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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TESTAMENTO / Julie Garwood
O TESTAMENTO / Julie Garwood

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quando o respeitado procurador Theo Buchanan do Departamento de Justiça passa mal em um baile de gala em Nova Orleans, a Dra. Michelle Renard age rapidamente para salvar sua vida. Logo Theo se vê em uma roda viva para salvá-la, quando Michelle vira alvo de uma quadrilha mortífera. Eles se denominam o Clube dos Semeadores, quatro elementos deletérios guiados pela ambição de acumular milhões em uma conta bancária secreta. Agora eles estão dispostos a silenciar Michelle para sempre, pois ela pode conhecer o segredo por trás da morte piedosa da esposa de um deles. Escapando por entre um homem da mais alta classe e um bando de criminosos astuciosos, Michelle e Theo caminham na corda bamba entre a paixão e a sobrevivência.

 


 


A garota tinha uma habilidade simplesmente incrível com a faca. Possuía um talento natural, um dom de Deus Todo Poderoso, pelo menos foi isso que seu pai, Big Daddy (Paizão) Jake Renard, disse-lhe quando, com a tenra idade de cinco anos e meio, ela destripou sua primeira truta com a precisão e a perícia de um profissional. Seu pai ficou tão orgulhoso que tomou-a nos braços, colocou-a nos ombros — com seus joelhinhos magros, um de cada lado do rosto — e levou-a até seu bar favorito, O Cisne. Ele a colocou sobre o balcão e reuniu os amigos em volta para que a observassem destripar outro peixe, que ele havia enfiado no bolso de seu surrado avental. Milo Mullen ficou tão impressionado que ofereceu cinqüenta dólares em dinheiro, ali, na hora, pela menina e gabou-se de poder ganhar três vezes a mesma quantia em apenas uma semana, alugando a garota para as barracas de peixe ali do bayou1.

1 bayou — baía pantanosa, típica do sul dos Estados Unidos

Sabendo que Milo estava apenas tentando fazer um elogio, Big Daddy Jake não se ofendeu. Além do mais, Milo pagou-lhe uma bebida e fez um brinde muito simpático à sua talentosa filha.
Jake tinha três filhos. Remy, o mais velho, e John Paul, um ano mais novo, ainda nem eram adolescentes, mas ele já previa que ficariam maiores do que ele. Os meninos eram da pá virada, aprontando molecagens todo santo dia, e os dois eram espertos como raposas. Tinha orgulho dos garotos, mas na verdade Michelle era seu xodó. Ele jamais a responsabilizou por quase matar sua mãe ao nascer. Sua doce Ellie teve o que os médicos disseram ser um derrame dentro da cabeça bem quando estava fazendo o último esforço do parto. Depois que a filha foi lavada e embrulhada em roupas limpas, Ellie foi levada de sua cama de casal para o hospital regional, do outro lado de St. Claire. Uma semana mais tarde, quando disseram que jamais se levantaria, foi transferida de ambulância para uma instituição estadual. O médico encarregado por Ellie chamava aquele lugar horrível de lar, mas Big Daddy, ao ver o prédio austero de pedras cinzentas, cercado por uma cerca de arame de dois metros e meio, sabia que o médico estava mentindo para ele. Aquilo não era lar coisa nenhuma. Era o purgatório, pura e simplesmente, uma área de confinamento onde as pobres almas perdidas cumpriam sua penitência antes que Deus as acolhesse no Paraíso.
Jake chorou na primeira vez em que foi ver a esposa, mas depois manteve os olhos secos. As lágrimas não fariam que as condições de saúde de Ellie melhorassem, nem tornariam aquele lugar menos triste. O longo corredor no centro do prédio abria porta atrás de porta para quartos de paredes verde cor do mar, piso emborrachado cinza padrão e velhas camas bambas que guinchavam quando se subia ou descia a proteção lateral. Ellie ficava em um grande quarto quadrado com mais onze pacientes, alguns lúcidos, mas a maioria não, e não havia nem espaço para puxar uma cadeira para junto da cama, sentar e conversar com ela.
Jake teria se sentido pior se sua esposa soubesse onde estava descansando, mas seu cérebro a mantinha em um estado de sono permanente. O que ela não sabia, não poderia incomodá-la, ele concluiu; e esse fato proporcionou-lhe grande paz na consciência.
Todos os domingos à tarde, depois que ele já tinha saído da cama e se livrado de todas as suas dores e incômodos, ele levava Michelle para ver sua mãe. Os dois, de mãos dadas, ficavam parados aos pés da cama de Ellie uns bons dez, quinze minutos, olhando para ela, depois iam embora. Às vezes, Michelle apanhava flores silvestres, amarrava com barbante e fazia um laço bem bonito. Deixava ao lado do travesseiro da mamãe para que ela pudesse sentir o perfume delicado. Um par de vezes ela fez uma tiara de margaridas e colocou na cabeça da mãe. Seu papai disse que a tiara fazia a mamãe ficar muito bonita, como uma princesa.
A sorte de Jake Renard mudou alguns anos mais tarde, quando ele ganhou sessenta mil dólares em um tipo de loteria não-oficial. Como não era legal e o governo não sabia de nada, Jake não teve de pagar impostos sobre o dinheiro extra. Até pensou em usar o dinheiro para mudar a esposa para um lugar mais agradável, mas em algum lugar lá no fundo de sua cabeça podia ouvir a voz de Ellie chamando sua atenção por não estar sendo prático, querendo gastar seu dinheiro em algo que não traria nenhum benefício. Portanto, em vez disso, Jake resolveu usar um pouco do dinheiro para comprar O Cisne. Queria que os garotos tivessem um futuro, cuidando do bar quando crescessem, e parassem de correr atrás de rabos-de-saia e se acomodassem com esposas e filhos para sustentar. O resto do dinheiro ele guardou para quando se aposentasse.
Quando Michelle não estava na escola — ele não achava que ela precisasse ir, mas o governo obrigava que fosse — ele a levava para onde quer que fosse. Nos dias de pescaria, ela sentava-se ao lado dele e passava o tempo tagarelando como uma matraca, ou lendo histórias para ele dos livros — ela o obrigava a levá-la à biblioteca para pegá-los. Enquanto ele tirava o cochilo da tarde, ela arrumava a mesa e os irmãos preparavam o jantar. Ela levava jeito para cuidar da casa. Mantinha tudo muito arrumado, o que era uma grande façanha, pois o pai e os irmãos eram bagunceiros assumidos. Nos meses de verão, sempre colocava flores frescas em vasos sobre as mesas.
À noite, Michelle acompanhava Big Daddy ao Cisne para o turno da noite. Havia noites em que a pequena adormecia enroladinha como um gato em um canto do bar e ele a levava para o depósito lá no fundo, onde tinha uma cama montada para ela. Ele aproveitava cada minuto que passava com a filha porque achava que, como a maioria das garotas da paróquia, ela estaria grávida e casada quando completasse dezoito anos.
Não que não tivesse grandes sonhos para a filha, mas era realista; todas as garotas bonitas casavam cedo ali por Bowen, Louisiana. Era assim que acontecia e Jake não achava que poderia ser diferente com sua filha. Não havia muito para os garotos e garotas fazerem na cidadezinha além de ficarem se roçando uns nos outros, e acabava sendo inevitável que as garotas acabassem tendo de casar-se e cuidar da família.
Jake era dono de três quartos de acre de terra. Tinha construído uma casa de madeira de um quarto quando casou-se com Ellie, depois foi aumentando à medida que a família crescia. Quando os meninos atingiram a idade de poder ajudar, ele levantou o telhado e criou um lugar para Michelle poder ter um pouco de privacidade. A família morava em um lugar afastado, junto ao brejo, ao final de uma estradinha de terra cheia de curvas chamada Rua da Misericórdia. Havia árvores por toda parte, algumas centenárias. No quintal, havia dois chorões quase cobertos de musgo, que pendurava-se como toalhas de crochê dos galhos até quase o chão. Quando vinha a neblina do bayou e o vento ganhava velocidade e uivava, aquele musgo tomava a aparência lúgubre de fantasmas à luz da lua. Nesse tipo de noite, Michelle descia de seu lugar no sótão e enfiava-se na cama de Remy ou de John Paul.
A cidade vizinha de St. Claire ficava a uns vinte minutos de caminhada da casa da família. Lá havia ruas arborizadas, mas não era tão bonita nem tão pobre quanto Bowen. Os vizinhos de Jake estavam acostumados à pobreza. Faziam o que podiam para tirar seu sustento das terras cheias de brejos e da água. Toda quarta-feira à noite, separavam um dólar para jogar na loteria não-oficial, na esperança de ter a mesma sorte de Jake.
A vida deu outra virada surpreendente para a família Renard quando Michelle passou para o terceiro ano da Escola Horatio Herbert. Mandaram uma professora nova por ali, a Srta. Jennifer Perine. Na quarta semana de aula, a Srta. Perine aplicou os testes padrão, recebeu os resultados e mandou uma convocação urgente com Michelle, para uma reunião.
Jake nunca tinha ido a nada parecido antes. Achou que a filha havia se metido em alguma encrenca, talvez batido em alguém. Ela mostrava o lado forte de seu temperamento quando pressionada. Os irmãos a tinham ensinado a defender-se. Era miúda para a idade e eles achavam que ela poderia se tornar alvo fácil para os valentões da escola atormentarem, por isso quiseram ter certeza que ela saberia lutar e até usar golpes baixos.
Jake concluiu que teria de acalmar os nervos da professora. Colocou sua melhor roupa de domingo, passou um pouco da loção pós-barba que só usava em ocasiões especiais e andou os dois quilômetros e meio até a escola.
Senhorita Perine mostrou ser uma chata, o que Jake já esperava, mas também era bonita e isso ele não esperava. Ficou desconfiado imediatamente. Por que uma mulher atraente, jovem e solteira iria querer lecionar em uma cidadezinha acanhada como Bowen? Com sua boa aparência e corpo bonito, poderia conseguir trabalho onde quisesse. E como ainda não estava casada? Parecia ter uns vinte e poucos anos, o que, pela redondeza, já poderia considerar-se uma solteirona.
A professora assegurou-lhe que não tinha uma notícia ruim a dar. Muito pelo contrário. Ela queria comunicar-lhe que Michelle era uma criança excepcional. Jake empertigou as costas. Pela sua interpretação, as palavras da professora estavam dizendo que sua filha não era muito boa da cabeça. Todo mundo na paróquia referia-se a Buddy Dupond como uma criança excepcional, mesmo depois de a polícia o pegar e o trancafiar em um depósito de loucos por ele ter posto fogo na casa dos pais. Buddy não tinha a intenção de causar mal, nem de matar ninguém. Ele simplesmente tinha fascinação por fogueiras. Já tinha feito umas doze enormes — todas no brejo, onde o estrago não importava. Disse à mãe que não tinha nada de que gostasse mais do que fogueiras. Gostava do cheiro delas, do modo como brilhavam em tons de amarelo, laranja e vermelho no escuro e, mais ainda, os estalos, chiados e do crepitar que produziam. Parecia cereal com leite na tigela. Os médicos que examinaram Buddy devem ter achado que ele era excepcional. Até deram-lhe um nome esquisito: piromaníaco.
O que se viu, no entanto, foi que a Srta. Perine não tinha a mínima intenção de insultar a filhinha de Jake, afinal, e quando ele percebeu o fato, relaxou. Ela contou-lhe que, depois de receber os resultados do primeiro lote de testes e ver a pontuação de Michelle, havia feito com que especialistas a testassem. Jake não sabia coisa nenhuma sobre esse negócio de QI, nem como um bando de especialistas conseguia medir a inteligência de uma garota de oito anos, mas não se surpreendeu ao saber que sua Michelle era — como ele orgulhosamente comentou com a Srta. Perine — esperta como uma raposa.
Era obrigação dele fazer o melhor pela criança. Ela disse a Jake que Michelle já estava lendo literatura de adulto e que já pularia dois estágios inteiros a partir da segunda-feira seguinte. Perguntou se ele já havia percebido a aptidão especial da menina por ciências e matemática. Jake deduziu, por toda aquela conversa de escola, que sua garotinha tinha um dom nato para gênio.
A Srta. Perine disse-lhe que julgava ser boa professora, mas que, mesmo assim, sabia que não estaria preparada para atender às necessidades educacionais de Michelle. Queria que a garota fosse para uma escola particular, onde seus talentos naturais pudessem ser desenvolvidos e onde pudesse estabelecer sua própria curva de aprendizagem — fosse o que fosse aquele palavrório todo.
Jake levantou-se e parecia uma torre diante da professora ao apertar-lhe a mão e lhe agradecer pelas coisas bonitas que havia dito sobre Michelle. No entanto, ele disse, não estava interessado em mandar a filha embora. Afinal, ela não passava de uma garotinha e ainda era muito cedo para deixar a família.
A Srta. Perine convenceu-o a ouvir tudo o que tinha a dizer. Ofereceu-lhe um copo de limonada e pediu que voltasse a sentar. Já que ela tinha se dado ao trabalho de preparar um lanche — havia um prato com biscoitos na mesa, também — ele achou que deveria ser educado, sentar e ouvir.
A professora então disparou a falar, discorrendo sobre as vantagens que a filha teria em uma escola adequada e, com certeza, Jake não iria querer privar a filha das maravilhosas oportunidades que se abririam para ela. A Srta. Perine pegou uma pasta cor-de-rosa de sua gaveta e entregou a ele um folheto bonito e cheio de figuras para ele poder ver como era a escola. Michelle adoraria ir para lá, a professora afirmou. Teria de estudar bastante, com certeza, mas também haveria tempo para se divertir.
Jake queria o melhor para a filha e, portanto, ouviu cada palavra que a Srta. Perine tinha a lhe dizer. Os dois estavam indo bem, bebericando limonada e mastigando biscoitos doces de manteiga de amendoim enquanto conversavam amigavelmente sobre a filha dele, mas claro que ela insultou-o ao sugerir que ele poderia pedir auxílio do governo para pagar as mensalidades, ou até candidatar-se a uma bolsa integral, pela qual não teria de devolver nada. Jake fez força para se lembrar que a mulher era nova em Bowen e não conhecia a maneira de ser do lugar. Com certeza não tivera a intenção de ofender. Ora, afinal estava querendo ajudar. Mas, justamente por ser nova no pedaço, não fazia idéia de como o orgulho de uma pessoa era importante por ali. Tirar o orgulho de um homem era como cravar uma faca em seu coração.
Jake chegou a ranger os dentes enquanto gentilmente explicava que não tinha a menor intenção de tornar-se alvo de caridade e que não deixaria que ninguém mais pagasse pela educação de sua filha.
Alguns consideravam-no bem de vida por causa do dinheiro que ele havia ganhado no jogo, mas ela não fazia idéia do fato, com certeza. Ninguém ali falava de dinheiro ganho em jogo ilegal com gente de fora. No entanto, ele não se importava com o julgamento apressado dela sobre a família com base em como se vestia ou onde morava. Se Jake decidisse mandar a filha para a tal escola maravilhosa, usaria do dinheiro guardado para a aposentadoria para financiar a educação e, se esse dinheiro se acabasse, os filhos poderiam fazer trabalho extra para ajudar nas despesas.
Porém, antes que qualquer decisão fosse tomada, ele achava que deveria discutir o assunto com sua esposa. Ele conversava com Ellie o tempo todo, pelo menos em sua cabeça, e gostava de pensar que ela se sentiria honrada em participar dessa decisão; de sua forma mágica, ela sempre o ajudava a tomar decisões importantes com respeito à família.
Percebeu que precisava discutir o assunto com Michelle também. Ela merecia poder dar palpite em seu próprio futuro.
No domingo seguinte, levou-a para pescar. Sentaram-se lado a lado na doca, com os anzóis banhando-se nas águas turvas. A faca grande de Jake estava presa na bainha da cintura, para o caso de surgir algum predador grande.
— Os peixes não estão mordendo hoje, não é? — ele comentou, enquanto procurava encontrar um meio de entrar no assunto de trocar de escolas.
— É claro que não, papai. Nem sei por que estamos pescando a uma hora dessas. O senhor vive dizendo que bem cedo é a melhor hora para se pegar peixe. Como o senhor resolveu vir pescar tarde? Já são quase quatro horas.
— Sei muito bem que horas são, mocinha. Só queria afastar você de seus irmãos para levar uma conversa com você sobre uma coisa... importante.
— E por que não desembucha logo, então?
— Você não me desrespeite.
— Não estou desrespeitando. Juro — ela respondeu, traçando com os dedos uma cruz sobre o coração.
Ela era bonitinha como uma boneca, ele pensou, com os grandes olhos azuis voltados para cima, olhando para ele. Estava precisando cortar a franja outra vez. O cabelo estava comprido e já batia nos cílios. Ele pensou em pegar a tesoura depois do jantar.
— Aquela Srta. Perine é uma mulher muito da educada. É bonita, também.
Ela virou o rosto e ficou fitando a água.
— Ah, não sei, não. Ela até cheira bem, mas não sorri muito, não.
— Ora, dar aula é coisa séria — ele explicou. — Deve ser por isso que ela não sorri muito. Você se dá bem com ela?
— Acho que sim.
— Nós tivemos uma conversa muito boa sobre você outro dia.
— Ah, era disso que o senhor estava querendo falar, não é? Eu já sabia.
— Então bico calado e escute bem. A Srta. Perine acha que você é uma aluna excepcional.
Ela arregalou os olhos e sacudiu a cabeça.
— Isso não, papai. Eu não ponho fogo em nada, juro!
— Eu sei que não põe — ele respondeu. — Ela não quis dizer que você é excepcional como o Buddy Dupond. Ela quis dizer que você é inteligente para danar.
— Não gosto dela.
Ela voltou a fitar a água e Jake bateu-lhe de leve com o cotovelo para que olhasse para ele.
— Como não gosta dela? Ela está fazendo você trabalhar demais? Está pedindo coisas demais para você?
— Não estou entendendo do que está falando, papai.
— Acha que é muito trabalho para você?
Ela riu como se ele acabasse de fazer uma piada.
— Ah, não. É tudo muito fácil, e às vezes eu me encho porque termino tudo muito rápido e tenho de ficar sentada ali, esperando que a Srta. Perine arranje outra coisa para eu fazer. Tem gente que ainda está aprendendo a ler na classe, mas eu já leio desde pequenininha. Lembra, papai?
Ele sorriu, orgulhoso.
— Claro. Lembro de quando você começou a ler o jornal para mim enquanto eu fazia a barba. Você aprendeu sozinha, como se diz.
— Não aprendi, não. O senhor me ensinou as letras.
— Mas você foi juntando tudo bem depressa e sozinha. Eu simplesmente lia para você. Você pegou o jeito rapidinho. Como um peixe...
— Na água — ela completou.
— Isso mesmo, docinho. Conte-me por que não gosta da Srta. Perine. É por que você tem de ficar esperando ela dar coisa para você fazer?
— Não.
— O que é, então?
— Ela quer me mandar embora — ela disse, com os olhos cheios de lágrimas e com o lábio tremendo. — Não é isso, papai? Ela disse que convenceria você a me mandar para uma outra escola, onde eu não conheço ninguém.
— Ora, você já devia saber que ninguém faz seu pai fazer o que ele não quer. É que a Srta. Perine... bom, ela me fez começar a pensar.
— Ela é uma intrometida. Não ligue para o que ela diz.
Jake balançou a cabeça. Sua garotinha estava dizendo para ele o que ele sempre dizia para ela. Quando os irmãos a provocavam, ele sempre dizia a ela para não ligar para o que eles diziam.
— Sua professora disse que você tem um QI bem alto.
— Não fiz de propósito.
— Não há nada errado em ser esperto, mas a Srta. Perine acha que precisamos encontrar um jeito de dar para você a melhor educação possível. Ela acha que você pode vir a ser grande coisa. Eu nunca tinha pensado nisso antes, mas acho que não está escrito em nenhum lugar que você tenha de casar-se e sair tendo filhos rapidinho. Talvez nossa família não tenha enxergado muito longe, antes.
— Pode ser, papai.
Ele sabia, pelo tom de voz dela, que ela estava tentando acalmá-lo. Ela logo acrescentou:
— Mas eu não quero que nada mude.
— Sei que você não quer — ele disse. — Mas você sabe que sua mãe gostaria que a gente fizesse as coisas direito.
— Mamãe é esperta?
— Mas é claro! E como é.
— E ela se casou e teve filhos rapidinho.
A menina era mesmo rápida de cabeça. Como foi preciso aparecer uma professora para que ele percebesse?
— Isso foi porque eu apareci e deixei ela apaixonada.
— Porque o senhor era irresistível, não é?
— Isso mesmo.
— Então era melhor que o senhor levasse uma conversa com a mamãe antes de resolver se vai me mandar embora. Ela deve saber o que o senhor deve fazer.
Ele ficou tão espantado com o que ela disse, que parecia ter levado um choque.
— Você sabe que gosto de discutir as coisas com sua mãe?
— Ahã.
Ela sorriu para ele, com os olhinhos brilhando.
— É que, às vezes, o senhor fala alto. Tudo bem, papai. Eu também gosto de conversar sobre as coisas com ela.
— Está bem, então. Amanhã, quando a gente for visitar sua mamãe, nós dois vamos falar disso para ela.
A menina começou a bater os pés na água.
— Acho que ela vai dizer que eu devia era ficar em casa com o senhor, com o Remy e com o John Paul.
— Ora, olhe aqui...
— Papai, conte como o senhor e a mamãe se conheceram. Sei que o senhor já contou essa história um montão de vezes, mas não me canso de ouvir.
Estavam se desviando do assunto, e ele sabiá que a filha havia feito aquilo de propósito.
— Não estamos falando de sua mamãe e eu, agora. Estamos falando de você. Quero fazer uma pergunta importante para você. Ponha sua vara de lado e escute... Preste atenção.
Ela fez o que ele disse e ficou esperando com os braços cruzados. Ele ficou pensando, consigo mesmo, como ela parecia uma princesinha e como aquilo poderia ter acontecido com ela morando entre três cavalos chucros?
— Se você pudesse ser alguma coisa neste mundo, qualquer coisa, o que acha que seria?
Ela estava formando uma torre com as mãos e ele sacudiu-lhe o rabo-de-cavalo para chamar sua atenção.
— Não precisa ficar com vergonha de seu pai, filha. Pode falar.
— Eu não estou com vergonha.
— Seu cabelo está ficando vermelho e suas sardas também. Ela riu, divertindo-se.
— Meu cabelo já é vermelho e minhas sardas não mudam de cor.
— Vai me contar ou não?
— Só se o senhor prometer não dar risada.
— Não vou dar risada.
— É bem capaz de o Remy e o John Paul saírem rindo.
— Ah, seus irmãos são uns palhaços. Riem de tudo, mas você sabe que eles gostam de você e que vão se virar para que você tenha tudo o que quer.
— Eu sei — ela respondeu.
— E então... vai me contar ou não? Parece que você já tem alguma idéia do que quer ser.
— É, já tenho — ela admitiu. Olhou-o bem nos olhos para ter certeza de que ele não riria e murmurou — Eu quero ser médica.
Jake disfarçou sua surpresa e não disse nada durante algum tempo, enquanto remoia a idéia em sua mente.
— Eu queria saber por que você teve essa idéia de ser médica — ele comentou, já simpatizando com a idéia.
— Por que daí, quem sabe, eu possa consertar... alguma coisa. Já faz tempo que venho pensando nisso; desde que eu era pequenininha.
— Você ainda é pequenininha — ele disse. — E médicos curam gente, não consertam coisas.
— Eu sei, papai — ela disse com uma autoridade na voz que o fez sorrir.
— E você já tem alguma idéia na cabeça de quem quer consertar? Big Daddy passou o braço por trás dos ombros da filha e puxou-a para si. Ele já sabia a resposta, mas queria ouvir a filha dizer. Ela afastou o cabelo dos olhos e assentiu com a cabeça.
— Eu estava pensando que talvez eu consiga curar a cabeça da mamãe. Daí ela podia vir para casa.


Capítulo 1

 

HOJE, NOVA ORLEANS


A primeira foi uma morte piedosa.
Ela estava tendo uma morte muito, muito lenta. A cada dia, uma nova indignidade, mais um pedaço de seu anteriormente magnífico corpo destruído por uma doença debilitante. Pobre, pobre Catherine. Sete anos antes, ela havia sido a belíssima noiva, de medidas esculturais que faziam o sonho dos homens e a inveja das mulheres, mas agora seu corpo estava gordo, inchado e disforme; a pele, que antes parecia de alabastro, estava manchada e amarelada.
Por vezes, seu marido, John, não a reconhecia. Ele lembrava da imagem que ela havia tido e depois deparava-se, com clareza brutal, com a figura em que ela havia se tornado. Os maravilhosos olhos verdes que tinham-no cativado quando ele a conheceu, agora estavam sempre vidrados e opacos por causa do excesso de analgésicos.
O monstro da doença não tinha pressa em matá-la e, para ele, não havia um momento de alívio.
Ele odiava ter de ir para casa à noite. Sempre parava na Royal Street para comprar uma caixa de um quilo de chocolates Godiva. Era um ritual que havia iniciado meses antes, para provar a ela que ainda a amava, apesar de sua aparência. Podia fazer com que os chocolates fossem entregues diariamente em casa, com certeza, mas o fato de ir à loja aumentava o tempo em que ele ficava sem ter de enfrentá-la outra vez. Na manhã seguinte, a caixa quase vazia estava jogada na lixeira de porcelana ao lado da enorme cama com dossel. Ele fazia de conta que não percebia que ela havia se deleitado com os doces; e ela também.
John já não a condenava por sua gula. Achava que os chocolates davam prazer a ela, e prazer era algo que quase já não existia naquela vida trágica e sem graça.
Algumas noites, depois de comprar os chocolates, ele voltava ao escritório e trabalhava até que o cansaço o vencesse e se visse obrigado a voltar para casa. Quando manobrava sua BMW conversível em St. Charles em direção ao Garden District de Nova Orleans, inevitavelmente começava a tremer como se estivesse sofrendo de hipotermia, mas não se sentia fisicamente mal até atravessar o vestíbulo preto e branco de sua casa. Com a caixa de chocolates na mão, ele deixava a valise Gucci na mesa da entrada e parava por um ou dois minutos diante do espelho com moldura entalhada, respirando profundamente para acalmar-se. Na verdade, isso não aliviava seu estado, mas ele repetia o ritual, noite após noite. Sua respiração pesada misturava-se ao ruído do grande relógio antigo que ficava ao lado do espelho. O tique-taque o fazia lembrar de uma bomba relógio acionada. Uma bomba que estava dentro de sua cabeça, pronta para explodir.
Criticando a si próprio pela covardia, forçava-se a subir. Sentia os ombros tensos e nós no estômago ao subir a escada circular, as pernas parecendo carregar botas de cimento. Quando chegava ao fim do longo corredor, o suor empapava sua testa e ele tinha calafrios .
Enxugava a testa com um lenço, armava um sorriso falso no rosto e abria a porta, tentando, com todas as forças, manter um controle mental para enfrentar o cheiro horrível que pairava no ar. O quarto cheirava a pílulas de ferro e o terrível spray de baunilha que as empregadas insistiam em borrifar no ar parado, mas que só piorava o fedor. Havia noites em que era tão ruim que ele saía correndo dali para algum compromisso inventado, antes que ela o ouvisse vomitar. Ele fazia qualquer coisa para evitar que ela soubesse o quanto ficava enojado.
Havia noites em que seu estômago agüentava. Ele fechava os olhos enquanto abaixava-se e beijava-lhe a testa, depois afastava-se enquanto conversava com ela. Ficava parado junto à bicicleta ergométrica que havia comprado para ela um ano depois de se casarem. Nem lembrava mais se algum dia ela tinha usado o aparelho. Agora havia um estetoscópio e dois enormes roupões florais idênticos pendurados no guidão; o assento em couro preto estava empoeirado. Os empregados pareciam nunca se lembrar de limpar aquilo. Às vezes, quando não suportava olhar para Catherine, ele virava-se e ficava olhando através das grandes janelas, admirando o jardim em estilo inglês que ficava atrás da casa, fechado, como todos os outros minúsculos pátios, com uma cerca alta de ferro negro em arabescos.
A televisão ficava gritando por trás dele. Ficava ligada 24 horas por dia, ligada nos programas de entrevistas ou nos canais de vendas. Ela nunca pensava em diminuir a altura do som enquanto ele falava com ela, e ele havia chegado ao ponto de conseguir ignorar o barulho. Apesar de ter aprendido a bloquear o falar incessante, ele sempre se impressionava com a deterioração da inteligência dela. Como ela conseguia ouvir tanta bobagem, por horas a fio? Houve tempo, antes que a doença tomasse conta de sua vida e de sua personalidade, em que ela havia sido uma intelectual, capaz de derrotar qualquer adversário com um de seus comentários incrivelmente inteligentes e avassaladores. Ele lembrava-se de como ela adorava debater política — era só colocar um conservador de direita a seu lado durante um jantar para ter uma explosão de fogos garantida. Mas agora ela só se preocupava e só falava de suas funções intestinais. Isso... e comida, com certeza. Ela sempre falava com muito ânimo sobre sua próxima refeição.
Ele sempre fazia retrospectos para sete anos antes, para o dia de seu casamento, e lembrava-se do desespero de quanto a queria. Agora, tinha pavor de ficar no mesmo quarto com ela — dormia no quarto de hóspedes — e o tormento era como ácido em seu estômago, corroendo-o vivo.
Antes de ela ficar na cama por necessidade, havia decorado a espaçosa suíte em tons de verde-claro e havia estátuas de seus dois poetas romanos favoritos: Ovídio e Virgílio. Os bustos de gesso mantinham-se sobre pedestais brancos que ficavam um de cada lado da janela. Ele até chegara a gostar da decoração do quarto, quando a habilidosa e jovem decoradora de interiores o tinha acabado, tanto que a contratou para redecorar seu escritório; mas odiava o quarto porque representava tudo o que agora faltava em sua vida.
Por mais que tentasse, não conseguia escapar das constantes lembranças. Duas semanas antes, ele havia ficado de encontrar um cliente em um bistrô da moda em Bienville para o almoço. No entanto, assim que entrou e viu as paredes verde-claro, seu estômago embrulhou e sentiu falta de ar. Por alguns instantes aterrorizantes, teve a certeza de estar tendo um ataque cardíaco. Deveria ter chamado a ambulância para buscá-lo, mas não o fez. Em vez disso, saiu correndo para o sol, tomando longas golfadas de ar. O sol em seu rosto ajudou, e então ele percebeu que havia sofrido apenas um ataque de ansiedade.
Às vezes, achava que estava perdendo o juízo.
Por sorte, tinha o apoio de seus três amigos mais chegados. Encontrava-os todas as sextas-feiras à tarde em um bar para relaxar. Ansiava pelas sextas-feiras, quando podia aliviar o peso que carregava. Os amigos ouviam-no e ofereciam-lhe conforto e solidariedade.
Que ironia do destino ser ele a poder sair com os amigos, enquanto Catherine era a pobre que ficava se consumindo em solidão. Se o destino deveria punir alguém por pecados cometidos, por que ela e não ele? Catherine sempre havia sido moralmente superior naquele casamento. Jamais havia burlado uma lei em toda a sua vida, jamais havia recebido nenhuma multa de trânsito e ficaria chocada se soubesse de tudo que John e seus amigos haviam feito.
Eles denominavam-se o Clube dos Semeadores. Cameron, com 34 anos, era o mais velho do grupo. Dallas e John tinham 33 e Preston, a quem chamavam de Garotão por sua beleza morena bem cuidada, era o mais novo, com 32. Os quatro amigos haviam freqüentado o mesmo colégio particular e, apesar de estarem em classes diferentes, acabaram ficando muito amigos por terem muitas afinidades. Tinham a mesma determinação, os mesmos objetivos, a mesma ambição. Também em comum tinham o gosto por coisas caras e não se importavam em infringir a lei para consegui-las. Começaram a trilhar o caminho do crime ainda adolescentes, quando descobriram como era fácil cometer pequenos furtos sem serem descobertos. Descobriram que também não era muito lucrativo. De brincadeira, cometeram seu primeiro delito grave quando estavam na faculdade — o roubo de uma joalheria em uma cidade próxima — e surrupiaram as gemas preciosas como profissionais. Mais tarde, John, o mais analítico do grupo, decidiu que o risco era muito grande pelo retorno que estavam tendo — mesmo os planos mais bem arquitetados poderiam sair errados por elementos como azar e surpresa — e assim passaram a cometer crimes mais sofisticados, utilizando seus conhecimentos para fazer as conexões necessárias.
Seu primeiro grande golpe de sorte veio através da Internet. Usando seus sofisticados laptops, compraram ações sem valor sob nome falso, encheram as salas de bate-papo de falsos rumores e dados e depois, quando as ações chegaram ao pico, venderam sua parte rápido, antes que os reguladores conseguissem farejar o que estava acontecendo. O retorno dessa pequena empreitada foi de mais de cinco mil por cento.
Cada dólar que extorquiam ou roubavam era depositado na conta do Clube dos Semeadores nas Ilhas Cayman. Na época em que os quatro terminaram a faculdade e posicionaram-se no mercado de trabalho em Nova Orleans, já haviam conseguido juntar mais de quatro milhões de dólares.
Isso serviu apenas para aguçar-lhes o apetite.
Durante um de seus encontros, Cameron disse aos outros que, se algum dia um psiquiatra os examinasse, descobriria que eram todos sociopatas. John discordou. Um sociopata não se importaria com os desejos ou necessidades de mais ninguém. Eles, pelo contrário, tinham um compromisso com o clube e com o pacto que fecharam de fazer tudo o que fosse necessário para conseguir o que queriam. Seu objetivo era chegar aos oito milhões de dólares quando o mais velho deles completasse quarenta anos. Quando Cameron comemorou seu 35° aniversário, não faltava muito para chegar lá.
Nada conseguia detê-los. Com o passar dos anos, o laço entre os amigos ficou mais forte, e um faria qualquer coisa, qualquer que fosse, para proteger os outros.
Mesmo que cada um deles trouxesse seu talento especial para o clube, Cameron, Preston e Dallas sabiam que John era o cérebro e que, sem ele, jamais teriam chegado tão longe. Não podiam perdê-lo de maneira alguma; por isso estavam ficando cada vez mais alarmados com a deterioração de sua mente.
John estava com problemas, mas eles não sabiam como poderiam ajudar. Assim, limitavam-se a ouvir quando ele desabafava. O tópico de sua amada esposa sempre acabava surgindo e John contava-lhes os últimos detalhes terríveis. Nenhum deles via Catherine há anos, por causa da doença. Por escolha dela, não deles, pois ela desejava que lembrassem dela como havia sido, não pela triste imagem que tinha agora. Eles enviavam presentes e cartões, é claro. Afinal, John era como um irmão para eles e, ao mesmo tempo que tinham pena da condição da esposa, estavam bem mais preocupados com ele. Na opinião de todos, ela era, ao final das contas, um caso perdido. Ele não. Viam o que ele não estava conseguindo ver: que estava se aproximando de algum desastre. Sabiam que ele vinha tendo problemas para concentrar-se no trabalho — uma tendência perigosa, considerando-se sua profissão — e também andava bebendo muito.
John estava ficando incomodamente bêbado. Preston o havia convidado, assim como aos outros, para ir à sua cobertura para celebrar o sucesso de sua última empreitada. Sentaram-se à elegante mesa de jantar, em cadeiras estofadas, cercados pela maravilhosa vista do Rio Mississipi. Era tarde, quase meia-noite, e as luzes piscavam em meio à escuridão. De quando em quando, ouviam uma sirene no nevoeiro, como se fosse um lamento ao fundo. O ruído deixava John melancólico.
— Há quanto tempo somos amigos? — perguntou com a língua enrolada. — Alguém se lembra?
— Há milhares de anos — Cameron disse, esticando o braço para a garrafa de Chivas.
Dallas quase engasgou-se ao rir.
— Cara, parece que é isso mesmo, não é?
— Desde o colégio — Preston disse — quando começamos o Clube dos Semeadores — continuou, voltando-se para John. — Você me intimidava para burro. Sempre tão altivo e confiante. Você era mais educado até que os professores.
— E o que pensava de mim? — Cameron quis saber.
— Nervoso — Preston respondeu. — Você sempre mostrou... ter pavio curto, entende? E ainda tem, se quer saber.
Dallas concordou com a cabeça.
— Você sempre foi o mais cauteloso do grupo.
— O preocupado — Preston emendou. — Ao passo que Dallas e eu sempre fomos mais...
— Ousados — Dallas sugeriu. — Eu jamais teria feito amizade com nenhum de vocês caso John não tivesse nos reunido.
— Eu via o que vocês não conseguiam ver — John comentou. — Talento e ambição.
— Ora, vejam! — Cameron disse, levantando o copo em uma irônica saudação aos outros.
— Acho que eu só tinha dezesseis anos quando entrei para o Clube dos Semeadores — Dallas falou.
— Ainda virgem, então, não é? — Cameron perguntou.
— Isso não. Perdi minha virgindade lá pelos nove anos. O exagero fez com que todos rissem.
— Está bem, está bem. Talvez com um pouco mais de idade. — Dallas brincou.
— Nós éramos mesmo uns merdinhas metidos naquela época. Pensávamos que éramos o máximo por causa do nosso clube — Preston comentou.
— Mas fomos espertos — Cameron acrescentou. — E tínhamos muita sorte. Vocês percebem os riscos desnecessários que corremos?
— Sempre que queríamos encher a cara convocávamos uma reunião do clube — Dallas disse. — Tivemos sorte de não virarmos alcoólatras.
— E quem disse que não viramos? — Cameron perguntou e voltou a rir.
John levantou o copo.
— Um brinde ao clube e à bela renda que conseguimos obter graças à tão preciosa informação privilegiada que Preston nos proporciona.
— Ora, ora — Cameron disse, encostando seu copo no dos outros
— Ainda não consegui entender como você conseguiu essa informação.
— Como acha que consegui? — Preston perguntou. — Deixei tal dona bêbada, fiz de tudo com ela e, quando desmaiou, examinei o arquivos de seu computador. Tudo em uma única noite de trabalho.
— Você trepou com ela? — Cameron perguntou, incrédulo.
— Para que essa pergunta agora? — Preston reagiu.
— Ora, queria saber como você conseguiu. Já vi a tal dona. É um rinoceronte! — Dallas comentou.
— Ei, fiz o que tinha de fazer. Só ficava pensando nos oitocentos mil que nos renderia e...
— E daí? — Cameron insistiu.
— Fechei os olhos e foi por amor ao clube, entendeu? Só que não sei se vou ser capaz de fazer isso de novo. Um de vocês vai ter de assumir a tarefa. É algo que... suga a gente — admitiu, rindo com o trocadilho.
Cameron esvaziou o copo e esticou o braço para pegar a garrafa.
— Azar o seu. Essa tarefa é sua enquanto enlouquecer as mulheres com seus músculos sarados e essa sua cara de galã de cinema.
— Daqui a cinco anos vamos estar feitos para o resto da vida. Podemos dar o fora, desaparecer, se for preciso, fazer o que nos der vontade. É só não perder o objetivo de vista — Dallas argumentou.
John balançou a cabeça.
— Não sei se vou durar mais cinco anos. Eu sei que não vou agüentar.
— Ei, precisa manter a cabeça no lugar — Cameron aconselhou.
— Temos muito a perder se você nos deixar na mão agora. Está me ouvindo? Você é o cérebro do negócio. Somos apenas...
Não conseguia encontrar a palavra certa. Preston arriscou:
— Parceiros na conspiração?
— Isso mesmo — Dallas concordou. — Mas cada um fez a sua parte. John não é o único a ter cérebro. Fui eu quem arranjou Monk, lembram?
— Ah, pelo amor de Deus, não é hora de fazer guerra de egos, certo? — Prestou reclamou. — Não precisa nos dizer o quanto tem feito, está certo, Dallas? Sabemos que seu trabalho é duro. Na verdade, é só o que faz. Não existe mais nada em sua vida além de trabalho e do Clube dos Semeadores. Quando foi a última vez que tirou um dia inteiro de folga para ir às compras? Acho que nunca fez isso. Usa o mesmo traje azul marinho ou preto todos os dias. Continua almoçando comida para viagem — e aposto que leva o saquinho de volta para casa para comer o resto no dia seguinte. Por falar nisso, quando é que você pagou alguma de nossas contas?
— Está insinuando que sou mão-de-vaca? — Dallas reagiu. Antes que Preston respondesse, Cameron interveio:
— Parem com isso, vocês dois. Não importa quem é o mais esperto ou quem trabalha mais. A culpa é igual para todos. Vocês têm idéia de quantos anos pegaríamos caso alguém viesse a descobrir o que fizemos? — Cameron indagou.
— Ninguém vai descobrir nada! — John esbravejou. — Ninguém saberia onde procurar. Eu me certifiquei disso. Não há registro algum, a não ser em meu computador, mas ninguém conseguirá ter acesso a isso. Não há qualquer outro tipo de registro, nenhum telefonema, nem uma pista impressa. Nem mesmo se a polícia ou a Receita Federal tiverem curiosidade. Não encontrariam nem lasca de provas. Para todos os efeitos, estamos limpos.
— Monk bem que pode levar a polícia até a gente — Cameron interpôs.
Jamais havia confiado no "prestador de serviços", como John o chamava, mas precisavam de alguém confiável, um implementador, e Monk encaixava-se no perfil. Era tão corrupto e ambicioso quanto cada um deles e tinha tudo a perder se não fizesse exatamente o que queriam.
— Já está há tanto tempo conosco que já era hora de você confiar nele, Cameron — Preston argumentou. — Além do mais, se ele procurar a polícia, vai se ver em situação bem pior do que a nossa.
— Você tem toda a razão — John resmungou. — Olhe, sei que combinamos que manteríamos os negócios até o Cameron fazer quarenta anos, mas quero dizer que não sei se agüento até lá. Tem dias em que minha cabeça... ah, nem sei.
Levantou-se da cadeira e foi até a janela, com as mãos cruzadas nas costas enquanto observava as luzes.
— Já contei a vocês como eu e Catherine nos conhecemos? Eu estava no Centro de Arte Contemporânea. Nós dois queríamos comprar o mesmo quadro e, de alguma forma, durante uma acalorada discussão, acabei me apaixonando. Vocês precisavam ver o fogo que havia entre nós... acho que dava para ver, mesmo. Todos esses anos depois e o fogo continua ardendo. Só que agora ela está morrendo, e eu não posso fazer nada para impedir.
Cameron olhou para Preston e Dallas, que assentiram com a cabeça, depois disse:
— Sabemos o quanto ama Catherine.
— Não tente fazer dela uma santa, John. Ela nunca foi perfeita — Dallas contestou.
— Nossa! Essa foi dura — Preston murmurou.
— Está bem. Eu sei que Catherine não é perfeita. Tem lá seus defeitos, assim como nós. Quem não é compulsivo quanto a uma coisa ou outra? — John perguntou. — O caso é que ela tem medo de ser privada de alguma coisa e por isso tem de ter tudo em duplicata. Tem dois aparelhos de televisão, idênticos, um de cada lado da cama. Um deles fica ligado dia e noite, mas ela fica com medo que quebre e por isso tem outro de reserva. Faz o mesmo quando encomenda alguma coisa em uma loja, ou pede pelo catálogo. Sempre compra de dois, mas que mal há nisso? Não está prejudicando ninguém e tem tão pouco com que se alegrar, atualmente. Ela me agüenta porque me ama — ele baixou a cabeça e murmurou. — Ela é minha vida.
— Sabemos disso — Cameron concordou. — Mas estamos muito preocupados com você.
John virou-se para encará-los. Seu rosto estava crispado de raiva.
— Ora, estão é preocupados consigo mesmos. Acham que posso fazer alguma besteira e pôr tudo a perder, não é?
— Não vamos dizer que não — Cameron admitiu.
— John, não podemos permitir que fique louco da vida conosco — Preston disse.
— Eu não estou ficando louco!
— Está bem — Dallas interveio. — Vamos fazer o seguinte: John vai nos dizer se precisa de ajuda. Não é isso?
— Sim, claro — John assentiu.
Os amigos deixaram de lado o assunto e passaram o resto da noite arquitetando seu próximo plano.
Continuaram a se reunir às sextas-feiras à tarde, mas ninguém atrevia-se a comentar a crescente depressão de John. Nenhum deles sabia o que fazer a respeito, de qualquer maneira.
Três meses se passaram sem que se falasse de Catherine. Foi então que John entregou os pontos. Não conseguia mais ver Catherine sofrer e disse aos outros que preocupava-se o tempo todo com dinheiro, o que parecia ridículo quando tinham milhões guardados na conta do Clube dos Semeadores. Milhões que não poderiam tocar por mais cinco anos. Contou que o seguro cobria apenas uma parte ínfima do tratamento de Catherine, e ela continuava a sofrer. Se a situação perdurasse, as reservas dela acabariam e ele logo ficaria financeiramente arruinado. A menos, é claro, que os outros permitissem que ele fizesse um saque na conta do Clube dos Semeadores. Cameron protestou:
— Vocês todos sabem como eu estou precisando de dinheiro, com meu divórcio correndo e tal; mas se fizermos um saque agora, sem fechar a conta definitivamente, podemos criar um rastro de papéis e a Receita Federal...
John o interrompeu:
— Eu sei. É muito arriscado. Olhe, eu não deveria ter levantado o assunto. Tentarei arranjar uma solução.
Na tarde da sexta-feira seguinte, reuniram-se em seu bar favorito, o Doley's. Enquanto trovejava, a chuva caía torrencialmente lá fora e Jimmy Buffet cantava algo sobre Margaritaville ao microfone, John reclinou-se sobre a mesa e manifestou seu desejo em viva-voz.
Queria matar-se e acabar com o tormento.
Seus amigos ficaram chocados e indignados. Repreenderam-no até por pensar uma coisa maluca dessas, mas não demorou para perceberem que suas tentativas não estavam servindo de nada. Pelo contrário, perceberam que estavam aumentando ainda mais sua agonia e sua depressão. As palavras duras logo encheram-se de solicitude. O que poderiam fazer para ajudá-lo?
Com certeza haveria alguma coisa que pudessem fazer.
Continuaram a conversar, debruçados sobre a mesa a um canto do bar, colocando as cabeças juntas para fazer surgir alguma solução viável para a situação insuportável do amigo. Mais tarde, já perto da meia-noite, horas e horas de discussão, um deles reuniu coragem suficiente para sugerir o que todos estavam pensando. A pobre mulher já havia recebido uma sentença de morte. Se alguém deveria morrer, antes fosse a pobre esposa que há muito vinha sofrendo.
Se fosse possível...
Mais tarde, ninguém seria capaz de lembrar quem colocou em palavras a proposta de matá-la.
Nas três sextas-feiras seguintes, discutiram a possibilidade, mas uma vez que o debate encerrou-se e foi feita a votação, não haveria volta. A decisão, quando finalmente tomada, foi unânime. Não haveria hesitação, nem dúvidas atormentadoras de parte de nem um dos membros do clube.
Era algo tão claro quanto sangue seco sobre um carpete branco. Não se consideravam monstros nem admitiam que agiam motivados pela ganância. Não, eram apenas colarinhos brancos com altas metas, que trabalhavam muito e jogavam pesado. Eram tomadores de riscos, temidos pelos de fora pelo poder que emanavam. Eram conhecidos como verdadeiros "arrebenta colhões" — um termo que consideravam elogioso. Ainda assim, apesar de sua arrogância e audácia, nem um deles tinha a coragem de chamar o plano pelo que realmente era: assassinato. Por isso se referiam a isso como "o caso".
Sem dúvida, tinham muita ousadia, considerando-se que o Dooley's ficava a meio quarteirão de distância da Oitava Delegacia Regional da Polícia de Nova Orleans. Enquanto planejavam o crime, estavam rodeados de detetives e policiais. De quando em quando, também aparecia uma dupla de agentes do FBI em missão especial por ali, bem como vários promotores, que procuravam fazer política de boa vizinhança. Tanto a polícia quanto os advogados consideravam o Dooley's seu lugar de encontro, como também os sobrecarregados e mal pagos estagiários e residentes do Tribunal e do Charity Hospital. Os diferentes grupos raramente misturavam-se.
O Clube dos Semeadores não ficava de lado algum. Sempre sentavam-se no canto. Todos sabiam quem eram, no entanto, e até que o torpor do álcool começasse a agir, eram constantemente interrompidos por cumprimentos de colegas e de puxa-sacos.
Ah, sim, tinham nervos de aço e muita ousadia, pois em meio à elite de Nova Orleans, eles calmamente discutiam a tal morte piedosa.
A discussão jamais teria ido tão longe se já não contassem com a figura de que precisavam. Monk já havia matado por dinheiro e certamente não teria escrúpulos para voltar a matar. Dallas foi quem primeiro detectou o potencial e tirou vantagem, livrando-o do sistema judicial. Monk compreendia a dívida que teria de saldar. Prometeu a Dallas que faria qualquer coisa, o que quer que fosse, desde que os riscos fossem administráveis e que o preço fosse justo. Sentimentos à parte, o matador que arranjaram era, acima de tudo, um homem de negócios.
Todos encontraram-se para discutir os termos do trabalho em um dos pontos favoritos de Monk, o Frankie's, um barraco dilapidado próximo à Interestadual 10, do lado oposto de Metairie. O boteco cheirava a fumo, casca de amendoim e peixe estragado. Monk jurava que o Frankie's tinha o melhor camarão frito de todo o sul.
Chegou um pouco atrasado e nem se desculpou por isso. Tomou seu lugar, cruzou as mãos sobre a mesa e imediatamente expôs suas condições antes de aceitar o dinheiro deles. Monk era pessoa instruída, o que havia sido um dos principais motivos para Dallas tê-lo salvo de uma condenação à morte. Queriam uma pessoa inteligente e ele encaixava-se no perfil. Também tinha uma aparência distinta, bastante refinada e assombroso fino trato para um criminoso. Até ser preso por assassinato, a ficha de Monk estava limpa. Depois que ele e Dallas fizeram o trato, vangloriou-se de sua extensa experiência, que incluía incêndio criminoso, chantagem, extorsão, além, é claro, de assassinato. A polícia, obviamente, não sabia de seu passado, mas tinha provas suficientes para condenar o assassino — provas que deliberadamente foram desviadas.
A primeira vez que os outros viram Monk foi no apartamento de Dallas, quando causou forte impressão sobre eles. Esperavam encontrar alguém com jeito de mau, mas em vez disso depararam-se com um homem que bem se imaginaria ser um deles, um profissional de alto padrão, até perceberem seus olhos. Eram frios e cortantes como aço. Se era verdade que os olhos são o espelho da alma, então Monk já havia entregado a sua ao diabo. Depois de pedirem uma cerveja, ele recostou-se na cadeira e calmamente pediu o dobro do preço oferecido por Dallas.
— Está brincando — Preston disse. — Isso é extorsão.
— Não, é assassinato — Monk retrucou. — Quanto maior o risco, maior o preço.
— Não é... assassinato — Cameron reagiu. — É um caso especial.
— O que tem de especial? — Monk quis saber. — Querem que eu elimine a esposa do John, não é? Ou será que me enganei?
— Não, mas...
— Mas o quê, Cameron? Minha sinceridade incomoda? Posso usar uma outra palavra para assassinato, se quiserem, mas isso não elimina o fato de vocês estarem me contratando para fazer o serviço — ele deu de ombros e insistiu. — Quero mais dinheiro.
— Nós já o deixamos rico — John ressaltou.
— Sim, não nego.
— Olhe aqui, seu palhaço, já tínhamos combinado o preço — Preston gritou, depois olhou por cima do ombro para ver se alguém havia ouvido.
— Pois é, combinamos — Monk respondeu, parecendo não ter sido afetado pelo acesso de raiva do outro. — Mas vocês ainda não tinham explicado o que queriam, certo? Imaginem minha surpresa quando Dallas inteirou-me dos detalhes do trabalho.
— O que foi que Dallas lhe disse?
— Que havia um problema que todos vocês queriam eliminar. Agora que sei qual é o problema, estou dobrando o preço. Acho que é bastante razoável. O risco é considerável.
Um silêncio seguiu-se à fala de Monk. Depois, Cameron disse:
— Eu estou zerado. Onde vamos conseguir o restante do dinheiro?
— Isso é problema meu, não seu — John respondeu e voltou-se para Monk. — E ainda ofereço mais dez mil se concordar em esperar para receber depois que a herança for aberta.
Monk inclinou a cabeça e falou:
— Mais dez mil. Claro, eu espero. Sei onde encontrar você. Agora, preciso saber dos detalhes. Já sei quem você quer que eu mate, agora pode me dizer quando, onde e quanto quer que ela sofra.
John ficou abalado. Pigarreou, deu um gole em sua cerveja, depois murmurou:
— Meu Deus, não! Não quero que ela sofra. Já houve sofrimento demais.
— Ela é doente terminal — Cameron explicou. John assentiu com a cabeça.
— Não há mais esperança para ela. Não agüento mais ver a pobre sofrer tanto. É... constante, sem fim. Eu...
Estava emocionado demais para continuar. Cameron assumiu a palavra:
— Quando John começou a falar essa loucura, que queria se matar, decidimos que era hora de fazermos alguma coisa para ajudar.
Monk fez sinal para que se calasse quando a garçonete aproximou-se deles. Ela colocou mais uma rodada de cerveja sobre a mesa e disse que voltaria logo para pegar os pedidos para o jantar.
Quando ela afastou-se, Monk disse:
— Olhe, John, não sabia que sua mulher estava doente. Para mim pareceu frieza da sua parte. Sinto muito.
— O suficiente para baixar o preço? — Preston perguntou.
— Não, não a esse ponto.
— Mas vai fazer o serviço, ou não? — John perguntou, impaciente.
— Curioso, não é? — Monk comentou. — Na verdade eu estaria cometendo uma boa ação, não estaria?
Perguntou os detalhes da triste condição e também da rotina da casa. Enquanto John respondia às perguntas, Monk debruçou-se, cruzando as mãos sobre a mesa. Suas unhas estavam impecavelmente tratadas, sem cutículas, e os dedos não tinham calosidades. Ele olhava para a frente, parecendo perdido em seus pensamentos, como se estivesse tramando os detalhes do trabalho em sua cabeça.
Depois que John terminou de descrever a planta da casa, falar sobre o sistema de alarme e sobre a rotina diária das empregadas, esperou, nervoso, por mais perguntas.
— Então a empregada vai para casa todas as noites. E a governanta?
— Rosa... Ela se chama Rosa Vincetti — John disse. — Ela fica até às dez todas as noites, a não ser às segundas-feiras, quando em geral estou em casa e ela pode sair às seis.
— Algum parente ou amigo com quem eu deva me preocupar? John balançou a cabeça.
— Catherine se afastou dos amigos há anos. Não gosta de visitas. Fica constrangida com sua... situação.
— E parentes?
— Tem um tio e alguns primos, mas há muito os cortou de sua convivência. Diz que são perfeitamente descartáveis. O tio liga uma vez por mês. Ela tenta ser gentil, mas não fica muito ao telefone. Cansa-se com facilidade.
— Acha que o tal tio pode aparecer sem ser convidado?
— Não. Há anos ela não o vê. Não é preciso se preocupar com ele.
— Então não vou me preocupar — Monk disse, com voz suave.
— Olhe, não quero que ela sofra... Estou me referindo à hora que... É possível?
— Claro que é — Monk respondeu. — Compaixão faz parte da minha natureza. Não sou um monstro. Acredite ou não, possuo valores muito fortes e uma ética inflexível — gabou-se.
Ninguém se atreveu a rir da contradição. Um matador de aluguel com ética? Louco, sim; porém todos sabiamente concordaram com a cabeça. Se Monk houvesse lhes dito que conseguia andar sobre a água, eles também haveriam fingido acreditar.
Quando Monk cansou de falar sobre suas virtudes e concentrou-se no trabalho em questão, disse a John que não acreditava em crueldade ou dor desnecessária e, apesar de haver prometido o mínimo de sofrimento durante o "caso", sugeriu, apenas como precaução, que John aumentasse a dose de analgésicos que sua esposa tomava antes de dormir. Nada mais deveria ser alterado. John deveria ligar o alarme como fazia todas as noites antes de se recolher, depois ir para seu quarto e permanecer lá. Monk garantiu, com uma confiança que acharam obscenamente reconfortante, que ela estaria morta pela manhã.
Era um homem de palavra. Matou-a durante a noite. Como havia entrado na casa e saído, sem que o alarme disparasse, fugia à compreensão de John. Havia detectores de som e movimento dentro da casa, além de câmeras de vídeo monitorando o lado externo, mas o etéreo Monk havia entrado no recinto sem ser visto ou ouvido, despachando rapidamente a sofredora de tanto tempo para o alívio eterno.
Para provar que havia estado lá, colocou uma rosa sobre o travesseiro, assim como havia dito a John que faria, para não deixar qualquer dúvida sobre quem deveria receber o crédito e o pagamento final pelo assassinato. John removeu a rosa antes de ligar e pedir ajuda.
John concordou que fosse feita uma autópsia para que não fosse levantada a menor suspeita mais tarde. O relatório do legista indicou que ela havia morrido engasgada com chocolates. Foi encontrado um pedaço de caramelo coberto de chocolate de bom tamanho alojado em seu esôfago. Havia marcas arroxeadas em seu pescoço, mas deduziram que ela mesma as havia causado ao tentar desalojar o obstáculo que a estava sufocando. A morte foi considerada acidental; o caso foi oficialmente encerrado e o corpo liberado para sepultamento.
Por causa de seu volume avantajado, seriam necessários pelo menos oito pessoas bastante fortes para carregar o caixão, que a casa funerária gentilmente avisou que deveria ser feito. Com expressão embaraçada e condoída, o agente funerário disse ao viúvo, com todas as letras, que não conseguiria entrouxar todo aquele volume em um dos caixões de mogno polido, forrado de cetim, de que a casa dispunha já prontos. Sugeriu que seria mais prudente cremar o corpo, com o que o viúvo prontamente concordou.
A cerimônia do funeral foi íntima; compareceram alguns parentes de John e um ou outro amigo próximo. Cameron compareceu, mas Dallas e Preston justificaram-se. A governanta de Catherine também compareceu e John a ouviu gemer e soluçar quando saía da igreja. Ele a viu no vestíbulo, agarrada a seu terço e com um olhar do tipo tomara que o senhor pague pelos seus pecados no inferno. John ignorou aquela mulher à beira da histeria sem dirigir-lhe mais nem um olhar.
Duas pessoas da família de Catherine também vieram demonstrar seus sentimentos; ficaram, porém, bem atrás dos outros, enquanto o pequeno grupo seguia em procissão até o túmulo. John não parava de olhar por cima do ombro, para o homem e a mulher. Tinha a nítida sensação de que os dois o observavam, mas quando percebeu o quanto o estavam deixando nervoso, deu-lhes as costas e baixou a cabeça.
Os céus choraram por Catherine e cantaram sua homenagem. Enquanto o pastor rezava por ela, raios cortavam o céu e trovões ribombavam. A chuva torrencial não deu trégua até que a urna com as cinzas fosse fechada no túmulo.
Catherine finalmente estava em paz, e o tormento do marido se acabara. Seus amigos esperavam que ele estivesse triste mas, ao mesmo tempo, que sentisse alívio porque a esposa não estava mais sofrendo. Afinal, ele a havia amado com todo seu coração, não era verdade?
Apesar de os outros aconselharem-no a tirar umas férias, sair um pouco, o viúvo voltou a trabalhar no dia seguinte ao funeral. Insistia que precisava manter-se ocupado para manter a mente livre da angústia.
O dia estava claro, o céu estava limpo e azul enquanto ele cruzava St. Charles a caminho de seu escritório. O ar úmido estava carregado do cheiro de madressilva. Seu disco favorito do Mellecamp, Hurts so Good, soava alto em seus alto-falantes.
Estacionou na vaga de sempre e pegou o elevador para seu conjunto comercial. Quando abriu a porta estampada com seu nome, a secretária correu para manifestar-lhe seu sincero pesar. Ele observou que a esposa teria adorado aquele dia lindo de verão e, mais tarde, a secretária comunicou a todos no escritório que havia lágrimas em seus olhos quando mencionou o nome de Catherine.
À medida que os dias iam passando, ele parecia estar lutando contra a depressão. Durante a maior parte do tempo que passava no trabalho, parecia distraído e distante, enfrentando a rotina de maneira mais ou menos automática. Em outras ocasiões, mostrava-se chocantemente animado. Seu comportamento errático era motivo de preocupação para os funcionários, mas eles preferiam acreditar que eram reflexos compreensíveis de seu enorme pesar. O melhor que poderiam proporcionar-lhe naquele momento era paz. John não era pessoa de comentar seus sentimentos e todos sabiam o quanto prezava sua privacidade.
O que não sabiam, no entanto, era que John também andava bem ocupado.
Duas semanas depois do "caso", ele já havia se livrado de qualquer memória dolorosa da esposa, incluindo a mobília renascentista italiana que ela tanto gostara. Dispensou todos os fiéis empregados e contratou uma governanta que não havia conhecido Catherine. Mandou pintar a casa, de alto a baixo de cores vivas e mandou reformar o jardim. Mandou instalar a fonte que queria, aquela com o querubim soltando água pela boca. Havia tempo que desejava aquela fonte, mas quando mostrou a foto do catálogo a Catherine, ela julgou-a espalhafatosa demais.
Tudo estava sendo feito agora a seu gosto. Escolheu mobília contemporânea por causa das linhas simples e leves. Quando foi entregue, o lugar de cada peça foi supervisionado pessoalmente pela decoradora de interiores.
Depois, quando o último caminhão de entrega partiu, ele e a tão habilidosa, linda e jovem decoradora batizaram a nova cama. Passaram a noite sobre a cama com dossel de laca negra — exatamente como ele vinha prometendo a ela há mais de um ano.


Capítulo 2


Theo Buchanan parecia não conseguir se livrar do vírus. Sabia que estava com febre porque cada osso de seu corpo doía e tinha calafrios. Recusava-se a admitir que estava doente, no entanto; preferia pensar que não estava em tão boa forma e pronto. Bastava não pensar e logo tudo passaria. Além do mais, achava que o pior já havia passado. A dor do lado havia diminuído para um latejar médio, e ele tinha certeza de que isso significava que estava melhorando. Caso se tratasse do mesmo agente que havia atacado o pessoal do escritório em Boston, era coisa para não mais do que 24 horas e ele já estaria se sentindo novo em folha na manhã seguinte. O problema era que o tal latejar do lado já o perseguia há alguns dias.
Decidiu culpar o irmão Dylan pela dor. Ele havia feito uma entrada dura enquanto jogavam futebol americano em uma reunião de família nos jardins da casa da Baía de Nathan. Sim, os músculos doloridos eram culpa de Dylan, mas Theo achou que, se continuasse a ignorar a dor, esta acabaria por sumir.
Diabos! Sentia-se como um velho naqueles dias e não havia nem completado 33, ainda.
Não achou que fosse nada contagioso e tinha coisas demais a fazer para ir para a cama e esperar suar toda a febre do corpo. Havia voado de Boston a Nova Orleans para falar em um simpósio sobre crime organizado e receber uma condecoração que achava não merecer, pois apenas havia cumprido seu dever.
Colocou o revólver no coldre. Aquilo era um estorvo, mas tinham-no aconselhado a usá-lo por algum tempo, ou pelo menos até que as ameaças de morte que havia recebido durante o julgamento da quadrilha acabassem de vez. Vestiu o paletó do smoking, foi para o banheiro da suíte do hotel e aproximou-se bem do espelho para arrumar a gravata. Observou sua aparência. Parecia um morto-vivo. Seu rosto estava coberto de suor.
Aquela era a primeira de três noites de gala. O jantar seria preparado pelos três melhores chefs da cidade, mas as especialidades não serviriam para ele. Só de pensar em pôr qualquer coisa na boca, mesmo que fosse água, sentia o estômago embrulhar. Não havia comido nada desde a tarde do dia anterior.
Com certeza não estava nem um pouco disposto a jogar conversa fora naquela noite. Colocou a chave do quarto no bolso e já estava com a mão no trinco quando o telefone tocou.
Era o irmão, Nick, que queria saber como ele estava.
— O que está fazendo?
— Estava pronto para sair — Theo respondeu. — De onde está ligando? De Boston ou Holy Oaks?
— De Boston — Nick respondeu. — Ajudei Laura a fechar a casa do lago e voltamos para cá juntos.
— Ela vai ficar com você até o casamento?
— Está brincando? Tommy me mandaria diretamente para o inferno.
Theo riu.
— Acho que ter um padre como futuro cunhado deve pôr um freio em sua vida sexual.
— Mais dois meses e me tornarei um homem casado. Difícil de acreditar, não?
— É...é difícil acreditar que alguma mulher queira casar com você.
— A Laura é míope. Eu disse que era um sujeito comportado e ela acreditou. Ela vai ficar com mamãe e papai até voltarmos para Iowa, para o casamento. O que vai fazer esta noite?
— Tenho um jantar beneficente ao qual tenho de ir. E então, Nick, o que queria?
— Tive vontade de ligar e dar um alô.
— Não dá para acreditar. Está querendo alguma coisa. O que é? Desembuche, Nick, ou vou me atrasar.
— Theo, você precisa ir mais devagar. Não pode correr o resto da vida. Sei muito bem o que está fazendo. Está se afundando no trabalho para não pensar em Rebecca. Já faz quatro anos que ela morreu, mas você...
Theo interrompeu-o:
— Gosto da vida que estou levando e não estou com vontade de falar sobre Rebecca.
— Você trabalha demais.
— Ligou para me passar um sermão?
— Não. Liguei para saber como estava.
— Sei, sei.
— Theo, você está em uma cidade bonita, com mulheres bonitas, comida maravilhosa...
— Onde quer chegar, Nick? Nick entregou os pontos:
— Tommy e eu queremos usar seu veleiro amanhã.
— O pai de Laura está por aí?
— Sim. Veio no carro com Laura e comigo — Nick explicou.
— Deixe eu entender direito. Você e Tommy querem usar meu veleiro mas nenhum de vocês sabe velejar, certo?
— O que quer dizer?
— Não prefere o barco de pesca? Por que não pega o Mary Beth? É bem mais resistente e fácil de navegar.
— Não queremos pescar. Queremos velejar. Theo suspirou.
— Está bem. Procure não afundar o barco, certo? E não vá levar Laura com vocês. A família toda gosta dela. Não queremos que ela se afogue. Bom, tenho de desligar.
— Espere, tem mais uma coisa.
— O que é?
— A Laura vem insistindo para eu ligar para você.
— Ela está aí? Deixe eu falar com ela — Theo disse. Sentou-se na beirada da cama e percebeu que estava se sentindo um pouco melhor. A noiva de Nick tinha esse efeito sobre todos os homens da família. Fazia com que todo o mundo se sentisse bem.
— Ela não está aqui. Saiu com Jordan, e você conhece sua irmã. Deus sabe a que horas vão voltar. De qualquer maneira, prometi a Laura que localizaria você e perguntaria...
— O quê?
— Ela queria que eu pedisse a você, mas achei que não precisava, Theo. Achei que estava subentendido.
— O que estava subentendido? — Theo perguntou, tentando controlar sua impaciência.
— Que você vai ser meu padrinho de casamento.
— E Noah?
— Ele vai ao casamento, com certeza, mas quero você de padrinho. Achei que você já teria entendido, mas Laura achou melhor perguntar se você quer.
— É...
— É o quê?
— É sim, claro.
O irmão não quis falar demais.
— Ótimo. Já fez seu discurso?
— Não, isso vai ser amanhã à noite.
— E quando recebe seu troféu?
— É só uma placa e devo recebê-la antes do tal discurso.
— Então, se você for um porre e fizer todos esse oficiais da polícia dormir, eles não poderão pegar o troféu de volta, certo?
— Vou desligar.
— Ei, Theo. Pelo menos uma vez pare de pensar em trabalho. Vá conhecer os lugares turísticos. Arranje uma garota. Sabe como é, divirta-se. E... sabe o que mais? Dê uma ligada para o Noah. Ele estará trabalhando em Biloxi nos próximos meses. Bem que poderia dar um pulo em Nova Orleans e vocês dois poderiam se divertir um pouco.
Se havia alguém que sabia se divertir, esse era Noah Clayborne. O agente do FBI havia se tornado amigo íntimo da família depois de fazer vários trabalhos com Nick e depois assessorar Theo com suas investigações como procurador federal a serviço do Ministério da Justiça. Noah era uma boa pessoa, mas tinha uma concepção de diversão um tanto bizarra e Theo não se achava em condições de acompanhar Noah naquele momento.
— Está bem, quem sabe.
Theo desligou o telefone, levantou-se, mas logo se dobrou por causa da dor que irradiava de seu lado direito. Havia começado no abdome, mas agora parecia ter descido e, diabos, doía, doía muito. Parecia que toda a região afetada estava pegando fogo.
Uma droga de contusão por causa do futebol não iria impedi-lo de descer para o jantar. Resmungando consigo mesmo, tirou o telefone celular do recarregador, colocou-o no bolso do paletó, junto com os óculos de leitura, e saiu do quarto. Ao chegar ao saguão, a dor havia diminuído e ele já estava quase se sentindo humano outra vez. Isso, é claro, reforçava sua crença: bastava ignorar a dor que ela desapareceria. Além do mais, um Buchanan conseguia dar conta de qualquer coisa.


Capítulo 3


Tudo contribuía para ser uma noite memorável.
Michelle jamais havia estado presente a uma ocasião tão especial antes e, enquanto esperava no topo da escada, olhando para o salão de baile, sentiu-se como Alice, prestes a cair para dentro do espelho no País das Maravilhas.
Havia flores por toda a parte, lindas flores primaveris em belos arranjos pendentes, outras espalhadas em floreiras sobre o chão de mármore e também em vasos de cristal sobre as mesas cobertas de linho branco. Em cada canto do salão, sob um magnífico lustre de cristal, havia pés de magnólia em flor. Seu perfume inebriante impregnava o ar.
Garçons moviam-se agilmente por entre a multidão, levando bandejas de prata com taças compridas de champanhe, enquanto outros deslizavam de mesa em mesa, acendendo longas velas brancas.
Mary Ann Winters, uma amiga desde o tempo de infância, estava ao lado de Michelle, também apreciando cada detalhe.
— Não me sinto à vontade aqui — Michelle sussurrou. — Estou me sentindo como uma adolescente desajeitada.
— Pois não parece uma — Mary Anne respondeu. — E eu me sinto invisível, se quer saber. Os homens só têm olhos para você.
— Não, eles só estão olhando para este vestido obsceno de tão justo. Como uma coisa assim pode parecer tão simples quando pendurada em um cabide e tão...
J — Maravilhoso e sexy sobre seu corpo? Ora, fica justo nos lugares certos. Reconheça, menina, você tem um belo corpo.
— Eu nunca deveria ter gastado tanto dinheiro em um vestido.
— Pelo amor de Deus, Michelle. Trata-se de um Armani. E você pagou uma bagatela por ele, se quer saber.
Michelle arrumou o cabelo que caía sobre o tecido macio do vestido. Pensou no quanto havia pagado por ele e decidiu que teria de usá-lo pelo menos mais vinte vezes para ter valido a pena. Imaginou se outras mulheres faziam o mesmo — racionalizar um gasto com frivolidade para amenizar a culpa. Havia muito mais coisas importantes nas quais poderia ter usado o dinheiro e, quando, em nome dos céus, teria outra oportunidade para usar um vestido daqueles? Não em Bowen, com certeza. Não nos próximos cem anos.
— Onde será que eu estava com a cabeça? Jamais deveria ter deixado você me convencer a comprar este vestido.
Mary Ann impacientemente afastou o cabelo louro para trás do ombro da amiga.
— Não vá começar a se queixar do preço outra vez. Você jamais gasta um tostão consigo mesma. Aposto que é o primeiro vestido elegante que já teve, não é verdade? Você está lindíssima hoje. Prometa que vai parar de se preocupar e vai se divertir.
Michelle teve de concordar.
— Você está certa. Não vou mais me preocupar.
— Ótimo. Agora vamos nos misturar por aí. Há entradas maravilhosas e champanhe nos jardins e precisamos comer pelo menos mil dólares cada uma. Esse é o preço de cada convite, pelo que ouvi. A gente se vê por aí.
A amiga acabava de descer as escadas quando o Dr. Cooper avistou Michelle e fez sinal para ela aproximar-se de seu grupo. Ele era o chefe do centro cirúrgico do Brethren Hospital, onde ela havia feito plantões durante todo o mês anterior. Cooper normalmente era uma pessoa reservada, mas o champanhe o havia libertado da timidez e ele estava bastante à vontade. Muito expansivo. Revelou que estava muito contente por ela estar aproveitando os convites que lhe dera e não deixou de comentar, repetidamente, como ela ficava bonita arrumada como estava. Michelle achou que, se o Dr. Cooper ficasse um pouco mais alegre, acabaria desmaiando sobre o prato de sopa.
Ele não se cansava de elogiar a excelência do lagostim, deixando espirrar saliva cada vez que falava o nome do crustáceo; e ela ia se afastando, para ficar fora da linha de fogo. Por sorte, logo a esposa do Dr. Cooper aproximou-se com um casal de velhos amigos: Michelle aproveitou a oportunidade para afastar-se sem ser notada.
Não queria ficar presa entre os Cooper durante todo o jantar. A única coisa pior que um bêbado era um bêbado galanteador, e Cooper já estava entrando na segunda categoria. Já que o médico e a esposa estavam na porta que dava para o jardim e a veriam passar, ela dirigiu-se ao saguão dos elevadores, disposta a procurar uma passagem para fora pelo outro lado.
Foi então que percebeu a presença dele. Estava encostado em um pilar, curvado, inclinado para um lado. Era alto e tinha ombros largos; era bem feito de corpo, como um atleta, ela analisou. Seu rosto, porém, tinha um tom acinzentado e, quando passou por ele, viu ele fazer uma careta e cobrir o abdome com a mão.
Com certeza estava passando mal. Tocou-lhe o braço para chamar sua atenção, assim que as portas do elevador abriram-se. Ele endireitou-se e baixou os olhos para ela. Seus olhos acinzentados estavam vidrados de dor.
— Precisa de ajuda?
Em vez de responder, ele vomitou sobre ela.
Ela não conseguiu esquivar-se porque ele havia se segurado em seu braço. Os joelhos dele dobraram-se e ele sabia que cairia. Ela passou os braços pela cintura dele, tentando ajudá-lo a escorregar para o chão, mas ele caiu para a frente e acabou levando-a junto.
A cabeça de Theo girava. Caiu por cima dela. Ouviu-a gemer e desesperadamente procurou forças para levantar-se. Achou que estava morrendo, o que não seria má idéia, se fizesse a dor parar. Estava insuportável naquele exato momento. Seu abdome voltou a doer, provocando uma sensação insuportável. Imaginou se era aquela a sensação de ser trespassado por uma espada várias vezes. Agora estava de costas e ela estava debruçada sobre ele.
Procurou enxergar o rosto dela com clareza. Tinha olhos azuis, quase violetas, concluiu, com sardas sobre o nariz. Então, tão rápido quanto tinha sumido, a dor lancinante voltou a invadir o lado de seu corpo, desta vez muito pior do que antes. Um espasmo o fez curvar-se e ele praguejou:
— Puta que pariu!
A mulher falava com ele, mas ele não conseguia compreender o que ela estava dizendo. E que diabos estava fazendo com ele? Estaria tentando roubá-lo? A mão dela apalpava tudo, puxava seu paletó, sua gravata, sua camisa. Tentava esticar suas pernas. Ela o machucava, droga, e toda vez que ele tentava afastar as mãos dela, elas voltavam, apalpando e apertando ainda mais.
Theo perdia e recobrava os sentidos. Teve a sensação de estar sacolejando e de ouvir o berro de uma sirene bem perto de sua cabeça. Olhos Azuis também estava ali, atormentando-o. Voltou a fazer perguntas. Algo sobre alergias. Será que ela queria que ele fosse alérgico a alguma coisa?
— Sim, claro.
Sentiu ela abrir seu paletó, sabia que ela estava vendo o revólver no coldre acima do quadril. Ele estava varado de dor e não conseguia pensar direito. Só sabia que não podia deixar que ela lhe tirasse a arma.
Ela falava como uma matraca. Uma coisa, porém, tinha de reconhecer. Parecia uma modelo de revista. Uma doçura. Não, nada de doçura. Continuava apertando-o.
— Olhe aqui, dona. Pode levar minha carteira, se quiser, mas não ponha a mão no meu revólver, está ouvindo?
Ele mal conseguia articular as palavras entre os dentes semicerrados.
A mão dela apertava do lado. Ele reagiu instintivamente, afastando-a. Pensou ter atingido algum ponto sensível, pois ouviu-a gritar antes de perder a consciência outra vez.
Theo não sabia quanto tempo havia ficado inconsciente, mas quando abriu os olhos, as luzes fortes quase cegaram-no. Onde teria ido parar? Não conseguia reunir suas energias para mover-se. Pensou estar sobre uma mesa. Era fria e dura.
— Onde estou?
Sua boca estava seca e as palavras saíram emboladas.
— Está no Brethren Hospital, Sr. Buchanan — disse uma voz masculina por trás dele.
Ele não conseguia ver a quem pertencia.
— Pegaram a mulher?
— Quem?
— A modelo.
— Ele está variando — a voz desconhecida de uma mulher comentou.
Theo de repente percebeu que já não tinha dores. Sentia-se bem, na verdade. Muito bem. Como se pudesse sair voando. O estranho, no entanto, é que não tinha forças para mover os braços. Uma máscara cobria seu nariz e sua boca. Virou a cabeça para livrar-se dela.
— Está ficando com sono, Sr. Buchanan?
Ele voltou a virar a cabeça e a viu. Olhos Azuis. Ela parecia um anjo, toda de ouro. "Esperem um pouco. O que ela está fazendo aqui?", pensou. "O que..."
— Mike, você está vendo bem o que está fazendo? Esse olho está feio.
— Tudo bem.
— Como aconteceu? — a voz por trás da cabeça de Theo perguntou.
— Ele me acertou.
— O paciente lhe deu um soco?
— Isso mesmo.
Ela olhava para ele enquanto falava. Estava com uma máscara de pano verde, mas tinha certeza de que estava sorrindo.
Ele sentia um torpor tão agradável e tanto sono que tinha dificuldade em manter os olhos abertos. A conversa parecia girar em torno dele, mas não fazia sentido. Uma voz de mulher disse:
— Onde encontrou-o, Dra. Renard?
— Em uma festa.
Outra mulher se debruçou sobre ele.
— Que pedaço de homem!
— Foi amor à primeira vista?
— Decidam depois de eu contar. Ele vomitou em cima de mim e acabou com meu vestido novo.
Alguém riu.
— Acho que é amor. Aposto que é casado. Todo homem bonito é casado. Este aqui tem um corpo bem exercitado. Experimentou a mercadoria, Annie?
— Só espero que nosso paciente já esteja dormindo.
— Ainda não — disse a voz masculina. — Mas, por sorte, não vai se lembrar de nada.
— Onde está o assistente?
— Fazendo a assepsia.
Parecia que uma festa estava acontecendo. Theo achou que deveria haver umas vinte ou trinta pessoas na sala com ele. Por que estava tão frio? Quem estava fazendo tanto barulho com metais? Ele estava com sede. Parecia ter a boca cheia de algodão. Talvez fosse melhor beber alguma coisa. Sim, era o que ia fazer.
— Onde está o Dr. Cooper?
— Provavelmente desmaiado em cima da sobremesa — Olhos Azuis respondeu.
Theo adorou o tom de sua voz. Era muito sensual.
— Você viu o Dr. Cooper na tal festa?
— Vi, sim — Olhos Azuis respondeu. — Não estava de plantão esta noite. Ele trabalha muito. Foi bom ver que estava se divertindo. Mary Ann provavelmente também está se divertindo muito.
— Você...
Theo esforçou-se para conseguir emitir o som, mas conseguiu chamar a atenção dela, pois quando conseguiu abrir os olhos, ela estava debruçada sobre ele, bloqueando a luz intensa.
— É hora de o senhor dormir, Sr. Buchanan.
— Ele está resistindo.
— O que... — Theo começou.
— Sim?
— O que quer de mim?
O homem escondido por trás dele respondeu:
— Mike quer seu apêndice, Sr. Buchanan.
Pareceu muito bom para ele. Era sempre bom agradar uma bela mulher.
— Está bem — ele murmurou. — Está na minha carteira.
— Estamos prontos.
— Já era hora — o homem comentou.
— Quem vai ouvir esta noite, Dra. Renard?
— E precisa perguntar, Annie?
Um murmúrio de protesto percorreu a sala. Depois um leve estalo. Theo ouviu uma cadeira ranger por trás de si, depois uma voz estranha disse-lhe para respirar fundo. Theo finalmente identificou quem era o homem atrás dele. Cortaria a cabeça se não fosse Willie Nelson, que agora cantava para ele, algo sobre Olhos Azuis chorando na chuva.
— Que festa louca!


Capítulo 4


Theo dormiu durante o período de recuperação. Quando acordou na manhã seguinte, estava em uma cama de hospital. As proteções laterais estavam erguidas e ele estava ligado a uma sonda de soro. Fechou os olhos e tentou clarear a mente. Que diabo havia acontecido com ele? Não conseguia se lembrar.
Já passava das dez quando voltou a abrir os olhos. Ela estava lá, em pé ao lado da cama, levantando os lençóis na altura da cintura dele. Olhos Azuis. Então ele não havia imaginado que ela existia.
Parecia diferente naquela manhã. Ainda estava vestida com roupas de sala de cirurgia, mas seus cabelos não estavam envolvidos por uma touca. Estavam caídos sobre os ombros e eram brilhantes, de um castanho avermelhado.
Era bem mais bonita do que ele se lembrava.
— Bom dia — ela cumprimentou, ao perceber que ele estava acordado. — Como está se sentindo? Ainda um pouco tonto?
Ele esforçou-se para sentar. Ela pegou o controle e apertou um botão. A cabeceira da cama ergueu-se lentamente. Theo sentiu um repuxão do lado e uma leve sensação de ardor.
— Diga quando estiver na altura que deseja.
— Já está bom, obrigado — ele respondeu.
Ela pegou o relatório e passou a escrever enquanto ele olhava para ela abertamente. Sentia-se vulnerável e estranho sentado em uma cama e com uma camisola de hospital. Não conseguia pensar em nada inteligente para dizer a ela. Pela primeira vez em sua vida desejava ser charmoso, mas não fazia a menor idéia de como começar. Era uma pessoa viciada em trabalho, e simplesmente não havia lugar para rapapés sociais em sua vida. Nos últimos quatro anos — desde a morte da esposa — ele havia se tornado calado, direto, pois economizava tempo; e Theo parecia estar sempre com pressa de realizar uma porção de coisas. Esta repentina reviravolta o surpreendera. Na verdade, queria mesmo ser charmoso. Agradar, como diria seu irmão mais novo, Zack. Ainda assim, Theo achou que conseguiria. Sim, um pouco de charme era algo absolutamente viável.
— Lembra-se do que aconteceu na noite passada? — ela perguntou, levantando os olhos das anotações.
— Sofri uma cirurgia.
— Sim, seu apêndice foi removido. Mais quinze minutos e definitivamente teria se rompido.
— Lembro-me de coisas dispersas. O que aconteceu com seu olho?
Ela sorriu e voltou a escrever, enquanto respondia:
— Não consegui me afastar a tempo.
— Quem é você?
— A Dra. Renard.
— Mike?
— O que disse?
— Alguém chamou-a de Mike.
Michelle fechou a pasta, recolocou a tampa na caneta e a colocou no bolso. Dedicou a ele toda sua atenção. As enfermeiras do centro cirúrgico tinham toda a razão. Theo Buchanan era lindo... e sensual como o diabo. Mas nada disso deveria importar. Era apenas sua médica, nada mais, nada menos, mas não podia deixar de reagir diante dele como qualquer mulher naturalmente reagiria com um homem daqueles. Seu cabelo estava desalinhado e precisava fazer a barba, mas ainda assim era sensual. Não havia nada errado no fato de ela reparar nisso... a não ser, é claro, pelo fato de ele estar reparando que ela reparava.
— Fez uma pergunta, não é mesmo? — ela disse, para quebrar o silêncio.
Ele sabia que a havia afetado de alguma maneira, mas não sabia como.
— Ouvi alguém chamá-la de Mike.
— Ah, sim. O pessoal me chama de Mike como uma forma curta para Michelle.
— Michelle é um nome bonito.
— Obrigada.
Theo começava a lembrar-se de tudo. Estava em uma festa e havia aquela belíssima mulher em um vestido preto justo. Era de tirar o fôlego. Disso ele se lembrava. Ela tinha olhos azuis arrasadores e Willie Nelson estava com ela. Estava cantando. Não, isso não poderia ter acontecido. Obviamente sua cabeça ainda não estava em ordem.
— Estava falando comigo... depois da cirurgia — ele disse.
— Ah, durante a recuperação. Sim — ela assentiu. — Mas quase só se ouvia sua voz — ela voltou a sorrir.
— É mesmo? O que eu disse?
— Muita coisa sem sentido — ela respondeu.
— Você pegou meu revólver. Onde está?
— Trancado no cofre do hospital com seus outros pertences, Sr. Buchanan. O Dr. Cooper fará tudo para que o senhor os receba antes de partir. Ele vai se encarregar do senhor. Irá conhecê-lo logo, quando ele fizer sua ronda.
— Por quê?
— Por que o quê, Sr. Buchanan?
— Theo — ele corrigiu — Meu nome é Theo.
— Sim, eu sei. Seu irmão disse-me que o senhor atende por esse apelido.
— Qual irmão?
— Quantos tem?
— Cinco — ele respondeu. — E duas irmãs. Com quem falou, então?
— Nick — ela respondeu. — Foi esse o número que me deu e pediu que eu o avisasse. Ele estava preocupado e me fez prometer que ligaria de novo depois da cirurgia. Assim que foi levado para a sala de recuperação, liguei e assegurei que ficará bom. Ele queria vir — ela informou — mas pareceu aliviado quando eu disse que não era necessário.
Theo concordou com a cabeça.
— Nick odeia pegar avião — explicou. — Quando foi que lhe dei o número dele? Não consigo me lembrar de ter dado.
— Durante o pré-operatório. Ficou muito falante depois que lhe demos algo para livrar-se da dor. Por falar nisso, a resposta é não. Não quero me casar.
Ele sorriu. Ela deveria estar brincando.
— Não me lembro desse tal pré-operatório. Lembro-me da dor, no entanto. Doía como o diabo.
— Não duvido.
— Você fez a cirurgia, não fez? Não foi imaginação minha, foi?
— Não, não foi. Fui eu quem o operei.
Ela estava se preparando para sair do quarto. Ele não queria que ela se fosse ainda. Queria descobrir algo mais sobre ela. Desejou ser capaz de entabular uma conversa fiada.
— Espere.
— Sim? — Ela se deteve.
— Água... posso beber um pouco de água?
Ela aproximou-se da mesa de cabeceira, colocou um pouquinho de água no copo e entregou a ele.
— Só um gole — ela recomendou. — Se ficar enjoado e vomitar, vai arruinar os meus pontos.
— Está bem — ele concordou.
Deu um gole, entregou o copo a ela e comentou:
— Você não parece ter idade para ser cirurgia.
Era um comentário bastante idiota, mas não conseguia pensar em coisa melhor para dizer no momento.
— Sempre ouço isso.
— Parece que acabou de entrar na faculdade — ele disse, achando que agora dissera algo ainda mais estúpido.
Ela não conseguiu resistir:
— Tenho cara de colegial, não é? Deixaram que eu o operasse só porque gostam de mim.
— Dra. Renard? Posso interromper?
Um ajudante estava no corredor com uma grande caixa de papelão debaixo do braço.
— Sim, Bobby?
— O Dr. Cooper encheu esta caixa de suprimentos médicos e disse que são para sua clínica — o rapaz disse. — Onde devo colocar? O Dr. Cooper deixou na sala das enfermeiras, mas elas reclamaram que estava atrapalhando e pediram para eu tirar de lá.
— Pode colocar em meu armário lá embaixo?
— É muito grande, Dra. Renard. Não vai caber. Não está muito pesada. Se quiser, posso levar para o seu carro.
— Meu pai está com o carro — ela disse, olhando em volta e depois para Theo. — Importa-se se Bobby deixar a caixa aqui? Meu pai virá buscar assim que chegar.
— Não me importo nem um pouco — Theo respondeu.
— Não vou vê-lo outra vez. Vou para casa hoje, mas não se preocupe. Está em boas mãos. O Dr. Cooper é o chefe da Cirurgia aqui do Brethren e cuidará muito bem do seu caso.
— E onde mora?
— No pântano.
— Está brincando?
— Não — ela respondeu, voltando a sorrir e formando uma covinha na bochecha esquerda. — Minha casa fica em uma cidadezinha rodeada pelo pântano, e eu não vejo a hora de voltar para lá.
— Com saudade de casa?
— Sim, muita — ela admitiu. — No fundo, continuo uma garota do interior. Não é uma vida glamourosa, e é por isso que gosto.
— Gosta de viver no pântano.
Era apenas um comentário, não uma pergunta, mas ela respondeu mesmo assim.
— Parece que ficou chocado.
— Não, apenas surpreso.
— Como é de uma cidade grande e rica, provavelmente o detestaria.
— Por que acha isso? Ela deu de ombros.
— Não sei. É que me pareceu tão... sofisticado. Ele não saberia dizer se aquilo era elogio ou crítica.
— Às vezes, voltar para casa não é a melhor opção. Foi o que li em um livro, uma vez. Além do mais, você me pareceu uma garota típica de Nova Orleans.
— Adoro Nova Orleans. É um ótimo lugar para vir jantar.
— Mas não se sente em casa.
— Não.
— Vai ser a médica da cidade?
— Mais uma — ela respondeu. — Estou abrindo uma clínica lá. Não é nada fantástica, mas é necessária. Muita gente por lá não tem recursos para pagar um convênio.
— Parece que eles têm muita sorte por você existir. Ela balançou a cabeça.
— Não, a sorte é minha — ela riu. — Pareceu que eu estava sendo boazinha, não é? Mas é que tenho sorte. As pessoas são maravilhosas. Pelo menos, é o que eu acho e aposto que vou aproveitar bem mais do que eles — enquanto falava, seus olhos brilhavam. — Sabe do que vou gostar mais?
— O quê?
— Nada de subterfúgios. Em sua maioria, são pessoas simples e honestas, tentando trabalhar e se manter. Não perdem tempo com um monte de bobagens desnecessárias.
— Então todos se adoram? — ele riu da ironia.
— Não, claro que não — ela respondeu. — Só que posso identificar meus inimigos. Ninguém vai me atacar pelas costas, nem puxar meu tapete. Não é o estilo deles — ela voltou a sorrir. — Dizem o que pensam na sua cara, e acho que vou gostar disso. Como eu disse, é tudo às claras. Depois da minha residência, que acabo de terminar, será um refresco.
— Não vai sentir falta de uma clínica grande, sofisticada, e todas essas coisas que costumam prender as pessoas?
— Não, não verdade, não. Há outros tipos de recompensa além do dinheiro. Claro que seria maravilhoso ter todos os suprimentos e equipamentos necessários, mas daremos um jeito. Há muito venho me preparando para isso... além do mais, foi uma promessa que fiz.
Ele continuou a fazer perguntas para mantê-la ali. Estava interessado em saber mais sobre sua cidade, mas não tanto quanto estava fascinado com a expressão dela. Havia paixão e alegria em sua voz, e seus olhos brilhavam quando falava da família e dos amigos, do bem que desejava poder fazer.
Ela o fez lembrar de como ele se sentiu quando começara a praticar o Direito, antes de ficar tão endurecido. Ele, também, tivera vontade de mudar o mundo, torná-lo um lugar melhor. Rebecca havia posto um fim a tudo isso. Olhando para trás, percebia o quanto havia falhado.
— Acho que estou deixando você cansado, falando sem parar da minha cidade. Deixarei que descanse agora.
— Quando vou poder sair daqui?
— Isso é o Dr. Cooper que vai decidir; se dependesse de mim, o prenderia aqui mais uma noite. Estava com uma infecção bastante feia. Precisa resguardar-se mais umas duas semanas e não esqueça de tomar seus antibióticos. Boa sorte, Theo.
E então ela se foi e ele perdeu a única oportunidade que teria de saber mais sobre ela. Nem sabia onde ficava a casa dela. Cochilou pensando em alguma maneira de poder voltar a vê-la.


Capítulo 5


O quarto estava cheio de flores quando Theo acordou de seu cochilo matinal. Ouviu vozes falando baixo no corredor, abriu os olhos e viu uma enfermeira conversando com um homem mais velho. Ela estava apontando para a caixa que o rapaz havia deixado.
O homem parecia um atacante de futebol americano aposentado, na opinião de Theo. Ou, quem sabe, um boxeador. Se era o pai da Dra. Renard, ela deveria ter herdado a beleza do lado materno da família.
— Não quero incomodar seu repouso — o homem disse, a voz carregada de sotaque Cajun, típico daquela área do país. — Só queria pegar essa caixa aí, que o Dr. Cooper preparou para minha filha, e daí já vou embora.
— Entre — Theo disse. — O senhor deve ser o pai da Dra. Renard.
— É isso mesmo. Pode chamar-me de Jake. Meu nome é Jake Renard.
O homem aproximou-se até o lado da cama e apertou a mão de Theo. Theo não precisou apresentar-se. Jake já sabia quem ele era.
— Minha filha já me contou tudo sobre você.
— Contou? — Theo perguntou, sem conseguir esconder sua surpresa.
— Contou, sim. Sabe, filho, você deve ter sido muito rápido, porque minha filha sabe se cuidar.
Theo não sabia de que o homem estava falando.
— Eu... rápido?
— Quando acertou o olho dela — Jake explicou. — Onde acha que ela arranjou aquela marca?
— Eu fiz aquilo? — Theo não conseguia acreditar. Não se lembrava de ter feito uma coisa dessas e ela também não havia tocado no assunto. — Tem certeza?
— Muita certeza. Acho que não queria acertar a coitada. Ela contou-me que você estava com uma dor danada na hora. Deu muita sorte por ela ter posto reparo em você — Jake comentou, encostando-se na cama e cruzando os braços sobre o peito. — Olhe, minha filha não fica falando muita coisa dos pacientes dela, mas é que eu sabia que ela tinha ido a uma festa toda chique, com um vestido novinho que ela nem queria gastar tanto para comprar e daí, quando perguntei se ela tinha aproveitado, contou de você. Ela mal tinha chegado e já teve de ir de volta para o hospital. Nem chegou a experimentar um tequinho de comida.
— Preciso desculpar-me com ela.
— Você rasgou o vestido dela. Talvez seja bom desculpar-se por isso, também.
— Rasguei o vestido dela?
— Ora, se rasgou! Logo depois que vomitou nela — Jake riu e depois sacudiu a cabeça. — Acabou com um vestido novinho de quatrocentos dólares.
Theo suspirou. Não se lembrava de ter feito nada disso.
— Olhe, parece-me que está precisando descansar. Se enxergar minha filha, pode dizer para ela que estou esperando no saguão lá embaixo? Gostei de conhecer você, viu?
— Por que não espera aqui? — Theo sugeriu. — Já dormi tudo o que tinha para dormir. Assim, quando sua filha vier procurá-lo, posso agradecer.
— Eu bem que gosto de um dedo de prosa. Não quero cansar você, viu?
— Não vai me cansar nada.
Jake puxou uma cadeira pra junto da cama e sentou-se.
— De onde é, filho? Pelo jeito que fala, deve ser lá da costa leste.
— Sou de Boston.
— Nunca estive lá — Jake comentou. — Você é casado?
— Era.
— Divorciou, é?
— Não, minha esposa morreu.
O tom de voz sugeria que Jake não deveria continuar a perguntar sobre o assunto.
— E seus pais, ainda estão vivos?
— Estão, sim — Theo respondeu. — Somos uma família grande, seis homens e duas mulheres. Meu pai é juiz. Ele está tentando se aposentar, mas ainda não sabe como.
— Acho que nunca conheci juiz nenhum — Jake disse. — Minha esposa, Ellie, queria uma família grande, também. Se tivéssemos essa bênção, eu teria encontrado um jeito de alimentar todo mundo. Da minha parte, bem que me esforcei, mas tivemos de parar em três. Dois homens e uma menina para completar.
— E o senhor é de que cidade? Sua filha falou sobre a clínica, mas nunca chegou a tocar no nome da cidade.
— Pode me chamar de Jake — o outro insistiu. — Bowen, Louisiana, é onde moro, mas acho que você nunca ouviu falar. A cidade é tão pequena que nem chega a ter uma marquinha de nada no mapa. Bowen é pequenininha, sim, mas é o pedaço de terra mais lindo em toda a Louisiana. Tem umas tardes, quando o sol está descendo e a brisa se levanta, o musgo fica balançando nas árvores e a luz desaparece do bayou de repente; e os jacarés e os sapos-bois ficam cantando uns para os outros... Olhe, filho, eu fico matutando ali comigo e achando que moro num paraíso. É bonito mesmo. A cidade mais perto é St. Claire, e é lá que o pessoal faz as compras no sábado, por isso não ficamos totalmente isolados. Tem um hospital lá, do lado norte. É velho, mas funciona direitinho — acrescentou.
— Seus filhos moram em Bowen?
— Remy, o meu mais velho, mora no Colorado. É um homem e tanto, mas não se casou ainda — Jake contou. — Aparece em casa de vez em quando. John Paul, o do meio, saiu da Marinha e voltou para Bowen faz uns dois anos. Também não se casou; talvez porque está sempre ocupado com uma coisa ou outra. Mora em uma casinha de madeira bem ajeitada que construiu lá no meio do pântano. Quando não está me ajudando lá no bar, faz serviço de marceneiro e carpinteiro. No ano passado, abrimos uma escola nova e o John Paul ajudou a construir. A escola se chama Daniel Boone. Em honra a uma celebridade do lugar.
— Não vá me dizer que é em honra do Daniel Boone, que ajudou a fundar o estado de Kentucky... o chamado homem da fronteira... é desse que está falando?
— É esse daí, mesmo.
— Quer dizer que Daniel Boone viveu em Bowen? Jake sacudiu a cabeça.
— Não, filho, não se pode dizer isso, mas contam por lá que o Daniel Boone vivia por lá, caçando e pescando. Claro que isso foi lá para os idos de mil setecentos e tanto, antes ainda que Bowen se tornasse cidade. Mesmo assim, a gente gosta de pensar que o Daniel pescou em nossas águas e rondou por ali um tempo.
Theo conseguiu conter-se para não rir. Parecia que o pessoal da cidade sentia falta de um herói local.
— De onde vem o nome Bowen?
— Vem de Bowie, como vem escrito naquelas facas.
— Em homenagem a Jim Bowie? Ele também andou por lá?
— A gente até gosta de acreditar que sim.
— Está brincando comigo.
— Não estou, não — Jake insistiu. — É claro que o Jim não andou por lá na mesma época que o Daniel. Ele veio bem mais tarde, lá pelos mil oitocentos e tantos.
— Tem certeza de que não está confundido Daniel Boone com David Crockett?
— Acho muito bom que não esteja. A escola já tem até o nome escrito em pedra.
— E existe alguma prova de que Boone tenha estado em Bowen?
— Prova, mesmo, não tem — Jake admitiu e piscou um olho. — Mas a gente acredita que é verdade. Mas como eu ia lhe dizendo, os meninos de Bowen tinham de ir de ônibus até a escola de segundo grau de St. Claire, mas foi ficando apertado demais. Já estava passando da hora de a gente ter a nossa própria escola. A gente já tem até time de futebol. Ficou todo mundo muito animado, no ano passado com o time... até a gente ir ver jogar. Meninada boa, mas joga mal. Só que nunca deixei de ir ver nem um jogo, e nem vou perder este ano porque, agora que minha filha voltou, vai comigo. Mike concordou em ser a médica do time, o que quer dizer que vai sentar nos bancos e consertar cada um que se machucar. Todos sabem que vão se arrebentar de novo, mas acho que a gente tem de reconhecer o esforço da molecada, aparecendo e torcendo. Não ganhamos nem um único jogo no ano passado. Temos uns baita de uns meninões, só que eles não sabem o que fazer quando pegam a bola. Também não sabem lançar. Gosta de futebol americano, Theo?
— Claro.
— Já jogou?
— Ah, já — ele respondeu. — No colégio e na faculdade, até arrebentar meu joelho.
— Em que posição? Você é alto e tem ombros grandes. Aposto que era atacante.
— Acertou — Theo disse, depois de assentir com a cabeça. — Mas parece que já faz algum tempo.
Jake tinha um brilho especulativo nos olhos.
— Já pensou em ser treinador?
— Não — Theo riu. — Nunca pensei.
— Pode ser que Mike dê um jeito nesse seu joelho aí.
— Deve estar muito orgulhoso por sua filha estar voltando para a cidade para abrir uma clínica.
— Claro que tenho muito orgulho dela — ele declarou. — Mas não vou deixar que ela se mate de trabalhar. Tem outros médicos em St. Claire, e um pode substituir o outro; assim, todos podem tirar uma folga de vez em quando.
— Por que ela está fazendo cirurgias aqui em Brethren?
— Para juntar um dinheiro extra. Eles chamam de plantão extra. Mas ela já acabou e não ficará aqui. Gosta de pescar?
— Eu até costumava pescar, mas nos últimos anos não tenho tido tempo para isso — Theo admitiu. — Só me lembro de que não há nada como aquela sensação de paz que invade uma pessoa quando está...
— Com uma vara de pesca em uma mão e uma cerveja gelada na outra?
— Isso mesmo. Nada igual neste mundo.
Começaram a discutir suas iscas favoritas e contaram belas bravatas sobre os peixes que tinham apanhado. Jake estava impressionado. Não achava que existisse alguém que entendesse ou gostasse tanto de pesca quanto ele, mas tinha de admitir, pelo modo como Theo falava, que havia encontrado alguém à sua altura.
— Pois vou lhe dizer que tem de vir para Bowen. Temos a melhor pescaria do estado e faço questão de lhe provar. Vamos passar um bom tempo lá no meu ancoradouro.
— Olhe que posso aceitar o convite um dia desses.
— O que você faz? — Jake quis saber.
— Sou advogado.
— E como o chefe de polícia lhe mandou flores? — Jake perguntou e ficou com um ar sem graça ao explicar. — Estavam lá embaixo antes de trazerem para cá e li o cartão.
— Vim para Nova Orleans para dar uma palestra — Theo explicou, sem contar que tinha uma condecoração a receber. — Trabalho para o Ministério da Justiça.
— Fazendo o quê, exatamente?
— Fui designado para uma força tarefa especial — Theo respondeu; depois, percebendo que estava sendo evasivo, acrescentou. — Algo na área do crime organizado. Acabei faz pouco tempo.
— Pegou o camarada que estava procurando?
— Peguei, sim — Theo sorriu.
— E agora está sem emprego?
— Não — ele respondeu. — O pessoal quer que eu continue. Mas ainda não sei direito o que vou fazer.
Jake continuou a fazer perguntas. Theo imaginou que bom promotor público ele daria. Tinha uma mente rápida e era atento.
— Já pensou em trabalhar fora do governo? — Jake perguntou.
— Às vezes, penso.
— Não temos bons advogados em Bowen. Tem mais dois lá em St. Claire, mas eles esfolam você vivo antes que pisque. O pessoal não gosta muito deles, não.
Enquanto Jake falava sobre a cidadezinha, Theo ficava imaginando um jeito discreto de voltar a falar de Michelle.
— Sua filha é casada?
Nem parecia que desejava ser discreto!
— Eu já estava pensando quando você começaria a me perguntar dela. A resposta é não, ela não é casada. Não teve tempo de pensar nisso. É claro que tem homem em Bowen e St. Claire interessado nela, mas ela anda ocupada demais montando a tal clínica para prestar atenção neles. Ela ainda é nova — acrescentou. — E esperta para danar. Precisa ver como minha filha é esperta. Terminou a faculdade com 21 e já começou a residência. Teve de sair do estado, mas sempre voltava para casa, vinha fazer uma visita sempre que podia. É bem ligada à família. E é bonita, também, não acha?
— Com certeza.
— Achei mesmo que tinha notado.
Jake levantou-se e recolocou a cadeira no lugar
— Foi bom passar o tempo com você, mas preciso ir andando. Veja se dorme mais um pouco, enquanto eu levo esta caixa lá para o carro. O Dr. Cooper deu equipamento cirúrgico para minha filha e, quando ela pediu para eu vir buscar, ela sorria como se fosse criança em dia de Natal. Se algum dia for a Bowen, não deixe de passar lá no Cisne. É o meu bar — Jake explicou. A bebida é por conta da casa.
Já estava na porta quando Theo o fez parar:
— Se eu não vir sua filha antes de ela ir embora, por favor agradeça a ela por mim. Também diga que sinto muitíssimo pelo vestido.
— Pode deixar que eu digo para ela.
— Talvez a gente volte a se encontrar algum dia.
— É isso mesmo, filho. Talvez a gente se encontre.


Capítulo 6


Os amigos de John nem imaginavam. Duas semanas depois do funeral de Catherine, aconteceu de Cameron ver o pobre viúvo no Commander's Palace, um restaurante quatro estrelas que ficava no Garden District. Cameron estava sentado em uma das mesas, esperando seu advogado chegar para discutir o cansativo, longo e nauseante processo de divórcio. A esposa estava disposta a arruiná-lo financeiramente e, de quebra, humilhá-lo publicamente. Pelo andamento do processo, parecia que sairia vitoriosa.
John estava jantando com uma mulher jovem em um outro salão. A loura parecia-lhe vagamente familiar. A cabeça dela estava abaixada e ela parecia escrever, concentrada, em seu caderno de notas.
Cameron não conseguia se lembrar de onde a tinha visto antes, mas ficou contente em ver que o amigo havia saído uma noite, mesmo que fosse a negócios. O pobre parecia bem perdido depois da morte da esposa. Havia momentos em que estava alegre, quase eufórico, mas depois afundava-se em autocomiseração e depressão.
A loura levantou a cabeça, e Cameron pode olhar bem o rosto. Era bem bonita. Ainda não conseguia se lembrar quem era. Decidiu ir até lá para cumprimentá-los. Pediu um uísque duplo para criar coragem e para conseguir enfrentar o advogado, depois levantou-se para ir até a outra mesa, no outro salão.
Se não tivesse derrubado a caneta, jamais teria percebido a verdade. Abaixou-se para apanhá-la e então viu John colocar a mão sobre a coxa da loura por baixo da toalha de linho branco. Ela entreabriu as pernas, inclinando-se levemente, e ele começou a subir a mão por baixo do vestido.
Cameron ficou tão chocado com a intimidade que quase perdeu o equilíbrio. Logo se recompôs e se aprumou. Nem John nem a garota se deram conta de sua presença. Ela havia inclinado a cabeça e tinha os olhos perdidos no espaço, semicerrados, em óbvio deleite.
Cameron não conseguia acreditar no que via, mas o instante de incredulidade logo transformou-se em confusão.
De repente, lembrou-se quem era a loura, apesar de não lhe ocorrer o nome. Era a insípida fêmea que se autodenominava decoradora de interiores. Cameron a havia conhecido no escritório de John. Ah, sim, agora lembrava-se de tudo. Ela não tinha o menor gosto ou talento. Havia transformado o escritório do amigo em um salão de bordel, mandando pintar os belos painéis de madeira das paredes de um amarelo mostarda berrante.
Obviamente tinha outros talentos, em outra área. Pelo modo como John a olhava, quase babando, extasiado, para ela que fazia biquinho, era óbvio que devia ser talentosa na cama. Cameron continuava imóvel junto à porta do salão, olhando para as costas do amigo enquanto a verdade revelava-se em sua mente. O filho da puta vinha enganando todos eles.
Incrédulo, e ao mesmo tempo louco de raiva, Cameron deu meia volta e voltou para sua mesa. Procurou convencer-se de que devia estar tomando conclusões apressadas e erradas. Conhecia John há muito tempo e sempre confiara nele cegamente.
Até aquele momento. O que John vinha fazendo com eles? Crime do colarinho branco era uma coisa, mas assassinato era algo bem mais pesado. O clube jamais havia chegado a tal ponto antes; e o que tornava tudo ainda mais terrível era que todos pensaram que, na verdade, estavam fazendo um ato de caridade. Se isso fosse revelado a um júri, todos ririam do argumento.
Começou a imaginar se Catherine realmente estivera à beira da morte. Estaria mesmo deteriorando-se lentamente à espera da morte? Ou será que John simplesmente havia mentido para todos eles para conseguir fazer seu trabalhinho sujo?
Não, não seria possível. John não teria mentido sobre sua própria esposa. Ele a amava, afinal.
Cameron sentiu-se nauseado. Não sabia o que pensar, mas sabia que não poderia condenar o amigo sem saber o que estava acontecendo. Depois ocorreu-lhe que o caso, pois era isso que era, já podia estar ocorrendo antes da morte de Catherine. Analisou a idéia. Sim, claro, John havia conhecido a decoradora algum tempo antes da morte da esposa. A loura havia sido contratada por Catherine para redecorar seu quarto. Mas e daí que a tivesse conhecido? Depois que a esposa morreu, John ficou triste e solitário e a jovem estava disponível. Ora, diabos, a fulaninha deveria ter se aproveitado da vulnerabilidade do amigo e se jogado em cima dele logo após o funeral.
Uma dúvida incômoda, porém, permanecia. Se era inocente, por que então John não havia comentado nada com os amigos sobre ela? Por que estava escondendo a existência dela?
Talvez porque as cinzas da esposa ainda não tivessem tido tempo de esfriar. Sim, deveria ser por isso. John sabia que não ficaria bem se envolver com outra mulher logo após a morte de Catherine. As pessoas achariam estranho e começariam a comentar e especular. Com certeza, o clube não desejava que isso acontecesse. John era esperto o suficiente para saber que deveria manter a discrição.
Cameron já estava se convencendo de que o que vira era algo bastante inofensivo, mas ainda assim sentia-se compelido a tirar aquilo a limpo. Não deixou que John o visse. Pagou o que havia consumido no bar e saiu discretamente do restaurante. Deixou que o valete lhe trouxesse o Ford sedan de segunda mão que se via forçado a usar — sua quase ex-esposa já lhe havia confiscado o Jaguar, a vagabunda. Foi até o quarteirão seguinte, abaixou-se no banco e ficou esperando para ver o casal sair do restaurante. Enquanto esperava, ligou para o advogado pelo telefone celular e cancelou o jantar.
Os dois saíram vinte minutos mais tarde. Ficaram de frente um para o outro, a mais de um metro de distância, com aparência contida e formal, como se fossem pouco mais do que estranhos. John tinha as mãos nos bolsos da calça e a loura segurava a bolsa em uma das mãos e o caderno na outra. Quando o carro dela chegou, ela encaixou a bolsa debaixo do outro braço para apertar a mão de John. O valete abriu a porta de seu Honda cor de cereja para ela entrar, depois ela partiu sem nem olhar para trás.
Para um observador de momento, a cena pareceria bastante profissional.
Um minuto mais tarde, a BMW conversível prateada de John chegou. Ele tirou o paletó, sem pressa, dobrou-o com todo o cuidado e o colocou sobre o banco do passageiro. O terno de excelente caimento era um Valentino, o único costureiro que John sempre usara. Uma onda de ressentimento invadiu Cameron. Seis meses antes, ele próprio tinha um armário repleto de ternos Joseph Abboud, Calvin Klein e Valentino, mas a esposa, em fúria alcoólica, havia agarrado um facão e retalhado suas roupas, transformando-as em menos do que trapos. O breve acesso de raiva havia custado mais de cinqüenta mil dólares em roupas.
Como ele esperava o momento de vingar-se! Algumas noites ficava deitado na cama fantasiando todo o tipo de formas de matá-la. O elemento mais forte nesse devaneio era a dor. Queria que a vaca sofresse enquanto estivesse morrendo. A cena de que mais gostava era quando imaginava despedaçar-lhe a cara, quebrando uma janela com ela e ficava imaginando a megera sangrar até morrer. Em sua fantasia, um estilhaço de vidro furava-lhe a artéria.
Sim, queria que ela sofresse tanto quanto o estava fazendo sofrer, vingar-se por ela ter roubado sua vida. Ela havia congelado todos os bens dele até que a decisão final sobre o divórcio fosse proclamada, mas já tinha idéia de qual seria a palavra final. Ela tiraria até o couro dele.
Por sorte, ela não sabia da existência do Clube dos Semeadores ou do montante que haviam investido no paraíso fiscal. Ninguém sabia. O advogado dela também não conseguiria encontrar o dinheiro, mesmo se estivesse procurando. Os milhões de dólares estavam em uma conta de um outro país e nada havia que pudesse incriminá-lo.
Mas, naquele momento, não importava que ele tivesse o dinheiro escondido. Não poderia tocar em nada até completar quarenta anos. Esse era o trato feito pelos quatro amigos, e ele sabia que os outros não o deixariam pegar dinheiro emprestado do fundo. Seria muito arriscado e, por isso, pelos próximos cinco anos, teria de comer o pão que o diabo amassou e viver como pobre.
John, sim, tinha sorte. Agora que Catherine estava morta, ele herdaria tudo o que era dela e não teria de repartir com ninguém.
Cameron estava morto de inveja enquanto observava o amigo colocar o boné. Sabia que John só usava aquilo para esconder a calvície. Antes dos cinqüenta já estaria completamente careca, como todos os homens de sua família, não importando a precaução que tomasse. Mas que importava? Ainda seria popular entre as mulheres. As mulheres seriam capazes de relevar qualquer defeito se houvesse dinheiro envolvido.
Cameron livrou-se desse último acesso de autopiedade sacudindo a cabeça. Sentir pena de si mesmo não ajudaria em nada. Além do mais, conseguiria se manter por mais alguns anos. Disse a si mesmo para concentrar-se no futuro. Dentro em breve poderia se aposentar como multimilionário e mudar-se para o sul da França; daí não haveria mais nada que sua ex pudesse fazer contra ele.
John sentou-se no banco de couro macio. Afrouxou a gravata, ajustou o retrovisor e foi embora.
Deveria segui-lo? Cameron passou as mãos nos cabelos, frustrado. Sabia que não estava sendo justo com John e que era errado apavorar-se com tanta facilidade pelo que, com certeza, era uma bobagem. John havia amado a esposa e, se uma cura fosse possível, Cameron sabia que seu amigo haveria gasto cada centavo que tivesse para salvar Catherine.
Sim, a incômoda incerteza não queria ir embora assim, sem mais, e Cameron acabou indo atrás dele. Imaginou que acabaria simplesmente sentando e conversando, quando esclareceriam aquele... mal entendido. John lhe diria que a suspeita era infundada, apenas uma reação à terrível culpa que estava sentindo pelo que tinham feito em nome da piedade.
Cameron chegou a pensar em dar meia volta e ir para casa, mas não o fez. Tinha de ter certeza. Pegou um atalho através de Garden District e chegou à casa de John antes dele. A bela casa em estilo vitoriano ficava em um cobiçado terreno de esquina. Havia dois enormes carvalhos antigos e uma magnólia lançando sombras sobre o jardim da frente. Cameron estacionou na rua ao lado, de onde conseguia ver o portão automático. Apagou as luzes, desligou o motor e ficou sentado em silêncio, bem escondido sob um galho baixo e bem cheio de folhas, que bloqueava a luz da rua. Quando John chegou, Cameron colocou a mão no trinco, mas ficou imóvel.
— Puta merda! — murmurou.
Ela estava lá, esperando. Quando o portão de ferro foi se abrindo, ele a viu esperando junto da casa. A porta da garagem ergueu-se e ele pode ver o Honda cor de cereja estacionado lá dentro.
Assim que John estacionou o carro e saiu da garagem, ela correu para ele, com os seios grandes saltando como bolas de silicone sob o tecido de seu vestido justo. O sofrido viúvo não esperou para levá-la para dentro da casa. Agarraram-se ali mesmo, como cachorros no cio. O vestido negro teve o zíper aberto e foi abaixado até a cintura em questão de segundos, e a mão dele cobria um dos seios enquanto iam se embolando porta adentro. Os grunhidos de prazer dele misturavam-se aos gritinhos e ao riso dela.
— Mas que filho da puta! — Cameron murmurou entre dentes. — Aquele idiota filho da puta.
Já tinha visto o suficiente. Encaminhou-se então para o apartamento alugado de um só quarto, no lado sem luxo da cidade, junto a armazéns e ficou horas andando de um lado para outro, soltando fumaça de ódio e morrendo de preocupação. Uma garrafa de uísque ajudou a incendiar sua ira.
Por volta das duas da manhã, um par de bêbados se pôs a lutar debaixo da janela dele. Cameron ficou a observar o espetáculo com mórbida curiosidade. Um deles tinha uma faca, e Cameron esperava que ele a enfiasse no outro para que parassem de gritar. Alguém devia ter chamado a polícia, que chegou, com as sirenes berrando, minutos depois.
Havia dois policiais na viatura. Rapidamente desarmaram o bêbado com a faca e jogaram os dois contra um muro de pedra. O sangue, brilhante sob a luz da rua, esguichava do lado da cabeça de um deles, quando caiu sobre a calçada.
O policial que havia usado a força desnecessária gritou um impropério, enquanto rolava o homem inconsciente para que ficasse de barriga para baixo, depois ajoelhou em suas costas para colocar-lhe as algemas. O outro bêbado aguardou sua vez com medo e, dentro de mais um ou dois minutos, os dois estavam trancados na traseira do camburão, a caminho da cadeia mais próxima.
Cameron bebeu um grande gole de uísque e enxugou o suor da testa com as costas da mão. A cena embaixo de sua janela o incomodara, notadamente a cena das algemas. Não suportaria ser algemado. Não poderia ir para a prisão, não iria. Tiraria a própria vida antes disso... se tivesse coragem. Sempre tinha sido um tanto claustrofóbico e a fobia havia se acentuado com o tempo. Ultimamente, não conseguia ficar em um ambiente sem janela sem sentir dor no peito. Havia parado de usar elevador, preferindo subir a pé os sete lances de escada, para evitar os trinta ou quarenta segundos dentro de uma caixa de metal, espremido como uma sardinha de lata com os outros usuários do prédio de escritórios.
Caramba! Por que não havia pensado em sua claustrofobia antes de concordar com aquela loucura?
Sabia bem a resposta e estava bêbado o suficiente para reconhecer o motivo: ganância. A desgraçada ganância. John era o motivador, o planejador, o homem de visão... e com os contatos que levavam ao dinheiro. Com o fervor de um pastor sulista, ele havia jurado que poderia deixar todos ricos. E tinha conseguido. Mas também tinha jogado com eles, sabendo muito bem que eram todos idiotas gananciosos. Quando começou a falar em se matar, sabia que entrariam em pânico. Não podiam perder John e fariam qualquer coisa para deixá-lo satisfeito.
E fora com isso, exatamente, que o filho da mãe havia contado.
Com os olhos vermelhos de tanto beber, Cameron terminou a garrafa de uísque vagabundo e foi para a cama. Na manhã seguinte, um domingo, brigou com a ressaca até o meio-dia. Depois, quando a cabeça melhorou, arquitetou um plano. Precisava de uma prova concreta para apresentar a Preston e Dallas. Assim que percebessem o quanto John os havia manipulado, Cameron pediria que dividissem os lucros do Clube dos Semeadores imediatamente e cada um poderia seguir seu caminho. Não estava disposto a esperar mais cinco anos para pegar sua parte. Depois do que John havia feito, Cameron só conseguia pensar em pegar o dinheiro e sumir antes que fossem pegos.
Cameron também possuía seus contatos e havia um par de ligações que precisava fazer. Tinha cinco dias antes do confronto que planejara para a sexta-feira. Cinco dias para desmascarar o filho da mãe.
Não contou a ninguém o que estava fazendo. Quando a sexta-feira chegou, apresentou-se mais tarde no Dooley's, lá pelas seis e meia da tarde. Foi até a mesa que sempre ocupavam e sentou-se de frente para John. O garçom o tinha visto e trouxe-lhe a bebida costumeira antes de Cameron tirar o paletó e afrouxar a gravata.
— Você está com uma cara horrível — Preston disse, com seu habitual jeito direto.
Do grupo, ele era o mais preocupado com a forma física e não perdia a oportunidade de dizer com todas as letras que não aprovava o estilo de vida de Cameron. Com um físico de atleta grego, Preston era obsessivo e exercitava-se cinco noites por semana em uma sofisticada academia. Na sua opinião, qualquer homem que não tivesse bíceps de aço e um abdome reto era um fraco; homens com barriga de cerveja eram motivo de pena e desprezo.
— Trabalhei muito esta semana. Estou cansado, é só.
— Precisa começar a se cuidar antes que seja tarde demais — Preston ralhou. — Por que não vai à academia comigo levantar peso e correr na esteira? E pare de beber tanto, pelo amor de Deus. Vai acabar com seu fígado.
— Desde quando você assumiu o papel de minha mãe? Dallas, com seu jeito pacificador, não podia ver discórdia, por
menor que Tosse.
— Preston só está preocupado com você. Todos sabemos que você tem estado sob muita pressão ultimamente, por causa do divórcio e tal. Só não queremos que fique doente. Preston e eu precisamos tanto de você quanto do John vivos.
— Preston tem razão — John disse, girando o gelo no copo. — Você está mesmo com uma cara horrível.
— Ah, estou bem — Cameron resmungou. — Agora chega de falar de mim.
— Está bem, está bem! — Preston disse, ofendido com o tom de censura de Cameron.
Cameron virou seu drinque em um só gole e fez um sinal para o garçom trazer-lhe outro.
— Algum fato novo esta semana? — perguntou.
— Para mim, foi absolutamente sem nada que mereça atenção, o que não deixa de ser bom em meu ramo de negócios — Preston comentou. — Não tenho razão, Dallas?
— Sem dúvida. Para mim, também foi absolutamente normal.
— E você, John? Alguma coisa acontecendo com você? — Cameron perguntou, com voz suave.
— Vou levando — John respondeu, levantando os ombros. — Tentando viver um dia depois do outro.
Soava patético. Cameron achou a atuação de John exagerada, mas Preston e Dallas caíram direitinho e foram solidários.
— Mas as coisas vão melhorar — Prestron prometeu. Não tinha a mínima experiência em perder um ente querido, e não tinha como saber se a vida de John ficaria melhor ou não, mas achou que deveria dar algum tipo de encorajamento ao amigo — Com o tempo, tudo melhora.
— É verdade. Você só precisa de algum tempo.
— Quanto tempo faz que Catherine morreu? — Cameron perguntou.
John levantou as sobrancelhas.
— Você sabe quanto tempo faz — ele respondeu, levantando-se para tirar o paletó, que cuidadosamente dobrou e colocou sobre o encosto da cadeira ao lado. — Vou pegar um pote de amendoim.
— Ótimo, traga uma porção de palito salgado, também — Preston disse. Esperou que John se afastasse e voltou-se para Cameron. — Você tinha de tocar no nome de Catherine logo agora?
John disse à garçonete o que queria e estava voltando à mesa quando ouviu Dallas dizer:
— O coitado estava começando a relaxar. Dê um tempo, Cameron.
— Não precisa me proteger — John disse, puxando a cadeira para se sentar. — Não fiquei contando as horas e minutos desde que minha esposa foi desta para melhor. Há noites em que parece que foi ontem.
— E já faz quase um mês — Cameron comentou, estudando o rosto do amigo. Depois ergueu o copo num brinde a John. — Acho que você deveria começar a namorar. Sinceramente.
— Você está louco? — Dallas sussurrou — Ainda é cedo demais. Preston concordou enfaticamente com a cabeça.
— Vão começar a falar se ele começar a namorar logo; as especulações brotarão como cogumelo depois da chuva. Nenhum de nós quer que isso aconteça. Não é verdade, Dallas?
— Sem sombra de dúvida. Não acredito que você tenha sugerido uma coisa dessas, Cam.
John recostou-se na cadeira. Seus ombros encolheram-se quase imperceptivelmente e seu rosto tinha uma expressão de dor.
— Eu não conseguiria fazer uma coisa dessas, pelo menos por enquanto. Talvez não consiga nunca. Não me imagino com outra mulher. Eu amava Catherine e só de pensar em colocar alguém em seu lugar me revira o estômago. Vocês sabem muito bem o que eu sentia pela minha esposa.
Cameron cruzou as mãos por baixo da mesa para se conter e não torcer o pescoço daquele filho da mãe ali mesmo.
— É, acho que tem razão. Foi muita insensibilidade de minha parte.
Enfiou a mão na valise aberta e pegou uma pasta grossa de papel pardo. Puxando seu drinque para o lado, cuidadosamente colocou o envelope sobre a mesa.
— O que é isso? — Dallas quis saber.
— Outra oportunidade de investimento? — Preston arriscou. Cameron olhou para John antes de deixar cair sua bomba:
— Um monte de notas e números — ele disse. — E...
— E o quê? — John perguntou.
— E o histórico médico de Catherine.
John estava esticando o braço para pegar a pasta. Quando Cameron anunciou o que havia dentro, John reagiu, como se uma cascavel houvesse caído em sua mão. Inclinou-se para trás e quase levantou da cadeira. O choque logo foi substituído pela raiva.
— O que pensa que está fazendo com o histórico médico de minha esposa? — perguntou.
O rosto de John estava tão vermelho que parecia que teria um derrame. Cameron começou a desejar que tivesse, mesmo, e que fosse massivo e debilitante. O enganador deveria sofrer muito e o maior tempo possível.
— Seu filho da puta! — Cameron sibilou. — Vi você no sábado à noite com aquela loura. Não consegui entender porque não tinha me contado sobre ela, por isso resolvi fazer uma pequena investigação por minha conta.
— Não acreditou em mim? — John estava genuinamente indignado.
— Não acreditei, não.
Voltando-se para Preston e Dallas, Cameron disse:
— Querem saber de uma coisa? A boa e velha Catherine não estava morrendo coisa nenhuma. Ele só queria se ver livre dela. Não é mesmo, John? Você nos tratou como idiotas e, por azar, fomos isso mesmo. Acreditamos em cada palavra que você inventou. Sabia muito bem que Monk não a mataria, a menos que todos nós concordássemos. Foi esse o trato quando o contratamos. Ele trabalha para o Clube, e você não teve coragem de matar Catherine com as próprias mãos. O que você queria era nos envolver, certo?
— Não acredito — Dallas murmurou.
Preston estava chocado demais para conseguir falar. Tinha os olhos pregados na pasta quando perguntou, depois de algum tempo: — É verdade o que Cameron está dizendo, ou não? Catherine estava em estado terminal, não estava? Você nos disse que era o coração dela... um defeito congênito — ele interrompeu-se e virou-se arrasado para Cameron, murmurando — Meu Deus!
John estava com os lábios apertados. Seus olhos brilhavam de fúria. Seus olhos pareciam lançar faíscas na direção de Cameron.
— O que acha que lhe dá o direito de me espionar? Cameron deixou escapar um riso nervoso.
— Seu idiota arrogante! Ainda tem a coragem de ficar contrariado porque andei espionando você e sua boneca Barbie? — voltando-se para Dallas, cujo rosto adquirira um tom levemente esverdeado, perguntou. — Quer ouvir mais uma coisa realmente engraçada? Isto vai sacudir você como me sacudiu.
Dallas pegou a pasta e perguntou:
— O que é?
John lançou-se para a frente, para agarrar a pasta, mas Dallas agiu mais depressa.
— Foi Catherine quem apresentou a tal mulher, Lindsey, para o John. Ela contratou a vagabunda para redecorar seu quarto. Estou certo, John? O caso começou quase imediatamente depois de conhecê-la. Mas mesmo antes você já tinha decidido matar sua esposa.
— Não é uma boa idéia ficar falando disso aqui — Preston interveio, olhando preocupado em volta do bar para ver se alguém os observava.
— Não vejo por que não se deva discutir isso aqui — Cameron contrapôs. — Afinal, foi aqui mesmo que combinamos a tal morte piedosa.
— Cam, você entendeu tudo errado — John disse, parecendo ansioso e sincero. — Só saí uma vez com a Lindsey e não aconteceu nada. Foi apenas um encontro de negócios.
Ansioso para acreditar que John estava dizendo a verdade, Preston assentiu vigorosamente.
— Se ele diz que foi a negócios, então foi.
— Mentira! Ele está mentindo. Eu o segui até em casa. Vi o carro de Lindsey estacionado na garagem e ela já estava lá, esperando por ele. Começaram a se agarrar ali na frente da casa. Ela já está morando com você, não é mesmo, John? E você vem escondendo isso de todo o mundo, em especial de nós três.
Cameron passou a esfregar as têmporas. Uma dor de cabeça latejante ia e vinha, havia uma semana, desde que havia descoberto o segredo sujo de John.
— Não precisa se preocupar em responder. Tenho todos os fatos ali — disse, apontando para a pasta que Dallas acabava de abrir. — Sabia que Lindsey acha que você vai se casar com ela? Recebi a informação da mãe dela. Já estão fazendo os preparativos para o casamento.
— Andou falando com a mãe de Lindsey? A bebida está afetando sua cabeça, Cameron. Está lhe provocando delírios... paranóia.
— Você é um burro pomposo — ele ironizou.
— Baixem a voz, por favor — Preston suplicou.
Sua testa estava coberta de suor, e ele enxugou-a com um guardanapo de papel. O medo havia deixado sua garganta seca.
— Podemos discutir as finanças de Catherine, que John tinha tanto medo que pudessem se arruinar?
— O que há com elas? — Preston quis saber. — Sobrou alguma coisa?
— E como sobrou — Cameron respondeu, ácido. — Cerca de quatro milhões de dólares.
— Três milhões, novecentos e setenta e oito mil, mais exatamente — Dallas leu na pasta.
— Meu Deus... Isso não pode estar acontecendo — Preston disse. — Ele nos disse que... Disse que a havia levado à Clínica Mayo, que não puderam fazer nada por ela. Você se lembra, Cameron? Ele nos disse...
— Pois mentiu. Mentiu sobre tudo e nós confiávamos tão cegamente que acreditamos em tudo. Pense nisso, Preston. Quando foi a última vez que algum de nós a viu? Há uns dois anos? Foi logo antes de ela ir para a Clínica Mayo, não foi? Todos vimos como parecia mal. Depois, quando voltou, John disse que ela não queria ver ninguém.
Respeitamos o desejo dela. Durante dois anos, foi John quem nos informou sobre como a saúde dela vinha se deteriorando, o quanto estava sofrendo. E todo esse tempo ele mentiu para nós.
Todos olharam para John, esperando que ele explicasse.
John levantou as mãos abertas, como se estivesse se rendendo e disse:
— Acho que a brincadeira acabou.
Um silêncio atônito seguiu-se à declaração.
— Então, você admite? — Preston perguntou, depois.
— Sim, acho que sim — John disse. — É até um alívio, na verdade, não ter de ficar me escondendo de vocês. Cameron tem razão. Venho planejando isso há muito tempo. Há mais de quatro anos — vangloriou-se. Será que algum dia amei Catherine? Talvez, no começo, antes de ela se tornar uma vaca obsessiva e exigente como o diabo. É incrível como o amor pode transformar-se em ódio em tão pouco tempo. Pode até ser que eu jamais tenha gostado dela. Posso ter me apaixonado pelo dinheiro que ela tinha. Sim, sempre amei o dinheiro.
Dallas derrubou o copo, que caiu com um ruído seco sobre o tapete.
— O que andou fazendo conosco? — sua voz saiu num murmúrio tenso.
— Fiz o que precisava ser feito — John se defendeu. — E não me arrependo. Bem, isso não é exatamente verdade. Só me arrependo de ter convidado Lindsey para ir morar comigo. Na verdade, tenho gostado de cada minuto passado com ela. Ela faz de tudo na cama, qualquer coisa que eu pedir e quer me agradar o tempo todo. O mal é que está começando a grudar, e eu não vou me amarrar de novo.
— Como você é filho da puta! — Cameron grunhiu.
— Sim, sou isso mesmo — John respondeu com voz suave. — Quer saber o melhor, além da gorda herança daquela vaca? Foi super fácil conseguir o que eu queria.
— Você a assassinou — Dallas acusou, fechando a pasta. John ajeitou-se, inquieto, na cadeira.
— Não, isso não é exatamente verdade. Nós quatro a matamos.
— Acho que vou vomitar — Dallas disse e levantou-se, cambaleando, para sair correndo para o banheiro.
John parecia achar graça da reação. Fez sinal para o garçom trazer outra rodada de bebidas.
Continuaram sentados juntos, tensos, agora como estranhos, cada um perdido em seu próprio pensamento. Depois que o garçom repôs as bebidas sobre a mesa e afastou-se, John disse:
— Aposto que tem vontade de me matar com suas próprias mãos, não é, Cameron?
— Pode apostar que também morro de vontade — Preston disse.
— Você é um cabeça quente — John disse, balançando a cabeça
— Sempre foi. E com essa sua mania de fortalecer os músculos, poderia quebrar todos os ossos do meu corpo. É bom que se lembre, no entanto, que, se não fosse por mim, você já estaria na prisão. Você não pensa nas conseqüências, nos desdobramentos. Acho até que você não dispõe de muita visão. Não tem jeito para a coisa. Fomos nós que tivemos de empurrar você para cada uma das decisões financeiras. Também tivemos de pressionar você para que concordasse conosco e Monk matasse Catherine — fez uma pausa — Cameron, por outro lado, mostra ter tino.
Cameron sentiu o corpo contrair-se.
— Eu já sabia que você não tinha consciência, mas nunca imaginei que quisesse nos ferrar. Nós somos sua garantia, John. Sem nós, você não é... nada.
— Sempre fomos amigos e confiei em você — Preston protestou.
— E ainda somos amigos — John contestou. — Nada mudou.
— O cacete que não mudou! — Cameron reagiu. John continuou imperturbável e prometeu.
— Vocês vão superar isso. Em especial quando se lembrarem de quanto dinheiro consegui juntar para cada um.
Cameron apoiou os cotovelos sobre a mesa e encarou John.
— Quero minha parte agora.
— Isso está fora de questão.
— Pois eu proponho que se dissolva o Clube. Cada um pega a sua parte e segue seu próprio caminho.
— De jeito nenhum! — John retrucou. — Você conhece bem as regras. Ninguém toca em um centavo por mais cinco anos.
Dallas voltou à mesa e sentou-se.
— O que eu perdi?
Preston, que também dava mostras de precisar vomitar, respondeu:
— Cameron quer acabar com o Clube e dividir o capital imediatamente.
— De maneira alguma! — Dallas reagiu com indignação — Se fizermos uma retirada agora, a Receita vai conseguir nos rastrear! Está fora de questão.
— Ele não pode tocar no dinheiro antes, a não ser que fôssemos com ele ao banco, esqueceram? Nós todos temos de assinar antes de conseguirmos ter acesso ao dinheiro. Foi assim que o negócio foi feito
John lembrou.
— Você é um filho da puta da pior raça, John!
— Pois é, você já disse. Encare os fatos, Cameron. Você não está furioso porque menti para você. Está louco da vida porque sua vida está um caos no momento. Saiba que o conheço melhor que você mesmo. Sei até o que está pensando.
— Ah, é? Diga, então.
— Na verdade, acha que não fiz uma coisa tão errada, afinal. Desminta, se não for.
— É verdade — Cameron admitiu. — É exatamente o que estou pensando.
A voz de John estava perfeitamente calma quando disse:
— Só que você não teve coragem de fazer nada além de lamentar-se. Eu tive — voltou-se para Dallas — e você sabe que jamais teria pedido a Monk para acabar com Catherine se eu não tivesse mentido.
— Mas, John, se queria se livrar dela, por que simplesmente não se divorciou? — Dallas quis saber.
— Pelo dinheiro — John respondeu. — Eu queria cada centavo que ela tinha. Pelo amor de Deus, eu merecia pelo tanto que tive de agüentar. Ela sempre foi uma vaca controladora — ele acrescentou, pela primeira vez demonstrando rancor e ódio em sua voz — Ao contrário de Cameron, eu não fiquei afogando minhas mágoas na bebida. Planejei. Vocês não fazem idéia de como era difícil conviver com ela. Perdeu controle do peso. Era hipocondríaca. Só pensava e falava na própria saúde. Ela tinha um sopro no coração, é verdade, mas não era nada sério. Ficou em delírio quando descobriu. Deu o motivo que ela precisava para tornar-se ainda mais desleixada. Punha-se na cama e ficava sendo servida pelas empregadas e por mim. Eu bem que esperava que o coração dela estourasse e, com toda franqueza, tentei matá-la com as toneladas de chocolate que trazia para casa todas as noites, mas estava demorando demais. Se eu quisesse, podia trair a vaca todas as noites e ela nem ficaria sabendo. Na verdade, traí dentro de casa e ela não descobriu. Como eu disse, era preguiçosa demais para sair da cama, mais ainda para sair do quarto. Eu já não agüentava voltar para casa e ver aquele monte de banha. Olhar para ela me dava vontade de vomitar.
— Quer que a gente tenha pena de você, agora? — Cameron perguntou.
— Não — ele respondeu. Mas se for para falar em sair da linha, já saímos juntos há muito tempo.
— Nunca matamos ninguém.
— E daí? Ainda pegaríamos uns vinte ou trinta anos pelo que já fizemos.
— Mas foram crimes de colarinho branco — Preston interpôs, com a voz trêmula.
— É esta a defesa que pretende apresentar à Receita Federal? — John perguntou. — Acha que vão se contentar em lhe dar um tapinha na mão?
— Nunca matamos.
— Pois agora já matamos — John reagiu, irritado com o choramingar de Preston. Voltando-se para Cameron, voltou à carga. — Vou lhe dizer uma coisa. Foi fácil... fácil o suficiente para repetir a dose. Sabe do que estou falando? Poderíamos esperar uns seis meses, mais ou menos, e então voltar a falar com Monk para tratar da sua situação.
Dallas ficou de queixo caído.
— Será que ficou louco?
Cameron inclinou a cabeça para o lado. Estava pensando no assunto.
— Adoraria que Monk fizesse uma visita à minha esposa. Valeria cada centavo que eu tivesse de pagar.
— E é possível — John murmurou, com um sorriso.
— Se continuarem com essa história, eu caio fora — Preston ameaçou.
— Já é tarde demais para poder cair fora — John contrapôs.
— Não existe crime perfeito, é bom lembrar — Dallas observou.
— Pois o que acabou com a Catherine foi perfeito que chegue — John comentou. — Aposto que está pensando no caso, não está, Cameron?
— Estou, sim — o outro admitiu. — Claro que estou. Preston teve vontade de apagar o sorriso irônico do rosto de
John.
— Você se tornou um monstro — disse. — Se alguém descobrir o que aconteceu com Catherine...
— Ah, relaxe — John o interrompeu. — Estamos limpos. Ninguém vai descobrir. Nunca!


Capítulo 7


Catherine riu por último. A vaca controladora havia orientado seu advogado, Phillip Benchley, a esperar seis semanas a partir do dia de sua morte para fazer a leitura do testamento. John estava furioso com o atraso, mas sabia que não havia nada que pudesse fazer para mudar a situação. Mesmo morta, continuava manipuladora.
Catherine havia contratado Phillip antes de casar-se com John. Ele era sócio da prestigiosa firma Benchley, Tarrance & Paulson. Benchley sabia reconhecer a melhor parte de um negócio. Como uma raposa velha, havia atendido todos os caprichos de Catherine. Ela havia alterado seu testamento pelo menos umas três vezes, pelo que John sabia, desde que haviam se casado. Fazia seis meses que John havia examinado os documentos dela para assegurar-se que ainda era seu principal herdeiro. Depois disso, ele fez o que pôde para controlar os telefonemas e as visitas que ela recebia, para garantir que não havia tido a oportunidade de falar novamente com seu advogado.
Desde a morte dela, as contas de John vinham se acumulando, muitas delas já vencidas, e Monk também o andava cercando para receber seu pagamento. Para acalmá-lo, John havia aumentado o prêmio para vinte mil dólares.
John estava furioso na sofisticada sala de espera do luxuoso escritório. Era uma afronta que o advogado o fizesse esperar.
Voltou a verificar a hora. Três e quarenta e cinco. Ele havia combinado de encontrar-se com os amigos no Dooley's para comemorar. Sabia que já deveriam estar saindo de seus escritórios.
A porta abriu-se atrás dele. John nem se incomodou em dar meia volta. Também não seria o primeiro a falar, não importando o quanto isso o fizesse parecer infantil.
— Boa tarde.
A voz de Benchley soou fria, quase glacial. John reagiu com mau humor:
— O senhor me fez esperar durante quarenta minutos. Vamos andar logo com isso.
Benchley não se desculpou. Sentou-se em seu lugar na escrivaninha e colocou uma grossa pasta sobre a mesa. Era um homem miúdo, de cabelos grisalhos e encaracolados. Abriu a pasta devagar.
A porta voltou a abrir-se e dois homens jovens, que John deduziu serem os assistentes, foram se colocar atrás de Benchley. Antes que John pudesse perguntar o que estavam fazendo ali, Benchley deu-lhe uma explicação seca, em uma só palavra:
— Testemunhas.
No momento em que Benchley rompeu o selo e começou a ler, John relaxou. Quinze minutos depois, estava tremendo de raiva.
— Quando esse testamento foi modificado? — ele perguntou, controlando-se para não gritar.
— Há quatro meses — Benchley explicou.
— Por que não fui notificado?
— Sempre fui advogado de Dna. Catherine, não do senhor, se é que se lembra. Não tinha motivo nenhum para informá-lo sobre a mudança da vontade de sua esposa. Devo lembrá-lo que o senhor assinou um acordo pré-nupcial, e não tem direito nenhum sobre as aplicações de sua esposa. Fiz uma cópia do testamento para que o senhor leve. Foram instruções de Dna. Catherine — ele acrescentou, com voz suave.
— Vou contestar! Não pense que vou deixar por isso. Não é possível que ela tenha me deixado apenas cem dólares e todo o resto para animais em extinção. Não, não deixarei passar essa loucura!
— O senhor não está sendo exato — Benchley interveio. — Há um presente de quatrocentos mil dólares para a família Renard, para ser dividido em partes iguais entre o tio Jake Renard e os três primos, Remy, John Paul e Michelle.
— Não acredito — John contrapôs. — Catherine sempre odiou aquela gente. Sempre considerou-os um lixo.
— Parece ter mudado de idéia — Benchley comentou. Batendo o indicador sobre o documento, acrescentou: — Está tudo aqui no testamento. Cada um dos parentes receberá cem mil dólares. Também havia mais um pedido especial. Dna. Catherine, como constatei, gostava muito de sua governanta, como o senhor deveria saber.
— Claro que gostava. Ela fazia todas as vontades de Catherine e nunca fez questão de esconder que me detestava. Catherine divertia-se com isso.
— Pois bem — Benchley continuou. — Ela também deixou 150 mil dólares para Rosa Vincetti.
John enfureceu-se ao ouvir aquilo. Teve vontade de pedir a Monk que matasse a bruxa auxiliar, também. Odiava a tal mulherzinha de olhos de águia. Como sentira prazer ao demiti-la! Mas agora ela, também, estava levando uma parte dinheiro que ele esperava.
— Cada centavo desse dinheiro me pertence — gritou. — Vou contestar esse testamento e ganharei tudo de volta, seu asno engomado!
Benchley pareceu não se deixar afetar com a explosão de nervos.
— Faça o que lhe convier. No entanto, Dna. Catherine previu que o senhor poderia querer contestar o desejo dela e pediu que eu lhe entregasse este envelope pessoalmente. Não faço idéia do que possa haver dentro. Ela assegurou-me, no entanto, que depois de verificar o conteúdo, o senhor desistiria de uma batalha judicial.
John assinou o protocolo de recebimento do envelope e o arrancou das mãos de Benchley. Quase pingava veneno de sua boca quando disse:
— Não compreendo como minha esposa pôde fazer uma coisa dessas comigo.
— Talvez uma carta explique.
— Pode me dar a cópia do maldito testamento — John murmurou. — E fique sabendo de que nada que Catherine possa ter escrito aqui me fará mudar de idéia. Vou preparar a contestação.
Bateu a porta ao sair. O ódio fervilhava em sua cabeça. Depois, lembrou-se das contas a pagar e de Monk. Como lidaria com isso?
— Vaca desgraçada! — grunhiu, batendo a porta do carro. Estava escuro na garagem e John acendeu a luz interna do carro,
depois rasgou a ponta do envelope. Havia seis páginas no total, mas a carta de Catherine era a primeira. John levantou o papel para ver que outras surpresas ela havia preparado.
Sem conseguir acreditar no que estava vendo, voltou à primeira página e começou a ler freneticamente.
— Ai, ai, ai. Essa não! — murmurou várias vezes durante a leitura.


Capítulo 8

 

John estava alucinado. Infringiu todos os artigos possíveis do código de trânsito ao voar para o bairro de St. Charles, costurando por entre os outros carros, parecendo um motorista bêbado a cem quilômetros por hora.
A carta obscena de Catherine estava presa entre seus dedos. A todo instante ele socava o painel de couro, como se fosse o rosto dela que estivesse esmurrando.
— Aquela bruxa! Aquela puta desgraçada!
Não conseguia acreditar no que ela havia feito para ele. Não queria acreditar. Não devia passar de um blefe. Sim, só poderia ser algum tipo de truque. Mesmo morta, ela ainda queria continuar a manipulá-lo e controlá-lo. Ela não poderia ter passado por toda a proteção que ele havia colocado em seu computador. Ela não podia ser tão esperta, droga.
Quando atravessou o portão da casa, estava quase convencido que tudo não passava de uma farsa. Calculou mal a entrada na garagem e bateu o carro na porta ao enfiar o pé no freio. Praguejando, saltou fora do carro e correu para a porta lateral da casa e só então lembrou-se que havia deixado o motor ligado.
Voltou a praguejar. Disse a si mesmo que precisava manter a calma. A vaca ainda estava tentando implicar com ele, provocá-lo. Sim, não podia passar disso. Mas tinha de ter certeza. Correu pela casa, derrubando uma cadeira da sala de jantar, na pressa. Ao chegar à biblioteca, fechou a porta com o pé e jogou-se para a escrivaninha para ligar o computador. Só então sentou-se na cadeira de couro.
— Anda! Vamos lá! Vamos lá! — ele grunhiu batendo os dedos em volta do teclado enquanto esperava o computador estar pronto.
No momento em que os comandos apareceram, inseriu o CD e digitou a senha. Examinado os documentos, contou as linhas, seguindo as instruções da carta de Catherine e lá, na 16a linha, bem no meio de uma transação que havia feito um ano antes, encontrou a inscrição: Não cometerás adultério. John rugiu como um animal ferido.
— Sua vaca! — gritou, deixando-se cair contra o encosto.
O telefone celular não parava de tocar, mas ele ignorou-o. Cameron, Preston ou Dallas estavam ligando para saber o que o estava detendo. Ou talvez fosse Monk, ligando para saber quando e onde encontrá-lo para pegar seu pagamento.
E que diabo de desculpa poderia dar a Monk? John esfregou as têmporas enquanto pensava no problema. Dallas seria a solução, decidiu. Deixaria que se encarregasse de Monk. Afinal, Monk nem arrotava sem sua permissão e, com certeza, concordaria em esperar mais um pouco pelo pagamento, se Dallas lhe dissesse para esperar.
Mas o que John poderia dizer ao grupo? Mentir não faria que escapasse do pesadelo e, quanto mais esperasse, pior ficaria. Precisava contar a eles, e logo, antes que fosse tarde demais.
Precisava desesperadamente de uma bebida. Atravessou o aposento até o bar, encontrou o balde de prata sem gelo e jogou-o ao chão. Quando Catherine era viva, sempre fazia com que aquele balde estivesse cheio de gelo até a boca, não importava a que horas do dia ou da noite. Um detalhe tão idiota, mas que tinha se tornado importante, de repente. Ela governava a casa da cama, assim como tentava governá-lo, irritando-o com queixumes e exigências.
Encheu um copo com uísque e levou-o até a escrivaninha. Encostando-se na beirada, bebeu-o depressa, esperando que isso ajudasse a acalmar seus nervos para enfrentar o problema que tinha nas mãos.
O telefone voltou a tocar, dessa vez ele atendeu. Era Preston.
— Ei, onde está? Estamos esperando para celebrar sua fortuna. Veja se vem logo.
Havia música e risos ao fundo. John respirou fundo. O coração batia forte em seu peito, como se fosse explodir.
— Não tem fortuna alguma.
— O quê?
— Temos um problema.
— John, não estou ouvindo direito. Disse que ainda não recebeu a bolada?
— Os outros estão com você?
— Claro — Preston respondeu, agora demonstrando cautela na voz. — Até já pedimos uma bebida para você e...
— Escute aqui — John disse. — Estamos com um sério problema.
— Que tipo de problema nós temos?
— Olhe, não posso falar sobre isso pelo telefone.
— Onde você está?
— Em casa.
— Quer que a gente vá até aí? É algum tipo de problema que precise ser discutido agora?
— Sim. Quanto antes, melhor.
— Mas qu...
— É grave — John gritou. — Melhor virem depressa.
John desligou antes que outra pergunta fosse feita. Voltou a encher o copo no bar, depois voltou para frente do computador. Sentou-se, olhando para a tela brilhante, enquanto a luz se esvaía.
Cameron e Preston foram no mesmo carro e chegaram lá em quinze minutos. Dallas chegou logo em seguida.
John levou-os à biblioteca, acendeu a luz, e apontou para a carta que havia deixado aberta sobre a escrivaninha.
— Leiam e chorem — resmungou, já um tanto bêbado.
Cameron pegou o papel e o leu silenciosamente. Quando acabou, jogou a carta sobre a mesa e partiu para cima de John. Preston segurou-o.
— Está ficando louco? — Cameron esbravejou, com o rosto vermelho. — Deixou sua mulher ter acesso aos seus dados? É demais...
— Acalme-se, Cameron — Preston comandou, enquanto arrastava-o para trás.
— Pois leia a carta e diga se é para eu me acalmar — Cameron esbravejou de volta.
Dallas levantou-se da cadeira, pegou a carta e começou a ler alto para Preston:

 

Caro John,

Essa história de longas despedidas é cansativa e por isso minha despedida será breve e doce.
Foi por causa do meu coração, não foi? Desculpe por insistir e escrever "Eu não disse?", mas era o que eu suspeitava há muito tempo. Morri de parada cardíaca não foi? Agora, finalmente, você acredita? Eu não era tão hipocondríaca, afinal.
Neste momento você ainda deve estar abalado pelo choque de saber que mudei meu testamento e que não deixei nada para você. Eu o conheço muito bem, John, eu sei que deve estar determinado a contestar, não é? Talvez você alegue que eu não gozava de juízo perfeito, ou que estava doente demais para saber o que estava fazendo. Suspeito, no entanto, que quando terminar de ler esta carta, já tenha decidido bater em retirada discretamente e esconder-se. Se há alguma coisa da qual tenho certeza é de que não apelará.
Aposto que também está pensando nas despesas que arrumou desde quando morri. Pedi que meu testamento só fosse lido seis semanas a contar do dia da minha morte porque sabia que você entraria em um pequeno delírio de gastos, por isso quero que fique até o pescoço de dívidas. Quero que tenha de se esconder de seus credores, também.
Porque o tratei com tanta crueldade? Apenas retribuição, John. Acreditou, de verdade, que eu lhe deixaria algum tostão para gastar com aquela vagabunda? Ah, sim, John, sei de seu caso com ela. Sei tudo sobre as que vieram antes também.
Já está soltando fumaça, meu bem? Pois pode aprontar-se para mais. Guardei a melhor surpresa para o fim. Eu não era uma "vaca burra", não tanto. É isso mesmo, ouvi você falar com sua vagabunda pelo telefone, referindo-se a mim com as piores palavras possíveis. De início, fiquei arrasada, furiosa, tão desiludida que chorei durante uma semana. Depois resolvi me desforrar. Comecei a procurar em sua sala, tentando encontrar provas de seus casos extraconjugais. Queria saber quanto de meu dinheiro você vinha gastando com suas putas.
Quando saia para o escritório, eu tirava minha "bunda gorda" da cama e descia para a biblioteca. Levou um bom tempo, mas finalmente consegui descobrir sua senha e entrar em seus arquivos secretos. Ora, John, eu não podia imaginar o quanto você e seus amigos do Clube dos Semeadores são corruptos em mal intencionados. O que será que as autoridades dirão de seus investimentos ilegais? Fiz cópias de todos os arquivos e quero ter certeza que você saiba que estou dizendo a verdade. Vá correndo para casa e abra o arquivo chamado "Aquisições". Desça até a linha dezesseis. Inseri uma pequena mensagem em uma de suas transações, só para você saber que vi o arquivo.
Está preocupado? Apavorado? Eu, como estou do outro lado, estou me divertindo. Imagine minha alegria em saber que, depois que eu morrer, você passará o resto da vida apodrecendo na prisão. No dia em que receber isto, as cópias, irão par alguém que fará o que deve ser feito.
Não devia ter me traído, John.

Catherine

Capítulo 9


Michelle havia acabado de preencher a papelada para dar alta a um dos pacientes do Dr. Landusky e estava sentada em uma sala de consultas do Hospital Comunitário de St. Claire, tentando encontrar forças para acabar de preencher os relatórios. Nove já estavam completos e só faltavam mais dois para terminar. A maioria dos pacientes pertencia ao Dr. Landusky. Ela o estava substituindo há duas semanas, enquanto ele dava um giro pela Europa. Ele voltaria no dia seguinte, e Michelle oficialmente iniciaria as primeiras férias em muitos anos. Já nem se lembrava quando tinham sido as últimas.
Não poderia ir a lugar algum, no entanto, até que os relatórios estivessem terminados. E a correspondência. Havia uma pilha de envelopes ainda fechados que ela havia trazido para o consultório do Dr. Landusky e rezava para que ninguém a chamasse antes de terminar tudo. Exausta, olhou para o relógio e suspirou, desconsolada. Estava em pé desde as quatro e quinze daquela manhã. O baço rompido de um motociclista acidentado a havia tirado da cama uma hora antes do normal, e já eram cinco da tarde. Ela apoiou os cotovelos sobre a pilha de relatórios já preenchidos, descansou o queixo na palma das mãos e fechou os olhos.
Trinta segundos depois estava dormindo profundamente. Michelle havia aprendido, enquanto fazia sua residência médica, o bem que faziam os cochilos. Havia se condicionado a dormir em qualquer lugar, a qualquer hora.
— Dra. Mike?
Ela acordou, sobressaltada.
— Sim?
— Está precisando de um pouco de cafeína — uma enfermeira observou, passando por ela. — Quer que eu vá buscar algo para a senhora beber? Está com cara de exaustão.
Michelle não conseguiu esconder sua irritação.
— Megan, você me acordou só para me dizer que pareço cansada?
A enfermeira era uma moça bonita, que acabara de sair da escola. Estava trabalhando no hospital há menos de uma semana, mas já sabia o nome de todo o mundo. Havia acabado de receber a notícia de que tinha tirado boas notas em seus exames de conclusão de curso e nada a faria perder o bom humor, nem mesmo o olhar de raiva de uma médica.
— Não sei como a senhora consegue dormir assim. Estava falando ao telefone há um minuto e no instante seguinte já está babando e roncando em cima de seus relatórios.
Michelle balançou a cabeça.
— Não babo, nem ronco.
— Vou até a cantina lá em baixo — Megan anunciou. — Quer alguma coisa?
— Não, obrigada. Já estou quase indo embora. Só tenho de dar uma olhada na correspondência e então estou pronta.
Uma auxiliar interrompeu a conversa:
— Dra. Mike, chegou um envelope registrado para a senhora lá no setor de pronto-socorro — anunciou. — A senhora precisa ir lá assinar. Parece que é importante. Espero que ninguém esteja processando a senhora — acrescentou.
— A Dra. Mike não está aqui há tempo suficiente para ser processada — Megan contestou.
— O entregador disse que é de uma firma de advogados de Nova Orleans e que não vai embora até que a senhora receba o envelope pessoalmente e assine o protocolo. O que digo a ele?
— Que já estou indo.
Michelle pegou os relatórios prontos e colocou-os na bandeja de saída. Deixou os dois que faltavam ser terminados por cima da pilha de correspondências e depois subiu para o pronto-socorro. Não viu o mensageiro em lugar algum. A secretária-chefe do setor a viu e aproximou-se correndo para entregar-lhe um grande envelope pardo.
— Sua entrega, Doutora. Sabia que estava ocupada e disse ao mensageiro que estava autorizada a representá-la na sua ausência.
— Obrigada, Elena.
Estava pronta para voltar ao consultório, mas Helena segurou-a pelo braço.
— Não agradeça ainda, Doutora. Aconteceu um acidente horrível em Sunset e os paramédicos estão trazendo uma porção de crianças. Chegarão daqui a uns dois minutos e precisaremos da sua ajuda.
Michelle levou o envelope consigo até a sala dos médicos para pegar um refrigerante dietético. Depois, voltou ao consultório e abriu a tampa da lata. Precisava de um pouco de cafeína para enfrentar mais uma jornada, decidiu. Colocou a lata de lado e ia pegar o envelope quando a porta abriu-se e um paramédico gritou por ajuda.
— Temos um caso de hemorragia!
Michelle saiu correndo, já esquecida do envelope.


Capítulo 10


Ninguém é uma ilha, e Leon Bruno Jones não era exceção. Era chamado de Conde D por seus asseclas porque seus dentes caninos eram visivelmente mais compridos que os outros dentes da frente; parecia um vampiro quando sorria. Leon parecia ser capaz de sugar o sangue de suas vítimas e, se os valores de extorsão registrados em seus cadernos fossem verdadeiros, ele havia sugado bem mais do que o sangue.
Leon tinha um grande círculo de amigos, e todos odiavam Theo Buchanan. Sem a investigação de Theo, Leon não haveria ganhado evidência e não teria de testemunhar diante de um júri de Boston, derrubando uma das mais poderosas organizações criminosas do país.
Theo havia retornado a Boston alguns dias depois de sua cirurgia. Apesar de o caso de Leon já estar encerrado e meia dúzia de chefões do crime estarem atrás das grades, Theo ainda tinha quilômetros de relatórios a fazer e documentos a arquivar. Seus superiores no Ministério da Justiça recomendaram-lhe que se cuidasse. Theo já havia recebido ameaças de morte antes e, apesar de jamais subestimá-las, não deixava que interferissem no seu trabalho. Nas duas semanas seguintes, ele passou longas e exaustivas horas no escritório.
Por fim, quando o último papel foi arquivado e a equipe terminou os últimos relatórios, Theo fechou a porta do escritório e foi para casa. Estava exausto tanto mental quanto fisicamente. A pressão do trabalho havia sido pesada, e ele se perguntava se, depois de tudo o que havia sido dito e feito, seus esforços realmente faziam alguma diferença. Estava cansado demais para pensar no assunto. Precisava de uma boa noite de sono. Na verdade, precisava de um mês inteiro de boas noites de sono. Então, talvez começasse a ver tudo com mais clareza e decidir o que fazer dali por diante. Aceitaria o trabalho de um novo estudo sobre o crime organizado que o Ministério da Justiça havia lhe oferecido, ou voltaria à prática autônoma da advocacia, passando os dias em reuniões e negociações? De qualquer maneira, logo estaria sendo carregado por uma enxurrada de trabalho. Quem sabe a família estivesse com a razão. Estaria tentando escapar da vida ao mergulhar num trabalho sem fim?
Os superiores do ministério haviam insistido para que ele ficasse afastado por um tempo, pelo menos até que a família e o grupo de Leon se acalmassem um pouco. Ficar longe de tudo aquilo parecia uma boa idéia para Theo no momento. Visões de uma linha de pesca nas águas tranqüilas no bayou da Louisiana surgiram em sua mente. Antes de partir de Nova Orleans, havia prometido voltar para dar a palestra que havia perdido e achava que aquele seria o melhor momento. Depois da palestra, poderia ir conferir o local de pesca do qual tanto se gabara Jake Renard. Sim, um pouco de tempo para refrescar as idéias era só o que lhe faltava. Havia um outro motivo pelo qual estava ansioso para voltar à Louisiana, no entanto... e não tinha nada a ver com pesca.
Três semanas e meia após a cirurgia, Theo estava de volta a Nova Orleans, no pódio do salão nobre do Royal Orleans, esperando que os aplausos se encerrassem para poder iniciar a palestra adiada para os defensores da lei que, mais uma vez, tinham vindo de todo o estado para ouvir o que ele tinha a dizer. De repente, lá estava ela, dentro de sua cabeça, interferindo em seus pensamentos. Ela possuía o sorriso mais maravilhoso, como sol concentrado. Também tinha um corpo escultural, sem a menor sombra de dúvida. Lembrava-se como, deitado em sua cama de hospital, não conseguia tirar os olhos dela. Qualquer homem normal teria reagido da mesma maneira que ele. Estava doente na época, mas não inconsciente.
Tentava lembrar-se da conversa que tive com ela, quando de repente percebeu que o salão já havia silenciado. Todos olhavam ansiosos para ele, esperando que começasse e, pela primeira vez em sua vida, sentiu-se nervoso. Não conseguia se lembrar de uma palavra do discurso preparado, nem mesmo do tema. Olhou para o pódio, onde estava a programação, leu o título e a breve descrição do que deveria dizer e começou a falar. Como o discurso ficou bastante abreviado, a platéia cativa adorou. Todos trabalhavam demais, eram expostos a enorme estresse e estavam encarando aquela noite como uma oportunidade de relaxar, comer, beber e divertir-se. Quanto antes parasse de lembrá-los do peso do distintivo que carregavam e do risco ao qual expunham suas vidas todos os dias, mais contentes ficariam. Sua apresentação, programada para durar meia hora, não chegou à marca dos quinze minutos. A reação foi tão cheia de entusiasmo que ele acabou rindo. Todos o aplaudiram de pé.
Mais tarde, voltando ao hotel, pensou em seu comportamento fora do comum e concluiu que estava reagindo como um garoto que tinha acabado de descobrir o sexo. Parecia ter trocado de lugar com seu irmão mais novo, Zachary. Na época, Zach não dizia duas frases sem falar em mulheres, tesão e sexo.
Theo não sabia o que o tinha atacado, mas concluiu que tudo se resolveria assim que fosse pescar. Adorava pescar. Quando saía com seu barco, o Mary Beth, relaxava completamente. Era quase tão bom quanto sexo.
Na terça-feira, antes de partir para Bowen, Theo teve uma reunião com capitães da polícia de Nova Orleans, depois fez uma visita ao consultório do Dr. Cooper. O médico atendeu-o e aproveitou para passar-lhe um sermão por ele não ter comparecido à consulta de controle depois da cirurgia. Depois de discorrer algum tempo sobre como seu tempo era curto, verificou a incisão de Theo.
— Cicatrizou muito bem — anunciou. — Mas o senhor poderia ter se dado muito mal caso houvesse alguma complicação. O senhor não deveria ter voado de volta a Boston com tanta pressa após a cirurgia. Foi uma falta de responsabilidade.
Cooper sentou-se no banco junto à mesa de exame.
— Para falar a verdade, eu nem esperava que houvesse qualquer complicação, a menos que o senhor cometesse alguma imprudência. Mike fez um trabalho excelente, como sempre — comentou. — Ela é tão boa com um bisturi quanto eu. E isso é um alto elogio. Sim, senhor, é uma das melhores cortadoras do país. O senhor teve muita sorte por ela perceber que estava passando mal. Eu bem que lhe ofereci um lugar em minha equipe, cheguei a insinuar uma sociedade. Ela é realmente muito dotada — enfatizou. — Quando recusou, aconselhei-a a aprofundar sua especialização, mas ela não se interessou. É teimosa demais para perceber que está desperdiçando seu talento.
— Como assim? — Theo perguntou, abotoando a camisa.
— Ela poderia ganhar muito dinheiro, mas resolveu ser médica de família em um buraco — Cooper respondeu. — Mike nem vai operar, quase. É um tremendo desperdício.
— Talvez os habitantes de Bowen não tenham a mesma opinião, doutor.
— Eles bem que precisam de outro profissional, sem dúvida, mas...
— Mas o quê?
O Dr. Cooper estava brincando com a tampa do pote de algodão. De repente fechou-a a levantou-se.
— Bowen não é a cidadezinha pacata e tranqüila de que ela fala — disse. — Falei com ela esta manhã sobre uma ressecção intestinal que ela mandou para mim, e ela contou-me que a clínica havia sido invadida. Deixaram tudo de pernas para o ar.
— Quando foi isso?
— Ontem à noite. A polícia está investigando. Até agora, pelo que Michelle me disse, não há pistas. Sabe o que pode ter sido?
— Não faço a mínima idéia.
— Acho que foram adolescentes em busca de drogas. Quando não encontraram o que queriam, vandalizaram o consultório.
— Pode ser — Theo comentou.
— Mike não tem drogas pesadas na clínica. Ninguém de nós tem. Pacientes que precisam desse tipo de medicamento ficam internados em hospitais. É uma barbaridade — acrescentou. — Ela trabalhou muito para deixar aquela clínica em ordem e estava tão contente e animada em voltar para sua cidade! — continuou, balançando a cabeça. — Fiquei preocupado com ela. O que quero dizer é que, se não foi vandalismo, talvez alguém não queira que ela volte a Bowen.
— Estou indo para Bowen para ir pescar com o pai dela — Theo revelou.
— Então pode me fazer um favor — ele disse. — Tenho mais uma caixa de suprimentos médicos para levar para ela, mas o senhor poderia levar para mim. E, enquanto estiver lá, poderia dar uma olhada nesse vandalismo. Talvez eu esteja exagerando, mas...
— Mas o quê?
— Ela está assustada. Não que ela tenha dito isso, mas eu percebi. Enquanto falava com ela, senti que havia algo mais e que ela não quis me contar. Mike não se assusta com facilidade, mas parecia alterada enquanto falava comigo.
Theo saiu do consultório do médico alguns minutos mais tarde, carregando uma enorme caixa de suprimentos médicos. Já havia fechado a conta no hotel e tanto a mala quanto o equipamento de pesca estavam no porta-malas do carro alugado.
O céu estava profundamente azul, havia sol e calor; um dia perfeito para um passeio ao interior.


Capítulo 11


No início da tarde, Cameron, Preston e John estavam ansiosos esperando a chegada de Dallas. Fazia mais de uma hora que estavam esperando na biblioteca de John e ficavam cada vez mais agitados. Dallas atrasou-se, como de hábito.
— Onde você se meteu? — Cameron esbravejou assim que Dallas entrou na biblioteca, com um ar cansado e desgastado como o dos outros. — Há horas que estamos esperando por você.
— Estive ralando o rabo — Dallas respondeu com irritação. — E não estou com disposição para agüentar mal humor de ninguém, Cameron, por isso é melhor ir tirando o cavalo da chuva.
— Vamos ter de arrumar as malas e sair do país? — Preston quis saber. — A polícia vai bater à nossa porta?
— Credo! Nem fale uma coisa dessas! — Cameron reagiu, suando frio.
— Acho que ainda não temos de fazer as malas — Dallas respondeu.
— Conseguiu as cópias de nossos arquivos de volta? — Preston perguntou, esperançoso.
— Não — Dallas respondeu. — Não consegui pôr a mão nelas... ainda. Descobri que empresa de entrega expressa a firma de advogados usa e fui até lá. Por sorte, eles ainda não haviam mandado o comprovante para a firma de advogados e consegui tirar uma cópia. Liguei para Monk imediatamente e ele foi atrás no mesmo instante. Catherine mandou as informações para uma parente, uma tal de Dra. Michelle Renard, em Bowen, Louisiana.
— Não estou entendendo. Por que Catherine esperaria até depois de morrer para mandar isso para um parente, em vez de entregar tudo para os federais quando descobriu? — Cameron indagou.
— Sei exatamente qual era a intenção dela — John respondeu.
— Catherine era radical sobre o casamento ser para sempre e não me largava. Teria usado o que descobriu para fazer com que eu me comportasse. Nos últimos dois meses, ela deve ter achado que eu estava andando na linha. Apesar de ela me dar engulhos, eu estava cheio de atenções para ela. Mas Catherine era vingativa. Não interessa o quanto eu possa ter sido gentil com ela, decidiu mandar-me para a prisão depois que morresse. Eu só nunca poderia ter imaginado que mandaria uma cópia para os parentes que ela praticamente renegou.
— A tal médica assinou o recibo de entrega? — Preston perguntou.
— Assinou.
— Filha da puta! Estamos fodidos!
— Parem de interromper e deixem-me terminar — Dallas disse.
— Falei com o homem que entregou o pacote. Ele disse que primeiro foi à casa da doutora. Como ela não estava lá, ele resolveu ir até o hospital. Ele disse que ela assinou o protocolo no pronto-socorro.
— De que nos interessa onde ela assinou o protocolo? — John perguntou.
— Estou chegando lá — Dallas respondeu. — O mensageiro lembrou que, quando estava saindo do estacionamento, quase trombou com uma ambulância que vinha chegando à toda velocidade. Vinha outra ambulância atrás da primeira. E, enquanto ele manobrava, para dar passagem às ambulâncias, viu descarregarem quatro garotos. Disse que havia muito sangue em suas roupas.
— E daí? — Preston quis saber.
— E daí que a Dra. Renard deve ter ficado bem ocupada ontem à noite.
— E temos de morrer de ansiedade porque você acha que a médica não teve tempo de ler os documentos e mandar tudo para a polícia? — Cameron perguntou.
— Cale a boca! — Dallas irritou-se. — Assim que Monk chegou a Bowen, foi até o Hospital St. Claire. Com certeza, a Dra. Renard estava na sala de cirurgia. Monk disse a uma das atendentes que desejava tratar de assuntos financeiros com a doutora e perguntou se podia esperar. A atendente disse que a Dra. Renard estava escalada para duas cirurgias seguidas e não estaria livre durante algumas horas.
— E o que mais? — John perguntou, sentado atrás de sua escrivaninha, tamborilando os dedos no bloco.
Dallas resistiu ao impulso de dar-lhe um tapa na mão.
— O protocolo mostra que ela assinou a entrega exatamente às cinco e quinze — Dallas disse, verificando suas anotações. — Verifiquei o serviço de ambulâncias e a chegada ao hospital foi às cinco e vinte. Portanto...
— Ela não teve tempo de fazer nada com o pacote — Preston disse.
Dallas continuou:
— Enquanto Renard estava na sala de cirurgia, Monk colocou um dispositivo de escuta telefônica na linha da casa dela. Quando voltou ao hospital, já havia mudado o turno e ele aproveitou a oportunidade para infiltrar-se na sala dos médicos e examinar o armário da Dra. Renard. Conseguiu até que a atendente ajudasse. Disse que um pacote havia sido acidentalmente entregue à pessoa errada.
— E ela acreditou?
— Monk sabe usar de charme, quando precisa — Dallas disse. — E era uma atendente jovem. Não. — talvez a Dra. Renard tenha levado o envelope para a sala de cirurgia — John sugeriu.
— Duvido — Dallas disse. — A atendente disse que ela subiu com um paciente.
— Então, o que Monk fez?
— Esperou. Já era bem tarde quando a Dra. Renard saiu do hospital e ele a seguiu. Ela parou no caminho de casa. Era uma clínica e ela estava com uns papéis na mão quando entrou. Monk podia ter verificado o carro, mas ela deixou o motor ligado, o que indicava que não demoraria.
— Estava com os papéis quando saiu?
— Nenhum que ele conseguisse ver — Dallas informou. — Mas levava uma mochila. De qualquer maneira, ele a seguiu até em casa, esperou que ela dormisse, depois deu um jeito de entrar e vasculhou a casa. Encontrou a mochila na lavanderia e inspecionou-a em primeiro lugar.
— E não estava lá — John sugeriu.
— Não, mesmo.
Cameron começou a andar de um lado para outro.
— Ela deve ter levado o maldito para a clínica. Talvez resolva abrir aquilo hoje.
— Monk voltou à clínica. Também não estava lá. Ele jura que procurou por tudo. O único problema foi que ele quebrou a fechadura de um armário e resolveu bagunçar o lugar para que parecesse que moleques tivessem andado por lá.
— E onde está a merda do envelope? — John estava tão furioso que já não conseguia, nem tentava, esconder. — Não acredito que a vaca tenha enviado para a prima. Ela odiava os parentes!
— Não sei onde o envelope está — Dallas disse. — Mas me ocorreu uma coisa.
— E o que foi? — Preston perguntou, ansioso.
— Ela não deve fazer a mínima idéia do que tem em mãos.


Capítulo 12


Foi fácil para Theo encontrar St. Claire, Louisiana, mas Bowen foi impossível. Não havia sinais para indicar o caminho e, pelo que Jake tinha dito, a cidade não constava do mapa. Por mais que detestasse, tinha de admitir que estava perdido e precisava de informações. A teimosia era um defeito genético, passado de geração em geração dos homens da família, de acordo com suas irmãs, Jodan e Sidney. Theo ficou andando em círculos até ficar quase sem gasolina e ver-se obrigado a parar para abastecer. Quando entrou no posto para pagar, entregou os pontos e perguntou ao atendente se ele sabia onde ficava Bowen.
O adolescente sardento e levemente vesgo sacudiu a cabeça com entusiasmo.
— Claro que sei onde fica Bowen. O senhor é novo na cidade? Antes que Theo tivesse tempo para respirar e responder, o garoto disparou outra pergunta:
— O senhor está procurando a escola nova? Fica na Rua Clement. Acho que sei quem o senhor é — o menino disse, parando para medir Theo de alto a baixo. — Sei até por que está aqui.
— Sabe, é?
— Mas claro! Veio se candidatar para a vaga de treinador, não é? É isso mesmo, não acertei? Veio por causa do anúncio, não veio? A gente bem que ouviu dizer que tinha alguém interessado, e só pode ser o senhor. É, não era conversa, então. A gente precisa mesmo de ajuda, porque o Sr. Freeland — é o professor de música, mas já deve ter ouvido falar — não entende nada de futebol. Vai ficar com o emprego?
— Não, não vou.
— Ué, por que não? Nem viu o lugar ainda. Não pode se decidir sem nem ter ido ver o lugar.
Theo já estava perdendo a paciência.
— Não sou treinador de futebol.
O rapaz não acreditou e voltou a insistir.
— Pois parece muito com um. Tem os ombros de jogador, como se jogasse bastante quando era novo.
Quando era novo? Quantos anos o pirralho achava que tinha?
— Olhe aqui, só quero saber como chegar...
— Ah, já entendi — o garoto o interrompeu, sacudindo a cabeça com entusiasmo.
— Entendeu o quê? — Theo perguntou, mesmo sabendo que deveria ter ficado quieto.
— É segredo, não é? Quer dizer, até que tenha pegado o posto, não quer contar para ninguém. Como sabe, o diretor vai anunciar sua escolha na gincana, daqui a duas semanas. Ah, por falar nisso, Treinador, meu nome é Jerome Kevin Kelly, mas todo mundo me chama de Kevin — o garoto apresentou-se, estendendo a mão. — Fico muito contente em conhecer o senhor.
Theo sentiu o maxilar tenso.
— Só estou tentando encontrar Bowen. Vai me dizer onde fica ou não?
Kevin levantou as mãos, num gesto conciliatório.
— Está bem, não precisa ficar bravo comigo. É segredo mesmo, não é?
Theo resolveu concordar só para o garoto parar de falar no assunto.
— É, sim. Segredo. Agora pode dizer onde fica Bowen? Kevin sorria de orelha a orelha.
— Está vendo ali? — disse, apontando para a rua diante do posto.
— O quê?
— Aquela rua ali.
— Claro que estou vendo. Kevin voltou a balançar a cabeça.
— Essa a Rua dos Olmos, só que não tem olmo nenhum plantado nela. Sou atacante.
— O que disse?
— Sou atacante. O Sr. Freeland disse que essa deve ser minha posição no time. Consigo chutar a bola bem longe.
— Verdade?
— É, e posso jogar em outra posição, se quiser. Sou bem rápido.
— Ouça, Kevin. Não sou o novo treinador.
— Está bem, não contarei para ninguém até anunciarem oficialmente. Mas pode contar comigo, Treinador.
— Onde fica Bowen? — a voz agora soou ríspida.
— Eu já estava explicando — o garoto respondeu. — Se andar deste lado da rua dos Olmos, o lado leste — disse, voltando a apontar para fora — então está em St. Claire. Se não souber onde é o leste nem o oeste, pois eu também me atrapalho, às vezes, saberá que é St. Claire se enxergar calçada. Bowen não tem calçada.
Theo rangeu os dentes.
— Mas onde, exatamente, fica Bowen?
— Ora, é o que estou explicando. Oh, se o senhor atravessar essa rua, a dos Olmos, assim, andando...
— Sim? — Theo incentivou, com vontade de esganar o garoto.
— Tá lá.
— Onde?
— Em Bowen, claro. Entendeu? De um lado da rua é St. Claire e do outro é Bowen. Simples, não é? Olhe, espero que o senhor me dê uma chance como atacante. Acho que vai ser bom para o time.
Theo colocou o dinheiro do combustível sobre o balcão e perguntou:
— Já ouviu falar em um bar chamado O Cisne?
— Claro! Ora, todo o mundo conhece O Cisne. É um lugar meio antigo, lá no meio do pântano, bem do outro lado de Bowen. Tem um cisne bem grande em cima. Quando chegar lá, verá que não tem como errar.
— Então me diga como chegar lá.
Desta vez, Kevin lhe deu instruções. Quando terminou de descrever o caminho complicado, disse:
— Sabe, o pessoal de St. Claire gosta de dizer que Bowen é um bairro deles, mas isso deixa o pessoal de Bowen puto da vida. Xi, eu não devia dizer puto na frente do Treinador!
Theo colocou o troco no bolso, agradeceu a Kevin pela ajuda e dirigiu-se para o carro. Kevin saiu correndo atrás dele.
— Ei, como é seu nome?
— Theo Buchanan.
— Tá. Não vá esquecer, viu? — o garoto gritou.
— Esquecer de quê?
— Que sou seu atacante.
Theo riu.
— Está bem, não vou esquecer.
Kevin esperou até o carro descer a rua para correr para dentro e ligar para os amigos. Queria ser o primeiro a dar a notícia do treinador Buchanan.
Dez minutos mais tarde, Theo estava dirigindo por outra rua de cascalho, sem fim e sem indicação. Dos dois lados havia folhagens exuberantes e árvores com musgo acinzentado pendurado em todos os galhos. Estava quente lá fora e terrivelmente úmido, mas tão bonito e tranqüilo, que Theo baixou o vidro para sentir o cheiro forte da terra e das plantas.
Viu que havia águas turvas para além das árvores, enquanto descia a estrada em ritmo bem lento. Gostaria de parar o carro e simplesmente ficar sentado ali, observando. Grande lugar para explorar a pé, pensou. Isso levou-o a pensar em outra coisa. Crocodilos não moram em pântanos? Ora, droga, com certeza! Melhor esquecer a caminhada.
O que estava fazendo ali, afinal? Por que viera tão longe só para pescar? Porque era ali que ela estava, admitiu e, de repente, começou a se achar bobo. Pensou em fazer uma manobra e voltar a Nova Orleans. Sim, era isso que deveria fazer. Se fosse depressa, ainda poderia pegar um avião e chegar de volta em Boston pela meia-noite. Não era lá seu lugar? Se pescar era o que queria, tinha até um barco que podia levar para o alto mar e pescar "até baleia".
Devia estar louco, sim era isso o que era. Sabia exatamente o que devia fazer, mas continuava indo em frente.
A rua fez mais uma curva e, de repente, lá estava O Cisne, bem à sua frente, onde a rua acabava. Ao reparar bem na construção, caiu na risada. Honestamente, nunca tinha visto nada assim. Era feito de chapas corrugadas dos lados e tinha um teto metálico alto. Mais parecia um celeiro grande e antigo, um tanto estranho, na verdade, mas o charme, realmente, era o cisne empoleirado no ponto mais alto do telhado. Só que não era cisne coisa nenhuma, mas um flamingo cor-de-rosa, com uma asa pendurada precariamente com arame.
Havia uma velha picape surrada no pátio de cascalho. Theo estacionou seu carro ao lado, saiu e tirou o paletó. Estava enrolando as mangas de sua camisa e aproximando-se da entrada quando lembrou que estava usando o paletó para esconder o revólver e o coldre. Mas estava com calor, suado demais para voltar a vestir o paletó. Decidiu não se preocupar com o revólver em evidência. Michelle já sabia que ele carregava um revólver. Além do mais, estava muito ocupado tentando imaginar o que dizer quando Jake lhe perguntasse por que estava lá.
Imaginou, também, se o velho gostaria de ouvir a verdade: "Não consigo tirar sua filha da cabeça". Ah, sim, dizer a verdade sempre é bom, mas poderia render-lhe um belo soco no nariz.
A porta estava entreaberta. Theo abriu um pouco mais e entrou. Viu Jake Renard atrás do balcão, com um pano na mão, limpando a madeira envernizada. Theo tirou os óculos, colocou-o no bolso da camisa, junto com os óculos de leitura, e fez um aceno de cabeça. Esperava que Jake se lembrasse dele e ficou pensando o que diria se não lembrasse. Qual era o motivo de ter ido a Bowen? Pescar. Sim, era isso mesmo. Queria pescar.
Jake lembrava-se dele, sim. No instante que viu Theo, emitiu um grito longo, como um cantor de música country preparando-se para atacar uma canção. Depois abriu um sorriso de orelha a orelha, largou o pano, limpou a mão no avental e deu a volta no balcão depressa.
— Ora, vejam só! Ora, vejam só quem está aí!
— E aí, Jake? Como vai?
— Bem, Theo, muito bem. Veio pescar?
— Isso mesmo, acertou.
Jake apertou a mão de Theo, sacudindo-a com entusiasmo.
— Fico muito contente em ver você por aqui. Estava mesmo dizendo à Ellie, uma noite dessas, que a gente ainda se encontraria de novo. E agora você aparece, em carne e osso.
Theo sabia quem Ellie era. Jake havia mencionado a esposa na conversa que haviam tido no hospital.
— Como vai sua esposa? — Theo perguntou, com todo o respeito. Jake olhou para ele assustado, mas logo recuperou-se e respondeu:
— Minha esposa passou desta para a melhor, que Deus a tenha, já faz algum tempo.
— Sinto muito — Theo disse, cada vez mais confuso. — Se não se importa que eu pergunte, quem é Ellie?
— Minha esposa.
— Ah, então casou-se outra vez.
— Não. Nunca tive vontade de voltar a casar depois que minha Ellie se foi. Sempre achei que nunca mais encontraria alguém que possa se comparar a ela — Jake fez uma pausa e sorriu. — Eu simplesmente tinha certeza de que você apareceria aqui na cidade sem precisar chamar. Até pensei em ligar para você, mas sabia que Mike ia querer arrancar meu couro se eu ligasse. Além disso, sabia que você encontraria o caminho de Bowen.
Theo não sabia o que dizer diante dos comentários do velho. Jake logo continuou:
— Eu sabia que, se conseguisse entusiasmar você com esse negócio de pescar, você daria um jeito de arranjar um par de dias para vir para cá. Um pescador de verdade nunca consegue dizer não, e nem importa quanto tempo faz que não põe a mão em uma vara de pescar. Não é isso mesmo?
— Isso mesmo, acertou.
— Se nasceu para pescador de verdade, e eu cheiro que seja, é até bom eu formar dupla com você no concurso do próximo fim de semana. Sempre faço dupla com meu amigo Walter, mas Mike teve de arrancar a vesícula dele ontem mesmo, e ele não vai poder fazer esforço, nem pegar peso durante algum tempo. Ele até já me disse para arranjar outro parceiro. Vai estar aqui, não vai?
— Não pensei ainda quanto tempo vou ficar em Bowen.
— Certo. Então vai ficar. Theo riu.
— De que tipo de concurso está falando?
— Ah, é um grande acontecimento por aqui — ele explicou. — Uma vez por ano, todos os pescadores num raio de muitos quilômetros vêm para cá para competir. Todos fazem um depósito de cinqüenta dólares em dinheiro. O prêmio acaba ficando bem gordo, e venho tentando vencer o velho Lester Burns e o irmão dele, Charlie, há cinco anos. Eles ganham a medalha e o prêmio em dinheiro todos os anos, desde que começamos com o torneio. Eles têm um equipamento de primeira, o que lhes dá uma boa vantagem. As regras não são complicadas — acrescentou. — Você pesca sua parte e o juiz pesa na frente de todo mundo no fim do dia. Depois tem uma festa com a boa comida cajun bem aqui no Cisne. Mas diga lá o que acha do meu canto, aqui? — perguntou, fazendo um gesto amplo com o braço. — É gostoso, não é?
Theo olhou em volta com interesse. O sol entrava pelas janelas abertas e estendia-se até o chão de madeira. As mesas estavam colocadas em um canto, com as cadeiras de pernas para o ar por cima. Havia um balde com esfregão encostado no canto do balcão e, mais à esquerda, uma jukebox. Os ventiladores no teto faziam um leve ruído ao girar. O salão estava surpreendentemente fresco, comparado ao calor lá de fora.
— É muito agradável — Theo comentou.
— No próximo fim de semana, o movimento será dos bons — Jake observou. — Sim, senhor, estou gostando muito de ver você por aqui e a Michelle também ficará contente. Já falou em você mais de uma vez.
Por algum motivo, aquela notícia soou muito bem aos ouvidos de Theo.
— E como ela está? Estive no consultório do Dr. Cooper e ele me contou que a clínica dela havia sido invadida.
— É, tentaram destruir o lugar, os desgraçados — Jake contou. — Não conseguimos encontrar motivo nenhum para fazerem uma coisa dessas. Não levaram nada, só reviraram tudo. A pobre Mike nem teve tempo para nada, só de dar uma olhada na confusão que deixaram. Ela esteve na clínica hoje de manhã. Assim que chegou em casa e trocou de roupa, chamaram-na de volta para mais uma cirurgia de emergência. Ela não teve um minuto para botar ordem naquela bagunça, e o irmão dela até já disse que ela quer que a gente ajude a arrumar. Olhe, vou lhe contar: ela está muito cansada. Capaz de ter um troço qualquer hora dessas.
— Estou muito bem, obrigada, papai.
Theo virou-se ao ouvir o som de sua voz e lá estava ela, na porta, sorrindo para os dois homens. Estava vestida com shorts caqui e uma camiseta grande, manchada de tinta.
Ele bem que tentou não ficar com os olhos grudados nas pernas dela, mas, ora bolas, era tarefa muito difícil. Eram incríveis. Longas, bem torneadas... impressionantes.
— O que está fazendo em Bowen, Sr. Buchanan? — Michelle perguntou, torcendo para que sua voz soasse calma.
Encontrá-lo ali, no bar de seu pai, foi algo que mexeu com ela e, quando ele voltou-se sorrindo para ela, achou que seus joelhos virariam geléia. Seu coração começou a bater depressa e ela tinha certeza de que estava vermelha. E por que não? Todas as enfermeiras do centro cirúrgico haviam achado Theo Buchanan lindo de morrer.
— Isso é jeito de tratar um visitante, já começando com perguntas assim? — o pai ralhou.
Ela não conseguia vencer a surpresa de encontrar Theo ali, bem na sua frente. Com um tom acusador, perguntou ao pai:
— O senhor telefonou para ele para pedir ajuda?
— Não, mocinha, não telefonei, não. Agora pare de me olhar com essa cara desconfiada e lembre-se do respeito. Quando o Theo estava se recuperando no hospital, o convidei para vir pescar comigo aqui.
— Papai, o senhor convida todo mundo que conhece para vir pescar com o senhor — ela disse, depois voltou-se para Theo. — Veio mesmo para pescar?
— Na verdade, eu...
Jake interrompeu:
— Pois se eu disse que veio, então veio, ora! E sabe o que ele acabou de decidir? Que será meu parceiro no torneio do próximo fim de semana.
— E como está se sentindo? — ela perguntou a Theo, escondendo-se atrás da confortável posição de médica. — Alguma complicação?
— Já estou me sentindo novo em folha, graças a você. Foi um dos motivos pelos quais vim para cá... além da pesca, é claro. Queria me oferecer para pagar pelo vestido que arruinei, pedir desculpas e, mais do que tudo, para agradecer-lhe. Você salvou minha vida.
— Não é bom de se ouvir uma coisa dessas, Mike? — Jake disse com um sorriso de contentamento. — Foi para isso que foi estudar para ser médica, não foi? Para salvar vidas.
— Isso mesmo, papai — ela respondeu.
— Está com fome, Theo? — Jake perguntou. — Já passa do meio-dia e aposto que não almoçou ainda, não é verdade? Eu tenho um gumbo2 aí, fervendo na panela. Venha sentar-se aqui no balcão e espere um pouco, enquanto termino isso aqui. Mike, porque não pega uma cerveja geladinha para o Theo?

2 Comida típica do sul dos Estados Unidos, um tipo de sopa grossa feita com frango ou peixe e quiabo.

— Água está bem — Theo disse.
Seguiu Michelle até o balcão, percebendo como seu rabo-de-cavalo subia e descia a cada passo que ela dava. Era jovem. Que idade teria? Ele deveria estar tendo uma crise dos trinta. Sim, deveria ser algo assim. Michelle fazia com que ele voltasse a sentir-se jovem. Só que ele já tinha 32 anos. Não seria um pouco cedo para uma crise dos trinta?
Jake colocou uma grande tigela com gumbo diante de Theo e entregou-lhe um guardanapo e uma colher.
— Vá com cuidado — avisou. — Está quente.
Theo achou que estava lhe avisando para deixar esfriar um pouco. Mexeu a comida com a colher e colocou uma colher cheia na boca. Engoliu. Dois segundos mais tarde, seus olhos estavam lacrimejando e ele começou a tossir, tentando recuperar o fôlego ao mesmo tempo. A sensação era de ter acabado de engolir lava incandescente de vulcão. Agarrou o copo de água e o bebeu de uma vez só.
— Acho que exagerou na pimenta, desta vez — Michelle disse. — Quanto de seu molho especial o senhor colocou?
Jake deu outro copo de água a Theo e observou-o beber, ainda tossindo.
— Coloquei só um vidro — respondeu. — Quando experimentei achei até bem leve. Estava até pensando em pôr mais um tanto.
— Ele vem até aqui para agradecer — Michelle disse, balançando a cabeça — e o senhor tenta matar o coitado!
Theo ainda não estava em condições de falar. Jake esticou o braço por cima do balcão e deu-lhe uns bons tapas nas costas. Theo queria dizer-lhe para parar, mas tinha a impressão que suas cordas vocais haviam derretido. Michelle lhe deu um pedaço de pão e aconselhou:
— Coma isto. Vai ajudar.
— Aposto que agora vai querer aquela cervejinha gelada, não vai? — Jake disse, assim que Theo engoliu o pedaço de pão.
Theo assentiu com a cabeça e, depois de tomar uns bons goles da cerveja que Jake serviu-lhe, voltou-se para Michelle e disse:
— Falei com o Dr. Cooper esta manhã.
— Achei que estivesse passando bem — ela disse.
Ela havia ido para trás do balcão e estava empilhando os copos.
— E estou — ele afirmou. — É que eu não vim fazer a revisão marcada. Voltei para Boston alguns dias depois da cirurgia, mas remarcaram minha palestra e por isso voltei. Antes tarde do que nunca, não acha?
— Não devia estar se sentindo bem quando voltou para casa — ela comentou. — Essa história de querer bancar o durão pode acabar com você.
— Também acho — ele concordou. — Foi o Dr. Cooper quem me contou sobre o vandalismo em sua clínica.
— Está vendo, Mike? Não fui eu que chamei o Theo — Jake interpôs, agitado. — Eu bem que sugeri que ela ligasse para você — ele admitiu para Theo. — Você é o único sujeito do FBI que eu conheço.
— Sou só um prestador de serviços para o Ministério da Justiça — Theo corrigiu.
— Mas o FBI faz parte do Ministério da Justiça, não é?
— Sim, mas...
Jake não lhe deu espaço para explicações:
— É por isso que eu queria ligar para você. Achei que podia dar uma olhada no assunto, mas a Mike não queria nem ouvir falar. Sabe o que mais os moleques fizeram na clínica dela? Pintaram as paredes branquinhas com spray de tinta preta. Uns palavrões que eu nem me atrevo a repetir. Rasgaram pastas e misturaram os remédios. Michelle terá de começar tudo de novo. Não é, querida?
— Vai dar tudo certo. A sorte é que terei duas semanas de folga do hospital para limpar e arrumar a clínica. É tempo suficiente.
— Mas era para você estar descansando. Você ia relaxar e até pescar um pouco comigo — Jake protestou e voltou-se para Theo — Minha filha sempre foi otimista; puxou a mim. E então, Theo, o que acha desse negócio todo?
— Vocês já devem ter chamado a polícia, não chamaram? — ele perguntou a Michelle.
Ela parecia exasperada.
— Sim, claro que chamei. Ben Nelson é o chefe de polícia de St. Claire e ele mesmo fez o boletim de ocorrência. Está investigando e, como meu pai, também acha que foi um bando de moleques procurando por drogas. Bem, espero que espalhem bem por aí que não tem nada do gênero na clínica e que esse seja apenas um incidente isolado.
— Não sei se posso ajudar num caso assim...
— Ora, você trabalha para o governo e até carrega um revólver — Jake discordou. — Imagino que aqueles caras da Justiça não lhe colocariam um revólver na mão a não ser que tivessem treinado você para isso.
— Ora, papai, até parece que o senhor está querendo que ele saia atirando em alguém.
— O que estou dizendo é que ele é especialista. Ben Nelson é um bom chefe de polícia. Temos sorte de ter ele por aqui — Jake comentou. — Só que duas cabeças pensam melhor do que uma. Não é verdade, Theo?
— Duvido que o chefe de polícia vá querer que eu me intrometa em sua investigação.
— Você não se intrometeria e acho que ele até gostaria de sua ajuda.
— Pelo amor de Deus, papai. Foi só uma molecagem. Ben logo vai encontrar a garotada que fez isso. Precisa lhe dar um tempo.
— Mike, meu bem — Jake pediu. — Por que não vai pegar um copo de leite para mim lá dentro, querida?
No instante que ela saiu e não podia ouvi-los, Jake virou-se para Theo, aproximou-se e cochichou:
— O orgulho ainda vai acabar fazendo muito mal para minha filha. É tão teimosa e independente que acha que pode tomar as rédeas do mundo nas mãos, mas já chega para ela o fato de ser médica. Pode até ter sido só molecagem. Mas também pode não ter sido. Já que vai passar uns dias conosco sem fazer nada, acho que podia dar uma olhadinha nessa situação. Além do mais, ela já lhe salvou a vida — você mesmo reconheceu — e pode proteger minha filha um pouco enquanto estiver por aqui — olhou por cima do ombro antes de prosseguir. — Acho até que seria uma boa idéia você ficar na casa dela — como Michelle voltava da cozinha, acrescentou depressa. — Não deixe ela saber de nada disso que eu lhe disse.
Michelle chegou e, enquanto ela lhe entregava o copo de leite, Jake disse com bastante ênfase, para que os dois pudessem ouvir:
— Sim, senhor. Seria muito bom Ben ter uma segunda opinião. Eu já disse o que achava e vocês não vão mais me ouvir tocar no assunto.
— Por quanto tempo? — Michelle riu.
— Não provoque seu pai. Eu só achei que Theo poderia querer dar uma mãozinha.
— Gostaria de dar uma olhada na clínica — Theo ofereceu-se.
— Ótimo. Mike pode levar você lá agora e à noite você pode ficar na minha casa... ou na de Mike — Jake disse, dirigindo um olhar conspiratório para Theo. — Tanto ela quanto eu temos quartos para hóspedes. Não quero nem ouvir falar de você se hospedar em algum hotelzinho vagabundo por aí. Já que será meu parceiro na pescaria, também quero que seja meu hóspede e pode comer de graça aqui no Cisne.
— Não, não, obrigado.
Theo disse isso tão depressa, que Michelle riu.
— Ih, papai, acho que ele não gostou do seu gumbo.
Ela voltou a sorrir para ele daquele jeito. Aquele sorriso incrível. Em que balaio de gatos estaria se enfiando? Essa viagem para pescar estava ficando complicada.
— Quase esqueci — ele anunciou. — O Dr. Cooper mandou outra caixa de suprimentos médicos para você. Está no porta-malas do carro.
— Puxa, como ele foi gentil.
— O que eu acho é que ele está arrastando a asa para minha filha, isso sim.
— Papai, ele é um homem casado!
— Ele quer convencer você a ir trabalhar com ele, a se mudar para a cidade grande. Era disso que eu estava falando.
Uma batida na porta interrompeu a conversa. Todos voltaram-se para a porta, agora um tanto mais aberta, onde aparecia a cabeça de um adolescente. O menino era enorme. Tinha o cabelo cortado rente e parecia pesar mais de cem quilos.
— Seu Jake? — a voz desafinou quando ele chamou o pai de Michelle. — Já que o bar ainda não está oficialmente aberto, será que eu posso entrar um pouco?
Jake reconheceu o garoto. Seu nome era Elliot, e era o mais velho da escadinha de Daryl Waterson. Daryl e Cherry tinham oito meninos robustos, todos saudáveis e em forma, mas a família estava em dificuldades financeiras desde um infeliz acidente com uma cortadeira no moinho. Os meninos mais velhos faziam bicos e trabalhos temporários para ajudar a alimentar a família, até que Daryl conseguisse recuperar-se.
— Elliot, você conhece minhas regras. Nenhum menor de idade põe o pé aqui dentro do Cisne em qualquer hora do dia ou da noite. Você não quer que eu perca minha licença para vender bebida alcoólica, quer?
— Claro que não, Seu Jake, eu não.
— Está procurando trabalho?
— Não, senhor. Consegui um trabalho bom lá em St. Claire, em uma empresa de embalagem, para carregar e descarregar caixas nos fins de semana. A gente só estava imaginando quanto tempo...
— Quem, exatamente, é essa "gente"? — Jake perguntou.
— Ah, uns colegas aí.
— Todos menores de idade, também?
— São, sim, Seu Jake. Acho que todos são e as meninas também, mas é que eles...
— Feche a porta quando sair, filho. Está deixando as moscas entrarem. Mande um abraço meu a toda sua família e diga ao Daryl que vou lá no domingo para um dedo de prosa com ele.
Elliot parecia confuso e insistiu:
— Obrigado, Seu Jake, mas é que...
— Pode ir andando, filho.
— Papai, o senhor não acha que pelo menos deveria ouvir sobre o que eles querem conversar com o senhor? — Michelle interveio.
Theo foi se encaminhando para a porta.
— Talvez um deles saiba alguma coisa sobre o incidente em sua clínica — disse. — Vamos lá conversar com eles.
— É, talvez eu tenha me apressado demais — Jake admitiu. — Alguém está doente ou machucado, Elliot? Mike, talvez fosse melhor você ir dar uma olhada.
Elliot sacudiu a cabeça freneticamente.
— Não, não é nada disso — ele contrapôs. — Quero dizer, ninguém está doente, nem nada. — Virando-se, inclinou-se para fora da porta e gritou: — Ei, gente! Ele usa revólver! Isso não é demais?
O adolescente voltou para dentro, bem quando Michelle se aproximava. Olhou bem para as pernas dela, depois desviou o olhar.
— Não, dona... Isto é, não Dra. Mike, ninguém está precisando da senhora agora. A gente bem que gosta de olhar para a senhora... não é isso. Só quero dizer que ninguém está doente nem nada. De verdade.
Elliot ia ficando cada vez mais vermelho. Conseguir falar com coerência na presença de uma mulher tão bonita era algo impossível para o pobre garoto. Theo teve pena dele.
— Sabe de alguma coisa sobre o ataque à clínica? — ela perguntou.
— Eu não, doutora. E olha que eu perguntei bastante, como seu pai disse para o meu pai dizer para eu fazer. Ninguém sabe de nada, e isso é bem estranho, porque normalmente, quando alguém sabe de uma coisa assim, gosta de ficar falando para todo o mundo. Sabe o que eu quero dizer? E ninguém está falando de nada. Ninguém do pessoal com que falei sabia de nada. Juro, doutora.
— Então, por que veio aqui, Elliot?
O menino não conseguia deixar de olhar para Michelle, mas conseguiu apontar para Theo.
— Sabe o que é... é que a gente estava querendo saber... bem, é que, se ele não se importar... bom, o treinador Buchanan podia vir lá para fora e conhecer o pessoal do time.
Michelle achou que não tinha ouvido direito.
— O que foi que disse?
— Eu disse que... o treinador Buchanan bem que podia ir lá fora para conhecer o time.
— Treinador Buchanan? — ela perguntou, piscando depressa. Theo ficou sem ter o que dizer. Onde Elliot poderia ter arranjado a idéia de que... Depois fez a conexão e começou a rir.
— Encontrei esse garoto no posto...
Elliot interrompeu a explicação ao gritar lá para fora:
— O treinador já vai sair. Todo mundo preparado? Jake cutucou as costas de Theo com o cotovelo.
— É melhor ir lá para fora, filho, e ir ver o motivo para essa bagunça toda.
— Não passa de um mal entendido — ele disse, quando Michelle foi indo para a porta.
Ele seguiu-a e até tentou explicar, mas no minuto que pôs o pé para fora da porta, começou a gritaria da torcida organizada. Ele olhou em volta, cheio de espanto. O estacionamento estava lotado de carros, picapes e adolescentes, pelo menos uns quarenta deles, e todos, sem exceção, estavam gritando e assoviando.
Quatro garotas esbeltas e louras adiantaram-se, falando em uníssono. Todas usavam as mesmas roupas: shorts brancos e camisetas vermelhas. Uma delas levava um grande pompom vermelho e branco e liderava as outras na torcida.
— Eu quero um B — ela comandou.
Foi recompensada com um grito B! E assim foi com U, depois K, depois A, depois um N, mais um A e um N.
— E o que se escreve assim?
— Bukanan! — a garotada explodiu.
— Essa é boa! — Theo comentou.
Michelle quase rachou de tanto rir. Theo levantou as mãos, tentando controlar a massa.
— Eu não sou seu treinador! — ele gritou. — Escutem aqui. É tudo um mal entendido. Esse garoto...
Não houve jeito. Ninguém prestava atenção a seus protestos. Os adolescentes animados e felizes correram para ele, gritando todos ao mesmo tempo.
Como aquela massa havia se descontrolado? Sentiu que Jake pôs a mão em seu ombro e voltou-se para ele. O velho abriu um enorme sorriso de satisfação.
— Seja bem-vindo a Bowen, filho.


Capítulo 13

 

Ele bem que tentou desfazer o mal-entendido, mas os meninos, claramente portadores de muita testosterona, não deixaram Theo emitir nem um palavra, cercando-o, cada um tentando gritar mais alto do que o outro. Queriam contar ao treinador sobre seus talentos especiais e falar sobre a posição em que pretendiam jogar. Um rapaz, a quem chamavam de Alce, foi abrindo caminho com os cotovelos até a frente e disse a Theo que achava que seria um ótimo zagueiro. Pelo tamanho do menino, Theo achou que conseguiria segurar todo um time.
Continuava tentando acalmá-los para poder explicar, mas estavam todos agitados demais para ouvir. No fundo, as garotas da torcida faziam evoluções pelo estacionamento.
Michelle não ajudou muita coisa. Ela não conseguia parar de rir. Um garoto, então, houve por bem querer ver de perto o revólver de Theo. A reação de Theo foi rápida e instintiva. Ele agarrou o garoto pelo pulso e empurrou-o. O garoto caiu de joelhos.
— Bons reflexos, treinador! — Alce gritou, balançando a cabeça afirmativamente.
— Vamos lá, molecada! — Jake gritou. — Podem ir abrindo caminho. Deixem o treinador e Mike chegarem até o carro. Vamos saindo da frente, fora do caminho. Eles precisam chegar à clínica de Mike para o treinador começar a investigar.
Chamar Theo de treinador só piorava as coisas e, pelo sorriso estampado no rosto de Jake, Theo compreendeu que estava fazendo aquilo de propósito.
Michelle pegou Theo pela mão e o conduziu por entre o grupo, enquanto Theo continuava a tentar fazer com que os garotos o ouvissem. O par foi abrindo caminho por entre os carros e picapes, até onde ele havia estacionado o carro alugado. Ele abriu a porta do passageiro para Michelle e foi imediatamente rodeado, mais uma vez, pela turba de adolescentes. Theo era bastante alto, mas alguns meninos conseguiam passar dele. Ele não conseguia deixar de pensar que, com um treinamento adequado e motivação, poderiam se tornar um ótimo time.
Ele desistiu de tentar explicar e simplesmente acenou com a cabeça enquanto dirigia-se para o lado do motorista e entrava no carro.
— Sim, isso mesmo, centro-avante — ele disse, fechando a porta e apertando o botão da trava.
— Como é? — ela perguntou.
— Aquele garoto com o brinco quer jogar no centro.
Ela mordeu o lábio inferior para não voltar a rir, mas quando estavam saindo do estacionamento, Theo foi alvo de outro grito de guerra e Michelle não se agüentou.
— Eu quero um B!
— Sabe do que esses meninos estão precisando? — ele perguntou.
— Hum, deixe ver se adivinho... Um treinador?
— Não, estão precisando urgentemente de alguém que os ensine a soletrar direito o meu nome.
— Eles estão muito contentes com a sua presença aqui — ela comentou, enxugando as lágrimas de tanto riso, e suspirou.
— Olhe aqui — ele disse. — Só parei para comprar gasolina, e o atendente me confundiu com o tal treinador.
— Eles ficarão muito desapontados se você os decepcionar agora. Minha Nossa! Fazia muito tempo que eu não ria tanto assim.
— Foi um prazer ajudar — ele disse secamente. — Quero que me responda uma coisa. Por que ninguém nesta cidade parece querer me ouvir?
— Estão ocupados demais tentando impressioná-lo. Vai deixar Andy Ferrand ser atacante este ano?
— Muito engraçadinha.
— Ele tem um braço bom.
Theo freou o carro no cruzamento e virou-se para ela:
— Eu vim aqui para pescar.
Depois de alguns segundos, Michelle percebeu que o carro não estava mais se movendo. Obviamente havia parado para que ela lhe desse instruções e lá estava ela, como uma pamonha, olhando para ele.
— Pegue a esquerda aqui — ela instruiu. — Minha clínica fica a alguns quarteirões nesta rua. Se seguir adiante, vai dar na minha casa. Fica a mais ou menos um quarteirão depois da curva. É uma casa pequena, de dois quartos, na verdade. Nada de especial. Estou falando demais, não é? Estranho. — ela observou — Acho que você me deixa nervosa.
— Por que isso é tão estranho?
— Bem, eu é que deveria deixar você nervoso. Afinal...
— Afinal o quê?
— Já vi você nu.
— E, com certeza, ficou bastante impressionada, naturalmente.
— Foi seu apêndice que me impressionou.
— Faço tudo o que posso para conseguir que uma mulher bonita repare em mim! — ele disse, fazendo a curva para a esquerda.
— Aquela ali é a minha clínica.
Seria difícil não reparar. A clínica era a única construção naquele pedaço de rua de cascalho. Theo parou no espaço ao lado do prédio, debaixo de um grande plátano. Os galhos da árvore curvavam-se sobre a clínica. Aquilo ainda poderia causar algum problema.
— Precisa mandar aparar esses galhos para você. Uma tempestade de raio pode fazer você perder seu telhado.
— Eu sei. Está na minha lista de coisas por fazer.
A clínica era uma construção de pedra, pequena, retangular e que havia sido recentemente pintada de branco. A porta da frente era preta e, acima do trinco, ao centro, havia uma pequena placa com o nome de Michelle em letras douradas. Havia dois vasos de gerânio virados sobre o jardim. Os vasos haviam sido quebrados.
Michelle levou-o até a porta de trás da clínica. Havia sacos de lixo estourados e a lata havia sido virada e amassada. O pátio de trás mais parecia um depósito de lixo.
— Eu tinha acabado de pintar as portas e veja só o que fizeram. Na porta de esmalte branco, a palavra prostituta tinha sido escrita corretamente com spray, Theo reparou.
Ela apontou para uma lata de spray jogada a um canto do pátio.
— Pegaram a tinta na despensa.
Ele voltou a olhar para o pátio, depois afastou-se para que Michelle colocasse a chave na porta para deixá-lo entrar. Ela passou rente a ele para o vestíbulo traseiro e acendeu as luzes.
Havia três salas de exame e todas pareciam estar intactas. Fora as paredes pintadas com spray, as mesas de exame e os armários haviam sido deixados de lado. As portas estavam abertas e o conteúdo dos frascos havia sido virado, mas não parecia que muita coisa havia acontecido.
O escritório, no entanto, era outra história. Theo deixou escapar um assovio quando o viu. Parecia que um ciclone tinha passado por ali. A escrivaninha havia sido virada de lado, as gavetas arrancadas e destruídas, e havia papel para todos os lados.
— Eu estava falando sério quando disse que não tive tempo para arrumar nada ainda — ela disse. — Só dei uma olhada e chamei Ben.
Theo olhava para um velho sofá do outro lado da sala. Um dos vândalos o havia cortado com uma lâmina. O tecido havia sido retalhado e o estofamento puxado para fora. Parecia que alguém havia ficado enfurecido naquela sala.
— Olhe só o que esses miseráveis fizeram com minha porta. Eu sempre deixo o escritório fechado, mas nunca tranco a porta. Bastou girar a maçaneta. Passaram algum tempo aqui para fazer toda essa baderna.
— Talvez simplesmente tivessem se dado conta de que você não tinha droga nenhuma por aqui.
— E por isso ficaram furiosos?
— É bem possível.
Ela foi para o saguão de entrada.
— Espere até ver a frente. Está ainda pior.
Theo continuou em pé na porta do escritório, examinando a baderna.
— O que está fazendo?
— Estou analisando o padrão.
— Que padrão?
Ele sacudiu a cabeça.
— Por que não deixou seu pai e seu irmão começarem a arrumar o lugar? Jake contou-me que se ofereceu, mas que você não deixou que ele tocasse em nada. Por que não?
— Porque vou precisar reorganizar os arquivos primeiro, ou estar aqui quando for reorganizado para poder supervisionar. A informação sobre os pacientes é confidencial, e preciso ter certeza que tudo vai estar adequadamente colocado, nas pastas certas.
— Achei que tinha aberto a clínica há pouco tempo.
— E é verdade.
— Então como tem tantas fichas?
— São do Dr. Robinson. Ele foi embora de Bowen há dois meses e deixou todas as fichas de pacientes para mim. Houve um fato que só soube depois de ele ter ido. Sabia que ele odiava Bowen, mas na verdade deixou os pacientes na mão. Disse a meu pai que a vida era muito curta para passar trabalhando, no que ele disse ao meu pai, num "buraco que Deus esqueceu".
— Com essa postura, os pacientes deveriam adorá-lo — ele ironizou.
— Pois é, não gostavam muito dele e só lhe pediam ajuda quando estavam desesperados. Sabiam da opinião dele sobre a cidade... e sobre o povo, ou seja, nós. Está pronto para ver a parte da frente?
— Sim, vamos.
Ele seguiu-a pelo vestíbulo e entrou na área das enfermeiras, logo atrás da área de recepção. A divisória de vidro que dividia o ambiente estava esmigalhada e os estilhaços de vidro espalhavam-se pelo chão. Havia uma janela quebrada junto aos arquivos. Theo cruzou a sala com cuidado, para olhar mais de perto. Depois olhou para o chão abaixo dela e balançou a cabeça.
— Cuidado onde pisa — ela advertiu.
Apesar de não parecer possível, a área das enfermeiras estava ainda pior. O balcão havia sido arrancado da parede e estava jogado ao chão, em uma mistura de papéis e pastas rasgados. O tecido da área de recepção também havia sido cortado. Estava estragado demais para poder ser consertado.
Theo olhava da sala de recepção para a área das enfermeiras, quando Michelle interrompeu sua concentração.
— Ainda bem que estou começando minhas férias!
— Levará mais de duas semanas para pôr tudo em ordem outra vez.
— Duas amigas minhas vêm de Nova Orleans — ela contestou. — Vamos levar menos de um dia para colocar todas as fichas em ordem. As duas são enfermeiras e sabem o que vai onde. Assim que a papelada estiver guardada, John Paul e papai podem me ajudar a pintar. Tenho bastante tempo. — ela acrescentou — Só não tenho dinheiro para repor a mobília. Pelo menos, não por enquanto.
Ela levantou uma cadeira e colocou-a junto à parede, depois abaixou-se para recolocar um chumaço de algodão para dentro.
— No momento, vou ter de me virar com fita colante. Vai ficar horrível.
— Será um prazer emprestar-lhe dinheiro, se quiser.
Foi a pior coisa que poderia ter dito. Ela levantou a cabeça como um foguete e a expressão de seu rosto mostrava que havia sido insultada. Nem deu a ele tempo para tentar reparar seu erro e deixar a situação sob controle.
— Não quero seu dinheiro. Aqui em Bowen nós tomamos conta de nós mesmos. Não esperamos que ninguém de fora venha resolver nossa situação.
— Está deixando o orgulho falar mais alto. Eu só estava tentando...
— Ajudar uma pobre mulher em apuros? Olhe, não quero parecer grosseira, mas você é de fora e não sabe o quanto é importante para nós mantermos esta clínica por nós mesmos.
— Você salvou minha vida e eu só queria... — ele deteve-se diante do olhar dela. — Você tem razão, eu não entendo nada, mas não vou pressionar você. Vou até pedir desculpas. Não queria ofender.
A expressão do rosto dela suavizou-se.
— Olhe, sei que tinha boas intenções, mas isso não é problema seu. É meu e tenho de lidar com isso.
Ele levantou as mãos, rendendo-se e disse:
— Certo. Você é quem vai resolver. Mas conte-me uma coisa. O que o chefe de polícia disse disto? Ele já tem idéia de quem possa ter sido?
— Ainda não — ela respondeu. — Mesmo que ele encontre a meninada que fez isso, continuarei na mesma. Ninguém da redondeza tem dinheiro. Você deve ter visto que não há nem uma mansão, nem uma casa com luxo em todo o seu caminho. A maioria das famílias tem de manter dois empregos para garantir o sustento mínimo.
Ele apontou a sala de recepção com o queixo.
— Isso aí está muito estragado.
— É um problema, mas vou me recuperar.
— Você não tem seguro?
— Tenho. Vai aliviar um pouco, mas não vai cobrir tudo. Tive de gastar uma fortuna com o seguro de erros médicos, e não sobrou muita coisa. Para economizar, não fiz uma seguro muito abrangente das instalações — ela disse e, sem nem respirar, mudou de assunto. — Precisa de ajuda para carregar a caixa?
— Não, obrigado.
— Pode pôr na entrada lá atrás e ir andando. Acho que os peixes não querem saber de mais nada a esta hora, mas poderia se acomodar lá na casa do papai.
Ela estava tentando se livrar dele, e não estava sendo nem um pouco sutil quanto a isso. Ela só não sabia contra o que estava lutando.
Theo era tão teimoso quanto ela e já havia decidido a não ir a lugar algum.
— Acho que é melhor eu ficar com você... se não se importar.
— Por quê?
— Você deve cozinhar melhor.
— Nem tenho tido tempo de cozinhar, ultimamente.
— Está vendo? Já está melhor. Vamos lá. Vou trazer a caixa para dentro depois podemos ir de carro para sua casa. Quero ver sua casa, tirar as malas do carro e livrar-me deste terno.
Ele tentou sair, mas ela bloqueou-lhe o caminho.
— Por quê?
— Por que o quê?
Estavam diante um do outro, quase colados. Ele era bem mais alto do que ela, mas ela não pareceu nem um pouco intimidada.
— Por que quer ficar na minha casa? A casa do papai tem mais lugar.
— Pode ser, mas você é mais bonita, e ele me ofereceu a alternativa. Podia ser a sua casa ou a dele. Escolhi a sua. Sabe como é, hospitalidade de lugar pequeno e tal... seria falta de educação recusar um lugar para mim.
— Deve estar falando da hospitalidade aqui do sul, mas ainda não me disse...
Ele não a deixou terminar.
— Deixe eu me hospedar em sua casa, tomar alguma coisa gelada e depois lhe conto o que acho desta baderna toda.
Theo foi até o carro, pegou a caixa do porta-malas e a colocou no chão, perto da porta dos fundos, como ela pediu, depois esperou que ela apagasse todas as luzes.
— Eu deveria ficar aqui e começar a arrumar — ela disse, um tanto desanimada.
— Quando vêm suas amigas?
— Depois de amanhã.
— Certo. O que acha de deixar um amigo meu dar uma olhada no lugar antes?
— Por quê?
— Para me dizer se estou certo ou errado. Tire a noite de hoje de folga, Michelle. Depois vou me juntar a seu pai e a seu irmão para ajudar. Não vamos demorar nada para deixar tudo em ordem.
— Mas você veio para cá para pescar!
— Sim, e ainda vou pescar. Podemos ir beber alguma coisa gelada agora?
Ela assentiu, fechou a porta atrás deles e foi para o carro.
— Cooper disse que você parecia assustada ao telefone.
— Sim, eu fiquei assustada... muito assustada. Parecia me assustar até com a sombra — ela havia parado de sorrir. — Acho que minha imaginação está aprontando comigo.
— Como assim?
— Achei que alguém entrou em minha casa ontem à noite... enquanto eu estava dormindo. Ouvi um barulho, levantei e percorri a casa toda, mas não vi ninguém se escondendo atrás das portas, nem embaixo da minha cama. Poderia até ter sido o John Paul. Ele aparece nas horas mais absurdas.
— E não era seu irmão?
— Não tenho certeza. Ele pode ter ido embora antes de eu chamar por ele. Deve ter sido um sonho ruim, ou a casa estalando. Até achei que alguém poderia ter mexido em minha escrivaninha, que fica na biblioteca, ao lado da sala de estar — ela explicou.
— Por que achou isso?
— O telefone sempre fica do lado direito, mais perto da ponta... é uma espécie de obsessão minha deixar o centro da mesa livre para poder trabalhar. Mas quando desci hoje de manhã, a primeira coisa que reparei foi que o telefone estava fora do lugar.
— Mais alguma coisa?
— Tive a incômoda sensação, ontem, de que alguém estava me seguindo — ela disse e balançou a cabeça, como se fosse uma idéia absurda. — Será que estou ficando perdidamente paranóica?


Capítulo 14


Theo não disse que ela estava paranóica, nem riu do que ela disse. Infelizmente, sua expressão a caminho da casa dela não deixava transparecer nada que pudesse dar uma pista do que se passava em sua mente.
— É aquela ali? — ele perguntou, apontando com o queixo para a casa na curva da rua.
— É, sim — ela disse, temporariamente distraída. — A minha é a única casa do quarteirão.
Ele abriu um sorriso largo.
— Sua casa é na beira de uma rua de terra, não há quarteirão algum por aqui.
— Pois saiba que, pelos padrões de Bowen, isto aqui é um quarteirão.
O lugar era incrivelmente bonito. Havia pelo menos uma dúzia de árvores rodeando o terreno dela. A casa tinha uma varanda com colunas. Havia água cerca de cem metros adiante. Ao aproximar-se da entrada, ele viu outras árvores retorcidas levantando-se do bayou.
— Há muitas cobras por aqui?
— Algumas.
— Na casa?
— Não, lá não.
Ele respirou, aliviado.
— Ainda bem. Odeio cobras.
— É, não conheço muita gente que goste delas mesmo.
Ele estacionou e seguiu-a até os degraus da entrada. Michelle tinha uma queda por flores, como ele pôde notar. Havia flores diante das janelas dos dois lados da porta e mais ainda por todo o contorno da varanda, em grandes vasos de barro, com hera caindo pelos lados.
Ela abriu a porta da frente e entrou primeiro. Theo colocou a mala na entrada, junto a um antigo baú e olhou em volta. Pelo que pôde notar, a casa havia sido cuidadosamente restaurada. O chão de tábuas de madeira larga tinham um brilho suave e as paredes haviam recebido uma pintura amarelo manteiga. Theo sentiu o cheiro de verniz novo. Encostou a vara de pescar contra uma parede e fechou a porta atrás de si. Quando trancou, percebeu como a fechadura era frágil. Voltou a abrir a porta, abaixou-se e examinou a fechadura de perto, procurando sinais de intromissão. Não havia arranhões visíveis, mas ela precisaria trocá-la logo.
Ele passou para o vestíbulo. À esquerda, havia uma pequena sala de jantar, mobiliada com uma mesa escura de mogno, cadeiras, além de um belo aparador entalhado, encostado na parede oposta à janela. A vida era dada por um tapete vermelho vivo, com estampas amarelas e negras.
À direita da entrada ficava a sala de estar. Um macio sofá bege ficava de frente para duas poltronas, uma de cada lado da lareira de pedra. Um baú sobre um outro tapete colorido fazia as vezes de mesa de centro, onde havia vários livros. Ao fundo havia portas duplas, tipo venezianas e, por trás delas, ele viu a escrivaninha.
— A casa, na verdade, é um grande quadrado — ela disse. — Pode-se andar da sala de jantar para a cozinha, cruzar o vestíbulo do fundo para o meu escritório, depois passar por aquelas portas duplas para a sala de estar. Não há beco sem saída nesta casa, e é disso que eu gosto.
— Onde ficam os quartos?
— A escada é lá atrás, junto da lavanderia, e tenho dois quartos lá em cima. São bem grandes, mas o chão e as paredes ainda precisam de um tratamento. Estou cuidando de uma peça de cada vez. Teremos de usar o único banheiro que há lá em cima, se não se importa — ela comunicou. — Quando eu acabar de recuperar a casa, terei dois banheiros pequenos.
A casa de Michelle era mobiliada com simplicidade, mas todas as peças eram de bom gosto e nada era demais. Realmente refletia a personalidade da dona, Theo concluiu.
— Esta mesa é uma peça Maitland-Smith? — ele perguntou, entrando na sala de jantar para observar melhor a mesa.
— Você conhece até os nomes dos fabricantes de móveis?
— Alguns — ele respondeu. — É que aprecio belas peças. Esta aqui é de lá?
— Não, não é uma Maitland-Smith. É uma mesa John Paul.
Ele não conseguiu fazer a ligação do nome durante alguns segundos; depois percebeu que ela estava dizendo que o irmão tinha feito a mobília.
— Não acredito que seu irmão tenha feito isso.
— Foi ele mesmo.
— Mas, Michelle, isto aqui é uma obra de arte.
Ele passou a mão delicadamente sobre o tampo da mesa, como se fosse o rosto de um bebê. Michelle observou-o, orgulhosa por ele haver apreciado o trabalho de seu irmão.
A madeira escura estava lisa como o mármore de uma estátua.
— Incrível — Theo murmurou. — Essas linhas são maravilhosas. Ele abaixou-se para olhar por baixo. As pernas eram entalhadas e a estrutura era muito bem-feita. Perfeita. Cada detalhe, assim como o todo, era perfeito.
— Quem ensinou seu irmão a trabalhar bem assim?
— Ele aprendeu sozinho.
— Ah, não acredito. Ela riu.
— Meu irmão é perfeccionista em algumas coisas. Tem muito talento, não acha?
Theo ainda não havia acabado de observar o conjunto. Ficou em pé e pegou uma das cadeiras. Virou-a de pernas para o ar e deixou escapar um assovio.
— Não se vê nem um prego ou parafuso em lugar algum. Ai, ai, ai, como eu gostaria de conseguir trabalhar assim. Se for bem conservada, essa cadeira pode atravessar séculos!
— Você também faz carpintaria?
Ela não sabia por que, mas a idéia de Theo fazer qualquer trabalho manual a surpreendia. Parecia não se encaixar ao que ela conhecia dele. Olhando para ela, percebeu sua surpresa.
— O que foi?
— Você não me parece ser do tipo que trabalha com as mãos.
— Ah, é? E com que tipo acha que eu pareço? Ela deu de ombros e respondeu:
— Ah, sei lá. Alguém de Wall Street... com ternos feitos sob medida... muitos empregados em volta. Sabe como é, um menino da cidade.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Errou. Algumas das melhores coisas que sei fazer são com as mãos — ele disse, lançando-lhe um sorriso. — Quer referências?
Ela não pôde deixar de perceber a insinuação sensual das palavras.
— Precisarei trancar a porta do meu quarto esta noite?
A expressão do rosto dele imediatamente tornou-se séria.
— Não, eu jamais seria capaz de invadir sua privacidade. Além do mais...
— O que é?
— Se eu souber fazer o jogo certo — ele disse, piscando para ela. — É você quem vai chegar até mim.
— O senhor é assim tão ousado com todas as mulheres quando as conhece, Senhor Buchanan?
Ele riu, balançando a cabeça.
— Não sei o que é, Michelle. Você parece despertar os diabos dentro de mim.
Ela revirou os olhos, exasperada.
— É verdade — ele disse. — Realmente gosto de trabalhar com as mãos. Gosto de construir coisas... ou pelo menos gostava. Tenho de admitir. Nunca cheguei a ficar bom nisso.
— O que já fez?
— Meu último projeto foi uma casa de passarinho de dois andares. Eu a fiz quatro anos atrás, mas foi um fracasso. Os passarinhos não queriam nem chegar perto. Bem, Michelle, estou morto de fome. Acho que levarei você para jantar.
— Prefiro ficar em casa esta noite — ela disse. — Se não se importar, é claro. Afinal, é meu hóspede.
— E isso lhe agrada ou não?
— Na verdade, é até uma honra ter um advogado do Ministério da Justiça sob meu teto. Talvez mantenha os lobos à distância.
— Mas você vai trancar a porta de seu quarto, mesmo assim?
Era estranho ter de enfrentar um homem tão bonito. E engraçado, Michelle pensou. Realmente, não havia sobrado tempo para nada parecido enquanto estava na faculdade de medicina, nem na residência médica, onde só conseguia pensar em poder tirar uma soneca. Namorar nem fazia parte de seu vocabulário.
— A verdade é que nem tenho tranca em minha porta — ela confessou. — Venha comigo. Vou mostrar onde vai dormir. Pode tomar seu banho enquanto dou uma olhada na geladeira.
Theo pegou sua mala, seguiu-a pela sala de jantar e passou para a cozinha. Era uma cozinha de interior, clara e alegre, duas vezes maior do que a sala de jantar. Em um canto, havia uma mesa de carvalho e quatro cadeiras pintadas. Havia três janelas pequenas sobre a antiga pia esmaltada, que dava para a varanda e para a área de trás. O quintal dela era comprido e estreito e, à distância, ele divisou um pequeno ancoradouro sobre as águas turvas mais adiante. Um barco de alumínio estava amarrado a um dos pilares.
— Você pesca daquele ancoradouro?
— Às vezes — ela respondeu. — Mas prefiro o ancoradouro do meu pai. Pego mais peixes lá.
Havia três portas no vestíbulo de trás. Uma levava para a varanda, uma para a lavanderia e outra para a garagem..
— O banheiro fica no topo da escada. Seu quarto é à direita.. Theo não subiu logo em seguida. Colocou a mala na escada,
verificou a fechadura da porta de trás e balançou a cabeça. Era tão fraca que até um garoto de dez anos conseguiria abri-la. Depois verificou as janelas do andar térreo. Quando voltou à cozinha, disse:
— Qualquer um poderia ter entrado por qualquer uma de suas janelas. Nem uma delas estava trancada.
— Eu sei — ela admitiu. — Vou passar a trancar de agora em diante.
— Não estou tentando amedrontar você — ele argumentou. — Depois do que fizeram na clínica...
— Não quer esperar até depois de jantarmos? Tive um dia difícil. Ela virou-se e foi até a geladeira. Ouviu os degraus rangerem
enquanto Theo subia. A velha cama de ferro no quarto de hóspedes tinha um colchão todo irregular, e ela tinha certeza de que os pés dele ficariam para fora. Também sabia que ele não diria uma palavra para reclamar, pois era um cavalheiro.
Adorava ouvir seu sotaque de Boston. Este pensamento ocorreu-lhe quando ela estava colocando os legumes sobre o balcão e preferiu não pensar mais nisso. Sim, Boston. Era bem longe. Michelle suspirou. Theo viera para pescar e decidira retribuir um favor, concluiu. Ele a ajudaria a arrumar a confusão que havia ocorrido na clínica e depois voltaria para Boston.
— E ponto final.
— O que disse?
Ela se encolheu, vermelha
— Estava pensando alto — ela disfarçou.
Ele estava vestido com uma calça jeans velha e uma camiseta cinza que já tivera dias melhores. Os tênis, antes brancos, também estavam cinzentos e havia um buraco na ponta de um dos pés. Ela achou que ele estava terrivelmente sensual, mesmo assim.
— De que está achando graça? — ele quis saber.
— De você — ela respondeu. — Acho que esperava ver você com uma calça jeans com vinco, ou coisa parecida. Estou brincando — acrescentou depressa, vendo a testa dele franzir. — Esta roupa combina com você... mas o revólver não.
— Ficarei feliz na hora em que puder me ver livre dele. Não gosto de armas, mas as autoridades lá em Boston disseram que tenho de me proteger até as coisas esfriarem depois do caso que resolvi.
— Já teve de atirar em alguém?
— Não, mas não quero pagar para ver, neste caso — ele disse, com um sorriso maroto. — Posso pegar esta maçã?
Ele deu uma boa dentada antes mesmo de ela lhe dar permissão.
— Estou morto de fome. O que está preparando?
— Peixe grelhado com legumes e arroz. Tudo bem?
— Acho que sim. Parece saudável demais para o meu gosto. Sabe, gosto de comida de lanchonete.
— Azar o seu. Aqui em minha casa só vai comer coisas saudáveis. — - Depois do jantar podemos nos sentar e conversar sobre o que vem acontecendo em sua vida.
— Espere aí. Do que está falando?
— Pode haver alguém nesta cidade querendo ferrar com você — logo ele emendou. — Sinto muito, eu deveria ter dito "que tem algo contra você".
— Já ouvi coisas piores. Eu mesma costumava dizer coisas horríveis — ela se vangloriou. — Quando eu era pequena, é claro. Aprendi todo o tipo de bobagem com meus irmãos. Papai disse que eu podia deixar um homem adulto vermelho com o que eu dizia, mas ele resolveu cortar o mal pela raiz.
— Como? Passando sabão na sua língua?
— Não, nada disso — ela disse, abrindo a torneira para lavar a cebolinha. — Ele simplesmente disse que cada vez que eu dizia um palavrão minha mãe chorava.
— Ele a fazia sentir culpa.
— Exatamente.
— Seu pai fala dela como se...
— Como se ela estivesse lá em casa, esperando por ele, eu sei — ela comentou.
— Como ela morreu?
— Ela teve um acidente vascular cerebral, um derrame poderoso, quando estava no trabalho de parto no meu nascimento. Nunca se recuperou e definhou até morrer.
O telefone tocou, interrompendo a conversa. Michelle enxugou as mãos em uma toalha e atendeu. Seu pai estava ligando do Cisne. Ela podia ouvir o barulho dos copos ao fundo.
Theo encostou-se no balcão e acabou de comer a maçã enquanto esperava Michelle dizer-lhe o que queria que ele fizesse para ajudar a acabar o jantar. Seu estômago já estava roncando antecipadamente, e ele olhou em volta, procurando alguma coisa para ir comendo. Ela não tinha nem uma bobagem para fazer uma boquinha. Como ele poderia tomar uma cerveja gelada sem um punhado de batatas fritas? Era quase um crime, na opinião dele.
— Você se importa — ele perguntou, apontando para os armários. Ela fez sinal para ele ir abrindo e ele imediatamente se pôs a
revirar as prateleiras em busca de mais alguma coisa para comer. Jake falava quase todo o tempo no telefone e, de vez em quando, Michelle tentava dizer alguma coisa.
— Mas papai... nós já estamos preparando... Sei, papai, entendo. Está bem. Vou já para lá... Por que Theo tem de ir comigo? Ora, papai, ele veio aqui para pescar... Não, eu não estava discutindo com o senhor. Sim, senhor... Está bem, ligo assim que voltar.
Ela riu e era um som tão alegre que Theo não pode deixar de sorrir, também. Ela continuou a falar:
— Não, papai, não acho que Theo vá querer comer seu gumbo de novo.
Depois de desligar o telefone, colocou o peixe de volta na geladeira.
— Desculpe-me, mas o jantar terá de esperar mais um pouco. Daryl Waterson está tendo problemas com a mão e papai disse a ele que eu iria até lá para dar uma olhada. Ele deve ter enfaixado com muita força, outra vez. Eu insisti para que você ficasse aqui descansando, ou adiantando o jantar para nós, mas meu carro ficou no Cisne e papai acha que você tem de ir comigo. Você se importa?
Já que ele não pretendia perder Michelle de vista até ter conversado sobre a situação dela, não se importou nem um pouco.
— Sem problema — ele disse. — Daryl é o pai daquele garotão? Aquele adolescente que apareceu lá no bar procurando por mim? Qual era mesmo o nome dele?
— Elliot — ela respondeu. — Sim, Daryl é o pai dele.
— Talvez a gente pudesse passar em uma lanchonete no caminho e comprar uma porção bem grande de fritas e um hambúrguer.
— Não fica com pena de suas artérias?
Foi a maneira como ela fez a pergunta que o fez rir. Ela parecia tão espantada!
— Estou morto de fome. O que acha?
— Ora, não temos esse tipo de lanchonete aqui em Bowen. Ele correu para cima para ir buscar a chave do carro, enquanto ela corria para o escritório para pegar sua maleta de exames. Theo chegou antes dela à varanda da frente e esperou.
— Pegou a chave da casa? — perguntou. Ela bateu no bolso.
— Está aqui.
— Tranquei a porta de trás. Você tinha deixado aberta — ele disse, como se a estivesse acusando de um crime.
— Às vezes esqueço de girar a chave. A gente não se incomoda muito em trancar as portas aqui em Bowen.
— Sua clínica ficou bem fechada?
— Ficou, sim.
— De agora em diante — ele disse, depois de conferir se ela havia mesmo trancado a porta — tudo tem de ficar trancado, certo?
— Está bem — ela concordou, colocando a maleta no banco de trás.
Theo estava manobrando o carro para sair, quando olhou para ela e perguntou:
— Acho que poderíamos dar uma parada para...
— Não.
— Mas você nem sabe o que eu quero.
— Claro que sei. Batatas fritas, hambúrguer bem gorduroso...
— Um pacote de salgadinhos — ele disse.
— É sódio demais.
Enquanto ela ia lhe dando instruções pelas ruas sem placas, ele resolveu discutir nutrição com ela.
— Você nunca relaxa?
— Sou uma médica, por isso a resposta deve ser não.
— Médicos não podem comer nada de bom?
— Não sabia que meu hóspede seria tão chorão. Papai também gosta de comida pesada. Podia se mudar para a casa dele.
Ela receava ser agressiva demais. Theo deu-lhe a brecha necessária para ela provar que não era reprimida nem puritana quando lhe perguntou:
— O que as pessoas fazem por aqui para se divertir?
— Ah, nem sei. Coisas bem simples... vão ao cinema, trocam histórias de pescarias enquanto bebem cerveja no Cisne, jantam juntos, quando cada um leva um prato, visitam os vizinhos para comparar a horta de tomates... sem deixar o esporte favorito, é claro... sexo.
— Como? — ele perguntou, achando que não tinha ouvido direito.
— Sexo — ela repetiu, sem graça. — As pessoas fazem sexo. Muito sexo.
Ele riu, divertido.
— Acho que vou gostar bastante deste lugar.


Capítulo 15


— A casa de Daryl fica ali no fim da rua — Michelle informou. Theo teria parado junto ao meio-fio, mas não havia um. Também teria estacionado na entrada do carro, mas também não existia e ele acabou estacionando em uma inclinação gramada, ao lado de uma velha caminhonete. O sobrado de madeira precisava urgentemente de reparos. Os degraus da entrada pareciam prontos a ceder com o peso do próximo que subisse.
A esposa de Daryl, Cherry, acompanhava a chegada deles por trás da porta de tela. Assim que saíram do carro, ela saiu para a varanda e acenou para eles.
— Que bom que veio, Dra. Mike. A mão do Daryl está deixando ele louco. Ele não gosta de se queixar, mas sei que está tendo muita dor.
Theo pegou a maleta de Michelle e seguiu-a. Ela o apresentou. Primeiro Cherry limpou as mãos no avental, depois apertou a mão dele. Era uma mulher simples, nem bonita nem feia, de rosto maltratado, que devia ter cerca de quarenta anos, pelos cálculos de Theo. Quando sorria, porém, exalava simpatia. O apelido de Cherry — cereja — com certeza era por causa de seu cabelo bem ruivo.
— Nosso filho mais velho, Elliot, já nos falou muito do senhor. Acho que nunca o vi tão animado! — Cherry revelou. — O senhor o impressionou muito. Mas vamos entrando, gente. Eu estava quase pondo o jantar na mesa. Ah, antes que eu esqueça, o Prof. Freeland disse que vai dar uma passadinha aqui. Ligou faz alguns minutos.
— Prof. Freeland? — Theo perguntou, pois o nome lhe era familiar, mas não se lembrava de quando o tinha ouvido.
— O professor de música da escola — Michelle informou. Cherry foi na frente, passando pela sala de estar até a copa-
cozinha. A pouca mobília que havia já estava bem gasta. A cozinha era pequena e parecia ainda menor por causa da grande mesa de carvalho e as dez cadeiras que havia em volta, uma diferente da outra.
Daryl esperava por eles. Estava sentado à cabeceira da mesa, dando banana para o bebê que estava sentado em um cadeirão junto a ele. O bebê parecia ter mais banana no rosto e nas mãos do que na boca. Assim que avistou a mãe, abriu o sorriso sem dentes. Depois viu Michelle e seu rosto fechou-se. O lábio inferior começou a tremer. Ela não se aproximou.
— Não vou lhe dar vacina hoje, Henry, prometo!
O bebê começou a chorar. Cherry acariciou-lhe a mão e acalmou-o, enchendo seu prato de cereais coloridos.
— Toda vez que o Henry me vê, dou-lhe uma injeção — Michelle contou. — Quando começar a sobrar dinheiro, contratarei uma enfermeira para aplicar as injeções. -
— Não ligue para o Henry. Logo ele vai entender que você não está aqui para incomodá-lo — Cherry disse.
Daryl levantou-se e preparou-se para apertar a mão de Theo quando Michelle os apresentou. A mão e o braço dele estavam enfaixados até o cotovelo.
— Por que o senhor não senta ao lado da Dra. Mike, ao lado daquela pilha de documentos? — Cherry sugeriu a Theo. — Enquanto isso, ela dá uma olhada na mão do Daryl.
Daryl não foi nada sutil ao empurrar a pilha para Theo.
— Big Daddy Jake achou que o senhor teria bastante interesse nesses meus documentos... afinal, o senhor é advogado, não é?
Theo sabia reconhecer uma armadilha ao chegar perto. Assentiu com a cabeça e sentou-se. Michelle também sabia o que estava acontecendo, mas tratou de ocupar-se da mão de Daryl.
Depois de verificar a cor dos dedos, perguntou:
— Está trocando a bandagem todos os dias?
— Estou — ele respondeu, sem tirar os olhos de Theo. — Cherry troca para mim.
— A gaze que nos deu ainda dá para mais uma semana — Cherry informou.
Ela também observava Theo atentamente e nervosamente retorcia o avental entre os dedos.
Theo não sabia ao certo o que esperavam dele. Michelle resolveu inteirá-lo do que estava se passando.
— Daryl trabalhava no engenho de açúcar dos irmãos Carson.
— Depois do acidente, eles me dispensaram. Me mandaram embora de vez, foi isso o que fizeram — Daryl explicou e coçou o queixo.
— O acidente ocorreu quando estava trabalhando? — Theo perguntou.
— Foi isso mesmo.
— Daryl trabalhou 22 anos nesse engenho — Cherry interpôs.
— Isso mesmo — o marido confirmou. — Comecei no dia em que fiz dezessete anos.
Theo fez as contas e ficou chocado ao se dar conta de que Daryl deveria ter entre 39 e 40 anos. Parecia pelo menos dez anos mais velho. Estava tão desgastado quanto a casa. O cabelo já estava rajado com fios cinza, tinha calos nas mãos, as costas curvadas e os ombros caídos.
— Quero que me conte sobre o acidente.
— Antes ou depois de o senhor ler os documentos? — Daryl perguntou.
— Antes.
— 'Tá bom. Eu estava trabalhando na máquina de picar e já tinha dito ao Jim Carson que não estava funcionando bem, que precisava mandar consertar, mas ele nem deu bola. Ele não tem muito dinheiro e eu até entendo, é claro. Mesmo assim, quem dera que tivesse me escutado. De qualquer maneira, eu estava fazendo o meu trabalho e, de repente, a correia arrebentou e aquela porcaria desmontou em cima de mim. Amassou todos os ossos da minha mão, não foi, Mike?
— Quase — ela concordou.
Ela estava em pé ao lado dele e achou que o estava deixando nervoso, por isso puxou uma cadeira e sentou-se entre ele e Theo.
— Foi você quem fez a cirurgia? — Theo perguntou a Michelle.
— Não, não fui eu — ela respondeu.
— A Dra. Mike me convenceu a procurar um cirurgião de mão em Nova Orleans para consertar isso — Daryl revelou.
— E o homem fez um bom serviço, não fez, Daryl? — Cherry acrescentou.
— Ah, fez. Por causa dele, vou continuar com todos os dedos. Já estou até conseguindo mexer um pouco.
— Isso é que é milagre — Cherry comentou.
— Jim Carson veio me ver no hospital. Ó, não foi visita de bonzinho, nada — ele acrescentou. — Veio dizendo que foi falta de cuidado minha, porque eu sabia que a máquina não estava funcionando direito e fui usar assim mesmo. Ainda me chamou de descuidado e me despediu.
— Não tem algum representante de sindicato nesse engenho?
— Ah, não. Esses irmãos Carson preferem fechar a droga do engenho a deixar entrar alguém do sindicato lá. Ficam chorando que aquela droga mal dá dinheiro para a folha de pagamento e dizem que, se entrar alguém lá para virar a cabeça dos empregados, aí é que terão de fechar mesmo.
— Eles sempre ficam ameaçando se aposentar e fechar o engenho se alguém aprontar para eles — Cherry disse.
Ela tirou o avental e foi pegar um pano molhado para limpar o rosto do bebê.
— Tem uma caneta? — Theo perguntou a Michelle. — Quero tomar nota de algumas coisas.
Ela abriu a maleta e verificou entre seu equipamento médico. O bebê, Theo reparou, observava Michelle com um ar de medo que chegava a ser cômico.
— Henry não confia em você — ele brincou, sorrindo.
O bebê virou-se para Theo e sorriu. Baba escorria pelo seu queixo. Enquanto a mãe tentava limpar a mão do bebê, Michelle deu uma caneta e um bloco para Theo. Ele colocou os óculos e começou a escrever.
— Pagaram pelo acidente em serviço? — Theo perguntou.
— Jim disse que as taxas de seguro subiriam demais se eu fosse dar queixa, prejudicando meus colegas. Disse também que eu não tinha direito a pedir nada mesmo, porque a culpa era minha.
— O Daryl está preocupado com os outros colegas lá do engenho — Cherry disse. — Se Jim Carson resolver fechar as portas, um montão de gente vai ficar na rua.
Theo fez um sinal com a cabeça, pegou os documentos que Daryl tinha separado para ele e começou a ler. A conversa parou imediatamente; Daryl e Cherry aguardavam uma reação, ansiosos. O único ruído que se ouvia na cozinha era o do bebê chupando a mão.
Theo não demorou a terminar a leitura e perguntou:
— Assinou algum papel de demissão?
— Não, não me deram nada — Daryl respondeu.
— Não esqueça de contar pro Doutor do advogado — Cherry lembrou ao marido.
— Já ia chegar lá — Daryl respondeu. — Jim mandou Frank Tripp vir falar comigo.
— Todo mundo chama ele de Verme — Cherry disse, aproximando-se do fogão para cuidar do guisado. — A gente chama ele de Verme na cara — acrescentou. — Não falamos pelas costas. A gente quer deixar bem claro o que a gente acha dele.
— Acalme-se, Cherry, deixe que eu conto para ele — Daryl pediu suavemente. — Frank é advogado em St. Claire e se eu não estivesse aqui na minha cozinha, cuspiria no chão depois de falar o nome dele. É um valentão, é isso que ele é, e o sócio dele, o tal de Bob Greene, também. Os dois têm uma firma juntos e ganham... como é mesmo, Cherry?
— Honorário.
— É, ganham isso daí por mês dos Carsons para cuidar dos problemas da firma, como eu, por exemplo.
— Isso não me parece coisa boa — Michelle comentou.
— A gente estava pensando... — Cherry começou, depois fez um sinal com a cabeça para o marido. — Fale para ele, meu bem. Diga para ele o que você está pensando, como o Big Daddy disse para fazer.
— Tá bom. A Cherry e eu estávamos pensando se tem alguma coisa que o senhor possa fazer com isso, já que o senhor também é advogado. A gente paga, é claro. Não aceitamos esmola.
— Olhe, mas a gente não quer criar encrenca para o senhor, viu? — Cherry emendou.
— Como poderiam criar encrenca para mim? — Theo perguntou, perplexo.
— Bom, já que o senhor ainda não saiu oficialmente do Ministério da Justiça para assinar o contrato de treinador do time, o Big Daddy disse que o senhor não pode aceitar dinheiro da gente.
— É, porque o senhor recebe lá do Ministério — Cherry emendou. — É verdade? Ou é coisa da cabeça do Big Daddy?
— É, porque se tem de pagar, preciso saber quanto vai ser, para eu ver como vou arranjar — Daryl disse.
— Não, não vou cobrar nada — Theo afirmou.
— Então, o que o Big Daddy disse é verdade?
— É, sim — Theo mentiu.
— E dá para o senhor fazer alguma coisa com esses Carsons? — Cherry perguntou, com a voz cheia de esperança, mas com a preocupação estampada no rosto.
— Ó, e não pode deixar eles muito brabos, não, para eles não fecharem o engenho — Daryl lembrou. — Big Daddy disse que o senhor é bom nesse negócio aí.
— Ah, ele disse, é?
Theo tinha vontade de rir. Não conseguia imaginar o que Jake poderia ter dito sobre ele. Jake com certeza não fazia idéia se Theo era bom ou não. Theo e Jake só tinham conversado sobre pescaria, nada mais.
— Disse sim, senhor. Ele também acha que o senhor podia ir lá falar com Jim Carson por mim. Sabe, fazer ele pensar um pouco. Já ficam com um bom dinheiro por mês da gente para o tal de seguro saúde, depois não deixam a gente usar numa emergência. Isso não me parece muito certo.
— E não é, mesmo — Theo concordou.
— Talvez o senhor conseguisse falar com o irmão de Jim, Gary. Ele é mais velho e o Jim faz tudo o que o Gary manda ele fazer. Gary é quem dirige o engenho — Chery informou.
Theo assentiu com a cabeça.
— Olhem, não conheço as leis da Louisiana — ele disse, observando o rosto de Daryl passar de esperançoso para resignado. — Isso quer dizer que terei de estudar um pouco, conversar com uns amigos que podem me aconselhar — acrescentou, feliz em ver Daryl assentir e sorrir outra vez. — Então, o que tenho a propor é o seguinte: eu estudo, penso em uma linha de ação e depois nós sentamos juntos e lhe digo quais são as opções. Enquanto isso, é melhor não contar a ninguém sobre esta conversa. Não quero que os Carsons ou que os advogados deles venham a saber que estou investigando o caso. Combinado?
— Tá bom — Daryl concordou. — Não vou abrir a boca para ninguém.
— E Big Daddy Jake? — Cherry perguntou. — Ele já sabe que estamos falando com o senhor.
— Ele não vai contar pra ninguém — Daryl disse à esposa. Um menino chamou a mãe, interrompendo a conversa:
— Mããe! O Prof. Freeland está esperando lá na frente. Posso dizer para ele entrar? Então um menino de cinco ou seis anos entrou correndo na cozinha. Seu rosto era coberto de sardas e ele tinha o mesmo cabelo encaracolado da mãe.
— John Patrick, traga o Prof. Freeland até a cozinha.
O menino não estava prestando a mínima atenção à mãe. Havia se enfiado ao lado de Michelle e se pendurado no braço dela.
— Acho que é melhor eu não atrapalhar — Theo disse, puxando a cadeira para trás. — Já li todos os documentos, Daryl. É melhor guardar tudo muito bem.
— O senhor não pode ir embora — Cherry disse. — O Prof. Freeland veio até aqui para conhecer... Quer dizer, não fica bem o senhor ir embora sem os dois serem apresentados.
— É, já que ele apareceu por acaso — Daryl comentou.
Ele não tirava os olhos da mesa, mas Theo não precisava encará-lo para saber que ele estava mentindo.
— O Prof. Freeland está com algum problema legal? — perguntou a Michelle.
Ela sorriu, mas apressou-se em mudar de assunto.
— John Patrick, — ela disse ao menino ao seu lado. — Este é meu amigo Theo Buchanan. Ele veio lá de Boston até aqui só para pescar.
John Patrick balançou a cabeça afirmativamente.
— Eu já sei quem ele é. Todo mundo já sabe. Dra. Mike, pode dizer pro seu irmão que ele precisa vir aqui outra vez? Pode dizer para o John Paul vir depressa, porque deixei minha bola de futebol lá nos fundos e estou precisando dela, tá?
— Lois andou aparecendo outra vez?
— O menino acha que sim — Daryl comentou. — Ele acabará arranjando uma dor de estômago de tanto se preocupar com ela.
— Já faz mais de um mês que não vemos Lois, mas o John Patrick continua preocupado que ela apareça de repente. Ele não vai lá buscar a bola dele enquanto seu irmão não vier aqui de novo; também não deixa nenhum de nós ir lá buscar a bola para ele. Sou obrigada a estender a roupa lavada do lado da casa só para deixá-lo calmo. Esse John Patrick se preocupa demais — Cherry explicou a Theo, como se aquilo explicasse o comportamento estranho do filho.
— O nome de John Patrick foi dado por causa do irmão da Dra. Mike, o John Paul — Daryl interpôs.
— Vai falar com ele? — o menino pediu a Michelle. Michelle passou o braço pelos ombros do menino e disse:
— Assim que eu encontrar com ele, vou dizer que você quer que ele venha aqui outra vez. Agora precisa parar de se preocupar, John Patrick.
— Tá bom — o menino murmurou. — Esse homem sentado aí...
— Theo?
John Patrick assentiu.
— O que tem?
— Posso pedir uma coisa para ele?
— Pode pedir o que quiser — Theo disse.
John Patrick empertigou-se e virou-se para Theo. Apesar de Theo não ter muita experiência no trato com crianças, achou que conseguiria lidar com um menino de seis anos.
— O que você quer saber?
O menino não se acanhou. Encostou-se na perna de Theo, olhou bem nos olhos dele e disse:
— Meu pai disse que Big Daddy Jake contou para ele que o senhor tem um revólver. É verdade?
A pergunta surpreendeu Theo.
— É, tenho um revólver, sim, mas não vou ficar com ele por muito tempo. Logo vou devolver — ele disse ao menino. — Não gosto de armas.
— Mas está com o revólver agora?
— Estou, sim.
A fascinação do menino era uma preocupação, e Theo achou que talvez fosse melhor falar um pouco sobre os perigos, que armas de fogo não são brinquedos e tal. Estava pensando em como dizer isso a um menino de seis anos, mas, pelo jeito, John Patrick já tinha se adiantado.
— Pode ir lá fora, então?
— Quer que eu vá lá no quintal com você?
John Patrick assentiu solenemente com a cabeça. Theo olhou para Michelle e a viu piscar para ele.
— Vai mesmo? — o garoto perguntou.
— Vou, claro — Theo concordou. — O que quer que eu faça quando chegar lá?
— Pode dar um tiro na Lois para mim?
Ele sabia que o garoto pediria aquilo, mas mesmo assim ficou chocado. Na verdade, ficou sem saber o que dizer.
— Não, o Dr. Theo não vai dar tiro na Lois coisa nenhuma! — o pai disse, irritado. — Você não vai querer que o namorado da Dra. Mike se meta em encrenca com a polícia, não é?
— Não, papai, não quero, não.
— Muito bem — Michelle disse, batendo de leve na mão do garoto para confortá-lo. — Se Theo desse um tiro em Lois, apenas a deixaria zangada.
— Ela fica muito ruim quando está zangada — o garoto disse a
Theo.
A porta de tela bateu, depois mais uma vez, depois outra e outra.
— Vá se lavar para jantar — Cherry disse a John Patrick.
O menino olhou desapontado para Theo e dirigiu-se para a pia no canto.
— Este menino é um tanto sanguinário, não acha? — Theo sussurrou para Michelle.
— Ele é um amor de criança — ela respondeu.
— Se eu fosse Lois, fugiria para bem longe.
A porta de tela voltou a bater lá na frente e, de repente, o chão aos pés de Theo começou a vibrar. Parecia que uma manada de bufalos vinha correndo lá da sala. Então uma horda de garotos de várias idades e tamanhos invadiu a cozinha. Theo perdeu a conta de quantos podiam ser.
O Prof. Freeland foi o último a entrar na cozinha apinhada. Elliot teve de se espremer contra a geladeira para que ele pudesse entrar.
Freeland poderia ser confundido com um dos garotos, a não ser pelo fato de estar vestindo camisa e gravata. Tinha pouco mais de um metro e setenta e era muito magro. Usava óculos de aros grossos que lhe escorregavam pelo nariz. Ele os pôs no lugar com a ponta do indicador.
— O Prof. Freeland dá aula de música no colégio — Daryl explicou.
— Muito prazer, Prof. Freeland.
Como dois dos filhos de Daryl estavam atrás da cadeira de Theo, este não conseguia levantar-se. Contorceu-se como pode para apertar a mão de Freeland.
— Pode me chamar de Conrad — o professor insistiu. — Boa noite, Cherry e Daryl — ele cumprimentou, com um aceno para cada um. Depois, virou-se para Michelle — Boa noite, Mike.
— Oi, Conrad — Cherry respondeu. — Como vai Billie?
— Billie é minha esposa — Conrad explicou a Theo. — Ela está muito bem. O bebê só acorda uma vez por noite, agora, e nós dois estamos conseguindo dormir melhor. Billie mandou um abraço.
— Ô, meninada, vamos saindo do caminho para deixar o Prof. Freeland sentar do lado do Dr. Theo para eles poderem conversar — Cherry comandou.
Houve grande movimentação na cozinha enquanto todos ajeitavam-se em volta da mesa. Theo chegou para mais perto de Michelle para dar lugar a Conrad.
— Não posso demorar — Conrad disse, puxando a cadeira para se sentar. — A Billie está me esperando para jantar — voltando toda sua atenção para Theo, prosseguiu — Daryl e Cherry sabem como é importante garantir os estudos dos seus oito filhos. Gostariam que todos fizessem faculdade.
Theo assentiu. Não tinha muita certeza do que esperavam que dissesse.
— O Elliot, por exemplo, está indo bem na escola. Vai se candidatar a uma bolsa de estudos para a faculdade, mas é muito difícil de conseguir — Conrad explicou. — Ele é estudioso e se aplica bastante.
— Obrigado, Conrad — Daryl disse, como se o elogio fosse para ele e não para o filho.
— Estávamos pensando que Elliot pode até conseguir uma bolsa de estudos integral... com sua ajuda.
— E como eu poderia ajudar? — Theo perguntou, completamente perdido.
— Ajudando-o a conseguir uma bolsa de estudos pelo futebol.
— Como é? — Theo perguntou, piscando.
— Elliot tem tudo para conseguir uma — Conrad disse. — Poderia ser bom, muito bom, se pudesse contar com... um bom treinamento.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo.
— O time de St. Claire não perdeu nem uma vez no ano passado — Cherry contou a Theo.
Daryl emendou:
— Parece uma missão impossível, mas o senhor daria conta. Big Daddy Jake falou maravilhas do senhor.
— E dos seus contatos — Conrad acrescentou.
— Bem que eu sabia que seu pai estava por trás disso — Theo disse, voltando-se para Michelle.
Ela deu de ombros e sorriu, dizendo:
— Parece que ele gosta muito de você.
— Big Daddy estava pensando que, se alguém de uma universidade visse Elliot brilhando no campo, bom... daí podiam até se oferecer para dar estudo de graça para ele — Daryl explicou.
— Esperem um pouco... — Theo tentou, levantando a mão. Mas ninguém o deixou protestar.
— Estão sempre procurando por um bom atacante — Conrad disse.
— Isso mesmo, sempre procuram — Daryl concordou. — Big Daddy acha que o Elliot é rápido e corre bem com a bola.
Michelle deu uma leve batida no braço de Theo para chamar sua atenção.
— Os olheiros sempre vão aos jogos de St. Claire em busca de talentos.
Depois foi a vez de Conrad cutucar Theo para ganhar sua atenção.
— Então, quando começamos?
— Começamos? — Theo perguntou, esfregando as têmporas, por causa de uma dor de cabeça incômoda que estava surgindo. — Começar com o quê?
Conrad puxou um maço de papel dobrado do bolso de trás e colocou sobre a mesa. Depois, do bolso da camisa, pegou um pedaço de papel e um toco de lápis, olhando atentamente para Theo.
— Que universidade freqüentou?
— Como é?
— Conrad pacientemente repetiu a pergunta.
— Michigan — Theo respondeu. — Não entendo por que quer saber...
— É uma universidade grande, não é? — Cherry quis saber.
— É, sim — Conrad respondeu.
— E imagino que seja uma boa universidade, também — Daryl observou.
— Theo olhou em volta da mesa e percebeu que todos, inclusive as crianças, estavam olhando para ele. Todos pareciam saber o que estava acontecendo. Todos, menos Theo.
— Foi Big Daddy quem sugeriu que falassem comigo sobre faculdades? — Theo perguntou.
Nossa! Até ele já estava chamando o velho de Big Daddy. Ninguém respondeu sua pergunta e Conrad continuou:
— Você também jogava futebol americano, não é verdade?
— Jogava, sim.
— E daí foi estudar Direito.
Era uma afirmação, não uma pergunta, mas Theo respondeu:
— Isso mesmo.
— E completou seu bacharelado em Michigan? Que diabos estava acontecendo?
— Não — ele respondeu. — Terminei o bacharelado e fiz um MBA no leste.
— O que é um MBA? — Cherry perguntou.
— É um curso avançado em administração — Michelle apressou-se em explicar.
— Nossa! Direito e Administração! — Daryl exclamou, maravilhado.
— É, muita gente faz... Conrad interrompeu Theo:
— Onde, exatamente, concluiu os cursos?
— Yale.
— Meu Deus! Até eu sei que essa é uma escola importante — Cherry comentou.
Conrad balançou a cabeça, confirmando.
— E suponho que suas notas tenham sido muito boas, também, não estou certo? — o professor perguntou, freneticamente fazendo anotações em seus papéis.
Veio o estalo e Theo perguntou-se como podia ter demorado tanto a entender. O sujeito o estava entrevistando para trabalhar no colégio!
Theo decidiu que teria uma boa conversa com Jake assim que fosse possível. Queria pôr tudo em pratos limpos.
— Aposto que guarda seus livros de jogo, também, não é? — Conrad perguntou-lhe.
— Meus livros de jogo?
— Livros sobre futebol — Michelle explicou.
Ela sorria docemente e parecia estar se divertindo imensamente com a confusão e o desconforto de Theo. Ele resolveu ter uma conversa com ela depois, também.
— Está bem, mas isso já foi longe demais — ele disse com um tom decidido e assertivo. — Houve algum mal-entendido que eu preciso esclarecer agora mesmo. O que aconteceu foi que eu parei para comprar gasolina em um posto quando estava chegando em Bowen. Daí um garoto...
Não conseguiu ir adiante. Michelle não o deixou continuar. Colocou sua mão sobre a dele e disse:
— Você tem seus livros sobre futebol guardados, não tem?
— Por que acha isso?
— Por que é coisa de homem.
— Bem, na verdade tenho um ou outro. Mas — ele apressou-se em esclarecer — está tudo guardado no sótão, com uma porção de coisas velhas.
— Não podia pedir a um de seus irmão para mandar os livros para cá? Há vários serviços de entrega expressa.
— E daí?
— Daí podia vir ao próximo treino comigo e dar uma olhada no time.
Elliot ajudou a pressionar:
— A gente gostaria muito que o senhor fosse.
Todos começaram a falar sobre o time; todos, menos o pequeno John Patrick. O menino estava tentando alcançar o revólver de Theo. Este ficava afastando a mão do menino. Sentia-se como se tivesse caído de pára-quedas em uma terra estrangeira onde ninguém entendia o que dizia.
— Não sou treinador de futebol! — ele gritou e, quando todos se calaram, ele assentiu firmemente com a cabeça. — Foi exatamente o que ouviram. Isso mesmo. Não sou treinador de futebol.
Finalmente, ele havia conseguido controlar aquela massa e sentiu-se muito feliz consigo mesmo ao recostar-se na cadeira para esperar que absorvessem a novidade.
A notícia, porém, não diminuiu o entusiasmo de ninguém.
— Esses meninos estão loucos para aprender — Conrad insistiu. — Mas não quero pressioná-lo, Theo. Não, senhor, eu não. A gente não costuma obrigar ninguém a nada aqui em Bowen. A gente só espera que aconteça, não é Daryl?
— É, espera acontecer — o outro confirmou.
Conrad destacou um pedaço de papel, inclinou-se sobre a mesa e escreveu algo. Depois dobrou o papel e voltou a olhar para Theo.
— O diretor da escola está em Memphis no momento, mas falei com ele pelo telefone antes de vir para cá — disse, empurrando o papel dobrado para Theo. — Achamos que ficará contente com isso.
Levantou-se e fez um aceno de cabeça para Cherry.
— Não posso deixar a Billie esperando mais tempo e quero agradecer por deixarem eu interromper o jantar de vocês. Theo, espero ver você em nosso treino amanhã. Mike sabe onde e que horas é.
Colocou as folhas de papel junto do bilhete dobrado, apertou a mão de Theo, dizendo que tinha sido um prazer conversar com ele, depois foi abrindo caminho entre os garotos para chegar à porta. Parou antes de sair da cozinha e perguntou:
— Por acaso também não tem diploma de professor, Theo?
— Não.
— Achei que não tivesse, mesmo, mas achei melhor perguntar. Tudo bem. Não precisa se preocupar. Podemos resolver isso com a Diretoria, sendo você um cãs especial e tal. Boa noite, gente.
Theo resolveu não sair correndo atrás de Freeland para esclarecer a situação. Resolveu que poderia esperar até o treino do dia seguinte e pôr tudo em seus devidos lugares. Sem o caos que reinava à sua volta naquela cozinha apertada, com certeza, a calma prevaleceria.
— Mããe, quando a gente vai comer? — John Patrick perguntou.
— Vou colocar a comida na mesa em um minuto.
— Melhor irmos, também — Theo disse a Michelle.
— Não quer ficar para jantar? — Cherry perguntou. — Tem para todos.
— Obrigado — Theo disse — Normalmente, eu aceitaria sua oferta, mas a verdade é que meu estômago ainda não está pronto para comer. Comi o gumbo do Jake esta tarde e acho que estava condimentado demais para mim. Meu estômago está reclamando.
Era mentira, mas Michelle achou que ele mentiu muito bem. Cherry até balançou a cabeça em solidariedade. Daryl, no entanto, parecia um pouco desconfiado.
— Sempre temos comida suficiente para nossos convidados.
— Ele é da cidade grande, Daryl — Michelle lembrou, como se aquilo explicasse tudo.
— Ah, eu tinha esquecido — ele respondeu. — Acho que o gumbo do Jake mexe mesmo com o estômago de quem não está acostumado com pimenta.
— Olhe, posso fazer uma xícara de chá especial — Cherry ofereceu. — Deixará o senhor em forma num instantinho.
— Ah, não quero incomodar.
— Pode fazer o chá, então, Cherry — Daryl recomendou. — Mike, pode trocar o curativo enquanto está por aqui?
E foi assim que Theo bebeu chá bem quente e amargo em uma cozinha abafada, enquanto Michelle reenfaixava a mão de Daryl e Cherry servia seus filhos. John Patrick fez questão de colocar seu prato ao lado de Theo e, quando o menino terminou de comer, o estômago de Theo estava roncando. Foi preciso muito controle para não arrancar o garfo com comida da mão do garoto.
Saíram de lá depois que Theo tomou a terceira xícara de chá. John Patrick deu a mão a Theo e oficialmente levou-o até a entrada. O garoto puxou a camiseta de Theo e disse:
— Amanhã é meu aniversário. Vai me dar um presente?
— Depende — Theo respondeu. — Já pensou em alguma coisa?
— Bem que podia voltar com uma espingarda — ele disse, soltou a mão de Theo e olhou por cima do ombro. — Não conte para minha mãe que eu pedi presente, tá?
Michelle já tinha descido a escada e esperava por Theo ao lado do carro.
— Esse menino! — Theo comentou, enquanto manobrava o carro de volta para a rua de terra. — Acho que daqui a uns quinze anos estaremos lendo sobre ele em algum jornal.
— É um anjo!
— É sanguinário, isso sim — ele contrapôs. — Não entendo isso. Ele tem pelo menos quatro irmãos mais velhos, certo?
— Sim, e daí?
— Como é que eles não dizem à tal de Lois para deixar o garoto em paz? Eu sempre protegi minhas irmãs e meus irmãos mais novos. É o que se espera dos irmãos mais velhos.
— Ainda cuida deles?
— Seus irmãos não cuidam mais de você?
— Bom, eles tentam — ela confessou. — Por sorte Remy está morando no Colorado, por isso não interfere muito em minha vida ultimamente, e John Paul sempre foi um tanto recluso. É verdade que ele aparece nas horas mais inusitadas. Parece que papai lhe manda um SOS de vez em quando.
John Patrick acenava freneticamente para eles. Michelle baixou o vidro e acenou de volta para o garoto.
Theo colocou o carro em marcha e seguiu em direção a Bowen. Olhando para o menino pelo retrovisor, sacudiu a cabeça e disse:
— Ouça o que estou lhe dizendo; esse garoto não é normal.
— É um menino perfeitamente normal — ela riu.
— Lois não é vizinha dele, é?
— Ah, então você percebeu que não há nenhuma outra casa por aqui. Não é de admirar que o Ministério da Justiça tenha contratado seus serviços. É muito observador.
— Ei, estou em férias — ele reagiu. — Acho que tenho direito a não pensar tão rápido. Conte exatamente quem é essa tal de Lois. Vai ver que é algum gambá. Não, aposto que é um guaxinim. Ai, meu Deus, não me diga que é uma cobra? Elas podem cavar buracos e...
— Lois é um crocodilo.
Ele enfiou o pé no freio e quase acabou com o carro, passando rente a um carvalho enorme quando saiu da estrada. Mesmo sabendo que crocodilos vivem em áreas pantanosas — droga, afinal ele lia a National Geographic de vez em quando e até assistia o Discovery Channel quando estava com insônia — jamais lhe ocorrera que algum pudesse aparecer tão perto de uma casa.
E quem, em pleno gozo da consciência, poderia chamar um crocodilo de Lois?
— Está querendo me dizer que existe um crocodilo adulto, vivo e saudável, vivendo no quintal dessa criança?
A expressão do rosto de Theo era impagável. Parecia que acabava de descobrir que o bicho-papão realmente existe.
— Pois é exatamente o que estou lhe dizendo. As fêmeas fazem questão de seu território. Lois decidiu que o quintal deles pertence a ela. Persegue qualquer um que vá até lá... ou pelo menos perseguia, até meu irmão levá-la para outro lugar. Ah, por falar nisso, melhor não contar isso ao Ben Nelson. Crocodilos são espécie protegida e meu irmão poderia se dar mal.
— Vocês por aqui costumam dar nomes a todos os seus crocodilos?
— Só a alguns.
— Coisa de louco! — ele murmurou, esfregando as têmporas.
— Já está pensando em voltar a Boston?
— Não antes de ir pescar. Quer me dizer como se volta para sua casa?
Ela deu as instruções e, antes que ele se desse conta, estavam em St. Claire, onde havia meio-fio e calçadas. Quando fez a curva e teve de parar no sinal vermelho, avistou o luminoso de uma lanchonete um pouco adiante.
— Ah — ele suspirou — Civilização!
— Ainda estou disposta a cozinhar um jantar saudável quando chegarmos em casa — ela disse — mas pensei...
— O quê?
— Que você merece um agrado.
— Ah, é? Por quê?
— Porque estava morto de fome sentado lá naquela cozinha, bebendo chá quente... porque não arrancou a comida do garfo de John Patrick, a quem observava como um lobo faminto... e porque...
— O quê?
— Deixou papai se aproveitar da situação.


Capítulo 16

 

Vinte e quatro horas já haviam se passado desde que o pacote fora entregue. Cameron mais uma vez aguardava com os outros, na biblioteca de John, que Dallas chegasse com o relatório de Monk.
A espera o deixava louco. Pensava como poderia ter chegado naquele ponto. O que tinha acontecido com ele? Tinha tantos sonhos e esperanças quando começou. Quando foi que tudo começou a dar errado?
Agora sentia-se como se estivesse preso a um jogo mal-assombrado chamado luta contra o relógio. A cada hora que passava, mais perto ele ficava das barras de ferro da porta da prisão se fechando ruidosamente, enjaulando-o.
— Não podemos ficar aqui sentados esperando — disse. — Já se passou um dia inteiro. O relógio continua andando. Precisamos fazer alguma coisa, e depressa!
Preston concordou e emendou:
— Sugiro que a gente vá para Bowen esta noite mesmo.
— E o que sugere que se faça quando chegarmos lá? — John perguntou.
— Olhe, qualquer coisa é melhor do que ficar aqui sentado, esperando a polícia federal vir nos pegar — Preston argumentou. — Quanto mais se esperar...
Cameron interrompeu-o:
— Já cansei de esperar. Se é para eu fazer alguma coisa para resolver a questão com minhas próprias mãos, então é isso que pretendo fazer.
John bateu o punho na mesa.
— Não vai coisa alguma! — esbravejou. — Estamos nisso juntos, e não vai fazer coisa alguma a não ser que nós todos estejamos de acordo. Estou sendo bem claro?
— Desde quando tornou-se nosso líder? — Cameron resmungou, irritado com a voz de comando de John, que resolvera readquirir o controle — Não me lembro de ter votado em você em momento algum — provocou.
— Consegui fazer uma fortuna para todos vocês — John reagiu. — É isso que faz de mim um líder.
— Esperem aí. Isso não vai nos levar a lugar algum — Preston interveio. — Todos devem se acalmar e tentar ser sensatos. Talvez Dallas nos traga boas notícias.
— Isso é outra coisa que me incomoda — Cameron reclamou. — Como Monk não se reporta a nenhum de nós? Por que tudo tem de passar por Dallas? O cara recebe dinheiro de todos nós, e deveríamos poder falar com ele a hora em que bem entendêssemos. Merda! A gente não tem nem o número do celular de Monk.
— Nisso acho que Cameron tem razão. Por que não podemos falar diretamente com Monk?
— Ora, vocês dois estão se deixando prender em um detalhezinho menor — John disse. — Foi Dallas quem arranjou o Monk, lembram? Talvez nosso matador não deseje se encontrar com os quatro porque não confia em nós.
— Bobagem — Preston contrapôs. — Dallas gosta de mandar nele. É um jogo de poder estúpido, se querem saber.
John irritou-se:
— Não me interessa a quem ele se reporta. O importante é que faça seu trabalho.
Dallas estava na porta ouvindo a conversa.
— É o telefone de Monk que querem? Dois-dois-três-um-seis-nove-nove. Feliz agora, Cameron? E você, Preston? Também querem o endereço da casa dele? Nem eu sei, mas posso seguir o rastro dele e logo descubro... se quiserem essa informação, também.
— O que quero saber é se você traz boas notícias — Preston disse, ignorando o sarcasmo.
— Se quer saber se Monk recuperou o envelope, a resposta é não.
— Ele ainda não achou esses documentos desgraçados? —Cameron perguntou, incrédulo.
— O pacote tem de estar no hospital — Preston disse. — É o único lugar que Monk não conseguiu revistar completamente.
— Então traga ele de volta para cá — Cameron disse.
— Eu disse a Monk para não sair da cola da Dra. Renard — Dallas informou. — Não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo e, além disso, ele já revistou o armário dela no hospital. Lembra do que lhe falei, Cameron? Ele até arranjou uma ajudante para procurar por todo o pronto-socorro. Ele não pode simplesmente entrar lá e começar a abrir armários e gavetas. Use a cabeça, homem!
— Não gosto de suposições — John disse, balançando-se em sua cadeira giratória por trás da mesa. — Nada me convence que a tal Michelle Renard não tenha levado o envelope com ela quando saiu do hospital. Com que grau de atenção ele examinou a clínica e a casa dela? Pode ter sido apressado...
— Não diga bobagem — Dallas respondeu. — É um profissional e fez bem o trabalho. Por que não examinaria tudo com cuidado? Ele é um dos maiores interessados, pois vai pôr a mão em muito dinheiro, assim que colocar as mãos no envelope. Quer encontrar o pacote tanto quanto você ou eu.
Voltando-se para John, Preston disse:
— Tomara que sua esposa queime no inferno. Foi ela que nos colocou nesta enrascada.
— Caia na real, homem. Nós a matamos, lembra? — Dallas disse. Cameron escondeu o rosto nas mãos e inclinou-se para frente,
apoiando os cotovelos sobre a perna.
— John, foi você quem nos colocou neste pesadelo, seu filho da puta.
John não se alterou.
— O que está feito, está feito. É preciso pensar no futuro. Cameron gritou, reagindo:
— Que futuro, merda? Se não conseguirmos aqueles papéis de volta, tudo está acabado.


Capítulo 17


Havia seis mensagens no celular de Theo. Ele foi para a biblioteca de Michelle para ouvir e fazer anotações enquanto esperava o jantar. Quando terminou, ligou para Noah Clayborne e pediu-lhe que fosse de Biloxi para Bowen.
— O jantar está pronto? Estou morto de fome — ele disse, ao entrar na cozinha.
— Não, o jantar não está pronto — ela informou. — Isto não é um hotel e você precisará ajudar.
Ela pegou o facão e começou a picar salsão e cenouras. Ele encostou-se na beira da pia, observando-a.
— Você é boa nisso!
— É o que todos os garotos dizem.
— Você parece um robô com essa faca. Rápida, precisa... impressionante.
— Você sabe mesmo virar a cabeça de uma garota. Ele pegou um pedaço de cenoura e pôs na boca.
— O que quer que eu faça? Estou morto de fome.
— Aquele hambúrguer duplo com queijo não matou sua fome?
— Foi só um aperitivo.
— Pode acender a churrasqueira para mim? Os fósforos estão na gaveta à sua direita.
— A churrasqueira está lá no quintal? — ele perguntou, olhando desconfiado pela janela de trás, apertando os olhos para conseguir ver alguma coisa na pouca luz lá de fora.
— Claro que está no quintal. Qual é o problema?
— Preciso me preocupar com algum parente da Lois lá fora?
— Não — ela assegurou.
Depois, como o pai dela diria, o diabo tomou conta dela e ela não resistiu à tentação de dizer:
— Mas é claro que Elvis pode estar por aí. É melhor levar a vassoura junto, para garantir.
— Elvis? — ele perguntou, parando de chofre.
Ela pegou um pedaço de papel alumínio e estava arrumando os legumes no centro.
— Nossa celebridade local. Da última vez em que foi visto, juraram que ele tinha quase cinco metros de comprimento.
— E vocês batizaram um crocodilo de Elvis? Qual é o problema de vocês por aqui?
— Não damos nomes a todos — ela se defendeu. — Só aos maiores.
— Você está brincando com essa história de Elvis, não está? Ela sorriu com toda doçura e respondeu:
— Mais ou menos.
— Pois saiba que é mais ou menos crueldade atormentar um homem que tem uma verdadeira fobia por crocodilos, Mike.
— Prefiro que me chame de Michelle.
— E eu prefiro que não fique fazendo brincadeiras com crocodilos.
— Certo. Combinado.
— E por que não posso chamar você de Mike? Todo mundo chama.
Ela estava dobrando a folha de alumínio com todo o cuidado quando respondeu:
— Não quero que pense em mim como... Mike.
— Por que não?
— Não é muito feminino. Quantos homens você conhece que gostariam de se envolver com uma mulher com apelido de homem?
— Como?
— Deixe para lá.
— Não quero deixar para lá. Será que está querendo dizer que quer se envolver...
— Não, não é nada disso que estou querendo dizer — ela o interrompeu. — Só não me chame de Mike e pronto. Agora vá acender a grelha e pare de olhar para mim como se achasse que perdi o juízo. Se ficar com medo, grite e saio com a vassoura para salvar você.
— Para começar, Michelle, homens não gritam e você tem um péssimo senso de humor — depois de olhar mais uma vez pela janela, ele disse. — Droga! Crocodilos costumam passear à noite, não é? Quem perdeu o juízo fui eu. O que estou fazendo nesse...
Quase disse "nesse fim de mundo", mas conseguiu conter-se a tempo e emendar:
— ... pedaço de natureza indomada?
Ela percebeu o que ele pretendia dizer, no entanto. O brilho em seus olhos a denunciava.
— Não faço idéia — ela comentou. — Pode me dizer, então? O que está fazendo aqui?
— Vim pescar, lembra-se? Só não achei que cruzaria com crocodilos no caminho.
— E, por enquanto, não encontrou nenhum — ela ressaltou. — E não veio aqui só para pescar, que eu sei.
— Tem razão.
— E então?
Ele deu de ombros e respondeu:
— Talvez eu esteja procurando alguma coisa, certo?
Sua voz tinha um tom de antagonismo. Ela voltou a ocupar-se com a comida.
— Conte-me o que veio procurar. Posso ajudá-lo a encontrar. Ele foi para fora sem responder. Ela não conseguia entender de onde toda aquela tensão repentina havia surgido. Num instante, estavam brincando e, no momento seguinte, Theo havia ficado profundamente sério. Aparentemente, era um homem controlado e sereno. Águas paradas são sempre as mais profundas e perigosas, ela pensou. Havia bem mais a pensar sobre Theo Buchanan do que sua bela aparência.
Ela decidiu não se preocupar. Se ele resolvesse dizer a ela o que se passava em sua mente, que dissesse. Ela não iria atormentá-lo por pouca coisa.
Estava uma noite tão fresca e agradável, que resolveram jantar em uma mesa de ferro entalhado na varanda de trás. A conversa foi superficial e tensa, mas não interferiu no apetite de Theo. Comia como o pai dela, com muito gosto. Quando terminou, não havia nem uma migalha em seu prato.
— Se eu comesse como você, teria de mandar alargar as portas — ela comentou.
Ele recostou-se na cadeira e fechou os olhos.
— É tão calmo aqui, ouvindo apenas o ruído dos sapos e grilos. Ela não queria lhe provocar uma indigestão, deixando-o tenso outra vez, por isso não lhe disse que os sons que vinham de longe eram produzidos por crocodilos. Como havia sido criada por ali, nem dava mais importância. Achava, porém, que o garotão da cidade poderia ter um surto.
Ele insistiu em arrumar a cozinha. Como ela não tinha lavadora de pratos, ele teve de enfiar a mão no detergente e na esponja. Ela guardou os temperos enquanto ele lavava os talheres, depois pegou um pano de pratos e começou a enxugar e guardar.
— Como ainda não se casou? — ele perguntou.
— Acho que não tive tempo.
— Está namorando alguém no momento?
— Não.
Ótimo, ele pensou. Não tinha intenção de ficar em Bowen, mas enquanto estivesse por ali, não queria que outro homem atrapalhasse seu caminho. Isso o tornava um grandessíssimo egoísta, deduziu.
— O que está pensando? — ela perguntou. — Está com uma expressão de extrema ferocidade no rosto.
Estou pensando que sou um egoísta da pior marca, ora essa!
— Estava imaginando por que não está cheio de homens correndo atrás de você. Basta uma olhada para você e qualquer homem percebe...
— Percebe o quê? — ela quis saber.
— Que você é muito atraente — ele disse, abrindo um sorriso.
— Grande porcaria. Que modo mais romântico de elogiar uma garota!
— Ei, sou de Boston, lembra? Os homens são criados para dizerem o que pensam. Há algum homem por aqui que a interesse?
— Por que quer saber?
— Pura curiosidade.
— Acho que Ben Nelson gostaria que eu estivesse interessada, mas não vou dar esperança alguma a ele. Ben é uma boa pessoa, mas nada nele me atrai. Acho que entende do que estou falando.
— Claro que sim. Como a química que existe entre nós.
— Como é?
— Você ouviu muito bem — ele disse, entregando um prato para ela enxugar, mas pegou para enxaguar outra vez, ao ver que ainda estava cheio de bolhas. — Você está querendo saltar nos meus braços desde o instante em que entrei no bar de seu pai.
Ele tinha acertado na mosca, mas ela não estava disposta a admitir.
— Eu, saltar em seus braços? Acho que se enganou.
— Só estou dizendo a verdade.
— E de onde tirou essa idéia absurda?
— Pude ver em seus olhos.
— Não pode ter visto coisa nenhuma!
— Ah, não?
— Claro que não — ela sorriu. — Estava muito ocupado olhando para minhas pernas.
Theo não se deixou abater.
— São pernas muito bonitas, mesmo.
— Posso admitir que haja uma certa atração física, mas isso não deixa de ser sinal de saúde.
— Vamos ter uma aula sobre a ação dos hormônios?
— Isso depende de quanto tempo terei de ficar aqui esperando você acabar de lavar essa tigela. Você não costuma lavar louça, certo?
— O que quer dizer com isso?
— Que está demorando demais.
— Vou devagar, cuidando de todos os detalhes do que faço. Não foi o que ele disse, mas a maneira como disse que acelerou a pulsação dela. Será que ia devagar e cuidava dos detalhes na cama, também? Humm, não seria maravilhoso?
— Você já foi casado, não é? — ela perguntou de repente.
— Fui, mas acho que não fui grande coisa.
— Sua esposa morreu.
— Isso mesmo.
Ela alongou-se para guardar mais uma tigela.
— Foi papai quem me contou. Como ela morreu? Ele lhe entregou um prato, antes de perguntar:
— Por que quer saber?
— Fiquei curiosa — ela admitiu. — Se acha que estou sendo intrometida, não faço mais nem uma pergunta.
— Não, tudo bem. Ela morreu em um acidente de carro.
— Puxa, que horror. Quando foi o acidente?
— Não foi acidente.
A voz dele não mostrava o menor sinal de emoção. Era como se falasse de uma geladeira estragada.
— Não?
Ele suspirou e balançou a cabeça.
— Não, não foi acidente. Sabe de uma coisa? É a primeira vez em quatro anos que consigo dizer isso em voz alta.
Pelo seu tom de voz, ela sabia que ele estava louco para mudar de assunto, mas ela não deixou passar. Não era curiosidade mórbida da parte dela. Se ele havia levado quatro anos para poder admitir a verdade, então talvez estivesse na hora de pôr tudo para fora.
— Foi suicídio?
— Sim e não.
Ele entregou-lhe o pegador de salada.
— Não acho que ela quisesse se matar. Pelo menos, não desse jeito. Minha esposa estava se matando aos poucos.
— Como assim?
— Com álcool e drogas.
Ela não disse nada; apenas esperou que ele continuasse.
— Ela misturou álcool com remédios e sabe lá mais o que. Foi uma combinação fatal. Pelo menos, foi isso o que indicou a autópsia. Estava completamente fora de controle ao volante. Passou com o carro por cima da ponte e foi cair na baía. Maneira radical para se matar, não acha? — perguntou, mas não esperou pela resposta. — Duvido até que soubesse o que estava acontecendo com ela, e dou graças a Deus por não estar com mais ninguém no carro.
Michelle precisou de muito controle para não mostrar uma reação forte, para esconder como estava chocada com o que ele acabava de lhe contar. Ela sabia que Theo era uma pessoa orgulhosa e que, se ela mostrasse pena ou compaixão, ele se fecharia com ela e não queria que isso acontecesse.
— Seus amigos e sua família... alguém sabe o que realmente aconteceu?
— Não — ele respondeu. — Tenho certeza de que Nick pressentiu que havia alguma coisa errada, mas nunca comentou nada.
— Talvez esperasse que você se abrisse com ele.
— É, talvez.
Ela não sabia se devia ir mais a fundo no assunto. Encostando-se com cuidado contra a pia, cuidadosamente estendeu o pano úmido e perguntou:
— Você se sente culpado?
Ele deu de ombros, como se a pergunta não tivesse importância.
— Acho que consegui analisar bem o que aconteceu. Acabei me convencendo que não fui talhado para o casamento. Sempre pus a profissão na frente. Devia ter dado mais atenção a ela, no entanto. Eu andava tão ocupado com o trabalho, trabalhando até vinte horas por dia, que não percebia o que estava acontecendo na minha própria casa. Droga, eu sabia que ela bebia, mas não percebia que estava se tornando um problema. Acho que, como um avestruz, estava enfiando a cabeça na areia.
— A opção foi dela. Sei que pareço fria, mas não foi você quem enfiou as pílulas e a bebida pela goela dela abaixo. Foi ela própria.
— O casamento é uma sociedade — ele disse. — Eu não fiz minha parte do acordo. Ela era... frágil. Sim, frágil. Precisava de ajuda e sempre fui cego demais para perceber.
— Acho que é saudável que você finalmente consiga falar sobre o que aconteceu. Agora, talvez, consiga libertar-se.
— Consiga me libertar de quê?
— Da raiva, da dor e da culpa.
— Não venha dar uma de psiquiatra para cima de mim — ele disse, entregando o último garfo a ela e passando a limpar a pia. — Olhe, já estou acabando. Tem mais alguma pergunta ou podemos falar de outra coisa?
Ela bem que tinha vontade de perguntar a ele se ele amava a esposa, mas não se atreveu. Já tinha ido até o limite de onde ele pretendia chegar.
— Podemos falar de outra coisa. Afinal, o jantar já acabou.
— E daí?
— Pediu que tivesse paciência e esperasse até depois do jantar. Agora quero que me conte o que acha da minha clínica.
— Vou falar daqui a pouco — ele prometeu. — Volto logo. Theo saiu da cozinha e foi lá para cima.
— O que está fazendo? — ela perguntou ao pé da escada.
— Vou pegar meu laptop e ligar lá na sua biblioteca — ele gritou do quarto. — Preciso verificar meu correio eletrônico — ele disse, já no topo da escada, onde parou, olhando para ela. — Espero já ter algumas respostas. Depois, poderemos conversar.
Michelle voltou para a cozinha e limpou o balcão. Quando acabou, apagou a luz e subiu. Parou na porta do quarto de hóspedes e disse:
— Vou tomar um banho. Tive um dia difícil.
Ele estava debruçado sobre a cama, abrindo a fechadura da vali-se. Já havia desfeito a mala e as roupas estavam dobradas sobre a cômoda.
O quarto estava uma bagunça. Havia caixas empilhadas junto à janela que dava para o quintal. Ela não havia se preocupado em passar o aspirador ali nos últimos dias, e deveria haver teias de aranhas em todos os cantos.
— Tenho usado este quarto como depósito — ela disse. — Essa cama velha é capaz de provocar-lhe dor nas costas.
— Você acha?
— Você é mais comprido do que a cama — ela explicou — e o colchão está cheio de ondas.
— Não se preocupe. Durmo em qualquer lugar.
— Ainda estou me sentindo culpada. Acho que é melhor você usar a minha cama. É bem maior.
— Ah, é?
Ele aprumou-se e lançou-lhe aquele olhar. Ela percebeu imediatamente. Já havia visto muitos filmes e convivido com muitos homens em busca de caça para reconhecer um quando via. Theo tinha aquele olhar mais sensual do que o do Mel Gibson, e só Deus sabia o quanto ela admirava Mel.
— Pode parar — ela disse e riu. — Pode parar com essa história já.
Ele ergueu uma sobrancelha. Jesuzinho, agora estava parecendo o Cary Grant!
— Parar com o quê? — ele perguntou com um ar inocente.
O que ela poderia responder? Pare de olhar para mim como se eu tivesse lhe pedido para tirar a roupa e fazer sexo ardente comigo?
— Nada — ela respondeu. — E então, quer?
— Dormir na sua cama? Que convite!
— Como é?
— Quer compartilhar sua cama comigo?
Uau, e como ela queria. Há quanto tempo não se envolvia com um homem? Nem conseguia se lembrar. Talvez porque tivesse acabado em desastre e ela preferisse apagar a memória deliberadamente.
Devagar e relaxadamente. Uau!
Ela sentiu a garganta seca, mas a boca salivava.
— Não, não acho que seria uma boa idéia. Ele deu um passo em direção a ela:
— Por que não?
Se ela fosse trinta anos mais velha, acharia que estava tendo um calorão de menopausa. Seu corpo todo parecia estar em fogo, e sua respiração estava ofegante. Suas endorfinas também estavam enlouquecendo. Sentia a cabeça leve. Se ele desse mais um passo em sua direção, sabia que seu coração dispararia. Não seria uma mudança engraçada? Os homens não seriam mais os únicos a precisar de um banho frio para acalmar os apetites sexuais. Ela já estava começando a achar que teria de mergulhar de cabeça no freezer.
Ela o culpava por seus pensamentos erráticos. Afinal, era ele quem estava lançando aquele olhar.
Ele caminhava lentamente em direção a ela, obviamente dando-lhe tempo para decidir. Os pés dela pareciam ter criado raízes no chão, e seu estômago parecia ter borboletas voando dentro.
— Só complicaria tudo — ela disse.
— Por quê?
— Porque a gente acabaria transando e daí...
— Uma ótima transa — ele corrigiu. — Nossa transa seria muito gostosa.
Ele a fazia pensar no assunto, e a expressão de seus olhos dizia-lhe que ele também estava com a imaginação solta. Ela assentiu com a cabeça, tentou engolir, mas sua garganta estava seca demais. Seu sangue pulsava forte. Sua pulsação deveria estar a 160 por minuto. Irregular, também. Ótimo, ela pensou; um homem lindo faz uma aproximação e ela tem fibrilação ventricular. Se ele desse mais um passo, achou que poderia cair morta. Não seria um ótimo caso? Seu atestado de óbito relataria uma parada cardíaca como causa mortis.
Ele parou a um passo de distância dela. Com muita leveza, ele acariciou-lhe o rosto com os dedos, depois debaixo do queixo, forçando-a a olhar para ele. Ela sentiu-se estranha e insegura, até ver o ar de riso nos olhos dele.
— No que está pensando? — ele perguntou. Como se não soubesse!
— Que você está me deixando louca, Theo. É bom que entenda, antes que isso vá adiante...
— Sim? — ele perguntou, descendo os dedos pelo pescoço dela.
— O quê?
— Você disse que eu precisava entender alguma coisa. Ele agora acariciava-lhe a nuca e ela estava arrepiada.
— Precisa, mesmo — ela confirmou. — Não, quero dizer... Respire, disse a si mesma. Inspire profundamente e procure encontrar seu cérebro!
— Certo, Theo. Vou ser bem clara. Não sirvo para uma aventura. Preciso ter... uma sólida ligação com um homem antes de ir para a cama com ele. Não acredito em sexo por diversão — ela disse, tentando forçar um sorriso para aliviar a tensão. — Sou um tipo de dinossauro.
— Já lhe disse que gosto de dinossauros? Ai, ai, ai! Ela pensou e suspirou. Ai, ai, ai.
Os dedos dele brincavam suavemente com os cabelos dela na base da nuca.
— Seu cabelo é tão macio — ele murmurou. — E tem fogo na cor.
— Herdei o cabelo ruivo e as sardas de minha mãe — ela respondeu, procurando manter-se racional.
— Já lhe contei que gosto de mulheres com sardas? Sinto uma vontade louca de beijar cada uma delas.
— Tenho sardas por todo o corpo.
— Vamos chegar lá, também. Ela voltou a sentir a cabeça leve.
— Não, isso não vai acontecer — ela afirmou.
— Bem, vamos ver.
Ai, ai, ai! Ele era convencido. Precisava trabalhar esse defeito e era o que ela pretendia dizer-lhe quando sua cabeça estivesse mais clara. Naquele momento, estava difícil até manter-se em pé. Aquele homem a deixava extremamente excitada apenas ao tocá-la. Cada nervo de seu corpo reagia ao menor toque dele.
Quando percebeu que estava pronta para arrancar a roupa, deu um passo atrás. Cuidadosamente, afastou o braço dele. Suas pernas pareciam ter virado geléia, mas ela conseguiu dar meia volta e ir para seu próprio quarto. Quando estava fechando a porta, cometeu o erro de olhar para ele. Ele estava encostado no batente da porta e sorria para ela.
Ela não deixaria que ele soubesse o quanto seu toque a perturbava. Esse Homem da Cidade Grande estava precisando de uma boa lição. Ele não teria tudo como queria, não senhor!
— Olhe aqui, se mexer comigo, terá de agüentar as conseqüências — ela declarou. — Pode tomar um banho bem frio depois que eu tomar.
Como podia ter dito aquilo? Tarde demais, ela percebeu que estava entregando o jogo e resolveu consertar:
— Vou tomar banho frio porque estou com calor — ela explicou, dando-se conta que só estava deixando as coisas piores.
— Michelle? — ele provocou.
— O que é?
— Nem comecei a mexer com você.
Ela bateu a porta e encostou-se contra a madeira.
— Ai, ai, ai — murmurou.


Capítulo 18


Michelle enumerava os motivos pelos quais não deveria nem iria se envolver com Theo. Já tinha chegado ao número vinte, quando ele bateu na porta do banheiro.
— Ainda não tomei banho — ela disse.
— Eu sei. Só estava pensando se quer que eu instale seu computador para você.
— Você encontrou?
Ela abriu uma pequena fresta da porta e espiou para fora, segurando o roupão trespassado sobre o peito.
— Não foi difícil. Tropecei em uma das caixas quando fui colocar minhas roupas na máquina de lavar. Quer que eu instale ou não?
— Instalar meu computador? Claro que quero — ela respondeu. Voltou a fechar a porta na cara dele e voltou a enumerar os
motivos. Quando chegou ao número 23 — teria de mudar os lençóis — percebeu que estava ficando desesperada e resolveu voltar ao número um. Ele iria deixá-la com o coração partido.
Ela entrou no box e abriu a torneira ao máximo. A água fria fez com que se encolhesse. Ela ajustou a temperatura e deixou que a água tépida a acalmasse.
Quando enxaguou o xampu dos cabelos, já voltava a sentir-se indignada. Mexer com ela, sim senhor! Não, ela não era tão fácil de se deixar manipular, pensou, desembaraçando o cabelo, depois ligou o secador.
Com certeza seria um amante exigente...
— Droga! — ela murmurou.
Devagar e relaxadamente. Será que conseguiria tirar essas palavras de sua mente? Eram como uma música que se repetia em sua mente.
Ela escovou os dentes, aplicou hidratante no rosto e verificou seu reflexo no espelho.
— Admita — murmurou. — Está louca para dormir com ele. Sacudiu a cabeça. Não, não era verdade. Estava louca para fazer amor com ele. E que mal havia nisso? Absolutamente nenhum. Estava apenas fantasiando, e fantasiar sempre foi uma atividade perfeitamente saudável da psique humana.
Realizar a fantasia, sim, era algo completamente diferente. Motivo número um... aquela história de ficar com o coração partido...
— Já passei por isso e não gostei — ela murmurou.
Ah, não! Não se envolveria com Theo Buchanan. Por isso, resolveu não vestir uma das camisolas curtas que costumava usar para dormir. Pegou o pijama comprido de seda azul da última gaveta e fechou todos os botões, inclusive o que ficava rente ao pescoço. A gola chinesa roçava-lhe o queixo. Ela achou os chinelos que combinavam, mas colocou-os de lado e pegou as velhas pantufas que estavam embaixo da cama. Escovou bem os cabelos, tirando-os do rosto, aplicou um brilho transparente nos lábios, depois revirou o armário, até encontrar um roupão bem comprido. A barra chegava a arrastar no chão. O roupão era de abotoar, e ela fechou cada um dos botões. Também tinha um cinto e ela fez um nó duplo.
Depois verificou sua aparência no espelho. Muito bem, resolveu. Parecia uma freira.
Theo estava na biblioteca. Havia tirado o computador das caixas e já estava tudo funcionando quando ela desceu. Ele estava lendo alguma coisa na tela. Espiou por cima dos óculos de leitura quando ela entrou ali e seu olhar ficou estático. Em um segundo, percebeu todos os detalhes que envolviam-na: o pijama combinava com os olhos dela; os cabelos, caídos sobre os ombros, brilhavam em tons dourados sob a luz suave; ela era linda, mesmo sem um pingo de maquiagem.
Estava vestida para ir para a cama... se a cama fosse no Pólo Norte. Michelle tinha estudado tanto para ser médica, mas não entendia como a mente de um homem funciona. Todo aquele monte de roupa... só o fazia fantasiar sobre o que estaria embaixo.
Sua imaginação começou a funcionar e ele visualizou-a tirando cada peça de roupa, antes de deitar-se sobre os lençóis. Pare de pensar nisso, ralhou consigo mesmo. Mantenha a cabeça no lugar e pare de pensar na pela macia que está por baixo daquela seda.
Michelle aproximou-se da escrivaninha. Sentindo-se incomodada pelo modo como ele olhava para ela, começou a brincar com o cinto do roupão e perguntou:
— Então, o que acha?
Como ele não respondia, ela insistiu:
— Theo?
Ele tinha um sorriso estranho no rosto, e agora olhava para os pés dela.
— O que foi?
— Está esperando uma tempestade de neve para esta noite?
— Eu estava com frio — ela mentiu, colocando a mão no pescoço. Ele riu.
— Eu estava, sim — ela insistiu. — Fico com frio quando o ar condicionado está ligado. Baixei um pouco para ficar melhor para você.
— Sei, sei,
Ela estava se sentindo uma idiota, pois ele não estava acreditando em suas mentiras.
— Belas pantufas de coelhinha.
— Obrigada — ela disse. — Agora, se acabou de rir de mim, responda minha pergunta. O que acha... do meu computador?
— É antigo.
— Quer parar de olhar para as minhas pantufas? Exasperada, ela apoiou-se na beirada da escrivaninha e descalçou as pantufas. Theo riu ao ver que estava usando meias.
— Qual é a graça, agora? — ela perguntou.
— Só estava imaginando se está usando ceroulas, também.
— Não uso ceroulas, seu bobo — ela disse. — Agora, quer fazer o favor de responder minha pergunta? Meu computador funciona ou não?
— Onde arranjou isso?
— Meu irmão Remy me deu. Era de um amigo dele, e ele trouxe da última vez que esteve por aqui. Eu ainda não tinha tido tempo de montar o computador. Só faz duas semanas que me mudei para cá, e John Paul ainda queria passar uma segunda demão de verniz no chão e, se você conhecesse meu irmão, saberia que ele faz as coisas a seu próprio tempo. Eu vinha usando o computador do hospital. Sei que esse é antigo, mas mais para a frente, quando eu puder, comprarei um mais atualizado.
Theo arrumou o monitor em um canto da escrivaninha, colocou o teclado onde achou que ela gostaria que ficasse, depois recostou-se na cadeira de couro macio.
— Então... essa pessoa que anda seguindo você... não seria algum namorado de quem você partiu o coração?
— Já falamos sobre isso.
— Pois vamos falar de novo. Ela não discutiu.
— Não, há muito tempo não me envolvo com ninguém. Além do mais, sou médica e não parto corações; eu...
— Já sei, já sei. Você cura.
O laptop dele estava no outro canto da escrivaninha. Era um modelo elegante e caro. Enquanto ela olhava para o aparelho, surgiu um grande "e" na tela, logo seguido por um blip.
— Pelo jeito, chegou mensagem para você — ela comentou. Ele inclinou-se sobre a mesa, pressionou uma tecla e viu quem tinha lhe enviado a mensagem. Ela leu o nome antes que ele apertasse outra tecla e a tela ficasse vazia.
Ela não tinha certeza se ele estava esperando até mais tarde para ler a mensagem porque sabia que não era importante ou porque não queria que ela lesse.
— Quem é Noah?
— Um amigo.
— Eu li o nome — ela explicou mesmo que ele não houvesse perguntado. — Você falou com ele pelo telefone mais cedo.
— Isso mesmo. Ele ligou. Deveria estar esperando ao lado do computador, porque enviei uma mensagem há pouco, enquanto você estava no banho, e ele já respondeu.
— Se quiser ler a mensagem agora, posso ir para a outra sala.
— Não, tudo bem. Pode ler comigo. Só acho que não entenderá.
— Técnica demais?
— Não — ele respondeu. — É que tem a marca registrada de Noah. Se você o conhecesse, saberia o que é. Meu amigo tem um humor um tanto ácido.
— Do modo como fala, mais parece um elogio.
— E é — Theo respondeu. — No trabalho que ele faz, acho que ajuda ser um pouco cáustico.
Theo apertou uma tecla e esperou. Michelle inclinou-se sobre o ombro dele para poder ler a mensagem. Realmente, não conseguiu entender nada.
— É algum tipo de código?
— Não — ele respondeu asperamente.
Que diabos! Ele desejou que ela se afastasse um pouco. Podia sentir o cheiro suave do xampu que ela havia usado, sentir o calor que emanava de seu corpo macio.
Estava tenso. Tinha vontade de puxá-la para seu colo e beijá-la até ela perder o fôlego. A fantasia continuava, e ele se imaginava fazendo todas as outras coisas que queria fazer com ela e para ela. Começaria pelos dedos dos pés dela e subiria até que o último botão fosse desabotoado e ele pudesse...
— Quem è Mary Beth?
— Como?
— Noah está dizendo que não lhe agradeceu antes por você ter deixado ele usar Mary Beth da última vez que esteve em Boston. Vocês são tão amigos que compartilham mulheres, é?
— Mary Beth é um barco de pesca. Convidei Noah para vir pescar aqui em Bowen. Contei a ele sobre o torneio, e ele pediu que eu o inscrevesse. Está ficando louco em Biloxi. Está aplicando um programa de treinamento e está detestando.
Voltou a virar-se para o monitor, tirou os óculos e os colocou sobre a mesa. Estava tendo dificuldade para se concentrar. Era o melhor que podia fazer para controlar-se e não agarrá-la. Que diabos estava acontecendo com ele? Michelle seria uma complicação que ele não queria no momento. Não era o tipo de mulher para "ficar e largar" e ele não ficaria ali por muito tempo.
Sabia que estava sendo incoerente. Havia ido a Bowen por causa dela e mesmo assim...
Ela cutucou seu ombro, para chamar sua atenção e perguntou:
— Quem é o Pregador?
— Padre Tom Madden — ele respondeu. — É quase um irmão — acrescentou. — Quando estava começando o segundo grau, veio morar com nossa família. Tem a idade de Nick, e os dois são os melhores amigos. Freqüentaram a Penn State juntos. Nick vai se casar com a irmã mais nova de Tom.
— Porque Noah o chama de Pregador?
— Noah é quem diz que padres são um "prego no sapato", só para provocar Tommy. Mas Tommy sempre perdoa as brincadeiras de Noah.
— Por quê?
— Porque Noah quase morreu salvando a vida de Tommy. Ele deixa o Tommy quase louco, mas na verdade os dois tornaram-se grandes amigos. Os três volta e meia saem para pescar juntos — ele contou.
Ela sorriu, depois perguntou:
— Essa última linha que Noah escreveu... o que ele quer dizer com "quanto ao outro, não há problema"?
— Significa que não conheço muito bem as coisas por aqui e que ele verificará umas coisinhas para mim.
— Sua resposta é mais misteriosa do que a mensagem dele. Ela afastou-se da mesa e abriu as portas que ligavam a biblioteca à sala de estar. Havia revistas médicas espalhadas sobre o sofá. Ela as recolheu e empilhou a um canto da mesa, depois se sentou com um suspiro.
— Levantou os cabelos para que seu pescoço recebesse um pouco de ar. Como estava sentindo calor! O roupão pesado a estava sufocando. Ela pegou uma das revistas e ia abanar-se, mas logo compreendeu que seria revelador demais e recolocou a revista sobre a mesa.
Theo recostou-se em sua cadeira e espiou pela porta aberta.
— Você está bem? Parece um pouco vermelha. Ele não deixava escapar nada!
— Estou cansada. É só.
— Desde que horas está em pé?
— Desde as cinco, mais ou menos.
Ele acabou de digitar em seu computador.
— Vou deixar isto aqui ligado — ele disse.
Depois levantou-se, alongou os braços e girou os ombros. Para ela, ele parecia um grande e elegante felino.
— Por que trouxe seu laptop? Vai verificar seu correio eletrônico enquanto estiver pescando?
— É como meu telefone celular. Jamais saio de casa sem ele. Quer beber alguma coisa?
— Não obrigada, mas pode pegar o que quiser.
Theo foi até a cozinha, pegou um refrigerante diet na geladeira, depois examinou o armário de comida. Encontrou um pacote fechado de biscoitos com baixo teor de gordura e de sódio. Levou o pacote consigo de volta para a sala.
Sentou-se em uma grande poltrona reclinada, tirou os sapatos e colocou os pés sobre o descanso para pés que completava o jogo. Colocou a lata de refrigerante sobre uma caixa de papelão ao lado da poltrona e abriu o pacote de biscoitos.
— Quer um?
— Não, obrigada. Acabei de escovar os dentes. Você não se satisfaz nunca?
— Não com essas coisinhas. Ele começou a comer os biscoitos e comentou:
— Pedi para alguns amigos fazerem algumas ligações e dois de meus estagiários estão fazendo pesquisa para mim. Não é nada complicado e espero que eles me enviem a resposta esta noite para eu ter tudo pronto amanhã.
— Fazendo trabalho do Ministério da Justiça mesmo estando em férias?
— É sobre o engenho de açúcar. Ela empertigou-se no sofá.
— Ah, você acha que vai conseguir ajudar Daryl e a família?
— Vou tentar. O que você sabe sobre os irmãos Carson?
— Não sei muita coisa — ela admitiu. — É melhor falar com papai. Ele conhece os irmãos há muito tempo. Ele tem condições de responder às suas perguntas. Esta é uma comunidade pequena, e é fácil obter informação. Todos sabem o que acontece com os outros.
— E mesmo assim ninguém sabe nada sobre o ataque à sua clínica — ele observou. — Por mais que eu tente, não consigo acreditar que adolescentes tenham feito aquilo.
— Então, o que acha que foi?
— Que foi coisa de uma homem só. Pode ser que eu esteja enganado, mas não acredito estar. Dá para perceber um padrão.
— Não entendo. O que você quer dizer com "padrão"?
— Existe ordem no caos. Ele entrou pela porta de trás...
— Mas a janela da área de recepção estava quebrada.
— Sim, mas ele quebrou quando estava lá dentro. É fácil verificar. Os cacos de vidro do lado de fora comprovam.
— E o que mais?
— Olhe, não é bem o meu ramo de trabalho — ele explicou. — Meu trabalho é processar. Mas se fossem garotos procurando drogas, como seu pai e Ben Nelson acreditam, então como as salas de exame mal foram tocadas?
— O vidro e as trancas dos armários de remédios foram quebrados.
— Pois é, mas as agulhas e blocos de receita continuam lá. E os arquivos, Michelle? Por que alguém perderia tempo com as pastas dos pacientes?
— Talvez só estivessem jogando coisas de um lado para outro.
— A mim não parece um caso de simples vandalismo. A molecada que entra para vandalizar... normalmente traz seu próprio equipamento de diversão.
— Como o que, por exemplo?
— Tinta spray — ele disse. — O sujeito que fez aquilo usou a sua tinta para fazer a sujeira. E acho que não estava preparado para arrebentar tudo. O lixo espalhado nos fundos tinha todo o jeito de que alguém o havia examinado. Não havia nem uma marca na porta de trás, o que me faz acreditar que ele tinha as ferramentas apropriadas e sabia usá-las muito bem.
— Acha que foi um profissional? Ele não respondeu.
— Noah vai dar uma passada lá amanhã. Se você não se importar, é claro. Gostaria que deixasse a clínica exatamente como está até ele examinar bem o local.
— Só amanhã?
— Sim.
— Está bem — ela concordou.
Suas amigas só poderiam vir ajudar dali a dois dias. Ela poderia esperar mais um pouco.
— O que Noah faz?
Theo não deu uma resposta específica, limitando-se a dizer:
— Ele é do FBI.
— FBI? — ela não conseguiu esconder o quanto ficou alarmada. — Então deve estar achando...
Ele a interrompeu.
— Não tire conclusões apressadas. Noah é um amigo da família e achei que seria bom ele dar uma boa olhada na clínica. Quero saber a opinião dele. Além do mais, ele está em Biloxi, que é aqui perto, e adora pescar. Um dia ou dois em Bowen seria um ótimo passeio para ele.
— Agradeceria muito a ajuda dele... e a sua também, mas será que não estamos fazendo tempestade em copo d'água? Pode ter sido um fato isolado.
— Nem você está acreditando nisso, não é? Ela baixou a cabeça e esfregou as têmporas.
— Não, acho que não, mesmo. E acho que Ben também não acredita que tenham sido garotos — ela admitiu. — Ele andou pela clínica comigo, e nós dois constatamos que não havia pegadas do lado de fora das janelas. A grama ainda estava molhada. Choveu forte na noite anterior. Deveria haver pegadas.
— Então, por que discutiu comigo sobre a forma de arrombamento?
Ela deu de ombros.
— Acho que não queria complicar as coisas, queria poder entender. Sabe qual foi a primeira coisa que pensei quando vi a clínica?
— Não. O que foi?
— Que alguém realmente me odeia. Isso me apavorou — ela disse. — Venho revirando a memória, tentando encontrar um nome possível, mas honestamente não voltei há tempo suficiente para fazer algum inimigo. Com mais alguns meses, a lista já pode ficar bem comprida.
— Duvido — ele discordou. — O sujeito perdeu o controle em sua clínica. Noah pode nos dar uma idéia do que foi.
Ele colocou outro biscoito na boca. Sem queijo cremoso ou pasta de amendoim, para ele os biscoitos tinham gosto de serragem, mas continuou comendo, mesmo assim.
— Pessoas como Noah pegam os criminosos e você faz com que fiquem presos.
— Mais ou menos isso.
— Pelo menos, não precisa se preocupar com gente querendo dar tiros em você.
— Isso mesmo.
A resposta afirmativa era uma mentira, sem dúvida. Na verdade, já haviam atirado nele, chutado, mordido, socado e até cuspido quando ele estava fazendo seu trabalho. Até haviam falsificado dois contratos para incriminá-lo. Quando começou a ir atrás dos negócios da família de Leon, recebia ameaças de morte diariamente.
— Tenho uma teoria — ela disse.
— Vamos ouvir, então.
Ele olhou no fundo do pacote para ver se encontrava mais algum pedacinho para comer.
— Talvez um dos pacientes do Dr. Robinson estivesse atrás de sua pasta.
— E por que motivo iria atrás de uma coisa dessas?
— Não sei. Se tivesse alguma doença contagiosa, ou um diagnóstico que não desejasse que a companhia de seguros ou a família soubesse, então poderia querer eliminar os arquivos. Sei que é um tanto absurda, mas é a única coisa que parece fazer sentido para mim. O único motivo para ter o arquivo todo mexido como foi.
— O Dr. Robinson deu-lhe a lista de seus pacientes?
— Deu, sim. Havia uma lista em um envelope pardo colado com fita adesiva em uma das caixas. Ele não tinha muitos pacientes, se considerarmos o tempo que passou por aqui. Pelo que ouvi, o Dr. Robinson precisava de umas aulas de trato com o público. Costumava ofender seus pacientes.
— É por isso que não tinha muitos pacientes.
— Com certeza.
— Depois que Noah examinar sua clínica e nos disser o que acha, vai ser preciso comparar os arquivos com a lista de nomes, para ver se falta alguma pasta.
— Isso se a lista não tiver sido destruída. Theo concordou com a cabeça e sugeriu:
— Também acho que seria uma boa idéia você ligar para Robinson e verificar se ele tinha algum paciente problemático. Você sabe como perguntar.
— É verdade. Também pode ser que ele tenha uma cópia da lista de pacientes, se precisarmos.
Ele percebeu que ela estava massageando a nuca.
— Está com dor de cabeça?
— Mais ou menos.
— Bom, talvez eu possa "consertar".
Ele levantou e foi sentar-se ao lado dela no sofá. Depois colocou uma almofada no chão, entre seus pés descalços e disse para ela se sentar ali, para ele "tirar os nós".
A oferta era irresistível. Ela acomodou-se entre as pernas dele e esticou as pernas. Ele pôs as mãos sobre os ombros dela, mas não começou a massagem.
— Tire o roupão.
Ela desamarrou o cinto, desabotoou e despiu o roupão.
— Agora tire a parte de cima do pijama.
— Boa tentativa. Não, obrigada. Ele sorriu.
— Está bem, então desabotoe apenas os botões de cima.
Ela teve de abrir três botões para as mãos dele poderem massagear seus ombros. Já era tarde quando ela percebeu o que estava permitindo. As mãos grandes e quentes de Theo estavam tocando diretamente sua pele e, ai, ai, ai, como era gostoso.
— Sua pele é macia.
Ela fechou os olhos. Deveria fazer ele parar, pensou. Que loucura era aquela? Theo era o motivo de ela estar tão tensa, e agora ele estava deixando a situação deliciosamente pior. Sim, definitivamente tinha de fazê-lo parar. Dobrou a cabeça para baixo, no entanto, para ele poder massagear a base da nuca.
— Sabe o que pensei da primeira vez que a vi?
— Que eu era irresistível? — ela provocou. — Tão irresistível que não pôde deixar de vomitar em mim?
— Nunca vai me deixar esquecer esse vexame, não é?
— Talvez não.
— Eu estava ficando louco com a dor naquela hora — ele lembrou. — E não era disso que eu estava falando, de qualquer maneira. Depois da cirurgia, quando você entrou em meu quarto, e começou a falar de Bowen, de sua clínica e do povo que mora aqui... sabe o que eu estava pensando?
— Que não via a hora de eu parar de falar para você poder dormir um pouco?
Ele puxou-lhe o cabelo de leve.
— Estou falando sério. Vou lhe contar o verdadeiro motivo de eu ter vindo a Bowen.
O tom da voz dele indicava que não estava brincando.
— Desculpe. O que estava pensando?
— Que queria o que você tinha.
— O quê?
— Vi em você algo que eu tinha quando comecei a trabalhar, mas que, de alguma maneira, fui perdendo ao longo do caminho. Isso nunca me incomodou até conhecer você. Você me fez querer encontrar isso outra vez... se for possível.
— E o que foi que viu?
— Paixão.
— Não compreendo. Paixão pelo meu trabalho?
— Paixão, a vontade de fazer com que seu trabalho faça uma diferença.
Ela pensou um instante.
— Não pretendo mudar o mundo, Theo. Só quero fazer diferença em uma pequena área — ela se pôs de joelhos e voltou-se para ele. — Você não acha que seu trabalho marca? — ela perguntou, espantada.
— Sim, com certeza — ele respondeu friamente. — Simplesmente perdi o entusiasmo pelo trabalho, acho. Não sei bem o que há de errado comigo. Os homens que mando para a prisão... reproduzem-se como ratos. Quando prendo um, aparecem mais três no lugar. É frustrante.
— Acho que você está simplesmente sofrendo de exaustão. Tem trabalhado demais desde que sua esposa morreu. Não se permite tempo para relaxar.
— Como sabe disso?
— Você me disse que adora fazer coisas com as mãos, também disse que não tem tido tempo para praticar marcenaria há quatro anos. Em outras palavras, desde que sua esposa morreu.
Ela podia sentir que ele queria interrompê-la, por isso acrescentou depressa:
— E pescar, também. Contou-me que adorava pescar, mas pelo modo como falou, parecia estar falando de uma vida passada. Já se puniu demais, Theo. Está na hora de aproveitar a vida.
Sua primeira reação foi a vontade de dizer a ela que não tinha ido a Bowen para ser analisado, e que ela deveria deixá-lo em paz. Ela tinha posto o dedo bem fundo na ferida... mas só havia dito o que ele já sabia. Nos últimos quatro anos, ele tinha trabalhado o máximo que podia para que não sobrasse tempo para pensar que não conseguira salvar a esposa. A culpa corroia sua alma há muito tempo. Havia consumido sua energia, seu entusiasmo, sua paixão.
— Precisa ir mais devagar e deixar que a vida passe por você durante umas duas semanas, pelo menos.
— Ordens médicas?
— Sim, senhor — ela disse. — Vai se sentir rejuvenescido. Garanto. Ela estava preocupada com ele. Podia ver isso em seus olhos.
Como era doce! E como lidaria com isso? Estava começando a gostar dela muito mais do que havia previsto.
— E se decidir voltar a Boston, pelo menos irá com uma atitude diferente.
— Se eu voltar?
— Eu quis dizer quando voltar — ela se corrigiu.
Ele não tinha a mínima vontade de pensar em Boston, sobre trabalho, sobre seu futuro ou sobre qualquer coisa ligada a tudo aquilo, e isso não fazia parte de sua natureza. Era um planejador, sempre havia sido, desde que se entendia por gente, mas agora não desejava planejar nada. Queria fazer exatamente o que Michelle havia sugerido. Ir mais devagar e deixar a vida passar.
— Gozado — ele comentou.
— O quê?
— Você... eu. É como se o destino houvesse nos aproximado. Ela sorriu.
— Você é a contradição em pessoa, Theo. Um advogado com um lado romântico. Quem poderia imaginar que isso é possível?
Theo decidiu aliviar a atmosfera. Era tão fácil e divertido provocar Michelle, e suas reações o deliciavam. Ele gostava de deixá-la sem jeito. A doce doutora ficava vermelha com a maior facilidade.
— Sabe o que mais pensei quando a conheci? — ele perguntou, com um sorriso brincalhão.
— Não. O que foi? — ela perguntou, desconfiada.
— Que você era sexy. Muito sexy.
— Ah! — a interjeição soou como um suspiro.
— Ah, o quê? Ai, ai, ai.
— Aquela roupa verde e bem larga da ala cirúrgica, não é? Realmente é uma roupa mais do que provocante.
— Aquela máscara engraçadinha cobria o que há de melhor em você.
— Minhas sardas?
— Sua boca.
Ai, ai, ai. Theo sabia como cortejar. Ele a tentava e a deixava querendo sempre mais.
Ela sorriu com doçura.
— Você ainda não viu o que tenho de melhor — ela disse.
Ele levantou uma sobrancelha, com aquele delicioso jeito de Cary Grant que ela adorava.
— Ah, é? — ele provocou. — Agora me deixou curioso. Não vai me contar o que tem de melhor?
— Não.
— Quer que eu passe o resto da noite imaginando?
Ela esperava que sim. Queria fazê-lo sofrer, também, como ele a fazia, cada vez que olhava daquele jeito para ela. Sabia que não conseguiria dormir bem naquela noite. Por que deveria ser só ela a perder o sono? Ah, ele lhe pagaria. De repente, estava se sentindo muito contente consigo mesma. Theo poderia ser o mestre da abordagem sexual, mas ela finalmente estava se sentindo sob controle. Não era tão novata, afinal.
Meta-se comigo e agüente as conseqüências.
— Quer um pouco de diversão? — ele perguntou.
— Não — ela respondeu, rindo.
— Se tem certeza...
— Absoluta.
— Então, talvez seja melhor abotoar seu pijama.
Ela olhou para baixo e deixou escapar um grunhido. A blusa do pijama estava completamente desabotoada. Porcaria de botões cobertos de seda! Nunca se mantinham abotoados. Os seios estavam cobertos... mal e mal. Mortificada, ela apressou-se em abotoá-los.
Seu rosto estava rosa-choque quando olhou para ele.
— Por que não disse nada?
— Está brincando? Por que eu diria alguma coisa? Estava gostando. E não olhe para mim desse jeito. Não fui eu quem desabotoou isso aí. Sou um mero observador passivo.
Ela sentou-se sobre os calcanhares e vestiu o roupão.
— Vou me deitar. Obrigada pela massagem. Fez bom efeito. Ele inclinou-se para a frente, envolveu o rosto dela nas mãos e a beijou. A boca de Michelle era tão macia, quente e doce. Tinha gosto de menta. Ele não se apressou, esperando uma resposta, sem forçá-la.
Não havia tido tempo para preparar-se. Ela não percebeu que ele ia beijá-la, até que os lábios dele tocaram os seus. Não resistiu. Deveria ter resistido, mas não resistiu. Seus lábios entreabriram-se, ele intensificou o beijo e ela sentiu-se esmorecer.
Ela estava pronta para render-se a ele e ambos sabiam disso. Mas, de repente, ele afastou-se.
— Bons sonhos.
— O quê?
— Boa noite.
— Ah, sim. Vou me deitar.
Havia uma expressão brejeira nos olhos dele. Ele sabia o que acabara de fazer com ela. Michelle só faltou derreter diante dele. O que aconteceria se fizessem amor? Ela poderia acabar sofrendo falência mental total.
Como ele conseguia excitá-la e afastá-la tão depressa e com tanta eficiência? Experiência e disciplina, ela decidiu, enquanto punha-se de pé e saía da sala. Anos e anos de experiência e disciplina. Ela, por sua vez, parecia ter a disciplina de um coelho. Bastou um beijo para ela estar pronta para ter os bebês dele.
Ora, era degradante! E ele tinha de beijar tão bem? Ela tirou o cabelo do rosto com um gesto brusco. O Moço da Cidade Grande iria comê-la viva se ela não segurasse as rédeas de suas emoções. Não era uma virgem inocente. Já havia tido uma relação antes e, na época, acreditava que se casaria com ele. Mas nem de longe o outro beijava bem como Theo, e também não fazia ela sentir-se tão viva e desejável.
O grande canalha. Michelle tropeçou na barra do roupão enquanto subia a escada. Assim que chegou a seu quarto, jogou o roupão sobre uma cadeira. Depois, enfiou-se na cama. Ficou ali por cinco segundos, levantou-se e voltou a descer.
Theo mais uma vez estava diante do computador, digitando.
— Escute aqui, seu... — ela disse, quase gritando.
— Sim? — ele respondeu, com as mãos ainda no teclado.
— Só quero que fique sabendo...
— O quê?
— Que sou uma cirurgia muito boa. Enquanto você estava adquirindo toda sua experiência... se roçando por aí, e estou usando esta palavra de propósito...
— Sim? — ele perguntou, com um sorriso maroto nos cantos dos lábios.
Ela bateu no peito e voltou a falar...
— Eu estava muito ocupada aprendendo a usar um bisturi. É bom que saiba...
— Que eu saiba o quê? — ele perguntou, porque ela interrompeu-se abruptamente.
Ela sentia a cabeça vazia. Vários segundos se passaram em um pesado silêncio. Ela deixou os ombros caírem e disse:
— Não sei.
Sem mais uma palavra, ela saiu dali.
Como poderia ser mais idiota ainda? Duvido que consiga, pensou, voltando a deitar-se. Sentiu-se como Davi indo enfrentar Golias; e só então percebendo que havia esquecido a funda. Deixando escapar um protesto entre dentes, virou-se na cama, cobriu o rosto com um travesseiro e fechou os olhos.
Ele a estava deixando louca.


Capítulo 19


Monk detestava campana. Ficou nas sombras de um chorão, observando a casa da Dra. Renard, esperando para certificar-se que ela havia ido se deitar, para ele poder voltar a seu quarto de motel e dormir algumas horas. Teria de ouvir todas as conversas telefônicas gravadas, primeiro, é claro. Esfregou a coxa como para se consolar porque havia rasgado sua calça preferida ao subir no poste telefônico para instalar o grampo.
Enquanto ficava ali, hora após hora, esperando e observando, pensava em trabalhos anteriores. Gostava de repassar cada mínimo detalhe. Não estava sendo funesto, nem tampouco sentia um prazer perverso ao pensar em suas vítimas. Não, seu objetivo era rever seu desempenho e depois analisá-lo. Que erros havia cometido? O que poderia ser feito para aprimorar seu trabalho?
Tinha aprendido algo com cada trabalho que havia realizado. A esposa em Biloxi costumava deixar um revólver carregado embaixo do travesseiro. Se o marido sabia, deixou de mencionar o fato para Monk. Quase acabou com a cabeça estourada, mas felizmente conseguira tirar o revólver das mãos dela. Depois usou o mesmo revólver para matá-la, para não perder tempo tendo de sufocá-la. Esperar o inesperado. Essa era a primeira lição.
Também houve a adolescente em Metairie. O desempenho de Monk naquela noite não foi exatamente perfeito e, olhando para trás, Percebeu que havia tido muita sorte por não ter dado de cara com ninguém. Havia demorado demais por ali. Deveria ter saído no instante em que terminou o trabalho mas, em vez disso, ficou vendo um filme na televisão. O mais impressionante era o fato de Monk jamais assistir a televisão. Achava que era inteligente demais para deixar-se prender pelo lixo que as redes colocavam no ar, que amorteciam ainda mais as mentes já amortecidas dos zumbis de sofá.
Mas aquele filme era diferente. E extremamente engraçado. O filme estava começando quando ele entrou no quarto da vítima. Ele ainda lembrava de cada detalhe daquela noite. O papel de parede listrado em branco e rosa, com pequenos botões estampados, a quantidade de bichinhos de pelúcia sobre a cama da vítima, as cortinas de babado cor-de-rosa. Era a cliente mais jovem que já tivera, mas o fato não chegou a incomodá-lo. Um trabalho, afinal, não passava de um trabalho, como qualquer outro. Monk só se importava em fazer o trabalho e fazer bem-feito.
A música do aparelho, ele se lembrava, estava incrivelmente alta. A garota estava acordada, um tanto amortecida pelo cigarro de maconha que acabara de fumar. O ar tinha um cheiro doce e carregado. Estava vestida com uma camiseta azul curta, apoiada sobre travesseiros encostados na cabeceira cor-de-rosa da cama, e um enorme saco de salgadinhos no colo. Olhava bestificada para a tela da televisão, sem se dar conta da presença dele. Ele havia assassinado a adolescente com o rosto cheio de acne e cabelo castanho oleoso como um favor especial — e por 25 mil dólares — para que o bom e velho papai pudesse colocar as mãos em uma apólice de trezentos mil dólares que havia feito seis meses antes. A apólice tinha uma cláusula que determinava que, se ficasse provado que a morte fosse acidental, ele teria direito ao dobro do valor estipulado. Monk esforçou-se ao máximo para fazer parecer que a morte havia sido acidental para conseguir receber o dobro do que havia cobrado. O pai havia apreciado muito o trabalho, sem dúvida, e apesar de não ser necessário explicar por que desejava ver a filha morta — pois só o dinheiro interessava a Monk — ele confessou que estava desesperado para tirar agiotas tubarões de suas costas, e que faria o que fosse preciso para isso.
Ah, o amor paternal! Nada mais belo no mundo.
Enquanto a matava, ouvia os diálogos do filme e, depois de um ou dois minutos, estava hipnotizado. Tirou os pés da morta do caminho, sentou-se na ponta da cama e assistiu ao filme até os créditos finais, todo o tempo mastigando os salgadinhos do pacote.
Estava se levantando para sair quando ouviu uma porta de garagem abrir-se. Saíra no minuto exato; mas agora, pensando no risco desnecessário que correra, percebia a sorte que tivera. Que lição havia aprendido dessa experiência? Entre e saia o mais rápido possível.
Monk acreditava que havia melhorado muito desde aqueles primeiros serviços de assassinato. Havia despachado Catherine sem o menor problema.
Levantou os olhos para a janela do quarto da médica mais uma vez. Ela estava indo se deitar bem mais tarde do que ele esperava, mas era compreensível, uma vez que estava com um homem em casa. Quando Monk a seguira até O Cisne, vira o tal homem em meio à horda de adolescentes barulhentos. Só havia examinado rapidamente seu rosto e seus ombros. Os adolescentes o haviam rodeado enquanto gritavam para chamar sua atenção. Todos o chamavam de treinador.
Espere o inesperado. Ele havia ligado para Dallas, dado o número da placa do carro alugado, e pediu um relatório completo.
A luz finalmente apagou-se no quarto dela. Monk esperou mais meia hora para ter certeza de que ela havia ido dormir antes de retirar-se silenciosamente pela estradinha de pedras até o ponto onde havia escondido seu carro. Dirigiu-se para o motel em St. Claire, ouviu a fita da escuta que havia feito do telefone dela, frustrado por não ter encontrado nada aproveitável, acertou a hora no despertador e, finalmente, foi dormir.


Capítulo 20


Realmente havia vantagens em ter credenciais do governo federal e em conhecer pessoas em cargos importantes. Às dez horas da manhã, Theo tinha toda a informação que precisava sobre os irmãos Carson. O que ficou sabendo sobre a dupla de atores de pantomima o deixara profundamente irritado. Já estava com as ultimações e arquivos prontos, graças aos estagiários prestativos e a um confiável serviço de entrega.
O que Theo pretendia fazer não era nada convencional e poderia até render-lhe um processo judicial, mas ele não estava preocupado com isso no momento. Esperava resolver o problema de Daryl com os do engenho de açúcar antes que os irmãos conseguissem se safar. Pelo que havia se informado sobre os advogados que recebiam honorários mensais dos irmãos, sabia que eram peixes pequenos e que nem perceberiam que tinham sido manipulados até depois do fato consumado.
Theo contava com uma vantagem que não usara até aquela data. Como membro do Ministério da Justiça, podia fazer com que se borrassem de medo por causa do Fisco.
Assobiava enquanto preparava o desjejum. Michelle entrou na cozinha quando ele estava colocando os pratos e talheres sobre a mesa.
Ela estava simplesmente deliciosa. Vestida com jeans desbotados e justos, que marcavam bem as belas pernas, e uma camiseta que acabava logo acima de seu umbigo, ela parecia ainda mais sensual do que na noite anterior, o que ele não imaginava ser possível. Tomara que conseguisse se controlar, pois ela ficava cada vez melhor.
Ele estendeu-lhe um copo de suco.
— Quer divertir-se um pouco?
Aquelas não eram exatamente as primeiras palavras que ela esperava ouvir naquela manhã e perguntou, cautelosa:
— Que tipo de diversão?
— Diversão com o engenho de açúcar.
Ela não conseguia acreditar que estava desapontada com a notícia.
— Ah, sim... sim, claro. Posso ajudar com alguma coisa?
— Claro que pode. Mas coma primeiro. Já deixei tudo pronto para você. Gosto de cozinhar — ele anunciou com entusiasmo, como se acabasse de perceber o fato. — Me faz relaxar.
Ela olhou para a mesa e riu.
— Abrir a caixa de cereal e tirar o leite da geladeira não é cozinhar.
— Também fiz café — ele se gabou.
— O que, traduzindo em miúdos, quer dizer que apertou o botão da máquina que eu havia deixado preparada ontem à noite.
Ele puxou uma cadeira para ela, sentiu seu perfume e teve vontade de chegar mais perto. Afastou-se, no entanto, indo encostar-se contra a pia.
— Está com ótima aparência hoje — comentou. Ela puxou a barra da camiseta, corando.
— Você não acha que esta camiseta está muito justa?
— E por que acha que eu disse que está com ótima aparência?
— Toda vez que a visto, logo tiro e visto outra coisa. Está na moda — ela disse, em tom defensivo — Minha amiga Mary Ann que me deu, e disse que é para o umbigo ficar aparecendo.
Ele levantou sua camiseta azul desbotada até o umbigo aparecer e disse:
— Se esta é a moda, já estou dentro.
— Vou mudar de roupa — ela disse.
Virou o rosto para não fixar os olhos no abdome bem exercitado. O homem estava em incrível boa forma, o que era um milagre, considerando-se o amontoado de porcarias que comia.
— Mas eu gostei da sua roupa — ele protestou.
— Vou trocar — ela insistiu, depois balançou a cabeça. — Está difícil... eu me sentir confortável comigo mesma ultimamente.
— O que quer dizer com isso?
— É que passei muitos anos querendo não parecer uma garota. Ele achou que brincava e riu.
— É verdade — ela insistiu. — Quando eu estava na faculdade de medicina, fazia tudo para disfarçar o fato óbvio de eu ser mulher.
— Para que fazer uma coisa dessas? — ele perguntou, sem compreender.
— O chefe de um dos departamentos tinha um preconceito muito forte contra mulheres médicas e fazia tudo o que podia para tornar nossa vida um inferno. Era um horror — ela acrescentou. — Ele e seus amigos saíam para beber com alunos homens, mas não sem antes encher as alunas com pesquisa, observação e trabalho extra. Nunca me importei em estudar ou trabalhar, mas ficava furiosa em sempre ter de fazer o dobro do que um aluno macho. Reclamar só podia piorar a situação. A única alternativa para uma aluna melhorar sua situação era desistir do curso, exatamente o que o chefe daquele departamento queria.
De repente, ela sorriu.
— Uma noite, enquanto eu e algumas das outras colegas estávamos nos afogando em margaritas, descobrimos toda a verdade.
— O que descobriram?
— Que o tal chefe de departamento tinha medo de nós. É bom lembrar que estávamos exaustas e um tanto altas.
— Conseguiram encontrar o motivo de ele ter medo de vocês?
— Nossas mentes. Ele sabia a verdade.
— Que verdade?
— Que as mulheres têm uma mente altamente superior — ela riu, enquanto acrescentava — medo e insegurança eram a base do preconceito. Lembro-me que, naquele dia, a revelação nos deixou pasmas. Não era verdade, mas nós já tínhamos bebido demais para nos importarmos. Agora percebo que era tudo bobagem, não somos nem melhores nem mais capazes que os homens que exercem a Medicina, é tudo igual. Mas conseguir rir e formar uma cumplicidade nos ajudou a enfrentar os tempos difíceis.
— A época de residência também foi assim difícil?
— Não, foi completamente diferente. Todos tínhamos de trabalhar como mulas, vinte horas por dia, sete dias por semana. Não importava quem era homem e quem era mulher. Só era necessário ser rápido. Era desgastante — ela admitiu. — Aprendi a conseguir dormir quinze minutos em pé. Tive a sorte de poder praticar com um excelente cirurgião. Era detestável, mas eu conseguia me dar bem com ele. Eu vivia com a roupa do hospital, e moda não fazia parte do currículo.
— Quem cuida de mim é uma médica — ele revelou.
— Não brinque!
— Verdade. Ela até tirou meu apêndice.
— Não sou sua médica. Se fosse esse o caso, eu o colocaria em uma dieta de baixo teor de gordura e de sódio.
— Eu já disse que não gosto de minha médica e que jamais sigo o que ela diz? Quanto a roupas, Michelle, não importa o que você use, que qualquer homem vai continuar a olhar para você. Só espero que aqueles irmãos Carson não fiquem se derretendo diante da janela enquanto eu estiver fazendo todo o possível para tentar aterrorizá-los.
— Vai usar técnicas de terror? Humm, interessante.
— Achei mesmo que fosse aprovar.
— Por que disse que eles ficariam olhando pela janela? Não posso entrar com você?
— Sinto muito. Não vai poder ver os irmãos suarem frio.
— Por que não?
— Por que não quero que ouça o que vou dizer. Nunca se sabe. Talvez um dia você se veja obrigada a testemunhar contra mim em algum tribunal.
— O que pretende fazer, exatamente?
Ele pegou o açucareiro que estava em cima do balcão e foi sentar-se diante dela.
— Espere e verá — ele disse.
Depois pegou a caixa de cereais e serviu-se de uma boa porção de flocos de milho.
— Gosto mais dos flocos açucarados — ele observou, enquanto espargia o açúcar por cima.
Ela nem conseguia olhar e provocou:
— Tem um saco de cinco quilos de açúcar na despensa. Por que não pega uma concha e dá cabo dele?
— Sarcasmo não faz bem no cardápio da manhã — ele contrapôs. — Quer um pouco de café?
— Não, obrigada. Deixei preparado para você — ela disse. — Normalmente só bebo um refrigerante diet quando acordo.
— Que contradição! — ele riu. — E ainda vem criticar meus hábitos alimentares?
Ela pegou uma lata da geladeira, tirou a tampa e deu um longo gole.
— Parece que ouvi a campainha esta manhã — ela comentou.
— Ah, sim. Chegaram alguns papéis para mim lá de Nova Orleans. Achei incrível o serviço de entrega encontrar sua casa. Achei que minhas instruções não haviam sido muito claras.
— Vocês têm sede em Nova Orleans?
— Não, tenho amigos lá — ele disse. — Depois de falar com Daryl, liguei para algumas pessoas em Boston. Já que eu não conheço as leis da Louisiana, nem o sistema trabalhista da região, precisei contatar alguns de meus conhecidos.
— Parece que, se um empregado sofre um acidente enquanto está trabalhando, tem direito a uma indenização, não é?
— Há exceções.
— O que, por exemplo?
— Se o empregado fez alguma coisa que possa ter ocasionado o acidente, como ir trabalhar bêbado, pode perder o direito à indenização.
— E se ele usar uma máquina, sabendo que está com problemas?
— É exatamente esse argumento que os Carsons vão usar.
— Mas você está preparado para isso, suponho?
— Com certeza.
— E por que está com tanta pressa?
— Por que não quero deixar Daryl esperando. Não vou ficar aqui muito tempo e pretendo deixar esse caso resolvido antes de voltar para casa. Prometi a ele.
Ela baixou a cabeça e ficou observando os flocos de milho encharcarem-se. Ela sabia, todo o tempo, que ele iria embora. Sim, claro que sabia. Era esse o motivo de não querer se envolver. Só havia uma falha em seu plano. Por mais que se recusasse a admitir, queria agarrá-lo e nunca mais deixar que ele se fosse.
O grande bobão. Era tudo culpa dele. Se ele não a tivesse beijado, ela não estaria se sentindo tão triste naquele momento.
— Alguma coisa errada? — ele perguntou.
— Não. Por que perguntou?
— Por causa da expressão em seu rosto... como se quisesse chutar alguém.
— Eu só estava pensando.
— Sobre o quê?
Ela empurrou o cereal intocado de sua frente, recostou-se na cadeira e cruzou os braços.
— Viroses não especificadas — ela respondeu, com um tom cortante na voz.
— Seria a última coisa que poderia achar que você estava pensando. Viroses. Pode explicar.
— Viroses não especificadas — ela corrigiu.
— Desculpe o engano. Então me diga. O que, exatamente, estava pensando com essas viroses não especificadas?
— São traiçoeiras... e destrutivas, pela maneira com que atacam o corpo. Num minuto você está se sentindo bem e contente mas, no momento seguinte, sua garganta parece arranhada e arde e seu corpo todo fica dolorido. Depois sua garganta fica tão inchada que você tem dificuldade para engolir. Quando acha que não podia se sentir pior, começa a tossir e, antes que perceba, começa a sentir os efeitos de todo o tipo de complicação.
Ele ficou olhando para ela durante vários segundos, depois perguntou:
— E estava pensando nisso por que...?
Porque você vai embora, seu grandessíssimo bobão. Ela levantou os ombros e declarou:
— Sou médica. De vez em quando, penso em coisas assim.
— Você está se sentindo bem?
— Estou, mas quem sabe como vou me sentir daqui a cinco minutos. É cruel... esse tipo de virose. Ataca assim, sem mais nem menos — ela disse e estalou os dedos.
— Mas se não são viroses mortais, então acabam encerrando seu ciclo e vão embora, certo?
— Ah, sim. Com certeza vão embora — ela respondeu causticamente.
Theo não escondeu o que estava pensando:
— Que diabos está acontecendo com você?
— Acho que uma virose está me pegando.
— Você acabou de dizer que estava se sentindo bem! — ele observou.
— Não quero mais falar sobre isso. Gente doente me deprime.
— Michelle?
— Sim?
— Você é médica. Sei que estou meio perdido na conversa, mas você não trata de gente doente o dia inteiro?
De repente, ela percebeu o quanto estava sendo infantil e tentou encontrar uma desculpa para seu momento de insanidade.
— Acho que não raciocino bem de manhã.
— Não faz a maioria de suas cirurgias pela manhã?
— Sim, mas os pacientes estão anestesiados. Não se importam se meu humor está bom ou ruim. Você dormiu bem? — ela perguntou, deliberadamente mudando de assunto.
— Dormi. E você?
— Também. Foi ótimo não precisar acordar com o telefone me chamando. Já teve notícias de seu amigo Noah?
— Ainda não.
— Ele vai precisar passar por aqui para pegar a chave da clínica e poder dar uma olhada lá. Vamos ter de esperar aqui.
— Noah não precisará de chave.
— E como vai entrar?
— Vai arrombar e entrar, mas não se preocupe. Ele não precisará quebrar nada. Ele se orgulha de ser rápido e silencioso.
— Você combinou de se encontrar com ele em algum lugar, marcou uma hora?
— Não — ele respondeu — Mas isso não me preocupa. Noah sabe como me encontrar. O que programou para fazer hoje?
— Já que você disse para eu não começar a arrumar a clínica até Noah investigar, estou com o dia livre. Preciso entrar em contato com o Dr. Robinson e descobrir se ele teve algum paciente problemático — ela disse. — A única outra coisa que tenho a fazer é arrastar você para ao treino de futebol às três horas. Você prometeu ao Prof. Freeland que daria uma passada lá e, como sou a médica do time, tenho de estar lá.
— Precisam de médico para o treino? — ele perguntou, abrindo um sorriso.
— Ah, sim — ela informou. — Os meninos causam bastante danos uns aos outros, batendo cabeça e outras partes do corpo. Parece que não faz diferença o fato de usarem capacetes e proteção especial. Tive de cuidar de um deslocamento de ombro na semana passada e de um entorse de joelho há dois dias. Os meninos são realmente terríveis, mas não diga a ninguém que lhe contei. Falando do Prof. Freeland — ela continuou — ele escreveu um número em um pedaço de papel e entregou-lhe. Você deu uma olhada e ficou interessado?
— Sim, vi o valor, mas não posso dizer que fiquei impressionado.
— Achou graça, então? Ele assentiu com a cabeça.
— Ganho mais em uma semana do que a quantia que ele me ofereceu para o ano inteiro.
— Nosso município é pobre, mesmo.
— É, entendo.
— Ele deve ter achado que você também ganharia dinheiro trabalhando como advogado, com certeza.
— Pois é.
— Vai vestir seu terno antes de ir para o engenho?
— Qual é o problema com minha roupa?
— Jeans? E isso lá é roupa para quem pretende intimidar alguém?
— Não é o que você usa que conta, mas a atitude. Quando vai estar pronta para sair?
— Dê-me dez minutos.
Ela colocou a louça na pia e correu para cima para trocar a blusa por algo menos revelador, enquanto Theo encarregava-se dos papéis. Enquanto dava a ré para pôr o carro na rua, ele disse:
— Nossa primeira parada é na loja de Second e Victor. Sei que é em St. Claire, mas você precisa me ensinar o lugar certo.
— Você não vai errar. É na rua atrás da lanchonete onde foi ontem.
— Ótimo. Posso pegar um pacote grande de fritas para segurar minha fome até o almoço.
— Seu sangue deve ser grosso como pasta de dente.
— Pois saiba que não é. Meu colesterol é baixo e meu sangue está muito bom.
Michelle foi lhe dando as instruções pelas ruas de St. Claire.
— Vire à esquerda ali — ela orientou. — Por que vai à loja de Second e Victor?
— Preciso de uma grade. Ah, já vi onde é.
Ele estacionou na área ao lado da Grande Loja da Grades de St. Claire, mas deixou o motor ligado e saiu.
— Já fiz o pedido e não vai demorar. Só preciso pagar — ele disse, antes de fechar a porta.
Ela ficou esperando com o ar condicionado ligado. Estava quente e abafado do lado de fora e o homem do tempo havia previsto oitenta por cento de probabilidade de uma tempestade para a tarde. Ela levantou o cabelo e abanou a nuca. Ainda não tinha se readaptado à umidade de Bowen. Nem ao ritmo de vida. Estava acostumada a correr e agora teria de aprender a baixar o ritmo, outra vez.
Theo levou apenas dez minutos para completar a transação. Michelle estava morta de vontade de saber por que ele havia comprado uma grade, mas não faria mais nenhuma pergunta. Se ele queria que ela soubesse, poderia contar quando achasse conveniente.
Ela conseguiu conter-se até Theo estacionar diante do Banco St. Claire, que era exatamente três quarteirões adiante da loja de grades.
— Você comprou uma grade?
— Hmm-humm.
— Que tipo de grade comprou?
Ele estava examinando os papéis que havia encaixado no console entre eles.
— De ferro fundido — ele respondeu.
Pegou dois documentos que pareciam oficiais, depois saiu do carro e deu a volta para abrir a porta para ela.
— Deve ter custado uma fortuna.
— Vale o preço.
— E então?
— Então o quê?
— Por que comprou a grade?
— Podemos chamar de prêmio de consolação — ele disse — porque eu não vou usar uma arma maior.
Ele sabia que ela não entenderia. Ela já tinha ido para o carro quando John Patrick disse-lhe que era seu aniversário.
— Deve haver uma porção de lojas que vendem grades em Boston.
— Sem dúvida.
De repente ela compreendeu.
— Ei, isto tem alguma coisa a ver com Lois?
— Que Lois? Ela desistiu.
— Não quer mesmo me contar?
— Acertou. Sou do tipo forte e calado.
— Pois odeio o tipo forte e calado. São todos do tipo A de personalidade. Daqueles que têm um ataque do coração esperando por eles.
Ele abriu a porta.
— Doçura, será que não pensa em nada além da medicina? Ah, se ele soubesse! Desde que o conhecera, não conseguia pensar em outra coisa a não ser ir para a cama com ele. Mas jamais admitiria.
— Claro que penso — ela respondeu. — Quer saber em que estou pensando neste exato momento?
— Ih, já está ficando estranha de novo? Ela riu.
— Quando me viu estranha?
Theo fez sinal para o guarda aproximar-se, depois afastou-se para que Michelle entrasse primeiro. Sabia que sua arma faria disparar o alarme. Mostrou seu crachá do Ministério da Justiça para o guarda e esperou que este desligasse o alarme. O revólver estava escondido, preso ao tornozelo por um equipamento especial que tinha pedido para enviarem junto com os documentos.
O guarda fez sinal para Theo entrar.
— Em que posso ajudá-lo, Secretário? Theo não o corrigiu.
— Tenho uma reunião marcada com o presidente do banco. Pode mostrar-me onde fica o escritório?
O guarda confirmou com a cabeça, com muito entusiasmo.
— Claro, Doutor. O escritório do Sr. Wallbash fica lá no fundo. O senhor pode ver ele sentado ali atrás daquela parede de vidro.
— Obrigado.
Theo alcançou Michelle, apontou para uma cadeira na sala de espera diante do escritório do presidente e instruiu:
— É melhor você esperar aqui. Pode ser que precise dizer algum palavrão lá dentro.
— E que palavrão seria esse?
Ele inclinou-se para junto do rosto dela e murmurou:
— Auditoria.
— Desculpe, dona. A senhora não é a filha de Big Daddy Jake? — o guarda falou, aproximando-se rapidamente de Michelle.
Ela rapidamente sussurrou para Theo:
— Boa sorte — depois voltou-se para o guarda e respondeu. — Sou, sim.
— A senhora é a médica, não é?
Ele apresentou-se e apertou a mão dela calorosamente.
— Ouvi falar do que aconteceu na sua clínica. Minha esposa, Alice, e eu estávamos justamente comentando como seria bom ter a filha caçula de Jake para cuidar da gente. Nós dois estamos precisando de um bom médico. Alice está tendo problemas com joanetes e calos. Ela nem consegue calçar os sapatos de domingo por causa da dor, e eu tenho uma danada de uma bursite. Tem dias que nem consigo levantar o braço direito, doutora. Quando acha que começará a examinar seus pacientes?
— Espero poder começar em duas semanas — ela respondeu.
— A gente espera até lá — o guarda falou. — Já agüentamos até agora com essas mazelas, mesmo. Substituo o guarda titular duas vezes por semana. Acho que se pode dizer que faço hora de bancário — ele riu de sua própria piada e continuou — A senhora pode consultar a gente? Bem, parece que o Seu Wallbash terá um ataque antes. O rosto dele está mais vermelho do que pimenta e ele está suando como um porco. Acho que não está muito contente com o que o Secretário está dizendo para ele.
Michelle concordou. Wallbash parecia realmente doente. Verificou os documentos que Theo havia posto em sua frente, depois levantou os olhos, lançando chamas pelos olhos na direção de Theo.
Ela não conseguia ver o rosto de Theo, pois este estava de costas para ela, mas fosse o que fosse que estivesse dizendo ao inclinar-se sobre a mesa do presidente, causou um enorme impacto em Wallbash. O presidente levantou as duas mãos, como se estivesse sendo assaltado, e assentiu vigorosamente.
Michelle achou que sabia por quê. Theo deveria ter usado a palavra mágica.
Ele não permaneceu na sala do presidente por muito tempo, e também não lhe apertou a mão ao sair. Wallbash estava ocupado em enxugar o suor da testa. Theo deteve-se na porta e, o que quer que tenha dito ao despedir-se, roubou toda a cor do rosto de Wallbash.
A expressão do rosto de Theo era de ferocidade quando ele atravessou o saguão em direção a ela. Percebendo que ela o observava, ele piscou, agarrou-lhe a mão, fez um aceno de cabeça para o guarda e continuou em frente, arrastando-a atrás de si.
Ela esperou até entrarem no carro para perguntar sobre o que havia acontecido.
— E daí?
— Wallbash não ficou nada satisfeito, mas vai cooperar. É melhor cooperar, mesmo — ele acrescentou, em um tom de voz que chamou a atenção dela.
— E agora?
— Mais uma parada e podemos ir almoçar. Diga onde fica o engenho.
Ela deu-lhe as instruções e depois pediu que ele contasse o que tinha feito.
— Wallbash parecia à beira de um ataque apopléctico — comentou.
— Os irmãos Carson vêm fazendo suas transações bancárias no Banco St. Claire desde que abriram sua empresa. Estão entre os clientes que têm mais dinheiro no banco e isso pode lhe dar uma pista sobre o negócio sujo que aqueles dois filhos da mãe mantêm. Wallbash e Gary Carson são amigos. De acordo com Wallbash, é um sujeito muito bom.
— E o irmão?
— Jim Carson tem a cabeça quente. Acho que Wallbash tem até um pouco de medo dele. Jim é o que foi até o hospital para despedir Daryl. Eles fazem esse tipo de joguinho de propósito, para poderem enganar melhor as pessoas.
— Assim como o bom policial que faz dupla com o policial violento?
— Digamos que é o mau com o pior, nesse caso. Um se faz passar por cabeça quente para que o outro possa manipular à vontade. É um truque que a gente encontra por aí aos milhares. Se eu estiver com sorte hoje, os dois irmãos estarão lá no engenho e poderei observar sua rotina.
— Mas qual foi o objetivo de ir ao banco primeiro?
— Bloqueei as contas deles. Ela caiu na risada.
— Não acredito que isso seja legal.
— Mas é — ele contrapôs. — Wallbash tem os papéis, todos assinados e perfeitamente legais. Terá de cooperar, ou corto-lhe...
Ele interrompeu-se bem a tempo. Ela terminou a frase para ele:
— As asinhas?
— Isso mesmo.
— Por que fica olhando para o relógio a todo instante?
— Estou cronometrando tudo — ele explicou. — Tenho um encontro marcado com Gary Carson ao meio dia e meio.
— Você marcou hora?
— Claro.
— Disse para que queria vê-lo?
— E estragar a surpresa? Claro que eu não fui muito exato. Disse à secretária que queria tratar de negócios com o engenho.
— Vire à esquerda na próxima esquina — ela instruiu. — Siga essa rua mais algum tempo. O engenho fica fora da cidade — explicou. — Então os Carsons estão pensando que terão novos clientes?
— Pois é.
— Wallbash provavelmente vai telefonar ao amigo e falar sobre a sua visita.
— Sim. Ligará exatamente à uma hora, nem um minuto antes, ou mando um bando de auditores colocarem o banco na lista de inadimplentes antes que ele consiga piscar. Ele vai esperar, com certeza.
— Você faria mesmo uma coisa dessas?
Ele não respondeu. Ela observou o rosto dele por vários minutos, depois falou:
— Quando quer alguma coisa não deixa que nada atrapalhe seu objetivo, não é?
— É verdade. Talvez você queira se lembrar disso.
— E sempre vence?
Ele olhou para ela e perguntou:
— O que acha?
A maneira como ele fez mudar o foco da conversa foi muito sutil. Os dois sabiam que agora ele estava falando de conseguir o que queria dela. Depois, ela lembrou-se do que ele havia dito a ela antes de desfazer suas malas na noite anterior. Que não teria de ir até a cama dela. Ela se entregaria a ele. Ela jurou a si mesma que isso só aconteceria depois que o inferno virasse gelo, e virou o rosto para sua janela. Depois mais um pensamento ocorreu-lhe e ela falou:
— E a folha de pagamento? Se você bloqueou as contas deles, como os operários poderão receber?
— A Justiça indicará alguém para assinar os cheques.
— E se os irmãos fecharem o engenho por vingança?
— Estão ganhando muito dinheiro para querer fechar e, além do mais, não permitirei.
— Pode fazer uma coisa dessas?
— Claro que posso. Se eles se recusarem a cooperar, quando eu acabar de processá-los, a empresa passará para as mãos dos empregados.
Theo avistou o engenho à distância. Havia chaminés altas saindo dos silos redondos situados entre dois enormes barracões de concreto. Tudo era interligado.
Quanto mais perto chegavam, mais desolado parecia o lugar. Tinha uma fachada cinzenta e empoeirada e janelas sujas, mas não parecia em má forma. Theo estacionou no pátio de pedregulhos, saiu do carro e olhou à sua volta.
— Sr. Buchanan?
Ele virou-se ao som da voz.
— Connelly?
Um homem alto, trajando um terno bastante formal aproximou-se do carro.
— Sim, senhor.
— Está tudo em ordem?
Connelly levantou sua valise e respondeu:
— Sim, senhor. Tudo como deve ser. Já estão enquadrados. Theo inclinou-se para a porta aberta do carro e disse a Michelle:
— Você se importa de esperar aqui?
— Está bem — ela respondeu. — Mas, se ouvir tiros, vou correr para ver o que está acontecendo.
Theo voltou-se para Connelly, apresentou-o a Michelle, depois disse a ele:
— Quando eu sair, o senhor entra. Quero que espere junto à porta.
— Theo deixou o motor funcionando. Depois de soltar o cinto de segurança, Michelle recostou o banco e ligou o rádio. Willie Nelson estava cantando. Ela tomou aquilo como bom presságio. Talvez Theo não se metesse em nenhuma encrenca, afinal.
Três músicas e nove comerciais mais tarde, Theo saiu do engenho. Estava sorrindo quando Connelly passou por ele ao entrar. Theo foi correndo para o carro, sentou-se e pôs o carro em movimento antes mesmo de fechar a porta. Ela mal teve tempo de encaixar o cinto de segurança, e ele já estava correndo para a estrada.
— Estamos fazendo uma fuga espetacular?
— Não. Estou com fome.
— Mas não tira os olhos do espelho retrovisor — ela observou, virando-se no assento para olhar para trás.
— Só estou sendo cauteloso. Nunca se sabe quem pode ter uma arma na gaveta da escrivaninha.
— Foi tudo bem?
— Na verdade, foi muito bem. Gary Carson realmente é uma pessoa muito gentil. Não poderia ser mais compreensivo e agradável. Quer fazer o que é certo. Nem sei quantas vezes repetiu isso. É claro que todo o tempo ele também repetiu a ameaça velada porque, nas palavras dele, "Mal fazemos para o gasto".
— E como você reagiu?
Ele abriu um enorme sorriso:
— Simplesmente ri.
— Então usou de tato.
— É claro — ele riu.
— Não acredito, mas você está realmente se divertindo com tudo isso, não é?
Ele pareceu surpreso com a pergunta e logo respondeu:
— Estou, mesmo. É tão bom poder ajudar Daryl! Provoca uma sensação muito boa.
— Porque percebe que seu trabalho faz com que haja uma mudança, deixa a sua marca.
— Sim, sem dúvida. Este é um caso fácil. Estará resolvido antes do fim de semana.
— Acha mesmo que consegue resolver o problema em dois dias?
— Acho, sim. A menos que os irmãos tenham dinheiro escondido em algum outro lugar, que eu não saiba, e no qual possam pôr a mão. Mesmo assim, não fará diferença. Já infringiram tantas leis que não seria difícil colocá-los na cadeia. A Justiça do Trabalho até poderia abrir uma filial aí no engenho.
— O irmão de cabeça quente não lhe pulou no pescoço?
— Não — ele respondeu. Ela sorriu.
— Parece desapontado.
— Estou, sim — ele admitiu. — Queria observar a farsa dos dois, mas Jim Carson foi passar o dia em Nova Orleans e só volta a Bowen no final da tarde. Gary disse que preferia falar com ele pessoalmente, em vez de ligar para seu celular, talvez para deixá-lo espumando pela boca antes de atiçá-lo para cima de mim. Acho que vou ouvir falar do Jim uns cinco minutos depois que Gary contar-lhe o que está acontecendo.
— Você chegou a dizer ao Gary onde vai passar a noite? Ele sorriu.
— Eu deveria ter mencionado que estaria no Cisne. Ela suspirou.
— Acabará tendo de usar seu revólver, no final das contas.


Capítulo 21


O estádio de futebol da nova escola secundária era impressionante. O time, por outro lado, estava longe disso. Pela avaliação de Theo, os jogadores eram inacreditavelmente ruins.
Os meninos queriam se exibir para ele. Na verdade, até tinham talento, mas não sabiam o que fazer com ele. Conrad Freeland tinha de gritar com todo o ar dos pulmões para ser ouvido em meio à gritaria dos meninos enquanto jogavam. Usava o apito tantas vezes, que os meninos nem prestavam mais atenção. O treino era algo caótico e ensurdecedor.
Conrad finalmente conseguiu impor ordem para ensaiar uma jogada. Os meninos então puseram-se a correr para lá e para cá no belo gramado do campo como se fossem frangos com a cabeça cortada.
Theo e Michelle colocaram-se ao lado do professor de música para observar. Sorrindo com orgulho, Conrad voltou-se para Theo e perguntou:
— O que acha de seus garotos?
Theo ignorou a menção de "seus" garotos — não queria assumir propriedade sobre aquela massa desorientada — e disse:
— Por que não ensaia mais algumas jogadas? Michelle e eu vamos nos sentar nas arquibancadas para observar. Faz alguns anos que não pratico — ele alertou — Mas talvez possa lhe dar algumas sugestões.
Conrad parecia confuso. Mostrando o campo com o queixo, disse:
— Mas estávamos ensaiando jogadas até agora.
— O que disse?
— Essa era nossa jogada ensaiada.
— Quer dizer que só têm uma... — Theo disse, tentando sorrir, porque não queria que Conrad pensasse que não estava levando o treino a sério.
O professor de música arrumou o colarinho com um gesto nervoso. Estava vestido para um recital de música, com uma camisa imaculadamente branca e bem passada, gravata de listras finas e um paletó azul-marinho. As nuvens estavam carregadas de chuva e estava tão abafado que Theo poderia jurar que Conrad estava sufocando.
Michelle cutucou-o e sugeriu:
— Jogam bem, não é?
Theo não conseguiu responder e Conrad falou:
— Aperfeiçoamos essa jogada que acaba de ver. Nós a chamamos de ferroada.
— Nome interessante — Theo disse, por falta de algo melhor para dizer que não fosse mentira.
— Boa, não achou?
Michelle voltou a cutucar Theo. Ele ignorou a dica e voltou-se para Conrad. Não queria ferir os sentimentos do professor. Era óbvio que havia dado duro para conseguir que os garotos indisciplinados cooperassem, mas Theo não queria começar mentindo par ele e limitou-se a repetir:
— Interessante.
— Precisa compreender minha posição por trás do time — Conrad explicou-se, agora ansioso. — O ano passado foi o nosso primeiro ano com um time de futebol e o treinador... bem, simplesmente desistiu e deu o fora no meio da temporada de jogos. Os meninos não sabem o que fazer. Eu também não sei bem o que estou fazendo — ele admitiu. — Se me der uma flauta, eu o ensino a tocar em dois tempos, mas isso — ele disse, mostrando o time com a mão — está além da minha capacidade. É por isso que precisamos desesperadamente de algum manual. Fiz o que pude para apresentar um bom trabalho.
— Tenho certeza disso — Theo concordou, tentando pensar em algo positivo para dizer.
— Fiz até busca na Internet. Posso contar-lhe toda a história do futebol americano, mas não sei lhe dizer como fazer uma boa jogada. Não consegui entender nada dos esquemas que encontrei na Internet. Era tudo cheio de círculos e flechas que não me dizem absolutamente nada.
Ele tirou o apito que estava pendurado no pescoço e ofereceu-o a Theo.
— Veja o que consegue fazer, treinador.
— Mas eu não sou... — Theo tentou dizer, vendo Conrad correr para o bebedouro — treinador.
Michelle, ao seu lado, sussurrou:
— Os meninos são péssimos, não são?
— E como! — ele concordou baixinho. Ela sorriu e anunciou:
— Vou sentar-me nas arquibancadas e esperar até você terminar. Tudo bem, ele pensou. Só uma vez não o mataria. Falaria com os
meninos, diria a eles que enviaria alguns manuais para Freeland e alguns vídeos para eles observarem as jogadas, e pronto. Depois daria o fora dali. Sim, esse era seu plano de jogo.
Colocando dois dedos na boca, emitiu um assobio alto para chamar a atenção dos garotos e fez sinal para aproximarem-se.
Os meninos vieram correndo como boiada assustada. Um menino correu, caiu, levantou, correu mais um pouco e voltou a tropeçar nos próprios pés. Theo esperava que ele não estivesse jogando na posição que corria no rebote. A massa amontoou-se em volta dele e dispararam a fazer perguntas. Theo não disse uma palavra. Simplesmente levantou a palma da mão e esperou. O alarido finalmente cessou.
Falando baixo, disse-lhes para removerem os capacetes e sentarem-se na grama à sua frente. Os meninos, incrivelmente, obedeceram. Quando sentaram-se no chão, Theo podia jurar que sentiu a terra tremer sob seus pés. E então Elliot Waterson gritou:
— Onde está seu revólver, treinador?
E a barulheira recomeçou. Theo não disse uma palavra. Simplesmente ficou imóvel, com os braços cruzados sobre o peito, esperando que voltassem a se calar. Em pouco mais de meio minuto, já haviam se aquietado. Em um tom de voz que chegava quase a um murmúrio, ele disse:
— Elliot, meu revólver está em um lugar seguro. Mas juro que o próximo que interromper quando eu estiver falando vai levar a pior. Entendido? — continuou, forçando os meninos a permanecerem calados e esforçando-se para ouvir o que ele dizia. — O que vamos fazer agora é o seguinte...
Michelle sentou-se nas arquibancadas de concreto, observando a transformação. Estava impressionada com a facilidade com que Theo conseguiu controlar os meninos. Os garotos estavam sentados de pernas cruzadas, com os capacetes no colo. Todos os olhos estavam pousados em Theo, e os meninos pareciam sorver cada palavra que ele dizia. Conrad também estava admirado. Voltou e colocou-se ao lado de Theo, fazendo um sinal positivo com a cabeça, de vez em quando.
— Com licença, madame.
Michelle voltou-se ao ouvir a voz e viu um homem alto, de cabelos escuros, um pouco acima do peso que deveria ter, em pé ao lado do túnel que levava aos vestiários. Parecia-lhe vagamente familiar.
— Pois não?
Ele aproximou-se. O estranho vestia uma bermuda caqui e uma camisa de manga curta da mesma cor com a palavra "Speedy" bordada no bolso. Havia um crachá com nome pendurado abaixo do segundo botão. Ele trazia uma embalagem do Serviço de Entregas Rápidas Speedy — ela reconheceu o símbolo — mas ainda estava muito longe para ela conseguir ler o nome.
— Estou procurando uma tal de Dra. Michelle Renard. A senhora sabe onde posso encontrá-la?
— Eu sou a Dra. Renard.
O mensageiro abriu um largo sorriso.
— Graças a Deus. Revirei a cidade toda atrás da senhora.
Ele colocou a embalagem debaixo do braço e subiu correndo os degraus de metal.
— O senhor tem alguma coisa para mim?
— Não, Doutora. O que eu tenho é um problema, mas espero que a senhora me ajude a resolver antes que o Eddie leve a pior.
— Não estou entendendo. O mensageiro sorriu:
— O Eddie é um funcionário novo na empresa e pisou feio na jaca — explicou. — Ah, e o meu nome é Frank.
Ele estendeu a mão para apertar a dela. A palma estava suada e o cumprimento foi frouxo.
— E como foi que seu amigo meteu-se em encrenca?
— Andou entregando encomendas para pessoas erradas — ele respondeu. — Mas está precisando muito do emprego porque a mulher está para ganhar bebê e, se o Eddie perder o emprego, além de perder o dinheiro, também fica sem convênio médico. O Eddie tem só vinte anos — acrescentou — eu me sinto responsável porque fui eu quem treinei o danado; estou até usando meu dia de folga para tentar consertar essa confusão antes que o chefe descubra.
— É muito bonito de sua parte — ela disse. — E como eu posso ajudar?
— Sabe, o Eddie pegou um envelope de uma firma de advogados lá de Nova Orleans na segunda-feira e deveria ter preenchido o formulário lá mesmo, na mesa da recepcionista, mas não foi isso o que fez. Ele levou o pacote para o furgão da empresa. O caso é que ele já tinha pegado um outro pacote do Laboratório Belzer e também não tinha preenchido o papel do formulário. Achou melhor sentar-se no ar condicionado do carro para preencher os dois formulários, mas acabou grudando nas encomendas erradas. Só descobri a bagunça quando a secretária de uma outra firma de advogados ligou, dizendo que tinha recebido o pacote errado. Quando abriu o que recebeu, estava cheio de folheto de um produto novo que o laboratório vai lançar. Para sorte do Eddie, fui eu quem atendi o telefone. Se a tal dona tivesse falado com o chefe, nem quero pensar no que podia acontecer. O Serviço de Entregas Rápidas Speedy sempre se orgulhou de ser rápido e confiável, e juro que essa é a primeira confusão que eu vejo em mais de três anos. De qualquer maneira, — ele acrescentou, balançando-se de um pé para outro — eu queria ver se a senhora pode me dar o pacote que recebeu por engano e levo ainda hoje para a firma de advogados.
Michelle balançou a cabeça.
— Bem que eu gostaria de ajudar, mas não me lembro de nenhuma entrega especial. Quando e onde foi a entrega? O senhor sabe?
— Eddie entregou no hospital.
Ela percebeu que as mãos dele tremiam enquanto ele virava as folhas de um caderno. Estava nervoso e não conseguia olhá-la nos olhos. Ela achou o fato estranho, mas concluiu que devia estar envergonhado por causa do engano.
— Eu já fui até lá tentando encontrar a senhora, e uma das enfermeiras fez a gentileza de olhar as ocorrências da semana. Ela disse que aconteceu um acidente no final daquela tarde e que a senhora estava operando quando Eddie fez a entrega, mas isso não faz sentido, pois foi a senhora quem assinou o recibo.
— Ah, sim, lembro-me do acidente. Eu estava no andar das cirurgias, até os olhos de relatórios que tinha de terminar antes de sair. Cheguei a receber uma chamada da emergência, dizendo que havia um envelope para mim. Só não me lembro de ter pego o tal envelope.
— Talvez fique mais fácil de lembrar se eu lhe disser que a senhora assinou o recibo.
— Eu assinei?
Com certeza, ela não se lembrava disso. A frustração estava estampada na voz de Frank, quando disse:
— Sim, senhora, doutora, a senhora assinou, sim. Sempre mantemos uma cópia dos recibos em nosso escritório e enviamos o original para o remetente. Posso jurar para a senhora — ele acrescentou, com a ansiedade mal escondendo a raiva — que a sua assinatura está lá, bem clara.
— Ficar zangado não ajuda nada — ela disse. — E se conseguiu ler minha assinatura, com certeza não era a minha. Acho que sei o que aconteceu. A secretária do pronto-socorro deve ter escrito o meu nome. É procedimento de rotina em casos de emergência.
Michelle vasculhou seu cérebro, tentando lembrar-se da seqüência dos acontecimentos naquele final de tarde. Exausta por ter passado quase toda a noite anterior em claro, ela havia resolvido não sair de férias até ter terminado todos os seus relatórios.
— Desci para pegar o envelope.
— Onde? — ele perguntou apressado, olhando para o time por cima do ombro. — A senhora foi para a recepção ou para o pronto-socorro?
— Para o pronto-socorro. Foi quando os paramédicos chagaram — ela sacudiu os ombros. — Voltei direto para a cirurgia e fiz duas operações em seguida.
— Então a senhora nem chegou a abrir o envelope — o entregador disse, sorrindo de alívio.
— Não, não abri. Com certeza eu me lembraria se tivesse aberto, em particular se fossem documentos de uma firma de advogados.
— A senhora deve entender como os advogados estão preocupados com esses documentos. Iam para uma outra firma de advogados. É tudo coisa confidencial, sabe? Posso voltar lá para o hospital agora mesmo e pegar o pacote com a secretária? Qual é o nome dela?
— Elena Miller, mas ela não vai lhe entregar nada, a não ser que eu diga que pode.
— Não quer ligar para ela agora mesmo? O Eddie já foi buscar o pacote que era da senhora e já deve estar vindo para cá. Eu queria muito resolver esse negócio hoje mesmo. Olhe, pode usar meu celular.
Ele chegou tão perto para entregar o telefone que Michelle conseguia sentir o cheiro de sua loção pós-barba. Ele não havia economizado, mas mesmo assim não escondia o cheiro do suor.
Ele não parava de se mexer. Não era à toa que estava suando. Não parava de olhar por cima do ombro, em direção ao campo, como se esperasse que os meninos fossem jogar a bola nele. Ela ligou para o hospital, pediu para falar com Elena e teve de ficar esperando.
— Parece que ele consegue hipnotizar os garotos, não parece? — ela observou, enquanto esperava que a secretária atendesse.
— O que disse?
— O treinador. Parece que prende os meninos com cada uma de suas palavras. Percebi que o senhor estava observando.
— Ele... sim, sim, é verdade.
Elena Miller atendeu o telefone em uma das salas do pronto-socorro e em sua voz seca, como de hábito, respondeu: "Miller falando".
— Oi, Elena. Aqui é a Dra. Renard. Estou interrompendo alguma coisa importante?
— Sempre estou fazendo alguma coisa importante, Doutora, e a senhora esqueceu de preencher os relatórios. Faltam dois, ainda. A senhora também não abriu sua correspondência. Sua caixa de entrada está transbordando, Doutora. E então, não foi bom a senhora ter ligado? O que posso fazer pela senhora?
— Eu terminei os meus relatórios — Michelle contrapôs. — Um por um, até o fim. Se o Murphy acha que pode empurrar os relatórios dele, pode dizer que arranco-lhe o couro.
— Relaxe, Doutora. Murphy também está em férias. O que a senhora queria de mim? — Elena insistiu.
Michelle explicou sobre a confusão dos envelopes e perguntou:
— Você se lembra de ter assinado um recibo para uma entrega feita pelas cinco da tarde na segunda-feira?
— Neste exato momento nem consigo me lembrar o que comi no jantar de ontem à noite. Só lembro-me que a segunda feira foi um dia de correria aqui no pronto-socorro. Tivemos uma série de acidentes e depois aquele pior, da estrada estadual, para atender. Tínhamos uns vinte pais e mães entupindo os corredores enquanto os médicos atendiam os filhos. É claro que não me lembro de ter assinado nada. Mas não faz diferença se lembro ou não. Se assinei, então coloquei um lembrete amarelo na porta de seu armário, avisando que tinha encomenda para a senhora. Poderia até ter posto dentro do armário, mas a senhora ainda não me deu a senha.
— Ah, desculpe. Sempre me esqueço. Você faz idéia de onde o pacote possa estar agora?
— Vou dar uma olhada. Pode estar em cima da minha mesa ou do seu armário. O que quer que eu faça quando encontrar?
— Entregue ao mensageiro da Speedy. Ele está indo para aí.
— Está bem. Estou aqui até às seis, nem um minuto depois. Hoje é noite de bingo na igreja e tenho de estar lá às seis e meia para ajudar a arrumar tudo. É minha vez de ser coordenadora.
— Tenho certeza que ele chegará aí antes disso. Obrigada, Elena. Quando apertou o botão de finalização de chamada e o entregou a Frank, percebeu que Theo vinha atravessando o campo na direção deles. Frank parecia estar observando Theo, também. Sem tirar os olhos de Theo, perguntou:
— O que ela disse? Ela sabe onde está o pacote?
— Relaxe. Eddie poderá continuar no emprego. Elena estará no hospital até às seis e fará a troca com prazer.
Frank nem agradeceu. Na verdade, sua partida foi súbita. Puxando a aba do boné bem para junto dos olhos, desceu os degraus correndo. Seu rosto estava voltado para o lado contrário do campo. Enquanto ele desaparecia pelo túnel, ela gritou:
— De nada.
Ele nem a ouviu falar. Desesperado para sumir dali antes que alguém mais visse seu rosto, ele sumiu o mais rápido que pode, passando pelo túnel dos vestiários e dirigindo-se para o estacionamento. Estava ofegante por causa do esforço. Encostou-se na porta do carro, inclinou-se para a frente, tentando recuperar o fôlego, enquanto tateava em busca do trinco. Ouviu um barulho atrás de si e girou o corpo, ainda dobrado. Seus olhos arregalaram-se.
— Que diabo está fazendo aqui? Veio me espionar? Está me seguindo?
— O que você acha que está fazendo?
— Estou fazendo o que tem de ser feito — ele retrucou. — Ninguém estava chegando a lugar nenhum. A doutora nunca mais vai me ver. Além do mais, valeu a pena o risco. Sei onde o pacote está. Vou buscar agora mesmo.
— Você sabia que não era para ter contato com a pessoa alvo. Isso foi deixado bem claro para você. Agora a médica sabe como é sua cara. Cometeu um erro estúpido, e os outros não gostarão nada disso.


Capítulo 22


Theo estava calado no caminho de volta à casa de Michelle. Ambos estavam com calor e suados, e queriam tomar banho antes de ele a levar para jantar no Cisne. Ele até tinha proposto levá-la a um outro lugar mais sofisticado, mas ela havia prometido ao pai que o ajudaria a atender o bar se ele precisasse. Quarta-feira sempre era um dia movimentado no bar de seu pai, e ainda havia o concurso de pesca que estava se aproximando e atrairia ainda mais gente.
— Seu irmão não podia ajudar seu pai? — ele perguntou.
— John Paul não deu as caras nesta última semana.
— Seu irmão sempre desaparece?
— Quando meu pai precisa, ele sempre está lá.
— Mas como ele vai saber se seu pai precisa dele? Jake liga para ele?
Ela sorriu.
— John Paul não tem telefone. Também não atenderia, se tivesse. Normalmente aparece às sextas de manhã para ver o que papai quer que ele faça. John Paul nunca atendeu o bar durante a semana.
— E se seu pai tivesse problemas? Se ele ficasse doente ou coisa assim?
— John Paul saberia se alguma coisa estivesse errada.
— Tem poderes mediúnicos, é?
— Ele simplesmente ficaria sabendo.
— Seu irmão parece-me ser bem esquisito.
— Ele não é esquisito — ela defendeu. — Só é diferente.
— E seu outro irmão?
— Remy? O que tem?
— Também é diferente?
— Pelos seus padrões, não. Não é diferente.
— Nenhum dos dois disse mais nada por algum tempo. Michelle quebrou o silêncio ao perceber que ele estava com a testa franzida.
— Está pensando em quê?
— No menino que ficava tropeçando hoje durante o treino.
— O que tem?
— Estava usando os sapatos do irmão dele.
— E você estava pensando em como dar um jeito nisso.
— O time está precisando de equipamento novo — ele observou. — Conrad vai falar com o treinador de St.Claire para deixar o nosso time usar a sala de condicionamento físico. Ninguém deve entrar naquele campo até estar condicionado para isso. Entende do que estou falando?
— Sim, eles precisam desenvolver os músculos e a resistência.
— Exatamente. Senão, podem se machucar.
— Você disse "nosso time".
— Não disse, não.
— Disse, sim. Ouvi muito bem. Ele mudou de assunto.
— O que aquele mensageiro queria? Vi você falando com ele quando fui para o bebedouro.
— Houve algum tipo de confusão no hospital. Eu disse para ele procurar a enfermeira do pronto-socorro. Vai poder consertar o que foi feito errado.
Ele assentiu com a cabeça, depois voltou a trocar de assunto.
— Quanto dinheiro você acha que vai dar esse torneio de pesca?
— Não sei quanta gente vai se inscrever este ano, mas se fosse para adivinhar, eu diria que, com dois homens por barco, a cinqüenta dólares cada um... e no ano passado foram mais de setenta inscrições...
— Então podemos dizer que, se forem oitenta inscrições este ano, teremos quatro mil dólares.
— Isso é um monte de dinheiro por aqui.
— Quatro mil dólares daria para comprar muito par de calçado.
— Ah, parece que você tem um bom plano.
— Sim, claro. E a chave do plano é vencer. Ela riu.
— Não brinque. E meu pai?
— o que tem ele? — Theo perguntou, manobrando o carro para estacionar diante da casa dela.
— Dois mil dólares pertenceriam a ele.
— Tenho certeza de que vai querer doar. Seu pai é um coração mole — ele disse, acompanhando-a até a porta da frente. — Mas, como eu disse, a chave para o grande plano é vencer o torneio.
— Você está sofrendo por não poder ir comprar tudo que o time precisa, não é?
Ela havia acertado na mosca.
— É verdade — ele admitiu. — Mas eu sei que não posso fazer isso. Os pais dos meninos poderiam ficar ofendidos. Eu estaria ferindo o orgulho deles, não é?
— Com certeza. E também acabará falido se continuar . comprando grades de ferro caras para menininhos, uniformes completos para um time inteiro e sabe-se lá mais o quê.
— Nenhum menino deveria ter de se preocupar em ter crocodilos no quintal.
Ela, que estava abrindo a porta, virou-se e deu um beijo nele.
— Ei, por que isso? — ele perguntou, quando ela se afastou saltitante.
Ela olhou para trás, deu-lhe um sorriso rápido e falou:
— Por que o beijo? Essa é fácil. Dei-lhe um beijo porque acho você um doce.
Ele reagiu como se ela o houvesse insultado.
— Não tem nada de doce em mim.
— Ah, não? Você estava preocupado em não deixar o menino com vergonha por estar usando os sapatos do irmão, não é verdade?
— É, mas...
— Então você é... um doce.
— Olhe, Michelle, sou muito respeitado em meu trabalho e com certeza não é por ser doce.
Ele vinha se aproximando lentamente e, a cada passo que tomava na direção dela, ela dava um passo atrás.
— Não me interessa o seu trabalho. Você engana todo mundo lá em Boston, não é? Provavelmente eles acreditam que você é um promotor implacável.
— Pois saiba que sou um promotor implacável e tenho muito orgulho disso.
— Você se preocupou com John Patrick, e por isso comprou a grade para ele. Sabe o que é por causa disso?
— Não se atreva a dizer — ele alertou.
— Doce.
Ele balançou a cabeça.
— Não. Eu sei por que, na verdade, você me beijou. Seja honesta.
Ele pegou-a pela cintura quando ela já estava entrando na biblioteca. Ela estava rindo quando ele a puxou para si. O peito de Theo parecia uma parede de concreto. Uma parede de concreto quente.
Ele inclinou-se até que sua boca estivesse apenas a alguns centímetros acima da dela.
— Quer que eu lhe diga por que me beijou?
— Ah, mal consigo respirar pelo suspense — ela brincou.
— É simples. Você me deseja.
Ele esperava que ela protestasse, mas não ficou nem um pouco desapontado quando ela disse:
— Quando você acerta, acerta na mosca.
— E sabe o que mais?
— O quê?
Ela inclinou-se para trás para poder olhar para ele.
— Está morrendo de vontade de pôr as mãos em mim — Theo disse, apertando-a contra si.
Michelle enlaçou-o pela cintura, apoiando os polegares no cós da calça dele.
— Já pus minhas mãos em você. Olhe, precisa controlar esse ego. Percebi que lhe falta confiança com mulheres. É triste... mas...
— Mas o quê? — ele perguntou, roçando o queixo no rosto dela enquanto esperava pela resposta.
— Mesmo assim, você é doce — ela murmurou junto ao ouvido dele, depois prendeu a ponta da orelha dele entre os dentes e deu-lhe um leve puxão.
Ele gemeu baixinho.
— Você vai ver se sou doce.
Inclinando a cabeça dela para trás, os lábios de Theo desceram sobre os dela e ele beijou-a com fome de paixão. Foi um beijo molhado, quente, selvagem, profundamente excitante.
Depois ficou ainda melhor. A expressão "derreteu nas mãos dele" veio à mente dela, enquanto ela colava seu corpo ao dele e deixava que ele lhe roubasse toda a lógica. O beijo prolongou-se e era tão bom poder provar as maravilhas que ele oferecia, que ela só desejava ficar cada vez mais colada a ele.
As carícias dele tomaram-se pecaminosamente carnais e a última coisa que ela poderia desejar era que se acabassem. Ele acariciava-lhe os braços, as costas, o pescoço, enquanto a encantava com seu beijo.
Ela estava tão envolvida naquele feitiço erótico que o único pensamento que se repetia em sua mente, como um mantra, era: Não pare. Não pare.
— Não!
Ela deixou escapar alto, quando ele afastou-se. Ambos estavam arrepiados.
— Não o quê? — ele murmurou com certa ironia.
Ele estava ofegante. Michelle estava arrogantemente feliz porque sabia o motivo de ele estar alterado, mas depois percebeu que o mesmo acontecia com ela.
— Não o quê? — ele repetiu, voltando a inclinar-se para beijá-la. Desta vez foi uma carícia leve, suave, que apenas a deixou querendo mais.
— Não sei.
— Acho que o controle está fugindo de nossas mãos.
O rosto dela estava colado ao peito dele. Ela bateu no queixo dele ao assentir com a cabeça.
— E, falando de mão... — ele disse.
— Sim?
Ele beijou-lhe a cabeça e disse:
— Acho que deveria retirar as suas.
— O quê?
— Suas mãos — ele disse com uma voz que parecia lixa sobre veludo.
Um suspiro, e então ela exclamou:
— Ai, ai, ai!
Uns cinco segundos passaram-se para ela conseguir tirar as mãos de dentro das calças dele. O rosto de Michelle parecia queimar quando ela saiu correndo dali. Podia ouvi-lo rir enquanto subia as escadas.
Agarrou o roupão, foi para o banheiro e tirou a roupa. Depois de abrir a torneira ao máximo, entrou debaixo da ducha e quase arrancou a cortina ao fechá-la.
— Motivo número um — ela murmurou. — Ele vai me deixar de coração partido.


Capítulo 23


Eram quinze para as sete quando Theo e Michelle chegaram ao Cisne, e o local já estava cheio. Velhas peruas e picapes enferrujadas com suporte para rifle e adesivos nos pára-choques enchiam o estacionamento. Preferia estar pescando era o que mais se lia nos pára-choques, mas o que chamou a atenção de Theo foi um que mostrava um enorme crocodilo com um esparadrapo na cauda. Não entendeu bem qual era a intenção daquele adesivo.
Também percebeu que não havia nenhum carro novo por ali. Se havia alguma dúvida sobre aquela ser uma área pobre, a prova estava por todo o lado. Algumas picapes pareciam saídas do ferro-velho. Mas, se Theo havia aprendido alguma coisa em sua visita a Bowen, foi que ali as pessoas faziam o melhor com o que tinham.
— Em que está pensando? — Michelle perguntou, enquanto ia na frente dele, passando por uma caminhonete enferrujada.
— Como a vida é dura por aqui — ele respondeu. — Mas sabe o que me espanta? Não ouvi ninguém se queixar, nem um lamento.
— Não, mesmo. Todos aqui têm muito orgulho.
— Eu já disse que você está muito bonita esta noite? — ele disse.
— Nesta roupa velha?
Aquela "coisa velha" era um vestido leve e curto, com decote V, xadrez de azul e branco, que ela havia levado vinte minutos Para escolher. Havia levado outros vinte minutos arrumando o cabelo, que agora caía-lhe sobre os ombros e emoldurava suavemente o rosto. Ela teve o maior trabalho para arrumá-lo para deixá-lo com aparência natural. Depois, passou um pouco de maquiagem para realçar as maçãs do rosto e cobriu os lábios com uma leve camada de batom e brilho. Quando percebeu que estava ficando compulsiva por causa da aparência — tinha colocado e tirado aquele vestido três vezes — e que tudo aquilo era por causa dele, resolveu conter-se.
— Quando alguém a elogia, espera-se que você agradeça. Você está bonita esta noite — ele repetiu, acrescentando — nessa "roupa velha".
— Você gosta de me provocar, não é?
— Gosto, sim.
Ele tinha mentido ao dizer achar que ela estava bonita, mas não podia expressar o que sentira quando a viu descer as escadas. Pura dinamite, foi a primeira coisa que pensou. De tirar o fôlego era outra expressão que poderia ter usado, mas a palavra que não lhe saía da cabeça e que ele não tinha coragem de dizer era Deliciosa.
Ele achou que seria demais dizer uma coisa dessas a ela. O que estava acontecendo com ele, afinal? Estava distraído e um tanto poético. Opa, de onde poderia ter saído isso?
— É pecado provocar as pessoas.
Theo abriu a porta para ela, mas segurou-a pelo braço para poder ler um quadro na parede.
— Não é à toa que esteja tão cheio aqui hoje — ele comentou — Aqui diz: Toda a cerveja que conseguir beber esta noite.
Ela riu.
— Sempre é toda a cerveja que conseguir beber, desde que pague pelo que consumir e que não vá dirigir depois. Quem mora por aqui já sabe.
— Hum, tem alguma coisa cheirando bem por aqui. Vamos comer. Só espero que não esteja apimentado demais.
— Bem, hoje é quarta-feira e você poderá comer peixe frito com batata frita. Aposto que suas artérias vão adorar.
— Qual é a outra opção?
— Batata frita com peixe frito.
— Então é isso que vou comer.
Enquanto ziguezagueavam a caminho do balcão, era a Theo que paravam mais do que ela. Vários homens e mulheres queriam apertar-lhe a mão ou dar-lhe um tapinha no ombro enquanto ele ia passando e todos, ao que parecia, queriam discutir futebol.
A única pessoa que parou Michelle foi um homem que queria falar sobre suas hemorróidas.
O pai dela estava em um canto do balcão, perto do depósito, junto a Conrad Freeland e Artie Reeves. Jake tinha a testa franzida e balançava a cabeça, concordando com o que Conrad e Artie diziam-lhe, sem perceber que ela estava se aproximando.
Armand, o cozinheiro, estava ocupado na cozinha, enquanto seu irmão, Myron, atendia o balcão.
— Papai conseguiu que Myron viesse ajudar — ela disse. — Acho que poderei ficar livre durante algum tempo.
— Seu pai está fazendo sinal para nós.
Quando finalmente chegaram até o pai dela, ele saiu de trás do balcão para ir ao encontro dela. Ela percebeu que Artie e Conrad estavam com a testa franzida ao olhar para ela.
— Theo, porque não vai tomar uma cerveja sentado ali no balcão enquanto eu troco uma palavrinha com minha filha?
O olhar que o pai dirigiu-lhe dizia a ela que ela havia feito alguma coisa que o desagradara. Ela seguiu-o até o depósito e perguntou:
— Alguma coisa errada, papai?
— Ele vai embora, Mike. É isso que está errado. Os companheiros e eu estávamos conversando e decidimos que não podemos deixar isso acontecer. Esta cidade precisa de Theo Buchanan. É claro que você já percebeu, também. Quase todos os que vieram hoje, vieram porque queriam falar com ele.
— Querem consultoria jurídica de graça?
— Alguns até querem — Jake admitiu. — Mas também tem essa história do engenho de açúcar, e a temporada de futebol que está para começar.
— Mas, papai, o que o senhor espera que eu faça? O homem mora em Boston. Não dá para ficar vindo a toda hora.
— Claro que não, Mike — ele disse e sorriu só de pensar na bobagem que seria ficar pegando avião e de ida e volta para Bowen.
— E então?
— Nós achamos que você pode fazer Theo mudar de idéia, se fizer uma forcinha.
— Como? — ela perguntou.
Exasperada, ela colocou as mãos nos quadris e esperou. Sabendo como funcionava a mente de seu pai, sabia que ele apresentaria alguma solução maluca. Preparou-se para ouvir o que vinha.
— Estenda o tapete vermelho.
— O que quer dizer com isso?
— Conrad e eu armamos um bom plano, e o Artie tem certeza de que vai funcionar. Pois é, o Conrad disse-me que o Theo contou para ele que você queria que ele ficasse na minha casa.
— É verdade.
— E você acha que isso é hospitalidade, Mike?
Ela não sabia como, mas ele conseguiu colocá-la na defensiva.
— Estou tratando bem dele. Juro.
— Já preparou seu gumbo para ele?
— Não, mas...
— Ótimo — Jake disse. — A mulher do Conrad vai dar uma passada na sua casa amanhã de manhã com uma panela do gumbo que ela faz, e você pode dizer que você mesma fez.
— Mas isso não é honesto — ela protestou, mas então compreendeu o que o pai estava querendo dizer. — Espere aí, papai. Achei que o senhor gostasse do gumbo que eu preparo.
Ele não se deixou abater e continuou:
— Que tal aquele seu bolo de limão? Você ainda não fez esse bolo para ele, não é?
— Não — ela disse, avançando um passo. — Estou lhe avisando, papai. Se disser "bom", juro que nunca mais convido o senhor para jantar lá em casa.
— Olhe, querida, não é hora de ficar ofendida. Estamos com uma crise nas mãos e apenas dois dias para fazer o homem mudar de idéia.
— Não há nada que a gente possa fazer para convencer Theo, papai.
— Com essa atitude negativa, não mesmo. Faça o que estou dizendo e trate de acreditar mais.
O pai falava com tanto entusiasmo que ela sentiu-se péssima tentando estragar seus planos.
— É só que...
— A Marilyn acabou de sair — ele disse, falando ao mesmo tempo que ela.
— A esposa do Artie?
— Isso mesmo. Ela faz um bolo de chocolate que é uma delícia, e já foi para casa para assar o bolo esta noite ainda. Até o meio-dia de amanhã, já estará cheirando em sua cozinha.
Michelle não sabia se deveria sentir-se insultada ou divertida.
— Acha que Theo vai acreditar que fiz isso num passe de mágica? A que horas eu poderia ter feito um bolo para ele? Estive com ele o dia inteiro, e amanhã de manhã devo ir à clínica e começar a arrumar as pastas.
— Não, você não entendeu o que estamos querendo fazer. A Marylin também colocará um cartão de "Bem-vindo a Bowen" para ele saber como todo mundo aqui é simpático. Karen Crawford também vai preparar aquela salada de batata gostosa e, é claro, também escreverá um cartão bonito. A esposa do Daryl também não quis ficar de fora. Levará um ensopadinho de vagem direto da horta dela.
— Com um cartão simpático — ela comentou, cruzando os braços e franzindo a testa para o pai.
— Isso mesmo.
— Então, por que devo fazer de conta que fiz o tal gumbo?
— Porque não quero que o Theo pense que você não sabe cozinhar.
— Mas eu sei cozinhar!
— Você o levou à lanchonete! — ele disse em tom claramente acusatório.
De repente, a admiração que Michelle tinha pela sinceridade das cidades pequenas murchou. Obviamente, o diz-que-diz espalhava-se como fogo em palha. A impessoalidade, o anonimato das grandes cidades já não parecia tão horrível.
— Foi ele quem quis ir lá — ela contrapôs. — Ele gosta de hambúrguer... e eu também. A salada de lá também é boa.
— Tudo bem, mas queremos que ele se sinta bem recebido, estamos tentando ser hospitaleiros.
Ela riu. Quando papai, Conrad e Archie juntavam suas cabeças, as idéias mais absurdas acabavam emergindo. Por sorte, esses absurdos não os punham na cadeia.
— Ah, e o senhor quer que eu seja hospitaleira também.
— Isso mesmo. Você sabe bem do que estou falando. Faça com que ele se sinta à vontade, como se fosse alguém daqui. Leve o Theo para passear, faça ele conhecer os lugares bonitos.
— Que lugares bonitos?
— Michelle, você vai cooperar ou não?
Ele estava ficando irritado. Só a chamava de Michelle quando estava zangado com ela. Ela começou a rir outra vez, sabendo que ele não gostaria, mas não conseguiu se conter. Aquela conversa toda era pura loucura.
— Está bem — ela disse, por fim. — Já que significa tanto para o senhor, para Conrad e para Artie, eu aceito cooperar.
— Isso significa muito para mim, para o pessoal que trabalha no engenho e para o time de futebol, também. Devia ver o que o Conrad contou-nos sobre o treino de hoje à tarde. Ele disse que Theo conseguiu dominar aquela garotada, que botou os meninos para jogar de verdade. Também disse que Theo entende muitíssimo mais de futebol do que ele.
— Qualquer um entende mais de futebol do que o Conrad.
— Theo sabe organizar os meninos. Conseguiu o respeito deles num instante — estalou os dedos para dar ênfase. — Tenho mil razões para querer que ele fique, mas você sabe qual é o motivo mais forte do que os outros?
— Não, papai. O que é?
Ela já havia decidido que, se ele dissesse que esperava que Theo se casasse com ela para tirar a responsabilidade das mãos dele, sairia imediatamente do bar.
— Ele saiu e comprou uma grade de presente de aniversário para o menino do Daryl. Não se encontra muitos homens como esse por aí, hoje em dia. E imagine o dinheirão que gastou com aquela grade.
— Está bem, vou fazer a minha parte, mas não ponha suas esperanças muito no alto. Theo voltará para a casa dele e não há nada que a gente possa fazer para mudar isso.
— Ih, lá vem o pé frio de novo. A gente precisa fazer o que pode, não é? Esta cidade está precisando de um advogado bom e honesto, e Theo Buchanan é o homem que pedimos a Deus.
Ela concordou com a cabeça.
— Tudo bem. E que tal se amanhã eu preparar meu étouffee3? Ele parecia apavorado.

3 Prato cajun, típico do sul dos Estados Unidos, preparado com lagostins de água doce e vegetais.

— Não, querida, não se incomode. Melhor servir o gumbo da Billie. Lembre-se de que o caminho para o coração de um homem passa pelo estômago.
— Mas o senhor adora meu étouffée — ela protestou, frustrada. — Isso quer dizer que não gosta?
Ele abraçou-a e disse:
— Você é minha filha e adoro você, meu bem. Eu tinha de dizer que gostava, não é?
— O senhor sabe quanto tempo leva para eu preparar esse prato? Um dia inteiro! — ela disse, antes que ele tentasse adivinhar. — O senhor já deveria ter dito antes de hoje.
— A gente não queria ver você magoada, sabendo que você é tão amorosa e sensível.
— Puxa vida, papai. O senhor poderia... Espere aí! O senhor disse nós?
— Seus irmãos e eu. Eles também adoram você, meu amor. Você sabe fazer uma boa comidinha caseira e seus biscoitos derretem na boca, só que agora queremos arrasar. Como estava lhe dizendo, meu bem, o caminho para o coração de um homem...
— Já sei. Passa por seu estômago. Isso também é uma coisa horrível e sem sentido, se quer saber.
— Ah, é? E como acha que sua mãe me fisgou?
Quando ela aprenderia que jamais venceria uma discussão com seu pai? Fosse qual fosse o motivo. Por fim, admitindo a derrota, ela disse:
— Já sei. O famoso bolo de calda.
— Pois é.
— Saiba que não quero fisgar o Theo como a mamãe o fisgou.
— Sei muito bem. É a cidade inteira que quer fisgar o Theo.
— Certo, certo. Farei a minha parte. Prometo. Agora deixe-me ver se entendi bem. Fazer a minha parte significa que não devo cozinhar de jeito algum, devo mentir sobre o gumbo, dizer ao Theo que fui eu que fiz e, ah, sim, tenho de ser simpática. Devo pôr um chocolate no travesseiro dele esta noite?
Ele abraçou-a, girando-a no ar.
— Não, o chocolate pode ser demais e matar o coitado. Agora vá sentar lá que logo levo o jantar para você e para o Theo.
Michelle não teve mais um momento de sossego durante as próximas três horas. Depois que ela e Theo comeram, ela vestiu o avental e foi trabalhar, limpando as mesas e ajudando a carregar jarras com cerveja gelada. Theo ficou grudado ao balcão, ladeado por dois homens com papéis na mão. Havia uma fila de gente querendo falar com ele. Big Daddy Jake debruçava-se sobre o balcão e fazia as apresentações.
Mais consultoria jurídica de graça, ela concluiu. Myron sumiu depois de algum tempo e, já que o pai estava ocupado tentando manipular Theo, ela assumiu o controle do bar.
As dez e meia a cozinha foi oficialmente fechada e limpa, e o monte de gente começou a dispersar-se. Havia apenas umas doze pessoas lá dentro quando ela tirou o avental e aproximou-se da jukebox. Ela colocou uma moeda de 25 centavos que havia pegado na registradora, apertou o B-12 e depois sentou-se junto a uma mesa de canto que acabara de limpar. Apoiou os cotovelos na mesa e descansou o rosto nas mãos.
Seu olhar sempre ia dar em Theo. Ele estava simplesmente lindo com a camiseta cinza e jeans. Precisava ser tão sensual? E por que não encontrava nada de errado nele? Assim poderia implicar com alguma coisa e acabar perdendo o interesse. Só conseguia pensar em ir para a cama com ele. Será que isso significava que estava tomando-se vulgar? Seria muito gostoso. Pare de pensar nisso. Comece a pensarem outra coisa.
Outro pensamento surgiu em sua cabeça, ainda mais deprimente. Ótimo. Quando ele se fosse — sim, partiria, mesmo — a cidade ainda poria a culpa nela. Ah, não diriam nada, mas todos pensariam que ela não havia se esforçado, que não tinha sido suficientemente gentil.
Ela imaginou o que pensariam se soubessem de que maneira ela desejava satisfazê-lo. Admita, droga. Está sentindo pena de si mesma porque ele vai voltar para Boston e sua vida super-sofisticada por lá, enquanto você está morrendo de vontade de fazer com que ele fique em Bowen. Para sempre.
Ora bolas! Como aquilo foi acontecer? Como ela pode ser tão tonta? Não havia adiantado nada enumerar todos os motivos para não se apaixonar por ele? Evidentemente não. Tinha sido ingênua demais para prestar atenção e tomar cuidado. Era uma mulher forte; então por que não havia conseguido se proteger dele? Será que estava amando? Ai, ai, ai! E se estivesse?
Não, impossível, decidiu. O amor não podia acontecer assim tão rápido!...Ou podia?
Michelle estava tão perdida em suas preocupações, que não percebeu que ele vinha se aproximando.
— Ih, parece que está no enterro do melhor amigo. Vamos. Venha dançar comigo.
Ah, dê o fora e deixe-me curtir minha autopiedade.
— Está bem.
Theo tirou uma moeda de 25 centavos do bolso, colocou na máquina e disse para ela escolher. Sem hesitar, ela apertou A-1.
A música começou e só quando ela se viu envolvida nos braços dele foi que percebeu que havia cometido um erro enorme. A última coisa de que precisava naquele momento, de autopiedade e vulnerabilidade, era ser tocada por ele.
— Você está dura como uma tábua. Relaxe — ele murmurou junto ao ouvido dela.
Com delicadeza, ele fez com que a cabeça dela repousasse em seu ombro e puxou-a até que seus corpos se colassem. Ai, ai, ai. Grande bobagem. Tarde demais, pensou, aconchegando-se junto a ele e envolvendo o pescoço dele com os dedos.
— Adoro esta música.
— Parece que conheço, mas não sei como, porque não costumo ouvir música country.
— É o Willie Nelson cantando Blue Eyes Cryin' in the Rain.
Ele acariciava o rosto dela com o nariz, fazendo com que perdesse a concentração.
— É uma canção bonita. Gostei dela — ele comentou. Ela tentou afastar-se, mas ele não permitiu.
— É uma música triste — ela disse, assustando-se ao perceber como estava sendo do contra.
Embalavam-se lentamente ao ritmo da música.
— É uma velha história — ela explicou.
— Que história?
Ele beijou o ponto sensível logo abaixo da orelha, deixando-a arrepiada. Ela tremeu. Ele devia saber o que estava causando a ela. O pior era que realmente desejava derreter-se nas mãos dele.
— É sobre uma mulher que se apaixona por um homem, mas depois ele a abandona e ela...
— Deixe-me adivinhar... chora na chuva?
Ela podia ouvir o riso que permeava a voz dele. A mão de Theo suavemente acariciava suas costas.
— E como ele pôde deixar a garota?
— Porque é um grande idiota — ela disse, como se estivesse pensando alto, mas logo tentou consertar. — Sei lá, é só uma música. Estou só fazendo hipóteses. Talvez ela o tenha abandonado e ficou tão feliz por se ver livre dele que está chorando de felicidade na chuva.
— Sei, sei.
Ela colou-se mais ainda nele, com os dedos desenhando pequenos círculos em seu pescoço.
— Melhor parar com isso.
— Você não gosta? — ela perguntou, deslizando os dedos para os cabelos dele.
— Gosto, sim. E é por isso que quero que pare.
— Ah!
Então ela também o deixava maluco. Essa maravilhosa constatação deixou-a um tanto ousada.
— Então provavelmente também não quer que eu faça isso — ela sussurrou, beijando-lhe o pescoço.
— Michelle, estou avisando. Este é um jogo para duas pessoas.
— Que jogo? — ela perguntou.
Voltou a beijar-lhe o pescoço, dessa vez roçando-o com a ponta da língua. Sentia-se mais ousada. Seu pai estava na cozinha e ninguém mais prestava atenção neles. Além do mais, o corpo grande de Theo a escondia. Isso a fez ficar mais arrojada e ela esfregou seu corpo no dele.
— Se não gosta do que estou fazendo... A provocação não passou despercebida.
— Você é má — ele disse.
— Obrigada — ela respondeu, suspirando.
— Sabe do que eu gosto?
— De quê? — um murmúrio quase inaudível.
— Gosto do seu cheiro. Quando chego perto de você, seu cheiro me deixa louco e me faz pensar em tudo o que eu gostaria de fazer com você.
Michelle fechou os olhos. Não pergunte. Pelo amor de Deus, não pergunte.
— Que tipo de coisas?
Até aquele momento, ela achava que estava se controlando diante de um mestre. Fora ela a iniciar a conversa erótica, e sabia, pelo modo como ele a segurava, que havia conseguido abalar suas bases.
Mas então ele começou a sussurrar em seu ouvido e ela percebeu que na verdade estava completamente perdida. Em voz baixa e aveludada, ele descreveu exatamente o que pretendia fazer com ela. Nas fantasias dele, ela era, é claro, a estrela; e cada parte do corpo dela, até os dedos do pé, tinham seu papel. Ele realmente tinha uma imaginação fértil, e com certeza não tinha o menor pudor em contar o que se passava em sua mente. Michelle não podia culpar ninguém além de si mesma. Afinal, havia pedido. Isso, porém, não importava. Quando ele acabou de descrever várias maneiras criativas para fazer amor com ela, o sangue pulsava forte nos ouvidos de Michelle, seus ossos pareciam ter virado geléia e ela sentia-se derreter junto a ele.
A música acabou. Ele beijou-lhe a bochecha, aprumou-se e afastou-se.
— Obrigado pela dança. Quer uma cerveja, ou alguma coisa? Parece que está com um pouco de calor.
Um pouco de calor? Ela sentia-se como se o ar do bar estivesse a 42°. Ao olhar nos olhos dele, percebeu que ele sabia exatamente o que havia provocado nela.
— Está abafado aqui dentro. Acho que vou tomar um pouco de ar lá fora — ele anunciou com a maior informalidade.
Ela ficou observando ele afastar-se. Ele havia acabado de abrir a porta e pôr o pé para fora, quando ela saiu correndo atrás dele.
— É isso aí.
Ela alcançou-o lá fora, parado ao luar. Ela cutucou-lhe o meio das costas e repetiu, bem mais alto desta vez.
— É isso aí. Você venceu.
— O que disse? — ele perguntou, voltando-se para ela.
Ela estava tão zangada, que bateu-lhe no peito com a ponta dos dedos.
— Eu disse que você venceu.
— Certo — ele disse calmamente. — O que foi que eu venci?
— Você sabe muito bem do que eu estou falando, mas já que estamos sozinhos, por que não dizer com todas as letras? Esse joguinho que estamos jogando. Você venceu. Eu bem que cheguei a pensar que tinha o controle nas mãos, mas é óbvio que me enganei. Não sou boa nisso. Certo? Portanto, você ganhou.
— Exatamente o que eu ganhei?
— A cama.
— O quê? — ele perguntou, arqueando a sobrancelha.
— Você ouviu muito bem. Vamos para a cama, Theo Buchanan. Ou melhor, vamos fazer sexo, sexo muito gostoso. Entendeu?
Um sorriso diabólico iluminou o rosto de Theo, e seus olhos pareciam perdidos no espaço. Será que já estava pensando no que faria ou será que não conseguia prestar atenção durante o tempo suficiente para ouvi-la se render?
— Michelle, meu bem...
— Você não está prestando atenção, não é? Quero fazer amor com você. Da melhor espécie — ela ressaltou. — Você sabe muito bem do que estou falando. Daqueles de fazer o sangue ferver, de rasgar a roupa, de deixar louco, de urrar de prazer. Como na música All Night Long, seremos eu e você, garotão. A noite toda. É só dizer a hora e o local e estarei lá.
Pelo jeito, ela havia feito Theo perder a fala. Teria de haver uma primeira vez. Talvez ela não fosse tão ruim nisso, afinal. Theo continuava a olhar para ela com um sorriso no canto dos lábios. De repente, ela sentiu-se ousada como um galo pronto para cantar. Cruzou os braços diante da cintura e disse:
— E então? O que tem a dizer sobre isso?
Ele deu uma passo na direção a ela e disse:
— Michelle, quero apresentar-lhe um velho amigo meu, Noah Clayborne. Noah, esta é Michelle Renard.
Ele estava blefando. Só podia estar blefando! Ela sacudiu a cabeça levemente. Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça. Ela voltou a balançar a cabeça e murmurou:
— Ai, ai, ai!
Ela fechou os olhos. Aquilo não podia estar acontecendo.
Michelle não se atrevia a olhar para trás. Queria sumir em um buraco no chão. Há quanto tempo o sujeito estaria ali? Ela sentia o rosto queimar de vergonha. Engoliu em seco e forçou-se a dar meia volta.
O sujeito estava ali, mesmo. Alto, louro, olhos incrivelmente azuis e um sorriso de predador. Quando falou, sua voz saiu baixa e rouca, como se estivesse com uma terrível laringite.
— Muito prazer.
Até dar meia volta, achou que a situação não podia ficar pior. Enganou-se redondamente, no entanto. Seu pai estava parado na porta, logo atrás de Noah, e com certeza estava perto o suficiente para ter ouvido tudo o que ela havia dito a Theo. Mas também poderia não ter ouvido. Podia ter acabado de chegar ali. Ela reuniu coragem, e olhou para ele. Seu pai parecia ter sido atingido por um raio.
Michelle resolveu adotar um plano de emergência. Simplesmente faria de conta que nada havia acontecido.
— Chegou agora? — ela perguntou a Noah, com a maior cara dura.
— Cheguei — Noah respondeu com um sorriso irônico. — E então, Theo, todas as garotas de Bowen são assim tão generosas?
A porta do bar bateu com força e Jake aproximou-se depressa. Agora parecia atônito.
— Quando eu disse para você estender o tapete vermelho, achei que entendeu do que estava falando. Existe uma diferença entre ser simpática e ser oferecida. Quando criei você, achei que tinha deixado bem clara a diferença.
— Papai, Theo estava brincando de me conquistar, e eu só queria acabar com o blefe dele.
— Eu não estava blefando — Theo disse e deu de ombros. Ele sentiu um pisão no pé no instante seguinte.
— Ah, mas claro que estava — ela disse. — É verdade, papai. Eu só estava... provocando.
— Vamos conversar melhor sobre isso mais tarde, mocinha — Jake disse, girou nos calcanhares e voltou para dentro do bar.
Noah, então, provocou:
— Theo estava tentando conquistar você? Só pode estar brincando. Não acredito.
— Ele estava, sim.
— Será que nós dois estamos falando da mesma pessoa? Desse sujeito aí atrás, Theo Buchanan?
— Esse mesmo.
— Acho muito difícil de acreditar. Ele não sabe cortejar.
— Ah, sabe, sim. E é muito bom nisso — ela insistiu.
— Verdade? Deve ser por sua causa, então. Eu estava dizendo ao Jake que é a primeira vez em mais de cinco anos que vejo Theo usando outra coisa que não seja terno e gravata. Sempre foi viciado em trabalho, desde que o conheço. Deve ser você quem desperta o lado mau dele — Noah disse, brincando e carregando na ironia.
Ela deu um passo atrás e chocou-se contra Theo. Não que estivesse pensando em fugir, mas não gostou de saber que ele estava bloqueando sua saída.
— Será que podemos mudar de assunto? — ela pediu. Noah teve pena dela.
— Claro. Theo contou-me que você é médica.
— Sim, é verdade.
Ótimo. Voltavam a um terreno seguro. Talvez Noah tivesse algum problema de saúde e quisesse alguma orientação. Ela esperava que esse fosse o caso.
— Qual é sua especialidade?
— Ela é cirurgia — Theo explicou.
— Não é um pouco jovem para estar brincando com facas? — Noah brincou.
— Foi ela quem me operou.
Noah deu de ombros. Depois aproximou-se.
— Venha dançar comigo. Vamos escolher uma boa música do Willie Nelson e nos conhecer melhor.
Ele passou o braço por trás dos ombros dela e levou-a para dentro. Theo ficou parado, não muito contente com a confiança do amigo. Noah era um conquistador descarado. Conquistava mais que Gengis Khan, e Theo não gostou nem um pouco de vê-lo usar seu charme para cima de Michelle.
Ela animou-se:
— Você gosta de Willie Nelson?
— Claro que gosto. Todo o mundo gosta. Ela virou a cabeça para olhar para Theo.
— Seu amigo tem bom gosto. Noah então chamou-lhe a atenção.
— Posso fazer-lhe uma pergunta?
Ela estava tão contente que esqueceu a vergonha que tinha passado.
— Pode perguntar o que quiser.
— Eu estava pensando...
— Em quê?
— Há outro tipo de sexo que não seja da melhor maneira possível?


Capítulo 24


Cameron sabia que havia feito algo errado, mas negava-se a admitir. Encostou-se na parede revestida de madeira da biblioteca de John, com a cabeça curvada, enquanto Dallas, Preston e John, um de cada vez, chamavam sua atenção.
— Quanto tempo acha que a médica vai demorar para se lembrar que o viu no enterro de Catherine? — Preston perguntou.
Saltando da cadeira, bateu o punho forte na palma da outra mão e se pôs a caminhar de um lado para outro.
— Ela não se lembrará — Cameron resmungou. — Em momento algum cheguei perto dela no enterro. Além do mais, já estava cansado de esperar de braços cruzados e acho que valeu o risco.
Dallas explodiu:
— Como pode achar que valeu o risco, seu idiota? Não conseguiu pegar o pacote de volta, e agora chamou a atenção de um monte de gente para ele. Você só faz confusão, Cameron. É a porcaria da bebida. Está desmanchando seu cérebro.
Preston parou em frente a Cameron.
— Agora você colocou tudo em perigo — gritou.
— Vá se ferrar — Cameron gritou de volta.
— Calma, gente — John ordenou. — Dallas, ligue para o Monk. Precisa ler isso aqui para ele.
Monk estava sentado dentro do carro, esperando que a médica e seu namorado saíssem do Cisne. Seu veículo estava bem camuflado entre duas outras caminhonetes no fundo do estacionamento. Havia mais quatro carros em fila diante do dele. Estava quente e abafado, mas ele não ligou o ar condicionado. Todos os quatro vidros estavam abertos, e ele estava sendo comido vivo pelos mosquitos. Comparado a ficar escondido no mato, com insetos subindo-lhe pelas pernas, aquilo era um luxo.
Estava pensando em ligar para Dallas para relatar-lhe os últimos acontecimentos, mas assim que decidiu esperar até voltar ao motel, seu telefone celular começou a vibrar.
— Alô?
— Buchanan é advogado do Ministério da Justiça. Monk levantou a cabeça abruptamente.
— Quer repetir, por favor?
— O filho da puta trabalha para o Ministério da Justiça.
Esperar o inesperado. Monk respirou fundo e aguardou enquanto Dallas lia o documento. Em que aquele maldito Clube dos Semeadores o havia metido? Podia ouvir vozes ao fundo.
— Onde está? — Monk perguntou.
— Na casa de John. Estamos todos aqui.
— Quem está gritando?
— Preston.
Ele ouviu outra voz gritar. Pensou que poderia ser Cameron. Monk estava enfastiado. Eles estavam comportando-se como ratos, atacando-se uns aos outros por causa de um pedaço de comida. Se não houvesse tanto dinheiro envolvido, Monk teria tirado o corpo fora daquela confusão. Cameron já havia perdido o controle e, pela discussão que estava ouvindo ao fundo, sabia que não demoraria muito para o grupo desintegrar-se.
— Não acredito que não tenha me telefonado logo depois de saber — Monk disse. — Perdeu horas preciosas.
— Foi você quem disse que ele era treinador de futebol... Não, você tem razão. Não vou inventar desculpas nem culpar você. Deveria mesmo ter ligado bem antes.
Monk sentiu sua ira um tanto aplacada porque Dallas reconheceu a culpa.
— Quando pode acabar com ele? — Dallas perguntou.
— Deixe-me pensar — Monk disse. — Não gosto que fiquem me apressando. É preciso algum tempo para preparar essas coisas e recuso-me a agir sem pensar. Impulsividade leva a erros. No entanto, caso seu documento esteja certo...
— Claro que está — Dallas disparou.
— Então talvez ele esteja em Bowen só por causa dela. Sabe como é, esses homens fazem qualquer coisa por...
Dallas voltou a interrompê-lo:
— Uma bunda gostosa? Você acha que depois de ter dado aquela palestra em Nova Orleans foi até aí só para dar uma bimbada?
— Você não viu a garota, ainda — Monk contrapôs. — Ela é... uma gracinha. Muito bonita, para falar a verdade.
— Tá, então está dizendo que esse cara dos Federais está na cidade só por causa dela. Certo. Até faz sentido, não é? Ela abre a barriga dele, salva sua vida e ele apaixona-se por ela e, já que tem de voltar a Nova Orleans de qualquer jeito, ele resolve esticar um tanto a viagem até Bowen só para trepar com ela.
Monk fez uma careta por causa do linguajar vulgar de Dallas.
— Mudou de idéia, então?
— Espere aí — Dallas disse. — John está dizendo alguma coisa. Monk esperou pacientemente. Ouviu Preston discutindo, sacudiu a cabeça e procurou lembrar-se, mais uma vez, do dinheiro que aquele serviço envolvia.
— A médica tem de ser apagada antes que lembre-se de onde já viu Cameron — Dallas disse. — Buchanan já recebeu ameaça de morte e John acha que podemos trabalhar de maneira a parecer que foi uma vingança para cima dele.
— E acontece de a médica estar junto e ser queima de arquivo?
— Exatamente — Dallas confirmou. — Vamos para Bowen amanhã. Fique em cima da médica até eu ligar para você. E fique de olho no tal envelope, também.
— Claro — Monk respondeu com voz suave. — Ah, Dallas, só para seu conhecimento, vou ler aqueles arquivos antes de entregar para você.
— Ainda tem medo que seu nome possa estar lá? Pois não está. Já li aquela merda duas vezes. Depois que este serviço acabar, você estará livre para sempre. Você sabe disso muito bem, não é, Monk?
— Sei — ele respondeu. — Só estou curioso para saber quanto dinheiro tem na tal conta, no entanto. Tenho direito a uma porcentagem. Podemos chamar de divisão de lucros, se quiserem, mas uma vez que sou eu a assumir todos os riscos...
Dallas respondeu ao pedido daquele ávido filho da mãe batendo-lhe o telefone na cara.


Capítulo 25


Theo certamente não estava com ciúmes. Adolescentes ficam com ciúmes, e ele já tinha passado dessa fase da vida. Estava ficando irritado, no entanto. Michelle ria e se divertia dançando com Noah. Theo sentou-se junto ao balcão e passou a tomar notas sobre o problema que um homem lhe expunha. O homem havia comprado um carro usado, com trinta dias de garantia. O homem pagou em dinheiro, tirou o carro do pátio do vendedor e, dois quarteirões adiante, o silenciador caiu e o radiador estourou. Como não fazia nem meia hora que era dono do carro, mandou guinchar de volta ao pátio e pediu seu dinheiro de volta. O vendedor explicou-lhe que a garantia de satisfação só cobria os pneus e o motor. Também sugeriu que, da próxima vez que comprasse um carro, lesse as letras miúdas antes de assinar o contrato.
Michelle riu outra vez, chamando a atenção de Theo. Ele adorava o som de sua voz, e pelo modo como Noah olhava para ela, também estava encantado.
Mais uma vez, voltando-se para o homem sentado a seu lado, procurou concentrar-se. Quando olhou para os dois pela centésima vez, Noah havia levantado a camiseta e estava mostrando a horrível cicatriz que tinha no peito. Entre dentes, Theo murmurou:
— Já chega!
Deixou a caneta sobre o balcão e foi até lá acabar com a dança.
— Está tentando impressionar Michelle com todos os buracos de bala que tem?
— Já a impressionei com minha inteligência, bom humor e charme
— Noah respondeu.
Ela balançou a cabeça e disse:
— Teve muita sorte. Essa bala poderia ter matado você.
— Sim, muita sorte — ele concordou. — Meu anjo da guarda estava de prontidão, acho — ele riu. — Eu estava na igreja quando fui atingido.
Ela tinha certeza que ele estava brincando.
— Dormiu durante o sermão e deixou o padre louco da vida?
— Mais ou menos.
— Papai vai gostar de ouvir essa história — ela disse. — Onde ele está?
— Está na cozinha, preparando alguns sanduíches — Theo respondeu.
— Não me diga que está com fome depois de comer o peixe!
— Foi ele quem ofereceu. Disse que ia fazer um para ele e está fazendo um para o Noah, também.
Pensando em ajudar o pai, ela foi para a cozinha. Ouviu Noah dizer:
— E então, Theo, o que acha de dar uma olhada na lista dos participantes do concurso de pesca no sábado? A folha está pendurada naquela parede.
— Por que quer que eu vá olhar?
— Porque você foi chutado.
— Não me venha com bobagens...
Theo recusava-se a acreditar nele... até olhar a lista. Seu nome havia sido riscado, e o de Noah estava escrito por cima.
Michelle entrou correndo na cozinha. O pai entregou-lhe um prato descartável com um sanduíche duplo de peru com muita maionese e um monte de batatas fritas brilhantes de gordura. Ele levava outro prato igual e o colocou sobre o balcão.
— Se Theo ficar por aqui mais duas semanas, acabará tendo de implantar uma ponte de safena — ela comentou. — Está matando o homem com suas gentilezas.
— Peru não faz mal. Você mesma disse.
— É, mas um vidro inteiro de maionese faz a diferença para pior
— ela disse. — E também parece ter um monte de gordura naquelas batatas fritas.
— É isso que deixa as batatas gostosas — o pai respondeu e virou-se para chamar. — Podem vir, meninos. O lanchinho está pronto. Fiz os sanduíches sem meu molho especial de pimenta, Theo, se isso o preocupa.
Noah e Theo estavam lendo a lista. Ela cutucou o pai e murmurou:
— O senhor trocou Theo por Noah como seu parceiro no torneio? Ele tinha uma expressão culpada como o pecado.
— Tive de trocar, querida.
Sem conseguir acreditar no que ouvia, ela perguntou:
— Por quê? — mas não lhe deu tempo de responder. — Como vem com essa história de simpatia e depois quebra uma promessa feita?
— Só estava sendo prático.
— Que significa isso?
Ela seguiu-o de volta até a cozinha.
— Embrulhe o meu sanduíche, Mike. Vou levar para comer em casa.
Ela pegou o papel alumínio e fez o que ele pediu.
— O senhor ainda não me respondeu — ela lembrou. Jake encostou-se no balcão e cruzou os braços.
— O que acho é que temos mais chance de ganhar se formos quatro a concorrer ao prêmio, em vez de dois, e Noah ia convencê-la a ser a parceira dele. Achei que o Theo não gostaria muito da idéia e então disse ao Noah que eu seria o parceiro dele. Agora você e Theo podem passar o dia inteiro juntos. Você devia estar contente por ter sido incluída.
Ele realmente a deixava maluca!
— Trocando em miúdos, isso significa que o senhor acha que Noah pesca melhor?
— Ele disse que vem pescando bastante nesses últimos quatro anos, mas não foi por isso que troquei de parceiro — ele apressou-se em dizer ao ver o brilho zangado nos olhos da filha. — Não vejo para que se arrepiar por causa disso. Você devia me agradecer por pagar sua inscrição.
— Não quero ir pescar no sábado. Tenho uma porção de outras coisas para fazer.
— Mas poderia ganhar o prêmio. Todo o mundo sabe que pesca melhor do que eu.
Ela recusava-se a acreditar naquela conversa fiada.
— Não é verdade e o senhor sabe muito bem disso. Está tentando bancar o cupido? É por isso que quer que eu vá pescar com Theo?
— Depois do que ouvi você dizer para ele? Não preciso fazer mais nada. Você está fazendo até bem mais do que eu esperava.
— Papai, só estava tentando desarmar Theo... Jake fez de conta que não ouviu.
— Noah é quem deve estar bancando o cupido. Ele disse-me que nunca viu Theo ficar como fica quando está perto de você.
Essa observação prendeu toda a atenção dela. O pai fez um sinal positivo com a cabeça e foi até a geladeira pegar leite. Encheu um copo e deu um longo gole.
— E como o Theo fica? — ela quis saber.
— Noah diz que ele não pára de sorrir. Pelo que entendi, isso deve ser uma raridade.
— Papai, o sujeito está em férias. Por isso está sorrindo. Seu estômago está incomodando? O senhor só bebe leite quando está com indigestão.
— Meu estômago vai bem, obrigado — ele respondeu, impaciente, e voltou ao assunto em questão. — E quando se trata de Theo, parece que você tem uma resposta para tudo. Vamos ver se me explica isso. Por que ele não consegue tirar os olhos de você? Noah percebeu e chamou-me a atenção para o fato. Daí eu comecei a perceber, também — ele continuou, antes que ela pudesse contestar. — Você sabia que Noah trabalha para o FBI? Ele usa revólver, que nem o do Theo. Eu vi o berro preso na cintura dele. Vou lhe contar uma coisa: Theo tem amigos bem influentes.
— E o senhor conhece uma porção de gente que precisa da ajuda de amigos influentes, acertei?
Jake terminou de beber o leite e colocou o copo na pia. Quando virou-se, ela percebeu, sob a forte luz branca, como ele tinha um ar cansado.
— Pode ir para casa, papai. Theo e eu podemos acabar o serviço e fechar.
— Eu também.
— Sei que pode, papai. Mas os próximos dois dias serão bem pesados. Vem uma porção de gente para cá para inscrever-se e comer, e o senhor sabe como o bar enche às quintas e sextas. Vá para casa, papai. Deite e descanse.
— Você também está precisando descansar. Precisa começar a pôr aquela clínica em ordem.
— Vem gente para me ajudar.
— Está bem, então — ele admitiu. — Estou cansado e vou para casa. Feche à uma, não espere até as duas horas.
Ele inclinou-se e beijou o rosto da filha.
— Até amanhã, menina.
Ele abriu a porta de trás e ia sair, mas voltou a fechá-la.
— Ah, eu ia me esquecendo de contar-lhe que Ben Nelson ligou atrás de você. Disse que não tem nenhuma novidade, nem um suspeito ainda, mas disse que continuará de olho, para ver se outra coisa ruim acontece. Agora eu é que pergunto: tem alguma coisa que tenha vontade de contar ao seu pai? Ele deixou-me morto de preocupação por sua causa, mas depois lembrei-me que o Theo está lá com você. Não esqueça de passar a tranca nas portas — ele recomendou, saindo para a luz da lua. — Para mim é um conforto.
— O que é um conforto?
— Saber que Theo estará lá com você.
Michelle concordou com a cabeça. Era mesmo um conforto. Ela trancou a porta, apagou a luz e voltou ao bar. Theo e Noah haviam levado os pratos para uma das mesas redondas e estavam comendo seus sanduíches.
Um dos clientes habituais pediu uma cerveja. Ela percebeu como os olhos dele estavam vermelhos e perguntou:
— Vai dirigindo para casa hoje, Paulie?
— A Connie vem me buscar quando terminar seu turno lá na fábrica. Ela é minha motorista esta noite.
— Então está bem — ela disse com um sorriso.
Ela serviu outro copo de cerveja, percebeu como estava abafado ali dentro e aumentou a velocidade dos ventiladores do teto. Só havia mais cinco fregueses no Cisne. Ela assegurou-se que todos estivessem bem servidos, depois pegou dois copos de água mineral e levou para Noah e Theo.
Theo puxou uma cadeira e disse a ela:
— Sente-se conosco.
Ela deu a água a Noah, sentou-se entre os dois e depois colocou a água de Theo junto ao prato dele.
— Espero que não se importem, mas mandei papai para casa, o que significa que terei de fechar o bar esta noite — ela anunciou.
— É tão bonitinho ver você ajudar seu papai. Costume do sul? — Noah perguntou.
— Costume dos Renard — ela respondeu.
Noah acabou de colocar a última porção de fritas na boca e estava tomando um gole de água para ajudar a engolir, quando ela perguntou se ele desejava que ela o acompanhasse quando fosse fazer a vistoria da clínica.
— Já estive lá. Acho que Theo tem razão. Aquilo não é coisa de molecada. Foi serviço de uma só pessoa. E, fosse quem fosse, ficou furioso por não encontrar o que estava procurando. Você percebeu a escrivaninha? A tranca estava arrombada. Alguém perdeu algum tempo com aquela fechadura.
— Michelle acha que pode ter sido algum paciente do Dr. Robinson querendo roubar sua ficha.
— Um paciente não pode simplesmente pedir sua ficha? — Noah perguntou.
— Eu entregaria uma cópia, mas o original ficaria comigo — Michelle respondeu.
— Pois duvido que tenha sido um paciente. As fichas dos pacientes são confidenciais. Todo mundo sabe disso. E por que um paciente chegaria a tais extremos, arrebentando o lugar? Se queria tanto assim sua ficha, só precisava entrar e pegar o que queria em uma das caixas. Não, não acho que tenha sido um paciente. Mas o que diz o Dr. Robinson? Ele tinha algum paciente pira... difícil?
— Ele ainda não me telefonou de volta — Michelle informou. — Vou tentar mais uma vez pela manhã. Recentemente ele mudou-se para Fênix e deve estar ocupado, pondo suas coisas em ordem.
— Por que não dá o telefone dele a Noah e deixa que ele se encarregue? — Theo sugeriu — As pessoas costumam atender mais depressa quando é o FBI que pede alguma coisa. Mesmo em meus piores dias, não consigo ser tão incisivo quanto Noah. É um especialista em coerção.
— Pois é — Noah riu da definição, depois se voltou para Michelle. — Já vi Theo fazer marmanjo chorar. Foi até um tanto engraçado ver um assassino frio e impiedoso, que por acaso é chefe de uma organização criminosa, desmontar feito um bebê.
— Isso é exagero dele — Theo disse.
— Não é não — Noah contestou. — No entanto é verdade que uma pessoa comum não faz a mínima idéia do que faz um promotor do Ministério da Justiça. Pensando bem, Theo, acho que nem eu sei. Além de fazer criminosos chorarem, o que exatamente você faz, Theo?
— Não se faz muita coisa — ele respondeu secamente. — Bebemos bastante...
— Isso já se sabe.
— E ficamos pensando em coisas para vocês do FBI fazerem.
— Aposto que sim — Noah disse e falou a Michelle. — Esses preguiçosos da Promotoria empurram todo o serviço para os dedicados agentes do FBI.
Theo riu e brincou:
— Pois eu chamo isso de delegar tarefas. A gente faz isso para que esses seres inferiores não se sintam relegados a segundo plano.
Os insultos começaram a voar de um lado para outro, e alguns dos absurdos que diziam eram de morrer de rir. Achando graça de tudo, ela recostou-se na cadeira e relaxou. Quando a conversa voltou à clínica, ela disse:
— Não vou mais me preocupar com isso. Acho até que andei exagerando meu medo.
— Como assim? — Noah quis saber.
— Fiquei tão apavorada depois de ver aquela confusão, que achei que estava sendo seguida. Sabem aquela sensação que dá? É difícil de explicar.
— Pois eu prestaria mais atenção a essa sensação, se fosse você — Noah aconselhou.
— Mas não vi ninguém me seguindo — ela insistiu. — Eu teria visto... não acha?
— Se o cara for bom, não — Noah disse.
— Esta é uma cidade pequena. Se algum estranho aparecesse, logo perceberiam.
— Você acha? E se viesse um homem com um furgão da companhia telefônica, ou de eletricidade? Será que alguém notaria? E todos esses homens e mulheres que estão vindo para cá por causa do torneio de pesca? Se estiverem vestidos de acordo e carregando uma vara, estranharia a presença deles?
Michelle levantou-se.
— Entendo onde está querendo chegar e agradeço muito a inspeção que fez na clínica, mas continuo achando que foi um incidente isolado.
— E sua convicção baseia-se em quê? — Theo perguntou. — Pensamento positivo?
Ela ignorou o sarcasmo, e falou:
— Isso aqui é Bowen. Se alguém tivesse algum problema comigo, logo me diria. Pensando bem, nunca me assustei com sombras, até que vi a clínica naquele estado. Acho que minhas reações foram exageradas. Só quero que se lembrem — ela apressou-se em dizer, antes que ele a interrompesse — que nada mais aconteceu. Vocês ficam procurando uma conspiração, mas não existe nada — ela continuou, voltando-se para Noah. — Mas agradeço muito que tenha vindo até Bowen.
— Não precisa me agradecer — Noah respondeu. — Para falar a verdade, fiz um favor para receber outro favor. Theo concordou em ir de volta a Biloxi comigo. Ele fará uma palestra para mim, e eu cruzaria o país inteiro por isso. Ainda tenho de completar o treinamento, mas pelo menos não precisarei preparar a palestra.
— Quando tem de estar de volta?
— Na segunda-feira.
— Ah — ela comentou e virou-se depressa, antes que pudessem perceber o quanto ficara desapontada.
Noah ficou observando ela afastar-se.
— Puxa vida, Theo, ela é especial. Se fôssemos ficar por aqui mais tempo, tentaria tirá-la de você. Sempre tive uma queda por ruivas.
— Você gosta de qualquer coisa que use saia!
— Não é verdade. Lembra-se do caso Donovan? Patty Donovan sempre usou saias e nunca me senti atraído por ela.
Theo girou os olhos e balançou a cabeça.
— Patty é travesti. Assim não vale.
— Mas as pernas eram bonitas. Isso eu reconheço — Noah brincou. — Diga uma coisa. O que está acontecendo de fato entre você e Michelle?
— Não está acontecendo nada.
— Pois é um desperdício.
— Você ainda não disse o tema da palestra que vou ter de dar — Theo comentou, na esperança de fazer Noah mudar de assunto. — O que vai ser?
— Controle da raiva — Noah respondeu, abrindo um sorriso. Theo deu risada.
— É isso que seu chefe chama de piada?
— Acho que sim. Você conhece Morganstern. Ele tem um senso de humor meio estranho. Me fez comandar o programa de treinamento como um tipo de castigo.
— O que você aprontou?
— Você nem vai querer saber — Noah fez uma pausa, depois disse. — Morganstern gostaria de trabalhar com uma pessoa como você.
— Ah, a missão secreta revela-se, afinal. Pete pediu para você falar comigo?
Noah deu de ombros e respondeu:
— Pode ter mencionado...
— Diga a ele que não me interessa.
— Ele gosta do jeito como sua mente funciona.
— Não me interessa — Theo reiterou.
— Está feliz onde está? Theo sacudiu a cabeça.
— Para mim, chega. Já deu. Vou voltar para amarrar as pontas que ficaram soltas; e depois apresento minha demissão.
— Só pode estar brincando, não é? — Noah disse, com ar estupefato.
— Não, não estou brincando. Já está na hora... mais do que na hora — ele corrigiu.
— E daí? O que vai fazer, então?
— Já pensei em uma ou duas coisinhas.
— Uma dessas tem cabelos ruivos?
Theo não respondeu. Antes que Noah insistisse, um homem aproximou-se da mesa e perguntou a Theo se podia conversar com ele sobre um assunto jurídico.
— Claro — Theo disse. — Vamos nos sentar ali no balcão. Levantou-se, girou os ombros para soltar os músculos, depois foi para trás do balcão para servir-se de cerveja. Depois perguntou ao jovem que o seguiu:
— Sobre o que queria falar?
Cinco minutos depois Theo estava a ponto de socar o tal homem. Noah percebeu a expressão de Theo e foi até o balcão para ver o que estava acontecendo. Ouviu Theo dizer:
— Não foi Jake quem mandou você falar comigo, não é?
— Não, mas ouvi dizer que o senhor estava ajudando gente com problema jurídico.
— Qual é o problema? — Noah perguntou. — Abriu uma garrafa de cerveja, jogou a tampa no lixo e foi colocar-se ao lado de Theo.
— Este é o Cory — Theo disse. — Tem dois filhos; um menino e uma menina.
Noah mediu o homem, que tinha uma aparência desagradável. Mais parecia um adolescente descuidado do que o pai de dois filhos. Cory tinha cabelos louros compridos e ensebados que caíam-lhe sobre os olhos, além de dentes manchados e amarelados.
— Que idade você tem? — Noah perguntou.
— Vou fazer 22 na semana que vem.
— E já tem dois filhos?
— Pois é. Consegui me divorciar da Emily faz seis meses porque conheci uma outra mulher e queria ficar com ela. O nome dela é Nora, e a gente quer se casar, né? Já me mudei para a casa dela, mas a Emily fica achando que tenho de continuar a dar dinheiro para as crianças, mas eu não acho justo.
— Então você quer que eu encontre um jeito para você não pagar pensão para seus filhos?
— Isso mesmo. Não quero pagar. São os filhos dela, tão morando com ela e eu já estou partindo para outra.
Os músculos da mandíbula de Theo contraíram-se. Michelle estava na porta da cozinha, segurando uma jarra na mão. Havia ouvido a conversa e, ao ver como as costas de Theo estavam tensas, compreendeu que estava zangado.
A voz de Theo continuou afável e tranqüila, quando comentou com Noah:
— O Cory aqui já está partindo para outra.
— Tem certeza que ele está pronto para partir para outra? — Noah perguntou, colocando a cerveja sobre o balcão.
— Ah, com certeza — Theo respondeu.
— Então deixe eu ajudar — Noah disse com um sorriso.
— Pode cuidar da porta.
Michelle avançou dois passos, mas deteve-se. Theo foi tão rápido que ela ficou surpresa. Num segundo ele estava sorrindo para Noah e no outro havia dado a volta no balcão, agarrado Cory pelo colarinho e pela parte de trás das calças e o estava arrastando pelo chão. Noah correu na frente, abriu a porta e afastou-se para que Theo atirasse o atrevido para fora.
— Ah, isso é que eu chamo partir para outra! — Noah riu, enquanto fechava a porta. — Que grande idiota!
— E fedido.
— Sabe o que me espanta? Como um cara feio e fedido desses consegue arranjar duas mulheres para dormir com ele?
Theo riu.
— Gosto não se discute, como diz o ditado.
Os dois estavam a caminho do balcão quando a porta abriu-se atrás deles e três homens entraram depressa. O último mais parecia um leão-de-chácara que tinha apanhado muito na cara. O homem era enorme, com quase dois metros de altura, e seu nariz já deveria ter sido quebrado várias vezes no passado. Tinha um ar assustador e estava com um bastão de beisebol na mão.
— Qual dos babacas aí é o Theo Buchanan?
Noah já tinha dado meia-volta. Estava de olho no bastão de beisebol. Michelle viu quando ele pôs a mão nas costas para soltar o revólver.
O bar esvaziou-se. Mesmo Paulie, que nunca fazia nada depressa, saiu pela porta em menos de cinco segundos.
— Michelle, vá para a cozinha e feche a porta — Theo pediu, antes de virar-se e dizer. — Theo Buchanan sou eu. E qual de vocês é Jim Carson?
— Sou eu, aqui — anunciou o menor dos três.
— Esperava mesmo que desse uma passada por aqui — Theo comentou.
— E quem você acha que é? — Jim desafiou.
— Acabei de lhe dizer quem sou. Não estava prestando atenção?
— Ah, pensa que é esperto, é? Está pensando que pode bloquear minhas contas e prender meu dinheiro no banco para eu não pegar nem um tostão? Está pensando que pode, é?
— Não só posso como já fiz — Theo calmamente ressaltou. Jim Carson parecia-se com seu irmão. Era atarracado, troncudo, com olhos um tanto vesgos em um rosto redondo como uma lua cheia. Só que não sorria como o irmão. Deu mais um passo ameaçador na direção de Theo e disparou uma enxurrada de frases carregadas dos piores palavrões. Por fim, ameaçou:
— Você vai se arrepender de ter se intrometido em meus negócios. Meu irmão e eu vamos fechar a droga do engenho, e então o pessoal da cidade vai acabar com você na porrada.
— Se eu fosse o senhor, aí, sim, estaria preocupado. Há quanto tempo vem dizendo a seus empregados que está à beira da falência? Imagine só como ficarão... decepcionados, quando descobrirem qual é a renda anual do engenho e o quanto têm amealhado.
— O quanto temos é informação confidencial — Jim gritou. — Você pode até saber quanto dinheiro temos, mas não passa de um cara de fora tentando criar caso. Se sair por aí dando com a língua nos dentes, ninguém acreditará em você. Ninguém, está me ouvindo?
— Certo, mas as pessoas costumam acreditar quando vêem as coisas por escrito, não é mesmo?
— Do que está falando?
— Escrevi um artigo caprichado para o jornal de domingo. Claro que tem de ser o mais fidedigno possível — Theo continuou, com um tom de leve ironia. — Talvez seja uma boa idéia enviar uma cópia por fax amanhã, para o senhor poder conferir. Particularmente, acho que é um dos meus melhores trabalhos. Fiz a lista de cada centavo que o senhor e seu irmão ganharam nos últimos cinco anos.
— Não pode fazer isso. É confidencial — Jim bradou. Theo olhou para Noah.
— Ah, acho que é bom falar sobre a declaração de renda dos dois irmãos nos últimos cinco anos, também. Ainda dá para incluir. Como pude esquecer?
— Você já era, Buchanan. Não permitirei que continue me dando problemas.
Jim estava tão zangado que o suor escorria-lhe pela testa. Estava espumando de raiva e era claro que ficava ainda mais possesso ao ver que Theo não se deixara impressionar com sua explosão de ira.
— Nem comecei a causar problemas ainda, Jim Carson. Quando acabar com o senhor e com seu irmão, vocês terão de entregar o engenho aos empregados. E não vai demorar muito — acrescentou — Vocês terão de ir morar embaixo da ponte. É uma promessa.
— Quer abaixar seu bastão de beisebol, agora? — Noah perguntou ao grandalhão de nariz amassado.
— Mas nem fodendo. Não vou largar isso antes de dar umas porradas. Não é, Seu Carson?
— Isso mesmo, Risadinha.
— Risadinha? — Theo riu.
— É, esse mundo é estranho, mesmo — Noah comentou, rindo.
— Vim aqui para quebrar as pernas do Buchanan com isso aqui, e é isso que eu vou fazer. Também vai sobrar para você — o grandalhão disse a Noah. — É melhor parar de rir de mim, porque se arrependerá de ter aparecido por aqui.
Noah estava de olho no homem que havia vindo com Jim Carson e Risadinha. Tinha quase o tamanho do grandalhão, mas era mais magro e tinha orelhas de abano. Os dois acompanhantes pareciam lutadores de rua mas, na opinião de Noah, Orelha de Abano é que era a verdadeira ameaça. Era bem provável que tivesse uma arma escondida. Ah, sim, ele podia causar sérios problemas; parecia ser o elemento surpresa que Jimmy Carson tinha trazido para o caso de Risadinha não conseguir cumprir sua missão.
Risadinha batia a parte mais larga do bastão na mão. O barulho foi irritando Noah.
— Largue essa porcaria — ele ordenou mais uma vez.
— Só depois de quebrar um pouco de osso.
Noah de repente sorriu. Parecia que acabava de ganhar a loteria.
— Sabe de uma coisa, Theo?
— O que é?
— Eu diria que o que o Risadinha está dizendo não é nada mais, nada menos que ameaça. Você não acha que é ameaça? Bem, você sabe, já que você é promotor do Ministério da Justiça, e eu um mero servidor do FBI. Pode me dizer se é ameaça ou não?
Theo sabia exatamente qual era o jogo de Noah. Estava deixando claro para os três homens quem eles eram, para que eles não pudessem alegar desconhecer o fato, caso fossem presos.
— Você tem razão. São ameaças, mesmo.
— Olhe aqui, espertinho — Jim disse a Noah. — Se atravessar meu caminho, vou me divertir macetando você, também.
Noah não estava prestando atenção e sugeriu a Theo:
— Talvez a gente até devesse deixar que um deles batesse na gente. Seria até mais interessante para a acusação em um julgamento.
— Pois eu consigo fazer a acusação sem que me batam. A não ser que você queira apanhar, amigo.
— Não, não quero apanhar. Só estava dizendo...
— Tá pensando que é brincadeira, é? — Jim gritou a plenos pulmões. Avançou mais um passo, ameaçadoramente, e empurrou o ombro de Noah com os dedos. — Vou tirar esse risinho da sua cara, seu filho da...
Nem teve chance de terminar a ameaça. Noah foi tão rápido que Jim nem teve tempo de piscar. Piscar, também, estava fora de questão. Ele gritou, ficou imóvel e arregalou os olhos para Noah. O cano do revólver de Noah estava encostado junto ao outro olho.
— O que ia me contar sobre a minha mãe, mesmo? — Noah perguntou com voz suave.
— N-nada... n-nadinha — Jim gaguejou.
Risadinha preparou-se para bater e Orelha de Abano pôs a mão dentro da jaqueta.
O ruído alto de uma arma sendo engatilhada ecoou por todo o bar. O estalido prendeu toda a atenção dos homens.
Noah manteve o revólver encostado à cabeça de Carson, enquanto olhava para trás. Michelle estava apoiada sobre o balcão, apontando uma espingarda para Orelha de Abano. Theo avançou e tirou a arma da cintura do bandido de aluguel. Depois olhou para Michelle.
— Pedi para você ficar na cozinha.
— É, ouvi você pedir.
Orelha de Abano tentou recuperar sua arma.
— Ei, tenho porte de arma. Pode ir dando de volta.
— Que bobagem está dizendo! — Theo disse entre dentes. Orelha de Abano jogou-se para a frente. Theo girou e acertou
um golpe logo abaixo do pomo de Adão do agressor. O homem foi caindo para trás e, quando se virou, Theo golpeou-lhe a nuca. Orelha de Abano estatelou-se no chão.
— Não suporto gente que não pensa! — Theo resmungou.
— Concordo — Noah disse. — Jim, vou ter de dar um tiro em você se Risadinha não baixar logo esse bastão.
— Abaixe isso, Risadinha.
— Mas, Seu Jim, o senhor disse...
— Esqueça o que eu disse. Largue esse bastão.
Jim tentou desviar-se do cano do revólver, mas Noah o acompanhou.
— Baixe isso, por favor — Jim pediu. — Não quero que estoure meus miolos por acidente.
— Isso se você tiver miolos — Noah ironizou. — Não tenho muita certeza. O que estava pensando quando veio até aqui com esses gorilas de aluguel? É tão prepotente que nem se preocupou com testemunhas? Ou será que é idiota demais para pensar nisso?
— Eu estava louco de raiva... Nem pensei... Só queria...
Jim parou de gaguejar assim que Noah tirou a arma de sua testa. Para recuperar o tempo perdido, começou a piscar furiosamente.
— Harry está morto? — perguntou. — Se matou Harry...
— Ele ainda está respirando — Noah disse. — Não me faça pedir outra vez. Risadinha, livre-se desse bastão.
Risadinha ,estava visivelmente contrariado quando jogou o bastão com força sobre a mesa do lado. Já que não podia quebrar pernas, outra coisa serviria. Talvez assim Jim ainda lhe pagasse alguma coisa. O bastão bateu na ponta da mesa, quicou de volta e caiu no pé de Risadinha. Este gritou e saiu pulando em um pé só, como se estivesse pulando amarelinha.
Theo entregou o revólver de Harry a Noah e esfregou a mão que havia socado. Pediu a Noah que colocasse Jim em uma cadeira e foi até o balcão falar com Michelle.
— Michelle, o que está fazendo com uma espingarda de cano cortado? Largue isso aí antes que acabe ferindo alguém — inclinando-se para a frente, examinou a arma e perguntou. — Onde arranjou isso?
— É do papai.
— Desconfiei — ele disse, controlando-se. — Onde foi que seu papai arranjou isso?
Estava se comportando como procurador da Justiça e fazendo com que ela se sentisse uma criminosa.
— Papai nunca chegou a usar isto aqui. Só deixou aí para mostrar, caso alguém resolva brigar aqui dentro.
— Não respondeu minha pergunta.
— John Paul deu ao papai para ele se proteger. Ensinou a nós dois como usar.
— Não pode ficar com isso. É ilegal.
— Já vou guardar.
— Não, vai dar isso a Noah e deixar que ele dê um fim nisso para você — Theo contrapôs, tirando a arma dela. — Essa porcaria derruba um rinoceronte a cem metros.
— Ou um jacaré — ela observou.
— Ah, têm aparecido muitos jacarés aqui no bar para brigar?
— Não, claro que não, mas...
— Sabe quantos anos seu pai pode pegar por causa disso? Ela cruzou os braços e fuzilou-o com o olhar.
— Resolvemos as coisas de maneira diferente aqui em Bowen.
— Pelo que sei, Bowen faz parte dos Estados Unidos; e isso significa que deve seguir as mesmas leis. Onde foi que seu irmão arranjou uma coisa dessas?
— Nem se atreva a querer arranjar problemas para meu irmão, Theo. É uma pessoa boa, prestativa e sensível. Não vou permitir que você...
Theo não estava disposto a ouvir reprimendas e insistiu:
— Responda à minha pergunta.
— Não sei onde ele arranjou a arma. Pelo que eu saiba, ele mesmo fez isso aí. Se levar isso embora, John Paul pode muito bem dar outra igualzinha ao papai.
As pálpebras de Theo contraíram-se. Ela sabia que o estava irritando, mas naquele momento não importava. Afinal, o que seu pai faria se houvesse confusão no Cisne? Podia simplesmente colocar a mão na cabeça enquanto o bar era destruído? Além do mais, seu pai jamais atiraria em ninguém, mas o ruído da arma sendo engatilhada sempre bastava para desencorajar qualquer um que estivesse de cabeça quente.
— As coisas são assim por aqui.
— Seu pai e seu irmão estão contra a lei.
— A arma é minha — ela resolveu, então. — Eu fiz e coloquei debaixo do balcão. Papai nem sabia que estava aí. Agora cumpra seu dever. Pode me prender.
— Não fica bem mentir a um representante da Justiça, mocinha.
— Vou tentar me lembrar disso.
— Onde foi que seu irmão aprendeu tanto assim sobre armas?
— Ele não gosta de falar, mas uma vez ele disse a papai que fazia parte de um grupo especial da Marinha.
— Especialista? Não acredito.
— Olhe, agora não é hora de ficar discutindo minha família. De qualquer maneira, não é da sua conta.
— Ah, é, sim.
— Por quê?
Ele aproximou-se, fazendo com que ela se encostasse no balcão. Inclinou-se até que seu rosto ficasse bem próximo ao dela e murmurou:
— Não abuse.
Não levou mais de cinco segundos para ele perceber que não conseguiria vencer. Ela não se deixaria intimidar, pelo menos não por ele. Manteve-se firme e o encarou. Por mais humilhante que fosse admitir, sabia que teria de ser ele a ceder. Era a primeira vez que isso acontecia a ele, e não foi agradável.
— Você quer que eu chame a polícia? — ela perguntou.
— Não quero mandar prender você. Exasperada, ela disse:
— Eu não estava falando de mim. Achei que você queria que a polícia viesse buscar os Três Patetas, aí.
— O quê? Ah... sim, pode chamar. Mas espere uns dois minutos. Preciso fazer uma negociação, antes.
Noah havia guardado o revólver e estava em pé ao lado de Jim. Theo pegou uma cadeira, virou-a e sentou-se, apoiando os braços no encosto.
— Trouxe seu telefone celular?
— E daí, se eu trouxe? — Jim perguntou, reassumindo o tom belicoso.
— Ligue para seu irmão e diga para ele vir para cá..
— Você não pode me dizer o que eu tenho de fazer.
— Ah, posso, sim — Theo respondeu. — Você já está bem encrencado. Ameaçou um agente do FBI e isso é prisão na certa.
— Diga isso a meus advogados — Jim desafiou, apesar de seu rosto empalidecer um pouco. — Eles darão um jeito de eu não ficar nem um dia na prisão.
— Não conheço muitos advogados que trabalhem de graça. Duvido que movam uma palha para ajudá-lo quando souberem que não tem um tostão para pagá-los.
Jim sacou seu celular e digitou o número do irmão.
— Duvido que meu irmão venha — Jim anunciou. — Gary detesta qualquer situação desagradável.
— Azar o dele. Diga a Gary que tem dez minutos para chegar aqui, ou vou mandar a polícia buscá-lo em casa e levá-lo junto com você para a cadeia. Ou vocês dois negociam ou terão de ficar pensando no assunto por um bom tempo em uma cela. E não duvide, Jim. Tenho poder suficiente para fazer com que fique bastante tempo por lá.
Aparentemente Gary atendeu o telefone e a voz de Jim tremia quando disse:
— Você tem de vir para O Cisne agora mesmo. Não discuta. Venha. Explico quando você chegar aqui.
Ouviu por alguns segundos e continuou:
— Não, droga. Não saiu como o planejado. O Buchanan e o amigo dele são federais e estão ameaçando colocar nós dois na prisão — depois de ouvir mais um pouco, gritou. — Um pouco de azar? Você chama cruzar com o FBI de "um pouco de azar"? Pare de chiar e venha já para cá!
Fechou o telefone com força e anunciou que o irmão já estava vindo.
Noah viu o carro da polícia parar no estacionamento.
— A polícia já chegou — disse a Theo. Michelle colocou a arma embaixo do balcão. — Ainda nem tinha chamado o Ben.
Harry ainda estava inconsciente, mas estava respirando normalmente. Risadinha estava apoiado sobre uma mesa num canto, com a cabeça nas mãos.
Noah foi até lá fora e voltou a entrar depois de dois minutos, acompanhado de Ben Nelson. Obviamente, já havia contado os detalhes do que havia acontecido, porque Ben mal olhou para Harry. Seu olhar e um enorme sorriso dirigiram-se para Michelle.
— Tudo bem com você? — ele perguntou, deixando clara sua preocupação com ela.
— Tudo certo, Ben. Quem chamou você? — ela perguntou. — Foi o Paulie?
— Ninguém me chamou. Passei por aqui para ver você.
Theo não gostou de ouvir aquilo. Ben estava se dirigindo ao balcão, mas Theo, claramente, estava bloqueando sua passagem. Michelle fez as apresentações, apesar de não serem necessárias. Theo já sabia quem era Ben. Era o homem que gostava de Michelle.
Theo jamais se importara com a aparência de outro homem e não fazia idéia se as mulheres consideravam Ben bonito ou não. Tinha um sorriso fácil e todos os dentes, o que parecia ser tudo o que Theo conseguia concluir ao medi-lo de alto a baixo. Ben também parecia um bom sujeito, mas isso não importava. Theo percebeu como o outro sorria para Michelle e bastou isso para não gostar dele. Precisou esforçar-se para não ser hostil ao apertar a mão do rival e mostrar quem estava dominando a situação.
Noah observava os dois achando muita graça. Pareciam dois galos se preparando para uma briga. Não demorou para que Noah percebesse o motivo.
— Ouvi dizer que está hospedado na casa de Michelle — Ben comentou sem sorrir.
— Isso mesmo, estou.
— Quanto tempo pretende ficar na cidade, Sr. Buchanan?
— Ainda não sei. Por que quer saber, Chefe Nelson?
— Há uma porção de hotéis em St. Claire que posso lhe indicar.
— É mesmo?
— Theo vai embora na segunda-feira — Michelle anunciou. — Não vai? — ela perguntou a Theo em tom de desafio.
— Talvez.
A resposta sem compromisso irritou-a.
— Ele vai dar uma palestra em Biloxi — ela disse, sem saber por que tinha tanta vontade de compartilhar a informação. — Por isso vai partir na segunda-feira de manhã.
— Talvez — Theo repetiu.
A palavra tinha o mesmo som de uma broca de dentista. Ela tinha ímpetos de contrair-se. Com medo de fazer ou dizer alguma coisa da qual pudesse se arrepender, caso Theo dissesse aquela palavra mais uma vez, ela bateu em rápida retirada. Agarrou a jarra que estava sobre o balcão, murmurou uma desculpa e voou para a cozinha.
Enquanto Theo explicava a Ben quem eram Harry e Risadinha, Noah leu seus direitos e usou as algemas de Ben para prendê-los.
— E o Jim Carson? — Ben perguntou. — Vai apresentar queixa contra ele, também?
Theo sabia que Jim estava prestando atenção e disse:
— Vou, sim. Mas quero que ele fique até o irmão dele chegar. Quero conversar com os dois. Se não cooperarem...
Deixou a frase sem terminar de propósito.
— Vou cooperar — Jim reagiu.
Ben era mais generoso do que Theo e apertou-lhe a mão antes de sair. Theo percebeu que estava agindo como um pretendente com ciúme e resolveu consertar a situação.
— Obrigado pela sua ajuda.
Ben já ia atravessando a porta com Risadinha. Noah havia reanimado Harry e quase arrastou-o para o carro da polícia.
Theo olhou na direção da cozinha, viu Michelle ocupada na pia e voltou a sentar-se, enquanto esperava o segundo irmão Carson chegar.
Michelle tinha resolvido ocupar-se para não pensar em Theo. Encheu a pia com água quente e sabão, calçou as luvas e começou a fazer uma faxina. O pai já havia deixado tudo em ordem, mas ela resolveu limpar todas as superfícies mais uma vez.
Quando já estava removendo as luvas, percebeu uma mancha de gordura sobre o exaustor. Passou a próxima meia hora desmontando tudo e lavando cada canto e dobra. Remontar demorou o dobro do tempo, pois tinha de ficar indo ao bar para verificar se alguém desejava alguma coisa.
Em uma de suas idas, viu Gary Carson entrar, ladeado pelos advogados.
Voltou à cozinha e esfregou mais um tempo. Depois lavou as luvas de borracha — seria muita compulsão? Percebeu então que estava mais nervosa do que cansada. Precisava de uma boa e longa cirurgia, pois, quando estava operando, não pensava em mais nada. Conseguia bloquear a conversa à sua volta, as piadas sem graça, a risada, tudo... menos Willie Nelson, porque este a acalmava. Era como se ficasse fechada com Willie em um casulo protetor até o último ponto. Só então permitia que o resto do mundo interferisse.
— Ponha a cabeça no lugar — resmungou consigo mesma.
— Disse alguma coisa?
Noah estava na porta. Aproximou-se e colocou três copos na pia.
— Não, nada — ela respondeu. — Que horas são?
— Uma e pouco. Está com um ar cansado.
Ela tirou uma mecha de cabelo que caiu-lhe sobre os olhos e enxugou as mãos no avental.
— Não estou cansada. Quanto tempo acha que Theo vai demorar?
— Não muito — ele respondeu. — Quer que eu a leve para casa? Theo pode fechar o bar para você.
— Obrigada. Eu espero.
Noah ia saindo da cozinha, mas deteve-se e disse:
— Michelle?
— O que foi?
— Ainda falta muito para segunda-feira.


Capítulo 26


Assim que Monk voltou a seu quarto de motel, ligou para Nova Orleans.
Acordando de um sono profundo, Dallas atendeu o telefone de mau humor.
— Alô!
— Mais surpresas a caminho — Monk informou.
— Do que está falando?
— Tem um agente do FBI aqui com Buchanan.
— Puta merda, que azar. Diga o nome do sujeito.
— Ainda não sei. Ouvi umas pessoas falarem dele quando saíram do bar.
— E sabe o que o tal agente foi fazer por lá?
— Ainda não, mas parece que estava falando de pescaria. Com apreensão, Dallas recomendou:
— Continue de olho aberto. Logo entro em contato com você.
— Ah, mais uma coisa — Monk disse. — Tenho mais uma informação que pode ser útil.
— Melhor que seja coisa boa — Dallas retrucou.
Monk fez um relato do que aconteceu com os irmãos Carson e com os dois valentões de aluguel que tinham ido ao bar.
— Ouvi um dos homens dizer ao policial que não mataria Theo Buchanan. Só queria machucar. Se planejassem direito, poderia até usar os Carsons como bodes expiatórios, se necessário.
— Muito bom. Agradeço.
— O prazer é meu, Monk respondeu com sarcasmo.
Depois de desligar o telefone, Monk acertou o despertador e fechou os olhos. Adormeceu pensando no dinheiro.


Capítulo 27


Pela primeira vez na vida, Michelle não conseguia dormir. E tudo por culpa de Theo Buchanan. Até a dívida interna do país tornava-se culpa dele porque, já de madrugada, ela continuava sem dormir por não conseguir parar de pensar nele.
Virava-se e revirava-se, arrumava o travesseiro, depois revirava-se um pouco mais. Parecia que um ciclone havia atingido sua cama. Para tentar eliminar os pensamentos cheios de luxúria, trocou os lençóis e foi tomar um longo e quente banho. Nada disso ajudou a dar sono. Resolveu descer e tomar um pouco de leite quente. Quase não conseguiu engolir e ficou pensando como alguém podia tomar leite quente quando era tão mais gostoso gelado.
Theo não havia produzido mais um ruído desde que fechara a porta de seu quarto. Devia estar dormindo profundamente, e dormindo o sono dos inocentes. O grande idiota.
Michelle voltou a subir na ponta dos pés para não perturbá-lo, depois abriu uma das janelas de seu quarto, prestando atenção aos ruídos da tempestade que se aproximava.
Vestiu uma camisola de seda cor-de-rosa. A de algodão verde parecia arranhar-lhe os ombros. Enfiou-se entre os lençóis e jurou que não se levantaria mais até de manhã. A camisola havia embolado na altura dos quadris, e ela a puxou para baixo, ajustou as alças finas para que não caíssem, alisou o lençol e apoiou as mãos sobre o estômago.
Pronto, estava tudo perfeito. Começou a fazer respirações lentas para acalmar-se. Parou porque estava ficando tonta.
Sentiu uma pequena dobra no lençol de baixo, junto ao tornozelo. Não pense nisso, disse a si mesma. Hora de dormir. Relaxe. Fique tranqüila, droga!
Mais quinze minutos passaram-se e ela ainda continuava bem acordada. Sentia a pele quente, os lençóis pareciam molhados e ela estava tão cansada que tinha vontade de chorar.
Desesperada, resolveu contar carneirinhos, mas parou ao perceber que estava indo cada vez mais depressa para acabar logo com aquilo. Para ela, contar carneirinhos era como mascar chiclete. Nunca mascava chiclete porque, numa tentativa subconsciente de acabar, começava a mastigar cada vez mais depressa, o que ia contra a idéia de mastigar para se acalmar.
Barbaridade, o que uma pessoa consegue pensar quando não consegue manter o controle. Ela começou a achar que deveria ter estudado psiquiatria. Só então, talvez, conseguisse compreender por que estava enlouquecendo.
Televisão. Sim, era isso. Assistiria um pouco de televisão. Quase nunca passava nada de bom na tevê no meio da noite. Com certeza, haveria alguém anunciando algum produto em algum canal. Um comercial era exatamente o que ela precisava para desligar a mente. Era melhor que tomar algum remédio para dormir, pelo menos.
Arrancou o lençol, agarrou a colcha ao pé da cama e arrastou-a consigo. A porta rangeu quando a abriu. Como não tinha percebido aquele barulho antes? Jogou a colcha sobre uma cadeira, saiu para o corredor e ajoelhou-se para ouvir melhor. Fechou a porta devagar. Parecia ser a dobradiça de baixo. Abaixou-se para conferir, enquanto balançava a porta para um lado e para outro.
Sim, era aquela mesma. Resolveu então verificar a dobradiça de cima. Levantou-se, pegou o trinco e voltou a balançar a porta de um lado para outro enquanto ficava na ponta dos pés para ouvir. Com certeza, estava rangendo um pouco, também. Onde teria colocado o lubrificante? Poderia resolver o problema imediatamente, se conseguisse se lembrar de onde havia guardado a lata. Pensando bem... a garagem. Era lá que tinha visto a tal lata. Lembrava-se de ter colocado na prateleira de cima na garagem.
— Não está conseguindo dormir?
Ele quase matou-a de susto. Ela deu um salto, largando a porta e batendo a cabeça, sem querer, no batente.
— Ai! — murmurou, apalpando a cabeça para ver se não havia nada sangrando.
Depois virou-se. Não conseguiria dizer uma palavra nem que sua vida dependesse disso. Theo estava parado na porta de seu quarto, tranqüilamente encostado no batente, com os braços cruzados sobre o peito nu e um pé descalço cruzado sobre o outro. O cabelo estava arrepiado, a barba já estava aparecendo e parecia ter acordado de um sono profundo. Havia vestido as calças jeans, mas não se preocupara em fechar o zíper.
Estava simplesmente irresistível.
Ela espiou a estreita abertura do zíper entreaberto e, ao perceber que estava olhando fixamente, forçou-se a desviar o olhar. Olhou para o peito, achou que também não era uma boa escolha e acabou olhando para os pés dele, também. Os pés também eram lindos.
Ai, ai, ai, estava precisando de ajuda. Até os pés dele estavam deixando Michelle excitada. Precisava de terapia; intensiva seria melhor, para ajudá-la a compreender como um homem podia deixá-la tão fora de seu juízo perfeito.
Também, não era um homem qualquer. Desde o primeiro instante, ela sabia que ele exercia uma atração perigosa sobre ela. Decidiu que havia sido por causa da grade. Se ele não tivesse comprado a maldita grade para o pequeno John Patrick, ela conseguiria continuar a resistir. Agora, era tarde demais. Deixou escapar um pequeno grunhido. Theo podia ser o maior idiota do mundo, mas ela havia se apaixonado por ele mesmo assim.
Engoliu em seco. Ele parecia delicioso o suficiente para... não se aproximar dele. Depois observou seus olhos. Desejou que ele a levantasse em seus braços fortes e a beijasse até ela perder as consciência, depois a levasse para a cama. Queria que ele lhe tirasse a camisola e lhe acariciasse cada centímetro do corpo. Ou talvez ela o jogasse sobre a cama, arrancasse-lhe os jeans e acariciasse cada centímetro do corpo dele. Sim, queria...
— Michelle, o que está fazendo? São duas e meia da manhã! Sua fantasia se esvaneceu num segundo e ela conseguiu dizer:
— Sua porta não range.
— Do que está falando?
Ela deu de ombros e afastou a mecha de cabelos de cima dos olhos. Não ouvi você porque sua porta não rangeu quando você abriu. Há quanto tempo está parado aí?
— O suficiente para ver você brincando com sua porta.
— Está rangendo.

— É, eu sei que está rangendo.
— Desculpe, Theo. Não queria incomodar você. Mas já que está acordado...
— Sim?
— Quer jogar baralho?
Ele piscou duas vezes, depois aquele sorriso simpático abriu-se e ela começou a sentir a cabeça leve.
— Não, não quero jogar baralho. Você quer?
— Não, na verdade, não.
— Então, por que me convidou?
A maneira como ele a encarava, com aquele olhar penetrante, deixava-a extremamente nervosa, mas era o tipo de nervosismo gostoso que ela havia sentido antes que ele a beijasse na noite anterior, o que era mau sinal, porque ela havia desejado que o beijo nunca se acabasse e que maldito sentido tudo isso fazia? Estava perdendo a sanidade, sem dúvida. Imaginou se conseguiria uma vaga no atendimento psiquiátrico.
— Quer parar de olhar para mim desse jeito?
Os dedos dos pés de Michelle haviam se curvado sobre o carpete e ela sentia seu estômago dar saltos.
— Assim como?
— Sei lá — ela resmungou — Só sei que não consigo dormir. Quer fazer alguma coisa comigo até eu ficar com sono?
— Você estava pensando em quê?
— Além de jogar baralho?
— Ahã.
— Posso fazer um sanduíche para você.
— Não, obrigado.
— Crepe, então — ela sugeriu. — Com mel.
Numa escala de um a dez, a ansiedade dela já passava dos nove. Será que ele fazia idéia de quanto ela o desejava? Não pense nisso. Mantenha-se ocupada.
— Sei fazer crepes muito bem.
— Não estou com fome.
— Como não está com fome? Sempre está com fome!
— Mas agora não estou.
Estou me afundando em besteiras. Preciso pensar rápido. Ela prendeu o lábio inferior entre os dentes enquanto freneticamente tentava achar uma outra idéia.
— Televisão — ela disparou.
Parecia ter acertado a última pergunta de um programa de prêmios, aquela que vale milhões.
— Como é?
— Quer ir ver televisão?
— Não.
Era como se ele houvesse lhe roubado o prêmio. Suspirou e disse a ele:
— Então pense em alguma coisa.
— Alguma coisa para fazermos juntos? Hum... até você sentir sono?
— Isso mesmo.
— Quero ir para a cama.
Michelle nem tentou esconder sua frustração. Achou que teria de voltar a contar aqueles malditos carneiros mal cheirosos.
— Tudo bem. Então, boa noite.
Só que ele não voltou para dentro do quarto. Desencostando-se do batente, com a agilidade de um enorme felino, atravessou o corredor em duas passadas largas. As pontas dos pés dele tocaram os dela quando ela pôs o braço para trás para abrir a porta. Ele ainda cheirava um pouco a loção pós-barba e a homem. Ela achou a combinação tremendamente excitante. Quem estava querendo enganar, afinal? Àquela altura, até um espirro a deixaria excitada.
Theo pegou sua mão, mas sem usar força alguma. Ela poderia ter se soltado se quisesse, mas não se soltou. Ao contrário, apertou a dele.
Então ele deu um passo, empurrando-a suavemente para trás. Fechou a porta, encostando Michelle contra ela, prendendo-lhe os braços ao lado do corpo; seus quadris roçaram suavemente as coxas dela.
Michelle sentia a porta fria em suas costas e a pele dele quente junto a seu ventre. Afundando o rosto entre os cabelos dela, ele murmurou:
— Como você cheira bem.
— Achei que queria ir dormir.
Theo beijou-lhe a base da nuca antes de responder num sussurro:
— Eu nunca disse isso.
— Disse... Disse, sim.
— Não disse — ele corrigiu.
Agora beijava logo baixo da orelha dela, impedindo-a de raciocinar. Sentiu a respiração dele quando ele mordiscou-lhe a orelha.
— Não? — ela disse, num fio de voz.
— Eu disse que queria ir para a cama. E você disse...
Theo deslizou as mãos para o rosto dela e a fitou por vários segundos, antes de terminar a frase:
— ... tudo bem.
Ela estava perdida e sabia disso. A boca de Theo cobriu a sua num longo beijo cheio de paixão que a fez saber o quanto ele a desejava. Ela entreabriu os lábios e sentiu uma onda de prazer que parecia ir até os dedos do pé quando a língua de Theo invadiu-lhe a boca. Ela abraçou-lhe a cintura e depois passou a acariciá-lo. Sentia seus músculos bem exercitados em seus dedos e, quando começou a mover os quadris junto ao dele, sentiu-o tremer.
O beijo continuou, até ela agarrar-lhe os ombros e tremer de desejo. Ele mexia com seus instintos mais básicos, o que não deixava de ser assustador. Jamais Michelle havia sentido algo tão forte, jamais havia sentido esse desespero para agarrar-se a ele e jamais deixar que se fosse. Sim, ela o amava muito.
Os dois estavam ofegantes quando ele levantou a cabeça. Ele viu as lágrimas que brilhavam nos olhos dela e ficou imóvel.
— Michelle, você quer que eu pare? Ela balançou a cabeça com força.
— Não. Eu morro se você parar.
— Não é isso que eu quero — ele murmurou.
Ela puxou os jeans, tentando, em vão, fazer com que lhe descessem pelas pernas.
— Vá com calma, meu bem. Temos a noite toda.
Esse era o problema. Ela queria mais do que uma só noite. Ela o queria para sempre, mas sabia que era impossível. Decidiu, então, aceitar o que ele lhe oferecia naquele momento, aproveitar os momentos que teria com ele. Queria amá-lo como nenhuma outra mulher seria capaz, com o corpo, com o coração, com a alma. Quando a deixasse, não poderia esquecer.
E assim, seus lábios voltaram a se encontrar em um beijo longo, quente, com as bocas abertas, com o toque das línguas, que só fez com que quisessem mais.
Ele soltou-se, deu um passo atrás e tirou as calças. Ela nem conseguia respirar. Ele era lindo. E estava absolutamente excitado. Vê-lo a deixou extasiada, porque ele era esculturalmente perfeito.
À luz da lua, a pele dele parecia brilhar como ouro. Ela subiu a mão para a alça da camisola, mas ele deteve-a.
— Deixe para mim.
Lentamente, ele subiu as mãos por baixo da camisola, fazendo-a escorregar pelo corpo de Michelle e, depois de tirá-la, deixou que escorregasse para o chão.
— Imaginei tantas fantasias com você — ele murmurou. — Seu corpo é bem mais bonito do que eu imaginava. A sensação que provoca quando está colado ao meu... também é muito mais gostosa.
— Conte o que acontecia em suas fantasias que eu conto as minhas — ela pediu.
— Não — ele sussurrou — prefiro mostrar a você do que falar. Os pêlos do peito dele roçaram contra os mamilos dela. Era uma sensação deliciosa e ela esfregou seu corpo ao dele. Queria sentir o quanto ele estava excitado e encaixou seu quadril no dele. Era tão bom e parecia a coisa mais certa do mundo estar ali, abraçada a ele.
— Em uma das minhas fantasias, o que eu faço é assim.
Ele a levantou nos braços e a carregou até a cama. Logo escorregou para junto dela sobre os lençóis, abrindo-lhe as pernas gentilmente, para encaixar-se entre elas. Ele voltou a beijá-la, sem nenhuma pressa, até que ela estivesse esfregando seu corpo contra o dele com sofreguidão.
Então ele rolou para o lado e repousou a mão sobre o estômago dela.
— Depois eu faço isso.
Seus dedos traçaram um círculo em volta do umbigo, depois foram descendo. Ela gemeu e murmurou.
— Theo, não...
— Você não gosta?
Os dedos dele pareciam mágicos.
— Gosto... gosto, sim, mas se não parar eu...
Não conseguiu terminar a frase. Ele a estava deixando louca, explorando, provocando, excitando, preparando-a para recebê-lo. A cabeça de Theo curvou-se e ele passou a beijar o vale no alto dos seios.
— Em minha fantasia, Michelle, você adora isso.
Beijou-lhe cada seio, a língua acariciando as pontas, até ela arquear o corpo de prazer. As unhas dela agarraram-se aos ombros dele, e ela tentou afastá-lo para deixá-lo também fora de si com suas carícias, mas Theo não parou.
Em sua fantasia, ele explicou, ela chegava ao orgasmo antes dele. Voltou a beijá-la, vencendo qualquer resistência que ainda pudesse haver e foi lentamente descendo pelo corpo dela, beijando-lhe cada centímetro do ventre, provocando-a com a língua em seu umbigo, fazendo-lhe cócegas, depois foi descendo para a pele macia entre as coxas.
As sensações eram incríveis. O clímax foi poderoso. Michelle gemeu, agarrando-se a ele, deixando que sua paixão a devorasse.
Theo era um amante incrível, generoso, muito gentil. Então ele voltou a atormentá-la. Mais uma vez levou-a a um pico de desejo mas, quando ela estava pronta para chegar ao clímax pela segunda vez, ele parou.
— Espere um pouco, meu bem. Volto já.
— Não pare — ela implorou. — Não... Ele beijou-a suavemente e explicou:
— Preciso proteger você.
Ele saiu. Michelle fechou os olhos. Seu corpo parecia estar em fogo, mas mesmo assim ela sentia frio, porque o calor dele já não estava junto dela. Ela começou a tremer e, quando ia puxar o lençol para cobrir-se, Theo voltou para a cama e cobriu o corpo dela com o seu. Parecia ter se afastado durante uma eternidade.
— Onde foi mesmo que parei?
A maneira como ele mantinha o controle deixou-a espantada. Então ela percebeu as pequenas gotas de suor em sua testa. Os olhos dele estavam embaçados de paixão e sua mandíbula estava contraída. Ela compreendeu o quanto ele estava se controlando para que ela tivesse o máximo prazer.
Ele voltou a acariciá-la, reacendendo o fogo do amor. Ela lutou dessa vez, pois também desejava lhe dar prazer, mas ele foi mais forte. Já não estava sendo suave, e ela nem queria que fosse. Consumindo-se nas ondas de prazer que percorriam todo o seu corpo, ela abraçou-se com força a ele quando ele acomodou-se entre suas coxas e a penetrou.
Theo deixou a cabeça cair junto ao ombro dela. Fechou os olhos em doce rendição e deixou escapar um grunhido alto e profundamente arrogante.
Agarrando-se a ela, forçou-a a ficar imóvel.
— Não vou conseguir... prolongar esta delícia... se não cooperar. Ela sorriu para ele. Theo era simplesmente adorável. Então ela moveu-se.
— Não... Por favor, gatinha, devagar... só mais um pouquinho...
Ela voltou a mover-se, mais decidida desta vez, mexendo os quadris para senti-lo mais fundo dentro dela. Ele não conseguiu mais conter-se. A necessidade era grande demais. Ele afastou-se, voltou a penetrá-la e seus corpos criaram seu próprio ritmo.
Theo queria dizer a ela como era perfeita, como era bonita, mas já não conseguia falar. A intensidade das sensações que tomaram seu corpo era avassaladora. Ela não lhe permitia ir mais devagar e ele a adorava por isso. Afundando-se dentro dela, com mais um impulso e um grito primal, ele chegou ao orgasmo enquanto ela o abraçava com força.
Era como se ele houvesse morrido e renascido. O orgasmo foi a sensação mais forte que ele tinha experimentado. Jamais tinha se deixado levar daquele modo. Sempre mantinha um tanto de controle até o fim, mas com Michelle simplesmente não fora possível. Alguns minutos se passaram antes de se refazerem. Ele sabia que pesava sobre ela, mas não encontrava forças para rolar para o lado.
Michelle não conseguia deixar de acariciá-lo. Adorava o toque da pele dele sob seus dedos. Ele era feito de músculos fortes, mas havia sido extremamente gentil com ela. Seus dedos desciam lentamente pelas costas dele, para depois voltar a subir.
Ela sentia seu próprio coração bater junto ao peito dele, como se quisesse sair. Ela riu com o absurdo da idéia.
O som de sua risada sensual fez Theo sorrir. Apoiando o peso sobre os braços que colocou dos lados dela, levantou a cabeça de junto do pescoço dela para fitá-la e perguntar:
— O que é tão engraçado?
— Fazer amor com você vai ser o meu fim. Até posso ver as manchetes dos jornais: Sexo mata médica.
— Não achei graça — ele disse, franzindo a testa.
Ela envolveu-lhe o pescoço com os braços, levantou-se e o beijou.
— Mas é gozado.
— Só que precisa ficar bem, pois ainda faltam 999 fantasias e não posso deixar que você desmonte antes de chegarmos até o fim.
— Fim de quê?
Aquela chama voltou a acender-se nos olhos dele e ela sorriu, pensando no que viria depois.
— De mostrar a você todas as minhas fantasias.
— Mil? — ela riu.
— Ah, sim. Pelo menos mil.
— O senhor tem uma imaginação bastante fértil, Sr. Buchanan. Há lugares em que pode ir para procurar ajuda. São chamadas clínicas de terapia sexual.
Ele abriu seu sorriso maravilhoso.
— Você é toda a terapia que me faltava.
— Hum, fico feliz por ter ajudado.
— E você, Michelle, nunca teve fantasias?
— Já — ela admitiu — mas as minhas nunca foram tão criativas. Fico pensando a mesma coisa sempre.
Theo esfregou a ponta do nariz no pescoço dela.
— É uma pequena variação do que aconteceu agora — ela murmurou. — Mas na minha fantasia...
Ele voltou a erguer a cabeça.
— O que acontece?
— Sou eu quem o levanta e o joga na cama. Ele riu e disse:
— Eu peso quase cem quilos a mais que você — exagerou.
— Nós, os cirurgiões, desenvolvemos uma força torácica incrível de tanto quebrar costelas e cortar ossos — ela provocou.
— Está bem. Estou disposto a experimentar. Se quiser me levantar... Ele parou quando ela negou com a cabeça.
— Eu arrumaria uma hérnia de disco — ela explicou. — Só queria lhe contar sobre minha fantasia para você saber que...
— O quê?
— Não vai ser você a comandar sempre o espetáculo.
— O que isso quer dizer?
— Que é minha vez de deixar você maluco.
— Isso é o que vamos ver.
Voltou a beijá-la, forte e rápido dessa vez, e levantou-a no colo.
— Estou quente — ele anunciou.
— Já?
Ela passou os dedos pelos cabelos macios dele, tentando recolocá-los em ordem.
— Não era desse jeito que eu estava falando, mas se você continuar com isso...
— Onde estamos indo?
— Estou suado. Vamos tomar um banho.
Ela estava tão contente e sonolenta naquele momento, que teria concordado com qualquer coisa que ele sugerisse.
— Eu esfrego suas costas e você esfrega as minhas.
— Não, eu quero esfregar a sua frente e você pode... Ela cobriu-lhe a boca com a mão.
— Já entendi.
Dez minutos depois já estavam mais do que limpos. A água chegou a ficar fria, mas não esfriou a paixão que ardia entre eles. Sentindo-se endiabrada, ficou nas pontas dos pés para murmurar sua fantasia no ouvido dele. Ela descreveu em detalhes e, quando acabou, ele espantou-se de ainda estar em pé.
Ela fez com que ele se encostasse na parede e começou a deixá-lo fora de si, com beijos quentes e molhados, descendo pelo corpo úmido.
Ele não teve forças de carregá-la de volta para a cama. Conseguiram enxugar-se atrapalhadamente, entre beijos ardentes. Exaustos por todas as peripécias até aquele momento, caíram sobre a cama. Theo deitou-se olhando para cima. Ela apoiou-se sobre o cotovelo e suavemente passou o dedo por cima da cicatriz da apendicectomia.
Depois inclinou-se e beijou-a com delicadeza. Theo tinha os olhos fechados, mas sorriu.
— Faz isso com todos os seus pacientes?
— Beijar a cicatriz deles?
— Ahã...
— Claro. Tenho de beijar. Ele bocejou e perguntou:
— Por que isso?
— Faz parte do juramento que fiz. Beije para que fique bem melhor.
Ela puxou o lençol sobre eles, virou para o lado e fechou os olhos. Ela estava caindo em sono profundo quando ele encostou-se nela:
— Michelle?
— Sim?
— Descobri qual é seu ponto forte.
— E o que é? — ela perguntou, com a voz pastosa de sono. Ele baixou o lençol um pouco e colocou a mão sobre o peito dela. Se não estivesse tão cansada, perguntaria a ele por que certos homens têm tanta obsessão por seios, mas então percebeu exatamente onde a mão dele fazia pressão e seus olhos encheram-se de lágrimas. Como não amar aquele homem?
Ele havia colocado a mão sobre seu coração.


Capítulo 28


Michelle só acordou às dez e quinze da manhã seguinte. Espreguiçou-se, depois rolou para o lado e abraçou o travesseiro que Theo havia usado. Voltou a fechar os olhos enquanto pensava na noite que tinham compartilhado. Em meio às suas lembranças, o sono desanuviou-se e o dia intrometeu-se. Já eram dez e quinze e ela havia combinado de encontrar suas amigas às oito na clínica. Mary Ann iria querer matá-la. Estaria sentada no carro esperando? Não, claro que não. Com certeza teria vindo atrás de Michelle em casa.
Vinte minutos mais tarde, Michelle estava pronta para ir. Vestida com shorts cáqui e uma blusa azul sem mangas, calçou meias curtas de algodão e tênis. Desceu as escadas correndo e parou na lavanderia para encostar-se na máquina e calçar o outro tênis.
Foi procurar Theo. Encontrou-o na biblioteca, sentado em sua cadeira de couro, falando ao telefone. Noah estava com ele. Estava sentado na beirada da mesa. Sorriu quando a viu.
— Bom dia.
— Bom dia, ela respondeu.
Ela sentou-se no sofá e curvou-se para amarrar o tênis. Com o canto dos olhos, viu Theo desligar o telefone, mas estava com dificuldade de olhar diretamente para ele. A memória do que haviam feito na noite passada ainda estava vivida em sua mente.
Era estranho apenas porque Noah estava lá, ela pensou.
— Dormiu bem? — Theo perguntou.
— Dormi, mas eu deveria ter ido para a clínica há horas!
Não conseguia desamarrar o nó do cordão, e sabia que era porque estava nervosa. Respire fundo, disse a si mesma. Você é adulta. Comporte-se como tal.
— Mary Ann...
— Já está na clínica. Noah abriu a porta para ela e a outra amiga. Vieram aqui procurar por você lá pelas oito e meia.
Ela por fim conseguiu desfazer o nó e amarrar o cadarço. Não ouviu Theo aproximar-se mas, de repente, ele estava parado diante dela. O cadarço do sapato esquerdo dele estava desamarrado. Sem nem pensar no que estava fazendo, esticou o braço, amarrou para ele, depois se pôs em pé.
Theo não queria que ela continuasse a ignorá-lo. Com a ponta dos dedos sob o queixo dela, fez com que ela olhasse para ele, depois curvou-se e a beijou. Não parecia se importar com a presença de Noah ali. Sem pressa, com um pouco de persuasão, fez com que ela cooperasse e correspondesse com um beijo.
Sem um ruído, Noah levantou-se e saiu da sala. Theo abraçou Michelle e murmurou:
— Quer fazer um pouco de loucura?
— Acho que foi o que fizemos esta noite.
— Sem problemas. Podemos fazer outra vez. Além do mais, aquilo não passou de aquecimento.
Ela tentou escapar dos braços dele, mas ele apertou o abraço.
— Michelle, você não está com vergonha do que aconteceu entre nós na noite passada, está?
Ela levantou a cabeça para fitá-lo e viu como ele estava preocupado.
— Não esqueça que sou médica, Theo. Nada pode me embaraçar. Então ela beijou-o e deu tudo de si. Sua língua tocou a dele uma
vez, depois outra, e quando ela se afastou, ficou contente de ver aquela expressão de quero você nua de volta aos olhos dele.
— Bem, tenho trabalho esperando por mim — ela disse, soltando-se dele.
— Na verdade, não. Mary Ann disse que ela e Cindy... acho que era esse o nome da outra garota... conseguiriam pôr os arquivos em ordem bem mais depressa se você não estivesse por perto. Fiquei encarregado de manter você ocupada.
— Ela não disse...
— Disse, sim. Também disse que você é crítica e implicante. Foi ela quem disse, não fui eu. Seu pai ligou para dizer que John Paul levou a mobília. Consertará o que for possível.
— Ele não conseguiria levar minha escrivaninha, nem o sofá, sem ajuda.
— Alguém chamado Artie o ajudou. Alguma coisa mais a incomoda?
— Nada — ela mentiu.
— Então por que ficou com vergonha quando dei-lhe um beijo de bom dia?
Ela foi indo para a cozinha com Theo em seus calcanhares.
— Foi por causa do Noah. Não quero deixar o coitado sem jeito. Theo achou a maior graça naquilo. Noah ouviu ele rir e sua cabeça apareceu na porta.
— O que está acontecendo aqui de tão engraçado?
— Nada — Michelle respondeu, passando por ele para entrar na cozinha.
Ela abriu a geladeira para pegar um refrigerante dietético e ficou parada diante da porta aberta. A geladeira estava bem vazia na noite anterior, mas agora estava cheia de comida e bebida. Encontrou seu refrigerante no fundo, pescou-o e fechou a porta. Voltou a abrir a porta para ter certeza de que não estava sonhando. Viu até uma embalagem de manteiga que não era light. Imaginou quem seria o responsável.
— Noah nem sabe o que é ficar com vergonha, não é? — Theo perguntou ao amigo.
— Com vergonha de quê?
— Sexo. Você até sabe o que é sexo, não é?
— Claro que sei. Li em um livro uma vez. Estou até pensando em experimentar um dia desses.
Os dois estavam se divertindo ao provocá-la. Michelle sentou-se à mesa e só então percebeu o bolo de chocolate de três camadas sobre o balcão. Noah agarrou um pegador de panelas e foi até o fogão para levantar a tampa de uma grande frigideira de ferro. O cheiro condimentado de gumbo imediatamente espalhou-se na cozinha.
— Que horas você teve tempo de fazer isso? — Noah perguntou. — Tem um cheiro delicioso.
Ela não se lembrava do que o pai lhe havia dito para falar. Será que deveria dizer que havia feito o bolo ou o gumbo? Noah então perguntou-lhe se queria um pedaço de pão feito em casa. Um filão de pão estava embrulhado em papel impermeável ao lado da pia.
— Tem um cartão junto do gumbo?
— Não vi nenhum — Noah respondeu.
— Então fui eu que fiz — ela sorriu ao mentir.
Theo tirou o leite do refrigerador e colocou-o sobre a mesa.
— Esteve bastante ocupada ontem à noite. Fez o bolo, também? Sentindo-se profundamente idiota, perguntou:
— Viu um cartão junto com o bolo?
— Não.
— Então acho que fiz, também.
— E o pão?
— Sem cartão? — ela perguntou, esforçando-se para manter-se séria.
— Não vi nenhum.
— Pois é. Adoro fazer pão no meio da noite.
Theo colocou uma caixa de flocos de milho, uma caixa de passas e uma caixa de cereais em barras na mesa para Michelle poder escolher. Depois, entregou-lhe uma colher.
— Ah, então aquela senhora que esgueirou-se pela porta dos fundos tinha razão ao dizer que você assou o pão na casa dela na noite passada e esqueceu de trazer para casa?
Michelle não agüentava mais sentir-se tão tola. Onde estavam os malditos cartões prometidos? Será que seu pai havia decidido mudar o jogo e tinha esquecido de lhe avisar? O que deveria dizer, afinal? Se contasse a verdade a Theo, seu pai poderia pensar que ela não estava cooperando com seu esforço coordenado para manter Theo em Bowen.
De qualquer maneira, seu pai não poderia acusá-la de não fazer direito a sua parte.
— Isso mesmo. Logo depois que você dormiu, vim para baixo, preparei o gumbo e o bolo, depois peguei o carro e fui até...
Ela interrompeu-se. Theo não havia lhe dito o nome de quem havia trazido o pão. Michelle também não se lembrava a quem seu pai havia delegado aquela tarefa. Improvisando rapidamente, ela disparou:
— ... a casa de uma amiga e amassei um pouco de pão.
— Não se esqueça da compra da mercearia.
— Ah, sim. Dei uma passada na mercearia.
Theo virou a cadeira em frente a ela. Sentou-se, apoiou os braços no encosto e disse:
— Então, qual é seu jogo? Ela sorriu e respondeu:
— Se você encontrar uma série de cartões escritos Bem-vindo a Bowen, então minha história muda.
— Diga a Jake que agradeço.
— Agradece por quê? — ela perguntou, com ar inocente.
— Ei, Mike, quer um pouco de gumbo? — Noah ofereceu enquanto procurava uma concha na gaveta.
— Já no café da manhã? Obrigada, prefiro uma barra de cereal.
— E você, Theo?
— Claro — ele respondeu. — Sabe o que fica ótimo com isso? Batata frita.
— Desculpe, mas não tenho batata frita. Não fazem bem, também. Têm excesso de sódio.
— Vai ser compensado pelo sódio do gumbo — Noah comentou.
— E tem batata frita, sim. Dois pacotes enormes no armário, do tipo que eu gosto. Nada daquelas coisas sem graça diet. Você já esqueceu do que comprou na mercearia ontem à noite?
— Acho que sim.
— Sabe o que vai bem, também, com gumbo e batata frita? — Noah perguntou.
— O que é? — Theo perguntou.
— Cerveja gelada.
— Estou nessa.
Theo levantou-se e foi até a geladeira. Michelle sacudiu a cabeça.
— Gumbo, batata frita e cerveja às dez e meia da manhã?
— Já são onze e nós já estamos em pé há horas. Não precisa franzir a testa, doçura. Vamos acabar corrompendo você. Coma um pouquinho com a gente.
— Ela tem mania de comida saudável? — Noah perguntou.
— Acho que sim — Theo respondeu — O lema dela parece ser: Se tem gosto bom, cuspa fora.
— Seus bobos. Quando vocês dois forem fazer a operação para colocar pontes de safena, espero que lembrem-se desta conversa.
— Conversei com o Dr. Robinson — Noah disse, então.
Havia encontrado a concha e estava servindo o gumbo em duas tigelas. Theo havia pegado um pacote de batatas fritas e já estava abrindo.
— E daí? — ela perguntou.
Noah colocou as tigelas sobre a mesa, pegou duas colheres de sopa e sentou-se.
— Ele só conseguia lembrar-se de dois homens que lhe deram trabalho de verdade e já estou fazendo uma investigação completa sobre os dois. Um é um velho chamado Everett, bastante rabugento. Você o conhece, Mike?
— Não, não conheço.
— Everett recusou-se a pagar a conta porque Robinson não o curou da indigestão. Everett também tinha problema com bebida e culpou o médico por isso, também. Disse ao médico que não beberia até ficar embriagado todas as noites, se não fosse a dor que sentia. Robinson acabou enviando a conta para uma firma de cobrança e Everett não gostou nem um pouquinho. Revoltado, ligou para o médico e ameaçou-o.
— E o outro paciente? — Theo perguntou.
— Disse a Robinson que se chamava John Thompson, mas duvido que seja seu nome verdadeiro. Só fez uma consulta com o médico e foi apenas um ou dois dias antes de Robinson sair da clínica e passar as fichas para Mike. Thompson é um viciado de Nova Orleans. Veio até Bowen na esperança que algum médico por aqui fosse mais mole, acho. Disse a Robinson que tinha uma dor terrível nas costas e precisava de um certo remédio por causa da dor. Queria coisa pesada, e sabia o que pedir. Quando Robinson recusou-se, o drogado enfureceu-se e o ameaçou.
— Ele comunicou isso à polícia?
Noah tomou um gole de cerveja antes de responder:
— Deveria ter comunicado, mas deixou de comunicar porque estava saindo de Bowen e preferiu evitar o incômodo. Pelo menos, foi o que me disse.
— Aposto que Thompson tentou o mesmo com outros médicos em St. Claire — Michelle comentou.
— Também foi o que pensei e por isso fui verificar — Noah disse e sorriu. — Adoro tirar médicos da cama logo cedo. De qualquer forma, se Thomson procurou algum outro médico, deve ter dado um nome diferente. Ninguém lembra-se de tê-lo consultado.
— Resumindo, não chegou a lugar algum.
— Acho que já é hora de vocês dois darem esse caso por encerrado e pararem de se preocupar — Michelle recomendou. — Vou arrumar a clínica, pôr trancas mais fortes nas portas e janelas e continuar com a minha vida. Sugiro que façam a mesma coisa.
Já que Noah e Theo não contestaram, ela deduziu que eram teimosos demais para concordar que ela estava com a razão.
— Vai chover — Theo disse e pôs um bocado de gumbo na boca.
— Mas tem sol — Noah retrucou.
— É, mas meu joelho está doendo; então vai chover. Meu ombro também está doendo.
Noah deu risada.
— Vocês foram feitos um para o outro. Um hipocondríaco namorando uma profissional da saúde. Isso sim que é um encontro escrito nas estrelas.
— Não sou profissional da saúde — Theo reagiu, zangado. Noah ignorou o comentário atravessado.
— Mike, já foi para Boston?
— Não, nunca fui.
— E não vai gostar.
Ela pensou sobre o que ele disse um instante, depois respondeu:
— Tenho certeza de que se eu for lá para um congresso, ou a passeio, vou adorar.
Noah olhou de Theo para Michelle. Ela parecia estar na defensiva, mas ele não deixou de perceber a tristeza em seus olhos. Estava desistindo de Theo antes mesmo de ter começado algo. A reação de Theo também chamou-lhe a atenção. Todo o seu corpo ficou tenso.
— Será que foram apenas dois navios se cruzando na noite?
— Pode ser algo assim — Michelle respondeu.
— Deixe isso para lá, Noah.
Noah assentiu com a cabeça e mudou de assunto.
— Queria saber uma coisa. Será que a pescaria sai se chover no sábado?
— Pescar na chuva sempre é melhor — Michelle disse.
— Quem disse isso? — Noah quis saber.
— John Paul.
— Será que algum dia vou conhecer seu irmão? — Theo perguntou.
— Duvido. Você já vai embora na segunda, não vai?
Era como se ficasse esfregando uma ferida aberta. E nem podia dizer que Theo havia lhe puxado o tapete sob os pés. Sabia, todo o tempo, que ele iria embora. Por que, então, sentia-se tão arrasada?
— Pode conhecer o irmão dela na sexta-feira lá no Cisne — Noah disse. — Jake me disse que John Paul trabalha como atendente e leão-de-chácara lá nos fins de semana.
Michelle balançou a cabeça.
— Papai sabe que John Paul não vai aparecer neste fim de semana. Meu irmão já deve estar sabendo que tipo de serviço vocês fazem e vai querer ficar bem longe.
— Por quê? Seu irmão é algum foragido da polícia?
— Não, claro que não.
— O que ele tem contra o FBI? — Theo perguntou.
— Melhor fazer essa pergunta a ele, quando se encontrarem.
— E isso depende do fato de eu conseguir encontrar seu irmão para poder perguntar — Theo provocou.
— Meu irmão é uma pessoa reservada — ela disse, defendendo-o. — Se e quando ele decidir apresentar-se a vocês, saberá onde encontrá-los — ela sorriu e acrescentou. — E vocês nem vão ver ele chegar. Bom, se me dão licença, tenho muita coisa a fazer.
Ela levantou-se, jogou a lata vazia no lixo e começou a recolher a louça suja. Theo levantou-se para ajudar. Estava começando a lavar a louça quando a campainha soou. Noah foi atender.
Michelle colocou as tigelas na pia, depois voltou-se para a mesa. Theo pegou-a pela cintura e curvou-se para beijar seu pescoço.
— O que está acontecendo com você?
Ela não estava acostumada a sutilezas, por isso não conseguiu armar nenhum jogo ou inventar uma mentira simpática; simplesmente disse a verdade:
— Você está complicando a minha vida.
Ele virou-a para que ficassem de frente um para o outro. Ela afastou-se, mas ele foi atrás e prendeu-a contra a pia.
— Então você se arrependeu...
— Não — ela murmurou. — Foi maravilhoso.
Ela não conseguia olhar nos olhos dele e ficou olhando para seu queixo, tentando concentrar-se para dizer a ele o que queria.
— Nós dois somos adultos normais, com necessidades de qualquer pessoa saudável, e claro que...
— Normais e saudáveis?
— Não me provoque. Essas necessidades...
— Ah, e como me lembro dessas necessidades — ele disse.
— Só não podemos continuar cedendo a essas...
— Necessidades? — ele completou, quando ela se interrompeu. Ela flagrou-se sorrindo, apesar da frustração que sentia.
— Você está rindo de mim.
— Estou, mesmo. Ela empurrou-o.
— Não vou deixar que me parta o coração, Theo. Se quiser brincar, melhor deixar para as garotas de Boston, que é uma cidade grande.
— Ah, as garotas da cidade grande? — ele riu na frente dela.
— Quer fazer o favor de ficar sério? Só estou tentando lhe dizer que isso não vai levar a lugar algum e é melhor me deixar em paz.
Ele envolveu-lhe o rosto entre as mãos e a beijou com paixão. Quando levantou a cabeça, percebeu que havia lágrimas em seus olhos.
— Vai chorar por minha causa?
— Não — ela respondeu, decidida.
— Ótimo. Porque eu poderia jurar que acabei de ver lágrimas em seus olhos.
— Nunca imaginei que você pudesse ser tão mesquinho. Parece que não percebeu que estou tentando lhe dizer para parar...
Ele balançou a cabeça devagar e ela arregalou os olhos.
— Não? Por que não?
Os lábios dele voltaram a roçar os dela em um beijo rápido, mas forte.
— Você é uma garota esperta. Encontre a resposta.
Noah interrompeu a conversa ao entrar de volta na cozinha. Tinha uma caixa grande da Fedex debaixo do braço e carregava uma enorme panela de metal coberta com papel alumínio.
— Theo, quer pegar esta caixa, por favor? Encontrei encostada na porta quando abri. Também havia uma senhora com esta galinha frita à moda Cajun. Ela entregou-me e saiu correndo antes que eu tivesse tempo de agradecer. Parecia nervosa com alguma coisa.
— Ela disse como se chamava?
— Molly Beaumont — Noah respondeu, colocando a panela sobre o fogão e levantando o papel alumínio para cheirar a comida. — Hum, o cheiro é muito bom.
— Ela trouxe um cartão para o Theo junto com o frango?
— Não, só disse que você preparou, mas que a panela é dela e ela vai querer de volta.
Theo estava junto à mesa, abrindo a caixa. Noah pegou uma coxa de frango, deu uma boa mordida, depois cutucou Theo com o cotovelo.
— Sabe o que mais a tal Molly disse?
— Não, o que foi?
— Ela pediu para eu entregar para o treinador Buchanan. Você ouviu essa, Theo? Ela chamou você de treinador.
— Pois é, eu sei. Todo mundo em Bowen me chama de treinador.
— Certo, agora vou ter de adivinhar por que — Noah comentou. Theo não estava prestando atenção ao amigo. Finalmente, conseguiu abrir a caixa e deixou escapar um longo assovio.
— Ah, o Nick mandou o que eu pedi — disse. — Livros sobre futebol americano. Este aqui é muito bom.
Pegou o livro e começou a folheá-lo.
— Livros de futebol? — Noah perguntou, de boca cheia.
— Isso mesmo. Depois explico. Michelle, pode ir para a clínica com Noah. Ele vai passar o dia com você.
— Ele não precisa perder tempo... Theo interrompeu-a:
— Ele vai com você.
Noah balançou a cabeça afirmativamente.
— Enquanto você e suas amigas arrumam as pastas e arquivos, vou começar a fazer a faxina da clínica. Se sobrar tempo, pintarei as paredes.
— Sua ajuda seria muito boa, mas...
— Não discuta — Theo interrompeu.
— Você venceu — ela aceitou, por fim. — Agradeço muito, Noah. Depois ela voltou-se para Theo e perguntou o que ele ia ficar fazendo, enquanto isso.
— Tenho uma reunião com os Carsons e o advogado deles à uma — Theo respondeu. — Tenho de terminar até as duas e meia, pois prometi a Conrad que apareceria no treino às três. Se você e o Noah se cansarem lá na clínica, dêem uma passadinha.
— O diretor já ofereceu um contrato para o Theo — Michelle informou, abrindo um sorriso. — Mas ele ainda não assinou.
— Você só pode estar inventando tudo isso — Noah disse.
— Acho que o Theo está esperando para ver se consegue um salário maior.
Noah tinha certeza de que os dois estavam fazendo uma brincadeira com ele e queria ver onde aquilo daria.
— Está bem. Vamos passar lá, sim. A que horas termina o treino? Prometi ajudar no bar, hoje. Tenho de chegar lá pelas cinco.
— Pensei que ia se encontrar com Mary Ann esta noite — Theo lembrou.
— Que história é essa de você sair com Mary Ann? — Michelle quis saber.
Noah deu de ombros e respondeu:
— Ah, ela perguntou se eu queria encontrar com ela mais tarde, quando o marido da outra amiga viesse buscá-la, e sugeri que ela passasse lá no Cisne. Se eu não estiver ocupado...
— Ela convidou você para sair com ela? — Michelle perguntou, visivelmente surpresa.
— Convidou, sim. Por que acha tão difícil de acreditar? Sou um cara legal.
— Não, não é difícil de acreditar. É só que ela... e você é... bom, você é muito...
Noah estava se divertindo com o embaraço de Michelle.
— Eu sou muito o quê?
A palavra "experiente" veio-lhe à mente junto com uma porção de outras. Noah era o tipo de pessoa que "jantaria" Mary Ann. Michelle percebeu que estava sendo tendenciosa e que talvez estivesse errada.
— Você é...
— Eu sou? — Noah insistiu.
— Sua amiga ficou entusiasmada com Noah — Theo comentou.
— Ficou mesmo — Noah afirmou.
— Ah, por favor! — Michelle disse, visivelmente alterada. — Só porque a Mary Ann foi simpática, vocês já concluem, apressadamente, que ela ficou entusiasmada?
— Eu não tirei nem uma conclusão apressada — Noah sorriu. — Verdade. A própria Mary Ann disse, só vou repetir as palavras dela: "Ei, Theo. Gostei do Noah. E então, ele é casado, ou está disponível"?
— Foi isso mesmo que aconteceu — Noah assentiu.
O pior era saber que Theo podia estar falando a verdade. Mary Ann tinha o péssimo hábito de dizer exatamente o que lhe passava pela cabeça. Michelle começou a rir, mesmo negando com a cabeça.
— Precisamos ir lá para a clínica — disse a eles.
— Só um minuto, Michelle — Noah disse, folheando o livro de futebol. — Theo, dê uma olhada na página 53. Você se lembra...
— Theodore, tire esse livro da mão do seu amigo e ponha esse porqueira para fora.
Chamá-lo de Theodore funcionou como um passe de mágica. Ele levantou-se e tirou o livro das mão de Noah, que ficou impressionado.
— Ela fala como um sargento em prática com recrutas — ele comentou, observando Michelle de braços cruzados ao lado da porta, batendo a ponta do pé no chão com impaciência.
— Ela sabe ser durona quando precisa — Theo disse, fazendo suas palavras soarem como um elogio.
— Isso é que é talento — Noah observou.
— Ela é realmente boa no que faz. Não se intimida. Gosto disso. Sabe o que mais ela faz? Verduras e legumes.
— Ouvi direito? Verduras e legumes?
— Isso mesmo. Devia ver como ela pica os legumes com o facão. É incrível. Tem um ritmo que daria para base de música.
Noah foi saindo com Theo.
— O que quer dizer com isso?
— Ela é tão... exata no que faz.
— Ih, é grave — Noah riu.
— O quê?
— Você está perdido.


Capítulo 29


Noah e Michelle não conseguiram ir ao treino. Simplesmente havia trabalho demais na clínica. Suas amigas surpreenderam-na. Organizaram todas as fichas e separaram em pastas por ordem alfabética, de maneira que, quando os novos arquivos chegassem, bastaria colocar nas gavetas. Theo foi até a clínica para buscar Michelle, enquanto Noah voltou ao seu hotel para tomar banho e mudar de roupa antes de ir para o Cisne ajudar Jake.
Michelle sentia-se culpada por Theo e Noah ainda não terem conseguido pescar. Quando comentou o fato com Theo, ele lhe disse para não se preocupar. No sábado ele ficaria num barco do nascer ao pôr-do-sol e que, de qualquer maneira, todo o planejamento e a espera davam-lhe tanto prazer quanto a pescaria em si. Começou a listar tudo o que queria levar para o barco. Como um escoteiro, queria estar bem preparado e "Deus me livre" que faltasse sanduíche ou cerveja.
Estacionaram o carro diante da casa dela e estavam desembarcando quando Elena Miller chegou em seu carrinho, buzinando para chamar a atenção deles.
— Dra. Mike — ela chamou, dando a volta no carro. — Pode pedir para o cavalheiro levar esta caixa lá para dentro?
— O que tem na caixa? — Michelle quis saber.
— Não recebeu minha mensagem? Liguei do hospital e deixei uma mensagem em sua secretária eletrônica.
— Como pode ver, estou acabando de chegar, Elena — Michelle respondeu.
— Cansei de ficar com coisas de vocês, médicos, entupindo a sala lá na emergência. Esta caixa está cheia de correspondência que estava espalhada por cima da mesa e dos balcões — ela disse, indicando o banco de trás de seu carro. — Comecei com a senhora e na segunda-feira vou me livrar do monte do Dr. Landusky.
Michelle apresentou Theo à estressada funcionária do hospital e explicou que ela vinha tentando pôr ordem na ala do pronto-socorro.
— Não é melhor pedir para mandarem as revistas médicas para sua clínica, Doutora? Também ajudaria muito se a senhora levasse sua correspondência para casa todos os dias. Será que é pedir demais?
— Não, claro que não — Michelle respondeu, sentindo-se como uma garotinha na escola. — Por que não deixou tudo isso na sala dos médicos? — perguntou.
Theo pegou a caixa e viu a quantidade de revistas que havia ali. Elena fechou a porta do carro atrás de Theo e acomodou-se no banco do motorista.
— Porque acabei de arrumar aquela bagunça, também — respondeu. — Vocês médicos...
Dando a ré no carro, nem terminou a frase.
— Vou procurar me comportar — Michelle disse alto. Satisfeita, Elena acenou e partiu depressa pela rua. Theo acompanhou Michelle para dentro de casa.
— Elena me faz lembrar de alguém — ele observou, levando a caixa para a biblioteca e colocando-a sobre a mesa. Ela fez com que ele se afastasse para ela poder examinar o conteúdo. Havia várias revistas médicas, pacotes de dois laboratórios farmacêuticos e uma pilha de folhetos de propaganda.
— Quem? — ela perguntou, deixando os envelopes caírem de volta na caixa. Não havia nada que necessitasse sua atenção imediata.
— Aquele comediante, o Gene Wilder, por causa do cabelo arrepiado.
— Coitada! Foi uma permanente mal feita — Michelle explicou,
rindo.
— Onde está sua caixa térmica? — ele perguntou.
— Está na garagem, mas precisa ser lavada — ela disse, dirigindo-se para a escada.
— Vá indo e tome seu banho primeiro, enquanto eu lavo. E não use toda a água quente — ele gritou atrás dela.
Ele estava hospedado na casa dela havia apenas dois dias, e já estava querendo dizer a ela o que fazer. Ela balançou a cabeça, rindo consigo mesma. Muito bom, ela pensou. Ter Theo por ali era muito, muito bom.


Capítulo 30


O ronco alto do trovão acordou Theo. Parecia que fogos de artifício haviam estourado dentro do quarto. A cama, realmente, chegou a vibrar. O quarto estava na mais absoluta escuridão mas, ao virar a cabeça, ele viu os relâmpagos correndo pelo céu.
Uma tempestade violenta estava se armando. Ele tentou voltar a dormir, mas estava muito quente. O ar condicionado zumbia, mas como a janela estava levemente aberta, o ar frio era sugado para a tempestade.
Michelle estava profundamente adormecida, encolhida a seu lado, com uma mão sobre ele. Ele virou-a para o lado, com todo o cuidado, beijou sua testa e sorriu quando ela tentou rolar para cima dele. De repente, ele teve vontade de acordá-la para fazer amor com ela mais uma vez, mas então viu os números luminosos do relógio e mudou de idéia. Eram três horas. Acordá-la estava fora de questão. Ela precisava dormir e ele também. Tinham ido para a cama às dez, mas só foram dormir lá pela meia noite.
Se ele pretendia passar o sábado pescando, teria de fazer tudo o que pretendia fazer no dia que estava começando. Tinha outra reunião marcada com os Carsons e seus advogados para acertar os detalhes e, quando acabasse, ajudaria nos trabalhos da clínica.
Michelle não pretendia passar todo o dia de sábado pescando, até que Theo contou-lhe sobre uma aposta paralela que havia feito com Noah. Aquele que pegasse mais peixes teria de pagar mil dólares ao vencedor.
Ela ficara chocada com o valor da aposta. Como alguém podia ser capaz de gastar tanto dinheiro em uma aposta, quando poderia gastar de forma bem mais útil? Porém, assim que Theo disse-lhe que não poderia e nem pagaria, ela engajou-se na causa, determinada para fazer com que ele vencesse. Gabando-se de ter uma estratégia secreta, ela explicou que seu pai levaria Noah a seu lugar favorito de pesca e um lugar remoto do charco, em uma curva próxima à casa de John Paul. Mas do outro lado do bayou havia um lugar bem melhor, onde havia tantos peixes, que só faltavam pular para dentro do barco.
Quando ele perguntou-lhe por que nunca havia contado ao pai sobre aquele lugar especial de pesca, ela explicou que não queria que ele fosse lá sozinho, porque era um lugar muito isolado e havia muitos predadores na área. Pela informação que ela deu, ele interpretou que havia muitos crocodilos na área. Ela não negou nem confirmou a suspeita, mas fez com que ele parasse de pensar no assunto beijando-o, enquanto despia-o lentamente. Tomando-lhe a mão, ela o conduziu para a cama. A distração funcionou perfeitamente.
Até aquele momento.
Talvez ele pegasse a espingarda modificada que havia no Cisne e a levasse junto. Depois lembrou-se de que estava com calor e resolveu fechar a janela. Sentou-se, bocejou e pôs as pernas para fora da cama. Seus pés embolaram-se no lençol quando levantou. Tropeçou, bateu o joelho ruim na mesinha de cabeceira; o puxador de metal bateu bem na parte mais sensível abaixo da rótula, fazendo com que a dor se irradiasse por toda a perna. Queimava como ácido. Resmungando um palavrão, sentou-se pesadamente na cama e esfregou o joelho.
— Theo, você está bem? — a voz dela não passava de um murmúrio sonolento.
— Sim, tudo bem. Bati o joelho na mesinha. Você deixou a janela aberta.
Ela afastou o lençol e disse que iria fechá-la, mas ele a prendeu suavemente na cama.
— Pode dormir outra vez. Deixe que eu fecho.
Ela não contestou. Sentado na beira da cama, esfregando o joelho, ele ficou ouvindo o ressonar profundo e regular. Como alguém podia dormir tão rápido? Depois ele concluiu que ela deveria estar exausta por ter feito amor com ele, e Theo até se sentiu melhor. Com um sorriso no canto da boca, ele admitiu que aquele era um pensamento arrogante.
Levantou-se e foi mancando até a janela. Estava acabando de fechá-la quando um raio iluminou a noite e ele viu um homem atravessar a rua correndo em direção à casa de Michelle.
Que era isso? Teria mesmo visto o que achou que viu, ou seria apenas sua imaginação? Um trovão soou alto; outro raio cortou o céu e ele voltou a ver o homem, desta vez acocorado junto a uma árvore.
Também viu o rifle. Theo já estava se afastando da janela quando o tiro foi disparado. A bala atravessou o vidro, estilhaçando-o enquanto Theo se jogava para proteger-se. Sentiu uma dor aguda na parte superior do braço e achou que talvez tivesse sido atingido. Chegando à cama, agarrou Michelle, que estava se levantando e rolou com ela nos braços para o chão, fazendo o possível para impedir que ela batesse a cabeça no piso. Voltou a sentir dor no braço quando rolou para o lado e, tentando pôr-se em pé, derrubou o abajur para o chão, com a pressa.
— Theo, o que...
— Continue no chão — ele ordenou. — E não acenda a luz. Ela tentava compreender o que estava acontecendo.
— Um raio atingiu a casa?
— Não, isso foi um tiro. Alguém acaba de dar um tiro em mim pela janela.
Ele estava em pé e correndo. Se houvesse deixado Michelle ir até a janela, ela poderia ter sido morta. Foi muita sorte ele estar olhando para baixo quando o raio caiu.
Dirigindo-se ao quarto de hóspedes, gritou:
— Chame a polícia e vista-se. Temos de dar o fora daqui. Michelle já havia agarrado o telefone e puxou para junto de si. Ia
ligar o número de emergência, mas percebeu que o telefone estava mudo. Não entrou em pânico. Deixou cair o telefone, pegou sua roupa e correu para o corredor.
— O telefone está mudo. Theo, o que está acontecendo?
— Vista-se — ele repetiu. — Depressa.
Ele pegou o revólver e colocou-se junto à janela. Não serviria de alvo fácil desta vez. Afastando um pouco as cortinas com a ponta do revólver, espiou a escuridão. Outro tiro foi disparado quando um raio estalou e a chuva começou a cair. Ele viu o brilho avermelhado da bala sendo expelida. Afastou-se e ficou imóvel, tentando perceber todos os sons, rezando para que outro raio estourasse para ele poder ver se havia outros bandidos se esgueirando por ali.
Seria só uma pessoa? Ele torcia para que fosse. Se conseguisse disparar um bom tiro, poderia dar conta do desgraçado. Jamais havia matado alguém, só tinha disparado tiros em aulas práticas, com alvos de mentira, mas não estava disposto a deixar o atacante impune.
Cinco segundos passaram-se, depois mais cinco. Um raio abriu os céus e, durante um breve instante, ficou claro como o dia.
— Droga! — Theo murmurou ao ver outra pessoa atravessar a rua correndo.
Michelle estava no banheiro, vestindo-se com a fraca luz de segurança que sempre deixava acesa no corredor. Estava calçando o tênis quando a luz de segurança apagou-se. Correu de volta ao quarto e constatou que a luz do relógio também havia se apagado. Ou o raio havia atingido uma linha de transmissão, ou alguém havia desligado a energia de sua casa. A segunda alternativa pareceu-lhe mais provável.
Estava tão escuro que ela não conseguia ver nada. O armário de roupa de cama ficava junto ao quarto de hóspedes. Tateando, ela encontrou a maçaneta e, na prateleira de cima, pegou sua lanterna. Derrubou um frasco de anti-séptico e uma caixa de curativos. O frasco caiu pesadamente sobre seu pé. Ela chutou-o para dentro do armário para evitar tropeçar nele, depois fechou a porta para que ninguém trombasse contra ela.
Havia curativos espalhados por todo o chão. Ela escorregou em um enquanto procurava se aproximar de Theo.
— O telefone está mudo e estamos sem luz. O que está acontecendo, Theo?
— Vi dois homens lá na frente. Um está agachado junto ao plátano e está imóvel. Pegue meu celular e me dê. Precisaremos de ajuda.
Ela estava com medo de acender a lanterna porque a cortina estava parcialmente aberta e quem quer que estivesse lá fora poderia ver a luz; por isso ela foi tateando sobre o camiseiro, sentindo-se mais frustrada a cada segundo.
— Onde está? — ela perguntou.
Ouviu então o ronco de um motor ao longe. Correu para a janela que dava para o rio e viu a luz de um barco aproximando-se do ancoradouro. Não poderia dizer quantas pessoas havia no barco, pois não conseguia ver nada além do farol do barco que parecia existir por si mesmo, ficando cada vez mais forte.
Theo já havia vestido as calças, calçado os sapatos e estava tentando vestir a camiseta sem deixar de vigiar a janela. Sentiu dor no braço ao passá-lo pela manga e sentiu a pele molhada e pegajosa de sangue. Tocando o ferimento, encontrou um estilhaço de vidro e ficou contente por não ter sido um tiro. Enxugando a mão na calça, puxou a camiseta para baixo e arrancou o pedaço de vidro do braço. Queimou como se fosse ferro quente grudado em sua pele.
— Vi um barco chegando ao ancoradouro — ela disse. — Devem estar agindo com os dois lá da frente, não é?
Sentia-se estúpida ao fazer a pergunta. Com certeza havia mais gente. Afinal, quem, entre seus amigos e conhecidos, viria visitá-la no meio da noite, durante uma chuva torrencial?
— O que eles querem? — murmurou.
— Depois a gente pergunta para eles — Theo respondeu. — Onde está meu celular?
Ele prendeu o suporte do revólver ao corpo e encaixou o revólver ali. Já havia imaginado uma rota de fuga. Teriam de sair pela janela dos fundos, escorregar pela cobertura da varanda e cair no chão correndo. Se tivessem sorte, conseguiriam chegar até o carro dele.
— Não está no camiseiro — ela respondeu.
— Droga! — ele resmungou, tentando lembrar de onde poderia ter deixado.
Lembrou-se que havia deixado carregando junto ao telefone de Michelle na escrivaninha da biblioteca.
— Está junto ao telefone lá embaixo — disse.
— Eu vou pegar — ela ofereceu.
— Não! A escada fica de frente para a porta dos fundos. Se alguém estiver de tocaia lá, vai ver você. Fique junto da janela e procure ver quantos saem do barco. Já ancorou?
Theo fechou a porta com o pé, depois arrastou o camiseiro, bloqueando-a, numa tentativa de atrasar os perseguidores.
— Um homem acaba de sair do barco e está com uma lanterna. Está indo para os fundos... não, está dando a volta para a frente. Não sei dizer se está com mais alguém.
— Abra a janela — ele disse, enfiando as chaves no bolso da calça. — Vamos sair por aí. Deixe que eu saia primeiro para pegar você lá em baixo.
Ele saiu pela janela, desceu tentando fazer o mínimo ruído possível ao cair na cobertura da varanda. As telhas estavam escorregadias e ele quase perdeu o equilíbrio ali. Abriu as pernas e levantou os braços, esperando que Michelle saltasse. Rezava para que não houvesse outro raio, ou seriam vistos. Se houvesse outra pessoa no barco ou no pátio, logo daria aos outros o sinal de alerta.
Ouviu vidro quebrar-se no andar de baixo. Parecia vir da porta dos fundos. O ruído foi imediatamente acompanhado pelo som ensurdecedor de um tiro de espingarda vindo da porta da frente. Os desgraçados estavam bem organizados. Estavam fazendo um ataque simultâneo pelas duas entradas. Queriam acuar Theo e Michelle lá dentro.
Michelle podia ouvi-los derrubando coisas lá em baixo. Quantos haveria? Prendeu a lanterna no cós da calça e saiu pelo parapeito.
— Depressa! — a voz dele soava como um apelo ansioso.
Ela hesitou por um ou dois segundos, tentando ver onde estava indo, mas então ouviu passos pesados subindo pela escada. Soltou-se.
Theo pegou-a pela cintura. Ela escorregou, mas ele a segurou até que recuperasse o equilíbrio. Permanecendo junto a ele, ela foi engatinhando pela cobertura. A chuva caía pesadamente. Ela mal conseguia ver as próprias mãos. Chegando à beirada, testou a resistência da calha, esperando que agüentasse seu peso, quando passasse as pernas por ali, mas a calha estava solta e ela sabia que faria muito barulho se caísse. Havia arbustos em toda a volta da casa. Cobrindo os olhos, jogou-se em meio à folhagem.
Tentando sair da frente de Theo, bateu a cabeça com força em um galho grosso. Cortou o rosto e mordeu o lábio inferior para não gritar.
— Para que lado vamos? — ela murmurou.
— Para a frente. Espere um pouco.
Pegando o revólver, ele esgueirou-se até o canto da casa, abaixou-se e espiou. O capô do carro estava aberto, o que significava que já haviam mexido ali, também. Olhou para a rua, imaginando a distância até o charco. Não estava nem um pouco animado em ser acuado e caçado em um labirinto de vegetação densa, mas se corressem sem serem vistos, ele e Michelle conseguiriam chegar ao cruzamento.
Havia um carro parado mais acima da rua. Ele não o teria visto se as luzes do freio não acendessem naquele exato momento. Um segundo depois apagaram-se. Theo voltou para Michelle.
— Precisamos tentar chegar até seu barco. É o único meio de sairmos daqui.
— Então vamos.
Conseguiram chegar até o ancoradouro sem que os vissem. Pegos no clarão de uma luz que veio da janela do quarto, Theo puxou Michelle para o chão enquanto virava-se para atirar. Não fazia idéia se havia acertado alguma coisa ou não. A luz apagou-se e ele ouviu gritos.
— Passe a sua lanterna — ele pediu, ofegante.
Ela tirou a lanterna da cintura. Theo a pegou e esticou bem o braço para não revelar onde estavam. Voltando a puxá-la para baixo, tentou protegê-la e sussurrou:
— Não se mexa.
Acendeu a lanterna. A luz revelou um dos desgraçados correndo da casa em direção a eles. Michelle viu-o claramente e deixou escapar um suspiro de surpresa. O reconhecimento foi rápido e chocante.
Theo atirou duas vezes antes de ser forçado a apagar a lanterna. As balas passaram a chover sobre eles, prendendo-os ao chão. Theo dirigiu o facho da lanterna para o outro barco, acendendo-a. Lá estava ele, o outro homem que esperava por eles. Abaixado, olhava pela mira do rifle de grosso calibre, quando Theo atirou. A bala bateu no motor. Ele atirou novamente na direção do homem, que atirou-se na água.
Apagando a lanterna, Theo puxou Michelle, colocando-a em pé e gritou:
— Corra!
Tiros zumbiam, cortando o ar em volta deles, ricocheteando nas árvores e na madeira do ancoradouro. Michelle esgueirou-se pelo passadiço, agarrou-se a um poste para não cair e, freneticamente, procurou desamarrar o barco dos perseguidores. Theo já havia desamarrado o dela e estava puxando a corda do motor.
Ela finalmente conseguiu desamarrar a corda e empurrou o barco para o mais longe que conseguiu. Theo gritava para ela apressar-se. Ela saltou para o barco e caiu junto dele logo quando ele conseguiu fazer o motor pegar. Uma chuva de balas caía na água em volta deles.
Theo curvou-se sobre Michelle, tentando protegê-la e manter a cabeça abaixada ao mesmo tempo. Virando o barco para o norte, colocou-o em marcha. A frente do barco saiu da água, bateu de volta e arrancou para a frente. Uma bala passou tão rente à orelha dele, que foi possível sentir seu calor.
Olhando para trás, viu dois homens com lanternas correndo pelo quintal. Depois um outro atirou-se na água. Theo calculou que ele e Michelle talvez tivessem trinta segundos de vantagem para escapar. Acomodou-se sobre o banco e deixou que ela se levantasse.
Assim que ela levantou a cabeça, percebeu que estavam se afastando da civilização.
— Terá de dar a volta — ela disse.
— Não dá — ele respondeu. — Tarde demais para voltar. Eles vêm vindo atrás de nós. Ilumine a frente do barco.
Michelle sentou-se entre os joelhos dele e dirigiu o facho para a frente. A luz salvou-os de um acidente. Mais cinco segundos e teriam batido contra um tronco de árvore morta saindo da água. Theo manobrou para a esquerda, depois recolocou o barco em curso.
— Ainda bem que você trouxe a lanterna — ele murmurou.
— Tem uma curva fechada logo à frente — ela avisou. — Vá devagar e vire à direita. Se for para a esquerda, vai dar num beco sem saída.
Segurando os joelhos para não perder o equilíbrio, ela levantou e girou a cabeça para olhar para trás deles.
— Ainda não vi nem uma luz — ela disse, sentindo um alívio tão grande que quase chegava a doer. — Talvez não venham atrás da gente. Talvez nos deixem em paz agora que escapamos. Quando ela virou-se, ele a puxou para si.
— Duvido que vão desistir. Acho que mal começaram. Você percebeu o calibre daquele rifle? Estão armados até os dentes, e não vão desistir sem lutar. Temos de chegar a um telefone e pedir ajuda. Quero que me ensine o melhor caminho para chegarmos de volta à cidade.
— O bayou é como se fosse um grande oito — ela explicou. — Se você tivesse seguido para o sul, teríamos entrado em uma grande curva e logo veríamos O Cisne. Precisamos dar um jeito de voltar.
— Se voltarmos, vamos dar de cara com eles.
— Eu sei — ela respondeu num murmúrio rouco. — Há uma porção de entradas com curvas. Algumas não têm saída — advertiu. — Algumas dão a volta. Se eles conhecerem a área, podem passar à nossa frente e nos emboscar.
— Então vamos mais devagar e, se virmos a luz deles, pegamos um canal desses e nos escondemos até nascer o dia. Para onde, agora? — ele perguntou ao chegarem a uma curva.
— Não sei... Tudo parece diferente à noite. Acho que essa dá a volta.
— Está bem. Vamos para a esquerda — ele disse, virando o barco naquela direção.
— Theo, posso estar enganada.
Michelle ouviu o som do motor de um barco roncando à distância. O ronco estava se aproximando rapidamente enquanto eles davam a volta em outro tronco morto.
Theo também havia ouvido o barulho. Identificou um canal estreito e virou o barco mais uma vez. Havia galhos cheios de limo pendurado, quase encostando na água. Ele os afastava enquanto iam avançando. Depois que fizeram uma outra curva e ele viu como o canal ia se estreitando, desligou o motor.
Michelle apagou a lanterna. Abraçaram-se e ficaram prestando atenção aos sons. Estava escuro como um caixão de defunto fechado. A chuva havia amainado e apenas uma garoa fina caía.
O pântano pulsava, cheio de vida. Theo ouviu alguma coisa cair na água por trás deles. Os sapos pararam de coaxar e os grilos também silenciaram. Alguma coisa estava se mexendo, no entanto. O que seria? O barco bateu em algo, então. Ele achou que poderia ser outro tronco, mas não tinha certeza. O barco balançou, depois parou.
Michelle passou o braço por trás dele, puxou uma alavanca e pediu, num murmúrio, que ele a ajudasse a tirar o motor da água.
— Se formos continuar por este canal, pode ser que as lâminas da hélice fiquem presas na lama. Há lugares bem rasos por aqui.
O barco bateu no obstáculo mais uma vez.
— Lá vem eles — Michelle comentou baixinho.
Era possível ver a luz do barco iluminando a vegetação como a luz de um farol, indo de um canto a outro, em um arco amplo, procurando por eles.
A luz não os detectou. Michelle respirou fundo e expirou devagar. Haviam escapado de mais um obstáculo e ela aproveitou o momento para agradecer a Deus por aquela graça. Ainda não estavam livres do perigo, mas Theo estava com a razão quando disse que poderiam se esconder até nascer o dia para ir buscar ajuda. Logo, aquele pesadelo chegaria ao fim.
Os perseguidores haviam passado adiante. O ronco do motor já se afastava. Michelle deduziu que eles ainda levariam algum tempo antes de fazerem a volta para procurar com maior cuidado.
A mente de Theo estava acelerada. Seriam profissionais? Se fossem, quem os teria contratado? A quadrilha de Boston o teria seguido até a Louisiana? Estariam dispostos a vingar-se por Theo colocar tantos de seus líderes atrás das grades? O fato de ele estar ali teria colocado a vida dela em perigo?
Michelle ouviu um ramo quebrar-se acima de sua cabeça. Olhou para cima uma fração de segundo antes de algo cair junto a seu pé esquerdo. Foi preciso ter muita força de vontade para não gritar. O que quer que houvesse caído, agora estava deslizando para cima de sua perna.
— Theo, pegue o remo — ela sussurrou, tentando não mexer nem um músculo. — Quando eu acender a luz, você tem de tirar esse negócio do barco. Certo?
Ele não entendeu. Que negócio? De que ela estava falando? Porém, não contestou. Simplesmente pegou o remo, segurando-o como um bastão de beisebol e esperou.
— Pronto.
Ela acendeu a lanterna. Theo sentiu o coração saltar no peito. Quase deixou cair o remo ao ver a horrível cobra negra. A língua bífida do monstro entrava e saía da boca, como se antecipasse o bocado que morderia, a cabeça triangular e achatada apontada para o joelho de Michelle. Parecia que Theo a fitava.
O tempo parecia haver parado quando Theo girou o remo e jogou a cobra na água. Abraçou Michelle e praguejou.
— Cobra filha da mãe! Cobra filha da mãe!
Michelle apoiou-se sobre os joelhos, com o coração batendo depressa. Manteve a lanterna fixa na cobra, observando-a deslizar por entre a vegetação da outra margem lamacenta. Então ela vasculhou a água, estendeu o braço e resgatou o remo que Theo havia jogado fora. Deixando-o cair no fundo do barco, recostou-se.
— Essa foi por pouco.
Theo a segurou pelos ombros e perguntou:
— A cobra picou você?
— Não, não picou. Talvez tenha se assustado bem mais do que nós.
— Aquela filha da mãe era uma cobra venenosa?
— Era, sim — ela disse, segurando as mãos de Theo. — Por favor, pare de me sacudir.
— Desculpe, só queria ter certeza de que não havia outras... Ele interrompeu-se ao perceber a insanidade do que estava dizendo.
— Cobras subindo pela minha perna? Não, não tem nenhuma. Eu sentiria se tivesse. Por favor, tente se acalmar.
— Como consegue ficar tão calma numa hora dessas? Aquela coisa horrível estava em cima da sua perna.
— Mas você se livrou dela — Michelle respondeu, acariciando-lhe o rosto.
— Sim, mas...
— Respire, relaxe.
Ela não estava calma como parecia. Quando ele a abraçou, percebeu que ela estava tremendo.
— Sabe de uma coisa, Michelle?
— Hum, deixe-me adivinhar. Você odeia cobras.
— Como sabia que eu diria isso? Ela sorriu e afastou-se dele.
— Foi premonição.
— Vamos dar o fora daqui.
Ele colocou a mão na água para ver se conseguia empurrar o barco para longe da margem. Parecia que a lama estava sugando seus dedos.
Michelle agarrou seu braço e puxou-o para trás.
— Não pode pôr a mão na água. Pelo menos, não por aqui. Nem foi preciso perguntar por que. Theo imaginou um crocodilo
vindo em sua direção e tremeu só de pensar. Agarrou o remo e usou-o para impelir o barco.
— Acha que este canal nos leva de volta para lá?
— Sempre vivi por aqui e conheço bem cada pedaço, Theo. Mas com esta escuridão, não tenho certeza. Tenho impressão que este canal fica sem saída daqui a uns duzentos metros. Se seguirmos em frente, podemos acabar encalhados e não quero sair andando pelo pântano. Não é seguro, pelo menos à noite. Acho melhor darmos a volta e retornar.
— Apoiada.
— É melhor usarmos os remos para voltar. Se eles estiverem por perto, não vão nos ouvir.
Ela pegou o outro remo e ajudou-o a manobrar o barco.
— Se outra cobra desgraçada cair neste barco, eles vão me ouvir. Ah, se vão.
Theo trocou de lugar com Michele e usou os remos para chegar à boca do canal. Parou e virou-se para olhar.
— O que acha? Podemos voltar à sua casa? Se eu conseguisse pegar meu celular...
— Descemos demais o ribeirão. Teríamos de voltar exatamente por onde viemos e acho que estaríamos abusando da sorte. Pois bem. Então vamos em frente e vamos torcer para encontrar logo um ancora-douro.
Theo não conseguia ver mais do que três metros à sua frente, mas sabia que seria arriscado demais acender a lanterna naquele momento. Michelle passou por cima do banco para conseguir chegar ao motor. Pegou a corda, ficando pronta para dar a partida se fossem detectados. Estava com medo de tudo naquele instante. Qual fora a última vez em que colocara gasolina no motor? Nem se lembrava. E se chegassem até o meio e fossem descobertos pelo facho de luz?
Estavam deslizando sobre a água. Os braços fortes de Theo remavam com estilo. Ela viu a luz vasculhando a água.
— Estão procurando por nós nos canais — ela murmurou. Theo continuou a remar, mas olhou para trás. O raio de luz corria de um ponto a outro das águas, mas o barco não estava se movendo. Estava a cerca de duzentos metros de distância.
— Ainda não nos viram.
— Acho que devemos ligar o motor...
— Não — ele respondeu, ansioso. — Vá com calma; pode ser que a gente consiga escapar assim.
Um minuto depois, a luz voltou-se para o lado deles. Michelle não esperou Theo dizer-lhe para ligar o motor. Puxou a corda com força. Não deu a partida na primeira vez. Theo recolheu os remos e empurrou Michelle para baixo quando uma bala passou zunindo ao lado de sua cabeça. Ela voltou a puxar a corda e gritou quando o motor começou a funcionar com um solavanco.
Theo pegou o revólver, disse para Michelle manter a cabeça abaixada quando outra bala atingiu a água ao lado deles. Apoiando o cotovelo sobre o banco, deu um tiro.
Os desgraçados estavam se aproximando depressa, agora. Theo estava tentando acertar a luz do barco deles. Perdeu o primeiro tiro, mas ouviu alguém gritar e torceu para ter acertado um deles. Voltou a apertar o gatilho. Desta vez, acertou na mosca. A bala estilhaçou o farol, dando-lhes mais cinco ou seis segundos, antes que os perseguidores acendessem suas lanternas na direção deles.
Michelle não conseguia dizer a que distância estavam da margem. Tentou diminuir a velocidade do barco, mas já era tarde. O barco de repente subiu, saindo da água e bateu contra os arbustos espinhosos. Não parou, mas sofreu dois solavancos antes de chocar-se contra uma árvore. O impacto lançou Theo para a frente do barco. Ele caiu de lado, batendo o joelho no alumínio. A parte superior do braço, ainda dolorido pelo corte do vidro, bateu na borda de metal, rasgando sua pele e provocando-lhe uma dor intensa até o cotovelo.
Michelle bateu a cabeça contra o banco e gritou, levantando os braços para proteger-se.
Theo pulou fora do barco, guardou o revólver e puxou Michelle. Ainda tonta com a batida, ela sacudiu a cabeça, procurando clarear a mente enquanto tateava o fundo do barco em busca da lanterna.
— Vamos — ele gritou, pois o ruído do motor aproximava-se cada vez mais depressa.
Ele voltou a puxá-la justo quando ela encontrou a lanterna. Soltando-se, ela a agarrou. Michelle sentia o coração bater com força no peito e sua cabeça parecia ter sido cortada ao meio. A dor quase a cegava quando foi cambaleando para a frente.
Theo passou um braço por trás dela, puxando-a para seu lado e, quase que a levando, saiu correndo pelo mato. Não fazia a mínima idéia para onde estavam indo. Completamente desorientado, avançou por entre galhos baixos que os arranhavam, que ele afastava com o braço direito. Ainda ouvia o motor roncando à distância, e só pensava em levar Michelle para o mais longe possível, antes que os perseguidores ancorassem.
Foram avançando por entre a vegetação e o chão ensopado, parando duas vezes para ouvir se estavam sendo seguidos. Por fim, saindo da vegetação fechada, deram em uma clareira. Michelle parou para tomar fôlego. Não tinha muita noção de onde estavam, ainda.
— Será que arrisco acender a lanterna? — ela perguntou. — Acho que não vão perceber a luz se eu acender só um pouquinho.
— Acenda.
Ela pressionou o botão e suspirou aliviada. Apagou a luz.
— Acho que sei onde estamos. A um quilômetro e meio do Cisne.
Estavam diante de uma estradinha de terra que parecia milhares de outras por onde ele havia passado.
— Tem certeza?
— Tenho.
Ele agarrou a mão dela e começou a correr. Se conseguissem fazer a curva antes que os perseguidores chegassem à estradinha, estariam a salvo. Volta e meia ele olhava por cima do ombro para ver se havia luzes se aproximando. O único som que ouvia era a respiração ofegante dos dois e seus pés batendo no chão.
Michelle voltou a acender a lanterna e foi na hora certa, porque quase saíram da estrada onde esta fazia a curva. Ela tropeçou enquanto viravam, mas ele agarrou-a e a manteve em pé, sem diminuir o ritmo. Olhando para trás, viu uma luz chegar à estrada e aumentou a velocidade. Tinha certeza que não tinham sido vistos.
— Já estou bem — ela disse, ofegante. — Já consigo correr. Ele soltou-a, depois pegou sua mão e continuaram a correr. Theo viu uma luz piscando como uma estrela ao longe e seguiu naquela direção.
Michelle sentia uma dor lancinante no lado do abdome e sua cabeça parecia que explodiria. Chegaram a um cruzamento e ela agachou-se, segurando os joelhos.
— O Cisne fica logo adiante, à esquerda — ela informou, arfante. — Podemos chamar a polícia de lá.
A estradinha era de terra e pedregulhos. Ele lembrou-se de ter dirigido por ali. Enquanto corriam, ele freqüentemente olhava para a vegetação dos dois lados da estradinha, imaginado para que lado deveriam se jogar, caso ouvissem alguém aproximar-se.
— Você está bem? — ele perguntou baixinho.
— Estou, sim — ela respondeu.
Ela teve vontade de gritar de alegria ao ver as paredes escuras à sua frente. O sentimento de euforia logo se dissipou, pois um centésimo de segundo depois, ela ouviu o som de um carro chiando na curva por trás deles.
Ela nem teve tempo de reagir. Num segundo estava olhando por cima do ombro para ver se havia faróis se aproximando e, no instante seguinte, mergulhou pelo acostamento com Theo. Ela caiu com força, de costas. Theo acocorou-se ao lado dela e sacou o revólver, perscrutando a estrada. Estavam camuflados pelos arbustos e pelo mato.
Michelle examinou o galo em sua cabeça, fazendo uma careta. Sua mente estava disparada. Então lembrou-se do que queria contar a Theo. Chamou seu nome baixinho, mas ele cobriu-lhe a boca com a mão.
— Shh! — ele murmurou junto ao ouvido dela.
O carro parou bem ao lado deles. Ela controlou-se para não gritar quando ouviu um ruído alto na vegetação junto a eles. Ela só percebeu que estava retendo a respiração quando seu peito começou a doer. Soltou o ar devagar e silenciosamente. Sua mão agarrou o joelho de Theo. Mais um ruído forte de galhos se quebrando, depois um palavrão quando o homem afastou-se de volta para o carro. Os pedregulhos pareciam amassar-se debaixo de seus pés.
O ar úmido estava fazendo seu efeito sobre ela. Seus olhos começaram a lacrimejar e ela sentiu uma vontade enorme de espirrar. Por favor, Deus, agora não. Não posso fazer barulho nenhum... por enquanto. Segurou o nariz com força e respirou pela boca. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto e ela cobriu a boca com a camiseta.
Theo ouviu a porta do carro bater, depois o veículo afastou-se. Ele não queria correr riscos, no entanto. Prestava atenção ao mínimo ruído. Quantos perseguidores haveria? Ele só tinha certeza de que quatro homens haviam tentado emboscá-los. Tinha visto dois diante da casa de Michelle e mais dois que chegaram de barco. O objetivo, claramente, era acuá-los dentro da casa. Theo jurou que, assim que conseguissem sair daquela situação de desvantagem, faria questão de pegar cada um deles.
Finalmente ele se moveu, para aliviar o peso dos joelhos. Colocando o braço em volta de Michelle, sussurrou:
— Eles estão procurando por nós no Cisne. Por isso é melhor ficarmos por aqui até irem embora. Você está bem?
Ela assentiu com a cabeça. Assim que ele virou-se para observar a estrada, ela repousou o rosto nas costas dele e fechou os olhos. Sua pulsação estava começando a baixar e ela queria aproveitar para recuperar o fôlego, caso precisassem sair correndo outra vez. Quem eram esses homens e por que estavam atrás dos dois?
Ela passou o peso de um joelho para outro. Parecia estar acocorada sobre lixo. O cheiro de folhas molhadas e apodrecendo era forte e penetrante. Ela achou que deveria haver algum animal morto por ali, pois sentia o cheiro de carne apodrecida, também. Sentia náuseas.
A chuva havia parado. Isso poderia ser um bom sinal. Quanto tempo haviam passado esperando? Parecia que já se passara uma hora desde que mergulharam no mato, mas na verdade toda a noção de tempo havia se dissipado desde o momento em que o primeiro tiro fora disparado.
Ela ouviu o carro antes de ver os faróis por entre os galhos. Veio correndo pela estrada, passando por eles sem diminuir a marcha e continuou em frente.
Theo inclinou-se e arriscou olhar para ver aonde o carro estava indo. Diminuiu a marcha no cruzamento, depois seguiu adiante, o que significava que ainda não haviam desistido e estavam procurando em outra estrada secundária. Tentou, mas não conseguiu identificar o número da placa.
— Terão de parar de nos procurar logo — ela murmurou. — Logo vai começar a clarear e eles não vão querer ser vistos pelos pescadores que saem cedo. Não acha que desistirão?
— Talvez — ele concordou. — Vamos indo.
Ele levantou-se com cuidado, por causa da dor no joelho. Ajudou-a a levantar-se e disse:
— Fique bem junto da vegetação e não acenda a lanterna.
— Certo — ela concordou. — Mas se ouvir a aproximação deles, não me jogue em uma valeta outra vez. Só diga para eu me jogar. Devo estar com as costas roxas.
Ele não parecia nada arrependido quando falou:
— Melhor roxa do que morta.
Ela espirrou. Foi uma sensação deliciosa.
— Eu sei — ela disse.
— Será que consegue correr?
— E você, consegue? — ela perguntou, ao perceber que ele estava mancando.
— Com certeza. Só estou um pouco amortecido. Vamos embora. Havia uma única luz acesa num poste junto ao estacionamento.
Theo não queria facilitar. Puxou Michelle para junto da vegetação e foram circundando O Cisne, até chegar perto da porta dos fundos. Não via nada se mexendo lá dentro. A porta de trás era de metal e Theo viu-se obrigado a dar a volta até uma janela da frente, olhando para o chão à procura de uma pedra grande.
— Terei de pular a janela — ele disse com uma pedra na mão.
— O que está fazendo?
— Vou quebrar o vidro.
— Não! — ela murmurou. — Eu sei onde papai guarda uma chave sobressalente.
Theo deixou cair a pedra e foi andando até a porta. Ela acendeu a lanterna e esticou o braço por cima da porta, pegando uma chave que estava presa acima do batente.
— Belo esconderijo! — ele ironizou.
— Não seja sarcástico. Ninguém se atreveria a arrombar o bar de papai.
— E por que não?
— John Paul iria atrás de quem se atrevesse e todo o mundo sabe disso. Papai poderia deixar a porta destrancada, se quisesse.
Ela teve de fazer duas tentativas para conseguir colocar a chave na fechadura, pois suas mãos estavam tremendo. Efeito retardado, ela pensou. Seu corpo finalmente estava reagindo ao terror que ela e Theo haviam enfrentado. Theo entrou primeiro, perscrutando a escuridão; depois, mantendo Michelle atrás de si, disse a ela, em voz baixa, para trancar a porta. Ouviu o movimento da chave acionando a tranca. A geladeira começou a fazer um ruído contínuo e a vibrar. O telefone, pelo que ele se lembrava, ficava no salão principal, no canto do balcão, perto do depósito. Ele achou ter ouvido um som, como se uma tábua do chão rangesse.
— Fique aqui — ele sussurrou, tirando o revólver do coldre e aproximando-se cautelosamente do balcão.
A luz do estacionamento projetava uma claridade acinzentada sobre as mesas e o chão. Nos cantos, no entanto, continuava escuro. Theo chegou junto do balcão. Seus olhos já haviam se adaptado àquela luz e ele examinava atentamente a porta entreaberta que levava ao depósito. Era um lugar perfeito para alguém esconder-se. Teriam deixado um capanga para trás? Não, isso não fazia sentido para Theo, mas continuou a observar a porta enquanto ia avançando.
Parou no meio do balcão e passou a mão em baixo, procurando a arma de Jake. Não erraria o alvo com uma arma daquelas, pensou, enquanto sua mão tocava o cabo do rifle. Levantando-o do gancho, tirou-o com cuidado.
Theo estava se afastando do balcão, quando sentiu um leve movimento de ar em seu pescoço. Sem se virar ou ouvir qualquer ruído, sabia que alguém estava vindo por trás, e vinha rápido.


Capítulo 31


— Michelle, corra! — Theo gritou.
Largou o rifle e girou o corpo, apontando o revólver. Não conseguia ver o rosto do homem, pois estava muito escuro. A sombra enorme atingiu o punho de Theo com um golpe de karatê, mas ele conseguiu manter o revólver seguro. Depois a sombra agarrou o braço de Theo, torcendo-o para trás com uma das mãos, enquanto a outra subia rapidamente na direção de seu queixo.
Theo desviou-se, mas não com a rapidez necessária. O punho da sombra conseguiu atingir seu rosto, fazendo sua cabeça ir para trás. A dor espalhou-se por toda a mandíbula. Theo reuniu toda a força que possuía em seu punho esquerdo e desferiu um golpe no estômago do oponente. Então compreendeu que estava realmente encrencado. Seu punho parecia ter atingido um bloco de concreto; podia até ter quebrado a mão.
De onde teria vindo aquele filho da mãe? Enfurecido, Theo voltou a socar. Com a velocidade de uma britadeira, o homem passou a chutar o joelho de Theo.
Michele ascendeu as luzes fluorescentes e gritou:
— John Paul! Não! Solte já.
Os dois adversários agora estavam agarrados como dois ursos, cada um tentando usar sua força para quebrar as costas do outro. Quando John Paul ouviu o grito da irmã, soltou o adversário, mas Theo não. Tentou socá-lo outra vez, esperando quebrar a cara do outro, mas John Paul evitou o golpe sem a menor dificuldade, como se estivesse afastando um mosquito incômodo. Ao fazer isso, seu braço atingiu uma garrafa de uísque, que saiu rolando e foi de encontro a uma fila de garrafas arrumadas em uma prateleira no fim do balcão.
Os dois homens deram um passo atrás ao mesmo tempo, parando para se encararem. Michelle colocou-se entre eles; com uma expressão zangada no rosto, olhou de um para o outro e então decidiu que Theo era quem estava mais descontrolado. Colocou a mão em seu peito, recomendou que respirasse fundo e segurou-o até que ele se recompusesse e fizesse o que ela pedira.
Theo voltou a medir o oponente lentamente. John Paul parecia um selvagem. Vestido com shorts de exército, botas e uma camiseta, era grande e musculoso como um gigante. Tinha uma faca presa à bota e o olhar gélido indicava que ainda desejava quebrar cada osso do corpo de Theo. Não tinha nada de simpático aquele gigante, Theo pensou, enquanto continuava a arfar pelo cansaço e pelo medo que talvez Michelle tivesse se machucado. Seu irmão poderia estrelar como guerreiro em algum filme de ação ou de aventura. Seu cabelo era um tanto comprido e tinha cicatrizes: uma no rosto e outra na coxa, talvez para fazer Theo pensar que ele tinha surgido ali em uma máquina do tempo.
— Theo, quero apresentar-lhe meu irmão, John Paul. John Paul, este é...
— Sei quem ele é — o irmão interrompeu-a.
— Sabe quem eu sou? — Theo perguntou, piscando, surpreso.
— Claro que sei — John Paul respondeu.
John Paul jamais havia deixado de enfrentar uma luta e, quando Theo deu um passo à frente em sua direção, imediatamente avançou um passo. Michelle ficou espremida entre os dois.
— Se sabia quem eu era, por que me atacou? — Theo grunhiu. Michelle girou o pescoço para poder encarar o irmão e perguntar:
— Sim, por quê? Foi muita grosseria de sua parte, John Paul.
A irmã sempre sabia o que dizer para fazê-lo rir. Foi difícil manter a cara de mau. Grosseiro. Sim, claro, achava que tinha de ser grosseiro. John Paul cruzou os braços sobre o peito e explicou:
— Eu não podia deixar que ele pegasse a espingarda. Ele pareceu-me do tipo que se assusta com qualquer coisa; podia atirar de repente e machucar alguém, ou até dar um tiro no pé.
Theo não havia sido apaziguado. Deu mais um passo à frente.
— Você tinha a intenção de machucar meu joelho ruim, não é? John Paul sorriu e disse:
— A regra é sempre atacar os pontos fracos. Você estava mancando com essa perna e achei...
— Você sabia que eu era amigo de sua irmã e ainda assim queria moer minha rótula?
— Eu não ia quebrar — John Paul contestou. — Só queria derrubar você.
— Podia ter ferido Theo — Michelle o repreendeu.
— Michelle, não preciso que me defenda — Theo resmungou. Seus hormônios masculinos estavam à flor da pele e ele já tinha agüentado tudo o que podia com aquele arremedo de Mad Max.
— Se eu quisesse machucar esse aí, teria machucado de verdade. Podia até ter matado, se quisesse, mas não quis.
— Podia coisa nenhuma — Theo disse, recolocando o revólver no coldre.
— Olhe, podia ter quebrado seu pescoço, mas resisti à tentação. Foi então, quando Michelle virou-se para Theo para dizer-lhe de parar de enfrentar seu irmão, que ela percebeu o sangue em seu braço. Ela acendeu as luzes sobre o balcão e aproximou-se de Theo. Com a luz, viu que ainda havia um pedaço de vidro cravado no corte profundo.
— Quando foi que isso aconteceu? Precisará levar alguns pontos.
Ela nem lhe deu tempo para explicar. Girando sobre os calcanhares, dirigiu-se para o irmão. Bateu-lhe no peito com a ponta dos dedos e disparou:
— Foi você quem fez aquilo? O que está pensando?
Theo sorriu. Podia pôr um fim naquilo contando a ela que o irmão não havia causado aquele ferimento, mas estava se divertindo em ver John Paul encolher-se. O gigante ia andando para trás enquanto ela passava-lhe um sermão. A expressão dele, Theo constatou com prazer, era hilária. O sujeito parecia não saber o que fazer. Quando ela terminou sua lista de acusações, ele parecia arrependido. Não muito, só um pouco.
Na luz forte, Theo conseguia perceber uma leve semelhança entre o irmão e a irmã. Os dois tinham maçãs do rosto altas e olhos profundamente azuis, mas acabava aí a semelhança. Ela tinha um espírito extrovertido e afável. John Paul, não.
Com certa infantilidade, Theo queria continuar a odiar aquele homem, mas sabia que não podia, pois via nos olhos de John Paul que este amava Michelle. Theo concluiu que John Paul apenas comportava-se como quase todos os irmãos mais velhos, fazendo tudo o que podia para protegê-la de machos predadores.
Sua atitude magnânima de dar uma trégua ao outro, porém, não durou muito. John Paul olhou para ele com raiva e acusou:
— Minha irmã parece que foi arrastada pelo chão do inferno. Está cheia de lama. O que você andou aprontando com ela?
Michelle desviou-lhe a atenção:
— Terá de contar ao papai que quebrou a garrafa do melhor uísque dele. Agora limpe essa bagunça enquanto eu chamo o Ben.
Ela afastou Theo do caminho para chegar ao telefone. Ligou para o posto policial e pediu à telefonista para conectá-la com a casa de Ben Nelson.
Theo pediu a John Paul para apagar a luz. Surpreendentemente ele fez o que foi pedido e então Theo explicou o que havia acontecido. John Paul não mostrou a menor reação. Quando Theo terminou de relatar o acontecido, John Paul perguntou:
— Acha que voltarão? É por isso que quer deixar a luz apagada?
— É provável que não voltem, mas prefiro não arriscar. Poderíamos ficar encurralados aqui dentro.
— Ah, de jeito nenhum — John Paul contestou — Além do mais, eu ouviria os filhos da mãe vindo.
— Ah, é? Ia ouvir mesmo de tocaia atrás de nós?
— Mas claro! — John Paul assentiu.
— Você se acha um Super-Homem?
— Bastante — o irmão respondeu, abrindo um sorriso. — Até gostaria se eles tentassem entrar aqui. Teria a oportunidade de despachar um par de sem vergonhas.
— Nada melhor que um tiroteio — Theo comentou, com sarcasmo. — Mas não com sua irmã aqui dentro.
— É, eu sei.
Theo estava começando a sentir os efeitos da luta. Sua mandíbula doía e seu braço estava latejando. Abriu a geladeira e pegou duas garrafas de cerveja. Sua vontade era quebrar uma delas na cabeça de John Paul, mas achou que seria um desperdício de boa cerveja e entregou-a a ele.
John Paul não agradeceu; Theo não esperava mesmo que o fizesse. Abriu a tampa e deu um longo gole, enquanto ouviam Michelle falar com Ben.
— Diga para ele nos encontrar em sua casa — Theo sugeriu. Ela pediu a Ben para esperar e disse a Theo que tinham de ir
para o hospital. Ele achava que seu braço não estava na lista de prioridades, porém.
— Não — disse com firmeza. — Vamos até sua casa, primeiro.
— Você é teimoso como uma mula — ela reclamou, mas acabou aquiescendo.
Theo queria tirar o peso das pernas para que seu joelho parasse de doer. Foi até uma das mesas, sentou-se, depois puxou outra cadeira para apoiar os pés. John Paul seguiu-o e ficou em pé, parecendo uma montanha ao lado de Theo.
— Sente-se — Theo disse.
John Paul deu a volta na mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. Começou a fazer perguntas, querendo saber mais detalhes. Theo bebeu mais um gole de cerveja e explicou mais uma vez, do início ao fim, o que havia acontecido, deixando de fora apenas o fato de ter se deitado na cama de Michelle. Achou que o irmão não gostaria de ouvir essa parte. John Paul, porém, parecia ter adivinhado o que lhe foi omitido.
— Por que estava fechando a janela do quarto da Mike?
— Porque estava aberta.
— Theo, você sabe dizer de que marca era o carro? — Michelle falou alto, do telefone.
— Um Toyota cinza... novo — ele respondeu.
— Já devem ter sumido a essa hora — John Paul observou. Theo concordou. Estava observando Michelle naquele momento, e John Paul pacientemente esperou que ele se voltasse para poder lhe dizer que ia moê-lo de pancada, porque sabia muito bem que estava na cama com Michelle. Não estava nem aí para o fato de que a irmã era capaz de tomar suas próprias decisões e também não ligava por isso não ser da conta dele. O que importava era que Mike era sua irmã caçula e Theo, John Paul decidiu, havia se aproveitado dela.
— Minha irmã é uma cirurgia com muito talento, está sabendo? — John Paul disse, em tom ameaçador.
— Sei, sim.
— Ela passou quase a vida inteira estudando e trabalhando.
— Onde quer chegar com isso?
— Ela não tem muita experiência com... homens. Não sabe ainda como podem ser cafajestes.
— Ela é adulta, John Paul.
— Mas é bobinha.
— Quem é bobinha? — Michelle perguntou, aproximando-se rapidamente da mesa.
— Não interessa — John Paul respondeu, sem tirar os olhos de Theo.
Estava zangado com Michelle, também, percebeu, pois não só tinha se tornado vulnerável envolvendo-se com um forasteiro, mas, e o que era pior, tinha se envolvido com um cara da Justiça. Isso era quase imperdoável.
— Mike, você e eu precisamos ter uma boa conversa.
Ela ignorou a animosidade que irradiava da voz do irmão e anunciou:
— Ben está se vestindo e vai se encontrar conosco lá em casa daqui a dez minutos. Também está mandando duas viaturas policiais irem atrás do Toyota. Eu disse a ele que eram uns três ou quatro homens, talvez mais.
— Pelo menos quatro — Theo disse.
— Você sabe onde papai guarda o analgésico? — ela perguntou ao irmão.
— No armário acima da pia, lá na cozinha. Quer que eu vá pegar?
— Deixe que eu pego. Theo, acho que deveríamos ir direto para o hospital — ela disse, enquanto se afastava.
— A costura pode esperar.
Michelle voltou com um frasco de analgésico e dois copos de água.Trazia também dois sacos de legumes congelados. Colocou o analgésico sobre a mesa, com os copos, e levantou os sacos de legumes.
— Ervilha ou cenoura?
Theo estava abrindo a tampa à prova de crianças do analgésico, quando respondeu:
— Cenouras.
Ela bateu o saco entre as mãos para desfazer os grandes volumes, depois colocou o saco sobre o joelho de Theo.
— Melhorou?
Depois levou o saco de ervilhas para o alto da própria cabeça. Theo imediatamente largou o frasco e puxou Michelle para seu colo.
— Você se machucou? Deixe-me ver.
A preocupação em sua voz fez Michelle sentir uma certa vontade de chorar. Respirou fundo e disse:
— Não foi nada. Só um galo. Sinceramente, não é grande...
— Shhh! — ele sussurrou.
Com cuidado, afastou a mão dela e a fez inclinar a cabeça para poder examinar o local da batida sob a luz fraca.
Quanto mais John Paul observava, mais incomodado ficava. Compreendia, pelo carinho com que ele tocava Michelle, que Theo realmente gostava dela e já era tarde demais para mudar a situação. Um federal. Como ela podia ter se apaixonado por um federal?291
— Droga! — murmurou. Michelle e Theo ignoraram-no.
— Não tem corte em sua cabeça.
— Eu lhe disse que não era nada.
— Mas foi uma batida e tanto.
— Não foi nada.
Com cuidado, ele afastava o cabelo do rosto dela. A irritação de John Paul estava chegando ao limite.
— Mike, saia do colo dele e vá sentar na cadeira.
— Acho que seu irmão não gostou de mim — Theo disse, sorrindo. Sabia que John Paul olhava para ele com raiva e beijou a testa de
Michelle antes de continuar:
— Quando bateu a cabeça, Michelle? Foi quando a cobra caiu em cima de você?
— Que cobra? — John Paul quis saber.
— Uma daquelas cobras pretas caiu de uma árvore — ela explicou ao irmão.
Theo abriu o frasco de analgésico. Michelle estendeu a mão e ele deixou cair duas cápsulas na palma da mão dela.
— Theo, precisamos ir ao hospital para encontrar o tal pacote.
— Do que está falando? Que pacote? — Theo perguntou.
Michelle decidiu que era melhor contar a história desde o começo. Apoiando os cotovelos sobre a mesa, colocou o pacote de ervilha no alto da testa e disse:
— Reconheci um deles.
— E só agora vai me dizer isso?
Theo aprumou-se de um salto, fazendo com que o pacote de cenouras voasse longe. John Paul aparou o saco ainda no ar, depois esticou o braço e colocou-o, com força, sobre o joelho de Theo. Michelle encolheu-se, pois o grito fez sua cabeça doer ainda mais.
— O homem que saiu correndo em nossa direção quando estávamos tentando chegar ao barco... Ele é o homem que eu reconheci. Você acendeu a lanterna na cara dele, lembra? Ele era o mensageiro do Serviço de Entregas Rápidas Speedy. Ele veio falar comigo quando eu estava sentada na arquibancada lá no estádio, vendo você conduzir o time de futebol.
— Eu vi o sujeito no estádio, mas não vi o rosto dele. Ele estava usando um boné. Você está falando daquele sujeito em quem atirei?
— Esse mesmo.
— Matou o cara? — John Paul quis saber.
— Não — Theo respondeu, impaciente, com a cabeça fervilhando. — Michelle, ainda não consegui entender por que você esperou tanto para me dizer que conhecia um deles.
— E quando foi que deu para lhe contar? Enquanto eles estavam atirando em nós, ou nos perseguindo? Ou será que você preferia a hora em que estávamos escondidos no pântano e você não me deixou falar?
— Você tem certeza absoluta que era o mesmo homem?
— Claro que sim. Sabe o que é realmente estranho? Quando eu estava falando com ele lá no estádio, tive a sensação de já o ter visto antes, mas achei que poderia ter sido alguém que vi no hospital. Sempre tem alguém fazendo entregas por lá.
— Reconheceu algum dos outros? E o sujeito do barco?
— Não vi o rosto dele — ela respondeu. — Ele pulou na água quando você atirou nele.
— E esse... você matou? — John Paul perguntou.
— Não, errei.
— Por que carrega um revólver se não sabe usar? — John Paul perguntou, sem conseguir acreditar no que ouvia.
— Sei usar, sim — Theo respondeu defensivamente. — Terei muito prazer em lhe mostrar.
— Pode ser que tenha acertado um braço, ou uma perna — Michelle disse, com certa esperança.
Só então percebeu a ironia do que acabava de dizer. Ela se dedicava a salvar vidas, e não a tirá-las. Ter sido alvo em um tiroteio havia invertido sua percepção de certo e errado.
— É, sei — John Paul disse, com desprezo. — A que distância estava o cara?
— Estávamos levando tiros dos dois lados — ela explicou. — Theo também estava preocupado em servir de escudo para mim e atirando ao mesmo tempo.
John Paul ignorou a explicação.
— Por que você carrega um revólver?
— Porque recebi ordens para usar. Recebo um bocado de ameaças de morte.
— Já percebi — John Paul retrucou.
— Querem parar de brigar? Estamos numa situação difícil, aqui. Theo, acho que sei o que está acontecendo. O sujeito, ou os sujeitos que invadiram minha clínica estavam procurando por um pacote. O homem que veio falar comigo no estádio disse que um outro funcionário da empresa havia entregado o pacote errado para mim, e que ele estava tentando pegá-lo de volta. Liguei para a secretária lá no hospital e disse para ela procurar o tal pacote e entregar para ele. Disse para ele ir ao hospital, mas nunca liguei para saber se havia pegado o pacote. Lembra que Elena deixou uma caixa com correspondência para mim ontem à tarde? Acho que os homens que foram até lá em casa ontem à noite acharam que estava lá. O que deduzo é que não encontraram o tal pacote no hospital e acharam que Elena levou para mim mais tarde.
— Só há uma maneira de eles saberem que a Elena entregaria alguma coisa — John Paul disse.
— Grampearam o telefone dela — Theo disse. — Droga! Como foi que não verifiquei isso?
— Posso ir lá conferir — John Paul se ofereceu.
— Sabe o que tem de procurar?
— Claro! — John Paul respondeu, ofendido. Theo pensou por um segundo, depois disse:
— Quando encontrar, não faça nada.
— Por quê? — Michelle perguntou.
— Porque não quero que saibam que já descobrimos. Até podemos querer passar alguma informação falsa para eles.
— Conte exatamente o que o cara falou para você — John Paul disse.
Theo percebeu que ele já estava deixando o antagonismo de lado.
— Ele disse que fizeram confusão na hora de fazer a entrega — Michelle contou. — O tal de Frank, pelo menos foi esse o nome que ele deu, disse que um outro mensageiro, um tal de Eddie, tinha trocado as etiquetas dos dois pacotes que pegou. Seja o que foi que eu recebi por engano, obviamente é o que eles procuram.
Theo balançou a cabeça.
— E você sabe que era tudo invenção porque... — ele nem esperou que chegassem à conclusão e continuou. — Nada é verdadeiro até prova em contrário; e não vamos acreditar que tenha acontecido um engano até abrirmos o pacote e vermos o que tem dentro.
— É verdade — Michelle concordou. — O homem que atirou em nós podia estar mentindo.
— Isso, Mike. Vê se usa a cabeça — John Paul disse.
— Ora, minha cabeça está doendo — ela respondeu, zangada consigo mesma por estar com o raciocínio lento. — Claro que estava mentindo.
— Não necessariamente — Theo contrapôs.
— Mas você acabou de dizer... — Michelle começou, zangada.
— Poderia estar dizendo a verdade — Theo disse, sorrindo. — Pode até ser que o pacote tenha sido trocado. Quando encontrarmos, vamos ver. Até lá...
— Já entendi — ela disse, cansada.
— Lembra que me disse que tinha a impressão de estar sendo seguida? Acho que tinha razão. Fosse quem fosse, faz muito bem o serviço. Nunca consegui ver o desgraçado, e estava de olho.
— Talvez estivessem observando a casa — Michelle sugeriu.
— O que acha disso? — John Paul perguntou a Theo.
— Não sei — Theo admitiu. — Quando encontrarmos o pacote, vamos saber contra quem estamos lutando.
— Você vai para casa comigo, Mike. Posso proteger você.
— Está querendo dizer que eu não sou capaz? — Theo reagiu, irritado.
— Quando atiro para matar, não erro.
Theo estava pronto para socá-lo outra vez, mas Michelle pôs fim às hostilidades.
— Com licença, cavalheiros — ela interveio com firmeza. — Eu mesma sei me proteger. John Paul, eu vou para o hospital com Theo.
— Mike...
— Vai ser como eu disse.
— Ela vai estar bem comigo.
Theo surpreendeu-se quando John Paul não discutiu. Esfregando a testa, Theo continuou:
— Noah está em Nova Orleans. Vou pedir que fique por lá e verifique algumas coisas antes de voltar a Bowen.
— Noah é... — Michelle tentou explicar.
— Já sei quem é. É o cara do FBI — John Paul resmungou, expressando claramente seu desagrado.
— Enquanto isso — Theo continuou, como se não tivesse sido interrompido. — Você cuida bem de seu pai.
Michelle deixou cair o pacote de ervilhas na mesa.
— Acha que vão atrás do papai?
— Só estou pensando em todas as possibilidades que me ocorram, até conseguir prever quais serão os próximos passos.
Theo terminou de beber sua cerveja, colocou a garrafa sobre a mesa e disse que era melhor irem embora. Michelle voltou-se para John Paul e pediu:
— John Paul, você dá a partida na picape? Papai ficou sem usá-la por mais de uma semana e disse-me que havia alguma coisa errada com a partida, mas que não teve tempo de arrumar.
— Eu dou um jeito.
A exaustão estava tomando conta de Michelle. Ela levantou-se devagar e falou:
— Vamos indo, então.
Theo devolveu-lhe o saco de cenouras, levantou e ficou em pé devagar, testando o joelho, pondo o peso do corpo sobre ele. O gelo havia ajudado. Seu joelho não falseou, e quase nem estava mais latejando. Michelle ainda tinha o saco de ervilhas na testa quando dirigiu-se para a cozinha.
— Precisamos dar uma passada em sua casa, primeiro — Theo disse.
— Porque o Ben estará lá? Posso ligar para ele...
— Não — Theo foi firme — porque quero pegar meu celular e porque preciso de mais munição.
Ela sabia o que aconteceria, antes mesmo de John Paul abrir a boca.
— E para que precisa de mais munição?
— Porque gastei quase todas as balas.
— Pois, para mim, é puro desperdício!
Michelle ficou farta das provocações do irmão. Virando-se, disse:
— Não atire nele, Theo. Eu sei que você está morto de vontade, porque meu irmão é um purgante de vez em quando. Só que eu gosto dele e por isso não quero que atire.
Theo piscou para ela e John Paul ironizou:
— Acha que tenho medo desse mão torta, é?
— Pois deveria ter — Michelle retrucou.
— Por quê? — John Paul perguntou. — Ele vai errar, mesmo.


Capítulo 32


Enquanto Michelle conversava com Ben ao lado do carro, Theo entrou na casa dela. Deixou os sapatos junto à porta para não fazer marcas de lama, então correu para cima, tirou as roupas e tomou uma ducha quente rápida. Ficou aliviado por não encontrar nem um carrapato ou sanguessuga nas roupas ou na pele. Dez minutos mais tarde estava lá fora, levando seu celular e o de Michelle. Já havia recarregado seu revólver e colocou mais um pente de balas no bolso.
— Está pronta para ir? — perguntou a Michelle.
— John Paul já conseguiu ligar seu carro — ela disse, entrando. — As chaves já estão na ignição.
— Onde está seu irmão?
Ela fez um sinal com a cabeça, indicando a frente da casa. John Paul estava se dirigindo para a picape que havia deixado estacionada na rua.
Theo o alcançou e entregou-lhe o celular de Michelle, junto com o carregador.
— Não quero essa coisa aí — John Paul respondeu, com um ar de asco pelo telefone.
— Pode ser que a gente precise entrar em contato com você. Pegue.
— Eu não...
Theo não estava disposto a discutir.
— O que a Michelle e eu devemos fazer se precisarmos de você? Rezar ou fazer sinais de fumaça?
John Paul acabou cedendo. Agarrou o celular e o recarregador e foi para a picape. Michelle gritou atrás dele:
— Tome conta do papai, John Paul. Não deixe que nada ruim aconteça com ele. E tome cuidado com você, também. Lembre-se que não é invencível.
Theo entrou em seu carro e estava fechando a porta quando Ben gritou e aproximou-se, dizendo:
— Acho que acabo de encontrar uma coisa interessante.
— E o que é?
— O pessoal da delegacia acabou de ligar. Tem alguém de Nova Orleans que quer falar comigo. É detetive e diz que é urgente.
— Sabe o que quer? Não vejo como alguém de Nova Orleans possa ter descoberto o que aconteceu por aqui esta noite. Simplesmente não houve tempo.
— Estou indo para lá para descobrir o que é, mas acho que está ligado ao que houve por aqui — Ben disse, apontando para a casa de Michelle. — Pode ser que saibam de alguma coisa que possa nos ajudar.
— Ligue para mim no hospital assim que souber de alguma coisa — Theo orientou.
Não demorou para chegarem ao hospital. Michelle foi na frente, pelo corredor dos fundos, indo diretamente para o pronto-socorro. Ela ainda não havia se olhado no espelho, e só quando percebeu que todos olhavam para ela é que se deu conta de que deveria ter perdido alguns minutos para tomar um banho. Deveria estar com um cheiro horrível, também. Megan, a recém-formada enfermeira que estava de plantão no pronto-socorro, mediu-a de alto a baixo e disse:
— Parece que a senhora caiu em um caminhão de lixo. Qual foi a aventura em que se meteu?
— Caí em um caminhão de lixo.
Uma outra enfermeira, Francês, que estava sentada na sala das enfermeiras, levantou os olhos. Também era jovem, mas havia recebido o apelido de "Vovó" porque se comportava como alguém de noventa anos. Michelle disse-lhe que precisava de uma bandeja com material para dar pontos. Frances levantou-se e correu para o armário. Seus sapatos com sola de borracha chiavam a cada passo.
— Fique aqui, Theo — Michelle pediu. — Vou até a ala dos médicos para tomar um banho.
— Vou com você. É bem silencioso por lá, não é?
— É, sim.
— Ótimo. Preciso ligar para o Noah.
Megan estava de olhos arregalados e de queixo caído quando passaram por ela. Michelle percebeu que toda sua atenção estava concentrada em Theo.
Michelle levou-o até a sala ampla. Havia armários que ocupavam toda uma parede, um sofá, uma mesa de centro e, do outro lado, um par de cadeiras reclináveis e uma escrivaninha. Junto à porta, havia um aparador com café e copos descartáveis. No canto havia uma geladeira.
Um corredor estreito levava a duas portas. Enquanto Michelle pegava roupas limpas em seu armário, Theo abriu as duas portas para ver o que tinha dentro. Eram dois banheiros completos, com ducha.
— Ótimo arranjo — ele comentou, quando ela passou a caminho do banheiro.
Theo pegou um copo com água, sentou-se junto à escrivaninha e discou para o celular de Noah. Logo depois, ouviu a voz gravada de Noah, pedindo que deixasse recado. Theo tinha uma boa pista do paradeiro de Noah, mas teria de esperar até Michelle sair do banho para pegar o número do telefone.
Em seguida, ligou para a central telefônica do hospital e pediu à telefonista que ligasse para Elena Miller. Ouviu o ruído de folhas de papel serem viradas do outro lado e depois a telefonista informou que Elena ainda não havia chegado para trabalhar. Apesar de recusar-se a fornecer a Theo o número da casa da secretária, acabou concordando em fazer a ligação para Theo. Elena atendeu ao segundo toque. Depois de identificar-se, Theo lhe pediu para descrever o mensageiro que havia ido ao hospital para buscar o pacote na quarta-feira e também para contar o que ele havia dito.
Elena mal podia esperar para contar a Theo como o tal homem havia sido grosseiro.
— Teve o desplante de gritar comigo!
Theo fez anotações em um bloco que encontrou na escrivaninha e fez várias perguntas. Quando terminou, desligou, procurou o número do Serviço de Entregas Rápidas Speedy em Nova Orleans nas páginas amarelas da lista que achou na gaveta e ligou para lá. Depois de passar por três pessoas, conseguiu falar com o supervisor. O homem não se mostrou muito disposto a cooperar até Theo ameaçar mandar a polícia lá para conseguir a informação. O supervisor, então, mostrou-se bastante solícito. Explicou que todas as entregas ficavam registradas em computador. Depois de digitar o nome de Michelle Renard, revelou a Theo onde e quando o pacote havia sido entregue.
— Quero saber quem enviou — Theo disse.
— Foi a firma Benchley, Tarrance e Paulson — o supervisor informou. — O recibo foi assinado no Hospital St. Claire às cinco e quinze, de acordo com o registro. Quer que eu lhe envie uma cópia?
— Não será necessário — Theo respondeu.
Depois de tomar banho e lavar o cabelo, Michelle sentiu-se bem melhor. Achou que sua aparência estava horrível, mas sentia-se bem e, naquele momento, era tudo o que importava. Vestiu-se, penteou-se, fazendo uma careta quando o pente roçou o local machucado. Colocando o cabelo para trás das orelhas, decidiu que deixaria secar naturalmente. Estava amarrando o cordão da calça quando se aproximou de Theo.
— Falou com Noah? — perguntou.
— Ainda não — ele respondeu. — Falei com o supervisor da Speedy. Sabe de uma coisa?
— Não existe nem Frank nem Eddie, certo? Como me sinto idiota!
— Realmente, não há nem um Frank ou Eddie, mas por que sentir-se idiota? Não havia motivos para você suspeitar.
— Theo, estou lhe dizendo que já havia visto aquele homem antes. Achei que era alguém que eu tinha visto no hospital, mas com certeza não foi esse o caso. Onde será que o vi?
— Você se lembrará — ele disse. — Procure não forçar. Quando estiver pensando em outra coisa, então se lembrará. Sabe o que mais o supervisor me contou?
Michelle atravessou a sala até o sofá, sentou-se e se abaixou para amarrar os sapatos.
— Pode contar.
— O pacote foi enviado por Benchley, Tarrance e Paulson.
— Para mim?
— Isso mesmo — Theo respondeu. — Liguei para a firma, mas ninguém quer revelar nada por telefone; por isso quero mandar Noah até lá. Ah, e também falei com Elena Miller. Precisa ver o discurso que ela fez.
— Eu sei. Elena adora fazer discurso sobre tudo. O que ela disse?
— Que o mensageiro foi muito mal educado.
— Isso a gente já sabia.
— Quando ela não conseguiu encontrar o pacote para ele, o homem passou a gritar com ela. Ela ficou tão furiosa, que ia ligar para a firma para reclamar dele, mas estava muito ocupada e acabou esquecendo.
Michelle se levantou e aproximou-se da escrivaninha. Percebendo como ele olhava para ela, perguntou:
— O que foi?
— Estou com pena de ver sua expressão de cansaço.
— Estou bem.
— Estou preocupado com você. Parece que vai desabar a qualquer momento.
— Já disse que estou bem — ela insistiu.
Mas ela não parecia bem. Seu rosto estava pálido e ela estava tensa. Precisava de alguns instantes para descansar, ele pensou. A energia que ela demonstrava, causada pelo nervoso, logo se acabaria e ela desmontaria.
— Venha aqui.
— Theo, precisamos nos mexer. Preciso costurar seu braço e encontrar o maldito pacote.
— Os pontos e o pacote podem esperar mais um pouco. Respire fundo e procure relaxar. Quer alguma coisa para beber? Um refrigerante diet ou coisa assim?
— Não, obrigada.
— Venha aqui.
— Já estou aqui.
— Chegue mais perto.
Ela deu um passo em direção à escrivaninha.
— Theo...
— Mais perto.
Ele era irresistível. Ela sabia que não deveria permitir que ele a distraísse. Ambos tinham muito a fazer. Cruzando os braços sobre o peito, ela franziu a testa para ele.
— Olhe, não é hora para bobagens. Ele puxou-a para seu colo.
— Por que acha que eu quero fazer bobagem?
Ele lhe acariciava a nuca e puxava-a para si devagar.
— Não sei... Estou com o estranho pressentimento de que você quer me beijar — ela disse, colocando as mãos nos ombros dele.
— Jamais pensei numa coisa dessas. Não podemos fazer bobagens, gracinha. Temos muito a fazer.
Ele agora mordiscava-lhe o pescoço. Ela fechou os olhos e inclinou a cabeça para o lado, para ele poder beijar-lhe a orelha.
— Devo ter interpretado mal os sinais — ela brincou.
— Sem dúvida — ele respondeu.
Em seguida seus lábios encontraram-se para um beijo longo e quente. A língua de Theo invadiu a boca de Michelle e essa penetração a fez perder o juízo. Ele provocava e a seduzia, até ela estar tremendo, agarrando os ombros dele como se estivesse pedindo mais.
A intenção de Theo era dar-lhe um beijo rápido, mas assim que seus lábios se tocaram, ele simplesmente não conseguiu se conter. Sabia que tinha de parar antes que ambos perdessem o controle, mas continuou a beijá-la, até ela afastar-se.
— Não podemos fazer isso — ela disse, ofegante e parecendo entorpecida. — Temos de parar — ela continuou, encostando sua testa na dele. — Não é hora.
— Está bem — ele concordou, tentando fazer sua respiração voltar ao normal.
Ela beijou-lhe a testa, depois a ponta do nariz.
— Isso aqui é um hospital, pelo amor de Deus.
Ela beijou-lhe a boca. E quando ele estava se deixando levar, ela afastou-se e murmurou:
— Trabalho aqui. Não posso ficar beijando alguém o tempo todo. Porém não resistiu e voltou a beijá-lo. Ele sentiu que perderia o
controle. De repente, Theo afastou-se e tirou-a do colo.
Ela precisou apoiar-se na escrivaninha para que as pernas parassem de tremer. Como ele beijava bem e como ela adorava o sabor de sua boca! Desconsolada, percebeu que adorava tudo nele. Sua atitude de calma e controle sobre tudo, a confiança que emanava dele. Parecia muito seguro de si. Quando estava com medo, não escondia, como o irmão dela costumava fazer. Theo tinha tanta confiança em si próprio que não se importava com que os outros pensavam. Michelle admirava isso mais do que tudo.
Ela respirou fundo e dirigiu-se para o pronto-socorro. Empurrou a porta de mola com a mão espalmada e foi para o corredor. Theo estava logo atrás.
— Você tem um andar muito sensual — ele elogiou.
— Não leu o aviso?
— Que aviso?
— Proibido namorar no hospital.
— Está bem — ele concordou. — Vamos começar procurando pelo pacote no pronto-socorro, primeiro — disse, voltando a assumir seu ar de objetividade. — Percebi, quando entramos, que está tudo calmo por lá e por isso é a hora perfeita. Vou pedir que as funcionárias nos ajudem.
— Primeiro, vou costurar e juntar as parte de seu braço.
— Não, Michelle, eu quero... Ela virou-se e disse com firmeza:
— Theo, aqui quem manda sou eu. Melhor você ir se acostumando com isso.
O banho a havia revitalizado, mas ela sabia que a energia que estava sentindo não duraria muito e que a falta de sono acabaria por atrapalhar. Por isso, queria deixar a tarefa mais importante cumprida. Cuidaria de Theo em primeiro lugar, quer ele gostasse ou não.
Ela também estava sentindo-se relaxada e confiante outra vez. Estava no espaço seguro do hospital e sabia que ela e Theo podiam baixar a guarda ali. Ninguém viria atirar neles. Ela achou até que seria uma boa idéia dormirem no hospital e já ia sugerir isso quando Theo chamou-lhe a atenção.
— Vá devagar — ele pediu. — Com quem eu falo aqui para dizer que os funcionários fiquem de olho vivo?
— Todo mundo aqui tem o que fazer.
— Isso é uma prioridade, Michelle.
— Pode falar com o administrador. Ele normalmente chega às oito e já é quase isso, agora. Só duvido que ele coopere com você. Odeia tudo que possa alterar a rotina.
— Azar — Theo comentou. — Terá de cooperar. Michelle, você está quase correndo. Vá devagar, por favor — ele voltou a pedir.
— Você está enrolando, Theo. Está com medo de um par de pontos? — ela sorriu diante da possibilidade. — Acha que vou machucar você?
— Claro que não, mas não gosto de agulhas.
— Nem eu — ela respondeu. — Desmaio toda vez que vejo uma.
— Isso não tem graça, Michelle.
Ela achou que tinha muita graça e riu. Frances, a enfermeira que vivia com a testa franzida, estava diante de uma das áreas de exame. Afastou a cortina e anunciou:
— Está tudo pronto, Doutora.
Michelle bateu de leve na mesa, enquanto a enfermeira levantava uma parte para que Theo pudesse recostar-se. Ele sentou-se, com a atenção voltada para Michelle, que calçava um par de luvas cirúrgicas. A enfermeira o distraiu ao aproximar-se dele com a tesoura na mão e segurando a camiseta com a outra. Ele levantou a outra mão depressa e puxou a manga para cima do ombro. Enquanto ela limpava a pele em volta do ferimento com um desinfetante de cheiro forte, ele pegou o telefone celular e começou a discar.
— Não é permitido o uso de celulares neste recinto — Frances disse e tentou tirar o telefone de sua mão.
Ele teve vontade de dizer "Sai para lá, mocinha", mas não o fez. Desligou o telefone e o colocou na mesa ao lado.
— Arranje um telefone que eu possa usar, então.
Ele deve ter parecido hostil. Apesar de não parecer possível, Frances franziu ainda mais a testa e disse:
— Ele é bem irritado, não é, Doutora?
Michelle estava trabalhando a um canto, com as costas voltadas para Theo, mas ele sabia que estava sorrindo. Ficou transparente em sua voz, quando ela falou:
— Está precisando dormir.
— Preciso é de um telefone.
— Frances acabou de fazer a assepsia e retirou-se. Theo achou que ela havia ido buscar um telefone. Michelle então se aproximou dele com a mão atrás das costas. Ele não gostou do fato de ela o estar tratando como uma criança, escondendo a seringa para ele não ver a agulha. Exasperado, pediu:
— Vamos logo com isso. Temos uma porção de coisas a fazer. Ele não se moveu enquanto ela injetava a lidocaína.
— Esta região estará anestesiada em um minuto — ela explicou. — Quer se deitar?
— Isso deixaria seu trabalho mais fácil ou mais rápido?
— Não.
— Então fico assim mesmo. Pode começar de uma vez. Frances havia voltado com uma prancheta e papel. Obviamente havia ouvido Theo dizer a Michelle para começar.
— Meu jovem, não deve apressar a doutora. É assim que os erros acontecem.
Meu jovem? Com certeza ele era mais velho do que ela.
— Onde está o telefone?
— Relaxe, Theo — Michelle recomendou, fazendo sinal para Frances colocar a bandeja mais perto dela. — Não vou me apressar — ela continuou, com um sorriso, sussurrando. — Alguém me disse que se a gente quer uma coisa bem feita...
— O que acontece?
— Deve-se fazer devagar e bem relaxado. É o único jeito. Apesar de sua irritação, ele viu-se obrigado a sorrir. Teve vontade de beijá-la, mas sabia que a enfermeira com cara de Arquivo X provavelmente o colocaria a nocaute se tentasse.
— Frances, você é casada?
— Sou, sim senhor. Por que quer saber?
— Porque eu estava pensando que Michelle poderia lhe apresentar seu irmão, John Paul. Vocês dois têm muito em comum.
— Doutora, este paciente não tem ficha neste hospital — a enfermeira disse secamente.
— Onde está meu telefone? — Theo perguntou.
— Ele vai preencher a ficha quando eu terminar — Michelle respondeu.
— Esse não é o procedimento normal, Doutora.
— Vou contar até cinco. Se eu não tiver um telefone em minha mão quando acabar de contar, me levantarei desta mesa — Theo avisou.
— Frances, por favor arranje um telefone para o Theo.
— Tem um na parede, Doutora.
— Mas ele não consegue alcançar, não é? — Michelle soou irritada.
— Certo, Doutora.
Frances delegou a tarefa a Megan, que estava na sala da enfermagem, mas com o rosto para fora, flertando com um paramédico.
O telefone era um aparelho antigo de mesa. Megan desligou o telefone da parede, inseriu o contato do outro e entregou o telefone a Theo, anunciando:
— Precisa discar 9 para ligações externas.
Michelle havia acabado de limpar o ferimento e estava pronta para começar a dar os pontos.
— Pare de se mexer — disse a ele. — Quer falar com Noah outra vez?
— Primeiro quero falar com o administrador e pedir ajuda. Se for preciso virar o hospital de cabeça para baixo, é isso que vamos fazer. Quero encontrar o tal pacote.
— Eu é que tenho de procurar... Talvez você e mais uma pessoa possam ajudar. Se todo mundo sair procurando, não saberei onde já procuraram ou deixaram de procurar. Deixe eu dar uma boa olhada aqui pelo pronto-socorro e na ala cirúrgica antes de você pedir reforços.
— Por que só nessas duas áreas?
Porque toda a correspondência que não pego lá embaixo é enviada para o setor cirúrgico. Todos os cirurgiões têm sua sala lá em cima, e é lá que deixam nossa correspondência.
— É isso mesmo — Megan confirmou. — Já levei muita coisa lá para cima. Subo umas duas vezes por dia. Procuro ajudar. Tem um técnico lá em cima que é uma gracinha. Estou tentando fazer com que olhe para mim. Pode deixar que eu ajudo a senhora, Dra. Mike. Por enquanto, o pronto-socorro está tranqüilo, e Frances pode me chamar se precisar de mim.
— Obrigada, Megan.
— De nada. O que vou ajudar a fazer?
— Precisamos encontrar um pacote entregue pelo Serviço de Entregas Rápidas Speedy.
— Ih, a gente recebe milhares de pacotes!
— Michelle, meu bem, você já terminou? — Theo perguntou.
— Uau! Ele chamou a senhora de "meu bem" — Megan disse, encantada.
— Megan, está bloqueando a luz.
— Desculpe, Doutora. E então, o que está acontecendo? — Megan perguntou, ao dar um passo atrás, olhando de Michelle para Theo.
— Por que não começa a procurar nas escrivaninhas e armários aqui de baixo enquanto Michelle termina a sutura? — Theo disse com autoridade.
— Sim, senhor.
— Olhe tudo muito bem — Michelle pediu, sem levantar os olhos. No instante em que Megan desapareceu atrás da cortina, Michelle sussurrou:
— Não deveria ter me chamado de "meu bem".
— Isso depõe contra sua autoridade?
— Não. É só que...
— O quê?
— Megan é um amor, mas tem a língua solta e nem quero imaginar o tamanho da fofoca amanhã. Já vão estar dizendo que estou grávida.
Ele inclinou a cabeça e comentou:
— Essa parte de estar grávida... Ficaria bem bonitinha.
— Ah, pare com isso — ela disse, girando os olhos.
— Uma mulher que enfrenta bravamente uma cobra subindo-lhe pela perna, bem pode agüentar um pouco de fofoca — ele sorriu. — Você é mais durona do que parece.
Ela concentrou-se em sua tarefa.
— Mais um ponto e termino. Quando tomou sua última vacina antitetânica?
Ele nem piscou para dizer:
— Ontem.
— Ah, então também não gosta de injeções, não é? Mas vou lhe dar uma.
Ele acariciou-lhe o rosto.
— Você fica alterada quando eu a provoco e com vergonha quando recebe elogios. Não sabe o que fazer com isso, não é?
— Acabei — ela anunciou. — Já está costurado outra vez. Não vai sair mais recheio. Não levante ainda — ela acrescentou depressa, quando ele se mexeu. — Eu já acabei, mas você não.
— O que quer dizer com isso?
— Ainda faltam o curativo e a vacina.
— Quantos pontos?
— Seis.
A cortina abriu-se quando Michelle estava tirando as luvas. Megan interrompeu:
— Dra. Mike, tem uma pessoa da polícia de Nova Orleans aí, esperando para falar com seu namorado.
— É um paciente! — ela reagiu, contrariada.
Só então percebeu que não deveria ter dito nada. Parecia estar se defendendo, o que só ajudaria a por lenha na imaginação fértil de Megan.
— Esta é a Detetive Harris — Megan informou, afastando a cortina. Era uma mulher alta, muito atraente, com um rosto oval e olhos
penetrantes. Quando aproximou-se, Michelle percebeu as pequenas linhas junto à boca e aos olhos. Vestida com calça preta, sapatos baixos e uma blusa azul clara, ela aproximou-se de Theo. Quando estendeu o braço para apertar a mão de Theo, Michelle reparou no distintivo e no revólver que trazia presos à cintura.
Harris não perdeu tempo com preliminares.
— Quero saber exatamente o que aconteceu na noite passada. O Comandante Nelson informou-me o que investigou, mas quero ouvir a sua versão.
— Onde está o Ben? — Michelle quis saber.
— Voltou para sua casa para terminar de investigar a cena do crime — a detetive respondeu, medindo Michelle de alto a baixo, antes de continuar. — Sou eu quem vai levar todo o material que ele quiser mandar para o laboratório em Nova Orleans.
Theo observava Harris enquanto esta falava com Michelle. A detetive era como um milhão de policiais que ele havia conhecido. Tinha um ar de cansaço e parecia passar exausta a maior parte do tempo. Suas palavras e gestos eram secos e duros.
— Há quanto tempo está na polícia? — ele perguntou.
— Quatro anos só na seção de Homicídios. Antes, passei três na de Drogas.
Drogas. Isso explicava muita coisa.
— Então, o que a traz a Bowen?
— Se não se importa, eu faço as perguntas.
— Pois não — ele respondeu afavelmente. — Assim que responder as minhas.
Sua boca curvou-se no que Theo interpretou como uma tentativa de sorriso.
— Se Nelson já não tivesse me contado, eu já teria adivinhado que o senhor é advogado.
Theo não respondeu ao comentário. Simplesmente ficou esperando suas respostas. Ela tentou encará-lo para que ficasse intimidado, mas não conseguiu. Com um suspiro, falou:
— Recebi uma informação... boa, confiável, de alguém da área, que um matador que estou procurando há três longos anos está circulando por aqui. O informante disse-me que o procurado veio fazer um serviço aqui em Bowen e jurei que desta vez eu o pego.
— E quem é ele?
— Um fantasma. Pelo menos é assim que alguns colegas lá da Homicídios chamam-no, porque o homem desaparece toda vez que chego bem perto. De acordo com meu informante, ele chama-se Monk, no momento. Eu já o liguei com dois casos de homicídio em Nova Orleans nos últimos seis meses. Temos certeza que matou uma adolescente em Metairie e achamos que o pai da garota pagou pelo assassinato para poder ficar com o dinheiro do seguro, mas ainda não pudemos provar.
— Como sabe que foi Monk? — Theo perguntou.
— Deixou sua assinatura. Sempre deixa — ela explicou. — Meu informante conhece Monk de perto. Sabe bem como age. Ele contou-me que Monk sempre deixa uma rosa vermelha como prova de que foi ele quem executou o serviço. Sempre faz com que os assassinatos pareçam acidente ou suicídio e, em todos os casos que investiguei, alguém sai lucrando com a morte.
— Um pai mandou matar a própria filha para ficar com o dinheiro?
Michelle esfregou os braços, como se estivesse com frio. Era abominável saber que um pai podia fazer uma coisa monstruosa dessas. Sentiu seu estômago revirar. Coitada da filha!
— A rosa já não estava na cena do crime quando chegamos no quarto da garota — Harris continuou. — Mas encontramos uma pétala ainda fresca debaixo do camiseiro. Em um outro caso, a equipe encontrou um espinho preso na roupa de cama. Monk faz a maior parte de seus trabalhos à noite, quando suas vítimas estão dormindo.
— Quem era a vítima no segundo caso que investigou? — Theo perguntou.
— Um homem de idade. Um avô, cujo único parente era um neto com problemas com drogas.
— Pelo que nos contou, seu homem não costuma agir com outros — Theo comentou. — Parece um matador solitário.
— Até agora, tem agido sozinho, mas algo me diz que foi ele quem esteve na casa da doutora ontem à noite.
— Se ele está envolvido — Michelle comentou — então deve estar atrás do pacote. Talvez contenha alguma coisa que possa incriminar seu matador, ou a pessoa que o contratou.
— Que pacote? — Harris perguntou secamente.
Parecia pronta para saltar sobre Michelle por não revelar a informação. Michelle explicou e, quando acabou, a detetive não conseguia esconder sua agitação.
— Está me dizendo que pode identificar um deles? Viu seu rosto e tem certeza que foi o homem que a procurou no estádio?
— Sim.
— Ora essa! Não seria muita sorte se fosse o tal de Monk? Ninguém ainda o viu, mas com sua descrição...
— Gostaria de falar com seu informante — Theo disse. Ela balançou a cabeça negativamente.
— Acha que tenho o número de telefone dele? As coisas não funcionam bem assim. Ele liga para mim quando acha conveniente e sempre usa um telefone público. Rastreamos as chamadas, mas nossa viatura sempre chega atrasada. Nosso informante é tão desconhecido quanto nosso fantasma.
— Certo — Theo disse. — E seu dossiê sobre Monk?
— O que tem ele?
— Quero ver.
Ela ignorou o pedido dele.
— Precisamos encontrar o pacote — ela disse a Michelle. — Tem alguma idéia do que pode haver dentro?
— Ainda não.
— Desta vez eu pego Monk. Juro sobre o túmulo da minha mãe. Está tão perto que posso até sentir o cheiro.
— Quero ver o dossiê — Theo insistiu.
Dessa vez deixou claro que não estava pedindo. Estava exigindo. A detetive dirigiu-lhe um olhar gelado e não respondeu. Michelle procurou amenizar o antagonismo.
— Vamos ajudar em tudo o que for possível, Detetive. Harris ainda olhava para Theo quando respondeu:
— Muito ajuda quem não atrapalha. Sou eu quem comando esta operação, está entendido?
Como Theo não respondeu, ela pigarreou, nervosa, e voltou a falar:
— Vou patrulhar a área e começar a apertar o cerco. O senhor pode levar a doutora para casa e ficar por lá. Se ouvirem ou virem qualquer coisa suspeita, é só ligarem para mim.
Sacando dois cartões, entregou um a Theo e outro para Michelle.
— Podem ligar para o meu celular a qualquer hora.
Não era preciso ser advogado para saber que Harris não cooperaria. Estava escondendo o jogo e Theo não se sentia na obrigação de compartilhar com ela o que já sabia.
— Vou querer examinar a informação que tem no dossiê, Detetive. Também vou querer ver o que há no tal pacote — Theo declarou, deixando claro que não aceitaria um não como resposta.
— O senhor poderá ver o que contém o pacote — ela respondeu. — Se for alguma coisa não ligada a Monk, deixarei o senhor investigar o quanto quiser.
— E se houver informação relativa a Monk? — Michelle perguntou.
— Então é por minha conta. Esta investigação é minha, e não vou deixar federal nenhum botar a mão. Há três anos venho seguindo a sombra de Monk; já investi muito trabalho para deixar o pessoal do FBI interferir e levar a fama. Não, isso não vai acontecer.
Seu desprezo era mais do que evidente. A profunda rivalidade que havia entre os órgãos federais e as polícias locais era histórica e altamente inconveniente, na opinião de Theo. Ele não estava com vontade de ser diplomático nem de fazer jogo.
— Tem medo que o FBI assuma seu caso? — Michelle perguntou.
— Claro que sim. Foram três anos de trabalho — repetiu. — Vou pegar Monk e, quando pegar, não vou entregar de bandeja para vocês — disse, olhando para Theo.
— Sou apenas um advogado a serviço do Ministério da Justiça. Não me importa o que vá fazer com ele, a não ser que seja um dos atiradores que tentaram matar Michelle e a mim esta noite. Se for o caso, então a senhora e eu teremos de entrar em acordo.
Ela sacudiu a cabeça e respondeu:
— O chefe de polícia informou-me de que o senhor está em férias... que veio aqui para pescar. Então vá pescar e deixe que eu faça o meu trabalho.
— Olhe, compreendo que queira ficar com os louros, mas...
— Mas o quê? — ela interrompeu.
— Estou nisso, quer a senhora goste quer não. Está pensando que vou ficar esperando sentado? Talvez eu não tenha sido bem claro. Tentaram nos matar.
— Pois não vou deixar que atrapalhem essa investigação! — a detetive disse, irada.
Theo não queria se envolver em bate-boca. Forçando-se a falar em tom baixo, perguntou:
— Quantas vezes preciso repetir para que a senhora entenda que não conseguirá me impedir?
— Mas nem morta...
— Mas eu posso fazer o que quiser nessa investigação — Theo interrompeu — e nós dois sabemos disso. Um telefonema. É o que me basta.
Ele não estava blefando. Já que se tratava de queda de braço, ele tinha a força a seu lado. Ela não. Ponto final. Harris resolveu adotar uma postura mais cautelosa.
— Está bem, vamos compartilhar a informação. Logo vou lhe enviar o material que tenho sobre Monk; assim que voltar ao Departamento. E deixarei que veja o que há no pacote.
— Isso se conseguirmos encontrar — Michelle interpôs.
— Mas tem uma coisa que eu quero — Harris disse.
— O que é?
— Quero 48 horas antes que o senhor comece a interferir ou que chame suas tropas. Garanto que vou colocar Monk atrás das grades antes disso. Se ele estiver trabalhando com os homens que perseguiram o senhor e a doutora, pegarei os canalhas também.
— A senhora está muito confiante. O que a senhora está escondendo de mim, Detetive Harris? Sabe onde Monk está agora?
— Quarenta e oito horas — Harris insistiu. Ele não perdeu tempo pensando no assunto.
— Não.
— Vinte e quatro horas, então — ela propôs — É bastante razoável.
Seu pescoço estava vermelho de raiva, mas Theo não estava ligando para o fato de estar ou não tornando a vida dela um inferno.
— Não.
— O que está querendo, afinal? Dê-me alguma coisa. Meus homens estão fechando o cerco agora e já trabalhamos tempo demais nisso para lhe dar de mão beijada. Vamos pegar Monk. Depois de três longos anos...
— Sim, eu sei. Três anos — Theo disse. — Certo. Eu lhe dou doze horas, mas nem um minuto mais. Se não tiver feito nem uma prisão até lá, tomo as rédeas.
Ela consultou o relógio.
— São quase nove horas agora. Doze horas. Bem... terei de engolir essa. Leve a médica para a casa dela e fiquem lá até às nove desta noite — disse e voltou-se para Michelle. — Vamos indo. Onde começamos a procurar pelo tal pacote?
Michelle viu que Frances fazia-lhe um sinal, segurando o telefone.
— Ou está em algum lugar aqui embaixo ou lá em cima, na ala cirúrgica. Megan, por que não sobe com a Detetive Harris para começar a procurar na ala cirúrgica? Subo num instante para ajudar. Frances, você pode fazer o curativo do Sr. Buchanan e dar-lhe a vacina antitetânica.
Michelle pegou o telefone e afastou-se para não atrapalhar a saída de Megan.
— Por aqui, Detetive — Megan disse, conduzindo-a para o elevador.
Michelle não demorou no telefone. Aproximou-se de Theo e disse:
— O Dr. Landuski descobriu que eu estava no hospital e pediu que eu atendesse um paciente para ele. A anestesia já passou? Posso dar-lhe algum medicamento se estiver doendo.
— Não, está tudo bem.
— Não esqueça das fichas, Doutora — Frances disse, antes de deixá-los a sós.
Theo estava observando o elevador. Assim que as portas fecharam-se, ele pegou o telefone e pediu para Michelle discar o número de Mary Ann. Digitando o número, ela perguntou:
— Por que quer falar com Mary Ann?
— Não quero.
A amiga de Michelle atendeu ao terceiro toque. Parecia sonolenta. Theo não perdeu tempo com conversa mole.
— Preciso falar com Noah. O queixo de Michelle caiu.
— Ele voltou a Nova Orleans com Mary Ann?
Recebeu a resposta um segundo mais tarde, quando Theo disse:
— Saia da cama e vá para outro lugar para podermos conversar. Noah bocejou ruidosamente no telefone.
— Espero que tenha um argumento muito bom.
— E tenho, Noah.
— Está bem. Só um minuto.
Michelle ouviu seu nome ser chamado e voltou até o balcão para atender o telefone. Uma enfermeira queria que ela examinasse um paciente antes de dar-lhe a medicação. Michelle desligou quando Theo estava terminando a ligação. Ouviu-o dizer:
— Depois de verificar isso, venha para cá. Obrigado, Noah. Assim que ele desligou, ela perguntou:
— O que estava fazendo? Ouvi você prometer à detetive que esperaria doze horas e não faria nada antes disso.
— Pois é.
— Você disse doze horas!
— Disse mesmo — ele concordou. — Então você já sabe o que isso quer dizer.
— O quê?
— Eu menti.


Capítulo 33


Estavam procurando na saleta errada. Michelle passou por sua mesa e encontrou a Detetive Harris e Megan procurando entre as coisas do Dr. Landuski.
— Já procuraram na minha sala? — Michelle perguntou a Megan.
— Achei que fosse aqui que trabalhasse — Megan disse. Estava sentada no chão, junto à escrivaninha, verificando uma porção de pastas.
— A minha é ao lado.
— Desculpe, Dra. Mike. Todo esse tempo, desde que comecei a trabalhar aqui, sempre achei que a senhora era uma bagunceira, porque pensava que esta era a sua sala. Toda a vez que eu vinha aqui, via a senhora escrevendo aí na escrivaninha.
— Usei a sala do Dr. Landuski porque as enfermeiras traziam as fichas dos pacientes dele para cá. Eu o substituí enquanto ele estava em férias.
— Mas venho trazendo tudo o que é da senhora para cá.
— Vamos continuar procurando, então — Harris interveio. — Pode ser que tenha sido colocado aqui por engano.
Uma vez que a Detetive Harris estava ocupando a escrivaninha, Michelle se pôs de joelhos e começou a verificar a pilha que havia junto à parede.
— Não sei como o Dr. Landuski consegue trabalhar deste jeito!
— Ele está sempre atrasado com os relatórios — Megan delatou.
— Querem fazer o favor de se concentrarem na tarefa? — Harris falou.
Parecia uma professora autoritária advertindo crianças mal-comportadas.
— Eu consigo procurar e falar ao mesmo tempo — Michelle afirmou.
— Pois continue procurando — Harris disse.
— Será que é esse aqui? — Megan disse alguns instantes mais tarde, mostrando um envelope pardo a Michelle.
— Não — Michelle respondeu. — Tem de ter a etiqueta do Serviço de Entregas Rápidas Speedy
— E este aqui? — Megan perguntou.
Mais uma vez ela passou o envelope a Michelle. Harris olhou por cima do ombro, e esperou que Michelle respondesse. Era um envelope pardo, tamanho ofício. Michelle leu o nome da firma de advogados no canto superior, logo acima da etiqueta e reteve o ar.
— Pode ser este — ela disse, entregando-o à detetive.
Harris parecia ter acabado de receber um explosivo. Habilmente verificou o peso com as mãos, depois lentamente virou o envelope. Não se apressou para tirar a fita que prendia a abertura. Havia outro envelope pardo dentro. Harris usou um abridor de cartas desta vez. Segurando o envelope por uma ponta, ela olhou em volta da escrivaninha. Acabou pegando um prendedor grande de papéis sobre a escrivaninha.
— Isto serve. Não quero tocar os papéis de dentro do envelope para não contaminar as impressões digitais.
— Posso arranjar luvas para a senhora — Megan ofereceu.
— Obrigada — Harris sorriu. — Isto aqui está bom. Michelle encostou-se contra a parede, com uma pilha de pastas no colo. Ficou observando a detetive usar o prendedor para prender o canto de uma folha de papel e puxá-la para fora até a metade.
Megan derrubou uma pilha de jornais e de fichas quando se pôs de joelhos. Michelle ajudou-a a reacomodar a pilha contra a parede.
— O que diz? — Michelle perguntou à detetive. Harris parecia desapontada.
— Parece algum tipo de relatório ou extrato. Não há nomes nesta página, apenas iniciais, junto ao que me parece ser uma transação. Há uma porção de números.
— E os outros papéis?
— Deve haver umas doze páginas, talvez mais, mas algumas estão grampeadas — ela disse e balançou a cabeça. — É muito arriscado ficar mexendo.
Estava recolocando a folha, com todo o cuidado, no envelope. Declarou, então:
— Preciso levar isto correndo para o laboratório. Quando eles acabarem de examinar cada página, posso pedir a ajuda de um especialista para me auxiliar a entender todos estes números.
Era frustrante não saber o que havia ali. Michelle recolocou as pastas no lugar e levantou-se, enquanto Harris dirigia-se ao elevador e já apertava o botão.
— Obrigada pela ajuda — disse. — Ligo para comunicar o que descobrir.
— A senhora prometeu a Theo que deixaria que visse o conteúdo do envelope — Michelle a fez lembrar.
A porta do elevador abriu-se. Harris entrou e apertou o botão. Quando as portas estavam se fechando, ela sorriu para Michelle e disse:
— Vou contar a ele os resultados daqui a doze horas. Nem um minuto antes.
Michelle ficou parada, com as mãos nos quadris, balançando a cabeça. Megan logo estava a seu lado.
— O que a senhora esperava encontrar naquele envelope? — perguntou.
— Respostas.
— Quando as coisas se acalmarem, a senhora me conta o que está acontecendo?
— Claro — Michelle concordou. — Caso eu algum dia descubra o que está acontecendo, será um prazer contar-lhe.
— Seu namorado é advogado. Com certeza saberá o que são esses números e a senhora sabe que ele não deixará aquela detetive passar sem dar uma olhada nos papéis. Vou correr pela escada até o pronto-socorro. Não quero perder o fogo pegar lá embaixo.
Como Michelle ainda tinha de examinar um paciente antes de estar liberada, disse, dirigindo-se à ala de recuperação de cirurgia:
— Diga a Theo que logo desço.
A Detetive Harris não quis correr o menor risco de encontrar-se com Theo Buchanan. Saiu do elevador no primeiro andar e desceu as escadas até o térreo. Seguindo os sinais, encontrou uma saída lateral e esgueirou-se para fora sem que ninguém a visse. Deu a volta no prédio e saiu correndo pelo estacionamento, com o envelope preso junto ao peito, quando ouviu o chiar dos pneus freando atrás de si. Harris voltou-se quando o Toyota cinza praticamente encostou nela.


Capítulo 34


A detetive não atendia seu celular, e Theo estava furioso.Tentou três vezes, mas a ligação caía na caixa postal. Suas mensagens foram bem claras. Queria o pacote e imediatamente. Também deixou recado para ela em seu departamento e já estava desligando o telefone quando Michelle saiu do elevador. Apesar de já ter ouvido a versão de Megan sobre o que havia ocorrido, fez Michelle contar-lhe todos os detalhes outra vez, enquanto a seguia para a sala dos médicos, onde ela foi apanhar sua roupa.
— Mas você não chegou a ver os papéis?
— Não — ela respondeu. — Ela não me deixou nem chegar perto. Disse que estava preocupada em não contaminar as impressões digitais.
— Duvido que estivesse — Theo reagiu. — Estava apenas querendo enrolar você. Está decidida a me deixar de fora de sua investigação.
— Durante doze horas, pelo menos.
Ela havia enfiado as roupas e os sapatos sujos em uma sacola plástica e estava ao lado da porta. Theo estava pegando o telefone.
— Acho que está na hora de endurecer — ele resmungou.
— Theo?
— Sim? — ele respondeu, finalmente olhando para ela.
— Estou morta de cansada. Preciso dormir um pouco e você também. Podemos ir para casa, por favor?
— Está bem.
— Dê as doze horas que ela pediu. Você prometeu — ela bocejou. — Sei que ela não quer cooperar e que deixa você louco da vida, mas acho que devemos relevar um pouco. Afinal, está trabalhando nisso há três anos.
— Nem que fossem vinte — ele retrucou — Não ficarei esperando de braços cruzados.
Ele estava realmente enfurecido. Quando chegaram ao carro, ele já estava falando em caçar o distintivo dela. Michelle deixou que ele extravasasse suas frustrações sem interromper. Quando acabou, ela perguntou:
— Está se sentindo melhor, agora?
— Estou.
Ele entregou seu celular a ela e disse:
— Ligue para seu pai e diga que estamos indo para lá.
— Podemos parar em minha casa, primeiro, para eu pegar pelo menos uma muda de roupa?
— Claro.
Enquanto ela digitava o número, ele deu a volta no quarteirão, chegando a Bowen. Agora que já conhecia o caminho, nada lhe parecia complicado, apesar de ele continuar acreditando que a cidade deveria ter placas de sinalização.
Ninguém atendia na casa de seu pai. Como ele não tinha secretária eletrônica, ela não podia deixar recado. Lembrando-se de que John Paul estava com seu telefone celular, ela ligou e esperou.
— Desembuche.
— Isso é jeito de atender um telefone? — Michelle repreendeu-o
— Ah, é você? — o irmão mudou de tom.— Você está bem?
— Sim. Theo e eu vamos para a casa do papai. Onde ele está?
— Bem aqui do meu lado. Estamos indo para sua casa. Papai ficou sabendo do que aconteceu ontem à noite e quer ver você para ter certeza que está bem.
— Diga a ele que estou em ordem.
— Eu já disse, mas ele quer ver com os próprios olhos.
Ele desligou o telefone abruptamente e ela não teve chance de falar com o pai. Ela desligou e entregou o telefone a Theo.
John Paul e Jake estacionaram um pouco antes deles. Depois de acalmar o pai, Michelle arrumou algumas roupas e artigos de higiene pessoal e desceu. John Paul sugeriu que deixassem o carro que Theo havia alugado estacionado diante da casa e voltassem com ele e Jake. Caso alguém fosse espionar, veriam o carro ali e deduziriam que Theo e Michelle estavam lá dentro. Theo não estava disposto a contrariar.
A picape precisava de amortecedores novos. Michelle sentou-se no colo de Theo, junto à janela, e tinha de encolher-se, cada vez que o irmão passava por um buraco, para não bater a cabeça no teto. Quando passaram por um cruzamento, Jake disse:
— Vocês devem estar esgotados depois de passar metade da noite com aqueles homens perigosos perseguindo e atirando em vocês.
A casa de Big Daddy Jake era estranha. Pela frente, parecia um bangalô. John Paul estacionou a picape nos fundos e Theo viu as janelas de um segundo piso, que dava para as águas. Também havia mais um cômodo, obviamente construído depois do bloco original, que estendia-se para o fundo. Como Michelle, seu pai também tinha uma grande varanda cercada de tela, com vista para as águas.
Havia três barcos, todos pequenos, amarrados à doca.
Jake não gostava de ar condicionado e, apesar de ter dois aparelhos instalados, nenhum estava ligado. O chão era de tábuas largas e gastas, de madeira escura. Havia tapetes de crochê espalhados aqui e ali. Lá dentro não estava quente, no entanto. O ventilador de teto fazia um ruído metálico e ajudava a fazer circular o ar que vinha do rio.
O sol entrava pelas janelas, projetando sua luz sobre os móveis antigos. Theo levava a bolsa de roupas de Michelle e seguiu-a por um comprido corredor. Pode ver a cama de casal de Jake pela porta aberta ao fundo. Michelle abriu uma porta à sua esquerda e entrou.
Havia duas camas de solteiro com uma mesa de cabeceira entre elas. A janela dava para a frente. Estava quente e abafado ali, mas por sorte havia um aparelho de ar condicionado junto à janela. Michelle ligou no máximo, descalçou os sapatos e sentou-se na cama com colcha estampada azul e branca. Jake não se importava em combinar padrões. A outra cama tinha uma colcha de listras vermelhas e amarelas. Ela descalçou as meias e deitou sobre o travesseiro. Em menos de um minuto, estava dormindo profundamente.
Theo fechou a porta com cuidado e voltou para a sala.
Uma hora mais tarde, a risada alta de Big Daddy Jake acordou Michelle. Ela levantou e estava se dirigindo para o banheiro quando Theo apareceu.
— Acordamos você? — ele perguntou.
Ela sacudiu a cabeça e aproximou-se dele. Ele colocou-a contra a parede e a beijou.
— É assim que se deve começar um novo dia. Beijando uma linda mulher — ele disse e voltou à sala.
Ela olhou-se no espelho e ficou assustada. Era hora de usar um pouco de maquiagem, decidiu, e começar a comportar-se como mulher. Ele havia dito que ela era linda? Ela concluiu que Theo deveria usar óculos o tempo todo.
Logo depois estava arrumada da melhor maneira possível. Desejou ter pegado uma saia, mas suas únicas alternativas eram calças jeans e shorts. Como estava quente, optou pelos shorts. Não havia escolha para a parte de cima, apenas uma blusa amarela, talvez um tanto justa.
Descalça, ela atravessou o corredor com a bolsa de maquiagem na mão e colocou-a sobre o camiseiro do quarto. Theo entrou para pegar os óculos. Estava falando ao telefone enquanto andava. Examinou-a rapidamente, mas seus olhos se demoraram sobre as pernas dela. Michelle ouviu ele pedir à pessoa do outro lado para repetir o que havia dito.
— Entendi. Sim, o pai dela recebeu uma correspondência registrada há cerca de meia hora. Não, Michelle ainda não sabe. Vou deixar que Jake lhe conte.
— Quem era? — ela perguntou.
— Ben. Ainda está esperando ficar pronto o relatório da cena do crime.
— O que você quer que papai me conte?
— É notícia boa — ele assegurou.
— Muita gente andou por aqui? Achei que ouvi a porta se abrir e fechar várias vezes e uma porção de vozes estranhas.
— Alguns amigos de seu pai trouxeram a comida que estava na sua casa. Estamos com quatro tortas na mesa da cozinha — ele contou, sorrindo.
— E sem cartões, certo?
— Mike, quero falar com você — Jake chamou.
— Já estou indo, papai.
Ela e Theo entraram juntos na sala. Ela viu o álbum de fotografias sobre a mesa e sussurrou:
— Opa! Papai está melancólico.
— Para mim, parece muito contente.
— Não, está triste. Só pega o álbum da família quando está triste. John Paul estava escarrapachado no sofá. As mãos estavam cruzadas sobre o peito e tinha os olhos fechados.
Jake estava sentado junto a uma grande mesa redonda de carvalho na cozinha, que abria-se para a sala.
— E agora, não está arrependido de não ter ido ao funeral? — perguntou ao filho.
— Não — John Paul respondeu sem abrir os olhos.
— Pois devia estar. Sua prima não era o purgante que você sempre achava que era.
— Eu nunca disse que ela era um purgante. Eu dizia... O pai interrompeu-o depressa:
— Eu lembro-me muito bem do que você dizia, mas não quero que repita na frente da visita. Além do mais, sei que deve estar se sentindo arrependido.
John Paul não teve resposta a dar, a menos que um grunhido pudesse ser interpretado como resposta.
— Sua prima tinha consideração pela família, afinal. Mike, venha sentar aqui. Tenho uma coisa importante para falar com você. Theo, sente-se, também. Quero que veja umas fotos.
Theo afastou uma cadeira para Michelle, depois sentou-se ao lado dela. Jake pegou a mão de Michelle e encarou-a.
— Segure-se, meu bem. Vai levar um choque.
— Quem morreu?
— Ninguém morreu. É sua prima Catherine Bodine.
— A morta — John Paul disse alto.
— Claro que está morta. Só tem essa prima do lado de sua mãe — Jake disse, balançando a cabeça.
— O que tem ela? — Michelle quis saber.
— Ela deixou dinheiro para nós. Um monte de dinheiro — Jake enfatizou, levantando as sobrancelhas.
Michelle não estava acreditando no que ouviu.
— Está dizendo que Catherine deixou dinheiro para nós? Não, ela não seria capaz disso.
— Pois acabei de dizer que deixou — o pai contrapôs. — Sei que é difícil de acreditar. Eu bem que avisei que seria um choque, mas é verdade. Ela deixou dinheiro para a gente.
— Por que deixaria alguma coisa? Ela nos odiava.
— Não quero que fale assim — ele repreendeu. — Sua prima era uma mulher maravilhosa.
— Isso é que é mudar de opinião, não é, pai? — John Paul resmungou.
Ainda como São Tomé, Michelle não conseguia acreditar. Balançou a cabeça e disse:
— Só pode ter acontecido algum engano.
— Não, meu bem. Não tem engano algum. Não está curiosa para saber quanto ela deixou para nós?
— Claro — ela respondeu.
Imaginava que tipo de brincadeira Catherine havia aprontado. Pelo que tinha ouvido seus irmãos falarem sobre a prima, ela gostava de ser cruel.
— Sua prima deixou, para cada um de nós, cem mil dólares. O queixo de Michelle caiu.
— Cem mil...
— Dólares — o pai completou. — Acabei de falar com Remy pelo telefone. Liguei para seu irmão para contar da generosidade de sua prima. A reação dele foi igualzinha à sua e à de John Paul. Criei três filhos que não acreditam em mim.
Michelle estava achando difícil processar aquela notícia surpreendente.
— Catherine Bodine... deu... cem... mil... John Paul riu e comentou:
— Parece uma retardada falando.
— Não fale assim, John Paul! — o pai repreendeu, depois falou com voz suave para Michelle. — Está vendo só, meu bem? Catherine não nos odiava. Ela só não sabia o que fazer com a gente. Ela era... diferente, e a gente fazia a coitada lembrar de tempos difíceis.
Michelle de repente percebeu que Theo não fazia a mínima idéia quem era a pessoa sobre a qual estavam falando e explicou:
— Minha prima deveria ter uns sete ou oito anos quando a mãe dela casou-se com um sujeito rico, de sobrenome Bodine. Mudaram-se para Nova Orleans e praticamente cortaram relações conosco. Nem cheguei a conhecer Catherine — Michelle confessou. — Nunca conversei com ela nem por telefone. Não acredito que possa ter nos deixado alguma coisa.
— A mãe de Catherine era irmã da minha mulher — Jake esclareceu. — O nome dela era June, mas a gente chama de Juninha. Ela não era casada quando aconteceu de aumentar a família. Naquele tempo, ter filho sem casar era um banzé, mas com o tempo o povo esquecia. Só que o pai dela nunca esqueceu nem perdoou. Botou-a para fora de casa, isso sim. Como a Ellie e eu tínhamos acabado de casar, Juninha veio morar com a gente. A menina nasceu e as duas foram ficando. Era meio apertado, mas a gente dava um jeito. Então Juninha conheceu esse cara rico, casou e foi embora. Ela morreu quando a Catherine tinha uns onze anos. Eu que não deixaria que a menina esquecesse que tinha família aqui em Bowen, nem que a gente se importava com ela. Eu fazia questão de ir visitar, ou telefonar todo mês. Ela nunca tinha muita coisa para dizer, mas eu sempre me gabei dos meus três, para ela lembrar que tinha primos. Catherine ficou de queixo caído quando descobriu que Mike estava estudando Medicina. Sentia orgulho de você, meu bem. Só que nunca disse.
— Pois é. E a Catherine nem convidou o senhor para o casamento dela — Michelle lembrou. — E aposto que isso o magoou, papai.
— Não, de jeito nenhum. Ainda mais que foi uma cerimônia rápida em um cartório. Foi o que ela me disse.
Michelle apoiou o cotovelo sobre a mesa e estava enrolando uma mecha de cabelo entre os dedos, distraída, enquanto pensava na sorte inesperada. O dinheiro vinha como uma bênção. Havia mais do que suficiente para consertar sua casa, a clínica, e contratar uma enfermeira. Seu pai sorria, olhando para ela.
— Já está enrolando o cabelo de novo? — Jake comentou e voltou-se para Theo. — Quando era pequenininha, ficava enrolando o cabelo assim e chupava o dedo até dormir. Nem me lembro quantas vezes eu ou Remy tivemos de ficar desembaraçando os nós que ela fazia.
Michelle soltou o cabelo e cruzou as mãos sobre a mesa.
— Estou me sentindo culpada porque não consigo pensar em nada de bom para dizer de Catherine — ela disse. — Mas já estou pensando em como vou gastar uma parte do dinheiro.
O pai empurrou o álbum de capa xadrez vermelho e preto na direção de Theo. Theo abriu e começou a olhar as fotos enquanto Jake explicava quem era quem. Michelle foi buscar refrigerantes na geladeira e colocou um na frente de Theo. Ele tinha um ar bastante professoral com os óculos. Colocando a mão sobre o ombro de Theo, ela perguntou:
— Está com fome?
— Com certeza — ele respondeu, virando outra página.
— Papai, acho que Theo não quer ficar vendo as fotos da família.
— Claro que quero.
Ela colocou um porta-copos sob a lata de Theo, depois dirigiu-se ao irmão.
— John Paul, prepare alguma coisa para o Theo comer.
— Até parece que eu vou — o irmão riu.
Ela foi até o sofá e sentou-se sobre o estômago dele. Ele sabia o que ela faria e encolheu-se.
— Estou dormindo — resmungou. — Vê se me deixa em paz. Ela ignorou a reclamação e arrepiou os cabelos dele enquanto
recostava-se nas almofadas.
— Consegue acreditar que a Catherine nos deixou tanto dinheiro?
— Não.
— É de virar a cabeça.
— Ahã.
— Abra os olhos — ela ordenou.
Ele suspirou alto e fez o que ela pediu.
— O que você quer?
— Você consegue pensar em alguma coisa boa para dizer sobre ela?
— Claro. Era egoísta, chata, obsessiva, compulsiva, gananciosa...
— Diga alguma coisa boa! — Michelle disse, dando-lhe um beliscão.
— Está morta. Isso é uma coisa boa.
— Que vergonha! Está com fome?
— Não.
— Está, sim. Está sempre com fome. Venha me ajudar.
Ele agarrou o braço dela quando ela tentou levantar-se e perguntou:
— Quando o Theo vai embora?
A pergunta, que viera do nada, pegou-a desprevenida.
— Na segunda-feira — ela murmurou. — Vai embora com o amigo, Noah, na segunda-feira de manhã.
Até ela percebeu a tristeza em sua voz. Ela não fez de conta que era nobre, nem que não estava ligando, pois não conseguia enganar o irmão. John Paul era quem melhor a conhecia em todo o mundo, e sempre conseguia ver através das defesas que ela tentava construir. Ela jamais havia conseguido mentir ou tramar algum jogo com ele.
— Fez uma bobagem das grandes — ele sussurrou.
— Eu sei.
— Não devia ter permitido que ele deixasse você tão sem defesa.
— Também sei.
— Então, por que não se cuidou, caramba? O cara não é daqui.
— Não percebi o que estava acontecendo. O que espera que eu diga? Simplesmente... me pegou.
— E dai?
— E daí o quê?
— Vai ficar chorando pelos cantos quando ele for embora?
— Não — ela murmurou e logo reafirmou com mais decisão. — Não.
— É o que vamos ver.
Theo não estava prestando atenção em Michelle ou em seu irmão. Acabava de virar mais uma página do álbum e estava olhando para uma foto esmaecida de uma bela jovem. Ela posava embaixo de uma árvore, com um buquê de margaridas na mão. Usava um vestido claro de organza que lhe ia até o tornozelo e com uma fita que descia da cintura. Seu cabelo curto e encaracolado emoldurava-lhe o rosto angelical. A foto era em preto e branco, mas Theo imaginou que seus cabelos eram ruivos e que tinha os olhos azuis. Se a roupa e o corte de cabelo fossem mais atuais, ele estaria vendo Michelle.
— Essa é a minha Ellie — Jake disse. — É bonita, não é?
— Sim, senhor, muito bonita.
— Olho para os meus três e vejo Ellie em cada um. Remy tem a risada dela, John Paul tem o gosto pela natureza e Michelle tem o coração de ouro dela.
Theo concordou com a cabeça. John Paul seguia Michelle até a cozinha, mas quando ouviu o pai falar sobre a mãe, parou para olhar por cima do ombro de Theo. Este virou a página e John Paul seguiu em frente. Havia uma foto de John Paul e Remy quando eram pequenos e uma menina em pé entre eles. Os meninos pareciam ter rolado na lama e estavam bem satisfeitos por isso. Estampavam sorrisos bastante traquinas. A menina não sorria, e seu vestido estava um tanto apertado e curto para ela.
— Essa é Catherine — Jake informou. — Ela sempre tinha de usar vestido, fosse para que fosse. Esse era um de seus favoritos porque tinha renda. Lembro-me que ela atazanava a mãe dela para costurar aqui ou ali. Comia como um cavalo, essa daí.
Theo continuou a virar as páginas. A mãe de Catherine deve ter continuado a mandar fotos depois que se mudou, pois havia pelo menos mais umas vinte, só de sua filha. Em cada foto a menina usava um vestido diferente e, com certeza, a qualidade havia melhorado. Em uma delas, a menina estava diante de uma árvore de Natal, segurando duas bonecas idênticas. Virando a página, viu Catherine com outro vestido, segurando dois ursos de pelúcia. Theo riu ao ver a foto.
— Catherine sempre queria ter dois de tudo — Jake explicou. — Tem gente que é pobre e daí, quando entra na grana, seja velho, seja novo, sempre quer mais. Entende o que eu digo?
— Sim — Theo respondeu. — Conta-se que as pessoas que viveram durante a Grande Depressão passaram a estocar de tudo, caso tivessem de enfrentar outra.
— Isso mesmo. Catherine era bem assim. A Grande Depressão foi apenas uma aula de história na escola dela, mas ela se comportava como se tivesse sofrido com a falta de tudo. Ela tinha medo de ficar sem alguma coisa; por isso, se gostava de uma boneca ou urso, fazia sua mamãe comprar outro igualzinho, para o caso de alguma coisa acontecer com o primeiro. Ela fazia o mesmo com as roupas. Quando a Juninha começou a ter dinheiro, comprava do bom e do melhor para a filha e atendia todos os seus desejos. Ellie achava que Juninha estragava a filha por um sentimento de culpa; por não ser casada quando a filha nasceu.
Jake riu e continuou:
— Achei que ela perderia essa mania quando crescesse, mas não perdeu. Pelo que fiquei sabendo, ficou ainda pior. Começou a fazer coisas até bem estranhas. Por exemplo, instalou até uma segunda linha telefônica. Quando perguntei para que, ela disse que era para o caso de a outra não funcionar. Disse que não queria saber de esperar pelo pessoal da manutenção.
Michelle interrompeu a conversa quando voltou à mesa.
— John Paul está esquentando o gumbo — avisou.
Theo virava as páginas do álbum de um lado para outro. Olhava as fotos de Catherine com um vestido que certamente já estava bem usado e pequeno para um corpo que crescia, depois voltou para a foto de Catherine vestida como princesa, segurando duas bonecas idênticas.
— A coitada começou a engordar depois que se casou — Jake observou.
— Como o senhor ficou sabendo disso? — Michelle perguntou. — Ela nem deixava o senhor ir lá para visitar.
— A governanta me contou — ele respondeu. — Rosa Vincetti e eu batíamos longos papos de vez em quando, quando ela atendia o telefone. É uma mulher muito simpática. Muito tímida, mas é uma doçura. Foi ela quem me deu uma receita para fazer macarrão em casa, só que ainda não experimentei. Também foi ela quem me contou que estava ficando preocupada com o peso de Catherine. Tinha medo que seu coração acabasse explodindo.
— Catherine era...
— Estranha! — John Paul gritou da cozinha.
— E você não é? — Michelle rebateu.
— Sou super normal, comparado com ela — o irmão defendeu-se.
— Papai, como o senhor descobriu que receberíamos esse dinheiro? — Michelle perguntou.
— Ainda não está acreditando em mim? — Jake perguntou.
— Não foi isso que eu disse.
— Mas que ainda está desconfiada, está — Jake arrastou a cadeira e se levantou. — Recebi uma carta registrada para provar. Recebi faz quase uma hora.
Jake foi até o balcão da cozinha, levantou a tampa do pote de biscoitos em forma de elefante onde ele guardava todos os seus documentos importantes e pegou o envelope.
Michelle estava sentada ao lado de Theo, examinando o álbum. Havia uma foto de sua mãe segurando um bebê no colo. Com a ponta do dedo, tocou o rosto da mãe.
— Este é Remy quando era bebê.
Duas páginas depois, olhavam para fotos de Michelle e Theo ria. Em todas as fotos ela tinha alguma coisa para cima ou para fora. Em uma era o cabelo, em outra era uma ponta da blusa, em outra era a língua.
— Eu era uma gracinha, não acha?
— Simplesmente adorável — ele riu.
Jake deixou o envelope cair diante de Michelle.
— Aqui está sua prova, Dra. Calcinha Esperta. Michelle sacudiu a cabeça e explicou:
— Meu pai inventa os piores apelidos para mim.
Theo ainda estava rindo quando olhou e viu o nome da firma de advogados no canto superior do envelope.
— É isso aí — murmurou. — É isso aí — repetiu e bateu na mesa.
— O que é?
— O elo que faltava. O nome da firma de advogados é o mesmo. Filhos da... — interrompeu-se e pegou a carta. — Posso, Jake?
— Pode, sim — Jake respondeu.
— Mas você não explicou... — Michelle começou. Theo pôs a mão sobre a dela.
— Mais um minuto, está bem? Onde estão meus óculos?
— Você está usando.
— Ah, é mesmo. Puxa, as peças estão começando a se encaixar. Jake e Michelle olhavam fixamente para ele enquanto lia a carta.
Quando terminou, afastou a cadeira e levantou-se.
— Preciso ir a Nova Orleans o quanto antes.
Michelle pegou a carta e rapidamente leu-a. De acordo com as instruções de Catherine para seu advogado, Phillip Benchley, este informava a cada um dos beneficiários a parte do espólio que lhe cabia. A família Renard receberia quatrocentos mil dólares, a serem divididos igualmente entre Jake e seus três filhos. Rosa Maria Vincetti receberia 150 mil dólares pelos anos todos de leais serviços prestados a Catherine. John Russel, marido de Catherine, receberia cem dólares e o restante do espólio seria doado ao santuário de pássaros Epston.
— O marido ficou com só cem dólares? — ela perguntou, embasbacada.
— Não parecia ser um casamento muito feliz — Jake comentou.
— Ficou mais do que claro — John Paul comentou, com uma colher na mão.
— Rosa com certeza não gostava dele — Jake acrescentou. — Achei muito bom que Catherine não tenha esquecido de deixar alguma coisa para ela. Afinal, Rosa cuidava bem dela.
— John deve ter assinado algum acordo pré-nupcial para que Catherine administrasse seu dinheiro sem a interferência dele — Michelle comentou.
— Ele ainda pode contestar — Theo explicou. — Com que trabalha o marido dela?
— É advogado — Jake informou — trabalha para um dos grandes bancos de Nova Orleans. Nunca cheguei a falar com o tal, o que é uma vergonha. Mike e eu não conseguimos nem chegar perto dele no funeral, não foi, docinho?
— Não mesmo, papai. Mas acho que foi por minha culpa. Eu tinha de voltar para o hospital e o senhor tinha de me trazer.
O celular de Theo tocou e a conversa foi interrompida. Era Noah.
— Onde você está? — Theo perguntou.
— Acabo de chegar a St. Claire — Noah respondeu.
— Venha para a casa de Jake. Conhece o caminho?
— Conheço. Chego aí em dez minutos.
— O que você descobriu?
Theo atravessou a saída dos fundos e foi para a varanda, fechando a porta atrás de si.
Michelle deduziu que ele queria ter privacidade e começou a arrumar a mesa. John Paul estava encostado junto ao balcão, olhando zangado para ela.
— Qual é o problema? — ela perguntou, abrindo a gaveta para pegar os talheres.
— Vai deixar que mais um agente do FBI entre aqui em casa?
— Vou, sim — ela respondeu. — Não venha me dizer o que tenho de fazer, John Paul. Não estou disposta. E terá de ser bem educado com Noah.
— Ah, você acha, é?
— Tenho certeza. Papai, o John Paul...
Ela nem precisou continuar. O irmão balançou a cabeça, desconsolado, e sorriu.
— Você continua me dedurando para o papai, não é?
— E ainda funciona, certo? — ela riu. — Obrigada, John Paul.
— Eu não disse...
— Nem precisava. Só vai precisar se lembrar como é comportar-se bem.
Ela voltou à mesa e distribuiu os talheres. Cansada, colocou o rosto entre as mãos, com os cotovelos apoiados na mesa. Não conseguia deixar de pensar nos cem mil dólares e seu sentimento de culpa intensificava-se. Por que uma mulher tão mesquinha faria um ato tão generoso? O que mais Catherine podia ter lhe enviado que era de tanto interesse para a polícia e para o homem que queria encontrá-la?
Big Daddy Jake sentou-se ao lado dela e voltou a olhar as fotografias.
— Pobre Catherine — Michelle disse. — Não tinha muitos amigos. No funeral tinha tão pouca gente. A única pessoa que chorou por ela foi a governanta. Lembra, papai? Ela chorou por Catherine, mas ninguém mais chorou. Não consigo me sentir bem com isso.
Michelle estava se lembrando do pequeno cortejo caminhando pelo cemitério. Rosa rezava seu terço e chorava. John caminhava ao lado do padre e não parava de olhar para trás, para papai e para ela. Uma vez que jamais haviam sido apresentados a ele, Michelle deduziu que ele deveria estar pensando quem eles eram. Um outro homem também olhou para trás. Estava caminhando ao lado de John e...
— Ai, meu Deus! Era aquele homem... Era ele, sim.
Saltou da cadeira. Em sua ansiedade em ir contar a Theo o que acabava de lembrar, acabou derrubando a cadeira. Impaciente, colocou-a em pé e saiu correndo pela cozinha. Theo estava entrando; desligava o telefone quando ela deu um encontrão nele. Amparando-a, ele acabou dando um passo atrás, de volta à varanda.
— O que está acontecendo?
— Lembrei de onde vi aquele homem antes... Lembra-se que eu lhe disse que ele me parecia familiar? É o mesmo sujeito — ela disse, atropelando as palavras.
— Devagar — ele pediu. — Pode dizer tudo de novo.
— O mensageiro que falou comigo no estádio. Eu lhe disse que ele me parecia familiar e achei que o tinha visto no hospital, mas não foi lá. Foi no funeral de Catherine. Ele estava andando ao lado de John no cortejo do cemitério.
Jake não tinha ouvido a conversa. Também estava pensando na generosidade de Catherine e pensando que Ellie deveria estar sorrindo naquele momento, sabendo que a sobrinha havia feito algo tão bom por sua família. Ela sempre se preocupara com o caráter egoísta de Catherine, mas agora Catherine havia se redimido.
Ouviu Michelle citar o nome de John e gritou lá de dentro:
— Estou pensando em ligar para o marido de Catherine.
— Não, papai, por favor não faça isso — Michelle disse.
— Não! — Theo disse rispidamente ao mesmo tempo.
— Por que não? — ele perguntou, virando-se na cadeira para olhar Theo, que entrava. — Preciso agradecer a ele pelo dinheiro. É questão de educação. Afinal, ele era o marido de Catherine e deve ter autorizado.
Michelle balançou a cabeça enquanto Theo aproximou-se de seu pai.
— Jake, não quero que ligue para ele. Prometa que não vai ligar.
— Dê-me um motivo, então — Jake respondeu. — Espero que seja muito bom.
— Certo — Theo disse com voz calma. — Ele simplesmente tentou matar sua filha.


Capítulo 35


Big Daddy Jake recebeu a notícia bem melhor que John Paul. O irmão queria subir na picape no mesmo instante e sair à procura do desgraçado e explodir-lhe os miolos. Recusava-se a ouvir a voz da razão e nem queria saber de leis.
— Se você conhece o homem que fez isso, o melhor é acabar com ele antes que ele tente de novo — John Paul argumentou.
Theo não se deixou levar pela fúria de John Paul e explicou:
— Ainda não temos provas. São só pistas. É por isso que tenho de ir a Nova Orleans.
John Paul parecia pronto para socar Theo. Michelle colocou-se entre os dois e tentou fazer com que o irmão se acalmasse. A campainha tocou, interrompendo a discussão. Enquanto Jake foi abrir a porta para Noah, Theo disse:
— Estamos juntos nessa.
— O que quer dizer com isso? — John Paul quis saber.
— Quero dizer que você não vai sair atirando em ninguém — Theo disse e virou-se para Michelle. — Prometa que não vai sair do Cisne até eu voltar. E não quero discussão sobre isso. Não quero ter de ficar preocupado com você.
— Certo — ela disse, batendo-lhe de leve no peito. — Você, também, cuide-se.
— Se houver qualquer encrenca, faça exatamente o que Noah lhe disser para fazer. John Paul, você monta guarda para seu pai, certo?
John Paul dessa vez não discutiu e concordou com a cabeça. Noah estava junto à entrada, conversando com Jake. O agente do FBI não havia se preocupado em fazer a barba, e estava com um ar bem desleixado com jeans rasgados e uma camisa azul desbotada. Michelle foi cumprimentá-lo. Podia entender perfeitamente o interesse de Mary Ann. Ele tinha algo que atraía as mulheres, fazia com que quisessem cuidar dele, reabilitá-lo. Os olhos azuis pareciam penetrá-la, quando ele disse:
— Soube que vocês tiveram uma noite bastante agitada, desviando das balas.
— Soube que você também teve uma noite agitada — Michelle não se conteve.
— Tive, sim. Sua amiga mandou-lhe um abraço — ele disse e sorriu. — Esta manhã, no entanto, não teve graça nenhuma. Um homem em férias deve ter o direito de dormir até a hora que quer. Onde está Theo?
— Está lá atrás com John Paul. Depois da cozinha — ela orientou. Noah foi em frente, mas ela o fez parar quando disse:
— Pode me fazer um favor?
— Claro. O que é?
— Tenha paciência com meu irmão. Noah riu e respondeu:
— Eu me dou bem com todo mundo.
— Quer apostar?
Pena ela não ter apostado um bom dinheiro, pois ganharia. Menos de três minutos passaram-se até começar a gritaria. Seu irmão era quem gritava quase todo o tempo, mas Noah não ficava muito atrás.
Theo entrou na cozinha com as chaves do carro de Noah na mão. Michelle encolheu-se ao ouvir o irmão chamar Noah de um palavrão dos mais cabeludos. Theo também ouviu e sorriu ao dizer:
— Eu tinha certeza que iam se dar bem.
— Você chama isso de se dar bem? — ela perguntou, com os olhos arregalados.
— Você não está ouvindo nem um tiro, está? Noah gostou do seu irmão.
Ouviram o irmão dela ameaçar Noah. Seu vocabulário não era apenas pitoresco, mas também criativo. Depois foi a vez de Noah ameaçar John Paul com riqueza de vocabulário e muita imaginação. Em sua ameaça, afirmava que John Paul jamais seria capaz de gerar filhos, se a cumprisse.
— Ah, posso jurar que um gosta muito do outro — Michelle ironizou.
— Os dois têm muito em comum. Sabe onde deixei meus óculos?
— Estão em cima da mesa. Exatamente o que acha que têm em comum?
— Os dois são ruins como cobras — Theo disse, dobrando as pernas dos óculos para guardar.
— Noah não é ruim. Sorri o tempo todo.
— Pois é — ele concordou. — É isso que o torna mais perigoso. Você não sabe o que ele está armando até ser tarde demais. Algumas histórias que meu irmão me contou sobre ele são de arrepiar. É por isso que pedi a ele para cuidar de você.
Ele abraçou-a pelas costas e levou-a até a porta da frente.
— Você ainda não me disse por que tem de ir a Nova Orleans — ela cobrou.
— Vou verificar algumas coisas — ele disse, o que não informava absolutamente nada.
Ele inclinou-se e beijou-a. Foi um leve roçar de lábios, profundamente insatisfatório. Ele deve ter pensado o mesmo, pois soltou-a, abriu a porta, depois a envolveu nos braços e voltou a beijá-la. Desta vez, foi bem diferente.
Sorrindo, ele fechou a porta atrás de si. Michelle ficou na janela, observando, até Theo afastar-se. Ele havia deixado John Paul encarregado de cuidar de seu pai e Noah seria sua babá. E quem cuidaria de Theo? Ela sacudiu a cabeça. Disse a si mesma para não se preocupar. A Detetive Harris logo deveria fazer as primeiras prisões.
O que mais poderia acontecer?


Capítulo 36


O Clube dos Semeadores havia se reunido no quarto de John em um motel de St. Claire. John examinava folha por folha, para ter certeza de que não faltava nem uma folha. Dallas, Preston e Cameron esperavam em silêncio. Por fim, ele terminou, levantou os olhos e riu.
— A vaca pôs junto até uma cópia da carta que escreveu para mim! — disse.
— Continuo protestando — Preston falou. — A maneira como pegamos esse pacote de volta foi muito arriscada.
— O que interessa isso agora? Estamos limpos.
— Não até darmos um fim em Buchanan e na médica — Dallas discordou. — E tem de ser hoje à noite mesmo, depois de mais uma idiotice do Cameron.
— Olhe aqui, eu entrei em pânico, está bem? Vi Buchanan olhando pela janela e achei que podia acabar com ele. Por isso atirei.
— Tínhamos combinado fazer tudo com calma — Preston o fez lembrar.
— Eu queria acabar logo com ele... pelo bem do Clube — Cameron argumentou, sem jeito. — Além do mais, Buchanan não sabe que fui eu quem atirou nele. E o mais lógico é que fosse alguém atrás dele, pelo que apronta. Foi você quem disse que ele tinha recebido ameaças de morte.
— Não há tempo a perder — Preston afirmou. — Temos de acabar com os dois esta noite.
— Imagino se a médica se lembrou de quando e onde viu Cameron — Dallas disse.
Ninguém olhou para Cameron enquanto pensava no assunto.
— Eu já disse que estava cansado de esperar — Cameron defendeu-se.
— Você não tinha o direito... — Preston começou.
— Deixe para lá — John disse, levantando a mão. — O mal já está feito, e Cameron lamenta seus erros. Não é verdade?
Não foi o que ele disse, mas como o disse, com uma gentileza fingida, que fez Cameron compreender o que estava acontecendo.
— John tem razão — Dallas falou. — Cameron sempre foi nosso amigo e não podemos deixar que um par de erros ponha tudo a perder. É perdoar e esquecer. Certo, Preston?
— Está bem, certo — Preston forçou um sorriso. — Quer uma bebida, Cam?
Cameron negou com a cabeça. Sentia a bile na garganta.
— Acho que posso fazer as malas e voltar para Nova Orleans... a não ser que tenha mudado de idéia, John, e queira que eu fique para ajudar.
— Ajudar em quê?
— Buchanan e a médica. Vocês vão atrás deles esta noite, não é?
— Isso — John confirmou. — Mas os dois já viram a sua cara e você tem de sumir. Já superamos isso, Cameron. Vá para casa e espere. Telefono depois que isso acabar. Depois a gente sai junto para comemorar.
— A médica também viu você no funeral. Como você continua aqui?
— Para coordenar — John respondeu.
— Onde está Monk? — Cameron perguntou, levantando, tentando disfarçar o medo crescente que o invadia.
— Saiu para comprar equipamento. Por que quer saber?
— Ele vai ajudar vocês a dar cabo de Buchanan? — Cameron quis saber.
— Vai — Dallas respondeu.
— E o tal agente do FBI, o tal Noah Clayborne?
— Deixe que a gente se ocupa dele — John respondeu com sua voz suave. — É melhor você ir andando.
— Não se preocupe — Dallas disse. — Vai dar tudo certo.
Cameron saiu e fechou a porta. Como achava que alguém poderia estar espiando por trás da cortina da janela, saiu como se estivesse sem pressa. Quando saiu do campo de visão daquele quarto, correu para o seu. Ao chegar à porta, pegou o revólver, engatilhou e entrou depressa.
Esperava encontrar Monk à sua espera, mas o quarto estava vazio. Quase caiu, tão grande foi seu alívio. Jogou as roupas na sacola de viagem, agarrou as chaves do carro e saiu correndo para o estacionamento. O carro saiu dali cantando os pneus.
John havia dito para ele ir para casa e esperar. Talvez fosse lá que a coisa aconteceria, concluiu. Imaginou se os caros amigos viriam atrás dele ou se enviariam Monk para fazer o serviço. De qualquer maneira, Cameron sabia que estava marcado para morrer. Entrou na estrada principal olhando pelo retrovisor a todo instante, para ter certeza de que Monk não o estava seguindo. Cameron finalmente teve coragem de soltar o ar que tinha preso no peito, todo de uma vez. Suas mãos estavam suadas e tremiam. Era preciso controlar-se para conseguir dominar o volante, mas ele começou a chorar.
Tinha de ir para seu apartamento porque tinha dinheiro escondido debaixo do assoalho e precisaria dele para sair da cidade. Convenceu-se que tinha bastante tempo disponível. Precisariam de Monk para silenciar Buchanan. Sim, ainda dispunha de algum tempo.
Cameron estava tremendo tanto, que sabia que a única coisa que poderia acalmá-lo e ajudá-lo a pensar era uma bebida. Saiu da estrada na próxima oportunidade e foi à procura de um bar.


Capítulo 37


Phillip Benchley não tinha tanto espírito esportivo assim. O advogado tinha acabado de acertar no nono buraco do campo de golfe do prestigioso Country Club de Nova Orleans, quando foi chamado à sede para encontrar-se com outro advogado do Ministério da Justiça. Impaciente, mas educado, ele anunciou:
— Meus amigos estão esperando. Pediria que o senhor fosse breve.
Entrou no vestiário e sentou-se em um banco para refazer o nó de seus calçados.
Theo apresentou-se. No momento em que Benchley ouviu que o caso que Theo desejava discutir envolvia John Russell, mudou de atitude e até sorriu.
— O senhor está investigando John Russell? Adoraria se o senhor pusesse aquele pulha atrás das grades. A arrogância desse homem é inacreditável. Quando Catherine Russell telefonou-me dizendo que queria mudar seu testamento, foi preciso controlar-me para não gritar vivas. Ela jamais deveria ter se casado com aquele homem. Jamais. Pode me dizer como posso ajudá-lo a prender aquele desqualificado?
— O senhor disse ao Agente Noah Clayborne, do FBI, que enviou a ela um pacote de documentos cumprindo o desejo de Catherine. Estou certo?
— Enviei, sim — Benchley concordou. — No entanto, como expliquei a ele, se o senhor quer saber o que havia dentro, terá de perguntar à Doutora. Catherine entregou-me um envelope selado e deu instruções para que eu não o abrisse.
— O envelope foi levado embora antes que Michelle conseguisse ver o que era — Theo explicou. — Catherine não lhe deu nem uma pista do que havia dentro? Alguma coisa sobre um extrato ou auditoria? Qualquer coisa que fosse?
— Não, mas vou lhe contar uma coisa. Fosse o que fosse, deveria ser algo explosivo, pois Catherine fez de tudo para que, quando John ficasse sabendo de seu conteúdo, não pudesse contestar o testamento. Ela tinha certeza que conseguiria.
— Ele havia assinado um acordo pré-nupcial?
— Havia, sim. Mas John é advogado e muito esperto. Não deixaria que todo aquele dinheiro lhe escorregasse por entre os dedos. Com certeza, lutaria em todas as instâncias, até conseguir.
— Por que o senhor esperou seis semanas entre a morte dela e a abertura do testamento?
— Vejo que o colega andou fazendo suas pesquisas. Mais uma vez, foi seguindo os desejos de Catherine — ele sorriu e acrescentou. — Ela era um tanto vingativa e disse-me para esperar até as contas de John se acumularem. Ele sempre teve um padrão de vida muito alto e estava usando o dinheiro dela para comprar presentes para a amante. Quando Catherine descobriu o adultério, ligou para mim e declarou que queria alterar o testamento.
— O senhor compareceu ao funeral?
— Fui à missa — ele disse. — Mas não fui ao cemitério. Michelle disse que havia muito poucas pessoas no velório. O senhor os conhecia?
— Conhecia a governanta, Rosa Vincetti. Eu a conheci quando fui à casa de Catherine para proceder as alterações no testamento.
— E os colegas de trabalho, ou amigos de John?
— Havia uns quatro homens e mulheres do setor do banco em que John trabalha. Falei com um homem, que apresentou-me aos outros, mas não me lembro de seus nomes.
— E os amigos de John?
— Deixe-me ver — Benchley pensou um pouco. — Lembro-me de que havia uma mulher no fundo da igreja. Ela disse-me que era a decoradora de interiores de Catherine, mas que também havia redecorado o escritório de John. Quando eu estava saindo da igreja, ela correu atrás de mim e deu-me seu cartão. Como achei seu comportamento mais do que inadequado, joguei fora o cartão assim que cheguei ao escritório. A única pessoa que me lembro de ter visto, além dos parentes de Catherine, foi Cameron Lynch. É amigo íntimo de John.
— O que sabe sobre ele?
— É corretor de valores — Benchley revelou. — Homem de sucesso. Já havia ouvido falar nele, mas só fui conhecê-lo no dia do funeral. Lembro-me de ter achado que tinha jeito de alcoólatra. Sei que não foi um pensamento nobre, mas ele cheirava a ressaca. Também apresentava os sinais característicos, o senhor sabe... pele macilenta, nariz vermelho, olhos inchados, indicando que ele vem bebendo pesadamente há algum tempo. Cameron ficou junto de John durante a missa, como se fosse um irmão.
— John chegou a falar com o senhor?
— Está brincando? Fez de conta que eu não existia e, se quer saber, ri muito disso. O homem me detesta, o que só me deixa feliz.
Theo já estava quase acabando. Fez mais duas perguntas, depois agradeceu a Benchley pela ajuda e foi embora. O advogado gentilmente havia ligado para a secretária e pedido os endereços de que Theo precisava.
Theo tinha de ir a dois lugares antes de poder voltar a Bowen.
Precisava certificar-se que Cameron Lynch era o homem que Michelle tinha visto na noite anterior. Foi até a corretora de valores e entrou no saguão. Já tinha uma história pronta para contar à recepcionista para conseguir que ela lhe mostrasse uma foto de Cameron, mas não foi preciso. Assim que atravessou a porta, viu uma foto de trinta por quarenta de Cameron Lynch estampada na parede, junto com os outros corretores da firma. Cameron estava no meio. Theo olhou para a recepcionista. Ela falava ao interfone, mas sorria para ele. Theo retribuiu o sorriso. Depois tirou a foto da parede, deu meia volta e se foi.
Precisaria de ajuda na parada seguinte. Ligou para o Capitão Welles, o homem que lhe havia entregado a condecoração e pediu auxílio. Depois dirigiu-se para o apartamento de Cameron Lynch, que ficava em um bairro pouco recomendável, próximo ao recentemente reformado distrito dos armazéns. Estacionou o carro na rua e esperou que dois detetives do distrito do Capitão chegassem.
Os dois homens estacionaram atrás dele pouco mais de dez minutos depois. O Detetive Underwood, o mais velho dos dois, apertou a mão de Theo.
— O Capitão contou-nos que foi o senhor que recebeu a condecoração. É uma honra poder apertar sua mão.
Depois o Detetive Basham aproximou-se.
— Ouvi seu discurso no dia do banquete.
Theo havia retirado a foto da moldura. Entregou-a ao Detetive Underwood e disse:
— Este é o homem que quero.
— O Capitão disse que vamos prender Cameron Lynch por tentativa de assassinato, e que o senhor tem uma testemunha — Basham disse.
— Eu sou uma das testemunhas. Lynch tentou matar uma amiga minha e eu.
— Fizemos uma varredura no bairro e não vimos o carro dele — Underwood informou.
— Como quer que a gente trabalhe? — Basham perguntou. — O Capitão disse que tem instruções especiais para o caso.
— Suponhamos que esteja armado e seja perigoso — Theo disse. — Quando o algemarem, leiam os direitos dele e levem-no para a cadeia, mas ainda não preencham a ficha. Quero que fique preso em uma sala de interrogatório, para eu poder falar com ele. Não quero o nome dele nos computadores, pelo menos por enquanto.
— Vamos ficar de campana. Quer esperar conosco?
— Não, ainda tenho mais um lugar para ir, mas assim que o pegarem, liguem para o meu celular ou para um bar em Bowen, chamado O Cisne. Se tudo ajudar, não terão de esperar muito. Acho que ele deve estar voltando para casa agora.
Parecia lógico. Lynch não permaneceria em Bowen ou imediações; não depois de ter sido reconhecido. Também não saberia que Theo já havia juntado parte das peças do quebra-cabeças. Theo escreveu seu telefone em um papel e entregou-o ao detetive, depois insistiu que queria que ligassem para ele, não importava que horas fossem, assim que pegassem Lynch.
— Sim, senhor. Vamos ligar — Basham prometeu.
— Só mais um instante — disse, quando começaram a se afastar. Pegou seu bloco de anotações, virou as páginas até encontrar o que procurava e então perguntou se algum dos dois sabia lhe informar como chegar ao endereço que Benchley lhe havia dado.
Underwood explicou-lhe o caminho mais rápido a seguir e observou:
— É um bairro da pesada. Tome cuidado.
Theo passou pelo coração de Nova Orleans, lentamente achando sua rota por entre as ruas estreitas. Tinha certeza que havia se perdido, mas assim que virou na esquina seguinte, viu que estava na rua que procurava. Dois quarteirões adiante achou o número que procurava. Estacionou o carro, depois pegou o celular e ligou para Noah.
— Descobriu alguma coisa? — Noah quis saber. Theo falou-lhe sobre Cameron Lynch.
— Diga a Ben Nelson para procurar por um Ford Taurus azul. Informou o número da placa e pediu a Noah que dissesse a Bem que, caso encontrasse o carro, deveria agir com a máxima cautela.
— Acha que pode dar conta do recado? — Noah perguntou.
— Sim — Theo respondeu. — Ele sabe o que está fazendo. Só quero que fique bem claro para ele que Lynch é um dos atiradores. Quero aquele filho da mãe preso e isolado até eu poder interrogá-lo.
— Duvido que Lynch ainda esteja circulando em Bowen. Já deve saber que você iria reconhecê-lo.
— Também acho que ele não está mais por aí — Theo comentou. — Só espero que esteja voltando para casa. O que a Michelle está fazendo?
— É uma mulher engraçada — Noah observou. — Está dormindo sentada à mesa.
— Teve uma noite difícil.
— Você também, Theo. De qualquer maneira, ela está se preparando para ir para O Cisne com Jake, comigo... e com o bem-humorado irmão dela. Já soube alguma coisa da Detetive Harris?
— Nada ainda e já deixei três mensagens para ela. As duas primeiras foram bem educadas. A terceira, não.
— Quando estava em Nova Orleans esta manhã, fui ao distrito dela, como você pediu — Noah disse. — Falei com o Capitão que é chefe dela.
— Conseguiu uma cópia do dossiê de Monk?
— Não. O Capitão disse-me que ela havia saído para uma investigação e não quis me dar nem uma pista de onde poderia estar. Deixou bem claro que não queria que eu interferisse. Logo se acabam as doze horas. Quando voltará a Bowen?
— Tenho só mais uma parada e então volto.
— Bem, tenho de ir. Michelle está me chamando — Noah disse.
Theo pegou seu bloco de anotações e os óculos antes de dirigir-se para a pequena casa de madeira à sua frente. O jardim minúsculo estava muito bem cuidado e tinha flores de cada lado da calçada que levava à casa. As paredes precisavam de pintura, e a madeira da janela estava apodrecida. Deveriam ser os malditos cupins, ele concluiu. O fato de o jardim estar bem cuidado e a casa não, indicava que a dona só tinha dinheiro para uma seção de manutenção.
Theo tocou a campainha e esperou. Com o canto do olho viu a cortina mexer-se na janela da frente. Voltou a apertar a campainha. A voz de uma mulher soou através da porta fechada:
— O que o senhor quer?
— Estou procurando Rosa Vincetti.
— O senhor é da polícia? — a mulher perguntou.
— Não — ele respondeu. — Sou amigo de Jake Renard.
A mulher abriu uma pequena fresta da porta, com a corrente de proteção colocada.
— Rosa sou eu — ela disse. — O que o senhor quer? Evidentemente estava assustada. Ele deveria ter parado para barbear-se.
— Jake Renard contou-me que a senhora sempre conversava com ele pelo telefone, quando ele ligava para Catherine.
— É verdade — ela confirmou. — Ele gostava muito de Catherine. Theo não conseguia ver o rosto da mulher, que escondia-se atrás da porta. Havia uma luz tremulante por trás dela. Ele deduziu que deveria ser uma vela acesa.
— O senhor não é mesmo da polícia? — ela voltou a perguntar.
— Não. Sou advogado — ele explicou.
Rosa fechou a porta, soltou a corrente e voltou a abri-la. Deu um passo atrás para Theo poder entrar. Ele continuou na varanda. Preocupado que ela se assustasse quando visse o revólver, explicou rapidamente por que o carregava. Mais uma vez explicou que não era policial e que não tinha ido à casa dela para criar nenhum problema.
Rosa surpreendeu-o. Parecia bem mais jovem do que ele esperava, com cerca de cinqüenta anos, pelo que ele concluiu, e quase tão alta quanto Theo. Fios prateados realçavam a cor preta dos seus cabelos. Sobrancelhas grossas emolduravam os olhos negros. Havia lágrimas naqueles olhos quando ela insistiu para que ele entrasse.
— Meu nome é Theo Buchanan — ele disse, ao entrar na sala.
— Sei quem o senhor é — ela respondeu. — Eu estava rezando para Deus e Ele me enviou o senhor.
Ele não sabia como responder ao comentário dela e limitou-se a um aceno de cabeça. Ela moveu a mão, indicando o sofá.
— Sente-se, por favor. Quero saber por que veio aqui.
Theo esperou que ela sentasse em uma poltrona diante dele. Havia uma mesa oval de vidro entre os dois. Ele inclinou-se para a frente, apoiando os braços nas pernas e contou a Rosa como conhecera Michelle Renard. Queria deixá-la à vontade, e também ajudá-la a entender qual era a ligação dele com a família Renard. Rosa ouvia atentamente.
Obviamente era uma mulher muito religiosa. Sinais de sua fé adornavam todas as superfícies daquela sala. Junto à parede atrás dela, havia um longo aparador que fora convertido em altar, coberto por um passador de renda. De um lado, queimavam duas velas votivas e, do outro lado, havia um quadro emoldurado da Virgem Maria. Um rosário de contas escuras estava arrumado em volta do quadro.
Theo explicou o que havia acontecido na noite anterior, como ele e Michelle haviam sido emboscados.
— Catherine enviou um pacote para Michelle.
— Sim, eu sei — ela confirmou, acompanhando com a cabeça. Ele escondeu o entusiasmo. Parecia ter acertado seu palpite.
— Tenho tudo para acreditar que os homens que vieram atrás de Michelle e de mim estavam tentando pegar o pacote — Theo disse. — Mas não conseguiram. A polícia está com ele, agora.
As costas de Rosa contraíram-se e ela perguntou:
— O senhor chegou a ler o que havia lá?
— Ainda não — ele admitiu. — No entanto, tenho certeza de que John Russell está por trás disso e quero colocá-lo atrás das grades. Para isso, precisarei de sua ajuda.
— Ele é do mal — ela murmurou. — Vai direto para o inferno quando morrer. Foi ele quem a matou, a coitada, o senhor sabe.
Ela disse a última frase sem se alterar, como se a notícia chocante já estivesse no jornal há várias semanas.
— Ele matou Catherine?
— Matou, sim. Não tenho como provar — ela apressou-se em dizer. — Mas aqui no fundo eu sei que foi ele. O pessoal da ambulância que foi até lá... um deles contou-me que ela tinha se engasgado com caramelos — ela revelou, balançando a cabeça. — Foi então que percebi.
— Como foi que soube?
— Ela nunca comia caramelo. Tinha uma prótese meio solta na boca e ficava com medo que pudesse quebrar-se. Como ela não queria sair de casa para ir ao dentista, tomava o máximo cuidado. O Sr. Russel trazia uma caixa de bombons todas as noites, e daí saía para ver suas vagabundas, mas Catherine só comia os chocolates macios. Jamais teria tocado num caramelo.
Rosa fez o sinal da cruz e juntou as mãos diante do peito, como se estivesse rezando.
— O senhor tem de encontrar uma prova e prender esse John Russell. Seria um grande pecado deixar esse assassino escapar sem pagar pelo que fez. O senhor tem de fazer isso por Catherine e por mim.
Theo assentiu.
— Vou tentar — ele prometeu. — Catherine descobriu as infidelidades de John, não foi? Foi esse o motivo de só ter deixado cem dólares para ele no testamento?
— Pois é. Ela o ouviu conversando no telefone. Ele chamou a pobre dos piores nomes enquanto falava com a amante. Ela chorou vários dias por causa disso — Rosa continuou. — Daí, numa outra noite, ela ouviu ele falar com um homem sobre um depósito que tinha feito em um banco fora dos Estados Unidos. Ela ouviu-o dizer para o homem para não se preocupar, que ninguém saberia de nada porque os registros estavam todos no computador da casa dele.
Theo tomava notas enquanto Rosa passava-lhe a informação dada por Catherine.
— Como ela conseguiu acessar os arquivos? Como ela conseguiu encontrar a senha?
— O próprio John forneceu — Rosa disse. — Claro que ele não sabia, na época. Ela ouvias as conversas dele pelo telefone, e duas vezes o ouviu falar do Clube dos Semeadores. No dia seguinte, depois que ele foi para o escritório e a empregada saiu com uma lista grande de compras para fazer, eu ajudei Catherine a descer para a biblioteca. Ela digitou as palavras, mas teve acesso negado. O jeito de escrever é que estava errado. Só que Catherine era uma mulher muito esperta — Rosa acrescentou. — Da segunda vez, ela digitou tudo junto, sem separar, e deu certo.
— Ela contou-lhe o que havia nos arquivos?
— Ela disse que o marido andava fazendo coisa ilegal com dinheiro.
Theo cocou o queixo e perguntou:
— Por que ela pediu ao advogado para esperar até depois de ela morrer para enviar as cópias dos arquivos? Por que ela mesma não colocou John atrás das grades?
— O senhor não compreende.
— Então ajude-me a entender — ele pediu.
— Catherine tinha muitas qualidades, mas também era muito controladora. Ela queria que tudo saísse como esperava, por isso queria que o marido respeitasse os votos feitos no casamento — ela sacudiu a cabeça ao acrescentar: — Ela não abria mão dele, mas depois de morta não deixaria outra mulher ficar com ele. Ela usaria os papéis que deu ao Dr. Benchley para fazer que ele...
— Andasse na linha?
— Isso.
— A senhora chegou a conhecer algum dos amigos de John? Ela negou com a cabeça.
— Ele nunca convidava ninguém para ir à casa dele. Acho que mantinha Catherine isolada. Ele tinha vergonha dela; mas, mesmo depois que ela ficou de cama e não saía do quarto, ele continuou a não trazer ninguém para casa.
Theo fechou o bloco e falou:
— Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
— O que é?
— Por que tem tanto medo da polícia? Ela baixou a cabeça e confessou:
— Meu filho se meteu em encrenca no ano passado. A polícia veio atrás dele no meio da noite e arrancou meu filho da cama. Levaram-no para a cadeia e fiquei muito preocupada por causa dele. Catherine ligou para o advogado dela e ele deu o nome de uma pessoa que podia ajudar meu filho.
— Um advogado criminalista?
— Acho que é isso — ela respondeu. — Meu filho está solto, agora, mas toda noite, quando ele não vem para casa, eu fico com medo que tenha sido preso outra vez. Ele anda com gente que não presta, e eu rezo para Deus todas as noites para que olhe por ele. É um menino bom — ela murmurou — mas é um Maria-vai-com-as-outras e faz tudo o que mandam fazer.
— Com que tipo de problema ele se envolveu?
— Drogas — ela respondeu, persignando-se. — Ele tirava dinheiro das pessoas em troca de drogas. Ele parou com isso — ela apressou-se em dizer. — Jurou para mim que parou.
— Eu sei como é — Theo comentou. — Não quero tornar as coisas mais difíceis para você, mas há uma coisa que eu preciso, Dona Rosa... e sei que a senhora tem, não é mesmo?

 

Capítulo 38


Deus que abençoasse Catherine Russell e sua obsessão em ter tudo em duplicata. Theo havia apostado na compulsão dela ao ir procurar Rosa. Catherine não o decepcionara. Havia feito uma outra cópia dos arquivos e dado a Rosa por garantia.
Theo só não esperava ouvir Rosa dizer que acreditava que John tinha matado a esposa, mas depois concluiu que não deveria ter se surpreendido. O crápula era capaz de qualquer coisa.
As cópias de todos os documentos que Catherine havia enviado a Michelle estavam no banco ao lado de Theo. Ele sabia que precisaria de umas duas horas para decodificá-los. Mal tinha olhado para os papéis enquanto estava com Rosa, mas sabia o suficiente para compreender que podia indiciar o desgraçado por evasão de impostos, extorsão, fraude, tráfico de informação, entre outras coisas. A Detetive Harris tinha dito a Michelle que a folha que puxara do envelope se parecia com um extrato, e tinha razão quanto a isso. As outras folhas traziam os detalhes de cada transação. Todas elas, Theo tinha certeza, eram ilegais e, enquanto dirigia para Bowen, ia pensando em todos os crimes pelos quais poderia incriminar John Russell. Havia o suficiente para colocá-lo atrás das grades pelo resto de sua vida. Theo ainda queria acrescentar a tentativa de assassinato — tinha certeza de que John estava entre os atiradores da noite anterior — mas não podia provar... ainda. Também queria justiça para Catherine e precisava de tempo para determinar como conseguir as evidências para provar que ela tinha sido assassinada.
Imaginava se John a teria matado sozinho ou se contratara alguém para fazer o serviço. Seria por isso que a Detetive Harris tinha ido até Bowen? Ela havia dito a Theo que o informante havia dito que um matador estaria na cidade. Teria Monk matado Catherine e agora estaria ajudando John a recolher as provas comprometedoras?
Onde teria se metido Cameron Lynch? O Detetive Underwood havia prometido telefonar para Theo assim que pusessem as mãos em Lynch. Ele seria a chave, Theo havia decidido. Se conseguisse pegá-lo, poderia pegar todos os outros.
Mais uma vez pensou nas transações que vira nos papéis de Catherine. Havia uma letra entre parênteses atrás de cada aplicação, indicando a pessoa responsável pela contribuição. O C deveria ser para Cameron Lynch e o J para John Russel, mas quem seriam Pe D? O Clube dos Semeadores. Que gracinha de nome para um bando de vigaristas! Quatro homens que haviam acumulado milhões de dólares ilegalmente.
— Dois identificados e dois a identificar — disse para si mesmo.
Depois riu. Catherine também havia feito uma cópia da carta que escrevera para John e Theo imaginou como o marido deveria ter reagido ao ler a carta e descobrir o que ela tinha feito.
Catherine, Catherine, que mulher malvada você foi!, Theo pensou.


Capítulo 39


O Cisne estava lotado. A multidão, composta em sua maioria por pescadores, estava tão densa e ruidosa, que Michelle sentia o chão tremer sob seus pés. Ela e Noah estavam trabalhando no balcão, providenciando os pedidos de bebida. Noah facilitava o trabalho. Qualquer que fosse a bebida pedida, ele servia um copo de cerveja. A única outra opção que ele permitia eram os refrigerantes.
John Paul mantinha a multidão sob controle e percorria as mesas por entre o tráfego intenso de pessoas, enquanto Big Daddy ficava no canto do balcão, junto à cozinha, com sua lista e uma caneta esferográfica na mão. Havia desocupado uma caixa metálica de equipamentos e estava usando como cofre para o dinheiro do torneio, para que não se misturasse ao dinheiro que entrasse no bar. Todos os retardatários que ainda desejavam inscrever-se no torneio formavam uma longa fila que ia até o estacionamento. Cada participante pagava sua inscrição em dinheiro — já que Big Daddy não aceitava cheques, nem cartões de crédito — assinava seu nome na lista e recebia um bilhete com o número da inscrição. Os pescadores deveriam entregar o bilhete às cinco horas da manhã seguinte para receber uma etiqueta. Qualquer um que tentasse levar vantagem saindo mais cedo seria automaticamente desclassificado, pois ficaria sem a etiqueta.
Havia muita gente de fora, vinda das cidades vizinhas. Monk e Preston misturaram-se à multidão sem dificuldade. Como mais da metade das pessoas que estava por ali, eles vestiam calças jeans e bonés e bebiam cerveja em pé, junto à jukebox, como se estivessem esperando vagar uma mesa. Faziam de conta que estavam se divertindo como velhos amigos do pessoal por ali. Preston entabulou conversa com três homens que bebiam sua cerveja vagarosamente na mesa ao lado, contando a história de um peixe grande que escapou-lhe. Monk entrou na conversa, mostrando algumas iscas que havia comprado em uma loja de St. Claire. Ele usava um colete bem largo e comprido para esconder o revólver. Ao contrário de Preston, ele não estava disposto a entrar no bar desarmado com um agente do FBI a menos de três metros de distância.
Preston sabia conversar fiado melhor do que Monk. Os dois riam e bebiam, até flertavam com as mulheres disponíveis que passavam por perto, mas jamais perdiam Michelle de vista, enquanto esperavam que Theo Buchanan cruzasse a porta de entrada.
John, Dallas e Preston tinham decidido que seria mais seguro e mais fácil se acabassem com Michelle e Theo ao mesmo tempo. O plano era atrair os dois para fora e levá-los, na ponta do revólver, para algum lugar do pântano, onde seriam mortos. Cameron tinha sido deixado de fora. Monk já tinha recebido instruções para ir atrás dele em Nova Orleans depois de terminarem o serviço em Bowen. Apesar de Monk normalmente escolher o método, nesse caso Dallas explicou que precisariam de um atestado de óbito rapidamente, para retirar o dinheiro deles da conta dos Semeadores. Uma vez que todos na empresa onde Cameron trabalhava sabiam o quanto ele andava abalado pelo processo de divórcio, Dallas achou que Monk deveria usar o revólver de Cameron para matá-lo e depois deixar uma carta suicida para trás.
Monk já não queria saber de trabalhar para receber depois. Afinal, os riscos estavam cada vez maiores. John argumentou que não havia como resgatar o dinheiro tão rápido. Monk resolveu negociar. Àquela altura, já tinha conhecimento de todas as sujeiras do grupo e da quantia que esperava por eles; portanto, em vez de cobrar pelo serviço, resolveu oferecer-se para fazê-lo em troca da parte de Cameron. Na opinião de John, Preston e Dallas estavam lutando contra o tempo. Acharam melhor concordar com a proposta de Monk.
Onde estaria Theo Buchanan? Se não fosse a multidão em volta do balcão, Preston teria tentado conversar com Michelle ou com o pai. Perguntaria quem seria o parceiro dela no torneio, pois já tinha visto o nome de Buchanan lá, só para poder perguntar onde ele estava, assim como quem não quer nada.
Havia barulho e gente demais para abordá-la. Preston teria de esperar até o movimento diminuir um pouco. Calculou que a maioria dos pescadores começaria a ir embora às dez, pois tinham de estar de volta ao Cisne, com os barcos e o equipamento de pesca, às cinco horas da manhã seguinte. O início oficial do torneio seria às cinco e quinze.
John e Dallas estavam em um carro alugado em um cruzamento a menos de um quilômetro de distância. Esperavam que Preston ligasse para eles. Quanto mais esperavam, mais ansiosos e nervosos ficavam. O que estariam aprontando Monk e Preston? John abriu uma garrafa de água e bebeu um longo gole.
— Não importa o que aconteça, vamos acabar com isso esta noite. Não quero nem saber quem possa estar no meio do caminho. Se a gente tiver de matar todo mundo que estiver no bar, juro que é isso que vamos fazer. Estamos com munição suficiente e quero encerrar esse assunto. Por que o Preston ainda não ligou?
— Você viu a quantidade de carros no estacionamento. Ele está esperando uma boa oportunidade — Dallas argumentou.
Quando eram quase nove horas, o bar ainda estava fervendo de gente. A jukebox estava a todo volume — Elvis cantava Blue Suede Shoes — e os freqüentadores tinham de gritar para serem ouvidos acima da música. Se Michelle não estivesse ao lado do telefone na hora em que tocou, não o teria ouvido.
Ela colocou o aparelho em um ouvido e tampou o outro com a mão para poder ouvir. Mesmo assim, estava com dificuldade para ouvir e foi para o depósito. Era Cherry Watson na linha, que chamava do hospital. A pobre mulher estava histérica. Dizia uma porção de coisas que pareciam sem nexo, e Michelle pediu que ela pusesse uma enfermeira na linha.
Trinta segundos mais tarde, depois de dar instruções à enfermeira, Michelle desligou o telefone e correu para Noah.
— Temos de ir já para o hospital.
Noah nem precisou ouvir os detalhes. A expressão no rosto de Michelle revelava que o caso era sério. Ele largou o pano que estava usando, deu um assovio alto para John Paul, fazendo-lhe um sinal. Os dois seguiram Michelle até a cozinha.
— Qual é o problema? — o pai perguntou.
— Preciso da chave do seu carro — Noah disse.
— John Patrick atravessou-se no caminho de um dardo, que agora está cravado em seu peito — ela falou depressa, já abrindo a porta do fundo.
— Tenho de ir já.
John Paul jogou as chaves do carro para Noah. Michelle pegou o celular de Noah e ligou para a seção de radiologia enquanto caminhava. Noah gritou para John Paul quando este estava fechando a porta:
— Ligue para Theo. Ele está voltando para cá agora. Diga a ele para onde estamos indo.
Preston havia aberto caminho por entre a massa de gente e aproximou-se de Jake como se quisesse examinar a lista dos competidores, que estava afixada na parede. Esforçou-se para ouvir cada palavra que John Paul dizia enquanto contava ao pai o que havia acontecido. No instante em que ouviu que Michelle estava indo para o hospital e que John Paul telefonaria a Theo para avisá-lo que fosse para lá, também, Preston deixou o copo sobre o balcão e lançou-se para a porta.
Do outro lado da sala, um homem mais velho contava uma história de pescaria para Monk. Havia convidado Monk para sentar-se com ele e os amigos, mas Monk não saíra de onde estava para vigiar o estacionamento pela janela da frente.
— Já fico sentado o dia inteiro na frente do computador — ele disse. — O que o senhor estava dizendo sobre a truta pintada?
O velho balançou a cabeça, pois Monk com certeza não estava prestando atenção e começou a contar toda a história de novo, do começo. Monk balançou a cabeça algumas vezes, fingindo interesse. Quando viu Noah e Michelle entrarem na velha picape, correu imediatamente para a porta. O velho ainda gritou alguma coisa atrás dele, mas Monk ignorou-o e seguiu em frente. A mão já estava dentro do colete.
Preston seguia para seu carro, com a cabeça abaixada, para o caso de Michelle ou o agente do FBI olharem para trás. Monk logo alcançou-o.
— Onde estão indo com tanta pressa?
— Para o hospital — Preston respondeu. — E Buchanan está a caminho. Se Clayborne largar a doutora lá, podemos dar um jeito em Buchanan e nela por lá. Não deve ter muita gente a esta hora da noite. A maioria dos cirurgiões opera pela manhã logo cedo.
John mudou o plano. Quando Preston ligou para ele e contou-lhe a novidade, ele disse:
— Dallas e eu vamos ficar no estacionamento para pegar Buchanan quando ele chegar. Se ele chegar lá antes de nós, Dallas entra e tenta atrair o desgraçado para fora. Você e Monk entram e ficam na cola da médica. Quando ela estiver sozinha, você a pega e nos encontra onde combinamos.
— Esqueça — Preston gritou. — Ouvi o irmão dela dizer que ela vai operar uma criança. Acho que devemos acabar com ela lá mesmo. Vamos apagar o agente do FBI também, se insistir em ficar por perto.
John rangeu os dentes.
— Você está louco? Sabe quanta gente vai ter lá dentro com ela? Pelo amor de Deus, use a cabeça. Queremos que pareça uma tocaia profissional armada para Buchanan, lembra? Queremos que tanto a polícia quanto o FBI pensem que a médica levou tiros por estar com ele.
— E o Clayborne?
John pensou na pergunta durante algum tempo e disse, por fim:
— Se o agente aparecer no meio, teremos de dar um fim nele, também.
— Puta merda, se alguém estiver nos ouvindo... — Dallas protestou.
— Cale a boca — John rugiu, depois continuou a conversar com Preston. — Em que carro a médica está?
— Em uma picape vermelha velha.
John desligou o celular e deixou-o cair entre as pernas, enquanto Dallas murmurava:
— Vá devagar. O hospital é logo ali.
Ele percebeu que estava correndo demais e diminuiu a velocidade do carro alugado.
— Por que você e Preston estavam discutindo? — Dallas perguntou.
— Ele já queria entrar atirando.
— Como tudo isso pode se complicar tanto? Você está falando em matar duas ou três pessoas, e eu estou indo nessa.
— Não temos alternativa.
— O cacete que não temos! Poderíamos dar o fora e ir para as Ilhas Cayman. Poderíamos pegar a grana já, dividir por três e depois sumir — Dallas sugeriu.
— Precisamos da certidão de óbito de Cameron para pegar o dinheiro.
— Monk consegue isso para a gente.
— Como você fica com pena de matar alguns estranhos, mas não se importa nem um pouco em acabar com Cameron?
— Ele tornou-se uma bomba-relógio.
— Exatamente — John disse. — Buchanan e a amiga também. Vamos resolver isso esta noite.
— Acho que deveríamos parar com tudo.
— Não! — John gritou.
— Estamos perdendo o controle — Dallas gritou de volta. — E é tudo por sua culpa, seu filho da puta.
A mão de John foi direto para o revólver. Sentiu uma vontade quase incontrolável de puxar o gatilho. No entanto, respirou fundo e controlou-se.
— Não se atreva a me deixar na mão agora — disse. — Veja, o carro de Preston já está lá. Ele e Monk já devem estar lá dentro.
— O estacionamento está quase vazio. Isso é bom.
John estava esticando o pescoço para verificar o estacionamento reservado aos médicos. Logo sorriu.
— A picape vermelha está lá.
— Então também está claro que Clayborne não deixou ela aqui para voltar para o Cisne. Está lá dentro com ela.
— Então entrou no jogo.
— Encoste ao lado daquela caminhonete ali, junto das árvores. John levou o carro para onde Dallas indicou, abaixou o vidro do carro e desligou o motor. Dallas esticou o braço para o banco de trás e pegou um colete acolchoado de náilon. Havia uma pistola semi-automática no bolso.
— Estou tentando repassar todas as possibilidades em minha cabeça — Dallas disse. — Buchanan e a médica não devem dar trabalho. Clayborne será um osso duro de roer. Foi bem treinado e está preparado para o que der e vier. Se as coisas se complicarem lá dentro, e o Preston, o Monk e eu tivermos de atirar neles lá dentro, ele morrerá atirando e vai querer levar todos nós junto.
— Então acabe com ele primeiro. Lembre-se de que o elemento surpresa estará do nosso lado. Ele nem vai saber o que está acontecendo.
— Mas vai... prever.
— Você vai conseguir atrair Buchanan para fora.
— Só estou falando no caso de algo dar errado e daí...
— Olhe aqui — John disse, impaciente. — Monk vai estar pensando exatamente o que você está pensando. Você e ele podem cercar Clayborne. Preston cuida de Buchanan.
— Seu folgado. Bem que deveria entrar com a gente.
— A médica sabe quem eu sou. É muito arriscado. Ela pode estar bem ali na entrada e me identificar antes de qualquer coisa. Não, melhor eu esperar aqui.
Dallas inclinou-se e tirou a chave da ignição. John ficou profundamente ofendido.
— Acha que vou dar no pé e deixar vocês para trás?
— Se ouvir tiroteio, é bem capaz.
John levantou a mãos.
— Certo. Leve a chave, mas deixe onde seja fácil de pegar.
John viu um carro aproximar-se e, apesar de as árvores o esconderem, abaixou-se. O carro foi adiante. Estavam realmente em boa posição. A entrada do pronto-socorro estava bem em frente a eles. Buchanan estacionaria seu carro na área dos visitantes, ou ao lado da picape, na área ao lado. Qualquer que fosse o caso, não veria Dallas nem John.
— Se eu tiver de entrar depois dele... a coisa pode estourar em minhas mãos — Dallas disse, mostrando preocupação.
— Pense no dinheiro — John murmurou, com a voz suave como cetim. — Pense só no dinheiro.
Os dois ficaram levemente abaixados e esperaram em silêncio.

 

Capítulo 40


Theo tinha feito mais uma parada antes de ir para o hospital. Parou em um mercado de conveniência 24 horas e fez cópias de todos os documentos que Rosa havia lhe dado. Depois, usando o telefone da loja, ligou para seu superior em Boston e contou-lhe o que havia acontecido. Enquanto falava com o chefe, o funcionário da loja transmitia os documentos por fax.
Depois ligou para a agência local do FBI, pediu o número do fax e enviou cópias dos documentos para lá também. Então, porque estava cansado e um tanto paranóico, enviou cópias para sua própria casa.
Quando aproximou-se de St. Claire, o sinal de seu celular estava ficando fraco. A bateria estava quase acabando. Queria ligar para Ben e pedir que o encontrasse no hospital para entregar cópias a ele também, pois tinha intenção de envolver o chefe de polícia local na investigação. Theo concluiu que teria de esperar e ligar para ele do hospital. Enquanto estava parado em um farol, arrumou os papéis e guardou-o no porta-luvas.
Agora que havia coberto todas as suas bases — o chefe enviaria uma cópia para um amigo na Receita Federal — Theo pensou mais uma vez na conversa que tivera com Rosa Vincetti. A pobre mulher tinha pavor da polícia por causa de sua experiência passada e ele não podia culpá-la. Haviam quebrado sua porta no meio da noite, entrado com armas na mão, revirado sua casa, arrancado seu filho da cama, algemado e levado o rapaz embora. Desde aquela noite, Rosa temia que pudesse acontecer outra vez.
— Catherine sabia de seu medo da polícia? — havia perguntado a ela.
— Sabia sim — ela respondera. — Eu contava tudo para ela. Nós éramos muito ligadas, como irmãs. Ela confiava em mim.
Quando Theo estava indo embora, Rosa disse que ficaria esperando ler sobre a prisão de John nos jornais, pois Catherine havia lhe dito que as cópias do arquivo secreto do marido que enviara à prima o colocariam na cadeia pelo resto da vida.
— O que a senhora teria de fazer com suas cópias? — ele havia perguntado.
— Não sei. Ela só me disse para guardar em um lugar seguro. Eu só fiquei rezando... e esperando.
— Esperando o quê?
— Que Deus me dissesse o que fazer — ela respondera. Depois de assegurar a ela que os documentos estariam seguros
com ele, Theo agradeceu e foi embora.
Estava a apenas dois quarteirões do hospital, quando olhou para o relógio digital do painel. Nove e quinze. O tempo passa rápido quando a gente se diverte, pensou. Não era à toa que seu estômago estava roncando e ele estava bocejando a toda hora. Não havia comido ou bebido nada durante todo o dia. Precisava de comida e cafeína. Depois de ver como Michelle estava e de falar com Noah, tentaria comer alguma coisa na lanchonete do hospital.
Entrou na área de estacionamento do hospital, percebeu que não havia carros na área de emergência, passou pelo sinal de Proibido Estacionar e estacionou em uma das vagas reservadas para a polícia.
Um enfermeiro estava saindo pela porta enquanto Theo estava entrando.
— Ei, companheiro, não pode estacionar ali. Vai acabar levando uma multa.
— O carro é do FBI — Theo respondeu.
— Puta merda! — John exclamou ao ver Theo sair do carro e entrar no prédio.
Dallas saiu do carro, dizendo:
— Ligue para Preston e para Monk. Diga para encontrarem comigo na escada dos fundos. Quero sincronizar isso direitinho, para o caso de Buchanan me dar trabalho.
Enquanto Dallas batia a porta e saía correndo, John fez a chamada. Depois de desligar, pegou seu laptop do banco de trás e o trouxe para a frente. Então, abriu o porta-luvas, pegou a chave sobressalente que havia pedido quando alugou o carro e colocou-a na ignição.
Dallas estava começando a desconfiar dele. John sorriu ao pensar nisso. Todos eles, até o frio e calculista Cameron, apesar de todas as suas ações ilegais, eram ingênuos quando se tratava de pesar os talentos de John. Realmente acreditavam que ele não conseguiria resgatar o dinheiro sem eles. O mais engraçado era o fato de suas abelhas operárias pensarem que ele repartiria o dinheiro. Ah, a confiança! Que arma maravilhosa.
Recostou-se e esperou. Estava uma bela noite, apesar de abafada. Talvez tudo desse certo e ele não precisasse apelar para seu plano de contingência. Preston estava perdendo a cabeça, no entanto. John tinha quase certeza que Preston não seria capaz de se conter e acabaria matando alguém. Isso seria péssimo. Talvez todos morressem. Não seria uma sorte muito grande?
Theo ia subir as escadas para o primeiro andar, mas quando estava cruzando o saguão, Elliot Waterson gritou para ele:
— Ei, treinador. Meus pais estão lá em cima.
O garoto estava no elevador, mantendo a porta aberta. Com certeza achava que Theo fosse ficar com Daryl e Cherry enquanto John Patrick estivesse na sala de cirurgia. Theo entrou no elevador.
— E com você, tudo bem, Elliot? — perguntou.
O garoto começou a chorar. Parecia que tinha enfrentado uma batalha. Os olhos estavam inchados, o nariz vermelho e tinha um ar desconsolado. Com a cabeça baixa, murmurou:
— Já soube o que eu fiz com meu irmão menor? — ele disse, soluçando. — Ele está mal. O que eu fiz pode matar meu irmão.
— Tenho certeza que foi um acidente, Elliot.
Theo sabia que Michelle havia saído correndo para o hospital e que o paciente era John Patrick, o garotinho que queria que ele atirasse em Lois. Quando o irmão de Michelle ligou, porém, não havia fornecido detalhes sobre a gravidade do ferimento ou como havia acontecido. Mesmo assim, Theo sabia que Elliot jamais feriria o irmão intencionalmente. Elliot era um bom garoto e fazia parte de uma família unida e amorosa.
— Sei que você não queria ferir John Patrick.
— Mas a culpa é minha e agora ele pode morrer.
Elliot quase derrubou Theo ao jogar-se contra ele. Estava soluçando descontroladamente, com a cabeça apoiada no ombro de Theo. Elliot era uma garoto grandalhão que chegava a ser maior do que Theo, mas não deixava de ser uma garoto que precisava ser consolado.
— Vamos procurar sua mãe — Theo sugeriu. Desesperado, Elliot murmurava:
— Eu nuca deveria ter... Eu não queria...
Theo sentiu o coração apertar-se. Passou o braço por trás dos ombros de Elliot e disse:
— Tudo vai dar certo — não tanto como uma promessa, mas mais como uma prece, continuou. — É preciso ter esperança, Elliot.
Percebeu, então que o elevador estava parado. Esticou o braço livre e apertou o botão.
— Conte-me o que aconteceu.
— Minha mãe disse para eu não comprar o alvo com dardos para ele. Disse que ele era muito pequeno e podia se machucar com a ponta dos dardos, mas John Patrick queria isso de aniversário e eu acabei comprando. Minha mãe ficou louca da vida — o garoto soluçava. — Eu devia ter levado de volta para a loja, mas não levei. Pendurei o alvo em uma árvore na frente de casa e deixei bem baixo para o John Patrick poder brincar. Quando começou a escurecer, ele cansou, não quis mais brincar e subiu na árvore, como sempre faz. Eu peguei os dardos e comecei a jogar. Eu fiquei bem longe e estava jogando com força para poder acertar e...
Theo contraiu-se. Sabia o que viria a seguir. Elliot não conseguiu contar o fim. As portas do elevador abriram-se e Theo o conduziu para fora.
Noah estava apoiado contra a parede em frente ao elevador. Ao ver Elliot com Theo, imediatamente saiu pelo corredor para ir buscar os pais do garoto.
— John Patrick pulou da árvore bem na hora que joguei um dardo — Elliot soluçou. — Acertei ele no peito. Pode ter furado o coração... sei lá, mas ele não gritou. Só parecia ter levado um susto. Eu gritei "não" e saí correndo para ele... eu sabia o que ele faria. Ele tentou arrancar o dardo... mas não saiu... ele só fechou os olhos e caiu no chão. Ele... desmontou. Achei que estivesse morto. Meu pai viu na hora que aconteceu. Tinha acabado de chegar de carro e estava chegando na porta. John Patrick vai morrer, não é, treinador? Eu sei que vai.
Theo não sabia o que dizer para consolar o menino. Limpou a garganta e disse com firmeza:
— Vamos lá. Vamos procurar sua mãe.
Havia placas de indicação na parede diante do elevador. A ala cirúrgica ficava à esquerda, ao final de um longo corredor. Noah tinha ido para a direita e Theo arrastou Elliot junto ao segui-lo. Noah passou por uma porta aberta e abriu caminho para Cherry e Daryl, que vinham depressa na direção de Theo. Quando Elliot viu a mãe, largou Theo e correu para ela. Cherry abraçou-o com força.
— Sinto muito o que aconteceu com John Patrick — Theo disse a Daryl.
O pai parecia ter envelhecido dez anos desde a última vez em que haviam se encontrado.
— Pois é, pois é.
— Ele ainda é tão pequeno — Cherry lamentou.
— Mas ele é forte — Daryl afirmou. — Vai sair dessa.
— Há quanto tempo ele está na cirurgia? — Theo quis saber.
— Acho que faz uma meia hora — o pai respondeu.
— Já sabem de alguma coisa? Alguém disse como está indo? Elliot já havia se soltado da mãe e agora estava ao lado dela, segurando-lhe a mão. Cherry parecia estupefata. Daryl respondeu à pergunta.
— A Dra. Mike mandou uma enfermeira vir falar com a gente faz uns minutos, para dizer que está indo tudo bem. Ouviu isso, Elliot? Foi na hora que você desceu para procurar o pastor que a enfermeira veio. A Dra. Mike disse que o anjo da guarda de John Patrick estava do lado dele, porque o dardo chegou perto de uma artéria. A enfermeira disse que achava que levaria mais uma hora, pelo menos, para acabar a operação.
— Talvez meu filho precise de uma transfusão — Cherry disse.
— A gente já ia descer para o laboratório para doar sangue — Daryl explicou. — Pode ser que o John Patrick precise.
— Não vão querer tirar sangue de você, Daryl — Cherry disse. — Você foi operado faz pouco tempo.
— Mas quero ir lá perguntar, mesmo assim.
— Também vou doar sangue — Elliot prontificou-se.
O garoto afastou-se da mãe, endireitou as costas e enxugou o rosto com as costas da mão.
— Onde estão os outros meninos? — Theo quis saber.
— Lá embaixo, na lanchonete — Cherry respondeu. — Preciso ir dar uma olhada neles. O Henry deve estar ficando impaciente. Já está passando da hora de ele ir para a cama, e nem pensei em trazer o cobertorzinho que ele gosta de esfregar no nariz quando chupa o dedo.
Cherry começou a chorar e Daryl passou o braço por trás dela.
— O Henry está bem, querida. A esposa do pastor levará os pequenos para casa e colocará todo mundo na cama — explicou a Theo. — Vão chegar a qualquer minuto, por isso é melhor a gente ir para o laboratório, Cherry. Quero estar de volta aqui antes que a Dra. Mike saia lá de dentro.
Daryl estava agitado. Theo compreendia a necessidade do pai de fazer alguma coisa, qualquer coisa que fosse, para ajudar o filho. A espera sempre deixava Theo louco de ansiedade, por isso imaginava a angústia por que estavam passando os pais de John Patrick.
— Talvez um de nós devesse ficar aqui — Cherry disse, quando as portas do elevador abriram-se.
— Eu não vou sair daqui — Theo disse. — Peço para chamarem vocês se houver alguma novidade.
Noah mantinha-se calado, mas assim que as portas do elevador se fecharam, ele aproximou-se de Theo e falou:
— A mãe parece estar em choque.
— Qual foi a gravidade? Você sabe?
— Parecia sério, mas sinceramente não sei. As coisas ficaram bem agitadas por aqui. Eu estava observando Mike pelos vidros da porta. Ela estava junto à pia, lavando as mãos e os braços e examinando os raios X que um outro médico segurava para ela. Vi uma porção de médicos, enfermeiras e técnicos indo de um lado para outro. Todos pareciam estar gritando ordens, menos Mike. Ela estava calma e fria como uma brisa de verão — Noah contou, cheio de admiração. — Com certeza ela sabe se conduzir em momentos de crise. Acho que por isso acabou virando cirurgia.
Theo assentiu.
— Era assim que ela estava ontem à noite, enquanto as balas voavam por todo lado à nossa volta.
— Falando em balas que voam, conseguiu fazer tudo o que queria em Nova Orleans?
— Consegui — Theo respondeu. — Você não vai acreditar no que eu descobri.
Ele então contou a Noah sobre o Clube dos Semeadores e os milhões de dólares aplicados em uma conta nas Ilhas Cayman. Quando acabou de contar a Noah todos os passos que o levaram a Cameron e a Rosa, acrescentou:
— Quero pegar o John Russell, mas tenho tudo para crer que ele pode ser acusado de outros crimes, além daqueles que estão nos tais documentos. Assim que os detetives pegarem Cameron Lynch, vou querer falar com ele. Ele me contará o que eu quero saber.
— Pelo que Nick contou-me sobre seus poderes de persuasão, não duvido que consiga fazer o sujeito falar. Quero dar uma olhada nos tais papéis.
— Deixei cópias no porta-luvas de seu carro.
— Será que não tem perigo? Theo sorriu:
— Não falei das cópias que enviei para meu chefe, para a Receita Federal, para o FBI e para minha casa?
— Não, não falou, não. Você disse que as iniciais ao lado das transações eram J , C, P e D — Noah observou. — Pena John não ter colocado os nomes completos.
— Talvez Catherine o tenha feito. Pode haver uma explicação entre os papéis que enviou para Michelle.
— John Russell obviamente é J, e Cameron Lynch é o C, mas quem são Pe D?
— Esta é a charada, mas aposto que logo vamos ter a resposta. Os Detetives Underwood e Basham já têm mais alguns agentes revirando Nova Orleans, investigando os contatos de John. Não vai demorar para termos os nomes.
— Talvez a Detetive Harris saiba quem são. Ela já entrou em contato?
— Não.
Noah balançou a cabeça.
— Acho que ela não é uma mulher de palavra. Já passaram mais de doze horas e ela tinha prometido dar-lhe as cópias depois disso.
— Provavelmente ficará espumando de raiva quando descobrir que consegui uma cópia com Rosa.
— Mas você não contará a ela.
— Claro que não — Theo respondeu. — Não vou dividir com ela a informação que eu tenho. Vou deixar que Underwood e Basham façam as prisões e levem o crédito.
Ouvindo seu nome ser chamado pelo alto-falante, viu um telefone próximo ao elevador e foi atendê-lo. Assim que identificou-se, o Detetive Underwood foi posto na linha.
A conversa foi recheada de informações. Então Theo disse:
— Sim, com certeza aguardarei. Mantenha-me informado. Ao desligar, virou-se para Noah e informou:
— Preston e Dallas.
— Uau! Essa foi rápida.
— Um dos detetives conseguiu os nomes com a ex-namorada de John. Uma mulher chamada Lindsey. Ela estava tentando entrar na casa de John e disse que havia deixado algumas roupas lá. Ela disse que havia conhecido Cameron, mas nenhum dos outros. Só que tinha ouvido John conversar com os outros pelo telefone e lembrava-se dos nomes de Preston e Dallas, porque ligavam sempre.
— Nada de sobrenomes?
— Ainda não. E sabe o que mais? Um outro homem ligou uma vez atrás de Dallas. Seu nome era Monk. Ela lembrava-se do telefonema porque John tratou-o com muita deferência, como se tivesse medo dele.
— Interessante — Noah observou. — Essa Lindsey chegou a falar com ele ou com algum dos outros?
— Não — Theo respondeu. — John não permitia que ela atendesse o telefone; dizia que não queria que as pessoas soubessem que ela estava vivendo com ele tão depressa, depois da morte da esposa. Também disse ao detetive que eles se casariam, mas que John chegou em casa algumas noites atrás e mandou-a arrumar a mala e ir embora. Não foi nem um pouco gentil, pelo que se sabe.
— Deve ser por isso que ela está tão disposta a dar com a língua nos dentes, agora.
— Exatamente. Acho que vão conseguir encontrar e pegar Preston e Dallas até a meia-noite.
— Talvez até mais cedo — Noah comentou. — Como foi que o Detetive Underwood o encontrou?
— Eu disse a ele que estaria em meu celular ou no Cisne. Pode ser que John Paul tenha dado o telefone do hospital.
— Então vamos ter de ficar esperando mais algum tempo. Logo tudo vai se resolver.
Theo bocejou alto e esfregou a nuca.
— Estou precisando de cafeína.
— Tem café ali na sala de espera.
— Ótimo. Preciso saber como Michelle está, primeiro. Posso entrar lá? — Theo disse, inclinando a cabeça para a grande porta dupla, acima da qual se lia em letras vermelhas luminosas Proibida a entrada.
— Claro que pode. Eu entrei. Você pode olhar pela vidraça e ver Mike. Ela está na sala de cirurgia à esquerda, virando onde termina o corredor. Só não deixe que alguém veja. Essas enfermeiras gostam de gritar com a gente. Vou aproveitar para fazer algumas ligações — Noah acrescentou, já se dirigindo para a sala de espera. — Quer que eu lhe traga um pouco de café?
— Não, obrigado. Logo vou pegar — disse, afastando-se, mas deu meia volta e disse ao amigo. — Ei, Noah, sabe o que é muito estranho?
— O quê?
— Os canais que Catherine usou... enviando os documentos para uma parente insuspeita, que ela nem conhecia..
— John Paul contou-me que ela era bem maluca.
— Era, mesmo.
— Então está aí sua resposta.
— É, talvez — Theo disse, mas sem parecer muito convencido. Empurrou a porta e entrou na área proibida, sentindo-se como
um garoto entrando escondido em um filme pornográfico. Esperava que, a qualquer momento, alguém aparecesse para gritar com ele ou pegá-lo pelo colarinho e jogá-lo para fora.
Estava dentro de um saguão com várias portas de mola e um elevador. Entrando em um outro corredor à esquerda, virou ao final. Havia uma maca contra a parede onde o corredor terminava e, à direita, estava o centro a sala de operações que Michelle estava usando.
Estava pelo menos vinte graus mais frio ali dentro. Ouviu uma música quando aproximou-se e reconheceu a voz. O bom e velho Willie Nelson, o favorito de Michelle. Theo sentiu sua memória ser ativada, mas era uma lembrança muito vaga. Havia algo familiar no cheiro, na música e no frio. Talvez fosse por causa da operação a que ele havia se submetido.
Olhou pela janela retangular e surpreendeu-se ao ver que a sala era bem menor do que esperava. Estava lotada de gente. Ele contou seis, incluindo o homem sentado atrás do paciente, monitorando os indicadores das máquinas a seu lado. Não conseguia ver John Patrick, pois uma enfermeira tampava-lhe a visão, mas conseguiu ver a testa de Michelle quando a instrumentista passou-lhe um equipamento e ela virou-se levemente. Ao observá-la, sentiu a tensão aliviar-se. Começou a relaxar, respirou fundo e percebeu que, de repente, estava se sentindo bem só pelo fato de ela estar por perto.
— Estou mesmo perdido — ele murmurou, passando por entre as portas de mola.
Estaria se tornando obsessivo por causa de Michelle? Não, isso não, mas o mundo parecia-lhe mais bonito e muito melhor quando estava com ela.
Catherine, por outro lado, parecia-lhe o exemplo clássico de uma personalidade obsessiva. Esse pensamento levou-o de volta à charada que estava tentando resolver. Rosa havia dito que Catherine chegou a pensar em usar os documentos para controlar o comportamento de John enquanto estava viva. Por que Catherine não havia pedido, simplesmente, que o advogado entregasse os documentos à polícia após a sua morte? Teria medo de que Benchley não cumprisse seu desejo, ou teria a desconfiança que o medo que Rosa tinha da polícia tinha acabado por afetar sua decisão?
Era possível para Theo entender por que Catherine havia escolhido Michelle. Catherine sabia que a prima era uma pessoa inteligente. Toda vez que Jake ligava para a sobrinha, gabava-se bastante, e Catherine, sabendo o que Michelle já havia conseguido na vida, tinha certeza de que a prima compreenderia o que significavam todos os números e transações. Catherine poderia ter achado que Jake não seria capaz de compreender; aquele seu jeito de caipira simplório enganava muita gente que não sabia o quanto ele era esperto; algo que Theo já havia descoberto. Catherine podia não saber muita coisa sobre ele, mas sabia o quanto podia ser persistente, pois jamais havia desistido de ligar para ela. Ele sempre telefonava uma vez por mês para saber como ela estava, recusando-se a abandonar seu propósito diante da frieza e da indiferença dela. Catherine deveria ter deduzido que ele faria com que Michelle dedicasse toda sua atenção aos documentos e que o entregasse às pessoas certas.
Mas havia evitado a polícia e dado uma segunda cópia a Rosa. Ora, mas por que faria isso?
A resposta, de repente, ficou óbvia, clara como o dia. Porque sabia que Rosa jamais iria à polícia. E isso significava...
— Filho da puta! — murmurou para si mesmo.
Estava louco da vida consigo mesmo por ter levado tanto tempo para compreender. Desculpe, Catherine, sou meio devagar, certo?
Mal podia esperar para contar a Noah. Empurrou a porta de mola com ímpeto e, na pressa, bateu em um dos carrinhos de troca, fazendo com que se chocasse contra a parede do outro lado. Uma pilha de toalhas caiu sobre seu pé quando ele segurou o carrinho para impedir que virasse. Ele abaixou-se para juntar as toalhas e estava com os braços cheios quando ouviu o ruído do elevador chegando àquele andar, seguido do deslizar das portas se abrindo.
A Detetive Harris saiu do elevador. Sem o ter visto, virou para o outro lado e dirigiu-se para a sala de espera. Não estava usando sapatos baixos naquela noite. Andava depressa, como a maioria dos policiais sobrecarregados fazem, pois estão sempre atrasados e os saltos batiam ritmadamente sobre o chão de linóleo.
Theo avançou e chamou-a:
— Ei, detetive, está procurando por mim?
Ela já estava quase na sala de espera. Assustada, deu meia volta e enfiou a mão no bolso, depois sorriu.
— De onde saiu?
Noah apareceu silenciosamente no corredor, por trás de Dallas, enquanto esta dirigia-se para Theo.
— Dali de trás — Theo respondeu. — Já conversamos. Preciso fazer uma ligação bem rápida.
Virou-se para a parede onde estava o telefone, tirou do gancho, esperou a operadora atender e falou em voz baixa. Depois desligou e voltou a sorrir.
— Como sabia que eu estava aqui?
— Sou detetive. Sei onde encontrar as pessoas — ela riu. — Um homem no Cisne disse-me que estava aqui, e na Recepção me disseram que estaria neste andar. Não precisei fazer grandes investigações. Sei que estou atrasada. Já faz mais de doze horas, mas o trabalho me deteve. Mantive minha palavra, mesmo assim.
— Não achei que fosse aparecer. Estou impressionado.
— Mandei fazer cópias dos documentos que estavam naquele pacote e só vou deixar que leia porque tenho bom coração — ela disse. — Não se esqueça que todo o trabalho de investigação é meu — acrescentou depressa.
— Prometo não interferir — ele disse. — E onde estão as pastas sobre Monk?
— Aposto que não acreditou quando disse que passei três anos perseguindo o fantasma. Estou com caixas cheias de pastas no porta-malas do carro. Levará uns quinze dias para conseguir ler tudo.
— Está querendo que eu me arrependa de ter pedido?
— Claro — ela disse e tremeu visivelmente. — Nossa, está frio aqui. Parece um túmulo. E então, o que quer fazer? Transferir as caixas direto para o seu carro, ou prefere que eu leve para algum lugar?
— Podemos fazer a transferência agora. Posso começar a ler esta noite mesmo.
— Como preferir.
— Já fez alguma prisão?
Os olhos dela contraíram-se levemente. A pergunta certamente a irritou.
— Ainda não — ela respondeu asperamente. — Ele escapou. Faz isso comigo toda vez que chego perto. Desaparece no ar, parece. Nós o seguimos até um motel em St. Claire. Cercamos o lugar e entramos. O carro dele estava parado na porta, mas ele já tinha sumido. Teve de sair correndo, no entanto. Não teve tempo de levar seu equipamento, nem a roupa junto. Espero que meu pessoal tenha sorte desta vez e consiga encontrar alguma impressão digital. Estão trabalhando com isso agora.
— Posso ir lá dar uma olhada, então? — Theo perguntou.
— Claro, desde que não atrapalhe nem interfira.
— Já prometi que não vou atrapalhar.
— Certo — ela disse. — Pode ir ver. É o Motel St. Claire, na esquina da Rua Quatro com a Rua Summit.
Ela apertou o botão do elevador e esperou. Olhando para cima, viu que o número quatro estava aceso. Esperaram lado a lado por vários instantes. Ela socou o botão, dessa vez. Impaciente, ela disse:
— Vamos pela escada. É mais depressa e quero voltar o quanto antes para Nova Orleans.
— Tem um encontro quente para esta noite?
— Como sabe?
— Adivinhei. Já vai ser bem tarde quando chegar de volta por lá. Ela voltou a olhar para cima. O número quatro continuava aceso.
— Nova Orleans não pára. O bairro chamado Quarter ainda estará fervendo quando eu chegar lá. Vamos indo.
Theo deu-lhe passagem e ela virou-se para ir na frente. Parou de chofre. Noah estava parado à sua frente, com as mãos cruzadas atrás das costas.
— Como vai? — ele cumprimentou, sorrindo.
— Ah, você está aí — Theo disse. — Deixe-me apresentar você para a Detetive Harris. Detetive, este é Noah Clayborne — continuou, pondo a mão no ombro dela. — Noah trabalha para o FBI e também é um grande amigo meu.
Colocou-se por trás dela, enquanto Noah dizia:
— É um prazer conhecê-la, Detetive. Eu estava justamente... Theo deu mais um passo atrás e disse:
— Ei, Dallas!
Ela instintivamente virou-se. Enquanto virava-se, porém, percebeu o que acabava de acontecer. Seus olhos arregalaram-se e ela tentou se afastar, mas já era tarde. Theo jogou-a contra a porta do elevador, prensando seu rosto contra o metal, impedindo que ela disparasse o revólver que sabia que ela tinha no bolso. Noah deu um passo à frente e deu-lhe uma chave de braço, batendo forte em seu pulso para ela deixar cair o revólver, que Theo chutou para o lado.
— Onde estão seus amigos? — Theo perguntou.
Afrouxou um pouco o braço, para forçá-la a virar e ficar de frente para eles. Ela aproveitou a vantagem e, praguejando, tentou acertar o joelho na virilha de Noah.
— Ela não é uma gracinha? — Noah disse, desviando-se a tempo, para depois perguntar com uma voz ríspida. — Onde estão seus amigos?
Ela não respondeu. Tinha os lábios fechados, a mandíbula cerrada e olhava com raiva e desprezo para Noah.
Theo voltou a examinar os números acima do elevador. Ainda parado no quatro.
— Eles estão nas escadas — Theo observou. — Devem ter bloqueado o elevador para eu ter de descer as escadas. Pode ser que não saibam que está aqui.
— Eles sabem? — Noah perguntou a Harris.
Os dedos dele estavam em volta do pescoço dela, o polegar pressionando sua carne quando ele levantou-a do chão, fazendo-a deslizar pela porta do elevador. Ela virou-se para a esquerda e gritou com toda a força dos pulmões:
— Preston!
Depois, virando-se para a direita, gritou para Monk que atacasse. O punho de Theo silenciou-a. Ela fechou os olhos no mesmo instante e, quando Noah soltou-a, desabou no chão, inconsciente. Noah inclinou a cabeça para o corredor e murmurou para Theo que se preparasse. Rapidamente tateou Harris em busca de outras armas. Encontrou uma Glock no suporte e removeu-a. Estava verificando se ela teria outra arma escondida no tornozelo, sob a calça, quando ouviu o leve ranger de uma porta se abrindo. Apontou na direção da sala de espera, indicando a Theo que o som vinha de lá.
Theo já tinha ouvido. Ele fez um sinal positivo com a cabeça e deu um passo naquela direção. Noah encontrou o suporte no tornozelo, tirou o revólver, que colocou na cintura de sua calça jeans. Voltou a procurar nos bolsos do colete dela, pegou quatro pentes de balas e voltou a ficar em pé. Moveu-se rapidamente, colocando-se silenciosamente atrás de Theo. Colocou dois pentes de balas nos bolsos de trás de Theo e depois entregou-lhe a Glock de Harris, para que ele tivesse uma arma em cada mão. Com as armas em punho, eles esperaram, escondidos no recesso diante da porta do elevador.
Theo ouviu o estalido suave de uma porta se fechando. Vinha da saída que ficava logo depois da sala de espera. Monk. Depois, outro estalido no ponto oposto do corredor, próximo da sala de cirurgia. Preston deveria ser o homem do outro lado. Onde estava John? Estaria no elevador? Ou estaria na escada?
Esforçou-se para ouvir passos. Nada. Nem um som. Estariam esperando que ele e Noah fossem para o corredor? Seu coração batia tão forte que parecia repercutir nos ouvidos; sua respiração parecia arranhar as vias respiratórias.
— Emboscada — Noah sussurrou. — Deixe que venham até nós.
Theo sacudiu a cabeça. Não queria nem saber se estava encurralado. Não podia mais esperar. Nem queria. O elevador continuava preso no quarto andar. Havia dois homens esperando para acabar com eles, mas não esperariam muito tempo e, se Michelle ou uma das enfermeiras saísse para fazer algum comunicado aos Watersons, eles a matariam.
— Michelle — ele murmurou seu nome.
Noah assentiu com a cabeça, mostrando que compreendera o raciocínio. Theo prendeu uma das armas debaixo do braço, abaixou-se e pegou um dos sapatos de Dallas, que jogou para o corredor. Preston imediatamente abriu fogo. Três tiros. Depois, mais uma vez o silêncio.
Ambos ouviram o som alto de sirenes que aproximavam-se.
— Polícia? — Noah perguntou.
Theo fez sinais, indicando que tinha pedido à telefonista para chamá-los, depois cochichou:
— Não dá mais para esperar.
Sabia que Preston, Monk e John tinham ouvido as sirenes. Poderiam até pensar que eram de ambulâncias, mas ainda assim quereriam agir rápido para acabar com o serviço. Não, não esperariam muito mais tempo. Theo deu um passo rápido em direção ao corredor, mas Noah segurou-o.
— Costas com costas — sussurrou — Só assim podemos agir. Vamos nos mover juntos. No três?
Com os revólveres apontando para cima, ambos inspiraram profundamente. Noah colocou-se de costas para Theo e disse baixinho:
— Um.
Com o canto do olho, Theo viu Harris mover-se. Estava tentando se pôr de joelhos. Havia pegado o revólver que Theo tinha chutado para o lado e estava apontando para Noah.
Theo atirou. O disparo fez com que as portas do elevador tremessem. A bala atingiu Harris na depressão abaixo do pescoço. Com os olhos arregalados, sem conseguir acreditar, ela caiu para trás. Seus olhos fecharam-se no segundo seguinte e ela já estava morta. A cabeça pendeu sobre o peito enquanto ela desmontava contra a porta do elevador. Noah mal olhou para ela e continuou a contar.
— Dois...
Virou-se, seus ombros tocando os de Theo.
— Vamos com isso! — Theo cochichou.
— Já!
Theo e Noah irromperam pelo corredor. Cada um localizou seu alvo, fez pontaria e atirou.
Noah atingiu Monk, mas o matador não se intimidou. Abriu a porta e mergulhou para as escadas. Noah continuou avançando, sabendo que Theo estava protegendo sua retaguarda, assim como protegia a de Theo. Ao chegar junto à porta, encostou-se na parede, esgueirou a mão para dentro e atirou outra vez. Monk esperava por ele. Atirou ao mesmo tempo. A bala abriu um buraco na porta, enquanto Noah protegia-se. Uma saraivada de balas seguiu-se, até a parede junto à porta ficar toda furada, com lascas de gesso voando para todo lado. O ar estava denso de pó de gesso.
O barulho era ensurdecedor. Os disparos ecoavam em seus ouvidos, mas ele julgou ter ouvido o grito de uma mulher. Não tinha certeza. Noah olhou por cima do ombro, viu Theo correr, seus revólveres disparando, enquanto o homem que ele estava perseguindo escondeu-se por trás das portas que davam para o centro cirúrgico.
Vá para a direita. Para a direita. Para longe de Michelle.
Theo jogou-se para dentro, atravessando as portas. Lançou-se no chão, rolando e rezando a Deus para que Preston estivesse indo para a saída.
A Glock da mão esquerda estava vazia. Não podia perder tempo recarregando. As portas que levavam à UTI estavam balançando. Preston estava lá, esperando. Theo tinha certeza. Colocou-se em pé com cuidado, viu uma sombra difusa passar pelo vidro e sabia que tinha de dar a volta no fim do corredor e sair da linha de tiro.
Conseguiu, mas foi por pouco. Uma bala passou a pouco mais de um centímetro de seu rosto. Uma enfermeira saiu da sala de cirurgia gritando.
— Volte para lá — ele gritou, tirando o pente vazio do revólver, pegando um cheio do bolso de trás e colocando-o no lugar.
A enfermeira desapareceu de volta à sala de cirurgia, enquanto Theo colava o corpo à parede e esperava. Podia ouvir Willie Nelson cantando. Como vinha andando junto à parede, seu ombro acidentalmente roçou no interruptor da luz. A canção acabou-se e o corredor ficou escuro. A luz que entrava pela janela do centro cirúrgico era suficiente para Theo enxergar. Preston teria ido embora? Teria feito algum refém? Ou encontrado alguma outra saída? Teria de passar por ali de qualquer jeito, não teria?
Onde diabos estaria a polícia? Nunca aparecia quando se precisava dela, pelo jeito. Apareça, Ben. Traga sua cara feia para cá. Salve o dia.
Não pense que vai passar por mim, Preston. De jeito nenhum. Fique invisível, Michelle. Não apareça até esta confusão acabar-se. Ele lembrou-se do carrinho de trocas e foi voltando para trás, até seu pé tocá-lo. Enganchou a perna na haste de metal e puxou-o até o canto. Vamos. Vamos. Faça seu jogo.
Michelle tinha acabado de dar o último ponto e estava esperando para ouvir aquela bela primeira tosse que ocorre quando o anestesista remove o tubo. O menino havia enfrentado a cirurgia como um campeão. Se não houvesse uma complicação, John Patrick estaria escalando sua árvore favorita dentro de um mês. Seria necessário, no entanto, que a mãe não o perdesse de vista.
— Vamos lá, John Patrick, pode tossir para mim — ela murmurou. Ouviu um grunhido leve, seguido de uma tosse seca logo em seguida.
— Pronto para outra — o anestesista disse, tirando a máscara e abrindo um sorriso. — Este é um garoto de sorte.
— Ótimo trabalho — ela disse, cumprimentando a equipe.
De repente, tiros foram disparados no corredor. O caos se seguiu. Uma das enfermeiras gritou e correu para a porta, para ver o que estava acontecendo, ignorando os gritos de Michelle e de Landuski para que não fosse. Depois, ouviu Theo gritar para a enfermeira voltar.
— É Theo. Ele está ferido? — Michelle perguntou.
— Não sei. Alguém pode me dizer, por favor, o que está acontecendo?
Ninguém tinha uma resposta a dar. Toda a preocupação naquela sala era com o pequeno paciente. John Patrick estava respirando sem a ajuda de aparelhos e sua respiração soava tranqüila e clara. Landuski ajudou Michelle a colocar a mesa contra a parede além da porta. Uma enfermeira levou o suporte de soro, colocando-o ao lado; depois, ela e uma outra enfermeira curvaram-se sobre o garoto, para protegê-lo de qualquer pessoa que por acaso entrasse correndo na sala de cirurgia com um revólver na mão. Landuski teve a mesma idéia e colocou-se atrás da cabeça do menino, protegendo-o com as mãos em volta do rosto, inclinado sobre ele. Os outros agacharam-se no canto e esperaram. Uma das técnicas colocou as mãos sobre os ouvidos e começou a chorar em silêncio.
Michelle já havia pegado o pesado extintor de incêndio e segurava-o como se fosse um bastão de beisebol. Ficou ao lado da porta, mas a uma distância suficiente que lhe permitisse agir, caso o atacante abrisse a porta com força. Depois apagou as luzes e esperou. Não se permitiria pensar em Theo. Só um pensamento ocupava-lhe a mente no momento: manter o atacante longe da sala de cirurgia.
— Se alguém disparar um revólver aqui, o andar inteiro pode explodir — Landuski murmurou. — Com os tanques de oxigênio e...
— Shhh.
Michelle e todos os outros ali dentro conheciam muito bem o perigo que corriam. Ela apurou os ouvidos. O que seria aquele ruído de algo girando depressa? Ora essa, sua fita de Willie Nelson estava sendo automaticamente rebobinada. Quando chegasse ao início, começaria a tocar novamente. O gravador estava do outro lado da sala, sobre uma mesa. Um lençol esterilizado o cobria.
Michelle teve vontade de gritar para Theo. Não podia, é claro. Tomara que ele esteja bem. Se estiver ferido... se estiver sangrando enquanto eu estou escondida atrás desta porta... Não! Não pense nisso. Onde estaria Noah? Por que não estava ajudando Theo? Estaria lá fora, também? Theo, onde você está?
Theo estava abaixado atrás do carrinho. Estava preparado. Sentiu, mais do que ouviu, o homem aproximando-se e empurrou o carrinho com toda a sua força quando Preston surgiu no canto. Estava atirando para o centro do corredor. O carrinho pegou-o em cheio, mas não conseguiu detê-lo. Sem dificuldade, Preston aparou-o com o braço e usou seu peso para lançá-lo de volta para Theo, fazendo-o bater contra a parede.
Theo caiu com força. Enquanto Preston tentava tirar o carrinho da frente, para conseguir ver onde ia atirar, Theo rolou para baixo de uma mesa e atirou. A bala atingiu a coxa esquerda de Preston. Isso também pareceu não impedi-lo. O cartucho vazio de balas caiu ao chão e ele já colocava outro no lugar quando Theo, rugindo como um urso em ataque, levantou o carrinho com o ombro, agarrou-o com a mão e usou-o como um aríete, forçando Preston a retroceder. Theo atirou e viu que o ombro de Preston fora atingido.
O filho da mãe nem se encolheu. O que seria necessário para derrubá-lo? Enquanto Preston lançava-se pela curva da parede, Theo fez mira e voltou a atirar. Um estalido e nada aconteceu. O revólver estava vazio. Pôs o braço para trás para pegar o segundo pente que Noah havia colocado em seu bolso, carregou o revólver depois mergulhou para a frente quando Preston abriu fogo para cima dele.
Uma bala passou raspando pela testa de Theo. Quantas balas o outro ainda teria? Theo pensou. Se tivesse sorte, talvez mais duas. Três no máximo. Sentiu uma dor que queimava no braço quando jogou-se outra vez para sair da linha de fogo.
O carrinho estava caído de lado. Theo deu graças a Deus, pois conseguiu proteger-se atrás dele. Preston lançou-se para a frente para conseguir ver Theo, mas este deu um chute forte e atingiu o joelho do atacante com força. Ainda assim, o outro não caiu. Cambaleou para trás, acertando um tiro no teto.
A porta do lado que não se via parecia ter explodido ao abrir. Preston não se virou para trás para ver quem vinha. Estava a cerca de meio metro de uma sala escura, viu as portas de mola e percebeu que era hora de dar o fora. Sem saber onde estava, correu para dentro da sala de cirurgia, esperando encontrar uma saída do outro lado.
Preston parou e tentou ajustar a visão ao escuro, ouvindo com atenção enquanto se afastava da porta. Virou-se para Michelle, com o cano do revólver apontado em sua direção.
Ela podia ouvir sua respiração rápida. Estava perto demais. Mais um passo e se chocaria contra ela. Ela sabia que teria de dar um passo atrás para conseguir acertar-lhe um bom golpe, mas ele a ouviria.
Por que ele não se movia? Saberia que ela estava lá? Só mais um passo à frente.
Ela precisava de algo que o distraísse. Alguma coisa... qualquer coisa que o afastasse dela para ela poder bater. Willie Nelson veio em sua ajuda: To all the girls I've loved before... No instante em que a música começou, Preston virou-se e atirou mais de uma vez no gravador. Michelle girou o extintor, atingindo-o no queixo.
— Acenda a luz! — ela gritou, enquanto Preston ia cambaleando para o corredor..
Foi atrás dele e golpeou o lado de sua cabeça. O segundo golpe pareceu funcionar. Ele voou para trás e caiu com um ruído surdo junto à parede.
Michelle parou. Theo saltou na frente dela ao ver que Preston estava erguendo o revólver. Theo disparou e o atingiu no abdome. Com as costas, empurrou Michelle de volta para a sala de cirurgia, afastando-a do perigo.
Preston dobrou-se sobre os joelhos quando Noah correu para ele gritando:
— Largue a arma!
Preston ainda virou-se para Noah e apontou a arma, mas nem conseguiu puxar o gatilho. Noah atirou. A bala perfurou-lhe a têmpora. Preston caiu para a frente, de cara no chão. Uma poça de sangue escuro logo formou-se em volta dele.
Michelle empurrou Theo para o lado, para afastá-lo da porta, enquanto anunciava:
— Caminho livre! Vamos levar o paciente para a recuperação. Theo encostou-se na parede e lentamente escorregou até ficar
sentado, enquanto Noah acocorava-se junto de Preston para tirar o revólver de sua mão.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo, então. Theo fechou os olhos e respirou fundo. Ouvia o ruído das rodinhas enquanto as enfermeiras levavam John Patrick para fora da sala de cirurgia, passando ao lado de Preston.
Michelle ajoelhou-se junto de Theo. Tirou as luvas e, com cuidado, examinou o corte que tinha logo abaixo do olho.
— Estou velho demais para isso — ele resmungou.
— Você está bem? — Noah perguntou, guardando o revólver.
— Estou. Conseguiu pegar o tal que se chama Monk?
— Não.
— Não? — ele gritou, tentando desviar-se das mãos de Michelle para poder ver Noah.
— Não sei como ele conseguiu, mas fugiu. Tenho certeza que o atingi — Noah disse — Todas as saídas estão bloqueadas e estão fazendo uma varredura de todos os andares, mas o diabo escafedeu-se.
— Você não pode ter certeza disso.
— Um paciente do terceiro andar estava olhando pela janela e viu um homem correr por cima de um canteiro de flores e subir o morro. O paciente contou que o homem estava inclinado para a frente.
— E John Russell? Alguma notícia dele? — Theo perguntou.
— Nada — Noah respondeu.
— Você arrebentou seus pontos — Michelle observou.
— O quê?
Ela havia falado em voz baixa e suas palavras soaram como uma repreensão. Theo olhava para Noah, imaginando o que seriam as manchas brancas em seu rosto, quando ela interrompeu. Finalmente ele olhou para ela e viu lágrimas correndo em seu rosto, o que surpreendeu-o. Afinal ela não era tão durona. Não com relação a ele, pelo menos.
— Não fiz de propósito, meu bem.
Ele tentou enxugar uma lágrima do rosto dela. Ela afastou a mão dele.
— Vou ter de costurar você de novo — ela disse, tremendo como um alcoólatra em abstinência. — Olhe só para as minhas mãos. Estão tremendo.
— Então teremos de esperar para deixar você pegar uma agulha e mexer em mim.
— Você se jogou na minha frente para eu não levar um tiro. Coisa de herói, seu bobo. Podia ter sido morto.
Desta vez, ele não permitiu que ela o afastasse. Prendendo o rosto dela entre as mãos, ele sussurrou:
— Também amo você.


Capítulo 41

 

Tenha sempre um plano de contingência.
Quando dois carros da polícia surgiram na área do hospital, com luzes piscando e sirenes ligadas, John percebeu que estava na hora de dar o fora. Abaixou-se em seu banco — uma precaução desnecessária, mas instintiva, mesmo assim — e deu a partida. Esperou mais dois segundos, até ver os policiais correndo para dentro do hospital. Depois, lentamente tirou o carro da vaga, manobrou e foi saindo.
Não lhe importava, realmente, se os amigos estavam vivos ou mortos. Por que importaria? Seus planos não seriam afetados, fosse qual fosse o fim daquela aventura.
Mesmo se a polícia os levasse vivos, e eles contassem tudo o que sabiam, seria tarde demais. E, se por algum milagre, um ou dois escapassem, ora, também não importaria. John teria tempo suficiente para transferir o dinheiro do Clube dos Semeadores para uma conta na Suíça, que havia aberto anos antes. Havia levado seu laptop consigo — achava incrível que Dallas não tivesse perguntado para que John o havia trazido — e só precisaria de uma linha telefônica, alguns comandos pelo teclado e estaria livre para o resto da vida.
Fugir rápido era só o que lhe interessava naquele momento. Dentro dos próximos minutos, um dos policiais viria correndo para fazer o bloqueio da saída do estacionamento. Talvez até já houvesse um carro de polícia lá. Era muito perigoso arriscar-se a ser parado, John decidiu.
Voltou com o carro para o estacionamento, depois foi dirigindo bem devagar, descendo pela entrada de serviço por trás do hospital.
Foi então que viu Monk mancando pela descida, em direção à rua. Uma das mãos segurava o lado. Teria sido atingido? Era o que parecia.
John riu. A oportunidade simplesmente era boa demais para perder. Não havia ninguém em volta. Ninguém veria. Ele devia uma grana preta para Monk. Humm, murmurou. Vá nessa, sua mente parecia gritar. Acabe com ele agora.
Aproveitou o momento. Virando o carro bem para o lado, subiu na calçada e pisou fundo no acelerador. Monk ouviu John aproximar-se e virou-se. Ao ver John, parou e esperou.
O idiota acha que vou parar para pegá-lo. Aumentou a velocidade ao se aproximar. A expressão no rosto de Monk ao ver o que estava para acontecer era hilariante. Parecia definitivamente chocado.
John calculou mal, no entanto. Achou que Monk se jogaria para a esquerda e ajeitou o carro para pegá-lo de frente, mas Monk saltou para o outro lado e o carro apenas relou nele, ao passar correndo.
John preferiu não correr o risco de voltar e tentar mais uma vez.
— Ah, que azar. A gente faz o que pode — disse para si mesmo, descendo da calçada e caindo com força na rua. Cortando por um lugar menos movimentado, chegou à rua principal seis quarteirões depois do hospital e teve certeza, então, de que estava a salvo.
Pegou seu telefone celular, ligou para o piloto que havia contratado meses antes e disse-lhe que chegaria ao aeroporto municipal em 45 minutos. Virou à esquerda no farol seguinte e tomou o sentido oposto a Nova Orleans. Jamais poderia voltar, é claro. Apesar de já ter providenciado uma nova identidade — o passaporte estava na bolsa do computador — sabia que jamais poderia voltar aos Estados Unidos.
Não perderia grande coisa, no entanto. Afinal, tinha milhões de dólares para mantê-lo feliz. John não era de se gabar, mas era o que estava fazendo no momento. Afinal, driblara a Justiça em um caso de assassinato e estava escapando com a boa vida garantida.


Capítulo 42

 

Michelle acabou de escrever como os remédios deveriam ser administrados e foi até a sala de recuperação para ver como estava John Patrick. A enfermeira havia trazido os pais para lá, e Daryl e Cherry estavam de mãos dadas ao lado do leito do filho. Elliot estava do lado de fora, ainda muito ansioso para dar mais do que uma espiada da porta.
— O pior já passou — Daryl disse, depois olhou para Michelle. — Você também comeu o pão que o diabo amassou esta noite, não é? A polícia bloqueou as escadas e o elevador, e a gente adivinhou que alguma coisa de ruim estava acontecendo, mas não fazia idéia da loucura que estava acontecendo aqui em cima.
— Até foi bom a gente não saber — Cherry comentou, enxugando o canto dos olhos com o lenço.
— Ouvimos os tiros. Todo mundo no hospital ouviu os tiros, mas a gente sabia que vocês não deixariam nada de ruim acontecer com o John Patrick.
— O Dr. Landuski estará aqui até de manhã — Michelle disse. — Mas se quiserem que eu fique...
Daryl nem a deixou terminar.
— Já fez sua parte e nem sabemos como podemos lhe pagar por isso. Pode ir para casa.
Michelle desceu para o pronto-socorro para ir buscar Theo. A idéia de poder dormir durante uma semana parecia fantástica. Ela imaginou se ele estaria tão cansado quanto ela. Michelle já tinha costurado o braço dele outra vez e ele havia ficado esperando na sala de
atendimento, sentado em uma mesa de exame, com uma bolsa de gelo no joelho, enquanto falava ao telefone. Ele desligou quando ela entrou.
— Os Detetives Underwood e Basham pegaram Cameron Lynch e ele soltou a língua — contou. — A primeira coisa que disse, depois que leram seus direitos, foi que não queria ser acusado pelo assassinato da esposa de John. Disse que foi uma morte misericordiosa.
— E ele acha que isso lhes dava o direito de matar? — ela disse, sacudindo a cabeça.
— Não sei qual é o julgamento dele — Theo comentou. — Só sei é que o motivo foi o dinheiro.
Ele estendeu o braço e puxou-a para si, segurando-a pela cintura. Precisava tê-la por perto, tocá-la. Teve um momento lá em cima em que achou que poderia perdê-la e sabia que jamais esqueceria o terror desse momento.
Ele beijou-a junto à orelha. Uma enfermeira estava parada no balcão, observando. Ele não se importou e, pelo modo como Michelle acomodou-se junto a ele, sabia que ela também não estava ligando nem um pouco.
Noah entrou no pronto-socorro.
— O que é isso cobrindo todo o seu rosto? — Michelle perguntou. Ele foi até o espelho acima da pia para verificar.
— Acho que são lascas e poeira de gesso — ele disse e passou a var o rosto.
Theo contou sobre Cameron enquanto Noah lavava-se. — John já retirou o dinheiro da conta de Cayman. Usou o computador para fazer a transação.
— E para onde transferiu a bolada? — Noah perguntou.
— Ainda não sei, mas Underwood tem gente trabalhando nisso. Era um grupo interessante — comentou.
— O Clube dos Semeadores? Não sei o que vê de interessante em quatro crápulas — Noah disse.
Enxugou o rosto com a toalha e deixou-a sobre a pia. Depois virou-se e cruzou os braços sobre o peito, esperando que Theo explicasse.
— Quando John abriu a conta, disse aos amigos que todos os quatro teriam de ir ao banco para sacar o dinheiro. Era uma salvaguarda, segundo ele, só que não era verdade. John enganou a todos desde o começo; Dallas, Preston e Cameron foram bobos de continuar a acreditar nele depois de ele os convencer a arranjar a morte da esposa.
— Sim, por que precisaria da cooperação deles?
— Dallas era quem tinha a conexão com Monk — Theo explicou. — Não entendi muito bem por que quis envolver os outros dois, também. Eles tinham todas as bases cobertas. John trabalhava no setor bancário. Era advogado e vice-presidente do Departamento de Investimentos. Cameron usava sua firma de corretagem para poder extorquir o dinheiro de uma porção de aposentados. Dallas era da polícia e Preston trabalhava na Procuradoria, onde podia cuidar de problemas com a Justiça.
— Dallas falou a verdade sobre o fantasma. Ela tinha mesmo um dossiê sobre ele e todos os crimes pregressos, só para ter cobertura. Underwood está com o dossiê agora. Ele disse que Monk matou uma adolescente há algum tempo, e que o pai o contratou para fazer o serviço. Há provas suficientes para prender o pai, e os detetives estão atrás desse caso agora, também.
— Tomara que apodreça na prisão — Michelle disse, indignada.
— Pois é — Theo comentou. — Underwood acha que Monk é muito perspicaz.
Levantou a bolsa de gelo e colocou-a sobre a mesa atrás de si.
— O que ele quis dizer com "perspicaz"? — Michelle perguntou. Viu que Theo fez uma careta ao levantar a perna e colocou a bolsa de gelo sobre o joelho dele outra vez. Theo explicou:
— Ele sempre deixa uma rosa junto à vítima, normalmente na cama, pois prefere trabalhar à noite.
— Então a Detetive Harris não mentiu sobre isso — Michelle observou.
— Ela foi esperta — Theo comentou. — Ela chegou o mais perto possível da realidade para não ser pega em alguma contradição.
— Como descobriu que Harris era do bando? — Michelle quis saber.
— Quando Noah estava em Nova Orleans, pedi para ele dar unia investigada nela — Theo respondeu. — Achei muito estranho que o Capitão não tivesse dito nada a Noah sobre o caso em que ela estava trabalhando. Noah está acostumado a trabalhar com policiais de má vontade, que não querem que o FBI trabalhe com eles, e achou que estava sendo evasivo de propósito. Achei que talvez o Capitão não soubesse o que ela estava investigando, mas não me preocupei com isso. Deixei para lá e fui em frente.
— Eu deveria ter levado mais tempo e falado com outros detetives para saber como se sentiam ao trabalhar com ela — Noah disse.
— Talvez até ficassem do seu lado e lhe dessem uma mão — Theo comentou.
— Ainda não entendi como você juntou as peças e descobriu, Theo — Michelle disse.
— Catherine me contou — Theo respondeu. — Era uma mulher esperta. Finalmente compreendi por que ela fez tudo de maneira tão complicada. Ela não disse ao advogado para entregar os documentos à polícia por que sabia que um dos membros do Clube dos Semeadores era detetive da polícia. Ela deu a cópia de segurança a Rosa, porque sabia que a governanta jamais iria à polícia. Honestamente, não sei o que ela achou que Rosa faria. Talvez mandasse para alguém, sei lá.
Theo bocejou e continuou:
— De qualquer maneira, eu já suspeitava que Preston ou Harris era da polícia. Daí que Harris apareceu vestida com um colete acolchoado, quando estava quente de morrer e abafado. Quando ela apareceu no corredor, chamei e ela virou-se, a mão dela foi instintivamente para o lugar onde estava a arma, mas a outra mão continuou no bolso. Deduzi que estava levando uma arma de reserva.
— Go5taria muito de saber onde John Russell está se escondendo — Noah comentou.
— Eu também — Theo disse. — Vamos acabar pegando o bandido — bocejou. — Vamos para casa.
— Já estou pronta — Michelle disse.
— Noah vai dormir no quarto de hóspedes — Theo comunicou.
— Só por precaução.
— Você acha que John ou Monk... Theo não a deixou terminar.
— Não, mas vou dormir mais relaxado e você também. Foram para a saída. Theo colocou o braço por trás dos ombros de Michelle enquanto andavam.
— Preciso passar no meu hotel e pegar umas coisas — Noah comunicou. — Como está passando o menino, Mike? Estou precisando de boas notícias.
— Logo vai ficar bom — ela respondeu. — Não foi tão complicado quanto parecia.
— Ainda está chateado por ter permitido que Monk escapasse?
— Theo perguntou.
— Eu não podia estar em dois lugares ao mesmo tempo — Noah respondeu. — Eu sabia que tinha de voltar e salvar seu belo rabo, e achava que a polícia já havia bloqueado todas as saídas. Achei que pegariam o desgraçado.
— Eu é que salvei o seu rabo — Theo corrigiu.
— Salvou coisa nenhuma. Onde está a chave do meu carro?
— Deixei lá no carro.
— Noah, como sabe que acertou um tiro em Monk? Viu ele cair? — ela perguntou.
— Não, ele não caiu — Noah explicou. — Mas havia sangue na escada e na porta de acesso. Devo ter acertado o quadril ou o flanco. Ele subiu até o forro, depois desceu pela escada de incêndio — Noah disse e preparou-se para deixá-los. — Até daqui a pouco.
— Dá para esperar um pouco, só para ter certeza de que consigo ligar a picape? — Michelle pediu.
Ela ficou feliz por ter pedido, pois Noah sofreu um bocado para conseguir que funcionasse. Theo fez questão de dirigir e não mostrou ter problemas para usar sua perna direita na embreagem.
— Vou dormir até o meio-dia — ela disse.
— Não pode. Tem de levantar cedo para ir pescar. Michelle fez uma careta e protestou:
— Vou ficar na cama.
— Mas tem de ir comigo. Você é minha parceira no torneio.
— Estamos sem barco, não lembra? O meu está arrebentado no mato, em algum lugar e não é possível pescar bem sem um. Os melhores lugares para pescar ficam bem longe no pântano.
— Seu pai fez John Paul alugar um para nós. Já está ancorado atrás do Cisne.
Ela não gostou nem um pouco de ouvir aquilo.
— Quero ficar na cama, mas deixo a decisão para você. Afinal, você é meu hóspede — ela disse, chegando perto dele, pondo a mão em sua coxa e sussurrando com voz bastante sensual. — Vou fazer o que você quiser.
— Agora ficou difícil — ele brincou. — Vejamos. Uma opção é levantar antes de o sol nascer, uma coisa que eu adoro, ficar sentado o dia inteiro em um barco, com medo que cobras caiam em cima de mim, enquanto eu suo como um porco e dou tapas nos mosquitos. A outra....
— Qual é? — ela perguntou, sorrindo.
— Posso passar o dia na cama fazendo bobagem com uma mulher linda e nua. Ah, sim, é uma escolha bem difícil.
— Quem disse que estarei nua?
Ele olhou de uma forma para ela que fez com que seu coração se acelerasse.
— Meu bem, tenho certeza.
— Ai, ai, ai.
— Você está ficando vermelha. Depois de tudo o que...
Ela cobriu os lábios dele com a mão.
— Sei muito bem tudo o que fizemos.
De repente, ela percebeu que ele havia virado onde não devia.
— Para onde está indo?
— Para a lanchonete. Estou morto de fome.
— Tem um monte de comida em casa.
— Um hambúrguer bem grande vai fazer que eu agüente chegar até em casa.
— Está bem, não vou brigar por isso.
Logo depois, ele compreendeu por que ela não se opôs. Ela sabia que a lanchonete só abriria bem mais tarde. Quando chegaram em casa, ele estava com tanta pressa de despi-la que nem pensou em comida. Ela quis tomar uma ducha e ele não reclamou, pois foi para o chuveiro com ela.
Caíram na cama juntos e abraçaram-se. Depois ele colocou-se sobre ela, segurou-lhe os braços e disse todas as juras de amor que queria dizer e que achava que ela precisava ouvir. Achando que chegara a vez dela, ele murmurou:
— Pode falar.
Ela tentou ser prática:
— Quando você voltar para casa e retomar sua rotina...
— Diga — ele pressionou.
— Você vai encarar tudo o que houve entre nós como uma... aventura.
— Será que vamos ter nossa primeira briga?
— Não, só estou sendo...
— Diga.
Os olhos de Michelle encheram-se de lágrimas.
— Nós só nos conhecemos...
— Diga.
— Eu adoro você — ela admitiu baixinho.
Ele ficou tão feliz que a beijou, depois deitou-se ao lado dela e colocou-a sobre seu peito. Ela o molhou com suas lágrimas. Ele sabia por quê. Ela achava que ele voltaria a Boston e continuaria sua vida... sem ela.
Ele teria ficado zangado, se não lembrasse que ela não sabia quase nada sobre homens. Esperou até que ela parasse de chorar. Acariciando-a, disse:
— Namorei Rebecca durante um ano antes de ela se mudar para a minha casa. Vivemos juntos mais um ano antes de nos casarmos, mas sabe de uma coisa?
— O que é? — ela disse, levantando a cabeça para poder fitá-lo.
— Nunca a conheci tão bem quanto já conheço você. A vida é curta demais, Michelle, e quero ficar com você. Quero ver a vida passar ao seu lado.
Ela desejava acreditar nele desesperadamente. Sabia que ele estava dizendo a verdade, mas também estava convencida de que, quando ele voltasse ao trabalho em Boston, aos seus amigos e à família, perceberia que seu lugar era lá.
— Case comigo, Michelle.
— Você tem de voltar a Boston. Se você continuar a sentir o mesmo daqui a seis meses, então volte e peça outra vez.
Ele abraçou-a e rolou com ela na cama. Gostava muito dela. Mesmo que fosse tão teimosa.
Ele não quis discutir. Tinha outras coisas em mente naquele momento. Esfregou a ponta do nariz junto ao ouvido dela, enquanto afastava suas pernas.
— Você venceu, meu bem. Seis meses.


Capítulo 43

Ele conseguiu esperar três semanas, que foram terríveis para ele. Depois passou a arrumar a mudança, colocou seus barcos à venda, encheu o porta-malas do carro e foi para Bowen. Parou no Cisne, primeiro, apertou a mão de Jake e formalmente pediu a mão de sua filha.
Depois foi para casa. Para Michelle. Bateu na porta e, quando ela atendeu, envolveu-a nos braços e disse, de forma bem clara, que não tinha a mínima intenção de ficar seis meses longe da mulher que amava. Estava ali para ficar, e ela teria de aprender a lidar com isso.
Mas ela não estava contestando: estava ocupada demais tentando beijá-lo. Theo, porém, estava embalado e não conseguia parar. Disse a ela que abriria um escritório em Bowen e mostraria aos advogados chinfrins de St. Claire o que era concorrência, também faria alguns trabalhos para o governo federal em Nova Orleans, mas só alguns dias por semana, pois o Ministério da Justiça não queria que ele se afastasse. Disse também que já tinha uma boa quantia de dinheiro aplicado para que nada lhes faltasse até tudo se ajeitar.
Na verdade, poderia até se aposentar, graças à irmã, Jordan. Ele e os outros membros da família tinham investido na empresa dela, o que rendera a todos uma pequena fortuna. E, por último, ele contou, segurando as mãos dela para contê-la, já havia ligado para Conrad e informado que assinaria o contrato para treinar o time.
Só então beijou-a e disse o quanto a amava.
— Vim para Bowen em busca do que eu havia perdido. Eu queria sentir paixão e energia outra vez. Agora sinto-me realmente vivo, Michelle. Minha vida é aqui, com você. É aqui que me sinto em casa.
As lágrimas corriam pelo rosto dela.
— Adoro você, Theo. Ele apertou-a contra si.
— Se você algum dia me mandar embora outra vez, juro que faço alguma coisa para deixar você com tanta vergonha que você não vai mais levantar a cabeça. O pessoal aqui de Bowen ficará falando até para os nossos netos.
— Lembre-se que sou médica — ela riu — nada me deixa com vergonha.
— Ah, é? Então, se eu ligar para o hospital quando você estiver trabalhando e pedir para chamarem a Dra. Calcinha Esperta, você não ficará com vergonha?
Ela afastou-se para encará-lo.
— Você não se atreveria...
— Experimente!
— Nunca mandarei você embora. Prometo.
A tensão dos ombros dele foi aliviada e ele relaxou.
— Quero que você venha comigo ao casamento do meu irmão, no próximo fim de semana. Vai ser em Iowa. Quero que conheça minha família. Todos estarão lá. Você vai?
— Theo, você tem certeza...
— Absoluta certeza — ele respondeu, enfático. — Você pode pedir para o Dr. Landuski substituir você, não pode? Seu pai contou-me que você ainda não tirou férias.
— Quando falou com papai?
— Parei no Cisne antes de vir para cá. Você quer casar comigo, Michelle?
— Sim.
Simples assim. A alegria que sentia era enorme e ela começou a chorar.
— Fui pedir permissão a seu pai para casar com você.
— Aposto que ele chorou.
Ela ficou com os olhos rasos de água mais uma vez mas logo ele a fez rir:
— John Paul chorou, também.
— Ele vai acabar se acostumando com você.
— Acho que a cidade inteira vai comemorar. Todos estavam ajudando você a segurar seu par.
— Como?
Ele abriu um grande sorriso.
— Foi por isso que não encontramos nem um cartão de "Bem-vindo a Bowen" com toda aquela comida. Como você não percebeu? Todos sabiam que devíamos ficar juntos, menos você.
Antes que ela pudesse se aborrecer com a conspiração, ele voltou a beijá-la. Depois consultou o relógio.
— Preciso ir, meu amor. Não quero me atrasar para o treino. Ela ficou na varanda, observando-o se afastar. Depois suspirou.
Tinha um casamento a planejar. Pensou em tudo o que teria de fazer e decidiu que, se corresse com tudo, poderia marcar para dali a seis meses. Era um prazo razoável. Sim, seis meses. Casaram-se em três meses.
O casamento foi elegante. A recepção foi de arrasar. Os irmãos de Michelle, Remy e John Paul, foram os padrinhos e as irmãs de Theo, Jordan e Sidney, foram as madrinhas. Nick também foi padrinho e Mary Ann foi dama de honra.
A noiva estava radiante, mas terrivelmente nervosa ao entrar na igreja de braço dado com o pai, atravessando a igreja toda florida. Quando o noivo deu um passo à frente, devastadoramente lindo em seu fraque, e piscou para ela, ela começou a relaxar.
Big Daddy Jake queria alugar um salão elegante em algum hotel caro de Nova Orleans, mas Michelle e Theo não quiseram nem ouvir falar. Fizeram questão que a recepção fosse no Cisne.
Uma vez que não quiseram ceder, Jake acabou cedendo e resolveu usar um pouco da herança deixada por Catherine para deixar o lugar mais bonito. Deixou o pássaro lá de cima em paz, pois achava que a asa quebrada dava um certo charme ao local, mas mandou pavimentar o estacionamento, alugou uma enorme tenda branca e encheu-a de flores e mesas cobertas de toalhas de linho branco.
Contratou uma banda, também, mas no último minuto Zachary, o irmão de Theo, teve de substituir o baterista, pois Elton Spinner deu o fora assim que ficou sabendo a quantidade de gente ligada à polícia que viria ao casamento. Tudo indicava que Elton ainda tinha uma ordem de prisão pendente.
Theo ficou ao lado do irmão, Nick, observando Michelle dançar com o pai deles. Laurant, que havia casado com Nick, dançava com John Patrick. Noah e Mary Ann estavam colados um ao outro enquanto deixavam-se embalar pela música. Jake rodopiava com a mãe de Theo.
— Alguma notícia de John Russell? Ou de Monk? — Nick perguntou. — Noah contou-me que estão seguindo todas as pistas...
— Estão fechando o cerco. Não vai demorar muito para pegarem os dois.
— É uma previsão bastante otimista.
— Ei, hoje é meu casamento. Tenho o direito de me sentir otimista. Nick resolveu trocar para um assunto mais agradável.
— Noah e Jake ganharam mesmo o tal torneio?
— Ganharam, sim. Doaram o prêmio para o time de futebol. Todos os jogadores ganharão uniformes completos, e Jake está pensando em um meio para anunciar O Cisne na lateral do uniforme.
Nick sorriu.
— Então agora você é treinador de futebol acima de tudo, é? Theo não conseguia tirar os olhos de sua bela noiva, nem para olhar para o irmão.
— Pois é, sou. Quem diria, não é? Nick deu uma boa risada.
— Será bom ter uma médica na família. Mas conte-me uma coisa. Teve de cutucar o irmão com o cotovelo para chamar sua atenção.
— Ah... o quê?
— Como foi que aconteceu, Theo?
— Como foi que aconteceu o quê?
— Como você acabou sendo treinador? Theo abriu um amplo sorriso.
— Tinha um menino no posto...


Capítulo 44

 

Foi outra noite gloriosa no paraíso. O ar estava fresco e limpo; o céu estava repleto de estrelas que brilhavam sobre a cidade dourada.
Vestido com um roupão de seda e calçando chinelos de pelica, John postou-se no terraço de sua cobertura palaciana, admirando a noite. A vida não podia ficar melhor do que estava. Bebeu um gole do conhaque aquecido e suspirou de contentamento. As fragrâncias perfumadas da noite pairavam no ar.
Era simplesmente perfeito.
Estava vivendo uma utopia. Tinha uma nova vida, uma nova identidade e tanto dinheiro que jamais teria de tocar no capital principal. Poderia viver como um rei apenas com os rendimentos. Isso, para ele, era mais fantástico do que o lugar onde estava vivendo.
Por trás de si, ouviu o roçar de roupas e deduziu que a mulher estava se vestindo. Ela chamou-o. Ele olhou para trás e ela jogou-lhe um beijo enquanto dirigia-se para a porta. Esta, ele pensou, tinha sido melhor do que as outras, e ele gostaria de tê-la outra vez. Era muito criativa na cama, ousada e nada inibida. Talvez ligasse para ela no dia seguinte, mas então se lembrou da loura que havia marcado para ir entretê-lo. Qual era o nome dela? Não conseguia se lembrar. Só lembrava de como o tinha atraído. Fazia lembrar um pouco Dallas, e talvez fosse por isso que a desejou. Uma lembrança do passado. O Clube dos Semeadores — parecia que uma eternidade havia se passado, mas fazia apenas seis meses que John tinha embarcado naquele avião. Dallas e Preston estavam mortos. Havia lido sobre eles no jornal, e sempre pegava-se imaginando como, exatamente, tinham morrido. Teriam sido mortos por Buchanan, ou pelo outro. Qual era o nome dele? Clayborne. Era isso mesmo.
Pensou o quanto era irônico que justamente o mais fraco do grupo tivesse sobrevivido. Coitado do Cameron. John sabia o quanto ele era claustrofóbico. Como estaria sobrevivendo na prisão? John sorriu ao pensar nisso. Imaginou se Cameron já teria enlouquecido.
Monk deveria estar morto. John viu sua camisa empapada de sangue. Com certeza, não teria se arriscado a procurar auxílio médico e John achava que ele provavelmente tinha se arrastado para um buraco, em algum lugar, para ficar escondido até morrer.
Terminou de beber seu conhaque e colocou o cálice sobre a mesa. Bocejando, atravessou a sala e dirigiu-se para o quarto. A tal mulher havia deixado John exausto, e o dia seguinte seria um outro dia agitado. Queria levantar cedo para estar em seu iate até as nove. Arrumaria suas coisas para o cruzeiro rapidamente na manhã seguinte.
Abriu a porta do quarto, entrou e acendeu a luz. Ainda podia sentir o perfume da mulher. Não, a vida não podia ficar melhor do que já estava.
Espreguiçou-se, virando-se para a cama e preguiçosamente se pôs a desamarrar o roupão. Deu um passo à frente, depois um para trás.
— Não! — gritou. — Não pode ser!
No centro da cama, entre os lençóis de cetim, havia uma rosa vermelha de cabo comprido.

 

 

                                                                  Julie Garwood

 

 

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