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PROVAS MANIPULADAS / Donna Leon
PROVAS MANIPULADAS / Donna Leon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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QUANDO foi descoberto o assassinato brutal de uma velha senhora odiada pelos seus vizinhos, as suspeitas recaíram sobre a empregada romena, que desaparecera no dia do crime. Assediada, a jovem morre durante uma perseguição policial, levando consigo uma quantia considerável de dinheiro e documentos falsos. Caso encerrado, mas não resolvido? Um vizinho da vítima deixa claro que a empregada não poderia cometer o assassinato, mas apenas Brunetti acredita em seu álibi. Uma discussão com Paola sobre os sete pecados capitais o colocará na trilha de um possível motivo. Burocracia veneziana, preconceitos contra imigrantes do oriente e homossexuais, ou terror da AIDS são alguns dos temas desta história.

 

 


ELA ERA uma velha estúpida e ele a odiava. Como era médico e ela sua paciente, sentia remorsos por odiá-la, mas o remorso não o fazia odiá-la menos. Maldosa, gananciosa, mal-humorada, sempre a se queixar da saúde e das poucas pessoas que ainda tinham estômago para aturá-la, Maria Grazia Battestini era uma mulher de quem nada de bom podia ser dito, nem mesmo pela mais generosa das almas. O padre tinha desistido dela há muito tempo, e os vizinhos falavam dela com aversão, às vezes com hostilidade aberta. A família se relacionava com ela apenas o estritamente indispensável por questões de herança. Mas ele era médico e não tinha outro remédio a não ser fazer a visita semanal, que agora consistia apenas em perguntar como se sentia, e medir o pulso e a pressão o mais rapidamente possível. Há mais de quatro anos que vinha vê-la, e a sua aversão tinha crescido de tal maneira que deixara de se sentir culpado pela decepção de não encontrar nela sintomas de doença. A mulher acabara de fazer oitenta anos, embora pelo seu aspecto e comportamento parecesse ter mais dez, não obstante, o médico estava certo de que enterraria a ele e a todos.

Tinha uma chave e usou-a para entrar no prédio. A mulher era dona daquilo tudo, dos três andares, embora ocupasse apenas metade do segundo. O despeito e a mesquinhez levavam-na a manter a ficção de que ocupava tudo, pois ao fazê-lo impedia a filha da sua irmã Santina de se mudar tanto para o andar de cima como para o de baixo. Não se lembrava de quantas vezes, depois da morte do filho, a ouvira atacar a irmã e se felicitar, muito ufana, de ter frustrado os planos da família para a casa. Falava da irmã com um rancor que só aumentara desde a infância.

Girou a chave para a direita e, porque faz parte da natureza das portas venezianas não abrirem na primeira tentativa, puxou automaticamente a porta para si ao virar a chave. Abriu-a, entrando no vestíbulo escuro. Nenhuma luz solar conseguia penetrar nas décadas de gordura e sujeira que cobriam as duas janelas estreitas por cima da porta que dava para a calle. Ele já se habituara à obscuridade e há anos que a Signora Battestini deixara de ser capaz de descer as escadas, então era improvável que as janelas fossem limpas em breve. A humidade fundira os fios uns anos antes, mas ela se recusava a pagar a um eletricista, e ele perdera o hábito de tentar acender a luz.

Começou a subir o primeiro lance de escadas, contente por aquela ser a sua última visita da manhã. Quando saísse da casa da velha harpia iria beber um copo, depois almoçar. Só precisaria estar no consultório às cinco da tarde para ver os seus doentes; não tinha planos para depois do almoço e nada que quisesse particularmente fazer, desde que pudesse estar livre da visão e do som dos corpos consumidos e inchados.

Quando começou o segundo lance, começou a desejar que a nova mulher, julgava que aquela era romena, pois era assim que a velha se referia a ela, embora nunca ficassem tempo suficiente para ele se lembrar dos seus nomes, durasse mais do que as outras. Desde a sua chegada, a velha estava pelo menos limpa e não fedia a urina. Ao longo dos anos ele as vira ir e vir; vir, porque eram atraídas pela perspectiva de trabalho, mesmo que isso significasse limpar e alimentar a Signora Battestini e suportar os seus maus tratos; ir porque não demoravam a ser incapazes de aguentar a crueldade, mesmo com o imperativo da mais absoluta necessidade.

Por um hábito de cortesia, bateu à porta, embora soubesse que seria uma cortesia fútil. A televisão aos berros, que era audível mesmo fora do prédio, abafava o som: até os ouvidos mais jovens da romena, como é mesmo que ela se chamava? Raramente notavam a sua chegada.

Pegou na segunda chave, rodou-a duas vezes e em seguida entrou no apartamento. Pelo menos estava limpo. Uma vez, cerca de um ano depois da morte do filho, se bem lembrava, tinham deixado a velha sozinha durante mais de uma semana. Ainda se lembrava do cheiro quando abrira a porta para a sua então visita bimensal: na mesa da cozinha, pratos sujos de uma semana com restos de comida em decomposição, em pleno mês de Julho. E ela mesma, aquele corpo obeso, nu e coberto com os restos das coisas que tentara comer, curvado numa cadeira em frente da televisão aos berros. Acabara no hospital daquela vez, desidratada e desorientada, mas ao fim de três dias mandaram-na embora. Ela dizia que queria ir para casa, e eles contentes tinham lhe feito a vontade. A ucraniana vinha na época, aquela que desaparecera ao fim de três semanas, levando uma bandeja de prata, e ele tornara as visitas semanais. Mas a velha não tinha mudado: o seu coração batia estável, os pulmões aspiravam o ar do apartamento e as camadas de gordura iam ficando cada vez mais espessas.

Pousou a mala em cima da mesa perto da porta, satisfeito por ver que a superfície estava limpa, um sinal claro de que a romena ainda ia lá. Pegou no estetoscópio, enganchou-o atrás das orelhas e entrou na sala. Se a televisão não estivesse ligada, ele provavelmente teria ouvido o barulho antes de entrar. Mas na tela a loura de pele esticada com caracóis tipo Shirley Temple apresentava as informações de trânsito, alertando os motoristas do Vêneto para o potencial inconveniente do trânsito intenso na A4, abafando o industrioso zumbido das moscas em volta da cabeça da velha.

Ele estava habituado à visão de morte nos velhos, mas as mortes em idade avançada eram geralmente mais decorosas do que aquilo que viu no chão. Os velhos morrem placidamente ou com agitação, mas porque raramente a morte chega na forma de um assalto, poucos lhe resistem com violência. Ela também não resistira.

Quem a matara devia tê-la pego completamente desprevenida, pois estava no chão a esquerda de uma mesa que continuava em pé, sobre a qual se via uma xícara vazia e o controle remoto da televisão. As moscas tinham decidido dividir a sua atenção entre um prato de figos frescos e a cabeça da Signora Battestini. A morta tinha os braços estendidos para frente, e encontrava-se deitada com a face esquerda no chão. A cabeça fazia lembrar uma bola de futebol do filho que uma vez fora mordida pelo cão e esvaziara de um dos lados. Ao contrário da cabeça, a superfície da bola de futebol permanecera lisa e intacta; nada vazara para fora.

Parou à porta, olhando em volta da sala, demasiado atordoado pelo caos para saber exatamente aquilo que procurava. Talvez temesse encontrar o corpo da romena ou ver sair de outra porta o autor do crime. Mas as moscas lhe indicaram que o criminoso tivera mais do que tempo para fugir. Olhou para cima, surpreso por uma voz humana, mas descobriu apenas que tinha havido um acidente com um caminhão na A3 perto de Cosenza.

Atravessou a sala e desligou a televisão, e um silêncio, nem apaziguador nem respeitoso, encheu a sala. Perguntou a si mesmo se devia ir aos outros aposentos procurar a romena, que podia estar ferida e a precisar de auxílio. Em vez disso, regressou até a entrada e, tirando do bolso o telefone, ligou para 113 e informou que tinha havido um homicídio em Canaregio.


* * *


A polícia teve pouca dificuldade em encontrar a casa, pois o médico explicara que a casa da vítima ficava no início da calle à direita do Palazzo del Cammello. A lancha deslizou até parar no lado sul do Canale della Madona. Dois polícias fardados saltaram para a riva, depois um deles se inclinou para o barco para ajudar os três homens da equipe técnica a descarregarem o equipamento.

Era quase uma da tarde. O suor escorria dos rostos deles e em breve os casacos começaram a se colar aos corpos. Amaldiçoando o calor, limpando em vão o suor, quatro dos cinco homens começaram a carregar o equipamento para a entrada da Calle Tintoretto e depois para a entrada do prédio, onde um homem alto e magro os aguardava.

— Dottor Carlotti? Perguntou o policial que não tinha ajudado a descarregar o barco.

— Sim.

— Foi o senhor que ligou? Ambos sabiam que a pergunta era desnecessária.

— Sim.

— Pode me dizer mais alguma coisa? Por que estava aqui?

— Vim visitar uma paciente minha.. Venho todas as semanas... Maria Grazia Battestini, e quando entrei no apartamento encontrei-a no chão. Estava morta.

— Tem uma chave? Perguntou o policial. Embora o seu tom fosse neutro, a pergunta encheu o ar ao redor deles de suspeita.

— Sim. Há anos. Tenho as chaves das casas de muitos dos meus pacientes, disse Carlotti, depois se interrompeu, percebendo que devia parecer estranho dar tantas explicações à polícia, e se sentiu incomodado.

— Pode me dizer exatamente o que encontrou? Perguntou o policial. Enquanto os dois homens falavam, os outros depositaram o equipamento do lado de dentro da porta da frente e regressaram à lancha.

— Ela está morta. Alguém a matou.

— Por que tem a certeza de que alguém a matou?

— Porque a vi, respondeu Carlotti sem entrar em pormenores.

— Tem ideia de quem possa tê-lo feito, doutor?

— Não, claro que não sei quem foi o assassino, insistiu o médico, tentando soar indignado mas conseguindo apenas parecer nervoso.

— Um homem?

— O quê? Disse Carlotti.

— O senhor disse "assassino", dottore. Fiquei curioso em saber porque acha que foi um homem.

Carlotti abriu a boca para responder, mas não conseguiu articular as palavras neutras que pretendia, então respondeu secamente:

— Dê uma olhadela na cabeça dela e me diga se foi uma mulher que fez aquilo.

A sua raiva surpreendeu-o; ou melhor, a intensidade dela. Não estava furioso com as perguntas do pólicial, mas sim com a covardia da sua própria reação. Não fizera nada de errado, apenas encontrara o cadáver da velha, e todavia a sua primeira reação à autoridade era de temor devido à certeza de que a situação iria de alguma forma causar problemas. "Que raça de covardes nos tornamos", começou a pensar, mas nesse momento o policial perguntou:

— Onde está ela?

— No segundo andar.

— A porta está aberta?

— Sim.

O policial entrou no corredor escuro, onde os outros se tinham reunido para fugir ao sol, e fez um movimento ascendente com o queixo. Depois disse ao médico:

— Quero que vá lá cima conosco.

Carlotti seguiu os policiais, decidido a dizer o mínimo possível e a não mostrar qualquer desconforto ou medo. Estava habituado a ver a morte, de modo que a visão do corpo da mulher, embora terrível, não o tinha afetado tanto como o seu medo instintivo de se envolver com a Polícia.

No topo das escadas, os policiais entraram no apartamento sem se darem ao trabalho de bater; o médico optou por esperar no patamar. Pela primeira vez em quinze anos, desejou tanto um cigarro que o seu coração começou a bater mais depressa.

Ouviu-os caminharem pelo apartamento, ouviu-os falarem uns com os outros, embora não tenha feito qualquer tentativa para ouvir. As vozes tornaram-se mais baixas quando os policiais passaram para o aposento ao lado, onde estava o corpo. Ele aproximou-se do parapeito da janela e encostou-se a ele, sem se preocupar com a sujeira acumulada. Perguntou a si mesmo por que precisariam dele ali, esteve quase decidindo lhes dizer que podiam contactá-lo no consultório se quisessem. Mas continuou onde estava e não entrou no apartamento para falar com eles.

Ao fim de algum tempo, o policial que tinha falado com ele saiu para o corredor, trazendo numa mão enluvada alguns papéis.

— Vivia alguém aqui com ela? Perguntou.

— Sim.

— Quem?

— Não sei o nome dela, mas acho que era romena.

O policial estendeu-lhe um dos papéis. Era um formulário preenchido a mão. No canto inferior esquerdo havia uma fotografia tipo passe de um rosto redondo feminino que podia ser a romena.

— É esta mulher? Perguntou o policial.

— Acho que sim, respondeu o Dottor Carlotti.

— Florinda Ghiorghiu, leu o policial, e isso fê-lo lembrar o nome.

— Sim. Flori, disse o médico. Então, curioso, perguntou: — Ela está lá dentro? Torcendo para que o policial não achasse estranho ele não a ter procurado, e esperando que não tivessem encontrado o corpo dela.

— Duvido, respondeu o policial com impaciência mal disfarçada. — Não há sinal dela, e a casa está uma confusão. Alguém a passou a pente fino e levou tudo o que havia de valor.

— Acha... Começou Carlotti, mas o policial interrompeu-o.

— Claro, respondeu o policial com uma indignação tão feroz que surpreendeu o médico. — Ela é do leste. São todos assim. Vermes. Antes que Carlotti pudesse objetar, o policial continuou, cuspindo as palavras. — Há um avental na cozinha cheio de sangue. A romena matou-a.

E então, como epitáfio de Maria Grazia Battestini, o policial murmurou algo que o Dottor Carlotti nunca se lembraria de dizer:

— Pobrezinha.


* * *


Dois

O AGENTE encarregado do caso, o tenente Scarpa, disse ao Dottor Carlotti que podia ir para casa, mas avisou-o para que não se ausentasse da cidade sem autorização da Polícia. O tom de Scarpa estava tão carregado de suspeitas implícitas de possível culpa que Carlotti saiu sem dar voz a quaisquer objecções que pudesse ter levantado.

A seguir chegou o Dottor Ettore Rizzardi, médico legale da cidade de Veneza e, portanto, oficialmente responsável por declarar a vítima morta e por fazer o primeiro cálculo da hora da morte. Com uma cortesia fria e talvez exagerada para com o tenente Scarpa, Rizzardi declarou que a Signora Battestini tinha aparentemente morrido em consequência de uma série de pancadas na cabeça, opinião que provavelmente seria confirmada pela autópsia. Quanto ao momento da morte, o Doutor Rizzardi, depois de tirar a temperatura do cadáver, disse que, apesar das moscas, provavelmente teria ocorrido entre duas a quatro horas antes, portanto, entre as dez e o meio-dia.

Ao olhar para o rosto de Scarpa, o médico acrescentou que seria mais preciso depois da autópsia, mas que era bastante improvável que tivesse sido morta antes disso. Quanto à arma do crime, Rizzardi diria apenas que fora um objeto pesado, talvez de metal, ou madeira, com um rebordo dentado ou irregular. Disse isto sem ver a estátua de bronze manchada de sangue do recém-beatificado padre Pio, já colocada num saco de plástico transparente para provas e à espera de ser levada para o laboratório para recolha de impressões digitais.

Depois de o corpo ter sido examinado e fotografado, Scarpa mandou-o levar para o Ospedale Civile para a autópsia, dizendo a Rizzardi que a queria feita rapidamente.

Mandou os membros da equipe técnica começarem a vasculhar o apartamento, embora pela sua desarrumação fosse evidente que isso já havia sido feito. Depois da partida silenciosa de Rizzardi, o tenente decidiu analisar o pequeno quarto nos fundos que aparentemente pertencia a Florinda Ghiorghiu. Pouco maior do que um roupeiro, o quarto parecia não ter sido alvo da atenção de quem quer que tivesse vasculhado a sala. Tinha uma cama estreita e uma estante coberta com um tecido gasto que talvez já tivesse sido uma toalha. Quando Scarpa afastou o pano para um lado, viu duas blusas dobradas e igual número de mudas de roupa interior. Um par de tênis pretos no chão. No parapeito da janela ao lado da cama havia uma fotografia numa moldura de papelão barato de três crianças, e um livro que ele não se deu ao trabalho de examinar. Dentro de uma pasta de cartolina encontrou fotocópias de documentos oficiais: as duas primeiras páginas do passaporte romeno de Florinda Ghiorghiu e cópias do seu visto de residência italiano e autorização de trabalho. Nascida em 1953, a sua ocupação era "auxiliar doméstica". Havia um bilhete de trem de ida e volta na segunda classe entre Bucareste e Veneza, a segunda metade ainda não utilizada. Como não havia mesa nem cadeira no quarto, não havia mais nenhuma outra superfície para inspecionar.

O tenente Scarpa tirou o celular do bolso e ligou para a Questura a fim de obter o número da Polícia de Fronteiras em Villa Opicina. Discando o número, deu o seu nome e posição e fez um breve relato do homicídio. Perguntou a que horas se esperava que o trem seguinte saindo de Veneza atravessasse a fronteira. Dizendo que a suspeita poderia estar no trem e enfatizando que a assassina era romena, acrescentou que, se ela conseguisse chegar A Romênia, havia poucas hipóteses da sua extradição, então era da maior importância que fosse retirada do trem. Disse que mandaria por fax a fotografia dela assim que chegasse à Questura, tornou a destacar a crueldade do crime, e desligou.

Deixando a equipe científica analisando o apartamento, Scarpa ordenou ao piloto que o levasse de volta a Questura, onde enviou por fax o formulário de Ghiorghiu para a Polícia de Fronteiras, esperando que a fotografia saísse com nitidez. Feito isso, o tenente Scarpa foi falar com o seu superior, o Vice-Questore Giuseppe Patta, para o informar da celeridade com que a criminalidade violenta estava sendo perseguida.

O fax chegou a Villa Opicina no momento em que o capitão Luca Peppito, comandante da Polícia de Fronteiras, telefonava ao capostazione da estação de trem para lhe dizer que o expresso de Zagreb deveria ser retido tempo suficiente para permitir que ele e os seus homens procurassem uma assassina que tentava fugir do país. Peppito desligou o telefone, verificou se a pistola estava carregada e desceu para reunir os seus homens.

Vinte minutos depois, o Intercidades para Zagreb entrava na estação e parava; normalmente demorava apenas o tempo necessário para a mudança da máquina e para o controle de passaportes. Nos últimos anos, os trâmites aduaneiros entre aqueles dois intervenientes menores no jogo de uma Europa unida tornara-se superficial e, geralmente, saldavam-se com o pagamento do imposto de um volume de tabaco ou de uma garrafa de grappa, que já não eram mais vistos como uma ameaça para a sobrevivência econômica de uma nação.

Peppito enviara homens para as extremidades do trem e colocou mais dois na entrada da estação; todos tinham ordens para examinar os passaportes dos passageiros do sexo feminino que descessem do trem. Três homens subiram para a parte de trás do trem e começaram a avançar para frente, examinando os passageiros em cada compartimento e certificando-se de que não havia ninguém no banheiro, enquanto Peppito e dois agentes começavam o mesmo processo, avançando para trás desde o primeiro vagão.

Foi o sargento de Peppito que a viu no primeiro vagão, sentada a uma janela num compartimento de segunda classe. Quase a ignorou porque ela estava dormindo, ou a fingir dormir, com a testa encostada na janela. Viu a cara larga de traços eslavos, o cabelo branco na raiz por falta de cuidados, e a compleição atarracada e musculosa tão comum entre as mulheres de leste. No compartimento havia duas outras pessoas, um homem grande de rosto rubicundo lendo um jornal em idioma alemão, e um homem mais velho que fazia palavras-cruzadas do Settimana Enigmistica. Peppito abriu a porta com um golpe seco. O barulho despertou a mulher, que olhou em volta assustada. Os dois homens olharam para os agentes fardados, e o mais velho expressando a sua irritação apenas no tom.

— Saiam do compartimento, cavalheiros, ordenou Peppito. Antes que um deles pudesse protestar, ele levou a mão direita à coronha da pistola. Os homens, não fazendo nenhuma tentativa de apanhar as malas, deixaram o compartimento. A mulher, vendo os homens saírem, se levantou, agindo como se pensasse que a ordem também era para ela.

Quando tentou passar por Peppito, ele segurou o antebraço esquerdo dela com mão firme.

— Documentos, signora, disse com aspereza. Ela olhou para ele, com os olhos piscando rapidamente.

— Cosa? Perguntou nervosa.

— Documenti, repetiu ele, mais alto.

Ela esboçou um sorriso, uma ligeira contração dos músculos faciais que pretendia ser apaziguadora e demonstrar inocência e boa vontade, mas ele viu que os seus olhos se voltavam para o corredor em direção à porta.

— Si, si, signore. Momento. Momento, disse ela com um sotaque tão forte que as palavras eram quase incompreensíveis. Tinha um saco de plástico pendurado na mão direita.

— La borsa, disse Peppito, indicando o saco, que era dos supermercados Billa. Ante o gesto do policial, ela pôs o saco atrás das costas.

— Mia, mia, disse, declarando propriedade, mas demonstrando medo.

— La borsa, signora, repetiu Peppito, estendendo a mão.

A mulher girou sobre si mesma, mas Peppito era um homem forte e obrigou-a a se virar para ele. Soltou-lhe o braço e apanhou o saco. Abriu-o e olhou para dentro: viu apenas dois pêssegos maduros e uma carteira de plástico. Pegou na carteira e deixou cair o saco no chão. Olhou para a mulher, cujo rosto ficara tão branco como a raiz dos cabelos, e abriu a carteira. Reconheceu imediatamente as notas de cem euros e viu que havia muitas.

Um dos seus homens fora dizer aos colegas que a tinham encontrado e o outro estava no corredor, tentando explicar aos dois passageiros que seriam autorizados a regressar aos seus lugares assim que a mulher fosse retirada do trem.

Peppito fechou a carteira e fez menção de colocá-la no bolso do seu casaco. A mulher, ao ver isto, estendeu a mão para ela, mas Peppito afastou-a com um golpe e se virou para dizer alguma coisa aos homens no corredor. Encontrava-se à entrada do compartimento, e quando ela se lançou contra ele, empurrou-o para o corredor, onde ele perdeu o equilíbrio e caiu para o lado. A mulher aproveitou a oportunidade para passar por ele e correr para a porta aberta na frente do vagão. Peppito gritou, mas quando conseguiu pôr-se de pé já ela estava descendo as escadas e correndo pela plataforma ao lado do trem.

Peppito e o agente mais próximo correram até a porta e pularam para a plataforma; ambos sacaram das armas. A mulher, ainda correndo e já afastada do trem, se virou e viu as armas nas mãos. Ao vê-las, gritou e pulou da plataforma para a via-férrea. A distância podia se ouvir, ou pelo menos ouvir quem não estivesse afetado pelo pânico e tensão da cena, a chegada de um trem de mercadorias vindo da Hungria que se dirigia para sul.

Os policiais e os seus gritos seguiram a fugitiva. Ela levantou o olhar, viu o trem se aproximando, olhou para trás para calcular a distância entre ela e os homens, e decidiu arriscar. Correu mais alguns passos, mantendo-se perto da linha, depois de repente virou e pulou para a esquerda, poucos metros à frente do trem. Os policiais gritaram, o apito do trem soou no mesmo momento em que o chiar dos freios encheu o ar. Talvez um destes sons a tenha feito vacilar; talvez tenha simplesmente pousado o pé na linha, em vez de no cascalho. O certo é que caiu sobre um joelho, se levantou rapidamente e lançou-se para frente. Mas, como os policiais tinham visto de longe, já era tarde demais, e o trem estava em cima dela.

Peppito nunca mais voltou a falar do que acontecera então, pelo menos não depois de descrevê-lo no seu relatório dessa tarde. Nem o agente que o acompanhava, nem os homens na máquina do trem de mercadorias, embora um deles já tivesse visto aquilo acontecer três anos antes, nos arredores de Budapeste. Mais tarde, os jornais relataram que tinham sido encontrados setecentos euros na carteira da mulher. A sobrinha da Signora Battestini, que tinha uma procuração para tratar dos assuntos da tia, declarou que fora, no dia anterior, apanhar a pensão da tia nos correios e a entregara: setecentos e doze euros.

Dado o estado do corpo da romena, não foi feita qualquer tentativa para encontrar vestígios de sangue da Signora Battestini. Um dos homens que estivera no compartimento disse que ela parecera muito perturbada quando entrara no trem em Veneza, mas que se acalmara visivelmente à medida que se afastavam da cidade, e o outro disse que tivera o cuidado de levar o saco de plástico com ela quando fora ao banheiro no corredor.

Na ausência de outros suspeitos deduziu-se que a romena era a provável assassina e decidiu-se que as energias da Polícia poderiam ser melhor empregues na investigação de outras ocorrências. O caso não foi encerrado, apenas abandonado: no curso normal das coisas, desapareceria por falta de atenção e, quando os cabeçalhos sensacionalistas sobre o homicídio e a fuga da romena tivessem perdido a atualidade, cairia no esquecimento.

As autoridades tentaram pelo menos cumprir os trâmites burocráticos relacionados com o homicídio de Maria Grazia Battestini. A sobrinha disse que a romena, que conhecera apenas por Flori, trabalhava há quatro meses para a tia. Não, a sobrinha não a contratara: disso encarregara-se a advogada da tia, Roberta Marieschi. A Dottoressa Marieschi era advogada de um grande número de idosos da cidade, a alguns dos quais conseguia empregadas domésticas, principalmente da Romênia, onde tinha contatos com diversas organizações de caridade.

A Dottoressa Marieschi não sabia mais nada acerca de Florinda Ghiorghiu além do que estava escrito no seu passaporte, do qual guardava uma cópia. O original foi encontrado num saco de pano amarrado na cintura da mulher trucidada pelo trem e, depois de limpo e examinado, descobriu-se ser falso, e nem sequer era uma boa falsificação. A Dottoressa Marieschi, quando interrogada sobre o assunto, respondeu que não lhe competia comprovar a validade dos passaportes que a Polícia de Imigração aceitava como genuínos, mas apenas encontrar clientes a quem podiam convir os serviços das pessoas que possuíam os passaportes, e aqui ela aproveitou a oportunidade para repetir a frase "que a Polícia de Imigração aceitava como genuínos".

Ela vira Ghiorghiu apenas uma vez, quatro meses antes, quando a levara na casa da Signora Battestini e apresentara as duas mulheres. Desde então, não voltara a ter contato com ela. Sim, a Signora Battestini queixara-se da romena, mas a Signora Battestini tinha o hábito de se queixar das empregadas que lhe eram enviadas.

Como o caso permaneceu no limbo, a sobrinha não conseguiu obter respostas para as suas perguntas sobre o estado do apartamento da tia, se ainda era uma cena de crime protegida ou não. Quando se cansou da falta de resposta, consultou a Dottoressa Marieschi, que lhe garantiu que as condições do testamento da tia eram suficientemente claras para lhe garantir a posse incontestável de todo o edifício. Uma semana após a morte da Signora Battestini, as duas mulheres encontraram-se e discutiram longamente a situação legal dos bens da falecida. Tranquilizada pelas palavras da advogada, a sobrinha entrou no apartamento no dia após a conversa e limpou-o. Aquilo que achou ter valor ou importância foi colocado em caixas de papelão e levado para o sótão. O resto das roupas da tia e os objetos pessoais foram colocados em grandes sacos de lixo e deixados na porta do apartamento. No dia seguinte vieram os pintores, tendo a Dottoressa Marieschi convencido a herdeira de que seria melhor comprar alguns móveis novos e alugar o apartamento a turistas por semana. Ela trataria de encontrar inquilinos adequados, e, se o acordo se mantivesse informal e o pagamento fosse efetuado em dinheiro, não via nenhuma razão para declarar esses rendimentos às autoridades. Depois de consultar mais uma vez a Dottoressa Marieschi, a herdeira decidiu restaurar todos os apartamentos, para poder cobrar aluguéis mais elevados.

E assim estavam as coisas três semanas depois da morte de Maria Grazia Battestini. Os seus bens repousavam no sótão, enfiados descuidadamente em caixas por alguém sem interesse neles além da vaga esperança de que, um dia, quando se decidisse a examiná-los mais detidamente, pudesse encontrar algo de valor; o apartamento, recém-pintado, já era objeto de análise por parte de um fabricante de charutos holandês, que estava interessado em alugá-lo durante a última semana de agosto.


* * *


Três

DE MANEIRA que todos estavam satisfeitos: a polícia, por ter encerrado o caso, embora sem o resolver; a sobrinha da Signora Battestini, Graziella Simionato, porque previa novos e muito bem-vindos rendimentos; e Roberta Marieschi, porque conservava a família Battestini entre os seus clientes. Sem dúvida que tudo continuaria assim não fosse o primeiro dos deuses dos lares de Veneza e de todas as cidades: O Boato.

No final da tarde do terceiro domingo de agosto, os postigos foram abertas nas janelas de um apartamento do segundo andar num prédio adjacente ao Canale della Misericordia, não muito longe do Palazzo del Cammello. A proprietária do apartamento, Assunta Gismondi, era uma designer gráfica que vivera em Veneza a vida toda, embora agora trabalhasse principalmente para o estúdio de um arquiteto em Milão. Depois de abrir os postigos para deixar entrar um pouco de ar no apartamento sufocante, a Signora Gismondi, pela força do hábito, olhou para as janelas em frente de sua casa, do outro lado do canal, e ficou surpresa ao ver fechados os postigos do apartamento do segundo andar. Ficou surpresa, mas não contrariada.

Desfez a mala, pendurou algumas roupas e enfiou outras na máquina de lavar. Analisou o correio acumulado durante as três semanas que estivera em Londres, verificou os faxes e leu-os, mas como estivera em contato via e-mail com o amante, bem como com os patrões que a tinham mandado para o curso de idiomas em Londres, não se preocupou em ligar o computador para verificar se haviam novas mensagens. Em vez disso, pegou na bolsa de compras e foi ao supermercado Billa na Strada Nuova, o único lugar onde poderia conseguir tudo aquilo de que precisava para o jantar daquela noite. A ideia de comer em restaurante horrorizava-a. Preferia ficar em casa e comer pasta com ólio e peperoncino do que se sentar novamente sozinha e comer entre desconhecidos.

O Billa na Strada Nuova estava aberto, e a Signora Gismondi conseguiu encher a sua bolsa com tomates frescos, beringela, alho, alface e, pela primeira vez em três semanas, encontrar fruta e queijo decentes sem ter de desembolsar o salário de uma semana, mesmo pela mais ínfima das quantidades. De regresso ao seu apartamento, colocou azeite numa frigideira, picou dois, depois três, depois quatro dentes de alho e deixou-os fritar lentamente, inspirando o aroma com uma alegria quase religiosa na sua intensidade, feliz por estar em casa, entre os objetos, os cheiros e as vistas que amava.

O amante telefonou meia hora mais tarde para dizer que ainda se encontrava na Argentina, onde as coisas iam de mal a pior, mas que devia estar de volta dentro de aproximadamente uma semana; pegaria um avião de Roma e passaria, pelo menos, três dias em Veneza. Ela não se importaria, de qualquer maneira. Quando desligou o telefone, Assunta sentou-se na cozinha e comeu um prato de massa com um molho de tomate e beringela grelhada, depois dois pêssegos e terminou com meia garrafa de cabernet sauvignon. Olhando pela janela para o edifício da frente, murmurou uma prece para que as postigos nunca mais se abrissem; em troca se comprometia em nunca mais pedir outro favor na vida.

Na manhã seguinte, a caminho da sua confeitaria favorita para um café e um brioche, parou na papelaria para comprar o jornal.

— Bom dia, signora, cumprimentou o homem atrás do balcão. — Já não a vejo há algum tempo. Esteve de férias?

— Não. Em Londres. A trabalho.

— Gostou? Perguntou ele, o seu tom de voz deixando claro que tinha sérias dúvidas de que isso fosse possível.

Ela pegou o Gazzettino e leu os cabeçalhos que anunciavam um colapso político iminente, uma catástrofe ecológica e um crime passional na Lombardia. Como era bom estar em casa. Encolheu os ombros numa resposta tardia ao homem, como que sugerindo a impossibilidade de apreciar trabalho, independentemente da cidade, independentemente do país.

— Não foi ruim, admitiu por fim. — Mas é bom estar em casa. E por aqui? Alguma novidade?

— Então ainda não soube? Perguntou ele com cara de satisfação ante a perspectiva de ser o primeiro a passar uma má notícia.

— Não. O quê?

— A Battestini, a que mora em frente. Não soube? Ela pensou nos postigos fechadas, e abafou a esperança que nascia dentro dela.

— Não. Nada. O quê? Pousou o jornal sobre o balcão e se inclinou para ele.

— Está morta. Foi assassinada, disse ele, acariciando a palavra. A Signora Gismondi arquejou de surpresa, depois perguntou:

— Não. O que aconteceu? Quando?

— Há cerca de três semanas. O médico encontrou-a. Sabe, aquele que visita os idosos. Alguém tinha lhe batido na cabeça. Parou para ver o efeito da notícia, achou que ela ficara satisfatoriamente atordoada, e continuou: — O meu primo conhece um dos policiais que a encontraram e disse que quem fez aquilo devia realmente odiá-la. Pelo menos foi o que o meu primo disse. Ele olhou para a sua ouvinte. — Mas acho que a mulher devia odiá-la, não é?

— Que mulher? Perguntou Gismondi, confusa com a notícia inesperada e por aquela observação inexplicável. — Quem? Não sei de quem está falando.

— Da romena. Foi ela quem a matou. Viu a surpresa da sua ouvinte e lançou-se no segundo, e mais truculento, ato do seu drama. — Sim, ela tentou sair do país, mas encontraram-na no trem, naquele que vai para a Romênia.

A Signora Gismondi ficou subitamente pálida, mas isso ainda aumentou a satisfação dele.

— Detiveram-na na fronteira. Em Villa Opicina, creio. Sentada no trem, tão tranquila, depois de matar a velha. Bateu num dos policiais e tentou empurrá-lo para debaixo de um trem, mas ele fugiu, e foi ela quem foi atropelada. Viu a crescente confusão da signora e, com um súbito respeito para com as suas fontes, acrescentou: — Bem, isto é o que dizem os jornais e o que ouvi das pessoas.

— Quem foi atropelada? Flori? A romena? Era esse o nome dela? Perguntou, desconfiada por ele saber dela.

— Sim.

— O que lhe aconteceu? Perguntou a Signora Gismondi. Ele pareceu confuso com a pergunta. O que mais podia acontecer a uma pessoa que era atropelada por um trem?

— Já disse, signora, respondeu impaciente. — O trem atropelou-a. Lá em Villa Opicina ou onde quer que seja.

Não era um homem inteligente e carecia de imaginação, portanto aquelas palavras não significavam quase nada para ele. Isto é, ao dizê-las não via a imagem das rodas de aço a rodarem sobre o carril, era incapaz de visualizar o que acontecia a um corpo que ficasse inexoravelmente preso entre essas duas coisas. Ela pousou uma mão sobre os jornais como que a procurar um ponto de apoio.

— Está morta? Perguntou como se o homem não tivesse falado.

— Claro que está morta, respondeu ele, impacientando-se com a lentidão daquela mulher em entender as coisas. — Mas aquela pobre idosa também está. Assunta Gismondi percebeu o tom de indignação na voz do homem.

— Claro, disse em voz baixa. — É terrível, terrível. Pegou em algum dinheiro e deixou-o no balcão, esqueceu-se de pegar no jornal e saiu da papelaria jurando nunca mais pôr os pés lá. Pobre idosa. Pobre idosa.

Regressou ao apartamento e fez algo que nunca tinha feito e nem sequer sabia que podia fazer: ligou a Internet e procurou a edição do Gazzettino do dia seguinte a ter ido para Londres. Lamentou a decisão de imergir no inglês durante o tempo que estivera sem jornais e sem notícias de casa, nem procurar outros italianos. Era como se as últimas três semanas nunca tivessem acontecido. Mas o Gazzettino informou-a rapidamente do contrário. Leu apenas as histórias que tinham que ver com o homicídio da Signora Battestini, e à medida que os dias e as edições passavam, seguiu a história como ela evoluíra.

Essencialmente, tudo tinha acontecido como o homem da papelaria dissera: idosa encontrada morta pelo médico, criada romena desaparecida, o trem retido na fronteira, tentativa de fuga, morte. Documentos falsos, nenhuma mulher com aquele nome, família destroçada pelo homicídio da tia preferida, o funeral da vítima na intimidade.

Assunta Gismondi desligou o computador e olhou para a tela preta. Quando se cansou, voltou a sua atenção para os livros que forravam uma parede do seu escritório e leu os nomes dos autores na prateleira de cima: Aristóteles, Platão, Esquilo, Eurípedes, Plutarco, Homero. Depois olhou pela janela, para os postigos fechadas do outro lado do canal. Estendeu o braço para o lado direito do computador e pegou no telefone. Discou o 113 e pediu para falar com um agente.


* * *


Ao entrar pela porta da Questura meia hora depois, ela repreendeu-se pela tolice de ter partido do princípio de que iriam mandar alguém falar consigo. Ela era uma cidadã, cumprindo com o seu dever cívico, fornecendo voluntariamente informações de grande importância, por isso, naturalmente, um policial irritado, que se recusou a dar o nome, disse que tinha o dever de ir até a Questura falar com eles. Assim que ouviu aquela voz oficiosa, ela lamentou ter dado o seu nome ao ligar: se não tivesse, teria sido tentada a esquecer a coisa toda e a deixá-los se preocuparem com o caso. Todavia, sabia que eles não se preocupariam, sabia que a última coisa nas suas mentes, assumindo que tinham mentes, seria a conveniência de mudar as suas suposições e se darem ao trabalho de elaborar novas.

Virou à direita, para um guiché atrás do qual estava um agente uniformizado.

— Liguei há meia hora, começou ela, — E disse que precisava falar com alguém sobre um crime. Disseram-me que tinha de vir aqui, e por isso aqui estou.

Ele permaneceu imóvel, portanto ela acrescentou:

— Gostaria de falar com alguém sobre o assassinato que ocorreu há umas semanas.

Ele meditou um momento, como se aquilo fosse Dodge City e tivesse de adivinhar a que assassinato ela se referia.

— O caso Battestini? Perguntou por fim.

— Sim.

— Isso deve ser com o tenente Scarpa.

— Posso falar com ele?

— Vou ligar para ver se está na sala, disse o homem, pegando no telefone.

Virou-lhe as costas e falou baixinho no bocal, fazendo a Signora Gismondi se perguntar se ele e o tenente Scarpa estariam planejando uma estratégia que a levasse a confessar uma participação no crime. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, ele saiu do cubículo. Apontando para os fundos do edifício, disse:

— Vá por aquele corredor, signora. Vire à direita e é a segunda porta à sua esquerda. O tenente está à sua espera. Regressou ao cubículo, fechando a porta atrás dele.

Ela começou a andar pelo corredor, admirada por poder circular pela Questura com tanta liberdade. Não teriam ouvido falar das Brigadas Vermelhas? Encontrou a porta, bateu, e mandaram-na entrar. Um homem com a sua idade estava sentado atrás de uma mesa de metal numa sala pouco maior que o cubículo do andar de baixo. Se tivesse se levantado, seria muito mais alto do que ela. Tinha cabelo escuro e olhos que pareciam limitar a sua função de ver a superfície das coisas. A sala continha, além do homem fardado, uma mesa e duas cadeiras.

— Tenente Scarpa? Perguntou ela. Ele levantou a cabeça e assentiu, depois olhou para os papéis na mesa.

Ela deu o seu nome e endereço, e a seguir perguntou:

— O senhor é o responsável pela investigação do homicídio da Signora Battestini?

— Era, respondeu ele, levantando os olhos. Apontou para uma das cadeiras e acrescentou: — Sente-se, por favor.

Um passo levou-a até à cadeira. Ao sentar, viu que estava posicionada de forma a que o sol que entrava pela janela lhe batesse no rosto, então se levantou e sentou na outra, fazendo-a virar ligeiramente para desviá-la do sol e da mesa antes de sentar novamente.

A Signora Gismondi nunca tivera contato direto com a polícia, mas durante seis anos fora casada com um homem muito preguiçoso e igualmente violento, então não teve dificuldade em se pôr na situação adequada e agir em conformidade.

— Disse que era o responsável pela investigação, tenente, começou ela em voz baixa. — Isso quer dizer que a investigação foi entregue a outra pessoa? Em caso afirmativo, pensou ela, por que a teriam mandado falar com aquele homem?

Ele fez questão de terminar o que estava lendo e de o colocar de lado antes de olhar para ela.

— Não. Ela esperou por uma explicação e, ao ver que não chegava, perguntou:

— Isso significa que a investigação está encerrada? Ele fez uma longa pausa antes de repetir:

— Não.

Sem mostrar qualquer sinal de impaciência ou irritação, ela insistiu:

— Posso perguntar o que isso significa?

— Que a investigação não está sendo continuada.

Ouvindo as vogais torturadas que a frase longa revelou no seu sotaque, ela ajustou a sua resposta à informação de que ele era do Sul, talvez siciliano. Fingindo indiferença, perguntou:

— Então a quem eu poderia dar informações sobre o assunto?

— Se o caso estivesse sendo investigado, seria a mim.

Deixou-a tirar as suas próprias conclusões e voltou a sua atenção para os papéis em cima da mesa. Se ele tivesse lhe dito para sair, não teria expressado mais claramente o pouco interesse que tinha na informação que ela pretendia dar. Por momentos, ela hesitou. Tudo o que a levara ali iria lhe causar problemas e até, se não acreditassem nela, num perigo real. Seria tão fácil levantar e sair, abandonar o problema e aquele homem de olhar indiferente.

— Li no Gazzettino que ela foi assassinada pela romena que vivia com ela, comentou.

— Isso é correto, disse ele, e depois acrescentou: — Foi ela! O seu tom, tal como as suas palavras, não tolerava contestação.

— Pode ser verdade que eu li a notícia no Gazzettino, e pode ser verdade que estava ali impressa, mas não é verdade que a romena a matou, declarou ela, impelida pela omnisciência do segundo comentário dele.

Todavia, a indiferença dele era incontestável.

— Tem provas do que afirma, signora? Perguntou, nem por um instante sugerindo que podia estar interessado em considerá-las, se as tivesse.

— Falei com a romena na manhã do crime, disse ela.

— O mesmo poderia dizer da Signora Battestini, infelizmente. Foi a resposta do tenente que, sem dúvida, a considerou bastante inteligente.

— Também a levei até a estação. Aquilo interessou-o. Pousou as duas mãos na mesa e se inclinou para ela, como se fosse pular em cima dela e arrancar uma confissão.

— O quê? Perguntou.

— Levei-a ao trem para Zagreb. Isto é, aquele que passa por Villa Opicina. Ela teria de mudar em Zagreb para o trem de Bucareste.

— De que está falando? Está dizendo que a ajudou? Soergueu-se, depois voltou a se sentar na cadeira.

Ela não se dignou a responder à pergunta e, ao invés, repetiu:

— Estou dizendo que a levei até a estação e a ajudei a comprar uma passagem com reserva de lugar no trem para Zagreb.

Ele não disse nada durante bastante tempo, estudando o rosto dela, talvez pensando no que acabara de ouvir. Surpreendeu-a ao dizer:

— A senhora é veneziana, como se esta circunstância fizesse parte das acusações que começara a reunir contra ela. Sem lhe dar tempo de perguntar o que queria dizer com aquilo, continuou: — Então só agora se recuperou da amnésia e vem nos dizer tudo isso, ao fim de três semanas?

— Estive fora do país, respondeu ela, surpresa por ouvir a culpa na sua voz. Ele atacou.

— Sem um telefone ou um jornal?

— Na Inglaterra, fazendo um curso intensivo de idiomas. Decidi não falar italiano, explicou, omitindo a menção as conversas telefônicas com o amante. — Voltei ontem à noite e só descobri nesta manhã.

Ele mudou de tema, mas a desconfiança permanecia na sua voz.

— Conhecia essa romena?

— Sim.

— Ela lhe contou o que tinha feito? A Signora Gismondi obrigou-se a manter a paciência. Era a única arma que tinha.

— Ela não fez nada. Encontrei-me com ela de manhã, na porta do prédio. Fica em frente ao meu, do outro lado da calle. A velha estava lá em cima e não a deixava entrar.

— Lá em cima?

— À janela. Flori estava na rua, tocando a campainha, mas a velha não a deixava entrar. Assunta Gismondi levantou o indicador da mão direita e agitou-o lentamente no ar à sua frente, imitando o gesto que vira Battestini fazer.

— Chamou-lhe "Flori", disse Scarpa. — Ela era sua amiga?

— Não. Costumava vê-la da janela do meu apartamento. De vez em quando, acenávamos uma à outra e trocávamos umas palavras. Ela não falava italiano muito bem, mas nos entendíamos.

— Que tipo de coisas ela lhe dizia?

— Que se chamava Flori, que tinha três filhas e sete netos. Que uma das filhas trabalhava na Alemanha, mas ela não sabia onde, em que cidade.

— E a velha? Ela não dizia nada sobre a velha?

— Dizia que era difícil. Mas toda a vizinhança sabia isso.

— Não gostava dela? Perdendo a paciência por momentos, a Signora Gismondi retrucou:

— Toda a gente que a conhecia detestava-a.

— O suficiente para matá-la? Perguntou Scarpa avidamente.

A Signora Gismondi alisou o tecido da saia sobre os joelhos, juntou os pés decorosamente e respirou fundo.

— Tenente, parece que não prestou nenhuma atenção ao que estive contando, declarou. — Encontrei-me com ela na rua, de manhã. A velha estava à janela, acenando com o dedo e se recusando a deixá-la entrar. Levei a mulher... Flori... Levei-a a um café e tentei falar com ela, mas estava demasiado perturbada para pensar com clareza. Chorou a maior parte do tempo que estivemos ali. Disse que a mulher a tinha trancado na rua, que as suas roupas e coisas estavam lá dentro. Mas tinha o passaporte com ela. Disse que nunca ia a lado nenhum sem ele.

— Era falso, declarou Scarpa.

— Não vejo que diferença faz, retorquiu a Signora Gismondi.

— Queria sair da Itália e voltar à Romênia. A cólera fê-la acrescentar com audácia:

— Foi certamente suficiente para deixá-la entrar. Ouvindo a sua própria raiva, fez uma pausa, forçou-se a ter calma, pelo menos na voz, e disse: — Era só isso que ela queria fazer, ir para casa para junto da família.

— Parece que se entendiam muito, apesar de ela não falar italiano, Signora, observou Scarpa. A Signora Gismondi engoliu a resposta.

— Ela não precisava falar muito para entendê-la: bastava, vado, treno, famiglia, Bucaresti, signora cattiva. Assim que se ouviu dizer aquelas últimas palavras, se arrependeu.

— Então, diz que a levou ao trem?

— Não digo apenas, tenente. Afirmo. É verdade. Levei-a à estação e a ajudei a comprar uma passagem e com reserva de lugar.

— E essa mulher com um passaporte falso que a senhora diz que não conseguia entrar em casa, andava por aí com dinheiro suficiente para comprar uma passagem para Bucareste? Perguntou ele numa imitação grosseira da pronúncia dela.

— Eu comprei a passagem, declarou a Signora Gismondi.

— O quê? Perguntou Scarpa, como se ela tivesse acabado de reconhecer que estava maluca.

— Comprei uma passagem. E dei-lhe algum dinheiro.

— Quanto?

— Não sei. Seiscentos ou setecentos euros.

— Quer que eu acredite que nem sabe quanto dinheiro lhe deu?

— É a verdade.

— Como é a verdade? A senhora vê a mulher na rua, faz estalar os dedos e na sua mão aparecem setecentos euros, então decide fazer uma boa ação e dá-os à romena, porque a deixaram na rua e ela não tem para onde ir?

A voz da Signora Gismondi era de aço.

— Eu estava retornando do banco, onde tinha ido levantar um cheque que me fora enviado por um cliente. Estava com o dinheiro na carteira, e, quando ela me disse que queria voltar para Bucareste, perguntei se tinha recebido o salário. Olhou para Scarpa, como que pedindo que entendesse. Não viu nele o menor indício de que fosse capaz de tal coisa, mas mesmo assim continuou. — Ela disse que não se importava com isso; que só queria voltar para casa. Fez uma pausa, de repente com vergonha de confessar a sua fraqueza àquele homem. — Então, dei-lhe algum dinheiro. A expressão do tenente mudou e ela viu na sua cara o desdém que lhe merecia a sua credulidade. — Ela estava lá há meses, e a mulher deixara-a na rua sem pagar o que lhe devia nem a deixava entrar para ir buscar as suas coisas. Ocorreu-lhe perguntar ao tenente o que teria feito numa situação semelhante, mas pensou melhor. — Não podia consentir que, depois estar há vários meses trabalhando, a mulher ficasse na rua sem um cêntimo. E decidiu não dizer mais nada.

— E depois? Insistiu ele.

— Perguntei o que ia fazer e, como já disse, ela respondeu que só queria ir para casa. Na altura já se acalmara e parara de chorar, portanto lhe disse que iria à estação com ela para saber que trens havia. Ela disse que achava que havia um trem para Zagreb por volta do meio-dia. Aquilo parecia-lhe bastante natural. — E foi o que fizemos, fomos à estação.

— E a passagem, também pagou a passagem? Perguntou ele, desejando chegar ao fundo da sua ingenuidade.

— Sim.

— E depois?

— Depois fui para casa. Tinha de ir para Londres.

— Quando? Ela refletiu.

— O voo era o de uma e meia. O táxi veio me buscar ao meio-dia.

— E ficou na estação até que horas, signora?

— Não sei, dez, dez e meia.

— E a que horas diz que tudo começou? Quando disse que encontrou a mulher?

— Não tenho certeza, nove e meia, talvez.

— Ia sair do país por três semanas, reservara um taxi, e mesmo assim ainda teve tempo para levar uma mulher que mal conhecia a estação e lhe comprar uma passagem?

Ela ignorou a provocação deliberada. Queria explicar que sempre detestava as últimas horas antes de partir, que detestava andar as voltas pela casa, verificando e a voltar a verificar se o gás estava desligado, os postigos e as janelas fechadas, o cabo do telefone desligado do computador, mas não tinha vontade de dizer nada aquele homem.

— Havia tempo, limitou-se a declarar.

— Tem provas?

— Provas?

— De que esteve lá?

— Onde?

— Em Londres.

Sentiu-se tentada a perguntar que diferença faria isso, mas, se lembrando do marido e da forma como qualquer tipo de resistência levava a violência, disse apenas:

— Sim.

— E deixou-a lá? Perguntou ele, abandonando Londres.

— Sim.

— Onde?

— Na estação, junto a bilheteria.

— Quanto tempo levou?

— A quê? A comprar a passagem?

— Não. A retornar para casa.

— Onze minutos. Ele ergueu as sobrancelhas e recostou-se na cadeira.

— Onze minutos, signora? Que exatidão. Planejou isto?

— Planejei o quê?

— Esta história.

Antes de responder, ela respirou fundo duas vezes.

— Tenente, o que lhe digo é exato não porque seja uma história, mas porque levei onze minutos. Vivo naquela casa há quase cinco anos e vou à estação pelo menos duas vezes por semana. Sentiu a cólera aumentar na sua voz, tentou controlá-la, e perdeu. — Se for capaz de fazer uma simples operação aritmética, verá que são mais de quinhentas viagens. De modo que, se digo que levo onze minutos, é porque levo onze minutos.

Ignorando totalmente a indignação dela, ele perguntou:

— Então seria esse o tempo que ela levaria?

— Quem?

— A romena. Ela quis dizer-lhe que a romena tinha nome, Flori, mas se arrependeu e disse apenas:

— É o tempo que qualquer pessoa levaria, tenente.

— E a que horas é que a senhora começou a andar esses onze minutos, signora?

— Já lhe disse. Dez e meia, talvez um pouco depois.

— E o trem para Zagreb sai às onze e quarenta e cinco, disse ele com a certeza de quem verificara o horário.

— Acho que sim. Como se estivesse falando com alguém que chegara a idade adulta sem ter aprendido a calcular o tempo, Scarpa disse:

— Isso é mais do que uma hora, signora.

— Isso é ridículo, teve ela de responder ante o absurdo da situação. — Ela não era o tipo de pessoa que volta atrás para matar alguém.

— E a senhora já lidou com muitas pessoas desse tipo? Ela resistiu ao impulso de lhe bater. Em vez disso, respirou rapidamente e disse:

— Já lhe disse o que aconteceu.

— E espera que eu acredite nisso tudo, signora? Perguntou o tenente Scarpa num tom zombeteiro.

Ela sabia que agira por um impulso de decência; portanto não, não esperava que o tenente Scarpa acreditasse nela.

— Acredite em mim ou não, senhor tenente, não importa. O que lhe contei é a verdade. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, acrescentou: — Não tenho motivos para mentir sobre isto. Aliás, a resposta me faz entender que teria sido muito mais fácil se eu não tivesse dito nada. Mas eu sei que a velha não a deixava entrar no apartamento. Dei o dinheiro a Flori e levei-a até a estação. Ele começou a protestar, mas ela levantou uma mão e disse: — E é verdade, tenente quer decida acreditar ou não: ela não matou a Signora Battestini.


* * *


Quatro

PERMANECERAM sentados frente a frente durante algum tempo, até que Scarpa se levantou, deu volta na mesa e saiu da sala, tendo o cuidado de deixar a porta aberta. A Signora Gismondi ficou sentada estudando os objetos da mesa do tenente, mas viu pouco neles que refletisse o tipo de homem com que estava lidando: dois tabuleiros metálicos com papéis, uma caneta, um telefone. Levantou os olhos para a parede: Cristo devolveu-lhe o olhar do crucifixo como se também resistisse a revelar o que a sua proximidade com o tenente Scarpa lhe permitira descobrir.

A sala tinha apenas a pequena janela, e estava fechada, então ao fim de vinte minutos a Signora Gismondi não pôde ignorar o seu desconforto, mesmo com a porta aberta. A temperatura ficara desagradavelmente quente, e ela se levantou, esperando que estivesse mais fresco no corredor. No entanto, assim que se pôs de pé, o tenente Scarpa voltou para a sala, trazendo uma pasta de documentos na mão direita. Viu-a levantada e perguntou:

— Não estava pensando em ir embora, não é, signora? Não havia uma ameaça audível nas palavras dele, mas a Signora Gismondi deixou cair os braços ao lado do corpo e voltou a sentar.

— Não.

Aliás, era só o que queria fazer, sair dali, esquecer o assunto e deixá-los resolver o crime sozinhos. Scarpa voltou para a sua cadeira, sentou e olhou para os papéis nos tabuleiros como se procurasse algum sinal de que ela mexera neles na sua ausência.

— Teve tempo para refletir, signora. Ainda mantém que deu dinheiro para a mulher e a levou à estação?

O tenente nunca chegaria a saber, mas foi o prazer que se insinuava no seu tom que reafirmou a decisão da Signora Gismondi. Pensou no marido, que fisicamente era muito diferente de Scarpa, porque era baixo e louro, e percebeu que, no entanto, eram muito parecidos.

— Eu não mantenho nada, tenente, disse ela com uma calma estudada. — Eu manifesto, declaro, afirmo, proclamo, e, se me der a oportunidade, jurarei que a cidadã romena que eu conheci como Flori não pôde entrar em casa da Signora Battestini porque esta se negou a abrir a porta, e que, quando encontrei Flori na rua, a Signora Battestini estava viva e na janela. Também declaro que, pouco mais de uma hora depois, quando acompanhei-a até a estação, ela parecia calma e serena e não dava sinais de querer matar alguém. Ao lembrar o anterior comentário do tenente, acrescentou: — Quaisquer que possam ser esses sinais. Ela queria continuar, fazer compreender àquele selvagem que não havia nenhuma maneira de Flori, a pobre Flori, poder ter cometido esse crime. O coração batia acelerado com o desejo de continuar a dizer que estava errado; o suor acumulava-se entre os seus seios, mas o hábito da prudência civil se sobrepôs e se calou.

Scarpa, impassível, se levantou e, levando a pasta com ele, deixou de a sala novo. A Signora Gismondi se recostou e tentou se descontrair, dizendo a si mesma que dissera o que tinha a dizer e estava resolvida a ir embora. Obrigou-se a respirar fundo e fechou os olhos.

Depois de vários minutos, ouviu um som atrás dela, abriu os olhos, e se virou para a porta. Viu um homem tão alto como Scarpa, embora à paisana, que tinha na mão o que parecia ser a mesma pasta. Quando os seus olhos se encontraram ele fez um gesto de assentimento com a cabeça e esboçou um meio sorriso.

— Se formos para a minha sala, signora, ficará mais confortável. Tem duas janelas e suponho que não fará tanto calor como aqui. Afastou-se para um lado, convidando-a a segui-lo. Ela se levantou e se dirigiu para a porta.

— E o tenente? Perguntou.

— Ele não nos incomodará lá, respondeu ele, estendendo a mão: — Sou o Comissário Guido Brunetti, signora, e estou muito interessado naquilo que tem para nos dizer.

Ela estudou o rosto dele, decidiu que estava dizendo a verdade quando afirmara estar interessado no que ela tinha a dizer, e apertou-lhe a mão. Após aquele momento formal, ele convidou-a a ir à frente com um gesto de mão. Quando chegaram ao fundo das escadas, um surpreendente vestígio de antigo esplendor num edifício que tinha sofrido numerosas humilhações em nome da eficácia, ele parou ao seu lado.

— Acho que o conheço de vista, disse ela.

— Sim, respondeu ele. — E eu a si. Trabalha perto do Rialto? Ela sorriu e descontraiu-se.

— Não, trabalho em casa, perto da Misericórdia, mas vou ao mercado pelo menos três vezes por semana. Creio que nos vimos lá.

— No Piero? Perguntou Brunetti, referindo-se a uma loja minúscula onde ela comprava o parmigiano.

— Claro. E acho que o vi no Do Mori, acrescentou ela. — Mas vou cada vez menos.

— Desde que o Roberto e o Franco o venderam?

— Sim. Sei que os novos donos são muito simpáticos, mas não é a mesma coisa.

"Que desespero deve ser adquirir um negócio próspero nesta cidade", pensou ela. Por muito bom que se seja e por muitas melhorias que se façam, ao fim de dez ou vinte anos as pessoas continuarão a falar com nostalgia dos bons tempos de Franco e Roberto ou de Pinco Pallino. Os dois novos donos, ela não sabia como se chamavam, eram tão simpáticos como os anteriores, tinham o mesmo vinho e até sanduíches melhores, mas, por muito bom que fosse o que vendiam, estavam condenados a passar a vida profissional a serem comparados com um modelo idealizado, face ao qual, inevitavelmente, ficariam em desvantagem, pelo menos até que os clientes antigos morressem ou se mudassem, altura em que passariam a ser o novo padrão pelo qual se mediriam os seus sucessores.

No topo das escadas, Brunetti virou à esquerda, conduziu-a pelo corredor e parou diante de uma das portas, convidando-a a entrar. A primeira coisa que ela observou foram as altas janelas que davam para a Igreja de San Lorenzo, e o grande armário encostado a uma parede. Mais uma vez, havia uma mesa, uma cadeira atrás e duas à frente.

— Posso oferecer-lhe alguma coisa para beber, signora? Um café? Um copo de água? E sorriu, instando-a a aceitar, mas ela ainda estava incomodada pelo comportamento de Scarpa, então recusou, ainda que educadamente.

— Talvez mais tarde, disse, ocupando a cadeira perto da janela. Escolhendo não se refugiar atrás da mesa, o comissário voltou a outra cadeira para a mulher e se sentou. Pousou a pasta na mesa e sorriu.

— O tenente Scarpa transmitiu-me as informações que a senhora deu, mas gostaria de ouvi-las pelas suas palavras. Agradeço que me dê todos os pormenores possíveis.

Ela tinha lido policiais e perguntou-se se o comissário iria ligar um gravador ou pegaria o bloco. Mas ele se sentou de frente para ela, em silêncio, o cotovelo apoiado na mesa, A espera que falasse.

Então ela contou tudo o que contara a Scarpa: que voltava do banco depois de levantar o cheque; que encontrara Flori com o saco de plástico na mão; que a Signora Battestini as observava da janela e movia o dedo em sinal de absoluta negação.

— Não consegue lembrar-se de quanto dinheiro lhe deu, signora? Perguntou Brunetti quando acabou. Ela negou com a cabeça.

— Não, o cheque era de cerca de mil euros. Comprei algumas coisas a caminho de casa: cosméticos e pilhas para o meu discman; algumas outras coisas, mas não me recordo o quê... Mas lembro-me de que, quando peguei o dinheiro para lhe dar, fiquei com algumas notas... Eram todas de cem, e dei-lhe o resto. Recordou a cena, tentou lembrar-se se contara o dinheiro ao chegar em casa. — Não, não me lembro exatamente, mas devem ter sido seiscentos ou setecentos euros.

— É uma mulher muito generosa, signora, disse ele com um sorriso.

Vindas de Scarpa, aquelas palavras teriam sido uma sarcástica manifestação de descrença; daquele homem, eram um simples elogio e ela sentiu-se lisonjeada.

— Não sei por que o fiz, respondeu a Signora Gismondi. — Vi-a ali na rua, vestindo uma espécie de bata sintética e umas sapatilhas de lona. Lembro-me de que uma delas tinha um rasgão do lado. E havia meses que trabalhava para aquela mulher. Não sei exatamente quando começou, mas diria que foi quando as janelas ainda estavam fechadas. Ele sorriu.

— Estranha maneira de calcular o tempo, signora.

— Não lhe parecia tão estranha se morasse perto dela, afirmou com alguma veemência. Vendo a sua confusão, acrescentou: — A televisão estava sempre ligada, dia e noite. No inverno, quando temos as janelas fechadas, não é tão ruim. Mas no verão, de maio a setembro, é suficiente para se ficar maluca. As minhas janelas são em frente das dela. Ela deixa ligada toda a noite, no volume máximo. Já precisei chamar a polícia. Reparou no tempo verbal que usara, e emendou-se: — Deixava ligada.

Brunetti assentiu num gesto de compreensão solidária, como teria feito qualquer veneziano, habitante de uma cidade com algumas das ruas mais estreitas e uma das populações mais velhas da Europa. Encorajada, ela prosseguiu.

— Eu costumava ligar, isto é, à Polícia, para me queixar dela, mas nunca alguém fez alguma coisa. Até que um dia, no verão passado, um dos agentes com quem conversei me disse que eu devia chamar os bombeiros. Mas, quando o fiz, eles me disseram que não podiam vir só pelo barulho, precisava haver algum perigo ou uma emergência.

O meneio de cabeça de Brunetti deu-lhe a entender que achava a sua explicação interessante.

— Então, se ela a deixava ligada, ainda que eu pudesse vê-la dormindo na cama, porque da janela do meu quarto vejo a cama dela, acrescentou entre parênteses, incapaz de parar de utilizar o tempo presente, — Eu chamava os bombeiros e dizia que não conseguia vê-la e... A sua voz assumiu a cadência mecânica de alguém lendo um texto preparado, e que tinha medo de que tivesse acontecido alguma coisa. Olhou para ele com um sorriso que se alargou ao ver que ele esboçava também um sorriso de compreensão. — Então seriam obrigados por lei a ir até lá. De repente, recordou a realidade e apagou o sorriso. — E agora aconteceu mesmo algo terrível.

— Sim, disse Brunetti. — Aconteceu. Fez-se silêncio entre eles. — Podia me dizer mais alguma coisa sobre a tal mulher chamada Flori? Pediu ele por fim. — Alguma vez soube o seu sobrenome?

— Não, não soube, respondeu ela. — Nunca fomos propriamente apresentadas. Só que nos víamos à janela de vez em quando e, como é normal, sorríamos e cumprimentávamo-nos, eu perguntava como estava e ela a mim. E depois conversávamos. Não sobre nada em particular, apenas umas frases soltas.

— Ela alguma vez falou da Signora Battestini? Perguntou ele, as suas palavras revelando apenas curiosidade, não desconfiança.

— Bem, começou a Signora Gismondi, — Eu tinha uma ideia bastante aproximada do tipo de pessoa que ela era. Sabe como é entre vizinhos, toda a gente conhece a vida dos outros, e eu sabia que as pessoas não gostavam muito dela. E tinha aquela televisão sempre ligada. Quando perguntei como era a patroa, Flori limitou-se a sorrir, encolhendo os ombros e balançando a cabeça. "Difficile", disse, ou algo parecido, mas foi o suficiente para me dar a entender que já entendera como era a velha.

— Mais alguma coisa?

— Às vezes, eu telefonava para pedir que abaixasse o som da televisão, disse ela; depois explicou: — A Flori, quero dizer. Há anos que eu telefonava à Signora Battestini, e às vezes ela era muito simpática e abaixava-a, outras vezes gritava comigo. Uma vez bateu com o telefone e pôs a televisão ainda mais alta, sabe Deus porquê. Fitou-o, para tentar entender o que pensava de tudo aquilo que, na realidade, não passavam de quizilas banais entre vizinhos, mas ele parecia genuinamente interessado. — Mas Flori dizia "Signora" e abaixava o som. Suponho que é por isso que eu gostava dela, ou sentia pena, não sei.

— Tenho certeza de que era um grande alívio. Não há nada pior, não é, especialmente quando estamos tentando adormecer. Comentou ele, compreensivo.

— Às vezes, no verão, era impossível. Tenho uma casa nas montanhas, perto de Trento, e precisava ir até lá só para conseguir uma boa noite de sono. Sorriu e negou com a cabeça ante o aparente absurdo da situação. — Sei que parece uma loucura alguém poder nos obrigar a sair da nossa própria casa, mas era assim mesmo. Então, com um sorriso malicioso, acrescentou: — Até que descobri os bombeiros.

— Como eles entravam? Perguntou Brunetti. Ela explicou com evidente prazer. — Pela porta da rua não podiam entrar, porque estava sempre fechada. Tinham de ir a Madona dell'Orto, ou lá perto, e voltar com uma escada. Punham-na no chão em frente da casa dela, montavam-na e levantavam-na até a janela...

— Do segundo andar? Perguntou ele.

— Sim. Devia ter, não sei, sete ou oito metros de comprimento. Depois um ou dois bombeiros subiam, entravam pela janela do quarto e acordavam-na.

— A senhora via isso tudo?

— Sim, da minha janela. Quando entravam, eu ia para o meu quarto. Daí os via acordá-la. Sorriu com a lembrança. — Eles eram realmente muito simpáticos, os bombeiros. São todos venezianos, de modo que ela não tinha dificuldade em entendê-los. Perguntavam-lhe como estava e, em seguida, sugeriam que abaixasse a televisão. Depois iam embora.

— Como?

— Desculpe?

— Como é que saíam? Pela janela?

— Oh, não! Exclamou ela com uma risada. — Saíam pela porta e desciam as escadas e, quando chegavam na rua, desmontavam a escada.

— Quantas vezes fez isso, signora?

— Porquê? É ilegal? Perguntou ela, preocupada pela primeira vez durante a sua conversa com Brunetti.

— De maneira nenhuma, respondeu ele calmamente. — Muito pelo contrário, na verdade. Se não conseguia vê-la de uma das janelas do seu apartamento, me parece que tinha motivos para recear que algo tivesse acontecido.

Não refez a pergunta, mas ela respondeu na mesma hora.

— Quatro vezes, penso eu, eles chegavam sempre em torno de uns quinze minutos.

— Hum, hum, fez ele, e a mulher se perguntou se aquilo o surpreendia ou lhe agradava. — Isso parou quando Flori chegou?

— Sim. Ele deixou passar bastante tempo.

— O tenente disse que a senhora levou-a até a estação e a deixou lá. É verdade?

— Sim.

— As dez e meia?

— Sim.

— Sabe se a Signora Ghiorghiu tinha outros amigos por aqui? Perguntou ele, mudando de assunto.

Ouvi-lo referir-se a Flori com tal formalidade lhe agradou, mas o sorriso dela foi breve, mais um aperto dos lábios.

— Eu não era propriamente uma amiga, comissário.

— Agiu como se fosse. Relutante em falar sobre aquilo, ela voltou à pergunta.

— Não, que eu saiba. Não éramos realmente amigas, porque não conseguíamos falar. Apenas pessoas que simpatizavam uma com a outra.

— E quando a deixou na estação, como descreveria o comportamento dela ou o seu estado de espírito?

— Ainda estava perturbada com o que tinha acontecido, mas muito menos do que antes.

Ele olhou para baixo por um momento, depois de novo para ela.

— Viu mais alguma coisa da sua janela, signora? Perguntou, mas antes que ela pudesse sequer pensar em se defender de uma insinuação de indiscrição, acrescentou: — Pergunto porque, se aceitarmos a premissa de que não foi Flori, então foi outra pessoa, e tudo o que me puder dizer sobre a Signora Battestini poderia ser de grande ajuda.

— Para descobrir o culpado, o senhor quer dizer?

— Sim. O comissário tinha assumido com tanta naturalidade a provável inocência de Flori que ela não teve tempo de mostrar surpresa.

— Ando pensando nisso desde que liguei, disse ela.

— Imagino que sim, signora, disse ele, mas não insistiu.

— Vivi em frente a ela durante mais de quatro anos, desde que comprei o apartamento. Fez uma pausa, mas ele não deu indicação de querer ou precisar de apressá-la. — Mudei-me em fevereiro, creio, no final do inverno, de qualquer forma. Portanto não a vi, não até à primavera, quando o calor chegou e começamos a abrir as janelas. Quero dizer, posso tê-la visto andando pela casa, mas não prestei atenção. Quando o barulho começou, então comecei a prestar atenção. No princípio, gritava da janela, mas não servia de nada. Ela estava sempre dormindo; nunca acordava. Então um dia fui até à porta do prédio dela, vi o nome na campainha, descobri o número de telefone na lista e liguei. Não disse quem era nem onde morava, apenas pedi para, à noite, manter o volume da televisão mais baixo.

— E o que ela respondeu?

— Que a desligava sempre antes de ir para a cama.

— E depois?

— Depois começou a ser durante o dia, eu ligava e quando ela atendia pedia, sempre muito educadamente, para abaixar o volume.

— E?

— E na maioria das vezes ela abaixava.

— E à noite? As vezes não era ligada durante semanas a fio. Eu começava a ter esperança de que algo tivesse acontecido, que ela tivesse sido internada ou mudado de casa.

— Nunca pensou em lhe enviar uns auscultadores, signora?

— Ela nunca os usaria, respondeu a mulher categoricamente. — É doida. É por isso. Doida varrida. Acredite em mim, signore, tentei tudo com a mulher. Falei com a advogada dela, com o médico, com a sobrinha, com as pessoas no centro psiquiátrico do Palazzo Boldini, com os vizinhos, até com o carteiro. Viu o interesse dele e continuou: — Ela foi paciente no Boldini durante anos, quando ainda podia subir e descer as escadas e sair de casa. Mas ou se cansou ou mandaram-na embora... Se um centro psiquiátrico puder mandar as pessoas embora.

— Duvido que possa, disse ele. — Mas suponho que podiam incentivá-la a sair. Esperou um momento, depois perguntou: — E a sobrinha? O que disse?

— Que a tia dela era uma "mulher difícil". Arquejou com desdém. — Como se eu não soubesse isso. Não queria ter nada a ver com o assunto. Na verdade, não sei se sabia ao que eu me referia. O mesmo aconteceu com a Polícia, como disse, e com os Carabinieri. Fez uma pausa e acrescentou: — Alguém no bairro... Não me lembro quem... Disse que o filho dela tinha morrido há cinco ou seis anos, e que fora nessa altura que a televisão começara. Para lhe fazer companhia.

— Então ele morreu antes de a senhora se mudar?

— Sim. Mas então ouvia que sempre foi uma "mulher difícil".

— E a advogada? Perguntou Brunetti.

— Disse que ia falar com a Signora Battestini.

— E então? A Signora Gismondi franziu os lábios com repugnância. — O carteiro? Perguntou ele com um sorriso. Ela riu.

— Não tinha nada de bom a dizer sobre ela, por acaso. Levava toda a correspondência lá em cima... Estava sempre subindo aquelas escadas... E ela nunca lhe deu nada. Nem sequer no Natal. Nada.

A atenção do comissário não esmorecera, portanto continuou:

— A melhor história que ouvi sobre ela foi do homem do mármore, aquele que fica em Miracoli, disse ela.

— Costantini? Perguntou ele.

— Sim. Angelo, disse ela, contente por ele saber de quem estava falando. — É um velho amigo da família, e quando eu lhe disse com quem estava tendo problemas, ele me contou que ela o chamou há uns dez anos e pediu um orçamento para um novo lance de escadas. Ele disse que já a conhecia ou tinha ouvido falar dela, então sabia que seria inútil ir lá, mas foi assim mesmo. Mediu os degraus, fez todos os cálculos, e voltou no dia seguinte para dizer quantos degraus eram precisos, que altura deveriam ter e quanto custariam. Como alguém que gosta de contar uma boa história, ela fez ali uma pausa e ele respondeu como qualquer bom ouvinte.

— E depois?

— Ela disse que sabia que ele estava tentando enganá-la, e queria que ele fizesse menos degraus e mais baixos. Nova pausa, para que o loucura da sugestão fosse assimilado. — Coisas como esta fazem uma pessoa desconfiar que talvez ela tenha sido mesmo expulsa do Palazzo Boldini.. Ele concordou.

— Ela recebia visitas, signora? Perguntou ele depois de um momento.

— Não, não me lembro de ninguém... Bem, pelo menos alguém com quem a tenha visto mais do que algumas vezes. A exceção de todas as mulheres que trabalharam para ela, claro. A maioria delas era negra, e uma vez falei com uma mulher que disse que era do Peru. Mas todas iam embora, geralmente ao fim de apenas algumas semanas.

— Mas Flori ficou? Perguntou ele.

— Disse que tinha três filhas e sete netos, e suponho que precisava manter o emprego para poder lhes enviar dinheiro.

— Sabe se ela foi paga, signora?

— Quem? Flori?

— Sim.

— Acho que sim. Pelo menos ela tinha um pouco de dinheiro. Antes que ele pudesse lhe pedir que se explicasse, ela continuou: — Encontrei-a uma vez na Strada Nuova. Foi há cerca de seis semanas e quando ela apareceu eu estava bebendo um café, naquele café da esquina perto do traghetto de Santa Fosca. Quando me aproximei, ela reconheceu-me, sabe, da janela, e beijou-me no rosto, como se fôssemos velhas amigas. Tinha a carteira aberta nas mãos, e vi que só tinha algumas moedas. Não sei quanto. Não olhei, sabe, mas vi que não era muito. Parou de falar, lembrando daquela tarde no café. — Perguntei porque tinha entrado, e ela disse que queria um sorvete, acho que disse que adorava sorvete. Conheço o homem do café, por isso lhe disse que eu pagaria e para não aceitar o dinheiro dela.

Só agora a possibilidade lhe ocorrera:

— Espero não ter ferido os seus sentimentos. Ao insistir em pagar, quero dizer.

— Não creio, signora, disse ele.

— Perguntei o que queria, ela respondeu chocolate, portanto pedi para lhe dar um cone duplo. Ao ver o rosto dela quando pegou, percebi que pensara em comprar um simples e senti pena. Ter de aturar aquela mulher horrível todo o dia e toda a noite e nem sequer poder pagar um cone duplo...

Durante muito tempo, nenhum deles disse nada.

— E o dinheiro que lhe deu, signora? Perguntou ele.

— Foi um impulso, nada mais que isso. Tinha-o recebido por um trabalho para o qual dei um orçamento intencionalmente elevado, esperando não receber, porque era muito chato: a concepção de embalagens para um novo tipo de lâmpadas. Mas me deram o trabalho, e acabou por ser tão fácil que me senti um pouco culpada por ter recebido todo aquele dinheiro. Acho que assim foi mais fácil dá-lo do que se tivesse realmente trabalhado para consegui-lo. Lembrou-se do dinheiro e do impulso que a levara a dá-lo a Flori. — Não lhe serviu de muito, não é? Perguntou ela. — Não teve tempo para gastá-lo. Então teve uma ideia. — Espere um momento, acabei de entender uma coisa. Ainda tenho trezentos euros desse dinheiro. Deixei-o aqui quando fui para Inglaterra. Sabia que não podia usá-lo lá. Portanto ainda tenho as notas.

O interesse evidente do olhar dele levou-a a continuar.

— Basta-lhe isso para provar que eu lhe dei o dinheiro, que ela não o roubou à Signora Battestini. Quando ele não respondeu, prosseguiu. — As notas eram novas e tinham provavelmente o mesmo número de série, por isso só tenho de lhe dar as notas em meu poder, e se comparar os números de série com os do dinheiro que tinha com ela no trem, verá que não roubou nada.

Intrigada pela falta de entusiasmo do comissário e, admitiu para si mesma, ferida pela sua apatia, perguntou:

— Então? Não seria uma prova?

— Sim, concordou ele com evidente relutância, — Seria uma prova.

— Mas? Perguntou ela.

— Mas o dinheiro sumiu.


* * *


Cinco

— Como é isso possível? Perguntou ela. Entre a pergunta da mulher e a resposta do comissário transcorreu tempo suficiente para, quando esta chegou, ser desnecessária.

Ela não teve de pensar muito para entender que semelhante quantia de dinheiro, ao passar por uma série de salas e funcionários, não duraria mais do que um cubo de gelo passado de mão em mão na praia do Lido.

— Não parece haver qualquer registro do dinheiro depois de sair das mãos da polícia de Villa Opicina, disse ele.

— Porque está me dizendo isto, comissário?

— Na esperança de que não vá contar a ninguém, respondeu ele, sem desviar o olhar do dela.

— Tem medo da publicidade adversa? Perguntou ela, como se tivesse sido contagiada pelo sarcasmo do tenente Scarpa.

— Não, não particularmente, signora. Mas gostaria que esta informação não fosse tornada pública, tal como tudo aquilo que me contou aqui.

— E posso perguntar porquê? O sarcasmo desaparecera, mas ainda havia muito ceticismo na sua voz.

— Porque quanto menos a pessoa que fez aquilo souber a respeito do que sabemos, melhor para nós.

— Disse "a pessoa que fez aquilo", comissário. Isso significa que acredita em mim, que Flori não matou ninguém?

Ele recostou-se na cadeira e tocou no lábio inferior com o indicador da mão esquerda.

— Por aquilo que me disse, signora, não parece provável que fosse uma assassina, sobretudo tendo em conta as caraterísticas do crime.

Ela acreditou nele e se descontraiu.

— E uma vez que ela tinha uma passagem para casa e algum dinheiro, continuou o comissário, — Acho pouco provável que voltasse para matar a velha, por muito difícil que ela tivesse sido. Ele tirou um bloco de notas do bolso do paletó e abriu-o. — Sabe me dizer o que vestia quando a levou ao trem?

— Uma bata dessas que quase ninguém usa, com botões na frente, manga curta, feita de nylon ou rayon. Sintética. Devia ser um suplício com este calor. Era cinzenta ou bege, uma cor clara, e tinha um padrão pequeno; não me recordo do quê.

— Era uma peça de roupa que já a vira usar na casa, de sua janela? A Signora Gismondi pensou um pouco.

— Acho que sim. Tinha aquela bata, uma blusa clara e uma saia escura. Mas na maioria das vezes andava de avental, então não tenho uma lembrança clara da sua roupa.

— Notou algumas mudanças nela, enquanto esteve lá?

— Não sei a que se refere por mudanças.

— Será que cortou o cabelo, ou o pintou? Ou começou a usar óculos?

Ela se lembrou das raízes brancas do cabelo de Flori no último dia, quando a levara ao café para tentar acalmá-la.

— Ela deixou de pintar o cabelo, declarou por fim. — Provavelmente não tinha dinheiro.

— Porque diz isso?

— Faz ideia de quanto custa pintar o cabelo nesta cidade? Perguntou ela, interrogando-se se ele teria mulher e, em caso afirmativo, se ela pintaria o cabelo. Calculou que ele tivesse uns cinquenta anos; pareceria mais novo, notou ela, não fosse o cabelo mais ralo no alto da cabeça e as rugas em volta dos olhos. Mas, paradoxalmente, os seus olhos pareciam os de um homem muito mais jovem: astutos e brilhantes, rápidos a registrar o que viam.

— Claro, disse ele, compreendendo o significado da pergunta dela. — Há mais alguma coisa que possa me dizer sobre a Signora Battestini? Qualquer coisa, signora, por muito insignificante ou irrelevante que possa parecer e, sim, continuou ele com um sorriso fácil, — Por muito que soe a fofoca.

Ela acedeu prontamente ao seu pedido de ajuda.

— Acho que já lhe disse que toda a vizinhança a conhecia. Ele anuiu com a cabeça e ela continuou. — E sabem que ela me causou muitos problemas... Aqui interrompeu-se para explicar: — Sou a única pessoa cujo quarto dá para o apartamento dela. Não sei se os quartos das outras pessoas sempre foram nos fundos, ou se os mudaram para lá ao longo dos anos para fugir do barulho.

— Ou se o barulho só começou há pouco, sugeriu ele.

— Não, respondeu ela de imediato. — Todas as pessoas com quem falo me dizem que o barulho começou depois da morte do filho. As pessoas à minha direita têm ar condicionado, então dormem de janela fechada, e as pessoas de idade por baixo de mim fecham os postigos e as janelas. Sabe Deus como não sufocam durante o verão. De repente, deu-se conta de que aquilo devia soar a tagarelice estúpida e parou, tentando lembrar o que a tinha feito divagar; encontrando o fio da meada, prosseguiu: — Toda a gente a conhece, e basta dizer o nome dela para as pessoas começarem a falar. Ouvi a história da vida dela uma dezena de vezes.

— Sério? Perguntou ele, obviamente interessado. Virou uma página do bloco e olhou para a mulher com um sorriso que ela achou encorajador.

— Bem, digamos que já ouvi pedaços da história da vida dela.

— E pode me dizer quais são?

— Que ela vivia ali há décadas. Por aquilo que as pessoas dizem, ela devia ter uns oitenta anos, talvez mais, disse. — Teve aquele filho que morreu. Já ouvi dizer que o casamento dela não era feliz. Acho que o marido também morreu há mais de dez anos.

— Sabe o que ele fazia? Ela tentou se lembrar, esgaravatando numa década de boatos e de comentários.

— Acho que era funcionário do município, ou da província, mas não sei o que fazia exatamente. As pessoas diziam que passava a maior parte do tempo depois do trabalho no bar da esquina, jogando cartas. Também diziam que isso era a única coisa que o impedia de, hum... Matá-la. Olhou para ele, nervosa, ao se dar conta do que tinha dito, mas continuou: — Todos os que falaram dele pareciam achá-lo um homem bastante agradável.

— Sabe a causa da morte? Ela pensou durante bastante tempo.

— Não, mas acho que alguém me disse que foi um acidente vascular cerebral ou um ataque cardíaco.

— Aconteceu aqui?

— Não tenho ideia. Disseram apenas que ele morreu e lhes deixou tudo, a ela e ao filho: a casa, o dinheiro que tinha, outro apartamento no Lido, julgo. Quando o filho morreu, ela deve ter herdado tudo.

Ele assentia com a cabeça de vez em quando, para dar a entender que compreendia e para animá-la a continuar.

— Penso que foi só o que ouvi sobre o marido.

— E o filho? Ela encolheu os ombros. — O que diziam as pessoas sobre ele?

— Nada, respondeu ela, aparentemente surpresa pela sua própria resposta. — Isto é, nunca ninguém me falou dele. Bem, com exceção da pessoa que me disse que tinha morrido.

— E sobre ela? Desta vez, a sua resposta foi imediata.

— Ao longo dos anos, brigou com todas as pessoas que viviam em volta dela.

— Sobre que gênero de coisas?

— O senhor é de Veneza, não é? Perguntou ela em tom jocoso, já que a origem do comissário estava patente no seu rosto e na sua voz. Brunetti sorriu. — Então sabe o tipo de coisas por que lutamos: lixo deixado em frente a porta de alguém, uma carta colocada na caixa do correio errada e que nunca foi entregue, um cão que late o tempo todo: não importa realmente sobre o quê. O senhor sabe disso. Basta responder da forma errada, e se tem um inimigo para toda a vida.

— E a Signora Battestini parece o tipo de pessoa que sempre respondia da forma errada.

— Sim, disse ela, com um aceno duplo para maior ênfase.

— Houve algum incidente em particular? Perguntou ele.

— Quer dizer se houve algum incidente que pudesse ter levado alguém a matá-la? Inquiriu a Signora Gismondi, tentando fazer aquilo soar como uma piada e não conseguindo.

— Não, este tipo de pessoa não é morto pelos vizinhos. Além disso, disse ele com um pequeno sorriso audacioso, — Por tudo aquilo que me disse, a senhora era quem tinha mais motivos, e não acredito que o tenha feito.

Ao ouvi-lo dizer aquilo, ela teve a impressão de que aquela era uma das conversas mais estranhas que já tivera, embora não deixasse de ser agradável.

— Quer que continue a repetir as coisas que as pessoas me disseram ou que tente lhe dizer o que acho de tudo isto? Perguntou ela.

— Acho que a segunda sugestão seria mais útil.

— E mais rápida, observou ela.

— Não, não, signora. Não tenho pressa nenhuma; por favor, não pense isso. Tudo o que tem a dizer me interessa.

Ditas por outro homem, aquelas palavras poderiam ter soado deliberadamente ambíguas, como se com a sua aparente sinceridade tentasse encobrir uma insinuação mas, vindas dele, ela tomou-as em sentido literal.

A mulher recostou-se na cadeira, descontraída como não teria conseguido com o outro policial, como sabia que jamais poderia estar com ele ou com homens como ele.

— Disse-lhe que só tenho este apartamento há quatro anos. Mas trabalho em casa, e por isso estou geralmente disposta a ouvir as pessoas porque passo a maior parte do tempo sozinha, trabalhando. Fez uma pausa e retificou com ironia: — Isto é, quando o barulho permite.

Ele anuiu. Com os anos, aprendera que a maioria das pessoas precisa falar e que, com curiosidade e empatia, reais ou fingidas, era fácil levá-las a falar sobre qualquer coisa. Com um sorriso amargo, ela disse:

— Mas as pessoas do bairro também me disseram outras coisas sobre ela. Por muito que as suas histórias revelassem o quanto a odiavam, acabavam sempre dizendo que ela era uma pobre viúva que perdera o filho, e era preciso sentir pena dela.

Percebendo que ela desejava que ele a incentivasse a fofocar, Brunetti interveio.

— Que outras coisas lhe diziam, signora?

— Por exemplo, que era muito sovina. Eu disse que ela nunca deu gorjeta ao carteiro. Também diziam que ela comprava sempre o mais barato que encontrava. Atravessava meia cidade para poupar cinquenta liras num pacote de macarrão: coisas assim. E o meu sapateiro disse que ela prometia sempre lhe pagar da vez seguinte e, quando voltava, dizia que já tinha pago. Até que o homem se cansou e nunca mais a deixou entrar na loja. Viu a expressão dele e acrescentou: — Não sei o que há de verdade nisto tudo. Sabe como é: quando uma pessoa começa a ter reputação de ser assim ou assado, começam a contar histórias, e já não importa mais se é verdade ou não.

Brunetti estava há muito familiarizado com aquele fenômeno. Conhecera pessoas que tinham sido mortas e pessoas que tinham tirado as próprias vidas por causa dele. A Signora Gismondi prosseguiu.

— Às vezes, ouvia-a a gritar com as mulheres que trabalhavam para ela, ouvia-a do outro lado do campo. Gritava coisas terríveis: acusava-as de mentir ou roubar. Ou queixava-se da comida que faziam ou da maneira como tinham feito a cama. Eu ouvia tudo, pelo menos durante o verão, se não estava com o discman. As vezes via-as à janela e acenava-lhes ou sorria-lhes. Depois, se via uma delas na rua, dizia olá ou cumprimentava com um aceno de cabeça. Olhou para um lado como se nunca se tivesse preocupado em entender porque fazia aquilo. — Suponho que queria que elas soubessem que nem todas as pessoas eram como a velha, ou que nem todos os venezianos eram como ela.

Brunetti assentiu mais uma vez, reconhecendo a legitimidade do desejo.

— Uma delas, da Moldávia, me perguntou um dia se eu tinha algum trabalho para ela. Tive de lhe dizer que já tinha uma diarista que trabalhava para mim há anos. Mas vi-a tão desesperada que comecei a perguntar às minhas amigas; uma delas ficara sem empregada há pouco tempo, então a contratou e gostou dela, disse que era séria e trabalhadora. Sorriu e negou com a cabeça ante o seu falatório. — A verdade é que Jana lhe disse que só recebia sete mil liras... Foi antes do euro... Por hora. Num tom indignado, exclamou: — Isso é menos que quatro euros por hora, pelo amor de Deus! Ninguém pode viver com isso.

Aprovando a indignação da mulher, Brunetti perguntou:

— Acha que era isso que ela estava pagando à Signora Ghiorghiu?

— Não faço ideia, mas não me admiraria.

— Qual foi a reação dela quando lhe deu aquele dinheiro todo? Perguntou ele.

— Ah, ficou satisfeita, acho, respondeu ela, constrangida.

— Com certeza que sim, disse Brunetti. — Como reagiu? A Signora Gismondi olhou para as mãos, cruzadas no regaço.

— Começou a chorar. Fez uma pausa e acrescentou: — E tentou me beijar a mão. Mas eu não podia permitir isso, não ali na rua.

— Claro que não, concordou Brunetti, tentando não sorrir. — Lembra-se de mais alguma coisa sobre a Signora Battestini?

— Ela foi secretária, creio, numa das escolas. Não sei bem qual, mas acho que numa das primárias. Deve ter se aposentado há mais de vinte anos. Talvez até mais, quando era fácil uma pessoa se aposentar. Brunetti não teve certeza, mas lhe pareceu que havia mais censura do que pesar no tom dela.

— E a família? A senhora disse que falou com uma sobrinha.

— Sim, e ela não queria ter nada a ver com a tia. Havia uma irmã em Dolo, presumivelmente a mãe da sobrinha, mas em uma das últimas vezes que liguei, falei com a sobrinha e ela disse que a mãe tinha morrido. Considerou aquilo e acrescentou: — Tenho a sensação de que ela não queria ouvir falar da tia até também estar morta, e herdar a casa.

— Disse que falou com uma advogada, não disse, signora?

— Sim, com a Dottoressa Marieschi. Tem um escritório, pelo menos está na lista telefônica, algum lugar em Castello. Nunca a vi, só falei com ela pelo telefone.

— Como localizou todas essas pessoas, signora? Perguntou ele. Detectando apenas curiosidade no tom dele, ela respondeu:

— Fiz algumas perguntas e procurei os contatos na lista telefônica.

— Como soube o nome da advogada? Ela pensou bastante tempo antes de responder.

— Liguei uma vez para a Signora Battestini, e disse que era da empresa de eletricidade e que precisava falar com ela acerca de uma fatura que não havia sido paga. Ela me deu o nome da advogada e disse para lhe ligar, até me deu o número.

Brunetti dirigiu-lhe um sorriso de admiração, mas absteve-se de elogiá-la então, era sem dúvida um crime.

— Sabe se a advogada trata de todos os assuntos dela?

— Ela me deu a entender isso quando falei com ela.

— A Signora Battestini ou a advogada?

— Oh, desculpe. A Signora Battestini. A advogada foi, bem, foi como os advogados são sempre: forneceu muito pouca informação e deu a entender que tinha muito pouco controle sobre a sua cliente.

Aquilo era uma boa descrição dos métodos dos advogados. Todavia, em vez de cumprimentá-la pela sua sagacidade, perguntou:

— Em tudo aquilo que ficou sabendo, há algo que ache que possa ser importante?

— Receio não ter ideia do que possa ser importante ou não, comissário, respondeu ela com um sorriso. — Todos os vizinhos disseram que ela era terrível, e se algum deles se referiu ao marido, foi para dizer que ele era um homem comum, sem nada de especial, e que não eram felizes.

Ele esperou que ela fizesse um comentário sobre a impossibilidade de alguém encontrar a felicidade com a Signora Battestini, mas ela não fez.

— Lamento ter sido pouco útil, disse ela, dando a entender o seu desejo de terminar a conversa.

— Pelo contrário, signora, eu diria que foi extremamente útil. Impediu-nos de encerrar um caso antes de termos investigado o suficiente, e nos deu uma boa razão para suspeitar de que as nossas conclusões originais estavam erradas. Deixou que ela deduzisse que pelo menos ele acreditava que não havia necessidade de corroborar a sua história antes de aceita-la.

Brunetti se levantou e se afastou da cadeira. Estendeu a mão, dizendo:

— Quero lhe agradecer por ter vindo falar conosco.

Aceitando as palavras do comissário como desculpas pelo comportamento do tenente Scarpa, ela apertou-lhe a mão.


* * *


Seis

DEPOIS da mulher ter ido embora, Brunetti voltou para a mesa, considerando o que acabara de ouvir não só da boca da Signora Gismondi, mas também do tenente Scarpa. O que a primeira lhe dissera parecia inteiramente plausível: as pessoas saíam da cidade e os eventos continuavam na sua ausência. Muitas vezes, preferiam não ter contato com a terra natal, talvez para melhor saborear a sensação estar longe ou, como ela dissera a Scarpa, para se imergir totalmente num idioma ou cultura estrangeira. Ele tentou pensar numa razão pela qual uma mulher aparentemente tão sensata e honesta como a Signora Gismondi iria inventar uma história daquelas e mantê-la perante a oposição de Scarpa. Não lhe ocorreu qualquer explicação convincente.

Era muito mais fácil especular sobre os motivos de Scarpa. Aceitar a história da mulher era admitir que a Polícia agira com uma pressa inusitada ao aceitar uma solução conveniente para o crime. Era também exigir uma explicação sobre o paradeiro do dinheiro que tinha desaparecido enquanto estava sob custódia policial. Ambas as questões estavam nas mãos do tenente Scarpa. Mais importante, aceitar a história dela exigiria um novo exame do caso, ou melhor, exigiria que, mais de três semanas após o crime, o caso fosse finalmente examinado pela primeira vez.

Brunetti estivera de férias quando o corpo da Signora Battestini fora descoberto e voltara para Veneza apenas depois de o caso ter sido posto de parte, tendo continuado a investigação dos responsáveis pelas bagagens no aeroporto. Como os acusados tinham sido repetidamente filmados a vasculhar e a roubar a bagagem dos passageiros, e como alguns deles estavam dispostos a testemunhar contra os outros na esperança de receber penas mais leves, a Brunetti restara apenas manter o processo em dia e falar com aqueles que ainda não haviam confessado, mas que talvez pudessem ser persuadidos a fazê-lo. Tinha lido a notícia do homicídio enquanto estivera fora e, aceitando passivamente o que diziam os jornais, ficara convencido de que a romena era culpada. Por que outra razão iria ela tentar sair do país? Porquê a tentativa desesperada de escapar da Polícia?

A Signora Gismondi acabara de lhe fornecer respostas alternativas a estas perguntas: Florinda Ghiorghiu deixara o país porque ficara sem trabalho, e tentara fugir porque era cidadã de um país onde a Polícia era reconhecidamente tão corrupta como violenta e onde a ideia de cair nas suas mãos fora o suficiente para levar uma mulher a fugir em pânico.

Quando Brunetti vira Scarpa na sala da Signorina Elettra uma hora antes, o tenente estava lívido de indignação pelo que considerava um falso depoimento. A Signorina Elettra, percebendo a cólera do tenente, sugerira:

— Talvez outra pessoa consiga arrancar a verdade dela.

Brunetti ficou surpreso com a deferência com que a jovem falava com o tenente e com a sua aparente disposição para acreditar nele. A sua astúcia só se tornou evidente quando ela se virou para ele e disse:

— Comissário, agora que o tenente se deu conta do seu engano, talvez seja boa ideia outra pessoa investigar a história dessa mulher, descobrir o que a motiva. Voltando-se para o tenente e levantando as mãos num gesto de deferência, acrescentou: — Se o tenente achar que isso pode ajudar, é claro. Ele reparou que ela vestia uma simples blusa branca de algodão: talvez fosse o colarinho abotoado que lhe dava um ar tão inocente.

No rosto de Scarpa surgiu uma certa desconfiança da Signorina Elettra, mas antes que pudesse falar, Brunetti interveio.

— Signorina Elettra, não olhe para mim. Tenho o caso do aeroporto com que me preocupar, portanto não disponho de tempo para ser incomodado com isto. Virou-se para sair. A relutância de Brunetti levou Scarpa a falar:

— Ela vai continuar a me contar a mesma história. Tenho certeza. Era uma afirmação, não um pedido, e Brunetti manteve-se firme.

— Tenho o caso do aeroporto. Continuou em direção à porta. Aquilo foi suficiente para provocar Scarpa.

— Se a mulher está mentindo sobre um homicídio, o caso é mais importante do que os pequenos furtos no aeroporto, disse ele.

Brunetti deteve-se junto da porta. Virou-se para a Signorina Elettra, que disse com ar resignado:

— Acho que o tenente tem razão, commissário. Brunetti, homem paciente e pesaroso, talvez exagerando a nota de resignação, disse:

— Tudo bem, mas não quero me envolver no caso. Onde está ela?

Agora já tinha conversado com a Signora Gismondi, e tudo o que ela dissera levava-o a crer que tinha realmente feito o que a Signorina Elettra sugerira e conseguira arrancar-lhe a verdade.

Desceu até a sala da Signorina Elettra e encontrou-a falando ao telefone. Ela ergueu a mão e levantou dois dedos para dar entender que não demoraria a desligar, se inclinou, tomou algumas notas, agradeceu e desligou.

— Como fez aquilo? Perguntou ele, apontando com o queixo para o local onde o tenente Scarpa estivera.

— Conhece o inimigo, respondeu ela.

— O que quer dizer?

— Ele detesta-o, mas de mim só desconfia, de modo que tive apenas de lhe oferecer a oportunidade de obrigá-lo a fazer algo que não queria. Foi mais forte o desejo de incomodar a si do que a sua desconfiança de mim.

— Faz tudo parecer tão fácil, comentou ele, como algo saído de um manual.

— A cenoura e o pau, disse ela, sorrindo. — Ofereci-lhe a cenoura, que ele achou que podia transformar num pau para atacá-lo. Depois, subitamente séria, perguntou: — O que disse a mulher?

— Que levou a romena até a estação, comprou uma passagem para Bucareste e a deixou lá.

— Quanto tempo antes do trem partir? Perguntou ela de imediato.

Ele ficou satisfeito por ela também ser capaz de detectar o ponto mais fraco da história da Signora Gismondi.

— Cerca de uma hora antes do trem partir.

— Os jornais disseram que aconteceu perto do Palazzo del Cammello.

— Sim.

— Teria tempo mais do que suficiente, não é?

— E daí? Porque haveria de se incomodar em vir aqui? Perguntou ele. — Esta mulher, Assunta Gismondi, diz que deu à romena cerca de setecentos euros, começou ele e, ao ver o ar de descrença da Signorina Elettra, continuou: — E acredito nela. Adiantando-se à sua pergunta, disse: — A Signora Gismondi é impulsiva e, ao que parece, generosa.

De fato, ele estava convencido de que essas eram duas das qualidades que a tinham levado a Questura nessa manhã, juntamente com a honestidade.

A Signorina Elettra afastou a cadeira da mesa e cruzou as pernas, revelando uma saia vermelha curta e um par de sapatos com saltos tão altos que a teriam levantado acima da pior acqua alta.

— Se me permite uma pergunta aparentemente impertinente, comissário, começou ela e, ao vê-lo assentir, continuou: — É a sua cabeça ou o seu coração que fala? Ele pensou um momento.

— Ambos.

— Então, disse ela, levantando-se e ficando quase da altura dele, — Acho melhor eu ir na sala do Scarpa fazer uma cópia do dossiê.

— Não está ali? Perguntou ele, apontando para o computador.

— Não. O tenente prefere datilografar os seus relatórios e mantê-los na sua sala.

— E ele irá lhe dar? Ela sorriu.

— Claro que não. Sentindo-se um pouco ingênuo, ele perguntou:

— Então como é que vai conseguir isso?

Ela se inclinou e abriu uma gaveta de onde tirou uma pasta fina de couro. Quando a abriu, ele viu um conjunto de gazuas e de outras ferramentas assustadoramente semelhantes às que ele às vezes utilizava.

— Vou roubá-lo, comissário. E fazer uma cópia. Depois, deixo onde encontrei. E, como o tenente é um homem desconfiado, vou ter um cuidado especial quando substituir o meio palito que ele deixa entre as páginas sete e oito dos dossiês que acha que são importantes e que receia que outras pessoas possam ver. O sorriso dela alargou-se. — Se quiser esperar por mim na sua sala, comissário, eu levo a cópia assim que fizer. Ele precisava saber de outra coisa.

— Mas onde está ele? O que realmente queria perguntar era como sabia ela que Scarpa não estava na sala.

— Numa lancha, a caminho de Fondamenta Nuove.

Brunetti recordou as cenas dramáticas dos westerns que vira em criança, quando o mocinho e o vilão ficavam frente a frente se desafiando com o olhar. Aqui, no entanto, não havia nem mocinho nem vilão, a menos que, naturalmente, uma pessoa fosse pobre de espírito ao ponto de considerar que entrar sub-repticiamente numa sala da Questura para fazer uma cópia não autorizada de documentos oficiais era um ato corretíssimo. Todavia, o conceito que Brunetti tinha da lei era demasiado elevado para aceitar essas considerações, então foi abrir a porta para a jovem.

— Não demoro, disse ela com um sorriso.

Como ela fazia aquilo? Interrogou-se Brunetti ao voltar para a sua sala. Não sentia curiosidade pelos meios utilizados pela Signorina Elettra, o computador e as amizades no outro extremo da linha telefônica, sempre dispostas a fazer um favor e infringir uma regra, ou uma lei. Tampouco se importava com as técnicas que usava para saber o máximo possível sobre a vida e as fraquezas dos seus superiores. O que o intrigava era como tinha coragem para se opor a eles, tão sistemática e abertamente, e não fazer nenhuma tentativa de disfarçar as suas lealdades. Ela explicara uma vez porque desistira de uma carreira num banco e aceitara o que devia ser, aos olhos da família e dos amigos, um trabalho muito inferior na Polícia. Saíra do banco devido aos seus princípios, e sem dúvida também agia agora movida por eles, mas Brunetti nunca tivera coragem de perguntar quais eram esses princípios.

De regresso à mesa, fez uma lista das informações de que precisava: a extensão do patrimônio da Signora Battestini; em que medida a Avvocatessa Marieschi estava envolvida nos assuntos da Signora Battestini e quais eram esses assuntos; se o nome da morta alguma vez aparecera nos arquivos da Polícia; o mesmo em relação ao marido; o que sabiam os vizinhos sobre a sua hostilidade em relação a algumas pessoas e se alguém se lembrava de ter visto entrar ou sair do apartamento no dia do crime outra pessoa além da romena, o que era pouco provável ao fim de três semanas, e se estaria na disposição de informar a Polícia. Também precisava falar com o médico da mulher.

Quando acabou de fazer a lista, a Signorina Elettra estava de volta, tendo o cuidado de bater na porta antes de entrar.

— Fez uma para Vianello? Perguntou ele.

— Sim, senhor, respondeu ela, colocando um dossiê fino sobre a mesa e mostrando outro idêntico na mão.

— Sabe onde ele está? Indagou Brunetti, tendo o cuidado de não colocar qualquer ênfase no "ele" e assim evitar sugerir que imaginava que ela colocara chips atrás das orelhas de todos os funcionários da Questura para poder localizá-los através de um satélite ligado ao seu computador.

— Deve vir nesta tarde, senhor.

— Já olhou isto? Perguntou ele, apontando para o dossiê.

— Não. Ele acreditou.

— Porque não dá uma olhada rápida na cópia do Vianello antes de entregar? Não precisou explicar por que motivo queria que ela o fizesse.

— Claro, senhor. Quer que comece a verificar as coisas mais óbvias?

Anos antes, teria perguntado o que ela tinha em mente, mas o convívio lhe ensinara que as "coisas" eram provavelmente idênticas à captura do dossiê na sua mesa, então respondeu apenas:

— Sim. Por favor.

— Muito bem, ela disse e saiu.

Em primeiro lugar no dossiê vinha o relatório da autópsia. A experiência fez Brunetti olhar imediatamente para a assinatura; a mesma experiência lhe fez sentir alívio ao ver os rabiscos de Rizzardi.

A Signora Battestini tinha oitenta e três anos no momento da sua morte. Poderia muito bem, sugerira o médico, ter vivido mais dez anos. O seu coração e outros órgãos estavam em excelente estado. Tinha dado à luz pelo menos uma vez, mas fizera uma histerectomia. Tirando isso, não havia sinais de doença grave ou fraturas. Devido ao seu peso, mais de cem quilos, os joelhos mostravam sinais de grande desgaste, então caminhar devia ter sido muito difícil para ela, e subir escadas impossível. A flacidez do tecido muscular confirmava uma falta de atividade geral.

A morte fora causada por uma série de golpes, Rizzardi calculava que cinco, na parte de trás da cabeça. Dado que os golpes estavam todos agrupados, era impossível determinar qual deles a matara: o mais provável era ter sido o acúmulo dos traumatismos. O assassino, provavelmente dextro, ou era muito mais alto do que a vítima ou estivera de pé, e a mulher sentada. O enorme dano causado pelos golpes repetidos apontava para esta segunda possibilidade, já que a diferença de altura permitiria que a arma descrevesse um arco de quase um metro.

Quanto arma, Rizzardi se recusava a especular, e era impossível saber se fora informado a respeito da estátua encontrada perto do corpo. O seu relatório dizia apenas que a arma era um objeto de rebordo irregular com um peso de um a três quilos. Tanto podia ter sido de madeira como de metal. O patologista declarava apenas que o padrão de crânio despedaçado indicava um objeto com uma série de arestas ou sulcos horizontais.

Anexado a esta página estava o relatório do laboratório afirmando que o padrão na estátua de bronze coincidia com o dos ferimentos na cabeça da Signora Battestini e que o sangue nela encontrado era do mesmo tipo que o dela. Não tinham sido encontradas impressões digitais.

A morte resultara do choque e da perda de sangue; os danos do tecido cerebral tinham provocado uma disfunção neurológica tão grave que os órgãos afetados deviam ter deixado logo de funcionar, ainda que ela tivesse sido encontrada antes de se esvair em sangue.

O exame da cena do crime pela polícia parecia ter sido, na melhor das hipóteses, superficial. Só tinham procurado impressões digitais num aposento, e no dossiê havia apenas quatro fotografias, todas do cadáver da Signora Battestini. Não havia referência ao conteúdo do quarto nem à "busca apressada" que, segundo o relatório, parecia ter tido lugar. Brunetti não sabia se semelhante negligência se devia a rápida conclusão de que a romena era culpada: esperava que não tivesse se tornado procedimento habitual. Verificou as assinaturas na parte inferior do relatório que descreviam a cena, mas as iniciais estavam ilegíveis.

A seguir vinha o passaporte que Florinda Ghiorghiu tinha em seu poder. Se o documento era falso, então qual era o verdadeiro nome daquela mulher que fora sepultada em Villa Opicina? Ele nem isso sabia, já que nada no relatório indicava realmente onde tinha sido enterrada. A fotografia mostrava olhos e cabelos escuros, o rosto totalmente desprovido de um sorriso: olhava para a câmera como se receasse que esta fosse fazer-lhe mal. De certa forma, fizera: a fotografia levara ao passaporte, que levara ao emprego, que levara à cena no trem e a fuga fatídica pela linha férrea.

A folha seguinte era uma fotocópia das autorizações de residência e de trabalho de Florinda Ghiorghiu. Nelas era repetida a informação do passaporte. Ela fora autorizada a permanecer na Itália seis meses, embora a data de entrada carimbada no passaporte fosse de há mais de um ano. A Signora Gismondi dissera que a mulher tinha aparecido no final da primavera; isso deixaria oito ou nove meses em branco.

Aquilo era tudo. Não havia informações sobre a forma como Florinda Ghiorghiu fora trabalhar para a Signora Battestini. Não havia recibos reconhecendo que ela fora paga. Brunetti sabia que isso era normal e que a maioria daquelas mulheres trabalhava na economia paralela. Na verdade, quase todas as pessoas que tomavam conta da população em constante envelhecimento eram mulheres sem documentos da Europa do Leste ou das Filipinas, por isso a ausência de tais documentos não o surpreendeu.

Pegou no dossiê e desceu as escadas, consciente de que o seu comportamento iria ser pouco profissional. Quando entrou na sala, a Signorina Elettra olhou para cima calmamente, como se já o esperasse.

— Verifiquei os arquivos do Ufficio Stranieri do Vêneto, começou ela, depois acrescentou: — Não se preocupe. Fiz legalmente. Toda a informação está aqui no computador. Ele ignorou aquelas palavras.

— O que descobriu?

— Que Florinda Ghiorghiu tinha uma autorização de trabalho perfeitamente legítima, disse ela, mas depois olhou para o commissario e sorriu.

— E que mais? Perguntou ele em resposta ao seu sorriso.

— Que há três mulheres usando o mesmo passaporte.

— O quê?

— Três, repetiu ela. — Uma aqui em Veneza, outra em Milão, e uma terceira em Trieste.

— Mas isso é impossível.

—— Bem, admitiu ela, — Devia ser impossível, mas aparentemente não é. Antes que ele pudesse perguntar se era a mesma mulher a se candidatar a trabalhar em cidades diferentes, ela explicou: — Uma delas começou a trabalhar em Trieste enquanto que a registada aqui estava trabalhando para a Signora Battestini.

— E as outras?

— Não sei. Tenho dificuldades com Milão. Em vez de lhe pedir para desvendar o enigma daquela observação, ele perguntou:

— Não existe um registro central?

— Devia existir, concordou ela, — Mas não há um cruzamento dos dados entre as províncias. Os nossos arquivos só incluem o Vêneto.

— Então como descobriu? Perguntou ele com verdadeira curiosidade e sem qualquer inquietação quanto a legalidade dos seus métodos. Ela meditou largamente na resposta.

— Prefiro não dizer, commissario. Isto é, podia facilmente inventar uma resposta tão tecnicamente complexa que o senhor não entenderia, mas acho mais honesto dizer simplesmente que prefiro não responder.

— Tudo bem, concordou ele, sabendo que ela tinha razão. — Mas tem certeza?

Ela anuiu. Como se lhe tivesse lido o pensamento, ela disse:

— As impressões digitais.

Referia-se ao anúncio do governo de que, no prazo de cinco anos, teria o cadastro completo das impressões digitais de todas as pessoas que viviam no país, estrangeiros ou italianos. Brunetti rira quando ouvira falar naquilo pela primeira vez: as ferrovias eram incapazes de manter os trens nas vias, as escolas ruíam com o menor dos tremores de terra, três pessoas podiam usar o mesmo passaporte; e queriam recolher mais de cinquenta milhões de impressões digitais.

Um amigo seu inglês observara certa ocasião que viver ali era como viver num loony bin. Brunetti não fazia ideia do que era um loony bin (Hospício, NT), nem onde ficava, mas isso não o impedira de acreditar que o amigo estava certo. Com o tempo, pôde comprovar que era uma descrição precisa da Itália.

— Sabe onde estão essas outras mulheres? Tem os seus endereços?

— Tenho a da mulher que vive em Trieste, mas não a da de Milão.

— Já verificou as outras províncias?

— Não. Apenas o Norte. Não vale realmente a pena verificar o resto. Lá em baixo ninguém se preocupa com autorizações de residência ou de trabalho.

Como sempre que ouvia o eco dos seus próprios preconceitos na boca de outra pessoa e percebia como soavam, Brunetti sentiu-se embaraçado. "Lá em baixo", "no Sul". Quantas vezes ouvira essas expressões, quantas vezes ele as tinha utilizado? Esperava não ter falado assim à frente dos filhos, pelo menos com o tom de desprezo e desagrado que muitas vezes imprimia. Todavia, Brunetti não podia negar que já tinha chegado há muito à conclusão de que o Sul era um problema sem solução, que continuaria a ser um submundo criminal muito depois de ele ter deixado de ter nele qualquer interesse profissional. Estas reflexões foram interrompidas pelo seu sentido de fair play e pela lembrança de algumas coisas que ele testemunhara recentemente ali no tão superior Norte. Foi arrancado das suas reflexões pela voz da Signorina Elettra.

— ... pode ir dar uma olhada no apartamento.

— Como? Perguntou ele. — Estava pensando noutra coisa. O que disse?

— Que podia ser boa ideia o senhor ir dar uma olhada no apartamento da velha para tentar entender o que aconteceu.

— Sim, claro, concordou ele. Apontou para o dossiê que colocara na mesa dela e perguntou: — As chaves estavam no dossiê original?

— Não. Nada.

— Também não tenho qualquer referência a elas. Scarpa não disse se o apartamento ainda continuava selado, não é?

— Não.

Brunetti refletiu. Se não houvesse chaves, teria de perguntar a Scarpa por elas, o que não queria. Solicitá-las aos familiares da Signora Battestini iria alertar eventuais suspeitos de que a polícia estava tendo um interesse renovado no caso, o que os assustaria e faria redobrar os cuidados. Por fim, depois de muito refletir, se virou para a Signorina Elettra.

— Pode me emprestar as suas ferramentas?


* * *


Sete

ERA QUASE hora do almoço e Brunetti, que há muito conhecia a mania da sua mulher de saber quantas pessoas se sentariam a mesa na hora da refeição, ligou dizendo que não contasse com ele.

— Ótimo, disse ela.

— Porquê? Perguntou ele, desconfiado.

— Ora, Guido, não seja infantil. As crianças almoçam em casa de amigos. Se você também não vai estar aqui, posso ler enquanto almoço.

— O que vai comer?

— Não quer saber o que vou ler?

— Não; quero saber o que vai comer.

— Para saber o que perde?

— Sim.

— E ficar de mau humor'?

— Não.

Houve uma pausa e ele teve a sensação de saber pelo telefone os mecanismos da mente da mulher.

— Se prometer que só vou comer grissini com queijo e pêssegos de sobremesa, ficará mais contente?

— Vamos, Paola, não seja tonta, respondeu, — Mas à noite vou preparar filés de peixe-espada com camarão.

— E molho de tomate?

— Sim. E, se tiver tempo, faço um sorvete com o restante dos pêssegos.

— Só peço que coloque menos alho, disse ela, aproveitando aquela posição vantajosa para chegar a um acordo.

— No sorvete? Ele riu e desligou o telefone, dizendo de si para si que, quando chegasse em casa, precisava se lembrar de perguntar o que ela andava lendo.

Agora estava livre para ir ao apartamento da Signora Battestini. Parecia que o melhor momento seria logo após o almoço, quando a maioria das pessoas estaria em casa e o calor teria tirado da rua os turistas. Contra a sua vontade, como alternativa a uma refeição decente, decidiu comer uns tramezzini e, após cuidadosa consideração, escolheu o Boldrin. Além disso, ficava mais ou menos no meio caminho se fosse a pé e poderia chegar ao apartamento perto de uma hora da tarde.


* * *


Olga, a gata, dormia no chão, no lugar de costume em frente ao balcão do bar. Brunetti reparou, satisfeito, que voltara finalmente a crescer o pelo, embora ao seu manto cinzento faltasse o brilho sedoso de antes. A doença que há três anos afetara aquela gata da vizinhança já era uma lenda urbana: segundo uma versão, alguém jogara ácido no animal e, segundo outra, a sua estranha alopecia era devida a uma alergia súbita. Independentemente daquilo em que acreditassem, muitas pessoas, incluindo Brunetti, tinham contribuído para o pagamento das consultas ao veterinário durante o longo tratamento de Olga. Passando por cima do animal, Brunetti se aproximou do balcão.

A dois tramezzini de prosciutto e zucchini, por mais deliciosos que fossem, e a dois copos de vinho branco não se podia chamar almoço, nem com a melhor das intenções, mas a ideia dos grissini, com queijo e dos pêssegos de Paola ajudou-o a não considerar aquele repasto frugal uma penitência muito rigorosa.

Quando chegou na casa, viu que as postigos estavam fechadas. Havia uma única campainha ao lado da qual se lia "Battestini", então Brunetti não pôde usar a sua tática habitual de tocar uma campainha ao acaso e perguntar por outro inquilino. Se falasse veneziano, a artimanha geralmente funcionava. Mas ali iria ter de usar as gazuas. Resistindo ao impulso de olhar em volta para ver se alguém o observava, enfiou a mão no bolso do paletó e tirou a menor. A fechadura era simples e abriu-a facilmente, tentando não olhar para trás quando empurrou a porta.

Na entrada se notava um ar fresco muito agradável em comparação com o calor da rua. As paredes estavam recém-pintadas e pela janela acima da porta entrava bastante luz. Ao começar a subir para o segundo andar, Brunetti reparou que as paredes das escadas estavam limpas e que os degraus de mármore brilhavam. Não havia nenhum nome na porta do apartamento, nem necessidade disso, se no prédio não vivia mais ninguém além dela. Ele abaixou-se e examinou a fechadura: era uma Cisa, um modelo que já tinha aberto em várias ocasiões. Escolheu uma gazua média, introduziu-a na ranhura, fechou os olhos para concentrar a atenção nos dedos, e começou a procurar a primeira lingueta.

Levou menos de um minuto para abri-la. Empurrou a porta, tateou a parede em busca do interruptor e, ao ligá-lo, admirou-se que uma mulher como a Signora Battestini vivesse rodeada por um ambiente tão asséptico e funcional: um tapete claro tecido à máquina, duas poltronas brancas, um sofá azul-escuro no qual parecia não ter se sentado ninguém e uma mesa de vidro pequena com um prato de madeira ao centro. Então entendeu o que acontecera: algum policial complacente, ou algum familiar ansioso, tinha retirado o selo e o apartamento fora redecorado rapidamente. Ao olhar com mais atenção, descobriu que o que parecia bordo maciço era na realidade um folheado simples, o tipo de mobiliário que um proprietário colocava num apartamento destinado a ser alugado por semana.

Dirigiu-se à parte de trás do apartamento e em todas os aposentos observou o mesmo padrão, frio e impessoal: móveis e paredes brancos e uma peça escura, contrastante. Só no banheiro descobriu vestígios do que poderia ter sido o apartamento noutra época: haviam sido instaladas louças novas, mas os azulejos eram os mesmos: cor-de-rosa, alguns já desbotados e gastos.

Nos armários viu lençóis e toalhas por estrear ainda nos seus invólucros plásticos, e na cozinha utensílios novos. Olhou embaixo das camas e encima dos armários, mas não encontrou nenhum vestígio da proprietária anterior. Não abrira os postigos para não trair a sua presença aos vizinhos, e o calor acumulado no apartamento sufocava-o.

Foi até à escada e continuou a subir. Sem parar diante da porta que encontrou no patamar seguinte, continuou a sua ascensão. Em cima havia uma porta velha, com a madeira seca e lascada. Duas chapas estavam aparafusadas à porta e à ombreira, e um cadeado unia as argolas que cada uma tinha na ponta. Brunetti desceu até ao que fora o apartamento da Signora Battestini para procurar uma chave de fenda, mas, por mais que procurasse, não conseguiu encontrar qualquer ferramenta. Por fim, foi até à cozinha, tirou de uma gaveta uma das novas facas de aço inoxidável e voltou ao sótão.

Embora a madeira estivesse seca, ele teve dificuldade em rodar os parafusos para soltar a chapa. Abriu a porta e olhou para o sótão. Este tinha o teto baixo e, ao fundo, felizmente, duas janelas que, embora não muito limpas, deixavam passar luz suficiente para dar uma ideia das dimensões do espaço e do seu conteúdo. Encostada a uma parede havia uma cama de casal com a cabeceira esculpida, parecida com a que ele se lembrava de ver em casa da avó e, ao lado, um toucador com tampo de mármore e o espelho manchado. Junto à parede havia também duas poltronas, frente a frente, que sustinham entre elas um cesto de roupa de plástico rosa.

Brunetti viu caixas de papelão empilhadas sob as janelas. Atravessou o sótão rumo a elas fazendo barulho com os sapatos na sujeira do chão. Abriu a caixa que estava por cima do primeiro monte que, felizmente, não fora fechada com fita adesiva, e viu que continha apenas sapatos velhos. Colocou-a no chão e abriu a segunda. Aparentemente, continha apenas os detritos das gavetas da cozinha: uma faca de trinchar com cabo de osso manchado, um saca-rolhas, alguns talheres de prata, duas colheres sujas e peças de metal cuja utilidade não foi capaz de adivinhar. A terceira caixa, mais pesada do que as outras, estava cheia de pequenos pacotes feitos com jornal. Abriu um e viu que o jornal tinha data de duas semanas antes. Envolta numa página da seção esportiva, havia uma imagem da Virgem, bastante mal pintada por sinal, que parecia aborrecida por se ver envolvida, ainda que provisoriamente, pelo mais recente escândalo de doping no ciclismo. Ao lado, embrulhado na primeira página do caderno de Economia do Gazzettino, encontrou outra amostra daquilo a que Paola chamava kitsch de igreja: uma esfera de acrílico dentro da qual a neve caía sobre um presépio. Voltou a guardar a esfera e deixou a caixa a um canto. A seguinte continha tapetes e capas de sofás, todos com ligeiras manchas, panos de cozinha e guardanapos em que preferiu não tocar.

Na caixa a seguir havia cerca de uma dúzia de camisas de algodão, todas brancas, meticulosamente engomadas e dobradas. Por baixo, viu seis ou sete gravatas listradas, muito sóbrias, em sacos de celofane. A caixa seguinte era mais pesada e lá dentro encontrou papéis de todos os tipos: revistas velhas, jornais, envelopes que ainda pareciam conter cartas, postais, recibos e outros papéis que, àquela luz escassa, não conseguiu identificar. Não poderia levar tudo, teria de separar o que parecia mais interessante.

O calor envolvia-o, se colava à pele e entrava pelo nariz juntamente com o pó. Deixou cair os papéis na caixa e começou a tirar o paletó, que tinha se colado ao corpo através da camisa, tão encharcada uma peça de roupa como a outra. Ainda não tirara o braço da manga quando ouviu uma porta se fechar em baixo; imobilizou-se, com o paletó no meio das costas.

Ouviu vozes, uma aguda, de mulher ou de criança, e a outra grave e masculina. As vozes abafavam o eventual som dos pés nos degraus. Brunetti tentou se lembrar se tinha desligado a luz e fechado a porta do apartamento. Tinha um trinco de mola e fechava-se sem chave. Sabia que a primeira vez que subira ao sótão a deixara aberta. Só podia esperar que lhe tivesse ocorrido fechá-la na segunda vez.

As vozes aproximavam-se, respondendo uma à outra com frequência suficiente para o fazer descartar que a primeira pudesse pertencer a uma criança. Ouviu uma porta abrir e fechar, e as vozes silenciaram. Fechou os olhos para ouvir melhor. Não podia adivinhar em que apartamento tinham entrado, se no que ficava imediatamente por baixo dele, se no da Signora Battestini, um andar mais abaixo. Antes, não reparara se os seus pés faziam ranger o chão de madeira e decidiu verificar movendo-se ligeiramente para um lado. O ranger das tábuas imobilizou-o.

Vestiu o paletó e se inclinou para frente, para voltar a colocar os papéis na caixa. Olhou o relógio e viu que eram cinco para as duas. As duas e cinco, pegou nalguns papéis e virou-os na direção da luz, tentando ler. Em seguida, percebeu que seria impossível se concentrar nos papéis com duas pessoas no apartamento de baixo, e colocou-os novamente na caixa. Pouco depois, sentiu as costas rígidas e flexionou a cintura para um lado e para o outro várias vezes, para descontrair os músculos.

Ao fim de quinze minutos, voltou a ouvir as vozes, depois da porta ter sido aberta sem ruído. Que explicação poderia dar se eles decidissem subir e o encontrassem no sótão? Tecnicamente, aquilo ainda era a cena de um crime e podia invocar o seu direito de estar ali. Mas a fechadura forçada e a porta do sótão aberta revelavam métodos que não se encaixavam no procedimento policial regular e, certamente, causariam problemas.

As vozes permaneceram no mesmo nível algum tempo e a seguir, gradualmente, começaram a se afastar. Depois, ouviu a porta da rua fechar e, enquanto o silêncio se estendia através do edifício, Brunetti deu um passo atrás e, ao levantar os braços para o teto para soltar os músculos, uma teia de aranha se enrolou na mão direita. Instintivamente, abaixou a mão e esfregou-a na parte da frente do paletó. Deu meia volta, foi até a porta e voltou para onde estavam as caixas, agitando as mãos na sua frente, para descarregar a tensão.

Então recordou-se de algo que tinha visto, voltou-se para a caixa dos panos de cozinha, abriu-a e pegou num dos sacos de plástico, com alças redondas, que se usavam muito quando era criança e que tinham desaparecido há bastante tempo. Enfiou as alças do saco no antebraço esquerdo e limpou as mãos com um pano que tirou de uma das caixas. Foi até caixa dos papéis e começou a selecionar o seu conteúdo, pondo de lado as revistas e os jornais e escolhendo o que pareciam ser cartas ou documentos. Abriu o saco e enfiou nele os papéis, apressadamente, desejoso de se ver livre do espaço confinado, daquele calor e do cheiro penetrante a pó e a abandono.

Ao sair do sótão, voltou a aparafusar as chapas com a faca, que depois guardou no bolso do paletó. No andar de baixo, experimentou a porta do apartamento e viu que estava fechada, mas não parou para usar a gazua para ver se tinha duas voltas de chave. Quando chegou embaixo, empurrou a porta da rua e saiu para o sol da tarde, reconfortado pela sensação de que os seus raios o desinfetariam do cheiro e da sujeira daquele sótão.


* * *


Quando, pouco depois das três, Brunetti chegou a Questura, viu o tenente Scarpa, que naquele momento desembarcava de uma das lanchas da polícia. Já que não podia evitar entrar no edifício ao mesmo tempo, Brunetti preparou uma saudação inócua, tentando esconder o saco com o corpo.

— Esteve brigando, commissario? Perguntou Scarpa com aparente solicitude, observando as manchas no paletó e na camisa de Brunetti.

— Oh, não, nada disso. Tropecei ao passar por uma obra e rocei numa parede, respondeu Brunetti com não menos falsa sinceridade. — Mas obrigado pelo seu interesse.

Mantendo o saco nas costas, Brunetti fez sinal com a cabeça ao agente que lhes abriu a porta, o qual correspondeu com uma saudação igual, e fez continência na passagem do tenente. Não achando necessário dizer mais nada a Scarpa, Brunetti atravessou o vestíbulo e começou a subir as escadas. Então ouviu o tenente dizer atrás de si:

— Há bastante tempo que não via um saco assim, commissario. É como os que as nossas mães usavam. E, depois de uma pausa, acrescentou: — Quando ainda podiam ir às compras.

A hesitação de Brunetti foi leve, quase imperceptível, como tinham sido os primeiros sinais da demência que atacara a sua mãe havia dez anos e ainda a mantinha prisioneira. Não fazia ideia de como Scarpa soubera, nem sequer podia ter a certeza de que sabia. Mas, se não sabia, a que se deviam as frequentes alusões do tenente as mães? E por que aquela sugestão insistente, falsamente humorística, de que qualquer falha de memória ou de eficácia de qualquer membro da Questura precisava ser um sinal de senilidade?

Fazendo ouvidos de mercador ao comentário, Brunetti continuou a subir as escadas a caminho da sua sala. Fechou a porta, colocou o saco em cima da mesa, tirou o paletó e observou-o segurando-o pelos ombros. Linho cinzento, um dos seus preferidos, e agora tinha duas grandes riscas horizontais pretas na frente. Brunetti duvidava que houvesse um sistema de lavagem capaz de eliminá-las. Pendurou a peça de roupa na parte de trás de uma cadeira e afrouxou o nó da gravata. Depois reparou que tinha as mãos sujas. Foi ao banheiro do andar de baixo, lavou-as, molhou o rosto e passou as mãos molhadas pela nuca.

Sentado à mesa, se aproximou do saco, abriu-o e pegou nos papéis. Desistindo de os classificar por categorias, começou a ler. Contas de gás, eletricidade, água e recolha de lixo, todas domiciliadas numa conta do Uni Credit, presas com clipes por serviço e ordem cronológica. Um maço de cartas dos vizinhos, incluindo as da Signora Gismondi, que se queixavam do barulho da televisão. Datavam de sete anos e todas tinham sido enviadas registradas. A fotocópia da certidão de casamento, uma carta do Ministero dell'Interno ao marido acusando a recepção do seu relatório de 23 de Junho de 1982.

Havia mais cartas; umas dirigidas à Signora Battestini; outras ao marido; e outras a ambos. Brunetti tirava-as do envelope e lia rapidamente o primeiro parágrafo de cada uma. Depois, acelerando o processo, leu-as na diagonal, procurando algo que pudesse ser importante. Havia várias de cortesias forçadas, assinadas por uma sobrinha, Graziella, e escritas com uma letra muito tosca, agradecendo o presente de Natal, que nunca era especificado. Nem a caligrafia nem o rudimentar estilo epistolar de Graziella tinham melhorado ao longo dos anos.

Um dos envelopes com o nome e endereço de Graziella no remetente não continha uma carta, mas sim uma folha escrita noutra letra, de traço enérgico. Na margem esquerda havia uma coluna composta por quatro séries de iniciais e, à direita, números, alguns precedidos ou seguidos por uma ou várias letras.

Uma voz disse o seu nome na porta, e, ao levantar a cabeça, o commissario viu Vianello. Brunetti surpreendeu o inspetor ao dizer como saudação:

— Gosta de palavras-cruzadas, não é?

O recém-chegado assentiu com a cabeça, atravessou a sala e se sentou numa cadeira à frente da mesa de Brunetti.

— O que acha disto? Perguntou o commissario, entregando-lhe a folha.

Vianello pegou no papel, pousou-o na mesa do seu superior e, apoiando o queixo nas mãos, observou-o fixamente. Brunetti, deixando o inspetor entregue às suas especulações continuou analisando os papéis. Após alguns minutos, Vianello perguntou, sem levantar o olhar do papel:

— Pode me dar alguma pista?

— Estava no sótão da velha que foi assassinada no mês passado.

— Tem uma lista telefônica, commissario? As Páginas Amarelas? Perguntou Vianello por fim.

Brunetti, intrigado, tirou da gaveta as Páginas Amarelas de Veneza. O inspetor abriu-a no início e passou várias páginas. Depois pegou no pedaço de papel e o pôs em cima da lista. Colocou o indicador direito na primeira entrada da lista, e foi deslizando o da mão esquerda por uma página da lista que Brunetti não conseguia ver. Quando, aparentemente, encontrou o que procurava, Vianello repetiu a operação com a segunda anotação. Satisfeito com o que encontrou, o que quer que fosse, resmungou e continuou a busca. O processo continuou até chegar na quarta entrada da lista, quando olhou para Brunetti e sorriu.

— Então? Perguntou Brunetti.

O inspetor virou a lista e aproximou-a do seu superior. Na página da direita, Brunetti viu, em letras maiúsculas, a palavra BAR, seguida de algumas dezenas de nomes, os primeiros da lista das centenas de bares na cidade, por ordem alfabética. O indicador largo de Vianello passou diante do seu campo visual para assinalar a página da esquerda. O commissario percebeu imediatamente: BANCHE. Naturalmente, os bancos. Assim, a lista eram as iniciais dos seus nomes, seguidas do número da conta.

— Também conheço uma unidade monetária cambojana de três letras que começa com K, commissario, disse Vianello.


* * *


Oito

FICARAM alguns minutos conversando e Brunetti desceu para tirar fotocópias da folha. Quando voltou, ele e Vianello escreveram os nomes completos dos bancos ao lado das iniciais.

— Será que você consegue entrar? Perguntou Brunetti quando terminaram, deixando que Vianello deduzisse que se referia ao computador, não a uma picareta e a um pé-de-cabra. Vianello sacudiu a cabeça com tristeza.

— Ainda não sou suficientemente bom, disse. — Ela me deixou experimentar uma vez, com um banco em Roma, mas deixei um rastro tão grande que, no dia seguinte, um amigo enviou um e-mail perguntando que raios andara fazendo.

— Sabia que tinha sido ela? Perguntou Brunetti.

— Disse que reconhecera a sua técnica pela forma de entrar no sistema.

— Que fora...? Perguntou Brunetti.

— Oh, o senhor não entenderia, commissario.

Havia na voz do inspetor um eco distante daquele tom frio e objetivo que a Signorina Elettra usava e que, provavelmente, o inspetor tinha aprendido com ela.

— Para entrar, ela usou um código e, em seguida, me pediu que tentasse encontrar uma informação específica.

— Que informação? Quis saber Brunetti, acrescentando: — Se me permite a pergunta.

— Queria ver se era capaz de descobrir quanto dinheiro tinha sido transferido para uma determinada conta, de uma conta numerada em Kiev.

— De quem era a conta?

Vianello apertou os lábios, refletindo, e depois deu o nome do ministro-adjunto do Departamento de Comércio, que tinha apoiado a concessão de empréstimos do governo à Ucrânia.

— E descobriu isso?

— Começaram a soar alarmes, disse Vianello, e explicou: — Figurativamente falando, claro. De modo que saí às pressas, mas não sem deixar sinais evidentes de que tinha entrado.

— Porque ela queria averiguar tal coisa?

— Creio que já descobrira, commissario. Aliás, tenho certeza. Por isso sabia como me fazer entrar.

— Ela explicou ao amigo?

— Oh, não, senhor, teria sido pior se descobrisse que ela estava ajudando a polícia.

— Será que nenhuma das pessoas a quem pede ajuda sabe onde trabalha? Admirou-se Brunetti.

— Não. Se soubessem, já tinha acabado.

— E onde acham que ela trabalha então?

Ele tinha a vaga ideia de que a origem de todas as mensagens que ela enviava podia ser localizada na Questura. Ali cada um tinha o seu próprio endereço de correio eletrônico; ele mesmo tinha usado o seu mais de uma vez, e sabia que era perfeitamente claro que pertencia à Questura de Veneza.

— Acho que ela desvia coisas, commissario, disse Vianello com cautela.

Brunetti percebeu que devia ser assim, embora não soubesse exatamente como o fazia.

— Desvia? Para onde?

— Provavelmente para o seu antigo endereço eletrônico.

— O Banca d'Italia? Proferiu Brunetti pasmado. Ao ver o sinal de assentimento de Vianello, perguntou: — Está me dizendo que ela envia e recebe informações através do endereço eletrônico de um lugar onde não trabalha há anos? Ao ver a segunda confirmação do inspetor, Brunetti levantou a voz: — É o Banco Nacional, pelo amor de Deus! Como permitem que uma pessoa que há anos não trabalha ali continue a usar o seu endereço eletrônico?

— Acho que não permitiriam, commissario, concordou Vianello e explicou: — Se soubessem, é claro.

De repente, Brunetti percebeu que continuar a conversa poderia levá-lo à loucura ou, o que seria mais perigoso, a descobrir um crime que talvez um dia tivesse de negar sob juramento. Todavia, incapaz de dominar a curiosidade, perguntou:

— Descobriu?

— O quê?

— O valor do depósito.

— Não, senhor.

— E ela?

— Acho que sim.

— Porque acha que sim? Ela confirmou?

— Não, senhor. Disse que era informação confidencial e que, se a queria, teria de conseguir sozinho.

Ao ouvir aquilo, Brunetti recordou a expressão "honra entre ladrões", mas ignorou-a, porque a admiração e o respeito que aquela habilidade merecia fizeram-no pô-la de parte e voltar ao assunto em mãos.

— Então teremos de pedir a ela?

— Sim, senhor.

Levantaram-se e desceram à procura da Signorina Elettra. Vianello levava na mão o papel com as iniciais decifradas.

Ela estava em sua sala mas, infelizmente, na companhia do seu superior imediato, o Vice-Questore Giuseppe Patta, que naquele dia vestia um terno de linho creme e camisa preta, também de linho. A gravata, de seda cor de ardósia, tinha fios de seda da mesma cor do terno, que corriam em diagonal. Brunetti observou, coisa que antes lhe escapara, que ela vestia um terno de linho preto e blusa de seda creme, e ocorreu-lhe que, se tivessem deliberadamente escolhido a roupa, sabendo o que o outro usaria no dia seguinte, certamente Patta teria se deixado guiar por um desejo de emulação e ela pelo de paródia. Ao ver Vianello com um papel na mão, Patta perguntou:

— O que é isso, inspetor? Tem a ver com a ideia absurda do commissario de que aquela mulher não foi assassinada pela romena?

— Não, senhor, respondeu um humilde Vianello. — É o código que uso para escolher as equipes quando jogo Totocalcio. Levantou o papel que segurava atrás das costas e fez menção de o mostrar a Patta, explicando: — Nesta primeira coluna está o nome da equipe, escrito em código, e estes números são os dos jogadores que acho que vão...

— Chega, Vianello, disse Patta sem esconder a sua irritação. E a Brunetti: — Se não está muito ocupado em escolher as suas equipes vencedoras, commissario, gostaria de falar consigo. Virou-se para a porta da sala.

— Sim, senhor, disse Brunetti, que seguiu o seu superior, deixando Vianello com a Signorina Elettra.

Patta instalou-se atrás da sua mesa, mas não convidou Brunetti a sentar, o que era um bom sinal, já que indicava a pressa do vice-questore. Eram quase cinco horas, tinha o tempo justo para pegar a lancha da polícia até Cipriani, nadar um pouco e, dali, ir para casa jantar.

— Não vou retê-lo muito tempo, commissario. Só quero lembrar que este caso está encerrado, apesar das ideias ridículas que possa ter acerca dele, começou, sem especificar que ideias de Brunetti pareciam ridículas, reservando assim a opção de incluí-las todas na mesma categoria. — Os fatos falam por si. Aquela pobre mulher foi morta pela romena, que queria sair do país e deixou clara a sua culpa ao tentar escapar a uma verificação de rotina da polícia na fronteira. Juntou as pontas dos dedos apoiando os indicadores nos lábios por um segundo, depois os afastou e disse: — Não quero que uma imprensa desconfiada e irresponsável possa pôr em causa o trabalho deste departamento. Levantou o queixo, concentrando toda a sua atenção em Brunetti. — Expressei-me de forma suficientemente clara, commissario?

— Sim, senhor.

— Bem, disse Patta, entendendo a resposta de Brunetti como um sinal de obediência. — É tudo. Agora tenho de ir para uma reunião.

Brunetti murmurou umas palavras de cortesia e saiu da sala. Lá fora, a Signorina Elettra estava sentada à sua mesa, lendo uma revista. Vianello tinha desaparecido. Quando ela olhou para cima, Brunetti encostou o dedo ao nariz e, em seguida, apontou para cima, em direção à sua sala. Ouviu a porta de Patta abrir atrás de si. A Signorina Elettra voltou a olhar para a revista, ignorando Brunetti, e virou uma página com indolência. Ele subiu para a sua sala e ficou à espera dela.

Quando entrou, Vianello estava olhando pela janela na ponta dos pés para ver o cais da Questura. Brunetti ouviu ligarem o motor de uma lancha e depois ouviu-a se afastar na direção de Bacino e, certamente, Cipriani. Vianello, sem dizer nada, afastou-se da janela e foi para uma cadeira.

Pouco depois, a Signorina Elletra entrou, fechou a porta e se sentou na cadeira ao lado da de Vianello. Brunetti ficou de costas para a mesa, encostado a ela. O commissario não viu necessidade de perguntar a jovem se Vianello falara do que seria necessário fazer.

— Pode verificá-los? Perguntou.

— Só este será difícil, disse ela, apontando para um nome no meio da lista. — O Deutsche Bank. Juntou-se a dois outros bancos, mas a filial daqui é nova, e nunca tive oportunidade de lhes pedir nada, então talvez leve algum tempo; mas aos outros posso pedir os dados nesta tarde e ter a resposta amanhã.

Pela sua forma de se expressar, quem não estivesse familiarizado com as suas táticas poderia supor que a tarefa se efetuaria em conformidade com as mais estritas normas bancárias: toda a informação seria fornecida a pedido de ordens judiciais, concedidas a pedido da Polícia, apresentada pelo canal correto. Uma vez que, normalmente, esse processo levava meses e estavam aprovando algumas leis que tornavam isso cada vez mais difícil, senão mesmo impossível, a verdade era que a informação seria extraída dos arquivos dos bancos com a mesma facilidade com que a um incauto turista belga lhe roubavam a carteira do bolso de trás no vaporetto número um.

— O que acha? Perguntou Brunetti a Vianello. O inspetor fez um aceno de cabeça respeitoso à Signorina Elettra, indicando que ela o colocara a par da conversa que Brunetti tivera com a Signora Gismondi e disse:

— Se essa mulher está dizendo a verdade, é pouco provável que a Signora Ghiorghiu tenha matado a velha. Isso significa que outra pessoa a matou, e as contas bancárias parecem um bom lugar para começar a procurar um motivo.

— Acha que existe alguma possibilidade de a romena ser a assassina, commissario? Interrompeu a Signorina Elettra. Vianello também olhou Brunetti, tão curioso como ela.

— Se já viram as fotografias do corpo da Signora Battestini, repararam no estado em que ficou a sua cabeça por causa dos golpes? Perguntou Brunetti que, tomando o silêncio deles por assentimento, prosseguiu: — Não me parece lógico que Ghiorghiu matasse a sangue-frio. Tinha dinheiro, tinha uma passagem de volta para casa e já estava na estação. E então, dissera a Signora Gismondi, já parecia mais calma. Não vejo por que haveria de voltar atrás e matar a velha e, ainda menos, daquela forma. Ali houve raiva, não calculismo.

— Ou calculismo disfarçado de raiva, disse Vianello. Isso implicava uma malícia que Brunetti preferia não considerar no momento, mas o commissario acenou com a cabeça, contra a vontade. Ao invés de especular sobre as possibilidades, queria ater-se à realidade, e disse à Signorina Elettra:

— Amanhã vou falar com a advogada e com a família. E a Vianello: — Gostaria que perguntasse à vizinhança se alguém se lembra de ter visto algo especial nesse dia.

— É oficial? Inquiriu Vianello. Brunetti suspirou.

— Seria preferível procurar fazer as perguntas de forma casual, se tal coisa for possível.

— Vou perguntar à Nadia se conhece alguém que more ali, disse Vianello. — Ou talvez vamos beber um copo ou almoçar naquele lugar que abriu ao lado do Campo dei Mori.

Brunetti aprovou o plano com um sorriso e se virou para a Signorina Elettra.

— Outra coisa que gostaria de verificar é se essa mulher teve alguma coisa a ver conosco.

— Quem? A romena?

— Não. A Signora Battestini.

— Uma mente criminosa octogenária, riu ela. — Como gostaria de encontrar alguma!

Brunetti mencionou um ex-primeiro-ministro e sugeriu que, se o assunto lhe interessava tanto, podia procurar informações sobre a personagem no arquivo bancário. Vianello soltou uma gargalhada e ela teve a gentileza de sorrir.

— E, no caminho, veja se há alguma coisa do marido e do filho, disse Brunetti, voltando à questão que importava.

— Quer que investigue a advogada?

— Sim.

— Adoro me meter nos assuntos dos advogados, disse impulsivamente a Signorina Elettra. — Acham-se muito espertos disfarçando as coisas, mas é fácil fazê-las vir à luz. Diria mesmo que quase muito fácil.

— Preferia lhes dar uma oportunidade? Perguntou Vianello. Ela estremeceu.

— Dar uma oportunidade a um advogado? Acha que sou maluca?


* * *


Nove

COMO precisava ler depoimentos relacionados com o caso do aeroporto e como não gostava de falar com advogados, Brunetti limitou-se a ligar para o escritório da Avvocatessa Marieschi a pedir uma reunião para a manhã seguinte. Quando a secretária lhe perguntou qual era o assunto, Brunetti disse apenas que era uma questão relacionada com uma herança e deu o seu nome, mas sem dizer que trabalhava na Polícia.

Ficou uma hora lendo declarações contraditórias que se invalidavam mutuamente. Por sorte, cada declaração estava acompanhada de uma pequena fotografia, de modo que podia comparar a pessoa que prestava a declaração ou era interrogada com as que apareciam nas fitas gravadas por câmeras escondidas na sala de bagagens do aeroporto. Que tivesse podido comprovar, apenas doze das setenta e seis pessoas presas diziam a verdade, já que só o seu testemunho era confirmado pelas fitas que ele vira na semana anterior durante horas, nas quais todos os acusados apareciam roubando.

Brunetti não queria dedicar muito tempo à investigação, uma vez que a defesa alegava que, como as câmeras tinham sido instaladas sem o conhecimento das pessoas que eram filmadas, isso supunha uma invasão da "privacidade" dos acusados, utilizando a palavra roubada ao inglês para preencher uma lacuna num idioma que não tinha um termo específico para tal conceito. Se o argumento fosse aceito, e ele imaginava que seria, o Estado não teria qualquer caso, já que, desaparecida a prova principal, todos os que tinham confessado a sua culpa se retratariam imediatamente. Além disso, todos eles continuavam a trabalhar, já que fora alegado que, uma vez que a constituição garantia o direito ao trabalho, era anticonstitucional despedi-los.

The loony bin, the loony bin, sussurrou Brunetti, e decidiu que era hora de ir para casa.


* * *


Ao chegar, reparou que Paola cumprira a sua palavra, porque os aromas que vieram ao seu encontro quando entrou no apartamento formavam uma deliciosa mistura de marisco, alho e algo que não conseguia identificar. Talvez espinafre? Deixou ao lado da porta o saco de plástico onde trazia o paletó sujo e prosseguiu pelo corredor em direção a cozinha. Ela estava sentada à mesa com um copo de vinho branco na frente, lendo.

— Está bem, disse ele, — Vou perguntar o que está lendo. Ela olhou-o por cima dos óculos. — Algo que deveria interessar muito aos dois, Guido. O livro de Religião e Moral da Chiara.

Brunetti percebeu imediatamente que dali não ia sair nada de bom. Ainda assim, perguntou:

— Porquê aos dois?

— Pelas coisas que diz sobre o mundo em que vivemos, respondeu ela, pousando o livro na mesa e bebendo um gole de vinho.

— Como por exemplo? Perguntou ele, tirando a garrafa da geladeira. Era o bom ribolla gialla que tinham comprado de um amigo em Corno di Rosazzo.

— Há um capítulo sobre os sete pecados capitais, disse ela, apontando para a página que estava lendo quando ele entrou.

Brunetti pensara várias vezes que era muito conveniente haver um pecado para cada dia da semana, mas absteve-se de comentar.

— E depois? Perguntou.

— Bem, comecei a pensar que a nossa sociedade deixou de os considerar pecados, se não totalmente, conseguindo pelo menos remover a maior parte do cheiro de pecado que tinham antes.

Ele se sentou numa cadeira à frente dela, não muito interessado naquela última observação, mas disposto a ouvir. Ergueu o copo na direção dela e bebeu um gole. O vinho estava tão bom como ele lembrava. Graças a Deus, então, pelo bom vinho e pelos bons amigos, e graças a Deus, até, por uma mulher capaz de encontrar motivo de polêmica num livro do secundário sobre o ensino da doutrina religiosa.

— Pense na luxúria, continuou ela.

— Penso muitas vezes, disse ele com um sorriso de orelha a orelha. Ela ignorou-o.

— Quando éramos novos, a luxúria era, se não pecado, pelo menos meio pecado, algo que não se mencionava nem se expunha em público. Agora não se pode ver um filme, ou a televisão ou uma revista, sem nos depararmos com ele.

— E acha que é ruim? Perguntou ele.

— Não necessariamente. Apenas diferente. Talvez a gula seja um melhor exemplo.

Ah, isto é um ataque indireto, pensou Brunetti, encolhendo um pouco a barriga.

— Somos continuamente encorajados a incorrer nela. Basta abrir uma revista ou um jornal.

— À gula? Perguntou ele, intrigado.

— Não necessariamente gula por comida, explicou ela, — Mas por comprar e consumir mais do que precisamos. Afinal de contas, o que é ter mais de um televisor, de um carro ou de uma casa se não uma forma de gula?

— Nunca tinha pensado nisso, observou ele, indo novamente até a geladeira em busca de mais vinho.

— Nem eu, até que comecei a ler este livro. Aqui define-se a gula como comer demais, ponto final. Mas comecei a pensar no que poderia significar num contexto mais amplo.

Aquela era, para Brunetti, a essência de Paola, a mulher que continuava a amar infinitamente: o fato de pensar sempre nas coisas, em todas as coisas, as vezes lhe parecia, num contexto mais amplo.

— Acha que poderia começar a pensar no jantar num contexto mais amplo? Perguntou ele.

Paola olhou para o marido, depois para o relógio e viu que já passava das oito.

— Ah, fez ela, como que surpresa por tais tarefas mundanas a reclamarem. — Claro. Já ouvi as crianças chegarem. Então pareceu reparar no marido como se não o tivesse visto até aquele momento e perguntou: — O que fez com a camisa? Limpou as mãos nela?

— Sim, disse ele, e vendo o olhar de surpresa da mulher, acrescentou: — Conto depois do jantar.

Tanto Chiara como Raffi estavam em casa, circunstância pouco frequente durante o verão, em que muitas vezes um deles ou ambos jantavam e dormiam em casa de amigos. Raffi tinha atingido uma idade em que o seu amor adolescente por Sara Paganuzzi adquirira um tom mais adulto, tanto que uma tarde, Brunetti o chamara à parte para falar de sexo, mas o filho interrompeu-o dizendo que tudo aquilo já tinha sido explicado na escola. Foi Paola quem, na noite seguinte, pôs os pontos nos "is" ao declarar que, independentemente do que faziam ou pensavam os amigos de Raffi, ela falara com os pais de Sara e todos concordavam que, sob nenhuma circunstância, nem ele passaria a noite na casa de Sara, nem ela na dele.

— Mas isso é medieval! Exclamara Raffi.

— Também é definitivo, dissera Paola, pondo fim à discussão.

Fosse qual fosse a combinação entre Raffi e Sara, ela pareceu satisfazer ambos, porque, sempre que jantava em casa dos Brunetti, ela mostrava-se cortês e afável com todos, e nem Raffi parecia manter ressentimentos em relação aos pais por uma política que a maioria dos seus amigos qualificaria como "medieval".

Raffi e Chiara tinham passado o dia em Alberoni, embora em grupos diferentes e, depois de nadar e jogar na praia, comiam agora como estivadores. A julgar pelo tamanho da travessa que Paola tinha enchido com peixe e camarão, parecia que tinha comprado um peixe-espada inteiro.

— Vai repetir outra vez? Perguntou Brunetti a Raffi, ao vê-lo olhar para a travessa quase vazia.

— Ele está crescendo, papa, disse Chiara, dando a entender que, surpreendentemente, se encontrava satisfeita.

Brunetti olhou para Paola, que naquele momento se servia de mais espinafre, perdendo assim a oportunidade de apreciar a grandeza de alma do marido ao renunciar a perguntar se o filho era culpado de gula. Voltando a atenção para a mesa, Paola disse:

— Acaba isto, Raffi. Ninguém gosta de peixe frio.

— Peixe frio em inglês tem um duplo sentido, não tem, mamma? Perguntou Chiara, que herdara da mãe, além do nariz e da figura esguia, a sua paixão por idiomas, coisa que Brunetti já sabia, embora aquela fosse a primeira vez que a filha fazia um trocadilho com o seu segundo idioma.

Quando acabaram o sorvete, Chiara tinha os olhos se fechando e Paola mandou os filhos para a cama ao mesmo tempo que começou a levantar a mesa. Brunetti levou a taça de sorvete para a cozinha e, de pé junto da bancada, lambeu a colher e depois passou-a pelo fundo da tigela, apanhando os pedaços de pêssego. Quando esgotou as possibilidades, pousou a taça ao lado do lava-louça e regressou até a mesa, para buscar os copos.

— Vamos continuar com a fruta e beber um gole de Williams na varanda? Perguntou Paola depois de colocar os pratos de molho.

— Se não estivesse ao meu lado, tratando de mim, provavelmente morreria de fome, declarou Brunetti.

— Guido, querido, me preocupam muito as coisas que podem lhe acontecer por causa do trabalho, mas a morte por inanição não é uma delas, disse Paola, indo para a varanda.

Ele decidiu levar apenas dois copos e deixar a garrafa; podia sempre ir buscar mais, se quisesse. Encontrou Paola sentada numa cadeira com os pés apoiados no ferro mais baixo do gradeamento, de olhos fechados. Ao ouvi-lo chegar, estendeu a mão e ele lhe deu o copo. Paola bebeu um gole de aguardente, suspirou e bebeu outro gole.

— Deus está no seu céu, tudo está bem no mundo, disse ela.

— Acho que já bebeu o suficiente, Paola, ele observou.

— Conte o que aconteceu a camisa, ela pediu. Ele assim fez. — Acredita nessa mulher... Nessa Signora Gismondi? Perguntou quando Brunetti terminou o relato dos acontecimentos do dia.

— Acho que sim, disse ele. — Não vejo por que haveria de mentir. Nada do que me disse indica que fosse mais do que vizinha da velha.

— Uma vizinha rancorosa, disse Paola.

— Por causa da televisão?

— Sim.

— Não se mata uma pessoa por causa do barulho de uma televisão, observou ele. Ela estendeu a mão e pousou-a no braço do marido.

— Guido, há décadas que o ouço falar do seu trabalho, e acho que há algumas pessoas dispostas a matar por muito menos do que o barulho de uma televisão.

— Por exemplo?

— Lembra-se daquele homem, não sei se foi em Mestre, que saiu de casa para dizer a alguém que estava num carro à porta da sua casa para abaixar o rádio? Há quanto tempo foi, há quatro anos? Foi morto, não foi?

— Mas era homem, disse Brunetti. — E tinha antecedentes de violência.

— E a Signora Gismondi não os tem? Aquilo fez Brunetti se lembrar de que não pedira à Signorina Elettra que visse o que podia encontrar sobre a Signora Gismondi.

— Não me parece provável. Com certeza não vamos encontrar nada. Porque quer que duvide dela? Ela suspirou.

— Às vezes, é decepcionante que, após todos estes anos, ainda não tenha entendido como funciona o meu cérebro.

— Duvido que alguma vez vá entender, reconheceu Brunetti sem ironia. — O que não entendi agora?

— Que acho que tem razão acerca da Signora Gismondi. Não faria sentido: uma pessoa que se sente atrapalhada quando alguém tenta lhe beijar a mão em público.

Podia ser uma descrição pouco exata dos comentários da Signora Gismondi, e parecia que ele iria ter poucas ocasiões para explicar, mas pareceu a Brunetti um critério saudável para avaliar o comportamento humano.

— O que pretendo é ter argumentos que possa usar com pessoas como Patta, Scarpa e outros que não querem acreditar.

Paola manteve os olhos fechados e ele contemplou o seu perfil: o nariz aquilino, talvez um pouco comprido, rugas finas nos olhos que ele sabia provocadas pelo humor e um leve início de flacidez sob queixo. Pensou nos filhos, em como os vira cansados ao jantar, enquanto passava o olhar pelo corpo de Paola. Pousou o copo na mesa e se inclinou para a mulher.

— Não podíamos voltar à nossa exploração dos sete pecados capitais? Perguntou.


* * *


Dez

A SUA reunião com a Avvocatessa Roberta Marieschi era às dez da manhã seguinte. Como o escritório ficava em Castello, no início da Via Garibaldi, Brunetti pegou o número um até Giardino. As árvores nos jardins públicos pareciam cansadas, empoeiradas e muito necessitadas de chuva. Na verdade, o mesmo poderia ser dito da maioria dos habitantes da cidade. Não teve dificuldade em encontrar o escritório, adjacente ao que tinha sido uma pizzaria muito boa, agora transformada numa loja que vendia vidro de Murano falso. Tocou a campainha, entrou e subiu para o escritório, localizado no primeiro andar.

A secretária com quem falara no dia anterior levantou a cabeça quando ele entrou, sorriu e perguntou se era o Signor Brunetti. Quando respondeu que sim, ela pediu para esperar alguns minutos, porque a dottoressa ainda estava com outra pessoa. Brunetti se sentou num confortável sofá cinzento e analisou as capas de revistas sobre a mesinha à sua esquerda. Escolheu a Oggi porque raramente tinha ocasião de lê-la: não queria comprá-la e incomodava-o ser visto com ela na mão.

Estava absorto na história do enlace de um príncipe escandinavo de segunda linha quando a porta à esquerda da secretária se abriu e saiu para a sala de espera um homem de idade. Levava numa mão uma pasta de couro preta e, na outra, uma bengala com castão de prata.

A secretária se levantou e perguntou com um sorriso:

— Deseja marcar outra visita, cavaliere?

— Não, obrigado, signorina, disse ele, sorrindo afavelmente. — Eu ligo quando terminar de ler estes papéis.

Trocaram cumprimentos corteses de despedida e a secretária se aproximou de Brunetti, que se levantou.

— Eu o acompanho, signore, disse ela e dirigiu-se à porta que o idoso tinha fechado. Bateu e entrou, seguida por Brunetti um ou dois passos atrás.

A mesa encontrava-se na outra extremidade da sala, entre duas janelas. Não havia ninguém sentado atrás dela, mas Brunetti viu algo se mover no chão, uma forma castanho-claro, espiando debaixo da mesa. Poderia ser um rato, ou talvez um esquilo, embora acreditasse que esses animais viviam no campo, não na cidade. Ao ouvir uma voz feminina dizendo o seu nome, se virou, fingindo não ter visto nada.

Roberta Marieschi aparentava uns trinta e cinco anos, era alta e muito direita com um rosto muito bonito. Estava ao lado de uma estante que cobria uma parede inteira da sala e tinha na mão um livro grosso.

— Desculpe, Signor Brunetti. Lamento tê-lo feito esperar, disse, se aproximando de mão estendida, apertando firmemente a que ele ofereceu. Virou-se para a mesa. — Por favor, sente-se.

A secretária saiu da sala. Ele observou a advogada enquanto contornava a mesa e se sentava. Era um pouco mais baixa do que ele, mas a sua figura, esguia e atlética, aparentava maior estatura. Vestia uma camisa de seda cinzento-escura com uma saia abaixo do joelho e sapatos pretos simples, sem salto, sapatos confortáveis, para o escritório ou para caminhar. Tinha a pele levemente bronzeada, mas de uma cor saudável, não aquela que traz a mente o couro. Nenhuma das suas feições chamava a atenção, mas compunham um conjunto atraente, reforçado por olhos castanhos de pestanas espessas e lábios carnudos e macios.

— Disse que queria me consultar por causa de uma herança, Signor Brunetti? Perguntou a mulher, mas, quando ele estava prestes a responder, ficou admirado ao ouvi-la dizer com irritação resignada: — Oh, pare com isso!

Ele, que estava olhando para os papéis em cima da mesa, levantou a cabeça e viu que ela tinha desaparecido, ou pelo menos a sua cabeça. Ao mesmo tempo, o tal vulto voltou a espiar por baixo da mesa, algo entre uma folha de palmeira e um leque, de cor bege, que começou a balançar de um lado para outro.

— Já disse para parar com isso, Poppi, disse a voz da advogada sob a mesa.

Indeciso, Brunetti ficou quieto, olhando para o movimento da cauda do animal. Depois de um momento que se prolongou, a cabeça da Avocatessa Marieschi reapareceu, com o cabelo escuro despenteado.

— Peço desculpas. Normalmente, não a trago para o escritório, mas voltei agora de férias e ela está zangada comigo por tê-la deixado. Empurrou a cadeira para trás e disse ao cão: — Não é verdade, Poppi? Está zangada e quer se vingar roendo o meu sapato?

O animal deu meia volta e se deixou cair no chão debaixo da mesa, com um baque, mostrando um pedaço da cauda muito mais comprido. A advogada olhou para Brunetti, sorriu e pareceu corar.

— Espero que os cães não o incomodem, disse ela.

— Pelo contrário. Gosto muito deles. Ouviu-se um rosnado baixo em resposta a sua voz, e ela voltou a desaparecer e disse:

— Sai daí, sua fingida. Sai e vai ver que não precisa ter ciúmes. Inclinou-se para frente, estendeu os braços, se inclinou um pouco mais e depois reapareceu.

Lentamente, de debaixo da mesa saiu a cabeça e depois o corpo canino mais bonito que Brunetti já vira: Poppi era um golden retriever, e, embora ele soubesse que era a raça da moda, isso não diminuiu a sua admiração. Com a língua de fora, Poppi só teve de pousar os seus olhos, bastante afastados, em Brunetti para conquistá-lo. O corpo do animal batia na altura da cadeira, e ele viu-a apoiar a cabeça no colo da advogada, fitando-a com adoração.

— Espero que goste realmente de cães, Signor Brunetti, disse ela. — Porque, caso contrário, esta situação seria muito constrangedora. Instintivamente, colocou a mão na cabeça da cadela e começou a lhe acariciar a orelha esquerda.

— É muito bonita, declarou Brunetti.

— Sim, é. E tão dócil quanto bonita. Sem retirar a mão da orelha do animal, acrescentou, olhando para Brunetti: — Mas o senhor não veio até aqui para me ouvir falar da minha cadela. Em que posso lhe ser útil?

— Na verdade, não sei se ontem a sua secretária me entendeu bem, avocatessa. Não sou um cliente. Contudo, talvez possa me ajudar numa coisa.

Ela sorriu com a mão ainda na orelha de Poppi.

— Desculpe-me, não entendi.

— Sou commissario de Polícia e vim fazer algumas perguntas sobre uma cliente sua, a Signora Maria Battestini.

Poppi mostrou os dentes, olhou para Brunetti e lançou um rosnado baixo que rapidamente foi silenciado pela voz da dona, que se inclinou sobre a cabeça do animal.

— Machuquei-a, meu anjo? Com um gesto brusco, afastou a cabeça do cão e disse: — Já chega, volta para baixo. Tenho de trabalhar.

Sem opor resistência, o animal desapareceu debaixo da mesa, deu uma volta e deitou-se, oferecendo a Brunetti outra visão da sua cauda.

— Maria Battestini, disse a advogada. — Terrível, terrível. Eu lhe consegui aquela empregada. Entrevistei-a e levei na casa. Desde que soube que me sinto responsável. Cerrou os lábios num gesto que, então Brunetti observara, normalmente é feito por quem está prestes a chorar. Para evitá-lo, ele apressou-se a falar:

— Não deve sentir-se responsável, avvocatessa. A polícia deixou-a entrar no país e o Ufficio Stranieri concedeu-lhe um permisso di soggiorno. A responsabilidade será sempre dos funcionários, não sua.

— Eu conhecia Maria há tanto tempo... Quase toda a minha vida.

— Como, dottoressa?

— O meu pai era advogado dela. Dela e do marido; por isso conhecia-a desde criança e, quando terminei o curso e comecei a trabalhar com o meu pai, ela me perguntou se queria ser sua advogada. Acho que foi a minha primeira cliente, a primeira pessoa que esteve disposta a confiar em mim como advogada.

— E o que envolvia isso, dottoressa? Perguntou Brunetti.

— Não sei se o entendo, disse ela, já dissipada a vontade de chorar.

— Que tipo de coisas lhe confiava?

— Oh, nada, pelo menos na época. Um primo deixara ao marido dela um apartamento no Lido e, vários anos após a sua morte, quando a Signora Battestini o quis vender, houve uma disputa sobre a propriedade do jardim.

— Disputa do direito de propriedade, disse ele olhando para o teto, como se não pudesse imaginar litígio mais desagradável. — Esse foi o único problema que teve? Ela ia responder, mas deteve-se.

— Antes de responder a mais perguntas, commissario, gostaria de saber porque as faz.

— Claro, disse ele com um gesto de assentimento, lembrando-se de que estava falando com uma advogada. — O crime parece estar resolvido e desejamos encerrar o caso oficialmente, mas antes temos de excluir qualquer outra possibilidade.

— Que "outra possibilidade"?

— De haver outro responsável.

— Mas pensei que a romena... Começou ela, e interrompeu-se com um suspiro. — Sinceramente, não sei se fico contente ou triste, admitiu por fim. — Se não foi ela, eu podia deixar de me considerar responsável. Tentou sorrir, não conseguiu e continuou: — Mas existe alguma outra razão para que o senhor, ou seja, a Polícia, acredite que possa ter sido outra pessoa?

— Não, disse ele com o descaramento de um mentiroso consumado. — Na verdade, nenhuma. Então, usando o argumento favorito de Patta, acrescentou: — Mas, neste clima de suspeição em relação à Polícia propiciado pela imprensa, devemos nos certificar antes de declarar um processo encerrado. Quanto mais sólidas são as provas, menos probabilidades haverá de que a imprensa questione as nossas decisões. Ela compreendeu e assentiu com a cabeça.

— Sim, com certeza. Claro que gostaria de ajudar, mas não vejo como.

— Disse que a ajudou a resolver outros problemas. Pode me dizer quais? Ao ver a sua hesitação, acrescentou: — Acho que a sua morte e as circunstâncias que a rodearam devem lhe permitir falar comigo sem se preocupar com o segredo profissional em relação à sua cliente. Ela aceitou o argumento.

— Havia o filho, Paolo, que morreu há cinco anos, após uma doença prolongada. Maria estava... Quase morreu de desgosto, e durante muito tempo foi incapaz de fazer qualquer coisa. Eu organizei o funeral e tratei das formalidades da herança, mas não houve qualquer problema: tudo passou para ela.

Ao ouvi-la usar a expressão "doença prolongada", Brunetti reparou que raramente ouvira alguém dizer que uma pessoa tinha morrido de câncer. Era sempre uma "doença prolongada", "um tumor", "uma doença terrível" ou, simplesmente, "aquela doença".

— Que idade tinha o filho quando morreu?

— Quarenta, acho. O fato de os seus bens terem passado para a mãe dava a entender que não era casado, então Brunetti apenas perguntou:

— Ele vivia com ela?

— Sim, lhe era muito dedicado. Os sensores de linguagem de Brunetti arquivaram esta expressão com "doença prolongada", e ele não fez nenhum comentário.

— Pode revelar o conteúdo do testamento da mãe? Perguntou ele, mudando de assunto.

— É completamente normal. A única parente é uma sobrinha, Graziella Simionato, que herda tudo.

— O patrimônio é importante? Perguntou.

— Não muito. Há a casa em Canaregio, outra no Lido, e um dinheiro que a Maria investira no Uni Credit.

— Sabe o valor?

— Não sei a quantidade exata, são cerca de dez milhões, respondeu ela, acrescentando imediatamente: — De liras, é claro. Ainda penso em liras e tenho de calcular a equivalência.

— Acho que isso acontece com toda a gente, reconheceu Brunetti. — Uma última coisa: a televisão. Pode me dizer alguma coisa acerca disso? Ela negou com a cabeça, sorrindo.

— Já sei. Eu recebia cartas de vários vizinhos se queixando do barulho. A cada carta que recebia, ia falar com Maria e ela me prometia abaixar o volume, mas estava velha e esquecia, ou adormecia com a televisão ligada. Encolheu os ombros com um suspiro de resignação. — Não creio que houvesse solução.

— Alguém nos disse que a romena baixava o volume, disse ele

— Sim, e também a matou, retorquiu ela com secura. Brunetti anuiu com a cabeça, aceitando a reprimenda.

— Lamento, desculpou-se ele, — Falei sem pensar. Pode me dar o endereço da sobrinha?

— A minha secretária sabe, respondeu Marieschi numa voz que de repente se tornara mais fria. — Saio consigo e peço que lhe dê. Aparentemente, não deixava alternativa a Brunetti senão se despedir, então levantou e se inclinou sobre a mesa.

— Muito obrigado pelo seu tempo, dottoressa. Espero não a ter incomodado com as minhas perguntas. Ela sorriu e disse num tom mais ligeiro:

— Se assim fosse, Poppi teria notado e não estaria dormindo como um bebê ali em baixo. Uma ondulação da cauda desmentiu aquela afirmação e Brunetti se distraiu pensando que, se contasse a cena a Chiara, ela lhe perguntaria se era o conto da cadela adormecida.

Segurou a porta para que a advogada saísse, esperou enquanto a secretária escrevia o endereço da sobrinha da Signora Battestini, agradeceu as duas mulheres, apertou a mão da advogada e saiu.


* * *


Onze

SE REGRESSASSE a pé a Questura pela Riva degli Schiavoni àquela hora se sujeitava a ficar derretido, então recuou para Castello em direção ao Arsenale. Ao passar na sua frente se perguntou, como sempre que via as estátuas, se os homens que as tinham esculpido alguma vez teriam visto um leão. Um deles se parecia mais com Poppi do que qualquer leão que Brunetti já vira.

Diante da Igreja de San Martino, a água do canal estava mais baixa do que nunca e Brunetti parou para olhar a lama pegajosa das margens brilhando ao sol; chegou-lhe ao nariz um fedor a putrefação. Quem sabia quando o canal fora dragado e limpo pela última vez?

Quando Brunetti chegou na sua sala, a primeira coisa que fez foi abrir a janela para deixar entrar ar, mas só entrou uma humidade que não o aliviou. Deixou a janela aberta, esperando que um zéfiro extraviado a encontrasse e entrasse por ela. Pendurou o paletó e olhou para os papéis que tinha sobre a mesa, embora soubesse que a Signorina Elettra não deixaria ali mais do que material inócuo que pudesse ser lido por qualquer pessoa. O resto guardaria na sua própria mesa, ou no seu computador, onde estaria ainda mais seguro.

No barco que o levara a Castello de manhã, Brunetti lera no Gazzettino que o juiz do caso das bagagens roubadas do aeroporto decidira que as câmeras ocultas na sala das bagagens constituíam, efetivamente, uma invasão da privacidade dos arguidos e, portanto, as gravações não podiam ser admitidas como prova contra eles. Ao ler a informação, Brunetti sentira o desejo absurdo de ir para a Questura, reunir pacientemente todos os depoimentos acumulados ao longo dos últimos meses e levá-los para a reciclagem na Scuola Barbarigo. Ou algo mais dramático: fazer com eles uma pira funerária no cais da Questura, da qual se elevasse uma espessa cinza negra que seria levada por aqueles cobiçados e esquivos zéfiros.

Ele sabia o que aconteceria a seguir: a sentença do juiz seria objeto de recurso, tudo voltaria a começar e o processo se prolongaria, com sentenças e recursos, até que o prazo prescrevesse. Brunetti passara toda a carreira assistindo a mesma dança: se se tocasse suficientemente devagar, com pausas frequentes para mudar os músicos, as pessoas acabavam por se cansar de ouvir a mesma música e, quando o tempo chegava ao fim e a música acabava, ninguém dava por isso.

Era aquele tipo de pensamentos que às vezes fazia com que lhe custasse ouvir as críticas de Paola sobre a Polícia. Sabia que o interminável processo de recursos inerente ao sistema judicial no qual trabalhava tinha por finalidade proteger o acusado de possíveis erros, mas, com os anos, à medida que se ampliavam e consolidavam as garantias dos arguidos, Brunetti começara a se perguntar quem é que a lei protegia realmente.

Afastou estes pensamentos e foi a procura de Vianello. O inspetor estava no seu posto, ao telefone. Ao ver Brunetti, levantou a mão aberta para indicar que demoraria pelo menos cinco minutos, e então apontou para cima com o indicador, em direção a sala do seu superior, dando a entender que subiria quando acabasse.

Em cima, Brunetti encontrou a sua sala um pouco mais fresca do que quando chegara. Para suportar a espera, tirou alguns papéis da caixa de entrada e começou a ler. Foram quinze minutos, não cinco, que Vianello demorou a aparecer. Quando chegou, sentou e disse sem preâmbulos:

— Era uma bruxa velha e não consegui encontrar ninguém que lamentasse minimamente a sua morte. Fez uma pausa, ao ouvir as suas palavras, e acrescentou: — Gostaria de saber o que puseram na lápide: "Esposa adorada"? "Mãe querida"?

— Acho que as inscrições costumam ser mais compridas, observou Brunetti. — Os escultores cobram por letra. Então, cortando as divagações, perguntou: — Com quem falou e o que mais descobriu?

— Nadia e eu fomos a dois bares beber um copo. Ela dizia que tinha morado no bairro. Não é verdade, mas quando criança costumava visitar uma prima que morava lá, então sabia e se referia nomes de lojas que já não existem, e as pessoas acreditavam nela. Na verdade, nem tivemos de perguntar, porque as pessoas estavam ansiosas por falar sobre o crime. Foi a coisa mais importante que aconteceu ali desde a cheia de sessenta e seis. Viu a expressão de Brunetti e retomou o fio da meada: — Todos disseram que era mesquinha, conflituosa e estúpida, mas havia sempre alguém que lembrava aos presentes que também era uma viúva que perdera o único filho, e então as pessoas se continham e diziam que, na verdade, não era tão má assim. Mas a mim me parece que sim. Falamos dela nos bares e, depois, com a empregada do restaurante, que vive ao virar da esquina, e ninguém disse nada de bom sobre ela. Na verdade, parece até que, com o tempo, as pessoas começam a se mostrar compreensivas para com a romena. Uma mulher disse que o mais estranho era que tivessem levado tanto tempo para matá-la. Vianello, considerou o que dissera e acrescentou: — É como se o pouco de compaixão que sentiam por ela pela morte do filho ou, pelo menos, uma pequena parte, tivesse passado para a Signora Ghiorghiu.

— E do filho, o que diziam do filho? Perguntou Brunetti.

— Ninguém parece ter muito a dizer. Era discreto, morava com ela, ia para o trabalho e não se metia com ninguém. É quase como se não houvesse tido uma existência real, como se tivesse sido apenas o meio pelo qual as pessoas podiam ter pena dela. A morte dela, quero eu dizer.

— O marido?

— O normal: una brava persona. Mas aqui Vianello advertiu: — Embora pudesse ser apenas a amnésia falando.

— Alguém disse alguma coisa sobre as outras mulheres que passaram pela casa?

— Não, não muito. Limpavam, faziam compras e cozinhavam, mas a romena foi a primeira a dormir. Vianello fez uma pausa e acrescentou: — Tenho a impressão de que as outras não queriam se deixar ver pelo bairro mais do que o necessário, porque não tinham documentos e temiam que alguém as descobrisse.

— Tinha muito contato com os vizinhos? Refiro-me à velha, disse Brunetti.

— Nos últimos anos não, especialmente desde a morte do filho. Até há cerca de três anos, ainda conseguia descer as escadas, mas caiu, machucou o joelho e não voltou a sair. E, nessa altura, os amigos que pudera ter tido no bairro ou tinham morrido ou tinham se mudado, e era tão conflituosa que ninguém queria lidar com ela.

— O que fazia, para ser conflituosa?

— Sair dos cafés sem pagar, se queixar de que a fruta não era boa ou estava passada, comprar uma coisa, usá-la e depois tentar devolvê-la... Coisas que levaram as pessoas a se recusar a atendê-la. Dizem que houve uma época em que jogava o lixo pela janela, mas alguém chamou a Polícia, que foi falar com ela, e a coisa parou. No entanto, a maioria das queixas era por causa da televisão.

— Alguém disse ter falado com a advogada? Vianello pensou e negou com a cabeça.

— Não; ter falado não; alguns disseram que tinha lhe escrito por causa da televisão.

— E?

— Não obtiveram resposta.

Aquilo não surpreendeu Brunetti: a menos que fosse apresentada uma queixa contra a velha, a sua advogada não era obrigada a intervir no comportamento pessoal da cliente. Mas a falta de resposta a estas queixas parecia desmentir as alegações de afeto e consideração pela Signora Battestini que a Avvocatessa Marieschi fizera. Embora também fosse verdade que os advogados não escreviam cartas de graça.

— E no dia do crime?

— Nada. Um homem achava se lembrar de ter visto a romena saindo da casa, mas não podia jurar.

— O que não podia jurar, que era a romena ou que saía de casa?

— Não sei. Quando perguntei, ficou em silêncio. Vianello levantou as mãos e admitiu: — Sei que não é muito, mas não acho que possa conseguir muito mais com dissimulações.

— Não há nada de novo, então? Perguntou Brunetti sem esconder a desilusão. Vianello encolheu os ombros.

— Sabe como é. Ninguém parece se lembrar muito do filho, a ela não suportavam, e como o marido morreu há dez anos, a única coisa que dizem é que era una brava persona, que gostava de beber com os amigos e que não entendiam como ele pudera aturar semelhante mulher.

Brunetti teria gostado de saber se as pessoas diriam o mesmo a seu respeito quando morresse.

— E o senhor, commissario? Perguntou Vianello. Brunetti contou a sua conversa com a advogada, sem se esquecer de mencionar a cadela.

— Perguntou-lhe pelas contas bancárias?

— Não; me disse que a Signora Battestini tinha cerca de cinco mil euros no Uni Credit. Não quero perguntar pelas outras contas até sabermos mais sobre elas.

Como se conjurada pelas palavras, naquele momento apareceu na porta a Signorina Elettra. Hoje, vestia uma saia verde, blusa branca e um colar de grandes contas cilíndricas de âmbar. Quando se aproximou, o sol incidiu no colar conferindo-lhe um fulgor vermelho, ficando assim a jovem envolta nas cores da bandeira, a viva imagem da essência pátria. Ao deixar para trás o raio de luz solar, transformou-se novamente em si mesma e pousou na mesa a pasta que trazia na mão.

— Foi mais fácil do que eu imaginava, commissario, disse com modéstia encantadora, apontando para a pasta.

— E o Deutsche Bank? Perguntou Vianello. Ela negou com a cabeça num gesto de severa crítica.

— Foi tão fácil que até o senhor teria conseguido, Ispettore, respondeu, acrescentando com mais seriedade: — Tenho certeza de que a culpa é de toda esta europeização. Antes, os bancos alemães eram seguros; agora é como se ao irem para casa à tarde deixassem as portas abertas. Tremo só de pensar no que vai acontecer aos suíços se se juntarem à Europa.

Brunetti, indiferente às suas preocupações sobre o futuro financeiro do continente, perguntou:

— E o que pode me dizer das contas?

— Todas foram abertas no ano anterior a morte do marido, explicou ela, — No espaço de três dias, cada uma com um depósito inicial de meio milhão de liras. Desde então, tem sido feito um depósito mensal de cem mil liras em cada conta, exceto logo após a morte do filho, quando os depósitos pararam. Ela sorriu com a reação do seu público e continuou: — Mas, ao fim de dois meses, foram retomados, incluindo as verbas em atraso. Deu-lhes um momento para pensarem naquilo antes de acrescentar: — Os últimos depósitos, que poderíamos considerar normais, foram feitos no início de julho, elevando o total das contas, com juros, a cerca de trinta mil euros. Este mês ainda não foi nada depositado.

Refletiram os três no significado daquilo e foi Brunetti quem o traduziu em palavras:

— Ou seja, com ela morta, acabou-se a necessidade de pagar.

— Parece que sim, concordou a Signorina Elettra, acrescentando: — Mas o curioso é que ninguém tocou nesse dinheiro: ficou no banco, acumulando juros. Abriu a pasta segurando-a para que os dois homens pudessem ver os números e disse: — Estes são os totais das contas. Todas estavam em nome dela.

— O que aconteceu quando a velha morreu? Perguntou Brunetti.

— Ela morreu numa sexta-feira e, na segunda-feira seguinte, o dinheiro foi transferido para as ilhas do Canal. E.... acrescentou, num tom que sugeria que despertara o interesse dos seus ouvintes, — Embora o nome da pessoa que ordenou a transferência não apareça, todos os bancos têm nos seus arquivos procurações em nome de Roberta Marieschi e Graziella Simionato.

— Esta manhã, perguntei a Marieschi quanto dinheiro tinha deixado a Signora Battestini, mas ela só me falou numa conta no Uni Credit de uns dez milhões de liras.

— Evasão fiscal? Desta vez foi Vianello quem deu voz à evidência.

Se se tirasse o dinheiro do país imediatamente, contando com a incompetência burocrática generalizada, a transferência poderia muito bem escapar a atenção das autoridades fiscais, especialmente por vir de vários bancos.

— E a sobrinha? Perguntou Brunetti.

— Já comecei a investigar, foi tudo o que ela disse.

— São mais de sessenta milhões, disse Vianello que, como a maioria, continuava calculando em liras.

— Uma soma considerável para uma viúva que vivia em três aposentos, disse a Signorina Elettra, embora não houvesse necessidade de lembrar.

— E uma soma considerável para escapar aos impostos, acrescentou Vianello, com alguma admiração no seu tom. Olhando para a Signorina Elettra perguntou: — Mas o que podemos fazer?

Ao ver o ar de intensa concentração com que ela inclinava a cabeça, Brunetti se perguntou se a sua familiaridade com a ilegalidade teria limite. Os seus anos de trabalho na banca nacional teriam lhe proporcionado a preparação ideal, mas era de temer que os seus anos na Questura tivessem lhe permitido aperfeiçoar a sua arte.

Com a expressão de Santa Caterina regressando da contemplação da Presença Divina, a Signorina Elettra abandonou a dimensão do crime hipotético para regressar ao mundo de Brunetti e Vianello.

— Sim, afirmou. — Dada a incompetência da Finanza, é provável que a transferência não fosse detectada. Vianello e Brunetti mergulharam no cálculo das probabilidades até que a Signorina Elettra os interrompeu, perguntando: — Porque deixaria o dinheiro nos bancos sem lhe tocar todos estes anos?

Brunetti, que lera as descrições de Balzac acerca da astúcia e avareza dos camponeses, não tinha dúvidas:

— Para ver se acumular, respondeu.

Vianello não podia alardear um grande conhecimento do romance francês, mas vivera no campo e sabia que o seu chefe estava certo.

— Estava no sótão e vi as coisas que ela guardava, disse Brunetti, lembrando-se dos chinelos de feltro tão gastos que nem a Cáritas se atreveria a dá-los a um pobre, e dos panos de cozinha puídos e com nódoas entranhadas. — Gostava de olhar para os números e de vê-los crescerem, acreditem.

— Onde estão os estratos originais das contas? Perguntou Vianello. — Quem tirou as coisas do apartamento?

— A sobrinha herdou, então deve ter sido ela, respondeu a Signorina Elettra. — Mas a advogada pode ter entrado antes e levado os papéis. E, como se tivesse acabado de lhe ocorrer, acrescentou: — Ou o assassino.

— Talvez fosse isso que o assassino procurava, disse Vianello, se animando com a sugestão. — De qualquer modo, se precisamos de provas, temos os dados de computador.

Brunetti e a Signorina Elettra olharam para Vianello como Láquesis e Átropo voltaram os seus olhos cegos para a incauta Cloto.

— O governo já previu isso, Ispettore, disse a Signorina Elettra quase num tom de reprovação, como se ele fosse o responsável pela lei que previa que só poderiam se aceitar como provas os originais e não fotocópias ou dados informáticos. Brunetti achou que o inspetor corara.

— Não tinha pensado nisso, confessou Vianello, percebendo que a informação só teria força legal se o banco facilitasse os dados originais de umas contas que tinham sido ignoradas durante mais de dez anos, até a sua misteriosa fuga para um paraíso fiscal tão famoso que era até conhecido por uma advogada de uma pacata cidade provinciana como Veneza. Brunetti, se afastando dos assuntos financeiros, perguntou:

— E o marido? Encontrou alguma coisa?

— Nada interessante, disse ela. — Nasceu aqui, em mil novecentos e vinte e cinco, e morreu no Ospedale Civile, em janeiro de noventa e três. Câncer de pulmão. Trabalhou durante trinta e dois anos em vários gabinetes municipais, tendo o último sido a sala local da Secretaria de Estado da Educação, mais especificamente na seção de pessoal; não me lembro de algo que possa ser mais chato. O filho também trabalhava lá, até que morreu há cinco anos. Pai e filho coincidiram em vários anos.

— Mais alguma coisa? Perguntou Brunetti, surpreso que um homem pudesse dedicar três décadas da sua vida trabalhando na burocracia da cidade e deixar tão poucos vestígios da sua passagem.

— Foi só o que consegui encontrar, commissario. É difícil investigar algo com mais de dez anos. Esses arquivos ainda não estão informatizados.

— Quando estarão? Perguntou Vianello.

A Signorina Elettra encolheu os ombros com tanta veemência que as contas de âmbar tiniram como se também elas quisessem censurar a pergunta.


* * *


Doze

BRUNETTI se recusava a ver aquilo como um impasse.

— No escritório ainda devem existir pessoas que se lembram deles, disse, olhando para Vianello. — Acho que vale a pena ir até lá ver se resta algum e do que se lembra.

Pela sua expressão, Vianello deu a entender que não esperava descobrir muita coisa, mas não levantou qualquer objeção. A Signorina Elettra disse que ainda tinha coisas a fazer na sua sala e saiu com o inspetor.

Como Brunetti achava injusto ficar sentado à mesa enquanto os outros investigavam, abriu a pasta à procura do número do médico da Signora Battestini. A sua ligação foi transferida para o celular do médico, que disse que poderia falar com ele no seu ambulatório antes ou após as consultas da tarde. Brunetti, pensando que seria preferível falar com o médico antes de este ter estado duas horas vendo pacientes, combinou ir às três e meia, pediu o endereço e desligou. Feito isto, discou o número da sobrinha da Signora Battestini, mas ninguém atendeu.

Naquele dia não se realizaria a reunião semanal na Questura, por causa do tempo. Durante os meses de verão, estas reuniões, instauradas pelo vice-questore anos atrás, ou eram suspensas no último momento, ou adiadas e, em seguida, suspensas, de acordo com o estado do tempo. Um sol radioso fazia com que a reunião fosse automaticamente suspensa, para que o vice-questore tivesse tempo de tomar um banho antes do almoço, tal como no final da tarde. Nos dias de chuva, havia reunião, mas uma melhoria repentina do tempo poderia provocar o seu adiamento, e uma das lanchas da polícia levava o vice-questore ao outro lado do Bacino, para um merecido repouso. Assim, a reunião de pessoal tinha se convertido noutro dos segredos da Questura, como a porta daquele armário que não abria se não levasse um pontapé na parte de baixo. Brunetti via-se a si mesmo e aos colegas como uma espécie de profetas que, antes de programar o dia ou agendar uma reunião, tinham de consultar o céu. Parecia-lhe digno de louvor que todos conseguissem acomodar o seu horário com tanta flexibilidade aos caprichos do vice-questore.


* * *


Brunetti chegou em casa no momento em que a família se sentava para almoçar. Observou em Paola aquela cara de fome pela qual geralmente traía que tivera um dia ruim na universidade, e viu também que os filhos, alheios a tudo o que não fosse saciar o apetite, não pareciam prestar muita atenção à mãe.

Pela forma como a mesa estava posta, Brunetti concluiu que não devia haver primeiro prato, mas, antes que pudesse protestar, mesmo que timidamente, pela falta, Paola presenteou-o com um prato fundo do qual se elevavam vapores perfumados que lhe tranquilizaram o espírito. O seu olfato ainda não lhe tinha sugerido o nome do prato quando Chiara exclamou com alegria:

— Oh, mamma, ensopado de cordeiro!

— Há polenta? Perguntou Raffi com voz vibrando de antecipação. Ao ver o sorriso que iluminou o rosto de Paola ante estes sinais de avidez, Brunetti se lembrou de que o chilrear dos pintos induz os pais a seguirem um padrão de comportamento geneticamente determinado. Paola opôs a esse instinto uma resistência puramente simbólica ao dizer:

— Não houve sempre em cada uma das seiscentas vezes que comemos isto? Sim, Raffi, há polenta. E Brunetti reparou que as palavras podiam denotar impaciência, mas que o tom era afetuoso.

— Mamma, disse Chiara, — Se houver figos na sobremesa, eu lavo a louça.

— Tens espírito de comerciante, disse Paola, pousando a travessa na mesa e voltando à cozinha para ir buscar a polenta.

De fato, havia figos e, para acompanhar, "esses", biscoitos em forma de S que um amigo do pai de Paola ainda enviava. Depois daquilo, Brunetti não teve outro remédio senão ir para a cama, dormir uma hora.

Quando acordou, transpirando e com a boca seca, no calor quente do quarto, viu que Paola estava ao seu lado. Sabendo que ela nunca dormia a sesta, antes de abrir os olhos calculou que estava lendo. Virou a cabeça e viu que acertara.

— Ainda está com o catecismo? Perguntou, ao reconhecer o livro.

— Sim, respondeu ela, sem levantar os olhos da página. — Leio um capítulo por dia, mas não é chamado mais de catecismo.

Em vez de se interessar pelo novo título, Brunetti perguntou:

— E aonde está agora?

— Nos Sacramentos. Vieram-lhe à memória os nomes decorados na infância: Batismo, eucaristia, confirmação, matrimônio, penitência e reconciliação... A sua voz calou.

— São sete, certo?

— Sim.

— Qual é o sétimo? Esqueci. Como acontecia sempre que era incapaz de se lembrar de algo, sentiu um momento de pânico ao pensar que poderia ser um dos primeiros sintomas daquilo que ninguém quisera reconhecer na sua mãe.

— A unção dos doentes, respondeu Paola, com um olhar de soslaio. — Talvez o mais sutil de todos.

— Porquê sutil? Perguntou Brunetti sem entender.

— Pense, Guido. No momento em que uma pessoa vai morrer, quando já sabe que não há esperança, chega o padre.

— Sim, é verdade. Mas continuo sem entender porque é sutil.

— Pense bem. Antes, os sacerdotes eram os únicos que sabiam ler e escrever.

Como tinha calor e sede e acordara de mau humor, o que acontecia sempre que dormia depois de almoçar, Brunetti perguntou:

— Não está exagerando?

— Sim, está bem. Exagero. Mas os sacerdotes sabiam e a maioria das pessoas não. Pelo menos, até no século passado.

— Não entendi aonde quer chegar.

— Pense escatologicamente, Guido, pediu ela, confundindo-o ainda mais.

— Tento pensar escatologicamente todos os momentos do dia, declarou ele, que tinha esquecido o significado da palavra e já lamentava ter feito aquela observação.

— Morte, purgatório, inferno e céu, disse ela. — As últimas quatro coisas. E, quando a pessoa enfrenta a primeira e sabe que não pode escapar da segunda, começa a pensar nas outras duas. E então vem o padre, disposto a falar do fogo do inferno e das alegrias do céu, embora sempre tenha me parecido que as pessoas estão mais preocupadas em evitar o primeiro do que a apreciar o último.

Ele ficou em silêncio, começando a adivinhar a conclusão.

— Portanto, chega o padre, que aliás era também frequentemente o notário, e começa a falar do fogo do inferno que consumia a carne de uma pessoa, um tormento indizível que iria durar toda a eternidade.

Ele achou que a mulher poderia ter sido atriz, pela força da convicção que a sua voz imprimia a cada uma das palavras.

— Mas o bom cristão tem ao alcance da mão o meio para obter o perdão e se livrar das chamas do inferno. Aqui passou a falar na primeira pessoa, com a voz mais melosa. — Sim, meu filho, só precisa abrir o coração ao amor de Jesus e a carteira às necessidades dos pobres. Põe o seu nome ou, se não sabe escrever, a sua marca neste papel e, em troca da sua generosidade para com a Santa Madre Igreja, as portas do céu se abrirão para lhe receber.

Deixou cair o livro aberto no peito e se virou para o marido.

— Em seguida, era assinado o testamento de última hora, deixando uma coisa ou outra, ou tudo, à Igreja. A sua voz tornou-se áspera. — Claro que queriam se aproximar das pessoas, quando estas estavam no fim ou tinham perdido o juízo. Que melhor momento para depená-las?

Tornou a pegar no livro, virou a página e terminou num tom perfeitamente calmo:

— É por isso que é o sacramento mais sutil.

— Diz essas coisas à Chiara? Perguntou Brunetti chocado. Ela se virou novamente.

— Claro que não. Quando for mais velha, compreenderá por si mesma. Ou não. Agradeço que não se esqueça de que prometi não interferir na educação religiosa dos nossos filhos.

— E se ela não compreender estas coisas? Perguntou Brunetti, enfatizando as três últimas palavras, e esperando que Paola respondesse que, nesse caso, a sua filha a teria desapontado.

— Então é provável que viva muito mais tranquila, declarou Paola, regressando ao catecismo.


* * *


O ambulatório do Dottor Carlotti ficava no térreo de uma casa da Calle Stella, perto de Fondamenta Nuove. Brunetti localizara o endereço no seu Calli, Canali e Campielli e reconheceu-a ao ver duas mulheres com bebês de colo à espera na entrada. Brunetti sorriu para as mulheres e tocou a campainha do lado direito. A porta foi aberta por um homem grisalho de meia-idade.

— É o Commissario Brunetti? Perguntou. Brunetti assentiu e o homem estendeu a mão e apertou a do commissario, aproveitando para o puxar para dentro. Indicou a Brunetti a porta do seu consultório, voltou a ir à porta e convidou as duas mulheres a entrarem, dizendo que iria estar ocupado por algum tempo mas que na sala de espera podiam ao menos escapar do calor. Levou o seu visitante para o consultório tão depressa que o commissario pôde apenas vislumbrar as habituais revistas de capa brilhante e os móveis que pareciam tirados da sala de algum familiar.

O consultório era como todos os que Brunetti tinha visto: a marquesa com o seu lençol de papel, a bancada de vidro com pacotes de ataduras e gazes, e a mesa coberta de papéis, pastas e caixas de medicamentos. A única diferença em relação as salas dos médicos da sua infância era o computador, no lado direito da mesa.

O Dottor Carlotti era um homem invisível: olhava-se para ele uma vez ou cinco vezes e a memória registaria apenas uns olhos castanhos atrás dos óculos de aros escuros, cabelo seco de cor indefinida, a rarear na testa, e uma boca de tamanho médio.

Encostando-se na mesa, de braços cruzados, o médico indicou uma cadeira com a mão. Então, como se reparasse que a sua postura era pouco hospitaleira, circundou a mesa e se sentou na cadeira. Empurrou alguns papéis, deslocou um tubo de creme para a esquerda e entrelaçou os dedos.

— Em que posso ser-lhe útil, commissario? Perguntou.

— Gostaria que falasse sobre Maria Battestini, respondeu Brunetti sem mais delongas. — Foi o senhor que a encontrou, certo, dottore? Carlotti olhou para a mesa e depois para Brunetti.

— Sim. Ia visitá-la uma vez por semana. Ao ver que o médico não ia dizer mais nada, Brunetti perguntou:

— Tratava-a de alguma doença em particular, dottore?

— Não. Ela era tão saudável como eu, talvez mais. Se excetuarmos os joelhos. Então, o médico surpreendeu Brunetti ao dizer: — Mas o senhor já deve saber disso, se Rizzardi fez a autópsia. Provavelmente sabe mais sobre a saúde dela do que eu.

— Conhece o Dottor Rizzardi?

— Não se pode dizer que o conheça. Pertencemos às mesmas associações médicas e falei com ele em jantares e reuniões. Mas conheço a sua reputação e por isso deduzo que o senhor esteja melhor informado que eu sobre o estado físico da Signora Battestini. Tinha um sorriso muito tímido para um homem que, segundo Brunetti calculava, devia ter quase cinquenta anos.

— Sim, ele fez a autópsia e disse o mesmo que o senhor, que ela era extremamente saudável para a idade.

O médico assentiu com a cabeça ao ver confirmada a sua opinião sobre a competência de Rizzardi.

— Ele disse o que a matou? Perguntou Carlotti, e Brunetti admirou-se que alguém que tivesse visto o corpo pudesse fazer semelhante pergunta.

— Disse que foi o trauma causado pelas pancadas que recebeu na cabeça.

Outro gesto de assentimento, outro diagnóstico confirmado. Brunetti pegou o seu caderno e procurou as folhas onde anotara algumas das coisas que a Signora Gismondi lhe dissera.

— Há quanto tempo ela era sua paciente, dottore? A resposta de Carlotti foi imediata.

— Cinco anos, desde que o filho morreu. Afirmava que o médico a que ambos iam fora o responsável pela morte do filho e, quando ele morreu, solicitou a transferência para o meu consultório. Disse com uma ponta de pesar.

— E ela tinha algum motivo para responsabilizar o outro médico?

— Não passava de um absurdo. O filho morreu de Aids. Dissimulando a surpresa, Brunetti perguntou:

— Ela sabia?

— Pergunte antes se acreditava, commissario. Não acreditava, mas devia saber. Nenhum deles achou aquilo uma contradição.

— Ele era gay?

— Publicamente, não. Nem o meu colega sabia. Mas não quer dizer que não fosse. Também não era hemofílico, nem toxicodependente, nem recebera qualquer transfusão, pelo menos que se lembrasse ou de que houvesse registro no hospital.

— Tentou investigar?

— O meu colega tentou. A Signora Battestini acusava-o de negligência criminosa, e ele tentou descobrir a causa do contágio, para se proteger. Também queria saber se Paolo podia ter transmitido a doença a outra pessoa, mas ela não quis responder a perguntas sobre o filho, nem mesmo aos funcionários do Ministério da Saúde. Quando se tornou minha doente, passava o tempo repetindo que o filho fora assassinado pelos médicos, até que lhe disse que não estava disposto a ouvir tais absurdos e sugeri que ela procurasse outro médico. Então ela parou de dizer aquilo, pelo menos na minha frente.

— E nunca ouviu nada que sugerisse que ele pudesse ser gay? Carlotti encolheu os ombros.

— As pessoas falam muito. Com o tempo, me habituei a não prestar muita atenção ao que se diz. Alguns pensavam que era, e outros não. A mim não interessava, e pararam de me falar dele. Olhou para Brunetti. — De modo que não sei. O meu colega acha que era, mas apenas porque não parece haver outra explicação para a causa da doença. Mas repito: eu não o conheci e, portanto, não sei. Brunetti não insistiu.

— Falemos da Signora Battestini, dottore. É capaz de me dizer alguma coisa que explique por que motivo alguém fez aquilo?

O médico empurrou a cadeira para trás e esticou as pernas, umas pernas muito compridas para um homem bem mais baixo que Brunetti. Cruzou-as nos tornozelos e coçou a nuca com a mão esquerda.

— Na verdade, não. Pensei muito no assunto desde que me telefonou, ou melhor, desde que a encontrei morta, mas não me ocorre nada. Ela era dona de um certo carácter...

Mas aqui Brunetti interrompeu o médico, para ele não continuar com o tema.

— Por favor, dottore, passei a vida ouvindo as pessoas falarem bem dos mortos ou procurarem eufemismos para disfarçar a verdade. De modo que sei que "certo carácter" significa "pessoa difícil" e "temperamental". Agradeço que leve em conta que isto é uma investigação de homicídio, então as suas palavras não podem fazer mal nenhum à Signora Battestini. Assim, por favor, esqueça a discrição, me fale dela com clareza e me diga porque acha que alguém havia de querer assassiná-la.

Carlotti sorriu e olhou para a porta da sala, de onde podia se ouvir as duas mulheres falarem num tom baixo e nervoso.

— Deve ser um hábito que todos temos, especialmente nós, os médicos. Temos medo de que nos peguem dizendo de um paciente o que não se deve dizer, que nos peguem dizendo a verdade. Brunetti assentiu e o médico continuou: — Era uma bruxa velha insuportável, e nunca ouvi ninguém dizer uma palavra amável sobre ela.

— Porquê insuportável, dottore? Perguntou Brunetti. O médico refletiu, como se nunca tivesse parado para pensar porque a mulher fora insuportável. Levou a mão a cabeça e voltou a coçar o mesmo lugar. Finalmente, olhou para Brunetti.

— Talvez só consiga explicar com exemplos. Como as mulheres que trabalhavam para ela. Ela estava sempre se queixando delas, me dizendo, ou dizendo a elas, que faziam tudo errado. Ou porque colocavam muito café na cafeteira ou deixavam as luzes acesas, ou gastavam água quente para lavar a louça, em vez de fria. Se elas se defendiam, gritava e lhes dizia que voltassem de onde tinham vindo.

Uma criança começou a chorar na sala de espera, mas se calou logo. Carlotti continuou:

— Assim dito, não parece tão grave, compreendo, mas para elas era terrível. Provavelmente, não tinham documentos, não podiam se queixar, e a última coisa que queriam era voltar para onde tinham vindo, e ela sabia isso.

— Conheceu alguma delas, dottore?

— Conhecer como?

— Se falava com elas do seu país de origem ou do que faziam antes de vir.

— Não, ela não teria consentido. Provavelmente não as deixava falar com ninguém. Se o telefone tocava enquanto eu estava lá, perguntava logo quem era e pedia que lhe dessem. Se ouvia o celular de alguma delas, queria saber quem era e dizia que pagava para trabalharem não para falarem ao telefone.

— E a última?

— Flori? Perguntou o médico.

— Sim.

— Acha que ela a matou?

— O senhor acha, dottore?

— Não sei. Quando encontrei o corpo, a primeira coisa que fiz foi procurar o da Flori. Não acredito que ela pudesse ter feito aquilo: a única possibilidade que me ocorreu foi ela ser outra vítima.

— E agora, dottore? O médico parecia realmente aflito.

— Li os jornais e conversei com o outro agente, e todos parecem ter certeza de que foi ela. Brunetti esperou. — Mas continuo sem conseguir acreditar.

— Porquê? O médico hesitou. Olhava para Brunetti como se quisesse descobrir se aquele homem, que também gastava o seu tempo com as fraquezas humanas, seria capaz de compreender.

— Sou médico há mais de vinte anos, commissario, e faz parte do meu trabalho entender o que pode existir dentro de cada pessoa. Não reparo só nas coisas físicas; vi bastantes pessoas doentes para saber que, muitas vezes, se há um problema no corpo é porque também há um problema na alma. E diria que a alma da Flori não tinha nenhum. Desviou o olhar por um momento e disse: — Desculpe, commissario, não consigo ser mais preciso nem mais profissional.

— E o que me diz da Signora Battestini? Acha que a alma dela tinha algum problema?

— Nada mais do que simples avareza, respondeu Carlotti instantaneamente. Nem a ignorância nem a estupidez saem da alma. Mas a avareza, sim.

— Muitos idosos têm de controlar as despesas, argumentou Brunetti, assumindo o papel de advogado do diabo.

— Aquilo não era para controlar as despesas, commissario. Aquilo era obsessão. Aqui o médico surpreendeu Brunetti com uma frase em latim: — Radix malorum est cupiditas. Não é o dinheiro, commissario, a raiz de todo mal. É o amor ao dinheiro. Cupiditas.

— Ela tinha muito dinheiro com que alimentar a sua avareza? Perguntou Brunetti.

— Isso não sei, respondeu o médico. Na sala de espera, uma criança começou a gritar com o timbre agudo da aflição sincera. Carlotti olhou para o relógio. — Se não tem mais perguntas, commissario, gostaria de começar a atender os meus pacientes.

— Claro, disse Brunetti, levantando-se e guardando o bloco de notas no bolso. — Foi mais do que generoso com o seu tempo. A Signora Battestini recebeu alguma visita enquanto o senhor estava lá na casa? Perguntou enquanto se dirigiam para a porta.

— Que me lembre, ninguém ia visitá-la, disse o médico. Parou, vasculhando a memória. — Como lhe disse, de vez em quando telefonavam, mas ela dizia sempre que estava ocupada e para ligarem mais tarde.

— Lembra-se se falava veneziano com essas pessoas, dottore?

— Na verdade, não sei dizer, respondeu Carlotti. — É o mais provável. Quase tinha esquecido o italiano. Acontece a alguns. Pelo menos, nunca a ouvia falá-lo, acrescentou. Voltou a esfregar a nuca. — Um dia, há cerca de três anos, ela estava ao telefone quando cheguei. Eu tinha a chave para poder entrar se ela não ouvisse a campainha, compreende? Naquele dia, a televisão estava no máximo, ouvia-se na rua, eu sabia que ela não me ouviria se tocasse, portanto abri a porta. Então percebi que tinham abaixado o volume. O telefone deve ter tocado enquanto eu subia as escadas. Ela estava conversando com alguém. Fez uma pausa. — Calculo que a ligação fora feita pela outra pessoa. Ela dizia sempre que o telefone era muito caro. A verdade é que tinha abaixado o volume da televisão e estava falando.

Brunetti, de pé ao lado do médico, esperava em silêncio, lhe dando espaço e tempo para lembrar.

— Ela dizia que tinha estado à espera de notícias dessa pessoa, quem quer que fosse, mas dizia num tom... Não sei... Cruel ou sarcástico, ou entre um e o outro. E então se despediu e chamou qualquer coisa a pessoa, não me lembro o quê. Talvez dottore, ou professore, ou algo do gênero; mas não era por usar o título que falava com deferência, muito pelo contrário. Enquanto o observava, Brunetti viu a lembrança ganhar forma: — Sim, foi dottore, e falava em veneziano, tenho certeza.

— Perguntou-lhe alguma coisa sobre essa conversa? Indagou Brunetti ao ver que o médico não dizia mais nada.

— Não, não. Além disso, senti-me incomodado, talvez pelo tom da sua voz ou por alguma sensação estranha provocada pela sua maneira de falar, e parei na porta. Ao entender o ambiente, fechei a porta, voltei a colocar a chave na fechadura e rodei-a, desta vez fazendo bastante barulho. Então, antes de entrar, chamei e perguntei se ela estava na sala.

— Pode me explicar por que fez isso? Perguntou Brunetti, admirado que um homem, aparentemente tão prático, houvesse tido uma reação tão complexa. O médico negou com a cabeça.

— Não, foi a sensação provocada pela maneira dela falar. Pareceu-me ter sentido algo... Algo perverso.

O choro do bebê se intensificara enquanto falavam. O médico abriu a porta, observou a sala e disse:

— Signora Ciapparelli, já pode entrar com o Piero. O médico deu um passo atrás para deixar Brunetti sair e apertou-lhe a mão. Quando o commissario chegou na porta da rua, a do consultório já tinha se fechado e a criança parara de chorar.


* * *


Treze

DE VOLTA à sua sala, Brunetti discou o número da Signorina Simionato e não obteve resposta novamente. Intrigava-o o dinheiro das quatro contas. Não a soma total: muitas pessoas, aparentemente pobres, tinham fortunas ocultas, acumulada numa longa vida de privações diárias. Lira a lira, renúncia a renúncia, acumulavam um capital que depois deixavam para parentes ou para a igreja. Deviam passar a vida contando, comentou Brunetti de si para si, contando e dizendo não a tudo o que não fosse estritamente necessário para a sobrevivência física. Nem desfrutavam dos prazeres nem satisfaziam os desejos enquanto a vida passava. Ou, pior ainda, o prazer se pervertia e era encontrado apenas na abstinência e o desejo se satisfazia apenas amealhando o produto das privações.

Brunetti observara mais do que uma vez o fenômeno, que já não o surpreendia. O que não se encaixava no esquema era a sofisticação com que se retirara o dinheiro, em primeiro lugar, dos bancos e, em seguida, do país. A sofisticação e a rapidez. As transferências tinham sido feitas na segunda-feira depois da morte, muito antes de poderem ter início as formalidades do testamento. Isso indicava que uma das mulheres, ou as duas, agira assim que soubera da morte da Signora Battestini, o que, por sua vez, sugeria que a idosa tinha as contas bem controladas e teria visto nos estratos mensais qualquer levantamento de fundos.

Brunetti tomou nota para perguntar ao carteiro se os estratos eram entregues em casa. Embora não tivesse encontrado no sótão qualquer vestígio deles, os envelopes de quatro bancos diferentes, cinco, contando com a conta do Uni Credit, não podiam ser ignorados nem pelo carteiro mais negligente.

Na sua juventude, Brunetti se considerara um homem intensamente político. Estava filiado num partido e se alegrava com os seus triunfos, convencido de que a sua ascensão ao poder traria ao país mais justiça social. A sua desilusão não foi rápida, embora tenha sido acelerada pela influência da mulher, que atingira um estado de desespero político e de cinismo negro muito antes dele se resignar a segui-la. Brunetti contestara de forma explícita e com plena convicção as acusações de venalidade e de corrupção endêmica lançadas contra os homens que ele acreditava que iriam conduzir a nação a um futuro melhor e mais justo. Mas depois vira as provas que eram usadas contra eles, não com os olhos do seguidor fiel, mas com os de policial, e tivera de se convencer da sua culpa. Desde então, mantivera-se afastado da política e, se ainda votava, era só para dar o exemplo aos filhos, não porque acreditava que pudesse fazer alguma diferença. Durante aqueles anos, enquanto aumentava o seu cinismo, diminuíam as suas relações antigas com políticos até serem puramente formais, mais do que cordiais.

Agora precisava falar com alguém da atual administração em quem pudesse confiar, e não lhe ocorria nenhum nome. Desviando a atenção para a magistratura, encontrou um único nome, o do juiz encarregado de investigar os danos causados ao ambiente pelos complexos petroquímicos de Marghera. O juiz Galvani, que já não era jovem, estava sendo objeto de uma campanha bem orquestrada para forçá-lo a se aposentar.

Brunetti encontrou o seu número na lista de funcionários da cidade que lhe fora entregue anos atrás, e discou-o. Atendeu um secretário, que disse que o juiz estava ocupado e, quando Brunetti o informou que se tratava de um caso de Polícia, respondeu que talvez estivesse. Brunetti disse então que ligava da parte do Vice-Questore Patta, e o secretário admitiu que o juiz estava lá e passou a ligação.

— Galvani, disse uma voz grave.

— Dottore, fala o Commissario Guido Brunetti. Dispõe de uns minutos para falar comigo?

— Brunetti?

— Sim, senhor Doutor.

— Conheço o seu superior, disse o juiz Galvani, para surpresa do commissario.

— O Vice-Questore Patta?

— Sim. Parece que não tem muito boa opinião sua, commissario.

— Isso é lamentável, senhor Doutor, mas receio que esteja além do meu controle.

— Certamente, respondeu o juiz. — De que queria falar?

— Prefiro não dizer pelo telefone, senhor. Brunetti lera nalguns romances a frase “uma pausa eloquente”. Aquela foi.

— Quando quer que nos encontremos? Perguntou Galvani por fim.

— Assim que possível.

— São quase seis. Saio daqui a meia hora. Nos encontramos naquele lugar na Ponte deite Becarie? Perguntou o juiz, referindo-se a uma Enoteca junto ao mercado de peixe. — Às seis e meia?

— É muito amável, senhor Doutor, disse Brunetti. — Eu visto...

— Eu sei quem o senhor é, interrompeu o juiz. E desligou.


* * *


Ao entrar no bar, Brunetti reconheceu imediatamente o juiz Galvani num homem maduro que estava ao balcão com um copo de vinho branco à frente. Baixo, corpulento, com o nariz proeminente de um grande bebedor, colarinho e punhos do paletó gordurosos, Galvani parecia tudo menos um juiz: um açougueiro, talvez, ou um estivador.

Mas Brunetti sabia que o homem tinha apenas de abrir a boca e começar a falar com a sua voz maravilhosamente modulada, na qual fluía o italiano com uma pronúncia que muitos atores invejavam, para que se revelasse o verdadeiro homem atrás daquele disfarce corporal. Brunetti se aproximou e disse, estendendo a mão:

— Boa tarde, dottore. O aperto de Galvani era firme, quente e enérgico.

— Procuramos um lugar para nos sentarmos? Perguntou, voltando-se para as mesas ao fundo da sala, a maioria ocupada àquela hora.

Nesse momento, três homens se levantaram de uma mesa à esquerda, e Galvani foi rapidamente em direção a ela, enquanto Brunetti pedia um copo de chardonay.

Quando o commissario chegou à mesa, Galvani, que já estava sentado, soergueu-se. Embora sentisse curiosidade sobre o caso contra as petroquímicas de Marghera, onde tinham trabalhado dois tios seus que haviam morrido de câncer, Brunetti não disse nada, sabendo que o juiz não poderia nem quereria falar do assunto. Galvani levantou o copo para Brunetti, bebeu um gole e pousou-o na mesa.

— Sobre o que queria me falar? Perguntou.

— Sobre a mulher que foi assassinada no mês passado, Maria Battestini. Parece que no momento da sua morte tinha várias contas bancárias com um saldo total de mais de trinta mil euros. As contas foram abertas há dez anos, quando o marido e o filho trabalhavam na Secretaria de Estado da Educação e foram feitos depósitos até a sua morte. Brunetti calou-se, pegou no copo, mas voltou a pousá-lo sem beber. Nervoso, fez girar o pé de vidro entre o polegar e o indicador. Galvani manteve-se em silêncio. — Acho que a mulher que foi acusada do homicídio da Signora Battestini não a matou, continuou Brunetti. — Mas não tenho provas. E, se ela não a matou, então foi outra pessoa. Até agora, a única anomalia em tudo o que sabemos da vítima é a existência dessas contas. Remeteu-se de novo ao silêncio, mas continuou sem provar o vinho.

— E o que tenho a ver com isso, se me permite a pergunta? Brunetti olhou para o juiz.

— A primeira coisa que temos de fazer é encontrar a fonte de tais pagamentos. Como os dois homens trabalhavam na Secretaria de Estado da Educação, gostaria de começar por aí. Galvani assentiu, Brunetti continuou: — Há décadas que o senhor está nos tribunais desta cidade, dottore, e consta que teve motivo para examinar o funcionamento de vários setores da burocracia desta cidade, disse Brunetti, orgulhoso da sua delicadeza em descrever o que a imprensa conservadora chamara muitas vezes a "cruzada demente" de Galvani contra as administrações da cidade. — Então me lembrei de que podia estar familiarizado com a Secretaria de Estado da Educação e o seu funcionamento. Galvani assimilou a observação com um olhar de apreciação fria e Brunetti declarou: — Ou seja, o seu funcionamento real. O gesto de assentimento do juiz foi mínimo, mas suficiente para incentivar Brunetti a continuar. — Ou que podia sugerir uma razão ou, talvez, indicar uma pessoa que pudesse explicar esses pagamentos. Ou a existência de uma irregularidade que teria sido preferível não se detectar.

— Irregularidade? Perguntou Galvani e, ao ver o gesto de assentimento de Brunetti, sorriu: — Com que elegância o expressa.

— A falta de uma palavra melhor, disse Brunetti.

— Certamente, disse o juiz, que se recostou na cadeira e sorriu novamente. Numa cara tão feia como a de Galvani, aquele sorriso tinha uma estranha doçura. — Sei muito pouco sobre a Secretaria de Estado da Educação, commissario. Ou melhor, sei e não sei, que parece ser a forma como a maior parte das pessoas leva a vida: acreditando em certas coisas porque alguém sugeriu, ou porque é a única explicação que se encaixa noutras coisas que sabemos. Bebeu outro gole e largou o copo. — A Secretaria de Estado da Educação, commissario, é a arrecadação dos funcionários públicos, ou, se preferir, o cemitério dos elefantes: o lugar para onde sempre foram enviados os irremediavelmente incompetentes, ou onde se deixa alguém estacionado enquanto procura um posto mais lucrativo. Pelo menos foi assim até há quatro ou cinco anos, quando a administração desta cidade teve de admitir que alguns cargos do departamento deviam ser dados aos profissionais que tivessem certos conhecimentos acerca da maneira como ajudar as crianças a aprender. Até então, esses postos eram cargos políticos, embora cargos bastante modestos. Porque realmente... Como dizer isto...? As pessoas que iam parar ali não tinham grandes oportunidades de aumentar o seu ordenado.

Brunetti reconheceu que a fraseologia de Galvani não era menos elegante do que a sua. O juiz levantou o copo e voltou a pousá-lo sem beber.

— Se acha que as contas da Signora Battestini podem ter sido abertas para receber subornos ao marido ou ao filho relacionados com o seu trabalho, sugiro que repense a sua hipótese. Bebeu, pousou o copo e acrescentou: — Compreenderá, commissario, que uma soma relativamente modesta, acumulada durante tanto tempo, não atinge o nível das falcatruas que estou habituado a ver nesta cidade. Sem dar tempo a Brunetti para medir o alcance da observação, o juiz continuou: — Mas, como lhe digo, é um departamento no qual nunca tive de intervir, talvez porque ali as coisas acontecem numa escala menor. Mais uma vez o sorriso. — Não esqueçamos que a corrupção é como a água, encontra sempre algum lugar onde empoçar, por pequena que seja.

Por momentos, Brunetti não pôde deixar de se perguntar se a sua fraca opinião sobre o governo local pareceria tão pessimista aos olhos de uma pessoa menos familiarizada que ele com o funcionamento dos seus mecanismos. Mas deixando de lado a reflexão e também a oportunidade de comentar as palavras do juiz, Brunetti se limitou a perguntar:

— Sabe quem chefiou o departamento naqueles anos? Galvani fechou os olhos, apoiou os cotovelos sobre a mesa e a testa nas palmas das mãos. Ficou assim pelo menos um minuto, depois ergueu a cabeça e olhou para Brunetti.

— Piero De Pra está morto; Renato Fedi dirige uma empresa de construção em Mestre, segundo creio, e Luca Sardelli tem um cargo no Assessorato dello Sport. Que me lembre, dirigiam a sala até terem sido nomeados profissionais. Quando Brunetti julgou que o juiz tinha terminado, Galvani disse: — Aparentemente, ninguém permanece no cargo mais do que alguns anos. Como disse, o departamento tem tanto de cemitério como de rampa de lançamento, embora Sardelli, concretamente, não tenha sido lançado muito longe. A verdade é que não parece que as perspectivas sejam muito promissoras.

Brunetti tomou nota dos nomes. Dois lhe eram familiares: De Pra, porque tinha um sobrinho que andara na escola com o irmão de Brunetti, e Fedi, porque tinha sido recentemente eleito para o Parlamento Europeu. Brunetti resistiu a tentação de perguntar ao juiz por outras salas e outros cargos, e disse apenas:

— Obrigado pelo seu tempo, senhor Doutor; foi muito amável. O sorriso infantil voltou a transformar o rosto do juiz.

— Foi um prazer. Há muito tempo que queria conhecê-lo, commissario. Tinha certeza de que alguém que incomoda tanto o vice-questore devia valer a pena. Acrescentou que o vinho já estava pago, se desculpou dizendo que já era hora de ir para casa jantar, se despediu e saiu.


* * *


Quatorze

NA MANHÃ seguinte, às sete e meia, Brunetti estava no Ufficio Postale, onde perguntou pelo chefe dos carteiros, se identificou e disse que queria falar com o postino que fazia a área de Canaregio próxima do Palazzo del Cammello. A mulher mandou-o para o primeiro andar, segunda porta à esquerda, onde os postini de Canaregio classificavam o seu correio. Era uma sala de teto alto, com balcões compridos e estantes para classificação do correio. Havia dez ou doze pessoas distribuindo envelopes em caixas ou a retirá-los e a introduzi-los nos sacos dos carteiros.

Brunetti perguntou para a pessoa mais próxima, uma mulher de cabelo comprido e rosto vermelho, onde podia encontrar o carteiro que fazia a distribuição na área do Canale della Misericordia. Ela olhou para ele com curiosidade e, apontando para um homem que estava no meio da mesa, gritou:

— Mario, estão perguntando por você. O tal Mario se virou, olhou para as cartas que tinha nas mãos e, uma por uma, com uma simples olhadela ao nome e endereço, distribuiu-as rapidamente pela estante e se aproximou de Brunetti. O homem teria entre trinta e cinco e quarenta anos, calculou Brunetti, e era tão alto como ele, mas mais magro. Uma madeixa de cabelo castanho espesso lhe cobria a testa.

Brunetti se apresentou e identificou-se novamente, mas o postino deteve-o com um gesto e sugeriu que fossem beber um café. Desceram até ao bar e Mario pediu dois cafés e perguntou a Brunetti em que poderia lhe ser útil.

— O senhor entregava o correio à Maria Battestini de Canareggio...?

Mario interrompeu-o recitando o número da casa e levantou as mãos fingindo rendição:

— Desejava tê-lo feito, mas não fui eu. Acredite em mim. Chegaram os cafés e os dois homens puseram açúcar.

— Era assim tão irritante? Perguntou Brunetti enquanto mexia o café. Mario bebeu um gole, pousou a xícara, acrescentou outra meia colher de açúcar e disse, enquanto mexia:

— Sim. Acabou o café e pousou a xícara no pires. — Entreguei-lhe o correio durante três anos. Devo ter lhe entregue em mãos pelo menos umas trinta ou quarenta racomandate e subi as escadas para que ela assinasse o aviso. Brunetti esperava ouvi-lo se queixar de não ter recebido uma gorjeta, mas ele disse apenas: — Eu não espero gorjetas, e muito menos dos idosos, mas nem obrigado me dizia.

— Não é muito correio registrado? Perguntou Brunetti. — Com que frequência chegava?

— Uma vez por mês, respondeu o carteiro. — Pontual como um relógio suíço. E não eram cartas, mas aqueles envelopes acolchoados usados para enviar fotografias ou CD. O dinheiro, pensou Brunetti.

— Lembra-se dos remetentes? Perguntou.

— Havia dois endereços, acho, respondeu Mario. — Pareciam instituições de caridade. Cooperar e Partilhar, Ajuda à Infância. Coisas assim.

— Lembra-se de alguma com exatidão?

— Eu entrego correio a mais de quatrocentas pessoas, disse o carteiro em resposta.

— Sabe me dizer quando começaram a chegar?

— Já os recebia quando me deram aquela área.

— Quem estava lá antes? Perguntou Brunetti.

— Nicolò Matuci, mas ele se aposentou e voltou para a Sicília. Brunetti, abandonando o tema dos envelopes registrados, perguntou: — Levava-lhe envelopes de bancos?

— Sim, todos os meses, disse o carteiro, e recitou os nomes dos bancos. — Isso e faturas eram o único correio que recebia, além de uma ou outra racomandate.

— Lembra-se de quem as mandava?

— A maioria era de pessoas do bairro se queixando da televisão. Antes de Brunetti poder perguntar como sabia, Mario explicou: — Todos me falavam delas, queriam garantir que eu as tinha entregue. O barulho era um incômodo, mas não se podia fazer nada. Ela é velha. Bem, era velha, e a Polícia não fazia nada. Olhou rapidamente para Brunetti e disse: — Desculpe.

Brunetti agitou uma mão, aceitando a crítica com um sorriso.

— O senhor tem razão, disse ele. — Não podemos fazer nada. A pessoa lesada pode fazer uma denúncia, e depois o departamento correspondente... Não sei como se chama... O que lida com as queixas relativas a ruído... Medirá os decibéis, para verificar se existe o que se chama "poluição sonora". Mas não trabalham de noite; se os chamam durante a noite, só vão na manhã seguinte, e então já abaixaram o volume. Como todos os policiais da cidade, Brunetti sabia da situação e, como eles, sabia que não tinha solução. — Nunca entregou outra coisa? Continuou.

— No Natal, cartões de boas-festas; uma ou duas vezes por ano, uma carta, além das queixas sobre o ruído. Mas, de resto, só faturas e envelopes dos bancos. Antes de Brunetti poder fazer algum comentário, Mario completou: — O mesmo se pode dizer de todas as pessoas de idade. Os amigos ou morreram ou vivem nas proximidades, então não há necessidade de escrever. De qualquer forma, aposto que a maioria das pessoas a quem levo o correio é analfabeta e que são os filhos que se encarregam da sua correspondência. Ela não era muito diferente dos outros velhos.

— Fingiu acreditar que eu podia desconfiar que a tinha matado, observou Brunetti quando se dirigiam para a porta do bar.

— Na verdade, não havia razão, disse o postimo, respondendo à pergunta implícita de Brunetti. — Mas havia muitas pessoas que não a suportavam.

— Parece uma reação exagerada ao simples fato de não dizer "obrigado", objetou Brunetti.

— Não me agradava a forma como tratava as empregadas, especialmente aquela que a matou, disse o homem. — Como escravas. Parecia gostar de fazê-las chorar. Vi mais de uma vez. Mario parou à entrada da sala de triagem e estendeu a mão. Brunetti apertou-a, agradeceu, desceu as escadas e estava prestes a sair do edifício em direção ao Rialto quando ouviu o seu nome e, voltando-se, viu Mario se aproximar, com o saco pesado pendurado no ombro esquerdo. Atrás dele vinha a mulher de rosto vermelho.

— Commissario, disse o postino ao se aproximar. Segurou o braço da mulher e quase o arrancou para fazê-la se adiantar. — Apresento-lhe Cinzia Foresti. Tinha o mesmo percurso antes do Nicolò, até há cerca de cinco anos. Achei que talvez também gostaria de falar com ela. A jovem esboçou um sorriso nervoso e ficou ainda mais vermelha.

— Levava o correio à Signora Battestini?

— E ao filho, respondeu Mario. Deu na mulher uma palmadinha no ombro e disse: — Preciso ir trabalhar, afastando-se em seguida.

— Como disse o seu colega, signorina, começou Brunetti, — Me interessa o correio que era entregue à Signora Battestini. Ao ver que ela, por timidez ou medo, parecia relutante em falar, acrescentou: — Em particular, os envelopes bancários que chegavam mensalmente.

— Isso? Perguntou ela, visivelmente aliviada, mas ainda nervosa.

— Sim, confirmou Brunetti com um sorriso. — E também os racomandate que enviavam os vizinhos.

— Posso falar sobre isso? Perguntou ela de repente. — Não se supõe que o correio é confidencial? Ele identificou-se.

— Sim, signorina, é; mas, num caso como este, em que se trata de uma pessoa que foi assassinada, pode falar. Não quis pressionar sugerindo que era uma obrigação. E não tinha certeza se poderia obrigá-la a falar sem um mandado. Ela decidiu acreditar nele.

— Sim, levava-lhe os envelopes dos bancos, todos os meses. Fiz aquele percurso durante três anos.

— Entregou-lhe mais alguma coisa?

— A ela? Na verdade, não. Ocasionalmente, uma carta ou um postal. E as faturas. A pergunta da mulher o fez perguntar por sua vez:

— E ao filho? Ela lançou-lhe um olhar nervoso, mas não disse nada. Brunetti esperou.

— Faturas, principalmente, respondeu ela por fim. — Às vezes, cartas. Depois de uma longa pausa, acrescentou: — E revistas. Notando o constrangimento crescente da mulher, ele perguntou:

— As revistas tinham alguma coisa de especial, signorina? Ou as cartas? Ela olhou em volta no grande vestíbulo e se deslocou um pouco para a esquerda, para se afastar de um homem que falava pelo telefone público localizado perto da entrada.

— Acho que eram de rapazes. Estava muito envergonhada: o rubor lhe deixara o rosto incandescente.

— De rapazes? Quer dizer adolescentes? Ela abriu a boca, mas desistiu e olhou para os pés. De cima, ele viu a cabeça da mulher abanar numa negação lenta. Decidiu lhe dar tempo, mas depois percebeu que seria mais fácil para ela falar sem olhar para ele. Crianças, signorina? Desta vez, a cabeça se moveu para cima e para baixo em sinal de assentimento. Ele quis ter certeza.

— Adolescentes?

— Sim.

— Posso perguntar como sabe, signorina? De início, julgou que não ia obter resposta, mas finalmente ela disse:

— Um dia estava chovendo e o impermeável não tapava bem o saco, então quando cheguei na casa, o correio deles tinha se molhado, ou seja, o que estava por cima. Quando o tirei do saco, o envelope rasgou e a revista caiu. Quando a apanhei, abriu-se e vi a fotografia de um rapaz. Continuava a olhar para o chão, determinada a não levantar a cabeça. — Tenho um irmão mais novo, que tinha então catorze anos, e o jovem da revista parecia ter essa idade. A mulher calou-se e Brunetti percebeu que seria inútil lhe pedir uma descrição mais pormenorizada da fotografia.

— O que fez, signorina?

— Joguei-a fora. Ele não a reclamou.

— E no mês seguinte, quando voltou a chegar?

— Também a joguei fora, e a outra. Depois deixaram de mandá-las, portanto acho que ele descobriu o que eu fazia.

— Essa revista era a única, signorina?

— Sim, mas também havia envelopes. Daqueles que têm um carimbo dizendo "fotografia", para não serem dobrados.

— O que fazia com eles?

— Desde que vi a revista, dobrava-os sempre antes de colocá-los na caixa de correio, disse com um misto de orgulho e indignação.

Ele não conseguiu pensar em mais perguntas, e a mulher disse:

— Depois, ele morreu e parou de chegar correio para ele. Brunetti estendeu a mão. Ela apertou-a.

— Obrigado por ter falado comigo, signorina, disse o commissario num tom formal, acrescentando impulsivamente: — Compreendo-a.

Ela sorriu nervosa e corou de novo.


* * *


Na Questura, Brunetti deixou uma mensagem em cima da mesa de Vianello pedindo que subisse logo que possível. Era quarta-feira e às quartas-feiras a Signorina Elettra não aparecia no escritório antes do meio-dia, um fato que toda a Questura tinha aceito sem curiosidade ou reprovação óbvia. No verão não se bronzeava, portanto não precisavam procurar na praia a causa do seu atraso; não mandava postais, o que indicava que não estava viajando. Além disso, ninguém a tinha visto na cidade numa quarta-feira de manhã, senão a notícia já teria se espalhado. Talvez ficasse simplesmente em casa passando a ferro as camisas de linho, concluiu Brunetti.

Não conseguia deixar de pensar no filho da Signora Battestini. Apesar de agora saber que se chamava Paolo, não conseguia lhe chamar de outra coisa que não "o filho da Signora Battestini". O homem tinha morrido aos quarenta anos e, durante mais de uma década, trabalhara num órgão municipal; no entanto, todas as pessoas com quem Brunetti falara se referiam a ele aludindo a mãe, como se a sua existência tivesse se configurado apenas em termos da sua condição de filho. Brunetti não gostava do jargão psicológico, com as suas explicações simplistas dos complexos conflitos do ser humano, mas acreditava detectar ali uma fórmula óbvia que, portanto, devia ser falsa: pegue-se uma mãe dominadora, numa sociedade fechada e conservadora, junte-se um pai que gosta de passar o tempo livre no bar, bebendo com os amigos, e a homossexualidade do filho está servida. Imediatamente, Brunetti pensou nos seus amigos gay que tinham mães tão discretas que eram quase invisíveis, casadas com homens capazes de comer um leão no almoço, e ficou quase tão vermelho como a mulher na estação dos correios.

Determinado a descobrir se Paolo Battestini fora realmente gay, Brunetti discou o número da sala de Domenico LaIli, dono de uma das empresas químicas que eram investigadas pelo juiz Galvani. Deu o seu nome e, como a secretária não parecia disposta a passar a ligação, disse que era um assunto policial e sugeriu-lhe que perguntasse ao chefe se queria falar com ele. Um minuto depois, falava com LaIli.

— O que foi, Guido? Perguntou o empresário, que já tinha servido de fonte de informação a Brunetti sobre a população gay em Mestre e Veneza. Não havia irritação no seu tom, apenas a impaciência de um homem com uma grande empresa para dirigir.

— Paolo Battestini trabalhou para a Secretaria de Estado da Educação até há cinco anos, quando morreu de Aids.

— Está bem, diz LaIli. — Concretamente, o que quer saber?

— Se era gay, se gostava de adolescentes e se alguém partilhava essa preferência com ele. LaIli emitiu um som de reprovação.

— É o filho da mulher assassinada há algumas semanas?

— Sim.

— Relação entre uma coisa e outra?

— Talvez. Por isso gostaria que visse o que consegue descobrir.

— Há cinco anos?

— Sim. Parece que subscrevia uma revista com fotos de rapazes.

— Muito desagradável, foi o comentário espontâneo do LaIli. — E estúpido. Agora podem obter tudo o que quiserem na Internet, mas continuo dizendo que deviam fichá-los a todos. Brunetti sabia que, quando novo, Lalli fora casado, e que agora tinha três netos dos quais se sentia muito orgulhoso. Temendo ter de ouvir o relato das suas façanhas, Brunetti abreviou:

— Ficarei muito grato por qualquer informação.

— Hum. Vou fazer umas perguntas. Na Secretaria de Estado da Educação, disse?

— Sim. Conhece alguém lá?

— Eu conheço alguém em todo o lado, Guido, disse Lalli simplesmente e sem alarde. — Se souber alguma coisa, ligo. E desligou o telefone sem se dar ao trabalho de dizer adeus.

Brunetti tentou se lembrar se conhecia mais alguém a quem pudesse perguntar, mas sabia que os dois homens que poderiam ajudá-lo estavam de férias. Esperaria as notícias de Lalli antes de tentar entrar em contato com os outros. Uma vez tomada essa decisão, foi ver se Vianello já tinha chegado.


* * *


Quinze

VIANELLO ainda não estava no seu local de trabalho. Quando saía da sala dos agentes, Brunetti encontrou o tenente Scarpa. Depois de uma pausa eloquente, durante a qual o tenente lhe bloqueou a porta com o corpo, Scarpa deu um passo atrás.

— Posso lhe dar uma palavrinha, commissario?

— Claro.

— Talvez na minha sala? Sugeriu Scarpa.

— Desculpe, tenho de voltar para a minha, respondeu Brunetti, que não estava disposto a ceder vantagem territorial.

— Creio que é importante, commissario. Trata-se do caso Battestini. Brunetti arvorou uma expressão vaga.

— Sim? Alguma novidade?

— É a Gismondi, declarou o tenente, sem mais explicações. Embora o nome tenha despertado a curiosidade de Brunetti, ele não disse nada. No fim, o seu silêncio prevaleceu e Scarpa continuou: — Verifiquei o registo das ligações recebidas por nós e encontrei duas em que ela a ameaçava.

— Quem ameaçava quem, tenente? Perguntou Brunetti.

— A Signora Gismondi a Signora Battestini.

— Numa ligação para a polícia, tenente? Não lhe parece um pouco imprudente?

Observou o esforço de Scarpa para se controlar, viu como o tenente apertava as comissuras dos lábios e se erguia alguns milímetros nas pontas dos pés, se perguntou como seria ser o mais fraco num confronto com Scarpa, e não gostou da resposta.

— Se pudesse dedicar um momento a ouvir as gravações, commissario, compreenderia o que quero dizer.

— É assim tão urgente? Perguntou Brunetti, sem tentar esconder a sua irritação.

Como se observar a impaciência de Brunetti tivesse um efeito calmante, um Scarpa mais calmo disse:

— Se preferir não ouvir a ameaça da pessoa que admitiu ter sido provavelmente a última a ver a vítima viva, o problema é seu, commissario. Pensei que o assunto mereceria mais atenção.

— Onde estão? Perguntou Brunetti.

— Onde estão quem, commissario? Perguntou Scarpa, fingindo não ter entendido.

Enquanto dominava o impulso de bater em Scarpa, Brunetti descobriu que este era um desejo que o acometia muitas vezes. Considerava Patta um oportunista, um homem capaz de quase qualquer coisa para proteger a sua posição. Todavia, a componente de fraqueza humana implícita no "quase" fazia com que os sentimentos de Brunetti para com o seu superior não passassem de mera antipatia superficial. Mas odiava Scarpa, a repulsa que lhe inspirava era a mesma que lhe produziria a ideia de entrar num quarto escuro de onde saía um cheiro estranho. A maioria dos quartos tem luz, mas ele temia que não houvesse forma de iluminar o interior de Scarpa, nem qualquer certeza de que o que havia lá dentro, se pudesse ser visto, suscitasse algo mais do que medo.

Era tão evidente que Brunetti não ia responder que Scarpa se virou para as escadas.

— No laboratório, resmungou.


* * *


Bochese não estava à vista, mas o cheiro a fumaça de cigarro no laboratório indicava que não há muito tempo que o chefe saíra dali. Scarpa se dirigiu para o fundo da sala, onde, numa mesa comprida encostada na parede, havia um leitor de fitas e, ao seu lado, duas fitas de noventa minutos com datas e assinaturas nos rótulos.

Scarpa pegou numa, olhou a anotação e enfiou-a no aparelho. Pôs uns auscultadores, apertou o Play, ouviu uns segundos, apertou o Stop, fez avançar a fita e escutou novamente. Após três tentativas, encontrou o ponto certo, parou, rebobinou um pouco e passou os auscultadores a Brunetti. Estranhamente relutante em tocar em algo que tivesse estado em contato com a pele de Scarpa, Brunetti disse:

— Vamos ouvir juntos. Scarpa desligou os auscultadores com um puxão repentino e apertou o Play.

— Daqui fala a Signora Gismondi de Canaregio. já telefonei antes. Brunetti reconheceu a voz, mas não o tom, crispado de indignação.

— Sim, minha senhora. O que foi agora?

— Há hora e meia que lhe disse. Esta mulher está com a televisão tão alta que até o senhor pode ouvir pelo telefone. Ouça.

As vozes de duas pessoas que pareciam estar discutindo subiram de tom e depois desceram.

— Ouviu? A janela dela está a dez metros e ouço-a como se estivesse dentro da minha casa.

— Não posso fazer nada, signora. A patrulha saiu para atender outro serviço.

— Um serviço que dura hora e meia? Perguntou ela, furiosa.

— Não posso lhe dar essa informação, signora.

— São quatro da manhã, disse ela com uma voz que roçava a histeria ou o pranto. — Está ligada desde a uma. Quero dormir.

— Já lhe disse, signora. A patrulha tem o seu endereço. Irá quando puder.

— É a terceira noite que acontece a mesma coisa, e ainda não os vi, disse ela com voz mais aguda.

— Isso não sei, signora.

— Que quer que faça? Que vá lá matá-la? Gritou a Signora Gismondi.

— Como lhe disse, signora, a patrulha irá assim que puder, disse a voz mecânica do impassível telefonista. Um dos dois desligou e a fita continuou a girar com um ciciar suave.

Um Scarpa também impassível disse a Brunetti:

— Na seguinte, ameaça explicitamente matá-la.

— O quê?

— "Se não a fizerem parar, vou até lá e mato-a."

— Deixe-me ouvir isso, disse Brunetti. Scarpa inseriu a outra fita, fê-la avançar até meio, procurou a ligação e fez Brunetti ouvi-la.

Tinha citado a Signora Gismondi com exatidão e Brunetti ficou chocado ao ouvi-la gritar, quase histérica de raiva:

— Se não a fizerem parar, vou até lá e mato-a.

O fato de a ligação ter sido feita às três e meia da manhã e de ser a quarta da noite indicava claramente a Brunetti que era a cólera, não a intenção, que ditava as suas palavras, embora talvez um juiz não entendesse dessa forma.

— E há também os seus antecedentes de violência, acrescentou Scarpa com indiferença. — Que, somados a estas ameaças, creio que justificam que voltemos a interrogá-la sobre os seus movimentos naquela manhã.

— Que antecedentes de violência? Perguntou Brunetti.

— Há oito anos, quando ela ainda era casada, atacou o marido e ameaçou matá-lo.

— Como o atacou?

— O relatório diz que jogou água fervendo.

— Que mais diz o relatório? Perguntou Brunetti.

— Se quiser está no meu escritório, commissario.

— Que mais diz, Scarpa? A surpresa que se refletiu nos olhos de Scarpa foi evidente, tal como o instintivo passo atrás que deu para se afastar de Brunetti.

— Estavam na cozinha, discutindo, e ela lhe jogou água.

— Queimou-o?

— Não muito. A água caiu nos sapatos e nas calças.

— Foi apresentada queixa?

— Não, senhor, mas um relatório foi feito. Uma suspeita súbita fez Brunetti perguntar:

— Quem decidiu não apresentar queixa?

— Não acho que isso seja importante.

— Quem? Havia tanta tensão na voz de Brunetti que a pergunta soou quase como um latido.

— Ela, respondeu Scarpa, depois de uma pausa que tentou estender o máximo possível.

— Que queixa não foi apresentada? Brunetti viu Scarpa considerar a possibilidade de voltar a mencionar o relatório, e detectou o momento em que desistiu.

— A de agressão.

— Que tipo de agressão?

— Ele quebrou-lhe o pulso, ou ela disse que ele o tinha quebrado. Brunetti esperou que Scarpa revelasse mais pormenores e, ao ver que ele resistia, perguntou:

— Com um pulso quebrado, conseguiu lhe jogar em cima uma panela de água fervendo? Como se não tivesse ouvido, Scarpa disse:

— Fosse qual fosse a razão, é um episódio de violência. Brunetti se virou e saiu do laboratório.

Enquanto subia para a sua sala, sentiu o coração bater com força, a raiva reprimida. Percebeu porquê: Scarpa queria apresentar as coisas de modo que parecesse que a Signora Gismondi era a assassina; embora o procedimento fosse desajeitado, era essa a intenção. O que Brunetti não entendia era o porquê. Scarpa nada ganhava ao incriminar a Signora Gismondi. De repente, julgou ter entendido, tropeçou num degrau e teve de se apoiar na parede. Não que Scarpa quisesse prejudicá-la pessoalmente; queria proteger outra pessoa.

Mas, enquanto subia, Brunetti reconheceu que a ideia era absurda, e o senso comum brindou-o com uma explicação mais razoável: Scarpa tinha apenas a intenção de obstruir a investigação de Brunetti e, para ele, nada melhor do que criar uma falsa pista que conduzia a Signora Gismondi.

A ideia era tão ultrajante que Brunetti, já na sua sala, não conseguiu ficar quieto. Esperou alguns minutos para dar tempo a Scarpa de se afastar da escada e desceu até a sala da Signorina Elettra, que ainda não tinha chegado. Se a visse entrar naquele momento, teria perguntado aos gritos com que direito se ausentava metade de uma quarta-feira, quando tinha coisas para fazer. Ao voltar para a sua sala, continuou a repreendê-la mentalmente e a lembrar velhos incidentes, descuidos e abusos que poderia lhe jogar na cara.

Quando entrou, tirou o paletó e atirou-o para cima da mesa, mas o fez com tanta força que caiu no chão, arrastando a pilha de papéis que passara a tarde anterior colocando em ordem cronológica. Irritado, murmurou várias frases com que questionava a virtude da Virgem. Vianello chegou neste momento. Brunetti cumprimentou-o à porta e se virou.

— Entre, disse mal-humorado. Vianello olhou para o paletó e para os papeis, passou em silêncio diante de Brunetti e sentou.

O commissario olhou para as costas de Vianello, notou a insólita rigidez da sua postura e se acalmou um pouco.

— Scarpa, disse, se dirigindo para a mesa. Abaixou-se, apanhou o paletó e pendurou-o nas costas da cadeira, em seguida apanhou os papéis, colocou-os em cima da mesa e se sentou. — Quer fazer parecer que a Signora Gismondi a matou.

— Como?

— Tem uma gravação de duas ligações que ela fez para nós se queixando do barulho da televisão. Nas duas ameaça matá-la.

— Como é a ameaça? Perguntou Vianello. — Com fúria ou a sério?

— Há diferença?

— O senhor grita com seus filhos, commissario? Perguntou. — Gritar é fúria. Bater é a sério.

— Nunca lhes toquei, disse Brunetti instantaneamente, como se se sentisse acusado.

— Eu já, disse Vianello. — Uma vez. Há cerca de cinco anos. Brunetti esperava ouvir uma explicação, mas o inspetor não deu. — Falar de uma coisa é só isso, falar. Passando da teoria à prática. Vianello perguntou: — Além disso, como é que ela entraria? Brunetti viu Vianello analisar e rejeitar uma por uma todas as possibilidades. Por fim, disse: — Não faz sentido.

— Porque ele achou que faria então? Perguntou Brunetti, curioso por saber se a interpretação de Vianello coincidia com a sua.

— Posso falar com franqueza, commissario?

— Claro. O inspetor olhou para os joelhos e sacudiu uma partícula invisível.

— Porque ele o odeia. Eu não sou suficientemente importante para merecer o seu ódio. Também me odiaria se fosse. E tem medo de Elettra.

O primeiro impulso de Brunetti foi questionar aquela interpretação, mas se obrigou a examiná-la com cuidado. Percebeu que não o satisfazia porque, segundo ela, Scarpa era menos malvado do que ele o considerava: culpado apenas de ressentimento, não de conspiração. Pegou nos papéis e começou novamente a arrumá-los por ordem cronológica.

— Quer que vá embora, commissario?

— Não, estou pensando no que disse.

Provavelmente, a explicação correta era a mais simples. Quantas vezes invocara ele este princípio? Apenas maldade, não cumplicidade. Embora essa parecesse agora ser a causa mais provável, não podia negar que teria gostado que Vianello tivesse atribuído a Scarpa motivos mais sórdidos e criminais. Finalmente, Brunetti olhou para o inspetor.

— Tudo bem. É possível.

Pensou por um momento nas consequências: Scarpa sugeriria a Patta a possibilidade de a Signora Gismondi ser culpada. Brunetti teria de fingir que, em princípio, não descartava a ideia, para impedir que Patta se assustasse e o afastasse do caso. Iria se investir tempo em investigar a vida da Signora Gismondi, e se faria isso de forma suficientemente opressiva para convertê-la numa testemunha recalcitrante e, depois intimidá-la para modificar ou retirar o seu depoimento sobre Flori Ghiorghiu, Patta poderia reafirmar a sua convicção de que a romena era a assassina e, mais uma vez, o caso poderia ser considerado encerrado.

— Medi a minha vida por colheres de café, murmurou Brunetti em inglês. Percebendo que Vianello o fitava com estranheza, explicou: — É uma coisa que a minha mulher gosta de dizer.

— A minha diz que devemos investigar o filho, declarou Vianello. Brunetti decidiu ouvir o que Vianello tinha a dizer sobre Paolo Battestini antes de contar a sua conversa com o carteiro, e se limitou a perguntar:

— Porquê?

— Nadia diz que que aqui tem gato, que acha estranha a forma como as pessoas o ignoram. Não lhe parece normal que o tenham conhecido tanto tempo, morado perto dele e visto crescer, e não tenham quase nada a dizer.

Brunetti, que pensava o mesmo, perguntou:

— Ela disse qual pode ser a causa? Vianello negou com a cabeça.

— Não, só que não acha normal ninguém querer falar dele. Brunetti observou a expressão de Vianello: a cara do inspetor refletia uma satisfação moderada, que indicava que soubera algo que dava razão à mulher. Para lhe dar o prazer da revelação, Brunetti perguntou:

— O que encontrou na sala local da Secretaria de Estado da Educação?

— O de costume, respondeu Vianello.

— O que é o de costume?

— A típica burocracia municipal. Liguei e disse que queria falar com o diretor sobre a investigação de um caso criminal. Achei melhor não dar pormenores. Mas me disseram que o diretor estava em Treviso, numa reunião, tal como o seu adjunto. A pessoa com que acabei por falar só estava ali há três semanas e disse que não podia me ajudar. Vianello fez uma careta. — Provavelmente, também não poderia se estivesse ali há três anos.

Brunetti, que conhecia o estilo do inspetor, esperou. Vianello sacudiu outra partícula invisível das calças e continuou:

— Por fim, falei com a chefe do pessoal da sala. Modernizaram-se, agora têm computadores e mesas novas. O departamento se chama agora Recursos Humanos, prosseguiu Vianello. Brunetti encontrou conotações canibalescas no termo, mas não disse nada. — Quando pedi informações sobre Paolo Battestini, me perguntou quando ele tinha trabalhado lá. Disse-lhe e então me explicou que seria difícil encontrar dados, dependendo do período, porque ainda estão introduzindo-os no computador. Ao ver a expressão de Brunetti, Vianello disse: — Não, não perguntei quando iriam acabar, porque não teria servido para nada, mas sim que anos eram afetados. Olhou para cima, procurando a aprovação de Brunetti e, quando a encontrou, continuou: — Procurou no computador e me disse que os últimos cinco anos em que ele trabalhou ali já estavam no sistema, e imprimiu uma cópia do documento.

— Que informações contém?

— Os relatórios dos seus superiores sobre o seu desempenho, as datas de férias, licenças e coisas do gênero.

— Deu-lhe uma cópia?

— Sim, entreguei-a a Signorina Elettra quando chegou. Brunetti tomou nota de que ela tinha finalmente chegado. — Já no fim, há várias licenças prolongadas. Ela está consultando os registos dos hospitais para ver se esteve internado e porquê.

— Posso lhe poupar o trabalho, disse Brunetti. — Ele morreu de Aids.

Vendo o olhar de surpresa de Vianello, fez um resumo da sua conversa na tarde anterior com o Dottor Carlotti e pediu desculpas ao inspetor por não o ter informado antes de ir a sala da Secretaria de Estado da Educação. Todavia, não mencionou a sua conversa com o postino.

— De qualquer forma, não será demais confirmar, disse Vianello. Brunetti escondeu uma ligeira irritação pela insinuação de que o que ele tinha investigado precisava de ser confirmado.

— Conseguiu falar com alguém que tivesse trabalhado com ele? Perguntou.

— Sim, senhor. Quando já tinha a cópia do documento, fiquei ali até cerca das dez horas, momento em que dois homens que achei que podiam ter trabalhado com ele se levantaram dizendo que iam ao bar do outro lado da rua beber um café. Dobrei os papéis e segui-os.

Brunetti admirou a capacidade daquele homem, mais alto e maior do que ele, de passar despercebido quando queria.

— E depois? Incitou.

— Disse-lhes que era da sala de Mestre e eles acreditaram. Não havia nenhuma razão para não acreditarem em mim. Tinham-me visto no escritório e tinham visto a mulher me dar uns papéis, de modo que devem ter pensado que estava lá à trabalho. Enquanto a mulher procurava nos arquivos, ao olhar por cima do ombro dela fixei os nomes de vários funcionários que ainda trabalhavam ali, e assim, depois de pedir um café, perguntei por um deles, dizendo que há muito tempo não o via. A seguir falei no Battestini e perguntei se a mãe era a mulher que fora assassinada e como reagira ele, uma vez que ele lhe fora sempre tão dedicado. Vianello tinha motivos para estar orgulhoso daquela atuação.

— Astuto como uma serpente, Vianello, elogiou Brunetti.

— Mas ai as coisas mudaram. Foi muito estranho, commissario. Como se tivessem lhes atirado a serpente astuta nos pés. Um deles até deu um passo atrás, deixou o dinheiro no balcão e foi embora. O outro, depois de uma pausa, disse que achava que sim, mas que o Battestini já não trabalhava ali. Nem sequer disse que tinha morrido. E depois desapareceu. Isto é, digo ao empregado que quero pagar os cafés, me viro e ele já tinha ido embora. Não que não estivesse ao meu lado, mas já não estava sequer no bar. O inspetor balançou a cabeça com a lembrança.

— Sabe a que se pode ter devido a debandada? Perguntou Brunetti.

— Há vinte anos, teria pensado que não queriam falar dele porque era gay, mas agora ninguém dá importância a isso. E a maioria das pessoas tem pena daqueles que morrem de Aids, por isso deve ser por outra coisa e, provavelmente, tem a ver com a sala. Mas seja o que for, não lhes agradou que um desconhecido perguntasse por ele. E, com um sorriso amargo, acrescentou: — Pelo menos, é essa a minha impressão.

— Ele assinava uma revista que publicava fotografias de rapazes, disse Brunetti, observando o efeito dessa informação no rosto de Vianello. E esclareceu: — Adolescentes, não crianças. Depois de um momento, o inspetor disse:

— Não me parece que os colegas tivessem esse tipo de informação. Brunetti reconheceu que o inspetor tinha razão. — Então, provavelmente seria algo relacionado com o seu posto na Secretaria de Estado da Educação.

— Assim parece, disse Vianello.


* * *


Dezesseis

ENQUANTO descia as escadas com Vianello a caminho da sala da Signorina Elettra, a fim de lhe poupar o trabalho de pesquisar os registros do hospital, Brunetti ia pensando se aquilo poderia ser chamado "pesquisa" ou deveria ser considerado "piratear". De repente, descobriu que não se importava com a forma como ela obtinha a informação que lhe dava e sentiu uma onda de vergonha por aquele momento de cólera que a sua ausência provocara. Como Otelo, ele tinha a seu lado um tenente que era capaz de corromper os seus melhores sentimentos. Como se tivesse sido avisada que hoje devia interpretar o papel de Desdêmona, a Signorina Elettra trazia um vestido comprido de gaze de linho branco e o cabelo solto. Saudou a entrada dos dois homens com um sorriso.

— Teve sorte? Perguntou Vianello antes dela poder abrir a boca.

— Não, respondeu num tom de desculpas. — O vice-questore me telefonou. Como se isso não bastasse como justificação explicou: — Queria escrever uma carta e estava muito preocupado com a redação. Fez uma pausa, curiosa em saber quem seria o primeiro a perguntar. Foi Vianello.

— Está autorizada a divulgar a natureza dessa carta?

— Céus, não, ou as pessoas iriam ficar sabendo que está se candidatando a um posto na Interpol. Brunetti foi o primeiro a se recuperar da surpresa.

— Claro, claro, devíamos esperar isso, disse ele. Vianello não encontrava palavras para traduzir os seus sentimentos. — Pode nos dizer a quem é endereçada a carta? Perguntou Brunetti.

— A minha lealdade para com o vice-questore não me permite, commissario, disse ela com aquele tom de sinceridade piedosa que Brunetti ouvia muitas vezes na voz de políticos e religiosos. Então, apontando com o indicador para um papel que estava em cima da mesa, perguntou inocentemente: — Acha que um pedido ao presidente da Câmara para uma carta de recomendação deve ser enviado pelo correio?

— É mais rápido por e-mail, signorina, sugeriu Brunetti.

— Mas o vice-questore é muito tradicional, interrompeu Vianello. — Creio que vai querer assinar a carta de próprio punho.

A Signorina Elettra assentiu e disse, em resposta à pergunta inicial de Vianello:

— Pensei em dar uma olhada no histórico médico.

— Não há necessidade, afirmou Brunetti. — Battestini morreu de Aids.

— Pobre homem, comentou ela.

— Também era assinante de uma revista que publicava fotos de rapazes, cortou Vianello com aspereza.

— Ainda assim, morreu de Aids, e ninguém merece isso, inspetor. Depois de uma pausa considerável, Vianello resmungou, contra a sua vontade:

— Talvez não... E então se lembraram de que o inspetor tinha dois filhos pré-adolescentes.

Houve um silêncio desconfortável a que Brunetti pôs fim antes que pudesse perturbar o ambiente, dizendo:

— Vianello falou com pessoas do bairro e ex-colegas de trabalho, e todos reagiram da mesma maneira: bastou ouvir o nome dele para ficarem de bico calado. Todos concordam que a mãe era antipática, e o pai uma brava persona, embora apegado ao vinho, mas, ao ouvir o nome de Paolo, ninguém diz nada. Deu-lhe um momento para pensar e perguntou: — A que acha que isso se deve?

Ela se sentou e apertou uma tecla do computador que desligou a tela. Pôs o cotovelo em cima da mesa e apoiou o queixo na palma da mão. Ficou imóvel, quase dando a impressão de que tinha deixado o escritório ou, pelo menos, que só estava ali o seu corpo vestido de branco, enquanto o seu pensamento voava longe. Por fim, olhou para Vianello.

— O silêncio poderia se dever ao respeito, disse. — A mãe foi vítima de um homicídio horrível e ele morreu de uma doença cruel. Não é de estranhar que as pessoas não queiram falar mal dele, nem agora nem nunca. Com a outra mão, esfregou a testa distraidamente. — Quanto aos colegas de trabalho, se ele morreu há cinco anos, provavelmente já esqueceram dele.

— Não, foi algo mais forte do que isso, interrompeu Vianello. — Não queriam falar sobre ele de jeito nenhum.

— Falar dele ou responder a perguntas sobre ele? Perguntou Brunetti.

— Não apontei uma pistola para suas cabeças, declarou um ofendido Vianello. — Fecharam-se em copas.

— Quantas pessoas trabalham lá? Perguntou Brunetti.

— Em toda a sala?

— Sim.

— Não faço ideia. Ocupa dois andares, talvez sejam cerca de trinta pessoas. Na seção dele parecia não haver mais que cinco ou seis.

— Isso pode ser facilmente investigado, commissario, disse a Signorina Elettra, mas Brunetti, intrigado com aquela relutância geral em falar sobre o filho da Signora Battestini, decidiu ir pessoalmente na sala nessa mesma tarde. Falou-lhes da sua conversa com LaIli e disse que, assim que recebesse resposta, informaria.

— Enquanto isso, signorina, gostaria que visse o que pode encontrar sobre Luca Sardelli e Renato Fedi. São os únicos ex-diretores da sala local da Secretaria de Estado da Educação que ainda vivem.

Não confessou que só sugerira aquilo porque não se lembrara de mais nada.

— Quer interrogá-los, commissario? Perguntou Vianello. Olhando para a Signorina Elettra, Brunetti perguntou:

— Não podia antes dar uma olhada? Ela concordou e ele explicou: — Tenho certeza de que Sardelli está no Assessorato dello Sport e Fedi dirige uma empresa de construção em Mestre. Também é eurodeputado, mas não sei por que partido. Ela não conhecia nenhum dos homens, tomou nota das informações dadas pelo commissario e disse que investigaria imediatamente e que certamente teria alguma coisa depois do almoço.

Como decidira ir a sala da Secretaria de Estado da Educação no início da tarde, Brunetti percebeu que pouparia tempo se não almoçasse em casa, e perguntou a Vianello tinha se planos para o meio-dia. Após um segundo de hesitação, o inspetor disse que não e combinaram se encontrar na portaria dali a dez minutos. Brunetti pegou no telefone e ligou para avisar Paola de que não iria em casa.

— Que pena, disse ela, — As crianças estão aqui e vamos comer... Interrompeu-se.

— Continue, instou ele. — Sou homem, consigo aguentar.

— Legumes grelhados como entrada, e vitela com limão e alecrim. Brunetti gemeu de forma dramática. — E, para sobremesa, sorbetto de limão caseiro com creme de figos.

— Isso é verdade? Perguntou ele, desconfiado. — Não será a sua maneira de me punir por não ir em casa?

— Preferia que dissesse que ia levá-los ao McDonald's para comer um Big Mac? Perguntou por fim.

— A isso se chama maus tratos a menores.

— Já são maiores, Guido.

— Continua a ser maus tratos, disse ele e desligou.

Brunetti e Vianello decidiram ir ao Da Remigio, mas quando chegaram viram que estava fechado até dez de setembro. O mesmo aconteceu noutros dois restaurantes, o que não lhes deixava alternativa senão irem a um chinês ou fazer a caminhada até à Via Garibaldi, para ver se havia algum aberto.

Por acordo tácito, voltaram para trás e se dirigiram ao bar da Ponte dei Greci, onde, pelo menos, os tramezzini e o vinho eram honestos. Tentando não pensar na vitela assada, Brunetti pediu um prosciutto e funghi, um prosciutto e pomodoro e um panino simples com salami. Vianello, pensando sem dúvida que, na ausência de um almoço como devia ser, não importava o que comia, pediu o mesmo.

Vianello levou para a mesa uma garrafa de água mineral e meio litro de vinho branco e se sentou à frente de Brunetti.

— Nadia tinha feito massa fresca, disse, olhando para o prato de sanduíches que estava no meio da mesa, e pegou num tramezzino.

O inspetor não voltou a falar até ter terminado o primeiro pão e bebido dois copos de água mineral. Em seguida, pousou o copo na mesa e serviu vinho aos dois.

— Que faremos com Scarpa? Perguntou. A omissão do tratamento bastou para indicar a Brunetti que a conversa era totalmente oficiosa. O commissario bebeu um gole de vinho.

— Acho que a única coisa que podemos fazer é deixá-lo continuar a investigar, se se pode chamar assim, a Signora Gismondi.

— É um absurdo, disse Vianello com irritação.

Não conhecia pessoalmente a Signora Gismondi, tinha apenas lido o relatório do caso e ouvido o que Brunetti contara da conversa com ela, mas fora o suficiente para convencê-lo de que a mulher não tinha feito nada mais do que ajudar a romena a sair do país. Então, consciente da interpretação que esta intervenção podia ter, perguntou:

— Acha que será capaz de dizer que ela foi cúmplice, porque lhe deu o dinheiro e comprou a passagem de trem?

Brunetti já não sabia do que Scarpa podia ser capaz. Lamentava que uma mulher como a Signora Gismondi, que lhe parecera uma excelente pessoa, tivesse se convertido em refém de Scarpa na guerra de guerrilha que o tenente travava contra ele, mas compreendia que qualquer tentativa sua de resgatá-la expô-la-ia a represálias piores.

— Acho que não podemos fazer nada, a não ser deixá-lo continuar. Se tentamos pará-lo, dirá que temos algum motivo inconfessável para protegê-la, e sabe Deus onde isso nos levaria.

Era-lhe difícil prever as ações de Scarpa porque não conseguia entender os seus motivos. Ou melhor, conseguia percebê-los, compreendê-los intelectualmente, mas era incapaz de atribuir um sentido, porque as suas mentalidades eram diferentes. Estava convencido de que Paola poderia interpretá-los muito melhor, e até mesmo a Signorina Elettra. E então, sem entender, pensou que não era à toa que se dizia que as gatas caçavam melhor do que os gatos e pareciam gostar mais de torturar a presa antes de matá-la. Vianello arrancou-o destas reflexões ao perguntar:

— Encontra algum sentido nisto, commissario?

— No quê? No homicídio? Ou no Scarpa?

— No homicídio. Scarpa é fácil de entender. Desejando que assim fosse, Brunetti disse:

— A mulher foi morta por alguém que a odiava ou queria dar essa impressão. O que vem a dar ao mesmo. Vendo a expressão de Vianello, explicou: — Quero dizer que quem fez aquilo é capaz desse tipo de violência, seja por ira ou por cálculo. Não vi o cadáver, mas vi as fotografias.

Sabia que era inútil dizer agora o quanto lamentava não ter interrompido as férias quando lera a notícia do homicídio. Devia ter desconfiado dos jornais e, mais ainda, das respostas que deram quando ligou para a Questura para obter informações sobre o caso e disseram que estava resolvido. Os quatro se encontravam na costa da Irlanda: Raffi e Chiara, dedicados, metade do tempo, a navegar e a explorar os baixios, e a outra metade a comer enquanto ele e Paola reliam pacientemente Gibbon e os romances de Palliser respetivamente. Faltara-lhe coragem para propor o regresso a Veneza.

Enquanto esperava que o seu superior continuasse, Vianello comeu o pão que restava e acabou a água. Fez sinal ao empregado e levantou a garrafa vazia.

— Tanto a sua mulher quanto a minha diriam que são simples preconceitos machistas, afirmou Brunetti, — Mas tenho certeza de que não foi uma mulher. Vianello assentiu com a cabeça, aprovando os simples preconceitos machistas, e Brunetti continuou: — Por isso, é preciso encontrar uma razão para que um homem quisesse matá-la, e teria de ser um homem que tinha acesso ao apartamento ou que ela deixaria entrar. O garçom pôs a garrafa na mesa e Brunetti encheu os copos antes de continuar: — Até agora, a única coisa que descobrimos que não encaixa é o dinheiro: deixou de chegar quando a mulher morreu, e a advogada não o mencionou. Ignoramos o que a sobrinha sabia, ou se sabia alguma coisa. Serviu-se de vinho, mas não bebeu. — Nem havia razão para que Marieschi me falasse sobre isso, ainda que estivesse a par, acrescentou.

— Poderia ter ficado com ele?

— Claro.

— Não é estranho que custe a acreditar que uma pessoa que tenha um cão como aquele possa ser desonesta? Perguntou Vianello.

Brunetti lhe falara de Poppi. Bebeu um gole de vinho, olhou para o garçom, levantou o prato, pousou-o e disse:

— É engraçado. A maioria das pessoas que prendemos tem filhos e nunca me ocorreria pensar que isso poderia impedi-las de cometer um crime.

Ao ver que Brunetti não fazia comentários a esta observação, Vianello voltou ao tema principal:

— A sobrinha também pode ter movimentado o dinheiro. Pensando no que sabia sobre as classes profissionais, Brunetti acrescentou:

— Ou alguém do banco, assim que soube que ela estava morta.

— Claro. Vieram os sanduíches, mas Brunetti só conseguiu comer metade de um e deixou o restante no prato.

Sem necessidade de especificar que se referia à Signorina Elettra, Brunetti perguntou:

— Acha que ela pode descobrir quem fez as transferências? Vianello bebeu o vinho, mas não voltou a encher o copo. Após um momento de reflexão, respondeu:

— Se houver algum registro nos arquivos, ela irá encontrá-lo.

— É terrível, não é? Perguntou Brunetti.

— Sim, se for um banqueiro, respondeu Vianello.

Voltaram para a Questura oprimidos pelo calor da tarde e irritados um com o outro pelo almoço de sanduíches. A Signorina Elettra, com ar de quem passara a hora do almoço numa sala com ar condicionado enquanto lhe engomavam o vestido, saudou-os com uma expressão insolitamente sombria quando entraram em sua sala.

— As transferências? Perguntou Vianello, notando a sua alteração de humor.

— Não as encontro, respondeu ela laconicamente.

Na mente de Brunetti surgiram de repente as imagens da advogada: era alta, atlética e de mão firme. Tentou imaginá-la atrás da velha, com o braço levantado, mas depois se sobrepôs à sua figura a lembrança das revistas de passatempos que partilhava com Chiara: "Encontre o erro na imagem." Tinha visto as mãos da Avvocatessa Marieschi acariciarem as orelhas de Poppi. Chamou-se a si mesmo idiota sentimental e prestou atenção ao que a Signorina Elettra dizia.

— ... sido qualquer uma delas, concluía, apontando para a tela do computador.

— O quê? Perguntou Brunetti.

— A transferência, repetiu a Signorina Elettra. — Qualquer uma pode ter feito.

— A sobrinha? Perguntou Vianello. Ela anuiu.

— Só precisaria do número da conta, da procuração e do código: a transferência seria automática. Bastava preencher o formulário e entregá-lo no caixa. Antes dele poder perguntar se poderia verificar a assinatura no formulário, ela disse: — Não, o banco não forneceria sem um mandado. Brunetti fez então a pergunta obrigatória:

— E o que me diz dos bancos das ilhas do Canal? Ela negou com a cabeça.

— Tentei de várias maneiras, mas nunca consegui nada deles. Embora a contragosto, havia respeito na sua voz. Brunetti se sentiu tentado a perguntar se tinha o dinheiro lá, mas se conteve.

— Ocorre-lhe alguma maneira de localizar essa ordem? Inquiriu.

— Sem um mandado, não, commissario. E todos sabiam quais as probabilidades de conseguir um.

— Encontrou algo sobre a sobrinha? Perguntou Brunetti.

— Muito pouco. Nascimento, história escolar, registros médicos, impostos. O normal.

Brunetti reparou que não falara com ironia: para ela, averiguar estes dados acerca de uma pessoa era tão fácil como consultar a lista telefônica.

— Então? Insistiu Brunetti.

— Pois parece tão estranha como a tia, disse a Signorina Elettra.

— Onde trabalha?

— É assistente de pastelaria no Romolo, disse ela, se referindo a uma pastelaria do outro lado da cidade, onde Brunetti costumava ir aos domingos de manhã.

A chegada de Alvise fez Brunetti regressar das suas divagações; pois vinha correndo e se apoiou com uma mão no marco da porta para frear e não se chocar com Vianello.

— Commissario, acabei de receber uma ligação para si, de uma mulher, anunciou arquejante.

— Sim? Perguntou Brunetti, alarmado com a expressão do agente, normalmente tão fleumática.

— Ela pede que vá até lá.

— Que vá onde, Alvise? Perguntou Brunetti. O agente levou um momento para responder.

— Não disse, commissario. Apenas que devia ir agora mesmo.

— Porquê?

— Disse que mataram a Poppi.


* * *


Dezessete

O NOME galvanizou Brunetti.

— Disse de onde estava ligando? Perguntou a Alvise, tentando manter a voz serena.

— Não me recordo, commissario, respondeu Alvise, admirado pelo fato de o seu superior mostrar interesse por semelhante ninharia, ante uma mensagem tão urgente.

— O que ela disse exatamente, Alvise? Perguntou Brunetti. Ao detectar a inflexão do seu superior, Alvise largou o marco da porta e se endireitou. O seu rosto refletiu o esforço que fazia para se lembrar da conversa.

— Como o senhor não atendia, a ligação foi desviada para a central, e Russo, achando que talvez estivesse com Vianello, passou-a para a nossa sala, e eu atendi.

Uma vez mais, Brunetti sentiu o desejo de bater na pessoa que tinha à sua frente, mas limitou-se a falar:

— Continue.

— Era uma mulher, e acho que estava chorando, commissario. Perguntou por si e quando disse que iria à sua procura, me pediu para dizer que fosse já, porque eles tinham matado a Poppi.

— Disse mais alguma coisa, Alvise? Perguntou Brunetti com uma calma férrea.

Como se lhe pedissem que lembrasse uma conversa que tivera lugar há semanas, Alvise fechou os olhos por um momento, abriu-os e olhou para o chão.

— Só que a encontrou na chegada. À Poppi, suponho.

— Ela disse onde estava, Alvise? Repetiu Brunetti com voz tensa.

— Não, senhor, disse o agente. — Apenas disse que a encontrou ao voltar do almoço.

Brunetti descontraiu as mãos, que tinha fechadas em punhos de cada um dos lados do corpo.

— Pode ir, Alvise. Voltando-se para Vianello e para a Signorina Elettra, ignorando o andar barulhento de Alvise, Brunetti disse: — Descubra onde ela mora, Vianello, e vá ver se está em casa. Eu vou ao escritório.

— E se estiver, commissario? Perguntou Vianello.

— Pergunte-lhe quem são "eles" e porque acha que mataram a cadela.

Brunetti se virou e, antes de a Signorina Elettra pegar na lista telefônica, já tinha saído da sala. Confirmando que levava o celular no bolso, desceu as escadas e saiu da Questura. Amarrada ao cais se via uma lancha vazia, mas não quis voltar a entrar para procurar o piloto e dirigiu-se a Castello.

Quando chegou ao final de Salizada S. Lorenzo, tinha a roupa colada às costas e o colarinho da camisa encharcado de suor. Ao sair das ruas à sombra para a Riva degli Schiavoni sentiu a pressão do sol da tarde. Inicialmente pensou que a leve brisa que vinha da água seria um alívio, mas apenas lhe provocava arrepios ao atravessar o tecido húmido.

Brunetti percorreu rapidamente a última ponte e virou na Via Garibaldi. O sol mantinha a maioria das pessoas dentro de casa. Nem sob os toldos dos bares se viam clientes. As pessoas esperavam que o Sol descesse para oeste, deixando pelo menos um lado da rua na sombra.

A porta da rua estava aberta, e Brunetti subiu correndo as escadas até ao escritório. À frente da porta havia uma poça de um lodo amarelado que podia ser vômito. Ele passou por cima e bateu na porta com o punho, gritando:

— É o Brunetti, signora. Tentou a maçaneta e constatou que cedia. Entrou e tornou a gritar: — Estou aqui, signora.

Sentiu um cheiro acre e viu mais líquido amarelo, agora numa mancha da parede, ao lado da mesa da secretária e no chão. Pensou ter ouvido barulho atrás da porta da sala. Sem sequer pensar na arma, que estava numa gaveta trancada da sua mesa, Brunetti atravessou a sala e abriu a porta da sala de Marieschi.

A advogada, sentada à mesa, tapava a boca com a mão esquerda, como se, ao ver a porta abrir, tivesse querido abafar um grito de pânico. Ele achou que ela o reconhecera, porque viu diminuir um pouco a expressão de terror dos seus olhos, embora a mão não afrouxasse a pressão sobre a boca. Brunetti, sem dizer uma palavra, percorreu a sala com os olhos. Viu a cadela no chão, à esquerda da mesa, numa poça daquela malcheirosa substância amarela.

Poppi tinha a boca aberta e a língua demasiado de fora, coberta com uma espuma densa esbranquiçada. O olho visível estava vítreo e fixo na dona, acusador ou suplicante. O arrepio de Brunetti deveu-se tanto a ideia do que agora precisava fazer com o frio da sala. Décadas atrás, quando lhe ensinaram que devia sempre pressionar uma testemunha no seu momento de maior debilidade, fora fácil assimilar a ideia como norma geral; o difícil era pô-la em prática.

Aproximou-se da mesa, esperou um momento e estendeu a mão para a mulher em silêncio.

— Acho que devia vir comigo, signora, disse, sem se aproximar mais e mantendo a voz calma.

Ela, ainda com a mão na boca, negou com a cabeça.

— Já não pode fazer nada por ela, disse Brunetti, sem tentar esconder a pena que sentia do belo animal. — Vamos sair daqui. Acho que seria o melhor.

— Não quero deixá-la sozinha, disse ela, evitando olhar para a cadela.

— Não faz mal, signora, disse ele, embora não soubesse o que queria dizer com aquilo. Fez um gesto com os dedos, convidando-a a se levantar. — Venha. Não faz mal.

Ela retirou a mão da boca, pousou-a na mesa com a palma para baixo, colocou ao lado a outra mão e se levantou pesadamente, como uma velha. Sem olhar para a cadela, saiu de detrás da mesa pelo lado oposto e se dirigiu a Brunetti. O commissario segurou-lhe no braço e levou-a para a sala de espera, fechando a porta.

Afastou a cadeira da mesa e, virando-a de costas para a mancha na parede, ajudou-a a sentar. Trouxe outra cadeira, colocou-a à frente dela, a um metro de distância, e também se sentou.

— Pode me contar o que aconteceu, signora? Ela não respondeu. — Conte-me o que aconteceu.

A Signora Marieschi começou a chorar. Chorava baixinho, apertando os lábios, com muitas lágrimas. Quando finalmente começou a falar, a sua voz estava surpreendentemente calma, como se contasse coisas que tivessem acontecido noutro lugar ou a outras pessoas.

— Não tinha mais de dois anos. Era ainda um cachorrinho. Gostava de toda a gente.

— É próprio da raça, creio, disse Brunetti. — São muito afetuosos.

— Não desconfiava de ninguém, qualquer pessoa teria podido lhe dar.

— Refere-se ao veneno? Perguntou Brunetti. Ela anuiu.

— Atrás da casa há um jardim, deixo-a lá o dia todo, mesmo quando saio para almoçar, disse ela antes que ele pudesse perguntar como acontecera. — Toda a gente sabe.

— Todos os vizinhos ou todos os seus clientes? Ela continuou, como se não tivesse ouvido a pergunta:

— Quando voltei, fui buscá-la para trazê-la para cima. Foi então que vi. Havia... Havia vomitado por toda o gramado e não era capaz de andar. Tive de trazê-la no colo. Olhou em volta, viu a mancha na parede, mas parecia não reparar nas que tinha na saia e no sapato esquerdo. — Deixei-a ali e voltou a vomitar. Levei-a para a sala e liguei para o veterinário, mas não estava. Então voltou a vomitar. E morreu. Nenhum dos dois disse nada até que ela continuou: — A seguir liguei para o senhor. Mas também não estava. Falou num tom que fez com que ele se sentisse alvo da mesma acusação vaga que merecera o veterinário.

Fingindo não reparar, Brunetti disse, se inclinando ligeiramente para ela:

— O agente que me deu o seu recado disse que ela tinha sido morta. Quem acha que foi, signora?

Ela juntou as mãos, pô-las entre os joelhos e inclinou o tronco para frente, de modo que ele só lhe via o topo da cabeça e os ombros. Os dois ficaram em silêncio durante muito tempo. Quando ela falou, fê-lo em voz tão baixa que Brunetti teve de se inclinar ainda mais para ouvir o que ela dizia.

— A sobrinha dela, disse. E então: — Graziella.

— Porque faria uma coisa dessas? Perguntou Brunetti num tom mais duro.

A mulher encolheu os ombros com tanta veemência que, instintivamente, ele se afastou. Ficou à espera de uma explicação e, ao ver que não chegava, perguntou:

— Talvez por causa de algo relacionado com a herança, signora? Sugeriu, não querendo ainda revelar que sabia da existência das contas bancárias.

— Talvez, respondeu a advogada, e o ouvido de Brunetti detectou um primeiro tom evasivo, sinal de que a mulher começava a sair do trauma causado pela morte da cadela.

— O que ela pensa que a senhora fez? Perguntou o commissario. Estava preparado para ver um encolher de ombros, mas não para que lhe mentissem na cara.

— Não sei. Brunetti percebeu que aquele era o momento crucial. Se deixasse passar aquela mentira, podia dizer adeus a obter dela a verdade, por mais que perguntasse.

Com toda a naturalidade, como se fosse um velho amigo que tinha sido convidado a se sentar perto da lareira para falar à vontade, disse:

— Não teríamos grande dificuldade em provar que a senhora tirou o dinheiro do país, avvocatessa, e mesmo que não conseguíssemos condená-la porque tem uma procuração, a sua reputação profissional estaria comprometida. Então, como se acabasse de lhe ocorrer a conveniência de adverti-la de outras possíveis consequências, acrescentou na sua qualidade de amigo: — E suponho que também da Finanza quereriam lhe falar desse dinheiro.

Ela ficou estupefata. Esquecendo todas as suas artes de advogada perguntou:

— Como sabem isso?

— Sabemos e basta, declarou ele, já sem qualquer compaixão na voz.

Ela percebeu a mudança de tom, se endireitou e até puxou a cadeira para trás. Brunetti viu a expressão endurecer tanto como a dele.

— Acho que é melhor falarmos claramente, signora, começou. Ao ver que ela ia protestar, atalhou: — Não me interessa o dinheiro ou o que fez com ele: quero saber é de onde veio. De novo, viu que ela estava prestes a falar e percebeu que, se não a conseguisse assustar o suficiente, ela mentiria. — Se a sua explicação não me satisfizer, escreverei um relatório formal acerca dessas contas, mencionando a sua procuração e a data e o destino das transferências.

— Como descobriram? Perguntou com uma voz que Brunetti não tinha ouvido antes.

— Como lhe disse, é irrelevante. Só quero saber de onde vinha o dinheiro.

— Ela matou a minha cadela, disse a mulher com uma ferocidade súbita. Brunetti perdeu a paciência.

— Então é melhor que não tenha matado também a tia porque, nesse caso, a próxima da lista é a senhora.

Ela abriu os olhos, acusando o golpe. Moveu negativamente a cabeça uma, duas, três vezes, descartando categoricamente essa possibilidade.

— Não, disse, — Não podia ser ela.

— Porque não?

— Eu a conheço, sei que não faria uma coisa dessas. O seu tom não admitia discussão.

— E a Poppi? Não matou a Poppi? Brunetti ignorava se aquilo era verdade, mas bastava que ela acreditasse.

— Ela odeia cães. Odeia animais.

— Conhece-a bem?

— Conheço-a o suficiente para saber.

— E o suficiente para saber que não mataria a tia? O ceticismo do commissario foi para ela uma provocação que a fez responder:

— Se a tivesse matado, teria tirado o dinheiro antes. Ou no dia seguinte.

Supondo que a advogada devia saber que a sobrinha também tinha uma procuração e que, talvez, a tivesse redigido ela mesma, Brunetti perguntou:

— Mas a senhora se adiantou, não é? Se a pergunta a ofendeu não o demonstrou.

— Sim, limitou-se a responder.

— Então talvez tenha sido a senhora a matá-la, disse ele sem convicção, mas curioso para ver a sua reação.

— Eu não mataria por tão pouco, disse a advogada, e ele, como não soube o que dizer, voltou a se referir às contas bancárias.

— De onde veio o dinheiro? Vendo que a mulher não ia responder, continuou: — A senhora era advogada dela, ela dera-lhe uma procuração, alguma coisa deve saber. Como ela continuava a resistir, ele disse: — Quem a matou era uma pessoa em quem confiava o suficiente para deixá-la entrar na casa. Talvez soubesse do dinheiro, ou talvez a pessoa fosse a pessoa que lhe dava há anos. Viu-a especular, se adiantar às suas palavras e considerar possibilidades. Recusando-se a expressar a pior delas, Brunetti prosseguiu: — Talvez lhe convenha que encontremos essa pessoa, avvocatessa.

— Pode ser a mesma que a matou? Perguntou com a voz embargada. Ao ver que ele não respondia, acrescentou: — Poppi.

Ele concordou, embora achasse que uma pessoa capaz da brutalidade que fora empregue contra a Signora Battestini não podia ser das que avisam matando primeiro o cão. Toda a resistência da advogada cedeu ante a evidência da sua própria vulnerabilidade.

— Não sei quem era, disse. — Não sei mesmo. Ela nunca me disse. Brunetti esperou quase um minuto para que continuasse e, ante o seu silêncio, perguntou:

— O que lhe disse?

— Nada. Apenas que o dinheiro era depositado mensalmente.

— Disse-lhe por que precisava do dinheiro ou o que queria que se fizesse com ele? Ela negou com a cabeça.

— Não, só que estava ali. Pensou um pouco e disse com evidente estranheza: — Não acho que fosse importante para ela gastá-lo ou poder dispor dele. Só se importava tê-lo, saber que estava ali. Levantou a cabeça e olhou em volta como se procurasse uma explicação para esse estranho comportamento. Então se voltou para Brunetti. — Só me falou dele há três anos, quando teve a ideia de fazer um testamento.

— O que lhe disse então? Tornou ele a perguntar.

— Só que estava lá.

— Disse para quem queria que fosse? A advogada fingiu-se confusa, e ele repetiu: — Disse-lhe para onde queria que fosse o dinheiro? Chamou-a para falar sobre o testamento, portanto, deve ter mencionado que destino queria dar ao dinheiro.

— Não, respondeu ela com evidente falsidade.

— Porque lhe deu uma procuração? Ela demorou a responder, enquanto tentava conseguir uma resposta plausível.

— Queria que tratasse dos seus negócios. Era uma razão muito vaga, mas ela não parecia disposta a dar pormenores.

— Por exemplo?

— Conseguir criadas. Pagá-las. Pareceu-nos o mais prático, para que não tivesse que estar sempre pedindo cheques. Ela já não saía, não podia ir ao banco. Esperou para ver como ele reagia e, como não disse nada, acrescentou: — Assim era mais fácil.

Devia julgar que ele era idiota se achava que ia acreditar que uma pessoa como a Signora Battestini ia confiar a alguém todo o seu dinheiro. Perguntou-se como teria Marieschi conseguido convencer a velha a assinar a procuração ou o que julgara ela ter assinado. Gostaria de saber quem estava presente no ato da assinatura na qualidade de testemunha. Como dissera, pouco lhe importava onde tinha ido parar o dinheiro; queria saber de onde tinha vindo.

— Então, a senhora usava o dinheiro para pagar as criadas?

— Sim, o pagamento das contas era feito diretamente no banco.

— Eram todas ilegais, não eram? Perguntou ele abruptamente.

— Não sei a que se refere, respondeu ela, fingindo não entender.

— Confesso que me surpreende, avvocatessa, que uma advogada deste país não saiba a que me refiro quando falo de trabalhadores ilegais.

— Não pode provar que eu sabia isso, declarou ela, abandonando toda a cautela. Ele prosseguiu, calmamente:

— Acho que chegou o momento de explicar algumas coisas. O negócio que pode estar fazendo com imigrantes ilegais e passaportes falsos não me interessa, pelo menos enquanto investigo um homicídio. Mas se continuar a mentir ou a evitar responder às minhas perguntas, amanhã a Polícia de Imigração irá receber um relatório completo das suas atividades, com os endereços das mulheres que estão atualmente usando os documentos falsos de Florinda Ghiorghiu em Trieste e Milão e a Guardia di Finanza irá ficar a par das suas transações com as contas bancárias da Signora Battestini.

Ela abriu a boca para protestar, mas ele interrompeu-a levantando a mão.

— Se voltar a mentir, hoje mesmo participarei a morte da sua cadela, sem excluir a sua alegação de que a sobrinha da Signora Battestini a matou, o que fará com que ela seja interrogada acerca das razões que poderia ter para envenenar o animal.

Ela não olhava para Brunetti, mas ele estava certo de que não perdia uma palavra.

— Entendeu, signora?

— Sim.

— Quero que me repita, palavra por palavra, tudo o que ela lhe disse sobre as contas, e me diga o que pode ter pensado sobre a sua possível origem, durante os anos em que soube da sua existência, independentemente da fonte desta informação e da credibilidade que lhe atribuiu. Fez uma pausa. — Entendido?

Desta vez, ela respondeu sem hesitar.

— Sim. Suspirou, mas, sabendo que ela era uma mentirosa consumada, ele não se deixou impressionar. A mulher esperou um pouco: — Ela me falou das contas quando fez o testamento, mas nunca me disse de onde vinha o dinheiro, como já falei. Então um dia, há cerca de um ano, ao me contar do filho, que, que como lhe disse, não cheguei a conhecer, comentou que fora um bom rapaz e lhe assegurara a velhice. Que ele e a Virgem velariam por ela. Brunetti não desviava os olhos dela, se perguntando se estaria mentindo e se conseguiria detectá-lo. — Ela repetia muito as coisas, prosseguiu, — Como fazem as pessoas mais velhas e, portanto, eu não prestava muita atenção.

— Porque foi desta vez a casa dela? Antes me disse que tinha feito o testamento há três anos.

— Fui falar da televisão. Queria pedir que tentasse se lembrar de que devia abaixar o volume antes de se deitar. A única coisa que me ocorreu dizer para convencê-la foi que se ela não fizesse isso a Policia viria lhe tirar a televisão. Já tinha dito antes, mas ela esquecia das coisas ou talvez só se lembrasse do que lhe convinha.

— Compreendo, disse ele.

— E naquele dia repetiu, mais uma vez, como o filho fora bom, que ficara sempre ao seu lado. Foi então quando me disse que ele a tinha deixado em segurança e sob a proteção da Virgem. Naquele momento, não dei muita importância às suas palavras. Nunca prestava muita atenção quando começava a divagar. Mas depois me ocorreu que podia estar falando do dinheiro, que fora o filho que o dera, ou fizera qualquer coisa para que o depositassem.

— Perguntou?

— Não; já disse que só me ocorreu uns dias depois. E nessa altura já tinha aprendido a não perguntar diretamente pelas contas, portanto não disse nada.

Ele queria fazer mais perguntas: quando começara a fazer planos para roubar o dinheiro e o que lhe dava a certeza de que a sobrinha não a denunciaria. Mas, por agora, conseguira a informação desejada. Achava que já a tinha assustado o suficiente para fazer lhe dizer a verdade e não se sentia orgulhoso nem envergonhado das técnicas que utilizara. Brunetti se levantou.

— Se tiver mais perguntas, entrarei em contato consigo, disse ele. — Se lembrar de mais alguma coisa, me ligue.

Num cartão, escreveu o seu número de telefone e o deu. Quando se virou para sair, ela deteve-o, dizendo:

— E se não foi a sobrinha, o que faço?

Ele estava quase certo de que fora a sobrinha e que ela nada tinha a temer. Mas, ao lembrar a espontaneidade com que ela protestara que, não mataria ninguém por tão pouco, não viu por que razão havia de poupá-la do medo.

— Evite ficar sozinha em casa ou no escritório. Se vir algo suspeito, me ligue imediatamente, disse ele, e saiu.


* * *


Dezoito

DE NOVO na rua, Brunetti telefonou para Vianello, que atendeu o celular na Questura, para onde regressara ao não encontrar ninguém em casa da Avvocatessa Marieschi. Brunetti explicou resumidamente o que acontecera no escritório da advogada e pediu que o esperasse no Romolo, para irem finalmente falar com a sobrinha da Signora Battestini.

— Acha que pode ter sido ela? Perguntou Vianello e, como Brunetti demorou a responder, explicou: — A envenenar a cadela.

— Acho que sim, respondeu Brunetti.

— Encontramo-nos lá, disse Vianello, e desligou.

Para ganhar tempo, Brunetti apanhou o 82 em Arsenale até Academia. Atravessou o pequeno campo sem prestar muita atenção a longa fila de turistas escassamente vestidos que esperavam à porta do museu, deixou à sua esquerda a galeria a que sempre chamara mentalmente Supermercado da Arte e desceu até San Barnaba.

Nas ruas estreitas foi assaltado pelo calor. Antes, um calor daqueles costumava fazer diminuir o número de turistas; agora parecia ter o mesmo efeito que o calor numa placa de Petri: as formas de vida estranhas se multiplicavam a olhos vistos. Quando chegou à pastelaria viu Vianello do outro lado da calle, olhando para a vitrine de uma loja de máscaras.

Entraram juntos na pastelaria. Vianello pediu um café e um copo de água mineral e Brunetti negou com a cabeça para cima e para baixo, se juntando ao pedido. A vitrine estava cheia de doces que Brunetti conhecia tão bem: mil-folhas com creme, profiteroles de chocolate e os preferidos de Chiara, cisnes recheados com creme. O calor tornava-os igualmente pouco apetitosos. Enquanto tomavam os cafés, Brunetti contou mais pormenores da sua conversa com a advogada. Da cadela disse apenas que tinha sido envenenada, sem explicar as circunstâncias.

— Isso significa que esta mulher, aqui Vianello apontou para o fundo da pastelaria, onde supunham que ficaria a cozinha, — Conhecia Marieschi o suficiente para saber que era o que mais a iria fazer sofrer.

— Qualquer pessoa que a tenha visto com a cadela, ainda que apenas uma vez, saberia, disse Brunetti, lembrando a sua primeira visita e a nobre cabeça dourada do animal.

Vianello acabou a água e levantou o copo na direção da mulher atrás do balcão. Brunetti bebeu a sua, pousou o copo e assentiu quando a mulher olhou para ele com a garrafa na mão.

— A Signorina Simionato está? Perguntou Brunetti enquanto ela servia água.

— Refere-se a Graziella? Perguntou ela com evidente curiosidade sobre o que poderiam querer aqueles dois homens.

— Exato.

— Acho que sim, disse ela, pouco à vontade, recuando e se virando para uma porta atrás dela. — Vou perguntar.

Antes que a mulher se afastasse, Brunetti levantou a mão.

— Prefiro que não diga nada, signora, até termos falado com ela.

— Policia? Perguntou, abrindo muito os olhos.

— Sim, respondeu Brunetti, se perguntando por que motivo se preocupavam em não ir identificados se eram tão fáceis de reconhecer, até por uma funcionária de pastelaria.

— É por aqui? Perguntou Brunetti, apontando para uma porta aberta atrás do extremo mais afastado do balcão.

— Sim, disse a jovem. — O que...? - Deixou a frase inacabada.

— Sabe a que horas ela chegou hoje, signora? Perguntou Vianello, tirando um bloco do bolso.

A mulher olhou para o bloco como se fosse uma criatura viva e perigosa. Ao notar a sua relutância, Brunetti pegou a carteira, mas em vez de mostrar o crachá puxou uma nota de cinco euros e colocou-a no balcão, para pagar a despesa.

— A que horas ela chegou hoje, signora?

— Cerca das duas, ou logo a seguir, respondeu a jovem.

Brunetti achou que era uma hora muito estranha para começar o dia de trabalho numa pastelaria. Mas a mulher deu imediatamente uma explicação:

— Na próxima semana vai haver uma inspeção das autoridades sanitárias, e temos de nos preparar. Todos fazem meio dia extra.

Brunetti achou oportuno não comentar que se imaginava que essas inspeções não fossem anunciadas.

— Alguns pasteleiros vêm à tarde, para fazer os preparativos, acrescentou ela.

— Compreendo, disse Brunetti. Apontando para a porta, perguntou: — Por ali? Subitamente relutante, ela disse:

— Acho que é melhor a dona mostrar o caminho.

Sem esperar resposta, uma mulher de cabelo vermelho que estava na caixa se aproximou e trocou algumas frases com ela. A dona olhou desconfiada para os policiais, para a funcionária e outra vez para os homens. Disse algo e cedeu o seu lugar na caixa à funcionária. A mulher de cabelo vermelho se aproximou.

— O que ela fez?

— Nada, que eu saiba, signora, mentiu Brunetti, com um sorriso. É que queria ser afável. — Mas, como já deve saber, a tia dela foi vítima de um homicídio e pensamos que a Signorina Simionato pode nos dar informações que nos ajudem na investigação.

— Pensei que já sabiam quem a matou, disse num tom quase acusador. — Não foi a albanesa? Enquanto falava com eles, voltava o olhar para a funcionária cada vez que um cliente se aproximava da caixa.

— Parece que sim, disse Brunetti, — Mas precisamos de mais informações sobre a tia.

— E precisam vir pedi-las aqui? Perguntou de forma agressiva.

— Não, signora, não aqui. Pensei que podíamos falar com ela lá dentro.

— Quero dizer aqui no trabalho. Eu pago para ela trabalhar, não para falar da tia.

Com frequência, e sempre para sua surpresa, a vida oferecia a Brunetti novas provas do lendário mercantilismo veneziano. Não era a mesquinhez que o surpreendia, mas sim a sua falta de pudor em mostrá-la.

— Compreendo, signora, com certeza. Sorriu. — Nesse caso, talvez seja preferível eu voltar mais tarde e colocar alguns agentes fardados na porta enquanto falo com ela. Ou talvez possa perguntar às autoridades sanitárias como vocês sabem que vão ter uma inspeção na próxima semana. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, terminou: — Ou talvez possamos ir lá dentro falar com a Signorina Simionato um momento.

Ela corou com uma fúria que sabia que não podia exteriorizar, enquanto Brunetti se sentia incapaz de se censurar por aquele flagrante abuso de autoridade.

— No fundo, disse a mulher, voltando par a caixa.

Vianello foi na frente, e encontraram uma sala iluminada por várias janelas abertas na parede do fundo. As estantes de metal que ocupavam as outras três paredes estavam vazias e as portas de vidro dos fornos brilhavam. Um homem e uma mulher, de batas e toucas de um branco imaculado, estavam diante de um lava-louças cheio de água quente com detergente. Da espuma emergiam asas de utensílios e as pontas das tábuas onde repousa a massa antes de ser cozida. O som de água corrente abafava qualquer outro som, então Brunetti e Vianello tinham chegado a menos de um metro daquelas duas pessoas quando o homem deu pela presença deles e se virou. Ao vê-los, fechou a torneira.

— Sim? Perguntou no silêncio repentino. Era mais baixo do que o normal, e roliço, mas tinha feições atraentes que naquele momento refletiam uma viva curiosidade.

Aparentemente, a mulher não vira a chegada deles até ouvir o companheiro, e então se virou. Era mais baixa do que ele e usava óculos de massa retangulares e umas lentes tão grossas que os olhos pareciam bolas de gude gigantes. Quando o seu olhar passou de Brunetti para Vianello, o foco das lentes oscilou com o movimento da cabeça, e lhes pareceu que as bolas de gude rolavam sob o vidro. Se o homem manifestara curiosidade ao ver os dois estranhos, ela permaneceu estranhamente indiferente, sem outro sinal de vida do que os olhos rolando.

— Signorina Simionato? Perguntou Brunetti. Ela virou a cabeça na direção da voz com um movimento que lembrava o de uma coruja, e analisou a pergunta.

— Sim.

— Gostaria de falar consigo, se não se importa. O olhar do homem passava de Brunetti para a mulher, para Vianello e novamente para a Signorina Simionato, à procura de sentido na presença dos dois desconhecidos, mas ela mantinha os olhos fixos no rosto de Brunetti, sem dizer nada. Foi Vianello quem se dirigiu ao homem.

— Há algum lugar onde possamos falar em particular com a Signorina Simionato? O homem negou com a cabeça.

— Aqui não há nada disso, respondeu. — Mas eu posso sair para fumar um cigarro enquanto vocês conversam.

Brunetti assentiu e o homem tirou a touca e limpou o suor do rosto com a parte interna do cotovelo. Retirou a bata, puxou um maço de Nazionali do bolso das calças e saiu. Brunetti notou que havia uma porta que dava para a calle.

— Signorina Simionato, começou Brunetti, — Sou o Commissario Guido Brunetti, da Polícia.

O rosto da jovem passou de simples imobilidade a congelamento. Até os olhos detiveram o seu rápido vaivém entre Brunetti e Vianello, e se fixaram nas janelas. Brunetti observou o rosto dela, viu o nariz achatado, o cabelo crespo cor de laranja escapando da touca e a pele brilhante, não sabia se de suor ou de gordura natural. Bastou a simples visão de tanto vazio para se convencer de que aquela mulher não era capaz de mexer num computador para transferir dinheiro para contas anônimas nas ilhas do Canal.

— Gostaria de fazer algumas perguntas. Ela não deu sinal de ter ouvido nem desviou o olhar da parede. — Chama-se Graziella Simionato, não é? O som do seu nome pareceu ter algum efeito, porque ela mexeu a cabeça para cima e para baixo. — Sobrinha de Maria Grazia Battestini? Isso a fez olhar para ele. Quando ela abriu a boca para falar, Brunetti reparou que tinha os dois incisivos superiores muito grandes e salientes. — Soube que era herdeira dela, signorina.

— Herdeira dela. Sim, afirmou. — Eu devia herdar tudo. Entre perplexo e inquieto, Brunetti perguntou:

— Não herdou? Enquanto a observava, se surpreendia por aquela mulher lhe lembrar vários animais. Uma coruja. Um roedor enjaulado. E agora, ao ouvir aquela pergunta, uma espécie feroz e furtiva.

— Q que quer? Perguntou ela, voltando na direção dele os seus olhos.

— Quero falar sobre a herança da sua tia, signorina.

— O que deseja saber?

— Gostaria que me dissesse se sabe de onde vinha o dinheiro. Viu despertar nela o instinto de esconder todos os sinais de riqueza.

— A minha tia não tinha muito dinheiro, garantiu.

— Mas tinha contas em vários bancos, disse Brunetti.

— Disso não sei nada.

— No Uni Credit e noutros quatro.

— Não sei.

A voz era tão impassível como a expressão. Brunetti olhou para Vianello e o inspetor ergueu as sobrancelhas para indicar que também havia reconhecido a teimosia de mula com que os camponeses sempre enfrentaram o perigo. Brunetti, vendo que as boas intenções resvalariam na couraça da estupidez, disse, imprimindo tom de severidade áspera à voz:

— Signorina, pode escolher entre dois caminhos. O tom chamou a atenção da jovem e os seus olhos procuraram o rosto do Commissario. — Podemos falar sobre a origem do dinheiro da sua tia ou podemos falar de cães.

Ela abriu a boca para falar, mostrando os seus dentes grandes, mas foi impedida por Brunetti:

— E não me parece que alguém queira continuar a dar trabalho a uma pessoa acusada de usar veneno, não acha, signorina? Observou os efeitos das suas palavras e continuou num tom coloquial: — Também não me parece que a sua patroa tenha muita paciência para com uma funcionária que falta ao trabalho porque tem de ir ao tribunal, certo? Isto é, acrescentou, depois de lhe dar um momento para refletir sobre estas duas possibilidades, — Se essa empregada ainda tiver a seu lado uma advogada que a ajude no julgamento.

A Signorina Simionato segurou com a mão direita nos dedos da esquerda e começou a esfregá-los, como se estivesse tentando devolvê-los à vida. As suas lentes se voltaram para o rosto de Vianello e depois para o de Brunetti.

— Eu não... Começou, sem deixar de esfregar as mãos.

— Vianello, diga a proprietária que a levaremos, interrompeu Brunetti bastante alto. — E explique o porquê.

— Sim, commissario, disse Vianello, se voltando para a porta, como se a ordem não admitisse réplica.

Ainda não tinha dado um passo quando ela disse com a voz estridente de terror:

— Não, espere! Eu conto, eu conto. Tinha uma fala babosa, como se precisasse de muita saliva para pronunciar as consoantes.

Vianello se deteve, mantendo-se pelo menos um metro atrás dela, para não acrescentar a ameaça da sua corpulência a que havia nas palavras de Brunetti. Os dois homens fitaram-na sem dizer nada.

— Foi Paolo, disse. — Conseguiu-o para a mãe, mas não sei como. Ela não quis me dizer, só dizia que estava muito orgulhosa dele, que pensava sempre nela em primeiro lugar. Aqui fez uma pausa, como se achasse que isto era suficiente para responder às perguntas e salvá-la das ameaças deles.

— O que ela dizia exatamente? Perguntou um Brunetti implacável.

— Já respondi, respondeu ela num tom beligerante. Brunetti deu meia volta.

— Vá, Vianello. A Signorina Simionato olhou para um e para o outro, a procura de compaixão. Ao não encontrá-la, jogou a cabeça para trás e começou a uivar como um animal ferido.

Temendo o que poderia acontecer, Brunetti deu um passo na direção dela, mas parou e recuou, não querendo ser visto perto da mulher se alguém viesse ver o que acontecia. Imediatamente, apareceu a dona, que gritou:

— Graziella! Basta. Ou se cala, ou vai embora ainda hoje. Nesse momento, tão repentinamente como começara, os gritos cessaram, mas a Signorina Simionato continuou a chorar. A dona olhou para Brunetti e Vianello, fez um som de desagrado e se afastou, fechando a porta. Brunetti, sem piedade, disse à mulher:

— Ouviu o que ela disse, Graziella. Não vai ter muita pena se eu falar da Poppi e do veneno.

Graziella tirou a touca e limpou a boca e o nariz com ela, ainda soluçando. Pôs os óculos em cima de um forno, enxugou as lágrimas e olhou para Brunetti com os olhos nus, estrábicos e quase cegos. Reprimindo a compaixão, ele perguntou:

— O que mais ela dizia, Graziella? Sobre o dinheiro. Os soluços cessaram e ela enxugou as últimas lágrimas. Estendeu a mão, tateando à procura dos óculos. Brunetti viu a mão se aproximar, afastar e tornar a se aproximar, reprimindo o desejo de ajuda. Finalmente, os seus dedos tropeçaram neles, e, pegando-os cuidadosamente com as duas mãos, colocou-os no rosto.

— O que disse a sua tia, Graziella? Repetiu Brunetti. — Onde Paolo ia buscar o dinheiro?

— A alguém no trabalho, respondeu ela. — A minha tia estava muito orgulhosa dele. Dizia que era um prêmio por ser tão inteligente. Mas dizia num tom zombeteiro, como se Paolo tivesse feito alguma coisa ruim para consegui-lo. Mas para mim isso era indiferente, porque ela dizia que um dia todo esse dinheiro seria meu. Portanto não me importei. Além disso, dizia que o que ele tinha feito tinha a proteção da Virgem. Então não podia ser ruim, não é? Brunetti fingiu que não tinha ouvido a pergunta.

— Sabia onde estava o dinheiro, em que bancos? Ela baixou a cabeça e assentiu, fitando o chão. — Sabe como chegava lá? Silêncio.

Brunetti se perguntou que atrapalhada avaliação da sua pergunta estaria ela fazendo e com quanta verdade decidiria responder.

— Era eu que o levava, anunciou ela, surpreendendo-o. Ele escondeu a sua confusão momentânea, perguntando:

— Como?

— Desde que Paolo morreu, eu ia vê-la todos os meses, ela me dava o dinheiro e eu o levava aos bancos.

Claro, claro, em nenhum momento ocorrera se interrogar sobre o meio físico através do qual se faziam os depósitos, imaginando que deviam ser transferências que só as artes da Signorina Elettra poderiam detectar.

— E os recibos?

— Eu entregava a ela. Todos os meses.

— Onde estão agora? Silêncio. Levantando a voz, repetiu: — Onde estão agora?

Ela respondeu num sussurro, obrigando-o a se abaixar para ouvir o que dizia:

— Ela disse que os queimasse.

— Quem? Perguntou Brunetti, embora já tivesse uma ideia.

— Ela.

— Quem?

— A advogada, respondeu a mulher, se recusando a pronunciar o nome de Marieschi.

— E você queimou-os? Perguntou ele, curioso em entender se ela realmente sabia que assim tinha destruído a prova de que aquele dinheiro existia.

Então ela olhou para ele e Brunetti viu as lentes molhadas das lágrimas que tinham caído enquanto ela mantivera a cabeça baixa; os olhos estavam mais desfocados do que nunca.

— Queimou-os, signorina? Perguntou ele de novo sem suavizar o tom.

— Disse que era a única maneira para eu poder ficar com o dinheiro, porque, se a Polícia encontrasse os recibos, desconfiaria, disse ela e em cada uma das palavras se percebia a dor da perda.

— E depois, signorina, o que aconteceu quando foi aos bancos tentar levantar o dinheiro? Perguntou Brunetti.

— Os funcionários do banco... Que me conheciam... Disseram que as contas tinham sido encerradas.

— O que a fez pensar que a Avvocatessa Marieschi tinha levado o dinheiro? Perguntou ele, introduzindo o nome na conversa pela primeira vez.

— Porque a Tia Maria me dissera que ela era a única pessoa que sabia do dinheiro, além de nós. E que eu podia confiar nela. Disse isto com grande amargura. — Quem mais poderia ser?

Brunetti olhou para Vianello e levantou o queixo em sinal de interrogação. O inspetor fechou os olhos por um instante e negou com a cabeça: aquilo era tudo, não conseguiria arrancar mais nada daquela mulher. Sem uma palavra, Brunetti deu meia volta e começou a se dirigir para a porta. Atrás dele, ouviu a voz de Vianello:

— Porque matou a cadela, signorina? Brunetti parou, mas não se virou. Passou tanto tempo que outro que não fosse o impávido Vianello teria desistido de esperar. Finalmente, salivando as consoantes mais do que nunca, ela cuspiu:

— Porque as pessoas gostam de cães. Após uma breve pausa, Brunetti ouviu os passos de Vianello e caminhou em direção a porta do estabelecimento.


* * *


Dezenove

— Bem, disse Brunetti quando saíram para a Calle Lunga San Barnaba. — O que achou?

— Usando o termo que os meus filhos aprendem na escola, diria que é uma pessoa com "capacidades diferentes".

— Quer dizer com incapacidade?

— Sim, senhor; tanto pela aparência e pela forma de gritar ao ser contrariada como por uma quase total falta de reações e sentimentos humanos.

— Você descreveu metade da Questura, comentou Brunetti.

Vianello levou um segundo para entender, e depois teve um tal ataque de riso que precisou se encostar a uma parede até se acalmar. Brunetti, orgulhoso da piada, decidiu mencioná-la a Paola e perguntou a si mesmo se Vianello a comentaria com a Signorina Elettra. Depois de Vianello ter se recomposto, Brunetti seguiu até a paragem do vaporetto de CaRezzonico.

— Acha que ela pode ter tido algo a ver com a morte da tia? A resposta de Vianello foi imediata.

— Não. Quando perguntou pelas contas e a ameaçou que faria com que a despedissem se não respondesse, pôs-se a gritar; mas quando falou da tia, ficou calma.

Brunetti pensava o mesmo, mas lhe agradava que o inspetor confirmasse a sua opinião.

— Temos de fazer uma lista de todas as pessoas que trabalharam com Paolo na sala da Secretaria de Estado da Educação, disse, e se corrigiu: — Pelo menos, que trabalhavam com ele quando os pagamentos começaram.

— Isso vai ser fácil, se os dados estiverem informatizados, disse Vianello.

— Admira-me que ela não mande trabalho para você fazer em casa todos os dias, comentou Brunetti com um sorriso. Como Vianello não respondeu, perguntou: — Ou manda?

Chegaram ao embarcadouro e se refugiaram nele, gratos pela sombra. Vianello coçou a cabeça.

— Não é que mande, commissario. Mas me deu um computador. Ou melhor, o departamento deu. E às vezes sugere que tente fazer coisas.

— E eu entenderia? Perguntou Brunetti. Vianello olhou para o Palazzo Grassi e para as longas filas de turistas à espera diante de outro dos templos da arte.

— Duvido, commissario, respondeu finalmente. — Ela diz que estas coisas têm de ser aprendidas ao experimentar maneiras diferentes de fazê-las e diferentes maneiras de pensá-las. Por isso é preciso ter um computador sempre à mão. Olhou para Brunetti e aventurou-se a acrescentar: — E também é preciso ter uma sensibilidade especial para computadores.

Brunetti ia se defender, dizendo que os filhos tinham computador e que a mulher usava o computador, mas lhe pareceu uma resposta pueril.

— Quando poderemos ter os nomes?

— Amanhã à tarde, o mais tardar, disse Vianello. — Mas não sei se conseguirei sozinho, e a Signorina Elettra tinha uma reunião nesta tarde.

— Ela disse aonde?

— Não, senhor.

— Então, deixemos isto para amanhã, sugeriu Brunetti olhando para o relógio.

Não havia motivo para agora voltar a Questura, e Brunetti, de repente, sentiu que os acontecimentos do dia o esgotaram. Só tinha vontade ir para casa, jantar com a família e pensar em algo que não fosse morte ou avareza. Vianello aceitou a ideia de bom grado e subiu para o Número Um que ia para o Lido, deixando o seu superior à espera do que chegaria em dois minutos para levá-lo para casa.

Mas quando o vaporetto chegou à sua paragem, San Silvestro, Brunetti permaneceu a bordo, e só desembarcou na próxima, Rialto. Só teve de retroceder uns passos pelo canal até à Câmara Municipal, em CaFarsetti e entrar na rua lateral para chegar ao prédio onde ficava a sala local da Secretaria de Estado da Educação. O commissario se identificou ao portiere, que lhe disse que o escritório principal do Ufficio di Pubblica Istruzione ficava no terceiro andar. Como nunca se sentira à vontade em elevadores, Brunetti subiu as escadas. No terceiro andar, um letreiro apontava para a direita por um corredor estreito, em cujo final se encontravam as portas de vidro da sala da Secretaria de Estado da Educação. Depois de as franquear, Brunetti encontrou-se numa sala espaçosa, quatro vezes maior do que a sua. Cadeiras de plástico cor de laranja alinhavam-se ao longo das paredes de cada lado da entrada, em frente à qual havia uma mesa dilapidada e, atrás dela, uma mulher não menos dilapidada, se bem que algo o tenha feito suspeitar de que a deterioração da mulher era deliberada e não acidental.

Como não havia mais ninguém, Brunetti se dirigiu a ela. A mulher poderia ter entre trinta e cinquenta anos: a maquiagem fora aplicada com suficiente desleixo para o impedir de precisar o cálculo. O vermelho que acentuava o tamanho dos lábios se introduzira nas rugas finas sob o lábio inferior, pondo na sua boca uma insinuação de promessa juvenil, enquanto enfatizava os traços de anos de muito fumar. Os olhos eram verde-escuros, de um misterioso esmeralda, e tão brilhantes que sugeriam o uso de lentes de contato, ou de drogas. Não tinha sobrancelhas, apenas umas linhas castanhas que descreviam acentuadas curvas, com uma trajetória caprichosa. Brunetti sorriu ao aproximar-se da mesa. Ela moveu os lábios em consonância e perguntou:

— Vem por causa do reservatório de água potável? Tinha uma voz plana, sem modulação, que tanto podia sair daqueles lábios exagerados como de uma máquina.

— Desculpe?

— Vem por causa do reservatório de água potável? Ela tornou a perguntar.

— Não; venho falar com o diretor.

— Não vem por causa do reservatório de água potável?

— Não; lamento.

Viu aquela informação ser processada algum lugar atrás dos olhos esmeralda. Ao frustrarem-se as suas expetativas, pareceu momentaneamente abatida, forçando-a a fechar os olhos. Ele viu que da têmpora esquerda o observavam dois piercings de prata, mas resistiu a fazer conjecturas sobre a sua origem e, mais ainda, a sua finalidade. Os olhos se abriram. Talvez a mulher os tenha aberto, mas não podia jurar.

— O Dottor Rossi está na sala, disse ela levantando uma mão com unhas compridas verdes e agitando-a na direção de uma porta situada atrás do seu ombro esquerdo.

Brunetti agradeceu, decidiu não dizer o que desejava, que o homem do reservatório de água potável chegasse em breve e dirigiu-se à porta. Do outro lado, havia um corredor curto, com portas à esquerda e uma série de janelas à direita com vista para um pequeno pátio com mais janelas do outro lado.

Brunetti avançou pelo corredor, lendo os nomes e títulos das placas colocadas ao lado de cada porta. As salas se encontravam em silêncio, aparentemente abandonados. No final do corredor, virou à direita: agora havia portas de ambos os lados, mas nenhuma era a do diretor. Virou novamente à direita e, no final deste corredor, encontrou uma placa onde leu DOTTORE MAURO ROSSI, DIRETTORE, e bateu na porta.

— Avanti! Gritou uma voz, e Brunetti entrou. O homem sentado à mesa levantou a cabeça, parecendo admirado por ver um estranho entrar na sua sala e perguntou: — Sim? O que deseja?

— Sou o Commissario Guido Brunetti, dottore. Vim fazer algumas perguntas sobre um homem que trabalhou aqui.

— Commissario de Polícia? Perguntou Rossi, e vendo o sinal afirmativo de Brunetti, indicou uma cadeira em frente à mesa.

Quando Brunetti se aproximou, Rossi se levantou e estendeu-lhe a mão. Quando o homem se ergueu, Brunetti pôde observar que era meia cabeça mais alto do que ele. Embora mais corpulento do que o commissario, Rossi não parecia ser gordo. Aparentava uns quarenta e cinco anos, conservava uma boa mata de cabelo escuro que tombou sobre a testa quando moveu a cabeça, tinha um rosto bronzeado que irradiava saúde e, apesar de seu tamanho, se movia com elegância.

A sala produzia a mesma impressão de vigorosa masculinidade: por cima de uma estante com livros e portas de vidro, uma fila de troféus esportivos; na esquerda na mesa, fotografias emolduradas a prata de uma mulher e duas crianças; nas paredes, cinco ou seis diplomas, um deles, um pergaminho gravado que outorgava um Doutoramento a Mauro Rossi.

Quando se sentou, Brunetti disse:

— Trata-se de alguém que trabalhou aqui até há cerca de cinco anos, dottore: Paolo Battestini.

Rossi moveu a cabeça para cima e para baixo, convidando Brunetti a continuar, mas não deu sinal de reconhecer o nome.

— Estamos interessados em saber mais sobre ele, prosseguiu o commissario. — Trabalhou aqui mais de dez anos. Como Rossi continuava em silêncio, Brunetti perguntou: — Pode me dizer se o conheceu, dottore? Rossi refletiu.

— Talvez. Não tenho certeza. Brunetti inclinou a cabeça para o lado, solicitando um esclarecimento e Rossi disse: — Eu me ocupava das escolas de Mestre.

— A partir daqui? Perguntou Brunetti.

— Não, não, disse Rossi, sorrindo como pedindo perdão pela sua falta de precisão. — Na época eu estava em Mestre. Só me mandaram para aqui há dois anos.

— Na qualidade de diretor?

— Sim.

— E então se mudou para Veneza? Rossi voltou a sorrir e franziu os lábios ante a persistência da confusão.

— Não, vivi sempre na cidade. Brunetti ficou chocado pelo fato de o homem continuar a falar italiano: normalmente, naquela fase da conversa, um veneziano já teria começado a usar o dialeto. Talvez Rossi desejasse manter a dignidade do cargo. — De forma que a mudança foi duplamente bem-vinda, porque evitava que tivesse de me deslocar até Mestre todos os dias, continuou Rossi, interrompendo as reflexões de Brunetti.

— A pérola do Adriático, comentou o commissario com sarcasmo. Rossi assentiu com o desprezo do autêntico veneziano ante a feia arrivista que era Mestre.

Brunetti reparou que tinha se desviado do assunto e voltou à pergunta inicial:

— Disse que talvez o tenha conhecido, dottore. Pode ser mais explícito?

— Suponho que, na verdade, tive de conhecê-lo, disse Rossi, e acrescentou, notando a estranheza de Brunetti: — Isto é, como conhecemos as pessoas que trabalham no nosso escritório ou departamento. Vemos ou sabemos dos seus nomes, mas não chegamos a conhecê-las pessoalmente, nem falar com elas.

— Costumava vir a esta sala enquanto trabalhava em Mestre?

— Sim. O homem que substituí no cargo de diretor ficava aqui, por isso, enquanto chefiava a sala de Mestre, precisava vir uma vez por semana assistir às reuniões, porque a direção central é aqui. Adiantando-se à pergunta de Brunetti, Rossi disse: — Não me lembro de ter conhecido ou de ter falado com alguém com esse nome. Isto é, o nome soa familiar, mas não consigo associá-lo a alguém em particular. E quando me mudei, ele já devia ter ido embora, se o senhor disse que isso teve lugar há cinco anos.

— Ouviu os outros empregados falarem sobre ele? Rossi negou com a cabeça numa negativa silenciosa.

— Não que me lembre. Não.

— Alguém falou dele depois da morte da mãe? Perguntou Brunetti.

— Da mãe? Repetiu Rossi, e em seguida o seu rosto refletiu a associação de ideias. — A mulher que mataram? Brunetti assentiu.

— Não tinha estabelecido uma ligação, disse Rossi. — É um sobrenome bastante comum. Aqui mudou o tom de voz. — Por que perguntam por ele agora?

— Trata-se, apenas, de descartar uma possibilidade, dottore. Assegurarmo-nos de que não houve relação alguma entre ele e a morte da mãe.

— Depois de cinco anos? Perguntou Rossi. — Disse que ele saiu daqui há cinco anos. O seu tom dava a entender que achava que o commissario poderia dedicar o seu tempo de forma mais proveitosa indagando outras coisas. Brunetti, ignorando a insinuação, disse:

— Como lhe disse, dottore, trata-se mais de descartar possibilidades do que de estabelecer associações. Por isso perguntamos. Fez uma pausa, para dar a Rossi a oportunidade de levantar objeções, mas este ficou em silêncio. Brunetti observou que, quando o seu interlocutor inclinava o corpo para trás, não usava as mãos, mas apenas a força das pernas.

Brunetti se recostou na cadeira e mostrou as palmas das mãos num gesto de resignação.

— Para dizer a verdade, dottore, estamos um pouco confusos, não temos nenhuma ideia do tipo de pessoa que ele era.

— Mas foi a mãe que mataram, certo? Perguntou Rossi, como que assumindo a responsabilidade de lembrar à Polícia a sua tarefa.

— De fato, disse Brunetti, e voltou a sorrir. — Deve ser uma simples questão de hábito. Tentamos sempre reunir o máximo de informação sobre as vítimas e as pessoas que as rodeiam.

— Mas os jornais não disseram na época algo sobre uma imigrante, uma russa ou algo do gênero? Indagou Rossi, como tivesse acabado de se lembrar.

— Romena, corrigiu Brunetti automaticamente. Algo lhe disse que Rossi não gostava de ser corrigido, e acrescentou: — Não que isso seja importante, naturalmente, dottore. Pensamos que talvez pudéssemos encontrar uma razão pela qual ela estivesse ressentida com a Signora Battestini. E, antes que Rossi dissesse alguma coisa, explicou: — O filho pode tê-la ofendido.

— Mas quando ela começou a trabalhar lá o filho já estava morto, certo? Perguntou Rossi, como se somasse esta circunstância às outras que demonstravam a futilidade das perguntas de Brunetti.

— Sim, é verdade, disse Brunetti, repetindo o gesto das palmas para cima, agora com menos ênfase, e levantando-se. — Acho que não tenho mais perguntas, dottore. Muito obrigado pela sua atenção. Rossi se levantou.

— Espero tê-lo ajudado, disse. Brunetti alargou ainda mais o sorriso.

— Temo que sim, dottore, respondeu, acrescentando logo a seguir, ao ver a surpresa de Rossi, — Já que nos permitiu eliminar uma possibilidade. Agora temos de voltar a concentrar a atenção na Signora Battestini.

Rossi acompanhou Brunetti até a porta da sala. Teve de se inclinar um pouco para pegar na maçaneta. Estendeu a mão e Brunetti apertou-a: dois funcionários públicos que se cumprimentam após alguns minutos de frutuosa colaboração. Reiterando ao Doutor os agradecimentos pela sua atenção, Brunetti fechou a porta e se dirigiu às escadas, perguntando-se como poderia o Dottor Rossi saber que Paolo Battestini, que alegava não conhecer, tinha morrido e Flori Ghiorghiu começara a trabalhar para a mãe dele muito mais tarde.


* * *


Já passavam das oito quando Brunetti chegou em casa, mas Paola decidira atrasar o jantar, pelo menos até às oito e meia, calculando que, se o marido fosse chegar muito mais tarde, teria telefonado.

Os modos graves de Brunetti estavam em harmonia com os dos outros três membros da família, pelo menos, quando se sentaram à mesa. Mas os filhos, depois de comerem dois pratos de orechiette com mozzarella di bufala e pomodorini, se animaram o suficiente para lançar gritos de júbilo quando Paola partiu a crosta de sal sob a qual assara um branzino, revelando a sua requintada carne branca.

— O que faz com o sal, mamma? Perguntou Chiara, temperando com azeite a sua dose de peixe.

— Vai para o lixo.

— É verdade que os índios colocavam espinhas à volta do milho, para ele crescer melhor? Perguntou a jovem, empurrando as dela para a borda do prato.

— Os índios dos pontinhos ou os índios das penas? Perguntou Raffi.

— Os índios das penas, claro, respondeu Chiara, insensível às conotações racistas da pergunta.

— Já deve saber que na Índia não havia milho.

— Raffi, disse Paola, — Leve o lixo para a rua, para a casa não ficar cheirando a peixe.

— Claro. Combinei me encontrar com Giorgio e Luca às nove e meia. Levo quando sair.

— Colocou a sua roupa na máquina? Perguntou a mãe. Raffi revirou os olhos.

— Acha que tentaria sair se não o tivesse feito? Olhou para o pai e, com uma vibração de solidariedade masculina na voz, disse: — Tem radar. Então, soletrou a última palavra, para deixar clara a natureza do regime sob o qual vivia.

— Obrigada, disse Paola, segura do seu poder e insensível às reprimendas.

Quando Chiara se ofereceu para lavar a louça, a mãe disse que, como estava suja de peixe, preferia lavá-la. A filha aceitou a resposta como um indulto e não como um sinal de desconfiança das suas qualificações para o trabalho doméstico e, aproveitando a ausência de Raffi, foi para o computador.

Brunetti se levantou da mesa quando a mulher acabava de lavar a louça e tirou a Moka do armário.

— Café? Perguntou Paola. Conhecia os hábitos dele e sabia que só bebia café depois de jantar em restaurantes.

— Sim. Estou de rastros, confessou.

— Não seria preferível ir para a cama mais cedo? Sugeriu ela.

— Não sei se consigo dormir com este calor.

— Quando acabar, vamos para a varanda até vir o sono, sugeriu Paola.

— Está bem, concordou ele, voltando a guardar a cafeteira e abrindo o armário ao lado. — O que posso beber com tanto calor? Perguntou, olhando para as garrafas que enchiam as duas prateleiras.

— Água mineral gaseificada.

— Muito engraçada, disse Brunetti. Do fundo do armário, tirou uma garrafa de galliano e repetiu a pergunta por outras palavras: — O que posso beber enquanto vejo o Sol se pôr no ocaso, sentado na varanda ao lado da pessoa que mais amo no mundo, e percebendo que a vida não pode me oferecer maior prazer do que a sua companhia?

Ela pendurou o pano no puxador da gaveta dos talheres e lançou-lhe um olhar demorado que terminou num sorriso brincalhão.

— Para um homem no seu estado, o mais indicado ainda é água mineral com gás, disse ela, e foi para a varanda esperá-lo.


* * *


Na manhã seguinte, Brunetti sentia-se incomodado pela letargia que o invadia às vezes quando um caso parecia ter encalhado. A isso se somava o calor penetrante que já se apoderara do dia quando ele acordara. A xícara de café que Paola entregou não levantou o moral, nem o banho demorado que tomou, aproveitando o fato dos dois filhos terem ido para Alberoni e não haver o perigo de baterem à porta do banheiro se ele usasse mais água do que permitiria a sua mentalidade ecológica. Duas décadas do habitual mau humor matinal davam a Paola o direito de apresentar esse estado de espirito, por isso não podia contar que a conversa dela alegrasse a manhã.

Brunetti saiu de casa logo após o banho, um pouco irritado com o universo. Enquanto se dirigia a Rialto, decidiu beber outro café no bar da primeira esquina. Comprou um jornal e entrou no estabelecimento para ler as manchetes. Dirigiu-se ao balcão e, sem levantar os olhos, pediu um café e um brioche. Não prestou atenção ao som familiar da máquina do café, à pancada surda e ao silvo, nem ao tilintar da xícara no pires. Mas, ao levantar a cabeça, viu que a mulher que lhe servira café durante mais de dez anos tinha desaparecido ou se transformara numa chinesa que teria metade da sua idade. Olhou para a caixa e viu lá outro chinês.

Há meses que presenciava a aquisição gradual dos cafés na cidade por proprietários e empregados chineses, mas aquela era a primeira vez que acontecia num lugar que frequentava. Resistindo à vontade de perguntar pela Signora Rosalba e pelo marido, pôs dois saquinhos de açúcar na xícara. Aproximou-se da vitrine e viu que os brioches eram diferentes dos que comera durante anos, acabados de fazer e com mirtilos; na vitrina havia um letreiro explicando que eram fabricados e congelados em Milão. Acabou o café, pagou e saiu.

Ainda era cedo para os turistas terem invadido os barcos, então apanhou o número um em San Silvestro e ficou de pé no convés, lendo o Gazzettino. Não ficou mais animado com o que leu, e muito menos por encontrar Scarpa ao fundo das escadas quando entrou na Questura. Brunetti passou diante do tenente em silêncio e começou a subir as escadas. Então, ouviu atrás de si a voz de Scarpa.

— Commissario, se me permite uma palavra... Brunetti voltou-se e olhou para o homem fardado.

— Sim, tenente?

— Hoje vou voltar a chamar a Signora Gismondi para interrogá-la. Como o senhor parece interessado nela, achei que ia querer saber.

— "Interessado", tenente? Limitou-se a perguntar Brunetti. Como se não tivesse ouvido, Scarpa disse:

— Ninguém se lembra de tê-la visto na estação naquela manhã.

— Acho que o mesmo pode ser dito da maioria dos restantes setenta mil habitantes da cidade, disse Brunetti, cansado. — Bom dia, tenente.

Brunetti entrou na sala pensando no comportamento de Scarpa. Aquele obstrucionismo sistemático podia não ser mais do que a manifestação do ódio que sentia por Brunetti e por aqueles que trabalhavam com ele, e a Signora Gismondi o instrumento que usava para atacá-lo. Por outro lado, Brunetti se interrogou, e não pela primeira vez, se Scarpa não estaria tentando encobrir alguém. Esta possibilidade lhe provocou uma leve náusea.

Para se distrair destes pensamentos, Brunetti pôs-se a ler os papéis que tinham se acumulado na sua caixa de entrada durante os últimos dias, entre os quais se destacava uma nota do Ministero dell'Interno em que se especificavam as alterações que deviam ser introduzidas nos procedimentos policiais, resultantes, segundo rezava o documento, da aprovação pelo Parlamento da recente legislação. Brunetti leu o memorando com interesse e releu-o com indignação. Após a segunda leitura, deixou o papel no meio da mesa, olhou pela janela e disse em voz alta com aversão:

— Por que não deixá-los logo governar o país todo? E não se referia aos deputados do Parlamento.

Ocupou-se dos outros documentos que aguardavam a sua atenção e conseguiu resistir à tentação de descer para interferir no que estariam fazendo à Signora Gismondi. Sabia que não podiam acusá-la de nada e que ela era apenas mais uma peça num jogo que ele não conseguia entender, mas sabia que qualquer tentativa de ajudá-la só a prejudicaria.

Passou uma hora estúpida, e depois outra, até que Vianello bateu à porta. Quando o inspetor entrou, bastou olhar para Brunetti para entender que algo estava errado.

— A culpa é minha, commissario, disse Vianello, de pé diante da mesa de Brunetti com uns papéis na mão.

— O quê?

— Estava à minha frente e não me lembrei de perguntar.

— Do que está falando, Vianello? Perguntou Brunetti com secura. — E sente-se. Não fique aí de pé. Vianello pareceu não o ouvir e levantou os papéis.

— Ele trabalhava no departamento de contratos, disse ele, acenando com os papéis, para maior ênfase. — O seu trabalho consistia em rever os planos que eram apresentados para obras que deviam ser feitas nas escolas e comprovar que, em cada caso, iam ao encontro das necessidades dos alunos e professores. Separou uma folha e pôs as outras em cima da mesa. — Olhe, disse, levantando o papel: — Ele não tinha autoridade para aprovar os contratos, mas podia fazer recomendações. Juntou a folha às outras, e recuou como se receasse que começassem a arder. — Eu estava ali, falando dele, e não me ocorreu perguntar em que departamento trabalhava.

— Quem? O filho?

— Sim. Foi aí que começou. O pai trabalhava no departamento de pessoal, e Deus sabe que ali ninguém podia pedir subornos.

— Quais as datas? Vianello pegou nos papéis e folheou-os.

— Os pagamentos começaram quatro anos depois de ele entrar. Olhou para Brunetti. — Tempo mais do que suficiente para se familiarizar com a mecânica das coisas.

— Se essa era a mecânica.

— Pelo amor de Deus, commissario! Exclamou Vianello com uma rispidez incomum na voz. — É um escritório municipal. Como as coisas funcionam?

— Quem era o chefe do departamento quando os pagamentos começaram? Sem necessidade de consultar os documentos, Vianello respondeu:

— Renato Fedi. Foi nomeado chefe do departamento cerca de três meses antes das contas serem abertas.

— E então decidiu expandir os seus horizontes, completou Brunetti. Mas, de repente, perguntou: — Quem era o chefe quando Battestini entrou?

— Piero De Pra, que morreu. Sucedeu-lhe Luca Sardelli, mas só ficou ali dois anos, até ser transferido para o Saneamento. Antes de ser privatizado, acrescentou.

— Alguma ideia do motivo por que o transferiram? Vianello encolheu os ombros.

— Do pouco que soube dele, parece ser uma daquelas personagens cinzentas, alguém que é transferido de um lugar para outro porque tem a capacidade de ser amigo de todo mundo e ninguém tem coragem de demiti-lo. Têm-nos à mão até conseguirem um local adequado, e depois se livram deles.

Brunetti, resistindo a tentação de repetir a comparação com a Questura, contentou-se em perguntar:

— E agora está no Assessorato dello Sport?

— Sim, senhor.

— Sabe o que faz lá?

— Não, senhor.

— Verifique, disse Brunetti. Antes que Vianello pudesse inteirar-se da ordem, o commissario perguntou: — E Fedi?

— Seguiu Sardelli, esteve dois anos ali e deixou a função pública para dirigir a empresa de construção do tio, aonde está desde então.

— Que tipo de obras fazem?

— Conservação de escolas, entre outras coisas.

Brunetti reviu mentalmente a sua conversa com o juiz Galvani, tentando se lembrar se nos comentários do juiz a respeito de Fedi tinha escapado algum pormenor, uma inflexão de voz ou uma insinuação que o convidasse a investigar o homem, mas não encontrou nada. Então pensou que Galvani não era seu amigo nem lhe devia favor algum, então talvez não lhe tivesse feito tal sugestão embora existisse uma razão para inspecionar as suas atividades. Brunetti sentiu um lampejo de desespero: por que devia ser sempre assim, por que razão ninguém estava disposto a fazer nada, a menos que lhe trouxesse um benefício pessoal ou que devesse um favor? A sua atenção se voltou para Vianello, que dizia:

— ... não parou de crescer nos últimos cinco anos.

— Desculpe, Vianello, estava pensando em outra coisa. Dizia...?

— Que a empresa do tio ganhou um contrato para a reforma de duas escolas em Castello quando Fedi estava à frente da sala da Secretaria de Estado da Educação e que desde então não parou de crescer, especialmente desde que ele assumiu a direção.

— Como sabe?

— Verificamos nos arquivos das declarações de impostos desses anos.

Brunetti, irritado, se sentiu tentado a perguntar se naquela manhã Vianello e a Signorina Elettra tinham encontrado tempo para irem pessoalmente à sede da empresa de Fedi e pedido autorização para examinar os livros e as declarações de impostos e, tudo isso, sem se darem ao trabalho de solicitar a ordem judicial correspondente. Mas disse apenas:

— Isso precisa acabar, Vianello.

— Sim, senhor, respondeu o inspetor mecanicamente, e acrescentou: — Tenho uma teoria de que os orçamentos das obras que foram adjudicadas para a empresa do tio foram avaliados por Battestini. Naquela época, ele trabalhava nesse departamento.

— Pode descobrir se ele os supervisionou? Perguntou Brunetti, ciente do cinismo do pedido. Generoso na vitória, Vianello se limitou a anuir com a cabeça.

— As propostas precisam ter a sua assinatura ou as suas iniciais, se fosse o responsável por examiná-las, em nome da Secretaria de Estado da Educação. Antecipando a próxima pergunta de Brunetti, disse: — Não senhor, não tivemos de olhar para os papéis. Na oferta há um código que indica quem a estudou e verificou que está em conformidade com as exigências da escola, de modo que tudo o que temos a fazer é procurar a oferta de Fedi e ver quem a processou.

— Haveria forma de verificar se os preços eram...? A imaginação falhou a Brunetti e a frase permaneceu inacabada.

— Acho que seria mais fácil olhar para outras ofertas e comparar preços e prazos. Se a do tio de Fedi era mais cara ou mais limitada, teríamos encontrado a explicação.

Pelo entusiasmo com que o inspetor falava, Brunetti entendeu que já previa o que ia encontrar. Mas Brunetti tivera a oportunidade de observar durante muitos anos a engenhosidade com que os italianos roubavam o Estado, e duvidava que alguém tão astuto como Fedi tivesse dado o contrato ao tio por meios ilegais, deixando uma pista fácil de seguir.

— Verifique se havia penalização pelo descumprimento dos prazos e se ela foi aplicada, sugeriu Brunetti, mostrando as suas duas décadas de experiência na burocracia da cidade.

Vianello se levantou e saiu da sala. Durante um momento, Brunetti pensou em descer para vê-los trabalhar, não tentando enganar a si mesmo pensando que talvez pudesse ajudar, mas depois percebeu que seria melhor não interferir. Eles avançariam mais depressa e ele evitaria se inteirar da crescente ilegalidade das técnicas de investigação da Signorina Elettra e de Vianello.


* * *


Vinte

DEPOISde mais de uma hora, a impaciência se sobrepôs ao bom senso, e Brunetti desceu até a sala da Signorina Elettra. Entrou na expetativa de vê-la e a Vianello diante do monitor, mas viu a sala deserta e a tela escura. A porta de Patta estava fechada, e Brunetti reparou então que há vários dias que o seu superior não dava sinais de vida; se perguntou se já teria ido para Bruxelas e começado a trabalhar na Interpol, sem ninguém saber. Quando Brunetti pensou nesta possibilidade não pôde deixar de considerar as consequências: qual dos vários oportunistas pendurados no pau de sebo das promoções seria eleito para substituí-lo?

A intrincada configuração geográfica de Veneza se refletia nos hábitos da sua população: a rede de calles estreitas que entrelaçavam os seis sestieri era uma réplica da teia de fios que ligavam os seus habitantes. Strada Nuova e a Via XXII Marzo tinham o traço largo e retilíneo dos laços familiares: qualquer pessoa podia segui-las facilmente; Calle Lunga San Barnaba e Barbaria de le Tole também eram retas, mas muito mais curtas e estreitas, como os laços entre amigos íntimos: não havia perigo de um desvio, mas não levavam tão longe. Já a maior parte das calles que permitiam a uma pessoa se deslocar pela cidade era estreita e sinuosa, algumas não tinham saída ou desembocavam em vias que levavam os incautos na direção oposta à que queriam seguir: esta era a via da dissimulação protetora, os caminhos a serem seguidos por aqueles sem acesso a percursos mais diretos para chegar ao objetivo.

Durante os anos que estivera em Veneza, Patta fora incapaz de se orientar sozinho pelas calles estreitas, mas tinha aprendido, pelo menos, a mandar na frente venezianos que o guiassem através do labirinto de rancores e animosidades construído ao longo dos séculos, e o ajudassem a evitar os obstáculos e as armadilhas criadas nos últimos tempos. Sem dúvida, o substituto que a burocracia central de Roma lhes enviaria seria um estrangeiro, como o era todo aquele que não tivesse nascido ouvindo o barulho da água da laguna, que lutaria desesperadamente à procura de caminhos retos e vias diretas para chegar ao destino. Brunetti, estupefato, percebeu que não queria que Patta fosse embora.

Foi arrancado das suas reflexões pela voz de Vianello, que se aproximava. Ao som grave do seu riso se juntou o tom mais agudo do riso da Signorina Elettra. Ao entrarem na sala e verem Brunetti, pararam, se calaram e deixaram de sorrir. Sem dar explicações pela sua ausência, a Signorina Elettra se sentou diante do computador, despertou-o com um movimento do mouse e apertou uma série de teclas que fizeram aparecer na tela duas páginas, uma ao lado da outra.

— Estas são as ofertas feitas pela empresa do tio de Fedi quando ele chefiava a sala local da Secretaria de Estado da Educação, commissario.

Brunetti pôs-se ao seu lado e viu o timbre familiar da Câmara, e, por baixo, parágrafos escuros de texto. Apertou outra tecla e apareceram duas outras páginas, praticamente idênticas às anteriores. Uma novo aperto substituiu-as por outras duas. Estas últimas, sem papel timbrado, continham, à esquerda, uma coluna de nomes e, do lado oposto, uma coluna de números.

— Este é o orçamento, commissario. Ele leu algumas das entradas e, na coluna à direita, viu o que custaria cada objeto ou serviço. Leigo no assunto, ignorava se os preços estavam corretos.

— Já os comparou com outros orçamentos? Perguntou, desviando a vista do contrato e olhando para a Signorina Elettra.

— Sim, senhor.

— E então?

— O do tio era o mais barato, disse ela com uma decepção audível. — Além disso, ele se comprometia a concluir o trabalho dentro do prazo e, se se atrasasse, aceitaria uma penalização.

Brunetti voltou a olhar para o monitor, como se pensasse que um exame mais aprofundado das palavras e dos números poderia revelar o estratagema que Fedi tinha usado para ganhar o contrato. Mas, por mais que olhasse para aquelas páginas, não conseguia ver sentido nelas. Por fim, desviando o olhar da tela, perguntou:

— Os prazos foram cumpridos?

— Todos sem exceção, disse ela, digitando algumas palavras no computador e esperando que novos documentos substituíssem os anteriores. — Todo o projeto foi concluído dentro do prazo, explicou, indicando o que Brunetti supôs que fossem documentos para prová-lo. — Além disso, continuou, — Também não excedeu o orçamento, e um engenheiro civil disse que as obras estão bem feitas, que a qualidade está muito acima da média dos trabalhos que se fazem geralmente para a cidade. Vendo a reação do commissario, acrescentou, apesar de contrariada: — O mesmo se pode dizer das outras duas restaurações que foram feitas nas escolas da cidade, commissario.

Brunetti afastou o olhar da tela, fitou a jovem, Vianello e outra vez a tela. Dissera várias vezes a si mesmo que precisava interpretar os fatos como eles eram e não como ele queria que fossem, e no entanto, agora que tinha diante de si uma informação que não encaixava com o que queria que fosse verdade, o seu primeiro impulso foi supor que aquilo não era o que parecia ser, e tentar encontrar provas que o desmentissem. Então percebeu: persistira em seguir uma pista que os levara àquele impasse, afastando-os da realidade desde o início.

— Estamos indo na direção errada, disse ele. — Desde o início que estamos errados. Lembrou-se do título de um livro que tinha lido anos atrás e recitou em voz alta: — "A marcha da insensatez." Temos andado à caça das presas grandes, quando devíamos ter pensado no dinheiro.

— E aquilo não é dinheiro? Perguntou Vianello, apontando para a tela.

— Refiro-me ao dinheiro das contas, insistiu Brunetti. — Olhamos para o total, não para o dinheiro.

As suas caras indicavam que ainda não tinham entendido, e confirmou-o a exclamação indignada de Vianello:

— Para alguns de nós trinta mil euros é dinheiro.

— Claro que é dinheiro, concordou Brunetti. — Muito dinheiro. E há dez anos, ainda mais. Mas olhamos para o total, não para os pagamentos mensais. Uma pessoa que ganhasse um bom ordenado podia fazê-los quase sem dar por isso. Até você poderia pagar, se fosse solteiro e vivesse com os seus pais, disse ele a um surpreso Vianello.

O inspetor começou um protesto veemente, mas, considerando as condições especificadas por Brunetti, se corrigiu, embora com relutância:

— Sim, se vivesse em casa dos meus pais, e não tivesse passatempos, nem saísse para jantar, e se me vestisse de qualquer maneira, talvez. Mas ainda objetou: — De qualquer forma, não seria fácil. É muito dinheiro.

— Mas não o suficiente para comprar silêncio sobre a concessão indevida de um contrato para a restauração completa desses edifícios, disse Brunetti. Apontou com o dedo para o monitor, onde a soma total brilhava em toda a sua dimensão majestosa. — Obras desta envergadura envolvem milhões de euros. Diante de tal contrato, um chantagista não iria se contentar com tão pouco, terminou, finalmente, chamando o crime pelo nome.

Observou-os, à espera de ver sinais de que concordavam com a sua interpretação. O lento assentimento de Vianello e o sorriso da Signorina Elettra indicaram que assim era.

— Enganamo-nos, começou e, em seguida, se corrigiu e admitiu: — Não, eu me enganei ao pensar que era um pagamento relacionado com algo grande, importante, como um contrato. Mas o que temos aqui é pequeno, mesquinho e pessoal.

— E provavelmente nojento, acrescentou Vianello. Brunetti olhou para a Signorina Elettra.

— Não sei que tipo de informação poderá obter sobre as pessoas que trabalhavam na Secretaria de Estado da Educação quando os pagamentos começaram, disse ele, achando desnecessário acrescentar que já não se importava como ela a obtinha. — Também não sei que tipo de pessoa procuramos. A Avvocatessa Marieschi disse que a Signora Battestini confessou que o filho lhe tinha garantido uma boa velhice. Aqui, levantou os olhos para o teto com uma expressão de falsa credulidade e acrescentou: — Com a proteção da Virgem. Os seus dois ouvintes sorriram e ele continuou: — Estamos à procura de alguém que trabalhasse lá e pudesse pagar quatrocentas mil liras por mês.

— Talvez fosse alguém tão rico que o dinheiro não importasse, observou Vianello.

A Signorina Elettra olhou para ele.

— Esse tipo de pessoa nunca trabalharia na Secretaria de Estado da Educação, inspettore.

Brunetti temeu que Vianello se ofendesse com o aparente sarcasmo da observação, mas parecia que não. Na verdade, depois de refletir, o inspetor anuiu com a cabeça.

— O mais curioso, se pensarmos, é que o valor foi sempre o mesmo. O custo de vida e os salários subiram, mas os pagamentos não foram alterados.

Intrigada com a observação, a Signorina Elettra se sentou na cadeira e teclou algumas palavras e, em seguida, várias outras, e as páginas do monitor foram substituídas por dados das contas desaparecidas. Fê-las avançar até à data da conversão para o euro. Depois de examinar os dados de janeiro, passou aos de fevereiro e olhou para Brunetti.

— Olhe para isto, commissario: entre janeiro e fevereiro há uma diferença de cinco centesimi.

Brunetti se inclinou para a tela e viu que, de fato, o depósito correspondente ao mês de fevereiro era cinco centesimi superior ao de janeiro. Ela apertou uma tecla e apareceram março e abril, com a mesma importância. A Signorina Elettra tirou uma calculadora de bolso da gaveta da mesa, o pequeno aparelho que todos os cidadãos tinham recebido na época da conversão para o euro, fez um cálculo rápido e disse:

— O valor de fevereiro está correto. Voltou a guardar a calculadora na gaveta. — Cinco centesimi, disse respeitosamente, como se estivesse diante de um portento.

— Ou quem foi percebeu o erro... Começou Vianello, e Brunetti interrompeu-o, terminando a frase com a explicação mais provável:

— ... ou a Signora Battestini obrigou-o a corrigir.

— Cinco centesimi, repetiu baixinho a Signorina Elettra, impressionada com uma avareza capaz de tanta precisão.

Brunetti recordou a sua conversa com o Dottor Carlotti e exclamou:

— O telefone! O telefone! Vendo o espanto dos seus interlocutores, explicou: — Há três anos que a mulher não ia na rua. Teve de avisá-lo do erro por telefone. Amaldiçoou-se por não ter pensado até àquele momento em pedir o registro de ligações e por ter seguido o caminho que desejara que fosse o certo em vez de olhar para o que tinha diante dos olhos.

— Vai levar várias horas, disse a Signorina Elettra. Antes que Brunetti pudesse perguntar porque não conseguiam obter os dados com mais rapidez, ela esclareceu: — A mulher de Giorgio acaba de dar à luz, e ele só trabalha em tempo parcial, por isso só chegará ao escritório depois do almoço. Antecipando novamente a pergunta de Brunetti disse: — Não, senhor, tive de prometer que não tentaria entrar no sistema por minha conta. Se eu cometesse um erro, iriam descobrir quem tem me ajudado.

— Um erro? Perguntou Vianello. Às suas palavras seguiu-se um longo silêncio, e quando começava a se tornar desconfortável, ela disse:

— Com os computadores, quero dizer. Mas mesmo assim dei a minha palavra. Não posso.

Brunetti e Vianello trocaram um olhar de entendimento tácito, pensando com pesar no erro cometido pela Signorina Elettra há alguns anos.

— Tudo bem, disse Brunetti. — Verifique as ligações recebidas e enviadas, por favor. Lembrou-se do dia em que ela lhe apresentara o seu amigo Giorgio, havia alguns anos. — Menino ou menina? Perguntou.

— Menina, respondeu ela e, com um sorriso quase beatífico, acrescentou: — Vão chamá-la de Elettra.

— O que me surpreende é que não a chamem de Compaq, disse Vianello, e ela riu e o ambiente se desanuviou.

Ao voltar para a sua sala, Brunetti tentou imaginar uma situação que se prestasse à chantagem, e reviu os segredos, vícios e escândalos que podiam ter feito com que alguém tivesse se convertido na vítima de Battestini. "Vitima" não parecia ser a palavra certa, convencido de que a pessoa chantageada era a Signora Battestini.

Pensando nos crimes e vícios possíveis, teve de admitir que Paola estava certa quando dizia que a maioria dos sete pecados capitais não era pecado. Quem iria matar para evitar ser descoberto? Que era culpado de gula, preguiça, inveja, ou soberba? Restavam apenas a luxúria e a ira, se conduzissem a violência, e a avareza, se levasse a aceitar os subornos. Os outros não contavam. Quando era ensinado que o paraíso era um mundo sem pecado, aliás este admirável mundo que tinha perdido o sentido do pecado, onde ele se encontrava, não tinha nada de paraíso.


* * *


Vinte e Um

BRUNETTI entrara na fase da investigação que mais o aborrecia: aquela em que tudo ficava suspenso enquanto se desenhava um novo mapa. No passado, a sua frustração com a imobilidade imposta por esta situação levara-o a trabalhar com uma velocidade que mais tarde lamentara. Por essa razão, agora dominou o impulso de forçar a marcha, e procurou algo que pudesse fazer com plena justificação. Pegou na lista telefônica e tomou nota do número e da endereço da casa e do escritório de Fedi e de Sardelli, apesar de reconhecer que eram os menos suspeitos: não era necessário ter sido um dos diretores. O mais provável era que não fosse, ou Paolo Battestini teria exigido mais dinheiro.

Pegou na pasta de Battestini e leu todos os recortes de imprensa. Ali estava, dois dias após o homicídio: La Nuova informava que Florinda Ghiorghiu só começara a trabalhar para a Signora Battestini cinco meses antes do crime e que o único filho da vítima tinha morrido cinco anos antes. Assim, o diretor da sala local da Secretaria de Estado da Educação não era o único que sabia esses fatos sobre a Signora Battestini e sua família.

Uma hora depois, Vianello entrou com a lista preparada pela Signorina Elettra, o inspetor mencionou expressamente que obtivera a informação através de solicitação oficial, das pessoas que trabalhavam na Secretaria de Estado da Educação até três meses antes de se iniciarem os pagamentos.

— Está cruzando dados, para verificar a situação atual, disse Vianello, — Se casaram, morreram ou se mudaram.

Brunetti olhou para a lista e viu que continha vinte e dois nomes. A experiência, o preconceito e a intuição combinaram-se nele e o levaram a perguntar:

— Prescindimos das mulheres?

— Acho que podemos prescindir, pelo menos no momento, disse Vianello. — Também vi as fotografias do cadáver.

— Então restam oito, disse Brunetti.

— Sim, senhor, concordou Vianello. — Copiei os quatro primeiros nomes para si. Vou para a minha sala começar a fazer telefonemas, para ver o que consigo descobrir sobre os outros quatro.

Brunetti já estendia a mão para o telefone quando o inspetor saiu. Reconhecera três dos sobrenomes da lista, um Costantini e dois Scarpa, embora fosse mera coincidência, e os três estavam na lista de Vianello. Discou de memória o número do sindicato a que pertencia, como a maioria dos funcionários públicos, deu o seu nome e perguntou por Daniele Masiero. Enquanto esperava que passassem a ligação, Brunetti foi obsequiado com uma das Quatro Estações. Masiero atendeu dizendo:

— Ciao, Guido, que vida particular quer que revele hoje?

Brunetti continuou a cantarolar o tema principal do segundo andamento do concerto.

— Não escolhi a música, se defendeu Masiero. — Felizmente, como nunca ligo para este número, não preciso ouvir.

— Então como sabe que toca? Perguntou Brunetti.

— Pela quantidade de pessoas que me dizem que estão cansadas de ouvir isso.

Normalmente, Brunetti observaria as convenções e perguntaria a Masiero pela família e pelo trabalho, mas naquele dia a impaciência fê-lo ir diretamente para o motivo da sua ligação.

— Tenho os nomes de quatro pessoas que trabalharam na Secretaria de Estado da Educação há cerca de dez anos e agradeceria se descobrisse tudo o que puder sobre elas.

— Coisas relacionadas com o meu trabalho ou com o seu?

— Com o meu.

— Por exemplo?

— Razões pelas quais poderiam ser alvos de chantagem.

— Isso é muito abrangente. Brunetti achou melhor guardar as suas reflexões sobre os sete pecados capitais, e apenas disse:

— É. Ouviu o barulho de papéis na outra ponta da linha e a voz de Masiero:

— Diga os nomes.

— Luigi D'Alessandro, Ricardo Ledda, Benedetto Nardi e Gianmaria Poli. Masiero rosnava a cada nome lido por Brunetti. — Conhece algum?

— Poli morreu, disse Masiero. — Há cerca de dois anos. Um enfarte. E Ledda foi transferido para Roma há seis anos. Dos outros dois não tenho certeza, nem sei que razões teriam podido dar para uma chantagem, mas posso perguntar.

— Pode se informar sem chamar a atenção? Perguntou Brunetti.

— Quer dizer sem aparecer em casa deles a pedir que me digam, por exemplo, se alguém os chantageia? Retorquiu Masiero secamente, sem tentar esconder a sua irritação com a pergunta de Brunetti. — Depois ligo.

Brunetti sentiu o impulso de pedir desculpas, mas, antes de poder começar, Masiero já tinha desligado.

Voltou a ligar para o escritório do seu amigo Lalli e, após ouvir as explicações de que estivera com muito trabalho para poder investigar Battestini, Brunetti lhe disse que tinha outros dois nomes para dar: D'Alessandro e Nardi.

— Desta vez, conseguirei tempo, prometeu Lalli, e desligou, deixando Brunetti sem saber se seria o único homem em toda a cidade que não estava assoberbado de trabalho.

A força do hábito levou-o à janela, de onde contemplou as telas compridas penduradas no andaime da fachada do Ospedale di San Lorenzo, objeto de outro vasto projeto de restauro. Uma grua, talvez a mesma que durante tantos anos tinha permanecido imóvel sobre a igreja, estava agora, igualmente imóvel, sobre a casa de repouso. Não havia sinais de que as obras estavam avançando. Brunetti não se lembrava de ter visto alguém nos andaimes. Não sabia quando tinham sido montados, mas devia ser há vários meses, pelo menos. O cartaz na frente da igreja dizia que as obras tinham sido iniciadas em conformidade com os decretos de 1973, mas ele ainda não estava na Questura nessa época, então não sabia se aquele era o ano em que as obras deviam ter começado ou apenas a data da autorização. Perguntou-se se aquela seria a única cidade em que as coisas eram medidas pela quantidade de tempo que não se trabalhava nelas.

Voltou para a mesa e pegou numa agenda de 1998, onde tinha anotados números de telefone. Procurou e discou os escritórios da Arcigay em Marghera e perguntou por Emilio Desideri, o diretor. Deixaram-no na espera e descobriu que, quer fossem hetero ou gay, todos escolhiam Vivaldi.

— Desideri, disse uma voz.

— Emilio, sou eu, Guido. Preciso de um favor.

— Um favor que posso fazer de consciência limpa?

— Provavelmente não. Seria um milagre.

— O que é?

— Tenho dois nomes... Bom, quatro, corrigiu, decidindo incluir Sardelli e Fedi. — Quero saber se algum deles poderia ser alvo de chantagem.

— Guido, já não é crime ser gay, lembra?

— Mas esmagar a cabeça de uma pessoa ainda é, Emilio, retorquiu Brunetti. — Por isso liguei. Esperou que Desideri dissesse algo e, como não disse, continuou: — Basta que me diga se sabe se algum deles é gay.

— E isso será suficiente para que saiba se foi capaz de esmagar a cabeça de uma pessoa, como tão delicadamente disse?

— Emilio, disse Brunetti com uma calma estudada, — Não estou tentando lhe perseguir ou a qualquer outro gay. Me é indiferente se é, ou se o papa é. Até quero acreditar que não me importaria se o meu filho fosse, mas provavelmente não seria verdade. Só quero encontrar uma maneira de entender o que pode ter acontecido àquela velhota.

— Battestini? A mãe de Paolo?

— Conhecia?

— Tinha ouvido falar dela.

— Pode me dizer aonde?

— Paolo estava envolvido com um conhecido meu, que me disse, depois de Paolo morrer, o tipo de mulher que o filho dizia que era.

— Esse homem falaria comigo?

— Se ainda estivesse vivo, talvez. Brunetti recebeu a notícia com um silêncio demorado.

— Lembra-se de alguma coisa que tenha dito? Perguntou então.

— Que Paolo estava sempre dizendo que a amava muito, mas que a ele parecia que realmente a odiava.

— Por algum motivo?

— Pela ganância. Aparentemente, só vivia para guardar dinheiro no banco. Era a sua maior alegria, a sua única alegria, acho.

— Como era Paolo?

— Não cheguei a conhecê-lo.

— Que dizia dele o seu amigo?

— Não era meu amigo. Era um paciente. Fez terapia durante três anos.

— Desculpe. O que dizia dele?

— Que fora contagiado pela mania da mãe, mas que o que mais desejava era lhe dar dinheiro, porque isso parecia fazê-la feliz. Eu achava que realmente queria dizer que nesse momento deixaria de chateá-lo, mas posso estar errado. Talvez fosse verdade que ficasse feliz em lhe dar dinheiro. Na sua vida não havia muitos motivos de felicidade.

— Ele morreu de Aids, não é?

— Sim; o mesmo que o amigo.

— Lamento.

— Parece sincero, Guido, disse Desideri, sem surpresa.

— E sou. Ninguém merece isso.

— Tudo bem. E me dê esses nomes. Brunetti leu os nomes de D'Alessandro e Nardi e, como Desideri não dizia nada, juntou os de Fedi e Sardelli.

Desideri permaneceu em silêncio durante algum tempo, mas era um silêncio tenso e Brunetti esperou ansioso.

— Acha que Paolo fazia chantagem com essa pessoa? Perguntou Desideri por fim.

— As provas assim o indicam, afirmou Brunetti. Ouviu-se uma aspiração rouca e profunda de Desideri e depois a sua voz.

— Não posso fazer isso. E desligou.

Brunetti lembrava-se vagamente de ter ouvido Paola citar um escritor inglês que dizia que trairia antes a pátria do que os amigos. Ela achara a ideia jesuítica, e Brunetti não pôde deixar de concordar, apesar da capacidade dos ingleses para fazerem soar bem uma canalhice. Assim, um dos quatro era gay e suficientemente amigo de Desideri, ou talvez um paciente, para que ele não quisesse dar o seu nome à Polícia, mesmo numa investigação de homicídio, ou precisamente porque era uma investigação de homicídio. A lista se reduzira, a menos que Vianello encontrasse mais um gay. Ou a menos, refletiu Brunetti, que houvesse outras razões para a chantagem.

Vinte minutos depois, Vianello entrou no escritório de Brunetti, ainda com a lista na mão. Sentou-se no seu lugar habitual, do outro lado da mesa, pousou nela o papel e disse:

— Nada. Brunetti interrogou-o com o olhar. — Um morreu, disse o inspetor, apontando para um nome. — Aposentou-se no ano seguinte a terem começado os pagamentos e morreu há três anos. Fez avançar o indicador pela lista. — Este deu para a religião e agora vive numa espécie de comuna ou coisa parecida, perto de Bolonha. Há três anos. Empurrou o papel uns centímetros para Brunetti e impeliu o corpo para trás. — Dos dois que ainda trabalham lá, um é chefe de inspeção de escolas, chama-se Giorgio Costantini, é casado e parece uma pessoa decente.

Brunetti nomeou dois ex-chefes do governo e disse que o mesmo poderia ser dito deles. Vianello pôs-se na defensiva.

— Tenho um primo que joga rúgbi com ele nos fins-de-semana. Diz que é um bom tipo e eu acredito nele. Brunetti deixou passar a observação sem comentários.

— E o outro?

— O outro está numa cadeira de rodas.

— Como?

— Pegou poliomielite numa viagem à Índia. Não leu a notícia? Brunetti se lembrou do caso, mas não dos pormenores.

— Sim, lembro de qualquer coisa. Há quanto tempo foi isso? Cinco anos?

— Seis. Adoeceu na Índia e quando, finalmente, diagnosticaram a doença, já era tarde para evacuá-lo, trataram-no lá e agora está numa cadeira de rodas. Vianello, num tom que indicava que ainda estava chateado por Brunetti não aceitar o parecer do seu primo sobre Giorgio Costantini, disse: — Talvez não considere razão suficiente para rejeitá-lo, mas acho que, quando uma pessoa está numa cadeira de rodas, deve ter outras preocupações do que continuar pagando chantagem. Fez outra pausa. — Embora eu possa estar errado, claro.

Brunetti olhou fixamente para o inspetor, mas em vez de morder a isca, disse:

— Ainda não perdi a esperança de que Lalli me diga alguma coisa.

— Que delate um companheiro gay? Perguntou Vianello num tom que desagradou a Brunetti.

— Tem três netos.

— Quem?

— Lalli. Vianello negou com a cabeça com uma expressão que tanto podia ser de descrença como de censura. — Ele é meu amigo há muito tempo, disse Brunetti calmamente. — É uma pessoa decente.

Vianello acusou a reprimenda e optou pelo silêncio. Brunetti ia dizer algo, mas o inspetor desviou o olhar. Talvez o que desagradou a Brunetti tenha sido a sua relutância em aceitar a integridade de Lalli, ou talvez apenas a sua maneira de virar a cabeça, pois viu naquilo uma provocação.

— Gostaria de falar com o que não está numa cadeira de rodas. O jogador de rúgbi.

— Sim, senhor, respondeu Vianello. Levantou-se e, sem dizer mais nada, saiu.


* * *


Vinte e Dois

QUANDO a porta se fechou atrás de Vianello, Brunetti reagiu.

— O que aconteceu aqui? Murmurou.

Era aquilo que sentia o bêbedo ao acordar, ou aquele que se deixara levar pela ira? Também eles experimentavam aquela sensação de estar vendo dos bastidores alguém representar uma cena mal escrita? Rememorou a sua conversa com Vianello tentando encontrar o momento em que a simples troca de informações entre dois amigos degenerara numa luta por território entre dois rivais com excesso de testosterona. E, o que era pior, o território por que tinham lutado não era mais do que a recusa de Brunetti em aceitar uma opinião só porque ela partia de um homem que jogava rúgbi.

Depois de passar alguns minutos sentado à mesa, o seu instinto mais nobre fê-lo pegar no telefone e ligar para a sala dos agentes, onde um Pucetti nervoso disse, hesitante, que Vianello não estava. Brunetti desligou pensando em Aquiles amuado na sua tenda. Em seguida, o telefone tocou e, desejando que fosse Vianello, atendeu rapidamente.

— Commissario, disse a Signorina Elettra, — Já tenho as ligações dela.

— Como as conseguiu tão depressa?

— É que decidiram que a mulher dele precisa ficar mais um dia na maternidade, e Giorgio foi trabalhar.

— Alguma complicação? Perguntou Brunetti, sempre solicito para com a figura da esposa e mãe.

— Não senhor, nenhuma. O tio dela é o primário de lá e achou conveniente tê-la ali mais um dia. Ele detectou na sua voz o desejo de aliviar a sua preocupação com uma mulher desconhecida.

— Ela ficará bem. A Signorina Elettra esperou um momento, para ver se ele tinha mais perguntas e, como não tinha, continuou:

— Giorgio encontrou o meu e-mail e verificou as ligações feitas do número da mulher. Durante o mês anterior à sua morte, ela ligou para o geral da sala local da Secretaria de Estado da Educação. Foi o único telefonema que fez. No dia seguinte, recebeu uma ligação do mesmo número. Só há outra ligação, da sobrinha. Nada mais.

— Quantos dias analisou?

— O mês inteiro, até ao dia em que foi morta.

Nenhum dos dois comentou que, aos oitenta e três anos, a Signora Battestini, que vivera sempre na cidade, só recebera duas ligações num mês. Brunetti se lembrou de que não havia livros nas caixas do sótão: a sua vida ficara reduzida a uma poltrona em frente a um aparelho de televisão, apenas com a companhia de uma mulher que quase não falava italiano.

Pensou nas caixas, como fora precipitado o seu exame e, distraído por essa ideia, não ouviu a frase seguinte da Signorina Elettra. Quando prestou atenção, ela dizia:

— ... na véspera da sua morte.

— Como? Perguntou. — Desculpe, estava muito longe daqui.

— A ligação da sala local da Secretaria de Estado da Educação foi recebida na véspera da sua morte.

O seu tom revelava que estava orgulhosa da sua descoberta, mas Brunetti se limitou a agradecer e a desligar. Enquanto conversavam, ele tivera uma ideia: os objetos no sótão da Signora Battestini mereciam mais atenção. O motivo da chantagem só surgira depois de ter feito a sua rápida inspeção; mas, agora que esta possibilidade tinha se transformado numa âncora do caso, era conveniente um exame mais aprofundado. Embora Brunetti não soubesse ainda o que procurava, percebia, pelo menos, que algo poderia ser encontrado.

Pegou no telefone para ligar para Vianello e perguntar se queria ir com ele a casa da Battestini, mas se lembrou da forma como saiu da sua sala e que não conseguira falar com ele quando ligara para a sala dos agentes. Assim, ligou para Pucetti. Chamou o jovem agente e, sem explicação, lhe disse para esperar na porta da rua dali a cinco minutos, acrescentando que precisariam de uma lancha. Da outra vez introduzira-se na casa da Signora Battestini como ladrão, sem ser visto, mas hoje chegaria na sua qualidade de representante da lei, e ninguém lhe poria entraves, ou assim esperava.

Pucetti, que estava à espera na rua, ao lado da porta da Questura, já tinha aprendido que não devia fazer continência a Brunetti cada vez que o via, mas ainda não conseguia resistir à tentação de ficar em sentido. Brunetti, decidido a não perguntar por Vianello, subiu na lancha, disse ao piloto onde devia levá-los e desceu para a cabina. Pucetti optou por permanecer no convés.

Assim que Brunetti se sentou, veio-lhe de novo a mente a longa passagem que descrevia Aquiles na sua tenda, e recordou a grandiloquente litania das ofensas e agravos que o herói acreditava ter sofrido. Aquiles fora injustiçado por Agamenon, e Brunetti, pelo seu Pátroclo. De repente, na sua contemplação de Homero surgiu uma expressão que Paola recolhera nos seus estudos do idioma americano: dissed, particípio passado de to dis. Aquilo, como explicou, era um verbo usado pelos afro-americanos que denotava disrespect, termo que abrangia toda a gama de faltas de respeito de que uma pessoa podia ser alvo.

— Vianello dissed me, murmurou Brunetti. Soltou uma risada e subiu ao convés, contente por ter recuperado o sentido de humor.

O barco se aproximou da riva e em breve estavam em frente ao prédio. Brunetti olhou para cima e viu que as postigos e janelas do apartamento da Signora Battestini estavam abertas, mas delas não vinha o barulho de televisão. Ao tocar a campainha, observou que o nome da falecida tinha sido substituído pelo de Van Cleve.

À janela apareceu a cabeça loura de uma mulher e, em seguida, ao seu lado, a de um homem. Brunetti recuou alguns passos do prédio e ia gritar para que abrissem a porta quando as cabeças desapareceram e, nesse momento, a porta se abriu com um estalido: o uniforme de Pucetti surtira efeito.

O homem e a mulher, ambos louros, brancos e de olhos azuis, estavam à porta do apartamento. Ao vê-los, Brunetti não pôde deixar de pensar em leite e queijo e em céu claro, sempre nublado. O italiano que o casal falava era muito rudimentar, mas o commissario conseguiu fazê-los compreender quem era e onde queria ir.

— No chiave, disse o homem, sorrindo e mostrando as mãos vazias para enfatizar a mensagem. Ela imitou o gesto de impotência.

— Va bene. Non importa, disse Brunetti se virando e começando a subir as escadas, em direção ao sótão. Pucetti foi atrás dele. No primeiro patamar, Brunetti se virou e viu os dois na porta do que, aparentemente, era agora o seu apartamento, a olharem para ele com olhos de coruja.

Enquanto subia, Brunetti tirou uma moeda de vinte cêntimos, certo de que seria suficiente para desaparafusar as chapas com o cadeado, que não estariam tão apertadas como da primeira vez. Todavia, ao chegar na porta, viu as chapas penduradas, soltas. Os dois parafusos que voltara a colocar cuidadosamente também tinham saltado e a porta estava aberta uns centímetros.

Brunetti estendeu a mão para deter Pucetti, mas o agente, que também observara a anomalia, pusera-se à direita da porta e já levava a mão em direção à arma. Os dois homens ficaram imóveis, atentos a qualquer som do interior. Assim ficaram alguns minutos. Brunetti colocou o pé esquerdo diante da porta e se encostou a ela com força, para evitar que pudessem abri-la de dentro com um empurrão. Depois de alguns minutos, Brunetti olhou para Pucetti, moveu a cabeça para cima e para baixo, tirou o pé e abriu a porta. Entrou em primeiro lugar, gritando "polícia" e sentindo-se um pouco ridículo ao ouvir-se.

Não havia ninguém no sótão, mas, apesar da pouca luz, viram os sinais da passagem da pessoa que tinha estado lá antes deles. O rastro dos objetos espalhados pelo chão denotava uma curiosidade que se transformava em impaciência que, por sua vez, se transformava em frustração e, finalmente, em raiva. As primeiras caixas estavam perto do lugar onde Brunetti as deixara empilhadas, mas todas no chão, abertas e vazias: o conteúdo encontrava-se ao lado, com uma certa ordem. As seguintes estavam deitadas, com as abas arrancadas. A terceira pilha, onde Brunetti encontrara os documentos, fora saqueada: uma das caixas estava arrebentada, e os papéis espalhados num semicírculo. As últimas caixas, que continham a coleção de kitsch religioso, tinham sofrido o martírio: os corpos mutilados dos santos jaziam em impossível e profana promiscuidade; um Cristo que tinha perdido a cruz parecia procurá-la com os braços estendidos; uma Virgem azul ficara sem cabeça ao bater na parede do fundo; outra tinha perdido o menino. Brunetti observou a cena, olhou para Pucetti e disse:

— Telefone e peça para enviar a equipe técnica. Quero que recolham impressões digitais de tudo. Pousou a mão direita no braço de Pucetti e empurrou-o para a porta. — Espere-os lá em baixo, disse. Então, contra todas as normas que tinha aprendido e ensinado para preservar a contaminação da cena do crime, acrescentou: — Quero dar uma olhada antes de chegarem.

A confusão de Pucetti foi tal que quase se ouviu, além de se ver, mas o agente fez o que lhe mandavam, saiu pela porta sem lhe tocar e desceu.

Brunetti olhou em volta e considerou as consequências que podia ter a descoberta das suas próprias impressões digitais em muitos dos papéis e caixas que estavam naquele sótão. Poderia explicar a sua presença dizendo que estivera examinando-os durante a espera. Ou também poderia dizer que estivera no sótão inspecionando o conteúdo de algumas caixas, durante uma visita anterior, não autorizada, ao apartamento.

Brunetti deu um passo em direção as caixas. Na penumbra, pisou a bola de cristal que continha o presépio, escorregou e caiu sobre um joelho esmagando um objeto que, sob o seu peso, se partiu em fragmentos afiados que atravessaram as calças e furaram a pele. Atordoado pela queda e pela dor súbita, demorou um momento a se levantar. Olhou, primeiro, para o joelho, do qual começava a aparecer algumas gotas de sangue através do tecido e, depois para baixo, para ver sobre o que caíra.

Era outra Virgem, a terceira. O joelho de Brunetti tinha esmagado o tronco, mas poupara a cabeça e as pernas. Olhava para ele com um sorriso plácido e olhos indulgentes. Instintivamente, ele estendeu a mão para a socorrer ou, pelo menos, para colocar os fragmentos num lugar seguro. Apoiou no chão o joelho saudável, estremecendo com a dor que sentiu ao mover o outro, e estendeu a mão para recolher o que restava da imagem. Entre o gesso esmagado havia um rolo de papel achatado. Brunetti, intrigado, olhou para a base dos pés da imagem e viu um buraco oval com uma rolha de cortiça, como um saleiro. Fora feito um rolo muito apertado com o papel e introduzido na imagem.

Brunetti guardou a cabeça e as pernas no bolso do paletó e foi para as escadas. Dirigiu-se à janela do fundo e, segurando no canto superior esquerdo do papel com a ponta dos dedos, tentou desenrolá-lo com as unhas da mão direita, esperando não deixar nenhum vestígio. Mas o papel voltava a se fechar sem que ele pudesse ler o que estava escrito.

— Já estão vindo, commissario! Ouviu Pucetti anunciar das escadas.

Quando Brunetti viu aparecer o agente no patamar, chamou-o com um sinal. Voltou a ajoelhar, estendeu o papel com as pontas dos dedos das duas mãos e disse a Pucetti para prender o canto superior com a ponta da bota. Agarrando no papel, Brunetti desenrolou-o usando as pontas dos dedos mindinhos e manteve a folha plana com os indicadores.

O papel tinha o timbre do Departamento de Economia da Universidade de Pádua, estava datado de doze anos atrás e dirigido à Seção de Pessoal da Secretaria de Estado da Educação da Cidade de Veneza e, após uma saudação cuidadosa, dizia:


Lamentamos informá-lo de que, nos arquivos do nosso departamento, não consta que tenha sido concedido a um aluno chamado Mauro Rossi o grau de Doutor em Economia, nem que um aluno com o nome e data de nascimento indicados tenha sido matriculado nesta faculdade.


A assinatura era ilegível, mas o selo da universidade não admitia dúvida.

Brunetti olhou para o papel, recusando-se a acreditar no que dizia. Tentou lembrar os diplomas que tinha visto na parede da sala de Rossi, entre eles um pergaminho que dizia Doutorado... Brunetti não se preocupara em ler o nome da universidade que o atribuíra.

A carta era endereçada ao diretor do Departamento de Pessoal, mas já se sabe que os diretores não abrem o seu correio; para isso estão lá os secretários e outros subordinados, que abrem, leem e tomam nota das cartas oficiais que comprovam que os títulos que se reivindicam em cada currículo são autênticos. Arquivam as cartas de recomendação, tomam nota das qualificações obtidas nas provas e guardam todas as peças do quebra-cabeças burocrático que, uma vez feito, dá a imagem da pessoa digna de ser incluída no corpo de funcionários públicos e subir na escada.

Ou talvez, pensou Brunetti, ocasionalmente, talvez de forma aleatória, verifiquem as alegações feitas nos centenas, milhares, de pedidos recebidos para cada posição. E, se descobrem um engano, podem torná-lo público e desqualificar essa pessoa, talvez de forma permanente, para se candidatar a um cargo na função pública, ou usar a informação para fins particulares, em proveito próprio.

Teve uma visão da família Battestini reunida à volta da mesa ou, talvez, diante do televisor. O Pai Urso mostrando A Mãe Ursa o que o Ursinho trouxe naquele dia do trabalho. Brunetti negou com a cabeça para dissipar a visão, pegou no papel por uma ponta e se levantou.

— O que é isso, commissario? Perguntou Pucetti apontando para a carta.

— É o motivo por que mataram a Signora Battestini, respondeu Brunetti e, segurando o papel pela ponta, desceu para esperar a equipe do laboratório.

A seguir, falou com o casal de holandeses, agora em inglês, e perguntou se alguém tinha tentado entrar no prédio desde que estavam ali. Eles responderam que não tinham visto ninguém, a não ser o filho da Signora Battestini, que dois dias antes lhes pedira para abrir a porta dizendo que tinha esquecido as chaves, ou, pelo menos, assim lhes parecia, acrescentaram com um sorriso de desculpas, e que precisava ir ao sótão para verificar se as janelas estavam fechadas. Não, não tinham pedido identificação: que outra pessoa haveria de querer subir ao sótão? Subira há uns vinte minutos quando eles tinham saído para a aula de italiano e, quando voltaram, não estava mais ou, pelo menos, não o ouviram descer a escada. Não; não subiram ao sótão para ver, e não lhes parecia correto entrar nos outros lugares do prédio.

Brunetti levou um momento a entender que estavam falando sério, mas, ao lembrar que eram holandeses, acreditou.

— Podem descrever o filho? Perguntou Brunetti.

— Alto, disse o marido.

— E bonito, acrescentou a mulher. O marido olhou-a com severidade, mas não disse nada.

— Quantos anos lhe daria? Perguntou Brunetti à mulher.

— Uns quarenta. Muito alto e atlético, acrescentou e lançou ao marido um olhar que Brunetti não conseguiu decifrar.

— Muito bem, disse o commissario e, mudando de assunto, perguntou: — A quem pagam o aluguel?

— À Signora Manes... Começou a mulher, mas o marido interrompeu-a:

— O apartamento nos foi cedido por uma pessoa amiga. Não pagamos nada, apenas o consumo de água, luz e gás. Brunetti deixou assentar a mentira.

— Então são amigos de Graziella Simionato? Os dois ficaram impassíveis ao ouvir o nome. O marido foi o primeiro a reagir.

— Bem, amigos de uma amiga, disse.

— Sim, murmurou Brunetti e, por um momento, pensou em dizer que não se importava se ninguém pagava impostos pela renda deles, mas decidiu que era um pormenor sem importância. — Reconheceriam o filho se o voltassem a ver?

Observou nos seus rostos a luta entre a integridade instintiva e o respeito pela lei dos cidadãos da Europa Setentrional e o receio que criara neles tudo o que tinham ouvido dizer sobre os modos daqueles latinos estranhos.

— Sim, responderam em uníssono, resposta que satisfez Brunetti.

Agradeceu-lhes, disse que telefonaria se fosse necessária uma identificação e desceu para a rua. Havia uma lancha da polícia atracada, da qual Bochese e dois técnicos estavam descarregando o seu pesado equipamento. Brunetti dirigiu-se à embarcação, segurando o papel na sua frente como se fosse um peixe recém-pescado que queria dar a Bochese. Ao ver Brunetti, o técnico abaixou-se, abriu uma das malas que tinha no chão e tirou um saco de plástico transparente que segurou aberto enquanto Brunetti introduzia nele a carta.

— O sótão. Alguém andou remexendo lá. Preciso de um relatório completo, impressões digitais e qualquer coisa que possa identificar o suspeito.

— Sabe quem foi? Perguntou Bochese. Brunetti assentiu.

— Posso levar a lancha?

— Mas depois tem de mandá-la para cá. Temos de transportar isto tudo, disse Bochese apontando para as malas aos seus pés.

— Combinado, disse Brunetti. Antes de subir a bordo, se virou para o técnico. — Com certeza não encontrará as minhas impressões em nada do que está no sótão.

Bochese olhou para ele durante bastante tempo, com ar especulativo e respondeu:

— Claro. Abaixou-se, pegou numa das malas e foi até a porta daquela que tinha sido a casa da Signora Battestini.


* * *


Vinte e Três

BRUNETTI reprimiu o impulso de dizer ao piloto que o levasse a Calle Farsetti para um confronto improvisado com Rossi. A voz da cautela, no entanto, lhe disse que não era o momento para heroísmos tipo caubói, nem para duelos, sem testemunhas que pudessem atestar o que fora dito. Sempre que cedera a este impulso acabara por perder, ele, a Polícia e, finalmente, as vítimas, que tinham direito, pelo menos, a que os seus assassinos fossem punidos.

Quando a lancha o levou a Questura, Brunetti subiu até sala dos agentes. Vianello levantou a cabeça quando o seu superior entrou e ensaiou um sorriso marcado por embaraço que se transformou em alívio quando Brunetti retribuiu o sorriso. O inspetor se levantou e foi até a porta. Brunetti indicou-lhe com um gesto que o seguisse, deu meia volta para subir até a sua sala, parou um momento para deixar que Vianello ficasse ao seu lado e disse:

— Foi Rossi.

— O da Secretaria de Estado da Educação? Perguntou Vianello, admirado.

— Sim; descobri o motivo. Quando estavam sentados na sala, o commissario explicou: — Fui ao sótão dar outra olhada em todos aqueles trastes e encontrei uma carta da Universidade de Pádua, escondida numa das imagens. Tinha sido enrolada e enfiada no interior. Tropecei nela, disse, sem mais explicações. Vianello observava-o em silêncio. — Tem data de doze anos atrás e diz que pela Faculdade de Economia não se licenciou nem, muito menos, se doutorou nenhum Mauro Rossi. Vianello franziu o sobrolho, confuso.

— Bem, e então?

— Isso significa que mentiu ao se candidatar ao posto, disse que tinha um doutoramento e não tinha, esclareceu Brunetti.

— Isso já entendi, disse Vianello pacientemente. — Mas não vejo a relação.

— A sua posição, a sua carreira, o seu futuro, tudo iria por água abaixo se Battestini mostrasse a carta a alguém, disse Brunetti, admirado pelo fato de Vianello não estar entendendo. O inspetor fez um gesto como se para afastar as moscas.

— Até aí, entendi. Mas porque isso seria tão importante? Afinal, não passava de um emprego. Vai se matar alguém por causa disso?

A resposta àquela pergunta ocorreu a Brunetti da sua conversa com Paola, e recebeu-a com surpresa:

— Foi a soberba, disse ele. — Não a luxúria nem a avareza: a soberba. Erramos no pecado, explicou a um Vianello completamente desconcertado. Era evidente que o inspetor não o seguia.

— Continuo sem entender, repetiu. E depois: — Vamos prendê-lo ou não?

Brunetti não achava que houvesse pressa. O signor, que já não era dottor, Rossi não fugiria abandonando posição e família. O instinto dizia a Brunetti que Rossi era daqueles que se mantinha na sua terra, até ao último minuto diria que não tinha ideia do que estavam dizendo nem de como o seu nome poderia estar relacionado com uma velha que tivera a infelicidade de ser assassinada. Brunetti já parecia estar ouvindo as suas explicações e tinha certeza de que estas iriam mudar de forma camaleônica à medida que a Polícia fosse apresentando mais e mais provas incriminatórias. Rossi tinha enganado durante mais de uma década, e agora tentaria continuar a enganar.

Vianello agitou-se na cadeira, impaciente, e Brunetti disse, tranquilizador:

— Precisamos que as suas impressões digitais estejam nas coisas do sótão. Quando Bochese as conseguir, poderemos pensar em trazê-lo para interrogatório.

— E se ele se recusar a deixar que as recolhamos?

— Quando o tivermos aqui, não pode recusar, disse Brunetti, com absoluta certeza. — Seria um escândalo: os jornais o comeriam vivo.

— E não será um escândalo ter matado uma senhora de idade?

— Sim, mas um outro tipo de escândalo, do qual acredita que poderá sair vitorioso. Vai dizer que ele foi a vítima, que não sabia o que fazia, que estava fora de si quando a matou. Antes que Vianello pudesse perguntar, continuou: — Recusar-se a nos deixar recolher as suas impressões digitais, sabendo que é inevitável, daria uma sensação de covardia e ele não faria uma coisa dessas. Desviou o olhar para a janela por um momento, voltou outra vez ao colega e disse: — Pense bem: há anos, ele criou esta personagem, este falso doutor, e não sairá dele, por mais que façamos ou possamos demonstrar. Está há tanto tempo dentro da personagem que provavelmente, já se identificou com ela ou, pelo menos, acha que ganhou o direito a tratamento especial pela sua posição.

— E então...? Perguntou Vianello, que parecia entediado com tanta especulação e ansioso por informação prática.

— Então vamos esperar por Bochese. Vianello se levantou, começou a dizer qualquer coisa, pensou melhor e saiu.

Brunetti ficou sentado à mesa, pensando no poder e nos privilégios que muitos daqueles que o detêm acreditam que ele oferece. Fez uma lista mental dos colegas de trabalho, procurando exemplos desta atitude e, quando a sua atenção recaiu no tenente Scarpa, se levantou apoiando as mãos sobre a mesa e desceu até a sala do tenente.

— Avanti! Gritou Scarpa em resposta a pancada que Brunetti deu na porta com os nós dos dedos.

O commissario entrou na sala deixando a porta aberta. Ao ver o seu superior, o tenente fez menção de se levantar, um movimento que poderia ser interpretado como um sinal de respeito bem como uma tentativa de encontrar uma posição mais confortável.

— Posso ajudá-lo em alguma coisa, commissario? Perguntou, Scarpa, se acomodando confortavelmente.

— O que aconteceu com a Signora Gismondi? perguntou Brunetti O sorriso de Scarpa era uma má imitação de afabilidade.

— Posso perguntar a que se deve o seu interesse?

— Não, declarou Brunetti num tom tão seco que Scarpa mal conseguiu esconder a surpresa. — O que aconteceu com a sua investigação sobre a Signora Gismondi?

— Suponho que deve ter falado com o Vice-Questore Patta e que ele lhe terá dado autorização para intervir nisto, commissario, disse Scarpa suavemente.

— Tenente, eu lhe fiz uma pergunta, disse Brunetti. Talvez Scarpa quisesse ganhar tempo ou testar a paciência de Brunetti.

— Interroguei vários vizinhos sobre os seus movimentos durante a manhã do crime, disse ele, lançando um olhar rápido ao commissario e, como este não reagiu, continuou: — Também liguei para a empresa dela, para comprovar se era verdadeira a história de que estivera em Londres.

— E perguntou nesses termos, tenente? Scarpa fez um pequeno gesto de dúvida e disse:

— Não sei se estou entendendo, commissario.

— Foi assim que perguntou: se era verdade a história que ela contara à Polícia? Ou perguntou, simplesmente, onde estava?

— Não me lembro, commissario, desculpe. Preocupava-me mais a verdade do que as sutilezas da linguagem.

— E que obteve respostas nos seus esforços para descobrir a verdade, tenente?

— Não encontrei ninguém que contradissesse a sua história, e parece que esteve em Londres naquelas datas.

— Então ela está dizendo a verdade? Perguntou Brunetti

— Assim parece, disse Scarpa com uma relutância exagerada, e acrescentou: — De qualquer forma, ainda poderia encontrar alguém que o desmentisse.

— Bem, tenente, isso não vai acontecer. Scarpa levantou o olhar, sobressaltado.

— Desculpe, commissario?

— Isso não vai acontecer, tenente, porque, a partir deste momento, o senhor vai deixar de fazer perguntas sobre a Signora Gismondi.

— Temo que o meu dever... Começou Scarpa. Brunetti perdeu a calma. Inclinou-se sobre a mesa até que o seu rosto ficou a centímetros do tenente. Notou que o seu hálito cheirava levemente a hortelã-pimenta.

— Se perguntar a mais alguém, tenente, dou cabo de si. Scarpa inclinou a cabeça para trás, a boca aberta de espanto.

Apoiando as palmas das mãos sobre a mesa, Brunetti se inclinou ainda mais e aproximou de novo o rosto do de Scarpa.

— Se souber que falou dela com alguém ou insinuar que ela pode ter alguma coisa que ver com isso, farei com que o mandem embora daqui, tenente. Brunetti levantou a mão direita, segurou na lapela de Scarpa e puxou-o. O rosto do commissario estava muito ruborizado e crispado de fúria. — Compreendeu, tenente?

Scarpa tentou falar, mas conseguiu apenas abrir a boca e voltar a fechá-la. Brunetti soltou-o violentamente e saiu da sala. No corredor quase se chocou com Pucetti, que naquele momento se afastava da porta de Scarpa.

— Ah, commissario, disse o jovem agente com o rosto impassível. — Vinha perguntar pelos turnos de guarda na próxima semana, mas ouvi que acabou de combiná-los com o tenente Scarpa, portanto não o incomodarei com isso.

Com uma expressão serena e respeitosa, Pucetti fez uma continência impecável e Brunetti voltou para a sua sala.

Ficou ali à espera, certo de que Bochese telefonaria para comunicar o que tinha encontrado no sótão da Signora Battestini. Telefonou a Lalli, a Masiero e a Desideri para dizer que poderiam abandonar as suas pesquisas, porque acreditava que tinha encontrado o assassino. Ninguém perguntou quem era e todos agradeceram o telefonema. Também ligou para a Signorina Elettra e falou do provável motivo do telefonema para a Secretaria de Estado da Educação.

— Porque telefonaria, assim de repente, aquela última vez? Perguntou ela. — As coisas tinham seguido o mesmo rumo durante mais de uma década e ela só tinha ligado uma vez, quando mudamos para o euro. Antes que ele perguntasse, ela explicou: — Sim, verifiquei as ligações durante os últimos dez anos. E entre eles houve apenas estes dois telefonemas. Fez uma pausa demorada e disse: — Não é lógico.

— Talvez tenha despertado a avareza.

— Aos oitenta e três anos? Perguntou a Signorina Elettra. — Deixe-me pensar sobre isso, acrescentou, e desligou.

Ao fim de uma hora, Brunetti desceu até a sala de Bochese, mas não conseguiu encontrá-lo, e um dos técnicos disse que o chefe ainda estava na cena de um crime em Canaregio. Brunetti foi para o bar ao lado da ponte e bebeu um copo de vinho acompanhado de um panino. Saiu para a riva e esteve algum tempo olhando para o outro lado, para San Giorgio e, mais além, para o Redentore. Depois voltou para a sua sala.

Estava ali há pouco mais de dez minutos, tentando ordenar os objetos acumulados nas gavetas da mesa, quando a Signorina Elettra apareceu à porta. Calçava sapatos verdes, reparou ele.

— Tinha razão, commissario. E, em resposta à sua pergunta muda, ela explicou: — Despertou a avareza. Antes que ele pudesse pedir um esclarecimento, continuou: — Disse que ela não fazia nada mais do que ver televisão, certo?

Ele levou algum tempo a desviar a atenção dos sapatos verdes e, quando conseguiu, disse:

— Sim, o bairro inteiro falava disso.

— Olhe para isto, disse ela. Aproximou-se da mesa e entregou-lhe uma fotocópia dos programas de televisão que apareciam diariamente no Gazzettino. — Olhe para as onze da noite, commissario. Ele viu que o canal local apresentava um documentário chamado I Nostri Professionisti.

— Os nossos profissionais de quê? Perguntou ele. Ignorando a pergunta, ela disse:

— Olhe para a data. Trinta e um de julho, três dias antes do assassinato, na véspera da ligação da Signora Battestini para a sala da Secretaria de Estado da Educação.

— E então? Perguntou ele, devolvendo o papel.

— Um dos "nossos profissionais" era o Dottor Mauro Rossi, diretor da sala local da Secretaria de Estado da Educação, entrevistado por Alessandra Duca.

— Como descobriu isto? A surpresa de Brunetti era tão evidente como a sua admiração.

— Fiz uma pesquisa cruzando o nome dele com os programas de televisão nas últimas semanas, disse ela. — Achei que devia ser a única maneira de ela ter descoberto alguma coisa, já que tudo o que fazia era ver televisão.

— E que mais fez? Perguntou Brunetti.

— Falei com a jornalista. Disse que era o típico programa para encher a programação: entrevistas a burocratas acerca do seu emocionante trabalho na administração da cidade. Coisas que transmitem ao fim da noite e ninguém vê.

Brunetti pensou que a descrição era válida para todos os programas, mas apenas disse:

— Perguntou por Rossi?

— Sim, senhor. Disse que a entrevista foi uma de muitas: falou bastante e com falsa modéstia da sua carreira e dos seus êxitos, e disfarçava tão mal a sua vaidade que ela o deixou falar mais do que habitualmente deixa falar aquelas pessoas, apenas para ver aonde iria.

— E até onde chegou?

— Até mencionar, segundo a Duca, com falsa modéstia, a possibilidade de uma transferência para o ministério em Roma. Brunetti considerou as implicações.

— Com o substancial aumento do salário?

— Ela disse que Rossi apenas insinuou a possibilidade. E lembra-se de que declarou que desejava, acima de tudo, trabalhar em prol do futuro das crianças da Itália. Ela esperou um momento e acrescentou: — Também me disse que, por aquilo que sabe sobre a política local, Rossi tem tantas probabilidades de ir para Roma como o presidente da Câmara ser reeleito.

— É isso, disse Brunetti após uma longa pausa.

— Desculpe?

— A avareza. Mesmo aos oitenta e três anos.

— Sim, ela concordou. — É triste.

Bochese, que raramente era visto na Questura fora da sua sala, apareceu na porta.

— Estava à sua procura, disse ele a Brunetti em tom de reprovação. Cumprimentando a Signorina Elettra com um aceno de cabeça, entrou na sala e pousou vários objetos em cima da mesa. Olhando para Brunetti, acrescentou: — Dê-me uma amostra.

Brunetti viu a folha com os espaços marcados para a impressão de cada dedo. Bochese abriu uma caixa de metal plana e agitou a mão com impaciência. Brunetti deu a volta à mesa e lhe ofereceu a mão direita. Depois de serem retiradas as impressões de uma mão, a operação se repetiu com a outra. Bochese afastou a cartolina para o lado e apareceu outra por baixo.

— Agora, podia recolher as suas, signorina, disse ele.

— Não, muito obrigada, disse ela, dirigindo-se para a porta.

— Como? Perguntou Bochese num tom mais peremptório do que a simples pergunta.

— Preferia que não as recolhesse, disse ela, pondo fim à discussão.

Bochese encolheu os ombros, pegou na ficha de Brunetti e olhou-a atentamente.

— Eu diria que no sótão não há nada parecido com isto, mas encontrei muitas impressões de uma outra pessoa, provavelmente homem e corpulento.

— Muitas? Perguntou Brunetti.

— Parece que tocou em tudo, disse Bochese e, ao ver que Brunetti o escutava atentamente, acrescentou: — Há impressões iguais na parte de baixo da mesa da cozinha. Bem, suponho que são as mesmas, mas temos de enviá-las para a Interpol em Bruxelas, para ter certeza.

— Quanto tempo levarão? Perguntou Brunetti. Novo encolher de ombros de Bochese. — Uma semana? Um mês? Guardou o papelão num envelope de plástico e a caixa de tinta no bolso.

— Conhece alguém em Bruxelas? Para acelerar as coisas?

— Não, admitiu Brunetti. Os dois homens olharam para a Signorina Elettra com olhos suplicantes.

— Vou ver o que posso fazer, disse ela.


* * *


Vinte e Quatro

BRUNETTI passou a hora seguinte sozinho na sala estudando a melhor maneira de lidar com Rossi. Caminhava entre a mesa e a janela, incapaz de se concentrar; tinha a mente bloqueada, todos os seus pensamentos se voltavam para a ideia dos sete pecados capitais. Nenhum deles, reparou, era punido por lei; no máximo, podiam ser considerados defeitos de carácter. Poderia ser aquele o critério para diferenciar o mundo antigo e o novo, uma espécie de datação de carbono, por assim dizer? Havia semanas que Paola lia em voz alta trechos do livro de Religião e Moral da filha, mas Brunetti não se lembrara de perguntar se nele também se ensinava o conceito de pecado e, em caso afirmativo, como o definia.

O roubo era uma opção e a avareza e a inveja, simplesmente, os vícios que predispunham a isso. O mesmo se podia dizer da preguiça: a experiência lhe ensinara que muitos criminosos cometem crimes por causa da crença, nascida da preguiça, que custa menos roubar do que trabalhar. A chantagem era outra opção, e a ela conduziam os mesmos três vícios.

Brunetti vira em Rossi sinais de soberba e estava convencido de que era nela que residia a causa do seu crime. Qualquer pessoa normal poderia pensar que a descoberta da sua fraude iria lhe custar pouco mais do que um embaraço. Talvez perdesse a sua posição na Secretaria de Estado da Educação, mas um homem com as suas relações não teria nenhuma dificuldade em encontrar emprego; a burocracia da cidade poderia relegá-lo para algum posto obscuro no qual continuaria a receber o mesmo ordenado enquanto avançava suavemente para a aposentadoria. Mas já não seria o Dottor Rossi, não seria convidado pela televisão local para falar com uma jornalista atenta às suas perspectivas de conseguir um cargo em Roma.

A notícia da sua fraude não duraria uma semana e só iria causar um grande alvoroço nos jornais locais; não era assunto que interessasse à imprensa nacional. A memória do público era cada vez mais curta, condicionada como estava para não exceder a duração de um vídeo da TV, de forma que Rossi, doutor ou não, seria esquecido em menos de um mês. Mas a sua soberba não teria resistido ao vexame. Finalmente, a curiosidade venceu-o, e Brunetti chamou Vianello.

— Vamos buscá-lo, foi tudo o que disse. Ao descerem, passou pela sala de Bochese para recolher uma das fotocópias da carta da Universidade de Pádua que o técnico fizera.

Decidiram ir a pé e, pelo caminho, falaram dele, sem que nenhum dos dois fosse capaz de explicar plenamente a sua conduta. Brunetti via nesta incapacidade para compreender Rossi talvez uma prova de miopia moral ou de falta de imaginação.

Sem parar junto ao portiere, Brunetti foi direito às escadas e subiu ao terceiro andar. Naquela manhã havia muita animação no escritório, pessoas que iam e vinham com papéis e pastas na mão, as formigas laboriosas que pululam nos gabinetes públicos. A mulher com os piercings na têmpora estava atrás da sua mesa e não parecia mais interessada na realidade do que da última vez que Brunetti a tinha visto. Olhou para os recém-chegados como se não os visse. Nem parecia reparar na presença de meia dezena de pessoas sentadas em cadeiras alinhadas ao longo das paredes e que observavam Brunetti e Vianello com curiosidade.

— Viemos ver o diretor, disse Brunetti.

— Acho que está na sala, respondeu ela agitando com indiferença os dedos de unhas verdes. Brunetti agradeceu e foi até à porta do corredor que conduzia a sala de Rossi, mas teve de se virar e chamar Vianello, que tinha ficado petrificado diante da recepcionista.

A porta do escritório de Rossi estava aberta, e entraram sem bater. Rossi estava sentado à mesa; era o mesmo homem, mas de alguma forma que Brunetti foi incapaz de definir, já não era o mesmo. Rossi fitava-os do outro lado da sala com olhos que lembravam os da mulher da entrada. Também eram os mesmos olhos castanho-escuros, mas pareciam experimentar uma dificuldade de focagem semelhante aos da recepcionista.

Brunetti atravessou a sala e parou diante da mesa de Rossi. Só teve de virar a cabeça ligeiramente para ler o texto do diploma, na sua moldura de teca entalhada, através do qual a Universidade de Pádua outorgava a Mauro Rossi o grau de Doutor em Economia.

— Onde conseguiu aquilo, Signor Rossi? Perguntou Brunetti apontando para o título com o polegar da mão direita. Rossi tossiu e se endireitou na cadeira.

— Não sei a que se refere. Brunetti encolheu os ombros, tirou do bolso a fotocópia que Bochese lhe dera, desdobrou-a e fê-la deslizar sobre a mesa com indiferença.

— E isto, Signor Rossi, sabe a que se refere? Perguntou Brunetti com severidade.

— O que é isso? Inquiriu Rossi sem se atrever a olhar.

— O que o senhor procurava no sótão, respondeu Brunetti. Rossi olhou para Vianello, depois para Brunetti e a baixou os olhos para a carta. Brunetti viu-o mover os lábios ao lê-la, viu como os olhos do homem, ao chegar ao fim, voltavam ao início. Rossi voltou a ler, agora mais devagar. Levantou o olhar para Brunetti.

— Mas eu tenho dois filhos, disse.

Brunetti esteve momentaneamente tentado a entrar numa discussão, mas se calou, porque já conhecia os argumentos: Rossi diria que precisava defender a felicidade dos filhos, a sua própria reputação, e até a sua honra, da mulher que ameaçara destrui-lo. Se aquilo tivesse sido uma peça de teatro ou uma telenovela, Brunetti não teria tido qualquer dificuldade em escrever os diálogos e, se tivesse sido o realizador, saberia exatamente que instruções dar ao ator que faria Rossi para imprimir a cada frase a entoação de espanto, indignação, e sim, de orgulho ferido.

— Está preso, Signor Mauro Rossi, disse Brunetti por fim, — Pelo homicídio de Maria Grazia Battestini. Rossi olhou para ele com olhos que eram espelhos, se não da sua alma, pelo menos do vazio que havia nos da recepcionista. — Acompanhe-nos, terminou Brunetti, dando um passo atrás. Rossi pôs-se em pé apoiando as palmas das mãos sobre a mesa. Antes de se voltar para a porta, Brunetti viu que as mãos do homem estavam em cima da carta da Universidade de Pádua, mas Rossi não parecia notar.


* * *


Uma semana depois, Rossi já estava de novo em casa, mas sob prisão domiciliar. Não voltou a sala, embora não tenha sido demitido do seu cargo de Direttore della Pubblica Istruzione, mas sim posto em situação de licença por tempo indeterminado, durante o lento processo do seu caso.

Durante o interrogatório, realizado na presença do seu advogado, Rossi admitiu ter matado a Signora Battestini, mas negou ter qualquer memória da agressão em si.

Ela lhe telefonara, contou, porque queria falar com ele. De início recusou, mas ela ameaçou-o, disse que se sabia o que era bom para ele, devia lhe telefonar e desligou. No dia seguinte, ele assim fez, esperando que se mostrasse mais razoável, mas ela voltou a ameaçá-lo, e ele não teve outro remédio se não ir vê-la.

No início, ela disse que queria mais dinheiro, muito mais, cinco vezes mais. E quando ele respondeu que não podia pagar, ela disse que o vira na televisão e sabia que iam lhe dar um bom cargo no governo e que poderia pagar. Ele tentou argumentar com ela, dizendo que aquele lugar era apenas uma esperança e não uma certeza. Mas ela se recusou a ouvir. Quando ele disse que tinha dois filhos para sustentar, ela começou a insultá-lo e a gritar que já não tinha o filho, que morrera e que ele iria pagar por isso também. Ele tentou acalmá-la, mas a mulher estava histérica, disse ele, e tentou agredi-lo.

Depois, ela gritou que já não queria mais dinheiro e que ia dizer a toda a gente o que ele tinha feito. As janelas estavam abertas e a mulher começou a se dirigir para elas, dizendo que ia gritar para toda a cidade que ele não era doutor, mas sim um farsante. Em seguida, afirmava ele, não se lembrava de mais nada até que a viu no chão. Disse que vê-la ali fora como um pesadelo. Respondendo à pergunta de Brunetti, Rossi disse que não se lembrava de ter lhe batido, que não soube o que tinha feito até ver que tinha na mão a imagem ensanguentada.

Brunetti, ao ouvir aquilo, achou que era uma desculpa muito fraca, mas toda a confissão, orientada como estava para a exoneração, não era muito mais imaginativa. O advogado de Rossi mantivera um ar solene durante todo o interrogatório e a certa altura até se permitiu um sorriso de comiseração.

O medo, disse Rossi, o fez sair da casa. Não; não se lembrava de ter limpado a imagem. Porque não se lembrava de nada, entendem? Não se lembrava de tê-la matado, só que ela gritava e lhe batia.

A visita de Brunetti à sua sala levara-o a revistar o sótão da Signora Battestini. Sim, sabia da carta da Universidade de Pádua; durante anos aquilo tinha lhe tirado o sono. Ele adicionara o inexistente título ao seu currículo há anos, depois do nascimento do primeiro filho, quando precisava de um emprego melhor para sustentar a família. Pagara a uma gráfica cara para fazer o diploma, a fim de aumentar as possibilidades de conseguir um bom cargo. Disse que vivia com medo de ser descoberto, e isso deve tê-lo afetado quando se encontrou diante da Signora Battestini. Era vítima tanto do seu próprio terror como da ganância dela.

Na noite a seguir ao interrogatório, conversando com Paola, Brunetti mencionou a palavra "vítima" que Rossi empregara e disse que seria a chave da defesa.

— Está vendo, ele é uma vítima, disse ele. Estavam no escritório dela; tinham deixado Raffi e Sara na varanda, dedicados ao que fazem os jovens à pálida luz de um anoitecer de verão, com uma vista sobre os telhados de Veneza.

— E a Signora Battestini não é, disse Paola. Não disse em tom de interrogação, mas de afirmação, uma verdade que abrangia todos os que já estavam mortos e, portanto, já não tinham utilidade.

Brunetti recordou então uma das mais sinistras frases atribuída a Stálin: "Não há mais homem, não há mais problema."

— O que vai acontecer? Perguntou Paola.

Brunetti, que não podia responder com exatidão, mas podia fazer uma suposição aproximada, com base no que acontecera em casos semelhantes em que pessoa morta não suscitava a simpatia do público e o assassino se apresentava como vítima.

— Provavelmente, irão dá-lo como culpado, o que significa que será condenado a uns sete anos, talvez menos, mas vai demorar dois ou três anos a chegar a isso e nessa altura ele terá cumprido dois anos da pena.

— Em prisão domiciliar?

— Também conta, disse Brunetti.

— E depois?

— Depois irá para a prisão até se interpor recurso, e então tudo irá começar de novo se arrastando pelos tribunais, mas, como o caso estará pendente do recurso e como ele não será considerado um perigo para a sociedade, voltarão a mandá-lo para casa.

— Até quando?

— Até que o recurso falhe. Adiantando-se à pergunta dela, disse: — O que irá levar mais alguns anos e, mesmo se a sentença for confirmada, o mais provável é que se decida que já esteve preso tempo suficiente e o soltem.

— Assim, sem mais?

— Pode haver variações, é claro, disse Brunetti esticando a mão para o livro que largara antes do jantar.

— Só isso? Perguntou Paola, se esforçando por manter o tom calmo.

Ele anuiu com à cabeça e puxou o livro para si. Como ela não dizia nada, perguntou:

— Ainda anda lendo o livro de Religião e Moral da Chiara? Ela negou com a cabeça.

— Não, larguei.

— Talvez aí consiga encontrar uma resposta para isso.

— Onde? Perguntou ela. — Como?

— Fazendo o que me sugeriu no outro dia: pensar escatologicamente. Morte. Purgatório. Inferno. Céu.

— Acredita nisso? Perguntou Paola admirada.

— Há momentos em que gostaria de acreditar, respondeu ele, e abriu o livro.

 

 

                                                   Donna Leon         

 

 

 

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