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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O VÔO DOS ANJOS / Michael Connelly
O VÔO DOS ANJOS / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Depois dos violentos conflitos raciais que tomaram as ruas de Los Angeles após a absolvição dos policiais que espancaram o negro Rodney King, a cidade passou a viver em temor permanente de novos tumultos. Aproveitando esse clima, o advogado Howard Elias tornou-se uma celebridade, ao defender minorias de abusos policiais e com isso, conseguiu a inimizade de todo o Departamento de Polícia.
Quando Elias é encontrado assassinado, o caos parece iminente: algo deve ser feito rapidamente para evitar novos tumultos. Para isso, encarregam o detetive Harry Bosch do caso, mas impõem a ele uma equipe da qual desconfia. Mesmo assim, Bosch avança nas investigações, até descobrir fatos que incomodam seus superiores. O caso apresenta, então, um dilema. O que é mais importante: descobrir a verdade e punir os culpados, ou evitar um novo banho de sangue nas ruas de Los Angeles, mesmo que, para isso, seja necessário esconder os fatos?

 

 

 

 

 

 

 


Capítulo 1

A palavra soou estranha na sua boca, como se falada por outra pessoa. Havia uma urgência na sua própria voz que Bosch não reconheceu. O simples "alô" que havia sussurrado
ao telefone era pleno de esperança, quase desespero. Mas a voz que retornou a ele não era a que precisava ouvir.
- Detetive Bosch?
Por um momento, Bosch sentiu-se tolo. Especulou se a pessoa que ligava percebera a fraqueza na sua voz.
- Aqui é o tenente Michael Tulin. É Bosch quem fala?
O nome nada significava para Bosch, e sua momentânea preocupação sobre o
tom da sua voz foi varrida como um pavor tremendo entrado em sua mente.
- Aqui é Bosch. O que é? O que há de errado?
- Aguarde, por favor. É o subchefe Irving.
- O que é...
O tenente depôs o fone e houve apenas silêncio. Bosch agora se lembrava de quem era Tulin: o assistente de Irving. Bosch aguardou, imóvel. Olhou em
torno da cozinha; apenas a luz opaca do forno estava acesa. Uma das mãos segurava o fone contra o ouvido, a outra ele levou instintivamente ao estômago, onde o medo
e o horror se
retorciam juntos. Olhou para os números reluzentes no relógio do forno. Eram quase duas, cinco minutos passados da última
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vez em que olhara para ele. Isto não era correto, pensou enquanto aguardava. Eles não fazem isto por telefone. Eles vêm à sua porta. Dizem cara a cara o que precisam
dizer.
Finalmente, Irving falou do outro lado da linha.
- Detetive Bosch?
- Onde está ela? O que aconteceu?
Outro momento de silêncio excruciante se escoou enquanto Bosch esperava. Seus olhos estavam fechados agora.
- Como disse?
- Apenas me diga: o que aconteceu com ela? Quero dizer... ela está viva?
- Detetive, sei do que você está falando. Estou ligando porque preciso reunir sua equipe o mais rápido possível. Preciso de vocês para uma missão especial.
Bosch abriu os olhos. Olhou através da janela para o desfiladeiro escuro abaixo de sua casa. Seus olhos acompanharam a encosta da colina abaixo na direção da via
expressa e depois subiram de novo para o açoite das luzes de Hollywood, que podia ver através do corte de Cahuenga Pass. Imaginou se cada luz significava alguém
desperto e à espera de alguém que não viria. Bosch viu seu próprio reflexo na janela. Parecia exausto. Podia tracejar os círculos profundos debaixo dos seus olhos,
mesmo no vidro escuro.
- Tenho uma missão, detetive - repetiu Irving com impaciência. - Está em condições de trabalhar ou...
- Posso trabalhar. Só fiquei meio confuso por um momento.
- Bem, lamento se acordei você. Mas já deveria estar acostumado.
- Sim. Isto não é problema.
Bosch não lhe disse que não havia sido acordado pelo telefonema. Que estivera perambulando pela casa às escuras, à espera.
- Então se apresse, detetive. Tomamos café aqui na cena.
- Que cena?
- Falamos a respeito quando você chegar. Não quero atrasar isto nem um pouco mais. Convoque sua equipe. Mande-os vir para a Grand Street, entre a Terceira e, a Quarta.
No topo do Vôo dos Anjos. Sabe onde fica?
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- Bunker Hill? Eu não...
- Vai ser explicado quando estiver aqui. Procure por mim logo que chegar. Se eu estiver no fundo, desça ao meu encontro sem falar com mais ninguém.
- E quanto à tenente Billets? Ela deveria...
- Ela vai ser informada a respeito do que está acontecendo. Estamos perdendo tempo. Isto não é um pedido. É uma ordem. Reúna sua equipe e venha para cá. Estou sendo
claro?
- Perfeitamente.
- Então estou aguardando.
Irving desligou sem esperar uma resposta. Bosch ainda ficou com o fone no ouvido por alguns instantes, imaginando o que estava acontecendo. era
um pequeno plano inclinado que transportava as pessoas para Bunker Hill, no centro da cidade - bem fora dos limites do setor de homicídios da Divisão de Hollywood.
Se Irving tinha um cadáver lá no Vôo dos Anjos, a investigação cairia sob a jurisdição da Divisão Central. Se os detetives da Central não pudessem dar conta por
excesso de trabalho ou problemas pessoais, ou se o caso fosse considerado por eles como importante demais e de interesse da mídia, então seria jogado para os tiras
da Divisão de Roubos e Homicídios. O fato de um subchefe de polícia estar envolvido no caso antes do dia raiar, e num sábado, sugeria a última possibilidade. O fato
de estar convocando Bosch e sua equipe, em vez dos tiras da DRH, era o enigma. Qualquer que fosse o caso em que Irving estivesse trabalhando no Vôo dos Anjos, não
fazia sentido.
Bosch relanceou mais uma vez para baixo do desfiladeiro escuro, afastou o fone do ouvido e desligou. Ansiava por um cigarro, mas conseguira atravessar a noite inteira
sem nenhum e não iria ceder agora.
Virou-se e encostou-se na bancada. Olhou para o telefone em sua mão, tirou o receptor do gancho e digitou o número que o ligaria com o apartamento de Kizmin Rider.
Ligaria para Jerry Edgar depois de falar com ela. Bosch experimentou uma sensação de alívio que relutava em admitir. Poderia ainda não saber o que o esperava no
Vôo dos Anjos, mas isto certamente o faria parar de pensar em Eleanor Wish.
A voz alerta de Rider atendeu ao segundo toque.
- Kiz, aqui é Harry - disse ele. - Temos trabalho.
Capítulo 2
Bosch combinou de encontrar seus dois parceiros na delegacia da Divisão de Hollywood, onde pegariam os carros antes de se dirigirem para o Vôo dos Anjos, no centro.
Descendo a colina para o posto policial, ele sintonizou a KFWB no rádio do seu jipe e pegou um noticiário sobre uma investigação de homicídio no local do histórico
plano inclinado. O repórter na cena do crime relatou que dois corpos haviam sido achados dentro de um dos vagões e que vários integrantes do esquadrão da Roubos
e Homicídios estavam lá. Mas a informação do repórter só ia até aí, enquanto ele também notava que a polícia havia isolado a cena do crime com uma grande fita amarela,
impedindo-o de olhar mais de perto. Na delegacia, Bosch comunicou esta informação a Edgar e Rider, enquanto eles assinavam a requisição de três carros bundas-lisas
na garagem da divisão.
- Parece que vamos servir de esparros para a DRH - concluiu Edgar, irritado por ter sido arrancado do sono para talvez passar todo o fim de semana fazendo o serviço
pesado para os tiras da DRH. Suar para a glória deles. E nem estamos na escala este fim de semana. Por que Irving não chamou a porra da equipe de Rice se precisava
de uma equipe de Hollywood?
Edgar acertara num ponto. A Equipe Um - Bosch, Edgar e Rider
- não estava no plantão daquele fim de semana. Se Irving tivesse seguido os procedimentos adequados, teria convocado a Equipe Três, chefiada por Terry Rice, que
era a primeira no rodízio do plantão.
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Mas Bosh já havia imaginado que Irving não estava seguindo nenhum procedimento, não se o havia chamado sem antes consultar sua supervisora, a tenente Grace Billets.
- Bem, Jerry - disse Bosch, mais do que acostumado com os resmungos do seu parceiro -, daqui a pouco você vai poder perguntar diretamente ao subchefe.
- É, tem razão. É só eu fazer isto para ter meu rabo plantado na Porto pelos próximos dez anos. Que se foda.
- Ei, a Divisão do Porto é uma moleza - disse Rider, só para caçoar um pouco com Edgar. Ela sabia que Edgar morava no Vale e que uma transferência para a Divisão
do Porto significaria uma penosa viagem de noventa minutos de ida e volta - a pura definição da terapia da via expressa, o método extra-oficial da chefia para punir
policiais descontentes ou problemáticos. - Lá eles só pegam uns seis, sete homicídios por ano.
- Isso é ótimo, mas me deixe fora dessa porra.
- Tudo bem, tudo bem - disse Bosch. - Vamos até lá e mais tarde nos preocupamos com essas coisas. Não precisa esquentar a cabeça.
Bosch tomou a Hollywood para a 101 e desceu a via expressa com tráfego mínimo para o centro da cidade. A meio caminho, olhou pelo retrovisor e viu seus parceiros
cruzando as pistas atrás dele. Mesmo no escuro e com outro tráfego ele podia vislumbrálos. Odiava os novos carros dos detetives. Eram pintados de preto e branco
e pareciam radiopatrulhas, só que não portavam luzes de emergência no teto. Tinha sido idéia do antigo chefe substituir os carros sem identificação dos detetives
pelos assim chamados bundas-lisas. Toda a coisa fora uma jogada para cumprir suas promessas de colocar mais policiais nas ruas. Ao trocar carros sem marca por carros
nitidamente marcados, ele dava ao público a falsa impressão de que havia mais policiais patrulhando as ruas. Ele também contava os detetives usando os bundas-lisas
quando se dirigia a grupos comunitários e orgulhosamente relatava que tinha aumentado em centenas o número de policiais nas ruas.
Enquanto isso, os detetives em serviço circulavam pela cidade como alvos. Mais de uma vez Bosch e sua equipe haviam tentado entregar um mandado de prisão ou entrar
discretamente numa vizinhança no decorrer de uma investigação só para ter sua presença
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assinalada pelos próprios carros. Era estúpido e perigoso, mas tinha sido decretado pelo chefe e era levado a cabo por todos os gabinetes das divisões de detetives
do departamento, mesmo depois que o chefe não conseguiu emplacar um segundo mandato de cinco anos. Bosch, como muitos outros detetives do departamento, esperava
que o novo chefe em breve ordenasse que os carros voltassem ao normal. Enquanto isso, ele não usava o carro a ele designado ao voltar do trabalho para casa. Tinha
sido um lindo exibicionismo de supervisor de detetive ter um transporte à disposição, mas ele não queria o carro marcado estacionado diante de sua casa. Não em Los
Angeles. Você nunca sabia que tipo de ameaça isto podia trazer.
Chegaram à Grand Street às 2:45. Enquanto reduzia antes de parar Bosch viu uma quantidade anormal de veículos policiais estacionados ao longo do meio-fio na Califórnia
Plaza. Ele notou as vans da perícia e do legista, diversas radiopatrulhas e vários outros sedas de detetives - não os bundas-lisas, mas os carros sem marca ainda
usados pelos tiras da DRH. Enquanto esperava por Rider e Edgar, ele abriu sua pasta, tirou o celular e ligou para casa. Após o quinto toque, entrou a secretária
eletrônica e ele ouviu sua própria voz lhe dizendo para deixar uma mensagem. Estava a ponto de desligar, mas decidiu deixar a mensagem.
- Eleanor, sou eu. Recebi uma convocação... mas deixe recado ou ligue para meu celular quando chegar, para que eu saiba que você está bem... Ha, tudo bem, é só.
Tchau... ah, são duas e quarenta e cinco agora. Madrugada de sábado. Tchau.
Edgar e Rider caminharam até seu carro. Ele guardou o telefone e saiu com sua pasta. Edgar, o mais alto, levantou a fita amarela da cena do crime e eles passaram
por baixo, deram seus nomes e números dos distintivos a um guarda uniformizado com a lista de presença e depois atravessaram a Califórnia Plaza.
A plaza era o ponto central de Bunker Hill, um pátio de pedra formado pela união de duas torres comerciais de mármore, um edifício de apartamentos muito alto e pelo
Museu de Arte Contemporânea.
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Havia uma fonte enorme e um espelho d'água no seu centro, embora as bombas e luzes estivessem desligadas àquela hora, deixando a água parada e negra.
Depois da fonte situavam-se a estação e, no topo do Vôo dos Anjos, a casa de máquinas em estilo clássico. Era perto desta pequena estrutura que a maioria dos investigadores
e patrulheiros se movia em círculos, como se esperando por alguma coisa. Bosch procurou pelo reluzente crânio raspado do subchefe Irvin Irving, mas não o viu. Ele
e seus parceiros passaram pelo meio da multidão e seguiram em direção ao solitário vagão assentado sobre os trilhos. Ao longo do caminho, Bosch reconheceu muitos
detetives da DRH. Homens que haviam trabalhado com ele anos antes, quando fizera parte do esquadrão de elite. Alguns acenaram ou o chamaram pelo nome. Bosch viu
Francis Sheehan, seu antigo parceiro, de pé e meio afastado fumando um cigarro. Bosch deixou seus parceiros e foi falar com ele.
- Frankie - disse. - O que aconteceu?
- Harry, o que está fazendo aqui?
- Fui convocado. Irving nos chamou.
- Merda. Lamento, parceiro, eu não gostaria de ter aquele cara como meu inimigo.
- Ora, o que...
- É melhor você falar com o homem primeiro. Ele está fazendo o maior segredo sobre o caso.
Bosch hesitou. Sheehan parecia abatido, mas já havia meses que não o via. Não fazia idéia do que havia colocado aqueles círculos escuros debaixo de seus olhos de
sabujo ou quando eles tinham sido traçados na face de Sheehan. Por um momento, Bosch relembrou o reflexo da sua própria face que tinha visto antes.
- Você está bem, Francis?
- Nunca estive melhor.
- OK, falarei com você.
Bosch voltou a se reunir com Edgar e Rider, que estavam parados perto do vagão. Edgar acenou levemente à esquerda de Bosch.
- Ei, Harry, está vendo? - disse em voz baixa. - Sustain Chastain e toda a patota bem ali. O que esses bundões estão fazendo aqui?
Bosch virou-se e viu a turma dos Assuntos Internos.
- Não faço a menor idéia - disse.
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Chastain e Bosch cruzaram os olhares por um momento, mas Bosch não sustentou o seu. Não valia a pena gastar energia olhando para o homem da Divisão de Assuntos Internos.
Em vez disso, concentrou-se na cena como um todo. Seu nível de curiosidade estava no máximo. A quantidade de tiras da DRH espalhados por ali, os elegantes da DAI,
um subchefe na cena do crime - ele precisava descobrir o que estava acontecendo.
com Edgar e Rider atrás dele, Bosch abriu caminho até o vagão. Luzes portáteis tinham sido colocadas e o interior estava iluminado como a sala de estar de alguém.
Lá dentro, dois peritos trabalhavam. Isto revelou a Bosch que estava chegando um tanto atrasado. Os peritos só tinham entrado em ação depois que os técnicos do médico-legista
completaram seus procedimentos iniciais - declarando as vítimas mortas, fotografando os corpos in situ, procurando por ferimentos, armas e identificação.
Bosch foi até a traseira do vagão e espiou pela porta aberta. Os técnicos trabalhavam em torno dos dois corpos. Uma mulher esparramava-se sobre um dos assentos reclinados
mais ou menos no meio do vagão. Estava usando leggings cinzentas e uma camiseta branca justa. Uma enorme flor de sangue tinha brotado do seu peito, onde ela fora
atingida bem no centro mortal com uma única bala. A cabeça estava jogada para trás contra o peitoril da janela atrás do seu assento. Tinha cabelos e feições escuros,
sua descendência obviamente se estendendo a algum lugar ao sul da fronteira. No assento ao lado estava uma sacola de plástico repleta de muitos itens que Bosch não
pôde ver. Um jornal dobrado sobressaía do topo da sacola.
Sobre os degraus perto da porta traseira do vagão estava o corpo de bruços de um negro usando um
terno cinza-escuro. De onde estava, Bosch não podia distinguir o
rosto do homem e apenas um ferimento era visível - um ferimento a bala que atravessara o centro da mão direita da vítima. Bosch sabia que isto era o que mais tarde
seria chamado de um ferimento defensivo no relatório da autópsia. O homem exibia na mão uma fútil tentativa de aparar o disparo. Bosch já vira isto com bastante
freqüência ao longo dos anos, o que sempre o fazia pensar nas ações desesperadas que as pessoas têm no final. Pôr a mão na frente para parar uma bala era uma das
mais desesperadas.
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Embora os técnicos estivessem entrando e saindo do seu campo de visão, Bosch podia olhar direto através do vagão e para os trilhos que desciam para Hill Street,
cerca de cem metros abaixo. Uma réplica do vagão situava-se lá embaixo, no final da colina, e Bosch pôde ver mais detetives movendo-se junto às catracas e às portas
fechadas do Grand Central Market, do outro lado da rua.
Quando garoto, Bosch tinha viajado no plano inclinado e estudara seu funcionamento. Ele ainda se lembrava. Os dois vagões gêmeos eram contrabalançados. Quando um
subia os trilhos paralelos, o outro descia e vice-versa. Eles se cruzavam a meio caminho. Bosch se recordava de ter viajado no Vôo dos Anjos muito antes que Bunker
Hill tivesse renascido como um vistoso centro comercial de torres de vidro e mármore, condomínios e apartamentos classudos, museus e fontes às quais se referiam
como jardins aquáticos. À época, a colina tinha sido um lugar de residências vitorianas outrora suntuosas transformadas em casas de cômodos de aspecto decrépito.
Harry e sua mãe tinham embarcado no Vôo dos Anjos colina acima procurando onde morar.
- Até que enfim, detetive Bosch.
Bosch virou-se. O subchefe Irving estava parado à porta aberta do pequeno prédio da estação.
- Todos vocês - disse ele, apontando para Bosch e sua equipe. Entraram num atulhado cômodo dominado pelas velhas e grossas
roldanas que uma vez movimentaram os vagões acima e abaixo pelo plano inclinado. Bosch lembrava-se de ter lido que quando o Vôo dos Anjos foi reabilitado, poucos
anos atrás, após 25 anos de abandono, os cabos e roldanas haviam sido substituídos por um sistema elétrico monitorado por computador.
De um lado da tralha só havia espaço suficiente para uma pequena mesa de almoço com duas cadeiras dobráveis. Do outro ficava o computador que punha os trens em
operação, uma ferramenta para o operador e um monte de caixas de papelão, o topo de uma delas aberto deixando entrever resmas de panfletos sobre a história do plano
inclinado.
De pé contra a parede mais afastada, na sombra por trás das velhas rodas de ferro, de braços cruzados e com seu rosto áspero e queimado de sol olhando para o chão,
estava um homem que Bosch
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reconheceu. Bosch certa vez trabalhara para o capitão John Garwood, comandante da DRH. Pelo aspecto do seu rosto, sabia que ele estava muito chateado com alguma
coisa. Garwood não olhou para eles e os detetives nada disseram.
Irving foi até um telefone sobre a mesa de almoço, enquanto começava a falar, fez sinal a Bosch para fechar a porta.
- Desculpe-me, senhor - disse Irving. - Era a equipe de Hollywood. Todos já chegaram e estamos prontos para começar.
Ele ouviu por alguns instantes, depois se despediu e pousou o fone. A reverência em sua voz e o uso da palavra senhor disseram a Bosch que Irving estivera falando
com o chefe de polícia. Era mais uma curiosidade a respeito do caso.
- Tudo bem, então - disse Irving, voltando-se e encarando os três detetives. - Lamento ter aporrinhado vocês, rapazes, especialmente fora do rodízio. Mas falei com
a tenente Billets e, a partir de agora, vocês estão dispensados do rodízio de Hollywood até resolvermos isto.
- O que exatamente é isto que vamos resolver? - perguntou Bosch.
- Uma situação delicada. Os homicídios de dois cidadãos. Bosch queria que ele fosse logo ao ponto.
- Chefe, estou vendo pessoal da DRH suficiente para investigar de novo o caso Bobby Kennedy de cabo a rabo - disse ele, relanceando para Garwood. - E isto sem falar
nos elegantes da DAI, fuçando pelas beiradas. O que exatamente estamos fazendo aqui? O que o senhor quer?
- É simples - disse Irving. - Estou passando a investigação para você. O caso agora é seu, detetive Bosch. Os detetives da Roubos e Homicídios vão se retirar assim
que o seu pessoal chegar lá em cima. Como pode ver, estão atrasados. É uma pena, mas creio que você vai ser capaz de superar isto. Sei que pode fazê-lo.
Bosch olhou apalermado para ele por um longo momento, a seguir relanceou de novo para Garwood. O capitão não se movera e continuava a olhar para o chão. Bosch fez
a única pergunta que poderia trazer alguma luz àquela estranha situação:
- Quem são o homem e a mulher mortos no vagão?
Irving sacudiu a cabeça.
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- Eram talvez seja a palavra mais correta. Eram. A mulher se chamava Catalina Perez. Quem exatamente era e o que estava fazendo no vagão, ainda não sabemos. Talvez
não importe. Parece que simplesmente estava no lugar errado, na hora errada. Mas isto é você quem vai determinar oficialmente. Seja como for, o homem é outra história.
Aquele era Howard Elias.
- O advogado?
Irving assentiu. Bosch ouviu Edgar começar a bufar e depois se
conter.
- Foi identificado?
- Infelizmente.
Bosch olhou por trás de Irving e através do guichê. Podia ver o vagão. Os peritos continuavam trabalhando, prestes a desligar as luzes para que pudessem usar laser
no interior do vagão à procura de impressões digitais. Seus olhos bateram na mão atravessada por uma bala. Howard Elias. Bosch pensou em todos os suspeitos possíveis,
muitos deles de pé lá fora naquele exato momento, observando.
- Merda - disse Edgar. - Acho que não podemos passar este
caso, podemos, chefe?
- Modere sua linguagem, detetive - retrucou Irving, ríspido, os músculos da mandíbula ficando protuberantes à medida que se enfurecia. - Não podemos aceitar isso
dessa vez.
- Olhe, chefe, tudo que estou dizendo é que, se está procurando alguém para fazer o papel de Pai Tomás do departamento, não
vai ser...
- Não tem nada a ver com isso - disse Irving, cortando-o. Quer você goste ou não, foi designado para este caso. Espero que cada um de vocês atue com profissionalismo
e cuidado. Acima de tudo espero resultados, assim como o chefe de polícia. Outras questões nada significam. Absolutamente nada.
Após um breve silêncio, durante o qual os olhos de Irving foram de Edgar para Rider e depois para Bosch, o subchefe continuou:
- Neste departamento só existe uma raça - disse. - Nada de brancos ou pretos. Apenas a raça azul.
Capítulo 3
A notoriedade de Howard Elias como advogado dos direitos civis não lhe viera por causa dos clientes que defendia - eles poderiam ser mais bem descritos como vagabundos,
se não como rematados criminosos. O que tornou o nome e o rosto de Elias tão conhecidos entre o povão de Los Angeles foi o uso que fazia da mídia, sua habilidade
em perfurar o nervo inflamado do racismo na cidade e o fato de sua prática jurídica ter sido construída inteiramente em torno de uma especialidade particular: processar
o Departamento de Polícia de Los Angeles.
Por quase duas décadas ele tivera uma vida mais do que confortável abrindo um processo após outro na corte federal em benefício de cidadãos que, de alguma maneira,
entraram em choque com a polícia. Elias processou patrulheiros, detetives, o chefe de polícia, a própria instituição. Quando processava, ele utilizava a abordagem
da metralhadora giratória, acusando qualquer um da polícia remotamente ligado ao incidente em questão. Depois que um suspeito de roubo em fuga foi mordido por um
cão da polícia, Elias entrou com processo em favor do homem ferido, acusando o cachorro, seu guardião e toda a hierarquia desde o guardião até o chefe de polícia.
Para completar, processara os instrutores do guardião na academia, bem como o criador do cachorro.
Nos seus "infomerciais" de fim de noite na TV e freqüentes entrevistas coletivas "improvisadas" mas espertamente orquestradas
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nos degraus do Palácio da Justiça, Elias sempre se apresentava como um cão de guarda, uma voz solitária gritando contra os abusos de uma organização paramilitar
fascista e racista conhecida como DPLA. Para seus críticos - e eles iam desde o mais baixo escalão do DPLA até os escritórios da promotoria pública - Elias era ele
próprio um racista, um predador que ajudava a alargar as rachaduras numa cidade já partida. Para estes detratores ele era a escória do sistema legal, um mágico do
tribunal que poderia escolher a carta em qualquer lugar do baralho e ainda assim extrair aquela que seria o seu trunfo.
Na maior parte das vezes, os clientes de Elias eram negros ou pardos. Suas habilidades de oratória e seu uso seletivo dos fatos ao empregar essas habilidades com
freqüência transformavam seus clientes em heróis comunitários, vítimas emblemáticas de um departamento de polícia fora de controle. Muitos nas comunidades do sul
da cidade confiavam unicamente em Elias para evitar que o DPLA agisse como um exército de ocupação. Howard Elias era uma das poucas pessoas na cidade que podia ser
absolutamente odiada e fervorosamente celebrada em diferentes quarteirões ao mesmo tempo.
Os poucos que veneravam Elias entendiam que toda a sua prática estava construída em torno de uma única peça da lei. Ele só entrava com processos no tribunal federal
e sob o respaldo dos códigos de direitos civis, que lhe permitiam cobrar da cidade de Los Angeles os honorários de qualquer caso que vencesse nos tribunais.
O espancamento de Rodney King, o relatório da Comissão Christopher responsabilizando o departamento pela agitação pública que seguiu na esteira do processo King
e o caso O. J. Simpson, racialmente dissidente, criaram uma sombra que se estendia sobre qualquer processo aberto por Elias. E, portanto, não era particularmente
difícil para ele, a fim de vencer os casos contra o departamento, convencer os júris a concederem pelo menos indenizações por danos morais aos queixosos. Tais júris
nunca perceberam que tais veredictos abriam a porta para Elias cobrar da cidade e dos contribuintes, eles próprios incluídos, centenas de milhares de dólares em
honorários.
No processo da mordida de cachorro, que se tornou a marca registrada de Elias, o júri achou que os direitos do queixoso tinham sido violados. Mas como este queixoso
era um ladrão com uma extensa
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ficha de prisões e condenações anteriores, o júri concedeu-lhe apenas um dólar por danos. Sua intenção era clara: mandar um aviso ao departamento de polícia
em vez de tornar um criminoso rico. Mas nada disso importava a Elias. Uma vitória era uma vitória. Seguindo a pauta federal, ele cobrou do município uma conta de
340 mil dólares em honorários. O município protestou e recorreu, mas ainda assim acabou pagando mais da metade. com efeito, o júri - e os muitos júris antes e desde
então - acreditava estar entregando uma repreensão para o DPLA, mas eles também estavam pagando por meia hora dos infomerciais de fim de noite de Elias no Canal
9, pelo seu Porsche e pelos ternos italianos que ele exibia nos tribunais, e por sua luxuosa casa em Baldwin Hills.
Elias, claro, não era o único. Havia dezenas de advogados na cidade que se haviam especializado em casos de polícia e direitos civis e que garimpavam o mesmo respaldo
federal que lhes permitia extrair honorários para lá de excessivos das indenizações por danos obtidas por seus clientes. Nem todos eram cínicos e motivados por dinheiro.
Os processos movidos por Elias e outros haviam trazido mudanças positivas no departamento. Mesmo os seus inimigos - os tiras - reconheciam isso, ainda que a contragosto.
Casos de direitos civis puseram fim ao uso - aprovado pelo departamento-da "gravata" para subjugar suspeitos, após um número excessivamente alto de mortes entre
minorias. Os processos também tinham melhorado as condições e proteções nas cadeias locais. Outros casos abriram e dinamizaram os meios para os cidadãos apresentarem
queixa contra abusos de policiais.
Mas Elias mantinha-se acima deles todos. Ele tinha o charme da mídia e as habilidades oratórias de um ator. Ele parecia também carecer de qualquer critério na escolha
de seus clientes. Ele representava traficantes de drogas que alegavam ter sofrido maus-tratos nas mãos de seus interrogadores, ladrões que roubavam do pobre mas
protestavam ter sido espancados pela polícia que os capturava, assaltantes que baleavam suas vítimas e depois clamavam por justiça quando, por sua vez, eram baleados
pela polícia. A frase favorita de Elias - usada como um bordão nos seus comerciais e sempre que tinha as câmeras direcionadas para ele - era dizer que abuso de poder
era abuso de poder, não importando se a vítima fosse um
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criminoso. Ele era sempre rápido em olhar para a câmera e declarar que se tais abusos fossem tolerados quando se visava o culpado, não demoraria muito para que o
inocente
se tornasse o alvo.
Elias era um profissional singular. Na última década ele processara o departamento mais de cem vezes e em mais da metade dos casos obtivera veredictos favoráveis
do júri. A simples menção do seu nome podia fazer o cérebro de um policial congelar. Todos no departamento sabiam que se Elias processasse um tira, não seria um
pequeno caso a ser arquivado para cair no esquecimento. Elias não acertava acordos fora do tribunal - nada nos códigos dos direitos civis o incentivava a acertar
acordos. Não, você seria arrastado ao longo de um espetáculo público se Elias decidisse processá-lo. Haveria informes para a imprensa, entrevistas coletivas, manchetes
em jornais, programas de TV. Teria sorte em sair desta inteiro e ainda com o seu distintivo.
Anjo para alguns, demônio para outros, Howard Elias estava agora morto, baleado no plano inclinado Vôo dos Anjos. Bosch sabia como ele parecia através da janela
do pequeno cômodo e observava o brilho alaranjado do facho de raio laser mover-se no escurecido vagão em que ele estava na calma que precede a tormenta. Estava marcado
para começar dentro de apenas dois dias o que poderia ter sido o maior caso de Elias. O processo contra o DPLA que se tornara conhecido na mídia como o caso Guerreiro
Negro teria sua seleção do júri na segunda-feira pela manhã, na Corte Distrital Federal. A coincidência - ou, como uma ampla parcela do público indubitavelmente
acreditaria, a falta de coincidência - entre o assassinato de Elias e o início do julgamento daria à investigação da morte do advogado um fácil sete na escala Richter.
Grupos de minorias iriam estrilar com raiva e justificada suspeita. Os brancos no West Side suspirariam por seus temores de um novo tumulto nas ruas. E os olhos
da nação, mais uma vez, se fixariam em Los Angeles e no seu departamento de polícia. Naquele momento Bosch concordou com Edgar, embora por motivos diferentes daqueles
do seu parceiro negro. Ele gostaria que pudessem passar este caso.
- Chefe - disse, voltando a olhar para Irving -, quando isto transpirar, quem... quero dizer, quando a mídia descobrir que foi Elias, nós vamos...
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- Isso não é problema seu - replicou Irving. - Só tem que se preocupar em investigar. Eu e o chefe cuidaremos da mídia. Nem uma palavra escapa de qualquer envolvido
na investigação. Nem uma palavra.
- Esqueçam a mídia - interveio Rider. - E quanto ao South Central? As pessoas vão começar a...
- Nós cuidamos disso - interrompeu Irving. - O departamento vai instituir um plano de prontidão para desordem pública a começar na próxima ronda. Toda a escala muda
para doze por doze até sentirmos como a cidade vai reagir. Ninguém que testemunhou
1992 quer ver aquilo se repetir. Porém, repito mais uma vez, isto não é problema seu. Você tem um problema aqui.
- O senhor não me deixou concluir - disse Rider. - Não queria dizer que vão se rebelar. Na verdade, tenho fé naquelas pessoas lá. Não creio que vá haver encrenca.
O que eu ia dizer é que elas ficarão furiosas e desconfiadas a respeito disso. Se pensa que pode ignorar ou reprimir isto pondo mais guardas na...
- Detetive Rider - disse Irving, interrompendo-a mais uma vez -, isto não é problema seu. A investigação, sim.
Bosch percebeu que as interrupções e palavras de Irving, dizendo a uma mulher negra que não tinha de se preocupar com a sua própria comunidade, haviam enfurecido
Rider. Estava escrito no rosto dela e Bosch já vira isto antes. Decidiu falar antes que ela perdesse a linha.
- Vamos precisar de mais pessoal. Só com nós três, levaremos semanas verificando álibis em tempo integral, talvez até um mês. Num caso como este, precisamos agir
com rapidez, não só por causa do caso, mas por causa das pessoas. Vamos precisar de mais gente além de nós três.
- Isto também foi levado em conta - disse Irving. - Você terá toda a ajuda de que precisar. Mas ela não vai vir da Roubos e Homicídios. Existe conflito de interesses
por causa do assunto Michael Harris.
Antes de falar, Bosch notou o quanto Irving se recusava a chamá-lo de caso Guerreiro Negro, em vez de usar o nome do queixoso.
- Por que nós?
- O quê?
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- Pelo que entendi, a DRH está fora. Mas onde estão as equipes da Divisão Central? Estamos fora de nossa área de ronda e fora de nosso rodízio aqui. Por que nós?
Irving suspirou audivelmente.
-Todo o esquadrão da Divisão Central de Homicídios está treinando na academia nesta semana e na próxima. Treinamento de sensibilidade. E depois tem o seminário do
FBI sobre novas técnicas de cena do crime. A Roubos e Homicídios está cobrindo as chamadas para eles. Eles assumiram este caso. Tão logo se constatou quem era o
cara com as balas na cabeça, fui contactado e, em discussões subseqüentes com o chefe de polícia, ficou determinado que iríamos chegar a vocês. Formam uma boa
equipe. Uma de nossas melhores. Vocês resolveram seus últimos quatro casos, incluindo aquele serviço que foi uma carne de pescoço... sim, fui informado disso. Além
do mais, a coisa principal é: nenhum de vocês jamais foi processado por Elias.
Ele apontou com o polegar por cima do ombro na direção da cena do crime no vagão. Enquanto fazia isto, relanceou para Garwood, mas o capitão continuava olhando
para o chão.
- Nenhum conflito de interesse - disse Irving. - Certo? Os três detetives assentiram. Bosch havia sido processado diversas vezes nos seus 25 anos de polícia, mas
de alguma forma sempre evitara pendências com Elias. Ainda assim, não acreditava que a explicação de Irving estivesse completa. Sabia que Edgar já aludira a uma
razão para a escolha deles, provavelmente uma razão mais importante do que o fato de nenhum deles ter sido processado por Elias. Os parceiros de Bosch eram negros.
Isto poderia ser útil para Irving em algum ponto. Bosch sabia que o desejo de Irving de que o departamento tivesse somente uma face e uma raça - azul - iria para
o espaço quando ele precisasse de um rosto negro para as câmeras.
- Não quero meu pessoal se exibindo diante da mídia, chefe disse Bosch. - Se estamos no caso é para trabalhar, não para dar um espetáculo.
Irving fitou-o com olhos furiosos.
- Do que me chamou?
Bosch ficou momentaneamente sem ação.
- Chamei-o de chefe.
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- Oh, tudo bem. Porque eu estava imaginando que houvesse alguma confusão acerca de hierarquia aqui. Há, detetive?
Bosch desviou de novo o olhar para a janela. Ele podia sentir o rosto enrubescido e isto o incomodava por estar se traindo.
- Não - disse.
- Ótimo - replicou Irving sem o menor sinal de tensão. - Então vou deixá-los com o capitão Garwood. Ele irá colocá-los a par do que já foi feito até aqui. Depois
disso vamos conversar sobre como resolver este caso.
Ele virou-se para sair, mas Bosch o interrompeu.
- Mais uma coisa, chefe.
Irving voltou-se para ele. Agora Bosch já recuperara sua compostura. Olhou calmamente para o subchefe.
- O senhor sabe que vamos estar investigando firme os tiras. Montes deles. Vamos ter que repassar todos os casos do advogado, não só o caso Guerreiro Negro. Assim,
simplesmente preciso saber de antemão... todos nós precisamos: o senhor e o chefe de polícia querem que as fichas caiam onde caírem ou...
Ele não concluiu e Irving nada disse.
- Quero proteger meu pessoal - continuou Bosch. - Este tipo de caso... precisamos ter tudo esclarecido de antemão.
Bosch estava fazendo uma aposta ao dizer isto na frente de Garwood e dos outros. Provavelmente irritaria Irving de novo. Mas corria esse risco porque queria que
Irving respondesse diante de Garwood. O capitão era um homem poderoso no departamento. Bosch desejava que ele soubesse que sua equipe estaria seguindo as diretrizes
do mais alto comando, só para o caso de as fichas caírem perto de um dos subordinados de Garwood.
Irving olhou para ele por longo momento antes de finalmente falar.
- Sua insolência é evidente, detetive Bosch.
- Admito, senhor. Mas qual é a resposta?
- Deixe-as cair, detetive. Duas pessoas estão mortas. Faça o seu melhor trabalho. Use toda a sua perícia. E deixe as fichas caírem.
Bosch assentiu mais uma vez. Irving voltou-se e olhou rapidamente para Garwood, antes de deixar o local.
Capítulo 4

- Harry, tem um cigarro?
- Sinto muito, capitão. Estou tentando largar.
- Eu também. Aposto que isso quer dizer que a gente fica filando em vez de comprar.
Garwood adiantou-se do canto onde estava e soltou a respiração. com o pé, afastou da parede uma pilha de caixas e sentou-se nela. Bosch achou-o envelhecido e cansado,
mas o capitão já tinha esse aspecto doze anos antes, quando Bosch trabalhara para ele. Garwood não despertara nenhum sentimento particular em Bosch. Ele tinha sido
o tipo de supervisor arredio. Não confraternizava com o pessoal depois do plantão, não passava muito tempo fora de seu gabinete e da casa de detenção. À época,
Bosch achava que isto talvez fosse bom. Não gerava um excesso de lealdade por parte da equipe de Garwood, mas também não criava nenhum inimigo. Talvez fosse por
isso que Garwood tinha durado tanto tempo no cargo.
- Bem, parece que botamos o nosso eu na reta desta vez - disse Garwood. A seguir, olhou para Rider e acrescentou: - Desculpe o palavreado, detetive.
O pager de Bosch soou e ele rapidamente tirou-o do seu cinto, soltou o beep e olhou para o número. Não era o seu número, como esperava que fosse. Reconheceu-o como
o número da casa da tenente Grace Billets. Ela provavelmente desejava saber como iam as coisas.
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Se Irving tivesse sido tão circunspecto com ela comoforacom Bosch ao telefone, então ela não sabia quase nada.
- Importante? - perguntou Garwood.
- Cuido disso depois. Você quer conversar aqui ou deveríamos ir para o vagão?
- Deixe-me contar o que temos primeiro. Depois o local é seu para fazer o que quiser.
Garwood pegou um maço de Marlboro no bolso do casaco e começou a abri-lo.
- Achei que tinha me pedido um cigarro - disse Bosch.
- Pedi. Este é o meu maço de emergência. Não era para eu abri-lo.
Fazia pouco sentido para Bosch. Observou enquanto Garwood acendia um cigarro e depois lhe oferecia o maço. Ele sacudiu a cabeça. Pôs as mãos nos bolsos para resistir
à tentação de aceitar um.
- Não lhe incomoda, não é? - perguntou Garwood segurando o cigarro, um sorriso sarcástico no rosto.
- A mim, não, capitão. Meus pulmões provavelmente já estão baleados. Mas esses dois aí...
Rider e Edgar assentiram com um gesto. Pareciam tão impacientes quanto Bosch para se inteirar da história.
- Vamos lá, então - disse por fim Garwood. - Isto é o que sabemos. Última viagem da noite. Homem chamado Elwood... Elwood... espere um segundo.
Ele puxou um bloquinho do mesmo bolso em que recolocara o maço de cigarros e olhou algumas anotações.
- Eldrige, é isso. Eldrige Peete. Ele estava operando a geringonça sozinho... só é preciso uma pessoa para dirigir toda a operação... é tudo computadorizado. Ele
estava a ponto de baixar o trenzinho para a noite. Nas noites de sexta a última viagem é às onze. Já eram onze da noite. Antes de mandar o vagão de cima para a última
viagem, ele sai, entra nele, fecha e tranca a porta. Depois volta para cá, põe o comando no computador e faz o vagão descer.
Ele recorreu de novo ao bloco.
- Estas coisas têm nomes. O que ele enviou para baixo é chamado Sinai e o que trouxe para cima é Olivet. Diz que os nomes foram
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tirados de montanhas na Bíblia. Pareceu-lhe que quando Olivet chegou aqui em cima o vagão estava vazio. Então ele foi trancá-lo... porque aí ele tem que enviá-los
uma vez mais e o computador os trava lado a lado no meio dos trilhos para passar a noite. Então ele termina e vai embora.
Bosch olhou para Rider e fez um sinal como se lesse da palma da mão. Ela assentiu e pegou seu próprio bloco e uma caneta na bolsa volumosa que carregava. Começou
a tomar notas.
- Só que Elwood, quero dizer Eldrige, sai para trancar o vagão e descobre os dois corpos a bordo. Ele volta para cá e chama a polícia. Está me acompanhando?
- Até aqui, sim. E depois?
Bosch já pensava nas perguntas que teria de fazer a Garwood e depois provavelmente a Peete.
- Estávamos cobrindo para os caras da Central e o chamado acabou sobrando para mim. Enviei quatro homens e eles organizaram a cena do crime.
- Eles não verificaram os corpos para identificação?
- Não imediatamente. Mas, de qualquer modo, não havia identificação. Eles falaram com Eldrige Peete, desceram os degraus e fizeram uma busca por cartuchos e outras
coisas que não chamassem muita atenção-até que os legistas chegassem e fizessem o seu serviço. Estavam faltando a carteira e o relógio do cara. Sua pasta também,
se é que levava uma. Mas eles conseguiram identificá-lo por uma carta que trazia no bolso. Endereçada a Howard Elias. Uma vez descoberto isso, meus rapazes deram
realmente uma boa olhada no cadáver e reconheceram Elias. Então, claro, ligaram para mim, eu liguei para Irving e ele ligou para o chefe. E então ficou decidido
convocar você.
Ele disse a frase final como se tivesse sido parte do processo decisório. Bosch olhou pela janela. Ainda havia um bom número de detetives zanzando por ali.
- Eu diria que aqueles primeiros caras fizeram mais do que simplesmente ligar para o senhor, capitão - disse Bosch.
Garwood voltou-se para olhar pela janela como se nunca tivesse lhe ocorrido que era muito estranho ver uns quinze detetives numa cena do crime.
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- Suponho que sim - disse ele.
- Muito bem, o que mais? - disse ele. - O que mais eles fizeram antes de saberem quem era e que eles não estavam ansiosos pelo caso?
- Bem, como eu disse, eles falaram com este tal Eldrige Peete e deram uma busca na área em torno dos vagões. Abaixo e acima. Eles...
- Eles encontraram algum cartucho?
- Não. O nosso atirador foi cauteloso. Ele recolheu todas as cápsulas. Porém sabemos que estava usando uma nove milímetros.
- Como?
- A segunda vítima, a mulher. O disparo a atravessou. A bala bateu no suporte de uma janela de aço atrás dela, achatou-se e caiu no chão. Está muito amassada para
comparação, mas ainda assim se pode dizer que era uma nove. Hoffman disse que se estivesse adivinhando diria que era uma Federal. Você terá que esperar por uma amostra
melhor de chumbo das autópsias até onde a balística for. Se conseguir chegar tão longe.
Perfeito, pensou Bosch. Nove é um calibre de policial. E parar para pegar as cápsulas era um serviço mole. Geralmente não se vê isso.
- O modo como eles vêem a coisa - continuou Garwood - é que Elias foi baleado logo após embarcar lá embaixo. O cara chega e atira na bunda dele primeiro.
- Na bunda? - disse Edgar.
- Isso mesmo. O primeiro tiro foi na bunda. Veja bem, Elias está começando a embarcar e portanto se encontra a dois degraus acima do nível da calçada. O atirador
chega por trás e saca a arma... está no nível da bunda. Ele aponta o cano para lá e dispara o primeiro tiro.
- E depois? - perguntou Bosch.
- Bem, achamos que Elias cai e meio que se vira para ver quem é. Ergue as mãos, mas o atirador dispara outra vez. A bala atravessa uma das suas mãos e o atinge no
rosto, bem entre os olhos. Este foi provavelmente o disparo que causou a morte. Elias cai para trás. Está de cara para baixo agora. O atirador sobe no vagão e lhe
põe mais uma bala na nuca, à queima-roupa. Ele então olha para cima
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e vê a mulher, talvez pela primeira vez. Atira nela a cerca de uns três metros de distância. Um no peito, de um lado a outro, e ela já era. Nada de testemunhas.
O atirador toma a carteira e o relógio de Elias, recolhe suas cápsulas e se manda. Poucos minutos depois, Peete traz o vagão para cima e acha os corpos. Você agora
já sabe o que sei.
Bosch e seus parceiros ficaram calados por um longo tempo. O cenário delineado por Garwood não se ajustava exatamente com Bosch, mas ele ainda não sabia o suficiente
sobre a cena do crime para contestá-lo.
- O roubo parece legítimo? - perguntou Bosch por fim.
- A mim pareceu. Sei que o pessoal lá da zona sul não vai querer acreditar, mas é isso aí.
Rider e Edgar mantinham um silêncio de pedra.
- E quanto à mulher? - perguntou Bosch. - Ela foi roubada?
- Não parece. Estou achando que o atirador não queria entrar no vagão. Seja como for, era o advogado quem usava o terno de mil dólares. Tinha de ser ele o alvo.
- E quanto a Peete? Ele ouviu os tiros, os gritos, alguma coisa?
- Ele diz que não. Diz que o gerador de eletricidade fica bem abaixo do piso aqui. Soa como um elevador funcionando o dia inteiro, por isso ele usa protetor auricular.
Nunca ouve nada.
Bosch caminhou em volta das engrenagens do cabo condutor e olhou para o posto do operador do plano inclinado. Pela primeira vez reparou que, montado acima da caixa
registradora, havia um pequeno monitor de vídeo exibindo vistas do plano inclinado, tomadas de quatro ângulos - de uma câmera em cada um dos vagões e de cima e abaixo
de cada terminal. Em um canto da tela ele pôde ver um plano geral do interior do Olivet. Os técnicos da cena do crime ainda estavam trabalhando nos cadáveres.
Garwood surgiu do outro lado das engrenagens do cabo.
- Pode desistir - disse. - As câmeras só pegam ao vivo, não gravam. Estão aí só para o operador poder checar se todo mundo já embarcou e sentou antes de dar partida.
-Ele não...
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- Ele não olhou - disse Garwood, adivinhando as perguntas de Bosch. - Ele simplesmente verificou através da janela, pensou que o vagão estivesse vazio e o trouxe
para cima a fim de poder trancá-lo.
- Onde está ele?
- Na Parker. Nossos escritórios. Acho que você terá de vir e falar com ele pessoalmente. vou manter alguém com ele até que você termine aqui.
- Mais alguma testemunha?
- Nenhuma. Esta área aqui está completamente deserta às onze da noite. O mercado Grand Central fecha às sete. Não tem nada mais lá embaixo exceto alguns edifícios
comerciais. Dois de meus rapazes estavam prontos a ir até aqueles apartamentos ao lado e bater nas portas. Mas então conseguiram a identificação e mudaram de idéia.
Bosch andava numa pequena área da sala e pensava. Muito pouco tinha sido feito até então e a descoberta dos assassinatos já tinha quatro horas. Isto o incomodava,
muito embora compreendesse a razão por trás do atraso.
- Por que Elias estava no vagão? - perguntou a Garwood. - Eles pensaram nisso antes de mudarem de idéia?
- Bem, ele deveria estar querendo subir a colina, não lhe parece?
- Vamos lá, capitão. Se sabe, por que não poupa o nosso tempo?
-Não sabemos, Harry. Checamos com o Departamento de Trânsito. Ele mora em Baldwin Hills, a uma boa distância de Bunker Hill. Não sei por que estava vindo até aqui.
- E de onde ele estava vindo?
- Essa é um pouco mais fácil. O escritório de Elias fica lá na Terceira. No Edifício Bradbury. Provavelmente estava vindo de lá. Mas para onde ele ia...
- Tudo bem. E quanto à mulher?
- Ela é um enigma. Meus rapazes nem tinham começado com ela quando nos mandaram parar.
Garwood jogou seu cigarro no chão e esmagou-o com a sola do sapato. Bosch tomou isto como um sinal de que o relato dos fatos estava encerrado. Decidiu ver se conseguia
obter dele a reação desejada.
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- Está chateado, capitão?
- com o quê?
- Por ter sido afastado. Por ter pessoal seu na lista de suspeitos. Um pequeno sorriso bailou nos lábios finos de Garwood.
- Não, não estou furioso. Entendo o argumento do chefe.
- O seu pessoal vai cooperar conosco neste caso? Após alguma hesitação, Garwood assentiu.
- É claro. Quanto mais rápido eles cooperarem, mais rápido
vocês os liberam.
- E o senhor vai dizer isto a eles?
- É exatamente o que vou dizer a eles.
- Obrigado, capitão. Diga-me quem, entre o seu pessoal, o senhor acha que poderia ter feito isto?
Os lábios se curvaram agora num sorriso pleno. Bosch estudou os dentes de Garwood amarelados pelo cigarro e por um momento ficou feliz por estar tentando largar.
- Você é um cara esperto, Harry. Lembro disso. Ele não disse mais nada.
- Obrigado, capitão. Mas tem alguma resposta para a pergunta? Garwood foi até a porta e abriu-a. Antes de sair ele voltou-se
e olhou de novo para os detetives, seus olhos viajando de Edgar
para Rider e para Bosch.
- Não foi um dos meus, detetives. Posso garantir. Estarão perdendo seu tempo se insistirem demais nisso.
- Obrigado pelo conselho - disse Bosch. Garwood saiu, fechando a porta atrás de si.
- Caramba - disse Rider. - É como o capitão Boris Karloff ou algo assim. Será que ele só sai à noite?
Bosch sorriu e assentiu.
- O Sr. Personalidade - disse. - Então, o que vocês acham até
aqui?
- Acho que estamos pisando em campo minado - disse Rider.
- Aqueles caras não iam bater prego sem estopa.
- É... Bem, tem a Roubos e Homicídios, o que é que você quer?
- disse Edgar. - Eles não são conhecidos pela embromação. Eles botam
a carroça na frente dos bois a qualquer dia da semana. Mas, se
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você me perguntar, estamos fodidos. Eu e você, Kiz. Não podemos vencer esta parada. Raça azul é o caralho.
Bosch caminhou até a porta.
- Vamos sair e dar uma olhada - disse ele, cortando o debate sobre as preocupações de Edgar. Sabia que eram válidas, mas no momento só serviam para atrapalhar a
missão deles. - Talvez a gente consiga ter algumas idéias antes que Irving volte a nos chamar.
Capítulo 5
O número de detetives do lado de fora da estação começara finalmente a diminuir. Bosch observou enquanto Garwood e um grupo dos seus homens atravessavam a praça
na direção de seus carros. Depois viu Irving de pé ao lado do vagão, falando com Chastain e três detetives. Bosch não os conhecia, mas presumiu que fossem da DAI.
O subchefe parecia animado em sua discussão, mas mantinha a voz tão baixa que Bosch não podia ouvir o que ele dizia. Bosch não sabia exatamente o que significava
a presença da DAI, mas sentia uma crescente sensação ruim a este respeito.
Viu Frankie Sheehan indeciso atrás de Garwood e seu grupo. Ele estava prestes a partir, mas hesitava. Bosch acenou para ele.
- Agora entendo o que quis dizer, Frank - falou.
- É, Harry, alguns dias a gente tem que engolir sapo...
- Certo. Está indo embora?
- Estou. O capitão nos mandou cair fora daqui. Bosch se aproximou e falou em voz baixa:
- Alguma dica que possa me dar?
Sheehan olhou para o vagão como se imaginando pela primeira vez quem poderia ter matado as duas pessoas no seu interior.
- Nada mais que o óbvio e acho que será uma perda de tempo. Mas então, de novo, você tem que se desgastar nisso, não é? Cobrir todas as bases.
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- É. Pensa em alguém com quem eu deveria começar?
- Sim, comigo. - Deu um sorriso amplo. - Eu detestava aquela escória. Sabe o que vou fazer? vou tentar encontrar agora uma loja de bebidas 24 horas e comprar o melhor
uísque irlandês que tiverem. vou comemorar um pouco, Hieronymus. Porque Howard Elias era um filho da puta.
Bosch assentiu. Policiais raramente usavam o xingamento filho da puta. Ouviam isto um bocado,
mas não usavam. Os tiras achavam que era a pior coisa que se poderia
dizer sobre alguém. Quando era dito só significava uma coisa: que a pessoa não tinha o menor respeito pelos guardiães da lei e, portanto, pelas regras e limites
da sociedade. Assassinos de policiais eram sempre filhos da puta, sem dúvida. Advogados de defesa ganhavam o xingamento, na maior parte do tempo. E Howard Elias
estava na lista dos filhos da puta. Bem no topo.
Sheehan fez uma pequena saudação e atravessou a praça. Bosch voltou sua atenção para o interior do vagão enquanto calçava luvas de borracha. As luzes foram reduzidas
e os técnicos estavam terminando com o laser. Bosch conhecia um deles, Hoffman. Ele estava trabalhando com uma estagiária de quem Bosch ouvira falar mas não conhecia.
Diziam que era uma oriental atraente com peitos enormes. Ele entreouvira outros detetives na sala do esquadrão discutindo seus atributos e questionando sua autenticidade.
-Gary, a barra está limpa para entrar? - perguntou Bosch, esgueirando-se através da porta.
Hoffman olhou por cima da caixa na qual guardava suas ferramentas. Ele estava arrumando as coisas e prestes a fechá-la.
- Barra limpa. Estamos guardando a tralha. Este caso é seu, Harry?
- Agora é. Conseguiu algo bom para mim? Para ganhar meu dia? Bosch subiu no vagão, seguido por Edgar e Rider. Como o vagão
estava em posição inclinada, o chão era na verdade uma série de degraus descendo para a outra porta. Os assentos também estavam em níveis graduados de cada lado
da ala central. Bosch olhou para os assentos feitos de ripa e de repente lembrou-se de quão duros eles foram para seu traseiro magro quando criança.
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- Receio que não - disse Hoffman. - Está tudo bem nos trinques.
Bosch assentiu e desceu mais alguns degraus até o primeiro corpo. Ele estudou Catalina Perez do modo como alguém estudaria uma escultura num museu. Não havia nenhum
sentimento pelo objeto à frente dele como sendo humano. Estava estudando detalhes, adquirindo impressões. Seus olhos caíram para a mancha de sangue e o pequeno rasgão
que a bala fizera na camiseta. A bala atingira o centro mortal da mulher. Bosch pensou nisso e imaginou o pistoleiro na porta do vagão a três metros de distância.
- Tremendo disparo, hem?
Era a mulher que Bosch não conhecia. Ele olhou para ela e assentiu. Estivera pensando a mesma coisa, que o atirador era alguém com alguma perícia em armas de fogo.
- Oi, acho que não nos conhecemos. Sou Sally Tam.
Ela estendeu a mão e Bosch apertou-a. Pareceu estranho. Ambos usavam luvas de borracha. Ele deu o seu nome.
- Oh - disse ela. - Alguém estava justamente falando sobre você. Sobre o caso dos ovos cozidos.
- Foi apenas sorte.
Bosch sabia que estava adquirindo uma fama maior do que merecia acerca daquele caso. Tudo porque um repórter do Times ouvira falar dele e escrevera uma reportagem
que exagerava as habilidades de Bosch até um ponto em que ele parecia um parente distante de Sherlock Holmes.
Bosch apontou para trás de Tam e disse que precisava dar uma olhada no outro corpo. Ela deu um passo para o lado e se encolheu. Ele passou, tomando cuidado para
não roçar nela. Ouviu-a se apresentando a Rider e Edgar. Bosch se agachou, de modo a poder examinar o corpo de Howard Elias.
- Continua na mesma posição? - perguntou ele a Hoffman, que estava agachado junto a sua caixa de apetrechos perto dos pés do homem morto.
- Exatamente. Nós o viramos para vasculhar seus bolsos, mas depois o reposicionamos. Há algumas fotos em cima daquele assento atrás de você, se quiser confirmar.
O pessoal do legista as tirou antes que qualquer um tocasse o cadáver.
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Bosch virou-se e viu as fotos. Hoffman estava certo. O corpo estava na mesma posição na qual tinha sido encontrado.
Ele voltou-se para o corpo e usou as duas mãos para virar a cabeça a fim de poder estudar os ferimentos. A interpretação de Garwood tinha sido correta, decidiu Bosch.
O ferimento de entrada na nuca foi um ferimento de contato. Embora parcialmente obscurecidas pelo sangue que tinha emaranhado o cabelo, ainda havia queimaduras de
pólvora e pontilhados visíveis num padrão circular em volta do ferimento. O rosto baleado, porém, estava limpo. Isto não se referia ao sangue - havia uma boa quantidade
dele. Mas não havia nenhuma queimadura de pólvora na pele. A bala que atingira o rosto partira de uma certa distância.
Bosch levantou o braço e virou a mão de modo a poder estudar o ferimento de entrada na palma da mão. O braço moveu-se com facilidade. O rigor mortis ainda não começara
- o ar frio da noite estava retardando o processo. Não havia nenhuma queimadura de disparo na palma da mão, significando que a arma de fogo estava pelo menos a um
metro e meio de distância da mão quando a bala foi disparada. Se Elias estivesse com o braço estendido com a palma aberta, isto acrescentaria mais um metro.
Edgar e Rider tinham ido até o segundo cadáver. Bosch podia sentir a presença deles atrás de si.
- Um metro e oitenta a dois e trinta de distância, atravessando a mão e depois direto entre os olhos - disse ele. - Este cara sabe atirar. E melhor lembrarmos disso
quando formos prendê-lo.
Nenhum deles respondeu. Bosch esperava que assimilassem a segurança em sua última frase bem como o aviso. Ele já ia recolocar a mão do morto sobre o piso quando
notou a extensa marca de arranhão no pulso e correndo ao longo da quina da mão. Ele especulava que o arranhão ocorrera quando o relógio de Elias tinha sido puxado.
Estudou detidamente o ferimento. Não havia sangue no rastro. Era uma laceração branca e limpa ao longo da superfície da pele escura, embora parecesse profunda o
bastante para ter arrancado sangue.
Pensou a respeito por um momento. Não havia tiros na direção do coração, só da cabeça. O deslocamento de sangue dos
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ferimentos indicava que o coração continuara a bombear por pelo menos vários segundos após Elias ter caído. Parecia que o atirador tinha arrancado o relógio do pulso
de
Elias muito rapidamente após o disparo - obviamente, não havia nenhuma razão para demorar-se ali. Ainda assim, o arranhão na mão não havia sangrado. Era como se
tivesse ocorrido bem depois de o coração ter parado de bombear.
- O que você acha do enema de chumbo? - perguntou Hoffman, interrompendo os pensamentos de Bosch.
Enquanto Hoffman saía do caminho, Bosch se levantou e contornou cautelosamente o corpo até ficar junto aos pés. Agachou-se de novo e examinou o ferimento da terceira
bala. O sangue ensopara o cós das calças. Ainda assim, ele podia ver o rasgão e o firme padrão de queimadura onde a bala atravessara o pano e penetrara no ânus de
Elias. A arma tinha sido pressionada em profundidade no ponto onde as costuras das calças se juntavam e depois disparada. Fora um tiro vingativo. Parecia mais um
tiro de raiva e ódio do que de misericórdia. O que contradizia a perícia fria dos outros disparos. Isto também dizia a Bosch que Garwood se equivocara a respeito
da seqüência dos disparos. Se o capitão tinha se enganado intencionalmente, ele não sabia.
Ele se levantou e recuou até a porta traseira do vagão de modo a se colocar no ponto onde provavelmente o atirador se posicionara. Inspecionou mais uma vez a carnificina
diante dele e balançou a cabeça para ninguém em particular, tentando apenas memorizar tudo. Edgar e Rider ainda estavam perto dos cadáveres e faziam suas próprias
observações.
Bosch voltou-se e olhou para as roletas da estação embaixo. Os detetives que vira ao chegar já tinham ido embora. Agora uma viatura solitária permanecia estacionada
e dois patrulheiros vigiavam a parte baixa da cena do crime.
Bosch já vira o suficiente. Caminhou por entre os cadáveres e mais uma vez desviou-se de Sally Tam na plataforma. Seus parceiros o seguiram, Edgar passando bem mais
perto de Tam do que
ele fizera.
Bosch se afastou do vagão, para que eles pudessem se reunir com
mais privacidade.
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- O que vocês acham? - perguntou.
- Acho que são de verdade - disse Edgar, olhando para trás na direção de Tam. - Conseguiram para eles aquele caimento natural. O que acha, Kiz?
- Muito engraçado - disse Rider, sem entrar na brincadeira. Podemos conversar sobre o caso, por favor?
Bosch admirava a maneira como Rider recebia os freqüentes comentários e alusões sexuais de Edgar sem mais que uma queixa ou observação sarcásticas mandadas de volta
para ele. Tais comentários poderiam deixar Edgar em maus lençóis se Rider fizesse uma queixa formal. O fato era que ela não indicava nem se estava intimidada nem
se conseguia lidar com aquilo. Ela também sabia que, se fosse formal, conseguiria aquilo que os tiras chamavam de uma "jaqueta K-9", uma referência à ala da carceragem
municipal onde os delatores eram abrigados. Certa vez, num momento a sós, Bosch perguntara se ela queria que ele chamasse a atenção de Edgar. Como supervisor dela,
Bosch era legalmente responsável pela solução do problema, mas, se falasse com Edgar, este saberia que ele tomara o partido dela. Rider também sabia disso. Pensara
nisso por algum tempo e dissera a Bosch para deixar o barco correr. Disse a ele que não se sentia intimidada, apenas chateada vez por outra. Podia lidar com a situação.
- Você primeiro, Kiz - disse Bosch, ignorando também o comentário de Edgar, muito embora, no íntimo, discordasse da conclusão dele sobre Tam. - Algo chamou sua atenção
lá?
- Como todo mundo, acho. Parece que as vítimas não estavam juntas. Ou a mulher embarcou antes de Elias ou estava prestes a desembarcar. Creio que está mais do que
claro que Elias era o alvo primordial e que ela foi apenas queima de arquivo. O tiro na bunda me diz isso. E também, como você assinalou, o cara era um tremendo
atirador. Estamos procurando alguém que passou um bom tempo no estande de tiro.
Bosch assentiu.
- Algo mais?
- Nada. É uma cena de crime bastante clara. Não há mais nada com que trabalhar.
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-Jerry?
-Nada. E você?
- A mesma coisa. Mas acho que Garwood estava nos dando
uma volta. Sua seqüência estava uma merda.
- Como? - quis saber Rider.
- O tiro na bunda foi o último, não o primeiro. Elias já estava caído. Há um ferimento de contato e a entrada está na parte inferior, onde todas as costuras das
calças se juntam. Seria difícil enfiar um cano lá se Elias estivesse de pé... mesmo se ele se encontrasse a um passo do atirador. Acho que já estava caído quando
o atirador meteu aquela bala.
- Isto altera tudo - disse Rider. - Transforma o último tiro num "vá se foder". O atirador estava puto com Elias.
- Portanto, o conhecia - disse Edgar. Bosch assentiu.
- E você acha que Garwood sabia disso e estava apenas tentando nos embromar ao plantar esta sugestão? - indagou Rider. - Ou acha que ele simplesmente se enganou?
- Pelo que conheço de Garwood, ele não é um idiota - replicou Bosch. - Ele e quinze de seus homens estavam prestes a ser levados à corte federal na segunda-feira
por Elias e arrastados direto para a merda. Ele sabe que qualquer um daqueles rapazes seria capaz deste crime. Ele os estava protegendo. E isso que acho.
- Bem, isto é uma besteira. Proteger um policial assassino? Ele
deveria estar...
- Talvez protegendo um tira assassino. Não sabemos. Ele não sabia. Acho que foi provavelmente um ato de precaução.
- Não importa. Se foi isto o que ele estava fazendo, não deveria usar um distintivo.
Bosch não respondeu nada e Rider não se sentiu aplacada. Ela sacudiu a cabeça, nauseada. Como muitos policiais no departamento, ela estava cansada de ver lambanças
com gente acobertando, de uma minoria sujando a barra da maioria.
- E quanto ao arranhão na mão?
Edgar e Rider olharam para ele com as sobrancelhas arqueadas.
- E quanto a isto? - disse Edgar. - Na certa aconteceu quando
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o atirador puxou o relógio. Um daqueles com pulseira de expansão. Como um Rolex. Conhecendo Elias, era provavelmente um Rolex. Dá um belo motivo.
- E, se fosse um Rolex - replicou Bosch.
Ele voltou-se e olhou para o outro lado da cidade. Duvidava que Elias usasse um Rolex. Devido a sua fama, Elias era o tipo de advogado que também conhecia as nuances
de sua profissão. Ele sabia que um advogado usando um Rolex poderia perder a simpatia do júri. Ele nunca usaria um. Teria um relógio bonito e caro, mas não um que
se anunciasse como um Rolex.
- E aí, Harry? - disse Rider. - E quanto ao arranhão? Bosch olhou de volta para ela.
- Bem, se era ou não um Rolex ou um relógio de alto preço, não havia sangue no arranhão.
- Significando o quê?
- Há uma boa quantidade de sangue por lá. Os ferimentos de bala sangraram, mas não havia sangue no arranhão. Ou seja, não creio que o atirador tenha tomado o relógio.
Aquele arranhão foi produzido depois que o coração parou de bater. Eu diria muito depois. O que significa que foi feito após o atirador deixar
a cena.
Rider e Edgar pensaram nisso.
- Talvez - disse por fim Edgar. - Mas a merda daquele sistema vascular é difícil de conter. Até mesmo o legista não vai ter certeza a esse respeito.
- É - disse Bosch, assentindo. - Então chame isto de instinto do estômago. Não podemos levar este detalhe ao tribunal, mas sei que o atirador não tirou o relógio.
Ou provavelmente a carteira, por falar nisso.
- Então o que você está dizendo? - perguntou Edgar. - Alguém mais apareceu e tomou o relógio?
- Mais ou menos isso.
- Você acha que foi o cara que opera os vagões... o tal que deu parte?
Bosch olhou para Edgar, mas não respondeu. Limitou-se a dar de ombros.
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- Você acha que foi um dos caras da Roubos e Homicídios sussurrou Rider. - Outra manobra só por precaução. Manda-nos seguir a pista de latrocínio só para o caso
de ter sido um deles.
Bosch olhou para ela por um momento, pensando sobre como responder e como era fina a camada de gelo onde pisavam agora.
- Detetive Bosch?
Ele voltou-se. Era Sally Tam.
-Já acabamos e o pessoal do legista quer ensacá-los e etiquetálos, se estiver tudo OK.
-Tudo bem. Ei, escute, esqueci de perguntar: vocês conseguiram alguma coisa com o
laser?
- Conseguimos um bocado. Mas talvez nada que possa ajudar. Um montão de pessoas viajou naquele carro. Provavelmente conseguimos passageiros, mas não o atirador.
- Bem, vocês vão checar mesmo assim, certo?
- Claro. Vamos passar tudo por todos os sistemas de identificação. Informamos você.
Bosch acenou agradecendo.
- Vocês recolheram alguma chave do cara?
- Recolhemos. Estão em uma das sacolas marrons. Você quer?
- É, provavelmente vamos precisar delas.
- Volto já.
Ela sorriu e voltou para o vagão. Parecia empolgada demais para estar numa cena do crime. Bosch sabia que iria baixar o facho depois de algum tempo.
- Vê o que eu quis dizer? - perguntou Edgar. - Eles são verdadeiros.
- Jerry... - disse Bosch.
Edgar ergueu as mãos em rendição. q
- Sou um observador treinado. Só fazendo um relatório.
- Bem, é melhor guardar isto para si mesmo - sussurrou Bosch.
- A não ser que queira redigi-lo com o chefe.
Edgar virou-se bem a tempo de ver Irving aproximando-se deles.
- Bem, quais as conclusões iniciais, detetives? Bosch olhou para Edgar.
- Jerry? O que estava acabando de dizer que observou?
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- Ha... bem, no momento ainda estávamos meio que pensando sobre tudo que vimos aqui.
- Nada que realmente não combine com o que o capitão Garwood nos contou - disse Bosch rapidamente, antes que Rider pudesse contar qualquer coisa que revelasse suas
verdadeiras conclusões. Pelo menos numa visão preliminar.
- E o que vem em seguida?
- Estamos cheios de coisas a fazer. Quero falar de novo com o operador do plano inclinado e temos que investigar aquele prédio residencial em busca de testemunhas.
Conseguimos notificação de parentes e vamos ter acesso ao escritório de Elias. Quando é que aquela ajuda que nos prometeu vai aparecer, chefe?
- Imediatamente.
Irving ergueu um braço e chamou Chastain e mais três que o acompanhavam. Bosch sabia o que provavelmente eles estavam fazendo na cena do crime, mas ver Irving acenando
para eles trouxe-lhe uma sensação de aperto no peito. Irving estava bem ciente da animosidade entre a DAI e toda a hierarquia, em particular a inimizade existente
entre Bosch e Chastain. O fato de colocá-los juntos no caso mostrou a Bosch que Irving não estava tão interessado em descobrir quem matara Howard Elias e Catalina
Perez quanto havia expressado tão abertamente. Esta era a maneira de o subchefe parecer consciencioso, mas na verdade trabalhando para empacar a investigação.
- Tem certeza de que deseja fazer isto, chefe? - perguntou Bosch num sussurro urgente enquanto os homens da DAI se aproximavam.
- O senhor sabe que Chastain e eu não...
- Sim, é assim que desejo que seja feito - disse Irving, interrompendo Bosch sem sequer olhar para ele. - O detetive Chastain chefiou a revisão interna da queixa
de Michael Harris. Acho que ele é o acréscimo apropriado a esta investigação.
- O que eu ia dizer é que Chastain e eu temos uma desavença, chefe. Não creio que trabalhar com ele...
- Pouco me importa se vocês se estimam ou não. Encontrem um meio para trabalharem juntos. Quero voltar lá para dentro agora.
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Irving liderou o grupo de volta à estação. Era um ambiente fechado. Ninguém disse nada à guisa de cumprimento. Uma vez lá dentro, todos eles olharam em expectativa
para Irving.
- Muito bem, vamos estabelecer algumas regras básicas aqui começou o subchefe. - O detetive Bosch está encarregado desta investigação. Vocês seis vão se reportar
a ele. Ele vai se reportar a mim. Não quero nenhuma confusão a este respeito. O detetive Bosch conduz este caso. Bem, arranjei para que usem como quartel-general
a sala de reunião junto ao meu gabinete, no sexto andar do Parker Center. Segunda-feira vão ser colocados telefones lá e um terminal de computador. Vocês da DAI:
quero que fiquem nas áreas de entrevistas com agentes de polícia, verificação de álibis, esta parte da investigação. O detetive Bosch e sua equipe vão cuidar
dos elementos tradicionais da investigação de homicídio, a autópsia, ouvir testemunhas, toda essa parte. Alguma pergunta até aqui?
A sala caiu num silêncio de pedra. Bosch fervilhava em silêncio. Era a primeira vez em que pensava em Irving como um hipócrita. O subchefe sempre tinha sido um caxias,
mas definitivamente um homem justo. Esta faceta era diferente. Ele estava manobrando para proteger o departamento quando a banda podre que procuravam poderia estar
justamente dentro dele. Mas o que Irving não sabia era que Bosch havia conquistado tudo em sua vida ao transformar negativas em motivação. Ele prometeu a si mesmo
que iria esclarecer o caso apesar das manobras de Irving. E as fichas cairiam onde devessem cair.
- Um aviso sobre a mídia. Ela vai ficar toda em cima deste caso. Vocês não vão ser desviados ou tolhidos. Vocês não vão falar com a mídia. Todas as informações
têm de sair do meu gabinete ou do tenente torn O'Rourke, da assessoria de comunicação. Entendido?
Os sete detetives concordaram.
- Ótimo. Isto significa que não vou ter medo de pegar o Times na minha porta pela manhã.
Irving olhou para seu relógio e depois de volta para o grupo.
- Posso controlar vocês, rapazes, mas não o pessoal do legista ou qualquer um que souber deste caso pelos canais oficiais nas próximas horas. Imagino que por volta
das dez toda a mídia vai estar em
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cima disto com pleno conhecimento da identidade das vítimas. Portanto, quero um relato dos fatos na sala de reunião às dez. Depois de me informar vou me reunir
com o chefe de polícia, e um de nós fará uma declaração aos jornalistas com o mínimo de informação que desejarmos divulgar. Algum problema com isso?
- Chefe, isto mal nos dá seis horas - replicou Bosch. - Não sei o quanto mais estaremos sabendo até lá. Vamos ter de andar um bocado antes de podermos sentar e começar
a trocar figurinhas...
- Isto é óbvio. Vocês não vão sofrer nenhuma pressão da mídia. Estou pouco ligando se a entrevista coletiva for apenas para confirmar quem morreu e nada mais. A
mídia não vai conduzir este caso. Quero que vocês o conduzam com plenos poderes, mas às dez quero todos de volta à minha sala de reunião. Perguntas?
Não houve nenhuma.
- Muito bem, então vou passar o caso para o detetive Bosch e deixar que cuidem disto.
Ele voltou-se diretamente para Bosch e estendeu-lhe um cartão comercial branco.
- Você tem todos os meus números aqui. E também os do tenente Tulin. Devo ser informado de tudo que surgir, podem ligar para mim, imediatamente e de onde quer que
vocês estejam. Liguem para mim.
Bosch assentiu, pegou o cartão e o pôs no bolso da jaqueta.
- Ao trabalho, pessoal. Como eu disse antes, deixem que as fichas caiam onde tiverem que cair.
Ele saiu e Bosch ouviu Rider sussurrar:
- Certo, é isso aí.
Bosch virou-se e olhou para os rostos da nova equipe, chegando ao de Chastain por último.
- Você sabe o que ele está fazendo, não sabe? - perguntou Bosch.
- Ele pensa que não podemos trabalhar juntos. Acha que vamos ser como aqueles peixes lutadores colocados no mesmo aquário que ficam loucos tentando devorar um ao
outro. Enquanto isso, o caso nunca é esclarecido. Bem, isto não vai acontecer. Ninguém aqui nunca me fez nada nem a qualquer outro, esqueçam isso. vou deixar pra
lá, o que importa é o caso. Há duas pessoas naquele vagão que
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alguém apagou sem pensar duas vezes. Vamos encontrar esse alguém. É tudo com que me importo agora.
Ele fitou Chastain nos olhos até que viu um leve sinal de concordância. Bosch retribuiu. Tinha certeza de que todos os outros haviam testemunhado a troca. Ele então
pegou seu bloco e o abriu numa página nova. Passou-o para Chastain.
- Tudo bem, então - disse. - Quero que cada um escreva seu nome acompanhado dos números do telefone de casa e pager. Celulares também, se tiverem. Farei uma lista
e todo mundo vai ter uma cópia. Quero que todos mantenham contato. Esse é o problema com essa grande promiscuidade. Se todos não estiverem ligados, alguma coisa
pode desandar. E não queremos que isto aconteça.
Bosch se interrompeu e olhou para os outros. Todos olhavam para ele, prestando atenção. Parecia que, por enquanto, as animosidades pessoais estavam relaxadas, se
não esquecidas.
- Muito bem - disse ele. - É assim que vamos tratar este caso daqui para a frente.
Capítulo 6
Um dos homens da DAI era um hispânico chamado Raymond Fuentes. Bosch o despachou junto com Edgar para o endereço que constava nos documentos de Catalina Perez,
a fim de notificar seus familiares e conduzir as perguntas sobre ela. Era provavelmente a parte beco sem saída da investigação - parecia evidente que Elias era o
alvo primário -, e Edgar tentou protestar. Mas Bosch cortou-o no ato. A explicação que partilharia reservadamente com Edgar era de que precisava espalhar os homens
da DAI a fim de ganhar melhor controle das coisas. Assim, Edgar foi com Fuentes. E Rider foi mandada com um segundo homem da DAI, Loomis Baker, para entrevistar
Eldrige Peete no Parker Center e depois trazê-lo de volta à cena do crime. Bosch queria o operador ali para repassar o que tinha visto e operar o plano inclinado
como fizera antes de descobrir os corpos.
Restaram Bosch, Chastain e o último homem da DAI, Joe Dellacroce. Bosch também despachou Dellacroce para o Parker Center, a fim de preparar um mandado de busca para
o escritório de Elias. Ele então disse a Chastain que os dois iriam à casa de Elias para dar a notícia da morte a seus parentes.
Depois que o grupo se dividiu, Bosch caminhou até o furgão da perícia e pediu a Hoffman as chaves encontradas no cadáver de Howard Elias. Hoffman vasculhou o caixote
onde havia colocado suas
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sacolas de provas e tirou uma contendo um molho que reunia mais
de dez chaves.
- Do bolso das calças, lado direito - disse Hoffman.
Bosch estudou as chaves por um momento. Parecia haver chaves mais do que suficientes para a residência, o escritório e os carros do advogado. Bosch notou que no
molho havia uma chave de um Porsche bem como a de um Volvo. Ele percebeu que quando os investigadores terminassem a presente colheita de tarefas, uma missão que
lhe caberia era colocar alguém para localizar o carro
de Elias.
- Algo mais no bolsos?
- Sim. Vinte e cinco cents no bolso dianteiro esquerdo.
- Vinte e cinco cents?
- É o preço da passagem no Vôo dos Anjos. Vai ver que eram
para isso.
Bosch assentiu.
- E no bolso interno do casaco havia uma carta.
Bosch havia esquecido que Garwood mencionara a carta.
- Vamos ver isso.
Hoffman vasculhou de novo no seu caixote e extraiu uma sacola plástica de prova material. Dentro havia um envelope. Bosch tomou a sacola do perito e estudou o envelope
sem removê-lo. O envelope tinha sido endereçado à mão ao escritório de Elias. Não havia endereço de retorno. No canto inferior esquerdo o remetente escrevera PESSOAL
e CONFIDENCIAL. Bosch tentou ler o carimbo postal, mas a luz era fraca. Desejou que ainda estivesse carregando sua lanterna.
- É lá do seu lugarejo remoto, Harry - disse Hoffman. - Hollywood. Postada quarta-feira. Ele provavelmente a recebeu na sexta.
Bosch assentiu. Revirou a sacola e olhou o verso do envelope. Tinha sido aberto com capricho ao longo do topo. Fora aberto por Elias ou por sua secretária, provavelmente
no escritório dele, antes que o tivesse guardado no bolso. Não havia como saber se o conteúdo tinha sido examinado desde então.
- Ninguém o abriu?
- Nós não. Não sei o que aconteceu antes de chegarmos aqui.
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Pelo que sei, os primeiros detetives viram o nome lá e então reconheceram o corpo. Mas não sei se realmente olharam para a carta.
Bosch estava curioso acerca do conteúdo do envelope, mas sabia que não era a hora nem o lugar certos para abri-lo.
- vou ter que levar isto também.
- É todo seu, Harry. Deixe-me apenas fazê-lo assinar a saída. E das chaves também.
Bosch esperou enquanto Hoffman tirava um formulário de cadeia-de-provas-materiais de seu kit. Ele se agachou e pôs o envelope e as chaves em sua pasta. Chastain
apareceu, pronto para deixar
a cena.
- Você dirige ou quer deixar comigo? - disse Bosch enquanto trancava sua pasta. - Consegui um bunda-lisa. O que você arranjou?
-Ainda tenho um carro à paisana. Corre como merda de cachorro, mas pelo menos não chamo atenção que nem merda de cachorro
na rua.
- Isso é bom. Também ganhou uma sirene de Colher?
- Ganhei, Bosch. Até mesmo os caras da DAI têm de responder a convocações de vez em quando.
Hoffman estendeu uma prancheta e caneta para Bosch, que assinou suas iniciais junto às duas peças de prova material que estava levando.
- Então você dirige - disse a Chastain.
Começaram a caminhar através da Califórnia Plaza até onde os carros estavam estacionados. Bosch tirou seu pager do cinto e certificou-se de que estava funcionando
corretamente. A luz da bateria ainda estava verde. Não havia perdido nenhuma mensagem. Olhou para cima das altas torres que os circundavam, imaginando se elas poderiam
interferir com alguma mensagem de sua mulher, mas depois lembrou-se de que a mensagem da tenente Billets tinha vindo mais cedo. Devolveu o pager ao cinto e tentou
pensar em outra coisa.
Seguindo a orientação de Chastain, chegaram a um LTD marrom surrado que tinha pelo menos cinco anos de uso e o aspecto
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quase tão chamativo quanto o de um pinto. Ao menos, pensou Bosch, não era pintado de preto e branco.
- Está aberto - disse Chastain.
Bosch foi para o lado do passageiro e entrou no carro. Tirou seu celular da pasta e ligou para a central telefônica. Pediu que o Departamento de Trânsito checasse
Howard Elias e obteve o endereço residencial do falecido, bem como sua idade, prontuário de motorista e o número das placas do Porsche e do Volvo, registrados nos
nomes dele e de sua mulher. Elias tinha 46 anos. Seu prontuário estava limpo. Bosch achou que o advogado era talvez o motorista mais cauteloso da cidade. A última
coisa que Elias provavelmente desejaria fazer era chamar a atenção de uma radiopatrulha do DPLA. Isto fazia parecer que dirigir um Porsche fosse quase um
desperdício.
- Baldwin Hills - disse após desligar o telefone. - O nome dela
é Millie.
Chastain deu a partida no motor, depois ligou a luz cintilante de emergência - a bolha - no isqueiro e a colocou no painel. Dirigiu o carro rapidamente pelas ruas
desertas até chegar à via expressa 10.
Bosch ficou em silêncio de início, ainda sem saber como quebrar o gelo com Chastain. Os dois eram inimigos naturais. Chastain tinha investigado Bosch em duas ocasiões
diferentes. Em ambas, Bosch foi relutantemente inocentado de qualquer má conduta, porém só depois que Chastain foi forçado a pegar leve. Pareceu a Bosch que Chastain
tinha uma pinimba com ele que beirava uma vendeta. O detetive da DAI parecia se alegrar em investigar um colega policial. Tudo que ele queria era um escalpo.
- Sei o que você está fazendo, Bosch - disse Chastain tão logo entraram na via expressa e seguiram rumo oeste.
Bosch olhou para ele. Pela primeira vez pensou em como eram parecidos fisicamente. Cabelo preto ficando grisalho, bigode cheio debaixo de olhos castanho-escuros,
uma constituição magra, quase vigorosa. Pareciam imagens espelhadas, embora Bosch nunca tivesse considerado Chastain a espécie de ameaça física que sabia que ele
próprio projetava. Chastain se portava de modo diferente. Bosch
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sempre tinha se conduzido como um homem que temia ser encurralado, como um homem que não se permitiria ser encurralado.
- O quê? O que acha que estou fazendo?
- Você está nos dividindo. De modo a ter melhor controle. Esperou que Bosch respondesse, mas só obteve silêncio.
- Mas se vamos fazer esta coisa direito, você vai ter que confiar em nós.
Após uma pausa, Bosch disse:
- Sei disso.
Elias morava na Beck Street, em Baldwin Hills, um pequeno bairro de casas de classe média alta ao sul da via expressa 10 e próximo ao Cienega Boulevard - uma vizinhança
para onde negros bem-sucedidos se mudavam caso não desejassem que a riqueza os afastasse da sua comunidade. Enquanto considerava isto, Bosch imaginava que se havia
alguma coisa que apreciava em relação a Elias era o fato de ele não carregar seu dinheiro e mudar-se para Brentwood ou Westwood ou para a Beverly Hills autêntica.
Ele permanecia na comunidade a partir da qual progredira.
com o pequeno tráfego de meio da noite e Chastain cruzando a via expressa a 120 por hora, chegaram à Beck Street em menos de quinze minutos. Era uma casa colonial
ampla, de tijolos, com quatro colunas brancas sustentando um pórtico de dois andares. Dava a impressão de uma casa-grande de fazenda sulista, e Bosch imaginou se
isto era uma espécie de afirmação sendo feita por Elias.
Bosch não viu luzes por detrás de nenhuma das janelas, e a luz pendente no pórtico também estava apagada. Isto não combinava muito com ele. Se era a residência
de Elias, por que não havia uma luz acesa para ele?
Havia um carro na alameda circular que não era um Porsche nem um Volvo. Era um Camaro velho com pintura nova e rodas cremadas. À direita da casa havia uma garagem
separada para dois carros, mas sua porta estava fechada. Chastain entrou na passagem para carros e estacionou atrás do Camaro.
- Belo carro - disse Chastain. - Digam o que quiserem, mas eu não deixaria um carro desses a noite toda do lado de fora. Mesmo numa vizinhança como esta. Próxima
demais da selva.
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Ele desligou o carro e já ia abrir a porta do seu lado.
- Vamos esperar um segundo aqui - disse Bosch.
Ele abriu sua pasta, pegou o celular e ligou de novo para a central. Pediu verificação dupla do endereço de Elias. Estavam no lugar correto. Ele então pediu ao atendente
para conferir a placa do Camaro. Tinha sido registrada em nome de Martin Luther King Elias, de dezoito anos. Bosch agradeceu e desligou.
- Viemos ao lugar certo? - perguntou Chastain.
- É o que parece. O Camaro deve ser do filho dele. Mas não parece que ninguém estava esperando o papai voltar esta noite.
Bosch abriu a porta de seu lado e saiu, imitado por Chastain. Conforme se aproximavam da porta, Bosch viu o brilho opaco de um botão de campainha. Apertou-o e ouviu
o toque agudo de uma sineta no interior da casa silenciosa.
Esperaram e pressionaram o botão mais duas vezes, até que a luz do pórtico acendeu-se acima deles e a voz sonolenta porém alarmada de uma mulher veio através da
porta.
-O que é?
- Sra. Elias? - disse Bosch. - Somos da polícia. Precisamos falar com a senhora.
- Polícia! Para quê?
- É sobre o seu marido, madame. Podemos entrar?
- Preciso ver alguma identificação antes de abrir a porta. Bosch tirou seu distintivo e exibiu-o, mas então notou que não
havia olho mágico.
- Dê a volta - disse a voz da mulher. - Na coluna.
Bosch e Chastain viraram-se e viram a câmera montada em uma das colunas. Bosch foi até ela e mostrou seu distintivo.
- Está vendo? - disse em voz alta.
Ouviu a porta sendo aberta e voltou-se. Uma mulher em robe branco e com uma echarpe de seda enrolada em torno da cabeça olhou para ele.
- Não precisa gritar - disse.
- Desculpe.
Ela parou na abertura de uns trinta centímetros da porta, mas não fez qualquer movimento para convidá-los a entrar.
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- Howard não está. O que vocês querem?
- Ha, não podemos entrar, sra. Elias? Queremos...
- Não, vocês não podem entrar na minha casa. Minha casa. Nenhum policial jamais pôs os pés aqui. Nem vai pôr. O que vocês querem? Aconteceu alguma coisa com Howard?
- Ha... sim, madame, receio. Seria realmente melhor se nós...
- Oh, meu Deus! - guinchou ela. - Vocês o mataram! Vocês finalmente o mataram!
- Sra. Elias - começou Bosch, desejando ter se preparado melhor para a reação previsível que a mulher teria. - Precisamos nos sentar com a senhora e...
Novamente ele foi interrompido, mas desta vez por um som ininteligível, meio animalesco, que veio das entranhas da mulher. Sua angústia ressoava. A mulher baixou
a cabeça e inclinou-se no batente da porta. Bosch pensou que ela fosse cair e moveu-se para agarrá-la pelos ombros. A mulher se retraiu como se ele fosse um monstro
querendo pegá-la.
- Não! Não! Não me toque! Vocês... vocês, seus assassinos! Assassinos! Vocês mataram o meu Howard! Howard!
A última palavra foi um grito do fundo da garganta que pareceu ecoar através da vizinhança. Bosch olhou para trás de si, esperando ver a rua repleta de curiosos.
Sabia que precisava conter a mulher, mantê-la lá dentro ou pelo menos em silêncio. Ela se movia agora num pranto em pleno desenvolvimento. Enquanto isso, Chastain
apenas ficou de pé ali, paralisado pela cena que se desenrolava à sua frente.
Bosch já ia fazer outra tentativa de tocar a mulher quando viu movimento por detrás dela e um rapaz agarrá-la.
- Mãe! O que está havendo?
A mulher virou-se e desmoronou de encontro ao jovem.
- Martin! Martin, eles o mataram! Seu pai!
Martin Elias olhou por cima da cabeça de sua mãe e seus olhos queimaram através de Bosch. Sua boca formou o horrível Oh de choque e dor que Bosch presenciara tantas
vezes antes. De repente, percebeu seu erro. Deveria ter incumbido Edgar ou Rider desta tarefa. Mais provavelmente Rider. Ela teria sido uma influência
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tranqüilizante. Suas maneiras suaves e a cor de sua pele teriam feito mais do que a combinação de Bosch e Chastain.
- Filho - disse Chastain saindo da sua inércia. - Precisamos nos acalmar um pouco aqui e entrar para conversar sobre isto.
- Não me chame de filho. Não sou a porra do seu filho!
- Sr. Elias - disse Bosch forçadamente. Todos, inclusive Chastain, olharam para ele. Bosch então prosseguiu, numa voz mais calma e suave: - Martin, você precisa
tomar conta da sua mãe. Precisamos contar a ambos o que aconteceu e fazer algumas perguntas a você. Quanto mais ficarmos aqui, praguejando e gritando, mais tempo
vai levar até que possa tomar conta de sua mãe.
Ele esperou um momento. A mulher virou a cabeça de volta para o peito do filho e começou a chorar. Martin então recuou, puxando-a com ele, dando espaço para que
Bosch e Chastain entrassem.
Pelos quinze minutos seguintes Bosch e Chastain sentaram-se com mãe e filho numa sala de estar belamente mobiliada e contaram o que se sabia do crime e como a investigação
seria conduzida. Bosch sabia que para eles isto era como dois nazistas anunciando que iriam investigar crimes de guerra, mas sabia também que era importante prosseguir
com a rotina, fazer o seu melhor para assegurar à família da vítima que a investigação seria direta e agressiva.
- Sei o que você disse sobre ser coisa de policiais - declarou Bosch, resumindo. - Até este momento não temos certeza. É muito cedo para se saber o motivo. Por enquanto
estamos numa fase de coleta de indícios. Mas logo passaremos para a fase de peneira, e qualquer policial que possa ter tido até mesmo um motivo remoto para causar
dano ao seu marido, será investigado. Sei que haverá muitos nesta categoria. Prometo que eles serão investigados muito detidamente.
Ele esperou. Mãe e filho sentavam-se abraçados num sofá com um alegre padrão floral. O filho mantinha os olhos fechados como uma criança esperando escapar de uma
punição. Ele estava flácido sob o peso do que tinham acabado de lhe contar. Estava finalmente se dando conta de que não tornaria a ver seu pai.
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- Bem, sabemos que este é um momento terrível para vocês disse Bosch suavemente. - Gostaríamos de evitar qualquer tipo de interrogatório prolongado, para que tenham
tempo para ficar um com o outro. Mas há umas poucas perguntas que nos seriam úteis exatamente agora.
Esperou por uma obj eção, mas não houve nenhuma. Continuou:
- A principal é que não podemos imaginar por que o sr. Elias estava no Vôo dos Anjos. Precisamos descobrir para onde ele...
- Ele estava indo para o apartamento - disse Martin, sem abrir os olhos.
- Que apartamento?
- Ele mantinha um apartamento perto do escritório, onde podia ficar nos dias de tribunal ou quando estava ocupado demais preparando-se para um julgamento.
- Ele ia ficar lá esta noite?
- Exato. Ficou lá a semana toda.
- Ele tinha depoimentos - disse a esposa. - com a polícia. Eles vinham depois do expediente, de modo que estava ficando até tarde no escritório. Então simplesmente
preferia ir para o apartamento.
Bosch ficou em silêncio, esperando que qualquer um deles acrescentasse algo mais acerca do arranjo, porém nada mais foi dito.
- Ele telefonou avisando que ficaria por lá? - perguntou.
- Sim, ele sempre telefonava.
- Quando foi isso? Desta última vez, quero dizer.
- Hoje bem cedo. Ele disse que ficaria trabalhando até tarde e que precisaria voltar lá no sábado e no domingo. Você sabe, preparando-se para o julgamento na segunda.
Disse que tentaria chegar em casa para o jantar de domingo.
- Então, não o esperavam em casa esta noite.
- Exato - disse Milhe Elias com uma nota de desafio na voz, como se tivesse interpretado no
tom da pergunta de Bosch uma insinuação a mais.
Bosch fez um aceno de cabeça para garantir a ela que não estava insinuando nada. Ele pediu o endereço do tal apartamento e disseram-lhe que ficava num complexo chamado
The Place, bem defronte à Grand Street partindo-se do Museu de Arte Contemporânea. Bosch tirou seu bloco e anotou.
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- Agora, sra. Elias - disse ele -, pode se lembrar mais especificamente da última vez em que falou com seu marido?
- Foi pouco antes das seis. É a hora em que ele telefona e me avisa, se não, tenho que adivinhar o que fazer e em qual quantidade para o jantar.
- E você, Martin? Quando falou com seu pai pela última vez.
Martin abriu os olhos.
- Não sei, cara. Faz uns dois dias, pelo menos. Mas o que isto tem a ver com alguma coisa? Você sabe quem é o culpado. Foi algum tira que fez o serviço.
Lágrimas finalmente começaram a escorrer pelo rosto de Martin. Bosch desejou estar em outro lugar. Qualquer outro lugar.
- Se foi um tira, Martin, eu lhe dou minha palavra de que o encontraremos. Ele não vai escapar dessa.
- Claro - replicou Martin, sem olhar para Bosch. - O cara nos dá sua palavra. Mas quem diabo é o cara?
A afirmação obrigou Bosch a uma pausa, antes de continuar.
- Mais algumas perguntas - disse por fim. - O sr. Elias tinha um escritório aqui em casa?
- Não - disse o filho. - Ele não trabalhava aqui.
- Certo. Próxima pergunta: em dias ou semanas recentes, ele mencionou alguma ameaça ou pessoas específicas que achava capazes de causar-lhe mal?
Martin balançou a cabeça e disse:
- Ele apenas dizia que eram os tiras que iam pegá-lo algum dia.
Eram os tiras...
Bosch assentiu, não em concordância, mas compreendendo a
crença de Martin.
- Uma última pergunta. Havia uma mulher que também toi morta no vagão. Parece que não estavam juntos. O nome dela era Catalina Perez. Este nome diz alguma coisa
a algum de vocês?
Os olhos de Bosch moveram-se do rosto da mulher para o do filho dela. Ambos o fitaram inexpressivos e sacudiram a cabeça.
- Tudo bem, então.
Ele se levantou.
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- Vamos deixá-los em paz agora. Mas eu mesmo ou outros detetives precisaremos falar com vocês de novo. Talvez hoje mesmo, mais tarde.
Nem a mãe nem o filho reagiram.
- Sra. Elias, tem uma foto do seu marido que pudesse nos emprestar?
A mulher olhou para ele, o rosto exibindo confusão.
- Por que você quer um retrato de Howard?
- Talvez precisemos mostrá-lo às pessoas no decorrer da investigação.
- Todo mundo já conhece Howard, sabe como ele é.
- Provavelmente, madame, mas poderíamos precisar de uma foto em alguns casos. A senhora...
- Martin - disse ela -, pegue para mim os álbuns na gaveta do gabinete.
Martin deixou a sala e eles esperaram. Bosch pegou um cartão do bolso e o colocou sobre a mesinha de centro de ferro batido e vidro.
- Aí tem o número do meu pager se precisar de mim ou se houver algo mais que eu possa fazer. Há algum pastor da família para quem poderíamos ligar?
Millie Elias olhou de novo para ele.
- O reverendo Tuggins, lá na Episcopal Metodista Africana. Bosch assentiu, mas imediatamente se arrependeu de ter feito o
oferecimento. Martin voltou à sala com um álbum de fotografias. Sua mãe o pegou e começou a folhear as páginas. Recomeçou a chorar silenciosamente à visão de tantos
retratos do marido. Bosch desejou que ela adiasse a entrega da foto até a entrevista de acompanhamento. Finalmente, ela escolheu uma foto em close do rosto de Howard
Elias, parecendo saber que seria a melhor para os objetivos da polícia. Retirou-a cuidadosamente do invólucro de plástico e entregou a Bosch.
- Vocês vão me devolver a foto?
- Sim, madame, vou cuidar disso.
Bosch assentiu e preparou-se para se retirar. Imaginava se poderia simplesmente esquecer de ligar para o reverendo Tuggins.
- Onde está meu marido? - perguntou a viúva de súbito.
- Seu corpo está no IML, madame. vou dar a eles o número do seu telefone. Vão ligar para a senhora quando chegar a hora de fazer os preparativos.
- E quanto ao reverendo Tuggins? Quer usar nosso telefone?
- Ha, não, madame. vou fazer contato com ele do nosso carro. Podemos cuidar disso agora.
A caminho da porta Bosch relanceou para a coleção de fotografias emolduradas que pendiam da parede do hall de entrada. Eram fotos de Howard Elias com cada líder
de destaque da comunidade negra de Los Angeles, bem como com outras celebridades e líderes nacionais. Lá estava ele com Jesse Jackson, com a congressista Maxine
Waters, com Eddie Murphy. Havia uma foto de Elias flanqueado pelo prefeito Richard Riordan e pelo conselheiro municipal Royal Sparks. Bosch sabia que Sparks usara
o clamor pela má conduta policial para pavimentar sua ascensão na política da cidade. Ele perderia o apoio de Elias para manter o fogo atiçado, embora Bosch também
soubesse que Sparks usaria agora o assassinato do advogado para qualquer vantagem que pudesse tirar. Bosch pensava em como as causas boas e nobres pareciam atrair
oportunistas sagazes para os microfones.
Havia também fotos de família. Várias retratavam Elias e sua esposa em funções sociais. Havia fotos de Elias e seu filho - uma delas num barco, ambos segurando um
marlim-negro e sorrindo. Uma outra os mostrava em posição de tiro ladeando um alvo de papel com vários buracos de bala. O alvo retratava Daryl Gates, um ex-chefe
de polícia que Elias processara inúmeras vezes. Bosch se lembrava de que os alvos, criados por um artista local, se tomaram populares ao final da tumultuosa gestão
de Gates à frente do departamento.
Bosch inclinou-se à frente para estudar a foto e ver se conseguia identificar as armas que Elias e o filho empunhavam, mas a foto era
pequena demais.
Chastain apontou para uma das fotos, que exibia Elias e o chefe de polícia em algum evento formal, supostos adversários sorrindo
para a câmera.
- Eles parecem bem à vontade - murmurou.
Bosch limitou-se a um aceno de cabeça e atravessou a porta.
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Chastain desceu pela entrada de carros, seguiu na direção das colinas e de volta à via expressa. Iam em silêncio, ambos absorvendo a infelicidade que acabavam de
transmitir para uma família e como tinham levado a culpa por ela.
- Eles sempre atiram no mensageiro - disse Bosch.
- Acho que fico contente por não trabalhar com homicídio replicou Chastain. - Sei lidar com os tiras que ficam putos comigo. Mas isto... isto foi uma merda.
- É chamado de serviço sujo...'notificação aos parentes.
- Tinham que chamar isto de alguma coisa. Gente escrota. Nós tentando descobrir quem matou o cara e eles dizendo que fomos nós. Acredita nessa merda?
- Eu não levaria isto ao pé da letra, Chastain. Pessoas naquela situação merecem um desconto. Estão sofrendo e dizem besteira, é isso aí.
- E, você vai ver. Espere até ver aquele garoto no noticiário das seis. Conheço o tipo. Você não vai ter muita simpatia quando chegar a hora. Para onde estamos indo,
afinal? De volta à cena do crime?
- Vá para o apartamento dele primeiro. Sabe o número do pager de Dellacroce?
- Não de cabeça. Veja na sua lista.
Bosch abriu seu bloco e olhou para o número do pager que Dellacroce escrevera. Ele digitou o número no seu telefone e deixou a mensagem.
- E quanto a Tuggins? - perguntou Chastain. - Se você telefonar vai estar dando tudo o que ele precisa para levantar a zona sul.
- Eu sei. Estou pensando.
Bosch estivera pensando nessa decisão desde o momento em que Millie Elias havia mencionado o nome de Preston Tuggins. Como ocorria em tantas comunidades de minorias,
os pastores tinham tanto peso quanto os políticos quando isto se adequava à reação de uma comunidade a uma causa ou evento político socioculturais. No caso de Preston
Tuggins, ele ia até mais longe. Liderava um grupo de pastores associados que, juntos, constituíam uma força, uma força de vulto apoiada pela mídia, que podia manter
toda a comunidade
em xeque - ou liberá-la com a força de um terremoto. Era preciso cuidado especial para lidar com Preston Tuggins.
Bosch vasculhou seu bolso e pegou o cartão que Irving lhe dera mais cedo. Estava prestes a chamar um dos números quando o celular em sua mão tocou.
Era Dellacroce. Bosch deu-lhe o endereço do apartamento de Elias no condomínio The Place e disse-lhe para preparar mais um mandado de busca. Dellacroce xingou porque
já havia acordado um juiz para mandar-lhe um mandado de busca para o fax do escritório. Agora teria de fazer isto de novo.
- Bem-vindo à Homicídios - disse Bosch enquanto desligava.
- O quê? - disse Chastain.
- Nada. Só babaquice.
Bosch ligou para Irving. O subchefe atendeu ao primeiro toque, dando seu nome completo e posto. Pareceu estranho a Bosch que Irving se mostrasse tão alerta, como
se nem tivesse dormido.
- Chefe, aqui é Bosch. Você mandou ligar se...
- Não tem problema, detetive. O que é?
- Acabamos de dar a notificação. A esposa e ao filho de Elias. Ha... ela me pediu para ligar para o seu pastor.
- Não vejo qual é o problema.
- O pastor é Preston Tuggins e achei que alguém de cargo mais elevado seria melhor para...
- Entendo. Foi uma boa idéia. vou cuidar disso. Acho que talvez o próprio chefe queira cuidar. Eu já ia ligar para ele, de qualquer modo. Algo mais?
- Não no momento.
- Obrigado, detetive.
Irving desligou. Chastain perguntou o que ele dissera e Bosch
contou.
- Este caso... - comentou Chastain. - Tenho a sensação de que as coisas vão ficar cabeludas.
- Repita isto.
Chastain estava prestes a acrescentar alguma coisa, mas o pager de Bosch tocou. Ele conferiu o número. Mais uma vez não era uma chamada de casa, mas sim uma segunda
mensagem de Grace Billets.
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Ele se esquecera de ligar para ela mais cedo. Ligou agora e a tenente atendeu após um toque.
- Estava pensando que não ia me dar retorno.
- Desculpe. Estive meio enrolado, depois esqueci.
- E então, o que está havendo? Irving não quis me dizer quem morreu, disse apenas que a DRH e a Central não poderiam cuidar do caso.
- Howard Elias.
- Oh, merda.... Harry... lamento que tenha sobrado para você.
- Está tudo bem. Vamos segurar a barra.
- Todo mundo vai ficar de olho em vocês. E se foi um tira... é uma parada perdida. Você obteve algum sinal de Irving? Ele quer ir fundo nesta coisa?
- Sinais mistos.
- Não está podendo falar?
- É isso aí.
- Bem, também estou obtendo sinais mistos aqui. Irving me disse para retirar sua equipe do rodízio, mas falou que seria só até sexta-feira. Então acho que deveria
falar com ele a respeito. Agora que sei quem morreu, creio que a tradução disto é que você tem de ir levando antes que ele provavelmente o despache de volta para
Hollywood. Aí você vai ter de trazer Howard Elias para cá e trabalhar no caso quando puder.
Bosch sacudiu a cabeça mas não disse nada. Estava de acordo com os outros movimentos feitos por Irving. O subchefe havia criado uma ampla equipe para trabalhar
no caso, mas parecia que só lhes estava dando uma semana para trabalhar em tempo integral. Talvez esperasse que os refletores da mídia diminuíssem para um nível
mais manejável àquela altura e o caso pudesse finalmente desaparecer nos arquivos de casos insolúveis. Mas Bosch achava que Irving estava se enganando se pensava
assim.
Ele e Billets falaram por mais alguns minutos antes que a tenente finalmente lhe desse um aviso.
- Cuide-se bem, Harry. Se foi um tira quem fez isto, um daqueles caras da DRH...
-O quê?
- Simplesmente tome cuidado.
-vou tomar.
Ele fechou o celular e olhou pelo pára-brisa. Estavam quase na passagem para a 110. Logo estariam de volta à Califórnia Plaza.
- Era a sua tenente? - perguntou Chastain.
- Era. Só queria saber o que estava acontecendo.
- E como é que vão as coisas entre ela e a Rider? Continuam pisando nos calos uma da outra?
- Isso não é da minha conta, Chastain. Nem da sua.
- Estava só perguntando.
Rodaram em silêncio por algum tempo. Bosch ficou chateado com a pergunta do colega. Sabia que era a maneira de o detetive da DAI lembrar-lhe de que conhecia segredos.
Que ele poderia estar fora do seu elemento ao ver-se envolvido numa investigação de homicídio, mas que sabia de segredos sobre os tiras e que poderia pegar pesado,
se quisesse. Bosch achou que não deveria ter ligado para Billets com Chastain a seu lado no carro.
Chastain pareceu sentir sua mancada e quebrou o silêncio tentando algumas amenidades.
- Conte-me sobre aquela história dos ovos cozidos que o pessoal não pára de comentar - disse.
- Não foi nada. Apenas um caso.
- Acho que não acompanhei direito a história nos jornais.
- Foi apenas um lance de sorte, Chastain. Tal como poderíamos
usar neste caso.
- Bem, conte aí. Quero saber... especialmente agora que somos parceiros, Bosch. Gosto de histórias sobre sorte. Talvez sirva para descontrair.
- Foi só um chamado de rotina para um caso de suicídio. Patrulheiros nos chamaram para ir até lá e assumir. Tudo começou quando uma mulher ficou preocupada com
sua filha porque ela não tinha aparecido no aeroporto em Portland. Ela deveria voar até lá para um casamento ou algo assim e não apareceu. A família ficou à espera
no aeroporto. Por via das dúvidas, a mãe telefonou e pediu uma busca no apartamento da filha. Um lugarzinho na Franklin, perto de La Brea. Assim, um patrulheiro
foi lá, pediu
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auxílio ao síndico e então a encontraram. Estava morta havia dois dias... desde a manhã em que deveria ter embarcado no avião para Portland.
- O que foi que ela fez?
- Fizeram parecer como se ela tivesse tomado algumas pílulas e depois cortado os pulsos na banheira.
- O patrulheiro disse que foi suicídio.
- Era assim que deveria parecer. Havia um bilhete. Foi rasgado de um bloco e dizia coisas sobre a vida não ser aquilo que ela havia esperado, sobre sentir-se o tempo
todo solitária e coisas assim. Era uma espécie de divagação. Muito triste, na verdade.
- E então? Como você imaginou a coisa?
- Bem, nós fomos lá... Edgar estava comigo, a Rider tinha tribunal... e quase encerramos o caso. Tínhamos vasculhado o local e nada encontramos de realmente errado...
a não ser o bilhete. Não consegui achar o bloco de onde a página tinha sido arrancada. E a coisa não se encaixava direito. Quero dizer, não significava que ela não
tivesse se matado, mas havia uma ponta solta. Algo como: o que está errado neste quadro?
- Certo. Aí você pensou que alguém tinha estado lá e pegado o bloco?
- Talvez. Eu não sabia o que pensar. Pedi a Edgar para darmos outra olhada e dessa vez fomos fundo e vasculhamos coisas que o outro cara já havia vasculhado da primeira
vez.
- E você achou algo que Edgar deixou escapar.
- Ele não deixou escapar. Simplesmente não registrou com ele. Aconteceu comigo.
- O que foi?
- Na geladeira havia uma prateleira para os ovos. Você sabe, aquelas pequenas reentrâncias para colocar os ovos?
- Sei."
- Bem, notei que em alguns dos ovos ela escrevera uma data. A mesma data em todos. Era o mesmo dia em que estaria voando para Portland.
Bosch olhou para Chastain para ver se havia uma reação. O homem da DAI ostentava um olhar confuso. Ele não entendia.
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- Eram ovos cozidos. Aqueles que tinham a data haviam sido cozidos. Levei um até a pia e o rachei. Estava cozido.
- Certo.
Ele ainda não entendia.
- A data nos ovos era provavelmente a data em que ela os cozinhara - continuou Bosch. - Você sabe, de modo que ela pudesse distinguir os ovos cozidos dos outros
e saber o quão velhos estavam. E foi aí que entendi. Você não cozinha ovos de modo que estejam prontos para quando quiser comê-los, e depois comete suicídio. Que
sentido isso faz?
- Então foi um palpite.
- Mais que isso.
- Mas você simplesmente soube. Homicídio.
- Isso mudava tudo. Começamos a olhar as coisas de modo diferente. Iniciamos uma investigação de homicídio. Levou alguns dias, mas conseguimos. Amigos dela nos contaram
sobre um cara que vinha lhe causando problemas. Ficava importunando e seguindo a moça porque ela havia terminado um namoro. Indagamos entre os vizinhos do apartamento
e começamos a nos fixar no síndico do prédio.
- Merda, eu devia ter adivinhado que era ele - comentou Chastain.
- Falamos com ele, que ficou enrolado o suficiente para convencermos um juiz a assinar um mandado de busca. Na casa dele encontramos o bloco do qual tinha sido
arrancada a folha do suposto bilhete de suicídio. Era como um diário em que ela escrevia seus pensamentos e afazeres. O síndico descobriu a página onde ela falava
sobre os problemas da vida e achou que podia usá-la como um bilhete de suicídio. Encontramos outra coisa que era dela.
- Por que ele guardou a coisa?
- Porque as pessoas são idiotas, só por isso, Chastain. Se quiser assassinos espertos, é só assistir à TV. Ele guardou a coisa porque nunca lhe passou pela cabeça
que acharíamos que não foi suicídio. E porque ele estava no bloco. A moça escreveu sobre ele assediá-la, sobre como ao mesmo tempo se sentia lisonjeada e assustada
por ele. Ele provavelmente se sentiu absolvido ao ler isto. E guardou-o.
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-Quando é o julgamento?
- Daqui a dois meses.
- Está parecendo um jogo ganho.
- É, vamos. O. J. Simpson também parecia.
- O que foi que ele fez? Drogou-a de alguma maneira, depois a colocou na banheira e a cortou?
- Ele ficava no apartamento da moça quando ela estava fora. Havia anotações no diário em que ela achava que alguém estava entrando no seu apartamento. Era uma corredora...
corria cinco quilômetros por dia. Achamos que era nessa hora que ele gostava de entrar. Ela guardava receitas de analgésicos no armário de remédios, pois tinha sofrido
uma lesão praticando esportes dois anos antes. Achamos que ele pegou as pílulas em uma de suas visitas e as dissolveu em suco de laranja. Na próxima vez em que entrou,
ele pôs a mistura na garrafa de suco na geladeira. Conhecia os hábitos dela, sabia que depois de correr ela gostava de sentar-se nos degraus de fora, beber seu suco
e relaxar. Ela pode ter percebido que tinha sido drogada e procurado ajuda. Foi ele quem apareceu. E a levou para dentro.
- Ele a estuprou primeiro? Bosch sacudiu a cabeça.
- Provavelmente tentou, mas não conseguiu. - Prosseguiram em silêncio por alguns momentos.
- Você é esperto, Bosch - disse Chastain. - Não deixa escapar nada.
- É, assim espero.
Capítulo 7
Chastain estacionou na área de desembarque de passageiros diante do moderno edifício que chamavam The Place. Antes mesmo que saltassem o porteiro noturno atravessou
a porta de vidro como se fosse recepcioná-los ou mandar que fossem embora. Bosch saltou e explicou que Howard Elias tinha sido assassinado a menos de um quarteirão
de distância e que eles precisavam verificar o apartamento para ter certeza de que não havia outras vítimas ou alguém precisando de ajuda. O porteiro disse que não
havia problema, mas insistiu em ir junto. Num tom que desestimulava qualquer discussão, Bosch disse-lhe para esperar na portaria por outros policiais que iriam
chegar.
O apartamento de Howard Elias ficava no vigésimo andar. O elevador movia-se rapidamente, mas o silêncio entre Bosch e Chastain fez a viagem parecer mais longa.
Encontraram o apartamento 20E e Bosch bateu na porta e tocou a campainha na parede ao lado. Não obtendo resposta, Bosch curvou-se e abriu sua pasta no chão, depois
pegou as chaves da sacola de provas materiais que Hoffman lhe dera mais cedo.
- Não acha que deveríamos esperar pelo mandado? - perguntou Chastain.
Bosch ergueu a vista para ele enquanto fechava a pasta e trancava os fechos.
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- Não.
- Foi uma frase babaca que você disse ao porteiro, de que talvez pessoas precisassem de ajuda.
Bosch se levantou e começou a experimentar as chaves nas duas fechaduras da porta.
- Lembra de que me disse que eu acabaria tendo finalmente de confiar em você? É aqui que começo a confiar, Chastain. Não tenho tempo de esperar um mandado. Estou
entrando. Um caso de homicídio é como um tubarão. Tem que continuar em movimento ou se afoga.
Girou a primeira fechadura.
- Você e a porra dos seus peixes. Primeiro um peixe de briga, agora um tubarão.
- É, se você continuar por aqui, Chastain, pode até aprender como pegar alguma coisa.
Mal concluiu a frase, voltou-se para a segunda fechadura. Olhou para Chastain, piscou e então abriu a porta.
Entraram numa sala de estar de tamanho médio com mobiliário caro, de couro, estantes de cerejeira, e janelas e uma sacada que davam um amplo panorama do centro
da cidade e do centro cívico. O lugar estava arrumado com capricho, exceto por cadernos do Times da manhã de sexta-feira espalhados pelo sofá de couro preto e uma
caneca de café vazia sobre uma mesinha de centro com tampo de vidro.
- Olá? - chamou Bosch, só para ter certeza de que o apartamento estava vazio. - É a polícia. Alguém em casa?
Não houve resposta.
Bosch pousou sua pasta sobre a mesa da sala de jantar, abriu-a e pegou um par de luvas de látex de uma caixa de papelão. Perguntou a Chastain se queria um par também,
mas o homem da DAI declinou.
- Não vou tocar em nada - explicou.
Eles se separaram e começaram a se movimentar pelo apartamento numa rápida vistoria inicial. Os demais cômodos estavam tão arrumados quanto a sala de estar. Era
um apartamento de dois quartos, um deles uma suíte com sua própria sacada dando para
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oeste. Era uma noite clara. Bosch podia ver todo o caminho até o Century City. Depois daquelas torres as luzes descaíam para o mar em Santa Monica. Chastain entrou
no quarto atrás dele.
- Nenhum escritório - disse. - O segundo quarto parece um quarto de hóspedes. Talvez para abrigar testemunhas.
- Certo.
Bosch examinou o que havia em cima da cômoda. Não havia fotos ou qualquer coisa de natureza pessoal. O mesmo se deu com as mesinhas-de-cabeceira a cada lado da
cama. Parecia um quarto de hotel, e de certo modo era - Elias usava-o apenas para pernoites enquanto trabalhava nos seus processos para o tribunal. A cama estava
feita e isto chamou a atenção de Bosch. Elias estava em meio aos preparativos para um julgamento importante, trabalhando dia e noite, embora tivesse parado para
arrumar sua cama naquela manhã, quando supostamente estaria retornando ao apartamento no fim do dia. Não tem outro jeito, pensou Bosch. Ou ele arrumou a cama porque
haveria mais alguém no apartamento, ou outra pessoa tinha feito a cama.
Bosch descartou uma arrumadeira, porque ela teria recolhido o jornal espalhado e a caneca de café vazia na sala de estar. Não, foi Elias quem tinha arrumado a cama.
Ou havia alguém com ele. Era um instinto entranhado com base nos seus longos anos de investigação dos hábitos humanos, mas naquele momento Bosch sentiu-se razoavelmente
seguro de que havia outra mulher na parada.
Abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira, onde havia um telefone, e encontrou um caderninho pessoal de números telefônicos. Ele o abriu e folheou as páginas. Havia
muitos nomes que reconheceu. A maioria era de advogados de que Bosch ouvira falar ou até conhecia pessoalmente. Parou ao deparar com um nome. Carla Entrenkin, uma
advogada também especializada em casos de direitos civis - ou tinha sido até um ano antes, quando a Comissão de Polícia a designou inspetora-geral do DPLA. Ele notou
que Elias tinha anotado os números de seu escritório e da residência. O número de casa estava escrito em tinta mais escura, aparentemente mais recente. Bosch concluiu
que o número residencial tinha sido acrescentado bem depois do número telefônico comercial.
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- O que conseguiu? - perguntou Chastain.
- Nada - disse Bosch. - Apenas um bando de advogados.
Ele fechou o caderninho de telefones quando Chastain se aproximou para olhar. Colocou o caderninho de volta na gaveta e fechou-a.
- É melhor deixar isto para o mandado - disse.
Fizeram uma busca aleatória no resto do apartamento nos vinte minutos seguintes, vasculhando gavetas e armários, debaixo de camas e colchões, mas sem alterar a posição
das coisas que encontravam. A certa altura Chastain gritou do banheiro da suíte.
- Tem duas escovas de dentes aqui.
-OK.
Bosch estava na sala de estar, examinando os livros nas estantes. Viu um que tinha lido muitos anos antes, O passado fará você chorar, de Chester Himes. Ele sentiu
a presença de Chastain e voltou-se. Chastain estava parado no corredor que levava aos quartos. Estava segurando uma caixa de camisinhas para que Bosch visse.
- Estavam escondidas no fundo de uma prateleira debaixo da pia. Bosch não respondeu, limitando-se a assentir.
Na cozinha havia um telefone de parede equipado com secretária eletrônica. O mostrador digital dizia que havia uma mensagem à espera. Bosch pressionou o botão do
playback. Uma voz de mulher soou na mensagem. "Oi, sou eu. Pensava que fosse me ligar. Espero que você não tenha se esquecido de mim."
Então era isso. Após a mensagem, a secretária eletrônica informou que a chamada fora feita ao primeiro minuto da madrugada, hora em que Elias já estava morto. Chastain,
que adentrara a cozinha vindo da sala de estar ao ouvir a voz, limitou-se a olhar para Bosch e sacudir os ombros após a mensagem ser passada. Bosch a repetiu.
- Não parece que seja a esposa - comentou Bosch.
- Para mim parece uma branca - disse Chastain.
Bosch achou que ele estava certo. Repetiu a mensagem mais uma vez, agora se concentrando no
tom da mulher. Havia um nítido senso de intimidade na voz. A hora da
chamada e a presunção da mulher de que Elias conhecia sua voz também apoiavam esta conclusão.
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-Camisinhas escondidas no banheiro, duas escovas de dentes, mulher misteriosa ao telefone - disse Chastain. - Parece que temos uma amante na parada. Isto pode tornar
as coisas interessantes.
- Talvez - replicou Bosch. - Alguém fez a cama esta manhã. Alguma coisa de mulher no armário de remédios?
- Nada.
Chastain voltou à sala de estar. Após terminar na cozinha, Bosch achou que já tinha visto o suficiente por enquanto e abriu a porta corrediça de vidro que dava da
sala de estar para a sacada. Encostou-se na balaustrada de ferro e consultou
o relógio. Eram 4:50 da madrugada. Ele então tirou o pager do cinto para verificar se
não o havia desligado por engano.
O pager estava ligado, a bateria funcionando. Eleanor não tentara procurá-lo. Ouviu Chastain chegar à sacada atrás dele. Bosch falou sem se virar para olhar para
ele.
- Você o conhecia, Chastain?
- Quem, Elias? Mais ou menos.
- Como?
- Trabalhei em casos que ele mais tarde levou à justiça. Fui intimado e prestei depoimento. E mais: o Bradbury. Ele tinha seu escritório lá, nós tínhamos escritórios
lá. Volta e meia dava de cara com ele. Mas se está perguntando se eu jogava golfe com o cara, a resposta é não. Eu não era tão íntimo assim.
- O cara fez de processar policiais um meio de vida. Quando entrava no tribunal ele sempre parecia ter informação realmente boa. Informação de cocheira. Alguns diziam
que era coisa melhor do que ele teria obtido através de revelação legal. Alguns diziam que teria fontes dentro...
- Eu não era informante de Howard Elias, Bosch - cortou Chastain, a voz tensa. - E não conheço ninguém na DAI que fosse. Nós investigamos policiais. Eu investigo
policiais. Às vezes eles merecem ser investigados e às vezes, não. Você sabe tão bem quanto eu que alguém tem de policiar a polícia. Mas passar informações para
Howard Elias e sua camarilha, isto para mim é a mais baixa das baixezas, Bosch. Então vá se foder por ter perguntado.
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Bosch olhou para ele, estudando o tipo de raiva que se movia nos seus olhos escuros.
- Estava apenas perguntando - disse ele. - Precisava saber com quem estou lidando.
Voltou a olhar para a cidade e depois para a praça lá embaixo. Viu Kiz Rider e Loomis Baker atravessando na direção do Vôo dos Anjos com um homem que Bosch presumiu
ser Eldrige Peete, o operador do plano inclinado.
-Tudo bem, já perguntou - disse Chastain. - Podemos prosseguir agora?
- Claro.
Desceram em silêncio pelo elevador. Bosch só falou quando chegaram à portaria.
- Você vai na frente - disse ele. - vou ver se há algum banheiro por aqui. Diga aos outros que logo estarei lá.
- Certo.
O porteiro entreouvira o diálogo de sua mesinha e disse a Bosch que o banheiro ficava atrás dos elevadores. Bosch se encaminhou para lá.
Já no banheiro, Bosch pôs a pasta sobre a pia e tirou seu celular. Ligou primeiro para casa. Quando a secretária eletrônica atendeu, ele clicou o código que passava
todas as mensagens. Só teve o retorno da sua própria mensagem. Eleanor não a recebera.
- Merda - disse ele e desligou.
Ele então ligou para Informações e conseguiu o número do salão de pôquer de Hollywood Park. Na última vez em que Eleanor não voltara para casa ela lhe dissera que
ficara jogando carteado lá. Ele digitou o número e pediu para falar com o setor de segurança. Um homem que se identificou como sr. Jardine atendeu e Bosch deulhe
seu nome e o número de seu distintivo. Jardine pediu-lhe para soletrar o nome e repetir o número. Estava obviamente anotando.
- Está na sala de vídeo?
- Claro que estou. O que posso fazer por você?
- Estou procurando por alguém e há uma boa chance de que ela esteja em uma das suas mesas exatamente agora. Estava imaginando se poderia olhar nos monitores para
mim.
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- Como é ela?
Bosch descreveu sua esposa, mas não pôde dar nenhuma descrição sobre traje porque não verificara os armários de roupa na casa. Ele então esperou dois minutos enquanto
Jardine parecia estudar as telas de vídeo conectadas às câmeras de vigilância no salão de pôquer.
- Ha, se ela está aqui, não a estou vendo - disse Jardine finalmente. - Não temos muitas mulheres aqui a esta hora da noite. E a descrição não combina com as que
estão presentes. Quero dizer, ela poderia ter estado aqui mais cedo, talvez uma ou duas horas. Mas não agora.
- Tudo bem, obrigado.
- Ei, você pode deixar um número. vou dar uma circulada pelo salão e ligo de volta para você, se vir alguma coisa.
- Eu vou deixar o meu pager. Mas se a vir, não precisa abordá-la, é só me passar a mensagem.
- Deixa comigo.
Após dar a Jardine o número de seu pager e desligar, Bosch pensou nos clubes de carteado em Gardena e Commerce, mas decidiu não ligar. Se Eleanor fosse permanecer
no perímetro local ela teria ido para Hollywood Park. Se não tinha ido para lá, fora então para Vegas ou talvez para um cassino índio no deserto, perto de Palm Springs.
Tentou não pensar mais nisso e concentrou a mente de volta ao caso que tinha nas mãos.
Bosch telefonou em seguida para o plantão noturno da promotoria após localizar o número no seu caderninho de telefones. Pediu para falar com o promotor de serviço
e foi finalmente passado para uma advogada sonolenta chamada Janis Langwiser. Por acaso era a mesma que entrara com as acusações no assim chamado caso dos ovos
cozidos. Havia sido transferida recentemente da promotoria da cidade e fora a primeira vez que Bosch tinha trabalhado com ela. E apreciara seu senso de humor e
entusiasmo pelo serviço.
- Não me diga - comentou ela. - Você conseguiu um caso de ovos cozidos desta vez? Ou, melhor ainda, o caso da omelete do Oeste?
- Não exatamente. Detesto tirar você da cama, mas precisamos
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de alguém para vir nos dar uma pequena orientação numa busca que vamos fazer daqui a pouco.
- Quem morreu e onde é a busca?
- - O morto é Howard Elias, e a busca vai ser no escritório dele. Ela assoviou e Bosch teve de afastar o fone do ouvido.
- Puxa - disse ela, agora plenamente alerta. - Isto vai ser... bem, algo grande. Conte os detalhes gerais.
Ele o fez e, ao terminar, Langwiser, que morava 45 quilômetros ao norte, em Valencia, concordou em encontrar a equipe de busca no Bradbury em uma hora.
- Até lá, leve as coisas com muito cuidado, detetive Bosch, e não entre no escritório enquanto eu não chegar.
- vou fazer isso.
Era uma coisinha à toa, mas Bosch gostava de ouvi-la chamando-o pelo seu título. Isto não era porque ela fosse bem mais jovem do que ele, mas porque, com bastante
freqüência, os promotores o tratavam e a seus colegas sem o menor respeito, como se não passassem de ferramentas para eles usarem da maneira que lhes aprouvesse
ao conduzir um caso. Ele tinha certeza de que Janis Langwiser seria igual a eles assim que se tornasse mais experiente e cínica, mas pelo menos por enquanto ela
lhe demonstrava canhestramente pequenas nuances de respeito.
Bosch desligou e já ia guardar o telefone quando pensou em algo mais. Ligou de novo para Informações e pediu o número residencial de Carla Entrenkin. Foi conectado
a uma gravação que lhe disse que o número estava fora de catálogo a pedido da cliente. Era o que ele esperava ouvir.
Enquanto atravessava a Grand Street e a Califórnia Plaza rumo ao Vôo dos Anjos, Bosch mais uma vez tentou não pensarem Eleanor e onde ela poderia estar. Mas era
difícil. Doía seu coração quando pensava nela sozinha em algum lugar, procurando por algo que ele obviamente não podia lhe dar. Estava começando a sentir que seu
casamento iria naufragar se não adivinhasse logo o que ela estava precisando. Quando se casaram, um ano atrás, ele encontrara uma sensação de contentamento e paz
que nunca havia vivenciado antes. Pela primeira vez na vida ele sentiu que havia alguém por quem se
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sacrificar - tudo, se fosse necessário. Mas havia chegado ao ponto em que estava reconhecendo que o mesmo não ocorria em relação a ela. Eleanor não estava contente
ou completa. E isto o fazia sentirse terrível e culpado e, ao mesmo tempo, um tantinho só aliviado.
Mais uma vez tentou se concentrar em outras coisas, no caso. Sabia que precisava esquecer Eleanor por enquanto. Começou a pensar na voz ao telefone, nas camisinhas
escondidas no armário do banheiro e na cama que tinha sido arrumada com tanto capricho. Pensou em como Howard Elias podia ter o número telefônico fora de lista
de Carla Entrenkin guardado na gaveta junto à sua cama.
Capítulo 8
Rider estava parada junto a um negro alto e de cabelos grisalhos do lado de fora da porta da estação do Vôo dos Anjos. Partilhavam um sorriso sobre alguma coisa
quando Bosch se aproximou.
- Sr. Peete, este é Harry Bosch - apresentou Rider. - É o encarregado da investigação.
Peete apertou-lhe a mão.
- A pior coisa que já vi na minha vida. A pior coisa.
- Lamento que tenha testemunhado isto, senhor, mas estou contente que esteja disposto a nos ajudar. Por que não entra e se senta? Estaremos com o senhor em poucos
minutos.
Quando Peete entrou, Bosch olhou para Rider. Não tinha o que falar.
- Tal como Garwood disse. Ele não ouviu nem viu nada até que o vagão veio para cima e ele entrou para trancá-lo para a noite. Também não viu ninguém circulando lá
por baixo como se estivesse esperando por alguém.
- Alguma chance de que ele estivesse apenas se fingindo de surdo e mudo?
- Meu instinto diz que não. Acho que ele está sendo honesto. Não viu nem ouviu acontecer.
- Ele tocou nos corpos?
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- Não. Está se referindo ao relógio e à carteira? Duvido que tenha sido ele.
Bosch assentiu.
- Importa-se se eu pedir a ele mais uma palavrinha?
- À vontade.
Bosch entrou no pequeno escritório e Rider o seguiu. Eldrige Peete estava sentado à mesa de almoço, segurando o fone no ouvido.
- Preciso desligar, querida - disse quando viu Bosch. - O policial quer falar comigo. - Ele desligou. - Era minha esposa. Queria saber quando eu vou voltar para
casa.
Bosch assentiu.
- Sr. Peete, por acaso entrou no vagão depois que viu os corpos lá dentro?
-Não, senhor. Ha, eles me pareceram para lá de mortos. Vi um bocado de sangue. Achei que devia deixar tudo por conta das autoridades.
- Reconheceu alguma daquelas pessoas?
- Bem, o homem eu não podia ver muito bem, mas achei que podia ser o sr. Elias, por causa do terno bonito e da aparência. Agora, a mulher, eu reconheci ela também.
Quero dizer, não sabia o seu nome nem nada, mas ela embarcou alguns minutos antes e desceu.
- Está querendo dizer que ela desceu primeiro?
- É, ela desceu. Também viajava habitualmente, como o sr. Elias. Só que viajava apenas uma vez por semana. Nas sextas-feiras, como na noite passada. O sr. Elias
viajava mais.
- Por que acha que ela desceu primeiro mas não desembarcou? Peete olhou para ele sem expressão, como se surpreso por uma
pergunta fácil.
- Porque foi baleada.
Bosch quase riu, mas guardou isto para si mesmo. Ele não estava sendo claro o bastante com a testemunha.
- Não, estou me referindo a antes de ela ser baleada. É como se ela nunca tivesse desembarcado. Como se tivesse ficado sentada no banco e aguardando para voltar,
quando o atirador chegou por trás do outro passageiro que estava entrando.
- Juro que não sei o que ela estava fazendo.
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- Quando exatamente ela desceu?
- Na mesma viagem. Mandei a Olivet para baixo e a mulher estava nela. Isso foi mais ou menos às cinco para as onze. Baixei a Olivet e deixei ela ficar lá até às
onze, e depois fiz ela subir de novo. Sabe, a última viagem. Quando chegou em cima, aquelas pessoas estavam mortas dentro dela.
O uso evidente do gênero feminino com que Peete se referia ao vagão do plano inclinado estava confundindo Bosch. Ele tentou deixar isto claro.
- Então você baixou o Olivet com a mulher dentro dele. Então, cinco ou seis minutos depois, a mulher ainda estava no vagão quando o trouxe para cima. Confere?
- Confere.
- E durante aqueles cinco ou seis minutos em que o Olivet ficou parado lá embaixo, você não olhou para lá?
- Não, estava contando a féria na registradora. Depois, quando deu as onze horas, saí e tranquei a Sinai. Em seguida, trouxe a Olivet para cima. Foi então que encontrei
os dois. Estavam mortos.
- Mas não ouviu nada lá de baixo? Nem tiros?
- Não, como já disse para a moça... a srta. Kizmin. Uso protetores de ouvido por causa do barulho no subsolo da estação. Além disso, eu estava contando a féria.
Quase tudo moedas de vinte e cinco cents. Eu conto tudo na máquina.
Ele apontou para uma máquina contadora de moedas em aço imaculado junto à caixa registradora. Parecia que a máquina colocava moedas de 25 cents em rolos de papel
de dez dólares. Ele então bateu com o pé no piso de madeira, indicando a maquinaria abaixo. Bosch acenou com a cabeça, dizendo que entendia.
- Fale sobre a mulher. Disse que era uma passageira habitual?
- É, uma vez por semana. Toda sexta-feira. Talvez tivesse um bico nos apartamentos lá em cima, fazendo faxina ou algo assim. O ônibus sai da Hill Street. Acho que
ela pegava ele lá.
- E quanto a Howard Elias?
- Também era passageiro habitual. Duas ou três vezes por semana, sempre em horários diferentes, às vezes tarde, como na noite passada. Uma vez eu estava trancando
o vagão e ele apareceu lá
embaixo gritando por mim. Abri uma exceção e trouxe ele para cima na Sinai. Eu estava sendo gentil, e no Natal ele me deu um pequeno envelope. Ele era um homem bom...
lembrando de mim desse jeito.
- Ele estava sempre sozinho quando viajava?
O velho cruzou os braços e pensou a respeito por um momento.
- Na maioria das vezes, acho.
- Lembra de tê-lo visto algum dia com mais alguém?
- Acho que uma ou duas vezes eu vi ele com alguém. Não me lembro direito de quem era.
- Era homem ou mulher?
- Não sei. Acho que poderia ter sido uma mulher, mas não consigo fazer uma descrição, entende o que quero dizer?
Bosch assentiu e refletiu sobre algumas coisas. Olhou para Rider e ergueu as sobrancelhas. Ela sacudiu a cabeça. Nada tinha a perguntar.
- Antes de ir, sr. Peete, pode ligar tudo de novo e nos fazer descer?
- Claro. Tudo que o senhor e a srta. Kizmin precisarem. - Ele olhou para Rider e inclinou a cabeça com um sorriso.
- Obrigado - disse Bosch. - Então vamos descer.
Peete foi para o teclado do computador e começou a digitar num comando. Imediatamente a porta começou a vibrar e houve um som triturante e grave. Peete voltou-se
para eles.
- Disponham - disse acima do ruído. Bosch acenou e se encaminhou para o vagão. Chastain e Baker, o homem da DAI que atuava com Kizmin Rider, estavam de pé junto
ao contratrilho, olhando para o trilho.
- Estamos descendo - chamou Bosch. - Vocês vêm também?
Sem uma palavra, eles seguiram atrás de Rider e os quatro detetives embarcaram no vagão chamado Olivet. Os cadáveres já tinham sido há muito removidos e os peritos
ido embora. Mas o sangue derramado ainda estava no piso de madeira e no banco que Catalina Perez ocupara. Bosch desceu os degraus, tomando cuidado para não pisar
na poça marrom que havia vazado do corpo de Howard Elias. Sentou-se ao lado direito. Os outros sentaram-se em bancos mais
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acima no vagão, longe de onde os corpos tinham caído. Bosch olhou para o alto, para a janela da estação, e acenou. Imediatamente, o vagão sacolejou e iniciou sua
descida. E imediatamente Bosch mais uma vez recordou suas viagens no trenzinho quando criança. O assento era tão desconfortável quanto naquele tempo.
Bosch não olhou para os outros enquanto desciam. Continuou olhando a porta inferior e o trilho enquanto ele corria por debaixo do vagão. A viagem durou não mais
que um minuto. Ele foi o primeiro a desembarcar. Voltou-se e olhou os trilhos acima. Pôde ver a cabeça de Peete silhuetada na janela da estação pela luz interna.
Bosch não forçou a passagem pela catraca, pois viu impressões digitais de pó preto nela e não queria que manchassem seu terno. O departamento não considerava o pó
como um risco do ofício e não reembolsaria a conta de uma lavagem a seco se ele arranjasse uma mancha em sua roupa. Ele apontou a mancha para os outros e pulou a
catraca.
Ele inspecionou o solo na esperança de que sua visão captasse algo, mas não havia nada de incomum. Acreditava em que a área já tivesse sido vasculhada pelos detetives
da DRH. Tinha inicialmente descido para dar uma olhada em primeira mão e sentir o local. À esquerda da arcada havia uma escadaria de concreto para quando o trem
não estivesse operando ou para aqueles que tinham medo de viajar no plano inclinado. As escadas também eram populares para os adeptos da boa forma de fim de semana,
que ficavam subindo e descendo por elas. Bosch tinha lido uma reportagem a respeito no Times fazia mais ou menos um ano. Junto à escadaria, uma parada de ônibus
iluminada havia sido escavada na colina escarpada. Havia uma marquise de fibra de vidro sobre um banco duplo. As divisórias laterais eram utilizadas para anunciar
filmes. Naquela que Bosch podia ver havia o cartaz para um filme de Eastwood chamado Bbod Work. O filme era baseado numa história verídica sobre um ex-agente do
FBI que Bosch conhecia.
Bosch imaginou se o pistoleiro teria esperado no ponto de ônibus até Elias alcançar a catraca do plano inclinado. Concluiu que não. O ponto era iluminado do alto
e Elias teria tido uma boa visão de quem quer que estivesse sentado lá enquanto se aproximava do
vagão. Uma vez que Bosch considerava provável que Elias conhecesse seu assassino, não achava que o pistoleiro teria esperado tão abertamente assim.
Olhou para o outro lado da arcada, onde havia uma faixa de dez metros de um jardim luxuriante ajardinada entre a entrada do trenzinho e um pequeno prédio de escritórios.
Arbustos se aglomeravam espessamente em torno de uma acácia. Bosch desejou que não tivesse deixado sua pasta na casa da estação.
- Alguém trouxe uma lanterna? - perguntou.
Rider procurou na bolsa e pegou uma pequena lanterna. Bosch a apanhou e direcionou-a para os arbustos, colocando a luz no solo e estudando seu caminho de entrada.
Não descobriu nenhum sinal óbvio de que o assassino houvesse esperado ali. Havia lixo e outros entulhos espalhados por detrás dos arbustos, mas nada disso parecia
ser recente. Parecia um ponto onde os sem-teto haviam parado para vasculhar os sacos de lixo trazidos de algum outro lugar.
Rider caminhou até os arbustos.
- Descobriu alguma coisa?
- Nada de bom. Estou apenas tentando imaginar onde este cara teria se escondido de Elias. Este poderia ter sido um ponto tão bom quanto qualquer outro. Elias não
o veria, ele poderia ver Elias chegando e se aproximar por trás dele à entrada do vagão.
- Talvez ele nem precisasse se esconder. Talvez tivessem caminhado juntos.
Bosch olhou para ela e assentiu.
- Talvez. Tão bom como tudo que estou dizendo aqui.
- E quanto ao banco do ponto de ônibus?
-Aberto demais, iluminado demais. Se houvesse alguém a quem Elias devesse temer, ele o teria visto.
- E se usasse um disfarce? Ele poderia ter sentado no ponto de ônibus disfarçado.
- Pode ser.
- Você já considerou tudo isto, mas me deixa continuar falando, dizendo coisas que já sabe.
Ele não disse nada. Devolveu a lanterna a Rider e se afastou dos arbustos. Olhou mais uma vez para o ponto de ônibus e
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certificou-se de que estava certo no seu modo de pensar. O ponto de ônibus não tinha sido usado. Rider se aproximou dele e acompanhou seu olhar.
- Ei, você conhece Terry McCaleb, lá do FBI? - perguntou ela.
- Conheço, trabalhamos juntos uma vez. Por quê? Você também o conhece?
- Na verdade, não. Mas já o vi na tevê. Ele não parece nada com Clint Eastwood, se me perguntar.
- Concordo. Não mesmo.
Bosch viu que Chastain e Baker tinham atravessado a rua e se posicionado no vazio criado pelas portas giratórias fechadas à entrada do Grand Central Market. Olhavam
para alguma coisa no chão.
Bosch e Rider foram até lá.
- Conseguiram alguma coisa? - perguntou Rider.
- Talvez sim, talvez não - disse Chastain.
Apontou para os ladrilhos sujos e gastos a seus pés.
- Pontas de cigarro - disse Baker. - Cinco, da mesma marca. Significa que alguém esteve esperando aqui por algum tempo.
- Poderia ter sido um sem-teto - sugeriu Rider.
- Talvez - replicou Baker. - Poderia ter sido o nosso pistoleiro. Bosch não ficou impressionado.
- Algum de vocês fuma? - perguntou.
- Por quê? - quis saber Baker.
- Porque então vocês entenderiam o que provavelmente isto significa. O que é que vocês vêem nas portas de entrada lá no Parker Center?
Chastain e Baker pareciam intrigados.
- Tiras? - arriscou Baker.
- É, mas tiras fazendo o quê?
- Fumando - disse Rider.
- É isso aí. Não se pode mais fumar em prédios públicos, por isso os fumantes se reúnem nas portas da frente. Este mercado é um prédio público.
Ele apontou para as pontas de cigarro esmagadas sobre os ladrilhos.
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- Isto não significa necessariamente que alguém estivesse esperando por um longo tempo. Acho que significa apenas que alguém do mercado saiu cinco vezes para fumar.
Baker assentiu, mas Chastain recusava-se a aceitar a dedução.
- Ainda assim, poderia ser o nosso homem - disse ele. - Onde mais ele iria esperar? Nos arbustos lá?
- Talvez sim. Ou, como disse Kiz, talvez não esperasse. Talvez tenha ido direto para o vagão com Elias. Pode ser que Elias pensasse que estava com um amigo.
Bosch procurou no bolso do paletó e pegou uma sacola plástica de prova material. Entregou-a a Chastain.
- Ou talvez eu esteja totalmente errado e você inteiramente certo. Ponha as guimbas na sacola e etiquete, Chastain. Mande-as para o laboratório.
Poucos minutos depois Bosch tinha terminado com seu levantamento da parte baixa da cena do crime. Entrou no vagão, pegou sua pasta onde a havia deixado e subiu
as escadas para um dos bancos perto da porta superior. Sentou-se pesadamente, quase desabando sobre o banco duro. Ele estava começando a sentir a fadiga dominá-lo
e desejou ter dormido um pouco antes que Irving o convocasse. A excitação e a adrenalina que acompanham um caso novo causavam uma falsa animação que sempre se esvaía
rapidamente. Ansiava por um cigarro e depois uma rápida soneca. Mas só um dos dois era possível no momento, e ele teria de encontrar um mercadinho 24 horas para
comprar cigarros. Mais uma vez, decidiu em contrário. Por alguma razão sentia que seu jejum de nicotina havia se tornado parte de sua vigília por Eleanor. Ele achava
que se fumasse tudo estaria perdido e nunca mais teria notícias dela.
- Em que está pensando, Harry?
Ele olhou para cima. Rider estava à porta do vagão, subindo a bordo.
- Em nada. Em tudo. Na verdade, ainda estamos no começo. Ainda há muito a ser feito.
- Não há descanso para os fatigados.
- Repita isto.
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Seu pager tocou. Ele o tirou do cinto com a urgência de um homem que tivesse tido um orgasmo dentro de um cinema. Reconheceu o número no mostrador mas não conseguia
lembrar-se de onde já o vira antes. Tirou o celular da pasta e ligou. Era da casa do subchefe Irvin Irving.
- Falei com o chefe - disse Irving. - Ele vai cuidar do reverendo Tuggins. Você não precisa se preocupar com ele.
Irving exibiu um sorriso de escárnio na palavra reverendo.
- Certo. Não vou me preocupar.
- E aí, como estamos indo?
- Estamos encerrando aqui na cena do crime. Precisamos esquadrinhar o edifício aqui em busca de testemunhas, depois vamos embora. Elias mantinha um apartamento no
centro da cidade. Era para lá que estava indo. Temos de vasculhar o apartamento e o escritório dele tão logo os mandados de busca sejam assinados.
- E quanto aos parentes da mulher?
- Perez também deve estar cuidando disso agora.
- Conte-me como foram as coisas na casa de Elias.
Como Irving nada perguntara antes, Bosch presumiu que perguntava agora porque o chefe de polícia queria saber. Bosch relatou rapidamente o que tinha acontecido e
Irving fez várias perguntas sobre a reação da esposa e do filho de Elias. Bosch podia dizer-lhe que os havia interrogado do ponto de vista de uma gerência de relações
públicas. Sabia que, tal como acontecia com Preston Tuggins, o modo como a família de Elias reagisse ao assassinato teria um impacto direto na reação da comunidade.
- Então, no momento, isto não soa como se pudéssemos arrolar a viúva ou o filho para nos ajudar a conter as coisas, estou certo?
- No momento, está. Mas uma vez que se recuperem do choque inicial, há uma possibilidade. O senhor também poderia falar com o chefe a respeito de ligar para a viúva
pessoalmente. Vi uma foto dele com Elias na parede da casa. Se ele está falando com Tuggins, talvez pudesse falar também com a viúva sobre nos ajudar.
- Talvez.
Irving mudou de assunto e disse a Bosch que a sala de reunião do seu gabinete no sexto andar do Parker Center estava pronta para os investigadores. Ele disse que
a sala estava aberta no momento,
mas que ele receberia as chaves pela manhã. Uma vez que os investigadores se mudassem, a sala ficaria permanentemente trancada. Disse que estaria lá por volta das
dez e que esperava um resumo mais abrangente da investigação durante a reunião da equipe.
- Pode ter certeza, chefe - disse Bosch. - Até lá teremos concluído as buscas e a inspeção.
- Certifique-se disso. Estarei à espera. -OK.
Bosch já ia desligar quando ouviu a voz de Irving. - Como disse, chefe?
- Uma outra questão. Por causa da identidade de uma das vítimas neste caso, sinto que vai cair sobre mim a incumbência de notificar a inspetora-geral. Ela parecia...
como eu diria?... ela parecia profundamente interessada no caso quando expliquei os fatos que tínhamos na ocasião. E diria que profundamente interessada é um eufemismo.
Carla Entrenkin. Bosch quase praguejou em voz alta mas se conteve. A inspetora-geral era uma nova entidade no departamento: uma cidadã designada pela Comissão de
Polícia como uma supervisora civil autônoma com autoridade para investigar ou supervisionar investigações. Era mais uma jogada política do departamento. A inspetora-geral
se reportava à Comissão de Polícia, que se reportava ao conselho municipal e ao prefeito. E havia outras razões que Bosch também quase amaldiçoou. Encontrar o nome
e o número particular de Carla Entrenkin no caderninho de telefones o incomodava. Isto abria todo um leque de possibilidades e complicações.
- Ela está vindo para cá? - perguntou.
- Acho que não - disse Irving. - Esperei para ligar para que pudesse dizer que o trabalho na cena estava terminado. Poupei você dessa dor de cabeça. Mas não será
surpresa se ela entrar em contato com você diretamente no decorrer do dia.
- Ela pode fazer isso? Quero dizer, falar comigo sem antes passar por você? Ela é uma civil.
- Infelizmente, ela pode fazer o que quiser. Foi assim que a Comissão de Polícia estabeleceu a função. Portanto o que isto significa é que esta investigação, como
quer que se desenvolva,
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deve ser transparente. Se assim não for, vamOs ter de aturar Carla
Entrenkin.
- Entendo.
- bom, então só precisamos de uma prisão, e aí vai ficar tudo bem.
- Certo, chefe.
Irving desligou sem se despedir. Bosch olhou para cima. Chastain e Baker estavam subindo no vagão.
- Só existe uma coisa pior do que ter a DAI nos nossos calcanhares neste caso - sussurrou Bosch para Rider. - É ter a inspetora-geral bisbilhotando por cima dos
nossos ombros.
Rider olhou para ele.
- Está brincando? A Carla-quem-estou-pensando está metida nisso?
Bosch quase sorriu ao ver Rider usar o apelido que Entrenkin ganhara de um editorialista do Thin Blue Line, o boletim do sindicato dos policiais. Carla era chamada
assim por causa da sua tendência a um discurso lento e deliberado sempre que se reportava à Comissão de Polícia e criticava as ações dos tiras do departamento.
Bosch teria sorrido, mas o acréscimo da inspetora-geral no caso era grave demais.
- É sério - respondeu. - Agora temos ela, também.
Capítulo 9
No topo da colina eles se encontraram com Edgar e Fuentes, que tinha voltado depois de notificar a família de Catalina Perez sobre sua morte. Joe Dellacroce retornara
do Parker Center com mandados de busca preenchidos e assinados. Buscas aprovadas pela corte nem sempre eram necessárias para o domicílio e o escritório de uma vítima
de homicídio. Mas era de bom alvitre obter mandados nos casos importantes. Tais casos atraíam advogados importantes se finalmente resultassem numa detenção. Esses
advogados invariavelmente se tornavam importantes sendo diretos e bons naquilo que faziam. Eles exploravam erros, pegavam as costuras rompidas e fios soltos dos
casos
e rasgavam enormes buracos - com freqüência grandes o bastante para seus clientes escaparem através deles. Bosch já pensara nisto por antecipação. Sabia que tinha
de ser muito cauteloso.
Além do mais, achava que um mandado era particularmente necessário para uma busca no escritório de Elias. Havia lá numerosos arquivos sobre policiais e casos pendentes
contra o departamento. Esses casos provavelmente teriam prosseguimento depois de assumidos por novos advogados, e Bosch precisava equilibrar a preservação da privacidade
advogado-cliente com a necessidade de investigar o assassinato de Howard Elias. Os investigadores, sem a menor dúvida, precisariam agir com muito cuidado ao manipular
aqueles
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arquivos. Era por esse motivo que ligara para a promotoria e pedira a presença de Janis Langwiser.
Bosch se aproximou de Edgar primeiro, pegando-o pelo braço e conduzindo-o até o parapeito acima da encosta íngreme que dava para a Hill Street. Dali não podiam ser
ouvidos pelos outros.
- Como foi?
- Do jeito de sempre. Há cerca de um milhão de outros lugares onde eu preferiria estar em vez de observar o cara receber a notícia. Sabe o
que quero dizer?
- Sei. Vocês apenas contaram a ele ou fizeram algumas perguntas também?
- Fizemos, mas não conseguimos muitas respostas. O cara disse que sua esposa era faxineira diarista e que tinha um bico em algum lugar nessa área. Pegava o ônibus
aqui. Não foi capaz de fornecer um endereço. Disse que sua esposa tinha tudo anotado num caderninho que carregava.
Bosch pensou por um momento. Ele não se lembrava de nenhum caderninho de notas no rol de provas materiais. Equilibrando sua pasta no parapeito, ele abriu-a e extraiu
a prancheta na qual acumulara a papelada da cena do crime. Em cima estava a cópia amarela do inventário que Hoffman lhe dera antes de sair. Enumerava os pertences
da vítima número dois, mas não havia nenhum caderninho.
- Bem, vamos ter de checar com ele de novo mais tarde. Não conseguimos nenhum caderninho.
- Então mande Fuentes voltar lá. O marido não fala inglês.
- Tudo bem. Mais alguma coisa?
- Não. Fizemos a verificação habitual. Prováveis inimigos, quaisquer problemas, alguém lhe causando encrencas, alguém que a seguia, e assim por diante. Nada. O marido
disse que ela não tinha nenhuma preocupação.
- OK. E quanto a ele?
- Parecia sincero. Como se tivesse levado uma porrada do azar no meio da cara. Sabe como é...
- Sim, sei.
- Porrada firme. E havia tanta surpresa quanto qualquer outra coisa.
-OK.
Bosch olhou em torno para se certificar de que não estavam sendo ouvidos. Falou baixo para Edgar.
- Vamos escapulir agora e iniciar as buscas. Quero que você assuma o apartamento que Elias mantinha no The Place. Eu estava...
- Então era para lá que ele estava indo.
- Assim parece. Já estive lá com Chastain, demos uma geral. Quero que você cuide disso desta vez. Quero também que você comece pelo quarto dele. Vá até a cama e
pegue o caderninho de telefones na gaveta de cima da mesinha onde fica o telefone. Ensaque-o e etiquete de modo que ninguém possa vê-lo até que levemos tudo para
o escritório.
- Certo, mas para quê?
- Eu lhe direi mais tarde. Apenas consiga isto antes de qualquer outro. Pegue também a fita da secretária eletrônica no telefone da cozinha. Há uma mensagem que
quero guardar.
- Certo.
- Tudo bem, então.
Bosch se afastou do parapeito e se aproximou de Dellacroce.
- Algum problema com a papelada?
- De fato, não... a não ser ter que acordar o juiz duas vezes.
- Que juiz?
- John Houghton.
- Ele é legal.
- Bem, isto não quer dizer que ele gostou de ter de fazer tudo duas vezes.
- O que disse ele sobre o escritório?
- Ele acrescentou uma frase sobre preservar a santidade do privilégio advogado-cliente.
- É isso aí? Deixe-me ver.
Dellacroce tirou os mandados do bolso interno do seu paletó e entregou a Bosch aquele do escritório no Edifício Bradbury. Bosch vasculhou através do palavreado trivial
na primeira página da declaração e achou a parte mencionada por Dellacroce. Pareceu-lhe tudo OK. O juiz ainda permitia a busca no escritório e nos arquivos, mas
estava simplesmente dizendo que qualquer informação
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privilegiada extraída dos arquivos devia ser pertinente à investigação de assassinato.
- O que ele está dizendo é que não podemos invadir os arquivos e passar o que conseguirmos à promotoria para ajudar na defesa daqueles casos - disse Dellacroce.
- Nada que impeça nossa investigação.
- Posso conviver com isso - disse Bosch.
Ele convocou todos para se aproximarem. Notou que Fuentes estava fumando e tentou não pensar na sua própria ânsia por um cigarro.
- Muito bem, conseguimos os mandados de busca - disse. Vamos dividir as tarefas assim: Edgar, Fuentes e Baker, vocês três ficam com o apartamento. Quero Edgar na
chefia. O resto de nós vai para o escritório. Vocês do apartamento: quero também que providenciem entrevistas com todos os porteiros do prédio. Todos os turnos.
Precisamos descobrir o máximo que pudermos sobre as rotinas e vida pessoal deste cara. Estamos achando que pode haver uma namorada envolvida. Precisamos descobrir
quem é ela. Igualmente, a chave principal aqui é uma chave para um Porsche e um Volvo. Meu palpite é que Elias dirigiu o Porsche e ele está provavelmente na garagem
do prédio. Quero que dêem uma olhada nisto também.
- Os mandados não especificam um carro - protestou Dellacroce. - Ninguém me falou sobre um carro quando me mandaram obter os mandados.
- Tudo bem, então apenas encontre o carro, verifique através das janelas que arranjamos um mandado se você vir alguma coisa e achar que ele seja necessário.
Bosch olhava para Edgar enquanto dizia esta última parte. Edgar assentiu quase imperceptivelmente, querendo dizer que entendia que Bosch estava lhe dizendo que apenas
encontrasse o carro e o abrisse e vasculhasse. Se fosse encontrado algo valioso para a investigação, ele então deveria simplesmente voltar, obter um mandado e depois
agir como se nunca tivessem se aproximado do carro, para começar. Era um procedimento padrão. " Bosch consultou o relógio e concluiu:
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- Muito bem, são cinco e meia agora. Devemos terminar com as buscas às oito e meia, no máximo. Peguem tudo que pareça ter o mínimo interesse para peneirarmos mais
tarde. O chefe Irving estabeleceu o posto de comando para esta investigação na sala de reunião junto a seu escritório no Parker. Mas antes de irmos para lá quero
encontrar todos você aqui às oito e meia em ponto.
Ele apontou para o alto prédio de apartamentos acima do plano inclinado.
- Então vamos vasculhar este edifício agora. Não quero esperar até mais tarde, com as pessoas saindo antes que possamos ouvi-las.
- Eauanto à reunião com o subchefe Irving? - perguntou Fuentes.
- Está marcada para as dez. Devemos comparecer. Mas, se não for possível, não esquentem a cabeça. vou assumir a reunião e vocês prosseguem. A investigação vem em
primeiro lugar. Ele vai concordar com isto.
- Ei, Harry - disse Edgar. - Se acabarmos antes das oito e meia, que tal se tivermos um café da manhã?
- Tudo bem, mas não quero deixar escapar nada. Não apressem a busca só por causa das panquecas.
Rider sorriu.
- Prometo - disse Bosch. - vou providenciar um café aqui às oito e meia. Se vocês puderem, simplesmente esperem até lá. Muito bem, vamos começar.
Bosch pegou o molho de chaves que tirara do corpo de Howard Elias. Retirou as chaves do apartamento e do Porsche e entregou-as a Edgar. Notou que havia ainda várias
chaves no molho que precisava conferir. Pelo menos duas ou três seriam do escritório, e outras duas ou três para a residência de Elias em Baldwin Hills. Sobravam
ainda quatro chaves, e Bosch pensou na voz que ouvira na secretária eletrônica. Talvez Elias tivesse chaves para uma garçonnière.
Pôs as chaves de volta no bolso e pediu a Rider e Dellacroce que levassem os carros colina abaixo até o Bradbury. Disse que ele e Chastain pegariam o vagão para
baixo e seguiriam a pé, fazendo uma verificação nas calçadas por onde Elias teria caminhado entre seu escritório e a estação do Vôo dos Anjos. Enquanto os detetives
se dividiam e seguiam para suas missões, Bosch foi até a janela da
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estação e procurou por Eldrige Peete. Ele estava sentado na cadeira junto à caixa registradora, com os protetores de ouvido e de olhos fechados. Bosch bateu gentilmente
na janela, mas o operador do trenzinho se sobressaltou assim mesmo.
- Sr. Peete, quero que nos mande para baixo mais uma vez e depois pode fechar e ir embora ao encontro de sua esposa.
- OK, seu pedido é uma ordem.
Bosch assentiu e voltou-se na direção do vagão, depois parou e olhou de volta para Peete.
- Há um bocado de sangue aqui. Tem alguém vindo para limpar antes que o trem comece a operar pela manhã?
- Não se preocupe. vou cuidar disso. Tenho esfregão e balde aqui no armário. Liguei para o meu supervisor, antes de vocês chegarem. Ele me disse para limpar a Olivet
e deixá-la nos trinques para a manhã. Aos sábados começamos às oito.
Bosch assentiu.
- Tudo bem, Sr. Peete. Lamento que tenha sobrado para o senhor.
- Gosto de manter os vagões limpos.
-Também tem serviço lá embaixo. Os peritos deixaram impressões digitais de pó em todas as catracas. É uma coisa chata se alguém manchar suas roupas.
- Cuidarei disso também.
- Bem, obrigado por sua ajuda esta noite. Apreciamos bastante.
- Esta noite? Diabo, já é de manhã - disse Peete, sorrindo.
- Acho que tem razão. Tenha um bom dia, sr. Peete.
- É, mas não dá para desejar o mesmo para aqueles dois que estavam no vagão.
Bosch começou a andar, depois voltou-se mais uma vez para o velho.
- Uma última coisa. Esta vai ser uma grande história nos jornais. E também na TV. Não estou querendo influenciá-lo, mas seria bom tirar seu telefone do gancho,
sr. Peete. E talvez nem atender à porta.
- Entendi.
- Ótimo.
- De qualquer jeito, quero dormir o dia inteiro.
Bosch acenou-lhe uma última vez e entrou no vagão. Chastain já ocupava um dos bancos perto da porta. Bosch passou por ele e foi de novo até o local onde caíra o
corpo de Howard Elias. Mais uma vez tomou cuidado para não pisar no sangue empoçado e coagulado.
Tão logo ele sentou-se, o vagão iniciou sua descida. Bosch olhou pela janela e viu a luz cinzenta do amanhecer ao redor das silhuetas dos altos edifícios comerciais
a leste. Esparramou-se no banco e bocejou profundamente, sem se preocupar em erguer a mão para tapar a boca. Gostaria de poder virar seu corpo e deitar. O banco
era de madeira dura e gasta, mas ele não tinha dúvidas de que cairia rapidamente no sono e sonharia com Eleanor, com felicidade e com lugares onde não se tinha
que ficar contornando poças de sangue.
Descartou os devaneios e levou a mão todo o caminho até o bolso do paletó, até se lembrar de que não havia cigarros ali.
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Capítulo 10
O Bradbury era a jóia empoeirada do centro da cidade. Construído mais de um século atrás, sua beleza era velha porém ainda mais brilhante e mais resistente do que
qualquer das torres de vidro e mármore que agora o apequenavam como uma falange de guardas truculentos em volta de uma linda criança. Suas linhas adornadas e superfícies
de cerâmica vitrificada haviam resistido à traição do homem e da natureza, tinham sobrevivido a terremotos e distúrbios, períodos de abandono e decadência, e a uma
cidade que com freqüência não se preocupava em resguardar o que ainda lhe restasse de pequena cultura e raízes. Bosch achava que não havia prédio mais belo na cidade
- apesar dos motivos que o mantiveram dentro dela por anos.
Além de ser o endereço profissional de Howard Elias e vários outros advogados, o Bradbury abrigava diversas repartições estaduais e municipais nos seus cinco andares.
Três amplas salas no terceiro andar estavam cedidas à Divisão de Assuntos Internos do DPLA e eram utilizadas para audiências do Conselho dos Direitos Civis - os
tribunais disciplinares que policiais acusados de má conduta tinham de enfrentar. A DAI conseguira o espaço por causa da maré crescente de queixas contra policiais
nos anos 90 que resultaram em mais ações disciplinares e punições. As audiências agora estavam acontecendo todos os dias, às vezes duas ou três ao
mesmo tempo. Não havia espaço suficiente para esta enxurrada de casos de má conduta no Parker Center. Por isto a DAI fora buscar espaço no vizinho Edifício Bradbury.
Para Bosch, a DAI era a única mácula na beleza do edifício. Por duas vezes ele enfrentara o Conselho de Direitos Civis no Bradbury. A cada vez ele prestara o seu
depoimento, ouvira as testemunhas e um investigador da DAI - certa vez tinha sido Chastain - relatarem os fatos e os achados do caso. Depois ficara caminhando pelo
piso debaixo da enorme clarabóia de vidro do átrio enquanto, reservadamente, os três capitães de polícia decidiam o seu destino. Ele tinha saído incólume das duas
audiências e neste processo viera a amar o Bradbury com seus pisos de ladrilhos mexicanos, filigranas de ferro batido e coletores de correspondência suspensos.
Uma vez ele tirara um tempo para pesquisar a história do edifício no Departamento de Preservação de Los Angeles e descobriu um dos mistérios mais intrigantes da
cidade: o Bradbury, com toda a sua glória duradoura, tinha sido desenhado por um projetista de cinco dólares por semana. George Wyman não tinha diploma em arquitetura
nem créditos anteriores como projetista quando esboçou as plantas para o prédio em 1892, mas seu projeto transformou-se numa estrutura que duraria mais de um século
e encantou gerações de arquitetos. Como acréscimo ao mistério, Wyman nunca mais desenhou um edifício de alguma importância, em Los Angeles ou qualquer outro lugar.
Era o tipo de mistério que Bosch apreciava. A idéia de um homem deixando sua marca com a única chance que lhe foi dada tinha valor para ele. Mesmo com um século
de diferença, Bosch identificava-se com George Wyman. Ele acreditava na única chance. Não sabia se já tivera a sua - não era a espécie de coisa que se soubesse
e se compreendesse, até que você, já idoso, fizesse um retrospecto da sua vida. Mas Bosch tinha a sensação de que ela ainda estava lá esperando por ele. Ainda tinha
que pegar sua única chance.
Por causa das ruas de mão única e sinais fechados que Dellacroce e Rider enfrentavam, Bosch e Chastain chegaram ao Bradbury a pé
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antes deles. Enquanto se aproximavam das pesadas portas de vidro da entrada, Janis Langwiser saltou de um pequeno carro esporte vermelho, estacionado ilegalmente
no meio-fio em frente. Ela carregava uma sacola de couro a tiracolo e um copo de plástico com a etiqueta de um saquinho de chá pendendo da borda.
- Ei, pensei que tínhamos marcado uma hora - disse ela de bom humor.
Bosch consultou seu relógio. Fazia uma hora e dez minutos desde que tinham falado.
- Você é uma advogada, me processe - respondeu ele sorrindo.
Ele apresentou Chastain e deu à promotora um relato mais detalhado da investigação. Quando estava terminando, Rider e Dellacroce haviam estacionado seus carros diante
do de Langwiser. Bosch experimentou as portas do prédio, mas estavam trancadas. Ele tirou o molho de chaves e acertou na segunda tentativa. Entraram no átrio do
prédio e cada um deles olhou involuntariamente para cima, tal era a beleza do lugar. Acima deles, a clarabóia estava repleta dos cinzas e púrpuras da madrugada.
Música clássica soava de alto-falantes ocultos. Algo obsessivo e triste, mas Bosch não soube situá-lo.
- O Adágio de Barber - disse Langwiser.
- O quê? - disse Bosch, ainda olhando para cima.
- A música.
-Ah.
Um helicóptero da polícia passou como um raio acima da clarabóia, retornando à base na Piper Tech para mudança de turno. Isto quebrou o encanto e fez Bosch baixar
a vista. Um segurança uniformizado estava caminhando na direção deles. Era um jovem negro com cabelo cortado rente e impressionantes olhos verdes.
- Posso ajudar vocês? O edifício acabou de fechar.
- Polícia - disse Bosch, sacando sua carteira com o distintivo e abrindo-a. - Temos um mandado de busca aqui para a sala 505.
Ele acenou para Dellacroce, que mais uma vez tirou o mandado do bolso do paletó e entregou-o ao guarda.
- Este é o escritório do sr. Elias - disse o guarda.
- Sabemos disso - retrucou Dellacroce.
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- O que está acontecendo? Por que vão dar uma busca nesta sala?
-Não podemos lhe dizer no momento - interveio Bosch. - Porém precisamos fazer-lhe algumas perguntas. Quando é que começa o seu turno? Estava aqui quando o sr. Elias
saiu a noite passada?
- Sim, estava. Meu turno vai de seis às seis. Vi quando eles saíram por volta das onze.
- Eles?
- É, ele e dois outros caras. Tranquei a porta logo depois que saíram. O local ficou deserto depois disso... sem contar comigo.
- Sabe quem eram os outros dois?
- Um era o assistente, ou sei lá que nome tem, do sr. Elias.
- Secretário? Estagiário?
- É, estagiário. É isso aí. Um estudante que ajudava o sr. Elias
nos casos.
- Sabe o nome dele?
- Não, nunca perguntei.
- OK, e o outro cara? Quem era?
- Não conheço.
- Tinha visto ele por aqui antes?
- Sim, saíram juntos nas últimas duas noites. E umas poucas vezes, antes disso, acho que o vi entrar ou sair sozinho.
- Tem escritório aqui?
- Não, não que eu saiba.
- Era cliente de Elias?
- Como eu iria saber?
- Branco ou preto?
- Preto.
- Como ele parecia?
- Bem, não cheguei a dar uma boa olhada nele.
- Você disse que viu o homem por aqui antes. Como ele parecia?
- Era simplesmente um cara de aparência normal. Ele... Bosch estava ficando impaciente, mas não sabia bem por quê.
O guarda parecia estar fazendo o melhor que podia. Era rotina na polícia trabalhar para encontrar testemunhas incapazes de descrever pessoas nas quais tinham dado
uma boa olhada. Bosch tomou o
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mandado de busca da mão do guarda e o devolveu a Dellacroce. Langwiser pediu para vê-lo e começou a ler enquanto Bosch prosseguia com o guarda.
- Como se chama?
- Robert Courtland. Estou na lista de espera para a academia. Bosch assentiu. A maioria dos guardas de segurança na cidade
estava esperando por um emprego na polícia em algum lugar. O fato de Courtland, um negro, ainda não estar na academia fez Bosch desconfiar de que houvesse um problema
em algum lugar no seu requerimento. O departamento estava saindo do seu costume para atrair minorias para suas fileiras. Para Courtland estar na lista de espera
tinha de haver alguma coisa. Bosch imaginava que ele havia provavelmente admitido ter fumado maconha ou então não reunia os mínimos requisitos de escolaridade. Talvez
até tivesse um registro de delinqüência juvenil.
- Feche os olhos, Robert. -Como?
- Apenas feche seus olhos e relaxe. Pense no homem que viu e conte para mim como ele se parece.
Courtland obedeceu e, após um momento, veio com uma descrição melhorada mas ainda superficial.
- Tem mais ou menos a mesma altura do sr. Elias. Mas tinha a cabeça raspada. Estava lisinha. Tinha também uma pequena barbicha debaixo do lábio.
Ele por fim abriu os olhos.
- É isso aí.
- Isso aí? - disse Bosch num tom de voz amistoso e adulador. Robert, como está querendo entrar para a polícia? Precisamos de mais do que isso. Que idade tinha o
cara?
- Não sei. Trinta ou quarenta.
- Grande ajuda. Apenas dez anos de diferença. Era magro? Gordo?
- Magro mas musculoso. Sabe, do tipo que mantém a forma.
- Acho que ele está descrevendo Michael Harris - disse Rider. Bosch olhou para ela. Harris era o queixoso no caso Guerreiro
Negro.
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- Combina - prosseguiu Rider. - O julgamento começa segunda-feira. Eles estavam provavelmente trabalhando até tarde, deixando tudo pronto para o tribunal.
Bosch assentiu e estava a ponto de dispensar Courtland quando Langwiser subitamente falou, enquanto ainda lia a última página do mandado de busca:
- Acho que temos um problema com o mandado. Todos olharam para ela.
- OK, Robert - disse Bosch para Courtland. - Vamos ficar por nossa conta a partir daqui. Obrigado por sua ajuda.
- Tem certeza? Não querem que eu suba com vocês, para abrir a porta ou algo assim?
- Não, temos uma chave. Vamos estar à vontade.
- Tudo bem, então. vou estar no escritório da segurança, atrás das escadas, se precisarem de alguma coisa.
- Obrigado.
Courtland começou a retomar o caminho por onde viera, depois parou e voltou-se.
- Oh, é melhor vocês cinco não tomarem o elevador de uma vez só. É talvez peso demais para esta coisa velha.
- Obrigado, Robert - disse Bosch.
Ele esperou até que o guarda tivesse contornado a escada e saído de vista antes de voltar-se para Langwiser.
- Srta. Langwiser, você talvez não tenha participado de muitas cenas do crime antes, mas nunca mencione que há um problema com um mandado de busca diante de alguém
que não seja um tira.
- Oh, merda, desculpe. Eu não...
- O que tem de errado com o mandado? - interrompeu Dellacroce, sua voz demonstrando que se sentia incomodado pelo evidente questionamento ao seu trabalho. - O juiz
nada viu de errado nele. O juiz disse que estava legal.
Langwiser olhou para o mandado de três páginas em sua mão e acenou com ele, suas páginas, adejando como um pombo caído.
- Simplesmente acho que num caso como este temos de estar pra lá de certos do que estamos fazendo antes de subirmos e começarmos a abrir arquivos.
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- Temos que abrir os arquivos - replicou Bosch. - É onde estará a maioria dos suspeitos.
- Entendo isto. Mas estes são arquivos confidenciais relativos a processos contra o departamento de polícia. Eles contêm informação privilegiada à qual só um advogado
e seu cliente deveriam ter acesso. Não estão vendo? Poderiam argumentar que vocês violaram os direitos dos clientes de Elias apenas por abrirem um único arquivo.
- Tudo que queremos é encontrar o assassino do homem. Não ligamos a mínima para seus casos pendentes. Peço a Deus que o nome do assassino não esteja naqueles arquivos,
e que não seja um tira. Mas e se estiver? E se naqueles arquivos Elias mantinha cópias ou bilhetes sobre ameaças? E se através de suas investigações ele descobrisse
algum coisa sobre alguém que tivesse um motivo para matá-lo? Como vê, precisamos dar uma olhada nos arquivos.
- Tudo isto é compreensível. Mas se um juiz mais tarde considerar que o mandado era inadequado, vocês não vão poder usar nada que encontrarem lá. Querem correr este
risco?
Ela virou as costas para eles e olhou para a porta.
- Tenho que achar um telefone e fazer uma ligação a respeito disso - disse ela. - Ainda não posso deixá-los abrir aquele escritório. Não em sã consciência.
Bosch bufou, exasperado. Silenciosamente, censurou-se por ter chamado um advogado cedo demais. Deveria ter feito o que era preciso fazer e lidar com as conseqüências
depois.
- Tome.
Ele abriu a pasta e entregou a ela seu telefone celular. Ouviu enquanto ela ligava para a mesa da promotoria e pedia para falar com um promotor chamado David Sheiman,
que Bosch sabia ser o supervisor da principal unidade de crimes. Quando Sheiman atendeu, ela começou a resumir a situação e Bosch continuou ouvindo para certificar-se
de que ela passasse os detalhes direito.
- Estamos perdendo um bocado de tempo aqui, Harry - sussurrou-lhe Rider. - Quer que eu vá atrás de Harris para ter uma conversa com ele sobre a noite passada?
Bosch quase concordou, mas depois hesitou ao considerar as possíveis conseqüências.
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Michael Harris estava processando quinze policiais da DRH num caso repleto de publicidade, com julgamento marcado para segunda-feira. Harris, um lavador de carros
fichado por roubo e com condenações por agressão, estava buscando dez milhões de dólares por danos morais e lesões corporais alegando que policiais da DRH haviam
plantado provas contra ele no seqüestro e morte de uma garota de 12 anos de uma família bem conhecida e rica. Harris alegava que os detetives o tinham seqüestrado,
amarrado e torturado por um período de três dias na esperança de extrair uma confissão dele, bem como descobrir o paradeiro da garota desaparecida. O processo alegava
que os detetives, frustrados pela má vontade de Harris em admitir sua participação no crime e conduzi-los até a garota, enfiaram sacos plásticos na cabeça de Harris
e ameaçaram sufocá-lo. Ele alegava, além disso, que um detetive enfiou um objeto pontiagudo - um lápis Guerreiro Negro ns 2 - no seu ouvido, perfurando-lhe o tímpano.
Porém Harris jamais confessou, e no quarto dia de interrogatório o corpo da garota foi achado em decomposição num terreno baldio a apenas um quarteirão de sua casa.
Tinha sido estuprada e estrangulada.
O crime tornou-se mais um na longa lista de crimes que chamavam a atenção do público em Los Angeles. A vítima era uma linda garota loura e de olhos azuis chamada
Stacey Kincaid. Ela havia sido raptada enquanto dormia na ampla e aparentemente segura residência da família em Brentwood. Era o tipo de crime que enviava uma gélida
mensagem através da cidade: Ninguém está a salvo.
Por mais horrendo que fosse em si mesmo, o assassinato da garota foi exponencialmente ampliado pela mídia. A princípio, por causa da identidade da vítima e de onde
ela vinha. Era a filha adotiva de Sam Kincaid, herdeiro de uma família que possuía mais concessionárias de automóveis no condado de Los Angeles do que era possível
contar nos dedos. Sam era filho de Jackson Kincaid, o "czar do automóvel" original, que havia construído o negócio da família a partir de uma única concessionária
Ford que seu pai lhe passara depois da Segunda Guerra Mundial. Como Howard Elias depois dele, Jack Kincaid percebera a vantagem do marketing na TV local,
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e nos anos 60 tornou-se figurinha fácil nos anúncios de fim de noite. Diante da câmera ele exibia um charme amigável, transpirando honestidade e amizade. Parecia
tão confiável e honrado quanto Johnny Carson, e aparecia nas salas de estar e quartos de Los Angeles com a mesma freqüência. Se Los Angeles era vista como uma "autotupia",
então Jack Kincaid era certamente visto como um prefeito extra-oficial.
Longe das câmeras, o czar do automóvel era um empresário calculista que sempre jogava de ambos os lados da política e expulsava impiedosamente concorrentes dos negócios,
ou pelo menos do ramo de concessionárias. Sua dinastia cresceu com rapidez, suas agências espalhando-se pela paisagem da Califórnia meridional. Por volta de 1980
o reinado estava feito, e a alcunha de czar do automóvel foi passada para seu filho. Mas o velho continuou sendo uma força atuante, embora quase sem ser vista. E
isto ficou claro mais do que nunca quando Stacey Kincaid desapareceu e o velho Jack retornou à TV, desta vez para aparecer nos noticiários e oferecer uma recompensa
de um milhão de dólares pela sua volta a salvo. Foi outro episódio surrealista na cultura de assassinato de Los Angeles. O velho que todo mundo crescera vendo na
TV estava de volta e, em lágrimas, pedia pela vida de sua neta.
Foi tudo inútil. A recompensa e as lágrimas do velho viraram tema de debate quando a garota foi encontrada morta por passantes no terreno baldio perto do apartamento
de Michael Harris. O caso foi a julgamento baseado unicamente na prova que consistia nas digitais de Harris encontradas no quarto de onde a garota fora levada,
e da desova do corpo nas proximidades de seu apartamento. O caso deixou a cidade arrebatada, levado diariamente ao vivo no Court IV e nos noticiários locais. O advogado
de Harris, John Penny, um jurista tão habilidoso quanto Elias quando se tratava de manipular jurados, montou uma defesa que impugnava o local da desova do corpo
como uma coincidência e as impressões digitais
- encontradas em um dos livros escolares da garota - como simplesmente tendo sido plantadas pelo DPLA.
Todo o poder e o dinheiro que os Kincaid tinham acumulado durante gerações de nada serviram contra a maré de sentimento
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antipolicial e as escoras raciais do caso. Harris era negro, os Kincaid, os policiais e os promotores eram brancos. O caso contra Harris desmoronou quando Penny
extraiu
o que muitos perceberam como um comentário racista de Jack Kincaid ao prestar depoimento sobre suas muitas concessionárias. Após Kincaid ter detalhado suas muitas
posses, Penny perguntou por que nenhuma das concessionárias situava-se no South Central de Los Angeles. Sem hesitação e antes que o promotor pudesse protestar contra
a pergunta irrelevante, Kincaid disse que jamais abriria um negócio numa área em que os habitantes fossem propensos ao distúrbio. Disse ter tomado a decisão depois
dos tumultos de 1965 em Watts e que foi confirmada após as manifestações violentas mais recentes, de 1992.
A pergunta e a resposta tinham pouco ou nada a ver com o assassinato de uma garota de 12 anos, mas provaram ser o ponto de equilíbrio no processo. Em entrevistas
posteriores os jurados disseram que a resposta de Kincaid era emblemática do profundo abismo racial da cidade. com aquela única resposta, a simpatia se transferiu
da família Kincaid para Harris. A acusação estava condenada.
O júri absolveu Harris em quatro horas. Penny passou então o caso para o seu colega, Howard Elias, para o processo na área cível, e Harris assumiu seu lugar ao lado
de Rodney King no panteão de vítimas de direito civil e heróis da zona sul de Los Angeles. A maioria deles merecia tal posição de honra, mas alguns eram criações
dos advogados e da mídia. O que quer que Harris fosse, ele estava agora buscando sua indenização - um processo de direitos civis no qual dez milhões de dólares seriam
apenas o pedido inicial.
Apesar do veredicto e de toda a retórica que o acompanhava, Bosch não acreditava nas alegações de inocência de Harris ou na brutalidade policial. Um dos detetives
que Harris acusava especificamente de brutalidade era o ex-parceiro de Bosch, Frank Sheehan, e Bosch sabia que Sheehan era totalmente profissional quando lidava
com suspeitos e prisioneiros. Portanto, Bosch achava que Harris não passava de um mentiroso e assassino que conseguira se safar do seu crime. Ele não teria quaisquer
escrúpulos em arrastá-lo para o centro e interrogá-lo acerca da morte de Howard Elias. Mas Bosch também sabia, enquanto estava parado ali com Rider, que se
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trouxesse Harris correria o risco de aumentar as alegadas acusações de má conduta que já pesavam sobre ele - pelo menos aos olhos de boa parte do público e da mídia.
Era uma decisão tanto política quanto policial que ele tinha que tomar.
- vou pensar sobre isto por um segundo - disse ele.
Ele caminhou sozinho pelo átrio. O caso era ainda mais perigoso do que havia percebido. Qualquer passo em falso poderia resultar em desastre - para o caso, para
o departamento, para as carreiras. Especulou se Irving percebera tudo isto quando escolhera sua equipe para o caso. Talvez, pensou, os cumprimentos de Irving fossem
apenas uma fachada para um motivo real - deixar ele e sua equipe ao sabor do vento. Bosch sabia que estava agora se aventurando na paranóia. Era improvável que o
subchefe tivesse surgido com tal plano tão rapidamente. Ou que até mesmo se preocupasse com a equipe de Bosch com tanta coisa mais em jogo.
Bosch olhou para cima e viu que o céu estava muito mais brilhante agora. Seria um dia quente e ensolarado.
- Harry?
Ele voltou-se. Era Rider.
- Ela está fora.
Ele voltou até o grupo e Langwiser devolveu-lhe o telefone.
- Você não vai gostar disto - avisou. - Dave Sheiman quer trazer um mestre especial para olhar os arquivos antes de vocês.
- Mestre especial? - perguntou Dellacroce. - Que diabo é isso?
- É um advogado - explicou Langwiser. - Um advogado independente, designado por um juiz, para supervisionar os arquivos. Ele vai ser contratado para proteger os
direitos daqueles clientes enquanto fornece ao seu pessoal o que você precisa. Assim espero.
- Merda - disse Bosch, a frustração finalmente tomando conta dele. - Por que simplesmente não paramos a coisa toda agora e arquivamos a porra do caso? Se a promotoria
não se importa em esclarecê-lo, muito menos nós.
- Detetive Bosch, você sabe que não é isso. Claro que nos importamos. Só queremos ficar a salvo. O mandado que conseguiu continua sendo válido para a busca no escritório.
Sheiman disse que vocês podem até abrir os arquivos dos casos encerrados... nos quais,
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tenho certeza, precisam dar uma olhada também. Mas o mestre especial terá de vir e dar uma olhada primeiro em todos os casos pendentes. Lembre-se: este advogado
não é um adversário de vocês. Ele dará a vocês tudo que estão autorizados a ver.
- E quando será isso? Na semana que vem? No próximo mês?
- Não. Sheiman vai começar a trabalhar no caso esta manhã. Ele vai ligar para o juiz Houghton, colocá-lo a par da situação e ver se ele tem quaisquer recomendações
para um mestre especial. com alguma sorte, a entrevista pode acontecer hoje e você vai ter o que precisa dos arquivos ainda esta tarde. Amanhã, no mais tardar.
- Amanhã no mais tardar é tarde demais. Precisamos manter o caso em andamento.
- É - intrometeu-se Chastain. - Você não sabe que uma investigação é que nem um tubarão? E preciso manter...
- Tudo bem, Chastain - disse Bosch.
- Olhem - continuou Langwiser. - vou cuidar para que Dave entenda a urgência da situação. Nesse meio tempo, você tem apenas que ser paciente. Bem, quer continuar
aqui falando sobre isto, ou vamos subir e fazer o que pudermos no escritório?
Bosch olhou-a por um longo momento, cansado do seu tom de censura. O momento se desfez quando o celular em sua mão tocou, Era Edgar, e falava em sussurros. Bosch
tapou o outro ouvido para poder escutar.
- Não ouvi direito. O quê?
- Escute. Estou no quarto. Não tem nenhum caderno de telefones na mesinha-de-cabeceira. Verifiquei as duas mesinhas. Não está aqui.
- O quê?
- O caderno de telefones. Não está aqui, cara.
Bosch olhou para Chastain, que o fitava de volta. Ele se voltou e se afastou, para que os outros não o ouvissem. Foi a sua vez de sussurrar para Edgar.
- Tem certeza?
- Claro que tenho. Eu o encontraria se estivesse aqui.
- Você esteve no primeiro quarto?
- Exato. No primeiro. Não está aqui.
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- Você está no quarto à direita do hall de entrada?
- Estou, Harry. Estou no lugar certo. Simplesmente não tem nada aqui.
- Merda.
- O que quer que eu faça?
- Nada. Continue a busca.
Bosch fechou o telefone celular e o guardou no bolso. Voltou até os outros. Tentou agir com calma, como se a ligação tivesse sido de somenos importância.
- Muito bem, vamos subir e fazer o que pudermos lá em cima. Seguiram para o elevador, que era uma gaiola aberta de ferro
batido com floreados adornados e remates de latão polido.
- Por que você não sobe com as mulheres primeiro? - disse Bosch para Dellacroce. - Vamos depois, para distribuir o peso por igual.
Ele pegou no bolso o molho de chaves de Elias e o entregou a Rider.
- A chave do escritório deve estar aí - disse. - E não esquente a cabeça acerca daquela coisa com Harris por enquanto. Primeiro vamos ver o que temos no escritório.
- Certo, Harry.
Eles entraram e Dellacroce fechou a porta sanfonada. O elevador partiu com um movimento sacolejante. Depois que subiu um andar e seus ocupantes não podiam mais
vê-los, Bosch voltou-se para Chastain. A raiva e a frustração de tudo saindo errado transbordou então. Ele pousou sua pasta e com as duas mãos agarrou Chastain
pelo colarinho. Empurrou-o rudemente contra as grades do elevador e falou-lhe numa voz baixa e sombria que estava cheia de raiva.
- Porra, Chastain! Só vou lhe perguntar uma vez. Onde está a porra do caderno de telefones?
O rosto de Chastain ficou vermelho e seus olhos se arregalaram em choque.
- O quê?! De que merda está falando?
Ele levou as mãos até as de Bosch e tentou se libertar, mas Bosch manteve a pressão, apoiando todo o seu peso contra ele.
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- O caderno de telefones no apartamento. Sei que você o pegou e o quero de volta. Agora, caralho!
Finalmente, Chastain conseguiu se livrar. Seu paletó, camisa e gravata estavam amarrotados. Ele se afastou de Bosch como se estivesse amedrontado e se recompôs.
Então, apontou um dedo para Bosch.
- Fique longe de mim! Você está maluco, porra! Não tenho nenhum caderno de telefones. Você o pegou. Vi você colocando-o na porra da gaveta junto à cama.
Bosch deu um passo na direção dele.
- Você o pegou. Quando eu estava na sac...
- Eu disse para ficar longe! Eu não o peguei. Se não está mais lá, então alguém entrou e o pegou depois que saímos.
Bosch parou. Era uma explicação óbvia mas que nem lhe passara pela cabeça. Tinha pensado automaticamente em Chastain. Olhou para os ladrilhos do piso, embaraçado
por ter permitido que uma animosidade toldasse seu julgamento. Ouviu a porta do elevador se abrindo no quinto andar. Ergueu os olhos, fitou Chastain com um olhar
exangue e apontou para o rosto dele.
- vou descobrir de outra maneira, Chastain, nem que tenha de quebrá-lo ao meio.
- Vá se foder! Não peguei o caderno. Mas vou cassar seu distintivo por isto.
Bosch sorriu, mas não de um modo que mostrasse qualquer simpatia.
- Vá em frente. Escreva seu relatório, Chastain. Quando você conseguir cassar meu distintivo, você pode ficar com ele.
Capítulo 11
Os outros já estavam no escritório de Elias quando Bosch e Chastaín chegaram ao quinto andar. O escritório compunha-se essencialmente de três salas: uma área de
recepção com uma mesa de secretária, uma sala intermediária com uma escrivaninha e duas paredes com armários de arquivo e o terceiro e mais amplo aposento: o
gabinete de Elias.
Enquanto Bosch e Chastain atravessavam o escritório, os outros ficaram em silêncio e não olharam para eles. Estava claro que tinham ouvido a discussão no vestíbulo
enquanto subiam no elevador. Bosch não se importou com isso. Já deixara para trás a altercação com Chastain e só pensava na busca. Tinha esperanças de que encontrassem
algo no escritório que desse um foco à investigação, uma pista específica para seguir. Caminhou pelas três salas fazendo observações gerais. Na última sala ele notou
que através das janelas atrás da ampla mesa de madeira polida de Elias ele podia ver a cara enorme de Anthony Quinn. Era parte de um mural retratando o ator com
os braços abertos na parede de tijolos de um edifício do outro lado da rua.
Rider entrou no gabinete atrás dele. Ela também olhou pela janela.
- Sabe, cada vez que vejo aquele mural fico imaginando quem seja.
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-Não sabe?
- César Chávez?
- Anthony Quinn. Você sabe, o ator. Não obteve nenhuma resposta dela.
- Não é do seu tempo, acho. O mural é chamado de o Papa da Broadway, como se estivesse zelando por todos os sem-teto da área.
- Oh, entendo. - Ela não parecia impressionada. - Como quer
fazer isto?
Bosch ainda estava olhando para o mural. Gostava dele, muito embora achasse difícil aceitar Anthony Quinn bancando o Cristo. Mas o mural parecia captar alguma coisa
sobre o homem, um poder cru masculino e emocional. Bosch chegou mais perto da janela e olhou para baixo. Viu as formas de dois sem-teto dormindo debaixo de cobertores
de jornais no estacionamento abaixo do mural. Os braços de Anthony Quinn estavam abertos sobre eles. Bosch balançou a cabeça em aprovação. O mural era uma das poucas
coisas que o faziam gostar tanto do centro. Tal como o Bradbury e o Vôo dos Anjos. Pequenas peças de bom gosto podiam ser vistas em toda parte, se você olhasse.
Ele deu meia-volta. Chastain e Langwiser tinham entrado na sala atrás de Rider.
- vou trabalhar aqui. Kiz e Janis: vocês cuidam da sala de arquivos.
- E nós? - disse Chastain. - Eu e Del ficamos com a mesa da
secretária?
- É isso aí. Enquanto estiverem fazendo isso, vejam se podem descobrir o nome dela e o nome do funcionário ou estagiário. Precisamos falar com eles hoje.
Chastain assentiu, mas Bosch podia ver que estava chateado por ganhar a missão menos importante.
- Mais uma coisa - acrescentou Bosch. - Por que vocês não saem primeiro e vêem se conseguem arranjar algumas caixas? Vamos ter que tirar um monte de arquivos daqui.
Chastain saiu do escritório sem uma palavra. Bosch relanceou os olhos para Rider e a viu dar-lhe uma olhada que lhe dizia que estava agindo como um babaca.
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- O que é?
- Nada. Estou na sala dos arquivos.
Ela saiu então, deixando apenas Langwiser e Bosch.
- Tudo bem, detetive?
- Tudo ótimo. vou começar a trabalhar agora. Fazer o que for possível até o seu mestre especial dar as caras.
- Olhe, sinto muito. Mas você me chamou aqui para dar consultoria, e é isto o que aconselho. Ainda acho que é a maneira certa de agir.
- Bem, veremos.
Na maior parte da hora que se seguiu Bosch vasculhou metodicamente a mesa de Elias, estudando os pertences do homem, agenda e papelada. Boa parte do seu tempo foi
gasta lendo uma série de cadernos de notas nos quais Elias mantinha lembretes para si mesmo, listas de coisas a fazer, desenhos a lápis e anotações gerais de telefonemas.
Cada caderno de notas estava datado na capa. Parecia que Elias preenchia as páginas de um caderno a cada semana mais ou menos, com suas copiosas anotações e rabiscos.
Nada nos cadernos pareceu pertinente à investigação. Mas ele também sabia que, conhecendo-se tão pouco sobre as circunstâncias do assassinato de Elias, algo aparentemente
sem importância nos cadernos no momento poderia tornar-se importante mais tarde.
Antes de começar folhear os cadernos mais recentes, Bosch foi interrompido por outra ligação de Edgar.
- Harry, você disse que havia uma mensagem na secretária eletrônica?
- Isso mesmo. -Não há mais.
Bosch recostou-se na cadeira de Elias e fechou os olhos.
- Puta merda.
- É, foi apagada. Vasculhei tudo e não há nenhuma fita. As mensagens são arquivadas num microship. Ele foi apagado.
- Está bem - disse Bosch, furioso. - Continue a busca. Quando
acabar, fale com o pessoal da segurança sobre quem entrou e saiu daí. Verifique se há câmeras de vídeo no vestíbulo ou no estacionamento. Alguém entrou depois que
saí.
- E quanto a Chastain? Ele estava com você, não estava?
- Não estou preocupado com Chastain.
Ele fechou o celular, levantou-se e foi à janela. Odiou a sensação que crescia dentro dele - a de que estava sendo trabalhado pelo caso, em vez de ao contrário.
Suspirou e voltou à mesa e ao último caderno de notas que Howard Elias tinha guardado. Ao folheá-lo, deparou com repetidas anotações referentes a alguém chamado
"Parker". Bosch não acreditava que fosse o nome verdadeiro de uma pessoa, mas sim um codinome para alguém dentro do Parker Center. As anotações eram na maioria listas
de perguntas que Elias aparentemente pretendia fazer ao "Parker", bem como anotações de conversas com esta pessoa. Estavam na maior parte em forma abreviada ou
na versão pessoal de estenografia do advogado e, portanto, eram difíceis de decifrar. Mas em outras situações as anotações estavam claras para Bosch. Uma anotação
indicava nitidamente que Elias tinha uma fonte conectada profundamente dentro do Parker Center.
PARKER:
OBTER TODOS OS 51 - ARQUIVADOS
l.SHEEHAN
2.COBLENZ
3.ROOKER
4. STANW1CK
Bosch reconheceu os nomes como os de quatro detetives da DRH que estavam entre os réus no caso Guerreiro Negro. Elias queria os relatórios com o código 51 - ou
pastas de queixas dos cidadãos
- sobre os quatro detetives. Mais especificamente, Elias queria as pastas não confirmadas, o que significava que estava interessado nas queixas contra os quatro
que tinham sido investigadas pela DAI mas não comprovadas. Essas queixas foram retiradas dos arquivos pessoais dos detetives como sendo assunto do departamento de

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polícia e estavam portanto fora do alcance de intimação de um advogado como Elias. A anotação no caderno disse a Bosch que Elias, de algum modo, sabia da existência
de queixas anteriores não com' provadas contra os quatro e que ele tinha uma fonte no Parker Center com acesso aos velhos arquivos com aquelas queixas. A primeira
suposição não foi um grande salto; todos os tiras tinham queixas não comprovadas. Fazia parte do ofício. Mas alguém tendo acesso a este tipo de arquivo era diferente.
Se Elias dispunha de uma fonte assim, era uma fonte muito bem situada.
Uma das últimas referências a Parker no caderno de notas parecia ser anotações de uma conversa, que Bosch presumiu ter sido uma ligação telefônica para Elias no
seu gabinete. Dava a impressão de que Elias estava perdendo a sua fonte.
PARKER NÃO VAI O RISCO/EXPOSIÇÃO FORÇAR A QUESTÃO?
Parker não vai o quê?, especulou Bosch. Passar os arquivos que Elias queria? Parker achava que conseguir os arquivos para Elias iria expô-lo como uma fonte? Não
havia o suficiente ali para ele tirar uma conclusão. Não havia tampouco o suficiente para ele entender o que significava "forçar a questão". Não estava certo do
que qualquer uma das anotações poderia ter a ver com o assassinato de Howard Elias. Não obstante, Bosch estava intrigado. Um dos críticos mais veementes e bem-sucedidos
do departamento tinha um informante dentro do Parker Center. Havia um traidor do lado de dentro do portão e era importante saber disso.
Bosch guardou o último caderno de notas na sua pasta e imaginou se as descobertas que fizera através das anotações, em especial sobre a fonte de Elias dentro do
departamento, o situavam agora na área que Janis Langwiser temia pudesse ser uma violação do privilégio advogado-cliente. Após matutar a respeito por alguns momentos,
ele decidiu não ir até a sala dos arquivos e pedir que ela fizesse uma interpretação. Continuou com a busca.
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Bosch virou a cadeira para uma mesa lateral com um computador e uma impressora a laser, ambos desligados. Na mesa havia duas pequenas gavetas. A de cima continha
o teclado do computador, enquanto a outra servia para guardar material de escritório, tendo por cima um envelope pardo. Bosch pegou o envelope e o abriu. Continha
a xerox colorida da foto de uma mulher seminua. A xerox tinha duas marcas de vinco, indicando que fora dobrada alguma vez. A foto em si não possuía a qualidade técnica
daquelas revistas eróticas encontradas nas bancas. Havia nela uma qualidade amadorística, de péssima iluminação. A mulher na foto era branca e de cabelo louro-platinado
curto. Usava botas de couro à altura das coxas com saltos plataforma e um tapa-sexo, nada mais. Ela empinava o traseiro para a câmera, um dos pés apoiado numa cadeira,
o rosto voltado em direção contrária. Havia uma tatuagem no centro de uma das nádegas. Bosch também viu ao fundo da foto uma anotação que tinha sido impressa à mão.
http:/www.girlawhirl.com/gina
Bosch pouco conhecia de computadores, mas sabia o suficiente para compreender que estava olhando para um endereço na Internet.
- Kiz? - chamou ele.
Rider era a especialista em computador da sua equipe. Antes de vir para a Homicídios de Hollywood trabalhara numa unidade de defraudações na Divisão do Pacífico.
Boa parte do trabalho que fizera lá tinha sido em computadores. Ela entrou vindo da sala de arquivos e Bosch acenou-lhe por sobre a mesa.
- Como vão indo as coisas?
- Bem, estamos apenas empilhando. Ela não quer me deixar olhar nada até ouvirmos a opinião do mestre especial. Espero que Chastain traga um monte de caixas porque
temos um... o que é isto?
Ela estava olhando para o envelope aberto e a foto da mulher loura.
- Estava na gaveta. Dê uma olhada. Tem um endereço nela. Rider contornou a mesa e olhou para a xerox.
- É um site na Internet.
- Exato. Como fazemos para entrar nele e dar uma olhada?
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- Deixe-me sentar aí.
Bosch levantou-se e Rider sentou-se diante do computador. Bosch ficou de pé atrás da cadeira e observou enquanto ela ligava o computador e esperava iniciar.
- Vamos ver qual o provedor da Internet que ele tinha - disse ela. - Está vendo algum bloco de papel timbrado por aí? Às vezes as pessoas põem nele o endereço de
seu correio eletrônico. Se descobrirmos o endereço de Elias é meio caminho andado.
Bosch não tinha visto nenhum papel timbrado durante sua busca.
- Espere aí.
Ele foi até a saleta de recepção e perguntou a Chastain, que estava sentado atrás da mesa da secretária, se vira algum bloco de papel timbrado. Chastain abriu uma
gaveta e apontou para uma caixa aberta de blocos. Bosch pegou uma folha. Rider estava certa. O endereço eletrônico de Elias estava impresso debaixo do seu endereço
postal no alto da folha.
helias@lawyerlink.net
Bosch voltou ao gabinete de Elias com a folha. Ao chegar viu que Rider tinha fechado o envelope com a xerox da mulher loura. Bosch percebeu que devia ter-lhe deixado
embaraçada.
- Consegui - disse ele.
Ela olhou para a folha que Bosch pôs sobre a mesa junto ao computador.
- Ótimo. Este é o nome do usuário. Agora só precisamos da senha dele. Ele protegeu todo o computador com uma senha.
- Merda.
- Bem - disse ela enquanto começava a teclar -, a maioria das pessoas escolhe algo bastante fácil... para não esquecer.
Ela parou de teclar e observou a tela. O cursor tinha se transformado numa ampulheta enquanto funcionava. Uma mensagem foi então impressa na tela, informando Rider
de que usara uma senha incorreta.
- O que você usou?
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- A data de nascimento dele. Você esteve com os parentes, não esteve? Qual o nome da esposa dele?
- Millie.
Rider digitou-o e após alguns segundos recebeu a mesma mensagem de rejeição.
- E quanto ao filho? - sugeriu Bosch. - Seu nome é Martin. Rider não digitou nada.
- Qual é o problema?
- Um monte destes portões de senha só lhe dão três tentativas. Se você não conseguir na terceira, ficam automaticamente bloqueados.
- Para sempre?
- Não. Pelo tempo que Elias tiver programado. Poderia ser por quinze minutos, uma hora, ou até mais. Vamos pensar a respeito disto para...
-V-S-D-P-L-A.
Rider e Bosch se voltaram. Chastain estava à porta.
- O quê? - perguntou Bosch.
- É a senha. V-S-D-P-L-A. Como em Elias versus Departamento de Polícia de Los Angeles.
- Como sabe?
- A secretária a escreveu no lado de baixo do seu mata-borrão. Imagino que use o computador também.
Bosch estudou Chastain por um momento.
- Harry? - disse Rider. - Eu deveria?
- Arrisque - disse Bosch, ainda olhando para Chastain. Depois ele se virou e observou enquanto sua parceira digitava
a senha. A ampulheta piscou e depois a tela mudou e os símbolos do ícone começaram a aparecer sobre um campo de céu azul e nuvens brancas.
- Entramos - disse Rider.
Bosch olhou de volta para Chastain.
-Ótimo!
Ele então olhou de volta para a tela e observou enquanto Rider teclava e manobrava através dos ícones, arquivos e programas, tudo isto nada significando para Bosch
e fazendo-o recordar que ele era um anacronismo.
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- Você devia realmente aprender esta coisa, Harry - disse Rider, parecendo ler seus pensamentos. - E mais fácil do que parece.
- Por que eu deveria, tendo você? O que está fazendo, afinal?
- Apenas dando uma olhada. Tenho que falar com Janis sobre isto. Há um monte de nomes de arquivo correspondendo a casos. Não sei se deveríamos abri-los antes...
- Não se preocupe com isto por ora - interrompeu Bosch. Pode entrar na Internet?
Rider fez mais alguns movimentos com o mouse e depois digitou o nome e a senha do usuário nos brancos da tela.
- Estou percorrendo o site lawyerlink - disse ela. - Graças a Deus, a mesma senha serve e conseguiremos chegar à página na Web daquela dona pelada.
- Que dona pelada? - perguntou Chastain.
Bosch pegou o envelope e entregou-a Chastain, que o abriu, olhou para a foto e sorriu com afetação.
Bosch olhou de volta para a tela. Rider estava no site lawyerlink, usando o nome de usuário de Elias.
- Qual é mesmo o endereço?
Chastain o leu para Rider enquanto ela digitava. Ela então bateu na tecla enter e eles aguardaram.
- Isto não é mais que um único endereço de página dentro de um site maior - disse ela. - O que teremos aqui é a página de Gina.
- Quer dizer que este é o nome dela? Gina?
- Assim parece.
Enquanto ela dizia isto, a foto da xerox apareceu na tela. Abaixo vinha a informação sobre os serviços que a mulher prestava e como contactá-la.
Sou Lady Regina. Faço o estilo dominatrix, especializada em bondage, humilhação, feminização forçada, treinamento de escravos e chuva dourada. Outros tormentos
disponíveis a pedido. Ligue-me agora.
Abaixo do texto de informação havia um número telefônico, um número de pager e um endereço de correio eletrônico. Bosch
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anotou-os num bloco que tirou do bolso. A seguir olhou de volta para a tela e viu que havia também um botão azul com a letra A gravada. Já ia perguntar a Rider
o que o botão significava quando Chastain emitiu um som desdenhoso. Bosch virou-se e olhou para ele. O homem da DAI sacudia a cabeça.
- O sacana estava provavelmente pulando a cerca com esta boazuda - comentou Chastain. - Fico imaginando se o reverendo Tuggins e sua turma lá na Associação sabiam
disso.
Ele se referia a uma entidade chamada Associação das Igrejas do South Central, um grupo que Tuggins liderava e que sempre pareceu estar à disposição de Elias quando
ele precisava mostrar à mídia uma imagem de repúdio do South Central em relação a uma alegada má conduta da polícia.
- Ainda não sabemos se algum dia ele se encontrou com esta mulher, Chastain - disse Bosch.
- Oh, ele saía com ela. Por que razão ele teria esta foto jogada por aí? Eu lhe digo, Bosch: se Elias estava num lance sadomasoquista como esse, não é preciso dizer
aonde isso poderia levar. E um caminho justificado de investigação e você sabe disso.
- Não se preocupe, nós vamos verificar tudo.
- Pode estar mais do que certo de que vamos.
- Ei - disse Rider, interrompendo. - Há um botão de áudio.
- Bosch olhou para a tela. Rider tinha a seta apontada para o botão azul.
- O que quer dizer? - perguntou.
- Acho que realmente podemos ouvir a Lady Regina.
Ela clicou a seta sobre o botão. O computador então baixou um programa de áudio e começou a tocá-lo. Uma voz sombria e pesada veio do áudio do computador.
- Aqui é Lady Regina. Se me procurar, vou desvendar o segredo da sua alma. Juntos, podemos revelar a verdadeira subserviência através da qual você vai conhecer sua
legítima identidade e alcançar a libertação que não pode encontrar em nenhum outro lugar. vou moldar você à minha vontade. Serei a sua dona. Estou esperando. Ligue-me
agora.
Ficaram todos em silêncio por um longo momento. Bosch olhou para Chastain.
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- Parece a voz dela? - perguntou.
- Dela quem?
- A mulher na fita do apartamento.
Chastain de repente percebeu a possibilidade e ficou em silêncio enquanto pensava a respeito.
- Que fita? - quis saber Rider.
- Pode repetir? - pediu Bosch.
Rider clicou de novo o botão de áudio e voltou a perguntar sobre a fita. Bosch esperou até a repetição acabar.
- Uma mulher deixou uma mensagem na secretária eletrônica do apartamento de Elias. Não era a esposa. Mas também não creio que tenha sido esta voz.
Ele olhou para Chastain mais uma vez.
- Não sei - admitiu Chastain. - Poderia ser. Seríamos capazes de fazer uma comparação no laboratório, se for preciso.
Bosch hesitou, estudando Chastain para descobrir qualquer indicação de que ele soubesse que a mensagem fora apagada. Nada percebeu.
- O que foi? - disse Chastain, inquieto sob o olhar de Bosch.
- Nada - replicou Bosch.
Ele virou-se e olhou para a tela do computador.
- Você falou que isto fazia parte de um site maior - disse para Rider. - Podemos dar uma olhada nele?
Rider não respondeu. Simplesmente continuou a trabalhar no teclado. Em poucos momentos a tela mudou e eles viram-se olhando para um gráfico que mostrava a perna
calçada com meias de seda em toda a tela. Abaixo, estava escrito:
BEM-VINDO AO GIRLAWHIRL
Um diretório de serviços íntimos,
sensuais e eróticos no sul da Califórnia
Abaixo havia um menu no qual o usuário poderia escolher listagens de mulheres oferecendo uma variedade de serviços, desde massagem sensual e acompanhamento noturno
até dominação por mulher. Rider clicou o mouse nesta última oferta e uma nova tela
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foi revelada, apresentando boxes com os nomes de prostitutas seguidos por um prefixo de código de área.
- E um puteiro via Internet - disse Chastain.
Bosch e Rider nada disseram. Rider moveu a seta para o boxe marcado Lady Regina.
- Este é o seu diretório - disse ela. - Você escolhe a página que quer e clica.
Ela clicou o mouse e a página de Regina reapareceu.
- Ele escolheu ela - informou Rider.
- Uma branca - disse Chastain. Havia desprezo em sua voz. Chuva dourada de uma mulher branca! Aposto que tampouco vão ficar muito satisfeitos com isto lá no South
Side.
Rider se virou e lançou um olhar penetrante para Chastain. Estava a ponto de dizer alguma coisa quando seus olhos se arregalaram e ela olhou além do detetive da
DAI. Bosch percebeu isto e voltou-se. De pé à porta do gabinete estava Janis Langwiser. Junto dela estava uma mulher que Bosch reconheceu de fotos nos jornais e
aparições na TV. Era uma mulher atraente com a suave pele cafécom-leite da miscigenação.
- Espere aí - disse Bosch para Janis. - Isto é uma investigação criminal. Ela não pode entrar aqui e...
- Ela pode sim, detetive Bosch. O juiz Houghton acabou de nomeá-la mestre especial do caso. Ela vai revisar os arquivos para nós.
com isto, a mulher que Bosch reconheceu adentrou plenamente a sala, sorriu, mas não com simpatia, e estendeu a mão para ele.
- Detetive Bosch - disse -, é um prazer conhecê-lo. Espero que sejamos capazes de trabalhar juntos neste caso. Sou Carla Entrenkin.
Ela esperou um pouco, mas ninguém respondeu. Continuou:
- Agora a primeira coisa de que preciso é que vocês, rapazes, se retirem do local.
Capítulo 12
Do lado de fora das portas de entrada do Bradbury os detetives caminharam de mãos vazias para seus carros. Bosch continuava furioso, porém se mostrava mais calmo
agora. Caminhava devagar, deixando que Chastain e Dellacroce alcançassem o carro deles primeiro. Enquanto os observava tomando o caminho de volta de Bunker Hill
para a Califórnia Plaza, ele abriu a porta do passageiro do bunda-lisa de Kiz, mas não entrou. Inclinou-se e olhou para Kiz enquanto ela colocava o cinto de segurança.
- Pode ir, Kiz. Encontro você lá. -Vai a pé?
Bosch sacudiu a cabeça e consultou o relógio. Eram oito e meia.
- vou tomar o plano inclinado. Já deve estar funcionando a essa hora. Quando chegar lá vocês sabem o que fazer. Comecem todos batendo nas portas.
- Certo, nos vemos lá. Vai voltar lá e falar com ela de novo?
- Entrenkin? É, acho que vou. Ainda tem as chaves de Elias?
- Tenho. - Ela vasculhou dentro de sua bolsa, pegou-as e entregou a Bosch. - Tem alguma coisa que eu deveria saber?
Bosch pensou por um momento.
- Ainda não. Vejo você lá.
Rider deu partida no carro. Olhou para ele de novo antes de arrancar.
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- Harry, você está legal?
- Estou ótimo. E apenas precaução. Primeiro nos empurraram Chastain... o bundão está sempre pronto a pegar no meu pé. E agora temos a Carla Estou-pensando. Já era
ruim o bastante sabermos que ela estaria observando a investigação. Agora ela faz parte do caso. Não gosto de política, Kiz. Simplesmente gosto de pôr tudo em pratos
limpos.
- Não estou falando a respeito disso. É como se você estivesse caminhando no sol desde que nos reunimos esta madrugada para pegar os carros em Hollywood. Quer falar
sobre isso?
Ele quase assentiu.
- Talvez mais tarde, Kiz - disse em vez disso. - Temos trabalho a fazer imediatamente.
- Como quiser, mas estou começando a ficar preocupada com você, Harry. Precisa ser franco. Se está desorientado, então também estamos e não vamos chegar a lugar
nenhum nesta coisa. Estaria tudo bem na maioria dos dias, mas neste, como você mesmo disse, estamos em evidência.
Bosch assentiu de novo. Só por ter percebido seu torvelhinho pessoal ela merecia uma medalha por sua perícia como detetive ler as pessoas era sempre mais importante
do que ler pistas.
- Tem razão, Kiz. vou melhorar.
- Assim espero.
- Eu vejo você lá.
Ele bateu no teto do carro e a observou arrancar, sabendo que este seria o momento em que normalmente enfiaria um cigarro na boca. Não o fez. Em vez disso, olhou
para as chaves em sua mão e pensou na sua próxima ação e em como teria de ser muito cauteloso.
Bosch retornou ao Bradbury. Enquanto subia no vagaroso elevador, sacudiu as chaves em sua mão e pensou sobre as três entradas separadas de Entrekin no caso. Primeiro,
como um curioso nome no caderninho de telefones de Elias, agora desaparecido; depois, na sua qualidade de inspetora-geral; e agora, finalmente, uma entrada plena
como participante, o mestre especial que decidiria que coisas nos arquivos de Elias eles teriam permissão de ver.
Bosch não gostava de coincidências. Não acreditava nelas.
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precisava saber o que Entrenkin estava fazendo. Acreditava ter uma boa idéia do que era e pretendia confirmá-la antes de seguir adiante com aquele caso.
Ao chegar no último andar Bosch apertou o botão que mandava o elevador de volta ao térreo e saltou. A porta para os escritórios de Elias estava trancada e Bosch
bateu energicamente no vidro fosco logo abaixo do nome do advogado. Momentos depois Janis Langwiser veio abrir. Bosch viu Carla Entrenkin de pé poucos passos atrás
dela.
- Esqueceu alguma coisa, detetive Bosch? - perguntou Langwiser.
-Não. Mas é seu aquele carrinho importado que está estacionado em local proibido? O vermelho? Estava a ponto de ser rebocado. Dei uma carteirada no cara e disse
a ele para me dar cinco minutos. Mas ele vai voltar.
- Oh, merda! - Ela olhou de relance para Entrenkin enquanto se dirigia à porta. - Voltarei logo.
Quando ela passou por ele, Bosch entrou no escritório e fechou aporta atrás de si. Depois passou a chave e voltou-se para Entrenkin.
- Por que trancou a porta? - perguntou ela. - Por favor, deixe-a aberta.
- Apenas achei que seria melhor dizer o que quero dizer sem ninguém nos interrompendo.
Entrenkin cruzou os braços como se preparando para um ataque. Bosch estudou o rosto dela e conseguiu a mesma vibração que tivera antes, quando ela dissera a eles
que tinham de sair. Havia um certo estoicismo ali, amparando-a apesar de alguma nítida dor por debaixo. Ela fez Bosch lembrar-se de outra mulher que só conhecia
da TV: a professora de direito de Oklahoma que fora maltratada em Washington pelos políticos poucos anos antes, durante a confirmação de uma decisão da Corte Suprema.
- Olhe, detetive Bosch, realmente não vejo qualquer outro caminho a seguir. Temos de ser cautelosos. Temos de pensar no caso tanto como na sociedade. As pessoas
precisam ter uma garantia de que tudo que é possível está sendo feito... de que tudo não vai acabar em pizza como viram tantas vezes antes. Eu quero...
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-Besteira.
- Como disse?
- Você não deveria estar neste caso e ambos sabemos disso.
- Isso é que é besteira. Tenho a confiança desta comunidade. Acha que eles acreditam em alguma coisa que você diz sobre este caso? Ou no que dizem Irving e o chefe
de polícia?
- Mas você não tem a confiança dos tiras. E aí se envolveu num grande conflito de interesses, não é, inspetora-geral?
- O que está dizendo? Acho que, em vez disso, foi muito sábio o juiz Houghton ter escolhido a mim como mestre especial. Como inspetora-geral já tenho um grau de
supervisão civil sobre o caso. Isto apenas facilita as coisas ao invés de se acrescentar outra pessoa ao caso. Ele me ligou. Não fui eu que liguei para ele.
- Não estou falando disto e você sabe. Estou falando sobre um conflito de interesses. Uma razão por que você não deveria estar nem sequer perto deste caso.
Entrenkin sacudiu a cabeça num gesto de quem não entendia, mas seu rosto mostrava claramente que receava o que Bosch sabia.
- Você sabe do que estou falando - continuou Bosch. - Você e ele. Elias. Estive no apartamento dele. Deve ter sido pouco antes de você chegar lá. Uma pena que nos
desencontramos. Poderíamos ter resolvido tudo na hora.
- Não sei do que está falando, mas fui apenas levada a crer pela srta. Langwiser que vocês aguardavam mandados antes de entrarem no apartamento e no escritório dele.
Vai me dizer que isto não é
verdade?
Bosch hesitou, percebendo que cometera um erro. Ela podia agora anular seu movimento ou voltá-lo contra ele.
- Tínhamos que nos certificar de que ninguém estava ferido ou precisando de ajuda no apartamento - disse ele.
- Claro. Certo. Tal como os tiras que pularam o muro da casa de O. J. Simpson. Apenas querendo verificar se todo mundo estava bem.
Ela sacudiu a cabeça outra vez.
- A arrogância contumaz deste departamento me espanta. Pelo que ouvi falar a seu respeito, detetive Bosch, eu esperava mais.
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- Você quer falar sobre arrogância? Você foi a única que entrou lá e removeu provas. A inspetora-geral do departamento, incumbida de policiar a polícia. Agora quer...
- Provas de quê? Não fiz tal coisa!
- Você apagou sua mensagem na secretária eletrônica e levou o caderno de telefones que continha seu nome e número. Estou apostando que você tinha sua própria chave
e um passe para a garagem. Você entrou pela garagem e ninguém a viu. Logo depois de Irving ligar para contar-lhe que Elias estava morto. Só que Irving não sabia
que você e Elias estavam tendo um caso.
- Esta é uma bela história. Gostaria de ver você tentar provar qualquer coisa disso.
Bosch ergueu a mão. Na sua palma estavam as chaves de Elias.
- As chaves de Elias - disse ele. - Tem duas aqui que não são do apartamento, do escritório ou dos carros dele. Eu estava pensando em pegar seu endereço no Departamento
de Trânsito e ver se estas chaves servem para sua porta, inspetora.
Os olhos de Entrenkin se desviaram rapidamente das chaves. Ela virou-se e voltou para o gabinete de Elias. Bosch a seguiu e observou enquanto ela contornava lentamente
a mesa e sentava-se. Ela parecia a ponto de chorar. Bosch sabia que a tinha arrasado com as chaves.
- Você o amava? - perguntou.
- O quê?
- Você o am...
- Como ousa me perguntar isto?
- É o meu trabalho. Houve um assassinato. E você está envolvida.
Ela deu-lhe as costas e olhou através da janela para a pintura de Anthony Quinn. Mais uma vez, as lágrimas surgiram e foram contidas com dificuldade.
- Olhe, inspetora, podemos tentar recordar uma coisa? Howard Elias está morto. E, acredite ou não, quero pegar a pessoa que fez isto. Certo?
Ela assentiu momentaneamente, Ele continuou, falando lenta e calmamente.
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- Para prender esta pessoa, vou precisar saber tudo o que puder sobre Elias. Não só o que sei através da mídia e de outros policiais. Não apenas do que está nos
arquivos. Eu gostaria de saber...
Na área de recepção alguém experimentou a porta trancada e depois bateu energicamente no vidro. Entrenkin se levantou e foi até a porta. Bosch esperou no gabinete
de Elias. Ele ouviu enquanto Carla Entrenkin abria a porta e falava com Langwiser.
- Nos dê alguns minutos, por favor.
Ela fechou a porta sem esperar uma resposta, trancou-a de novo e voltou ao gabinete de Elias, onde reassumiu o assento atrás da mesa. Bosch falou-lhe em voz baixa
o suficiente para não ser ouvido lá fora.
- Preciso saber tudo - disse. - Ambos sabemos que você está em posição de ajudar. Portanto, não podemos fazer uma espécie de trégua?
A primeira lágrima rolou pela face de Carla Entrenkin, logo seguida por outra na outra face. Ela inclinou-se à frente e começou a abrir as gavetas da escrivaninha.
- Abaixo à esquerda - disse Bosch de memória do exame que fizera na escrivaninha.
Ela abriu a gaveta e retirou a caixa de lenços de papel. Colocou-a no colo, tirou um lenço e secou as faces e os olhos. E começou a falar.
- É engraçado como as coisas mudam tão rapidamente... Seguiu-se um longo silêncio.
- Conheci Howard superficialmente por alguns anos. Quando estava estagiando. Era estritamente profissional, principalmente: "Como está indo você nos corredores da
justiça federal?" Depois, quando fui nomeada inspetora-geral, descobri que era importante eu conhecer os críticos do departamento de polícia tão bem quanto conhecia
o próprio departamento. Marquei uma entrevista com Howard. Nos encontramos bem aqui... ele sentado exatamente aqui. E começou a partir daí. Sim, eu o amava...
Esta confissão provocou mais lágrimas e ela puxou vários lenços de papel para secá-las.
- Há quanto tempo vocês estavam... juntos?-perguntou Bosch.
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- Há cerca de seis meses. Mas ele amava sua esposa. Não ia abandoná-la.
Sua face estava seca agora. Ela devolveu a caixa de lenços à gaveta e pareceu que as nuvens que haviam cruzado seu rosto momentos antes tinham ido embora. Bosch
podia ver que ela havia mudado. Carla inclinou-se à frente e olhou para ele. Era toda negócios.
- vou fazer um acordo com você, detetive Bosch. Mas só com você. Apesar de tudo... acho que me deu sua palavra de que posso confiar em você.
- Obrigado. Qual é o acordo?
- Só falo com você. Em troca, quero que me proteja. Ou seja, manter confidencial a fonte da sua informação. Não precisa se preocupar. De qualquer modo, nada do
que vou contar seria admitido no tribunal. Você pode manter tudo que vou dizer em segundo plano. Pode ajudá-lo, ou não.
Bosch pensou a respeito por um momento.
- Eu devia estar tratando você como suspeita, não como uma fonte.
- Mas bem lá no fundo você sabe que não fui eu. Ele assentiu.
- Não foi um assassinato de mulher - disse ele. - Está escrito "homem" ao longo de todo o caso.
- Está escrito "tira" também, não?
- Talvez. E é isso que vou descobrir... se puder simplesmente levar o caso adiante e não me preocupar com comunidade, politicagem do Parker Center e tudo o mais.
- Então temos um acordo?
- Antes de fazer qualquer acordo como esse tenho de saber algo primeiro. Elias tinha uma fonte dentro do Parker. Alguém com amplo acesso. Alguém que podia conseguir
arquivos encerrados da DAI. Preciso...
- Não era eu. Acredite-me, posso ter cruzado uma linha divisória quando iniciei um relacionamento com ele. Foi coisa do meu coração, não da cabeça. Mas não cruzei
a linha da qual está falando. Nunca, nem em cem anos. Ao contrário do que pensa a
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maioria do seu pessoal, minha meta é salvar e melhorar o departamento, não destruí-lo.
Bosch olhou para ela, inexpressivo. Ela tomou isto como descrença.
- Como eu lhe passaria arquivos? Sou o inimigo número um daquele departamento. Se eu fosse lá para obter arquivos, ou apenas fazer uma requisição por eles, isto
se espalharia pelo prédio e por toda a hierarquia mais rápido do que uma onda de terremoto.
Bosch estudou-lhe o rosto desafiador. Sabia que ela estava certa. Carla não conseguiria muita coisa de uma fonte profundamente protegida. Ele assentiu.
- Então, trato feito? - perguntou ela. -
- Sim, mas com um asterisco.
- E o que é?
- Se você mentir uma vez para mim e eu descobrir, está desfeito o acordo.
- É mais do que aceitável para mim. Mas não podemos falar agora. Quero terminar com os arquivos de modo que você e seu pessoal sigam todas as pistas. Agora você
sabe por que quero este caso resolvido, não só pelo bem da cidade mas por mim mesma. Que tal nos encontrarmos mais tarde? Quando os arquivos estiverem prontos.
- Para mim está ótimo.
Quando Bosch atravessou a Broadway, quinze minutos depois, pôde perceber que as portas do Grand Central Market já estavam abertas. Fazia anos desde que estivera
no mercado, talvez décadas. Decidiu cortar caminho por ele até a Hill Street e o terminal do Vôo dos Anjos.
O mercado era uma enorme aglomeração de barracas de comida, quitandas e açougues. Quiosques vendiam quinquilharias baratas e doces do México. E embora as portas
mal tivessem acabado de abrir e houvesse mais vendedores se preparando para o dia do que fregueses no interior do mercado, o cheiro esmagador de óleo e
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frituras já pairava pesadamente no ar. Enquanto caminhava, Bosch pegava retalhos de conversa, emitidos em fragmentos em staccato de espanhol. Viu um açougueiro arrumando
cuidadosamente cabeças esfoladas de bodes no mostruário refrigerado, junto a fileiras alinhadas de rabadas. Na porta mais afastada, idosos sentavam-se em mesas de
piquenique, protegendo suas xícaras de café preto forte e comendo doces e pães mexicanos. Bosch se lembrou da promessa que fizera a Edgar de levar doughnuts antes
que começassem a discutir o que tinham descoberto. Procurou mas não achou doughnuts, então comprou um saco de churros cobertos com açúcar e canela, a alternativa
mexicana.
Ao sair do mercado no lado da Hill Street, olhou à sua direita e viu um homem de pé no local onde Baker e Chastain tinham encontrado pontas de cigarros horas antes.
O homem tinha um avental manchado de sangue enrolado em volta da cintura. Usava uma rede de cabelo. Enfiou a mão debaixo do avental e pegou um maço de cigarros.
- Faça bom proveito - disse Bosch em voz alta. Atravessou a rua até o pórtico do Vôo dos Anjos e esperou atrás de dois turistas asiáticos. Os dois vagões se cruzavam
na metade do plano inclinado. Verificou os nomes pintados acima das portas de cada vagão. O Sinai estava subindo e o Olivet descendo.
Um minuto depois Bosch seguiu os turistas enquanto eles embarcavam no Olivet. Observou-os sentando-se inconscientemente no mesmo banco em que Catalina Perez tinha
morrido dez horas antes. O sangue havia sido lavado, a madeira escura e velha demais para revelar qualquer mancha. Ele não se incomodou em contarlhes a história
recente daquele banco. De qualquer modo, duvidava que entendessem sua língua.
Bosch acomodou-se no banco onde tinha sentado antes. Bocejou de novo ao aliviar o peso de seus pés. O vagão sacolejou e iniciou sua subida. Os asiáticos começaram
a tirar fotos. Finalmente, eles passaram a usar linguagem de sinais pedindo a Bosch que pegasse uma de suas câmeras e batesse uma foto deles. Bosch concordou, cumprindo
sua parte no giro turístico. Eles rapidamente pegaram a câmera de volta e seguiram para a outra extremidade do vagão.
Especulou se os turistas tinham pressentido alguma coisa a seu respeito. Algum perigo ou talvez uma doença contagiosa nele. Sabia que algumas pessoas tinham esse
poder, que podiam pressentir coisas. com ele, não seria difícil. Estava há 24 horas sem dormir. Esfregou a mão na face e ela parecia como estuque viscoso. Inclinou-se
à frente, cotovelos sobre os joelhos, e sentiu a velha dor que esperava nunca mais sentir de novo em sua vida. Fazia muito tempo desde que se sentira tão sozinho,
desde que se sentira como um estranho em sua própria cidade. Havia uma rigidez em sua garganta e peito agora, uma sensação de claustrofobia como um sudário em cima
dele, mesmo ao ar livre.
Mais uma vez pegou o telefone. Verificou a bateria e viu que estava no fim. Teria sorte se ainda desse para mais uma ligação. Digitou o número de casa e esperou.
Havia uma nova mensagem. Temendo que a bateria não agüentasse, pressionou rapidamente no código de playback e grudou o telefone no ouvido. Mas a voz que ouviu não
era de Eleanor. Era o som de uma voz distorcida pelo celofane enrolado em torno do receptor e depois perfurado com um garfo.
- Largue este caso, Bosch - disse a voz. - Qualquer homem que fica contra os tiras não passa de um cão e merece morrer como um cão. Faça a coisa certa. Largue este
caso, Bosch. Largue isto.
Capítulo 13
Bosch chegou ao Parker Center 25 minutos antes da hora para reunir-se com o subchefe Irving e inteirá-lo sobre a investigação. Estava sozinho, tendo deixado os
outros seis componentes da equipe Elias concluírem a devassa do prédio de apartamentos junto ao Vôo dos Anjos e depois cuidarem das suas outras missões. Parando
no balcão da frente, ele exibiu seu distintivo para o guarda uniformizado e lhe disse que estava esperando alguma informação para ser chamado à chefia dentro da
próxima meia hora. Pediu ao guarda para passar-lhe imediatamente a informação na sala de reunião privativa do subchefe Irving.
Bosch então tomou um elevador para o terceiro andar em vez do sexto, onde situava-se o gabinete de Irving. Desceu o corredor até a sala do esquadrão da DRH e encontrou-a
vazia, exceto pelos quatro detetives que convocara mais cedo. Eram eles Bates, OToole, Engersol e Rooker - os quatro detetives que tinham originalmente atendido
o chamado para a cena do crime do Vôo dos Anjos. Seus olhos pareciam injetados, pois tinham ficado metade da noite sem dormir antes que o caso fosse passado para
Bosch e sua equipe. Bosch os arrancara do sono às nove e dera-lhes meia hora para se encontrarem com ele no Parker Center. Tinha sido bastante fácil reuni-los tão
rapidamente. Bosch dissera-lhes que suas carreiras dependiam disso.
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-Não tenho muito tempo - começou Bosch enquanto caminhava pela ala principal entre as fileiras de mesas, trocando olhares com os quatro. Três dos detetives estavam
de pé em volta de Rooker, sentado à sua mesa. Era uma nítida delação involuntária. Quaisquer decisões na cena, quando estavam só eles quatro, foram por certo tomadas
por Rooker, que era o líder da equipe.
Bosch permaneceu de pé, parando em frente aos quatro. Começou a contar a história, usando as mãos de maneira informal, quase como um repórter de TV, como se para
frisar que estava simplesmente contando uma história, não a ameaça que na verdade ele transmitia.
- Vocês quatro atenderam ao chamado - disse. - Chegaram lá, mandaram embora os patrulheiros e fizeram o isolamento da cena. Alguém examina os presuntos e eis que
o legista diz que um deles é Howard Elias. Vocês então põem...
- Não havia nenhuma carteira de motorista - disse Rooker, interrompendo. - O capitão não lhe contou isto?
- Ele me disse sim. Mas agora estou contando a história. Portanto ouça, Rooker, e cale a boca. Estou aqui tentando tirar o rabo de vocês da reta e não tenho muito
tempo para fazer isto.
Ele esperou para ver se alguém queria dizer algo mais.
- Então, como eu dizia - recomeçou, olhando diretamente para Rooker -, o legista identifica um dos presuntos como Elias. Aí, vocês quatro juntam suas cabeças e imaginam
que há uma boa chance de que seja um tira que fez o serviço. Imaginam Elias ganhando o que estava pedindo e mais poder para o tira que teve peito para apagá-lo.
Foi aí que vocês erraram. Decidiram ajudar este pistoleiro, este assassino, encenando assalto. Vocês tiraram...
- Bosch, você está cheio de...
- Eu disse para calar a boca, Rooker! Não tenho tempo para ouvir um monte de babaquice quando você sabe que foi justamente como eu disse. Você pegou o relógio e
a carteira de Elias. Só que você fodeu tudo, Rooker. Você arranhou o pulso dele com o relógio. Ferimento post-mortem. Vai aparecer na autópsia e isto significa
que vocês quatro vão descer latrina abaixo a não ser que isto seja abafado.
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Ele fez uma pausa, esperando para ver se Rooker tinha algo a dizer agora. Ele não tinha.
- Muito bem, parece que tenho a atenção de vocês. Alguém quer me dizer onde estão o relógio e a carteira?
Mais uma pausa enquanto Bosch consultava seu relógio. Quinze para as dez. Os quatro homens da DRH nada disseram.
- Eu não pensaria assim - disse Bosch, olhando de um rosto para outro. - Portanto, é assim que vamos fazer. vou me reunir com Irving em quinze minutos para dar-lhe
uma visão geral. Ele então dá a entrevista coletiva. Se a chefia lá embaixo não receber uma ligação informando quanto à localização do esgoto, lata de lixo ou qualquer
outro lugar onde as porras do relógio e da carteira foram jogadas, então direi a Irving que o assalto foi encenado pelo pessoal na cena do crime e o negócio segue
a partir daí. Então, só lhes desejo boa sorte.
Ele examinou seus rostos de novo. Nada exibiam senão raiva e desafio. Bosch já esperava por isso.
- Pessoalmente, não me importo, já que vocês vão colher o que plantaram. Mas isto vai foder com o caso... vai queimar o bolo, estragar tudo, sem chance de recuperação.
Portanto, estou sendo egoísta neste aspecto, e dou uma chance a vocês com muita relutância. Bosch consultou o relógio. - Só restam catorze minutos.
Dizendo isto, ele se virou e começou a retirar-se da sala do esquadrão. Rooker o chamou.
- Quem é você para julgar, Bosch ? O suj eito era um cão. Mereceu morrer como um cão e estão cagando e andando por isto. Você deveria fazer a coisa certa, Bosch:
deixar rolar.
Como se fosse a sua intenção o tempo todo, Bosch casualmente deu a volta por detrás de uma mesa vazia e retornou aos quatro por uma ala menor. Reconhecera o fraseado
das palavras usadas por Rooker. Seu comportamento disfarçou a raiva crescente. Quando alcançou o grupo, rompeu o seu círculo informal e inclinou-se sobre a mesa
de Rooker, as palmas das mãos apoiadas no tampo.
- Preste atenção, Rooker. Se ligar para minha casa outra vez... seja para me cumprimentar ou apenas para falar sobre o tempo... vou atrás de você. E você não vai
querer isto.
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Rooker piscou, mas depois ergueu as mãos em rendição.
- Ei, cara, não sei de que porra você está fal...
- Poupe seu discurso para alguém que possa convencer. Pelo menos poderia ter sido homem e não se disfarçar com celofane. Isto foi uma merda de covarde, garoto.
Bosch havia esperado que quando fosse para a sala de reunião de Irving haveria pelo menos uns poucos minutos para ele conferir suas anotações e ordenar os pensamentos.
Mas Irving já estava sentado à mesa circular, os cotovelos apoiados na superfície polida e as pontas dos dedos de ambas as mãos tocando o queixo.
- Detetive, sente-se - disse ele enquanto Bosch abria a porta.
- Onde estão os outros?
- Ha... - disse Bosch, depositando sua pasta na mesa. - Eles ainda estão em campo. Chefe, eu ia apenas organizar meu caso e depois descer para uma xícara de café.
Posso trazer-lhe alguma coisa?
- Não, e você não tem tempo para café. Os telefonemas da imprensa estão começando. Já sabem que foi Elias. Alguém vazou. Provavelmente no IML. Portanto, a chapa
vai esquentar. Quero ouvir o que está acontecendo, a começar de agora. Tenho de me reunir com o chefe de polícia, que vai dar uma entrevista coletiva às onze. Sente-se.
Bosch sentou-se em frente a Irving. Ele já levara um caso à sala de reunião. Parecia ter sido há séculos, mas ele se lembrava disso como a época em que granjeara
o respeito de Irving e provavelmente a mesma confiança que o subchefe estava disposto a dar a qualquer um que ostentasse um distintivo. Seus olhos se moveram ao
longo da superfície da mesa e ele viu a velha cicatriz de cigarro que deixara durante a investigação do caso da Loura de Concreto. Tinha sido um caso difícil, mas
parecia quase rotineiro, comparado à investigação em que estava envolvido agora.
- Quando eles vão chegar? - perguntou Irving.
Ele ainda mantinha os dedos unidos no queixo. Bosch havia lido em um manual de interrogatório que tal linguagem corporal denotava um sentimento de superioridade.
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- Quem?
- Os componentes de sua equipe, detetive Bosch. Eu lhe disse que os queria aqui para a reunião e depois para a entrevista coletiva.
- Bem, eles não estão. Estão vindo. Continuam na investigação. Pensei que não faria sentido ter todos os sete aqui, quando bastaria um de nós para dizer em que pé
estão as coisas.
Bosch observou lampejos furiosos de vermelho explodirem nas faces de Irving.
- Mais uma vez parece que temos um problema de comunicação ou a cadeia de comando permanece incerta para você. Eu lhe disse especificamente que seu pessoal deveria
estar aqui.
- Devo ter entendido mal, chefe - mentiu Bosch. - Achei que o importante era a investigação. Lembro de que o senhor queria manter-se atualizado, não de que quisesse
todo mundo aqui. De fato, duvido que aqui tenha espaço bastante para todos. Eu...
- A questão é que quero eles aqui. Seus parceiros têm telefone?
- Edgar e Rider?
- Quem mais?
- Eles têm telefone, mas estão mudos. Ficaram funcionando a noite toda. O meu ficou sem bateria.
- Então chame todo mundo pelo pager. Quero todos aqui. Bosch se levantou lentamente e encaminhou-se ao telefone que
estava em cima do armário de materiais que corria ao longo de uma parede da sala. Ligou para os pagers de Rider e Edgar, mas quando apertou o número de retorno acrescentou
um sete extra no final. Era um código que vinham usando há muito tempo. O sete extra
- que também era usado quando os rádios estavam quebrados significava que poderiam demorar para retornar as mensagens, se é que afinal retornariam.
- Bem, chefe - disse Bosch. - Espero que retornem a ligação. E quanto a Chastain e seu pessoal?
- Não se preocupe com eles. Quero é sua equipe aqui às onze para a entrevista coletiva.
Bosch voltou para seu lugar.
- Como assim? - perguntou, embora soubesse exatamente por quê. - Entendi que tinha dito que o chefe de polícia ia...
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- O chefe vai presidir. Mas queremos dar uma demonstração de força. Queremos que o público saiba que temos investigadoras <je primeira neste caso.
- Está se referindo a investigadores de primeira negros, não é? Bosch e Irving sustentaram olhares duros por um momento.
- Seu trabalho, detetive, é resolver este caso. E resolvê-lo tão rápido quanto puder. Não precisa se preocupar com outros assuntos.
- Bem, isto vai ser uma coisa difícil, chefe, se ficar tirando minha equipe do serviço de campo. Não posso resolver nada rapidamente se eles tiverem que vir
aqui para cada espetáculo de circo que seu pessoal encenar.
- Já basta, detetive.
- Eles são investigadores de primeira. E é por isso que quero usá-los. Não como bucha de canhão para as relações raciais
do departamento. Eles tampouco desejam ser usados desta maneira. isco em si já é racis...
- Basta, já disse! Não tenho tempo para discutir racismo, institucional ou de outro tipo, com você, detetive Bosch. Estamos falando sobre opinião pública. Inútil
dizer que se conduzirmos mal este caso, ou a opinião de quem está lá fora sobre eles, esta cidade pode pegar fogo de novo por volta da meia-noite.
Irving parou para consultar o relógio.
- vou me encontrar com o chefe de polícia em vinte minutos. Poderia, por favor, começar a me pôr a par do progresso da investigação até este ponto?
Bosch alcançou e abriu sua pasta. Antes que pudesse pegar seu bloco de anotações, o telefone sobre o armário tocou. Ele se levantou e caminhou até lá.
- Lembre-se - insistiu Irving. - Quero eles aqui às onze. Bosch assentiu e atendeu. Não era Edgar nem Rider, e ele
também não esperara que fosse um dos dois.
- Aqui é Cormier, da portaria. É Bosch quem fala? -É.
- Tem uma mensagem aqui para você. O cara não deu o nome. Só disse para avisá-lo: aquilo que você precisa está numa lata de lixo
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na estação MetroLink, na Primeira com Hill. Está num envelope
pardo. É isso.
- OK, obrigado.
Ele desligou e olhou para Irving.
- Isto foi mais uma coisa.
Bosch sentou-se e tirou seu bloco da pasta junto com a prancheta que prendia o relatório da cena do crime, rascunhos e recibos de provas materiais. Ele não precisava
de nada disso para resumir o caso, mas achava que Irving ficaria tranqüilizado ao ver o acúmulo de papelada que o caso estava gerando.
- Estou esperando, detetive - disse o subchefe como se para apressá-lo.
Bosch ergueu os olhos da papelada.
- Estamos ainda quase no ponto zero. Temos uma boa idéia do que aconteceu. Ainda não temos muita coisa sobre quem foi e por quê.
- Então o que foi que conseguimos, detetive?
- Estamos nos baseando em Elias como sendo o alvo primário no que parece assassinato sem tirar nem pôr.
Irving baixou a cabeça para que suas mãos unidas escondessem o rosto.
- Sei que não é o que desejava ouvir, chefe, mas se quiser os fatos, é para aí que os fatos apontam. Temos...
- A última coisa que o capitão Garwood me contou foi que dava a impressão de ter sido um assalto. O homem estava usando um terno de mil dólares, andava pelo centro
deserto às onze da noite. Seu relógio e a carteira sumiram. Como é que você pode descartar a possibilidade de assalto?
Bosch recostou-se e esperou. Ele sabia que Irving estava expelindo fogo pelas ventas. As notícias que Bosch lhe dava por certo acrescentariam novas úlceras às que
já tinha tão logo a mídia fosse avisada e corresse.
- O relógio e a carteira já foram localizados. Não foram roubados. -Onde?
Bosch hesitou, embora já tivesse previsto a pergunta. Ele hesitou porque estava a ponto de mentir para um superior para livrar a
cara de quatro homens que não mereciam o benefício do risco que ele estava assumindo.
- Na gaveta de sua mesa no escritório. Deve ter esquecido quando fechou e seguiu para seu apartamento. Ou talvez ele tenha deixado lá de propósito, temendo ser assaltado.
Bosch percebeu que ainda precisaria inventar uma explicação nos seus relatórios quando a autópsia de Elias revelasse os arranhões post-mortem no seu pulso. Ele teria
de escrever isto como tendo ocorrido enquanto o corpo estava sendo manipulado ou movido pelos investigadores.
- Então talvez tenha sido um assaltante à mão armada que atirou em Elias quando ele não lhe passou a carteira - disse Irving, alheio ao desconforto interior de Bosch.
- Talvez fosse um assaltante daqueles que atiram primeiro e procuram os valores depois.
- A seqüência e a maneira dos disparos sugerem o contrário. A seqüência sugere um vínculo pessoal... raiva transmitida de uma pessoa para Elias. Quem quer que tenha
feito isto, conhecia Elias.
Irving pôs as mãos sobre a mesa e inclinou-se alguns centímetros na direção do seu centro. Ele pareceu impaciente enquanto falava.
- Tudo que estou dizendo é que você não pode eliminar por completo as outras hipóteses possíveis.
- Isto seria verdade, mas não estamos indo atrás dessas hipóteses. Acho que seria uma perda de tempo e não tenho potencial humano.
- Eu lhe disse que queria uma investigação completa. Quero todas as pedras reviradas.
- Bem, mais tarde teremos todas essas pedras. Olhe, chefe, se está se focalizando nisto de modo a poder contar à mídia que poderia ter sido um assalto, ótimo, diga
que poderia. Não me importo com o que disser à mídia. Estou apenas tentando lhe explicar aonde estamos e aonde vamos investigar.
- Ótimo. Prossiga.
Ele balançou a mão num gesto de dispensa.
- Precisamos verificar os arquivos do homem e fazer listas de suspeitos potenciais. Os tiras que Elias levou ao tribunal ou
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vilanizou na mídia ao longo dos anos. Ou ambos. Os rancores. E os tiras que tentaria condenar a partir da segunda-feira.
Irving não demonstrou qualquer reação. Pareceu a Bosch que já estava pensando na hora que se seguiria, quando ele e o chefe de polícia assumiriam o risco e falariam
à mídia sobre um caso tão perigoso.
- Estamos em posição desvantajosa - continuou Bosch. - Carla Entrenkin foi designada pelo juiz dos mandados como mestre especial para supervisionar a proteção aos
clientes de Elias. Está no escritório exatamente agora e não nos deixou ficar lá.
- Pensei que tinha dito que encontrou a carteira e o relógio do homem no escritório.
- Verdade. Isto foi antes de Carla aparecer e nos enxotar.
- Como ela foi designada?
- Ela diz que o juiz a chamou, achava que ela seria perfeita. Ela e uma novata da promotoria estão lá. Espero conseguir o primeiro love dos arquivos esta tarde.
- Muito bem, o que mais?
- Tem uma coisa que o senhor deveria saber. Antes de nos mandar sair, descobrimos duas coisas interessantes. A primeira foram algumas anotações que Elias guardava
em sua escrivaninha. Eu as li e havia indicações de que ele tinha uma fonte aqui. No Parker Center, quero dizer. Uma boa fonte, alguém que aparentemente sabia como
achar e ter acesso a arquivos antigos... investigações arquivadas. E havia indícios de uma disputa. A fonte não podia ou não queria fornecer alguma coisa que Elias
desejava sobre o caso Guerreiro Negro.
Irving manteve-se calado por um segundo, olhando para Bosch, avaliando. Quando voltou a falar, sua voz soou mais distante ainda.
- Esta fonte foi identificada?
- Não no que vi, o que não foi muita coisa. Estava codificado.
- O que Elias queria? Poderia estar relacionado aos assassinatos?
- Não sei. Se quiser que eu vá atrás disso como prioridade, eu vou. Estava pensando que outras coisas fossem a prioridade. Os tiras que ele arrastou ao tribunal
no passado, os que ele ia arrastar a partir
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de segunda-feira. Há também uma segunda coisa que descobrimos no escritório antes de sermos chutados.
- O que foi?
- Na verdade isso se bifurca em duas linhas de investigação. Ele contou rapidamente a Irving sobre a foto de Lady Regina e
a indicação de que Elias estaria envolvido no que Chastain classificara de "pular a cerca". O subchefe demonstrou um vivo interesse por este aspecto da investigação
e perguntou a Bosch quais eram seus planos emr ir fundo nisto.
- Estou pensando em localizar e interrogar a mulher, ver se Elias realmente tinha algum contato com ela. Depois disso, vemos aonde vai levar.
- E isto leva a que outra linha de investigação?
- A família. Se era com essa Regina ou não, tudo indica que Elias era um tremendo namorador. Há fartas indicações no apartamento do centro que sugerem esta hipótese.
Portanto, se a esposa sabia de tudo isso, então temos uma motivação exatamente aí. Claro que estou apenas divagando. No momento nada temos a indicar que ela sequer
soubesse, muito menos que encomendasse ou cometesse o assassinato.
- Qual sua opinião?
- Não me parece ter sido o trabalho frio de um matador de aluguel. Há bastante evidência de raiva no método empregado. Parece-me que o assassino conhecia Elias e
o odiava... pelo menos no momento do disparo. Eu também diria que parece ter sido um homem.
- Como assim?
- O tiro na bunda. Foi um ato vingativo. Como um estupro. Homens estupram, mulheres, não. Portanto, o instinto me diz que isto inocenta a viúva. Mas o meu instinto
já cometeu erros. Há ainda outra coisa que temos de acompanhar. Tem o filho, também. Como lhe disse antes, ele reagiu muito exaltado quando fomos dar a notícia.
Mas realmente não sabemos como era o relacionamento dele com o pai. Sabemos que o garoto já esteve envolvido com armas... vimos uma foto na casa.
Irving apontou um dedo de advertência para Bosch.
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- Tenha cuidado com a família - disse. - Muito cuidado. Isto
tem de ser manipulado com muito tato.
- Terei cuidado.
- Não quero isto explodindo na nossa cara.
- Não vai acontecer. ..........
Irving consultou o relógio mais uma vez.
- Por que seu pessoal não retornou as mensagens?
- Não sei, chefe. Estava pensando exatamente nisso.
- Bem, ligue para eles de novo. Preciso me encontrar com o chefe. As onze, quero você e sua equipe na sala da entrevista coletiva.
- Eu preferiria voltar a trabalhar no caso. Tenho que...
- Isto é uma ordem direta, detetive - disse Irving, levantando-se. - Sem discussão. Não precisam responder a perguntas, mas quero ter vocês à mão.
Bosch pegou a prancheta e a recolocou na pasta aberta.
- Estarei lá - disse, embora Irving já tivesse cruzado a porta. Bosch sentou-se por alguns minutos, pensando. Sabia que Irving
agora iria reembalar a informação que lhe dera e passá-la ao chefe de polícia. Eles dariam tratos à bola e depois a reformulariam mais uma vez antes de liberá-la
para a mídia.
Olhou para o relógio. Tinha meia hora até a entrevista coletiva. Imaginou se daria tempo de ir até a estação MetroLink, pegar a carteira e o relógio de Elias e voltar.
Ele tinha de certificar-se de ter em suas mãos os pertences do advogado morto, ainda mais porque já dissera a Irving que estavam em seu poder.
Finalmente, decidiu que não daria tempo. Preferiu usar aquele intervalo para tomar café e dar um telefonema. Foi mais uma vez até o armário e ligou para sua casa.
Mais uma vez, a secretária eletrônica. Bosch desligou ao ouvir sua própria voz dizendo que não havia ninguém em casa.
Capítulo 14
Bosch decidiu que seria enervante demais esperar até o término da entrevista coletiva e dirigiu até a estação, no cruzamento da Primeira com a Hill. Distava apenas
três minutos e estava quase certo de que voltaria ao Parker Center a tempo para o início da entrevista coletiva. Estacionou ilegalmente no meio-fio em frente à entrada
para a plataforma do metrô. Era uma das poucas coisas boas ao se dirigir um bunda-lisa; não havia necessidade de se preocupar com multas de estacionamento. Enquanto
saltava, ele pegou o cassetete do compartimento na porta do carro.
Desceu correndo pela escada rolante e avistou a primeira lata de lixo junto às portas automáticas na entrada da estação. Tal como imaginava, Rooker e seu parceiro
tinham deixado a cena do crime no Vôo dos Anjos com os pertences roubados e parado no primeiro local onde sabiam que poderiam achar uma lata de lixo. Um esperou
no carro enquanto o outro descia as escadas para livrar-se do relógio e da carteira. Portanto, Bosch acreditava em que esta primeira lata de lixo poderia ser a tal.
Era um receptáculo largo e branco, com o símbolo do MetroLink pintado dos lados. Uma tampa azul no topo protegia a porta de empurrar. Bosch rapidamente a levantou
e olhou para baixo. O receptáculo estava cheio, mas ele não viu nenhum envelope pardo em meio ao entulho.
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Bosch pôs a tampa no chão e usou o cassetete para remexer o entulho de jornais, embalagens de lanches e lixo. A lata cheirava tão mal como se há dias não fosse esvaziada
e há meses não fosse limpa. Ele encontrou uma bolsa e um sapato velho. Enquanto usava o cassetete para cavoucar mais fundo, começou a ficar preocupado. E se algum
dos sem-teto que enxameavam pelo centro tivesse chegado antes à lata e pegado o relógio e a carteira?
Perto do fundo, pouco antes de desistir para tentar uma das outras latas da estação, ele viu um envelope besuntado de ketchup e pescou-o com dois dedos. Rasgou-o,
cuidando para tirar a maior parte do ketchup junto com a extremidade rasgada, e viu lá dentro uma carteira marrom de couro e um Cartier de ouro.
Bosch usou a escada-rolante para subir, mas desta vez contentou-se apenas em ser levado enquanto examinava o interior do envelope. A pulseira do relógio, também
de ouro ou folheada a ouro, era do estilo sanfonado que deslizava pelo pulso e pela mão. Bosch sacudiu um pouco o envelope em sua mão a fim de movimentar o relógio
sem tocá-lo. Estava procurando por quaisquer fragmentos de pele que pudessem estar grudados na pulseira. Nada percebeu.
Mal voltou ao carro, calçou luvas, tirou o relógio e a carteira do envelope rasgado e jogou o envelope por cima do assento para o assoalho da parte traseira. A seguir
abriu a carteira e examinou suas divisões. Elias carregava seis cartões de crédito, além de identidade e cartões de seguro. Havia pequenas fotos posadas de estúdio
de sua esposa e filho. Na seção de notas havia três recibos de cartões de crédito e um cheque pessoal em branco. Não havia dinheiro.
A pasta de Bosch estava no assento ao lado. Ele a abriu e tirou a prancheta, depois vasculhou até encontrar o relatório de pertences das vítimas. Detalhava tudo
que tinha sido tomado de cada vítima. Apenas 25 cents haviam sido encontrados nos bolsos de Elias na hora em que foram revirados por um assistente do legista.
- Filhos da puta - disse Bosch em voz alta ao perceber que a pessoa que pegara a carteira decidira ficar com qualquer dinheiro que ela contivesse. Era improvável
que Elias fosse para seu apartamento somente com o dinheiro trocado para pagar a passagem do plano inclinado.
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Mais uma vez especulou por que estava arriscando seu pescoço por pessoas que não mereciam. Tentou descartar o pensamento, sabendo que era tarde demais para fazer
qualquer coisa a respeito, mas não conseguia. Ele agora era um conspirador. Sacudiu a cabeça, decepcionado consigo mesmo. A seguir, colocou o relógio e a carteira
em sacolas plásticas separadas de prova material, após etiquetar cada uma com um adesivo branco, onde escreveu o número do caso, a data e o horário de 6:45 da manhã.
Depois fez uma breve descrição de cada item e da gaveta da escrivaninha de Elias na qual cada um deles fora encontrado, pôs suas iniciais no canto de cada adesivo
e enfiou as sacolas na sua pasta.
Consultou o relógio antes de dar partida no carro, Tinha dez minutos para chegar à entrevista coletiva. Sem pressa.
Havia tantos jornalistas presentes que vários deles aguardavam do lado de fora da porta, incapazes de encontrar um lugar. Bosch abriu caminho entre eles. Lá dentro,
viu que o palco estava alinhado de uma parede à outra com câmeras de TV sobre tripés, seus operadores postados atrás delas. Ele rapidamente contou doze câmeras
e soube que o caso logo estaria em rede nacional. Havia oito emissoras de TV transmitindo notícias locais em Los Angeles, incluindo o canal de língua espanhola.
Cada policial sabia que, se visse mais de oito equipes de TV numa cena do crime ou entrevista coletiva, ele estaria sob a atenção nacional. Estava trabalhando em
algo enorme, alguma coisa perigosa.
No meio da sala, cada cadeira dobrável fora apanhada por um repórter. Havia cerca de quarenta, com o pessoal da TV claramente identificável com seus ternos elegantes
e maquiagem, e a turma de jornal e rádio reconhecível pelos que trajavam jeans e os que usavam gravata frouxa no pescoço.
Bosch olhou para os bastidores e viu uma azáfama de atividade em volta do pódio, onde fora afixado o emblema do DPLA. Técnicos de som montavam seu equipamento na
viga de microfones que ia se alargando sobre o pódio. Um deles estava de pé diretamente atrás do pódio, fazendo um teste de voz. Atrás e lateralmente ao pódio
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estava Irving, conferenciando em sussurros com dois homens uniformizados, ambos usando divisas de tenente. Bosch reconheceu um deles como
tom O'Rourke, que trabalhava
na assessoria de imprensa. O outro, Bosch não conhecia, mas presumiu que fosse o assistente de Irving, Michael Tulin, cujo telefonema o havia despertado horas antes.
Um quarto homem estava de pé do ouro lado do pódio, sozinho. Usava um terno cinza e Bosch não fazia idéia de quem fosse. Não havia nenhum sinal do chefe de polícia.
Ainda não. O chefe de polícia não esperava que a mídia estivesse pronta. A mídia esperava por ele.
Irving avistou Bosch e fez sinal para ele se aproximar. Bosch galgou os três degraus e Irving pôs a mão no seu ombro para sussurrar-lhe longe de ouvidos alheios.
- Onde está seu pessoal?
- Ainda não me ligaram de volta.
- Isto é inaceitável, detetive. Eu lhe avisei que os queria aqui.
- Tudo que posso dizer, chefe, é que eles devem estar no meio de uma entrevista delicada e não querem quebrar o momentum da situação para responder ao meu pager.
Devem estar entrevistando de novo a viúva e o filho de Elias. E preciso um bocado de tato, especialmente num caso como...
- Não estou interessado nisto. Eu os queria aqui e ponto final. Na próxima coletiva você tem que
trazê-los aqui, ou irei desfazer sua equipe e mandá-los para três
divisões tão distantes uma da outra que terão de tirar um dia de licença se quiserem almoçar juntos.
Bosch estudou o rosto de Irving por um momento.
- Compreendo, chefe.
- Ótimo. Lembre-se disto. Estamos prestes a começar aqui. O'Rourke está indo agora buscar o chefe. Você não vai responder a nenhuma pergunta. Não tem de se preocupar
com isso.
- Então por que estou aqui? Posso ir?
Irving parecia que finalmente estava a ponto de praguejar pela primeira vez em sua carreira, talvez em sua vida. Seu rosto ficou vermelho e seu queixo forte estava
plenamente fletido.
- Você está aqui para responder a perguntas minhas ou do chefe de polícia. Pode sair quando eu dispensá-lo.
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Bosch ergueu os braços à guisa de desculpas e encostou-se na parede para esperar o início do espetáculo. Irving afastou-se e conferenciou brevemente com seu assistente,
depois foi até o homem de terno. Bosch olhou para a platéia. Era difícil de ver por causa do posicionamento das luzes da TV. Mas por detrás das luzes ele conseguiu
distinguir uns poucos rostos que conhecia pessoalmente ou da TV. Quando seus olhos finalmente bateram em Keisha Russell, ele tentou desviar a vista antes que a repórter
do Times o visse, mas foi tarde demais. Seus olhos se encontraram brevemente e se fixaram, depois ela acenou com a cabeça, quase imperceptivelmente. Bosch não acenou
de volta. Ele não sabia quem poderia perceber o gesto. Nunca era bom mostrar em público que se conhecia um repórter. Portanto, ele sustentou o olhar dela por mais
um momento e depois olhou para o outro lado.
A porta ao lado do palco abriu-se para o chefe de polícia, que adentrou usando um terno cinza e um olhar sombrio estampado no rosto. O'Rourke subiu ao pódio e inclinou-se
para a viga de microfones. Ele era muito mais alto que o chefe de polícia, para quem os microfones tinham sido posicionados.
- Todo mundo pronto?
Embora uma dupla de operadores de câmera gritasse de trás "Não" e "Ainda não", O'Rourke os ignorou.
- O chefe tem uma breve declaração sobre os eventos de hoje e depois responderá a algumas perguntas. Mas somente detalhes gerais do caso serão liberados agora, por
causa da investigação em andamento. O subchefe Irving também está aqui para esclarecimentos. Vamos manter alguma ordem e realizar a entrevista rápida e tranqüilamente
e todo mundo terá aquilo de que precisa. Chefe?
O'Rourke deu um passo para o lado e o chefe de polícia moveu-se para o pódio. Ele era um homem impressionante. Alto, negro e bonito, ele passara trinta anos no serviço
e era um homem de mídia habilidoso. Era, porém, novo para o cargo, escolhido no verão logo em seguida à saída do seu antecessor, um peso-pesado estranho no ninho,
sem qualquer afinidade com o departamento e pouca estima pela comunidade, que foi defenestrado em favor do cara de dentro que era imponente o bastante par estrelar
um filme de
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Hollywood. O chefe olhou silenciosamente para os rostos na sala por um momento. A vibração que Bosch captou era que este caso, e pelo modo como estava sendo conduzido,
seria o primeiro e autêntico teste do chefe no cargo. Ele estava certo de que o chefe também captara a vibração.
- bom dia - disse finalmente o chefe. - Tenho notícias perturbadoras para relatar hoje. As vidas de dois cidadãos foram tiradas tarde da noite aqui no centro. Catalina
Perez e Howard Elias viajavam separadamente no Vôo dos Anjos quando cada um foi baleado e morto pouco antes das onze horas. A maioria das pessoas nesta cidade conhece
Howard Elias. Reverenciado ou não, ele era um homem que, apesar de tudo, fazia parte de nossa cidade, um homem que ajudou a moldar a nossa cultura. Por outro lado,
Catalina Perez, como muitos de nós, não era uma pessoa famosa ou uma celebridade. Batalhava para ganhar a vida, de modo que ela e sua família... marido e dois filhos...
pudessem sobreviver e prosperar. Ela trabalhava como doméstica. Trabalhava dias e noites longos. Voltava para casa e para sua família quando foi assassinada. Estou
aqui esta manhã simplesmente para garantir aos nossos cidadãos que esses dois assassinatos não ficarão sem resposta ou esquecidos. Podem ficar certos de que trabalharemos
sem descanso nesta investigação até alcançarmos justiça para Catalina Perez e Howard Elias.
Bosch teve de admirar o que o chefe de polícia estava fazendo. Ele colocava as duas vítimas no mesmo pacote, fazendo parecer implausível que Elias fosse o único
alvo e Perez apenas uma passageira sem sorte no meio do tiroteio. Ele estava habilidosamente tentando retratá-los como vítimas iguais da violência sem sentido e
com freqüência aleatória que era o câncer da cidade.
- A esta altura não podemos entrar em muitos detalhes por causa da investigação. Mas podemos dizer que existem pistas sendo seguidas e acreditamos e esperamos que
o assassino ou assassinos serão identificados e trazidos à justiça. Enquanto isso, pedimos aos cidadãos de Los Angeles que mantenham a calma e nos permitam realizar
nosso trabalho. O que precisamos agora é evitar conclusões precipitadas. Não queremos ferir ninguém. O departamento - através de mim, do subchefe Irving ou da assessoria
de comunicação -
fornecerá atualizações regulares sobre o andamento do caso. As informações serão fornecidas quando puderem ser liberadas sem prejudicar a investigação ou eventuais
indiciamentos de suspeitos.
O chefe se afastou meio passo do pódio para olhar na direção de O'Rourke, um sinal de que havia terminado. O'Rourke ia dirigir-se ao pódio, mas antes que desse um
passo elevou-se um coro da platéia de repórteres: "Chefe!" E acima deste clamor veio a voz profundamente ressonante de um repórter, uma voz que Bosch e toda a platéia
reconheceram como a de Harvey Button, do Canal 4-
- Foi um policial quem matou Howard Elias?
A pergunta provocou uma pausa momentânea, depois o coro continuou. O chefe voltou ao pódio e ergueu as mãos como se tentando acalmar uma matilha de cães.
- Calma, esperem um segundo. Não quero todo mundo gritando. Um de cada...
- Foi um policial, chefe? Pode responder ou não?
Era Button de novo. Desta vez os outros repórteres ficaram em silêncio e, assim fazendo, o secundavam, seu silêncio exigindo que o chefe de polícia respondesse à
pergunta. Era, afinal, a perguntachave. Toda a entrevista coletiva fervilhava para uma pergunta e
uma resposta.
- Neste momento - disse o chefe -, não posso responder. O caso está sob investigação. E claro que todos nós conhecemos o histórico de Howard Elias com este departamento.
Não seria um bom trabalho policial se não olhássemos para nós mesmos. E é o que faremos. Estamos no processo de fazer isto. Mas a esta altura nós...
- Senhor, como é que o departamento pode se investigar e ainda assim ter credibilidade com a comunidade?
Button de novo.
- Boa pergunta, sr. Button. Primeiro, a comunidade pode ficar certa de que esta investigação alcançará seu objetivo, não importa até onde isto leve. As fichas cairão
onde tiverem de cair. Se um agente de polícia é o responsável, então ele será levado à justiça, garanto. Em segundo lugar, o departamento está sendo auxiliado nesta
investigação pela inspetora-geral Carla Entrenkin, que, como
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vocês sabem, é uma observadora civil que se reporta diretamente à comissão de polícia, ao conselho municipal e ao prefeito.
O chefe ergueu a mão para cortar outra pergunta de Button.
- Ainda não acabei, sr. Button. Como eu dizia, para finalizar gostaria agora de apresentar o agente especial assistente encarregado, Gilbert Spencer, do escritório
de Los Angeles do FBI. Discuti a fundo este crime e esta investigação com o sr. Spencer e ele concordou em trazer o FBI para nos ajudar." A partir de amanhã, agentes
do FBI estarão trabalhando lado a lado com os detetives do DPLA num esforço em grupo para levar esta investigação a uma conclusão rápida e bem-sucedida.
Bosch tentou não mostrar nenhuma reação enquanto ouvia o chefe anunciar o envolvimento do FBI. Não ficou chocado com isto. Percebeu que era uma boa jogada do chefe
que aquietaria a comunidade por algum tempo. Poderia até mesmo solucionar o caso, embora esta fosse provavelmente uma condição secundária na tomada de decisão do
chefe. Ele estava principalmente tentando apagar os incêndios antes que começassem. O FBI era um apoio muito bom com o qual atuar. Mas o que incomodava Bosch era
ter sido deixado de fora, só se inteirando da entrada do FBI no caso juntamente com o pessoal da mídia. Relanceou para Irving, que captou o olhar no seu radar e
olhou de volta. Trocaram olhares até Irving desviar a vista para o pódio enquanto Spencer se posicionava atrás dos microfones.
- Ainda não tenho muito a dizer - começou o homem do FBI.
- Designaremos uma equipe para a investigação. Estes agentes trabalharão com os detetives do DPLA, e acreditamos que, juntos, resolveremos este caso rapidamente.
- Vai investigar os policiais no caso do Guerreiro Negro? indagou um repórter.
- Daremos uma olhada em tudo, mas não vamos partilhar agora a nossa estratégia de investigação. A partir deste ponto, todas as informações para a mídia serão passadas
pelo DPLA. O FBI irá...
- Sob que autoridade o FBI está entrando no caso? - indagou Button.
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- Pelos códigos de direitos civis o FBI tem autoridade para abrir uma investigação a fim de determinar se os direitos de um indivíduo foram violados sob a insígnia
da lei.
- Insígnia da lei?
- Por um agente da lei. vou revirar isto para...
Spencer recuou um passo do pódio sem concluir. Estava claro que não apreciava estar sob os refletores da mídia. O chefe de polícia assumiu o lugar dele e apresentou
Irving, que a seguir moveu-se para o pódio e começou a ler um press release que continha maiores detalhes sobre o crime e a investigação. Ainda era apenas o básico,
nada com que alguém pudesse fazer grande coisa. A declaração também citava Bosch como o detetive encarregado da investigação. Explicava também por que, devido a
potenciais conflitos de interesses com a DRH e problemas de escala na Divisão Central, recorreram a uma equipe da Divisão de Hollywood para cuidar do caso. Irving
disse então que podia responder a algumas perguntas, lembrando mais uma vez aos repórteres que não iria comprometer a investigação revelando informação vital.
- Não pode falar mais sobre o foco da investigação? - perguntou um repórter à frente dos outros.
- O foco é de amplo alcance - disse Irving. - Estamos examinando tudo, de policiais que podiam ter raiva de Howard Elias até a possibilidade de os assassinatos terem
sido conseqüência de um assalto. Nós...
- Por falar nisso - gritou outro repórter, sabendo que era preciso ter sua pergunta em aberto antes que o assunto encerrasse a última, ou jamais seria ouvido na
cacofonia subseqüente -, havia algo na cena do crime que indicasse um assalto?
- Não vamos discutir detalhes da cena do crime.
- Pelo que eu soube, não havia relógio nem carteira no cadáver. Bosch olhou para o repórter. Não era da TV, pôde deduzir pelo
seu temo amarfanhado. E não parecia ser do Times, porque Keisha Russell já estava presente. Bosch não o conhecia, mas era óbvio que a informação sobre o relógio
e a carteira tinha vazado.
Irving fez uma pausa, como se decidindo o quanto deveria revelar.
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- Sua informação está correta porém incompleta. O sr. Elias aparentemente deixou o relógio e a carteira na sua mesa quando saiu do escritório a noite passada. Eles
foram encontrados lá hoje. Claro que isto não exclui tentativa de assalto como um motivo para o crime, mas a investigação está apenas começando e sabemos muito pouco
para fazer tal presunção a esta altura.
Keísha Russell, sempre fria e calculista, não se juntara à gritaria por atenção. Sentava-se calmamente com a mão levantada, esperando que os outros terminassem
e Irving a atendesse. Depois de ter respondido a mais algumas perguntas repetitivas do pessoal da TV, ele finalmente a atendeu.
- O senhor disse que os pertences do sr. Elias foram encontrados hoje no escritório dele. Vasculharam o escritório, tudo bem. Mas e se alguma coisa estiver sendo
feita para garantir o privilégio advogado-cliente que o sr. Elias partilhava com seus clientes? Todos eles vão processar o órgão que conduziu a busca no escritório.
- Boa pergunta - replicou Irving. - Não realizamos uma busca completa no escritório da vítima exatamente pelo motivo que mencionou. E por isso que a inspetora-geral
Entrenkin entrou no jogo. Ela está revisando arquivos no escritório da vítima e vai liberá-los para os investigadores se não encontrar nenhum tipo de informação
que poderia violar o privilégio advogado-cliente. Este processo de revisão foi ordenado hoje cedo pelo juiz que expediu os mandados de busca para o escritório de
Howard Elias. Pelo que posso entender, o relógio e a carteira foram encontrados dentro ou sobre a mesa da vítima, como se ele simplesmente os tivesse esquecido ao
encerrar seu dia de trabalho. Bem, acho que vamos concluir por aqui. Temos uma investigação pela frente. Quando tivermos novas informações...
- Mais uma pergunta - pediu Russell. - Por que o departamento entrou em turnos de doze por doze?
Irving já ia responder, mas então olhou para o chefe de polícia, que balançou a cabeça e voltou ao pódio.
- Queremos estar preparados para qualquer eventualidade disse ele. - Turnos de doze horas permitem mais policiais nas ruas a qualquer momento. Acreditamos que os
cidadãos desta cidade
manterão a calma e nos darão tempo para conduzir nossa investigação, mas, como precaução, instituímos um plano de prontidão que inclui todos os agentes trabalhando
em doze por doze por tempo indeterminado.
- Este é o plano contra desordem civil que foi esboçado depois dos últimos tumultos? Quando o departamento foi apanhado no contrapé porque não tinha nenhum plano?
- Sim, é o plano esboçado em 1992.
Ele já ia se afastar do pódio quando Keisha Russell lançou outra bola de efeito.
- Então está esperando violência.
Isto teve um tom de afirmação, não de pergunta. O chefe retornou aos microfones.
-Não, srta... ha, Russell. Não estou esperando violência. Como disse, isto é meramente uma medida de precaução. Tenho fé em que os cidadãos ajam de maneira calma
e responsável. Espero que a mídia proceda do mesmo modo.
Ele aguardou por mais uma réplica de Russell, mas desta vez não houve nenhuma. O'Rourke adiantou-se e inclinou-se diante do chefe para alcançar os microfones.
- Muito bem, encerramos aqui. Dentro de quinze minutos, haverá cópias das declarações do chefe na assessoria de comunicação.
Enquanto os repórteres deixavam lentamente o local, Bosch fixou os olhos no homem que fizera a pergunta sobre o relógio e a carteira. Estava curioso em saber quem
era e em que órgão da mídia trabalhava. Na aglomeração de pessoas à porta, o homem ficou lado a lado com Button e eles começaram a conversar. Bosch achou isto estranho,
pois nunca tinha visto um repórter de jornal dar atenção a um repórter de TV.
- Detetive?
Bosch voltou-se. O chefe de polícia estava parado a seu lado com a mão estendida. Bosch a apertou instintivamente. Ele tinha quase 25 anos no departamento e o chefe
trinta, ainda assim nunca
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haviam cruzado seu caminho perto o bastante para um cumprimento, quanto mais um aperto de mãos.
- Chefe.
- Prazer em conhecê-lo. Quero que saiba o quanto confiamos em você e sua equipe. Se precisar de alguma coisa, não hesite em manter contato comigo ou com o subchefe
Irving. Qualquer coisa.
- Bem, por enquanto acho que estamos nos entendendo. Porém gostaria de ter sido avisado sobre o FBI.
O chefe hesitou, mas só por um instante, aparentemente descartando a queixa de Bosch como irrelevante.
- Isto não seria útil. Não tinha certeza se o FBI se envolveria até pouco antes de começarmos a entrevista coletiva.
O chefe virou-se e olhou para o agente do FBI. Spencer estava falando com Irving. O chefe sinalizou para eles e apresentou Bosch a Spencer. Bosch achou ter captado
um laivo de desdém no rosto de Spencer. Bosch não tinha um prontuário positivo nos anos em que lidara com o FBI. Nunca se reportara diretamente a Spencer, mas se
ele era agente especial assistente encarregado do escritório de campo de Los Angeles, então provavelmente já ouvira falar no seu nome.
- Como vamos trabalhar este caso, senhores? - perguntou o chefe.
- Posso ter meu pessoal reunido aqui amanhã às oito, se quiser
- disse Spencer.
- Excelente. Subchefe Irving?
- Sim, vai ser ótimo. Estamos trabalhando na sala de reunião ao lado do meu gabinete. Nossa equipe vai estar lá às oito. Podemos trocar idéias sobre o que conseguimos
e seguir a partir daí.
Todos concordaram, menos Bosch. Ele sabia que não tinha voz ativa no assunto.
Eles se dividiram e seguiram em direção à porta pela qual o chefe surgira. Bosch viu-se junto a O'Rourke. Perguntou a ele se conhecia o repórter que indagara sobre
o relógio e a carteira.
- E torn Chainey.
O nome quase lembrou algo a Bosch, mas não inteiramente.
- Ele é repórter?
- Não de fato. Trabalhou no Times muito tempo atrás, mas agora está na TV. É o produtor de Harvey Button. Não é muito bom diante
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das câmeras. Por isso lhe pagam uma grana preta para conseguir furos de reportagem para Harvey e orientá-lo no que dizer e perguntar. Para fazê-lo parecer bom.
Harvey tem a estampa e a voz. Chainey tem o cérebro. Por que pergunta? Tem algo que eu possa fazer por você?
- Não, só estava especulando.
- Refere-se à pergunta sobre a carteira e o relógio? Bem, como eu disse, Chainey vive circulando por aí. Ele tem suas fontes. Mais do que a maioria.
Eles passaram pela porta e Bosch dobrou à esquerda e seguiu para a sala de reunião de Irving. Queria deixar o prédio, mas não desejava esperar por um elevador cheio
de repórteres.
Irving o aguardava. Estava sentado no mesmo lugar que ocupara antes.
- Desculpe-me pelo negócio do FBI - disse ele. - Só vim a saber pouco antes. Foi idéia do chefe.
- Assim ouvi dizer. E provavelmente uma jogada esperta. Ficou em silêncio por um instante, esperando pelo próximo
movimento de Irving.
- Quero que você apresse sua equipe nas entrevistas que está realizando agora, depois que todos tenham uma boa noite de sono, porque amanhã começa tudo de novo.
Bosch teve que impedir que sua cabeça acenasse em negativa.
- Isto significa parar tudo até que o FBI entre em cena? Chefe, trata-se de um homicídio... um duplo homicídio. Não podemos simplesmente paralisar tudo e recomeçar
amanhã.
- Não estou falando em paralisar nada. Eu disse para terminar tudo que estão fazendo no momento. Amanhã vamos nos reentrincheirar, reagrupar e criar um novo plano
de batalha. Quero o seu pessoal descansado e pronto para correr.
- Ótimo. Seja lá o que for.
Mas Bosch não tencionava esperar pelo FBI. Sua intenção era continuar a investigação, conduzi-la adiante e depois seguir até onde ela levasse, não importava o que
Irving dissesse.
- Posso ter uma chave desta sala? - perguntou Bosch. - Em breve devemos receber o primeiro love de arquivos de Carla Entrenkin. Precisamos de um lugar seguro para
eles. -
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Irving meteu a mão no bolso, tirou uma chave que não estava presa a um chaveiro e a fez deslizar através da mesa. Bosch pegou-a e começou a colocá-la no seu próprio
molho de chaves.
- Quantas pessoas têm uma cópia desta chave? Só para saber.
- Não precisa se preocupar, detetive. Ninguém que não faça parte da equipe terá minha permissão para entrar nesta sala.
Bosch assentiu, muito embora Irving não tivesse respondido à pergunta.
Capítulo 15
Enquanto atravessava as portas de vidro do Parker Center, Bosch viu o início da preparação de um evento da mídia. Espalhando-se do outro lado da praça equipes de
TV e repórteres preparavam-se para transmitir flashes com base no material gravado na entrevista coletiva. Junto ao meio-fio estava a floresta de microondas
- uma fila de caminhões de TV com seus transmissores de microondas erguidos e prontos. Era um sábado, normalmente o dia mais fraco da semana na área de noticiário.
Mas o assassinato de Howard Elias era coisa grande. Uma manchete garantida e depois mais algumas. O sonho de um editor de plantão numa manhã de sábado. As emissoras
locais entrariam no ar ao meio-dia. E então começaria. As notícias do assassinato de Elias varreriam a cidade como o mais quente dos ventos Santa Ana, deixando nervos
à flor da pele e talvez transformando frustrações silenciosas em gritos e atos malévolos. O departamento - e a cidade, por falar nisso - estava confiando em como
aquelas pessoas jovens e belas interpretariam e passariam a informação que haviam recebido. A esperança era de que seus informes não agitassem as tensões já fervilhantes
na comunidade. A esperança era de que mostrassem contenção, integridade e bom senso, que simplesmente relatassem os fatos conhecidos sem qualquer especulação ou
distorção editorial. Mas Bosch sabia que aquelas esperanças tinham
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quase tanta chance quanto Elias tivera ao embarcar no Vôo dos Anjos pouco mais que doze horas antes.
Bosch dobrou logo à esquerda e se encaminhou para o estacionamento dos empregados, tomando cuidado para não cair no campo de visão de nenhuma câmera. Queria evitar
aparecer nos noticiários, a não ser que fosse absolutamente necessário.
Teve sucesso em não ser notado e chegou ao seu carro. Dez minutos depois, estacionou ilegalmente diante do Bradbury, bem atrás de outro caminhão de TV. Olhou em
torno enquanto saltava e não viu equipes de jornalismo. Imaginou que tinham ido ao terminal do Vôo dos Anjos para gravar material para a história.
Após pegar o velho elevador para o último andar, Bosch abriu a porta e caminhou pelo patamar só para deparar com Harvey Button, seu produtor e um operador de câmera.
Houve um silêncio constrangedor enquanto tentava passar por eles. Então, o produtor falou:
- Ha, detetive Bosch? Sou tom Chainey, do Canal Quatro.
- bom para você.
- Queria saber se podíamos falar por alguns momentos sobre o...
- Não, não podemos falar. Tenha um bom dia.
Bosch conseguiu contorná-los e começar a seguir para o escritório de Elias. Chainey falou às suas costas:
- Tem certeza? Estamos reunindo um bocado de informações e talvez fosse bom para nós dois se pudéssemos confirmá-las. Não quero lhe causar problemas. Seria melhor
se pudéssemos trabalhar como uma equipe. Você sabe.
Bosch parou e olhou de volta para ele.
- Não, não - disse. - Se quiser colocar informação não confirmada no ar, a escolha é sua. Mas não vou confirmar nada. E já tenho uma equipe.
Ele virou-se sem esperar resposta e encaminhou-se para a porta que ostentava o nome de Elias. Não ouviu nada mais de Chainey ou Button.
Ao entrar no escritório, encontrou Janis Langwiser sentada à mesa da secretária, examinando uma pasta. Junto à mesa estavam três caixas de papelão repletas de arquivos
que não se encontravam ali antes. Langwiser ergueu a vista.
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- Detetive Bosch.
- Ei, essas caixas são para mim?
- O primeiro love. E olhe aqui: não foi uma coisa legal o que você fez antes.
-O quê?
- Dizer que estavam rebocando meu carro. Foi uma mentira, não foi?
Bosch havia esquecido por completo.
- Ha, não, não realmente - disse. - Você estava numa área proibida. Teriam rebocado seu carro.
Ele sorriu ao saber que ela sabia que tinha sido uma armação. Seu rosto começou a ficar vermelho.
- Olhe, preciso falar a sós com a inspetora Entrenkin. Sinto muito.
Antes que ela pudesse dizer algo, Carla Entrenkin surgiu da sala ao lado. Também segurava uma pasta. Bosch apontou para as três caixas no chão.
- Parece que vocês andaram fazendo algum progresso.
- Assim espero. Posso falar com você por um momento?
- Claro. Mas primeiro me diga: o Canal Quatro veio aqui e tentou falar com vocês duas?
- Veio - disse Langwiser. - E o Canal Nove veio antes deles.
- Falaram com eles?
Os olhos de Langwiser dardejaram por um momento na direção de Carla Entrenkin e depois baixaram para o chão. Ela não disse nada.
- Dei uma breve declaração - disse Entrenkin. - Alguma coisa inócua, só para explicar meu papel. Podemos falar aqui?
Ela recuou do batente da porta e Bosch entrou na sala de arquivo. Havia outra caixa de papelão sobre a mesa, cheia de pastas até a metade. Entrenkin fechou a porta
depois de Bosch entrar. Ela então jogou a pasta que estava segurando na mesa do estagiário, cruzou os braços e pôs uma expressão grave no rosto.
- O que é? - perguntou Bosch.
- tom Chainey só me contou o que foi comunicado na entrevista
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coletiva, que How... ha, o sr. Elias, tinha deixado sua carteira e o relógio no escritório, na sua mesa. E aí pensei que quando pedi que vocês se retirassem
esta manhã ficou claro que...
- Desculpe, esqueci.
Bosch depositou sua pasta na mesa e abriu-a. Retirou as sacolas de prova material contendo o relógio e a carteira.
- Já os tinha embalado e colocado em minha pasta antes que você chegasse esta manhã. Eu me esqueci e saí com eles. Quer que os ponha de volta no lugar onde encontrei?
- Não. Só queria uma explicação. E ainda não estou certa de acreditar nesta que acabou de dar.
Houve um longo silêncio enquanto eles se encaravam.
- Isso é tudo que queria falar comigo? - perguntou finalmente Bosch.
Ela virou-se de volta para a mesa e para o arquivo que estivera examinando.
- Imaginei que nosso relacionamento seria melhor do que isto.
- Olhe - disse Bosch enquanto fechava a pasta. - Você teve os seus segredos. Tem que me deixar com os meus. A questão básica é que Howard Elias não foi roubado.
Portanto, vamos seguir a partir daqui. Tudo bem?
- Se está me dizendo que houve pessoas envolvidas nesta investigação que estavam tentando dar sumiço em provas materiais, então...
- Não estou lhe dizendo nada.
Ele viu a raiva chamejar nos olhos dela.
- Eles não deveriam fazer pate deste departamento, sabe disso.
- Esta é outra batalha para outro dia. Consegui algo mais impor...
- Você sabe que há algumas pessoas que achariam que nada é mais importante do que um departamento de polícia onde não exista nenhum questionamento acerca da integridade
de seus componentes.
- Parece até que está dando uma entrevista coletiva, inspetora. vou pegar esses arquivos agora. Volto mais tarde para o próximo love.
Ele começou a voltar-se para a sala da frente.
- Apenas pensei que você fosse diferente, só isso - disse Carla. Ele voltou-se para ela.
- Você não sabe se sou diferente porque não sabe nada a meu respeito. Falo com você mais tarde.
- Falta mais uma coisa. Bosch parou e olhou para ela. -O quê?
- Howard Elias era um tomador de notas consumado. Guardava um caderninho em espiral na sua gaveta ou andava com ele o tempo todo. Este caderninho sumiu. Sabe onde
está?
Bosch voltou à mesa e reabriu sua pasta. Tirou o caderninho e jogou-o sobre a mesa.
- Não vai acreditar, mas eu já o tinha guardado em minha pasta quando você chegou e nos expulsou.
- Apesar de tudo, acredito em você. Leu tudo?
- Alguns trechos. Também antes de você aparecer. Ela o fitou por um longo momento.
- vou dar uma olhada e, se estiver tudo OK, você vai tê-lo de volta mais tarde. Obrigada por devolvê-lo.
- De nada.
Quando Bosch chegou ao Philippe's the Original, os outros já estavam lá e comendo. Ocupavam uma das mesas compridas no salão dos fundos e estavam sozinhos. Decidiu
cuidar dos negócios antes de esperar em uma das filas do balcão para fazer o pedido.
- Como é que foi? - Rider perguntou quando ele sentou-se ao seu lado.
- Bem, acho definitivamente que foi um tanto apagada para o gosto de Irving.
- Bem, ele que se foda - disse Edgar. - Não dou a mínima para esta merda.
- Eu também - disse Rider.
- Do que estão falando? - perguntou Chastain.
- Relações raciais - explicou Rider. - E típico você não poder imaginar.
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-Ei, eu...
- Esqueça - interveio Bosch. - Vamos falar sobre o caso, tá? Primeiro você, Chastain. Terminaram lá no edifício de apartamentos?
- Sim, terminamos. Nada.
- Exceto o que descobrimos sobre a mulher - disse Fuentes.
- Ah, sim, certo.
- Que mulher?
- A outra vítima. Catalina Perez. Espere um segundo. Chastain estendeu a mão para o banco a seu lado e pegou um
bloco. Folheou até a segunda página e olhou para as anotações.
- Apartamento nove-zero-nove. Catalina Perez era a faxineira. Vinha toda sexta à noite. Então, era de lá que estava vindo.
- Mas ela estava subindo - disse Bosch. - Ela não trabalhava até às onze?
- Não, aí é que está. Ela trabalhava das seis até dez e meia, depois pegava o Vôo dos Anjos para descer até o ponto de ônibus, embarcava no ônibus e ia para casa.
Só que no caminho para baixo ela deve ter olhado na bolsa e percebido que seu caderninho de notas, onde mantinha sua agenda e números de telefone, estava faltando.
Ela o tirou da bolsa no apartamento a noite passada porque seu empregador, um tal D. H. Reilly, mudou o número do telefone e lhe passou o novo. Só que ela esqueceu
o caderno sobre a mesa da cozinha. Teve de voltar para buscá-lo porque não sabia de seus compromissos. Esta mulher...
Ele estendeu a mão de novo para o banco e pegou o caderno de notas. Estava numa sacola plástica de prova material.
-... quero dizer, examinei sua agenda. Ela corria atrás. Arranjava bicos todos os dias e em um bocado de noites. Este tal de Reilly disse que as noites de sexta
eram as únicas em que podia contar com ela. Catalina tinha um bom emprego...
- Então ela voltava para buscar seu caderno quando foi baleada - disse Edgar.
- Assim parece.
- O velho esquema de sempre - disse Rider num tom monótono que não tinha nada de jovial.
- O que quer dizer isso? - perguntou Chastain.
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-Nada.
Todos ficaram em silêncio por um longo momento. Bosch pensava que Catalina Perez havia morrido pelo simples fato de ter esquecido sua agenda. Sabia que o comentário
de Rider referia-se às iniqüidades de tudo aquilo - a frase que ela começou a usar depois de um ano no esquadrão de homicídios para resumir os maus agouros, coincidências
e reviravoltas que freqüentemente matavam as pessoas.
- Muito bem - disse Bosch por fim. - Sabemos o que todo mundo estava fazendo no vagão. O resto do edifício estava limpo?
- Ninguém ouviu nada, ninguém viu nada - disse Chastain.
- Interrogaram todos?
- Ninguém atendeu em quatro apartamentos. Mas eles ficam todos do outro lado, longe do Vôo dos Anjos.
- Certo, vamos esquecê-los por enquanto. Kiz, você falou de novo com a esposa e o filho?
Rider mastigava o último pedaço do seu sanduíche e manteve o dedo erguido até acabar de engolir.
- Falei, em separado e juntos. Nada de animador. Ambos estão para lá de convencidos de que foi um tira. Eu não...
- Claro que eles estão - interrompeu Chastain.
- Deixe ela falar - censurou Bosch.
- Não peguei nenhum indício de que estivessem muito a par dos casos de Elias ou de possíveis ameaças. Ele nem sequer mantinha um escritório em casa. Perguntei sobre
a fidelidade de Elias e Millie disse acreditar que ele era fiel. Disse desse jeito. Ela "acreditava". Alguma coisa sobre isso parece estar errada. Acho que se não
houvesse nenhuma dúvida ela diria que ele era fiel, não que "acreditava" que fosse fiel, entendem o que quero dizer?
- Então você acha que ela sabia?
- Talvez. Mas também acho que, se ela soubesse, então era do tipo que iria levando numa boa. Havia um bocado de prestígio social em ser esposa de Howard Elias. Muitas
esposas nesta posição fazem escolhas. Fazem vista grossa para certas coisas a fim de manter a imagem intacta, e manter intacta a vida que levam.
- E quanto ao filho? -,
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- Acho que ele acreditava que seu pai era um deus. Está sofrendo.
Bosch assentiu. Respeitava as habilidades de interrogatório de Rider. Já a tinha visto em ação e sabia que ela era enfática. Também sabia que a havia usado de uma
maneira não muito diferente da que Irving desejara usar durante a entrevista coletiva. Bosch a mandara fazer as entrevistas de acompanhamento porque sabia que ela
seria boa nisso. Mas também porque era negra.
- Fez a eles a pergunta A?
-Fiz. Ambos estavam em casa a noite passada. Tampouco saíram. São o álibi um do outro.
- Ótimo - comentou Chastain.
- Ótimo, Kiz - disse Bosch. - Alguém mais conseguiu algo que queira apresentar?
Bosch inclinou-se à frente sobre a mesa de modo a poder olhar do seu lado e ver cada rosto. Ninguém disse nada. Ele notou que todos estavam acabando de comer seus
sanduíches.
- Bem, não sei se vocês ouviram alguma coisa sobre a entrevista coletiva, mas o chefe convocou a cavalaria. Amanhã de manhã o FBI entra no caso. Temos um encontro
às oito na sala de reunião de Irving.
- Merda - disse Chastain.
- Que diabo eles podem fazer que nós não podemos? - perguntou Edgar.
- Talvez nada - replicou Bosch. - Mas seu anúncio disso na entrevista coletiva provavelmente vai percorrer um longo caminho rumo à manutenção da paz. Pelo menos
por enquanto. Seja como for, só vamos esquentar a cabeça com isso amanhã, quando vamos ver como as coisas vão se desenrolar. Ainda temos o resto do dia de hoje.
Irving nos deu uma pausa de descanso extra-oficial até que os federais apareçam, mas isso é babaquice. Vamos continuar trabalhando.
- É isso aí. Não queremos que o tubarão se afogue, não é? disse Chastain.
- Exatamente, Chastain. Mas estou sabendo que ninguém dormiu o suficiente. Minha opinião é de que alguns de nós continuem
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trabalhando e outros vão para casa, tirem um cochilo e voltem descansados à noite para render os outros. Algum problema? Novamente, ninguém disse nada.
- Tudo bem, é assim que vamos fazer. Tenho três caixas de arquivos do escritório de Elias na mala do carro. Quero que vocês da DAI as peguem e voltem para a sala
de reunião de Irving. Vocês levam os arquivos, anotam nomes de policiais e qualquer outro a ser investigado. Quero que façam um mapa. Quando tivermos álibis legítimos,
riscamos os nomes do mapa e seguimos em frente. Quero isto pronto na hora em que o FBI chegar amanhã. Quando tiverem terminado, vocês podem folgar à noite.
- E o que vocês vão estar fazendo? - perguntou Chastain.
- Vamos interrogar a secretária e o estagiário de Elias. Então, depois de tudo, vou para casa tirar um cochilo. Assim espero. Depois, esta noite vamos falar com
Harris e correr atrás daquela coisa da Internet. Quero saber disso tudo antes que o FBI entre em cena.
- É melhor tomar cuidado com Harris.
- Vamos tomar. Esta é a única razão por que esperamos até a noite. Vamos fazer a coisa certa e a mídia nem saberá que falamos
com o cara.
Chastain assentiu.
- E os arquivos que está nos passando? Eles são velhos ou
novos?
- São velhos. Carla começou com os casos encerrados.
- Quando vamos ver os arquivos do caso Guerreiro Negro? Esse é o que interessa. O resto é besteira.
- Tenho esperanças de pegá-lo no fim do dia. Mas o resto não é besteira. Temos que dar uma olhada em cada porra de arquivo naquele escritório. Porque aquele que
pularmos provavelmente vai ser aquele que algum advogado vai usar para nos ferrar. Está entendendo? Não pule nada.
- Entendi.
- Além disso, por que se preocupa tanto com o arquivo do Guerreiro Negro? Você inocentou aqueles caras, não?
- Sim, e daí?
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- E daí é que: você vai descobrir no arquivo alguma coisa que ainda não saiba? Acha que deixou escapar alguma coisa, Chastain?
- Não, mas...
- Mas o quê?
- É o caso do momento. Acho que vai rolar alguma coisa aí.
- Bem, vamos ver. Tudo no seu devido tempo. Por enquanto vá se fixando nos arquivos velhos e não pule nada.
- Já lhe disse que não vou pular. Só que é um pé no saco saber que você está perdendo tempo.
- Bem-vindo à homicídios.
- É, é isso aí.
Bosch enfiou a mão no bolso e retirou uma pequena sacola marrom. Continha várias cópias da chave que Irving lhe dera. Ele mandara fazer as cópias em Chinatown, a
caminho do restaurante. Virou a sacola e as chaves se espalharam no centro da mesa.
- Cada um pegue a sua. São para a porta da sala de reunião de Irving. Tão logo os arquivos estejam lá, quero a porta trancada o tempo todo.
Todos esticaram o braço sobre a mesa e cada qual pegou sua chave, exceto Bosch. Já colocara a original no seu chaveiro. Ele se levantou e olhou para Chastain.
- Vamos tirar aqueles arquivos do meu carro.
Capítulo 16
As entrevistas com a secretária e o estagiário foram tão improdutivas que Bosch desejou que os detetives pudessem ter aproveitado aquele tempo para dormir. Tyla
Quimby, a secretária, passara a última semana gripada e acamada em sua casa em Crenshaw. Ela não tinha o menor conhecimento das atividades de Howard Elias durante
os dias que precederam sua morte. Além de expor Bosch, Edgar e Rider à gripe, forneceu muito pouco aos detetives. Ela explicou que Elias guardava quase totalmente
para si mesmo suas estratégias de caso e outros aspectos do seu trabalho. Cabia a ela principalmente abrir correspondência, atender o telefone, recepcionar visitantes
e clientes e pagar as despesas do escritório através de uma pequena conta na qual Elias fazia depósitos mensais. Quanto à freqüência dos telefonemas, ela disse que
Elias tinha uma linha direta exclusiva no seu gabinete que ao longo dos anos se tornara amplamente conhecida entre os amigos e associados, bem como entre alguns
repórteres e até inimigos. Portanto ela pouco podia ajudálos a determinar se Elias tinha sido ameaçado especificamente nas semanas anteriores ao seu assassinato.
Os investigadores agradeceram e deixaram a casa na esperança de não terem contraído
sua gripe.
O estagiário, John Babineux, foi outra decepção. Ele confirmou que haviam sido ele e Michael Harris que estiveram trabalhando
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até tarde com Elias na sexta-feira. Mas Babineux disse que Harry e Elias tinham ficado a portas trancadas a maior parte da noite. Babineux, como se descobriu, tinha
se formado em direito pela USC há três meses e estava estudando à noite para o exame da Ordem dos Advogados enquanto trabalhava para Elias durante o dia. Ele fazia
seus estudos à noite nos escritórios de Elias porque isto lhe permitia ter acesso aos livros jurídicos de que precisava para memorizar os casos legais e os códigos
penais. Obviamente, era um ambiente de estudo melhor do que o apinhado apartamento próximo à USC que dividia com dois outros estudantes de direito. Pouco antes
das onze ele saíra com Elias e Harris porque sentira que já havia estudado o suficiente por uma noite. Disse que ele e Harris seguiram para seus carros num estacionamento
próximo enquanto Elias seguiu sozinho pela Terceira rumo ao plano inclinado da Hill Street.
Tal como Quimby, Babineux descreveu Elias como muito reservado em relação aos seus casos e preparativos para julgamento. O estagiário disse que sua responsabilidade
na útima semana de trabalho tinha sido na maior parte preparar as transcrições dos muitos depoimentos prévios tomados no caso Guerreiro Negro. Seu trabalho era baixar
as transcrições e o material relacionado num laptop que seria levado ao tribunal e acessado por Elias quando ele necessitasse de referências específicas para prova
e testemunho durante o julgamento.
Babineux não pôde dar aos detetives nenhuma informação sobre ameaças específicas a Elias - pelo menos nenhuma que o advogado estivesse levando a sério. Ele descreveu
Elias como extremamente convicto nos últimos dias. Disse que Elias acreditava que ia ganhar o caso Guerreiro Negro.
- Ele disse que era uma barbada - contou Babineux aos três detetives.
Enquanto dirigia de volta para casa pela Woodrow Wilson Drive, Bosch refletiu sobre as duas entrevistas e imaginou por que Elias estivera tão reservado sobre o caso
que ia levar a julgamento. Isto não
165
combinava com a sua história passada de vazamentos para a imprensa e, às vezes, entrevistas coletivas como estratégia principal. Elias estava sendo anormalmente
discreto, ainda que confiante no seu caso, a ponto de chamá-lo uma barbada.
Bosch esperava que a explicação para isto viesse à tona quando Carla Entrenkin lhe passasse o arquivo do Guerreiro Negro, de preferência dentro de poucas horas.
Decidiu parar de pensar nisso até lá.
De imediato Eleanor veio-lhe à mente. Pensou sobre o closet no quarto de dormir. Propositadamente, não o revistara antes, incerto de como reagiria se descobrisse
que ela havia levado suas roupas. Decidiu que precisava fazê-lo agora, para pôr fim à agonia. Seria uma boa hora para fazê-lo. Estava cansado demais para fazer qualquer
coisa a não ser desabar na sua cama, não importava o que descobrisse.
Mas ao contornar a última curva viu o carro de Eleanor, o Taurus caindo aos pedaços, estacionado junto ao meio-fio diante de sua casa. Ela havia deixado a porta
da garagem aberta para ele. Bosch sentiu os músculos da nuca e ombros começarem a relaxar. O aperto no peito começou a aliviar. Ela estava em casa.
A casa estava silenciosa quando ele entrou. Depositou a pasta sobre uma das cadeiras da sala de jantar e começou a tirar a gravata enquanto seguia para a sala de
estar. Desceu então o curto corredor e olhou no quarto. As cortinas estavam puxadas e o quarto escuro, exceto pelo contorno da luz exterior em volta da janela. Viu
a forma inerte de Eleanor sob as cobertas, seu cabelo castanho espalhado sobre o travesseiro.
Aproximou-se da cama e despiu-se em silêncio, pendurando as roupas numa cadeira. Seguiu depois de volta pelo corredor até o banheiro de hóspedes, para tomar uma
ducha sem acordá-la. Dez minutos depois, deslizou para junto dela no leito. Deitou-se de costas, olhando para o teto através da escuridão. Ouviu a respiração de
Eleanor. Não era a respiração lenta e medida do seu sono a que estava acostumado.
- Está acordada?
-Hã-hã.
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Ele esperou um longo momento.
- Onde foi que esteve, Eleanor?
- Hollywood Park.
Bosch não disse nada. Não queria acusá-la de mentir. Talvez Jardine, o cara da segurança, a tivesse simplesmente perdido de vista durante sua varredura nas telas
de vídeo. Olhou para o teto, pensando no que dizer em seguida.
- Sei que você ligou para lá procurando por mim - disse Eleanor.
- Conheci tom Jardine em Las Vegas. Ele trabalhava no Flamingo. Ele mentiu quando você ligou. Veio me procurar primeiro.
Bosch fechou os olhos e continuou em silêncio.
- Sinto muito, Harry, mas não quero ter que lidar com você agora.
- Lidar comigo?
- Você sabe o que quero dizer.
- De fato não, Eleanor. Por que não respondeu a minha mensagem quando chegou em casa?
- Que mensagem?
Bosch deu-se conta de que tinha passado a mensagem de volta para si mesmo antes. A secretária eletrônica não dera nenhum sinal. Ela não ouvira a mensagem.
- Esqueça. Quando chegou em casa?
Ela ergueu a cabeça do travesseiro e olhou para os números luminosos no relógio sobre a mesinha-de-cabeceira.
- Faz duas horas.
- Como foi lá?
Ele de fato não se importava. Só queria que ela continuasse falando com ele.
- Tudo bem. Eu ia arrebentar um pouco à frente, estraguei tudo. Perdi uma grande parada.
- O que aconteceu?
- Continuei com um tiro no escuro quando devia ter parado com o que já tinha garantido.
- Como assim?
- Estava com um par de ases, mas também tinha quatro de paus... ás, três, quatro, cinco. Assim, ao pedir cartas, perdi o par de ases.
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Descartei o ás de copas e fui para o duque, o dois de paus para fazer o straight flush. Eles mantêm um bolão progressivo para o straight flush. Estava acumulado
em três mil dólares. Era o que eu ia ganhar.
- Então o que aconteceu?
- Não fiz o duque. Não consegui sequer um de paus para fazer um flush. O que consegui foi um ás de espadas.
- Droga.
- É, joguei fora um ás só para ganhar um ás. Insisti, mas nem cheguei perto. Três dez ganharam... o bolão estava em cerca de três mil. Assim, se eu conservasse o
ás de copas teria terminado com três ases e seria a ganhadora. Me dei mal. Foi aí que vim embora.
Bosch não dizia nada. Pensava sobre a história e imaginava se ela estava tentando dizer algo mais. Jogando o ás de copas, tentando ganhar o bolão acumulado, fracassando.
Após alguns minutos de silêncio, Eleanor falou de novo:
- Está trabalhando em algum caso? Você não esteve na cama, pelo que percebi.
- É, recebi uma convocação.
- Pensei que vocês estivessem em rodízio.
- É uma longa história e não estou a fim de ficar falando nela. Prefiro falar sobre nós. Diga-me o que está havendo, Eleanor. Não podemos... isto não está correto.
Algumas noites nem sequer sei onde você está ou se está bem. Tem alguma coisa errada ou faltando e não sei o que é.
Ela virou-se e se moveu sob as cobertas até ficar junto a ele. Eleanor pousou a cabeça no peito dele e trouxe a mão para acariciar a cicatriz que ele tinha no ombro.
- Harry...
Ele esperou, mas ela não disse mais nada. Eleanor montou em cima dele e começou um suave movimento rotativo com os quadris.
- Eleanor, precisamos conversar sobre isto.
Sentiu o dedo dela sobre os lábios, dizendo-lhe para não falar.
Fizeram amor lentamente, a mente de Bosch uma confusão de pensamentos conflitantes. Ele a amava, como nunca havia amado alguém. E sabia que ela o amava de alguma
maneira. Tê-la em sua vida dera-lhe uma sensação de plenitude. Mas a certa altura ele
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pôde ver que Eleanor se dera conta de não ter tido aquela sensação. Para ela faltava alguma coisa, e a percepção de que estavam em planos separados deixou Bosch
mais por baixo do que nunca.
A sensação de ruína caíra então sobre o casamento. Durante o verão ele pegara uma série de investigações que consumiram muito tempo, incluindo um caso que lhe exigiu
uma longa viagem de uma semana a Nova York. Enquanto ele estava fora, ela foi ao salão de pôquer do Hollywood Park pela primeira vez. Foi a combinação do tédio de
ser deixada sozinha e a frustração pelo seu fracasso em arranjar um emprego aceitável em Los Angeles. Ela havia retornado ao carteado, fazendo o que tinha feito
quando Bosch a conhecera, e foi naquelas mesas de feltro azul que ela descobriu o que estava faltando.
- Eleanor - disse ele quando terminaram de fazer amor, seus braços enlaçando o pescoço dela. - Eu te amo. Não quero perder você.
Ela tapou-lhe a boca com um beijo prolongado e depois suspirou:
- Agora durma, querido. Durma.
- Fique comigo - pediu ele. - Não se vá até eu adormecer.
- Não vou.
Ela o apertou mais firme e Bosch tentou deixar tudo de lado por ora. Só por um momento, decidiu. Resolveria tudo mais tarde. Agora precisava dormir.
Em poucos minutos ele dormiu, imerso num sonho no qual subia pelos trilhos do Vôo dos Anjos para o topo da colina. Ao cruzar com o vagão que descia, olhou através
das janelas e viu Eleanor sentada sozinha. Ela não estava olhando de volta para ele.
Bosch acordou em pouco mais de uma hora. O quarto estava mais escuro, pois a luz externa não batia mais direto nas janelas. Olhou em torno e viu que Eleanor saíra
da cama. Sentou-se e chamou por ela, sua voz fazendo-o recordar de como ele tinha atendido o telefone aquela manhã.
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- Estou aqui - respondeu ela da sala de estar.
Bosch vestiu-se e saiu do quarto. Eleanor estava sentada no sofá, usando o roupão de banho que comprara para ela no hotel do Havaí para onde tinham ido após se casarem
em Las Vegas.
- Ei - disse ele. - Pensei que... não sei.
- Você estava falando no sono. Aí vim para cá.
- O que eu disse?
- Meu nome, algumas outras coisas que não faziam sentido. Algo sobre um vôo. Vôo dos banjos, algo assim.
Ele sorriu, assentiu e sentou-se na cadeira em frente à mesinha
de centro.
- Anjos, não banjos. Você nunca esteve no Vôo dos Anjos, lá
no centro? -Não.
- É um plano inclinado com dois vagões. Quando um sobe a colina o outro desce. Eles se cruzam no meio. Sonhei que estava subindo e você estava no vagão que descia.
Nos cruzamos no meio do caminho e você nem olhava para mim... O que acha que isto significa, que estamos seguindo caminhos diferentes?
Ela sorriu tristemente.
- Acho que significa que você é o anjo. Que você estava indo
para cima.
Ele não sorriu.
- Tenho que voltar - disse ele. - Esse caso vai ocupar minha
vida por um bom tempo, acho.
- Quer falar sobre isto? Por que eles o convocaram?
Ele explicou-lhe o caso em cerca de dez minutos. Bosch sempre gostava de contar-lhe seus casos. Ele sabia que era uma forma de gratificação do ego, mas às vezes
ela dava uma sugestão que ajudava ou um comentário que lhe permitia ver algo que deixara escapar. Fazia muitos anos desde que ela tinha sido uma agente do FBI, uma
parte de sua vida que era uma lembrança distante. Mas ele ainda respeitava sua perícia e lógica investigativa.
- Oh, Harry - disse ela quando ele acabou de contar a história.
- Por que sempre sobra para você?
- Nem sempre sobra para mim.
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- Parece que sobra. O que vai fazer?
- O mesmo que sempre faço. vou trabalhar no caso. Todos nós vamos. Há um bocado de trabalho à nossa espera... eles só têm que nos dar tempo para fazer. Não vai ser
um turno rápido.
- Eu sei, eles vão jogar tudo que é tipo de barreira na frente de vocês. Não vai ser nada bom prender um figurão e convencê-los disso. Mas são vocês que vão fazê-lo.
Vocês vão convencer alguém, não importa que isto faça cada tira em cada divisão desprezar vocês.
- Cada caso conta, Eleanor. Cada pessoa. Desprezo gente como Elias. Ele era um escroto... fazendo seu pé-de-meia com casos de merda contra policiais que apenas
tentavam fazer seu serviço. Pelo menos a maior parte. Volta e meia ele tinha um caso legítimo, reconheço. Mas a questão é que ninguém deve escapar do crime cometido.
Mesmo se for um tira. Não é direito.
- Eu sei, Harry.
Ela desviou a vista dele, saiu pelas portas envidraçadas e passou ao deque. O céu estava avermelhando. As luzes da cidade chegavam.
- Quantos cigarros você fumou? - perguntou ele, só para falar alguma coisa.
- Dois. E você?
- Ainda estou a zero.
Ele havia sentido cheiro de cigarro no cabelo dela antes. Ficou contente por ela não ter mentido.
- E como é que foi na Stocks and Bonds?
Ele estivera hesitante em perguntar. Sabia que alguma coisa acontecida na entrevista causara sua ida ao salão de pôquer.
- O mesmo de sempre. Que vão telefonar se aparecer alguma coisa.
- Passo para falar com Charlie na próxima vez em que for ao distrito.
A Stocks and Bonds era uma agência de fianças situada em frente ao distrito policial de Hollywood na Wilcox. Bosch ouvira dizer que estavam precisando de um rastreador,
de preferência mulher, porque uma boa porção dos afiançados do distrito de Hollywood compunha-se de prostitutas e um rastreador do sexo
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feminino tinha melhor chance de ir atrás delas. Bosch tinha ido lá e conversado a respeito com o proprietário, Charlie Scott, que concordara em considerar Eleanor
para
o emprego. Bosch foi honesto quanto ao currículo dela. Coisas boas e más. Ex-agente do FBI no lado melhor, condenada por delinqüência no pior. Scott disse não acreditar
que a ficha criminal fosse um problema - a função não exigia uma licença de detetive particular do estado, que Eleanor não poderia tirar por causa de sua ficha.
O problema era que ele gostava que seus rastreadores andassem armados - especialmente uma mulher
- quando saíam à procura de violadores de condicional. Bosch não partilhava da preocupação. Ele sabia que a maioria dos rastreadores não tinha porte de armas, mas
as carregavam mesmo assim. A verdadeira arte do ofício, porém, era nunca chegar perto o suficiente da sua presa para fazer uma pergunta, portando ou não uma arma.
Os melhores rastreadores localizavam sua presa de uma distância segura e depois chamavam os tiras para fazer a detenção.
- Não fale com ele, Harry. Acho que estava apenas tentando lhe fazer um favor, mas caiu na realidade durante o tempo em que você falou com ele e o momento em que
cheguei. Simplesmente deixe para lá.
- Mas você é boa neste serviço.
- Isso não vem ao caso. Bosch se levantou.
- Preciso me aprontar.
Ele entrou no quarto e despiu suas calças, tomou outra ducha e depois vestiu outra muda de roupa. Quando voltou à sala de estar, Eleanor continuava na mesma posição
no sofá.
- Não sei quando volto - disse sem olhar para ela. - Temos um monte de coisas a fazer. E mais: o FBI entra em cena amanhã.
-O FBI?
- Direitos civis. O chefe fez a chamada.
- Ele acha que isto vai acalmar as coisas lá na zona sul.
- Ele espera.
- Sabe o nome de quem está vindo?
- Não. Havia um assistente do agente especial encarregado; na coletiva de hoje.
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- Qual o nome dele?
- Gilbert Spencer. Mas duvido que ele se envolva mais do que isto.
Eleanor sacudiu a cabeça.
- Não é do meu tempo. Provavelmente veio só para o shotu.
- É. Espera-se que ele mande uma equipe amanhã. - Boa sorte.
Ele a fitou e assentiu.
- Ainda não tenho o número do nosso telefone. Se precisar de mim, use o pager.
- Certo, Harry.
Ele ficou parado ali alguns momentos antes de finalmente fezer a pergunta que desejara fazer o tempo todo.
- Você vai voltar lá?
Ela olhou através das portas.
- Não sei. Talvez.
- Eleanor.
- Harry, você tem o seu vício. Eu tenho o meu.
- E o que isto significa?
- Sabe aquela sensação que você tem quando entra num novo caso? Aquela pequena emoção quando está de volta à caça? Você sabe do que estou falando. Bem, eu não tenho
mais isso. E a coisa mais próxima disso que encontrei é quando pego aquelas cinco cartas do feltro e vejo o que consegui. É difícil de explicar e mais difícil ainda
de entender, mas me sinto como estivesse viva de novo, Harry. Somos todos viciados. Só que de drogas diferentes. Gostaria que fosse a sua, só que não é.
Bosch olhou-a fixamente por um momento. Não estava certo de que pudesse dizer alguma coisa sem ser traído pela voz. Dirigiu-se à porta e, ao abri-la, olhou de volta
para ela. Passou pela porta, mas recuou.
- Você parte meu coração, Eleanor. Sempre tive esperança de poder fazê-la sentir-se viva de novo.
Eleanor fechou os olhos. Parecia prestes a chorar.
- Sinto muito, Harry - sussurrou ela. - Eu nunca devia ter dito aquilo.
Bosch atravessou a porta em silêncio e fechou-a atrás de si.
Capítulo 17
Bosch ainda se sentia emocionalmente ferido quando chegou ao escritório de Elias, meia hora depois. A porta estava trancada e ele bateu. Estava prestes a usar as
chaves para abri-la quando viu movimento atrás do vidro fosco. Carla Entrenkin abriu a porta e o deixou entrar. Ele podia dizer, pelo modo como Carla o avaliou,
que ela notara que ele trajava uma roupa diferente.
- Tive que fazer uma pequena pausa - disse ele. - Acho que vamos trabalhar por boa parte da noite. Onde está a srta. Langwiser?
- Ela terminou e mandei-a para casa. Eu disse que esperaria você. Isto foi há poucos minutos.
Ela o conduziu ao gabinete de Elias e tomou assento atrás da enorme mesa. Bosch podia ver Anthony Quinn através da janela, embora estivesse escurecendo. Também viu
que havia seis caixas de arquivos no chão diante da mesa.
- Lamento ter feito você esperar - disse ele. - Pensei que ligaria para meu pager quando tivesse acabado.
-Já ia ligar. Estava simplesmente sentada aqui, pensando... Bosch olhou para as caixas.
- Isto é o resto?
- É. Aquelas seis são mais casos encerrados. Estas aqui atrás são
casos em andamento.
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Ela rolou sua cadeira para trás e apontou para o chão por detrás da mesa. Bosch se adiantou e olhou para baixo. Havia mais duas caixas cheias.
- Isto aí é principalmente coisa de Michael Harris. A maioria é do arquivo da polícia e transcrições de depoimentos. Há também arquivos sobre processos que não foram
adiante depois das queixas iniciais. E há um arquivo contendo ameaças gerais e baboseira postal... quero dizer, não relacionadas especificamente com o caso de Harris.
Principalmente besteira anônima de racistas covardes.
- OK. E o que você não está me dando?
- Estou segurando apenas um arquivo. Era o arquivo de trabalho dele. Contém anotações sobre estratégia no caso Harris. Acho que você não deveria ter este. Creio
que se refere diretamente ao privilégio advogado-cliente.
- Estratégia?
- Basicamente, é um mapa do processo. Howard gostava de mapear seus processos. Ele uma vez me disse que era como um treinador de futebol que desenha as jogadas e
a ordem em que irá convocá-las antes mesmo que o jogo comece. Howard sempre sabia exatamente aonde queria ir durante um processo. O mapa do processo mostrava sua
estratégia, que testemunhas viriam e quando, quando cada peça de prova material seria introduzida, coisas assim. Ele já tinha escritas as primeiras poucas perguntas
para cada uma das suas testemunhas. E também tinha a sua declaração de abertura esboçada e no arquivo.
- Tudo bem.
- Não posso passar isto para você. Era o núcleo do caso dele e acho que o advogado que vai herdar este caso, seja lá quem for, vai desejar seguir o mapa. Era um
plano brilhante. Portanto, o departamento de polícia não deveria tê-lo.
- Você acha que ele vai vencer?
- Sem dúvida. Você não?
Bosch sentou-se em uma das cadeiras em frente à mesa. Mesmo tendo tirado uma soneca, ainda estava cansado e sentia isso.
- Não conheço os detalhes do caso - disse ele. - Tudo que sei é de Frankie Sheehan. Harris acusou-o de alguma coisa dessas...
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você sabe, o negócio da sacola de plástico. E sei que não foi o Frankie.
- Como pode ter certeza?
- Eu não posso, acho. Mas voltemos atrás. Sheehan e eu fomos parceiros. Foi há muito tempo, mas a gente ainda conhece as pessoas. Eu conheço ele. Não consigo imaginá-lo
fazendo essas coisas. Não consigo tampouco vê-lo deixando algum outro fazer.
- As pessoas mudam. Bosch assentiu.
- Mudam. Mas em geral não na essência.
- Essência?
- Deixe-me contar uma história. Uma vez Frankie e eu encanamos um garoto. Um puxador de carros. Seu negócio era primeiro roubar um carro, qualquer lata-velha largada
na rua, depois saía dirigindo e procurando um carro bacana, algo que ele pudesse levar para um desmanche e arrumar uma grana decente. Quando via o que queria, ele
vinha por trás do carro parado num sinal e batia na traseira. Você sabe, uma batida de leve, para não causar muito dano. Aí o dono do Mercedes, do Porsche, ou qualquer
que fosse o carrão, saltava para verificar. O puxador saltava também, pulava dentro do carro alvo e se mandava, deixando o cara para trás com a
lata-velha roubada.
- Eu me lembro de quando este golpe era a grande novidade.
- É, bota novidade nisso. Este cara vinha fazendo isto havia uns três meses e ganhando uma boa grana. Então, um dia, ele bateu com força demais na traseira de um
Jaguar XJ6. A velhinha que estava dirigindo não usava cinto de segurança. Pesava cerca de cinqüenta quilos e foi arremessada de encontro ao volante. Não havia air
bag. Ela esmaga um pulmão e quebra duas costelas. Fica sentada ali, esvaindo-se em sangue e morrendo, quando o garoto chega, abre a porta e simplesmente arranca
a velhinha do carro. Deixa-a jogada na rua e foge com o Jaguar.
- Lembro deste caso. Quando foi? Há uns dez anos? A mídia fez
a maior onda.
- É. Homicídio de puxador de carros, um dos primeiros. E foi aí que eu e Frankie entramos. Era um caso quente e estávamos sob
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pressão. Finalmente tivemos uma pista do garoto através de uma oficina de desmanche que a divisão de carros roubados estourou no Vale. Este garoto morava em Venice,
e quando fomos prendê-lo, ele nos viu chegando. Disparou uma três-cinco-sete através da porta depois que Frankie bateu. Errou por pouco. Frankie não teve mais cabelo
desde então. A bala na verdade atravessou seu cabelo. O garoto fugiu pela porta dos fundos e o caçamos pela vizinhança, pedindo ajuda pelo rádio portátil enquanto
corríamos. O chamado trouxe a mídia... helicópteros, repórteres, tudo.
- Vocês o pegaram, certo? Eu me lembro.
- Nós o caçamos por todo o caminho através de Oakwood. Finalmente o pegamos numa casa abandonada, uma galeria de tiro. Os repórteres se dispersaram e ele permaneceu
lá dentro. Sabíamos que ele estava armado e já tinha atirado contra nós. Poderíamos ter invadido e acabado com a raça dele que ninguém faria uma pergunta. Mas Frankie
entrou primeiro e falou com o garoto. Só nós dois e o garoto estávamos lá. Ninguém teria sabido ou perguntado o que havia acontecido. Mas Frankie não pensava assim.
Disse ao garoto que sabia que a velhinha no Jaguar tinha sido um acidente, que ele não teve intenção de matar ninguém. Disse que ele merecia uma chance. Quinze minutos
antes o garoto tinha tentado matar Frankie. Agora Frankie estava tentando salvar a vida dele.
Bosch parou um instante, recordando aqueles momentos na casa abandonada.
- O garoto finalmente saiu de um closet, com as mãos para o alto. Ainda segurava a pistola. Teria sido tão fácil... e tão correto. Mas era um direito de Frankie.
Ele é que tinha levado o tiro. Mas ele apenas se aproximou, tomou a arma do garoto e algemou-o. Fim da história.
Carla Entrenkin avaliou o que ouvira por um longo momento, antes de responder.
- Então o que está me dizendo é que só porque ele poupou a vida de um negro que poderia ter facilmente matado então não teria tentado sufocar outro negro quase dez
anos depois.
Bosch sacudiu a cabeça e franziu o cenho.
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- Não, não estou dizendo isto. Estou dizendo que foi apenas uma das vezes em que testemunhei o caráter de Frank Sheehan. Foi quando soube do que ele era feito. E
é por isso que sei que esta história de Harris é pura merda. Ele nunca plantaria prova em cima do cara, jamais enfiaria uma sacola na cabeça dele.
Esperou que Carla dissesse alguma coisa, mas ela não o fez.
- E eu nunca disse nada sobre o puxador ser negro. Isto nada tinha a ver. Foi só uma coisa que você acrescentou à história.
- Acho que era uma parte óbvia que você omitiu. Talvez, se tivesse sido um garoto branco naquela casa abandonada, você nem sequer tivesse pensado que poderiam acabar
com a raça dele.
Bosch fitou-a por um longo momento.
- Não, eu não penso assim.
- Bem, não vale a pena discutir sobre isto. Você omitiu algo mais da história, não?
- O quê?
- Alguns anos mais tarde seu parceiro Sheehan usou sua arma. Enfiou um monte de balas num negro chamado Wilbert Dobbs. Também me lembro deste caso.
- Essa foi uma história diferente e uma execução justa. Dobbs era um assassino que quis matar Sheehan. Ele foi inocentado pelo departamento, pela promotoria, por
todo mundo.
- Mas por um júri de seus pares. Foi um dos casos de Howard. Ele processou seu amigo e venceu.
- Isso foi uma babaquice. O caso foi a júri poucos meses depois do caso Rodney King. Na época, não havia como um policial branco que atirasse num negro ganhar um
veredicto de inocente nesta cidade.
-Tenha cuidado, detetive, está revelando demais sobre si mesmo.
- Olhe, o que eu disse foi a verdade. Lá no fundo você sabe que foi a verdade. Então, quando o momento da verdade pode ser desconfortável, as pessoas erguem a bandeira
racial?
- Vamos parar com isso, detetive Bosch. Você acredita no seu amigo e admiro isto. Fico imaginando o que vamos ver quando o advogado que herdar este caso de Howard
levá-lo ao tribunal.
Bosch assentiu e ficou grato pela trégua. A discussão acusatória o fizera sentir-se desconfortável.
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- O que mais você está retendo? - perguntou ele, tentando continuar.
- Há coisas demais. Gastei o dia todo aqui basicamente para reter um único arquivo.
Ela soltou a respiração e de repente pareceu muito cansada.
- Você está bem?
- Estou ótima. Acho que foi bom para mim permanecer ocupada. Não tive muito tempo para pensar no que aconteceu. Estou certa de que vou pensar esta noite.
Bosch assentiu.
- Ainda há repórteres por aí?
- Dois. Dei uma prensa neles e eles seguiram felizes seu caminho. Eles todos acham que a cidade vai ferver por causa disso.
- E o que você acha?
- Acho que se um tira fez isto, não há nada a dizer sobre o que vai acontecer. E se não foi um tira, haverá pessoas que não vão acreditar. Mas você já sabe disso.
Bosch assentiu.
- Tem uma coisa que você devia saber sobre o mapa do processo - disse ela.
-O que é?
- Apesar do que disse há pouco sobre Frank Sheehan, Howard estava prestes a provar a inocência de Harris.
Bosch deu de ombros.
- Pensei que já o tivesse feito no processo criminal.
- Não, ele não foi considerado inocente. Há uma diferença. Howard ia provar sua inocência provando quem cometeu o crime.
Bosch fitou-a por um longo momento, imaginando como ele deveria continuar.
- O mapa do processo diz quem foi?
- Não. Como eu disse, só havia um esboço da abertura. Mas não está nele. Ele ia dizer aos jurados que entregaria o assassino a eles. Foram estas as suas palavras.
"Entregar o assassino a vocês." Ele não chegou a escrever quem era. Teria sido uma péssima abertura, se a fizesse. Isto daria espaço à defesa e mais tarde criaria
um anticlímax quando revelasse o nome da pessoa.
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Bosch ficou em silêncio enquanto pensava a respeito. Não sabia até onde acreditar no que ela lhe contara. Elias era um showrnan, dentro ou fora do tribunal. Entregar
um assassino no tribunal era coisa de Perry Mason. Era raro acontecer.
- Sinto muito, mas eu não devia ter lhe contado isso - disse ela.
- Por que o fez?
- Porque se outros soubessem que esta era a sua estratégia, poderia ter sido um motivo.
- Você quer dizer que o verdadeiro assassino daquela garotinha
voltou para matar Elias.
- Esta é uma possibilidade.
Bosch assentiu e perguntou:
- Você leu os depoimentos?
-Não, não tive tempo. Estou lhe passando todos os depoimentos porque a defesa... neste caso o ministério público... teria fornecido cópias. Portanto, não estou lhe
passando algo a que já não tivesse
tido acesso.
- E quanto ao computador?
- Dei uma olhada muito rapidamente. Parece que contém depoimentos e outras informações liberadas ao público. Nada
privilegiado.
- Tudo bem.
Bosch começou a se levantar. Estava pensando sobre quantas viagens teria de fazer até o carro para levar os arquivos.
- Ah, mais uma coisa.
Ela esticou o braço para a caixa no chão e trouxe uma pasta. Abriu-a sobre a mesa, revelando dois envelopes. Bosch debruçou-se
sobre a mesa para ver.
- Isto estava entre as coisas de Harris. Não sei o que significa. Ambos os envelopes eram endereçados ao escritório de Elias.
Sem endereço do remetente. Tinham sido postados em Hollywood, um deles cinco semanas atrás, o outro três semanas antes.
- Há uma única página com uma linha em cada um. Nada que
faça sentido para mim.
Ela começou a abrir um dos envelopes.
- Ha... - começou Bosch.
180
Ela parou, segurando o envelope na mão. -Oquê?
- Não sei. Estava pensando em impressões.
- Já os manipulei. Desculpe.
- Tudo bem, vá em frente.
Ela acabou de abrir o envelope, desdobrou a página sobre a mesa e virou-a para que Bosch pudesse ler. Havia uma linha digitada no alto de cada página.
pôr pingo no i humbert humbert
- Humbert humbert... - disse Bosch.
- E o nome de um personagem de literatura... ou o que certas pessoas consideram literatura - disse Carla. - Lolita, de Nabokov.
- Isso mesmo.
Bosch reparou numa anotação escrita a lápis embaixo da página.
ng 2-12/3
- Foi provavelmente marcação de Howard - disse Entrenkin.
- Ou de alguém no seu escritório.
Ela abriu o envelope seguinte, aquele postado mais recentemente. Bosch debruçou-se de novo.
emplacamento prova sua inocença
- Parece-me que são obviamente da mesma pessoa - disse Entrenkin. - Note também que inocência está escrito errado.
-É.
Havia também uma anotação a lápis embaixo da página.
Bosch pôs sua pasta no colo e abriu-a. Tirou o envelope de provas materiais que continha a carta que Elias estivera carregando no bolso interno do paletó quando
foi fuzilado.
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-Elias estava carregando isto quando ele... quando embarcou no Vôo dos Anjos. Esqueci que o pessoal na cena do crime tinha me dado isto. Seria bom se você estivesse
aqui observando enquanto o abro. Tem o mesmo carimbo postal daqueles dois. Foi enviado para ele na quarta-feira. Este aqui eu quero preservar para
as impressões.
Ele tirou um par de luvas de borracha da divisória de cartolina de sua pasta e as calçou. Depois removeu cuidadosamente a carta e abriu-a. Desdobrou uma folha de
papel igual às duas primeiras. Mais uma vez havia uma linha digitada na página.
ele sabe que você sabe
Enquanto olhava para a página, Bosch sentiu o leve palpitar no seu coração que sabia ser proveniente do surto de adrenalina.
- Detetive Bosch, o que significa isto?
- Não sei. Mas eu bem que gostaria de tê-lo aberto antes. Não havia nenhuma anotação a lápis no pé da terceira página.
Elias não conseguia evitar anotações, aparentemente.
- Parece que estamos perdendo uma - disse Bosch. - Estas estão marcadas com os números dois e três e esta chegou depois... esta aqui seria a quatro.
- Eu sei. Mas não encontrei nada que pudesse ser a número um. Nada nos arquivos. Talvez ele tenha jogado fora, achando que nada significava até que chegou a segunda.
- Talvez.
Ele pensou nas cartas por um momento. Estava se baseando principalmente no instinto e na premonição, mas sentia a carga se mantendo em seu coração. Sentia que havia
descoberto onde focalizar. Isto o animou, mas ao mesmo tempo se sentiu um pouco tolo por ter carregado na sua pasta por cerca de doze horas, sem saber, uma peça-chave
do caso.
- Howard algum dia lhe falou sobre este caso? - perguntou.
- Não, nunca falávamos sobre o nosso trabalho - disse Carla Entrenkin. - Tínhamos uma regra, entende? Sabíamos que o que estávamos fazendo era... algo que não seria
compreendido: a inspetora-geral
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com o mais conhecido e veemente crítico do departamento.
- Para não mencionar que ele era casado. O rosto dela endureceu.
- Olhe, o que há de errado com você? Num minuto estamos indo bem e talvez fazendo algum progresso neste caso. No minuto seguinte você começa a me hostilizar.
- O que há de errado é que deseje que me poupe deste sermão de sabíamos-que-isto-era-errado. Acho difícil de acreditar que vocês não falavam sobre o departamento
de polícia quando estavam sozinhos naquele apartamento.
Bosch viu fogo puro nos olhos dela.
- Bem, não ligo a mínima para o que você acha difícil de acreditar, detetive.
- Escute aqui: fizemos o nosso acordo. Não vou contar a ninguém. Se eu lhe causar problemas, você pode causar problemas para mim. Se eu contasse até mesmo aos meus
parceiros, sabe o que eles iriam dizer? Eles me chamariam de louco por não tratar você como suspeita. Era o que eu deveria estar fazendo, mas não estou. Estou me
baseando em puro instinto e isto pode ser assustador. Portanto, para suportar isto, estou procurando por qualquer pitada de sorte ou ajuda que possa obter.
Ela ficou em silêncio por um momento antes de responder.
- Aprecio o que está fazendo por mim, detetive. Mas não estou mentindo para você. Howard e eu nunca entramos em detalhes acerca desses casos ou sobre meu trabalho
junto ao departamento. Nunca. A única coisa que lembro de ele ter dito sobre o caso Harris é tão vago que desafia interpretação. Mas se você precisa saber o que
foi, eu lhe direi. Ele me mandou ficar preparada porque ia explodir o departamento, e alguns figurões da cidade pegariam a sobra. Não lhe perguntei o que ele queria
dizer.
- E quando foi isso?
- Na terça-feira à noite.
- Obrigado, inspetora.
Bosch se levantou e ficou caminhando. Descobriu-se na janela olhando para Anthony Quinn nas sombras. Consultou o relógio e
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viu que eram quase seis. Tinha um encontro com Edgar e Rider às sete no distrito policial de Hollywood.
- Você sabe o que isto significa, não sabe? - perguntou ele, sem se voltar para Entrenkin.
- O que é que significa? Ele virou-se para ela.
- Que se Elias estava em cima de alguma coisa e prestes a identificar o assassino... o verdadeiro assassino... então não foi um policial quem o matou.
Ela pensou por um momento e disse:
- Você está olhando só para um lado.
- Qual é o outro?
- Digamos que ele estava prestes a ir para o julgamento e sacar o verdadeiro assassino da sua cartola. Conclusivamente. Isto colocaria a mentira na prova da polícia,
não é? Assim, ao provar a inocência de Harris, ao mesmo tempo provaria que os policiais armaram para cima dele. Se o verdadeiro assassino sabia que Howard estava
na pista dele, sim, poderia tê-lo matado. Mas e se um tira soubesse que Howard ia provar que aquele policial armou para cima de Harris? Também poderia tê-lo matado.
Bosch sacudiu a cabeça.
- Para você são sempre os tiras. Talvez a armação já estivesse feita antes que os tiras sequer aparecessem.
Ele sacudiu a cabeça de novo, com mais ênfase, como se evitando um pensamento.
-Não sei o que estou dizendo. Não era nenhuma armação. Seria
forçar a barra demais.
Entrenkin observou-o por um longo momento.
- Como queira, detetive. Apenas nunca diga que não o avisei. Bosch ignorou sua afirmação. Olhou para as caixas no chão.
Pela primeira vez notou um carrinho de duas rodas encostado na parede junto à porta. Carla acompanhou seu olhar.
- Chamei o cara da segurança e disse-lhe que precisava remover algumas caixas. Ele me trouxe essa coisa.
Bosch assentiu. -
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- Acho que seria melhor levar esta tralha para o meu carro. Ainda tem o mandado de busca ou a srta. Langwiser o levou? Preciso preencher o recibo.
- Já fiz isto e cataloguei os arquivos. Você só precisa assinar. Bosch assentiu e foi até o carrinho. Lembrou-se de algo e
voltou-se para ela.
- E quanto ao arquivo que estávamos vendo quando você chegou esta manhã? Aquele com a foto. "
- O que tem ele? Está ali na caixa.
- Bem... quero dizer... ha... o que você acha?
- Não sei o que pensar a respeito. Se está me perguntando se eu acreditaria que Elias estava envolvido com aquela mulher, minha resposta é não.
- Perguntamos à esposa dele hoje se era possível que ele estivesse tendo um caso e ela disse que não, que não era possível.
-Entendo o seu ponto. Mas ainda acho que é impossível. Howard era um homem bem conhecido nesta cidade. Para começar, ele dificilmente teria de pagar por sexo. Em
segundo lugar, ele era esperto o bastante para saber que ficaria vulnerável a extorsão dessas pessoas caso o reconhecessem.
- Então o que a foto estava fazendo na mesa dele?
- Como já disse, não sei. Devia fazer parte de algum caso, mas ignoro qual. Examinei cada arquivo no escritório hoje e não achei nada que pudesse ter ligação.
Bosch limitou-se a assentir. Sua mente já estava desligada do arquivo e de volta às cartas misteriosas, em particular a última. No seu entender, aquilo era um aviso
para Elias. Alguém tinha descoberto que o advogado estava de posse de uma perigosa peça de informação. Bosch estava cada vez mais certo de que a investigação, a
verdadeira investigação, deveria se fixar naquele bilhete.
- Importa-se se eu ligar a TV agora? - perguntou Carla. - Quero assistir ao noticiário das seis.
Bosch saiu dos seus devaneios.
- Claro que não. Pode ligar.
Ela foi até um amplo armário de carvalho encostado à parede oposta e abriu as portas. Dentro havia duas prateleiras, cada qual
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contendo um aparelho de televisão. Elias aparentemente gostava de assistir mais de um programa ao mesmo tempo. Provavelmente, Bosch imaginou, pois assim tinha melhor
chance de captar todas as suas aparições na mídia.
Carla Entrenkin ligou as tomadas dos dois aparelhos. Enquanto a imagem entrava em foco no televisor de cima Bosch viu um repórter de pé em frente a um shopping center
no qual três ou quatro lojas estavam em chamas. Vários metros atrás do repórter bombeiros pelejavam para conter o fogo, mas Bosch achou que as lojas estavam além
da salvação. Já estavam destruídas.
- Está acontecendo - disse ele.
- Outra vez, não - disse Carla, sua voz uma súplica assustada.
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Capítulo 18
Bosch ligou o rádio do carro na KFWB enquanto dirigia para Hollywood. Os relatos do rádio eram mais sóbrios do que o noticiário de TV. Isto porque a reportagem de
rádio só continha palavras, não imagens.
A reportagem dizia que havia um incêndio num shopping em Normandie, a poucos quarteirões do cruzamento da Florence, que fora o ponto crítico dos distúrbios de 1992.
Naquele momento era o único incêndio na zona sul de Los Angeles e ainda não havia nenhuma confirmação de que fosse um incêndio premeditado ligado a protesto ou ira
por causa do assassinato de Howard Elias. Mas cada canal que Bosch e Entrenkin sintonizaram no escritório estava transmitindo do shopping. Chamas enchiam as telas
e a imagem projetada era clara: Los Angeles estava novamente em chamas.
- Porra de TV - disse ele. - Desculpe a minha linguagem.
- O que tem a TV?
Era Carla Entrenkin. Ela o havia convencido a levá-la à entrevista com Harris. Bosch não fizera mais que um protesto. Ele sabia que ela poderia ser útil para pôr
Harris à vontade, se ele soubesse quem ela era. Bosch sabia que era importante Harris estar disposto a falar com eles. Harris talvez fosse o único a quem Howard
Elias tivesse confidenciado a identidade do assassino de Stacey Kincaid.
- Exagerando como sempre - disse Bosch. - Um incêndio e estão- todos lá, exibindo as chamas. Você sabe o que isto provoca? E
como botar lenha na fogueira. Vai se espalhar agora. As pessoas vão
ver isto em suas salas de estar e vão sair para ver o que está
acontecendo. Grupos vão se formar, coisas vão ser ditas e as pessoas não
vão ser capazes de conter sua raiva. Uma coisa vai levar à outra e
logo vamos ter nosso tumulto fabricado pela mídia.
- Dou ao povo um pouco mais de crédito do que isso - respondeu Carla. - Ele sabe que não deve confiar na TV. Agitação civil ocorre quando os sentimentos esmagadores
de impotência atingem sua massa crítica. Não tem nada a ver com a televisão. Tem a ver com a sociedade que não atende às necessidades essenciais de pessoas negligenciadas.
Bosch notou que ela chamava isto de agitação civil em vez de distúrbio. Imaginou se chamar um distúrbio de distúrbio se tornara politicamente incorreto.
- Isto tem a ver com esperança, detetive Bosch - continuou ela. - A maioria das pessoas nas comunidades de minorias de Los Angeles não tem poder, não tem dinheiro,
não tem voz. Subsiste na esperança por essas coisas. E Howard Elias era a esperança para muitas delas. Um símbolo de esperança por um dia em que as coisas vão ser
iguais, quando a voz delas vai ser ouvida. Por um dia em que não vão precisar mais temer a polícia em sua comunidade. Quando se perde a esperança, ela deixa um vazio.
Algumas o preenchem com raiva e violência. Culpar simplesmente a mídia é errado. E muito mais profundo do que isto. Bosch assentiu.
- Entendo - disse. - Pelo menos acho que entendo. Tudo que estou dizendo é que a mídia não ajuda nada ao exagerar as coisas.
Carla concordou.
- Alguém uma vez chamou a mídia de mercadores do caos.
- É, definiram com exatidão.
- Foi Spiro Agnew. Pouco antes de renunciar.
Bosch não teve resposta e por isto deixou a conversa morrer. Pegou seu celular entre os dois assentos e ligou para casa. Não houve resposta senão a da secretária
eletrônica, e Bosch deixou uma mensagem pedindo que Eleanor ligasse para ele. Tentou não mostrar
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muito ostensivamente que estava contrariado. Ligou para Informações e pediu de novo o número do salão de pôquer de Hollywood Park. Ligou e pediu para falar com
Jardine, o homem da segurança.
- Aqui é Jardine.
- Aqui é o detetive Bosch da noite passada. Eu...
- Ela não apareceu, meu chapa. Pelo menos não no meu...
- Pode poupar o fôlego, meu chapa. Ela me disse que vocês se conhecem do Flamingo. Entendo o que você fez e está tudo limpo. Mas sei que ela está aí agora e quero
que lhe dê um recado. Diga a ela para ligar para o meu celular tão logo dê uma parada. Diga que é uma emergência. Entendeu senhor Jardine?
Bosch frisou bem a palavra senhor, de modo que talvez assim Jardine percebesse que cometia um erro ao ficar enrolando o DPLA.
- Certo - disse Jardine. - Entendi.
- Ótimo. Bosch desligou.
- Sabe do que eu mais me lembro sobre 92? - disse Carla. Uma imagem. Uma foto que saiu no Times. A legenda era algo como "Pai e filho saqueiam" e a foto mostrava
um homem levando seu filho de quatro ou cinco anos pela porta destroçada de uma loja. E sabe o que cada um estava carregando, o que eles saquearam?
- O quê?
- Cada um tinha pegado uma daquelas coisas chamadas ThighMaster. Você sabe, aquele aparelho de exercício ridículo que um astro de TV dos anos oitenta anunciava tarde
da noite.
Bosch sacudiu a cabeça ante a futilidade da imagem dela.
- Eles viram a engenhoca na TV e pensaram que fosse valiosa
- disse ele. - Como Howard Elias.
Ela não respondeu e ele percebeu que tinha saído da linha, mesmo acreditando que havia algo válido no seu comentário.
- Desculpe...
Seguiram em silêncio por alguns minutos até que Bosch voltou a falar.
- Sabe qual é a minha imagem de 92? -Qual?
- Eu estava de serviço no Hollywood Boulevard e, como você
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sabe, não devíamos realmente fazer nada, a não ser que víssemos pessoas correndo perigo de dano físico. Essencialmente, isto significava que se os saqueadores se
portassem de modo ordeiro, nós basicamente não iríamos impedi-los. Isso não fazia nenhum... bom, de qualquer modo eu estava no bulevar e me lembro de várias coisas
esquisitas. Os cientologistas rodearam seus prédios, alinhados praticamente ombro a ombro e portando cabos de vassoura, prontos a oferecer resistência, se necessário.
O cara que dirigia a loja de excedentes do Exército trajava uniforme de combate e carregava sobre o ombro um fuzil de assalto. Marchava para lá e para cá diante
da loja como se estivesse no portão de Benning... As pessoas estavam loucas, as boas e as más. Parecia O dia do gafanhoto.
- Ora, ora, você é um tira instruído, detetive Bosch.
- Nem tanto. Uma vez vivi com uma mulher que lecionava literatura na Grant High, no Vale. Era um dos livros do currículo, e o li na época. Seja como for, a imagem
do 92 que ficou gravada em mim é a da Frederick's de Hollywood.
- A loja de íingerie? Bosch confirmou.
- Parei lá e o local enxameava com gente de todas as raças e idades. Limparam a loja em cerca de quinze minutos. Quando terminaram, entrei na loja e não restava
mais nada. Tinham levado até os manequins. No chão não havia mais nada senão cabides e araras cromados... e a coisa espantosa é que tudo que foi levado era roupa
íntima. Quatro tiras são absolvidos pela surra em Rodney King flagrada pelas câmeras e as pessoas reagem ficando loucas e roubando roupa íntima. Foi tão surreal
que é isto que me vem à cabeça quando as pessoas iniciam distúrbios. Lembro de ter caminhado por
aquela loja vazia.
- Não importa o que saqueavam. Estavam descarregando frustrações. É como o caso dos Thigh-Masters. O pai e o filho não se preocupavam com o que estavam levando.
O importante aí é que levavam alguma coisa, que, de alguma forma, faziam um pronunciamento. Não tinham nenhum uso para aquelas coisas, mas ao levá-las estavam fazendo
um protesto. Foi a lição que o pai deu ao filho.
- Ainda assim não faz...
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O celular de Bosch tocou e ele o abriu. Era Eleanor.
- Está ganhando? - perguntou ele.
Ele falou com uma inflexão feliz e depois percebeu de imediato ter dito isto de modo que Carla não desconfiasse que seu casamento não ia bem. Logo sentiu-se embaraçado
e culpado por sequer permitir que Carla pensasse ou se imiscuísse no seu relacionamento com Eleanor.
- Ainda não. Acabei de chegar.
- Eleanor, quero que vá para casa.
- Harry, não vamos falar sobre isto agora. Eu...
- Não, não estou me referindo a nada daquilo. Creio que a cidade... você viu os noticiários?
- Não. Estava vindo para cá.
- Bem, a situação não parece boa. A mídia está acendendo o pavio, Eleanor. E se acontecer alguma coisa e a cidade enlouquecer, você está em um péssimo lugar.
Bosch lançou um olhar furtivo para Carla Entrenkin. Sabia que estava representando paranóia branca na frente dela. Hollywood Park ficava em Inglewood, uma comunidade
de maioria negra. Queria que Eleanor voltasse para casa nas colinas, onde ficaria em segurança.
- Harry, acho que você está ficando paranóico. Estarei bem aqui.
- Eleanor, por que você...
- Harry, preciso desligar, estão tomando minha cadeira. Ligo para você mais tarde.
Ela desligou e Bosch disse "tchau" para uma linha morta. Deixou o celular cair no seu colo.
- Serviu para alguma coisa - comentou Carla. - Acho que você está ficando paranóico.
- Foi o que ela disse.
- Eu lhe diria que neste exato momento há tantos negros quanto brancos, talvez até mais, que não querem ver aquilo se repetir. Dê a eles o benefício da dúvida, detetive.
- Acho que não tenho escolha.
O distrito policial de Hollywood parecia deserto quando Bosch e Entrenkin chegaram. Não havia radiopatrulhas no estacionamento dos fundos e quando eles atravessaram
a última porta do corredor, que geralmente fervilhava de atividade, estava tudo deserto. Bosch enfiou a cabeça através da porta aberta do plantão e viu um único
sargento à mesa. Um aparelho de TV fixado na parede estava ligado. Não havia chamas na tela, que exibia um âncora num estúdio. O gráfico às suas costas era uma foto
de Howard Elias. O volume estava baixo demais para Bosch ouvir o que estava sendo dito.
- Como estão as coisas? - perguntou Bosch ao sargento.
- Em suspenso. Por enquanto.
Bosch bateu duas vezes na porta e entrou na sala dos detetives, seguido por Carla Entrenkin. Rider e Edgar já estavam lá. Tinham pegado a TV da sala do tenente e
assistiam ao mesmo noticiário. Eles viram Bosch e Entrenkin e a surpresa registrada nos rostos deles.
Bosch apresentou Carla a Edgar, que não estivera no escritório de Elias aquela manhã. Ele então perguntou sobre as últimas notícias.
- A cidade está agüentando firme, assim parece - disse Edgar.
- Dois incêndios e pára por aí. Enquanto isso, estão quase transformando Elias no Santo Howard. Não se falou muito no sacana oportunista que ele era.
Bosch relanceou os olhos para Entrenkin, que não exibiu reação.
- Bem, vamos desligar a TV - disse. - Precisamos conversar. Bosch atualizou seus parceiros e mostrou-lhes os três bilhetes
anônimos que tinham sido postados para Elias. Ele explicou a presença de Carla Entrenkin e disse que queria tentar obter a cooperação de Harris e ao mesmo tempo
eliminá-lo como suspeito potencial das mortes.
- Sabemos pelo menos onde Harris está? - perguntou Edgar. Ele ainda nem apareceu na TV, pelo que vi. Talvez nem saiba sobre Elias.
- Bem, vamos descobrir. Seu endereço atual e telefone estavam nos arquivos de Elias. Parece que Elias o estava alojando, talvez
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tentando mantê-lo fora de encrenca até o julgamento. Está perto daqui... se estiver em casa.
Bosch pegou seu caderno de notas e anotou o número de telefone. Foi para sua mesa e ligou. Um homem atendeu.
- Posso falar com Harry? - disse Bosch, jovial.
- Não tem nenhum Harry aqui, cara. O telefone foi batido.
- Bem, alguém está em casa - disse Bosch para os outros. Vamos.
Seguiram num só carro. Harris atualmente morava num apartamento no Beverly Boulevard, perto do complexo da CBS. Elias o alojara num enorme conjunto residencial que
não era luxuoso porém mais que razoável. E do centro era uma reta até Beverly.
Havia uma porta de segurança, mas o nome de Harris não constava da lista de moradores ao lado do interfone. Bosch tinha o número do apartamento, mas isto não significava
nada. Os códigos do interfone seguindo os nomes dos moradores não correspondiam aos números dos apartamentos por questão de segurança. Bosch ligou o número do síndico,
mas não obteve resposta.
- Veja isto - disse Rider.
Ela apontou para o nome E. Howard. Bosch sacudiu os ombros como se dizendo que valia a pena tentar e apertou o botão. Uma voz masculina atendeu e Bosch achou que
era a mesma voz que atendera quando ligou do distrito.
- Michael Harris?
- Quem é?
- DPLA. Precisamos fazer-lhe algumas perguntas. Eu...
- Porra nenhuma. Não sem o meu advogado aqui. Ele desligou. Bosch ligou de novo.
- Que porra você quer?
- Caso ainda não saiba, seu advogado está morto. E por isto que estamos aqui. Agora ouça e não desligue. Está aqui comigo a inspetora-geral Carla Entrenkin. Sabe
quem é ela? Ela veio se certificar de que você seja bem tratado. Nós só precisamos...
- Ela é aquela mulher cão de guarda que costuma dedurar quando a polícia mete porrada na gente?
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- A própria. Aguarde aí.
Bosch recuou um passo e passou o fone a Carla.
- Diga que ele está seguro.
Ela pegou o fone, dando a Bosch um olhar que dizia que agora percebia por que ele permitira que viesse junto. Ela falou enquanto olhava para ele.
- Michael, aqui é Carla Entrenkin. Você não precisa se preocupar. Ninguém aqui vai lhe machucar. Precisamos fazer perguntas sobre Howard Elias, isto é tudo.
Se Harris disse alguma coisa a ela Bosch não ouviu. A fechadura zumbiu e Edgar empurrou a porta. Entrenkin depôs o fone e todos entraram.
- O cara é um escroto - disse Edgar. - Não sei por que o estamos tratando como um santo.
Entrenkin olhou para ele.
- Você sabe, sim, detetive Edgar.
Edgar ficou suficientemente intimidado com o seu tom. Quando Harris abriu a porta de seu apartamento do quarto andar, empunhava uma arma ao lado do corpo.
- Muito bem, esta é a minha casa - anunciou ele. - Não estou a fim de ameaçar ninguém, mas preciso disto aqui para meu conforto e segurança pessoal. De outro modo,
vocês não entram aqui, entenderam?
Bosch olhou para os outros, não captou nenhuma expressão e olhou de volta para Harris. Tentou conter sua fúria. Apesar do que Entrenkin lhe dissera antes, ele ainda
tinha pouca dúvida de que Harris fosse o assassino de uma criança. Mas sabia que o importante no momento era a investigação em curso. Ele teve que pôr de lado sua
animosidade pelo homem a fim de extrair qualquer informação que ele tivesse.
- Tudo bem - disse ele. - Mas você vai manter esta arma abaixada e ao lado do corpo. Se apontá-la para um de nós vamos ter um grande problema. Estamos entendidos?
- Oh, estamos.
Harris recuou da porta e os deixou entrar, apontando com a arma para a saleta.
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- Lembre-se, mantenha essa coisa abaixada - avisou Bosch asperamente.
Harris baixou a arma ao lado do corpo e todos entraram. O apartamento era mobiliado com coisas de aluguel - sofá estofado azulclaro com cadeiras combinando, mesas
e estantes baratas imitando madeira. Pôsteres pastorais estavam nas paredes. Havia uma estante com um aparelho de TV, apresentando o noticiário.
- Sentem-se, senhoras e senhore*s.
Harris pegou uma das cadeiras grandes, afundando nela de modo que o espaldar ficasse acima de sua cabeça, dando-lhe a aparência de estar sentado num trono. Bosch
adiantou-se e desligou a TV, depois apresentou todo mundo e exibiu seu distintivo.
- Isso quer dizer que você é o branco na chefia - disse Harris. Bosch ignorou-o.
- Presumo que já sabe que Howard Elias foi assassinado a noite passada - começou.
- Claro que sei. Fiquei sentado aqui toda a porra do dia vendo os noticiários.
- Então por que disse que não falaria sem o seu advogado, se sabia que ele estava morto?
- Tenho mais de um advogado, otário. Também tenho um advogado criminal e arranjei um advogado de diversão. Arranjei advogados, não se preocupe. E vou arranjar outro
para o lugar de Howard. vou precisar deles, cara, principalmente depois que começar o agito lá no South Central. vou ter o meu próprio distúrbio, que nem Rodney.
Isto vai me levar ao topo.
Bosch mal conseguia seguir a linha de pensamento de Harris, mas entendia o suficiente para saber que ele curtia o poder à custa de sua própria comunidade.
- Bem, falemos sobre o seu finado advogado, Howard Elias. Quando foi a última vez que o viu?
- A noite passada, mas você já sabe disso, não é, branco?
- Até que horas?
- Até que ele saiu pela porra daquela porta. Está a fim de me derrubar, branco?
-O quê?
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- Está me interrogando, branco?
- Estou tentando descobrir quem matou Elias.
- Foram vocês. Seu pessoal matou ele.
- Bem, é uma possibilidade. É isto que estamos tentando descobrir. Harris riu como se Bosch tivesse dito um absurdo.
- É, conhece aquela coisa que dizem sobre o roto rindo do esfarrapado? Não passa disso.
- Veremos. Quando você e Elias se separaram?
- Quando ele seguiu para seu apartamento e vim para casa.
- A que horas foi?
- Não sei, branco. Quinze pras onze, onze horas. Não uso relógio. As pessoas me dizem as horas quando quero saber. No noticiário disseram que ele teve o rabo baleado
às onze, então nos separamos quinze minutos antes.
- Ele mencionou alguma ameaça? Estava com medo de alguém?
- Ele não tinha medo de merda nenhuma. Mas já sabia que era um homem morto.
- O que quer dizer?
- Vocês sabem o que quero dizer. Ele sabia que vocês iam pegar ele algum dia. Alguém finalmente fez isso. Provavelmente vai sobrar para mim também, algum dia. É
por isso que assim que botar a mão na minha grana vou cair fora deste lugar. Todos vocês tiras podem ficar com ele. E isto é tudo que tenho a dizer, branco.
- Por que me chama assim?
- Porque é isso que você é. Você é um branco, branco.
O sorriso de Harris era desafiador. Bosch sustentou seu olhar por um momento, depois voltou-se para Entrenkin e acenou. Ela assumia a partir dali.
- Michael, você sabe quem sou eu?
- Claro, já vi você na TV Assim como o sr. Elias. Conheço você.
- Então sabe que não sou uma agente da polícia. Meu trabalho é cuidar para que os policiais desta cidade sejam honestos e cumpram suas funções do jeito como deve
ser.
Harris zombou.
- Você arranjou um bocado de trabalho, hem, dona?
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- Sei disso, Michael. Mas o motivo pelo qual estou aqui é dizer-lhe que acho que esses três detetives querem fazer a coisa certa. Eles querem descobrir quem matou
Howard Elias, seja um policial ou não. E eu quero ajudá-los. Você também devia querer. Você deve muito a Howard. Então, por favor, poderia responder a mais algumas
perguntas?
Harris olhou em volta da sala e para a arma em sua mão. Era um Smith & Wesson nove milímetros com acabamento acetinado. Bosch especulou se Harris teria brandido
a pistola na frente deles se soubesse que a arma assassina era uma nove milímetros. Harris enfiou a arma na fenda entre o estofado do assento e o braço da grande
cadeira.
- Tudo bem, respondo. Mas não do branco. Não falo com tiras brancos nem pretos. Você pergunta.
Entrenkin olhou de volta para Bosch e depois de volta para Harris.
- Michael, quero que os detetives façam as perguntas. Eles são melhores nisso do que eu. Mas acho que é bom para você responder.
Harris sacudiu a cabeça.
- Você não entendeu, madame. Por que eu devo ajudar esses escrotos? Essa gente me torturou sem nenhuma porra de motivo. Perdi quarenta por cento da audição por causa
do DPLA. Não vou cooperar. Mas se você tiver uma pergunta, eu respondo.
- OK, Michael, assim está ótimo - disse Entrenkin. - Fale-me sobre a noite passada. No que você e Howard trabalharam?
- Trabalhamos no meu testemunho. Só que você sabe que os tiras chamam isto de testementira, porque eles nunca dizem a porra da verdade quando se trata dos irmãos.
Bem, eu chamo o meu de testegrana, porque o DPLA vai pagar por ter armado pra cima de mim e depois fodido comigo. Vai pagar direitinho.
Bosch reassumiu o interrogatório como se Harris nunca tivesse dito que não falaria com ele.
- Howard lhe disse isto?
- Claro que disse, branco.
- Disse que poderia provar que foi uma armação?
- É, porque ele sabia quem matou mesmo aquela garotinha branca e depois colocou o corpo no terreno baldio perto da minha casa.
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E não fui eu. Ele ia ao tribunal segunda-feira para me inocentar completamente e conseguir meu dinheiro, o meu bom Howard.
Bosch esperou um instante. A pergunta e a resposta seguintes seriam cruciais.
-Quem?
- Quem o quê?
- Quem realmente a matou? Ele lhe disse?
- Nada. Ele disse que eu não precisava saber. Disse que era perigoso saber aquela merda. Mas aposto que está lá nos arquivos. Ele não vai escapar de novo.
Bosch olhou de relance para Entrenkin.
- Michael, passei o dia inteiro com os arquivos. Sim, havia indicações de que Howard sabia quem matou Stacey Kincaid, mas nenhum nome foi registrado em parte alguma.
Tem certeza de que ele nunca lhe disse um nome ou lhe deu qualquer indicação de quem
era esta pessoa?
Harris ficou momentaneamente confuso. Ele evidentemente
percebia que se Elias acreditava em guardar o nome do assassino só para si, seu caso poderia também cair alguns pontos. Ele sempre carregaria o estigma de
ser um assassino que só havia escapado porque um advogado de defesa esperto sabia como induzir um júri.
- Droga - disse ele.
Bosch aproximou-se e sentou na ponta da mesinha de centro,
de modo a ficar bem perto de Harris.
- Pense bem - disse. - Você passou um bocado de tempo com
ele. Quem poderia ser?
- Não sei - disse Harris na defensiva. - Por que não pergunta
isso a Pelfry, branco?
- Quem é Pelfry?
- É o faz-tudo de Howard. Seu investigador.
- Sabe o nome completo dele?
- Acho que é alguma coisa como Jenks ou coisa parecida.
-Jenks?
- É, Jenks. Era assim que Howard chamava ele. Bosch sentiu um toque em seu ombro e virou-se para ver Entrenkin dar-lhe uma olhada; ela conhecia Pelfry. Ele podia
parar. Bosch levantou-se e olhou de cima para Harris.
198
- Você voltou para cá a noite passada depois que deixou Elias?
- Voltei, claro. Por quê?
- Alguém com você? Ligou para alguém?
- Que porra é essa? Está querendo me derrubar, branco?
- É rotina. Relaxe. Perguntamos a todos onde estiveram. Onde você esteve?
- Fiquei aqui, cara. Estava cansado. Vim para casa e caí na cama. Não tinha ninguém comigo.
- OK. Importa-se se eu der uma olhada na sua pistola por um segundo?
-Jesus Cristo, eu devia saber que vocês, caras, não iam manter o nível. Merda.
Ele puxou a arma do lado do estofado da cadeira e entregou-a a Bosch. Este ficou de olho em Harris até a arma ficar a salvo em sua mão. Ele então estudou a arma
e cheirou o cano. Não sentiu odor de óleo nem de pólvora queimada. Ejetou o cartucho e manuseou o projétil no topo. Era uma Federal, plenamente revestida de metal.
Uma marca de munição muito popular, Bosch sabia, e da mesma marca usada nos assassinatos no Vôo dos Anjos. Ele voltou-se para Harris.
- Você é um delinqüente em condicional, sr. Harris. Tem noção de que é um crime estar portando esta arma?
- Não na minha casa, branco. Preciso de proteção.
- Em qualquer lugar, lamento dizer. Isto poderia mandá-lo de volta à prisão.
Harris sorriu para ele. Bosch pôde ver que um de seus incisivos era de ouro com uma estrela incrustada no centro.
- Então me leve em cana, branco.
Ele ergueu os braços, oferecendo os pulsos para as algemas.
- Me leve preso e vai ver a porra desse lugar se incendiar.
- Não. Na verdade eu estava pensando em lhe dar um refresco, ao ver como poderia ter sido tão útil esta noite. Mas vou confiscar esta arma. Eu estaria cometendo
um crime se a deixasse aqui com você.
- Faça como quiser, branco. Sempre consigo o que quero do meu bonde. Sabe o que quero dizer?
199
Ele pronunciou branco do modo como algumas pessoas brancas dizem a palavra crioulo.
- Claro. Sei o que significa.
Esperaram pelo elevador em silêncio. Tão logo começaram a descer, Entrenkin falou:
- Aquela arma combina?
- É do mesmo tipo. A munição também. Vamos verificar no laboratório, mas duvido que ele a guardaria se tivesse matado Elias com ela. Ele não é nada idiota.
- E quanto ao bonde dele? Ele disse que conseguiria qualquer
coisa com seu bonde.
- Ele não se referia exatamente a isto. Referia-se à sua turma, seu povo. Juntos, eles formam um bonde, indo juntos a qualquer lugar. É um termo derivado do sistema
carcerário do condado. Oito pessoas para uma cela. Eles chamam isto de bondes. E quanto a Pelfry? Você o conhece?
- Jenkins Pelfry. É um independente. Acho que montou um escritório no Union Law Center, no centro da cidade. Diversos advogados dos direitos civis usam seus serviços.
Howard o estava usando neste caso.
- Temos que falar com ele então. Obrigado por nos contar. Havia desagrado na voz de Bosch. Ele consultou o relógio. Achou
que já era tarde demais para procurar Pelfry.
- Olhe, está nos arquivos que lhe dei - protestou Entrenkin. Você não me perguntou a respeito. Como eu ia adivinhar?
- Tem razão. Você não sabia.
- Se você quiser, eu posso dar um telefonema e...
- Não, tudo bem. Cuidamos disto daqui em diante, inspetora. Obrigado por sua ajuda com Harris. Provavelmente nem conseguiríamos vê-lo se você não viesse junto.
- Você acha que ele teve algo a ver com os assassinatos?
- Ainda não estou achando nada.
- Duvido muito que ele esteja envolvido.
200
Bosch limitou-se a olhar para ela, esperando que seus olhos transmitissem que ele acreditava que ela estava pisando em áreas onde não tinha muita prática nem um
mandado para estar.
- vou lhe dar uma carona de volta. Seu carro está no Bradbury? Ela assentiu, enquanto atravessavam o vestíbulo até as portas.
- Detetive, quero ser mantida a par do caso e de quaisquer desdobramentos importantes.
- Tudo bem. vou falar com o chefe Irving pela manhã e vejo como ele quer fazer isto. Ele preferiria informá-la pessoalmente.
- Não quero a versão passada a limpo. Quero ouvir de você.
- Passada a limpo? Você acha que tudo o que eu contar para você não vai ser passado a limpo. Sinto-me lisonjeado, inspetora.
- Uma péssima escolha de palavras. Mas preciso ouvir de você antes que tudo seja processado pela chefia do departamento.
Bosch olhou para ela enquanto segurava a porta.
- Eu vou me lembrar disso.
Capítulo 19
Kiz Rider rastreava o número telefônico do site de Lady Regina através do diretório cruzado contido em um CD-ROM no computador do esquadrão. O telefone referia-se
a um endereço na North Kings Road, em West Hollywood. Isto não significava porém que o endereço seria o lugar onde encontrariam a mulher. A maioria das prostitutas,
massagistas de fim de noite e as assim chamadas profissionais de diversão exótica usavam elaborados sistemas de contato para dificultar a repressão dos agentes da
lei.
Bosch, Rider e Edgar estacionaram na esquina de Melrose e Kings. Bosch usou seu celular para chamar o número. Uma mulher atendeu após o quarto toque. Bosch começou
sua representação.
- Lady Regina?
- Sim, quem é?
- Meu nome é Harry. Estava imaginando se estaria livre esta
noite.
- Já tivemos uma sessão antes?
- Não, eu vi o seu site e pensei...
- Pensou o quê?
- Pensei que poderia experimentar uma sessão.
- O quanto avançado você é?
-Não enten...
- Em que lance você está?
202
- Ainda não tenho certeza. Gostaria de experimentar.
- Você sabe que não rola sexo, não é? Nada de contato físico. Eu represento fantasias com as pessoas. Nada de ilegal.
- Entendo.
- Você tem um numero de telefone seguro para o qual eu possa ligar de volta?
- O que quer dizer com seguro?
- Quero dizer nada de cabines telefônicas! - disse ela asperamente. - Você tem que me dar um número de verdade.
Bosch deu a ela o número do seu celular.
- OK, ligo para você em um minuto. Fique aí.
- Ficarei.
- vou chamar você de três-meia-sete. Este é você. Você não é uma pessoa para mim. Você não tem um nome. E simplesmente um número.
- Três-meia-sete. Entendo.
Ele fechou o celular e olhou para seus parceiros.
- Dentro de um minuto vamos saber se funcionou.
- Você soou ótimo e subserviente, Harry - disse Rider.
- Obrigado. Tentei o melhor que pude.
- Para mim você soou como um tira - disse Edgar.
- Vamos ver.
Bosch ligou o carro, só para fazer alguma coisa. Rider bocejou e depois ele também. A seguir, Edgar juntou-se aos bocejos.
O telefone tocou. Era Lady Regina. Ela perguntou pelo número dele.
- Você pode vir dentro de uma hora. Exijo uma doação de duzentos dólares por uma sessão de uma hora. Em dinheiro e adiantado. Entendido?
- Sim.
- Sim, o quê?
- Ha, sim, Lady Regina.
- Isto é muito bom.
Bosch olhou para Rider, que estava no assento do passageiro da frente, e piscou. Ela sorriu de volta para ele.
Regina deu-lhe o endereço e o número do apartamento. Bosch
203
ligou a luz do teto e examinou as anotações de Rider. O endereço que acabara de lhe ser fornecido era o mesmo que Rider tinha, mas o número do apartamento era diferente.
Ele disse a Regina que iria
para lá e desligou.
- Está combinado. Mas não por uma hora. Ela usa um apartamento no mesmo prédio.
- Nós esperamos? - perguntou Edgar.
- Não. Quero ir para casa e dormir um pouco.
Bosch virou o carro na Kings Road e cruzou meio quarteirão até que encontraram o endereço. Era um pequeno edifício de apartamentos feito de madeira e estuque. Não
havia estacionamento em parte alguma, de modo que ele estacionou numa zona proibida em frente a um hidrante e eles saltaram. Ele realmente não se importava se Regina
tivesse um apartamento de frente e visse o carro da polícia. Eles não tinham vindo efetuar uma prisão. Tudo que queriam era informação.
De qualquer modo, os apartamentos seis e sete ficavam nos fundos, um ao lado do outro. Bosch imaginou que a mulher que se intitulava Lady Regina morava em um apartamento
e trabalhava no outro. Eles bateram na porta de serviço.
E não houve resposta.
Edgar bateu de novo, com mais força, e desta vez deu também dois pontapés. Finalmente, ouviram uma voz do outro lado.
- Quem é?
- Abra. É a polícia.
Nada.
- Vamos, Regina, precisamos fazer algumas perguntas. Só isso. Abra a porta ou teremos que arrombar. O que você prefere?
Era uma ameaça sem respaldo. Bosch sabia que não tinha poder legal para fazer coisa alguma se ela não quisesse abrir a porta.
Finalmente, Bosch ouviu a fechadura girando e a porta se abriu para revelar o rosto furioso da mulher que Bosch reconheceu da foto que encontrara no escritório de
Howard Elias.
- O que vocês querem? Quero ver suas credenciais.
Bosch mostrou seu distintivo.
- Podemos entrar?
204
- Você é do DPLA? Isto aqui é West Hollywood, moço. Está fora da sua jurisdição.
Ela empurrou a porta, mas Edgar esticou um braço forte e impediu. Empurrou a porta de volta e entrou, uma expressão má no rosto.
- Não bata a porta na minha cara, Lady Regina.
Edgar disse o nome dela num tom que indicava que não era subserviente a ninguém. Regina recuou para dar-lhe espaço para entrar. Bosch e Rider o seguiram. Entraram
num patamar parcamente iluminado com escadas para cima e para baixo. Bosch olhou as escadas abaixo, à sua esquerda, e as viu mergulhar em completa escuridão. As
escadas para cima levavam a um cômodo iluminado. Ele foi até elas e começou a subir.
- Ei, vocês não podem simplesmente ir invadindo assim - disse Regina, mas o protesto estava abandonando sua voz. - Vocês precisam de um mandado,
- Não precisamos de nada, Lady Regina. Você nos convidou. Sou Harry... ou melhor, o três-meia-sete. Acabamos de falar ao telefone, lembra?
Ela os seguiu escada acima. Bosch voltou-se e conseguiu vê-la plenamente pela primeira vez. Ela estava usando um robe preto transparente sobre um espartilho de couro
e lingerie de seda preta. Usava meias de seda preta e sapatos de salto com ferrões. Sua maquiagem consistia em delineador preto e batom vermelho reluzente. Era
uma triste caricatura de fantasia masculina deprimente.
- Já passou muito tempo do Dia das Bruxas - comentou Bosch.
- Está fazendo o papel de quê?
Regina ignorou a pergunta.
- O que estão fazendo aqui?
- Temos umas perguntas. Sente-se. Quero mostrar um retrato para você.
Bosch apontou para um sofá de couro preto. A mulher foi até ele com relutância e sentou-se. Ele pôs a pasta sobre a mesinha de centro e abriu-a. Ele acenou levemente
com a cabeça para Edgar e começou a procurar a foto de Elias.
- Ei aonde é que está indo? - gritou Regina.
205
Edgar se movera para outro conjunto de escadas que levava a
um sótão.
- Ele está garantindo a nossa segurança, certificando-se de que você não tem alguém escondido no armário - disse Bosch. - Agora dê uma olhada neste retrato, por
favor.
Ele fez a foto deslizar sobre a mesinha. A mulher a olhou sem
tocá-la.
- Reconhece-o?
-O que é isso?
- Reconhece este homem?
-Claro.
-É um cliente?
- Olhe, eu não tenho que contar porra nenhuma sobre...
- ELE É UM CLIENTE? - gritou Bosch, silenciando-a. Edgar desceu do sótão e atravessou a saleta. Olhou de relance
para a quitinete, não viu nada de interessante e desceu as escadas para o patamar. Bosch então ouviu seus passos enquanto ele descia
na escuridão abaixo.
- Não, ele não é um cliente, tá? Agora vocês podiam ir embora, por favor?
- Se ele não é um cliente, como é que o reconhece?
- Do que está falando? Não viu a televisão hoje?
- Quem é ele?
- É aquele sujeito, aquele que foi morto no...
-Harry?
Era Edgar lá de baixo.
-O quê?
- Acho que você devia descer aqui um segundo.
Bosch virou-se para Rider.
- Assuma, Kiz. Fale com ela.
Bosch desceu os degraus e contornou o patamar. Havia agora uma luz vermelha brilhante vindo do cômodo abaixo. Enquanto descia, viu Edgar de olhos arregalados.
-O que é?
- Verifique isto.
206
Quando atravessaram o cômodo, Bosch viu que se tratava de um quarto de dormir. Uma parede era totalmente espelhada. Contra a parede oposta havia uma cama hospitalar
elevada com o que parecia lençóis de plástico e correias afiveladas nela. Ao lado estava uma cadeira e um abajur de pé com uma lâmpada vermelha.
Edgar o conduziu até um closet amplo. Outra lâmpada vermelha brilhava do teto. Não havia nada pendendo das hastes de roupa que corriam de um lado a outro do closet.
Mas um homem nu estava de braços e pernas estendidos a um lado do armário, seus pulsos algemados às hastes de roupa. As algemas eram folheadas a ouro com desenhos
decorativos. O homem estava de olhos vendados e com uma bola vermelha na boca como uma mordaça. Havia marcas vermelhas causadas por unhadas pelo seu peito abaixo.
E entre suas pernas uma garrafa cheia de Coca litro balançava na extremidade de uma tira de couro que estava atada a um nó corrediço em volta da cabeça do seu pênis.
-Jesus! - sussurrou Bosch.
- Perguntei'lhe se precisava de ajuda e ele fez que não com a cabeça. Acho que é freguês dela.
- Tire a mordaça dele.
Bosch puxou a venda até a testa do homem enquanto Edgar retirava a mordaça. O homem imediatamente virou o rosto para a direita e procurou se afastar. Tentou usar
o braço para bloquear a visão do seu rosto, mas o pulso algemado impediu que o escondesse. O homem tinha trinta e poucos anos e boa compleição física. Parecia capaz
de se defender contra a mulher lá em cima. Se quisesse.
- Por favor - disse ele em voz desesperada. - Me deixem em paz. Estou bem. Simplesmente me deixem em paz.
- Somos da polícia - disse Bosch. - Você tem certeza?
- Claro que tenho. Se eu precisasse de ajuda teria pedido. Não preciso de vocês aqui. Isto é completamente de comum acordo e não-sexual. Apenas me deixem em paz.
- Harry - disse Edgar -, acho que a gente devia simplesmente cair fora daqui e esquecer que vimos este cara algum dia.
Bosch assentiu e eles saíram do closet. Ele olhou em volta do quarto e viu as roupas penduradas na cadeira. Foi até elas e revistou os bolsos da calça. Sacou a carteira
e caminhou até o abajur, onde
207
a abriu e examinou a licença de motorista ao brilho vermelho. Percebeu Edgar se aproximando por trás dele e olhou por cima do
ombro.
- Reconhece o nome?
- Não. E você?
Bosch sacudiu a cabeça e fechou a carteira, devolvendo-a ao
bolso das calças.
Rider e Regina estavam em silêncio quando eles voltaram. Bosch estudou Regina e achou que via um ar de orgulho e um leve sorriso em seu rosto. Sabia que tinham ficado
chocados com o que viram lá embaixo. Ele relanceou os olhos para Rider e viu que ela também havia percebido o choque nos rostos deles.
- Tudo bem? - perguntou ela.
- Tudo ótimo - disse ele.
- O que é?
Bosch ignorou a pergunta e olhou para a outra mulher.
- Onde estão as chaves?
Ela ostentou um pequeno amuo no rosto e enfiou a mão no sutiã, tirando a minúscula chave das algemas. Bosch pegou-a e entregou a Edgar.
- Desça e solte o homem. Se ele quiser ficar depois disto, problema dele.
- Harry, ele disse que...
- Não me importa o que ele disse. Eu mandei soltá-lo. Não podemos sair daqui deixando um cara agrilhoado lá embaixo.
Edgar desceu as escadas enquanto Bosch fitava Regina.
- É por aquilo que você cobra duzentos dólares por hora?
- Pode crer, eles acham que vale a grana que pagam. E sabe que todos voltam querendo mais? Hum, fico imaginando o que está havendo com os homens. Talvez devesse
experimentar algum dia, detetive Bosch. Poderia conseguir algum prazer.
Bosch fitou-a por longo tempo antes de voltar seu olhar para
Rider.
- O que conseguiu, Kiz?
- Seu nome verdadeiro é Virgínia Lampley. Ela diz que conhece Elias da TV, não como cliente. Mas diz que o investigador de
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Elias esteve aqui poucas semanas atrás, fazendo perguntas, tal como nós.
- Pelfry? O que ele perguntou?
- Um monte de babaquice - disse Regina antes que Rider pudesse responder. - Ele queria saber se eu sabia algo sobre aquela garotinha que foi morta o ano passado.
A filha daquele czar do automóvel da TV. Eu disse a ele que não sabia por que diabo estava me perguntando sobre aquilo. O que eu poderia saber? Ele tentou engrossar,
mas eu também engrossei. Não deixo os homens tirarem onda comigo. Ele se mandou. Acho que alguém embarcou vocês na mesma canoa furada que ele.
- Talvez - disse Bosch.
Houve um silêncio momentâneo. Bosch estava distraído pelo que tinha visto no closet. Não podia pensar em mais nada para perguntar.
- Ele vai ficar.
Era Edgar voltando e devolvendo a chave das algemas para Regina. Ela pegou-a e fez uma grande produção ao devolvê-la ao sutiã, olhando para Bosch o tempo todo.
- Muito bem, vamos embora - decidiu Bosch.
- Tem certeza de que não quer ficar para uma Coca, detetive?
- perguntou Virginia Lampley, um sorriso no rosto.
- Estamos indo - replicou Bosch.
Desceram em silêncio os degraus até a porta, Bosch cerrando a fila. No patamar ele olhou para o quarto escuro. O brilho da luz vermelha continuava lá e Bosch pôde
ver a esmaecida silhueta do homem sentado na cadeira no canto do quarto. O rosto estava na escuridão, mas Bosch podia dizer que o homem olhava para ele.
- Não se preocupe, detetive - disse Regina por trás dele. - vou cuidar dele.
Bosch voltou-se e olhou para ela da porta, retribuindo um sorriso.
Capítulo 20
Na volta ao distrito Rider perguntou o tempo todo o que eles tinham visto no cômodo de baixo, mas nem Bosch nem Edgar contaram-lhe mais do que o fato básico de que
um dos clientes de Lady Regina estava algemado no closet. Rider sabia que havia outros detalhes e continuou pressionando, mas nada conseguiu.
- O homem lá embaixo não é importante - disse finalmente Bosch, como um meio de encerrar aquela parte da discussão. Ainda não sabemos o que Elias estava fazendo
com a foto dela e o endereço na Internet. Ou, a propósito, por que mandou Pelfry
procurá-la.
- Acho que ela estava mentindo - disse Edgar. - Ela sabe de
toda a história.
- Talvez - disse Bosch. - Mas, se ela conhece a história, por que mantém segredo agora que Elias está morto?
- Pelfry é a chave - disse Rider. - Devíamos dar uma prensa
nele imediatamente.
- Não - disse Bosch. - Não esta noite. E tarde e não quero falar com Pelfry até acabarmos de examinar os arquivos de Elias e sabermos o que há neles. Dominamos
a fundo os arquivos e depois apertamos Pelfry a respeito de Lady Regina e tudo o mais. Amanhã o mais cedo possível.
- E quanto ao FBI? - quis saber Rider.
210
- Nos encontramos com eles às oito. Até lá vou pensar em alguma coisa.
Seguiram o resto do caminho em silêncio. Bosch os deixou para que pegassem seus carros no estacionamento da delegacia de Hollywood e lembrou-lhes de se apresentarem
no Parker Center às oito da manhã seguinte. Ele então estacionou seu bunda-lisa mas não devolveu a chave, porque os arquivos do escritório de Elias ainda estavam
na mala. Após trancarão bunda-lisa, ele foi para seu próprio carro.
Consultou o relógio enquanto saía para a Wilcox e viu que eram dez e meia. Sabia que era tarde, mas decidiu fazer uma última ligação antes de ir para casa. Enquanto
dirigia através do Laurel Canyon para o Vale, continuou pensando no homem no armário e em como ele tinha virado o rosto, tentando não ser visto. Trabalhando em homicídios
por tantos anos ele não se surpreendia mais com os horrores que as pessoas infligiam umas às outras. Mas uma pessoa infligindo horrores a si mesma era uma outra
história.
Ele tomou o Ventura Boulevard rumo oeste para Sherman Oaks. Era uma agitada noite de sábado. Do outro lado da colina a cidade podia ser um caldeirão de tensões,
mas no prolongamento principal no Vale os bares e cafés pareciam cheios. Bosch viu manobristas de paletó vermelho correndo para retirar os carros diante do Pinot
Bistro e outros restaurantes classudos que se enfileiravam no bulevar. Viu adolescentes percorrendo a rua de cima a baixo. Todos alheios ao ódio e à ira que fervilhavam
em outras partes da cidade
- abaixo da superfície como uma falha geológica desconhecida, esperando para se partir e engolir tudo acima.
Em Kester ele virou para o norte e depois fez uma rápida curva numa vizinhança de residências apertadas entre a Ventura Freeway e o bulevar. As casas eram pequenas
e sem nenhum estilo que as distinguisse. O chiado da via expressa era onipresente. Eram residências para policiais, só que custavam entre quatrocentos e quinhentos
mil dólares e poucos policiais podiam comprá-las. O antigo parceiro de Bosch, Frankie Sheehan, tinha comprado no início e comprado bem. Ele estava sentado em cima
de um quarto de milhão de lucro. Era o seu plano de aposentadoria, se ele conseguisse se aposentar.
211
Bosch estacionou no meio-fio em frente à casa de Sheehan e deixou o motor ligado. Pegou seu celular, viu o número de Sheehan no seu
caderninho e fez a ligação. Sheehan atendeu ao segundo toque, sua voz alerta. Ele estava acordado.
- Frankie, aqui é o Harry.
- Ora, ora.
- Estou na sua porta. Por que não sai para a gente dar uma
volta?
-Aonde?
- Isso não importa. Silêncio.
- Frankie?
- OK, me dê dois minutos.
Bosch guardou o celular e procurou no bolso do casaco por um cigarro que não tinha.
- Droga - disse.
Enquanto esperava pensou na ocasião em que ele e Sheehan procuravam um traficante suspeito de ter eliminado a operação de um rival, indo a uma casa de rocie com
uma Uzi e fuzilando todo mundo - seis pessoas, entre clientes e traficantes.
Eles bateram repetidamente na porta do apartamento do suspeito, sem obter resposta. Avaliavam suas opções quando Sheehan ouviu uma voz minúscula dizer do interior
do apartamento: "Entrem, entrem." Bateram de novo e gritaram que era a polícia. Esperaram e ouviram. Novamente a voz: "Entrem, entrem."
Bosch experimentou a maçaneta e girou-a. A porta estava destrancada. Assumindo posição de combate, invadiram o apartamento só para descobrirem que estava vazio -
exceto por um enorme papagaio verde numa gaiola na sala de estar. E sobre a mesa da cozinha uma submetralhadora Uzi desmontada e pronta para limpeza. Bosch voltou
até a porta e bateu nela de novo. O papagaio gritou: "Entrem,
entrem."
Poucos minutos mais tarde, quando o suspeito retornou de uma loja de ferragens com o óleo de que precisava para terminar seu trabalho na Uzi, ele foi preso. O laboratório
da balística confirmou que era a arma dos assassinatos e ele foi sentenciado após um juiz
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213
recusar-se a rejeitar os frutos da busca. Embora o réu alegasse que a entrada no apartamento tivesse sido sem permissão e ilegal, o juiz decidiu que Bosch e Sheehan
estavam agindo de boa-fé quando atenderam ao convite do papagaio para entrarem. O caso ainda estava rolando nas cortes de apelação do país, enquanto o assassino
continuava preso.
A porta do passageiro do jipe Cherokee foi aberta e Sheehan embarcou.
- Quando você arranjou este carrão? - perguntou ele.
- Quando eles me botaram para dirigir um bunda-lisa.
- Ah, é. Até me esqueci disso.
- E, vocês figurões da DRH não têm que se preocupar com esta merda.
- Bem, o que me diz? Colocaram o seu na reta com este caso, não é?
- É, é lá que ele está. E como é que estão Margaret e as meninas?
- Estão todas bem. O que vamos fazer? Passear, conversar, o quê?
- Não sei. Ainda existe aquele bar irlandês perto da Van Nuys?
- Não, já era. vou lhe dar uma dica. Pegue a Oxnard e depois siga direto. Tem um barzinho legal lá.
Bosch se afastou do meio-fio e começou a seguir as indicações.
- Eu estava ainda há pouco pensando no caso Louro-quer-umaUzi - disse.
Sheehan riu.
- Esse ainda me faz morrer de rir. Não posso acreditar que o caso ainda esteja rolando. Ouvi dizer que ainda vão tentar o último cartucho... El Supremo Tribunal.
- Vai funcionar. Era para ele já ter levado um tiro, se não estivesse na gaiola... sem trocadilho.
- Bem, quanto tempo faz? Oito anos? Já é alguma coisa, mesmo se o soltarem.
- É, seis assassinatos, oito anos. Parece justo.
- Tudo escória.
- Você ainda gosta de dizer "escória", não é?
- É, sou parcial quanto a isso. Bem, você não subiu a colina só para falar de papagaios, de escória e dos velhos tempos, não é?
- Não, Frankie. Preciso perguntar a você sobre o caso Kincaid.
- Por que a mim?
- Por que não? Você era o detetive encarregado.
- Tudo que sei está nos arquivos. Você devia ter acesso a eles. É o encarregado do caso Elias.
- Eu tive. Mas os arquivos nem sempre contêm tudo. Sheehan apontou para um letreiro em néon vermelho e Bosch
encostou no meio-fio bem em frente à porta do bar.
- Este lugar está quase sempre às moscas - disse Sheehan. Mesmo nas noites de sábado. Não sei como é que o cara sobrevive. Deve estar agenciando putas ou vendendo
maconha por fora.
- Frankie - disse Bosch -, isto fica entre nós dois. Quero saber sobre as impressões digitais. Não quero ter meu rabo chutado lá. Quero dizer, não tenho nenhuma
razão para duvidar de você. Mas quero saber se ouviu alguma coisa, está me entendendo?
Sheehan desceu do Cherokee sem uma palavra e caminhou para a porta. Bosch observou-o entrar e depois o seguiu. O local estava praticamente vazio. Sheehan estava
sentado no bar, O barrwn estava tirando um chope. Bosch sentou na banqueta ao lado do seu exparceiro e disse:
- Manda dois.
Bosch sacou uma nota de vinte e pôs sobre o balcão. Sheehan ainda não olhara para ele desde que ouvira a pergunta.
O barman pousou os canecos congelados sobre guardanapos que anunciavam uma festa para assistir ao Superbowl de quase três meses atrás. Ele pegou a nota de Bosch
e foi até a caixa registradora. Ao mesmo tempo, Bosch e Sheehan tomaram goles generosos dos seus canecos.
- Desde o caso O. J. - comentou Sheehan.
- O que é que tem?
-Você sabe do que estou falando. Desde aquele escândalo, nada mais é sólido. Nem provas, nem policial, nada. Você pode levara prova que quiser a um tribunal e sempre
haverá alguém que pode rasgá-la em farrapos, jogá-la no chão
e mijar em cima. Todo mundo questiona tudo. Até mesmo os tiras. Até mesmo parceiros. Bosch tomou mais um gole do chope antes de falar qualquer coisa.
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- Sinto muito, Frankie. Não tenho nenhum motivo para duvidar de você ou das impressões. Só que, vasculhando essa coisa do Elias, parece que ele ia ao tribunal na
próxima semana com a idéia de provar quem matou a garota. E ele não estava falando de Harris. Alguém...
- Quem?
- Não sei. Mas estou tentando olhar isto do ponto de vista dele. Se ele tinha alguém que não Harris então como diabo estas impressões terminaram no...
- Elias era um idiota escroto. E assim que o enterrarem vou lá uma noite dançar a jiga irlandesa do meu avô em cima do túmulo dele. Depois vou mijar nele e nunca
mais pensar em Elias. Tudo que posso dizer é que foi um puto azar que Harris não tivesse estado junto com ele naquele vagão. Maldito assassino. Teria sido como
acertar a quina, apagar os dois juntos.
Sheehan levantou seu caneco num brinde ao matador de Elias e depois tomou um generoso gole. Bosch podia quase sentir o ódio que irradiava dele.
- Então ninguém fodeu com a cena do crime - disse Bosch. As impressões são legítimas.
- Pra lá de legítimas. O quarto foi isolado pelos patrulheiros. Ninguém entrou antes de eu chegar lá. Então tomei conta de tudo... estávamos lidando com a família
Kincaid e eu sabia o que isto significava. O czar do automóvel é um contribuinte da pesada para os cofres políticos locais. Eu estava sendo rigoroso com tudo. As
impressões estavam no livro de escola da garota... um livro de geografia. Os técnicos conseguiram quatro dedos de um lado e um polegar do outro... como se ele tivesse
pegado o livro pela encadernação. Aquelas impressões estavam perfeitas. O cara devia estar suando como um porco quando as deixou, porque eram impressões perfeitas
de grau A.
Ele esvaziou seu caneco e depois o ergueu para o barman ver que queria outro.
- Não posso acreditar que não se possa mais fumar em nenhuma porra de bar desta cidade - disse Sheehan. - São uma escória de merda.
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- É isso aí.
- Seja como for, fizemos nosso trabalho e Harris dançou. Expresidiário, condenado por agressão, roubo, havia quase tanta razão legítima para suas impressões estarem
naquele quarto quanto eu tinha chance de ganhar na loteria... e eu não fiz a porra do jogo. Então, bingo, pegamos o nosso homem. Fomos prendê-lo. Lembre-se, naquela
ocasião o corpo da garota ainda não tinha sido encontrado. Estávamos agindo na crença de que ela poderia ainda estar viva em algum lugar. Estávamos errados, mas
ainda não sabíamos na ocasião. Assim, o encanamos, o trouxemos para o centro e o pusemos no quarto. Só que este filho da puta não quis nos dizer a hora do dia. Três
dias e nada conseguimos. Nem sequer o levávamos para uma cela à noite, Ele ficou naquele quarto por setenta e duas horas diretas. Trabalhamos em equipes e em turnos
e não podíamos pisar na bola. Ele nunca pediu bulhufas. vou te contar, eu gostaria de matar o puto, mas o respeito por isto. Ele foi o melhor que já enfrentei.
Sheehan tomou dois goles do seu novo caneco de chope. Bosch ainda estava na metade do primeiro. Contentava-se em deixar Sheehan falar e contar a história no seu
próprio ritmo sem interrompê-lo com perguntas.
- No último dia um dos rapazes pisou um pouco na bola. Fez
coisas.
Bosch fechou os olhos. Estivera errado acerca de Sheehan.
- Eu também, Harry.
Ele disse isto de modo prosaico, como sentindo-se aliviado por finalmente
dizê-lo em voz alta. Ele tomou mais do seu chope, rodopiou no seu tamborete e olhou para
o bar como se o estivesse vendo pela primeira vez. Havia uma TV montada num canto, sintonizada
na ESPN.
- Tudo que estou dizendo aqui fica entre nós, não é, Harry?
- Claro.
Sheehan virou-se e se inclinou na direção de Bosch de uma
maneira um tanto conspiratória.
- O que Harris alega ter acontecido... aconteceu. Mas isto não absolve o que ele fez. Ele estupra e estrangula aquela menina;
216
enfiamos um lápis no seu ouvido. Uma merda federal. Ele fica livre e eu sou o novo Mark Fuhrman... um tira racista que plantou uma prova. Eu simplesmente gostaria
que alguém pudesse me dizer como diabo eu poderia ter plantado aquelas impressões digitais.
Ele estava elevando a voz. Por sorte, apenas o barman estava ouvindo.
- Eu sei - disse Bosch. - Desculpe, cara. Eu não devia ter perguntado.
Sheehan continuou como se não tivesse ouvido.
- Imagino que sempre andei carregando por aí um conjunto de impressões digitais que pertenciam a um merda que eu queria ferrar. Então as pus no livro... não me pergunte
como... e voilà, pegamos a escória. Apenas me diga: por que eu escolheria Harris para fazer isto? Jamais conheci o babaca ou tive qualquer coisa a ver com ele.
E não existe ninguém neste planeta que possa provar que fiz isso, porque não há nada para ser provado.
- Você está certo.
Sheehan sacudiu a cabeça e olhou para seu caneco de chope.
- Parei de esquentar a cabeça com merda quando aquele júri chegou e deu o veredicto de inocente. Quando disseram que eu era culpado... quando acreditaram naquele
homem em vez de em nós.
Bosch permanecia em silêncio. Sabia que Sheehan precisava dar sua versão.
- Estamos perdendo a batalha, cara. Vejo isto agora. E tudo um jogo. Esses advogados escrotos, o que eles podem fazer com a gente. com as provas. Desisti, Harry.
Realmente desisti. Já decidi. São vinte e cinco anos e para mim chega. Ainda tenho oito meses e estou fazendo a porra da contagem regressiva. vou jogar a toalha,
me mudar para Blue Heaven e deixar esta porra para toda essa escória.
- Acho que é uma boa idéia, Frankie - disse Bosch em voz baixa. Não podia pensar em mais nada para dizer. Estava magoado e
espantado por ver seu amigo em um completo estado de ódio e cinismo. Ele entendia isso, mas estava totalmente surpreso com o fato que o levou a ficar daquele jeito.
Também estava desapontado e particularmente embaraçado por ter defendido Sheehan com tanta veemência perante Carla Entrenkin.
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- Eu me lembro do último dia - disse Sheehan. - Estava lá com ele. No quarto. E eu estava tão puto da vida que só queria puxar minha arma e matar aquele merda.
Mas sabia que não podia. Porque ele sabia onde ela estava. Ele tinha a garota!
Bosch limitou-se a assentir.
- Tínhamos tentado tudo e não conseguimos nada. Ele nos desmontou antes que conseguíssemos desmontá-lo. Cheguei ao ponto de implorar a ele que nos contasse. Foi
embaraçoso, Harry.
- E o que ele fez?
-Ficou apenas olhando para mim como se eu não existisse. Não dizia nada. Não fazia nada. E então... então a raiva me dominou... não sei explicar como. Foi como um
osso entalado na garganta. Como nunca tinha acontecido antes. Havia uma lata de lixo no canto do quarto. Fui até ela, puxei o saco para fora e o enfiei na porra
da cabeça dele. E o apertei em volta do seu pescoço, e o segurei, segurei e...
Sheehan começou a chorar, tentando terminar.
- ... e eles... eles tiveram que me puxar de cima dele. Ele pousou os cotovelos no balcão do bar e pressionou os pulsos nos olhos. Por um longo tempo não se moveu.
Bosch viu uma gota cair do seu queixo dentro do chope. Pôs a mão no ombro do velho parceiro.
- Está tudo bem, Frankie.
Sem tirar as mãos do rosto, Sheehan falou:
- Você vê, Harry, eu me tornei a própria coisa que passei todos esses anos caçando. Eu queria matar o sujeito lá naquela hora. E teria feito isso se meus homens
não
tivessem chegado. Nunca vou conseguir esquecer aquilo.
- Está tudo bem, cara.
Sheehan bebeu mais chope e pareceu um tanto recuperado.
- Depois que fiz aquilo, a porta se escancarou. Os outros rapazes fizeram aquela coisa com o lápis... perfuraram a porra do tímpano dele, Nós todos nos tornamos
monstros. Como no Vietnã, barbarizando nas aldeias. Provavelmente teríamos matado ele, mas sabe o que o salvou? A garota. Stacey Kincaid o salvou.
-Como assim?
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- Encontraram o corpo. Recebemos o aviso e fomos para a cena. Deixamos Harris numa cela. Vivo. Ele teve sorte de o aviso ter vindo quando veio.
Ele parou para tomar outro gole de chope.
- Fui até lá... a apenas um quarteirão da casa de Harris. Ela já estava em alta decomposição, os jovens se deterioram rápido. Mas eu me lembro de como ela parecia.
Como um pequeno anjo, os braços abertos como se estivesse voando...
Bosch recordou as fotos dos jornais. Stacey Kincaid tinha sido uma garotinha muito bonita.
- Harry, me deixe sozinho agora - disse Sheehan baixinho. vou voltar a pé.
- Não, eu dou uma carona para você.
- Não, obrigado. vou andando.
- Tem certeza de que está bem?
- Estou ótimo. Apenas um pouco confuso. Só isso. Todo este papo vai ficar entre nós, certo?
- Até o fim, cara.
Sheehan tentou um sorriso fraco. Mas ele ainda não olhava para Bosch.
- Você me faz um favor, Hieronymus.
Bosch se lembrava de quando tinham sido uma equipe. Eles só usavam seus nomes formais, Hieronymus e Francis, quando estavam falando sério e de coração.
- Claro, Francis. O quê?
- Quando você encontrar o cara que apagou Elias, seja ele um policial ou não, aperte a mão dele por mim. Diga a ele que é o meu herói. Mas diga, também, que ele
perdeu uma boa chance. Devia ter pegado o Harris também.

Meia hora mais tarde Bosch abriu a porta de sua casa. Encontrou a cama vazia. Mas desta vez estava cansado demais para ficar acordado à espera de Eleanor. Começou
a despir suas roupas e a pensar nos seus planos para o dia seguinte. Ele finalmente sentou-se na
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cama, pronto para dormir, e esticou o braço apagando a luz. No momento em que ficou na escuridão, o telefone tocou. Reacendeu a luz e atendeu.
- Seu sacana.
Uma voz de mulher - familiar, mas não conseguia situá-la.
- Quem é?
- Carla Entrenkin, quem você acha? Pensa que eu não ia sabér o que você fez?
- Não sei do que você está falando. O que aconteceu?
- Simplesmente assisti ao Canal Quatro. Seu chapinha Harvey Button.
- O que ele fez?
- Oh, fez uma lambança geral. Vamos ver se posso citá-lo corretamente. "Um elo entre Elias e um círculo de prostituição via Internet foi descoberto no escritório
de Elias, diz uma fonte próxima à investigação. Acredita-se, segundo esta fonte, que Elias pode ter tido ligações com pelo menos uma das mulheres que anunciava
seus serviços como dominadora no site." Acho que isto resume tudo. Espero que esteja feliz.
- Eu não...
- Não se incomode.
Ela desligou. Bosch ficou um longo tempo ali sentado, pensando no que ela dissera.
- Chastain, seu escroto - disse em voz alta.
Apagou a luz de novo e caiu de volta na cama. Logo estava adormecido e tendo o mesmo sonho outra vez. Estava viajando no Vôo dos Anjos, subindo. Só que agora havia
uma garotinha loura sentada do outro lado do corredor. Ela olhava para ele com olhos tristes e vazios.
Capítulo 21
Uma surpresa aguardava Bosch quando ele empurrou o carrinho empilhado com as caixas contendo os arquivos através da porta da sala de reunião do subchefe Irving.
Eram quinze para as oito da manhã de domingo. Seis agentes do FBI já se amontoavam na sala, à espera. A surpresa foi o agente líder, que se adiantou, a mão estendida
e um sorriso no rosto.
- Harry Bosch - disse o homem.
- Roy Lindell - replicou Bosch.
Bosch empurrou o carrinho até a mesa e apertou a mão do homem.
- Você está nisso? O que aconteceu com a CO?
- A divisão do crime organizado estava ficando monótona. Especialmente depois do caso Tony Aliso. Difícil resolver aquele, não acha?
- Claro.
Dois anos antes eles haviam trabalhado no assassinato de Aliso
- o caso "Música no porta-malas", segundo a mídia local. Bosch e Lindell tinham começado como adversários, mas quando o caso foi concluído em
Las Vegas havia um respeito entre os dois que certamente não era partilhado entre as duas agências para as quais trabalhavam. Bosch imediatamente assumiu a designação
de Lindell para
o caso Elias como um bom sinal.
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- Ouça - disse Lindell. - Acho que só temos uns poucos minutos. Vamos tomar um café e falar sobre algumas coisas?
- Parece um plano.
Enquanto desciam para o hall do elevador encontraram Chastain, que se dirigia para a sala de reunião. Bosch apresentou Lindell.
- Vocês vão tomar café? vou com vocês.
- Não, está tudo bem - disse Bosch. - Temos algumas coisas para conversar... e não quero que saiam da boca de Harvey Button no noticiário mais tarde. Sabe a que
me refiro?
- Não sei do que está falando, Bosch.
Bosch não disse nada. Chastain olhou para Lindell e depois de
volta para Bosch.
- Esqueçam o café - disse ele. - Não preciso de estimulantes
artificiais, de qualquer modo.
Quando ficaram a sós esperando o elevador, Bosch preveniu Lindell acerca de Chastain.
- Ele está vazando - disse. - Viu o Canal Quatro a noite passada?
- A coisa da dominadora da Internet?
- É. Seis pessoas sabiam daquilo. Eu, meus dois parceiros, Chastain, Carla Entrenkin e o subchefe Irving. Ponho a mão no fogo pelos meus parceiros e duvido que Carla
deixasse vazar algo negativo sobre Elias. Tanto Irving quanto Chastain falaram com Harvey Button. Aposto em Chastain. Irving tentou esconder as coisas desde o início.
- Bem, a história era babaquice ou o quê?
- Parece que sim. Não podemos estabelecer uma ligação. Quem quer que tenha vazado fez isso para difamar Elias, aumentando um
pouco as coisas.
-vou ficar de olho nele. Mas você sabe que vazamentos às vezes
não vem da fonte mais óbvia.
O elevador se abriu e Lindell entrou, deixando Bosch ali parado, pensando sobre Irving e se era possível ser ele a fonte do
vazamento.
- Você vem? - perguntou Lindell.
Bosch entrou no elevador e apertou o botão para o terceiro andar.
- Você viu os noticiários esta manhã? - perguntou Lindell. -
Como estão indo as coisas lá?
- Até agora bem. Dois incêndios a noite passada, mas foi tudo. Nada de saques e está tudo muito tranqüilo agora. Parece que vai haver chuva amanhã. Talvez ajude.
Entraram na cafeteria e levaram seus cafés para uma mesa. Bosch consultou o relógio e viu que faltavam cinco para as oito. Olhou para Lindell.
- Então? Lindell riu.
- Então qual é a prova? Vamos partilhar esta coisa ou o quê?
- É. Consegui um bom acordo para você, Roy. Um bom acordo.
- Vamos ouvi-lo.
- Você pode assumir o caso. Eu recuo e deixo que dirija o espetáculo. Só quero uma coisa. Quero que minha equipe conduza o caso original. Stacey Kincaid. Vamos pegar
o registro original do assassinato e revisar tudo que a DRH fez no caso. Depois pegamos tudo que Elias fez e seguimos daí.
Os olhos de Lindell estreitaram seu foco enquanto ele imaginava o que aquilo significava. Bosch continuou:
- Parece que o plano de Elias era ir ao tribunal esta semana e tentar provar que Michael Harris não a matou. Ele ia anunciar o nome do assassino e...
- Quem?
- Essa é que é a pergunta crucial. Não sabemos. Ele estava mantendo isto na cabeça em vez de nos arquivos. Mas é por isto que quero o caso. Porque, se ele tinha
uma pista sobre alguém, esse alguém é um suspeito muito bom para as mortes no Vôo dos Anjos.
Lindell olhou para seu café fumegante e ficou calado por um bom tempo.
- Parece mais babaquice de advogado. Jogando para a platéia. Como é que ele ia descobrir o assassino se vocês no departamento não descobriram? Isto é, se realmente
o assassino não foi Michael Harris, como acreditam todos os tiras e brancos nesta cidade.
223
Bosch deu de ombros.
- Mesmo se ele estivesse errado... mesmo se fosse dar o nome de alguém como uma cortina de fumaça, com isso pode ter se transformado em um alvo.
Intencionalmente, Bosch não estava contando tudo a Lindell
- em especial os bilhetes misteriosos. Queria que o agente do FBI pensasse que ele e sua equipe estariam à caça de arco-íris enquanto ele comandaria a verdadeira
investigação.
- Então você cuida disso e eu corro atrás dos maus policiais. E
este o acordo?
- Exatamente. Chastain deve ter um bom ponto de partida para você. Para começar, ele é que está mais por dentro daquela coisa do Guerreiro Negro. Ele conduziu a
investigação da DAI a
respeito. E...
- É, mas ele inocentou todo mundo.
- Talvez tenha feito merda. Ou talvez tenha recebido ordens
para limpar a barra de todo mundo.
Lindell assentiu, como a dizer que entendia a sugestão.
- E também coube à equipe dele vasculhar os arquivos de Elias ontem e fazer uma lista. E eu simplesmente trouxe mais cinco caixas de arquivos. A partir de tudo isto
você obterá uma lista de caras com quem falar, Acho que está de bom tamanho para você.
- E se está de bom tamanho para mim, por que está me dando esta parte das coisas de mão beijada?
- Porque sou um bom moço.
- Bosch, você está enrolando.
- Apenas tive um palpite, só isso.
- Isso o quê? Realmente armaram para cima de Harris?
- Não sei. Mas alguma coisa não está batendo no caso. Quero
descobrir o que é.
- Enquanto isso, eu fico amarrado com Chastain e sua equipe.
- Isso aí. Este é o acordo.
- Bem, e o que é que vou fazer com eles? Você acabou de me
dizer que Chastain é um vazadouro.
- Diga para eles irem tomar um café e depois fuja e se esconda.
Lindell riu.
224
- Isto é o que eu faria - disse Bosch e depois tornou a ficar sério.
- Coloquei dois deles em cima de Elias e dois em cima de Catalina Perez. Você sabe, cuidando da papelada, das provas materiais, das autópsias... isso provavelmente
vai levar todo o dia de hoje. Isto vai mantê-los ocupados e fora do seu caminho. Se isto é deles ou não, não importa, você vai conseguir pôr pelo menos um deles
em cima de Catalina Perez. Nós a consideramos uma queima de arquivo, o que obviamente foi. Mas você tem de fazer a devida diligência a este respeito ou isso pode
se voltar contra você, se algum dia for ao tribunal e o advogado perguntar por que Catalina Perez não foi investigada como o alvo principal.
- Certo, certo. Precisamos cobrir todas as bases.
- Exatamente.
Lindell assentiu mas não disse mais nada.
- E então, trato feito? - apressou-se Bosch.
- Feito. Soa como um plano para mim. Mas quero saber o que você e seu pessoal estão fazendo. Mantenha contato.
- Conte com isso. Ah, a propósito, um dos caras da DAI é um hispânico. Fuentes. Deixe que ele cuide de Catalina Perez.
Lindell assentiu e se levantou da mesa. Deixou seu café lá, intocado. Bosch levou sua xícara com ele.
Ao passar pela ante-sala a caminho da sala de reunião de Irving, Bosch notou que o assistente do subchefe não estava em sua mesa. Ele tinha um bloquinho de telefones
sobre o mata-borrão. Esticou o braço e pegou enquanto passava. Colocou-o no bolso e entrou na sala de reunião.
Os parceiros de Bosch e os homens da DAI estavam agora na sala, bem como Irving. A sala estava apinhada. Após algumas breves apresentações, a palavra foi passada
a Bosch, que pôs os recém-chegados e Irving a par do andamento da investigação até aquele ponto. Contou detalhes específicos sobre a visita ao apartamento de Regina
Lampley, fazendo aquela parte da investigação parecer um beco sem saída. Também não mencionou sua conversa reservada com Frankie Sheehan. Ao terminar acenou para
Irving, que então tomou a palavra. Bosch foi até a parede e apoiou-se ao lado de um quadro de avisos que Irving aparentemente instalara para uso dos investigadores.
225
Irving começou a falar das tensões políticas que cercavam o caso como zonas de pressão que antecipavam tempestades. Ele mencionou que passeatas de protesto estavam
marcadas para aquele dia em frente às três delegacias de polícia da zona sul e no Parker Center. Acrescentou que o conselheiro municipal Royal Sparks e o reverendo
Preston Tuggins estavam programados como convidados daquela manhã no programa de debates na TV chamado Talk of LA. Ele disse que o chefe de polícia se encontrara
com Tuggins e outros líderes religiosos do South Central na noite anterior para pôr panos quentes e instá-los a pedir calma e contenção do alto dos púlpitos durante
os sermões da manhã.
- Estamos sentados em cima de um barril de pólvora aqui, rapazes - disse Irving. - E a maneira de desativá-lo é resolver este caso de um modo ou de outro... rapidamente.
Enquanto ele falava, Bosch pegou o bloquinho de telefones e escreveu nele. Depois verificou a sala para certificar-se de que todos os olhos se concentravam em Irving
e silenciosamente rasgou a folha de cima. Esticou o braço e a prendeu com uma tacha no quadro de avisos e depois, descontraidamente, andou centímetro por centímetro
junto à parede, afastando-se do quadro. A folha que havia pregado no quadro tinha o nome de Chastain escrito nela. Na seção de mensagem dizia: "Harvey Button ligou
e agradeceu pela
dica. Irá ligar mais tarde."
Irving encerrou seus comentários com uma menção acerca da
reportagem do Canal Quatro.
- Alguém nesta sala vazou ontem informação para um repórter de TV. Estou avisando a vocês que não vamos tolerar mais isto. Foi a última vez. Mais um vazamento e
vocês serão os únicos sob
investigação.
Ele olhou em torno da sala para os rostos do DPLA, para ter
certeza de que a mensagem havia sido clara.
- Muito bem, isto é tudo - disse por fim. - vou deixar por conta de vocês. Detetive Bosch, agente Lindell? Ao meio-dia gostaria de ser posto a par do nosso progresso.
-Não tem problema, chefe - disse Lindell antes que Bosch pudesse responder. - vou falar com o senhor ao meio-dia.
226
Quinze minutos depois Bosch descia de novo o corredor para os elevadores. Edgar e Rider vinham atrás.
- Harry, para onde estamos indo? - perguntou Edgar.
- Vamos trabalhar na delegacia de Hollywood.
- O quê? Fazendo o quê? Quem é que vai ficar dirigindo o espetáculo?
- Lindell. Fiz um acordo com ele. Ele dirige o espetáculo. Nós fazemos algo mais.
- Isto me agrada - disse Edgar. - Aqui já tem índios demais, e muito mais caciques dando ordens.
Bosch chegou aos elevadores e apertou o botão de chamada.
- O que exatamente estamos fazendo, Harry? - perguntou Rider. Ele virou-se e encarou seus parceiros.
- Recomeçando tudo - disse.
Capítulo 22
A sala do esquadrão estava completamente vazia, o que era raro, até mesmo num domingo. com o plano de prontidão doze-por-doze, todos os detetives não designados
para investigações urgentes estariam uniformizados e nas ruas. A última vez em que tal disposição de efetivo tinha sido posta em prática foi depois de um terremoto
que assolou a cidade em 1994- O assassinato de Elias foi um cataclismo mais social do que geológico, mas sua magnitude foi igualmente grande.
Bosch carregava a caixa contendo os arquivos de Elias sobre o caso Guerreiro Negro para o que eles chamavam de a mesa de homicídios, um monte de escrivaninhas empurradas
umas contra as outras para criar uma enorme mesa tipo sala de conselho. A seção pertencente à equipe um, a equipe de Bosch, estava no final, perto de um nicho de
arquivos de metal. Ele depositou a caixa no meio, onde se juntavam as três mesas da sua equipe.
- Comecem - disse ele.
- Harry... - disse Rider, descontente com esta falta de rumo.
- Muito bem, ouçam, o que eu quero é o seguinte. Kiz, você fica no comando do barco, jerry e eu vamos sair em campo.
Rider resmungou. Comando do barco significava que ela seria a guardiã dos fatos. Ela ficaria familiarizada com todas as facetas dos arquivos, um compêndio ambulante
dos detalhes da investigação.
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Uma vez que estavam começando com uma caixa repleta de arquivos, era um bocado de trabalho. Também significava que não iria fazer muita coisa, se é que faria alguma,
na investigação de campo. E nenhum detetive gosta de ficar plantado o dia inteiro num escritório vazio e sem janelas.
- Eu sei - disse Bosch. - Mas acho que você é a melhor para isto. Temos uma tonelada de papel aqui e a sua mente e o seu computador são os melhores para rastrear
esta tralha.
- Na próxima vez eu fico no campo.
- Pode não haver uma próxima vez se não fizermos alguma coisa desta vez. Vamos ver o que temos aqui.
Passaram a hora e meia seguinte vasculhando os arquivos de Elias sobre o caso de Harris, apontando itens específicos um para o outro quando pareciam requerer atenção,
outras vezes devolvendo as pastas à caixa quando não tinham importância evidente.
Bosch passou seu tempo com os arquivos específicos que Elias intimara o DPLA a fornecer. Ele tinha uma cópia de todo o livro de homicídios da DRH. Ao ler os resumos
investigativos diários sobre Sheehan e outros detetives da DRH, Bosch notou que o caso inicialmente parecia carecer de um foco. Stacey Kincaid tinha sido levada
do seu quarto à noite, seu raptor arrombara a fechadura de uma janela do quarto com uma chave de fenda e depois arrebatara a garota enquanto ela dormia. Suspeitando
inicialmente de alguém da casa, os detetives interrogaram os jardineiros, o responsável pela piscina, o homem da manutenção, um encanador que fizera um serviço na
casa duas semanas antes, bem como lixeiros e carteiros cuja rota incluía a residência Kincaid em Brentwood. Professores, zeladores e até mesmo colegas da escola
particular de Stacey em West Hollywood foram interrogados. Mas a ampla rede lançada por Sheehan e seus parceiros foi recolhida depois que o laboratório apresentou
a comparação das impressões digitais entre o livro escolar da garota desaparecida e as de Michael Harris. O caso então mudou para focalizar-se por completo em localizar
Harris, prendê-lo e depois tentar fazê-lo confessar o que tinha feito com a garota.
A segunda seção do arquivo também abordava a investigação da cena do crime e os esforços para ligar Harris ao corpo por meio
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de análise científica e tecnologia. Isto resultou num beco sem saída. O corpo da garota fora encontrado por dois sem-teto em um terreno baldio. O corpo estava nu
e horrivelmente decomposto após quatro dias. Parecia que tinha sido lavado após a morte e, portanto, carecia de qualquer prova microscópica significativa que pudesse
ser analisada e ligada ao apartamento ou ao carro de Harris. Embora a garota parecesse ter sido estuprada, não foi possível recuperar quaisquer fluidos corporais
pertencentes ao seu agressor. A ligadura usada para estrangulá-la tinha sido cortada pelo seu matador e também jamais foi encontrada. No final, as únicas
provas a ligar Harris ao crime foram as impressões digitais encontradas no livro no quarto de Stacey e a desova do corpo no terreno baldio a menos de dois quarteirões
do apartamento dele.
Bosch sabia que geralmente isto mais do que bastava para valer uma condenação. Havia trabalhado em casos que resultaram em condenação com provas ainda menores.
Mas isto foi antes do caso O. J. Simpson, antes que os jurados olhassem para a polícia de Los Angeles com olhos suspeitosos e condenadores.
Bosch estava escrevendo uma lista de coisas a fazer e pessoas a ser interrogadas quando Edgar gritou:
- Eureka!
Bosch e Rider olharam para ele e esperaram por uma explicação.
- Lembram-se dos bilhetes misteriosos? - disse Edgar. - O segundo ou o terceiro, que dizia que o emplacamento provava a inocência dele?
- Esperem um segundo - disse Bosch.
Ele abriu sua pasta e tirou o arquivo que continha os bilhetes.
- O terceiro. "O emplacamento prova sua inocência." Chegou em cinco de abril. com a palavra inocência escrita errado.
- OK, aqui está o arquivo de Elias sobre apresentações de intimação. Consegui um aqui datado de quinze de abril para Hollywood Wax and Shine. É o lavajato onde Harris
trabalhava antes que o prendessem. E procura... citação... "cópias de todos os registros e recibos de pedidos de clientes e contas contendo os números de emplacamento
dos ditos clientes entre as datas de primeiro de abril e quinze de junho do último ano". Era sobre isto que o bilhete devia estar falando.
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Bosch se reclinou na sua cadeira para pensar a respeito.
- Isto é uma apresentação de intimação, certo? Foi aprovada.
- Certo.
- Bem, primeiro de abril e quinze de junho, o que dá setenta e cinco dias. Há...
- Setenta e seis dias - corrigiu Rider.
- Setenta e seis dias. Deveria haver uma montanha de recibos. Não temos nenhum aqui e não havia nenhum no escritório que eu visse. Deveria haver caixas de recibos.
- Talvez ele os tenha devolvido - disse Edgar.
- Você disse que ele requisitou cópias. Edgar sacudiu os ombros.
- Outra coisa, por que aqueles dias? - perguntou Bosch. - O assassinato da garota foi em doze de julho. Por que ele não requisitou os recibos até esta data?
- Porque ele sabia o que estava procurando - disse Rider. - Ou sabia dentro dos parâmetros daquelas datas.
- Sabia o quê?
Eles caíram em silêncio. A mente de Bosch repassava o quebracabeça, mas só encontrava o vazio. A pista da placa do carro era ainda tão misteriosa quanto o indício
de Lady Regina. Então, ao juntar os dois mistérios, ele deparou com alguma coisa.
- Pelfry de novo - disse. - Precisamos falar com ele. Levantou-se.
-Jerry, pegue o telefone. Veja se consegue localizar Pelfry e marque uma entrevista tão logo o encontre. vou me ausentar por alguns minutos.
Normalmente, quando Bosch dizia a seus parceiros que ia se ausentar, isto significava que iria sair do prédio. Enquanto caminhava para a porta de trás, Rider o chamou.
- Harry, não faça isto. Ele acenou sem se virar.
- Não se preocupe, não vou fazer.
Lá fora, Bosch parou e olhou em torno. Ele sabia que tivera alguns dos seus melhores raciocínios analíticos enquanto ficava de pé ali fora, fumando. Esperava poder
reunir alguns pontos agora,
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sem ajuda de um cigarro. Olhou para o pote de areia que os fumantes usavam e viu um cigarro fumado pela metade se projetando da areia. Havia batom no filtro. Decidiu
que ainda não estava tão desesperado para fumá-lo.
Pensou sobre os bilhetes misteriosos. Sabia que por causa dos carimbos postais e as marcações feitas por Elias eles tinham os números dois, três e quatro, mas não
o primeiro bilhete. O significado do quarto bilhete - o aviso que Elias estava levando com ele - era óbvio. O terceiro bilhete dava-lhe agora uma linha a seguir,
graças à apresentação de intimação encontrada por Edgar. Mas o segundo bilhete -pôr pingo no i humbert humbert - ainda não fazia sentido para Bosch.
Olhou de novo para o cigarro se projetando da areia, porém
mais uma vez o descartou. Lembrou-se de que, de qualquer modo,
não tinha isqueiro nem fósforos.
De súbito ocorreu-lhe que a única outra peça do quebra-cabeça
que parecia continuar não fazendo nenhum sentido, pelo menos
até então, era a conexão Lady Regina - qualquer que fosse.
Bosch voltou-se e retornou rapidamente para dentro. Edgar e
Rider tinham as cabeças abaixadas sobre a papelada quando ele
chegou à mesa. Bosch começou imediatamente a olhar através das
pilhas de arquivos.
- Quem está com o arquivo de Lady Regina?
- Aqui está - disse Edgar.
Ele passou o arquivo. Bosch o abriu e tirou a foto impressa da profissional de sadomasoquismo. Depois a depositou junto a um dos bilhetes misteriosos e tentou fazer
uma comparação entre a letra de fôrma do bilhete e a que havia abaixo da foto - o endereço da página na rede. Era impossível para ele determinar se a mesma mão escrevera
ambas as linhas. Não era nenhum especialista e não havia quaisquer anomalias óbvias nas letras de fôrma para se fazer uma comparação fácil.
Quando Bosch retirou sua mão da página impressa, suas extremidades superior e inferior se elevaram dois centímetros do tampo da mesa, dizendo-lhe que alguma vez
a página tinha sido dobrada, como se para ser posta num envelope.
- Acho que este é o primeiro bilhete - disse.
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Bosch havia descoberto com freqüência que quando fazia uma ruptura lógica era como limpar um bloqueio num escoadouro. O cano estava aberto e outras rachaduras logo
sobrevinham. Isto acontecia agora. Ele viu o que poderia ter e talvez o tivesse visto o tempo todo.
- Jerry, ligue para a secretária de Elias. Agora. Pergunte a ela se Elias tinha uma impressora a cores no escritório. Devíamos ter visto isso... eu devia ter
visto.
- Visto o quê?
- Apenas ligue para ela.
Edgar começou a procurar pelo número num caderninho de telefones. Rider levantou-se de seu posto e aproximou-se de Bosch. Olhou para a folha impressa. Agora estava
sintonizada com Bosch. Via para onde ele estava indo.
- Este era o primeiro - disse Bosch. - Só que ele não guardou o envelope porque achava que fosse lixo postal.
- Mas provavelmente era - disse Edgar com o fone no ouvido.
- Estávamos lá, a mulher não conhecia o homem e não sabia que diabo nós...
Ele parou e ouviu sua ligação ser completada.
- Sra. Quimby? Aqui é o detetive Edgar, que falou com a senhora ontem. Tenho uma pergunta rápida a lhe fazer. Sabe se havia uma impressora a cores no escritório?
Uma impressora que pudesse imprimir coisas de um dos computadores. Em cores.
Ele esperou e ouviu, seus olhos em Bosch e Rider.
- Obrigado, sra. Quimby. Ele desligou.
- Nada de impressora a cores.
Bosch assentiu e olhou para a imagem de Lady Regina.
- Devíamos ter percebido isso ontem - disse Rider.
Bosch assentiu e começou a perguntar a Edgar se ele havia contactado Pelfry, o investigador particular, quando seu pager tocou. Ele puxou-o do seu cinto. Era o número
de sua casa. Eleanor.
- Falei com ele, sim - disse Edgar. - Marcamos para amanhã ao meio-dia no escritório dele. Não mencionei nada acerca de recibos ou dessa Regina. Só disse que precisávamos
conversar.
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-OK.
Bosch pegou seu telefone e ligou para casa. Eleanor atendeu ao
terceiro toque. Parecia sonolenta ou triste.
- Eleanor. -Harry.
- Está tudo bem?
Ele deslizou de volta ao seu assento e Rider voltou para O dela.
- Estou bem... eu apenas...
- Quando chegou?
- Há poucos instantes.
-Ganhou?
- Na verdade nem joguei. Depois que você ligou para mim a
noite passada... estou indo embora.
Bosch inclinou-se à frente e pôs um cotovelo sobre a mesa, uma
das mãos contra a testa.
- Bem... para onde vai?
- Para um hotel... Harry, só voltei para pegar algumas roupas e
coisas. Eu...
- Eleanor?
Houve um longo silêncio na linha. Bosch ouviu Edgar dizer que ia tomar um café na sala do plantonista. Rider disse que ia com ele, embora Bosch soubesse que ela
não tomava café. Tinha um sortimento de chás naturais na gaveta de sua mesa.
- Harry, não é direito - disse Eleanor.
- Do que está falando, Eleanor?
Seguiu-se outro longo momento de silêncio antes que ela respondesse.
- Estava pensando sobre aquele filme que vimos no ano passado. Sobre oTitanic.
- Eu lembro.
- E da garota nele. Ela se apaixonou por aquele rapaz, que ela tinha acabado de conhecer no navio. E foi... quero dizer, ela o amava demais. Tanto que no fim ela
não quis ser resgatada. Ela não embarcaria no bote salva-vidas se não fosse junto com ele.
- Estou lembrado, Eleanor.
234
Ele se recordava de Eleanor chorando no cinema e de ele ter sorrido, incapaz de entender como um filme pudesse afetá-la daquela maneira.
- Você chorou.
- Sim. E porque todo mundo quer aquele tipo de amor. E, Harry, você merece isto de mim. Eu...
- Não, Eleanor, o que você me dá é mais do que...
- Ela pulou de um salva-vida de volta ao Titanic, Harry. - Ela riu um pouco, mas o riso soou triste para Bosch. - Acho que ninguém jamais pode superar isso.
- Você está certa. Ninguém pode. Por isso é que era um filme. Ouça... você é tudo que já desejei, Eleanor. Você não tem que fazer nada por mim.
- Sim, eu tenho. Tenho... eu amo você, Harry. Mas não o suficiente. Você merece coisa melhor.
- Eleanor, não... por favor. Eu...
- vou embora por algum tempo. Pensar sobre coisas.
- Você me espera aí? Estarei em casa em quinze minutos. Podemos conversar sobre...
- Não, não. Foi por isso que liguei para o pager. Não posso fazer isto pessoalmente.
Ele podia dizer que ela estava chorando.
- Bem, estou chegando aí.
- Não vai me achar - disse ela com urgência. - Botei as coisas no carro antes de ligar para você. Sabia que tentaria vir.
Bosch pôs as mãos sobre os olhos. Queria estar na escuridão.
- Onde você vai ficar?
- Ainda não sei. - Vai telefonar?
- vou, sim.
- Você está bem?
- Eu... vou ficar ótima.
- Eleanor, eu amo você. Sei que nunca disse isto o bastante, mas eu...
Ela fez um som de "psit" ao telefone e ele parou.
- Amo você, Harry, mas preciso fazer isto.
235
Após um longo momento, durante o qual sentiu um profundo dilaceramento interior, ele disse:
- Tudo bem, Eleanor.
O silêncio que se seguiu foi tão escuro quanto o interior do caixão. Seu caixão.
- Adeus, Harry - disse ela finalmente. - A gente se vê.
Ela desligou. Bosch tirou sua mão do rosto. Na sua mente via uma piscina, sua superfície tão lisa quanto um cobertor numa cama. Ele se lembrou de um tempo há muito
passado quando lhe disseram que sua mãe estava morta e que ele se encontrava sozinho no mundo. Ele correu até aquela piscina e se deixou afundar debaixo da tranqüila
superfície, na sua água morna. No fundo, ele gritou até perder o fôlego e seu peito doer. Até que teve de escolher entre permanecer no fundo e morrer ou subir à
tona e viver.
Bosch ansiava por aquela piscina e sua água morna. Queria gritar até os pulmões explodirem dentro dele. -TudoOK?
Ele olhou para cima. Eram Rider e Edgar. Este trazia uma xícara de café fumegante. Rider tinha um ar que dizia que ela estava preocupada ou talvez mesmo assustada
pelo aspecto que via no rosto de Bosch.
- Tudo tranqüilo - disse Bosch. - Tudo ótimo.
Capítulo 23
Tinham uma hora e meia para gastar antes do encontro com Pelfry Bosch mandou Edgar dirigir até o Hollywood Wax & Shine, no Sunset, não muito longe da delegacia.
Edgar estacionou junto ao meio-fio e eles ficaram sentados no carro, observando. O movimento estava fraco. A maioria dos atendentes em macacões alaranjados que secavam
e poliam os carros por um salário mínimo mais gorjetas, estava sentada por ali, estopas drapejando sobre seus ombros, a espera. A maioria deles olhou malignamente
para o bunda-lisa como se a policia estivesse vindo acusá-los.
- Acho que as pessoas não estão muito interessadas em lavar seus carros quando correm o risco de tê-los virados ou incendiados
- disse Edgar.
Bosch não respondeu.
- Aposto que todos eles gostariam de estar no lugar de Michael Harris - continuou Edgar, olhando de volta para os atendentes. Diabo, eu bem que aturaria três dias
numa sala de interrogatório e um lápis enfiado no ouvido para ficar milionário.
- Então você acredita nele - disse Bosch.
Bosch não contara a ele sobre a confissão de Frankie Sheehan num balcão
de bar.
Edgar ficou Um momento calado e depois assentiu:
- É, Harry, acho que estou quase acreditando.
237
Bosch imaginou como ele pudera ter sido tão cego a ponto de sequer ter considerado que a tortura de um suspeito poderia ser verdade. Especulou sobre o que estaria
havendo com Edgar que o fizera aceitar a história do suspeito em detrimento daquela dos policiais. Era a sua experiência como um tira ou como um negro? Bosch presumiu
que devia ser a segunda hipótese e isto o deprimiu, porque dava a Edgar uma vantagem que ele nunca teria.
- vou até lá falar com o gerente - disse Bosch. - Talvez seja melhor você ficar no carro.
- Que se foda. Ninguém vai tocar nele. Os dois saltaram e trancaram o carro.
Enquanto caminhavam para o escritório, Bosch pensou sobre os macacões alaranjados e especulou se era coincidência. Apostava que a maioria dos funcionários de lavajato
era formada de ex-presidiários ou recém-saídos de cadeias do condado - instituições onde também tinham de usar macacões alaranjados.
Dentro da loja Bosch pediu uma xícara de café e perguntou pelo gerente. O caixa apontou corredor abaixo para uma porta aberta. A caminho pelo corredor, Edgar disse:
- Eu preferia uma Coca, mas acho que não poderia beber uma Coca depois do que vi a noite passada no armário daquela puta.
Um homem estava sentado a uma mesa no pequeno escritório sem janelas com os pés em cima de uma das gavetas abertas. Ele olhou para Bosch e Edgar e disse:
- Muito bem, policiais, o que posso fazer por vocês?
Bosch sorriu à dedução do homem. Sabia que ele devia ser parte comerciante e parte agente de condicional. Se os atendentes eram ex-condenados, aquele era o
único trabalho que poderiam conseguir. O que significava que o gerente tinha visto sua parcela de tiras e sabia como identificá-los. Ou isso ou os vira desembarcar
do
bunda-lisa.
- Estamos trabalhando num caso - começou Bosch. - O caso
Howard Elias.
O gerente assoviou.
- Poucas semanas atrás ele requisitou alguns dos seus registros. Recibos que tivessem o número das placas. Sabe de algo a respeito?
238
O gerente ficou pensando por alguns momentos.
- Tudo que sei é que tive de preparar tudo e tirar cópias para o homem dele.
- O homem dele? - perguntou Edgar.
- É, você acha que um cara como Elias vai cuidar dessa porcaria? Ele mandou alguém. Deixou este cartão.
Ele baixou os pés e abriu a gaveta da escrivaninha. Havia uma pilha de cartões comerciais presos com um elástico. Ele retirou o elástico, folheou os cartões e selecionou
um, que mostrou a Bosch.
- Pelfry? - perguntou Edgar. Bosch assentiu.
- Este cara disse exatamente o que estavam procurando em toda essa coisa? - perguntou.
- Não sei. Você vai ter de perguntar a eles. Ou melhor, perguntar a Pelfry.
- Pelfry já voltou para devolver os recibos?
-Não. De qualquer modo, eram cópias. Quero dizer, ele voltou mas não trouxe os recibos.
- Então por que voltou? - perguntou Edgar.
- Ele queria um dos velhos cartões de ponto do Michael Harris. Do tempo em que trabalhou aqui.
- Qual deles? - perguntou Edgar, um tom de urgência na voz.
- Não me lembro, cara. Dei a ele uma cópia. Vai ter que falar com ele e talvez ele...
- Ele tinha uma intimação para requisitar o cartão? - perguntou Bosch.
- Não, simplesmente pediu. Eu disse que tudo bem e entreguei a ele. Mas ele me deu a data e você não. Não me lembro dela. Olhe, de qualquer modo, se quiser perguntar
mais sobre isso então é melhor ligar para o nosso advogado. Não quero me envolver falando de uma coisa que...
- Esqueça isto - disse Bosch. - Fale-me sobre Michael Harris.
- O que vou dizer? Nunca tive problemas com o cara. Ele era legal, então eles vieram aqui e disseram que tinha matado aquela garotinha. E que fez coisas com ela.
Não combinava com o cara que eu conhecia. Mas ele não trabalhou aqui muito tempo. Talvez uns cinco meses.
239
- Sabe onde esteve antes disso? - perguntou Edgar.
- Sei. Em Corcoran.
Corcoran era uma prisão estadual perto de Bakersfield. Bosch agradeceu ao gerente e saíram. Ele tomou alguns goles do seu café, mas jogou-o numa lata de lixo antes
de voltar ao carro.
Enquanto Bosch esperava que a porta do carona fosse aberta, Edgar contornou o carro para o lado dele. Parou antes de abrir a porta.
- Droga.
- Que foi?
- Escreveram uma merda na porta.
Bosch deu a volta e olhou. Alguém havia usado giz azul-claro
- o giz usado para escrever instruções sobre lavagem nos pára-brisas dos carros dos clientes - para riscar as palavras Para proteger e servir gravadas no pára-lama
do lado do motorista. Depois, escritas em letras grandes, estavam as palavras: Para matar e torturar. Bosch acenou sua aprovação.
- Bastante original,
- Harry, vamos distribuir umas porradas por aqui.
- Não, Jerry, deixe para lá. Você não vai querer começar alguma merda que vai levar três dias para acabar. Como da última vez. Como em Florence e Normandie.
Carrancudo, Edgar abriu a sua porta e depois a de Bosch.
- Direto para a delegacia - disse Bosch quando ele assumiu o volante. - Podemos voltar até lá e limpar isto. Ou podemos usar
meu carro.
- Eu gostaria de limpar usando a cara de um desses escrotos.
Depois de o carro ser lavado ainda havia tempo para irem até o terreno onde o corpo de Stacey Kincaid tinha sido encontrado. Situava-se a oeste, no caminho para
o centro, aonde iam se encontrar com Pelfry.
Edgar ficou calado por todo o caminho. Ele lavara pessoalmente o vandalismo escrito no carro da polícia. Bosch, porém, não se importou
com seu silêncio. Utilizou o tempo para pensar
240
em Eleanor. Sentia-se culpado porque, apesar do seu profundo amor por ela, experimentava um alívio crescente por seu relaciOnamento estar chegando a uma liberdade
de escolha, de um modo ou de outro.
- É aqui - disse Edgar.
Ele estacionou o carro no meio-fio e examinaram o terreno. Tinha cerca de meio hectare e estava cercado de ambos os lados por edifícios de apartamentos com faixas
anunciando bônus de mudança e financiamentos. Não pareciam lugares onde as pessoas desejassem morar, a não ser que não houvesse opção. Toda a vizinhança tinha
um aspecto de ruína e desespero.
Bosch notou dois negros idosos sentados em engradados no canto do terreno baldio, debaixo da farta sombra fornecida por um eucalipto. Ele abriu a pasta que trouxera
e estudou o mapa que indicava a localização do corpo. Avaliou que ficava a menos de vinte metros de onde os dois homens estavam sentados. Folheou as páginas até
encontrar o relatório que dava os nomes das duas testemunhas que relataram o achado do corpo.
- vou saltar - disse. - vou falar com aqueles dois.
Ele saltou e Edgar o imitou. Atravessaram o terreno descontraídos e se aproximaram dos dois homens. Quando chegaram mais perto, Bosch viu sacos de dormir e um velho
fogareiro de acampamento. Junto ao tronco do eucalipto estavam dois carrinhos de supermercado cheios de roupa, sacolas de latas de alumínio e tralhas variadas.
- Vocês são Rufus Gundy e Andy Mercer?
- Depende de quem está perguntando. Bosch exibiu seu distintivo.
- Eu queria lhes fazer algumas perguntas sobre o corpo que vocês encontraram aqui no ano passado.
- Ah, sim. Por que demoraram tanto?
- Você é o sr. Gundy ou o sr. Mercer?
- Sou Mercer.
Bosch assentiu.
- Por que diz que demoramos? Não foram interrogados por detetives quando encontraram o corpo?
241
- Fomos interrogados, mas não por detetives. Um patrulheiro bundão perguntou o que a gente sabia.
Bosch assentiu. Apontou para os sacos de dormir e o fogareiro
de camping.
- Vocês moram aqui?
- Estamos passando por uma maré de azar, esperando até a gente
poder se levantar de novo.
Bosch sabia que nada havia no relatório do crime acerca dos dois homens que moravam no terreno baldio. O relatório dizia que eles estavam percorrendo o terreno,
catando latas, quando depararam com o corpo da menina. Ele pensou a respeito e percebeu o que havia acontecido.
- Vocês já moravam aqui na época, não? Nenhum dos dois respondeu.
- Vocês não disseram isto aos tiras porque pensavam que poderiam ser expulsos.
Nada de resposta, ainda.
- Aí vocês esconderam os sacos de dormir e o fogareiro e ficaram na moita. Disseram ao patrulheiro que estavam só de passagem.
Finalmente, Mercer falou:
- Se é tão esperto assim, como é que ainda não é o chefe?
Bosch riu.
- Porque eles são bastante espertos para não me deixarem ser o chefe. Digam-me uma coisa, sr. Mercer e sr. Gundy. Se vocês dois já estavam dormindo aqui naquela
época, provavelmente teriam achado o corpo bem antes, se ele já estivesse aqui durante todo o tempo em que foi noticiado o desaparecimento da garota, confere?
- É muito provável - disse Gundy.
- Então alguém deve ter desovado o corpo na noite antes de
vocês o encontrarem.
- Talvez - disse Gundy.
- É, eu diria que foi isso - acrescentou Mercer.
- com vocês dormindo a... digamos quinze ou vinte metros de
distância?
Desta vez eles não concordaram verbalmente. Bosch se adiantou e agachou-se de modo a ficar ao nível dos olhos deles.
242
- Contem-me o que vocês viram naquela noite.
- Nós não vimos nada - disse Gundy, categórico.
- Mas ouvimos coisas - acrescentou Mercer. - Ouvimos coisas.
- Que coisas?
- Um carro parou - disse Mercer. - Uma porta se abriu, depois um porta-malas. Ouvimos alguma coisa pesada bater no chão. Depois, o porta-malas e a porta foram fechados
e o carro foi embora.
- Vocês nem sequer olharam? - perguntou Edgar rapidamente. Ele se aproximara e estava agachado, as mãos nos joelhos. - Um cadáver é desovado aqui pertinho e vocês
nem olharam?
- Não, não olhamos - disse Mercer. - As pessoas despejam seu lixo e não sei o que mais no terreno a maior parte da noite. Nunca olhamos. Ficamos de cabeça baixa
e de manhã olhamos. De vez em quando conseguimos alguma coisa útil daquilo que as pessoas jogam fora. Sempre esperamos amanhecer para verificar.
Bosch fez sinal de que entendia e esperou que Edgar deixasse os homens em paz.
- E vocês nunca contaram isto aos tiras?
- Nunca - disseram em uníssono.
- E quanto a qualquer outra pessoa? Alguma vez disseram isto a alguém que pudesse checar que esta foi a verdadeira história desde o início?
Os homens pensaram a respeito. Mercer acenava a cabeça dizendo que não, enquanto Gundy acenava que sim.
- O único para quem contamos foi o homem do sr. Elias. Bosch olhou para Edgar e depois de volta para Gundy.
- Quem?
- O homem dele. O investigador. Contamos a ele o que estamos contando a vocês agora. Ele disse que o sr. Elias ia nos usar no tribunal algum dia. Ele disse que o
sr. Elias ia cuidar de nós.
- Pelfry? - perguntou Edgar. - Era este o nome dele?
- Pode ser - disse Gundy. - Não lembro.
Mercer não disse nada.
- Vocês leram o jornal hoje? - perguntou Bosch. - Viram algum noticiário na TV?
- Em qual TV? - disse Mercer.
243
Bosch limitou-se a assentir e se levantou. Aqueles dois nem sabiam que Elias estava morto.
- Quanto tempo faz que o homem do sr. Elias falou com vocês?
- Tem mais ou menos um mês - disse Mercer. - Por aí. Bosch olhou para Edgar acenando que estava encerrado. Edgar
acenou de volta.
- Obrigado pela ajuda - disse Bosch. - Posso pagar o jantar de
vocês?
Ele enfiou a mão no bolso e tirou seu dinheiro. Deu uma nota de dez a cada um, Eles agradeceram polidamente e Bosch se afastou.
Enquanto seguiam velozmente pela Western rumo a Wilshire, Bosch começou a refletir sobre o significado da informação dada pelos
sem-teto.
- Harris está limpo - disse excitado. - Como Elias sabia. Porque o corpo foi movido. Foi desovado lá três dias depois que ela morreu. E Harris estava sob custódia
quando o corpo foi levado. O melhor álibi do mundo. Elias ia levar aqueles dois ao tribunal e expor
a mentira para o DPLA.
- E, mas vamos com calma, Harry - disse Edgar. - Isto não limpa a barra de Harris completamente. Pode simplesmente significar que tinha um cúmplice, que transportou
o corpo enquanto ele
estava detido.
- É, mas então por que desová-lo tão perto do apartamento dele e implicá-lo ainda mais? Não creio que exista um cúmplice. Acho que era o verdadeiro assassino. Deve
ter lido no jornal ou visto na TV que tinham prendido Harris como suspeito e levou o corpo para a vizinhança, batendo mais um prego no caixão de Harris.
- E quanto às digitais? Como é que as impressões de Harris foram parar naquela bela mansão em Brentwood? Você acredita que elas foram plantadas pelo seu chapinha
Sheehan e a equipe dele?
-Não, não acredito. Há uma explicação. Só que ainda não sabemos qual. É o que vamos perguntar a Pel... ,
244
Houve uma grande explosão enquanto a janela traseira se estilhaçava e cacos de vidro voavam através do carro. Edgar perdeu momentaneamente o controle e o carro guinou
para as outras pistas. Houve um coro de buzinas furiosas enquanto Bosch segurava o volante e trazia o carro de volta através das faixas amarelas.
- Que porra é essa? - gritou Edgar enquanto reassumia o controle do carro e ia pisando no freio.
- Não! - gritou Bosch. -Siga em frente, siga em frente! Bosch tirou o rádio da fenda de recarga no assoalho e pressionou o botão de transmissão.
- Tiros disparados! Tiros disparados! Western com Olympic. Ele manteve o botão pressionado enquanto olhava por sobre o
assento traseiro e o porta-malas. Seus olhos vasculharam os terraços e janelas dos edifícios situados dois quarteirões atrás. Não viu nada.
- Suspeito ignorado. Atirador de tocaia dispara sobre viatura com marca de serviços investigativos. Requisitamos apoio imediato. Requisitamos vigilância aérea dos
telhados de ambos os lados da Western. Recomendamos extrema cautela.
Ele desligou o botão de transmissão. Enquanto o operador repetia para outras unidades o que acabara de ser transmitido, Bosch disse a Edgar que já estavam bem distantes
e que ele podia parar.
- Acho que veio do lado leste - disse Bosch. - Daqueles apartamentos de teto plano. Acho que escutei o tiro primeiro junto ao ouvido direito.
Edgar bufou. Suas mãos estavam agarradas com tanta firmeza no volante que os nós dos seus dedos estavam tão brancos quanto os de Bosch.
- Quer saber de uma coisa? - disse ele. - Acho que nunca mais vou dirigir uma porra desses alvos móveis.
Capítulo 24
- Estão atrasados, rapazes. Já estava pensando em ir para casa.
Jenkins Pelfry era um homem grande, com um peito de barril e uma pele tão escura que era difícil traçar as linhas de seu rosto. Sentava-se no tampo de uma pequena
escrivaninha na ante-sala do seu escritório no Union Law Center. Havia uma pequena TV sobre um pequeno aparador à sua esquerda, sintonizada num canal de notícias.
A imagem na tela era de um helicóptero sobrevoando uma cena em algum lugar da cidade.
Bosch e Edgar haviam chegado quarenta minutos atrasados para
a entrevista.
- Desculpe, sr. Pelfry - disse Bosch. - Tivemos um pequeno
problema no caminho. Agradeço por ter esperado.
- Sorte de vocês que eu tenha perdido a noção do tempo. Estava vendo a TV aqui. As coisas não parecem muito boas no momento. Estão parecendo meio cabeludas ali.
Ele apontou para o aparelho de TV com uma de suas mãos enormes. Bosch olhou de novo e percebeu que a cena que o helicóptero sobrevoava era a mesma que ele e Edgar
tinham acabado de deixar a busca pelo atirador que alvejara o carro deles. Na TV, Bosch podia ver que as calçadas da Western estavam agora apinhadas de pessoas observando
os policiais movendo-se de um edifício para outro. Outros guardas chegavam à cena, equipados com capacetes blindados.
246
- Esses caras deviam simplesmente cair fora dali. Eles estão provocando a multidão. Isto não é bom. Só estão adiando o inferno. Viver para lutar outro dia.
- Tentaram isso da última vez - disse Edgar. - Não funcionou.
Os três assistiram por mais alguns momentos em silêncio, depois Pelfry esticou o braço e desligou a TV. Ele olhou para seus visitantes.
- O que posso fazer por vocês? Bosch se apresentou e ao seu parceiro.
- Acho que sabe por que viemos aqui. Estamos trabalhando no caso Howard Elias. E sabemos que está fazendo um serviço para ele relativo ao caso Guerreiro Negro. Podíamos
contar com sua ajuda, sr. Pelfry? Se descobrirmos quem fez isto, talvez tivéssemos uma chance para acalmar esta cidade.
Bosch acenou para a tela de TV apagada para realçar seu ponto.
- Vocês querem minha ajuda - disse Pelfry. - É, eu trabalhava para Eli... sempre o chamei de Eli. Mas não sei o que posso fazer por vocês.
Bosch olhou para Edgar e o seu parceiro fez um aceno sutil de cabeça.
- Sr. Pelfry, nossa conversa aqui é confidencial. Meu parceiro e eu estamos seguindo uma trilha investigativa indicando que quem quer que tenha matado Stacey Kincaid
pode ter matado também seu empregador. Achamos que Elias chegou perto demais da verdade. Se você sabe o que ele sabia, então poderia também estar em risco.
Pelfry riu para ele - um riso curto e alto. Bosch olhou para Edgar e depois de volta para Pelfry.
- Sem querer ofender, mas esta é quase a pior piada que já ouvi
- disse Pelfry.
- Do que está falando?
Ele apontou mais uma vez para a TV e Bosch notou o quão a palma da mão dele era branca.
- Eu lhes disse que estive assistindo ao noticiário. O Canal Quatro diz que a polícia já está medindo uma cela para alguém. Alguém do seu próprio time.
247
- Do que está falando? - Estão interrogando um suspeito no Parker Center
exatamente agora.
- Eles deram um nome?
- Não mencionaram um nome, mas estão por dentro. Disseram que era um dos tiras do Guerreiro Negro. O chefe da equipe, de fato.
Bosch fitou atônito. O chefe dos detetives era Frankie Sheehan.
- Isso é imposs... posso usar seu telefone?
- A vontade. Aliás, sabe que tem cacos de vidro nos cabelos? Bosch esfregou a mão nos cabelos enquanto se dirigia à mesa e
pegava o telefone. Pelfry observava enquanto ele discava o número da sala de reunião de Irving. O telefone foi atendido de imediato.
- Quero falar com Lindell.
- Aqui é Lindell.
- É Bosch. Que história é essa do Canal Quatro sobre um
suspeito?
- Eu sei. Estou verificando. Alguém vazou. Tudo que posso dizer é que atualizei Irving e o resto que sei é o que deu na TV. Acho que o seu vazadouro é ele, não Chás...
- Não quero saber disso. O que você está dizendo refere-se a
Sheehan? Isto é imp...
- Não estou dizendo isso. Estou falando de vazamento e acho
que o vazadouro é a porra do subchefe.
- Você convocou Sheehan?
- Convoquei, Nós o trouxemos para cá e estamos conversando com ele. Estritamente voluntário até esta altura. Ele acha que pode dar sua versão de como está indo
pró buraco. Temos o dia inteiro e um pouco mais. Veremos se ele pode.
- Por que Sheehan? Por que o convocou?
- Pensava que você soubesse. Ele estava no topo da lista de Chastain esta manhã. Elias já o tinha processado cinco anos atrás. Ele matou um bundão enquanto tentava
efetuar uma prisão num caso de homicídio. Meteu cinco azeitonas no cara. A viúva moveu ação e finalmente faturou uma grana... muito embora isto tenha me parecido
justo.248
- Lembro do caso. Foi uma execução justa. Mas isto não interessa ao júri. Foi pouco depois do escândalo Rodney King.
- Certo, bem antes do caso ir a júri, Sheehan ameaçou Elias durante um depoimento, na frente dos advogados, da viúva e, mais importante, da estenógrafa. Ela anotou
palavra por palavra e isto constava do arquivo que Chastain e seu pessoal leram ontem. Sheehan disse a Elias que algum dia, quando ele menos esperasse, alguém ia
chegar por trás dele e matá-lo como a um cão. Palavras de efeito. E que descrevem muito bem o que aconteceu no Vôo dos Anjos.
- Ora, vamos. Isto aconteceu faz cinco anos. Você deve estar de gozação comigo.
Bosch notou que tanto Edgar quanto Pelfrey o olhavam atentamente.
- Sei disso, Bosch. Mas aí você tem este novo processo sobre o caso Guerreiro Negro e quem assume o comando? O detetive Frank Sheehan. Como agravante, ele usa uma
Smith &. Wesson nove milímetros. E mais uma coisa: consultamos a ficha dele. Por onze anos consecutivos ele foi classificado como um atirador de elite no estande
de tiro. E você sabe que tipo de tiros foram disparados no Vôo dos Anjos. Se levar em conta tudo isto, você o coloca no topo da lista das pessoas a serem ouvidas.
Portanto estamos falando com ele.
- Essa de atirador de elite é babaquice. Eles distribuem essas classificações como doces lá no estande de tiro. Aposto que sete ou oito de cada dez policiais têm
esta cotação. E oito em dez dos policiais portam Smiths nove milímetros. Enquanto isso, Irving... ou seja lá quem for o vazadouro... está jogando o Sheehan para
os lobos. Um sacrifício para a mídia de modo a talvez impedir que a cidade pegue fogo.
- Ele é apenas um bode expiatório, se não fez a coisa. Havia um tom casual cínico na voz de Lindell que Bosch não
apreciou.
- E melhor levar isto devagar- disse Bosch. - Porque lhe garanto que Frankie não foi o atirador.
- Frankie? Vocês são amigos?
- Fomos parceiros. Um bom tempo atrás.
249
-Bem, é engraçado. Ele não parece estimá-lo tanto assim. Meus rapazes me contaram que a primeira coisa que ele disse quando bateram em sua porta foi: "Aquele puto
do Harry Bosch." Ele acha que você o dedurou, cara. Ele não sabe que temos a ameaça no depoimento. Ou não se lembra disso.
Bosch depositou o fone no gancho. Estava aturdido. Frankie Sheehan acreditava que Bosch
virara contra ele a conversa que tiveram na noite anterior. Acreditava que
Harry o entregara ao FBI. Isto fazia Bosch sentir-se pior do que saber que seu velho parceiro e amigo sentava-se agora numa sala de interrogatório lutando por
sua vida.
- Parece que você não concorda muito com o Canal Quatro -
disse Pelfry.
- Não, não concordo.
-Você sabe alguma coisa. vou dar um tiro no escuro, mas acho que aqueles cacos de vidro no seu cabelo significam que vocês são os dois que a TV noticiava terem sofrido
um atentado na Western.
- É, e o que isso tem a ver? - indagou Edgar.
- Bem, fica a alguns quarteirões de onde foi parar o corpo da
garota Kincaid. -E daí?
- Bem, se era de lá que estavam vindo, imagino que conheceram os meus dois cupinchas, Rufus e Andy.
- É, nós os conhecemos e sabemos tudo sobre o corpo sendo
desovado três dias depois.
- Estão seguindo minhas pegadas, então.
- Algumas. Também visitamos Lady Regina a noite passada. Bosch estava finalmente fora do seu aturdimento, mas retraiu-se
ao ver que Edgar fazia progresso com Pelfry.
- Então não é tudo babaquice o que vocês disseram acerca de quem acham que baleou Eli?
- Estamos aqui, não estamos?
- Então, o que mais querem saber? Eli escondia suas cartas a maior parte do tempo. Muito perto do colete. Eu nunca soube com certeza em que canto do quebra-cabeça
estava trabalhando, se entende o que quero dizer.
250
- Conte-nos sobre as licenças de emplacamento - disse Bosch, rompendo o seu silêncio. - Sabemos que vocês requisitaram os recibos de setenta e cinco dias do lavajato.
Para quê?
Pelfry fitou-os por um longo momento como se decidindo alguma coisa.
- Vamos lá dentro - disse finalmente. Conduziu-os até a sala dos fundos.
- Eu não queria trazer vocês aqui - disse. - Mas agora...
Ele ergueu as mãos para indicar as caixas cobrindo cada superfície horizontal no escritório. Eram caixas pequenas que normalmente conteriam vinte e quatro latas
de refrigerante. Empilhados nelas estavam maços de recibos com marcadores de cartolina com as datas anotadas.
- São os recibos do lavajato? - perguntou Bosch.
- Exatamente. Eli ia levar todos eles ao tribunal como uma prova material. Eu os estava guardando aqui até que ele precisasse.
- O que exatamente ele pretendia provar exibindo esses recibos?
- Eu pensava que vocês soubessem.
- Estamos um pouco atrás de você, sr. Pelfry.
- Jenkins. Ou Jenks. A maioria das pessoas me chama de Jenks. Não sei exatamente o que todos esses recibos significam... lembram do que eu disse sobre Eli não me
mostrar todas as suas cartas? Mas faço uma idéia. Vejam bem, quando ele os requisitou, deu-me uma lista de números de emplacamento num pedaço de papel. Disse que
era para examinar todos eles e ver se algum dos números da lista batia com aqueles dos recibos.
- Você o fez?
- Fiz, e me tomou boa parte de uma semana.
- Alguns batiam?
- Só um bateu.
Ele foi até uma das caixas e enfiou o dedo na pilha onde havia um marcador de cartolina com a data 12/06 anotada.
- Este aqui.
Pelfry extraiu um recibo e passou-o a Bosch. Edgar se aproximou e olhou também. O recibo era para uma diária especial. Identificava o carro a ser lavado como uma
caminhonete Volvo
251
branca. Dava o número da placa e o preço da especial: 14,95 dólares mais taxa.
- Este número de placa estava na lista que Elias lhe deu.
- Exato.
- Foi o único que bateu.
- Como eu disse.
- Sabe de quem é o carro com esta placa?
-Não exatamente. Eli não me mandou conferir. Mas tenho um palpite de quem seja o dono.
- Os Kincaid.
- Agora vocês estão me acompanhando.
Bosch olhou para Edgar. Pela cara do seu parceiro podia dizer
que ele não tinha sacado.
- As impressões digitais. Para provar que Harris era inocente além de qualquer tipo de dúvida, ele tinha de explicar as impressões do seu cliente no livro escolar
da vítima. Se não houvesse nenhuma razão ou possível explicação legítima para Harris ter estado na casa dos Kincaid e tocado no livro, então havia duas razões alternativas.
A primeira, as impressões foram plantadas pelos tiras. A segunda, Harris tocou o livro quando ele estava em algum outro lugar fora do quarto da garota.
Edgar acenou como se entendendo.
- Os Kincaid costumavam lavar seus carros no Wax and Shine, onde Harris trabalhava. O recibo prova isto.
- Certo. Tudo que Elias teve de fazer foi colocar o livro no
carro.
Bosch voltou-se para as caixas sobre a mesa de Pelfry e tocou
com seu dedo no marcador de cartolina.
- Doze de junho - disse. - Exatamente no final do ano letivo. As crianças limpam seus armários. Levam todos os seus livros para casa. Não vão mais fazer deveres
de casa, e talvez os livros tenham ficado esquecidos no banco traseiro do carro dos pais.
- O Volvo vai para o lavajato - disse Edgar. - Eu apostaria que a diária especial inclui uma limpeza com aspirador, talvez um
polimento no interior.
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está trabalhando no interior do carro - acrescentou Bosch. - E deixa suas impressões.
- O homem do polimento era Harris - disse Edgar, olhando a seguir para Pelfry e acrescentando: - O gerente do lavajato disse que você voltou lá para olhar os cartões
de ponto.
Pelfry confirmou.
- É. Obtive uma cópia de um cartão de ponto que prova que Harris estava de serviço quando o Volvo chegou para fazer a geral. Eli me pediu para ir ao lavajato e tentar
checar isto sem uma intimação. Imagino que o cartão de ponto era o trunfo e que ele queria que ninguém mais soubesse disso.
- Nem mesmo o juiz que assinou as intimações sobre o caso disse Bosch. - Ele não devia estar confiando em mais ninguém.
- E me parece que por boas razões - disse Pelfry.
Enquanto Edgar pedia a Pelfry para mostrar-lhe o cartão de ponto, Bosch se retraiu e tentou pensar nessa última informação. Lembrava-se do que Sheehan dissera na
noite anterior sobre as impressões saírem tão boas porque a pessoa que as deixara provavelmente estivera suando. Ele entendia agora que não era por causa do nervosismo
pelo crime cometido, mas porque ele estava trabalhando na geral do carro quando suas impressões foram deixadas no livro. Michael Harris. Ele era inocente. Verdadeiramente
inocente. Bosch não estava convencido até aquele momento. E foi espantoso para ele. Ele não era um sonhador. Sabia que policiais cometiam erros e que gente inocente
ia para a prisão. Mas o erro aqui era colossal. Um homem inocente torturado enquanto policiais tentavam forçá-lo a confessar algo que ele claramente não tinha feito.
Satisfeitos por terem pegado seu homem, os policiais haviam relaxado na sua investigação e deixado o verdadeiro assassino escapar - até que uma investigação de um
advogado dos direitos civis o descobriu, uma descoberta que levou ao assassinato do advogado. A reação em cadeia foi mais longe ainda, levando a cidade mais uma
vez para a beira da autodestruição.
- Então, sr. Pelfry - disse Bosh -, quem matou Stacey Kincaid?
- E Jenks. E eu não sei. Só sei que não foi Michael Harris... não tenho a menor dúvida quanto a isto. Mas Eli não me contou a outra parte... se sabia antes que eles
o pegassem.
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-Eles?
- Seja lá quem for.
- Conte-nos sobre Lady Regina - pediu Edgar.
- O que há para contar? Eli pegou uma dica e passou-a para mim. Verifiquei a dona e não consegui ver nenhuma ligação. Ela é apenas uma anomalia... um beco sem saída.
Se estiveram lá, sabem o que quero dizer. Acho que Eli deixou isto de lado depois que lhe
contei sobre ela.
Bosch pensou por um momento e sacudiu a cabeça.
- Não concordo. Tem alguma coisa lá.
- Bem, se tem, ele não me contou.
No carro Bosch ligou para Rider para verificar. Ela disse que completara uma revisão dos arquivos sem que nada que necessitasse de acompanhamento imediato tivesse
chamado sua atenção.
- Vamos visitar os Kincaid - disse Bosch.
- Tão cedo assim? - indagou ela.
- Acontece que um deles era o álibi de Harris.
- O quê?
Bosch explicou a descoberta da placa do carro feita por Pelfry
e Elias.
- Um dos quatro - disse ela.
- O que quer dizer?
- Agora sabemos o que significa um dos quatro bilhetes misteriosos.
- É, acho que sim.
- Estive pensando sobre os dois primeiros. Acho que eles têm uma ligação e tive uma idéia sobre o "pôr o pingo no i". vou ficar on-íine e verificar. Sabe o que é
um link de hipertexto?
- Não falo esta língua, Kiz. Ainda bato à máquina com dois
dedos.
- Eu sei. Explico quando você voltar para cá. Talvez você saiba
se tiver alguma coisa.
- OK. Boa sorte.
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Ele já ia desligar. . . ;
-Oh, Harry?
- O quê?
- Carla Entrenkin telefonou. Disse que precisava falar com você. Eu ia dar o número do seu pager, mas aí pensei que você não ia gostar. Ela poderia começar a procurá-lo
a cada vez que arranjar um pepino.
- Fez bem. Ela deixou algum número? Rider deu-lhe o número e desligaram.
- Vamos visitar os Kincaid? - perguntou Edgar.
- É, acabei de decidir. Pegue o rádio e confira a placa daquele Volvo branco, em nome de quem está. Tenho que dar um telefonema.
Bosch ligou para o número que Carla Entrenkin deixara e ela atendeu ao segundo toque.
- Aqui é Bosch.
- Detetive...
- Você me ligou?
- Liguei, ha, só queria me desculpar sobre a noite passada. Estava chateada com o que vi na televisão e... e acho que falei cedo demais. Andei verificando e acho
que estava errada naquilo que disse.
- Você estava.
- Bem, sinto muito.
- OK, inspetora, obrigado por ter ligado. É melhor eu...
- Como está indo a investigação?
- Está indo. Você falou com o chefe Irving?
- Falei, sim. Ele me disse que estão interrogando o detetive Sheehan.
- Não espere muito disso.
- Claro que não. E quanto ao que você está correndo atrás? Ouvi dizer que está reinvestigando o caso original. O assassinato de Stacey Kincaid.
- Bem, agora podemos provar que Harris não o cometeu. Você estava certa quanto a isto. Elias ia ao tribunal inocentá-lo. Ele não fez aquilo. Agora só nos resta provar
que outra pessoa o fez. E ainda aposto que é a mesma pessoa que matou Elias. Preciso ir agora, inspetora.
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- Você liga para mim se conseguir algum progresso importante. Bosch pensou a respeito por alguns momentos. Lidar com Carla
Entrenkin, de certa forma, lhe tinha dado a sensação de
consorciar-se com o inimigo.
- Ligo - disse finalmente. - Eu telefono se houver progresso
importante.
- Obrigada, detetive.
-De nada.
Capítulo 25
O czar do automóvel de Los Angeles e sua esposa moravam agora em Mulholland Drive, num condomínio exclusivo chamado The Summit (O Cume). Era uma vizinhança de milionários
fechada e guarnecida de lado a lado com casas espetaculares que dominavam desde as montanhas Santa Monica até o norte através da bacia do Vale San Fernando. Os
Kincaid se mudaram de Brentwood depois do assassinato de sua filha. Uma mudança rumo à segurança que chegou tarde demais para a garotinha.
Bosch e Edgar tinham ligado com antecedência e foram recebidos na guarita, sendo orientados a como chegar, seguindo uma estrada sinuosa, a uma enorme mansão estilo
provincial francês construída num pedaço da propriedade que devia ser o cume do The Summit. Uma criada hispânica atendeu à porta e conduziu-os a uma sala de estar
maior do que a casa inteira de Bosch. Possuía duas lareiras e três grupos diferentes de mobiliário. Bosch não fazia idéia de qual seria o propósito disto. A comprida
parede norte da sala era quase inteiramente de vidro. Revelava uma ampla vista do Vale. Bosch tinha uma casa na colina, mas a diferença em panoramas era de 700 metros
em altitude e talvez dez milhões de dólares em atitude. A criada disse-lhes que os Kincaid logo se reuniriam a eles.
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Bosch e Edgar foram até a janela, o que se esperava que fizessem. Os ricos gostam de manter as pessoas esperando de modo que se sintam livres para admirar tudo que
eles têm.
- Vistas de avião - disse Edgar.
-O quê?
- É como eles chamam quando a gente está tão alto. Vistas de
avião.
Bosch assentiu. Edgar vendera imóveis junto com a esposa como um bico alguns anos atrás, até que isto ameaçou transformar em bico o seu trabalho na polícia.
Bosch podia ver as montanhas Santa Susana ao fundo do Vale. Podia distinguir a montanha Oat acima de Chatsworth. Lembrava-se de ter ido lá muitos anos antes numa
excursão de jovens. A vista geral, contudo, não podia ser chamada de linda. Uma pesada camada de ar poluído - especialmente em abril - se estendia por todo o Vale.
Na residência Kincaid eles estavam em altitude suficiente para ficar acima da névoa. Ou assim parecia.
- Sei o que vocês estão pensando. É uma vista de ar poluído de um milhão de dólares.
Bosch voltou-se. Um homem sorridente e uma mulher de rosto apagado tinham entrado na sala de estar. Por trás deles, um segundo homem de terno escuro. Bosch reconheceu
o primeiro homem da TV. Sam Kincaid, o czar do automóvel. Era mais baixo do que Bosch esperava. Mais compacto. Seu bronzeado profundo era autêntico, não de maquiagem
de TV. E seu cabelo preto retinto parecia legítimo. Na TV sempre parecia uma peruca. Vestia uma camisa de golfe como aquelas que sempre usava nos seus comerciais.
Como as que seu pai usava quando fazia os comerciais dez anos atrás.
A mulher era poucos anos mais jovem que Kincaid, cerca de quarenta, e bem conservada por massagens semanais e visitas aos salões de beleza de Rodeo Drive. Ela olhou
para a paisagem atrás de Bosch e Edgar. Tinha uma expressão vaga no rosto e Bosch percebeu de imediato que Katherine Kincaid ainda nem chegara perto de se recuperar
da perda de sua filha.
- Mas quer saber de uma coisa? - continuou Sam Kincaid, sorrindo. - Eu não me importo de ficar olhando a névoa. Minha família vende carros nesta cidade há três gerações.
Desde 1928.
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Um monte de anos e um monte de carros. Aquela névoa me faz
lembrar disso.
Sua declaração parecia ensaiada, como se usada como uma abertura para todos os seus convidados. Ele se adiantou, a mão estendida.
- Sam Kincaid. Esta é minha esposa, Kate.
Bosch apertou a mão dele, apresentando-se e a Edgar. O modo como Kincaid estudou Edgar antes de apertar-lhe a mão fez Bosch pensar que seu parceiro poderia ter sido
o primeiro negro a pôr os pés naquela sala de estar - sem contar aqueles que estavam lá para servir canapés e bebidas.
Bosch olhou além de Kincaid para o homem parado debaixo do arco da entrada. Kincaid notou e fez a última apresentação.
- Este é D. C. Richter, meu chefe de segurança - disse Kincaid.
- Pedi a ele que viesse se juntar a nós, se não se importam.
Bosch estava intrigado pelo acréscimo do segurança, mas não disse nada. Fez um aceno, que Richter retribuiu. Tinha mais ou menos a idade de Bosch, alto e macilento,
e seu cabelo grisalho curto era alisado com gel. Richter tinha também um brinco, uma fina argola dourada, na orelha esquerda.
- O que podemos fazer por vocês, cavalheiros? - perguntou Kincaid. - Devo dizer que estou surpreso por sua visita. Eu imaginava que, com tudo que está acontecendo,
vocês estivessem em algum lugar nas ruas, tentando conter os animais.
Houve um silêncio constrangedor. Kate Kincaid baixou a vista para o tapete.
- Estamos investigando a morte de Howard Elias - disse Edgar.
- E da filha de vocês.
- Da minha filha? Não entendo.
- Por que não nos sentamos, sr. Kincaid? - disse Bosch.
- Claro.
Kincaid os conduziu a um dos grupos estofados. Dois sofás de frente um para o outro e uma mesinha de centro. A um lado estava uma lareira em que Bosch quase podia
entrar, do outro estava a paisagem. Os Kincaid sentaram-se num dos sofás, enquanto Bosch e Edgar se acomodaram no outro. Richter permaneceu de pé ao lado e atrás
do sofá ocupado pelos patrões.
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- Deixem-me explicar - começou Bosch. - Viemos aqui para informá-los de que estamos reabrindo as investigações sobre a morte de Stacey. Precisamos recomeçar tudo.
Os Kincaid abriram a boca, intrigados. Bosch continuou:
- No curso da investigação da morte de Howard Elias na sextafeira à noite descobrimos informação que, acreditamos, inocenta Michael Harris. Nós...
- Impossível - vociferou Sam Kincaid. - Harris foi o assassino. Suas impressões foram encontradas na casa, a antiga casa. E agora você vem me dizer que a polícia
acredita que seu próprio pessoal plantou a prova?
-Não, senhor, não. Estou dizendo que agora temos o que achamos ser uma explicação razoável para aquela prova.
- Bem, eu adoraria ouvir isto.
Bosch tirou dois pedaços de papel dobrados do bolso do casaco e os abriu. Um deles era a fotocópia do recibo do lavajato que Pelfry descobrira. O outro era uma fotocópia
do cartão de ponto de Harris, também obra de Pelfry.
- Sra. Kincaid, a senhora dirige uma caminhonete Volvo branca com placa um-bravo-henry-meia-meia-oito, confere?
- Não, isto está errado - Richter respondeu por ela. Bosch o fitou por um momento e depois de volta à mulher.
- A senhora dirigiu este carro no último verão?
- Dirigi uma caminhonete Volvo branca, sim - disse ela. - Só não lembro o número da placa.
- - Minha família é dona de onze concessionárias e sócia de mais seis neste condado - disse o marido. - Chevy, Cadillac, Mazda, dê o nome que quiser. Até mesmo Porsche.
Mas nenhuma franquia Volvo. E então, sabe, este é o carro que ela escolhe. Ela diz que é mais seguro para Stacey e então ela acaba... de qualquer maneira. Sam Kincaid
levou uma das mãos para cobrir seu lábio e se manteve imóvel. Bosch esperou um momento antes de pressionar.
- Aceitem o que digo sobre o número da placa. O carro foi registrado no seu nome, sra. Kincaid. No dia doze de junho do ano passado, aquele carro, o Volvo, passou
por uma geral no Hollywood Wax and Shine, no Sunset Boulevard. A pessoa que levou o carro
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lá pediu pela diária especial, que incluía aspirador e polimento. Aqui está o recibo.
Ele inclinou-se à frente e colocou o recibo sobre a mesinha de centro, diante do casal. Ambos se abaixaram para olhá-lo. Richter também se adiantou para uma olhada.
- Algum de vocês se lembra de ter feito isso?
- Não mandamos lavar nossos carros - disse Sam Kincaid. - E não vamos a qualquer lavajato desses. Quando preciso lavar um carro, mando levá-lo a uma de minhas lojas.
Não preciso pagar para...
- Eu me lembro - disse sua esposa, interrompendo-o. - Eu fiz isto. Levei Stacey para ver os filmes no El Capitan. O lugar onde estacionamos estava em obras... construíram
um telhado novo no prédio junto à garagem. Quando saímos, tinha algo em cima do carro. Pequenos respingos de alcatrão. Era um carro branco e chamaria muita atenção.
Quando paguei ao atendente do estacionamento, perguntei a ele onde havia um lavajato. E ele me indicou um.
Kincaid olhava para sua esposa como se ela tivesse acabado de arrotar no baile de caridade.
- Então a senhora levou o carro para ser lavado lá - disse Bosch.
- Levei. Agora me lembro.
Ela olhou para o marido e depois de volta para Bosch.
- O recibo diz doze de junho - disse Bosch. - Quanto tempo depois do fim do ano letivo para sua filha?
- Foi no dia seguinte. Era a nossa maneira de começar o verão. Almoço e cinema. Vimos um filme sobre esses dois caras que não achavam um rato em sua casa. Foi engraçado.
O rato levou a melhor.
Os olhos dela fixavam-se na lembrança. E na sua filha. Depois focalizaram-se de novo em Bosch.
- Nada mais de escola - disse Bosch. - Por acaso ela teria deixado seus livros do último dia no Volvo? Talvez no banco de trás?
Kate Kincaid assentiu lentamente.
- Deixou. Lembro de ter dito a ela a certa altura, durante o verão, para tirar seus livros do carro. Eles continuavam deslizando de um lado para o outro quando eu
dirigia. Ela não tirou. Por fim, eu mesma peguei e botei todos eles no quarto dela.
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Bosch inclinou-se à frente de novo e pôs a outra fotocópia diante deles.
- Michael Harris trabalhou no lavajato no último verão. Este é o seu cartão de ponto para aquela semana incluindo o doze de junho. Ele trabalhou em horário integral
no dia em que deixaram o Volvo.
Sam Kincaid inclinou-se de novo à frente e estudou a fotocópia.
-Você quer dizer que todo este tempo nós... - começou Kincaid e depois parou. - Está dizendo que ele, Harris, passou o aspirador no Volvo e, enquanto o fazia, tocou
no livro de minha filha? Manuseou-o e depois, finalmente, o livro foi levado para o quarto dela. E depois que ela foi levada...
- A polícia encontrou as digitais nele - concluiu Bosch. - É
isso o que achamos agora.
- Por que isto não surgiu no julgamento? Porque...
- Porque havia outra prova ligando Harris ao assassinato - disse Edgar. - A garota... ha, Stacey... foi encontrada a menos de dois quarteirões do apartamento dele.
Esta era uma forte ligação. O advogado dele decidiu que o passo que tinha de tomar era ir atrás dos tiras. Macular as impressões, maculando os policiais. Ele nunca
foi atrás da verdade.
-E tampouco os policiais - disse Bosch. -Eles tinham as impressões, e quando o corpo foi encontrado na vizinhançca de Harris isso encerrava o caso. Como lembram,
a investigação foi carregada de emoção desde o início. Isso mudou naquele ponto em que acharam o corpo e tudo se ligava a Harris. Mudou da busca por uma garotinha
para a acusação de um alvo específico. No meio disso tudo nunca houve uma busca pela verdade. Sam Kincaid parecia chocado.
- Todo esse tempo - disse ele. - Podem imaginar o ódio por este homem que construí dentro de mim? Este ódio, este desprezo completo e cabal, foi a única emoção real
que tive nos últimos nove meses...
- Eu entendo - disse Bosch. - Mas agora precisamos recomeçar.
Temos que reinvestigar todo o caso. Era o que Howard Elias estava fazendo. Temos razões para crer que ele sabia o que acabo de lhe
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contar. Só que ele também sabia ou fazia uma idéia muito boa de quem era o verdadeiro assassino. Achamos que isto causou sua morte. Sam Kincaid pareceu surpreso.
- Mas na TV disseram ainda há pouco que...
- - A TV está errada, sr. Kincaid. Está errada e nós estamos certos. Kincaid assentiu. Seus olhos vaguearam pela paisagem e pela névoa.
- O que desejam de nós? - disse Kate Kincaid.
- Sua ajuda. Sua colaboração. Sei que estamos pegando vocês de surpresa, de modo que não esperamos que contem tudo. Mas se vocês têm assistido à TV, não temos muito
tempo de sobra.
- Vocês têm a nossa total colaboração - disse Sam Kincaid.
- E o D. C. aqui pode fazer qualquer coisa que precisarem que ele faça.
Bosch olhou de Kincaid para o homem da segurança e depois de volta para Kincaid.
- Não acho que vai ser necessário. Temos apenas algumas perguntas por enquanto e amanhã queremos voltar e recomeçar o caso.
- Claro. E quais são suas perguntas?
- Howard Elias descobriu o que acabei de lhes contar por causa de um bilhete anônimo que chegou pelo correio. Algum de vocês sabe de quem poderia ter vindo? Quem
poderia saber que o Volvo foi para o lavajato?
Não houve resposta por um longo tempo.
- Apenas eu sabia - disse Kate Kincaid. - Não sei quem mais poderia saber. Não me lembro de ter contado a ninguém que fui lá.
Por que faria isso?
- A senhora enviou o bilhete a Elias?
- Não. Claro que não. Por que ajudaria Michael Harris? Achava que foi ele quem... quem pegou minha filha. Agora você me diz que ele é inocente e acredito em você.
Mas antes, não, eu não teria movido um dedo para ajudá-lo.
Bosch estudou a mulher enquanto ela falava. Seus olhos moviam-se da mesinha de centro para a paisagem e as mãos se apertavam diante dela. Ela não olhava para o interrogador.
Bosch tinha lido as reações das pessoas em entrevistas e interrogatórios pela maior
parte de sua vida adulta. Naquele momento ele soube que ela enviara o bilhete anônimo para Elias. Só que não podia imaginar por quê. Relanceou os olhos de novo para
Richter e viu que o segurança estudava detidamente a mulher. Bosch especulou se ele estava tendo a mesma leitura. Decidiu ir em frente.
- A casa onde o crime ocorreu. Aquela em Brentwood. A quem
pertence agora?
- Ainda é nossa - disse Sam Kincaid. - Não temos ainda certeza do que fazer com ela. Parte da família quer se ver livre dela e nunca mais pensar naquilo. Mas outra
parte... Stacey esteve lá. Morou lá metade da sua vida...
- Entendo. O que eu gostaria...
O pager de Bosch tocou. Ele o desligou e continuou:
- Eu gostaria de dar uma olhada lá, no quarto dela. Amanhã, se possível. Teremos um mandado de busca então. Sei que é um homem ocupado, sr. Kincaid. Talvez a sra.
Kincaid pudesse me encontrar lá, mostrar-me as redondezas. Mostrar-me o quarto de Stacey. Se não for muito incômodo.
Kate Kincaid parecia apavorada com a possibilidade de voltar à casa em Brentwood. Mas ela fez que sim com a cabeça, de uma maneira descompromissada.
- D. C. leva você de carro - anunciou Sam Kincaid. - E vocês podem vasculhar a casa. E também não precisam de mandado de busca. Têm a minha permissão. Não temos
nada a esconder.
- Senhor, a implicação não é essa. O mandado será necessário de modo a não haver questionamentos posteriores. É mais uma proteção para nós. Se alguma coisa nova
for encontrada na casa e levar ao verdadeiro assassino, não queremos que esta pessoa seja capaz de contestar a prova apoiada em qualquer base legal.
- Entendo.
- E apreciamos seu oferecimento de ajuda na pessoa do sr. Richter, mas não será necessário. - Bosch olhou para Kate Kincaid.
- Preferia que apenas a senhora fosse, sra. Kincaid. A que horas estaria melhor?
Enquanto ela pensava a respeito, Bosch olhou para seu pager. O número era de um dos ramais da Homicídios. Mas havia um
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911 acrescido após o número. Era o código de Kiz Rider: ligar imediatamente.
- Ha, me desculpem - disse Bosch. -'Parece que esta chamada é importante. Posso usar um telefone? Tenho um celular no carro, mas aqui nestas colinas não sei se vai
pegar...
- Claro - disse Sam Kincaid. - Use o meu escritório. Volte pelo hall de entrada e siga à esquerda. A segunda porta à esquerda. Vai ter privacidade. Esperamos aqui
com o detetive Edwards.
Bosch se levantou.
- E Edgar - disse Edgar.
- Desculpe. Detetive Edgar.
Enquanto Bosch seguia para o hall de entrada, outro pager soou. Desta vez o de Edgar. Ele sabia que era Rider enviando a mesma mensagem. Edgar olhou para o seu pager
e depois para os Kincaid.
- É melhor eu acompanhar o detetive Bosch.
- Parece algo grande - comentou Sam Kincaid. - Espero que não seja um distúrbio.
- Eu também - disse Edgar.
O escritório doméstico de Kincaid seria capaz de acomodar todo o esquadrão de Homicídios de Hollywood. Era uma sala enorme com pé-direito alto e estantes ao longo
de duas paredes que subiam todo o caminho até o teto. No centro da sala estava uma escrivaninha que teria apequenado a de Elias. Era como se um mini-escritório pudesse
ser construído dentro dela.
Bosch a contornou por trás e pegou o telefone. Edgar entrou atrás dele.
- Recebeu recado de Kiz? - indagou Bosch.
- É. Alguma coisa está acontecendo.
Bosch digitou o número e esperou. Notou que sobre a mesa havia uma foto em moldura dourada em que Kincaid aparecia segurando sua enteada no colo. A garota de fato
era linda. Ele pensou no que Frankie Sheehan dissera acerca de ela parecer um anjo, mesmo na morte. Desviou o olhar e notou o computador montado
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sobre uma mesa de trabalho à direita da escrivaninha. Havia um protetor de tela no monitor, mostrando uma variedade de diferentes carros em disparada. Edgar também
notou isto.
- O czar do automóvel - sussurrou Edgar. - Está mais para o
fantasma da poluição.
Rider atendeu logo ao primeiro toque. -É Bosch.
- Harry, vocês já falaram com os Kincaid?
- Estamos aqui agora, no meio da conversa. O que está...
- Você os avisou?
Bosch ficou em silêncio por um momento. Quando tornou a
falar, sua voz estava muito baixa.
- Avisou? Não. Sobre o quê, Kiz?
- Harry, caia fora daí e volte para a delegacia.
Bosch nunca ouvira tanta seriedade na voz de Rider. Olhou para Edgar, que se limitou a erguer as sobrancelhas. Estava por fora.
- Certo, Kiz, estamos a caminho. Não quer me dizer por quê?
-Não. Tenho que mostrar a você. Encontrei Stacey Kincaid na vida após a morte.
Capítulo 26
Bosch não conseguiu decifrar a expressão que viu no rosto de Kizmin Rider quando ele e Edgar voltaram à sala dos detetives. Ela sentava-se sozinha à mesa grande
da seção de Homicídios, o laptop à sua frente, o brilho da tela refletindo ligeiramente o rosto escuro. Parecia ao mesmo tempo horrorizada e energizada. Bosch conhecia
a expressão, mas não tinha palavras para explicá-la. Rider testemunhara uma cena horrível, mas ao mesmo tempo sabia que poderia fazer alguma coisa.
- Kiz... - murmurou Bosch.
- Sente-se. Espero que não tenham deixado cabelo no bolo com os Kincaid.
Bosch puxou uma cadeira e sentou. Edgar fez a mesma coisa. A expressão usada por Rider significava dar uma mancada que prejudicava o caso com um erro constitucional
ou processual. Se um suspeito pede um advogado e depois confessa o crime, antes da chegada do advogado, há cabelo no bolo. A confissão não tem valor. Da mesma forma,
se um suspeito não é informado sobre os seus direitos antes do interrogatório, é improvável que qualquer coisa que ele disser na conversa possa ser usada para incriminá-lo
mais tarde, no tribunal.
- Olhe, ninguém era suspeito quando chegamos lá - protestou Bosch. - Não havia razão para advertir sobre os direitos. Avisamos
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que o caso estava reaberto e fizemos algumas perguntas básicas. De qualquer forma, não descobrimos nada de relevante. Avisamos que Harris foi inocentado, e ponto
final. O que você descobriu, Kiz? Talvez seja melhor nos mostrar.
- Está bem. Cheguem mais perto. Darei uma aula.
Os dois arrastaram suas cadeiras para os lados de Rider. Bosch olhou para o computador e viu na tela a homepage de Lady Regina.
- Em primeiro lugar, algum de vocês conhece Lisa ou Stacey O'Connor, da delegacia de Defraudações?
Bosch e Edgar sacudiram a cabeça em negativa.
- Não são irmãs. É apenas por acaso que têm o mesmo sobrenome. Trabalham com Sloane Inglert. Sabem quem é ela, não é
mesmo?
Agora eles assentiram. Inglert integrava uma nova unidade de fraudes por computador, baseada no Parker Center. A equipe - e Inglert em particular - recebera muita
atenção da mídia no início do ano, quando prendera Brian Fielder, um hacker de reputação internacional que liderava um bando de hackers conhecidos como "Festivos
Gozadores". As façanhas de Fielder e a caçada implacável de Inglert, através da Internet, foram notícia nos jornais durante semanas. Agora, o caso viraria um filme
de Hollywood.
- Somos amigas desde que trabalhei em Defraudações - continuou Rider. - Liguei para elas. Ficaram felizes em ajudar, porque de outra forma teriam de vestir um uniforme
e trabalhar doze horas
esta noite.
- Elas vieram aqui? - perguntou Bosch.
- Não, seu posto é no Parker. Onde estão os computadores de verdade. Mas falamos pelo telefone depois que chegaram lá. Relatei o que tínhamos... um endereço na Internet,
que sabíamos ser importante, mas ao mesmo tempo não fazia qualquer sentido. Contei-lhes sobre a visita à casa de Lady Regina e acho que ficaram arrepiadas. Seja
como for, elas disseram que havia uma boa possibilidade de que o que procuramos não tivesse nada a ver com Regina, mas apenas com sua página na Internet. Disseram
que a página pode ter sido seqüestrada e que devemos procurar um link de hipertexto em algum lugar da imagem.
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Bosch ergueu as mãos, as palmas viradas para cima. Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Rider continuou:
-Já sei, já sei, fale em linguagem comum. Está certo. Eu só queria levá-los passo a passo. Sabem alguma coisa sobre as páginas na Internet? Estão entendendo até
aqui?
- Não - respondeu Bosch.
- Absolutamente nada - acrescentou Edgar.
- Muito bem, vou tentar ser o mais simples possível. Vamos começar pela Internet. A Internet é a chamada super-rodovia da informação. São milhares e milhares de
sistemas de computador, todos ligados por um sistema Telnet. É mundial. Nessa estrada, há milhões de desvios, lugares para onde podemos ir. Temos redes inteiras
de computadores, sites, e assim por diante.
Ela apontou para a página de Lady Regina no monitor do computador.
- Esta é uma página individual, que fica num site da Internet em que há muitas outras páginas. Vocês vêem isto em meu computador, mas sua base, por assim dizer,
é um site maior da Internet. E esse site se encontra num equipamento de verdade, físico... um computador que chamamos de servidor. Estão entendendo?
Bosch e Edgar acenaram com a cabeça, numa resposta afirmativa.
- Até aqui - disse Bosch. - Pelo menos acho que sim.
- Ótimo. O servidor pode ter muitos e muitos sites na Internet, que administra e mantém. Se você quisesse ter uma página de Harry Bosch na Internet, procuraria um
servidor e mandaria incluí-la num dos seus sites. Por acaso tem uma página, falando de detetives
mal-humorados, que nunca dizem quase nada para ninguém?
Isto arrancou um sorriso de Bosch.
- E assim que funciona. Muitas vezes há negócios e interesses similares agrupados no mesmo site. É por isso que olhar para esse site parece Sodoma e Gomorra na Internet.
Porque os anunciantes parecidos procuram os mesmos sites.
- Certo - disse Bosch.
- A única coisa que o servidor da Internet deveria proporcionar é segurança. Refiro-me à segurança de impedir que alguém
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interfira em sua página, alterando-a ou destruindo-a. O problema é que não há muita segurança nos servidores. E se alguém pode entrar num servidor, pode assumir
a competência
de administrador do site e seqüestrar qualquer página.
- O que significa esse seqüestro? - perguntou Edgar.
- As pessoas podem entrar numa página no site e usá-la como uma fachada para seus interesses. Pense no que está em meu monitor agora. Essas pessoas podem entrar
por trás dessa imagem e acrescentar todos os tipos de portas e comandos ocultos, tudo o que quiserem. Podem usar a página como um portal para qualquer
coisa que quiserem.
- E foi isso o que fizeram com a página dela? - perguntou Bosch.
- Exatamente. Pedi a O'Connor/O'Connor que rastreassem um locador de fontes. Identificaram o servidor que tem esta página. Há algumas muralhas de fogo - firewalls,
como são chamados os bloqueios de segurança -, mas as senhas de ingresso ainda são válidas. E invalidam as muralhas de fogo.
- Agora me perdi - comentou Bosch.
- Quando um servidor da Internet é instalado, há senhas de ingresso necessárias para o primeiro acesso. Hóspede/hóspede, por exemplo. Ou administrador/administrador.
Depois que o servidor está instalado e funcionando, essas senhas devem ser eliminadas, para evitar riscos. Mas com freqüência a providência é esquecida, e as senhas
se tornam as portas dos fundos, os meios de infiltração. Foram esquecidas neste caso. Lisa conseguiu entrar, usando a senha administrador/administrador. E se ela
foi capaz, qualquer hacker com um mínimo de competência também pode ter entrado e seqüestrado a página de Lady Regina. Foi o que aconteceu.
- O que eles fizeram? - perguntou Bosch.
- Puseram um link de hipertexto oculto. Um botão quente. Quando localizado e acionado, leva o usuário a outro site da Internet completamente diferente.
- Em linguagem comum - pediu Edgar. Rider pensou por um momento.
- Pense num prédio alto... o Empire State. Você está num andar. O andar de Lady Regina. Descobre um botão oculto na parede.
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Aperta-o e no mesmo instante abre-se a porta de um elevador que você nem sabia que havia ali. O elevador o leva a outro andar. Você salta. E um lugar totalmente
novo.
Mas não poderia ter chegado lá se não passasse pelo andar de Lady Regina e descobrisse aquele botão oculto.
- Ou fosse informado sobre sua posição - acrescentou Bosch.
- Exatamente - disse Rider. - As pessoas que estão por dentro podem ir.
Bosch acenou com a cabeça para o computador.
- Mostre para a gente.
- Lembrem que o primeiro bilhete para Elias foi o endereço da página na Internet e a imagem de Regina. A segunda dizia "pôr o pingo no i humbert humbert". O autor
misterioso estava simplesmente dizendo a Elias o que devia fazer com a página da Internet.
- Pôr o pingo no i de Regina? - indagou Edgar. - Clicar o mouse no pingo?
- Foi o que pensei. Mas O'Connor/O'Connor disseram que um botão quente só pode ser oculto por trás de uma imagem. Alguma coisa a ver com redefinição de pixel, que
não preciso explicar.
- Então pôs o pingo no olho? - disse Bosch, apontando para o próprio
olho*.
- Isso mesmo.
Ela virou-se para o computador, no qual ligara um mouse. Moveu-o com a mão, e Bosch observou a seta na tela deslocar-se para o olho esquerdo de Lady Regina. Rider
clicou o mouse duas vezes e a tela apagou.
- Estamos naquele elevador, certo?
Depois de uns poucos segundos um campo de céu azul e nuvens apareceu na tela. Em seguida, alguns anjinhos, com asas e halos, surgiram sentados nas nuvens. E logo
veio a janela para a senha.
- Humbert humbert - murmurou Bosch.
- Está vendo como entende dessas coisas, Harry? Apenas finge que não sabe nada.
* A pronúncia em inglês da letra "i" e da palavra eye (olho) é a mesma. (N. do E.)
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Ela bateu humbert em nome do usuário e nas ranhuras para a senha. A tela apagou de novo. Poucos segundos depois apareceu uma mensagem de boas-vindas:
BEM-VINDO À TEIA DE CHARLOTTE
Por baixo da imagem surgiu um desenho. Uma aranha rastejou pelo fundo da página, para depois começar a tecer uma teia através da tela, disparando de um lado para
outro. Pequenas imagens fotográficas de rostos de garotas apareceram na teia, como se estivessem presas ali. Quando a imagem da teia e suas cativas ficou pronta,
a aranha tomou uma posição no alto.
- Isto é doentio - disse Edgar. - Estou com um terrível pressentimento.
- É um site de pedofilia - disse Rider. com a ponta de uma unha, ela bateu na tela, abaixo de uma das fotos na teia. - E esta é Stacey Kincaid. Você clica na foto
que escolhe e tem acesso a uma porção de fotos e vídeos. É realmente uma coisa horrível. Aquela pobre menina. Melhor para ela ter morrido.
Rider deslocou a seta para a foto da garota loura. Era muito pequena para Bosch identificá-la como Stacey Kincaid. Gostaria de poder simplesmente aceitar a palavra
de Rider.
- Estão prontos? - perguntou Rider. -Não posso passar os vídeos no meu laptop, mas as fotos vão dar uma idéia.
Ela não esperou pela resposta, e também não obteve nenhuma. Deu dois cliques no mouse e uma nova tela apareceu. Surgiu uma foto nela. Era de uma garota, parada nua,
na frente de uma sebe. Sorria de uma maneira forçada, que parecia antinatural. Apesar do sorriso, ainda tinha expressão de inocente e perdida no bosque. As mãos
estavam nos quadris. Bosch pôde ver que era mesmo Stacey Kincaid. Tentou respirar, mas sentiu que os pulmões entravam em colapso. Cruzou os braços sobre o peito.
Rider começou a movimentar a tela e as fotos foram subindo, apresentando a garota em várias poses, primeiro sozinha e depois com um homem. Só era mostrado o tronco
nu do homem e nunca o rosto.
As últimas fotos eram da garota e do homem empenhados em vários atos sexuais. A foto
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final apresentava Stacey Kincaid num vestido branco, com pequenas bandeiras de sinalização estampadas. Ela acenava para a câmera. De certa forma, a foto parecia
ser a pior, embora fosse a mais inocente.
- Muito bem, pode voltar ou ir para a frente... ou qualquer coisa que faça para sair daí - murmurou Bosch.
Ele observou Rider deslocar o cursor para um botão abaixo da última foto, em que se lia a palavra HOME. Pareceu uma lamentável ironia para Rider que clicar HOME
[lar] fosse a saída. Rider clicou e a tela voltou à teia da aranha. Bosch levou a cadeira de volta ao seu lugar e arriou nela. Fadiga e depressão dominaram-no por
completo. Queria voltar para casa, dormir, esquecer tudo o que sabia.
- As pessoas são os piores animais - disse Rider. - Fazer qualquer coisa contra as outras, apenas para satisfazer suas fantasias.
Bosch levantou e foi até uma mesa próxima. Pertencia a um detetive da Roubos e Furtos chamado McGrath. Ele abriu as gavetas e começou a revistá-las.
- O que está procurando, Harry? - perguntou Rider.
- Um cigarro. Pensei que Paul guardava na mesa.
- Era o que ele fazia. Mas pedi que levasse para casa. Bosch olhou para ela, com a mão numa gaveta aberta.
- Você pediu?
- Não queria que você tivesse uma recaída, Harry. Bosch fechou a gaveta. Voltou para sua cadeira.
- Muito obrigado, Kizmin. Você me salvou. Não havia nada de gratidão no
tom que ele usou.
- Vai superar isso, Harry. - Bosch lançou-lhe um olhar demorado.
- Você provavelmente nunca fumou um cigarro inteiro em toda a sua vida, e tem a pretensão de me dizer como fazer para largar, que vou superar tudo?
- Desculpe. Só estou tentando ajudar.
- Como eu disse, obrigado.
Ele olhou para o computador e acenou com a cabeça.
- O que mais? Em que está pensando agora? Qual a ligação disso v
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com Sam e Kate Kincaid, a ponto de termos que adverti-los
sobre seus direitos?
- Eles sabiam de tudo - disse Rider, espantada porque Bosch não percebera a mesma coisa que ela. - O homem nas fotos só pode
ser Kincaid.
- Ei! - exclamou Edgar. - Como pode dizer isso? Não dá para ver o rosto do cara. E acabamos de falar com Sam e a mulher, que estão angustiados pelo que aconteceu.
Foi nesse momento que ocorreu a Bosch. Ao ver as fotos no computador, pensara que haviam sido tiradas pelo seqüestrador
da garota.
- Está dizendo que essas fotos são antigas? - comentou ele. -
Que ela sofreu abuso antes de ser seqüestrada?
- Estou dizendo que provavelmente não houve nenhum seqüestro. Stacey Kincaid foi uma criança que sofreu abusos sexuais. Meu palpite é de que o padrasto abusou dela
e depois a matou. E isso não pode ter acontecido sem o conhecimento tácito da mãe, se não mesmo com sua aprovação.
Bosch ficou calado. Rider falara com tanta veemência, até mesmo com angústia, que ele não podia deixar de especular se havia por trás alguma espécie de experiência
pessoal.
- Houve um tempo em que pensei que queria trabalhar em crimes sexuais contra crianças - disse Rider, aparentemente percebendo o ceticismo dos parceiros. - Foi antes
de entrar na Homicídios. Havia uma vaga na equipe de crianças em perigo na delegacia da Pacific, e podia ser minha, se eu quisesse. Primeiro me mandaram para Quantico,
para o programa de treinamento de duas semanas que o FBI promove uma vez por ano, sobre crimes sexuais contra crianças. Agüentei oito dias, até compreender que não
podia me envolver com aquilo. Voltei e me candidatei a uma vaga na Homicídios.
Ela parou de falar, mas nem Bosch nem Edgar fizeram qualquer comentário. Sabiam que havia mais.
- Mas antes de sair - continuou Rider - aprendi o suficiente para saber que a maior parte dos abusos sexuais contra crianças procede da própria família, parentes
ou amigos íntimos. Os monstros que entram pela janela e seqüestram uma criança são raros.
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- Ainda não temos qualquer prova neste caso específico, Kiz lembrou Bosch, gentilmente. - Pode ser a exceção rara. Não foi Harris quem entrou pela janela, mas aquele
cara.
Ele apontou para o computador, embora as imagens da agressão do homem sem cabeça a Stacey Kincaid, felizmente, não estivessem mais na tela.
- Ninguém entrou pela janela - insistiu Rider.
Ela pegou uma pasta e abriu-a. Bosch constatou que continha uma cópia do relatório da autópsia de Stacey Kincaid. Rider folheou até encontrar as fotos. Separou
a que queria e estendeu para Bosch. Enquanto ele examinava a foto, Rider continuou a folhear o relatório.
A foto que Bosch tinha nas mãos era do corpo de Stacey Kincaid in situ, isto é, na posição e lugar em que fora encontrado. Os braços estavam bem abertos. Sheehan
tinha razão. O corpo começava a escurecer com a decomposição interna, o rosto era encovado. Mas havia uma qualidade angelical em seu repouso. Ele sentiu um aperto
no coração ao ver as fotos da garota torturada e agora morta.
- Dê uma olhada no joelho esquerdo - disse Rider.
Foi o que Bosch fez. Viu uma mancha escura e redonda, que parecia ser uma casca de ferida.
- Uma casca de ferida?
- Isso mesmo. O relatório diz que é pré mortem em cinco ou seis dias. Aconteceu antes do seqüestro. Portanto, ela tinha essa casca de ferida durante todo o tempo
que passou com o seqüestrador... se é que houve mesmo algum. Nas fotos na Internet não há nenhuma crosta de ferida. Posso mostrá-las de novo, se quiser.
- Aceito sua palavra - murmurou Bosch.
- Eu também - acrescentou Edgar.
- Portanto, as fotos na Internet foram tiradas muito antes do suposto seqüestro, muito antes do assassinato.
Bosch começou a balançar a cabeça em concordância, mas depois sacudiu-a vigorosamente.
- O que é? - perguntou Rider.
- Acontece apenas... Não sei direito. Há vinte e quatro horas trabalhávamos na coisa de Elias, pensando que talvez estivéssemos à procura de um policial. Agora aparece
isso...
275
- E muda tudo - comentou Edgar.
- Espere aí. Se é mesmo Sam Kincaid quem aparece nessas fotos com ela, por que ainda estão na Internet? Não faz sentido que
ele corra tamanho risco.
- Pensei nisso - disse Rider. - Há duas explicações possíveis. A primeira é que ele não tem acesso de editoração ao site. Em outras palavras, não pode tirar as fotos
sem procurar o administrador, o que acarretaria suspeitas e o deixaria vulnerável. A segunda possibilidade, e pode ser uma combinação das duas, é que ele se sentia
seguro. Harris foi apontado como o assassino. Quer fosse condenado ou não, seria o fim da história.
- Ainda assim é um risco deixar as fotos na Internet para serem
vistas - insistiu Edgar.
- Quem vai vê-las? - indagou Rider. - Quem vai contar? Sua voz era defensiva demais. Ela percebeu e continuou num
tom mais calmo:
-Não entendem? Os que acessam esse site são pedófilos. Mesmo que alguém reconhecesse Stacey, o que é improvável, o que poderia fazer? Ligar para a polícia e dizer:
"Gosto de comer crianças, mas não admito que sejam assassinadas. Podem tirar essas fotos de nosso site na Internet?" Nem em um milhão de anos. E talvez manter as
fotos ali fosse uma forma de se gabar. Nem sequer sabemos o que temos aqui. Talvez todas as garotas no site estejam mortas.
A voz de Rider foi se tornando mais e mais estridente, à medida que tentava convencê-los.
- Está bem, está bem - murmurou Bosch. - São bons argumentos, Kiz. Mas, pelo menos por enquanto, vamos nos ater ao nosso caso. Qual é a sua teoria? Acha que Elias
chegou até esse ponto e que isso causou sua morte?
- Claro. Sabemos disso. A quarta mensagem. "Ele sabe que você sabe." Elias entrou no site secreto e foi descoberto.
- Como poderiam saber de sua entrada, se ele tinha a senha na terceira mensagem? - perguntou Edgar.
- Boa pergunta - respondeu Rider. - Foi a mesma que fiz às O'Connors. Elas fizeram algumas sondagens, depois de acessarem o servidor. Encontraram um cookie jar no
site. Isso significa que há um
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programa que capta os dados pessoais sobre cada usuário cadastrado que acessa o site. Depois os analisa, para determinar se alguém que não deveria ter acesso entrou
no site. Mesmo que tivessem as senhas, o acesso ainda é registrado. Sempre fica uma trilha, que é chamada de endereço de protocolo da Internet. E que nem impressões
digitais. O protocolo, ou cookie, fica no site em que você entrou. O programa analisa o endereço e compara-o com os usuários conhecidos. Se não é um endereço registrado
antes, o programa dá o alerta. Levanta uma bandeira. O administrador do site pode então localizar o intruso. Ou pode instalar uma armadilha, esperando a próxima
visita dele. Quando ele volta, o programa efetua um rastreamento, proporcionando ao administrador o e-mail do intruso. Depois que se consegue isso, é possível identificá-lo.
Se tudo indica que é alguém da polícia, o administrador fecha o elevador- a página seqüestrada, que era usada como um portal secreto - e procura uma nova página
da Internet para seqüestrar. Mas, neste caso, não foi um policial. Foi um advogado.
- E não fecharam o elevador - comentou Bosch. - Em vez disso, mandaram alguém para matá-lo.
- Isso mesmo.
- Então acha que foi isso que Elias fez - disse Bosch. - Ele recebeu aquelas mensagens pelo correio e seguiu as indicações. Encontrou esse site e acionou um alarme.
Uma bandeira. E depois eles o mataram.
- Sim, essa seria a minha interpretação, pelo que sabemos a esta altura, em particular à luz da quarta mensagem. "Ele sabe que você sabe."
Bosch balançou a cabeça, confuso com suas próprias extrapolações da história.
- Ainda não estou entendendo. Quem são os "eles" de que estamos falando aqui, acusando de assassinato?
- O grupo. Os usuários do site. O administrador do site, que poderia ser Kincaid, constatou que havia um intruso, descobriu que era Elias e mandou alguém cuidar
do problema, a fim de evitar uma possível revelação. Não importa se ele consultou ou não os membros do grupo primeiro. Todos são culpados, porque o site é um empreendimento
criminoso.
277
Bosch levantou a mão para contê-la.
- Mais devagar. Podemos deixar o grupo e o quadro maior para a promotoria se preocupar. Concentre-se no assassino e Kincaid. Estamos presumindo que ele se encontrava
envolvido em tudo isso, e alguém descobriu. Mas decidiu informar a Elias, em vez de comunicar à polícia. Faz sentido?
- Claro que faz. Apenas ainda não conhecemos todos os detalhes. Mas as mensagens falam por si mesmas. Indicam claramente que alguém avisou Elias sobre o site e mais
tarde alertou-o de que tinha sido descoberto.
Bosch balançou a cabeça, pensando a respeito por um momento.
- Espere um instante. Se o acesso de Elias acionou um alarme, sua entrada agora não fez a mesma coisa?
- Não. Graças às O'Connors. Quando entraram no servidor, elas incluíram meu protocolo na lista dos aceitáveis do site. Não haverá alarmes. Os operadores e usuários
do site não saberão que estivemos lá, a não ser que examinem a lista dos aceitáveis, e descubram que foi alterada. Acho que temos tempo para fazer o que
precisamos.
Bosch tornou a balançar a cabeça. Tinha vontade de perguntar se era legal o que as O'Connors haviam feito, mas achou melhor não saber. Em vez disso, perguntou:
- Mas quem mandou as mensagens para Elias?
- A esposa - respondeu Edgar. - Acho que ela teve um acesso de culpa e quis ajudar Elias a ferrar Sam, o czar do automóvel. Por isso, enviou as mensagens.
- É possível - admitiu Rider. - A pessoa que mandou as mensagens sabia duas coisas diferentes: o site de Charlotte e os recibos do lavajato. E mais uma coisa: que
Elias tinha acionado um alarme. Portanto, meu voto também vai para a mulher. Como ela
estava hoje?
Bosch passou os dez minutos seguintes relatando as atividades
dos dois durante o dia.
- E isso foi apenas o nosso trabalho no caso - acrescentou Edgar.
- Harry nem contou como a janela traseira do nosso carro foi destruída por um tiro.
278
- O quê?!
Edgar relatou a história. Rider parecia fascinada.
- Pegaram o atirador?
- Não, pelo que sabemos. Mas não ficamos por ali para saber.
- Nunca atiraram contra mim - comentou ela. - Deve fazer o coração disparar.
- Mas não da maneira como você gostaria - garantiu Bosch. Ainda tenho perguntas sobre toda essa história da Internet.
- Quais são? - indagou Rider. - Se eu não puder responder, podemos consultar as O'Connors.
- Não são perguntas técnicas. Questões lógicas. Ainda não compreendo como e por que essas coisas ainda estão disponíveis na Internet. Compreendo o que você disse,
que todos os usuários são pedófilos, com um aparente sentimento de segurança, mas agora Elias morreu. Se eles o mataram, por que não mudaram pelo menos para um
novo portal?
- Talvez estejam no processo de tentar fazer isso. Afinal, a morte de Elias ocorreu há menos de quarenta e oito horas.
- E o que me diz de Kincaid? Acabamos de avisá-lo de que vamos reabrir o caso. Quer ele corra ou não o risco de ser desmascarado, sua primeira providência deveria
ter sido sentar ao computador, no instante em que saímos, e entrar em contato com o administrador do site, ou tentar pessoalmente destruir o site e as fotos em
que aparece.
- Outra vez, talvez o processo já tenha sido iniciado. Mas, mesmo que isso ocorra, agora é tarde demais. As O'Connors passaram tudo para um Zip drive. Ou seja, eles
podem remover tudo o que há no site, mas continuaremos a ter o conteúdo. Poderemos descobrir os endereços e localizar cada uma dessas pessoas... se é que podemos
considerá-las como pessoas.
A veemência e a raiva levaram Bosch a especular outra vez se alguma coisa no site não a teria afetado em termos pessoais, lá no fundo.
- E o que fazemos agora? - indagou ele. - Procuramos mandados judiciais?
- Isso mesmo - disse Rider. - E trazemos os Kincaid. Que se
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dane sua enorme mansão no alto de uma colina. Já temos o suficiente para interrogá-los sobre abusos sexuais contra uma criança. Vamos pressioná-los em salas separadas.
Arrancamos uma confissão da mulher. Vamos persuadi-la a renunciar ao privilégio esponsalício e nos entregar o marido, aquele rato miserável.
- Está falando de uma família muito poderosa, com ligações políticas.
- Não me diga que tem medo do czar do automóvel.
Bosch estudou seu rosto, para ter certeza de que estava brincando.
- Só tenho medo de agir rápido demais e estragar tudo. Não temos nada que ligue alguém diretamente a Stacey Kincaid ou Howard Elias. Se trouxermos a mãe para cá
e não a convencermos, o czar do automóvel vai escapar impune. É disso que tenho medo, entende?
Rider balançou a cabeça.
- Ela está ansiosa para ser convencida - disse Edgar. - Por que outro motivo mandaria aquelas mensagens para Elias?
Bosch pôs os cotovelos na mesa. Esfregou o rosto com as mãos, enquanto pensava na situação. Tinha de tomar uma decisão.
- E o site de Charlotte? - indagou ele, o rosto coberto pelas mãos. - O que vamos fazer?
- Entregamos o problema a Inglert e às O'Connors - respondeu Rider. - Elas vão adorar. Como eu disse, vão poder investigar a lista de aceitáveis para chegar aos
usuários. Vão ser identificados e apanhados. Estamos falando aqui de várias prisões de uma rede de pedófilos na Internet. E isso só para começar. A promotoria pode
tentar uma conexão com os homicídios.
- É provável que estejam espalhados por todo o país - disse Edgar. - Não devem ser apenas de Los Angeles.
- Podem estar espalhados pelo mundo inteiro, mas não vai fazer diferença. Nosso pessoal vai atuar junto com o FBI.
Houve mais um longo momento de silêncio, até que Bosch finalmente baixou as mãos para a mesa. Tomara uma decisão.
- Muito bem. Vocês dois ficam aqui cuidando dos mandados judiciais. Devem estar prontos esta noite, caso decidamos entrar em ação. Queremos todas as armas, equipamentos
de computador...
280
sabem o que fazer. Quero mandados para a casa velha, que ainda é deles, além da casa nova, todos os carros, e o escritório de Kincaid. Além disso, Jerry, veja o
que pode descobrir sobre o cara da segurança.
- D. C. Richter. Deixe comigo. O que...
- E já que vão preparar vários mandados, quero um para o carro dele.
- Qual é a alegação? - quis saber Rider.
Bosch pensou por um momento. Sabia o que queria, mas precisava de meios legais para conseguir.
- Basta dizer que acreditamos que seu carro pode ter sido usado nos crimes relacionados com Stacey Kincaid, já que é o chefe de segurança de Kincaid.
- Isso não é causa provável, Harry.
- Ponha o mandado no meio dos outros. Talvez o juiz não se importe depois de ler o resto. E vamos verificar a lista de juizes disponíveis. Devemos procurar uma mulher.
Rider sorriu.
- Não somos espertos?
- O que você vai fazer enquanto isso, Harry? - perguntou Edgar.
- vou ao centro para conversar com Irving e Lindell. vou contar o que temos, para saber o que eles querem fazer.
Bosch olhou para Rider, que estava desapontada.
- Você nunca foi assim, Harry - protestou ela. - Sabe que Irving vai optar por uma ação comedida. Não vai nos deixar entrar em ação enquanto não tivermos excluído
todas as outras possibilidades.
Bosch balançou a cabeça.
- Normalmente seria assim mesmo. Mas não estamos em tempos normais. Ele quer evitar que a cidade pegue fogo. E agir dessa maneira, bem depressa, pode ser a única
saída. Irving é bastante inteligente para compreender isso.
- Você tem muita fé na natureza humana - comentou ela.
- Como assim?
- A melhor maneira de esfriar esta cidade é prender um policial. Irving já escolheu Sheehan. E não vai querer ouvir o que temos a dizer, Harry.
- Pensa que todo mundo vai acreditar em você e se manter
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calmo se prender o czar do automóvel e dizer que foi ele quem matou Elias? - acrescentou Edgar. - Não está entendendo. Há pessoas que precisam que o culpado seja
da
polícia, e não vão querer qualquer outro resultado.
Bosch pensou em Sheehan, numa sala no Parker Center. Estava sendo avaliado como o bode expiatório do departamento.
- Tratem apenas de aprontar os mandados - disse ele. - E deixem que eu cuido do resto.
Capítulo 27
Bosch olhou pela janela, observando os manifestantes lá embaixo, nas calçadas em frente ao Parker Center e ao longo da Los Angeles Street. Movimentavam-se em filas
ordenadas, segurando cartazes que diziam JUSTIÇA AGORA, num lado, e JUSTIÇA PARA HOWARD ELIAS, no outro. A duplicação dos cartazes comprovava uma preparação meticulosa,
em benefício da mídia. Bosch avistou o reverendo Preston Tuggins como um dos manifestantes. Enquanto ele andava, repórteres o acompanhavam, estendendo microfones
à sua frente, focalizando câmeras em seu rosto. Bosch não viu qualquer cartaz que dissesse alguma coisa sobre Catalina Perez.
- Detetive Bosch, explique tudo - pediu o subchefe Irving, por trás. - Já nos disse que informações acumulou. Agora, ponha em perspectiva. Diga-nos o que acha que
significa.
Bosch virou-se. Olhou para Irving, depois para Lindell. Irving abrigava-se por trás de sua mesa, empertigado, usando uniforme completo... uma indicação de que mais
tarde compareceria a uma entrevista coletiva. Lindell sentava-se numa cadeira no outro lado da mesa. Bosch acabara de relatar o que Rider descobrira, e os passos
que sua equipe dera para chegar àquele ponto. Irving queria agora sua interpretação dos fatos.
Bosch organizou seus pensamentos, enquanto voltava até a mesa e sentava-se ao lado de Lindell.
283
- Acho que Sam Kincaid matou a enteada, ou teve alguma coisa a ver com aquilo. Nunca houve um seqüestro. Essa foi a história que ele inventou. E teve muita sorte,
quando aquelas impressões digitais apontaram para Harris. Depois que isso foi descoberto, ele ficou praticamente livre de suspeita.
- Comece pelo início.
- Está bem. Começamos com Kincaid sendo um pedófilo. Casou com Kate há seis anos, provavelmente como uma cobertura. E para ter acesso à filha dela. A decomposição
do corpo da garota era avançada demais para o legista determinar se havia alguma indicação de abuso sexual a longo prazo. Mas estou dizendo que houve. E também...
- A mãe sabia?
- Não sei. Descobriu em algum momento, mas quando é a
questão a ser determinada.
- Continue. Desculpe a interrupção.
- Alguma coisa aconteceu no verão passado. Talvez a garota ameaçasse contar a alguém... à mãe, se ainda não soubesse... ou talvez procurar as autoridades. Ou talvez
Kincaid simplesmente se cansasse dela. Os pedófilos procuram um grupo etário específico. Stacey Kincaid estava prestes a completar doze anos. Podia ser muito velha
para... o gosto do padrasto. Se a garota não tinha mais proveito para ele dessa maneira, passava a ser apenas um perigo.
- A conversa está me deixando de estômago embrulhado, detetive. Afinal, era uma garota de onze anos.
- O que quer que eu faça, chefe? Também embrulha meu estômago. Vi as fotos.
- Então continue, por favor.
-Como eu disse, alguma coisa aconteceu e ele a matou. Escondeu o corpo e arrombou a janela. Depois, deixou que o resto acontecesse. Pela manhã, a mãe descobre que
a filha desapareceu e chama a polícia. A história do seqüestro começa a se desenrolar.
- E ele teve um golpe de sorte - disse Lindell.
- Isso mesmo. Uma tremenda sorte. Entre todas as impressões digitais encontradas no quarto da garota e no resto da casa, o computador identifica as de Michael Harris,
ex-condenado, um saco de
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bosta cheio. A DRH entrou em ação nesse momento. Como se todos estivessem usando antolhos. Largaram tudo e Harris
tornou-se o único foco. Prenderam-no e fizeram o que tinham de fazer. Só que uma coisa estranha aconteceu a caminho da condenação. Harris não confessou, e não havia
qualquer outra prova além das impressões digitais.
Enquanto isso, o nome de Harris foi vazado para a mídia. Todos sabiam que a polícia tinha um suspeito. Kincaid descobriu onde Harris morava... talvez de um policial
amigo, que queria apenas manter os pais da vítima informados. Como quer que tenha acontecido, o fato é que ele sabia onde Harris morava. Foi até o lugar em que tinha
escondido o corpo e transferiu-o. Meu palpite é o de que estava na mala de um carro o tempo todo. Provavelmente em um dos seus muitos carros. Ele levou o corpo para
a vizinhança de Harris e largou-o num terreno baldio, a dois quarteirões do apartamento do suspeito. Quando foi encontrado, na manhã seguinte, a polícia tinha outra
prova... circunstancial, é claro... para acompanhar as impressões digitais. Mas Harris era apenas um otário.
- Ele deixou as impressões quando lavou o carro da sra. Kincaid
- comentou Irving.
- Isso mesmo.
- E o que pode dizer sobre Elias? - interveio Lindell. - Como ele foi morto?
- Acho que foi culpa da sra. Kincaid. Sem querer. Em algum momento, depois de enterrar a filha, acho que ela começou a ver fantasmas. Sentia-se culpada pela filha,
e talvez tentasse fazer a coisa certa. Sabia do que o marido era capaz. Talvez até tenha sido ameaçada expressamente. Por isso, tentou fazer tudo às escondidas.
Enviou cartas anônimas para ajudar Elias. E ajudou. Ajudou mesmo. Elias conseguiu descobrir o site secreto, a Teia de Charlotte. Depois de ver as fotos da garota,
ele compreendeu quem era o provável assassino. Resolveu cuidar de tudo com a maior discrição. Mas pretendia intimar Kincaid e denunciá-lo no tribunal. Só que cometeu
um erro e revelou seus planos. Elias deixou uma pista no site. Kincaid ou os operadores do site descobriram o perigo.
- E mandaram eliminar a ameaça - murmurou Lindell.
- Duvido que tenha sido o próprio Kincaid. É mais provável

285
que tenha sido alguém que trabalhava para ele. Kincaid tem um chefe de segurança. Estamos investigando o homem.
Todos mantiveram-se em silêncio por um longo momento. Irving cruzou as mãos sobre a mesa. Não havia nada por cima. Era apenas madeira envernizada.
- Você precisa soltar Sheehan - disse Bosch. - Não foi ele.
- Não se preocupe com Sheehan - respondeu Irving. - Se estiver limpo, ele vai para casa. Quero saber como vamos lidar com Kincaid. Parece...
Bosch ignorou sua hesitação.
- Vamos fazer o que for necessário - disse ele. - Temos mandados de busca assinados, prontos para ser executados. Devo me encontrar com a sra. Kincaid amanhã de
manhã, na casa velha. vou tentar conseguir dela uma confissão. Acho que ela é frágil, talvez esteja ansiosa para contar tudo. De qualquer forma, executamos os mandados.
vou usar todo o pessoal para chegar aos lugares ao mesmo tempo... as casas, os carros, o escritório. Também precisamos confiscar os registros de vendas de carros.
Para descobrir que carros Kincaid usava em julho. E Richter também.
-Richter?
- O chefe de segurança. Irving se levantou e foi até a janela.
- Está falando sobre um membro de uma família que ajudou a construir esta cidade - murmurou ele. - O filho de Jackson Kincaid.
- Sei disso - respondeu Bosch. - O cara é de uma família poderosa. Controla até a poluição do ar em Los Angeles. Pensa a respeito como se fosse obra de sua família.
Mas nada disso importa, chefe. Não depois do que ele fez.
Irving baixou os olhos. Bosch sabia que ele observava a manifestação de protesto lá embaixo.
- A cidade espera...
Ele não acabou. Bosch sabia qual era o pensamento. Que aquelas pessoas lá embaixo, nas calçadas, aguardavam notícias sobre a formalização de acusações - contra um
policial.
- Qual é a situação do detetive Sheehan? - perguntou Irving. Lindell olhou para o relógio. -
286
- Já o interrogamos há seis horas. Quando saí, ele ainda não havia dito uma única palavra que pudesse incriminá-lo, em relação ao assassinato de Howard Elias.
- Ele ameaçou a vítima previamente da mesma maneira como o crime foi cometido.
- Aconteceu há muito tempo. Além disso, foi dito em público, na presença de várias testemunhas. Na minha experiência, as pessoas que fazem tais ameaças não costumam
executá-las. Estão apenas descarregando sua raiva.
Irving assentiu, ainda virado para a janela.
- Ainda não temos nada. A autópsia em Elias deveria ser iniciada esta tarde. Mandei o detetive Chastain até lá. Vão tirar as balas e levar para a perícia. Vai demorar
um pouco até chegar ao meu pessoal em Washington. Mas lembre, chefe, que Sheehan não hesitou em oferecer sua arma para o exame de balística. Ele tem uma nove milímetros,
mas acho que não teria oferecido nada se não soubesse que as balas não combinam.
- E sua casa?
- Vasculhamos tudo, de alto a baixo... e também com sua permissão. Nada. Nenhuma outra arma, nenhum texto de ódio contra Elias, absolutamente nada.
-Álibi?
- O único ponto em que ele não tem defesa. Estava sozinho em casa na noite de sexta-feira.
- E a esposa? - perguntou Bosch.
- A esposa e os filhos estavam em Bakersfield - respondeu Lindell. - Ao que parece, passam muito tempo ali.
Era mais uma surpresa sobre Sheehan. Bosch especulou por que Sheehan não mencionara o fato, quando perguntara sobre sua família.
Irving permaneceu calado. Lindell acrescentou:
- O que estou querendo dizer é que podemos mantê-lo aqui, esperando até amanhã, quando chegar o resultado da balística para inocentá-lo. Ou podemos embarcar na canoa
de Harry e soltá-lo agora. Mas se o mantivermos durante a noite e as expectativas na rua aumentarem ainda mais...
287
- E se o soltarmos sem explicação, podemos desencadear uma onda de violência - argumentou Irving.
Ele continuava a olhar pela janela, pensativo. Desta vez Lindell
esperou.
- Vamos soltá-lo às seis horas - declarou Irving, depois de um longo momento. - Às cinco, na coletiva, direi que ele será solto na dependência de investigações adicionais.
Já posso ouvir os protestos de Preston Tuggins e seu pessoal.
- Não é suficiente, chefe - interveio Bosch. - Tem de dizer que ele é inocente. Na dependência de investigações adicionais? É como se disséssemos que o consideramos
culpado, mas que ainda não temos provas para acusá-lo.
Irving virou-se da janela para fitar Bosch.
- Não ouse me dizer o que é ou não suficiente, detetive. Faça o seu trabalho que eu faço o meu. Por falar nisso, a entrevista vai ser dentro de uma hora. Quero seus
dois parceiros presentes. Não quero ficar lá em cima com um bando de rostos brancos por trás e dizer que vamos soltar um policial branco na dependência de investigações
adicionais. Quero seu pessoal aqui desta vez. E não vou aceitar nenhum tipo de desculpa.
- Eles vão estar presentes.
- Ótimo. Agora, vamos conversar sobre o que dizer à mídia sobre o rumo da investigação.
A entrevista coletiva foi breve. O chefe de polícia não apareceu. Coube a Irving explicar que a investigação prosseguia e se ampliava. Também disse que o policial
entrevistado há várias horas seria solto. O que provocou um coro imediato de perguntas gritadas dos repórteres. Irving ergueu as mãos, como se essa atitude pudesse
de alguma forma controlar a multidão. Estava enganado.
- Não vamos transformar esta entrevista numa competição de gritos! - berrou ele. - vou responder a algumas perguntas e ponto final. Temos uma investigação para retomar.
Nós...
- O que significa essa decisão de soltá-lo, chefe? - perguntou Harvey Button. - Está querendo dizer que ele foi inocentado, ou que não há provas suficientes para
continuar a detê-lo?
288
Irving fitou Button em silêncio por um momento, antes de responder:
- O que estou dizendo é que a investigação agora se desloca para outras áreas.
- Então, o detetive Sheehan foi inocentado, correto?
- Não vou dar os nomes das pessoas com quem falamos.
- Ora, chefe, todo mundo sabe o nome. Por que não pode responder à pergunta? "
Bosch achou que era engraçado, de uma maneira meio cínica, acompanhar esse diálogo, porque Lindell o convencera de que fora Irving quem primeiro vazara o nome de
Frankie Sheehan para a mídia. Agora, o subchefe tentava bancar o insultado quando se dizia
o nome.
- Só estou dizendo que o policial com quem conversamos aqui ofereceu respostas satisfatórias até este momento. Ele vai para casa e isso é tudo que eu...
- Quais são os novos rumos da investigação? - gritou outro repórter.
- Não posso entrar em detalhes - respondeu Irving. - Basta dizer que estamos revirando todas as pedras.
- Podemos fazer perguntas ao agente do FBI?
Irving olhou para Lindell, de pé no fundo do palco, ao lado de Bosch, Edgar e Rider. Depois, tornou a se virar para as luzes, câmeras e repórteres.
- O FBI e o DPLA decidiram que é melhor para as investigações concentrar todas as informações em nosso departamento. Se tem alguma pergunta, pode fazer a mim.
- Há outros policiais sendo interrogados? - gritou Button. Irving precisou pensar de novo, para ter certeza de que punha
as palavras certas, na ordem certa.
- Há policiais sendo interrogados por uma questão de rotina. Mas neste momento não há nenhum que possa ser classificado como suspeito.
- Portanto, está dizendo que Sheehan não é suspeito. Button o pegara. Irving sabia disso. Estava acuado pela lógica.
Optou pela saída mais fácil.
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- Sem comentários.
- Chefe - continuou Button, acima do barulho dos outros repórteres -, os assassinatos ocorreram há quase quarenta e oito horas. Está dizendo que até agora não há
suspeitos concretos?
- Não vamos discutir como os suspeitos podem ser ou não.
O próximo.
Irving apressou-se em apontar para outro repórter, a fim de desviar-se de Button. A entrevista prolongou-se por mais dez minutos. Em determinado momento Bosch olhou
para Rider, que o fitou com uma expressão que dizia: O que estamos fazendo aqui? E a resposta silenciosa de Bosch: Estamos desperdiçando nosso tempo.
Quando a entrevista finalmente acabou, Bosch continuou no palco com Edgar e Rider. Eles haviam chegado da delegacia de Hollywood no momento em que a entrevista
começava e não haviam tido tempo de conversar.
- Os mandados de busca já estão prontos? - perguntou ele.
- Quase - respondeu Edgar. - Não ajudou termos vindo assistir a este espetáculo circense.
- Sei disso.
- Pensei que nos manteria à distância dessas coisas, Harry -
disse Rider.
- Foi egoísmo de minha parte. Frankie Sheehan é um amigo. O que fizeram com ele, vazando seu nome desse jeito, foi uma babaquice. Eu esperava que a presença de
vocês dois pudesse acrescentar alguma credibilidade ao anúncio de que ele seria solto.
- Ou seja, usou a gente da maneira como Irving queria fazer ontem - comentou ela. - Não deixou que ele fizesse isso, mas você mesmo se encarregou de fazer.
Bosch estudou o rosto de Rider. Dava para perceber que sua irritação era sincera, por ter sido usada daquela maneira. Bosch sabia que era uma traição. Pequena, em
sua opinião, mas mesmo assim
uma traição.
- Podemos conversar sobre isso mais tarde, Kiz. Mas, como eu disse, Frankie é um amigo. E agora é também seu amigo por isso. O que pode ser valioso algum dia.
Ele esperou e observou, até que Rider balançou a cabeça de leve. Assunto encerrado, pelo menos por enquanto.
290
- De quanto tempo mais precisamos? - perguntou ele.
- Talvez uma hora - respondeu Edgar. - Depois, temos de encontrar a juíza.
- Por quê? - indagou Rider. - O que Irving disse?
- Irving está em cima do muro. Por isso, quero ter tudo pronto, para poder entrar em ação. Amanhã de manhã.
- Amanhã de manhã não será problema - garantiu Edgar.
- Ótimo. Podem voltar e concluir o serviço. Arrumem uma juíza esta noite. Amanhã vamos...
- Detetive Bosch?
Harvey Button e seu produtor, torn Chainey, haviam se aproximado.
- Não posso falar com você - declarou Bosch.
- Soubemos que reabriu o caso de Stacey Kincaid - disse Chainey. - Gostaríamos de conversar sobre...
- Quem lhe disse isso? - indagou Bosch, ríspido, a raiva transparecendo em seu rosto no mesmo instante.
- Temos uma fonte que...
- Pois diga à fonte que ela só fala merda. Sem comentários. Um cinegrafista aproximou-se e apontou sua câmera por cima
do ombro de Button, que ergueu um microfone.
- Quer dizer que Michael Harris não é culpado? - perguntou ele.
- Eu disse sem comentários! - exclamou Bosch. - Saia daqui! Bosch estendeu a mão para a câmera e cobriu a lente. O cinegrafista soltou um grito estridente.
- Não toque na câmera! É propriedade particular!
- Meu rosto também é. Afaste-a de mim. A entrevista coletiva já terminou.
Bosch pôs a mão no ombro de Button, levando-o para fora do palco, quase à força. O cinegrafista foi atrás. Chainey também, mas calmo e devagar, como se desafiasse
Bosch a arrastá-lo à força. Seus olhos se encontraram.
- Assista ao noticiário esta noite, detetive - disse Chainey. Vai achá-lo interessante.
- Duvido muito - resmungou Bosch.
291
Vinte minutos depois Bosch sentava-se a uma mesa vazia na entrada do corredor que levava às salas de interrogatório da DRH, no terceiro andar. Ainda pensava sobre
o encontro com Button e Chainey, tentando imaginar o que eles podiam saber. Ouviu uma das portas abrir e levantou os olhos. Frankie Sheehan desceu o corredor, acompanhado
por Lindell. O antigo parceiro de Bosch parecia esgotado. Tinha o rosto flácido, os cabelos despenteados e as roupas - as mesmas que ele usara no bar na noite anterior
- estavam completamente amarrotadas. Bosch se levantou, pronto para se esquivar de uma agressão física, se houvesse necessidade. Mas Sheehan, aparentemente, interpretou
sua linguagem corporal, e levantou as mãos, as palmas viradas para a frente. O sorriso foi irônico.
- Está tudo bem, Harry. - A voz de Sheehan saiu cansada e rouca. - O agente Lindell me deu a notícia. Ou pelo menos uma parte. Não foi você quem... Fui eu mesmo.
Tinha esquecido que ameacei
aquela escória.
Bosch balançou a cabeça.
- Vamos embora, Frankie. Eu dou uma carona para você. Sem pensar muito a respeito, Bosch levou-o para os elevadores
principais, que desciam para o saguão do prédio. Pararam lado a lado, olhando para os números iluminados por cima da porta.
- Desculpe ter duvidado de você, companheiro - murmurou
Sheehan.
- Não se preocupe com isso. Estamos quites.
- É mesmo? Como assim?
- Ontem à noite, quando perguntei sobre as impressões digitais.
- Ainda duvida? -Não. Absolutamente.
No saguão, saíram por uma porta lateral para o estacionamento dos funcionários. Já se encontravam na metade do caminho para o carro quando Bosch ouviu um alarido.
Virou-se para ver vários repórteres e fotógrafos correndo.
- Não diga nada - recomendou Bosch, no mesmo instante. -
Nem uma só palavra.
A primeira onda de repórteres alcançou-os e cercou-os. Bosch
viu que outros se aproximavam.
292
- Sem comentários - disse ele. - Sem comentários.
Mas não era em Bosch que eles estavam interessados. Empurraram microfones e câmeras para o rosto de Sheehan. Seus olhos, tão cansados antes, pareciam desvairados
agora, até assustados. Bosch tentou levar o amigo para o carro, através da multidão. Os repórteres gritavam perguntas.
- Detetive Sheehan, você matou Howard Elias? - indagou uma mulher, mais alto do que os outros.
- Não - respondeu Sheehan. - Eu não... Eu não fiz nada.
- Havia ameaçado a vítima antes?
- Sem comentários - declarou Bosch, antes que Sheehan tivesse tempo de reagir à pergunta. - Entenderam? Sem comentários. Deixem-nos...
- Por que foi interrogado?
- Isso mesmo, detetive, conte-nos por que foi interrogado. Estavam quase chegando. Alguns repórteres haviam ficado para
trás, compreendendo que nada conseguiriam. Mas a maioria das câmeras continuava a acompanhá-los. Sempre podiam aproveitar as imagens. Subitamente, Sheehan desvencilhou-se
de Bosch e virou-se para os repórteres.
- Querem saber por que fui interrogado? Porque o departamento precisa sacrificar alguém. Para manter a paz. Não importa quem seja, desde que se ajuste aos requisitos.
E nesse ponto que eu entro. Combino com...
Bosch tornou a segurá-lo. Afastou-o dos microfones, com um movimento brusco.
- Vamos embora, Frankie. Esqueça esse pessoal.
Ao passarem entre dois carros estacionados eles conseguiram se isolar da massa de repórteres e fotógrafos. Bosch empurrou Sheehan para seu bunda-lisa e abriu a porta.
Enquanto os repórteres se aproximavam, em fila indiana, Sheehan já estava lá dentro, a salvo dos microfones. Bosch deu a volta e sentou-se ao volante.
Seguiram em silêncio até alcançarem a auto-estrada 101, que levava para o norte. Só então Bosch olhou para Sheehan, que tinha os olhos fixados à frente.
- Não devia ter dito aquilo, Frankie. Está atiçando o incêndio.
293
- Estou cagando e andando para o incêndio agora.
O silêncio voltou. Atravessavam Hollywood, e o tráfego era mínimo. Bosch podia avistar a fumaça se elevando de algum incêndio, para o sul e oeste. Pensou em sintonizar
a emissora KFWB no rádio, mas decidiu que não queria saber o que a fumaça significava.
- Deixaram você ligar para Margaret? - perguntou ele, depois
de algum tempo.
- Não. Não me deixaram fazer qualquer outra coisa que não confessar. Não sabe como estou contente por você ter aparecido para salvar o dia. Não explicaram o que
você disse, mas salvou minha pele, o que quer que tenha sido.
Bosch sabia que Sheehan fazia uma pergunta, mas ainda não se sentia pronto para contar.
- É bem provável que a mídia tenha ido para sua casa - comentou ele, em vez disso. - Margaret deve estar atordoada.
- Tenho uma notícia para você, Harry. Margaret me deixou há oito meses. Mudou-se para Bakersfield com as meninas. Para ficar perto da família. Não há ninguém em
minha casa.
- Sinto muito, Frankie.
- Eu deveria ter contado ontem à noite, quando me perguntou
sobre elas.
Bosch guiou em silêncio por algum tempo, pensando em outras coisas.
- Por que não pega algumas coisas e fica na minha casa? Os repórteres não vão encontrar você lá. Até que tudo isso passe.
- Não sei se seria bom, Harry. Sua casa é do tamanho de uma caixa de biscoitos. Já estou claustrofóbico de ter passado o dia inteiro naquela sala. Além do mais,
sabia que não conheço sua esposa? Ela não vai querer um estranho dormindo no sofá.
Bosch olhou para o prédio da Capitol Records. Deveria parecer com uma pilha de discos, com uma agulha de vitrola por cima. Mas o tempo passara por ali, como acontecia
com a maior parte de Hollywood. Não se fabricavam mais discos de vinil. A música agora vinha em CDs. Os discos antigos só eram vendidos em sebos. Havia ocasiões
em que toda Hollywood parecia um sebo para Bosch.
- Minha casa foi destruída pelo terremoto - informou Bosch.
294
- Tive de reconstruí-la. Tem até um quarto de hóspedes... e minha mulher também me deixou, Frankie.
Era estranho dizer em voz alta. Como se fosse alguma forma de confirmação da morte de seu casamento.
- Mas que merda, Harry. Você só casou há cerca de um ano. Quando aconteceu?
Bosch lançou um olhar rápido para o amigo, e depois voltou a se concentrar na estrada.
- Recentemente.
Não havia repórteres esperando na frente da casa de Sheehan quando chegaram lá, vinte minutos depois. Bosch disse que esperaria no carro e daria alguns telefonemas,
enquanto Sheehan pegava suas coisas. Quando ficou sozinho, ligou para sua casa, a fim de ouvir os recados. Assim, não teria de tocá-los na presença de Sheehan. Mas
não havia nenhum recado. Ele largou o telefone e continuou sentado no carro. Especulou se o convite a Sheehan para ficar em sua casa não teria sido um esforço subconsciente
para não enfrentar o vazio do lugar. Depois de algum tempo, concluiu que não. Vivera sozinho durante a maior parte de sua vida. Estava acostumado a lugares vazios.
Sabia que o verdadeiro abrigo do lar era dentro da própria pessoa.
Um clarão no espelho retrovisor atraiu a atenção de Bosch. Ele olhou pelo espelho lateral. Observou os faróis de um carro estacionando a cerca de um quarteirão.
Duvidou que fosse um repórter. Afinal, um repórter pararia na entrada de carro da casa de Sheehan, sem fazer qualquer esforço para ocultar sua presença. Ele começou
a pensar no que queria perguntar a Sheehan.
Seu antigo parceiro saiu de casa poucos minutos depois, carregando uma sacola de supermercado. Abriu a porta de trás do carro, largou a sacola no banco e sentou-se
na frente. Estava sorrindo.
- Margie levou todas as malas. Eu não havia percebido até esta noite.
Eles pegaram Beverly Glen, subiram a ladeira para a Mulholland, depois continuaram para leste pela Woodrow Wilson. Bosch
gostava de guiar pela Mulholland à noite.
Pelas curvas da estrada, as luzes da cidade surgindo e desaparecendo. Passaram por The Summit.
295
Bosch estudou o portão, pensando nos Kincaid em algum lugar no outro lado, na segurança de sua casa com vistas espetaculares.
- Frankie, tenho de perguntar uma coisa a você.
- Pode falar.
-No caso Kincaid, durante a investigação, você conversou muito com Sam Kincaid?
- Claro. E você tem de tratar um cara como ele com luvas de pelica. Ele e o velho. Se não tomar muito cuidado, o mundo pode desabar em cima de você.
- É verdade. Quer dizer que sempre o informava sobre o que estava acontecendo?
- Quase sempre. Qual é o problema? Fala como se fosse um daqueles caras do FBI que passaram o dia inteiro me pressionando, Harry.
- Desculpe. Só estou querendo saber. Ligava muito para ele, ou
era Kincaid quem ligava para você?
- As duas coisas. Ele também tinha um chefe de segurança que falava conosco, mantendo um contato permanente.
- D. C. Richter?
- Esse mesmo. Harry, não vai me contar o que está acontecendo? -Num instante. Mas antes quero lhe perguntar uma coisa. Lembra o quanto você disse a Kincaid ou Richter
sobre Michael Harris?
- Como assim?
- Olhe, não estou dizendo que você fez qualquer coisa errada. Num caso assim, é preciso manter as pessoas principais envolvidas e informadas. Comunicou que havia
encontrado as impressões digitais de Harris e estava procurando outras?
- Claro. É o procedimento operacional de praxe.
- Certo. Também disse quem era Harris, de onde ele vinha, essas coisas?
- Acho que sim.
Bosch não disse mais nada por algum tempo. Entrou na Woodrow Wilson e guiou pela estrada sinuosa até sua casa. Parou no espaço
para o carro.
- A casa é bem agradável - comentou Sheehan.
Bosch hesitou, antes de saltar.
296
- Informou aos Kincaid ou a Richter onde Harris morava?
- O que está querendo me dizer?
- Fiz uma pergunta. Disse a alguém onde Harris morava?
- Posso ter dito. Não me lembro.
Bosch saltou e se encaminhou para a porta da cozinha. Sheehan pegou suas coisas no banco traseiro e seguiu'O.
- Fale comigo, Híeronymus. Bosch abriu a porta.
- Acho que você cometeu um erro. Ele entrou.
- Fale comigo, Hieronymus.
Bosch levou Sheehan para o quarto de hóspedes. Sheehan largou a sacola na cama. De volta ao corredor, Bosch apontou para o banheiro, antes de voltar à sala. Sheehan
permaneceu calado, esperando.
- A descarga naquele vaso está quebrada - disse ele, sem olhar para Sheehan. - E preciso manter a manivela abaixada durante todo o tempo da descarga.
Ele fitou agora seu ex-parceiro.
- Podemos explicar as impressões digitais de Harris. Ele não seqüestrou nem matou Stacey Kincaid. Para ser franco, pensamos que nem houve um seqüestro. Kincaid matou
a enteada. Abusava sexualmente da garota, antes de matá-la. Simulou o seqüestro. Teve sorte quando as impressões digitais no livro levaram a Harris. Tratou de aproveitar.
Achamos que foi ele... ou Richter... quem largou o corpo perto do apartamento de Harris, porque ele sabia onde era. Preciso saber se você informou a Kincaid ou ao
segurança onde Harris morava.
Sheehan parecia atordoado. Olhou para o chão.
- Está dizendo que nos enganamos sobre Harris...
- Vocês pareciam usar antolhos. Depois que aquelas impressões digitais apareceram, só viram Harris.
Sheehan continuou a olhar para o chão. Balançou a cabeça lentamente.
- Todos nós cometemos erros, Frankie. Sente e pense no que acabei de perguntar. O que contou a Kincaid? E em que ocasião? Volto num instante.
297
Enquanto deixava Sheehan refletindo sobre o que acabara de ouvir, Bosch foi até seu quarto. Parou e olhar ao redor. Parecia inalterado. Ele abriu a porta do closet
e acendeu a luz. As roupas de Eleanor não estavam mais ali. Ele olhou para o chão. A mulher também levara os sapatos. No tapete, ele avistou um pequeno saco, preso
com uma fita azul. Abaixou-se e pegou-o. Continha um punhado de arroz. Bosch lembrou que a capela em
Las Vegas fornecia os saquinhos de arroz como parte do pacote
de casamento - para jogar no feliz casal. Eleanor guardara um como lembrança. Agora, Bosch especulou se ela esquecera de levá-lo ou simplesmente descartara como
algo sem valor.
Ele enfiou o saquinho no bolso e apagou a luz.
Capítulo 28
Edgar e Rider haviam tirado o aparelho de televisão da sala do tenente e assistiam ao noticiário quando Bosch entrou na sala dos detetives, após deixar Sheehan em
sua casa. Os dois mal levantaram os olhos.
- O que foi? - perguntou Bosch.
- Acho que as pessoas não gostaram que soltássemos Sheehan
- disse Edgar.
- Saques esporádicos e alguns incêndios criminosos - informou Rider. - Nada como na última vez. Acho que vamos escapar, se passarmos por esta noite. Temos pelotões
circulando pela área, e atacam qualquer coisa que se mexe.
- Sem moleza como na última vez - acrescentou Edgar.
Bosch olhou para a TV por um momento. A tela mostrava bombeiros apontando as mangueiras contra as bolas de fogo que subiam pelo telhado de outro centro comercial.
Era tarde demais para salválo. E quase que parecia que tudo era feito para a mídia.
- Reforma urbana - comentou Edgar. - Vamos nos livrar de todos os centros comerciais.
- O problema é que eles tornam a construir centros comerciais
- lembrou Rider.
- Pelo menos têm uma aparência melhor do que os anteriores
- insistiu Edgar. - O grande problema está nas lojas de bebidas.

299
Essas coisas sempre começam pelas lojas de bebidas. Se pusermos guardas na frente de cada loja de bebidas, acabam os distúrbios.
- Onde estão os mandados judiciais? - perguntou Bosch.
- Já acabamos - respondeu Rider. - Só precisamos levá-los para
a juíza.
- Em quem pensaram?
- Terry Baker. Já telefonei e ela disse que não tem problema.
- Ótimo. Vamos dar uma olhada.
Rider foi pegar os mandados judiciais. Edgar continuou assistindo à televisão. Ela entregou tudo a Bosch.
-Temos as duas casas, todos os carros, todos os escritórios. Para Richter, temos o carro que ele usava na ocasião do crime e seu apartamento... incluímos também.
Acho que cobrimos tudo.
Cada petição tinha várias páginas grampeadas. Bosch sabia que as duas primeiras eram sempre com o jargão jurídico padrão. Pulou-as, passando a ler a alegação de
causa provável de cada petição. Rider e Edgar haviam feito um bom trabalho. Mas ele sabia que, provavelmente, era mais a inspiração de Rider. Ela tinha a melhor
mente jurídica da equipe. Até mesmo as alegações de causa provável para a proposta revista no apartamento e carro de Richter eram eloqüentes. com o uso de uma linguagem
hábil e fatos selecionados da investigação, diziam que todas as evidências indicavam o envolvimento dos dois suspeitos na remoção do corpo de Stacey Kincaid. E por
causa do estreito relacionamento patrão/empregado que existia na ocasião entre Sam Kincaid e D. C. Richter, este podia ser considerado como um segundo suspeito.
A petição pedia autorização para revistar todos os veículos operados ou acessíveis aos dois na ocasião do crime. Era uma manobra formulada com o maior cuidado,
e Bosch achava que daria certo. Pedir para revistar todos os carros "acessíveis" aos dois homens era um golpe de mestre de Rider. Se a petição fosse deferida, poderiam
revistar qualquer carro em qualquer dos estacionamentos de Kincaid, porque não podia haver a menor dúvida de que ele tinha acesso a esses carros.
- Tudo certo - disse Bosch, ao terminar de ler. Ele devolveu as petições a Rider. - Vamos obter a assinatura esta noite, para podermos entrar em ação amanhã, na
hora que quisermos.
300
Um mandado de busca era válido por 24 horas depois da autorização judicial. Na maioria dos casos, podia ser prolongado por mais
24 horas, com um simples telefonema para o juiz.
- Já temos alguma coisa sobre o tal de Richter? - perguntou Bosch.
- Um pouco - respondeu Edgar.
Ele se levantou finalmente, abaixou o som da televisão e foi até
a mesa.
- O cara foi reprovado na academia. Já tem muito tempo, pois foi no outono de 1981. Foi então para um daqueles cursos de detetive particular no Vale. Obteve a licença
para atuar no estado em
1984- Ao que parece, foi trabalhar para a família de Kincaid desde então. E calculo que pouco a pouco chegou ao topo.
- Por que ele foi reprovado?
- Ainda não sabemos. É noite de domingo, Harry. Não tem ninguém na academia. Pegaremos os registros amanhã.
Bosch balançou a cabeça, aceitando.
- Já verificaram no computador se ele tem alguma licença?
- Verificamos. Ele tem porte de arma. Usa um coldre no ombro.
- E qual é a arma? Diga-me que é uma nove milímetros.
- Desculpe, Harry, mas o escritório estava fechado hoje. Descobriremos também amanhã. Tudo o que sabemos agora é que ele tem porte de arma.
- Quero que se lembrem de uma coisa: o cara no Vôo dos Anjos era bom de tiro.
Rider e Edgar inclinaram a cabeça em concordância.
- Acha que Richter está fazendo o que Kincaid manda? - perguntou Rider.
- É bem provável. Os ricos não sujam as mãos dessa maneira. Eles dão as cartas, em vez de recebê-las. Neste momento, meu palpite é Richter.
Bosch fitou seus parceiros. Sentia que estavam na iminência de resolver o caso. Saberiam nas próximas 24 horas. Ele esperava que a cidade pudesse esperar por tanto
tempo.
- O que mais? - indagou ele.
- Deixou Sheehan bem abrigado? - perguntou Rider.
Bosch notou o tom de sua voz.
301
- Claro. Queria pedir desculpas pela entrevista coletiva. Irving queria a presença de vocês, mas provavelmente eu poderia evitar. Não o fiz. Sei que não foi uma
boa idéia. Peço desculpas.
- Está desculpado, Harry - murmurou Rider. Edgar apenas balançou a cabeça.
- Mais alguma coisa antes de sairmos?
Edgar começou a sacudir a cabeça em negativa, mas interrompeu o movimento para dizer:
- Ah, sim. O pessoal da balística ligou para uma informação extra-oficial. Examinaram a arma de Michael Harris esta manhã. Parece limpa. Disseram que não deve ter
sido disparada ou limpada há meses, a julgar pela poeira acumulada no cano. Ou seja, não
foi ele.
- E vão continuar com os exames mesmo assim?
- É o que sempre fazem. Receberam uma ordem de urgência de Irving para examinar a arma de Sheehan, amanhã de manhã, assim que receberem as balas da autópsia. Queriam
saber se você deseja que eles continuem a verificar a arma de Harris. Eu disse que sim.
- Claro. Mais alguma coisa? Edgar e Rider sacudiram a cabeça.
- Pois então vamos falar com a juíza Baker, e depois encerramos por hoje. Tenho o pressentimento de que amanhã vai ser um longo dia.
Capítulo 29
Tinha começado a chover. Bosch parou na garagem sem porta e desligou o carro. Estava a fim de duas cervejas para tirar a agitação dos nervos causada pela cafeína.
A juíza Baker serviu-lhes café enquanto revia as petições de mandado de busca. Conferiu devagar os documentos do início ao fim, e Bosch tomou duas canecas cheias.
Por fim, contudo, ela assinou todos os mandados e Bosch não precisava de tanta cafeína para sentir-se ligado. Na manhã seguinte estariam "caçando e confrontando
situações", como dizia Kiz Rider
- a fase de planejamento ou desfecho de uma investigação, o ponto em que as teorias e os palpites culminavam em provas cabais e acusações. Ou se desfaziam.
Bosch entrou pela porta da cozinha. Além da cerveja, já pensava em Kate Kincaid e em como ia lidar com ela no dia seguinte. Sua expectativa era a de um jogador
confiante que digeriu todas as estratégias possíveis que o adversário planejou para o jogo do dia seguinte.
Encontrou a luz já acesa na cozinha. Pôs a pasta na bancada e abriu a geladeira. Nenhuma cerveja.
- Merda - praguejou.
Sabia que deixara ali pelo menos cinco garrafas de Anchor Steam. Virou-se e viu as cinco tampinhas de cerveja na bancada. Avançou pela casa.
303
- Ei, Frankie! - gritou. - Não me diga que tomou tudo!
Não obteve resposta. Bosch encaminhou-se para a sala de jantar, em seguida para a de estar. O lugar parecia como o deixara mais cedo naquela noite, como se Sheehan
não houvesse se instalado à vontade em casa. Verificou o terraço dos fundos pelas portas de vidro. A luz estava apagada e ele não viu sinal algum de seu antigo parceiro.
Atravessou o corredor e aproximou-se da porta fechada do quarto de hóspedes. Nada ouviu. Conferiu as horas no relógio de pulso, ainda não eram onze da noite.
- Frankie? - sussurrou.
Nenhuma resposta, só o barulho da chuva caindo no telhado.
Bateu de leve na porta.
- Frankie? - chamou, a voz mais alta.
Nada ainda. Bosch girou a maçaneta e abriu a porta, devagar. Embora as luzes estivessem apagadas no quarto, a do corredor projetou-se pela cama, permitindo-lhe ver
a cama vazia. Apertou o interruptor na parede e acendeu a luz do abajur na mesinha-de-cabeceira. A sacola em que Sheehan levara suas coisas achava-se vazia no chão,
as roupas largadas empilhadas na cama.
A curiosidade de Bosch transformou-se em ligeira preocupação. Voltou apressado pelo corredor e pôs-se a fazer uma breve revista em seu quarto e nos banheiros. Nenhum
sinal de Sheehan.
Já na sala de visitas, Bosch ficou andando de um lado para outro durante alguns minutos, imaginando o que Sheehan poderia ter feito. Ele não tinha carro. Era improvável
que houvesse tentado descer a colina a pé até o centro da cidade e, de qualquer modo, aonde teria ido? Bosch pegou o telefone e apertou o botão recuai, para ver
se por acaso Sheehan chamara um táxi. Pareceu-lhe ouvir mais de sete sinais, embora a rediscagem houvesse sido tão rápida que ele não teve muita certeza. Após a
primeira chamada, atendeu a voz sonolenta de uma mulher.
-Sim?
- Ha, quem fala, por favor?
- Quem é?
- Desculpe. Sou o detetive Harry Bosch do DPLA. Estou tentando reconstituir uma ligação feita por... --
304
- Harry, é Margie Sheehan.
- Oh... Margie...
Ele se deu conta de que devia ter adivinhado que Sheehan ia ligar para ela.
- Que foi que houve, Harry?
- Nada, Margie, nada. Estou tentando encontrar Frankie, e achei que talvez ele tivesse chamado um táxi. Lamento ter...
- Que quer dizer, encontrá-lo?
Bosch percebeu a preocupação se intensificando na voz dela.
- Não é nada com que tenha de se preocupar, Margie. Ele ia passar a noite comigo e tive de sair. Acabei de chegar em casa e não o encontrei. Ele falou com você
esta noite?
- Mais cedo.
- Como ele lhe pareceu, bem?
- Frankie me contou o que tentaram fazer com ele. Disse que estão tentando culpá-lo.
- Não estão mais. Por isso é que ia ficar hospedado comigo. A gente o tirou de lá e ele vai ficar escondido aqui alguns dias, até a coisa passar. Lamento muito ter
acordado você...
- Ele disse que vão voltar para pegá-lo.
- Como?
- Não acredita que vão deixá-lo solto. Ele não confia em ninguém, Harry. No departamento. A não ser em você. Sabe que é amigo dele.
Bosch ficou calado. Não tinha certeza do que dizer.
- Harry, encontre o Frankie, por favor. Depois me ligue. A qualquer hora. Não me incomodo de ser acordada.
Bosh olhou o deque pelas portas de vidro e, daquele ângulo, viu alguma coisa no parapeito. Avançou até a parede e apertou o interruptor da luz lá de fora. Viu cinco
garrafas de cerveja cor de âmbar enfileiradas no parapeito.
- Está bem, Margie. Me dê seu número. Ele anotou e já ia desligar quando ela voltou a falar.
- Harry, ele me disse que você se casou e já se divorciou.
- Bem, ainda não me divorciei, mas... você sabe.
- É, eu sei. Se cuide, Harry. Encontre Francis e depois um dos dois me ligue.
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- Tudo bem.
Bosch desligou o telefone, abriu a porta corrediça e foi para o terraço. As garrafas de cerveja estavam vazias. Ele se virou à direita, e ali, estendido na espreguiçadeira,
viu o corpo de Francis Sheehan. E cabelos e sangue respingados na almofada acima da cabeça, e na parede junto à porta corrediça. Um ferimento da saída de uma bala
do tamanho de uma salsicha projetava-se do cocuruto da cabeça. A chuva emaranhara e grudara os cabelos embaixo, expondo o ferimento ainda mais. Bosh recuou um passo
e olhou o piso revestido de pranchas de madeira. Viu uma pistola caída bem em frente ao pé esquerdo da espreguiçadeira.
Aproximou-se mais uma vez e examinou o corpo do amigo. Soltou a respiração com um ruído quase animalesco.
- Frankie - sussurrou.
Uma pergunta percorreu-lhe a mente. Eu fiz isso?
Bosch observava o médico-legista fechar o saco sobre o cadáver de Frankie, enquanto os outros dois seguravam os guarda-chuvas. Depois apoiaram os guarda-chuvas de
lado e transportaram o cadáver numa maca de metal, cobriram-no com uma manta verde e manobraram-no para a casa, levando-a até a porta de entrada. Tiveram de pedir
a Bosch que se afastasse do caminho para passarem. Vendo-os seguir para a porta da frente, o peso esmagador da culpa que sentia se apoderou mais uma vez dele. Ergueu
os olhos para o céu e não viu, graças a Deus, helicópteros. Todas as notificações e os chamados haviam sido feitos por cabo de terra. Nenhum comunicado transmitido
por rádio significava que a mídia ainda precisava apurar o suicídio de Frankie Sheehan. Bosch sabia que o insulto máximo ao ex-parceiro teria sido um helicóptero
de notícias pairar acima da casa e filmar o cadáver no terraço.
- Detetive Bosch?
Bosh voltou-se. O subchefe Irving chamou-o com um aceno pela porta corrediça aberta. Bosh entrou e acompanhou Irving à mesa da sala de jantar. O agente Roy Lindell
já se achava ali à espera.
306
- Vamos conversar sobre isso - disse Irving. - A viatura está lá fora com uma mulher que disse ser sua vizinha. Adrienne Tegreeny?
- Sim.
- Sim o quê?
- Ela mora na casa seguinte.
- Disse que ouviu três ou quatro disparos provenientes da casa no início da noite de ontem.
Bosch apenas concordou com a cabeça.
- Você já disparou armas da casa ou do terraço antes? Bosch hesitou, antes de responder.
- Chefe, isso nada tem a ver comigo. Portanto, digamos apenas que talvez houvesse motivo para ela achar que fui eu.
- Ótimo. A questão aqui é que parece que o detetive Sheehan andou bebendo, bebendo muito, e disparando sua arma. Qual a sua interpretação do que aconteceu?
- Interpretação? - disse Bosch, fitando sem expressão a mesa.
- Acidental ou intencional. -Ah.
Bosch quase riu, mas se conteve.
- Acho que não há muita dúvida quanto a isso - disse. - Ele se matou. Suicídio.
- Mas não deixou nenhum bilhete.
-Nenhum bilhete, só um monte de cervejas e tiros desperdiçados no céu. Isso disse tudo que ele tinha a dizer. Os tiras se mandam assim pelos ares o tempo todo.
- O cara tinha sido solto. Por que ia fazer isso?
- Bem... Acho que está muito claro...
- Então faria o favor de nos esclarecer?
- Ele ligou para a mulher ontem à noite. Falei com ela depois. Disse que apesar de ter sido solto, achava que não ia durar.
- A balística? - perguntou Irving.
- Não, acho que não foi o que ele quis dizer. Acho que sabia da necessidade de fisgar alguém por isso. Um tira.
- E então se mata? Não parece plausível, detetive.
- Ele não matou Elias. Nem aquela mulher.
- Nesse momento, essa é a sua opinião apenas. O único fato
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que temos é que parece que esse cara se matou na noite anterior ao dia que íamos receber o teste de balística. E você, detetive, me convenceu a soltá-lo, para que
ele pudesse fazê-lo.
Bosch desviou o olhar de Irving, e tentou conter a raiva que se avolumava no íntimo.
- A arma - disse Irving. - Uma velha Baretta vinte e cinco. Número de série queimado com ácido. Origem impossível de reconstituir, ilegal. Uma arma descartada.
Era sua, detetive Bosch?
Bosch fez que não com a cabeça.
- Tem certeza, detetive? Eu gostaria de resolver isso agora, sem a necessidade de uma investigação interna.
Bosch virou-se para encará-lo.
- Que está dizendo? Que dei a arma para que ele pudesse se matar? Eu era amigo dele, o único amigo que ele tinha hoje. A arma não é minha, certo? Paramos perto de
sua casa para ele pegar algumas coisas. Deve tê-la pego então. Talvez eu o tenha ajudado a pegá-la, mas isso não inclui eu lhe dar a arma.
Bosch e Irving travaram os olhares.
- Está esquecendo uma coisa, Bosch - disse Lindell, interrompendo o momento. - Revistamos hoje o apartamento de Sheehan. Nenhuma arma foi encontrada lá.
Bosch soltou-se do olhar de Irving e fixou-o em Lindell.
- Então o seu pessoal deixou-a escapar - disse. - Ele chegou aqui com aquela arma na sacola, porque não era minha.
Bosh afastou-se deles, antes que deixasse a raiva e a frustração vencê-lo e dissesse alguma coisa que pudesse lhe trazer acusações departamentais. Sentou-se numa
das poltronas estofadas na sala de visitas. Estava encharcado, mas não ligava para a mobília. Lançou um olhar inexpressivo ao exterior da casa.
Irving aproximou-se, mas não se sentou.
- Que quis dizer quando falou que o ajudou? Bosch ergueu os olhos para ele.
- Ontem à noite, tomamos um drinque juntos. Ele me contou algumas coisas. Que se deixou levar por Harris, tudo o que Harris disse em seu processo, tudo o que os
policiais fizeram com ele era verdade. Tudo verdade. Sabe, ele tinha certeza de que Harris havia
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assassinado a garota, não tinha a menor dúvida sobre isso. Mas o que ele havia feito o incomodava. Frankie me disse que naqueles momentos no quarto com Harris ficou
insensível. Tornou-se a própria coisa que tinha perseguido todos esses anos. Um monstro. Isso o preocupava demais. Eu via que o estava corroendo. Então passei por
lá esta noite e o levei de carro para casa...
Bosch sentiu a culpa se avolumando na garganta como uma maré. Não andara pensando. Não vira o óbvio. Fora consumido demais pelo caso, por Eleanor e essa casa vazia,
por outras coisas além de Frankie Sheehan.
- E? - instigou-o Irving.
- E insisti na única coisa em que ele acreditou todos esses meses, a única coisa que o manteve fora de perigo. Disse que tínhamos inocentado Michael Harris, que
ele estava errado em relação a Harris, e que podíamos prová-lo. Não pensei no mal que isso ia lhe fazer. Só pensei no meu caso.
- E você acha que isso foi a gota d'água? - perguntou Irving.
- Alguma coisa aconteceu com ele naquele quarto com Harris. Alguma coisa terrível. Perdeu a família logo depois, e perdeu o caso... Acho que o único fio a que
se agarrava era sua crença em que tinha apanhado o cara certo. Quando descobriu que tinha cometido um erro, quando entrei em seu mundo e lhe mostrei que aquilo era
um absurdo, o fio se rompeu.
- Escute, isto é absurdo, Bosch - disse Lindell. - Quer dizer, eu o respeito e à sua amizade com esse cara, mas você não vê o que está aqui bem diante de nós. O
óbvio. Esse cara acabou consigo mesmo porque é ele o cara, e sabia que íamos voltar para pegá-lo. O suicídio é uma confissão.
Irving fitou Bosch, esperando que retrucasse a Lindell. Mas Bosch nada disse. Cansara de combater.
- Quanto a isso, acho que tenho de concordar com o agente Lindell - acabou dizendo o subchefe.
Bosch assentiu com a cabeça. Era o que esperava. Os dois não conheciam tão bem Sheehan quanto Bosch. Embora ele e o ex-parceiro não houvessem mantido uma relação
estreita nos últimos anos, haviam sido íntimos o bastante em outra ocasião para Bosch saber
309
que Lindell e Irving estavam errados. Para ele, teria sido mais fácil concordar. Pois o aliviaria de grande parte da culpa que o oprimia. Mas não podia concordar.
- Só me dêem a manhã - preferiu dizer.
- Como? - perguntou Irving.
- Mantenham o caso abafado e longe da imprensa por meio dia. Prosseguimos com os mandados e o plano para amanhã de manhã. Dêem-me tempo para ver o que pode surgir,
e o que a sra. Kincaid tem a dizer.
- Se ela falar.
- Ela vai falar. Está doida para falar. Deixem eu ter a manhã com ela. Ver como andam as coisas. Se eu não apresentar uma ligação entre Kincaid e Elias, aí façam
o que têm de fazer com Frankie Sheehan. Contem ao mundo o que acham que sabem.
Irving pensou nisso por um longo momento e depois consentiu com a cabeça.
- Acho que esse seria o caminho mais prudente - disse. - Também a essa altura já vamos ter o relatório da balística.
Bosch agradeceu com um movimento da cabeça. Olhou mais uma vez o terraço pelas janelas abertas. Começava a chover mais pesado. Ele conferiu as horas no relógio
de pulso e viu como ficava tarde. E sabia o que ainda tinha de fazer antes que pudesse dormir.
Capítulo 30
Bosch sentiu-se obrigado a procurar Margaret Sheehan em pessoa e dizer-lhe o que Frankie fizera a si mesmo. Não importava que o casal estivesse separado. Ela e Frankie
haviam vivido juntos um longo tempo antes daquilo acontecer. Ela e as duas filhas mereciam a cortesia da visita de um amigo, em vez do terrível telefonema de um
estranho no meio da noite. Irving sugerira que se desse ao Departamento de Polícia de Bakersfield a prerrogativa de enviar um agente à casa, mas Bosch sabia que
seria o mesmo que um telefonema canhestro e insensível. Ele se prontificou a ir.
Bosch de fato concedeu a prerrogativa à delegacia policial de Bakersfield, mas só para baixar o endereço de Margaret Sheehan. Podia ter ligado para ela, a fim de
se instruir sobre como chegar lá. Mas isso seria dizer a ela sem dizer, truque de um velho tira para facilitar a tarefa. Teria sido covardia.
A rodovia Golden State estava quase deserta, após a chuva e a hora da noite afugentarem todos os motoristas, a não ser os sem outra opção senão tomar a estrada.
A maioria era de caminhoneiros transportando cargas ao norte para San Francisco e mais além ainda, ou retornando vazios aos campos hortifrutigranjeiros para pegar
mais cargas. Grapevine - a faixa íngreme e sinuosa da rodovia percorrendo as montanhas acima e abaixo que se estendiam a norte de Los Angeles - apinhava-se de semitratores
que haviam preferido
311
sair da pista e parar no acostamento a correr o risco do percurso já traiçoeiro sob a chuva inclemente. Bosch achou que assim que transpusesse esse obstáculo
e descesse a serra teria condições enfim de ganhar alguma velocidade e compensar o tempo perdido. Ao volante, via relâmpagos ramificados se espalharem a leste pelo
horizonte arroxeado. E pensava no velho companheiro. Tentava concentrar-se nos antigos casos e nas piadas irlandesas que Sheehan contava. Em qualquer coisa que o
impedisse de pensar no que fizera, e em sua própria culpa e responsabilidade.
Levara consigo uma fita caseira e tocava-a no estéreo do carro. Continha gravações das peças de saxofone de que gostava em particular. Apertou a tecla de avançar
rápido até encontrar a que queria. Era "Lullaby", de Frank Morgan. Parecia-lhe um lamento fúnebre, doce e emotivo, uma despedida e um pedido de desculpas a Frankie
Sheehan. Uma despedida e um pedido de desculpas a Eleanor. Combinava com a chuva. Rodando na estrada, Bosch tocou-a repetidas vezes.
Chegou antes das duas à casa onde moravam Margaret Sheehan e as filhas. Uma lâmpada diante da fachada continuava acesa e
via-se luz através das cortinas das janelas
da frente. Passou-lhe pela mente a idéia de que Margie estivesse ali à espera de seu telefonema, ou talvez de que ele aparecesse. Hesitou na porta, perguntando-se
quantas vezes já dera aquele tipo de telefonema, e acabou decidindo-se a bater.
Quando Margie abriu a porta, Bosch se lembrou de que nunca havia planejamento para essas coisas. Ela fitou-o por um instante e ele achou que não o reconhecera. Fazia
muitos anos.
- Margie, sou...
- Harry? Harry Bosch? Nós acabamos de nos...
Ela se interrompeu e associou as coisas. Em geral faziam isso.
- Oh, Harry, não. Oh, não. Francis, não!
Levou as duas mãos ao rosto. Boquiaberta, parecia aquela famosa pintura de alguém numa ponte aos gritos.
- Lamento, Margie. Lamento muito, mesmo. Acho que talvez eu deva entrar.
312
Ela se mostrou estóica em relação à coisa toda. Bosch deu-lhe os detalhes e depois Margie Sheehan fez um café para que ele não adormecesse no trajeto de volta. Esse
era o pensamento da mulher de um policial. Na cozinha, Bosch recostou-se na bancada enquanto ela preparava o café.
- Ele ligou pra você esta noite - disse.
- Ligou, eu lhe disse.
- Me conte como estava parecendo.
- Mal. Contou o que fizeram a ele. Parecia tão... traído? E essa a palavra certa? Quer dizer, sua própria gente, os colegas policiais, tinham levado ele preso. Ele
estava muito triste, Harry.
Bosch assentiu com a cabeça.
- Deu a vida àquele departamento... e isso foi o que lhe deram. Bosch aquiesceu mais uma vez com a cabeça.
- Disse alguma coisa sobre... Não concluiu.
- Sobre se matar? Não, não falou nisso... Li sobre suicídio policial certa vez. Faz muito tempo. Na verdade, quando Elias o processou pela primeira vez sobre aquele
sujeito que ele matou. Frankie ficou realmente muito deprimido na época, e eu apavorada. Li sobre isso. E o que li dizia que quando as pessoas falam disso, ou dizem
que vão fazer isso, o que na verdade estão dizendo é que precisam da nossa ajuda para impedi-las de fazer.
Bosch fez que sim com a cabeça.
- Imagino que Frankie não queria ser impedido - continuou. Não falou nada disso comigo.
Ela pegou a cafeteira de vidro da base e serviu um pouco de café numa caneca. Depois abriu o armário e tirou uma garrafa térmica prateada. Começou a enchê-la.
- Esta é para o caminho até sua casa. Não quero que durma na entrada.
- Como?
- Quer dizer, na estrada. Não estou com as idéias em ordem. Bosch aproximou-se e pôs a mão em seu ombro. Ela largou a
cafeteira e virou-se ao encontro de seu abraço.
- Neste último ano - disse ela - as coisas... as coisas ficaram simplesmente confusas.
313
- Eu sei. Ele me disse. Ela se soltou dele e voltou a encher a garrafa.
- Margie, tenho de lhe perguntar uma coisa antes de ir embora - disse Bosch. - Eles tiraram a arma de Frankie hoje para exame de balística. Ele usou outra. Sabe
alguma coisa sobre essa?
- Não. Ele só tinha a que usava no trabalho. Não tínhamos outras armas em casa. com essas duas meninas pequenas, não. Quando Frankie voltava para casa trancava
a arma num pequeno cofre, no chão do guarda-roupa, e só ele tinha a chave. Eu simplesmente não quis que ele guardasse mais armas em casa.
Bosch entendeu que se a ordem dela foi que não houvesse mais armas em casa além da que Sheehan era obrigado a portar, então isso deixava um buraco. Ele poderia ter
trazido a arma e escondido de Margie - num local tão obscuro que nem o FBI a encontrou ao vasculhar a casa. Talvez estivesse embrulhada em plástico e enterrada no
jardim. Sheehan também poderia ter pego a arma depois que ela e as filhas mudaram-se para Bakersfield.
- Certo - disse ele, decidindo não insistir.
- Por que, Harry? Estão dizendo que a arma era sua? Você está em apuros?
Bosch pensou por um momento antes de responder.
- Não, Margie, estou bem. Não se preocupe comigo.
Capítulo 31
A chuva continuou por toda a manhã de segunda-feira e reduziu a velocidade do carro de Bosch no trajeto até Brentwood a um frustrante rastejar. Não era uma tromba-d'água,
mas em Los Angeles qualquer chuva paralisa a cidade, um dos mistérios que Bosch nunca conseguiu compreender. Embora fosse uma cidade em grande parte definida pelo
automóvel, vivia cheia de motoristas incompetentes para lidar até mesmo com uma branda inclemência. Ele dirigia ouvindo a KFWB. Transmitia muito mais notícias de
engarrafamento de trânsito do que incidentes de violência ou tumulto durante a noite. Infelizmente, as previsões esperavam que o céu clareasse só por volta do meio-dia.
Ele chegou vinte minutos atrasado para seu compromisso com Kate Kincaid. A casa da qual Stacey Kincaid fora supostamente seqüestrada era uma casa de fazenda branca
alongada com persianas pretas e telhado cinza-ardósia. Um amplo gramado estendia-se desde a rua, e a entrada para carros percorria toda a fachada da casa e depois
fazia o caminho inverso até a garagem no jardim lateral. Quando Bosch parou, viu um Mercedes Benz estacionado perto do trecho coberto. A porta de entrada estava
aberta.
Ao chegar à soleira Bosch gritou alô e ouviu a voz de Kate Kincaid mandando-o entrar. Encontrou-a na sala de visitas, sentada num sofá coberto por um lençol branco.
Todas as mobílias achavam-se
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cobertas. O espaço parecia uma reunião de grandes e pesados fantasmas. Ela percebeu o olhar de Bosch absorvendo o ambiente.
- Quando nos mudamos, não levamos uma única peça do mobiliário - disse ela. - Decidimos simplesmente começar tudo de novo.
Sem lembranças.
Bosch aquiesceu com a cabeça e examinou-a. Vestida toda de branco, usava uma blusa de seda enfiada na calça de linho feita sob medida. Ela própria parecia um fantasma.
A grande bolsa de couro preto a seu lado no sofá destoava de sua roupa e dos lençóis que cobriam os móveis.
- Como vai, sra. Kincaid?
- Por favor, me chame de Kate.
- Kate, então.
- Muito bem, obrigada. Melhor do que em muito, muito tempo. E você, como vai?
- Mais ou menos, Kate. Tive uma noite péssima. E não gosto
quando chove assim.
- Lamento saber. Você está mesmo com cara de quem não
dormiu.
- Importa-se que eu dê uma olhada em volta, antes de começarmos a conversar?
Embora ele tivesse um mandado de busca para a casa na pasta,
não quis apresentá-lo ainda.
- Por favor, fique à vontade - disse ela. - O quarto de Stacey fica no fim do corredor à esquerda. Primeira porta à esquerda.
Bosch deixou a pasta no piso de cerâmica da entrada e seguiu o caminho que ela indicara. Os móveis no quarto da garota não estavam cobertos. Os lençóis que haviam
sido retirados achavam-se dobrados em pilhas no chão. Parecia que alguém - na certa a mãe da garota morta - tinha visitado o quarto na ocasião. A cama desfeita tinha
a colcha cor-de-rosa e os lençóis combinando retorcidos num nó - não como por alguém dormindo, mas por alguém que se deitara na cama e levasse as roupas ao peito.
A visão disso fez Bosch
sentir-se mal.
Ele avançou até o meio do quarto, mantendo as mãos nos bolsos da capa de chuva. Examinou as coisas da garota. Bichinhos de
316
pelúcia e bonecas, uma prateleira com livros de fotos. Sem cartazes de filmes, fotos de jovens atores de televisão nem cantores populares. Era como se o quarto
fosse de uma garota muito mais moça do que Stacey Kincaid, próximo ao fim. Bosch queria saber se a decoração fora feita pelos pais ou por ela, como se talvez Stacey
achasse que, caso se agarrasse às coisas do passado, pudesse de algum modo evitar o horror do presente. O pensamento fez com que se sentisse ainda pior do que quando
examinara as roupas de cama.
Ele notou uma escova de cabelos na cômoda e viu fios de cabelo louro ali colhidos, causando-lhe uma sensação de maior bem-estar. Sabia que poderiam usar os cabelos
da escova, se o caso algum dia chegasse ao ponto de associar provas - talvez da mala do carro
- à garota morta.
Avançou mais um pouco e olhou pela janela. Era de venezianas corrediças, e ele viu manchas pretas de pó de impressões digitais ainda na esquadria. Destrancou-a e
abriu-a. Havia marcas lascadas onde o trinco supostamente fora forçado com chave de fenda, ou ferramenta semelhante.
Bosch entreviu pela chuva o jardim dos fundos. Tinha uma piscina em forma de
feijão coberta por uma lona impermeável que acumulava água de chuva. Mais uma vez pensou
na garota. Perguntou-se se ela chegara a mergulhar na piscina para fugir, e nadar até o fundo para gritar.
Mais além da piscina, reparou numa cerca viva que circundava todo o jardim dos fundos. com três metros de altura, garantia a intimidade do quintal. Ele reconheceu
a cerca das imagens que vira no site de Charlotte.
Fechou a janela, a chuva sempre o entristecia. E nesse dia, não precisava mais sentir-se assim. Já tinha o fantasma de Frankie Sheehan na cabeça, um casamento desfeito
em que não teve tempo de pensar e pensamentos assombrosos sobre a garotinha com a expressão de perdida na floresta.
Retirou a mão do bolso para abrir a porta do armário. As roupas de Stacey continuavam ali. Vestidos coloridos em cabides de plástico branco. Examinou-os todos até
encontrar o branco com as bandeirinhas de sinalização. Também se lembrava desse no site.
317
Voltou para o corredor e inspecionou os outros quartos. Um grande parecia o de hóspedes, que Bosch reconheceu como o das fotos na página da Internet. Aquele em que
Stacey fora atacada e filmada. Ele não permaneceu ali por muito tempo. Mais adiante no corredor encontravam-se o banheiro, a suíte do dono da casa e outro quarto,
transformado em biblioteca e escritório.
Bosch retornou à sala de visitas. Parecia que Kate Kincaid não se mexera. Ele pegou a pasta e entrou na sala para juntar-se a ela.
- Estou meio molhado, sra. Kincaid. Posso me sentar, assim mesmo?
- Claro. E sou Kate.
- Se não se incomoda, eu preferia manter as coisas em base formal por enquanto.
- Faça como quiser, detetive.
Ele sentia raiva dela, raiva do que acontecera naquela casa e do segredo trancado a sete chaves. Vira o bastante durante o passeio por ali para confirmar na mente
o que Kizmin Rider acreditara com fervor na noite anterior.
Sentou-se numa das cadeiras cobertas defronte do sofá e pôs a pasta nos joelhos. Abriu-a e pôs-se a folhear o conteúdo, que do ângulo em que se achava Kate Kincaid
não via.
- Encontrou alguma coisa interessante no quarto de Stacey? Bosch interrompeu o que fazia e olhou-a acima da pasta por um
instante.
- Na verdade, não - disse. - Só estava sentindo a atmosfera da casa. Suponho que já foi toda revistada antes e não restou nada ali que eu pudesse achar. Stacey gostava
da piscina?
Ele retomou o trabalho dentro da pasta enquanto ela descrevia a excelente nadadora que a filha era.
- Ela atravessava de ida e volta a piscina debaixo d'água, sem subir à tona para respirar - disse Kate Kincaid.
Bosch fechou a pasta e olhou para ela. Kate sorria à lembrança da filha. Bosch sorriu, mas sem qualquer simpatia.
- Sra. Kincaid, como a senhora soletra inocência?
- Como é?
- A palavra. Inocência. Como a soletra?
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- Isso tem a ver com Stacey? Não entendo. Por que está...
- Faça a minha vontade por um momento. Por favor. Soletre a palavra.
- Não sou muito boa de grafia. com Stacey, eu sempre mantinha um dicionário na bolsa para o caso de ela me perguntar alguma palavra. Sabe, uma dessas aí que...
- Vamos. Tente.
Ela parou para pensarvA confusão era evidente em seu rosto.
- I... n. Sei que tem uma cedilha. I-n-o-c-e-n-ç-a.
Ela olhou para ele e ergueu as sobrancelhas numa pergunta. Bosch fez que não com a cabeça e reabriu a pasta.
- Quase - disse ele. - Mas não tem cedilha, são dois ç e um acento circunflexo no e.
- Droga. Eu avisei.
Ela deu-lhe um sorriso. Bosch retirou alguma coisa da pasta, fechou-a e largou-a no chão. Levantou-se e encaminhou-se até o sofá. Entregou-lhe um envelope de plástico
para documentos. Dentro, via-se uma das cartas anônimas que haviam sido enviadas a Howard Elias.
- Dê uma olhada. Você também escreveu errado aqui.
Ela fitou a carta por um bom tempo, depois inspirou profundamente. Falou sem olhar para Bosch.
- Acho que eu devia ter usado meu dicionário de bolso. Mas estava com pressa quando escrevi.
Bosch sentiu uma animação no íntimo. Soube então que não haveria luta, nem dificuldades. A mulher estivera à espera desse momento. Talvez soubesse que ia chegar.
Talvez por isso tivesse dito que estava se sentindo melhor do que em muito, muito tempo.
- Entendo - disse Bosch. - Gostaria de conversar comigo sobre isso, sra. Kincaid?
- Sim, gostaria. - <
Bosch pôs uma pilha nova no gravador, ligou-o e pôs na mesa de centro, o microfone apontado para cima de modo a captar ao mesmo tempo a voz dele e de Kate Kincaid.
- Está pronta? - perguntou.
- EstOU.
Ele então se identificou e disse quem era ela, anotou a data, a hora e o local da entrevista. Leu os direitos constitucionais de um formulário impresso que retirara
da pasta.
- Entende esses direitos que acabei de ler?
- Sim, entendo.
- Quer conversar comigo, sra. Kincaid, ou prefere que eu entre em contato com um advogado?
-Não.
- Não o quê?
- Nada de advogado. Um advogado não pode me ajudar. Eu quero falar.
Isso fez Bosch parar. Ele pensava na melhor maneira de impedir que caísse cabelo no bolo.
- Bem, não posso lhe dar orientação legal. Mas quando você diz que "um advogado não pode ajudá-la", não sei o que vai constituir a renúncia ao seu direito. Entende
o que quero dizer? Porque é sempre possível um advogado conseguir...
- Detetive Bosch, não quero advogado. Entendo perfeitamente meus direitos e não quero advogado.
- Tudo bem, então preciso que assine esse papel aqui embaixo, depois assine mais uma vez onde diz que você não exige um
advogado.
Ele pôs os formulários certos na mesa de centro e observou-a assiná-los. Pegou-os em seguida de volta e conferiu para certificar-se de que ela assinara seu nome
verdadeiro. Depois de também assiná-los como testemunha, Bosch enfiou-os numa das divisórias da pasta de documentos. Pensou por um momento em falar-lhe sobre a renúncia
ao direito esponsalício, mas decidiu que podia esperar. Deixaria o promotor público cuidar disso - quando e se chegasse a hora.
- Então suponho que seja só isso. Quer começar, sra. Kincaid, ou prefere que eu lhe faça perguntas?
Ele repetia o nome dela com freqüência de propósito - na hipótese de a fita vir a ser tocada perante um júri, não haveria confusão sobre de quem eram as vozes.
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- Meu marido matou minha filha. Acho que é isso que você quer saber primeiro. Por isso é que está aqui.
Bosch ficou imóvel por um instante, depois confirmando devagar com a cabeça.
- Como sabe disso?
- Durante um longo tempo foi apenas uma suspeita... depois se tornou minha crença baseada em coisas que soube. Por fim, ele na
verdade acabou me contando.
- O que exatamente ele lhe contou?
- Disse que foi um acidente... mas não se estrangula uma pessoa por acidente. Disse que ela o ameaçou, dizendo que ia contar para as amigas dela o que ele... o que
ele e seus amigos fizeram com ela. Ele disse que tentava impedir que falasse, conversava com ela a fim de convencer Stacey a não fazer isso. E disse que as coisas
ficaram fora de controle.
- Onde ocorreu isso?
- Aqui mesmo. Em casa.
- Quando?
Ela deu a data do seqüestro comunicado da filha. Parecia entender que Bosch precisava fazer algumas perguntas que tinham respostas óbvias. Ele montava um relatório.
- Seu marido abusou sexualmente de Stacey?
- Sim.
- Ele confessou isso a você?
- Sim.
Ela desatou a chorar e depois abriu a bolsa à procura de um lenço de papel. Bosch deixou-a em paz por um minuto. Teve curiosidade de saber se ela chorava de dor
pela perda da filha, por culpa, ou por alívio de a história estar finalmente sendo contada. Achou que talvez fosse uma combinação das três coisas.
- Por quanto tempo ela sofreu abuso? - ele acabou perguntando. Kate Kincaid largou o lenço de papel no colo.
- Não sei. Nós nos casamos cinco anos antes... antes de ela morrer. Não sei quando começou.
- Quando tomou conhecimento disso?
- Eu preferia não responder a essa pergunta, se não se importar. Bosch examinou-a. Tinha os olhos abatidos. A pergunta atingia-lhe no âmago de sua culpa.
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- É importante, sra. Kincaid.
- Stacey me procurou uma vez. - Ela pegou um novo lenço de papel da bolsa para uma nova torrente de lágrimas. - Mais ou menos um ano antes... Disse que ele andava
fazendo coisas que ela achava que não eram certas... A princípio não acreditei, mas em todo caso perguntei a ele. Ele negou, claro. E acreditei nele. Achei que fosse
um problema de adaptação. Sabe, para um padrasto. Achei que talvez essa fosse a maneira que ela encontrou de encenar a situação, ou qualquer coisa assim.
- E depois?
- Ela não disse nada. - Kate baixou o olhar para as mãos. Puxou a bolsa para junto do colo e apertou-a com força.
- Sra. Kincaid?
- E depois aconteceram coisas. Coisinhas. Ela não queria que eu saísse e a deixasse com ele... mas nunca me dizia por quê. Revendo tudo, é óbvio o motivo. Mas não
era tão óbvio então. Certa vez ele já tinha levado muito tempo no quarto dela dando boa-noite. Fui ver qual era o problema e encontrei a porta trancada.
- Bateu na porta?
Ela ficou ali sentada, imóvel, por alguns instantes, antes de negar com um balanço da cabeça.
- Isso é um não?
Bosch teve de perguntar por causa da fita.
- Sim, é um não. Não bati na porta.
Bosch decidiu continuar pressionando. Sabia que outras mães de vítimas de incesto e molestamento não viam muitas vezes o óbvio, nem tomavam os passos óbvios para
salvar as filhas do perigo. Agora Kate Kincaid vivia num inferno pessoal em que sua decisão de entregar o marido - e a si mesma - à execração pública e acusação
criminosa iria sempre parecer demasiado pequena e tardia. Ela tinha razão. Um advogado não poderia ajudá-la agora. Ninguém poderia.
- Sra. Kincaid, quando passou a suspeitar do envolvimento de seu marido com a morte de sua filha?
- Durante o julgamento de Michael Harris. Entenda que acreditei mesmo que tinha sido ele, Harris. Quer dizer, eu simplesmente não acreditava que a polícia plantasse
impressões digitais. Mesmo
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o promotor me garantiu que era improvável que isso pudesse ser feito. Assim, acreditei no caso. Eu queria acreditar. Mas então, durante o julgamento, um dos detetives,
acho que foi Frank Sheehan, estava depondo como testemunha e disse que eles prenderam Michael Harris no lugar em que ele trabalhava. -No lavajato.
- Isso mesmo. Ele deu o endereço e o nome do lugar. E aquilo me atingiu em cheio. Eu me lembrei de ter ido ao mesmo lavajato de carro com Stacey. Lembrei dos livros
dela no carro. Contei ao meu marido e disse que devíamos contar a Jim Camp. Ele era o promotor. Mas Sam me convenceu a não fazer isso. Disse que a polícia tinha
certeza e ele tinha certeza de que Michael Harris era o assassino. Disse que se eu levantasse a questão, a defesa ia descobrir e usar a informação para distorcer
o caso. Como aconteceu no julgamento de O. J., a verdade não significou nada. Perderíamos o caso. Ele me lembrou que Stacey foi encontrada perto do apartamento de
Harris... Disse que ele na certa a viu comigo no lavajato naquele dia e começou a nos perseguir sem ser visto, a persegui-la. Ele me convenceu... e deixei passar.
Eu ainda não tinha dúvidas que não tivesse sido Harris. Fiz o que meu marido me mandou fazer.
- E Harris foi absolvido. -É.
Bosch parou por um instante, achando que a pausa era necessária antes da pergunta seguinte.
- O que mudou, sra. Kincaid? - ele acabou perguntando. - O que a fez mandar aqueles bilhetes para Howard Elias?
- Minhas suspeitas nunca se afastaram muito. Então, um dia, alguns meses atrás, ouvi sem ser vista uma conversa que meu marido estava tendo com... seu amigo.
Ela disse a última palavra como se fosse a pior coisa que se pudesse algum dia dizer sobre qualquer pessoa.
- Richter?
- Sim. Eles achavam que eu não estava em casa, e eu não devia mesmo estar. Devia estar almoçando com minhas amigas no clube. Mountaingate. Só que parei de ir a
almoços com minhas amigas depois que Stacey.... bem, você sabe, almoços são o tipo de coisa
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que não me interessam mais. Por isso, disse ao meu marido que ia almoçar, mas fui visitar Stacey. No cemitério.
- Tudo bem, entendo.
- Não, acho que não entenderia, detetive Bosch. Bosch concordou com a cabeça.
- Desculpe. Talvez tenha razão. Continue, sra. Kincaid.
- Chovia naquele dia. Como hoje, pesado e triste. Mas ouvi os dois. No escritório de Sam, conversando... Eu tinha muitas suspeitas, e assim fui até a porta. Sem
fazer nenhum barulho. Fiquei só ali junto à porta e prestei atenção.
Bosch curvou-se à frente. Era o seu tira-teima, a hora da sentença. Ele saberia num instante a medida da sinceridade do que ela dizia. Duvidava que dois homens envolvidos
no assassinato de uma garota de doze anos se reuniriam para conversar sobre a história. Se Kate Kincaid dissesse que fora isso o que ocorrera, Bosch teria então
de achar que ela mentia.
- Que foi que eles disseram?
- Eles não estavam falando frases. Entende? Só fazendo comentários curtos. Percebi que falavam de garotas. Garotas diferentes... era nojento o que diziam. Eu não
tinha a menor idéia de como tudo isso era organizado. Eu me enganei pensando que se alguma coisa havia acontecido com Stacey, tinha sido uma fraqueza da parte dele,
alguma coisa contra a qual ele resistia. Estava errada. Aqueles homens eram predadores organizados.
- Então você estava na porta ouvindo... - interrompeu-a, com a intenção de fazê-la retomar o fio da história.
- Eles não estavam falando um com o outro. Era como se fizessem comentários. Percebi pelo jeito com que conversavam que estavam ao mesmo tempo vendo alguma coisa.
E eu ouvia o computador, o teclado e outros barulhos. Mais tarde tive condições de usar o computador e descobri o que olhavam. Eram meninas, dez, onze anos...
- Certo, voltaremos ao computador em dois minutos. Mas agora voltemos ao que você ouviu. Como esses... esses comentários levaram você a concluir, ou saber alguma
coisa sobre Stacey?
- Porque eles falaram nela. Ouvi Richter dizer: "Olha ela aí." E então meu marido disse seu nome. A maneira como ele disse...
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quase com desejo... não como um pai ou padrasto teria dito. E depois os dois se calaram. Deu para perceber que estavam olhando para ela. Eu soube.
Bosch pensou no que vira na tela do computador de Rider, na noite anterior. Para ele, era difícil imaginar Kincaid e Richter sentados juntos no escritório, vendo
as mesmas cenas - com reações decididamente diferentes a elas.
- E depois Richter perguntou ao meu marido se ele tinha ouvido falar alguma vez do detetive Sheehan. Meu marido perguntou: "Sobre o quê?" Richter disse: "Pelo pagamento
por ele pôr as impressões digitais de Harris no livro de Stacey." Meu marido riu. Disse que não houve pagamento algum. Depois contou a Richter o que eu tinha lhe
contado durante o julgamento, sobre a minha ida ao lavajato. Quando terminou de contar isso, os dois caíram na gargalhada e meu marido disse... Lembro disso com
tanta clareza... ele disse: "Tenho tido sorte assim em toda a minha vida..." E nesse momento eu soube. Que foi ele. Que foram os dois.
- E você decidiu ajudar Howard Elias.
- Sim.
- Por que ele? Por que não foi à polícia?
- Porque eu sabia que jamais iam acusá-lo. Os Kincaid são uma família poderosa. Acreditam que estão acima da lei, e estão. O pai do meu marido põe dinheiro nos bolsos
de todo político dessa cidade. Democrata, republicano, não importa. Todos devem a ele. Além disso, eu queria ver meu marido e seus amigos denunciados. Eu sabia que
as autoridades na certa não iam denunciá-los. Mas sabia que Howard Elias não fazia parte daquele sistema. Ele não era controlado por dinheiro nem poder. Só a verdade.
- Falou alguma vez diretamente com o sr. Elias?
-Não. Achei que meu marido talvez estivesse me vigiando. Depois daquele dia em que ouvi os dois, quando soube que era ele, era impossível eu não sentir total repugnância
por Sam. Acho que ele percebeu que eu tinha chegado a uma conclusão. Acho que mandou Richter me vigiar. Richter ou pessoas que trabalham para ele.
Bosch se deu conta de que Richter podia estar ali na vizinhança, após segui-la até a casa. Lindell dissera que a polícia desconhecia
325
o paradeiro atual do segurança de Kincaid. Ele deu uma olhada na porta da frente e viu que a deixara destrancada.
- Então você mandou bilhetes para Elias.
- Sim, anônimos. Acho que eu queria que ele denunciasse essas pessoas, mas me deixasse fora disso... Sei que foi uma atitude egoísta. Fui uma péssima mãe. Imagino
que tinha a fantasia de que os homens maus fossem expostos ao mundo, sem que o mesmo acontecesse com a mulher má.
Bosch notou um enorme sofrimento nos olhos de Kate quando ela disse isso. Esperou que as lágrimas recomeçassem, mas isso não ocorreu.
- Ainda tenho algumas perguntas a fazer sobre essa questão disse ele. - Como ficou sabendo do endereço da página da Internet e como chegou ao site secreto?
- Quer dizer o site de Charlotte? Meu marido não é muito inteligente, detetive Bosch. É rico, e isso sempre transmite a aparência de intelectual. Ele escreveu as
instruções para não ter de decorá-las, e escondeu na escrivaninha. Eu as encontrei. Sei usar um computador. Fui àquele lugar pavoroso... Vi Stacey lá.
Mais uma vez, sem lágrimas. Bosch ficou perplexo. Kate Kincaid baixara a voz a um
tom monocórdio. Parecia que recitava a história por obrigação. Mas qualquer impacto
que a idéia porventura exercesse sobre ela fora eliminado e compartimentalizado, afastado da superfície.
- Acredita que seja seu marido com Stacey nas imagens?
- Não. Não sei quem era aquele.
- Como pode ter certeza?
- Meu marido tem uma marca de nascença. Uma descoloração nas costas. Eu disse que ele não era inteligente, mas foi pelo menos esperto o bastante para não aparecer
naquele site.
Bosch pensou nisso. Embora não duvidasse da história de Kate Kincaid, também sabia que para acusar Kincaid seriam necessárias provas cabais que a corroborassem.
Pelo mesmo motivo que ela sentiu que não podia levar sua história às autoridades, Bosch precisava ter condições de entrar no gabinete do promotor público com Sam
Kincaid solidamente trancado sob sete chaves de provas.
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Nesse momento, tudo que Bosch tinha era uma mulher dizendo coisas terríveis do marido. O fato de, tudo indicava, Kincaid não ser o homem com a enteada nas imagens
do <web site era uma importante perda de prova ratificadora. Ele pensou nas buscas. As equipes baixavam na casa e no escritório de Kincaid naquele momento. A esperança
de Bosch era que encontrassem provas que confirmassem a história da mulher.
- Seu último bilhete enviado a Howard Elias - disse ele. Advertia-o. Disse que seu marido sabia. Quis dizer que seu marido sabia que Elias tinha descoberto o site
secreto?
- Na época, sim.
- Por quê?
- Por causa da forma como ele agia, impaciente, com desconfiança de mim. Perguntou se eu tinha usado seu computador. O que me fez imaginar que eles deviam saber
que alguém por ali andava remexendo. Enviei a mensagem, mas agora não tenho mais tanta certeza.
- Por que isso? Howard Elias está morto.
- Não tenho certeza de que foi Sam. Ele teria me contado.
- Como?
Bosch ficou inteiramente confuso com a lógica dela.
- Ele teria me contado. Contou sobre Stacey, por que não me contaria também sobre Elias? E o fato de você saber do site. Se eles achassem que Elias sabia, não o
teriam fechado ou escondido em outro lugar?
- Não se em vez disso iam assassinar o intruso.
Ela fez que não com a cabeça. Não via a coisa como Bosch obviamente via.
- Continuo achando que ele teria me contado. Ainda confuso, Bosch disse:
- Espere aí. Está falando do confronto que mencionou no início desta entrevista?
O pager de Bosch disparou, ele curvou-se para baixo e silenciou-o, sem tirar os olhos de Kate Kincaid.
- Estou.
- Bem, quando foi este confronto?
- Ontem à noite.
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- Ontem à noite?
Bosch ficou chocado. Tirara a conclusão precipitada de que o confronto entre marido e mulher que ela contara ocorrera semanas,
ou até meses, antes.
- Sim. Depois que você saiu. Vi pelas perguntas que fez que na certa tinha encontrado meus bilhetes para Howard Elias. Eu sabia que ia encontrar o site de Charlotte.
Era uma questão de tempo.
Bosch baixou os olhos para o pager. O número aceso era do telefone de Lindell, com o código de emergência 911 ao lado. Ele ergueu de novo os olhos para Kate Kincaid.
- Portanto, finalmente reuni a coragem que não tive durante todos aqueles meses e anos. Enfrentei-o. E ele me contou. E riu na minha cara. Me perguntou por que eu
me importava agora se não me importei enquanto Stacey vivia.
Nesse momento o celular de Bosch começou a tocar dentro da pasta. Kate Kincaid levantou-se, devagar.
- vou deixar que atenda em particular.
Ao estender a mão até a pasta ele viu-a pegando a bolsa e atravessar a sala em direção ao corredor, encaminhando-se para o quarto da filha morta. Bosch se atrapalhou
com o fecho da pasta, mas acabou abrindo-a e chegando ao telefone. Era Lindell.
- Estou na casa - disse o agente do FBI, a voz pastosa de adrenalina e excitação. - Kincaid e Richter estão aqui. A cena não é
muito bonita.
- Desembuche.
- Mortos. E não parece ter sido um passeio fácil para eles. Foram atingidos nas rótulas, e os dois levaram balas nos colhões... Você ainda está com a mulher?
Bosch olhou em direção ao corredor.
- Estou.
Assim que disse isso ouviu um único estampido vindo do corredor. Sabia o que era.
- Melhor trazê-la pra cá - disse Lindell.
- Certo.
Bosch fechou o telefone, enfiando-o de volta na pasta.
- Sra. Kincaid?
Não obteve resposta. Só ouvia a chuva.
Capítulo 32
Já eram quase duas horas quando Bosch liberou a cena em Brentwood e subiu a colina até The Summit. Dirigindo em meio à chuva ele só podia pensar no rosto de Kate
Kincaid. Alcançara o quarto de Stacey menos de dez segundos após ouvir o disparo, mas ela já se fora. Tinha usado um calibre 22 e colocado o cano na boca, enfiando
a bala no cérebro. A morte foi instantânea. O coice da arma a tinha lançado fora de sua boca para ir parar no chão. Não havia saída de bala, como costuma ser o caso
com uma 22. Kate simplesmente parecia dormir. Ela se havia enrolado no cobertor
cor-de-rosa que pertencera à filha. Kate Kincaid parecia serena na morte. Nenhum
agente funerário seria capaz de melhorar sua aparência Não era preciso.
Havia vários carros e furgões estacionados diante da residência Kincaid. Bosch teve de estacionar tão longe que sua capa de chuva estava ensopada quando chegou à
porta. Lindell estava lá esperando por ele.
- Bem, isto certamente se transformou numa merda só - disse o agente do FBI à guisa de saudação.
- É isso aí.
- Devíamos ter visto que ia acontecer?
- Não sei. Nunca se pode prever o que as pessoas, vão fazer.
- Como deixou as coisas por lá?
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- O legista e a perícia ainda estão na cena. Dois tiras da DRH supervisionam.
Lindell assentiu.
- Vi o que precisava ver - disse Bosch. - Agora me mostre o que você tem aqui.
Entraram na casa e Lindell foi na frente até a sala de estar enorme onde Bosch se sentara com os Kincaid na tarde da véspera. Ele viu os corpos. Sam Kincaid estava
no mesmo ponto no sofá onde Bosch o vira pela última vez. D. C. Richter estava no chão sob a janela que dava vista para o Vale. Não havia nenhuma vista de avião
agora. O sangue de Kincaid filtrava-se no tecido que cobria o sofá. Havia vários técnicos trabalhando na sala onde luzes tinham sido instaladas. Bosch viu que os
marcadores de plástico numerados tinham sido colocados no lugar onde as cápsulas de calibre 22 foram localizadas no chão e nos móveis.
- Você tem também calibre 22 em Brentwood, certo?
- Sim, foi o que ela usou.
- Você não pensou em revistá-la antes de começar a conversa, não é?
Bosch olhou para o agente do FBI e sacudiu levemente a cabeça, irritado.
- Está me gozando? Foi um interrogatório voluntário, cara. Talvez você nunca tenha feito um lá no FBI, mas a regra número um é que você não faz o indivíduo se sentir
um suspeito antes de sequer começar. Eu não a revistei e teria sido um erro se...
- Eu sei, eu sei. Desculpe ter perguntado. É só que...
Ele não concluiu, mas Bosch soube o que ele estava querendo. Decidiu mudar de assunto.
- O velho apareceu?
- Jack Kincaid? Não. Mandamos nosso pessoal falar com ele. Ouvi dizer que não está gostando nada. Está ligando para cada político a quem já deu dinheiro. Acho que
ele acredita que o conselho municipal ou o prefeito vão ser capazes de trazer seu filho de volta.
- Ele sabia o que seu filho era. Provavelmente sempre soube. É por isso que está dando telefonemas. Para evitar que venha a público.
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331
- E. Bem, isso é o que veremos. Já descobrimos câmeras de vídeo digitais e equipamento de edição. Nós vamos estabelecer a ligação dele com a Teia de Charlotte.
Estou confiante.
- Isso não importa. Onde está o chefe Irving?
- A caminho.
Bosch assentiu. Aproximou-se do sofá e agachou-se, as mãos nos joelhos, para olhar detidamente o czar do automóvel. Seus olhos estavam abertos e a mandíbula formava
uma careta final. Lindell estivera certo quando dissera que não tinha sido um passeio fácil. Ele pensou em comparar a expressão de Kincaid com o aspecto de morte
da sua esposa. Não havia comparação.
- Como acha que aconteceu? - perguntou. - Como foi que ela pegou os dois?
Continuou a olhar para o corpo enquanto Lindell falava.
- Bem, se você balear um homem nos bagos, ele fica pra lá de dócil. Pelo sangue deles, eu diria que foi onde eles foram atingidos primeiro. Uma vez que passou deste
ponto, acho que ela ganhou o controle total da situação.
Bosch assentiu.
- Richter não estava armado?
- Não.
- Ninguém encontrou ainda uma nove milímetros por aí?
-Não, ainda não.
Lindell deu a Bosch outro olhar de fodemos com tudo.
- Precisamos daquela nove - disse Bosch. - A sra. Kincaid fez com que admitissem o que fizeram com a garota, mas eles não disseram nada sobre Elias. Precisamos
encontrar aquela nove para incriminá-los e encerrar esta coisa.
- Bem, estamos procurando. Se alguém encontrar a arma, vamos ser os primeiros a saber.
- Você enviou pessoal para a casa, o escritório e o carro de Richter? Estou apostando nele como o atirador.
- Enviei. Estamos verificando, mas não conte com qualquer coisa lá.
Bosch tentou decifrar o agente do FBI, mas não conseguiu. Sabia que ele estava omitindo alguma coisa.
-O quê?
- Edgar conseguiu a ficha dele na academia de polícia esta manhã.
- Certo. Ele foi reprovado. Como?
- Acontece que o cara era cego de um olho. O olho esquerdo. Ele estava tentando passar sem que ninguém notasse. Fez tudo certo até o curso de armamento. Não conseguia
acertar merda nenhuma no estande de tiro. Foi como eles descobriram. Então foi reprovado.
Bosch assentiu. Pensava nos tiros de especialista dados no Vôo dos Anjos e concluiu que esta nova informação sobre Richter mudava as coisas. Soube que era improvável
Richter ter sido o atirador.
Seus pensamentos foram desfeitos pelo ronco de um helicóptero. Olhou para cima pelas janelas e viu um helicóptero do Canal 4 descendo e pairando do lado de fora
da casa, a cerca de cinqüenta metros. Através da chuva Bosch mal podia distinguir o cinegrafista na porta corrediça aberta.
- Abutres de merda - disse Lindell. - Eu tinha pensado que a
chuva os manteria longe.
Ele caminhou de volta à entrada, onde havia um painel com comutadores e outros controles eletrônicos. Pressionou um botão redondo e manteve o dedo nele. Bosch ouviu
o gemido de um motor elétrico e observou uma persiana automática baixar sobre
as janelas.
- Eles não podem se aproximar deste lugar por terra - disse Bosch. - Por causa dos portões. Portanto, sua única visão é do ar.
- Não me importo. Vamos ver o que eles têm agora.
Bosch também não se importava. Ele olhou de volta para os corpos. A julgar pela cor e pelo leve odor já evidente na sala, ele imaginou que os dois tinham sido mortos
há várias horas. Especulou se isto significava que Kate Kincaid ficou na casa o tempo todo com os cadáveres ou se tinha ido para Brentwood e passado a noite na
cama da filha. Apostou na última hipótese.
- Alguém descobriu a hora da morte? - perguntou ele.
- Descobriu. O legista estabeleceu a hora em algum momento da noite passada, entre nove e meia-noite. Diz que o fluxo de sangue indica que podem ter ficado vivos
até umas duas horas da primeira
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à última bala. É como se ela quisesse uma informação que eles se
recusavam a dar... no começo.
"O marido falou. Quanto a Richter, não sei... ela provavelmente não se importava com ele. Mas o marido contou tudo sobre Stacey. Depois, imagino, ela acabou com
ele. Acabou com os dois. Não era o marido que estava com a garota naquelas imagens no site. Você deveria pedir ao legista para tirar fotos do torso de Ricbter
e fazer uma comparação. Poderia ter sido ele."
Lindell gesticulou para os corpos.
- Pode ser. Então, o que você acha? Ela fez isto a noite passada e depois o quê? Foi para um hotel?
- Provavelmente não. Acho que ela passou a noite na casa em Brentwood. Achei que parecia que alguém tinha dormido na cama da garota. A sra. Kincaid precisava me
ver para contar a história antes que pudesse finalizar seu plano.
- Que seria o suicídio dela. -Correto.
- Isso é barra pesada, cara.
- Muito mais duro era conviver com o fantasma da filha, com o que tinha deixado acontecer com ela. O suicídio era a saída fácil.
-Não se me perguntar. Tal como eu continuo pensando a respeito de Sheehan, cara, e especulando. Quero dizer, quão cruel tudo isto poderia ter sido para ele a ponto
de fazer o que fez?
- Simplesmente espere nunca saber. Onde está meu pessoal?
- Lá no corredor do escritório. Estão cuidando das coisas por lá.
- vou ficar por lá.
Bosch deixou Lindell e desceu o corredor para o escritório. Edgar e Rider estavam conduzindo silenciosamente uma busca. Os objetos que desejavam confiscar estavam
sendo empilhados no tampo da mesa. Bosch acenou um alô e eles fizeram o mesmo. Uma tranqüila palidez pairava sobre a investigação agora. Não havia mais processo,
nenhum julgamento. Caberia a eles explicar o que havia acontecido. E todos eles sabiam que a mídia seria cética e o público poderia não acreditar neles.
Bosch se aproximou da mesa. Havia um bocado de equipamento de computador com fios de conexão. Havia caixas de discos rígidos
333
usados para armazenagem de dados. Havia uma pequena câmera de vídeo e uma ilha de edição.
- Conseguimos um bocado, Harry - disse Rider. - Seria o suficiente para provar a ligação de Kincaid com a rede de pedofilia. Ele tinha um Zip dríve com todas as
imagens do site secreto gravadas. E tinha esta câmera... achamos que era usada para fazer vídeos de Stacey.
Rider, que estava usando luvas, ergueu a câmera para mostrar a ele.
- É digital. Você faz o seu filme, conecta a câmera a este plugue aqui e baixa aquilo que quiser. Depois o acopla a seu computador e o apresenta na rede de pedofilia.
E tudo isto da privacidade do seu lar. E literalmente tão fácil quanto...
Ela não concluiu. Bosch virou-se para ver o que a distraíra e deparou como o subchefe Irving de pé à entrada do escritório. Atrás dele estavam Lindell e seu assistente,
o tenente Tulin. Irving entrou no escritório e entregou sua capa de chuva a Tulin, dizendo a ele para levá-la e esperar em outra dependência da casa.
- Em que lugar, chefe?
- Qualquer sala.
Irving fechou a porta atrás de Tulin, o que o deixava a sós no escritório com Lindell e a equipe de Bosch. Este fazia uma idéia do que estava por vir. O mediador
estava aqui agora. A investigação ia passar pelo ciclo giratório onde as decisões e os pronunciamentos públicos iriam se basear no que melhor servisse ao departamento,
não na verdade. Bosch cruzou os braços e esperou.
- Quero terminar com isto agora - disse Irving. - Levem o que encontraram e caiam fora.
- Chefe - disse Rider -, ainda temos uma boa parte da casa
para cobrir.
- Pouco me importa. Quero os corpos removidos e depois quero
a polícia removida.
- Senhor - insistiu ela -, ainda não encontramos a arma. Precisamos daquela arma para...
E vocês não vão encontrá-la.
Irving adiantou-se mais no escritório. Olhou em torno e parou quando seus olhos finalmente encontraram o rosto de Bosch.
334
- Cometi um erro ao ouvir você. Espero que a cidade não tenha de pagar por isso.
Bosch fez uma pausa antes de responder. Irving não tirava os olhos dele.
- Chefe, sei que está pensando sobre isto em... termos políticos. Mas temos de continuar nossas buscas nesta casa e em outros locais relacionados aos Kincaid. Precisamos
encontrar a arma a fim de provar que...
- Eu só lhe digo que não vai encontrar a arma. Nem aqui nem em qualquer outro lugar relacionado aos Kincaid. Tudo isto, detetive, não passou de uma manobra diversionista.
E que causou três mortes.
Bosch não sabia aonde isto ia levar, mas ficou na defensiva. Gesticulou para o equipamento sobre a mesa.
- Eu não chamaria de diversionismo. Kincaid estava envolvido numa grande rede de pedofilia e nós...
- Sua missão era no Vôo dos Anjos. E óbvio que dei autonomia demais ao seu pessoal e agora aqui estamos.
- Isto é o Vôo dos Anjos. E por isto que precisamos da arma. Ela vai ligar tudo...
- Que se dane, nós temos a arma! Estamos com ela há vinte e quatro horas! Pegamos o assassino também. PEGAMOS! Nós o deixamos escapar e agora nunca o teremos de
volta.
Bosch só podia olhar para ele. O rosto de Irving adquirira o vermelho profundo da raiva.
- A análise de balística foi completada menos de uma hora atrás
- disse Irving. - As três balas extraídas do corpo de Howard Elias foram comparadas inequivocamente com balas testadas no laboratório com a Smith and Wesson nove
milímetros do detetive Francis Sheehan. O detetive Sheehan matou aquelas pessoas no plano inclinado. Fim da história. Há aqueles de nós que acreditavam naquela possibilidade.
A possibilidade agora é um fato, mas o detetive Sheehan já se foi.
Bosch ficou sem fala e teve de se esforçar para evitar que a boca se escancarasse.
- Você - conseguiu dizer. - Você está fazendo isso pelo velho. Por Kincaid. Você está...
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Rider agarrou Bosch pelo braço para evitar que acabasse com sua carreira. Ele livrou-se do seu aperto e apontou na direção da sala onde estavam os corpos.
-... vendendo um dos nossos para proteger aquilo. Como pode fazer isso? Como pode fazer este tipo de acordo com eles? E com
você mesmo?
- Você está ERRADO! - gritou Irving de volta. Então disse, baixinho: - Você está errado e posso esmagá-lo pelo que acaba de dizer.
Bosch não disse nada e continuou a enfrentar o olhar do subchefe.
- Esta cidade espera justiça por Howard Elias - disse Irving. E pela mulher que morreu junto com ele. Você tirou isso, detetive Bosch. Você permitiu a Sheehan uma
fuga de covarde. Você tirou a justiça do povo e ele não vai ficar contente com isso. Que os céus nos ajudem.
Capítulo 33
O plano era realizar a entrevista coletiva rapidamente, enquanto a chuva ainda estava caindo e podia ser usada para manter as
raivosas - fora das ruas. Toda a equipe investigativa estava reunida e alinhada ao longo da parede ao fundo do palco. O chefe de polícia e Gilbert Spencer,
do FBI, iam conduzir o encontro e responder a todas as perguntas. Este era o procedimento padrão em situações altamente sensíveis. O chefe e Spencer sabiam pouco
mais do que estava no informe à imprensa. Portanto, perguntas sobre os detalhes da investigação podiam ser fácil e honestamente desviadas com Não estou a par disto
ou Tipo de pergunta fora de minha competência.
O'Rourke, assessor de imprensa, fez o aquecimento dizendo ao bando de repórteres que agissem de modo responsável e que a entrevista seria curta, com informações
adicionais fornecidas nos dias seguintes. Ele então apresentou o chefe de polícia, que se posicionou atrás dos microfones e leu uma declaração cuidadosamente preparada.
- Durante minha curta gestão como chefe de polícia tive a responsabilidade de presidir aos funerais de agentes que tombaram no cumprimento do dever. Segurei as mãos
de mães que perderam seus filhos para a violência sem sentido desta cidade. Mas meu coração nunca se sentiu mais pesado do que neste momento. Tenho de
337
anunciar ao povo desta grande cidade que sabemos quem matou Howard Elias e Catalina Perez. E é com profundo pesar que comunico que foi um membro deste departamento.
Hoje cedo, testes de balística e análise compararam as balas que mataram Howard Elias e Catalina Perez com a arma de serviço usada pelo detetive Francis Sheehan,
da Divisão de Roubos e Homicídios.
Bosch olhou através das faces do mar de repórteres e viu choque em muitos deles. A notícia deu-lhes até mesmo uma pausa, pois sabiam as conseqüências. A notícia
era o fósforo, eles, a gasolina. A chuva não seria provavelmente o suficiente para apagar este fogo. Uma dupla de repórteres, talvez do serviço telegráfico, abriu
caminho pela sala apinhada. Queriam ser os primeiros a espalhar a notícia. O chefe de polícia prosseguiu.
- Como muitos de vocês sabem, Sheehan foi um dos vários agentes processados por Howard Elias em benefício de Michael Harris. Os investigadores neste caso acreditam
que Sheehan ficou estressado com as emoções relativas a este caso e à dissolução de seu casamento há alguns meses. Ele pode ter ficado desequilibrado. Talvez nunca
saibamos por que o detetive Sheehan deu cabo da própria vida a noite passada, quando entendeu que era apenas uma questão de tempo antes que ele fosse revelado como
o assassino. Como chefe de polícia, você espera nunca ter de fazer uma declaração como esta. Mas este departamento nada esconde de seus cidadãos. O mau deve ser
anunciado de modo que possamos celebrar plenamente o bom. Sei que as oito mil pessoas boas deste departamento me acompanham no pedido de desculpas às famílias destas
duas vítimas bem como a todos os cidadãos desta cidade. E pedimos que os bons cidadãos, em troca, reajam com responsabilidade e calma a esta seqüência de eventos
verdadeiramente horrível. Agora, tenho outras declarações, mas se houver perguntas relativas especificamente a esta investigação posso ceder um pouco deste tempo.
De imediato houve um coro de gritos ininteligíveis e o chefe simplesmente apontou para um dos repórteres no centro da fila da frente. Bosch não o reconheceu.
- Como e onde Sheehan se matou? ""
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- Estava na casa de um amigo a noite passada. Atirou em si mesmo. Sua arma de serviço tinha sido confiscada para o exame de balística. Ele utilizou outra arma, cuja
origem ainda está sob investigação. Os investigadores acreditavam que ele não tivesse outra arma à disposição. Obviamente estavam errados.
A cacofbnia recomeçou, mas foi superada pela voz ressonante de Harvey Button. Sua pergunta foi clara e tinha de ser respondida.
- Por que este homem estava livre? Ele era um suspeito ontem. Por que foi solto?
O chefe olhou para Button por um longo momento antes de responder.
- Você acabou de responder. Ele era um suspeito. Não estava sob prisão. Estivemos esperando os resultados do exame de balística e não havia razão para detê-lo àquela
altura. Naquele momento não havia nenhuma prova com a qual acusá-lo. Tivemos a prova com o relatório de balística. É claro que ela chegou tarde demais.
- Chefe, todos nós sabemos que a polícia pode deter suspeitos até quarenta horas antes de acusá-los. Por que o detetive Sheehan não foi mantido em custódia?
-Francamente, porque estamos seguindo outros rumos de investigação. Ele não era um suspeito plenamente maduro. Era uma das várias pessoas que estávamos investigando.
Sentíamos que não havia razão para detê-lo. Ele havia respondido satisfatoriamente às nossas perguntas, era um membro deste departamento e não acreditávamos que
fosse a qualquer lugar. Também não acreditávamos que fosse um suicida.
- Um adendo - gritou Button acima do alarido que se seguiu.
- Está dizendo que a posição dele como agente de polícia lhe concedia o privilégio de ser libertado de modo a poder ir para casa e se matar?
- Não, sr. Button, não é isto o que estou dizendo. Estou dizendo que só soubemos tarde demais que o culpado era ele. Soubemos hoje. Ele foi solto e se matou na noite
passada.
- Se ele fosse um cidadão comum... digamos, um negro como Michael Harris, teria tido permissão de ir para casa a noite passada?
- Não vou me rebaixar respondendo a isto.
339
O chefe ergueu as mãos para calar os gritos dos outros repórteres.
- Tenho outras declarações a fazer.
Os repórteres continuaram a gritar perguntas e O'Rourke se adiantou e gritou mais alto, ameaçando encerrar a coletiva e evacuar a sala se não houvesse silêncio.
Funcionou. O chefe assumiu
a partir daí.
- Esta declaração está relacionada indiretamente aos eventos que acabei de mencionar. Tenho também o penoso dever de anunciar as mortes de Sara Kincaid, Kate Kincaid
e Donald Charles Richter, um especialista em segurança que trabalhava para os Kincaid.
Ele continuou, lendo outra folha de papel que descrevia o duplo homicídio e o suicídio, considerando os eventos como ações de uma atormentada Kate Kincaid, que deixava
o crescente pesar pela perda da filha levar a melhor sobre ela. Não se mencionava a profanação daquela filha praticada pelo seu marido, ou a progressiva pedofiliadele,
ou seu envolvimento num site secreto dedicado àquela perversão. Também não havia nenhuma menção à investigação daquele site pelo FBI ou pela delegacia de defraudações
por computador do DPLA.
Bosch sabia que ali tinha o dedo do velho. O czar do automóvel original, mexendo seus pauzinhos para salvar o nome da família. Bosch imaginava que figurões estavam
sendo chamados por toda a cidade. Jackson Kincaid não permitiria que a reputação do filho fosse destruída junto com a sua própria. Poderia arruinar seus negócios.
Quando o chefe terminou de ler, houve algumas perguntas superficiais.
- Se estava atormentada, por que ela matou o marido? - perguntou Keisha Russel, do Times.
- Jamais saberemos.
- E quanto ao homem da segurança, Richter? Por que ela o mataria se a questão se referia à sua filha?
- Mais uma vez, não temos certeza. Estamos de olho na possibilidade de que ele por acaso estava na casa quando a sra. Kincaid sacou a arma e anunciou a intenção
de se matar. Há uma forte possibilidade de que os dois foram mortos enquanto tentavam evitar que ela fizesse aquilo. Ela se matou na cama da filha.
340
É uma situação muito triste e damos nossas condolências à família e aos amigos dos Kincaid.
Bosch estava enojado. Ele quase sacudiu a cabeça, mas sabia que, como estava de pé contra a parede atrás do chefe, tal gesto seria captado pelas câmeras e repórteres.
- Bem, se não há mais nada, eu gostaria que...
- Chefe - interrompeu Button. - A inspetora-geral Carla Entrenkin programou uma coletiva no escritório de Howard Elias dentro de uma hora. Sabe o que ela vai dizer
e tem algum comentário a fazer a respeito?
- Não. A inspetora Entrenkin opera independentemente deste departamento. Ela não se reporta a mim e portanto não faço idéia do que vai dizer.
Mas pelo tom de voz do chefe estava claro que ele não esperava que Entrenkin fosse dizer qualquer coisa positiva para o departamento.
- Quero encerrar agora - disse o chefe. - Mas antes de fazêlo quero agradecer ao FBI e particularmente ao agente especial Spencer pela ajuda que forneceram. Se houver
qualquer consolo em tudo isto, é que os cidadãos desta comunidade podem ficar certos de que o departamento está dedicado a extirpar as ervas daninhas, seja lá quem
possam ser. Este departamento também está disposto a assumir responsabilidades pela ação de seus integrantes sem encobrimentos, não importa o custo para nosso orgulho
e reputação. Espero que os bons cidadãos de Los Angeles se lembrem e aceitem minhas desculpas sinceras. Espero que os bons cidadãos de Los Angeles ajam com calma
e responsabilidade em reação a estes comunicados.
Suas últimas palavras foram abafadas pelo arrastar de cadeiras e equipamento quando os repórteres começaram a se levantar em massa e procurar as portas de saída.
Havia uma história para sair e outra entrevista coletiva para comparecer.
- Detetive Bosch.
Bosch virou-se. Irving aproximou-se dele.
- Algum problema com os comunicados? Algum problema para você ou sua equipe?
341
Bosch estudou o rosto do subchefe. A implicação era clara. Se fizer alguma onda, seu barco será aquele que vai encalhar e afundar - e você levará outros junto consigo.
Vá em frente para ir à frente. O lema da companhia. Era isto que deveria estar escrito nos carros dos policiais. Esqueça sobre Proteger e servir.
Bosch sacudiu lentamente a cabeça, quando o que desejava fazer era aferrar Irving pela garganta.
- Não, nenhum problema - disse por entre os maxilares rígidos.
Irving assentiu e instintivamente soube que era hora de se
mandar.
Bosch viu que as portas de saída estavam agora desimpedidas e seguiu para lá, a cabeça baixa. Sentiu que ele não conhecia nada. Sua esposa, seu velho amigo, sua
cidade. Tudo e todos eram estranhos para ele. E foi com esta sensação de solidão que achou que começava a compreender o que Kate Kincaid e Frankie Sheehan estavam
pensando no fim da linha.
Capítulo 34
Bosch foi para casa a fim de ver tudo na televisão. Tinha sua máquina de escrever portátil em cima da mesinha de centro e estava curvado sobre ela, datilografando
com dois dedos o relatório final da investigação. Sabia que poderia ter mandado Rider fazêlo no seu laptop, o que seria dez vezes mais rápido, mas Bosch queria
escrevê-lo pessoalmente. Decidira pôr no papel exatamente tudo que havia acontecido - tudo, sem proteger ninguém, nem a família Kincaid ou mesmo ele. Entregaria
o produto final a Irving, e se o subchefe quisesse reescrevê-lo, editá-lo ou mesmo rasgá-lo, problema dele. Bosch sentia que se contasse tudo como havia acontecido
e o colocasse no papel, haveria ainda um pequeno grau de integridade naquilo.
Ele parou de datilografar e olhou para a TV quando a transmissão cortou das reportagens de rua sobre tumultos e violência esporádicos para uma recapitulação dos
acontecimentos do dia. Houve vários flashes da entrevista coletiva - Bosch viu a si mesmo de pé junto à parede atrás do chefe de polícia, seu rosto desmentindo tudo
que estava sendo dito. E depois a reportagem cortou para a coletiva que Carla Entrenkin dava no saguão do Bradbury. Ela anunciou sua renúncia imediata como inspetora-geral.
Disse que após uma conversa com a viúva de Howard Elias ficou decidido e acordado que ela assumiria o trabalho jurídico do advogado assassinado.
343
- Acredito que seja neste novo papel que terei o efeito mais positivo na reforma do departamento de polícia desta cidade - disse ela. - Levar a cabo o trabalho de
Howard será tanto uma honra
quanto um desafio.
Quando questionada pelos repórteres sobre o caso Guerreiro Negro, Entrenkin disse que planejava continuar o caso sem mais delongas. Pela manhã pediria ao juiz que
remarcasse o início do julgamento para a segunda-feira seguinte. Até lá estaria apta a agilizar as implicações do caso e a estratégia que Howard Elias planejara
seguir. Quando um repórter sugeriu que a cidade provavelmente sairia da sua rotina para fazer um acordo, à luz dos acontecimentos do dia, Entrenkin contestou.
- Como Howard, não quero fazer um acordo - disse ela, olhando direto para a câmera. - Este caso merece uma plena exposição ao público. Iremos ao tribunal.
Ótimo, pensou Bosch, ao se encerrar a reportagem. Não ia chover eternamente. Se um distúrbio tinha sido evitado agora, Carla Entrenkin se certificaria de deflagrá-lo
na semana seguinte.
O noticiário passou para uma reportagem sobre a reação de líderes comunitários aos acontecimentos do dia e às declarações do chefe de polícia. Quando Bosch viu o
reverendo Preston Tuggins aparecer na tela, pegou o controle remoto e mudou de canal. Captou reportagens sobre vigílias à luz de velas em dois outros canais e o
conselheiro Royal Sparks num terceiro, antes de finalmente encontrar um que mostrava uma tomada aérea do cruzamento da Florence com Normandie. O mesmo ponto onde
estouraram os distúrbios de
1992 estava apinhado com uma multidão de manifestantes. A manifestação - se assim podia ser chamada - era pacífica, mas Bosch sabia que era apenas questão de tempo.
A chuva e a luz obscurecida do dia não iam conter a raiva. Pensou sobre o que Carla Entrenkin lhe dissera no sábado à noite, acerca da raiva e da violência preenchendo
o vazio deixado quando a esperança se esvai. Pensou sobre o vazio dentro de si mesmo agora e imaginou com que iria preenchê-lo. Ele baixou o som e voltou ao seu
relatório. Quando ficou pronto, tirou a folha da máquina de escrever e colocou-a numa pasta de arquivo. Iria entregá-lo na manhã seguinte quando tivesse chance.
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com o encerramento da investigação, ele e seus parceiros haviam sido designados para o plantão doze-por-doze como todos no departamento. Iriam se apresentar em
uniforme às seis da manhã seguinte no centro de comando da área sul. Passariam os próximos poucos dias, no mínimo, nas ruas, percorrendo a zona de guerra em dois
carros com oito patrulheiros.
Bosch decidiu ir ao armário para verificar as condições de seu uniforme. Há cinco anos que não o usava - desde o terremoto e do último uso que o departamento fizera
do plano de emergência. Enquanto o retirava do seu invólucro de plástico, o telefone tocou e Bosch correu para atender, esperando que fosse Eleanor ligando de algum
lugar para dizer que estava bem e em segurança. Ele pegou o telefone da cômoda e sentou-se na cama. Mas não era Eleanor. Era Carla Entrenkin.
- Você está com meus arquivos - disse ela.
-O quê?
- Os arquivos. Do caso Guerreiro Negro. Estou assumindo o caso. Preciso dos arquivos de volta.
- Ah, claro. Acabei de ver na TV.
Houve um silêncio então que deixou Bosch desconfortável. Havia alguma coisa em relação à mulher que ele apreciava, embora parecesse dar pouca importância à causa
dela.
- Acho que foi uma grande jogada você assumir os casos dele
- disse Bosch por fim. - Você acertou isto com a viúva, ha?
- Sim. E não, não contei a ela sobre mim e Howard. Não vi necessidade de estragar suas lembranças. Ela já penou o bastante.
- Muito nobre de sua parte.
- Detetive...
-O quê?
- Nada. Só que não entendo você algumas vezes.
- Junte-se ao clube. x Mais silêncio.
- Estou com os arquivos aqui. A caixa inteira. Estava agora datilografando meu relatório final. vou empacotar tudo e tentar enviar amanhã. Mas não posso garantir...
estou de patrulha até as coisas se acalmarem no South Side.
- Está ótimo.
- Está assumindo o escritório dele também? É para lá que devo
levar tudo?
- É. Está combinado então. Seria ótimo assim. Bosch assentiu, mas sabia que ela não podia vê-lo.
- Bem - disse ele -, obrigado por sua ajuda. Não sei se Irving disse alguma coisa, mas o que complicou Sheehan saiu dos arquivos. Um dos velhos casos. Creio que
ouviu falar disso.
-Na verdade... não. Mas você é bem-vindo, detetive Bosch. Estou curiosa, porém. A respeito de Sheehan. Ele foi seu antigo parceiro...
- É, foi.
- Tudo isto parece plausível? Que ele primeiro matasse Howard e depois se suicidasse? E também àquela mulher no vagão?
- Se me perguntasse isto ontem eu diria que nem em um milhão de anos. Mas hoje sinto que não poderia interpretar a mim mesmo, quanto mais outra pessoa. Temos um
ditado quando não podemos explicar as coisas. A prova é que vale... E deixamos por
conta dela.
Bosch recostou-se no leito e olhou fixo para o teto. Sustentava o telefone no ouvido. Após um longo momento, ela falou:
- Mas é possível que exista outra interpretação da prova?
Ela disse isto lenta e concisamente. Era uma advogada. Escolhia
bem as palavras.
- O que está dizendo, inspetora?
- Agora é só Carla.
- O que está dizendo, Carla? O que está me perguntando?
- Você tem de entender, meu papel é diferente agora. Estou ligada à ética advogado-cliente. Michael Harris é meu cliente agora num processo contra o seu empregador
e vários de seus colegas.
Tenho que cuidar...
- Existe alguma coisa que inocente Sheehan? Algum arquivo
que você reteve antes?
Bosch sentou-se e inclinou-se à frente. Estava de olhos arregalados fitando o nada. Ele era todo interior, tentando se lembrar de algo que Entrenkin retivera no
arquivo estratégico de Elias. Devia haver alguma coisa nele.
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- Não posso responder a...
- O arquivo estratégico - Bosch a cortou, excitado. - Havia alguma coisa lá que confirma isto. É...
Ele parou. O que ela estava sugerindo - ou a sugestão que estava lendo nas palavras dela - não fazia sentido. A arma de serviço de Sheehan tinha sido ligada aos
disparos no Vôo dos Anjos. Havia uma comparação de balística. Três balas do corpo de Howard Elias, três combinações. Fim do argumento, fim do caso. A prova é que
vale.
Este era o fato cru contra o qual ele lutava, embora seu instinto ainda lhe dissesse que Sheehan não se encaixava de jeito algum naquilo, que ele não o teria feito.
Sim, ele teria alegremente dançado sobre o túmulo de Elias, mas não teria posto o advogado naquele túmulo. Havia uma grande diferença. E os instintos de Bosch embora
abandonados à luz dos fatos - eram que Frankie Sheehan, não importa o que tivesse feito com Michael Harris, era ainda um homem bom demais na sua essência para
ter cometido o crime. Ele já havia matado antes, mas não era um assassino. Não daquele jeito.
- Olhe - disse ele. - Não sei o que você sabe ou pensa que sabe, mas tem que me ajudar. Não posso...
- Está aí - disse ela. - Se você tem os arquivos, está aí. Retive alguma coisa que estava determinada a reter. Mas parte disto estava nos arquivos públicos. Se você
procurar, vai encontrar. Não estou dizendo que seu parceiro esteja limpo. Só estou dizendo que existe algo mais nos arquivos que provavelmente deveria ter sido visto.
E não foi.
- E isto é tudo que você vai me contar?
- É tudo que posso lhe contar... embora eu não devesse ter feito isto.
Bosch ficou em silêncio por um momento. Ele não sabia se ficava furioso com ela por não lhe contar especificamente o que sabia, ou simplesmente feliz por ela ter
lhe dado a dica e onde procurar.
- Tudo bem - disse ele por fim. - Se está aqui, vou encontrar.
Capítulo 35
Bosch levou quase duas horas para vasculhar os arquivos do caso Guerreiro Negro. Muitas das pastas ele já havia aberto anteriormente, mas algumas foram examinadas
por Edgar e Rider ou pelos outros do esquadrão que Irving reunira no Vôo dos Anjos há menos de 72 horas. Ele examinou cada arquivo como se nunca o tivesse visto
antes, procurando pela coisa que deixara escapar - o detalhe eficaz, o bumerangue que mudaria sua interpretação de tudo e daria um
novo rumo ao caso.
Esse era o grande problema de dividir um caso - pôr várias equipes investigativas trabalhando nele. Nenhum par de olhos via todas as evidências, todos os indícios
ou mesmo toda a papelada. Tudo era fragmentado. Embora um detetive estivesse nominalmente encarregado, era raro que tudo cruzasse sua tela de radar. Agora Bosch
tinha que se certificar disso.
Descobriu o que acreditava estar procurando - e que Carla lhe sugerira - no arquivo de intimações, na pasta que continha recibos do oficial de justiça. Estes recibos
chegaram ao escritório de Elias após o objeto da intimação ter sido convocado a se apresentar para um depoimento ou como testemunha no tribunal. O arquivo estava
encorpado com os finos formulários. A pilha estava em ordem cronológica de serviço. A primeira metade consistia em intimações para depoimentos datando de vários
meses atrás. A segunda metade
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da pilha consistia em intimações de testemunhas para o julgamento, marcado para começar naquele dia. Estas eram convocações para policiais sendo processados bem
como para outras testemunhas.
Bosch lembrou-se de que Edgar tinha examinado este arquivo
- onde achara a intimação para os recibos do lavajato. Mas aquela descoberta devia ter distraído sua atenção de outras coisas no arquivo. Enquanto Bosch vasculhava
as intimações, outra coisa chamou sua atenção para uma segunda olhada. Era uma intimação para o detetive John Chastain, da DAI. Isto foi surpreendente, pois Chastain
jamais mencionara qualquer envolvimento seu no processo. Chastain chefiara a investigação interna das alegações de Michael Harris e que havia inocentado todos os
detetives da DRH de má conduta, portanto o fato de ele ter sido chamado não era incomum. Seria mais que lógico ele ser convocado como testemunha de defesa dos detetives
acusados de má conduta por Michael Harris. Mas o fato de Chastain não ter contado a ninguém que era uma testemunha intimada pelos queixosos no processo era incomum.
Se isto fosse notório, ele teria sido eliminado da equipe investigativa dos assassinatos do Vôo dos Anjos, pelo mesmo motivo que eliminara os tiras da DRH. Havia
um nítido conflito. A intimação precisava ser explicada. E o interesse de Bosch aumentou quando ele viu que a data do serviço era quinta-feira, um dia antes do assassinato
de Elias. Mas a curiosidade se transformou em suspeita quando Bosch viu o bilhete escrito pelo oficial de justiça ao pé da intimação.
Det. Chastain recusou aceitar intimação. Oficial colocou sob limpador de pára-brisa.
O bilhete deixara bem claro que Chastain não queria tomar a menor parte no caso. E isto transformou a atenção de Bosch num foco aguçado. A cidade poderia ter-se
incendiado desde o estádio dos Dodgers até a praia e ele provavelmente nem teria olhado para a TV agora.
Ele percebeu enquanto olhava para a intimação que ao depoente
- Chastain - tinham sido fornecidas data e hora específicas para comparecer ao tribunal e dar testemunho. Ele folheou as intimações
349
do tribunal e percebeu que estavam colocadas no arquivo em ordem de entrega, não na ordem em que aqueles intimados deveriam aparecer no julgamento. Ele soube então
que, ao colocá-las em ordem segundo as datas e horários, teria a ordem cronológica do caso de Elias e melhor compreensão de como ele planejou o julgamento.
Levou dois minutos para pôr as intimações na ordem adequada. Quando conseguiu, examinou os documentos um por um, fantasiando o decurso do julgamento. O primeiro
a testemunhar seria Michael Harris, que contaria sua história. A seguir viria o capitão John Garwood, chefe da DRH. Ele testemunharia sobre a investigação, dando
a versão passada a limpo. A intimação seguinte era para Chastain. Ele se seguiria a Garwood. Relutantemente - ele tinha tentado recusar a intimação - ele se seguiria
ao capitão da DRH. Por quê?
Bosch pôs a pergunta de lado por enquanto e começou a examinar as outras intimações. Ficou claro que Elias seguia uma antiquíssima estratégia de alternar testemunhas
positivas e negativas. Ele planejava alternar o depoimento dos homens da DRH, os réus, com o de testemunhas que obviamente beneficiariam Michael Harris. Havia Harris,
o médico que tratara seu ouvido, Jenkins Pelfry, o gerente do lavajato, os dois sem-teto que encontraram o corpo de Stacey Kincaid e, finalmente, Kate e Sam Kincaid.
Ficou claro para Bosch que Elias ia atacar o caso da DRH, expor a tortura de Michael Harris e estabelecer sua defesa de não ter feito nada de errado. Depois deixaria
a DRH em péssima situação ao chamar Kate Kincaid para detalhar a ligação com o lavajato e a explicação para as impressões digitais. A seguir, o mais provável seria
a vez de Sam Kincaid. Elias o usaria para expor o site de Charlotte e o horror da jovem vida de Stacey Kincaid. Estava claro que o caso que Elias ia apresentar ao
júri seguiria a mesma linha de investigação que Bosch e sua equipe tinham seguido - que Harris era inocente, que havia uma explicação para suas impressões digitais
e que Sam Kincaid ou alguém ligado a ele e à rede de pedofilia havia matado a garota.
Bosch sabia que era uma boa estratégia. Acreditava que Elias ganharia o caso. Folheou de volta até a frente das intimações. Chastain era o terceiro da lista, colocando-o
na parte positiva da estratégia
350
alternativa, vindo depois de Garwood e antes dos réus da DRH. Ele seria uma testemunha positiva para Elias e Harris, mas já tentara recusar-se a receber
a intimação.
Bosch leu o nome da empresa de serviço de justiça no formulário e ligou para Informações. Era tarde, mas o oficialato de justiça trabalhava nas horas mais inusitadas.
Um homem atendeu e Bosch, lendo da intimação de Chastain, perguntou por Steve Vascik.
- Ele não está aqui esta noite. Está em casa. Bosch se identificou e explicou que estava realizando uma investigação de homicídio e que precisava falar com Vascik
imediatamente. O homem do outro lado da linha relutava em fornecer o número do telefone de Vascik, mas concordou em anotar o número de Bosch e dar o recado ao colega.
Após desligar, Bosch se levantou e ficou andando pela casa. Não estava certo do que tinha. Mas tinha uma sensação de contrações no estômago que freqüentemente o
acometia quando estava à beira de descobrir uma brecha para alguma coisa oculta. Ele confiava no instinto e seu instinto lhe dizia que estava próximo de alguma coisa
que em breve seria capaz de enroscar-se em suas mãos.
O telefone tocou e ele agarrou-o do sofá e empurrou o botão de conectar.
- Sr. Vascik?
- Harry, sou eu.
- Eleanor! Ei, como está você? Está tudo bem?
- Estou ótima. Mas não sou a única numa cidade prestes a pçgar fogo. Estive vendo o noticiário.
- E. A coisa parece feia.
- Lamento que tenha acabado assim, Harry. Você me falou sobre Sheehan uma vez. Sei que vocês eram muito chegados.
Bosch percebeu que ela não sabia que a casa do amigo em que Sheehan se matara era a deles. Decidiu não dizer nada. Também desejou que tivesse serviço de espera de
chamada na sua linha.
- Eleanor, onde você está?
- Voltei a Vegas. - Ela deu uma risada sem humor. - O carro penou para chegar aqui.
- Está no Flamingo?
351
- Não... em outro lugar.
Ela não queria dizer onde estava e isto magoava.
- Tem um número para o qual eu possa ligar para você?
- Não tenho certeza de quanto tempo vou ficar aqui. Só liguei para saber se você está bem.
- Eu? Não se preocupe comigo. Você está bem, Eleanor?
- Estou ótima.
Bosch nem se importava mais com Vascik.
- Precisa de alguma coisa? E quanto ao seu carro?
- Não. Estou ótima. Agora que cheguei aqui não estou mais preocupada com o carro.
Houve um longo momento de silêncio. Bosch ouviu um dos sons eletrônicos que ouvira uma vez alguém chamar de bolhas digitais.
- Bem - disse ele finalmente -, podemos falar sobre isso?
- Não creio que seja uma boa hora. Vamos relfetir por uns dois dias e depois conversamos. Ligo para você, Harry. Tenha cuidado.
- Você promete? Ligar?
- Prometo.
- Certo, Eleanor. Fico esperando.
- Adeus, Harry.
Ela desligou antes que ele pudesse se despedir. Bosch ficou parado ali perto do sofá por um longo tempo, pensando nela e no que havia acontecido com eles.
O telefone tocou ainda em sua mão.
-Sim?
- Detetive Bosch? Recebi um recado para ligar para o senhor.
- Sr. Vascik?
- Sim. Da firma Triple A Process. Meu chefe Shelly disse que...
- Sim, eu liguei.
Bosch sentou-se no sofá e pôs um caderno de notas sobre a coxa. Tirou uma caneta do bolso e escreveu o nome de Vascik no alto de uma folha. Pela voz, Vascik era
jovem e branco. Tinha um pouco de sotaque do Meio-Oeste.
- Quantos anos tem, Steve?
- Estou com vinte e cinco.
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353
- Trabalha aí há muito tempo?
- Alguns meses.
- OK. Na quinta-feira da semana passada você foi entregar uma intimação para um detetive do DPLA chamado John Chastain. Lembra disso?
- Claro. Ele não quis receber. A maioria dos policiais realmente não dá a mínima. Estão acostumados a fazer isto.
- Certo. Era o que eu queria lhe perguntar. O que quer dizer exatamente com ele não querer receber a intimação?
- Bem, da primeira vez em que tentei entregá-la, ele se recusou a receber a intimação e foi embora. Depois quando...
- Espere um minuto, volte atrás. Quando foi a primeira vez? -Na quinta-feira de manhã. Cheguei ao saguão do Parker Center
e pedi ao policial na recepção que ligasse para ele e lhe pedisse para descer. Não falei do que se tratava. No papel dizia que ele era da DAI. Por isso eu disse
apenas que era um cidadão trazendo algo de que ele necessitava. Ele desceu e quando revelei quem eu era ele simplesmente recuou e voltou para o elevador.
- O que está dizendo é que era como se ele soubesse que você trazia uma intimação e até mesmo de que caso era?
- Certo. Exatamente.
Bosch pensou a respeito do que tinha lido no último caderno de notas de Elias. Sua rixa com uma fonte chamada "Parker".
- Muito bem, e depois?
- Bem, então saí e fui fazer outros serviços. Voltei por volta das três e meia e observei o estacionamento dos funcionários do Parker Center. Eu o vi sair para ir
para casa, acho. Cortei caminho por entre alguns carros, meio abaixado, e me adiantei justo quando ele abria a porta do carro. Fiz o meu discurso todo elaborado
e disse que ele estava intimado, mencionando o numero do caso e tudo o mais. Ele ainda assim não pegou o papel, mas aí já não importava, porque pela lei da Califórnia
você...
- Tudo bem, eu sei. Não se pode recusar uma intimação uma vez advertido de que é intimação legal ordenada pelo tribunal. E aí: o que fez ele?
- Bem, primeiro ele me deu um susto. Levou a mão sob o paletó como se fosse sacar sua arma.
-E depois?
- Depois, ele meio que parou. Creio que refletiu sobre o que estava fazendo. Ele relaxou um pouco, mas ainda assim não pegou o papel e me disse para mandar Elias
se foder. Entrou no carro e começou a dar partida. Eu sabia que ele estava intimado, portanto botei o papel debaixo do seu limpador de pára-brisa. Ele saiu com
o carro assim mesmo. Não sei o que aconteceu depois disso. O papel pode ter voado, mas não importa. Ele estava legalmente intimado.
Bosch pensou por um momento enquanto Vascik continuou a falar sobre as complexidades do trabalho de oficial de justiça. Bosch finalmente o interrompeu.
- Sabia que Elias foi morto sexta-feira à noite?
- Sei, claro. Ele era nosso cliente. Fizemos todos os casos dele.
- Bem, em algum momento você pensou em ligar para o departamento depois de ele ter sido morto e contar a alguém sobre este
episódio com Chastain?
- Eu o fiz - respondeu Vascik na defensiva. - Eu liguei.
- Você ligou? Para quem?
- Liguei para o Parker Center e disse que tinha informação. Fui transferido para um setor e disse ao sujeito que atendeu quem eu era e que tinha informação. Ele
anotou meu nome e telefone e disse que alguém me retornaria.
-Ninguém fez isso?
-Não, alguém ligou em coisa de cinco minutos. Talvez menos.
Logo em seguida. E contei a ele.
- Quando foi isto?
- Domingo de manhã. Estive subindo por todo o sábado as ladeiras de Vasquez Rocks. Só soube sobre o sr. Elias depois que li o Times no domingo de manhã.
- Lembra do nome do policial com quem falou?
- Acho que se chamava Edgar, mas não sei se era o seu nome
ou sobrenome.
- E a pessoa que o atendeu da primeira vez? Ela deu um nome?
- Acho que sim, mas esqueci, Mas disse que era agente federal. Então devia ser um cara do FBI.
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- Steve, pense por um minuto. A que horas você deu este telefonema e quando Edgar retornou? Lembra?
Vascik ficou em silêncio enquanto pensava a respeito.
- Bem, só levantei por volta das dez porque minhas pernas estavam me matando de tanto subir ladeira. E então, meio sonolento, li o jornal. Estava na primeira página,
mas provavelmente só a li depois da seção de esportes. E então liguei, talvez por volta das onze, por aí. E depois o tal Edgar ligou de volta quase imediatamente.
- Obrigado, Steve.
Bosch desligou. Sabia que não havia como Edgar ter atendido um telefonema no Parker Center às onze da manhã de domingo. Edgar estivera com ele toda a manhã de domingo
e a maior parte do resto do dia. E eles estavam na estrada, não trabalhando no Parker. Alguém usara o nome do seu parceiro. Um tira. Alguém dentro da investigação
tinha usado o nome de Edgar.
Ele procurou o número do celular de Lindell e ligou. Lindell ainda tinha o aparelho ligado e atendeu.
- É Bosch. Lembra que na manhã de domingo, depois que você e seu pessoal entraram no caso, vocês passaram a maior parte da manhã na sala de reunião com os arquivos?
- Sim, isso mesmo.
- Quem estava atendendo os telefonemas?
- Eu principalmente. E dois dos outros.
- Recebeu a ligação de um cara que disse ser oficial de justiça? -Não me parece estranho. Mas estávamos recebendo um monte
de chamadas aquela manhã. Repórteres e pessoas pensando que sabiam alguma coisa. Gente ameaçando os tiras.
- Um oficial de justiça chamado Vascik. Steve Vascik. Ele disse que tinha uma informação que podia ser importante.
- Como eu disse, não me parece estranho. E quanto a isso, Bosch? Pensei que este caso estava encerrado.
- Está. Só estou verificando umas pontas soltas. Para quem passou o telefonema?
- Passei aquele tipo de ligações... você sabe, informação de rua... para os caras da DAI. Para mantê-los ocupados.
- Para quem passou a do oficial de justiça? <
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- Não sei, provavelmente para Chastaih. Ele era o encarregado daquele grupo. Ele poderia ter atendido ou incumbido um dos outros para ligar de volta. Veja bem, Irving
instalou alguns telefones de merda lá. Não podíamos transferir um para o outro e eu queria a linha principal desimpedida. Assim, anotávamos os números e os passávamos
adiante.
- OK, obrigado, Roy. Tenha uma bela noite.
- Ei, o que...
Bosch desligou antes que tivesse de responder a quaisquer perguntas. Pensou a respeito da informação de Lindell. Ele acreditava que havia uma grande probabilidade
de que a ligação de Vascik tivesse sido encaminhada ao próprio Chastain, que depois a retornou - talvez levando o recado para sua própria sala, buscando privacidade
-, fazendo-se passar por Edgar.
Bosch tinha mais uma ligação a fazer. Abriu seu caderninho de telefones e encontrou um número que não era usado fazia muitos anos. Ligou para a casa do capitão John
Garwood, chefe da DRH. Sabia que era tarde, mas duvidava que muitas pessoas em Los Angeles estivessem dormindo aquela noite. Ele pensou no que Kiz Rider lhe dissera
sobre Garwood: ele a fazia lembrar Boris Karloff e só saía à noite.
Garwood atendeu ao segundo toque.
- Aqui é Harry Bosch. Precisamos conversar. Esta noite.
- Sobre?
- John Chastain e o caso Guerreiro Negro.
- Não quero falar ao telefone.
- Ótimo. Escolha o local.
- Frank Sinatra?
- Me dê meia hora.
- Estarei lá.
Capítulo 36
com o passar do tempo, Frank Sinatra foi apagado. Décadas atrás, quando a Câmara de Comércio de Hollywood pôs a estrela dele na calçada, ela fora colocada na Vine
Street ao invés de no Hollywood Boulevard. A idéia, provavelmente, era de que a estrela de Sinatra servisse de chamariz, que as pessoas desceriam o bulevar para
vêla, tirar fotografias. Mas se o plano era este, não funcionou. Frank estava sozinho num ponto que provavelmente recebia mais hip' pies do que turistas. Sua estrela
estava numa esquina entre dois estacionamentos e junto a um hotel-residência onde era preciso convencer um segurança a abrir a porta do saguão caso se
quisesse entrar.
Quando Bosch estivera na DRH, anos atrás, a estrela de Sinatra tinha sido um ponto de encontro entre os detetives em campo ou entre detetives e seus informantes.
Não foi de surpreender que Bosch e Garwood o sugerissem para seu encontro. Era um meio de se encontrarem em campo neutro.
Quando Bosch chegou à estrela, Garwood já estava lá. Bosch viu o seu Ford LTD sem identificação no estacionamento. Garwood piscou seus faróis. Bosch parou no meio-fio
em frente ao hotel e saltou. Atravessou a Vine Street para o estacionamento e sentou-se no banco do carona. Garwood estava usando um
terno, embora chamado de casa.
Bosch se deu conta de que nunca vira Garwood
357
sem um terno, a gravata sempre apertada, o botão superior da camisa jamais desabotoado. Mais uma vez Bosch pensou no comentário de Rider sobre Boris Karloff.
- Esses carros de merda - disse Garwood, olhando para o bunda-lisa de Bosch do outro lado da rua. - Ouvi dizer que vocês foram emboscados.
- É, não foi brincadeira.
- Bem, o que o traz aqui esta noite, Harry? Como é que você ainda está investigando um caso que o chefe de polícia e todos os demais já encerraram?
- Porque tenho um mau pressentimento, capitão. Há pontas soltas. As coisas podem se desemaranhar quando se tem pontas soltas.
- Você nunca deixa as coisas em paz. Lembro da época em que trabalhou para mim. Você e a porra das suas pontas soltas.
- Então me conte sobre Chastain.
Garwood não disse nada, apenas ficou olhando à frente através do pára-brisa, e Bosch percebeu que seu ex-capitão estava inseguro acerca das coisas.
- Nossa conversa é confidencial, capitão. Como você disse, o caso está encerrado. Mas alguma coisa sobre Chastain e Sheehan me incomoda. Já deve saber que duas noites
atrás Frankie me contou tudo. Sobre como ele e alguns dos seus rapazes pisaram na bola, fizeram coisas com Michael Harris. Ele me confessou que a coisa toda do
Guerreiro Negro era verdade. E então cometi um erro. Disse a ele que eu havia inocentado Harris. Que eu podia provar que ele não tinha seqüestrado aquela garota.
E isto fez Frankie surtar e depois fazer o que fez. Assim, quando eles chegaram hoje e disseram que o teste de balística provava a culpa de Frankie, inclusive no
Vôo dos Anjos, achei melhor ficar na minha para não me aborrecer. Agora já não tenho tanta certeza. Agora quero todas as pontas soltas amarradas e Chastain é uma
delas. Ele foi intimado para o julgamento. Nada incomum quanto a isto... ele conduziu a investigação interna sobre a queixa de Harris. Mas ele estava intimado por
Elias e não nos contou. Tentou também escapar da intimação. E isto torna tudo muito mais estranho. O que me diz que ele não queria estar naquele tribunal. Não queria
estar no banco das testemunhas
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com Elias fazendo-lhe perguntas. Gostaria de saber por quê. Não há nada nos arquivos de Elias, pelo menos nos que tive acesso, que explique isto. Não posso
perguntar a Elias e não quero perguntar a Chastain, ainda. Portanto, estou perguntando a você.
Garwood procurou no bolso e pegou um maço de cigarros. Tirou um e acendeu, depois ofereceu o maço a Bosch.
- Não, obrigado. Continuo resistindo.
- Já decidi que sou um fumante e ponto final. Muito tempo atrás alguém me disse que era uma espécie de carma. A pessoa era fumante ou não era, e não havia nada
que pudesse fazer a respeito. Sabe quem foi?
- Sei, fui eu.
Garwood resfolegou um pouco e sorriu. Deu duas tragadas profundas e o carro se encheu de fumaça. Isto espantou aquela ânsia bem conhecida de Bosch. Lembrava-se de
ter passado o sermão sobre fumo em Garwood anos antes, quando alguém no esquadrão queixou-se sobre a nuvem de fumaça que sempre pairava no ambiente. Ele baixou um
pouco o vidro da janela.
- Desculpe - disse Garwood. - Sei como se sente. Todo mundo fumando e você não pode.
- Não tem problema. Quer falar sobre Chastain ou não? Mais uma tragada.
- Chastain investigou a queixa. Você sabe disso. Antes que Harris pudesse nos processar ele tinha de formular uma queixa. Isto foi para Chastain. Pelo que entendi
na época, ele fez o caso do cara, confirmou tudo. A porra do Rooker tinha um lápis na sua mesa... a ponta estava quebrada e havia sangue no lápis. Ele guardou aquilo
como um suvenir ou algo assim. Chastain confiscou o lápis com um mandado de busca e fez a comparação com o sangue de Harris.
Bosch sacudiu a cabeça, tanto da estupidez quanto da arrogância de Rooker. De todo o departamento.
- E - disse Garwood, parecendo saber o que ele estava pensando. - Assim, a última coisa que ouvi era que Chastain ia pedir punição interna contra Sheehan, Rooker,
os outros dois, e depois ia à promotoria para as acusações criminais. Ele foi com isto até o fim
porque aquele lápis e o sangue eram a prova insofismável. Pelo menos incriminavam Rooker.
- Certo, então o que aconteceu?
- O que aconteceu foi que a próxima coisa que soubemos é que todo mundo estava limpo. Chastain arquivou o caso como sem fundamento.
Bosch assentiu.
- Alguém mexeu os pauzinhos.
- Acertou.
- Quem?
- Meu palpite é Irving. Ou talvez alguém mais acima. O caso era muito explosivo. Se as acusações fossem mantidas e houvesse punições, demissões, acusações da promotoria,
então teríamos uma nova rodada de pauladas sobre o DPLA na imprensa e na zona sul, com Tuggins, Sparks, e em toda parte. Pense, isto foi há um ano. O novo chefe
tinha acabado de assumir. Não seria um bom começo. Portanto, alguém mexeu os pauzinhos. Irving sempre foi o mediador do departamento. Provavelmente foi ele. Mas
para algo assim ele ia precisar da autorização do chefe. É assim que Irving sobrevive. Ele fisga o chefe, depois não pode ser tocado porque conhece os segredos.
Como J. Edgar Hoover e o FBI... mas sem a roupagem, acho.
Bosch assentiu.
- O que acha que aconteceu com aquele lápis com sangue? -
perguntou.
- Quem sabe? Irving provavelmente está usando ele para escrever avaliações de pessoal. Embora eu tenha certeza de que lavou o
sangue.
Ficaram em silêncio por um momento enquanto observavam uma dúzia de jovens caminhando pela Vine Street na direção do bulevar. Eram na maioria brancos. À luz da rua
Bosch pôde ver as tatuagens cobrindo seus braços. Arruaceiros, indo provavelmente para as lojas do bulevar para repetir 1992. Uma rápida lembrança da Frederick's
sendo saqueada passou por sua mente.
O grupo diminuiu o passo ao passar pelo carro de Bosch. Eles avaliaram se valia a pena fazer alguma coisa com o carro de Bosch, depois decidiram que não e seguiram
seu caminho.
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- Foi sorte não termos nos encontrado no seu carro - disse
Garwood.
Bosch não respondeu.
- Este lugar vai pegar fogo esta noite - continuou Garwood. Posso sentir no ar. Pena que a chuva tenha parado.
- Chastain - disse Bosch, voltando ao assunto. - Alguém pôs uma rolha nele. Queixa sem fundamento. Depois Elias entra com seu processo e finalmente intima Chastain.
E Chastain não quer testemunhar. Por quê?
- Talvez ele leve a sério o juramento. Não queria mentir.
- Tem mais coisa aí do que isto.
- Pergunte a ele.
- Elias tinha uma fonte no Parker Center. Um vazadouro. Acho que era Chastain. Não me refiro só a este caso. Estou falando de um vazadouro de longa data... um encanamento
direto para dentro dos registros, tudo. Acho que era Chastain.
- É engraçado. Um tira que odeia tiras. -É.
- Mas se ele era a fonte mais importante de Elias, por que ia ser exposto no tribunal?
Esta era a pergunta para a qual Bosch não tinha nenhuma resposta. Ele ficou em silêncio por um instante, pensando a respeito. Finalmente reuniu os tênues princípios
de uma teoria e a expressou em voz alta.
- Elias não saberia que Chastain tinha sido arrolhado a não ser que o próprio Chastain lhe contasse, certo?
- Certo.
- Então, simplesmente colocando Chastain no banco para ser interrogado a respeito revelaria que ele era sua fonte.
Garwood assentiu.
- Faz sentido - disse ele. - Faz sim.
- Mesmo se Chastain fosse lá e negasse cada pergunta, Elias poderia fazer as perguntas de uma maneira que ainda assim atingiriam o ponto, e neste caso a verdade,
através do júri.
- E também faria um ponto com o Parker Center - disse Garwood. - Chastain ia ser exposto A pergunta
e por que Elias iria
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revelar sua fonte? Alguém que tinha ajudado ele paca ao longo dos anos? Por que ele ia abrir mão disso?
- Porque este caso era o gol de placa de Elias. Aquele que o colocaria no mapa da nação, no Court TV, no Sixty Minutes, no Larry King e tudo mais. Ia ser a sua glória.
Ele estava disposto a queimar sua fonte por isso. Qualquer advogado faria isso.
- Faz sentido, também. Faz sim.
A parte seguinte ficou sem ser dita. Ou seja, o que Chastain faria para evitar ser queimado publicamente no tribunal. Para Bosch a resposta era óbvia. Se ele fosse
exposto não só como a fonte de Elias, mas também como o investigador que comprometeu a investigação interna da queixa de Michael Harris, ele seria vilanizado tanto
dentro quanto fora do departamento. Ficaria sem ter para onde ir e isto seria insuportável para um homem como Chastain, para qualquer homem. Bosch acreditava que
Chastain estaria disposto a matar para evitar que isto acontecesse.
- Obrigado, capitão - disse ele. - Tenho de ir.
- Isto não importa, você sabe. Bosch olhou para ele.
- O quê?
- Não importa. Os informes à imprensa já foram feitos, as entrevistas coletivas realizadas, a história se espalhou e a cidade está pronta para acender o pavio. Você
pensa que as pessoas lá na zona sul se importam com qual foi o policial que matou Elias? Estão cagando e andando. Elas já têm o que querem. Chastain, Sheehan, não
importa. O que interessa é que foi um tira. E se você botar a boca no trombone, isto só vai acrescentar mais lenha à fogueira. Se você desmascarar Chastain, vai
expor o conchavo. Um monte de gente vai ser afetada, perder o emprego, tudo porque eles querem encobrir isto, em primeiro lugar. É melhor você refletir, Harry. Ninguém
se importa.
Bosch assentiu. Ele entendia a mensagem. Ficar na dele para
não se aborrecer.
- Eu me importo.
- Isto é razão suficiente?
- E quanto a Chastain, então?
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Garwood ostentava um débil sorriso. Bosch podia vê-lo por trás do brilho reluzente do seu cigarro.
- Acho que Chastain merece tudo que planta. E algum dia ele vai colher.
Havia agora uma nova mensagem e Bosch achou que também a entendia.
- E quanto a Frankie Sheehan e sua reputação?
- É isso aí - disse Gairwood, balançando a cabeça. - Frankie Sheehan foi um dos meus rapazes... mas ele está morto e sua família não mora mais aqui.
Bosch não disse nada, mas aquela resposta não era aceitável. Sheehan tinha sido seu amigo e parceiro. Macular sua reputação era o mesmo que macular Bosch.
- Sabe o que me incomoda? - perguntou Garwood. - E talvez você seja capaz de me ajudar, já que você e Sheehan foram parceiros.
- O que é que incomoda você?
- A arma que Sheehan usou. Não era a sua, era? Sei que lhe perguntaram isto.
- Não, não era a minha. Frankie passou pela casa dele a caminho da minha. Pegou roupas e coisas. Deve ter pegado a arma lá. O FBI deve ter vacilado quando revistou
a casa dele.
Garwood assentiu.
- Soube que você comunicou à esposa dele. Perguntou a ela sobre isto? Você sabe, sobre a arma.
- Perguntei. Ela disse que não sabia nada sobre qualquer arma, mas isto...
- Sem número de série - disse Garwood, interrompendo. -Uma arma clandestina. Todo mundo sabe que era isto.
- Sim.
- E é isto que incomoda. Eu conhecia Sheehan há muitos anos. Trabalhou para mim por um longo tempo e você tem que conhecer seus rapazes. Eu nunca soube que ele fosse
do tipo capaz de usar uma arma clandestina... perguntei a alguns dos rapazes, em especial àqueles que foram parceiros dele desde que você foi transferido para Hollywood.
E você, Harry, que trabalhou mais tempo com ele: Sheehan alguma vez carregou uma arma extra?
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Isto atingiu Bosch como um soco no queixo. Do tipo em que você tem de ficar perfeitamente imóvel e silencioso e esperar até recuperar lentamente o fôlego. Ele nunca
soube de Sheehan carregar uma arma clandestina em serviço. Era bom demais para isso. E se você fosse bom demais para carregar uma arma assim em serviço, por que
ter uma escondida em casa? Esta pergunta e sua resposta óbvia estiveram o tempo todo bem ali diante dele. Mas ele
deixara escapar.
Bosch lembrou-se de estar sentado em seu carro em frente à casa de Sheehan. Lembrou-se do conjunto de luzes que viu pelo retrovisor e o carro estacionando no meio-fio
lá atrás no quarteirão. Chastain. Ele os havia seguido. Para Chastain, Sheehan vivo era a única ponta solta que poderia causar uma reviravolta.
Pensou no relato de sua vizinha acerca de três a quatro tiros disparados na sua casa. Na sua mente, um suicídio de um policial bêbado era agora assassinato premeditado.
- Filho da puta - sussurrou Bosch.
Garwood assentiu. Tivera sucesso em conduzir Bosch ao rumo aonde evidentemente já estava.
- E agora consegue ver como poderia ter sido feito? - perguntou. Bosch tentou alentecer os pensamentos e deixou que isto lhe
viesse à mente. Finalmente assentiu.
- É, agora vejo.
- Ótimo. vou dar um telefonema. Tenho alguém de plantão no subsolo que vai deixar você dar uma olhada nos registros de entrada. Sem perguntas. Assim você vai ter
certeza.
Bosch assentiu. Abriu a porta, saltou sem nada dizer e começou a voltar para seu carro. Estava correndo antes de chegar lá. Não sabia por quê. Não havia pressa.
Não estava mais chovendo. Só sabia que tinha de continuar se movendo para não gritar.
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Capítulo 37
Do lado de fora do Parker Center havia uma vigília à luz de velas e um cortejo fúnebre. Dois esquifes de cartolina - em um escrito JUSTIÇA, no outro, ESPERANÇA -
estavam sendo carregados pela multidão que marchava para lá e para cá na praça em frente. Outros levavam cartazes que diziam JUSTIÇA PARA TODAS AS CORES e JUSTIÇA
PARA ALGUNS NÃO É JUSTIÇA PARA NINGUÉM. Acima, helicópteros da mídia circulavam e em terra havia pelo menos seis equipes de reportagem que Bosch podia ver. Eram
quase onze horas e todos se preparavam para reportagens ao vivo do protesto.
Na porta da frente uma falange de guardas em uniformes e capacetes blindados posicionava-se para defender a central de polícia se a multidão passasse da manifestação
pacífica para a violência. Em 1992 uma manifestação pacífica tinha se tornado violenta e a turba partiu para o centro destruindo tudo em seu caminho. Bosch apressou-se
na direção das portas do saguão, contornando o cortejo e passando por uma brecha na barreira de defesa humana, após exibir seu distintivo acima da cabeça.
Lá dentro, passou pelo balcão de recepção, com os quatro tiras atrás dele também usando capacetes, e seguiu até o hall dos elevadores e desceu as escadas. Desceu
ao subsolo e depois seguiu o corredor para o centro de estocagem de provas materiais. Ao passsar pela
porta percebeu que não cruzara com vivalma desde o balcão da recepção. O local parecia deserto. Sob o plano de reação de emergência, todo o efetivo do turno A estava
nas ruas.
Bosch olhou através da janela de arame mas não reconheceu o homem de plantão. Era um veterano com um bigode branco num rosto afogueado pelo gim. Eles haviam removido
para o porão uma penca de veteranos alquebrados. Este saltou de sua banqueta e chegou até a tela de arame.
- Como está o tempo lá fora? Não temos nenhuma janela aqui.
- O tempo? Parcialmente nublado com possibilidade de distúrbio.
- Já imaginava. Tuggins ainda está com o seu bando lá fora?
- Continuam lá.
- Essa gentalha. Imagino como eles iam gostar se não houvesse polícia. Aí iam ver como é viver na selva.
- Não é a posição deles. Eles querem polícia. Só não querem tiras assassinos. Não se pode culpar ninguém por isto.
- É, mas bem que certa gente precisa ser morta.
Bosch não teve nada a replicar a isto. Nem mesmo sabia por que estava perdendo tempo com o velho. Olhou para o crachá dele. Dizia HOWDY [Salve] e Bosch quase riu.
Alguma coisa acerca de ver aquele nome inesperado aliviou a tensão e a raiva que o tinham retorcido toda a noite.
- Que se foda. Este é o meu nome.
- Desculpe, não estou rindo dele... é uma outra coisa.
- Claro.
Howdy apontou por sobre o ombro de Bosch para um pequeno balcão com formulários e lápis amarrados a cordões.
- Se quiser alguma coisa, tem de preencher o formulário com o número do caso.
- Não sei qual o número do caso.
- Bem, devemos ter dois milhões de casos aqui. Por que não tenta uma adivinhação?
- Quero ver os registros. O homem assentiu.
- Certo. Você é o cara que veio a mando dê Garwood?
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- Isso mesmo.
- Por que não disse logo?
Bosch não respondeu. Howdy esticou o braço debaixo da janela para um lugar que Bosch não podia ver. Trouxe uma prancheta e a colocou na fenda abaixo da tela de arame.
- Até que data você quer olhar? - perguntou ele.
- Não tenho certeza - disse Bosch. - Acho que até uns dois dias atrás.
- Tem uma semana aqui. São todas as saídas. Você quer as saídas, não as entradas, certo?
- Certo.
Bosch carregou a prancheta para o balcão de formulário, de modo a poder olhar sem Howdy ficar observando o que estava fazendo. Descobriu o que estava procurando
na página de cima. Chastain havia consultado uma caixa de prova material às sete daquela manhã. Bosch pegou um dos formulários de saída e um lápis e começou a preenchê-lo.
Ele notou enquanto escrevia que o lápis era um Guerreiro Negro n2 2, a primeira escolha do DPLA.
Ele levou a prancheta e o formulário de volta à janela e deslizou-os através da fenda.
- Esta caixa talvez ainda esteja no carrinho de retorno - disse ele. - Acabou de ser consultada esta manhã.
- Não, já está de volta no lugar. Nós comandamos um barco ordeiro... - ele olhou para o formulário e o nome que Bosch tinha escrito - ... Detetive Amigável.
Bosch assentiu e sorriu.
- Sei o que vocês fazem.
Howdy se afastou e subiu num carrinho de golfe. Depois o dirigiu para as entranhas da enorme sala de estocagem. Não demorou nem três minutos e o carrinho surgiu
de volta e Howdy o estacionou. Ele trouxe uma caixa cor-de-rosa lacrada com fita, destrancou a janela com tela de arame e passou-a para Bosch.
- Detetive Amigável, ha? Eles mandam vocês percorrerem as escolas para falar com a garotada, aconselhá-los a dizer não às drogas e ficar longe das gangues, merdas
desse tipo?
- Mais ou menos isso.
367
Howdy piscou para Bosch e fechou a janela. Bosch levou a caixa até um dos cubículos isolados com divisórias de modo a poder examinar seu conteúdo com privacidade.
A caixa continha provas materiais de um caso encerrado, a investigação da morte a tiros de Wilbert Dobbs cinco anos atrás pelo detetive Francis Sheehan. Estava lacrada
por fita crepe nova, tendo acabado de ser consultada aquela manhã. Bosch usou um pequeno canivete que levava no seu chaveiro para cortar a fita e abrir a caixa.
O processo de romper o lacre da caixa na verdade consumiu mais tempo do que ele levou para encontrar o que estava procurando dentro dela.
Bosch abriu caminho entre a multidão de manifestantes como se eles não estivessem mais lá. Ele não os via nem ouvia suas palavras de ordem Sem justiça não há
paz.
Alguns deles gritaram insultos diretamente para Bosch, mas ele tampouco os ouviu. Sabia que não se consegue justiça carregando um cartaz ou um caixão de cartolina.
Ela é conquistada ao se ficar ao lado dos justos, ao se desviar daquele rumo. E ele sabia que a verdadeira justiça era cega para todas as cores exceto uma: a cor
do sangue.
Bosch abriu sua pasta após entrar no carro e vasculhou a papelada até encontrar a folha de convocação que tinha juntado no sábado de manhã. Ele ligou para o pager
de Chastain e digitou o número do seu celular. Ficou então sentado no carro por cinco minutos, esperando a passeata de protesto. Enquanto observava, várias equipes
de TV irromperam de suas posições e se apressaram com seu equipamento em direção aos furgões. Bosch percebeu que os helicópteros já tinham ido embora. Sentou-se
ereto no assento. Seu relógio marcava 10:50. Ele sabia que se a mídia se retirava toda de uma vez, e antes de fazer suas transmissões, então era porque algo devia
estar acontecendo - alguma coisa grande. Ele ligou o rádio, que já estava sintonizado na KFWB, e pegou pelo meio uma reportagem transmitida numa voz urgente e trêmula.
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-... fora do caminhão, depois a pancadaria começou. Vários passantes tentaram impedir o ataque, mas logo foram obrigados a recuar pela multidão de jovens enfurecidos.
Os bombeiros foram atacados e retirados dali por grupos pequenos. Estavam sendo agredidos, até que um pelotão das unidades do DPLA tomou de assalto o cruzamento
e resgatou as vítimas, que foram levadas até as viaturas de polícia e, depois, retiradas para receber atendimento médico,
provavelmente no Daniel Freeman Hospital, que fica perto daqui. O carro dos bombeiros deixado para trás foi tomado pelas chamas, impedindo que a multidão conseguisse
virá-lo. A polícia rapidamente estabeleceu um perímetro na área e acalmou a situação. Enquanto alguns dos manifestantes eram presos, vários escaparam para as vizinhanças
residenciais ao longo do Normandie
Boul...
O celular de Bosch começou a tocar. Ele desligou o rádio e atendeu.
- Bosch falando.
- Aqui é Chastain. O que você quer?
Bosch pôde ouvir várias vozes e chiado de rádio ao fundo. Chastain não estava em casa.
- Onde você está? Precisamos conversar.
- Não esta noite. Estou de serviço. Doze por doze, lembra-se?
- Onde você está?
- Na maravilhosa área sul de Los Angeles.
- Está no turno A? Pensei que todos os detetives estivessem no turno B.
- Todos exceto os da DAI. Pegamos a roubada... turno da noite. Ouça, Bosch, eu adoraria falar sobre a escala, mas...
- Onde está? vou encontrar você aí.
Bosch deu partida no motor e começou a dar ré da sua vaga.
- Estou na 77.
- Estou a caminho. Me encontre na porta em quinze minutos.
- Esqueça isso, Bosch. Estou atolado. Estou num processo de detenção e ouvi dizer que estão trazendo uma dúzia de marginais que atacaram um carro de bombeiros, pelo
amor de Deus! Os bombeiros estavam tentando apagar um incêndio na própria vizinhança
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deles, e esses animais vão atrás deles. vou te contar, é foda acreditar numa coisa dessas.
- Isto nunca é acreditável. Esteja na porta em quinze minutos,
Chastain.
- Você não está me ouvindo, Bosch. As coisas estão virando um inferno lá fora e o batalhão de choque está prestes a intervir. Não tenho tempo para conversar. Tenho
de estar pronto para pôr gente em cana. Você quer que eu fique parado à porta, servindo de alvo para algum arruaceiro com uma arma? Do que se trata, Bosch?
- Frank Sheehan.
- O quê sobre ele?
- Quinze minutos. Esteja lá, Chastain, ou vou atrás de você.
Não vai querer isso, vai?
Chastain começou novo protesto, mas Bosch desligou.
Capítulo 38
Bosch levou 25 minutos para chegar à delegacia da rua 77. Atrasou-se porque a via expressa 110 tinha sido fechada em todas as direções pela patrulha rodoviária.
A via expressa era um caminho do centro para a área de South Bay, passando diretamente pela zona sul de Los Angeles. No último distúrbio, franco-atiradores tinham
disparado em carros de passagem, e blocos de concreto foram jogados das passarelas de pedestres sobre os veículos abaixo. A patrulha rodoviária não estava assumindo
quaisquer riscos. Motoristas eram aconselhados a fazer a rota alternativa da via expressa de Santa Monica, pegando a via expressa de San Diego e depois para o sul.
Levaria o dobro do tempo, porém era mais seguro do que uma corrida através da esperada zona de guerra.
Bosch pegou ruas secundárias por todo o caminho. Quase todas estavam desertas, e ele raramente foi parado por sinais fechados. Era como dirigir por uma cidade-fantasma.
Ele sabia que havia pontos críticos de saques e incêndios criminosos, mas nunca passou por eles. Pensou sobre o quadro que a mídia estava projetando em comparação
ao que estava vendo, A maioria das pessoas estava dentro de casa, trancada e esperando que tudo passasse. Eram as pessoas de bem esperando fora da tempestade, de
olhos fixos na TV e imaginando se era realmente sua cidade que estava sendo mostrada em chamas.
371
A porta da delegacia 77 também estava estranhamente deserta quando Bosch finalmente saltou. Um ônibus da academia de polícia havia estacionado no caminho de entrada
como uma barreira contra tiros e outros ataques. Mas não havia manifestantes nem policiais. Quando Bosch estacionou no meio-fio de "proibido estacionar" em frente,
Chastain saiu de trás do ônibus e se aproximou. Estava uniformizado, sua arma num coldre de quadril. Bosh baixou o vidro da janela quando ele se aproximou.
- Por onde andou, Bosch? Você disse quin...
- Eu sei o que eu disse. Entre.
- Não, Bosch. Não vou a lugar nenhum com você até me dizer que diabo está fazendo aqui. Estou de serviço, lembra?
- Quero falar sobre Sheehan e o exame de balística. Sobre o caso Wilbert Dobbs.
Ele notou que Chastain recuou um leve passo do carro. Mencionar Dobbs tinha assestado um golpe. Bosch notou a fita de atirador de elite debaixo do distintivo de
Chastain.
-Não sei do que está falando, mas o caso Sheehan está encerrado. Ele está morto, Elias está morto. Todo mundo está morto. E isso aí. Agora temos essa coisa... toda
a cidade se partindo de novo.
- E quem é o culpado disso? Chastain o fitou, tentando interpretá-lo.
- Você não diz coisa com coisa, Bosch. Precisa dormir. Todos nós precisamos.
Bosch abriu a porta e saltou. Chastain recuou mais um passo e levou a mão direita um pouco acima até enganchar o polegar no cinto, próximo à arma. Havia regras não
escritas de confronto, e esta era uma delas. Bosch estava agora pisando em terreno mortal. Ele entendeu isto. Estava pronto.
Bosch voltou-se e fechou a porta do carro. Enquanto os olhos de Chastain seguiam involuntariamente este movimento, Bosch levou a mão com rapidez ao coldre de ombro
e sacou sua pistola. Ele a tinha apontada para Chastain antes que o detetive da DAI esboçasse qualquer movimento.
- Muito bem, vamos fazer da sua maneira. Ponha as mãos no teto do carro.
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- Que diabo você...
- PONHA AS MÃOS SOBRE O CARRO! Chastain ergueu as mãos.
- OK, tudo bem... vamos com calma, Bosch.
Ele moveu-se até o carro e pôs as mãos sobre o teto. Bosch veio por trás e tomou-lhe a arma do coldre. Recuou e a pôs no seu próprio coldre.
- Acho que não preciso revistá-lo por uma arma extra. Você já usou a sua em Frankie Sheehan, não é?
- O quê? Não faço idéia do que você está falando.
- Tudo bem.
Mantendo a mão direita pressionada contra as costas de Chastain, Bosch tomou as algemas do cinto dele. Puxou para trás um dos braços de Chastain e algemou seu pulso.
Ele então puxou o outro braço e completou o trabalho.
Bosch o fez contornar o carro e sentou-o no banco de trás, oposto ao lado do motorista. Depois assumiu o volante. Tirou a pistola de Chastain do seu coldre, guardou-a
na pasta e devolveu sua própria arma ao coldre. Bosch ajustou o espelho retrovisor de modo a poder ver rapidamente Chastain num relance e acionou o botão que
impedia a abertura das portas traseiras pelo lado de dentro.
- Vai ficar exatamente aí onde eu possa vê-lo. O tempo todo.
- Não fode! Que porra você pensa que está fazendo? Aonde está me levando?
Bosch pôs o carro em movimento e afastou-se do posto policial. Seguiu para oeste, onde poderia dobrar ao norte na Normandie. Levou quase cinco minutos para responder
à pergunta de Chastain.
- Vamos para o Parker Center - disse ele. - Quando chegarmos lá, você vai me contar sobre as mortes de Howard Elias, Catalina Perez... e Frankie Sheehan.
Bosch sentia raiva e a bile subia-lhe à garganta. Pensou a respeito de uma das mensagens não ditas que recebera de Garwood. Ele queria a justiça das ruas e, no momento,
Bosch também queria isto.
- Ótimo, vamos voltar atrás - disse Chastain. - Mas você não sabe do que está falando. Está dizendo merda! O caso está ENCERRADO, Bosch. Conviva com isto.
373
Bosch começou a recitar a lista de direitos constitucionais contra auto-incriminação e depois perguntou a Chastain se havia entendido.
- Não fode.
Bosch prosseguiu vigorosamente, olhando pelo retrovisor a cada poucos segundos:
- Tudo bem, você é um tira. Nenhum juiz do mundo diria que você não entendeu seus direitos.
Ele esperou um momento e examinou seu prisioneiro pelo espelho uma última vez antes de prosseguir.
- Você era a fonte de Elias. Por todos estes anos você foi o cara que deu a ele tudo de que precisava em qualquer caso que assumia. Você...
- Errado.
-... vendia o departamento, a mais baixa das baixezas, Chastain. Não foi assim que você chamou isto antes? A mais baixa das baixezas? Isto é o que você foi, cara,
uma escória, o fundo do poço... um filho da puta.
Bosch viu bloqueios da polícia à frente. Duzentos metros além delas viu luzes azuis piscantes e fogo. Percebeu que estavam seguindo na direção onde os bombeiros
tinham sido atacados e seu carro incendiado.
Ao chegar aos bloqueios, Bosch dobrou à direita e começou a procurar o norte a cada cruzamento por que passava. Estava fora do seu elemento aqui. Jamais trabalhara
em missões em qualquer das divisões do departamento no South Central e não conhecia bem o território geográfico. Sabia que poderia se perder caso se afastasse demais
da Normandie. Não deu nenhuma indicação disso quando olhou mais uma vez para Chastain pelo retrovisor.
- Você quer falar comigo, Chastain? Ou prefere representar?
- Não há nada para falar. Aproveite seus últimos momentos preciosos com um distintivo. O que está fazendo aqui é puro suicídio. Tal como seu parceiro, Sheehan.
Você está se matando, Bosch.
Bosch pisou no freio e guinou para uma parada. Ele sacou a arma e, inclinando-se sobre o assento, apontou-a para o rosto de Chastain.
- O que você disse? ...
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Chastain pareceu genuinamente assustado. Acreditava claramente que Bosch estava à beira de perder a cabeça. ,
- Nada, Bosch, nada. Apenas dirija. Vamos para o Parker esclarecer tudo isto de uma vez.
Bosch deixou-se cair lentamente para o assento e repôs o carro em movimento. Depois de quatro quarteirões virou de novo para o norte, esperando correr paralelo ao
ponto de distúrbios e retornar à Normandie depois que estivessem desimpedidos.
- Acabo de vir do subsolo do Parker - disse Bosch. Relanceou pelo espelho para ver se algo tinha mudado no rosto de Chastain. Não tinha.
- Requisitei o pacote de Wilbert Dobbs. E vi o registro de saída. Você requisitou o pacote esta manhã e tirou as balas. Você tirou as balas da arma de serviço de
Sheehan, as balas que mataram Dobbs cinco anos atrás, e passou três delas para a balística dizendo que eram as balas da autópsia de Howard Elias. Você o empurrou
para o abismo. Mas foi você quem caiu, Chastain.
Ele olhou pelo retrovisor. O rosto de Chastain tinha mudado. As notícias que Bosch acabava de dar o atingiram no rosto como o lado plano de uma pá.
- Você matou Elias - disse, achando difícil desviar os olhos do retrovisor para concentrar-se na estrada. - Ele ia pôr você no banco das testemunhas. Ia perguntar
sobre os verdadeiros achados da sua investigação porque tinha sido informado por você sobre eles. Só que o caso era grande demais. Ele sabia o quanto poderia subir
com ele e você tornou-se dispensável. Ele ia queimar você a fim de ganhar o caso... Você o perdeu, acho. Ou talvez você sempre tivesse sangue-frio. Mas na sexta
à noite você o seguiu e, quando ele embarcava no Vôo dos Anjos, deu o bote. Matou-o. E depois olhou para cima e viu a mulher. Merda, imagino como isto deve tê-lo
chocado. Afinal, o vagão supostamente estaria vazio. Mas havia Catalina Perez naquele banco e você teve que matá-la também. Como estou me saindo, Chastain? Estou
contando a história direito?
Chastain não respondeu. Bosch chegou a uma esquina, diminuiu a velocidade e olhou à esquerda. Pôde ver abaixo a área iluminada
V
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que era Normandie. Não viu barricadas nem luzes azuis. Dobrou à esquerda e seguiu este caminho.
- Você deu sorte - continuou. - O caso Dobbs se adequava à perfeição. Você deparou com a ameaça de Sheehan nos arquivos e tirou-a de lá. Já tinha o seu otário.
Uma pequena pesquisa sobre o caso e algumas manobras aqui e ali e conseguiu manipular a autópsia. Isto lhe forneceu as balas, e tudo que teve de fazer foi substituí-las.
Claro que as marcas de identificação do legista seriam diferentes, mas tal discrepância só viria à tona se houvesse um julgamento, e se levassem Sheehan a julgamento.
- Cale-se, Bosch! Não quero ouvir mais nada. Eu não...
- Não me importa o que você queira ouvir ou não! Você vai ouvir isto, escória. Este é Frankie Sheehan falando com você do túmulo. Compreende isto? Você tinha de
pôr a culpa em Sheehan, mas não funcionaria se Sheehan fosse a julgamento. Porque o legista iria testemunhar e diria: "Esperem aí, companheiros, as marcas nessas
balas não são as minhas. Houve uma troca." Portanto, você não tinha escolha. Matou Sheehan também. Você nos seguiu a noite passada. Vi os seus faróis. Você nos seguiu
e depois matou Sheehan. Fez parecer como um suicídio de bêbado: um monte de cervejas, um monte de tiros. Mas eu sei o que você fez. Meteu uma bala nele, depois deu
mais dois tiros com a mão dele em torno da arma. Fez tudo certinho, Chastain. Mas está se desfazendo agora.
Bosch sentiu a raiva dominá-lo. Alcançou o retrovisor e desviou-o, de modo a não ter que olhar para o rosto de Chastain. Estavam chegando à Normandie agora. O cruzamento
estava desimpedido.
- Conheço a história - continuou Bosch. - Conheço-a. Tenho somente uma pergunta. Por que foi informante de Elias todos esses anos? Ele pagava você? Ou você simplesmente
odeia tanto os policiais a ponto de acusar todos eles por qualquer meio que possa encontrar?
Novamente não veio resposta do banco de trás. Ao parar no sinal, Bosch olhou à esquerda e pôde ver de novo as luzes azuis e as chamas. Eles haviam circundado o perímetro
policial. As barricadas começavam um bloqueio e ele calcou o pé no freio e deu uma olha-
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da. Pôde ver uma fileira de viaturas por trás das barricadas. Havia uma loj a de bebidas na esquina com as vitrines estilhaçadas e pedaços pontiagudos de vidro
ainda pendendo das molduras. Do lado de fora o chão estava repleto de garrafas quebradas e outros destroços deixados pelos saqueadores.
- Está vendo lá, Chastain? Tudo aquilo? Você...
- Bosch...
- ... fez aquilo. Aquilo... *
- ... você não foi longe o bastante!
- ... é tudo culpa sua.
Percebendo o medo na voz de Chastain, Bosch começou a dobrar à sua direita. Naquele instante o pára-brisa se estilhaçou quando um naco de concreto o atravessou e
foi bater no banco. Através do vidro que caía Bosch viu a multidão avançando em direção ao carro. Rapazes com faces escuras furiosas, suas individualidades perdidas
dentro da turba. Ele viu uma garrafa voando para o carro. Viu-a tão claramente e com aparentemente tanto tempo que pôde até mesmo ler o rótulo: Southern Confort.
Sua mente começou a registrar algum tipo de humor ou ironia nisto.
A garrafa atravessou a abertura e estourou no volante, enviando uma chuva de vidro e líquido no rosto e olhos de Bosch. Suas mãos involuntariamente largaram o volante
para ele se proteger tarde demais. Seus olhos começaram a arder por causa do álcool. Ouviu Chastain começar a gritar do banco de trás:
- FORA DAQUÍ! FORA DAQUI.'
E então houve mais duas explosões de vidro quando outras janelas do carro foram estilhaçadas por mísseis de alguma espécie. Houve uma pancada na janela do seu lado
e o carro começou a se sacudir violentamente para a esquerda. Ouviu alguém puxando a maçaneta da porta e mais vidro se estilhaçando à sua volta. Ouviu os gritos
lá fora, os sons raivosos e ininteligíveis da turba. E ouvia também os gritos de Chastain no banco traseiro. Mãos o agarraram através das janelas sem vidro, puxando-o
pelos cabelos e roupas. Bosch afundou o pé no acelerador e girou o volante para a esquerda enquanto o carro arremeda à frente. Lutando contra os instintos involuntários
de seus olhos para ficarem fechados, ele conseguiu
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abri-los o suficiente para permitir uma pequena fatia de visão borrada e dolorosa. O carro pulou nas pistas desertas daNormandie e ele seguiu na direção das barricadas,
onde sabia que ficaria em segurança. Manteve a mão na buzina por todo o percurso e quando chegou às barricadas colidiu contra elas e só então pisou no freio. O carro
deu uma rabeada e parou.
Bosch fechou os olhos e não se moveu. Ouviu passos e gritos, mas sabia que eram policiais desta vez. Estava salvo. Abriu sua porta e rapidamente várias mãos o ajudaram
a saltar, enquanto vozes da raça azul o reconfortavam.
- Você está bem, cara? Precisa de paramédicos?
- Meus olhos.
- OK, fique parado. Traremos alguém aqui. Fique encostado
no carro.
Bosch ouviu enquanto um policial berrava ordens em um megafone, anunciando que tinha um colega ferido precisando de cuidados médicos urgentes. Bosch nunca se sentiu
mais seguro do que naquele momento. Queria agradecer a cada um dos seus salvadores. Sentia-se tranqüilo e ainda assim atordoado por alguma razão; como das vezes
em que emergira são e salvo dos túneis no Vietnã. Levou de novo as mãos ao rosto e tentou abrir um dos olhos. Sentiu sangue escorrendo pelo cavalete do nariz. Soube
que estava vivo.
- É melhor não mexer nisto, cara, não está parecendo muito
bom - disse uma voz.
- O que estava fazendo lá sozinho? - perguntou outra voz. Bosch conseguiu abrir o olho esquerdo e viu um jovem patrulhei-
ro negro parado à sua frente. Um patrulheiro branco estava parado à
direita.
- Eu não estava sozinho.
Ele se abaixou e olhou para o assento traseiro do carro. Estava vazio. Olhou para o dianteiro e estava vazio também. Chastain se fora. A pasta de Bosch se fora.
Ele se empertigou e olhou rua abaixo para a turba. Ergueu o braço e limpou o sangue e o álcool dos seus olhos para enxergar melhor. Havia quinze ou vinte homens
lá, todos reunidos num grupo compacto, todos olhando para o interior do que era o centro da massa ondulante que formavam. Bosch pôde
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ver movimentos de violência, pernas chutando, punhos se erguendo e depois baixando fora de visão e para o centro da turba.
- Jesus Cristo! - gritou o patrulheiro perto dele. - Aquele é um dos nossos? Eles pegaram um dos nossos?
Ele não esperou pela resposta de Bosch. Pegou o megafone e rapidamente pediu todas as unidades disponíveis para socorrer outro policial. Sua voz era frenética, infectada
pelo horror do que estava vendo a um quarteijão de distância. Os dois policiais correram então para suas viaturas e os veículos dispararam pela rua na direção da
turba.
Bosch limitou-se a observar. E logo a turba mudou sua forma. O objeto de sua atenção não estava mais no solo, mas erguido, trazido para cima. Bosch pôde ver o corpo
de Chastain erguido acima das cabeças deles e exibido como um troféu sendo passado pelas mãos dos vitoriosos. Sua camisa estava rasgada e sem o distintivo, os braços
ainda presos pelas algemas. Um sapato e a meia tinham sumido e seu pé cor de marfim se destacava como o osso branco de uma fratura exposta. Era difícil dizer da
distância em que se encontrava, mas Bosch achou que os olhos de Chastain estavam abertos e pôde ver que a boca estava escancarada. Bosch ouviu o início de um silvo
agudo que imaginou fosse o som da sirene de uma das viaturas correndo para o resgate. Depois se deu conta de que era Chastain gritando, pouco antes de descer de
volta para o centro da turba e sumir de vista.
Capítulo 39
Bosch observou das barricadas enquanto um pelotão de patrulheiros inundava a esquina e tentava capturar membros da gangue. U corpo de Chastain permanecia esparramado
na rua como um saco de lavanderia caído de um caminhão. Os policiais o haviam examinado e depois o largado ali quando constataram que era tarde dema1S para salvá-lo.
Logo os helicópteros da mídia pairavam acima e paramédicos chegaram para atender Bosch. Ele tinha laceraçoes no osso do nariz e a sobrancelha esquerda precisou de
limpeza e alguns pontos, mas ele recusou-se a ir para o hospital. Os paramédicos retiraram os cacos de vidro e fecharam os ferimentos com ataduras. Depois o deixaram
em paz.
Bosch passou o tempo seguinte - não tinha certeza de quanto - vagueando por trás das barricadas até que um tenente patrulheiro finalmente o procurou e disse que
ele teria de retornar à 77a para ser entrevistado mais tarde pelos detetives encarregados da investigação. O tenente disse que dois patrulheiros o levariam Bosch
assentiu meio entorpecido e o tenente começou a darordenspedindoporumaviatura.Boschreparounalojasaquea-
da do outro lado da rua e por trás do tenente. O letreiro em neon verde dizia BEBIDAS DA SORTE. Bosch disse que estaria pronto em um minuto. Ele se afastou do tenente,
atravessou a rua e entrou na loja.
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A loja era comprida e estreita e antes daquela noite tivera três alas de mercadorias. Mas as gôndolas tinham sido esvaziadas e derrubadas pelos saqueadores. O entulho
no chão tinha 30 cm de altura na maioria dos lugares e o cheiro de bebida derramada impregnava a loja. Bosch caminhou com cuidado até o balcão, que não tinha nada
em cima senão os anéis de plástico retirados de embalagens de meia dúzia de cerveja. Ele se espichou para olhar atrás do balcão e quase soltou um grito ,ao ver o
pequeno asiático sentado no chão, seus j oelhos encolhidos contra o peito e enlaçados pelos braços.
Fitaram-se por um longo momento. Todo o lado direito do rosto do homem estava inchando e ganhando cor. Bosch imaginou que havia levado uma garrafada. Acenou para
o homem mas não obteve resposta.
- Está bem?
O homem assentiu sem olhar para Bosch. -" - Quer os paramédicos? Ele fez que não com a cabeça.
- Levaram todos os cigarros?
O homem não respondeu. Bosch se espichou mais e olhou debaixo do balcão. Viu a caixa registradora - a gaveta aberta - caída no chão. Havia sacolas e carteirinhas
de fósforos espalhadas por toda parte. E pacotes de cigarro vazios também. Colocando seu corpo sobre o balcão, ele pôde esticar o braço e vasculhar através do entulho.
Mas sua caça por um cigarro foi infrutífera.
- Aqui.
Bosch ergueu os olhos para o homem sentado no chão, que tirava um maço de Gameis do bolso. Ele sacudiu o maço e estendeu-o, o último cigarro se projetando.
- Não, amigo, é o seu último. Está tudo bem.
- Não, é seu.
- Tem certeza?
- Por favor.
Bosch pegou o cigarro e assentiu. Esticou o braço até p chão e pegou uma caixa de fósforos.
- Obrigado.
Ele acenou de novo para o homem e deixou a loja.
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Lá fora, Bosch pôs o cigarro na boca e sugou o ar, provando-o. Saboreando-o. Abriu a caixa de fósforos, acendeu o cigarro, tragou profundamente até a fumaça encher
seus pulmões e a manteve lá.
- Foda-se - disse.
Exalou e observou a fumaça desaparecer. Fechou a caixa de fósforos e olhou para ela. Um lado dizia BEBIDAS DA SORTE e no outro estava escrito FÓSFOROS DA SORTE.
Abriu de novo a capa e leu a sorte impressa no interior, acima das cabeças vermelhas dos fósforos.
FELIZ É O HOMEM QUE ENCONTRA REFÚGIO EM SI MESMO
Bosch fechou a caixa de fósforos e a pôs no bolso. Sentiu alguma coisa lá e a pegou. Era o saquinho de arroz de seu casamento. Ele o jogou para cima e depois pegou-o
de volta no ar. Apertou-o com força e depois o colocou de volta no bolso.
Ele olhou através das barricadas para a esquina onde o corpo de Chastain agora estava encoberto por uma das viaturas. Um isolamento tinha sido feito no interior
do isolamento mais amplo e uma investigação da morte estava começando.
Bosch pensou em Chastain e no terror que deve ter sentido no final, quando foi arrebatado pelas mãos do ódio. Ele entendia aquele terror mas não sentia nenhuma simpatia.
Aquelas mãos tinham começado a alcançá-lo muito tempo atrás.
Um helicóptero desceu do céu escuro e pousou na Normandie. Portas se abriram de ambos os lados e o subchefe Irving e o capitão John Garwood desceram, prontos para
assumir o controle e dirigir a investigação. Caminharam rapidamente até os policiais junto ao corpo. O deslocamento de ar do helicóptero soprara uma aba da capa
de cima do corpo. Bosch pôde ver o rosto de Chastain olhando fixamente para o céu. Um policial se adiantou e tornou a cobri-lo. Irving e Garwood estavam a pelo menos
cinqüenta metros de distância de Bosch, mas pareciam saber da sua presença e, ao mesmo tempo, ambos olharam na direção dele. Bosch olhou para trás e não sustentou
o olhar deles. Garwood, ainda no seu terno impecável,
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gesticulou para Bosch com sua mão segurando um cigarro. Havia um sorriso conhecedor em sua face. Irving por fim focalizou sua atenção na capa amarela para
onde estava caminhando. Bosch conhecia a partitura. O mediador estava encarregado agora. Sabia como ele manipularia o caso e qual seria a história oficial. Chastain
se tornaria um mártir do departamento: arrancado de uma viatura da polícia por uma turba, algemado e espancado até a morte, seu assassinato justificando o que quer
que tivesse acontecido nas mãos da polícia esta noite. De uma maneira não falada, ele se tomaria a troca
- Chastain por Elias. Sua morte - transmitida dos abutres mecânicos acima - seria usada para encerrar o distúrbio antes que começasse.
Bosch sabia que seria cooptado e que Irving teria sucesso. Porque detinha a única coisa que restava a Bosch, a única que ainda lhe importava. O seu emprego. Ele
sabia que Irving iria barganhar o emprego pelo seu silêncio. E ele sabia que aceitaria o emprego.
Capítulo 40
Os pensamentos de Bosch continuavam retornando àquele momento no carro em que ficara cego e sentira as mãos tentando agarrá-lo. Em meio ao terror, uma calma lúcida
baixara sobre ele, e descobriu-se quase acalentando o momento. Pois ele se sentira estranhamente em paz. Naquele momento havia descoberto uma verdade essencial.
De alguma forma sabia que seria poupado, que o homem justo estava além do alcance do caído.
Pensou em Chastain e seu grito final, um gemido tão alto e horrível a ponto de ser quase inumano. Era o som dos anjos caídos em seu vôo para o inferno. Bosch soube que nunca se permitiria esquecer aquilo.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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