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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O SEGREDO DO SALÃO DE PROVAS / Bernard Shaw
O SEGREDO DO SALÃO DE PROVAS / Bernard Shaw

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era dia de provas; e os convidados para o baile Sha­kespeare, de pé, em frente dos espelhos do costureiro, exa­minavam os últimos retoques nas fantasias que iam vestir naquela noite.
- É inútil - disse Iago, descontente. - Não pareço bem e não me sinto bem.
- Garanto-lhe, senhor - protestou o costureiro. - Está um retrato perfeito.
- Posso parecer um retrato, mas não estou a carácter.
- Que carácter?
- O carácter de Iago, é claro. O meu carácter.
- Senhor - disse o costureiro - permite-me dizer-lho um segredo cuja revelação pode arruinar-me?
- Tem alguma relação com este traje?
- Cem por cento, senhor.
- Então, diga lá.
- Pois bem, a verdade é que eu não posso vestir Iago a carácter, visto ele não ser um carácter.
- Não é um carácter! Iago não é um carácter! Você é doido? Está bêbado? É analfabeto? Imbecil? Ou blasfemo?

 

 

 


 

 

 


- Efectivamente, devo parecer presunçoso, senhor, depois de tantos críticos escreveram longos capítulos analisando o carácter de Iago; essa profunda, complexa, eni­gmática criação do nosso maior poeta dramático. Mas repare, senhor; jamais alguém escreveu longos artigos sobre o meu carácter.
- Mas porque haviam de o fazer?
- Sim, porquê? Eu não encerro enigma algum. Nenhuma profundeza. Se muito se escrevesse sobre o meu ca­rácter, estou certo de que o senhor seria o primeiro a sus­peitar que eu tivesse algum.
- Se aquele busto de Shakespeare pudesse falar - disse Iago, com severidade - pediria para ser removido imedia­tamente para um nicho apropriado na fachada do Teatro Nacional de Shakespeare, em vez de ficar aqui a ser insultado.
- De forma alguma - disse o busto de Shakespeare. - O facto é que eu posso falar. Não é fácil um busto falar, mas até as pedras falariam se ouvissem um homem honesto como este a ser censurado por dizer a verdade. E eu sou apenas de gesso.
- Que brincadeira tão idiota - gaguejou Iago, lutando com os efeitos do susto que o Bardo lhe pregara. - Você tem uma grafonola naquele busto. Ao menos, podia ter-lhe um disco de versos brancos.
- Dou-lhe a minha palavra de honra, senhor - pro­testou o pálido costureiro - que, até à data, nunca troquei uma única palavra com aquele busto... perdão, com Mr. Shakespeare.
- A razão porque você não consegue vesti-lo a carác­ter, é muito simples - disse o busto. - Eu fiz uma miscelânea de Iago, pois os vilões são pessoas tão estúpidas e enfa­donhas que eu nunca os pude suportar. Posso aguentar cinco minutos com um vilão como Don John em... em... oh, como se chama?... vocês sabem... aquela comédia onde entrava um polícia cómico. Mas se eu tivesse de criar um vilão e fazer do seu papel, o principal, acabaria não obstante os meus esforços, por o tornar num sujeito agra­dável. Era superior às minhas forças. Enquanto praticavam acções razoáveis, ainda a coisa ia bem; mas quando chegava o momento de começarem a cometer toda a casta de assas­sínios, de mentiras e canalhices, sentia-me envergonhado. Não tinha o direito de o fazer.
- Certamente - interrompeu Iago - o senhor não con­sidera, Iago, um sujeito agradável.
- Um dos carácteres mais populares do palco - disse o busto.
- Eu! - exclamou Iago, estupefacto.
O busto acenou a cabeça e imediatamente caiu com o nariz no chão, pois o escultor não o fizera para acenar a cabeça.
O costureiro acorreu, e com muito solicitas expressões de pesar, limpou-lhe o pó e tornou a colocá-lo intacto, no seu pedestal.
- Lembro-me da peça onde você entrava - continuou o busto, imperturbável apesar do percalço sofrido - Deixei a pena correr sobre o papel: e belos versos eram eles. Podia ouvir-se as almas das pessoas a chorarem ao simples som das estrofes. Não me preocupei com o sentido - limi­tei-me a declamar todas as palavras bonitas do meu vocabu­lário. Oh, era admirável, garanto-lhes. Tambores e trombe­tas; o Pelosponto e o Helosponto; um maligno árabe de Aleppo; e olhos que derramavam lágrimas mais depressa do que as árvores árabes, a sua goma medicinal; o dispa­rate mais flagrante de que há memória, mas com uma mú­sica!... Ora eu comecei a peça com dois terríveis vilões; um homem e uma mulher.
- Uma mulher? - perguntou Iago. - O senhor está a fazer confusão. Não há qualquer vilã no Othelo.
- Já lhe assegurei que não há vilões em toda a peça - disse o imortal William. - Mas eu comecei com uma vilã.
- Quem?
- Desdémona, é claro - replicou o Bardo. - Tive uma tremenda inspiração ao criar a super subtil e extremamente corrupta dama veneziana que devia levar Othelo ao deses­pero, atraiçoando-o. Está tudo no primeiro acto. Mas, por fim, fraquejei. Bem contra a minha vontade ela tornou-se amável nas minhas mãos. Além disso, vi que não era neces­sário... e que eu podia alcançar um efeito mais retumbante, fazendo dela uma vítima inocente. Cedi à tentação; nunca pude resistir a um efeito. Era um pecado contra a natureza humana e fui bem recompensado pois a modificação transformou a peça numa farsa.
- Numa farsa! - exclamaram Iago e o costureiro, ao mesmo tempo, sem acreditar no que ouviam - Othelo, uma farsa!
- Nem mais nem menos - disse o busto, com ênfase, - Vocês julgam ser a farsa, uma peça em que algum gro­tesco palhaço faz rir as outras pessoas. Isso só prova a vossa ignorância. Eu considero a farsa, uma peça em que as confusões não são naturais, mas mecânicas. Fazendo de Desdémona uma pobre e honesta mulher e Othelo, um ho­mem superior, fiz desaparecer todos os motivos para um ciúme natural. Para criar uma situação lógica, teria do fa­zer, ou dela, uma mulher má como idealizara anteriormente, ou dele, um homem ciumento, traiçoeiro e egoísta, tal como Leontes na Fábula. Mas eu não podia diminuir a figura de Othelo daquela maneira; e assim, estupidamente, diminui-o de outra, transformando-o numa vítima de uma infernal e ridícula intriga com um lenço. É por esta razão que a peça não é aceite pelo público intelectual. Não passa de uma dis­soluta sequência de patifarias e crimes. Lamento tal facto, mas sempre queria saber se há algum escritor moderno capaz de escrever coisa tão boa.
- Mas o senhor não modificou a sua opinião sobre mim - lamuriou Iago.
- Modifiquei, sim senhor - retrucou Shakespeare - Tinha resolvido criar a figura do homem mais detestável desta terra; um tipo sem pretensões, contente por ser o satélite de homens com mais estilo, mas abominavelmente grosseiro e possuindo aquele estúpido egoísmo que torna o homem incapaz de compreender o dano que as suas intrigas podem fazer, ou incapaz de as deixar de fazer se vê que lucra alguma coisa com elas. Mas o meu desprezo e nojo por tal criatura - e o que era pior, o intenso aborrecimento que ele me inspirava - venceram-me antes do segundo acto. A crua verdade e as coisas naturais que ele dizia, eram tão enjoativamente grosseiras que, por fim, vi-me forçado a de­sistir. Apesar dos meus esforços, ele começou a ficar esperto e inteligente. E foi o fim. Era Ricardo III, outra vez. Transformei-o num cão humorístico. Fui mais longe; dei-lhe o meu próprio divino desprezo pelas loucuras da humanidade e por ele próprio, em vez da inveja infernal da divindade humana. Era coisa que me acontecia habitualmente. Nalgumas peças, melhorava-a, mas o facto é que desta vez, destruiu a essên­cia de Othelo. As pessoas sensíveis não gostam de ver uma mulher estrangulada por engano. É verdade que muita gente iria ao fim do mundo, só para ver uma mulher a ser estrangulada, fosse por engano ou não; mas tal público não me interessa, embora o seu dinheiro seja tão bom como o de qualquer outro.
O busto, cujas faculdades de conversação começavam a alarmar o costureiro, apressado como estava, preparava-se para prosseguir, quando a porta do salão se abriu, de par em par, e «Lady» Macbeth entrou. Por acaso era a mulher de Iago; e por esse motivo, o costureiro não julgou necessário chamar-lhe a atenção de que aquele salão era o de provas de cavalheiros. Além disso, era uma senhora de temperamento exaltado; e o pobre costureiro tinha-lhe tanto medo que nem ousou fechar a porta, receoso de que a dama considerasse a sua acção, como uma censura muda por a ter deixado aberta.
- Tenho a certeza de que este vestido está mal feito - disse ela. - Todos me dizem que estou um retrato per­feito, mas a verdade é que não me sinto nada «Lady» Macbeth.
- Deus a livrasse de tal, senhora - disse o costureiro. - Podemos modificar-lhe a aparência, mas nunca a natureza.
- Ora! - exclamou a senhora - a minha natureza modifica-se com cada vestido que ponho. Santo Deus, que é aquilo? - acrescentou, ao ver que o busto soltava uma risadinha de aprovação.
- É o busto - disse Iago. - Fala como uma pessoa. Aliás, suspeito de que é o próprio Shakespeare.
- Lérias! - disse a senhora. - Os bustos não falam.
- Falam, sim - disse Shakespeare. - Eu estou a falar e sou um busto.
- Pois eu digo-lhe que não falam - teimou a senhora. - Não faz sentido.
- Então, impeça-me de falar se for capaz. Nunca nin­guém o foi, quando eu era vivo.
- Nada neste mundo me fará acreditar em tal coisa - disse a senhora. - É simples superstição medieval. Mas adiante; com este vestido pareço alguém prestes a cometer um crime?
- Não se preocupe com isso - disse o Bardo. - Você faz parte dos meus fracassos. Eu queria que «Lady» Macbeth fizesse qualquer coisa de pavoroso; mas, pouco a pouco, ela foi-se transformando na minha mulher que nunca cometeu um crime em toda a sua vida - pelo menos um crime rápido.
- A sua mulher! Ann Hathaway! Ela parecia-se com «Lady» Macbeth?
- Muito - afirmou Shakespeare. - Notem que «Lady» Macbeth tem uma única consistente característica: a de pen­sar que todas as coisas que o marido faz, são mal feitas, e que ela poderia fazê-las muito melhor. Se eu tivesse assas­sinado alguém, Ann censurar-me-ia por não ter cometido bem o crime e iria meter-se no quarto para se exercitar nela própria. Sempre que dávamos uma festa, ela pedia des­culpa aos convidados, pelo meu comportamento. Tirando isso, desafio alguém a encontrar qualquer senso comum em «Lady» Macbeth. Jamais ocorreria a uma pessoa, assassinar outra daquela maneira. Tudo que pude fazer, chegado o momento fatal, foi corar de vergonha e dar-lhe um ou dois pequenos retoques de natureza - tirados de Ann - para fazer as outras pessoas acreditarem na sua existência real.
- Sinto-me desiludida, desgostosa - disse a senhora. - Ao menos, podia ter guardado essa revelação para depois do baile.
- Mais um motivo para me agradecer - respondeu o busto. - Eu era um homem gentil. Foi pena ter nascido dez vezes mais esperto do que os outros, gostar dos meus seme­lhantes e, contudo, ter de desprezá-los pelas suas vaidades e ilusões. Os homens são uns imbecis, mesmo os mais es­pertos. A minha crueldade não ia a pontos de ofuscar os outros, com a superioridade do meu intelecto.
- Mas que toleirão! - comentou a senhora levantando o nariz.
- Que há-de um homem fazer? Pensa por acaso que eu seria capaz de dizer aos outros, que era pessoa vulgar?
- Não creio que o senhor tenha consciência - disse a dama. - Aliás, já tem sido um problema muito discutido.
- Consciência! - gritou o busto. - Ora essa! Foi ela quem estragou a minha melhor criação. Comecei a es­crever uma peça sobre Henrique V. Queria mostrá-lo na sua pervertida juventude e planeei a criação de um perso­nagem, uma espécie de Hamlet, que devia lançar pragas aos quatro ventos e acompanhar sempre o príncipe, apontando a moral e adornando a lenda - desculpem o anacronismo; Dr. Johnson, creio, o único homem que até hoje escreveu alguma coisa de verdadeiro a meu respeito. Poins, era o nome deste modelo. Ora, acreditem-me que ainda não en­trara bem no âmago da peça quando um actor de 2.ª cate­goria a quem estava destinado um papel antipático e que se limitaria a entrar em duas cenas para roubar algum mercador, e acabar no fim, por ser roubado pelo Príncipe e por Poins - uma criatura insignificante, em resumo - tornou-se, de súbito, numa magnífica reencarnação de Silenus. Ele matou Poins; matou toda a essência da peça. Resvalei nele; fui absorvido, criei um pequeno círculo de pessoas desaver­gonhadas, unicamente destinado a fazê-lo sobressair. Eu tinha a certeza de que por muito que os outros personagens se transformassem, ele jamais o faria. Certa tarde em que atravessava Eastcheap, na companhia de um jovem amigo (um jovem com um brilhante futuro à sua frente), passámos por um velho gorducho, meio bêbado, encostado a uma mu­lher que podia passar por nova mas não era. Naquele mo­mento, a consciência segredou-me: «William, isto tem graça?» Preguei um sermão tão longo ao meu jovem amigo que este por fim, protestando um encontro marcado, retirou-se. Então, fui para casa e estraguei o resto da peça. Mas não o fiz bem. Eu tinha de fazer com que o homem acabasse os seus dias, miseravelmente; e tinha de enforcar os seus imundos parasitas ou atirá-los para o esgoto ou para o hos­pital. Devemos sempre reflectir, com cuidado antes de tomarmos uma resolução. A propósito, importavam-se de fechar aquela porta? Estou a constipar-me.
- Desculpe - disse a dama. - Foi esquecimento meu.
E dizendo isso, correu e fechou a porta antes que o costureiro pudesse antecipar-se.
Mas era demasiado tarde.
- Vou espirrar - disse o busto - mas duvido que o possa fazer.
Num esforço sobre-humano, conseguiu reprimir por momentos o espirro que se avizinhava, encolhendo o nariz e fechando os olhos. Seguiu-se uma formidável explosão. O busto jazia no solo, desfeito em pedaços.
E não voltou a falar.

 

 

                                                                  Bernard Shaw

 

 

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