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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUASE AUSENTE / Blake Pierce
QUASE AUSENTE / Blake Pierce

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Cassie Vale, vinte e três anos, sentava-se na ponta de uma das duas cadeiras plásticas na sala de espera da agência de au pairs, encarando os pôsteres e mapas na parede oposta. Bem acima do logotipo brega da Maureen Au Pairs Europeus, havia um pôster da Torre Eiffel e outro do Portão de Bradenburgo. Um café em um pátio pavimentado, uma vila pitoresca com vista para um mar azul celeste. Cenas que faziam sonhar, lugares que ela desejava estar.
O escritório da agência era apertado e sufocante. O ar condicionado chacoalhava inutilmente, sem que um respiro de ar saísse da ventilação. Cassie levantou a mão e discretamente secou uma gota de suor escorrendo por sua bochecha. Não sabia por quanto tempo mais poderia aguentar.
A porta do escritório abriu-se de repente e ela pulou, pegando a pasta de documentos na outra cadeira. Mas seu coração despencou ao ver que era apenas mais uma entrevistada saindo, dessa vez uma loira alta e esbelta, exalando toda a confiança que Cassie desejava ter. Ela sorria, satisfeita, segurando um maço de formulários oficiais, e mal olhou para Cassie ao passar.
O estômago de Cassie apertou. Ela baixou o olhar para seus documentos, perguntando-se se também seria bem sucedida, ou se sairia decepcionada e envergonhada. Sabia que sua experiência era inadequada de dar pena, e que não tinha qualquer qualificação apropriada para o cuidado de crianças. Fora rejeitada pela agência de cruzeiros que tinha abordado na semana anterior. Eles disseram que sem experiência não poderiam nem mesmo colocá-la nos registros. Se aqui fosse igual, ela não teria chance.
– Cassandra Vale? Eu sou Maureen. Por favor, entre.
Cassie olhou para cima. Uma mulher grisalha em um terno escuro estava esperando de pé na soleira da porta; claramente, ela era a proprietária.

 

 

 


 

 

 


Cassie ficou de pé e seus documentos cuidadosamente organizados espirraram para fora da pasta. Juntando tudo, seu rosto em chamas, ela apressou-se para a sala de entrevistas.

Conforme Maureen os folheava com a testa franzida, Cassie começou a cutucar as cutículas com as unhas, depois entrelaçando as mãos, a única forma de evitar esse hábito nervoso.

Tentou respirar profundamente para se acalmar. Disse a si mesma que a decisão dessa mulher não seria seu único passaporte para fora daqui. Havia outros meios de escapar e ter um novo começo. Porém, nesse instante, esse parecia ser o único restante. A empresa de cruzeiros tinha lhe dado um “não”. Ensinar inglês, sua outra ideia, era impossível sem as qualificações certas, e obtê-las era muito caro. Precisaria economizar por mais um ano para ter a esperança de começar, mas agora não tinha o luxo desse tempo. Na semana passada, sua escolha fora arrancada dela.

– Então, Cassandra, você cresceu em Millville, Nova Jersey? Sua família ainda vive lá? – Maureen finalmente perguntou.

– Por favor, me chame de Cassie – ela respondeu. – E não, eles se mudaram. – Cassie apertou suas mãos mais forte, aflita com a direção que a entrevista estava tomando. Não esperava ser questionada sobre sua família em detalhes, mas agora se dava conta de que naturalmente eles precisariam do histórico da vida doméstica dos candidatos, já que os au pairs iriam viver e trabalhar nas casas de seus clientes. Ela teria que pensar rápido, porque apesar de não querer mentir, receava que a verdade fosse prejudicar sua candidatura.

– E sua irmã mais velha? Você diz que ela está trabalhando no exterior?

Para o alívio de Cassie, Maureen tinha seguido para a próxima seção. Ela tinha pensado no que dizer caso fosse solicitada, promovendo a própria causa de um modo que não exigisse detalhes confirmáveis.

– As viagens da minha irmã definitivamente me inspiraram a buscar um trabalho no exterior. Eu sempre quis viver em outro país e eu amo a Europa. Particularmente a França, já que sou bastante fluente no idioma.

– Você estudou?

– Sim, por dois anos, mas eu já tinha familiaridade com o idioma antes disso. Minha mãe cresceu na França e trabalhou como tradutora freelancer de tempos em tempos, quando eu era mais nova, então minha irmã e eu crescemos com um bom entendimento do francês falado.

Maureen fez uma pergunta em francês – O que você espera ganhar no trabalho como au pair?

Cassie ficou satisfeita por ser capaz de responder com fluência. – Aprender mais sobre a vida em outro país, e melhorar minha proficiência de idiomas.

Ela esperava que sua resposta fosse impressionar Maureen, mas ela permaneceu sisuda enquanto terminava de examinar a papelada.

– Você ainda mora em sua casa, Cassie?

De volta à família dela, de novo... Será que Maureen suspeitava que ela escondesse algo? Precisaria responder cuidadosamente. Sair de casa aos dezesseis anos, como ela fizera, seria um sinal de alerta para um entrevistador. Por que tão jovem? Havia problemas na casa dela? Ela precisava oferecer uma imagem mais bonita, que aludisse a uma vida familiar feliz e normal.

– Moro sozinha desde os vinte anos – ela disse, sentindo seu rosto ruborizar com a culpa.

– E trabalhando meio período. Vejo que você tem uma referência aqui do Primi? É um restaurante?

– Sim, fui garçonete lá pelos últimos dois anos.

Isso era verdade, felizmente. Antes desse, tinha tido uma variedade de outros empregos, e até mesmo um bico em um bar sujo, porque lutava para pagar sua moradia compartilhada e sua educação à distância. Primi, seu emprego mais recente, fora o mais agradável. A equipe do restaurante tinha sido como a família que ela nunca teve, mas não tinha nenhum futuro ali. Seu salário era baixo e com as gorjetas não era diferente; a atividade comercial naquela parte da cidade era difícil. Ela vinha planejando uma mudança na hora certa, mas quando suas circunstâncias mudaram para pior, isso tinha se tornado urgente.

– Experiência no cuidado de crianças? – Maureen olhou por cima de seus óculos para Cassie, que sentiu seu estômago se retorcer.

– Eu... Eu fui assistente em uma creche por três meses, antes de começar no Primi. A referência está na pasta. Eles me deram treinamento básico em segurança e primeiros socorros, e eu tive meu histórico checado – ela gaguejou, esperando que fosse o suficiente. Fora apenas uma posição temporária, preenchendo o lugar de alguém em licença maternidade. Nunca pensou que poderia ser um trampolim para uma oportunidade futura. – Eu também gerenciei festas infantis no restaurante. Sou muito amigável. Quer dizer, me dou bem com os outros, sou paciente...

Os lábios de Maureen apertaram. – Que pena sua experiência não ser mais recente. Além disso, você não tem nenhuma certificação formal em cuidado de crianças. A maioria das famílias exige qualificações, ou no mínimo mais experiência. Será difícil te alocar com tão pouco.

Cassie olhou para ela fixamente, em desespero. Ela tinha que fazer isso, não importa o que custasse. A escolha era clara. Partir... Ou ficar presa em um ciclo de violência que pensara ter escapado para sempre quando saiu de casa.

Os hematomas em seu braço demoraram alguns dias para florescer, definidos em sombras, de modo que ela pudesse ver cada marca dos nós dos dedos onde ele havia a atingido. O namorado dela, Zane, tinha jurado no segundo encontro que a amava e a protegeria, haja o que houvesse.

Quando as marcas repulsivas começaram a aparecer, ela se lembrou, com arrepio na espinha, que tivera machucados quase idênticos no mesmo lugar há dez anos. Primeiro, foi seu braço. Depois, o pescoço e, por fim, o rosto. Também infligidos por um suposto protetor – seu pai.

Ele tinha começado a bater nela aos doze anos, depois que Jacqui, sua irmã mais velha, fugiu de casa. Antes, Jacqui aguentara a força de sua raiva. A presença dela protegia Cassie do pior.

As marcas de Zane ainda estavam lá; levariam um tempo para sumir. Ela vestira mangas compridas para escondê-los durante a entrevista, e estava quente demais no escritório abafado.

– Existe outro lugar que você recomendaria? – ela perguntou a Maureen. – Sei que essa é a melhor agência local, mas poderia sugerir um site online onde eu poderia me candidatar?

– Não posso recomendar um site – Maureen disse com firmeza. – Muitos candidatos tiveram experiências ruins. Muitos acabaram em situações onde as horas de trabalho não eram aderidas, ou foram exigidos trabalhos de limpeza além de cuidar das crianças. Isso é injusto com todos os envolvidos. Também ouvi falar de au pairs sendo abusadas de outras formas. Então, não.

– Por favor, não há alguém nos seus registros que talvez me considere? Sou uma trabalhadora árdua e estou disposta a aprender, posso me encaixar facilmente. Por favor, me dê uma chance.

Maureen fez silêncio por um momento, depois digitou em seu teclado, franzindo o cenho.

– Sua família... Como eles se sentiriam se você viajasse por um ano? Você tem namorado, alguém que está deixando para trás?

– Eu terminei com meu namorado recentemente. E sempre fui muito independente, minha família sabe disso.

Zane tinha chorado e se desculpado depois de socar seu braço, mas ela não tinha cedido, em vez disso pensando no aviso de sua irmã, oferecido há tempos e desde então se provado verdadeiro: “Nenhum homem bate em uma mulher apenas uma vez”.

Ela tinha feito suas malas e mudado para a casa de uma amiga. Para evitá-lo, tinha bloqueado suas ligações e mudado o horário de seus turnos no trabalho. Esperava que ele aceitasse sua decisão e a deixasse em paz, mesmo no fundo sabendo que ele não faria isso. A separação deveria ter sido ideia dele, não dela. O ego dele não permitiria rejeição.

Ele já tinha estado no restaurante procurando por ela. O gerente havia lhe dito que ela estava de licença por duas semanas e tinha ido para a Flórida. Aquilo lhe comprara algum tempo... Mas ela sabia que ele estaria contando os dias. Mais uma semana e estaria caçando-a de novo.

Os Estados Unidos pareciam pequeno demais para escapar dele. Ela queria um oceano – bem grande – entre eles. Porque o pior de tudo era o medo de fraquejar, perdoá-lo, dar outra chance.

Maureen terminou de checar a papelada e passou a fazer algumas perguntas padrão que Cassie julgou serem fáceis. Seus hobbies, medicamentos crônicos, necessidades alimentares ou alergias.

– Não tenho nenhuma exigência alimentar, nem alergias. E nenhum problema de saúde.

Cassie esperava que seus remédios de ansiedade não contassem como medicamentos crônicos. Seria melhor não mencioná-los, decidiu, já que estava certa de que eles seriam um enorme sinal de alerta.

Maureen rabiscou uma anotação em sua pasta.

Então, perguntou. – O que você faria se as crianças sob os seus cuidados fossem malcriadas ou desobedientes? Como você lidaria com isso?

Cassie puxou uma respiração profunda.

– Bem, não acredito que exista uma resposta para todas as situações. Se uma criança foi desobediente porque correu em direção a uma rua perigosa, isso exigiria uma abordagem diferente de quando ela não quer comer legumes. No primeiro caso, a segurança vem primeiro, tirando a criança de perigo o mais rápido possível. No segundo, eu argumentaria e negociaria... Por que você não gosta? É a aparência ou o sabor? Estaria disposto a dar uma mordida? Afinal, todos nós passamos por fases com a comida e geralmente as superamos.

Maureen pareceu satisfeita, mas as próximas perguntas eram mais difíceis.

– O que você fará caso as crianças mintam para você? Por exemplo, se disserem que têm permissão para fazer algo que os pais proibiram?

– Eu diria que não é permitido, e os contaria o motivo, se eu soubesse. Sugeriria que falássemos com os pais juntos e discutíssemos as regras como uma família, para ajudá-los a entender por que isso é importante – Cassie sentiu como se estivesse andando na corda bamba, esperando que suas respostas fossem aceitáveis.

– Como você reagiria, Cassie, se testemunhasse uma briga doméstica? Morando na casa de uma família, haverá momentos em que as pessoas não se dão bem.

Cassie fechou os olhos por um momento, afastando as memórias desencadeadas pelas palavras de Maureen. Gritos, vidros quebrando, os vizinhos berrando com raiva. Uma cadeira firmada sob a maçaneta da porta de seu quarto, a única proteção frágil que ela podia encontrar.

Mas quando estava prestes a falar que se trancaria com as crianças em um cômodo seguro e ligaria para a polícia imediatamente, percebeu que Maureen não podia estar se referindo a este tipo de briga. Por que estaria? Ela obviamente estava pensando em uma discussão, em palavras vociferadas em irritação ou berradas em raiva; atrito temporário ao invés de destruição terminal.

– Eu tentaria manter as crianças fora do alcance – ela disse, escolhendo suas palavras cuidadosamente. – Eu respeitaria a privacidade dos pais, ficando bem longe. Afinal de contas, brigas fazem parte da vida e uma au pair não tem o direito de tomar partido ou se envolver.

Agora, finalmente, ela ganhou um sorriso.

– Uma boa resposta – Maureen disse. Ela checou o computador novamente e assentiu, como se confirmando uma decisão que tinha tomado.

– Só tem uma possibilidade aqui que eu poderia te oferecer. Uma posição com uma família francesa – ela disse, e o coração de Cassie saltou, apenas para se espatifar quando Maureen adicionou – A última au pair foi embora inesperadamente depois de um mês e eles tiveram dificuldades em encontrar uma substituta.

Cassie mordeu o lábio. Se a au pair se demitiu ou fora demitida, ela não sabia, mas não podia admitir que o mesmo acontecesse com ela. Com a taxa da agência e a passagem aérea, estava arando todas as suas economias nessa empreitada. Não importa como, teria que fazer dar certo.

Maureen adicionou. – Eles são uma família rica com uma bela casa. Não é na cidade. É uma mansão no campo, em uma grande propriedade. Tem um pomar e um pequeno vinhedo – não comercial – e também cavalos, embora conhecimento equestre não seja uma exigência do trabalho. No entanto, você terá a oportunidade de aprender a montar quando estiver lá, se quiser.

– Eu adoraria – Cassie disse. O apelo do interior francês, e a promessa de cavalos, faziam o risco parecer valer ainda mais a pena. E uma família rica certamente significava melhor segurança no emprego. Talvez a última au pair não estivesse disposta a tentar.

Maureen ajustou os óculos antes de tomar nota no formulário de Cassie.

– Agora, devo enfatizar que nem todas as famílias são fáceis de trabalhar. Algumas são muito desafiadoras, outras são sinceramente difíceis. O sucesso do trabalho repousará nos seus ombros.

– Farei o meu melhor para ser bem sucedida.

– Desistir de uma atribuição antes do seu ano acabar é inaceitável. Vai incorrer em uma taxa de cancelamento substancial e você nunca mais trabalhará conosco. Os detalhes estão estipulados no contrato – Maureen bateu sua caneta na página.

– Não posso imaginar isso acontecendo – Cassie respondeu, com determinação.

– Bom. Então, o último ponto que temos que discutir é o prazo.

– Sim. Em quanto tempo posso ir? – Cassie perguntou, sua ansiedade inundando outra vez enquanto ela imaginava por quanto tempo ela ainda precisaria se esquivar.

– Geralmente leva cerca de seis semanas, mas a solicitação dessa família é muito urgente, então vamos acelerar. Se as coisas se moverem conforme o esperado, você vai voar para lá dentro de uma semana. Isso é aceitável?

– É, é perfeito – ela gaguejou. – Por favor, eu aceito a posição. Farei o que for preciso para dar certo, e não vou te decepcionar.

A mulher a encarou de volta longamente, como se a avaliasse uma última vez.

– Não decepcione – ela disse.


CAPÍTULO DOIS

Aeroportos eram só despedidas, Cassie pensou. Partidas apressadas, o ambiente impessoal roubando as palavras que você realmente queria dizer e o tempo para dizê-las corretamente.

Ela insistiu para que a amiga que havia dado a ela uma carona até o aeroporto apenas a deixasse lá ao invés de entrar com ela. Um abraço antes de pular para fora do carro era mais rápido e fácil. Melhor do que café caro e conversas desconfortáveis que iam secando conforme a hora da partida chegava. Afinal, ela viajaria sozinha, deixando todos que conhecia para trás. Fazia sentido começar a jornada mais cedo do que mais tarde.

Ao empurrar o carrinho de bagagens para o terminal, sentia uma sensação de alívio pelas metas que tinha realizado até agora. Ela tinha conseguido o trabalho – a meta mais importante de todas. Tinha pagado o voo e a taxa da agência, seu visto tinha sido acelerado, e estava no check-in a tempo. Seus pertences tinham sido empacotados conforme a lista fornecida – estava grata pela mochila azul-claro com o logo da “Maureen Au Pairs” que recebera, pois não haveria espaço em sua mala para todas as suas roupas.

De agora até quando pousasse em Paris, estava certa de que tudo correria suavemente.

Então, ela parou, seu coração martelando, quando o viu.

Ele estava de pé próximo à entrada do terminal, com as costas na parede e os polegares enganchados nos bolsos da jaqueta de couro que ela lhe dera. Sua altura, seu cabelo escuro e espetado, e seu maxilar agressivo o tornavam fácil de localizar enquanto sondava a multidão.

Zane.

Ele deve ter descoberto que ela partiria nesse horário. Ela tinha ouvido de vários amigos que ele tinha ligado, perguntando onde ela estava e checando a história da Flórida. Zane podia ser manipulador, e nem todos sabiam da situação dela. Algum inocente deve ter contado a verdade.

Antes que ele pudesse olhar em sua direção, ela girou o carrinho, puxando o capuz de seu agasalho sobre a cabeça, escondendo seus ondulados cabelos castanho-avermelhados. Ela apressou-se para o outro lado, conduzindo o carrinho para trás de um pilar, fora da vista dele.

O balcão de check-in da Air France estava na outra extremidade do terminal. Não havia um modo de passar por ele sem que ele a visse.

Pense, Cassie, ela disse a si mesma. No passado, Zane havia a elogiado por sua habilidade de elaborar planos rápidos em situações complicadas. – Você tem raciocínio rápido – ele tinha dito. Aquilo havia sido no início do relacionamento deles. No fim, ele estava acusando-a amargamente de ser sorrateira e dissimulada, espertinha demais para o próprio bem.

Hora de ser espertinha demais, então. Ela tomou uma respiração funda, esperando por ideias. Zane estava de pé perto da entrada do terminal. Por quê? Teria sido mais fácil esperar ao lado do balcão de check-in, onde ele teria certeza de detectá-la. Então, isso significava que ele não sabia com qual companhia ela voaria. De quem quer que ele tenha recebido a informação, a pessoa também não sabia, ou não tinha dito. Se ela pudesse encontrar outro caminho até o balcão, poderia ser capaz de fazer o check-in antes de ele procurá-la.

Cassie descarregou sua bagagem, colocando a mochila pesada nos ombros e arrastando sua mala atrás de si. Havia uma escada rolante na entrada do prédio – passara por ela no caminho. Se subisse até o andar de cima, esperava encontrar outra descendo, ou um elevador, do outro lado.

Abandonando o carrinho de bagagem, apressou-se de volta pelo caminho que tinha feito e subiu a escada rolante. A que ficava do outro lado estava quebrada, então ela desceu pelos degraus íngremes, arrastando sua mala pesada atrás de si. O balcão de check-in da Air France estava a uma curta distância, mas, para seu desânimo, já havia uma fila longa e vagarosa.

Puxando o capuz cinza mais para frente, juntou-se à fila, pegou um livro de sua bolsa e começou a ler. Não estava absorvendo as palavras e o capuz estava a sufocando. Queria arrancá-lo, refrescar a transpiração em seu pescoço. No entanto, não podia arriscar, não quando seu cabelo brilhante se tornaria instantaneamente visível. Melhor continuar escondida.

Mas, então, uma mão firme bateu no ombro dela.

Ela virou-se, arquejando, e se viu encarando os olhos surpresos de uma loira alta que tinha mais ou menos a sua idade.

– Desculpe te assustar – ela disse. – Sou Jess. Notei sua mochila e pensei que deveria falar oi.

– Ah. Sim. Maureen Au Pairs.

– Você está voando para uma atribuição? – Jess perguntou.

– Estou.

– Eu também. Quer ver se a companhia consegue assentos juntos? Podemos solicitar no check-in.

Enquanto Jess conversava sobre o clima na França, Cassie olhou com nervosismo pelo terminal. Sabia que Zane não desistiria facilmente – não depois de ter dirigido até aqui. Ele iria querer algo dela – um pedido de desculpas, um compromisso. Ele a forçaria a ir com ele tomar um “drink de despedida” e começaria uma briga. Ele não se importaria se ela chegasse à França com novos machucados... Ou perdesse seu voo de vez.

E, então, ela o viu. Ele vinha em sua direção, a alguns guichês de distância, sondando cada fila cuidadosamente enquanto procurava.

Ela olhou para o outro lado rapidamente, para o caso de ele sentir seu olhar fixo. Com uma centelha de esperança, viu que elas tinham alcançado o começo da fila.

– Senhora, você vai precisar tirar isso – a funcionária do check-in disse, apontando para o capuz de Cassie.

Consentindo relutantemente, ela o empurrou para trás.

– Ei, Cass! – ela ouviu Zane gritar as palavras.

Cassie congelou, sabendo que responder significaria um desastre.

Desajeitada e nervosa, deixou cair seu passaporte e tateou por ele, sua mochila pesada inclinando-se sobre sua cabeça.

Outro grito, e dessa vez ela olhou para trás.

Ele a viu e abriu caminho pela fila, cotovelando as pessoas para os lados. Os passageiros estavam irritados; ela podia ouvir vozes elevadas. Zane estava causando uma comoção.

– Gostaríamos de sentar juntas, se possível – Jess disse à funcionária, e Cassie mordeu o lábio com o atraso adicional.

Zane gritou novamente, e ela se deu conta com uma sensação de mal estar que ele a alcançaria em alguns momentos. Ele ligaria seu charme e imploraria por uma chance de conversar, assegurando a Cassie que levaria apenas um minuto para dizer o que precisava em particular. Seu objetivo, ela sabia por experiência, seria deixá-la afastada e sozinha. E, então, o charme desapareceria.

– Quem é esse cara? – Jess perguntou com curiosidade. – Ele está procurando você?

– Ele é meu ex-namorado – Cassie murmurou. – Estou tentando evitá-lo. Eu não quero que ele cause problemas antes de eu partir.

– Mas ele já está causando problemas! – Jess rodopiou, irada. – Segurança! – ela gritou. – Ajudem! Alguém pare aquele homem.

Galvanizado pelos clamores de Jess, um dos passageiros agarrou a jaqueta de Zane enquanto ele passava. Ele escorregou nos azulejos, braços se agitando, derrubando um dos postes ao cair.

– Segurem-no! – Jess apelou. – Segurança, rápido!

Com uma onda de alívio, Cassie viu que a segurança tinha, de fato, sido alertada. Dois policiais aeroportuários se apressavam para a fila. Eles chegariam a tempo, antes que Zane pudesse chegar até ela, ou sequer fugir.

– Vim dizer adeus à minha namorada, policiais – Zane tagarelou, mas suas tentativas de charme foram desperdiçadas com a dupla. – Cassie – ele chamou enquanto o policial mais alto agarrava seu braço. – Au revoir.

Relutantemente, ela se virou para encará-lo.

– Au revoir. Não é adeus – ele gritou conforme os policiais marchavam com ele para longe. – Vou te ver de novo. Mais cedo do que você pensa. Melhor tomar cuidado.

Ela reconheceu o aviso nas últimas palavras de Zane – mas, por agora, eram ameaças vazias.

– Muito obrigada – ela disse a Jess, completamente tomada por gratidão pela ação corajosa.

– Eu também tive um namorado tóxico – Jess simpatizou. – Sei como eles podem ser possessivos, grudam como maldito velcro. Foi um prazer poder detê-lo.

– Vamos passar pelo controle de passaporte antes que ele consiga voltar. Eu te devo uma bebida. O que você gostaria – café, cerveja ou vinho?

– Vinho, com certeza – Jess disse enquanto atravessavam os portões.

*

– Então, para onde você vai, na França? – Cassie perguntou depois de pedirem o vinho.

– Dessa vez, vou para uma família em Versalhes. Perto de onde fica o palácio, acredito. Espero ter a chance de visitá-lo quando tiver um dia de folga.

– Você disse “dessa vez”? Já esteve em uma atribuição antes?

– Estive, mas não deu certo – Jess derrubou um cubo de gelo em seu copo. – A família era terrível. Na realidade, por conta deles fiquei convencida em não usar a Maureen Au Pairs nunca mais. Fui com uma agência diferente dessa vez. Mas não se preocupe – ela adicionou, apressada. – Tenho certeza que você vai estar bem. Maureen deve ter alguns clientes bons em seus registros.

A boca de Cassie parecia repentinamente seca. Ela tomou um grande gole de vinho.

– Pensei que ela tivesse boa reputação. Quer dizer, o slogan dela é “A Agência Europeia Número Um”.

Jess riu. – Bem, isso é apenas marketing. Outras pessoas me disseram o contrário.

– O que aconteceu com você? – Cassie perguntou. – Por favor, me conte.

– Bem, a atribuição parecia legal, apesar de algumas perguntas na entrevista de Maureen terem me preocupado. Foram tão estranhas que comecei a me perguntar se haviam problemas com a família, porque nenhum dos meus amigos au pairs tiveram perguntas similares durante a entrevista deles. E quando eu cheguei... Bem, a situação não era conforme o anunciado.

– Por que não? – Cassie sentia-se fria por dentro. Achara as perguntas de Maureen estranhas também. Presumira na hora que todos os candidatos respondessem às mesmas questões; que era um teste de suas habilidades. E talvez fosse... Mas não pelas razões que imaginou.

– A família era muito tóxica – Jess disse. – Eles eram desrespeitosos e me rebaixavam. O trabalho que eu tinha que fazer estava fora do escopo do emprego; eles não se importavam e se recusavam a mudar. E quando eu disse que ia embora, foi quando realmente virou uma zona de guerra.

Cassie mordeu o lábio. Ela tinha tido aquela experiência na infância. Lembrava-se das vozes elevadas atrás de portas fechadas, discussões murmuradas no carro, uma sensação de tensão em uma corda-bamba. Sempre tinha se perguntado o que sua mãe – tão quieta, subjugada, abatida – poderia possivelmente ter encontrado para discutir com seu pai bombástico e agressivo. Foi só após a morte de sua mãe em um acidente de carro que ela tinha percebido que as brigas eram para manter a paz, lidar com a situação, protegendo Cassie e sua irmã da agressão que acendia de forma imprevisível e sem um bom motivo. Sem a presença de sua mãe, o conflito fervilhante tinha entrado em ebulição, virando uma guerra completa.

Ela havia imaginado que um dos benefícios de ser uma au pair seria poder se tornar parte da família feliz que ela nunca tivera. Agora, temia que o oposto fosse verdade. Nunca fora capaz de manter a paz no lar. Seria capaz de lidar com uma situação volátil, como sua mãe fizera?

– Estou preocupada com a minha família – Cassie confessou. – Tive perguntas estranhas durante minha entrevista também, e a au pair anterior foi embora mais cedo. O que vai acontecer se eu tiver que fazer o mesmo? Não quero permanecer se as coisas ficarem desagradáveis.

– Não vá embora a não ser que seja uma emergência – Jess avisou. – Causa um conflito enorme, e você sangra dinheiro; você vai estar sujeita a um monte de despesas adicionais. Isso quase me fez desistir de tentar de novo. Fui cuidadosa em aceitar essa atribuição. Eu não teria condições de pagar se meu pai não tivesse bancado tudo dessa vez.

Ela baixou sua taça de vinho.

– Vamos para o portão? Estamos na parte traseira do avião, então vamos estar no primeiro grupo a embarcar.

A empolgação para embarcar no avião distraiu Cassie do que Jess tinha dito e, uma vez que estavam sentadas, conversaram sobre outros tópicos. Quando o avião decolou, ela sentiu seu ânimo se elevar com ele, porque tinha conseguido. Tinha saído do país, escapado de Zane, e estava sendo transportada pelo ar rumo a um novo começo em uma terra estrangeira.

Foi apenas após o jantar, ao começar a pensar mais afundo sobre os detalhes de sua atribuição e os avisos de Jess, que seus receios voltaram novamente.

Toda família podia ser ruim, certo?

Porém, e se uma agência em particular tivesse uma reputação por aceitar famílias difíceis? Bem, então, as chances seriam maiores.

Cassie tentou ler um pouco, mas descobriu que não estava se concentrando nas palavras e seus pensamentos estavam acelerados enquanto se preocupava com o que estava pela frente.

Ela olhou para Jess. Depois de se assegurar que ela estava absorvida assistindo ao seu filme, Cassie discretamente pegou o frasco de comprimidos de sua bolsa e engoliu um com o resto de sua Coca diet. Se não conseguia ler, poderia ao menos tentar dormir. Apagou sua luz e reclinou seu assento.

*

Cassie encontrou-se em seu quarto frio no andar de cima, comprimida debaixo de sua cama com as costas contra a parede áspera e gelada.

Risos bêbados, pancadas e gritos vinham do andar de baixo; folia que a qualquer momento se tornaria violenta. Seus ouvidos se esticavam, esperando por vidros quebrando. Ela reconheceu a voz de seu pai e de sua namorada mais recente, Deena. Havia ao menos quatro outras pessoas lá embaixo, talvez mais.

E então, acima dos gritos, ela ouviu as tábuas do chão rangendo conforme passos pesados subiam as escadas.

– Ei, queridinha – uma voz profunda sussurrou e seu coração de 12 anos se encolheu em terror. – Você está ai, garotinha?

Ela apertou os olhos fechados, dizendo a si mesma que era apenas um pesadelo, que estava segura em sua cama e os estranhos no andar de baixo estavam se preparando para ir embora.

A porta rangeu ao abrir devagar e, na luz derramada pelo luar, viu uma bota pesada aparecer.

O pé pisou através do quarto.

– Ei, garotinha – um sussurro rouco. – Vim dizer olá.

Ela fechou seus olhos, rezando para que ele não ouvisse suas respirações rápidas.

O sussurro dos tecidos enquanto ele puxou as cobertas... E então o grunhido de surpresa ao ver o travesseiro e casaco que ela havia embrulhado por debaixo.

– Saiu por aí – ele tinha resmungado. Ela imaginou que ele estivesse olhando para as cortinas encardidas esvoaçando com a brisa, o cano de esgoto insinuando uma rota de fuga precária. Da próxima vez, ela encontraria a coragem para descer; não podia ser pior do que se esconder aqui.

As botas recuaram para fora de sua visão. Uma erupção de música veio do andar de baixo, seguida por uma discussão aos berros.

O quarto ficou quieto.

Ela estava tremendo; se fosse passar a noite se escondendo, precisaria de uma coberta. Era melhor pegá-la agora. Ela relaxou para longe da parede.

Mas conforme ela deslizou a mão para fora, uma mão grosseira a apanhou.

– Então você está aí!

Ele lhe puxou para fora – ela agarrou a estrutura da cama, ferro gelado raspando suas mãos, e começou a gritar. Seu choro aterrorizado preencheu o quarto, preencheu a casa...

E ela acordou, suada, gritando, ouvindo a voz aflita de Jess. – Ei, Cassie, você está bem?

Os tentáculos do pesadelo ainda estavam à espreita, querendo atraí-la de volta. Podia sentir os arranhões doloridos em seu braço onde a estrutura enferrujada da cama a cortara. Pressionou os dedos ali, aliviada por encontrar sua pele intacta. Arregalando os olhos, acendeu a luz sobre a cabeça para afugentar a escuridão.

– Estou bem. Sonho ruim, só isso.

– Quer um pouco de água? Chá? Posso chamar a comissária de bordo.

Cassie estava prestes a recusar educadamente, mas lembrou, em seguida, que deveria tomar seus remédios outra vez. Se um comprimido não funcionou, dois geralmente impediriam os pesadelos de voltarem a ocorrer.

– Eu adoraria um pouco de água. Obrigada – ela disse.

Ela esperou até que Jess não estivesse olhando e rapidamente engoliu outro comprimido.

Não tentou dormir outra vez.

*

Durante a descida da aeronave, trocou números de telefone com Jess – e, por precaução, anotou o nome e o endereço da família para quem Jess trabalharia. Cassie disse a si mesma que era como uma apólice de seguro que, com sorte, se ela tivesse, não precisaria usar. Prometeram uma à outra que, na primeira chance que tivessem, visitariam o Palácio de Versalhes juntas.

Enquanto taxiavam para o Aeroporto Charles de Gaulle, Jess deu uma risada animada. Rapidamente, mostrou a Cassie a selfie que sua família havia tirado enquanto esperavam por ela. O casal atraente e as duas crianças sorriam, segurando uma placa com o nome de Jess.

Cassie não recebeu nenhuma mensagem – Maureen tinha apenas dito que encontrariam com ela no aeroporto. A caminhada até o controle de passaporte parecia interminável. Ela estava cercada pelo burburinho de conversas em uma variedade de idiomas diferentes. Virando-se para o casal caminhando ao seu lado, percebeu quão pouco do francês falado era capaz de entender. A realidade era tão diferente de aulas da escola e fitas de idiomas. Sentia-se assustada, solitária e com sono atrasado, e de repente tomou consciência de quão amassadas e suadas suas roupas estavam comparadas às dos viajantes franceses elegantemente vestidos ao seu redor.

Assim que pegou suas malas, correu para o banheiro, colocou uma blusa nova e arrumou seu cabelo. Ainda não se sentia pronta para conhecer sua família e não tinha ideia de quem estaria a esperando. Maureen dissera que a casa ficava a mais de uma hora de carro do aeroporto, então talvez as crianças não tivessem vindo. Ela não deveria procurar por uma família grande. Qualquer rosto amigável bastaria.

Porém, no mar de pessoas a observando, não viu nenhum reconhecimento, mesmo tendo colocado a mochila da Maureen Au Pairs em destaque no carrinho de bagagem. Andou devagar do portão até o saguão de desembarque, observando ansiosa para que alguém a visse, acenasse ou chamasse por ela.

Mas todos lá pareciam estar esperando por outra pessoa.

Agarrando o puxador do carrinho com as mãos frias, Cassie ziguezagueou pelo saguão de desembarque, procurando em vão enquanto a multidão gradualmente se dispersava. Maureen não tinha falado sobre o que fazer caso isso acontecesse. Será que deveria ligar para alguém? Será que seu telefone sequer funcionaria na França?

E então, ao dar uma última volta frenética pelo piso, ela o notou.

“CASSANDRA VALE.”

Uma pequena placa, segurada por um homem magro de cabelo escuro, jaqueta preta e jeans.

De pé próximo à parede, absorvido em seu telefone, ele nem estava olhando para ela.

Ela se aproximou de forma incerta.

– Oi, sou Cassie. Você é...? – ela perguntou, as palavras parando ao perceber que ela não tinha ideia de quem ele poderia ser.

– Sim – ele disse em inglês com um sotaque forte. – Venha por aqui.

Ela estava prestes a se apresentar apropriadamente, dizer as palavras que tinha ensaiado sobre como estava empolgada por se juntar à família, quando viu o cartão laminado na jaqueta dele. Ele era apenas um motorista de táxi; o cartão era o seu passe oficial do aeroporto.

A família não tinha sequer se incomodado em vir conhecê-la.


CAPÍTULO TRÊS

A paisagem urbana de Paris foi de desdobrando enquanto Cassie observava. Altos apartamentos e blocos industriais escuros gradualmente deram lugar a subúrbios arborizados. A tarde estava fria e cinzenta, com a chuva assoprando de forma irregular.

Ela ergueu-se para ver as placas de sinalização enquanto passavam. Seguiam em direção à Saint Maur, e por um tempo ela pensou que aquele poderia ser seu destino, mas o motorista passou a saída e continuou pela estrada, saindo da cidade.

– Está longe? – ela perguntou, tentando puxar conversa, mas ele grunhiu de forma descomprometida e ligou o rádio.

A chuva batia nas janelas e o vidro estava frio contra sua bochecha. Desejou ter tirado a jaqueta grossa do porta-malas. E estava faminta – não havia comido café da manhã e não tivera a oportunidade de comprar comida desde então.

Depois de mais de meia-hora, chegaram a campo aberto e dirigiram ao longo do rio Marne, onde barcos de cores vivas forneciam um respingo de cor ao acinzentado, e algumas pessoas, envoltas em capas de chuvas, caminhavam debaixo das árvores. Alguns dos galhos das árvores já estavam despidos, outros ainda cobertos de folhas ouro-avermelhadas.

– Está muito frio hoje, não? – ela observou, tentando conversar com o motorista outra vez.

A única resposta foi um murmurado “Oui” – mas ele ao menos ligou o aquecedor, e ela parou de tremer. Encasulada no calor, caiu em um cochilo inquieto enquanto os quilômetros voavam.

Uma freada brusca e um toque de buzina a assustou, despertando-a. O motorista estava forçando caminho para passar por um caminhão estacionário, virando para sair da rodovia e entrar em uma estrada estreita e ladeada por árvores. A chuva havia parado e, na luz baixa do início de noite, a paisagem de outono era linda. Cassie olhou pela janela, absorvendo a paisagem em movimento e a tapeçaria em retalhos dos campos intercalados com enormes florestas escuras. Passaram por uma vinícola, as fileiras de uvas arrumadas encurvando-se em torno da encosta.

Reduzindo a velocidade, o motorista passou por um vilarejo. Casas de pedra pálidas com janelas abobadadas, íngremes e com telhados de azulejos, ladeavam a estrada. Além, viu campos abertos, e vislumbrou um canal ladeado por salgueiros-chorões enquanto cruzavam uma ponte de pedra. O alto pináculo da igreja atraiu seu olhar e ela se perguntou quão antiga era a construção.

Deveriam estar perto do castelo, ela cogitou, talvez até mesmo em seu bairro local. Então, mudou de ideia ao deixarem o vilarejo para trás, adentrando mais nas colinas, até que estivesse totalmente desorientada e perdesse o alto pináculo de vista. Não esperava que o castelo fosse tão remoto. Ouviu o GPS notificar “sinal perdido” e o motorista exclamar em irritação, pegando seu telefone e olhando de perto para o mapa enquanto dirigia.

Em seguida, após virarem à direita, entre portões altos, Cassie sentou-se ereta, vendo a longa entrada de cascalhos. Adiante, alto e elegante, estava o castelo, o sol poente realçando suas paredes de pedra.

Pneus trituraram na pedra quando o carro parou do lado de fora da entrada alta e imponente, e ela sentiu uma punhalada nos nervos. Essa casa era muito maior do que imaginara. Era como um palácio, coroado com altas chaminés e torres ornamentadas. Contou dezoito janelas, com trabalhos em pedra e detalhes elaborados, nos dois andares de sua fachada imponente. A casa em si tinha vista para um jardim, com sebes imaculadamente podadas e caminhos pavimentados.

Como ela poderia se relacionar com a família lá dentro, que vivia em tanto esplendor, quando ela tinha vindo do nada?

Percebeu que o motorista batia os dedos impacientemente no volante – ele claramente não a ajudaria com as malas. Rapidamente, ela desceu.

O vento implacável a gelou imediatamente, e ela se apressou até o porta-malas, tirando sua mala e atravessando o cascalho até o abrigo do átrio, onde ela ergueu o zíper de sua jaqueta.

Não havia campainha na pesada porta de madeira, apenas uma grande aldrava de ferro que estava gelada em sua mão. O som era surpreendentemente alto, e alguns momentos depois Cassie ouviu passos leves.

A porta se abriu e ela ficou de frente com uma empregada de uniforme escuro, cabelo puxado para trás em um rabo de cavalo apertado. Atrás dela, Cassie vislumbrou o hall de entrada amplo, com paredes revestidas de forma opulente e uma magnífica escadaria de madeira ao fundo.

A empregada olhou de relance ao redor quando uma porta bateu.

Imediatamente, Cassie pressentiu a presença de uma briga. Podia sentir a eletricidade no ar, como uma tempestade se aproximando. Estava na atitude apreensiva da empregada, no estrondo da porta e nos gritos caóticos ao longe, desvanecendo até silenciarem. Seu interior contraiu-se e ela sentiu um esmagador desejo de fugir. Correr atrás do motorista e chamá-lo de volta.

Em vez disso, ela manteve-se firme e forçou um sorriso.

– Sou Cassie, a nova au pair. A família está me esperando.

– Hoje? – a empregada parecia preocupada. – Aguarde um momento – ela entrou apressada na casa e Cassie ouviu-a chamando – Monsieur Dubois, por favor, venha depressa.

Um minuto depois, um homem robusto com cabelo escuro e grisalho entrou no hall a passos largos, seu rosto como um trovão. Ao ver Cassie na porta, ele parou.

– Você já está aqui? – ele disse. – Minha noiva disse que chegaria amanhã de manhã.

Ele virou-se para encarar a jovem de cabelos loiros descoloridos que o seguia. Ela trajava um vestido de noite e suas feições atraentes estavam esticadas em tensão.

– Sim, Pierre, imprimi o e-mail quando estava a cidade. A agência disse que o voo chega às quatro da manhã – virando-se para a mesa de madeira adornada do hall, ela empurrou um peso de papel de vidro veneziano para o lado e brandiu uma folha como defesa. – Aqui. Está vendo?

Pierre deu uma olhada na página e suspirou.

– Aqui diz quatro da tarde. Não da manhã. O motorista que você contratou obviamente sabia a diferença, então aqui está ela – ele virou-se para Cassie e estendeu a mão. – Sou Pierre Dubois. Essa é minha noiva, Margot.

Ele não apresentou a empregada. Em vez disso, Margot ordenou que ela fosse preparar o quarto oposto ao das crianças, e a empregada saiu correndo.

– Onde estão as crianças? Já estão na cama? Eles deveriam conhecer Cassie – Pierre disse.

Margot balançou a cabeça. – Eles estavam jantando.

– Tão tarde? Eu não te falei que o jantar deve ser mais cedo quando eles têm escola no dia seguinte? Mesmo estando de férias, já deveriam estar na cama para manter o cronograma.

Margot encarou-o e deu com os ombros, zangada, antes de andar até a soleira da porta à direita, seus sapatos de salto estalando.

– Antoinette? – ela chamou. – Ella? Marc?

Foi recompensada por um estrondo de pés e exclamações altas.

Um garoto de cabelos escuros correu para o hall, puxando uma boneca pelos cabelos. Ele veio seguido de perto por uma menina mais nova e gordinha, aos prantos.

– Devolva minha Barbie! – ela gritou.

Derrapando até parar ao ver os adultos, o garoto deu uma arrancada para a escadaria. Conforme ele se lançou, seu ombro pegou o lado curvado de um grande vaso azul e dourado.

Cassie cobriu a boca com as mãos, horrorizada, enquanto o vaso balançava em seu pedestal, em seguida se espatifando no chão, estilhaçado. Cacos de vidro coloridos espirraram por todo o assoalho de madeira escura.

O choque silencioso foi quebrado pelo berro furioso de Pierre.

– Marc! Devolva a boneca para Ella.

Arrastando os pés, seu lábio inferior protuberante, Marc deu passos cuidadosos em meio aos destroços. Com relutância, entregou a boneca a Pierre, que a passou para Ella. Os soluços diminuíram conforme a menina alisava o cabelo da boneca.

– Aquele vaso era arte de vidro Durand – Margot silvou para o garoto. – Antiguidade. Insubstituível. Você tem algum respeito pelas posses do seu pai?

Um silêncio carrancudo foi a única resposta.

– Onde está Antoinette? – Pierre perguntou, soando frustrado.

Margot olhou para cima e, seguindo seu olhar, Cassie viu uma garota magra de cabelos escuros no topo das escadas—ela parecia a mais velha dos três, com diferença de alguns anos. Vestida com elegância em um vestido perfeitamente engomado, ela esperou com uma das mãos no corrimão até ter toda a atenção da família. Então, de queixo erguido, ela desceu.

Ansiosa para causar uma boa impressão, Cassie limpou a garganta e fez uma tentativa de saudação amigável.

– Olá, crianças. Meu nome é Cassie. Estou tão feliz de estar aqui, e feliz por cuidar de vocês.

Ella sorriu de volta, tímida. Marc encarou o chão de forma implacável. E Antoinette a encarou por um longo tempo, desafiando-a. Depois, sem uma palavra, deu as costas a ela.

– Com licença, Papai – ela disse a Pierre. – Tenho lição de casa para acabar antes de dormir.

– É claro – Pierre disse, e Antoinette marchou para o andar de cima novamente.

Cassie sentiu seu rosto arder de vergonha com o desdém deliberado. Perguntou-se se deveria dizer algo, fazer graça com a situação ou tentar dar desculpas para o comportamento rude de Antoinette, mas não conseguiu pensar nas palavras adequadas.

Margot murmurou, furiosa. – Eu te disse, Pierre. O humor da adolescência já está começando – e Cassie percebeu não ter sido a única que Antoinette havia ignorado.

– Pelo menos ela está fazendo a lição de casa, apesar de ninguém a ajudar - Pierre rebateu. – Ella, Marc, por que não se apresentam apropriadamente para Cassie?

Houve um curto silêncio. Claramente, as apresentações não aconteceriam sem relutância. Mas talvez ela pudesse aliviar a tensão com algumas perguntas.

– Bem, Marc, sei seu nome, mas gostaria de descobrir quantos anos você tem – ela disse.

– Tenho oito anos – ele resmungou.

Olhando entre ele e Pierre, ela definitivamente podia ver a semelhança de família. O cabelo rebelde, o queixo forte, os brilhantes olhos azuis. Até a forma como franziam a testa era similar. As outras filhas também eram morenas, mas Ella e Antoinette tinham feições mais delicadas.

– E Ella, qual sua idade?

– Quase seis – a pequena garota anunciou com orgulho. – Meu aniversário é no dia depois do Natal.

– É um dia bom para fazer aniversário. Espero que isso signifique que você ganhe um monte de presentes a mais.

Ella sorriu, surpresa, como se esta fosse uma vantagem que ainda não tinha considerado.

– Antoinette é a mais velha de todos. Ela tem doze anos – ela disse.

Pierre bateu as palmas. – Certo, hora de ir para a cama agora. Margot, você pode mostrar a casa à Cassie depois de colocar as crianças na cama. Ela precisa saber se virar por aí. Seja rápida. Temos que sair às sete.

– Ainda preciso terminar de me arrumar – Margot respondeu em tom ácido. – Você pode pôr as crianças na cama e chamar o mordomo para limpar essa bagunça. Mostrarei a casa à Cassie.

Pierre puxou uma respiração irritada antes de olhar para Cassie e apertar os lábios. Ela supunha que sua presença tinha o feito engolir suas palavras.

– Para cima e para a cama – ele disse, e as duas crianças o seguiram relutantemente pela escadaria. Ela alegrou-se em ver Ella virando-se e acenando para ela.

– Venha comigo, Cassie – Margot ordenou.

Cassie seguiu Margot pela porta da esquerda, encontrando-se em um salão formal com extraordinários móveis requintados e tapeçarias revestindo as paredes. O cômodo era enorme e frio; não havia fogo aceso na lareira maciça.

– Este salão é raramente usado e as crianças não tem permissão para ficar aqui. A sala de jantar principal está adiante. As mesmas regras se aplicam.

Cassie perguntou-se com que frequência a mesa de jantar de mogno era utilizada – parecia imaculada, original, e ela contou dezesseis cadeiras de encosto alto. Três outros vasos, parecidos com o que Marc havia quebrado antes, estavam no escuro aparador polido. Ela não conseguia imaginar conversas alegres à mesa do jantar neste espaço austero e silencioso.

Como seria crescer em uma casa assim, onde áreas inteiras estavam fora dos limites por causa de mobília que poderia ser danificada? Ela imaginou que isso pudesse fazer uma criança sentir ser menos importante do que os móveis.

– Aqui chamamos de Sala Azul. – Era uma pequena sala de estar com papéis de parede azul-marinho e grandes portas francesas. Cassie imaginou que abrissem para um pátio ou jardim, mas estava totalmente escuro e tudo que ela podia ver eram as luzes difusas do cômodo refletidas no vidro. Desejou que a casa tivesse lâmpadas de maior potência – todos os cômodos eram mal iluminados, com sombras à espreita nos cantos.

Uma escultura chamou sua atenção... O suporte da estátua de mármore tinha sido quebrado, então ela estava deitada de rosto para cima sobre a mesa. Sua feição era inexpressiva e imóvel, como se a pedra cobrisse o rosto de uma pessoa morta. Seus membros eram robustos, esculpidos de forma rude. Cassie teve calafrios, afastando o olhar da visão arrepiante.

– Essa é uma de nossas peças mais valiosas – Margot a informou. – Marc a derrubou na semana passada. Vamos mandar restaurar em breve.

Cassie pensou na energia destrutiva do garoto e na forma como ele batera o ombro contra o vaso mais cedo. A ação havia sido totalmente acidental? Ou houvera um desejo subliminar de estilhaçar o vidro, de ser notado em um mundo onde as posses pareciam ser a prioridade?

Margot guiou-a de volta pelo caminho que tinham vindo. – Os cômodos naquela passagem ficam trancados. A cozinha é por aqui, à direita, e adiante ficam os alojamentos dos criados. Há uma pequena sala de estar à esquerda, e um espaço onde jantamos em família.

No caminho de volta, passaram por um mordomo em um uniforme de cor cinza que carregava vassoura, pá e escova. Ele deu passagem a elas, mas Margot não manifestou nenhum reconhecimento.

A ala oeste era uma imagem espelhada da leste. Cômodos enormes e sombrios com mobília requintada e obras de arte. Vazios e silenciosos. Cassie estremeceu, ansiando por uma luz com brilho de lar ou o som familiar de uma televisão, se é que algo assim existia nesta casa. Ela seguiu Margot para o segundo andar pela magnífica escadaria.

– A ala dos hóspedes. – Três quartos intocados, com camas de dossel, eram separados por duas espaçosas salas de estar. Os quartos eram tão alinhados e formais quanto quartos de hotéis, e as colchas pareciam ter sido engomadas para permanecerem retas.

– E a ala da família.

Cassie iluminou-se, feliz por finalmente chegar à parte da casa onde as pessoas moravam.

– O berçário.

Para sua confusão, era outro quarto vazio, ocupado só por um berço de barras altas dos lados.

– E aqui, os quartos das crianças. Nossa suíte é no final dessa passagem, virando o corredor.

Três portas fechadas consecutivas. A voz de Margot baixou e Cassie supôs que ela não quisesse entrar para olhar as crianças – nem mesmo para dizer boa noite.

– Este é o quarto de Antoinette, este de Marc, e o mais próximo do nosso é o da Ella. Seu quarto é de frente com o de Antoinette.

A porta estava aberta e duas empregadas estavam ocupadas arrumando a cama. O quarto era enorme e frio. Era mobiliado com duas poltronas, uma mesa e um grande guarda-roupa de madeira. Pesadas cortinas vermelhas cobriam a janela. Sua mala tinha sido colocada ao pé da cama.

– Você vai ouvir as crianças se eles chorarem ou chamarem. Por favor, cuide deles. Amanhã, precisam estar vestidos e prontos às oito. Eles sairão ao ar livre, então escolha roupas quentes.

– Farei isso, mas... – Cassie reuniu sua coragem. – Será que eu poderia jantar, por favor? Não comi nada desde o jantar no avião ontem à noite.

Margot encarou-a, perplexa, depois balançou a cabeça.

– As crianças comeram mais cedo porque estamos de saída. A cozinha está fechada agora. O café da manhã será servido a partir das sete, amanhã. Pode esperar até lá?

– Eu... Eu acho que sim – ela estava passando mal de fome; os doces proibidos em sua mala, que seriam para as crianças, de repente tornaram-se uma tentação irresistível.

– E eu preciso enviar um e-mail para a agência informando que estou aqui. Seria possível pegar a senha do Wi-Fi? Meu telefone não tem sinal.

Agora Margot estava sem expressão. – Não temos Wi-Fi e não há sinal de celular aqui. Só um telefone fixo no escritório de Pierre. Para mandar um e-mail, tem que ir até a cidade.

Sem aguardar a resposta de Cassie, ela deu as costas e foi para o quarto principal.

As empregadas partiram, deixando a cama de Cassie em um frio estado de perfeição.

Ela fechou a porta.

Jamais tinha sonhado que ficaria com saudades de casa, mas naquele momento ela ansiava por uma voz amigável, o burburinho da televisão, a confusão de uma geladeira cheia. Louças na pia, brinquedos no chão, vídeos do Youtube nos telefones. O caos alegre de uma família normal – a vida à qual ela havia esperado se tornar parte.

Em vez disso, sentia já ter se enredado em um conflito amargo e complicado. Nunca poderia ter esperado tornar-se amiga instantânea destas crianças – não com a dinâmica familiar que havia se desenrolado até então. Esse lugar era um campo de batalha – e mesmo que ela encontrasse uma aliada na pequena Ella, temia já ter encontrado uma inimiga em Antoinette.

A luz do teto, que havia estado tremeluzente, de repente falhou. Cassie tateou em sua mala por seu telefone, desfazendo as malas da melhor forma que pôde com o feixe de luz da lanterna, em seguida plugando-o na única tomada visível, do lado oposto do quarto, cambaleando no escuro até sua cama.

Com frio, apreensiva e com fome, subiu para o meio dos lençóis gelados e os puxou até o queixo. Tinha esperado sentir-se mais esperançosa e positiva depois de conhecer a família, mas ao invés disso encontrava-se duvidando de sua capacidade de lidar com eles, temendo o que o dia seguinte traria.


CAPÍTULO QUATRO

A estátua estava parada na soleira da porta de Cassie, emoldurada pela escuridão.

Seus olhos sem vida abriram-se e sua boca se partiu conforme se movia em direção a ela. As finas rachaduras ao redor de seus lábios se alargaram e, em seguida, seu rosto todo começou a desintegrar. Fragmentos de mármore choveram e sacudiram no chão.

– Não – Cassie sussurrou, mas descobriu que não conseguia se mexer. Estava presa na cama, seus membros congelados apesar de sua mente implorar para que ela escapasse.

A estátua veio até ela, braços esticados, lascas de pedra cascateando de seus membros. Começou a gritar, um som agudo e fino, e conforme a estátua gritava Cassie viu o que estava sendo exposto debaixo da casca de mármore.

O rosto de sua irmã. Gelado, cinzento, morto.

– Não, não, não – Cassie berrou, e seu próprio choro a acordou.

O quarto estava um breu; ela estava enrolada em uma bola, tremendo. Sentou-se, em pânico, tateando por um interruptor que não estava lá.

Seu pior medo... O que tentara tanto suprimir durante o dia, mas que encontrava o caminho até seus pesadelos. Era o medo que Jacqui estivesse morta. Por que por qual outra razão sua irmã deixaria de se comunicar com ela? Por que não haveria cartas, ligações ou contato dela por anos?

Tremendo de frio e de medo, Cassie percebeu que o barulho das pedras em seu sonho havia se tornado o som da chuva, rajadas de vento martelando contra o vidro da janela. E, acima da chuva, ela ouviu outro som. Uma das crianças estava gritando.

“Você vai ouvir as crianças se eles chorarem ou chamarem. Por favor, cuide deles.”

Cassie sentia-se confusa e desorientada. Desejava poder acender uma luz ao lado da cama e tomar alguns minutos para se acalmar. O sonho fora tão vívido que ela ainda sentia-se trancada dentro dele. Mas os gritos deviam ter começado enquanto ela ainda dormia – na realidade, podiam ter causado o pesadelo. Precisavam dela urgentemente, e ela precisava se apressar.

Empurrou o edredom, descobrindo que a cortina não havia sido fechada corretamente. A chuva tinha entrado pela abertura, trazida pelo vento, e a parte inferior de seu cobertor estava encharcada. Ela saiu da cama em meio à escuridão e atravessou o quarto, na direção que esperava que estivesse seu telefone.

Uma mancha de água no chão havia transformado o piso em gelo. Ela derrapou, perdendo o equilíbrio e aterrissando de costas com um baque dolorido. Sua cabeça bateu na estrutura da cama e sua visão explodiu em estrelas.

– Droga – sussurrou, levantando devagar com as mãos e joelhos, esperando que as dores em sua cabeça e a tontura diminuíssem.

Ela engatinhou pelo piso e tateou por seu telefone, esperando que ele tivesse escapado da enchente. Para o seu alívio, esse lado do quarto estava seco. Ela ligou a lanterna, esforçando-se dolorosamente para ficar de pé. Sua cabeça latejava e sua blusa estava encharcada. Ela arrancou-a e rapidamente vestiu a primeira roupa que encontrou – uma calça de moletom e uma blusa cinza. Descalça, saiu do quarto, apressada.

Reluziu a lanterna nas paredes, mas não havia interruptores por perto. Cuidadosamente, seguiu o feixe de luz no sentido do barulho, em direção à suíte dos Dubois. O quarto mais próximo ao deles seria o de Ella.

Cassie bateu na porta rapidamente e entrou.

Felizmente, fez-se a luz, enfim. No brilho da luminária de teto, ela podia ver a única cama ao lado da janela, onde Ella havia chutado seu cobertor para longe. Gritando e berrando enquanto dormia, ela lutava contra os demônios em seus sonhos.

– Ella, acorde!

Fechando a porta, Cassie correu até ela e sentou-se na beira da cama, agarrando os ombros da menina adormecida de forma gentil, sentindo-os curvados e estremecendo. Seus cabelos escuros estavam emaranhados, sua blusa de pijama amontoada. Ela havia chutado o cobertor azul para os pés da cama; devia estar com frio.

– Acorde, está tudo bem. Você só está tendo um sonho ruim.

– Eles estão vindo me pegar! – Ella soluçou, lutando para sair do alcance dela. – Estão vindo, estão esperando na porta!

Cassie segurou-a com firmeza e ajeitou-a em uma posição sentada, arrastando um travesseiro atrás dela enquanto alisava sua blusa amarrotada. Ella estava tremendo de medo. O modo como se referia a “eles” fez Cassie se perguntar se este seria um pesadelo recorrente. O que estava acontecendo na vida de Ella para acarretar um terror tão vívido em seus sonhos? A jovem menina estava completamente traumatizada e Cassie não tinha ideia da melhor forma de acalmá-la. Tinha vagas memórias de Jacqui, sua irmã, brandindo uma vassoura contra um armário para afugentar um monstro imaginário. Mas aquele terror tinha raízes na realidade. Os pesadelos tinham começado depois de Cassie se esconder no armário durante uma das bebedeiras enfurecidas de seu pai.

Perguntou-se se o medo de Ella também seria fundamentado por algo que tinha acontecido. Tentaria descobrir depois, mas agora precisava convencê-la de que os demônios haviam desaparecido.

– Não tem ninguém vindo te pegar. Está tudo bem. Olhe, estou aqui e a luz está acesa.

Os olhos de Ella abriram-se, arregalados. Cheios de lágrimas, seus olhos encararam Cassie por um momento, depois sua cabeça se virou, focando em algo atrás dela.

Ainda assustada pelo próprio pesadelo e pela insistência de Ella em estar vendo “eles”, Cassie olhou rapidamente ao redor, seu coração acelerando quando a porta se abriu em um golpe.

Margot estava parada na porta com as mãos nos quadris. Ela vestia um robe turquesa de seda e seus cabelos loiros estavam amarrados em uma trança frouxa. Suas feições perfeitas estavam desfiguradas apenas por um borrão residual de rímel.

Fúria emanava dela e Cassie sentiu seu interior se contraindo.

– Por que você demorou tanto? – Margot vociferou. – O choro de Ella nos acordou, ela chorou por horas! Fomos dormir tarde; não estamos te pagando para que nosso sono seja perturbado.

Cassie olhou fixamente para ela, confusa com o fato de que o bem-estar de Ella era aparentemente a última coisa na cabeça de Margot.

– Desculpe – ela disse. Ella estava agarrada nela, tornando impossível que ela se levantasse e encarasse sua patroa. – Eu vim assim que a ouvi, mas a luz do quarto tinha queimado, estava completamente escuro, então demorei um pouco para...

– Sim, você demorou demais e esta, agora, é a sua primeira advertência! Pierre trabalha longas horas e fica furioso quando as crianças o acordam.

– Mas... – com uma onda desafiante, a pergunta brotou dos lábios de Cassie. – Vocês não poderiam ter vindo ao quarto de Ella se a ouviram chorando? É minha primeira noite, e eu não sei onde fica nada no escuro. Da próxima vez, farei melhor, prometo, mas o que eu quero dizer é que ela é sua filha e estava tendo um sonho terrível.

Margot deu um passo em direção à Cassie, seu rosto retesado. Por um momento, Cassie pensou que ela fosse pedir desculpas irritadas e que, juntas, chegariam a uma trégua forcada.

Porém, não foi o que aconteceu.

Em vez disso, a mão de Margot chicoteou, colidindo com força no rosto de Cassie.

Cassie prendeu um grito, piscando lágrimas enquanto o choro de Ella escalou. Sua bochecha queimava com o golpe, o galo em sua cabeça latejava ainda mais e sua mente, horrorizada, bobinava o entendimento de que sua nova empregadora era violenta.

– Antes de você ser contratada, uma das empregadas da cozinha fazia suas obrigações. E pode fazer de novo, temos muitos criados. Este é o seu segundo aviso. Eu não tolero preguiça, nem empregados que me respondem. Sua terceira transgressão significará demissão imediata. Agora, pare o choro dessa criança, para finalmente conseguirmos dormir.

Ela marchou para fora do quarto, batendo a porta atrás de si.

Freneticamente, Cassie empacotou Ella em seus braços, sentindo imenso alívio conforme os soluços altos diminuíam.

– Está tudo bem – ela sussurrou. – Tudo certo, não se preocupe. Da próxima vez, eu venho até você mais rápido, vou saber o caminho melhor. Gostaria que eu dormisse aqui o resto da noite? E podemos deixar o abajur aceso para ficarmos mais seguras?

– Sim, por favor, fique. Você pode ajudar a impedir que eles voltem – Ella sussurrou. – E deixe a luz acesa. Eu acho que eles não gostam.

O quarto era mobiliado em tons neutros de azul, mas o abajur de cúpula cor-de-rosa era um item alegre e reconfortante.

Mesmo enquanto consolava Ella, Cassie sentia-se prestes a vomitar e percebeu que suas mãos tremiam violentamente. Ela contorceu-se debaixo das cobertas, satisfeita com o calor, pois estava congelando de frio.

Como ela poderia continuar trabalhando para uma empregadora que abusava dela verbal e fisicamente na frente das crianças? Era impensável, imperdoável, e avivava muitas das próprias memórias que ela havia conseguido esquecer. A primeira coisa que faria ao amanhecer seria fazer as malas e ir embora.

Mas... Ainda não tinha recebido nenhum pagamento; teria que esperar até o fim do mês para ter algum dinheiro. Não havia como pagar pelo táxi de volta ao aeroporto, e muito menos condições para arcar com a despesa de alterar o bilhete do voo.

Havia também a questão das crianças.

Como poderia deixá-los nas mãos dessa mulher violenta e imprevisível? Eles precisavam de alguém cuidando deles – especialmente a jovem Ella. Não podia sentar aqui, consolando-a e prometendo que tudo ficaria bem, somente para desaparecer no dia seguinte.

Nauseada, Cassie percebeu que não tinha escolha. Não poderia ir embora a essa altura. Estava financeiramente e moralmente obrigada a ficar.

Ela teria que tentar se equilibrar na corda bamba do temperamento de Margot para evitar cometer a terceira e última transgressão.


CAPÍTULO CINCO

Cassie abriu os olhos, encarando o teto desconhecido em confusão. Demorou alguns instantes para se orientar e perceber onde estava – na cama de Ella, com a luz da manhã atravessando uma fenda nas cortinas. Ella ainda dormia profundamente, meio enterrada sob o edredom. A parte de trás da cabeça de Cassie latejou quando ela se mexeu, a dor recordando-lhe de tudo o que havia acontecido na noite anterior.

Sentou-se apressadamente, lembrando-se das palavras de Margot, do tapa ardido e das advertências que tinha recebido. Sim, ela era culpada por não ter atendido a Ella imediatamente, mas nada do que acontecera depois fora justo. Quando tentara se defender, só tinha sido ainda mais castigada. Então, talvez precisasse discutir calmamente algumas das regras da casa com a família Dubois esta manhã, para garantir que isso não acontecesse de novo.

Por que o alarme dela ainda não tinha tocado? Tinha o programado para seis e trinta, esperando que significasse sua chegada pontual ao café da manhã, às sete.

Cassie checou seu telefone e descobriu com um choque que a bateria tinha acabado. A busca constante por sinal devia tê-lo drenado mais que o habitual. Saindo da cama em silêncio, ela foi até o seu quarto, ligou-o no carregador e esperou ansiosamente que ele ligasse.

Praguejou em voz baixa quando viu que era quase sete e trinta. Tinha dormido demais, e agora teria que acordar e aprontar a todos o mais rápido possível.

Correndo de volta para o quarto de Ella, Cassie abriu a cortina.

– Bom dia – disse. – É um belo dia de sol e é hora do café da manhã.

Mas Ella não queria se levantar. Ela devia ter batalhado para adormecer depois do sonho ruim e tinha acordado de mau-humor. Irritada e cansada, ela apegou-se chorando ao edredom quando Cassie tentou puxá-lo. Eventualmente, lembrando-se dos doces que tinha trazido consigo, Cassie recorreu ao suborno para fazê-la sair da cama.

– Se ficar pronta em cinco minutos, você ganha um chocolate.

Mesmo assim, mais lutas estavam pela frente. Ella recusou-se a vestir a roupa que Cassie escolheu para ela.

– Quero usar um vestido hoje – ela insistiu.

– Mas, Ella, você pode ficar com frio se for lá fora.

– Não ligo. Quero usar um vestido.

Cassie finalmente conseguiu um meio-termo escolhendo o vestido mais quente que pôde encontrar – de mangas compridas, feito de veludo de algodão, acompanhado de longas meias e botas revestidas de lã. Ella sentou-se na cama com as pernas balançando e seu lábio inferior tremendo. Uma criança estava pronta, finalmente, mas ainda havia duas para aprontar.

Quando abriu a porta do quarto de Marc, ficou aliviada em ver que ele estava acordado e já fora da cama. Trajando pijamas vermelhos, ele brincava com um exército de soldados espalhados pelo chão. A grande caixa metálica de brinquedos debaixo de sua cama estava aberta, cercada por modelos de carros e um rebanho completo de animais de fazenda. Cassie teve que andar com cuidado para evitar pisar em qualquer um deles.

– Olá, Marc. Vamos para o café da manhã? O que você quer vestir?

– Não quero vestir nada. Quero brincar – Marc retorquiu.

– Você pode voltar a brincar depois, mas não agora. Estamos atrasados, temos que correr.

A resposta de Marc foi explodir em lágrimas barulhentas.

– Por favor, não chore – Cassie implorou a ele, ciente dos preciosos minutos que passavam. Mas as lágrimas dele escalaram, como se ele se alimentasse do pânico dela. Ele simplesmente recusava-se a sair do pijama e nem mesmo a promessa de chocolate podia fazê-lo mudar de ideia. Eventualmente, com sua destreza chegando ao fim, Cassie forçou um par de chinelos nos pés dele. Pegando a mão dele na sua e colocando um soldado no bolso do pijama dele, ela o persuadiu a ir com ela.

Quando bateu na porta de Antoinette, não houve resposta. O quarto estava vazio e a cama perfeitamente arrumada com uma camisola rosa dobrada sobre o travesseiro. Se houvesse esperança, Antoinette teria seguido sozinha para o café da manhã.

Pierre e Margot já estavam sentados na sala de jantar informal. Pierre estava vestindo um terno e Margot também se vestia de forma elegante, maquiada à perfeição, seus cabelos enrolados acima dos ombros. Ela levantou o olhar quando eles entraram e Cassie sentiu seu rosto arder em chamas. Rapidamente, ajudou Ella a subir em uma cadeira.

– Desculpe por estarmos um pouco atrasados – ela desculpou-se, afobada e já se sentindo como se tivesse começado com o pé errado. – Antoinette não estava em seu quarto. Não tenho certeza de onde ela esteja.

– Ela já acabou o café da manhã e está treinando piano – Pierre acenou com a cabeça para a sala de música antes de servir mais café. – Ouça. Talvez reconheça a música. “Danúbio Azul”.

Levemente, Cassie ouviu a reprodução precisa de uma melodia que, de fato, soava familiar.

– Ela é muito talentosa – Margot ofereceu, mas o tom azedo de seu comentário não casava com as palavras. Cassie olhou para ela com nervosismo. Será que ela diria alguma coisa sobre o que tinha acontecido na noite anterior?

Porém, enquanto Margot a encarava em um silêncio frio, de repente Cassie se perguntou se não estaria se lembrando de algumas partes erroneamente. A parte de trás de sua cabeça estava sensível e inchada onde havia batido ao escorregar, mas quando tocou o lado esquerdo de seu rosto não havia marcas do tapa ardente. Ou talvez fosse no lado direito? Era assustador que agora não conseguisse se lembrar. Pressionou os dedos na bochecha direita, mas tampouco havia dor.

Com firmeza, Cassie disse a si mesma para parar de se preocupar com os detalhes. Ela não podia estar pensando com clareza depois de um baque duro na cabeça e uma possível concussão. Margot definitivamente tinha a ameaçado, mas a própria imaginação de Cassie poderia ter conjurado o golpe em si. Afinal de contas, ela estivera exausta, desorientada, e tinha emergido diretamente da agonia de um pesadelo.

Seus pensamentos foram interrompidos por Marc exigindo o café da manhã, e ela serviu suco de laranja para as crianças, pegando comida nas bandejas. Ella insistiu em pegar até o último pedaço de presunto e queijo, então Cassie se virou com um croissant de geleia e frutas fatiadas.

Margot drenou seu café em silêncio, olhando pela janela. Pierre folheou um jornal enquanto terminava sua torrada. Os cafés da manhã seriam sempre tão silenciosos? Cassie se perguntou. Nenhum dos pais mostrou qualquer desejo de interagir com ela, com as crianças, ou um com o outro. Será que era por que ela estava em apuros?

Talvez ela devesse iniciar uma conversa e esclarecer as coisas. Precisava se desculpar formalmente por sua demora em chegar à Ella, mas não achava que sua punição tinha sido justa.

Cassie compôs suas palavras cuidadosamente em sua cabeça.

“Eu sei que demorei a tomar conta da Ella ontem à noite. Não a ouvi chorando, mas da próxima vez deixarei a porta do meu quarto aberta. Contudo, não sinto que fui tratada de forma justa. Fui ameaçada e abusada, e recebi duas advertências seguidas em apenas alguns minutos, então será que podemos discutir algumas das regras da casa?”

Não, aquilo não serviria. Era muito direto. Ela não queria parecer antagônica. Precisava de uma abordagem mais suave, uma que não tornaria Margot uma inimiga ainda maior.

“Não está uma manhã agradável?”

Sim, este definitivamente seria um bom começo, traria um ângulo positivo à conversa. E, a partir daí, poderia conduzi-la na direção do que realmente queria dizer.

“Eu sei que fui lenta para cuidar da Ella ontem à noite. Não a ouvi chorar, mas da próxima vez deixarei a porta do quarto aberta. Contudo, eu gostaria de discutir algumas regras da casa agora, em termos de como tratamos um ao outro e quando advertências devem ser dadas, para garantir que possa fazer o melhor trabalho”.

Cassie limpou a garganta, nervosa, e baixou seu garfo.

Mas quando ela estava prestes a falar, Pierre dobrou o jornal e levantou-se com Margot.

– Tenham um bom dia, crianças – Pierre disse ao saírem da sala.

Cassie olhou fixamente, confusa. Ela não tinha ideia do que fazer agora. Fora dito a ela que as crianças deveriam estar prontas às oito horas – mas para quê?

Melhor que corresse atrás de Pierre para checar. Foi até a porta, mas ao chegar lá quase colidiu com uma mulher de aparência agradável em um uniforme de empregada, carregando uma bandeja de comida.

– Opa. Pronto. Salvei – ela endireitou a bandeja e deslizou as fatias de presunto de volta para o lugar. – Você é a nova au pair, certo? Sou Marnie, a governanta-chefe.

– Prazer em te conhecer – Cassie disse, percebendo que esse era o primeiro rosto sorridente que vira o dia todo. Depois de se apresentar, disse – Eu estava indo perguntar ao Pierre o que as crianças precisam fazer hoje.

– Tarde demais. Ele já terá partido; eles estavam indo direto para o carro. Ele não deixou nenhuma instrução?

– Não. Nada.

Marnie repousou a bandeja e Cassie deu mais queijo a Marc, servindo-se avidamente de torradas, presunto e um ovo cozido. Ella estava se recusando a comer a pilha de comida em seu prato, irritada ao empurrá-la de um lado para o outro com seu garfo.

– Talvez possa perguntar para as próprias crianças – Marnie sugeriu. – Antoinette saberá se existe algo programado. Mas aconselho esperar que ela termine de tocar piano. Ela não gosta que atrapalhem sua concentração.

Era sua imaginação ou Marnie tinha revirado os olhos com as palavras? Encorajada, Cassie perguntou-se se poderiam se tornar amigas. Precisava de uma aliada nesta casa.

Mas não havia tempo para forjar uma amizade agora. Marnie claramente tinha pressa, recolhendo os pratos vazios e louças sujas enquanto perguntava à Cassie se havia algum problema com seu dormitório. Cassie rapidamente explicou os problemas e, depois de prometer trocar os cobertores e trocar a lâmpada antes do almoço, a governanta foi embora.

O som do piano cessara, então Cassie se dirigiu à sala de música perto do hall de entrada.

Antoinette estava guardando as partituras. Ela virou-se e encarou Cassie com cautela quando ela entrou. Imaculadamente vestida, ela usava um vestido azul real. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo e seus sapatos estavam perfeitamente lustrados.

– Você está linda, Antoinette, a cor deste vestido é tão bonita – Cassie disse, esperando que elogios lhe encarecessem à garota hostil. – Vocês tem algo planejado para hoje? Alguma atividade ou outra coisa programada?

Antoinette fez uma pausa, pensativa, antes de sacudir a cabeça.

– Nada hoje – ela disse de forma decisiva.

– E quanto ao Marc e a Ella, eles precisam ir para algum lugar?

– Não. Amanhã, Marc tem treino de futebol – Antoinette fechou o tampo do piano.

– Bem, tem alguma coisa que você gostaria de fazer agora? – Talvez permitir que Antoinette escolhesse ajudaria na criação de um laço entre elas.

– Poderíamos caminhar pelo bosque. Todos nós gostamos de fazer isso.

– Onde ficam os bosques?

– A uns dois ou três quilômetros daqui, pela estrada – a menina morena indicou vagamente. – Podemos partir imediatamente. Eu te mostro o caminho. Só preciso trocar minhas roupas.

Cassie havia presumido que o bosque ficasse dentro da propriedade e foi pega de surpresa pela resposta de Antoinette. Mas uma caminhada pelo bosque parecia uma atividade saudável e agradável ao ar livre. Cassie tinha certeza de que Pierre aprovaria.

*

Vinte minutos depois, estavam prontos para sair. Cassie olhou dentro de todos os quartos enquanto acompanhava as crianças até o andar de baixo, esperando ver Marnie ou outra pessoa da equipe de governança para dizer a eles onde estava indo.

Não viu ninguém e não tinha ideia de onde começar a procurar. Antoinette estava impaciente para sair, pulando de um pé para o outro com empolgação, portanto Cassie decidiu que fazer a vontade do bom-humor dela era mais importante, especialmente considerando que não ficariam fora por muito tempo. Desceram pelo caminho de cascalho com Antoinette os conduzindo.

Atrás de um enorme carvalho, Cassie viu um bloco de cinco estábulos – ela havia os notado quando chegara, no dia anterior. Aproximou-se para ver mais de perto, descobrindo que eles estavam vazios e escuros, as portas abertas. O campo adiante estava desocupado, as grades de madeira quebradas em alguns pontos e o portão pendurado pelas dobradiças, a grama crescendo alta e selvagem.

– Vocês têm cavalos aqui? – perguntou a Antoinette.

– Já tivemos, muitos anos atrás, mas não temos nenhum há muito tempo – ela respondeu. – Ninguém de nós cavalga mais.

Cassie encarou os estábulos desertos enquanto absorvia esta bomba inesperada.

Maureen havia lhe dado informações errôneas e seriamente ultrapassadas.

Os cavalos tinham desempenhado um papel em sua decisão de vir para cá. Fora um incentivo. Ouvir sobre eles tinha feito o lugar parecer melhor, mais atrativo, mais vivo. Mas eles não tinham estado aqui há muito tempo.

Durante a entrevista, Maureen tinha declarado que haveria uma real oportunidade para que ela aprendesse a cavalgar. Por que teria deturpado as coisas, e o que mais ela dissera que poderia não ser verdade?

– Vamos! – Antoinette puxou sua manga com impaciência. – Precisamos ir!

Conforme Cassie dava as costas, ocorreu a ela que não havia razão para que Maureen falsificasse informações. O restante de sua descrição sobre a casa e a família estivera razoavelmente correto e, como agente, ela só podia repassar os fatos fornecidos.

Se fosse assim, isso significava que deveria ter sido Pierre quem mentira. E isso, ela percebeu, era ainda mais perturbador.

Uma vez que tinham feito uma curva e a mansão estava fora de vista, Antoinette diminuiu o ritmo, e na hora certa para Ella, que reclamava que seus sapatos doíam.

– Pare de choramingar – Antoinette avisou. – Lembre-se, papai sempre diz que não se deve choramingar.

Cassie pegou Ella no colo e a carregou, sentindo seu peso aumentar a cada passo. Já estava carregando a mochila abarrotada com os casacos de todos, e seus últimos euros no bolso lateral.

Marc saltava adiante, quebrando galhos das cercas e atirando-os na estrada como dardos. Cassie constantemente tinha que lembrá-lo de se afastar do asfalto. Ele era tão desatencioso e inconsciente que poderia facilmente pular no caminho de um carro.

– Estou com fome – Ella reclamou.

Exasperada, Cassie pensou no prato intocado dela no café da manhã.

– Tem uma loja na próxima esquina – Antoinette disse a ela. – Eles vendem bebidas e lanches. – Ela parecia estranhamente alegre nesta manhã, mas Cassie não tinha ideia do porquê. Apenas estava contente por Antoinette parecer estar simpatizando com ela.

Ela esperava que a loja pudesse vender relógios baratos, porque sem um telefone ela não tinha nenhum meio de saber as horas. Mas a loja se mostrou ser um viveiro, estocado de mudas de plantas, árvores novas e fertilizantes. O quiosque no caixa vendia apenas refrigerante e lanches – o vendedor idoso, empoleirado em um banco alto ao lado do aquecedor a gás, explicou que não havia mais nada. Os preços eram estranhamente altos e ela se estressou enquanto contava seu dinheiro escasso, comprando chocolate e uma lata de suco para cada criança.

Enquanto ela pagava, as três crianças atravessaram a estrada correndo para olhar um burro mais de perto. Cassie gritou para eles voltarem, mas eles a ignoraram.

O homem grisalho deu de ombros, oferecendo simpatia. – Crianças são crianças. Eles parecem familiares. Vocês moram aqui perto?

– Sim. São as crianças Dubois. Sou a nova au pair deles, é meu primeiro dia de trabalho – Cassie explicou.

Ela esperara algum reconhecimento da vizinhança, mas em vez disso o vendedor arregalou os olhos de modo alarmado.

– Aquela família? Está trabalhando para eles?

– Sim – os medos de Cassie ressurgiram. – Por quê? O senhor os conhece?

Ele assentiu.

– Todos os conhecem aqui. E Diane, a esposa de Pierre, às vezes comprava plantas de mim.

Ele viu o rosto intrigado dela.

– A mãe das crianças – ele elaborou. – Ela faleceu no ano passado.

Cassie o encarou, sua mente girando. Ela era incapaz de acreditar no que acabara de ouvir.

A mãe das crianças havia morrido, e tão recentemente – apenas no ano anterior. Por que ninguém tinha dito nada sobre isso? Nem mesmo Maureen tinha o mencionado. Cassie presumira que Margot fosse mãe deles, mas agora percebia sua ingenuidade; Margot era jovem demais para ser a mãe de uma garota de doze anos.

Essa era uma família que recentemente sofrera um luto, rasgada por uma grande tragédia. Maureen deveria tê-la informado sobre isso.

Mas Maureen não sabia sobre os cavalos não estarem mais aqui, porque não tinha sido informada. Com uma punhalada de medo, Cassie perguntou-se se Maureen sequer sabia disso.

O que houvera com Diane? Como sua perda tinha afetado Pierre e as crianças, e toda a dinâmica familiar? Como eles se sentiam sobre a chegada de Margot em sua casa logo em seguida, tão cedo? Não era de se admirar que ela pudesse sentir a tensão, esticada como um fio, em praticamente todas as interações dentro daquelas paredes.

– Isso é... Isso é realmente triste – ela gaguejou, percebendo que o vendedor a fitava com curiosidade. – Eu não sabia que ela tinha morrido tão recentemente. Imagino que a morte dela deva ter sido traumática para todos.

De cenho profundamente franzido, o vendedor ofereceu-lhe o troco e ela guardou as poucas moedas.

– Você conhece o histórico da família, com certeza.

– Não sei muito, então realmente agradeceria se pudesse me explicar o que aconteceu – Cassie debruçou-se sobre o balcão, ansiosa.

Ele balançou a cabeça.

– Não posso dizer mais. Você trabalha para a família.

Por que aquilo fazia diferença? Cassie se perguntou. Sua unha cavou em cheio sua cutícula e ela percebeu, chocada, que tinha retornado ao seu antigo hábito nervoso. Bem, estava estressada, com certeza. O que o idoso havia lhe contado era preocupante o bastante, mas o que ele se recusava a dizer era ainda pior. Talvez se fosse honesta com ele, ele poderia ser mais aberto.

– Eu não entendo a situação nem um pouco, e estou com medo de ter me metido em algo além das minhas capacidades. Para ser sincera com você, não me disseram sequer que Diane tinha morrido. Não sei o que aconteceu, o como as coisas eram antes. Se eu tivesse uma imagem melhor, seria de muita ajuda.

Ele assentiu, parecendo se simpatizar mais, mas então o telefone no escritório tocou e ela soube que a oportunidade estava perdida. Ele saiu para atendê-lo, fechando a porta atrás de si.

Desapontada, Cassie deu as costas ao balcão, colocando nos ombros a mochila que parecia duas vezes mais pesada do que antes, ou talvez a informação perturbadora que o vendedor lhe dera fosse o que estivesse pesando sobre ela. Ao sair da loja, perguntou-se se teria a chance de voltar sozinha e falar com o idoso. Quaisquer que fossem os segredos que ele soubesse sobre a família Dubois, ela estava desesperada para descobrir.


CAPÍTULO SEIS

Um grito assustado de Ella sacudiu Cassie de volta à situação presente. Do outro lado da estrada, viu que Marc, para seu terror, tinha escalado a cerca e, usando as mãos, alimentava de capim um crescente rebanho que agora incluía cinco burros peludos, cinzentos e incrustrados de lama. De orelhas baixas, eles beliscavam uns aos outros enquanto cercavam o menino.

Ella gritou de novo quando um dos burros avançou em Marc, derrubando-o de costas.

– Saia daí! – Cassie gritou, atravessando a estrada em arrancada. Ela debruçou-se sobre a cerca e agarrou as costas da camisa dele, arrastando-o antes que ele pudesse ser pisoteado. Essa criança tinha um desejo de morte? A camisa dele estava molhada e suja, e ela não tinha trazido outra. Felizmente, o sol ainda estava brilhando, apesar das nuvens se reunindo a oeste.

Quando entregou a Marc seu chocolate, ele enfiou a barra toda na boca, suas bochechas saltando. Ele riu, cuspindo pedaços no chão, antes de correr adiante com Antoinette.

Ella empurrou seu chocolate e começou a chorar alto.

Cassie pegou a pequena menina no colo outra vez.

– O que há de errado? Não está com fome? – perguntou.

– Não. Estou com saudades da mamãe – ela soluçou.

Cassie abraçou-a apertado, sentindo a bochecha quente de Ella contra a sua.

– Sinto muito, Ella. Sinto muito mesmo. Eu acabei de saber disso. Você deve sentir muita falta dela.

– Queria que o papai me contasse onde ela foi – Ella lamentou.

– Mas... – Cassie estava sem palavras. O vendedor tinha dito claramente que Diane Dubois tinha morrido. Por que Ella pensava o contrário?

– O que o seu papai te contou? – ela perguntou cuidadosamente.

– Ele me disse que ela foi embora. Não disse para onde. Só disso que ela partiu. Onde ela foi? Eu quero que ela volte! – Ella pressionou a cabeça contra o ombro de Cassie, soluçando a plenos pulmões.

A cabeça de Cassie estava girando. Ella teria quatro anos à ocasião e certamente entenderia o que significava a morte. Teria tido uma chance para sofrer o luto, e um funeral. Ou talvez não.

Sua mente ficou confusa com a alternativa; a de que Pierre tivesse deliberadamente mentido para Ella sobre a morte de sua esposa.

– Ella, não fique triste – ela disse, esfregando seus ombros gentilmente. – Às vezes, as pessoas vão embora e não voltam mais. – Pensou em Jacqui, perguntando-se novamente se jamais descobriria o que realmente tinha acontecido com ela. Não saber era terrível. A morte, apesar de trágica, ao menos era final.

Cassie só podia imaginar a agonia que Ella deveria ter suportado, acreditando que sua própria mãe a havia abandonado sem uma palavra. Não era de se admirar que ela tivesse pesadelos. Precisava descobrir toda a história, se houvesse mais. Perguntar diretamente a Pierre seria intimidador demais, ela não se sentiria confortável em puxar o assunto a não ser que ele mesmo o fizesse. Talvez as outras crianças lhe contassem a versão delas, se ela perguntasse na hora certa. Aquele talvez fosse o melhor lugar para começar.

Antoinette e Marc esperavam em uma bifurcação na estrada. Finalmente, Cassie viu o bosque adiante. Antoinette tinha subestimado a distância; eles deviam ter caminhado quase cinco quilômetros, e o viveiro era a última construção que tinham visto. A estrada tinha se tornado uma pista estreita, seu pavimento rachado e quebrado, e as cercas selvagens, cheias de arbustos.

– Você e Ella podem descer por aquele caminho – Antoinette aconselhou, apontando para uma trilha cheia de mato. – É um atalho.

Grata por qualquer rota mais curta, ela desceu pelo caminho estreito, abrindo caminho dentre uma profusão de arbustos frondosos.

No meio do caminho, a pele em seus braços começou a arder tão dolorosamente que ela chorou alto, pensando ter sido picada por um enxame de vespas. Olhando para baixo, viu que sua pele estava inchada com erupções onde as folhas tinham lhe roçado. Em seguida, Ella gritou.

– Meu joelho está ardendo!

Sua pele estava inchando com urticárias, os vergões profundamente avermelhados contra sua carne macia e pálida.

Cassie abaixou-se tarde demais e um galho cheio de folhas açoitou seu rosto. Imediatamente, a ardência se espalhou e ela berrou, alarmada.

Afastada, ela ouviu a risada animada e estridente de Antoinette.

– Enterre sua cabeça no meu ombro – Cassie comandou, envolvendo os braços com força ao redor da jovem menina. Tomando uma respiração profunda, ela abriu caminho, empurrando através das folhas ardentes até explodir em uma clareira.

Antoinette gritava de alegria, dobrada sobre um tronco de árvore caído, e Marc estava a acompanhando, infectado pela hilaridade. Nenhum deles parecia se importar com as lágrimas indignadas de Ella.

– Você sabia que tinha hera venenosa lá! – Cassie a acusou enquanto baixava Ella ao chão.

– Urtigas – Antoinette a corrigiu antes de explodir em gargalhadas renovadas. Não havia gentileza no som – as risadas eram completamente cruéis. Esta garota estava mostrando sua verdadeira face e não tinha piedade.

A onda de fúria de Cassie a surpreendeu. Por um momento, seu único desejo era esbofetear o rosto presunçoso e cheio de risinhos de Antoinette o mais forte que pudesse. A força de sua ira era assustadora. Ela realmente deu um passo adiante, levantando a mão, antes que a sanidade a prevenisse e ela a abaixasse rapidamente, chocada com o que quase tinha feito.

Ela deu as costas, abrindo sua mochila, e vasculhou pela única garrafa de água. Esfregou um pouco no joelho de Ella e o resto na própria pele, esperando que aliviasse a queimação, mas toda vez que tocava o inchaço parecia só piorar. Ela olhou ao redor para ver se havia uma bica por perto, ou uma fonte de água, onde pudesse passar a dolorosa erupção em água gelada.

Porém, não havia nada. Esses bosques não eram o destino familiar que ela tinha esperado. Não havia bancos, nem placas de avisos. Sem latas de lixo, torneiras ou fontes, nem trilhas bem-cuidadas. Havia apenas uma floresta escura e antiga, com enormes árvores – faias, abetos e pinheiros – que se agigantavam a partir da vegetação rasteira emaranhada.

– Temos que ir para casa agora – ela disse.

– Não – Marc argumentou. – Eu quero explorar.

– Este não é um lugar seguro para explorar. Não tem nem um caminho apropriado. E está escuro demais. Você deveria colocar seu casaco agora, ou vai pegar um resfriado.

– Resfriado, vem me pegar! – Com uma expressão arteira, o garoto disparou, tecendo rapidamente entre as árvores.

– Droga! – Cassie lançou-se atrás dele, rangendo os dentes conforme ramos afiados rasgavam sua pele inflamada. Ele era menor e mais rápido do que ela, e sua risada a provocava conforme ele mergulhava no matagal.

– Marc, volte aqui! – ela chamou.

Mas suas palavras pareciam apenas estimulá-lo. Ela o seguiu com obstinação, esperando que ele se cansasse ou decidisse abandonar a brincadeira.

Finalmente, ela o alcançou quando ele parou para recuperar o fôlego, chutando pinhas. Ela agarrou seu braço com firmeza antes que ele pudesse correr outra vez.

– Isso não é brincadeira. Veja, tem uma ravina ali na frente – o solo entrou em íngreme declive e ela conseguia ouvir água fluindo.

– Vamos voltar agora. É hora de ir para casa.

– Não quero ir para casa – Marc resmungou, arrastando seus pés enquanto a seguia.

Nem eu, Cassie pensou, sentindo repentina simpatia por ele.

Mas quando chegaram de volta à clareira, Antoinette era a única que estava lá. Estava sentada em um casaco dobrado, trançando os cabelos por cima dos ombros.

– Onde está sua irmã? – Cassie perguntou.

Antoinette olhou para cima, parecendo despreocupada.

– Ela viu um pássaro logo depois que você saiu, e queria vê-lo mais de perto. Não sei para onde ela foi depois disso.

Cassie encarou Antoinette, horrorizada.

– Por que você não foi com ela?

– Você não me disse para ir – Antoinette disse com um sorriso frio.

Cassie respirou profundamente, controlando outra onda de fúria. Antoinette estava certa. Ela não deveria ter abandonado as crianças sem avisá-las para ficarem onde estavam.

– Para onde ela foi? Mostre exatamente onde a viu por último.

Antoinette apontou. – Ela foi para lá.

– Vou procurar por ela – Cassie manteve a voz deliberadamente calma. – Fique aqui com Marc. Não saia de jeito nenhum dessa clareira ou deixe seu irmão sair da sua vista. Entendeu?

Antoinette assentiu distraidamente, penteando os cabelos com os dedos. Cassie só poderia ter esperanças de que ela fizesse como estava sendo mandada. Caminhou até onde Antoinette indicara, formando uma concha com as mãos diante da boca.

– Ella? – gritou o mais alto que podia. – Ella?

Esperou, torcendo para ouvir uma resposta ou passos se aproximando, mas não houve retorno. Tudo o que podia ouvir era o fraco farfalhar das folhas ao vento, que ganhava força.

Será que Ella realmente poderia ter saído do alcance de sua voz no tempo em que ela estivera longe? Ou algo tinha acontecido com ela?

Pânico surgiu dentro dela enquanto entrava no bosque, correndo.


CAPÍTULO SETE

Cassie correu, adentrando ainda mais a floresta, tecendo em meio às árvores. Gritou o nome de Ella, rezando para que ouvisse uma resposta. Ella poderia estar em qualquer lugar; não havia um caminho evidente por onde ela pudesse ter seguido. Os bosques eram escuros e arrepiantes, as rajadas de vento sopravam fortes e as árvores pareciam abafar seus gritos. Ella podia ter caído em um barranco, ou tropeçado e batido a cabeça. Poderia ter sido apanhada por um vagabundo. Qualquer coisa poderia ter acontecido com ela.

Cassie derrapou por trilhas cheias de musgos, tropeçando em raízes. Seu rosto estava arranhado em centenas de lugares e sua garganta doía de gritar.

Eventualmente, ela parou, com a respiração ofegante. Seu suor parecia gelado e pegajoso na brisa. O que deveria fazer agora? Estava começando a escurecer. Não poderia gastar mais tempo procurando ou colocaria todos em perigo. O viveiro era seu porto de escala mais próximo, se ainda estivesse aberto. Poderia parar lá, contar ao vendedor o que tinha acontecido e pedir que ele ligasse para a polícia.

Demorou muito para que ela, depois de algumas voltas erradas, refizesse seus passos. Rezou para que os outros estivessem lhe esperando sãos e salvos. E esperava mais que tudo que Ella tivesse encontrado o caminho de volta.

Mas, ao chegar à clareira, Antoinette estava amarrando folhas em uma corrente, e Marc estava enrolado nos casacos, adormecido.

Nada de Ella.

Imaginou a tempestade de raiva quando retornassem. Pierre ficaria furioso, com justificativa. Margot poderia estar simplesmente perversa. Lanternas brilhariam na noite enquanto a comunidade caçaria por uma garota perdida, ferida, ou pior, como resultado de sua negligência. Era sua culpa e seu fracasso.

O horror da situação a soterrou. Desabou contra uma árvore e enterrou seu rosto nas mãos, tentando desesperadamente controlar seus soluços.

E então Antoinette disse, em uma voz prateada. – Ella? Pode sair agora!

Cassie olhou para cima, encarando com descrença enquanto Ella escalava de trás de um tronco caído, removendo folhas de sua saia.

– O quê? – Sua voz era rouca e trêmula. – Onde você estava?

Ella sorriu, feliz.

– Antoinette disse que estávamos brincando de esconde-esconde e eu não deveria sair quando você chamasse, ou eu perderia. Estou com frio agora... Pode me dar meu casaco?

Cassie sentiu-se espancada pelo choque. Não acreditava que alguém seria capaz de imaginar um cenário assim por pura maldade.

Não era apenas a crueldade, mas o cálculo de suas ações que gelaram Cassie. O que estava levando Antoinette a atormentá-la, e como ela poderia impedir que acontecesse no futuro? Não poderia esperar apoio nenhum dos pais. Ser legal não tinha funcionado, e raiva apenas entregaria o ouro às mãos de Antoinette. A garota segurava todas as cartas, e sabia.

Agora, eles retornariam para casa imperdoavelmente tarde, não tendo contado a ninguém onde tinham ido. As crianças estavam enlameadas, famintas, com sede e exaustas. Ela temia que Antoinette tivesse feito mais do que o suficiente para que ela fosse instantaneamente demitida.

Foi uma longa, fria e desconfortável caminhada de volta ao castelo. Ella insistiu em ser carregada por todo o caminho, e os braços de Cassie tinham praticamente cedido quando eles chegaram a casa. Marc se arrastava atrás, resmungando, cansado demais para fazer mais do que vez ou outra atirar pedras nos pássaros nas sebes. Até mesmo Antoinette parecia não ter prazer em sua vitória, caminhando pesarosamente, carrancuda.

Quando Cassie bateu na imponente porta de entrada, ela foi aberta imediatamente. Margot a encarava, ruborizada de raiva.

– Pierre! – ela gritou. – Finalmente eles estão aqui.

Cassie começou a tremer ao ouvir o pisotear furioso de pés.

– Onde, em nome do diabo, vocês estavam? – Pierre berrou. – Que irresponsabilidade é essa?

Cassie engoliu duro.

– Antoinette queria ir até o bosque. Então saímos para uma caminhada.

– Antoinette... O quê? O dia inteiro? Por que diabos você deixou que ela fizesse isso, e por que não obedeceu às suas instruções?

– Que instruções? – Encolhendo-se da ira dele, Cassie desejava fugir e se esconder, como fizera quando tinha dez anos e seu pai entrava em uma das fúrias dele. Olhando para trás, viu que as crianças sentiam exatamente o mesmo. Seus rostos acometidos e aterrorizados deram a ela a coragem que precisava para continuar encarando Pierre, mesmo que suas pernas tremessem.

– Deixei um bilhete na porta do seu quarto – com esforço, ele falou em uma voz mais normal. Talvez ele também tivesse notado as reações das crianças.

– Eu não encontrei nenhum bilhete – Cassie olhou de relance para Antoinette, mas os olhos dela estavam voltados para baixo e seus ombros curvados.

– Antoinette deveria se apresentar em um recital de piano em Paris. Um ônibus chegou para pegá-la às oito e meia, mas ela tinha sumido. E Marc tinha treino de futebol na cidade ao meio-dia.

Um nó gelado apertou-se no estômago de Cassie conforme ela percebeu quão sérias eram as consequências de suas ações. Decepcionara Pierre, e outros, da pior forma possível. Este dia deveria ter sido um teste de suas capacidades de organizar o cronograma das crianças. Em vez disso, eles haviam saído em uma excursão não planejada para o meio do nada e perdido atividades importantes. Se ela fosse Pierre, também estaria lívida.

– Sinto muito – ela balbuciou.

Ela não ousou contar a Pierre abertamente que as crianças tinham a enganado, mesmo que estivesse certa de que ele suspeitava disso. Se contasse, eles poderiam acabar sofrendo o impacto da fúria dele.

Um gongo soou da sala de jantar e Pierre olhou para o seu relógio.

– Falaremos disso mais tarde. Prepare-os para o jantar agora. Rápido, ou a comida vai esfriar.

“Rápido” era mais fácil falar do que fazer. Demorou mais de meia hora, e mais lágrimas, até que Marc e Ella estivessem banhados e em seus pijamas. Felizmente, Antoinette estava em seu melhor comportamento e Cassie se perguntou se ela estaria se sentindo sobrecarregada pelas consequências de suas ações. Quanto a si mesma, Cassie estava entorpecida após a catástrofe em que seu dia se transformara. Meio encharcada após banhar as crianças, ela não teve tempo para tomar banho. Vestiu uma blusa seca e os vergões em seus braços se incendiaram outra vez.

Eles desceram as escadas, em tropa, desconsolados.

Pierre e Margot estavam esperando no pequeno salão ao lado da sala de jantar. Margot bebericava uma taça de vinho enquanto Pierre reabastecia-se de conhaque e soda.

– Finalmente estamos prontos para comer – Margot observou sucintamente.

O jantar foi uma caçarola de peixe, e Pierre insistiu que as duas crianças maiores servissem a si mesmas, apesar de permitir que Cassie ajudasse Ella.

– Eles devem aprender etiqueta cedo – ele disse, prosseguindo a instrui-los no protocolo correto durante todo o jantar.

– Coloque o guardanapo no colo, Marc. Não amarrotado no chão. E seus cotovelos devem ficar para dentro; Ella não quer ser cutucada dos lados enquanto você está comendo.

O ensopado era rico e delicioso, e Cassie estava faminta, mas a alocução de Pierre era suficiente para tirar a fome de qualquer um. Ela restringiu-se a pequenas e delicadas bocadas, olhando de relance para Margot para checar se estava fazendo as coisas no modo francês apropriado. As crianças estavam exaustas, incapazes de compreender o que o pai delas dizia, e Cassie se pegou desejando que Margot dissesse a Pierre que agora não era uma boa hora para minúcias.

Ela perguntou-se se os jantares haviam sido diferentes quando Diane estava viva, e o quanto a dinâmica havia mudado após a chegada de Margot. Sua própria mãe havia mantido o controle firme no conflito, à sua maneira calma, mas ele havia entrado em erupção incontrolavelmente quando ela morrera. Talvez Diane tivesse desempenhado um papel similar.

– Um pouco de vinho? – Para sua surpresa, Pierre encheu a taça dela com vinho branco antes que ela pudesse recusar. Talvez fosse o protocolo também.

O vinho era aromático e frutado e, depois de apenas alguns goles, ela sentiu o álcool inundar sua corrente sanguínea, enchendo-a com uma sensação de bem-estar e relaxamento perigosa. Ela abaixou a taça apressadamente, sabendo que não podia se dar ao luxo de nenhum deslize.

– Ella, o que está fazendo? – Pierre perguntou, exasperado.

– Estou coçando meu joelho – Ella explicou.

– Por que está usando uma colher?

– Minhas unhas são muito curtas para alcançar a coceira. Caminhamos por urtigas – Ella disse, com orgulho. – Antoinette mostrou a Cassie um atalho. Eu fui picada no joelho. Cassie foi picada no rosto todo e nos braços. Ela estava chorando.

Margot baixou sua taça de vinho em um golpe.

– Antoinette! Você fez isso de novo?

Cassie piscou, surpresa ao descobrir que ela já tinha feito aquilo antes.

– Eu... – Antoinette começou de forma desafiadora, mas Margot estava irrefreável.

– Você é uma fera perversa. Tudo o que você quer é causar transtorno. Você pensa que está sendo esperta, mas você é somente uma garota estúpida, má e infantil.

Antoinette mordeu os lábios. As palavras de Margot racharam sua fria casca de compostura.

– Não é culpa dela – Cassie se pegou dizendo em voz alta, perguntando-se tarde demais se o vinho tinha sido uma má ideia.

– Deve ser muito difícil para ela lidar com... – Ela parou a si mesma apressadamente, porque tinha estado prestes a mencionar a morte da mãe deles, mas Ella acreditava em uma versão diferente e ela não tinha ideia de qual era a verdadeira história. Agora não era hora de perguntar.

– Lidar com tantas mudanças – ela disse. – De toda forma, Antoinette não me disse para ir por aquele caminho. Eu mesma o escolhi. Ella e eu estávamos cansadas, parecia um bom atalho.

Ela não se atreveu a olhar para Antoinette enquanto falava, no caso de Margot suspeitar um conluio, mas conseguiu pegar o olhar de Ella. Ofereceu a ela um olhar conspiratório, esperando que ela entendesse o porquê de Cassie estar ficando do lado de sua irmã, e foi recompensada com um pequeno aceno de cabeça.

Cassie temia que sua defesa fosse deixá-la em terreno ainda mais instável, mas precisava falar algo. Afinal de contas, sabia como era crescer em uma família fraturada, onde a guerra poderia explodir a qualquer momento. Entendia a importância de um exemplo mais velho a ser seguido que pudesse oferecer abrigo das tempestades. Como ela poderia ter suportado sem a força de Jacqui durante as horas ruins? Antoinette não tinha ninguém para ficar ao lado dela.

– Então, está escolhendo ficar do lado dela? – Margot chiou. – Acredite em mim, você vai se arrepender disso, assim como eu me arrependi. Você não a conhece como eu. – Ela apontou um dedo de manicure carmesim para Antoinette, que começou a soluçar. – Ela é igualzinha a sua...

– Pare! – Pierre rugiu. – Não aceito discussões à mesa do jantar. Margot, cale a boca agora, você já disse o bastante.

Margot ficou de pé tão repentinamente que sua cadeira foi derrubada com uma batida.

– Está me mandando calar a boca? Então, eu vou embora. Mas não pense que não tentei te avisar. Você vai ter o que você merece, Pierre. – Ela marchou até a porta, mas depois se virou, encarando Cassie com ódio sem disfarce.

– Todos vocês terão o que merecem.


CAPÍTULO OITO

Cassie prendeu a respiração enquanto os passos enfurecidos de Margot recuavam na passagem. Olhando de relance ao redor da mesa, viu que não era a única chocada a ficar em silêncio pela explosão perversa da loira. Os olhos de Marc estavam largos como pires, e sua boca estava apertada. Ella chupava o dedão. Antoinette franzia o cenho em uma fúria sem palavras.

Com uma praga resmungada, Pierre empurrou sua cadeira para trás.

– Vou lidar com isso – ele disse, andando até a porta a passos largos.

Aliviada por ter algum trabalho a fazer, Cassie levantou-se, olhando para os pratos e a comida espalhada em detritos sobre a mesa. Ela deveria limpar a mesa, ou pedir que as crianças ajudassem? A tensão estava suspensa no ar, densa como fumaça. Desejava uma atividade familiar normal do dia-a-dia, como lavar as louças, que ajudasse a dissolvê-la.

Antoinette viu a direção de seu olhar.

– Deixe tudo – ela estourou. – Alguém limpa depois.

Forçando animação em seu tom, Cassie disse. – Bem, então, é hora de ir para a cama.

– Não quero ir para a cama – Marc protestou, balançando a cadeira para trás. Conforme a cadeira se desequilibrou, ele gritou em um falso susto, agarrando a toalha de mesa. Cassie pulou para salvá-lo. Foi rápida o bastante para impedir que a cadeira caísse, mas lenta demais para prevenir que Marc perturbasse duas das taças e causasse que um prato se espatifasse no chão.

– Para cima – ela ordenou, tentando soar severa, mas sua voz estava aguda e instável de exaustão.

– Quero ir lá fora – Marc anunciou, correndo em direção às portas francesas. Lembrando-se de como ele a ultrapassara na floresta, Cassie mergulhou atrás dele. Ele já havia destrancado a porta quando o alcançou, mas ela conseguiu agarrá-lo e impedir que ele a abrisse. Viu o reflexo deles no vidro escuro. O menino de cabelos rebeldes e expressão sem arrependimento – e ela. Seus dedos apertando os ombros dele, olhos arregalados e ansiosos, rosto branco como papel.

Ver-se naquele momento inesperado a fez perceber o quanto falhara terrivelmente em seus deveres até agora. Fazia um dia inteiro que tinha chegado, e nem por um minuto estivera no comando. Estaria se enganando se pensasse o contrário. Suas expectativas de se encaixar na família e ser amada pelas crianças, ou ao menos benquista, não poderiam ter sido mais irreais. Eles não tinham um pingo de respeito por ela, e ela não fazia ideia de como mudar as coisas.

– Hora de ir para a cama – ela repetiu, cansada. Mantendo sua mão esquerda firmemente no ombro de Marc, removeu a chave da fechadura. Notando um gancho no alto da parede, estendeu-se para pendurá-la. Marchou Marc escada acima sem soltá-lo. Ella trotou ao seu lado e Antoinette a seguiu, desanimada, batendo a porta de seu quarto sem sequer dizer boa noite.

– Quer que eu leia uma história para você? – perguntou a Marc, mas ele balançou a cabeça. – Tudo certo. Para a cama, então. Você pode levantar cedo amanhã e brincar com seus soldados, se for dormir agora.

Era o único incentivo que ela conseguira pensar, mas pareceu funcionar; ou talvez o cansaço finalmente tivesse alcançado o jovem garoto. De qualquer forma, para seu alívio, ele fez o que ela pediu. Ela puxou o cobertor, notando que suas mãos tremiam de pura exaustão. Se ele tentasse se libertar outra vez, ela sabia que explodiria em lágrimas. Não estava convencida de que ele permaneceria na cama, mas, pelo menos por agora, seu trabalho estava feito.

– Eu quero uma história – Ella puxou seu braço. – Você vai ler uma para mim?

– É claro – Cassie caminhou para o quarto dela e escolheu um livro da pequena seleção na prateleira. Ella pulou na cama, saltando no colchão com entusiasmo, e Cassie se perguntou com que frequência liam para ela no passado, porque não parecia ser uma parte costumeira de sua rotina. Apesar de não haver – ela supunha – muita normalidade na infância de Ella até agora.

Leu a história mais curta que pôde encontrar, apenas para que Ella insistisse em uma segunda. As palavras nadavam diante dos seus olhos quando ela chegou ao fim e fechou o livro. Ao olhar, Cassie viu, para seu alívio, que a leitura havia acalmado Ella, que finalmente dormia.

Apagou o abajur e fechou a porta. Caminhando de volta pelo corredor, checou Marc, mantendo-se o mais quieta possível. Felizmente, o quarto ainda estava escuro e ela podia ouvir uma respiração suave.

Ao abrir a porta de Antoinette, a luz estava acesa. Antoinette estava sentada na cama, rabiscando anotações em um livro de capa cor-de-rosa.

– Bate-se na porta antes de entrar – ela repreendeu Cassie. – É a regra.

– Desculpe. Prometo que vou fazer isso de agora em diante. – Cassie pediu desculpas. Ela receava que Antoinette elevasse a regra quebrada para uma discussão, mas ao invés disso ela voltou-se para o seu caderno, escrevendo mais algumas palavras antes de fechá-lo.

– Está terminando a lição de casa? – Cassie perguntou, surpresa porque Antoinette não parecia uma pessoa que postergava as coisas para o último minuto. Seu quarto era imaculado. As roupas das quais se despira antes estavam dobradas no cesto de roupas sujas, e sua mochila da escola, bem arrumada, estava debaixo de uma escrivaninha branca perfeitamente ordenada.

Perguntou-se se Antoinette sentia que faltava controle em sua vida, e estava tentando exercê-lo em seu ambiente imediato. Ou talvez, já que a garota de cabelos escuros tinha deixado claro que ressentia a presença de uma au pair, estivesse tentando provar que não precisava de ninguém para cuidar dela.

– Minha lição de casa está feita. Estava escrevendo no meu diário – Antoinette lhe contou.

– Você faz isso toda noite?

– Faço quando estou com raiva. – Ela colocou a tampa de volta em sua caneta.

– Sinto muito pelo que aconteceu hoje à noite – Cassie simpatizou, sentindo como se estivesse pisando em gelo que podia se estilhaçar a qualquer momento.

– Margot me odeia e eu a odeio – Antoinette disse, sua voz ligeiramente trêmula.

– Não, não acho que isso seja verdade – Cassie protestou, mas Antoinette sacudiu a cabeça.

– É verdade. Eu a odeio. Queria que ela estivesse morta. Ela já disse coisas assim antes. Fico tão brava que poderia matá-la.

Cassie a encarou, chocada.

Não eram apenas as palavras de Antoinette, mas a forma calma em que as dissera que a gelava. Não tinha ideia de como deveria responder. Será que era normal para uma menina de doze anos ter esses pensamentos homicidas? Antoinette certamente deveria ser ajudada a administrar essa raiva por alguém melhor qualificado. Um conselheiro, um psicólogo, até mesmo um padre da paróquia.

Bem, na ausência de alguém competente, ela supôs que era a única disponível.

Cassie peneirou as próprias memórias, tentando se lembrar do que tinha dito e feito naquela idade. Como tinha reagido e se sentido quando sua própria situação havia espiralado para fora de controle. Ela já tinha desejado matar alguém?

Lembrou-se, de repente, de uma das namoradas de seu pai, Elaine, uma loira de unhas longas e vermelhas, e uma risada alta e estridente. Elas tinham se odiado à primeira vista. Durante os seis meses em que Elaine estivera em cena, Cassie havia a detestado com veemência. Não conseguia se lembrar de desejar sua morte, mas definitivamente desejara que ela fosse embora.

Provavelmente, isto era a mesma coisa. Antoinette apenas estava sendo mais sincera, só isso.

– O que Margot disse não foi justo, nem um pouco – Cassie concordou, porque não tinha sido. – Mas as pessoas dizem coisas na raiva que não querem dizer.

É claro, as pessoas também expunham a verdade quando estavam com raiva, mas ela não seguiria por esse caminho.

– Ah, mas ela quis dizer aquilo – Antoinette garantiu. Ela mexia na caneta com inquietação, retorcendo a tampa violentamente de um lado para o outro. – E papai sempre fica do lado dela agora. Ele pensa só nela e nunca em nós. Era diferente quando minha mãe estava viva.

Cassie assentiu, com empatia. Esta também era sua experiência.

– Eu sei – ela disse.

– Como você sabe? – Antoinette olhou para ela com curiosidade.

– Minha mãe morreu quando eu era nova. Meu pai também trouxe namoradas novas – er, quero dizer, uma noiva nova – para casa. Causou muitos confrontos e hostilidade. Elas não gostavam de mim, eu não gostava delas. Felizmente, eu tinha uma irmã mais velha.

Apressadamente, Cassie se corrigiu novamente.

– Eu tenho uma irmã mais velha, Jacqui. Ela enfrentava meu pai e ajudava a me proteger quando havia brigas.

Antoinette assentiu, concordando.

– Você ficou do meu lado hoje. Ninguém fez isso antes. Obrigada por fazer aquilo.

Ela encarou Cassie, seus olhos largos e azuis, e Cassie sentiu um caroço em sua garganta com a inesperada gratidão.

– É para isso que estou aqui – disse.

– Desculpe por ter te falado para andar pela urtiga – ela olhou para os vergões nas mãos de Cassie, ainda inchados e inflamados.

– Realmente não tem problema. Entendo que foi uma brincadeira. – Lágrimas inundavam seus olhos agora, empatia brotando dentro dela. Não tinha esperado que Antoinette baixasse sua guarda. Entendia exatamente quão solitária ela deveria se sentir, e vulnerável. Era terrível pensar que Antoinette sofrera abuso verbal de Margot anteriormente sem ninguém para protegê-la, e com seu pai deliberadamente ficando contra ela.

Bem, ela tinha alguém agora – Cassie estava do lado dela e a apoiaria não importa o que custasse. O dia não havia sido um completo desastre se significasse que ela conseguira se aproximar dessa criança complexa e perturbada.

– Tente dormir agora. Tenho certeza que as coisas vão estar melhores pela manhã.

– Espero que sim. Boa noite, Cassie.

Cassie fechou a porta e fungou violentamente, limpando o nariz na manga. Exaustão e emoção a dominavam. Apressou-se pelo corredor, pegou seu pijama e foi para o banho.

Debaixo do jato de água fumegante, finalmente permitiu que suas lágrimas corressem.

*

Apesar de a água quente ter acalmado suas emoções, Cassie logo percebeu que havia causado que sua pele chamejasse novamente. As feridas de urtiga começaram a coçar insuportavelmente. Esfregou-se com a toalha, tentando cessar a coceira, mas só teve sucesso em espalhá-la.

Depois de subir na cama, descobriu que estava tão desconfortável que não conseguia dormir. Seu rosto e braços latejavam e queimavam. Coçar oferecia um alívio apenas temporário e, na verdade, piorava a dor.

Depois do que pareceram horas tentando, sem sucesso, forçar-se a dormir, Cassie admitiu derrota. Precisava de algo para acalmar sua pele. O armário no banheiro abrigava apenas os essenciais básicos, mas ela tinha visto um gabinete amplo no banheiro depois do quarto de Ella. Talvez houvesse algo lá que pudesse ajudar.

Caminhou silenciosamente até o banheiro e abriu o gabinete de madeira, aliviada ao ver que estava cheio de tubos e frascos. Deveria ter algo para alergias. Leu os rótulos com dificuldade com o francês complicado, apreensiva porque aplicar o remédio errado poderia piorar as coisas ainda mais.

Loção de calamina. Ela reconheceu a cor e o cheiro, apesar do rótulo ser desconhecido. Isso acalmaria sua pele.

Despejando um pouco sobre sua mão em concha, Cassie a espalhou sobre suas queimaduras. Imediatamente sentiu o alívio gelado. Devolveu o frasco e fechou o gabinete.

Ao virar-se para sair, ouviu um barulho e congelou.

Era um berro áspero, um grito abafado.

Devia ser Marc. Ele deveria estar fora da cama, causando problemas com Ella.

Ela correu pelo corredor, mas percebeu, após alguns passos, que este lado da casa estava quieto e as crianças estavam dormindo.

Lá estava novamente – um estrondo, um baque e outro grito.

Cassie congelou. Alguém estava invadindo a casa? Sua mente acelerou conforme pensava em todos os tesouros que ela continha. Nos Estados Unidos, ela teria se trancado em seu quarto e ligado para a polícia. Mas aqui não havia sinal de celular, então o melhor que ela poderia fazer era alertar Pierre. Parecia estar vindo daquela direção, de qualquer maneira.

Ela se sentiria mais corajosa se tivesse uma arma. Olhou para o seu quarto. Talvez ela devesse pegar o atiçador de ferro da lareira. Não era muito, mas era alguma coisa.

Agarrando o atiçador com firmeza, Cassie andou pelo corredor na ponta dos pés. Dobrou a esquina e se viu diante de uma porta de madeira fechada.

Esta deveria ser a suíte máster, e o barulho estava vindo de dentro dela.

Cassie encostou o atiçador na parede, de modo que pudesse apanhá-lo rapidamente se precisasse. Em seguida, curvou-se e espiou através da fechadura.

As luzes estavam acesas no quarto. Sua visão era limitada, mas conseguia ver uma pessoa – não, duas. Pierre, seu cabelo escuro brilhando na luz. Mas o que ele estava fazendo com as mãos? Estavam envolvendo algo – ele apertava e chacoalhava violentamente. Outro grito lamentoso e asfixiante chegou a ela, e ela puxou a respiração bruscamente ao perceber que ele agarrava o pescoço de uma mulher.

O coração de Cassie bateu com força conforme ela traduzia a cena se desenrolando através da minúscula fechadura na porta, onde Pierre estava assassinando Margot.


CAPÍTULO NOVE

Cassie recuou da pesada porta de madeira, adrenalina inundando-a conforme repassava a cena mortal em sua mente. Mãos pesadas apertando o pescoço pálido, e aqueles gritos asfixiantes, em pânico. Havia outra coisa também; um respingo de cor vívida para o qual ela não conseguia dar sentido.

Precisava pedir ajuda, e rápido.

Mas quem poderia chamar? A governanta era a única pessoa que conhecia, e não tinha ideia de onde encontrá-la. Em todo caso, se perdesse tempo procurando por ela, Margot morreria. Era simples assim.

Em vez disso, a própria Cassie teria que intervir.

Se irrompesse quarto adentro, gritando no topo de sua voz, causaria uma distração que permitiria, com sorte, que a mulher loira se libertasse.

Terror a dominou com o pensamento, mas ela disse a si mesma que era necessário. Mesmo que suas pernas virassem água e sua voz não fosse mais que guincho patético, precisava tentar ser corajosa.

Ao alcançar a maçaneta da porta, ouviu outro som que a fez parar imediatamente.

Em uma voz profunda, um gemido de prazer.

Com hesitação, Cassie curvou-se e olhou através da fechadura mais uma vez.

Movendo a cabeça de um lado para o outro para extrair o máximo de sua visão limitada, Cassie percebeu que o objeto que vira era uma echarpe de cor viva. Os punhos de Margot estavam amarrados, e a echarpe atada a uma grade de bronze que deveria ser a cabeceira.

Cassie arfou ao perceber o que estava acontecendo.

Não era um assassinato, e sim um ato sexual – sombrio, violento e prolongado. Conseguia ver Margot lutando para se libertar. Não era apenas uma experimentação excêntrica; parecia bem perigoso. E ela não tinha certeza alguma de que era consensual. Margot não parecia uma parceira disposta. Talvez Pierre estivesse punindo-a por sua explosão de antes, ou usando aquilo como desculpa para fazer o que ele fazia agora.

Cassie disse a si mesma firmemente que, não importa quão horripilante o ato fosse, estava acontecendo de forma privada, e não era da conta dela. Se Pierre e Margot descobrissem que ela estivera assistindo, ela estaria em sérios apuros. E se uma das crianças a vissem espiando através da fechadura, ela não queria imaginar quais seriam as consequências.

Cassie deu passos para trás, porém, com o choque do que tinha visto, esqueceu por completo do atiçador que tinha colocado contra a parede. Derrubou-o com o pé, e ele tiniu no piso de mármore de forma barulhenta.

Os gemidos pararam de repente. Em um piscar de olhos, Pierre chamou com a voz cortante.

– O que é isso? Quem está aí?

Ele tinha escutado. Em seguida, o repentino chiado de colchas e o ruído surdo de pés no assoalho de madeira denunciaram que ele estava a caminho para verificar.

Cassie apanhou o atiçador e fugiu pelo corredor, correndo o mais rápido e silenciosamente que pôde. Rezou para que Pierre parasse para colocar um roupão ou chinelos, e que ela pudesse estar fora de vista quando ele abrisse a porta. Porque, se ele a visse, se ele sequer imaginasse que ela estivera lá, ela teria um mundo de problemas pelo caminho.

Ela virou a esquina e derrapou pelo piso de mármore, agarrando a parede desesperadamente para não cair. Seu dedo dobrou para trás de forma dolorida e ela engoliu uma exclamação. Atrás dela, ouviu a lingueta destravando quando a porta do quarto abriu balançando. E então ouviu o pisotear de pés no chão ao longo do corredor. Pierre estava perseguindo-a velozmente.

Cenários de pesadelo correram pela mente de Cassie enquanto ela ia para o seu quarto. Fechou a porta o mais silenciosamente que pôde e colocou o atiçador de volta na lareira, tentando impedir suas mãos de tremerem para que ele não chocalhasse contra a grade. Um momento depois, pulou em sua cama e puxou as cobertas até o queixo. Com o coração golpeando em sua garganta, esperou que Pierre passasse.

Porque é claro que ele passaria, não é? Não havia razão para ele bater na porta ao ver que a porta estava fechada.

Os passos pararam do lado de fora da porta de seu quarto, mas Pierre não bateu. Em vez disso, para a descrença de Cassie, ele simplesmente a abriu. Ele acendeu a luz e ficou parado na soleira da porta. Seu rosto estava corado, ele estava descalço e vestia um roupão vinho.

O primeiro e imediato pensamento de Cassie, se sobrepondo a todo o resto, foi que esta era uma completa invasão de sua privacidade. De jeito nenhum era apropriado que um patrão entrasse no quarto de uma empregada, sozinho e depois do expediente, sem bater. A presença dele em seu espaço privado fez com que ela se sentisse na defensiva, vulnerável, desencadeando antigas memórias que haviam se transformado em pesadelos. Pessoas no seu quarto. Esconder-se debaixo da cama. “Ei, garotinha...”

Pierre encarou-a e depois observou ao redor do quarto, seu olhar repousando na toalha de banho pendurada em um gancho perto da porta, e na pilha de roupas que ela deixara dobrada na poltrona perto da lareira.

Cassie se sentou, ajeitando sua blusa do pijama e instintivamente cruzando os braços na frente do corpo. Ela queria gritar para que ele saísse, berrar que ele não tinha o direito de entrar no quarto dela sem permissão.

Mas esta não era uma boa hora para discutir limites – não quando ela estivera espiando pela porta do quarto dele as suas atividades particulares.

– Você ouviu alguma coisa, Cassie? Houve um barulho agora a pouco.

O barulho alto que ele tinha ouvido era evidência inegável de que alguém tinha estado acordado por aí. Era seu trabalho responder a barulhos e perturbações à noite, então não havia como alegar que não tinha escutado. Precisava oferecer a Pierre uma explicação coerente para o que tinha acontecido.

Viu que ele a observava com curiosidade e, de repente, se lembrou de seu rosto e braços besuntados de loção fresca. E, com isso, a resposta veio. Respirou fundo, tentando falar o mais calmamente possível sem soar esbaforida.

– Fui eu. Estava no banheiro no final do corredor, pegando um pouco de loção para a minha pele. Estava coçando tanto que não conseguia dormir. Derrubei uma garrafa de vidro enquanto estava guardando a loção. Não quebrou, mas fez um barulho horrível. Desculpe te acordar.

Pierre franziu o cenho, então assentiu como se fizesse sentido para ele.

– Sua pele, está melhor agora?

– Acho que vai ficar melhor. A loção parou a coceira. Você gostaria que eu olhasse as crianças, caso tenha as perturbado também?

Pierre fez uma pausa e escutou.

– Não é necessário. Tudo parece quieto. Melhor deixá-los em paz, se estão dormindo.

Ela pensou que ele sairia, mas ele não saiu. Em vez disso, caminhou até a pilha de roupas na mesa, abaixou e recobrou um item dobrado do chão.

Os olhos de Cassie se arregalaram em alarme quando viu que era seu sutiã preto. Ela havia o deixado no topo da pilha, mas devia ter sido derrubado – provavelmente quando ela passara apressada para devolver o atiçador.

Pierre o chacoalhou antes de devolvê-lo cuidadosamente ao topo da pilha.

– Não se deve dobrar sutiãs – ele a repreendeu. – Eles devem ser guardados abertos, empilhados juntos, de preferência em uma gaveta. É melhor para eles.

Ele olhou para as roupas dela e assentiu com satisfação enquanto Cassie se encolhia contra a parede, puxando as cobertas mais para cima em seu corpo, devagar. Ela tinha certeza que suas calcinhas tinham estado debaixo do sutiã, o que significava que ele tinha as visto também. Estava chocada demais com o comportamento dele para pensar em uma resposta, mas Pierre não pareceu esperar nenhuma.

– Boa noite.

Ele saiu, apagou a luz e foi embora, fechando a porta atrás de si.

Cassie deixou escapar uma longa e profunda respiração. Descruzou os braços, notando que suas mãos ainda tremiam.

Ele não tinha direito de entrar aqui sem bater. Não importa quão inocente seu motivo fosse, era uma completa violação – abrir sua porta, acender a luz, caminhar pelo lugar examinando sua roupa íntima e aconselhá-la como guardá-la. Ela gostaria de ter organizado seus pensamentos a tempo de dizer a ele o quanto seu comportamento tinha passado dos limites.

Estava começando a perceber que Pierre não se importava com limites. As ações dele revelavam um lado sombrio – um lado que almejava e tomava, independente das consequências.

Não havia chave na porta do quarto dela e, mesmo que Marnie fosse capaz de encontrar uma chave se ela pedisse, não poderia se trancar sem convidar suspeitas e críticas de seus patrões.

Precisaria encontrar outra maneira de montar um alarme. Talvez pudesse passar um fio da maçaneta até a cadeira, para que ela caísse se a porta se abrisse. Poderia dizer que tinha feito isso para que acordasse imediatamente se as crianças entrassem.

Precisava urgentemente de um plano de contingência – porque o que faria se Pierre decidisse entrar em seu quarto enquanto ela dormia?


CAPÍTULO DEZ

Cassie acordou antes de o despertador tocar. Estava suando, enrolada em uma bola e amontoada debaixo da coberta. Imaginava ter acordado de um pesadelo. Levantando o olhar, viu que a porta do quarto estava fechada. Lembrava-se dela estar toda aberta, mas deveria ser parte do sonho. Pierre definitivamente tinha fechado a porta ao sair.

Pensar em Pierre rapidamente trouxe de volta o cenário violento da noite anterior. O modo como Margot tinha tentado gritar. E as batidas – o que tinha sido aquilo? Será que ela estivera lutando para tentar se libertar das amarras?

Preocupada com a agressividade de Margot e o comportamento teimoso das crianças, ela não tinha pensado muito em Pierre. Pelo comportamento dele, deduzira que ele fosse temperamental, controlador, um tanto quanto perfeccionista. Nunca havia sonhado que ele tivesse um lado sombrio que o conduzisse a agir sobre os seus perigosos desejos sexuais.

Subitamente, Cassie perguntou-se se alguma das crianças já tinham o espionado da mesma maneira que ela fizera. O pensamento era perturbador demais para acompanhar, então o afastou.

Eram cinco e meia da manhã. Cedo demais para acordar as crianças, mas ao menos ela poderia tomar algum tempo para parecer apresentável.

Cassie tomou banho, lavou os cabelos e usou o sérum que comprara para secar o cabelo até que ficasse macio e brilhante. Passou uma maquiagem leve – um pouco de base para iluminar a palidez da pele, e um batom cor-de-rosa. Vestiu jeans, botas e uma blusa turquesa. Finalmente atingiu o aspecto arrumado e profissional que tinha esperado em seu primeiro dia.

Lembrando-se que limites eram importantes para Antoinette – e sentindo-se renovada empatia por ela nesse quesito – bateu à porta dela e aguardou uma resposta. Teve que bater três vezes antes de finalmente receber um rabugento “Sim?” como resposta.

Cassie havia esperado que Antoinette fosse mais amigável em relação a ela depois das palavras que tinham trocado na noite anterior, mas Antoinette parecia ter reerguido suas barreiras ainda mais altas. Amuada e sem cooperar, ela mal deu atenção ao “Bom dia” alegre de Cassie.

– Saia para eu me vestir – ela retrucou. – Vou para o café da manhã sozinha.

Cassie presumiu que Marc estivesse brincando com seus brinquedos novamente, cercado pela mesma bagunça que ela vira no dia anterior. Mas, quando entrou no quarto dele, ficou aflita em vê-lo ainda na cama, com o rosto virado para a parede.

– Marc, você está doente? – ela perguntou. Tentou tocar a testa dele para verificar se tinha febre, mas ele bateu na mão dela com impaciência para afastá-la.

– Eu não gosto de hoje – ele resmungou.

– Mas está um dia gostoso – Cassie implorou, abrindo as cortinas. O sol ainda não tinha nascido, mas o céu estava sem nuvens e o horizonte já estava brilhando em dourado.

– Odeio este dia. Não vou levantar agora. Quero suco de laranja. Traga meu suco.

Ela não fazia ideia se ele realmente estava doente ou apenas mal-humorado, mas, de qualquer forma, trazer-lhe suco de laranja parecia uma concessão razoável.

Cassie desceu as escadas, aliviada em ver Marnie já arrumando a mesa do café da manhã, retirando uma pilha de pratos e jogos americanos de um aparador de madeira.

– Bom dia. Você acordou cedo hoje – ela saudou Cassie.

– Marc quer suco de laranja. Tudo bem levar um copo para ele? Ele acordou em um humor terrível. Antoinette também. Não me atrevi a entrar no quarto de Ella ainda.

Marnie pensou por um minuto.

– Você sabe que hoje é primeiro de Novembro?

Cassie olhou para ela, sem entender.

– É Dia de Todos os Santos na França, mas também é o dia em que Diane faleceu. Essa época, ano passado, foi quando aconteceu. Provavelmente é por isso que estão tristes, lembrando-se da perda de sua mãe. Sendo feriado, a data é fácil de recordar – ela deu de ombros com simpatia. – Espere um momento enquanto trago o suco.

Cassie aguardou inquieta, desejando saber mais sobre o que tinha acontecido. Marnie pensaria que Cassie era rude ou direta demais se ela perguntasse? Preocupava-se que a etiqueta francesa talvez fosse diferente. Talvez não fosse aceitável fazer um questionamento tão direto. E ela definitivamente não queria afastar Marnie.

A governanta voltou depressa para a sala de jantar, carregando um jarro cheio de suco de laranja. Colocou o jarro sobre o jogo americano e entregou um copo a Cassie.

– Com sorte, isto fará Marc se sentir melhor. Ele é uma criança muito temperamental – ela ofereceu, e Cassie assentiu concordando. Encheu três-quartos do copo. Era feito de cristal, pesado e ornamentado, as facetas agudas contra os seus dedos. Teria preferido levar um simples copo de plástico para Marc no andar de cima, mas esta não parecia ser uma opção nesta casa.

– Vou me esforçar para animar Antoinette e ele hoje – disse. – Sabe se eles têm alguma atividade planejada? Eu errei feio ontem porque não tinha entendido que havia um cronograma.

Marnie riu enquanto distribuía os demais copos. – Sim, as notícias correm. Todos sabem o que aconteceu, ou podemos adivinhar. Pierre está me copiando em todas as atividades diárias e eu devo me assegurar que você esteja informada. Ele costumava deixar um bilhete na porta do quarto da última au pair. Mas ela não ficou aqui por muito tempo – Marnie pausou, recompondo-se como se tivesse estado prestes a dizer algo, mas depois pensara melhor.

Cassie estava a ponto de perguntar o que tinha acontecido com ela, mas Marnie continuou, como se tivesse voltado aos trilhos.

– De todo modo, já que hoje é feriado, não há nenhuma atividade. – Ela virou-se para a mesa, alisando a toalha e distribuindo os talheres com a prática da experiência.

– Ah – Cassie disse, abatida com o pensamento das longas horas vazias pela frente.

– Se quiser sair com eles, tem um carnaval no vilarejo – Marnie continuou. – Fica a pouco mais de três quilômetros pela estrada; vire à direita, depois à primeira direita de novo, e chegará diretamente na praça do vilarejo. Acontece no mesmo feriado todo ano e é bem divertido. De qualquer forma, pode ser que anime as crianças. Por que não pede ao Pierre se podem ir?

– É uma boa ideia. Obrigada – Cassie disse, agradecida. A oportunidade de perguntar sobre a morte de Diane tinha passado e ela não tinha descoberto nada. Teria que fazê-lo outra hora.

Marnie colocou os jarros do café e do leite na mesa e apanhou sua bandeja.

– Servimos bacon no café da manhã nos feriados. Por que não diz isso a Marc? Ele adora bacon.

Ela piscou para Cassie antes de sair apressada pela porta lateral.

Resolvendo usar o bacon como suborno, Cassie apanhou o copo. Estava no caminho para o andar de cima quando encontrou Pierre descendo. Hoje, ele estava vestido de forma casual – jeans, calçados esportivos e uma camisa polo preta com um pequeno símbolo de marca.

– Bom dia – ela balbuciou. À frieza da luz do dia, suas memórias da noite anterior pareciam ainda mais vívidas. E o que era ainda pior, ao invés de oferecer a saudação rápida que ela estava esperando, Pierre parou nas escadas, forçando-a a fazer o mesmo.

– Bom dia, Cassie.

– Estou levando suco para Marc. Ele disse que estava com sede – ela explicou, mas percebeu com o estômago torcido que Pierre nem sequer tinha notado o suco.

Em vez disso, ele estava olhando para ela.

Cassie mordeu os lábios enquanto o olhar dele viajava por seus cabelos brilhosos e seu rosto, absorvendo a blusa e o jeans colado – o mais na moda que ela tinha. Era como se ele a visse pela primeira vez. Sua aparência desgrenhada e exausta dos últimos dois dias tinha fornecido uma camuflagem que agora fora retirada.

– Você está muito bonita – ele a elogiou, e ela gaguejou um gentil ‘obrigada’, enquanto por dentro se encolhia.

Ele deu um passo em direção a ela. – Seu cabelo, essa é sua cor natural? – ele levantou a mão e ela percebeu que ele realmente iria tocá-la.

– Sim – ela sussurrou, sua boca subitamente seca. Ela estava encurralada no lugar, incapaz de mover-se para trás porque o corrimão estava bem atrás dela. Então, para seu alívio, o tilintar de saltos soou no patamar de cima e Pierre abaixou a mão.

– O que você fará com as crianças hoje? – ele perguntou em uma voz mais formal.

– Marnie disse que tem um carnaval no vilarejo. Será que eu poderia levá-los?

– É claro. É um pouco distante, então dirija. Vou te mostrar onde ficam as chaves do Peugeot, e você vai precisar de dinheiro para gastar – ele puxou uma carteira do bolso traseiro e entregou a ela uma nota de cinquenta euros.

Cassie colocou o dinheiro no bolso e deu um passo para o lado para permitir que Margot passasse. Elegante como sempre em um macacão nude e botas de couro marrons, ela tinha um lenço xadrez envolto em seu pescoço. Acenou com a cabeça para Cassie, que notou que ela parecia mais pálida que o habitual.

– Bom dia – Cassie a saudou.

Margot fez algum esforço para falar, mas, para o choque de Cassie, ela não conseguiu dizer uma palavra. Tudo o que saiu foi um sussurro rouco e áspero.

Cassie forçou-se a pensar dois passos à frente, como se jogasse uma partida de xadrez. Sabia o que tinha acontecido com Margot. Porém, se não soubesse, seria normal e educado questionar.

– Você está bem? – ela perguntou, certificando-se de soar tanto surpresa quanto preocupada.

– Um pouco de laringite – Pierre explicou suavemente.

Cassie assentiu. – Isso é tão desconfortável, Margot, sua garganta deve estar muito dolorida. Talvez Marnie possa te trazer um pouco de limão e mel? Marc também não parece ele mesmo hoje. Não tenho certeza se ele vai pegar alguma coisa. Se ele for, não tenho certeza se vou levá-lo ao carnaval – ela adicionou apressadamente.

Sem palavras, Margot continuou descendo as escadas e Cassie seguiu seu caminho com o suco. Ao caminhar até o quarto de Marc, percebeu o quanto a conduta subjugada de Margot era perturbadora. Até agora, a loira tinha sido mandona, arrogante e dominadora. Hoje, ela parecia física e mentalmente arrasada.

Sua garganta deve ter sido cruelmente machucada para que ela tivesse marcas visíveis, bem como uma completa perda de voz. Cassie perguntou-se se ela sabia, ao conhecer Pierre, que isto seria parte do arranjo. Ou ela apenas descobrira na primeira vez que as mãos dele haviam se fechado ao redor de seu pescoço? Se fosse assim, ela deveria ter escolhido viver com isto.

Talvez fosse amor verdadeiro, apesar de Cassie pensar, com cinismo, que era mais provável que fosse o dinheiro, o prestígio, a enorme mansão e o anel de diamante maciço que permitiam que ela suportasse isto.

Zane não tinha possuído nem sequer um metro quadrado de patrimônio; um Ford caindo aos pedaços havia sido sua única posse. Cassie tinha o amado por seu charme e carisma, percebendo tarde demais que eram as mesmas qualidades voláteis que seu pai exibira, estando igualmente propensas à reversão instantânea.

Na primeira vez que Zane havia a machucado, ela soubera que precisava acabar com aquilo.

Enquanto abria a porta de Marc, perguntou-se, em um momento de introspecção assustadora, se talvez tivesse dado uma segunda chance a Zane se ele fosse tão rico e poderoso quanto Pierre.

*

Às dez e meia, Cassie cuidadosamente deu ré no Peugeot SUV para sair da garagem. Marc e Antoinette ainda estavam imersos em silêncio melancólico. Ella era a única alegria do grupo, mas Cassie lembrou que ela não sabia que a mãe tinha morrido, apenas que tinha “partido”.

Imaginou que Ella não percebesse a significância do dia e deveria ser nova demais para fazer a conexão. Isto era algo que ela realmente precisava perguntar a Marnie, assim que sentisse mais confiança em sua amizade.

O humor de Cassie melhorou conforme ela dirigia pela estrada pitoresca, banhada em luz do sol matinal, seguindo uma fila de outros carros que iam pela mesma direção. A estrada estreita estava cheia de veículos estacionados desordenadamente, mal deixando espaço para o próximo se espremer na passagem. Cassie estacionou como pôde, enterrando o capô do carro em uma cerca. Assim que abriu a porta, ouviu música, e o som alegre da banda ao vivo pareceu elevar os ânimos de todos.

– Isso é divertido – Antoinette disse, agarrando a mão de Marc e saltitando pela estrada. Cassie seguiu a um passo mais sossegado com Ella.

– Temos que ficar juntos – ela gritou conforme as duas crianças mais velhas irrompiam para a ampla praça verde, ladeada por bandeirinhas e barracas. E, a seguir, pensando com mais praticidade, chamou – Vamos todos comprar panquecas.

Os crepes de chocolate foram um sucesso. A partir da barraca, as crianças visitaram o quiosque de pintura de rosto antes de seguir adiante para o teatro ao ar livre para assistir a um show de marionetes. De pé na primeira fileira, os três gargalharam com as palhaçadas das marionetes. Cassie sorriu, encantada e aliviada porque o dia estava indo tão bem. Sentia como se um peso tivesse sido levantado de seus ombros.

Apesar de haver ao menos trezentas ou quatrocentas pessoas na multidão da praça, curtindo o clima fresco e ensolarado, Cassie notou que as três crianças Dubois não pareciam ter muitos amigos. Eles não buscavam a companhia de outras crianças ou mesmo interagindo com elas.

Em contraste, Cassie cumprimentou todos por quem passou, perguntando-se quem eram os locais e vizinhos, e se ela veria o idoso que havia conhecido no dia anterior no viveiro, que havia lhe dito que sabia os segredos da família Dubois.

Quando viu uma jovem mulher de cabelos ruivos guiando meninos gêmeos, sorriu largamente, reconhecendo uma colega au pair. Como esperado, a mulher veio dizer olá.

– Sou Sarah, de Londres – ela disse. – Esses jovenzinhos são da família Villiers, que possui um vinhedo alguns quilômetros ao norte daqui.

– Ótimo te conhecer. Sou Cassie, só cheguei há dois dias, então ainda estou me ajustando.

– Estou aqui há quase um ano. Na verdade, vou tirar minhas férias anuais semana que vem. Está gostando até agora? Acho que é muito cedo para dizer. Mas tenho certeza que vai gostar. – Ela sorriu.

– Eu acho que vou aguentar – Cassie disse com cuidado. – Mas será um trabalho desafiador.

Ela olhou de relance para Antoinette, que ainda estava encantada com o show de marionetes, segurando as mãos de Marc e Ella firmemente nas suas.

– Para qual família você trabalha? – Sarah perguntou, curiosa, seguindo seu olhar.

– A família Dubois. Eles moram em uma mansão a três quilômetros daqui. Não sei ao certo para qual direção – Cassie confessou, desorientada por ter se perdido em meio às barracas.

Sarah franziu o cenho. – Você trabalha para eles?

– Por quê? Você os conhece?

Sarah não respondeu de imediato. Em vez disso, virou-se para os gêmeos. – Pierre, Nicolas, querem brincar de pesca? É naquela barraca. Entrem na fila, alcanço vocês em um segundo.

Os dois garotos correram para lá e Sarah voltou-se para Cassie outra vez.

– Você deve ter muito cuidado – ela avisou.

Cassie sentiu-se enjoada de repente, desejando não ter comido o forte crepe de chocolate.

– Você é a segunda pessoa que me diz isso. Sei que a família tem enormes problemas. Mas não sei por que ficam me dizendo para tomar cuidado. O que exatamente está sendo advertido? Você sabe?

Sarah olhou ao redor antes de inclinar-se para mais perto de Cassie, que se esticou para ouvir acima da balbuciação de vozes e música.

– Pierre, o dono do castelo, tem uma péssima reputação.

– Qual?

– Infidelidade. É conhecimento geral que ele nunca foi fiel à esposa, e também não é à sua nova noiva. Ele é um dono de terras rico e poderoso, e muitas mulheres se sentem atraídas por ele. E o que ele quer, ele toma.

Cassie engoliu, pensando na porta de seu quarto sendo aberta, a luz sendo acesa. A presença de Pierre em seu espaço privado; a forma como a atenção dele tinha subitamente focado nela esta manhã, ao ver que ela estava bonita.

– Entendi – ela disse em uma voz tímida.

– Há rumores que ele tenha... Gostos peculiares na cama. Coisas excêntricas. Dizem que algumas mulheres com as quais ele teve casos terminaram os relacionamentos por isto. Mas quem sabe a história real ou se as versões delas são mesmo verdade? Afinal, se um homem rico te rejeita, você vai dizer às pessoas que a ideia foi sua, e não dele, não é?

Cassie assentiu. Ela poderia ter desacreditado Sarah se não tivesse visto a evidência na noite passada, bem diante de seus olhos. Sabia que os rumores não eram simplesmente boatos ou mentiras prejudiciais, mas não poderia arriscar compartilhar este conhecimento.

– Obrigada pelas informações – ela disse. – Vou tomar cuidado. Onde você ouviu isto, e tem mais alguma coisa sobre a família que eu deveria saber?

Sarah pressionou os lábios, considerando as palavras de Cassie.

– Minha patroa falou sobre isto em um almoço com as amigas, e eu acabei ouvindo a conversa por alguns minutos – ela piscou para Cassie, como se confessando que tinha espionado. – Acho que elas mencionaram outros problemas com a família; a discussão começou a ficar bem acalorada – continuou. – Mas eu ouvi apenas alguns trechos, e é claro que não podia fazer perguntas depois, já que não me contaram diretamente.

– Não, isto definitivamente teria te causado problemas – Cassie disse.

Sarah olhou adiante. – Meus garotos estão na frente da fila. Preciso correr; há prêmios para ganhar. Boa sorte com seu emprego – ela apertou a mão de Cassie antes de correr para o quiosque da pesca.

O show de marionetes havia acabado e as crianças estavam se dispersando.

– O que vocês querem fazer agora? – Cassie perguntou a Antoinette, que deu de ombros.

– Olhar o resto das barracas, eu acho – ela disse.

Andando pelo caminho, Cassie começou a se preocupar mais e mais sobre o que tinha ouvido, e a forma como Sarah tinha descrito Pierre.

“O que ele quer, ele toma.”

Ela já havia sentido esta arrogância nele, um desprezo por limites pessoais, ou mesmo uma completa falta de consciência quanto a eles. O que ela faria se ele desse em cima dela? Estava certa de que ele negaria jamais tê-lo feito, e quem acreditaria na versão dela ao invés da dele?

As crianças pareceram perceber sua distração e o humor deles mudou. No tempo que levou para caminhar do show de marionetes até os quiosques próximos, de repente ela estava lidando com três monstros rabugentos e indispostos a cooperar, a um mundo de distância do trio feliz que tinha chegado à barraca de panquecas.

– Estou entediado – Marc anunciou, escorando-se na barraca de pesca, balançando na corda de sustentação. Cassie puxou-o conforme a estrutura balançou para os lados, os prêmios fazendo barulho nas prateleiras.

– Marc, não faça isso! Você precisa respeitar a propriedade dos outros – Cassie o repreendeu, subitamente consciente de que estava soando bastante como Margot.

– Preciso de algo divertido para fazer – Marc reclamou, chutando as pedras no caminho de cascalhos e mandando-as pelo ar para o rosto de uma garotinha que estava passando.

Examinando a área por inspiração, Cassie notou uma partida de futebol em andamento no centro de todo o gramado.

– Quem gostaria de jogar? – ela perguntou.

Antoinette deu de ombros, mas Marc saiu correndo na direção da partida.

Conforme seguiam, Ella começou a reclamar que seu pé doía, puxando a mão de Cassie e demandando ser carregada. E, do outro lado, Antoinette começou a incomodá-la com suas perguntas em voz alta.

– Conte-me, Cassie, seu pai tinha muitas namoradas?

O que exatamente ela deveria dizer com relação a isto? Após sua conversa recente com Sarah, podia adivinhar porque Antoinette pudesse estar levantando este tópico, mas pelo seu tom de voz era claro que Antoinette não estava buscando reafirmação, e sim atormentar Cassie.

– Ele teve uma ou duas – respondeu curtamente.

– Quis dizer, enquanto ele ainda estava casado com a sua mãe – Antoinette elaborou em tom penetrante e adocicado. – Ele teve alguma namorada nessa época?

– Não que eu saiba – Cassie respondeu, forçando um sorriso.

Por dentro, sentiu-se encolhendo de medo. Como era possível que tivesse se tornado o alvo do veneno de Antoinette outra vez? Esperava que, depois da conversa delas na noite anterior, Antoinette teria abandonado sua vendeta, mas claramente havia sido uma trégua temporária.

– Mas e se você não soubesse, Cassie? Você acha que poderia não saber? – Antoinette sorriu com doçura para ela.

Apertando os lábios, Cassie ignorou a pergunta e focou na partida de futebol. Marc havia invadido o campo, ignorando o apito do juiz e os esforços do organizador para alocá-lo em um time. Ele acelerou pelo gramado, empurrando outras crianças para fora do caminho, gritando em vitória toda vez que chutava a bola.

– Meus pés estão doendo – Ella reclamou em voz alta.

Rangendo os dentes, Cassie pegou Ella no colo. Era impossível carregá-la, se contorcendo inquieta enquanto tentava observar a folia de seu novo e elevado ponto de vista. Em apenas um minuto, Cassie a colocou no chão novamente.

A partida de futebol estava se deteriorando ao caos. Uma mãe irada correu para o campo, levantando sua filha que havia sido derrubada no corpo a corpo. Ela começou a gritar, recriminando os organizadores.

– Marc! Venha aqui! – Cassie gritou, mas, de forma previsível, o garoto de cabelos escuros a ignorou.

– Você acha que seu pai sentiu falta da sua mãe, Cassie? – Antoinette cutucou seu braço, demandando atenção de forma ruidosa. – Ou você acha que ele estava contente por poder curtir as namoradas sem que ela estivesse lá?

Cassie ouviu uma exclamação chocada de uma mulher ao seu lado, que rapidamente guiou uma criança para longe. Cassie encarou Antoinette, sentindo seu medo cristalizando em fúria, por que qual era o maldito sentido de tudo isto? Abriu a boca, pronta para dar uma resposta afiada, mas naquele momento alguém a espalmou no ombro.

Ela virou-se para encarar um juiz irado agarrando Marc pelo braço.

– Madame, você é responsável por esta criança?

– Sim, sou. – Consciente dos olhares curiosos dos espectadores, Cassie sentiu as bochechas enrubescendo.

– Por favor, controle-o. Ele não tem permissão de voltar ao campo. Ele perturbou o jogo e causou machucados.

O juiz soltou o braço de Marc e o garoto de cabelos escuros imediatamente tentou disparar de volta para o campo. Esperando por isto, Cassie estava preparada. Conseguiu agarrar o capuz do casaco dele e puxá-lo de volta com força.

– Este não é o jeito de se comportar – ela o repreendeu, virando-se do rosto rebelde de Marc para a inocência presunçosa de Antoinette.

– Solta! – Marc relutou em seu aperto.

Antoinette puxou seu braço, perguntando em uma voz penetrante – O que você quer dizer, Cassie? Ter namoradas? Os homens não podem ter namoradas? Por que você acha que é errado? Pode explicar?

Conforme Cassie virou-se para ela, tentando inventar uma resposta calculada para a pergunta, mesmo que as palavras a fizessem querer atacar, ela foi desequilibrada por um puxão de Ella. A jovem menina agarrou o cinto de Cassie com as duas mãos, apoiando todo o seu peso nele de forma que o couro afundasse dolorosamente em sua lombar.

– Preciso de colo. Carregue-me agora – ela choramingou.

Antoinette começou a rir e apontar para Cassie. – Você vai cair! Ou suas calças vão cair. Ai, você está muito engraçada!

As exclamações de Marc escalaram para gritos furiosos e ele esmurrava o braço de Cassie com seus punhos.

– Solta! Quero jogar futebol com os outros meninos. Não me importo com as regras. Eu te odeio.

Quando ele fez uma pausa para respirar, as perguntas farpadas de Antoinette vieram de novo.

– Você não me respondeu, Cassie. Não sabe que é rude ignorar as perguntas das pessoas? Por que os homens não podem ter namoradas, e o seu pai se divertia com elas?

A provocação implacável finalmente levou Cassie além de seu limite. Seu cinto estava prestes a estourar, seu braço estava machucado e dolorido, e as palavras provocativas de Antoinette estavam fazendo-a querer estapeá-la.

Em vez disso, ela gritou tão alto que até Marc silenciou.

– Parem agora! Todos vocês! – ela gritou. – Não podem se comportar desta forma em um lugar público! Existem regras para um comportamento decente – Cassie estava ciente que mais cabeças estavam virando em sua direção, mas estava tão nervosa que não era capaz de se conter. – Vocês conhecem as regras, e estão deliberadamente as quebrando. Não é justo comigo, com as outras crianças, e todos aqui que estão tentando aproveitar o dia. Sei que faz um ano hoje que sua mãe morreu, mas isto não é desculpa para fazerem isto. É completamente inaceitável.

Cassie respirou com força, sua garganta áspera dos gritos. Por fim, Marc pareceu castigado – mas Antoinette estava sorrindo ainda mais presunçosamente do que antes conforme analisava a multidão. Ao absorver os olhares chocados e os comentários dos espectadores, Cassie percebeu tarde demais como o que ela tinha acabado de dizer machucava.

E, então, ouviu um soluço atrás dela.

Ella estava a encarando com olhos arregalados.

– Minha mãe morreu? – ela perguntou, a voz trêmula. – Significa que ela nunca vai voltar?

Congelada, Cassie olhou para ela, incapaz de encontrar palavra alguma.

Ella puxou uma respiração gigante e soltou um grito estridente de puro luto.

Enquanto recolhia as crianças histéricas em seus braços, Cassie percebeu o erro terrível que tinha cometido. Em sua raiva, tinha oferecido a Ella uma verdade diferente daquela que seu pai havia lhe contado. E tinha o feito sem consultar Pierre, ou descobrir a real versão dos eventos, ou sequer perguntar por que Ella nunca tinha sido informada.

Pierre ficaria absolutamente furioso.

Gelada com desespero, Cassie desejou poder voltar o relógio e apagar suas palavras. Havia ultrapassado seus limites completamente com sua explosão cruel e furiosa. Quando Pierre soubesse disto – o que aconteceria logo que ela chegasse a casa – ela não tinha dúvida de que seria demitida instantaneamente.


CAPÍTULO ONZE

Dirigindo de volta ao castelo, Cassie precisou se forçar para focar na estrada. Seus pensamentos fragmentados estavam girando em centenas de direções diferentes. Não conseguia parar de repassar a cena em sua mente. Como tinha sido fácil gritar aquelas palavras perversas para as crianças enquanto a raiva borbulhava dentro dela. E quão chocados os espectadores tinham ficado, apontando para ela como se ela fosse a malvada.

Esta desaprovação não seria nada comparada à que podia esperar quando chegassem a casa.

Ella estava amontoada no banco de trás, chupando o dedão em silêncio. Cassie espiou pelo retrovisor, observando-a com preocupação.

– Cassie, pare, rápido, nós vamos bater – Antoinette gritou, despertada de sua frieza habitual.

Cassie retorceu sua atenção de volta à estrada, pisando no freio para evitar chumbar no Renault a sua frente, que havia parado para deixar um rebanho de gado atravessar.

Marc riu com empolgação com o guinchar dos freios.

– Eeeee... Bateu! – ele gritou. – Bateu, bateu, bateu.

Ele entreteve-se pelo resto do caminho para casa comentando aos berros a direção dela.

– Vrum, vrum. Mais rápido. Eeeee... Pare! Bateu!

A cabeça de Cassie estava latejando quando chegaram à mansão, e ela se sentia gelada de desespero. Ela era um fracasso. Faltava-lhe totalmente a paciência e a sabedoria necessárias para controlar estas crianças. Este trabalho estava além de suas capacidades de execução.

A única coisa que lhe dava uma medida de conforto era que tinha em sua carteira o troco dos cinquenta euros que Pierre havia lhe dado. Não gastaram muito na feira; a maior parte do dinheiro ainda estava lá. Era todo o dinheiro que tinha no mundo agora e, se fosse demitida na hora, precisaria dele. Seria suficiente, ao menos, para pegar um táxi até o aeroporto.

Assim que estacionou o carro, Antoinette e Marc saltaram para fora, correndo.

Sozinha com Ella, Cassie percebeu que esta era sua chance de falar com a jovem menina e, com sorte, controlar o estrago antes de enfrentar a ira de Pierre. Porém, enquanto se virava e reunia seus pensamentos, Ella desceu e bateu a porta.

Cassie praguejou violentamente para si mesma. Apressou-se atrás das crianças, estresse coagulando por dentro.

Antoinette e Marc haviam desviado para o pomar e estavam brincando de pega-pega em meio às árvores frutíferas, atirando os poucos pêssegos maduros remanescentes um no outro. Cassie foi buscá-los, respirando o aroma fresco de folhas secas, sublinhado de leve por frutas apodrecendo.

– Para dentro – ela ordenou, cansada, e eles abandonaram a brincadeira e correram rapidamente para a porta da frente.

Seu estômago cerrou-se quando Pierre a abriu. Uma onda de náusea fez com que ela quisesse vomitar, e ela engoliu com dificuldade.

– Por favor, crianças, tirem os sapatos na porta. Vocês estavam brincando no pomar; não quero frutas pisadas aqui dentro – ele advertiu. Conforme Antoinette cuidadosamente desafivelava suas botas, ele perguntou – Então, vocês se divertiram?

– Sim, Papai – Antoinette disse em um dos mais doces tons de voz. – Comemos crepes de chocolate, e está vendo nossos rostos? Sou uma princesa e Marc é um gato. Ella era uma sereia até ela estragar a pintura dela.

Incapaz de acreditar no que estava ouvindo, Cassie levantou a cabeça.

– Joguei futebol e ganhei! – Marc berrou.

Ele atirou seus sapatos para o hall e correu para o andar de cima, seus pés descalços fazendo barulho na madeira polida.

Percebendo que Pierre olhava para ela, e que sua boca estava aberta em choque, Cassie apressadamente forçou um sorriso. Por que eles não disseram nada? Talvez estivessem esperando até que pudessem falar com o pai em particular. Porém, ambos tinham soado genuinamente felizes, e não como se estivessem escondendo algo. Certamente não tinham já esquecido a forma como ela havia gritado com eles.

Ella arrastou-se para dentro, a última da comitiva, e removeu seus tênis cor-de-rosa.

Cassie aguardou ansiosamente. Antoinette e Marc podiam ter curtido o dia, mas ele tinha terminado em desastre para Ella. A menina deveria estar segurando suas palavras chorosas desde que Cassie havia soltado a bomba. Agora, certamente, elas explodiriam.

– Você aproveitou o carnaval, Ella? – Pierre perguntou, distraído, endireitando o quadro da pintura a óleo de cores vivas, pendurada acima da mesa do hall. Cassie perguntou-se como ele notava que a obra de arte estava um grau fora do centro, mas não via que as lágrimas tinham manchado os cavalos marinhos azuis pintados nas bochechas de Ella, tornando-os um borrão irreconhecível.

Oferecendo um minúsculo aceno de cabeça, Ella arrastou-se para o andar de cima, calada.

Pierre não olhou sequer de relance para ela.

– Muito cansada, com certeza – ele disse, dando um passo para trás, inspecionando a pintura.

– Ela teve uma manhã agitada – Cassie concordou, sentindo como se a conversa tivesse entrado no surreal. O nó em seu estômago havia afrouxado bem de leve. Apesar de estar mais confusa do que nunca, não mais sentia como se fosse vomitar na hora.

Pierre voltou-se para Cassie.

– Tem uma bandeja de sanduiches na sala de jantar para o almoço, e o jantar será servido mais cedo hoje à noite. Será uma refeição simples, apenas pão, queijo e sopa, já que a maior parte dos empregados tem a tarde de folga.

– Vou garantir que as crianças estejam prontas a tempo – Cassie disse. – E que Ella tire um cochilo esta tarde.

Ela mesma precisava de um cochilo. A exaustão até os ossos que havia repentinamente baixado deveria ter sido causada pelo estresse emocional do dia.

– Bom – Pierre disse distraidamente, sua atenção já em outro lugar. Ele saiu da casa, chacoalhando suas chaves do carro na mão.

Cassie caminhou lentamente para o andar de cima, forçando sua mente lenta a pensar sobre o que deveria dizer às crianças. Antoinette e Marc poderiam ter genuinamente esquecido de sua explosão e, se fosse o caso, seria melhor não mencioná-la novamente. Mas ela não poderia contar com isso. Apesar de Marc ter a atenção de uma borboleta e não parecer guardar rancor, Antoinette era o oposto. Mais provavelmente ela havia guardado o incidente em sua memória e estava esperando um momento oportuno para revelá-lo de forma triunfante.

Quando Cassie entrou em seu quarto e viu o frasco plástico de comprimidos em sua mesa de cabeceira, percebeu de sobressalto que seu cansaço, náusea e névoa mental não eram apenas devido ao estresse. Havia se esquecido de tomar seus remédios na noite anterior, e agora começava a sofrer dos efeitos que associava com pular uma dose.

Abriu o frasco e colocou um comprimido na boca antes de perceber que não havia água no copo em sua mesa de cabeceira. Pegando o copo, foi até o banheiro, mas ao chegar ao corredor ouviu alguém chamando seu nome.

– Cassie?

Virou-se e viu Marnie se aproximando dela, segurando um pedaço de papel.

Ao invés de seu habitual uniforme, a governanta vestia calças pretas e um casaco carmesim. Ela usava maquiagem e seu cabelo estava solto, fazendo-a parecer muito mais jovem e bonita do que quando estava trabalhando.

Será que ela trazia instruções de Pierre, Cassie perguntou-se, enuviada, antes de lembrar que tinha acabado de falar com ele, e ele não mencionara nada, exceto que o jantar seria mais cedo.

– Esperava te encontrar antes de sair. Estou indo para Paris esta noite – Marnie disse.

Cassie assentiu. O comprimido estava começando a dissolver em sua boca, com gosto ruim, causando que sua náusea ressurgisse.

Ela levantou uma mão, virou-se e correu para o banheiro. Enchendo o copo com água, engoliu o comprimido, bebendo mais para que o gosto fosse embora.

– Desculpe – disse a Marnie, que havia a seguido e esperava do lado de fora da porta do banheiro com uma expressão preocupada. – Eu tinha um comprimido na boca.

– Ah – Marnie assentiu, aliviada. – Estava preocupada que você tivesse comido algo podre no carnaval. Você está muito pálida.

– Estou com dor de cabeça – Cassie disse, sem querer explicar que tomava remédios para ansiedade. De todo modo, não era uma mentira; sua cabeça estava latejando.

– Espero que melhore logo. Desculpe te perturbar agora, mas há algo que quero te dizer em particular – ela disse as últimas palavras em voz baixa.

– O quê? – Cassie sentiu seu coração afundar. Poderia mais alguma coisa dar errado hoje?

– Enquanto você estava fora, alguém telefonou para a mansão. Era um rapaz, pedindo para falar com você.

– Comigo? – Cassie franziu o cenho. – Sabe por quê?

Seu melhor palpite era que alguém do carnaval tivesse reconhecido as crianças e estivesse ligando para repreendê-la pelo modo como tinha gritado com eles em público.

– Ele disse que era seu namorado, Zane – Marnie entregou-a o papel.

– Zane? – a voz de Cassie ficou aguda de incredulidade. – Ele não é meu namorado, é meu ex. Nunca dei a ele o número... Nem eu sei. A agência não repassaria para ninguém, não é? Não posso imaginar como ele descobriu que eu estava aqui.

Marnie deu de ombros simpaticamente.

– Estou feliz por ter sido eu quem atendeu – ela disse. – Pierre não gosta que os empregados recebam ligações pessoais no telefone da casa. Eu disse a Zane que você ligaria de volta quando estivesse na cidade. Vai ser melhor se você pedir a ele que não ligue mais para cá. Aqui está o número dele, e a mensagem que ele deixou para você.

– Que mensagem?

Ela olhou para a página. Na letra certinha e inclinada de Marnie estava escrito: “Cassie, por favor, venha para casa”.

*

Naquela noite, Cassie não conseguia parar de pensar na mensagem de Zane. Como ele tinha conseguido descobrir que ela estava aqui? Ela precisava urgentemente retornar a ligação dele. Agora que ele sabia o número, era certo que tentaria falar com ela novamente, e da próxima vez ela poderia não ter tanta sorte.

Pierre e Margot não tinham descido para o jantar. Com Marc em seu mundo próprio, Ella ainda sem falar com ela e Antoinette lendo um livro à mesa, o jantar foi um evento silencioso, mas Cassie fez seu melhor para parecer alegre.

– Essa sopa não está deliciosa? – ela perguntou ao trio em silêncio. Não era difícil elogiar a comida aqui, que era maravilhosa; a sopa de carne e legumes era encorpada e cheia de sabor. Era apenas sua falta de apetite que a impedia de aproveitar a refeição completamente.

Não era de se admirar que ela não tivesse fome quando estava estressada ao máximo. Parecia que toda decisão consciente que ela tomara aqui havia resultado em desastre, e agora as decisões de outras pessoas, sobre as quais ela não tinha nenhum controle, seguiam o mesmo caminho.

Sabendo que Antoinette estaria em alerta para qualquer sinal de vulnerabilidade, Cassie se forçou a começar uma tigela cheia de sopa e um pedaço de baguete. Ela serviu porções generosas às crianças, porém, apesar de Antoinette e Marc limparem seus pratos, Ella mal tocou o dela.

– Está doente, Ella? – Antoinette perguntou com doçura, dando um olhar de lado a Cassie, que lhe dizia que ela sabia exatamente porque Ella não estava comendo.

Ella balançou a cabeça, sem dizer nada.

– Foi um dia longo – Cassie disse. – Tenho certeza que ela vai se sentir melhor depois de um bom sono. Tudo parece melhor de manhã – ela sorriu para Antoinette, sentindo seu rosto doer com o esforço.

– Ah, não tenho tanta certeza – Antoinette contrariou. – Às vezes, as coisas podem ficar muito piores pela manhã.

Cassie teve que usar todo o seu autocontrole para se impedir de explodir furiosamente com a garota de cabelos escuros. Antoinette sabia exatamente como atingi-la no ponto fraco. Em vez disso, com enorme esforço, manteve seu sorriso colado no lugar.

– Se todos acabaram, vamos subir – ela disse calmamente. – É hora de ir para a cama. E, Ella, você ainda não tomou banho.

Antoinette pareceu desapontada por ela não ter mordido a isca, e Cassie sentiu satisfação.

Cassie preparou um banho de banheira para Ella para tentar animá-la, mas a jovem menina nem sequer olhava para Cassie enquanto esta a ajudava a se banhar. Ela encarava as bolhas na água da banheira, e Cassie podia apenas imaginar o tumulto dentro de sua mente.

– Sinto muito, Ella – disse gentilmente. – O que eu disse te chateou e eu me sinto mal por isso. Foi um modo terrível para você descobrir sobre o que aconteceu com a sua mãe. Você deve estar se sentindo muito triste. Gostaria que eu lesse uma história de ninar para te animar?

Ella sacudiu a cabeça firmemente.

Cassie a colocou na cama, apagou a luz e fechou a porta, desejando haver algo a mais que pudesse fazer. Essa pobre e inocente menina já tinha sido machucada por sua família tóxica, e agora Cassie tinha acrescentado à sua carga. Tinha certeza de que Ella jamais confiaria nela outra vez. Por que confiar? Ela tinha acreditado que Cassie era sua amiga e estava do seu lado, e Cassie havia lhe traído da forma mais cruel possível.

De volta ao seu quarto, Cassie notou, alarmada, que não havia guardado seus comprimidos. Deixara-os na mesa de cabeceira, onde qualquer um poderia vê-los.

Ao olhar para o frasco, sentiu uma onda de espanto.

Não estava completo. Havia ao menos quatro comprimidos faltando. Aquilo significava quatro dias, e ela havia começado o novo frasco logo antes de deixar os Estados Unidos. Ela deveria ter tomado um comprimido na noite anterior e ter esquecido completamente. Se fosse o caso, por que ela pensara que tinha pulado uma dose? Teriam seus sintomas sido engatilhados pelo estresse insano que estava vivenciando?

Refletindo, Cassie descobriu que genuinamente não conseguia lembrar se havia tomado o comprimido na noite anterior ou não, e a tentativa de recordar só a deixou mais confusa. A lacuna em sua memória a assustava, mas ela disse a si mesma que era isso que o estresse fazia.

Guardou o medicamento de volta na gaveta e deitou na cama.

Dormir parecia impossível. Sua mente estava acelerada. Preocupava-se com o que Zane faria e quando ligaria de novo, e como ela faria para ir até a cidade e controlar a situação a tempo.

Além disso, havia Pierre com que se preocupar. Ela não tivera a chance de armar um sistema de alarme para a porta de seu quarto. Se ela finalmente conseguisse adormecer por pura exaustão, não saberia caso ele entrasse em seu quarto outra vez.

Cassie sentou-se na cama, respirando rápido, lutando para controlar seu pânico.

Isso tudo era demais para ela. Ela havia sido atribuída a uma família destruída, no meio de um enorme conflito. Estas crianças precisavam de uma figura materna com experiência e de ajuda profissional. Ao invés disso, tudo o que tinham era ela. E ela carregava sua própria bagagem. Só havia sido capaz de sobreviver a sua própria infância tóxica com a ajuda de sua irmã mais velha, e não havia sobrevivido ilesa. Não era forte o bastante, ou capacitada o bastante, para lidar com isso.

Precisava se demitir.

Assim que o pensamento veio a ela, Cassie sentiu um enorme alívio.

Não poderia mais aguentar isso. Era a pessoa errada para o trabalho, que estava prejudicando-a emocionalmente e, no processo, causando mais danos às crianças.

A ligação de Zane havia sido um lembrete oportuno do que ela precisava fazer.

Afinal, tinha optado por um novo começo para escapar do relacionamento abusivo com ele. Se seu atual emprego se provasse igualmente abusivo, não deveria hesitar em tomar a mesma decisão.

A única pergunta era como ir embora, mas poderia pensar nisso amanhã.

*

O início da manhã era escuro e ventoso, e parecia que o dia seria nublado. A brisa fazia barulho em sua janela e Cassie decidiu que correr seria uma opção mais quente do que caminhar.

Vestiu-se rapidamente em seu equipamento de corrida e um agasalho de treino, colocou seus fones de ouvido e o celular no cinto. Em seguida, desceu as escadas silenciosamente e saiu, contente por ser a primeira pessoa de pé, em movimento.

Encontrou um caminho que serpenteava entre as árvores e o seguiu, correndo devagar enquanto calculava o que deveria dizer.

A ligação de Zane certamente poderia ser usada como desculpa. Havia uma emergência familiar. “Por favor, venha para casa”. O único problema era que não queria contar a Pierre que ele havia telefonado para o castelo.

Em vez disso, deveria ser honesta e direta, explicar que o emprego estava se provando ser demais para ela. Que não tinha percebido quanto estresse emocional ele causaria e que, se não conseguia cuidar de si mesma, não poderia cuidar dos filhos dele.

A ideia de fazer essa confissão a aterrorizava. Pierre, previsivelmente, ficaria furioso. Ou, ainda pior, poderia tentar convencê-la a ficar.

É claro, havia sempre a terceira opção, que era apenas ir embora. Fazer as malas e sair, talvez deixando um bilhete explicando porque estava se demitindo. Caminhar pela estrada, encontrar o gentil idoso do viveiro, fazer uma ligação e pegar um táxi para o aeroporto.

A partir daí, seria arriscado. Teria que torcer para que não fosse tão caro mudar seu voo, e que um de seus amigos pudesse lhe emprestar o dinheiro para isso. De volta aos EUA, precisaria ir para um lugar diferente para que Zane não a alcançasse novamente. Sempre quisera passar um tempo na Flórida ou em Nova Orleans. Mesmo no inverno, talvez houvesse restaurantes que ainda estivessem contratando.

Com a cabeça feita, ela começou a correr com propósito renovado. Sua rota a levou para uma trilha em caracol que a fez circular o vinhedo. Ele parecia estar operando, com vinhas bem-cuidadas, e já havia um caminhão saindo lentamente de um celeiro de pedra distante. O ar estava fresco e gelado, e ela respirou um traço de fumaça de madeira saindo da chaminé do celeiro.

Cassie percebeu que tinha se ausentado por quase uma hora. Era melhor voltar para que todos chegassem a tempo para o café da manhã. Ela chegou ao topo da colina e encontrou um caminho que levava direto ao castelo. Sem fôlego, mas em paz com sua decisão, andou até a casa.

A porta de seu quarto estava entreaberta e seu primeiro pensamento foi que uma das camareiras estivesse trabalhando lá dentro, pois ela havia deixado a porta fechada. Em seguida, preocupando-se se Pierre ou Margot tivessem vindo procurá-la, aproximou-se com mais cautela. Não podia deixar que eles suspeitassem de algo errado. Precisava agir completamente normal até encontrar o momento certo de partir.

Cassie empurrou a porta, abrindo-a por completo.

Ficou parada, em choque, ao ver a devastação no lado de dentro.

Enquanto estivera fora, alguém havia destruído seu quarto.

Suas roupas haviam sido puxadas das prateleiras e espalhadas pelo chão. Sua mala estava do avesso no meio do cômodo. Seus medicamentos – ela tomou uma respiração horrorizada – haviam sido despejados do recipiente e pisoteados no chão, em fragmentos.

Cassie pisou com cuidado, sentindo como se estivesse caminhando por um de seus piores pesadelos, desejando que fosse apenas um sonho ruim. Não conseguia acreditar que alguém pudesse ter violado seu espaço privado dessa forma. Jamais teria imaginado ser tão odiada.

Sua carteira havia sido jogada sobre a cama, seus cartões de banco espalhados sobre as cobertas. O dinheiro tinha sumido.

Enquanto absorvia esse golpe, percebeu algo pior.

Tinha escondido seu passaporte no zíper de sua bolsa, e esse compartimento era estava completamente aberto.

Cassie tateou-o com a mão trêmula, mas o compartimento estava vazio.

Alguém havia roubado seu passaporte.


CAPÍTULO DOZE

Cassie colapsou na cama, seu corpo todo tremendo. Percebeu que estava sentava no colchão desprotegido, pois as cobertas haviam sido puxadas da cama, os travesseiros arrancados das fronhas e jogados no chão.

Respirou fundo, tentando ao máximo não explodir em lágrimas histéricas, sabendo que não poderia permitir-se cair aos pedaços agora. O desconhecido que havia destruído seu quarto estaria esperando por uma reação extrema. Provavelmente esperaria que suas ações a levassem além dos limites. Ela não poderia permitir que soubessem o quanto ela estava estremecida. Simplesmente não os deixaria vencer.

Pensar assim a ajudou a se apegar à sua sanidade. Após alguns minutos, o choque diminuiu e ela ficou calma o suficiente para raciocinar outra vez.

Havia uma chance de seu passaporte ter sido jogado em meio à bagunça. Talvez a pessoa misteriosa tivesse apenas pegado o dinheiro, no fim das contas.

Cassie levantou-se e, pisando com cuidado para evitar os fragmentos dos comprimidos, pegou suas roupas de cama, balançando-as e colocando-as de volta na cama. Uma a uma, recuperou suas roupas, dobrou-as e as colocou no armário. Pegou sua bolsa, verificando os bolsos novamente antes de guardá-la.

Nada de passaporte.

Checou debaixo de toda a mobília.

Nada de passaporte. A única coisa que encontrou foi um único comprimido intacto; o sobrevivente solitário da destruição. Cuidadosamente, ela o recobrou, guardando-o no recipiente.

O modo como seu quarto fora devastado parecia um ato de pura raiva, mas o furto de seu passaporte ia mais longe. Era maldade deliberada, e as consequências não poderiam ser piores para ela.

Sem o passaporte, ela era efetivamente uma prisioneira aqui. Substitui-lo seria um processo custoso e demorado. A falta de acesso a e-mail e celular seria um enorme fator complicador.

Cassie sentiu-se arrasada, como se sua liberdade tivesse sido arrancada dela no último momento possível.

Quem? Quem poderia ter feito algo assim?

Antoinette era sua principal suspeita, após soltar aquela indireta adocicada na noite anterior de que as coisas iriam piorar.

Bem como, facilmente, poderia ter sido Marc, estranho e impulsivo – a destruição sem sentido era característica dele. E Cassie percebeu que poderia ainda ter sido um ato de Margot, incitada por puro rancor.

Ella poderia ter destruído seu quarto para ventilar sua raiva, mas por que teria levado o passaporte? Se soubesse o que era, teria o deixado no lugar, porque claramente mal podia esperar para se livrar de Cassie de vez.

Cassie precisava descobrir quem estava por trás disso. Confrontar a família teria que ser seu próximo passo.

Ela tomou banho e se trocou rapidamente, em seguida saindo do quarto, decidindo que não diria exatamente o que havia acontecido até que todos estivessem reunidos. Isso lhe daria a chance de ver as reações de todos.

Cassie abriu a porta do quarto de Antoinette e a encontrou perfeitamente arrumada e pronta para descer. Deu-se conta de que, ao entrar, havia se esquecido de bater, mas Antoinette não mencionou isso. Seria um sinal?

– Bom dia – ela disse. – Pode descer para o café da manhã agora, por favor? Há algo importante que preciso contar a todos.

Encarou a garota e Antoinette devolveu o olhar só por um instante antes de desviá-lo.

Do corredor, ouviu um pisoteio de pés e virou-se para ver Marc passando. De forma surpreendente, ele já estava vestido.

– Você acordou cedo, Marc – Cassie o chamou, suspeitas surgindo nela.

– Estou com fome – ele berrou, correndo para as escadas.

Quando ela entrou no quarto de Ella, encontrou-a enrolada na cama, ainda de pijamas. Ela parecia ter estado chorando outra vez. Rapidamente, Cassie ajudou-a a se vestir, perguntando se ela tinha dormido bem ou teve algum pesadelo, mas Ella permaneceu rabugenta e sem sorrir. Ela não disse uma palavra a Cassie.

Pierre e Margot chegaram ao café da manhã ao mesmo tempo em que Cassie descia as escadas, escoltando Ella. Margot ainda estava cobrindo sua garganta – hoje ela vestia um macacão azul-marinho de gola alta que se agarrava à sua silhueta perfeita. Olhando mais de perto, Cassie viu outra coisa. A unha vermelha no dedo indicador da mão direita de Margot estava quebrada, quase em carne viva.

Poderia ter acontecido durante suas lutas com Pierre. Mas poderia facilmente ter ocorrido enquanto ela violentamente atirava os pertences de Cassie no chão.

– Tenho algo muito perturbador para contar a vocês – Cassie anunciou a Pierre quando todos estavam sentados.

Pierre pegou o jarro de café e virou-se para ela, franzindo o cenho levemente.

– O que é, Cassie? – ele perguntou.

– Saí para uma corrida esta manhã e, enquanto eu estava fora, alguém passou pelo meu quarto. Jogaram todas as minhas roupas no chão, derrubaram meus produtos de higiene e remédios. Esmagaram e destruíram meus comprimidos. Tiraram dinheiro da minha carteira, e também roubaram meu passaporte – ela sentiu sua voz começar a tremer e se controlou com esforço, perguntando-se qual reação suas palavras provocariam.

Pierre foi quem ficou mais visivelmente chocado. Ele bateu o jarro na mesa, praguejando em voz alta, seu rosto transformando-se em trovão.

– Tem certeza? – ele perguntou a Cassie, incrédulo.

– Bem, é claro – sua voz estava bastante trêmula agora e ela precisou lutar para controlá-la. – Aconteceu menos de uma hora atrás.

– Você tirou fotos? Tem provas visuais do que aconteceu? Podemos precisar – Pierre a interrogou.

– Não, não tirei. Eu arrumei tudo enquanto procurava pelo meu passaporte. Isso é o que importa. Mais nada. Nem me importo com o dinheiro que desapareceu; era só o troco do que gastamos no carnaval.

Ela desviou o olhar do rosto severo e carrancudo de Pierre e olhou para os outros.

Antoinette, como de costume, não entregou nada ao encará-la de volta. Marc estava de olhos arregalados, boquiaberto, mas ela não sabia dizer se seu choque era real ou falso. Ella ainda se recusava a fazer contato visual, agindo como se nem tivesse ouvido as palavras. Olhando para a toalha de mesa, ela parecia ter se retirado para seu mundo particular.

Margot estava retorcendo uma mecha de cabelo loiro entre os dedos. Cassie pensou que ela parecia desconcertada, mas poderia estar apenas respondendo ao humor de Pierre.

– Um passaporte perdido é muito sério – Cassie disse. – Estou aqui ilegalmente sem ele, já que não tenho documento de identidade. Não posso viajar, e vai levar muito tempo e dinheiro para conseguir um novo.

Margot limpou sua garganta. Sua voz estava rouca – ela conseguia falar esta manhã, mas com dificuldade.

– Se há dinheiro faltando, provavelmente foi algum dos empregados – ela disse. – Revirando suas coisas dessa forma, deveriam estar procurando algo de valor. Já tive joias roubadas antes.

Pierre assentiu, concordando, seu rosto sombrio.

– Se você quiser, podemos demitir todos – Margot sugeriu, de forma tão casual como se estivesse pedindo para alguém lhe passar o sal, e novamente Pierre assentiu em apoio.

Cassie ficou chocada com as palavras de Margot, imaginando se esta dispensa generalizada dos empregados era uma ameaça, ou se realmente tinha acontecido antes. Essa família estaria mesmo preparada para demitir todo o seu pessoal após um incidente suspeito?

– Não, não – ela disse apressadamente. – Por favor, nem pensem em fazer isso. Seria tão injusto com todos que são inocentes. Não gostaria que perdessem o emprego sem motivo.

Esperava que suas palavras estivessem tendo algum efeito em alguém da mesa, mas agora todos olhavam uns para os outros ao invés de olhar para ela, tornando a observação mais difícil.

– Talvez eu possa pedir ajuda a Marnie – Cassie disse. – Ela conhece os empregados e poderia perguntar a eles se viram ou ouviram algo.

– Boa ideia – Pierre concordou. – Marnie está de folga hoje, mas amanhã ela pode te ajudar.

Cassie torceu para que, já que a amigável Marnie estivera em outro lugar, fosse ficar de fora da linha de fogo.

– Podemos discutir isso novamente amanhã – Pierre decidiu. – Hoje é um dia cheio.

Cassie esperava que ele dissesse mais sobre o seu passaporte, mas ele não disse. Em vez disso, ele pegou um croissant de chocolate antes de passar a bandeja de folheados, comentando sobre a boa qualidade desta manhã.

Ela percebeu que a perda de seu passaporte havia destruído seu mundo, mas mal tinha impactado o de Pierre. Ela era um ativo dispensável nessa casa, e Pierre não entendia ou simpatizava com sua situação. Talvez ele já tivesse a dispensado como sendo mais um drama de uma funcionária.

– O que as crianças farão hoje? – ela perguntou, percebendo que, já que o passaporte não era mais um tópico de discussão, essa pergunta seria esperada.

– Margot e eu os levaremos para passear esta manhã. Tenho uma reunião com um novo cliente, em sua linda galeria de arte perto de Orly. Sua esposa e seus filhos irão com ele, e ele sugeriu que eu levasse minha família também. Voltaremos a tempo de um almoço tardio, e as crianças têm atividades à tarde, sobre as quais te informarei quando retornarmos.

– Obrigada. Seu passeio parece maravilhoso – Cassie disse automaticamente, mas enquanto falava, as implicações das palavras dele fizeram sentido.

Ela estaria no castelo, sozinha, a manhã toda.

– Você deveria passar um tempo na biblioteca enquanto estamos fora – Pierre disse. – Há uma seleção magnífica de livros, tanto em inglês quanto em francês.

– Obrigada. Farei isso – Cassie concordou, mas sabia que não teria a chance. Tinha outros itens mais importantes em sua agenda.

Essa era a oportunidade perfeita – e a única que poderia ter, de procurar no castelo todo. Se conseguisse encontrar sua carteira a tempo, poderia até mesmo seguir adiante com seus planos e partir de vez, antes que a família Dubois retornasse.


CAPÍTULO TREZE

Cassie aguardou, impaciente, que a família partisse. Pareceu levar uma eternidade. Pierre estava se apegando a detalhes. A roupa de Ella não era adequada; poderia manter o casaco azul, mas deveria colocar um vestido mais elegante por baixo. O cabelo de Marc deveria ser penteado com água para ficar arrumado, e foi ordenado que ele trocasse os sapatos por um par limpo.

Ela fez seu melhor para organizá-los o mais rápido possível, mas os três estavam visivelmente relutantes em sair para este passeio, e Ella ainda não dizia uma palavra a ela.

Finalmente, todos estavam prontos para ir. Cascalhos trituraram sob as rodas conforme a grande Mercedes desceu pela entrada da garagem. Cassie correu para o andar de cima e assistiu ao carro saindo de vista. Disse a si mesma que, se desviasse o olhar ou piscasse, seus planos não seguiriam conforme ela precisava. Seus olhos lacrimejaram quando o carro desapareceu sobre a colina, mas ela não tinha piscado, e só poderia torcer para que fosse um bom presságio.

Com os nervos inquietos, esperou outros cinco minutos, para garantir, no caso de alguém ter esquecido algo.

Quando teve certeza de que eles não voltariam, ela começou sua caçada.

Foi direto para o quarto de sua suspeita mais provável: Antoinette. Ao abrir a porta, sentiu uma onda renovada de seu espírito de luta. Não permitiria que essa família tóxica a destruísse. Faria o que fosse preciso para reaver seus pertences e escapar – mesmo que significasse fazer buscas em seus espaços privados.

O quarto de Antoinette era tão organizado que a garota notaria imediatamente se algo fosse mexido. Cassie sabia que teria que colocar tudo de volta do jeito que tinha encontrado.

Começou com o armário, remexendo os bolsos de casacos, procurando em pilhas de roupas, na mala cor-de-rosa e na bolsa de escola de Antoinette. Em seguida, verificou a escrivaninha, passando por cada gaveta.

Um passaporte era tão pequeno, poderia estar em qualquer lugar. Ela até abriu o diário de Antoinette para verificar se não estaria firmado entre as páginas. Definiu seu limite, sem ler o que a garota havia escrito em seu caderno secreto. Aquilo ela não estava preparada para fazer.

No entanto, Cassie não podia evitar notar que a escrita no caderno estava bagunçada de forma pouco característica, as palavras rabiscadas e desordenadas. Então talvez esse diário fosse a forma de Antoinette extravasar em mais do que uma maneira. Pressionada para manter seu quarto e sua vida em um estado de perfeição, esse deveria ser o único lugar que ela tinha permissão para se rebelar.

Vinte frustrantes minutos depois, Cassie saiu do quarto, fechando a porta silenciosamente atrás de si. Tinha torcido, e até esperado, que aqui fosse onde o encontraria. Mas havia procurado em todos os esconderijos possíveis, incluindo sob o colchão e dentro da fronha, e o passaporte não estava em lugar nenhum.

O quarto de Marc era o próximo. Por sorte, nesse ambiente bagunçado ela não precisava ser tão cuidadosa. Desde que não bagunçasse a formação de seu exército no chão, duvidava que ele fosse notar ou se importar se algo estivesse remexido.

Conforme ela navegava pelo caos da caixa de brinquedos, Cassie subitamente se perguntou se Marc, à sua maneira, também não estaria resistindo aos padrões irracionais de organização e perfeição que seu pai impunha a ele. Certamente explicaria seu comportamento estranho e o modo como ele parecia buscar oportunidades para perturbar seu entorno.

A busca metódica de Cassie deixou o cômodo levemente mais arrumado do que ela o encontrara, mas não produziu resultados. Seu passaporte definitivamente não estava lá.

Estava começando a se sentir menos esperançosa com suas chances de ir embora antes que a família retornasse.

Procurou no quarto de Ella com a mesma minúcia e com a mesma falta de sucesso. Os banheiros do andar superior também não deram em nada.

Era possível que seu passaporte tivesse sido escondido às pressas em outro lugar da casa.

Cassie desceu as escadas, antes verificando cada cômodo para garantir que não havia empregados trabalhando neles. Uma camareira certamente questionaria por que ela estava sacudindo cortinas, espionando nas gavetas e até mesmo tateando os vasos e ânforas maiores. Cassie suspeitava que, nessa casa, as paredes tinham olhos e ouvidos e que, se alguém a visse, certamente contaria a Pierre imediatamente.

Tentando permanecer discreta, fez seu caminho pelo andar inferior da casa. Procurou na sala de jantar e pelo hall minuciosamente, pensando que alguém poderia ter rapidamente escondido o passaporte em algum desses lugares antes de sair esta manhã.

A busca no piso inferior levou mais de duas horas. Ao final, ela estava exausta, esmagada sob o tamanho da casa e a quantidade de cômodos, além do volume de esconderijos e tesouros dentro deles. Imaginou quantos deles eram heranças de família, ou se Pierre havia adquirido todos sozinho. Pela breve dica que ele dera no café da manhã sobre o encontro com o dono de uma galeria de arte, ela deduzira que ele estava de algum modo envolvido nesse ramo.

Ela havia pulado dois cômodos porque os empregados estavam limpando, e uma parte inteira da casa estava trancada – mas, se estava trancada para ela, certamente estaria trancada para todos. E, de todo modo, ela tentou se consolar, por que alguém esconderia um documento em algum lugar onde uma camareira poderia inocentemente encontrar enquanto estivesse limpando?

Não, Cassie decidiu, se alguém roubasse algo tão importante, o manteria em algum local seguro, um local privado.

Isso significava que ela tinha mais um quarto onde procurar.

Sentiu uma pontada de apreensão ao caminhar para o andar de cima, rumo ao fim do corredor. Havia deixado esse quarto por último porque entrar nele realmente era ultrapassar todos os limites. Esperava ter encontrado seu passaporte antes de precisar procurar lá, mas não encontrara. Agora, estava preocupada em ter perdido tempo demais, porque esse era o único lugar onde ela não poderia arriscar ser descoberta.

Ela bateu levemente na porta do quarto de Pierre.

– Olá? – ela chamou, só para o caso de alguém estar lá dentro, limpando.

Não houve resposta. Tudo o que Cassie ouvia era o som de sua própria respiração acelerada.

Esse lado da casa ficava de frente para o jardim, e não para a entrada, então seria mais difícil ouvir o carro voltando. Esse era outro fator complicador.

Com os nervos estremecendo, ela abriu a porta de madeira pesada.

O cômodo era muito espaçoso e requintado. Luz entrava pelas enormes portas francesas que levavam a um terraço ornamentado. A enorme cama em dossel estava coberta por uma colcha de renda, e várias pinturas grandes estavam penduradas sobre o papel de parede marfim.

Conseguia sentir o cheiro leve do perfume de Margot no ar.

Cassie atravessou o quarto na ponta dos pés. Quis evitar a cama, depois da cena infernal que havia espiado se desenrolando, mas precisava verificá-la, então decidiu fazer isso primeiro para tirar de seu caminho.

Tateou cuidadosamente debaixo dos travesseiros e cobertas, e então passou algum tempo afofando os travesseiros e rearranjando a colcha rendada exatamente como havia a encontrado. Sabia que Pierre, com sua atenção aos detalhes, detectaria quaisquer imperfeições de imediato.

As gavetas da penteadeira estavam cheias de maquiagens e perfumes variados. Frascos de vidro se amontoavam lado a lado – havia pelo menos vinte perfumes lá, mas o passaporte dela não estava em nenhuma das gavetas.

Movendo-se para a mesa, ficou cativada pelo brilho de um peso de papel de vidro veneziano. Um buque de flores coloridas estava envolto pelo globo perfeitamente transparente. Com o sol iluminando o vidro, o efeito era hipnotizante e, por um longo momento de distração, ela ficou fascinada demais por sua beleza para se lembrar da urgência de sua busca.

Então, um baque vindo de fora lhe fez pular, quebrando o feitiço. Ela repreendeu-se mentalmente. O que diabos estava fazendo, parando para admirar objetos de arte quando havia tanto em jogo, e sua presença aqui era tão arriscada? Ficou chocada por ter desviado sua atenção tão facilmente. Seria outro sinal de que tinha tomado seu medicamento errado? Se Pierre entrasse, seria impossível explicar sua presença aqui; não era nada menos que criminosa.

Segurou a respiração enquanto escutava, mas quando não ouviu mais nada, ela se controlou e continuou a caçada, indo mais rápido agora.

No escritório, à direita do quarto, Cassie encontrou o telefone fixo. Repousava na mesa de mármore, ao lado de algumas pastas etiquetadas de forma ordenada. Ela olhou para ele com anseio, sabendo que não poderia usá-lo, já que Pierre poderia verificar o último número discado. O armário de arquivos de madeira do cômodo estava trancado, mas ela esperava que significasse que Margot não poderia acessá-lo também.

À esquerda do quarto havia um enorme closet, as paredes ladeadas com armários cheios de roupas. Em pânico por seu tempo estar se esgotando, Cassie fez a busca mais rápida possível, passando as mãos por todas as prateleiras e bolsos da melhor forma que pôde.

Não encontrou nada.

Cassie soltou uma respiração profunda. Sendo honesta consigo, ela esperara que o passaporte estivesse escondido aqui, razão pela qual havia deixado esse quarto por último.

Pelo que ela sabia, quem quer que tenha pegado seu passaporte poderia simplesmente tê-lo destruído. Jogado no fogo ou junto com os restos acumulados no lixo da cozinha. Ela poderia estar perdendo tempo desde o início.

Em vez disso, ela precisava direcionar toda sua energia para inventar um plano B, qualquer um que fosse. Definitivamente envolveria entrar em contato com a embaixada e descobrir o que era necessário para conseguir um passaporte substituto.

Porém, enquanto estava voltando para a porta, subitamente se lembrou de que não tinha verificado um esconderijo bem óbvio – debaixo da cama.

Ela deveria ter pensado em procurar lá imediatamente. Afinal de contas, havia sido seu esconderijo preferido no passado, quando as coisas ficavam ruins.

Agachando-se no assoalho polido, Cassie espiou debaixo da cama, ficando tensa ao ouvir um ruído distante vindo de fora. Dizendo a si mesma para ficar calma, e que não poderia deixar qualquer mínimo som distrai-la agora que estava quase acabando, continuou sua busca.

Não havia nada ali, mas ela notou uma longa gaveta estreita, oculta na estrutura da cama.

Abriu-a e encarou seu conteúdo, sentindo sua espinha formigar com o pavor.

A gaveta continha mordaças de couro, chicotes de aparência perversa, cordas e arreios, e alguns lenços de seda como o que ela havia visto pela fechadura. Havia alguns deles, em várias cores, perfeitamente dobrados em um canto. Outros itens, também. Algemas, vendas, braçadeiras brilhantes de metal – ela não queria pensar exatamente como e onde poderiam ser aplicadas.

Ela levantou um dos lenços. Era leve ao toque, cor-de-rosa escuro. A suavidade contrastava com o peso das braçadeiras grosseiras que ela moveu para o lado. As correntes atreladas a elas fizeram barulho conforme eram movidas, e ela pulou com o ruído inesperado. Sentia-se incrivelmente vulnerável agachada aqui. Talvez fosse sua própria culpa por bisbilhotar na gaveta escondida, mas, de repente, teve a certeza de estar sendo observada.

Cassie devolveu cuidadosamente as braçadeiras e o lenço depois de verificar se não havia nada escondido debaixo deles. Então, fechou a gaveta com cuidado e se levantou, desejando nunca ter visto seu conteúdo. Um vislumbre através da fechadura era uma coisa, mas se deparar com um estoque completo de equipamento de BDSM era algo diferente. Ela nunca, jamais poderia deixar Pierre saber que ela havia descoberto esse esconderijo secreto.

Ela caminhou em silêncio até a porta do quarto, porém, ao chegar lá, ouviu um som mais alto e familiar que a fez congelar. Esperou, pânico crescendo dentro dela, rezando para que tivesse ouvido errado.

Então, ouviu-o novamente, confirmando seus piores medos.

Era o berro inconfundível na voz de Marc, reverberando pelo corredor.

Ela havia passado tempo demais procurando, e agora a família havia retornado; ela estava presa na suíte máster.

A qualquer momento, Pierre poderia abrir a porta.


CAPÍTULO QUATORZE

Uma porta bateu no final do corredor e Cassie ouviu o grito de Marc outra vez. Ela se encolheu de volta no quarto de Pierre, instintivamente querendo se esconder, mas nesse espaço arrumado e minimalista não havia para onde ir.

Pierre e Margot poderiam ir direto para o banheiro moderno, para o escritório ou para o closet, vendo-a imediatamente. Esconder-se debaixo da cama seria somente atrair um desastre.

Cassie tentou se tranquilizar, lembrando que Marc adorava correr na frente dos outros. Com sorte, o resto da família ainda estaria subindo as escadas e, nesse caso, seria melhor se eles a encontrassem saindo do quarto, ao invés de estar esperando dentro dele. Precisava tomar uma decisão agora, porque eles já poderiam estar se perguntando onde ela estava, esperando que ela corresse para ajudar com as crianças assim que chegassem.

Ela abriu a porta do quarto, passando por ela e a fechando rapidamente atrás de si. Em seguida, correu pelo corredor e dobrou a esquina. Seu coração acelerou quando ouviu a voz de Pierre vindo do quarto de Marc, percebendo como tinha escapado por pouco. O garoto deveria ter chamado seu pai para o seu quarto enquanto ele passava. Talvez ele quisesse que Pierre admirasse seu batalhão de soldados de brinquedo.

Se não fosse por Marc, Pierre certamente a teria descoberto – talvez até mesmo entrado enquanto ela espionava a gaveta secreta, e ela não queria imaginar quais teriam sido as consequências. Não podia arriscar outra ação imprudente, nem mesmo para encontrar seu passaporte perdido.

Antoinette não estava em seu quarto, mas a porta de Ella estava aberta. Olhando para dentro, ela viu que a jovem menina já havia trocado seu vestido elegante pelo vestido de veludo canelado que parecia ser seu favorito. Isso significava que a família estava na casa há mais tempo do que ela tinha pensado.

Acenou para Ella e disse um olá amigável.

– Quer caminhar pelo jardim antes do almoço, Ella? – perguntou, mas a única resposta de Ella foi lhe dar as costas.

Cassie arrastou-se para o seu quarto, desanimada. O dia fora um fracasso total. A busca quase acabara em desastre, seu passaporte ainda estava perdido e o silêncio de Ella era implacável.

Olhando pela janela, ela viu que o dia se tornava nublado e cinzento outra vez. Vestiu uma blusa de corrida, organizou as roupas jogadas de volta no armário, e passou algum tempo recolhendo os comprimidos esmagados e varrendo o resíduo de poeira com lenços até que o chão estivesse limpo.

Com tudo em ordem, notou que o frasco com o único comprimido intacto ainda estava sobre a mesa de cabeceira. Deveria tê-lo guardado esta manhã, pois não queria que seus medicamentos ficassem à mostra.

Cassie abriu a gaveta ao lado da cama e soltou um suspiro audível quando olhou para baixo.

O passaporte estava lá.

Ela piscou, incapaz de acreditar no que via. Lá estava, bem guardado na gaveta, sua capa de relevo dourado intacta.

– Como diabos...? – Cassie disse em voz alta.

Pegou-o na gaveta, precisando sentir seu formato nas mãos para se tranquilizar. Folheando-o, viu que seu visto ainda estava lá e nenhuma das páginas estavam amassadas ou rasgadas. Não havia sido adulterado.

A preocupação desvairada que havia lhe consumido desde cedo subiu e ela sentiu-se eufórica de alívio. Não importavam quaisquer outros problemas que tivesse – e ela sabia que os tinha aos montes –, a presença desse pequeno documento de capa azul-marinho havia devolvido seu poder de tomar decisões. Ela não era mais uma prisioneira nesta casa hostil.

Cassie subitamente se perguntou se o passaporte poderia ter estado na gaveta o tempo todo. Quando desfez as malas, lembrava-se de pensar que a mala não era o lugar mais seguro para guardá-lo, e que deveria colocá-lo em outro lugar.

Talvez tivesse feito isso, e esquecido.

Não tinha verificado nenhuma das gavetas depois de encontrar seu quarto destruído, pois vira o zíper da mala aberto e presumira que ele havia sido tirado de lá. Ainda assim, aqui estava, e agora Cassie percebeu que seu alívio se tingia de preocupação, pois como ela poderia tê-lo guardado e não se lembrar de nada depois?

Ela estaria genuinamente perdendo a cabeça?

Esfregou a testa, confusa, tentando reproduzir exatamente o que tinha feito enquanto estava desfazendo as malas, mas seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho da porta de seu quarto. Levantando o olhar, viu Pierre parado na porta.

Cassie sentiu seu rosto esquentando de vergonha ao perceber que segurava o passaporte que havia acusado alguém da família de ter roubado mais cedo.

– Eu... Eu acabei de encontrá-lo – ela disse. – Estava na gaveta da minha mesa de cabeceira. O dinheiro ainda está sumido, mas pelo menos o passaporte apareceu. – Ela forçou um sorriso.

Pierre entrou e fechou a porta atrás de si. Sua presença imponente fazia o quarto parecer menor e, apesar de ele parecer severo, Cassie não tinha ideia do que havia de errado. Algo devia ter acontecido se ele estava vindo falar com ela em particular. Talvez tivessem lhe contado sobre o que ela fizera no carnaval, e ele tinha vindo demiti-la.

– Acredito que você esteve procurando pelo passaporte, Cassie? – Pierre disse.

Ela engoliu em seco. Não fora cuidadosa o bastante; uma das camareiras deveria tê-la visto remexendo nos cômodos do andar de baixo.

– Sim – ela disse, decidindo manter-se o mais próxima da verdade quanto possível. – Pensei que pudesse tê-lo derrubado enquanto Margot me mostrava a casa na noite em que cheguei.

Pierre considerou suas palavras por alguns momentos. O silêncio dele era enervante e ela não conseguia ler a expressão em seus olhos marrons semicerrados.

– Você pensou que havia o derrubado no meu quarto, Cassie? – ele perguntou, e ela visivelmente reagiu às palavras, uma clara admissão de sua culpa.

– Eu... – ela começou, mas não havia mais nada que pudesse dizer. Não foi uma pergunta de verdade, mas sim a constatação de um fato. De alguma forma, ele deveria tê-la visto ou ouvido.

– Talvez você não tenha notado tudo naquele quarto – ele continuou. – A gaveta onde Margot guarda suas joias, por exemplo. Fica em um lugar muito bem escondido.

Ela não conseguia encarar Pierre. Olhou para suas mãos, observando suas unhas cavando suas cutículas, tão fundo que ela pensou que fossem sangrar.

– Não. Não notei nenhuma gaveta de joias. Só olhei rapidamente. Sinto muito. Foi imperdoável de minha parte entrar lá. Eu queria... Bem, eu queria ter certeza de que tinha procurado em todos os lugares.

– Você pode ter encontrado outra gaveta, no entanto – ele sugeriu em tom de conversa, enquanto se sentava ao lado dela na cama.

Ela o encarou, em pânico. Como ele adivinhara que ela tinha olhado dentro da gaveta escondida? Estava certa de que a porta do quarto não fora aberta. Talvez ele tivesse deixado o conteúdo organizado de um modo particular. Ela tinha tentando ao máximo devolver as coisas no lugar, mas tinha estado chocada demais, apressando-se ao perceber que seu tempo se esgotara.

Se ele sabia com certeza, ela apenas pioraria as coisas tentando negar. Então, talvez fosse melhor não dizer absolutamente nada e simplesmente se preparar para a ira dele.

Para sua surpresa, viu que as feições pesadas de Pierre não estavam coradas de raiva. Em vez disso, ele estava a examinando com a mesma expressão que tinha visto nele na manhã anterior, quando ele havia encontrado com ela na escadaria.

– Você acha que as regras são feitas para serem quebradas, Cassie? – ele disse, em voz baixa, como se não quisesse que sua voz fosse além do quarto dela, ou mesmo além da cama.

Ela balançou a cabeça, negando violentamente, mas ele continuou.

– Eu acho que você pensa. E eu também penso. Isso torna a vida mais interessante.

Ele ergueu uma mão e alisou os cabelos dela, afastando-o de seu rosto e, em seguida, beliscando sua bochecha gentilmente.

A voz dele era brincalhona, mas suas palavras não eram.

– Acredito que vasculhar o quarto do seu patrão é uma ofensa passível de dispensa. Pode até ser uma ofensa criminosa. Afinal de contas, joias já sumiram no passado. Você pensa que não tomamos nenhuma ação contra o culpado, ou desde então? A polícia local estaria interessada em ouvir sobre as suas transgressões. Está se perguntando se eu tenho provas do que você fez? Talvez devêssemos informar a polícia agora, para estarem cientes.

Cassie o encarou, medo brotando dentro dela conforme as ameaças de Pierre, ditas suavemente, a informavam do que ele era capaz.

– Por favor, não. Eu sinto muito mesmo. Não estava ciente de que entrar no quarto era proibido. Não sabia que essa era a regra. Agora que sei, nunca vou fazer isso novamente.

– Sim, você quebrou as regras, sem dúvidas. Mas, dessa vez, serei clemente com você. Acredito que agiu por inocência. Não vou dizer nada, e você também não. Vou fingir que você estava apenas brincando comigo. Mas um jogo deve ser jogado por duas pessoas, não é? Então, da próxima vez, no nosso jogo, é a minha vez de quebrar as regras. Você acha que vai gostar do que eu vou fazer?

– Eu... Não, não vou – ela gaguejou. Seu rosto estava pegando fogo, e ela sentia-se paralisada com indecisão, incerta se a opção mais segura seria permanecer em silêncio ou gritar por ajuda. Ficar quieta parecia ser a alternativa menos aterrorizante, mesmo que ela estivesse chocada pelo que Pierre estava insinuando.

– Ah, mas você está errada, Cassie, porque eu acho que você vai gostar – o tom dele era de provocação agora, seus dedos percorrendo o rosto dela como se fosse sua propriedade; afagando seu maxilar, tocando seus lábios, pegando em seu pescoço. Então, ele baixou as mãos e tocou a coxa dela, e Cassie sentiu cada músculo de seu corpo virando gelo.

Decidiu que ia gritar, não importa o quanto isso lhe causasse problemas. Tinha que dar um basta antes que isso fosse adiante.

Mas, enquanto ela reunia a coragem para fazê-lo, ele removeu as mãos e riu alto.

– Estou ansioso para a próxima vez – ele sussurrou para ela. Então, adicionou, com uma piscadela. – E não precisa se preocupar. Assim como posso punir, posso recompensar. E vou te recompensar generosamente por jogar comigo.

Ele pressionou o dedo sobre os lábios dela.

– Posso ver que agora você entende como as coisas são – ele sorriu.

A cama rangeu quando ele se levantou e, no momento seguinte, ele saiu e fechou a porta suavemente atrás de si.

Cassie soltou uma respiração longa, estremecida.

Esfregou as mãos sobre seu rosto, onde os dedos de Pierre tinham estado, desesperada para apagar seu toque. Entendia agora porque Marnie mantinha o cabelo preso e trabalhava sem maquiagem, e porque todas as empregadas pareciam se misturar ao cenário, permanecendo invisíveis.

Sentiu-se assustada pelo encontro, e o comentário de despedida de Pierre havia lhe deixado sentindo-se contaminada. Quanto a si mesma, não poderia ter lidado com a situação de um jeito pior. Em seu choque, havia permitido que ele tivesse as coisas do jeito dele, e seu silêncio dera a ele permissão implícita para continuar.

Tarde demais, Cassie percebeu que deveria ter gritado.


CAPÍTULO QUINZE

Depois do que acontecera em seu quarto, Cassie não sabia como encararia Pierre à mesa do almoço. Como ela poderia fingir que nada tinha acontecido, e agir sequer perto de normal?

Para o seu alívio, quando trouxe Marc e Ella até o andar inferior, descobriu que Antoinette e Pierre já haviam terminado o almoço e estavam se preparando para sair.

– Antoinette tem aula de piano em Nanterre esta tarde. Vou levá-la, já que tenho uma reunião nos arredores – Pierre disse.

Ele falou de maneira formal, como se nunca tivesse sentado ao lado dela na cama, sussurrando aquelas palavras sugestivas.

– E eu tenho futebol – Marc o lembrou.

– O futebol é no clube esportivo, perto do vilarejo onde foi o carnaval – Pierre disse a Cassie. Pegando um bloco de anotações no aparador, ele anotou o endereço e as direções para ela. – O treino de futebol começa às duas da tarde e termina às quatro. Não há necessidade de ficar assistindo, especialmente com o clima esfriando. Ella, com certeza, preferirá voltar para casa.

– É uma boa ideia – Cassie concordou. – Podemos brincar de pintar, Ella, ou talvez você gostaria de preparar algo na cozinha?

Cassie estava apenas dando sugestões para preencher o silêncio. Tinha certeza de que Ella não responderia, e estava certa. Felizmente, Pierre pareceu não notar.

– Preciso buscar alguns documentos no escritório – ele disse a Antoinette. – Se estiver pronta, espere no carro.

Eles saíram da sala, e Cassie destampou a travessa, dando às crianças fatias de quiche Lorraine com salada verde de acompanhamento. Enquanto comia, mentalmente finalizou seus planos de ir embora.

Não poderia abandonar Ella aqui, sozinha, então teria que esperar até que Marc voltasse do treino de futebol. Pierre e Antoinette já teriam voltado até lá? Não fazia ideia da distância até Nanterre. Também estava incerta quanto ao paradeiro de Margot, mas decidiu que ela provavelmente tinha saído outra vez. Certamente, Pierre não arriscaria fazer o que tinha feito no quarto dela se Margot estivesse na casa?

Marc pareceu ansioso para ir para o futebol, apesar do clima que piorava. A tarde se tornava fria, com vento, e enquanto ela o acompanhava do estacionamento até os campos esportivos, Cassie ficou aliviada por não ter que se sentar e esperar em um dos bancos de madeira, com apenas um frágil gazebo como abrigo.

Ella havia se recusado a sequer sair do carro e elas dirigiram-se de volta ao castelo em silêncio. Enquanto estacionava, Cassie resolveu que, de um jeito ou de outro, precisava consertar as coisas. Tinha duas horas para passar com Ella, provavelmente a última vez que passaria tempo a sós com a jovem menina. Precisava se desculpar e fazer as pazes com ela antes de partir.

Seguiu Ella até o quarto dela e, quando Ella sentou-se na cama, Cassie puxou uma cadeira e sentou-se de frente para ela.

– Parece que seu ursinho de pelúcia quer ouvir uma história – ela tentou. – Gostaria que eu contasse uma a ele? Talvez você também possa aproveitar.

Ella sacudiu a cabeça.

– Posso te mostrar como cortar flocos de neve de cartolina, e poderíamos colori-los. Decorá-los com glitter e pendurá-los no abajur.

Sua sugestão foi recebida por silêncio. Ella balançou os pés, chutando a estrutura da cama com força.

As opções de Cassie estavam se esgotando. Cozinhar era a única ideia que restava, e não achava que seria capaz de persuadir Ella a ir até o andar de baixo para tentar. Nesse caso, era hora de ser honesta.

– Ella, vou pedir desculpas quantas vezes for preciso. Mas cabe a você decidir me perdoar ou não – ela disse, gentilmente. – Gostaria de ser sua amiga antes de eu ir embora. Não quero ter que ir embora enquanto estamos brigadas.

Agora, Ella olhava diretamente para ela com olhos azuis arregalados.

– Aonde você vai? – ela perguntou em uma voz tímida.

– Vou voltar para os Estados Unidos – Cassie confessou. – Decidi que não sou a pessoa certa para cuidar de vocês. Vocês precisam de alguém melhor, que seja amorosa e paciente e gentil.

Cassie planejava entrar em mais detalhes sobre a entidade estilo Mary Poppins que ela esperava que tomasse seu lugar, mas não teve chance, porque Ella explodiu em lágrimas.

– Não vá embora – ela implorou, soluçando.

– Eu preciso – Cassie moveu-se para sentar-se na cama ao seu lado, abraçando-a com força. Culpa a inundou ao perceber que o corpo de Ella estremecia com os soluços.

– Por que você precisa ir?

– Porque não estou feliz aqui – respondeu. – Estou muito infeliz, por isso não posso cuidar de você corretamente. – Esfregando gentilmente as costas de Ella, encarou a janela respingada de chuva, sentindo as lágrimas despontando em seus próprios olhos.

– Está triste por que alguém destruiu seu quarto?

– Sim, isso é parte do motivo.

– Eu sinto muito – Ella lamentou. – Fui eu. Eu fiz aquilo.

– Você? – Cassie podia ouvir a incredulidade na própria voz. Capturou os braços de Ella, empurrando-a, querendo ver seu rosto. Ela falava sério? Tinha realmente feito aquilo?

– Eu estava com tanta raiva – Ella olhou para ela com os olhos cheios de lágrimas. Cassie viu apenas honestidade. – Queria fazer a pior coisa que podia fazer a você. Mas depois sabia que você ficaria chateada e fiquei preocupada se você iria embora, igual à Hannah, a última moça que cuidou de nós. Então peguei o seu dinheiro e o seu passaporte, coloquei no bolso do meu casaco, depois voltei para a cama e fingi que estava dormindo.

Cassie piscou, sua mente subitamente cheia de perguntas.

– Por que Hannah foi embora? – ela experimentou.

– Não sei. Um dia, ela me mostrou o passaporte dela e disse que voltaria para casa no dia seguinte, e então foi embora. Eu também gostava dela. Sinto falta dela. Mas gosto mais de você.

– Foi muito inteligente da sua parte lembrar o que era um passaporte, mas você me deixou muito chateada quando o roubou – Cassie a repreendeu.

– Eu te devolvi. Seu dinheiro está aqui também. Guardei tudo no meu bolso, está seguro.

Ela desceu da cama, pegou seu casaco nas costas da cadeira e entregou a Cassie um maço de dinheiro bem dobrado.

Cassie olhou para as notas, desdobrando-as lentamente com as pontas dos dedos.

– É tudo culpa minha. Deixei você triste, e agora você vai embora. Por favor, não vá – Ella implorou.

– Ella, eu não sou a pessoa que você precisa – ela tentou, mas a jovem menina sacudiu a cabeça de forma determinada.

– Sim, você é. Você é a melhor – ela insistiu. – Todos nós gostamos de você, menos Antoinette, mas ela não gosta de ninguém. Até Marc disse ao papai esta manhã como você é legal.

Cassie guardou o dinheiro no bolso de seu jeans, desorientada. Não tinha percebido que era tão valorizada pelas crianças mais novas, ou tão necessária. Ella, em particular, tinha problemas muito mais complexos do que ela havia imaginado. Qual chance ela tinha de superar esses desafios, vivendo em um lar tão instável? Ela ainda era tão inocente, e Cassie admirava a coragem requerida para confessar o que ela tinha feito. Significava muito.

Se ela partisse agora, Ella culparia a si mesma, o que acrescentaria mais peso à carga emocional que nenhuma criança de cinco anos merecia carregar. Cassie sabia muito bem quais poderiam ser as consequências no longo prazo. Certamente, ela poderia sobreviver aqui só mais um tempo. Se fosse embora dentro de alguns dias, Ella não se culparia por isso.

Aquilo parecia a coisa certa a fazer.

O único problema era que, se ficasse, precisava urgentemente repor seus comprimidos. Não seria capaz de aguentar sem eles. Deveria haver um médico na cidade que pudesse lhe dar uma receita, mas ela teria que ir hoje.

Dinheiro era outro problema sério. Duvidava que o troco que Ella lhe devolvera sequer cobriria o custo da medicação, então como ela teria condições de pagar o médico?

Cassie lembrou-se que o restaurante havia lhe prometido um pagamento de seu último salário no início do mês, pelos turnos que ela havia trabalhado em outubro. Esperava que fosse o bastante, porque não queria ter que implorar por um adiantamento a Pierre sem poder dizer a ele para quê precisava dele.

Quando retornou ao seu quarto, no entanto, percebeu que não precisaria mendigar.

Seus olhos foram imediatamente atraídos para um embrulho de papelão, cuidadosamente colocado sobre o seu travesseiro.

Cassie checou atrás de si, fechando a porta do quarto antes de ir até a cama e pegar o embrulho com cuidado.

Dentro do embrulho bem dobrado havia um lenço verde-esmeralda e duzentos euros.

Ela pegou o lenço, sentindo-se fora da realidade. O tecido era suave ao toque; um item caro e de qualidade. As notas de dinheiro novas e frescas estavam em um envelope branco.

Cassie sentiu-se nauseada e apavorada ao lembrar-se das palavras de Pierre.

“Vou recompensá-la generosamente por jogar comigo.”

De jeito nenhum se tratava de um adiantamento de salário, ou um reembolso do que ela já havia gasto, ou dinheiro para gasolina, ou outra coisa que poderia ser constituída como inocente.

Sem dúvida alguma, Pierre estava pagando adiantado por favores que agora estaria esperando em troca.


CAPÍTULO DEZESSEIS

Embora Cassie soubesse que era a folga de Marnie, esperava que a governanta pudesse ter retornado de sua viagem a Paris. Após seu encontro digno de pesadelos em seu quarto com Pierre, e o presente que havia encontrado em seu travesseiro, ela não arriscaria passar outra noite aqui a não ser que conseguisse trancar a porta.

Foi até a cozinha, onde uma das empregadas disse que Marnie chegara logo após o almoço.

– Você se importaria em chamá-la? – Cassie perguntou. – Sei que ela não está trabalhando hoje, mas é urgente.

Alguns minutos depois, Marnie entrou na cozinha. Recém-chegada de seu passeio, a governanta ainda estava lindamente arrumada, com os cabelos ondulados sobre os ombros, e, ao comparar a aparência dela com a da empregada de serviço, Cassie conseguia ver as diferenças. Agora entendia a regra silenciosa a respeito do vestuário de trabalho no castelo.

– Preciso da chave do meu quarto – Cassie disse.

Marnie franziu a testa. – Por quê? Aquele quarto geralmente fica aberto. As crianças precisam de acesso e temos que entrar para limpá-lo. Na verdade, a chave original se perdeu e a chave extra é a única disponível.

– Eu me sentiria mais confortável se pudesse trancá-lo quando precisar – Cassie disse. – Fui correr hoje cedo e, quando estava fora, as crianças pregaram uma peça bagunçando meu quarto.

– Ah, nossa – Marnie disse, mas Cassie pôde ver que ela pensava que estivesse exagerando.

– Tenho certeza que foi apenas uma brincadeira inocente – ela explicou, tentando proteger Ella. – Mas demorei o dia todo para encontrar meu dinheiro e meu passaporte. Não posso arriscar que isso aconteça de novo. Preciso ter certeza que, quando eu sair e as crianças estiverem aqui, meus pertences pessoais permaneçam onde estão. – Ela sorriu, esperançosa.

Marnie assentiu lentamente. – Sim, vejo o quanto isso poderia ter sido sério.

Ela obviamente percebera que havia mais naquela história.

– Vou te dar a chave extra, mas guarde-a bem, por favor. Não deixe na porta e, por favor, não tranque o quarto a não ser que vá sair sozinha. Assim, o cronograma de limpeza não será afetado.

Cassie perguntou-se se a chave original havia se perdido quando fora deixada na porta e, se fosse o caso, quem haveria a pegado.

– Vou mantê-la comigo o tempo todo – ela prometeu. – Muito obrigada.

Ela acabara de subir as escadas quando viu Pierre chegando. Agarrando sua bolsa e seu casaco, trancou a porta do quarto, colocou a chave no bolso e correu para encontrá-lo. Ela havia voltado para casa mais tarde do que ela esperava, mas já era quinze para as quatro da tarde. Se fosse rápida, ainda poderia chegar à cidade a tempo.

Embora tivesse decidido permanecer por mais alguns dias, ela decidiu usar a viagem até a cidade como uma oportunidade de fazer algum reconhecimento. Poderia pegar o telefone de companhias de táxi e verificar se havia sinal de celular disponível. Então, quando estivesse pronta para partir, tudo correria tranquilamente, com sorte.

Quando Cassie chegou à porta de entrada, viu que Margot também havia voltado. Os cabelos dela pareciam alguns tons mais loiros, recentemente escovados. Ela deveria ter passado a tarde no cabeleireiro, sendo buscada por Pierre no caminho para casa.

Margot passou por ela sem sequer cumprimentá-la, mas Pierre parou ao vê-la.

– Preciso te pedir um favor – Cassie disse.

– O que é? – Pierre colocou as chaves do carro no recipiente de cobre sobre a mesa do hall. Cassie notou que Margot virou-se para eles, obviamente querendo escutar a conversa.

– Poderia sair por algumas horas? Preciso ir até a cidade.

– Agora? – Pierre perguntou, franzindo o cenho. – Não é uma hora conveniente.

– As crianças precisam jantar dentro de uma hora – Margot observou, intencionalmente.

A viagem não poderia ser adiada nem mais um instante, mas Cassie sabia que, com Margot contra ela, estava à beira de receber uma recusa direta. Sem seus medicamentos, ela estaria em sérios apuros amanhã nessa mesma hora, mas não queria que Pierre soubesse disso. Seria muito melhor se pudesse oferecer outro motivo para precisar sair.

– Preciso reportar à agência de au pair e atualizá-los – explicou. – Eles me pediram para fazer isso até hoje, no máximo.

Pierre franziu o cenho para ela. – Não há necessidade de dirigir até lá para isso. Temos um telefone aqui – ele disse.

– Não, não – Cassie protestou, aprofundando-se em sua mentira. – A ligação é por minha conta. Não quero que você seja cobrado por isso. Eu também preciso fazer uma coisa importante. Eu... Hum... Preciso fazer um pagamento em uma das minhas contas. Já está atrasado e hoje é o prazo final.

Podia ver que Pierre não estava comprando sua história frágil, inventada na hora.

– Não a deixe sair agora. Certamente pode esperar até o fim de semana – Margot aconselhou. Jogando seu cabelo brilhante, ela subiu as escadas.

– Era para eu ter realizado o pagamento antes de sair dos Estados Unidos – Cassie disse. – Fiquei sem tempo de fazer algumas coisas por causa da pressa para chegar aqui.

Pierre pressionou os lábios, pensativo. Cassie imaginou se ele concluiria que ela também havia ficado sem dinheiro, e só era capaz de ir agora por causa do dinheiro que ele lhe dera.

De todo modo, para o imenso alívio dela, ele ofereceu um aceno de cabeça relutante.

– Seja rápida – ele disse. – Mesmo se perder o jantar, você deve voltar a tempo de colocar as crianças na cama.

– Definitivamente já terei voltado até lá – Cassie prometeu.

Ela pegou as chaves do Renault e correu para a garagem, perguntando-se como encontraria um consultório médico tão em cima da hora, tão perto do anoitecer.

Conforme estava prestes a entrar no carro, ouviu passos atrás dela. Olhando ao redor, viu que Pierre havia a seguido.

Cassie considerou-o, apreensiva, desejando poder jogar o dinheiro dele de volta em sua cara, mas sabendo que não poderia se dar ao luxo de fazer isso.

Talvez fosse por isso que ele havia concordado com a viagem, sabendo que gastar o dinheiro a deixaria ainda mais em dívida com ele. Mordendo o lábio, aguardou que ele falasse, se perguntando se ele tentaria dar em cima dela outra vez, e como ela lidaria com isso nesse caso.

– Você vai ligar para a agência? – ele perguntou.

– Sim. Sim, eu vou – ela mentiu outra vez.

Pierre ajustou o anel de sinete dourado em seu dedo indicador.

– O que vai contar a eles? – perguntou em uma voz mais baixa.

– Contar? – ela repetiu, confusa, antes de perceber as implicações da pergunta dele. Percebeu-se enrubescendo. – Vou dizer a eles que estou feliz aqui, que estou me ajustando bem. Vou dizer que minhas acomodações são muito confortáveis e a comida é excelente. E que eu estou começando a fazer amizade com as crianças.

Ela pressionou as chaves do carro contra seu palmo, consciente dos minutos que passavam. A que horas os médicos encerravam o expediente na França?

– Isso é tudo o que vai dizer?

– Sim, tudo. – Ela sentiu-se como uma cúmplice, desconfortável ao repetir as palavras.

– Privacidade é muito importante para nós – Pierre enfatizou. – Reputação é essencial para mim, pessoalmente, e para os negócios da minha família. Tive experiências no passado onde as pessoas mentiram, exageraram, tentaram causar estragos. Isso sempre resultou em consequências muito sérias; para eles, não para mim. Entendeu, Cassie?

Era mais do que um aviso, era uma ameaça. Ela sentiu-se gelada por dentro, se perguntando o que acontecera com as pessoas que tinham falado demais no passado.

– Entendo completamente – ela sussurrou.

Em voz mais baixa, Pierre continuou.

– Você tem dinheiro o suficiente para pagar essa conta inteira? Aqui, darei a você um adiantamento do seu salário, para garantir que sua viagem corra bem esta tarde.

Para seu assombro, ele tirou uma carteira de couro do bolso, destacou mais quatro notas de cinquenta euros de uma grande pilha, entregando-as a ela. Antes que ela pudesse dizer algo a mais, ou tentar devolvê-las, ele virou-se, saindo da garagem.

Ela deu partida no carro, percebendo que suas mãos tremiam. A mensagem de Pierre era clara. Coopere, fique quieta, jogue o jogo – e você será recompensada.

Cassie não queria nem pensar em qual seria a alternativa.

*

Estressada por ser tarde para ver um médico, Cassie se esqueceu de verificar se havia sinal de celular até já estar quase na cidade. A pequena e pitoresca cidade ficava a quinze minutos de carro do castelo e era bem sinalizada, então ela encontrou o caminho sem dificuldades uma vez que estava na estrada principal.

Após dirigir pela rua principal, viu a pequena fachada da “Pharmacie” na esquina. Estacionou e entrou correndo, olhando de relance para o horário de funcionamento na porta, que lhe informou que ela fechada às seis.

– Onde posso encontrar um médico? Preciso de uma prescrição urgente – ela perguntou ao farmacêutico, que estava absorvido em uma partida de Sudoku em seu celular.

– O Doutor Lafayette talvez ainda esteja aberto. O consultório dele é domiciliar, fora da cidade. Não é longe. Tem GPS?

– Não acho que vou conseguir acessar sem um sinal de Wi-Fi – Cassie disse, então ele desenhou um mapa para ela.

Ela conseguiu chegar ao médico logo antes de ele encerrar o expediente, e ele concordou em atendê-la. O consultório era lindo, montado em uma construção pitoresca com jardins primorosos. O Dr. Lafayette era um homem alto de meia-idade e modos simpáticos. Ele mostrou a ela a recepção, decorada com couro e pelúcia, além de pinturas de paisagens nas paredes.

– Você toma muitos medicamentos – ele disse, surpreso, quando ela lhe contou qual prescrição precisava.

Cassie ficou imensamente aliviada por ter conseguido oferecer uma alternativa razoável à família Dubois para precisar vir até a cidade, ao invés de ter que confessar que tomava um coquetel de remédios para ansiedade crônica.

– Tive alguns ataques de pânico bem ruins no passado – ela disse. – Acabei de chegar a um país novo, o que é bem estressante, e não quero que minha ansiedade seja desencadeada pela mudança de ambiente.

Ele assentiu, rabiscando em seu bloco de notas.

– Está estudando ou trabalhando? – ele perguntou.

– Sou au pair – Cassie respondeu.

– Ah. Para qual família?

Ela hesitou, lembrando-se das palavras de advertência de Pierre.

– A família Dubois – ela disse, cuidadosamente, observando para ver como o médico reagiria, mas ele estava olhando para suas anotações, e ela não conseguiu ler seu rosto.

– Está ciente... – ele disse, e ela subitamente ficou tensa, já pensando no que diria se ele perguntasse algo sobre Pierre. Mas ele estava apenas a aconselhando sobre os comprimidos. – Está ciente de que essa medicação causa sonolência? – ele disse. – É melhor tomar esses comprimidos à noite.

– Sim, é quando eu tento tomá-los. – Vendo que ele levantou uma sobrancelha, ela emendou. – Quer dizer, é quando eu os tomo. À noite.

– E essa outra medicação... Sua dose é muito alta. Alta demais, em minha opinião. Vou reduzir para meio comprimido como uma dose de manutenção. Tome um comprimido inteiro se estiver ansiosa ou deprimida, do contrário siga com a dosagem reduzida. A dosagem maior pode causar episódios psicóticos.

– Farei isso – Cassie prometeu.

– Então, o que está achando de sua experiência como au pair? – ele perguntou, rasgando a página do bloco de anotações.

Embora ele falasse em tom natural, pareceu uma pergunta sugestiva, e Cassie subitamente sentiu um desejo predominante de dizer a verdade. Afinal, se ela ouvira rumores sobre a família de outras pessoas, o médico também deveria ter ouvido. Talvez ele estivesse a convidando para explicar pelo que ela estava passando, por que sua ansiedade havia disparado, e como ela já estava a ponto de desistir.

Ela poderia contar ao médico que seu patrão tinha tendências a violência sexual, e havia dado em cima dela, depois a ameaçando com as consequências caso ela divulgasse algo, enquanto simultaneamente subornava o seu silêncio. Ou contar sobre a forma como a noiva dele havia abusado das crianças verbalmente, e a agredido fisicamente. Poderia explicar que as crianças talvez já estivessem irreparavelmente traumatizadas, sem que fosse culpa delas, e que ela acreditava fortemente que algum tipo de intervenção profissional fosse necessária, mesmo que fosse apenas a visita de uma assistente social.

Ela teria que ser rápida, porque era quase quinze para as seis, e precisava pegar seus remédios hoje, mas essa poderia ser sua única oportunidade para contar a alguém de confiança sobre seus medos e preocupações.

Cassie respirou fundo.

– Não sei como começar, mas estou tão aliviada por ter me perguntado isso. Queria desesperadamente conversar com alguém, porque preciso explicar tanta coisa – ela começou.

E então, na recepção, o telefone começou a tocar.

– Com licença – o Dr. Lafayette disse. – Minha recepcionista já foi embora. Importa-se se eu atender?

– Claro que não – Cassie disse, esperando que a ligação não demorasse.

O médico só ficou fora por um minuto.

– Obrigada outra vez por me consultar depois do expediente – Cassie disse quando ele retornou. – Fico tão grata.

Pretendia usar isso como uma introdução para os seus comentários, mas a resposta do médico a silenciou.

– Pierre Dubois é meu amigo íntimo. Ele fez muito para apoiar meu consultório ao longo dos anos, e meu irmão é o gerente da adega na vinícola dele. Sempre fico contente por ajudar qualquer um de seus empregados ou familiares. Então, Cassie, você ia me contar sobre o que está achando da sua estadia aqui?

Ela ficou sem palavras, tonta com o choque do que ele acabara de dizer. A resposta que ela formulara tão cuidadosamente congelou em seus lábios.

O silêncio estendeu-se entre eles, rapidamente tornando-se desconfortável, e ela deduziu que ele tivesse adivinhado que ela pretendia falar mal de seu patrão, e agora não tinha nada a dizer.

– A respeito da quantidade de remédios que você toma, você contou à agência ou ao seu empregador? – o médico perguntou.

– Eles não perguntaram – Cassie disse, em uma voz tímida.

Outro longo silêncio se seguiu.

Então, o Dr. Lafayette levantou-se e a entregou a receita.

– Se isso é tudo, podemos encerrar por agora – ele disse, formalmente. – A consulta é oitenta euros.

Cassie tinha esperado poder pagar em seu cartão de crédito, mas ele não passou, e ela não tinha ideia se era porque não tinha limite ou por outra razão.

Isso significava que ela precisava usar o dinheiro de Pierre. Agora, de fato, ela estava em dívida com ele, porque não poderia devolver o total.

Sentiu um mal-estar de ansiedade. Em confiança, ela havia contado demais ao Dr. Lafayette, e não tinha ideia se a pergunta dele sobre sua medicação era uma ameaça velada. Ele divulgaria os detalhes a Pierre? Amizade e relações de negócios teriam prioridade sobre a confidencialidade dos pacientes nessa cidade?

De agora em diante, Cassie percebeu que teria que manter os segredos da família para si mesma, porque não fazia ideia até onde sua influência ou seu poder se estendiam.


CAPÍTULO DEZESSETE

Um minuto após seis horas, Cassie retornou à farmácia, mas o farmacêutico fez a gentileza de esperá-la, fornecendo-a os comprimidos que precisava para o mês todo.

Cassie ainda cambaleava por conta de seu encontro com o Dr. Lafayette. Ela estivera tão perto de, por ingenuidade, soltar uma bomba que poderia tê-la colocado no pior problema possível. Até mesmo sua primeira insinuação de que havia dificuldade com a família ainda poderia ter consequências. Ela só podia rezar para que o relacionamento pessoal do médico com Pierre não se sobrepusesse à confidencialidade de paciente, especialmente considerando o choque dele com a quantidade de remédios que ela tomava.

– Essa prescrição pode ser repetida por três meses – o farmacêutico a contou. – Depois de 1º de dezembro, você pode vir a qualquer momento buscar os comprimidos do mês que vem.

Para o alívio dela, ele conseguiu substituir dois de seus medicamentos por genéricos mais baratos e, apesar de os remédios custarem um pouco mais do que a consulta médica, seu cartão de crédito finalmente cooperou e ela conseguiu usá-lo.

O farmacêutico permitiu que ela conectasse ao Wi-Fi dele enquanto esperava e, acessando sua conta bancária, viu que um pequeno pagamento do restaurante havia entrado. Tinha sido imediatamente engolido pela cobrança da farmácia, então ela estava de volta ao zero.

Ela buscou por táxis locais e pesquisou quanto custaria para alterar seu voo. Havia tantas informações conflitantes online que ela não pôde ter certeza, mas pensou que provavelmente teria condições de pagar com seu dinheiro remanescente, se não gastasse mais.

Contudo, ela teve que fazer uma última compra, que foi capaz de realizar na farmácia – comprar créditos pré-pagos.

Com seus minutos recarregados e seu Wi-Fi operando, Cassie viu uma inundação de mensagens e e-mails chegando. Havia várias ligações perdidas de amigos e uma mensagem de Jess, a au pair que conhecera no avião, perguntando como as coisas iam e se ela queria encontrá-la em seu dia de folga.

Cassie não tinha tempo ou dinheiro suficiente para responder a todas as mensagens agora. Elas teriam que esperar, porque ela precisava conservar seus minutos. No entanto, havia uma ligação urgente que precisava realizar imediatamente.

Ela voltou ao carro e ligou para o número assim que entrou, fazendo contas de cabeça para deduzir a diferença de horário para casa.

Era início da tarde, o que significava que, em um dia de semana, Zane estaria no meio de seu turno na fábrica onde trabalhava. Ainda assim, ele atendeu após três toques.

– Espera aí, amor, vou bater o ponto para fazer uma pausa – ele disse, e ela teve que esperar alguns minutos caros e intermináveis enquanto o escutava saindo do chão da fábrica. Imaginou-o vestindo jeans e a jaqueta de trabalho, caminhando através da pavimentação de concreto em direção à entrada lateral onde ficava a área de fumantes.

O som estridente ao fundo foi substituído por uma rajada de vento, informando-a que ele havia chegado lá.

– Certo – ele disse. – Tenho dez minutos. Vamos conversar.

Cassie esperava que a conversa não fosse demorar dez minutos. Queria resolver isso o mais rápido possível, sem que seus preciosos minutos sangrassem.

– Zane, como você descobriu onde eu estava? Eu não te informei o número dos meus empregadores. Eu não informei ninguém.

– Precisei investigar – Zane explicou em tom de autocongratulação. – Sabe, eu notei o nome da agência na sua mochila. Então, liguei para eles e fingi que tinha perdido o número. Na primeira tentativa, falei com uma senhora que não quis me informar. Ela disse que só poderia te repassar um recado. Mas, na segunda tentativa, um cara atendeu e ele procurou para mim.

– Por favor, não ligue mais para lá.

– Por que não, amor? Você não quer mais falar comigo?

– Não é isso.

Como poderia explicar sem que Zane ficasse ainda mais determinado em continuar ligando para o castelo? Não queria que ele pensasse que precisava vir resgatá-la.

– É uma família muito reservada – ela disse. – Não permitem que os empregados recebam ligações pessoais na casa. Normalmente, nem repassam os recados. Você teve sorte que a camareira atendeu.

Com sorte, isso convenceria Zane de que era inútil tentar novamente.

– Então, quando volta para casa? – ele soou desencorajado, mas não derrotado, pelo que ela dissera.

Cassie checou o relógio do carro. Já eram seis e meia. Precisava voltar correndo, mas não poderia começar a dirigir até ter lidado com isso, já que não tinha ideia de quanto tempo seu sinal duraria.

– Vou ficar no exterior por um ano, pelo menos – ela contou a ele, e ouviu sua exclamação de ultraje.

– Acha que isso realmente é justo comigo? Ir embora por tanto tempo sem nem se despedir direito?

– Zane, nós tínhamos terminado quando eu parti. – Exasperada, Cassie perceber que a conversa estava andando em círculos. Ela deu partida no carro e ligou o aquecedor, torcendo para que fosse capaz de encontrar o caminho de volta à mansão no escuro.

– Não. Você me deu as costas. Nós nunca terminamos. Eu voltei um dia e descobri que você tinha feito as malas e partido.

– Tive um motivo para isso, e você sabe qual é – Cassie podia ouvir a tensão em sua própria voz. Não havia o perdoado pelo que ele tinha feito.

– Não faço ideia, amor, e eu realmente estou falando sério. Não tenho a mínima ideia.

Ele estava mentindo. Ele precisava estar mentindo.

– Zane, você ficou com raiva de mim durante uma briga. Perdeu a cabeça e me agarrou tão forte que me tirou do chão. Depois, socou meu braço. Os machucados demoraram semanas para sarar. Você quis me machucar. Eu te disse na ocasião, não vou aceitar isso, e não estou disposta a te dar uma segunda chance.

Houve um breve silêncio.

– Eu realmente não sei do que você está falando. Foi quando te tirei do caminho daquele carro? Amor, nós estávamos discutindo em um estacionamento, e você estava chateada, não estava olhando; você literalmente entraria na frente de um SUV. Só queria te manter a salvo.

Não tinha acontecido daquele jeito. Não mesmo. A versão dele estava muito longe da verdade. Escutá-lo somente deixou Cassie mais determinada a se afastar para sempre. Sabia que, se estivesse lá, assistindo enquanto ele abria os braços inocentemente ao falar, erguendo as sobrancelhas, parecendo quase comicamente indefeso, ela ia querer comprar a história dele. Parte dela ansiava por acreditar que ele estava certo, e que ela tinha interpretado a situação errado.

– Não vou mais brigar com você, Zane, mas não vou voltar.

– Por favor, Cassie. Você não entende o quanto eu sinto sua falta. Todos os nossos amigos estão perguntando onde você está. Ah, e eu queria te contar, tem uma vaga de trabalho na fábrica. Não no chão, no escritório. Eles estão procurando uma assistente na equipe de marketing. É um bom salário e uma perspectiva muito boa. Eu disse que iria te contar. Quer que eu te envie os detalhes? As inscrições devem ser feitas até segunda-feira.

Cassie tentou fechar os ouvidos às palavras dele. Zane era perito em adivinhar exatamente o que seria preciso para fazê-la mudar de ideia e, nesse momento, ela tinha que admitir que um trabalho com perspectiva seria um verdadeiro bote salva-vidas.

Ela disse a si mesma que a vaga no marketing provavelmente nem existisse, e se existisse as inscrições provavelmente já teriam se encerrado; e, mesmo se ainda estivesse em aberto, por que dariam o trabalho a ela?

Não era como se Zane, um trabalhador do chão de fábrica, pudesse fazer algo para influenciar o resultado.

– Agora não, obrigada. Estou comprometida em ficar aqui, então não posso ir para casa.

– Mas, amor, você não parece feliz. Posso ouvir na sua voz. Soa estressada demais. Você não vai querer ficar aí se não é o melhor para você.

Cassie rangeu os dentes.

– Estou estressada porque estou atrasada. Tenho que ir. Por favor, não me ligue de novo. Não vou atender nem falar com você. Adeus, Zane.

Ela apertou com força o botão de desligar, cortando os berros de protesto dele.

Em seguida, ela desligou o celular e saiu do estacionamento, fervendo de frustração pela conversa inútil e por como fora fraca perante Zane. Por que era tão difícil enfrentá-lo? Mesmo quando finalmente reunira a coragem de desligar na cara dele, tinha pedido para “por favor” não ligar outra vez. Por favor! Como se pedisse um favor dele. Ela continuava a colocar todo o poder nas mãos dele. Não era de se admirar que ele acreditasse que poderia ter outra chance com ela.

De qualquer forma, graças àquela conversa, ela agora retornaria ainda mais tarde. Talvez não chegasse nem a tempo de colocar Ella para dormir, e sabia que teria que explicar o porquê de ter passado tanto tempo na cidade.

Enquanto destruía seu cérebro por um desculpa válida, acabou perdendo a curva para o castelo. Tudo ficava tão diferente no escuro. Embora o caminho para a cidade fosse bem sinalizado, ela não tinha pensado em notar a sinalização do caminho oposto. Agora percebia seu erro. A cidade era claramente sinalizada, o castelo, não. Ela estava desorientada, sem ter ideia da direção que deveria seguir. Encostou o carro e tentou conectar o GPS, porém não conseguiu obter sinal, para sua frustração.

Ao perceber, alguns quilômetros depois, que definitivamente tinha ido muito longe, tentou fazer o retorno; porém, ao invés de virar à direita para contornar, terminou entrando em um acesso à rodovia por engano. Encontrou-se na autoestrada a caminho de Estrasburgo.

– Merda, merda, merda – ela sussurrou, percebendo a dimensão do erro que havia cometido. Nessa rodovia, que estava mais para uma pista de corrida, ela não conseguia ir devagar ou tentar se orientar. O tráfego voava e ela teve que acelerar simplesmente para evitar causar um acidente.

Agarrando-se com força ao volante, Cassie percebeu que talvez precisasse dirigir por quilômetros ao longo da rota infernal – a rodovia era tão iluminada e clara quanto a estrada vicinal estivera escura, mas a levava rapidamente para a direção completamente errada. Será que jamais encontraria o castelo outra vez? E, se encontrasse, como explicaria o atraso imperdoável, após ter sido expressamente avisada para voltar a tempo de colocar as crianças na cama?

Após o que pareceu uma viagem interminável, Cassie conseguiu encontrar uma saída onde poderia fazer o retorno e refazer sua rota; porém, depois do erro que cometera e do estresse no volante, descobriu que seu senso de direção estava completamente bagunçado. Perdeu a rampa de saída e teve que começar o processo todo novamente, dessa vez em direção a Paris.

Quando finalmente foi capaz de pegar a saída que achava ser a correta, não conseguia se lembrar de nenhuma das curvas que tinha feito para chegar até a rodovia e, com uma sensação de desgraça, compreendeu que tinha seguido o caminho completamente errado.

Cassie sentia-se presa em um pesadelo sem fim, virando a cada estrada vicinal escura e silenciosa que encontrava, desesperadamente espreitando através da escuridão, na esperança de descobrir qualquer tipo de ponto de referência com o qual pudesse se orientar. Mas os minutos tiquetaqueavam e nenhum ponto de referência apareceu.

As casas nos arredores eram todas afastadas da estrada e só algumas possuíam campainhas ou interfones nos portões. Em desespero, ela tentou tocar alguns deles, mas dois nem sequer foram atendidos; depois, uma pessoa lhe disse para seguir em uma direção que a levaria de volta para a rodovia, e a última pessoa, uma senhora idosa, eventualmente admitiu não ter ideia de onde o castelo ficava, após uma frustrante e longa conversa.

Eventualmente, por pura sorte, Cassie tropeçou em uma estrada que achou reconhecer. Mal pôde acreditar ao perceber que se aproximava do castelo, vindo de uma direção completamente diferente, passando pela pequena vila onde o carnaval ocorrera. A essa altura, Cassie abrira mão de qualquer esperança, pois era tarde demais para se redimir ou sequer se explicar direito. Como uma pessoa normal poderia ter ficado tão completa e impossivelmente perdida como ela?

Ela tinha parado de olhar para o relógio em sua busca, já que isso apenas fazia seu pânico piorar, mas agora Cassie olhou de relance para ele enquanto dirigia pela sinuosa entrada da garagem. Eram quase oito horas, e ela se preparou para a tormenta de criticismo de Pierre. Ele exigiria saber onde ela estivera, e ela não sabia como poderia convencê-lo de ter dirigido pelos arredores por mais de uma hora.

Quando ela abriu a porta de entrada, estava despreparada para o caos que encontrou.

Um prato decorativo jazia em pedacinhos perto da escadaria e alguém – Marc, ela imaginou – estava esmurrando as teclas do piano na sala de música de forma desafinada. Ella estava sentada no topo das escadas, chorando; ao longe, ela conseguia ouvir Margot e Antoinette gritando uma com a outra na sala de jantar.

– Desculpe por estar tão atrasada. Está tudo bem? – Cassie chamou, ansiedade entrando em erupção dentro dela. Onde estava Pierre? O que tinha acontecido? Duvidava que as crianças estariam correndo feito loucas se ele estivesse na casa.

Um breve silêncio seguiu-se ao berro dela.

Então, Margot gritou de volta, sua voz aguda, estridente e furiosa.

– Venha aqui imediatamente, Cassie! Como ousa me deixar sozinha com as crianças a noite toda? Onde diabos você estava?

Margot não esperou que Cassie chegasse à sala de jantar. Ela a confrontou no corredor, seu rosto corado de raiva, seus lindos cabelos loiros desgrenhados.

– Explique tudo para mim, nesse instante – ela gritou, e Cassie sentiu o cheiro de álcool em seu hálito. Algo mais forte que vinho; ela cheirava a destilados. – E é melhor me contar a verdade dessa vez, sua vadia mentirosa!


CAPÍTULO DEZOITO

Cassie encarou Margot, chocada. Estava horrorizada com a loira gritando esses insultos de forma que as crianças pudessem ouvir, e não tinha ideia de como poderia neutralizar a situação, que já havia se intensificado de modo tão ruim.

Margot obviamente tinha bebido muito, e Cassie supôs que ela não tinha sido capaz de cuidar das crianças sozinha, rapidamente perdendo o controle. Agora, ela estava extravasando sua fúria em Cassie por ter saído e a deixado nesse dilema. Talvez fosse parte do motivo de ela estar tão furiosa – porque se sentia impotente.

– Sinto muito por ter voltado tão tarde – ela disse, fazendo o máximo para falar calmamente. – Peguei o caminho errado voltando da cidade, me perdi completamente. Devo colocar as crianças na cama agora?

– Ah, você pegou o caminho errado? Essa é a verdadeira razão de estar tão atrasada? – Margot fez pouco caso. Ela deu um passo à frente, inclinando-se no espaço de Cassie, tão perto que Cassie conseguia ver o bordado intrincado no casaco turquesa dela, que parecia ser caro. – Você não quer que as crianças saibam que a au pair delas é nada mais do que uma vagabunda comum e mentirosa?

Cassie recuou ao perceber que Margot não estava apenas atirando insultos aleatórios, mas tinha pulado direto para uma conclusão equivocada. Ou talvez, disse a si mesma, com uma pontada de culpa ao se lembrar das ameaças e promessas sussurradas de Pierre em seu quarto, ela não estivesse tão errada quanto Cassie gostaria que ela estivesse.

Olhando atrás de Margot, Cassie viu Antoinette esperando da sala de jantar. Pela primeira vez, o equilíbrio habitual de Antoinette parecia tê-la abandonado. Seu rosto estava pálido e fixo, e Cassie imaginava que ela tivesse chorado.

– Por favor, podemos discutir isso em particular? – ela implorou a Margot. – Você entendeu a situação totalmente errado. Vou te explicar tudo, mas não acho que é certo as crianças ouvirem.

Margot ignorou seus apelos e continuou com seu discurso enfurecido.

– Você saiu, e Pierre saiu imediatamente depois! Então você retorna mais de três horas depois? Ele ainda não voltou. Você pensa que sou estúpida? Sei o que você estava fazendo! Já vi o modo como ele olha para você.

– Não sei onde Pierre foi – Cassie insistiu, ciente do quão fraco isso parecia e da coincidência que era ele ter saído imediatamente depois dela; ele não tinha sequer mencionado que sairia.

– Mostre sua carteira. Ande, tire da bolsa e me mostre! – Margot apontou um dedo de ponta carmesim para a bolsa de Cassie.

– Minha carteira?

O que Margot esperava encontrar? Cassie se perguntou. Uma chave de hotel? Um bilhete escrito à mão? Não havia nada disso em sua posse. Confusa, abriu a bolsa e a entregou, esperando que isso provasse sua inocência, preocupando-se tarde demais se Margot rasgaria sua carteira por conta de sua raiva.

Margot a arrancou dela, puxando-a para abri-la.

– Veja só – ela disse, triunfante, puxando um maço de notas laranja de cinquenta euros, atirando-as ao chão. Cassie assistiu às notas flutuando até o chão, e seu estômago desabou com elas, porque entendeu que o instinto de Margot estivera certo. – Quanto dinheiro para alguém que estava reclamando esta manhã de ter tido todo o seu dinheiro roubado – Margot a provocou. – Vai fingir que sacou da sua conta na “cidade”? Pensei que você fosse pagar uma conta, e não receber dinheiro. Mas alguém te deu dinheiro, não deu? Quem será que pode ter sido?

– Pierre me deu um adiantamento do meu salário – Cassie disse.

– Ah, não, ele não deu. Você tirou dinheiro dele de outra maneira, sua vadia!

Cassie reprimiu um grito quando Margot agarrou seu ombro, empurrando-a para trás. Ela cambaleou e sua bolsa caiu de seus ombros. O conteúdo espirrou pelo chão – batons, grampos de cabelo e canetas se espalhando pelo piso de mármore.

Ela olhou para baixo e, ao fazê-lo, a mão de Margot chicoteou seu rosto em um tapa ardido. Dessa vez, Cassie soltou uma exclamação.

Novamente, o instinto inicial de Cassie foi devolver o tapa à loira. A força pura da raiva a assustou. Controlou-se com grande esforço, dizendo a si mesma que deveria ser a pessoa mais forte e superior, e não descer ao nível de Margot. Precisava tentar resolver isso pacificamente – especialmente já que Antoinette assistia.

– Margot, por favor! Acalme-se. O que eu disse é a verdade.

Margot a empurrou outra vez e Cassie pisou em seu batom, quase caindo quando ele rolou sob o seu pé. Ouviu um estalo e o tubo quebrou.

Ela começava a se sentir estranhamente dissociada. O modo como Margot debruçava-se sobre ela, as provocações e o mau cheiro do álcool em seu hálito estavam dragando memórias das quais há tempos ela havia se esquecido. Outro lugar, outra época. Quando era bem mais jovem, e morria de medo ao confrontar outra mulher bêbada e furiosa que a provocava.

Elaine, a mais odiada das namoradas de seu pai.

Cassie lembrava-se, agora, que não tinha apenas desejado que ela fosse embora. Desejara que ela estivesse morta. E dissera aquilo – gritando as palavras enquanto atacava a mulher com seus punhos – batendo nela, chutando-a, enrolando os dedos para tentar arrancar seus olhos.

– Queria que você estivesse morta – ela havia gritado para Elaine. – Entre no seu carro e bata. Vá lá para cima e pule da janela!

E Elaine gritava de volta, atacando-a com muito mais força.

– Suma daqui, sua vadia estúpida e magricela. Por que não mergulha debaixo de um caminhão? Ou encontra a arma do seu pai para brincar? Pensa que alguém quer você aqui?

As palavras dela haviam entalhado um enorme abismo no coração de Cassie, porque no fundo sabia que a verdade era que ninguém lhe queria lá. Nem sei pai, nem Elaine, nem qualquer um dos amigos bêbados deles. Ela era uma despesa, uma responsabilidade, uma inconveniência. E talvez só de olhar para ela seu pai se lembrasse de sua mãe, e da pessoa que ele costumava ser.

Agora, enquanto ela lutava por controle, lembrou-se de como havia perdido da última vez. Elaine e ela haviam se machucado muito. Elaine arrancara um tufo de seus cabelos, fazendo o couro cabeludo de Cassie sangrar, e Cassie havia deslocado o dedo de Elaine, que gritara em agonia, finalmente a soltando. Elaine tivera que ir até o pronto-socorro para o tratamento, e elas por fim chamaram uma ambulância, porque quando seu pai voltara para casa, meia hora depois, ele estivera bêbado demais para levá-la de carro.

Agora, ela via a mesma raiva em Margot, a mesma perda de controle.

O mesmo ódio.

A loira rosnou, furiosa, ao agarrar Cassie. Suas unhas arranharam a pele de Cassie, rasgando suas roupas, seus nós dos dedos batendo repetidamente no rosto dela.

– Pare – Cassie gritou.

Ela soltou sua bolsa e abandonou seus próprios os bons conselhos. Não estava preparada para tolerar esse abuso por mais um momento. Havia dado a Margot tempo mais que suficiente para se acalmar e ser racional, mas ela não faria isso. Margot estava além da razão ou das palavras – ela estava em modo de ataque, e Cassie estava preparada.

Conforme Margot investiu contra Cassie, ela arranhou o rosto da loira, sentindo suas unhas na pele dela e ouvindo Margot ofegar. Porém, um dos saltos verde-limão de Margot afundou no pé de Cassie, perfurando a fina lona de seu tênis. Cassie oscilou para trás, gritando de dor, mas, com o pé preso, se desequilibrou e caiu, seu quadril e ombro batendo no piso de mármore escorregadio.

Ouviu o choro aterrorizado atrás de si e soube que Ella tinha vindo ver o que acontecia.

– Ella, volte para o andar de cima – ela gritou.

Não poderia fazer nada caso Ella a ignorasse. As crianças seriam afetadas por isso de qualquer jeito, e a única escolha que tinha era se eles a veriam sendo derrotada por Margot ou se a veriam vencendo.

Cassie se defendeu o melhor que pôde. Agarrou os tornozelos de Margot, na esperança de desequilibrá-la, mas Margot começou a pisotear e chutar, então Cassie precisou contorcer-se, saindo do caminho para evitar seu salto-alto letal.

Cassie também chutou e acertou a canela de Margot, e ela guinchou de dor. Encorajada, Cassie chutou novamente e Margot recuou, praguejando violentamente.

Então, atrás de Margot, Cassie viu que Antoinette tinha entrado na briga. Com os olhos semicerrados, ela mirou cuidadosamente antes de socar a loira na parte de trás do joelho com toda sua força.

A perna de Margot cedeu e, gritando, ela tombou de seus saltos. Ela tentou agarrar uma prateleira para impedir sua queda, arrancando um dos lados da dobradiça. Pássaros de cobre tiniram no chão ao seu redor, mas Margot apanhou uma grande máscara africana antes de cair.

– Vadia! Você me machucou. – Usando a máscara pesada como um taco, ela a balançou em direção a Cassie, que se dobrou conforme a cabeça de madeira batia no chão, onde seu braço tinha estado. Com Margot temporariamente desequilibrada, Cassie agarrou a outra ponta da máscara, tentando arrancá-la de Margot.

Margot debruçou-se sobre ela, gritando ameaças e obscenidades enquanto tentava chutar Cassie para longe.

– Vadia! Vagabunda!

Defendendo-se com uma das mãos, segurando a máscara firmemente com a outra, Cassie conseguiu cambalear até ficar de pé. Em seguida, empurrou a máscara o mais forte que pôde em direção a Margot, que se estatelou no chão.

Cassie jogou a máscara em Margot, sentindo uma onda de triunfo quando bateu na testa dela.

Então, ela virou as costas e correu. Já bastava. Ela se trancaria em seu quarto até Margot recobrar sua sanidade. Felizmente, Ella não estava em lugar nenhum, e Cassie torceu para que ela tivesse saído quando ela mandara, e não tivesse ficado para assistir a briga toda.

Conforme correu e dobrou o corredor, Cassie colidiu com Pierre.

Ela só o viu no último instante e, mesmo tentando desacelerar, ainda bateu contra ele com força.

Pierre agarrou-a com força enquanto os dois vacilavam.

– O que está acontecendo aqui? – ele berrou conforme Margot dobrava o corredor, e Cassie lutou para sair das garras de Pierre ao ver o veneno no rosto de Margot.

– Tire suas mãos dela – Margot cuspiu.

Cassie viu que bochecha dela sangrava – suas unhas haviam cortado a pele de porcelana de Margot, que estava mancando, embora parecesse não ter consciência de nenhum dos ferimentos, mais furiosa do que nunca.

– O que está sugerindo? – Pierre perguntou. Sua voz era discreta, mas o tom deixou Cassie profundamente inquieta.

– Você e ela! – Margot afundou um dedo em cada um deles para enfatizar suas palavras. – Vocês estavam juntos. Não tente negar. Eu sei o que vocês estavam fazendo.

Pierre soltou um suspiro pesado.

– Margot, você está errada. Fui a Paris para avaliar uma escultura que vai a leilão na semana que vem. Seu comportamento é completamente inaceitável. E o seu também – ele virou-se para Cassie, sua testa enrugada.

Antes que Cassie tivesse uma chance de explicar que agira em defesa própria contra a mulher louca que Margot se tornara, ele continuou.

– Vá imediatamente para o seu quarto, Cassie, não preciso que trabalhe mais essa noite. Vou cuidar das crianças agora. Podemos discutir essa situação amanhã.

– Mas... – ela tentou.

– Vá – Pierre insistiu.

Apesar de sua expressão atormentada e da finalidade de seu tom, Cassie encontrou a coragem para permanecer no lugar. Não poderia se permitir ir embora sem explicar o que acontecera.

– Por favor, poderia me escutar? Isso não foi minha culpa – ela insistiu.

– Foi, sim – Margot silvou atrás dela.

– Margot me atacou. Eu estava só me defendendo.

– Não estava! Veja como o meu rosto está arranhado – Margot argumentou.

Pierre passou o olhar entre ela e Margot. Por um instante de esperança, Cassie acreditou que ele ao menos aceitaria o que ela dissera. Então, o rosto dele ficou sombrio.

– Margot é minha noiva e vou ouvir o lado dela da história primeiro. De qualquer forma, eu acredito que você chegou atrasada além do aceitável. Se tivesse chegado a tempo, nada disso teria acontecido. Vamos discutir mais sobre isso amanhã.

Frustrada por Pierre recusar-se a ouvi-la, mas sabendo que não deveria forçar mais a situação, Cassie deu as costas. Recolheu seus pertences espalhados, guardando-os de volta na bolsa. Uma das notas estava rasgada e o batom esmagado não tinha salvação. Ao se afastar, sentiu-se envergonhada, como se as palavras de desdém de Pierre já haviam decidido sua culpa.

A música do piano havia parado. Cassie supôs que Pierre havia desviado para a sala de música ao passar, porque Marc não estava em lugar nenhum. Quando chegou à escadaria, Marnie veio correndo da cozinha com uma pá de lixo e uma vassoura para varrer os fragmentos do prato.

– Acredito que você acabou de ter uma briga horrível com Margot – ela sussurrou.

Cassie assentiu.

– Falo com você mais tarde – Marnie disse antes de se virar, curvando-se para varrer a sujeira no chão.

Ella ainda estava no topo das escadas, chorando ainda mais.

– Você vai me colocar na cama agora? – ela soluçou. – Margot foi muito má conosco hoje.

– Seu pai vai te colocar na cama – Cassie disse. – Talvez ele leia uma história para você, se você pedir com jeitinho.

Bagunçou os cabelos de Ella ao passar.

Após a terceira tentativa de colocar a chave na fechadura, percebeu o quanto tremia. Quando entrou no quarto, estava a ponto de chorar. Sentia-se extremamente traumatizada com a briga recente, furiosa com as acusações de Margot. Desejava ter atirado a máscara forte o bastante para nocauteá-la. Não, forte o bastante para causar danos permanentes ao cérebro egoísta e cruel dela.

Cenas da briga continuavam repassando em sua mente. O fedor de álcool no hálito de Margot e os insultos que ela berrara para Cassie. Como ela precisara se contorcer para longe do salto alto verde-limão de ponta de ferro afiada conforme Margot tentava esmagá-la com os pés. O modo como sua visão explodira em estrelas quando ela bateu contra o piso. O olhar no rosto de Antoinette – totalmente perturbado, como se ela estivesse cansada do bullying de Margot.

A lufada de perfume que ela sentira inesperadamente; um aroma delicado e feminino que havia sido chocante para ela, por alguma razão.

Cassie franziu a testa, tentando fazer sentido daquilo. Não havia o notado quando Margot a atacara. Seus olhos se arregalaram com a compreensão de quando sentira aquele cheiro. Fora logo após colidir com Pierre. Ela havia sentido o cheiro grudado na pele dele.

Subitamente, Cassie perguntou-se se Pierre havia, de fato, tido um encontro romântico com outra pessoa.

Bem, se ele tivera ou não, o ataque de Margot era completamente injustificado, e Pierre se fizera de surdo para o lado dela da história. Ele não havia se importado. Não ficara do lado dela, e não faria nada para prevenir que isso acontecesse novamente.

Quanto a Margot, ela era um demônio vindo diretamente do inferno.

A raiva cresceu em Cassie ao pensar na forma como fora tratada. Era completamente inaceitável. Essa casa estava presa na idade das trevas, de muitas formas. Não havia conexão de celular, internet ou TV, e a noiva do proprietário sentia-se no direito de abusar dos empregados como se eles fossem posses, e não seres humanos.

Quando mais pensava nisso, mais furiosa ficava. Raiva do tratamento injusto fervilhava nela. Tinha vontade de marchar até o quarto de Pierre agora mesmo e estapear Margot o mais forte que pudesse. Isso mostraria a ela.

Uma leve batida na porta do quarto puxou Cassie de seus pensamentos vingativos.

– Entre – ela disse.

Marnie entrou, fechando a porta rapidamente atrás de si. Ela segurava um prato coberto.

– Sinto muito pelo que aconteceu – ela disse em voz baixa ao colocar o prato sobre a mesa. – Não sei se você já comeu hoje, mas trouxe queijos e biscoitos, caso você esteja com fome.

– Obrigada – Cassie disse. Não tinha fome alguma, mas o gesto de Marnie era tão gentil que não poderia recusar a comida. Destampou o prato e pegou um biscoito, mas sua boca estava tão seca que teve dificuldades para mastigar. Tossindo, pegou um copo d’água na mesa de cabeceira.

– Sinto muito que isso tenha acontecido – Marnie mostrou empatia. – As coisas têm sido bem difíceis para todos nós desde que Margot chegou.

– Posso imaginar.

– Na primeira vez que eu disse a ela que a entrega da comida chegaria atrasada, e que teríamos que mudar os planos do cardápio de uma festa, ela me deu um tapa.

– Sério? Você também? Isso é horrível. O que você fez?

O rosto de Marnie endureceu. – Fiquei tão surpresa na hora que não fiz nada – ela disse. – Depois, fiquei tão furiosa que poderia matá-la. Nunca, jamais um patrão tinha me tratado dessa forma. Mas não reclamei, porque ela tinha demitido três empregados depois que uma joia “desapareceu”. Eu não acho que tenha desaparecido coisa nenhuma. Acho que ela vendeu, e Pierre notou que a peça tinha sumido.

– Sério?

– Ah, sim. Pierre controle todo o dinheiro e o que ela gasta. Se eles brigam, a torneira do dinheiro fecha. Ou pelo menos é o que eu entendi das brigas que já ouvi por acaso.

– Como você se sente estando nessa situação? – Cassie perguntou, comendo um pedaço de queijo. A conversa era estranhamente reconfortante. Ao menos ela não se sentia mais como a única inimiga de Margot.

– Todos que trabalham aqui a odeiam, e nenhum de nós quer ficar. Estou procurando outro emprego – Marnie confessou. – Já tenho uma oferta, de uma pousada no vilarejo vizinho. Até o fim do mês decidirei para onde vou, e entregarei meu aviso prévio.

– Não te culpo. Sinto o mesmo, e só estou aqui há três dias. Também quero me demitir, e acho que farei isso.

Marnie assentiu em compreensão. – Não é fácil aqui. Ninguém pode te culpar por ir embora. A au pair que trabalhou aqui antes de você desistiu depois de um mês, pelos mesmos motivos. E agora é melhor eu deixar você dormir um pouco. Vamos esquecer que tivemos essa conversa e não vamos mais mencioná-la, ou as coisas não terminarão bem para nenhuma de nós nessa casa.

Ela ofereceu um sorriso conspiratório a Cassie enquanto saía.

Cassie decidiu que as palavras de Marnie cimentaram sua própria decisão. Ela não estava preparada para permanecer em um lar onde esse nível de violência poderia, e iria, acontecer regularmente. Já estava destruída física e emocionalmente, e agora descobrira que sua única amiga iria embora até o fim do mês.

Cassie resolveu que, para sua própria sanidade, teria que pedir demissão pela manhã.

Passou uma hora fazendo as malas cuidadosamente. Não se importava com os apelos de Ella, ou as ameaças de Pierre. Não pensaria nas implicações dessa decisão para sua carreira. Cuidaria de si mesma e de seu próprio bem-estar, e só podia torcer para que o resto se encaixasse.

Quando tudo estava empacotado e pronto, Cassie deitou na cama, mas descobriu que não conseguia dormir. Suas costas estavam machucadas e doloridas, um músculo de seu ombro distendido durante a rixa com Margot, e esses eram apenas os danos físicos.

Desde que fugira de casa, tinha lutado para evitar repetir o que tinha sofrido quando criança.

Tinha ativamente evitado conflitos. Terminara com Zane na primeira vez que ele levantara a mão por raiva. Escolhera amigos que eram pessoas gentis, que viviam como ela aspirava, e tinha tentado escolher empregos nos quais teria o mínimo atrito no local de trabalho.

Agora, parecia que a caixa de Pandora de suas memórias tinha sido aberta. Ela se lembrava das vezes em que seu pai havia lhe batido. Tinha começado como um ocasional empurrão ou tapa, crescendo para espancamentos completos, como se ele não pudesse controlar a raiva interna pela triste virada em sua vida, então ele descontava tudo nela.

Cassie recordava-se, agora, que houvera outras brigas com Elaine. E lembrava-se vividamente da vez em que tinha pegado um dos amigos de Elaine no quarto dela, remexendo em suas gavetas. Sua única arma havia sido as chaves da casa que segurava. Ela atacara o homem baixo de meia-idade com elas, e ele terminou correndo do quarto com um corte no rosto.

Mas ele tinha voltado, mais tarde naquela noite.

– Ei, querida. Está aí, garotinha?

Cassie se arrepiou. Lembrou-se do pânico sufocante que sentira se escondendo dele, sabendo que ele não queria, se a encontrasse, somente dar o troco pelo machucado que ela causara a ele – e sim planejava fazer algo muito pior.

Com as mãos trêmulas, abriu a embalagem de comprimidos que comprara na farmácia. Não era hora para meia-dose; tomou um de cada. O copo só tinha água suficiente para engoli-los.

A seguir, ela se aconchegou em seus travesseiros, cheia de dores e traumatizada, esperando que os comprimidos funcionassem para que ela pudesse finalmente dormir.

Porém, enquanto esperava, Cassie percebeu que ouvia um barulho vindo do outro lado da porta de seu quarto.

Cassie desceu da cama, indo até a porta nas pontas dos pés da forma mais silenciosa que pôde. Ouviu com atenção, esperando um intervalo na brisa tempestuosa que chacoalhava sua janela.

Então, ouviu de forma inconfundível – o som suave e contínuo de uma respiração.

Alguém estava parado do lado de fora do quarto dela.


CAPÍTULO DEZENOVE

A mão de Cassie tremeu ao girar a chave da porta de seu quarto. Tentou ser silenciosa ao fazê-lo, mas a chave produziu um clique audível e depois emperrou. Ela conseguiu ouvir passos rapidamente retrocedendo.

Cassie lutou com a fechadura, finalmente girando-a. Abriu a porta e olhou no corredor.

Ninguém a vista.

Quem estivera do lado de fora do quarto dela? Pierre? Margot?

Uma raiva justificada guiou os pés dela por conta própria pelo corredor, até o quarto de Pierre. Assim que dobrou a esquina, ouviu vozes levantadas e percebeu que eles estavam brigando a portas fechadas. Não poderia ter sido nenhum deles. Parecia uma discussão acalorada e acrimoniosa, e ela perguntou-se se Margot também teria sentido o cheio de perfume na pele de Pierre, ou se ainda estavam brigando por causa do comportamento dela com Cassie mais cedo.

Cassie estava curiosa para saber, mas as palavras não estavam claramente audíveis do outro lado da porta. Sentia-se nervosa demais para se aproximar da porta do quarto novamente. Tinha estado lá duas vezes, e em ambas as coisas tinham terminado mal. Não queria arriscar ser descoberta uma terceira vez – mesmo que, no fundo de sua mente, fantasiasse sobre irromper pela porta, entrar no meio da discussão e exigir que seu lado fosse ouvido.

Pelo menos diria o que queria antes de ir embora.

Parada, indecisa, no corredor, as vozes pararam abruptamente, e Cassie apressou-se de volta para o quarto dela.

Apagou a luz e, para se acalmar, tirou outro de seus comprimidos da cartela e o engoliu sem água mesmo. Se a sonolência fosse um efeito colateral, estava satisfeita em tomar o dobro da dose recomendada. Era a única forma de conseguir dormir após o trauma do dia.

Quando estava à beira do sono, ouviu um grito no final do corredor que fez com que ela acordasse em um salto outra vez.

Cassie sentou-se e acendeu a luz de cabeceira, escutando, ansiosa, perguntando-se o que estava acontecendo e se havia se lembrado de trancar a porta ao retornar ao seu quarto. Quando ouviu o grito pela segunda vez, reconheceu a voz de Ella. A jovem menina deveria estar tendo outro pesadelo e, independentemente da ordem de Pierre para que permanecesse em seu quarto, Cassie precisava ir confortá-la.

Remexeu sua mala em busca de seu roupão, para o caso de acabar passando algum tempo com Ella, e correu para o quarto dela, em seguida.

– Ella, sou eu. Está tudo bem, não se preocupe. Estou aqui.

Rapidamente, Cassie acendeu a luz e fechou a porta, caso o choro de Ella alertasse Margot. A última coisa que precisava era outro confronto tarde da noite com a loira enlouquecida.

– Estava tendo um pesadelo?

Ella ainda estava na agonia de seu pesadelo. Seus pequenos punhos bateram contra Cassie e ela chorava enquanto dormia.

– Pare! Está me machucando!

Preocupada pelo que poderia ter causado o pesadelo, Cassie cutucou-a de leve até acordá-la.

– Está tudo bem – ela a tranquilizou. – Veja, aqui está o seu ursinho. Quer se sentar um pouco para ter certeza que não vai voltar para o sonho?

Ella estava fervendo de tão quente e suas costas estavam ensopadas de suor. Estivera quase soterrada debaixo das cobertas, o que seria suficiente para deixá-la com calor, mas Cassie torceu para que ela não estivesse ficando com febre também.

– Está se sentindo mal? – perguntou, preocupada.

– Tive um sonho terrível – Ella soluçou. – Não conseguia respirar, Cassie. Alguém estava me enforcando. Foi horrível. Pensei que eu ia morrer!

– Ah, Ella, deve ter sido muito assustador. Sinto muito por você ter sonhado isso. Mas não aconteceu. Olhe, você está bem agora. Acho que você talvez estivesse lutando para respirar debaixo de todas as cobertas. Eu também não gosto de dormir com as cobertas em cima da minha cabeça. Será que eu devo abrir a janela para deixar o ar entrar?

Quando Ella assentiu em consentimento, Cassie foi até a janela e abriu só uma fresta, para que um sopro de ar frio entrasse.

Ficar de pé fez com que ela se sentisse tonta e desorientada, como se estivesse assistindo a si mesma abrindo a janela de algum lugar distante. Imaginou que fosse consequência do estresse.

– Vou ficar com você até você dormir – ela prometeu, alisando o travesseiro de Ella, depois a ajudando a se aconchegar outra vez.

– E amanhã? – Ella perguntou, queixosa. – Vai estar aqui amanhã? Ou você vai ter ido embora quando eu acordar?

Cassie perguntou-se se Ella tinha sido a pessoa parada do lado de fora de seu quarto. Talvez ela conseguisse ver através da fechadura, se ficasse nas pontas dos pés. Ou talvez ela tivesse simplesmente estado esperando do lado de fora, e ouviu Cassie colocando a mala no chão, seguida pelo som da mala sendo feita. De qualquer forma, o palpite dela foi desconcertantemente preciso, e Cassie soube que precisaria contar uma mentira reconfortante.

– É claro que ainda estarei aqui – ela tranquilizou a jovem menina, culpada em saber que planejara ir embora assim que estivesse claro.

O mínimo que poderia fazer era esperar até que Ella caísse em um sono imperturbado, então Cassie leu uma história para ela, escolhendo a que Ella disse ser sua favorita. Depois da história, Ella pareceu muito mais calma e Cassie esperava que ela tivesse esquecido o sonho de antes.

Cassie sentou-se na beirada da cama de Ella e esperou até ter certeza de que ela dormia profundamente. Afastou uma mecha de cabelo do rosto dela, no caso dele cair em sua boca e fazê-la sonhar que estava sufocando outra vez.

Então, franziu o cenho, olhando para baixo. Era uma sombra no pescoço dela, ou outra coisa?

Observando de perto, Cassie viu o fraco, porém inconfundível, contorno de um hematoma se desenvolvendo.

Raiva a preencheu conforme observava. Alguém – e poderia adivinhar exatamente quem – havia feito isso com Ella, talvez apenas algumas horas atrás.

Conseguia imaginar o confronto, como talvez Margot tivesse gritado com Ella para calar a boca e ouvi-la. Quando ela não ouviu ou obedeceu, a loira deve ter agarrado seu pescoço.

Talvez ela já estivesse bebendo àquela altura. Parecia que ela rápida em suas agressões físicas quando estava com raiva.

Ella devia estar completamente traumatizada com a experiência. Não era de se admirar que ela estivesse chorando quando Cassie voltou para casa. Provavelmente tinha apagado o incidente de sua mente, mas seu subconsciente, em seu sono, se lembrara, e tentara afastar os demônios.

Cassie sentiu uma onda de fúria tão poderosa que ficou assustada.

Como a filha mais nova, Ella era de longe a mais vulnerável a esse tipo de abuso, que deixaria nela as cicatrizes mais profundas.

Cassie resolveu que, antes de deixar a França, denunciaria a família às autoridades relevantes. Com sorte, o abuso de Margot seria investigado e pararia. Seria a última coisa que ela poderia fazer para ajudar Ella, antes de dar as costas à família Dubois para sempre.

*

Cassie retornou ao quarto dela, ainda sentindo como se estivesse tendo uma experiência fora de seu corpo, sem conseguir se livrar da raiva ainda latente dentro de si. Não achava que conseguiria dormir nesse estado, mas sabia que precisaria estar em juízo perfeito se quisesse ir embora logo cedo. Uma noite sem dormir não lhe faria nada bem.

Perguntou-se se deveria tomar um terceiro comprimido, já que o segundo havia apenas a deixado tonta. Antes de pensar melhor, tirou-o da embalagem e engoliu a seco. Supôs que se sentiria grogue pela manhã, mas poderia se acalmar, pelo menos por agora, e descansar.

Depois do que parecia uma hora de mexidas desconfortáveis no colchão com um sono que nunca chegaria, Cassie escorregou direto para um pesadelo.

Seguia sua irmã mais velha, Jacqui, por um bosque. As árvores eram muito sombrias, seus troncos retorcidos crescendo muito próximos uns aos outros, sem um caminho claro a vista. O dia – ou mais parecia noite – estava frio e úmido, e Cassie queria voltar, pois tinha a forte sensação de que elas iam em direção a algo pior do que o que haviam deixado para trás.

– Não seja boba – Jacqui a contou. – É claro que devemos continuar. Você não quer voltar e morar com nosso pai outra vez, quer? Lembre-se do que aconteceu com você lá.

– Mas esse lugar é perigoso – Cassie implorou à sua irmã. – Não podemos morar nessa floresta. É fria e escura, não trouxemos roupas, não há nada para comer. É assustador aqui.

Jacqui só virou e ergueu uma sobrancelha, como gostava de fazer quando estava certa e Cassie estava errada.

– Não vou ficar lá para as pessoas me machucarem. Pode voltar, se quiser.

– Mas agora estou perdida. Não sei onde é a saída.

Cassie olhou ao redor, em pânico, pois as árvores estavam se fechando, seus galhos sombrios formando uma jaula ao seu redor.

– Por favor, me ajude, Jacqui. Vamos voltar juntas.

E, então, para sua consternação, Jacqui começou a provocá-la.

– Pobre garotinha assustada. Olhe para você. Não consegue sequer se defender. Você é fraca, e merece ser abandonada aqui, sozinha. Vou continuar. Não tenho medo. Você pode ficar aqui, vamos ver se vai gostar.

Jacqui começou a rir, um som desagradável, agudo e prateado, e Cassie correu contra ela dentro da jaula.

As árvores se abriram, revelando uma ravina profunda atrás dela. Cassie poderia ter parado, mas não parou. Empurrou Jacqui com toda sua força e assistiu a seus cabelos voarem, seus membros se agitando conforme ela caía violentamente lá embaixo.

Olhando para as profundezas tenebrosas da ravina, Cassie viu o corpo de sua irmã jazendo lá, imóvel.

Acordou sufocando um grito.

Onde ela estava? Não estava na cama.

Desorientada, Cassie olhou ao redor. Estava quase completamente escuro, mas havia um feixe de luz vindo de baixo da porta. Ela não sonambulava há anos, mas a verdade era que não sentia tanto estresse há muito tempo. Ela andava em seu sono periodicamente em tempos difíceis quando era mais jovem. Sempre a deixava completamente desorientada, como se tivesse sido despejada de volta à vida após ter sido arrancada dela, perdendo algo importante no caminho.

Nunca fora capaz de espantar esse sentimento, mesmo quando o médico explicara que sua mente consciente ficava inativa quando estava sonâmbula, já que isso ocorria na parte mais profunda do sono.

Ela estendeu a mão, confusa pelo objeto cintilando à sua frente, e se encontrou segurando uma maçaneta brilhante de bronze.

Cassie arrancou sua mão do metal frio, subitamente percebendo onde estava. Caminhara em seu sono até a porta do quarto de Pierre. Talvez, em seus sonhos, ela estivesse tentando dar a Margot sua tão desejada vingança. As coisas teriam acabado mal para ela se tivesse aberto aquela porta. Conseguia imaginar a cena que Margot causaria se ela entrasse em seu quarto.

Rapidamente, ela virou as costas, estranhando o ato de caminhar pela rota que percorrera em seu sono sem que tivesse a memória. Ela percebeu que, com a visita tardia de Marnie e tudo o que havia acontecido naquela noite, estivera preocupada demais para trancar a porta e, por isso, fora capaz de sair tão facilmente de seu quarto. Se tivesse se lembrado de trancar a porta e colocar a chave em sua mesa de cabeceira, com certeza não teria vindo tão longe.

Seu sonho parecera tão real. Lembrava-se de como a presunção de Jacqui se transformara em terror quando percebeu o que Cassie estava prestes a fazer. E Cassie não tinha parado. Não havia nem passado por sua mente mostrar compaixão e dar uma chance a Jacqui.

Sentia-se profundamente envergonhada, como se tivesse acessado uma costura maligna dentro de si que nunca percebera estar lá.

De volta ao seu quarto, ela acendeu a luz e, reconfortada pelo brilho quebrando a escuridão, conseguiu eventualmente adormecer outra vez. Achou que teve outros sonhos, mas seu sono foi profundo demais para se lembrar deles.

O coro de canto dos pássaros informou-a que o amanhecer se aproximava, embora o sol não passasse de um fraco brilho alaranjado no horizonte. Cassie checou a hora em seu celular e viu, com os nervos tremendo, que eram quase sete da manhã. Ela precisava ir. Não tinha certeza se Pierre já estava acordado, mas teria que acordá-lo se não estivesse.

Ela tinha prendido o cabelo e guardado sua bolsa de cosméticos depois que decidira não usar nenhuma maquiagem ao confrontar Pierre, mesmo parecendo muito pálida. Havia um machucado visível em sua bochecha devido à briga com Margot, e um arranhão profundo em seu pulso que ardia muito. Ela olhou para ele, intrigada, percebendo que não o havia notado na noite anterior. Quando aquilo tinha acontecido?

– Estou indo embora – ela disse a si mesma no espelho. Tentou outra vez, agora com mais determinação. – Pierre, estou indo embora. Não estou preparada para trabalhar nem mais um dia nesta casa. Gostaria de usar o telefone no seu escritório para chamar um táxi, por favor.

Se ele dissesse não, ela simplesmente pegaria suas malas e sairia – sabia onde o viveiro na estrada ficava, e seria capaz de puxar sua mala até aquela distância. Pierre não a impediria. Ela não permitiria.

Faria questão de partir antes que Ella acordasse, o que provavelmente aconteceria dentro de meia hora. O que significava que era a hora de agir.

Colocou seu passaporte no bolso do casaco, pronta para partir.

Sentia uma leve náusea e muita sede, mas disse a si mesma que era provavelmente por conta da dose tripla de medicação que tomara. Surpreendentemente, a dose mais elevada não havia a ajudado a dormir. Ao colocar os comprimidos na mala – os últimos itens que guardou –, entendeu o porquê.

Confundida pela embalagem desconhecida, ela havia pegado a cartela de comprimidos errada. Em vez de tomar os comprimidos que causavam sonolência, tinha tomado três dos que o médico lhe advertira a tomar meio comprimido por dia, porque mais que isso poderia causar episódios psicóticos.

Não era de se admirar que ela sentisse enjoo esta manhã. Se tivesse sorte, tinha dormido durante os piores efeitos, e a náusea agora se dissiparia. Torcendo para que um pouco de água ajudasse, ela foi até o banheiro e bebeu dois copos cheios.

Então, Cassie levantou o queixo, reuniu sua determinação e marchou pelo corredor até o quarto de Pierre, suprimindo um arrepio ao se aproximar da porta de madeira fechada.

Levantando a mão, bateu nela com firmeza.

– Pierre? – ela chamou, satisfeita por sua voz soar firme e forte.

Esperou, mas não ouviu resposta.

– Pierre, é a Cassie. Preciso falar com você com urgência. Está acordado?

Ainda sem resposta. Tinha certeza que o barulho teria acordado Pierre ou Margot se estivessem dormindo. Seria muito azar se hoje, dentre todos os dias, eles tivessem saído mais cedo.

Bem, se fosse o caso, ela teria que deixar um bilhete no escritório dele e chamar um táxi para buscá-la. Se Pierre não estivesse aqui, ela não permitira que isso descarrilhasse seus planos. Na verdade, tornaria sua partida mais fácil.

Cassie abriu a porta, tentando não pensar no mantra “três vezes, é azar” que zunia em sua cabeça enquanto ela tocava a fria maçaneta metálica.

O quarto estava vazio e ela viu, surpresa, que a cama estava feita, apesar de a colcha estar bagunçada, como se alguém tivesse se sentado nela. O quarto estava congelante, pois a enorme porta francesa estava aberta. As cortinas de renda estavam ondulando, sopradas pelo gélido ar da manhã. Através da porta do escritório aberta, ouviu papeis farfalhando e fez uma pausa, se perguntando se Pierre estaria lá, mas percebeu que deveria ser o vento.

Cassie fechou a porta atrás dela, o que estabilizou a corrente de ar um pouco.

Ela estremeceu. Isso estava assustador. Ela realmente queria pedir demissão formalmente, e não fugir pelas costas deles, mas eles claramente não estavam aqui, então ela não tinha escolha.

Teria que garantir que seu bilhete não deixasse espaço para dúvida ou interpretação errada. Palavras ditas eram uma coisa, palavras escritas eram outra.

O escritório estava um caos; o vento tinha soprado uma pilha de papeis da mesa, e eles jaziam em desordem no chão. Enquanto observava, outra página flutuou da superfície de mogno.

Cassie apressou-se de volta ao quarto, fechando as portas francesas.

O sol se levantava e já estava claro. O dia estava limpo, apesar de haver brisa, e ela observou a primorosa tapeçaria rural, visível por quilômetros a partir desse ponto privilegiado. As colinas, as florestas majestosas – que, daqui, pareceriam pequenas – e o tabuleiro de xadrez colorido de campos e vinhedos. Ela gostaria de ter tido mais tempo para vivenciar a beleza dessa área, de um jeito mais agradável. Se ao menos as coisas tivessem sido diferentes.

Mas não foram.

Uma das cadeiras de ferro moldado havia caído ao lado do corrimão do terraço. Cassie saiu, firmando-se contra a rajada fria que cortava seu corpo, soprando fios de cabelo soltos de seu rabo de cavalo.

Encurvou-se para erguer a cadeira e, ao fazê-lo, algo chamou sua atenção, lá embaixo. Era um turquesa vivo contrastando com as pedras ornamentadas do pavimento. Intrigada, ela debruçou-se e olhou para baixo.

Agarrando-se ao terraço, suas mãos escorregadias com repentino suor, Cassie percebeu o que estava vendo.

O casaco lindo e caro, os membros estatelados, um único sapato verde-limão, solitário, deslocado durante a queda.

– Ai, meu Deus – Cassie sussurrou. Ela olhou fixamente para a visão terrível por intermináveis segundos, enquanto seu cérebro lutava para aceitar a realidade que estava ali.

Então, conforme seu estômago se debatia ainda mais, ela virou-se e cambaleou com pernas de algodão. Mal chegou ao opulente banheiro antes de violentamente passar mal.


CAPÍTULO VINTE

O vômito quente e azedo queimou a garganta de Cassie. Ela vomitou na privada de porcelana branca, recordando-se vividamente do horror que tinha visto do lado de fora.

O corpo de Margot estava estatelado nas pedras pavimentadas, imóvel. Uma de suas pernas estivera em um ângulo hediondo.

Com certeza, Margot deveria estar morta... Mas, talvez, por algum milagre, ela ainda estava viva, mas inconsciente ou em coma.

Cassie cuspiu na privada e limpou sua boca. Apesar do frio no cômodo, suor pegajoso despontava de sua testa e axilas. Sentia-se ainda mais tonta do que antes, desorientada ao sair do banheiro em direção ao terraço mais uma vez, antes de virar para o outro lado e correr, em pernas bambas, para a porta do quarto.

– Pierre? – ela gritou, enquanto corria pelo corredor. – Pierre, onde você está?

Onde ele estava? E, mais importante, onde ele estivera quando isso aconteceu?

Sentindo a náusea se agitando dentro dela outra vez, Cassie perguntou-se se deveria estar se fazendo a mesma pergunta. Afinal de contas, ela tivera aquele sonho estranho e perturbador onde vira um corpo. Seria possível que tivesse sonambulado até o quarto de Pierre e olhado de cima do terraço sem ter percebido? Porém, como estaria totalmente escuro, não poderia ter enxergado nada lá embaixo.

Nesse caso, no entanto, por que a lembrança de empurrar Jacqui da beira da ravina era tão vívida?

Cassie chamou por Pierre novamente e as portas dos quartos se abriram. Viu Antoinette, vestida em sua camisola pêssego, parada na soleira de sua porta com curiosidades guardada no olhar. Marc disparou de seu quarto como uma bala, agarrando um dinossauro de brinquedo.

– Onde está o papai? – ele gritou. – Papai, Cassie está te procurando!

Ele passou por ela como um trovão, mas ela conseguiu agarrá-lo antes que ele pudesse correr para o andar de baixo. Cassie voltou-se para Antoinette.

– Por favor, Antoinette, você e o Marc podem voltar aos quartos de vocês e ficarem lá. É importante e muito sério. Não saiam do quarto. Explicarei o motivo em um instante.

Por sorte, a urgência em seu tom foi suficiente para convencer Marc, que voltou para o quarto sem argumentar.

Cassie desceu as escadas, apertando o corrimão e tropeçando enquanto corria.

Chegou à cozinha, ofegante, e a empregada retirando uma assadeira do forno olhou para ela com curiosidade.

– Onde está Marnie? – Cassie estava soluçando, lágrimas borrando seus olhos. Lá estava Marnie, apressando-se aflita em direção a ela, repousando a cesta de frutas que carregava para agarrar os ombros de Cassie conforme ela cambaleava.

– O que foi? – ela perguntou. – O que aconteceu, Cassie?

– Chame uma ambulância, chame a polícia, rápido – Cassie engasgou. – Margot está lá fora. Ela deve ter caído do terraço e acho que está morta.

– Ah, meu Deus – Marnie disse. Ela fechou os olhos brevemente. Cassie viu que ela estava muito pálida. – Onde está Pierre? – ela perguntou.

– Não sei. Ele não estava no quarto. Deve ter saído para algum lugar.

Marnie assentiu. – Tudo bem. Mostre-me onde ela caiu.

Cassie não queria chegar nem perto do corpo estatelado, mas sabia que precisava fazê-lo.

Reunindo toda sua força de vontade, caminhou com Marnie, saindo da cozinha. Atravessaram a porta da copa, passando pelos fundos do castelo, descendo mais dois lances de escadas do lado de fora. Só agora Cassie percebia o quão íngreme era o terreno onde a casa fora construída. A vista incrível do terraço da suíte máster significava que era uma queda de três ou quatro andares até o pavimento abaixo.

Marnie prendeu a respiração ao ver o corpo espatifado nas lajes ornamentadas. Aproximou-se hesitante, com Cassie logo atrás dela.

Cassie sentiu a bile subindo, querendo vomitar outra vez, apesar de não restar mais nada em seu estômago. Conseguia ver que isso era, sem dúvidas, a morte. A boca de Margot estava aberta, seus olhos surpresos direcionados para cima. A poça de sangue sob sua cabeça havia se espalhado e solidificado nas pedras cinzentas. Sua pele tinha cor branco-azulada e Cassie viu, com horror, que isso tornava os hematomas lívidos ao redor do pescoço dela ainda mais visíveis. Podia claramente ver as marcas de dedos em cada mancha roxa.

Cassie pensou que Marnie murmurava uma prece enquanto ajoelhava e segurava o pulso da mulher arremessada.

– Sem pulso – Marnie confirmou com um tremor na voz. – Vou chamar a polícia, não há necessidade de uma ambulância. Por favor, pode ficar com as crianças por enquanto? Será melhor se eles ficarem lá em cima até a polícia terminar o trabalho. Acho que você deveria retornar até eles rapidamente, já que eles podem ficar curiosos.

Cassie assentiu e correu de volta pelo caminho que viera. Chegou ao andar superior bem a tempo, já que Ella ia em direção à passagem para o quarto de Pierre, seus cabelos bagunçados depois de acordar, chamando – Papai?

– Ella, volte aqui.

Cassie pegou Ella no colo, carregando a pequena menina de volta ao quarto dela, decidindo que seria mais seguro se as três crianças permanecessem juntas em um só quarto.

– Por favor, espere aqui, Ella – disse com firmeza antes de ir buscar Antoinette e Marc. Alguns minutos depois, todos estavam reunidos no quarto de Ella.

Cassie viu-se sem palavras. Em silêncio, encarou os rostos cheios de expectativa. Eles tinham visto o comportamento abusivo de Margot e a briga na noite anterior. Seria a última lembrança deles de Margot.

Cassie lembrou-se de como havia puxado a máscara de madeira quando Margot a atacara, atirando-a nela, mirando em seu rosto. Tinha desejado machucar Margot, porque pensou que talvez a dor pudesse fazê-la ser racional. Na realidade, tinha desejado machucar Margot pelo que ela havia dito, apesar de ter justificado como defesa própria.

Recordou-se de como correra atrás de Margot com fúria fervilhando dentro dela, aquelas palavras de provocação cauterizadas em sua mente. Sabia que, naqueles saltos, Margot era alta o bastante e o parapeito baixo o bastante, então a empurrava com força. Achou que Margot tinha tentado gritar, mas não fora capaz de soltar mais que um resmungo ao cair no vazio abaixo.

– Não – Cassie disse em voz alta.

Aquilo não tinha acontecido. Estava confundindo suas lembranças com seu sonho. Após tanto estresse, e a overdose acidental na medicação errada, não era de se admirar que as margens entre imaginação e realidade parecessem borradas hoje.

Ela lembrou-se da forma perversa como Antoinette tinha mirado e atingido a parte de trás do joelho de Margot. Quando contasse a notícia para eles, precisaria observar Antoinette.

– Houve um acidente – ela os contou.

– O que aconteceu? Papai está bem? – Ella perguntou, ansiosa.

Antoinette não disse nada.

– É a Margot. Ela caiu ontem à noite – Cassie engoliu.

Era sua imaginação ou Antoinette escondia um sorriso?

– Ela se machucou? – Marc perguntou.

– Ela... Ela caiu do terraço. Não sobreviveu à queda. Ela está morta. Temos que esperar aqui até que a polícia chegue.

Encarou fixamente os rostos das crianças.

Ella explodiu em lágrimas com a notícia, mas, em contraste, Antoinette não demonstrou qualquer emoção. Encarou Cassie de volta calmamente.

Marc franziu o cenho. – O que a polícia vai fazer? – ele perguntou.

– Vão examinar Margot e levá-la embora – Cassie disse.

Seu conhecimento desses assuntos era muito superficial para oferecer algo mais. Um nó de pavor apertou seu estômago. O que exatamente acontecera na noite passada? A overdose de remédios deixara sua memória confusa, com lacunas que ela não conseguia preencher. Mal se lembrava de fazer suas malas. Pensava ter ido até o quarto de Ella – ou isso fora na noite anterior? Ela realmente tinha sonambulado, ou isso fora parte do sonho?

Cassie sabia que precisava tentar juntar os pedaços e formar uma imagem coerente da noite anterior, porque sem dúvidas a polícia questionaria a todos. Afinal de contas, o terraço de pedra chegava até a cintura e seria impossível Margot cair acidentalmente.

– Estou ouvindo o papai – Marc disse, iluminando-se.

Cassie abriu a porta do quarto e ouviu o burburinho das vozes abaixo. A voz de Pierre de fato estava entre elas.

– Posso ir com o papai? – Ella perguntou, descendo da cama.

– Não, não, definitivamente não. Agora não – Cassie fechou a porta novamente. – Ele vai estar muito ocupado. Tenho certeza que a polícia vai chegar a qualquer minuto.

– Podemos tomar café da manhã, Cassie? – Antoinette perguntou. – Estou com muita fome.

Cassie encarou-a, chocada. Comida era a última coisa em sua mente, e presumiu que as crianças estariam chateadas demais para querer comer. Porém, claramente, a notícia do recente falecimento de Margot não havia afetado o apetite de Antoinette nem um pouco.

Ou então, pensou subitamente, o pedido por comida poderia ser uma manobra para fazer Cassie sair do quarto, caso Antoinette estivesse bolando alguma travessura.

– Você consegue esperar um pouco? – ela perguntou.

Antoinette suspirou. – Acho que sim.

Cassie ouviu a porta de entrada batendo novamente, e um coro de vozes novas. A polícia deveria ter chegado. Se ela estivesse no próprio quarto, poderia ver os carros se aproximando, mas os quartos das crianças tinham vista para os jardins e os campos atrás da casa.

Os passos subiram pela escada, em seguida passando em direção ao quarto principal. A polícia deveria estar inspecionando a cena para ver de onde Margot caíra. Talvez eles também procurassem provas no quarto em si que poderia lhes informar sobre o que tinha acontecido.

Ela precisava se lembrar de mencionar que havia erguido a cadeira caída no terraço.

– Devo ler uma história para vocês? – ela perguntou às crianças, tentando soar animada.

Eles relutantemente concordaram e Cassie escolheu um livro que não tinha lido a Ella ainda – um conto de fadas que esperava também ser atrativo para as outras crianças, mantendo suas mentes ocupadas. Distraída e agitada, viu-se tropeçando nas palavras, repentinamente incapaz de entender francês básico, que geralmente era como seu idioma diário. Antoinette claramente não estava concentrada na história, e Ella, acometida, tentava escutar o que acontecia lá fora.

Cerca de meia hora depois, Marnie bateu na porta.

– A polícia quer falar com você – ela disse, e Cassie viu um homem esguio, de cabelos loiro-escuros e vestindo terno e gravata, parado atrás dela. Ele estava sério, e não parecia ser nem um pouco simpático.

Marnie carregava uma cerca de lanches e entregou frutas e pães às crianças. Cassie se perguntou se deveria comer alguma coisa – não estava com fome, mas sua tontura estava piorando e ela achou que a comida poderia ajudar a controlá-la.

Não havia tempo, ela decidiu relutantemente. O policial já descia as escadas. Seguindo-o, Cassie viu que a sala de jantar estava sendo usada como uma sala de interrogatório. Foi apenas quando ela entrou e fechou a porta que o detetive se apresentou.

– Sou o detetive Granger, e esta é minha colega, detetive Bisset – ele falou em excelente inglês.

Cassie sorriu com nervosismo para a jovem mulher em um terninho azul-marinho que preparava um gravador.

– Entrevistamos o seu patrão, Sr. Pierre Dubois – o detetive Granger explicou. – Gostaríamos de ouvir a sua versão do que aconteceu ontem à noite e hoje de manhã. Prefere que a entrevista seja conduzida em francês ou inglês?

– Francês está bom – Cassie disse em francês, esperando que isso lhe desse alguns pontos positivos com os dois policiais de aparência severa. Apesar de suspeitar que Pierre fosse o principal suspeito – e ela tinha certeza que ele havia cometido esse crime –, imaginou que ela também estivesse sob suspeita. As lacunas em sua memória a angustiavam e a deixavam nervosa. Não queria falar a coisa errada, ou parecer estar escondendo nada.

– Bom. Então, agora, começamos. Sente-se aqui, em frente a detetive Bisset. Informe seu nome, data de nascimento e endereço para os registros, por favor.

As primeiras perguntas eram de rotina. De onde ela vinha, qual agência havia a contratado, quanto tempo ela estivera com a família. Cassie notou que a Detetive Bisset pareceu surpresa quando ela disse que chegara há apenas três dias.

Falaram sobre o que acontecera pela manhã, perguntando a ela o que tinha encontrado ao entrar no quarto. Cassie mencionou a cadeira caída no terraço, e que tinha a endireitado, para depois notar o corpo abaixo.

– E por que você entrou no quarto? – o detetive Granger perguntou.

– Queria pedir para usar o telefone. Fica no escritório – Cassie disse.

Não queria mencionar que iria chamar um táxi com a intenção de ir embora. Aquilo certamente pareceria suspeito. Então, ela percebeu que àquela hora da manhã na França seria meia-noite nos Estados Unidos, então poderia dizer que estava tentando ligar para casa. Talvez pudesse dizer que estava tentando contatar Jess, a au pair que conhecera no avião.

Por sorte, o policial não perguntou mais nada sobre a ligação. Ela ficou aliviada, mas não por muito tempo, porque o interrogatório logo sofreu uma virada mais difícil.

– Conte-nos o que você observou sobre o relacionamento entre o Sr. Dubois e a Mademoiselle Fabron – o detetive Granger pediu.

– Eu apenas a conheci como Margot – Cassie disse. – Não sabia o sobrenome dela.

Como ela deveria falar? Pegou-se mexendo de forma aflita com os dedos na toalha de mesa e parou apressadamente, para o caso disso ser interpretado como um sinal de culpa.

Ela deveria falar sobre o estrangulamento violento que vira se desenrolando no quarto deles, e o equipamento de BDSM escondido na gaveta, mas isso significaria explicar como havia o encontrado e poderia levá-la por um caminho perigoso. A polícia questionaria, com razão, sobre o motivo de ela estar invadindo o quarto de seus empregadores. A história do passaporte roubado parecia forçada e poderia ser confirmada apenas por Ella, a quem ela queria proteger.

Era tudo tão complicado e, de repente, ela sentiu náusea novamente.

– Poderia tomar um pouco de água, por favor? – ela pediu. – Sinto muito, eu vomitei depois de ver o corpo, ainda estou me sentindo muito tonta.

– É claro.

A detetive Bisset levantou-se e trouxe um copo de água a Cassie, além de uma xícara de café.

Cassie colocou três colheres de açúcar no café e tomou um gole, grata pela doçura.

– Eles pareciam ter um relacionamento volátil – ela disse. – Pierre e Margot, quer dizer. Sempre havia uma corrente de conflito na casa. Ouvi brigas deles algumas vezes quando levantei para usar o banheiro à noite.

– Por favor, continue – a detetive Bisset a encorajou. Ela soava tão compreensiva que Cassie se viu contando mais.

– Pierre é muito controlador, mas ele não parece ter um vinculo emocional próximo com as crianças – ela disse. – Por outro lado, Margot parecia muito insegura. Posses e status pareciam ser importantes para ela. Ela reagia terrivelmente a críticas.

– Você gostava dela? – A pergunta veio do detetive Granger.

Cassie hesitou. – Não, não é que eu não gostasse dela, mas não éramos amigáveis. Quer dizer, eu só estava aqui para fazer meu trabalho, não para ser amiga dela.

– Vejo que você tem um machucado no seu rosto. E isso no seu braço é um arranhão? – o detetive Granger inclinou-se para frente. – Como essas lesões aconteceram?

– Eu... Eu não me lembro – Cassie disse, decidindo ter cuidado apesar de sentir seu coração acelerar. – Eu tenho tendência a me acidentar.

– Fomos informados que você teve uma briga com Margot ontem à noite – o detetive Granger disse, e Cassie percebeu que a parte fácil do interrogatório tinha acabado. Estava em território perigoso agora, porque Pierre já tinha contado a versão dele dos eventos à polícia.

– Sim. Eu tive que ir até a cidade resolver algumas coisas. Cheguei atrasada porque me perdi, e Margot tinha bebido. Ela estava com raiva porque tinha sido deixada sozinha com as crianças, porque Pierre também tinha saído.

– Pierre disse que foi grave. Vocês se atacaram fisicamente.

– Ela estapeou meu rosto porque estava frustrada, mas a briga só durou alguns minutos. Então, Margot tropeçou no salto dela e quebrou uma prateleira – Cassie disse, mas sentia seu rosto começando a queimar e sabia que os detetives deveriam estar notando.

– Quando observamos seu quarto mais cedo, notamos que suas malas estão feitas. Estava pretendendo ir embora hoje?

Cassie encarou o detetive Granger, horrorizada, desejando que tivesse tido a presença mental para desfazer as malas depois que o desastre acontecera. Ela deveria ter imaginado que eles verificariam todos os quartos.

– Eu ia embora hoje de manhã – ela confessou. – É por isso que fui até o quarto, para dizer a Pierre que estava me demitindo e para chamar um táxi.

– Está com depressão, Cassie? – a detetive Bisset falou agora.

– Não, não estou com depressão. Mas sofro de ansiedade.

– Você toma algum medicamento para isso?

Eles já sabiam o que ela tomava, ela podia ver.

– Sim, tomo alguns comprimidos. Nada incomum, quer dizer, muitas pessoas lidam melhor com a ansiedade se ela estiver controlada – ela disse, defensivamente.

Cassie tinha certeza que o médico informara a Pierre sobre os remédios que ela tomava. Ou a polícia teria vasculhado sua bagagem? Talvez eles tivessem.

Ela percebeu, com uma picada de medo, que a data de administração estava nas embalagens e a polícia teria sido capaz de ver imediatamente que ela havia excedido a dose recomendada. Isso eles provavelmente também já sabiam.

– Entendemos que, após sua briga com Margot ontem à noite, você foi mandada para o seu quarto. Você saiu do quarto durante a noite, Cassie? – Granger olhou fixamente para ela.

– Não – ela disse. – Estive lá a noite toda.

E, então, com um salto, ela se lembrou de que não estivera. Tinha sonambulado, e tivera aquele sonho vívido. Acordara com a mão na maçaneta de bronze do quarto de Pierre. De jeito nenhum poderia contar isso à polícia. Ela estaria admitindo a eles que estivera na cena do crime, sem lembrança do que realmente tinha acontecido. Ela mesma sequer sabia dos fatos reais.

– Tem certeza que não saiu do quarto? – Granger perguntou.

Cassie agarrou-se a outro fragmento de sua memória. Mais cedo naquela noite, ela ouvira Ella chorando. Tinha ido confortá-la e visto o machucado em seu pescoço, por causa disso ficando incontrolavelmente furiosa.

– Espere, sinto muito, eu saí durante a noite – ela tagarelou, vendo os detetives trocarem um olhar e Granger começar a rabiscar em seu bloco de notas. – Ella, a mais nova, estava tendo um pesadelo e eu fui reconfortá-la. Isso foi ontem à noite, é claro. Estou tão confusa com todo esse estresse. Por um minuto pensei ter sido na noite anterior. Ela teve pesadelos mais de uma vez.

– Mais de uma vez em três dias? – Granger perguntou, mas não parecia descrente, só curioso.

– Sim. É parte do motivo pelo qual decidi ir embora – Cassie disse. – Não achei que estava lidando com as crianças muito bem. Na primeira noite que estive aqui, Margot...

Ela parou apressadamente. Explicar que Margot havia a confrontado, abusado e estapeado por não ter cuidado de Ella rápido o bastante apenas convenceria a polícia de que havia uma séria inimizade entre elas.

Mas o detetive Granger esperou que ela continuasse com as sobrancelhas levantadas.

– Na primeira noite, Margot me informou que eu sempre deveria ir até as crianças. O mais rápido possível, não importa quão cansada eu estivesse – ela emendou. – Então, mesmo tendo sido instruída a ficar no quarto ontem à noite, eu ainda fui até Ella quando a ouvi chorar.

As perguntas estavam começando a deixar Cassie em pânico. Ela lembrou-se das ameaças que Pierre fizera a ela. Como ele prometera que, se ela não jogasse o jogo dele, ele diria à polícia que ela estivera vasculhando o quarto dele, e eles a prenderiam.

Ela estava seriamente preocupada se ele já não teria informado a polícia sobre aquilo, esforçando-se para criar uma imagem dela como desonesta e não confiável. Ou, um cenário ainda pior, que Pierre não precisasse fazer isso porque tinha um “amigo leal” na polícia local, assim como o médico da comunidade era seu “amigo leal”.

Era óbvio para Cassie que isso deveria ter acontecido. Pierre e Margot tinham brigado na noite anterior. Ela estivera bêbada e agressiva além da razão e deveria ter provocado a violência nele, que ele levara longe demais. Eles brigaram, e ele a empurrara do terraço em um acesso de fúria. Então, tinha saído às pressas para que pudesse provar não ter estado na casa à ocasião.

Pierre era rico e poderoso, e Cassie sabia que ele não tinha escrúpulos em usar sua riqueza e poder para conseguir o que queria. Ele tinha uma enorme influência em sua comunidade; parecia que até as pessoas que falavam mal dele relutavam em discutir os fatos abertamente, com medo das repercussões.

Se Pierre tivesse criado um álibi para si próprio, Cassie sabia que ele precisaria de um suspeito alternativo, porque alguém tinha que ser acusado do crime.

Se a polícia já não tinha prendido Pierre, aquilo significava que ele estava indicando a eles outra direção. Cassie já podia ver, pelo que ele dissera aos detetives, como a mente dele funcionava, e sentiu medo ao começar a entender os planos dele.

Quem melhor para levar a culpa pelo crime do que uma pessoa recém-chegada à comunidade – a au pair instável, insignificante e totalmente dispensável?


CAPÍTULO VINTE E UM

Cassie sentava-se de frente para os detetives, olhando para suas mãos entrelaçadas e suas cutículas mordidas e rasgadas. Sabia o quanto tinha estragado a entrevista. O conjunto das evidências pincelava um quadro sombrio. A briga que tivera com Margot e as malas prontas por si só contavam uma história. Seu uso excessivo de medicamentos, esquecendo-se de fatos simples que uma au pair responsável deveria se lembrar, convenceria a polícia de que ela não era digna de confiança.

Não poderia ter escolhido momento pior para ter uma overdose dos remédios errados. As lacunas em sua memória a incriminavam e, se a polícia soubesse do sonho perturbador que ela tivera – se é que fosse um sonho –, ele aumentaria o peso das evidências contra ela.

Percebeu que os sinais eram claros e não conseguia pensar em uma maneira de contrariar a evidência reunida contra ela.

Seus medos foram confirmados por Granger.

– Precisaremos entrevistá-la novamente, depois de falar com as crianças. Por favor, permaneça no quarto com eles quando subir.

O interrogatório com as crianças parecia uma mera formalidade, uma etapa para riscar antes que o processo se movesse inexoravelmente para a ação. Conseguia imaginar o que aconteceria em seguida. Perguntou-se se eles a algemariam, rezando para que não o fizessem. Sabia que não seria capaz de aguentar isso sem se desmontar completamente e, se Ella assistisse, ficaria traumatizada.

Conforme Cassie se levantou, uma ideia imprudente veio até ela, com uma repentina onda de esperança. Talvez ela pudesse simplesmente fugir. Haveria tempo? Poderia deixar a mansão, ou mesmo chegar até o aeroporto, antes que eles notassem que ela estava ausente?

Como se lesse sua mente, o detetive Granger limpou a garganta.

– Precisamos que você entregue o seu passaporte agora.

A mão direita de Cassie caiu automaticamente para o bolso de seu casaco, onde ele estava seguro dentro do zíper.

Viu que o detetive notou o gesto. Ele sabia que ela tinha o documento consigo. Ela não poderia ganhar mais nenhum minuto.

– Por quanto tempo precisarão dele?

Sua última centelha de otimismo, que talvez eles apenas precisassem fazer uma cópia do documento, foi apagada pela resposta brusca dele.

– Ficará apreendido até que a investigação seja concluída.

Desespero se acumulando como gelo em seu estômago, Cassie o entregou, torcendo para que recebesse um recibo oficial, mas isso não parecia ser parte do protocolo. Granger apenas olhou para ele. Aquilo a deixou duplamente nervosa. Agora, não tinha nenhuma prova de que estava legalmente no país, e também não tinha ideia de onde o seu passaporte seria mantido. E se eles o perdessem ou ele simplesmente desaparecesse?

Granger a acompanhou de volta até o quarto de Ella. Marnie, que estivera supervisionando as crianças, viu o rosto abalado de Cassie. Ofereceu-lhe um sorriso gentil, apertando sua mão em solidariedade ao sair. O gesto inesperado de amizade fez Cassie piscar para espantar as lágrimas.

– A equipe da cena do crime ainda está trabalhando na casa, não saia do quarto. Por favor, venha comigo, mademoiselle.

Granger gesticulou a cabeça para Antoinette.

Enquanto Antoinette seguia o detetive, Cassie se perguntou se a equipe forense tiraria as impressões digitais do quarto. Se sim, encontrariam muitas dela lá. Ela tocara muitas das superfícies em sua busca frenética por seu passaporte. A presença daquelas impressões digitais confirmaria a opinião deles de que ela era desonesta.

Mesmo tremendo de fome, sentiu mais náusea do que nunca. Pegou o prato de comida, mas olhar para os croissants de queijo cremoso e de chocolate, e as frutas que Marnie trouxera, só lhe fazia ter vontade de vomitar. Ela empurrou o prato para longe.

Marc estava entretido em uma revista em quadrinhos, mas Ella a observava com curiosidade.

– Cassie, você está chateada? – ela perguntou.

Cassie suspirou. Queria proteger Ella do resultado que provavelmente ocorreria, mas não tinha como protegê-la da verdade quando Cassie fosse escoltada até o carro da polícia.

– Sim – ela disse. – Os detetives não sabem onde eu estava ontem à noite. Então, significa que eu sou uma “suspeita”, e posso ir embora com eles daqui a pouco. Se eu for, não sei quando vou voltar.

A testa de Ella se enrugou e seu lábio inferior balançou, mas para o alívio de Cassie ela não explodiu em lágrimas.

– Coma um morango – Cassie disse, oferecendo-a o prato.

Esperava que a comida alegrasse Ella, ou ao menos fornecesse uma distração. Ella pareceu mais calma enquanto mordiscava o morango, mas a testa franzida não saiu de seu rosto.

Alguns minutos depois, Antoinette voltou e Granger desceu as escadas com Marc a reboque.

Antoinette estava presunçosa e equilibrada, como se o interrogatório fosse um teste que ela havia facilmente passado. Olhando para o rosto complacente dela, Cassie foi sacudida pela lembrança de Antoinette dizendo “Eu poderia matá-la.” Isso acontecera há apenas dois dias, depois de Margot atacar a garota verbalmente durante o jantar.

Cassie sabia quão perversa a mulher loira conseguia ser. Não hesitara em dizer coisas terríveis a Antoinette, mesmo na presença de outras pessoas. O que ela dissera ontem à noite para reduzir Antoinette a lágrimas?

Cassie perguntou-se se a garota de doze anos poderia empurrar uma mulher adulta sobre um terraço que era da altura de sua cintura. Não achava que Antoinette conseguiria se Margot tivesse revidado, mas talvez ela não tivesse.

Ela teve uma visão de Margot, sozinha no terraço, apoiada no parapeito. Fazendo o quê? Talvez vomitando, ou fumando um cigarro, ou só refletindo sobre sua vida.

Um empurrão determinado pelas costas poderia mandar uma mulher bêbada de cabeça sobre o parapeito, especialmente se ela não estivesse esperando.

Seria uma coincidência do azar, mas Cassie conhecia muito bem a habilidade de Antoinette de tirar vantagem de uma situação.

Dada essa habilidade, ela tinha certeza de que Antoinette teria dito à polícia sobre a briga entre Cassie e Margot. Antoinette poderia ter até mesmo exagerado sobre a gravidade, o que levantaria mais dúvidas sobre a versão de Cassie.

– O que os detetives te perguntaram? – ela disse a Antoinette.

– Não muita coisa.

Antoinette ofereceu um sorriso dissimulado, como se sentisse a ansiedade de Cassie. Claramente, ela não iria tranquilizá-la.

Dez minutos depois, Marc voltou e era a vez de Ella. Ela seguiu Granger obedientemente escada abaixo, e Marc retornou à sua revista em quadrinhos, imperturbado pela experiência. Cassie imaginou que eles tivessem simplesmente confirmado que ele estivera na cama e dormindo à ocasião.

Tiveram que esperar um tempo até que o interrogatório com Ella fosse concluído. Cassie se perguntou se ela ficara chorosa ao ser questionada. Esperava que eles tivessem sido compreensivos com a jovem menina, e não tentado forçar as respostas dela.

Quando ouviu os passos de Granger, nervosismo desenrolou-se dentro dela. Respirou fundo, tentando se preparar para o que estava pela frente.

Para sua surpresa, o detetive estava sozinho. Tinha esperado que ele trouxesse Ella para o andar de cima.

– Por favor, venha comigo – ele disse a Cassie. – A cena está liberada, e a equipe forense terminou o trabalho, então as outras crianças podem ir para o quarto deles agora.

Cassie queria advertir Antoinette e Marc sobre o que poderia acontecer, mas sua boca estava seca e ela não conseguia pensar nas palavras certas. Não poderia nem mesmo pedir a Antoinette que tomasse conta de Ella e garantisse que ela não espiasse pela janela, porque não tinha ideia de onde Ella tinha ido.

Quando entraram na sala de jantar, Cassie viu que Ella ainda estava lá. Estava sentada ao lado da detetive Bisset, segurando sua mão com força.

Granger indicou que Cassie se sentasse enquanto folheava suas anotações do interrogatório.

– Cassie, Ella Dubois nos contou que você foi cuidar dela ontem à noite, já que ela estava chorando, e que você dormiu o resto da noite no quarto dela. Está correto?

Estupefata, Cassie encarou Ella, que devolveu o olhar de forma inocente.

Cassie não podia acreditar no que ouvira.

Este era um inesperado bote salva-vidas. Apesar de o testemunho de uma menina de cinco anos provavelmente não ser se sustentar em um tribunal, por enquanto lhe dava um álibi e corroborava com seu relato do que tinha acontecido na noite anterior. Talvez isso a ajudasse a se redimir aos olhos da polícia. Depois da forma como ela estragara o interrogatório, precisava de toda a ajuda que conseguisse.

Seu relato da noite anterior fora tão fragmentado que ela não havia dito à polícia, de fato, que retornara ao seu quarto depois de cuidar de Ella. Aquela omissão poderia funcionar a seu favor. Apenas precisaria ter cuidado com o que diria agora, e como formularia a frase.

– Eu não disse isso a vocês? – ela perguntou, soando surpresa. – Ella fica muito agitada com os pesadelos. Morre de medo de acontecer de novo. Descobri na minha primeira noite aqui que o único jeito dela voltar a dormir é se eu ficar com ela.

– Sabe que horas foi para o quarto de Ella? – Granger perguntou.

– Terminei de fazer as malas por volta das nove horas. Deitei na cama e, quando estava quase dormindo, pensei que ouvi alguém do lado de fora do meu quarto. Abri a porta para ver se alguma das crianças precisava de mim. Não havia ninguém lá, mas ouvi Pierre e Margot discutindo no quarto deles – Cassie disse, devagar. – Então, voltei para a cama. Fiquei inquieta com a briga e fiquei atenta por causa das crianças. Afinal, se eu ouvi os gritos, eles também poderiam ouvir, e seria angustiante para eles.

Ela viu Bisset assentindo e sentiu uma centelha de encorajamento ao continuar.

– Quando fui até o quarto de Ella, me lembro de ter pensado se as vozes furiosas poderiam ter causado o pesadelo dela. Sei que, quando eu era mais nova, eu costumava ter pesadelos depois de ouvir brigas na família. É profundamente perturbador, especialmente para uma criança pequena, já que isso corrói seu senso de segurança.

Agora Bisset a considerando com definitiva empatia.

– A linha do tempo. Tem alguma ideia de quando o pesadelo de Ella aconteceu? – Granger a relembrou.

Mesmo que a ponta de acusação não estivesse mais em sua voz e ele soasse cuidadosamente neutro, Cassie tinha certeza de que ele estava aguardando e vigiando, caso ela deixasse algo escapar. Estava certa de que ele não confiava em sua narrativa dos eventos.

– Desculpe, desculpe, me distraí. A hora... Bem, eu estava quase adormecendo quando Ella gritou. Então, não foi muito tempo depois que voltei para a cama.

Granger suspirou. – Você não notou um relógio? Ou olhou para o seu celular?

Cassie estava prestes a dizer que não quando outra memória veio até ela em um flash.

– Espere! – ela disse de forma aguda, e ambos os detetives olharam para ela com repentino interesse. – A lua.

Cassie fechou os olhos, tentando invocar os detalhes.

– Só lembrei agora. Ella queria ar. Ela estava soterrada debaixo das cobertas, inchada, tão quente que eu pensei que pudesse estar febril. De todo modo, ela estava lutando para respirar, então eu abri uma fresta da janela e, quando fiz isso, notei que a lua estava logo acima do horizonte, quase tocando as colinas. Não sei se estava subindo ou descendo. Se não estivesse tão estressada por causa de Ella, teria passado algum tempo observando, porque estava linda. Eu deveria ter contado a vocês antes, mas fugiu da minha mente.

Agora se lembrava de que a lua parecera misteriosa também. Pensar nisso lhe dava vontade de se arrepiar sem saber bem o porquê.

Granger assentiu. – Isso ajuda – ele disse. – Não é exato, mas nos dá um horário aproximado.

Ele estava tomando notas furiosamente e Cassie imaginou que ele montaria uma linha do tempo. Não tinha ideia de quando Pierre teria saído do castelo – ou alegado ter saído – ou mesmo com que precisão a hora da morte de Margot poderia ser determinada. Mas o testemunho de Ella parecia tê-la salvo, por enquanto. Os detetives trocaram um olhar e o nó apertado no estômago de Cassie afrouxou um pouco quando Bisset assentiu discretamente.

– Não precisaremos mais questioná-la nesse momento – Granger disse de forma decisiva e Cassie sentiu vontade de explodir em lágrimas de alívio. – Contudo, você deve permanecer na localidade. Ainda manteremos seu passaporte, ao menos nos próximos dias. E talvez seja necessário entrevistá-la novamente.

– Estou preocupada com o meu passaporte. Ele já sumiu do meu quarto uma vez, e eu fiquei bastante estressada até encontrá-lo – Cassie advogou. – Existe algum jeito de eu tê-lo de volta?

Antes que Granger falasse, Cassie viu em seu rosto que aquela não era uma opção.

– É o procedimento padrão que seguimos para todas as pessoas de interesse em uma investigação que não são cidadãos franceses. Contudo, não precisa se preocupar. Será mantido em segurança, e manteremos contato frequente.

Cassie presumiu que essa fosse a maior garantia que fosse obter. Mas, ao menos, graças a Ella, estava livre para sair da sala, já que não podia sair do país.

Antes que ela saísse, Granger entregou-a um cartão com o nome dele, telefone e e-mail. O e-mail era inútil no castelo, mas pelo menos ela poderia ligar para o detetive caso se lembrasse de alguma outra coisa importante.

Então, Cassie segurou a mão de Ella e elas saíram da sala de jantar, juntas. Sentia fraqueza pelo alívio ao deixar a sala. A porta mal se fechara quando ela ouviu Granger e Bisset deliberando em vozes abaixadas.

Agora que não estava mais preocupada com sua prisão eminente, Cassie tinha outra preocupação.

– Ella – disse gentilmente enquanto subiam as escadas.

– Sim – Ella olhou para ela cheia de confiança.

– Por que disse que eu estive no seu quarto a noite toda?

Ella deu de ombros, parecendo imperturbada pelo que fizera.

– Pensei que você estava – ela disse, simplesmente. – Você disse que não me deixaria sozinha, não disse?

Cassie franziu o cenho, apreensiva com a resposta de Ella. A jovem menina genuinamente pensava que estivera com ela a noite toda? Talvez ela estivesse criando uma realidade mais confortável para si mesma, onde as pessoas que ela amava não simplesmente desaparecessem. Ou, de forma mais perturbadora, havia deliberadamente mentido para os detetives para manter Cassie com ela.

De qualquer jeito, embora ainda fosse uma suspeita, as palavras de Ella deram à polícia dúvidas o bastante para não prendê-la na hora.

Significava, certamente, que a polícia focaria em Pierre outra vez.

Cassie estava certa de que ele seria solicitado a acompanhar os detetives para um novo interrogatório. Enquanto descarregava algumas bonecas para Ella brincar, perguntou-se o que deveria dizer às crianças. Talvez fosse melhor deixar os detalhes de fora e dizer apenas que Pierre tinha saído.

Cassie ajudou Ella a rearranjar as bonecas em um círculo, equilibrando-as em cadeiras de madeira. Estavam em um chá. Ella tagarelava alegremente para si mesma enquanto fingia servir o chá. Ela parecia inabalada pelo encontro com a polícia, e Cassie outra vez se perguntou se ela havia mentido de propósito.

Ao ouvir vozes no corredor, Cassie pulou e correu para o seu quarto, onde teria a melhor visão do que estava acontecendo na porta de entrada.

Espiando pela janela, ela viu os dois detetives se dirigindo para um Citroen branco. Bisset colocou óculos escuros e tomou o banco do motorista. Granger, carregando uma pasta grande, abriu o porta-malas para guardá-la antes de apressar-se para o lado do passageiro, fechando seu casaco para se proteger do chuvisco frio e do vento.

Pierre não estava com eles, portanto não o interrogariam novamente. Onde isso deixava a investigação? Cassie apertou os lábios, imaginando se Pierre de fato tinha a polícia local em seu bolso, como ela temia. E, se fosse o caso, o que isso significava para ela.

Enquanto observava o sedan a paisana partir, Cassie considerou sua própria situação.

Com seu passaporte indisponível, era uma prisioneira na casa de Pierre. Ele sabia que seus esforços para colocar a culpa pela morte de Margot em Cassie falharam. Ela imaginava se Pierre estaria com raiva por isso, ou se ele tentaria resolver a situação de outro jeito.

Conforme o Citroen se afastava, os braços de Cassie se arrepiaram ao pensar no que significaria este outro jeito.

Percebendo que sua respiração havia embaçado a janela do quarto, ela deu um passo para trás. Não havia sentido em ficar olhando pelo vidro nebuloso. A polícia fora embora, deixando-a em uma casa onde uma morte suspeita ocorrera, sem meios de escapar.

Cassie tentou se acalmar aplicando pensamento lógico.

Tinha certeza que, se houvesse evidência suficiente, a polícia teria prendido Pierre, ou ao menos o levado para mais questionamentos. Talvez significasse que havia fatores em jogo dos quais ela não soubesse. Outra pessoa poderia ser um suspeito ou a polícia poderia pensar que fora acidental. Nunca se sabe; talvez Pierre tivesse visto Margot pela última vez enquanto ela dançava loucamente no terraço com uma garrafa de vodca na mão.

Se ela conseguisse descobrir mais, saberia se estava em perigo ou não.

Infelizmente, Pierre era a única pessoa que poderia lhe dar essa informação.

Cassie teria preferido evitar Pierre completamente. A ideia de conversar com ele sobre isso fazia suas palmas suarem.

Ela precisaria garantir que ele não desconfiasse. Teria que fazer perguntas inocentes, indicando que não pensava que ele estivesse envolvido. Se ela fosse capaz de se equilibrar nesta corda bamba, sem desencadear o temperamento dele, então sua missão seria bem sucedida.

Cassie decidiu que era melhor procurá-lo agora, antes que perdesse sua coragem.


CAPÍTULO VINTE E DOIS

Ainda que preferisse não chegar nem perto da suíte máster, Cassie sabia ter que checá-la e, sendo o lugar mais perto em que Pierre poderia estar, deveria procurar lá primeiro. Dirigiu-se ao final do corredor, esperando que Pierre estivesse em outro lugar e que não precisasse entrar.

Assim que virou o corredor, viu que a porta estava aberta.

Cassie aproximou-se, hesitante, percebendo que essa era sua chance de descobrir quão minuciosamente a polícia examinara o quarto.

Espiou o interior e viu, aliviada, que estava exatamente como ela vira mais cedo. Não identificou nenhum sinal de pó para impressões digitais. Apesar de nunca ter visto na vida real, sabia através dos livros que lia que o pó era cinza-escuro e fazia muita sujeira. Não havia sinal de nenhum pó cinza-escuro no quarto, o que significava, com alguma esperança, que a polícia não julgava ser necessário recolher digitais.

Cassie perguntou-se se a porta aberta significava que Pierre estivesse no escritório. Chamou o nome dele suavemente, mas não houve resposta.

Ela já tinha dado as costas quando um som a fez parar subitamente.

Era o toque alto e persistente do telefone.

O telefone tocou e tocou. Três, quatro, cinco toques.

Deveria haver uma secretária eletrônica, Cassie pensou, ou outro telefone em outro lugar da casa, que poderia ser atendido a qualquer momento.

Ainda assim, ela viu-se entrando no quarto nas pontas dos pés, atravessando o carpete ornado e entrando no escritório.

Poderia ser o detetive Granger ligando para alertá-la sobre algo. Poderia até mesmo ser Zane continuando a assediá-la.

Pensar em Zane lhe deu a coragem para atender ao telefone.

– Alô – ela disse, hesitante.

Fez-se um curto silêncio, então uma voz de homem falou.

– Margot? – ele disse. – É Margot?

Assustada ao ouvir o nome, Cassie quase derrubou o telefone.

– Não!

A palavra saiu mais alto do que ela pretendera. Pausou, perguntando-se o que dizer a seguir, e como contar a notícia para a pessoa que estava ligando.

– Ela...

Cassie contaria para ele. “Ela está morta”.

Mas, quando começou a falar, houve um clique e a pessoa desconectou a ligação.

Cassie devolveu o telefone cuidadosamente no gancho e saiu do escritório de Pierre, imaginando quem teria ligado e por que. Tivera a intenção de falar mais após superar o choque de ouvi-lo perguntar por Margot, mas o homem não lhe dera a chance de dizer mais nada.

Ele obviamente não sabia que Margot havia morrido. A polícia já teria notificado sua família a essa altura, então deveria ser outra pessoa. O cabelereiro de Margot, ou seu joalheiro, ou seu designer de moda? Ideias limitadas por seu conhecimento básico da mulher loira passaram rapidamente pela mente de Cassie, mas ela rejeitou todas pela mesma razão – certamente, uma pessoa que ligasse inocentemente teria escutado o que Cassie tinha a dizer? Este homem não tinha escutado. Ele havia desligado às pressas.

O que mais ela havia descoberto na breve conversa?

Ele não conhecia Margot o suficiente para reconhecer a voz dela. E houvera barulho no fundo – quando ele disse “Margot”, Cassie ouvira outro telefone tocando à distância, o que significava que ele poderia estar ligando de um escritório.

Cassie não poderia dizer mais que isso, mas decidiu que seria mais prudente não contar a Pierre sobre a estranha ligação. Seria mais sensato informar ao detetive Granger quando se falassem novamente.

*

Antes de descer as escadas, Cassie checou os quartos para ver se as crianças precisavam dela.

Ella ainda estava contente e ocupada com suas bonecas, mas o quarto de Marc estava vazio. Cassie esperava encontrá-lo enquanto estivesse procurando por Pierre. Conhecia a destruição que Marc era capaz de causar se fosse deixado sem supervisão por algum tempo.

Antoinette respondeu à batida na porta com um educado – Entre.

Cassie foi atingida, mais uma vez, pela aparente calma e compostura de Antoinette. Ela estava deitada na cama, lendo, com uma xícara de chocolate quente em sua mesa de cabeceira, como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo.

– Você está bem? Posso te trazer algo? – Cassie perguntou.

– Talvez mais tarde – Antoinette respondeu friamente. – Estou aproveitando meu livro agora, obrigada.

Cassie foi até o andar de baixo, decidindo que sua primeira parada seria a garagem para checar se Pierre estava na casa ou havia saído.

Ela dirigiu-se até a porta de entrada, saindo no frescor da brisa do início de tarde cinzenta. O vento estava gélido, cortando através de seu casaco leve, e ela envolveu os braços ao redor do corpo para se aquecer enquanto corria para a garagem, onde uma olhada rápida confirmou que todos os carros estavam em suas vagas.

Ao sair da garagem, Cassie ouviu uma explosão alta vindo da estufa próxima. Ela pulou com o som, seu coração acelerando, percebendo como seus nervos estavam fragmentados. O menor estresse já estava a levando ao limite.

O barulho soava como vidro se quebrando. Franzindo o cenho em preocupação, ela fez um desvio para a estufa.

Marc tinha traçado seu caminho até os fundos da estufa e estava pegando pedras do pomar, arremessando-as nas grandes vidraças. Ele já tinha quebrado três delas e, enquanto Cassie corria até ele, acertou em cheio a quarta com uma pedra do tamanho de um punho. Ela perfurou a vidraça, deixando um buraco estilhaçado.

– Marc, venha aqui, você não deve fazer isso – Cassie exclamou, horrorizada com a extensão da destruição. – Seu pai vai ficar furioso.

Vendo que isso não produzia o efeito desejado nele, Cassie tentou outra vez.

– E as plantas vão congelar. Não quer que as pobres plantas fiquem com frio, não, Marc?

Felizmente, o bem-estar das plantas provou-se um argumento mais persuasivo e Marc abandonou a pilha de pedras que ele havia cuidadosamente reunido, correndo até ela.

– Cassie, estou com fome. Fui até a cozinha pedir comida a Marnie, mas ela não estava lá.

– Ok, venha comigo. Vamos ver se encontramos algo para você.

Ela refez os passos ao redor da frente da casa outra vez, ao invés de pegar o atalho pelos fundos, porque isso os levaria através do lugar onde ela vira o corpo de Margot.

Entrando na cozinha, Cassie percebeu que era a primeira vez que a via vazia. Pierre obviamente não quis que os empregados assistissem enquanto a polícia recolhia o corpo de Margot, e ela deduziu que ele dera o restante do dia de folga para eles.

Abrindo a geladeira, viu um grande prato de sanduiches coberto e uma grande panela com ensopado de carne. Ela colocou alguns sanduiches em um recipiente.

– Por que não leva isso lá para cima, Marc, e veja se suas irmãs querem dividir? Irei para lá em um minuto, e eu adoraria brincar de soldados com você.

Os olhos dele se arregalaram ao pegar o recipiente.

– Mas, Cassie, aqui só tem sanduiches suficientes para mim!

Rindo de forma vitoriosa, ele correu pelas escadas, desaparecendo enquanto Cassie ouviu o barulho de cascalhos e vozes do lado de fora.

No momento seguinte, a porta de entrada se abriu e Pierre entrou. Ele vestia um casaco quente e um cachecol. Atrás dele, ela viu um carrinho de golfe com o logotipo da adega se afastando, e entendeu que ele estivera inspecionando a vinícola.

Nervosismo fervilhou dentro dela ao se lembrar do quão cuidadosamente ela teria que pisar.

– Sinto muito com relação à Margot. Foi um choque enorme – ela disse com a voz trêmula.

Pierre pareceu preocupado, como se não estivesse realmente focado nela, o que convinha bem a Cassie.

– Sim. É trágico – ele concordou, pegando um molho de chaves da louça na mesa do hall.

– Sabe por que a polícia não prendeu ninguém?

Cassie forçou a pergunta a sair, sua voz aguda e estridente de pavor.

– A investigação vai levar algum tempo para ser concluída. – Agora Pierre olhava diretamente para ela, e ela viu que o cabelo dele fora despenteado pela brisa, seu rosto gravado por linhas profundas e severas.

– Mas o que aconteceu está perfeitamente óbvio – ele continuou. – Margot cometeu suicídio. Portanto, duvido que alguma prisão seja feita.

Cassie encarou Pierre de volta, lutando para não mostrar incredulidade diante das palavras.

– Margot cometeu suicídio? – ela repetiu.

Só o que ela pensava era na queda estonteante até a laje de mármore muito, muito abaixo. O que levaria Margot – ou qualquer pessoa – a subir no balcão do terraço e se lançar no vazio, sentindo o golpe de ar gélido enquanto desabava, sabendo que seu corpo seria esmagado e quebrado pela queda?

Cassie não conseguia acreditar que era possível, mas Pierre assentiu de forma distraída.

– Ela estava deprimida. Ela era... Instável. Você viu como ela se comportava. Bebia demais. Sua morte certamente foi uma catástrofe, mas a decisão de acabar com a própria vida foi só dela.

Ele caminhou até a porta de entrada.

– Vou sair agora. Volto mais tarde hoje à noite. Tem comida na cozinha, acredito. Você será capaz de esquentar a comida, servir o jantar às crianças e colocá-los para dormir?

Cassie assentiu sem palavras, e Pierre marchou para fora, fechando a porta atrás de si.

Ela ficou parada no hall por alguns minutos, tentando absorver o que Pierre dissera.

Suicídio? Margot?

A perversidade e o ódio que ela mostrara ao mundo seriam reflexo de sua aversão própria?

Cassie balançou a cabeça. Margot tinha tudo. Era uma princesa mimada. Se ela estivera deprimida, poderia ter custeado os medicamentos que precisava; com certeza o médico de Pierre teria prescrito o que quer que fosse necessário sem hesitar.

E aquela morte? Para alguém tão vaidosa? Por que não uma overdose de comprimidos, ou um corte de navalha na banheira? Por que escolher aquele salto assustador na escuridão? Aquilo fazia as mãos de Cassie suarem, só de pensar na coragem que seria necessária para realizar.

Subiu as escadas lentamente, decidindo que Pierre deveria estar mentindo, porque de jeito nenhum essa versão poderia ser verdade.

Ele havia inventado isto para se proteger e Cassie não acreditava nele de jeito nenhum.

*

Os eventos do dia surtiram efeito nas crianças, que estavam cansadas e amuadas no jantar e não relutaram em ir dormir mais cedo. Emocionalmente desgastada e exausta, Cassie desfez as malas – que claramente tinham sido vasculhadas pela polícia, embora seus pertences estivessem no lugar.

Depois, foi para a cama após trancar a porta e se certificar de tomar a dose recomendada de seu medicamento, apesar de ter ficado tentada a tomar um comprimido extra para garantir um sono sem sonhos.

Mais uma vez, foi assombrada por pesadelos.

O primeiro sonho vívido foi com Jacqui. Sua irmã estava de frente para ela, cabelos brilhantes esvoaçando ao vento. No sonho, seu cabelo era loiro-claro. Atrás dela estava a ravina, mais profunda e mortal do que Cassie lembrava. As laterais íngremes sumiam no vazio sem fim.

Jacqui se segurava em um tronco de árvore retorcido enquanto provocava Cassie.

– Você não é nada além de uma vadia barata. Você merece a vida miserável que tem. Eu tenho uma melhor. E estou rindo de você agora, sua perdedora triste e patética.

Cassie sentiu seus lábios se curvarem de raiva. Ela correu contra Jacqui e as provocações de sua irmã se tornaram gritos. Suas longas unhas vermelhas agarravam a árvore, arranhando a casca, mas Cassie viu que as raízes estavam fracas e soltas, e soube o que precisava fazer.

Ela empurrou a árvore atrofiada e enrugada o mais forte que pôde, e Jacqui gritou de terror, agitando os braços enquanto a árvore tombava na ravina, carregando-a consigo. Seus gritos não paravam e Cassie percebeu que também estava gritando.

– Não é real, não é real – ela gritou, e seu choro aterrorizado a arrancou do sonho de volta para a realidade reconfortante, de volta ao castelo.

Mas não estava na cama. Estava enrolada em seu roupão, olhando para a lua outra vez. Era uma visão familiar, como se lembrava, exatamente como contara à polícia. A lua estava quase cheia, baixa no horizonte. O brilho avermelhado iluminava as nuvens esparsas ao seu redor e as colinas escuras abaixo. A visão era hipnótica, assustadora e linda. Ar frio soprava nela; a noite estava fria como gelo.

Cassie sabia com certeza que isso era mais uma memória do que um sonho.

Porém, ao olhar ao redor, percebeu que havia mergulhado em um novo pesadelo, mais perturbador e aterrorizante do que o que tinha deixado para trás. Pavor a preencheu, porque não estava no quarto de Ella nesse sonho; não estava mesmo, tinha ido para outro lugar – talvez enquanto sonambulava, mas talvez não.

Ela observava a lua do parapeito ornamentado do terraço de Pierre.


CAPÍTULO VINTE E TRÊS

O detetive Granger serviu-se de mais café da jarra na cozinha antes de voltar ao seu escritório compacto. Aqui, o ar condicionado fazia barulho em sua configuração mais quente – todos brincavam que Granger tinha nascido com sangue frio – as cortinas abertas apenas o suficiente para oferecer a visão do rio Marne. Adorava essa vista, desfrutando poder observar a natureza, ver pessoas felizes vivendo suas vidas mesmo quando, como hoje, estava cinzento e chuvoso.

Colocou o café na mesa de apoio onde não poderia ser acidentalmente derrubado, retornando sua atenção aos arquivos e papeis espalhados à sua frente, representando seu mais novo caso.

A morte de Margot Fabron.

Granger pegou sua caneta e desplugou seu celular do carregador. Que alívio ter um sinal; tinha sido tão sufocante não poder fazer uma ligação ou enviar uma mensagem enquanto estivera no castelo. Certamente, isso complicava o caso, porque a localização do celular, a triangulação e o horário de mensagens enviadas e recebidas frequentemente eram uma parte importante para confirmação álibis.

Aquela facilidade certamente seria de grande ajuda aqui. No momento, Pierre Dubois dissera à polícia que mantinha seu celular pessoal em seu escritório em Champigny-sur-Marne devido à fala de sinal na casa. Ele não soubera onde o telefone de Margot estava, mas dissera que ela raramente o utilizava pelo mesmo motivo.

Granger havia solicitado que Pierre entregasse o celular, e requisitado um registro de chamadas do celular de Margot e do telefone fixo que aparentemente era a única forma de comunicação do castelo com o mundo externo.

No meio tempo, ele releu as anotações das entrevistas.

Monsieur Dubois alegava ter deixado o castelo pouco depois das nove e trinta da noite anterior. Ele dissera que Margot estava bêbada e briguenta, e ele não queria se envolver em uma discussão. Ele dissera a Margot que passaria a noite no “chalé” – uma pequena casa de campo luxuosa localizada perto das vinícolas da propriedade, ocasionalmente usada para acomodar jornalistas visitantes. Pierre havia dito que retornaria pela manhã e que poderiam discutir as coisas quando ela se acalmasse e estivesse sóbria.

Na realidade, Pierre não tinha passado nem perto do chalé, ao invés disso se dirigindo para visitar sua amante, uma jovem divorciada que morava em Valenton. Foi lá que ele passou a noite. A casa dela tinha câmeras de segurança e, quando a policia a visitara na tarde anterior, ela havia confirmado a história e até mesmo providenciado as imagens das câmeras, com hora marcada, que mostravam o carro de Pierre chegando ao seu portão às dez e quinze da noite, saindo na manhã seguinte às seis e trinta da manhã.

A autópsia seria feita hoje e Granger esperava que o relatório, ou ao menos as descobertas iniciais, estivesse disponível até o fim da tarde. Não sabia com que precisão a hora da morte poderia ser confirmada. Poderia ser um verdadeiro divisor de águas, ou totalmente inconclusivo.

O status de Pierre como um reconhecido homem de negócios era um fator complicador. Apesar de mentiroso e adúltero, o homem possuía poder, prestígio e influência na área. Aquilo significava que a polícia precisava ser cuidadosa. Uma prisão injusta seria uma catástrofe.

A família de Margot, por outro lado, não era local. Seus pais eram divorciados; sua mãe morava na Normandia e seu pai em Occitânia, no sul da França. Eles ficaram chocados em saber da morte da filha, mas nenhum deles tinha sido próximo a ela desde que saíra de casa, e Margot era filha única.

Curiosamente, Granger teve a impressão de que a família de Margot não era rica. A mãe dela dissera a Granger que Margot trabalhara como modelo em Paris até os vinte e dois anos e, no curso de sua carreira, conhecido Pierre. Ela desistira de ser modelo e havia gerenciado uma das galerias de arte dele por dois anos, antes de morar com ele após a morte da esposa de Pierre, no ano passado.

Granger estava convencido de que o relacionamento deles provavelmente começara muito antes, provavelmente por volta da época em que Margot mudara de carreira.

Seus pensamentos foram interrompidos com uma batida à porta. Bisset entrou, trazendo um maço de anotações que colocou sobre a mesa. Ela olhou ao redor do escritório, parando no controle do ar-condicionado.

– Está muito quente aqui – ela observou.

Granger deu de ombros, pedindo desculpas. – Eu não gosto do frio. Diminua, se quiser.

– Por alguns minutos, acho que consigo sobreviver – Bisset puxou uma cadeira e se sentou de frente para ele.

– O histórico da au pair foi confirmado – ela disse. – Cassie Vale foi contratada pela agência, como ela relatou, e não possui condenações anteriores ou ficha criminal.

Granger sacudiu a cabeça.

– Ela é uma péssima testemunha. É difícil acreditar em algo que ela diz. A história dela muda como o vento – ele moveu a mão para ilustrar.

Bisset assentiu, concordando.

– Mas a descrição da lua parece correta – ela disse. – Eu verifiquei os horários. Os quartos daquele lado da casa ficam de frente para o sudoeste, então ela teria visto a lua se pondo, e teria aberto a janela de Ella alguma hora entre nove e trinta e dez da noite.

Granger franziu o cenho. – Eu só rezo para não precisarmos colocá-la em testemunho. Sob interrogatório, tenho certeza que ela nos surpreenderia a todos com novas informações. Mais provavelmente, surpreenderia até a si mesma.

– Eu concordo – Bisset disse. – E o testemunho de uma criança de cinco anos não vai se sustentar em nenhum tribunal. Mas, se a morte de Margot foi um suicídio, como Pierre alega, isso a liberaria.

– Se tiver sido – Granger enfatizou a palavra “se” – Margot e Pierre viviam juntos há um ano, e provavelmente foram amantes por mais tempo. Ela chega, e de repente ocorre uma morte.

– Sim, o momento é coincidente. Eu também estava me perguntando... – Bisset olhou para suas anotações, pensativa.

– Prossiga – Granger pegou seu café.

– Ela é uma garota bonita. A au pair, quer dizer. E Monsieur Dubois, pelo que ele mesmo diz, é um adúltero. O relacionamento com a noiva era turbulento. Então, chega alguém novo. Será que Cassie e ele poderiam ter conspirado para assassinar Margot Fabron?

Granger assentiu. – É uma possibilidade. Mas ela só esteve aqui por três dias. Que tipo de romance avassalador pode acontecer em três dias?

Bisset sorriu. – Celebridades se conhecem, se casam e se divorciam em menos tempo.

– Verdade. Então, não descartamos isso. Mas tenho a forte sensação de haver mais nesta história, e não é tão simples quanto pensamos. Alguns fatos estão faltando.

– Saberemos mais depois do relatório do legista – Bisset disse. – Eles acabaram de me enviar um e-mail dizendo que será concluído nas próximas horas.

Ela olhou pela janela, admirando a vista.

– Veja, a chuva está parando. Acho que vou fazer uma pausa agora e sair para uma caminhada ao longo do rio para esfriar.

Granger, para sua surpresa, viu-se rindo com ela.

– Sorte sua, a chance de poder fazer isso hoje.

*

Assim que o relatório foi enviado, Granger e Bisset se encontraram novamente.

Dessa vez, já que o encontro seria mais longo, Granger trouxe seus arquivos até a sala de conferências. Aqui havia mais espaço, o que o agradava, e o ar-condicionado estava alguns graus mais frio, o que agradava Bisset.

Granger imprimiu duas cópias do relatório, controlando a onda de empolgação que sempre sentia quando esperava que o próprio corpo revelasse os segredos que os vivos escondiam. Ele lembrou a si mesmo, com severidade, para não criar expectativas, não fazer presunções, e simplesmente interpretar o que a evidência mostrava.

Entregou uma cópia a Bisset e, durante alguns minutos, folhearam-no, lendo atentamente.

– Há alguns detalhes interessantes aqui – Granger disse eventualmente.

A maior e mais chocante revelação, a que havia saltado para ele, era o fato de que Margot tinha marcas recentes de estrangulação no pescoço, feitas há não mais que dois dias. Os hematomas eram significativos, o legista reportara, e ainda havia um pequeno inchaço na garganta. Havia evidências convincentes de que o relacionamento dela com Pierre Dubois não era normal ou feliz, e aquele detalhe causava labaredas de empolgação em Granger.

Além disso, o nível de álcool no sangue dela estava pouco abaixo de 0.20. Na hora da morte, ela estava seriamente embriagada e, em adição, o relatório mostrava a presença de antidepressivos e comprimidos para dormir em sua corrente sanguínea.

– A estrangulação é um detalhe significativo – Bisset disse. – Mas é uma pena a hora da morte não poder ser calculada com mais precisão.

Granger assentiu. Aquela era a maior decepção no relatório. O legista declarara que, por sua temperatura corporal, Mademoiselle Fabron havia morrido entre as dez horas e meia-noite. Conforme Granger havia esperado, a partir do ângulo da queda era impossível dizer se ela tinha pulado ou sido empurrada. A cadeira caída que a au pair mencionara poderia apontar para a evidência de uma luta, ou simplesmente significar que Fabron a utilizara para subir no parapeito, derrubando-a no processo.

– Então, qual nosso próximo passo? – Bisset perguntou.

– Mulherengo em série, tendências violentas – Granger disse. – Precisamos investigar o histórico de Pierre Dubois com mais detalhes. Descobrir sobre parceiras anteriores e casos. Esta não pode ser sua primeira e única amante. Onde estão as outras? O que podem nos contar? Além disso, Dubois disse que a esposa dele faleceu há um ano em um acidente de carro. Vamos buscar detalhes com relação a isso.

Bisset assentiu.

– Outro item para a lista – ela disse. – Pierre mencionou ter buscado Margot no cabelereiro mais cedo naquele dia. Eu gostaria de descobrir quem é essa pessoa e falar com ele ou com ela. Mulheres falam com seus cabelereiros e frequentemente expõem detalhes pessoais. Se houvesse alguma coisa acontecendo na vida de Margot, qualquer conflito pessoal ou situação que a deixasse inquieta, seu cabelereiro pode ser capaz de nos contar mais. Especialmente já que a visita foi tão pouco antes de ela morrer.

– Boa ideia. Você entra em contato com o cabelereiro, então?

Granger fechou a pasta, frustrado com a evidência inconclusiva, mas esperançoso por terem novas avenidas para explorar.

Ele próprio tinha pais pobres que batalharam para oferecer condições melhores de vida aos seus filhos. Sabia como era ter que lutar para se tornar alguém, e como a pobreza podia ser uma enorme debilitação. Ele vira as vantagens que a prosperidade familiar conferia, e o tamanho da dianteira que proporcionava com relação aos demais.

Por causa disso, Granger tinha uma aversão inata a Pierre. Sentia arrogância nele, e uma crença de que estava acima da lei. Pierre sabia que tinha todas as cartas e as usaria como quisesse para garantir o mínimo dano à sua pessoa ou sua reputação.

Ainda assim, Granger sabia que precisava separar emoção e lógica. Se alguma jogada suja tivesse sido feita, a au pair nervosa, com sua história oscilante e seu álibi fraco, tinha muito mais probabilidade de estar envolvida. Afinal de contas, Pierre não era o primeiro homem a ter se rendido a um caso, e sua boa reputação na área teria sido conquistada durante muitos anos.

Talvez Bisset estivesse certa e os dois haviam conspirado juntos. Ou então, ciúmes poderia ter tido alguma influência. Margot não era muito mais velha do que Cassie. Depois de ver o que a outra mulher tinha, seguindo uma briga amarga entre elas, Cassie poderia ter sido levada a cometer um crime por estar com o sangue quente.

Granger suspirou. Ele teria que colocar de lado o seu preconceito pessoal contra Pierre, seguir o protocolo, entrevistar as testemunhas e deixar a evidência falar por si mesma.

Mesmo se Pierre tivesse todas as cartas, Granger suspeitava que a au pair pouco confiável provavelmente terminasse sendo o coringa no baralho.


CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Cassie moveu-se de modo desconfortável no banco duro e frio da igreja. Ella sentava-se imóvel como uma estátua à sua esquerda, enquanto Marc se mexia sem parar à sua direita. Apesar do clima frio e chuvoso, deveria haver quase cem pessoas reunidas na capela histórica para o funeral de Margot.

No interior gelado e ventilado, os aquecedores a gás espalhados por sua extensão faziam pouco para dissipar o frio. Olhando para as paredes de pedra antigas da capela, que pareciam impregnadas com cheiro de incenso, e para os vitrais lindamente trabalhados nas janelas, Cassie supunha que ela tivesse séculos de idade, tendo visto milhares de eventos similares no passado.

Ela jamais imaginara que, em menos de uma semana após sua chegada à França, estaria presente em um funeral de alguém da família para a qual trabalhava, e ainda menos que a morte teria acontecido sob circunstâncias tão suspeitas.

Pierre, vestido em um terno preto de corte impecável, seus cabelos perfeitamente arrumados, sentava-se na primeira fileira, flanqueado pelos pais de Margot. A cabeça dele estava curvada. De tempo em tempo, ele tirava um pristino lenço branco de seu bolso e o apertava em seus olhos.

Ele fazia o papel do noivo enlutado com perfeição e, apesar de ser uma atuação estelar, Cassie simplesmente não a comprava. Por que ninguém mais suspeitava dele? A opinião unânime parecia ser que a morte de Margot era um suicídio. Até o padre, em seu sermão, se referiu ao “ato trágico” que Margot cometera, e como o “nosso Deus que perdoa tudo” a acolheria e absolveria independentemente disso.

“E se a culpa fosse de outra pessoa?” Cassie pensou, encarando o padre ferozmente, como se seu olhar pudesse forçá-lo a admitir que talvez existisse outra razão para a morte de Margot.

Quando o serviço chegou ao fim, o padre convidou a congregação a acompanhá-lo até o cemitério próximo, onde as cinzas de Margot seriam guardadas para o seu descanso.

Tentando segurar um guarda-chuva particularmente grande e duas crianças – uma querendo correr em círculos pelos caminhos de pedregulhos do cemitério, e a outra retardando seu avanço e reclamando da chuva –, Cassie não teve a chance de notar muita coisa até chegarem ao túmulo.

Examinando a multidão, viu Marnie e alguns outros empregados do castelo e notou, com surpresa, que Bisset também estava presente, usando um vestido preto e um elegante casaco cinza. Apesar de estar com a cabeça abaixada, Cassie notou que os olhos da detetive estavam alerta, seu olhar constantemente se movendo. Era reconfortante saber que não era a única com suspeitas sobre a morte de Margot. Felizmente, a polícia também estava ali para observar.

Percebendo que Bisset olhava diretamente para ela, Cassie baixou o olhar apressadamente.

– Agora, entregamos o corpo dela a terra – o padre falou em voz alta, puxando a atenção de Cassie de volta ao serviço. – Da terra a terra, das cinzas às cinzas, do pó ao pó.

Conforme o caráter definitivo das palavras ecoava, Cassie ouviu soluços e choro ao redor todo. Pierre abraçou a mãe de Margot com a cabeça curvada e os ombros tremendo. O pai de Margot enterrou o rosto nas mãos. Ella, depois de um olhar atônito para todos os demais chorando, explodiu em soluços audíveis, e até mesmo Marc ficou quieto ao sentir a solenidade do momento.

Olhando através do cemitério, em meio à garoa, Cassie viu que era a única pessoa inteiramente inabalada pela emoção do momento; enquanto observava, suas suspeitas irromperam novamente, dessa vez em uma direção diferente.

Antoinette, de cabeça erguida e olhos secos, vestindo sua boina azul-escuro em um ângulo ousado, assistia à urna ser depositada com um pequeno sorriso secreto.

*

Cassie guiou o carro de volta ao castelo em um comboio. Não tinha se dado conta de quantas pessoas estariam presentes no velório. Parecia que todas as pessoas presentes no funeral vinham para bebidas e comida.

– Podemos brincar no pomar? – Marc perguntou enquanto ela estacionava o Peugeot.

– Não, ainda não – Cassie disse com firmeza. Os elegantes sapatos pretos de Marc já estavam cobertos de lama devido à passagem pelo cemitério; mesmo após os melhores esforços dela, ele se desviara do caminho principal. Ela nem queria imaginar as travessuras que ele aprontaria em apenas alguns minutos sem supervisão, exibindo-se para os convidados.

Obviamente, assim que ela destravou o carro, ele saiu em disparada, e Cassie foi forçada a caçá-lo no pomar enlameado e cheio de folhas. Quando ela o alcançou e o agarrou, voltando para buscar Ella, as botas dela também estavam respingadas de lama e ela havia prendido sua jaqueta de camurça preta em um galho, abrindo um buraco nela.

Cassie hesitou na porta de entrada, absorvendo a multidão de pessoas de luto lá dentro. Um violinista de roupas escuras tocava no hall, e o salão formal e a sala de jantar haviam sido abertos. Fogo queimava na lareira e a longa mesa da sala de jantar estava lotada de comidas de todos os tipos. Taças de cristal estavam sobre o aparador junto a uma seleção de vinhos, xerez, cervejas e conhaques. Cassie apertou a mão que segurava o braço de Marc, sabendo que não deveria deixá-lo sozinho por um minuto com tantos itens quebráveis à vista.

Conforme mais e mais pessoas chegavam, Cassie viu seu nível de estresse subindo. Antoinette, ainda gelidamente serena, estava sentada em um divã, tomando goles de uma pequena taça de xerez que Cassie rezou para que ela tivesse permissão de fazer, porque não havia a servido.

Ella e Marc exigiram dois pratos de comida cada um, o que os manteve ocupados por um tempo, mas quando o apelo da mesa de comida desapareceu eles começaram a ficar entediados e intratáveis. Cassie descobriu ser impossível segurar Marc, acalmar Ella e interagir com os outros convidados de forma educada. Além disso, ela estava faminta e não tivera a chance de pegar comida para si mesma. Sentia-se presa em seu papel, subitamente desesperada para sair desse espaço claustrofóbico.

– Você é a au pair?

Mais uma pessoa em luto e roupas escuras a saudou, logo depois de ela ajeitar Ella no divã ao lado de Antoinette.

– Sim – Cassie forçou um sorriso cortês.

– Não é uma tragédia? Você sabia que Margot estava tão deprimida?

Cassie supôs que essa mulher, como muitos outros, deveria ter alguma relação com Pierre. Ela vestia uma gargantilha de pérolas e brincos de diamante, com uma estola de pele cobrindo seus ombros. Em contraste, Cassie havia notado que os pais de Margot vestiam-se de forma mais simples e a mãe dela não parecia usar nenhuma joia.

– Eu só tinha chegado há três dias quando aconteceu – Cassie disse, tentando manter contato visual enquanto se segurava com todas as forças, pois Marc se recusara a sentar com as outras e usou a oportunidade para se libertar.

– Ah, você chegou tão recentemente?

– Sim. Ainda estou me ajeitando e me adaptando. Foi um choque terrível. E, é claro, tem sido estressante para as crianças.

O sorriso de Cassie já havia se petrificado. Pressentindo a distração dela, com uma torção de braço, Marc soltou-se e sumiu em meio à multidão.

– Sim, coitadinhos, lembro que foi nessa mesma época no ano passado que a mãe deles faleceu, apesar de eu não poder estar presente no funeral já que estava no exterior. Ela bateu o carro, sabe, tarde da noite, na estrada principal indo para Guignes. – Baixando a voz, a mulher elaborou. – Saiu da estrada, capotou várias vezes e explodiu em chamas. Não acho que tenham descoberto a causa do acidente. Que ano trágico Pierre teve.

– Ninguém deveria ter que lidar com tantas perdas em tão pouco tempo. Se me der licença, eu só preciso ficar de olho em Marc – Cassie disse antes de virar as costas.

Onde o garoto tinha ido? Sua primeira parada foi na sala de jantar, mas por sorte ele não estava lá. Ela usou a oportunidade para pegar três rolos de salsicha, enchendo a boca com eles e virando o rosto para a parede para que mastigasse e engolisse rapidamente, sem ninguém falar com ela.

Marc deveria ter ido para fora queimar sua energia depois de comer todos aqueles bolos, tortas e massas. Cassie teceu o caminho de volta ao salão e fez um desvio à esquerda, só para o caso de ele ter vindo para a sala de música.

Felizmente, ele não tinha feito isso e a sala estava vazia. Cassie fechou a porta e se afundou no banco do piano, incapaz de enfrentar a multidão no momento.

A mulher adornada com joias com quem ela acabara de falar havia soltado mais uma bomba. Cassie achava profundamente perturbador o fato de a mulher de Pierre ter morrido em circunstâncias tão misteriosas. Aonde ela ia tarde da noite? O que causara o carro a perder tanto o controle? Parecia ter sido um acidente com um só carro. E agora, outra morta trágica ocorrera. Por que ninguém estava questionando tudo isso? Cassie sentia vontade de gritar.

Enterrou a cabeça nas mãos, desejando estar em qualquer outro lugar, menos aqui.

Na escuridão, reviveu a briga que tivera com Margot.

O modo como havia se defendido dela, retorcendo-se para longe dos saltos pontudos e letais. A forma como Margot gritara insultos que a agrediam, perfurando profundamente sua alma.

“Vadia! Vagabunda!”

Tinha odiado a perversidade de Margot, sua arrogância e sua completa falta de empatia ou sequer reconhecimento de Cassie como outro ser humano. Como alguém se tornava tão agressivamente obcecada por si mesma, acreditando ser melhor que todos os outros e poder tratá-los exatamente como quisesse?

Uma coisa era certa, mesmo que não devesse falar mal dos mortos, Cassie achava que ela tinha merecido o que acontecera.

Lembrava-se de olhar para baixo do parapeito e ver Margot sumindo na escuridão abaixo, membros se agitando sob a luz gélida da lua serena.

– Não! –Cassie gritou, em voz alta.

Abriu os olhos, respirando fundo, encarando o carpete enriquecido com estampas. Não tinha acontecido. Não tinha. Era sua própria fantasia confundindo-se com os pesadelos que ela estava tendo sobre Jacqui e a visão da lua do quarto de Ella. Não tinha realmente feito aquilo. Não podia ter feito.

– Você está bem?

Cassie pulou, percebendo que Pierre tinha entrado na sala e fechava a porta atrás dele. Ele devia ter ouvido seu grito. Ele nunca poderia saber o que ela estivera pensando.

Ela cambaleou ao ficar de pé apressadamente.

– Sim, estou bem. Sinto muito, estive com as crianças o tempo todo, mas Marc foi lá fora e eu só estava me acalmando por um minuto antes de procurá-lo. Foi um dia muito emotivo.

Ela pretendia sair, mas ele a impediu, sua mão pesada no ombro dela.

– De fato, é uma ocasião emotiva. Para mim, pior ainda. Estou me sentindo muito sozinho, Cassie. Em horas como essas, percebemos como somos vulneráveis, como a vida é frágil. Venha aqui, me abrace, vamos consolar um ao outro por um momento.

A última coisa que ela queria era o consolo mútuo de Pierre. A ideia fez sua pele se arrepiar, mas já que recusá-lo nessa hora seria cruel, ela entrou relutantemente nos braços dele. Ele a abraçou com força enquanto os braços dela frouxamente envolviam a cintura dele. Sua bochecha ficou esmagada contra a lapela costurada à perfeição do casaco de lã dele.

– Ah, Cassie. Você é tão jovem, tão linda, tão viva. Acho que não sabe a beleza que tem.

Tarde demais, ela percebeu que estava presa nas garras dele. A respiração dele mudou, ficando mais ríspida. As mãos dele vagaram para sua cintura, seus quadris. Ele apertou-a contra o seu corpo, segurando sua nádega com a mão direita, massageando e apertando enquanto sua mão esquerda a mantinha perto. Ele inclinou a cabeça contra a dela, a respiração dele fazendo cócegas em sua orelha.

– Devemos consolar um ao outro. Não esta noite; tenho outras obrigações já que alguns convidados passarão a noite aqui. Mas, em breve, irei até o seu quarto, ou talvez te traga até o meu para que as crianças não nos ouçam. Vejo como você se importa com eles, como se preocupa. Mas você não pode pensar em agradá-los dia e noite. Precisa pensar no seu patrão também, não é? Precisa agradar o homem que te deu esse emprego.

– Não – Cassie exclamou, mas seu rosto estava preso na lã sufocante e sua voz foi abafada.

Chocada com o que estava acontecendo, Cassie perguntou-se se deveria simplesmente morder os dentes e aturar a experiência, não importa o quanto a violasse. Com tantas pessoas na sala ao lado, certamente isso se tratava somente de uma apalpada que tinha ido longe demais, e ele pararia a qualquer momento, não?

Entretanto, em seguida, ela deu-se conta de que esse era Pierre. A casa dele, as regras dele. Ele pararia quando quisesse, e provavelmente não pararia. Para piorar, cada momento que ela passava nos braços dele seria visto como um consentimento passivo, dando-lhe o direito de continuar.

– Não – ela gritou, mais alto dessa vez, e sabia que ele ouvira, mas não parou.

Tentou afastá-lo, mas o braço dele apertava-lhe como um torno. Conforme ela lutava em seu domínio, ele encontrou um vão entre a saia e a blusa, escorregando a mão para dentro das roupas dela, debaixo de sua calcinha – os dedos dele se alargando, quentes contra sua pele desnuda.

Pânico inundou Cassie. Ela não consentira, de forma alguma, parte alguma disto, e ela não permitiria que Pierre se enganasse pensando o contrário.

De todo modo, esse era o funeral de sua noiva, pelo amor de Deus – poderia haver uma hora mais inapropriada para que ele se forçasse sobre ela?

O ultraje provocado por aquele pensamento deu a Cassie a coragem para agir. Ela retorceu-se para a direta, longe o bastante para agarrar o único item que podia ver pelo canto do olho. Era um conjunto de enciclopédias antigas, de capa dura, na prateleira ao lado do piano.

Ergueu o livro e o bateu o mais forte que pôde na cabeça de Pierre.

O volume pesado o acertou na têmpora esquerda. Foi um golpe resvalado, mas foi dolorido e inesperado, o suficiente para fazê-lo soltá-la.

Adrenalina deu asas a ela enquanto se contorcia para longe, se esquivando dele em direção à porta. Abriu-a em um golpe, ouvindo a exclamação de fúria dele enquanto ela escapava, sem se atrever a olhar para trás, sabendo que o rosto dele estaria estrondosamente franzido, enrubescido de raiva.

Então, saiu, seu coração martelando, seu cabelo em desordem, sua blusa puxada de sua saia com o botão superior faltando. Mas tinha escapado dele e estava de volta à segurança da multidão.

Totalmente estremecida pelo que acabara de ocorrer, Cassie decidiu desistir da busca por Marc. Precisava ir até o seu quarto, se arrumar e tentar ao máximo recuperar compostura o bastante para passar pelo resto desta tarde interminável, ainda que sentisse vontade de deitar em sua cama, chorando e soluçando em reação histérica ao horror da tentativa de assédio de Pierre.

Mas, quando foi naquela direção, viu Bisset parada no pé da escadaria. Enquanto ela se aproximava, notou que a detetive olhava para ela com curiosidade.

Cassie afastou-se imediatamente e foi para fora, preocupada que sua aparência desgrenhada faria Bisset suspeitar. Se quaisquer perguntas fossem feitas, seria apenas sua palavra contra a de Pierre. A polícia eventualmente iria embora e ela ficaria sozinha para enfrentar a fúria de Pierre. As consequências para ela seriam impensáveis.

Com gelo apertando o coração, Cassie percebeu que as consequências já eram impensáveis.

Pierre dissera que haveria convidados no chalé esta noite, mas eles iriam embora amanhã.

Sabia que Pierre não seria desencorajado. Ela tinha comprado alguns dias a seu favor, no máximo. Ele viria atrás dela novamente – dessa vez, mais furioso, mais determinado que nunca, preparado para qualquer coisa que ela pudesse fazer.

Não havia ninguém que pudesse protegê-la disso e, sem seu passaporte, ela estava aprisionada aqui.

De repente, Cassie perguntou-se se Margot também havia sido uma prisioneira em sua vida aparentemente perfeita, e se sua morta havia sido a punição por tentar escapar.


CAPÍTULO VINTE E CINCO

Cassie mal dormiu naquela noite. Sua mente era um zumbido de ideias enquanto tentava pensar em caminhos viáveis pelos quais poderia escapar da situação. Já tinha inventado vários planos de como escapar, assim como meios de se proteger enquanto estivesse no castelo, mas todos eles não eram práticos, ou eram simplesmente impossíveis.

Perto do fim de sua aparentemente interminável noite, ela finalmente cochilou e começou a sonhar. Desesperada por um bom resultado, seu subconsciente inventou uma brilhante solução para os seus problemas – um processo lógico, passo-a-passo, ao qual ela poderia seguir para estar a salvo de Pierre, pegar seu passaporte de volta e partir.

Ao acordar, o sonho se dissolveu, assim como a sensação incrível de alívio que a preenchera ao saber que tudo ficaria bem.

Não havia solução. Seu momento de conforto foi arrancado dela pela fria luz da manhã, fazendo-a sentir-se vulnerável e sozinha.

Cassie foi até o banheiro e tomou um banho quente e demorado. A água corrente era reconfortante e a ajudou a religar seu cérebro. Resolveu que seu próximo passo seria ligar para a agência de au pair e explicar sua situação a Maureen. Maureen saberia como lidar com isso. Poderia aconselhá-la sobre o que fazer, ou pelo menos seria outra pessoa ciente do dilema em que Cassie se encontrava, porque no momento ela estava completamente sozinha.

Retornando ao quarto, ela caminhou até a tomada em que seu celular estava carregando.

Ele não estava lá.

Cassie olhou para o lugar onde tinha certeza que ele estivera. O cabo estava no chão e ela franziu a testa, consternada, ao compreender que seu celular não estava sequer no quarto.

Quando fora a última vez que o vira? Cassie tentou relembrar o caótico dia anterior como um todo. Ela queria ter levado o celular consigo para a igreja, só para o caso de conseguir obter um sinal lá. Havia o pegado, mas em seguida pensado – ao que se via, de forma acertada – que não teria tempo sobrando durante o funeral.

Ainda assim, tinha considerado pegá-lo e agora não conseguia lembrar se o fizera.

Se o celular tivesse ido parar em seu bolso da jaqueta, havia uma boa chance de ela tê-lo derrubado em algum lugar ou ele ter caído, e a lista de lugares onde aquilo poderia ter acontecido era longa. A igreja, algum lugar no cemitério, o estacionamento onde ela havia se engalfinhado com um Marc relutante a entrar no carro. O celular poderia ter caído enquanto ela perseguia Marc pelo pomar, ou até mesmo na sala de música.

Cassie mordeu os lábios ao se recordar do que acontecera naquela sala ontem. Ela não teria notado se tivesse perdido o celular enquanto tentava escapar dos avanços de Pierre e, se ele tivesse o recolhido, não era provável devolvê-lo depois do que tinha acontecido.

Ela deixara a porta do quarto destrancada enquanto tomava banho, e também na noite anterior enquanto as crianças jantavam. Então, alguém poderia tê-lo levado.

Cassie decidiu que nem sequer pensaria nisso. Era muito mais provável que tivesse o derrubado, e nesse caso perdido todos os seus contatos, todas as suas mensagens e e-mails. Ela nem mesmo tinha o telefone de contato da agência anotado. Os e-mails, as ligações e as mensagens, a captura de tela do contato – tudo estava em seu celular.

Não tinha certeza se seria possível conseguir um novo cartão SIM na França. Isso era um completo desastre. Sua única forma de comunicação com o mundo externo, com as pessoas que conhecia, tinha desaparecido.

Cassie deu as costas pra a visão deprimente do carregador vazio, desesperada por um novo plano, mas incapaz de pensar no que poderia ser.

Ao descer com as crianças para o café da manhã, Cassie perguntou-se, distraída, que tipo de otimismo jovial ela tivera ao se inscrever na agência, acreditando que terminaria em uma casa normal, com pessoas comuns e simpáticas. Em vez disso, estava presa em uma situação infernal que saía mais e mais fora de controle a cada hora que se passava.

Não sabia o que poderia dizer a Pierre no café da manhã. Deduziu que teria que agir como se tudo estivesse normal, porque aquela era a regra do jogo grotesco que ele a forçara a jogar. Ela poderia sair do jogo e confrontá-lo, mas sabia quão arriscado isso poderia ser. E, se fizesse isso na frente das crianças, seria nocivo e cruel com elas.

As mesas que foram postas para o velório já haviam sido recolhidas, mas os grandes porta-retratos com fotos de Margot ainda estavam expostos na mesa do hall. Havia três deles – uma foto de seu rosto, uma foto de corpo inteiro em um vestido de noite e um retrato dela com Pierre em frente ao castelo. Essa última parecia ter sido tirada durante uma sessão profissional, e Cassie achou que as outras duas deviam ser fotos de estúdio, porque Margot parecia modelar para as roupas e as joias que usava.

Cassie notara, ao vê-las pela primeira vez, e sendo lembrada disso agora, que Margot não sorria em nenhuma das fotos.

Para seu alívio, não havia sinal de Pierre no café da manhã e, quando Marnie trouxe o café e o suco de laranja, ela confirmou que ele tinha outros planos.

– É um belo dia, então Monsieur Dubois levará seus hóspedes em um tour pela propriedade e pela adega às oito horas, e estamos preparando o café da manhã para eles, às nove horas, na varanda com vista para a vinícola – ela explicou, oferecendo um sorriso afetuoso a Cassie, como se pressentisse que a ausência de Pierre era uma boa notícia.

– Os hóspedes passarão outra noite aqui? – Cassie esperava que isso significasse estar a salvo por mais tempo, mas sua espinha arrepiou de medo quando Marnie balançou a cabeça.

– Eles vão embora depois do café da manhã – ela disse.

– Há algo que eu ou as crianças precisemos fazer hoje? – Cassie perguntou.

– O feriado acabou e a escola recomeça na segunda-feira. Pode verificar se as mochilas das crianças estão prontas, e se eles têm todos os cadernos e livros didáticos que precisam? O que for necessário, você pode comprar na cidade amanhã.

– Farei isso – Cassie disse.

Serviu-se de uma xícara de café, percebendo que suas mãos tremiam e torcendo para que as crianças não notassem. Ella estava ocupada espalhando Nutella em sua torrada e Marc tirava todos os morangos da cesta de frutas, mas Antoinette pareceu perceber sua preocupação. Assim que Marnie saiu da sala, ela iniciou uma conversa com a voz açucarada da qual Cassie já tinha aprendido a desconfiar.

– Você foi ao funeral da sua irmã, Cassie? – ela perguntou.

Cassie derramou um pouco do creme que estava servindo. Ele espirrou no pires azul e na toalha de mesa, e ela se apressou em pegar um guardanapo.

– Do que você está falando? – ela perguntou. – Minha irmã não teve um funeral.

A memória de seu sonho ressurgiu. As palavras de provocação de Jacqui e o modo como ela mentalmente levara Cassie ao limite até que, por sua vez, Cassie havia fisicamente a empurrado na ravina.

Desejava poder falar sobre o sonho com alguém e descobrir o que significava, quais medos ela precisava abordar e como poderia trabalhá-los. Tinha certeza de que um terapeuta poderia ajudá-la, mas não poderia usar ninguém que fosse local. Depois do que acontecera com Margot, ela apenas se incriminaria ao compartilhar o sonho.

– Você não a enterrou? – Antoinette perguntou, soando deliberadamente chocada.

– Ela não morreu – Cassie falou cuidadosamente, preocupada com a direção tomada.

– Você disse que ela morreu – Antoinette disparou de volta, mas disse constatando um fato, e não de forma provocativa.

– Eu nunca disse isso! – Cassie podia ouvir o tom defensivo de sua própria voz.

– Mas você disse. Quando estávamos conversando no carro, no caminho para o funeral, ontem. Ela não disse isso, Marc?

Antoinette olhou para Marc por cima da mesa, que já tinha terminado os morangos e agora tirava gomos de tangerina.

– Você disse que sua irmã se perdeu na floresta – Marc disse, em voz alta, e Cassie congelou enquanto Antoinette assentia vigorosamente.

– Sim, foi o que você disse. Ela se perdeu na floresta e você estava preocupada que ela tivesse morrido.

Cassie sentiu mal-estar. Repousou sua xícara sem beber o café. Com certeza não era possível que as duas crianças confirmassem uma história completamente fictícia. Além disso, a menção à floresta era profundamente perturbadora, porque fazia parte daquele sonho horrível. Ela nunca, jamais tivera a intenção de compartilhar nenhum daqueles detalhes com a família. Agora, as crianças lhe diziam que ela já tinha feito isso.

Esforçando-se por uma perspectiva da situação, Cassie imaginou que fosse possível que Marc estivesse se lembrando de quando Ella estivera perdida nos bosques – pensando na própria irmã, ao invés da irmã dela, e simplesmente acompanhando Antoinette.

Ela estivera nervosa durante o funeral. Sentira-se estressada e instável. No carro, tinha tagarelado sem realmente pensar sobre o que dizia, apreensiva pela necessidade de encontrar a igreja e de todos chegarem com tempo de sobra. Respondera as perguntas invasivas de Antoinette, que sempre a colocavam na defensiva, ao mesmo tempo tentando manter um olho no banco de trás, onde Marc tirava o cinto de segurança e colocava a cabeça para fora da janela.

Então, considerando as distrações com as quais precisara lidar, era possível que ela tivesse dito algo, especialmente já que ambas as crianças tinham certeza daquilo.

Cassie sentiu vontade de chorar. Não conseguia mais confiar em si mesma. As lacunas em sua memória eram assustadoras. Ela poderia facilmente ter dito algo às crianças que a comprometeria, e talvez tivesse. Se havia mencionado a floresta, poderia ter levado a conversa mais além e falado sobre aquele sonho vívido e assombroso.

*

Após o café da manhã, Antoinette foi para a sala de música praticar piano e Cassie decidiu começar com o material escolar. Descobriu-se ansiando pela chegada da segunda-feira, para que pudesse ter algum tempo para si mesma a cada dia e as crianças pudessem, com sorte, ter mais estrutura e disciplina em suas vidas.

– Marc, você e Ella podem me mostrar as mochilas de escola de vocês e me dizerem do que precisam? – Cassie perguntou, torcendo para que não demorasse muito, para que ela terminasse antes de Antoinette estar pronta para ajudá-la.

Porém, Marc gritou. – Não, não quero ajudar. Vamos lá fora brincar de esconde-esconde.

Tomando a mão de Ella, ele saiu da sala de jantar. Cassie correu até a porta e berrou por eles.

– Marc, por favor! Espere um minuto. Vou brincar com vocês mais tarde, mas precisamos fazer isso. Ella, volte!

Ambas as crianças a ignoraram completamente, correndo para fora.

A ideia de persegui-los pelo enorme jardim, ou o pomar, ou a estufa, encheu Cassie de exaustão. Ela mesma cuidaria das malditas mochilas escolares. Deixaria as crianças gastarem um pouco de energia; certamente havia um limite ao estrago que poderiam fazer durante a meia hora que ela demoraria a examinar os pertences deles e fazer uma lista.

Sentiu-se profundamente aliviada em ter um tempo em silêncio. A presença constante dos três era claustrofóbica, e as perguntas e exigências incessantes fragmentavam sua concentração. Não lhe dava chance alguma para endireitar sua mente atrapalhada. Ela ansiava por um dia de silêncio para reunir seus pensamentos, e uma semana de sono para banir a exaustão que tornava cada movimento um esforço.

Ela arrastou-se para o andar superior para checar os quartos e percebeu que, já que Marnie não lhe dera detalhes sobre o que as crianças precisavam e elas não estavam cooperando, teria que tomar por base seu próprio senso comum e adivinhação.

Decidiu começar examinando as mochilas escolares, garantindo que as mochilas em si não estivessem quebradas nem contivessem alguma surpresa, como um sanduiche de duas semanas atrás à espreita. Depois, ela só teria que descobrir o que estava faltando, se houvesse algo.

Verificar as mochilas parecia uma tarefa hercúlea. A mochila de Ella tinha pouco equipamento, mas quanto era realmente necessário para uma criança de cinco anos na escola? Ela tinha lápis, um apontador e dois cadernos.

A mochila de Marc era uma bagunça caótica. O estojo dele estava aberto e o conteúdo havia se espalhado dentro da bolsa. Aparas de lápis, canetas marca-texto com a tampa aberta, animais de brinquedo e canetas vazando se amontoavam no fundo manchado de tinta da mochila. Seus cadernos tinham páginas arrancadas e capas curvadas.

Quando terminou de organizar, Cassie fez uma longa lista do que achava que precisava ser substituído, começando pela própria mochila. Estava uma bagunça; uma das alças estava quebrada e ele havia feito um desenho rudimentar na parte de fora da mochila, de uma mulher baixa com cabelos selvagens e cenho franzido. Cassie imaginou que a obra de arte poderia ser sobre a professora dele.

O quarto dele estava tão desordenado quando a mochila, e ela gastou um tempo o arrumando. Soldados de brinquedo se espalhavam por todos os cantos e havia uma pilha deles debaixo da cama. Ela mal acreditava na bagunça que Marc era capaz de criar em pouquíssimo tempo.

Saindo do quarto de Marc, Cassie procurou escutar a música do piano, mas já havia parado. Já que Antoinette não tinha vindo até o andar de cima, ela decidiu seguir em frente e terminar o trabalho sozinha. Esperava que a mochila de Antoinette estivesse em ordem, pois não tinha a energia para repetir o que acabara de fazer com Marc.

A bolsa turquesa de Antoinette estava pronta e organizada, como ela havia esperado, e tudo o que ela precisava parecia estar lá. Cassie examinou o estojo de geometria, pensando no equipamento que se lembrava de ter usado na escola. Parecia correto. Até o pequeno lápis do compasso parecia estar apontado.

Cassie devolveu a mochila onde havia encontrado, porém, ao se abaixar, viu alguma coisa bem no fundo da prateleira de madeira, algo que parecia estranhamente familiar à sua mente exausta e atordoada.

Tirou a mochila e olhou mais de perto, tomando uma respiração aguda ao ver o que estava lá.

Era o celular dela. A capa distinta, brilhando com hologramas prateados, havia chamado sua atenção na escuridão.

Cassie o pegou e ligou, notando que suas mãos tremiam mais do que nunca, mas dessa vez pelo choque, e não pelo estresse.

Estava inteiro e funcionando. Ela não estava enlouquecendo, não tinha o derrubado ou colocado no lugar errado. Apertou o celular contra o peito, fechando os olhos em completo alívio por tê-lo de volta em sua posse.

Levou alguns minutos para que o alívio evaporasse e a fúria pura e cega tomasse o seu lugar.

Antoinette deveria ter entrado em seu quarto, puxado o celular do carregador, roubando-o e o escondendo onde Cassie o encontrara apenas por pela sorte do acaso. Antoinette agira de forma deliberada e maliciosa. Cassie tinha certeza de que ela não pretendia devolvê-lo até tê-la visto sofrendo – se é que planejasse devolvê-lo.

Como uma garota de doze anos, Antoinette não tinha nenhuma desculpa para o que fizera; tinha idade suficiente para saber melhor. Isso era roubo, pura e simplesmente.

Cassie compreendeu que, em termos de suas reservas emocionais, ela acabara de chegar ao fundo do poço.

Sua paciência tinha acabado – completamente. Ela estava cansada dos jogos mentais das crianças, seus motivos secretos, sua rejeição desafiadora da autoridade dela, e sua recusa em entender conceitos básicos de certo e errado. Não poderia mais lidar com isso.

Cassie imaginou-se agarrando Antoinette pelos ombros delicados, chacoalhando-a até que seus dentes fizessem barulho. Imaginou-se erguendo a mão e estapeando o rosto presunçoso dela, assistindo a cabeça dela girando para o lado e sua expressão de superioridade sumindo.

Extraiu uma perversa alegria ao pensar sobre a força exata que colocaria naquele golpe.

Cassie empurrou a mochila escolar de volta na prateleira e marchou para fora do quarto, batendo a porta com força atrás de si.

Primeiro o que era prioridade, ela decidiu. Com o celular em sua posse outra vez, poderia ao menos buscar pelo contato da agência. Já eram dez e quinze. Aquilo significava que ainda era muito cedo nos Estados Unidos; cedo demais para usar o telefone fixo de Pierre para ligar para a agência, que abria às oito da manhã. Quando abrisse, talvez Pierre já tivesse voltado do café da manhã. Se ele estivesse por perto, ela não poderia exatamente marchar para o quarto dele para fazer uma ligação importante e confidencial para obter ajuda.

Cassie soltou um suspiro de frustração. Realmente não havia parte alguma neste maldito lugar onde ela poderia fazer uma ligação de celular? Agora que tinha créditos de recarga, talvez ela devesse checar. A propriedade era imensa. Certamente devia haver algum lugar que oferecesse sinal de celular suficiente para uma ligação, mesmo que não houvesse sinal o suficiente para permitir dados móveis. Um mínimo sinal seria o bastante. Uma barra bastaria.

Segurando o celular à sua frente, Cassie saiu em sua caçada.

A frente da casa não resultou em nada. Cercada pelas colinas, Cassie supôs que simplesmente não houvesse linha de visão para uma torre disponível – e, se houvesse sinal em algum outro lugar, a estrutura de pedras do castelo em si impediria que chegasse até esse lado.

Tinha mais esperanças para os fundos da casa, onde a linda e estonteante visão se estendia por quilômetros. Até mesmo o menor traço de sinal de alguma torre longínqua poderia ser suficiente. Além disso, hoje o dia estava claro, seco e sem vento, significando uma melhor chance de sucesso. Cassie lembrou-se de Zane, de todas as pessoas, ensinando a ela como o mau tempo afetava o sinal de celular. Nuvens pesadas, chuva e até ventos fortes tombavam o sinal. Ele aprendera aquilo com seu irmão mais velho, envolvido com a manutenção de torres de telefonia.

Cassie contornou a casa e caminhou pela trilha pavimentada, com as altas paredes de pedra do castelo logo à sua direita. Manteve seu celular levemente apontado para o campo aberto à esquerda, sem saber se isso ajudaria, mas achando que não poderia fazer mal. Caminhou devagar, os olhos fixos na tela, onde um frustrante aviso de “Sem Sinal” se recusava a ceder.

Com toda sua atenção focada em seu celular, Cassie não viu a valeta à sua frente, uma profunda vala nas pedras. Seu pé ficou preso nela e ela quase caiu, mergulhando para salvar a si mesma e seu celular.

Ao fazer isso, mais sentiu do que viu algo pesado caindo atrás dela – ouviu o barulho da brisa na queda, sentindo um repentino gelo no ar.

Na respiração seguinte, o enorme objeto colidiu com o chão.

Cassie girou, gritando em pânico. Seu coração martelava em sua garganta quando viu, incrédula, o pesado busto de pedra. Tinha caído diretamente atrás dela, não mais que um passo de distância de onde estivera, e ela percebeu, horrorizada, que seu tombo havia lhe salvado, pois se não tivesse tropeçado e mergulhado para se salvar, aquilo teria caído diretamente sobre ela.

A cabeça e os ombros de mármore eram maiores do que o tamanho real. Deveria pesar mais de cinquenta quilos. Sua forma sólida pareceu não ter sido danificada pela queda, mas as grandes lajes onde aterrissara haviam se despedaçado.

Enfraquecida pelo choque, Cassie deu um passo atrás para ver melhor o terraço, lá em cima.

A estátua no pilar esquerdo da balaustrada ainda estava no lugar. A da direita havia caído. O terraço estava vazio, e ela não conseguia ver nenhum movimento nele.

Alguém teria visto Cassie passando e empurrado a estátua?

Ela não queria acreditar, mas tinha sido perto – impossivelmente perto. Ela acabara de escapar ser esmagada.

De forma oportuna, sim, mas ela precisava encarar a realidade de que alguém genuinamente poderia ter tentado matá-la.

A única pergunta era quem.


CAPÍTULO VINTE E SEIS

Cassie estava parada, congelada pelo entendimento de que a estátua poderia ter sido deliberadamente mirada sobre ela, quando ouviu um grito.

– O que está acontecendo? O que foi isso?

Pierre contornou a casa, correndo até onde ela estava.

Cassie viu espanto genuíno no rosto dele ao encará-la, olhando em seguida para o terraço, com a respiração ofegante.

Tudo o que ela conseguia pensar no momento era no fato de não ter sido Pierre quem empurrara o busto do parapeito. Seria impossível que ele viesse correndo do terraço superior, descesse a escadaria e saísse pela porta de entrada até chegar à lateral da casa em um tempo tão curto.

– Isso caiu enquanto eu passava – ela disse, sua voz aguda e trêmula. – Quase me acertou.

– Caiu? Esta estátua não pode simplesmente ter caído. Esteve neste lugar por séculos – Pierre deu um passo atrás para ver melhor. – Olhe, você consegue ver o pódio onde ela ficava.

Ele se agachou, examinando a estátua com escrutínio.

– Está intacta, apesar de as lajes precisarem ser substituídas – ele disse. – Vou dizer ao gerente da vinícola que se organize para devolvê-la ao seu lugar.

– Quase me matou – Cassie disse. Sua cabeça nadava agora, em reação retardada. Meio segundo a menos e ela não teria tido chance.

Pierre franziu o cenho para ela e Cassie viu que, depois do que tinha acontecido entre eles ontem, empatia não viria dele. Na realidade, ela nem deveria ter mencionado seu escape da morte tão próximo. Não queria ser o foco da atenção de Pierre por qualquer motivo. Era melhor quando o olhar dele passava por ela com indiferença, como se ela fosse insignificante na vida dele, e os problemas dela não o preocupassem.

– Você está machucada? – ele perguntou, em um tom que a informava que ele sabia que ela não estava.

– Não, não estou machucada. Estou bem – ela disse, defensivamente.

– Se estavam movendo os móveis no cômodo durante a limpeza, um dos empregados pode tê-la derrubado por acidente – ele disse.

Ou uma das crianças, Cassie pensou com um arrepio, e nesse caso talvez não tivesse sido um acidente.

Pierre foi para a garagem e subiu no carrinho de golfe, guiando-o pelo caminho arenoso em direção ao vinhedo.

Cassie decidiu ver se conseguiria descobrir por si mesma quem tinha estado lá.

O terraço pertencia a uma das suítes dos hóspedes, na ala da casa que ficava vazia. Supunha que alguns dos quartos pudessem ter sido ocupados na noite anterior pelos convidados do funeral, mas ela não sabia quais. Quando foi até o andar de cima, encontrou todos os quartos destrancados, de portas fechadas. Primeiro, ela entrou no quarto errado por engano. O interior da casa parecia diferente e maior do que do lado de fora.

O próximo quarto era o correto. Estava imaculado, com a cama em dossel perfeitamente arrumada com travesseiros bordô e uma colcha creme. A porta para o terraço estava aberta, mas não havia ninguém lá fora. Ela saiu no terraço e olhou para baixo, seu estômago se agitando enquanto examinava a queda. Inquieta, olhou para trás e moveu-se rapidamente para longe do corrimão. Perguntou-se se algum dia seria capaz de olhar de um lugar alto sem se lembrar do choque que sentira e da tontura doentia que a preenchera ao ver o corpo de Margot.

Tentou mexer no busto remanescente. Com sua base estreita, ombros largos e cabeça imponente, ele era instável e mais pesado na parte de cima. Não seria preciso muita força para empurrá-lo. Fisicamente, até mesmo Ella poderia ter feito aquilo.

Uma coisa era certa – não havia nenhum empregado nesse cômodo, ou sequer nessa ala. Eles deveriam ter terminado o trabalho mais cedo.

Pierre não havia sequer mencionado a possibilidade de que pudesse ter sido uma das crianças, embora fosse óbvio que, excluindo os empregados, elas eram as únicas que poderiam tê-lo feito. Cassie perguntou-se se genuinamente não ocorrera a Pierre ou se ele simplesmente não estava se permitindo considerar a possibilidade, o que era mais provável.

Imaginava ser uma extensão da crença dele de que o nome da família devesse permanecer completamente limpo, sem ser manchado por escândalos, a qualquer custo.

Tendo escapado por pouco da morte, ela ainda não sabia quem tinha feito aquilo, e o incidente só havia atraído a atenção de Pierre para ela novamente. Além de tudo, ela estava convencida de que não havia sinal de celular em nenhum lugar nos arredores. Não houvera o menor traço no andar de baixo e, ao verificar o celular no terraço, o teimoso aviso de “Sem Sinal” recusou-se a ceder.

Frustrada, Cassie percebeu que teria que esperar até Pierre sair. Talvez ele saísse mais tarde, então ela poderia usar o telefone fixo para contatar a agência, que se danem as consequências se ele descobrisse.

Tudo que ela havia tentado fazer naquele dia acabara em desastre, e pensar sob aquela perspectiva fazia Cassie ficar com vontade de explodir em lágrimas. Antoinette havia roubado seu celular. Alguém havia tentado matá-la. Todos pareciam odiá-la, menos Marnie, o único rosto amigável no castelo todo.

Ela saiu do quarto, lembrando-se de suas responsabilidades, e procurou as crianças. Ella estava no quarto dela e Antoinette na biblioteca. Estava aconchegada em uma poltrona, lendo, sorrindo com inocência para Cassie quando ela entrou.

Cassie refreou a urgência em gritar com ela e chamá-la de ladra, possivelmente uma assassina em potencial também. Se a estátua tivesse sido empurrada de seu suporte deliberadamente, ela sabia qual das crianças era a mais provável culpada. Precisou de todos os fragmentos restantes de seu autocontrole para perguntar a Antoinette se sabia onde Marc estava e, quando Antoinette deu de ombros com desdém, Cassie ficou tentada a agarrar seu rabo de cavalo brilhante e puxar até que ela gritasse.

Marc estava na cozinha. Ele tinha invadido a geladeira, encontrando um prato com bolo gelado. Derrubara um pedaço no chão e estava saindo da copa com outro pedaço, triunfante, quando Cassie chegou.

Ela conseguiu alcançá-lo no caminho para o pomar, após ele ter comido metade do bolo enquanto corria, jogando a outra metade no pavimento imaculado, em uma chuva de migalhas.

– Está quase na hora do almoço, Marc, você deve entrar agora – ela suplicou.

– Não estou com fome – ele berrou alegremente, e ela precisou persegui-lo novamente por todo o caminho até a estufa com as vidraças quebradas. Cassie supunha que deveria contar a alguém sobre elas, mas não tinha a energia, e se contasse teria que explicar que Marc fizera aquilo quando estava sem supervisão.

Pareceu melhor deixar estar.

Sua única tênue conexão com a sanidade era a chave de seu quarto. Podia sentir o formato reconfortante em seu bolso. À noite, trancaria seu quarto e ninguém poderia pegá-la. Ela se agarrou a este fato como a um bote salva-vidas. Parecia a única coisa sobre a qual ainda tinha controle.

Pierre juntou-se a eles para o almoço, o que surpreendeu e consternou Cassie. Ainda mais desconcertante era a alegria do humor dele.

– Posso te servir frango assado, Cassie? – ele perguntou cordialmente, e ela forçou um sorriso educado.

– Marnie preparou antes de sair. Acho que é um dos melhores pratos dela. Frango assado, ratatouille e molho. Simples e clássico. Você gosta, Antoinette?

Antoinette sorriu, claramente deleitando-se em ser o principal foco da atenção de seu pai.

– Está delicioso – ela concordou.

– Margot nunca comia molho – Ella observou. – Acho que ela não gostava.

Ninguém respondeu a essa observação e fez-se um curto silêncio após suas palavras. Marc olhou para a cadeira vazia de Margot antes de voltar sua atenção à refeição.

– Onde Marnie foi? – Cassie perguntou, preocupada. Esperava poder falar com ela esta tarde e descobrir se havia outro telefone que poderia usar.

– Ela pediu o resto do dia de folga. Tinha um afazer. Ela teve alguns dias de folga recentemente, mas é trabalhadora. Não podemos dar momentos de lazer aos trabalhadores com má vontade, especialmente quando trabalham tão bem. Afinal de contas, aqueles que colocam seus corações em seu emprego são os que são bem recompensados. É sempre importante agradar o seu patrão.

O olhar dele encontrou o de Cassie sobre a mesa, que ele ofereceu de forma significativa. Ela não teve dificuldades de entender a insinuação. O fato de Pierre estar dizendo isso em frente aos seus filhos, no dia depois do funeral de Margot, fazia com que ela quisesse vomitar.

Com um esforço sobre-humano, ela manteve sua expressão neutra e forçou a comida a descer, esperando que ficar em silêncio a ajudasse a se tornar invisível para ele novamente.

– Vou para a cidade esta tarde, a negócios – Pierre anunciou enquanto os pratos eram retirados.

– Quando você volta, papai? – Antoinette perguntou.

– No início da noite.

– Podemos brincar? – ela sorriu outra vez.

– Talvez. Você sabe o quanto eu gosto de brincar. – Porém, enquanto ele falava, Pierre olhava para Cassie, e não para sua filha.

Ela achou que ele fosse dizer outra coisa, mas naquele momento houve uma batida na porta de entrada.

Pierre se levantou.

– Eu atendo. Estou de saída, de qualquer forma – ele disse.

Cassie também se levantou, sentindo como se seus nervos tivessem sido triturados. Ela saiu da sala de jantar e entreouviu a conversa brusca de Pierre com a visitante na porta de entrada.

– Madame, não há nada para ver aqui. O funeral de Margot foi ontem, e eu estou de saída agora. Se quiser passar algum tempo recordando-se dela, permita-me te direcionar ao cemitério onde as cinzas estão enterradas.

Ele fez uma pausa.

– Você é uma repórter? Então, pode contatar meu escritório para uma cópia do obituário oficial. Informações sobre a vida dela estão disponíveis, acompanhadas de algumas fotos excelentes. Aqui está o meu cartão com os detalhes. Ainda estou de luto e não tenho nada a dizer a você.

Pierre fechou a porta firmemente atrás dele e, alguns minutos depois, Cassie ouviu o carro dele partindo.

Agora era a hora de agir, Cassie decidiu. Não esperaria nem mais um minuto.

Subiu as escadas, marchando pelo corredor até o quarto de Pierre. Pegando seu celular de sua jaqueta, rolou até encontrar o número da agência. Então, erguendo o queixo em determinação, girou a maçaneta da porta.

Estava trancada.

A realidade a atingiu como um soco no estômago.

Tentou outra vez, chacoalhando a maçaneta. Essa porta nunca tinha sido trancada, e agora estava de modo inconfundível.

Não havia como acessar o telefone fixo agora. Não poderia fazer nenhuma ligação esta tarde, nem receber aconselhamento. Seu único meio de comunicação se fora.

Cassie deu as costas para a porta, despedaçada. Essa deveria ser sua punição por tê-lo rejeitado ontem.

Como ele soubera que ela tinha vindo ao quarto dele naquela primeira vez? Claramente, ele tinha suposto ou pressentido, e ela fora descoberta. E, agora, ele dizia que tinha conhecimento e que a impediria, porque isso era parte do doentio jogo de poder que ele estava jogando.

Pensando naquilo, na estranha satisfação dele durante o almoço, Cassie teve outra premonição de desastre.

Ela deixara seu quarto destrancado esta manhã, como Marnie havia pedido, porque ela e as crianças estavam na casa e as camareiras precisavam fazer a limpeza.

Cassie voltou pelo corredor, pegou a chave em seu bolso e fechou a porta do quarto. Em seguida, tentou trancá-lo.

Contudo, dessa vez, a chave não entrou corretamente. Não cabia na fechadura, e ela não conseguia girá-la. Ela mexeu e agitou, puxou e empurrou. Retorceu-a com toda força até parar, pois sabia que, se continuasse tentando, o fino eixo de metal simplesmente se romperia na fechadura.

Ela retirou a chave, colocou-a de volta e tentou uma segunda vez, para o caso da fechadura estar com alguma falha ou ferrugem atrapalhando, ou simplesmente seu próprio pânico tê-la feito fazer errado.

O mesmo acontecia, não importa quantas vezes ela tentasse. Não conseguia girar a chave, nem trancar a porta.

Pierre havia descoberto que ela estivera trancando-a por segurança.

Hoje à noite, ele estava garantindo que ela não conseguisse.


CAPÍTULO VINTE E SETE

Cassie jogou a chave inútil do outro lado do quarto o mais forte que pôde. Acertou a parede e caiu no chão de forma barulhenta. Ela não se incomodou em pegá-la. Virou as costas e bateu a porta ao sair.

O medo subjacente, que ela percebeu estar tolerando desde que Margot morrera, agora estava entrando em ebulição, se transformando em terror completo.

Disse a si mesma que era apenas Pierre fazendo jogos mentais com ela, punindo-a por ter se defendido dele ontem. Tentou tranquilizar-se dizendo que ainda tinha opções abertas e poderia dormir no quarto de Ella se precisasse.

Mas não poderia fazer isso a noite toda, todas as noites. Não tinha ideia de quando seu passaporte seria devolvido e não podia ligar para ninguém para pedir ajuda.

Cassie inspirou profundamente. Nunca havia se sentido tão presa ou derrotada. Dividia a casa com um adúltero que colocara a mira nela, e com um suspeito de assassinato. Não tinha ideia se eram a mesma pessoa ou duas pessoas diferentes. Quem tinha empurrado Margot do terraço? E quem tinha empurrado a estátua do pedestal, lançando-a para o chão enquanto Cassie passava?

Por que, por que será que ela tinha tomado uma overdose tão grande de seus medicamentos naquela noite em especial, resultando em confusão, pesadelos e memórias atrapalhadas que significavam que nem mesmo sabia o que realmente tinha acontecido, ou que papel desempenhava em tudo isso?

Caminhou pesarosamente, descendo as escadas para a cozinha, perguntando-se onde Marnie tinha ido. Pelo que sabia, Marnie poderia, na realidade, ter se demitido. Não poderia mais acreditar em tudo que lhe diziam.

Um dos empregados da cozinha estava trabalhando na copa, mas a cozinha estava vazia.

Na seção de preparação da comida, havia uma grande caixa de madeira onde as facas de trinchar e as de corte eram guardadas. Todas estavam no lugar, seus cabos salientes, pedindo para serem usadas.

Cassie inspecionou todas as facas no suporte de madeira. Ela pegou a que esperava ser a arma mais mortal de todas elas – comprimento médio com uma lâmina sólida e brilhante que se afunilava em uma ponta sinistra. A lâmina chanfrada estava afiada de forma letal.

Imaginou levantá-la e esfaquear alguém com a ponta. Ou usar a lâmina de navalha para cortar através da carne, abrindo uma fenda profunda na garganta de seu agressor.

Segurando a faca, sentiu que estava em uma encruzilhada. Seria capaz de usá-la?

Cassie sacudiu a cabeça. Por mais tentador que fosse possuir a proteção que a faca oferecia, era uma arma mortal demais, o que significava que ela congelaria ao invés de usá-la, porque a habilidade de machucar seriamente ou matar alguém a aterrorizava. Havia também a possibilidade da faca ser tomada dela. Então, poderia terminar sendo a vítima, e Pierre poderia verdadeiramente dizer que havia a utilizado em defesa própria.

Precisaria de algo menos letal, mas que ainda fosse um meio de intimidação efetivo. Spray de pimenta seria ideal, mas tinha certeza de que não tinha nenhum no castelo. Pimenta pura funcionaria?

Cassie rejeitou esta ideia também. Não seria prático. Então, a solução veio.

Inseticida. Precisava de uma lata de um poderoso repelente de insetos. O veneno cegaria Pierre temporariamente, ou o faria engasgar, seria fácil de usar, e a lata em si também poderia ser usada como uma arma de defesa pessoal se ela acertasse o rosto dele.

Em um castelo com centenas de anos certamente havia muitos insetos e, portanto, spray. Ela imaginou que fosse guardado na copa ou no armário de vassouras.

Cassie esperou alguns minutos até que a empregada saísse e, em seguida, procurou na copa, onde encontrou uma lata quase cheia de um inseticida de aparência tóxica usado em baratas e outras pestes de cozinha.

Para testar, espirrou um jato no ar, esperou alguns segundos, depois o abanou em sua própria direção. A fumaça era asfixiante, fazendo seus olhos lacrimejarem.

– Venha me pegar, Pierre – ela sussurrou, apertando o dedo com força no bocal da lata. – Vamos ver se vai dar certo para você.

Apesar da bravata em suas palavras, o sentimento de terror não cedera. Na realidade, havia piorado. Preparar sua defesa a forçava a reconhecer a realidade do que ela acreditava que ele estava planejando.

Carregou o spray até seu quarto e o escondeu debaixo do travesseiro. Depois, fechou a porta e foi procurar as crianças.

Buscou sem ter frutos por quase meia hora, preocupando-se mais e mais sobre onde estavam e qual desastre poderiam ter causado, até que o som alto do motor do carro a alertou e ela correu para a garagem.

Marc havia roubado as chaves da louça no hall e destravado o Peugeot. Ele conseguira ligar o carro e estava empoleirado no banco do motorista, agarrando o volante com força com os pés pisando o acelerador. O motor gritava em protesto e o ar estava espesso com a fumaça.

Antoinette trouxera Ella para assistir ao espetáculo e estava parada do lado de fora da garagem, gargalhando.

– Pare agora! – Cassie berrou, porém, com o rugido do motor, ninguém a ouviu.

Ela deu um arranque para a garagem, tossindo ao respirar a nuvem de fumaça asfixiante. Torceu a maçaneta da porta, abrindo-a e se perguntando por que estava grudenta.

– Fora, agora! – ela ordenou.

Marc segurou o volante com força, gritando em protesto. Dentro do carro, Cassie viu, para seu horror, que ele trouxera um copo de chocolate quente e um sanduiche de mel para dentro do carro. Como era de se prever, o chocolate espirrara por todo o banco do passageiro. O rosto e as mãos de Marc, o volante, a seta e a maioria dos botões no painel estavam besuntados em mel.

Subitamente, Cassie perguntou-se quanta cumplicidade Antoinette poderia ter em tudo isso. Conseguia imaginá-la entregando o chocolate e o sanduiche a Marc, e sugerindo que ele dirigisse.

– Fora – Cassie berrou. O ar da garagem estava espesso com a fumaça. Ela agarrou o braço de Marc e o arrastou para fora do carro antes de se inclinar e desligar a ignição. As chaves também estavam grudentas. Todas as superfícies possíveis estavam cheias de mel.

– Marc, o que diabos é isso? Você sabe que não tem permissão para vir na garagem – ela gritou, puxando-o até o lado de fora, onde felizmente o ar estava mais limpo. Virou-se para Antoinette, sem se importar que a menina mais velha visse exatamente quão furiosa estava.

– Você estava assistindo o tempo todo! Por que o deixou fazer aquilo?

Antoinette apenas deu de ombros de forma rude, abrindo os braços. O gesto – na verdade, sua conduta como um todo – indicava nada além de desprezo por Cassie.

Ella deu as costas, como se não precisasse mais se incomodar em continuar seu comportamento manipulativo, agora que Cassie estava tentando impor disciplina. Então, Cassie decidiu, Ella não gostava dela de verdade. Só capitalizava em sua fraqueza, no fato de Cassie ser um brinquedo em suas mãos.

O cérebro dela parecia estar sobrecarregado. Quase sentia os neurônios queimando, um a um.

– Para dentro – ela vociferou. Como faria as crianças entenderem o quão destrutivo e completamente perigoso tudo isso tinha sido? Se Marc tivesse colocado o carro em marcha, poderia ter atropelado Ella.

– Não quero entrar – Marc começou, e Cassie gritou com ele com toda a força, dobrando-se para que sua boca ficasse a centímetros da orelha dele.

– Você vai! Agora!

Marchou com as crianças para dentro. Marc arrastou os pés em silêncio, mal-humorado, e Ella foi choramingando e chutando o cascalho. Antoinette ainda soltava risadinhas, como se achasse toda a situação, incluindo a perda de controle de Cassie, hilariantemente engraçada demais para palavras.

– Venha comigo – ela disse, indo para o andar de cima, mas virando no topo das escadas em direção à ala dos hóspedes. Forçou Marc à sua frente, com Ella choramingando atrás e batendo as mãos nas portas enquanto passava. Cassie conseguia ouvir a risada prateada de Antoinette na retaguarda.

Deu um soco para abrir a porta, pisoteando quarto adentro e apontando através da porta de vidro de correr para o pódio vazio no terraço, onde a estátua tinha estado.

– Qual de vocês empurrou a estátua dali? Digam. Agora. Porque eu estava andando debaixo do terraço quando caiu, e ficou a centímetros de me matar.

Examinou os rostos deles. Ella amotinada, Marc desafiante, Antoinette presunçosa.

Esperava que fosse demorar um pouco para alguém confessar, que talvez precisasse observar sinais de culpa na linguagem corporal deles. Mas Marc gritou imediatamente, como se estivesse orgulhoso do que tinha feito.

– Fui eu! Eu estava me escondendo aqui, porque estávamos brincando de esconde-esconde. Parecia bamba, então eu empurrei. Sou tão forte! Olhe, posso derrubar a outra também.

Ele correu até as portas de vidro enquanto Antoinette guinchava de alegria.

Cassie mergulhou atrás dele, lembrando-se que Pierre havia dito que uma equipe substituiria a estátua durante a tarde, o que significava que poderia haver pessoas lá embaixo.

– Não – ela gritou. – É perigoso, você pode machucar alguém.

– Não ligo! – Marc berrou. Ele chutou as canelas dela, seus dedos martelando-a de forma dolorosa com os esforços para fazê-la soltá-lo, e ela lutou contra o menino indisciplinado, os dedos dele ainda grudentos de mel. Cassie sentiu-se consumida por uma fúria crua e violenta.

Ela o carregou para longe da porta. Ele gritou de raiva, seu rosto vermelho, suas mãos deixando manchas gigantescas na porta.

– Você precisa parar de agir assim! Precisa começar a escutar – ela gritou com ele.

– Não vou, não vou – ele berrou de volta.

Antes que pensasse nas consequências de suas ações, Cassie levantou o corpo do jovem garoto e o arrastou através do quarto até o grande guarda-roupa de mogno. Abriu a porta e o forçou para dentro, fechando a porta e se recostando contra ela por garantia.

– Agora fique aí e pense sobre o que você fez – ela gritou.

Por um momento, fez-se um silêncio, todos em choque enquanto absorviam o que acabara de acontecer.

Então, Marc começou a gritar, assustado e histérico.

– Deixe-me sair! Deixe-me sair!

Ele martelou a porta, punhos batucando na madeira, mas Cassie apenas empurrou as costas contra ela com mais força. Ela ofegava, seu coração batendo forte e a adrenalina subindo através dela. Não permitiria que ele saísse; não permitiria.

Marc começou a chorar.

– Tenho medo do escuro. Por favor, me deixe sair, por favor!

Cerrando os dentes, Cassie firmou-se contra a porta. Conseguia ouvir o medo bruto no tom dele e soube o quanto ele estava assustado, mas sua raiva era mais poderosa do que a voz interior lhe dizendo que estava sendo injusta.

Ella começou a soluçar.

– Ele está assustado. Marc está assustado!

– Eu fiquei assustada quando a estátua caiu em cima de mim. Marc precisa aprender a pensar antes de agir – Cassie berrou. – E a não fazer deliberadamente coisas que ele sabe que são maldosas e destrutivas.

O choro de Marc se aquietou. Os soluços agora eram de desamparo.

– Estou com muito medo – ele choramingou. – Por favor, me deixe sair.

Antoinette foi até Cassie, desprezo em seus olhos.

– Deixe-o sair – ela exigiu. – Você está sendo cruel.

– Eu estou sendo cruel? – Cassie ergueu as sobrancelhas, uma nova onda de raiva surgindo nela. – Talvez você devesse apontar o dedo para si mesma, não para mim.

Antoinette ficou furiosa ao ser desafiada. Deu um passo à frente com o rosto franzido e tentou fisicamente empurrar Cassie para longe da porta.

Cassie fez o que seus dedos estiveram o dia todo coçando para fazer. Ergueu a mão e estapeou Antoinette com força no rosto.

Antoinette recuou, caindo sobre os joelhos e se dobrando, embalando o rosto em suas mãos, choramingando em tons agonizantes.

– Ai, ai, ai.

Ella correu, ajoelhando ao lado dela, soluçando enquanto ajudava Antoinette a esfregar o rosto. De dentro do armário, o choro de Marc havia se transformado em nada além de sussurros roucos e desesperados.

– Me deixe sair. Por favor, por favor, me deixe sair.

Escutando o medo em sua voz, Cassie descobriu que memórias surgiam dentro dela. Estava tendo flashbacks de uma experiência esquecida, que havia enterrado bem fundo.

Subitamente, teve a estranha sensação de ser ela dentro do armário. Sabia exatamente como era estar lá dentro. O modo como o pequeno feixe de luz se estreitava para depois desaparecer completamente enquanto a porta se fechava, deixando-a em uma escuridão sem ar e opressiva. Como o espaço do armário repentinamente parecia pequeno para contê-la com seu pânico, mas não importava o quão alto gritasse, não pensava que chegasse ao outro lado da porta sólida.

Sabia que seu pai estava parado do lado de fora da porta, porque conseguia ouvi-lo gritar, mesmo não conseguindo entender exatamente o que ele dizia. Não importava. Ele estava com raiva e ela tinha sido má, e era por isso que ele a arrastara pelas escadas e a empurrara para dentro daquele armário grande e escuro, trancando a porta.

Ele tinha ido embora, Cassie se lembrou. Ela havia esperado lá pelo que pareciam horas, até que sua garganta estivesse rouca de tanto gritar e seus pés estivessem machucados de tanto chutar a porta em seu desespero para forçá-la a abrir. Era quente e faltava ar, e toda respiração que tomava parecia uma luta.

Seu pai não havia a deixado sair. Eventualmente, fora Jacqui quem viera até o andar de cima e a libertara.

Subitamente incapaz de continuar com o castigo, Cassie afastou-se do guarda-roupa e abriu a porta.

Marc estava deitado de bruços no chão, exatamente como ela fizera. Ele saiu engatinhando, piscando diante da luz, e Cassie lembrou-se de como a luz ficava depois da escuridão sufocante. Era doloroso, e ela mal conseguia abrir os olhos por alguns instantes.

O rosto de Marc estava inchado, molhado de lágrimas, e ele parecia mais subjugado do que ela jamais acreditara que ele poderia ficar.

Enquanto ele cambaleava, passando por Cassie, murmurou algo que ela não conseguiu entender bem.

Antoinette levantou-se com esforço e tentou abraçá-lo, mas Marc a empurrou e saiu do quarto, virando-se na direção de seu quarto.

Antoinette e Ella, ainda aos soluços, seguiram-no silenciosamente.

Em terror e trauma, Cassie lembrou-se de também ter empurrado sua irmã.

Havia a empurrado com força, e Jacqui havia gritado ao cair, adentrando a escuridão.

Cassie sacudiu a cabeça violentamente. Estava confundindo memórias com sonhos outra vez. Aquilo não acontecera. Havia empurrado Jacqui, mas foi apenas um empurrão fraco, leve. Ela não estava à beira de uma ravina. Não tinha tentado se salvar, suas unhas vermelhas agarrando o ar vazio enquanto ela caía.

Cassie fechou a porta do armário e, ao fazer, descobriu que sua raiva de antes havia evaporado. Em vez dela, estava repleta de culpa.

Tinha tentado dizer a si mesma que suas ações eram justificadas, que estas crianças estavam tão descontroladas que precisavam de uma dose séria de disciplina. Que nenhum mal poderia acontecer a Marc por passar alguns minutos dentro de um armário, e que Antoinette havia mais do que merecido aquele tapa.

Isso não a impedia de reconhecer o que sentia, mesmo que se encolhesse diante da realidade.

Ela tinha se comportado exatamente da mesma forma que seu pai abusivo.

Passara anos tentando escapar dele, dar as costas a ele. Tinha acreditado firmemente que era uma pessoa melhor e, de todo modo, fora a vítima, não a opressora. Nada disso havia lhe ajudado.

Precisava encarar a verdade, que era que ela havia acabado se tornando ele.


CAPÍTULO VINTE E OITO

Após deixarem o quarto, Cassie esperou que as crianças corressem descontroladas pela casa para desafiá-la. Ficou surpresa quando eles humildemente voltaram aos seus quartos. Estavam tão quietos e obedientes que ela deduziu que o incidente tivesse traumatizado a todos.

Ela desceu as escadas e procurou produtos de limpeza na copa. Em seguida, fez seu melhor para tentar arrumar o carro, limpando cada superfície e tirando o máximo do chocolate espirrado do assento de couro quanto pôde. Estava grata pela atividade, já que lhe dava uma rota de fuga de suas emoções despedaçadas.

Havia ultrapassado os limites com as crianças. Tornara-se sua agressora ao invés de sua protetora.

Fez o máximo para repassar o incidente em sua mente, para que obtivesse alguma perspectiva dele e pudesse decidir se realmente seu comportamento havia sido inaceitável, e se deveria de algum modo tentar se redimir. Pensando bem, descobriu que não conseguia se lembrar exatamente do que havia acontecido no quarto de hóspedes.

Não se recordava de todos os detalhes. Como a situação havia escalado? O que Marc dissera que a fez reagir daquele jeito? Ela imaginava que os levara até o quarto para discipliná-los por conta do que aconteceu no carro. Quando tentou se lembrar, voltou a ser pequena e indefesa, trancada no armário.

Então, tentando de novo, viu-se à beira da ravina, presa no pesadelo da briga com sua irmã.

Cassie perguntou-se se sua mente estaria deliberadamente apagando memórias para protegê-la da sobrecarga de estresse. Esperava que os detalhes retornassem quando estivesse mais capacitada a lidar com eles.

No meio tempo, sentia como se seus pensamentos estivessem sendo puxados em centenas de direções diferentes. Continuava pensando na frase “rasgada ao meio por cavalos selvagens”. Era exatamente o que sentia estar acontecendo com a sua sanidade. Havia preocupações demais, além do controle, e ela não tinha uma estrutura de apoio; seu maior medo era de que o pior ainda estivesse por vir.

Ela continuava com vontade de chorar, e achando que talvez estivesse chorando, mas ao levantar a mão até os olhos os encontrou secos. Por fora, ela não demonstrava nada, mas por dentro estava caindo aos pedaços.

Checando a hora em seu celular, percebeu que era fim de tarde. As horas haviam passado como em um sonho. Já que Marnie não estava aqui, era sua responsabilidade garantir que o jantar estivesse pronto, dar banho e colocar pijamas nas crianças, presumindo que eles estivessem dispostos a falar com ela. Reunindo seus pensamentos em aparente normalidade, desceu as escadas.

A cozinha estava vazia. A empregada que estivera limpando mais cedo obviamente já havia encerrado naquele dia. Graças ao desaparecimento inesperado de Marnie, nenhum plano para o jantar tinha sido feito.

Cassie verificou a geladeira, o freezer e a enorme dispensa. Havia muita comida de todos os tipos, incluindo uma embalagem com seis garrafas de uma bebida emagrecedora na despensa, que parecia fora do lugar quando comparada ao resto do conteúdo. Ela deduziu que deveria ter pertencido à Margot, e agora nunca seriam usados.

Enquanto avaliava o que estava disponível, algumas opções de jantar ocorreram a ela. Então, pensou – por que não perguntar às crianças? Talvez pudesse remendar sua relação com eles e absolver um pouco da culpa corrosiva que sentia se ela mesma abrisse as linhas de comunicação.

Ela os chamou até o quarto de Antoinette.

Eles entraram obedientemente, encarando-a em silêncio. Cassie foi atingida mais uma vez pela mudança de comportamento desde quando ela enlouquecera completamente.

– Quero dizer a vocês que sinto muito por ter gritado antes – ela disse. – Perdi a paciência e me comportei muito mal. Então, tenho que pedir desculpas. Fiquei com raiva, mas não deveria ter dito ou feito o que fiz. Não é certo fazer aquilo, nunca, mas se acontecer é importante pedir desculpas depois. Sei que se eu estiver na mesma situação de novo, devo controlar minha raiva e não deixar que ela me controle. Foi o que eu aprendi com isso.

– Sinto muito também – Antoinette disse com a voz tímida. – Não tentei impedir Marc; na verdade, eu disse a ele para continuar.

– E eu sinto muito – Marc disse, arrastando os pés no azulejo. – Sei que fui malcriado. Fiz muito mal.

Para a surpresa de Cassie, ele soava genuinamente envergonhado ao invés de orgulhoso de seu comportamento.

Ella a abraçou em silêncio, agarrando suas pernas.

– Pensei em perguntar a vocês o que deveríamos jantar – Cassie disse. – Marnie não está aqui, então tenho algumas escolhas em mente. Devíamos comer omelete de presunto e queijo, ou uma torta de carne e cogumelos que está no freezer, ou panquecas com açúcar e canela.

– Eu queria panquecas – Ella disse, tímida, e houve um coro de “Eu também” de Antoinette e Marc.

– Tudo bem. Se quiserem, podem me ajudar a prepará-las agora. Podemos guardá-las no forno para mantê-las aquecidas enquanto vocês tomam banho e se trocam.

Cassie foi para o andar de baixo com as crianças, sentindo uma estranha sensação de afastamento da realidade. Enquanto vivia no momento, estava absolutamente bem. Porém, ao pensar no que acontecera mais cedo, ou no que aconteceria depois, seu cérebro se sobrecarregava e ela começava a tremer de medo.

Decidiu que seria melhor permanecer no momento, pois era mais seguro e a escolha certa para sua sanidade.

Na cozinha, as crianças genuinamente pareceram gostar de preparar as panquecas. Cassie deduziu que eles não tinham muitas chances de cozinhar com tantos empregados à disposição na maior parte do tempo. Depois que ela bateu a massa e a cobertura de açúcar e canela, deu a cada uma das crianças um trabalho a fazer. Antoinette foi encarregada de despejar a massa na frigideira. Depois, quando Cassie havia virado as panquecas, Ella estava encarregada de borrifar a mistura de açúcar e canela. De pé em uma cadeira baixa, debruçada sobre a grande mesa de madeira no centro da cozinha, ela parecia orgulhosa e contente em seu papel.

Depois, finalmente, Marc estava encarregado de enrolar as panquecas e arrumá-las no prato.

Meia hora depois, o prato estava cheio de panquecas empilhadas e Cassie o cobriu com papel laminado, guardando-o na gaveta aquecedora do forno.

Ela sentia um enorme alívio por ter conseguido redimir o dia só um pouco, após o início desastroso. Agora, precisava dar banho nas crianças e deixá-las prontas para o jantar.

Seus pensamentos desviaram para o que poderia acontecer mais tarde naquela noite, e Cassie os desligou. Não iria para este lugar. Não importa como a noite terminasse, ou o que ela terminaria por fazer; ao menos as crianças poderiam se lembrar da tarde divertida que tiveram cozinhando.

– Gosto do estilo do seu cabelo, Cassie – Ella disse quando estava na banheira.

– Obrigada – Cassie disse. Não conseguia nem se lembrar do que colocara no cabelo, ou quando. Talvez tivesse amarrado antes de começar a preparar a comida, para que não caísse na frente de seu olho.

Colocou a mão em seu rabo de cavalo e sentiu o toque de seda. Puxando os cabelos para o lado, viu uma ponta de verde-esmeralda.

Ansiedade atou seu estômago quando percebeu que não tinha memória alguma de prender em seu cabelo o lenço de seda que Pierre havia lhe dado.

*

Uma vez que as crianças estavam na sala de jantar, banhadas e vestidas, Cassie pediu que Antoinette lesse uma história para eles antes do jantar. Percebendo que suas roupas estavam manchadas e sujas com as atividades do dia, ela voltou às pressas para tomar banho e se trocar antes de se reunir a eles.

Após vestir uma calça jeans limpa e um suéter novo, Cassie voltou ao seu quarto para colocar as roupas sujas no cesto e apanhar a lista de materiais escolares que fizera mais cedo naquele dia. Agora que as crianças estavam cooperando mais, poderia repassar a lista com eles durante o jantar e ver se algo estava faltando.

Colocou as roupas no cesto e pegou a lista da mesa. Então, virou-se para a porta – e cobriu a boca com a mão para sufocar um grito.

Pierre estava sentado na cadeira de encosto alto perto da cama.

Olhando para ele, horrorizada, Cassie sentiu seu coração acelerar. Ele estivera um passo à frente dela o tempo todo. Ele deveria ter chegado quando ela estava no banho, vindo direto para o seu quarto, esperando por ela.

Talvez ele esperasse que ela fosse dormir no quarto de uma das crianças hoje à noite e estava fazendo uma jogada preventiva.

– Assustei você? – ele perguntou.

Tarde demais, Cassie percebeu que não deveria ter abafado seu grito. Precisava gritar agora, o mais alto que pudesse. Se conseguisse chamar a atenção das crianças, estaria a salvo.

Se não conseguisse, estaria em um mundo de problemas.

Porém, enquanto ela puxava a respiração, Pierre colocou os dedos sobre os lábios.

– Em silêncio, agora – ele demonstrou. – Não conhece as regras? O jogo desta noite é não fazer barulho.

Ele levantou, avançando contra ela, e ela recuou em direção à cama.

– As crianças estão felizes no andar de baixo – ele disse. – Estão comendo panquecas e me disseram que tiveram um dia bom. Parecem estar lidando bem com a tragédia que vivenciamos tão recentemente. Seria uma pena estragar a felicidade deles quando o assunto inacabado que temos é só entre nós dois, não seria? Contudo, mesmo se você gritasse, a sala de jantar é tão longe que eles provavelmente não te ouviriam.

Cassie afundou-se na cama, suas pernas fracas pelo medo.

– Não – ela murmurou. – Por favor, Pierre, não.

Pierre inclinou-se sobre ela. Com a mão firme no ombro dela, ele a empurrou. Ouvindo metal tinindo, ela entendeu com um senso de irrealidade que ele abria seu cinto.

– Falei com a polícia hoje – ele sussurrou em seu ouvido. – Eles me contaram que você, infelizmente, ainda está sob forte suspeita. Há várias questões que os preocupam. Eles me perguntaram se você era confiável. O que mais o poderia dizer, Cassie?

Ela olhou para ele em silêncio, horrorizada por suas palavras e o modo como a coagia a ficar calada. Os olhos marrons a encaravam. Ela via em seu rosto as sombras da barba por fazer.

– Solicitei um encontro com o detetive amanhã. Então, veja, é sua decisão agora. Vai jogar o meu jogo e ficar quieta, calada como um rato, sem soltar nenhum som? Se ficar, amanhã contarei à polícia que você é confiável, que eu pessoalmente atesto quanto ao seu caráter. Mas, se não jogar o jogo, não hesitarei em dizer que acredito que você já tenha me roubado, e que tenho evidências fotográficas de você bisbilhotando meu quarto, abrindo gavetas e vasculhando meus pertences. Que decisão vai tomar, Cassie? O que você escolherá?

Ele debruçou-se sobre ela. O cabelo dele fez cócegas em seu rosto, os dedos fortes dele pressionando-a sobre o colchão.

Cassie compreendeu que não havia sentido em implorar ou gritar. Pierre havia considerado todos os cenários possíveis, e todos eles significavam xeque-mate para ela.

Exceto um.

Esticando os dedos atrás de sua cabeça, raspando por debaixo do travesseiro, Cassie apanhou a fria lata do spray de veneno que escondera ali. Seu dedo encontrou o bocal de plástico, sólido e reconfortante em seu aperto enquanto ela o deslizava sob seu corpo.

Ela soube qual decisão tomaria, e o que escolheria.


CAPÍTULO VINTE E NOVE

O detetive Granger sentava-se com Estelle Bret na pequena sala iluminada pelo fraco sol de outono. Estelle possuía um apartamento modesto em Senlis, a uma hora de carro ao norte de Paris, e era a segunda ex-amante de Pierre que tinha concordado em ser entrevistada por ele naquele dia.

– Pierre e eu tivemos um caso por quase um ano – ela disse.

Ela remexia em um cacho de seus cabelos longos e escuros enquanto falava. Era alta, magra e muito bonita, perfeitamente maquiada e vestindo jeans rasgados e um casaco de camurça com franjas da moda.

– Por favor, continue – Granger disse. Tranquilizando-a novamente, adicionou – Isso é completamente confidencial, madame. Estou tomando algumas notas, mas não estou gravando.

Granger presumira que estas entrevistas fossem ser só uma pesquisa de histórico de rotina, apenas uma etapa a cumprir na investigação. A primeira entrevista havia o chocado, e esta seguia o mesmo caminho. Estelle estivera muito relutante em falar. Só tinha concordado com a entrevista depois que ele prometera se tratar apenas de um histórico, e que o que ela dissesse não seria revelado a Pierre.

– Eu estava casada, morando na região. Meu marido viajava muito, e ficava fora por longos períodos de tempo. Conheci Pierre na cidade; estávamos na fila do banco e ele começou a conversar comigo. Ele era atraente, estava flertando e me convidou para jantar. Contou que era casado, mas eu também era – ela deu de ombros.

Granger olhou para o bloco onde fez uma anotação.

– A maioria das pessoas da região pensa que ele é incrível – Estelle continuou. – Ele é um homem de negócios proeminente que tomou cuidado em proteger sua reputação. Mas alguns o conhecem melhor, já viram como ele mente e esconde coisas. Quando contei a uma amiga que estávamos nos encontrando, ela me alertou quanto a ele. Eu deveria tê-la escutado, mas escolhi não acreditar nela. Em vez disso, escutei as promessas dele.

Ela enrolou a mecha de cabelo, apertando-a ao redor do dedo, enquanto olhava através da janela ensolarada para os galhos das árvores sem folhas balançando do lado de fora.

– O que ele prometeu a você? – Granger perguntou.

– Disse que estava apaixonado por mim, que queria que eu deixasse meu marido, e que se casaria comigo. Então, como uma tola, eu confessei ao meu marido que estava me encontrando com outra pessoa, e nos separamos. Divorciamo-nos um ano depois. No meio tempo, Pierre continuou como de costume, encontrando-se comigo uma ou duas vezes por semana. Havia muitos elogios e muitas outras promessas. Eventualmente, entendi que ele não tinha nenhuma intenção de deixar sua esposa. Mas eu também comecei a ver o outro lado dele.

– Que lado era este?

Granger rabiscava furiosamente em seu bloco para acompanhar o ritmo dela.

– Ele gostava de coisas exóticas. Estrangulação, ou usar cordas – Estelle abaixou o olhar e Granger viu suas bochechas ruborizando. – No começo, era uma aventura. Ele fazia parecer divertido e excitante. Então, com o passar do tempo, ele se tornou mais violento. Recusava-se a parar quando eu pedia. Em algumas ocasiões, ele realmente me machucou. Uma vez ele me estrangulou com tanta força que eu literalmente perdi a consciência por um tempo. Eu sabia que, para a minha própria saúde, física e emocional, teria que terminar com ele. Mas é mais fácil falar do que fazer.

– Como assim?

Granger certificou-se de manter uma atitude calma, apesar de estar convicto de que as peças do quebra-cabeça estavam começando a se encaixar.

– Ele ficou furioso quando eu quis terminar. Tivemos uma briga enorme. Ele me ameaçou com todo o tipo de coisa. Alguns detalhes particulares que contei a ele em confidência... Ele disse que garantiria que toda a cidade soubesse. E quando ameacei contar a todos sobre ele, ele me agarrou e me chacoalhou, então me empurrou tão forte que eu caí. Fiquei com hematomas no meu queixo e ombro.

– Você levou adiante? – Granger perguntou.

– Fui até a polícia e eles me pediram para conseguir um relatório médico para os machucados assim que possível, para que as acusações corretas pudessem ser feitas.

Granger assentiu.

– Fui até o médico local, mas só depois descobri que ele era um amigo de Pierre. Depois que contei a ele o que aconteceu, ele me questionou sobre as minhas atividades esportivas, que incluíam andar a cavalo e academia. Ele me examinou e disse que meus machucados não eram graves, e que as circunstâncias não eram conclusivas o bastante para que ele fizesse um relatório para a polícia, que os machucados poderiam ter incorrido por uma queda de cavalo. Então, Pierre me ligou no dia seguinte, ameaçando me processar por difamação se eu não retirasse as acusações, dizendo que eu estava mentindo sobre tudo.

Ela abriu as mãos.

– A essa altura, nem eu tinha certeza se acreditava em mim. Retirei as acusações e me mudei. Encontrei um emprego novo como organizadora de eventos, então decidi recomeçar minha vida completamente. Foi uma experiência horrível. Mostrou o quanto ele é uma pessoa tóxica, e como ele não deixaria nada impedi-lo de proteger o suposto “bom nome” na região.

Granger assentiu lentamente. Isso era evidência eficiente. Antes de falar com essas mulheres, ele nunca teria acreditado que Pierre tivesse um lado tão obscuro, claramente indo muito longe para proteger sua reputação.

Concluiu a entrevista e a agradeceu pelo tempo.

Assim que saiu do apartamento, ligou para Bisset para atualizá-la.

Ela soava animada.

– Acabei de sair do salão de beleza de Margot. Alex, seu estilista, foi de grande ajuda.

– O que ele disse? – Granger perguntou.

– Margot estava infeliz. Sentia-se presa. Queria deixar Pierre, mas tinha medo das consequências.

Granger sentiu um arrepio com as palavras.

– Ele explicou por quê?

– Ela estava planejando voltar a ser modelo; era tudo o que ela conhecia. O envolvimento dela com Pierre encurtou sua carreira promissora. O problema é que se trata de um trabalho de muita exposição. Ela estaria em domínio público, e perguntas sobre o seu passado seriam feitas. Ela contou a Alex que estava desesperada para deixar Pierre, mas sabia que ele dificultaria as coisas. Estava extremamente deprimida.

– Minha entrevista com Estelle seguiu uma linha similar – Granger confirmou.

– Tem mais uma coisa – Bisset disse.

– O quê?

Ele torceu para que ela fosse rápida; a bateria de seu celular estava acabando, e ele esquecera o carregador na delegacia.

– Tecnologia. Lembra que reclamamos a falta dela?

– Sim.

– Bem, Margot deixou o celular dela no salão. Alex disse que ela o utilizou o tempo todo em que esteve lá, e se esqueceu de levá-lo quando foi embora. Ele ligou para o telefone fixo no dia seguinte, mas outra mulher atendeu. Ele decidiu que seria melhor desligar e esperar que Margot entrasse em contato. Ele não sabia que ela tinha morrido.

– Você acha que o celular pode conter informações importantes?

– Definitivamente existem provas de que ela estava procurando recomeçar a carreira. Alex disse que ela fez algumas ligações para reestabelecer contato com algumas pessoas da carreira de modelo enquanto estava no salão.

– Isso é ótimo. Investigaremos essas ligações. Pierre não entrou em contato?

– Não – Bisset confirmou.

Granger desligou e continuou dirigindo.

A entrevista anterior, a primeira do dia, contara uma história similar. O relacionamento começou com flores, joias, sedução e promessas. Então, havia se deteriorado. Sexo exótico que se tornara violento. Promessas se tornaram ameaças. O romance azedara, terminando com mais ameaças.

A única diferença era que, no primeiro caso, Pierre havia terminado o relacionamento, mas os mesmos métodos de silenciamento haviam sido utilizados.

Granger notou que nenhuma das amantes tinha empregos de alta visibilidade. Como uma modelo conhecida, a decisão de Margot de abandoná-lo poderia ter representado uma ameaça maior a Pierre.

Granger decidiu que tinha pena que qualquer mulher que se envolvesse com Pierre. Todo relacionamento parecia terminar em coração partido, ou pior.

A esposa de Pierre, Diane, estivera em excesso de velocidade quando perdeu controle do carro e capotou. Morrera instantaneamente e o carro havia pegado foto no terrível acidente.

Granger duvidava que o carro tivesse sido sabotado, apesar de ter sido destruído a ponto de não ser possível ter certeza. Mas ele tinha descoberto que, apenas dois minutos antes, Pierre havia recebido uma multa por excesso de velocidade na mesma estrada.

Diana estivera o seguindo, tarde da noite, perseguindo-o pela estrada principal que, alguns quilômetros depois, passava por Coubert.

Talvez fosse só uma coincidência que Margot residisse em Coubert na época.

Granger suspirou, frustrado. Apesar da quantidade de evidências sobre o caráter de Pierre, eles precisavam de algo mais para realizar uma prisão. O que haviam descoberto hoje era quase suficiente, mas não o bastante.

Ele estava quase chegando a sua casa, entrando no tráfego da tarde, quando a próxima ligação de Bisset chegou.

– Granger – ela soava empolgada.

– O que é? Fale rápido, meu celular vai desligar.

– Eu acabei de voltar. Há um novo fato envolvendo Pierre. Você precisa vir aqui, rápido. A mulher que trabalho no castelo...

Ele perdeu o resto das palavras quando o motorista do caminhão ao lado, preso no mesmo tráfego, buzinou impacientemente.

– O quê? – ele perguntou, sentindo seu pulso acelerando, mas falava com uma linha muda. Que mulher, e o que tinha acontecido? Granger deduziu que aquilo envolveria, de alguma forma, a au pair de quem ele inicialmente suspeitara. Ela parecera emocionalmente instável, a ponto de estourar. Seu nervosismo extremo e sua recordação vaga dos eventos recentes tinham feito todos os instintos dele formigarem. Não tinha ideia se ela sempre se comportava dessa forma, ou se a fragilidade interna que ele pressentia fora exacerbada pelo grave estresse.

Estresse que poderia, é claro, ter sido causado pelo fato de ela ter tido um papel no assassinato de Margot Fabron.

Com a bateria descarregada, demoraria mais tinta minutos de frustração até que ele retornasse à base e descobrisse a última reviravolta desse caso complexo.

*

Meia hora mais tarde, Granger parou no estacionamento e correu até a entrada da delegacia. Com um rápido cumprimento para o policial de plantão, ele subiu até o andar superior correndo. Cenários giravam em sua cabeça. Em seu conhecimento, eles poderiam ter seguido na direção completamente errada ao investigar Pierre, apenas do peso da evidência naquela direção.

A porta do escritório de Bisset estava aberta.

– O que ela fez? – Granger perguntou, um tanto ofegante.

– Ela veio mais cedo. Tirou a tarde de folga especificamente para vir nos encontrar.

Granger entrou e fechou a porta.

– Quem? A au pair? Cassie Vale?

Lembrou-se outra vez do rosto assustado dela, de como seu olhar desviava dele quando tentava fazer contato visual, e como ela apressadamente voltava a encará-lo, de olhos arregalados, como se percebesse que ele notara o que ela fez. Ele recordou-se do hábito nervoso dela de empurrar as cutículas com as unhas. O modo como ela havia mudado sua história sobre ter ou não saído do quarto na noite da morte de Margot. Ela parecera genuinamente abalada por sua própria inabilidade de se lembrar do que havia feito, e aquilo fazia Granger se perguntar o que mais ela poderia ter se esquecido, de forma intencional ou não.

Esperava que Bisset confirmasse suas suspeitas, mas, em vez disso, ela balançou a cabeça.

– Não, não. Ela não. A governanta que trabalha na residência Dubois veio nos ver. O nome dela é Marnie Serrurier e ela está esperando você para uma entrevista. Ela veio até a delegacia mais cedo e trouxe uma evidência que encontrou.

– Evidência importante?

Ele pôde ouvir a empolgação na voz de Bisset quando respondeu.

– Definitivamente sim. Eu já falei com ela. Isso muda tudo, Granger. Com a evidência e o testemunho dela, acredito que temos fundamentos suficientes para realizar uma prisão imediata.


CAPÍTULO TRINTA

Cassie agarrou o spray de inseticida.

Ao mesmo tempo em que o aperto de Pierre em seu ombro aumentava, seu dedo trêmulo apertava o bocal. Ela faria aquilo. Espirraria veneno nele como em uma barata, e não se importava se ele sufocasse com a fumaça, ou mesmo se ela o cegasse.

Então, no andar debaixo, a aldrava da porta bateu repetidamente, fazendo barulho.

Por um momento, os dois congelaram. Então o aperto de Pierre afrouxou, e Cassie levantou o dedo do bocal.

Pierre levantou-se, apressado, fechando o cinto e praguejando enquanto dava as costas para ela. Era como se, por um instante, ele tivesse se esquecido dela, graças à interrupção. Sem empregados de serviço esta noite, não havia ninguém mais para atender a porta, e aquilo significava que ela havia ganhado uma postergação.

– Provavelmente outro maldito jornalista – ele resmungou.

Ele saiu do quarto e Cassie desceu da cama. Seu corpo todo tremia com o choque tardio. Por pouco, ele quase a prendera, e ela passou mal ao pensar sobre o que poderia ter acontecido.

Ela não se demoraria no quarto. Era sua chance de escapar para o andar debaixo e se reunir às crianças, e ela resolveu não sair de perto deles, custe o que custasse. A presença deles era sua única proteção agora.

Ao seguir Pierre para o andar inferior, mantendo uma distância cautelosa dele, a batida soou novamente. Era alta, autoritária, reverberando pela casa.

– Papai? – Antoinette chamou, saindo da sala de jantar. – Tem alguém na porta.

– Estou a caminho – Pierre estourou. – Volte para o seu jantar.

Cassie deduziu que ele não quisesse que as crianças escutassem o discurso abusivo que ele estava prestes a oferecer para quem quer que estivesse esperando do outro lado da porta. Mesmo assim, Antoinette estava claramente curiosa. Ela foi em direção à sala de jantar, mas parou assim que Pierre desviou o olhar.

– O que é?

Pierre abriu a porta de entrada, gritando as palavras furiosamente, e o coração de Cassie saltou até sua boca ao ver os dois detetives parados na soleira da porta.

Era isso. As palavras de Pierre não eram somente ameaças. Ele deveria ter contado aos detetives o que ela havia feito, vasculhando o quarto dele, e agora a evidência apontava para ela.

A boca de Cassie estava tão seca que ela não tinha certeza se conseguiria falar, mas decidiu que precisava ser completamente honesta com os detetives agora. Precisava revelar que genuinamente não tinha lembranças do que poderia ter feito na noite da morte de Margot, ou se seu pesadelo tinha raízes na realidade, em sua imaginação, ou algum lugar no meio. Prometeria cooperar completamente com eles, contando tudo o que havia acontecido a ela nesse castelo, desde as agressões até a tentativa de abuso.

Talvez, se ela cooperasse, eles permitiram que ela levasse seu celular e pudesse ao menos procurar o número de alguém que conhecia e explicar o que tinha acontecido.

Cassie deu um passo à diante com as pernas tremendo, imaginando o que eles diriam a ela e como ela deveria começar sua confissão.

Então, compreendeu o que os policiais estavam dizendo e parou, sua cabeça girando, não ousando acreditar no que acontecia.

– Monsieur Dubois, você está preso, suspeito do assassinato de Margot Fabron. Você tem o direito de permanecer em silêncio, mas pode prejudicar sua defesa se não mencionar, quando questionado, algo com o que você pode usar em sua defesa no tribunal.

– Espere. Que diabos é isso? Que fundamento você tem? – Pierre disse, furioso.

– Monsieur, explicaremos tudo na delegacia. Por favor, venha conosco – o detetive Granger tomou o braço dele.

– Quero ligar para o meu advogado. Agora! Não tive nada a ver com isso.

Pierre espetou o dedo em direção a Cassie de forma acusatória.

– Ela é a culpada. Estou dizendo a verdade. Ela estava entrando no meu quarto quando eu não estava na casa. Roubando de mim. Ela...

Cassie preparou-se para a probabilidade de que os detetives pudessem querer levá-la junto, afinal de contas. Mas as palavras berradas de Pierre não tiveram efeito. Granger nem sequer olhou para ela.

– Você tem direito a uma ligação assim que chegarmos ao quartel general, e pode solicitar representação legal. Agora, entre no carro.

A voz do detetive era como aço e suas palavras não deixavam espaço para mais argumentos. Praguejando e ameaçando, Pierre foi conduzido até o carro.

Como isso acontecera? Cassie se perguntava. Qual era a razão para a surpreendente prisão de Pierre, e por quanto tempo ele ficaria ausente?

Ela ouviu um grito atrás dela e, ao se virar, viu que as três crianças estavam paradas perto da escadaria, assistindo à cena com horror.

– Papai! – Antoinette chamou em uma voz estridente, correndo para se juntar a Cassie na porta de entrada. – Onde você está indo? Por que a polícia está te levando embora?

Pierre lançou um olhar ameaçador na direção dela.

– Volte para dentro! – ele berrou.

Antoinette passou por Cassie e arrancou em direção ao carro, seguida por Ella, que começou a se lamentar em sua máxima voz.

– Volte – Antoinette implorou.

Cassie segurou Ella, pegando-a no colo enquanto Bisset segurava Antoinette pelos ombros, carregando-a para longe do carro em espera.

– Seu papai não estará aqui hoje à noite, mas você estará segura. Entre, agora – Bisset disse.

As duas guiaram as crianças aos gritos para dentro, onde se reuniram a Marc no hall, que chupava o dedão e assistia ao espetáculo com olhos arregalados.

– Entraremos em contato com o parente mais próximo assim que chegarmos ao quartel general – Bisset disse, ofegante. – Você poderá ficar com as crianças até que um membro da família chegue?

– Sim. Sim, é claro, com certeza – Cassie disse. Ela estava ansiosa para perguntar a Bisset o que tinha acontecido, mas não poderia fazê-lo na frente das crianças e, de todo modo, não sabia se Bisset tinha autorização para contar.

– Você tem acesso ao telefone fixo do castelo? – Bisset perguntou.

– Sim, tenho – Cassie presumiu que Pierre já houvesse destrancado a porta do quarto dele, mas mesmo se não tivesse as chaves dele estariam na mesa do hall.

– Por favor, esteja preparada para atender nossa ligação na próxima meia hora. Faremos uma atualização assim que soubermos quem chegará para cuidar das crianças, e quando.

– Estarei aguardando.

Bisset correu de volta para o carro. Cassie pensou que eles partiriam imediatamente, mas, ao invés disso, Bisset pegou um envelope de papel pardo no carro e correu até ela outra vez.

Entregou o envelope a Cassie.

– Seu passaporte – ela disse. – Estamos devolvendo porque você não é mais uma pessoa de interesse neste caso. Obrigada por sua cooperação.

– Meu passaporte?

Cassie apanhou o envelope, apertando os dedos contra o pequeno e fino documento no interior, alívio inundando-a. Não era somente a confirmação oficial de que ela estava fora da lista de suspeitos, mas o fato de ter sua liberdade de volta. Não era mais uma prisioneira aqui e poderia escolher partir a qualquer momento. Sentia o enorme peso da preocupação saindo de seus ombros, só percebendo agora que ele sumira como o medo estivera a esmagando.

Lágrimas despontaram em seus olhos e ela as afastou, piscando.

– Obrigada, muito obrigada – ela sussurrou. – Não sabe o que significa ter isso de volta, ou quanto medo eu senti sem ele.

Queria abraçar Bisset, mas sentia que isso talvez fosse inapropriado, então sacudiu a cabeça e, para sua surpresa, Bisset segurou ambas suas mãos com a dela.

– Fico contente em poder devolvê-lo a você – ela concordou.

Cassie lembrou-se de como a detetive a encarara com curiosidade quando ela escapara das garras de Pierre no dia do funeral, saindo em disparada da sala de música em pânico, com as roupas em desordem. Imaginou se Bisset poderia ter deduzido o que tinha acontecido, e se era esse o motivo de sua solidariedade agora.

– Entraremos em contato em breve – Bisset disse em um tom reconfortante. Então, virou as costas e voltou apressadamente para o carro a espera.

*

Depois que a polícia foi embora, Cassie encontrou-se encarregada de três crianças histéricas.

Antoinette estava em um dilúvio de lágrimas. Cassie nunca vira a garota mais velha perder o controle tão completamente. Imaginava que, com Margot morta, Antoinette havia esperado se tornar a favorita de seu pai. Talvez esperasse que, enfim, receberia o amor e a atenção que sempre tanto ansiava dele, mas nunca havia recebido.

Cassie sabia que Antoinette estava errada naquele aspecto, mas não tinha como dizer isso a ela agora.

– Por quê? – ela gritava, de novo e de novo.

– Não sei por que – era tudo o que Cassie podia dizer em resposta.

Ela ainda estava chocada com relação ao que tinha acontecido, incapaz de acreditar que Pierre realmente tinha ido embora. Continuava pensando que, a qualquer momento, ele poderia entrar de novo; que ele faria uma ligação de emergência para seu advogado e forçaria a polícia a dar meia volta e trazê-lo de volta. Ou que os detetives pudessem mudar de ideia e prendê-la, afinal de contas. Encontrou-se com os ouvidos atentos ao barulho dos cascalhos na entrada da garagem, desejando saber que evidência fora utilizada como fundamento para a prisão de Pierre.

– O que vai acontecer conosco agora? – Antoinette lamentou-se.

Essa era outra questão que Cassie não conseguia responder. O que aconteceria com as crianças? Em poucos dias, eles haviam perdido ambos os pais e guardiões. Deveriam estar se sentindo completamente à deriva no mundo, e Cassie não conseguia encontrar um modo de tranquilizá-los.

Na realidade, Cassie temia que, caso Pierre fosse liberado através de fiança, tudo voltaria ao normal no castelo. Perguntou-se se as condições da fiança de Pierre alterariam o comportamento dele com ela, mas ela duvidava. Aquilo significava que, para sua própria segurança, precisava ir embora assim que pudesse, dando as costas para três crianças extremamente traumatizadas por uma família fragmentada e que precisavam dela mais do que nunca.

Não tinha ideia do que as próximas horas ou dias trariam, e sentia-se tão emocionalmente abalada que sabia que não seria capaz de oferecer o conforto calmo e racional do qual as crianças precisavam. Com um esforço desesperado, tentou recolher seus pensamentos e se tornar a pessoa forte e responsável que precisavam.

– Saberemos mais quando a polícia entrar em contato – ela disse, percebendo ao falar que isso não era nenhum pouco reconfortante.

Ella soluçava incontrolavelmente.

– Onde o Papai foi? – ela repetia, e Cassie lembrou-se com aflição que haviam contado a ela que sua mãe tinha “partido”, quando de fato estava morta.

Marc estava mal-humorado e agressivo. Antes que Cassie pudesse impedi-lo, ele pegou uma das fotos emolduradas de Margot sobre mesa do hall e a atirou no chão, rachando o vidro. Ela não conseguia repreendê-lo, decidindo simplesmente não dizer nada.

– Vamos lá para cima – ela disse, esperando que o ritual antes de dormir os acalmasse, e também a acalmasse.

Subindo as escadas, Marc chutou cada degrau com força, gritando em protesto.

No meio da escadaria, Cassie lembrou-se com um salto que deixara seu passaporte na mesa do hall. Colocou-o lá enquanto tranquilizava as crianças, esquecendo-se de pegá-lo. Seu item mais importante no mundo, e ela não havia o mantido consigo. Sentia vontade de chutar as escadas também, por pura frustração com seus pensamentos fragmentados e desorientados.

Seus ombros estavam machucados onde Pierre a agarrara e a empurrara na cama, e de repente ela se lembrou do cheiro avassalador de sândalo na colônia dele. Não acreditava que ele realmente tinha partido. Ele tinha estado tão furioso ao ser preso, e tinha tentado tanto forçar a polícia a prendê-la ao invés dele.

Que ele não volte, ela rezou.

Eventualmente, as três crianças congregaram-se do lado de fora do quarto de Antoinette e o choro das meninas havia se calado o suficiente para que Cassie falasse.

– Contei a vocês o que está acontecendo assim que eu souber.

Fez uma pausa, unindo as mãos com força para que as crianças não as vissem tremendo, considerando a melhor forma de consolá-los quando o mundo deles acabara de cair aos pedaços.

– Podemos dormir juntos hoje à noite? – Antoinette perguntou, e Ella e Marc acenaram com a cabeça vigorosamente.

– É uma boa ideia – Cassie concordou.

– Podemos tomar leite e comer bolo? – Marc perguntou.

– Tenho que esperar a polícia ligar. Mas, depois disso, vou trazer alguma guloseima para vocês – ela prometeu.

Aliviada com a sugestão positiva deles para ajudar a se sentirem melhor, Cassie levou o travesseiro de Ella e alguns de seus bichos de pelúcia até o quarto de Antoinette. Marc carregou o conteúdo de sua caixa de brinquedos, e Cassie trouxe o colchão e a roupa de cama dele para o caso de precisarem de mais espaço para dormir.

Enquanto saia do quarto e fechava a porta gentilmente, Cassie lembrou-se das palavras que Marc resmungara mais cedo, quando ela o deixara sair do armário e ele passava por ela.

Elas não tinham feito sentido no momento, já que ela estivera envolvida demais nas próprias lembranças em seu cérebro para decifrá-las. Agora, enquanto caminhava pela passagem até o quarto de Pierre para aguardar a ligação da polícia, Cassie viu-se arrepiada com a realidade do que ele dissera.

As palavras ditas por Marc eram: “Você é igualzinha ao Papai.”


CAPÍTULO TRINTA E UM

De volta ao quartel general, Granger completou a papelada do caso enquanto Bisset realizou os telefonemas necessários. Estavam abrigados no escritório excessivamente aquecido dele, mas nessa noite fria Bisset não reclamou do calor.

Quando ela devolveu o telefone no gancho após sua última ligação, houve uma batida alta na porta.

O Capitão Palomer, o comandante da delegacia, entrou, visivelmente fumegando de raiva.

– Eu estava falando com Pierre Dubois, que está sob custódia aqui. O que está acontecendo? Isso é inacreditável. Por favor, expliquem suas ações.

Granger trocou um olhar com Bisset antes de responder educadamente.

– Boa noite, capitão. Sim, nós o prendemos há uma hora.

– Sem minha permissão?

O rosto de capitão, sempre corado, se tornara vermelho de raiva. Ele debruçou-se sobre a mesa, abrindo os dedos roliços e olhando de forma ameaçadora para Granger.

– O senhor estava indisponível, então consultamos o comandante da região.

Granger manteve o tom calmo. Estava ciente de que a ausência do capitão tinha sido um golpe de sorte. Tinha certeza que, se o capitão tivesse estado disponível, teria ordenado que Pierre não fosse preso. Afinal de contas, a obra de arte original no escritório de Palomer era um presente vindo de um dos estúdios de Pierre, e a esposa dele encabeçava uma das empresas de marketing que Pierre utilizava.

– Isso é loucura! Estamos prendendo um líder da comunidade, cuja reputação é impecável!

– Com todo o respeito, senhor, o envolvimento de Pierre na comunidade e a reputação dele serão discutidos durante o julgamento, onde as pessoas podem tirar as próprias conclusões, mas este fato não poderia ter impedido sua prisão.

– Ordeno que retirem as acusações contra ele. Agiram de forma irresponsável e não seguiram o procedimento devido. Mandem-no para casa imediatamente.

Bisset pigarreou e Granger viu que ela parecia ainda mais furiosa do que Palomer.

– Seguimos o procedimento devido em todas as etapas. É por isso que realizamos a prisão, senhor. Não fazer isso, com a evidência convincente contra o suspeito, teria sido uma deserção aos nossos deveres.

– Mostrem-me a papelada – Palomer estourou. – Pierre me informou que contratou uma au pair estrangeira alguns dias atrás, e agora suspeita que ela o tenha roubado, e outros crimes. Por que ela não foi presa?

– Não havia evidência contra ela – Bisset insistiu.

Apesar da desconfiança de Granger sobre a au pair emocionalmente instável, sabia que Bisset sentia extrema simpatia por ela. Após o funeral de Margot, Bisset compartilhara seu receio de que acreditava que a au pair estivesse sendo abusada sexualmente, ou perseguida com intenções sexuais, por Pierre. Com base no testemunho das outras entrevistas, Granger não conseguiu evitar concordar que fosse provável, e ficara aliviado em devolver o passaporte a ela. Era uma inocente sem importância que involuntariamente se envolvera nessa situação, e agora poderia seguir seu rumo e viver sua vida – e, com sorte, encontrando equilíbrio emocional pelo caminho.

– Por favor, dê uma olhada em nosso dossiê. E diga-me, senhor, se este fosse um homem pobre dos subúrbios de Grigny, você teria o prendido? Com base na evidência, acredito que sim. Não podemos abrir uma exceção para os ricos ou bem relacionados – Bisset insistiu com Palomer.

Ela empurrou o arquivo sobre a mesa.

Granger tinha certeza que Bisset queria acrescentar que abrir uma exceção constituiria em corrupção, mas não falou isso. A corda bamba política era um ato cuidadoso de equilíbrio que precisava ser respeitado, mesmo quando sabia estar fazendo a coisa certa.

– Pierre tem uma equipe jurídica excelente à disposição – ele disse, em voz baixa. – Tenho certeza de que farão o máximo para contrariar a evidência contra ele, permitindo que o juiz tome a melhor decisão. Entretanto, temos que agir de acordo com nosso encargo como oficiais da lei.

Como policial que fizera a prisão, Granger sabia que só ele e o promotor poderiam retirar as acusações, e podia ver a evidente frustração de Palomer com o fato.

Granger pessoalmente não acreditava que as acusações seriam mantidas. Sabia que Pierre contraria os melhores advogados que o dinheiro pudesse comprar, gastando o que fosse necessário para limpar seu nome. Mas, no tribunal, o resultado nunca era certo. Haja o que houvesse, ele tinha confiança de que ele e Bisset haviam agido como deveriam, e não pôde evitar sentir-se satisfeito ao ver Palomer, de rosto roxo, agarrar a pasta e sair da sala.

– Quanto tempo falta para ele se aposentar? – Bisset murmurou.

– Dois anos – Granger disse. – Talvez menos, se ele sofrer de problemas médicos. Hipertensão pode ser exacerbada com a frustração, eu acredito. Podemos levar isso até o fim.

Ele ofereceu uma piscada conspiratória, e ela sorriu de volta.

*

Cassie decidiu aguardar pela ligação da polícia no escritório de Pierre. Ela puxou a cadeira de estofado de couro e, sentada na beirada, pensou sobre o que Marc dissera.

“Você é igualzinha ao Papai.”

As palavras de Marc foram um choque para ela, mas a fizeram pensar sobre como as crianças haviam reagido quando ela enlouquecera mais cedo naquele dia. Ao invés de ficarem chateadas com o comportamento dela, como uma criança normal ficaria, elas ficaram caladas de forma repentina, refreando seu desregramento e baixando a cabeça, como se estivessem se preparando para lidar com o que quer que estivesse por vir.

Talvez tivessem aprendido estes mecanismos de proteção por experiência, para se protegerem quando uma situação se tornava violenta e saía do controle.

De onde aquela violência tinha vindo? Margot?

Margot estivera ali só por um ano e, de todo modo, Pierre claramente era o chefe da casa e ditaria o tratamento deles como quisesse.

Cassie estava convencida de que Pierre era um pai abusivo.

Ela tinha certeza de que não era a primeira vez que os três haviam sido fisicamente agredidos. Pareciam familiarizados demais com isso e, na realidade, era a única forma de disciplina que eles pareciam entender.

Cassie abraçou-se, balançando para frente e para trás na cadeira enquanto pensava sobre o que as crianças deveriam ter sofrido, e no ambiente tóxico em que eles estavam sendo criadas. Ela deveria ter percebido, através da consistente rebelião contra a disciplina, o que elas estavam tentando dizer. Mas ela tinha sido lenta demais em seu entendimento e terminou por culpar sua própria falta de habilidade pelo comportamento antissocial deles.

Cassie pulou quando o telefone começou a tocar alto. Apanhou-o, aliviada que a ligação tinha vindo antes do que ela esperava e ansiosa para saber o que aguardava as crianças.

Deu-se conta de que provavelmente deveria ter papel e caneta à mão, pois talvez tivesse que anotar algo. Abriu a gaveta da escrivaninha e remexeu enquanto atendia ao telefone, fazendo o máximo para soar calma e profissional.

– Alô. Cassie falando.

Houve uma breve pausa.

– Amor! Pensei que você não pudesse atender ao telefone ou fazer ligações.

O tom de Zane conseguia combinar mágoa, acusação e triunfo.

– Zane? – Cassie ficou pasma demais para fazer mais do que gaguejar o nome dele, mas isso deu a ele o encorajamento que precisava para continuar.

– Pensei que você estava só me despistando. Quer dizer, não tem essa de alguém não ter permissão para receber ligações. Foi uma desculpa ridícula. Eu não acreditei nem por um momento. Mas, de qualquer forma, eu queria te contar mais sobre o trabalho. Eles estão entusiasmados para te entrevistar, mesmo se for por Skype, para você poder fazer de onde estiver. Se puder enviar seu currículo por e-mail, eles dão uma olhada no meio tempo. E é claro que pode ficar na minha casa quando voltar. Não guardo nenhuma mágoa depois do modo como você me tratou. Ficarei feliz em te ajudar a se reerguer. E então, quer que eu organize tudo?

Cassie ficou com tanta raiva que se viu ficando em pé. As palavras que ela queria dizer não pareciam certas se estivesse sentada.

Plantou os pés no chão de azulejos, furiosa, encarando a parede oposta enquanto falava.

– Algumas coisas – ela disse, satisfeita por sua voz parecer bem nivelada. O comportamento inaceitável de Zane não a levara ao limite, nem tinha sido a última gota que a levaria as lágrimas. Ao contrário, ela sentia-se forte o bastante para revidar, e furiosa o bastante para dizer a Zane, enfim, exatamente o que pensava dele.

– Primeiramente, como ousa duvidar do que eu disse? O que te dá o direito de me acusar de mentir? Porque é exatamente isso que você fez, e também não é a primeira vez. Entende? Tem alguma ideia do que faz uma pessoa sentir por dentro ser acusada injustamente de ser mentirosa? Mas foi assim que você conduziu toda a nossa relação. Você me destruiu, vez após vez, com essa porcaria de abuso emocional. E eu não vou mais aceitar isso de você. Porque é isso que você é, Zane, um agressor. Exatamente como meu pai. Eu o escolhi outra vez quando conheci você.

– Amor! Eu não sou nada disso! Eu estava brincando quando disse aquilo. Não falei sério. Por favor, você me entendeu completamente errado, e agora me pegou em desvantagem. Eu...

Zane soava ultrajado, mas Cassie não lhe deu a chance de falar mais nada.

– Em segundo lugar, você não está nem aí para mim. Eu te contei que teria problemas se você ligasse. Mas você não se importa com isso. Você é egoísta e arrogante. Faz o que quer e não se importa com as implicações disso para os outros. Quando eu entendi isso, abriu meus olhos para quem você realmente é. Eu namorei você porque pensava que você se importava comigo. Primeiro você abusou emocionalmente de mim, depois me agrediu fisicamente. Finalmente, mostrou que não se importa se eu tiver problemas com o meu patrão e, na realidade, vai agir para garantir que eu tenha problemas, porque é conveniente para o seu plano de me ter novamente no seu controle. Que tipo de imbecilidade é essa? Tive que suportar isso por alguns dos piores meses da minha vida, e a única coisa pela qual sou grata é por me mostrar quem você realmente é, e eu conseguir escapar de você.

Estava berrando agora, gritando as palavras com raiva para a parede, agarrando o telefone com toda força.

– Amor! Desculpa. Não foi o que eu quis. Isso era urgente porque as inscrições fecham amanhã e eu queria que você tivesse uma chance.

Zane soava em pânico agora, mas outra vez Cassie passou por cima de seus protestos.

– Em terceiro lugar, Zane, sou eu quem tem que te perdoar. Eu te deixei porque você bateu em mim, e a única razão para eu não te dizer antes o quanto esse ato é covarde e nojento é porque você me fez ter medo de você. Você gosta disso? É divertido estar em um relacionamento onde a outra pessoa fica tentando lidar com o seu comportamento horrível, inaceitável, violento e antissocial o tempo todo? Faz você se sentir grande e bom saber o agressor que você é? Está ansioso para fazer sua próxima namorada tão “feliz” quando me fez? Tenho certeza que sim, e só posso dizer que, quem quer que ela seja, tenho pena dela.

Cassie fez um esforço para baixar a voz. Mesmo as crianças estando no quarto mais distante, eles poderiam ouvir se ela continuasse gritando em sua fúria.

– Tirei fotos daquele hematoma e ainda tenho estas fotos no meu celular. Será um prazer ir até a polícia, se e quando eu estiver nos Estados Unidos, prestando queixa de assédio e agressão física. Você já foi preso, Zane? A polícia não gosta de agressores que batem em mulheres. Acredito que não os tratam bem.

– Amor, por favor – Zane tagarelou as palavras. – Não quero te contradizer, estou disposto a aceitar o que você diz, mas não é verdade sobre o machucado. Por favor, me escute, eu lembro melhor do que você porque você tinha bebido demais. Já te disse antes, prometo, minha versão não vai mudar, porque é a verdade. Nós brigamos, mas eu não te bati. Eu tentei te tirar da frente de um carro. Os machucados foram por causa disso. Você teria sido atropelada com certeza. Sim, eu sou um lixo, te tratei mal e não fui o namorado perfeito. Tudo isso estou disposto a admitir, mas não bati em você. Verdade. Você criou isso na sua própria mente.

Dúvida pestanejou em Cassie, mas ela se lembrou de ser forte. Não cairia na manipulação dele, nem acreditaria na realidade alternativa que ele tentava criar. Não dessa vez.

– Sei o que aconteceu. Eu estava lá. Ninguém esquece ou não lembra direito quando algo bate em você. Então, não me ligue novamente nunca mais na sua vida, ou vou voltar para os Estados Unidos só para fazer esta acusação.

– Por favor, acredite no que digo, amor. Por favor, não...

A voz de Zane estava cheia de tensão.

Cassie não se incomodou em perder tempo escutando. Pressionou o botão de desligar tão forte quanto pôde e baixou o telefone.

Ainda estava tremendo de raiva, mas se sentia completamente triunfante por, enfim, ter falado o que pensava para Zane – tudo, e sem medo.

Por que havia demorado tanto tempo? Cassie repreendeu-se por não ter tido a coragem de fazer isso antes. Afinal de contas, precisar escapar de Zane foi o motivo de ela ter terminado aqui. Ela poderia ter evitado tanto estresse se tivesse conseguido enfrentá-lo antes de partir.

Quando o telefone tocou outra vez, Cassie percebeu com surpresa que não poderia ter feito aquilo antes, porque as experiências pelas quais passara na França haviam dado a ela a força que precisava para confrontar Zane.


CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Cassie sentou-se novamente e soltou uma respiração funda para acalmar o restante de sua raiva antes de atender ao telefone que tocava. Deduziu que havia uma pequena chance de ser Zane ligando outra vez, mas depois da maneira que ele soara ao final da conversa, ela duvidava.

A voz do outro lado da linha era desconhecida. A mulher soava agradável, apesar de tensa.

– Alô, quem fala é a au pair?

– Sim, sou Cassie, estou cuidando das crianças.

– Estou tão feliz por você estar aí. Meu nome é Josephine, sou irmã de Diane, a esposa falecida de Pierre.

– É ótimo falar com você – Cassie disse, aliviada por não estar falando com um parente direto de Pierre. Após sua prisão recente, a família dele estaria furiosa.

– Eu disse à polícia que eu mesma gostaria de ligar. Estou chocada com a notícia, e com certeza você deve estar também. Estou indo até Paris imediatamente para ficar com as crianças. Estou saindo de Bordeaux, estou a caminho da estação agora, há um trem partindo em vinte minutos que, com sorte, conseguirei pegar a tempo, então pode me esperar por volta das nove.

– Isso é ótimo – Cassie disse. – Quer que eu conte às crianças? Devem esperar acordados?

– Eles devem estar exaustos. A escolha é deles, mas diga a eles, por favor, que a tia Josephine está a caminho, e que eu estou com saudades deles.

– Farei isso – Cassie disse.

Baixou o telefone, contente por um membro da família estar chegando naquela noite, encorajada porque Josephine havia telefonado pessoalmente ao invés de pedir para a polícia ligar em seu nome.

Pensando no que Josephine disse, Cassie percebeu que ela obviamente não tinha estado no funeral de Margot. Suas palavras haviam implicado que ela não via as crianças há um tempo.

Cassie atravessou a passagem para contar a novidade para as crianças.

Eles estavam amontoados na cama de Antoinette e ela lia uma história. Ella chupava o dedo e Marc parecia estar quase adormecendo.

– Sua tia Josephine está chegando mais tarde – ela disse. – Ela me pediu para dizer a vocês que está com saudades.

Havia se perguntado como as crianças reagiriam, mas não estava preparada para o grito de alegria de Antoinette.

– Uh-hu! Tia Josephine! Nós a adoramos! Marc, acorde. Tia Josephine está vindo hoje à noite para cuidar da gente.

Pulando da cama, Antoinette correu até Cassie e a abraçou apertado.

– Obrigada por nos contar.

– Ela é nossa tia favorita – Marc berrou, pulando na cama. Uma Ella sorridente o imitou.

Antoinette fez uma careta para ele.

– Ela é nossa única tia, bobo. Mas ela gosta de brincar que é nossa tia favorita. Ela é tão legal com a gente. Cassie, ela é muito carinhosa e amorosa. Às vezes, nos feriados, vamos para a casa dela, é tão linda. Ela tem uma fazenda muito perto do mar.

– Tem animais na fazenda – Marc disse entre os pulos. – Ela tem ovelhas e vacas e cavalos.

– E pôneis. Eu andei de pônei da última vez que estive lá – Ella acrescentou.

– Será que nossos primos vêm também? – Mark perguntou. – Eu gosto muito deles. Eles se chamam Tomas e Nicolas, e Nicolas tem a mesma idade que eu.

– Eu não sei, mas pareceu que ela viajaria sozinha – Cassie disse.

– Quando ela estará aqui? – Antoinette perguntou com ansiedade.

– Ela disse que às nove.

– Nós vamos esperar acordados – Antoinette decidiu.

– Virei chamar vocês assim que ela chegar – Cassie prometeu.

– Muito obrigada, Cassie.

Antoinette a abraçou novamente, apertando os braços ao redor dela, e, para a surpresa de Cassie, ambos Ella e Marc se juntaram a ela, abraçando-a e agradecendo-a.

Ela os abraçou também, fungando, maravilhada com quão emotiva essa demonstração de gratidão havia a deixado.

– Eu amo tanto vocês – ela contou às crianças. – Estou feliz que sua tia favorita estará aqui logo. Vocês merecem estar com alguém que será realmente amável com vocês.

Cassie não conseguia acreditar como a atmosfera do quarto se transformara depois que ela dera a notícia. As crianças estavam felizes e positivas agora, tão empolgadas e cheias de expectativas, como se as férias de verão estivessem a caminho.

Cassie perguntou-se se a tia Josephine os lembrava da mãe deles, e por isso, em parte, eles estivessem ansiosos para estar sob os cuidados dela – pelo menos por enquanto, porque ela não tinha ideia do que aconteceria no longo prazo.

Ela foi até o andar debaixo para limpar a louça do jantar, arrumar a sala de jantar e encontrar alguns lanches para as crianças. Fez uma nota mental para guardar seu passaporte por segurança e recolher a foto que Marc atirara no chão. O vidro tinha rachado, mas não se estilhaçado. Se não estivesse muito destruído, com sorte ela conseguiria recuperá-lo.

Quando Cassie chegou ao hall, viu que a foto estava de volta no lugar. O racho no vidro havia sido pressionado, então estava quase invisível. O envelope com o passaporte dela havia sido colocado cuidadosamente no canto da mesa. Ela o colocou no bolso e fechou o zíper, perguntando-se quem estava trabalhando esta noite. Ela havia presumido que era a única que estava aqui além das crianças, e checou se a porta de entrada estava trancada, só para garantir.

Atravessando a sala de jantar, viu que os pratos já haviam sido retirados. Alguém estivera definitivamente a ajudando. Curiosa para ver se a pessoa ainda estava limpando, foi até a cozinha.

Quando entrou, viu Marnie varrendo o chão da cozinha.

Marnie pulou quando viu Cassie, derrubando a vassoura, que caiu no chão com barulho.

– Ei – Cassie disse, surpresa. – Pensei que você tivesse o dia de folga, mas muito obrigada por me ajudar.

Então, olhou mais de perto para Marnie. Ela estava branca como papel.

– Está tudo bem? – Cassie perguntou.

– Pierre foi embora? Diga que ele foi embora, Cassie.

– Ele foi preso – Cassie disse. – A polícia chegou por volta das cinco e meia. Por quê? Você sabia disso?

Sentiu seu cérebro começar a acompanhar a razão para o comportamento estranho de Marnie.

– Eu sabia – Marnie confirmou. Ela falava em voz baixa, e Cassie viu-se fazendo o mesmo.

– Foi por isso que tirou folga à tarde? Presumi que estivesse em uma entrevista de emprego. Estava errada?

Marnie assentiu. – Eu estava na delegacia.

– Por quê?

Cassie olhou novamente para o rosto tenso e assustado dela.

– Eu acho que você deveria se sentar e me contar o que aconteceu. Posso fazer um chá?

Cassie colocou a chaleira no fogão, tirando xícaras e saches de chá do armário onde os vira mais cedo, em meio a sua busca por ingredientes para o jantar. Havia uma garrafa de leite na geladeira, então ela a pegou, pensando que Marnie, tão atenta aos detalhes, despejaria o leite em uma jarra menor e colocaria tudo em uma bandeja.

Marnie sentou-se à mesa da cozinha. Abaixou a cabeça e soltou uma respiração profunda, olhando para as mãos.

– Eu fiquei com tanto medo que não o prendessem, e que ele descobriria onde eu fui, e eu estaria em mais apuros do que se pode imaginar. Sei que isso ainda pode acontecer, porque, sim, eu sei o motivo de Pierre ter sido preso hoje.

Cassie olhou fixamente para ela, tomando alguns momentos para processar o que ela dizia. Choque e alívio se perseguiam em sua mente.

– O que você fez? – ela perguntou.

Ela serviu o chá e se sentou ao lado de Marnie.

– Eu estava esvaziando a lixeira hoje de manhã. Aquela ali – Marnie apontou para a lixeira grande onde o lixo compostável era jogado. – Foi por puro acaso que vi, já que estava bem no fundo do saco e coberto de sujeira. Era um celular. Um modelo simples, antigo de celular, não um smartphone chique. Nunca tinha o visto antes.

– Que estranho – Cassie concordou, imaginando como o celular teria incriminado Pierre.

– Foi logo depois do funeral. Pensei que talvez um convidado tivesse derrubado, ou alguma das crianças estivesse aprontando e tivesse jogado fora por brincadeira.

Cassie assentiu, pensando que esses eram bons palpites.

– Decidi tentar descobrir a quem pertencia, porque alguém certamente estaria sentindo falta dele. Então o limpei e liguei. Ainda tinha um pouco de bateria. Chequei a lista de chamadas recentes e os contatos. Não havia contatos. Esse celular só tinha realizado algumas ligações, todas para o mesmo número. Então, peguei o celular e dirigi pela estrada até a extremidade da vinícola, onde é possível encontrar um sinal nos dias bons. Lá, eu liguei para o número.

– O que aconteceu depois?

– Uma mulher atendeu quase imediatamente – Marnie disse, embalando a xícara com suas mãos.

Cassie olhava para ela sem ousar nem respirar, esperando pelo que Marnie diria.

– A mulher disse “Pierre, está tudo bem? Pensei que você tivesse jogado esse celular fora”.

Cassie encarou Marnie, horrorizada, e por um tempo ficou sem palavras.


CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

Cassie ficou atônita com a virada que os eventos haviam tomado. O conteúdo incriminador das palavras da mulher misteriosa colocava tudo em uma perspectiva completamente diferente. O fato de Pierre ligar para ela em um telefone secreto, descartado logo após a morte de Margot, era uma bomba.

– O que você fez quando a ouviu falando? – ela perguntou a Marnie.

Cassie colocou a mão sobre a mesa, tranquilizada pela sensação sólida da madeira, que a aterrava quando todo o resto parecia estonteantemente incerto.

– Eu desliguei. Soube instantaneamente que, se Pierre descobrisse que eu tinha encontrado o celular, eu estaria em sérios apuros. Fiquei tentada a jogá-lo de volta no lixo e fingir que nunca havia o encontrado. Então, pensei comigo... Quero fazer o que é fácil, ou o que é certo?

– E você escolheu o que é certo?

Cassie podia imaginar quão difícil aquela decisão deve ter sido.

– Sim. Eu sabia que precisava levá-lo para a polícia. Mas, ao mesmo tempo, não poderia simplesmente fugir com ele. Então, fui até Pierre imediatamente, rezando para que essa mulher já não tivesse ligado para ele.

– Não acho que ela ligou – Cassie disse. – Talvez, ela percebeu o erro que cometeu e decidiu ficar calada.

– Sim, acho que é isso que pode ter acontecido. De todo modo, pedi a folga a Pierre. Disse que tinha assuntos urgentes para resolver. Ele deu permissão e eu fui direto até a delegacia. Tive que esperar um pouco até que os detetives voltassem, já que ambos estavam fora. Quando retornaram, examinaram o telefone e me entrevistaram. Foi quando descobri que a evidência não era apenas incriminadora, mas poderia fundamentar a prisão.

Cassie completou a xícara de Marnie e esperou que ela continuasse.

– Eles disseram que as ligações eram para Helene, a amante de Pierre, a quem ele visitou na noite da morte de Margot. O horário era significativo. O telefone fora utilizado cinco vezes. Ligações feitas na manhã anterior à morte de Margot e mais tarde naquele dia, à tarde e à noite, e depois mais duas ligações na manhã seguinte.

As peças estavam se encaixando para Cassie.

– Então eles usaram um celular diferente para se comunicar nesse curto espaço de tempo? Depois Pierre o jogou fora?

– Sim. Pierre nunca revelou este celular à polícia, e eles disseram que o celular e as ligações indicavam planejamento prévio.

– Estou tão orgulhosa de você, Marnie – Cassie disse. – O que você fez foi muito corajoso.

– Fiquei fora de mim de tanta preocupação. Pierre tem um temperamento violento e eu já vi os efeitos disso. Não vou mais ficar aqui.

– Não poderia, depois de ter feito aquilo. A outra oferta de emprego foi confirmada?

– Sim, mas estou saindo da França. A empresa que me deu o emprego tem base em Londres e tem dois hotéis lá. Perguntei se poderia trabalhar em um deles, e eles concordaram. Não queria ficar em Paris, ou mesmo no país, com o julgamento de Pierre em andamento. Ele é um homem vingativo e sua influência é extensiva.

– Eu entendo – Cassie respondeu, sóbria.

As palavras de Marnie a fizeram pensar em sua própria situação e nas ameaças que Pierre dirigira a ela. Sentia-se mais inquieta do que nunca sobre sua situação, imaginando o que diria a Josephine e o quanto deveria tentar explicar.

Depois que Marnie e ela deram boa noite e trocaram números de telefone, Cassie levou leite achocolatado e biscoitos para as crianças no andar de cima, depois aguardou em seu quarto até ouvir o táxi chegar. Apressou-se para abrir a porta de entrada para Josephine.

Uma mulher morena e esguia desceu do táxi, caminhando em direção a Cassie e lhe dando um abraço caloroso.

– Pobrezinha – ela disse. – Que situação terrível para ter que lidar. As crianças estão bem? Vim o mais rápido que pude.

– Eles estão bem. Ficaram muito chateados, mas suportaram bem e apoiaram uns aos outros. E se alegraram muito quando eu contei que você viria. Eles estão comendo biscoitos com leite na cama agora – Cassie disse.

Porém, não estavam. Cassie ouviu passos correndo pela escadaria e viu Marc liderando a arrancada até a porta de entrada, com Antoinette e Ella seguindo logo atrás.

– Tia Josephine está aqui! – ele gritou.

Colocando a mala apressadamente no chão, Josephine reuniu as três crianças em seus braços e os abraçou com força.

– É tão maravilhoso ver todos vocês. Como cresceram! Cassie me contou como foram corajosos. Estou muito orgulhosa de vocês.

Cassie percebeu que Josephine estava chorando. Ela tirou um lenço do bolso e limpou os olhos antes de se voltar às crianças.

– O que vai acontecer agora, tia Josephine? – Antoinette perguntou.

– Agora? Vamos todos para a cama descansar.

– E amanhã? – Ella pulava, impaciente.

– Amanhã, decidimos que vocês virão comigo para morar na casa da fazenda em Bordeaux.

– Sério? – Antoinette perguntou, e havia lágrimas nos olhos dela também.

– Sim – Josephine disse gentilmente.

Marc e Ella gritaram de alegria, dançando ao redor de Josephine, enquanto Antoinette envolvia os braços com força ao redor da tia e chorava ainda mais.

– Estou feliz. Realmente estou – ela disse quando conseguiu falar. – Estou chorando de felicidade.

Josephine alisou os cabelos dela.

– Sempre é bom chorar, se estiver feliz ou triste. Mas fico contente por você estar feliz por vir morar comigo. Falei com seu papai, ele manda beijos e diz que está bem. Ele está animado para vocês irem morar na casa da fazenda. Agora, vamos lá, dorminhocos, vocês precisam descansar. Temos muito a fazer amanhã. Temos que fazer todas as malas e nos aprontar para a viagem a Bordeaux.

Cassie seguiu a família até o andar de cima e ajudou Josephine a colocar as crianças na cama. Não que ela precisasse de muita ajuda, Cassie notou. As crianças genuinamente a adoravam e estavam se comportando muito bem.

Dentro de alguns minutos, todos estavam ajeitados na cama.

– Vamos conversar lá embaixo – Josephine sugeriu a Cassie.

Elas foram até a sala de jantar onde Josephine serviu uma taça de vinho tinto a cada uma.

– Descobri que uma taça de vinho à noite me ajuda a dormir bem – ela confidenciou. – E depois da loucura desta tarde, preciso de algo para me acalmar. Tenho certeza que você também.

– Obrigada – Cassie disse, bebericando o vinho tinto encorpado, pensando na sorte que as crianças tinham. Josephine era tão gentil, tão responsável e genuinamente amigável.

Josephine respirou fundo.

– Não posso te agradecer o bastante por ajudar a cuidar as crianças. Sei como eles devem ter ficado perturbados com tudo o que aconteceu, e com certeza você não teve momentos fáceis.

– Ficou tudo bem – Cassie disse, mas Josephine balançou a cabeça.

– As coisas foram muito difíceis nesses últimos anos. Primeiro, havia problemas entre Pierre e Diane em seu casamento, e sei que Diane foi tremendamente infeliz por um longo tempo. Quando ela morreu, sugeri que eu deveria assumir a criação das crianças, mas Pierre se recusou a permitir. Margot mudou-se para cá quase que imediatamente, e ele me disse que Margot seria perfeitamente capaz de lidar com tudo e que a minha interferência era desnecessária.

– Isso deve ter te magoado muito – Cassie disse.

Josephine inclinou sua taça, gentilmente rodopiando o vinho tinto.

– Não fui bem-vinda no castelo por muito tempo. Pierre e eu nunca nos demos bem, e nosso relacionamento piorou ao longo dos anos, a despeito das tentativas de Diane de suavizar as coisas entre nós. Ela e Pierre brigavam tanto, o tempo todo, e só piorou o conflito entre todos nós. Acabei ficando longe e convidando as crianças para virem até mim nos feriados. Então, quando Margot se mudou, Pierre recusou-se a permitir que isso acontecesse. As crianças e eu não nos víamos há mais de um ano.

– Eles devem ter sentido muito a sua falta – Cassie disse.

– Acho que sim. A vida deles aqui não era feliz, e duvido que tenha melhorado durante o último ano – Josephine concordou.

Ela tomou mais um gole de vinho.

– A polícia disse, quando me ligaram, que há evidências convincentes contra ele. Pedi para falar com Pierre e, para a minha surpresa, eles permitiram que ele me ligasse enquanto eu estava no trem. Ele estava indignado, praguejando e culpando a todos exceto ele mesmo. Disse que recentemente havia usado um celular diferente para ligar para sua amante depois que Margot passou a suspeitar. Ele o descartou após a morte dela, porque não queria que a polícia soubesse e que, por conta disso, eles suspeitavam de conluio e planejamento prévio.

– Isso não soa bem, certamente?

– Ele continuou gritando que era inocente e que limparia o nome dele, mas ele próprio reconheceu que talvez não fosse rápido e fácil. Foi quando eu perguntei outra vez se poderia assumir a guarda das crianças. Ele não teve escolha senão concordar. Afinal de contas, com o futuro tão incerto e até mesmo sua liberação da prisão ainda sem confirmação, não há espaço na vida dele para as crianças, e eu também apontei que elas sofrerão com os rumores e acusações que circularão pela comunidade.

– Sim, sem dúvida alguma – Cassie disse, perguntando-se quantos dos supostos amigos de Pierre mudariam de lado quando a notícia fosse liberada.

– Concordamos que ele assinará oficialmente a entrega da guarda das crianças para mim. Estou mais do que feliz em fazer isso. Meu marido e eu amamos ficar com eles, e eles se dão bem com os nossos dois garotos.

– Parece ser a melhor jogada para eles. Estou tão aliviada por tudo acabar assim – Cassie concordou.

– Tenho certeza que está se perguntando onde isso deixa você – Josephine disse.

Cassie compreendeu, com enorme alívio, que agora que as crianças começariam uma nova vida não haveria mais lugar para ela no castelo.

Ela assentiu educadamente, unindo as mãos com força enquanto Josephine continuava.

– Por favor, me passe suas informações bancárias. A primeira coisa que farei amanhã será transferir a quantia devida a você, e um bônus pelo estresse e aborrecimento que você teve que suportar.

– Muito obrigada – Cassie disse. – Tenho o contrato salvo no meu celular, então posso checar qual é o meu salário de Novembro.

Josephine balançou a cabeça com firmeza. – Meu marido e eu concordamos que, neste caso, seu salário anual completo lhe é devido, além do bônus como agradecimento. Em troca, tudo o que pedimos é que não fale sobre o que aconteceu, para a imprensa ou para qualquer um que possa estar curioso. Para o bem das crianças, gostaríamos de tentar limitar informações prejudiciais tanto quanto for possível.

– Entendo – Cassie disse. – Eu não teria dito nada, mesmo sem o bônus e o salário completo, que é muita bondade sua.

Josephine repousou sua taça. – Muito, muito obrigada. Se você ou as crianças precisarem de mim, estarei no primeiro quarto à direita, na ala dos hóspedes. Durma bem.

Cassie assistiu enquanto ela subia as escadas, sua mente girando.

Ela não podia acreditar no final surpreendente para este dia pavoroso.

Percebeu como estivera preocupada com as crianças, que tinham parecido estar presas a essa situação disfuncional, sem saída. Agora tinham uma saída. Tinham uma tia que os amava, um lugar seguro para ir e uma vida familiar estável pela frente, e ela sentia um alívio desmedido com relação a isso.

Suas circunstâncias também tinham se invertido. Vivia com medo, sob uma nuvem de suspeita, mas agora estava livre para partir e tinha dinheiro para gastar – muito mais do que esperava.

Repousou sua taça vazia e foi até a porta de entrada para trancá-la, porém, antes de fazer isso, deu um passo para fora da casa.

Olhou para cima, para a imponente fachada de pedra do castelo, que parecia brilhar na escuridão. Uma brisa gelada a arrepiou.

Ela não estava totalmente livre. Por mais que Josephine não tivesse falado diretamente, tinha certeza de que Pierre mencionara seu nome durante seu sopro de fúria. Tinha certeza que ele prosseguiria com as ameaças de prendê-la por roubo, o que poderia levá-la a ser acusada de outros crimes.

Se Marnie estava saindo do país, talvez ela devesse fazer o mesmo, ao menos até que o julgamento terminasse. Afinal, Pierre era um homem rico e vingativo cuja influência era extensa e, por mais que a polícia acreditasse na história dela e a deixasse livre, Cassie temia que outros talvez não acreditassem. E quem sabia quando Pierre pudesse ser solto através de fiança? Com toda sua influência, talvez ele fosse liberado até mesmo no dia seguinte, retornando ao castelo.

Um tremor desceu por sua espinha. Não havia tempo a perder.

Sim, sair da França era exatamente o que ela precisava fazer.

E o faria assim que acordasse na manhã seguinte.


CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

A luz da manhã entrava no castelo enquanto Cassie ajudava as crianças a carregar as malas até o andar de baixo. A mala de Marc tinha algumas roupas e todos os brinquedos que ele conseguiu encaixar na grande mala de viagem. Marnie carregava a mala de Ella e uma mochila extra, enquanto Josephine e Antoinette rolavam a enorme mala de Antoinette pelo hall.

– Devemos chamar um táxi? – Josephine perguntou.

– Não, não, deixe-me levar vocês até a estação – Cassie insistiu.

Marnie buscou o SUV de Pierre, o carro mais espaçoso a disposição, trazendo-o até a frente da casa e abrindo as portas enquanto Cassie começou a carregar as malas.

Era um lindo dia – fresco, claro e com brisa. O vento fresco do outono bagunçou os cabelos de Cassie e ela se sentia esperançosa pelo que estava diante dela. Após deixar a família na estação, poderia voltar para cá, devolver o carro, depois fazer as próprias malas e chamar um táxi. Decidiu que retornaria à mesma estação e pegaria o Eurostar para Londres. Em apenas algumas horas, poderia atravessar o canal e estaria em um novo país – um que ela sempre quisera explorar.

Marnie também estava pronta para partir, e havia colocado seus pertences em seu próprio carro. Cassie a abraçou, triste por se despedir de alguém que se tornara uma amiga tão boa, embora esperasse que, com as duas em Londres, conseguissem se encontrar outra vez em breve.

– Manteremos contato – Marnie sussurrou. – Meu novo local de trabalho tem sinal de celular, e eu adoro trocar mensagens. Boa sorte.

Então, era a hora de ir até a estação com as crianças, animadas para a viagem, cantando em um coro desafinado no banco de trás do carro. Uma vez lá, Cassie ajudou Josephine a carregar o carrinho de bagagens com todas as malas e empurrá-lo até a plataforma onde o trem para Bordeaux já os aguardava.

Cassie olhou para o trem brilhante, lustroso, e subitamente sentiu-se desolada. Gostaria de não ter que dizer adeus.

Uma a uma, ela abraçou as crianças.

– Antoinette, estou tão feliz por você. Sei que vai se divertir muito com Josephine, e você é uma pessoa tão forte.

– Obrigada. Você também é, Cassie. Eu fui tão detestável com você porque estava infeliz, mesmo querendo ser sua amiga – Antoinette sussurrou.

Marc desfilou até ela e estendeu a mão. Cassie a segurou, e quase começou a chorar ao descobrir que Marc lhe entregara um de seus adorados touros de brinquedo.

– Você vai vir nos visitar, Cassie? – ele perguntou.

– Vou. Prometo.

Ella aproximou-se, tímida, e deu a Cassie um pedaço de papel dobrado.

– Fiz um desenho para você – ela disse. – É do sol, porque quando penso em você, penso no brilho do sol. Obrigada por cuidar de nós.

Cassie piscou para espantar as lágrimas enquanto abraçava Ella.

– Sempre vou me lembrar de você – disse para Ella com um sorriso.

Depois de todas as despedidas, a família embarcou no trem e Cassie assistiu, acenando freneticamente enquanto eles acenavam de volta até que o trem desaparecesse de vista.

Cassie voltou ao carro, pensando em seus planos, mas ao entrar sentiu um traço de um cheiro familiar que gelou seu corpo todo.

Era o cheiro penetrante e agudo da colônia de sândalo de Pierre. Ao inalar, Cassie sentiu sua pele se enrugando com os arrepios.

Lembrou-se de como Pierre a empurrara na cama, os dedos dele agarrando seu ombro, sussurrando ameaças em seu ouvido para forçá-la a ficar calada.

Com dedos trêmulos, Cassie abriu as janelas e deixou a brisa atravessar, desejando que as memórias também fossem embora tão facilmente, mas elas nunca foram tão vívidas e ela sentia como se estivesse revivendo a cena horrível.

Ele tinha sido tão confiante, tão ardiloso. A expressão de triunfo dele diante da impotência dela lhe dava nojo. Em seu terror, ela tinha apagado todos os detalhes do que ele tinha dito, mas agora as palavras dele voltaram, inundando-a. Ele havia dito que sabia que ela estivera no quarto dele, e que tinha evidências fotográficas dela bisbilhotando, vasculhando e abrindo gavetas.

Evidência fotográfica?

Cassie pressionou a testa no volante, pensando sobre as ameaças dele, e percebendo a enormidade do que as palavras poderiam significar.

Ela não acreditava se tratar de ameaças vazias. A certeza na voz dele, combinada ao fato dele basicamente ter descrito suas ações, apontavam para uma alternativa diferente – que Pierre tinha uma câmera escondida em seu quarto, e que havia a apanhado com ela.

Seria impossível Cassie alegar ser inocente se isso existisse. Ela tinha somente uma chance para encontrá-la e, se conseguisse, precisava destruí-la. Caso contrário, tinha certeza que Pierre levaria suas ameaças a diante e usaria as imagens para incriminá-la assim que tivesse a chance.

Ela ficou sentada, debatendo.

Por um lado, precisava sair do país antes que Pierre fosse liberado.

Por outro lado, precisava ver se havia alguma evidência real contra ela.

Finalmente, ela virou o volante e pisou no acelerador.

Sair do país teria que esperar.

Ela precisava fazer uma última viagem até o odiado castelo.


CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Havia duas empregadas trabalhando na cozinha, mas o piso superior do castelo estava silencioso e Cassie não conseguiu ouvir som algum da ala de hóspedes, ou do quarto das crianças, enquanto se encaminhava para o quarto de Pierre.

“Você precisa fazer isso”, disse a si mesma. “Precisa descobrir o que está lá antes que ele use isso contra você, porque ele usará”.

Ela olhou ao redor do quarto, borboletas se agitando em seu estômago, torcendo para que, caso Pierre tivesse algum sistema, fosse fácil encontrá-lo. Não sabia quanto tempo teria. Pierre já poderia ter informado a um investigador particular sobre o que fazer e onde procurar. O investigador poderia até mesmo estar a caminho.

Sua primeira ideia, de que havia câmeras de segurança de circuito fechado, estava errada. Não havia câmeras visíveis.

Mas e quanto a câmeras escondidas?

Cassie examinou as paredes, desejando ter uma noção melhor de como as câmeras poderiam ser ou em que altura precisariam ser instaladas. Andando pelo quarto, seus nervos se agitando, ela tentou abordar a situação de forma lógica.

A câmera, caso houvesse uma, teria a filmado vasculhando a gaveta secreta. Então, teria que estar montada em uma parede com visão para a cama.

Virando-se para olhar para a cama, Cassie começou a se perguntar se a função principal da câmera era de fato segurança, ou se estava lá por outro motivo.

Talvez Pierre gostasse de filmar suas façanhas exóticas, para que pudesse reviver as cenas de novo e de novo.

Nesse caso, as paredes de qualquer lado da enorme cama seriam o melhor lugar para esconder uma câmera.

Olhando atentamente para a magnifica pintura a óleo na parede à direita, Cassie notou um trecho mais escuro na piscina azul-marinho no centro da obra de arte. A luz refletia nele, do modo como refletiria em uma lente de vidro.

Cassie levantou a pintura a óleo da parede, notando que era fácil removê-la, e que havia dois buracos na tela.

Cassie inclinou-se mais para perto, seu coração martelando ao ver a alcova na parede. A câmera de vídeo escondida era um modelo pequeno e de última geração. O buraco maior na tela acomodava a lente, mas havia um buraco minúsculo, do tamanho da ponta de um dedo, que permitia acesso ao botar de gravação.

– Ele usava isso para suas explorações sexuais – ela disse em voz alta, horrorizada com o pensamento. Perguntou-se se Margot sabia. Havia imagens dela aqui? Bem, ela iria descobrir.

Removeu a câmera cuidadosamente da alcova. A bateria tinha acabado, mas havia duas baterias extras na alcova, e a segunda que ela tentou tinha um pouco de carga. Então, essa não era uma câmera de vigilância permanente. As filmagens teriam base na duração da bateria, que ela deduziu ser de no máximo duas horas.

Como funcionava?

Sentando-se na cama, Cassie desdobrou o visor e ligou a câmera. Navegou pelas opções e encontrou os vídeos salvos.

Havia quatro filmes carregados no cartão de memória.

Cassie começou com o quarto, o mais antigo, e quando a imagem cristalina começou a ser reproduzida, soltou uma exclamação de surpresa.

Pierre estava se afastando da câmera, sorrindo. Deveria ter acabado de ligá-la. E, na cama, com uma venda preta sobre os olhos e as mãos amarradas atrás de suas costas, estava uma mulher cheia de curvas, com pele de porcelana e cabelos longos e ruivos.

– Quando isso foi filmado? – Cassie perguntou em voz alta.

Conseguia ouvir a incredulidade em sua própria voz. Pierre trouxera outra mulher para o quarto dele. Essa ruiva era sua amante, Helene?

Ela não queria assistir mais nada daquele vídeo. Em vez disso, verificou a data, levantando as sobrancelhas, surpresa ao ver que havia sido filmado há apenas uma semana. Margot deveria ter saído e Pierre furtivamente trouxera a ruiva até aqui.

Ele devia ter aproveitado a oportunidade de fazer isso antes de Cassie chegar. Afinal, ter uma au pair na residência significava mais uma pessoa na ala dos dormitórios, o que tornaria mais difícil entrar com alguém clandestinamente.

Cassie passou para o próximo vídeo, fazendo careta ao assistir a horrível cena de estrangulamento que ela havia espiado através da fechadura. A tela nítida mostrava cada detalhe dos esforços de Margot e, para o seu choque, viu que também gravava sons de forma muito precisa.

Balançando a cabeça, parou o vídeo. Não queria assistir a nem mais um instante dessas filmagens.

O terceiro vídeo era dela. Cassie assistiu a si mesma entrando, olhando ao redor com nervosismo e prosseguindo em sua busca pelo quarto. Parecia aterrorizada e furtiva e, ao pegar os instrumentos de BSDM, estava de frente para a câmera em uma clara imagem de seu rosto em choque.

Tinha certeza de que Pierre havia se excitado com aquilo, e certamente havia fornecido a ele as informações que precisava. Ele poderia ter mostrado essas fotos para a polícia, que teriam a comprometido muito.

Cassie assistiu até o fim e, em seguida, apertou firmemente o botão de deletar. Não importa o que acontecesse, não haveria mais oportunidade para chantagem. A evidência dela nesse quarto fora apagada.

Com o terceiro vídeo apagado, a quarta cena brotou na tela e Cassie ficou tensa ao assistir.

Era Margot.

Margot vestia o casaco turquesa que usava quando morrera. Sentava-se na cama, olhando diretamente para a câmera.

– O que diabos? – Cassie sussurrou para si mesa.

Era a filmagem mais recente na câmera, e deveria ter sido feita na noite em que Margot morrera.

Ela estava dizendo algo. Cuidadosamente, Cassie ligou o som, sem ousar respirar enquanto a voz furiosa de Margot preenchia o quarto.

– Seu desgraçado – Margot arrastou a voz, encarando a parede com olhos semicerrados. – Você acha que eu não sabia que essa câmera estava aqui, não é? É claro que eu sabia, não sou estúpida como você pensa. Tampouco acredito no que você me diz. Foi para o chalé passar a noite? Ah, eu acho que não. Você está com uma das suas namoradas, eu sei tudo sobre elas. Talvez tenha levado Cassie para algum lugar, se não se satisfez com ela mais cedo. Ou talvez, dessa vez, foi para a Helene. Não finja para mim que parou de vê-la. Ainda está ligando para ela, tenho certeza. Você é um desgraçado mentiroso e traidor, Pierre, e me arrependo do dia em que te conheci.

Naquele momento, Margot parou sua fala desconexa e virou-se para a porta do quarto, como se tivesse sido interrompida por um ruído.

Pavor enviou tentáculos de gelo pela espinha de Cassie.

Aqui seria onde ela entraria na imagem. Tinha certeza que a porta se abriria e ela estaria parada lá. Memórias se debatiam em seu cérebro. Fragmentos de uma briga, e o modo com Jacqui tinha estado em seu sonho, quando a empurrou. Do grito ela se lembrava, agudo e estridente, como se ela o tivesse ouvido quando estava acordada, e o incontrolável sentimento de sua própria raiva.

As barreiras entre realidade e imaginação haviam se tornado borrões para Cassie, mas a câmera teria gravado cada detalhe em foco preciso.

Cassie endureceu-se para assistir, perguntando-se se seria capaz de suportar assistir a si mesma cometendo assassinato.


CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Cassie observou a tela, segurando a câmera em suas mãos geladas, temendo pelo pior conforme os segundos passavam.

A porta do quarto permaneceu fechada e ela soltou um suspiro lento e trêmulo enquanto Margot voltava sua atenção para a câmera outra vez.

Margot devia ter ouvido Cassie quando ela sonambulara até a porta, mas ela não havia entrado no quarto e isso a enchia de alívio.

Margot continuou com sua diatribe.

– Eu sei que você nunca vai me deixar em paz. Seu ego enorme não permitirá isso. Nunca me permitirá ser bem sucedida na minha carreira outra vez. Estou cansada de você, das suas mentiras e sua necessidade desesperada de controlar tudo na sua vida. Estou cansada de tudo isso.

Margot levantou-se, levemente bamboleante.

– Não vou me incomodar em brigar com você. Então vou terminar tudo, e adivinhe? – Margot apontou um dedo para a câmera. – A culpa é sua. Você é o responsável. E espero que se sinta culpado sabendo que é o responsável.

O coração de Cassie martelou em sua garganta.

– Não, Margot, por favor, não. Não faça isso – ela implorou, mesmo sabendo que já era tarde demais.

– Adeus, Pierre – Margot disse.

Cassie espalmou a mão sobre sua boca, horrorizada enquanto a loira cambaleava para fora do quarto, subindo na cadeira do terraço. Ela equilibrou-se no parapeito, oscilando por um momento interminável e, em seguida, caiu, mergulhando na escuridão e desaparecendo da imagem.

– Ah, não, ah, meu Deus, não, não acredito nisso – Cassie murmurou.

Ela baixou a câmera e esfregou os olhos furiosamente, pressionando as mãos sobre eles, desejando poder apagar a imagem vívida de sua memória. A fúria resignada na atitude de Margot e o desespero de sua voz eram assustadores.

Margot havia se matado e filmado, para extorquir uma vingança torta de Pierre. E ele nunca tinha descoberto. Não houvera chance para que ele visse a última filmagem salva na câmera; ele não sabia que a última gravação fora feita.

Cassie arregalou os olhos novamente ao compreender que essa gravação provava a inocência de Pierre.

Provava, além de qualquer dúvida, que Margot de fato cometera suicídio, e inocentava Pierre de qualquer suspeita.

Lembrou-se do que Marnie dissera antes. Poderia fazer a coisa fácil, ou poderia fazer o certo.

O mais fácil seria devolver a câmera atrás da pintura e fingir nunca ter descoberto que estava ali.

O certo seria levá-la para a polícia.

Então, Cassie começou a se perguntar sobre o que aconteceria se ela levasse.

Pierre estivera relutante em dar a guarda das crianças para a tia, mesmo com as acusações contra ele. Se ele fosse inocentado, Cassie estava certa de que ele faltaria com a palavra no acordo e seguiria com a vida dele. O futuro feliz das crianças com Josephine seria encurtado e elas retornariam ao castelo. Helene se mudaria e o ciclo tóxico se repetiria. Para Pierre, só o poder interessava. As crianças lhe davam status como homem de família na comunidade, e a presença delas na casa o ajudaria a reconstruir sua reputação após ser injustamente acusado de um crime.

Cassie tinha visto o quanto os três tinham sido prejudicados e marcados. Esta era a única chance que tinham de uma vida melhor, em um lar mais estável, com uma tia que os amava.

Poderia fazer o que era fácil, ou o que era certo.

Mas talvez houvesse uma terceira opção, a mais difícil de todas, que seria fazer o que era o melhor para todos, e isso seria apagar essa filmagem.

Apagá-la da câmera, remover o cartão de memória para que nenhum backup permanecesse. Descartar o cartão em algum ligar, jogá-lo na lixeira de um shopping ou dar a descarga em uma privada para que desaparecesse para sempre, sem vestígios a serem encontrados.

Cassie descobriu que não conseguia respirar enquanto considerava as implicações.

Se fizesse aquilo, Pierre teria que enfrentar as acusações, apesar de ser inocente. Poderia ser considerado culpado de um crime que nunca cometera. Poderia passar um longo tempo na prisão – sentença perpétua, no pior caso, e teria que entregar a guarda das crianças para outra pessoa.

E a própria Cassie estaria cometendo um crime ao destruir a evidência. Certamente poderia ir para a cadeia.

Os lábios de Cassie apertaram-se ao lembrar como Pierre quase a estuprara, ameaçando-a e agredindo-a, e o medo desamparado que ela sentira na presença dele sabendo que ele poderia fazer, e fazia, o que bem entendesse. Pensou nas ameaças que ele fizera a outras pessoas e o medo que tinham dele, e como até mesmo as pessoas da comunidade tinham medo de falar mal dele, mesmo tendo razão em fazê-lo.

A forma como os empregados do castelo desesperadamente tentavam ficar invisíveis em torno dele porque ele se sentia no direito de fazer o que quisesse, tomar o que quisesse. A forma como ele estivera traindo Margot, fazendo a vida dela tão infeliz que ela não fora capaz de enxergar uma saída. Ele havia abusado dela emocionalmente e ela tinha se matado, não vendo escapatória. Ela iria querer que Pierre pagasse pelo que fizera com ela, mas a virada irônica de suas ações era que elas causariam que ele, ao tomar conhecimento desta filmagem, saísse impune. Não era o que Margot pretendera, e não era sequer justo.

Além disso, de forma mais importante, havia as crianças para considerar. Elas certamente haviam sofrido abuso nas mãos dele. Estavam sendo criados em um ambiente tóxico, onde só o controle interessava, e não o amor. Agora, tinham a chance de uma nova vida, um novo começo. Poderiam se curar, seguir em frente, e poderiam aprender a funcionar como membros de uma família normal e feliz novamente.

Cassie teria que tomar a responsabilidade e assumir a culpa por essa decisão pelo resto de sua vida.

Poderia fazer isso?

Cassie hesitou por um tempo, maravilhando-se com as circunstâncias que a haviam levado a essa filmagem não descoberta, que tinha o poder de mudar o curto de tantas vidas, de tantas formas. Pensou sobre imaginação e realidade, e como os limites haviam se tornado borrões em seu mundo.

– Hora da decisão – ela disse em voz alta, e subitamente teve certeza sobre qual seria o curso de ação correto.

Rapidamente, antes que pudesse debater ainda mais com si mesma, apertou o botão de deletar e apagou as filmagens da câmera.

Com aquele simples toque, as últimas palavras de Margot foram apagadas para sempre, seus segredos trancados no passado.

Cassie encontrou o cartão de memória e o removeu, enfiando-o no fundo de seu bolso. Jogaria fora em algum outro lugar onde nunca pudesse ser encontrado, quando estivesse bem longe daqui.

Devolveu a câmera na alcova, pendurou a pintura de volta no lugar e alisou a colcha da cama onde se sentara, para que parecesse como se ela nunca tivesse estado ali. Depois, saiu do quarto.

Ela tinha sentido medo de ser atormentada pela culpa depois do que fizera, mas se sentia estranhamente em paz, como se a justiça tivesse sido feita.

Ao se virar outra vez, pensou ver um brilho turquesa – mas, olhando novamente, talvez tivesse sido um reflexo da luz na janela.

– Adeus – ela sussurrou, fechando a porta.

 

 

                                                                  Blake Pierce

 

 

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