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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS TRÊS ESTIGMAS DE PALMER ELDRITCH / P. K. Dick
OS TRÊS ESTIGMAS DE PALMER ELDRITCH / P. K. Dick

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quero dizer que, afinal de contas, todos reconhecemos que somos feitos apenas de pó. Sabe-se que não é lá grande coisa, mas não devemos esquecer esse fato. Ainda considerando-se que isto seja uma espécie de mau começo, não estamos indo tão mal assim. De modo que, pessoalmente, acredito que, mesmo nesta situação deprimente que ora enfrentamos, podemos ter sucesso. Entenderam bem o que eu disse?
— Extraído de um audiomemo que circulou entre os consultores da Perky Pat Layouts, Inc., num pré-lançamento, ditado por Leo Bulero imediatamente após sua volta de Marte.

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COM A cabeça doendo horrivelmente, Barney Mayerson acordou e descobriu que estava num quarto desconhecido, num prédio de apartamentos desconhecido. Ao seu lado, com as cobertas puxadas até os ombros nus e macios, dormia uma moça desconhecida, respirando levemente pela boca e seus cabelos pareciam uma cascata de algodão branco.
Aposto que estou atrasado para o trabalho, pensou. Deslizou para fora da cama, aprumou-se vacilante, com os olhos fechados, fazendo força para não vomitar. Tanto quanto sabia, estava a horas de distância de seu escritório, talvez nem mesmo nos Estados Unidos. Estava na Terra, porém: a gravidade que lhe fazia a cabeça girar era conhecida e normal.
No cômodo vizinho, junto ao sofá, viu a valise conhecida de seu psiquiatra, o doutor Smile.
Descalço, foi até a sala de estar e sentou-se junto à valise. Abriu-a, apertou botões ligando para o doutor Smile. Mostradores começaram a se movimentar e o mecanismo zumbiu.
— Onde é que eu estou? — perguntou Barney à valise. — E a que distância estou de Nova Iorque?
Este era o ponto mais importante. Nesse momento, notou um relógio na parede da cozinha do apartamento. Marcava 7:30h da manhã. Não estava de modo algum atrasado.
O mecanismo, que era uma extensão portátil do doutor Smile, ligado por microrrelé ao computador instalado no subsolo do próprio prédio de apartamentos de Barney em Nova Iorque, o famoso 33, respondeu com voz metálica:
— Ah, senhor Bayerson!
— Mayerson — corrigiu Barney, alisando os cabelos com os dedos trêmulos. — De que é que você se lembra da noite passada? — Nesse momento, com grande repugnância física, viu as garrafas meio vazias de bourbon e água mineral com gás, fatias de limão, bitters , os baldes de gelo na bancada da cozinha. — Quem é essa moça?
— A moça que está na cama — respondeu o doutor Smile — é a senhorita Rondinella Fugate, Roni, como ela pediu que você a chamasse.
Aquilo parecia vagamente familiar e, o que era estranho, ligado de alguma maneira a seu trabalho.
— Escute aqui — disse, dirigindo-se à valise, mas nesse momento a moça no quarto começou a se mexer.
Imediatamente, desligou o doutor Smile e levantou-se, sentindo-se encabulado e sem jeito só com as roupas de baixo.
— Já acordou? — perguntou sonolenta a moça. Afastou as cobertas e sentou-se, de frente para ele. Muito bonita, pensou ele, olhos grandes e expressivos. — Que horas são, o bule de café já está no fogo?
Barney foi até a cozinha, apertou um botão, e o fogão começou a esquentar a água para o café. Enquanto esperava, ouviu o ruído de uma porta se fechando. Água correndo. Roni estava tomando um banho de chuveiro.
Voltando à sala de estar, tornou a ligar para o doutor Smile.
— O que é que ela tem a ver com a P.P. Layouts? — perguntou.
— A senhorita Fugate é sua nova assistente. Chegou ontem da República Popular da China, onde trabalhava para a P.P. Layouts como consultora de pré-lançamentos para aquela região. A senhorita Fugate, porém, embora talentosa, é muito inexperiente. O senhor Bulero chegou à conclusão de que um curto período como sua assistente, eu diria, "sob você", mas isso poderia ser mal interpretado, considerando...
— Ótimo — comentou Barney. Voltou ao quarto e achou suas roupas. Haviam sido lançadas numa pilha, sem dúvida por ele mesmo, no chão do quarto. Começou a vestir-se, com cuidado. Sentia-se ainda horrivelmente mal e continuava a fazer um grande esforço para não entregar os pontos e vomitar. — Muito bem — disse ao doutor Smile, voltando à sala de estar, abotoando a camisa. — Lembro-me do memo de sexta-feira sobre a senhorita Fugate. O talento dela é instável. Escolheu mal aquele item na série de amostras visuais da guerra civil americana... Você não acreditaria, porém ela pensou que seria um sucesso absoluto na China. — Riu em voz alta.
Abriu-se uma fresta da porta do banheiro. Barney teve um vislumbre de Roni, rosada, macia, asseada, secando-se.
— Você me chamou, querido?
— Não — respondeu ele. — Estava falando com meu médico.
— Todo mundo comete erros — disse o doutor Smile, um pouco aereamente.
— Como foi que ela e eu... — começou Barney. Fez um gesto para o banheiro. — Em tão pouco tempo?
— Química — explicou o doutor Smile.
— Ora, vamos.
— Bem, vocês dois são precogs. Previram que, no fim, acabariam se gostando, se tornariam eroticamente envolvidos. De modo que os dois resolveram — depois de alguns drinques — por que isso deveria esperar? "A vida é curta, a arte é..."
A valise calou-se porque Roni Fugate saíra do banheiro, nua, passara por ela e Barney e voltara ao quarto. Possuía corpo esguio, ereto, um porte realmente soberbo, notou Barney, e seios pequenos e empinados, com bicos não maiores do que ervilhas rosadas, combinando. Ou melhor, pérolas rosadas combinando, corrigiu-se.
— Ontem à noite — disse Roni Fugate — eu quis perguntar a você... Por que é que você está consultando um psiquiatra? E, meu Deus, leva essa coisa a toda parte. Não a largou nem uma vez... e deixou-a ligada até... — ergueu uma sobrancelha e fitou-o, curiosa.
— Pelo menos, desliguei-a nessa ocasião — observou Barney.
— Você acha que eu sou bonita?
Erguendo-se nas pontas dos pés, foi fazendo um alongamento, ergueu os braços acima da cabeça e em seguida, para espanto dele, iniciou uma movimentada série de exercícios, saltitando e pulando, com os seios balançando.
— Claro que acho — murmurou ele atônito.
— Eu pesaria uma tonelada — arquejou Roni Fugate — se não fizesse estes exercícios marciais todas as manhãs. Sirva o café, sim, querido?
— Você é mesmo minha nova assistente na P.P. Layouts? — perguntou Barney.
— Sou, claro. Você quer dizer que não se lembra? Mas eu acho que você é como muitos dos precogs realmente superiores: vêem o futuro tão bem que têm apenas uma vaga recordação do passado. De que é que você realmente se lembra quanto à noite passada? — Interrompeu os exercícios e respirou fundo para recuperar o fôlego.
— Ah — respondeu ele em tom vago — acho que de tudo.
— Escute aqui. A única razão para você andar carregando um psiquiatra de um lado para o outro é que deve ter recebido seu aviso de convocação. Certo?
Após uma pausa, ele confirmou com um aceno. Disso ele se lembrava. O comprido e conhecido envelope azul-esverdeado chegara uma semana antes. Na quarta-feira seguinte faria seu exame de sanidade mental no hospital militar da ONU, no Bronx.
— E ajudou? Ele deu um jeito...? — fez um gesto para a valise — Conseguiu que você ficasse suficientemente biruta?
Virando-se para a extensão portátil do doutor Smile, Barney perguntou:
— Conseguiu?
A valise respondeu:
— Infelizmente, o senhor continua ainda muito viável, senhor Mayerson. Pode agüentar 10 freuds de tensão. Lamento muito. Mas temos ainda vários dias. Apenas começamos.
Entrando no quarto, Roni Fugate pegou a roupa de baixo e começou a enfiar-se nela.
— Imagine só — disse ela, pensativamente. — Se o senhor for convocado, senhor Mayerson, e enviado às colônias... talvez eu fique com seu emprego.
Sorriu, mostrando dentes soberbos, regulares.
Aquilo era uma triste possibilidade. E, nesse particular, não o ajudou sua capacidade precognitiva: o resultado encontrava-se, na verdade, em perfeito equilíbrio, na balança de futuras causas e efeitos.
— Você não conseguirá dar conta de meu trabalho — retrucou ele. — Não conseguiu nem mesmo fazer isso na República Popular da China, e aquilo foi uma situação relativamente simples, no sentido de lidar com dados elementares.
Mas algum dia ela conseguiria. Sem dificuldade, previa isso. Ela era jovem e rica em potencialidades. Para igualar-se a ele — que era o melhor do ramo — tudo o que precisava era de alguns anos de experiência. Nesse momento, ele acordou inteiramente, enquanto lhe voltava a consciência da situação em que se encontrava. Havia forte possibilidade de que fosse convocado e, mesmo que não fosse, Roni Fugate podia muito bem surrupiar-lhe o ótimo e desejável emprego, para o qual se preparara em lentas etapas durante treze anos.
Uma solução peculiar para a gravidade da situação era a de ter ido para a cama com ela A si mesmo perguntou-se como chegara a isto.
Inclinando-se para a valise, falou em voz baixa ao doutor Smile:
— Eu gostaria que você me dissesse por que diabo, com a situação tão difícil assim, eu resolvi...
— Isso eu posso responder — gritou Roni Fugate do quarto. Vestira um suéter verde-claro meio apertado e, nesse momento, abotoava-o em frente ao espelho da penteadeira. — Você me disse na noite passada, depois de seu quinto bourbon com água. Você disse... — interrompeu-se, com os olhos brilhando. — É deselegante. O que você disse foi: "Se não pode derrotá-los, junte-se a eles." Apenas, o verbo que você usou, lamento dizer, não foi "junte-se".
— Hummmm — disse Barney, e dirigiu-se à cozinha para tomar uma xícara de café.
De qualquer modo não estava longe de Nova Iorque. Evidentemente, se a senhorita Fugate era colega na P.P. Layouts, ele se encontrava a uma distância razoável de seu emprego. Poderiam ir juntos. Encantador. Perguntou-se se o patrão de ambos, Leo Bulero, aprovaria aquela situação, se soubesse. Haveria alguma norma oficial da companhia a respeito de empregados dormirem juntos? Havia normas a respeito de praticamente tudo... embora ele não pudesse compreender como um homem que passava todo seu tempo em praias de veraneio da Antártida e em clínicas alemãs de terapia pudesse arranjar tempo para formular diretrizes sobre todos os assuntos.
Algum dia, pensou, vou viver como Leo Bulero, em vez de ficar sufocado na cidade de Nova Iorque, num calor de 80 graus.
Abaixo de seus pés, começou uma pulsação e o assoalho vibrou. Entrara em funcionamento o sistema de ar condicionado do prédio. Começara o dia.
Do outro lado da janela da cozinha, o sol quente, hostil, tomava forma atrás dos demais prédios de apartamentos que lhe eram visíveis. Fechou os olhos para proteger-se do fulgor. Vai ser outro dia de calor de rachar, que chegará provavelmente até a marca de 20 wagners. Não precisava ser um precog para antever isso.

No CONDOMÍNIO de número miseravelmente alto, 492, nos subúrbios de Marilyn Monroe, em Nova Jersey, Richard Hnatt comia com indiferença o desjejum, enquanto, com algo mais do que indiferença, considerava as condições do tempo do dia anterior nas informações do jornal da manhã.
A principal geleira, a velha Ol' Skintop, recuara 4,62 grables nas últimas 24 horas. E a temperatura ao meio-dia em Nova Iorque excedera em 1,46 wagners a do dia anterior. Além disso, a umidade, à medida que os oceanos se evaporavam, subira em 16 selkirks. De modo que as coisas estavam mais quentes e mais úmidas. A grande procissão da natureza continuava em sua barulhenta marcha, dirigindo-se... para onde? Empurrou o jornal para longe e apanhou a correspondência que fora entregue antes do amanhecer...' Já se passara algum tempo desde que os carteiros haviam saído para fazer a entrega durante as horas do dia.
A primeira conta que lhe chamou a atenção foi a roubalheira da taxa rateada de esfriamento do lugar onde morava. Devia ao condomínio 492 exatamente dez e meia peles, referentes ao mês anterior: ou um aumento de três quartos de pele em relação a abril. Algum dia, disse a si mesmo, vai fazer tanto calor que coisa alguma evitará que este prédio se derreta todo. Lembrou-se do dia em que sua coleção de discos se fundira e se transformara num bloco sólido, lá por volta de '04, devido a um enguiço momentâneo na rede de esfriamento do prédio. Agora, possuía fitas de oxido de ferro. Elas não se derretiam. Naquela ocasião, todos os periquitos e aves venusianas existentes no prédio haviam caído mortos. E a tartaruga do vizinho cozinhara na própria casca. Claro, aquilo acontecera durante o dia e todo mundo — pelo menos os homens — estava fora, trabalhando. As mulheres, contudo, haviam-se reunido no último andar do subsolo (lembrava-se de que Emily lhe contara isso), pensando que, finalmente, chegara o momento fatal. E não seria dentro de um século a partir daquele momento, mas naquele momento. As previsões da Caltech estavam erradas... Apenas, claro, não estavam. Fora apenas um cabo quebrado que vinha da usina de N.I. Operários-robôs haviam aparecido rapidamente e consertado o defeito.
Na sala de estar, usando o robe azul, sua mulher pintava laboriosamente uma peça de cerâmica não vitrificada, aplicando verniz. Com a língua de fora, os olhos dela brilhavam... O pincel era passado com habilidade e ele já antevia que dali sairia uma boa peça. Vendo Emily trabalhando, lembrou-se da tarefa que o aguardava naquele dia e que não encarava com prazer algum.
— Talvez a gente devesse esperar um pouco, antes de procurá-lo — disse, mal-humorado.
Sem erguer a vista, Emily respondeu:
— Nunca teremos uma melhor amostra para apresentar a ele do que agora
— E se ele disser que não?
— Continuaremos. O que é que você pensa? Que vamos desistir porque meu ex-marido não consegue prever — ou não quer prever — o sucesso que estas novas peças terão finalmente, em termos de mercado?
— Você é que o conhece. Eu, não — retrucou Richard Hnatt. — Ele não é vingativo, é? Você acha que ele é capaz de guardar rancor?
E, afinal de contas, que tipo de raiva o ex-marido de Emily poderia guardar? Ninguém fizera mal algum a ele. Se alguma coisa acontecera, foi justamente o contrário, ou pelo menos era o que deduzia do que Emily lhe contara.
Era estranho ouvir falar de Barney Mayerson o tempo todo e nunca o ter encontrado, jamais ter mantido qualquer contato direto com aquele homem. Mas essa situação ia acabar, porque tinha hora marcada, às 19 h, no escritório dele na P.P. Layouts. Mayerson, claro, estaria por cima. Poderia lançar um curto olhar ao mostruário de cerâmicas e recusá-las na hora. Não, ele diria que a P.P. Layouts não estava absolutamente interessada em nada daquilo. Pode acreditar na minha capacidade precognitiva, em meu talento e habilidade de comercialização de pré-sucessos. E Richard Hnatt voltaria para a rua, com a coleção de vasos nas mãos e sem nenhum lugar para ir.
Olhando pela janela, notou aborrecido que o dia já se tornara quente demais para a capacidade de suportar de um ser humano. As calçadas rolantes haviam-se esvaziado de repente, enquanto todos corriam em busca de abrigo. Eram 8:30h e tinha que sair. Levantando-se, foi até o armário do corredor pegar o capacete isolante e o protetor de esfriamento, de uso obrigatório. De acordo com a lei, esse protetor tinha que estar afivelado às costas de todos os transeuntes até o anoitecer.
— Adeus — disse para a mulher, parando à porta da frente.
— Adeus e muita sorte para você.
Ela se absorvera ainda mais no complicado trabalho de envernizamento. De repente, compreendeu como aquilo mostrava a tensão dela. Não podia parar, nem mesmo por um instante. Abriu a porta e saiu para o corredor, sentindo o vento frio da unidade portátil, trabalhando colada às suas costas.
— Ah... — disse Emily, no momento em que ele ia fechar a porta. Nesse instante, ergueu a cabeça , afastando dos olhos os longos cabelos castanhos. — Videofone logo que sair do escritório de Barney, logo que souber a resposta, qualquer que seja.
— Certo — respondeu ele, e fechou a porta.
Ao pé da rampa, no banco do prédio, abriu o cofre de aluguel e levou a gaveta para uma sala privativa, onde retirou o mostruário contendo as peças de cerâmica que iria mostrar a Mayerson.
Pouco depois, encontrava-se num carro de intercomunicação, termoisolado, que circulava entre os prédios, a caminho do centro da cidade de Nova Iorque e da P. P. Layouts Representações, o grande e claro edifício de cimento sintético, onde Perky Pat e todas as unidades de seu mundo de miniatura se originavam. A boneca, refletiu, que conquistara o homem na mesma ocasião em que o homem conquistara os planetas do sistema solar. Perky Pat era a obsessão dos colonos. Que comentário sobre a vida colonial... O que mais uma pessoa precisa saber sobre aqueles infelizes que, de acordo com as leis de serviço seletivo das Nações Unidas, haviam sido expulsos da Terra, com ordem de iniciar nova e estranha vida em Marte, Vênus, Ganimedes ou onde quer que os burocratas das Nações Unidas imaginassem que eles podiam ser depositados e... de certo modo, sobreviver?
E nós pensamos que as coisas são ruins por aqui, disse a si mesmo.
O indivíduo sentado a seu lado, um homem de meia-idade, usando o capacete isolante cinzento, a camisa sem mangas e a bermuda de cor vermelho-viva, comuns na classe dos homens de negócios, observou:
— Hoje vai ser outro dia de um calor daqueles.
— Vai mesmo.
— O que é que o senhor leva aí nessa grande caixa de papelão? Uma cesta de piquenique para algum alojamento de colonos marcianos?
— Cerâmica — respondeu Hnatt.
— Aposto que o senhor as vitrifica simplesmente deixando-as ao ar livre ao meio-dia. — O homem de negócios soltou uma risadinha, pegou o matutino e abriu-o na primeira página. — Diz aqui que uma astronave de fora do sistema solar fez um pouso de emergência em Plutão — leu o homem. — Um grupo está sendo enviado para localizá-la. O senhor acha que são coisas! Não consigo agüentar essas coisas de outros sistemas estelares.
— É mais provável que seja uma de nossas próprias astronaves voltando — sugeriu Hnatt.
— Já viu uma coisa de Próxima?
— Só fotos.
— Horripilantes — comentou o homem de negócios. — Se encontrarem aquela astronave acidentada em Plutão, e for uma coisa, tomara que a destruam com lasers. Afinal de contas, temos uma lei contra a entrada delas em nosso sistema.
— Isso mesmo.
— Posso ver suas cerâmicas? Eu trabalho com gravatas. A gravata viva, simulada-artesanal Werner, numa grande variedade de cores titanianas... Estou usando uma delas, está vendo? As cores são, na verdade, uma forma de vida primitiva, que importamos e cultivamos em plantações aqui na Terra. A maneira exata como as induzimos a se reproduzirem é segredo comercial, sabia? Exatamente como a fórmula da Coca-Cola.
— Por motivo análogo — retrucou Hnatt — não posso lhe mostrar essas cerâmicas, por mais que queira. São novas. Vou mostrá-las a um precog de pré-sucesso da P.P. Layouts. Se ele quiser miniaturizá-las para os acessórios da Perky, estamos feitos. E simplesmente uma questão de mandar a informação ao disc jockey da P.P. — qual é o nome dele? — que está em órbita em torno de Marte. E assim por diante.
— As gravatas artesanais Werner fazem parte da coleção de Perky Pat — informou-o homem. — O namorado dela, Walt, tem um guarda-roupa cheio dessas gravatas — continuou, radiante. — Quando a P.P. Layouts resolveu miniaturizar nossas gravatas...
— Foi com Barney Mayerson que o senhor conversou?
— Eu não conversei com ele. Quem fez isso foi nosso gerente regional de vendas. Dizem que esse Mayerson é um tipo difícil. Age segundo o que parece um impulso e, logo que decide, o que resolveu é irreversível.
— Ele se engana algumas vezes? Recusa itens que se tornam moda?
— Claro. Ele pode ser um precog, mas é apenas humano. Eu lhe digo uma coisa, que talvez ajude. Ele é muito desconfiado de mulheres. O casamento dele acabou há uns dois anos e ele nunca conseguiu se recuperar do trauma. Entenda, a mulher dele ficou grávida duas vezes e a junta de diretores do condomínio dele, acho que é um 33, reuniu-se e votou pela expulsão de ambos, porque haviam violado o código do prédio. Bem, o senhor sabe o que é um 33, sabe como é difícil ser aceito como morador num prédio de numeração tão baixa assim. De modo que, em vez de desistir do apartamento, ele resolveu divorciar-se e mandá-la embora, levando o filho de ambos. Mais tarde, evidentemente chegou à conclusão de que cometera um erro e ficou amargurado. Culpou-se, naturalmente, por ter cometido um erro desses. Mas um erro natural. O que o senhor e eu não daríamos para ter um apartamento num 33 ou mesmo num 34? Ele nunca mais se casou. Talvez seja um neocristão. Mas, de qualquer modo, quando tentar lhe vender a cerâmica, tome todo cuidado com a maneira de abordar o ângulo feminino. Não diga "elas agradarão às mulheres", ou coisas assim. A maioria dos itens de retalho é comprada por...
— Obrigado pela dica — disse Hnatt, levantando-se do assento. Carregando a caixa de cerâmica, desceu o corredor em direção à saída. Suspirou. Ia ser difícil, possivelmente irrealizável. Não poderia derrotar circunstâncias que haviam ocorrido tanto tempo antes de seu relacionamento com Emily e os vasos que ela fabricava, e essa era a situação.
Por sorte, conseguiu pegar um táxi. Enquanto era levado pelo tráfego do centro da cidade, começou a ler seu próprio matutino, especialmente a notícia principal, sobre a astronave que se acreditava ter voltado de Próxima, mas apenas para cair nos ermos gelados de Plutão... e que eufemismo chamar aquilo de ermo! Já se conjeturava que a nave talvez fosse a do conhecido industrial interplanetário Palmer Eldritch, que seguira para o sistema de Prox uma década antes, a convite do Conselho de Prox, de tipos humanóides. Queriam que ele modernizasse suas fábricas automáticas, de acordo com os princípios terráqueos. Desde então, nenhuma notícia fora ouvida sobre Eldritch. E, agora, isso.
Provavelmente, seria melhor para a Terra se não fosse Eldritch voltando, concluiu. Palmer Eldritch era um profissional solitário, maluco e ousado demais. Realizara milagres implantando fábricas automáticas nos planetas-colônias, mas, como sempre, fora excessivamente longe, havia planejado demais. Bens de consumo haviam-se empilhado nos lugares os mais estranhos, onde não havia colonos para usá-los, transformando-se em montanhas de sucata, enquanto as condições climáticas corroía-os aos poucos, inexoravelmente. Tempestades de neve, se alguém pudesse acreditar que elas ainda existissem em algum lugar... Havia lugares onde fazia realmente frio. Frio demais, para dizer a verdade.
— Seu destino, eminência — informou o táxi automático, parando diante do grande edifício, embora na maior parte subterrâneo, da P.P. Layouts, com acessos confortáveis para os empregados pelas muitas rampas, dotadas de isolamento térmico.
Pagou o táxi, saltou para a rua e correu por um pequeno espaço aberto em direção a uma rampa, segurando a caixa com ambas as mãos. Por um instante, a luz dardejante do sol tocou-o e ele sentiu — ou imaginou — que estava sendo frito, assado como se fosse um sapo, drenado de todos os fluidos vitais, pensou, quando chegou em segurança à rampa.
Pouco depois, já no subsolo, foi introduzido no escritório de Mayerson por uma recepcionista. As salas, frias e na penumbra, convidavam-no à relaxação. Empertigou-se e, embora não fosse neo-cristão, murmurou uma longa prece.
— Senhor Mayerson — a recepcionista, mais alta do que Hnatt e impressionante em seu vestido de corpinho aberto e saltos afilados, dirigiu-se não a ele, Hnatt, mas ao homem que se encontrava sentado à escrivaninha — este é o senhor Hnatt — disse a Mayerson. — Senhor Hnatt, este é o senhor Mayerson. — Atrás de Mayerson, ele viu uma moça usando suéter verde-claro, com cabelos inteiramente brancos. Os cabelos eram compridos demais e o suéter apertado demais. — Esta é a senhorita Fugate, senhor Hnatt. Assistente do senhor Mayerson. Senhorita Fugate, este é o senhor Richard Hnatt.
A escrivaninha, Barney Mayerson continuou a estudar um documento, sem atentar para a presença de pessoa alguma. Richard Hnatt esperou em silêncio, experimentando uma série de emoções variadas: a raiva apoderou-se dele e alojou-se em sua traquéia e no peito e, naturalmente, a angústia, mas depois, como que sobrepujando-as, um laivo de curiosidade crescente. Então esse era o ex-marido de Emily, o qual, a se dar crédito ao vendedor de gravatas, ainda remoia triste e amargamente o arrependimento de ter acabado seu casamento. Mayerson era um homem bastante corpulento, já nos fins da casa dos 30, com cabelos — o que não estava lá muito em moda — inusitadamente soltos e ondulados. Parecia entediado, mas não demonstrava sinais de hostilidade. Porém, talvez não soubesse ainda...
— Vejamos seus vasos — disse subitamente Mayerson. Colocando o mostruário sobre a escrivaninha, Richard Hnatt abriu-o e tirou, uma após outra, as peças de cerâmica, colocando-as em ordem. Depois, recuou um passo.
Após uma pausa, Barney Mayerson disse:
— Não.
— Não? — repetiu Hnatt. — Não, o quê?
— Não servirão — disse Mayerson. Apanhou o documento e voltou a lê-lo.
— O senhor quer dizer que já resolveu, tão rápido assim? — perguntou Hnatt, incapaz de acreditar que tudo já acabara.
— Exatamente assim — concordou Mayerson.
Não sentia mais interesse pela cerâmica. Quanto a Hnatt, já devia ter guardado seus vasos e ido embora.
— Desculpe-me, senhor Mayerson — disse a senhorita. Fugate. Erguendo a vista para ela, Barney Mayerson perguntou:
— O que é?
— Sinto muito dizer isso, senhor Mayerson — disse a senhorita Fugate. Aproximou-se dos vasos, pegou um deles e segurou-o com as duas mãos, sopesando-o, alisando a superfície vitrificada. — Mas estou sentindo uma impressão inteiramente diferente da sua. Acho que essas peças de cerâmica servirão.
Hnatt olhou para um e para outro.
— Deixe-me ver esse aí. — Mayerson apontou para um vaso cinzento-escuro. Imediatamente, Hnatt entregou-lhe a peça. Mayerson segurou-a durante um momento. — Não — disse finalmente, agora com as sobrancelhas franzidas. — Ainda não sinto a impressão de que esta mercadoria terá sucesso. Na minha opinião, está enganada, senhorita Fugate. — Repôs o vaso na mesa. — Contudo — disse, dirigindo-se a Richard Hnatt — , tendo em vista a discordância de impressões entre mim e a senhorita Fugate... — cocou pensativo o nariz — deixe o mostruário comigo durante alguns dias. Vou examiná-lo com mais atenção. Estava claro, porém, que não ia fazer isso.
Estendendo a mão, a senhorita Fugate apanhou uma peça pequena, de forma estranha, e aninhou-a no seio, quase ternamente.
— Esta, em particular. Recebo dela emanações muito fortes. Esta será a mais bem-sucedida de todas.
Com a voz tranqüila, Barney Mayerson disse:
— Você perdeu o juízo, Roni. — Nesse instante, parecia realmente zangado, fisionomia crispada e sombria. — Eu lhe videofonarei — disse a Richard Hnatt. — Quando tiver chegado a uma decisão final. Não vejo motivo para mudar de idéia, de modo que não fique otimista. Na verdade, não se preocupe em deixar aqui suas peças.
E lançou um olhar duro e irado à assistente, senhorita Fugate.

Dois
EM SEU gabinete, às dez horas daquela manhã, Leo Bulero, presidente do Conselho de Administração da P.P. Layouts, recebeu uma videochamada — que estivera esperando — da Vigilância Legal Triplanetária, uma agência de detetives particulares. Contratara os serviços da agência minutos depois de saber do pouso forçado em Plutão da nave de intersistemas que voltava de Prox.
Escutou displicentemente a mensagem porque, a despeito da momentosa notícia, estava preocupado com outras coisas.
Era pura idiotice, em vista do fato da P.P. Layouts pagar um tributo anual enorme às Nações Unidas, mas, idiotice ou não, uma nave de guerra da Divisão de Controle de Entorpecentes da ONU capturara um carregamento completo de Can-D, valendo quase um milhão de peles, perto da calota polar norte de Marte, que fora trazido das plantações fortemente guardadas de Vênus. Evidentemente, o dinheiro da extorsão não estava chegando às pessoas certas na complicada hierarquia da ONU.
Mas não havia coisa alguma que pudesse fazer a esse respeito. A ONU era uma mônada sem janelas, sobre a qual não exercia influência.
Sem dificuldade, percebia as intenções da Divisão de Controle de Entorpecentes. Queria que a P.P. Layouts iniciasse um processo judicial para recuperar a carga. Porque esse fato revelaria que a droga ilegal Can-D, mastigada por tantos colonos, era cultivada, processada e distribuída por uma subsidiária clandestina da P.P. Layouts. De modo que, por mais valiosa que fosse a carga, melhor seria dá-la como perdida do que tentar recuperá-la.
— As conjeturas do jornal domiciliar estavam certas — dizia nesse momento, na tela, Felix Blau, chefe da agência de detetives. — É mesmo Palmer Eldritch, e parece que ele está vivo, embora muito ferido. Sabemos que uma nave de linha da ONU o está levando para um hospital de base, cuja localização, claro, não foi divulgada.
— Hummmm — murmurou Leo Bulero, balançando a cabeça.
— Contudo, quanto ao que Eldritch descobriu no sistema de Prox...
— Você nunca descobrirá isso — disse Leo. — Eldritch não dirá coisa alguma e tudo terminará aí.
— Um fato de interesse — continuou Blau — foi comunicado. A bordo da nave, Eldritch tinha — ainda tem — uma cultura cuidadosamente conservada de um líquen muito parecido com o titaniano do qual é derivada a Can-D. Eu pensei que, em vista da... — Blau interrompeu-se, diplomaticamente.
— Há alguma maneira de destruir essas culturas de liquens? Foi uma reação instintiva.
— Infelizmente, os empregados de Eldritch já chegaram aos destroços da nave. Indubitavelmente, resistiriam a esforços nesse sentido. — Blau pareceu concordar. — Poderíamos, naturalmente, tentar... não uma solução de força, mas talvez pudéssemos entrar usando suborno.
— Tente — ordenou Leo, embora achasse que aquilo era, sem dúvida alguma, um desperdício de tempo e esforço. — Não há uma lei, aquele importante decreto da ONU, contra a importação de formas de vida de outros sistemas? — Seria realmente de grande utilidade se o pessoal militar da ONU pudesse ser induzido a bombardear os destroços da nave de Eldritch. No bloco de anotações, rabiscou um memorando para si mesmo: chame os advogados, apresente queixa a ONU contra a importação de liquens alienígenas. — Eu lhe falo depois — disse a Blau, e desligou. — Talvez eu me queixe diretamente — resolveu. Apertou um botão no intercomunicador e deu instruções à secretária: — Ligue-me com a ONU, alto escalão, em Nova Iorque. Chame o secretário Hepburn-Gilbert, pessoalmente.
Logo depois, foi completada a ligação com o matreiro político indiano que, no ano anterior, se tornara secretário da ONU.
— Ah, senhor Bulero — disse Hepburn-Gilbert, sorrindo astuciosamente. — Se deseja queixar-se do confisco daquele carregamento de Can-D que...
— Eu não sei de coisa alguma a respeito de carregamento de Can-D — cortou-o Leo. — Esta ligação diz respeito a um assunto inteiramente diferente. Vocês aí compreendem o que Palmer Eldritch está pretendendo fazer? Ele trouxe para nosso sistema líquens que não pertencem ao sistema do Sol. Isso poderia ser o começo de uma nova praga, como a que tivemos em '98.
— Compreendemos isso. Contudo, o pessoal de Eldritch está alegando que é um líquen de nosso sistema, que o senhor Eldritch levou em sua viagem a Prox e que estava trazendo de volta... Dizem que, para ele, era uma fonte de proteínas. — Os dentes brancos do indiano faiscaram em zombeteira superioridade. O tolo pretexto divertia-o.
— O senhor acredita nisso?
— Claro que não. — Abriu-se ainda mais o sorriso de Hepburn-Gilbert. — Qual é o seu interesse nesse assunto, senhor Bulero? O senhor tem algum interesse, ahn, especial por líquens?
— Eu sou um cidadão do sistema solar, dotado de espírito público. E insisto em que o senhor tome providências.
— Estamos tomando — retrucou Hepburn-Gilbert. — Fizemos indagações... Designamos um funcionário, o senhor Lark — o senhor o conhece — para esta missão. Compreendeu?
A conversa arrastou-se até uma conclusão frustradora e Leo Bulero finalmente desligou, furioso com os políticos. Eles davam um jeito de tomar medidas rigorosas quando se tratava dele, mas, no que dizia respeito a Palmer Eldritch... Ah, senhor Bulero, disse para si mesmo, imitando o interlocutor de minutos antes, isso, senhor, é um assunto inteiramente diferente.
Realmente, conhecia Lark. Ned Lark era o diretor da Divisão de Entorpecentes da ONU e o homem responsável pela apreensão do último carregamento de Can-D. Fora um estratagema do secretário da ONU trazer Lark para aquela discussão a respeito de Eldritch. O que a ONU estava pretendendo era chegar a um qüiproquó. Protelaria, não tomaria providência alguma contra Eldritch, a menos e até que ele, Leo Bulero, fizesse alguma coisa para reduzir seus carregamentos de Can-D. Desconfiava que era isso, mas. claro, não podia provar coisa alguma. Afinal de contas, Hepburn-Gilbert, aquele politicozinho escorregadio, não evoluído, não dissera exatamente isso.
E era isso que uma pessoa conseguia quando se dirigia à ONU, refletiu Leo. Política afro-asiática. Dirigida, servida e orientada por estrangeiros. Olhou aborrecido para a tela vazia.
Enquanto se perguntava o que fazer, a secretária, senhorita Gleason, chamou de seu lado no intercomunicador, e disse:
— Senhor Bulero, o senhor Mayerson está na ante-sala e gostaria de lhe falar por um momento.
Um instante depois, seu especialista em modas do futuro entrou de cara feia. Em silêncio, Barney Mayerson sentou-se de frente para ele.
— O que é que o está roendo, Mayerson? — perguntou Leo. — Fale com franqueza. É para isso que estou aqui, de modo que pode chorar no meu ombro. Diga o que é e eu seguro sua mão. — Deu à voz um tom autoritário.
— Minha assistente, a senhorita Fugate...
— Sim, ouvi dizer que você anda dormindo com ela.
— Esse não é o problema.
— Oh, compreendo — disse Leo. — Esse é apenas um pequeno aspecto secundário.
— Eu apenas quis dizer que estou aqui para falar a respeito de outro aspecto do comportamento da senhorita Fugate. Tivemos um grave desentendimento há alguns minutos. Um vendedor...
— Você recusou alguma coisa e ela discordou. — disse Leo.
— Isso mesmo.
— Vocês, precogs. — Notável. Talvez houvesse futuros alternativos. — De modo que você quer que eu dê ordens a ela para, no futuro, apoiar sempre suas decisões?
— Ela é minha assistente. Isso significa que, supostamente, deve agir como eu mandar — lembrou Barney Mayerson.
— Bem... dormir com você não é um belo movimento nessa direção? — Leo soltou uma gargalhada — Contudo, ela devia tê-lo apoiado, enquanto o vendedor estava presente. Em seguida, se tivesse algumas reservas, poderia discuti-las particularmente, mais tarde, com você.
— Eu nem mesmo aceito isso. — Barney fechou ainda mais a cara
Agudamente, Leo observou:
— Sabe de uma coisa? Porque faço aquela Terapia E, tenho um grande lobo frontal. Eu mesmo sou praticamente um precog, de tão avançado. Foi um vendedor de vasos? Cerâmicas?
Com evidente relutância, Barney concordou com a cabeça
— Aqueles vasos são feitos por sua ex-esposa — disse Leo. As peças de cerâmica dela estavam vendendo bem. Vira anúncios delas nos jornais, eram vendidas por uma das galerias de objetos de arte mais importantes de Nova Orleans, e ali na Costa Leste e em São Francisco. — Elas terão sucesso, Barney? — Examinou atentamente seu precog. — A senhorita Fugate tinha razão?
— Elas nunca terão sucesso. Essa é a pura verdade. — O tom de voz de Barney, porém, era indeciso. O tom errado, pensou Leo, para o que ele estava dizendo. Sem vitalidade. — E isso o que eu prevejo — continuou teimosamente Barney.
— Muito bem. — Leo inclinou a cabeça. — Aceito o que você está dizendo. Mas se os vasos dela se transformarem nos sucessos do dia, e não tivermos miniaturas disponíveis para as representações dos colonos... — Pensou um pouco. — Você poderia, talvez, descobrir sua companheira de cama ocupando também sua cadeira — concluiu.
— Levantando-se, Barney perguntou:
— O senhor então dará instruções à senhorita Fugate, a respeito da posição que ela deve adotar? — Enrubesceu. — Não foi isso o que eu quis dizer... — murmurou, enquanto Leo começava a rir.
— Muito bem, Barney. Vou descer a lenha em cima dela Ela é jovem. Sobreviverá. E você está envelhecendo, precisa conservar sua dignidade, e não admitir que pessoa alguma discorde de você. — Levantou-se também e, aproximando-se de Barney, deu-lhe uma palmadinha nas costas. — Mas, escute aqui. Deixe de andar remoendo o passado. Esqueça aquela sua ex-esposa, sim?
— Eu já a esqueci.
— Há sempre outras mulheres — observou Leo, pensando em Scotty Sinclair, sua amante do momento. Scotty, frágil e loura, mas imensa de seios, encontrava-se nesse momento em sua mansão-satélite, a 800 km de altura no apogeu, à espera de que ele encerrasse o trabalho da semana — Há uma oferta infinita delas. Não são como aqueles velhos selos postais dos Estados Unidos ou as peles de trufas que usamos como dinheiro. — Ocorreu-lhe nesse momento que poderia facilitar as coisas cedendo a Barney uma de suas abandonadas — mas ainda funcionais — ex-amantes. — Vou-lhe dizer o que vamos fazer... — começou, mas Barney cortou-o imediatamente com um gesto ríspido da mão. — Não? — perguntou Leo.
— Não. De qualquer modo, estou envolvido até o pescoço com Roni Fugate. Uma de cada vez é suficiente para um homem normal. — Barney olhou severamente para o patrão.
— Concordo. Oh, Deus, eu mesmo só posso estar com uma de cada vez. O que é que você pensa? Que eu tenho um harém lá em cima? — Irritou-se.
— Na última vez em que estive lá em cima — lembrou Barney — , na festa de seu aniversário, em janeiro...
— Oh, bem. Festas. Isso é diferente. A gente não conta o que acontece em festas. — Acompanhou Barney até a porta do gabinete. — Sabe de uma coisa, Mayerson? Ouvi um boato a seu respeito, e não estou gostando nada. Alguém viu você carregando por aí uma dessas extensões de valise de um computador-psiquiatra de condomínio de apartamentos... Você recebeu aviso de convocação?
Houve silêncio. Finalmente, Barney concordou com a cabeça.
— E você não ia nos contar coisa alguma — comentou Leo. — Nós iríamos descobrir quando? No dia em que tomasse uma nave para Marte?
— Vou dar um jeito de escapar disso.
— Claro que vai. Todo mundo dá um jeito. Foi assim que a ONU conseguiu colonizar quatro planetas, seis luas...
— Vou ser reprovado no teste mental — disse Barney. — Meu dom de precognitivo me diz que eu vou. Está-me ajudando. Não consigo suportar o número suficiente de freuds de tensão para satisfazê-los... Olhe para mim. — Estendeu as mãos. Elas tremiam visivelmente. — Veja só minha reação à observação inócua da senhorita Fugate. Veja...
— Tudo bem — acalmou-o Leo, mas continuava preocupado. De modo geral, os avisos de convocação concediam apenas um prazo de 90 dias antes da incorporação e a senhorita Fugate dificilmente estaria apta para assumir tão cedo assim o cargo de Barney. Claro, poderia transferir Mac Ronston, de Paris... mas mesmo Ronston, depois de 15 anos, não era do mesmo calibre de Barney Mayerson. Tinha a experiência, mas talento não pode ser armazenado: tem que existir como um dom de Deus.
A ONU está realmente dando nos meus nervos, pensou Leo. A si mesmo perguntou se o aviso de convocação de Barney, chegando nesse momento particular, era apenas uma coincidência ou outra sondagem nos seus pontos fracos. Se é, concluiu, é bem forte. E não há pressão alguma que eu possa aplicar sobre a ONU para isentá-lo.
E simplesmente porque forneço a esses colonos a Can-D que consomem, pensou. Quero dizer, alguém tem que fazer isso. Eles precisam. De outra maneira, que utilidade tem para eles Perky Pat Layouts?
E, além do mais, era uma das operações comerciais mais lucrativas do sistema solar. Havia muito dinheiro envolvido. E a ONU sabia disso, também.

ÀS 12:30H EM Nova Iorque, Leo Bulero estava almoçando com uma nova moça que acabava de ser admitida na equipe de secretárias. Pia Jurgens, sentada à frente dele num compartimento reservado no "Raposa Púrpura", comia com precisão, o queixo pequeno e bonito trabalhando de forma correta. Era uma ruiva e ele gostava de ruivas. Elas eram ou horrendamente feias ou quase sobrenaturalmente atraentes. A senhorita Jurgens incluía-se nesta última categoria. Ora, se ele conseguisse arranjar um pretexto de transferi-la para sua mansão-satélite... supondo, porém, que Scotty não fosse contra. E, no momento, isso não parecia lá muito provável. Scotty tinha vontade própria, o que era sempre perigoso numa mulher.
Que pena que não pudera passar Scotty para Barney Mayerson, pensou. Simultaneamente, teria solucionado dois problemas: tornaria Barney psicologicamente mais seguro, e ficaria livre para...
Bolas!, pensou, Barney precisa sentir-se inseguro. De outra maneira, é como se já estivesse em Marte. Fora por isso que lhe alugara aquela valise falante. Obviamente, eu não entendo o mundo moderno. Estou vivendo no século XX, quando os psicanalistas tornavam as pessoas menos sensíveis ao stress.
— O senhor nunca fala, senhor Bulero? — perguntou a senhorita Jurgens.
— Não. — Será que eu poderia, pensou, interferir com sucesso no padrão de comportamento de Barney? Ajudá-lo a... qual é a palavra?... tornar-se menos viável?
Mas a coisa não era tão fácil como parecia. Instintivamente, compreendeu isso com seu lobo frontal ampliado. Não podemos fazer com que pessoas sadias fiquem doentes, simplesmente lhes dando uma ordem.
Ou será que não?
Pedindo licença, procurou o garçom-robô e pediu que lhe trouxesse um videofone à mesa.
Momentos depois, entrava em contato com a senhorita Gleason, no escritório.
— Escute, quero falar com a senhorita Rondinella Fugate, uma das auxiliares do senhor Mayerson, logo que eu voltar. E o senhor Mayerson não deve saber disso. Compreendeu?
— Sim, senhor — respondeu a senhorita Gleason, tomando nota.
— Eu escutei — disse Pia Jurgens quando ele desligou. — O senhor sabe, eu poderia contar ao senhor Mayerson. Encontro com ele todos os dias no...
Leo riu. Divertia-o a idéia de Pia Jurgens botando a perder o florescente futuro que iria ter com ele.
— Ouça aqui — disse, dando uma palmadinha na mão dela — , não se preocupe. Não é nada dentro do espectro da natureza humana. Termine seu croquete de rã de Ganimedes e vamos voltar para o escritório.
— O que eu quis dizer — retrucou a senhorita Jurgens formalmente — , foi que me pareceu um pouco estranho que o senhor se mostrasse tão franco na frente de uma pessoa que mal conhece. — Fitou-o e os seios dela, já superexpandidos e provocantes, tornaram-se ainda mais as duas coisas. Expandiram-se de indignação.
— Obviamente, a solução é conhecê-la melhor — disse avidamente Leo. — Você já mascou Can-D? — perguntou com indiferença. — Pois devia. A despeito do fato de criar hábito. É uma verdadeira experiência. — Ele, claro, mantinha um suprimento da droga, gradação AA, em sua mansão-satélite. Quando convidados se reuniam; a coisa era trazida para acrescentar cor ao que poderia se tornar uma ocasião monótona. — O motivo por que pergunto é que você parece o tipo de mulher dotada de imaginação ativa e a reação que a pessoa tem a Can-D depende, varia, com os poderes imaginativos do tipo criativo da pessoa.
— Eu gostaria de experimentar, algum dia — respondeu a senhorita Jurgens. Olhou em volta, baixou a voz e inclinou-se para ele. — Mas é ilegal.
— É...? — Ele a olhou fixamente.
— O senhor sabe que é. — A moça pareceu aborrecida
— Escute aqui — disse Leo — , eu posso lhe arranjar um pouco. Claro, mascaria a erva com ela. Em comunhão, as mentes dos usuários fundiam-se, tornavam-se uma nova entidade — ou pelo menos tal era a experiência Algumas sessões de consumo de Can-D na intimidade, e saberia tudo o que houvesse para saber a respeito de Pia Jurgens. Havia nela alguma coisa — além das óbvias qualidades físicas, anatômicas — que o fascinava Ansiava por tornar-se mais íntimo dela.
— Nós não usaremos uma representação.
Por uma ironia da sorte, ele, o criador e fabricante do micro-mundo de Perky Pat preferia usar Can-D num vácuo. O que um terráqueo tinha a ganhar com um cenário, na medida em que era uma miniatura das condições que prevaleciam numa cidade típica da Terra? Para colonos numa lua uivante e varrida por tempestades, amontoados no fundo de um alojamento para se defenderem de cristais congelados de metano e de outras coisas, a situação era diferente. Perky Pat e seu cenário eram uma reentrada no mundo em que haviam nascido. Mas ele, Leo Bulero, estava muito cansado do mundo em que nascera e onde ainda vivia. E mesmo na mansão-satélite, com todas as suas esquisitas e não tão esquisitas diversões, não conseguia preencher o vazio. Contudo...
— Essa Can-D — disse a senhorita Jurgens — é uma grande coisa e não surpreende que tenha sido proibida. É como uma religião. A Can-D é a religião dos colonos. — Soltou uma risadinha. Um pedaço dela, mascado durante quinze minutos, e então... — fez um gesto amplo — desaparece o alojamento miserável. Desaparece o metano. A coisa fornece uma razão para se viver. Será que não vale o risco e a despesa?
Mas o que é que existe de igual valor para nós?, perguntou Leo a si mesmo e sentiu-se triste. Fabricando os cenários de Perky Pat e cultivando e distribuindo a base de líquen para o produto final acondicionado de Can-D tornara a vida suportável para mais de um milhão de expatriados involuntários da Terra. Ma que diabo conseguia ele em troca? Minha vida, pensou, é dedicada aos outros, estou começando a ficar inquieto, não é suficiente. Havia seu satélite, onde Scotty esperava, havia sempre os complexos detalhes de suas duas grandes operações comerciais, a legal e a outra que não era... Mas não haveria na na vida mais do que isso?
Não sabia. Nem pessoa alguma sabia porque, como Barney Mayerson, viviam todos ocupados nas várias imitações que faziam dele. Barney, com sua senhorita Rondinella Fugate, uma réplica medíocre de Leo Bulero e da senhorita Jurgens. Para onde quer que olhasse, era a mesma coisa. Provavelmente, até Ned Lark, o Chefe da Divisão de Entorpecentes, levava esse tipo de vida... provavelmente até Hepburn-Gilbert, que provavelmente mantinha alguma alta e pálida sueca com seios do tamanho de bolas de boliche — e igualmente firmes. Até mesmo Palmer Eldritch. Não, compreendeu subitamente. Não Palmer Eldritch. Ele descobrira alguma coisa diferente. Durante dez anos, estivera no sistema de Prox, ou pelo menos indo e voltando de lá. 0 que foi que ele descobriu? Alguma coisa que tivesse compensado o esforço, compensado a queda final em Plutão?
— Você leu os jornais? — perguntou ele a senhorita Jurgens. — A respeito da nave que caiu em Plutão? Aquele é um homem entre um bilhão, o Eldritch. Não há ninguém igual a ele.
— Eu li — respondeu a senhorita Jurgens — que ele era praticamente doido.
— Certo. Dez anos da vida dele, todo aquele sofrimento, e para quê?
— Pode ter certeza de que ele conseguiu um bom resultado pelos dez anos — comentou a senhorita Jurgens. — Ele é doido, mas sabido. Cuida de si mesmo, como todo mundo. Não é tão doido assim.
— Eu gostaria de conhecê-lo — disse Leo Bulero. — Falar com ele, mesmo que fosse por um minuto.
Naquele momento, resolveu fazer isso, ir até o hospital onde Palmer Eldritch estava internado, forçar a entrada no quarto do homem ou comprá-la, descobrir o que ele encontrara.
— Eu pensava antigamente — disse a senhorita Jurgens — que, quando as primeiras naves deixaram nosso sistema a caminho de outra estrela — lembra-se disso? — nós ouviríamos dizer... — hesitou. — E uma coisa tão boba, mas naquela ocasião eu era apenas uma criança, quando Arnoldson fez sua primeira viagem de ida e volta a Prox. Eu era uma criança quando ele voltou, quero dizer. Pensei mesmo que, tendo ido tão longe, ele... — baixou a cabeça, evitando o olhar de Leo Bulero — ele encontraria Deus.
E eu também pensei, lembrou-se Leo. E já era um adulto na ocasião. Em meados dos 30. Como disse a Barney várias vezes.
E ainda acredito nisso, mesmo agora, pensou. A respeito da viagem de dez anos de Palmer Eldritch.
Depois do almoço, em seu gabinete na P. P. Layouts, viu Rondinella Fugate pela primeira vez. Ela já estava à sua espera quando chegou.
Nada feia, pensou, fechando a porta do gabinete. Bom corpo e olhos lindos, luminosos. Ela parecia nervosa, cruzava as pernas, alisava a saia, olhava-o de soslaio, enquanto ele se sentava à escrivaninha de frente para ela. Muito jovem, notou Leo. Uma criança que levantaria a voz e contestaria seu superior quando achasse que ele estava errado. Comovente...
— A senhorita sabe por que está aqui no meu gabinete? — perguntou.
— Acho que o senhor está zangado porque contestei a opinião do senhor Mayerson. Mas eu senti, realmente, que havia futuro nas linhas vitais daquelas peças de cerâmica. O que mais eu podia fazer? — Levantou-se parcialmente, implorante, mas depois voltou a sentar-se.
— Eu acredito na senhorita — disse Leo. — Mas o senhor Mayerson é sensível. Se está vivendo com ele, sabe que ele tem um psiquiatra portátil, que carrega para toda parte. — Abrindo a gaveta da escrivaninha, tirou a caixa de Cuesta Reys, dos melhores. Estendeu a caixa à senhorita Fugate, que aceitou satisfeita um dos charutos escuros e finos. Ele também serviu-se de um deles. Acendeu o dela e em seguida o seu, e recostou-se na cadeira. — Sabe quem é Palmer Eldritch?
— Sei.
— Você poderia usar seus poderes precognitivos para outra coisa que não previsão de pré-sucesso? Dentro de um mês, mais ou menos, todos os jornais estarão informando rotineiramente o paradeiro de Eldritch. Eu gostaria que você se antecipasse aos jornais e me dissesse onde ele se encontra neste momento. — Sei que pode fazer isso, disse a si mesmo, se quer conservar seu emprego aqui. Esperou, fumando o charuto, observando a moça e pensando, com uma ponta de inveja, que se ela fosse tão boa na cama quanto parecia...
Em voz baixa, hesitante, a senhorita Fugate começou:
— Estou obtendo apenas uma impressão muito vaga, senhor Bulero.
— Bem, vamos ouvi-la de qualquer maneira. — Estendeu a mão para uma caneta.
Ela precisou de vários minutos e, como repetiu, sua impressão não era muito clara. Não obstante, logo depois, ele tinha no bloco, anotadas, as seguintes palavras: Hospital de Veteranos James Riddle, Base III, Ganimedes. Um estabelecimento da ONU, claro. Mas esperara isso. Não era decisivo. Ele ainda poderia descobrir uma maneira de penetrar no local.
— E ele não está internado lá com este nome — disse a senhorita Fugate, pálida e esgotada com o esforço de previsão. Reacendeu o charuto, que se apagara. Espigada na cadeira, cruzou mais uma vez as pernas flexíveis. — Os jornais dirão que Eldritch foi internado no hospital sob o nome de senhor... — Interrompeu-se, fechou os olhos com força, e suspirou. — Oh, diabo — disse. — Não posso descobrir qual é. Uma única sílaba. Frent. Brent. Não, acho que é Trent. Sim, é isso, Eldon Trent. — Sorriu, aliviada Os grande olhos faiscaram com prazer ingênuo, infantil. — Fizeram um grande esforço para mantê-lo escondido. E estão interrogado-o, é o que os jornais vão dizer. Assim, obviamente ele está consciente. — De repente, franziu as sobrancelhas. — Espere. Estou vendo uma manchete. Estou no meu próprio apartamento de condomínio, sozinha. E de manhã cedo e estou lendo a primeira página. Oh, meu Deus.
— O que é que está escrito? — perguntou Leo, inclinando-se rígido para a frente. Podia notar facilmente o desalento da moça.
— As manchetes dizem que Palmer Eldritch está morto — murmurou a senhorita Fugate. Pestanejou, olhou em volta espantada, focalizou lentamente os olhos nele, fitou-o com uma confusa mistura de medo e incerteza, afastando-se quase visivelmente, recuando para longe dele, colando-se à cadeira, os dedos entrelaçados. — E o senhor é acusado de ter feito isso, senhor Bulero. Honestamente, é isso o que a manchete diz.
— Você quer dizer que eu vou assassiná-lo? Ela confirmou com a cabeça
— Mas... não é uma certeza Capto apenas isso em alguns dos futuros... O senhor compreende? Quero dizer, nós, precognitivos, vemos... — fez um gesto vago.
— Eu sei. — Ele conhecia bem os precognitivos. Barney Mayerson, afinal de contas, trabalhava há treze anos para a P. P. Layouts, e outros por mais tempo ainda. — Poderia acontecer — disse, rouco. — Por que faria eu uma coisa dessas?, perguntou a si mesmo. Não havia maneira de saber nesse instante. Talvez, depois de ter chegado a Eldritch, de ter conversado com ele... como evidentemente faria
— Acho que o senhor não devia tentar entrar em contato com o senhor Eldritch, tendo em vista esse possível futuro, não acha, senhor Bulero? — perguntou a senhorita Fugate. — Quero dizer, o risco existe... parece muito grande. Mais ou menos... acho... de cerca de quarenta.
— Quarenta o quê?
— Por cento. Quase metade das possibilidades. — Nesse momento, mais controlada, puxou a fumaça do charuto, de frente para ele, os olhos escuros e sérios faiscando enquanto o fitava, indubitavelmente especulando, com uma curiosidade imensa, por que ele faria uma coisa dessas.
Levantando-se, ele se dirigiu à porta do gabinete.
— Obrigado, senhorita Fugate. Estou muito grato por sua ajuda nesse assunto. — Esperou, indicando claramente que aguardava que ela se retirasse.
A senhorita Fugate, porém, continuou sentada. Ele estava descobrindo o mesmo traço peculiar de firmeza que perturbara Barney Mayerson.
— Senhor Bulero — disse ela tranqüilamente — , eu acho que devia realmente conversar com a polícia da ONU a este respeito. Nós, precogs...
Ele fechou novamente a porta.
— Vocês, precogs — disse — , vivem preocupados demais com a vida dos outros.— Mas ela o tinha nas mãos. Perguntou-se o que ela faria com o conhecimento que possuía.
— O senhor Mayerson pode ser convocado — continuou a senhorita Fugate. — O senhor sabia disso, claro. Vai tentar influenciá-los para que o dispensem?
Honestamente, ele respondeu:
— Eu tinha algumas intenções no sentido de ajudá-lo a escapar da convocação, sim.
— Senhor Bulero — disse ela em voz baixa, firme — , eu faço um trato com o senhor. Deixe que o convoquem. Em seguida, eu serei sua consultora de pré-sucesso de Nova Iorque. — Esperou. Leo Bulero continuou calado. — O que é que o senhor diz? — perguntou.
Obviamente, ela não estava acostumada àquele tipo de negociações. Contudo, tencionava levá-las a cabo, se possível. Afinal de contas, refletiu ele, todo mundo, mesmo o profissional mais hábil, tem que começar de algum lugar. Talvez ele estivesse presenciando a fase inicial do que seria uma carreira brilhante.
Mas, nesse momento, lembrou-se de uma coisa. Lembrou-se do motivo por que ela fora transferida do escritório de Pequim para Nova Iorque, a fim de tornar-se assistente de Barney Mayerson. As previsões dela haviam-se mostrado irregulares. Algumas delas — um número excessivo delas, na verdade — tinham sido errôneas.
Talvez a precognição dela da manchete do jornal, anunciando que ele fora acusado como suposto assassino de Palmer Eldritch — na presunção de que ela estivesse sendo honesta, que houvesse realmente experimentado aquilo — fosse mais um de seus erros, a precognição defeituosa que a trouxera para ali. Em voz alta, respondeu:
— Vou pensar a respeito. Dê-me uns dois dias.
— Até amanhã de manhã — retrucou firme a senhorita Fugate. Leo soltou uma risada.
— Agora compreendo por que Barney ficou tão irritado. — Barney provavelmente sentira, com sua própria faculdade de precog, pelo menos nebulosamente, que a senhorita Fugate ia tentar um golpe decisivo contra ele, colocar em risco toda sua situação. — Escute aqui — aproximou-se dela — , você é amante de Mayerson. Que tal desistir disso? Posso oferecer-lhe o uso de todo um satélite. — Supondo, claro, que pudesse tirar Scotty de lá.
— Não, obrigada — respondeu a senhorita Fugate.
— Por quê? — Ele estava espantado. — Sua carreira...
— Eu gosto do senhor Mayerson — disse ela. — E não gosto especialmente de cabeças de bo... — controlou-se. — ... de homens que evoluíram naquelas clínicas.
Mais uma vez, ele abriu a porta.
— Eu lhe darei uma resposta amanhã de manhã.
Enquanto a observava passar pela porta e entrar na sala da recepcionista, pensou: Isso me dará tempo para chegar a Ganimedes e a Palmer Eldritch. Nessa ocasião, saberei mais a respeito da situação. Saberei se a previsão dela é falsa ou não.
Fechando a porta às costas da moça, voltou novamente à escrivaninha e apertou o botão do videofone que o ligava com o exterior. A telefonista da cidade de Nova Iorque, disse:
— Ligue-me com o Hospital de Veteranos James Riddle, na Base III, em Ganimedes. Quero falar com o senhor Eldon Trent, um paciente que se encontra internado lá. Uma conversa pessoal. — Deu nome e número, desligou, e discou para o Espaçoporto Kennedy.
Reservou passagem na nave expressa que partia de Nova Iorque para Ganimedes naquela noite. Em seguida, andou de um lado para o outro no gabinete, esperando a chamada do Hospital.
Cabeça de bolha, pensou. Ela chegou a chamar até disso seu empregador.
Dez minutos depois, recebeu a resposta.
— Sinto muito, senhor Bulero — desculpou-se a telefonista. — O senhor Trent não pode atender, por ordens médicas.
Então, Rondinella Fugate acertara. Havia, de fato, um Eldon Trent no James Riddle e, com toda probabilidade, era Palmer Eldritch. Certamente que valeria a pena fazer a viagem. As probabilidades pareciam boas.
Pareciam boas, pensou ironicamente, de encontrar Eldritch, ter uma altercação com ele, só Deus sabe sobre o quê, e acabar por matá-lo. Um homem que, neste momento do tempo, eu nem conheço. E se for acusado, não vou conseguir me safar. Que perspectiva!
Mas a curiosidade fora despertada. Em todas as suas múltiplas atividades, nunca sentira necessidade de matar pessoa alguma, em nenhuma circunstância. O que quer que fosse ocorrer entre ele e Palmer Eldritch tinha que ser excepcional. Definitivamente, uma viagem a Ganimedes era a coisa indicada a fazer.
Seria difícil recuar nesse instante. Porque sentia a aguda intuição de que essa situação seria aquilo que esperava. E Rondinella Fugate dissera apenas que ele seria acusado do assassinato. Não havia dado algum a respeito de uma condenação.
Condenar um homem de sua estatura por um crime capital, mesmo através das autoridades da ONU, ia requerer muito trabalho.
Estava resolvido a deixar que elas tentassem.

Três
 NUM bar perto da P.P. Layouts, Richard Hnatt sentou-se, bebericando um Tequila Sour, com o mostruário na mesa à sua frente. Sabia muito bem que não havia nada de errado com os vasos de Emily. O trabalho dela era vendável. O problema era o ex-marido dela e a posição de poder que ele ocupava.
E Barney Mayerson exercera esse poder.
Tenho que ligar para Emily e contar a ela, pensou. Ia levantar-se.
Um homem bloqueou-lhe o caminho, um espécime redondo, peculiar, equilibrado sobre pernas esqueléticas.
— Quem é o senhor? — perguntou Hnatt.
O homem oscilou como um boneco à sua frente, enfiando ao mesmo tempo a mão no bolso, como se cocasse um microrganismo bem conhecido, possuidor de inclinações parasíticas, que havia sobrevivido ao teste do tempo. Mas o que ele exibiu finalmente, foi um cartão comercial.
— Nós estamos interessados em seus exemplares de cerâmica, senhor Hatt, Natt, como quer que o senhor pronuncie seu nome.
— Icholtz — disse Hnatt, lendo o cartão. O cartão dava o nome, nenhuma outra informação, nem mesmo um número de videofone. — O que tenho aqui são apenas amostras. Mas posso lhe dar o nome de varejistas que vendem nossa linha de produtos. Estas, porém...
— São para miniaturização — disse o homem que parecia um brinquedo, o senhor Icholtz, inclinando a cabeça. — E é isso mesmo o que nós queremos. Tencionamos miniaturizar suas cerâmicas, senhor Hnatt. Achamos que Mayerson está errado... que elas se tornarão um grande sucesso, e logo.
Hnatt olhou-o fixamente.
— O senhor quer miniaturizar e não é da P.P. Layouts?
Nenhuma outra firma, porém, miniaturizava. Todo mundo sabia que a P.P. Layouts tinha um monopólio.
Sentando-se à mesa ao lado do mostruário, o senhor Icholtz tirou a carteira do bolso e começou a contar peles.
— No começo, será muito pouca a publicidade a este respeito. Mas no fim... — Estendeu a Hnatt a pilha de peles pardas, enrugadas, de trufa, que serviam como moeda de curso legal no sistema solar: a única molécula, um excepcional aminoácido proteínico, que não podia ser duplicada pelos impressores, as formas de vida Biltong, usadas em lugar de linhas de montagem automatizadas, por numerosas indústrias da Terra.
— Vou ter que consultar minha esposa — disse Hnatt.
— O senhor não é o representante de sua firma?
— S-sou. — Aceitou a pilha de peles.
— O contrato. — Icholtz exibiu um documento, alisou-o sobre a mesa e ofereceu uma caneta. O contrato nos dá exclusividade.
Inclinando-se para assinar, Richard Hnatt leu no contrato o nome da firma de Icholtz. Indústrias Mascar-Z, de Boston. Nunca ouvira falar na firma. Mascar-Z... o nome lembrava-lhe outro produto, exatamente qual não conseguia lembrar-se no momento. Só depois de ter assinado, e quando Icholtz destacava sua cópia do documento, é que se lembrou.
A droga alucinógena Can-D, usada nas colônias conjuntamente com Layouts de Perky Pat.
Teve uma intuição, agravada por profunda inquietação. Mas era tarde demais para recuar. Icholtz já estava nesse momento apanhando o mostruário. O conteúdo dele pertencia agora à Mascar-Z, de Boston, Estados Unidos da América, Terra.
— Como... como é que eu posso entrar em contato com o senhor? — perguntou Hnatt no momento em que Icholtz ia deixar a mesa.
— O senhor não entrará em contato conosco. Se precisarmos do senhor, nós lhe telefonaremos. — Icholtz sorriu por um instante.
Como diabo ia explicar a Emily? Hnatt contou as peles, leu o contrato, e foi se conscientizando gradativamente da soma que Icholtz lhe pagara. O suficiente para proporcionar a ele e.a Emily umas férias de cinco dias na Antártida, numa das grandes e frias estações de veraneio, freqüentada pelos ricos da Terra, onde, sem dúvida alguma, Leo Bulero e outros como ele passavam o verão... e estes dias de verão duravam o ano inteiro.
Ou... pensou, poderia fazer ainda mais do que isso. Ele e a esposa poderiam ser admitidos num dos estabelecimentos mais exclusivos da terra.... supondo que ele e Emily quisessem isso. Poderiam voar para as Alemanhas e se internarem numa das clínicas de Terapia E, do doutor Willy Denkmal. Ótimo, pensou.
Fechou-se na cabine de videofone do bar e ligou para Emily.
— Faça as malas. Nós vamos para Munique. Vamos ... — escolheu o nome da clínica ao acaso. Vira o nome de uma delas anunciado em revistas exclusivas de Paris. — A Eichenwald — disse à esposa. — O doutor Denkmal é...
— Barney aceitou-as — disse Emily.
— Não. Mas há outra firma no campo da miniaturização, além da P.P. Layouts. — Sentia-se feliz. — Bem, Barney não nos quis. E daí? Fizemos negócio melhor com essa nova empresa. Ela deve ter dinheiro pra valer. Chego aí dentro de meia hora. Vou fazer reservas no vôo expresso da TWA. Pense só nisso: Terapia E para nós dois.
Em voz baixa, Emily respondeu:
— Pensando bem, não tenho certeza de que quero evoluir. Desapontado, ele insistiu:
— Claro que você quer. Quero dizer, isso poderia salvar nossas vidas, e se não as nossas, então as de nossos filhos... nossos filhos potenciais, que poderemos ter algum dia. E mesmo que a gente passe pouco tempo lá e evolua apenas um pouco, lembre-se das portas que se abrirão para nós. Seremos personae gratae em toda parte. Pessoalmente, você conhece alguém que se tenha submetido à Terapia E? O tempo todo a gente lê sobre fulano e beltrano nos jornais, gente de sociedade... mas...
— Não quero aqueles cabelos todos em cima de mim — retrucou Emily. — E não quero que minha cabeça seja expandida. Não, não vou à Clínica Eichenwald. — Parecia inteiramente resolvida, conservando plácido o rosto.
— Nesse caso, eu irei sozinho.
A decisão ainda teria valor econômico. Afinal de contas, era ele quem tratava com os compradores. E poderia permanecer na clínica por tempo duas vezes maior, evoluir duas vezes mais... supondo que o tratamento pegasse. Algumas pessoas não reagiam, mas isso dificilmente era culpa do doutor Denkamalt: a capacidade de evoluir não era distribuída igualmente entre as pessoas. A seu próprio respeito, tinha certeza: evoluiria notavelmente, se emparelharia com os tipos importantes, ultrapassaria mesmo alguns deles em termos da conhecida aparência que Emily, por preconceito equivocado, chamara de "cabelo".
— O que eu vou fazer enquanto você estiver fora? Simplesmente fazer vasos?
— Exatamente.
Isso porque as encomendas viriam logo, e numerosas. Se não fosse assim, as Indústrias Mascar-Z, de Boston, não teriam demonstrado interesse em miniaturizar o produto. Evidentemente, a firma empregava seus próprios precogs de pré-sucesso, como a P.P. Layouts. Mas, nessa ocasião, lembrou-se. Icholtz falara em muito pouca publicidade, no começo. Isso significava, compreendeu, que a nova firma não dispunha de uma rede de disc jockeys circulando em órbita em torno das luas e planetas-colônias. Ao contrário da P.P. Layouts, ela não tinha Allen e Charlotte Faine para divulgar notícias nesses lugares.
Mas era preciso tempo para estabelecer uma rede de satélites de disc jockeys. Era uma coisa natural.
Ainda assim, o negócio deixava-o inquieto. De repente pensou, em pânico: poderia ela ser uma empresa ilegal? Talvez a Mascar-Z, como a Can-D, seja proibida. Talvez eu tenha nos metido em alguma coisa perigosa.
— Mascar-Z — disse ele em voz alta a Emily. — Já ouviu falar nisso?
— Não.
Pegou o contrato e examinou-o mais uma vez. Que confusão, pensou. Como foi que eu me meti nisto? Se apenas aquele maldito Mayerson tivesse aceitado os vasos...

ÀS 10H DA MANHÃ, a buzina apavorante, muito conhecida, arrancou. Sam Regan do sono, e ele amaldiçoou a nave da ONU que se encontrava lá em cima. Sabia que a barulheira era deliberada. A nave, circulando acima do alojamento, queria ter certeza de que os colonos — e não apenas os animais nativos — pegariam os pacotes que seriam lançados.
Nós os pegaremos, murmurou Sam Regan para si mesmo, subindo o fecho éclair do macacão de material isolante. Calçou as botas de cano alto e, mal-humorado, dirigiu-se com tanta lentidão quanto possível para a rampa.
— A nave apareceu cedo hoje — queixou-se Tod Morris.— E aposto que só chegaram produtos comuns, açúcar, alimentos básicos, como gordura... nada de interessante como, digamos, doces.
Encostando os ombros na tampa, no alto da rampa, Norman Schein empurrou. A fria e ofuscante luz do sol caiu sobre eles, que pestanejaram.
A nave da ONU faiscou no alto, contra o céu preto, como se pendurada de um fio balouçante. Bom piloto neste lançamento, concluiu Tod. Conhece a área de Fineburg Crescent. Acenou para a nave da ONU e, mais uma vez, a imensa buzina estrugiu, fazendo-o tapar os ouvidos com as mãos.
Um projétil soltou-se da parte inferior da nave, abriu os estabilizadores e desceu em espiral para o chão.
— Merda — disse irritado Sam Regan. — São gêneros de primeira necessidade. Não têm pára-quedas. — Afastou-se, desinteressado.
Como as coisas pareciam horríveis ali em cima naquele dia, pensou, estendendo a vista pela paisagem de Marte. Desolada. Por que viera para ali? Fora obrigado, fora forçado a vir.
O projétil da ONU já aterrara, o casco aberto, rompido pelo impacto. Os três colonos viram os recipientes. Pareciam ser uns 225 kg de sal. Sam Regan começou a sentir-se ainda mais abatido.
— Ei — disse Schein, dirigindo-se para o projétil e olhando para dentro. — Acho que estou vendo alguma coisa que podemos usar.
— Parece que são rádios o que há nessas caixas — sugeriu Tod. — Rádios transistores. — Pensativo, seguiu Schein. — Talvez a gente possa usá-los para alguma coisa nova em nossos cenários.
— O meu já tem rádio — disse Schein.
— Bem, com as partes a gente pode construir um cortador de grama eletrônico auto-regulável — especulou Tod. — Você não tem isso, tem?
Conhecia muito bem o cenário de Perky Pat dos Scheins. Os dois casais, ele e a esposa, juntamente com Schein e a dele, haviam-se fundido bastante, tornando-se compatíveis.
— Esqueçam os rádios, porque eu posso usá-los.
O cenário dele carecia do abridor automático de garagem, que Schein e Tod possuíam. Estava muito atrasado, em comparação. Claro, todos aqueles exemplares podiam ser comprados. Mas estava sem peles. Usara todo seu suprimento para atender a uma necessidade que considerava mais urgente. Comprara a um traficante de droga uma quantidade bem grande de Can-D. Estava enterrada, longe das vistas, embaixo de seu compartimento, no andar mais baixo do alojamento coletivo.
Pessoalmente, era um crente, confirmava o milagre do traslado — o momento quase sagrado em que os artefatos em miniatura do cenário não mais representavam simplesmente a Terra, mas tornavam-se a Terra. E ele e os outros, juntos na fusão da casa de boneca, graças a Can-D, eram transportados para fora do tempo e do espaço local. Muitos colonos ainda eram incrédulos: para eles, os cenários eram meramente símbolos de um mundo que nenhum deles poderia mais experimentar. Mas, um após outro, os incrédulos eram convencidos.
Mesmo naquele momento, tão cedo assim pela manhã, ansiava por voltar lá para baixo, mastigar uma fatia de Can-D, tirada de seu depósito secreto, e reunir-se aos companheiros no mais solene momento de que eram capazes.
Voltando-se para Tod e Norm Schein, perguntou:
— Algum de vocês gostaria de fazer uma viagem? — Essa era a palavra técnica que usavam, significando participação. — Eu vou descer — continuou. — Podemos usar minha Can-D. Eu divido com vocês.
Um convite como aquele não podia ser ignorado. Tod e Norm pareceram sentir-se tentados.
— Tão cedo assim? — disse Norm Schein. — Nós acabamos de sair da cama. Mas, de qualquer modo, acho que não há nada mais a fazer..— Sombriamente, deu um pontapé numa enorme escavadeira semi-automática. O implemento estava estacionado há dias perto da entrada do alojamento. Ninguém sentira energia suficiente para subir até a superfície e reiniciar as operações de limpeza do terreno, iniciadas no começo do mês. — Mas parece uma coisa errada — murmurou. — A gente devia estar aqui em cima, trabalhando nas hortas.
— E que horta a que você tem! — disse Sam Regan com um grande sorriso. — Que troço é esse que você está cultivando ali? A coisa tem nome?
Norman Schein, com as mãos nos bolsos do macacão, foi andando pelo solo arenoso e frouxo, de escassa vegetação, até sua horta, outrora cuidadosamente tratada. Parou para olhar acima e abaixo dos leirões, na esperança de que houvessem brotado mais algumas das sementes especialmente preparadas. Nenhuma brotara.
— Acelga suíça — disse encorajador Tod. — Certo? Embora transformada, ainda reconheço as folhas.
Arrancando uma folha, Norm mastigou-a e, em seguida, cuspiu-a. A folha era amarga e estava coberta de areia.
Nesse momento, Helen Morris saiu do alojamento, tremendo sob o frio sol marciano.
— Nós temos um problema — disse ela aos três homens. — Eu disse que os psicanalistas lá na Terra estão cobrando 50 dólares por hora e Fran diz que é por apenas 45 minutos. — E explicou: — Nós queremos incluir um analista em nosso cenário, e queremos a coisa certa, porque é uma amostra autêntica, feita na Terra e enviada para cá, caso vocês se lembrem daquela nave de Bulero que apareceu por aqui na semana passada...
— Nós nos lembramos — disse azedo Norm Schein. — E dos preços pedidos pelo vendedor de Bulero. E durante todo o tempo, lá no satélite, Allen e Charlotte Faine promoviam as diferentes amostras, aguçando o apetite de todo mundo.
— Pergunte aos Faines — disse Tod, marido de Helen. — Entre em comunicação pelo rádio com eles na próxima vez em que o satélite passar lá por cima. — Lançou um olhar ao relógio de pulso. — Dentro de mais uma hora. Eles dispõem de todos os dados sobre as amostras autênticas. Na verdade, esse dado particular devia ter sido incluído com a própria amostra, dentro da caixa de papelão.
O caso perturbava-o porque, claro, fora seu dinheiro — o dele e o de Helen, juntos — que havia custeado a pequenina estatueta do psicanalista, incluindo o sofá, a escrivaninha, o tapete e uma estante de tratados médicos, impressionantes, incrivelmente bem miniaturizados.
— Quando ainda estava na Terra, você se tratava com um analista — disse Helen a Norm Schein. — Qual era o preço da sessão?
— Bem, eu fazia principalmente terapia de grupo — explicou Norm. — Na Clínica de Higiene Mental da Berkeley State, e eles cobravam de acordo com a capacidade de pagar de cada um. E, claro, Perky Pat e seu namorado tratam-se com analista particular. — Começou a percorrer todo o comprimento da horta, que lhe fora solenemente entregue, com escritura e tudo, por entre os leirões de folhas denteadas, todas até certo ponto esfiapadas e devoradas por pragas nativas microscópicas. Se pudesse encontrar uma única planta sadia, que não houvesse sido tocada, isso seria suficiente para lhe restabelecer o bom humor. Inseticidas trazidos da Terra simplesmente não haviam funcionado ali. As pragas nativas floresceram com eles. Haviam estado à espera, por dezenas de milhares de anos, marcando o tempo, até que alguém aparecesse e tentasse iniciar culturas de alguma coisa.
— É melhor você aguar um pouco as plantas — sugeriu Tod.
— Isso mesmo — concordou Norm Schein: Sombriamente, dirigiu-se, fazendo voltas, para o sistema de bombeamento de água do alojamento. O sistema era ligado à rede de irrigação, nesse momento parcialmente tomada pela areia, que servia a todas as hortas do alojamento coletivo. Mas, antes de aguar, compreendeu, era preciso retirar a areia. Se não pusessem logo em funcionamento a grande escavadeira, antes de muito tempo não poderiam mais molhar as plantas, mesmo que quisessem. Mas ele não queria particularmente fazer isso.
Mas, ainda assim, não podia, como Sam Regan, simplesmente voltar as costas para a cena ali em cima, voltar ao subsolo para brincar com seu cenário, construir ou inserir novos elementos, fazer melhoramentos... ou, como sugerira Sam, pegar uma boa quantidade da Can-D cuidadosamente escondida e iniciar a comunicação. Nós temos responsabilidades, compreendeu.
Disse a Helen:
— Peça à minha mulher para vir até aqui em cima. — Ela poderia orientá-lo, enquanto ele operava a escavadeira. Fran tinha boa vista.
— Vou chamá-la — disse Sam Regan, iniciando a volta ao subsolo. — Ninguém quer vir comigo?
Ninguém o seguiu. Naquele momento, Tod e Helen Morris haviam se afastado para ir inspecionar a própria horta. Norm Schein estava ocupado, tirando o envoltório protetor da escavadeira, preparando-a para o início da operação.
Lá embaixo, Sam Regan começou a procurar Fran Schein. Encontrou-a ajoelhada diante do cenário de Perky Pat, que os Morrises e os Scheins mantinham juntos, muito atenta ao que estava fazendo.
Sem levantar a vista, Fran disse:
— Levamos Perky Pat por todo o centro da cidade, no seu novo conversível Ford de capota rígida, ela estacionou, pôs uma moeda no medidor, fez compras e nesse momento está no consultório do analista, lendo a Fortune. Mas quanto é que ela paga?
Ela ergueu a vista, alisou para trás os longos cabelos pretos e sorriu para ele. Além de qualquer dúvida, Fran era a pessoa mais bonita e mais espetacular do alojamento. Ele notou o fato nesse momento, que não era de modo algum a primeira vez.
— Como é que você pode brincar com esse cenário e não mastigar... — Olhou em volta. Os dois pareciam estar sozinhos. Inclinando-se, ele disse baixinho: — Vamos comigo e mascaremos um pouco de Can-D, de primeira. Como você e eu fizemos antes. Certo?
O coração lhe bateu forte, enquanto esperava pela resposta dela. Recordações da última vez em que os dois haviam feito o traslado juntos fizeram-no sentir-se fraco.
— Helen Morris vai...
— Não, estão preparando a escavadeira, lá em cima. Não voltarão antes de uma hora. — Segurou a mão de Fran e ergueu-a do chão. — O que chega em papel de embrulho pardo comum — disse ele, tirando-a do compartimento e entrando no corredor — deve ser usado, e não apenas enterrado. Fica velho e passado. Perde a potência.
E nós pagamos muito pela potência, pensou morbidamente. Demais, para deixar que o material se estrague. Embora algumas pessoas — não naquele alojamento — alegassem que o poder de assegurar o traslado não provinha da Can-D, mas da exatidão do cenário. Na sua opinião, essa era uma idéia absurda, mas ainda assim havia quem acreditasse nela.
No momento em que entravam apressadamente no compartimento dele, Fran disse:
— Eu mascarei junto com você, Sam, mas não vamos fazer coisa alguma enquanto estivermos lá na Terra que... você sabe, nós não faríamos aqui. Quero dizer, simplesmente porque somos Pat e Walt, e não nós mesmos, isso não nos dá permissão... — Lançou-lhe uma carranca de aviso, censurando-o pela conduta anterior e por tê-la levado àquilo que ainda não fora pedido.
— Neste caso, você reconhece que vamos realmente à Terra.
Haviam discutido esse ponto — era fundamental — muitas vezes no passado. Fran tendia a assumir a atitude de que o traslado era apenas na aparência, naquilo que os colonos chamavam de acidentes — meras manifestações externas dos lugares e objetos envolvidos, não a essência.
— Eu acho — disse Fran lentamente, enquanto soltava os dedos dos dele e se colocava ao lado da porta do compartimento que dava para o corredor — que se é ou não um jogo de imaginação, uma alucinação induzida pela droga, ou um transporte real de Marte para a Terra, como se por intermédio de uma agência da qual nada sabemos... — Mais uma vez, fitou-o severamente. — Acho que devemos nos abster, a fim de não contaminar a experiência de comunicação. — Enquanto observava-o remover cuidadosamente a cama de metal da parede e estender o braço, com um gancho alongado na mão, para a cavidade que apareceu, continuou: — Deve ser uma experiência purificadora. Perdemos nossos corpos de carne, nossa corporalidade, como eles dizem. E, em vez disso, assumimos corpos imperecíveis, pelo menos durante algum tempo. Ou para sempre, se você acredita, como algumas pessoas, que isso ocorre fora do tempo e do espaço, que é eterno. Você não concorda, Sam? — Suspirou. — Sei que não concorda.
— Espiritualidade — disse ele com desprezo, puxando o pacote de Can-D da cavidade embaixo do compartimento. — Uma negação da realidade e, em troca, o que é que a gente consegue? Nada.
— Reconheço — disse Fran, aproximando-se mais para vê-lo abrir o pacote — que não posso provar que a gente consegue alguma coisa em troca, em virtude de abstenção. Mas sei o seguinte: o que você e outros sensuais entre nós não compreendem é que, quando mascamos Can-D e deixamos nossos corpos, nós morremos. E, morrendo, perdemos o peso do... — Ela hesitou.
— Diga — insistiu Sam, abrindo o pacote. Com uma faca, cortou uma fatia da massa de fibras pardas, duras, que pareciam de vegetal.
Fran disse:
— Pecado.
Sam Regan soltou uma sonora gargalhada.
— Muito bem... Pelo menos, você é ortodoxa. — Isto porque a maioria dos colonos concordaria com Fran. — Mas — continuou ele, recolocando o pacote no esconderijo — esse não é o motivo por que eu masco a coisa. Eu não quero perder nada... Quero ganhar algo... — Fechou a porta do compartimento, rapidamente tirou seu próprio cenário de Perky Pat, estendeu-o no chão e colocou cada objeto em seu lugar, trabalhando com ansiosa rapidez. — Algo a que normalmente não temos direito — acrescentou, como se Fran não soubesse.
O marido dela — ou a esposa dele, ou os dois, ou qualquer pessoa do alojamento — poderia aparecer enquanto ele e Fran estivessem em estado de traslado. E os corpos de ambos estariam sentados a distância correta um do outro, nenhuma transgressão poderia ser observada, por mais pudicos fossem os observadores. Legalmente, houvera uma decisão judicial a esse respeito: nenhuma coabitação podia ser provada. Especialistas jurídicos, entre as autoridades da ONU em Marte e em outras colônias, haviam tentado — e fracassado. No traslado, a pessoa podia cometer incesto, assassinato, qualquer crime, que este permanecia, do ponto de vista jurídico, uma mera fantasia, apenas um desejo irrealizado.
Esse fato altamente interessante havia-o viciado há muito tempo no uso do Can-D. Para ele, a vida em Marte tinha poucas compensações.
— Eu acho — disse Fran — que você está me tentando a pecar.
Sentando-se, ela pareceu triste, os olhos grandes e pretos fixados perdidamente num ponto no centro do cenário, perto do imenso guarda-roupa de Perky Pat. Distraidamente, começou a brincar com um casaco miniaturizado de arminho, calada.
Ele lhe entregou meia fatia de Can-D, enfiou seu pedaço na boca e começou a mastigar avidamente.
Parecendo ainda triste, Fran também mastigou.
Ele era Walt. Possuía uma nave esporte Jaguar XXB, capaz de uma velocidade de cruzeiro de 25 mil quilômetros por hora. Suas camisas vinham da Itália e seus sapatos eram feitos na Inglaterra. Abrindo os olhos, procurou o pequeno conjunto relógio-aparelho de televisão G.E., ao lado da cama. Estaria ligado no automático, sintonizado para o programa matutino do grande palhaço do noticiário, Jim Briskin. Usando flamejante peruca vermelha, Briskin já estava aparecendo na tela. Walt sentou-se, tocou um botão, que girou a cama e alterou sua forma para colocá-lo sentado. Recostou-se para assistir, durante um momento, o programa em andamento.
— Estou aqui na esquina da Van Ness e Market, no centro de São Francisco — disse Briskin em voz bem modulada — e estamos prestes a assistir à inauguração de um novo e interessante condomínio de apartamentos no subsolo, o Sir Francis Drake, o primeiro a ser inteiramente subterrâneo. Conosco, aqui, para inaugurar o edifício, à minha direita, encontra-se a encantadora cantora de baladas e...
Walt desligou a tevê, levantou-se e foi descalço até a janela. Afastou as cortinas e estendeu a vista para a quente e faiscante rua de São Francisco no começo da manhã, para os morros e casas brancas. Era uma manhã de sábado e não tinha que ir para seu emprego, na Ampex Corporation, em Paio Alto. Em vez disso — e o pensamento vibrou agradável em sua mente — tinha um encontro com a namorada, Pat Christensen, no pequeno e moderno apartamento dela na Potrero Hill.
Era sempre sábado.
No banheiro, lavou o rosto com água, espremeu o creme e começou a barbear-se. Enquanto se barbeava, olhando para as feições conhecidas no espelho, viu uma nota presa na moldura, com sua própria caligrafia.
Isto é uma ilusão. Você é Sam Regan , um colono em Marte.
Aproveite seu tempo de traslado, meu chapa, telefone logo para Pat, já!
E a nota era assinada por Sam Regan.
Uma ilusão, pensou, parando de barbear-se. De que maneira? Tentou recordar-se. Sam Regan e Marte, um pequeno alojamento de colonos... Sim, obscuramente podia evocar a imagem, mas ela lhe parecia remota, distorcida, nada convincente. Encolhendo os ombros, voltou a barbear-se, perplexo nesse instante, e um pouco deprimido. Muito bem, suponhamos que a nota fosse correta. Talvez ele se lembrasse realmente daquele outro mundo, da sombria quase-vida de expatriação involuntária, num ambiente antinatural. E daí? Por que teria que arruinar a situação presente? Estendendo o braço, puxou a nota, amassou-a e lançou-a na calha de lixo do banheiro.
Logo que terminou de barbear-se, videofonou para Pat.
— Ouça aqui — disse ela imediatamente, fria e seca. Na tela, seus cabelos louros brilhavam. Ela os estava secando. — Não quero vê-lo, Walt. Por favor. Porque, agora, sei o que você tem em mente e simplesmente não estou interessada, compreendeu? — Seus olhos azuis-cinza eram frios.
— Hummm — respondeu ele, abalado, tentando pensar numa resposta. — Mas está fazendo um dia maravilhoso... A gente devia sair. Visitar o Parque do Golden Gate, talvez.
— Vai fazer calor demais para sair.
— Não — discordou ele, irritado. — Isso vai ser mais tarde. Ei, a gente podia passear pela praia, brincar com as ondas.
Ela hesitou, visivelmente.
— Mas aquela conversa que nós tivemos, imediatamente antes...
— Não houve conversa. Eu não a vejo há uma semana. Hummm — respondeu ele — desde o último sábado. — Deu à voz um tom quanto possível firme e bastante convicto. — Passo por aí dentro de meia hora e pego você. Vá com aquele seu maio, você sabe, o amarelo. O espanhol, com sutiã.
— Oh — retrucou ela desdenhosa — aquilo está inteiramente fora de moda agora. Eu tenho um novo, da Suécia. Você não o viu ainda. Vou usá-lo, se for permitido. A moça da A & F não tinha certeza.
— Combinado, então — disse ele, e desligou.
Meia hora depois, dirigindo o Jaguar, aterrou no campo elevado do condomínio de apartamentos dela.
Pat estava com um suéter e calças compridas. O maio, explicou, estava por baixo. Carregando uma cesta de piquenique, seguiu-o rampa acima até a aeronave estacionada. Cheia de vivacidade e bonita, ela tomou logo a frente, martelando com as sandálias no chão. Estava tudo correndo como ele esperara. Afinal de contas, aquele ia ser um bom dia, depois de desfeitas as apreensões iniciais... como, graças a Deus, havia acontecido.
— Espere só até que você veja este maio — disse ela, escorregando para dentro da aeronave estacionada, com a cesta no colo. — E um modelo realmente ousado. É um quase nada. Na verdade, é necessário que se suponha a sua existência — Quando se sentou a seu lado, inclinou-se para ele. — Estive pensando naquela conversa que tivemos... Deixe que eu termine. — Pôs os dedos nos lábios dele, calando-o. — Eu sei que houve essa conversa, Walt. Mas, de certa maneira, você tem razão. Na verdade, basicamente, sua atitude é a correta. Devemos tentar obter isto o máximo que pudermos. Nossa vida já é curta demais... pelo menos é o que me parece. — Sorriu languidamente. — Por isto dirija com toda rapidez possível. Quero chegar ao oceano.
Quase imediatamente estavam aterrando no pátio de estacionamento à beira da praia.
— Vai ficar cada vez mais quente — disse Pat com tristeza — Cada dia mais, não é? Até que, finalmente, se torne insuportável. — Tirou o suéter e em seguida, remexendo-se no assento da nave, conseguiu sair de dentro das calças compridas. — Mas nós não vamos viver tanto tempo assim... Daqui a cinqüenta anos ninguém poderá mais sair à rua ao meio-dia. Como dizem por aí, a rua poderá servir para cães danados e para ingleses, mas não chegamos ainda a isso.
Abriu a porta e saiu, com o "maio". Ela dissera a verdade. Era preciso fé em coisas invisíveis para ver "naquilo" algum trajo. Mas, para os dois, era inteiramente satisfatório.
Juntos caminharam devagar pela areia úmida, compacta, examinando as águas-vivas, conchas e seixos, os destroços atirados pelas ondas.
— Em que ano estamos? — perguntou de repente Pat, parando. O vento lançava para trás seus cabelos soltos, erguia-os em massa, dando a aparência de uma nuvem amarela, clara, brilhante, muito limpa, distinguindo-se fio por fio.
— Bem, acho que é... — disse ele. Mas não conseguiu lembrar-se. O ano lhe escapava. — Raios! — explodiu irritado.
— Bem, não tem importância. — Enlaçando o braço no dele, ela continuou a andar. — Olhe, há um pequeno lugar protegido ali na frente, do outro lado daquelas pedras. — Aumentou o ritmo da marcha e o corpo ondeou, forte, os músculos rígidos forçando contra o vento, a areia e a velha e conhecida gravidade de um mundo perdido há muito tempo. — E eu sou o que... qual é o nome dela... Fran? — perguntou de repente. Passou pelas pedras, a espuma e a água rolando por cima de seus pés, cobrindo os tornozelos. Rindo, deu um salto, estremecendo com o frio súbito. — Ou sou Patrícia Christensen? — Com ambas as mãos, alisou os cabelos.
— Estes são louros, de modo que posso ser Pat. Perky Pat. — Desapareceu por trás das pedras. Ele seguiu-a rapidamente, tropeçando, no encalço dela. — Eu era Fran — disse ela empertigando-se
— mas isso não tem importância agora. Eu podia ter sido qualquer pessoa antes, Fran, ou Helen, ou Mary, e isso não teria a menor importância agora. Certo?
— Não — discordou ele, emparelhando-se com ela. Arque-jante, disse: — E importante que você seja Fran. Em essência.
— Em essência. — Lançou-se no chão, apoiando-se num cotovelo, e fez desenhos na areia com uma pedra preta pontuda, em movimentos violentos que deixavam sulcos profundos. Quase no mesmo instante, jogou fora a pedra e sentou-se de frente para o oceano. — Mas os acidentes... Eles são de Pat. — Pôs as mãos sob os seios, erguendo-os languidamente, com uma expressão de perplexidade no rosto. — Estes — disse — são de Pat. Não meus. Os meus são menores, lembro-me.
Ele sentou-se ao lado dela, mas continuou calado.
— Nós estamos aqui — continuou ela imediatamente — para fazer o que não podemos fazer no alojamento. Lá, onde deixamos nossos corpos corruptíveis. Enquanto conservarmos nossos cenários em condições de funcionamento, isto... — fez um gesto para o oceano e mais uma vez tocou em seu corpo, incrédula — isto não pode desintegrar-se. Nós assumimos a imortalidade. — De repente, deixou-se cair para trás, estirada na areia, e fechou os olhos, com um braço sobre o rosto. — E uma vez que estamos aqui, e que podemos fazer as coisas que nos são negadas no alojamento, sua teoria é que devemos fazer essas coisas. Devemos aproveitar a oportunidade.
Ele inclinou-se e beijou-a na boca.
Dentro de sua mente, uma voz disse: "Mas eu posso fazer isso em qualquer ocasião." Nos membros de seu corpo, um domínio estranho fez-se sentir. Voltou a sentar-se, afastando-se da moça. "Afinal de contas", pensou Norm Schein, "eu sou casado com ela." Riu, então.
"— Quem foi que disse que você podia usar meu cenário?" — pensou zangado Sam Regan. — "Saia de meu compartimento. E aposto que essa também é minha Can-D."
"— Você nos ofereceu a droga" — respondeu o co-habitante de sua mente-corpo. — "De modo que resolvi pegá-lo na palavra."
"— Eu também estou aqui" — pensou Tod Morris. — "E se quer saber minha opinião..."
"— Ninguém pediu sua opinião" — pensou zangado Norm Schein. — "Na verdade, ninguém pediu que você viesse conosco. Por que você não volta lá pra cima e vai mexer naquela sua horta ordinária e acabada, onde, aliás, devia estar?"
Tranqüilamente, Tod Morris pensou: "Estou de acordo com Sam. Não tenho oportunidade de fazer isto, exceto aqui."
O poder de sua vontade combinou-se com o de Sam. Mais uma vez Walt inclinou-se sobre a moça deitada. Mais uma vez beijou-a na boca e, desta vez, com força, com agitação crescente.
Sem abrir os olhos, Pat disse em voz baixa:
"— Eu também estou aqui. Sou eu, Helen" — acrescentou. — "E Mary, também. Mas nós não estamos usando seu suprimento de Can-D, Sam. Nós trouxemos um pouco do que já temos."
Ela pôs os braços em volta dele, enquanto as três encarnações de Perky Pat reuniam-se em uníssono num único esforço. Tomado de surpresa, Sam Regan rompeu contato com Tod Morris e associou-se ao esforço de Norm Schein. Walt continuou sentado longe de Perky Pat.
As ondas do oceano lamberam os dois, deitados em silêncio na praia, dois corpos abrangendo a essência de seis pessoas. Duas em seis, pensou Sam Regan. O mistério se repetia. Como era que aquilo se realizava? A velha pergunta, novamente. Mas tudo o que me importa, pensou, é se eles estão ou não usando minha Can-D. E aposto que estão! Não me interessa o que eles digam. Não acredito neles.
Levantando-se, Perky Pat disse:
"— Bem, estou vendo que posso ir nadar um pouco. Não há nada a fazer aqui." — Entrou chapinhando na água e se afastou, enquanto eles continuavam sentados em seus corpos, observando-a.
"— Perdemos nossa oportunidade" — pensou ironicamente Tod Morris.
"— Culpa minha" — reconheceu Sam. Fundindo-se, ele e Tod conseguiram levantar-se. Deram alguns passos acompanhando a moça e, em seguida, com água pelos tornozelos, pararam.
Sam Regan já podia sentir a potência da droga diminuindo, e foi tomado de fraqueza, medo e amargura doentia pela compreensão desse fato. Tão cedo, disse a si mesmo. Tudo acabado, de volta ao alojamento, ao buraco onde nos contorcemos e nos acovardamos como vermes num saco de papel, escondidos da luz do sol, brancos, pálidos, horrendos. Arrepiou-se todo.
Estremeceu e viu, mais uma vez, seu compartimento, a minúscula cama, lavatório, escrivaninha, fogão... e derreados como trouxas inertes, as cascas vazias de Tod e Helen Morris, Fran e Norm Schein, sua própria esposa, Mary, olhos fixando, vazios, o espaço. Consternado, desviou a vista.
No chão entre eles, o cenário. Olhando para baixo, viu os bonecos, Walt e Pat, colocados à beira do oceano, perto do Jaguar estacionado. E, realmente, Perky Pat usava o maio sueco quase inexistente. Junto a eles, viu uma pequenina cesta de piquenique.
E, ao lado do cenário, um pedaço de papel pardo comum, onde estivera embrulhada a Can-D. Juntos, os cinco haviam acabado com a droga. Mesmo naquele momento, enquanto olhava — contra sua vontade — viu um pequeno e fino gotejamento de lustroso caldo marrom emergir das bocas moles, abúlicas, de cada um deles.
À sua frente, Fran Schein mexeu-se, abriu os olhos, gemeu, focalizou-se nele e suspirou cansada.
— Eles conseguiram nos encontrar — disse ele.
— Nós demoramos demais. — Ela levantou-se cambaleante, tropeçou e quase caiu. Imediatamente, ele ergueu-se também e segurou-a. — Você teve razão. Devíamos ter feito aquilo imediatamente, se era nossa intenção. Mas... — deixou, por um momento, que ele continuasse a segurá-la — eu gostei dos preliminares. Passeando pela praia, mostrando-lhe aquele maio que não é maio. — Sorriu de leve.
— Eles vão ficar inconscientes por mais alguns minutos, aposto — disse Sam.
Com os olhos arregalados, Fran concordou:
— Isso mesmo, você tem razão. — Esgueirou-se para longe dele, dirigindo-se para a porta. Abrindo-a, desapareceu no corredor. — Para nosso compartimento — gritou de lá. — Depressa!
Satisfeito, ele seguiu-a. Era divertido demais, e ele teve um acesso de riso. A sua frente, a moça subia correndo a rampa em direção a seu nível no alojamento. Emparelhou-se com ela e segurou-a quando chegaram ao compartimento onde ela residia. Juntos, entraram atabalhoados, rolaram rindo e lutando pelo duro chão de metal até se chocarem com a parede distante.
Nós vencemos, afinal de contas, pensou ele, enquanto habilmente soltava o sutiã dela, começava a desabotoar-lhe a saia, baixava o fecho e lhe tirava os sapatos sem cadarços numa única rápida operação. Fazia tudo ao mesmo tempo. Fran suspirou, só que desta vez não de cansaço.
— E melhor eu fechar a porta.
Levantou-se, correu para a porta e fechou-a com segurança. Fran, enquanto isso, saía de dentro das roupas soltas.
— Volte — insistiu ela. — Não fique simplesmente olhando. Arrumou as roupas numa trouxa apressada, e os sapatos em
cima, como se fossem dois pesos de papel.
Ele voltou para o lado dela e os dedos inteligentes, rápidos, da moça-começaram a trabalhar nele, com olhos escuros brilhando, para deleite dele.
E ali mesmo, na lúgubre residência que possuíam em Marte. Ainda assim... eles haviam conseguido isto da velha maneira, da única maneira, graças à droga trazida pelo furtivo traficante. A Can-D tornara aquilo possível. Continuavam a precisar dela. De maneira alguma eles eram livres.
E quando os joelhos de Fran apertaram seus flancos nus, ele pensou: E de maneira alguma queremos ser. Na verdade, acontece justamente o contrário. Enquanto suas mãos desciam pelo estômago liso, trêmulo dela, ele pensou ainda: Nós poderíamos mesmo usar um pouco mais.

Quatro
Na RECEPÇÃO do Hospital de Veteranos James Riddle, na Base III, em Ganimedes, Leo Bulero inclinou o caro chapéu-coco de peles, feito a mão, na direção da moça de uniforme branco engomado e disse:
— Eu vim aqui visitar um paciente, o senhor Eldon Trent.
— Sinto muito, senhor ... — começou a moça, mas ele interrompeu-a:
— Diga a ele que Leo Bulero está aqui. Entendeu? Leo Bulero.
Seis olhos deslizaram por trás 'da mão dela e chegaram ao registro. Viu o número do quarto de Eldritch. Enquanto a moça se virava para a mesa telefônica, ele foi se afastando na direção daquele número. O diabo que levasse a espera, disse a si mesmo. Viajei milhões de quilômetros e espero ver o homem, ou a coisa, o que quer que seja.
Um soldado da ONU, armado de fuzil, barrou-lhe a entrada à porta do quarto, um homem muito jovem, com olhos claros e frios de moça. Olhos que diziam enfaticamente não, mesmo a ele.
— Muito bem — resmungou Leo. — Entendo. Mas, se soubesse que estou aqui, ele me deixaria entrar.
Ao seu lado, ao seu ouvido, sobressaltando-o, uma seca voz feminina disse:
— Como foi que o senhor descobriu que meu pai está aqui, senhor Bulero?
Ele virou-se e viu uma mulher bastante corpulenta, de mais de trinta anos. Ela fitava-o com grande atenção. Ele pensou: Esta é Zoé Eldritch. Eu devia saber. Ela aparece nas colunas sociais dos jornais com muita freqüência.
Um oficial da ONU aproximou-se nesse momento.
— Senhorita Eldritch, se quiser, podemos expulsar o senhor Bulero deste edifício. Depende da senhorita.
Sorriu cordialmente para Leo, que imediatamente o identificou. Aquele homem era o chefe da Divisão Jurídica da ONU, o superior de Ned Lark, Frank Santina. Olhos pretos, alerta, somaticamente vibrantes, alternavam entre ele e Zoé Eldritch, esperando a resposta dela.
— Não — disse finalmente Zoé. — Pelo menos, não neste instante. Não, até que eu saiba como ele descobriu que papai está aqui. Ele não pode saber. O senhor pode, senhor Bulero?
— Através de um de seus precogs pré-sucesso, provavelmente. Não foi assim, Bulero?
Agora relutante, Leo inclinou a cabeça.
— A senhora compreende, senhorita Eldritch — explicou Santina — um homem como Bulero pode contratar quem quer que queira, qualquer forma de talento. De modo que estávamos à espera dele. — Indicou os dois guardas uniformizados e armados à porta de Palmer Eldritch. — É por isso que precisamos de dois deles, o tempo todo. Como eu tentei explicar à senhorita.
— Não há nenhuma maneira que eu possa fazer negócio com Eldritch? — perguntou Leo. — Foi para isso que vim aqui. Não tenho coisa alguma de ilegal em mente. Acho que vocês todos estão malucos, ou então tentando esconder alguma coisa. Talvez vocês tenham a consciência culpada. — Observou-os de soslaio, mas nada viu. — É realmente Palmer Eldritch quem está aí dentro? — perguntou. — Aposto que não é. — Mais uma vez, não conseguiu reação alguma. Nenhum dos dois pegou a isca. — Estou cansado — continuou. — Foi uma longa viagem até aqui. O diabo leve tudo isto. Vou comer alguma coisa, arranjar um quarto de hotel, dormir durante dez horas e esquecer tudo isto. — Virando-se, afastou-se em passos duros.
Nem Santina nem a senhorita Eldritch tentaram detê-lo. Desapontado, continuou a andar, sentindo uma repugnância opressiva por tudo.
Obviamente, teria que chegar a Palmer Eldritch através de algum intermediário. Talvez, refletiu, Félix Blau e sua polícia particular pudessem varar o cerco. Valia a pena tentar.
Mas logo que se tornava tão deprimido assim, coisa alguma parecia importar. Por que não fazer como dissera, comer alguma coisa e ter algum descanso necessário e, por ora, esquecer de tentar entrar em contato com Eldritch? O diabo leve todos eles, disse a si mesmo, quando deixou o hospital e começou a descer a calçada, à procura de um táxi. Aquela filha, pensou, de aparência dura, parecendo uma lésbica, com os cabelos cortados curtos e sem maquilagem. Arre!
Encontrou um táxi e ganhou os ares, pensando durante algum tempo no que fazer.
Usando o videofone do táxi, entrou em contato com Félix, na Terra.
— Que bom que você ligou — disse Félix Blau, logo que o identificou. — Há uma empresa que surgiu em Boston, em circunstâncias estranhas. Parece ter surgido da noite para o dia, inteiramente formada, incluindo...
— O que é que ela está fazendo?
— Preparando-se para lançar alguma coisa no mercado. A maquinaria já está instalada, incluindo três satélites de publicidade, semelhantes aos seus, um em Marte, outro em Io e o terceiro em Titã. O boato que ouvi é que está se aprontando para entrar no mercado com uma mercadoria que concorre diretamente com seus cenários de Perky Pat. Será chamada de Boneca Companheira Connie. — Sorriu por um instante. — Isso não é engraçado?
— O que é que você me diz... você sabe do aditivo? — perguntou Leo.
— Nenhuma informação ainda sobre isso. Supondo que haja um deles, seria, presumivelmente, fora do âmbito legal das atividades de comercialização. Um cenário de miniaturas serve para alguma coisa sem... o "aditivo"?
— Não.
— Então esse dado parece responder à sua pergunta.
— Liguei para saber se você pode dar um jeito de eu poder conversar com Palmer Eldritch. Localizei-o aqui, na Base III, em Ganimedes.
— Lembra-se de meu relatório, no sentido de que Eldritch importou um líquen semelhante ao usado na fabricação da Can-D? Já lhe ocorreu que essa empresa de Boston pode ter sido criada por Eldritch? Embora pareça muito cedo para isso. Ainda assim, ele poderia ter-se comunicado há dez anos, a esse respeito, com a filha.
— Eu tenho que conversar com ele — disse Leo.
— É o Hospital James Riddle, acho. Nós pensamos que ele poderia estar aí. A propósito, já ouviu falar em um homem chamado Richard Hnatt?
— Nunca.
— Um representante dessa nova firma de Boston encontrou-se com ele e os dois fizeram algum tipo de negócio. Esse representante, Icholtz...
— Que confusão — disse Leo. — E não consigo nem mesmo falar com Eldritch. Santina está montando guarda à porta, juntamente com aquela filha sapatão de Palmer. — Ninguém conseguiria passar por eles, concluiu.
Deu a Félix Blau o endereço do hotel na Base III, onde deixara sua bagagem, e desligou.
Aposto que ele tem razão, pensou. Palmer Eldritch é o concorrente. Que azar o meu. Estar logo nesta linha de produtos que Eldritch, de volta de Prox, resolve explorar. Por que é que eu não poderia estar fabricando sistemas de orientação de foguetes e concorrendo apenas com a G.E. e a General Dynamics?
Nesse momento, pensou seriamente no líquen que Eldritch trouxera. Um melhoramento em relação a Can-D, talvez. Mais fácil de produzir, capaz de gerar traslados de maior duração e intensidade. Jesus!
Pensando no assunto, uma bizarra recordação surgiu em sua mente. Uma organização, originária da República Árabe Unida, assassinos treinados, de aluguel. Mas que não teriam chance alguma contra um homem como Palmer Eldritch... Um homem como aquele, uma vez tenha resolvido fazer alguma coisa...
Ainda assim, a precognição de Rondinella Fugate persistia. No futuro, ele seria acusado do assassinato de Palmer Eldritch.
Evidentemente, encontraria um meio, a despeito de todos os obstáculos.
Levava consigo uma arma tão pequena, tão imperceptível, que nem mesmo a revista mais detalhada podia descobri-la. Há algum tempo, em Washington, D.C., um cirurgião a costurara em sua língua: um dardo envenenado auto-orientável, seguindo os modelos soviéticos... mas muitíssimo aperfeiçoado. Uma vez alcançada a vítima, obliterava-se, sem deixar vestígios. O veneno também era original. Não cortava a ação cardíaca ou respiratória. Na verdade, não era um veneno, mas um vírus filtrável que se multiplicava na corrente sangüínea da vítima, ocasionando a morte dentro de 48 horas. Era carcinomatoso, importação de uma das luas de Urano e ainda geralmente desconhecido. O implante lhe custara uma fortuna. Tudo o que precisava fazer era colocar-se ao alcance da vítima escolhida e, com a mão, apertar a base da língua, estirando-a ao mesmo tempo na direção da vítima. De modo que, se pudesse visitar Eldritch...
E é melhor eu providenciar isso, compreendeu, antes que essa nova empresa de Boston inicie a produção. Antes que possa funcionar sem Eldritch. Como qualquer erva daninha, tinha que ser detida cedo, ou não se poderia detê-la mais.
Ao chegar ao quarto do hotel, ligou para a P.P. Layouts, a fim de verificar se chegara alguma mensagem vital ou se havia fatos importantes à espera de sua atenção.
— Ah... — disse a senhorita Gleason, logo que o reconheceu. — — Recebemos uma chamada urgente de uma certa senhorita. Impatient White... se esse é mesmo o nome dela, se é que eu entendi bem. O número é este. Um número de Marte. — Pôs um pedaço de papel diante da tela.
No início, Leo não conseguiu identificar mulher alguma chamada White. Depois, soube quem era... e sentiu medo. Por que ela telefonara?
— Obrigado — murmurou, e desligou imediatamente. Deus, se a Divisão Jurídica da ONU monitorara a chamada... Isto porque Impy White, operando a partir de uma base em Marte, era uma das grandes traficantes da Can-D.
Com grande relutância, ligou para o número.
Rosto pequeno, olhos agudos, bonitinha no estilo minúsculo, Impy White começou a aparecer na tela. Pensara que ela fosse muito mais corpulenta. Parecia um duende, embora feroz, duro.
— Senhor Bulero, logo que eu contar...
— Não há outra maneira? Nenhum outro canal?
Havia um método através do qual Conner Freeman, chefe da operação venusiana, podia entrar em contato com ele. A senhorita White poderia ter agido através de Freeman, que era seu chefe.
— Esta manhã, senhor Bulero, visitei um alojamento mo sul de Marte, levando um carregamento. O pessoal de lá recusou, dizendo que gastara todas as suas peles num novo produto. Da mesma classe que... que o que vendemos. Marcar-Z — continuou — e...
Leo Bulero desligou e ficou tremendo, em silêncio, pensando.
Não posso me deixar abalar, disse a si mesmo. Afinal de contas, sou uma variedade humana evoluída. Então, é isso. Esse é o novo D' duto daquela firma de Boston. Derivado do líquen de Eldritch, tenho que supor isso. Ele está esticado em sua cama de hospital, a não mais de quilômetro e meio daqui, dando ordens, sem dúvida, através de Zoé, e não há coisa alguma que eu possa fazer. A operação está toda montada e funcionando. Já estou atrasado demais. Mesmo esta coisa em minha língua, compreendeu. É inútil, agora.
Mas vou pensar em alguma coisa, sei. Eu sempre penso.
Aquele não era, exatamente, o fim da P. P. Layouts.
A única coisa era: o que era que ele podia fazer? A solução lhe escapava e esse fato não lhe diminuía a preocupação suada, nervosa.
Apareça, idéia de desenvolvimento cortical, artificialmente acelerada, disse numa oração. Ajuda-me, Deus, a derrotar meus inimigos, os filhos da puta. Talvez, se eu usar meus precogs de pré-sucesso, Roni Fugate e Barney... Talvez eles possam sugerir alguma coisa. Especialmente aquele velho profissional, Barney. Ele ainda não foi absolutamente envolvido nisto.
Mais uma vez, fez uma ligação para a P.P. Layouts, na Terra. Desta vez, pediu que o ligassem com o departamento de Barney Mayerson.
Lembrou-se nesse momento do problema de Barney com a convocação, da necessidade dele de desenvolver incapacidade de tolerar stress, a fim de não acabar num alojamento em Marte.
Sombrio, pensou, eu darei essa prova. Para ele, o perigo de ser convocado já passou.
Ao chegar a chamada de Leo Bulero, de Ganimedes, Barney Mayerson encontrava-se sozinho em seu gabinete.
A conversa não durou muito tempo. Quando desligou, lançou um olhar ao relógio e ficou atônito. Cinco minutos. Aquilo parecera um grande intervalo em sua vida.
Erguendo-se da escrivaninha, apertou o botão do intercomunicador e disse:
— Não deixe ninguém entrar, por algum tempo. Nem mesmo... especialmente, nem mesmo... a senhorita Fugate. — Foi até a janela e ficou olhando para a rua quente, ofuscante, vazia.
Leo estava lançando todo o problema em suas mãos. Era a primeira vez em que via o patrão entrar em colapso. Imagine só, pensou, Leo Bulero confuso... com a primeira concorrência que jamais enfrentara na vida. Ele, simplesmente, não estava acostumado àquilo. A existência da nova companhia de Boston havia, por ora, desorientado inteiramente o chefe. O homem transformara-se em criança.
Eventualmente, Leo daria um jeito de escapar daquela situação, mas, entrementes — o que é que eu posso tirar disto? perguntou Barney Mayerson a si mesmo, e não obteve imediatamente qualquer resposta. Posso ajudar Leo... mas, exatamente, o que Leo pode fazer por mim? Esta era uma pergunta mais de seu agrado. Na verdade, tinha que pensar no caso dessa maneira. O próprio Leo lhe ensinara isso, durante todos aqueles anos. O patrão não quereria a coisa de outra maneira.
Durante algum tempo, ficou meditando. Em seguida, conforme as instruções de Leo, voltou a atenção para o futuro. E, enquanto fazia isso, explorou mais uma vez sua própria situação de possível convocado. Tentou ver, exatamente, como a situação se resolveria.
A questão de ser convocado, porém, era pequena demais, uma insignificância microscópica, para estar registrada nos anais públicos dos grandes. Não poderia vasculhar manchetes de jornal, escutar noticiários... No caso de Leo, porém, a situação era muito diferente. Porque preconheceu certo número de artigos de primeira página a respeito de Leo e Palmer Eldritch. Tudo, claro, era vago, e visões alternativas apresentavam-se, num caos completo. Leo encontrava-se com Eldritch. Leo não se encontrava. E — nessa ocasião concentrou-se fortemente — Leo era acusado do assassinato de Palmer Eldritch. Deus do céu, o que era que aquilo significava?
Significava, descobriu com um exame mais atento, exatamente o que a visão dizia. E se Leo fosse preso, julgado e condenado, aquilo poderia significar o fim da P.P. Layouts como empresa que pagava salário. E, com isso, o fim de uma carreira à qual já sacrificara tudo mais na vida, seu casamento e a mulher que ele — mesmo naquele momento — amava.
Obviamente, era uma vantagem, uma necessidade, de fato, avisar Leo. Mas mesmo esse dado podia ser transformado em vantagem.
Ligou para Leo:
— Tenho notícias para você.
— Ótimo — respondeu Leo, radiante, com seu rosto alongado e alargado, coroado com uma casca e manifestando alívio. — Continue, Barney.
— Haverá dentro em breve — disse Barney — uma situação que você poderá explorar. Conseguirá dar um jeito de falar com Palmer Eldritch... não no hospital, mas em outro lugar. Ele será retirado de Ganimedes, por ordem dele mesmo. — E acrescentou cauteloso, não querendo revelar demais a respeito dos dados que reunira: — Haverá um rompimento entre ele e a ONU. Ele está usando a ONU agora, enquanto está incapacitado, para protegê-lo. Mas, quando ficar bom...
— Detalhes — pediu imediatamente Leo, inclinando com atenção a cabeçorra.
— Há uma coisa de que eu gostaria, em troca.
— Pelo quê? — A face evoluída de Leo anuviou-se visivelmente.
— Em troca de minha informação sobre a data exata e local nos quais poderá, com sucesso, entrar em contato com Palmer Eldritch.
— E o que é que você quer, pelo amor de Deus? — resmungou. Olhou apreensivo para Barney. A Terapia E não proporcionava tranqüilidade.
— Um quarto de um por cento de sua renda bruta. Da P.P. Layouts... não incluída a renda de qualquer outra fonte. — Referindo-se com essas palavras à rede de plantações em Vênus, onde era obtida a Can-D.
— Deus dos céus — exclamou Leo, respirando com dificuldade.
— E há mais.
— O quê, mais? Suponho, você vai ficar rico.
— Quero uma reestruturação da maneira como você usa seus consultores de pré-sucesso. Todos permanecerão em seus postos, desempenharão nominalmente os cargos que ocupam, mas com a alteração seguinte: todas as decisões deles serão submetidas a mim para a palavra final. Eu darei a última palavra sobre o que eles sugerirem. De modo que não representarei mais qualquer região em especial. Você pode entregar Nova Iorque a Roni logo que...
— Sedento de poder — disse Leo, com a voz arranhando na garganta.
Barney encolheu os ombros. Que lhe importavam os qualificativos? Era o clímax de sua carreira e era isso o que importava. E todos cooperariam para isso, Leo inclusive. Na verdade, Leo em primeiro lugar.
— Muito bem — concordou Leo, inclinando a cabeça. — Você pode mandar e desmandar nos outros consultores de pré-sucesso. Isso não significa coisa alguma para mim. Agora, diga-me como, quando e onde...
— Você pode encontrar-se com Palmer Eldritch dentro de três dias. Uma das próprias naves dele, sem marca, vai tirá-lo de Ganimedes depois de amanhã, levando-o para a propriedade que ele tem em Luna. Ali ele continuará seu processo de recuperação, mas não mais em território da ONU. Frank Santina não terá mais nenhuma autoridade neste assunto, de modo que pode esquecê-lo. No dia 23, em sua propriedade, Eldritch receberá a imprensa e dará sua versão do que aconteceu durante a viagem. Estará bem-humorado... Pelo menos, é isso o que a imprensa dirá. Aparentemente sadio, satisfeito por estar de volta, convalescendo satisfatoriamente... Contará uma longa história a esse respeito...
— Simplesmente diga-me como poderei entrar. Haverá o sistema da própria segurança dele.
— A P.P. Layouts — entenda bem isso — publica um jornal comercial, trimestralmente, A Mente da Miniaturização. E uma atividade tão insignificante que você provavelmente nem sabe que ela existe.
— Você quer dizer que devo ir como repórter de nosso periódico de empresa? — Leo olhou-o fixamente. — Posso entrar na propriedade dele nessa base? — Pareceu aborrecido. — Diabo, eu não tinha que pagar a você para obter esse lixo de informação. Isso teria sido anunciado no dia seguinte, ou pouco depois... Quero dizer, se a imprensa vai estar lá, o fato deve ser divulgado.
Barney encolheu os ombros. Não se incomodou em responder.
— Acho que você me pegou — reconheceu Leo. — Eu estava aflito demais. Bem — acrescentou mais calmo — talvez você possa me dizer o que ele vai dizer à imprensa, como explicação. O que foi que ele de fato descobriu no sistema de Prox? Ele fala nos líquens que trouxe?
— Fala. Alega que são uma forma benigna, aprovada pela Divisão de Controle de Entorpecentes das Nações Unidas, que substituirá... — Hesitou. — ... certos derivados perigosos, formadores de vícios, agora amplamente usados. E...
— E — terminou Leo, com o rosto pétreo — ele vai anunciar a formação de uma companhia para vender sua mercadoria isenta de entorpecente.
— Isso mesmo — concordou Barney. — Chamada Mascar-Z, com o slogan: Mude para Melhor. Mastigue Mascar-Z.
— Que coisa terrível!
— Tudo isso foi organizado através de radiolaser intersistemas, há muito tempo, através da filha dele e com aprovação de Santina e Lark, da ONU. Na verdade, com aprovação do próprio Hepburn-Gilbert. Eles vêem nisso uma maneira de acabar com o tráfico de Can-D.
Caiu um silêncio entre eles.
— Muito bem — disse Leo asperamente, após algum tempo. — É uma pena que você não pudesse ter previsto isso há uns dois anos, mas, diabo... você é um empregado e ninguém lhe disse para fazer isso.
Barney encolheu os ombros.
Com a fisionomia sombria, Leo Bulero desligou.
Então é isso, disse Barney a si mesmo. Violei a regra número um do funcionário orientado para a carreira: nunca diga ao seu superior uma coisa que ele não quer ouvir. Bem que eu gostaria de saber quais serão as conseqüências disso.
De repente, o videofone iluminou-se. Mais uma vez, formou-se na tela a fisionomia sombria de Leo Bulero.
— Escute aqui, Barney, um pensamento acaba de me ocorrer. Isto vai magoá-lo, de modo que é melhor se preparar.
— Estou preparado. — Barney preparou-se.
— Eu esqueci, e não devia ter esquecido, que falei antes com a senhorita Fugate e que ela sabe a respeito de... certos fatos no futuro relativos a mim e a Palmer Eldritch. Fatos que, de qualquer maneira, se ela ficasse perturbada — e tiranizá-la a perturbaria — poderia levá-la a ter um ataque de raiva e nos fazer algum mal. Na verdade, comecei a pensar que, potencialmente, todos meus consultores de pré-sucesso descobririam essa informação, de modo que a idéia de você supervisionar todos eles...
— Os "fatos" — interrompeu-o Barney — têm a ver com uma acusação contra você, por assassinato, com agravantes, de Palmer Eldritch, certo?
Leo grunhiu, arquejou e olhou-o inexpressivamente. Por fim, relutante, inclinou a cabeça.
— Não vou deixar que você caia fora do acordo que acaba de fazer comigo — ameaçou Barney. — Você me fez certas promessas e eu espero que...
— Mas — grunhiu Leo — aquela moça tola... ela é instável, irá correndo contar à polícia da ONU. Barney, ela me tem nas mãos!
— E eu também — observou ele, tranqüilamente.
— Certo, mas eu o conheço há anos. — Leo parecia estar pensando rapidamente, avaliando a situação com o que gostava de chamar de estágio-seguinte-nos-poderes-evoluídos-do-tipo-Homo-sapiens, ou alguma coisa nesse sentido. — Você é meu chapa. Você não faria uma coisa dessas, e ela faria. Mas, de qualquer modo, ainda posso lhe oferecer a percentagem da renda bruta que pediu. Certo?
— Olhou ansioso para Barney, mas com uma firme determinação. Já se resolvera. — Podemos dar o assunto por encerrado neste ponto, então?
— Nós já encerramos.
— Mas, bolas, como eu disse, eu me esqueci...
— Se você não cumprir o trato — retrucou Barney — eu me demito. E levarei minha capacidade para outro lugar. — Trabalhara um número de anos grande demais para recuar nessa altura.
— Você? — perguntou incrédulo Leo. — Quer dizer, você não está simplesmente falando em ir procurar a polícia da ONU. Está falando em trocar... trocar de lado e ir trabalhar para Palmer Eldritch!
Barney ficou calado.
— Seu grandessíssimo patife — explodiu Leo. — É o que chamam tentar sobreviver em tempos como estes em que estamos. Escute aqui. Não estou lá muito certo de que Palmer o aceitaria. Provavelmente, ele já organizou seu grupo de pessoal de pré-sucesso. E se ele já não sabe da notícia a respeito de minha... — Interrompeu-se. — Isso mesmo, eu me arrisco. Acho que você sofre daquele pecado grego... Como era que o chamavam? Hubris? Orgulho, como Satã teve, querendo sobrepor-se demais. Vá em frente e domine os outros, Barney. Na verdade, faça o que quiser. Não me interessa. E toda sorte para você, cara. Mantenha-me informado sobre como está indo na vida e, na próxima vez em que sentir vontade de chantagear alguém...
Barney cortou a ligação. A tela tornou-se um cinzento informe. Cinzento, pensou ele, como o mundo dentro de mim e em volta de mim, como a realidade. Levantou-se e andou duro de um lado para o outro, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças.
Meu melhor lance, concluiu, nesta altura dos acontecimentos — Deus me perdoe — é aliar-me a Roni Fugate. Porque é dela que Leo tem medo, e com toda razão. Deve haver uma galáxia inteira de coisas que ela contaria, mas eu, não. E Leo sabe disso.
Voltando a sentar-se, mandou localizar Roni e finalmente trouxe-a ao seu gabinete.
— Oi — disse ela alegre, vistosa em seu vestido de seda estilo Pequim, sem sutiã. — O que é que há? Tentei falar com você há um minuto, mas...
— Você simplesmente nunca — disse ele — nunca está com todas as suas roupas. Feche a porta.
Ela fechou.
— Contudo — disse ele — para lhe fazer justiça digo que foi muito boa na cama na noite passada.
— Obrigada. — O rosto jovem e claro animou-se.
— Você previu claramente que nosso patrão vai assassinar Palmer Eldritch? Ou há alguma dúvida?
Engolindo em seco, ela baixou a cabeça e murmurou:
— Você simplesmente transborda talento. — Sentou-se, e cruzou as pernas que, notou ele, estavam sem meias. — Claro que há dúvida. Em primeiro lugar, seria estúpido da parte do senhor Bulero porque, claro, isso significa o fim da carreira dele. Os jornais não dizem — não querem dizer — quais os motivos dele para ter feito aquilo, de modo que não posso adivinhar quais sejam. Mas deve ser alguma coisa de muito importante e significativo, não acha?
— O fim da carreira dele — disse Barney — e também da sua e da minha.
— Não — respondeu Roni — não acho que seja assim, querido. Vamos pensar por um momento. O senhor Palmer Eldritch vai substituí-lo no campo da miniaturização. Não será esse o motivo provável do senhor Bulero? E isso não nos diz alguma coisa a respeito da futura realidade econômica? Mesmo com o senhor Eldritch morto, parece que a empresa dele continuará...
— Então, nós nos passamos para Eldritch? Tão simples assim? Contraindo o rosto num esforço de concentração, Roni disse, com dificuldade:
— Não, eu não quis dizer exatamente isso. Mas temos que tomar cuidado para não entrarmos pelo cano, juntamente com o senhor Bulero. Não queremos ser arrastados com ele... Tenho anos à minha frente e, um pouco menos, você também.
— Obrigado — disse ele com amargura.
— O que temos que fazer agora é planejar com todo cuidado. E se precogs não podem planejar o futuro...
— Eu dei a Leo informações que o levarão a um encontro com Eldritch. Já lhe ocorreu que, juntos, os dois poderiam formar uma sociedade? — Fitou-a atentamente.
— Eu... eu não vejo nada disso a frente. Nenhum artigo de jornal nesse sentido.
— Deus — respondeu ele, desdenhoso — isso não vai aparecer nos jornais.
— Oh... — Repreendida, ela inclinou a cabeça. — Acho que é isso mesmo.
— E se isso acontecesse — continuou ele — não conseguiríamos coisa alguma, logo que deixássemos Leo e passássemos para o lado de Eldritch. Ele nos aceitaria de volta, mas nas condições dele. Ficaríamos em melhor situação abandonando inteiramente o negócio de pré-sucesso. — Essa possibilidade era óbvia para ele e, pela expressão de Roni Fugate, notou que também era óbvia para ela. — Se abordarmos Palmer Eldritch...
— "Se..." Temos que abordar.
— Não, não temos — retrucou Barney. Podemos continuar como estamos. — Como empregados de Leo Bulero, suba ele ou afunde, ou mesmo desapareça inteiramente, pensou. — Vou lhe dizer o que mais nós podemos fazer. Podemos procurar todos os consultores de pré-sucesso que trabalham para a P.P. Layouts e formar uma sociedade própria — Esta era uma idéia com que ele andara brincando durante anos. — Uma guilda, por assim dizer, com monopólio. Nesse caso, poderemos ditar nossas condições a Leo e a Eldritch.
— A não ser que — lembrou Roni — evidentemente Eldritch tenha consultores de pré-sucesso próprios. — Sorriu para ele. — Você não tem uma noção clara do que fazer, não é, Barney? Posso ver isso. Que vergonha. E trabalha há tantos anos. — Sacudiu triste a cabeça.
— Mas posso entender — retrucou ele — por que Leo estava hesitante com a idéia de traí-la.
— Por que eu digo a verdade? — Ergueu as sobrancelhas. — Sim, talvez seja por isso. Todo mundo tem medo da verdade. Você, por exemplo... Não quer enfrentar o fato de que disse não àquele pobre vendedor simplesmente para se vingar da mulher que...
— Cale a boca — ordenou ele, rispidamente.
— Sabe onde aquele vendedor de vasos se encontra neste exato minuto? Foi contratado por Palmer Eldritch. Você fez a ele — e a sua ex-esposa — um favor. Ao passo que, se tivesse dito sim, teria aliciado os dois a uma companhia decadente, cortaria aos dois a possibilidade de... — Interrompeu-se. — Estou fazendo com que você se sinta mal.
Gesticulando, ele disse:
— Isso simplesmente não é relevante para o assunto que me levou a chamá-la aqui.
— Certo. — Roni inclinou a cabeça. — Você me chamou aqui para combinarmos uma maneira de, juntos, trair Leo Bulero.
Confuso, ele começou:
— Escute aqui...
— E isto mesmo. Você não pode dar conta da situação sozinho. Precisa de mim. Eu não disse que não. Fique calmo. Contudo, não acho que este seja o lugar ou a ocasião de discutir isso. Vamos esperar até voltarmos para o condomínio. Certo? — Dirigiu a ele aquele sorriso radiante, aquele sorriso com imenso carinho.
— Certo — concordou ele. Ela tinha razão.
— Não seria triste — disse Roni — se houvesse aparelhos eletrônicos de escuta instalados neste gabinete? Talvez o senhor Bulero vá receber uma fita de tudo que acabamos de dizer.
O sorriso dela continuou, aumentou mesmo, ofuscou-o. A moça não tinha medo de gente ou de pessoa alguma na Terra ou mesmo em todo o sistema solar, compreendeu.
Desejava sentir-se da mesma maneira. Isto porque havia um problema que o obcecava, que não discutira nem com Leo nem com ela, embora certamente estivesse incomodando também a Leo... e devia estar, se ela fosse tão racional como parecia, também a ela.
Tinha que ser verificado ainda se o que voltara de Prox, a pessoa ou, coisa que fizera um pouso forçado em Plutão, era realmente Palmer Eldritch.
Cinco
A SITUAÇÃO financeiramente resolvida com o contrato com o pessoal da Mascar-Z, Richard Hnatt fez uma ligação para uma das clínicas de Terapia E do doutor Willy Denkmal nas Alemanhas. Escolheu a central, situada em Munique, e iniciou os preparativos para si mesmo e para Emily.
Agora faço parte dos grandes, disse a si mesmo, enquanto aguardava em companhia de Emily na sala de espera luxuosamente decorada da clínica. O doutor Denkmal, conforme seu costume, ia entrevistá-los pessoalmente, embora, claro, o tratamento em si fosse realizado por membros de sua equipe.
— Isso me põe nervosa — murmurou Emily. Estava com uma revista no colo, mas não conseguia ler. — A coisa é tão... antinatural.
— Bolas — retrucou violentamente Hnatt — isso é o que não é. Trata-se de uma aceleração do processo evolutivo natural que, de qualquer modo, ocorre o tempo todo. Apenas, em geral, é tão lento que não o percebemos. Quero dizer, veja nossos ancestrais nas cavernas. Tinham o corpo coberto de pêlos, nenhum queixo, e uma área frontal muito limitada em relação ao cérebro. E possuíam enormes molares fundidos uns com os outros, a fim de mastigar sementes cruas.
— Tudo bem — disse Emily, inclinando a cabeça.
— Quanto mais pudermos nos afastar deles, melhor. De qualquer modo, eles evoluíram para enfrentar a Idade do Gelo. Nós temos que evoluir para enfrentar a Idade do Fogo, exatamente o oposto. De modo que precisamos daquela pele do tipo quitinoso, daquela casca e daquele metabolismo modificado que nos levarão a dormir ao meio-dia, e também de uma ventilação melhorada e...
Do gabinete particular do doutor Denkmal emergiu uma figura pequena, redonda, de alemão de classe média, cabelos brancos. Acompanhava-o outro homem e, pela primeira vez, Richard Hnatt viu de perto o efeito da Terapia E. Não era de modo algum o mesmo que ver fotos nas colunas sociais dos jornais.
A cabeça do homem lembrou-lhe uma foto que vira num livro didático. Lembrava-se de que a foto tinha uma legenda: hidrocéfalo. Havia o mesmo aumento acima da linha das sobrancelhas, uma cabeça que parecia claramente um domo e de aparência curiosamente frágil. Imediatamente, percebeu por que essas pessoas abastadas haviam desenvolvido o que era popularmente chamado de cabeças de bolha. Parece que vai estourar, pensou, impressionado. E a casca maciça. Os cabelos haviam cedido lugar ao padrão mais escuro, mais uniforme, da casca quitinosa. Cabeça de bolha? Lembrava mais um coco.
— Senhor Hnatt — disse o doutor Denkmal a Richard Hnatt, parando no meio da sala. — E Frau Hnatt também. Vou atendê-los dentro de um momento. — Virou-se para o homem a seu lado. — Foi apenas por acaso que conseguimos introduzi-lo hoje em nossa agenda, senhor Bulero, com um aviso tão em cima da hora. De qualquer modo, o senhor não perdeu terreno algum. Na verdade, ganhou.
Bulero, porém, estava olhando para Richard Hnatt.
— Eu ouvi seu nome antes. Oh, sim, Félix Blau mencionou-o. — Os olhos superiormente inteligentes anuviaram-se e ele disse: — Lembra-se de ter assinado recentemente um contrato com uma firma de Boston chamada... — o rosto alongado distorceu-se, como se por um efeito permanente e oticamente defeituoso, de imagens distorcidas — a Mascar-Z?
— Diabos o levem — gaguejou Hnatt. — Seu consultor de pré-sucesso recusou nosso oferecimento.
Léo Bulero olhou-o e, em seguida, com um encolher de ombros, voltou-se para o doutor Denkmal.
— Voltarei daqui a duas semanas.
— Duas! Mas... — Denkmal fez um gesto de protesto.
— Não posso vir na próxima semana. Estarei fora da Terra novamente.
Mais uma vez, Bulero olhou para Richard e Emily Hnatt, demoradamente, e em seguida afastou-se.
Acompanhando-o com os olhos, o doutor Denkmal observou:
— Muito evoluído, aquele homem. Tanto física como espiritualmente. — Virou-se para os Hnatts. — Sejam bem-vindos à Clínica Einchenwald. — Sorriu radiante.
— Obrigado — respondeu nervosa Emily. — A coisa... dói?
— Nossa terapia? — O doutor Denkmal soltou uma risadinha divertida. — Em absoluto, embora possa — em sentido figurado — chocá-la no começo. Quando experimentar crescimento da área cortical. Muitos e novos interessantes conceitos lhe ocorrerão, especialmente de natureza religiosa. Oh, se apenas Lutero e Erasmo estivessem vivos hoje. As controvérsias deles poderiam ser resolvidas tão facilmente agora, graças à Terapia E. Ambos veriam a verdade, como, zum Beiszspiel, considerar a transubstanciação... vocês sabem, o Blut und... — Interrompeu-se com uma pequena tosse. — Em inglês, o sangue e a hóstia, vocês sabem, na missa. E uma coisa muito parecida com os que tomam Can-D. Notaram essa afinidade? Mas vamos, vamos começar.
Deu uma palmadinha nas costas de Richard Hnatt e levou os dois para seu gabinete particular, dirigindo a Emily o que pareceu ao marido um olhar nada espiritual, mas cobiçoso.
Entraram numa câmara gigantesca, cheia de aparelhos científicos e duas mesas tipo doutor Frankenstein, completas, com correias para braços e pernas. Ao vê-las, Emily gemeu e encolheu-se toda.
— Nada há para temer, Frau Hnatt. Como o eletrochoque convulsivo, causa certas reações na musculatura. Reflexos, entendem? — Denkmal soltou uma risadinha. — Agora vocês precisam, ah, tirar as roupas, entendem? Cada qual em particular, claro. Em seguida, vistam batas e auskommen... entenderam? Uma enfermeira os ajudará. Já recebemos suas fichas clínicas, enviadas da Nord Amerika, conhecemos a história médica de ambos. Os dois muito sadios, viris, boa gente Nord Amerikanische.
Levou Richard Hnatt para uma sala lateral, fechada com uma cortina, onde o deixou, voltando para o lado de Emily. Entrando na sala, Richard Hnatt ouviu o doutor Denkmal conversando com Emily num tom tranqüilizador, mas autoritário. A combinação era uma boa exibição de negócio prático e Hnatt sentiu-se invejoso e desconfiado e, finalmente, apreensivo. Aquilo não era exatamente o que imaginara, não suficientemente importante para agradá-lo.
Não obstante, Leo Bulero saíra daquela sala, o que provava que a coisa era realmente importante. Bulero jamais teria aceito menos do que isso.
Animado, começou a despir-se.
Em algum lugar, longe da vista, Emily soltou um gritinho.
Vestiu a bata e deixou a sala, cheio de preocupação. Encontrou, porém, o doutor Denkmal à escrivaninha, lendo a ficha clínica de Emily. Ela estava em outro lugar, compreendeu, em companhia de uma enfermeira, de modo que tudo estava bem.
Logo depois, estava amarrado a uma das mesas geminadas, Emily em situação idêntica a seu lado. Ela também parecia assustada, muito pálida e calada.
— Suas glândulas — explicou o doutor Denkmal, esfregando jovialmente as mãos e olhando lascivamente para Emily — serão estimuladas por isto, especialmente a glândula de Kresy, que controla a taxa de evolução, nicht Wahr? Claro, vocês sabem disso. Todo estudante sabe disso, agora que é ensinado o que descobrimos aqui. Hoje o que vão notar não é crescimento da casca quitinosa ou do escudo cerebral, ou a perda das unhas dos pés e das mãos... não sabiam disso, aposto, apenas uma mudança leve, mas muito importante, no lobo frontal... uma sensação de queimadura. Isto é uma espécie de trocadilho, sabiam? Esquenta e vocês, ah, tornam-se quentes. — Mais uma vez, aquela risadinha.
Richard Hnatt sentiu-se infeliz. Esperou, como um animal amarrado para o sacrifício, aquilo que lhe estava reservado. Que maneira de fazer contatos comerciais, pensou tristemente, e fechou os olhos.
Um enfermeiro materializou-se ao seu lado, onde ficou, parecendo um tipo louro, nórdico, e destituído de inteligência.
— Nós tocamos Musik tranqüilizante — disse o doutor Denkmal, apertando um botão. Um som multifônico, vindo de todos os cantos, encheu a sala, uma versão orquestral insípida de alguma ópera italiana popular, Puccini ou Verdi, Hnatt não sabia. — Agora, höre, Herr Hnatt. — Denkmal curvou-se ao lado dele, subitamente sério. — Quero que compreenda o seguinte. Ocasionalmente, esta terapia — como é que vocês dizem isso? — dá o revertério.
— O tiro sai pela culatra — disse Hnatt, com voz áspera. Estivera esperando isso.
— Mas, na maior parte dos casos, temos sucesso. O tiro pela culatra, Herr Hnatt, lamento dizer, consiste no seguinte: em vez de evoluir, a glândula Kresy é muito estimulada para... regredir. Isso está correto em inglês?
— Está — concordou Richard. — Regride até que ponto?
— Uma coisinha de nada. Mas poderia ser desagradável. Nós notaríamos logo, claro, e interromperíamos a terapia. E, de modo geral, isso detém a regressão. Mas... nem sempre. Às vezes, logo que a glândula Kresy é estimulada a... — Fez um gesto. — Continua sem parar. Tenho que lhe dizer isso, no caso de o senhor ter escrúpulos, certo?
— Eu me arrisco — respondeu Richard Hnatt. — Acho... Todo mundo se arrisca, não? Muito bem, vá em frente.
Contorceu-se, viu Emily, mais pálida ainda nesse momento, inclinando quase imperceptivelmente a cabeça, com os olhos vidrados.
O que provavelmente vai acontecer, pensou fatalisticamente, é que um de nós evoluirá — provavelmente Emily — e o outro, eu, regredirei ao Sinanthropus. De volta aos molares colados um no outro, cérebro minúsculo, pernas cambaias e tendências canibalísticas. Dessa maneira, vou ter uma trabalheira dos diabos para fechar negócios.
Assoviando feliz a ópera que enchia a sala, o doutor Denkmal baixou um interruptor.
Começara a Terapia E dos Hnatts.
No princípio pelo menos, ele achou que só sentia perda de peso, nada mais. Depois, a cabeça doeu como se tivesse recebido uma martelada. Com a dor surgiu quase no mesmo instante uma nova e aguda compreensão: era um risco pavoroso o que ele e Emily estavam correndo, não era justo submetê-la àquilo, apenas para promover vendas. Obviamente, ela não queria aquilo. Suponhamos que ela regredisse apenas o suficiente para perder o talento para a cerâmica? Ambos ficariam arruinados. Sua carreira dependia de providenciar para que Emily continuasse a ser uma das maiores ceramistas do planeta.
— Pare — disse em voz alta, mas aparentemente o som não saiu, não o ouviu, embora o aparelho vocal parecesse funcionar... Sentiu as palavras na garganta. Ocorreu-lhe, então. Ele estava evoluindo. A coisa estava funcionando. A introvisão que tivera devia-se à mudança em seu metabolismo cerebral. Supondo que Emily estivesse bem, então estava tudo bem.
Percebeu também que o doutor Willy Denkmal era um pequenino pseudocharlatão, que toda esta coisa explorava a vaidade de mortais que queriam se tornar mais do que tinham direito, e de uma forma inteiramente terrena, transitória. O diabo que levasse suas vendas, seus contatos. O que era que aquilo importava, em comparação com a possibilidade de fazer o cérebro humano evoluir para ordens inteiramente novas de concepção? Por exemplo...
Embaixo estendia-se o mundo sepulcral, o mundo imutável de causa e efeito do demoníaco. No nível médio, ficava a camada do humano, mas, a qualquer instante, o homem podia mergulhar — descer, como se afundasse — para a camada do inferno, embaixo. Ou podia ascender para o mundo etéreo, em cima, que constituía a terceira das camadas trinas. No seu nível médio de humano, o homem arriscava-se sempre a afundar. Ainda assim, tinha diante de si a possibilidade de ascender. Qualquer aspecto ou seqüência da realidade podia tornar-se uma coisa ou outra, a qualquer instante. Céu e inferno, não depois da morte, mas agora! A depressão, todas as doenças mentais, era o afundamento. E a outra coisa... como era conseguida?
Através de empatia. Apreendendo o outro, não de fora, mas de dentro. Por exemplo, jamais olhara realmente para os vasos de Emily como algo mais do que mercadoria para' mercado? Não. O que eu devia ter visto neles, compreendeu, era a intenção artística, o espírito que ela está revelando intrinsecamente.
E aquele contato com as Indústrias Mascar-Z, reconheceu, assinei-o sem consultá-la... Até que ponto uma pessoa pode tornar-se antiética? Associei-a a uma firma que ela talvez não queira como miniaturizadora de seus produtos... Não temos conhecimento algum do valor dos cenários dessa empresa. Podem ser de segunda classe. Subpadrão. Mas, agora, era tarde demais. A estrada para a camada do inferno é pavimentada com segundos pensamentos. E a firma pode estar implicada na fabricação ilegal de uwi droga de traslado. Isso explicaria o nome Mascar-Z... Corresponderia a Can-D. Mas o fato de ter escolhido o nome abertamente faz supor que não há nenhuma intenção ilegal.
Com um raio de intuição, percebeu: alguém descobrira uma droga de traslado que satisfazia à divisão de entorpecentes da ONU. A divisão já aprovara a Mascar-Z, permitiria que fosse vendida livremente. Assim, pela primeira vez, uma droga de traslado estaria à disposição de todos na Terra rigorosamente policiada, e não apenas nas colônias remotas, sem nenhuma polícia por perto.
E isso significava que os cenários da Mascar-Z — ao contrário das de Perky Pat — seriam vendidos na Terra, juntamente com a droga. E à medida que as condições atmosféricas piorassem, enquanto o planeta natal se transformava ainda mais num meio ambiente alienígena, o cenários seriam vendidos cada vez mais. O mercado controlado por Leo Bulero era ridiculamente pequeno em comparação com o que se abria — mas não imediatamente — para as Indústrias Mascar-Z.
Assim, afinal de contas, assinara um bom contrato. E não era de espantar que a Mascar-Z lhe houvesse pago tanto dinheiro. Era uma empresa grande, com grandes fábricas, dispondo obviamente de capitais ilimitados.
E onde obteria esse capital sem limites? Em parte alguma da Terra. Intuiu esse fato. Provavelmente, de Palmer Eldritch, que voltara para o sistema solar depois de se ter aliado economicamente ao pessoal de Prox. Eram eles que estavam por trás da Mascar-Z. De modo que, pela possibilidade de arruinar Leo Bulero, a ONU estava permitindo que uma raça não-solar iniciasse operações no sistema.
Era uma troca ruim, talvez final.

QUANDO MENOS esperava, o doutor Denkmal acordou-o com palmadas.
— Como é que foi a coisa? — perguntou Denkmal, observando-o atento. — Preocupações amplas, abrangentes?
— Sim — respondeu, conseguindo sentar-se. Não estava mais amarrado.
— Neste caso, nada temos a temer — disse Denkmal, e sorriu radiante, o bigode branco mexendo-se como antenas de inseto. — Agora, vamos consultar Frau Hnatt. — Uma enfermeira já a desamarrava. Emily sentou-se tonta e bocejou. O doutor Denkmal parecia nervoso. — Como se sente, Frau? — perguntou.
— Ótima — murmurou Emily. — Tive muitas idéias para vasos. Uma depois da outra. — Timidamente, fitou-o e, em seguida, olhou para Richard. — Isso significa alguma coisa?
— Papel — disse Denkmal, oferecendo um bloco. — Caneta. — Estendeu-os a Emily. — Ponha no papel suas idéias, Frau.
Trêmula, Emily esboçou suas idéias para os potes. Parecia ter alguma dificuldade em controlar a caneta, notou Hnatt. Mas, presumivelmente, isso passaria.
— Ótimo — comentou o doutor Denkmal quando ela terminou. Mostrou os desenhos a Richard. — Atividade cefálica altamente organizada. Inventividade superior, certo?
Os croquis dos vasos eram indubitavelmente bons, mesmo brilhantes. Ainda assim, Hnatt sentiu que havia alguma coisa errada. Alguma coisa nos esboços. Mas só depois de deixarem a clínica, quando os dois juntos estavam sob a cortina antitérmica do lado de fora do prédio, à espera do pouso do táxi a jato, é que compreendeu o que acontecera.
As idéias eram boas — mas Emily já as pusera em prática. Anos antes, quando desenhara seus primeiros vasos profissionalmente adequados: ela lhe mostrara os esboços e depois os próprios vasos, mesmo antes de os dois se casarem. Não se lembrava ela disso? Evidentemente que não.
Perguntou-se por que ela não se lembrava e o que era que aquilo significava. O fato deixou-o profundamente inquieto.
No entanto, estivera em estado de contínua inquietação desde que recebera o primeiro tratamento de Terapia E, inicialmente sobre a situação da humanidade e do sistema solar em geral e naquele momento a respeito da esposa. Talvez isso seja apenas um sinal do que Denkmal chama de "atividade cefálica altamente organizada", pensou. Estimulação do metabolismo cerebral.
Ou... talvez não.

CHEGANDO a Luna com seu crachá oficial de representante do periódico da P.P. Layouts na mão, Leo Bulero logo depois era espremido com um grupo de repórteres de jornal a bordo de um trator de superfície, cruzando a face oculta de Luna, a caminho da propriedade de Palmer Eldritch.
— A identidade de seu jornal, senhor — rosnou-lhe secamente um guarda armado, mas não usando as cores da ONU, no momento em que ele se preparava para descer no pátio do estacionamento da propriedade. Foi empurrado contra a porta do trator, enquanto, atrás dele, jornalistas autênticos faziam força e se mexiam inquietos, querendo sair. — Senhor Bulero — disse indolentemente o guarda, devolvendo-lhe o cartão. — O senhor Eldritch está à sua espera. Por aqui.
O homem foi imediatamente substituído por outro guarda, que começou a conferir os documentos de identificação dos repórteres, um após outro.
Nervoso, Leo Bulero acompanhou o primeiro guarda através de um tubo pressurizado e confortavelmente aquecido até a propriedade propriamente dita.
A sua frente, bloqueando o tubo, viu outro guarda uniformizado, da segurança de Palmer Eldritch. O homem ergueu o braço e apontou alguma coisa pequenina e brilhante em sua direção.
— Ei — protestou debilmente, paralisado onde se encontrava. Girou sobre si mesmo, baixou a cabeça e cambaleou alguns passos para trás, pelo caminho por onde viera.
O raio — de uma variedade que desconhecia — tocou-o e ele mergulhou para a frente, estirando os braços para tentar amortecer a queda.
Quando deu conta de si, estava mais uma vez consciente e amarrado — absurdamente — numa cadeira, numa sala despojada. Com a cabeça zumbindo, olhou estonteado em volta, mas viu apenas uma pequena mesa ao centro do cômodo, sobre a qual havia uma engenhoca eletrônica.
— Deixem-me sair daqui — disse. Imediatamente, a engenhoca respondeu:
— Bom dia, senhor Bulero. Eu sou Palmer Eldritch. O senhor queria falar comigo, segundo sei.
— Isso é um comportamento cruel — protestou Bulero. — Fez-me dormir e depois me amarrou desta maneira.
— Fume um charuto. — A engenhoca eletrônica lançou uma extensão, que colocou a seu alcance um longo charuto verde. A ponta do charuto acendeu-se automaticamente e a longa pseudópode ofereceu-o a Leo Bulero. — Trouxe de Prox umas 10 caixas destes, mas só uma caixa salvou-se do acidente. Não é tabaco. É superior a tabaco. O que é, Leo? O que é que você quer?
— Você está nessa coisa aí, Eldritch? — perguntou Leo Bulero. — Ou está em algum outro lugar, falando através dela?
— Contente-se — disse a voz que emanava do aparelho de metal em cima da mesa. Continuou a oferecer o charuto aceso, recolheu-o em seguida, apagou-o e fez desaparecer os restos dentro de si mesma. — Gostaria de ver diapositivos coloridos de minha viagem ao sistema de Prox?
— Você está brincando.
— Não estou — garantiu Palmer Eldritch. — Eles lhe darão alguma idéia do que enfrentei. São dispositivos em 3-D, com lapsos de tempo, muito bons.
— Não, obrigado.
— Nós — continuou Eldritch — encontramos aquele dardo, implantado em sua língua. Foi removido. Mas você talvez tenha mais alguma coisa, ou pelo menos é o que suspeitamos.
— Você está me dando um largo crédito — disse Leo. — Mais do que eu mereço.
— Nos quatro anos que passei em Prox, aprendi muitas coisas. Seis anos em viagem, quatro como residente. O pessoal de Prox vai invadir a Terra.
— Você está brincando comigo — disse Leo.
— Entendo perfeitamente sua reação — concordou Eldritch. — A ONU, em particular Hepburn-Gilbert, reagiu da mesma maneira. Mas é verdade... embora não no sentido convencional, claro, mas de uma maneira mais profunda, mais rude, que não entendi bem, mesmo que houvesse passado tanto tempo entre eles. Tanto quanto sei, pode ter alguma coisa a ver com o aquecimento da Terra. Ou pode haver coisa pior a caminho.
— Vamos conversar a respeito do líquen que você trouxe.
— Eu o consegui ilegalmente. Os proximianos não sabem que me apossei de um pouco da coisa. Eles próprios o usam, em orgias religiosas. Como nossos índios usavam a mescalina e o peyotl. Era sobre isso que você queria me falar?
— Claro que era. Você está se metendo no meu negócio. Sei que você já fundou uma empresa. Não fundou? Não dou a mínima bola para essa história de proximianos invadindo nosso sistema. É com você que estou zangado, com o que você está fazendo. Você não pode arranjar outro campo para explorar, além do de cenários de miniatura?
O cômodo explodiu em sua cara. Luz branca desceu, envolvendo-o, e ele fechou com força os olhos. Jesus, pensou. De qualquer modo, não acredito nessa a respeito de proximianos. Ele está simplesmente tentando desviar nossa atenção para o que tenciona fazer. Quero dizer, é uma estratégia.
Abriu os olhos e notou que estava sentado num campo relvado. Ao seu lado, uma garotinha brincava com um ioiô.
— Esse brinquedo — disse — é popular no sistema de Prox. — Seus braços e as pernas não estavam mais amarrados, notou. Levantou-se meio duro e mexeu os membros. — Qual é o seu nome? — perguntou.
— Mônica — respondeu a menininha.
— Os proximianos — disse Leo — , os tipos humanóides, pelo menos usam perucas e dentaduras postiças. — Segurou os abundantes e luminosos cabelos louros da menina e puxou-os.
— Ai — exclamou a menina. — O senhor é um homem mau.
Ele soltou-a e ela recuou, brincando ainda com o ioiô e olhando-o zangada e desafiadora.
— Desculpe — murmurou ele. O cabelo dela era autêntico. Talvez ele não estivesse no sistema de Prox. De qualquer modo, onde quer que estivesse, Palmer Eldritch estava tentando dizer-lhe alguma coisa — Você está planejando invadir a Terra? — perguntou à criança. — Quero dizer, você não parece que está. — Será que Eldritch podia ter entendido mal a coisa?, especulou. Entendido mal os proximianos? Afinal de contas, tanto quanto sabia, Palmer não evoluíra, não possuía a compreensão poderosa, ampliada, que a Terapia E proporcionava.
— Meu ioiô — explicou a menina — é mágico. Posso fazer com ele o que quiser. O que é que eu vou fazer? Digo, o senhor parece um homem bondoso.
— Leve-me ao seu líder — disse Leo. — Isto é uma velha brincadeira. Você não a compreenderia. Saiu de moda há cem anos. — Olhou em volta e não viu sinais de habitação, apenas a planície relvada. Fria demais para a Terra, compreendeu. No alto, o céu azul. Ar bom, pensou. Denso. — Você está com pena de mim — perguntou — porque Palmer Eldritch está-se metendo no meu negócio e, se fizer isso, eu ficarei provavelmente arruinado? Vou ter que fazer algum negócio com ele. — Parece que, agora, matá-lo está fora de cogitação, disse sombriamente a si mesmo. — Mas — continuou — não consigo imaginar proposta alguma que ele aceite. Parece que ele tem todas as cartas na mão. Veja só como ele me trouxe até aqui, e eu nem mesmo sei que lugar é este. — Não que isso tenha importância, compreendeu, porque, onde quer que se localize, Eldritch o controla.
— Cartas — lembrou-se a menina. — Eu tenho um baralho em minha valise.
Ele não viu valise alguma.
— Onde?
Ajoelhando-se, a menina tocou na grama aqui e ali. De repente, uma seção deslizou suavemente para trás. A menina enfiou a mão na cavidade e tirou uma valise.
— Eu a mantenho escondida — explicou. — Dos patrocinadores.
— O que é que você quer dizer com isso de "patrocinador"?
— Bem, para estar aqui, a pessoa precisa de um patrocinador. Todos nós temos um deles. Acho que eles pagam por tudo, pagam até que ficamos bons e, depois, podemos voltar para casa, se temos casa. — Sentou-se ao lado da valise e abriu-a — ou pelo menos tentou. A fechadura não funcionou. — Droga — disse ela. — Esta é a errada. Esta é a do doutor Smile.
— O psiquiatra? — perguntou Leo, alerta. — De um daqueles grandes condomínios de apartamento? Está funcionando? Ligue-a.
Atenciosamente, a menina ligou o psiquiatra.
— Olá, Mônica — disse em voz metálica a valise. — Olá, também, senhor Bulero. — Pronunciou o nome erradamente, pondo o acento na última sílaba. — O que é que o senhor está fazendo aqui, senhor? O senhor é velho demais para estar aqui. Ou foi regredido, devido à desaconselhável Terapia E em rggggg click! — A coisa girou, agitada. — Terapia em Munique? — terminou.
— Eu me sinto muito bem — garantiu-lhe Leo. — Escute aqui, Smile, quem é que você conhece, que eu também conheça, e que possa me tirar daqui? Dê o nome de alguém, qualquer pessoa. Não posso mais continuar aqui, entendeu?
— Conheço um certo senhor Bayerson — disse o doutor Smile. — Na verdade, estou com ele neste exato momento, graças a uma extensão portátil, claro, no escritório dele.
— Eu não conheço ninguém chamado Bayerson — disse Leo. — Que lugar é este? Obviamente, é uma estação de repouso de algum tipo, para crianças doentes ou alguma outra droga de coisa. Eu pensava que isto aqui estivesse no sistema de Prox, mas, se você está aqui, obviamente este não é o caso. Bayerson. — Ocorreu-lhe, então: — Diabo, você quer dizer Mayerson. Barney. Lá na P.P. Layouts.
— Sim, exatamente — confirmou o doutor Smile.
— Entre em contato com ele — ordenou Leo. — Diga a ele para entrar em contato com Félix Blau, imediatamente, na Agência Policial Triplanetária, ou qualquer que seja o nome. Diga a ele para dizer a Blau que faça investigações, descubra exatamente onde estou e que envie uma nave para cá, entendeu?
— Tudo bem — respondeu o doutor Smile. — Vou entrar em contato, imediatamente, com o senhor Mayerson. Ele está conferenciando com a senhorita Fugate, assistente, que é também amante dele e que hoje está usando... hummm. Estão conversando a seu respeito neste exato minuto. Mas, claro, não posso relatar o que estão dizendo, a ética médica, o senhor compreende. Ela está usando....
— Tudo bem, mas quem é que quer saber disso? — perguntou irritado Leo.
— Queira me desculpar por um momento — retrucou a valise. — Enquanto eu desligo. — A voz parecia magoada. Em seguida, silêncio.
— Tenho más notícias para o senhor — disse a criança.
— O que é?
— Eu estava brincando. Esse aí não é realmente o doutor Smile. É apenas um fingimento, para evitar que a gente se sinta solitária. E viva, mas não está ligada a coisa alguma fora de si mesma. E o que chamam estar em intrínseco.
Ele sabia o que aquilo significava: a unidade era auto-suficiente. Mas, neste caso, como poderia ter sabido a respeito de Barney e da senhorita Fugate, descendo até a detalhes sobre a vida pessoal de ambos? Até sobre o que ela estava usando? A criança não estava dizendo a verdade, obviamente.
— Quem é você? — perguntou. — Mônica de quê? Quero saber seu nome completo. — Havia nela alguma coisa conhecida.
— Voltei — anunciou de repente a valise. — Bem, senhor Bulero — mais uma vez a pronuncia errada — discuti seu dilema com o senhor Mayerson, e ele vai entrar em contato com Félix Blau, como o senhor solicitou. O senhor Mayerson acha que se lembra de ter lido certa vez num jornal alguma coisa sobre um acampamento da ONU, muito parecido com este que o senhor está experimentando, em algum lugar na região de Saturno, destinado a crianças retardadas. Talvez...
— Droga — protestou Leo — , essa criança não é retardada. No mínimo, ela era precoce. Aquilo não fazia sentido. Mas o que de fato fazia sentido era a certeza de que Palmer Eldritch queria alguma coisa dele. Aquilo não era meramente uma questão de impressioná-lo, mas de intimidá-lo.
No horizonte, uma sombra apareceu, imensa e cinzenta, aumentando de tamanho, enquanto vinha em velocidade apavorante na direção deles. Possuía feias suíças arrepiadas.
— Aquilo é um rato — disse calmamente Mônica.
— Desse tamanho? — pergunto Leo. Em nenhum lugar do sistema solar, em nenhuma das luas ou planetas, existia uma criatura feroz tão enorme.
— O que é que ele vai fazer com a gente? — perguntou, espantado porque a garota não demonstrava medo.
— Oh — respondeu Mônica — acho que vai nos matar.
— E isso não a assusta? — Ouviu sua própria voz subindo para as alturas de um grito. — Quero dizer, você quer morrer assim, e agora mesmo? Comida por um rato do tamanho de... — Pegou a menina com uma das mãos, a valise do doutor Smile com a outra, e começou a afastar-se pesadamente do rato.
O rato chegou até eles, prosseguiu em seu caminho e foi-se embora; sua forma foi diminuindo até que finalmente desapareceu. A menina soltou uma risadinha zombeteira.
— Ele fez medo a você. Eu sabia que ele não nos veria. Não podem. Eles aqui são cegos para nós.
— Eles são?
Soube, então, onde estava. Félix Blau não o descobriria. Ninguém descobriria, mesmo que o procurasse por todo o sempre.
Eldritch lhe aplicara uma injeção intravenosa da droga de traslado, sem dúvida a Mascar-Z. Aquele lugar era um mundo inexistente, análogo à "Terra" irreal para a qual iam os colonos trasladados quando mastigavam seu próprio produto, a Can-D.
E o rato, ao contrário de tudo mais, era autêntico. Ao contrário deles. Ele e aquela menina... Eles tampouco eram reais. Pelo menos, não ali. Em algum lugar, seus corpos vazios, silenciosos, estavam caídos como sacos, abandonados, por ora, pelo conteúdo cerebral. Sem dúvida, os corpos de ambos encontravam-se na propriedade lunar de Palmer Eldritch.
— Você é Zoé — disse ele. — Não é? E assim que você quer ser, uma menininha novamente, de uns oito anos de idade. Certo? Com longos cabelos louros. — E mesmo, compreendeu, com um nome diferente.
Secamente, a menina respondeu:
— Não há pessoa alguma chamada Zoé.
— Ninguém, apenas você. Seu pai é Palmer Eldritch, certo? Com grande relutância, a menina confirmou com um aceno.
— Isto aqui é um lugar especial seu? — perguntou ele. — Ao qual vem com freqüência?
— Este é o meu lugar — disse categórica a menina. — Ninguém vem aqui sem minha permissão.
— Se assim é, por que deixou que eu viesse aqui? — Sabia que ela não gostava dele. Não gostara, desde o começo.
— Porque — explicou a menina — nós pensamos que você talvez possa impedir que os proximianos façam o que quer que estejam fazendo.
— Isso, novamente — disse ele, simplesmente não acreditando nela. — Seu pai...
— Meu pai — declarou a menina — está tentando nos salvar. Não quis trazer a Mascar-Z para cá. Eles o obrigaram a fazer isso. A Mascar-Z é o agente através do qual vamos ser entregues a eles. Compreendeu?
— Como?
— Porque eles controlam estas áreas. Como esta, para onde as pessoas vão quando tomam Mascar-Z.
— Você não parece estar sob nenhum tipo de controle alienígena. Olhe só o que está me contando.
— Mas ficarei — retrucou a menina, inclinando séria a cabeça. — Logo. Exatamente como meu pai está agora. Ele foi obrigado a tomar a droga em Prox. Está tomando há anos. E tarde demais para ele, e ele sabe disso.
— Prove-me tudo isso — ordenou Leo. — Na verdade, prove qualquer parte, mesmo uma única parte. Dê-me alguma coisa concreta com que eu possa trabalhar.
A valise, que ele ainda segurava na mão, disse nesse instante:
— O que Mônica está dizendo é verdade, senhor Bulero.
— Como é que você sabe? — perguntou ele, aborrecido com a valise.
— Porque — respondeu a valise — eu também .estou sob a influência dos proximianos. E por isso que eu...
— Você não fez coisa alguma — queixou-se Leo. Pôs a valise no chão. — O diabo leve aquele Mascar-Z — disse a ambos, à valise e à menina. — Tornou tudo confuso. Não sei que diabo está acontecendo. Você não é Zoé... nem mesmo sabe quem é ela. E você... você não é o doutor Smile, não ligou para Barney e ele não estava conversando com a senhorita Fugate. Tudo isto é uma alucinação induzida pela droga. São meus próprios medos de Palmer Eldritch que me são devolvidos, esse lixo de ele estar sob a influência dos proximianos, e vocês também. Quem foi que jamais ouviu falar de uma valise ser dominada por mentes de um sistema estelar alienígena? — Profundamente indignado, afastou-se deles.
Eu não sei o que é que está acontecendo, compreendeu ele. Esta é a maneira que Palmer está usando para obter o domínio de minha mente. Isso é uma forma do que, antigamente, chamavam de lavagem cerebral. Ele me botou para correr, apavorado. Medindo cuidadosamente os passos, continuou a andar, sem olhar para trás.
Foi um erro quase fatal. Alguma coisa — vislumbrou-a pelo canto do olho — lançou-se contra suas pernas. Saltou para um lado e a coisa passou por ele, dando a volta imediatamente, enquanto se reorientava e via-o novamente como presa.
— Os ratos não podem vê-lo — gritou a menina — mas os glucks podem! E melhor você correr!
Sem ver claramente a coisa — vira o suficiente — ele correu.
E o que vira não podia atribuir a Mascar-Z. Porque não era uma ilusão, não um aparelho qualquer de Palmer Eldritch para apavorá-lo. O gluck, o que quer que fosse, não tivera origem na Terra ou numa mente terrena.
Às suas costas, abandonando a valise, a menina corria também.
— E eu? — perguntou ansioso o doutor Smile. Ninguém voltou para apanhá-lo.

NA VIDEOTELA, a imagem de Félix Blau disse:
— Processei o material que o senhor me forneceu, senhor Mayerson. O conjunto resultou em indícios convincentes de que seu empregador, o senhor Bulero — que é também cliente meu — encontra-se atualmente num pequeno satélite artificial em órbita em torno da Terra, legalmente intitulado Sigma 14-B. Consultei os registros de propriedade e parece que ele pertence a um fabricante de combustível para foguetes de St. George, Utah. — Examinou os papéis à sua frente. — A Robard Lethane Sales. Lethane é o nome comercial da marca de combustível que a firma...
— Muito bem — cortou-o Barney Mayerson. — Entrarei em contato com ela. — Como, em nome de Deus, Leo Bulero fora acabar ali?
— Há mais um item de possível interesse. A Robard Lethane Sales foi fundada no mesmo dia, há quatro anos, que as Indústrias Mascar-Z, de Boston. Isso me parece mais do que uma simples coincidência.
— Que tal tirar Leo do satélite?
— O senhor poderia impetrar um mandado de segurança...
— Ia demorar demais — retrucou Barney.
Sentia um profundo e desagradável senso de responsabilidade pessoal pelo que acontecera. Evidentemente, Palmer Eldritch organizara a entrevista coletiva como pretexto para atirar Leo para sua propriedade lunar — e ele, o precog Barney Mayerson, o homem que podia sondar o futuro, fora enganado e fizera habilmente sua parte para botar Leo naquele lugar.
— Posso lhe oferecer — continuou Félix Blau — uns 100 homens dos vários escritórios de minha organização. E o senhor deve poder conseguir mais uns 50 aí na P.P. Layouts. O senhor poderia tentar invadir o satélite.
— E encontrá-lo morto.
— E verdade. — Blau pareceu fazer um muxoxo. — Bem, o senhor poderia procurar Hepburn-Gilbert e solicitar ajuda da ONU. Ou tentar entrar em contato — e isso é um osso ainda mais duro de roer — entrar em contato com Palmer ou quem quer que esteja ocupando o lugar dele, e tratar diretamente com a coisa. Verificar se pode comprar Leo de volta.
Barney cortou o circuito. Imediatamente, discou pedindo uma linha para fora do planeta, dizendo:
— Ligue-me com Palmer Eldritch, em Luna. E uma emergência. Gostaria que apressasse a ligação, senhorita.
Enquanto esperava que a ligação fosse completada, Roni Fugate falou do outro lado do escritório:
— Aparentemente, não vamos ter tempo de nos vender a Eldritch.
— É o que parece.
Tudo aquilo fora feito com extrema perfeição. Eldritch deixara que seu adversário se encarregasse de todo o trabalho. E nós, também, compreendeu, Roni e eu. Ele provavelmente nos pegará da mesma maneira. Na verdade, Eldritch poderia estar à espera de nosso vôo até o satélite. Isto explicaria o fato de ele ter fornecido a Leo o doutor Smile.
— Eu estou em dúvida — disse Roni, mexendo no fecho da blusa — se gostaríamos de trabalhar para um homem tão inteligente assim. Se é um homem. Acho cada vez mais que não foi realmente Palmer quem voltou, mas um deles. Acho que vamos ter que aceitar esse fato. A próxima coisa que podemos esperar é a Mascar-Z inundando o mercado. Com a sanção da ONU. — O tom de voz dela era amargo. — E Leo, que pelo menos é um de nós e que simplesmente quer ganhar algumas peles, será morto ou expulso... — Furiosa, olhou diretamente para a frente.
— Patriotismo — comentou Barney.
— Autoconservação. Não quero me ver em alguma manhã mastigando esse troço, fazendo o que quer que se faça quando ele é mascado, em vez de Can-D. Indo... não para a terra de Perky Pat, isso é certo.
A telefonista, no videofone, disse nesse momento:
— Tenho na linha uma certa senhorita. Zoé Eldritch, senhor. Quer falar com ela?
— Tudo bem — concordou Barney, resignado.
Uma mulher elegantemente vestida, olhos vivos, cabelos abundantes amarrados atrás, num coque, fitou-o da tela em miniatura.
— Sim.
— Eu sou Mayerson, da P.P. Layouts. O que é que temos que fazer para trazer Leo Bulero de volta? — Esperou. Nenhuma resposta. — A senhorita sabe do que estou falando, não?
No mesmo instante, ela respondeu:
— O senhor Bulero chegou aqui, à propriedade, e adoeceu. Ele está repousando em nossa enfermaria. Quando estiver melhor...
— Posso enviar um médico da companhia para examiná-lo?
— Naturalmente. — Zoé Eldritch nem piscou.
— Por que não nos avisou?
— Isso só agora nos ocorreu. Meu pai ia ligar. Parece que não é nada mais do que uma reação à mudança de gravidade. Na verdade, isso é muito comum com as pessoas mais idosas que aqui chegam. Não tentamos nos aproximar da gravidade da Terra, como o senhor Bulero faz em seu próprio satélite. De modo que, como o senhor vê, é um caso realmente muito simples. — Sorriu de leve. — No mais tardar, o senhor o terá de volta hoje, no final do dia. Suspeitou de alguma outra coisa?
— Eu suspeito — retrucou Barney — que Leo não está mais em Luna, mas num satélite da Terra chamado Sigma 14-B, que pertence a uma firma de St. George, da qual vocês são os donos. Não é isso? E o que encontraremos em sua enfermaria na propriedade não será Leo Bulero.
Roni olhou-o fixamente.
— Sinta-se à vontade para vê-lo pessoalmente — disse Zoé, com a expressão pétrea. — É Leo Bulero, pelo menos tanto quanto sabemos. Foi o que chegou aqui com os repórteres dos jornais.
— Eu irei à propriedade — disse Barney. E sabia que estava cometendo um erro. Era isso o que lhe dizia sua capacidade de precognição. Na extremidade mais distante do escritório, Roni Fugate levantou-se de um salto. Sua capacidade captara também a coisa. Desligando o videofone, ele disse: — Empregado da P.P. Layouts comete suicídio. Correto? Ou alguma manchete parecida. Nos jornais matutinos, amanhã.
— A manchete exata... — começou Roni.
— Não quero ouvir a manchete exata.
Mas seria por exposição aos elementos, sabia. Corpo de homem encontrado na rampa de pedestres ao meio-dia, morto por radiação solar excessiva. Em algum lugar, no centro de Nova Iorque. Em qualquer lugar onde a organização de Eldritch o tivesse deixado. Onde o lançaria.
Nesta coisa, bem que poderia ter dispensado sua faculdade precognitiva. Uma vez que não tencionava agir com base em sua previsão.
O que perturbava mais era a foto no jornal, uma vista em close-up de seu corpo encolhido, sob efeito do sol.
A porta do escritório, parou, e ficou simplesmente ali.
— Você não pode ir — disse Roni.
— Não. — Não, depois de ter previsto a foto. Compreendeu que Leo teria que cuidar de si mesmo. Voltando à escrivaninha, sentou-se outra vez.
— O único problema — disse Roni — é que vai ser difícil explicar a ele a situação. Que você não fez coisa alguma.
— Eu sei. — Mas aquele não era o único problema. Na verdade, quase nem era um problema.
Porque Leo, provavelmente, não iria voltar.
Seis
O GLUCK pegara-o pelo tornozelo e tentava sugá-lo: penetrara na carne com minúsculo tubos que pareciam cílios. Leo Bulero gritou... e, inesperadamente, ali estava Palmer Eldritch.
— Você se enganou — disse Eldritch.— Eu não encontrei Deus no sistema de Prox. Mas descobri algo melhor. — Com um graveto, deu uma cutucada no gluck. Relutante, o bicho retirou os cílios e contraiu-se até soltar Leo, caiu no chão e se afastou, enquanto Eldritch continuava a espicaçá-lo. — Deus — continuou Eldritch — promete vida eterna. Eu posso fazer melhor do que isso: posso dar vida.
— Dar como? — Fraco e trêmulo de alívio, Leo arriou-se no solo relvoso, sentou-se, arquejou, procurando recuperar o fôlego.
— Através do líquen que estamos vendendo sob o nome de Mascar-Z — explicou Eldritch. — Ele tem muito pouca semelhança com seu próprio produto, Leo. A Can-D é obsoleta. O que é que ela faz? Proporciona alguns momentos de fuga, nada mais que fantasia. Quem quer isso? Quem necessita disso, quando as pessoas podem obter de mim o artigo autêntico? — E acrescentou: — Nós conseguimos agora.
— Foi o que pensei. Mas se você pensa que pessoas vão gastar dinheiro numa experiência como esta... — Fez um gesto para o gluck , ainda à espreita, próximo, um olho nele e o outro em Eldritch. — ...você não está simplesmente fora de seu corpo, mas da mente, também.
— Esta é uma situação especial, a fim de lhe provar que isto é autêntico. Nesse particular, coisa alguma excede a dor e o pavor físico. O gluck lhe mostrou com absoluta clareza que isto não é uma fantasia. Ele poderia tê-lo matado. E se você morresse aqui, tudo acabaria. Diferente da Can-D, não? — Eldritch estava visivelmente saboreando a situação. — Quando descobri o líquen no sistema de Prox, não pude acreditar. Já vivi 100 anos, Leo, usando-o no sistema de Prox, sob a direção dos médicos de lá. Tomei-o oralmente, intravenosamente, sob a forma de supositório... queimei-o e inalei a fumaça, transformei-o em produto solúvel em água, fervi-o e aspirei-lhe os vapores. Experimentei-o de todas as formas possíveis e ele não me fez mal. O efeito sobre os proximianos é pequeno, nada parecido com o que faz conosco. Para eles, é um estimulante mais fraco do que o fumo de melhor qualidade que possuem lá. Quer ouvir mais?
— Não, especialmente.
Eldritch sentou-se próximo, descansou o braço artificial sobre os joelhos dobrados e, preguiçosamente, mexeu o graveto de um lado para o outro, olhando para o gluck , que ainda não fora embora.
— Quando voltarmos aos nossos antigos corpos — note o emprego da palavra "antigo", um termo que não se aplicaria com sua Can-D, e por uma razão muito boa — você descobrirá que tempo algum passou. Poderíamos ficar aqui 50 anos e seria a mesma coisa. Emergiríamos de volta na propriedade em Luna e descobriríamos que nada mudou e, quem quer que nos estivesse vigiando não veria lapso algum de consciência, como acontece com a Can-D, nenhum transe, nenhum estupor. Oh, talvez, uma batida de pálpebras. Uma fração de segundo. Estou disposto a reconhecer isso.
— O que é que determina a duração do tempo aqui? — perguntou Leo.
— Nossa atitude. Não a quantidade tomada. Podemos voltar a qualquer momento que desejarmos. De modo que o volume da droga não precisa ser...
— Isso não é verdade, porque já há algum tempo estou querendo sair daqui.
— Mas — disse Eldritch — você não construiu isto... este estabelecimento aqui. Eu o fiz e é meu. Criei os glucks, esta paisagem... — fez um gesto com o graveto — cada droga de coisa que você vê, incluindo seu corpo.
— Meu corpo? — Leo passou uma revista em si mesmo. Era o corpo habitual, com o qual estava acostumado, intimamente conhecido. Era seu, não de Eldritch.
— Com um ato de vontade, quis que você emergisse aqui exatamente como você é em nosso universo — prosseguiu Eldritch. — Compreenda, esse foi o aspecto que atraiu Hepburn-Gilbert, o qual, naturalmente, é budista. Você pode reencarnar em qualquer forma que desejar, ou que alguém desejar para você, como nesta situação.
— Então foi por isso que a ONU topou a parada — comentou Leo. Isso explicava muita coisa.
— Com o emprego de Mascar-Z, o indivíduo pode passar de uma vida a outra, ser um inseto, um professor de física, um falcão, um protozoário, um mofo na lama, um pedestre em Paris em 1904, um...
— Até mesmo — observou Leo — um gluck. Qual de nós é aquele gluck ali?
— Eu lhe disse: eu o construí de uma parte de mim. A pessoa pode criar qualquer coisa. Vamos... projete uma fração de sua essência e ela assumirá uma forma material própria. O que você fornece é o logos. Lembra-se disso?
— Eu me lembro — disse Leo. Concentrou-se e logo depois, não muito longe dali, formou-se uma massa desajeitada de fios, barras e coisas parecendo longarinas.
— O que diabo é aquilo? — perguntou Eldritch.
— Uma armadilha para glucks.
Eldritch lançou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
— Muito boa. Mas, por favor, não construa uma armadilha para Palmer Eldritch. Há ainda umas coisas que eu quero dizer.
Ele e Leo observaram o gluck aproximar-se desconfiado da armadilha, farejando. Entrou e a armadilha fechou-se com um estrondo O gluck estava preso e naquele momento a armadilha deu fim a ele: um chiado rápido, uma pequena coluna de fumaça, e o gluck desapareceu.
No ar, à frente de Leo, uma pequena parte tremeluziu. Dela saiu um livro preto, que ele pegou, folheou e, contente, pôs no colo.
— O que é isso? — perguntou Eldritch.
— Uma Bíblia. Achei que podia servir para me proteger.
— Não aqui — declarou Eldritch. — Este domínio é meu. — Fez um gesto para a Bíblia, que desapareceu. — Mas você pode ter o seu, e enchê-lo de Bíblias. Como qualquer pessoa pode fazer. Logo que nossas operações começarem. Vamos ter cenários, claro, mas isso virá mais tarde, com nossas atividades terrenas. E, de qualquer modo, isso será uma formalidade, um ritual para facilitar a transição. A Can-D e a Mascar-Z serão vendidas na mesma base, em concorrência aberta. Não alegaremos coisa alguma em favor de nosso produto que você não faça pelo seu. Não queremos assustar as pessoas. A religião tornou-se assunto delicado. Só depois de algumas experiências é que as pessoas compreenderão os dois aspectos diferentes: a falta de um lapso temporal, e o outro, talvez o mais vital: que não é fantasia, que elas podem entrar em um novo e autêntico universo.
— Muitas pessoas sentem-se assim a respeito da Can-D — observou Leo. — Sustentam, como se fosse um artigo de fé, que estão realmente na Terra.
— Fanáticos — respondeu enojado Eldritch. — Obviamente, trata-se de uma ilusão porque não há Perky Pat alguma e nenhum Walt Essex e, de qualquer modo, a estrutura do meio de fantasia delas é limitada pelos artefatos instalados no cenário. Não podem operar um lavador de pratos automático na cozinha, a menos que um, miniaturizado, tenha sido instalado antes. E uma pessoa que não participe pode observar e ver que as duas bonecas não vão a parte alguma. Não há ninguém nelas. Pode ser demonstrado...
— Mas você vai ter problemas para convencer essas pessoas — retrucou Leo. — Elas permanecerão leais a Can-D. Não há qualquer insatisfação real com Perky Pat. Por que deveriam elas renunciar a...
— Eu lhe digo — cortou-o Eldritch. — Porque, por mais que seja maravilhoso ser Perky Pat e Walt durante algum tempo, no fim elas são forçadas a voltar a seus alojamentos. Sabe como é que elas se sentem nessas ocasiões, Leo? Experimente algumas vezes. Acorde num alojamento em Ganimedes, depois de ter sido livre durante 20, 30 minutos. É uma experiência que você nunca esquecerá.
— Hummmm.
— E há mais uma coisa... e você sabe o que é, também. Quando passa o pequeno período de fuga e o colono volta... ele não está em condições de reassumir uma vida normal, diária. Está desmoralizado. Mas se, em vez de Can-D, ele tivesse mascado...
Interrompeu-se. Leo não o estava escutando, mas absorvido na construção de outro artefato no ar, à sua frente.
Apareceu um curto lance de escada, levando a um arco luminoso. A ponta mais distante do lance de escada não podia ser vista. — Até onde vai isso? — perguntou Eldritch, uma expressão irritada no rosto.
— Até a cidade de Nova Iorque — respondeu Leo. — Vai me levar de volta à P.P. Layouts. — Levantou-se e dirigiu-se para a escada. — Tenho um palpite, Eldritch, que há alguma coisa errada, algum aspecto dessa Mascar-Z... E não vamos descobrir qual é até que seja tarde demais. — Começou a subir os degraus, mas nesse momento lembrou-se da menina Mônica. Perguntou a si mesmo se ela estava bem, ali no mundo de Palmer Eldritch. — O que é que você me diz da criança? — Parou na subida. Embaixo dele, mas aparentemente muito distante, via ainda Eldritch, sentado na grama, com o graveto na mão. — Os glucks não a pegaram, pegaram?
— Eu era a menininha — disse Eldritch. — E isso o que estou tentando lhe explicar. É por isso que digo que isto é uma reencarnação autêntica, uma vitória sobre a morte.
Pestanejando, Leo disse:
— Então, o motivo por que ela me pareceu conhecida... — Calou-se e olhou outra vez.
Eldritch não se encontrava mais ali. A criança, Mônica, com sua valise cheia de doutor Smile, estava sentada no lugar que ele ocupara antes. De modo que, nesse momento, a coisa era evidente.
Ele estava — ela, eles, estavam dizendo a verdade.
Lentamente, desceu a escada e pisou na grama mais uma vez.

— ESTOU CONTENTE porque o senhor não vai-se embora, senhor Bulero — disse Mônica, a criança. — E bom ter uma pessoa tão sabida e evoluída como o senhor para conversar. — Deu uma palmadinha na valise, que se encontrava sobre a relva a seu lado. — Voltei e fui buscá-la. Ela estava apavorada com os glucks. Estou vendo que o senhor descobriu alguma coisa para acabar com eles. — Inclinou a cabeça na direção da armadilha de glucks que, nesse momento, vazia, esperava outra vítima. — Muito engenhoso de sua parte. Eu não havia pensado nisso. Simplesmente, fugi correndo de lá. Uma reação de pânico diencéfalico.
Hesitante, Leo perguntou:
— Você é Palmer, não é? Quero dizer, por baixo? De verdade?
— Veja a doutrina medieval da substância versus acidentes — respondeu cordialmente a criança. — Meus acidentes são os desta criança, mas a minha substância, tal como o vinho e a hóstia na transubstanciação...
— Muito bem — disse Leo. — Você é Eldritch. Acredito em você. Mas continuo a não gostar deste lugar. Aqueles glucks...
— Não culpe a Mascar-Z por causa deles — disse a criança.— Bote a culpa em mim. Eles são produtos de minha mente, não do líquen. Todo novo universo construído tem que ser bonzinho? Eu gosto de glucks no meu. Eles atraem alguma coisa que há em mim.
— Suponhamos que eu também queira construir meu próprio universo — disse Leo. — Talvez haja também alguma coisa má em mim, em algum aspecto de minha personalidade. Não sei. Isso me levaria a criar uma coisa ainda mais horripilante do que a que você criou.
Pelo menos no caso dos cenários de Perky Pat o indivíduo era limitado pelo que se fornecia antes, conforme o próprio Eldritch observara. E havia certa segurança nisso.
— O que quer que fosse, poderia ser abolido — respondeu indiferente a criança. — Se descobrisse que não gostou de sua criação. E se gostasse... — encolheu os ombros — poderia conservá-la. Por que não? Quem seria prejudicado? Você está sozinho no seu... — No mesmo instante, ela calou-se e levou a mão à boca.
— Sozinho — repetiu Leo. — Você quer dizer que cada pessoa vai para um diferente mundo subjetivo? Não é como as representações, então, porque todas as pessoas do grupo que tomam a Can-D participam do cenário, os homens como Walt, as mulheres como Perky Pat. Mas isso significa que você não está aqui. — Ou, pensou, eu não estou aqui. Mas, nesse caso...
A criança observava-o atentamente, tentando avaliar-lhe a reação.
— Nós não tomamos Mascar-Z — disse tranqüilamente Leo. — Tudo isto é um pseudo-ambiente hipnogógico, artificialmente induzido, sem dúvida alguma. Não estamos em parte alguma, exceto no lugar onde começamos. Estamos ainda na sua propriedade em Luna. Mascar-Z não cria novo universo algum, e você sabe disso. Com a droga não há uma reencarnação autêntica. Tudo isto é apenas uma grande ilusão.
A criança ficou calada. Não despregara os olhos dele, brilhantes, frios, ardentes, sem pestanejar.
— Ora, vamos, Palmer — disse Leo — o que é que a Mascar-Z faz, realmente?
— Eu lhe disse. — A voz da criança se tornara áspera.
— Isto não é nem mesmo tão real como Perky Pat, como o uso de nossa própria droga. E mesmo isso está sujeito à dúvida no que interessa, à validade da experiência, sua autenticidade versus estado puramente hipnogógico ou alucinatório. De modo que, obviamente, não cabe qualquer discussão a este respeito. Evidentemente, trata-se do último caso.
— Não — protestou a criança — e é melhor acreditar em mim porque, se não acreditar, não sairá vivo deste mundo.
— Ninguém pode morrer numa alucinação — respondeu Leo. — Assim como ninguém pode renascer. Vou voltar para a P.P. Layouts. — Uma vez mais, dirigiu-se para o lance de escada.
— Pois vá em frente e suba — disse a criança às suas costas. — Não me importa. Espere só para ver até onde essa escada vai levá-lo.
Leo subiu a escada e passou pelo arco luminoso.
Ferozmente ofuscante, a luz quente do sol caiu sobre ele. A toda velocidade, correu pela rua deserta até a porta de um abrigo próximo.
Um táxi a jato, saído dos altos edifícios, desceu, observando-o.
— Uma corrida, senhor? E melhor entrar. Já é quase meio-dia. Arquejante, quase sem poder respirar, Leo respondeu:
— Quero, obrigado. Leve-me a P.P. Layouts.
Cambaleante, subiu no táxi e derreou-se imediatamente no assento, resfolegando no frescor proporcionado pelo escudo antitérmico do veículo.
O táxi decolou. Momentos depois, descia no campo fechado do prédio central de sua companhia.
Logo que chegou à ante-sala de seu gabinete, ordenou à senhorita Gleason:
— Procure Mayerson. Descubra por que ele não fez coisa alguma para me salvar.
— Salvá-lo? — perguntou consternada a senhorita Gleason. — O que foi que aconteceu, senhor Bulero? — Seguiu-o até o gabinete privativo. — Onde foi que o senhor esteve e de que maneira...
— Simplesmente, localize Mayerson. Sentou-se à velha escrivaninha, satisfeito por estar de volta. O diabo levasse Palmer Eldritch, disse a si mesmo e procurou na gaveta seu cachimbo inglês predileto de raiz e a lata de 250 g de fumo Sail, uma mistura premiada holandesa.
Estava acendendo o cachimbo quando a porta foi aberta e Barney Mayerson surgiu, parecendo encabulado e cansado.
— Então? — perguntou Leo, tirando uma vigorosa fumaçada do cachimbo.
— Eu... — começou Barney. Virou-se para a senhorita Fugate, que entrara atrás dele. Com um gesto, virou-se novamente para Leo e disse: — De qualquer modo, você está de volta.
— Claro que estou de volta. Eu mesmo construí uma escada até aqui. Não vai responder por que não fez coisa alguma? Acho que não. Mas, como você diz, você não foi necessário. Tenho agora uma idéia do que é essa nova substância, a Mascar-Z. É definitivamente inferior a Can-D. Não temo dizer isto com toda a convicção. Pode afirmar, sem a menor sombra de dúvida, que é meramente uma experiência alucinógena. Agora, vamos tratar de negócios. Eldritch conseguiu a aprovação da ONU para a Mascar-Z, alegando que a droga induz uma autêntica reencarnação, o que confirma as convicções religiosas de mais da metade do Secretariado da Assembléia Geral, e mais aquele gambá indiano, o próprio Hepburn-Gilbert. E uma fraude porque a Mascar-Z não faz nada disso. Mas o pior aspecto da Mascar-Z é sua qualidade solipsística. Com a Can-D, a pessoa passa por uma experiência interpessoal válida, no sentido em que as outras pessoas no alojamento são... — Parou, irritado. — O que é que há, senhorita Fugate? Para o que é que está olhando?
— Sinto muito, senhor Bulero — murmurou Roni Fugate — mas há uma criatura sob sua escrivaninha.
Inclinando-se, Leo olhou embaixo da mesa. Uma coisa se imprensara entre a base da escrivaninha e o chão, os olhos fitando-o, verdes, sem piscar.
— Vá embora daqui — disse Leo à coisa. A Barney, ordenou: — Pegue uma vara, uma vassoura, alguma coisa para cutucar isso aí.
Barney saiu do gabinete.
— Droga, senhorita Fugate — disse Leo, puxando rápidas baforadas do cachimbo. — Odeio pensar no que está aí embaixo. E no que significa.
Porque poderia significar que Eldritch — dentro da menininha Mônica — tivera razão quando dissera: Não me importo. Espere só para ver até onde essa escada vai levá-lo.
A coisa que estava embaixo da mesa deu um salto e correu para sair. Espremeu-se por baixo da porta e desapareceu.
Ela era ainda pior do que os glucks! Dera uma boa olhada nela.
— Bem, então é isso. Sinto muito, senhorita Fugate, mas pode voltar para seu escritório. Não adianta discutir que medidas tomar contra o aparecimento iminente da Mascar-Z no mercado. Porque não vou falar com ninguém. Vou ficar aqui, conversando besteiras comigo mesmo.
Sentia-se deprimido. Eldritch tinha-o na mão e, além disso, a validade ou pelo menos a aparente validade da experiência com a Mascar-Z fora demonstrada. Ele mesmo a confundira com a coisa real. Só o inseto maligno criado por Palmer Eldritch — deliberada-mente — é que pusera a trama às claras.
Não fosse isso, compreendeu, poderia ter continuado iludido para sempre.
Passado um século, como dissera Eldritch, naquele universo sucedâneo.
Jesus, pensou, estou liquidado.
— Senhorita Fugate — disse — , por favor, não fique simplesmente aí. Volte para seu escritório. — Levantou-se, foi até o refrigerador e serviu-se, com uma xícara de papel, de água mineral. Bebendo água irreal para matar a sede de um corpo irreal, disse a si mesmo. Na frente de uma empregada irreal. — Senhorita Fugate — perguntou — , a senhorita é realmente amante do senhor Mayerson?
— Sou, senhor Bulero — respondeu a senhorita Fugate com uma inclinação de cabeça — , como lhe disse.
— E não quer ser minha. — Sacudiu a cabeça. — Porque eu sou velho e evoluído demais. Sabe de uma coisa — ou melhor, não sabe — que eu pelo menos disponho de poder ilimitado neste universo? Eu poderia reformar meu corpo, tornar-me jovem. — Ou, pensou, tornar você velha. O que é que você acharia disso?, pensou. Bebeu a água e jogou a xícara na calha de lixo. Sem olhar para a senhorita Fugate, pensou: Você é da minha idade, senhorita Fugate. Na verdade, mais velha. Vejamos, você tem mais ou menos 92 anos agora. Neste mundo, pelo menos. Envelheceu aqui... o tempo acelerou-se para você porque você me rejeitou, e eu não gosto de ser rejeitado. Na verdade, disse a si mesmo, você tem mais de cem anos, está encarquilhada, seca, sem dentes nem olhos. Uma coisa.
Às suas costas, ouviu um som seco, áspero, uma tomada de respiração. E uma voz trêmula, aguda, como o grito de uma ave assustada:
— Oh, senhor Bulero...
Mudei de idéia, pensou Leo. Você é como era. Retiro tudo, certo. Virou-se e viu Roni Fugate ou, pelo menos, alguma coisa ali, onde ela estivera antes. Uma teia de aranha, fios cinzentos, fungóides enrolados um no outro, formando uma coluna frágil que oscilava... Viu a cabeça, as faces encovadas, olhos como pontos mortos de muco, inertes, brancos, de onde escorriam lágrimas viscosas, lentas, olhos que tentavam transmitir um apelo, mas que não podiam porque não conseguiam ver onde ele estava.
— Você voltou a ser o que era — disse asperamente Leo, e fechou os olhos. — Diga, quando acabar.
Som de passos. De homem. De Barney, reentrando no gabinete.
— Jesus! — exclamou Barney, e parou. Olhos fechados, Leo perguntou:
— Ela não voltou ainda a ser o que era antes?
— Ela? Onde está Roni? O que é isso? Leo abriu os olhos.
Não era Rony Fugarte que estava ali, nem mesmo uma manifestação antiga dela, era uma poça, mas não de água. A poça era viva e nela nadavam pedaços cinzentos, pontudos, denteados.
O material grosso, pegajoso, da moça escorreu para a frente, estremeceu, e recuou para dentro de si mesmo. No centro, os fragmentos de matéria cinzenta solidificaram-se numa forma aproximada, bola com fios emaranhados, embaçados, de cabelos flutuando na parte superior. Fossas oculares vagas, vazias, formaram-se. A coisa estava se transformando num crânio, em alguma forma de vida ainda por surgir: seu desejo inconsciente de que ela experimentasse evolução no seu aspecto horripilante transformara em realidade essa monstruosidade.
As mandíbulas estalaram, abrindo-se e fechando-se, como se sacudidas por fios perversos, profundamente implantados, flutuando à deriva ali no fluido da poça, e grasnaram:
— Como está vendo, senhor Bulero, ela não viveu esse tempo todo. O senhor esqueceu isso. — Aquilo era, remota mas não absolutamente, a voz — não de Roni Fugate — mas de Mônica, como se vibrando na ponta distante de um fio encerado. — O senhor a fez ter mais de 100 anos, mas ela só vai viver até os 70. De modo que ela está morta há 30 anos. Exceto que o senhor a reviveu, e foi isso o que quis fazer. E, pior ainda... — A boca desdentada mexeu-se e as fossas oculares desocupadas fitaram-no. — Ela evoluiu, não enquanto viva, mas lá no chão. — O crânio deixou de sibilar e, em seguida, aos poucos, desintegrou-se. Suas partes componentes mais uma vez flutuaram, afastando-se, e a aparência de organização dissipou-se novamente.
Após algum tempo, Barney disse:
— Tire-nos daqui, Leo.
— Ei, Palmer — disse Leo, a voz sem controle, transformada em voz de bebê pelo medo. — Ei, quer saber de uma coisa? Eu desisto. Mesmo.
O carpete do gabinete a seus pés apodreceu, amoleceu, e em seguida brotou, cresceu, vivo, transformando-se em fibras verdes. Notou que o carpete estava se transformando em relva. Em seguida as paredes e o teto desmoronaram, reduziram-se a fino pó, chovendo silenciosamente em partículas, como se fossem cinzas. Acima, apareceu o céu azul, frio, intacto.
Sentada na grama, com o graveto no colo e ao lado a valise contendo o doutor Smile, Mônica disse:
— Você queria que o senhor Mayerson ficasse? Achei que não. Deixei-o ir embora com o resto do que você fez. Tudo bem? — Ergueu sorridente o rosto para Leo.
— Tudo bem — concordou ele, sufocando.
Olhando em volta, viu apenas a planície verde. Até mesmo o pó que constituíra a P. P. Layouts, o prédio e seu núcleo de gente havia desaparecido, exceto pela fina camada que continuava recobrindo-lhe as mãos, o paletó. Pensativo, sacudiu-a.
— Do pó vieste, oh, homem, e ao pó retornarás...
— Muito bem! — exclamou ele em voz alta — Entendi. Você não precisa me martelar a cabeça com isso. Então, era irreal. E daí? Quero dizer, você provou seu argumento, Eldritch, você pode fazer aqui tudo o que quiser e eu não sou coisa alguma, sou apenas um fantasma
Sentiu ódio de Palmer Eldritch e pensou: Se eu conseguir sair daqui, se eu puder escapar de você, seu calhorda..
— Ora, ora — disse a menina, com os olhos irrequietos — , o senhor não vai usar uma linguagem como essa. Realmente, não vai, porque não vou deixar. Nem digo o que farei, se continuar, mas o senhor me conhece, senhor Bulero. Certo?
— Certo — concordou Leo.
Afastou-se alguns passos, tirou o lenço do bolso e enxugou o suor do lábio superior, do pescoço e da depressão sob o pomo-de-adão, onde era tão difícil barbear-se pela manhã. Deus, pensou, ajude-me. Vai me ajudar? E se me ajudar, se puder penetrar neste mundo, farei tudo o que quiser. Estou com medo agora, estou doente. Isto vai matar meu corpo, mesmo que este corpo seja apenas ectoplásmico, do tipo fantasma.
Curvando-se em dois, ficou nauseado, vomitou na grama. Durante muito tempo — pareceu muito tempo — continuou vomitando. Depois, sentiu-se melhor. Pôde virar-se e voltar em passos lentos para junto da menina sentada, com a valise ao lado.
— Condições — disse categoricamente a menina. — Vamos elaborar um relacionamento comercial exato entre minha companhia e a sua Precisamos de sua soberba rede de satélites de propaganda e das plantações que só Deus sabe que tamanho têm lá em Vênus. Nós queremos tudo, Bulero. Vamos cultivar o líquen nos lugares onde você cultiva a Can-D, enviá-lo nas mesmas naves, chegar aos colonos com os mesmos traficantes bem treinados e experientes que usa, fazer a propaganda do produto através de profissionais como Allen e Charlotte Faine. Can-D e Mascar-Z não concorrerão porque haverá apenas um único produto, o Mascar-Z. Você vai anunciar logo sua aposentadoria. Entendeu o que eu disse, Leo?
— Entendi — respondeu Leo. — Eu ouvi.
— Vai fazer isso?
— Vou — disse Leo. E saltou sobre a criança.
Com as mãos fechadas em torno da traquéia dela, apertou. Ela fitou-o bem no rosto, rígida, a boca contraída, nada dizendo, nem mesmo tentando lutar, feri-lo com as unhas, fugir. Ele continuou a apertar, por tanto tempo que foi como se suas mãos houvessem se colado a ela, prendendo-se ali para sempre, como raízes retorcidas de alguma planta antiga, doente, mas ainda viva.
Quando a soltou, ela estava morta. O corpo tombou para a frente, contorceu-se e caiu para um lado, ficando de barriga para cima, na relva. Nenhum sangue. Nem sinal mesmo de luta, exceto que a garganta dela estava vermelha, mosqueada, enegrecida.
Ele levantou-se, pensando. Bem, será que fiz isso? Se ele — ela, ou a coisa, o que quer que seja — morre aqui, isso resolve a situação?
O mundo simulado, porém, permaneceu. Esperara que fosse murchando e desaparecendo, enquanto a vida dela — de Eldritch — ia se escoando.
Perplexo, ficou no mesmo lugar, sem mover-se sequer um centímetro, cheirando o ar, ouvindo o vento distante. Coisa alguma mudara, exceto que a menina morrera. Por quê? O que viciara a base sobre a qual agira? Incrivelmente, aquilo fora errado.
Curvando-se, ligou o doutor Smile.
— Explique-me isso — ordenou.
Prestativamente, o doutor Smile declarou em sua voz metálica:
— Ela está morta aqui, senhor Bulero. Mas na propriedade, em Luna...
— Muito bem — cortou-o bruscamente Leo. — Agora, diga-me como é que eu posso sair deste lugar, como voltar a Luna, como... — Fez um gesto vago. — Você sabe o que eu quero dizer. Na realidade.
— Neste momento — explicou o doutor Smile — Palmer Eldritch, embora muito perturbado e zangado, está lhe aplicando intravenosamente uma substância que serve de antídoto ao Mascar-Z injetável previamente administrado. O senhor voltará logo. — E acrescentou: — Isto é, logo, mesmo instantaneamente, em termos do fluxo temporal daquele mundo. Quanto a este... — soltou uma risadinha — poderia parecer mais demorado.'
— Quanto mais demorado?
— Oh, anos — disse o doutor Smile. — Mas, muito possivelmente, menos. Dias? Meses? O sentido de tempo é subjetivo, de modo que vamos ver como lhe parece. Concorda?
Sentando-se cansado junto ao corpo da criança, Leo suspirou, baixou a cabeça, queixo contra o peito, e se dispôs a esperar.
— Eu lhe farei companhia — ofereceu-se o doutor Smile — , se puder. Mas receio que, sem a presença animadora do senhor Eldritch... — a voz da valise, notou Leo, tornara-se fraca, bem como mais lenta. — ...coisa alguma possa manter este mundo. — Continuou debilmente: — Só o senhor Eldritch. De modo que receio...
A voz desapareceu inteiramente.
Restou apenas o silêncio. O próprio vento distante cessara de soprar.
Quanto tempo?, perguntou Leo a si mesmo. Pensou então se poderia, como antes, construir alguma coisa.
Gesticulando à maneira de um inspirado regente de sinfonia, contorcendo as mãos, tentou criar no ar um táxi a jato.
Finalmente, um fraco esboço apareceu. Sem substância, permaneceu sem cor, quase transparente. Levantou-se do chão, aproximou-se da coisa e tentou, com toda sua força, mais uma vez. Por um momento, o veículo pareceu ganhar cor e realidade, mas, de repente, tornou-se fixo. Como uma dura e abandonada casca quitinosa, amoleceu e explodiu. Suas partes, bidimensionais na melhor das hipóteses, arrebentaram-se e flutuaram no ar, transformando-se em peças denteadas. Leo deu as costas aos destroços e afastou-se aborrecido. Que confusão, disse, abatido, para si mesmo.
Sem rumo certo, continuou a andar. Até que topou, de repente, com uma coisa na relva, uma coisa morta. Viu-a caída ali e aproximou-se, cauteloso. Isto, pensou. A prova final do que eu fiz.
Com a biqueira do sapato, deu um pontapé no gluck morto.
O sapato passou de um lado a outro da coisa e ele recuou, repugnado.
Continuando, as mãos profundamente enterradas nos bolsos, fechou os olhos e mais uma vez rezou, mas desta vez vagamente, apenas um desejo inarticulado, mas que depois se tornou claro. Vou pegá-lo no mundo real, pensou. Não apenas aqui, como fiz, mas como os jornais domiciliares vão noticiar. Não por mim, não para salvar a P. P. Layouts e o tráfico de Can-D. Mas por... Ele sabia o que queria dizer com isso. Por toda a população do sistema. Porque Palmer Eldritch é um invasor e é assim que todos nós acabaremos, aqui, deste jeito, numa planície de coisas mortas que se transformaram em nada mais do que fragmentos soltos. Esta é a "reencarnação" que ele prometeu a Hepburn-Gilbert.
Durante algum tempo andou ao léu e finalmente, aos poucos, voltou para a valise que fora do doutor Smile.
Alguma coisa estava curvada sobre a valise. Um ser humano ou uma figura quase humana
Vendo-o, a coisa endireitou-se, com a cabeça calva brilhando, quando o olhou, tomada de surpresa Em seguida, deu um salto e fugiu correndo.
Um proximiano.
Achou, observando a coisa fugir, que aquilo punha tudo em perspectiva. Palmer Eldritch povoara sua paisagem com coisas como aquela. Ele continuava ainda profundamente envolvido com elas, mesmo agora que voltara para seu sistema natal. Aquilo que acabara de aparecer dava uma introvisão da mente do homem, no seu nível mais profundo. O próprio Palmer Eldritch talvez não soubesse que havia povoado assim seu mundo alucinatório — e o proximiano podia ter sido uma surpresa igualmente grande para ele.
A menos, claro, que este fosse o sistema de Prox.
Talvez fosse uma boa idéia seguir o proximiano.
Partiu na direção que ele tomara e andou penosamente durante o que lhe pareceram horas. Nada viu, apenas a relva sob os pés e o horizonte plano. Por fim, uma forma surgiu à frente. Dirigiu-se para ele e chegou de repente a uma nave estacionada. Parando, examinou-a espantado. Em primeiro lugar, não era uma nave terrena, mas também não era uma nave proximiana.
Simplesmente, ela não pertencia a qualquer dos dois sistemas.
As duas criaturas que matavam o tempo perto da nave não eram terráqueos nem proximianos. Nunca vira antes formas de vida como aquelas. Altos, esguios, com membros que pareciam caniços, grotescos, cabeças em forma de ovo que, mesmo àquela distância, pareciam estranhamente delicadas, de uma raça altamente evoluída, concluiu, mas, ainda assim, relacionada com os terráqueos. A semelhança era mais do que com os proximianos.
Dirigiu-se para eles, com a mão erguida numa saudação.
Uma das duas criaturas voltou-se para ele, viu-o, abriu a boca e cutucou o companheiro. Olharam-no fixamente e a primeira disse:
— Deus do céu, Alex, é uma das velhas formas. Você sabe, os quase-homens.
— É mesmo — concordou a outra criatura
— Espere aí — disse Leo Bulero. — Vocês estão falando a língua da Terra, inglês do século XXI, de modo que devem ter sido terráqueos antes.
— Terráqueos? — disse o que se chamava Alex. — Nós somos terráqueos. O que, diabo, é você? Uma anomalia que desapareceu há centenas de anos, é isso o que é. Bem, talvez não há séculos, mas há muito tempo.
— Um enclave deles deve existir ainda nesta lua — disse o primeiro. A Leo, perguntou: — Quantos homens da aurora da humanidade existem, além de você? Vamos, meu chapa. Nós não vamos tratá-lo mal. Alguma mulher? Vocês podem se reproduzir? — Virou-se para o companheiro: — Simplesmente, parecem séculos. Quero dizer, você tem que se lembrar de que estamos evoluindo, em termos de centenas de milhares de anos, em frações de segundo. Se não fosse Denkmal, esses homens da aurora da humanidade ainda seriam...
— Denkmal! — exclamou Leo.
Então era este o resultado da Terapia E de Denkmal. Este momento estava apenas um pouco à frente no tempo, talvez apenas algumas décadas. Como eles, sentia um abismo de um milhão de anos, mas, ainda assim, aquilo era na verdade uma ilusão. Ele mesmo, quando terminasse sua terapia, poderia parecer com um desses indivíduos. Exceto que o couro quitinoso desaparecera e aquele era um dos principais aspectos dos tipos em evolução.
— Eu freqüento a clínica dele — disse aos dois homens. — Uma vez por semana. Em Munique. Estou evoluindo. A terapia está funcionando no meu caso. — Aproximou-se deles e examinou-os atentamente. — Onde está o couro? — perguntou. — A fim de protegê-los do sol.
— Oh, aquele falso período quente passou — disse o que se chamava Alex, com um gesto de pouco caso. — Aquilo foi coisa dos proximinianos, trabalhando com o Renegado. Você sabe. Ou talvez não saiba
— Palmer Eldritch — disse Leo.
— Ele mesmo — confirmou Alex, inclinando a cabeça. — Mas nós o pegamos. Aqui mesmo nesta lua, na verdade. Agora, este lugar é um santuário... Não para nós, mas para os proximianos, que vêm aqui às escondidas para rituais de adoração. Viu algum? Nós devemos prender todos os que encontrarmos. Isto aqui é território do sistema solar, pertence à ONU.
— A que planeta pertence esta lua? — perguntou Leo. Os dois terráqueos evoluídos sorriram.
— Terra — explicou Alex. — E artificial. Chama-se Sigma 14-B, construída há muitos anos. Não existia no seu tempo? Deve ter existido. E realmente velha.
— Acho que sim — disse Leo. — Neste caso, vocês podem me levar para a Terra.
— Claro. — Os dois terráqueos evoluídos inclinaram as cabeças. — Na verdade, vamos decolar dentro de meia hora. Levaremos você... você e o resto de sua tribo. Simplesmente, dê-nos a localização.
— Eu sou o único — disse Leo secamente — e dificilmente seríamos uma tribo. Não somos recém-saídos dos tempos pré-históricos.
Como teria chegado ele a essa época futura? Ou seria isto uma ilusão também, construída pelo mestre das alucinações, Palmer Eldritch? Por que deveria supor que isto era mais real do que a criança Mônica, os glucks ou a P. P. Layouts sintéticas que visitara? Visitara e vira se desfazerem? Isto era Palmer Eldritch imaginando o futuro. Estes eram os meandros de sua mente brilhante, criativa, enquanto esperava, na sua propriedade em Luna, que passassem os efeitos da injeção intravenosa de Mascar-Z.
Na verdade, dali onde se encontrava podia ver obscuramente, através da nave estacionada, a linha do horizonte. A nave era ligeiramente transparente, não suficientemente substancial. E os dois terráqueos evoluídos oscilavam numa leve mas total distorção que lhe lembrava os dias em que havia sofrido de astigmatismo, antes de ter recebido, por transplante cirúrgico, olhos inteiramente sadios. Os dois não se fixavam perfeitamente no lugar.
Estendeu a mão para o primeiro terráqueo.
— Eu gostaria de trocar um aperto de mão com você — disse. Alex, o terráqueo, estendeu também a mão, com um sorriso.
A mão de Leo passou pela de Alex e saiu do outro lado.
— Ei — disse Alex, franzindo as sobrancelhas. Imediatamente, como num movimento de pistão, retirou a mão. — O que é que está acontecendo? — Virou-se para o companheiro: — Esse cara não é real. Devíamos ter desconfiado. Ele é um... como é que os chamavam antigamente? Por mascarem aquela droga diabólica que Eldritch descobriu no sistema de Prox. Um escolhedor, é isso. Ele é um fantasma. — Olhou zangado para Leo.
— Eu sou isso? — perguntou debilmente Leo, mas compreendeu logo que Alex tinha razão. Seu verdadeiro corpo estava em Luna. Ele não estava realmente ali.
Mas o que aquilo fazia dos dois terráqueos evoluídos? Talvez eles não fossem construções da mente ativa de Eldritch. O que se chamava Alex olhava-o fixamente nesse momento.
— Sabe de uma coisa? — disse Alex ao companheiro. — Esse escolhedor me parece conhecido, Vi nos jornais uma foto dele. Tenho certeza — Voltou-se para Leo: — Qual é o seu nome, escolhedor? — O olhar tornou-se mais duro, mais intenso.
— Eu sou Leo Bulero — respondeu Leo.
Os dois terráqueos evoluídos saltaram com o choque.
— Ei — exclamou Alex — , não é de espantar que eu pensasse que o havia reconhecido. Ele é o cara que matou Palmer Eldritch! — Dirigiu-se para Leo: — Você é um herói, meu chapa. Aposto que não sabe disso porque você é apenas um mero escolhedor, certo? E voltou aqui para assombrar este lugar porque ele é, historicamente, o...
— Ele não voltou — interrompeu-o o companheiro — Ele é do passado.
— Mas ele ainda pode voltar — insistiu Alex. — Isto é um segundo advento para ele, depois de sua própria época. Ele voltou... Muito bem, posso dizer isso? — Dirigiu-se a Leo: — Você voltou a este lugar por causa de sua associação com a morte de Palmer Eldritch. — Virou-se e começou a correr para a nave estacionada. — Vou informar aos jornais — gritou. — Talvez eles possam conseguir uma foto sua... o fantasma de Sigma 14-B. — Gesticulou, animado.
— Agora, os turistas vão querer mesmo visitar este lugar. Mas, cuidado, talvez o fantasma de Eldritch, o escolhedor dele, apareça por aqui, também. Para se vingar. — Não pareceu muito satisfeito com esse pensamento.
— Eldritch já fez isso — acalmou-o Leo.
Alex parou e, em seguida, voltou lentamente para junto deles.
— Já? — Olhou em volta, nervoso. — Onde está ele? Perto daqui?
— Está morto — explicou Leo. — Matei-o. Estrangulei-o. Não sentia emoção a respeito do ato, apenas cansaço. De que modo podia uma pessoa sentir-se jubilosa por ter assassinado uma outra, especialmente uma criança?
— Eles vão ter que reencenar isso por toda a eternidade — disse Alex, impressionado e com os olhos arregalados. Sacudiu a grande cabeça ovóide.
— Eu não estava reencenando coisa alguma — protestou Leo.
— Esta foi a primeira vez. — E depois pensou: E não a vez real. Isso ainda está para acontecer.
— Você quer dizer — começou lentamente Alex — que o assassinato...
— Ainda vou ter que cometê-lo — disse em voz áspera Leo. — Mas um de meus consultores de pré-sucesso disse-me que isso não vai demorar muito. Provavelmente.
Não era inevitável e jamais poderia esquecer esse fato. E Eldritch sabia disso, também. Este fato ajudaria muito a explicar o comportamento de Eldritch ali e naquele instante: ele estava protelando — ou assim esperava — sua própria morte.
— Venha comigo — disse Alex a Leo — dar uma olhada no monumento que comemora o fato. — Ele e o companheiro foram à frente. Leo, relutante, seguiu-os. — Os proximianos — disse Alex empertigando-se — procuram sempre... você sabe, dissecá-lo.
— Degradá-lo — corrigiu o companheiro.
— Isso mesmo — concordou Alex, inclinando a cabeça. — De qualquer modo, ei-lo. — Parou.
À frente deles erguia-se uma imitação — mas que impressionava — de um pilar de granito. Uma placa de bronze fora pregada à altura dos olhos. Leo, a contragosto, leu os dizeres:
In memoriam. 2016 a. D. Próximo a este local, o inimigo do
sistema solar, Palmer Eldritch , foi morto em combate leal
pelo paladino dos nossos nove planetas , Leo Bulero, da Terra.
— Oh! — disse Leo, impressionado, apesar de tudo. Leu mais uma vez a placai. E releu-a. — Eu gostaria de saber — especulou para si mesmo — se Palmer viu isto.
— Se ele é um escolhedor — opinou Alex — , provavelmente viu. A forma original da Mascar-Z produzia o que o fabricante — o próprio Eldritch — chamava de "implicações temporais". E o seu caso, exatamente. Você ocupa um local anos após sua morte. De qualquer modo, acho que você agora está morto. — Virou-se para o companheiro. — Leo Bulero está morto neste momento, não está?
— Ora, claro — retrucou o companheiro. — Há várias décadas.
— Na verdade, acho que li em algum lugar... — começou Alex, mas parou e olhou para alguma coisa às costas de Leo. Cutucou o companheiro. Leo virou-se para ver o que era.
Um cão arrepiado, magro, estranhamente branco, aproximava-se deles.
— E seu? — perguntou Alex.
— Não — respondeu Leo.
— Parece um cão escolhedor — observou Alex. — Olhe, a gente pode ver um pouco através dele.
Os três observaram enquanto o cão chegava até eles, passava por eles e dirigia-se para o monumento.
Pegando uma pedra, Alex lançou-a contra o cão. A pedra atravessou o corpo do animal e caiu no chão do outro lado. Era um cão escolhedor.
Enquanto os três olhavam, o cão parou em frente ao monumento, pareceu olhar por um curto momento para a placa e em seguida...
— Defecação! — berrou Alex, com o rosto avermelhado de raiva.
Correu para o cão, agitando os braços, tentando chutá-lo, depois procurando pegar a pistola de laser que levava no cinto, mas errando o cabo em seu nervosismo.
— Profanação — corrigiu o companheiro.
— É Palmer Eldritch — disse Leo.
Eldritch estava demonstrando seu desprezo pelo monumento, sua ausência de medo em relação ao futuro. Nunca haveria tal monumento. Sem pressa, o cão afastou-se, enquanto os dois terráqueos evoluídos o acompanhavam com uma torrente de palavrões.
— Tem certeza de que aquele cão não era seu? — perguntou desconfiado Alex. — Tanto quanto posso saber, você é o único escolhedor que anda por aqui. — E lançou um olhar a Leo.
Leo começou a explicar a eles o que acontecera. Era importante que eles compreendessem. Nesse momento, porém, sem o menor aviso de qualquer tipo, os dois terráqueos evoluídos desapareceram. A planície relvada, o monumento, o cão que se afastava — todo o panorama evaporou-se, como se o método através do qual fora projetado, estabilizado e mantido, houvesse saído de posição, Viu apenas uma extensão ampla e vazia, um ofuscamento focalizado, como se naquele momento não houvesse mais nenhum diapositivo em 3-D no projetor. A luz, pensou, subjacente à interação de fenômenos que chamamos de "realidade".
De repente, viu-se sentado no cômodo despojado da propriedade de Eldritch em Luna, olhando para a mesa em que estava a engenhoca eletrônica.
O aparelho, engenhoca, ou o que quer que fosse, disse:
— Sim, vi o monumento. Mais ou menos 45% dos futuros o incluem. Prevalecem um pouco menos do que'possibilidades iguais, de modo. que não estou tão preocupado assim. Aceite um charuto. — Mais uma vez, a máquina ofereceu um charuto aceso a Leo.
— Não quero — recusou Leo.
— Vou soltá-lo — disse o aparelho — por algum tempo, por 24 horas, mais ou menos. Você pode voltar ao seu pequeno gabinete, em sua minúscula companhia na Terra Enquanto estiver lá, quero que medite na situação. Agora, você conheceu a força da Mascar-Z. Compreende o fato de que seu produto antediluviano, a Can-D, não pode nem remotamente comparar-se com ela. E, além do mais...
— Conversa — retrucou Leo. — A Can-D é muito superior.
— Bem, pense bem no caso — aconselhou confiante a engenhoca eletrônica.
— Muito bem — disse Leo.
Levantou-se, todo duro. Estivera realmente no satélite artificial da Terra, o Sigma 14-B? Isso era trabalho para Félix Blau. Especialistas podiam seguir a pista da coisa Não havia proveito em se aborrecer com isso naquele momento. O problema imediato era bastante sério: não conseguira ainda livrar-se do controle de Palmer Eldritch.
Poderia escapar apenas quando — e se — Eldritch resolvesse soltá-lo. Tratava-se de um dado cruel de realidade concreta, embora difícil de aceitar.
— Eu gostaria de observar — recomeçou a engenhoca — que tive compaixão de você, Leo. Eu poderia ter... bem, digamos, posto um ponto final na frase que constitui sua vida muito curta. E em qualquer ocasião em que quisesse fazer isso. Por causa disso, espero — insisto — que pense seriamente em fazer a mesma coisa
— Como eu disse, vou pensar no caso — respondeu Leo.
Sentia-se irritável, como se houvesse bebido um número excessivo de xícaras de café e queria ir embora dali logo que possível. Abriu a porta da sala e saiu para o corredor.
No momento em que ia fechar a porta, às suas costas â engenhoca eletrônica avisou:
— Se resolver não se aliar a mim, Leo, eu não vou esperar. Vou matá-lo. Tenho que fazer isso, para salvar meu próprio ser. Entendeu?
— Entendi — respondeu Leo, e fechou a porta
E eu tenho que fazer aquilo também, pensou. Tenho que matá-lo... ou será que poderíamos dizer isso de forma menos direta, mais,ou menos como dizem a respeito de animais: colocá-lo para dormir?
E tenho que fazer isso não só para me salvar, mas salvar todos os habitantes do sistema, e essa é a minha motivação. Por exemplo, aqueles dois soldados terráqueos evoluídos que encontrei no monumento. Para que eles tenham alguma coisa para guardar.
Lentamente, subiu o corredor. Na extremidade mais distante, viu o grupo de repórteres dos jornais domiciliares. Não haviam ido embora ainda, nem mesmo tinham obtido a entrevista... praticamente tempo algum se passara. De modo que, nesse ponto, Palmer tinha razão.
Reunindo-se aos repórteres, relaxou e sentiu-se muito melhor. Talvez conseguisse escapar naquele instante, talvez Palmer Eldritch estivesse realmente deixando que ele se fosse. Uma vez mais, viveria para cheirar, ver, beber no mundo.
Mas, bem no fundo, sabia que não seria assim. Eldritch nunca o soltaria. Antes disso, um deles teria que ser destruído.
Tinha esperança de que não fosse ele. Mas sentia uma pavorosa intuição, a despeito do monumento, de que bem poderia ser.

Sete
A PORTA do gabinete privativo de Barney Mayerson foi aberta de chofre e Leo Bulero entrou, encurvado de cansaço, com as marcas da viagem.
— Você não tentou me ajudar.
Após um pequeno intervalo, Barney respondeu:
— É verdade.
De nada adiantava tentar explicar o porquê, não que Leo não conseguiria compreender, ou acreditar, mas por causa da própria razão. Ela, simplesmente, não era suficiente.
— Você está despedido, Mayerson — disse Leo.
— Tudo bem.
E pensou: pelo menos, estou vivo. Se tivesse ido ajudar Leo, não estaria. Com os dedos duros, começou a pegar na escrivaninha seus objetos pessoais, colocando-os numa caixa vazia de mostruário.
— Onde está a senhorita Fugate? — perguntou Leo. — Ela vai assumir seu cargo. — Aproximou-se de Barney e examinou-o atentamente. — Por que você não foi me buscar? De-me uma droga de razão, Barney.
— Preconheci o futuro. Isso teria me custado demais. Minha vida.
— Mas você não tinha que ir pessoalmente. Isto aqui é uma grande companhia... Você poderia ter formado um grupo, aqui, e ficado na retaguarda, certo?
Era verdade. E ele mesmo pensara nisso.
— De modo que — continuou Leo — você deve ter desejado que alguma coisa fatal me acontecesse. Nenhuma outra interpretação é possível. Talvez fosse coisa inconsciente, não?
— Acho que sim — reconheceu Barney.
Porque certamente não estivera consciente disso. De qualquer modo, Leo tinha razão. Por que outro motivo não teria assumido a responsabilidade, providenciado para que um grupo armado, como sugerira Félix Blau, fosse reunido na P. P. Layouts e enviado a Luna? Era tão óbvio naquele instante. Tão simples de entender.
— Eu tive uma experiência terrível — disse Leo — na propriedade de Palmer Eldritch. Ele é um mágico terrível, Barney. Fez toda sorte de coisas comigo, coisas com que você e eu nunca teríamos sonhado. Transformou-se, por exemplo, numa menininha, mostrou-me o futuro, e talvez isso tivesse sido sem intenção, construiu um universo completo, incluindo um animal horrível, chamado gluck, juntamente com uma cidade de Nova Iorque ilusória, onde estavam você e Roni. Que confusão. — Sacudiu a cabeça, com os olhos turvos. — Para onde é que você vai?
— Só há um lugar para onde posso ir.
— Onde? — Leo fitou-o, apreensivo.
— Uma única pessoa poderia usar meu talento para pré-sucesso.
— Neste caso, você é meu inimigo?
— Já sou. No que interessa a você. — E estava disposto a aceitar como justo o julgamento de Leo sobre sua omissão.
— Pois então, eu vou pegar você também — prometeu Leo. — Juntamente com aquele mágico louco, o denominado Palmer Eldritch.
— Por que denominado? — Barney ergueu rápido os olhos e parou de guardar as coisas.
— Porque estou cada vez mais convencido de que ele não é humano'. Nunca botei os olhos em cima dele, exceto durante o período em que estive sob o efeito da Mascar-Z. Nas outras ocasiões, ele me falou através de uma extensão eletrônica.
— Interessante — comentou Barney.
— E, não é? E você é tão corrupto que vai se candidatar a um emprego na firma dele. Mesmo que ele possa ser um proximiano de peruca ou alguma coisa pior, alguma droga de coisa que se meteu na nave dele, quando ele estava indo ou voltando, lá no espaço profundo, comeu-o e tomou o lugar dele. Se você tivesse visto os glucks...
— Neste caso, pelo amor de Deus — explodiu Barney — não me obrigue afazer isto. Conserve-me aqui.
— Não posso. Não, depois de você ter faltado com a lealdade. — Leo desviou a vista, engolindo em seco rapidamente. — Eu gostaria de não estar magoando você desta maneira fria, racional, mas... — Cerrou os punhos, num gesto de inutilidade. — Foi horrendo, ele praticamente conseguiu, quebrou minha resistência. Em seguida, encontrei aqueles dois terráqueos evoluídos, e isso ajudou. Até que Eldritch apareceu sob a forma de um cão que urinou no monumento. — Fez uma careta de nojo. — Tenho que reconhecer que ele demonstrou, de forma muito visível, sua atitude. — E acrescentou, como para si mesmo: — A convicção dele de que vai vencer, de que nada tem a temer, mesmo depois de ter visto aquela placa.
— Deseje-me sorte — disse Barney.
Estendeu a mão. Por um curto momento, formalmente, trocaram um aperto de mão. Em seguida, Barney deixou o gabinete, passou pela mesa da secretária e saiu para o corredor central. Sentia-se vazio, recheado com algum material inútil de refugo, sem gosto, como palha. Nada mais.
Estava à espera do elevador quando Roni Fugate chegou, arque-jante, o rosto franco cheio de preocupação.
— Barney... ele mandou você embora? Ele confirmou com um aceno.
— Oh, meu Deus — disse ela — E agora, o quê...?
— Agora — respondeu ele — vou para o outro lado. Para o que der ou vier.
— Mas como é que nós dois podemos continuar a viver juntos, com você trabalhando lá e eu trabalhando para Leo...
— Não tenho a mínima idéia — reconheceu Barney. Chegou o elevador auto-regulado. Entrou. — A gente se vê — disse, e apertou o botão.
As portas se fecharam, cortando a vista de Roni. A gente se vê no que os neocristãos chamam de inferno, pensou. Provavelmente, não antes. A menos que isto já seja, e talvez seja mesmo, o próprio inferno, agora.
Ao nível da rua, deixou o prédio da P. P. Layouts e postou-se sob o escudo protetor antitérmico, procurando sinais de um táxi.
No momento em que um táxi parou e ele ia dirigir-se para o veículo, uma voz chamou-o urgente da entrada do prédio:
— Barney, espere.
— Você está louca — disse ele. — Volte lá para dentro. Não abandone sua florescente e brilhante carreira, juntamente com o que sobrou da minha.
— Nós dois íamos trabalhar juntos, lembra-se? — recordou Rony. — Como eu disse, trair Leo. Por que não podemos continuar cooperando?
— Tudo mudou. Devido à minha doentia e depravada indisposição, ou incapacidade, ou o que quer que você queira chamar a isso, de ir a Luna ajudar Leo. — Sentia-se diferente a seu próprio respeito e não se considerava mais à mesma luz ultra-simpática. Deus, você não vai querer ficar comigo — disse à moça. — Algum dia você se meterá em dificuldades, precisará de minha ajuda, e eu farei com você exatamente o que fiz com Leo. Deixaria você afundar sem mexer um dedo.
— Mas sua própria vida estava em...
— Sempre está — observou ele. — Quando a gente faz alguma coisa. Esse é o nome da comédia em que estamos presos.
Mas isso não o desculpava. Pelo menos não a seus próprios olhos. Entrou no táxi, deu automaticamente o endereço de seu condomínio de apartamentos e recostou-se no assento, enquanto o veículo subia para o céu ígneo do meio-dia. Muito embaixo, sob a cortina antitérmica, Roni Fugate continuava protegendo os olhos com as mãos, observando-o afastar-se. Sem dúvida esperando que ele mudasse de idéia e voltasse.
Mas ele não voltou.
E preciso uma certa coragem, pensou, para o homem olhar-se de frente e dizer com franqueza: Eu sou podre. Procedi mal, e farei isso novamente. Não foi acidente. O que fiz emanou do meu eu verdadeiro, autêntico.
Logo depois, o táxi começou a descer. Enfiou a mão no bolso à procura da carteira e, nesse momento, descobriu com um choque que aquele não era seu condomínio. Em pânico, tentou descobrir onde se encontrava. Ocorreu-lhe então que aquele era o condomínio 492. Dera ao táxi o endereço de Emily.
Depressa! De volta ao meu passado, onde as coisas faziam sentido, pensou, quando eu tinha minha carreira, sabia o que queria do futuro, sabia mesmo, no fundo do coração, o que estava disposto a abandonar, combater, sacrificar... e pelo quê. Mas, agora...
Neste momento sacrificara a carreira a fim de, segundo parecia, salvar a vida. De modo que, pela lógica, no passado sacrificara Emily para salvar sua vida. A coisa era tão simples assim. Nada mais poderia ser claro. Não era uma meta idealista, não o dever puro, velho, puritano, calvinista para com uma vocação. Nada mais era do que o instinto que habitava e condicionava cada verme que rastejava. Cristo, pensou, eu fiz isso, coloquei-me à frente de Emily e, agora, de Leo. Que tipo de ser humano sou eu? E, como fui suficientemente honesto para dizer a ela, a próxima seria Roni. Inevitavelmente.
Talvez Emily possa me ajudar, pensou. Talvez seja por esse motivo que estou aqui. Ela sempre foi esperta a respeito de coisas como esta, sempre viu através das ilusões autojustificadoras que eu construía para ocultar a realidade interna. E, claro, isso me tornava ainda mais ansioso para me livrar dela. Na verdade, isso apenas era razão suficiente, dada a pessoa que sou. Mas... talvez eu possa suportar isso melhor agora.
Momentos depois, chegava à porta de Emily e tocava a campainha.
Se ela achar que devo entrar para a empresa de Palmer Eldritch, é isso o que vou fazer, pensou. E se não, não. Mas ela e o marido estão trabalhando para Eldritch. De que modo podem eles, lealmente, me dizer que eu não trabalhe? De modo que isso já estava antecipadamente resolvido. E talvez eu soubesse disso, também.
A porta foi aberta. Usando uma bata azul manchada de barro úmido e barro seco, Emily fitou-o, espantada, atônita.
— Oi — disse ele. — Leo me mandou embora. — Esperou, mas ela continuou calada. — Posso entrar? — perguntou.
— Pode. — Deixou-o entrar no apartamento. No centro da sala de estar, a conhecida roda de oleiro ocupava, como sempre, um espaço enorme. — Eu estava trabalhando. E bom vê-lo de novo, Barney. Se quiser uma xícara de café, vai ter que...
— Eu vim aqui para lhe pedir um conselho — respondeu ele. — Mas, agora descobri que isso é desnecessário.
Foi vagarosamente até a janela, pôs no chão a volumosa caixa de amostras, olhou para fora.
— Você se importa se eu continuar trabalhando? Tive uma boa idéia, ou pelo menos ela pareceu boa na ocasião. — Esfregou a testa e massageou os olhos. — Agora, não sei mais... Sinto-me tão cansada. Eu gostaria de saber se isso tem alguma coisa a ver com a Terapia E.
— Terapia de Evolução? Você está se submetendo a isso? — Virou-se para examiná-la. Teria ela mudado, fisicamente?
Achou — mas talvez isso fosse porque não a via há muito tempo — que as feições dela tinham-se tornado grosseiras. Idade, pensou ele. Mas... — Como está indo? — perguntou.
— Bem, eu tive apenas uma sessão. Mas, sabe de uma coisa, estou com a mente muito confusa. Parece que não consigo pensar direito, todas as minhas idéias se misturam.
— Acho que é melhor você interromper essa terapia. Mesmo que seja moda, mesmo que seja o que todo mundo que tem algum status anda fazendo.
— Talvez, sim. Mas eles parecem tão satisfeitos. Richard e o doutor Denkmal. — Deixou pender a cabeça, na velha, conhecida reação. — Eles saberiam, não?
— Ninguém sabe. E um terreno ainda desconhecido. Suspenda isso. Você sempre deixa que as pessoas passem por cima de você.
Deu à voz um tom autoritário. Usara-o com ela incontáveis vezes nos seus anos juntos e geralmente funcionara, mas nem sempre.
E desta vez, notou, era uma delas. Surgiu aquela expressão teimosa nos olhos dela, a recusa em ser habitualmente passiva.
— Eu acho que isso quem decide sou eu — disse com dignidade. — E tenciono continuar.
Encolhendo os ombros, ele andou ao léu pelo apartamento. Não tinha poder sobre ela, nem se importava. Mas seria isso verdade? Não se importaria, realmente? Uma imagem apareceu em sua mente, de Emily involuindo... e, ao mesmo tempo, tentando trabalhar em seus vasos, tentando ser criativa. Era engraçado... e horrível.
— Escute aqui — disse asperadamente — , se aquele cara realmente a ama...
— Eu já lhe disse — insistiu Emily. — A decisão é minha. Voltou à roda Um grande vaso estava sendo modelado. Barney aproximou-se para olhar bem. Um belo trabalho, pensou. Mas... conhecido. Ela já não fizera aquele vaso antes? Não comentou, apenas estudou a peça.
— O que é que você acha que vai fazer? — perguntou Emily. — Para quem você poderia trabalhar?
Parecia interessada em seu caso e isto fê-lo lembrar-se de que, recentemente, impedira a venda dos vasos dela à P. P. Layouts. Normalmente, ela poderia ter ficado com muita raiva dele, mas era típico dela não ter essa reação. E, claro, sabia que fora ele que dissera não a Hnatt.
— Meu futuro talvez esteja decidido — respondeu. — Recebi um aviso de convocação.
— Que pena. Você, em Marte. Não consigo imaginar isso.
— Eu poderia mascar Can-D — disse ele — Apenas... — Em vez de ter um cenário de Perky Pat, pensou, talvez eu tenha um cenário de Emily. E passe o tempo num mundo de fantasia, no passado, com você de volta à vida a que deliberada e estupidamente dei as costas. O único período realmente bom na minha vida, quando fui realmente feliz. Mas, claro, não sabia, porque não tinha coisa alguma com que compará-la... como tenho agora. — Há alguma possibilidade — perguntou — de que você gostasse de ir?
Ela fitou-o, e ele retribuiu o olhar, ambos estarrecidos com o que ele propusera.
— Estou falando sério — disse ele.
— Quando foi que você resolveu isso?
— Não tem importância quando decidi — respondeu ele. — Tudo o que importa é como me sinto agora.
— Importa também como eu me sinto — disse tranqüilamente Emily. Depois, voltou ao trabalho. — Eu me sinto perfeitamente feliz, casada com Richard. Nós nos damos muito bem.
Seu rosto estava plácido. Sem dúvida alguma, ela acreditava em cada palavra que dizia. Ele estava condenado, fora amaldiçoado, relegado ao vazio que escavara para si mesmo. E merecia-o. Ambos sabiam disso, mesmo que nenhum dos dois o dissesse.
— Acho que vou embora — disse ele.
Emily não objetou a isso, tampouco. Simplesmente, inclinou a cabeça.
— Deus queira — disse ele — que você não esteja involuindo. Pessoalmente, acho que está Estou vendo isso em seu rosto, por exemplo. Olhe-se num espelho.
Com essas palavras, saiu e a porta foi fechada às suas costas. No mesmo instante, arrependeu-se do que dissera, mas, ainda assim, poderia ter sido útil... poderia ajudá-la, pensou. Porque vi aquilo. E não quero aquilo. Ninguém quer. Nem aquela besta do marido dela, que ela prefere a mim... por razões que nunca saberei, exceto que, talvez, para ela, casamento tenha o aspecto de coisa do destino. Ela foi destinada a viver com Richard Hnatt, a nunca mais ser minha esposa. Ninguém pode reverter o fluxo do tempo.
Pode, quando mascar Can-D, pensou. Ou o novo produto, Mascar-Z. Todos os colonos fazem isso. Não existe na Terra, mas existe em Marte, em Vênus, em Ganimedes, em todos os mundos-colônias.
Se tudo mais falhar, há sempre aquilo.
E talvez aquilo já tenha falhado. Porque...
Em última análise, não podia procurar Palmer Eldritch. Não, depois do que aquele homem fizera — ou tentara fazer — com Leo. Compreendeu isso enquanto, do lado de fora, esperava um táxi. Às suas costas, tremeluzia a rua do meio-dia, e ele pensou: talvez eu vá para o meio da rua. Alguém me encontraria, antes de eu morrer? Provavelmente, não. Isso seria uma maneira tão boa como outra qualquer...
Assim, lá se vai minha última esperança de emprego. Leo acharia divertido se eu esticasse as canelas aqui. Ficaria surpreso e, provavelmente, satisfeito.
Só pelo prazer da coisa, resolveu, vou telefonar para Eldritch, perguntar a ele, verificar se ele me ofereceria um emprego.
Descobriu uma cabine de videofone e fez uma ligação para a propriedade de Eldritch, em Luna.
— Fala aqui Barney Mayerson — explicou. — Antes, consultor-chefe de pré-sucesso de Leo Bulero. Na verdade, eu era a segunda pessoa da P. P. Layouts...
O gerente de pessoal de Eldritch franziu as sobrancelhas e disse:
— Bem? O que é que o senhor quer?
— Eu gostaria de verificar a possibilidade de trabalhar com vocês.
— Nós não estamos contratando nenhum consultor de pré-sucesso. Sinto muito.
— O senhor poderia perguntar ao senhor Eldritch, por favor?
— O senhor Eldritch já se manifestou sobre esse assunto. Barney desligou. Deixou a cabine videofônica.
Na verdade, não estava surpreso.
Se ele houvesse dito "Venha a Luna para uma entrevista", eu teria ido? Teria, compreendeu. Teria ido, mas, em algum ponto, cairia fora.. Logo que estivesse plenamente convencido de que me dariam o emprego.
Voltando ao videofone, ligou para sua junta de convocação na ONU:
— Fala aqui o senhor Barney Mayerson. — Deu seu número-código de identificação oficial. — Recebi meu aviso há alguns dias. Gostaria de desistir das formalidades e ser aceito logo. Estou ansioso para emigrar.
— O exame físico não pode ser dispensado — informou o burocrata da ONU. — Nem o mental. Mas, se quiser, pode vir quando desejar, agora mesmo, se preferir, e fazer os dois.
— Muito bem — disse. Vou fazer isso.
— E desde que o senhor está-se apresentando como voluntário, senhor Mayerson, tem o direito de escolher...
— Qualquer planeta ou lua serve para mim — respondeu ele. Desligou, deixou a cabine, pegou um táxi e deu o endereço da junta de alistamento que ficava próxima de seu prédio de apartamentos.
Enquanto o táxi sobrevoava, zumbindo, o centro de Nova Iorque, outro táxi levantou vôo e tomou-lhe à frente, inclinando os estabilizadores laterais num movimento oscilante.
— Eles estão tentando entrar em contato conosco — informou o circuito autônomo de seu táxi — Deseja responder?
— Não — retrucou Barney. — Aumente a velocidade. — Mas em seguida mudou de idéia: — Pode perguntar a eles quem são?
— Pelo rádio, talvez — O táxi ficou silencioso durante um momento e declarou em seguida: — Eles alegam ter uma mensagem para o senhor, da parte de Palmer Eldritch. Ele quer lhe dizer que o aceita como empregado e que o senhor não deve...
— Repita isso — ordenou Barney.
— O senhor Palmer Eldritch, que eles representam, lhe dará o emprego que o senhor recentemente solicitou, embora tenham uma regra de aplicação geral...
— Deixe-me falar com eles — pediu Barney. Um microfone lhe foi fornecido.
— Quem está falando? — perguntou Barney.
Uma voz desconhecida de homem respondeu:
— Fala aqui Icholtz. Da indústria Mascar-Z, de Boston. Podemos aterrar e discutir a questão de seu emprego em nossa firma?
— Estou indo para a junta de recrutamento, a fim de me oferecer.
— Não há nada por escrito, há? O senhor não assinou nada, assinou?
— Não.
— Ótimo. Neste caso, não é tarde demais.
— Mas em Marte eu posso mascar Can-D — disse Barney.
— Por que, em nome de Deus, o senhor faria isso?
— Porque assim eu poderia voltar para Emily.
— Quem é Emily?
— Minha ex-esposa. Que expulsei de casa porque ela engravidou. Agora, compreendo que aquele foi o único tempo feliz de minha vida. Para dizer a verdade, amo-a mais agora do que nunca. O amor aumentou, em vez de desaparecer.
— Escute aqui — disse Icholtz. — Nós podemos lhe fornecer todo o Mascar-Z que quiser e o produto é superior. O senhor poderá viver para sempre em um eterno imutável, perfeito, com sua ex-esposa Assim, não há problema.
— Mas talvez eu não queira trabalhar para Palmer Eldritch.
— O senhor pediu um emprego.
— Mas estou com dúvidas — respondeu Barney. — Graves. Eu lhe digo uma coisa: não me ligue. Eu ligarei para o senhor. Se não entrar para o Serviço. — Devolveu o microfone ao táxi. — Tome. Obrigado.
— É patriótico ingressar no Serviço — comentou o táxi.
— Meta-se com sua vida — cortou-o Barney.
— Acho que o senhor está fazendo a coisa certa — declarou o táxi, apesar de tudo.
— E se eu apenas tivesse ido a Sigma 14-B a fim de salvar Leo — disse Mayerson. — Ou era Luna? Onde quer que fosse. Não consigo nem mesmo me lembrar agora. Tudo isso parece um sonho confuso. De qualquer modo, se eu tivesse ido, ainda estaria trabalhando para ele e tudo estaria bem.
— Todos nós cometemos erros — disse piedosamente o táxi.
— Mas alguns — retrucou Barney — cometem erros fatais. Em primeiro lugar com nossos entes queridos, esposa e filhos, e
em seguida com nosso empregador, disse a si mesmo.
O táxi continuou a zumbir em seu vôo.
E depois, pensou ele, cometemos o último erro. Com toda nossa vida, que engloba tudo. Devo aceitar um emprego com Eldritch ou ingressar no Serviço? E qualquer que seja a escolha, sabemos o seguinte:
Foi a alternativa errada.
Uma hora depois, concluíra o exame físico. Passou, e logo em seguida o mental foi realizado por algo não muito diferente do doutor Smile.
Passou, também.
Num estado de aturdimento fez o juramento ("Juro considerar a Terra como a mãe e a líder", etc.) e em seguida, com uma pasta de informações do tipo "Seja bem-vindo", foi dispensado para voltar ao apartamento e fazer as malas. Dispunha de 24 horas antes que sua nave partisse para... para onde quer que o estivessem enviando. A ONU não se pronunciara ainda sobre isso. A notificação de destino, pensou, provavelmente começaria com Mene, mene, teckel. Pelo menos devia, considerando as possíveis opções a que se limitava.
Fui aceito, disse a si mesmo, sentindo todos os tipos de reação: satisfação, alívio, medo e em seguida melancolia, que surgiu com um esmagador sentimento de derrota. De qualquer modo, pensou, voltando ao apartamento, isto é melhor do que sair para o sol do meio-dia, tornando-me, como dizem, um cão danado ou um inglês.
Ou era mesmo?
De qualquer modo, esta solução era mais lenta. Demorava mais morrer dessa maneira, possivelmente uns 50 anos e esse fato agradava-lhe mais. Mas por quê, não sabia.
Contudo, refletiu, posso sempre resolver acelerar o processo. Num mundo-colônia há sem dúvida tantas oportunidades para isso como aqui, talvez ainda mais.
Enquanto arrumava as coisas, saboreando pela última vez o apartamento amado e pelo qual tanto trabalhara, o videofone tocou.
— Senhor Bayerson... — Uma moça, alguma funcionária subalterna de algum departamento subalterno da divisão de colonização da ONU. Sorrindo.
— Mayerson.
— Sim. O motivo por que estou telefonando é para lhe dizer que seu destino — sorte sua, senhor Mayerson — será a área fértil de Marte conhecida como Fineburg Crescent. Sei que vai gostar de lá. Bem, adeus, senhor, e boa sorte. — Continuou a sorrir mesmo depois de ele ter desligado a imagem. Era o sorriso de uma pessoa que não estava sendo deportada.
— Boa sorte para você também — disse ele.
Fineburg Crescent. Ouvira falar no lugar. Relativamente, era mesmo fértil. De qualquer modo, os colonos de lá possuíam hortas. Não era, como algumas áreas, um ermo de cristais congelados de metano e gás, descendo em tempestades violentas, intermináveis, um ano sim, e o outro também. Acreditasse ou não, ele, de vez em quando, poderia subir à superfície, deixar o alojamento.
No canto da sala de estar, viu a valise do doutor Smile. Ligou-a e disse:
— Doutor, o senhor vai ter dificuldade em acreditar nisto, mas não preciso mais de seus serviços. Adeus e boa sorte, como disse a moça que não está indo para fora. — E acrescentou, numa explicação. — Apresentei-me como voluntário.
— Cdryxxxxx — berrou o doutor Smile, soltando uma roda denteado no subsolo do prédio. — Mas, para seu tipo... isso é virtualmente impossível. Qual foi a razão, senhor Mayerson?
— O desejo de morrer — respondeu, e desligou o psiquiatra. Em silêncio, voltou à arrumação da mala. Deus!, pensou. E há tão pouco tempo Roni e eu tínhamos aqueles planos tão maravilhosos, íamos trair Leo em grande estilo, passar sensacionalmente para o lado de Eldritch. O que foi que aconteceu com tudo isso? Eu lhe digo o que foi que aconteceu, pensou: Leo agiu antes.
E agora Roni tem meu emprego. Exatamente o que ela queria.
Quanto mais pensava no caso, mais zangado ficava, de maneira confusa Mas nada havia que pudesse fazer a esse respeito, não neste mundo. Talvez, quando mascasse Can-D ou Mascar-Z, pudesse habitar um mundo onde...
Ouviu uma batida na porta
— Oi — disse Leo. — Posso entrar? — Entrou, enxugando a testa imensa com um lenço dobrado. — Dia quente. Verifiquei no jornal e a temperatura subiu seis décimos de...
— Se veio aqui para me devolver o cargo — respondeu Barney, interrompendo a arrumação — é tarde demais. Já ingressei no Serviço. Vou viajar amanhã para Fineburg Crescent.
Seria uma ironia última se Leo quisesse fazer as pazes, o último giro nas rodas cegas da criação.
— Eu não lhe estou devolvendo o emprego. E sei que você foi incorporado. Tenho informantes no serviço de seleção, e, de qualquer modo, o doutor Smile me notificou. Eu estava pagando a ele — você não sabia disso, claro — para me informar sobre seu progresso em se desintegrar sob tensão.
— O que é que você quer, então?
— Quero que você aceite um emprego na agência de Félix Blau. Já está tudo combinado.
— O resto de minha vida — respondeu tranqüilo Barney — será passado em Fineburg Crescent. Será que não entendeu isso?
— Calma aí. Estou tentando tirar o máximo de uma má situação e é melhor que você faça o mesmo. Nós dois agimos precipitadamente demais, eu em despedir você, e você em se entregar àquele serviço de seleção tipo Drácula. Barney, acho que descobri uma maneira de atrair Palmer Eldritch para uma armadilha. Conversei sobre o assunto com Blau e ele gostou da idéia. Você deve passar como colono... — Leo corrigiu-se — ou melhor, ir em frente, levar o tipo de vida real de colono, tornar-se um do grupo. Bem, um desses dias, provavelmente na próxima semana, Eldritch vai começar a vender Mascar-Z em sua área. Podem abordá-lo imediatamente. De qualquer modo, temos esperança de que o façam. Estamos contando com isso.
Barney levantou-se.
— E eu devo agarrar logo a oportunidade e comprar?
— Isso mesmo.
— Por quê?
— Você apresenta uma queixa — nosso serviço jurídico preparará a coisa para você — à ONU, declarando que o maldito e nocivo lixo produziu efeitos colaterais altamente tóxicos em você. Neste momento, não importa o quê. Transformaremos você num caso-teste, obrigaremos a ONU a proibir a Mascar-Z como danosa, perigosa... e a manteremos completamente fora da Terra. Na verdade, é um negócio, você se demitindo da P.P. e entrando para o Serviço. A coisa não poderia ter acontecido em melhor ocasião.
Barney sacudiu a cabeça.
— O que significa isso? — perguntou Leo.
— Estou fora disso.
— Por quê?
Barney encolheu os ombros. Na verdade, não sabia
— Depois da maneira como lhe faltei...
— Você entrou em pânico. Não sabia o que fazer. Não era o seu trabalho. Eu devia ter mandado Smile entrar em contato com o chefe da segurança de nossa companhia, John Seltzer. Muito bem, você cometeu um erro. Acabou.
— Não — disse Barney. E pensou: por causa do que aprendi sobre mim mesmo. Não posso esquecer isso. Essas introvisões, elas só se desenvolvem numa direção, vão diretamente ao coração. E são cheias de veneno.
— Não fique macambúzio, pelo amor de Deus. Quero dizer, isso é mórbido, você ainda tem uma vida inteira pela frente, mesmo que seja em Fineburg Crescent. Quero dizer, você provavelmente teria sido convocado de qualquer maneira, certo? Concorda? — Agitado, Leo andou de um lado para o outro na sala. — Que confusão. Muito bem, não nos ajude e deixe que Eldritch e aqueles proximianos façam o que pretenderem, tomem o sistema solar ou façam coisa ainda pior, tomem todo o universo, começando por nós. — Parou e olhou zangado para Barney.
— Deixe-me... pensar um pouco nisso.
— Espere até tomar Mascar-Z. E vai descobrir. A coisa vai contaminar todos nós, começando por dentro e subindo para a superfície... E a desordem total. — Arquejando com o esforço, Leo parou e tossiu violentamente. — Charutos demais — disse debilmente. — Jesus! — Olhou para Barney. — O cara me deu um dia, sabia? Devo capitular e se não fizer isso... — Estalou os dedos.
— Eu não posso chegar a Marte tão cedo assim — protestou Barney. — E ainda menos me preparar para comprar um naco de Mascar-Z de um traficante.
— Eu sei disso. — A voz de Leo era dura. — Mas ele não vai poder me destruir tão cedo assim. Precisará de semanas, talvez mesmo de meses. E, nessa ocasião, teremos nos tribunais uma pessoa que pode exibir lesões. Reconheço que isso não lhe parece grande coisa, mas...
— Entre em contato comigo quando eu estiver em Marte — disse Barney. — No meu alojamento.
— Eu farei isso! Farei isso! — E em seguida, meio para si mesmo, Leo disse: — E isso lhe dará uma razão.
— Não entendi.
— Nada, Barney.
— Explique.
Leo encolheu os ombros.
— Diabo, eu sei em que enrascada você está metido. Roni ficou com seu emprego. Você está certo a esse respeito. E eu mandei segui-lo. Sei que foi direto visitar sua ex. Você ainda a ama e ela não quer voltar para você," não é? Eu o conheço melhor do que você se conhece. Sei exatamente por que você não apareceu para me salvar quando eu estava em poder de Palmer. Sua vida inteira orientou-se no sentido de me substituir e, agora que isso desmoronou, você tem que recomeçar com alguma coisa nova. E uma pena, mas foi você quem fez isso consigo mesmo, ambicionando demais. Escute, eu não penso em sair de cena, nunca pensei. Você é competente, mas não como executivo, apenas como um consultor de pré-sucesso. Você é vingativo demais. Veja só como recusou aqueles vasos oferecidos por Richard Hnatt. Aquilo foi uma terrível revelação, Barney. Sinto muito.
— Tudo bem — disse finalmente Barney. — Você, possivelmente, tem razão.
— Assim você descobriu muitas coisas a respeito de si mesmo. E pode recomeçar, em Fineburg Crescent. — Leo deu-lhe uma palmadinha nas costas. — Tornar-se um líder em seu alojamento, torná-lo criativo e produtivo, ou o que quer que seja que os alojamentos fazem. E seria espião de Félix Blau. Isso é importante.
— Eu poderia ter-me passado para Eldritch — lembrou Barney.
— Podia, mas não passou. Quem quer saber o que você podia ter feito?
— Você acha que agi bem, apresentando-me como voluntário para o Serviço?
Leo respondeu tranqüilamente:
— Cara, o que diabo mais você podia ter feito?
Não havia resposta a isso. E ambos sabiam que era assim.
— Quando surgir a ânsia de sentir pena de si mesmo — disse Leo — lembre-se de que Palmer Eldritch quer me matar... Estou numa situação muito pior do que a sua
— Acho que sim. — A coisa parecia autêntica e ele teve mais uma intuição para acompanhá-la.
Sua situação se tornaria igual à de Leo, no momento em que desse queixa de Palmer Eldritch. E não esperava isso com prazer.

NAQUELA NOITE, tomou um transporte da ONU que se destinava ao planeta Marte. A poltrona ao seu lado era ocupada por uma moça morena, bonita, assustada, mas incrivelmente calma, com feições finamente cinzeladas, como as de um modelo de revista. Ficou sabendo o seu nome logo que a nave alcançou velocidade de escape — ela estava evidentemente ansiosa para romper a tensão conversando com alguém, sobre qualquer assunto — era Anne Hawthorne. Poderia ter evitado a convocação, explicou, um pouco ofegante, mas não fizera isso, acreditava que era um dever patriótico aceitar o duro convite da ONU.
— Como você podia ter evitado isso? — perguntou ele, curioso.
— Alegando sopro cardíaco — explicou Anne. — Arritmia, taquicardia paroxística.
— Que tal contrações prematuras, tais como taquicardia auricular, nodal, ventricular, palpitação e fibrilação cardíaca, para nada dizer de cãibras? — perguntou Barney, tendo ele mesmo — sem resultado — examinado o assunto.
— Eu podia ter arranjado laudos com hospitais, médicos e companhias de seguro, atestando meu estado de saúde. — Ela examinou-o de alto a baixo, e em seguida disse, muito interessada. — O senhor dá a impressão de que poderia ter escapado, senhor Payerson.
— Mayerson. Eu me apresentei como voluntário, senhorita Hawthorne.
Mas não podia ter escapado, não por muito tempo, pensou.
— O pessoal é muito religioso, lá nas colônias. Pelo menos, é o que ouço dizer. Qual é a sua seita, senhor Mayerson?
— Hummmm — respondeu ele, sem saber o que responder.
— Acho melhor descobrir antes de chegarmos lá. Vão lhe perguntar e esperar que o senhor compareça aos serviços religiosos. — E acrescentou: — Trata-se, principalmente, do emprego daquela droga... o senhor sabe, Can-D. Ela ocasionou muitas conversões às igrejas tradicionais... embora alguns colonos encontrem na própria droga uma experiência religiosa que é adequada para eles. Tenho parentes em Marte. Eles me escrevem e eu sei. Vou para Fineburg Crescent. E o senhor?
Tudo combinando, pensou ele.
— Para o mesmo lugar — respondeu.
— Possivelmente, o senhor e eu ficaremos no mesmo alojamento — disse Anne Hawthorne com uma expressão pensativa no rosto talhado com perfeição. — Eu pertenço ao Ramo Reformado da Igreja Neo-americana, à Nova Igreja Cristã dos Estados Unidos e Canadá Na verdade, nossas raízes são muito antigas: em 300 a.D., nossos antepassados já tinham bispos, que compareceram a um sínodo na França. Não nos separamos das outras igrejas tão tarde, como todo mundo pensa. Sabe, nós temos Sucessão Apostólica. — Sorriu-lhe, solene e cordial.
— Honestamente — disse Barney — acredito. O que quer que seja.
— Há uma missão neo-americana em Fineburg Crescent e, em conseqüência, um vigário, um sacerdote. Espero poder receber a santa comunhão pelo menos uma vez por mês. E me confesso duas vezes por ano, como devemos fazer, como fazia na Terra. Nossa igreja tem numerosos sacramentos... O senhor recebeu os dois grandes sacramentos, senhor Mayerson?
— Hummmm... — hesitou ele.
— Cristo especificou que devíamos receber dois sacramentos
— explicou paciente Anne Hawthorne. — O Batismo, pela água, e a Sagrada Comunhão. Esta última, em memória Dele... Foi iniciada na Ultima Ceia.
— Oh, você quer dizer o pão e o vinho.
— O senhor sabe que mascar Can-D traslada — como eles dizem — o participante para outro mundo. E uma experiência secular, portanto, no sentido de ser temporária e apenas para um mundo físico. O pão e o vinho...
— Sinto muito, senhorita Hawthorne — interrompeu-a Barney
— mas lamento dizer que não consigo acreditar nisso, nesse negócio de corpo e sangue. E místico demais para mim.
Muito calcado em premissas não comprovadas, pensou. Mas a moça tinha razão: a religião tradicional, por causa da Can-D, tornara-se comum nas luas e planetas-colonias e ele iria encontrá-la por lá, como dissera Anne.
— O senhor vai experimentar a Can-D? — perguntou Anne.
— Claro.
— O senhor tem fé nisso — observou Anne. — Ainda assim, sabe que a Terra, para onde a droga o leva, não é a real.
— Eu não quero discutir esse ponto — respondeu ele. — Ela é experimentada como real. Isso é tudo o que sei.
— Os sonhos também.
— Mas essa é mais forte — lembrou ele. — E mais clara. E é experimentada em... — ia dizendo comunhão — em companhia de outras pessoas que realmente participam. De modo que não pode ser inteiramente ilusão. Sonhos são privados. Esse o motivo por que os consideramos como ilusões. Perky Pat, porém...
— Seria interessante saber o que as pessoas que fabricam os cenários de Perky Pat pensam de tudo isso — opinou pensativa Anne.
— Isso eu lhe posso dizer. Para elas, é apenas negócio. Como, provavelmente, a fabricação de vinho sacramentai e de hóstias é para os que...
— Se o senhor vai experimentar Can-D — disse Anne — e pôr nela sua fé numa nova vida posso convidá-lo a tentar o batismo e o crisma na Igreja Cristã Neo-americana? Ou na Primeira Igreja Cristã Reformada da Europa, que também observa os dois grande sacramentos? Logo que o senhor tiver participado da sagrada comunhão...
— Não posso — disse ele.
Eu acredito na Can-D, disse a si mesmo, e, se necessário, na Mascar-Z. Pode-se ter fé em alguma coisa que tem 21 séculos de idade. Eu prefiro algo de novo. E esta é uma opção.
— Para ser franca, senhor Mayerson, tenciono tentar converter tantos colonos quanto possível, afastando-os da Can-D e trazendo-os para os costumes cristãos tradicionais. Esse foi o principal motivo por que resolvi não apresentar razões que me isentariam da convocação. — Sorriu-lhe, um sorriso lindo que, a contragosto, aqueceu-o. — Será isso errado? Eu lhe digo com toda a franqueza. Acho que o uso da Can-D indica uma fome autêntica da parte dessas pessoas de encontrar um caminho de volta para o que nós, na Igreja Neo-americana...
— Eu acho — interveio suavemente Barney — que a senhorita devia deixar essas pessoas em paz.
E a mim também, pensou. Já tenho problemas demais, não acrescente a eles seu fanatismo religioso e não agrave ainda mais as coisas. Mas ela não transmitia a idéia que ele fazia de uma fanática religiosa, nem falava como elas. Ficou confuso. Como chegara ela a essas convicções tio fortes, tão firmes? Podia imaginá-las existindo nas colônias, onde era muito grande a necessidade, mas ela as adquirira na Terra.
Por conseguinte, a existência da Can-D e a experiência de traslado coletivo não as explicavam inteiramente. Talvez, pensou, tenha sido a transição gradual da Terra para o deserto infernal, crestado pelo calor, que todos eles podiam prever — diabo, experimentar! — que fora responsável por isso, a esperança de uma nova vida que ressurgira em termos diferentes.
Eu mesmo, pensou, o indivíduo que fui, Barney Mayerson, da Terra, que trabalhou para a P.P. Layouts e viveu num prédio de apartamentos com o baixo e inacreditável número 33, estou morto. Essa pessoa acabou, como se fosse apagada com uma esponja.
Goste eu ou não goste , renasci.
— Ser colono em Marte — disse — não vai ser igual a viver na Terra. Talvez, quando eu chegar lá...
Calou-se. A intenção fora dizer: Talvez eu fique mais interessado em sua igreja dogmática. Mas ainda não podia dizer isso honestamente, mesmo como conjetura. Rebelava-se contra uma idéia que continuava estranha à sua constituição. Ainda assim...
— Continue — pediu Anne Hawthorne — , termine sua frase.
— Fale-me novamente — sugeriu Barney — quando eu tiver vivido por algum tempo no fundo de um alojamento, num mundo alienígena. Quando eu tiver iniciado minha nova vida, se pode chamá-la de vida, como colono.
O tom era amargo e surpreendeu-o. A ferocidade... chegando quase perto de angústia, compreendeu envergonhado. Placidamente, Anne respondeu:
— Muito bem. Terei prazer em fazer isso.
Depois disso, ficaram os dois em silêncio. Barney lia um jornal familiar enquanto, a seu lado, Anne Hawthorne, a fanática jovem missionária que ia para Marte, lia um livro. Lançou um olhar ao título e viu que era o grande texto de Eric Lederman sobre a vida colonial, Peregrinos sem Progresso. Só Deus sabia onde ela conseguira o exemplar. A ONU condenara o livro, tornando extremamente difícil sua obtenção. E ler um exemplar ali, numa nave da ONU... era um ato ímpar de coragem. Ficou impressionado.
Examinando-a pelo canto do olho, descobriu que ela lhe era extraordinariamente atraente, salvo o fato de ser um pouco magra demais, não usar maquilagem, e ter seus abundantes cabelos negros quase totalmente cobertos por uma espécie de boina branca e um véu. Parecia, concluiu, que ela estava vestida para alguma longa cerimônia que acabaria na igreja. De qualquer modo, gostava da maneira como ela falava, da voz compassiva, modulada. Voltaria a encontrá-la em Marte?
Descobriu que estava com esperança de que isso acontecesse. Na verdade — seria isso impróprio? — tinha mesmo esperança de participar com ela do ato coletivo de tomada de Can-D.
Sim, pensou, é incorreto porque sei o que tenho em mente, o que a experiência de traslado com ela significaria para mim.
Mas, de qualquer maneira, alimentou a esperança.

Oito
ESTENDENDO a mão, Norm Schein disse calorosamente:
— Oi, Mayerson. Eu sou o recepcionista oficial de nosso alojamento. Bem-vindo... ahan... a Marte.
— Eu sou Fran Schein — disse a esposa dele, apertando-lhe também a mão. — Nós temos aqui um alojamento muito organizado, muito estável. Acho que você não vai achá-lo horroroso demais. — E acrescentou, como para si mesma: — Apenas muito horroroso. — Sorriu, mas Mayerson não retribuiu o sorriso. Estava sombrio, cansado e deprimido, como a maioria dos novos colonos ao chegarem para iniciar uma vida que, sabiam, era difícil e basicamente sem sentido. — Não espere que a gente o convença das qualidades disto aqui — continuou ela. — Isso cabe à ONU. Nós nada mais somos do que vítimas, como você mesmo. Exceto que estamos aqui já há algum tempo.
— Não torne as coisas assim tão feias — disse Norm repreendendo-a
— Mas elas são — insistiu Fran. — O senhor Mayerson está enfrentando a situação. Não vai aceitar histórias enfeitadas, certo, senhor Mayerson?
— Nesta altura dos acontecimentos, eu poderia usar um pouco de ilusão — respondeu Barney, sentando-se num banco de metal, do lado de dentro da entrada do alojamento. Enquanto isso, o trator limpa-areia que o trouxera descarregava-lhe a bagagem. Sombriamente, observava a operação.
— Desculpe — disse Fran.
— Posso fumar? — Barney tirou do bolso um maço de cigarros terrenos. Os Scheins olharam fixamente para os cigarros. Sentindo-se culpado, Barney ofereceu a ambos a oportunidade de se servirem.
— Você chegou numa ocasião difícil — explicou Norm Schein. — Estamos bem no meio de uma discussão. — Olhou em volta para os demais. — Uma vez que você agora é membro de nosso alojamento, não vejo por que não deva ser incluído nela. Afinal de contas, interessa também a você.
— Talvez ele... Você sabe. Diga.
— Podemos exigir que ele faça um juramento de sigilo — disse Sam Regan, e a esposa dele inclinou a cabeça, concordando. — Nossa discussão, senhor Geyerson...
— Mayerson — corrigiu-o Barney.
— ... tem a ver com a droga Can-D, que é o velho e confiável agente de trasladação de que temos dependido, ou a nova e não experimentada droga, a Mascar-Z. Estamos discutindo se abandonamos a Can-D, de uma vez por todas, e...
— Espere até que estejamos lá embaixo — avisou Norm Schein, fechando a cara.
Sentando no banco ao lado de Barney Mayerson, Tod Morris recomeçou:
— A Can-D está acabada. E difícil demais de obter, custa um número grande demais de peles e, pessoalmente, estou cansado de Perky Pat — ela é artificial demais, superficial demais, e materialistática demais... perdão, esta é a palavra que usamos aqui para... — Pareceu em dificuldade para achar uma explicação. — Bem, são os apartamentos, os carros, os banhos de sol na praia, as roupas deslumbrantes... Apreciamos isso durante algum tempo, mas não é o suficiente em alguma forma de imaterialistaticidade. Entendeu, finalmente, senhor Mayerson?
Norm Schein tomou a palavra:
— Tudo bem, mas talvez Mayerson não tenha ainda experimentado, não está embotado. Talvez aprecie passar por tudo isso.
— Como nós passamos — concordou Frank. — De qualquer modo, não votamos ainda Não decidimos o que vamos comprar e usar de agora em diante. Acho que devemos deixar o senhor Mayerson experimentar ambas as coisas. Ou já tentou a Can-D, senhor Mayerson?
— Experimentei — confessou Barney. — Mas há muito tempo. Tempo demais para que eu me lembre claramente. — Leo lhe dera o produto e ainda lhe oferecera grandes quantidades, tudo o que ele quisesse. Mas declinara. A droga não o atraíra.
— Esta é uma maneira muito desagradável de dar-lhe as boas-vindas em nosso alojamento, lamento dizer, envolvê-lo, logo no começo, numa controvérsia como esta — disse Norm Schein. — Mas estamos sem Can-D. Ou reestocamos ou mudamos. Claro, o traficante de Can-D, Impy White, está atrás de nós, querendo que façamos nossos novos pedidos a ela... Até o fim da noite decidiremos de uma maneira ou de outra E a decisão afetará todos nós... pelo resto de nossas vida.
— De modo que, dê-se por feliz por não chegar amanhã — comentou Fran. — Depois de feita a votação.
Sorriu encorajadora, tentando fazê-lo sentir-se em casa, mas eles pouco tinham a oferecer, exceto o laço mútuo, o fato do relacionamento recíproco, e isto lhe chegava naquele instante.
Que lugar!, pensava nesse momento Barney Mayerson. 0 resto de minha vida... Parecia impossível, mas o que haviam dito era verdade. Não havia cláusula na lei de serviço seletivo da ONU prevendo a baixa de um convocado. E não era fácil enfrentar aquele fato. Aquelas pessoas eram para ele, a partir daquele instante, o corpo coletivo, mas... ainda assim poderia ser muito pior! Duas das mulheres pareciam fisicamente atraentes e ele podia dizer — ou acreditava que podia — que elas estavam, por assim dizer, interessadas. Sentiu a interação sutil das múltiplas complexidades dos inter-relacionamentos interpessoais que surgiam nos confins apertados de um único alojamento. Mas...
— A solução — disse Mary Regan, dirigindo-se a ele, sentando-se no lado do banco que ficava em frente a Tod Morris — será através de uma ou outra das drogas de translação, senhor Mayerson. A não ser assim, como o senhor pode ver... — Pôs a mão em seu ombro. O toque físico já estava ali. — ... seria impossível. Em nossa dor, nós simplesmente acabaríamos nos matando.
— Sim — disse ele — eu entendo.
Mas não descobrira isso por ter vindo para Marte. Como todos os demais terráqueos, ouvira muito cedo na vida a respeito da vida de colônia, a luta contra a atração interna da imolação, o término de tudo aquilo num único e rápido gesto de rendição.
Não era de espantar que a convocação fosse combatida com unhas e dentes, como acontecera inicialmente com ele. Era uma luta para apegar-se à vida.
— Hoje à noite — disse-lhe Mary Regan — vamos obter uma droga ou a outra. Impy vai passar por aqui por volta de 7 h da noite, hora de Fineburg Crescent. A decisão terá que ser tomada até lá.
— Eu acho que podemos votar agora — sugeriu Norm Schein. — Penso que posso dizer que o senhor Mayerson, embora tenha apenas chegado, está preparado. Tenho razão ou não, Mayerson?
— Tem... — respondeu Barney.
A terraplenadora completara sua tarefa autônoma: seus poucos pertences formavam uma pequena trouxa e a areia solta já começava a cobri-los... Se não fossem levados para baixo, em pouco tempo acabariam soterrados. Diabo, pensou ele, talvez tanto faça... Laços com o passado...
Os outros moradores fizeram fila para ajudá-lo, passando as valises de mão em mão para a correia transportadora que servia ao alojamento abaixo da superfície. Mesmo que ele não estivesse interessado em preservar seus antigos bens, eles estavam. Possuíam um conhecimento superior ao seu.
— Você vai aprender a sobreviver de um dia para o outro — consolou-o com pena Sam Reagan. — Aqui ninguém pensa em termos mais longos. Simplesmente, até a hora do jantar ou até a hora de dormir. Intervalos, tarefas e prazeres bem definidos. Fugas.
Lançando fora o cigarro, Barney estendeu a mão para a mais pesada das valises.
— Obrigado. — disse. Aquilo era um conselho profundo.
— Desculpe-me — disse Sam Regan, com polida dignidade, e foi apanhar, para terminá-lo, o cigarro jogado fora.

SENTADOS na câmara do alojamento que tinha espaço suficiente para abrigar a todos, a coletividade, incluindo o recém-chegado, Barney Mayerson, preparou-se para votar solenemente. Hora: 6h, hora de Fineburg Crescent. O jantar, em comum, como era habitual, terminara, os pratos já ensaboados e enxaguados pela máquina apropriada Naquele momento, pareceu a Barney, ninguém tinha coisa alguma a fazer.
Fazendo a apuração dos votos, Norm Schein anunciou: • — Quatro para Mascar-Z, três para Can-D. É essa a decisão, então. Muito bem, quem quer a missão de dar a má notícia a Impy White? — Olhou em volta para cada um deles. — Ela vai ficar zangada. E melhor esperarmos por isso.
— Eu conto a ela — ofereceu-se Barney.
Atônitos, os três casais que compreendiam a população do alojamento, além dele, olharam-no fixamente.
— Mas você nem mesmo a conhece — protestou Fran Schein.
— Eu direi que foi culpa minha — prometeu Barney. — Que inclinei a balança aqui em favor de Mascar-Z.
Eles concordariam, sabia. A tarefa seria desagradável.
Meia hora depois, matava o tempo na escuridão silenciosa à boca do alojamento, fumando e escutando os sons estranhos da noite marciana.
Muito distante, algum objeto lunar riscou o céu, passando entre sua vista e as estrelas. Um momento depois, ouviu o som de retrofoguetes. Logo depois, teve certeza. Esperou, com os braços cruzados, mais ou menos relaxado, ensaiando o que tencionava dizer.
Um momento depois, uma corpulenta figura feminina, usando grosso macacão, apareceu.
— Schein? Morris? Bem, Regan, então? — Olhou-o através das frestas dos olhos, usando uma lanterna infravermelha — Eu não o conheço. — Cautelosamente, parou a meio caminho. — Tenho uma pistola laser. — A pistola apareceu, apontada para ele. — Fale.
— Vamos nos afastar para fora do alcance da audição do alojamento — propôs Barney.
Com grande cautela, Impy White acompanhou-o, ainda apontando-lhe, ameaçadora, a pistola laser.
Recebeu a carteira de identidade dele e leu-a com ajuda da lanterna.
— Você trabalhou para Bulero — disse, erguendo para ele um olhar inquisidor. — E daí?
— Daí — respondeu ele — vamos mudar para Mascar-Z, nós do alojamento.
— Por quê?
— Simplesmente aceite o fato e não tente mais passar a droga aqui. Você pode checar isso com Leo na P.P. Ou através de Conner Freeman em Vênus.
— Farei isso mesmo — disse Impy. — Mascar-Z é lixo. Provoca dependência, é tóxica e, o que é pior, leva a sonhos de fuga letais, não com a Terra, mas com... — Fez um gesto com a pistola — Fantasias grotescas, barrocas, de natureza infantil, totalmente desequilibradas. Explique o motivo dessa decisão.
Ele não respondeu. Simplesmente encolheu os ombros. Era interessante, contudo, a devoção ideológica dela, divertia-o. Na verdade, refletiu, o fanatismo dela contrastava violentamente com a atitude que demonstrava a moça missionária a bordo da nave Terra-Marte. Evidentemente, o tema não tinha importância. Jamais compreendera isso antes.
— Eu virei aqui amanhã à noite à mesma hora — resolveu Impy White. — Se você estiver contando a verdade, ótimo. Mas se não estiver...
— O que é que acontece, se eu não estiver? — perguntou ele lenta, deliberadamente. — Você pode nos obrigar a consumir seu produto? Afinal de contas, ele é ilegal. Nós poderíamos pedir proteção à ONU.
— Você é novato. — Manifestou seu imenso desprezo. — A ONU nesta região está perfeitamente a par do tráfico de Can-D. Pago uma soma regular ao pessoal, a fim de evitar interferência. No que interessa a Mascar-Z... — Gesticulou com a arma. — ... se a ONU vai proteger o pessoal dela e se ela é a coisa do futuro...
— Você passará para eles — disse Barney.
Ela não respondeu. Em vez disso, deu-lhe as costas e afastou-se. Quase imediatamente, sua forma baixa desapareceu na noite marciana. Ele permaneceu durante algum tempo no lugar onde se encontrava e, em seguida, voltou ao alojamento, orientando-se pela forma volumosa, opaca, de uma máquina agrícola enorme, parecida com um trator, estacionada nas proximidades.
— Então? — perguntou Norm Schein para surpresa dele, recebendo-o à entrada. — Eu vim até aqui em cima para ver quantos buracos ela abriu com o laser em seu crânio.
— Ela recebeu a decisão filosoficamente.
— Impy White? — Norm riu secamente. — O negócio que ela tem aqui é de um milhão de peles... "Filosoficamente", uma ova. O que foi que aconteceu, realmente?
— Ela vai voltar, depois de receber instruções lá de cima — explicou Barney. Começou a descer para o interior do alojamento.
— Isso, sim, faz sentido. Ela é piaba. Leo Bulero, lá na Terra...
— Eu sei. — Não viu razão para ocultar sua carreira anterior. De qualquer modo, constava dos registros públicos. No fim, o pessoal do alojamento acabaria dando com a informação. — Eu.fui o consultor de pré-sucesso de Leo Bulero em Nova Iorque.
— E você votou para mudar para Mascar-Z? — Norm estava incrédulo. — Você teve uma briga com Bulero, é isso?
— Um dia eu lhe conto. — Chegou ao fundo da rampa e entrou na câmara comunal, onde os outros estavam à espera.
Aliviada, Fran Schein disse:
— Pelo menos, ela não assou você com aquela pequena pistola laser que anda mostrando por aí. Você deve ter obrigado aquela mulherzinha a baixar a vista.
— Estamos livres dela? — perguntou Tod Morris.
— Essa notícia eu saberei amanhã à noite — respondeu Barney.
Mary Regan virou-se para ele.
— Nós achamos que o senhor é muito valente. O senhor vai dar uma grande contribuição a este alojamento, senhor Mayerson. Barney, quero dizer. Fazendo uma metáfora, deu um bom empurrão em nossa moral.
— Meu Deus — zombou Helen Morris. — Nós não estamos sendo um pouco deselegantes, em nossa agitação, para impressionar o novo cidadão?
Enrubescendo, Mary Regan replicou:
— Eu não estava tentando impressioná-lo.
— Lisonjeá-lo, então — sugeriu baixinho Fran Schein.
— Você também — retrucou zangada Mary. — Você foi a primeira a bajulá-lo quando ele desceu daquela rampa... ou, de qualquer modo, quis fazer isso. E teria feito, se nós todos não estivéssemos aqui, especialmente se seu marido não estivesse aqui.
Tentando mudar o assunto, Norm Schein disse:
— E uma pena que não possamos fazer o traslado hoje à noite, tirar o bom e velho cenário de Perky Pat pela última vez. Barney poderia apreciar. Ele poderia, pelo menos, compreender o que votou para acabar. — Intencionalmente, olhou de um para o outro, dando o recado a cada um deles. — Agora, vamos... certamente um de vocês tem ainda um pouco de Can-D guardada, enfiada numa rachadura na parede ou sob o tanque séptico, para se garantir num ano de vacas magras. Ora, vamos, seja generoso com o novo cidadão, mostre a ele que não é...
— Muito bem — explodiu Helen Morris, enrubescida, com um súbito ressentimento. — Eu tenho um pouco, o suficiente para três quartos de hora. Mas isso é absolutamente tudo, e agora suponhamos que a Mascar-Z não esteja ainda pronta para distribuição em nossa área?
— Vá buscar sua Can-D — disse Norm. Quando ela saiu, ele continuou: — E não se preocupem. A Mascar-Z está aqui. Hoje, quando fui apanhar um saco de sal no último lançamento da ONU, encontrei um dos traficantes da droga. Ele me deu o cartão dele. — Mostrou o cartão. — Tudo que precisamos fazer é acender um sinal luminoso comum, de nitrato de estrondo, às 7:30h da noite e eles descerão do satélite...
— Satélite! — gritaram todos, cheios de espanto.
— Neste caso — disse excitada Fran — a droga deve ter aprovação da ONU. Será que eles têm um cenário e disc jockeys no satélite para anunciar suas novas miniaturas?
— Não sei ainda — reconheceu Norm. — Quero dizer, a esta altura ainda há muita confusão. Vamos esperar até que a poeira assente.
— Aqui em Marte — comentou em voz sepulcral Sam Regan — ela nunca assentará.
Sentaram-se formando um círculo. Diante deles, o cenário de Perky Pat, completo e refinado, chamava-os. Todos lhe sentiam a atração, e Norm Schein refletiu que aquela era uma ocasião sentimental porque nunca mais fariam aquilo... a menos, claro, que fizessem... usassem o cenário... mas com Mascar-Z. O que aconteceria?, perguntou a si mesmo. Interessante...
Teve uma sensação, inexplicável, de que não seria a mesma coisa.
E... talvez não gostassem da diferença.
— E preciso que você saiba — disse Sam Regan ao novo membro, Barney Mayerson — que nós vamos passar o período de traslado escutando e observando o novo animador de Grandes Livros, de Pat... você sabe, o aparelho que acabam de lançar na Terra.. Você certamente o conhece mais do que nós, Barney, de modo que bem que podia nos explicar como é a coisa.
Obedientemente, Barney começou:
— A gente insere um dos "Grandes Livros", por exemplo, Moby Dick, no receptáculo. Em seguida, ajustamos os controles para longa ou curta. Em seguida, para a versão divertida igual ao livro, ou triste. Depois, ajusta-se o indicador de estilo para o Grande Artista clássico que queremos que faça a animação do livro. Dali, Bacon, Picasso... O animador de "Grandes Livros" de preço médio é preparado para mostrar, em forma de cartuns, os estilos de uma dezena de artistas famosos em todo o sistema. A gente especifica qual o que quer, quando compra a coisa. E há opções que podem ser acrescentadas mais tarde, que proporcionam ainda maior variedade.
— Maravilhoso — disse Norm Schein, transbordando de entusiasmo. — De modo que a gente obtém divertimento para uma noite inteira, digamos uma versão triste, no estilo de Jack Wright, de Vanity Fair. Oh!
Suspirando, Fran disse, sonhadora:
— Como deve ter ressoado em sua alma, Barney, ter vivido até tão pouco tempo na Terra. Você parece que carrega ainda as vibrações.
— Diabo, nós todos as conseguiremos — lembrou Norm — quando fizermos o traslado. — Impaciente, estendeu a mão para o escasso suprimento de Can-D. — Vamos começar. — Pegando sua própria fatia, começou a mastigar vigorosamente. — O. "Grande Livro" que vou transformar num cartum engraçado, sem faltar nenhuma parte, no estilo de De Chirico será... — pensou um pouco — ... hummm, As Meditações de Marco Aurélio.
— Muito espirituoso — comentou mordaz Helen Morris. — Eu ia sugerir as Confissões, de Santo Agostinho, no estilo de Lichtenstein... engraçadas, naturalmente.
— Estou falando sério! Imaginem só: a perspectiva surrealista, prédios desertos, arruinados, com colunas dóricas tombadas, cabeças ocas...
— E melhor que todo mundo comece a mascar — aconselhou Fran, pegando sua fatia — para ficarmos em sincronia.
Barney recebeu a sua O fim do antigo, refletiu, enquanto mastigava. Estou participando do que, para este alojamento particular, é a noite final, e em seu lugar chega o quê? Se Leo estiver certo, será intoleravelmente pior. Na verdade, não há termo de comparação. Claro, Leo está pouco interessado nisto. Mas ele é evoluído. E sábio.
Objetos miniaturizados que, no passado, aprovei, pensou ele nesse instante. Dentro de um momento, estarei imerso num mundo composto deles, reduzido às suas dimensões. E, ao contrário dos outros moradores deste alojamento, posso comparar minha experiência entre este cenário e aquilo que tão recentemente deixei.
E daqui a pouco tempo, compreendeu sombriamente, serei chamado a fazer a mesma coisa com o Mascar-Z.
— Você vai descobrir que é uma sensação estranha — disse-lhe Norm Schein — sentir-se num corpo com três outras pessoas. Todos temos que concordar com o que queremos que o corpo faça, ou pelo menos tem que se formar uma maioria dominante, pois de outra forma ficamos simplesmente entalados.
— Isso acontece — avisou Tod Morris. — Na verdade, na metade das vezes.
Um após outro, começaram todos a mascar suas fatias de Can-D. Barney Mayerson foi o último, e mais relutante. Ah, diabo, pensou de repente, e cruzou a sala até uma pia, onde cuspiu a Can-D meio mastigada, sem tê-la engolido.
Os outros, sentados diante da representação de Perky Pat, já haviam caído numa espécie de coma e nenhum deles pôde lhe prestar a menor atenção. Para todos os fins e finalidades, de repente ele ficou sozinho. O alojamento, durante algum tempo, era todo seu.
Circulou pelo local, consciente do silêncio.
Eu simplesmente não posso fazer isso, compreendeu. Não posso tomar a maldita droga como eles. Pelo menos, ainda não.
Soou uma campainha.
Alguém se encontrava à porta do alojamento, pedindo permissão para entrar. Cabia-lhe receber quem quer que fosse. Começou a subir, na esperança de que estivesse fazendo a coisa certa, que aquilo não fosse uma das batidas periódicas da ONU. Não havia muito o que pudesse fazer para evitar que o pessoal da ONU descobrisse os residentes do alojamento, inertes diante do cenário, e o flagrante delicio , como usuários da Can-D.
Lanterna na mão, encontrou na entrada ao nível do solo uma moça usando um volumoso macacão de retenção de calor e, evidentemente, pouco acostumada com o traje.
— Olá, senhor Mayerson — cumprimentou ela. — Lembra-se de mim? Vim procurá-lo porque me sinto horrivelmente solitária. Posso entrar? — Era Anne Hawthorne. Surpreso, fitou-a. — Ou o senhor está ocupado? Eu poderia vir em outra ocasião. — Deu uma meia-volta, preparando-se para ir embora.
— Estou vendo — comentou ele — que Marte foi um grande choque cara você.
— É um pecado — disse Anne — mas já o odeio. Odeio, realmente... Sei que devia adotar uma atitude paciente de aceitação de tudo isto, mas... — Iluminou com a lanterna a paisagem por trás do alojamento e com voz trêmula, de desespero, disse: — Tudo o que eu quero agora é encontrar uma maneira de voltar à Terra. Não quero converter ninguém nem mudar coisa alguma, quero simplesmente ir embora daqui. — Mas acrescentou sombriamente: — E sei que não posso. De modo que, em vez disso, pensei em visitá-lo. Entendeu?
Segurando-lhe a mão, ele levou-a pela rampa abaixo para o compartimento que lhe fora designado.
— Onde estão seus outros companheiros de alojamento? — Ela olhou alerta em volta.
— Fora.
— Lá fora? — Abriu a porta para a sala comunal e viu o grupo estirado em volta da representação. — Oh, "fora" dessa maneira. Mas não o senhor. — Fechou a porta, cenho franzido, obviamente perplexa. — O senhor me deixa espantada. Eu teria com prazer aceito um pouco de Can-D hoje à noite, da maneira como me sinto. Olhe só como o senhor está agüentando bem a situação, em comparação comigo. Eu sou tão... inadequada.
— Talvez eu tenha uma finalidade mais forte para estar aqui do que você — disse Barney.
— Eu tinha finalidade de sobra. — Ela tirou o desajeitado macacão e sentou-se, enquanto ele começava a preparar café para os dois. — As pessoas no meu alojamento — fica a uns 800 m ao norte deste — também estão fora da mesma maneira. O senhor sabia que eu estava tão perto? Teria me procurado?
— Claro que teria. — Achou xícaras e pires plásticos de formatos comuns, colocou-os sobre a mesa dobrável e pegou cadeiras igualmente dobráveis. — Talvez — disse — Deus não chegue até Marte. Talvez, quando deixamos a Terra...
— Tolice — disse Anne secamente, levantando-se.
— Eu achei que isso conseguiria fazer você ficar zangada.
— Claro que conseguiu. Ele está em toda parte. Mesmo aqui. — Olhou para os pertences parcialmente abertos dele, as valises, as caixas de papelão fechadas. — O senhor não trouxe muita coisa, não foi? A maior parte de minhas coisas ainda está a caminho, a bordo do transporte autônomo. — Dirigindo-se para um dos lados, parou diante de uma pilha de brochuras. — De Imitatione Christi — disse, atônita. — O senhor está lendo Thomas a Kempis? Este é um grande e maravilhoso livro.
— Comprei-o — confessou ele — mas nunca o li.
— Tentou? Aposto que não. — Abriu-o ao acaso e leu para si mesma, movendo os lábios: — "Pensa que é grande a menor dádiva que Ele te deu e considera as coisas mais desprezíveis como dádivas especiais e grandes sinais de amor." Isso incluiria a vida aqui em Marte, não? Esta vida desprezível, fechados aqui nestes... alojamentos. Bons nomes têm eles, não? Por que, em nome de Deus... — virou-se, num apelo — não se poderia pôr um ponto final aqui e todos nós voltarmos para casa?
— Uma colônia, por definição, tem que ser permanente. Pense na Roanoke Island, onde Sir Walter Raleigh tentou fundar uma colônia, de 1585 a 1587.
Anne inclinou a cabeça.
— Eu já pense;. Eu gostaria que Marte fosse uma grande Roanoke Island, com todo mundo voltando para casa.
— Para ser cozinhado lentamente.
— Nós podemos evoluir, como fazem os ricos. Isso podia ser feito em base de massa. — Bruscamente, pôs de lado o livro de Kempis. — Mas eu tampouco quero isso. Uma casca quitinosa e o resto. Não há solução alguma, senhor Mayerson? Sabe de uma coisa? Os neocristãos são ensinados a crer que são viajantes numa terra estranha. Estranhos de passagem. Agora, nós somos realmente isso. A Terra está deixando de ser nosso mundo natural e, certamente, este aqui nunca será. Não temos mundo algum de sobra! — Olhou-o fixamente, com as narinas dilatando-se. — Nenhum lar, absolutamente!
— Bem — disse ele contrafeito — há sempre Can-D e Mascar-Z.
— O senhor provou alguma?
— Não.
Ela inclinou a cabeça.
— De volta a Thomas a Kempis, então. — Mas não voltou a pegar o livro. Ficou de cabeça baixa, perdida em tristes pensamentos. — Eu sei o que vai acontecer, senhor Mayerson. Barney, eu não vou converter ninguém ao neocristianismo. Em vez disso, eles me converterão a Can-D e Mascar-Z e a qualquer outro vício que seja corrente aqui, a qualquer rota de fuga que se apresente. Sexo. Eles são terrivelmente promíscuos aqui em Marte, sabia? Todo mundo vai para a cama com todo mundo. Eu mesma tentarei isso. Na verdade, já estou pronta para isso agora... Eu simplesmente não consigo suportar as coisas como são... Você deu realmente uma boa olhada na superfície, antes do anoitecer?
— Dei...
Não o perturbara muito ver as hortas semi-abandonadas, o equipamento inteiramente descuidado, os grandes montes de suprimentos que apodreciam. Sabia através de fitas educacionais que a fronteira era sempre assim, mesmo na Terra. O Alaska fora assim até tempos bens recentes e também, exceto pelas cidades de veraneio, era a Antártida neste exato momento
Anne Hawthorne continuou:
— Estou pensando nos outros residentes deste alojamento, lá na outra sala. Suponhamos que tirássemos Perky Pat do tabuleiro e a reduzíssemos a pedacinhos. O que aconteceria com eles?
— Eles continuariam com a fantasia. — Era um fato agora comprovado. As peças não eram mais necessárias como focos concentradores da atenção. — Mas por que você quereria fazer isso? — Havia nessa idéia da moça uma característica decididamente sádica e estava surpreso de ela não lhe ter causado essa impressão no primeiro encontro de ambos.
— Iconoclastia — respondeu Anne. — Quero esmigalhar os ídolos e é isso o que Perky Pat e Walt são. Eu quero porque eu... — ficou em silêncio por um momento e depois continuou: — ... porque tenho inveja deles. Não é fervor religioso. É apenas um traço muito ruim, cruel. Reconheço. Se eu não posso me aliar a eles...
— Você pode. E se aliará. E eu também. Mas não imediatamente.
Serviu-lhe uma xícara de café, que ela aceitou pensativa, esguia nesse momento sem a pesada vestimenta de uso externo. Notou que era quase tão alta quanto ele. De sapatos altos seria, talvez, mais alta. O nariz dela era estranho. Terminava quase numa bola, não engraçadinho, mas, antes... terra-a-terra. Como se prendesse ao solo. O nariz dela fê-lo pensar em camponeses anglo-saxônicos e normandos, cultivando seus pequeninos campos retangulares.
Não era de espantar que ela odiasse a vida ali em Marte. Historicamente, sua gente amara, sem dúvida alguma, o solo autêntico da Terra, o cheiro e a contextura real e, acima de tudo, as recordações que continha, os restos de formas transmutadas, a miríade de criaturas que andara por ali e finalmente a morte tragara, e no fim perecera e voltara — não como pó — mas como humo fecundo. Bem, ela podia iniciar uma horta ali em Marte, talvez conseguisse que uma prosperasse onde os colonos haviam visivelmente fracassado. Como era estranho que ela estivesse tão deprimida! Seria isso o normal com os recém-chegados? Por algum motivo, não achava que era isso. Talvez, em algum nível mais profundo, imaginasse que descobriria uma maneira de voltar à Terra. Caso em que era ele quem estava mentalmente desequilibrado. Não Anne.
— Eu tenho um pouco de Can-D, Barney — disse Anne subitamente. — Enfiou a mão no bolso do uniforme fornecido pela ONU, calças compridas de trabalho, de pano lonado, e tirou um pequeno pacote. — Comprei-a há pouco tempo, em meu próprio alojamento. O residente que me vendeu acha que a Mascar-Z tornará isto sem valor e me fez um bom preço. Tentei tomá-la... praticamente coloquei-a na boca. Mas, finalmente, como você, não pude. Uma horrível realidade não é melhor do que qualquer ilusão interessante? Ou será uma ilusão, Barney? Não sei nada a respeito de filosofia. Explique-me por que tudo que conheço é fé religiosa e por que isso não me dá meios de compreender esta coisa. Essas drogas de traslado. — Imediatamente, abriu o pacote, mexendo desesperadamente os dedos. — Eu não posso continuar, Barney.
— Espere — disse ele, pondo de lado a xícara e dirigindo-se para ela. Mas foi tarde demais. Ela já tomara a Can-D. — Nenhuma para mim? — perguntou, um tanto divertido. — Você está perdendo a parte mais importante: não vai ter ninguém com você no traslado. — Segurando-a pelo braço, tirou-a do apartamento, empurrando-a apressado pelo corredor até a grande sala comunal, onde os demais se encontravam estirados no chão. Sentando-a entre eles, disse cheio de pena: — Pelo menos, desta maneira, será uma experiência compartilhada e, segundo penso, isso ajuda.
— Obrigada — respondeu ela, sonolenta. Os olhos fecharam-se e gradualmente o corpo amoleceu.
Agora, compreendeu ele, ela é Perky Pat. Num mundo sem problemas.
Curvando-se, beijou-lhe a boca.
— Eu ainda estou acordada — murmurou ela.
— Mas, de qualquer maneira, não vai lembrar-se — disse ele.
— Oh, sim, eu me lembrarei — retrucou debilmente Anne.
E partiu em viagem. Ele deixou-a ir. Encontrava-se sozinho com as sete conchas desabitadas, físicas. Imediatamente voltou para seus próprios cômodos, onde fumaçavam ainda as duas xícaras de café.
Eu poderia me apaixonar por aquela moça, disse a si mesmo. Nada parecida com Roni Fugate ou mesmo com Emily, mas algo novo. Melhor?, perguntou-se. Ou será que isto é desespero? Exatamente o que vi Anne fazer agora mesmo com a Can-D, engoli-la de vez, porque não há nada mais, apenas escuridão. Será isto ou o vazio. E não por um dia ou uma semana... mas para sempre. De modo que tenho que me apaixonar por ela.

SOZINHO, SENTOU-SE em meio às suas coisas parcialmente retiradas das malas, bebendo café e meditando, até que ouviu gemidos e sons de pessoas mexendo-se na sala comunal. Seus co-residentes estavam voltando à consciência. Pôs de lado a xícara e dirigiu-se ao encontro deles.
— Por que foi que você recuou, Mayerson? — perguntou Norm Schein. Esfregou a testa, franzindo as sobrancelhas. — Deus, que dor de cabeça estou sentindo. — Notou Anne Hawthorne nessa ocasião, ainda inconsciente, de costas na parede, a cabeça caída para a frente. — Quem é ela?
Levantando-se cambaleante, Fran respondeu:
— Ela se juntou a nós, no fim. É amiga de Mayerson. Ele conheceu-a durante o vôo. E boa pessoa, mas maníaca religiosa. Você vai ver. — Criticamente, examinou Anne. — Nada má de aparência. Eu estava realmente curiosa para vê-la. Imaginei-a como sendo bem mais austera.
Aproximando-se de Barney, Sam sugeriu:
— Convide-a a morar com você, Mayerson. Nós teremos prazer em votar a admissão dela aqui. Temos muito espaço e você precisa de... digamos... uma esposa. — Ele também examinou atentamente Anne.— Isso mesmo — disse. — Bonitinha. Cabelos pretos compridos. Gosto disso.
— Você gosta, não? — disse-lhe Mary Regan secamente.
— Isso mesmo, gosto, e daí? — Sam Regan olhou zangado para a esposa.
— Ela disse que queria isso.
Todos eles olharam-no curiosamente.
— Isso é estranho — comentou Helen Morris — porque, quando nós todos estivemos juntos com ela há pouco tempo, ela não nos disse isto, e, tanto quanto pudemos entender, você e ela apenas se...
Interrompendo-a, Fran Schein disse a Barney:
— Você não vai querer uma maníaca neocristã para viver com você. Nós tivemos experiência com isso. Expulsamos há um ano um casal deles. Podem causar problemas terríveis aqui em Marte. Lembre-se, nós compartilhamos da mente dela... Ela é membro devotado de alguma igreja tradicional, com todos os sacramentos e rituais, todo aquele velho lixe ultrapassado. Ela acredita realmente nisso.
— Eu sei — respondeu Barney.
Falando de maneira despreocupada, Tod Morris explicou:
— O que ela disse é verdade, Mayerson. Honestamente. Temos que viver em intimidade demais e não podemos importar qualquer tipo de fanatismo ideológico da Terra. Isso aconteceu em outros alojamentos. Nós sabemos do que estamos falando. Aqui a pessoa tem que ser viva e deixar os outros viverem, sem credos e dogmas absolutistas. Um alojamento é simplesmente pequeno demais. — Acendeu um cigarro e lançou um olhar a Anne Hawthorne. — Estranho que uma moça bonita caia por essa coisa Bem, há gente de todo tipo. — Parecia perplexo.
— Ela pareceu gostar de ser trasladada? — perguntou Barney a Helen Morris.
— Pareceu, até certo ponto. Claro, a experiência perturbou-a... Na primeira vez, é de se esperar isso. Ela não sabia como cooperar no trato do corpo. Mas estava ansiosa para aprender. Agora, obviamente ela entendeu por si mesma, de modo que se tornou mais fácil para ela. Isto é bom treinamento.
Inclinando-se, Barney Mayerson pegou a pequena boneca, Perky Pat, usando bermudas amarelas, camisa olímpica de listras vermelhas e sandálias. Esta era agora Anne Hawthorne, compreendeu. Num sentido que ninguém entendia bem. Ainda assim, poderia destruir a boneca, esmagá-la, e Anne, em sua vida artificial de fantasia, não seria afetada.
— Eu gostaria de me casar com ela — disse em voz alta, de repente.
— Com quem? — perguntou Tod. — Com Perky Pat ou com a nova moça?
— Ele se refere a Perky Pat — disse zombeteira Norm Schein.
— Não, não se refere — contestou severamente Helen. — E acho que está tudo bem. Agora podemos ser quatro casais, em vez de três casais e um homem, um homem de sobra.
— Há alguma maneira — perguntou Barney — de a gente tomar um pileque por aqui?
— Claro — garantiu Norm. — Temos bebida... um gim sucedâneo, sem gosto, mas com teor alcoólico de 80°. Faz o trabalho.
— Arranje-me um pouco — pediu Barney, procurando a carteira no bolso.
— E gratuito. As naves de suprimento da ONU lançam-no em garrafões. — Norm foi até um armário fechado, tirou uma chave do bolso e abriu-o.
— Diga-nos uma coisa, Mayerson, por que é que você sente necessidade de embriagar-se? — perguntou Sam Regan. — Por nossa causa? Do alojamento? Do próprio Marte?
— Não.
Não era por nenhuma dessas razões. O motivo tinha a ver com Anne e a desintegração da identidade dela, o emprego súbito da Can-D, o sintoma da incapacidade dela de crer ou de enfrentar a situação, de entregar os pontos. Aquilo era um sinal que lhe dizia respeito também. Viu-se o que acontecera.
Se pudesse ajudá-la, poderia, talvez, ajudar a si mesmo. E se não pudesse...
Teve uma intuição de que, se não pudesse, estariam ambos acabados. Marte, para si próprio e para Anne, significaria a morte. E provavelmente dentro de pouco tempo.

Nove
EMERGINDO da experiência do traslado, Anne Hawthorne tornou-se soturna e melancólica. Aquilo não era bom sinal. Ele achou que ela, também, tivera uma premonição semelhante à sua. Mas ela nada comentou a esse respeito. Foi apenas até o compartimento dele pegar seu volumoso traje de uso externo.
— Tenho que voltar ao meu alojamento — explicou. — Obrigada por me deixarem usar o cenário de vocês — disse aos outros residentes, que se encontravam por perto, observando-a vestir-se. — Sinto muito, Barney. — Baixou a cabeça. — Não foi nada atencioso de minha parte deixá-lo daquele jeito.
Ele acompanhou-a a pé pelas areias planas, noturnas, até o alojamento onde ela residia. Nenhum dos dois falou, enquanto continuavam a andar, mantendo os olhos bem abertos para se precaverem do predador local, uma forma de vida marciana telepática, parecida com um chacal. Não viram, porém, coisa alguma.
— Como foi a experiência? — perguntou ele finalmente.
— Você quer dizer, ser aquela despudorada boneca de cabelos louros, com todas aquelas drogas de roupas e o namorado, o carro dela e o... — Anne estremeceu. — Horrível. Bem, não foi isso. Apenas... inútil. Não encontrei coisa alguma lá. Foi como voltar à minha adolescência.
— Isso mesmo — concordou ele. Havia isso a respeito de Perky Pat.
— Barney — disse ela tranqüilamente — , tenho que descobrir alguma outra coisa, e logo. Pode me ajudar? Você parece inteligente, maduro, experiente. Ser trasladada não vai me ajudar... Mascar-Z não vai ser melhor porque alguma coisa em mim se rebela, não quer aceitá-la... entendeu? Sim, você entendeu, posso ver isso. Diabo, você não quis experimentar nem uma única tez. De modo que você tem que entender. — Apertou-lhe o braço e agarrou-se fortemente a ele na escuridão. — Eu sei de mais uma coisa, Barney. Eles também estão cansados disso. Tudo o que fizeram foi brigar enquanto eles... nós ... estávamos dentro daqueles bonecos. Não gostaram da coisa nem por um segundo.
— Poxa! — disse ele.
Iluminando o caminho à frente com a lanterna, Anne continuou:
— É uma pena. Eu gostaria que apreciassem. Sinto mais pena deles do que sinto por... — Calou-se, andou durante algum tempo em silêncio e depois disse bruscamente: — Eu mudei, Barney. Sinto isso dentro de mim. Quero me sentar aqui... onde quer que estejamos. Você e eu, sozinhos, na escuridão. E depois, você sabe o quê... Não preciso dizer, preciso?
— Não — reconheceu ele. — Mas a coisa é: você se arrependeria depois. Eu também, por causa de sua reação.
— Talvez eu reze — disse Anne. — Rezar é difícil. A pessoa tem que saber como. Não rezamos por nós. Rezamos o que chamamos de uma oração intercessora, pelos outros. E o ente a quem rezamos não é o Deus que está no céu, em algum lugar lá no alto... é ao Espírito Santo, que está dentro de nós. Isso é diferente, é o Paracleto. Você já leu Paulo?
— Que Paulo?
— No Novo Testamento. As epístolas dele, por exemplo, aos coríntios ou aos romanos... você sabe. Paulo diz que nosso inimigo é a morte, o inimigo final que derrotamos, de modo que acho que é o maior de todos. Somos todos empestados, segundo Paulo, não só no corpo, mas também na alma, de modo que temos que morrer e, então, podemos renascer, com novos corpos, não de carne, mas incorruptíveis. Entendeu? Sabe, quando fui Perky Pat ainda há pouco... eu tive a sensação muito esquisita de que estava... é errado dizer isso ou acreditar nisso, mas...
— Mas — acabou Barney para ela — pareceu como um sabor daquilo. Mas você o esperava. Conhecia a semelhança... você mesma falou nisso a bordo da nave. — Muitas pessoas, refletiu, notaram isso também.
— Isso mesmo — reconheceu Anne — , mas o que não compreendi foi... — Ma escuridão, ela virou-se para ele, que mal conseguia vê-la. — Ser trasladada é a única indicação que podemos ter deste lado da morte. De modo que é uma tentação. Se não fosse por aquela boneca pavorosa, aquela Perky Pat...
— Mascar-Z... — disse Barney.
— Era nisso que eu estava pensando. Se fosse assim, como Paulo disse a respeito do homem corruptível revestindo-se de incorruptibilidade... eu não poderia me controlar, Barney. Eu teria que experimentar Mascar-Z, não poderia esperar até o fim de minha vida... poderiam ser 50 anos vivendo aqui em Marte... meio século! — : Estremeceu. — Por que esperar, quando poderia ter isso agora?
— A última pessoa com quem falei — disse Barney — , e que tomou Mascar-Z, disse que foi a pior experiência de sua vida
Essas palavras surpreenderam-na:
— De que modo?
— Ela caiu sob o domínio de alguma pessoa ou de alguma coisa que considerava extremamente má, de alguém de quem sentia pavor. Teve sorte — e soube disso — por ter conseguido escapar.
— Barney — perguntou ela — , por que você está aqui em Marte? Não me diga que é por causa da convocação. Uma pessoa tão esperta como você poderia ter procurado um psiquiatra...
— Eu estou em Marte — disse ele — porque cometi um erro. Na sua terminologia, pensou, seria chamado de pecado. E na minha também, concluiu.
— Você magoou alguém, não? — quis saber Anne. Barney encolheu os ombros.
— De modo que, pelo resto da vida você vai ficar aqui — disse Anne: — Barney, você poderia me arranjar um pouco de Mascar-Z?
— Conseguirei logo. — Não demoraria muito a topar com um dos traficantes da droga de Palmer Eldritch. Tinha certeza disso. Pondo a mão no ombro dela, disse: — Mas você mesma poderá obtê-la com igual facilidade.
Ela encostou-se nele enquanto andavam e ele abraçou-a com força. Ela não resistiu... na verdade suspirou de alívio.
— Barney, tenho uma coisa para lhe mostrar. Um folheto que um dos moradores de meu alojamento me deu. Disse que uma grande quantidade fora lançada do alto um dia desses. E do pessoal da Mascar-Z. — Enfiando a mão no pesado casaco, procurou e, à luz da lanterna, ele viu um papel dobrado. — Leia isso, Você vai entender por que eu me sinto assim a respeito de Mascar-Z... por que é um grande problema espiritual para mim.
Segurando o papel sob a luz da lanterna, ele leu a primeira linha, com as palavras destacadas em caracteres imensos, em negrito:
DEUS PROMETE A VIDA ETERNA.
NÓS PODEMOS PROPORCIONÁ-LA.
— Entendeu? — perguntou Anne.
— Entendi. — Nem se importou em ler o resto. Dobrou o papel e devolveu-o a ela, sentindo o coração pesado. — Um slogan e tanto.
— Verdadeiro.
— Não a grande mentira — disse Barney — mas, ao contrário, a grande verdade.
Qual, perguntou a si mesmo, seria a pior? Era difícil saber. Idealmente, Palmer Eldritch cairia morto por causa da blasfêmia contida no panfleto, mas evidentemente isso não ia acontecer. Um visitante perverso, estendendo-se como gosma por cima de nós, vindo do sistema de Prox, pensou, oferecendo-nos aquilo pelo que rezamos há 2000 anos. E por que isso é tão palpavelmente mau? É difícil dizer, mas, em todo caso, é. Porque talvez signifique escravidão a Eldritch, como Leo experimentou. A partir de agora, Eldritch ficaria constantemente conosco, infiltrando-se em nossa vida. E Ele, que nos protegeu no passado, permanece simplesmente passivo.
Todas as vezes que formos trasladados, pensou, veremos — não Deus — mas Palmer Eldritch.
Em voz alta, disse:
— Se a Mascar-Z decepcioná-la...
— Não diga isso.
— Se Palmer Eldritch decepcioná-la, então, talvez... — interrompeu-se, porque à frente surgiu o alojamento dela, com a luz da entrada brilhando fracamente na escuridão marciana. — Você está em casa. — Não queria deixá-la ir embora. Colocando a mão no ombro dela, segurou-a, lembrando-se do que dissera sobre ela a seus companheiros de alojamento. — Volte comigo — disse. — Para meu alojamento. Casaremos formalmente, legalmente.
Ela olhou-o fixamente e depois — incrivelmente — começou a rir.
— Isso significa não? — perguntou ele, desapontado.
— Desculpe, Barney. Eu não quis rir. Mas a resposta, claro, é não. — Afastou-se dele e abriu a porta externa da antecâmara do alojamento. Pôs a lanterna de lado e deu um passo para ele, com os braços estendidos. — Faça amor comigo — disse.
— Aqui, não. Está perto demais da entrada. — Ficou com medo.
— Onde você quiser. Leve-me para lá. — Envolveu-lhe o pescoço com os braços. — Agora — disse. — Não espere.
Ele não esperou.
Erguendo-a nos braços, levou-a para longe da entrada.
— Meu Deus! — disse ela, quando ele a depositou no chão. Arquejou, talvez por causa do frio súbito que os envolveu, penetrando nos trajes pesados que não mais serviam, e que, na verdade, eram obstáculos ao verdadeiro calor.
Uma das leis da termodinâmica, pensou ele. A troca de calor, moléculas passando entre nós, as dela e as minhas misturando-se em... entropia? Ainda não, pensou.
— Oh, meu Deus — disse ela na escuridão.
— Magoei-a?
— Não. Desculpe. Por favor.
O frio entorpecia-lhe as costas, as orelhas, irradiando-se do céu. Ignorou-o como pôde, mas pensou num cobertor, numa grossa camada de lã... Estranho, preocupar-se com isso numa ocasião como essa. Sonhou com a maciez do cobertor, no roçar de suas fibras na pele, no peso. Em vez disso, o ar ralo, frio, fraco, que o fazia arquejar em grandes haustos, como se estivesse acabado.
— Você... está morrendo? — perguntou ela.
— Simplesmente não consigo respirar. Este ar...
— Pobre, pobre... Deus do céu, esqueci seu nome.
— Que droga.
— Barney!
Ele agarrou-se a ela.
— Não! Não pare! — Ela arqueou as costas. Os dentes chocalharam.
— Eu não ia parar — disse ele.
— Uaaaaaaaau!
Ele riu.
— Por favor, não ria de mim.
— Não foi por maldade. Um longo silêncio. Então:
— Ooooh!
Ela saltou, galvanizada, como se cedendo ao choque de um experimento formal. Sua pose séria, pálida, despida: ela tornou-se o alto e muito magro sistema nervoso de uma rã, reagindo a estímulos externos, vítima de uma corrente que não era sua, mas contra a qual de modo algum protestava. Lúcida e real, aceitando. Pronta depois da longa espera.
— Você está bem?
— Estou — respondeu ela. — Estou, Barney. Estou certamente, muito bem. Estou!

Mais TARDE, voltando sozinho e cansado para seu alojamento, disse a si mesmo: Talvez eu esteja fazendo o trabalho de Palmer Eldritch. Demolindo-a, desmoralizando-a... como se ela já não estivesse.
Alguma coisa bloqueou-lhe o caminho.
Parando, sacou do casaco a arma portátil que lhe fora fornecida. Havia, especialmente à noite, além dos terríveis chacais telepatas, perigosos organismos nativos que picavam e comiam... Girou cauteloso a lanterna, esperando ver alguma bizarra criatura com multibraços, feita talvez de matéria pegajosa. Em vez disso, viu uma nave estacionada, do tipo pequeno, rápido, de peso leve, com as turbinas ainda fumegando, de modo que, evidentemente, acabara de aterrissar. Devia ter descido com os motores parados, compreendeu, uma vez que não ouvira som algum de retrofoguetes.
Um homem saiu da nave, sacudiu-se, acendeu sua própria lanterna, viu Barney Mayerson e grunhiu:
— Eu sou Allen Faine. Ando à sua procura por toda parte. Leo quer manter-se em contato com você por meu intermédio. Vou teletransmitir em código para seu alojamento. Tome aqui seu livro de cifras. — Faine apresentou um volume fino. — Você sabe quem eu sou, não?
— O disc jockey. — Estranho esse encontro ali à noite no descampado deserto marciano com esse homem do satélite da P.P. Layouts. A coisa parecia irreal. — Obrigado — disse, recebendo o livro. — O que é que eu faço? Anoto, como vocês dizem e depois me escondo para decifrar a mensagem?
— Há um receptor particular de tevê no seu compartimento, no alojamento. Nós providenciamos isso alegando que, sendo novo em Marte, você anseia...
— Muito bem — disse Barney, inclinando a cabeça.
— De modo que você já arranjou uma pequena — continuou Faine. — Perdoe-me por ter usado meu holofote infravermelho, mas...
— Eu não perdôo.
— Você vai descobrir que, em assuntos dessa natureza, é muito pouca a privacidade em Marte. Aqui é como uma pequena cidade e todos os moradores dos alojamentos vivem famintos de notícias, especialmente de qualquer tipo de escândalo. Eu devo saber. Meu trabalho é manter-me informado e passar adiante o que posso... Naturalmente, há muita coisa que não posso. Quem é a pequena?
— Não sei — retrucou ironicamente Barney. — Estava escuro. Não pude ver. — Começou a afastar-se, dando a volta em torno da nave estacionada.
— Espere. Você precisa saber do seguinte: um traficante de Mascar-Z já está operando nesta área e achamos que ele procurará seu alojamento já amanhã pela manhã. De modo que, fique de sobreaviso. Certifique-se de que compra a droga na frente de testemunhas. Elas devem presenciar toda a transação e, quando a mastigar, providencie para que elas identifiquem claramente o que você está consumindo. Entendeu? — Faine fez uma pausa e acrescentou: — E procure tirar informações do traficante, consiga que ele lhe dê, verbalmente, claro, todas as garantias possíveis. Faça com que ele o convença a comprar o produto. Não peça o produto, entendeu?
— E o que é que eu ganho por fazer isso? — perguntou Barney.
— Perdão?
— Leo nunca se importou em...
— Eu lhe digo o quê — respondeu tranqüilamente Faine. — Nós o tiraremos de Marte. Esse é o seu pagamento.
Após um momento, Barney perguntou:
— Você está falando sério?
— Será ilegal, claro. Só a ONU pode legalmente retransportá-lo para a Terra, e isso não vai acontecer. O que vamos fazer é pegá-lo aqui alguma noite e transferi-lo para o satélite particular de Leo.
— E lá eu ficarei.
— Até que os cirurgiões de Leo possam lhe dar um novo rosto, impressões digitais e pedais, padrão de ondas cerebrais, uma identidade inteiramente nova. Em seguida, você voltará à cena, provavelmente no seu antigo emprego na P.P. Layouts. Sei que você era o homem da empresa em Nova Iorque. Daqui a dois anos, dois anos e meio, a contar de hoje, você será a mesma coisa novamente. De modo que, não renuncie às esperanças.
— Talvez eu não queira isso — disse Barney.
— O quê? Claro que quer. Todos os colonos querem..
— Vou pensar no caso — prometeu Barney — e depois lhe digo. Mas talvez eu queira outra coisa.
Estava pensando em Anne. Voltar à Terra, recomeçar tudo, talvez mesmo com Roni Fugate — em algum estrato profundo, instintivo, isso não tinha para ele o interesse que teria esperado. Marte — ou a experiência de amor com Anne Hawthorne — haviam-no modificado muito mais, agora: Perguntou-se o que fora. As duas coisas. E, de qualquer maneira, pensou, eu pedi para vir para cá... não fui realmente convocado. E nunca devo me permitir esquecer isso.
— Eu conheço algumas das circunstâncias, Mayerson — disse Allen Faine. — O que você está fazendo é expiando um pecado, certo?
Surpreso, Barney perguntou:
— Você, também?
Inclinações religiosas pareciam saturar todo o ambiente ali em Marte.
— Você pode ser contra a palavra — justificou-se Faine — mas é a apropriada. Escute aqui, Mayerson: quando o levarmos para o satélite de Leo você já terá expiado o suficiente. Há uma coisa que você não sabe ainda. Olhe para isto. — Relutante, mostrou um pequeno tubo plástico. Um recipiente.
Com um calafrio, Barney perguntou:
— O que é isso?
— Sua doença. Leo acha, seguindo conselhos profissionais, que não é suficiente que você meramente alegue na justiça que foi lesionado. O pessoal vai insistir num exame completo.
— Diga, especificamente, o que é que há nessa coisa.
— Epilepsia, Mayerson. A forma Q, o tipo cuja causa ninguém conhece ao certo, se é devida a lesão orgânica que não pode ser localizada com o eletroencefalógrafo ou se é psicogênica.
— E os sintomas?
— É o "grande mal" epiléptico. — Depois de uma pausa, disse: — Sinto muito.
— Entendo — disse Barney. — E por quanto tempo terei as convulsões?
— Nós podemos aplicar o antídoto depois do litígio judicial, mas não antes. Um ano, no máximo. De modo que pode agora entender o que eu quis dizer quando falei que você ia mais do que expiar sua culpa por não ter salvo Leo quando ele precisou. E pode ver como essa doença, alegada como efeito colateral do Mascar-Z, será...
— Claro — concordou Barney. — Epilepsia é uma dessas palavras assustadoras. Como o câncer foi, antigamente. As pessoas têm um medo irracional dela porque sabem que a coisa lhes pode acontecer, a qualquer hora, sem aviso algum.
— Especialmente a forma Q mais recente. Diabo, não há nem mesmo uma teoria a respeito. O importante é que, com a forma Q, não há qualquer alteração orgânica no cérebro, e isso significa que podemos recuperar você. Esse tubo aí contém uma toxina metabólica, semelhante em ação ao metrazol. Semelhante, mas diferente do metrazol no sentido de que continua a produzir os ataques — com o padrão de EEG caracteristicamente desequilibrado durante esses intervalos — até que seja neutralizada — , o que, como eu disse, estamos em condições de fazer.
— Uma hemocultura não indicará a presença dessa toxina?
— Indicará a presença de uma toxina e é isso exatamente o que queremos. Porque vamos pegar os documentos relativos aos exames de saúde, físico e mental, que fez recentemente antes de vir para cá... e poderemos provar que, quando chegou a Marte, você não tinha epilepsia do tipo Q e nenhuma toxidez. E a alegação de Leo — ou melhor, sua — será de que a toxidez revelada no sangue é uma conseqüência de Mascar-Z.
— Mesmo que eu perca o processo... — começou Barney.
— Ainda assim prejudicará muito as vendas da Mascar-Z. A maioria dos colonos tem uma impressão persistente, afinal de contas, de que as drogas de trasladação são, a longo prazo, bioquimicamente prejudiciais — acrescentou Faine. — A toxina que há nesse tubo é relativamente rara. Leo obteve-a através de canais altamente especializados. Tem origem em Io, acho. Certo médico...
— Willy Denkmal... — disse Barney. Faine encolheu os ombros.
— Possivelmente. De qualquer modo, ela está aí, em sua mão. Logo que experimentar a Mascar-Z, deve tomá-la. Procure ter sua primeira grande convulsão num lugar onde seus companheiros de alojamento o vejam. Não vá para algum lugar no deserto, trabalhar no campo ou supervisionar escavadeiras autônomas. Logo que se recuperar do ataque, pegue o videofone e peça assistência médica à ONU. Deixe que os desinteressados médicos da organização o examinem. Não solicite tratamento particular.
— Provavelmente seria uma boa idéia — sugeriu Barney — se os médicos da ONU fizessem um eletroencefalograma em mim durante um ataque.
— Exatamente. De modo que tente, se possível, ser internado num hospital da ONU. Aqui em Marte há três deles. Você poderá apresentar um bom argumento nesse sentido porque... — Faine hesitou ... — francamente, com essa toxina seus ataques serão acompanhados de grande destrutividade, contra você e contra os demais. Tecnicamente, serão da variedade histérica, agressiva, culminando com a perda de consciência mais ou menos completa. Desde o começo será óbvio o que é, porque — ou pelo menos foi o que me disseram — você revelará o típico estágio de tonicidade, com grandes contrações musculares, e em seguida o estado de clonicidade, de contrações rítmicas alternando-se com relaxação. Depois do que, claro, declara-se o coma.
— Em outras palavras — resumiu Barney — , a clássica forma convulsiva.
— Isso o assusta?
— Não vejo no que é que isso importe. Devo a Leo alguma coisa. Você, eu e Leo sabemos disso. Não gosto ainda da palavra "expiação", mas acho que ela é a apropriada.
A si mesmo perguntou-se como essa doença artificialmente provocada afetaria seu relacionamento com Anne. Provavelmente, isso acabaria com a ligação. De modo que estava renunciando a muita coisa por Leo Bulero. Mas, também, Leo estava fazendo alguma coisa por ele. Tirá-lo de Marte não era nenhuma pequena façanha.
— Nós consideramos como certo — continuou Faine — que eles farão uma tentativa de assassiná-lo no momento em que você contratar um advogado. Na verdade, eles...
— Eu gostaria de voltar para meu alojamento agora. — Afastou-se. — Tudo bem?
— Tudo bem. Encaixe-se na rotina de lá. Mas deixe que eu lhe dê um conselho a respeito daquela moça. A Lei Doberman — lembre-se, ele foi a primeira pessoa a casar-se e a divorciar-se em Marte — estabelece que, em proporção direta à ligação emocional com alguém neste maldito lugar, o relacionamento deteriora-se. Eu lhe daria duas semanas no máximo, e não porque você vai adoecer, mas porque é o padrão. E a ONU encoraja isso porque significa, se posso ser franco, mais crianças para povoar a colônia. Compreendeu?
— A ONU — respondeu Barney — talvez não sancione meu relacionamento com ela porque se faz numa base algo diferente da que você está descrevendo.
— Não, não é — disse tranqüilamente Faine. — Pode lhe parecer assim, mas eu observo todo o planeta, dia e noite. Estou apenas citando um fato, e não sendo crítico. Na verdade, pessoalmente eu simpatizo com você.
— Obrigado — disse Barney.
E afastou-se, varrendo o chão com a lanterna, na direção do alojamento. Amarrado em volta de sua garganta, o pequeno emissor de sinais que lhe dizia quando estava se aproximando — e mais importante, quando não estava — de seu alojamento, começou a produzir sons mais altos, uma poça de uma única rã de conforto perto de seu ouvido.
Vou tomar a toxina, disse a si mesmo. Irei aos tribunais e processarei os calhordas, por causa de Leo. Porque devo isso a ele. Mas não vou voltar à Terra. Ou consigo ter sucesso aqui, ou em nenhum lugar, absolutamente. E com Anne Hawthorne, espero, mas, se não, então sozinho ou com alguma outra pessoa. Sobreviverei à Lei de Doberman, como previu Faine. De qualquer modo, será aqui neste miserável planeta, nesta "terra prometida".
Amanhã pela manhã, resolveu. Começarei removendo a terra de 50.000 séculos para fazer minha primeira horta. Esse é o passo inicial.

Dez
No DIA seguinte, Norm Schein e Tod Morris passaram as primeiras horas da manhã ensinando-lhe o jeito de operar os bulldozers, terraplanadeiras e pás mecânicas, que haviam caído em vários estágios de ruína. A maior parte do equipamento, como os velhos gatos, ainda tinha um último fôlego e podia ser induzida a mais um esforço. Mas os resultados não chegavam a grande coisa. Haviam estado abandonadas por tempo longo demais.
Ao meio-dia, sentiu-se exausto. Em vista disso, concedeu-se uma folga, descansando à sombra de um gigantesco e enferrujado trator, comendo o almoço de rações frias e bebendo o chá morno de uma garrafa térmica que Fran Schein tivera a bondade de lhe levar.
Lá embaixo, no alojamento, os outros faziam o que costumeiramente faziam. Não lhes deu atenção.
Por toda parte em volta dele podiam ser vistas as hortas abandonadas, em decadência, e ele se perguntou se, muito em breve, não esqueceria também a sua. Talvez todos os colonos começassem dessa maneira, numa agonia de esforço. Em seguida, o torpor, a desesperança, tomavam conta deles. Mas, seria tão irremediável assim? Não, realmente.
É uma questão de atitude, concluiu. E nós — todos nós que formávamos a P.P. Layouts — contribuímos voluntariamente para isso. Demos a eles uma forma de escape, uma coisa indolor e fácil. E agora Palmer Eldritch chegou para pôr o toque final no processo. Desbravamos o caminho para ele, eu inclusive, e agora o que vai acontecer? Há alguma maneira através da qual eu possa, como diz Faine, expiar minha culpa?
Aproximando-se dele, Helen gritou alegremente: — Como é que está indo o cultivo da terra? — Sentou-se ao lado dele e abriu um grosso catálogo de sementes, com o brasão da ONU gravado abundantemente em todas as páginas. — Veja só o que eles fornecem gratuitamente: todos os tipos de sementes que se sabe que prosperam aqui, incluindo nabos. — Encostada nele, passou as páginas — Contudo, há um pequeno mamífero que vive em tocas, parecido com um rato, que sobe à superfície no fim da noite. Prepare-se para isso. Ele come tudo. Você tem que instalar algumas armadilhas autopropulsadas.
— Tudo bem — concordou Barney.
— É um espetáculo extraordinário, uma dessas armadilhas homeostáticas correndo pela areia, perseguindo um rato marciano. Deus, como correm! Tanto o rato como a armadilha. Você pode tornar a coisa mais interessante fazendo uma aposta. Eu, geralmente, aposto na armadilha. Admiro-as.
— Acho que, provavelmente, vou apostar também na armadilha.
Eu tenho grande respeito por armadilhas, pensou. Em outras palavras, uma situação na qual nenhuma porta dá para fora. Não importa como elas estejam marcadas.
Helen continuou:
— Além disso, a ONU lhe fornecerá para seu uso, gratuitamente, dois robôs. Por um período não superior a seis meses. Assim, é melhor planejar bem como vai querer empregá-los. O melhor é botá-los para trabalhar na abertura de valetas de irrigação. As nossas quase não servem mais para nada. Às vezes, as valetas têm que se estender por 300 km ou mais. Ou você pode entrar num chaveco...
— Nada de chaveco — disse Barney.
— Mas estes são bons chavecos. Descubra alguém por aqui, em um dos outros alojamentos, que iniciou seu próprio sistema de irrigação e depois abandonou-o. Compre-o a ele e explore-o. Sua pequena do outro alojamento vai vir para cá, morar com você? — Olhou-o atentamente.
Ele não respondeu. Estava observando, no preto céu marciano, constelado de estrelas ao meio-dia, uma nave que descrevia círculos. Seria o homem da Mascar-Z? Chegara então a hora de envenenar-se, de modo que um monopólio econômico pudesse ser mantido, um vasto império interplanetário do qual ele agora nada tirava.
É espantoso, pensou, como pode ser forte o impulso autodestrutivo.
Helen Morris, forçando a vista para ver melhor, disse:
— Visitantes! E não é uma nave da ONU. — Afastou-se imediatamente na direção do alojamento. — Vou dizer a eles.
Com a mão esquerda, Barney tocou o tubo aninhado nas profundidades de um bolso interno, pensando: Posso, realmente, fazê-lo? Não parecia possível. Historicamente, nada havia em sua constituição mental que explicasse isso. Talvez, pensou, seja uma forma de desespero, por ter perdido tudo. Mas não achava que fosse. Era alguma outra coisa.
Quando a nave pousou no deserto plano, num local não muito distante, pensou: Talvez o motivo seja eu revelar alguma coisa a Anne sobre a Mascar-Z. Mesmo que a demonstração seja uma impostura. Porque, refletiu, se introduzir a toxina no meu sistema, ela não experimentará a Mascar-Z. Tinha uma forte intuição nesse sentido. E ela era suficiente.
Da nave desceu Palmer Eldritch.
Ninguém poderia deixar de identificá-lo. Desde seu acidente em Plutão, os jornais domiciliares haviam publicado foto após foto dele. Claro, as fotos estavam dez anos desatualizadas, mas aquele homem ainda era o mesmo. Cabelos grisalhos, ossudo, mais de 1m92 de altura, braços balouçantes e uma andadura peculiarmente rápida. E o rosto dele: tinha um aspecto de coisa devastada, comida, como se, conjeturou Barney, a camada de gordura houvesse sido consumida, como se Eldritch, em alguma ocasião, houvesse se alimentado de si mesmo, devorado, talvez com prazer, as partes supérfluas do próprio corpo. Possuía enormes dentes de aço, implantados antes de sua viagem a Prox por cirurgiões-dentistas tchecos. Soldados às mandíbulas, eram permanentes. Morreria com eles. E... o braço direito era artificial. Há vinte anos, num acidente de caça em Calisto, perdera o original. Este, claro, era superior no sentido de que permitia a instalação de uma grande variedade de especializadas mãos intercambiáveis. No momento, Eldritch usava a extremidade manual humanóide de cinco dedos. Exceto pelo brilho metálico, dir-se-ia que era orgânica.
E ele era cego. Pelo menos, do ponto de vista do corpo de nascimento natural. Mas substituições haviam sido feitas — a um preço que Eldritch pudera e quisera pagar, pouco antes de sua viagem a Prox, por oculistas brasileiros. Os médicos haviam feito um trabalho soberbo. As peças de substituição, encaixadas nas fossas ósseas, não tinham pupilas, nem esfera alguma movia-se por ação muscular. Em vez disso, visão panorâmica era fornecida por uma lente de largo ângulo, uma fresta horizontal permanente que corria de uma borda a outra. O acidente com os olhos originais não fora acidente. Ocorrera em Chicago, um ataque deliberado de lançamento de ácido por pessoa desconhecida, por razões igualmente desconhecidas... pelo menos no que interessava ao público em geral. Ele, contudo, nada dissera, nenhuma queixa apresentara. Em vez disso, procurara imediatamente a equipe de oculistas brasileiros. Os olhos artificiais com aberturas horizontais pareciam agradá-lo. Quase imediatamente ele aparecera nas cerimônias de inauguração do novo Teatro de Opera St. George, em Utah, e se misturara sem embaraço com seus quase iguais. Mesmo agora, uma década depois, a operação era rara e essa era a primeira vez que Barney via os olhos Jensen de luxvid e amplo foco. Os olhos e o braço artificial com seu repertório manual imensamente variável impressionaram-no mais do que teria esperado... ou havia mais alguma coisa em Eldritch?
— Senhor Mayerson — disse Palmer Eldritch, e sorriu, com os dentes de aço brilhando ao fraco e frio sol marciano. Estendeu a mão e, automaticamente, Barney fez o mesmo.
A voz dele, pensou Barney. Ela tem origem em outro lugar qualquer que não... Pestanejou. Todo o corpo de Eldritch era insubstancial. Vagamente, através dele, via-se a paisagem. Era uma criação de algum tipo artificialmente produzido, e percebeu a ironia. Uma grande parte daquele homem já era tão artificial como, nesse instante, também o eram as partes de carne e sangue. Foi isso o que voltou de Prox?, perguntou a si mesmo Barney. Se foi, Hepburn-Gilbert foi enganado. Isso não é um ser humano. Em nenhum sentido. '
— Eu ainda estou na nave — disse Palmer Eldritch, com a voz ressoando de um alto-falante montado no casco do veículo espacial. — Uma precaução, considerando que o senhor é empregado de Leo Bulero.
A mão imaginária tocou a de Barney, que sentiu um frio geral envolvê-lo, obviamente uma reação de aversão psicológica, uma vez que coisa alguma havia ali para produzir sensação.
— Ex-empregado — corrigiu-o Barney.
Às suas costas, nesse momento, emergiram os outros membros do alojamento, os Schein, os Morrises e os Regans. Aproximaram-se como crianças cautelosas, enquanto um após outro identificava a nebulosa figura que se encontrava à frente de Barney.
— O que é que está acontecendo? — perguntou nervoso Schein. — Isto é um simulacro. Não estou gostando nada. — Colocando-se ao lado de Barney, continuou: — Estamos vivendo no deserto, Mayerson, vemos miragens o tempo todo, naves e visitantes, formas de vida antinaturais. É isso o que está aí. Esse cara não está realmente aí nem aquela nave parada ali.
— Eles estão provavelmente a 900 km daqui — acrescentou Morris. — E um fenômeno ótico. Você se acostumará a isso.
— Mas vocês podem me ouvir — observou Palmer Eldritch, pelo alto-falante que soava e ecoava. — Estou aqui, certo, para fazer negócios com vocês. Quem é o líder deste alojamento?
— Eu... — respondeu Norm Schein.
— Meu cartão. — Eldritch estendeu um pequeno cartão branco. Pensativo, Norm Schein estendeu a mão para pegá-lo. O cartão flutuou entre seus dedos e caiu na areia. Ao ver isso, Eldritch sorriu. Foi um sorriso frio, vazio, uma implosão, como se houvesse puxado para dentro de si tudo o que havia por perto, mesmo o ar rarefeito. — Examine-o — sugeriu Eldritch. Norm Schein curvou-se e estudou o cartão. — Isso mesmo — disse Eldritch. — Estou aqui para assinar um contrato com seu grupo. A fim de lhes dar...
— Poupe-nos o discurso sobre dar o que Deus apenas promete — retrucou Norm Schein. — Diga-nos, simplesmente, o preço.
— Cerca de um décimo do preço do produto de nosso concorrente. E muito mais eficaz. Vocês nem mesmo precisam de um cenário. — Eldritch parecia falar diretamente com Barney. Seu olhar, porém, não podia ser localizado devido à estrutura da abertura das lentes. — Está gostando daqui de Marte, senhor Mayerson?
— É muito divertido — respondeu Barney.
— Ontem à noite — continuou Eldritch — quando Allen Faine desceu de seu pequeno e monótono satélite a fim de conversar com o senhor... o que foi que discutiram?
Formalmente, Barney respondeu:
— Negócios.
Pensou com rapidez, mas não com rapidez suficiente. A questão seguinte já era berrada pelo alto-falante:
— Neste caso, o senhor ainda trabalha para Leo. Na verdade, foi deliberadamente arranjada sua vinda aqui para Marte, antes de nossa primeira distribuição de Mascar-Z. Por quê? Tem alguma idéia para bloqueá-la? Não havia propaganda em sua bagagem, nenhum folheto ou material impresso, além de livros comuns. Um boato, talvez. Transmitido verbalmente. Mascar-Z é... o quê, senhor Mayerson? Perigoso para o usuário habitual?
— Não sei. Estou esperando para experimentar um pouco do produto. E chegar a uma conclusão.
— Nós todos estamos esperando — disse Fran Schein. Trazia nos braços um pacote de peles de trufa, evidentemente para pagamento imediato. — Pode fazer a entrega agora mesmo, ou vamos ter que continuar esperando?
— Posso entregar logo o primeiro pedido — respondeu Eldritch.
Abriu-se com um estalo uma vigia na nave. Dela emergiu um pequeno trator a jato, que correu na direção deles. A um meio metro de distância do grupo, parou e ejetou uma caixa de papelão, embrulhada no conhecido papel pardo. A caixa caiu aos pés de Norm Schein, que se curvou e apanhou-a. Aquilo não era uma ilusão. Com toda cautela, ele rasgou o envoltório.
— Mascar-Z! — disse arquejante Mary Regan. — Oh, um bocado! E o preço, senhor Eldritch?
— In totum — respondeu Eldritch — cinco peles. — O trator estendeu uma pequena gaveta, do tamanho exato para receber as peles.
Depois de uma pequena discussão, os moradores do alojamento chegaram a um acordo. As cinco peles foram depositadas na gaveta. Recolhida esta imediatamente, o trator deu a volta e disparou para a nave-mãe. Palmer Eldritch, insubstancial, grisalho e enorme, permaneceu. Ele parecia estar se divertindo, concluiu Barney. Não o incomodava saber que Leo Bulero tinha uma carta escondida. Eldritch dominava nesse clima.
A compreensão desse fato deprimiu Barney, que se afastou sozinho para o lugar estéril e limpo que eventualmente seria sua horta. De costas para os companheiros do alojamento e Eldritch, ativou a unidade autônoma, que começou a arquejar e a zumbir, e a areia ia desaparecendo nela, enquanto a sugava barulhentamente, com dificuldade. Gostaria de saber por quanto tempo a máquina continuaria a trabalhar. E o que se fazia ali em Marte para obter serviços de reparação. Talvez a pessoa desistisse; talvez não houvesse consertos.
Às suas costas, soou a voz de Palmer Eldritch:
— Agora, senhor Mayerson, pode começar a mascar pelo resto de sua vida.
Ele virou-se, involuntariamente, porque desta vez não era uma ilusão. O homem finalmente viera para o claro.
— É isso mesmo — disse. — E coisa alguma poderia me deixar mais satisfeito. — Continuou a mexer na pá mecânica autônoma. — O que é que a gente faz para conseguir um conserto de equipamento aqui em Marte? — perguntou a Eldritch. — A ONU cuida disso?
— Como eu poderia saber? — retrucou Eldritch.
Um pedaço da pá autônoma soltou-se nas mãos de Barney. Ele sopesou-a. A peça, com a forma de um ferro de tirar pneumático, era pesada, e ele pensou. Eu poderia matá-lo com isto. Aqui mesmo, neste lugar. Isso não resolveria tudo? Nada de toxina para produzir grandes convulsões, nenhum litígio judicial... mas haveria retaliação da parte deles. Eu sobreviveria a Eldritch apenas por algumas horas.
Mas... não valeria ainda a pena?
Virou-se. E a coisa aconteceu com tal rapidez que não formou um conceito válido, nem mesmo teve dela uma percepção exata. Da nave estacionada projetou-se um feixe de laser e ele sentiu o impacto forte no momento em que o raio tocou o objeto de metal que tinha nas mãos. Ao mesmo tempo, Palmer Eldritch saltou para trás, agilmente, elevando-se no ar na leve gravidade marciana. Como um balão — Barney olhou fixamente, mas não acreditou — ele flutuou para longe, rindo-se abertamente com os grandes dentes de aço, agitando o braço artificial, o corpo magro girando lentamente. Em seguida, como se puxado por uma linha transparente, dirigiu-se numa onda sinoidal irregular para a nave. Imediatamente, desapareceu. O nariz da nave fechou-se sobre ele. Eldritch estava lá dentro. Em segurança.
— Por que foi que ele fez isso? — perguntou Norm Schein, cheio de curiosidade, do lugar em que ele e os outros moradores do alojamento se encontravam. — O que, em nome de Deus, terá acontecido ali?
Barney ficou calado. Trêmulo, pôs no chão os restos da peça de metal, restos que pareciam apenas cinzas, quebradiços e secos, que se desfizeram em pó no momento em que tocaram o solo.
— Eles tiveram uma discussão — disse Tod Morris. — Mayerson e Eldritch. Mão se entenderam nem um pouquinho.
— De qualquer modo — consolou-os Norm — nós conseguimos a Mascar-Z. Mayerson, é melhor você ficar longe de Eldritch no futuro. Deixe que eu cuido da transação. Se eu tivesse sabido que você é empregado de Leo Bulero...
— Fui... — lembrou pensativo Barney e voltou a mexer na pá autônoma defeituosa. Fracassara na primeira tentativa de matar Palmer Eldritch. Teria porventura outra oportunidade?
Tivera ele, realmente, uma oportunidade momentos antes? A resposta às duas perguntas, concluiu, era não.
EM FINS daquela tarde, os moradores do alojamento reuniram-se para mascar. Num clima de tensão e solenidade, quase sem nenhuma palavra trocada, os pacotes de Mascar-Z foram abertos, um após outro, e distribuídos.
— Hummm — disse Fran Schein, fazendo uma careta. — O gosto é horroroso.
— Provem, colegas — disse impaciente Norm. Mastigou em seguida. — Parece cogumelo podre. Você tem toda razão. — Estoicamente engoliu e continuou'a mastigar. — Arrrhhh — disse, e vomitou.
— Fazer isto sem um cenário... — começou Helen Morris. — Aonde é que nós iremos, simplesmente a qualquer lugar? Estou com medo — disse de repente. — Vamos ficar todos juntos? Tem certeza disso, Norm?
— Quem dá bola? — disse Sam Regan, mastigando.
— Olhem para mim — disse Barney Mayerson.
Eles o fitaram, curiosos. Alguma coisa no tom dele fez com que o olhassem.
— Eu ponho a Mascar-Z na boca — disse Barney, e o gesto seguiu as palavras. — Estão me vendo fazer isto, certo? — Mastigou. — Agora, estou mastigando a coisa. — O coração bateu forte. Deus, pensou, será que posso levar isto adiante?
— Sim, estamos vendo você — disse Tod Morris, inclinando a cabeça. — E daí? Quero dizer, vai explodir ou flutuar para longe, como Eldritch, ou fazer alguma outra coisa? — Começou também a usar seu pacote. Todos eles estavam mascando, todos os sete, compreendeu Barney. Fechou os olhos.
QUANDO MENOS esperava, a esposa estava debruçada sobre ele.
— Eu disse — repetiu ela — , você quer um segundo Manhattan ou não? Porque, se vai querer, tenho que pedir ao refrigerador mais gelo picado.
— Emily — disse ele.
— Sim, querido — respondeu ela, secamente. — Todas as vezes em que você pronuncia meu nome dessa maneira, sei que está prestes a começar um de seus sermões. O que é, desta vez? — Ela sentou-se no braço de um sofá em frente a ele, alisando a saia. Era a bela peça de enrolar azul e branca, mexicana, pintada à mão, que lhe dera de presente no Natal. — Estou pronta — disse ela.
— Nada... de sermão — respondeu ele. Sou realmente assim?, perguntou a si mesmo. Sempre despejando tiradas? Levantou-se cambaleante e, sentindo-se tonto, segurou-se na coluna de um abajur próximo.
Fitando-o, Emily disse:
— Você está alto.
Alto. Não ouvia aquela palavra desde os tempos da faculdade. Há muito tempo era caretice e, naturalmente, Emily ainda a usava.
— Essa palavra — disse ele com toda clareza que lhe foi possível — é agora dita pileque. Pode lembrar-se disso? Pileque. — Em passos trôpegos, dirigiu-se para o aparador, na cozinha, onde se encontrava a bebida.
— Pileque — repetiu Emily, e suspirou. Parecia triste. Ele notou esse fato e perguntou-se por quê. — Barney — disse ela — , não beba tanto, sim? Chame a isso tocado ou pileque, ou o que quiser, continua a ser a mesma coisa. Acho que isso é culpa minha. Você bebe tanto porque sou muito inadequada. — Com o dedo enxugou o olho direito, num gesto irritante, conhecido, que parecia um tique.
— Não é que você seja tão inadequada — respondeu ele. — Acontece, simplesmente, que eu tenho padrões altos.
Fui ensinado a esperar muito das outras pessoas, pensou, a esperar que fossem tão confiáveis como eu, e não tão emocionalmente piegas o tempo todo, sem nenhum controle de si mesmas.
Mas, uma artista!, compreendeu. Ou melhor, uma pretensa artista. Boêmia. Isso é mais próximo da verdade. A vida artística sem o talento. Começou a preparar um novo drinque, desta vez de bourbon e água, sem gelo. Serviu-se diretamente da garrafa de Old Crow, ignorando o medidor.
— Quando você se serve dessa maneira — disse Emily — sei que está zangado e que vamos ter uma briga. E eu simplesmente odeio isso.
— Neste caso, vá embora — disse ele.
— Diabos o levem — explodiu Emily. — Eu não quero ir embora. Você não poderia apenas... — fez um gesto de desânimo, de desesperança— ... apenas ser um pouco mais atencioso, mais caritativo, mais alguma coisa? Aprender a perdoar... — a voz sumiu e quase inaudivelmente, ela disse: — ... minhas deficiências?
— Mas — observou ele — elas não podem ser ignoradas. Eu gostaria de fazer isso. Você pensa que eu quero viver com alguém que não consegue terminar nada que começa ou conseguir socialmente coisa alguma? Por exemplo, quando... ah, o diabo leve isto.
O que adiantava? Emily não podia ser reformada, era pura e simplesmente uma porcalhona. A idéia dela de um dia bem aproveitado era espojar-se, mexer e brincar com uma mistura de tintas sebosas, que pareciam excrementos, ou enterrar os braços durante horas sem fim numa tina de barro cinzento e úmido. E, enquanto isso...
O tempo estava fugindo deles. E todo o mundo, inclusive todos os empregados do senhor Bulero, especialmente seus consultores de pré-sucesso, evoluíam e prosperavam, floreciam em maturidade. Eu nunca serei o consultor de pré-sucesso de Nova Iorque, disse a si mesmo. Ficarei para sempre entalado aqui em Detroit, onde coisa alguma, coisa alguma de novo acontece.
Se pudesse conseguir o cargo de consultor de pré-sucesso de Nova Iorque... minha vida teria algum significado, compreendeu. Eu me sentiria feliz porque estaria desempenhando um cargo que utilizaria plenamente minha capacidade. Do que mais precisaria eu? De nada mais, isso é tudo o que peço.
— Vou sair — disse a Emily, pondo o copo de lado. Dirigindo-se ao armário, pegou o casaco.
— Você volta antes de eu ir dormir? — Tristemente, ela seguiu-o até a porta do apartamento, ali no prédio 11139584 — a contar de dentro para fora a partir do centro de Nova Iorque — onde viviam há dois anos.
— Veremos — respondeu ele, e fechou a porta.
No corredor viu um vulto, um homem alto e grisalho, com dentes de aço grandes, olhos mortos sem pupilas, e uma brilhante mão artificial projetando-se da manga direita. O homem disse:
— Olá, Mayerson. — Sorriu. Os dentes de aço faiscaram.
— Palmer Eldritch — disse Barney. Voltou-se para Emily. — Você viu as fotos dele nos jornais familiares. Ele é aquele incrivelmente famoso grande industrial. — Naturalmente, ele reconhecera Eldritch, e imediatamente. — Queria falar comigo? — perguntou, hesitante. Aquilo tudo tinha um aspecto misterioso, como se, de alguma maneira, tudo houvesse acontecido antes, mas de maneira diferente.
— Deixe-me conversar por um momento com seu marido — disse Eldritch a Emily numa voz estranhamente gentil. Fez um movimento e Barney saiu para o corredor. A porta fechou-se atrás deles. Emily fechara-a, obedientemente. Nesse momento, Eldritch ficou sério. Sem mais gentileza ou sorriso, disse: — Mayerson, você está usando muito mal seu tempo. Não está fazendo coisa alguma, salvo repetir o passado. De que adiantou eu lhe vender Mascar-Z? Você é anormal. Você nunca viu nada parecido com o meu produto. Eu lhe darei dez minutos e depois levo-o de volta ao alojamento, que é o seu lugar. De modo que é melhor descobrir com a maior rapidez o que quer e, se entende alguma coisa, de uma vez por todas.
— O que diabo — perguntou Barney — é Mascar-Z?
A mão artificial levantou-se no ar. Com enorme força, Palmer Eldritch empurrou-o e ele cambaleou.
— Ei — disse Barney debilmente, tentando reagir, anular a pressão da força imensa daquele homem. — O que...
Logo depois estava caído de costas no chão. A cabeça latejava, doía. Com dificuldade, conseguiu abrir os olhos e focalizá-los no cômodo em volta. Estava acordando. Descobriu que usava pijama, mas não o conhecia, nunca o vira antes. Estaria no apartamento de alguma outra pessoa, usando as roupas dela? De algum outro homem?...
Em pânico, examinou a cama, as cobertas. Ao seu lado...
Viu uma moça desconhecida, que continuava a dormir, respirando de leve pela boca, os cabelos pareciam uma cascata branca de algodão, os ombros nus e macios.
— Estou atrasado — disse ele, e a voz saiu distorcida e rouca, quase irreconhecível.
— Não, não está — murmurou a moça, com os olhos ainda fechados. — Relaxe. Saindo daqui, podemos chegar ao trabalho dentro de... — bocejou e abriu os olhos — ... quinze minutos. — Sorriu-lhe. Seu embaraço divertia-a. — Você sempre diz isso, todas as manhãs. Vá preparar o café. Eu preciso tomar café.
— Certo — respondeu ele e deixou apressado a cama.
— Senhor Coelho — disse ela, zombeteira, — você está tão assustado. Com medo de mim, com medo por causa de seu cargo... e sempre fugindo.
— Meu Deus — exclamou ele. — Dei as costas a tudo.
— Tudo o quê?
— Emily. — Olhou fixamente para a moça, Roni Alguma Coisa ou Outra, para o quarto dela. — Agora, não tenho mais coisa alguma — disse.
— Oh, ótimo — respondeu Roni com amargo sarcasmo. — Agora talvez eu possa lhe dizer algumas coisas agradáveis, para você sentir-se melhor.
— E eu me senti, há alguns momentos. Não, há anos. Exatamente antes de Palmer Eldritch aparecer.
— Como é que Palmer Eldritch podia 'aparecer'? Ele está num leito de hospital, na área de Júpiter ou Saturno. A ONU levou-o para lá, depois que o tirou dos destroços da nave. — O tom de voz dela era desdenhoso, mas havia nele uma nota de curiosidade.
— Palmer Eldritch acabou de me aparecer — respondeu ele, teimosamente. Pensou: Tenho que voltar para Emily. Escorregando, curvando-se, pegou as roupas e foi cambaleando para o banheiro, fechando a porta com um estrondo. Rapidamente, barbeou-se, trocou-se, saiu e disse à moça, que continuava na cama: — Vou ter que ir. Não fique zangada comigo. Tenho que fazer isto.
Um momento depois, sem ter tomado o desjejum, descia para o térreo e, em seguida, postou-se sob o escudo an ti térmico, procurando para cima e para baixo um táxi.
O táxi, um modelo bom, faiscante e novo, levou-o quase sem demora ao prédio de apartamentos de Emily. Rapidamente, pagou a corrida, correu para dentro e, em questão de segundos, estava subindo. Parecia que nenhum tempo passara, como se o tempo houvesse parado e tudo estivesse à espera, imobilizado para ele..Num mundo de objetos fixos, ele era a única coisa que se movia.
A porta, tocou a campainha.
A porta foi aberta e um homem disse:
— Sim?
O homem era moreno, passavelmente bonitão, bastas sobrancelhas e cabelos meio ondulados, penteados com cuidado. Tinha um jornal domiciliar na mão. Às costas dele, viu a mesa de desjejum cheia de pratos.
— Você é Richard Hnatt — disse.
— Eu mesmo. — Perplexo, o homem examinou-o atentamente. — Eu o conheço?
Emily apareceu, usando suéter cinzento de gola rulê e jeans manchados.
— Deus do céu. E Barney — disse ela a Hnatt. — Meu ex. Entre. — Abriu a porta de par em par e ele entrou no apartamento. Ela parecia satisfeita em vê-lo.
— Prazer em conhecê-lo — disse Hnatt num tom neutro, e ia estendendo a mão, mas depois mudou de idéia. — Aceita café?
— Obrigado. — Sentou-se à mesa de desjejum, num lugar qualquer. — Escute aqui — disse a Emily. Não podia esperar. Tinha que ser naquele momento, mesmo com Hnatt presente. — Eu cometi um erro, divorciando-me de você. Gostaria de voltar a casar com você. De continuar nos antigos moldes.
Emily, de uma maneira que ele recordava muito bem, riu-se deliciada. Estava aturdida e se afastou para pegar xícara e pires, incapaz de responder. Ele se perguntou se ela iria dar uma resposta. Era mais fácil para ela — mais interessante para a pateta preguiçosa que ela era — simplesmente rir. Cristo, pensou, e olhou fixamente para a frente.
Sentado à sua frente, Hnatt disse:
— Nós somos casados. Você acha que estamos simplesmente vivendo juntos? — Seu rosto estava sombrio, mas ele parecia controlar-se.
Dirigindo-se a Emily, não a Hnatt, ele disse:
— Casamentos podem ser desfeitos. Você volta a casar comigo? — Levantou-se e deu uns poucos passos hesitantes na direção dela. Nesse momento, ela virou-se e calmamente entregou-lhe a xícara e o pires.
— Oh, não — respondeu ela, ainda sorrindo.
Os olhos dela transbordavam de luz, a luz da compaixão. Ela sabia como ele se sentia, que aquilo não era apenas um impulso. Mas a resposta continuava a ser não e, sabia ele, seria sempre não. Ela nem mesmo resolvera... Para ela, simplesmente, não havia a realidade à qual ele estava se referindo. Ele pensou: eu a demoli, outrora, amputei-a, desmembrei-a, com inteiro conhecimento do que estava fazendo, e este é o resultado: estou vendo o pão, como dizem por aí, que foi lançado à água e que volta boiando para me sufocar, um pão inchado de água que se alojará na minha garganta, que nunca será engolido ou vomitado, nem uma coisa nem outra. E exatamente o que eu mereço, disse a si mesmo. Eu fiz esta situação.
Voltando à mesa da cozinha, sentou-se como que entorpecido, esperou, enquanto ela enchia a xícara, e ele olhava fixamente suas mãos. Outrora eram as mãos de minha esposa, pensou. E renunciei a elas. Autodestruição. Eu queria me ver morrer. Essa é a única explicação satisfatória possível. Ou fui tão estúpido assim? Não, a estupidez não abarcaria essa enormidade toda, tão completa e voluntária...
— Como estão indo as coisas, Barney? — perguntou Emily.
— Oh, diabo, simplesmente maravilhosas. — A voz lhe tremia.
— Ouvi dizer que você está vivendo com uma bonita ruivinha — disse Emily. Sentou-se em seu lugar e voltou à refeição.
— Aquilo acabou — disse Barney. — Tudo esquecido.
— Quem, então? — O tom era apenas de conversa. Passando o tempo comigo como se eu fosse um velho amigo ou talvez uma vizinha de outro apartamento neste prédio, pensou. Loucura! Como pode ela — será que pode? — sentir-se assim? Impossível. Isso é uma representação, cobrindo alguma coisa mais profunda.
Em voz alta, disse:
— Você tem medo de que, caso se envolva comigo novamente eu... eu a mande embora outra vez. Gato escaldado, de água fria tem medo. Mas não farei isso. Nunca mais farei uma coisa daquelas.
Em seu tom plácido, de conversa, Emily respondeu:
— E uma pena que você se sinta tão mal assim, Barney. Não está fazendo tratamento com um analista? Alguém me disse que o viu carregando por aí uma maleta de psiquiatra.
— O doutor Smile — reconheceu ele, lembrando-se. Provavelmente, deixara-o no apartamento de Roni Fugate. — Eu preciso de ajuda — disse a Emily. — Não há alguma maneira... — Interrompeu-se. Será que o passado não pode ser mudado?, perguntou a si mesmo. Evidentemente, não. Causa e efeito funcionam apenas numa direção e a mudança é real. De modo que o que passou, passou, e eu bem que posso ir embora daqui. Levantou-se. — Eu devo estar maluco — disse aos dois e, dirigindo-se a Richard Hnatt: — Sinto muito. Estou apenas meio acordado... Esta manhã estou desorientado. A coisa começou quando eu acordei.
— Beba seu café. Por que não bebe? — sugeriu Hnatt. — Que tal alguma coisa sólida para acompanhá-lo? — O ar sombrio desaparecera de seu rosto. Como Emily, ele estava nesse momento tranqüilo, desligado.
— Eu não compreendo isto — disse Barney. — Palmer Eldritch me disse para vir aqui. — Ou dissera mesmo? Fora alguma coisa parecida, disso tinha certeza. — Isto devia dar certo, pensei — concluiu, desalentado.
Hnatt e Emily entreolharam-se.
— Eldritch está num hospital em algum lugar em... — começou Emily.
— Há alguma coisa errada — queixou-se Barney. — Eldritch deve ter perdido o controle. É melhor eu ir procurá-lo. Ele pode me explicar isso. — Sentiu pânico, rápido como mercúrio, fluido, um pânico saturante, que o encheu até as pontas dos dedos. — Adeus
— conseguiu dizer, e dirigiu-se para a porta, tentando encontrar um meio de fuga.
Às suas costas, Richard Hnatt disse:
— Espere.
Barney virou-se. A mesa de desjejum, Emily continuava com um sorriso fixo, vago, bebericando o café. A frente dela, Hnatt olhava para Barney. Hnatt possuía uma mão artificial, com a qual segurava o garfo, e, quando levou uma porção de ovo à boca, Barney viu enormes e protuberantes dentes de aço inoxidável. E Hnatt era grisalho, encovado, olhos mortos, muito maiores do que antes, e parecia encher a sala com sua presença. Mas era ainda Hnatt. Eu não compreendo isso, pensou Barney, à porta, nem deixando nem voltando ao apartamento. Fez o que Hnatt sugeria: esperou. Esse homem não se parece com Palmer Eldritch:', perguntou a si mesmo. Nas fotos... ele tem um membro artificial, dentes de aço e olhos Jensen, mas aquele não era Eldritch.
— E apenas justo lhe dizer — começou Hnatt com voz natural
— que Emily gosta muito mais de você do que deixa transparecer. Sei porque ela me disse. Muitas vezes. — Lançou um olhar a Emily e recomeçou, dirigindo-se a ela: — Você é um tipo com forte noção de dever. Acha que, nesta altura, a coisa moralmente certa a fazer é reprimir suas emoções em relação a Barney. De qualquer modo, é o que vem fazendo o tempo todo. Mas esqueça seu dever. Não se pode construir um casamento nessa base. Num casamento tem que haver espontaneidade. Mesmo que você pense que é errado... — fez um gesto vago — bem, digamos, desminta-me, se puder... Não obstante, você deve encarar honestamente seus sentimentos e não cobri-los com uma fachada de auto-sacrifício. Foi isso o que você fez com Barney aqui. Deixou que ele a chutasse porque achou que era seu dever não interferir na carreira dele. — E acrescentou: — Você continua a comportar-se da mesma maneira e isso ainda é um erro. Seja honesta consigo mesma. — E, de repente, sorriu para Barney, sorriu — e um olho morto brilhou, como se desse uma piscadela mecânica.
Era Palmer Eldritch naquele instante. Inteiramente.
Emily, contudo, não pareceu notar. O sorriso desaparecera e ela parecia confusa, perturbada, e cada vez mais furiosa.
— Você me fez ficar furiosa — disse ao marido. — Eu disse como me sentia e não sou uma hipócrita. E não gosto de ser acusada disso.
A frente dela, o homem disse:
— Você só tem uma vida. Se quer vivê-la com Barney, e não comigo...
— Eu não quero — respondeu ela, olhando-o zangada.
— Vou indo — disse Barney. Abriu a porta para o corredor. Era inútil.
— Espere. — Palmer Eldritch levantou-se e dirigiu-se em passos lentos para ele. — Vou descer com você.
Juntos, os dois desceram o corredor em direção à escada.
— Não desista — aconselhou Eldritch. — Lembre-se do seguinte: esta é a primeira vez em que você usa Mascar-Z. Mais tarde, terá outras ocasiões. Você pode continuar a insistir até conseguir o que quer.
Barney perguntou:
— O que, diabo, é Mascar-Z?

Ao SEU LADO, bem perto, uma voz de mulher repetia:
— Barney Mayerson, acorde. — Ele estava sendo sacudido. Pestanejou, contorceu-se. Ajoelhada ao seu lado, com a mão em seu ombro, viu Anne Hawthorne. — Como foi a coisa? Passei por aqui, não consegui encontrar ninguém, depois dei com vocês todos, formando um círculo, inteiramente inconscientes. E se fosse um funcionário da ONU?
— Você me acordou — queixou-se ele, compreendendo o que Anne fizera. Sentia-se pesado, ressentido, desapontado. O traslado, contudo, estava terminado por ora e não havia o que fazer. Mas experimentava dentro de si o anelo, a ânsia. De fazer a mesma coisa novamente, e logo que possível. Nada mais tinha importância, nem mesmo a moça ao seu lado e os companheiros de alojamento, todos inertes, estirados aqui e ali.
— Foi tão bom assim? — perguntou ela, intuitivamente. Tocou o próprio casaco. — Ele visitou também nosso alojamento. Eu comprei. Aquele homem de dentes e olhos estranhos, aquele homem de cabelos grisalhos, grandalhão.
— Eldritch. Ou um simulacro dele. — As articulações lhe doíam, como se ele tivesse ficado dobrado em dois durante horas, mas, examinando o relógio, notou que apenas segundos, um minuto no máximo, haviam transcorrido. — Eldritch está em toda parte — disse ele a Anne. — Dê-me seu Mascar-Z.
— Não.
Ele encolheu os ombros, ocultando o desapontamento, o impacto forte, físico, da privação. Bem, Palmer Eldritch voltaria. Conhecia muito bem os efeitos de seu produto. Possivelmente, mais tarde naquele mesmo dia.
— Conte-me como foi — disse Anne.
— É um mundo ilusório, no qual Eldritch ocupa as posições mais importantes, como se fosse um deus. Dá à pessoa uma oportunidade de fazer o que, na realidade, jamais poderá fazer... reconstruir o passado como ele deveria ter sido. Mas mesmo para ele é
difícil. Leva tempo.
Calou-se e continuou sentado, esfregando a testa dolorida.
— Você quer dizer que ele não pode — você não pode — simplesmente estender os braços e pegar o que quer? Como pode num sonho?
— Não é absolutamente igual a um sonho.
Era pior, compreendeu. Muito mais como estar no inferno, pensou. Sim, é assim que deve ser o inferno: repetitivo e inamovível. Mas Eldritch pensava em termos de tempo. Com paciência e esforço suficientes, o tempo podia ser mudado.
— Se você voltar... — começou Anne.
— Se... — Ele fitou-a. — Tenho que voltar. Desta vez, não consegui realizar coisa alguma. — Centenas de vezes, pensou. Isso talvez fosse necessário. — Ouça aqui. Pelo amor de Deus, dê-me esse seu pacote de Mascar-Z. Eu sei que posso convencê-la, tenho o próprio Eldritch do meu lado, trabalhando por mim. Neste exato momento ela está furiosa, peguei-a de surpresa...
Calou-se e olhou fixamente para Anne Hawthorne. Há alguma coisa errada, pensou. Porque...
Anne possuía braço e mão artificiais. Os dedos de metal e plástico encontravam-se a apenas centímetros dele e podia vê-los claramente. Quando ergueu os olhos para ela, viu o encovamento, o vazio, tão vasto como o espaço intersistemas, do qual emergira Eldritch, os olhos mortos, cheios de um espaço além dos mundos conhecidos, visitados.
— Você pode arranjar mais depois — retrucou calmamente Anne. — Uma sessão por dia é suficiente. — Sorriu para ele. — Se não fosse assim, acabariam todas suas peles, você não poderia comprar mais e que diabo, então, faria você?
O sorriso dela brilhou, faiscando no aço inoxidável.

OS DEMAIS moradores do alojamento, por toda parte em volta dele, gemeram, acordando, recobrando-se em lentos e sofridos estágios. Sentaram-se, murmuraram, tentaram se orientar. Anne fora a algum lugar. Sozinho, ele conseguiu levantar-se. Café, pensou. Aposto que ela está fazendo café.
— Uau — disse Norm Schein.
— Aonde foi você? — perguntou Tod Morris, com a língua engrolada. Tinha os olhos vermelhos, levantou-se com ajuda da esposa, Helen. — Voltei à adolescência, à escola secundária, quando tive meu primeiro encontro amoroso... o primeiro, entenda, que teve o maior sucesso, entendeu? — Olhou nervoso para Helen.
— E muito melhor do que Can-D — disse Mary Regan. — Infinitamente. Oh, eu podia dizer a vocês o que estive fazendo... — Soltou um risinho, embaraçada. — Mas simplesmente, não posso. — O rosto dela brilhou, quente e vermelho.
Dirigindo-se sozinho ao seu compartimento, Barney Mayerson fechou a porta, pegou o tubo de toxina que lhe fora fornecido por Allen Faine e segurou-o na mão, pensando. Agora, chegou a ocasião. Mas... estamos de volta? Será que não vi nada mais do que uma imagem residual de Eldritch, superposta sobre Anne? Ou talvez tivesse sido uma introvisão autêntica, uma percepção da situação real, sem reservas, em que se encontrava, não apenas da sua, mas de todas as demais, juntas.
Se é assim, aquela não era a ocasião de tomar a toxina. O instinto oferecia-lhe aquele ponto de observação.
Não obstante, desatarraxou a tampa do tubo.
Uma voz muito fina, frágil, saiu do tubo aberto, dizendo em tom agudo:
— Você está sendo vigiado, Mayerson. E se está pretendendo adotar algum tipo de tática, teremos que intervir. Você será severamente controlado. Sinto muito.
Com os dedos trêmulos, ele repôs a tampa no tubo, apertando-a com força. E o tubo estivera... vazio!
— O que é? — perguntou Anne, surgindo na sala. Estivera na cozinha de seu compartimento. Usava um avental, que descobrira em algum lugar. — O que é isso? — indagou, vendo o tubo na mão de Mayerson.
— Fuga — disse ele em voz áspera. — Disto.
— De exatamente o quê? — Restabelecera-se a aparência normal dela e, naquele momento, nada havia de errado. — Você parece realmente doente, Barney, mesmo. Será isso um efeito secundário da Mascar-Z?
— Ressaca. — Palmer Eldritch está realmente dentro disto?, perguntou-se, examinando o tubo fechado. Rolou-o na palma da mão. Há alguma maneira da gente entrar em contato com o satélite dos Faines?
— Oh, acho que há. Provavelmente, basta dar uma videotelefonada ou qualquer que seja o meio deles de...
— Peça a Norm Schein para fazer o contato para mim — disse ele.
Obedientemente, Anne saiu, fechando-se a porta às suas costas.
Imediatamente, tirou do esconderijo, embaixo do fogão da cozinha, o livro de código que Faine lhe dera. A mensagem teria que ser codificada.
As páginas do livro estavam em branco.
Então, a mensagem não irá em código, disse a si mesmo, e está resolvido. Vou ter que fazer o melhor que puder e enviar a mensagem, por mais insatisfatória que seja.
Aparecendo à porta, Anne disse:
— O senhor Schein está fazendo a chamada para você. Elas exigem sintonias especiais em todas as ocasiões, segundo ele.
Seguiu-a pelo corredor até uma pequena sala cheia de utensílios, onde encontraram Norm ao transmissor. No momento em que entraram, ele virou-se para Barney e disse:
— Consegui ligar para Charlotte... Isso serve?
— Allen — respondeu Barney.
— Muito bem. — Logo em seguida, Norm disse: — Agora, peguei o velho Al. Tome. — Entregou o microfone a Barney. Na pequena tela apareceu o rosto alegre e profissional de Allen Faine. — Um novo cidadão quer falar com você — explicou Norm, retomando por um momento o microfone. — Barney Mayerson, apresento-lhe metade da equipe que nos mantém vivos e mentalmente sãos aqui em Marte. — Para si mesmo, murmurou: — Deus, que dor de cabeça. Desculpe-me. — Deixou a cadeira em frente ao transmissor e desapareceu cambaleando no corredor.
— Senhor Faine — disse Barney, escolhendo as palavras, — falei com o senhor Palmer Eldritch hoje cedo. Ele mencionou a conversa que nós dois tivemos. Sabia os termos dela. Tanto quanto posso entender não há...
Friamente, Allen Faine perguntou:
— Que conversa?
Durante um momento, Barney ficou em silêncio.
— Evidentemente, eles estavam usando uma câmera infravermelha — continuou, finalmente. — Provavelmente, instalada num satélite que estava passando por cima. Não obstante, o conteúdo de nossa conversa, ao que parece, ainda não seria...
— O senhor está maluco — cortou-o Faine. — Não o conheço. Nunca tive conversa alguma com o senhor. Bem, homem, tem um pedido a fazer ou não? — O rosto estava impassível, desligado, e não parecia haver simulação.
— O senhor não sabe quem eu sou? — perguntou incrédulo Barney.
Faine cortou a ligação no seu lado e a pequena tela de vídeo apagou-se, mostrando naquele momento apenas o vazio, o vácuo. Barney desligou o transmissor. Nada sentia. Apatia. Passou por Anne e saiu para o corredor. Parou, tirou um maço — seria o último? — de cigarros da Terra e acendeu um, pensando. O que foi que Eldritch fez com Leo em Luna ou Sigma 14-B, ou comigo também, onde quer que tenha sido? No fim, ele agarrará todos nós. Exatamente como agora. Isolado. O mundo comunitário, desaparecido. Pelo menos para mim. Ele começou comigo.
E espera-se, pensou, que eu lute com um tubo vazio que antes poderia ou não ter contido uma toxina rara, cara, perturbadora do cérebro... mas que agora contém apenas Palmer Eldritch, e nem mesmo todo ele, apenas sua voz.
O fósforo queimou-lhe os dedos. Ignorou-o.

Onze
CONSULTANDO pilhas de notas, Félix Blau declarou:
— Há quinze horas, uma nave da Mascar-Z, com sanção da ONU, pousou em Marte e distribuiu os pacotes iniciais nos alojamentos de Fineburg Crescent.
Leo Bulero inclinou-se para a tela, cruzou as mãos e perguntou:
— Incluindo o de Barney?
Felix inclinou levemente a cabeça.
— Por esta altura — disse Leo — ele devia ter consumido a dose daquela sujeira apodrecedora de cérebro e nós já termos recebido notícias dele via sistema de satélites.
— Compreendo perfeitamente isso.
— William C. Clark está de prontidão? — Clark era o principal advogado da P.P. Layouts em Marte.
— Está — confirmou Felix — , mas Mayerson tampouco entrou em comunicação com ele. Não entrou em contato com pessoa alguma. — Empurrou para um lado as notas. — Isso é tudo, absolutamente tudo, de que disponho no momento.
— Talvez ele tenha morrido — comentou Leo. Estava mal-humorado. Aquela coisa toda deprimia-o. — Talvez ele tenha sofrido uma convulsão tão forte que...
— Mas, nesse caso, teríamos sabido, uma vez que seria notificado um dos três hospitais da ONU em Marte.
— Onde está Palmer Eldritch?
— Ninguém em minha organização sabe — respondeu Félix. — Deixou Luna e desapareceu. Simplesmente perdemos contato com ele.
— Eu daria meu braço direito — disse Leo — para saber o que está acontecendo naquele alojamento onde está Barney.
— Vá o senhor mesmo a Marte.
— Oh, não — respondeu imediatamente Leo — , não vou deixar a P.P. Layouts, não depois do que me aconteceu em Luna. Você não pode infiltrar lá um homem de sua organização, que nos informe diretamente?
— Nós temos aquela moça, Anne Hawthorne. Mas ela tampouco entrou em contato. Talvez eu mesmo vá a Marte... se o senhor não for.
— Eu não vou — repetiu Leo.
— Isso lhe custará... — começou Félix.
— Eu sei — respondeu Leo. — E pagarei. Mas, pelo menos, teremos alguma chance. Quero dizer, da forma como está a situação, não temos coisa alguma. — E estamos liquidados, disse para si mesmo. — Simplesmente apresente a conta.
— Mas o senhor tem alguma idéia do que lhe custaria, se eu morresse, se eles me pegassem em Marte? Minha organização...
— Por favor — pediu Leo — , não quero falar a esse respeito. O que é Marte, um cemitério que Eldritch está cavando? Provavelmente, ele engoliu Barney Mayerson. Muito bem, vá. Vá até o alojamento dele.
Às suas costas, Roni Fugate, sua consultora de pré-sucesso interina de Nova Iorque, escutava atenta. Absorvendo tudo, pensou Leo.
— Encheu bem os ouvidos? — perguntou ele asperamente.
— O senhor — disse Roni — está fazendo com ele a mesma coisa que ele fez com o senhor.
— Quem? O quê?
— Barney teve medo de segui-lo quando o senhor desapareceu em Luna. Agora, o senhor tem medo...
— Simplesmente não é prudente. Muito bem — confessou — , estou com medo demais de Palmer para botar o pé fora deste edifício. Claro que não vou a Marte e o que você está dizendo é a pura verdade.
— Mas — disse suavemente Roni — ninguém vai despedi-lo. Como o senhor despediu Barney.
— Eu estou me despedindo. Por dentro. E dói.
— Mas não o suficiente para fazê-lo ir a Marte.
— Muito bem! — Rispidamente, religou o videofone e discou Félix Blau. — Blau, retiro tudo o que disse. Eu mesmo vou. Embora seja uma loucura.
— Para ser franco — disse Félix — , em minha opinião o senhor está fazendo exatamente o que Palmer Eldritch quer. Todas essas questões de bravura versus...
— O poder de Eldritch se exerce através daquela droga — lembrou Leo. — Enquanto ele não puder administrá-la em mim, estarei bem. Vou levar alguns seguranças da companhia para evitar que me apliquem sorrateiramente uma injeção, como da última vez. Ei, Blau, você ainda vai, certo? — Virou-se para Roni. — Tudo bem assim?
— Tudo bem. — Ela inclinou a cabeça.
— Está vendo? Ela diz que está tudo bem. De modo que vai comigo a Marte e, você sabe, segurará a minha mão?
— Claro, Leo — respondeu Félix Blau. — E se você desmaiar, eu o abanarei até você recuperar a consciência. Eu o encontrarei em seu escritório dentro de... — examinou o relógio — ... duas horas. Combinaremos os detalhes. Mande aprontar uma nave rápida. Levarei comigo uns dois homens de confiança, também.
— É isso aí — disse Leo a Roni, depois de desligar. — Veja só o que você me obrigou a fazer. Tomou o cargo de Barney e, se eu não voltar de Marte, talvez você pegue o meu, também. — Olhou-a, zangado. As mulheres podem conseguir que um homem faça qualquer coisa, compreendeu. Mãe, esposa, mesmo empregada. Giram a gente na mão como se fôssemos bolinhas de termoplástico.
— Isso aconteceu, realmente, porque eu falei, senhor Bulero? O senhor, realmente, acredita nisso?
Ele dirigiu a ela um longo e atento olhar.
— Acredito. Porque você é insaciavelmente ambiciosa. Acredito realmente nisso.
— O senhor está enganado.
— Se eu não voltar de Marte, você irá me procurar? — Esperou, mas ela não respondeu. Notou hesitação na face da moça e riu alto. — Claro que não.
Com a fisionomia pétrea, Roni Fugate respondeu:
— Preciso voltar ao meu escritório. Tenho que julgar uma nova partida de louça rasa. Padrões modernos, de Capetown.
Levantando-se, ela deixou o gabinete. Ele acompanhou-a com os olhos. Ela não é o verdadeiro motivo. Nem Palmer Eldritch. Se eu voltar, tenho que descobrir uma maneira de me livrar suavemente dela. Não gosto de ser manipulado.
Palmer Eldritch, lembrou-se de repente, apareceu sob a forma de uma menininha, uma criança... para não mencionar a vez que surgiu sob a forma daquele cão. Talvez não haja uma Roni Fugate. Talvez ela seja Eldritch.
O pensamento gelou-o.
O que nós temos aqui, compreendeu, não é uma invasão da Terra pelos proximianos, seres de outro sistema. Não, uma invasão pelas legiões de uma pseudo-raça humana. Não. Não. E Palmer Eldritch que está em toda parte, crescendo, crescendo como erva daninha. Haverá um ponto em que ele explodirá, crescerá demais? Todas as manifestações de Eldritch, por toda a Terra, Luna e Marte, Palmer inchando e explodindo — pô, PÔ, PÓ! Como Shakespare disse, alguma droga de coisa simples a respeito de enfiar um simples alfinete numa armadura, e adeus rei.
Mas, pensou, qual, neste caso, é o alfinete? E há um espaço aberto onde possamos enfiá-lo? Não sei, nem Félix, nem também Barney. Aposto que ele não tem a mais vaga idéia de como enfrentar Eldritch. Seqüestrar Zoé, a feia e velha filha dele? Palmer não daria a mínima bola. Talvez nem haja uma Zoé independente dele. E é assim que nós todos vamos terminar, se não descobrirmos uma maneira de destruí-lo. Réplicas, prolongamentos do homem, povoando três planetas e seis luas. Aquele homem é um protoplasma, espalhando-se, reproduzindo-se, dividindo-se, e tudo através daquela maldita droga derivada de um líquen, extraterrena, aquela horrível, miserável Mascar-Z.
Uma vez mais no videofone, discou o satélite de Allen Faine. Logo em seguida, um pouco insubstancial e fraca, mas apesar de tudo presente, a face de seu principal disc jockey apareceu.
— Sim, senhor Bulero.
— Tem certeza de que Mayerson não entrou em contato com você? Ele recebeu o livro de código, não?
— Recebeu, mas ainda nada dele. Estamos monitorando todas as transmissões do alojamento dele. Vimos a nave de Eldritch pousar perto — isso foi há horas — e Eldritch sair e dirigir-se aos moradores. Embora nossas câmeras não tivessem registrado o fato, tenho certeza de que a transação foi concluída naquele momento. — E Faine acrescentou: — Barney Mayerson foi um dos moradores que receberam Eldritch na superfície.
— Acho que sei o que aconteceu — disse Leo. — Obrigado, Al.
Desligou. Barney desceu com a Mascar-Z. E, imediatamente, todos se sentaram e começaram a mascar. Isso foi o fim, exatamente como foi comigo em Luna. Nossa tática exigia que Barney mascasse para valer, compreendeu Leo, e assim caímos feitos uns patinhos nas sujas mãos semimecânicas de Palmer. Logo que ele conseguiu introduzir a droga no sistema de Barney, fomos liquidados. Porque, de alguma maneira, Eldritch controla todos os mundos alucinatórios criados pela droga. Sei — tenho certeza! — que aquele gambá está em todos eles.
Os mundos de fantasia que a Mascar-Z cria, pensou, estão na cabeça de Palmer Eldritch. Foi isto que descobri pessoalmente.
E o problema é, continuou a pensar, que logo que a pessoa entra num deles, não consegue sair inteiramente. A coisa permanece, mesmo quando a gente pensa que está livre. É um portão que só dá entrada e, tanto quanto sei, ainda estou lá agora.
Contudo, isso não parecia provável. Ainda assim, pensou, mostra como estou amedrontado — como disse Roni Fugate. Com medo suficiente (reconheço isso) para abandonar Barney lá, como ele me abandonou. E Barney estava usando sua capacidade precognitiva, de modo que tinha visão antecipada, quase no ponto em que agora tenho visão retrospectiva. Ele sabia antecipadamente o que eu tinha que aprender com a experiência. Não era de espantar que ele refugasse.
Quem é que vai ser sacrificado?, perguntou a si mesmo. Eu, Barney, Félix Blau — qual de nós vai ser derretido para Palmer engolir? Porque é isso o que, potencialmente, somos para ele: alimento a ser consumido. Foi uma coisa oral que chegou do sistema de Prox, uma grande boca, aberta para nos receber a todos.
Mas Palmer não é um canibal. Porque eu sei que ele não é humano. Não há um homem naquela pele de Palmer Eldritch.
Mas não tinha concepção alguma do que pudesse ser. Tanta coisa podia acontecer na vasta extensão de espaço entre o Sol e Próxima Centauri, tanto na ida como na volta! Talvez tenha acontecido, pensou, na ida de Palmer. Talvez ele tenha comido os proximianos naqueles dez anos, enxugado o prato lá, e voltado para nós. Poxa. Estremeceu.
Bem, pensou, mais duas horas de vida independente, mais o tempo que leva a viagem a Marte. Talvez dez horas de existência privada e, em seguida... engolido. E por toda Marte aquela droga horrenda está sendo distribuída. Pense, imagine, no número de pessoas confinadas nos mundos ilusórios de Palmer, nas redes que ele lança. O que é que esses budistas da ONU, como Hepburn-Gilbert, chamam a isso? Maya. O véu da ilusão. Droga, pensou desalentado, e estendeu a mão para o intercomunicador, a fim de requisitar uma nave rápida para o vôo. E eu quero um bom piloto, lembrou-se. Ultimamente, um número grande demais de pousos autônomos têm acabado em acidentes. Não quero ser espalhado por todo aquele campo — especialmente aquele campo.
— Qual é o melhor piloto interplanetário que temos? — perguntou à senhorita Gleason.
— Don Davis — respondeu ela imediatamente. — Ele tem uma ficha perfeita em seus... o senhor sabe, os vôos dele procedentes de Vênus. — Ela não se referia explicitamente aos negócios de Can-D da empresa. Até mesmo o intercomunicador podia estar grampeado.
Dez minutos depois, todos os preparativos de viagem haviam sido feitos.
Leo Bulero recostou-se, acendeu um grande charuto verde claro Havana, que estivera guardado numa caixa de umidade, cheia de hélio, provavelmente durante anos... O charuto, quando mordeu a ponta, pareceu-lhe seco e quebradiço. Estalou sob a pressão dos dentes e ele se sentiu desapontado. Parecia tão bom, tão perfeitamente preservado em sua caixa. Bem, nunca se sabe, disse a si mesmo. Até que se experimenta.
A porta do gabinete foi aberta nesse instante e entrou a senhorita Gleason, trazendo os documentos de requisição da nave.
A mão que segurava os papéis era artificial. Notou o brilho do metal claramente exposto e imediatamente ergueu a cabeça para examinar o rosto da mulher. Dentes de Neanderthal, pensou, é isso o que parecem esses gigantescos molares de aço inoxidável. Uma reversão a 200 mil anos. Revoltante. E os olhos eram de luxvid ou vidlux, sem pupilas, apenas frestas, de qualquer modo produtos do Laboratório Jensen, de Chicago.
— Diabos o levem, Eldritch — disse ele.
— Eu também sou seu piloto — respondeu Palmer Eldritch de dentro da forma da senhorita Gleason. — Eu estava pensando em cumprimentá-lo quando você pousasse, mas isso é demais, cedo demais.
— Dê-me os papéis para assinar — disse Leo, estendendo mão.
Surpreso, Palmer Eldritch perguntou:
— Você ainda pensa em fazer a viagem a Marte? — Parecia realmente atônito.
— Penso — respondeu Leo, e esperou paciente que ele lhe entregasse os papéis.

QUANDO EXPERIMENTA Mascar-Z, a pessoa é entregue de uma vez por todas. Pelo menos era assim que a dogmática, devota, fanática Anne Hawthorne diria. Como o pecado, pensou Barney Mayerson. E o estado de escravidão. Como a Queda. E a tentação é semelhante.
Mas o que está faltando aqui é uma maneira através da qual possamos ser libertados. Teríamos que ir a Prox para encontrá-la? Mesmo há, talvez não exista. De qualquer modo, não existe no universo.
Anne Hawthorne apareceu à porta da sala de transmissão do alojamento.
— Você está bem?
— Claro — respondeu Barney. — Sabe, nós nos metemos nisto. Ninguém nos obrigou a mastigar a Mascar-Z. — Jogou o cigarro no chão e apagou-o com a ponta da bota. — E você não quer me dar sua porção.
Mas não era Anne que se recusava a fazer o que ele pedia. Era Palmer Eldritch operando através dela, resistindo.
Mesmo assim, posso tomar-lhe a droga, compreendeu.
— Pare — disse ela. Ou melhor, a coisa disse.
— Ei! — berrou Norm Schein da sala de transmissão, levantando-se de um salto, espantado. — O que é que você está fazendo, Mayerson? Deixe-a...
O forte braço artificial atacou-o. Os dedos de metal fecharam-se e quase chegaram ao que se propunham. Sondaram o pescoço com mestria, procurando o local onde a morte podia ser administrada mais eficiente. Mas ele pegara o pacote e isso era o que interessava. Soltou a criatura.
— Não a tome, Barney — disse ela tranqüilamente. — É cedo demais, depois da primeira dose. Por favor.
Sem responder, ele se afastou na direção de seu compartimento.
— Você faria uma coisa por mim? — gritou ela às suas costas. — Divida-a em dois, deixe-me tomá-la com você. Assim, posso acompanhá-lo.
— Por quê? — quis saber ele.
— Talvez eu possa ajudá-lo, estando lá.
— Eu posso fazer isso sozinho — respondeu Barney. Se puder chegar a Emily antes do divórcio, antes que Richard Hnatt apareça... como fiz da primeira vez, pensou. Esse é o único lugar onde tenho alguma possibilidade real. Repetidamente, pensou: tente! Tente até ter êxito.
Fechou a porta.
Enquanto devorava a Mascar-Z, pensou em Leo Bulero. Você fugiu. Provavelmente porque Palmer Eldritch era mais fraco do que você. Foi isso? Ou Eldritch estava simplesmente lhe dando corda, deixando que você estrebuchasse? Você podia vir aqui e me deter. Agora, porém, não há jeito de fazer isso. O próprio Eldritch me avisou, falando por intermédio de Anne Hawthorne. Era demais, mesmo pára ele, e agora, o que estava acontecendo? Fui tão longe que mergulhei até o fundo, longe mesmo da vista dele. Aonde nem mesmo Palmer Eldritch pode ir, onde coisa alguma existe? E, claro, pensou, não posso voltar.
Com a cabeça doendo, fechou involuntariamente os olhos. Era como se seu cérebro, vivo e assustado, tivesse se mexido fisicamente. Sentiu-o tremer. Metabolismo alterado, compreendeu. Choque. Sinto muito, disse a si mesmo, pedindo desculpas à sua parte somática. Tudo bem?
— Socorro — disse em voz alta.
— Ah, socorro... pois sim! — rangeu uma voz de homem. — O que é que você quer que eu faça, que segure sua mão? Abra os olhos ou caia fora daqui. Aquele período que você passou em Marte, ele acabou com você e estou cheio até aqui. Vamos!
— Cale a boca — gritou Barney. — Estou doente. Fui longe demais. Você quer dizer que tudo o que pode fazer é me insultar?
— Abriu os olhos e viu-se em frente a Leo Bulero, sentado à sua grande e atravancada escrivaninha de carvalho. — Escute aqui — continuou — , estou sob o efeito da Mascar-Z. Não posso deter isso. Se você não puder me ajudar, estou liquidado.
As pernas fraquejaram nos joelhos, como liquefazendo-se, enquanto ele chegava a uma cadeira próxima e se sentava. Olhando-o pensativo, fumando um charuto, Leo disse:
— Você está sob o efeito de Mascar-Z agora? — Fechou a cara.
— Como há dois anos...
— Foi banida?
— Isso mesmo, banida. Meu Deus, não sei se vale a pena falar com você. O que é que você é, algum tipo de fantasma do passado?
— Você ouviu o que eu disse. Eu disse que estou sob o efeito da droga. — Cerrou os punhos.
— Muito bem, minto bem. — Agitado, Leo puxou grandes baforadas de fumaça. — Não fique nervoso demais. Diabo, eu fui em frente e vi o futuro também, e isso não me matou. E, de qualquer maneira, pelo amor de Deus, você é um precog... devia estar acostumado a isso. Afinal de contas... — recostou-se na cadeira, girou nela e cruzou as pernas — ...eu vi aquele monumento, entendeu? Imagine em homenagem a quem. A mim. — Olhou para Barney e, em seguida, encolheu os ombros.
— Eu não tenho coisa alguma a ganhar, absolutamente nada — disse Barney — neste período de tempo. Quero minha vida de volta. Quero Emily. — Sentiu-se enfurecido, transbordando de amargura. Com a bile do desapontamento.
— Emily — repetiu Leo Bulero, inclinando a cabeça. Falou no intercomunicador: — Senhorita Gleason, por favor, não deixe que coisa alguma nos incomode por algum tempo. — Voltou a atenção para Barney, passando minuciosa revista nele. — Aquele cara, Hnatt
— é esse o nome dele? — foi preso pela polícia da ONU, juntamente com o resto do pessoal da organização de Eldritch. Hnatt tinha um contrato assinado com o agente de Eldritch. Bem, deram a ele a opção de uma pena de prisão — tudo bem, reconheço que foi injusto, mas não me culpe — ou emigrar. Ele emigrou.
— E ela?
— Com aquele negócio de vasos? Como diabo podia ela continuá-lo num alojamento do deserto marciano? Naturalmente, ela chutou aquele palhaço estúpido. De modo que, você vê, se tivesse esperado...
— Você é realmente Leo Bulero? — perguntou Barney. — Ou é Palmer Eldritch? E está dizendo isso para me fazer sentir ainda pior... é isso?
Erguendo uma sobrancelha, Leo respondeu:
— Palmer Eldritch morreu.
— Mas isto não é real. E uma fantasia induzida pela droga. Um traslado.
— O diabo que não é real. — Leo fitou-o, zangado. — No que é que isso me transforma, então? Escute. — Apontou iradamente o dedo para Barney. — Não há nada de irreal a meu respeito. Você é que é uma droga de fantasma, como você mesmo disse, saído do passado. Quero dizer, você tem a situação inteiramente atrasada. Está ouvindo isto? — Bateu na superfície da mesa com toda a força das mãos. — O som que a realidade produz. E eu digo que sua ex-mulher e Hnatt se divorciaram. Sei porque ela vende seus vasos a nós para miniaturização. Na verdade, na última quinta-feira, ela estava no escritório de Roni Fugate. — Mal-humorado, continuou a fumar o charuto, olhando ainda zangado para Barney.
— Neste caso, tudo o que eu tenho que fazer é procurá-la — disse Barney. A coisa era bem simples.
— Oh, sim — concordou Leo, inclinando a cabeça. — Mas, apenas uma coisa. O que é que você vai fazer com Roni Fugate? Você está vivendo com ela neste mundo, que parece gostar de imaginar que é irreal.
Espantado, Barney perguntou:
— Depois de dois anos?
— E Emily sabe por quê, uma vez que está vendendo seus vasos a nós através de Roni. As duas se tornaram grandes amigas. Contam uma à outra todos seus segredos. Olhe o caso do ponto de vista de Emily. Se ela deixasse que você voltasse para ela, Roni provavelmente deixaria de aceitar os vasos dela para miniaturização. É um risco, e aposto que Emily não quer corrê-lo. Quero dizer, demos a Roni autoridade absoluta, como você tinha no seu tempo.
— Emily nunca colocaria a carreira à frente de sua própria vida — protestou Barney.
— Você colocou. Talvez Emily tenha aprendido com você. Entendeu o recado. E, afinal de contas, mesmo sem aquele cara, Hnatt, por que Emily quereria voltar para você? Ela está levando uma vida bem-sucedida em sua carreira, é famosa em todo o planeta, e tem muito dinheiro guardado... Quer saber a verdade? Ela tem todos os homens que quer. A qualquer momento. Emily não precisa de você. Enfrente a realidade, Barney. Afinal de contas, o que é que falta em Roni? Para ser franco, eu não me importaria...
— Eu acho que você é Palmer Eldritch — disse Barney.
— Eu? — Leo bateu no peito. — Barney, eu matei Eldritch. Foi por isso que ergueram um monumento a mim. — A voz era baixa e tranqüila, mas ele estava vermelhíssimo. — Eu tenho dentes de aço inoxidável? Tenho braço artificial? — Leo ergueu as mãos. — Bem? E meus olhos...
Barney dirigiu-se para a porta do escritório.
— Para aonde vai você? — perguntou Leo.
— Eu sei — disse Barney, abrindo a porta — que se puder conversar com Emily apenas por alguns minutos...
— Não, você não pode, cara — disse Leo, sacudindo com firmeza a cabeça.
Esperando pelo elevador, Barney pensou: Talvez fosse realmente Leo. E talvez seja verdade.
De modo que não posso ter sucesso sem Palmer Eldritch.
Anne tinha razão. Eu devia ter dado a ela metade do pacote e nós dois poderíamos ter tentado isto juntos. Anne, Palmer... é tudo o mesmo, tudo a mesma coisa para ele, o criador. É isso quem e o quê ele é, compreendeu. O dono desses mundos. O resto de nós apenas habita esses mundos e, quando quer, ele pode viver neles, também. Pode derrubar com um pontapé o cenário, manifestar-se, empurrar as coisas na direção que escolher. Mesmo ser um de nós, se quiser. Todos nós, na verdade, se desejar. Eterno, fora do tempo e dos segmentos justapostos de todas as outras dimensões... ele pode mesmo penetrar num mundo onde está morto.
Palmer Eldritch fora a Prox como homem e voltara como um deus.
Em voz alta, enquanto esperava pelo elevador, disse:
— Palmer Eldritch, ajude-me. Consiga-me minha esposa de volta. — Olhou em torno de si, mas não havia ninguém para ouvi-lo.
Chegou o elevador. As portas deslizaram para os lados. Dentro havia quatro homens e duas mulheres, calados.
Todos eles eram Palmer Eldritch. Homens e mulheres iguais: braço artificial, dentes de aço inoxidável... rosto lívido, encovado, com olhos Jensen.
Virtualmente em uníssono, mas não inteiramente como se competindo entre si pela oportunidade de falar, os seis disseram:
— A partir daqui você não vai poder voltar ao seu próprio mundo, Mayerson. Desta vez, você foi longe demais, tomou uma superdose maciça. Como lhe avisei quando a tomou de mim no alojamento.
— Você não pode me ajudar? — perguntou Barney. — Preciso voltar.
— Você não compreende — disseram todos os Palmer Eldritches, sacudindo coletivamente a cabeça. Era o mesmo movimento que Leo acabara de fazer e o mesmo firme não. — Como lhe foi observado: desde que este é seu futuro, você já está firmemente instalado aqui. De modo que não há lugar para você. Isto é uma questão de lógica simples. Para quem devo capturar Emily? Para você? Ou para o Barney Mayerson legítimo que viveu naturalmente até este momento? E não pense que ele não tentou levar Emily de volta. Você não acha — e obviamente não achou — que quando os Hnatt se separaram ele fez seu movimento? Fiz o que pude por ele. Isso aconteceu há muitos meses, pouco depois de Richard Hnatt ter sido enviado para Marte, debatendo-se e protestando o caminho todo. Pessoalmente, não culpo Hnatt. Foi uma sujeira o que fizeram com ele, tudo tramado por Leo, claro. E olhe só para você mesmo. — Os seis Palmer Eldritch fizeram um gesto de desdém. — Você é um fantasma, como Leo disse. Literalmente, podemos ver através de você. Numa terminologia mais exata, vou dizer o que você é. — Dos seis partiu a calma, fria, declaração: — Você é um espectro.
Barney olhou-os fixamente e eles olharam-no fixamente, plácidos, insensíveis.
— Tente construir sua vida sobre essa premissa — continuaram os Eldritch. — Bem, você conseguiu o que São Paulo promete, aquilo sobre o que Anne Hawthorne esteve dissertando. Você não está mais revestido de um corpo perecível, corporal... em lugar dele, vestiu um corpo etéreo. Que tal acha ele, Mayerson? — O tom era zombeteiro, mas a compaixão transpareceu nos seis rostos, mostrou-se nos estranhos olhos estriados, mecânicos, de todos eles. — Você não pode morrer. Não come, nem bebe, nem respira... mas pode, se desejar, atravessar paredes, na verdade qualquer objeto material. Aprenderá isso com o tempo. Evidentemente, na estrada para Damasco, Paulo experimentou uma visão relativa a esse fenômeno. Isso e muito mais. — E os Eldritches acrescentaram: — Estou inclinado, como você vê, a demonstrar alguma simpatia pelo ponto de vista dos primitivos e dos neocristãos, como o que Anne sustenta. Ajuda a explicar diversas coisas.
— E o que me diz de você, Eldritch? — perguntou Barney. — Você está morto, foi assassinado há dois anos por Leo.
E eu sei, pensou, porque você está sofrendo a mesma coisa que eu, o mesmo processo deve ter-se emparelhado com você, em algum ponto do caminho. Você mesmo tomou uma superdose de Mascar-Z e agora não há tampouco para você a volta ao seu próprio tempo e mundo.
— Aquele monumento — disseram os seis Eldritches, murmurando juntos como o cicio de um vento muito distante — é altamente inexato. Uma de minhas naves teve uma troca de tiros com uma das de Leo nas imediações de Vênus. Eu estava a bordo, ou supunha-se que eu estivesse, da nossa. Leo estava a bordo da dele. Ele e eu simplesmente tivemos uma conferência com Hepburn-Gilbert em Vênus e, na volta à Terra, Leo aproveitou a oportunidade para atacar nossa nave. Foi com base nessa premissa que se construiu aquele monumento... devido à hábil pressão econômica de Leo, aplicada em todos os apropriados organismos políticos. De uma vez por todas, ele entrou para a História.
Duas pessoas, um jovem cavalheiro bem vestido, tipo executivo, e uma moça que era possivelmente secretária, desceram o corredor. Olharam com espanto para Barney e em seguida para as seis criaturas no elevador.
As criaturas deixaram de ser Palmer Eldritch. A mudança ocorreu diante de seus olhos. De repente, eles eram seis indivíduos, homens e mulheres comuns. Inteiramente heterogêneos.
Barney afastou-se do elevador. Durante um intervalo imensurável vagueou pelos corredores e, tomando uma rampa, finalmente desceu para o térreo, onde ficava a lista de pessoal da P.P. Layouts. Lendo-a, localizou seu nome e número de telefone. Ironicamente — e isto chegava quase a ser demais — tinha o título que tentara extrair deles à força, há não tanto tempo. Era mencionado como Supervisor de Pré-Sucesso, superior em graduação a todos os consultores individuais. Assim, mais uma vez, se apenas tivesse esperado...
Sem dúvida alguma, Leo conseguira tirá-lo de Marte, salvá-lo do mundo do alojamento. E isso implicava muita coisa.
A planejada ação judicial — ou alguma tática diferente — tivera sucesso. Teria, melhor seria dizer. E talvez dentro em breve.
O véu de alucinação lançado por Palmer Eldritch, o pescador de almas humanas, era imensamente eficaz, mas não perfeito Não a longo prazo. De modo que ele deixara de consumir a Mascar-Z, após a dose inicial...
Talvez a porção em poder de Anne Hawthorne houvesse sido um ato deliberado. Uma maneira de manobrá-lo para que a tomasse novamente, e logo. Se foi assim, os protestos dela haviam sido falsos. Fora intenção dela que ela a tomasse e, como um animal num labirinto, ele correra para a rota de fuga vislumbrada. Manipulado por Palmer Eldritch em cada centímetro do caminho.
E não havia uma estrada de volta.
Se fosse acreditar em Eldritch, este estaria falando através de Leo. Através de suas múltiplas personagens, em toda parte. Mas essa era a palavra-chave... se.
Tomando o elevador, subiu ao andar onde se localizava seu próprio escritório.
Quando abriu a porta o homem sentado à escrivaninha ergueu a cabeça e disse:
— Feche essa coisa. Nós não temos muito tempo. — O homem, e era ele mesmo, levantou-se. Barney examinou-o atentamente e, em seguida, pensativo, fechou a porta como ele mandara. — Obrigado — disse friamente seu futuro ser. — E pare com essa de preocupar-se em voltar ao seu próprio tempo. Você voltará. A maior parte do que Eldritch fez — ou faz, se preferir considerá-la dessa maneira — consiste em produzir mudanças superficiais: ele faz com que as coisas pareçam o que ele quer, mas isso não significa que elas são. Entendeu o que eu disse?
— Eu... eu entendo o que significam suas palavras. Seu futuro ser continuou:
— Reconheço que é fácil para mim dizer isso agora. Eldritch ainda aparece de tempos em tempos, às vezes mesmo publicamente, mas eu sei e até os leitores mais ignorantes dos jornais de nível mais baixo sabem que ele nada mais é do que um fantasma. O homem real encontra-se numa sepultura em Sigma 14-B, e isso foi comprovado. Você está num local diferente. Para você, o Palmer Eldritch real pode aparecer a qualquer minuto. O que seria real para você seria um fantasma para mim, e a mesma coisa vai ser verdade quando você voltar a Marte. Encontrará um Palmer Eldritch autenticamente vivo e, francamente, não o invejo.
— Diga-me apenas como voltar — pediu Barney.
— Não se importa mais com Emily?
— Estou com medo. — Sentiu seu próprio olhar queimá-lo, a percepção e a compreensão do futuro. — Muito bem — explodiu — o que é que devo fazer, fingir que não para impressioná-lo? De qualquer modo, você saberia.
— O ponto em que Eldritch tem vantagem sobre todos os que consumiram Mascar-Z é que a recuperação dos efeitos da droga é excessivamente lenta e gradual, numa série de níveis, cada um deles progressivamente menos uma ilusão induzida e mais composto de realidade autêntica. Às vezes, o processo leva anos. Foi por isso que a ONU proibiu, tardiamente, a droga e virou-se contra Eldritch. Hepburn-Gilbert aprovou-a no início porque acreditava sinceramente que a droga ajudava o usuário a penetrar na realidade concreta, mas depois tornou-se óbvio para todos os que a usaram ou a viram ser usada que ela fazia exatamente o...
— Neste caso, eu nunca me recuperei de minha primeira dose.
— Exato. Você nunca voltou à realidade concreta, nítida. Como teria acontecido, caso houvesse se abstido por mais 24 horas. Aqueles fantasmas de Eldritch, gravados na matéria normal, teriam desaparecido inteiramente e você teria ficado livre. Mas Eldritch conseguiu que você tomasse a segunda e mais forte dose. Sabia que você fora enviado a Marte para trabalhar contra ele, embora não tivesse idéia de que maneira. Ele estava com medo de você
Era estranho ouvir aquilo. Não soava certo. Eldritch, a despeito de tudo o que fizera e podia fazer... Mas Eldritch vira o monumento no futuro e sabia que, de algum jeito, de alguma maneira, iam finalmente matá-lo.
A porta do escritório foi aberta bruscamente. Roni Fugate olhou para dentro e viu os dois. Nada disse, simplesmente olhou, boquiaberta. Mas, finalmente, murmurou:
— Um fantasma. Acho que é o que está de pé, o que está mais perto de mim. — Trêmula, entrou, fechando a porta.
— Isso mesmo — disse seu futuro ser, examinando-a atentamente. — Pode verificar passando a mão através dele.
Foi o que ela fez. Barney Mayerson viu a mão dela atravessar-lhe o corpo e desaparecer.
— Eu vi fantasmas antes — disse ela, retirando a mão. Estava nesse momento mais calma. — Mas nunca o seu, querido. Todos os que consumiram aquela abominação transformaram-se em fantasmas numa ou noutra ocasião, mas, recentemente, eles se tornaram menos freqüentes. Certa ocasião, mais ou menos há um ano, a gente os via em toda parte. — E acrescentou: — Hepburn-Gilbert finalmente viu um de si mesmo. Exatamente o que ele merecia.
— Você compreende — disse seu futuro eu a Roni — que ele está sob o domínio de Eldritch, mesmo que para nós o homem esteja morto. De modo que temos que trabalhar com cautela. Eldritch pode começar a afetar a percepção dele a qualquer momento e, quando isso acontecer, ele não terá outra opção do que reagir nessa conformidade.
Dirigindo-se a Barney, Roni perguntou:
— O que podemos fazer por você?
— Ele quer voltar para Marte — explicou seu futuro eu. — Eles têm um plano imensamente complicado, todo elaborado para destruir Eldritch nos tribunais interplanetários. A coisa envolve tomar um epilepsigênico ioniano, KV-7. Ou suas recordações não retroagem a esse ponto?
— Mas o caso nunca chegou aos tribunais — disse Roni. — Eldritch entrou num acordo. A queixa foi retirada.
— Nós podemos transportá-lo para Marte — disse a Barney seu futuro ser — numa nave da P.P. Layouts. Mas isso não adiantará coisa alguma porque Eldritch não só o seguirá e irá com você na viagem: estará lá para recebê-lo — o que é um dos esportes ao ar livre favorito dele. Jamais esqueça que um fantasma pode ir a qualquer lugar. Não é limitado por tempo ou espaço. É isso o que o transforma em fantasma, isso e o fato de que ele não tem metabolismo, pelo menos não como entendemos essa palavra. Estranhamente, contudo, o fantasma é afetado pela gravidade. Ultimamente, surgiram numerosos estudos sobre esse assunto. De qualquer modo, não se conhece muita coisa a esse respeito. — Intencionalmente, concluiu: — Especialmente sob o subtópico de como trazer um fantasma ao seu próprio espaço e tempo... como exorcizá-lo.
— Você está ansioso para se livrar de mim? — perguntou Barney. Sentiu frio.
— Exatamente — respondeu com toda calma seu futuro ser. — Tão ansioso como você está por voltar. Você sabe agora que cometeu um erro, você sabe que... — Lançou um olhar a Roni e imediatamente calou-se. Não queria referir-se a Emily na frente dela.
— Foram feitas algumas tentativas com eletrochoque de alta voltagem e baixa amperagem — lembrou Roni. — E com campos magnéticos. A Universidade de Columbia...
— O melhor trabalho até agora — disse seu futuro eu — foi feito no Departamento de Física da Caltech, na Costa Oeste. O fantasma é bombardeado com partículas beta, que desintegram a base proteínica essencial do...
— Muito bem — disse Barney. — Vou deixá-lo em paz. Vou procurar o Departamento de Física da Caltech e verificar o que eles podem fazer. — Sentia-se inteiramente derrotado. Fora abandonado até por si mesmo, é o cúmulo, pensou, tomado de uma fúria impotente, selvagem. Deus!
— Isso é estranho — comentou Roni.
— O que é que é estranho? — perguntou seu eu futuro, inclinando a cadeira para trás, cruzando os braços e fitando-a.
— Você indicar a Caltech — respondeu Roni. — Tanto quanto sei, eles nunca realizaram lá trabalho algum com fantasmas. — A Barney, tranqüilamente: — Peça para ver as duas mãos dele.
— Suas mãos — obedeceu Barney. Já começara, porém, a sorrateira alteração no homem sentado, na boca especialmente, na protuberância característica que reconhecia com tanta facilidade. — Esqueça — disse em voz abafada. Sentia-se tonto.
Zombeteiramente, retrucou seu futuro ser:
— Deus ajuda a quem se ajuda, Mayerson. Você acha, realmente, que vai ajudar em alguma coisa andar batendo em portas por aí, tentando criar alguém que tenha pena de você? Diabo, eu tenho pena de você. Eu lhe disse para não consumir aquela segunda porção. Eu o livraria disso, se soubesse como, e conheço mais a respeito da droga do que qualquer outra pessoa.
— O que é que vai acontecer a ele? — perguntou Roni ao seu futuro eu, que não era mais seu futuro eu. A metamorfose se completara e Palmer Eldritch estava reclinado para trás na escrivaninha, alto e grisalho, balançando-se de leve na cadeira de rodinhas, uma grande massa de teias de aranha imemoriais, quase num gesto de arrogância, numa forma quase humana. — Meus Deus, será que ele vai vaguear por aqui para sempre?
— Boa pergunta — concordou gravemente Palmer Eldritch. — Eu gostaria de saber. Tanto por ele como por mim. Estou metido nisso muito mais profundamente do que ele, lembre-se. — Dirigindo-se a Barney, disse: — Você compreendeu o ponto fundamental, não?, que não lhe é necessário assumir seu Gestalt normal. Você pode tornar-se uma pedra, uma árvore, um veículo a jato, ou uma seção de um teto antitérmico. Eu fui todas essas coisas, e muito mais. Se tornar-se inanimado, um velho tronco, por exemplo, deixa de ficar consciente da passagem do tempo. Essa é uma solução possível, interessante para alguém que queira escapar de sua existência fantasmagórica. Eu não quero. — A voz era baixa. — Porque, para mim, voltar para meu próprio espaço e tempo significa morte, por iniciativa de Leo Bulero. Muito ao contrário. Só posso continuar a viver neste estado. Mas, no seu caso. — Fez um gesto, sorrindo de leve. — Seja uma rocha, Mayerson. Agüente até o fim, por mais tempo que leve para passarem os efeitos da droga. Dez anos, um século. Um milhão de anos. Ou seja um velho osso fóssil num museu. — O olhar era bondoso.
Após algum tempo, Roni sugeriu:
— Talvez ele tenha razão, Barney.
Barney foi até a escrivaninha, pegou um peso de papel, de vidro, mas depois recolocou-o no mesmo lugar.
— Nós não podemos tocá-lo — disse Roni — mas ele pode...
— A capacidade de fantasmas de manipular objetos materiais — explicou Palmer Eldritch — deixa claro que eles estão presentes, e que não são meramente projeções. Lembre-se do fenômeno de poltergeist... Eram capazes de lançar objetos por toda a casa, embora fossem também incorpóreos.
Pendurada na parede do gabinete brilhava uma placa. Era um prêmio recebido por Emily, três anos antes do próprio tempo de Barney, por peças de cerâmica que ela inscrevera numa exposição. Ali estava. Ele ainda a conservava.
— Eu quero ser aquela placa — resolveu Barney.
A placa era feita de madeira de lei, provavelmente de mogno, e bronze. Duraria muito tempo e, além disso, sabia que seu futuro ser nunca a abandonaria. Dirigiu-se para a placa, perguntando-se como deixaria de ser homem e se tornaria um objeto de bronze e madeira, pendurado numa parede de escritório.
— Quer minha ajuda, Mayerson? — perguntou Palmer Eldritch.
— Quero — respondeu.
Alguma coisa levantou-o no ar. Ergueu os braços para firmar-se e logo em seguida estava mergulhando, descendo por um túnel interminável que se afunilava — sentiu que ele se apertava em torno de si e teve certeza de que julgara mal. Palmer Eldritch, uma vez mais, imaginara anéis circulando em volta dele, demonstrava seu poder sobre todos os que usavam Mascar-Z. Eldritch fizera alguma coisa e não podia nem saber o que fora, mas, de qualquer modo, não era o que ele dissera, não o que prometera.
— Diabos o levem, Eldritch — disse, mas não ouviu sua voz, nada ouviu, continuou a descer cada vez mais, imponderável, nem mesmo mais um fantasma, a gravidade deixara de afetá-lo, de modo que aquilo desaparecera, também.
Deixe-me alguma coisa, Palmer, pensou. Por favor. Uma oração, compreendeu, que já fora recusada. Palmer Eldritch agira há muito tempo... era tarde demais, sempre fora. Neste caso, continuarei com a ação judicial, disse a si mesmo. Descobrirei uma maneira de voltar à Marte, tomarei a toxina, passarei o resto da vida nos tribunais interplanetários lutando contra você... e vencendo. Não por Leo ou pela P.P. Layouts, mas por mim.
Ouviu, então, uma risada. Era a gargalhada de Palmer Eldritch, mas ela emergia de...
De si mesmo.
Olhando para as próprias mãos, viu a esquerda, rosada, branca, feita de carne, coberta de pele, com pêlos minúsculos, quase invisíveis, e depois a direita, brilhante, faiscante, impecável em sua perfeição mecânica, mão infinitamente superior à original, há muito tempo perdida.
Nesse momento soube o que fora feito com ele. Um grande traslado — de seu ponto de vista, pelo menos — fora realizado e, possivelmente, tudo até aquele momento se desenvolvera com esse fim em vista.
Será a mim, compreendeu, que Leo Bulero matará. O monumento será a epítome de minha vida.
Agora eu sou Palmer Eldritch.
Neste caso, pensou após algum tempo, enquanto o ambiente em volta parecia solidificar-se e tornar-se claro, eu gostaria de saber como ele está indo com Emily.
Tenho esperança de que muito mal.

Doze
COM imensos braços arrastando-se, estendeu-se do sistema de Próxima Centauri até a própria Terra, e não era humano. Este não era o homem que retornava. E possuía grande poder. Podia superar a morte.
Mas não se sentia feliz. E pela simples razão de que estava sozinho. De modo que, imediatamente, tentou compensar esse fato: dera-se a grande trabalho a fim de atrair outros para a rota que seguira.
Um deles era Barney Mayerson.
— Mayerson — disse em tom comum de conversa — , que diabo você tem a perder? Pense bem. Da maneira como estão as coisas, você está liquidado: não há nenhuma mulher que você ame, e há um passado que lamenta. Compreenda, você tomou um caminho decisivamente errado em sua vida e ninguém obrigou-o a fazer isso. E o caminho não pode ser refeito. Mesmo que o futuro dure um milhão de anos, ele não pode lhe devolver o que você perdeu por, digamos assim, obra de sua própria mão. Entendeu meu raciocínio?
Nenhuma resposta.
— E você esquece uma coisa — continuou ele, após um momento de espera. — Ela involuiu sob efeito daquela horrível terapia de evolução que aquele médico alemão tipo ex-nazista aplica naquelas clínicas. Claro, ela — na realidade, o marido dela — foi bastante clarividente para suspender o tratamento logo, e ainda pode fazer vasos que vendem. Não involuiu tanto assim. Mas... você não gostaria dela. Você sabe, ela seria simplesmente um pouco mais curta de idéias, um pouco mais tola. Não seria como no passado, mesmo que a conseguisse de volta. Seria diferente.
Mais uma vez esperou. Desta vez ouviu resposta:
— Muito bem!
— Aonde é que você gostaria de ir? — continuou ele. — A Marte? Aposto que não. Muito bem, então de volta à Terra.
Barney Mayerson, não ele mesmo, respondeu:
— Não. Saí de lá voluntariamente. Eu estava acabado. O fim chegara.
— Muito bem. Para a Terra, não. Deixe-me ver. Hummmm. — Pensou um pouco. — Para Prox — disse. — Você nunca viu o sistema de Prox nem os proximianos. Eu sou uma ponte, você sabe. Entre os dois sistemas. Através de mim, eles podem vir para cá, para o sistema solar, em qualquer momento, se eu deixar. Mas não deixei. Agora eles estão ansiosos. — Soltou uma risadinha. — Estão praticamente fazendo fila. Como crianças nas matinês de cinema nas tardes de sábado.
— Transforme-me numa pedra.
— Por quê?
— Para que eu não possa sentir — respondeu Barney. — Não há mais nada para mim, em parte alguma.
— Você não quer ser nem mesmo trasladado e transformado num organismo homogêneo comigo?
Nenhuma resposta.
— Você pode compartilhar de minhas ambições. Tenho muitas, grandes... elas fazem com que Leo pareça lixo. — Claro, pensou, Leo vai me matar, e não vai demorar muito. Pelo menos, do modo como o tempo é calculado fora do traslado. — Vou contar-lhe uma delas. Uma pequenina. Talvez o anime.
— Duvido — disse Barney.
— Vou transformar-me em planeta. Barney riu.
— Você acha isso engraçado? — Ele ficou furioso.
— Eu acho que você continua louco.
— Eu não expliquei ainda — retrucou ele, cheio de dignidade — exatamente o que tinha em mente quando disse aquilo. O que quero dizer é que vou ser todo mundo no planeta. Você sabe a que planeta estou-me referindo.
— A Terra.
— Diabo, não. A Marte.
— Por que Marte?
— Ele é... — procurou as palavras — novo, não desenvolvido ainda, cheio de potencial. Vou ser todos os colonos, à medida que chegam e começam a residir nele. Orientarei a civilização deles, eu serei a civilização deles! Nenhuma resposta.
— Ora, vamos. Diga alguma coisa. Barney disse:
— Por quê, se você pode ser tanta coisa, inclusive um planeta inteiro, eu não posso ser nem aquela placa na parede de meu escritório na P.P. Layouts?
— Hummmm — disse ele, desconcertado. — Muito bem, muito bem. Você pode ser aquela placa, que diabo me importa isso? Seja o que quiser... Você tomou a droga, tem o direito de ser trasladado para o que o agradar. Não é real, claro. Essa é a verdade. Estou-lhe contando o segredo mais bem guardado de todos: é uma alucinação. O que a faz parecer real é que certos aspectos proféticos entram na experiência, exatamente como nos sonhos. Entrei e saí de um milhão deles, desses chamados mundos de "trasladação". Vi todos eles. E sabe o que é que eles são? Nada. Como um ratinho branco cativo, fornecendo sem cessar impulsos elétricos a áreas específicas de seu cérebro... Repugnante.
— Entendo — disse Barney Mayerson.
— Quer terminar num deles, sabendo disso? Após algum tempo, Barney respondeu:
— Claro.
— Muito bem! Eu o transformarei numa pedra e o colocarei numa praia. Você pode ficar ali e escutar as ondas por uns dois milhões de anos. Isso deve satisfazê-lo. — Seu palhaço estúpido, pensou furioso. Uma pedra! Deus!
— Fui amolecido, ou coisa parecida? — perguntou Barney em seguida. Na sua voz, pela primeira vez, surgiam fortes nuanças de dúvida. — Era isso o que os proximianos queriam? Foi por isso que o enviaram?
— Eu não fui enviado. Apareci aqui por conta própria. É melhor do que viver no espaço morto, entre estrelas quentes. — Soltou uma risadinha. — Claro que você é mole... e quer ser uma pedra. Escute aqui, Mayerson, ser pedra não é o que você realmente quer. O que você quer é a morte.
— Morte?
— Você quer dizer que não sabia? — perguntou, incrédulo. — Ora, vamos!
— Não, eu não sabia.
— E muito simples, Mayerson. Eu lhe darei um mundo de traslado no qual você é um cadáver apodrecendo de um cão atropelado, caído numa vala... Pense nisso. Que droga de alívio não será. Você vai ser eu, e Leo Bulero vai matar você. Esse é o cão morto, Mayerson, o cadáver na vala. — E eu continuarei a viver, disse ele a si mesmo. Essa é minha dádiva a você, e lembre-se: em alemão, dádiva significa veneno. Deixarei você morrer em meu lugar dentro de alguns meses e aquele monumento em Sigma 14-B será construído, mas eu continuarei, em seu corpo vivo. Quando você voltar de Marte para trabalhar na P.P. Layouts novamente, você será eu. E, desta maneira, evito meu destino.
Era tão simples.
— Muito bem, Mayerson — concluiu ele, cansado do colóquio. — Para cima e em cima deles, como dizem. Considere-se alijado. Nós não somos mais um único organismo. Temos, novamente, destinos diferentes, separados, e foi assim que você quis. Você está numa nave de Conner Freeman, deixando Vênus, e eu estou no seu alojamento em Marte. Tenho lá em cima uma florescente horta e posso meter com Anne Hawthorne em qualquer ocasião que quiser... E uma boa vida, no que me interessa. Espero que goste igualmente da sua.
E naquele instante ele emergiu.
Encontrava-se na cozinha de seu compartimento no alojamento, fritando uma panela inteira de cogumelos locais... O ar cheirava a manteiga e temperos e, na sala de estar, do toca-fitas portátil subia uma sinfonia de Haydn. Tranqüilo, pensou, cheio de prazer. Exatamente o que eu quero, um pouco de paz e tranqüilidade. Afinal de contas, eu estava acostumado a isso, lá no espaço intersistemas. Bocejou, espreguiçou-se satisfeito e disse:
— Consegui.
Sentada na sala de estar, lendo um jornal domiciliar tirado do serviço noticioso irradiado por um dos satélites da ONU, Anne Hawthorne ergueu a vista e perguntou:
— Conseguiu o quê, Barney?
— Coloquei exatamente a quantidade certa de tempero nisto aqui — respondeu, ainda exultante. Eu sou Palmer Eldritch e estou aqui, não lá, sobreviverei ao ataque de Leo e sei como desfrutar, usar, esta vida aqui, como Barney não sabia ou não queria.
Vejamos o que ele prefere quando a nave de ataque de Leo reduzir sua nave mercante a partículas. E quando ele conhecer os últimos momentos de uma vida amargamente lamentada.

SOB o FULGOR da luz do teto, Barney Mayerson pestanejou. Após um segundo, compreendeu que se encontrava numa nave. O cômodo parecia comum, uma combinação de quarto e sala de estar, mas reconheceu o que era pelo fato de a mobília estar soldada ao chão. E a gravidade estava toda errada. Artificialmente gerada, não conseguia reproduzir a da Terra.
E havia uma paisagem lá fora. Limitada, não maior, na verdade, que um alvéolo de casa de abelha. Mas, ainda assim, o grosso plástico revelava o vazio do outro lado. Aproximou-se para olhar. O Sol, ofuscante, enchia uma parte do panorama. Pensativo, estendeu a mão e acionou o filtro preto. Ao fazer isso, notou a mão. Sua mão artificial, metálica, superiormente eficiente.
Imediatamente, deixou o camarote e desceu o corredor até chegar à ponte de comando fechada. Bateu nela com os nós do dedo de aço e após um intervalo abriu-se a porta pesadamente reforçada do tabique.
— Sim, senhor Eldritch. — O piloto, jovem, louro, inclinou respeitoso a cabeça.
— Envie uma mensagem — disse ele.
O piloto pegou uma caneta e colocou-a sobre o bloco de notas montado na borda do painel de instrumentos.
— Dirigida a quem, senhor?
— Ao senhor Leo Bulero.
— A Leo... Bulero. — O piloto escrevia rapidamente. — Isto é para ser transmitido à Terra, senhor? Se assim...
— Não. Leo encontra-se próximo a nós, em sua própria nave. Diga-lhe... — Pensou rapidamente.
— Quer falar com ele, senhor?
— Não quero que ele me mate — respondeu. — É isso o que estou querendo dizer. E mate você, juntamente comigo. E todos os que estiverem neste transporte lento, neste alvo idiotamente grande.
Mas é inútil, compreendeu. Alguém da organização de Félix Blau, cuidadosamente plantado em Vênus, viu-me a bordo desta nave. Leo sabe que estou aqui e isso significa o fim.
— O senhor quer dizer que a concorrência comercial é tão dura assim? — perguntou o piloto, tomado de surpresa. Ficou lívido.
Zoé Eldritch, sua filha, usando dirndl e chinelas de pele, apareceu.
— O que é?
— Leo está por perto — disse ele. — Numa nave armada, com permissão da ONU. Fomos atraídos para uma armadilha. Nunca devíamos ter ido a Vênus. Hepburn-Gilbert esteve metido nisto. — Ao piloto, disse: — Simplesmente, continue a tentar entrar em contato com ele. Vou voltar ao meu camarote. — Não há nada que eu possa fazer aqui, disse a si mesmo, e fez menção de sair.
— Diabo — disse o piloto — fale o senhor com ele. É o senhor que ele quer pegar. — Deslizou para fora da poltrona, deixando-a propositadamente vaga.
Suspirando, Barney Mayerson sentou-se, ligou o transmissor da nave, sintonizou a freqüência de emergência e disse ao microfone:
— Leo, seu calhorda, você me pegou. Conseguiu atrair-me para aqui, onde pode acabar comigo. Você e aquela sua maldita frota, já organizada e operando, antes que eu voltasse de Prox... você teve a vantagem inicial. — Nesse momento, sentia-se mais zangado do que assustado. — Não temos coisa alguma nesta nave. Absolutamente nada para nos proteger... Você vai destruir um alvo desarmado. Esta é uma nave de carga.
Calou-se, tentando pensar no que dizer a mais. Dizer, pensou, que eu sou Barney Mayerson e que Eldritch nunca será capturado e morto porque ele se trasladará para sempre de vida em vida? E que, na realidade, você está matando alguém que conhece e ama?
— Diga alguma coisa — pediu Zoé aflita.
— Leo — disse ele no microfone — deixe-me voltar a Prox. Por favor. — Esperou, escutando a estática no alto-falante do receptor. — Muito bem — disse em seguida — , retiro o que disse. Jamais deixarei o sistema solar e você jamais poderá me matar, mesmo com a ajuda de Hepburn-Gilbert, ou de quem quer que seja na ONU com quem você está aliado. — Virou-se para Zoé: — Que tal achou isso? Gostou? — Deixou cair com um ruído seco o microfone. — Estou acabado.
O primeiro raio de energia laser quase cortou a nave ao meio.
Caído no chão da cabine de comando, Barney Mayerson escutava o barulho das bombas de emergência de fornecimento de ar, ganhando uma vida arquejante e aguda. Consegui o que queria, compreendeu. Ou pelo menos o que Palmer disse que eu queria. Estou recebendo a morte.
Mais além de sua nave, o elegante caça de Leo Bulero, modelo da ONU, manobrou para disparar o segundo raio fulminante. Pelo visor do piloto, viu o relâmpago do escape da nave. Ela estava realmente muito próxima.
Caído ali, quis morrer.
Naquele momento, Leo Bulero cruzou o cômodo central de seu compartimento, vindo em sua direção.
Interessada, Anne Hawthorne levantou-se da cadeira e disse:
— Então, o senhor é Leo Bulero. Há certo número de perguntas, todas elas pertinentes a seu produto, a Can-D...
— Eu não produzo Can-D — retrucou Leo. — Desminto enfaticamente esse boato. Nenhuma de minhas empresas comerciais é, de forma alguma, ilegal. Escute aqui, Barney, você consumiu ou não aquele... — baixou a voz e, curvando-se sobre Barney Mayerson, disse asperamente: — ...você sabe.
— Vou deixar vocês a sós — disse Anne, sensível à situação.
— Não — grunhiu Leo. Virou-se para Félix Blau, que inclinou a cabeça. — Sabemos que você é uma das agentes de Blau — disse-lhe Leo. Mais uma vez, provocou Barney Mayerson, irritado: — Eu não acho que ele a tenha tomado — disse, meio para si mesmo. — Vou passar uma revista nele. — Começou a mexer no bolso do casaco de Barney e em seguida na camisa, por dentro. — Aqui está. — Puxou o tubo que continha a toxina que alterava o metabolismo cerebral. Desatarraxando a tampa, olhou para dentro. — Nem tocou — disse, profundamente revoltado. — De modo que, naturalmente, Faine não ouviu notícia alguma dele. Ele recuou.
— Eu não recuei — protestou Barney. Estive muito longe, pensou. Será que você não pode ver isso? — Mascar-Z — disse. — Muito longe.
— Você esteve inconsciente por cerca de dois minutos — disse desdenhoso Leo. — Chegamos aqui exatamente no momento em que você se fechou. Um cara — Norm qualquer coisa — deixou-nos entrar com sua chave-mestra. Ele é o encarregado deste alojamento, acho.
— Mas lembre-se — disse Anne — que a experiência subjetiva com Mascar-Z não está ligada à nossa taxa temporal. Para ele, podem ter sido horas ou mesmo dias. — Olhou com pena para Barney.
— Certo?
— Eu morri — disse Barney. Sentou-se, sentindo-se mal. — Você me matou.
Caiu um grande e embaraçoso silêncio.
— Você quer dizer, eu? — perguntou finalmente Félix Blau.
— Não — respondeu Barney. Não importava. Pelo menos, não até a próxima vez em que tomasse a droga. Logo que isso acontecesse, o fim chegaria. Palmer Eldritch obteria sucesso, conseguiria sobreviver. E essa era a parte insuportável. Não a sua própria morte — que de qualquer modo acabaria acontecendo — mas o fato de Palmer Eldritch adquirir imortalidade. Morte, pensou, onde está tua vitória sobre essa... coisa?
— Eu me sinto insultado — queixou-se Félix Blau. — Quero dizer, que história é essa de alguém matá-lo, Mayerson? Diabo, nós o tiramos do coma em que se encontrava. Foi longa e difícil a viagem até aqui e, para o senhor Bulero — meu cliente — na minha opinião, arriscada. Esta é a região onde Eldritch opera. — Olhou apreensivo em volta. — Faça-o tomar aquela substância tóxica — disse ele a Leo — e vamos voltar para a Terra antes que aconteça alguma coisa horrível. Estou sentindo isso. — Dirigiu-se para a porta do compartimento.
— Você a tomará, Barney? — perguntou Leo.
— Não.
— Por que não? — Cansaço. Mesmo paciência.
— A vida significa muito para mim. — Resolvi parar com minha expiação, pensou. Finalmente.
— O que foi que aconteceu enquanto você era trasladado? Levantou-se. Mal conseguiu fazer isso.
— Ele não vai dizer — opinou Félix Blau, da porta.
— Barney, isto foi tudo que conseguimos preparar — disse Leo. — Eu o tirarei de Marte, você sabe disso. E a epilepsia do tipo Q não é o fim da...
— Você está perdendo tempo — disse Félix e desapareceu no corredor. Mas antes dirigiu um último olhar venenoso a Barney e disse: — Que erro você cometeu, depositando todas as suas esperanças nesse cara.
— Ele tem razão, Leo — confirmou Barney.
— Você nunca sairá de Marte — ameaçou Leo. — Nunca arranjarei sua volta para a Terra. Não importa o que aconteça aqui de agora em diante.
— Eu sei.
— Mas não se importa. Vai passar o resto da vida tomando aquela droga. — Leo olhou-o zangado, perplexo.
— Nunca mais — prometeu Barney.
— Então, você vai fazer o quê?
— Vou morar aqui — disse Barney. — Como colono. Trabalharei em minha horta lá em cima e em tudo mais que eles fizerem. Construirei sistemas de irrigação e coisas assim. — Sentia-se cansado e a náusea não passara. — Sinto muito — concluiu.
— Eu também — queixou-se Leo. — E não compreendo isso. Lançou um olhar a Anne Hawthorne, não viu resposta nela, encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta. Ali, fez menção de dizer alguma coisa, mas desistiu. Foi embora em companhia de Félix Blau. Barney escutou-lhe os passos até a boca do alojamento, mas, depois, o som morreu e fez-se silêncio. Foi até a pia e tomou um copo de água.
Depois de algum tempo, Anne disse:
— Eu compreendo.
— Compreende? — A água tinha gosto bom. Lavou os últimos traços da Mascar-Z.
— Parte de você tornou-se Palmer Eldritch — disse ela. — E parte dele tornou-se você. Nenhum dos dois pode jamais separar-se inteiramente outra vez. Vocês serão sempre...
— Você está louca — protestou ele, encostando-se exausto na pia para se sustentar. As pernas continuavam fracas demais.
— Eldritch conseguiu o que queria de você — continuou Anne.
— Não — negou ele. — Porque voltei cedo demais. Teria que ficar lá por mais cinco ou dez minutos. Quando Leo disparar seu segundo tiro, será Palmer Eldritch que estará naquela nave, não eu.
E é esse motivo por que não há necessidade de que eu desequilibre meu metabolismo cerebral num plano precipitado, maluco, saído do desespero, disse a si mesmo. Ele morrerá logo... ou melhor, a coisa morrerá.
— Entendo — disse Anne. — E você tem certeza de que esse vislumbre do futuro que teve durante o traslado...
— É válido. — Isto porque não dependia do que estivera à sua disposição durante a experiência com a droga.
Além do mais, possuía sua própria capacidade de precognição.
— E Palmer Eldritch sabe também que é válido — prosseguiu. — Ele fará, está fazendo todo o possível para sair dessa situação. Mas não sairá. Não pode.
Ou pelo menos, compreendeu, é provável que não possa. Mas nisto reside a essência do futuro: possibilidades entrelaçadas. Há muito tempo aceitava esse fato, aprendera a lidar com ele. Intuitivamente, sabia que linha temporal escolher. Graças a isso, mantivera o emprego na empresa de Leo.
— Mas, por causa disso, Leo não vai exercer a influência dele em seu favor — lembrou Anne. — Ele não vai, realmente, levá-lo de volta para a Terra. Ele estava falando sério. Será que você não compreende a gravidade disso? Tive certeza pela expressão do rosto dele. Enquanto viver, ele nunca...
— A Terra — disse Barney — eu já tive. — Ele também falara sério no que dissera, nas antevisões de sua própria vida ali em Marte.
Se o planeta era suficientemente bom para Palmer Eldritch, era bom o bastante para ele. Isto porque Palmer Eldritch vivera muitas vidas. Houvera uma vasta, segura, sabedoria contida na substância do homem, ou da criatura, o que quer que fosse. Sua fusão com Eldritch durante o traslado lhe deixara uma marca, um ferrete de perpetuidade, uma forma de percepção absoluta.. E perguntou a si mesmo se Eldritch, em troca, obtivera alguma coisa dele. Dispunha eu de alguma coisa que a ele valesse a pena saber?, perguntou-se. Introvisões? Estados de espírito, recordações, valores?
Boa pergunta. A resposta, concluiu, era não. Nosso inimigo, alguma coisa reconhecidamente horrenda e alienígena que penetrou num membro de nossa raça como se fosse uma doença durante a longa viagem entre Terra e Prox... Não obstante, essa coisa sabia muito mais do que eu a respeito do significado de nossas vidas finitas, via-a em perspectiva, produto de séculos de inação vazia enquanto vagava ao léu e esperava que passasse algum tipo de forma de vida que pudesse agarrar e nela se transformar... talvez seja essa a fonte de seu conhecimento, não de experiência, mas de infindável reflexão solitária. E, em comparação, eu nada sabia... e nada fizera.
Norm e Fran Schein apareceram à porta do apartamento.
— Ei, Mayerson, como foi a coisa? O que foi que você achou da Mascar-Z na segunda experiência? — Entraram e aguardaram ansiosos sua resposta.
— Nunca terá sucesso — disse Barney.
— Essa não foi a minha reação. — Norm estava desapontado. — Eu gostei, e muito mais do que de Can-D. Exceto... — hesitou, franziu as sobrancelhas e, expressão preocupada, lançou um olhar à esposa. — Mas havia uma espécie de presença horripilante no lugar onde eu estava. Desfigurava de certa maneira as coisas. Naturalmente, eu voltei...
Fran interrompeu-o:
— O senhor Mayerson parece cansado. Você pode dar a ele mais tarde o resto dos detalhes.
Olhando-o curioso, Norm Schein disse:
— Você é um tipo esquisito, Barney. Saiu da experiência na primeira vez, tomou a porção dessa moça aqui, desta senhorita Hawthorne, correu e trancou-se em seu compartimento para poder tomar a droga, e agora diz... — Encolheu displicentemente os ombros. — Bem, talvez você apenas tenha tomado demais, de uma vez só. Você não foi moderado, homem. Quanto a mim, tenciono experimentá-la novamente. Com cuidado, claro. Não como você. — Tranqüilizando-se, disse em voz alta: — Estou falando sério. Gostei da coisa.
— Exceto — lembrou Barney — pela presença que esteve lá com você.
— Eu a senti, também — disse tranqüilamente Fran. — Não vou experimentá-la novamente. Eu... eu estou com medo daquilo. O que quer que seja. — Estremeceu e aproximou-se mais do marido. Automaticamente, por hábito antigo, ele enlaçou-a pela cintura.
— Não tenha medo da coisa — sossegou-a Barney. — Ela está simplesmente tentando viver, como todos nós.
— Mas ela era tão... — começou Fran.
— Uma coisa tão antiga como ela — explicou Barney — teria que nos parecer desagradável. Não temos concepção de idade daquela dimensão. Daquela enormidade.
— Você fala como se soubesse o que era — observou Norm. Eií sei, pensou Barney. Porque, como disse Anne, parte dela
está aqui, dentro de mim. E, até que morra dentro de alguns meses a partir de agora, reterá sua porção de mim incorporada à sua própria estrutura. Assim, quando Leo a matar, compreendeu subitamente, será um mau momento para mim. Eu gostaria de saber que sensação...
— Aquela coisa — continuou, dirigindo-se a todos eles, especialmente a Norm Schein e à esposa — tem um nome que vocês reconheceriam se eu lhes dissesse. Embora ela nunca chamasse a si mesma por tal nome. Fomos nós que lhe demos esse título. Com base em experiência, a distância, durante milhares de anos. Mais cedo ou mais tarde, porém, estávamos fadados a enfrentá-la. Sem a distância. Ou os anos.
Anne Hawthorne falou:
— Você quer dizer Deus.
Não lhe pareceu necessário responder com mais do que uma leve inclinação de cabeça.
— Contudo... mau? — murmurou Fran Schein.
— Um aspecto — explicou Barney. — Nossa experiência dela. Nada mais.
Ou será que já não fiz vocês compreenderem isso?, perguntou a si mesmo. Devo dizer-lhes como a coisa tentou ajudar-me, à sua própria maneira? Ainda assim... como ela estava agrilhoada, também, pelas forças do destino, que parecem transcender tudo o que vive, incluindo não só nós, mas ela também.
— Poxa... — disse Norm, os cantos de sua boca encurvaram-se para baixo num desapontamento quase choroso. Por um momento, ele pareceu um menininho que fora ludibriado.

Treze
MAIS tarde, com as pernas não mais fraquejando, levou Anne Hawthorne à superfície e mostrou-lhe sua horta iniciante.
— Sabe de uma coisa? — disse Anne. — É preciso coragem para faltar às pessoas.
— Você quer dizer, a Leo? — Sabia o que ela queria dizer. Não havia mais dúvida nesse instante sobre o que acabara de fazer a Leo, a Félix Blau, e a toda a P.P. Layouts e à organização de venda de Can-D. — Leo é um homem bem formado — observou. — Superará isso. Reconhecerá que terá que cuidar pessoalmente de Eldritch, e fará isso.
E, pensou, a ação judicial contra Eldritch não teria conseguido êxito. E o que me diz minha capacidade de precognitivo.
— Beterraba — disse Anne. Sentada no pára-choque do trator autônomo, examinava pacotes de sementes. — Odeio beterraba. De modo que, por favor, não plante nenhuma, mesmo as mutantes que são verdes, altas e finas e têm o gosto de maçaneta de porta plástica do ano passado.
— Você estava pensando em vir morar aqui? — perguntou ele.
— Não. — Disfarçadamente, examinou a caixa de controle homeostática do trator e pegou no isolamento puído, parcialmente queimado, de um dos cabos de força. — Mas, de vez em quando, espero vir jantar com seu grupo. Vocês são os vizinhos mais próximos que temos.
— Escute aqui — disse ele — , aquela ruína decadente onde você mora... — Interrompeu-se. Identificação, pensou. Já a estou adquirindo em termos desta habitação comunal subpadrão, que bem poderia levar cinqüenta anos de consertos constantes e detalhados feitos por especialistas. — Meu alojamento — disse ele — pode surrar o seu. E qualquer dia da semana.
— O que me diz do domingo? Pode fazer isso duas vezes, então.
— No domingo — retrucou ele — não é permitido. Nesse dia lemos as Escrituras.
— Não brinque a esse respeito — avisou-o tranqüilamente Anne.
— Eu não estava brincando. — E não estivera, de modo algum.
— O que você disse antes a respeito de Palmer Eldritch...
— Eu só queria lhe dizer uma coisa — continuou Barney. — Talvez duas, no máximo. Em primeiro lugar, que ele — você sabe a que me refiro — realmente existe, realmente está lá, embora não como pensamos e não como o experimentamos até agora... não como, talvez, jamais poderemos experimentar. Em segundo lugar... — hesitou.
— Diga.
— Ele não nos pode ajudar muito — esclareceu. — Um pouco, talvez. Mas ele está de mãos abertas, vazias. Ele compreende, quer ajudar. Tenta, mas... simplesmente não é tão simples assim. Não me pergunte por quê. Talvez ele mesmo não saiba. Talvez o fato deixe-o perplexo, também. Mesmo depois de todo o tempo que teve para remoer tudo isso.
E todo o tempo que terá depois, pensou, se conseguir escapar de Leo Bulero. Humano, um de nós, Leo. Será que Leo sabe o que está enfrentando? E se sabe, tentaria de qualquer maneira, continuaria querendo levar a cabo seus planos?
Leo faria isso. Um precog pode ver coisas que estão predestinadas
— A coisa que encontrou Eldritch e penetrou nele — sugeriu Anne — , aquilo que estamos enfrentando, é um ser superior a nós e, como você diz, não podemos julgá-lo ou entender o que ele faz ou quer, é algo misterioso e que transcende nosso entendimento. Mas sei que você está enganado, Barney. Alguma coisa que tem as mãos abertas e vazias não é Deus. É uma criatura moldada por algo mais alto do que ela, como nós fomos. Deus não foi feito e Ele não está perplexo.
— Eu senti em volta dele a presença de uma divindade — disse Barney. — Ela estava lá. — Especialmente naquele momento, pensou, em que Eldritch me empurrou, tentou obrigar-me a experimentar.
— Claro — concordou Anne. — Eu pensava que você compreendia isso. Ele está aqui, dentro de cada um de nós e, numa forma de vida mais alta, como aquela de que estivemos falando, Ele certamente seria ainda mais manifesto. Mas... vou lhe contar minha piada do gato. É muito curta e simples. Uma dona-de-casa está dando um jantar e tem um belo filé de 2 kg 500 g na bancada da cozinha, pronto para ser assado, enquanto ela conversa com os convidados na sala de estar... toma alguns drinques e etc. e cal. Depois, ela pede licença e vai para a cozinha assar o filé... e verifica que ele desapareceu. E lá no canto está o gato da família, lambendo tranqüilamente o focinho.
— O gato comeu o filé — disse Barney.
— Comeu? Os convidados são chamados. Discutem o caso. O filé desapareceu, todos os 2 kg 500 g, e lá está o gato, parecendo bem alimentado e satisfeito da vida. "Pesem o gato", diz alguém. O pessoal havia tomado umas e outras. A idéia pareceu boa. Assim, levaram o gato para o banheiro e pesaram-no na balança. A balança marcou exatamente 2 kg 500 g. Todos vêem a marca na balança e um convidado diz: "Muito bem, é isso aí. Aí está o filé." Estão convencidos de que sabem o que aconteceu. Têm prova empírica. Mas um deles tem uma dúvida e pergunta, perplexo: "Mas onde está o gato?"
— Eu já ouvi essa piada — disse Barney. — Mas de qualquer modo não vejo como se aplica ao caso.
— Essa piada contém a melhor destilação do problema da ontologia jamais feita. Se você pensar nela o suficiente...
— Droga — disse ele zangado — , são 2 kg 500 g de gato. E um absurdo... Não há filé se a balança mostra 2 kg 500 g.
— Lembre-se do vinho e da hóstia — sugeriu tranqüilamente Anne.
Ele olhou-a fixamente. A idéia, por um momento, pareceu transparecer.
— Sim — concordou ela. — O gato não era o bife. Mas... o gato poderia ser uma manifestação que o bife estava assumindo naquele momento. A palavra-chave parece ser é. Não nos diga, Barney, que o que quer que entrou em Palmer Eldritch é Deus, porque você não conhece tanto assim sobre Ele. Ninguém pode conhecer. Mas aquela entidade viva, procedente do espaço intersistemas pode, como nós, ser feito à Sua imagem. Uma maneira que Ele escolheu para mostrar-se a nós. Se o mapa não é o território, o vaso não é o oleiro. De modo que, Barney, não se expresse em ontologia, não diga é. — Sorriu-lhe, esperançosa, a fim de ver se ele compreendia.
— Algum dia — retrucou ele — quem sabe, adoraremos aquele monumento.
Não a façanha praticada por Leo Bulero, pensou, admirável como foi — como será, para ser mais exato — , ela não será nosso objeto. Não, todos nós, como cultura, faremos o que já estou tendendo a fazer: nós o revestiremos fracamente, lamentavelmente, com nossa concepção de poderes infinitos. E estaremos certos em um sentido porque esses poderes estarão lá. Mas, como diz Anne, quanto à sua natureza real...
— Estou vendo que você quer ficar sozinho com sua horta — disse Anne. — Acho que vou voltar para meu alojamento. Boa sorte. E, Barney... — Tomou-lhe a mão e segurou-a com força, com emoção. — Nunca rasteje. Deus, ou qualquer que seja o ser superior que encontremos... ele não quereria isso. E mesmo que ele o fizesse, você não deve fazer o mesmo. — Inclinou-se, beijou-o, e começou a afastar-se.
— Você acha que tenho razão? — gritou Barney às costas da moça que se afastava. — Há algum proveito em tentar começar uma horta aqui? Ou faremos também o que é o habitual...
— Não me pergunte. Não sou autoridade.
— Você só se preocupa com sua salvação espiritual — disse ele furioso.
— Eu nem mesmo me preocupo mais com isso — disse Anne. — Estou terrivelmente, horrivelmente confusa e tudo me perturba aqui. Escute. — Voltou para junto dele, com os olhos sombrios e anuviados, e nenhuma luz neles. — Quando você me agarrou para tomar aquela porção de Mascar-Z, sabe o que foi que eu vi? Quero dizer, o que vi concretamente, e não apenas acreditei ter visto.
— A mão artificial. E uma distorção na minha boca. E meus olhos...
— Isso mesmo — respondeu ela, tensa. — Os olhos mecânicos, em fresta. O que era que aquilo significava?
— Significava que você estava vendo a realidade absoluta. A essência, além da mera aparência. — Na sua terminologia, pensou, o que você viu é chamado de... estigma.
Durante algum tempo, ela fitou-o.
— É assim que você realmente é? — perguntou e, em seguida, recuou, com aversão manifesta no rosto. — Por que você não é o que parece ser? Neste momento, não é aquilo. Não entendo. — E acrescentou, trêmula: — Eu gostaria de não ter contado aquela piada do gato.
— Eu vi a mesma coisa em você, querida — confessou ele. — E naquele instante. Você lutou comigo com dedos que não eram absolutamente esses com os quais você nasceu. — E que tão facilmente poderiam voltar. A Presença habita em nós, potencial, se não concretamente.
— E uma maldição? — perguntou ela. — Quero dizer, temos a versão da maldição inicial de Deus. É tudo assim, novamente?
— Você devia ser a pessoa a saber. Você se lembra do que viu. Ao todo três estigmas — a mão artificial, morta, os olhos Jensen, a boca radicalmente mudada.
Símbolos de que a coisa habita aqui, pensou. Em nosso meio. Mas não solicitada. Não intencionalmente convocada. E... nós não temos sacramentos mediadores com os quais possamos nos proteger, não podemos compeli-la com nossos rituais cuidadosos, consagrados pelo tempo, inteligentes, penosamente elaborados, a confinar-se a elementos específicos, como pão e água, ou pão e vinho. Ela está em campo aberto, expandindo-se em todas as direções, olha em nossos olhos e através de nossos olhos.
— É um preço — concluiu Anne. — que temos que pagar. Por nosso desejo de passar pela experiência da droga com aquela Mascar-Z. Como no caso da maçã, no começo. — Falava num tom profundamente amargo.
— Isso mesmo — concordou ele — , mas acho que já o paguei. Ou por um triz quase o paguei, pensou ele. Essa coisa, que conhecemos apenas em sua forma terrena, queria que eu a substituísse no momento de sua destruição. Em vez de Deus morrer pelo homem, como aconteceu antes, enfrentamos — por um momento — um poder superior — o poder superior, pedindo-nos que perecêssemos por ele.
Será que isso o transforma no mal?, especulou. Acredito realmente no argumento que expus a Norm Schein? Bem, certamente o torna inferior ao que veio há 2.000 anos. Parece ser nada mais ou nada menos do que o desejo, como diz Anne, de um organismo criado do pó, de perpetuar-se. Todos nós o sentimos, todos gostaríamos de ver um bode ou um cordeiro cortado em pedaços e incinerado em nosso lugar. A oblação tem que ser feita. E não queremos ser eles. Na verdade, toda nossa vida é dedicada a esse princípio. E a dele, também.
— Adeus — disse Anne. — Vou deixá-lo sozinho. Pode sentar-se aí na cabine dessa escavadeira e escavar até cansar. Talvez quando eu o vir novamente, haja um sistema hidráulico completo instalado aqui. — Sorriu mais uma vez para ele, por um instante e afastou-se na direção de seu alojamento.
Depois de algum tempo, ele subiu os degraus para a cabine da escavadeira que estivera usando e deu partida ao mecanismo range-dor e saturado de areia. A máquina gemeu em triste protesto. Mais feliz ficaria ela, pensou, em permanecer adormecida. Isto, para a máquina, era a convocação ensurdecedora da última trombeta, e a escavadeira ainda não estava pronta.
Havia talvez aberto uma vala irregular de uns 800 m, ainda destituída de água,quando descobriu que era seguido por uma forma nativa de vida, alguma coisa marciana. Parou imediatamente a escavadeira e olhou no fulgor do frio sol marciano, procurando identificá-la.
A coisa parecia uma magra e faminta velha avó de quatro patas e compreendeu que aquilo era provavelmente a criatura assemelhada ao chacal contra a qual fora repetidamente avisado. De qualquer modo, fosse o que fosse, era óbvio que a criatura não se alimentava há dias. Fitava-o, faminta, ao mesmo tempo mantendo distância... mas, em seguida, projetados telepaticamente, os pensamentos da coisa alcançaram-no. Então, tinha razão. Era aquela coisa.
— Posso comê-lo? — perguntou a criatura. E arquejou, com a boca avidamente aberta.
— Cristo, não — disse Barney.
Atabalhoado, procurou na cabine alguma coisa que pudesse usar como arma. Suas mãos se fecharam em torno de uma pesada chave-inglesa, que mostrou ao predador marciano, deixando que falasse por ele. Havia uma grande mensagem na chave e na maneira como a empunhava.
— Desça dessa engenhoca — pensou o predador marciano, numa mistura de esperança e necessidade. — Não posso pegá-lo aí em cima. — Este último devia ter sido, claro, um pensamento privado, retido na câmara mental, mas por algum motivo fora projetado também. Aquela criatura não tinha finesse, — Vou esperar — resolveu ela. — No fim, ele vai ter que descer.
Barney deu a volta na escavadeira e tomou a direção do alojamento. Gemendo, a máquina partiu numa velocidade terrivelmente baixa, fazendo um barulho enorme. Parecia estar caindo aos pedaços a cada metro. Teve a intuição de que a máquina não ia conseguir. Talvez a criatura esteja certa, pensou. É possível que eu tenha que descer e enfrentá-la.
Poupado, pensou amargamente, pela forma de vida imensamente mais alta que entrou no corpo de Palmer Eldritch e que apareceu em nosso sistema, vinda do espaço sideral — para ser comido por essa besta nanica. O fim de um longo vôo, pensou. A chegada final que mesmo cinco minutos antes, não obstante meu talento de precognitivo, não previ. Talvez eu não quisesse... como o doutor Smile, se estivesse aqui, diria triunfalmente.
A escavadeira arquejou, corcoveou violentamente e em seguida, contraindo-se dolorosamente, enrodilhou-se, sua vida treme-luziu por um momento e ela parou, morreu.
Durante algum tempo, Barney ficou ali onde estava, em silêncio. Diretamente à sua frente, o velho chacal marciano comedor de carne observava-o, sem por um momento tirar os olhos dele.
— Muito bem — disse Barney. — Lá vou eu. — Saltou da cabine da escavadeira, esgrimindo a chave-inglesa.
A criatura correu para ele.
Quase em cima dele, a menos de 2 m de distância, ela soltou um guincho súbito, mudou de direção e passou por ele, sem tocá-lo. Ele girou sobre si mesmo e observou-a ir embora. "Impuro", pensou a criatura. Parou a uma distância segura e, medrosa, olhou-o, com a língua pendente.
— Você é uma coisa impura — informou-o desalentada a criatura.
Impuro, pensou Barney. Como? Por quê?
— Você simplesmente é — respondeu o predador. — Olhe para si mesmo. Não posso comê-lo. Ficaria doente. — Ficou onde estava, babando de desapontamento e... aversão. Ele a horripilara.
— Talvez todos nós sejamos impuros para você — disse Barney. — Todos nós da Terra, estranhos neste mundo. Desconhecidos.
— Apenas você — respondeu-lhe categoricamente a coisa. — Olhe para ... ugh!... seu braço direito, sua mão. Há alguma coisa insuportavelmente errada em você. Como é que consegue viver consigo mesmo? Não pode purificar-se de alguma maneira?
Barney não se importou em olhar para o braço e a mão. Isso era desnecessário.
Calmamente, com toda dignidade que conseguiu reunir, continuou a andar pela areia frouxa na direção do alojamento.
Naquela noite, quando se preparava para ir dormir no beliche apertado de seu compartimento, alguém bateu à porta fechada
— Ei, Mayerson, abra.
Vestindo um roupão, ele abriu a porta.
— Aquela nave de distribuição voltou — disse Norm Schein, agitado, segurando-o pela lapela do roupão. — Você sabe, aquela do pessoal da Mascar-Z. Tem ainda algumas peles? Se tem...
— Se quiserem falar comigo — respondeu Barney, soltando-se, — eles terão que vir até aqui embaixo. Diga isso a eles. — E fechou a porta.
Norm afastou-se, soltando palavrões em voz alta.
Barney sentou à mesa onde fazia as refeições, pegou na gaveta um maço — o último — de cigarros da Terra — acendeu um, e ficou fumando e pensando, ouvindo em cima e em volta do compartimento os ruídos de passos apressados dos companheiros de alojamento. Camundongos grandalhões, pensou, que sentiram o cheiro da isca.
A porta do compartimento foi aberta. Não ergueu a vista. Continuou a olhar para o tampo da mesa, o cinzeiro, os fósforos, o maço de Camel.
— Senhor Mayerson.
— Eu sei o que você vai dizer — respondeu Barney.
Entrando no compartimento, Palmer Eldritch fechou a porta, sentou-se em frente a Barney e disse:
— Correto, meu amigo. Deixei-o ir embora pouco antes da coisa acontecer, antes de Leo atirar pela segunda vez. Foi uma decisão maduramente pensada. E tive muito tempo para pensar no assunto. Um pouco mais de três séculos. Não vou lhe dizer por quê.
— Não quero saber por quê — retrucou Barney. Continuou a olhar para a mesa.
— Você não consegue olhar para mim? — perguntou Palmer Eldritch.
— Eu sou impuro — informou Barney.
— QUEM FOI QUE LHE DISSE ISSO?
— Um animal, lá fora no deserto. E nunca me vira antes. Soube disto apenas aproximando-se de mim. — quando se encontrava a uns 2 m de distância, pensou. O que é muito longe.
— Hummmm. Talvez os motivos do animal...
— Ele não tinha motivo algum. Na verdade, foi justamente o oposto... estava semimorto de fome e ansioso para me comer. De modo que o que ele disse deve ser verdade.
— Para a mente primitiva — ponderou Eldritch — o impuro e o sagrado se confundem um com o outro. Fundem-se meramente como tabu. O ritual para eles, o...
— Ah, diabo — disse Barney amargamente. — É verdade e você sabe disso. Estou vivo, não vou morrer naquela nave, mas fui profanado.
— Por mim?
— Dê seu próprio palpite.
Após uma pausa, Eldritch encolheu os ombros e disse:
— Muito bem. Fui expulso de um sistema solar — não vou identificá-lo porque para você isso não importaria — e me instalei ali onde aquele aventureiro louco, sedento de riquezas, de seu sistema, me encontrou. E parte daquilo passou para você. Mas não muito. Gradualmente, com o passar dos anos, você irá se recuperar. Diminuirá até desaparecer. Seus companheiros colonos não notarão porque a coisa tocou-os, também. Começou logo que eles participaram da mastigação do produto que lhe vendemos.
— Eu gostaria de saber — disse Barney — o que você estava tentando fazer quando ofereceu o Mascar-Z à nossa gente.
t Perpetuar-me — respondeu tranqüilamente a criatura à sua frente.
Barney ergueu a vista nesse momento.
— Uma forma de reprodução?
— Sim, da única maneira que posso. Sentindo uma tremenda aversão, Barney disse:
— Meu Deus, nós todos nos tornamos seus filhos.
— Não se aborreça com isso agora, senhor Mayerson — disse a coisa, e riu de uma maneira alegre, parecendo humana — Simplesmente, cuide de sua horta lá em cima, instale seu sistema de irrigação. Para ser franco, eu anseio pela morte. Vou ficar contente quando Leo Bulero fizer aquilo em que já está pensando... Ele começou a planejar minha morte, agora que você se recusou a tomar a toxina que altera o metabolismo cerebral. De qualquer modo, desejo-lhe sorte aqui em Marte. Eu mesmo teria apreciado este planeta, mas as coisas não deram certo, e é assim. — Eldritch levantou-se em seguida.
— Você podia reverter — lembrou Barney. — Reassumir a forma que tinha quando Palmer encontrou-o. Você não tem que estar lá, residindo nesse corpo, quando Leo atirar em sua nave.
— Podia? — O tom era zombeteiro. — Talvez alguma coisa pior esteja à minha espera, se eu deixar de aparecer por lá. Mas você não compreenderia isso. Você é uma entidade com um período de
vida relativamente curto, e num período curto de muito menos...—
Parou, pensando.
— Não me diga — pediu Barney. — Não quero saber. Quando ergueu a vista em seguida, Palmer Eldritch havia desaparecido.
Acendeu outro cigarro. Que confusão, pensou. E assim que agimos quando finalmente entramos em contato, depois de tanto tempo, com outra raça sensitiva na galáxia. E como ela se comporta perversamente como nós e, em alguns aspectos, muito pior do que nós. E não há como reparar a situação. Não há, no momento.
E Leo pensou que enfrentando Eldritch com aquele tubo de toxina nós tínhamos uma oportunidade. Irônico.
E aqui estou eu, sem ter sequer consumado o ato vil que seria apreciado pelos tribunais, mas física e basicamente impuro.
Talvez Anne possa fazer alguma coisa por mim, pensou de repente. Talvez haja métodos para restaurar a pessoa em sua condição inicial — vagamente lembrada, tal como era — antes que começasse a contaminação posterior e mais aguda. Tentou lembrar-se, mas era tão pouco o que sabia a respeito do Novo Cristianismo. De qualquer modo, valia a pena tentar, a doutrina sugeria que talvez pudesse haver esperança e ia precisar disso nos anos à frente.
Afinal de contas, a criatura residente no espaço sideral que assumira a forma de Palmer Eldritch tinha alguma relação com Deus. Se não era Deus, como ele mesmo pensara, pelo menos era uma parte da criação de Deus. De modo que parte da responsabilidade cabia a Ele. Achou que Ele era suficientemente maduro para compreender isso.
Mas conseguir que Ele reconhecesse isso poderia ser coisa muito diferente.
Não obstante, ainda valia a pena conversar com Anne Hawthorne. Ela poderia conhecer técnicas para conseguir até isso.
Mas, por algum motivo, duvidava. Porque tinha uma apavorante introvisão, simples, fácil de pensar e de dizer, que talvez se aplicasse a eles e àqueles em volta, a esta situação.
Havia salvação. Mas...
Não para todos.
Voltando à Terra da fracassada missão a Marte, Leo Bulero passou em revista interminavelmente a situação e conferenciou com seu colega, Félix Blau. Nesse momento, era óbvio para ambos o que tinham que fazer.
— Ele passa o tempo todo viajando entre um satélite-sede em volta de Vênus e os outros planetas, além de sua propriedade em Lu na — observou Félix, sumariando a situação. — E todos sabemos como é vulnerável uma nave no espaço. Mesmo um pequeno orifício pode... — E fez um gesto muito expressivo.
— Nós precisaríamos da cooperação da ONU — observou sombrio Leo. Isto porque tudo o que ele e sua organização tinham permissão de usar eram armas portáteis, nada que pudesse ser usado por uma nave contra outra.
— Eu tenho o que podem ser dados interessantes a esse respeito — disse Félix, mexendo em sua pasta de documentos. — Nossa gente na ONU chega até o gabinete de Hepburn-Gilbert, como você talvez saiba, ou não. Não podemos obrigá-lo a fazer alguma coisa, mas podemos pelo menos discuti-la. — Mostrou um documento. — Nosso Secretário-Geral está preocupado com o aparecimento invariável de Palmer Eldritch em todas as chamadas "reencarnações" que os usuários do Mascar-Z experimentam. Ele é bastante esperto para interpretar corretamente o que isso implica. De modo que, se isso continuar a acontecer, poderemos indubitavelmente obter mais cooperação dele, pelo menos numa base sub rosa. Por exemplo...
Leo interrompeu-o:
— Félix, quero lhe perguntar uma coisa. Há quanto tempo você tem um braço artificial?
Olhando para baixo, Félix grunhiu de surpresa. Virando-se para Leo Bulero em seguida, disse:
— E você também tem. E há alguma coisa diferente em seus dentes. Abra a boca para eu ver.
Sem responder, Leo levantou-se e foi até o sanitário de homens da nave a fim de mirar-se no espelho.
Não havia dúvida. Até os olhos, também. Resignado, voltou ao seu lugar ao lado de Félix. Nenhum dos dois pronunciou palavra durante algum tempo. Félix folheava mecanicamente os documentos... Oh, Deus, pensou Leo, literalmente de forma mecânica! Leo alternava entre observá-lo e olhar embotadamente pela vigia para a escuridão e as estrelas do espaço interplanetário.
— E mais ou menos como derrubar a gente desde logo, não?
— E isso mesmo — concordou asperamente Leo. — Quero dizer, ei, Félix... o que é que nós vamos fazer?
— Nós aceitamos a situação — respondeu Félix.
Ele estava olhando fixamente pelo corredor para as pessoas que ocupavam as demais poltronas. Leo olhou e também viu. A mesma deformidade da boca, a mesma mão direita brilhante, descarnada, uma segurando um jornal domiciliar, outra um livro, a terceira tam-borilando incessantemente. E assim interminavelmente até o fim da coxia e o começo da cabine do piloto. Ali também, compreendeu. A coisa está em todos nós.
— Mas eu simplesmente não entendo bem o que isso significa — queixou-se impotente Leo. — Nós estamos...? Você sabe. Trasladados por aquela droga imunda e isto é... — Fez um gesto vago. — Estamos os dois loucos, é isso?
Félix Blau perguntou:
— Você tomou Mascar-Z?
— Não. Não desde aquela injeção intravenosa em Luna.
— Nem eu — garantiu Félix. — Nunca. De modo que a coisa se espalhou. Sem emprego da droga. Ele está em toda parte, ou melhor, a coisa está em toda parte. Mas isto é bom. Este fato indubitavelmente levará Hepburn-Gilbert a reconsiderar a posição da ONU. Ele terá que enfrentar exatamente o que isto implica. Acho que Palmer Eldritch cometeu um erro: ele foi longe demais.
— Talvez ele não pudesse evitar isso — disse Leo.
Talvez o maldito organismo fosse como um protoplasma: tinha que ingerir e crescer... instintivamente espalhava-se cada vez mais. Até que destruísse sua fonte, pensou Leo. E nós somos as pessoas que temos que fazer isso porque eu sou, pessoalmente, Homo sapiens evolvens, sou o ser humano do futuro, sentado aqui neste lugar. Se conseguirmos obter a ajuda da ONU.
Eu sou o Protetor de nossa raça, disse a si mesmo.
A si mesmo perguntou-se se essa praga já chegara à Terra. Uma civilização de Palmer Eldritches, grisalhos, encovados, encurvados e imensamente altos, todos com um braço artificial, dentes esquisitos e olhos mecânicos, em fresta. Não seria agradável. Ele, o Protetor, encolheu-se todo contemplando essa visão. E suponhamos que a coisa alcance nossa mente?, pensou. Não apenas a anatomia da coisa, mas a mentalidade também... o que aconteceria com nossos planos para matar a coisa?
Ei, aposto que isto ainda não é real, disse Leo a si mesmo. Sei que estou certo e que Félix não está. Estou ainda sob a influência daquela única dose. Nunca escapei da influência dela... esse é que é o caso. Pensando nisso, sentiu alívio, porque havia ainda uma Terra real, intocada. Só ele mesmo é que fora afetado. Não importava o quanto pareciam autênticos Félix a seu lado, a nave, a recordação de sua visita a Marte para falar com Barney Mayerson.
— Ei, Félix — disse, cutucando-o. — Você é uma criação de imaginação. Entendeu? Este é um mundo privado meu. Não posso provar isso, naturalmente, mas...
— Sinto — respondeu laconicamente Félix. — Você está enganado.
— Ora vamos! Eventualmente, vou acordar ou o que quer que seja que a pessoa faz finalmente quando aquela droga miserável deixa nosso sistema. Vou continuar a beber muito líquido, sabia? Para descarregar isso de minhas veias. — Fez um gesto. — Aeromoça. — Acenou para ela pedindo urgência. — Traga nossos drinques, agora. Bourbon e água para mim. — Olhou interrogativo para Félix.
— O mesmo — murmurou Félix. — Exceto que quero um pouco de gelo. Mas não muito, porque, quando o gelo derrete, o drinque não fica bom.
A aeromoça logo depois aproximou-se, apresentando a bandeja.
— O seu é com gelo, não? — perguntou a Félix.
Ela era loura e bonita, olhos verdes com a textura de pedras bem lapidadas. Quando ela se curvou para a frente, seus seios expressivos, esféricos, ficaram parcialmente expostos. Leo notou, e gostou. Contudo, a distorção da boca arruinou a impressão total e ele se sentiu decepcionado, ludibriado. E naquele momento, observou, os lindos olhos de longos cílios haviam desaparecido. Substituídos. Desviou a vista, desapontado e deprimido, até que ela se afastou. Ia ser mais difícil que tudo, compreendeu, olhar para mulheres. Ele, por exemplo, não esperava com prazer algum a primeira vista de Roni Fugate.
— Você viu? — perguntou Félix, tomando o drinque.
— Vi, e isso prova com que rapidez temos que agir — retrucou Leo. — Logo que pousarmos em Nova Iorque, vamos procurar aquele matreiro, ordinário, debilóide Hepburn-Gilbert.
— Para quê? — perguntou Félix.
Leo fitou-o e depois apontou para os dedos brilhantes, artificiais, de Félix, em volta do copo.
— Eu gosto bastante deles agora — disse pensativo Félix.
Foi isso o que pensei, disse Leo a si mesmo. Isso é exatamente o que eu estava esperando. Mas confio ainda que posso destruir a coisa, se não nesta semana, então na próxima. Se não neste mês, em alguma outra ocasião. Eu sei. Eu me conheço agora e sei o que posso fazer. Tudo depende de mim. E tudo bem. Vi o suficiente no futuro para jamais desistir, mesmo que eu seja o único que não sucumba, que mantenha vivo ainda o velho estilo de vida, o estilo de vida anterior a Palmer Eldritch. Isso nada mais é do que fé nos poderes implantados em mim desde o começo para que eu possa — no fim — enfrentá-lo e com eles derrotá-lo. De modo que, em certo sentido, não sou eu, mas alguma coisa em mim que aquela coisa Palmer Eldritch não pôde alcançar nem consumir, uma vez que não sou eu, não é minha para perder. Sinto-a crescer. Suportando as alterações externas, não essenciais, o braço, os olhos, os dentes — não é tocada por nenhum desses três, o mal, a tríade negativa da alienação, a realidade borrada e o desespero que Eldritch trouxe consigo de Próxima. Ou melhor, do espaço intermediário.
Nós vivemos há milhares de anos sob uma velha praga que está parcialmente superada, que destruiu nossa santidade e foi lançada por uma fonte mais alta do que Eldritch. E se ela não pôde obliterar completamente nosso espírito, como poderá esta? Irá ela talvez acabar o trabalho? Se a coisa pensa assim — se Palmer Eldritch acredita que foi para isso que chegou aqui — está enganada, porque aquele poder em mim que foi implantado sem meu conhecimento — ele não foi nem tocado pela antiga praga inicial. O que é que vocês acham disso?
Minha mente evoluída me diz todas essas coisas, pensou. Aquelas sessões de Terapia E não foram em vão... Num sentido, posso não ter vivido tanto quanto Eldritch, mas noutro vivi. Vivi cem mil anos, o de minha evolução acelerada, e com ela tornei-me muito sábio. Valeu a pena o dinheiro que gastei. Coisa alguma poderia ser mais clara para mim agora. E lá nas estações de veraneio da Antártida eu me reunirei a outros como eu, formaremos uma guilda de Protetores. Salvando o resto.
— Ei, Blau — disse, cutucando com o cotovelo não-artificial a semicoisa a seu lado. — Eu sou seu descendente. Eldritch apareceu vindo de outro espaço, mas eu vim de outro tempo. Entendeu?
— Hummmm — murmurou Félix Blau.
— Olhe para meu domo craniano duplo, para minha larga testa, sou um cabeça-de-bolha, certo? E esta casca. Ela não fica apenas por cima, cobre tudo. De modo que, no meu caso, a terapia realmente deu certo. Sendo assim, não desista ainda. Acredite em mim.
— Tudo bem, Leo.
— Fique por aí durante algum tempo. Vai haver ação. Posso olhar para você através de um par de olhos artificiais Jensen feitos de luxvid, mas ainda sou eu quem estou aqui dentro, certo?
— Certo — concordou Félix Blau. — Tudo o que você quiser, Leo.
— Leo? Por que é que você continua a me chamar de "Leo"? Espigando-se todo na cadeira, apoiando-se com ambas as mãos,
Félix Blau fitou-o, implorante.
— Pense, Leo. Pelo amor de Deus, pense.
— Oh, sim. — Sério, inclinou a cabeça. Sentiu-se repreendido. — Desculpe. Foi apenas um lapso temporário. Sei o que é que você está querendo dizer. Sei do que tem medo. Mas aquilo não significou .coisa alguma. — E acrescentou: — Vou continuar a pensar, como você disse. Não me esquecerei novamente. — Inclinou solene a cabeça, prometendo.
A nave continuava em alta velocidade, aproximando-se cada vez mais da Terra.

 

 

                                                                  Philip K. Dick

 

 

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