillon
agachou-se, depois decidiu-se. Tirou o Semtex do saco de mergulho, introduziu nele dois detonadores de trinta minutos e atirou-o por um dos ventiladores da casa
das máquinas, depois espreitou de novo pela vigia.
Santiago tornou a meter os documentos dentro da pasta, fechou-a e entrou no camarote. Dillon abriu a porta do salão, e quando se precipitava para a pasta, Santiago
voltou para o salão.
Um gemido de angústia irrompeu-lhe da boca.
- Não! - gritou ele, e Dillon correu para a porta.
Santiago abriu a gaveta da secretária, pegou num Smith & Wesson e disparou à queima-roupa. Serra surgiu vindo do seu camarote, a re da ponte, com uma arma na mão.
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- O que é que se passa? - perguntou ele.
- Detenha-o! - gritou Santiago. - É o Dillon.
Dillon manteve-se a coberto das sombras, correndo para a popa, e saltou por cima da amurada. Mergulhou o mais fundo que conseguiu, mas a pasta tornava as coisas
difíceis. Veio à tona, apercebendo-se de que disparavam contra ele, e nadou para a escuridão. Acabou por ser Carney a salvá-lo, emergindo da noite com um ronco e
atirando-lhe um cabo.
- Agarre-se - gritou ele, e, acelerando, demandou a cumplicidade da escuridão.

- Guerra está morto - disse Serra. - O corpo ainda aqui está, mas não há sinais de Solona nem de Algaro.
- Não importa - retorquiu Santiago. - O barco de Carney deve estar por perto. Havemos de lhes detectar o movimento no radar. Levante ferro.
Serra carregou no botão do guincho eléctrico, e o motor começou a gemer.
- O que é que se passa? - perguntou Santiago.
Os três membros remanescentes da tripulação - Pinto, Noval e Mugica - desceram ao convés de vante, e Serra inclinou-se por cima da balaustrada da ponte.
- A corrente do ferro está encravada. Vejam lá o que é.
- E Algaro. Está preso à corrente.
Santiago e Serra desceram as escadas e precipitaram-se para a proa, espreitando por cima da amurada. Algaro pendia da corrente da âncora com o cinto de pesos à volta
do pescoço.
- Meu Deus! - bradou Santiago. - Puxem-no, idiotas! Vamos pôr-nos a andar já - disse ele, voltando-se para Serra.

Quando o pneumático acostou ao Sea Raider, irrompendo da escuridão, Ferguson debruçou-se ansiosamente à popa.
- O que é que se passou? - perguntou ele. Dillon passou-lhe a pasta lá para cima.
- Passou-se isto. - Subiu para a plataforma de mergulho, amarrou firmemente o cabo do pneumático, depois dirigiu-se à proa e recolheu a âncora. Carney subira já
à ponte de comando.
Ferguson foi ter com ele.
- Como é que correu?
- Ele não faz prisioneiros, isso lhe garante eu - respondeu Carney, ligando os motores. - Vamos embora daqui.
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O Sea Raider sulcou as águas noite dentro, com um vento refrescante de quatro a cinco nós. Ferguson estava sentado na cadeira rotativa, e Dillon encostado à amurada,
junto de Carney.
- Eles são mais rápidos do que nós, como sabe - observou Carney. - E ele não vai desistir de nos perseguir.
- Eu sei - retorquiu Dillon. - Ele não gosta de perder. Foi Ferguson quem primeiro avistou o Maria Blanco.
- Há uma luz lá ao fundo. Tenho a certeza. Dillon assestou o visor nocturno.
- Há, sim. É o Maria Blanco.
- Não há dúvida de que tem um bom radar naquela coisa - observou Carney. - É impossível despistá-lo.
- Ah, isso é que não é - retorquiu Dillon. - Não pare.

Na ponte do Maria Blanco, Serra passou um par de binóculos nocturnos a Santiago. Santiago focou-os e sorriu. Debruçou-se por cima da balaustrada. Mugica, Noval e
Pinto aguardavam no convés de vante com carabinas M-16 na mão.
- Já os vimos. Preparem-se.
Serra aumentou a velocidade, fazendo o Maria Blanco cavalgar a crista das ondas.
- Agora é que vamos ver, Dillon - murmurou Santiago.
Quando a explosão ocorreu, foi fulminante, arrancando o fundo ao iate. Foi tão catastrófica que nem Santiago, nem Serra, nem os três membros sobreviventes da tripulação
tiveram tempo de se aperceber de nada, enquanto o seu mundo se desintegrava e o Maria Blanco se erguia no ar e em seguida mergulhava sob as ondas.

A primeira coisa que viram da ponte de comando do Sea Raider foi um intenso clarão de fogo cor de laranja e depois, passados um ou dois segundos, ouviram a explosão
ressoar pelo mar. E então o fogo desapareceu, extinguindo-se, deixando a escuridão. Carney desligou o motor e fez-se um enorme silêncio.
- Têm muito que descer - disse Ferguson.
- Bem, o U-180 ainda desceu mais. - Dillon olhou pelo visor nocturno. - Ele disse que tinham explosivos a bordo, não se lembram?
- Devíamos voltar para trás - comentou Carney. - Talvez haja sobreviventes.
- Acha que sim? - perguntou Dillon cortesmente. - St. John é Para ali.
150
Pouco passava das 10 da manhã seguinte quando uma enfermeira os levou ao quarto particular do Hospital de St. Thomas. Jenny estava recostada nas almofadas, com a
cabeça envolvida em ligaduras. Conseguiu esboçar um sorriso.
- Os meus três mosqueteiros. Bob Carney pegou-lhe na mão.
- Como estás?
- Metade do tempo nem dou por que estou aqui.
- Isso há-de passar, minha querida - disse Ferguson. - Tive uma conversa com o médico de serviço. Você tem uma ligeira fractura do crânio. Nada que um bom tratamento
não cure. Tudo de que precisar é só pedir. Está tudo tratado.
- Obrigada, brigadeiro. - Voltou-se para Dillon e fitou-o sem falar.
- Eu depois volto cá, querida - disse Carney. - Toma cuidado. - Virou-se para Ferguson, que acenou, e saíram.
Dillon sentou-se na borda da cama e pegou-lhe na mão.
- Está com péssimo aspecto.
- Eu sei. E você, como está? Como é que correu tudo?
- Eu estou óptimo. O brigadeiro tem o Learjet à espera no aeroporto. Vamos levar a pasta do Bormann para Londres.
- Dito assim, parece que foi fácil.
- Podia ter sido pior. Não se preocupe mais, Jenny. Não há motivo para isso. O Santiago e os amigos, aquele animal do Algara... nunca mais voltarão a incomodá-la.
- Tem a certeza disso?
- Como se lhes tivesse fechado o caixão - respondeu ele friamente.
- As pessoas não mudam, pois não? - Ela tinha a tristeza estampada na cara.
- Eu sou como sou, Jenny - limitou-se ele a dizer. - Mas você já sabia.
- Será que torno a vê-lo?
- Acho pouco provável. - Beijou-lhe a mão, levantou-se, di-rigiu-se para a porta e abriu-a.
- Dillon - chamou ela. Ele voltou-se.
- Sim, Jenny?
- Deus o abençoe, e tenha cuidado consigo.

Carney acompanhou-os ao Learjet. Um dos dois pilotos ajudou
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o bagageiro a arrumar as malas, enquanto Dillon, Ferguson e Carney esperavam ao fundo das escadas. O brigadeiro levantou a pasta.
- Obrigado por isto, capitão Carney. Se alguma vez precisar de ajuda ou eu puder retribuir... - Apertaram as mãos. - Cuide de si, meu amigo. - E subiu as escadas.
- E agora, o que é que acontece? - perguntou Carney. - Em Londres, quero eu dizer.
- Isso depende do primeiro-ministro - retorquiu Dillon. - Depende do que ele queira fazer com aqueles documentos.
- Passou-se tudo há muito tempo - disse Carney.
- Isso é um ponto de vista legítimo. Carney hesitou.
- E esse tal Pamer. O que vai ser dele?
- Na realidade, não tinha pensado nisso - respondeu Dillon calmamente.
- Ah, tinha, sim. - Carney abanou a cabeça. - Deus o ajude, Dillon, porque você nunca há-de mudar. - E virando costas, afastou-se pista fora.
Dillon foi ao encontro de Ferguson lá dentro.
- Um bom homem - disse Ferguson.
- Do melhor - anuiu Dillon.
O co-piloto recolheu as escadas e fechou a porta. Passado um bocado, os reactores animaram-se e eles puseram-se em movimento. Instantes depois, ganhavam altitude
sobre o mar.
DOZE
Pouco antes das 6 da tarde do dia seguinte, no gabinete de Ferguson, no Ministério da Defesa, Simon Cárter estava sentado em frente da secretária, pálido e abalado.
- Então, o que é que se faz do bom do Sir Francis? - perguntou Ferguson. - Um ministro da Coroa comportando-se não só de forma desonrosa, como de um modo que só
pode ser descrito como criminoso.
De pé, junto à janela, Dillon acendeu um cigarro.
- Ele tem de estar presente? - perguntou Cárter.
- Ninguém sabe mais acerca deste caso do que Dillon. Cárter pegou no Livro Azul, depois pousou-o e abriu o Protocolo Windsor.
- Não posso acreditar que isto seja autêntico.
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- É capaz de não ser, mas o resto é. O primeiro-ministro rece-be-nos em Downing Street às oito. Ah, Cárter, e não faça estupidezes, como seja telefonar ao Pamer.
Eu, se fosse a si, levava o aviso muito a sério.
- Muito bem. - Cárter estava abatido. Levantou-se e saiu.

Dez minutos mais tarde, Sir Francis Pamer arrumava a secretária na Câmara dos Comuns antes de sair ao fim do dia quando o telefone tocou.
- Daqui Pamer - disse ele.
- Charles Ferguson.
- Ah, está de volta, brigadeiro - murmurou Pamer, circunspecto.
- Tenho de falar consigo.
- Esta noite é perfeitamente impossível. Tenho um compromisso importantíssimo: jantar com o Lord Mayor de Londres. Não posso faltar.
- Max Santiago morreu - comentou Ferguson. - E eu tenho aqui, em cima da minha secretária, a pasta do Bormann. O Livro Azul é uma leitura muito interessante, sabe?
O seu pai vem referenciado na página dezoito.
Pamer deixou-se cair na cadeira.
- Não falou com o primeiro-ministro?
- Pensei em encontrar-me consigo primeiro. Conhece o cais de Charing Cross?
- Claro.
- Um dos barcos-mosca, o Queen of Denmark, sai de lá às sete menos um quarto. Encontramo-nos a bordo. A propósito, vai precisar de um guarda-chuva. Está a chover
bastante.

Quando Pamer chegou ao cais de Charing Cross, o nevoeiro era tão denso que mal conseguia ver-se a outra margem do Tamisa. O Queen of Denmark tinha poucos passageiros.
Pamer deu uma vista de olhos pelo salão de baixo, onde havia meia dúzia deles, e pelo de cima, onde apenas deparou com dois. Saiu e olhou para o convés lá em baixo.
Estava uma pessoa à popa com um guarda-chuva aberto. Voltou a entrar, desceu as escadas e saiu para a coberta, abrindo o guarda-chuva.
- É você, Ferguson?
Avançou, hesitante, com a mão na coronha da pistola que levava no bolso da gabardina. O Queen of Denmark começava a afastar-se
153
do molhe, e o nevoeiro erguia-se num torvelinho da superfície da água. Não havia janelas posteriores no salão de cima. Estavam sozinhos.
Ferguson voltou costas à amurada.
- Ah, cá está você. - Levantou a pasta. - O primeiro-ministro vai dar-lhe uma vista de olhos às oito.
- Por favor, Ferguson - implorou Pamer -, não me faça isso. Eu não tenho culpa de que o meu pai fosse fascista.
- Tem toda a razão. Também não tem culpa de que a imensa fortuna do seu pai no pós-guerra tenha tido por origem a colaboração dele com o movimento nazi. Posso mesmo
desculpar a facilidade com que você tem recebido o substancial rendimento da Samson Cay Holding, dinheiro principalmente produzido pelas duvidosas empresas de Max
Santiago.
- Ouça cá... - começou Pamer.
- Não se dê ao trabalho de negar. Eu tinha pedido a Jack Lane para investigar o passado financeiro da sua família, não me apercebendo de que lhe estava a assinar
a sentença de morte, é claro. Ele conseguiu avançar bastante antes de morrer, ou deveria eu dizer antes de ser assassinado? Encontrei hoje o que ele descobriu.
- Nada disso foi culpa minha - bradou Pamer, descontrolado. - A culpa foi toda do meu pai e da sua adoração por Hitler. Eu tinha que pensar no nome da minha família,
Ferguson, na minha posição no Governo.
- É bastante egoísta da sua parte, mas compreensível - concedeu Ferguson. - O que eu não posso perdoar é o facto de você ter dado ao Santiago toda a informação que
lhe foi possível. Você vendeu-me, vendeu Dillon, pondo-nos a vida em perigo. Jennifer Grant está neste momento no hospital.
- Eu não sabia de nada disso, juro.
- Ah, foi tudo engendrado pelo Santiago, disso pode estar certo. Aquilo de que eu estou a falar é de responsabilidade. Em Samson Cay, o pobre do velho Joseph Jackson
foi brutalmente assassinado logo a seguir a ter falado comigo. Ora, como é que o Santiago soube da existência dele? Porque você lhe disse.
- Você não pode provar. Não pode provar nada. - Pamer respirou fundo e encolheu os ombros. - No que diz respeito aos interesses comerciais da minha família, isso
era um negócio do meu pai, não meu. Se você insistir nessa coisa, eu alego ignorância dos factos. A única coisa que lhe resta é o Livro Azul. Dificilmente seria
minha a culpa.
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Ferguson voltou-se e olhou para o rio.
- Tal como já disse, eu estava capaz de compreender o seu pânico, um velho nome manchado, a sua carreira política ameaçada; mas as agressões à rapariga, a morte
daquele velhote, a morte a sangue-frio do inspector Lane... dessas acusações você é tão culpado como os executantes.
- Prove-o - bradou Pamer.
- Adeus, Sir Francis - disse Ferguson, e afastou-se.
Pamer tremia. Esquecera-se completamente da arma que tinha no bolso. Era já tarde demais para ideias temerárias, como fosse aliviar Ferguson da pasta sob ameaça
da arma. Vasculhou desajeitadamente os bolsos à procura da cigarreira, pôs um cigarro na boca e tentou encontrar o isqueiro.
Ouviram-se uns passos quase imperceptíveis, e o Zippo de Dil-lon emitiu uma chama.
- Aqui tem.
Pamer sobressaltou-se.
- Dillon, o que é que você quer?
- Só uma palavrinha. - Dillon envolveu os ombros de Pamer com o braço e encostou-o de encontro à amurada da popa.
- Da primeira vez que o vi na Câmara dos Comuns, fiz uma alusão irónica ao rio, e você disse que não sabia nadar. É verdade?
- Sim, é verdade. - Os olhos de Pamer arregalaram-se quando ele se percebeu. Sacou a arma do bolso, mas Dillon agarrou-lhe o pulso direito, batendo com ele na borda,
e Pamer deixou cair a pistola para o rio.
- Obrigado. Acabou de me facilitar as coisas - disse Dillon.
Virou Pamer e, pondo-lhe uma mão com força entre as omoplatas, agarrou-o pelos tornozelos e levantou-o por cima da amurada. Ouviu-se um grito abafado quando Pamer
caiu e o nevoeiro ergueu-se num torvelinho da superfície do Tamisa, cobrindo tudo.
Passados cinco minutos, o Queen of Denmark aportou ao cais de Westminster. Ferguson foi o primeiro a descer o passadiço e esperou por Dillon debaixo de uma árvore.
- Está tratado?
- Acho que pode dizer-se que sim - retorquiu Dillon.

Ferguson chegou a Downing Street um quarto de hora antes da hora marcada. Alguém lhe pegou no casaco e no guarda-chuva, e um dos elementos do gabinete do primeiro-ministro
desceu as escadas.
- Ah, Sr. Brigadeiro.
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- Receio vir um pouco adiantado.
- Não há problema. O Sr. Primeiro-Ministro gostaria de ter oportunidade de analisar pessoalmente o material. É isto?
- É. - Ferguson entregou-lhe a pasta.
- Fique à vontade. Ele não há-de demorar muito.
Ferguson sentou-se no átrio, sentindo bastante frio. Teve um arrepio.
- Não há aquecimento central, Sr. Brigadeiro - disse o contínuo que estava junto à porta. - Os operários começaram ontem a instalar os novos sistemas de segurança.
Tivemos de acender a lareira no gabinete do Sr. Primeiro-Ministro.
Bateram à porta. O contínuo abriu, e Cárter entrou.
- Brigadeiro - cumprimentou ele formalmente.
O contínuo recebeu-lhe o sobretudo e o guarda-chuva e nessa altura reapareceu o secretário.
- Por favor, meus senhores, por aqui.
O primeiro-ministro estava sentado à secretária, com a pasta aberta pousada de lado. Estava a ler o Livro Azul e ergueu brevemente os olhos.
- Sentem-se, meus senhores. É só um instante.
A lenha ardia intensamente por detrás da grade. O silêncio era completo, apenas quebrado pelo batucar das súbitas saraivadas de chuva na janela. O primeiro-ministro
recostou-se, enfim, na cadeira e olhou para eles.
- Alguns dos nomes do Livro Azul são perfeitamente incríveis. Sir Joseph Pamer, por exemplo, na página dezoito. Suponho que seja por isso que não solicitou a presença
de Sir Francis, brigadeiro.
- Achei que a presença dele seria inadequada dadas as circunstâncias, Sr. Primeiro-Ministro, e Sir Francis concordou.
Cárter fitou-o penetrantemente.
- Então, informou-o da presença do pai no livro?
- Informei, sim, Sr. Primeiro-Ministro.
- Fico grato pela delicadeza de Sir Francis. Por outro lado, o facto de o pai ter sido um fascista durante todos aqueles anos não é propriamente culpa dele. Os filhos
não podem expiar os pecados dos pais. A menos que tenha mais qualquer coisa para me dizer, Sr. Brigadeiro?...
Da expressão transparecia-lhe uma estranha dureza, como se estivesse de algum modo a desafiar Ferguson.
- Não, Sr. Primeiro-Ministro - retorquiu firmemente o brigadeiro.
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- Óptimo. Chegamos agora ao Protocolo Windsor. Os senhores consideram-no autêntico?
- Não é possível ter-se a certeza - respondeu Cárter. - Os nazis produziram falsificações notáveis durante a guerra, disso não resta dúvida.
- É sabido que o duque tinha esperança num rápido termo para a guerra - observou Ferguson. - Não quero com isto sugerir de modo algum que ele fosse desleal, mas
lamentava profundamente a perda de vidas de ambos os lados.
- Seja como for, os jornais sensacionalistas teriam o dia ganho com isto, e as consequências para a família real seriam catastróficas - disse o primeiro-ministro.
- Trouxe o diário de Friemel e a tradução, conforme lhe pedi. São estas as únicas cópias que existem?
- É tudo - garantiu Ferguson.
- Óptimo. - O primeiro-ministro empilhou os documentos, levantou-se e foi até à lareira. Começou por pôr o Protocolo Windsor em cima dos tições em brasa.
- Águas passadas, meus senhores, já lá vai muito tempo.
O protocolo flamejou, encaracolando em cinza. Seguiram-se-lhe a ordem de Hitler, as listas bancárias, o Livro Azul e, por fim, o diário.
- Isto nunca aconteceu, meus senhores - disse ele, voltando-se -, nada disto.
- Uma decisão sensata - comentou Cárter com um ligeiro sorriso.
- Dito isto, parece que a ideia de recorrer aos serviços desse tal Dillon resultou, brigadeiro?
- Chegámos a um desfecho positivo devido aos esforços dele, Sr. Primeiro-Ministro.
O primeiro-ministro contornou a secretária para se despedir e sorriu.
- Estou certo de que é uma história interessante. Há-de contar-ma um destes dias, Sr. Brigadeiro, mas agora terão de me desculpar.
Como por mistério, a porta abriu-se suavemente por detrás deles e apareceu o funcionário para os acompanhar à saída.

No átrio, o contínuo ajudou-os a vestirem os sobretudos.
- Eu diria que, ponderadas as coisas, acabou por ser uma conclusão satisfatória - observou Cárter.
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- Acha que sim? - disse Ferguson.
Quando o contínuo abriu a porta, o secretário irrompeu do gabinete lá de trás.
- Acabámos de receber um telefonema extremamente penoso da polícia marítima, meus senhores. Recuperaram há pouco do Tamisa o corpo de Sir Francis Pamer.
Cárter ficou estupefacto.
- Muito triste - disse Ferguson. - Obrigado por nos ter informado. - E saiu, abrindo o guarda-chuva e avançando Downing Street fora em direcção a Whitehall.
Caminhava muito depressa, estando quase junto aos portões da segurança quando Cárter o alcançou e lhe pegou num braço.
- O que foi que você disse a Pamer, Ferguson? Quero saber.
- Comuniquei-lhe os factos, lembrando-lhe o papel que ele desempenhara neste caso. Só me resta pensar que ele decidiu escolher a saída mais honrosa.
- Muito conveniente.
- É, não é? - Estavam agora no passeio de Whitehall. - Quer partilhar um táxi?
- Vá para o diabo, Ferguson - disse Cárter, e afastou-se.

Ferguson ficou ali durante um bocado, com a chuva a tamborilar-lhe no chapéu, até que um táxi preto parou junto ao passeio.
- Quer um táxi, patrão? - perguntou em cockney o taxista, com um boné enfiado até aos olhos.
- Muito obrigado. - Ferguson entrou, e o táxi arrancou. Dillon tirou o boné e sorriu pelo espelho retrovisor.
- Como é que correu?
- Você roubou esta coisa? - perguntou Ferguson.
- Não. É de um amigo meu. Então, o primeiro-ministro?
- Pôs tudo na lareira, disse que aquilo eram águas passadas e até foi caridoso para com Francis Pamer.
- Pô-lo ao corrente de tudo?
- Não vi necessidade.
- E como é que Cárter aceitou a coisa?
- Bastante mal. Estávamos de saída, e o gabinete do primeiro-ministro recebeu uma informação. A polícia marítima recuperou o corpo de Pamer.
- E Cárter acha que ele se suicidou por causa da sua pressão?
- O que ele acha não sei nem me interessa. A única coisa que me preocupa é a competência de Cárter. Ele odeia-me de tal maneira
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que isso lhe tolda o discernimento. Fixou-se tanto, por exemplo, na menção a Sir Joseph Pamer, na página dezoito do Livro Azul, que lhe escapou o cavalheiro da página
cinquenta e um.
- E quem era ele?
- Um sargento do Exército da Primeira Guerra Mundial, gravemente ferido no Somme, sem pensão, desempregado nos anos 20 e compreensivelmente revoltado contra o sistema,
que veio a ser secretário-geral de um importante sindicato. Morreu há cerca de dez anos.
- E de quem estamos nós a falar?
- Do tio materno do primeiro-ministro.
- O quê? E acha que ele sabia? Refiro-me ao primeiro-ministro.
- Que ele sabia? Sabia, pois. - Ferguson acenou com a cabeça. - Mas como ele disse, são águas passadas, e, seja como for, a prova acabou transformada em fumo. Motivo
pelo qual eu agora posso dizer-lho, Dillon. Depois dos seus esforços neste caso, acho que tinha direito a saber.
- Muito conveniente, devo dizer - observou Dillon.
- Não. Ele fez bem. Os filhos não podem expiar os pecados dos pais. Pamer era diferente. Para onde é que vamos, a propósito?
- Para sua casa, suponho - retorquiu Dillon. Ferguson abriu um pouco a janela e deixou entrar a chuva.
- Tenho cá estado a pensar, Dillon. Os meus serviços estão actualmente sob enorme pressão. Para além do que é habitual, apanhámos com a questão jugoslava e com aquela
coisa dos neonazis em Berlim e na Alemanha Oriental. O facto de ter perdido Jack Lane deixa-me um pouco coxo.
- Compreendo - disse Dillon. Ferguson inclinou-se para a frente.
- O trabalho que tenho em mente assenta-lhe que nem uma luva. Pense no assunto, Dillon.
Dillon rodou o volante, inverteu o sentido de marcha e arrancou na direcção contrária. Ferguson foi atirado para trás.
- O que está você a fazer, Deus do céu? Dillon sorriu para o retrovisor.
- Tinha falado num jantar no Garrick Club, não tinha?

 

 

                                                                  Jack Higgins

 

 

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