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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PÔR DO SOL NA ÁFRICA / Yvonne Whittal
PÔR DO SOL NA ÁFRICA / Yvonne Whittal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

"Em menos de um ano eu vou comprar sua fazenda."
As palavras de Byron Rockford provocaram e enfureceram Frances King. Desde a infância Frances havia sonhado em possuir uma fazenda, então, quando sua oferta por Thorndale foi aceita ela ficou em êxtase - mas Byron, o arrogante dono do South African game park, também queria Thorndale. Ele queria expandir seu parque e a localização da fazenda era ideal. Para a indignação de Frances ele não hesitou em demonstrar sua falta de fé nas habilidades dela...

 

 

CAPÍTULO I

- Meu Deus! Eu não acredito! Você... quer repetir... repetir isso, Thomas? Por favor, eu... eu mal posso acreditar!
A voz de Frances King ecoava pelo hall de pedras pretas e brancas da casa de seus pais. Sem acreditar no que ouvia, deixou-se cair na poltrona ao lado do telefone, não conseguindo mais conter a emoção.
Do outro lado da linha, Thomas Atherstone, impaciente, tentava compreender a reação:
- Frances! Alo! Ei, Frances! O que há com você? Está me ouvindo?
- Não, mas eu... Oh, Thomas! Estou tão feliz! Não consigo acreditar que tenha tido tanta sorte!
- É a pura verdade. Sua oferta pela fazenda Thorndale foi aceita. Quero me encontrar com você lá, hoje, às dez e meia, está bem? Precisamos examinar toda a papelada com muito cuidado...
Então era verdade! A oferta fora aceita, mas Frances ainda se beliscava, temendo que tudo não passasse de um sonho. Alegre a ponto de quase sair dançando pela casa, exclamou:
- Thomas Atherstone, eu te amo!
- Ei, não se esqueça de que sou um homem casado! Dez e meia, Frances, e não vá chegar atrasada!
- Serei pontual, prometo.
Desligou o telefone e colocou as mãos entre os joelhos, mal contendo a vontade de gritar para todo o mundo a sua recente conquista. Levou algum tempo até assimilar a novidade com perfeição como se
quisesse reservar apenas para si a emoção daquele momento, prolongá-la ao máximo antes de transmitir a notícia à madrasta. Foi à varanda. Eram nove e meia, o que lhe dava tempo de sobra para chegar a Thorndale
antes de Thomas. Satisfeita, correu para o jardim, com toda a leveza e exuberância de seu corpo esbelto, o cabelo batendo-lhe nos ombros, brilhante e preto como o ébano.
Olivia King interrompeu o trabalho com as flores do jardim e observou, surpresa, a súbita alegria da enteada. Estava agachada, plantando algumas mudas de gerânio, e usava um chapéu de palha para proteger-se
do sol que lhe ofuscava os olhos claros.
As duas tinham um ótimo relacionamento sob todos os aspectos. Dividiam uma afeição profunda há treze anos, desde o casamento de Olivia com o pai de Frances. Nem mesmo o nascimento de mais dois irmãos
abalara a harmonia de toda a família. Ao contrário, fizera com que se unissem ainda mais.
- Olivia, você nem imagina o que aconteceu! - Frances não conseguia conter a própria excitação, enquanto a madrasta retirava as luvas que colocara para volver a terra.
- Nossa, mas o que foi? Você parece tão agitada! - Olivia surpreendeu-se.
- Você nem pode imaginar como eu estou feliz!
- Acalme-se, menina! O que aconteceu?
- A minha oferta foi aceita! - Frances anunciou com alegria.
- Meu Deus! Que maravilha! - ela abraçou a enteada. Quer dizer então que tudo deu certo?
- Sim e agora preciso ir: combinei com Thomas que o encontraria às dez e meia na fazenda e ainda preciso me arrumar.
Animada, Frances deixou a varanda em direção ao quarto. Lá chegando, deteve-se diante do espelho, perfumou-se e prendeu os cabelos com uma fita da mesma cor da blusa que usava. Em seguida passou um
batom e, satisfeita com a aparência, voltou para a varanda.
Despediu-se de Olivia, dando-lhe um beijo no rosto.
- Espere-me para o almoço! Daí vou poder te contar todos os detalhes - pediu enquanto corria para a garagem onde guardava o jipe que lhes servia de condução.
Deliciando-se com a brisa que lhe batia no rosto, Frances pegou a estrada que ia de Louisville a Thorndale, alguns quilômetros ao norte, deixando para trás a fazenda de gado do pai em Mountain View.
Até que a rodovia se encontrava em boas condições, observou. Fora recentemente asfaltada, uma vez que o Parque Natural de Izilwane se tornara atração turística do lugar, graças a uma grande propaganda
realizada pelos moradores da região em torno da beleza de sua fauna e flora. Thorndale fazia divisa com Izilwane e, por isso, a prefeitura local incentivara e assumira as obras de recapeamento da estrada.
Frances não conseguia deixar de sorrir. Trabalhara muito para atingir aquele objetivo: estudara agronomia em Natal durante quatro anos e, em seguida, fizera estágio por mais dois anos numa fazenda
- tudo isso para adquirir a experiência necessária para abrir seu próprio negócio.
Perdera a mãe aos quatro anos e esta lhe deixara uma grande fortuna como herança, aplicada pelo pai com competência, mas só poderia lançar mão após completar a maioridade.
Agora, finalmente, poderia empregar o seu dinheiro no sonho que sempre tivera em mente: a compra de uma fazenda maravilhosa como Thorndale.
A propriedade pertencia aos Wilkins há séculos. O último fazendeiro, George Wilkins, falecera sem deixar herdeiros. Ao saber disso, Bernard King, pai de Frances, orientara a filha a respeito da venda
e sugerira uma quantia que julgava bastante respeitável para que pudesse entrar na disputa pela Thorndale.
Uma chance daquelas aparecia apenas uma vez na vida! Frances sempre acalentara a idéia de comprar uma fazenda em Louisville, para permanecer próxima à família. Mas as propriedades raramente eram colocadas
à venda, e quando isso acontecia, não faltavam compradores sequiosos e com muito dinheiro. O espólio de George Wilkins ficara sob os cuidados do advogado Thomas Atherstone. Quando Frances lhe entregara
a proposta, não recebera nenhuma garantia de que teria algum tipo de favoritismo. Um mês havia se passado desde então e ela já estava quase se convencendo de que perdera o negócio quando fora contatada
por aquele telefonema.
Entusiasmada e com pensamentos positivos, chegou à entrada da fazenda. Uma placa na cerca anunciava, com letras desbotadas pelo tempo: "Thorndale - propriedade de George Wilkins". Frances sentiu o
coração bater acelerado. Em breve seria o seu nome que constaria no letreiro.
De repente, porém, percebeu que havia uma outra placa na cerca, bem menor que a primeira. Aproximando-se, leu: "GROVE A. Philips". Aquele nome lhe parecia familiar... Mas claro! Anthony Philips! Haviam
estudado juntos durante três anos. Lembrava-se do sucesso que Tony fazia com as garotas por causa de sua beleza e de seu charme. Não era um aluno aplicado ou mesmo dos mais inteligentes, mas adquirira
grande popularidade porque fora capitão do time de futebol americano do colégio.
Contudo, Tony Philips desapareceu-lhe da memória quando divisou a casa de pedra bege por entre as árvores. Apesar de antiga, parecia uma construção bastante sólida.
Uma ampla varanda cercava toda a moradia e flamboiãs maravilhosos embelezavam o lugar com suas flores alaranjadas. Além disso, havia azaléias surpreendentemente bem cuidadas. Frances não esperava
tanto esmero por parte do velho Wilkins.
Thomas ainda não chegara. Frances estacionou o jipe sob a sombra dos jacarandás que margeavam o caminho e sorriu satisfeita por ter se antecipado ao advogado. Isso lhe daria alguns minutos para uma
caminhada de reconhecimento pelas redondezas. Saía do carro quando um senhor negro, vestido com um conjunto safári caqui, aproximou-se dela. Ele tirou com cerimônia o chapéu de palha, e cumprimentou-a
com um sorriso:
- Bom dia, senhorita.
- Bom dia. Como o senhor se chama?
- Sibho, senhorita.
- Ah, você deve ser zulu, não? O que faz aqui em Venda, Sibho?
- Meu povo se mudou para cá há muitos anos, junto com a família Wilkins. Trabalhei nesta fazenda a vida inteira.
O homem parecia ansioso, a julgar pelo modo como amassava e desamassava sem parar o chapéu.
- A senhorita sabe; é o único lar que tenho.
- Você é casado?
- Sou. Minha mulher se chama Gladys. Trabalhava para o Sr. Wilkins também, como cozinheira. Desculpe, mas a senhora não é a filha do Escorpião?
- Ah, você conhece meu pai?
- Todo o mundo conhece o Escorpião, É o homem que tem todo aquele gado e o grande pássaro branco que ruge no céu.
Frances riu com gosto. Esquecera-se de que os nativos da região ainda se referiam assim ao pequeno avião pertencente ao pai.
Thomas avançou pela porteira da fazenda com seu mercedes prateado, estacionando-o perto do jipe de Frances. O advogado, ligeiramente calvo, aparentava ter cerca de quarenta anos e parecia ser um homem
bastante objetivo e franco. Assim que desceu ao carro, cumprimentou-a com poucas palavras e a Sibho, com um gesto de cabeça.
Frances pediu ao advogado que lhe desse as chaves da casa para que os caseiros pudessem preparar um chá.
Fazendo o que Frances lhe pedira, o advogado a convidou para acompanhá-lo até os campos onde o gado se achava preso.
- Havia trezentas cabeças na última contagem. Hoje em dia deve ter umas trezentas e cinqüenta, mais ou menos.
Frances debruçou-se sobre a cerca de madeira. O sol forte fazia com que franzisse as sobrancelhas enquanto procurava seguir o movimento dos animais. Virou o rosto ao ouvir passos atrás de si. Era
Sibho que se aproximava.
- O gado está magro e parece com fome, Sibho. Acho que seria bom soltá-lo, não?
O empregado não esperou mais: abriu a porteira e em seguida ouviu-se o tropel dos animais em direção ao pasto. Frances e Thomas seguiram para inspecionar as demais instalações da fazenda.
Numa grande garagem encontraram um trator e um jipe com capota conversível, além de um caminhão para o transporte da ração para o gado. Os automóveis não estavam bem conservados, mas Thomas assegurou
a Frances que funcionavam perfeitamente. Existia, ainda, vaga para mais dois carros de passeio.
A seguir, Thomas abriu a maleta que segurava, e tirou um maço de papéis grampeados.
- Ali adiante fica o estábulo - disse. - Há dois potros e uma égua prenhe. E esta aqui é uma lista com todos os equipamentos e ferramentas que você precisará comprar. Vamos conferir?
- Oh, não! Pare com isso! Eu não vou desistir da fazenda se por acaso estiver faltando uma chave de fenda!
- Bem, então talvez seja melhor voltarmos para a casa - Thomas sugeriu.
Frances ficou maravilhada com a construção antiga de cômodos amplos e arejados. Logo após a entrada havia uma enorme sala e, no centro dela, uma mesa cercada de banquinhos de madeira que decerto poderia
ser vendida a bom preço como antiguidade. A sala contígua parecia uma espécie de depósito de velharias: inúmeros objetos de cozinha enferrujados, caixas repletas de roupas velhas, álbuns de família amarelados,
chapéus carcomidos pelo tempo e até aquecedores de água abandonados desde a chegada da eletricidade. Em alguns dos quartos, as cortinas achavam-se rasgadas, as paredes tinham a pintura descascada e os
vidros das janelas apresentavam trincaduras.
A casa permanecera trancada e com as cortinas cerradas desde o falecimento de George Wilkins. Em todos os móveis havia uma grossa camada de poeira, problema típico da região de Transvaal. A mesa da
sala de jantar, todavia, fora lustrada por Gladys momentos antes de servir o chá.
- Bom proveito - ela disse, retirando-se para deixá-los de novo a sós. Frances provou um gole de chá, estalando a língua de satisfação.
- Nossa! George Wilkins pode ter sido um solteirão inveterado, mas não se pode negar o bom gosto dele! Olha só que aparelho de chá mais lindo! - Frances contemplou a xícara de porcelana branca pintada
a mão.
- De fato ele era um homem refinado, embora muito apegado à terra. Já viu o pomar que plantou atrás da casa? Está repleto de mamoeiros, bananeiras, goiabeiras e laranjeiras. Perto dali construíram
uma bomba de água, que é usada não apenas para regar as árvores, mas todo o jardim. Mas você não precisa se preocupar com isso: Sibho cuidará de tudo sem problemas.
Sorveram o chá em silêncio. Depois, Thomas colocou a maleta sobre a mesa, abriu-a e tirou os documentos de transmissão de posse.
- Já trouxe toda a papelada que você precisa assinar. Por favor, leia tudo com bastante cuidado. Se tiver alguma dúvida, é só perguntar. Aliás, pode levá-la para o seu pai dar uma olhada, caso prefira...
- Não será necessário. Estou nesta empreitada sozinha.
Tamanha era sua felicidade que Frances mal se continha na cadeira. Tinha vontade de sair correndo gritando para o mundo inteiro ouvir que conquistara um sonho.
- Não tenho dúvida de que encontrará tudo em ordem, mas é melhor que analise e leia com cuidado - o advogado insistiu.
Frances tentou se interessar pelas folhas repletas de letrinhas miúdas. Em silêncio, procedeu à leitura. O texto estava perfeito; não se faziam necessárias maiores explicações.
- O que acontece depois que eu assinar? - perguntou.
- Espero você amanhã cedo no meu escritório com um cheque visado. A transferência legal vai demorar mais duas ou três semanas, mas você já poderá se considerar proprietária de Thorndale.
- E onde eu assino?
- Na linha pontilhada, por favor.
Frances assinou e viu um sorriso largo brotar no rosto de Thomas.
- Meus parabéns, Frances - cumprimentou-a com um aperto de mão caloroso.
- Quer dizer que Thorndale está vendida?
- Ainda não: há mais um documento que preciso lhe mostrar. Há um rifle e uma arma guardados num cofre aqui na casa. Necessito de mais uma assinatura sua para fazer a transferência legal para seu nome.
- Espero nunca precisar usá-los - Frances acrescentou, enquanto assinava.
Pouco depois, Thomas partiu. Frances aproveitou a chance para dar um passeio sozinha, observando com mais calma cada particularidade da propriedade que acabara de adquirir.
As demais construções tinham a mesma cor do alojamento principal e pareciam em boas condições. O revestimento do teto da casa fora trocado por um material que permitia uma ventilação melhor, já que
o calor da região era terrível.
Ela estava ansiosa para dar uma volta por toda a propriedade, mas preferiu esperar até que pudesse trazer o próprio cavalo da fazenda do pai, com o qual já estava acostumada.
Foi ao cercado e admirou os animais, achando-os muito bonitos. Depois deteve-se num dos muros com o olhar perdido no horizonte. Os traços do rosto de Frances eram delicados e atraíam a atenção da
maioria dos homens que lhe cruzavam o caminho. Destacavam-se o nariz fino e os lábios carnudos, além do queixo gracioso.
Ainda assim, Frances nunca se prendera a relacionamentos mais sérios. No momento, porém, estava diante de uma situação que lhe traria novas responsabilidades. Diversos planos fervilhavam em sua cabeça,
pois o que há um mês lhe parecera um sonho distante, agora se tornara realidade.
Pensou no pai que decerto demoraria para acostumar-se com a idéia de ter a filha fora de casa. Porém, já completara vinte e três anos e sentia-se capaz de cuidar da própria vida. Adorava o cheiro
do campo, o canto dos pássaros e seus pousos graciosos sobre os galhos das árvores. De repente notou um grupo de ébis que cruzavam o céu com sua habitual barulheira. Curioso, refletiu, pois sempre imaginara
que aquela espécie preferisse voar à noitinha.
Frances caminhou sem rumo definido sentindo-se feliz em imaginar o futuro que teria naquela fazenda. De súbito parou. Um automóvel vinha em sua direção a toda velocidade, levantando uma nuvem de poeira
que quase o encobria. Quem poderia visitar Thorndale àquela hora? Em instantes o jipe freou bruscamente, ao lado dela.
O motorista, um homem alto, vestia jaqueta de mangas curtas e calça caqui. Portava botas quase tão sujas quanto a poeira de seu automóvel. Tinha ombros largos e musculosos, as pernas bem torneadas
e muito másculas. Em silêncio, caminhou até ela com passos largos. O sol batia-lhe no cabelo castanho, realçando-lhe o bronzeado.
Frances pressentiu que ele devia ter cerca de trinta e seis anos, um caráter forte e uma personalidade marcante.
- Encontrei Thomas Atherstone na estrada há alguns minutos e ele me disse que a sua oferta por Thorndale foi aceita.
Frances arregalou os olhos, surpresa. Tentara cumprimentá-lo com civilidade, mas ele falava com maneiras tão pouco amistosas que ela se calou. Percebeu, na porta do jipe, a inscrição "Parque Natural
de Izilwane".
- O senhor deve ser Rockford, certo?
A prima Martha O'Brien descrevera-lhe o homem, mas esquecera de mencionar a falta de educação.
- Sou eu mesmo.
- Sou Frances King - ela insistiu em estender-lhe a mão.
- Eu sei.
O sujeito não fez nenhuma menção em aceitar o cumprimento, o que deixou Frances extremamente irritada.
- Pois eu gostaria de comprar esta fazenda. Frances custou a acreditar no que acabara de ouvir.
- Mas acabei de comprar a fazenda! Não tenho nenhuma intenção de vendê-la.
- Mas vai ter. Não acho que uma mulher possa ter sucesso cuidando deste lugar. Garanto que em menos de um ano estará implorando para se livrar disso tudo.
Frances não suportava mais tanta ousadia. Se o estranho queria guerra, que se armasse para a batalha!
- Não se iluda, Rockford! Thorndale não está à venda nem nunca estará. Assim, sugiro que retire sua oferta de compra e saia imediatamente da minha fazenda.
- De qualquer maneira, procure-me se mudar de idéia.
O homem afastou-se com rapidez, entrou no carro e partiu deixando uma grossa nuvem de poeira atrás de si. Frances o observou e, estupefata, viu quando seu pai, que se dirigia para encontrá-la, emparelhou
o automóvel com o de Rockford e trocou um aperto de mão com aquele homem grosseiro e desagradável.
Os dois gesticulavam em direção a Frances, como se conversassem a respeito dela. Depois disso, Rockford manobrou o jipe e arrancou em alta velocidade.
Bernard seguiu seu caminho e, em segundos, encontrou-se com a filha exibindo um sorriso maroto no rosto. Podia adivinhar pelo queixo empinado e pelo olhar fulminante de Frances o quanto ela estava
furiosa.
- Aquele é o sujeito mais petulante que já conheci na vida! Mal pus os pés na minha propriedade e ele vem até aqui, dando-se o direito de querer comprá-la! - Frances desabafou, irada. E isso não é
tudo papai! Ele ainda me disse que uma mulher jamais conseguiria administrar esta fazenda! Teve o atrevimento de me garantir que eu estaria louca para vender Thorndale daqui a um ano.
Ela estava tão irritada que sua respiração se alterara. As risadas com que o pai recebeu a história deixou-a ainda mais aborrecida. Por mais que pensasse, não se lembrava de nenhuma ocasião em que
tivesse se sentido mais ultrajada. Arrependia-se por não ter explodido com Rockford, pois naquele momento estava prestes a perder a paciência com o próprio pai.
- Não o leve tão a sério, filha! Ele queria comprar a fazenda; imagine como se sentiu ao saber que a oferta dele não foi aceita - Bernard King recomendou.
Parando um pouco para pensar, Frances começou a se recompor.
- Ah, por isso ele parecia tão zangado! Não sabia que ele havia participado da disputa... Mas, mesmo assim, não tinha o direito de ser tão arrogante! Bernard sorriu, observando a filha de um jeito
misterioso.
- Mas vamos mudar de assunto - ele sugeriu. - Vim aqui parabenizá-la pela compra da fazenda! Afinal, sem querer, acabei me metendo numa disputa entre os sexos!
- Desculpe, papai, mas ele conseguiu me tirar do sério. Mas quero virar mico de circo se o deixar estragar meu prazer!
- Assim que se fala! Agora me dê um abraço em comemoração à sua vitória, vamos! - Bernard estendeu-lhe os braços. Frances aconchegou-se a eles, emocionada.
- Oh, obrigada, pai! Venha: quero te mostrar toda a fazenda. Eles começaram a andar, com as mãos dadas. Frances comportava-se como se Bernard jamais tivesse colocado os pés em Thorndale. No entanto,
não querendo desmanchar a alegria da filha, ele a seguiu com paciência e atenção.
Nem se deram conta de que o tempo passava. Caminharam durante duas horas, conversando e reconhecendo toda a área. Ao olhar para o relógio, Bernard assustou-se: meio-dia e meia!
- Ainda temos tempo para um passeio até o pasto?
- Acho que não, filha. Estão nos esperando para o almoço. E você sabe como Evalina está cada dia mais velha e rabugenta. Ela detesta ficar esperando, principalmente na hora das refeições.
Evalina nascera em Venda. Desde que se conhecia por gente, Frances lembrava-se da autoridade dela na cozinha em Mountain View. A única intrusa permitida era Olivia, que conseguira cativa-la e infundir-lhe
grande respeito. De qualquer modo, Bernard tinha razão: ai de quem se atrasasse para o almoço...
- Está certo, pai. Vamos embora. Mas, antes, preciso conversar um minuto com Sibho, o caseiro, e com a mulher dele, Gladys. Talvez seja melhor o senhor ir na frente, assim pode ir acalmando a Evalina
por mim!
- Está bem, filha. Apesar de que, tratando-se de um dia tão especial, Evalina com certeza perdoaria o seu atraso de qualquer forma. Mas não abuse, hein?
Sorrindo, Bernard voltou ao carro e partiu, enquanto Frances saía à procura dos caseiros.
Resolveu procurá-los no pomar, onde vira Sibho pela última vez. Ele estava aguando as plantas, e Gladys viera fazer-lhe companhia.
Conversavam em voz baixa, e pareciam tão concentrados um no outro que nem notaram a aproximação de Frances.
O diálogo foi abruptamente interrompido assim que eles a viram. Encararam-na com respeito e algum acanhamento. Frances esmerou-se em explicar em detalhes os planos para Thorndale, usando palavras
delicadas que conquistassem a confiança daquele casal tão simpático. Assegurou-lhes que a situação dos caseiros não seria alterada com a mudança de proprietário. Não pretendia modificar nada, pelo menos
até conhecer bem o lugar. A presença de duas pessoas experientes a deixariam muito mais tranqüila.
Os sorrisos agradecidos com que o pequeno discurso foi saudado permaneceram vívidos na mente de Frances durante todo o caminho de volta para casa. Tivera uma manhã perfeita, exceto pela desagradável
aparição de Byron Rockford. Que atrevimento tentar comprar a fazenda logo no primeiro dia e, ainda por cima, duvidar da capacidade dela de administrá-la!
Frances podia compreender o aborrecimento dele, mas não conseguia perdoar o modo inamistoso com o qual fora tratada. Mal dava para perceber que o Byron arrogante que conhecera era o mesmo que Martha
descrevera. A prima retornara da França há três meses, conquistando o carinho unânime da família. Mostrava-se muito cuidadosa ao julgar as outras pessoas; raramente errava uma opinião. Mas no que se referia
a Byron, devia ter se equivocado: nenhuma das características nobres que atribuíra a sua personalidade puderam ser observadas por Frances, que o achara insuportável! Esperava apenas não tornar a vê-lo,
apesar de Thorndale fazer divisa com o parque.
"Todavia, ninguém pode prever o futuro", pensou. Restava torcer para que aquela discussão tivesse sido a primeira e a última...




CAPÍTULO II




"Louisville não mudou muito nos últimos cinco anos", concluiu Frances ao analisar sua ausência da região durante o período em que permanecera em Natal estudando.
Algumas lojas novas haviam sido construídas em terrenos que conhecera ainda vagos e a velha agência de correios dera lugar a um prédio mais moderno. O resto permanecia intocado. As pessoas continuavam
gentis e receptivas, tratando qualquer recém-chegado como se fizesse parte da família.
Frances atravessou a rua e abriu a porta do jipe estacionado junto ao meio-fio. O interior do veículo mais parecia uma fornalha. O calor de Transvaal de fato costumava ser insuportável àquela época
do ano: os gerânios nas janelas da maioria das casas denunciavam o excesso de sol a partir das dez horas da manhã, quando começavam a murchar.
Frances ligou o jipe e acelerou, impaciente. Mal podia esperar para colocar o carro em movimento e, enfim, sentir no rosto uma brisa que a refrescasse. Seguiu direto para Thorndale.
Estava com o humor tão bom que cantarolava, despreocupada. Nem o calor podia perturbá-la num dia tão especial. Visara o cheque no banco, entregara-o a Thomas e concluíra o negócio. Depois fora até
a companhia telefônica e pediu que religassem o aparelho da fazenda.
Feliz, recordou-se da reunião de família da noite anterior. Tratava-se de um velho costume entre os parentes: juntavam-se diante de qualquer acontecimento importante, fosse ele agradável ou não. O
grupo consistia em Vivien e o Dr. Peter O'Brien, pais de Martha. Vivien, única irmã de Bernard, chegara acompanhada da filha, logo após o jantar. Peter detestava perder tais ocasiões, mas um chamado de
emergência do hospital o impedira de comparecer. Abriram uma garrafa de champanhe e comemoraram a compra da propriedade com muita animação. Enquanto conversavam, Martha se dirigira a Frances:
- Você vai morar na fazenda, não é? Eu queria te propor... Bem - Acho que talvez eu pudesse morar com você... Oh, querida, facilitaria tanto o meu trabalho de ir à loja em Izilwane todo dia!
Martha era uma mulher sensível e batalhadora, na realidade, com um certo talento artístico. Abrira uma loja no Parque Natural, onde vendia, entre outras coisas, o artesanato que ela e alguns amigos
faziam, especialmente esculturas, cerâmicas e bijuterias.
Entusiasmada com a idéia, Frances concordou de imediato. A casa parecera-lhe muito grande para uma só pessoa. Propôs inclusive que se mudassem de imediato, mas o restante da família não permitiu.
Ela protestou dizendo que era adulta o suficiente para poder se decidir sozinha. Todavia, a madrasta e a tia insistiram em inspecionar a casa antes da mudança. Dando-se por vencida, Frances entregou as
chaves a Olivia.
"As duas deviam estar à minha espera em Thorndale", pensou, mudando a marcha do jipe. Só não imaginava qual teria sido a primeira impressão delas quanto à situação da sede da recém-adquirida propriedade.
Minutos depois, cruzou a porteira da fazenda. De fato o carro de Olivia se encontrava ali, sob os jacarandás. Estacionou o jipe e caminhou em direção a casa. A porta da frente estava entreaberta,
de modo que assim que entrou deparou com Vivien e Olivia na sala de jantar. As duas conversavam alegremente.
Frances franziu as sobrancelhas.
- E então? É tão ruim assim?
- Claro que não! Mas sua tia e eu concordamos num ponto: vocês não podem se mudar agora - Olivia respondeu.
- Há vários móveis de boa qualidade, que só precisam ser lustrados para ficar novos. Porém, a maior parte da mobília não tem salvação - Vivien explicou.
- E as paredes precisam ser pintadas, Frances - a madrasta acrescentou. - Sugiro começar pelos quartos, para que quando estiverem prontos vocês já possam ir para lá.
- E já que Martha vai morar com você, Olivia e eu decidimos dividir as despesas. Cuidarei de trocar as cortinas e algumas peças da mobília.
- Mas... eu não acredito... Vocês não precisam fazer isso! Frances balbuciou emocionada.
- Nós insistimos, Frances. Considere isso um presente de duas pessoas que te amam muito e que lhe desejam toda a felicidade do mundo nesta nova etapa da sua vida.
Frances sentiu um nó sufocar-lhe a garganta. Tentou disfarçar, mas seus olhos já estavam marejados. Correu para abraçar as duas enquanto enxugava as lágrimas com as palmas das mãos.
- Adoro vocês... Não sei nem como agradecer...
- Nem se preocupe com isso, querida. Mas se quiser nos alegrar neste momento, gostaríamos muito de uma xícara de chá. Acho que a Gladys só está esperando uma ordem sua. Posso pedir?
- Claro!
Olivia foi para a cozinha, deixando Frances e a tia sozinhas. Elas eram muito parecidas: tinham o mesmo cabelo preto, embora o de Vivien já estivesse se tornando grisalho. Os olhos castanhos também
possuíam o mesmo formato e o nariz e os lábios, traços semelhantes. De repente, o barulho do motor de um carro que se aproximava fez com que espiassem à janela.
- Parece que você tem visitas, Frances. Vou avisar Olivia para pegar mais uma xícara. Enquanto isso, vá recebê-lo.
Frances obedeceu sem discutir. Só faltava ser o desprezível Rockford... mas não! O lustroso BMW vermelho que estacionara junto ao jipe de Olivia pertencia a Byron.
O motorista era loiro e ela o reconheceu assim que começou a subir a pequena escada à frente da varanda. Recordaria daquele rosto onde quer que o visse.
- Bom dia, Srta. King. Meu nome é Tony Philips.
- Ah, eu sei... Estudamos na mesma escola, mas você estava uns dois anos à minha frente. Não é isso?
- Que memória! Puxa, não pensei que se lembrasse! - ele comentou maravilhado. - Espero não ter chegado numa hora inconveniente... Achei que seria bom vir visitá-la, já que vamos ser vizinhos.
- Não quer nos acompanhar numa xícara de chá, Sr. Philips?
- Tony - ele corrigiu-a com o mesmo sorriso que encantava todas as colegas de escola, mas ao qual ela própria nunca prestara muita atenção.
- Se você me chamar de Tony, até posso aceitar o seu convite, Frances.
- Vamos entrar, então, Tony.
Ao encontrarem Olivia e Vivien, as duas mulheres não puderam conter a curiosidade diante da inesperada visita.
- Olivia... Tia Vivien, apresento-lhes meu mais novo vizinho, Tony Philips. Tony, esta é a minha madrasta e aquela, a minha tia.
- Bom dia, senhoras. Frances fez a gentileza de me convidar para um chá. Foi ótimo, pois assim terei o prazer de conhecê-las.
Olivia trocou um olhar maroto com Frances enquanto se sentavam à mesa, deixando claro ter apreciado muito o galanteio do recém-chegado. Vivien, por sua vez, não conseguiu manter a boca fechada por
muito tempo:
- George Wilkins não era seu tio por parte de mãe?
- Era, sim. Você sabia disso, Frances?
- Não fazia a menor idéia.
Olivia serviu as xícaras e dirigiu-se a Tony:
- Se George Wilkins era seu tio, então você deve ter vindo várias vezes a Thorndale, não é?
- Sem dúvida. Como tenho de atravessar a fazenda para sair de casa, costumava passar por aqui e trazer para George algumas coisas que ele me pedia para comprar na cidade.
Mal tinham começado a tomar o chá quando outro veículo apontou em meio aos jacarandás.
- Mas como você está popular hoje, hein, Frances? Outro visitante e, se não me engano, trata-se de Byron Rockford.
Frances engoliu em seco. Os outros três a encararam atentos, como se perguntassem o que fazia ali parada em vez de ir receber o visitante. Ela leu nos olhos de Olivia que o pai já a colocara a par
do primeiro encontro que havia tido com Byron no dia anterior. A madrasta tentou manter as aparências:
- Ainda há bastante chá na cozinha, querida. Vou apanhar uma outra xícara.
- Boa idéia, Olivia. - Vivien levantou-se. - vou com você. Sozinha, só restou a Frances recepcionar o indesejado vizinho.
- Vou convidá-lo para o chá. Com licença, Tony.
- Este Rockford é dono do Parque de Izilwane.
- Eu sei. Nós nos conhecemos ontem.
Tony fez menção de perguntar alguma coisa, mas conteve-se quando Olivia retornou à sala trazendo mais uma xícara na mão.
Vivien correu para a porta a fim de ajudar a sobrinha a receber Rockford.
- Por aqui, Byron. Acho que já conhece todos aqui, não?
- Conheço, sim.
A voz de Byron não tinha o tom arrogante e irritado do dia anterior. Cumprimentou Olivia e Tony com um leve gesto de cabeça, mas não conteve um sorriso cínico ao encarar Frances.
- Bom dia, Srta. King.
- Pelo amor de Deus, Byron! Você já mora há tanto tempo aqui e ainda não aprendeu que não somos de fazer cerimônia? O nome da minha sobrinha é Frances. Frances, este é o Byron. Byron Rockford, lembra-se?
De Izilwane...
Observando-o meio a contragosto, ela repetiu a mesma frase que usara com Tony.
- Nós nos conhecemos ontem.
- É mesmo? Bem... Por que não se senta, Byron? - Vivien pediu. - Prefere seu chá com leite, Sr. Rockford?
- Sim, obrigado.
Byron estendeu as mãos e apanhou a xícara. Tinha os braços e o peito coberto de pêlos espessos e negros, visíveis através do tecido do conjunto que usava.
Irritada, Frances desviou a atenção para Tony e conversou apenas com ele, ignorando por completo o outro visitante. Mas não lhe foi possível deixar de notar os olhares que Byron lhe dirigia, em meio
ao diálogo fútil que levava com Olivia e Vivien, as duas interessadas em saber sobre o trabalho dele no parque. Nas poucas vezes em que Frances se arriscou a observá-lo, notou a impaciência de Byron, como
se ele quisesse sair dali o mais rápido possível. Ela não fazia a menor idéia do por que viera a Thorndale depois da áspera discussão que haviam tido no dia anterior; nem mesmo queria descobrir. A melhor
coisa que ele poderia fazer era ficar longe dela, em Izilwane.
- Agradeço muito pelo chá, mas receio que não possa me demorar mais. Antes, será que poderíamos conversar um minutinho em particular, Frances?
Houve um momento desconfortável de silêncio, quando ela considerou seriamente a idéia de mandá-lo para o inferno. Mas a boa educação acabou prevalecendo. Frances levantou-se.
- Vou acompanhá-lo até seu carro, Sr. Rockford.
Byron despediu-se dos outros com um gesto de cabeça e seguiu-a em direção à varanda.
- Queria lhe pedir desculpas por minha indelicadeza ontem - ele começou.
- É mesmo?
- Mas falava a sério a respeito de Thorndale. Trouxe comigo um pedido por escrito de prioridade para o caso de você algum dia decidir vender a propriedade.
Byron tirou o documento do bolso da jaqueta, sob o olhar incrédulo de Frances. O sangue começou a lhe ferver nas veias; estava prestes a explodir com aquele homem abominável.
- Não tenho intenção de vender a fazenda - procurou manter a compostura.
- As mulheres mudam de idéia de uma hora para outra. Você pode decidir se livrar disso aqui em poucos meses.
Frances ergueu o queixo, franzindo as sobrancelhas por causa do sol forte, numa tentativa de se impor ao olhar cínico que Byron lhe dirigia.
- Você tem certeza de que não vou conseguir administrar a fazenda, não é?
- Cuidar de fazendas é serviço para homem.
A resposta só a irritou ainda mais. Byron Rockford não se contentava em ser apenas arrogante e pedante; mostrava-se, também, a pessoa mais teimosa com quem já conversara na vida. Mas não iria se submeter
a um machismo tão primário: arrancou-lhe o papel das mãos e forçou um sorriso:
- Fico com o seu pedido, Sr. Rockford.
- Byron.
O sorriso cada vez mais cínico começava a adquirir, aos olhos de Frances, contornos perigosamente sensuais. Mas nem por isso deixava de ter vontade de arrancá-lo do rosto do vizinho com um bom tapa
feminino.
- Vou guardar este documento com cuidado. Mas se ainda estiver em Thorndale no prazo de um ano, vou fazê-lo engolir sua proposta.
- Com todo o prazer.
- Adeus, Sr. Rockford.
Frances deu-lhe as costas e afastou-se com o papel amarrotado nas mãos cerradas de raiva. O rosto bonito se transformara pela indignação. Furiosa, cruzou a porta ao som da partida do jipe de Byron.
Olivia, Tony e Vivien olharam-na com curiosidade quando entrou na sala e atirou o papel com a proposta em cima da mesa. Não se sentia em condições de explicar nada a respeito do segundo encontro com
Byron, tão desagradável quanto o primeiro. Ele lançara-lhe um desafio e Frances teria de vencê-lo. Ainda mais porque, naquele caso específico, todo o problema se resumia ao fato de ser mulher e de ter
sido julgada incompetente para administrar uma fazenda.
Alguns minutos mais tarde, Tony Philips começou a se despedir e Frances acompanhou-o até o BMW, deixando com a madrasta e a tia a tarefa de lavar a louça.
- Gostei muito da sua visita, Tony.
- Voltarei sempre que puder.
- Acho que não vai ser fácil me encontrar em casa, mas será sempre bem-vindo.
- Meu tio me deixava caçar na fazenda. Você se importaria se eu continuasse com minhas caçadas em Thorndale de vez em quando?
- Ainda não sei que tipo de animais há na propriedade, mas não gostaria que fossem dizimados. - O desapontamento tomou conta do rosto de Tony, mas não demoveu Frances da decisão que tomara. - Não
concordo com a matança desnecessária de animais, a menos que eles possam ameaçar o pasto para o gado. Se acontecer algo assim, pode ter certeza de que me lembrarei de chamá-lo.
- Então, está ótimo. Bem, até logo, Frances. Foi um prazer reencontrá-la.
Mal Frances retornou para dentro de casa, aliviando-se por fugir do sol quente, foi abordada pela tia.
- Eu e a Olivia estávamos preocupadas em deixar você e Martha morando sozinhas em Thorndale, mas parece que terão bastante companhia com vizinhos como Tony Philips e Byron Rockford. O Tony vive sozinho
desde a morte dos pais e eu imagino que se sinta um tanto solitário. Byron também é solteiro, mas nunca foi muito dado a fazer amizades. Mantém-se sempre ocupado, coitado, especialmente no período de férias,
por causa do parque. Mas é um homem em quem se pode confiar. Fico feliz por vê-las tão bem cercadas.
Frances ficou séria. Para seu gosto, Byron estava até próximo demais. Quanto menos se cruzassem, melhor.
- O que vai fazer agora, Frances? - Olivia interrompeu-lhe os pensamentos.
- Acho que vou voltar a Mountain View. Mas a partir de amanhã estarei aqui todos os dias, até a noitinha.
Frances trabalhou duro nas duas semanas seguintes. A primeira tarefa fora conhecer os seis empregados que viviam na fazenda com as famílias. Sibho lhe garantira que eram de muita confiança. Trouxera
da fazenda do pai o Pegasus, um cavalo negro, com o qual acompanhava Sibho em incursões nos pastos. Não percebera, quando da compra de Thorndale, a existência de um moinho de vento, nem as cercas de segurança
máxima que separavam a fazenda do parque de Rockford. Examinou tudo com extremo cuidado.
Foi num desses passeios que descobriu um riacho cortando uma área de pastagem muito verde. Começava em sua propriedade, e ganhava corpo até chegar ao território do parque. A segunda parte não lhe
interessava, mas a porção de água que lhe cabia, sim, pois serviria para projetos no futuro. A área era aberta, desprovida de árvores, parecendo a ideal para acomodar as vinte cabeças de gado Brahman que
adquirira recentemente. O pai concordara em ficar com os animais por algum tempo em Mountain View, mas depois de encontrar o precioso riacho, Frances já pensava em trazê-los imediatamente para Thorndale.
Enquanto se dedicava a conhecer os limites da fazenda, Olivia e Vivien cuidavam da casa. Tinham contratado três pintores, encarregados de raspar a pintura velha dos cômodos e dar-lhes uma nova mão
de tinta. Ficara decidido que a sala entre o hall e a sala de estar serviria para as refeições. Mas Frances pediu que ninguém mexesse no ambiente antes que pudesse examiná-lo melhor. Em meio a uma série
de objetos antigos, vira uma escrivaninha em cujas gavetas poderia encontrar algum documento de interesse. Queria checar tudo, antes de liberar a sala para os pintores.
Finalmente, ela e Martha mudaram-se numa manhã de sábado, cerca de quarenta dias após a negociação ter sido fechada. Nos três dias anteriores, ambas não foram à fazenda, deixando-a por conta de Vivien
e Olivia enquanto arrumavam suas malas. Frances viera no jipe com Major, um imenso pastor alemão de cinco anos de idade, presente dos meio-irmãos Janet e Logan. Poucos minutos depois foi a vez de Martha
aparecer, dirigindo um Mazda abarrotado, logo anunciada pelos latidos agudos de Pickles, o poodle de estimação.
Os dois cães se cheiraram demoradamente, e aparentemente simpatizaram um com o outro, saindo em correria pelo jardim.
- Alguma coisa me diz que arranjamos uma bela dupla de cães de guarda, Frances. Isto é, quando não estiverem ocupados brincando no jardim.
- Tem razão! Só vamos rezar para que não estraguem as plantas.
As duas começaram a descarregar os carros, ajudadas por Sibho e Gladys.
Olivia e Vivien haviam feito um verdadeiro milagre na casa em apenas duas semanas. Os quartos, pintados de branco, pareciam melhor iluminados e todos os aposentos receberam mobília nova. A decoração,
simples e de muito bom gosto, dera um toque delicado à moradia. Tapetes lindos cobriam boa parte do assoalho que fora encerado e polido. Dois sofás e quatro confortáveis poltronas em tonalidades que variavam
do bege ao castanho e do tijolo ao verde substituíram as cadeiras e banquetas em péssimo estado de conservação. Nas janelas, cortinas em tons harmoniosos com o ambiente contracenavam com samambaias que
despencavam dos vasos presos ao teto.
Sobre a mesa da sala de jantar, lustrada e tratada a óleo para ter o brilho natural da madeira nobre, descansava um vaso de rosas, que Frances adivinhou ter vindo do jardim de Olivia em Mountain View.
Percebeu um bilhete preso ao cabo de uma das flores. Reconheceu de imediato a letra bonita da madrasta:
"Bem-vinda à sua nova casa! Eu e sua tia esperamos que goste do último toque no serviço que fizemos e desejamos toda a felicidade e o sucesso que você merece. Olivia".
Tratava-se de um gesto típico de Olivia: uma manifestação de carinho tão delicada e tão doce que quase levou Frances às lágrimas. Controlou-se, contudo, ao notar a aproximação de Martha.
Frances era três anos mais velha que a prima. Sempre sentira um instinto natural de protegê-la, talvez por causa do aspecto frágil de Martha: pequena, esbelta, o rosto delicado, graciosamente emoldurado
por cachos de cabelos dourados. Mas tal preocupação não se revelava necessária. Por trás da aparência vulnerável, escondia-se uma mulher forte e corajosa, dotada de um carisma especial que possibilitava
que fizesse grandes amizades em questão de horas.
As duas passaram o dia desempacotando a mudança e ajeitando livros e enfeites, sempre assessoradas pela solícita Gladys.
Frances mal continha a vontade de terminar logo com aquilo para poder mexer nos móveis velhos e descobrir o que continham. Carregava uma empoeirada pilha de revistas quando ouviu um carro aproximar-se
na estrada.
- Por favor, Gladys, quer ir ver quem é?
- Ah, desculpe, Srta. King! - a empregada respondeu. Esqueci-me de avisar que o Sr. Byron tentou encontrá-la a semana inteira, mas como não foi possível, pediu que lhe dissesse que viria conversar
esta tarde.
- Só que eu não quero conversar com ele!
Com o rosto carrancudo, Frances saiu da sala, caminhando na direção da varanda dos fundos. Martha seguiu-a, sem entender nada, enquanto Gladys foi abrir a porta para Byron.
- O que aconteceu, Frances? Por que não quer falar com ele?
- Eu e o Sr. Rockford nada temos para conversar.
- Por que você não espera até conhecê-lo melhor antes de antipatizar tanto assim com ele? Tenho certeza de que não vai se arrepender, pois... - interrompeu ao ver a expressão zangada do rosto de Frances.
- Muito obrigada, mas se há uma coisa que não me interessa neste mundo é conhecer este homem!
- Frances! Não estou te reconhecendo!
- Ela está em casa? - a pergunta de Byron para Gladys ecoou pelo hall de entrada.
- Já estamos indo, Byron! - Martha gritou. - Escute, Frances, livre-se dessas revistas nojentas e, pelo amor de Deus, seja educada com o nosso vizinho!
Martha correu para recebê-lo. Sem alternativa, Frances derrubou as revistas no chão com raiva, e a seguiu. O que teria trazido Byron a Thorndale outra vez? Entrou na cozinha, percebendo que Gladys
preparava mais um bule de chá e arrumava as xícaras na bandeja.
- Levarei para a sala num minuto, senhorita.
- Obrigada, Gladys.
Frances tentou retribuir o sorriso amigável da empregada, mas sentia o rosto tenso. Foi até o banheiro lavar as mãos.
Não usava maquilagem e prendera o cabelo num rabo-de-cavalo sem maior cuidado. Mas nada disso a preocupava. Nunca se dera ao trabalho de se embelezar para impressionar ninguém e não iria começar a
fazer isso logo com Byron.
Quando entrou na sala, ele se levantou cerimoniosamente para cumprimentá-la.
- Boa tarde, Frances.
- Boa tarde.
Ela escolheu a poltrona mais distante da que Byron ocupava para sentar-se. Martha interveio, tentando desanuviar a tensão do ambiente.
- Você fica para um chá conosco, Byron?
- Eu gostaria muito, obrigado.
O rosto duro se abriu num sorriso gentil dirigido a Martha, o que causou um estranho estremecimento em Frances.
- Bem, então vou pedir a Gladys para...
- Ela já sabe, Martha. Disse-me que estava preparando o chá e que o traria num minuto.
- Ah... - Martha engasgou sem compreender o comportamento da prima. Um silêncio desconfortável baixou sobre a sala.
- Este lugar mudou muito desde a última vez em que o vi. Ficou muito bom, muito... feminino...
Byron parecia enfatizar de propósito a última palavra, como se dissesse: "Vejam, lugar de mulher é dentro de casa, nada de sair para administrar a fazenda"! Frances sentia cada vez mais dificuldade
em controlar a raiva.
- Você gostou, é? - o sarcasmo na sua voz arrancou um olhar suplicante de Martha. Byron sorriu com cinismo antes de se virar para a mais nova.
- Como você vai fazer para instalar seu ateliê aqui na fazenda, Martha?
- Posso trabalhar em qualquer lugar, mas tenho uma sala para isso na casa dos meus pais, na cidade. Poderei passar os fins de semana lá.
- Quer dizer que você vai ficar aqui sozinha nos fins de semana, Frances?
- Não necessariamente.
Frances tinha em mente as possíveis visitas dos irmãos, mas não deu continuidade ao assunto, diante da chegada de Gladys. A mulher cumprimentou Byron com respeito.
- Boa tarde, senhor.
- Como vai, Gladys?
Ela sorriu, pondo à mostra os dentes muito brancos, e voltou para a cozinha.
Frances serviu o chá e, durante todo o tempo, prestou toda a atenção à conversa de Byron e Martha, sem interferir. Discutiam a respeito de uma agência publicitária em Johannesburgo, para quem Martha
fizera um trabalho de promoção do parque há algum tempo. Graças à qualidade do serviço, fora apresentada a um editor interessado em publicar um livro com ilustrações suas. Byron demonstrava o mesmo entusiasmo
que ela diante da idéia.
- Tem alguma coisa em que eu possa ajudá-las enquanto estiverem se instalando aqui?
- Bem...
Martha iniciou a frase, mas Frances de imediato adivinhou que a prima iria se referir à pesada escrivaninha que precisava ser transferida para um quartinho logo após a cozinha. No entanto, decidira
não deixar ninguém tocar no móvel antes de inspecionar gaveta por gaveta com os próprios olhos. Muito menos se o candidato a remexer os papéis fosse Byron.
- Obrigada, mas nós podemos nos ajeitar sozinhas - respondeu bruscamente.
Byron deu de ombros, concordando meio a contragosto. Martha arrumou uma saída estratégica:
- Vou levar as xícaras para a cozinha. Ainda tenho muita coisa a fazer no meu quarto e...
- Não precisa nos deixar sozinhos, Martha - Frances argumentou, incomodada com o olhar misterioso que Byron lhe dirigia.
- Acho que Byron prefere lhe falar em particular, com licença. A gente se vê na sexta, Byron.
Martha saiu, deixando Frances aflita. Tentava se convencer de que não havia razão alguma para nervosismo. Tratava-se de um inevitável terceiro assalto de uma luta que não parecia estar apenas começando.
Observando-o com atenção, suspeitou sobre o que Byron queria conversar. Thorndale.
Ele queria a fazenda. E parecia determinado a infernizá-la até conseguir tal objetivo.




CAPÍTULO III




Frances desconfiava que ela e Byron estudavam-se tais como serpentes prestes a atacar. A tensão na sala tornara-se insuportável, o que a levou a movimentar o jogo em primeiro lugar.
- Pelo que Gladys me contou, você tem me procurado. Pois muito bem: o que deseja?
- É um assunto de extrema importância. Há um trecho do seu terreno que entra na minha propriedade.
Frances de imediato começou a suspeitar do assunto que o teria levado até Thorndale.
- Presumo que você esteja se referindo à área do rio?
- Isso mesmo. Gostaria de comprar aquela área.
Ela não se lembrava de nenhuma situação em que tivesse tanta vontade de insultar alguém! Talvez até viesse a se arrepender do que lhe teria dito se Major não se precipitasse pela sala numa correria
louca atrás de Pickles. Este farejou o ambiente antes de disparar para a cozinha. Major aproximou-se, curioso, de Byron, que lhe afagou as orelhas. Depois, deitou-se com calma aos pés de Frances.
O incidente não durou mais do que um minuto, mas foi o tempo suficiente para que Frances conseguisse se recompor e responder à proposta com toda a educação que recebera em casa.
- A área do rio é ideal para o meu rebanho de Brahman. Além disso, é a única parte da propriedade com um curso d'água.
- Você tem muitos outros bons locais de pastagens para o gado. Não precisa do riacho. Até porque dentro de um ano vou comprar a fazenda inteira.
A arrogância de Rockford irritava-a cada vez mais.
- A área não está à venda e, se eu fosse você, não teria tanta certeza assim de que um dia poderá estender seu parque em direção a Thorndale. Sou mulher, Sr. Rockford, mas não há nada sobre a administração
de uma fazenda que você possa me ensinar. Ninguém pode prever o futuro, mas asseguro-lhe de que combaterei qualquer coisa que se interponha no meu caminho. Não costumo desistir facilmente das coisas em
que acredito.
- Determinação é uma grande qualidade, mas a teimosia pode custar caro às vezes...
Frances levantou-se com um movimento gracioso e decidido. Mas, embora tentasse manter o controle da situação, não conseguia disfarçar o mal-estar que a constrangia perante Byron. Ele ergueu-se também,
deixando-a intimidada diante da disparidade de sua altura comparada com a dele.
- Há mais alguma coisa que o senhor queira dizer?
- Já falei tudo o que queria, mas sugiro que você pense com carinho nesta nova proposta.
- Não preciso pensar em nada, Sr. Rockford. Aliás, acho que já passou tempo demais em minha casa.
Recebeu como resposta um olhar frio e até certo ponto rancoroso. Surpreendentemente, ele encerrou a conversa em outro tom:
- Acho que gosto de você, Frances. Todas as minhas mulheres sempre foram assim, impetuosas...
- Pois eu jamais serei uma das suas mulheres, Sr. Rockford.
- Isso é um desafio?
- Não. Apenas a pura verdade!
Byron deu de ombros e Frances sentiu-se ruborizar diante da minúcia com que ele a mediu. Nenhum detalhe de seu corpo escapou-lhe à perícia, especialmente os seios pequenos escondidos por trás da camiseta
azul. Frances reagia de modo surpreendente para si própria diante da situação. Parecia até faltar-lhe o ar.
- Que pena, Frances! Nem imagina o que está perdendo... Byron acrescentou com um sorriso irônico nos lábios.
Diante do comentário, Frances não conseguiu articular uma resposta antes que ele lhe desse as costas e saísse. Ficou ali, remoendo o que julgava a princípio ser puro ódio. Ou haveria algo mais além
disso? A simples idéia já a aterrorizava. Tudo culpa do maldito Byron Rockford!
Saiu da sala com raiva e dirigiu-se ao quarto. Irritada, recomeçou a arrumação, batendo portas e gavetas com estrondo, assustando Major, que a seguira com humildade.
Atraída pelo barulho que ela fazia para extravasar o que sentia, Martha veio observá-la, encostando-se no batente da porta.
- Conversinha rápida, hein? - arriscou, curiosa.
- Não havia muito o que dizer, Martha. Byron queria comprar a área do riacho, pois ela se estende até a propriedade dele. E eu lhe disse que não vendo.
- Não me diga...
- O que me deixa furiosa é a pretensão deste homem de querer comprar Thorndale por achar que eu não tenho competência para administrar a fazenda.
- Ah, Frances! Mas isso não é motivo para ficar tão irritada.
- Como não? Você acha que eu tenho sangue de barata, Martha?!
- Não é isso, mas os homens são assim mesmo, Frances. Byron age apenas como um deles. Acham que nós, mulheres, somos criaturas frágeis e indefesas, sem nenhum senso de realidade. Só nos resta provar-lhes
que estão errados.
Frances começou a readquirir a calma. Não era sua primeira experiência com discriminação machista e, no passado, jamais esmorecera nem perdera a tranqüilidade. Por que permitir que Byron obtivesse
sucesso onde tanta gente já havia fracassado?
- Ah, vamos esquecer tudo isso! Que tal se fôssemos dar uma volta a cavalo? - Frances sugeriu, procurando esfriar a cabeça.
Martha concordou prontamente. Colocou a calça jeans, equipou-se com botas especiais e, meia hora depois, montava Júpiter, um cavalo cinzento bastante manso criado em Thorndale. Frances, por sua vez,
montava Pegasus, um animal muito mais rápido e arisco, mas que ela aprendera a controlar desde menina. O pai fizera-a uma exímia amazona, de modo que a equitação não tinha segredos para ela há muitos anos.
Martha, por exemplo, aprendera a cavalgar com Frances, embora ainda mantivesse certo receio em posicionar-se bem na montaria.
O cheiro de couro e o movimento do cavalo funcionaram como um calmante para Frances. Sorridente, olhou para Martha, que lhe dava a impressão de estar se divertindo muito.
- Ainda vou pintá-la em cima de um cavalo, Frances.
A prima sorriu em resposta. Martha vinha insistindo já há algum tempo em tê-la como modelo, mas Frances se demonstrava incapaz de permanecer parada por mais de um minuto. Tudo o que conseguira fora
acumular alguns esboços.
Quando o sol começou a projetar sombras cada vez maiores em torno das duas, resolveram retornar.
Gladys recepcionou-lhes com uma soberba refeição. Assara um suculento pedaço de carne, acompanhado por legumes colhidos da horta cultivada com esmero por Sibho em suas horas de folga. Martha e Frances
jantaram com prazer, pois o passeio lhes despertara o apetite. Em seguida tomaram café na varanda, aproveitando a brisa fresca da noite.
Era bom sentir o cheiro da terra úmida de orvalho, ouvir o cricrilar dos grilos e se deliciar com o céu repleto de estrelas. Frances, porém, sentia-se inquieta.
Após uma prosa com a prima, cuidou de remexer os papéis velhos enfiados na gaveta da escrivaninha, enquanto Martha tratava de colocar o lixo em caixotes de papelão, para ser jogado fora, na manhã
seguinte. Frances separou com atenção documentos e livros. Debruçada sobre o móvel, percebeu alguma coisa colocada entre a parede e a parte de trás da escrivaninha. Retirou-a e, espanando a poeira acumulada,
descobriu o retrato de George Wilkins. Puxou-o e, depois, colocou-o contra a parede.
- Boa noite, Sr. Wilkins! - cumprimentou com cerimônia.
- O quê?!
Martha soltara um grito de pavor, levando a mão automaticamente à garganta. Passados alguns segundos, porém, riu do próprio susto.
- Por um momento pensei que você tivesse visto um fantasma!
- O que é isso, Martha! Eu só estava brincando... É que encontrei um retrato de George Wilkins, antigo proprietário de Thorndale. Veja: está assinado aqui embaixo.
- Ah, mas que interessante...
- Você sabia que ele foi tio do Tony?
- Tony? Que Tony?
- Anthony Philips, o meu outro vizinho.
- Ah, um sujeito lindo, não?
- É, sim... Sabe, fico me perguntando por que aquele velho excêntrico escondeu este retrato aqui.
- Provavelmente porque não gostava de olhar o próprio rosto. Algumas pessoas são assim, mas, a julgar pelo retrato, o tio de Anthony deve ter sido um velhinho simpático.
- Foi feito há quatro anos. Não é muito tempo...
- Sim, mas a moldura é estranha. Parece um tipo de metal leve, sobre o qual foi borrifado ouro, para dar um efeito de bronze. Esquisito, porque hoje em dia há tantas molduras bonitas em madeira...
- Realmente, é estranho...
- O que você pretende fazer com ele?
- Talvez Tony o queira. Afinal George Wilkins era tio dele, não é? Pode ser que o quadro tenha algum valor estimativo, vou perguntar na próxima vez que encontrá-lo.
- Não parece que o velho está rindo de nós por trás desses bigodes brancos?
- Ora, Martha! Vamos, acho que estamos precisando de um bom banho e de uma cama. Estamos tão cansadas que talvez já estejamos enxergando coisas!
Tony Philips foi até Thorndale pouco antes do meio-dia do domingo. Como sempre, estava afável e bonito, vestindo uma calça cinzenta e camisa esporte azul. As duas gostaram de vê-lo, mas por razões
diversas: Martha por achá-lo muito atraente, e Frances por estar justamente precisando da força de braços masculinos. Limpara a sala da frente com a ajuda da prima e de Gladys, mas a escrivaninha, já lustrada
e encerada, ainda devia ser removida. Auxiliado por Sibho, Tony levou o móvel para um pequeno quarto dos fundos que Frances pretendia transformar num ateliê para Martha.
- Obrigada pela ajuda, Tony. Quer ficar para o almoço?
- Oh, que bom! Estava ansioso por esse convite! Sinto muita saudade da comida de Gladys! Ele enxugou com um lenço as gotículas de suor acumuladas na testa.
Almoçaram muito bem, graças ao capricho da prendada esposa de Sibho. Terminada a refeição, ninguém tinha ânimo sequer para se levantar da mesa...
- Tenho uma coisa a lhe mostrar.
Frances levantou-se, fazendo com que Tony e Martha a seguissem até o quarto onde guardara os álbuns de família do velho Wilkins. Tony não pareceu compreender-lhe a intenção, dando de ombros:
- Por que não joga tudo isso fora?
- Pensei que você fosse gostar... Será que ninguém da sua família gostaria de guardar essas fotos?
- A única parente que eu conheço é a minha prima Claudia de Leur. A mãe dela e a minha eram irmãs do tio George. Mas nem sei onde ela está morando... Além disso, duvido muito que se interessasse por
essa velharia.
- Encontramos isto, também - Frances estendeu-lhe o retrato de George Wilkins, apoiando-se contra a parede e observando a reação de Tony.
- Deus do céu! Aquele velho rabugento!
- Não o achamos rabugento, não é, Frances? Para mim, pelo menos, pareceu bem simpático.
- Diz isso porque não o conheceu tão bem quanto eu.
- Já que você é o último parente mais próximo, será que não quer ficar com o retrato?
- Não, obrigado. Pode se livrar dele com o restante das fotos.
- Mas não podemos fazer isso! - Martha protestou, os olhos azuis arregalados.
- Por que não?
- Não sei... De algum modo sinto pena dele. É como se estivesse expulsando o velhinho do único lar que ele teve.
Um silêncio profundo seguiu-se à explicação de Martha e Frances convenceu-se de que a prima tinha razão: o retrato podia não interessar a Tony, mas não seria justo jogá-lo fora por não ter nenhuma
serventia.
- Bem, deixo nas mãos de vocês duas a decisão quanto ao que fazer. Eu, definitivamente, não quero o retrato. Não ficaria com ele nem que fosse coberto de ouro.
Frances achou a atitude estranha. Mas, concluiu, aquela aparente frieza deveria ser um modo que Tony encontrara para esconder a dor que sentia pela perda do tio.
Tony permaneceu na fazenda até as dezessete horas. Depois disso, despediu-se das primas que o acompanharam até o BMW.
- Se todos os fins de semana forem como este, Frances, você certamente não terá tempo de se sentir solitária - Martha brincou.
- Você tem recebido muitas visitas?
- Byron esteve aqui ontem e hoje tivemos o prazer de receber você.
- Ah... Rockford tem vindo muito a Thorndale?
Por um rápido instante, Frances pensou identificar ciúme nas palavras de Tony. Mas, em seguida, esqueceu a idéia, julgando-a absurda.
- Veio três vezes...
- Visitas a negócios ou cordialidade?
- Negócios.
- Cordialidade.
Martha e Frances responderam ao mesmo tempo, contradizendo-se comicamente. Frances lançou um olhar fuzilante à prima, que corou de vergonha. Ela ainda tentou consertar o estrago.
- Bem, talvez um pouco de cada coisa...
- Acho que preciso ir, senhoritas. Obrigado pelo almoço. A gente se vê, Frances...
Quando o BMW desapareceu numa curva da estrada, Martha suspirou.
- Como ele é bonito! E acho que está interessadíssimo em você!
- Não seja boba, Martha! Eu e Tony mal nos conhecemos. É bem verdade que estudamos juntos quando criança. Mas isso já faz tanto tempo...
- E daí? Mas ele já tem um rival...
- Se está se referindo ao Byron, eu...
- Mas eu não disse nada! - Martha acudiu, dando um sorriso maroto.
Frances tentou mudar de assunto, mas ficara apreensiva. A última coisa que desejava naquele momento era um envolvimento emocional. Gostava de Tony, era verdade...
Tratava-se de um sujeito simpático, companhia muito agradável. Mas não tinha interesse nenhum além de mera amizade. E quanto a Byron? Não! Com ele era completamente diferente: não sentia a menor afeição
por aquele grosseirão! Jamais conseguiria ter com ele nenhum tipo de relacionamento.
Depois, Martha e Frances retiraram-se para a varanda. Frances, porém, estava tão concentrada nos próprios pensamentos que demorou para responder à questão que a prima acabara de formular.
- Ei, Frances! Estou falando com você!
- Desculpe... O que foi mesmo que disse?
- Perguntei o que pretende fazer com o retrato de George Wilkins.
- Não sei. Alguma sugestão?
- Acho que ficaria muito bem na sala de estar - Martha sugeriu. - Assim poderá nos observar o tempo todo aprovando ou reprovando tudo o que fizermos. O que você acha?
- Gostei da idéia.
Frances riu ao imaginar o velho tio George franzindo as grossas sobrancelhas brancas ao contemplar o modo como cuidaria da fazenda.
- Frances, você também ficou com a impressão de que o Tony não gostava muito do tio?
- Eu não diria isso. Talvez os dois não se entendessem muito bem, mas discordo de que Tony não gostasse dele.
A conversa encerrou-se por ali, mas Frances foi se deitar ainda com algumas dúvidas relacionadas ao assunto. Martha, como artista de talento, era muito perceptiva.
Mas parecia ter se enganado a respeito de Tony. Se ele não gostasse do tio, por que haveria de se dar ao trabalho de fazer-lhe compras?
Cogitando que Martha deveria mesmo ter cometido um erro de julgamento, Frances ajeitou a cabeça no travesseiro e adormeceu logo em seguida.
Dois dias depois, enquanto cavalgava pela propriedade, Frances foi interrompida por Sibho, que se aproximava num animal em disparada.
- Srta. Frances! A cerca foi cortada!
- O quê?! Onde, Sibho?
- Na área do riacho, senhorita. Há impalas misturados com o gado. Contei todos e faltam três Brahmans.
O choque impediu Frances de agir com rapidez. Nem em seus piores pesadelos com a fazenda imaginara tal situação. Não fazia idéia de quem poderia cortar a cerca, especialmente a de segurança máxima,
no limite com o parque. Quem se atreveria?
- Junte alguns dos homens, Sibho, e leve-os até o lugar para virem o que pode ser feito. Enquanto isso, irei até o parque Izilwane avisar o Grande Homem Branco.
- Certo, senhorita.
Sibho e Frances dispararam com os cavalos em direções opostas. Ela adotara o costume do empregado de chamar Byron pela expressão nativa. Tinha obrigação de notificá-lo sobre o problema, mas tremia
só de pensar na reação dele.
Frances se abaixou sobre a sela, recebendo o impacto do vento quente contra o rosto. Tinha de se apressar. Não podia prever quanto tempo lhe restava até que os animais cruzassem a abertura da cerca,
de uma propriedade para a outra. Por menos agradável que a idéia lhe parecesse, urgia entrar em contato com Byron.
Nem precisou usar o telefone. Quando se dirigia para o estábulo para guardar Pegasus, cruzou com o jipe pertencente ao parque. Byron saiu do veículo e, batendo a porta, dirigiu-se a ela em passadas
largas.
- O que você tem nesta cabeça para cortar a cerca daquele jeito?
Sua voz soava ameaçadora como um trovão. Frances o interrompeu:
- Ei, espere um minuto! Você está me acusando de ter cortado a cerca?
- E quem mais teria razão para fazer isso? Eu sei que a fauna do seu terreno foi quase toda extinta por aquele idiota da Fazenda Grove. Que meio mais fácil de enriquecer a reserva do que fazer um
rombo na cerca para que os animais escapem do meu parque toda vez que lhe convier?
A suposição absurda de Byron mais a aborreceu do que irritou. Podia entender o nervosismo dele; só que já estava indo longe demais com suas acusações grosseiras.
- Não cultivo o hábito de matar animais por esporte, Sr. Rockford. Se me conhecesse um pouco melhor, saberia disso. E já que me brindou com uma acusação tão estapafúrdia, também posso lhe dar o troco.
Ninguém me garante que não tenha sido você o responsável pelo corte da cerca... Só para me intimidar, esperando que o incidente me convencesse a vender a área do riacho...
Como se tivesse levado um tapa, Byron inclinou com violência a cabeça para trás. Obviamente não gostara da versão que acabara de ouvir.
- Ora, Srta. King, cale-se! Eu fiz uma oferta pela área do riacho; você recusou. Mas não tenho nada a ver com esta cerca e você sabe muito bem disso!
- Você está querendo insinuar que a culpa é minha? Bem, fique sabendo que não quero seus impalas na minha propriedade, Sr. Rockford. Assim, sugiro que trate de levá-los de volta ao parque o mais rápido
possível. Só o que me interessa são minhas três cabeças de Brahmans que escaparam para o seu lado da cerca. Quero-as comigo.
- Meus funcionários já descobriram as malditas cabeças do seu precioso gado! Foi assim que soube do rompimento da cerca. Meus homens estão, agora, deixando de lado tarefas bem mais importantes para
trazer os animais para o seu lado da cerca. Se eu fosse você, pensaria duas vezes antes de cortar a grade outra vez. E se a autoria não é sua, sugiro que dê um jeito de encontrar o responsável.
- Nenhum dos homens que trabalham para mim seria capaz de fazer uma coisa tão deprezível! Você pode me dar a mesma garantia com relação aos seus empregados?
- Pode apostar que sim! E passe muito bem, Srta. King!
- Ei, espere um minuto! E quanto aos seus impalas que estão aqui?
Byron virou-se, antes de entrar no jipe, e encarou-a. Uma expressão de desprezo tomou-lhe o rosto.
- Considere-os um presente!
- Dispenso! Mas Frances não pôde encerrar a sentença, pois Byron entrou no jipe forçando-a a recuar. Irritado como estava, não seria difícil que a atropelasse.
O veículo saiu cantando pneus, deixando Frances perdida em meio a uma enorme nuvem de poeira. Irritada, bateu os pés no chão antes de voltar a Pegasus e cavalgar até a área do riacho.
Quando chegou, já encontrou de volta as cabeças de gado que haviam fugido. Alguns homens com uniformes do parque cuidavam de reparar a abertura na grade. Nenhum sinal, porém, dos impalas, um tipo
de antílope de pele dourada e manchas brancas nas patas. Deviam estar espalhados pela fazenda à procura de pastagens melhores.
Minutos depois, Frances ouviu o trote de um cavalo. Virando-se, viu que Tony se aproximava, olhando o movimento do lugar com ar curioso.
- Problemas? - ele perguntou.
- Sem dúvida! Algum idiota cortou a cerca e o resultado foi uma formidável discussão entre Byron Rockford e eu.
- Nossa! Mas você desconfia de quem pode ter feito isso?
- Não faço idéia. Olha só! Byron está do outro lado da cerca supervisionando os consertos...
- Essas coisas acontecem - Tony a consolou tocando-a no ombro no exato instante em que Byron virou o rosto para o lado onde estavam. - Não deixe que um incidente desses a aborreça tanto.
- Vou tentar.
Frances esforçou-se por prestar atenção à conversa, sem voltar o olhar para Byron. No entanto, sentia-se atraída para aquele lado. Começava a detestar aquelas discussões, mas ele que fizesse o julgamento
que achasse mais certo!
Naquela noite, um pouco antes de se recolher, Frances estava na varanda com Martha quando esta comentou:
- Pelo visto, o seu dia, hoje, não foi dos melhores...
- É... Acho que já sei quem lhe contou as novidades...
- Não foi o Byron, se é isso que está pensando. Jack Harriman, um dos guardas do parque, foi à loja hoje e me narrou toda a história.
Frances aceitou a versão com um gesto de cabeça, enquanto Martha prosseguiu com a costura que estava fazendo. O incidente da cerca não lhe saía da cabeça.
- Você tem alguma idéia sobre quem pode ter cortado a cerca?
- Nenhuma pista. Mas Byron veio me acusar de ter aberto o rombo de propósito, para atrair alguns animais selvagens para o meu terreno. Sabe para quê? Para caçar! - Não é um absurdo? Logo eu!
- Que é isso, Frances, ele devia estar muito nervoso... Garanto que não tinha a intenção de magoar você. Quando conhecê-lo melhor...
- Não tenho nenhuma vontade de conhecê-lo melhor - ela explodiu. Se algum dia me arrepender por ter comprado Thorndale, será por causa da arrogância insuportável daquele homem e de todas as injustiças
que me lançou.
- Ora, Frances, não faça drama! Byron trabalhou duro para levar o parque à situação de prestígio em que se encontra hoje! Se você estivesse no lugar dele, talvez reagisse do mesmo modo - Martha esbravejou.
- Pode ser que sim. Mas acho melhor você encarar a realidade, Martha: eu e Byron Rockford simplesmente não vamos com a cara um do outro. E eu duvido que esse sentimento mude algum dia.
Martha não respondeu, limitando-se a observá-la de esguelha. Frances colocara um vestido bem leve antes do jantar e soltara o cabelo, geralmente mantido preso, fazendo com que caísse em ondas sobre
os ombros. A prima não vinha dando muita importância à própria aparência como se feminilidade e elegância não combinassem com a administração de uma fazenda.
- Sabia que você e o Byron são muito parecidos, em determinados aspectos?
- Deus me livre!
- Mas é verdade! São fortes espiritualmente; têm a cabeça cheia de planos; estão ansiosos por realizar coisas, produzir, sem medo de ter que trabalhar duro para atingir um objetivo. É normal que haja
atritos quando duas forças equivalentes se chocam...
- Duas forças equivalentes...
Frances balançou a cabeça. Nunca se considerara arrogante ou pedante, nem jamais fizera acusações sem fundamento a qualquer pessoa. O episódio daquele dia não servia de exemplo: apenas se defenderia
contra a abordagem agressiva de Byron. Talvez pudesse desculpá-lo por não conhecê-la bem. Mas reservava-se o direito de sentir-se ofendida diante da suspeita de que tivesse cortado a cerca. Mas por que
era tão importante saber o que Byron Rockford pensava dela? Aborrecida, levantou-se e anunciou num fio de voz:
- Estou muito cansada, vou para a cama. Boa noite!
- Durma bem, Frances - Martha acompanhou-a, fechando a porta da varanda e apagando as luzes.
Apesar do desejo de dormir, foi a última coisa que Frances conseguiu fazer. Nos últimos tempos, era freqüente ela ficar na cama por várias horas pensando em Byron Rockford e na situação desagradável
na qual entrara, ainda que involuntariamente. Preferiu lembrar-se de Tony. Ele sim era um homem charmoso, afável e amistoso.
No entanto, as feições duras e fechadas de Byron continuaram a perturbar-lhe os pensamentos. Tudo o que as visitas de Tony traziam de prazer, as aspirações de Byron superavam em mal-estar.
Martha os havia comparado a duas forças equivalentes. Frances tinha vontade de rir! Não acostumava antipatizar com as pessoas, mas o surgimento de Byron em sua vida parecia ter mudado um pouco as
coisas. Forças equivalentes... Pois sim!



CAPÍTULO IV




Martha comemorou o seu aniversário de vinte e um anos com uma reunião na casa dos pais, em Louisville. O tempo colaborou para uma festa ao ar livre. Quando Frances chegou, acompanhada de Tony, os
convidados já se espalhavam em torno da churrasqueira instalada no jardim.
Entre os rostos conhecidos, Frances identificou o do sócio de tio, Dr. Trane Trafford, com a mulher, dra. Jessica Neal, e os dois filhos pequenos. Ela se desdobrava entre a profissão e a educação
das crianças, por isso se tornara uma pessoa muito querida; e respeitada não apenas como profissional, mas também como mulher. Fora a obstetra responsável pelo nascimento dos irmãos de Frances e, além
disso, era a médica que atendia em caso de qualquer necessidade.
O pai e a madrasta de Frances também estavam presentes com os filhos. Janet e Logan encheram a irmã de carinhos ao cumprimentá-la.
- Podemos ir para Thorndale com você depois da festa? Os dois falavam ao mesmo tempo, animados. Janet, de sete anos, que herdara do pai o cabelo escuro e da mãe a delicadeza de traços, pulava em volta
de Frances.
- Se o papai e a mamãe concordarem, tudo bem. Bernard e Olivia interromperam a conversa:
- Vocês não podem ir porque não trouxeram pijamas nem as escovas de dentes.
- Mas nós trouxemos! - Logan, alto e troncudo apesar de contar apenas dez anos, dono de feições atraentes e cabelos castanho-claros, não desistiu facilmente. - Deixamos as coisas no carro.
- Trouxeram mesmo? Bem, neste caso, acho que depende de Frances querer ou não que vocês fiquem com ela...
- Podemos, Frances? Podemos ir com você?
- Claro que sim! Tony, você não se importa em dar carona para meus convidados, não é mesmo?
- Ora, de modo algum, querida! - ele respondeu, sorrindo. O fogo já havia sido aceso e um caminho de fumaça subia em direção ao céu. Frances deixou Tony conversando com Bernard e Olivia e foi procurar
Martha. Assim que terminou de abraçá-la, desejando-lhe as felicidades de praxe, sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha.
- Oi, Byron, que bom que você veio! - Martha disse com alegria.
Frances fechou os olhos. Como não pensara na hipótese de ele comparecer à festa uma vez que era amigo da prima?
Alheio aos pensamentos de Frances, Byron entregou uma caixa de bombom a Martha.
- Feliz aniversário.
- Obrigada, Byron. E gostei muito do seu presente.
- Fico feliz com isso.
Ele sorriu polidamente e, então, virou-se para Frances, que o observava com o rosto fechado.
- Boa noite, Frances.
- Boa noite.
Byron apresentava-se impecável naquela noite, vestindo uma calça cinzenta, camisa branca e um blazer cujo caimento era perfeito.
- Já passaram algumas semanas desde o nosso último e tumultuado encontro, não?
- É mesmo.
Frances pensou num bom motivo para afastar-se dali. Martha, porém, foi mais rápida: sorrindo, arranjou logo uma desculpa.
- Vocês me dão licença? Acho que minha mãe precisa de ajuda com as saladas e os copos.
Antes que Frances pudesse se oferecer para auxiliá-la, Martha partiu rumo à cozinha. Um silêncio desconfortável se abateu sobre ela e Byron.
- Você está sozinha, Frances?
O olhar de Byron parecia repassar cada detalhe do corpo de Frances, que usava um vestido estampado de seda. Deteve-se com especial atenção numa corrente de ouro que ela trazia pendurada ao pescoço,
presente de Olivia e Bernard.
- Vim com o Tony.
- Ah, sei... - Byron fixou o olhar no pingente de ouro, parcialmente escondido pela curva dos seios de Frances, revelados pelo corte ousado do vestido. Tanto interesse terminou por fazê-la sentir
o coração disparar. Percebendo o embaraço, ele perguntou:
- Como vão os impalas em Thorndale?
- com certeza muito bem. Ainda não cogitei em caçá-los, não se preocupe. E agora, com licença, Sr. Rockford, mas acho que já deixei meu acompanhante sozinho por tempo demais.
Ela o deixou e caminhou em direção a Tony. Durante o resto da noite esforçou-se ao máximo por ignorá-lo, mas várias vezes flagrou-se procurando-o com o canto dos olhos em meio aos convidados. Peter
O'Brien, alto, magro e bonito, tendo ao lado a mulher, Vivien, fez um pequeno discurso antes de entregar à filha um gigantesco ramalhete de flores e, em seguida, abrir uma garrafa de champanhe. Depois,
todos voltaram a se divertir em grupinhos dispersos. A maioria dos homens juntara-se perto do fogo, fazendo piadas e bebericando cerveja. Pelo que, a distância, Frances podia notar, Byron não sentia nenhuma
dificuldade em se relacionar. O que a aborrecia era constatar que ele não lhe saíra da cabeça durante todo o tempo.
Tony afastou Frances de um dos grupos, levando-a para um local mais tranqüilo.
- Não pude deixar de perceber você e Byron conversando um tempo atrás.
- É, nós conversamos um pouco, sim.
- Conversaram sobre o quê?
- Ah, nada. Ele queria saber dos impalas que fugiram do parque. Vamos, Tony, quero comer alguma coisa: estou morrendo de fome! Além disso, o cheiro de churrasco está irresistível!
Talvez sentindo uma leve irritação nas respostas de Frances, ele não insistiu em mais perguntas.
Os casais deslizavam sobre o gramado do jardim ao som de músicas transmitidas por alto-falantes presos às árvores. Frances e Tony dançaram uma série de músicas até decidirem parar para descansar um
pouco. Byron, por sua vez, dividira a dança entre Martha, Olivia e Vivien, Quando uma canção romântica começou a tocar, Frances percebeu, assustada, que ele se aproximava de onde estava. Com medo do que
pudesse acontecer, agarrou Tony pelo braço, sem encontrar nenhuma resistência:
- Vamos dançar, Tony!
Ele a apertou forte em seus braços e, à medida que davam voltas pela improvisada pista de dança, Frances espiou a reação de Byron. Ele a observou com um sorriso cínico e, depois de algum tempo, virou
as costas e se afastou.
- Você está linda, Frances... E eu acho que estou me apaixonando... - Frances precisou conter o ímpeto de rir. Afastando o rosto do de Tony, comentou:
- Sabe o que eu acho?
- O quê?
- Que você devia parar com isso e se concentrar na dança! No decorrer da noite, Frances conseguiu ficar apenas poucos minutos a sós com o pai. Conversavam sobre a criação de gado quando Byron os interrompeu.
- Posso dançar com sua filha, Sr. King? - Mas é claro que sim!
Sem ter como escapar, ela aceitou a mão que Byron lhe estendeu. Ao sentir a pele áspera contra a sua, Frances estremeceu por inteiro. Precisou de muito autocontrole para não sair correndo, temerosa
quanto às próprias reações ao calor que aquelas mãos transmitiam às suas costas. A proximidade dos corpos perturbava-a.
- Que bela festa! - as palavras de Byron soavam com tanta harmonia quanto seus passos de dança. Tratava-se de uma surpresa para Frances, que o julgara avesso a compromissos sociais.
- Pelo que sei, você não sai muito de casa. Talvez não tenha como comparar.
- Se a imagem que eu passo é a de um sujeito que vive trancado na fazenda cercado de animais por todos os lados, preciso fazer alguma coisa para que as pessoas me conheçam melhor.
- Você se importa com a opinião das outras pessoas?
- Não, não muito.
- Ah, eu logo imaginei...
- Puxa, quem te ouve deve me achar um sujeito insuportável!
- E você não é?
- Talvez tenha razão. Mas eu já lhe disse que nunca te vi tão bonita quanto hoje?
- Gostou do vestido? Acho que ele me dá um toque especial. Você só tinha me visto, até hoje, com roupas de trabalho. Felizmente não nos encontramos com muita freqüência em ocasiões como esta...
- Você não gosta mesmo de mim, hein?
- Não, não gosto.
- Gosto de gente sincera. Quem sabe eu não possa lhe dar um motivo a mais para me odiar? - Byron puxou-a para as sombras das árvores, onde nenhum dos convidados conseguiria vê-los. Frances tentou
se soltar, mas ele prendeu-lhe o pulso com força. Em seguida prensou-a de encontro ao tronco de um velho carvalho, onde Frances se lembrava de ter brincado quando criança, junto com Martha.
- O que você está... - ela ainda tentou protestar, mas calou-se quando Byron beijou-a com volúpia, forçando-a a abrir os lábios, expondo-a a uma experiência desconhecida e involuntária.
O máximo a que Frances se expusera, até então, fora a beijos no rosto - jamais imaginara que o seu primeiro beijo aconteceria naquelas circunstâncias. Naquele instante, a vida explodia em cores vivas
diante dela. Byron apertava-a com tanta força que quase lhe machucava os seios, acelerando-lhe o coração. Tentou empurrá-lo, mas foi inútil: ele não a deixou em paz antes que se rendesse aos beijos quentes,
respondendo-lhe com ardor crescente.
Através do tecido da camisa, Frances podia sentir-lhe o calor e o coração disparado, o que contribuía para acentuar a sua própria excitação.
Instantes depois, Byron afastou-se de repente. Tentando recobrar o fôlego, Frances o encarou sem conseguir definir a expressão que lhe transformava o rosto.
- Você pode se considerar uma fazendeira de gado, Frances, mas antes de tudo é uma mulher. E, da próxima vez que quiser arrumar uma briga, sugiro que escolha alguém que não tenha medo de enfrentá-la.
Ele se virou e saiu, deixando-a oculta em meio às árvores. Com o semblante afogueado e tremendo sem parar, Frances precisou apoiar-se no tronco do carvalho para manter-se em pé.
A princípio, estava tão chocada com tudo que não conseguia sequer odiar Byron pela ousadia que demonstrara. Tão logo se recompôs, porém, sentiu uma raiva avassaladora invadir-lhe a alma, com que direito
ele fora tão atrevido? E quanto a ela? Por que correspondera àquele beijo?... Readquiria o autocontrole quando Martha a abordou.
- O Byron saiu tão apressado! Você sabe por quê?
- Talvez a capacidade dele em se relacionar com os outros tenha se esgotado.
Mal acabou a frase, Frances foi procurar Tony. Às onze horas, decidiram sair, levando Janet e Logan. As crianças entraram no carro sonolentas, o que não às impediu de mostrar uma alegria contagiante.
- Vamos apanhar as crianças amanhã à tarde - Olivia avisou.
- Por que você e o papai não vão para o almoço? Poderiam passar a tarde conosco. Andamos meio distantes nos últimos tempos... Eu adoraria que aceitassem o convite...
- Boa idéia. Mas preciso conversar com seu pai, primeiro. Ligo para você amanhã, certo?
- Perfeito. A gente se vê amanhã, então.
A viagem até Thorndale durou cerca de vinte minutos. Ao chegarem, Tony e Frances ajudaram as crianças, cambaleantes de sono, a descer do carro e entrar em casa.
Major abanou a cauda demonstrando contentamento ao ver os garotos.
- Obrigada pela companhia, Tony - Frances começou a despedir-se.
- Foi um prazer.
Janet e Logan, aparentemente entretidos com o cão, não deixaram de prestar atenção ao que os dois conversavam. Frances percebeu que Tony desejava ficar a sós com ela por um instante, mas uma cena
de amor já fora o bastante por aquela noite. Ainda mais em se tratando dele, que parecia estar começando a interpretar mal a amizade que os unia.
- Boa noite, Tony.
Frances estendeu-lhe a mão, para desaponto das crianças que esperavam, no mínimo, um beijo para fechar a noite. Surpreendendo-a, Tony levou a mão dela aos lábios, beijando-a com cerimônia.
- Boa noite, Frances.
Assim que Tony se foi, Frances levou os irmãos para o quarto de hóspedes. Logan foi o primeiro a arriscar a pergunta.
- Ele é o seu namorado?
- Não; é só um amigo.
- Eu gosto do Sr. Rockford - Janet sentiu-se no direito de entrar na conversa.
- É! Mas, por quê?
- Ah, ele prometeu que nos levaria para passear de carro pelo parque amanhã de manhã!
Procurando esconder a raiva diante de outra demonstração de atrevimento de Byron, Frances questionou com calma.
- Como assim, querida?
- Bem, ele disse que nos buscaria... Ei, Frances, posso dormir com você?
- Claro, mocinha. Logan, o banheiro fica no final do corredor. Não se esqueça de escovar os dentes antes de deitar, hein?
Depois de se despedir do irmão, Frances levou Major para fora de casa e subiu para o quarto com Janet. A cama de casal acomodaria as duas sem sacrifício. Logo estariam debaixo das cobertas. Frances
acostumara-se desde cedo a dividir o leito com a irmã. Mas a pequena Janet adormeceu logo, enquanto ela permanecia desperta.
Não queria pensar no beijo de Byron, mas a cena retornava-lhe à memória com uma nitidez cristalina. Ele não podia ter feito aquilo! Sentia-se confusa e, ao mesmo tempo, irritada, sem entender o porquê.
Não imaginou o que aconteceria no dia seguinte, mas precisava arranjar um meio de se precaver. Byron convidaria as crianças para o tal passeio no parque e ela não podia deixar de acompanhá-las. Qualquer
desculpa que apresentasse soaria como covardia e não estava disposta a permitir que a acusassem de fugir a um desafio.
Angustiada, desejou que o sol demorasse mais a nascer, para ganhar tempo e preparar um plano sobre como agir diante de Byron.
- O senhor Rockford chegou!
Janet, cheia de expectativa, correu para a varanda ao ouvir o som do jipe se aproximando, na manhã seguinte. Major e Logan não se demoraram em segui-la, igualmente excitados.
Byron saiu do carro no mesmo instante em que Frances apontou na varanda. Ao vê-lo, sentiu-se confusa e dividida. Ao mesmo tempo que lhe parecia um homem petulante e grosseiro, não podia negar o quanto
era atraente e sensual.
- Oi, Janet! Como você está linda! E você, rapaz, como vai?
- Bom dia, Sr. Rockford - Logan respondeu, apertando-lhe a mão.
Byron levantou os olhos e sorriu para Frances, ainda imóvel na varanda.
Ela tentou manter-se fria e distante, mas sem muita confiança quanto à própria capacidade de disfarçar a perturbação que a presença daquele homem lhe trazia.
- Por que não vão entrando no jipe? Quero ter uma conversinha em particular com a irmã de vocês antes de partirmos.
Os dois concordaram de imediato. Byron abriu a capota para que subissem no carro. Depois, foi ao encontro de Frances.
- Eu sei que você não se entusiasma muito com a minha companhia, ainda mais depois do que aconteceu na noite passada, mas quero deixar claro que este passeio foi combinado antes de...
- Você não precisa explicar nada. Eu não tenho intenção de estragar o passeio das crianças por sua causa.
- Que bom que você seja tão compreensiva...
Byron deu-lhe as costas e caminhou para o jipe. Frances seguiu-o depois de gritar para que Major voltasse para a varanda.
Sentou-se no banco ao lado do motorista, ajeitando a saia rodada antes de fechar a porta. Virando-se para o banco de trás, Byron perguntou:
- Tudo certo aí?
- Tudo! - as crianças responderam.
- Então vamos.
Chegaram ao parque em poucos minutos. Byron cumprimentou o guarda da entrada principal com um aceno. O homem abriu o portão, liberando o caminho que os conduziria por uma região perfeitamente sinalizada
da reserva.
Frances fechara-se num completo silêncio, mas continuava atenta às mínimas atitudes do homem a seu lado. Byron ostentava uma expressão séria, onde sobressaíam as rugas precoces no canto dos olhos.
Frances perguntava-se se ele seria capaz de rir com descontração por algum motivo, qualquer que fosse. A voz de Janet cortou-lhe os pensamentos:
- Olhem, uma girafa!
- E deve haver mais umas dez com ela!
- A girafa tem a melhor visão dentre todos os animais do parque e da África, com um pescoço tão comprido, pode enxergar ainda mais longe - Byron reduziu a velocidade do jipe e explicou com prazer
as características dos animais.
- Quanto tempo elas vivem?
Frances não conseguiu manter-se quieta, sentindo despertar o seu interesse pela vida daqueles graciosos animais que se alimentavam das folhas das árvores.
- Podem viver até vinte e oito anos em cativeiro.
Nos quinze minutos seguintes, aproximaram-se de uma manada de gnus antes que os animais disparassem em direção a um terreno coberto por capim alto. Byron manobrou o jipe, estacionando-o debaixo de
uma gigantesca acácia.
- Por que estamos parando? - Janet não resistiu à curiosidade.
- Olhem bem à sua frente. Veja lá, Janet!
Numa clareira, grupos de zebras, gnus, antílopes e impalas pastavam calmamente. Falando baixinho, com medo de espantar os animais, Logan perguntou:
- Podemos chegar um pouco mais perto?
- Claro. Mas com uma condição: não se afastem de mim.
Saíram do jipe, deixando abertas as portas, conforme as instruções de Byron, que os guiou por entre as acácias até perto do terreno, dando às crianças e a Frances uma magnífica visão dos animais.
Sob o barulho constante das cigarras, Byron conduziu-os depois até a sombra de uma das acácias, onde se sentaram em silêncio. Estavam tão próximos das manadas que poderiam atingir qualquer dos animais
com uma pedra. O que mais despertou o interesse das crianças foram os antílopes, com seus grandes chifres retorcidos, pele dourada riscada por manchas brancas, compondo um conjunto imponente e elegante.
- Um antílope adulto pode pesar quinhentos e quarenta quilos. É engraçado, mas vocês vão perceber que as fêmeas têm os chifres mais longos que os machos.
Frances olhava, mas não conseguia se concentrar na paisagem. Prestava atenção apenas ao homem que estava atrás dela, transmitindo-lhe o calor do próprio corpo e inebriando-a com seu perfume. Mais
que isso, preocupava-a a própria reação a tal proximidade.
- Acho que já é hora de irmos.
As crianças obedeceram com certa relutância. Uma hora mais tarde, após um magnífico passeio de descoberta à flora e fauna do parque, atingiram uma área fechada, onde havia várias cabanas cercadas
por um enorme muro que protegia aquele ponto mais elevado do terreno, em que se viam jacarandás e baobás em profusão. Passaram ainda pela construção principal, onde estavam os escritórios, lojas, restaurante
e salão de jogos. Um pouco além, existia uma piscina, rodeada de mesas e cadeiras onde os visitantes podiam se refrescar do calor africano sob os guarda-sóis coloridos.
- Vamos beber alguma coisa bem gelada? - Byron sugeriu, parando o jipe.
- Ótimo!
As crianças o seguiram até sua cabana, instalando-se sem cerimônia nos bancos de madeira.
Um imponente aparelho de som, ladeado por duas pilhas de discos em impecável estado de conservação, dominava uma estante, além de diversos livros. Numa das paredes, uma pele de zebra fora dependurada.
Frances sentiu-se revoltada ao imaginar o sacrifício do animal apenas para servir de decoração.
- Temos laranjada e refrigerantes. O que preferem?
- Laranjada, por favor.
- E quanto a você, Frances?
- A mesma coisa, obrigada.
- Por que não se senta? Quero que se sinta à vontade. Byron foi até a cozinha, voltando minutos depois com copos e uma jarra de suco numa bandeja. Colocou gelo nos copos, que as crianças apanharam
com sofreguidão, mas reservou o de Frances para entregar em mãos, sentando-se a seu lado.
- É aqui que o senhor mora? - Logan perguntou fascinado.
- Pode-se dizer que sim. A cabana tem esta salinha, uma cozinha, quarto e banheiro. É pequena, mas bastante confortável.
- Não tem sala de jantar?
- Não, eu janto e almoço na cozinha, Janet. Ou então vou ao restaurante, depois que ele fecha para o público.
A imagem perfeita da solidão se formava na mente de Frances á medida que Byron falava. Será que ele se sentia solitário? Ela olhou para o relógio: onze e meia. A manhã passara rápido!
- Se você não se importa, Byron, precisamos ir embora.
- Temos mesmo que ir, Frances? - as crianças não escondiam a tristeza por deixar o parque e retornar a Thorndale.
- Dentro de meia hora papai e mamãe vão estar na fazenda. Não vamos deixá-los esperando, não é?
- Só mais uma coisa, Frances: não matei aquela zebra apenas para arrancar-lhe a pele. Ela ficou presa numa armadilha de caçador, ferindo-se com tanta gravidade que não nos restou outra alternativa
senão sacrificá-la para terminar logo com o sofrimento do pobre animal. Dois dos guardas trabalharam a pele e me deram de presente.
Frances não sabia o que dizer. Olhou-o diretamente, encontrando a eterna ponta de ironia no sorriso dele. Como podia ter adivinhado com exatidão o que ela estava pensando? Ou teria sido mera coincidência,
um fato mencionado ao acaso, apenas pelo que continha de pitoresco? Ela não sabia o que pensar. E não se sentia segura o suficiente para perguntar. Byron Rockford revelara já ser um desafiante habilidoso,
surpreendendo-a sempre com novas técnicas de ação.
Ora mostrava-se ardente e romântico, ora agressivo e grosseirão. Parecia ter plena consciência do fascínio que exercia sobre ela, chegando ao ponto de conseguir ler seus pensamentos.
Frances precisava ter muito cuidado com ele, ou aquela guerra assumiria proporções bem maiores, com desastrosas e perigosas conseqüências...





CAPÍTULO V




Bernard e Olivia chegaram a Thorndale pouco depois de Byron ter estacionado o jipe sob a sombra dos jacarandás. Poucas vezes Frances sentira tanto alívio ao chegar em casa. A presença de Byron lhe
parecia uma tormenta, revolucionava todos os seus sentimentos, deixava-a transtornada. No entanto, quando Byron começou a se despedir, Olivia fez objeção.
- Para que tanta pressa de voltar a Izilwane, Byron? Vamos conversar lá dentro, venha!
- Bem, eu... - olhou para Frances, colocando-a numa situação delicada, em que ela foi obrigada a concordar com a idéia de Olivia.
- Será bem-vindo, caso queira ficar.
- Obrigado. Mas só ficarei alguns minutos.
Entraram em casa para se refugiar logo do calor. Frances conduziu-os até a sala de estar. No íntimo a presença da família a deixava mais tranqüila, mas nem toda a tensão diante de Byron se dissipara.
Para piorar a situação, ele parecia conquistar o coração do pai e o de Olivia. Ela conhecia bem a versão de Bernard a conversas fúteis, por isso o bom entrosamento existente entre ele e seu vizinho provava
pelo menos uma coisa: Byron Rockford não era tolo.
De qualquer modo, não tomou parte na conversa. Resignou-se a ouvi-los, às vezes olhando para o relógio e verificando que os minutos se sucediam até ser completada a primeira hora. Viu-se de novo impelida
a convidar Byron para almoçar. Tinha esperança de que ele recusasse o convite, mas qual não foi sua surpresa quando ele o aceitou. Receou que tivesse de suportá-lo por toda a tarde, todavia ele se foi
logo após a refeição. De tão aliviada, Frances deixou-se cair no sofá com um suspiro muito profundo.
Bernard saiu para um passeio, levando Logan e Janet consigo.
Frances, por sua vez, percebeu que Olivia a examinava com curiosidade.
- Posso lhe perguntar uma coisa, Frances?
- Claro.
- Você ainda está brava com Byron por causa do que aconteceu no dia da compra da fazenda?
A pergunta a pegou de surpresa. Mas sempre existia plena sinceridade entre elas. Naquele momento, como em todos os outros, Frances não escondeu os sentimentos.
- Ainda estou, sim. Fiquei muito irritada com aquilo e com várias outras coisas que aconteceram desde então.
- Por exemplo? Isto é, se eu não estiver me intrometendo nos seus assuntos particulares...
Frances olhou para a madrasta, uma mulher esguia e de rosto delicado, com imensa ternura. Olivia tinha trinta e nove anos, dezesseis a mais que ela, mas a diferença de idade nunca representara obstáculo
à amizade entre elas. Frances a conhecera com dez anos e desde o início construíra-se uma relação carinhosa, que se fortalecera com o decorrer do tempo. Jamais se arrependera por tê-la aceitado como substituta
de sua mãe. Olivia entrara na família no momento certo, e com sua natureza gentil e atenciosa transformara Mountain View novamente num lar.
- Duvido que minha mãe pudesse significar mais para mim do que você, Olivia. Você sempre me deu tudo o que eu esperava de uma mãe. Tem sido uma amiga fiel e muito querida. Por tudo isso, jamais pensaria
que uma pergunta sua se tornasse uma intromissão na minha vida.
- Oh, querida, obrigada! Que bonito isso que você me disse! - Olivia comentou emocionada.
- Você sabe que é do fundo do meu coração, não é?
- Sei, sim. E te adoro por isso.
As duas se abraçaram e a solenidade do momento foi quebrada por risos nervosos, que buscavam esconder as lágrimas.
- Voltando a Byron Rockford, é curioso: por que certos homens são tão arrogantes e presunçosos quando vêem uma mulher entrar num território que julgam exclusividade masculina, enquanto outros conseguem
enxergar isso de uma forma natural?
- Querida, há muito poucos homens capazes de enfrentar uma situação assim com tranqüilidade. Alguns são tolerantes e aceitam essa invasão em silêncio, enquanto outros não têm receio de demonstrar
o descontentamento. Pelo que vejo, Byron faz parte do segundo grupo.
- Adivinhou. Ele está convencido de que não vou ter sucesso como administradora desta fazenda. Tem certeza de que estarei louca para me livrar de Thorndale em menos de um ano.
- Muito bem, querida, tudo o que você tem a fazer é provar-lhe que está enganado.
- Mas é claro que vou fazer isso!
Frances riu, olhando para o quadro de George Wilkins. Por um momento, imaginou que o velho aprovara o que ela dissera através de um sorriso.
Frances passou os dias seguintes separando o gado Afrikaner. Tratava-se de uma tarefa penosa, pois a divisão deveria obedecer aos critérios de idade e saúde dos animais. Precisava decidir a quantidade
que colocaria à venda e quais os que manteria em Thorndale para o que, muitas vezes, necessitou da ajuda e experiência do pai. Mountain View gozava da fama de fazenda modelo na criação de gado Afrikaner
na região. Frances pretendia vir a ter um dia a sua fazenda como a segunda colocada nessa escala, sem se esquecer do plantei de Brahmans.
Trabalhava duro, levantando-se às cinco e meia todos os dias. Numa quinta-feira, porém, quando tomava café com Martha na varanda, viu Sibho aproximar-se a galope num cavalo. Teve o pressentimento
de que algo errado acontecera.
- Srta. Frances! Cortaram a cerca de novo!
- Não, outra vez não! Onde foi, agora?
- No mesmo lugar, senhorita.
- Droga! Junte alguns dos homens, Sibho. Vou apanhar o jipe e te encontro daqui a pouco na área do riacho.
- Sim, Srta. Frances.
Sibho puxou as rédeas e disparou com o animal, na mesma velocidade com que chegara.
- Me faz um favor, Martha? Telefone para o Byron e conte-lhe o que houve.
Frances nem esperou para ver se a prima realizaria seu pedido.
Correu até a garagem e, minutos depois, atravessava as trilhas esburacadas até o local do problema.
O buraco aberto era bem maior que o da vez anterior. O responsável pela agressão dera-se ao trabalho de enrolar o arame para trás, como se quisesse dificultar ao máximo o reparo do dano. Até um antílope
poderia cruzar o espaço sem sacrifício. A contagem das cabeças de gado revelou que nenhum animal passara para o lado do parque, talvez por Sibho ter descoberto a abertura às primeiras horas da manhã. Frances
torcia para que o mesmo houvesse acontecido com as espécies do parque.
Abaixou-se perto da cerca e notou sinais de patas de cavalo na terra úmida. Entretanto, não podia concluir nada a partir deste detalhe, pois as marcas podiam ser do cavalo de Sibho, ou até mesmo do
seu. Não se tratava de pegadas frescas, e não constituíam, tampouco, prova que levasse ao autor daquele atentado à sua propriedade.
Qualquer um dos empregados poderia ter passado pelo lugar no dia anterior.
Sibho logo trouxe outros funcionários da fazenda, seguido pouco depois por Byron. Atrás do jipe vinha um caminhão cheio de empregados de Izilwane, com ferramentas a postos para consertar a grade.
Frances ergueu-se, temendo pelo pior à medida que Byron se aproximava dela. Preparou-se para uma discussão calorosa, mas ele se limitou a cumprimentá-la com um gesto de cabeça. Em silêncio, passou a examinar
o estrago na cerca.
"Sei o que você está pensando, Byron Rockford! Se acha que eu cortei a grade, por que não diz logo de uma vez e acaba com esse suspense?", ela pensou, aflita.
Frances julgava-se capaz de suportar eventuais ofensas, mas não agüentava mais aquele silêncio obstinado. Chegava a tremer de tensão. Sibho surgiu, desviando-lhe a atenção.
- Quem será que fez isso, Srta. Frances?
- Não sei, Sibho. Mas precisamos descobrir.
Byron voltara ao jipe. Ela se ressentia cada vez mais diante da atitude lacônica do vizinho.
- O Grande Homem Branco está bravo.
- Eu também estou, Sibho. É a segunda vez que cortam a cerca, e eu daria a vida para saber quem é o responsável e por que faz isso.
Frances permaneceu ali até os trabalhos de reparo começarem e então retornou para casa.
Instruído por Frances, Sibho fez discretas investigações entre os empregados nos dias seguintes, mas não obteve nenhum resultado. Quando Tony soube do que acontecera, também conversou com o pessoal
da fazenda Grove, mas ninguém vira ou escutara nada que ajudasse a desvendar o mistério. O autor do estrago permanecia desconhecido.
As semanas se sucediam em monótona rotina, sem nenhum acontecimento digno de nota. Frances mal falava com Byron, apesar de tê-lo encontrado apenas uma vez enquanto fazia compras na cidade. Nem pararam
para conversar, limitando-se a uma formal troca de cumprimentos. Por alguma razão, sentia-se deprimida diante do silêncio de Byron.
Em abril, três meses depois de Frances ter comprado a fazenda, ela recebeu a visita do pai e de um amigo dele, Sr. Nel, de Phalaborwa. O homem estava interessado em comprar gado Afrikaner, ao todo
cerca de quarenta cabeças, entre machos e fêmeas. Ficou tão impressionado com a qualidade dos animais de Thorndale e com o preço pedido por Frances, que decidiu levar sessenta animais.
- Trouxe apenas dois caminhões... Acredito que não vou poder carregar mais do que quarenta cabeças. Seria possível que a senhorita despachasse o restante para minha fazenda, a Phalaborwa?
- Claro que sim, Sr. Nel, mas receio que tenha de esperar alguns dias... Uma semana está bem?
- Para mim está perfeito.
Os caminhões estacionaram naquela mesma tarde e os animais foram embarcados e preparados para a longa viagem até Palaborwa.
Dois dias depois, Frances foi chamada por Gladys em casa, logo após o jantar, para resolver uma questão inédita em sua experiência como administradora: Princesa, a égua, entrara em trabalho de parto
havia cerca de duas horas, e parecia ter problemas sérios. Frances tentou ligar para o veterinário, mas ele fora atender a um chamado de emergência numa cidade vizinha. Sibho, que talvez pudesse ajudá-la,
fora jogar sinuca com alguns amigos na cidade. Os demais funcionários que não pousavam na fazenda àquela hora estavam recolhidos em suas casas.
Telefonou então para Mountain View, mas Olivia informou-a de que Bernard viajara para um encontro com fazendeiros. Ao desligar o aparelho, desanimada, ela discutiu com Martha sobre como sair daquela
situação. A prima não pensou muito para sugerir:
- Byron deve saber o que fazer. Por que não telefona para ele?
- Não!
- Mas ele tem experiência nestes assuntos, Frances!
- Posso me ajeitar sozinha, obrigada.
- Não seja tola! Se você não quer pedir ajuda a ele, eu não pensarei duas vezes.
- Byron Rockford é a última pessoa do mundo a quem eu pediria qualquer auxílio e você sabe disso!
Frances não quis continuar a discussão; e saiu rapidamente da casa. A noite estava escura, mas ela já se acostumara aos caminhos da fazenda, podendo percorrê-los de olhos vendados. Ao chegar ao estábulo
encontrou Princesa sozinha e em óbvia agonia. Abaixou-se e acariciou carinhosamente o pescoço do animal.
- Queria tanto poder ajudá-la, Princesa! Mas receio não ter como fazê-lo.
A égua levantou a cabeça, onde se destacava uma grande mancha branca em forma de estrela, e gemeu baixinho, como se quisesse dizer que compreendia tudo. Frances não resistiu e começou a chorar. Mas
ficar ali sentada e com lágrimas nos olhos não ajudaria em nada. Precisava fazer alguma coisa. Mas o quê?
O som de passos firmes despertou-a dos próprios pensamentos. Virou-se e deu de cara com Byron, que acabava de entrar. Ele pareceu assumir todo o controle da situação com um simples olhar, provando
mais uma vez o temperamento dominador. O coração de Frances encheu-se de alívio. Mas preferia morrer antes de admitir que se encontrava feliz por voltar a vê-lo.
- O que você quer?
- Vim ajudá-la.
Byron abaixou-se ao lado de Princesa, alisando-lhe com cuidado a barriga que se contraía violentamente.
- Não pedi a ajuda de ninguém... - Frances balbuciou num fio de voz.
- Ora, não seja orgulhosa! Martha me ligou pedindo que viesse aqui. Parece-me que ela tem muito mais bom senso do que você.
Frances não teve como prolongar a discussão. A vida da égua corria perigo e, por menos que gostasse da idéia, Byron era o único que poderia salvá-la.
- O que você acha?
- Preciso fazer um exame interno antes de responder a sua pergunta. Sugiro que me arranje um balde de água quente e sabão. Algumas toalhas velhas também ajudarão. - E, por favor, ande logo!
Ela não hesitou. Correu de volta para a casa e retornou ao estábulo pouco depois com tudo o que Byron pedira.
Encontrou-a sem camisa e quase perdeu o fôlego ao ver os formidáveis músculos nas costas dele. Byron lavava os braços com cuidado, quase até a altura dos cotovelos.
- Seria bom que você falasse com ela, Frances. Quanto mais calma ficar, melhor. Isto pode demorar um pouco.
Frances mais uma vez obedeceu. Byron colocou o braço quase inteiro dentro do animal. O pêlo marrom de Princesa começava a tingir-se de vermelho, enquanto ela virava os olhos e gemia baixinho.
Frances continuou a acariciá-la e a murmurar-lhe palavras de carinho. Depois de alguns minutos Byron soltou uma exclamação.
- O que foi?
- Descobri o problema! O pescoço do filhote está torcido, por isso o parto está atrasando.
- Você acha que pode ajeitá-lo?
- Não sei, mas vou tentar.
Frances perdeu a noção do tempo. Os minutos que passava abaixada junto à égua tinham o peso de horas. Byron prosseguia no trabalho, extremamente cuidadoso e delicado.
Suava muito. Suas costas brilhavam sob a luz de uma lâmpada pendente do teto. A noite estava quente, fazendo com que Frances sentisse a própria camisa colada ao corpo.
- Pronto! Está perfeito!
- Ela está tão fraca! Você acha que vai se salvar?
- Provavelmente sim.
Byron enxaguou os braços e secou-os com uma toalha. Depois, voltou a massagear a barriga da égua.
- Vamos, Princesa! Força! Que tal uma bela contração para o filhote nascer rapidinho?
O animal atendeu-o alguns minutos mais tarde, possibilitando que o potrinho nascesse. Frances quase chorou de emoção, mas controlou-se por temer as piadas que decerto ouviria de Byron.
Ele usou as toalhas velhas para secar o potro, ao mesmo tempo que o massageava. O animal aos poucos foi se erguendo, provocando risadas de Byron diante da hesitação e da fraqueza das pernas. Frances
jamais pensara que o veria algum dia manifestar emoções tão genuínas.
- Vamos, garoto! Você está fraquinho como a mamãe, mas vai andar logo, logo...
Princesa também se levantara. Byron guiou o potro até a mãe para que fosse amamentado. Ele e Frances divertiam-se, sentados na palha esparramada pelo estábulo. A prevenção contra o vizinho aos poucos
dava lugar a um sentimento de admiração e respeito. Já eram quase dez horas, mas Byron não partiu antes de se certificar de que deixaria mãe e filhote sãos e salvos.
Ele acompanhou Frances de volta para casa, vestindo a camisa que retirara para cuidar do parto. Exausto, nenhum deles tinha ânimo para falar. Frances tentava, em silêncio, definir um modo adequado
para agradecê-lo. Sem a assistência dele, com certeza, teria perdido os dois animais.
Entraram pela porta da cozinha. Tomando coragem, Frances disse simplesmente:
- Muito obrigada, Byron.
- Não precisa me agradecer, Frances. Aliás, se for preciso uma situação dessas para que você me chame pelo primeiro nome, então pode contar comigo na hora que quiser!
Frances corou e desviou o olhar. Usara o nome por distração, sem pensar. Parecera-lhe muito natural, mas o fato de Byron ter percebido o detalhe embaraçava-a um pouco.
Para sua sorte, Martha apareceu na cozinha segundos depois, aliviando a tensão que começava a reinar no ambiente.
- Desculpem eu não ter aparecido para ajudar Princesa, mas achei que só iria atrapalhá-los. Correu tudo bem?
- Sim. Graças a Byron, Princesa finalmente conseguiu dar à luz o seu potrinho. Eu não me surpreenderia se ele tivesse sangue árabe nas veias, Martha. É lindo!
- Telefonei para Olivia agora há pouco, Frances. Disse-lhe que não se preocupasse porque Byron chegara para ajudar.
- Obrigada.
- Bem, vou para a cama. Vejo vocês amanhã.
Frances não gostou da saída apressada da prima, pois teria de passar mais tempo a sós com Byron. Sua masculinidade perturbava-a demais. Jamais conhecera um homem capaz de provocar-lhe tanto.
- Sei que já é tarde, mas... Aceita uma xícara de café antes de ir embora?
- Não vou recusar.
Frances ligou a cafeteira elétrica, com as mãos trêmulas. Ela sabia que Byron acompanhava cada um de seus movimentos enquanto colocava o pó, o filtro e a água na máquina e depois, ao servir as xícaras
de café quente. Sentia-se ridícula por reagir daquele modo. Mostrar-se nervosa e tímida era muito penoso. De súbito, porém, flagrou-se recordando a conversa e o beijo na festa de Martha.
Duvidava sinceramente de que fosse se esquecer das palavras de desafio que ouvira logo após os atrevidos beijos de Byron. No fundo, precisava admitir que, de certo modo, merecera a advertência. Ele
era um adversário de respeito, o que não deixava de causar-lhe admiração.
Frances depositou a bandeja sobre a mesa e trouxe também alguns biscoitos, açúcar e leite, sem conseguir disfarçar a tremedeira nas mãos. O olhar maroto de Byron deixava-a sem ação. Quebrando o silêncio,
resolveu fazer as pazes.
- Byron... Não fui eu quem cortou a cerca. Acho que posso dizer o mesmo em relação a todos os meus empregados. Eles trabalham em Thorndale há vários anos. Nenhum deles teria qualquer motivo para fazer
uma coisa tão horrível.
Byron não respondeu a princípio, deixando Frances com a sensação de que não ouvira sequer o que colocara. Todavia, de repente, Byron esboçou um sorriso e comentou:
- Eu acredito em você e devo-lhe desculpas por tê-la acusado na primeira vez em que isso aconteceu.
- Tudo bem. Mas isso não resolve o problema, não é? Ainda não sabemos quem é o culpado.
- Fique tranqüila. Acabaremos descobrindo. Mas, mudando de assunto: Martha me disse que você vai despachar um caminhão de gado para Phalaborwa na semana que vem...
- É verdade. Parto na terça-feira à tarde. Quero fazer a maior parte do percurso à noite, por causa do calor.
- Será que você poderia me fazer um favor? Eu queria comprar três leões, um macho e duas fêmeas, do antigo proprietário de um parque bem próximo a Phalaborwa. Se eu pedir a ele que deixe os animais
prontos para a viagem, você acha que poderia trazê-los até Izilwane para mim?
Frances pensou por alguns segundos. O caminhão voltaria vazio... Mas transportar leões? Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha ao encarar tal possibilidade.
- Eles vão estar em jaulas?
- Lógico! Em jaulas especiais para o transporte. Devem ser razoavelmente seguras.
O que significaria "razoavelmente seguras"? As jaulas eram confiáveis ou não? Ou estaria vendo problemas que não existiam? Frances sentia-se cada vez mais confusa.
- Bem, se os animais vão estar em jaulas, posso trazê-los. A idéia de leões vivendo do outro lado da cerca, contudo, não a agradava muito. Já tinham problemas suficientes com um louco desconhecido
cortando as grades e os animais passando de um terreno para o outro. E se, na próxima vez, um dos leões viesse caçar seu gado?
- Você mesma vai dirigir o caminhão?
- Não, Sibho cuidará disso. Só vou com ele para me certificar de que nenhum problema acontecerá aos animais.
- Tenho uma idéia melhor. Por que você não deixa o Sibho aqui, tomando conta da fazenda? Nós dois poderíamos levar a encomenda e eu me ofereço para dirigir.
- De fato é uma boa idéia...
Frances concordou satisfeita, pois estava preocupada em deixar a fazenda sob os cuidados dos funcionários. Sibho era mais antigo na casa, e de alguma maneira inspirava-lhe mais confiança. A sugestão
de Byron viera a calhar. De repente, lembrou-se aterrorizada de um detalhe: precisaria passar pelo menos uma noite sozinha com ele, em plena estrada! Tarde demais: não podia mais voltar atrás, pois já
aceitara a idéia.
Byron saiu logo depois, prometendo entrar em contato assim que os preparativos estivessem prontos. Frances voltou ao estábulo, acompanhada por Major, para uma última espiada em Princesa antes de se
recolher. A égua lambia o novo potrinho com carinho...




CAPÍTULO VI




No sábado à noite foi realizado um baile em Izilwane. Tony convenceu Frances a acompanhá-lo. Um trio vindo de Louisville cuidou da parte musical e o restaurante ficou lotado de fazendeiros e visitantes
do parque. As danças estavam animadas e a comida, ótima.
Pela segunda vez em poucos meses Frances via-se obrigada a pisar em terreno perigoso. A princípio sentiu-se incapaz de enfrentar Byron, uma vez que estava acompanhada por Tony, mas depois convenceu-se
de que era tolice e decidiu se divertir.
Dançou bastante com Tony, mas quando a banda parou para descansar e o som de fitas a substituiu, ele levou-a para fora do salão. A noite caía fresca e os dois dirigiram-se à área da piscina, deserta
àquela hora, atentos ao céu que se cobrira de estrelas. Frances aproveitou o passeio para respirar o ar puro, livre dos cigarros e da fumaça que dominava o restaurante.
- Frances... Queria falar com você sobre nós... sobre o nosso relacionamento.
- Como assim?
- Nós temos saído juntos várias vezes nestes últimos três meses. Acho que tivemos oportunidade de nos conhecer bem, você não acha?
- É, eu concordo.
- Eu diria que já nos conhecemos tão bem que poderíamos começar a pensar em assumir um compromisso mais sério... Frances, eu gostaria de me casar com você!
- O quê?! - ela encarou-o, assustada com aquela idéia tão estapafúrdia.
"Ele deve estar louco", pensou. Embora o relacionamento deles fosse cordial e agradável, desde o início ela se esquivara de um compromisso. Se não estavam nem namorando, não compreendia de onde Tony
podia tirar esperanças de que concordasse com um passo tão sério quanto o casamento.
- Pense nas conseqüências disso, Frances! A Grove e a Thorndale, juntas! Unidas, elas se tornariam a maior e melhor fazenda da região. Seria maravilhoso e...
- Ora, quer fazer o favor de parar de sonhar? Eu gosto de você, aprecio sua amizade, mas nada mais do que isso! Jamais acontecerá alguma coisa diferente entre nós, Tony! O que há com você?
- Você não sabe o que está dizendo...
- Claro que sei! Sinto muito.
- Mas você gosta de mim, acabou de dizer! Por que não me dá uma chance? Garanto que aprenderia a me amar. Posso provar!
Numa atitude que não combinava com os modos gentis que o caracterizavam, Tony agarrou-a pela cintura, tentando beijá-la. Frances se irritou e, debatendo-se, virou o rosto, fazendo com que os lábios
úmidos dele a tocassem apenas numa das faces.
- Não seja bobo, Tony. Pare com isso!
Ele deixou cair os braços, desanimado.
- O que há com você, Frances?
- Eu é que deveria lhe perguntar isso! Você está se comportando de modo irracional. E vai acabar estragando nossa amizade se não se controlar.
- Desculpe, mas eu pensei... - Tony passou a mão sobre o rosto. - Quer voltar ao restaurante?
- Vá você. Quero ficar um pouco sozinha.
- Tudo bem. Eu te espero lá dentro. Não demore, por favor... Frances observou-o até que desaparecesse entre os convidados.
Depois, acomodou-se numa cadeira à beira da piscina, observando a água cristalina e serena. Estranhara muito o comportamento de Tony. Ainda procurava se recompor do inesperado pedido de casamento
quando ouviu passos atrás de si.
Levantou-se de imediato, pensando que ele tivesse voltado. Mas teve de calar a repreensão que lhe brotava dos lábios quando se viu frente a frente com Byron. Não supôs que pudesse sentir tanto alívio
em vê-lo, mas diante do episódio com Tony, qualquer pessoa que aparecesse seria preferível a uma nova investida.
- Será que eu acabei de testemunhar, por acaso, uma briguinha de namorados? - Byron provocou.
- Isso não é da sua conta! - Frances retrucou, áspera.
- Ele não é homem para você, Frances.
- Isso também não lhe diz respeito! De súbito Byron segurou-a pelos braços.
- Venha comigo.
- Não! Me solta!
- Tenho uma surpresa para você... Hoje é noite de lua cheia, você vai gostar.
- Tony vai ficar me procurando. E a Martha também.
- Conversei com sua prima e avisei que você estaria comigo. Quanto ao Tony, não estou nem um pouco preocupado.
- Você falou com Martha? Que atrevimento! Como se dá o direito de fazer isso sem me consultar?
Sem dar atenção aos protestos, ele forçou-a a entrar no jipe.
- Não quero ir a lugar algum com você, Byron!
- Entre logo, estamos perdendo tempo! Ou será que vou precisar pegá-la no colo?
Frances reconheceu que não poderia escapar. E uma vez que a possibilidade de ser carregada para dentro do jipe lhe parecia humilhante demais, resolveu sentar-se no banco do veículo sem mais discussões.
Byron assumiu a direção.
Alguns minutos após deixarem as luzes e o movimento do restaurante, e penetrarem numa das sinuosas trilhas do parque, Frances não pôde mais suportar a curiosidade.
- Para onde você vai me levar?
- Você já vai saber.
Meia hora mais tarde, Frances ouviu um som de água corrente e começou a desconfiar das intenções de Byron quando ele parou nas proximidades de um píer de madeira, ao qual uma lancha estava atracada.
- Venha! - desceu do carro.
- Não vou entrar naquela lancha com você...
- Ah, vai sim!
Antes que ela pudesse rebater o argumento, Byron pegou-a no colo, aprisionando-a como se tivesse braços de aço. Tudo aconteceu com muita rapidez. Instintivamente, Frances segurou-se no pescoço de
Byron, receosa de perder o equilíbrio.
- Ponha-me no chão, Byron!
- Se você não parar de se debater, vamos acabar os dois na água. E eu não gostaria de virar jantar de crocodilo...
Frances estremeceu. "Crocodilo? meu Deus", pensou. Ela também não tinha a menor intenção de terminar seus dias no estômago de um daqueles assustadores répteis.
O problema era que Byron não lhe parecia menos perigoso. Segundos depois, ele colocou-a dentro da lancha e assumiu os comandos.
Byron, você tem certeza de que há crocodilos aqui? - perguntou desconfiada.
- Claro que não.
- Seu monstro! Você mentiu para mim!
Ela tentou agredi-lo, mas Byron a deteve sem maiores esforços, segurando-a pelos pulsos. Com uma das mãos, neutralizou-lhe os braços, enquanto que com a outra agarrou-lhe um punhado de cabelo, forçando
a cabeça dela para trás. Frances estava presa e debatia-se inutilmente. Sua agitação só contribuía para intensificar o contato entre os corpos. Byron continuava a olhá-la com ar de quem se divertia um
bocado.
- Pare com isso!
- Agora chegou a minha vez - ele inclinou-se, beijando-a no pescoço.
Com a sabedoria de quem já conhecera muitas mulheres, ele foi descobrindo pontos sensíveis na pele macia de Frances que nem ela mesma conhecia. Sob o toque dos lábios quentes de Byron, cada centímetro
da pele dela parecia explodir de excitação.
Como ele conseguia ter tanto poder? Como explicar a sensação de calor que, de súbito, relaxou todas as resistências que Frances criava a tamanha ousadia? Todavia, por mais que não quisesse admitir,
seu coração vibrava intensamente dentro do peito. Parecia querer competir com o barulho monótono e grave do motor da lancha. O tremor dos lábios só cessou quando Byron pousou sobre eles a boca úmida e
quente, provocando-lhe uma reação alucinada e irresistível. Frances abraçou-o com força, desejando sentir cada músculo daquele corpo viril.
Byron acariciou-a devagar, explorando-lhe as coxas e os seios, cobertos com sensualidade pelo tecido fino do vestido. Frances sabia que devia rejeitar cada um daqueles carinhos, mas não podia resistir.
Mal conseguiu manter-se em pé quando ele a soltou. Sentia-se perdida e olhou-o ansiosa, buscando descobrir a explicação para todas as dúvidas que a assaltavam.
- Surpreendente, não, Frances? Pelo menos uma vez na vida consegui deixá-la sem palavras...
- Você... você não presta! - ela exclamou decepcionada. Sentia-se tão irritada que tinha vontade de fugir correndo dali.
Byron, porém, não lhe deu maior atenção, concentrando-se em acelerar a lancha, arrancando e cobrindo o píer com uma onda de espuma.
Ele ocupou a faixa central do rio. Quase sem perceber, Frances foi se distraindo com a paisagem maravilhosa ao redor. Apoiou-se na grade e descobriu que os reflexos da lua davam à água a aparência
de prata líquida.
Logo em seguida, o motor parou. Frances vivenciava um estado maravilhoso de paz interior. Era como se estivesse sozinha no meio de um paraíso... muito longe... onde se ouvia apenas o barulho das águas...
às vezes, um chacal uivando ao longe... parecia um sonho!
- Não é bonito? - Byron contemplou-a com um brilho misterioso no olhar.
- Muito.
- Quando eu era criança, costumava sonhar que um dia teria um lugar como Izilwane...
- Ainda bem que você conseguiu transformar o sonho em realidade.
- E você, Frances? Não tinha nenhum sonho?
Byron se recostou na grade da lancha. Tinha nos lábios um sorriso que parecia denunciar certa dificuldade em imaginá-la criança.
- Sonhava ser fazendeira como meu pai. Ele não aprovava a idéia no início, mas sempre contei com o apoio de Olivia, com o tempo, ele acabou cedendo.
- Pelo que entendi, Olivia não é sua mãe.
- Não. Minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos. Bernard casou-se com Olivia seis anos depois...
- Você ficou triste com isso?
- De jeito nenhum! Ela é uma pessoa tão maravilhosa que sempre torci para que os dois se casassem... Mas me fale um pouco sobre a sua família.
- Meus pais morreram quando eu era criança. Fui criado por uma tia solteira. Fiquei surpreso quando, há alguns anos, ela morreu e me deixou uma pequena fortuna como herança. Sempre trabalhei muito,
mas não ganhava o suficiente para sobreviver. Jamais teria conseguido comprar Izilwane sem a ajuda dela. Gastei tudo para comprar o terreno. A implantação do parque me custou um esforço imenso, sabia?
- Mas eu acho que você jamais se arrependeu, não é?
- Nunca. E você?
- Também não. É ótimo ter como vizinho um sujeitinho arrogante e presunçoso como você: isso só me faz ter mais disposição para ir adiante...
- Peço desculpas se pareço presunçoso e arrogante como você diz, mas mantenho minha opinião de que administrar uma fazenda não é tarefa para uma mulher.
- Pois eu ainda vou convencê-lo de que está completamente enganado!
- Você não tem que me provar nada, Frances. Quem precisa se convencer de que tomou a melhor decisão é você mesma.
- Já estou convencida.
- Neste caso, a opinião de um homem presunçoso e arrogante como você diz que eu sou não deveria ter tanta importância...
"Ele tinha razão", Frances pensou. No entanto, não era bem assim: a opinião de Byron importava. Mas por quê?
Um pesado silêncio caiu sobre eles. Quando Byron recomeçou a falar, sua voz não era agressiva, porém firme e decidida.
- Olhe bem para esta paisagem, Frances. Se você se emociona com ela, então deve perceber por que tenho razão quando digo que Tony não é homem para você.
- Ora, não me diga que está preocupado comigo! - ela respondeu, sorrindo.
Jamais poderia imaginar que o motivo da excursão forçada pelo parque fosse discutir Tony e as razões que tornariam um relacionamento entre eles impossível.
- Pode parecer estranho, mas me preocupo, sim. Você gosta de verdade da natureza, Frances, e é fácil notar que tem disposição de sobra para o trabalho. Mas Tony Philips não está interessado em preservá-la.
Preocupa-se apenas com o que consegue arrancar dela.
Era verdade. Frances descobrira desde cedo que Tony não se esmerava em levar a sério a própria fazenda. De qualquer modo, não tinha a menor vontade de entrar numa discussão sobre o assunto com Byron.
- Vou me lembrar do conselho, Byron.
A brisa desmanchava-lhe o cabelo, que ela preferira deixar solto para a festa. Byron ajeitou-lhe alguns fios mais rebeldes para trás das orelhas e, em seguida, deixou que as mãos deslizassem pelo
queixo e pescoço de Frances com uma leveza e suavidade hipnotizantes.
Aquele toque pareceu a ela irresistível. Ainda que quisesse se conter, sentia o coração bater mais forte à medida que o clima entre eles se tornava cada vez mais sedutor.
Ao mesmo tempo em que Byron inclinou a cabeça, Frances levantou o rosto. Tinha-se a impressão de um movimento exaustivamente ensaiado, tão perfeita fora a sintonia.
Era como se uma força superior os guiasse, a despeito das próprias vontades. Um calor súbito sufocava-a por dentro, tornando-se mais intenso conforme os carinhos se definiam. Só uma vontade podia
ser identificada no coração de Frances: deixar-se envolver pelos braços de Byron, para sempre...
Pela primeira vez ela desistiu de analisar o que acontecia a seu redor. De certo modo, esperara durante muito tempo por aquele momento, mas agora que chegara, sentia-se medrosa e insegura. A realidade
era difícil de ser encarada.
- Leve-me de volta, Byron. Por favor... - ela suplicou, baixando os olhos.
Byron afastou-se, voltando aos controles da lancha. Reacionou os motores, cujo ronco ritmado rasgou o mágico silêncio do lugar.
Frances não saiu um instante sequer da grade lateral enquanto o barco voltava para o ancoradouro. Com medo de expor os próprios sentimentos, recusou a mão que Byron lhe estendeu na intenção de ajudá-la
a subir ao píer. No caminho de volta á festa, nenhum dos dois falou. Assim que estacionou o jipe, contudo, Byron virou-se para ela e quebrou o silêncio.
- Então, está tudo certo. Podemos ir apanhar os leões em Phalaborwa na terça-feira - a voz dele soou sem a emoção anterior, impessoal e fria. Era como se quisesse demonstrar absoluta indiferença diante
do que ocorrera no passeio de barco.
A única reação de Frances foi acenar com a cabeça, em sinal afirmativo, antes de sair do veículo. Um nó apertava-lhe a garganta, mas ela se recompôs antes de entrar no restaurante. Precisava aceitar
o que lhe acontecera e conviver com os efeitos devastadores daquele passeio. Byron não se importava com ela, decerto jamais isso ocorreria. A vida dele se resumia àquele parque de sonhos: Izilwane. Ela
não passava de mais uma mulher que lhe cruzara o caminho. O beijo fora mera conseqüência da poesia e da beleza daquela paisagem... o silêncio... a solidão... um flerte, só isso!
Frances entrou no restaurante, que continuava lotado. E Tony não demorou a vir encontrá-la.
- Mas onde é que você andou? - Eu fui...
No meio da sentença, encontrou o olhar aflito de Martha e decidiu não contar toda a verdade.
- Fui dar um passeio.
- Longo esse passeio, não? Você foi sozinha?
A atitude de Tony começava a aborrecê-la. Também Martha se mostrava tensa diante de uma situação tão embaraçosa, que decerto poderia acabar mal. De qualquer maneira,
Frances sorriu e comentou:
- Pare com isso, Tony. Você sabe muito bem que não preciso lhe dar nenhuma satisfação.
Martha aproximou-se, comentou algo a respeito da festa e depois disse:
- Bem, preciso ir ao toalete. Você me acompanha, Frances?
- Claro, Martha.
Frances apanhou a bolsa e seguiu a prima através do corredor que ligava os banheiros ao salão principal.
- Pelo amor de Deus, onde você esteve esse tempo todo? Percebeu que deixou o Tony sozinho por mais de uma hora?
- Byron me levou para um passeio de lancha pelo rio.
- Não me diga!
O sorriso maroto de Martha traía-lhe os pensamentos. Frances tentou evitar que a prima entrasse no campo dos delírios e suposições.
- Nós conversamos...
- Eu imagino mesmo o tipo de conversa que tiveram... - E, rindo, acrescentou: - Só não sei se tiveram fôlego para murmurar alguma palavra!
- Martha!
Frances sempre acreditara que um dia se descobriria apaixonada por alguém. Só não podia imaginar que se sentira tão dividida em relação a essa pessoa. Byron conseguia ser arrogante e desagradável
e, no minuto seguinte, extasiá-la de tanto prazer. Ela começava a se revoltar contra os caprichos de seu próprio coração.
Transportar o gado até Phalaborwa não constituía tarefa que Frances estivesse ansiosa por cumprir. Para piorar a situação, a relação entre ela e Byron mostrava-se cada vez mais conflitante. Apesar
disso, deixaram Thorndale no dia combinado. Frances morria de medo de que, num momento de descuido, pudesse revelar seus verdadeiros sentimentos por Byron. Assim, optou por tratá-lo com frieza, mas de
forma tão exagerada que por isso mesmo parecia suspeita. Tamanha agressividade resultou num silêncio mortal durante boa parte da viagem. Em pouco mais de uma hora de estrada, nenhuma palavra fora trocada
dentro da cabine do caminhão.
E havia outra coisa que a preocupava. Não gostava da idéia de ver Byron introduzir leões no parque enquanto o culpado pelos danos à cerca continuasse solto. Uma nova abertura na grade poderia fazer
com que leões ficassem soltos pela sua propriedade e tal possibilidade causava-lhe calafrios.
Byron encostou o caminhão ao anoitecer. Os dois desceram para esticar as pernas e inspecionar as condições do gado. Frances serviu-se do café que trouxera numa garrafa térmica. Ainda em silêncio,
passou uma xícara a Byron, que sorriu pela primeira vez naquele dia. Sempre a mesma expressão de deboche, mas com um inexplicável toque sedutor.
- Desculpe se tratei você mal hoje pela manhã... - ela puxou conversa...
Byron encarou Frances, que permanecia recostada à carroceria empoeirada do caminhão.
- É evidente que há alguma coisa ainda te aborrecendo. Não quer conversar comigo a respeito?
Havia várias razões para Frances sentir-se aborrecida, mas a única que ousaria discutir com ele seria o problema dos leões que iriam buscar em Phalaborwa.
- Não me agrada a idéia de ver seus leões escapando para o meu lado da cerca. E não me faça essa cara!
- Mas você está sendo pessimista demais, Frances! Não há nenhuma razão para isso.
Não é bem assim. O que faremos se a cerca for de novo cortada e os leões atacarem meu gado ou mesmo ferirem um dos meus empregados?
- Eu a compensaria pelas perdas com o gado, é claro. Mas no caso de os animais machucarem alguém, então quem estaria em maus lençóis seria o nosso misterioso destruidor de cercas.
Frances terminou o café o guardou as xícaras. Nunca fora dada a pressentimentos, mas sentia-se perturbada por um incômodo véu de suspeita. Não tinha nenhuma explicação racional para aquilo, mas o
medo era visível.
- Não tema, Frances. As chances de um dos leões passar pela abertura da cerca são mínimas. Por que iriam procurar fugir de um lugar onde têm espaço à vontade e comida de sobra? Pare de pensar sempre
no pior!
- Você deve estar me achando boba, não?
- Não, boba não... - Ele aproximou-se tocando-lhe o rosto tenso com as costas das mãos. - Você só está sendo um pouco precipitada...
De repente, Frances viu-se tomada por um irresistível desejo de abraçá-lo. Sentia-se fraca por dobrar-se assim ao puro instinto. Mas precisava ser envolvida por aqueles braços fortes para livrar-se
de suas preocupações e ansiedade...
Byron, que continuava a fitá-la como se tivesse dificuldade em ler-lhe os pensamentos, não demorou a tocar-lhe os lábios. Frances pousou a cabeça sobre seu ombro, confortada.
Haveria alguma razão para resistir, para negar os próprios sentimentos? Encontrara uma paz inesperada nos braços de Byron. Talvez fosse lamentar tal atitude mais tarde. Não lhe agradava revelar-se
uma mulher tão frágil quanto qualquer outra, apesar da máscara de auto-suficiência que construíra ao seu redor. Não era possível, porém, ordenar racionalmente seus pensamentos naquele instante, quando
se encontrava tão próxima a Byron.
- Hora de continuarmos, Frances.
Ele soltou-a, sem demonstrar nenhum sinal de emoção. Aquele contato nada significara para Byron. A intimidade passara-lhe em brancas nuvens. Frances, de imediato, recriminou-se por deixar-se levar
pela ilusão de possuir um homem que jamais seria seu...




CAPÍTULO VII




Após deixarem as cabeças de gado com o Sr. Nel, Frances observou, tensa, as jaulas dos leões serem acomodadas na carroceria do caminhão. Um pequeno grupo de homens, sem camisa e muito suados, fazia
o transporte das pesadas estruturas de metal. Todos pareciam apreensivos diante da frágil e ao mesmo tempo ameaçadora carga de que cuidavam: os três leões que passariam a viver no Parque Natural de Izilwane.
Byron se misturara aos carregadores, auxiliando-os a erguer e acomodar as jaulas dentro do veículo. Frances o admirou com especial atenção. O cabelo grudava-lhe na testa, umedecido pelo suor, e ele
abriu um largo sorriso quando um dos trabalhadores o repreendeu por fazer alguma coisa errada. Sem dúvida, Byron respeitava o espírito de equipe.
Os dois haviam passado a noite na casa de Petrus Nel, o fazendeiro que comprara os animais, mas ela dormira muito mal por causa de vários pesadelos consecutivos.
Naquele momento, perguntava-se se os sonhos horríveis não teriam sido uma antecipação da realidade.
A terceira e última jaula precisou ser içada com cabos de aço para cima do caminhão. Sua ocupante, uma leoa sem uma parte da orelha direita, parecia a mais feroz do grupo. Mantinha os dentes arreganhados
e dava patadas seguidas contra as barras de ferro, de modo que nenhum dos homens atrevia-se a aproximar-se o suficiente para levantá-la. Os olhos amarelados tinham um brilho assassino e os dentes, pontiagudos,
pareciam poder rasgar sem dificuldade a carne de qualquer vítima. Frances tremia dos pés à cabeça, sentindo-se ela própria uma presa em potencial.
Byron inseria calmamente uma cápsula de tranqüilizante em seu rifle. Olhava para a leoa com ar debochado, como se achasse inúteis tantas demonstrações de ferocidade.
Ele posicionou a arma no ombro, fez pontaria e Frances engoliu em seco ao ver o dedo acionar com rapidez o gatilho. Na terceira vez em que repetiu o ritual, o orgulhoso animal grunhiu.
Parecia querer compreender o que lhe acontecera. À medida que a droga fazia efeito, os olhos amarelados foram ficando pesados e sem expressão até que o corpo desabou ao chão, rendido. De um instante
para o outro, a ameaçadora fera transformara-se num inofensivo gatinho. Frances demorou cerca de meia hora para reequilibrar-se.
Era o momento de começar a viagem de quatro horas de volta a Louisville. Sentou-se ao lado de Byron na cabine do caminhão, agradecendo o fato de ele não ter lhe notado o nervosismo. Mais tarde, quando
a tarde começou a cair sobre a estrada deserta, ele comentou, em tom amistoso:
- Você está muito quieta.
"O que responder?", Frances pensou. Poderia até mesmo inventar uma desculpa qualquer, mas não gostava de mentir. Fazia questão de ser sempre franca e sincera, ainda que acabasse criando problemas
para si própria.
- Nunca me vi tão próxima de um leão. Saber que existem três aí atrás na carroceria não me deixa muito tranqüila...
- Não pense em tragédias. Tudo dará certo.
Algum tempo depois eles se aproximaram de Tzaneen, uma antiga e belíssima cidade, ponto central de uma importante comunidade agrícola localizada no sopé dos montes Drakensberg, à margem direita do
Grande Rio Letaba. Louisville ainda estava longe, Frances constatou, desanimada. Byron tirou-a novamente do silêncio.
- Não pensei que você se assustasse com tanta facilidade.
- Não costumo me assustar, mas tem alguma coisa naquela leoa com a orelha cortada que me dá calafrios. Parece ser mais velha que os dois machos e ter um temperamento imprevisível.
- Em geral as fêmeas são mesmo temperamentais.
Frances o encarou com raiva:
- Por que será que estou com a impressão de que você não está se referindo apenas às leoas?
- Você se parece muito com aquela gatona. Ora ronrona tal qual um bichinho de estimação, ora fuzila com o olhar como uma fera que visualiza sua presa. Para falar a verdade, nunca conheci nenhuma fêmea
tão temperamental quanto você!
- Pois fique sabendo que eu não sou assim! Você é que me tira do sério!
- Eu me pergunto por quê...
- Talvez seja uma questão de pele.
- E isso é bom ou mau?
- Não sei. Parece mais um caso de alergia mútua em último grau!
Byron se calou por um instante, dando a impressão de que analisava o assunto. Depois comentou:
- É. Deve ser isso mesmo. Temos alergia um do outro. Não era bem aquela a resposta que Frances esperava ouvir. Mas por que se importava com a opinião de Byron? Se o que acontecia com eles era apenas
um caso de alergia, precisava cortar o mal pela raiz: combater o sentimento que a faria sofrer mais tarde. Não seria fácil, mas era o melhor a ser feito.
Pararam no caminho para tomar o café e comer os sanduíches que a Sra. Nel insistira em preparar. Conseguiram manter a conversa em nível educado, sempre em torno de assuntos pessoais. Pareciam ter
chegado a uma trégua não declarada e nenhum dos dois inclinava-se a quebrá-la.
Quando chegaram a Thorndale, Byron deixou-a na fazenda prometendo devolver o caminhão e apanhar o jipe tão logo descarregasse os animais. Frances olhou de relance, uma última vez, para a leoa de olhos
amarelos que já estava começando a despertar. Um novo arrepio percorreu-lhe a espinha, enquanto Byron se afastava através da alameda de jacarandás que conduzia à estrada principal.
Martha veio cumprimentá-la assim que escutou o barulho do motor do caminhão se afastando. Logo depois que Byron desapareceu em meio às árvores, elas entraram e pediram a Gladys que servisse chá.
- Aconteceu uma coisa interessante enquanto você esteve ausente, Frances. A prima do Tony, Claudia de Leur, chegou a Izilwane ontem à tarde e está alojada numa das cabanas. Faz questão de dizer para
todo o mundo que é divorciada e sobrinha do velho George Wilkins. Não sei o que ela está fazendo aqui! Morava em East London, na província do Cabo!
- É mesmo? - Frances não mostrou o menor interesse pela novidade.
- Parece que ela pretende reclamar uma fatia da herança do tio. Está querendo conhecer você...
Frances franziu a testa, realçando o cansaço que lhe cobria o rosto, fruto da noite maldormida. Suspirando profundamente, comentou:
- Pois eu não estou nem um pouco preocupada! Se ela levar isso adiante, vamos à justiça. De qualquer modo, espero que ela esqueça esse assunto: essas coisas costumam ser exaustivas!
- Pelo que entendi, a Srta. de Leur gostaria de visitar a casa onde o tio morou. Você sabe como é: para relembrar os velhos tempos...
Frances correu os olhos pela casa, detendo-se com especial atenção nas cortinas, no tapete da sala e na velha mesa de jantar que fora tratada e polida. Ainda tinha na memória a aparência da sala antes
de livrá-la do mau estado de conservação.
- Pois eu acho que não há nada aqui que faça lembrar o que era antes. Mesmo os móveis antigos estão como novos agora! Frances orgulhou-se, sorrindo.
- Disse exatamente isso a ela quando a encontrei na loja, hoje. Mas a mocinha insistiu em ver a casa mesmo assim.
O barulho de um carro desviou a atenção de Martha para a janela. Espiando por trás da cortina, comentou:
- Falando no diabo... Claudia de Leur está chegando. E o Byron veio com ela!
Frances estremeceu, com esforço, engoliu o que restava de chá na xícara e se levantou a fim de receber a inesperada visita. Claudia, uma mulher bonita, baixa e graciosa, andava agarrada ao braço de
Byron, como se quisesse mostrar ao mundo que o possuía.
Sentindo uma ponta de ciúme lhe correr o coração, Frances foi até a varanda.
- Boa tarde. - O cumprimento foi dirigido ao casal, mas ela evitou encarar Byron, limitando-se apenas a observar a loira que não lhe largava o braço. - Eu estava mesmo à sua espera, Srta. Leur.
- É mesmo?
Claudia sorriu com doçura, mas tinha um brilho frio no olhar. Medira-a com desdém, o que deixava a anfitriã em evidente desvantagem:
Frances nem sequer se maquilara, pois julgara ter de passar o resto do dia cuidando da fazenda. Quanto a Claudia, vestira-se com elegância e muito charme.
- Espero que você não se importe, mas faz tanto tempo que não visito Thorndale que pedi ao Byron que me acompanhasse. Tenho medo de me perder, sabe? - Claudia explicou.
Ouvi-la chamar Byron pelo primeiro nome reacendeu em Frances o ciúme, mas ela tratou de acobertar tal sensação. O pior, porém, estava ainda por vir quando ele as apresentou formalmente:
- Bem... Pensei em apresentá-las, mas acho que vocês já se conhecem. Claudia, esta é Frances King, a nova proprietária de Thorndale de quem lhe falei.
Frances não conseguiu evitar a surpresa ao ouvi-lo chamar a recém-conhecida pelo primeiro nome. Pelo visto, os dois tinham se entrosado com facilidade. Claudia devia ser o tipo de mulher que não perdia
tempo na conquista de um homem que lhe cruzasse o caminho. Decerto, tratava-se de uma pessoa muito experiente, característica marcante também em Byron. Contrariada, Frances reconheceu que eles formavam
um par inigualável.
Ao perceber Martha esgueirando-se atrás dela, Frances apresentou a prima:
- Acho que você já conhece minha prima, Martha O'Brien.
- Sim, conhecêmo-nos hoje de manhã, na loja dela. Claudia cumprimentou-a com um sorriso e uma leve inclinação de cabeça.
- Vocês não querem entrar?
Frances percebeu a expressão debochada no rosto de Byron, o que lhe causou uma irritação enorme. Mesmo assim procurou manter-se amável e os conduziu para o interior da casa.
- Nossa! Você de fato tem muito bom gosto! Deve ter gastado uma fortuna! O tio George sempre foi sovina demais para...- Claudia interrompeu a frase no meio, tão logo se viu frente a frente com o quadro
de George Wilkins que decorava a parede do hall. - Que loucura! Você pendurou o retrato na parede!
- Achamos o retrato no meio das coisas do seu tio. É um trabalho tão bom que não tivemos coragem de jogá-lo fora. Mas se você quiser ficar com ele, eu...
- De jeito nenhum, meu apartamento é pequeno... Não há lugar para um quadro deste tamanho.
A rejeição de Claudia fora tão enfática quanto a de Tony. A única diferença era o fato de que ela, pelo menos, tentara explicar por que demonstrava tão pouco apego ao tio, que considerara sovina,
ainda que o fizesse meio contra a vontade. Frances, porém, ficou com a impressão de que Claudia escondia alguma coisa.
- Bem, mas... Há alguma coisa em particular que você está interessada em ver?
- Não, nada em especial. Mas adoraria dar um passeio pela casa, se você não se importar, é claro...
Martha resolveu intrometer-se na conversa.
- Bem, vocês não querem beber alguma coisa? Talvez uma limonada?
- Ah, eu agradeceria muito, se não for incômodo. Vocês sabem, este calor... - Claudia respondeu.
- E você, Byron?
- Para mim também está ótimo, obrigado.
- Bem, então vou pedir a Gladys, com licença.
Martha saiu da sala. Frances e Claudia seguiram pelos outros aposentos da casa, enquanto Byron preferiu permanecer na sala de estar.
- Rever alguns destes móveis me trás muitas recordações da infância, sabe?
Diante da antiga escrivaninha que ocupava o escritório de Frances, Claudia deteve-se com especial atenção. Alisou a madeira trabalhada do mesmo modo de quando examinara o guarda-louças na sala de
jantar. Frances sentiu um arrepio, como se um mau pressentimento houvesse cruzado seu corpo numa fração de segundos.
- Você vinha muito aqui? - perguntou tentando adivinhar o que estaria por trás daquele brilho estranho no olhar de Claudia.
- Sim, com minha mãe, quando era criança. Ela era irmã do tio George. - Claudia fez força para sorrir. Tinha um ar misterioso quando continuou: - Depois da morte de mamãe, nunca mais tive tempo de
visitar o tio George. Você sabe como é... ela interrompeu, passando a mão pelos cabelos dourados. Num de seus dedos, jazia um enorme brilhante que faiscava sob os raios de sol que entravam pela janela.
Frances, porém, jamais compreenderia tal atitude. A família King sempre fora primordial em sua vida. Amava cada um dos parentes de um modo especial e por nada deste mundo teria coragem de afastar-se
deles.
- Você sabe que tem um primo morando nas vizinhanças?
- Como?
- Seu primo, Tony Philips...
- Ah, claro, o Tony... Sabe, acho extraordinário que meu tio tenha se disposto a vender tudo da maneira como fez. Mas não havia nada no testamento que indicasse alguns móveis para os herdeiros legais?
- Comprei a fazenda do jeito que ele a deixou. Não estou a par do conteúdo exato do testamento, mas se você está procurando mais detalhes a respeito, sugiro que marque um encontro com o advogado do
seu tio, Thomas Atherstone. Ele tem um escritório em Louisville.
- É, talvez eu faça isso. O retrato foi a única coisa interessante que você encontrou no meio dos pertences do tio George?
O cerco de questões começara a se apertar. Uma sensação de intenso desconforto tomou conta de Frances. Até onde iria a mal disfarçada curiosidade de Claudia?
- Há alguma coisa em particular que você ache que devesse ter encontrado?
- Não... Mera curiosidade.
O sorriso de Claudia não parecia sincero. Tantas perguntas e insinuações começavam a despertar suspeitas em Frances. O que teria trazido aquela mulher a Thorndale depois de tantos anos? Saudade? Nada,
em palavras ou atitude, deixava transparecer que ela sentisse o mínimo carinho pelo tio falecido. Certamente só algum segredo justificava aquela visita.
As duas retornaram à sala de estar. Martha trouxe a bandeja com os copos e uma jarra de limonada. Claudia, depois de servir-se, sentou-se ao lado de Byron. Os dois trocaram sorrisos amáveis. A atitude
dela, porém, mostrava uma clara insinuação sensual. Frances concentrou-se em beber o suco sem prestar atenção a detalhes tão irritantes. Seria revoltante admitir que estava morrendo de ciúme! Byron olhou-a,
mas logo foi forçado a virar o rosto, atraído pela acompanhante que o chamava com insistência, quase debruçando-se sobre ele.
A conversa não engrenou. Ao contrário, o clima estava tenso e desagradável. Quando os visitantes afinal começaram a se despedir, Frances levantou-se, percebendo que Claudia lançava um último olhar
para o quadro na parede. Chamou-a e ela disfarçou. Frances não se atrevia a jurar, mas sentira rancor na atitude de Claudia.
George Wilkins, por sua vez, parecia retribuir com uma expressão de profundo descaso.
Frances começou a se impressionar com a estranha propriedade que tinha aquele retrato. O velho George parecia vivo, assumindo olhares ou esboçando sorrisos, conforme a situação. Byron e Claudia se
foram, deixando-a com a impressão de que de fato existia uma imensa animosidade entre George e os herdeiros, inclusive Tony. De toda forma, tudo não passava de uma suspeita...
Frances mal pregou o olho nas três primeiras noites após a chegada dos leões ao parque Izilwane. Os rugidos rasgavam o silêncio da noite, causando-lhe calafrios.
A advertência de Sibho, que ouvira alguns dias antes, só contribuíra para aumentar-lhe a apreensão.
- Esses leões vão lhe causar problemas - o nativo advertira.
Byron soltara os leões na parte norte do parque, que dava acesso à área da cerca, divisa com Thorndale. Sibho relatara-lhe suas preocupações: de onde estavam, os felinos podiam ver o gado Brahman.
Se a cerca fosse rompida mais uma vez, as conseqüências seriam desastrosas. Frances cansara-se de acordar à noite com pesadelos e passara a viver em permanente estado de tensão.
Olivia levou Logan até Thorndale no sábado pela manhã, a fim de que o menino ficasse até o domingo com a irmã. Martha acabou decidindo ficar também, já que os pais haviam tirado duas semanas de férias
para viajar e ela não via razão para ir a Louisville e permanecer sozinha na casa. Talvez o destino tivesse concedido a Frances o capricho de ter companhia naquele fim de semana. E ela jamais o esqueceria.
Tudo começou após o jantar, quando Frances, Martha e Logan sentaram-se no chão da sala de estar para jogar baralho. Major latira desde o cair da noite, sem parar, parecendo muito agoniado. Todos os
esforços para calá-lo foram em vão até que Frances permitiu que o cão entrasse em casa. Uma tensão pairava no ar, deixando-a inquieta e com dificuldade em se concentrar no jogo. De repente, batidas fortes
e aflitas na porta da frente fizeram Major latir desesperadamente e correr como um louco em torno da sala. Martha, Frances e Logan correram para atender.
- Senhorita! - Sibho gritou descontrolado. - Quebraram a cerca! Os leões vão comer o gado!
Frances ficou branca como cera. Seus piores temores haviam se concretizado.
- O que ele está dizendo? - Martha perguntou aflita, abraçando Logan, como se buscasse apoio para suportar o nervosismo. - Pelo amor de Deus, Frances, o que há?
- Um louco fez um buraco na cerca que serve de divisa entre Thorndale e o parque. Os leões vão entrar aqui e matar o gado... vou apanhar meu rifle.
- Chame seu pai, senhorita.
- Não temos tempo para isso, Sibho. Espere-me no jipe, vou assim que estiver pronta.
- Você não pode dar conta disso sozinha, Frances! - Martha também empalidecera, o que lhe ressaltava o azul dos olhos, repletos de preocupação. Seguiu a prima da cozinha ao escritório, segurando a
mão de Logan. - Frances, você está louca? Vai atrás de um leão sozinha?!
- Não se preocupe, Martha, eu sei o que estou fazendo. Frances apanhou o rifle guardado dentro de um armário e inseriu seis cartuchos no pente.
- Frances, pelo amor de Deus, isso é loucura! - Martha gritou a plenos pulmões. Surpreendia-a que a prima manejasse uma arma com tal destreza. - Pense bem!
- A única coisa que está me importando agora é que o meu gado Brahman está em perigo!
Frances não tinha disposição nem tempo para maiores explicações. Agarrada ao rifle, saiu do escritório, sempre com Martha e o irmão em seus calcanhares. Andava rápido, com passos nervosos e decididos.
- Martha, telefone para o Byron. E, pelo amor de Deus, mantenha o Major dentro de casa. Não quero que ele me siga e me faça tropeçar na hora em que eu precisar atirar.
- vou com você, Frances - ela já estava na varanda quando Logan falou pela primeira vez desde que Sibho chegara.
- Você ficou maluco? Entre já, Logan, ou vai levar uma surra!
- Se você não me levar junto, vou selar um cavalo e seguir o jipe sozinho.
Frances tremia só de pensar na reação de Olivia e Bernard se alguma coisa de ruim ocorresse a Logan.
- Está bem, então venha. Mas trate de fazer exatamente o que eu mandar e nem pense em sair do jipe! Vai levar uma boa surra se não obedecer.
- Sim.
- Então, vamos...
Martha segurou-a pelo braço, apreensiva.
- Frances...
- Por favor, não se preocupe, Martha. Sei como manejar este rifle, e pode acreditar que só vou usá-lo, se for preciso.
Frances virou-se e caminhou até o jipe, seguida de perto por Logan. A noite estava escura e, ao longe, era possível ouvir os mugidos inquietos do gado, aos quais os leões respondiam com rugidos ameaçadores.
Para os visitantes de Izilwane, aquele som poderia parecer exótico e excitante, mas para Frances cheirava a tragédia.
Durante o trajeto até a área do rio, Sibho explicou que a agitação do gado lhe chamara a atenção. Fora investigar e descobrira o rombo na cerca. Correra para buscar ajuda, mas não chegara a identificar
nenhum animal morto. No entanto, tinha quase certeza de que pelo menos uma perda seria inevitável.
Frances ouviu o relato em silêncio. Segurava o volante do jipe com toda a força e mantinha o pé firme no acelerador. À medida que avançava, o caminho ficava ainda mais escuro e ela, mais enraivecida
e temerosa. Só não sabia qual das duas sensações era mais forte.
A curta distância que separava sua casa da área de confinamento do gado parecera duplicar-se por causa das circunstâncias. O gado dava a impressão de vagar como fantasmas; os lombos brancos cintilando
sob o luar, os olhos arregalados. Como se adivinhassem que a ajuda se aproximava, pararam de mugir por alguns minutos. Nesse intervalo, os grunhidos dos felinos soaram ainda mais aterrorizantes, vindos,
porém, de direções opostas. Os animais deviam estar separados por uma distância considerável.
Frances começou a tremer, lutando para manter em segurança a direção do veículo. Ao atingirem o portão da área reservada ao gado, Logan ofereceu-se sem temor:
- Pode deixar que eu abro o portão, Frances...
- Você não vai a lugar nenhum! Já lhe disse para ficar dentro do jipe e isto é uma ordem!
O menino não cansou de protestar, mas acabou obedecendo. Frances e Sibho desceram com cautela e aproximaram-se do portão, abrindo-o com todo o cuidado.
Os animais atropelaram-se para atravessar a passagem estreita enquanto uma rápida contagem das cabeças era feita. Quando a última vaca saiu, Frances e Sibho se entreolharam desolados: faltava uma
cabeça.
Os dois retornaram ao jipe e Frances passou a dirigir mais devagar, observando cada canto da área iluminada pelos faróis. A tensão chegava a um ponto insuportável: o coração batia-lhe descompassado
e, ao mesmo tempo em que buscava uma pista na escuridão, temia reencontrar os olhos assassinos da leoa. De repente, Sibho soltou um grito:
- Ali, senhorita! A leoa está ali!
Frances freou o jipe de imediato. Logan, com a voz baixa e entrecortada de emoção, comentou bem próximo ao ouvido da irmã:
- Meu Deus, Frances! Um leão de verdade!
- Cale-se, Logan!
A fera tentava, sem sucesso, arrastar a vaca que matara até o seu território, do outro lado da cerca. Talvez irritada com as dificuldades, começou a rugir e a arreganhar os dentes, numa atitude hostil.
Os olhos amarelos brilhavam da mesma forma que Frances sonhara, fazendo com que ela própria se sentisse uma vítima em potencial.
Os rugidos do macho soavam cada vez mais próximos, o que contribuía para minar ainda mais os nervos cansados de Frances.
- Ela está chamando o macho, senhorita. Deve estar com muita fome, pois matou uma das vacas mais gordas.
A raiva suprimiu o medo de Frances. Decidida, agarrou o rifle com uma das mãos, e abriu a porta do jipe.
- Eu sabia que esses leões acabariam por me causar problemas.
- Aonde você vai? - Logan segurou-a pelo braço, mas Frances desvencilhou-se e desceu do carro sentindo as pernas cada vez mais trêmulas.
- Vou dar um tiro para o alto para espantá-la. Espero que tenha o bom senso de deixar sua presa de lado e volte ao parque, para junto do companheiro.
Frances estava quase fora de si. Não podia comparar o medo que sentira ao ver aquela leoa na jaula ao que sentia naquele momento, defrontando-se com ela solta, a poucos metros de distância, em plena
noite.
Com as mãos úmidas de suor, ajeitou a arma no ombro e, por uma fração de segundo, precisou desviar os olhos do animal para apoiar-se na lataria do jipe.
- Cuidado, senhorita!
A advertência de Sibho ecoou plena de horror. Ele saltou para fora do jipe, e tentou proteger a patroa. A leoa deixara a caça de lado e andava a passos rápidos em direção a Frances, arreganhando os
dentes ameaçadoramente. Os olhos amarelos transmitiam um propósito diante do qual a menor hesitação seria fatal.
- Atire, Frances! - Logan gritou.
Prostrada de medo, Frances demorava a raciocinar. A leoa estava prestes a atacá-la. Um instinto de auto-defesa fez com que levasse o dedo ao gatilho e disparasse.
Tudo acontecera tão rápido que depois ela nem se lembraria dos detalhes. Apenas a marca no ombro, fruto do violento tranco no momento do tiro, e o estampido surdo do disparo ficaram-lhe como recordações.
A leoa fora atingida em pleno salto, antes de tombar morta a cerca de dois metros do jipe. A bala cravara-se entre os olhos, que então contemplaram sem vida o céu negro e sem estrelas.
Sibho soltou um grito e, com um facão em punho, avançou para o cadáver da leoa, pretendendo cumprir a tradição de sua tribo.
- Não, Sibho! Não! Ela já está morta! Deixe-a em paz!
Ele recuou, baixando com relutância a arma. Só então Frances notou que Logan estava a seu lado, imóvel. A idéia do perigo que o irmão correra sem necessidade deixara-a aterrorizada. Virou-se para
ele aos berros:
- Eu não lhe disse para não sair do jipe?
- Ora, Frances, você é minha irmã! Não podia deixá-la sozinha diante de um perigo daqueles, podia?
Frances olhou para o pequeno e corajoso irmão, já sem nenhum sinal de raiva na alma. Jogou o rifle dentro do jipe e abraçou-o emocionada.




CAPÍTULO VIII




Logan e Frances separaram-se ao ouvir o barulho do motor de outro jipe que se aproximava em alta velocidade. Byron atravessou como um louco o vão aberto na grade.
Depois, desceu do veículo e deixou-se cair ao lado do cadáver da leoa que comprara há poucos dias. Examinou-o desolado e atacou:
- Frances, foi você quem fez isso? Ficou maluca? Você a matou!
Os gritos de Byron martelavam-lhe os ouvidos. Pela primeira vez na vida, estava tão confusa que não encontrava as palavras certas para retrucar. Sentia-se exausta, olhando para Byron como se tudo
fosse um pesadelo, ainda apoiada nos ombros de Logan.
- Eu podia ter dopado a leoa com um dardo! Teria sido fácil removê-la, mas não: você precisava fazer isso?! - Byron mostrava-se transtornado. - Você não podia esperar, Frances? Nem se deu ao trabalho
de pensar no que me custaria a morte desse animal! Só tinha em mente a vingança de assassiná-la. A leoa não atacou seu gado? Então, sentença de morte para ela, não é assim? Meus sinceros parabéns! Você
provou sua destreza com o rifle, vou providenciar o empalhamento da cabeça dela para decorar sua sala!
Frances estava à beira de uma crise de choro quando um veículo se aproximou em alta velocidade, derrapando no solo escorregadio nas margens do riacho. Ela logo reconheceu o carro do pai.
Bernard King saltou do veículo com uma agilidade incomum em homens daquela idade. Foi até eles com o rosto crispado de preocupação, a testa franzida e os olhos apertados, tentando reconhecer as pessoas
em meio à escuridão. Não pôde esconder sua surpresa ao deparar com o cadáver da leoa.
- O que aconteceu?
A voz cheia de autoridade desatou as últimas resistências de Frances ao choro. A presença do pai libertou-lhe toda a tensão reprimida.
- Foi só um tiro, pai! - Logan não conseguia conter a admiração ante o feito da irmã. - Um só tiro acabou com a fera!
- Fique quieto, filho. - Bernard colocou a mão sobre o ombro do garoto, olhando ora para Byron, ora para Frances. - Eu gostaria de saber o que aconteceu aqui que justifique o sacrifício deste animal.
- Desculpe, Frances, mas eu também quero saber disso!
Byron atirou-lhe diretamente sobre as costas a responsabilidade do incidente. A raiva parecia não ter cedido um milímetro. Naquele momento, tanto ele quanto Bernard fitavam-na cheios de expectativas.
Em meio a soluços, Frances explicou:
- Eu saí do jipe pensando em assustá-la com um tiro para o ar. Eu queria... queria espantá-la, só isso! Esperava que voltasse para o parque. Mas ela veio me atacar de repente e eu... eu... ah, eu
nem sequer tive tempo de tentar voltar para dentro do jipe... precisei atirar! Oh, papai, eu nunca me senti tão assustada em toda a minha vida!
- Calma, filha, já está tudo acabado, agora. Por que você não volta para casa, hein? Olivia deve estar aflita.
Frances concordou com um gesto de cabeça e, levando Logan consigo, fez um sinal para Sibho, que permanecera a distância, olhando-a com evidente reverência.
- Venha conosco, Sibho. Deixo você em casa.
- Obrigado, senhorita.
- Vou cuidar da remoção e do enterro das carcaças para você, Frances. Ah, e não se preocupe mais com a cerca... meus funcionários vão consertá-la.
A gentileza incomum de Byron ficou sem resposta. Ela virou-lhe as costas, apanhou o rifle e entrou no veículo.
Deixou Sibho com a família, decerto aliviado diante do fim do pesadelo. No caminho até sua casa, foi acompanhada pela disposição de Logan em comentar cada detalhe da aventura que presenciara. A Frances,
porém, não agradavam tais comentários. Ao contrário, lembravam o risco a que sujeitara não apenas a própria vida, mas a do irmão. As acusações de Byron Rockford, por sua vez, massacravam-lhe a mente.
Estacionou o jipe. Ainda não tinham entrado na casa quando Olivia e Martha saíram à varanda, atropelando-se na pressa de recebê-los. Major também fora recepcioná-los com latidos e uma incontida alegria
pela volta dos amigos.
- Frances! Logan! Graças a Deus vocês estão bem! Mas onde está seu pai?
- Ficou lá, com o Byron.
Frances tinha imensa dificuldade em controlar os tremores que lhe agitavam o corpo.
- Não fique brava comigo, Frances. Fiquei tão preocupada com você que resolvi ligar para o seu pai - Martha desculpou-se, conduzindo a prima para dentro de casa.
Já na cozinha Frances sentou-se e pediu uma xícara de chá.
- Não estou brava com você, Martha. Ao contrário, até lhe agradeço, porque meu pai não poderia ter chegado em melhor hora.
- Você devia ter visto, mamãe! Frances foi fantástica! - Logan recomeçou a descrever cada detalhe do drama que ele considerava uma excitante aventura. Evocava as imagens com tamanha precisão que Frances,
por um momento, achou estar de novo vivendo o problema. Percebendo a aflição da enteada, Olivia interrompeu o filho.
- Só um momento, Logan. Frances, você está se sentindo bem?
- Estou... só um pouco abalada... eu... - Frances não podia mais se controlar. Enterrando a cabeça no ombro de Olivia, começou a chorar.
- Calma, querida, já passou...
Minutos depois, apesar dos olhos vermelhos e inchados, Frances sentia-se bem melhor. Não havia mais sinal de tensão em seu corpo.
- Ainda acho que você foi fantástica! - Logan sussurrou-lhe ao ouvido. Ela o abraçou com força e sorriu. Foi então que Bernard entrou na cozinha.
- Está tudo bem por aqui?
- Tudo ótimo, querido. Algumas lágrimas fazem milagres quando se precisa desabafar.
Martha serviu chá para todos e, felizmente, ninguém se arriscou a trazer de volta o assunto da morte da leoa. Apenas Bernard fez um comentário quando se despedia para retornar a Mountain View, a fim
de apanhar Janet na casa de Evalina:
- Só posso dizer que fico feliz por tê-la ensinado a manejar um rifle, filha.
Logan não demorou a ir para a cama, mas Martha e Frances continuaram a conversar na cozinha, sobre vários assuntos sem relação com os eventos da noite. Um bocejo de Martha fez com que ela consultasse
o relógio.
- Duas horas! Estou exausta! Vou para a cama.
Despediram-se e cada qual foi para seu quarto. Apesar do cansaço, porém, Frances não conseguiu dormir. Decidiu, então, dedicar atenção aos papéis que deveria despachar, e sentou-se à mesa do escritório.
Costumava mergulhar tão fundo no trabalho que confiava que em poucas horas se sentiria mais relaxada e com disposição ao sono.
Foi o que ocorreu. Aprofundou-se com tanto interesse na papelada que nem ouviu o barulho de um veículo que se aproximava da casa; tampouco as leves batidas à porta.
Só levantou os olhos do trabalho com a chegada de Martha, muito sonolenta, enrolada num robe felpudo.
- Oh, Frances! Não percebe que temos visita?
- Quem é?
Visivelmente desconcertada, Martha saiu de lado, dando passagem a Byron. Ele continuava com aparência furiosa e irritada. Tentando aparentar frieza, Frances perguntou:
- O que você quer aqui?
- Tenho que conversar com você. Ele despediu-se de Martha, agradecendo-lhe por tê-lo acompanhado até o escritório. Frances começou a sentir-se sufocada. Era como se o ambiente estivesse encolhendo
cada vez mais, roubando-lhe todo o ar.
- Nós não temos nada para conversar - ela lutou para evitar os olhos penetrantes de Byron que faziam seu coração bater mais rápido.
- Eu lhe devo desculpas, Frances.
- Você não me deve nada além do favor de desaparecer da minha casa e me deixar em paz para sempre!
As palavras escaparam-lhe aos borbotões, sem nenhum controle ou pausa para reflexões. Ela mesma não se reconhecia e, ao mesmo tempo, não conseguia evitar o próprio comportamento.
- Você não está sendo sincera.
Os dois pareciam prestes a se engalfinhar.
- Mas é claro que estou! - Ela atirou a caneta com fúria sobre a mesa, levantando-se e caminhando em direção à janela. Tentou espiar para o lado de fora, mas tudo o que conseguiu ver foi o reflexo
de Byron na vidraça.
- E tem mais - continuou - Vou à polícia amanhã de manhã denunciar o fato de que a cerca de segurança entre nossas propriedades vem sendo rompida.
- Se eu fosse você, não faria isso, Frances. Andei investigando por conta própria e tenho pistas muito boas para seguir. Se a polícia aparecer e começar a fazer perguntas, o culpado pode se esconder.
E nós perderíamos a chance de levá-lo ao tribunal.
- A quem você está acusando, dessa vez?
- Frances...
Ele sorriu e estendeu-lhe os braços, mas Frances recusou o contato ciente de que um simples toque em seu corpo acabaria com todas as suas defesas.
- Não me toque! Ainda há um acerto final que precisamos fazer. É melhor cuidarmos disso antes de você ir embora.
Byron franziu as sobrancelhas sem entender. Frances, porém, voltou a sentar-se e apanhou a caneta.
- Do que é que você está falando?
- Quero reembolsá-lo pelo prejuízo que teve com a morte da leoa. Quanto lhe devo?
Byron aproximou-se dela lívido de raiva; as feições transfiguradas de revolta e decepção.
- Para o diabo com o seu dinheiro! - ele exclamou.
A voz de Byron ecoou com tanta intensidade pelas paredes do pequeno escritório que fez Frances tremer na cadeira. Ele deu um murro na mesa, impedindo-a de abrir o talão de cheques.
- Você é a mulher mais impulsiva e teimosa que já conheci em toda a minha vida. Primeiro, mete-se numa aventura sem ter a menor experiência e quase se mata por causa disso; depois, tem a ousadia de
me oferecer dinheiro, como se isso... - Byron interrompeu a frase no meio, cada vez mais pálido. Girou a cadeira, fazendo Frances encará-lo. Em seguida, ergueu-a à força e abraçou-a com sofreguidão. -
Meu Deus, você merecia uma surra!
Pela segunda vez na mesma noite, Frances viu-se vítima de um ataque inesperado. Naquele instante, porém, não podia defender-se nem explicar que só fora à área do riacho por causa do risco que envolvia
seu patrimônio mais importante: o gado Brahman. Porém, não conseguiu dizer nada. Byron beijou-a com certa brutalidade, chegando a ferir-lhe de leve os lábios com os dentes. Com medo de se iludir, Frances,
de início, tentou afastá-lo de si, mas terminou por render-se, abraçando-o.
Suas idéias se confundiam e a faziam esquecer da realidade. Naquele momento, apenas Byron fazia sentido.
- Você vai se ver livre de mim, Frances - ele afirmou, afastando-se e dirigindo-se para a porta. - Espero que você também cumpra com a sua parte nesta decisão.
Frances o observou fechar a porta com cuidado. Em seguida ouviu-lhe os passos pelo hall e depois o motor do jipe em funcionamento... Sozinha, desatou a chorar, como se um fio invisível pudesse continuar
a ligá-los, a uni-los.
O arrependimento de ter banido Byron de sua vida muito mais num impulso irritado do que por uma razão objetiva esmagava-a. Ele não parecia ser homem de voltar atrás e, com certeza, jamais voltaria
a Thorndale. Os lábios, feridos de leve, ardiam, fazendo com que Frances se perguntasse como um beijo tão ardente podia machucar-lhe tanto a alma e ao mesmo tempo proporcionar-lhe tanto prazer...
Na manhã seguinte, Frances selou Pegasus e, acompanhada por Major, foi vistoriar a área do riacho. Levou consigo o rifle, apenas para sentir-se mais segura. Como sempre, a cavalgada revelou-se relaxante.
O vento contra o rosto fazia com que os cabelos esvoaçassem e lhe proporcionava uma sensação indescritível de liberdade.
O gado Brahman, espalhado pelas imediações, ainda precisaria ser recolhido por Sibho à área de confinamento. No entanto os animais pastavam tranqüilos, e nada ao redor lembrava o incidente dramático
da noite anterior.
A porteira que conduzia as pastagens permanecera aberta. Frances fez Pegasus diminuir a marcha e Major saiu à frente, correndo e farejando o chão. Conforme Byron prometera, os animais mortos haviam
sido removidos, o que a fez suspirar de alívio. Não desejava voltar ao local do tiro, mas, de algum modo, Pegasus levou-a até lá.
Ao chegar, sentiu um arrepio na espinha. Não havia mais nada que recordasse o incidente, exceto algumas marcas de pneus na terra úmida, com certeza os empregados do parque deviam ter estado no local
no início da manhã.
Byron! Ela não queria pensar nele. Não fizera outra coisa durante toda a noite. Precisava tirá-lo da cabeça, mas não sabia como fazê-lo.
Logo teve a atenção distraída pela chegada de Tony em seu magnífico cavalo árabe. Recompôs-se da melhor maneira que conseguiu. Não achava justo que ele percebesse que, no estado emocional em que se
encontrava, a solidão era sua melhor companhia.
- Acabei de saber o que houve ontem à noite.
- As notícias correm depressa por aqui...
- Você sabe como são os nativos... Ouvi conversas entre meus empregados, todos muito admirados, como eu também estou, diante da sua façanha. Quem diria que por trás de toda essa delicadeza Frances
King fosse capaz de manejar um rifle com tanta precisão?! E, ainda por cima, enfrentar uma leoa!
- Devo encarar isso como um elogio?
Frances tentou forçar um sorriso, mas Pegasus disparou, levando-a para o ponto exato onde a leoa caíra. As marcas de sangue permaneciam, tingindo a terra de vermelho.
- Você foi muito corajosa, Frances. - Tony alcançou-a. E mais: acho que Rockford foi estúpido demais com você!
- Meu Deus, até isso já virou notícia!
- Compreendo que ele tenha ficado chateado com a perda do animal, mas, naquelas circunstâncias, qualquer pessoa deveria entender que não havia outra opção.
Se existia uma coisa de que Frances não gostaria de se lembrar era da discussão da noite anterior. Tentou desviar o assunto.
- Você sabia que sua prima, Claudia de Leur, está hospedada em Izilwane?
A reação de Tony à menção do nome da prima foi estranha. Ele pareceu aturdido com a notícia, mas se recompôs antes que Frances pudesse analisar aquele comportamento com maior cuidado.
- É, ela me telefonou quando chegou - ele retrucou, seco.
- Tinha umas idéias malucas a respeito de que nós deveríamos contestar o testamento do tio George. Disse-lhe que seria perda de tempo, pois eu já consultara o advogado logo após a morte do velho.
O testamento foi bastante claro: tio George estava completamente lúcido quando o fez.
Frances não conseguiu esconder a própria surpresa. Olhou para Tony estupefata, enquanto o cavalo árabe começava a dar sinais de inquietação por não poder correr com liberdade.
- Quer dizer que você chegou a pensar em contestar o testamento?
- Pensei. Considerei de fato a idéia quando descobri que o velho recomendara que a fazenda fosse vendida e o dinheiro doado a alguma entidade idiota de caridade.
- Você não teria agido assim no meu lugar?
Frances não sabia o que responder. Sentia-se enojada diante da simples idéia de que Tony desrespeitasse a vontade do tio morto. Mas outro detalhe a intrigava: O que teria levado George Wilkins a preferir
vender a fazenda a deixá-la como herança à família?
Inventando a desculpa de que Logan e Martha já deveriam estar preocupados com sua demora para o café da manhã, despediu-se de Tony na entrada da área do gado Brahman e partiu.
As coisas não faziam muito sentido. Mal clareara o dia e já se via diante de novas complicações. Alguma coisa estava errada naquela história entre Tony e Claudia.
Mas o quê? Por que o velho Wilkins não os havia declarado como herdeiros? E se eles não gostavam do tio, por que insistiam em visitar a fazenda que fora propriedade deles?
Tantas questões a estavam enlouquecendo quando Bernard, Olivia e Janet chegaram para o almoço. Logan voltou a relatar a Janet as peripécias que presenciara na noite anterior. A menina mostrou-se decepcionada
por ter perdido a festa. Festa? Enfrentar uma leoa enorme e feroz não era bem o tipo de festa ideal para Frances. Mas a expressão embevecida do rostinho da irmã descontraiu o ambiente, fazendo com que
todos rissem.
Depois que a família foi embora, Frances esperou anoitecer e então foi para a varanda. Os rugidos dos leões pareciam mais distantes do que nunca. Os dois machos deviam ter se espantado com o tiro
e fugido para a área de vegetação mais densa do parque. Mas Frances não estava mais preocupada com leões naquela noite. Levantando-se, foi para a sala e observou o retrato de George Wilkins, preso à parede,
imaginando que segredos existiriam por trás daquele sorriso enigmático.
"Por que você não quis deixar a fazenda para Claudia e Tony? Está bem, não precisa me dizer. Mas vou descobrir a resposta, mais cedo ou mais tarde", pensou.
- Este retrato é extraordinário. A expressão do rosto parece se alterar conforme as circunstâncias - Martha interrompeu-lhe os devaneios.
- Que alívio ouvir isso! Pensei que só eu tivesse percebido... Sabe, achei que estivesse ficando louca!
- Mas o que mais me fascina é a moldura. - Martha tirou o quadro da parede, levando-o para a cadeira em que se sentara. Em seguida, passou os dedos vagarosamente pelos relevos da moldura de metal.
- É uma moldura tão incomum!
Frances recostou-se na cadeira, esticando as pernas para a frente e fechando preguiçosamente os olhos. Em meio a um suspiro, comentou:
- Eu fico me perguntando...
O som de uma trava de metal sendo aberta cortou-lhe a frase ao meio. Quase de imediato, Martha exclamou, assombrada:
- Frances, você precisa dar uma olhada no que eu acabo de encontrar! - Ás quatro partes da moldura tinham se desprendido, revelando serem ocas. No espaço vazio entre a tela e o fundo falso do quadro,
havia uma verdadeira fortuna em dólares! - Veja, Frances, é assim que funciona!
Martha repetiu a operação, recolocando a moldura à posição original. Então, exercendo uma leve pressão num determinado ponto na parte de baixo à direita, a estrutura se abriu como que por encanto.
Cercado por tanto dinheiro, George Wilkins parecia sorrir por trás dos vistosos bigodes brancos. Frances tinha de reconhecer a esperteza do ex-proprietário de Thorndale. Sorrindo, balançou a cabeça.
- Qual é a graça?
- Estou imaginando o que Tony e a priminha Claudia de Leur vão dizer quando souberem o que desperdiçaram ao recusar com tanta má vontade o retrato do tio.
Martha também riu, mas logo ficou séria, examinando o quadro que repousava sobre os joelhos.
- Quanto será que tem de dinheiro aqui?
- Olha, para falar a verdade, não estou com muita vontade de contar... - Frances suspirou. Na verdade, não se sentia bem mexendo no dinheiro de George Wilkins. Que os sobrinhos já lhe tivessem desrespeitado
os desejos parecia suficiente.
Então, uma lembrança lhe veio à mente. Um gesto que há poucos dias não conseguira entender: Claudia de Leur deslizara as mãos nos entalhes da escrivaninha que pertencera ao tio. Podia muito bem estar
imaginando que o dinheiro estivesse oculto ali, ou em alguma outra peça da mobília. Não, aquilo era ridículo! Ninguém poderia ser tão ganancioso a ponto de voltar à casa de um parente morto em busca de
tesouros escondidos!
- Frances, o que você vai fazer com o dinheiro?
- Acho que, no momento, podemos deixá-lo aí mesmo onde está. Mas a primeira coisa que farei amanhã será levar o quadro a Thomas Atherstone. Como advogado, ele deve saber o melhor destino para todo
esse dinheiro.
Martha acatou a sugestão, fechou as travas da moldura e recolocou o retrato na parede.
- Por que será que o velho escondeu o dinheiro na moldura do próprio retrato? - quis saber.
- Boa pergunta...
Frances não tinha resposta. Todavia, desconfiava de que George Wilkins terminara a vida frustrado e desiludido com o mundo, a começar pelos próprios parentes.
No dia seguinte, tendo diante de si o retrato e a moldura esvaziada de seu precioso conteúdo, Thomas Atherstone contou o dinheiro com cuidado. Depois de terminar, recostou-se na cadeira e, com a mão
sobre a testa, exclamou:
- É inacreditável! Tem meio milhão de dólares aqui! Frances arregalou os olhos. Trêmula, não parava de ajeitar, sem necessidade, a saia azul que vestia.
- Por que George Wilkins iria esconder tanto dinheiro na moldura de um quadro?
- Ah, ele nunca confiou em bancos. Vivia escondendo dinheiro pelos cantos da casa. George era bastante criativo, sabe? Eu me lembro que uma vez instalou um compartimento especial numa escrivaninha
justamente para guardar dinheiro. Alguns anos depois, sempre desconfiado, trocou o painel falso por um de madeira sólida.
Frances sentiu um frio no estômago. Afinal, o enigma parecia estar sendo desvendado: Claudia sabia da existência do tal painel na escrivaninha!
Thomas olhou o quadro em silêncio, por alguns instantes. Então virou-se para Frances.
- Quer dizer que você ofereceu o retrato a Tony Philips e a Claudia de Leur?
- Ofereci. E nenhum deles quis levá-lo.
- Sabe, Frances, há um detalhe no testamento do George que ele insistiu muito em incluir. Não compreendi direito, na ocasião, mas, agora... Espere, vou apanhar o documento no cofre... - Minutos depois,
o advogado voltou com um papel na mão. - Veja, aqui está.
- O que diz?
- Os que respeitarem minha memória serão recompensados. Acho que agora as coisas ficam mais claras. Tony e Claudia tiveram a chance de receber a recompensa, mas a desperdiçaram por não se importarem
com o tio. Já você, uma pessoa de fora da família, respeitou-lhe a memória. Guardou o retrato quando poderia tê-lo jogado fora. Frances, este dinheiro lhe pertence!
- Você quer dizer que George Wilkins escondeu o dinheiro no quadro com a intenção de testar os sentimentos dos sobrinhos?
- Certo! E Claudia e Tony fracassaram na prova. Frances ficou chocada com a descoberta. Só alguns minutos mais tarde conseguiu pensar com calma e relembrar o diálogo que travara com Tony no dia anterior.
- O Tony me disse que o dinheiro da venda de Thorndale foi doado a uma instituição de caridade...
- É verdade. Foi cedido a um fundo para a construção de um asilo para velhos em Louisville.
"Que bonito gesto", pensou Frances. Tudo aquilo apenas contribuía para revoltá-la ainda mais contra o comportamento de Tony. Chamar a atitude do tio de caridade idiota ultrapassava todos os limites
de insensibilidade.
- Gostaria de que você também doasse esse dinheiro em meu nome, Thomas.
- Tem certeza de que é isso que quer?
- Certeza absoluta.
Ela olhou para o quadro. Poderia jurar que vira um brilho de aprovação nos olhos de George Wilkins.
- Você é uma mulher muito generosa, Frances. Meus parabéns!
Bem, mudando de assunto: soube que teve um problema com um leão numa noite dessas em Thorndale... Todo o mundo está comentando a sua pontaria!
- Se não se importa, Thomas, não gostaria de tocar neste assunto. Aquilo nunca deveria ter acontecido. Bem, agora preciso ir.
Frances despediu-se e, pouco depois, deixou o escritório com o quadro vazio debaixo do braço. Atravessava a rua em direção ao local onde estacionara o carro quando de repente uma voz familiar chamou-a
pelo nome, causando-lhe um choque paralisante. Olhou para trás e reconheceu Byron, que atravessava a rua em sua direção. Ela tentou ignorá-lo, apertando o passo, mas não adiantou.
- Frances, espere!
Ela abriu o jipe e colocou o retrato no banco traseiro. Então sentiu mãos fortes puxando-lhe o braço. Odiava e, ao mesmo tempo, amava aquele toque.
- Pensei que concordamos em não nos procurar mais.
- Não seja infantil, Frances! Estávamos irritados naquele momento. Dissemos muita coisa sem pensar...
- Pois eu acho que deixamos bem claro o que pensamos.
- Que tal discutirmos isso enquanto tomamos um chá? Sem esperar resposta, fechou a porta do jipe e saiu andando, levando-a pela mão.




CAPÍTULO IX




Byron e Frances entraram numa casa de chá para fugir do sol quente. No entanto, o que poderia ser um encontro fraternal acabou se tornando, pelo menos a principio, uma discussão acalorada.
- Acalme-se, Frances. É quase impossível manter um diálogo sensato e racional com alguém que se recusa a cooperar.
- A idéia foi sua, não tenho culpa.
- Se estou disposto a chegar a um acordo, não vejo por que você não possa fazer um esforcinho!
- Me dê uma boa razão para eu fugir assim.
- Você nunca fez nada num momento de raiva que tenha se arrependido depois?
- Muitas vezes.
Frances relutou, mas acabou tendo de ceder. A raiva aos poucos ia sendo neutralizada, dando lugar a um certo arrependimento, como Byron mencionara.
- Eu sinto muito pela morte da leoa.
- Eu também.
- E continuo achando que você deveria me deixar reembolsa-lo com algum dinheiro...
- Escute aqui, Frances: você quase morreu. Acha que um cheque pode apagar o susto que você nos deu?
- Não, acho que não, mas...
- Eu compreendo e aceito que você tenha saído atrás da leoa porque estava preocupada com seu gado. Mas o fato é que, se você não tivesse interferido, eu poderia ter resolvido tudo sem matar o animal
e sem me arriscar. Sei que, depois que ela avançou, você não teve outra opção senão atirar... O que me deixou mais louco nesta história toda foi imaginar o que poderia ter acontecido com você!
O coração de Frances pareceu parar de bater por um momento. Estaria compreendendo bem? Seria possível que Byron tivesse se comportando daquela forma porque se importava com ela?
- Byron!
A voz esganiçada cruzou o ambiente num volume bem superior ao das conversas nas demais mesas. Frances virou o rosto e mal pode disfarçar seu desapontamento ao reconhecer Claudia de Leur. Byron levantou-se
para recebê-la e ela não hesitou em agarrá-lo pelo braço.
- Byron, querido, que sorte a minha encontrá-lo tão cedo na única casa de chá que existe neste fim de mundo!
Fim de mundo? Frances mordeu os lábios para evitar uma resposta malcriada a Claudia. Não admitia que ela viesse criticar o lugar onde nascera. Byron cuidou de recebê-la com boas maneiras.
- Bom dia, Claudia. Não quer se sentar?
- Obrigada, querido. Estou louca por uma xícara de chá! Byron chamou o garçom, pedindo-lhe que trouxesse um bule de chá quente e mais uma xícara.
- Mas o que você está fazendo na rua numa segunda-feira tão cedo? - ele perguntou.
- Tive de trazer o meu carro para um conserto. O mecânico não soube me dizer quanto tempo demorará para colocá-lo em ordem. Ainda bem que o encontrei aqui. Espero que não se importe em me dar uma
carona até Izilwane e depois trazer-me de volta à cidade para apanhar meu carro. Estou pedindo muito, querido?
- Não, será um prazer, Claudia.
- Eu sabia que você iria dizer isso. Ah, ele não é um amor, Frances?
- Acho que é uma questão de gosto... Obrigada pelo chá, Byron.
- Nossa, por que tanta pressa, querida? Eu ia lhe perguntar uma coisa a respeito do meu tio George. Bem, talvez seja melhor eu passar na sua casa mais tarde ou noutro dia. Tudo depende de quando o
meu carro ficar pronto...
- Vá quando quiser, com licença... - Levantando-se, Frances caminhou em direção à porta, sem se importar com os insistentes chamados de Byron. Percebeu que ele se desculpava com Claudia e a seguia,
mas só se deixou alcançar do lado de fora da casa de chá.
- Vou acompanhá-la até o jipe.
- Pois eu preferia que você ficasse onde está.
- Mas o que há com você, agora?
- Me deixe em paz, Byron! Foi um erro aceitar seu convite para o chá. Acho que deveríamos voltar ao acordo que fizemos naquela noite: você desaparece da minha vida e eu da sua.
Frances atravessou a rua antes que ele pudesse ver as lágrimas que começavam a invadir-lhe o rosto. Por menos que quisesse admitir, sentia-se incrivelmente enciumada.
Frances voltou a toda velocidade para Thorndale. Ao chegar, trocou de roupa, colocando a calça jeans mais velha que encontrou no guarda-roupa. Só conhecia um modo de relaxar: dar uma longa cavalgada.
Selou Pegasus e galopou por vários quilômetros. Ao sair, notara uma expressão preocupada no rosto de Sibho, mas não se interessara em indagar qual o motivo. A dor de se saber apaixonada por um homem
impossível remoía-lhe o coração.
Ela retornou para casa uma hora mais tarde. Encontrou o Toyota azul de Claudia estacionado sob a sombra dos jacarandás. Entrou em casa lutando para manter-se calma.
Antes de qualquer cumprimento, Claudia interpelou-a agressivamente.
- Onde está o retrato do meu tio?
- No meu jipe. Você decidiu levá-lo, afinal?
- Não agora que você retirou o que por direito me pertencia.
- Desculpe, mas não estou entendendo...
- As notícias correm depressa num lurgarzinho como este: consultei o Sr. Atherstone esta manhã para confirmar os comentários. Cheguei ao escritório logo depois que você o deixou.
- Então você já sabe sobre o dinheiro?
- Sei, sim. E você não tinha o direito de doar a minha herança!
- Sua herança? Ora, podia ser herança do Tony, também, mas nenhum de vocês quis o quadro!
- Isso não vem ao caso. Você não tinha o direito de levar o dinheiro ao advogado sem antes consultar a mim ou ao Tony!
- Srta. de Leur: Thomas Atherstone foi advogado do seu tio. Não quis tomar nenhuma decisão sem antes pedir a opinião dele.
- Você comprou esta fazenda a preço de banana com tudo o que havia dentro dela. Isso é roubo!
- Ora, que petulância da sua parte vir até aqui me dizer desaforos! Fique sabendo que tudo o que fiz foi sugerir uma oferta que, por acaso, foi aceita... Não diria que foi preço de banana!
- Ah, não? Ainda ouvi dizer que você doou o dinheiro para a construção de um asilo de velhos. Que gesto nobre! Pena que eu sabia o que a levou a agir assim. Conheço gentinha como você, Frances: quis
apenas impressionar o Byron, porque está apaixonada por ele.
Frances estava prestes a perder a paciência. Mais que isso, assustava-a a idéia de que aquela mulher lhe adivinhara os sentimentos.
- Você não sabe o que está dizendo!
- Ah, não sei? Bem, tenho novidades para você, querida: o interesse de Byron Rockford se concentra em Thorndale, não em você. Ele quer a fazenda e fará qualquer coisa para possuí-la. Se não conseguir
convencê-la a vender, pode até resolver se casar com você para ter livre acesso às terras.
Frances estava chocada. Sabia que não devia acreditar numa única palavra de Claudia de Leur, mas era inegável uma certa lógica naqueles argumentos. Byron tinha mesmo interesse na fazenda. Mas, casamento?
Seria capaz de se rebaixar a tal ponto apenas para poder desfrutar parte da propriedade?
- Srta. de Leur, acho que já está passando dos limites. Esta fazenda foi um dia do seu tio, mas eu a comprei. E por isso gostaria que tirasse os pés daqui imediatamente!
- Já estou indo embora. Mas depois não diga que não avisei... As palavras venenosas de Claudia pemaneceram na cabeça de Frances durante muito tempo. Não queria acreditar, mas não seria impossível
que houvesse nelas um fundo de verdade.
Cerca de uma hora depois da partida de Claudia, outro veículo aproximou-se. Ao toque da campainha, Gladys foi abrir a porta. Momentos depois, passos pesados acompanharam-na até o escritório. Frances
sabia de quem se tratava antes mesmo de vê-lo: era Byron.
- As pessoas costumam bater antes de entrar num recinto com a porta fechada - disse-lhe.
- O que há com você, Frances? Queria fazer as pazes hoje de manhã, mas você saiu arreganhando os dentes daquele jeito... Eu disse alguma coisa que te aborreceu?
- Não.
- Então, pelo amor de Deus: por que fez toda aquela cena na casa de chá?
- Digamos que eu apenas me lembrei de que temos alergia um do outro... Para ser sincera, acho melhor que passemos a nos evitar ao máximo.
- Você sabe que não é verdade, Frances... Nós precisamos um do outro... Venha, vou lhe provar!
- Largue o meu pulso! Você está me machucando! Frances, porém, já não tinha escapatória. Byron enlaçara-a com violência. Ela se preparou para mais um beijo selvagem, mas surpreendeu-se com a delicadeza
com que Byron lhe tocou os lábios, numa carícia sensual que fez com que o abraçasse com toda a força.
Excitada, beijou-o com volúpia, enquanto sentia as mãos de Byron sobre seus seios, abrindo o sutiã, tocando-lhe a pele quente e macia.
Ela já havia perdido totalmente o controle sobre as próprias reações quando, após um longo suspiro, Byron afastou-se. Apoiou as duas mãos contra a parede onde Frances ficara encostada.
- E agora, Frances? O que você tem a dizer?
Ela fugiu do alcance de Byron, abotoando novamente o sutiã com as mãos trêmulas. Tinha o rosto afogueado, mas dirigiu-se a ele com voz fria:
- A única coisa que você acabou de provar é que nós somos capazes de excitar fisicamente um ao outro. Mas isso não é o bastante para um relacionamento mais profundo.
- Que diabos, Frances, eu quero me casar com você!
Ela ficou pálida de imediato. Não quisera acreditar que o homem que amava fosse capaz de se rebaixar àquele ponto. Claudia tinha razão. Byron só queria a fazenda.
Possessa, não mediu as palavras:
- Não estou me oferecendo a casamentos, menos ainda a um sujeito que só vê na união um meio de colocar as mãos na minha propriedade!
- É isso que você acha?
Frances queria gritar para que ele se defendesse, que dissesse que tudo não passava de uma invenção de Claudia. Em vez disso, Byron foi até a janela e permaneceu em silêncio.
- Depois de tudo que Claudia de Leur me contou, o que você espera que eu pense? - Frances provocou.
- Quando ela falou com você?
- Saiu daqui antes de você chegar.
Havia alguma coisa de errado, uma tensão horrível no ar. Frances, porém, não conseguia identificar a razão, ficando ainda mais preocupada.
- Você é uma mulher inteligente, Frances. Se de fato acredita em tudo o que uma pessoa inescrupulosa como a Claudia lhe disse, então nós dois não temos mesmo mais nada para conversar.
Frances ficou apavorada ao ver que ele deixava o escritório sem nem sequer se despedir. Queria dizer-lhe que estava em dúvida! Mais que tudo no mundo, desejava obter provas de que Claudia mentira.
E apenas ele poderia fazê-lo. Correu atrás dele, alcançando-o na varanda.
- Byron, eu acho que...
- Você tem razão, Frances. Temos alergia um do outro. E o melhor remédio é mantermos certa distância... - Byron olhou-a ainda uma vez, dando a impressão a Frances de que ia dizer mais alguma coisa.
Mas virou-lhe as costas e foi embora, deixando-a sozinha, com os olhos perdidos no horizonte e uma dor sangrando-lhe a alma.
Ela começou a caminhar sem rumo definido. Foi na direção do pomar. Não sabia o que a levara até ali, mas vagava por entre as árvores com as mãos enfiadas nos bolsos da calça, apreciando o perfume
das frutas. Algo lhe dizia para não parar ou seria pega de novo pela dor.
- Frances?
Virou-se rápido ao ouvir a voz de Olivia que se aproximava pela alameda das laranjeiras. Nunca o sorriso doce da madrasta viera num momento tão preciso.
- A Gladys me disse que eu poderia encontrar você aqui. A temperatura está tão agradável que talvez nós pudéssemos conversar embaixo de alguma árvore. Que tal?
Frances concordou. A simples presença de Olivia tinha a capacidade de acalmá-la.
- Pensei que talvez você estivesse precisando de mim. Meu pressentimento estava certo, querida?
Frances fez que sim com um gesto de cabeça. Temia cair no choro se tentasse falar.
- Vamos, querida: conte-me o que aconteceu...
Quando abriu a boca para falar, Frances não conteve mais as lágrimas. Soluçando como uma criança, abraçou-se à madrasta até que ela ofereceu-lhe um lenço.
- Está mais calma, querida?
- Estou apaixonada por Byron.
- E isso é assim tão mau?
- Ele não me ama! Pelo menos, nunca me disse isso e Claudia de Leur... ah, você não a conhece... É a sobrinha de George Wilkins.
- Já ouvi falar dela.
- Claudia descobriu o que sinto por Byron e, pouco antes de eu expulsá-la de casa, avisou-me que o único interesse dele é a fazenda. Ela disse que Byron faria de tudo para tê-la, até mesmo me propor
casamento.
- E você acreditou?
- Na hora, sim. Tudo me pareceu tão lógico! Me veio à mente de imediato a reação de Byron quando soube que eu havia comprado Thorndale.
- E agora, o que você acha?
- Acho que cometi o maior erro da minha vida.
- Em que sentido?
- Assim que Claudia saiu, Byron veio até aqui. Discutimos um pouco e então ele... ele me propôs casamento.
- Ah, entendo... Você recusou, não foi?
- Sim, recusei. E contei os meus motivos. Ah, se ao menos ele tivesse dito que me ama, talvez eu pudesse... ah, não sei mais nada!
- Os homens costumam se esquecer de que é importante para uma mulher saber que é amada. Desconfiar que há motivos ocultos para ser pedida em casamento só torna as coisas piores. Você sabia que eu
disse não ao seu pai quando ele me falou em casamento pela primeira vez?
- Por quê?
- Achava que a única razão para a proposta era você, que precisava ter alguém no lugar da mãe.
- Você também precisava ter certeza de que era amada?
- Exato.
- Mas como eu vou poder testar os sentimentos de Byron? De que jeito vou saber que o interesse dele não é apenas a fazenda?
Isto é, se ele ainda quiser saber de mim...
- Você vai saber, querida. Homens como Byron Rockford e seu pai têm dificuldade para expressar o que sentem, mas quando se mostram de verdade, proporcionam uma experiência que não se esquece pelo
resto da vida. "Uma experiência que não se esquece pelo resto da vida! Será que algum dia passaria por algo semelhante?", Frances pensou.
Será que a recusa ao pedido de Byron não teria podado qualquer chance para que o relacionamento entre os dois florescesse? Não estaria desejando um amor impossível?
- Vamos voltar para casa, querida. - Olivia afagou-lhe os cabelos. - Estou me convidando para o almoço e, com certeza, você vai querer lavar o rosto antes de encontrar Martha...
- Ah, Olivia... Que bom que você se casou com papai! Não sei o que teria sido de nós sem você!
- Obrigada, querida. Esta é outra experiência inesquecível para mim.




CAPÍTULO X




Dois dias após ser expulsa da casa e da propriedade de Frances, Claudia de Leur deixou Izilwane a pedido de Byron e retornou a East London. Sua ausência, contudo, não fora suficiente para acalmar
os ânimos entre Frances e Byron. A prima de Tony espalhara um veneno poderoso, cujo efeito ainda persistia.
Cumprindo a promessa, Byron se mantivera distante de Frances. Cruzavam-se apenas de vez em quando, sem parar para conversar ou esclarecer a recente discussão. Frances chegara a considerar a hipótese
de ir procurá-lo em Izilwane, mas o orgulho e a dúvida a impediram.
A presença constante de Tony em Thorndale só contribuía para piorar o estado de ânimo de Frances. Não por culpa dele, mas porque se não poderia estar com Byron, preferia permanecer sozinha. Martha,
por sua vez, viajara para Johannesburgo a convite de uma editora que a contratara como ilustradora de livros. Quando Tony a convidara para um baile em Izilwane, Frances mal soubera o que responder. Racionalmente,
não queria reencontrar Byron, mas, após alguns momentos de hesitação, acabara assentindo e, na noite seguinte, esperava um amigo usando um deslumbrante vestido de seda com um generoso decote que lhe revelava
a curva entre os seios.
O restaurante de Izilwane estava lotado e, apesar da qualidade da comida e da boa música, Frances não conseguiu sentir-se relaxada. O receio de rever Byron a incomodava.
Aborrecia-se também por notar que Tony exagerava um pouco na bebida. Pedia um uísque após o outro e não parava de se dependurar no ombro de Frances, irritando-a ao máximo.
- Vamos tomar um pouco de ar lá fora, Frances - ele pediu.
Frances não discordou. O ambiente estava, de fato, bastante tenso no salão. Quem sabe se Tony se conscientizasse de seu comportamento ao ar livre...
Caminharam sobre a luz das estrelas que ornamentavam a noite quente, ao som cada vez mais distante da música no restaurante.
- Frances, você gosta de mim, não? Tony a interpelou de repente.
- É claro que gosto!
- Então por que não se casa comigo?
- Ah, não comece com essa história de novo, Tony...
- Ouça, por favor. Ouça só por um minuto...
- Estou ouvindo, Tony.
- Nós podemos ser felizes. Prometo que vou fazê-la feliz, que serei um bom marido.
- Tony, sinto-me honrada por ouvir isso, mas eu... eu não te amo.
Frances assustou-se quando ele a segurou pelo braço, com o olhar ferino no rosto.
- Há outra pessoa?
- Não, ninguém.
- Há! Eu sei que há! É o Rockford, não é? Você se apaixonou por ele!
- Não seja bobo, Tony.
- Esqueça-o! Eu posso fazê-la esquecer Byron Rockford! O hálito contaminado pelo álcool repugnava a Frances. Tony tentou beijá-la. Ela o empurrou, mas sem convencê-lo a desistir. Ele insistiu em tocá-la
nos lábios, deixando-a enojada.
- Pelo amor de deus, Tony, me solte e comporte-se!
- Diga que você me quer, Frances! Vamos, diga!
- Pare com isso!
- Só quando você disser.
Nesse instante, alguém puxou-o pelo braço, quase fazendo com que perdesse o equilíbrio.
Byron viera em seu auxílio. Depois de temer-lhe a presença por toda a noite, era um alívio para Frances revê-lo.
- Você não ouviu o que a moça disse, Tony?
- Como você se atreve a se meter num assunto que não lhe diz respeito?
- Não pretendo fechar os olhos enquanto uma mulher é molestada em minha propriedade. Frances, é melhor você entrar.
- É, volte para o restaurante, Frances. Eu e o Rockford temos mesmo que acertar as contas de uma vez por todas.
Frances temeu pelo que pudesse acontecer entre os dois homens visivelmente descontrolados.
- Venha, Tony, vamos entrar! Byron, pare com isso... - Vendo que os dois continuavam com as agressões, resolveu voltar para o restaurante, pois nada mais poderia fazer.
Ao voltar à mesa que Tony alugara, sentia o coração apertado e uma angústia sem fim. Algum tempo depois Byron se aproximou sem aparentar sinais de briga.
- Onde está Tony?
- Foi embora.
- E como é que vou voltar para casa?
- Eu levo você. Mas apenas depois de dançarmos uma música juntos, está bem?
- E se eu disser não?
- Vai dar uma boa caminhada até Thorndale...
- Isso é chantagem!
- Você é quem escolhe.
- Está bem, então. Vamos!
Os dois deslizaram pelo salão ao som suave da orquestra, mas para Frances a sensação de estar próxima de Byron não era tranqüila. Ele também parecia confuso, e consultou o relógio várias vezes até
o fim da dança.
- Você não está gostando, está? - ela perguntou.
- Venha, vamos embora - Byron retaliou com frieza. Eles caminharam em silêncio até o jipe de Byron. Frances não podia suportar aquele comportamento. Lutava para conter o pranto enquanto tentava aparentar
indiferença.
Quando se acomodaram no veículo e Byron ligou o motor, ela rezou para que a viagem até Thorndale acontecesse sem grandes novidades. Uma exclamação de Byron despertou-a daqueles pensamentos:
- É isso! Meu Deus, Frances! Acho que já sei quem está rompendo a nossa cerca... Creio que talvez tenhamos a sorte de apanhar o culpado em flagrante esta noite.
- O quê?!
- vou aguardá-lo na área do rio, hoje. E gostaria muito de que você me acompanhasse.
- Tudo bem, mas... Posso saber de quem você desconfia?
- Tony Philips.
Boquiaberta, Frances encarou-o de imediato, mal conseguindo se expressar:
- Tony? Você suspeita do Tony? Que bobagem, Byron!
- Vamos ver...
No caminho, Frances ainda não conseguia crer no que acabara de ouvir. Por mais que tentasse, não imaginava nada que pudesse justificar a suspeita de Byron.
Ele guiou devagar até a divisa, estacionando o jipe sob uma grande árvore distante quinze metros da grade. A seguir desligou o motor e apagou os faróis. Permaneceram ali por muito tempo, ouvindo o
som dos grilos e os melancólicos lamentos dos chacais. Os leões rugiram uma ou duas vezes, silenciando pouco depois.
- Byron, você não pode estar falando a sério a respeito de Tony.
- Mas estou.
- Mas ele é tão... tão...
- Inofensivo?
- Bem, mais ou menos... Exceto pelo comportamento dele esta noite, é claro.
- Tony Philips não é o homem delicado e honesto que você imagina, Frances. Bebe demais, gasta dinheiro ao léu, joga fortunas em cassinos. Á fazenda dele está hipotecada, obrigando-o a se esconder
dos credores. A princípio, conseguiu iludi-los com a promessa de que herdaria Thorndale, mas George Wilkins nunca foi tolo. Conhecia o sobrinho e sabia que ele acabaria com a herança num piscar de olhos.
Decerto o velho não quis deixar Thorndale nas mãos de um incompetente, de um irresponsável como Tony.
Frances ficou chocada com a descoberta. Não duvidava de Byron, mas achava difícil aceitar ter cometido um erro de julgamento tão monstruoso em relação ao amigo.
- Então foi por isso que ele não herdou a fazenda... Mas ainda não entendi por que você começou a suspeitar de que estivesse envolvido neste episódio da cerca.
- Desconfio há um bom tempo, mas não vou lhe explicar nada, por enquanto. Só lhe digo uma coisa: há pouco, no parque, Philips aguçou minhas suspeitas quando me disse que antes que a noite acabasse
eu iria me arrepender por tudo o que havia feito.
- Meu Deus! É possível você achar que conhece alguém como a palma da mão e, de repente, perceber que se enganou completamente?
- Bem possível.
- Se você estiver certo... Quanto tempo acha que precisaremos esperar?
- Não sei. Nem sei se vai acontecer alguma coisa ainda hoje, mas vale a pena arriscar.
Frances não falou mais. Aceitava os argumentos de Byron, o que não impedia de desejar que tudo não passasse de um mal-entendido. Ambos ficaram num silêncio absoluto, no escuro, pelo que pareceu uma
eternidade. Tudo o que viam eram algumas cabeças de Brahman que pastavam tranqüilas.
- Está ficando tarde.
- Eu sei. Já estou me arrependendo de tê-la arrastado até aqui por nada...
De súbito, Byron se calou e ajeitou-se no banco, como se tivesse percebido algum movimento suspeito.
- O que foi?
- Quieta!
- Estou ouvindo o tropel de um cavalo.
- Eu também. Nossa longa espera talvez não tenha sido em vão.
Frances tremia dos pés à cabeça enquanto esperava o misterioso cavalheiro. Logo o viram, aproximando-se em silêncio da cerca. Ele desmontou, nem se dando ao trabalho de prender o cavalo. Usava um
chapéu que lhe sombreava o rosto, mas, pelo corpo e pelos gestos, podia-se reconhecer Tony sem a menor dúvida.
- Meu Deus, é o Tony! O que vamos fazer?
- vou esperar até que de fato corte a cerca. Então, nós o apanharemos em flagrante.
- Entendi...
- Agora, escute com atenção: vou me aproximar o mais que puder sem que ele me veja. Quero que você acenda a luz no instante exato em que me ouvir gritar o nome dele.
Entendeu?
- Deixe comigo.
- Ótimo, garota!
- Byron! Tenha cuidado...
Ele acariciou-lhe o rosto, tentando confortá-la, antes de seguir se esgueirando pelas sombras. A situação adquirira um clima macabro e assustador.
Frances, suando frio, esperou com ansiedade o momento em que deveria acionar o farol. O som do alicate rompendo o arame era difícil de ouvir, mas podia imaginá-lo dobrando a grade para trás e abrindo
o caminho entre as propriedades.
- Você não vai conseguir desta vez, Philips!
Ao ouvir a senha, Frances acendeu os faróis, que atingiram em cheio a figura de Tony. Ele levantou o braço, protegendo o rosto da luz. Frances inclinou-se sobre o painel, custando a acreditar no que
via.
Tony estava armado com um rifle. Por uma fração de segundo, Frances pensou que ele fosse matar Byron. Depois, ouviu um estampido que a fez cair para trás, batendo as costas no banco do jipe. O pára-brisa
ficou reduzido a minúsculos estilhaços de vidro. Outro tiro e, então, os faróis foram apagados, deixando todos na mais profunda treva.
- Tony, seu idiota!
Frances só enxergava os vultos dos dois homens, ao mesmo tempo em que uma dor cortante imobilizava-lhe o ombro. Levou a mão ao local, encontrando-o empapado de sangue.
Ficou paralisada. Levara um tiro! Atordoada, percebeu que Tony fugira em seu cavalo e que Byron corria em direção ao jipe. Ele abriu a porta com um tranco, acendendo a luz interna do veículo.
- Meu Deus! Philips vai pagar caro por isso!
Frances não conseguia falar. Byron rasgou a própria camisa em tiras, tentando estancar a hemorragia. A dor começava a ficar insuportável.
- Frances, minha querida, tenha calma! Vou tentar parar o sangramento... Oh, meu Deus!
- Não sou do tipo que desmaia quando vê sangue. Faça o que precisar ser feito.
- Vou tentar não machucá-la.
Byron rasgou-lhe a parte de cima do vestido, enxugando o sangue que manchava o sutiã. Mesmo numa situação tão delicada, Frances não deixou de sentir-se um tanto envergonhada.
- Você parece ter muita prática nisso...
- Já cuidei de outras pessoas feridas antes.
- Estava me referindo à sua experiência em tirar a roupa de mulheres...
- Também tenho alguma prática neste campo.
- Era de se esperar, eu acho... Ai, está doendo! O que há?
- A bala se alojou no seu ombro. Preciso levá-la ao hospital o mais rápido possível.
- Tem certeza?
- Tenho certeza, sim!
- Ah, meu Deus! Isso vai ser um pesadelo para meu pai e Olivia!
- Não há como evitar... Pronto, esse curativo dará um jeito na hemorragia até chegarmos ao hospital.
- Byron... eu vou morrer?
- Não, se depender de mim!
- Ainda bem, porque...
Uma pontada aguda fez com que Frances se calasse. Não queria morrer antes de ter a chance de se desculpar com Byron e de dizer-lhe o quanto o amava. Mas, de repente, o rosto dele escureceu e foi tornando-se
cada vez mais distante.
- Byron! Onde você está? Eu não posso... - Não conseguiu concluir. Sentiu a cabeça pesada e desfaleceu.
Frances voltou a si numa maca de hospital, ao lado do tio Dr. O'Brien, e da dra. Jessica Neal.
- O que houve?
- Você vai ser operada. O Dr. O'Brien cuidará da cirurgia e eu serei sua assistente.
- Vai ficar tudo bem, Frances - o médico garantiu.
- E papai e Olivia?
- Estão aqui. Assim como sua tia.
- Byron?
- Nem um terremoto o afastaria daqui agora, acredite. Jessica sorriu e acariciou-lhe a testa, tentando mantê-la calma.
Após alguns exames de praxe, entraram na sala de cirurgia, marcada pelo forte cheiro de antisséptico. Frances suspirou. Sabia que não poderia estar em mãos mais competentes. Dentro de instantes, a
anestesia faria efeito, e ela esqueceria as dores e preocupações.
Frances despertou com os olhos turvados por uma espécie de névoa, ouvindo uma voz distante que parecia a de Byron. Tudo não devia passar de um sonho, pensou.
- Meu Deus, o que eu posso fazer para você acreditar que eu te amo?
Por instinto, Frances levou as mãos às de alguém que se colocara ao lado da cama. Virou a cabeça no travesseiro, encontrando o rosto de Byron, cansado e cheio de olheiras.
- O que você disse?
- Perguntei se você está bem.
Não era possível! Teria ouvido mal? As palavras maravilhosas que escutara ao voltar da anestesia podiam ter sido imaginadas? Claro, ela queria tanto ouvi-las que as imaginara! Não poderia haver outra
explicação plausível.
- Estou bem, eu...
Tentou se sentar na cama, mas uma forte pontada no ombro a impediu. Voltando a deitar-se com uma careta de dor, suspirou fundo.
- Fique deitada.
- Acho que não poderia mesmo fazer nada no momento. Que horas são?
- Quatro e meia da madrugada.
- O quê?! Você ficou aqui a noite inteira?
- Fiquei.
- Ah, Byron! E os outros, onde estão?
- Eles esperaram até a operação terminar, falaram com você. Não consegue se lembrar?
- Não.
Frances sentiu medo de ter dito alguma coisa comprometedora enquanto estivera sob efeito da anestesia.
- Bem, de qualquer maneira, eu disse a seus pais para irem para casa, e prometi que telefonaria assim que você acordasse. É melhor não faltar à minha palavra.
- Byron... o que vai acontecer a Tony?
- O assunto agora está nas mãos da polícia.
- Ele não fez de propósito. Aposto como nem sabia que eu estava no jipe. Só espero que não o mandem para a cadeia. O que você acha?
- Pois eu espero que o prendam, sim! Sair por aí cortando as cercas de propriedades alheias é crime também, sabia? Ainda mais em se tratando de uma área de segurança máxima como o parque. Quer a gente
goste ou não da idéia, Tony Philips não vai se safar desta com muita facilidade.
Ele tinha razão, Frances concluiu. Tony precisava enfrentar a justiça. Uma vez que a polícia assumia o caso, nada mais poderia ser feito.
- Byron... - Ela segurou-o pela mão, sem conseguir mais conter as lágrimas. - Obrigada... por tudo.
Byron levou a mão dela aos lábios e beijou-a com delicadeza.
- Descanse e trate de ficar boa bem depressa. Vou chamar a enfermeira e, em seguida, telefonar para seus pais.
Frances esboçou um sorriso. Mas, assim que a porta do quarto se fechou, enterrou o rosto no travesseiro e entregou-se às lágrimas...





CAPÍTULO XI




Durante os dias em que Frances permaneceu internada, o quarto do hospital ficou coberto de flores, que Olivia fazia questão de arrumar em lindos vasos de porcelana.
Martha telefonava de Johannesburgo diariamente, informando-se sobre o estado de saúde da prima. Como passasse bem, decidiu não adiantar sua volta, uma vez que adquirira novos contatos na cidade e
sua presença era requisitada.
Byron não deixou de ver Frances um único dia. Mandava dia sim, dia não um buquê de rosas brancas e proporcionava momentos de muita alegria todas as vezes que ia ao hospital. As visitas, porém, costumavam
ser rápidas, de modo que não tiveram chance de esclarecer o terrível mal-entendido que havia envenenado o relacionamento deles.
Ninguém da família lhe fizera perguntas sobre o que acontecera na noite em que fora baleada. Frances sabia que Byron já devia ter notificado a todos e sentiu-se aliviada por não ser obrigada a tocar
naquele assunto tão desagradável. Deprimia-se diante da decepção que Tony lhe dera e, mais ainda, pela lembrança do terrível momento em que pensara que Byron poderia morrer. Isso sem falar na angústia
que sentira ao perceber que poderia morrer sem que lhe dissesse que... o amava. No entanto, Byron, durante todo aquele tempo, jamais lhe dera qualquer indício de que nutria algum sentimento mais profundo
do que mera preocupação com o seu estado de saúde.
O que gostaria que fosse verdade estava cada vez mais distante...
Ao sair do hospital, Frances não voltou para casa. Olivia insistira para que se recuperasse por mais alguns dias em Mountain View. O resto da família e a dra. Jessica aprovaram a idéia.
- Você vai precisar de algum tempo até se recuperar. Não pode forçar o braço por uns bons dias ainda! O ferimento precisa cicatrizar bem e os movimentos só voltarão ao normal dentro de algumas semanas.
Frances deu razão à médica e obedeceu sem restrições a todas as recomendações que lhe foram feitas.
Uma semana depois de obtida a alta, ela tomava o chá com Olivia e vieram na varanda da fazenda do pai quando, pela primeira vez desde o acidente, se queixou. Embora se sentisse bem de saúde, seu braço
permanecia atrofiado, dificultando-lhe os movimentos, todos feitos com considerável desconforto.
- Sei que não deve ser fácil para você, querida - Vivien ponderou -, mas não se afobe. Depois que concluir a fisioterapia, vai sentir-se bem melhor. Por enquanto, procure descansar. Considere esse
período como uma forçada temporada de férias.
- Concordo com sua tia, Frances. Ei, espere um pouco: parece que um carro está se aproximando. Acho que você vai ter visitas... Meu Deus, é Tony Philips! Que audácia vir aqui depois de tudo o que
fez!
- Você prefere que a gente não o deixe entrar, Frances? - Vivien levantou-se decidida a barrar-lhe a entrada.
- Não. Quero falar com ele.
Frances queria entender certos detalhes que apenas Tony poderia esclarecer. Ela observou-o sair do BMW vermelho com uma estranha hesitação. Depois, caminhou até a varanda e abriu a porta de tela.
Vivien e Olivia olharam-no com indisfarçável rancor, mas Frances permaneceu sentada em silêncio.
- Bom dia a todas. Não vou tomar seu tempo, Frances. Fui solto sob fiança esta manhã, e preciso conversar com você.
Ela concordou com um gesto de cabeça e virou-se para Olivia e para a tia:
- Vocês podem nos deixar a sós por um minuto? Vivien, desconfiando das intenções de Tony, ainda tentou argumentar:
- Bem, eu...
- Por favor, tia... - Frances insistiu.
- Está bem. Estaremos na sala ao lado se precisar de nós, Frances.
Assim que Olivia e Vivien se retiraram, Tony sentou-se numa cadeira perto de Frances, calando-se durante alguns minutos, com os olhos baixos e tristes.
- Sinto muito pelo que aconteceu, Frances. Não sabia que você estava dentro do jipe quando atirei naquela direção, juro!
- Eu percebi. Mas por que você fez aquilo, Tony? O que esperava ganhar cortando a cerca entre Izilwane e Thorndale?
- Estava desesperado, Frances. Você era minha única esperança, depois que perdi Thorndale. Nosso casamento me salvaria de terríveis problemas financeiros. Percebi que o seu relacionamento com o Byron
era problemático. Pensando nos meus interesses, resolvi me intrometer. Eu os observava o tempo todo. Quando notei sinais de que as coisas começavam a amenizar entre vocês, decidi cortar a grade para que
vocês voltassem a discutir.
Frances não sabia o que esperava ouvir, mas a confissão de Tony irritou-a ao extremo:
- Pelo amor de Deus, Tony, como você pôde ser... tão... ?
- Eu sei. Entendo o que deve estar pensando de mim, Frances. Não a culpo por sentir-se assim. Também admito que me descontrolei naquela noite, mas foi por puro ciúme.
- No final, a grande ironia de tudo isso é que eu acabei me apaixonando de verdade por você. Por isso perdi a cabeça na noite do baile. Foi quando me dei conta de que não teria a mínima chance contra
Byron...
- Eu não sei o que lhe dizer, Tony...
- Não precisa dizer nada, vou pagar pelo que fiz. Mas isso não resolve meus verdadeiros problemas: terei de vender minha fazenda para pagar velhas dívidas. Aliás, foi por esta razão que; vim te procurar.
Acho que Rockford não me receberia se eu fosse encontrá-lo, mas gostaria de lhe deixar um recado: diga-lhe que quero me livrar da Grove e que lhe concedo prioridade na compra, se estiver interessado.
Frances sentiu o coração pular dentro do peito, mas procurou mostrar-se impassível.
- Vou dizer a ele.
- Bem, então é isso. Acho que não nos veremos mais. É hora de dizer adeus. Só espero que algum dia você me perdoe, Frances - dizendo isso, estendeu-lhe a mão, que ela apertou com certa relutância.
- Adeus, Tony.
Apesar de tudo, Frances sentia muita pena dele. Parecia-lhe tão arrasado... Claro que toda a família fez questão de lembrá-la de que não deveria se sentir culpada, pois fora Tony quem traçara o próprio
destino.
Na mesma tarde, Byron foi a Mountain View visitá-la. Frances, contudo, não lhe disse nada a respeito de Tony até que surgisse uma boa oportunidade.
- Tony saiu sob fiança e veio me visitar hoje de manhã - entrou no assunto assim, sem rodeios, a partir do momento em que Olivia os deixou a sós.
O rosto de Byron ficou sério.
- O que ele queria?
- Veio se desculpar e dizer adeus. Também avisou que colocou a fazenda à venda, e que se você estiver interessado, lhe dá prioridade na compra.
A expressão de Byron não se alterou e Frances por mais que tentasse não conseguiu distinguir o que ele realmente sentia a respeito daquilo tudo.
- Você está interessado?
- Posso estar. - Sem demonstrar vontade de prolongar o assunto, Byron abaixou-se e apanhou uma caixa que colocara sob a cadeira logo que chegara. - Trouxe uma coisa para você.
- Para mim? O que é?
- Por que não abre e descobre com seus próprios olhos - com as mãos trêmulas, ela abriu o pacote. Afastou o papel de seda e, surpresa, descobriu um vestido de seda semelhante ao que usara na noite
do baile e que ficara imprestável por causa do tiro.
- Oh, Byron, não precisava! - a voz dela assumiu um tom de admiração e alegria, ao passo que os dedos acariciavam o tecido com delicadeza.
- É o mínimo que posso fazer por você... Se tivesse um pingo de juízo, não a teria feito me acompanhar até a área do rio naquela noite. Assim, você não estaria aqui, recuperando-se de um ferimento
que podia ter sido fatal... A culpa é toda minha!
- Ah, Byron, não diga isso! Ninguém, muito menos você, podia ter adivinhado o que Tony faria.
O rosto de Byron continuou fechado, como se quisesse se punir.
- Eu vi o estado em que ele estava quando deixou o parque. Devia ter previsto problemas.
- Mas ninguém consegue prever o futuro, Byron! Seria uma maravilha se nós pudéssemos sempre prever as reações dos outros! Só que então o mundo perderia a graça, pois são as surpresas que costumam
nos provar que a vida vale a pena.
- É, acho que você tem razão.
- Obrigada, Byron.
- Como?
- Pelo vestido, eu quero dizer...
- Será que eu não mereço um beijo? Ei, não precisa ficar vermelha!
- Merece. Se é o que você quer...
Frances inclinou-se para beijá-lo no rosto. Mas Byron virou-se de súbito, juntando seus lábios aos dela, ao mesmo tempo em que a segurava pela nuca, impedindo que recuasse.
Beijou-a com intensa paixão e moveu os lábios com ardor e sensualidade, incendiando-a por dentro. Era a primeira vez que se tocavam desde a manhã em que Frances o expulsara do escritório, ao recusar
com tanta convicção o pedido de casamento. Naquele instante, ela se perguntava se Byron se lembrava ou não do episódio.
De repente, Byron afastou-se, baixando a cabeça. Um silêncio pesado caiu sobre eles e, por um instante, Frances teve a impressão de que ele se entristecera. Ansiosa para livrar-se daquele embaraço,
procurou recomeçar a conversa com a primeira idéia que lhe ocorreu:
- Adorei o vestido... Ah... Como você descobriu o meu número?
- Expliquei a Martha o que queria e pedi-lhe que fizesse a compra para mim. Bem, acho que preciso ir, Frances.
- A gente se vê amanhã?
A indiferença com que Byron pareceu receber a pergunta a fez sentir-se frágil e carente.
- Se eu não estiver muito ocupado...
- Ah, é claro... Bem, mais uma vez, obrigada.
- De nada.
Depois da partida de Byron, Frances caiu em depressão e ficou ainda pior quando no dia seguinte ele não apareceu. Byron telefonou dois dias mais tarde, mas não a encontrou em casa. Saíra com o pai
para dar uma volta de jipe. Só quando voltou, já perto da hora do almoço, recebeu de Olivia o recado.
- Byron disse que virá apanhá-la hoje às cinco horas. Do modo como falou, nem parecia um convite: soava como uma verdadeira ordem. Ele parece ser muito determinado, hein?
- Ora, um homem nunca conquista uma mulher se quiser se restringir aos convites bem educados...
- Papai! E quem disse que ele quer me conquistar?
- Quem disse que não quer?
Frances quase perdeu a calma, lutando para evitar que o pai lhe incutisse esperanças infundadas.
- Pare de fazer perguntas e trate de ficar bem bonita para recebê-lo. E não se esqueça de agir com naturalidade!
Agir com naturalidade! Se se mostrasse cem por cento espontânea diante de Byron, lhe revelaria o amor que sentia de modo que acabaria provocando em si mesma uma dolorosa decepção.
Na hora de arrumar-se, Frances resolveu colocar o vestido que ganhara de presente. Quase pronta, prendeu os cabelos num coque frouxo e, mirando-se no espelho, procurou se convencer de que não se preparara
daquela forma tão meticulosa só para agradá-lo.
Byron chegou na hora marcada. Usava calça preta, o que lhe deixava ainda mais sedutor aos olhos de Frances. Não teceu nenhum comentário sobre a aparência dela, mas examinou-a de cima a baixo, esboçando,
depois, o sorriso maroto que ela tão bem conhecia.
- Para onde vamos?
- Você já vai descobrir.
Eles entraram no carro e, pela direção que tomavam, Frances concluiu que iam para Izilwane. Quando passaram pela entrada de Thorndale, lembrou-se de que estava na hora de voltar para casa. Já causara
incômodos demais para Martha. Afinal, viajar duas vezes por dia de Louisville a Izilwane acabava sendo muito cansativo. E, para ela, não restara outra opção senão ficar com os pais enquanto Frances permanecesse
em Mountain View.
O sol já começava a se pôr quando Byron cruzou os limites do parque dirigindo devagar. Foram recepcionados pelos gritos histéricos dos macacos nas árvores.
- Temos uma leoa esperando filhotes.
- Que bom! - Byron olhou-a com o canto dos olhos, como se não acreditasse. - Ei, estou mesmo feliz por você!
Ele estacionou o jipe perto do píer, de onde podiam desfrutar uma belíssima paisagem do sol tingindo de dourado as águas do rio. A lancha estava pronta para sair.
Frances lembrou-se de imediato da primeira vez que estivera ali.
- Será que vou precisar carregá-la de novo? - Byron brincou.
- Não, desta vez eu vou sozinha.
Ele a ajudou a entrar na embarcação e esperou até que se sentasse com segurança para, então, acionar os motores. O ronco cruzou o silêncio do final da tarde e Byron conduziu a lancha para o centro
do rio.
- Esta é a melhor época do ano para se passear de lancha. O pôr-do-sol costuma ser lindo e a gente pode ver os animais vindo à margem do rio para matar a sede.
Por alguma razão que não entendia, Frances sentia-se tensa e desconfortável e observou o sol cair no horizonte em absoluto silêncio. Quando já estavam a uma distância razoável da margem, Byron desligou
os motores. Levantando-se, ela foi até a beira da lancha.
- Veja, um grupo de zebras e gnus!
Byron estava ao lado dela. Sem resistir mais ao clima de mistério, Frances virou-se para ele:
- Por que você me trouxe aqui?
- Pensei que seria divertido assistirmos juntos ao pôr-do-sol. E achei que este seria o lugar ideal para lhe dizer uma coisa.
O coração de Frances pulou dentro do peito e um medo inexplicável apossou-lhe a alma.
- O que você tem para me dizer?
- Fiz uma oferta para o Philips, através de Thomas Atherstone, e ela foi aceita.
Embora não pudesse dizer o que esperava ouvir, decerto aquilo jamais justificaria o clima de suspense criado por Byron. Nem mesmo serviu para tranqüilizá-la.
- Meus parabéns! Agora vai poder estender Izilwane até onde sempre desejou.
- Não era bem isso que eu tinha em mente. Vou usar uma parte da fazenda para ampliar o parque, sim, mas queria começar a criar meu próprio gado na parte restante.
- É aí que você entra.
- Não vejo como essa decisão me afeta.
- Só vou obter sucesso neste empreendimento se contar com a sua ajuda de especialista.
- Mas, vejam só! Eu pensei ter ouvido um dia de você que cuidar de fazenda não era trabalho para mulher...
- O seu caso é uma exceção, reconheço. Mas ainda sustento que, para a maioria das mulheres, administrar uma fazenda é uma tarefa impossível.
- Obrigada pela parte que me toca...
Byron aproximou-se, passando o dedo de leve sobre os lábios dela.
- Talvez agora você entenda que não seria por causa de Thorndale que eu me casaria.
Olivia tinha razão, pensou Frances, sem conseguir encarar Byron. Que experiência inesquecível presenciar o homem que se ama abrir-se sem segredos!
- Frances, eu te amo tanto que mal consigo me expressar! Você precisa acreditar desta vez, mesmo porque não vou sossegar enquanto não te convencer!
- Então eu ouvi mesmo você dizer que me amava quando voltei da anestesia no hospital? Você disse, não disse?
- Sim.
- Mas por que não repetiu quando eu lhe pedi?
- Tive receio de que você não acreditasse.
- Oh, Byron... Eu lhe devo desculpas.
- Não. Claudia lhe deu razões suficientes para ficar em dúvida...
- Por que ela fez aquilo, Byron?
- Ela estava jogando charme para cima de mim naquela manhã, depois de você ter saído da casa de chá. Eu a coloquei no devido lugar, explicando que existia outra pessoa. Não foi difícil adivinhar de
quem se tratava e ela não perdeu tempo em soltar seu veneno...
- Pensei que você gostasse dela...
- E eu sou louco? Eu me divertia vendo vocês juntas. Era como colocar lado a lado um diamante verdadeiro e uma imitação barata. Não importa o quanto tentasse, ela jamais conseguiria brilhar como você.
- Estou feliz por Claudia ter ido embora.
- Eu também. Frances, quanto tempo mais você vai me fazer esperar por uma resposta?
Então ele não sabia? Não podia sentir? Os sentimentos dela estariam tão ocultos assim? Acariciando-o com ternura, decidiu revelar toda a verdade.
- Eu te amo... muito... quero me casar com você acima de tudo no mundo!
- Frances, meu amor...
- Abrace-me, Byron! Abrace-me com força e repita que me ama!
- Não quero machucar seu ombro...
- Esqueça-se dele! Abrace-me e diga que me ama, por favor...
- Eu te amo!
Ele a abraçou com carinho, livrando-a das últimas dúvidas. Beijou-a por todo o rosto, descendo pelo pescoço, fazendo-a delirar de paixão. De súbito, Byron puxou-lhe o decote do vestido e tocou com
os lábios, delicadamente, a pequena cicatriz. A seguir, inclinou a cabeça para beijá-la nos seios enrijecidos, mordiscando-lhes os mamilos.
- Não, Frances... Espere... Ainda não! Venha, vamos voltar ao píer: encomendei um jantar especial para nós dois no restaurante. Precisamos oficializar o noivado e marcar o nosso casamento... e que
seja logo!
- Ah, Byron, como eu te amo.
Ele manobrou a lancha, retomando o caminho do píer. Frances mal cabia em si de alegria enquanto observava a noite que já dominava o parque. O céu cobrira-se de estrelas, e proporcionava um cenário que ela, certamente, guardaria como um tesouro no fundo do coração.

 

 

 

 

                                                                  Yvonne Whittal

 

 

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