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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RASTRO DE UM ASSASSINO / Blake Pierce
RASTRO DE UM ASSASSINO / Blake Pierce

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O longo corredor estava escuro. Mesmo com a lanterna acesa, Keri mal conseguia enxergar três metros à frente. Ela ignorou a sensação de medo que sentia e continuou. Com uma mão segurando a lanterna e a outra em sua arma, ela avançava centímetro por centímetro. Finalmente, chegou na entrada do porão. Cada parte sua lhe dizia que finalmente havia encontrado o lugar. Era ali que sua pequena Evie estava sendo mantida presa.
Keri abriu a porta e pisou sobre o primeiro degrau de madeira, que cedeu um pouco, rangendo. A escuridão ali era ainda maior que no corredor. Enquanto ela descia lentamente as escadas, ocorreu-lhe como era estranho encontrar uma casa com um porão no sul da Califórnia. Esta era a primeira que havia visto. Então, ela ouviu algo.
Parecia uma criança chorando... uma garotinha, talvez com oito anos. Keri chamou-a e uma voz respondeu.
"Mamãe!"
"Não tenha medo, Evie, a mamãe está aqui!" Keri gritou de volta, descendo as escadas correndo. Mas, enquanto descia, sentia um incômodo, como se alguma coisa estivesse errada.
Foi só quando seus dedos engancharam num degrau, fazendo-a perder o equilíbrio e cair no nada, que percebeu o que a vinha incomodando. Evie estava desaparecida há cinco anos. Como sua voz poderia ser a mesma?
Mas era tarde demais para fazer algo a respeito agora, enquanto ela caía rapidamente. Ela abraçou o corpo, preparando-se para o impacto. Mas ele não veio. Para seu horror, ela percebeu que estava caindo num buraco aparentemente sem fundo, o ar ficando cada vez mais frio, uivando sem parar ao redor dela. Keri havia falhado com sua filha mais uma vez.
Ela acordou sobressaltada, sentando-se com as costas bem retas em seu carro. Levou um momento para perceber o que estava acontecendo. Não estava num buraco sem fundo. Nem em um porão assustador. Ela estava em seu velho Toyota Prius, no estacionamento da delegacia, onde havia adormecido enquanto almoçava.
O frio que ela havia sentido vinha da janela aberta. O uivo era na verdade a sirene de um carro de polícia saindo do estacionamento, para atender uma chamada. Ela estava encharcada de suor e seu coração batia rápido. Mas nada daquilo era real. Foi apenas mais um pesadelo terrível, para esmagar todas as suas esperanças. Sua filha, Evelyn, ainda estava desaparecida.
Keri balançou a cabeça, tomou um gole de água, saiu do carro e se dirigiu novamente para dentro da delegacia, lembrando a si mesma que ela não era mais apenas mãe: era também uma detetive da unidade de Pessoas Desaparecidas da LAPD, a Polícia de Los Angeles.

 

 

 


 

 

 


Suas várias lesões a forçavam a se mover desajeitadamente. Só haviam se passado duas semanas desde seu encontro brutal com um violento raptor de crianças. Pachanga, pelo menos, teve o que mereceu depois que Keri resgatou a filha do senador. Pensar nisso fez as dores agudas que ela ainda sentia por todo o seu corpo serem mais toleráveis.

Os médicos apenas a deixaram tirar o protetor facial acolchoado há poucos dias, depois de avaliar que sua órbita ocular fraturada estava cicatrizando bem. Seu braço ainda estava numa tipoia, depois que Pachanga quebrou sua clavícula. Disseram-lhe que poderia removê-la daqui a uma semana, mas Keri estava pensando em jogá-la no lixo antes, porque era incômoda. Não havia nada a ser feito sobre suas costelas quebradas a não ser usar uma cinta protetora acolchoada. Isso também a irritava, porque a fazia parecer uns cinco quilos mais gorda do que seu peso usual, 60 quilos. Keri não era vaidosa. Mas, aos 35 anos, ainda gostava de chamar a atenção dos homens. Mas, com a cinta acolchoada aparecendo sob a blusa na região da cintura e se sobressaindo da calça, ela duvidava que ainda fosse arrancar suspiros.

Por causa da folga que lhe deram para se recuperar, seus olhos castanhos não estavam tão injetados e exaustos como era o usual e seu cabelo loiro escuro, amarrado num rabo de cavalo simples, havia sido lavado com xampu. Mas a fratura em seu osso orbital causou um grande hematoma amarelado num dos lados do rosto, que só agora começava a desaparecer, e a tipoia também não ajudava a deixá-la muito bonita. Esse provavelmente não era o momento ideal para sair em um primeiro encontro.

A ideia de namorar a fez lembrar-se de Ray. Seu parceiro pelo último ano e amigo há seis anos antes dela entrar na polícia, Ray ainda estava se recuperando no hospital, após Pachanga lhe dar um tiro no estômago. Felizmente, sua recuperação ia bem, tanto que recentemente ele havia sido transferido do pequeno hospital próximo ao local do tiro para o Centro Médico Cedars-Sinai, em Beverly Hills. Ficava a apenas 20 minutos de carro da delegacia, então, Keri podia visitá-lo frequentemente.

Ainda assim, em nenhum momento durante essas visitas um deles mencionou a crescente tensão romântica que ela sabia que ambos estavam sentindo.

Keri inspirou fundo antes de fazer a familiar mas irritante caminhada pelo salão principal da delegacia. Parecia ser novamente seu primeiro dia. Ainda podia sentir todos os olhos voltados para ela. Toda vez que passava pelos seus colegas de trabalho, sentia seus olhares furtivos, de soslaio, e se perguntava no que estariam pensando.

Será que todos eles apenas achavam que ela era um canhão desgovernado e rebelde? Teria conquistado algum respeito invejoso por matar um assassino e raptor de crianças? Por quanto tempo ser a única detetive mulher do pelotão a faria sentir como uma estranha no ninho?

Enquanto caminhava por todos eles no alvoroço da delegacia e sentava-se em sua cadeira, Keri tentou controlar a onda de ressentimento subindo pelo seu peito e focar apenas no trabalho. Pelo menos, o local estava lotado e caótico como sempre, e, dessa maneira reconfortante, nada havia mudado. A delegacia estava repleta de civis prestando queixas, criminosos sendo fichados e detetives ao telefone, seguindo pistas.

Keri estava limitada a trabalho administrativo desde seu retorno. E sua mesa estava cheia. Desde que voltou, ela havia sido inundada por um mar de papelada. Havia dúzias de relatórios de prisões para revisar, mandados de busca para obter, depoimentos de testemunhas para avaliar e relatórios de evidências para examinar.

Ela suspeitava que, já que ainda não tinha permissão de sair para investigar casos, todos os seus colegas estavam empurrando suas tarefas para ela. Felizmente, poderia voltar ao campo amanhã. E a verdade oculta era que ela não se importava em estar presa no escritório por mais uma razão: os arquivos de Pachanga.

Quando os policiais fizeram uma busca na casa dele após o incidente, encontraram um laptop. Keri e o detetive Kevin Edgerton, o guru de tecnologia residente, haviam descoberto a senha de Pachanga, e aberto seus arquivos. Sua esperança era que os arquivos levariam à descoberta de várias crianças desaparecidas, talvez até de sua própria filha.

Infelizmente, o que, à primeira vista, parecia ser a veia principal de uma rede de informações sobre vários raptos, mostrou-se difícil de acessar. Edgerton havia explicado que os arquivos criptografados poderiam ser abertos apenas com o criptograma correto, que eles não tinham. Keri havia passado a última semana aprendendo tudo que podia sobre Pachanga, na esperança de descobrir o código. Mas, até agora, não havia conseguido nada.

Sentada, enquanto revisava os arquivos, os pensamentos de Keri se voltaram para algo que a estava corroendo desde que retornara ao trabalho. Quando Pachanga raptou a filha do senador Stafford Penn, Ashley, ele havia sido contratado pelo irmão do senador, Payton. Os dois homens vinham se comunicando na dark web há meses.

Keri não podia deixar de pensar como o irmão de um senador havia conseguido entrar em contato com um sequestrador profissional. Eles não pertenciam aos mesmos círculos. Mas tinham uma coisa em comum. Ambos eram representados por um advogado chamado Jackson Cave.

O escritório de Cave ficava num dos andares mais altos de um arranha-céu do centro da cidade, mas muitos de seus clientes eram muito mais rasteiros. Além de seu trabalho corporativo, Cave era conhecido por defender estupradores, sequestradores e pedófilos. Se Keri estava sendo generosa, suspeitava que era apenas porque ele sabia que podia ludibriar clientes tão desagradáveis. Mas parte dela pensava que ele ganhava alguma coisa por baixo dos panos. De todo modo, ela o desprezava.

Se Jackson Cave havia posto Payton Penn e Alan Pachanga em contato, fazia sentido que ele também soubesse como acessar todos os arquivos criptografados deles. Keri tinha certeza de que, em algum lugar daquele escritório chique dele, estava o criptograma de que ela precisava para quebrar o código e descobrir detalhes de todas aquelas crianças desaparecidas, talvez a dela mesma. Ela decidiu que, de um jeito ou de outro, legalmente ou não, entraria naquele escritório.

Enquanto começava a pensar sobre como isso poderia ser feito, Keri notou uma oficial uniformizada de vinte e poucos anos caminhando lentamente em sua direção. Ela acenou para que se aproximasse.

"Qual seu nome mesmo?" Keri perguntou, incerta se já deveria saber da resposta.

"Oficial Jamie Castillo", a jovem oficial de cabelos escuros respondeu. "Acabo de sair da academia. Fui transferida para cá na semana em que você estava no hospital. Originalmente, eu era da Divisão Oeste de LA".

"Então, eu não deveria me sentir muito mal por não saber quem você é?"

"Não, detetive Locke", Castillo disse, com firmeza.

Keri estava impressionada. A garota tinha confiança e olhos negros penetrantes que sugeriam uma inteligência afiada. Ela também parecia saber se cuidar. Com cerca de 1,73 m de altura, tinha uma estrutura atlética, vigorosa, que sugeria que confrontá-la não seria uma atitude muito perspicaz.

"Bom. Como posso ajudá-la?" Keri perguntou, tentando não parecer muito intimidante. Não havia muitas policiais mulheres na Pacific Division e Keri não queria espantar nenhuma delas.

"Fiquei responsável por atender as ligações de denúncias anônimas para a delegacia nas últimas semanas. Como pode suspeitar, muitas delas eram relacionadas a seu confronto com Alan Pachanga e com a declaração que você fez depois, sobre tentar encontrar sua filha".

Keri assentiu, lembrando. Depois dela resgatar Ashley, o departamento realizou uma grande coletiva de imprensa para celebrar o final feliz.

Ainda de cadeira de rodas, Keri elogiou Ashley e sua família antes de aproveitar a coletiva para mencionar Evie. Ela levantou a foto da filha e implorou ao público para oferecer qualquer informação que pudesse ajudar em sua busca. Seu supervisor imediato, o tenente Cole Hillman, ficou muito irritado ao vê-la usar uma vitória do departamento como ferramenta em sua cruzada pessoal, tanto que Keri pensou que ele a teria demitido na hora se pudesse. Mas como demitir uma heroína que resgatou uma adolescente, ainda por cima, de cadeira de rodas?

Quando estava no hospital, internada, Keri ouviu boatos de que ele teria ficado incomodado quando o departamento começou a ser inundado com centenas de ligações diariamente.

"Sinto muito por você ter sido obrigada a encarar essa tarefa", Keri disse. "Acho que eu só queria aproveitar ao máximo a oportunidade e não pensei em quem teria que lidar com o resultado. Imagino que todas as ligações eram pistas falsas?"

Jamie Castillo hesitou, como se ponderasse se estava tomando a decisão certa. Keri podia ver as engrenagens do cérebro da mulher mais jovem trabalhando. Ela assistiu enquanto Castillo calculava a atitude certa e não pôde deixar de gostar dela. Sentia que estava observando uma versão mais nova de si mesma.

"Bem", a jovem policial finalmente disse, "a maioria foram facilmente ignoradas, por serem de pessoas instáveis ou, simplesmente, brincadeiras de mau gosto. Mas recebemos uma ligação esta manhã, que era, de alguma forma, diferente. Era tão simples e direta que me fez levá-la mais a sério".

Quase imediatamente, a boca de Keri ficou seca e ela sentiu seu coração começar a bater forte.

Mantenha a calma. Provavelmente, não é nada. Não exagere.

"Posso ouvi-la?" ela perguntou, com mais calma do que pensou ser possível.

"Já a encaminhei para você", Castillo disse.

Keri olhou para seu celular e viu a luz piscando, indicando que tinha uma mensagem de voz. Tentando não parecer desesperada, tirou o telefone do gancho devagar e ouviu.

A voz na mensagem era rouca, quase metálica, e difícil de entender, ainda mais pelo barulho de batidas ao fundo.

"Vi você na TV falando sobre sua menina", dizia. "Quero ajudar. Há um armazém abandonado em Palms, do outro lado da estação geradora de energia Piedmont. Dê uma olhada".

Era apenas isso, uma grave voz masculina oferecendo uma pista vaga. Então, por que as pontas dos dedos dela estavam latejando de adrenalina? Por que ela estava com dificuldade para engolir? Por que seus pensamentos subitamente dispararam em possíveis imagens de como Evie poderia estar agora?

Talvez fosse porque a ligação não tinha nenhum dos indícios de ligações enganosas comuns. Não tentava chamar a atenção, o que claramente foi o que chamou a atenção de Castillo. E esse mesmo elemento — sua simplicidade — era a qualidade que agora fazia gotas de suor descerem pelas costas de Keri.

Castillo observava-a ansiosa.

"Você acha que é legítima?" ela perguntou.

"É difícil dizer", Keri respondeu calmamente, apesar dos batimentos cardíacos acelerados, entquanto ela pesquisava a estação elétrica no Google Maps. "Vamos checar a origem da ligação mais tarde e pedir a um especialista em tecnologia para examinar a mensagem e ver o que mais pode ser resgatado a partir da voz e barulho ao fundo. Mas duvido que possam descobrir muita coisa. Quem fez essa ligação foi cuidadoso".

"Foi o que pensei também", Castillo concordou. "Não deu nenhum nome, tentativa clara de mascarar a voz, barulho de distração ao fundo. Apenas parecia... diferente das outras".

Keri estava ouvindo apenas parcialmente enquanto olhava para o mapa em sua tela. A estação geradora se localizava na National Boulevard, que ficava ao sul da rodovia 10. Pelas imagens do satélite, ela verificou que havia um armazém do outro lado da rua. Se estava abandonado, não dava para saber.

Mas já vou descobrir.

Ela olhou para Castillo e sentiu uma onda de gratidão... e também algo que não sentia há muito tempo por um colega policial: admiração. Keri tinha um bom pressentimento sobre ela, e estava feliz por tê-la por perto.

"Bom trabalho, Castillo", ela disse para a jovem policial, que também estava olhando para a tela. "Tão bom que acho que é melhor eu ir conferir".

"Você precisa de companhia?" Castillo perguntou com expectativa, enquanto Keri se levantava e juntava suas coisas para ir até o armazém.

Mas antes que pudesse responder, Hillman colocou a cabeça para fora de seu escritório e gritou por todo o salão da delegacia até ela.

"Locke, preciso que você venha ao meu escritório agora". Ele a encarou. "Temos um novo caso".

 

CAPÍTULO DOIS

 

Keri ficou imóvel, congelada no mesmo lugar. Uma onda de emoções conflitantes a consumia por dentro. Tecnicamente, isso era uma boa notícia. Parecia que ela estava sendo posta novamente em campo um dia mais cedo, sinal de que Hillman, apesar das diferenças entre eles, sentia que ela estava pronta para retomar suas responsabilidades normais. Mas, naquele momento, parte dela só queria ignorá-lo e ir direto para o armazém.

"Ainda hoje, por favor", Hillman gritou, arrancando-a de sua indecisão momentânea.

"Estou indo, senhor", ela disse. Então, voltando-se para Castillo com um pequeno meio sorriso, ela acrescentou, "A saga continuará em breve".

Quando entrou no escritório, Keri notou que o cenho geralmente franzido de Hillman tinha mais vincos que o normal. Ela nunca sabia se ele não notava ou apenas não dava a mínima. O tenente estava usando um blazer, mas sua gravata estava frouxa e sua camisa mal ajustada não podia esconder uma barriga levemente protuberante.

Sentado na velha e surrada namoradeira contra a parede mais distante, estava o detetive Frank Brody. Brody tinha 59 anos e estava a menos de seis meses de se aposentar. Tudo em sua postura refletia isso. De sua polidez pouco convincente até sua camisa social amarrotada, manchada de ketchup, quase perdendo os botões por causa de sua formidável pança, cujos pneuzinhos pareciam querer vazar pela costuras, sempre na iminência de se romper a qualquer momento.

Keri nunca achou que Brody era um dos detetives mais dedicados e comprometidos, e recentemente ele parecia mais interessado em seu precioso Cadillac do que em resolver casos. Ele trabalhava no departamento de Roubos e Homicídios, mas havia sido transferido para Desaparecidos com o desfalque na unidade, por causa das lesões de Keri e de Ray.

A transferência o havia colocado num estado de mau humor permanente, apenas reforçado pelo desgosto que ele sentia por ter que trabalhar com uma mulher. Tratava-se realmente de um homem de outra geração. Ela até já tinha ouvido por alto ele dizer, "Prefiro trabalhar com um merdinha do que com uma fadinha". O sentimento, apesar de ser, talvez, expresso com palavas um pouco diferentes, era mútuo.

Hillman fez sinal para Keri se sentar na cadeira dobrável de metal em frente à sua mesa, então, tirou o telefone do mudo e falou.

Dr. Burlingame, estou aqui com os dois detetives que vou enviar para se encontrar com o senhor. Na linha estão os detetives Frank Brody e Keri Locke. Detetives, estou falando com o Dr. Jeremy Burlingame. Ele está preocupado com sua esposa, com quem está tentando falar há mais de 24 horas. Doutor, poderia por favor repetir o que me contou?"

Keri pegou sua caderneta e caneta para tomar notas. Ela começou imediatamente a ter suspeitas. Em qualquer caso de esposa desaparecida, o primeiro suspeito era sempre o marido e ela queria ouvir o timbre de sua voz na primeira vez que ele falasse.

"É claro", o médico falou. "Eu dirigi até San Diego ontem de manhã para ajudar numa cirurgia. A última vez que falei com Kendra foi antes de partir".

Cheguei em casa muito tarde na noite passada e terminei dormindo num quarto de hóspedes, para não acordá-la. Na manhã de hoje, dormi até mais tarde, pois não tinha nenhum paciente agendado".

Keri não sabia ao certo se Hillman estava gravando a conversa, então ela rabiscava furiosamente, tentando seguir o ritmo do Dr. Burlingame.

"Quando fui até o quarto, ela não estava lá. A cama estava feita. Imaginei que ela havia apenas saído de casa antes de eu acordar, então, enviei-lhe uma mensagem de texto. Não tive resposta... mas, novamente, não é incomum. Moramos em Beverly Hills e minha mulher participa de vários eventos e campanhas de instituições de caridade locais, geralmente deixando seu celular no silencioso. Às vezes, ela se esquece de reativar o toque".

Keri escreveu tudo, avaliando a veracidade de cada comentário. Até agora, nada que tinha ouvido pareceu alarmante, mas isso não significava muito. Qualquer um podia se controlar ao telefone. Ela queria ver o comportamento dele quando confrontado em pessoa por detetives da polícia de LA.

"Fui trabalhar e liguei para ela novamente no caminho... ainda sem resposta", ele continuou. "Por volta da hora do almoço, comecei a ficar preocupado. Nenhuma de suas amigas teve notícias dela. Liguei para nossa governanta, Lupe, que afirmou não ter visto Kendra nem ontem, nem hoje. Foi aí que eu realmente comecei a me preocupar. Então, liguei para o serviço de emergência".

Frank Brody se inclinou e Keri percebeu que ele ia interromper. Ela preferia que ele não fizesse isso, mas não havia nada que pudesse fazer para detê-lo. Ela geralmente preferia deixar um interrogado continuar o quanto quisesse. Às vezes, eles ficavam à vontade demais e cometiam erros. Mas, aparentemente, Brody não pensava da mesma forma.

"Dr. Burlingame, por que sua ligação não foi encaminhada para a polícia de Beverly Hills?" ele perguntou. Seu tom ríspido não demonstrava nenhuma simpatia. Para Keri, ele parecia estar se perguntando por que tinha que lidar com este caso.

"Acho que porque estou ligando para você do meu escritório, que fica em Marina del Rey. Isso realmente importa?" ele perguntou. Ele parecia perdido.

"Não, é claro que não", Hillman garantiu. "Estamos felizes em ajudar. E nossa unidade de pessoas desaparecidas provavelmente seria contactada pela polícia de Beverly Hills, de todo modo. O senhor pode voltar para sua casa e meus detetives o encontrarão lá por volta de uma e meia. Tenho seu endereço".

"Certo", Burlingame disse. "Estou saindo agora".

Depois que ele desligou, Hillman olhou para seus dois detetives.

"Alguma ideia?" ele perguntou.

"Provavelmente, ela apenas deu uma escapada para uma praia do México com alguma de suas amigas e esqueceu de dizer a ele". Brody disse, sem hesitar. "Isso ou ele a matou. Afinal, quase sempre é o marido".

Hillman olhou para Keri. Ela pensou por um segundo antes de falar. Algo sobre ater-se às regras gerais com esse cara não parecia certo, mas ela não sabia muito bem por quê.

"Estou tentada a concordar", ela disse, por fim. "Mas quero conversar frente a frente com esse cara antes de tirar qualquer conclusão".

"Bem, você vai ter sua chance agora mesmo", Hillman replicou. "Frank, pode ir na frente. Preciso falar um minuto com Locke".

Brody deu a ela um sorriso malicioso enquanto saía, como se ela tivesse ficado de castigo e ele, de alguma forma, tivesse escapado. Hillman fechou a porta atrás dele.

Keri se preparou, certa de que, seja lá o que estivesse vindo, não podia ser bom.

"Você pode ir também em um instante", ele disse, com um tom de voz mais brando do que ela havia antecipado. "Mas eu queria lembrá-la de algumas coisas antes de ir. Primeiro, acho que você sabe que eu não fiquei muito feliz com seu pequeno show na coletiva de imprensa. Você colocou suas próprias necessidades na frente do departamento. Entendeu isso, não foi?"

Keri assentiu.

"Dito isso", ele continuou, "gostaria que tivéssemos um novo começo. Sei que você estava muito mal naquele momento e viu aquilo como uma chance de lançar alguma luz sobre o desaparecimento da sua filha. Tem o meu respeito".

"Obrigada, senhor", Keri disse, um tanto aliviada mas suspeitando que um martelo ainda ia cair na sua cabeça.

"Ainda assim", ele acrescentou, "só porque a imprensa ama você, não significa que não vai se ferrar se inventar algumas de suas cagadas típicas, do tipo 'loba solitária'. Estou sendo claro?"

"Sim, senhor".

"Bom. Por último, por favor, vá com calma. Você saiu há menos de uma semana do hospital. Não faça nada que lhe leve de volta para lá, certo? Dispensada".

Keri saiu do escritório dele, levemente surpresa. Ela pensava que seria duramente repreendida. Mas não estava preparada para o leve traço de preocupação dele pelo seu bem-estar.

Olhou ao redor procurando por Brody, antes de perceber que ele já devia ter saído. Aparentemente, ele nem mesmo queria compartilhar o mesmo carro com uma detetive mulher. Normalmente, isso a aborreceria, mas hoje era uma bênção disfarçada.

Enquanto se dirigia a seu carro, ela conteve um sorriso.

Estou de volta à ativa!

Foi apenas quando lhe foi atribuído um novo caso que ela percebeu o quanto sentia falta daquilo. Uma excitação e antecipação familiares começaram a tomar conta dela e mesmo a dor em suas costelas parecia ter diminuído um pouco. A verdade era que, a menos que estivesse resolvendo casos, Keri se sentia como se uma parte sua estivesse faltando.

Ela também não podia deixar de sorrir sobre outra coisa... já planejava violar duas das ordens de Hillman. Daria uma de loba solitária e não ia pegar leve, ao mesmo tempo.

Porque ela ia fazer uma rápida parada no seu caminho para a casa do médico.

Para dar uma olhada naquele armazém abandonado.

 

CAPÍTULO TRÊS


Com a sirene no teto de seu Prius surrado, Keri costurava seu caminho no trânsito, seus dedos segurando firmemente no volante, a adrenalina subindo. O armazém de Palms ficava mais ou menos no caminho para Beverly Hills. Era assim que Keri justificava priorizar a busca pela sua filha, desaparecida há cinco anos na semana passada, sobre a caça por uma mulher que hava sumido há menos de um dia.

Mas ela tinha que andar rápido. Brody tinha uma vantagem para chegar na casa de Burlingame, de modo que ela podia chegar lá depois dele. Mas se aparecesse muito tarde, Brody com certeza iria dedurá-la para Hillman.

Ele usaria qualquer desculpa que pudesse para evitar que trabalhassem juntos. E dizer ao chefe que ela havia atrasado uma investigação chegando tarde para uma entrevista com uma testemunha era perfeito. Isso lhe dava apenas minutos para conferir aquele armazém.

Ela estacionou e se dirigiu ao portão principal. O armazém ficava entre uma empresa que alugava galpões de armazenagem e uma agência de locação de caminhões de mudança. O ruído da estação geradora do outro lado da rua era perturbadoramente alto. Keri se perguntou se corria o risco de desenvolver câncer só por estar parada ali.

O armazém estava protegido por uma cerca barata feita apenas para manter mendigos e drogados do lado de fora, e não foi difícil para Keri deslizar pelo vão entre os portões mal fechados. Enquanto se aproximava da entrada, ela notou a placa com o nome do armazém no chão, coberta de poeira. Dizia Preservação de Itens Inestimáveis.

Não havia nada inestimável dentro do armazém vazio, cavernoso. Na verdade, não havia absolutamente coisa alguma dentro, a não ser algumas poucas cadeiras dobráveis de metal viradas para cima, e algumas pilhas de placas de gesso quebradas. O lugar havia sido completamente esvaziado. Keri caminhou pelo complexo inteiro, procurando por alguma pista que pudesse estar relacionada a Evie, mas não conseguiu achar nada.

Ela se ajoelhou, esperando que uma perspectiva diferente pudesse oferecer algo novo. Não percebeu nada de extraordinário, apesar de haver algo um tanto estranho na extremidade mais distante do armazém. Uma cadeira dobrável de metal apoiava uma pilha de uns 30 centímetros de placas de gesso sobre o assento, delicadamente equilibradas. Era improvável que aquilo tenha sido criado sem ajuda.

Keri caminhou até lá e examinou mais de perto. Sentia como se estivesse buscando conexões onde não havia nenhuma. Ainda assim, moveu a cadeira para o lado, ignorado a pilha de gesso, que oscilou brevemente antes de cair no chão.

Ela ficou surpresa com o som que fez ao bater no concreto. Ao invés do baque esperado, houve um eco típico de algo oco por baixo. Com o coração batendo mais rápido, Keri afastou os restos com o pé e pisou forte no local onde o gesso havia caído — outro som de eco veio de um buraco oco. Ela passou a mão pelo chão e descobriu que o local que estava sob a cadeira dobrável de metal não era realmente concreto, mas madeira pintada de cinza para se misturar ao restante do piso.

Tentando não perder o fôlego, ela tateou pelo pedaço de madeira até sentir uma pequena saliência levantada. Então, empurrou-a, ouviu o som de um ferrolho se abrindo, e sentiu uma extremidade do tampo de madeira pular. Ela pôs a mão por baixo e puxou a cobertura quadrada, com o tamanho aproximado de uma tampa de bueiro, do seu local de encaixe.

Abaixo, havia um espaço de cerca de 25 centímetros de profundidade, sem nada dentro. Nenhum papel, nenhum equipamento. Era pequeno demais para conter uma pessoa. No máximo, podia ter abrigado um pequeno cofre.

Keri tateou pelas bordas, procurando por mais um botão escondido, mas não achou nada. Ela não tinha ideia do que poderia ter estado aqui antes, mas tinha sumido agora. Então, sentou-se no concreto duro ao lado do buraco, sem saber ao certo o que fazer.

Ela olhou para o relógio. Eram 13h15. Deveria estar em Beverly Hills em 15 minutos. Mesmo que saísse agora, chegaria em cima da hora. Frustrada, ela rapidamente colocou a cobertura de madeira de volta no lugar, deslizou a cadeira para o ponto em que estava e saiu do prédio, olhando mais uma vez para a placa no chão.

Preservação de Itens Inestimáveis. O nome da empresa é um tipo de pista ou algum idiota cruel está só brincando comigo? Alguém está me dizendo o que preciso fazer para preservar Evie, meu item mais precioso?

Esse último pensamento disparou uma onda de ansiedade pelo corpo de Keri. Ela sentiu os joelhos fraquejarem e caiu no chão desajeitadamente, tentando evitar mais lesões ao seu braço esquerdo, que estava aninhado, imóvel, na tipoia sobre seu peito. Ela usou a mão direita para evitar colapsar por completo.

Curvada, com uma nuvem de poeira subindo ao redor, Keri fechou os olhos com força e tentou afastar os pensamentos sombrios que tentavam envolvê-la. Uma breve visão de sua pequena Evie invadiu sua mente.

Em sua mente, ela ainda tinha oito anos, com rabos de cavalo loiros balançando em sua cabeça, seu rosto lívido de terror. Estava sendo jogada dentro de uma van branca por um homem loiro com uma tatuagem no lado direito do pescoço. Keri ouviu o baque quando seu pequeno corpo bateu contra a parede da van. Ela viu o homem loiro esfaquear um adolescente que tentou detê-lo. Viu a van arrancar e disparar pela rua, deixando-a muito atrás enquanto tentava alcançá-la com pés descalços e sangrando.

Ainda era tão vívido. Keri engoliu as lágrimas enquanto afastava a lembrança, tentando forçar-se a voltar ao presente. Após alguns momentos, conseguiu se controlar novamente e respirou fundo algumas vezes. Sua visão clareou e ela se sentiu forte o bastante para ficar de pé.

Foi o primeiro flashback que ela tinha em semanas, desde antes do confronto com Pachanga. Parte dela tinha a esperança de que tinham sumido para sempre... mas Keri não teve essa sorte.

Ela sentiu uma dor lancinante em sua clavícula quando esticou o braço para se proteger durante a queda. Frustrada, puxou a tipoia. Naquele momento, era mais um impedimento do que uma ajuda. Além disso, ela não queria parecer fraca quando se encontrasse com o Dr. Burlingame.

A entrevista com Burlingame... tenho que ir!

Ela conseguiu cambalear até seu carro e arrancou em direção ao tráfego, desta vez, sem a sirene. Ela precisava de silêncio para a ligação que ia fazer.

 

 

CAPÍTULO QUATRO

 

Keri sentiu um pouco de nervosismo enquando digitava o número do quarto de hospital de Ray e esperava chamar. Oficialmente, não havia motivo para ela se sentir nervosa. Afinal, Ray Sands era seu amigo e seu parceiro na Unidade de Desaparecidos da polícia de LA.

Enquanto o telefone continuava a tocar, sua mente divagou até a época antes deles serem parceiros, quando ela era profesora de criminologia na Universidade Loyola Marymount e prestava serviços como consultora para a polícia, ajudando em alguns casos. A parceria tinha dado certo desde o início e ele havia retribuído o favor profissional dando palestras nas aulas dela, ocasionalmente.

Depois que Evelyn foi raptada, Keri caiu num buraco negro de desespero. Seu casamento desmoronou, ela começou a beber muito e a dormir com vários estudantes da universidade, até que foi demitida.

Logo depois disso, quando ela estava quase quebrada, bêbada e vivendo numa casa-barco decrépita na marina, que Ray reapareceu. Ele a aconselhou a se inscrever na academia da polícia, como ele tinha feito quando sua própia vida havia se despedaçado. Ray ofereceu a ela uma corda salva-vidas, uma maneira de se reconectar com o mundo e encontrar sentido para existir. Ela aceitou.

Depois de se formar e servir como uma oficial fardada, ela foi promovida a detetive policial, e pediu para ser transferida para a Pacific Division, que cobria a maior parte do oeste de Los Angeles. Era onde ela morava e a área que mais conhecia. Era também a divisão de Ray. Ele solicitou que ela fosse sua parceira e eles vinham trabalhando juntos por um ano quando o caso Pachanga terminou levando-os ao hospital.

Mas não era a recuperação de Ray que deixava Keri nervosa. Era o status do relacionamento deles. Algo mais do que amizade havia se desenvolvido no último ano, enquanto trabalhavam tão próximos. Ambos sentiam, mas nenhum queria reconhecer em voz alta. Keri sentiu pontadas de ciúme quando ligou para o apartamento de Ray e uma mulher atendeu. Ele era um notório mulherengo e não se envergonhava disso, então não deveria ter sido uma surpresa para ela, mas o ciúme ainda estava lá, apesar dos melhores esforços de Keri.

E ela sabia que ele se sentia da mesma forma. Ela havia visto os olhos dele faiscarem quando ambos estavam num caso e uma testemunha deu em cima dela. Ela pôde quase sentir ele ficando tenso ao seu lado.

Mesmo depois dele ter sido baleado e corrido risco de vida, nenhum dos dois teve coragem de lidar com a questão. Parte de Keri pensou que era inadequado focar em tais trivialidades quando ele estava se recuperando de lesões tão graves. Mas outra parte estava simplesmente aterrorizada com o que aconteceria se as cartas fossem postas na mesa.

Então, ambos ignoraram seus sentimentos. E porque nenhum dos dois estava acostumado a esconder coisas um do outro, ficou estranho. Enquanto Keri ouvia o telefone tocar no quarto de hospital de Ray, metade dela esperava que ele atendesse e metade esperava que não. Ela precisava conversar com ele sobre a ligação anônima e sobre o que ela havia descoberto no armazém. Mas não sabia como começar uma conversa.

Acabou não importando. Após chamar dez vezes, ela desligou. O telefone do hospital não tinha secretária eletrônica, o que significava que Ray provavelmente não estava no leito. Ela decidiu não tentar o celular. Ele provavelmente estava no banheiro ou na sessão de fisioterapia. Ela sabia que ele estava ansioso para andar novamente e tinha finalmente conseguido a liberação para começar a fisio há dois dias. Ray era um ex-lutador de boxe profissional e Keri tinha certeza de que passaria cada momento disponível trabalhando para ficar em forma novamente, para lutar, ou, pelo menos, para trabalhar.

Apesar de ainda pensar em seu parceiro, Keri tentou afastar a ida até o armazém de sua mente e focar no caso que tinha nas mãos: Kendra Burlingame, pessoa desaparecida.

Com um olho na estrada e outro no GPS do celular, Keri rapidamente seguiu pelas tortuosas ruas de Beverly Hills até a parte mais reservada do bairro. Quanto mais ela subia as montanhas, mais as estradas ficavam sinuosas e mais afastadas as casas ficavam da rua. Ao longo do caminho, ela revisou o que sabia do caso até agora. Não era muito.

Jeremy Burlingame, apesar de sua profissão e de onde morava, não gostava de aparecer. Foi necessária uma investigação rápida de seus colegas na delegacia para descobrir que o homem de 41 anos era um renomado cirurgião plástico conhecido tanto por seu trabalho cosmético em celebridades quanto por oferecer cirurgias de graça para crianças com o rosto deformado.

Kendra Burlingame, 38 anos, já trabalhou como publicitária em Hollywood. Mas depois de se casar com Jeremy, havia criado e posto toda a sua energia numa organização sem fins lucrativos chamada All Smiles, que levantava fundos para as cirurgias das crianças e coordenava todo o cuidado pré e pós-operatório para elas.

Eles eram casados há sete anos. Nenhum dos dois tinha ficha criminal. Não havia histórico de brigas, nem de abuso de álcool ou de drogas. No papel, pelo menos, eram o casal perfeito. Keri achou imediatamente suspeito.

Após virar várias vezes no lugar errado, ela finalmente encostou o carro perto da casa, no final da Tower Road, às 13h41, onze minutos atrasada.

Chamar a residência de casa era pouco. Parecia mais um condomínio numa propriedade que cobria vários metros quadrados. Daquele ponto, ela podia ver toda a cidade de Los Angeles espalhada logo abaixo.

Keri levou um momento para fazer algo raro: colocar maquiagem extra. Remover a tipoia havia ajudado a sua aparência, mas o hematoma amarelado perto de seu olho ainda podia ser notado. Então, tentou disfarçá-lo com um pouco de corretivo até ficar quase invisível.

Satisfeita, chamou pelo interfone ao lado do portão de segurança. Enquanto esperava uma resposta, ela notou o Cadillac marrom e branco do detetive Frank Brody estacionado na entrada da casa.

Uma voz feminina veio do interfone.

"Detetive Locke?"

"Sim".

"Sou Lupe Veracruz, a governanta dos Burlingames. Por favor, entre e estacione ao lado do seu parceiro. Vou levá-la até ele e o Dr. Burlingame".

O portão se abriu e Keri entrou, estacionando ao lado do veículo imaculadamente bem cuidado de Frank. O Caddy era o bebê dele. Ele se orgulhava de seu esquema de cores ultrapassado, do fato do carro consumir muita gasolina, e de seu tamanho monumental. Para ele, era "um clássico". Para Keri, o veículo, como seu dono, era um dinossauro.

Quando abriu a porta do carro, uma mulher pequena com uns quarenta e tantos anos, de aparência hispânica, veio encontrá-la. Keri saiu rapidamente, sem querer que ela notasse sua dificuldade ao se movimentar com o ombro direito machucado. Daquele ponto em diante, Keri se considerava em território inimigo e numa potencial cena de crime. Não queria revelar qualquer senso de fraqueza para Burlingame ou qualquer um ao redor dele.

"Por aqui, detetive", Lupe disse, indo direto ao assunto e levando Keri ao longo de um caminho de pedras, margeado por flores extremamente bem cuidadas. Keri tentou acompanhar enquanto caminhava com cuidado. Com as lesões em seu olho, ombro e costelas, ela ainda se sentia insegura em terreno irregular.

Elas passaram por uma piscina enorme com dois trampolins e uma pista de corrida contornando-a. Bem perto havia um grande buraco, com uma imensa massa de terra ao seu lado. Uma mini-escavadeira Bobcat estava parada junto ao fosso. Lupe notou a curiosidade dela.

"Os Burlingames estão instalando uma banheira de hidromassagem. Mas o azulejo marroquino que eles encomendaram ainda não chegou, por isso, o projeto inteiro está atrasado".

"Estou tendo o mesmo problema", Keri disse. Lupe não riu.

Após vários minutos, elas chegaram até a entrada lateral da casa principal, que levava até uma grande e ventilada cozinha. Keri podia ouvir vozes masculinas. Lupe a dirigiu até o que parecia ser a sala de café da manhã. O detetive Brody estava de pé, voltado na direção de Keri, falando com um homem de costas para ela.

O homem parecia ter sentido a chegada dela e se virou antes de Lupe ter a chance de anunciá-la. Keri, entrando em seu modo investigativo, focou nos olhos dele enquanto Burlingame a avaliava. Seus olhos eram castanhos e acolhedores, levemente vermelhos nas bordas. Ou ele tinha sérias alergias ou havia chorado recentemente. Ele forçou um sorriso estranho no rosto, parecendo pego entre a responsabilidade inesperada de ser um bom anfitrião e a ansiedade da situação.

Sua aparência era agradável, mas não era muito bonito, apesar de ter um rosto simpático, que dava-lhe uma qualidade um tanto ansiosa, juvenil. Apesar dele estar usando um blazer esportivo, Keri podia ver que estava em boa forma. Ele não era muito musculoso, mas tinha a estrutura esbelta de um atleta de resistência, talvez um maratonista ou triatleta. Ele tinha uma altura média, talvez 1,77 m, e uns oitenta quilos. Seu cabelo castanho curto só agora começava a apresentar minúsculos traços grisalhos.

"Detetive Locke, obrigado por vir", ele disse, dando um passo à frente e estendendo a mão. "Estou conversando com seu colega".

"Keri", Frank Brody disse, cumprimentando-a brevemente com um aceno de cabeça. "Ainda não entramos nos detalhes. Estava esperando você chegar".

Era uma indireta sutil sobre o atraso dela, mascarado pelo que parecia polidez profissional. Keri, fingindo não notar, manteve o foco no médico.

"É um prazer conhecê-lo, Dr. Burlingame. Sinto muito por ser em circunstâncias tão difíceis. Se não se importa, por que não começamos imediatamente? Num caso de pessoa desaparecida, cada minuto é crucial".

Do canto do olho, Keri viu Brody fechar a cara, claramente aborrecido por ela ter assumido. Ela realmente não dava a mínima.

"É claro", Burlingame disse. "Por onde começamos?"

"O senhor nos deu um esboço do que houve ao telefone. Mas eu gostaria que nos conduzisse com mais detalhes, se puder. Por que não começa com a última vez em que viu sua esposa?"

"Certo, foi ontem de manhã e nós estávamos no quarto..."

Keri interrompeu.

"Desculpe interromper, mas pode nos levar até lá? Gostaria de estar no quarto enquanto você descreve os eventos que aconteceram no recinto".

"Sim, é claro. Lupe deve vir também?"

"Falaremos com ela separadamente", Keri disse. Jeremy Burlingame assentiu e foi guiando o caminho pelas escadas até o quarto. Keri continuava a observá-lo atentamente. Sua interrupção um momento antes era apenas em parte pela razão que ela deu.

Ela também queria avaliar como um médico poderoso, reconhecido, reagia ao receber repetidamente ordens de uma mulher. Pelo menos até agora, não parecia perturbá-lo. Ele estava disposto a fazer ou dizer o que quer que ela lhe pedisse, se fosse ajudar.

Enquanto caminhavam, ela fez mais perguntas.

"Sob circunstâncias normais, onde sua mulher estaria neste momento?"

"Aqui em casa, imagino, preparando-se para o evento de arrecadação de fundos de hoje à noite".

"Que evento é esse?" Keri perguntou, fingindo ignorância.

"Temos uma fundação que financia cirurgias reconstrutoras, principalmente para crianças com irregularidades faciais, mas, algumas vezes, para adultos se recuperando de queimaduras ou acidentes. Kendra dirige a fundação e realiza dois grandes jantares de gala por ano. Um estava agendado para hoje à noite, no Peninsula Hotel".

"O carro dela está na casa?" Brody perguntou enquanto começavam a subir um longo lance de escadas.

"Sinceramente, não sei. Nem acredito que não me ocorreu conferir. Deixe-me perguntar a Lupe".

Ele pegou seu celular e usou o que pareceu ser uma função do tipo walkie-talkie.

"Lupe, você sabe se o carro de Kendra está na garagem?"

A resposta foi quase imediata.

"Não, Dr. Burlingame. Eu conferi quando o senhor ligou mais cedo. Não está lá. Também, notei que uma de suas pequenas malas de viagem estavam faltando do armário quando eu fui pendurar algumas roupas".

Burlingame parecia perplexo.

"Isso é estranho", ele disse.

"O quê?" Keri perguntou.

"Não entendo por que ela levaria uma mala a algum lugar. Ela tem uma bolsa que usa quando vai à academia e uma bolsa protetora em que coloca vestidos de festa, quando planeja se trocar no local de um evento de gala. Mas só usa as malas quando realmente estamos viajando".

Depois de subir o lance de escadas e caminhar por um longo corredor, eles chegaram até o quarto principal. Brody, sem fôlego pelo longo trajeto, colocou as mãos nos quadris, inflou o peito e respirou com dificuldade.

Keri deu uma olhada no quarto. Era enorme, maior que sua casa-barco inteira. A cama king size com dossel estava arrumada. Um tecido leve e delicadamente decorado a envolvia, fazendo-a parecer uma nuvem quadrada. A varanda grande, com a porta bem aberta, era voltada para o oeste, com vista para o Oceano Pacífico.

Uma imensa TV de tela plana, com cerca de 75 polegadas, pendia da parede. As outras paredes eram decoradas com bom gosto com pinturas e fotos do feliz casal. Keri caminhou até uma delas.

Eles pareciam estar de férias, em algum lugar tropical, com o mar ao fundo.

Jeremy usava uma camisa de botões rosa fora da calça, impecável, com uma bermuda xadrez combinando. Ele usava óculos de sol e seu sorriso era um pouco amarelo e forçado, o sorriso de um homem desconfortável ao tirar uma foto.

Kendra Burlingame usava uma canga turquesa com sandálias de salto, amarradas ao redor dos tornozelos. Sua pele bronzeada se destacava contra o tecido. Seu cabelo negro estava amarrado num rabo de cavalo frouxo e seus óculos escuros descansavam sobre a cabeça. Ela tinha um sorriso largo, como se tivesse acabado de conter uma risada. Era tão alta quanto o marido, com pernas longas e olhos azuis que combinavam com o mar atrás de si. Os braços dele envolviam casualmente a cintura da esposa, apoiando-a. Kendra era incrivelmente bonita.

"Então, qual a última vez em que viu sua mulher?" Keri perguntou. Ela estava de costas para Burlingame mas podia ver seu reflexo na moldura de vidro.

"Aqui", ele disse, seu rosto preocupado sem esconder nada, pelo que ela podia dizer. "Foi ontem de manhã. Tinha que sair mais cedo para ir até San Diego supervisionar um procedimento complicado. Ela ainda estava na cama quando lhe dei um beijo de despedida. Era provavelmente por volta de 6h45".

"Ela estava acordada quando você saiu?" Brody perguntou.

"Sim. A TV estava ligada. Ela estava assistindo ao noticiário local para ver como estaria o tempo para o evento de hoje à noite".

"E essa foi a última vez em que a viu, ontem de manhã?" Keri perguntou novamente.

"Sim, detetive", ele disse, parecendo levemente aborrecido pela primeira vez. "Já respondi a isso várias vezes. Posso fazer uma pergunta?"

"É claro".

"Sei que temos que pasar por tudo metodicamente aqui. Mas, enquanto isso, você poderia pedir ao seu pessoal para checar o GPS no celular e no carro de Kendra? talvez isso possa ajudar a localizá-la".

Keri estava esperando que ele fizesse essa pergunta. É claro que Hillman havia ordenado que os especialistas em tecnologia na delegacia começassem o processo no momento em que abriram ocaso. Mas ela vinha segurando esse detalhe para este momento. Queria avaliar a reação dele à sua resposta.

"É uma boa ideia, Dr. Burlingame", ela disse, "tanto que já fizemos isso".

"E o que descobriram?" Burlingame perguntou, esperançoso.

"Nada".

"Como assim, nada?"

"Parece que o GPS foi desligado, tanto no telefone quanto no carro".

Keri, completamente, alerta, observava a reação de Burlingame de perto.

Ele ficou olhando para ela, atônito.

"Desligado? Como isso é possível?"

"Só é possível se foi feito intencionalmente, por alguém que não queria que o celular ou que o carro fossem encontrados".

"Isso significa que foi um sequestrador que não queria que ela fosse encontrada?"

"É possível", Brody respondeu. "Ou pode ser que ela não quisesse ser encontrada".

A expressão de Burlingame passou de atônita para incrédula.

"Você está sugerindo que minha mulher foi embora por conta própria e tentou esconder aonde estava indo?"

"Não seria a primeira vez", Brody disse.

"Não. Isso não faz nenhum sentido. Kendra não é o tipo de pessoa que faz isso. Além do mais, ela não tinha motivos. Nosso casamento é bom. Amamos um ao outro. Ela adora o trabalho na fundação. Ama aquelas crianças. Não iria apenas fugir e abandonar tudo. Eu saberia se houvesse algo errado. Eu saberia".

Para o ouvido de Keri, ele parecia quase suplicar, como um homem tentando convencer a si mesmo. Parecia totalmente perdido.

"Tem certeza disso, doutor?" ela perguntou. "Às vezes, escondemos coisas, mesmo daqueles que amamos. Haveria mais alguém em quem ela confiasse, além de você?"

Burlingame parecia não estar ouvindo-a. Ele sentou na borda da cama, meneando lentamente a cabeça, como se, de alguma forma, isso fosse afastar a dúvida de sua mente.

"Dr. Burlingame?" Keri perguntou novamente, com calma.

"Hã... sim", ele disse, voltando a si. "Sua melhor amiga é Becky Sampson. Elas se conhecem desde a faculdade. Foram a um encontro de ex-alunos do ensino médio juntas há umas duas semanas e Kendra voltou um pouco perturbada, mas não disse por quê. Ela mora perto da Robertson Boulevard. Talvez, tenha mencionado algo para ela".

"Certo, vamos entrar em contato", Keri garantiu. "Enquanto isso, uma unidade designada para a cena do crime virá fazer uma busca minuciosa em sua casa. Vamos entrar em contato sobre a última localização conhecida do carro e celular de sua esposa antes do GPS ser desligado. Está me ouvindo, Dr. Burlingame?"

O homem parecia ter entrado num torpor, olhando para um ponto à frente. Ao ouvir seu nome, ele piscou e pareceu voltar a si.

"Sim, unidade fará uma busca pela casa, conferir GPS. Eu compreendo".

"Também precisaremos verificar tudo sobre seu paradeiro ontem, incluindo seu período em San Diego", Keri disse. "Vamos contactar todo mundo com quem o senhor falou enquanto esteve lá".

"É apenas parte do nosso trabalho", Brody acrescentou, numa tentativa desajeitada de ser diplomático.

"Eu compreendo. Tenho certeza de que o marido é geralmente o principal suspeito quando uma mulher desaparece. Faz sentido. Farei uma lista de todo mundo com quem interagi e darei a vocês seus números de telefone. Vocês precisam disso agora?"

"Quanto antes, melhor", Keri disse. "Não quero ser grosseira, mas você está certo, doutor, o marido é, geralmente, o principal suspeito. E quanto antes pudermos eliminar essa possibilidade, mais rápido podemos passar para outras teorias. Alguns policiais virão isolar toda a área. Enquanto isso, gostaria que o senhor e Lupe se juntassem a nós no pátio onde o detetive Brody e eu estacionamos. Vamos esperar lá até a chegada de reforço e que a CSU possa começar a processar a cena do crime".

Burlingame assentiu e saiu vacilante do quarto. Então, de repente, levantou a cabeça e fez uma pergunta.

"Quanto tempo ela tem, detetive Locke, supondo que tenha sido raptada? Eu sei que cada segundo conta nesses casos. Realisticamente, quanto tempo você acha que ela tem?"

Keri o encarou. Não havia malícia na expressão dele. Ele parecia estar sinceramente querendo algo racional e factual no qual se agarrar. Era uma boa pergunta e uma que ela precisa responder para si mesma.

Keri fez um rápido cálculo mental. Os números que encontrou não eram bons. Mas ela não podia ser tão franca com o marido de uma vítima em potencial. Então, suavizou um pouco sem mentir.

"Veja, doutor. Não vou mentir para você, cada segundo conta. Mas ainda temos uns dois dias antes do rastro de evidências começar a ficar frio. E vamos dedicar nossos principais recursos para encontrar sua esposa. Ainda há esperança".

Mas, internamente, os cálculos eram desencorajadores. Geralmente, 72h era o limite máximo. Supondo que ela tivesse sido levada em algum momento da manhã de ontem, eles tinham pouco menos de 48h para encontrá-la. E isso era uma estimativa otimista.

 

CAPÍTULO CINCO

 

Keri caminhava pelo corredor do Centro Médico Cedars-Sinai o mais rápido que seu corpo dolorido permitia. A casa de Becky Sampson ficava a poucas ruas de distância do hospital, então, ela não sentiu muita culpa por fazer uma rápida parada e checar como Ray estava.

Mas ao se aproximar do quarto dele, podia sentir o recente nervosismo familiar crescendo dentro de si. Como eles fariam as coisas voltarem ao normal entre eles, quando havia esse silêncio secreto que compartilhavam, mas não podiam assumir? Enquanto chegava ao quarto, Keri decidiu pelo que ela esperava ser uma solução temporária. Ela iria fingir.

A porta estava aberta e ela podia ver que Ray estava dormindo. Não havia mais ninguém no quarto. O mais recente contrato com a prefeitura estipulava que policiais hospitalizados ficariam em apartamentos sempre que estivessem disponíveis, então, ele estava confortável.

O quarto tinha uma vista para as montanhas de Hollywood e uma grande TV de tela palna, que estava ligada, mas no mudo. Algum filme antigo com Sylvester Stallone lutando num ringue enchia a tela.

Agora eu sei por que ele caiu no sono.

Keri se aproximou e estudou seu parceiro adormecido. Deitado na cama, vestido com uma bata floral de hospital, Ray Sands parecia muito mais frágil. Normalmente, o afro-americano com mais de 1,90 m de altura, pesando pouco mais de cem quilos, era intimidante, com sua cabeça completamente careca. Ele mais que merecia o apelido de "Big".

Com os olhos fechados, seu olho direito de vidro, o que ele havia perdido numa luta de boxe há anos, não era possível de notar. Ninguém iria imaginar que o homem de 40 anos que agora estava deitado num leito de hospital com uma tigela intocada de gelatina vermelha ao lado já foi um dia Ray "The Sandman" Sands, um medalhista olímpico de bronze e competidor profissional peso-pesado considerado um dos favoritos para ganhar o título. É claro, isso foi antes de um subestimado canhoto com um gancho de esquerda brutal ter destruído seu olho e encerrado sua carreira aos 28 anos, com um único soco.

Após se debater por um tempo, Ray encontrou a carreira policial e foi progredindo até se tornar um dos mais reconhecidos investigadores de Pessoas Desaparecidas do departamento. E com a aposentadoria iminente de Brody, ele estava na fila para assumir sua posição no departamento de Roubos e Homicídios.

Keri olhou para as montanhas a distância, se perguntando como estaria a situação deles em seis meses, quando não fossem mais parceiros ou nem mesmo colegas trabalhando na mesma unidade. Ela afastou esse pensamento, sem querer imaginar viver sem a única influência sólida em sua vida desde que Evie foi levada.

Subitamente, sentiu que estava sendo observada. Ela olhou para baixo e viu que Ray estava acordado, olhando para ela em silêncio.

"Como está indo, Smurfete?" ele perguntou, brincalhão. Eles adoravam provocar um ao outro sobre sua dramática diferença de tamanho.

"Bem, como está se sentindo hoje, Shrek?"

"Um pouco cansado, para ser honesto. Eu fiz uma bateria intensa de exercícios há pouco. Caminhei até o fim do corredor inteiro e voltei. Usain Bolt tem que se cuidar, porque estou logo atrás dele".

"Eles deram alguma previsão de quando você terá alta?" ela perguntou.

"Disseram que talvez no final desta semana, se as coisas continuarem a progredir. Então, seriam duas semanas de repouso em casa. Se isso der certo, poderei desempenhar tarefas administrativas numa base limitada. Supondo que me mate de tédio antes disso".

Keri ficou em silêncio por um momento, avaliando como continuar. Parte dela queria dizer a Ray para ir devagar, não se esforçar demais para voltar ao trabalho. É claro, dizer isso seria hipócrita, já que foi exatamente o que ela havia feito. E ela sabia que ele chamaria sua atenção sobre esse ponto.

Mas ele havia levado um tiro enquanto ajudava a salvar a vida dela. Keri se sentia responsável. Queria protegê-lo. E sentia outras coisas sobre as quais não estava bem preparada para pensar no momento.

Por fim, decidiu que dar a ele uma distração na qual se focar poderia ser uma maneira melhor de proceder do que lhe dar um sermão.

"Falando nisso, você poderia me ajudar num caso que acabo de assumir. Que tal misturar um pouco de análise com sua gelatina?" ela perguntou.

"Primeiro que tudo, parabéns por voltar à ativa. Em segundo lugar, e se pulássemos a gelatina e fossemos direto ao caso?"

"Certo. Aqui está o básico. Kendra Burlingame, socialite de Beverly Hills, esposa de um cirurgião plástico bem-sucedido. Não dá notícias desde a manhã de ontem..."

"Quando foi ontem mesmo?" Ray interrompeu. "Os analgésicos me deixam um pouco confuso quando se trata de... você sabe... dias da semana".

"Ontem foi segunda-feira, Sherlock", Keri disse, irônica. "O marido diz que a viu pela última vez às 6h45 da manhã, antes de partir para San Diego para supervisionar uma cirurgia. Agora, são 14h40 da terça-feira, então, já são cerca de 32 horas desaparecida".

"Supondo que o marido está dizendo a verdade. Você conhece a primeira regra quando se trata de esposas desaparecidas: foi o marido".

Keri estava irritada porque todo mundo, incluindo seu parceiro aparentemente iluminado, parecia constantemente lembrá-la disso. Quando ela respondeu, não pôde evitar o tom de sarcasmo em sua voz.

"É mesmo, Ray, essa é a primeira regra? Vou escrever isso porque é a primeira vez que ouço. Alguma outra pérola de sabedoria que você queira me oferecer, oh, grande sábio? Talvez, que o sol é quente? Ou que couve tem gosto de papel alumínio?"

"Só estou dizendo..."

"Acredite, Ray, eu sei. E o cara é, atualmente, o suspeito número um. Mas ela também pode ter simplesmente fugido. Acho que, como um profissional da lei, pode ser válido perseguir outras teorias, não acha?"

"Acho. Assim, você terá argumentos quando for prendê-lo".

"É bom vê-lo usar suas afiadas habilidades investigativas ao invés de apenas tirar conclusões infundadas", Keri disse, zombeteira, tentando não sorrir.

"É assim que funciono. Então, o que mais?"

"Estou indo ver a melhor amiga de Kendra quando sair daqui. A casa dela fica perto. O marido disse que Kendra estava estranha depois que as duas voltaram de um encontro de ex-alunos do ensino médio".

"Alguém está conferindo a viagem do médico a San Diego?"

"Brody está indo para lá agora".

"Você foi designada para ser parceira de Frank Brody nesse caso?" Ray disse, tentando abafar o riso. "Não surpreende que prefira passar seu tempo com um inválido. Como está lidando com isso?"

"Por que você acha que não reclamei quando ele se ofereceu para ir a San Diego? Os caras de lá poderiam muito fazer o serviço, mas ele insistiu e eu imaginei que isso poderia manter tanto ele quanto aquela atrocidade marrom que ele chama de carro fora do meu caminho por um tempo. Prefiro passar meu tempo na companhia de um triste saco surrado, fraco e acamado como você do que com Brody, sempre".

O desabafo brincalhão havia deixado Keri à vontade demais e ela percebeu, muito tarde, que o último comentário dela havia enviando os dois diretamente de volta para aquela sensação desconfortável. Ray ficou em silêncio por um momento, então, abriu a boca para falar, mas Keri se adiantou.

"De toda forma, tenho que ir. Deveria estar me encontrando com a amiga de Kendra neste momento. Volto para cá mais tarde. Pegue leve, entendeu?"

Ela saiu sem esperar por uma resposta. Enquanto caminhava apressada pelo corredor para pegar o elevador, ela continuou repetindo a mesma palavra várias vezes.

Idiota. Idiota. Idiota.

 

CAPÍTULO SEIS

 

Ainda sentindo o rosto arder levemente de vergonha, Keri dirigiu a curta distância até a casa de Becky Sampson. Ela viu o rubor do seu rosto no retrovisor e desviou o olhar rapidamente, tentando pensar em qualquer outra coisa a não ser sobre como tinha encerrado a conversa com Ray. Ocorreu-lhe que ela havia saído tão rápido que esqueceu de contar a ele sobre a ligação anônima em relação a Evie e sua ida ao armazém abandonado.

Este caso, Keri. Mantenha a concentração neste caso.

Pensou em ligar para o detetive Kevin Edgerton, o especialista em tecnologia que estava rastreando a localização mais recente do GPS de Kendra, para ver se tinha tido alguma sorte.

Parte dela achava irritante o fato de Edgerton estar trabalhando nisso ao invés de tentando descobrir o código para revelar os dados no laptop de Pachanga. Novamente, a frustração tomou conta dela enquanto lembrava como eles pensaram, no início, que haviam acessado uma rede inteira de raptores, apenas para esbarrar em novos obstáculos no caminho.

Keri tinha certeza de que o criptograma de que precisava estava em algum lugar nos arquivos do advogado de Pachanga, Jackson Cave. Ela decidiu que faria uma visita a Cave hoje, com ou sem caso.

Enquanto fazia essa promessa, ela estacionava o carro em frente à casa de Becky Sampson.

Hora de colocar Cave de lado por ora. Kendra Burlingame precisa de minha ajuda. Mantenha o foco.

Ela saiu do carro e avaliou a vizinhança por um momento enquanto subia até a porta principal do condomínio. Becky Sampson morava num prédio de três andares no estilo Tudor. A rua inteira, North Stanley Drive, estava repleta de construções ornamentadas de maneira igualmente afetada.

Essa parte de Beverly Hills, logo ao sul do Cedars-Sinai e da Burton Way e a oeste da Robertson Boulevard, ficava, tecnicamente, dentro dos limites da cidade. Mas como era cercada pelos distritos comerciais e ao lado da cidade de Los Angeles, o aluguel era bem mais barato. Ainda assim, o endereço continha o nome Beverly Hills, e isso tinha suas vantagens.

Keri interfonou para o apartamento de Becky e sua passagem foi imediatamente permitida. Depois de entrar, tornou-se aparente que o CEP era o maior diferencial do lugar. Certamente, não era o prédio em si. Enquanto caminhava até o elevador, Keri observou a pintura rosa claro descascando nas paredes e o carpete grosso, manchado. Tudo cheirava a mofo.

O elevador fedia ainda mais, como se tivesse passado por vários incidentes com vômito ao longo dos anos e não pudesse mais esconder o mau cheiro. Ele subiu aos solavancos até chegar ao terceiro andar e as portas se abriram com ruído. Keri saiu do elevador decidida a descer pelas escadas, mesmo que suas costelas e ombro não fossem gostar nada disso.

Ela bateu na porta do apartamento 323, destravou sua arma, descansou a mão sobre ela discretamente e esperou. O som de pratos sendo jogados sem cerimônia numa pia foi fácil de identificar, assim como o baque surdo de seja lá o que fosse que estivesse espalhado pelo chão sendo jogado num armário.

Agora, ela está conferindo sua aparência num espelho perto da porta. Aí está a sombra através do olho-mágico enquanto ela me avalia, e a porta deve se abrir em três, dois...

Keri ouviu uma fechadura girar e a porta se abriu para revelar uma mulher magra, meio acabada. Ela deveria ter aproximadamente a mesma idade de Kendra, se elas foram para uma reunião juntas, mas parecia muito mais velha, mais perto dos cinquenta do que dos quarenta anos. Seu cabelo tingido era de um castanho pardacento e seus olhos castanhos eram tão injetados quanto os de Keri, normalmente. A palavra que imediatamente veio à mente para descrevê-la era nervosa.

"Becky Sampson?" Keri perguntou, mais pelo protocolo, apesar da foto da carteira de habilitação que lhe enviaram no caminho claramente batesse. Sua mão direita continuou a descansar no cabo da arma.

"Sim. Detetive Locke? Entre".

Keri entrou, mantendo certa distância entre ela e Becky. Mesmo magricelas de Beverly Hills que querem ser o que não são podiam causar estragos se você baixar a guarda. Ela tentou não franzir o nariz com o cheiro de mofo que dominava o lugar.

"Posso lhe oferecer alguma coisa?" Becky perguntou.

"Um copo de água", Keri respondeu, menos por sede do que para ter a chance de avaliar mais demoradamente o apartamento, enquanto sua anfitriã estivesse na cozinha.

Com as janelas fechadas e as persianas repuxadas, o apartamento era sufocante. Tudo parecia ter uma camada de poeira por cima, das mesas laterais até as estantes, e também o sofá. Keri entrou na sala de estar e notou que estava enganada.

Uma parte da mesa de centro estava brilhando, como se fosse usada constantemente. No chão na frente desse ponto, Keri notou várias partículas do que parecia um pó branco. Ela se ajoelhou, ignorando a intensa dor em suas costelas, e olhou sob a mesa. Viu uma nota de um dólar parcialmente enrolada, coberta com um resíduo esbranquiçado. Ela ouviu a torneira da pia ser fechada e ficou de pé antes de Becky entrar novamente na sala, com dois copos de água.

Claramente surpresa ao ver Keri tão distante da porta da frente, Becky lhe deu um olhar suspeito antes de, involuntariamente, olhar para o ponto limpo sobre a mesa.

"Posso me sentar?" Keri perguntou, casualmente. "Uma de minhas costelas está quebrada e doi ficar de pé por muito tempo".

"Claro", Becky disse, aparentemente aplacada. "Como aconteceu?"

"Numa briga com um sequestrador de menores".

Os olhos de Becky se arregalaram, em choque.

"Ah, mas não se preocupe", Keri a tranquilizou. "Eu o matei depois disso".

Com confiança suficiente por ter baixado a guarda de Becky, ela pisou fundo.

"Eu lhe falei ao telefone que precisava conversar sobre Kendra Burlingame. Ela está desaparecida. Tem alguma ideia de seu paradeiro?

Apesar de parecer improvável, os olhos de Becky se abriram ainda mais do que antes.

"O quê?"

"Ela não dá notícias desde a manhã de ontem. Quando foi a última vez que falou com ela?"

Becky tentou responder, mas, subitamente, começou a tossir e a arquejar. Após alguns instantes, ela se recuperou o suficiente para falar alguma coisa.

"Fomos fazer compras na tarde de sábado. Ela estava procurando um vestido novo para o jantar de gala beneficente de hoje à noite. Tem certeza de que ela está desaparecida?"

"Temos certeza. Notou algo no comportamento dela no sábado? Parecia ansiosa sobre algo?"

"Na verdade, não", Becky respondeu, enquanto fungava e buscava um lenço. "Quero dizer, houve alguns contratempos com o responsável pela arrecadação de fundos com o qual ela estava tratando, ligações para o bufê e coisas assim. Mas nada que ela não tenha lidado um milhão de vezes antes. Ela não parecia estar tão incomodada".

"Como foi para você, Becky, ouvi-la fazer aquelas ligações sobre um elegante jantar de gala enquanto ela comprava um vestido caro?"

"O que quer dizer?"

"Quero dizer, você é a melhor amiga dela, certo?"

Becky assentiu. "Por quase vinte e cinco anos", ela disse.

"E ela mora numa mansão no alto das montanhas e você vive neste quarto-e-sala. Nunca sentiu inveja?"

Ela observou Becky atentamente enquanto a mulher respondia. Ela tomou um gole de água, mas tossiu como se um pouco tivesse descido pelo tubo errado. Após alguns segundos, respondeu.

"Eu tenho sim inveja algumas vezes. Admito isso. Mas não é culpa de Kendra as coisas não terem dado tão certo para mim. Na verdade, é difícil até se chatear com ela. É a pessoa mais amável que conheço. Eu tive alguns... problemas e ela sempre esteve ao meu lado quando as coisas ficaram difíceis".

Keri suspeitou o que poderiam ser esses "problemas", mas não disse nada. Becky continuou.

"Além disso, ela é muito generosa, sem querer mandar em mim. A linha que separa as duas coisas é muito delicada. Ela até comprou o vestido que vou usar para o jantar de gala desta noite, supondo que ainda vá acontecer. Você sabe se vai?"

"Não sei", Keri respondeu, ríspida. "Fale-me sobre o relacionamento dela com Jeremy. Como era o casamento deles?"

"Era bom. Eles eram ótimos parceiros, uma equipe realmente eficiente".

"Isso não soa muito romântico. É um casamento ou uma empresa?"

"Não acho que eles eram um casal super apaixonado. Jeremy é um cara muito centrado, prático. E Kendra passou pela fase de se sentir atraída por caras sexy e selvagens nos seus vinte anos. Acho que ela estava feliz em ter um cara estável, gentil, com o qual podia contar. Eu sei que ela o ama. Mas não são como Romeu e Julieta, se é isso que você quer dizer".

"Certo, mas ela já ansiou por essa paixão? Ela poderia, talvez, ter ido atrás disso, digamos, num encontro com a turma da escola?" Keri perguntou.

"Por que pergunta?"

"Jeremy disse que ela parecia um pouco perturbada depois de voltar da reunião".

"Ah, isso", Becky disse, fungando novamente antes de irromper num outro curto acesso de tosse.

Enquanto ela tentava recuperar o controle, Keri notou uma barata rastejando pelo chão e tentou ignorar. Quando Becky se recuperou, continuou a falar.

"Acredite, ela não estava aprontando nenhuma. Na verdade, foi o oposto. Um ex-namorado dela, um cara chamado Coy Brenner, ficou dando em cima dela o tempo todo. Kendra foi educada, mas ele foi bem insistente".

"Insistente como?"

"Ao ponto de ser desconfortável. Ele era um daqueles caras meio selvagens dos quais lhe falei. Enfim, simplesmente não aceitava um não como resposta. No final do encontro, ele disse algo sobre encontrar-se com ela na cidade. Acho que isso realmente a incomodou".

"Ele mora aqui?"

"Morou em Phoenix por muito tempo. O encontro foi lá. Todos crescemos lá. Mas ele mencionou algo sobre se mudar para San Pedro recentemente, disse que estava trabalhando no porto".

"Quando foi esse encontro?"

"Há duas semanas", Becky disse. "Você acha realmente que ele tem algo a ver com isso"

"Eu não sei. Mas vamos averiguar. Onde posso encontrá-la, se precisar entrar em contato novamente?

"Eu trabalho numa agência de casting na Robertson, do outro lado do restaurante The Ivy. Fica a uns dez minutos a pé daqui. Mas eu sempre estou com o celular. Por favor, não hesite em ligar. Qualquer coisa que eu puder fazer para ajudar, é só pedir. Ela é como uma irmã para mim".

Keri encarou Becky Sampson, tentando decidir se mencionava o elefante branco na sala. O fungado e tosse constantes, a total falta de interesse de manter um lar habitável, o resíduo branco e a nota enrolada no chão, tudo sugeria que a mulher estava viciada em cocaína.

"Obrigada pelo seu tempo", ela disse, por fim, decidindo não dizer nada no momento.

A situação de Becky poderia se mostrar útil mais tarde. Mas não havia necessidade de usar isso ainda, quando não tinha nenhuma vantagem tática. Keri saiu do apartamento e desceu as escadas, apesar dos lances de dor em seu ombro e costelas.

Ela se sentiu um pouco culpada por manter o vício de Becky como uma carta na manga, com o potencial de ser usada mais tarde. Mas a culpa esmaeceu rapidamente quando ela deixou o prédio e respirou o ar fresco. Ela era uma detetive, não uma assistente social que ajudava drogados. Qualquer coisa que pudesse ajudá-la a resolver o caso seguia as regras do jogo.

Enquanto entrava no tráfego e se dirigia para a rodovia, ela ligou para a delegacia. Precisava saber tudo o que eles tinham sobre o ex-namorado agressivamente interessado de Kendra, Coy Brenner. Keri estava prestes a lhe fazer uma visita surpresa.

 

CAPÍTULO SETE

 

Keri tentou manter a calma enquanto sentia sua pressão sanguínea subir. A hora do rush no trânsito se aproximava enquanto ela seguia para o sul na 110 até o porto de Los Angeles, em San Pedro. Passava das quatro horas da tarde e, mesmo dirigindo na "faixa solidária" e com a sirene ligada, o progresso era lento.

Ela saiu da rodovia e dirigiu lentamente pelas complicadas estradas das docas até o prédio administrativo, na Palos Verdes Street. Lá, Keri iria se encontrar com o representante da polícia portuária, que designaria dois policiais para lhe dar cobertura quando ela fosse interrogar Brenner. A participação da polícia portuária era necessária, já que ela estava na jurisdição deles.

Normalmente, Keri se irritava com esse tipo de requisito burocrático, mas, pela primeira vez, não se importou em ter cobertura. Ela geralmente se sentia bem confiante em enfrentar qualquer suspeito possível, por ser treinada em Krav Maga e até ter tido algumas aulas de boxe com Ray. Mas com seu ombro comprometido e costelas quebradas, ela não estava tão confiante em si mesma, como geralmente acontecia. E Brenner não parecia ser fácil de lidar.

De acordo com o detetive Manny Suarez, que puxou a ficha de antecedentes para Keri enquanto ela dirigia, Coy Brenner era uma figura. Havia sido preso pelo menos meia dúzia de vezes, duas vezes por dirigir alcoolizado, uma vez por roubo, duas por assalto, e, o mais impressionante: uma vez por fraude, o que havia resultado em seu período mais longo atrás da grades — seis meses. Isso foi há quatro anos e, como ele não tinha permissão de deixar o Estado por cinco anos, estava, tecnicamente, violando sua liberdade condicional.

Agora, ele era um trabalhador das docas no píer 400. Ainda que tenha dado a entender a Becky e a Kendra que tinha acabado de se mudar para San Pedro há poucas semanas, os registros mostravam que Brenner vinha morando num apartamento de Long Beach há mais de três meses.

O representante da polícia portuária, sargento Mike Covey, e seus dois oficiais, estavam esperando por ela. Covey era um homem alto, levemente calvo, no final dos 40 anos, com uma expressão séria. Keri havia falado com ele sobre o caso pelo telefone e ele, obviamente, havia repassado as informações para seus homens.

"O turno de Brenner termina às 16h30", Covey disse a ela, depois de trocarem apresentações. "Já são 16h15, então, eu liguei para o gerente do píer e disse a ele para não liberar a equipe mais cedo. Ele é conhecido por fazer isso".

"Agradeço. Acho que deveríamos ir para lá imediatamente. Quero dar uma olhada no cara antes de interrogá-lo".

"Entendido. Se quiser, podemos ir na frente no seu carro, para levantar menos suspeitas. Os oficiais Kuntsler e Rodriguez podem seguir separadamente no carro de patrulha. Patrulhamos os píers constantemente, então, a presença deles na área não vai parecer estranha para seu suspeito. Mas se ele vir um rosto não familiar sair de um de nossos veículos, pode causar alguma surpresa".

"Concordo", Keri falou, agradecida por não estar numa queda de braço; provavelmente porque, como ela sabia, a polícia portuária odiava publicidade negativa. Eles ficariam felizes em lidar com o caso discretamente, mesmo que isso significasse ceder autoridade a outro órgão.

Keri seguiu as instruções do sargento Covey, passando pela ponte Vincent Thomas até o estacionamento para visitantes do píer 400. Levou mais tempo do que esperava, e eles chegaram às 16h28. Covey falou com o gerente do píer pelo rádio, avisando que já podia liberar a equipe.

"Brenner deve aparecer caminhando bem na nossa linha de visão para o estacionamento dos funcionários, a qualquer momento", ele disse. Enquanto falava, o carro de patrulha passou por ele e começou a contornar lenta e casualmente a entrada que circulava o píer. Parecia uma movimentação completamente normal.

Keri observava os trabalhadores das docas saindo do armazém. Um cara percebeu que havia saído com seu capacete e correu de volta para devolvê-lo. Dois outros correram pelo amplo pátio, competindo para ver quem chegava primeiro ao seu carro. O restante caminhava num grupo grande, aparentemente sem pressa.

"Ali está o cara que você procura", Covey disse, apontando com a cabeça na direção do único homem caminhando sozinho. Coy Brenner guardava apenas uma vaga semelhança com o homem na foto de sua ficha policial quando foi preso no Arizona, há quatro anos. Aquele homem tinha um aspecto magro e faminto, com longos cabelos castanhos despenteados, e uma barba rala.

Já o cara que caminhava pesadamente pelo estacionamento agora tinha engordado uns dez quilos de lá para cá. Seu cabelo era curto e a barba era cheia. Ele usava jeans azul e uma camiseta xadez no estilo lenhador, e caminhava com uma expressão fechada. Coy Brenner não dava a impressão de ser um homem feliz com sua sorte na vida.

"Poderia ficar um pouco a distância, sargento Covey? Quero ver como ele reage quando confrontado por uma mulher policial sozinha".

"Claro. Vou até o armazém. Direi aos garotos para ficarem um pouco afastados também. Acene quando quiser que nos juntemos a você".

"Farei isso".

Keri saiu do carro, vestiu um blazer para esconder sua arma, e seguiu Brenner a distância, sem querer se fazer notar no momento. Ele parecia alheio a ela, perdido em seus próprios pensamentos. No momento em que chegou na sua velha caminhonete, ela estava bem perto dele. Ela sentiu seu celular vibrar ao receber uma mensagem de texto e ficou tensa. Mas ele obviamente não ouviu.

"Como vai, Coy?" ela perguntou, coquete.

Ele se virou, claramente pego de surpresa. Keri tirou os óculos escuros, abriu uma largo sorriso e colocou uma mão sobre o quadril, brincalhona.

"Oi?" Ele falou, mais como uma pergunta do que como uma exclamação.

"Não me diga que não se lembra de mim? Faz apenas uns 15 anos. Você é Coy Brenner, de Phoenix, não é?"

"Sim. Frequentamos o mesmo colégio, ou coisa assim?"

"Não. Nosso tempo juntos foi educativo, mas não de uma maneira escolar, se é que você me entende. Estou começando a ficar um pouco ofendida".

Acho que passei do ponto. Talvez eu tenha perdido o jeito.

Mas o rosto de Coy suavizou-se e Keri notou que tinha conseguido o que queria.

"Desculpe... foi um dia longo e já se passaram muitos anos", ele falou. "Ficaria feliz em sermos reapresentados. Qual o seu nome mesmo?" Ele parecia genuinamente perplexo.

"Keri. Keri Locke".

"Estou surpreso por não me lembrar de você, Keri. Você parece o tipo de garota de quem eu me lembraria. O que lhe fez vir de tão longe até aqui?"

"Não aguento o calor lá do Arizona. Eu trabalho para a prefeitura agora. Trabalho social... meio chato. E você?"

"Você está vendo o que eu faço".

"Um filho do deserto que terminou trabalhando perto do mar. O que levou isso a acontecer? Sonha em ser uma estrela do cinema? Queria aprender a surfar? Está atrás de uma garota?"

Ela manteve o tom leve, mas observou de perto a reação dele ao fazer a última pergunta. Sua expressão surpresa, mas intrigada, imediatamente desapareceu, substituída pela cautela.

"Estou realmente com dificuldade de me lembrar de onde a conheço, Keri. Poderia me dizer novamente quando saímos juntos?" Havia uma rispidez no tom dele que não estava lá um momento atrás.

Keri podia sentir que seu disfarce estava ruindo e decidiu cutucá-lo de maneira um pouco mais agressiva.

"Talvez você não se lembre de mim porque não me pareço com Kendra. É isso, Coy? Você só tem olhos para ela?"

A expressão nesses olhos passou rapidamente de cautelosa para irritada e ele deu um passo à frente. Keri observou seus pulsos se fecharem de forma involuntária. Ela não recuou.

"Quem diabos é você?" ele perguntou. "O que é isso?"

"Estou apenas puxando conversa, Coy. Por que ficou tão grosseiro de repente?"

"Eu não conheço você", ele disse, agora, abertamente hostil. "Quem lhe enviou, o marido dela? Você é algum tipo de detetive particular?"

"E se fosse? Teria algo para investigar? Há alguma coisa que você queira confessar, Coy?"

Ele deu mais um passo na direção dela. Seus rostos estavam a menos meio metro de distância agora. Ao invés de se encolher, Keri endireitou os ombros e levantou seu queixo, desafiadora.

"Acho que você cometeu um erro terrível vindo até aqui, moça", Coy rosnou. Ele estava de costas para o carro de patrulha, que havia lentamente se aproximado e estava parado, uns seis metros atrás dele.

Do canto do olho, Keri pôde ver o sargento Covey saindo cautelosamente do armazém, parando também atrás de Coy. Ela sentiu um impulso súbito de acenar na direção deles, mas se conteve.

É agora ou nunca.

"O que você fez com Kendra, Coy?" ela perguntou, sem qualquer traço de brincadeira na voz. Ela o encarou, com a mão novamente sobre o punho de sua arma, pronta para tudo.

Ao ouvir a pergunta, seus olhos passaram de raivosos para surpresos e ela notou que ele não tinha a menor ideia do que ela estava falando. Brenner recuou um passo.

"O quê?"

Ela imediatamente sentiu que ele não era o culpado, mas continuou a pressionar, só para ter certeza.

"Kendra Burlingame está desaparecida e ouvi falar que você a persegue. Então, se fez algo a ela, agora é o momento de esclarecer as coisas. Se cooperar, posso ajudá-lo. Se não, as coisas podem ficar muito ruins para você."

Coy estava olhando para Keri, mas não parecia estar processando completamente o que ouviu. Ele não percebeu a aproximação do sargento Covey, que estava só alguns passos atrás. O oficial veterano descansava a mão na arma em seu quadril. Ele não parecia feliz com a possibilidade de atirar, apenas preparado.

"Kendra está desaparecida?" Coy perguntou, parecendo uma criança que acabou de saber que seu cão tinha sido sacrificado.

"Quando foi a última vez que a viu, Coy?"

"No encontro... eu disse a ela que a procuraria aqui em LA. Mas notei que ela não queria nada comigo. Parecia envergonhada por mim. Eu não queria ver aquele olhar no rosto dela novamente, então, deixei para lá".

"Você não quis punir a mulher que lhe fez sentir dessa forma?"

"Ela não me fez sentir daquela forma. Estou envergonhado de quem me tornei sem nenhuma ajuda dela. Simplesmente, ver o quanto eu havia caído na visão dela... realmente abriu meus olhos, sabe? Tenho mentido para mim mesmo sobre ser esse cara descolado, durão, por um longo tempo. Foi preciso reencontrar Kendra para perceber o fracassado que eu me tornei realmente".

Ele olhou desesperadamente para Keri, esperando fazer algum tipo de conexão. Mas ela não queria conhecer os demônios internos desse cara. Tinha vergonha de si mesma o bastante para não querer lidar com a de outra pessoa.

"Pode prestar contas sobre seu paradeiro ontem, Coy?" ela perguntou, mudando de assunto. Percebendo que não conseguiria nenhuma simpatia da parte dela, ele assentiu.

"Estava aqui o dia todo. Tenho certeza de que meu chefe pode confirmar".

"Podemos conferir isso", o sargento Covey disse. Coy teve um leve sobressalto ao ouvir a voz inesperada atrás dele. Ele se virou, surpreso ao ver Covey a alguns metros de distância e o carro da patrulha com Kuntsler e Rodriguez não muito longe.

"Então, suponho que você é uma policial?" Coy disse, parecendo subjugado.

"Eu sou... Desaparecidos da polícia de LA".

"Espero que a encontre. Kendra é uma ótima garota. O mundo é um lugar melhor por causa dela e merece ser feliz. Sempre torci por ela. Mas sabia que estava fora do meu alcance, então, nunca tive muita esperança. Se houver mais alguma coisa que eu possa fazer, é só dizer".

"Detetive Locke", o sargento Covey interveio, "a menos que você tenha mais perguntas, ficarei feliz em averiguar o álibi dele. Sei que tem outras rotas de investigação que quer explorar. Além disso, precisamos preencher a papelada para processar o Sr. Brenner por violar a condicional. Ele mentiu em sua candidatura ao emprego sobre a sua situação e isso é um motivo para demissão".

Keri viu a expressão de Brenner afundar ainda mais. Ele era realmente patético. E agora, estava desempregado, para completar. Ela tentou afastar o sentimento de que era parcialmente responsável por isso.

"Eu agradeceria, sargento. Preciso mesmo voltar e parece que isso não vai dar em nada. Obrigada pela sua ajuda".

Enquanto Covey e os policiais levavam Coy Brenner de volta ao armazém para ser interrogado, Keri entrou em seu carro e conferiu a mensagem que havia recebido mais cedo.

Era de Brody. Ele dizia:

 

JANTAR DE GALA AINDA DE PÉ. ÓTIMA CHANCE PARA INTERROGATÓRIOS. ENCONTRO VOCÊ LÁ. USE UMA ROUPA SEXY.

 

Brody continuava a surpreendê-la com sua falta de noção e profissionalismo. Além de ser um sexista inveterado, ele não parecia entender que um evento de arrecadação de fundos cuja anfitriã estava desaparecida não era o lugar ideal para fazer seus amigos e colegas desnudarem a própria alma.

Além disso, eu não tenho nada para vestir.

É claro que essa não era a única razão. Se fosse honesta consigo mesma, Keri tinha que admitir que parte de seu medo era porque esse era exatamente o tipo de evento que ela frequentava na época em que era uma professora universitária respeitada, a esposa de um agente de talentos bem-sucedido, e a mãe de uma garotinha adorável. Ir para esse evento seria um lembrete brilhante, luminoso, doloroso de sua vida antes de perder Evie.

Às vezes, ela odiava este trabalho.

 

CAPÍTULO OITO

 

Com o estômago revirando de ansiedade, Keri aguardava sentada na recepção do escritório de advocacia de Jackson Cave. Já fazia vinte minutos que ela estava esperando, tempo suficiente para refletir continuamente se havia tomado uma boa decisão.

Durante o caminho de volta de San Pedro, ela vinha calculando quanto iria levar para chegar à casa-barco, colocar um vestido de festa e então voltar a Beverly Hills, para o evento da All Smiles. Mas enquanto se dirigia para o norte, viu os arranha-céus do centro de Los Angeles a distância e um impulso poderoso tomou conta dela. Keri se viu dirigindo até o escritório de Cave, sem nenhum tipo de plano no qual se apoiar.

No caminho, havia ligado para Brody, para que pudessem repassar as informações que tinham até agora. Após tê-lo informado de que a pista de Coy Brenner não havia dado em nada, ele falou com ela sobre San Diego.

"O álibi de Jeremy Burlingame confere. Ele ficou em cirurgia o dia todo ontem. Aparentemente, estava supervisionando alguns médicos na cidade, ensinando-os um novo procedimento de reconstrução facial".

"Certo, ouça, o trânsito está horrível", Keri disse. Era parcialmente verdade, mas também uma desculpa para ela parar em Cave. "Então, se você chegar no jantar de gala antes de mim, por favor, só avalie o lugar. Não comece a interrogar as pessoas".

"Está me dizendo como fazer meu trabalho, Locke?"

"Não, Brody. Mas estou sugerindo que ir para um lugar assim como um touro numa loja de porcelanas pode ser contra-produtivo. Algumas dessas socialites provavelmente se abririam mais para outra mulher num vestido do que para um cara cujo relacionamento mais longo foi com seu carro".

"Vá se danar, Locke. Vou falar com quem eu quiser", Brody retrucou, indignado. Mas ela podia ouvir no tom hesitante dele que tinha lhe deixado em dúvida.

"Como quiser", Keri replicou. "Vejo-o lá".

Agora, trinta minutos depois, ela ainda não tinha conseguido encontrar-se com Cave. Eram quase 17h30. Decidiu tirar vantagem do intervalo para dar uma olhada no lugar. Ela caminhou até a recepção.

"Você sabe por mais quanto tempo o senhor Cave vai demorar?" ela perguntou à secretária, que meneou a cabeça, como quem pede desculpas. "Então, poderia me dizer onde fica o banheiro, por favor?"

"No final do corredor, à esquerda".

Keri se dirigiu até lá, seus olhos alertas para qualquer detalhe que pudesse lhe dar alguma vantagem. Bem em frente ao banheiro feminino, estava uma porta com uma placa de Saída. Ela a abriu e viu que ia dar no mesmo corredor que ela havia percorrido para chegar até a entrada principal da firma.

Olhando ao redor e não vendo ninguém no corredor, ela pegou um lenço da bolsa e o enfiou no orifício da trava da porta, de modo que não pudesse travar automaticamente. Em seguida, entrou no banheiro por pouco tempo, para checar sua aparência.

Quando voltou ao lobby, uma mulher bonita num terninho impecável estava esperando para levá-la ao escritório de Jackson Cave. Enquanto seguia a mulher, Keri tentou evitar que seu coração pulasse para fora do peito. Estava prestes a encontrar o homem que poderia ter a chave para obter informações cruciais sobre o paradeiro de Evie e ela não tinha nenhuma estratégia.

A única vez que viu Jackson Cave foi na delegacia de uma pequena cidade nas montanhas. Ele havia vindo tentar libertar seu cliente sob fiança, Payton Penn, o irmão do senador da Califórnia, Stafford Penn. No fim das contas, Keri descobriu que Penn havia contratado Alan Pachanga para raptar sua sobrinha, Ashley. As coisas aconteceram a favor de Keri lá naquela cidadezinha, mas agora ela estava em território inimigo e podia sentir isso.

Jackson Cave era conhecido na maior parte da cidade por sua reputação de representar grandes clientes corporativos. Mas, para a polícia, seu trabalho voluntário defendendo estupradores, pedófilos, e sequestradores de crianças era infame.

Keri suspeitou imediatamente de um homem como esse. Uma coisa era defender um suspeito de assassinato que podia ser condenado à morte, ou algum cara desesperado que roubou um banco para sustentar sua família. Mas representar exclusivamente e com entusiasmo os piores perpetradores de violência sexual que a cidade tinha a oferecer, de graça, parecia-lhe uma escolha estranha.

No entanto, Keri esperava tirar vantagem do trabalho dele. Ela sabia que Cave escondia o criptograma que podia revelar os dados no computador de Alan Pachanga. Se ela pudesse encontrá-la, isso poderia levá-la a informações de uma rede inteira de sequestradores de aluguel. Poderia até revelar algo sobre o homem que havia levado Evie, um homem que ela acreditava atender pelo nome de "Colecionador".

Tudo naquele lugar era feito para intimidar. A firma em si consumia o 70º andar inteiro do prédio do US Bank, de 73 andares. Havia janelas que iam do chão ao teto em toda parte, com vista para a vastidão de Los Angeles. Obras de arte caras cobriam as paredes. Todos os móveis eram de couro e mogno.

Elas finalmente chegaram a um escritório sem placa na porta, no final do corredor, e a mulher fez sinal para que Keri entrasse. Estava vazio. Keri foi direcionada até uma cadeira macia e cara na frente da mesa de Cave, que era imaculada.

Deixada sozinha, a policial olhou em volta, tentando captar algo sobre o homem a partir de seu ambiente. Não havia fotos pessoais sobre a mesa, nem credenciais. Na parede, algumas fotos de Cave com pessoas influentes, como o prefeito, vários conselheiros municipais e algumas celebridades. Os diplomas de sua Universidade (USC) e Faculdade de Direito (Harvard) também estavam exibidos. Mas nada revelava muito sobre o homem e suas paixões.

Antes que Keri pudesse avaliar a sala mais a fundo, Jackson Cave entrou. Ela se levantou rápido. Seu cabelo preto como carvão estava lambido para trás como Gordon Gekko, no filme Wall Street. Seus dentes reluzentes de tão brancos enchiam uma boca torcida num sorriso falso, de plástico. Sua pele bronzeada brilhava sob o terno Michael Kors azul-marinho. E seus olhos azuis penetrantes brilhavam com uma ferocidade que lembrava a de uma águia caçando sua presa.

Então, num flash, ela soube que curso de ação tomar. Jackson Cave, com suas fotos com poderosos e sua roupa e penteado imaculados, era um homem que se importava sobre como era percebido. Ele ganhava a vida seduzindo as pessoas — políticos, juris e a mídia. E Keri sabia que ele queria conquistá-la também. Era a natureza dele.

Tenho que minar esse objetivo. Tenho que abordá-lo de maneira dura e rápida, frustrar suas expectativas, prejudicar seu equilíbrio. A única maneira de encontrar brechas em sua armadura e fazê-lo cometer um deslize é apunhalando-o em vários pontos. Talvez então ele diga algo sem notar que possa me levar a decifrar o criptograma.

Se ela conseguisse aborrecê-lo, ou até ao menos irritá-lo, talvez ele cometesse um engano e revelasse, sem querer, algo importante. Considerando que já desprezava o homem, não seria tão difícil. Ela só tinha que amplificar esse desprezo e procurar por falhas naquela fachada perfeita. Ela não sabia exatamente quais eram essas falhas, mas, se permanecesse alerta, tinha certeza de que encontraria algo.

"Detetive Keri Locke", ele disse, enquanto passava por ela até seu lado da mesa, "que visita inesperada. Faz apenas algumas semanas que batemos um papo no ar fresco das montanhas. E agora você se propôs a me visitar aqui, na selva de pedra. A que devo essa honra?"

Antes de falar, Keri deu um passo na direção de uma das fotos de Cave com um dignatário local, de modo a ficar de costas para ele. Ela fez isso, em parte, para mostrar que estava no controle da reunião, em parte para enervá-lo ao se recusar a olhar para ele diretamente, e também porque suas costelas estavam começando a doer de novo e ela não queria que ele a visse rangendo os dentes por causa do desconforto.

"Desculpe incomodá-lo, advogado. Eu sei que deve estar ocupado, preparando a defesa de um cúmplice no sequestro de uma adolescente".

"Suposto, detetive. Suposto cúmplice".

Ela ignorou o comentário e continuou.

"Eu vim até aqui para lhe fazer uma pergunta. Por que é que, com tantos clientes corporativos poderosos a sua disposição, o senhor insiste em representar a escória da sociedade?"

Ela olhou casualmente sobre o ombro como se não desse a mínima, mas focou nos olhos de Cave, procurando por algum sinal de incômodo. Ele não ofereceu nenhum. Era óbvio que estava acostumado a esse tipo de crítica.

"Todo mundo merece uma defesa de qualidade, detetive. Está na Constituição... Sexta emenda. Dê uma olhada".

"Sei disso, Sr. Cave", ela disse, voltando a atenção novamente para a parede de fotos. "Mas o senhor poderia representar qualquer tipo de cliente e ainda assim parece atraído por aqueles que têm um comportamento violento em relação a mulheres e crianças. Por que isso?"

"Algo para eu trabalhar com meu terapeuta, suponho". Sua voz era relaxada, imperturbável.

Não está funcionando. Ele tem muita prática em rebater ataques sobre seus clientes. Tenho que cutucar em outro lugar.

"Observação espirituosa, Sr. Cave. Aposto que é assim que defende seu trabalho para pessoas como ele", Keri falou, apontando para o conselheiro municipal na foto que estava observando. Ela se virou rapidamente para ver a reação de Cave e viu que permanecia tranquilo.

"Foi para isso que você veio aqui, detetive... para tentar me fazer sentir culpado? Que chato... estou desapontado. Esperava mais de você".

"Desculpe decepcioná-lo. Mas não posso deixar de imaginar por que essas pessoas não estão mais relutantes em serem vistas com o senhor. Afinal, esta não é a CEO de um grande centro de combate ao estupro?" ela perguntou, apontando para uma foto em que uma mulher mais velha quase se derretia nos braços de Cave.

"Uma senhora adorável", ele disse, sem se perturbar. "Dona de belas pernas também".

"E este cavalheiro, o monsenhor", Keri continuou. "Eu me pergunto se ele teve que se confessar depois desse encontro. Ou pelo menos passar por uma descontaminação".

Ela ficou surpresa por Cave não revidar com outra resposta blasé. Na verdade, Keri notou que ele ficou visivelmente tenso. O sorriso de plástico ainda cobria seu rosto. Mas, por breves segundos, ela viu algo naqueles olhos azuis que não podia identificar muito bem.

Ele se recompôs rapidamente, voltando à sua expressão normal, e caminhou até o lado dela da mesa.

"Isso foi muito divertido", ele disse, "mas, infelizmente, ainda tenho muito trabalho a fazer esta noite. E a menos que você esteja aqui por alguma outra razão que não seja atacar meu caráter pessoal, terei que terminar nosso pequeno encontro".

Ele apertou um interfone e a mulher que havia conduzido Keri até ali apareceu imediatamente para levá-la embora.

"Por aqui, por favor, madame", ela disse, de forma polida, mas firme. "Eles podem lhe validar na recepção".

Enquanto ela passava pela porta, ele falou às suas costas com uma entonação quase musical:

"Não seja uma estranha, Keri".

Ah, não se preocupe, seu canalha metido a besta, eu não vou. Na verdade, planejo voltar aqui muito antes do que você imagina.

Keri sorriu para si mesma enquanto descia no elevador. Mesmo a perspectiva de dirigir até o outro lado da cidade para vestir sua melhor roupa e interrogar mulheres ricas olhando de cima para ela não a perturbava naquele momento.

Não a incomodava porque ela tinha descoberto o que havia nos olhos de Cave naquele momento em que comentou sobre a foto com o monsenhor.

Era pânico.

E isso deu a ela o insight de que precisava.

Por trás disso, Keri sabia, estava a chave para encontrar sua filha.

 

CAPÍTULO NOVE

 

Keri olhou para si mesma no espelho do banheiro pelo que parecia ser a centésima vez. Seu estômago estava dando voltas e sua boca estava seca.

Do outro lado da porta, ela podia ouvir as convidadas ao evento de gala conversando. Mas dentro do banheiro social perto do salão de baile do Peninsula Hotel Verandah Ballroom, Keri Locke tentava convencer a si mesma de que podia se misturar usando seu vestido longo justo, de um ombro só. Era o único vestido chique que ela ainda tinha de sua vida anterior.

Havia retirado as faixas de proteção das costelas, já que não conseguiria entrar no vestido com aquele acolchoado. Mesmo que pudesse, Keri ficaria parecida com o boneco da Michelin.

Ela tinha amarrado seu cabelo para trás num coque frouxo, mais elegante que o rabo de cavalo usual. Também usava saltos altos pretos, uma concessão para o evento que ainda lhe permitiria se movimentar pelo lugar sem muito desconforto.

Deu um passo para trás para se ver pela última vez.

Ah, vamos, Keri. Você está aqui como uma policial investigando um possível crime. Poderia ter vindo com uma calça de camuflagem e mesmo assim estas pessoas lhe respeitariam. O vestido é só para se misturar e deixar as pessoas à vontade. Mas você está no comando. Aja de acordo.

Com isso em mente, ela saiu para o corredor e foi até o salão de baile, armada com uma lista que Becky Sampson lhe havia dado com as melhores amigas de Kendra no mundo socialite. Mas antes que pudesse procurar por elas, viu Brody do outro lado do salão. Ignorando a música do quarteto de cordas, ela caminhou através dos garçons que serviam pequenos aperitivos e champanhe, e através da turba de ternos e vestidos longos para se encontrar com ele.

Ele estava com o mesmo terno amarrotado, manchado de molho, que usava de manhã. Parte dela admirava isso, mas outra parte pensou que poderia ser um entrave para ganhar a confiança dos ricaços. Keri tinha quase certeza de que seu instinto estava certo.

"Acabo de receber uma ligação daquele nerd, Edgerton", ele disse, sem nem dizer olá. "Eles rastrearam o GPS do carro e celular de Kendra, e sua última localização antes que fossem desabilitados — uma rodoviária em Palm Springs. Não havia nada incriminante no carro. A polícia de Palm Springs está fazendo uma busca na área, procurando por algum sinal dela, mas ainda não encontrou nada. Eles estão checando o vídeo da rodoviária e balcão de passagens para ver se descobrem algo. Mas parece que Kendra Burlingame e sua mala usada 'apenas para viajar' podem realmente ter embarcado numa aventura, mas que o médico desconhece".

Keri ouviu o que Brody estava dizendo enquanto olhava em volta pelo elegante salão de baile cheio de pessoas bonitas. Era difícil argumentar com a lógica dele. Mas algo naquilo não parecia certo.

Kendra Burlingame dava a impressão a Keri de ser o tipo de pessoa totalmente comprometida com esta organização. Se ela queria abandonar sua vida, por que não esperar um dia ou dois, até estar certa de que o evento alcançou seu objetivo? Por que abandonar seu projeto antes de completá-lo? Era possível, mas algo não se encaixava.

"Pode ser, Brody. Mas estamos aqui, então, vamos continuar o jogo. Vamos falar com as pessoas para ver por que Kendra poderia ter vontade de fugir ou se isso era algo que esperavam dela".

Brody assentiu.

"Quer ficar com as garotas e eu falo com os pinguins?" ele perguntou.

Keri concordou, sem querer entrar numa discussão sobre estereótipos de gênero naquele momento. Além disso, todo mundo na lista de Becky era mulher, de toda forma.

Ela encontrou a gerente do evento, uma mulher apagada de aparência cansada, cujos óculos ficavam escorregando pelo seu nariz, e que mostrou à policial quais rostos no salão correspondiam aos nomes da lista. Em seguida, Keri começou o duro trabalho de interrogar um monte de mulheres ricas sobre sua amiga desaparecida no próprio evento de caridade dessa mesma amiga.

Após cerca de meia hora, tornou-se claro que nenhuma delas conhecia a fundo a vida pessoal de Kendra. Tudo o que podiam oferecer eram superficialidades agradáveis e repetir expressões clichê de preocupação.

Quando Keri estava prestes a desistir, a gerente do evento caminhou até ela e apontou para uma mulher num vestido justo tomara-que-caia, que tinha acabado de entrar.

"Aquela mulher não estava na sua lista, mas eu sei que ela e a Sra. Burlingame eram próximas. Na verdade, as duas estiveram aqui na semana passada, ajudando a coordenar os detalhes para o evento".

"Qual o nome dela?"

"Margaret Merrywether — mas ela deve lhe dizer algo diferente".

"Como assim?"

"Vai descobrir. Tenho certeza de que é uma ótima amiga, mas acho que ela lhe dará um pouco de trabalho".

Keri agradeceu e foi em direção a Margaret. Enquanto se aproximava, perguntou-se por que Becky a havia deixado de fora da lista. Na verdade, ela percebeu que Becky nem havia chegado ainda. Talvez, estivesse lidando com um atraso relacionado a cocaína.

Quanto mais se aproximava de Margaret Merrywether, mais percebia que estava prestes a lidar com uma figura. A mulher era alta, com um pouco mais de 1,80 m, pele branca como porcelana e cabelos vermelhos vivos, que combinavam com seu vestido.

Diferente dos sofisticados, mas comportados vestidos de festa que as outras mulheres usavam, o dela revelava seus ombros brancos e macios e tinha um profundo e provocativo decote. Seus saltos stiletto tinham uns quinze centímetros. Ela parecia uma elegante amazona.

Keri levantou os olhos e percebeu que os penetrantes olhos verdes da mulher estavam focados nela, e que havia um traço de sorriso em seus lábios vermelhos como rubi. Ela percebeu Keri avaliando-a e ambas sabiam disso.

Não tem sentido usar um disfarce neste ponto.

"Detetive Keri Locke", ela disse, estendendo a mão. "Estou a serviço da Unidade de Desaparecidos da polícia de LA".

"Bem, já era tempo", Margaret Merrywether retrucou, com um lânguido sotaque sulista, enquanto estendia um longo e esbelto braço e apertava a mão de Keri delicadamente. "Estou esperando alguém entrar em contato comigo desde que ouvi sobre Kenny. Por que demorou tanto?"

"Acabamos de ficar sabendo de sua ligação com a Sra. Burlingame, senhora. Talvez possa me dar mais informações sobre seu relacionamento com... Kenny, como a chama. Todo mundo a chamava por esse apelido?"

"Pra começar, não. Sou a única atrevida o bastante para chamá-la assim. Em segundo lugar, Srta. Locke, por favor, não me chame de senhora. Apenas meus filhos fazem isso e, geralmente, só quando estão encrencados. Se quiser me deixar mais à vontade, pode me chamar de Srta. Merrywether. Se quiser me deixar irritada, pode me chamar de Maggie, como meu ex-marido faz. Mas se quiser me chamar como Kenny me chamava, pode ser apenas Mags".

Pela primeira vez em muito tempo, Keri não sabia ao certo como reagir. Ela havia assumido a tarefa de predizer o comportamento humano como uma forma ganhar a vida. Atualmente, ela era detetive e, antes, havia sido professora de Criminologia. Raramente alguém a surpreendia. Mas esta mulher era como uma Scarlett O’Hara do século 21 misturada a Jessica Rabbit. Keri decidiu manter as coisas simples.

"Certo, então. Enfim, como você conheceu a Sra. Burlingame, Srta. Merrywether?"

"Ah, querida, tão formal, tão profissional. Suponho que eu deveria estar feliz da pessoa averiguando o desaparecimento de Kenny ser tão inflexível. Imagino que seu parceiro ali seria... menos imune a meu charme".

Ela apontou com a cabeça para Brody, do outro lado do salão, que estava devorando cogumelos recheados enquanto olhava descaradamente para o corpo de duas mulheres bem vestidas que tentavam fingir não notar.

"Essa não seria uma grande conquista, Srta. Merrywether. O detetive Brody fica fascinado até por um pôster de borracharia. Acho que ele era adolescente na época em que eles faziam sucesso".

"Você está minando minha delicada autoestima, detetive Locke", Merrywether replicou, fingindo indignação.

"Acho difícil de acreditar. Mas, apesar de ser muito agradável conversar com você, realmente preciso de algumas respostas diretas. Se Kendra... humm..., Kenny, é uma amiga tão íntima, como você diz, então, imagino que esteja desesperada para me dizer tudo que puder".

"É claro que você está certa. Eu estava apenas lhe testando um pouco, detetive, para ver se você faria meu tempo valer a pena ou se eu deveria levar o que sei para alguém numa posição de mais autoridade".

"E eu passei no teste?"

"Passou. Talvez seja melhor ir para algum lugar um pouco mais reservado, com menos olhares curiosos e ouvidos ávidos".

"Mostre o caminho", Keri disse. Enquanto seguia Merrywether para fora do salão de baile, ela viu Jeremy Burlingame passando por uma entrada diferente. Ele parecia estar se dirigindo para a plataforma baixa que servia de palco.

Nas suas mãos, havia uma série de cartões, que ele embaralhava, sem jeito. Inevitavelmente, eles caíram no chão. Ele se curvou para recolhê-los e agradeceu, sem graça, às várias pessoas que se adiantaram para ajudá-lo.

Margaret Merrywether estava quase fora do salão quando Burlingame subiu no palco.

"Espere um segundo. Quero ouvir isto", Keri disse.

"Na verdade, eu também", Merrywether concordou.

A música parou e o salão começou a se aquietar quando Burlingame pigarreou alto no microfone.

"Humm... desculpem... deem-me um momento, por favor", ele pediu, enquanto mudava a altura do pedestal do microfone, que havia sido claramente ajustado para Kendra. "Não sou muito bom com este tipo de coisa. Sei que vocês são acostumados a verem minha esposa, Kendra, falar nestes eventos. Mas, como vários de vocês já ficaram sabendo, ela está desaparecida".

Houve um burburinho surpreso pelo salão. Aparentemente, ao menos alguns dos convidados não estavam a par do ocorrido. Burlingame continuou.

"A polícia está buscando diligentemente por ela. E tenho muita esperança de que ela será encontrada e voltará a salvo para mim. Eu peço que, se qualquer um de vocês souber alguma coisa que achar ser útil, por favor, informe as autoridades imediatamente.

"Quanto a mim, estou tentando evitar enlouquecer, permanecendo ocupado. Depois de falar com os detetives que investigam o caso de Kendra, voltei ao trabalho e realizei uma cirurgia nesta tarde num bebê que nasceu com uma anomalia facial.

"Parte de mim sentia culpa... como se houvesse algo mais que eu pudesse fazer ou deveria estar fazendo para ajudar nas buscas. Mas então percebi que estava fazendo a vontade de Kendra. Eu não sou um detetive. Provavelmente, só iria atrapalhar. E não teria ajudado aquele garotinho se eu cancelasse seu procedimento. Portanto, me ocorreu... eu também não poderia cancelar este evento. Não ajudaria a encontrar Kendra mais rápido, se fizesse isso. E as crianças como aquela que eu ajudei hoje teriam centenas de milhares de dólares a menos para custear suas cirurgias.

"Kendra e eu — vamos ser honestos, mais Kendra do que eu — criamos a All Smiles para ajudar crianças menos favorecidas e que precisam de cirurgia plástica reconstrutiva. E este evento faz esse objetivo avançar. Então, eu tive que seguir em frente, apesar de ser estranho. Além disso, quando Kendra voltar, me mataria se soubesse que eu cancelei".

As pessoas no salão de baile riram, e então pararam de repente, sem saber se era apropriado. Burlingame deu um sorriso amarelo antes de continuar.

"Por isso, apesar de eu não gostar de falar em público e apesar de ser desconfortável para mim estar aqui em cima sob tais circunstâncias, estou pedindo a vocês para contribuir generosamente esta noite. É do que as crianças precisam. É o que Kendra ia querer. E quando nós a encontrarmos — se ela notar que não foram generosos — vai pegar no pé de todos aqui. Obrigado".

Ele saiu do palco e foi imediatamente cercado por um enxame de pessoas com frases de consolo. O homem parecia completamente arrasado. Keri tinha esperança de falar-lhe novamente, mas isso teria que esperar.

Ela se virou para procurar por Margaret Merrywether, que já tinha saído do salão e estava esperando no final do corredor, indo em direção ao Club Bar do hotel. Ela olhou sobre o ombro e chamou Keri.

"Vamos, detetive Locke", ela ronronou. "Não quer saber o que realmente está acontecendo?"

 

CAPÍTULO DEZ

 

Os pés de Keri estavam doendo sem parar. Suas costelas, gritando de dor. E seu ombro latejava um pouco. Mas ela fingia estar bem enquanto conversava de pé no canto menos lotado do bar.

Um garçom havia lhes oferecido uma mesa minúscula, mas elas recusaram, silenciosamente concordando, com um olhar, que não havia como se espremerem num lugar tão apertado usando aqueles vestidos.

Seus drinques vieram rapidamente. Margaret havia pedido um uísque com soda. Keri, que achou que isso soava desesperadamente tentador, pediu uma soda italiana. Ela esperou um olhar de desdém da aristocrata ao seu lado, mas não veio nenhum. Ao invés, ela se inclinou e sussurrou no ouvido de Keri.

"Tenho um segredo para contar, mas só se concordar em me chamar de Mags".

Keri estava tendo dificuldade em manter a fachada profissional em meio ao charme natural de Merrywether, o constante desconforto que estava sentindo e o barulho ensurdeccedor do bar.

A vida é curta demais para lutar esta batalha.

"Certo, Mags, você venceu. Qual seu segredo?"

"Meus pés estão em agonia e eu vou tirar estes saltos, não importam as consequências".

"Vou manter esse segredo, se você guardar o meu".

"O que é, detetive?"

"Já tirei os meus. Eu os tirei no segundo em que você falou 'pés'".

"Certo, então", Mags disse, enquanto se inclinava para puxar seus sapatos. "Estou surpresa por ficar com eles por tanto tempo. Você me dá a impressão de uma pessoa que não liga tanto para formalidades".

"Não ligo, Mags. E é por isso que eu vou dispensar as gentilezas típicas de uma dama e ir direto ao assunto. O que você sabe? Não me pareceu muito impressionada pelo discruso de Jeremy Burlingame lá em cima".

"Ah, não tire conclusões precipitadas, detetive. Eu não suspeito de Jeremy. Só estou entediada com ele. Ele pode ser um cirurgião brilhante e um marido dedicado, mas acho-o tão interesante quanto um papel de parede humano".

"O que mantinha Kendra tão interessada nele?"

"Quem disse que ela estava?"

"O que está sugerindo? Que ela..."

"Pronto, não misture alhos com bugalhos. Eu não estou acusando ninguém. Só quero dizer, bem, por que você acha que ela mergulhou de cabeça nesta fundação? Sem dúvida, em grande parte porque acredita muito na causa. Mas, lembre-se de que ela também costumava ser uma publicitária muito bem-sucedida em Hollywood. Você acha que toda essa paixão simplesmente desapareceu depois que ela se casou? Posso garantir que não.

"Se ela ficou entediada o bastante, acha que pode ter fugido? Simplesmente saído da cidade sem dizer a ninguém?"

"É isso que você acha que aconteceu? É isso o que Jeremy pensa?" Mags perguntou. Ela parecia atraída pela ideia.

"Não. Ele está convencido de que ela foi raptada. E estou inclinada a suspeitar disso também. Mas temos provas conflitantes e muitas delas apontam para a fuga de Kendra".

"Veja, detetive", Mags disse, com o tom mais sério que Keri ouviu até agora. "Ninguém pode ter certeza do que se passa no coração de outra pessoa. Todos nós mantemos segredos inacessíveis para o mundo. Mas conheço Kendra Burlingame por mais de uma década, desde quando ela ainda era Kendra Ann Maroney, uma caipira recém-chegada de Phoenix, no Arizona. E nada da mulher que eu conheço, minha querida amiga, jamais indicou que ela era o tipo de pessoa que simplesmente jogava tudo para cima e fugia. Não faz parte do caráter dela. Kenny é uma lutadora, não uma desistente. E espero que você lute por ela também. Eu posso fingir bem. Mas estou muito preocupada com ela".

Keri se deu um tempo para absorver o comentário, surpresa e comovida pela ferocidade de Mags. Deu a ela confiança de que seus próprios instintos não estavam completamente errados.

"Muito bem", ela replicou. "Mas você disse antes que podia me dizer o que realmente está acontecendo. Então, bote para fora, Mags. Eu sei que tudo isso pode parecer muito dramático para você. Mas estamos correndo contra o tempo. Se Kenny realmente foi levada ontem de manhã, estamos chegando na marca de 36 horas. Quem quer que tenha feito isso teve uma grande vantagem e o rastro está ficando mais frio a cada segundo. Precisamos seguir cada pista o mais rápido possível. Então, diga-me o que está guardando desde que nos encontramos".

Mags olhou para ela por alguns segundos, claramente enfrentando uma luta interna. Keri podia dizer que ela havia se decidido quando tomou um grande gole de seu drinque e o engoliu de uma vez.

"Estou lhe dizendo isto no caso de ser importante. Mas se você achar que não é, peço-lhe que, por favor, mantenha a informação como confidencial. Se se espalhar, poderia prejudicar muito Kenny. Eu estou dizendo isso agora apenas porque sua segurança é mais importante do que seu status. Tenho sua palavra?"

"Eu prometo que, se o que você me disser não for relevante para o caso, não passa de mim".

"Isso me basta. Quando Kenny se mudou para LA, há 15 anos, antes de entrar na área de publicidade, ela queria ser atriz. Fez algumas fotos de perfil e o fotógrafo ofereceu um dinheiro extra para tirar algumas... fotos mais arriscadas. Kenny estava realmente lutando para pagar o aluguel, então, concordou".

Bem naquele momento, um cara usando um terno prata espalhafatoso se aproximou. Sua barba era inspirada no seriado Miami Vice, e sua linha cada vez mais recuada de cabelos tingidos de castanho era mal disfarçada por um topete horroso. Além disso, cheirava como alguém que tivesse tomado um banho de fumaça de cigarro.

"Posso oferecer um refil para as damas?" ele perguntou, no tom forçado. "Ou talvez vocês prefiram uma refrescante bebida orgânica? Ficarei feliz em providenciar".

Keri olhou para ele, surpresa por alguém realmente pensar que aquela frase pudesse funcionar sob qualquer circunstância, quanto mais num ambiente como este. Ela abriu a boca para falar, mas Mags levantou sua mão quase que imperceptivelmente, como se para dizer, "deixa comigo", antes de se virar e encarar o homem.

"Qual o seu nome, senhor tão bem apessoado?" ela perguntou.

"Kyle".

"Kyle de quê?"

"Kyle Hinton".

"Kyle Hinton... que nome lindo, não é, Keri?"

Keri assentiu, curiosa para ver o que viria em seguida.

"Kyle", Mags continuou, "se o que você quer dizer é que gostaria de pagar mais um drinque do bar para uma de nós, ou para as duas... ora, isso seria delicioso. Mas se está insinuando que gostaria de presentear uma de nós com alguma "bebida" criada por você, sinto toda a confiança em recusar, em nome de nós duas. Posso lhe garantir que não temos nenhum interesse em ter relações sexuais com você. Ou em falar com você. Ou até em estar perto de você por mais um segundo. Entende o que quero dizer, Kyle?"

"Tudo bem, que seja", ele disse, percebendo que estava fora de seu domínio. "Você poderia ter dito apenas 'não, obrigada'".

"Eu podia, Kyle. Mas como isso ajudaria a próxima mulher para quem você queira oferecer uma bebida refrescante e orgânica? Que isso lhe sirva de lição, Kyle Hinton. Não há mais esconderijo para homens assim. Agora, siga seu caminho".

Kyle ficou parado ali por um segundo e então, aparentemente cansado de ser humilhado naquela noite, virou e saiu sem dizer mais nenhuma palavra.

Keri observou ele ir embora, então, olhou de volta para Mags com admiração.

"Posso levar você comigo para algumas de minhas reuniões na delegacia? Acho que você realmente poderia limpar o lugar".

"Seria uma grande honra".

O garçom apareceu para perguntar se elas queriam mais uma rodada, tirando Keri do momento e lembrando-lhe de suas prioridades.

"Para mim, não. Mas gostaria muito de um Advil se você tiver algum atrás do balcão".

"Eu eu vou querer um refil, querido", Mags disse a ele. Ele assentiu e se afastou.

"Então, você estava dizendo...", Keri retomou.

Mags continuou de onde havia parado como se nunca tivesse sido interrompida.

"Então, as fotos nunca foram publicadas em nenhuma revista, pelo menos, não que Kenny saiba. E ela tinha quase certeza de que nunca poderia ser sequer reconhecida. Ela disse que usou uma peruca loira e muita maquiagem.

Mas, há uns dois anos, bem na época em que houve uma grande matéria de capa sobre a fundação na revista Times, ela recebeu uma carta anônima, pedindo dinheiro, e incluía uma dessas fotos".

"Ela falou com Jeremy sobre isso?" Keri perguntou.

"De jeito nenhum. Estava mortificada. E não queria que Jeremy pensasse mal dela. Eu lhe disse que ele entenderia. Ela tinha 23 anos, pelo amor de Deus. Mas ela não queria nem saber. Falou que ele ficaria realmente magoado. Eu sugeri que ela fosse à polícia, mas ela tinha medo que isso tornaria o caso público".

"Ela provavelmente estava certa", Keri suspirou.

"Foi um dilema. Obviamente, ela sabia quem era, então, foi até lá para tentar falar com o cara. Ele ainda estava morando no mesmo apartamento caindo aos pedaços que usava como estúdio de fotografia há tantos anos. Kenny disse que ele tinha fotos de jovens mulheres coladas por todo lugar.

"Enfim, você pode imaginar o quanto ele estava disposto a deixar tudo para lá. Ele exigiu cinco mil dólares por mês para permanecer calado. Então, ela disse a ele que qualquer valor acima de dois mil chamaria a atenção do seu marido e, se ele descobrisse, o cara não ia ter mais nada para chantageá-la. Isso fez sentido para ele e foi assim que eles deixaram as coisas, Kendra pagando a esse cara dois mil paus todo mês pelos últimos dois anos... até o mês passado".

"O que houve então?"

"Ele exigiu que ela pagasse mais. Ela disse que iria finalmente dar um fim naquilo".

"Quando ela iria fazer isso?"

"No último final de semana".

"E você não sabe o que houve depois?"

"Não falo com ela desde a última quinta-feira. Eu fiquei surpresa por ela não ter me ligado, mas imaginei que entraria em contato quando se sentisse pronta. Começo a me arrepender disso".

"Você não poderia saber. Entendo que esteja preocupada, mas não comece a ficar obcecada sobre cada erro em potencial que você tenha cometido".

Esse hábito é meu.

Mags assentiu, sem uma resposta espirituosa.

"Qual o nome desse cara?" Keri perguntou.

"Rafe Courtenay. Ele mora num prédio-caixão em Hollywood".

O garçom voltou com o drinque de Mag e o Advil de Keri, que ela engoliu imediatamente.

"Tenho que ir, Mags", ela disse, calçando seus sapatos novamente e deixando uma nota de dez dólares sobre a mesa. "Obrigada por todas as informações. Manterei contato".

Ela já tinha chegado à metade do salão quando ouviu a voz suave de Mags chamar atrás dela: "Foi um prazer lhe conhecer".

Ela acenou sobre o ombro sem olhar para trás. Havia passado tempo demais com a elite de Beverly Hills.

Era hora sujar as mãos com um canalha de Hollywood.

 

CAPÍTULO ONZE

 

Com o corpo inundado de adrenalina, Keri estacionou na rua atrás do apartamento de Rafe Courtenay e ficou sentada ali por um tempo, preparando-se para o que estava por vir. Ela olhou para o relógio.

Eram quase 20h30 e o sol de verão do final de setembro havia se posto há quase duas horas. Hollywood estava iluminada pelos farois e por inúmeras placas de neon que pontuavam suas principais avenidas.

O trajeto desde a Penísula havia sido movimentado, graças a várias ligações. Primeiro, ela havia informado a Brody que precisava sair do jantar para investigar uma pista. Ele ficou aborrecido, até ela dizer que tentaria fazer com que os detetives Sterling e Cantwell viessem para ajudar com os interrogatórios no evento de gala. Eles eram quase tão casca-grossa quanto Brody, e as reclamações dele pararam quando soube que estaria entre iguais.

Em seguida, ela ligou para Manny Suarez, para ver se ele tinha alguma informação nova a respeito da rodoviária de Palm Springs. Nenhuma. Mas ele pôde dar a ela um resumo sobre Courtenay.

O cara tinha 38 anos e um histórico de pequenos delitos, principalmente relacionados ou a dirigir alcoolizado ou a contribuir com a delinquência de uma menor, comprando drinques para garotas menores de 18 anos. Não havia nada sobre chantagem e ele nunca passou mais do que dois dias na cadeia.

Keri não teve a impressão de que ele era uma ameaça iminente, mas, como estava machucada, ameaça era um termo relativo. E já que ela havia prometido a Mags manter a situação em segredo, se possível, estava relutante em ligar para pedir cobertura, o que requeria aprovação e, por fim, papelada. Isso significava que esta tinha que ser uma viagem solo. Para sua segurança, ela mudou de roupa ali mesmo, naquele beco.

Ela tirou seu vestido de noite, recolocou o protetor de costelas e, em seguida, vestiu o colete à prova de balas. Depois, cobriu tudo com o moletom e o jeans folgado que ela tinha originalmente planejado trocar pelo vestido no minuto em que deixasse o evento de gala, mas não tinha tido tempo até agora. Por fim, calçou seus tênis, amarrou o cabelo para trás no bom e velho rabo de cavalo, e afivelou seu rádio de polícia, arma de eletrochoque, algemas, coldre e arma na cintura.

A entrada dos fundos do conjunto de Courtenay estava trancada, então, ela contornou o prédio até a frente. O imóvel ficava no meio de um longo quarteirão na Afton Place, uma rua lateral pobre entre a North Gower e a Vine Street. Enquanto caminhava, Keri se lembrava da sua ligação mais recente e mais desagradável no trajeto até aqui. Foi com o sargento Hillman.

"Por que demorou para me ligar?" ele perguntou antes que ela pudesse dizer uma palavra. "Falei com Brody três vezes hoje e esta é a primeira vez que ouço falar de você desde que saiu de meu escritório, de manhã".

"Desculpe, senhor. Tenho corrido tanto que esqueci de ligar. Acho que estou sem prática, sem sair em campo por duas semanas". Ela odiava parecer submissa ou pedir desculpas, especialmente para Hillman. Mas tinha que acalmá-lo se queria que o chefe aprovasse sua solicitação.

"É exatamente por isso que você precisa prestar contas com mais frequência, Locke. Não é só protocolo. É para sua segurança e minha paz de espírito".

"Tem razão, senhor", não vai acontecer de novo".

Houve uma curta pausa e Keri percebeu que tinha forçado a barra.

"O que está querendo, detetive? Você nunca foi tão obediente, nem no seu primeiro dia. É melhor dizer logo".

"Nada de mais, senhor. Eu só tenho uma solicitação a fazer e estava esperando sua aprovação".

"O que é?" Hillman rosnou.

"Tive que sair do evento de gala para conferir uma pista urgente e gostaria que o senhor enviasse os detetives Sterling e Cantwell para ajudar Brody com as entrevistas. Eles parecem trabalhar bem juntos e há o potencial de muitas pistas no evento, pistas demais para apenas uma pessoa lidar".

"Sterling e Cantwell saíram para fazer a ronda noturna", ele disse, bruscamente.

"Entendo, senhor. Mas este é um caso de alto nível e pensei que o senhor quisesse direcionar todos os recursos disponíveis para ele. Mas compreendo se não for possível. Se preferir, podemos ligar para a polícia de Beverly Hills e pedir ajuda. Afinal, é a jurisdição deles".

"Misericórdia, Locke, espero que suas tentativas de manipular testemunhas e suspeitos sejam mais sutis que as suas artimanhas para me manipular. Você acha que eu não posso ver o que quer... Está tentando me fazer ver isto como uma queda de braço e espera que eu proteja meu território?"

"É claro que não, senhor", Keri respondeu, mantendo a voz calma.

"Enfim, que pista é essa tão importante que você teve que abandonar o evento de gala?"

"Provavelmente, não é nada, senhor. Eu não quero desperdiçar seu tempo com isso. Vou levar meia hora e então passarei para o próximo passo".

"O 'próximo passo', imagino, deve ser averiguar a rodoviária de Palm Springs, onde parece haver evidências reais que talvez expliquem o que pode realmente ter acontecido, ou seja, uma mulher rica fugindo de sua vida sufocante".

"É exatamente o que eu vou averiguar depois, senhor".

"Lembre-se, Locke, não há nada ilegal numa pessoa dar o fora de sua vida. Se ela não tem dívidas para pagar ou crianças para criar, Kendra Burlingame tem permissão para simplesmente desaparecer. E, se for esse o caso, precisamos direcionar nossos recursos para outros casos. Você compreende?"

"Sim, senhor. E vou manter isso em mente. Mas estou quase chegando ao meu destino, tenente. Devo ligar para nossos colegas de Beverly Hills para ajudar com as entrevistas no evento ou o senhor prefere lidar com isso?"

"Locke, você é um pé no meu saco. Vou mandar nosso pessoal. Não ligue para a polícia de Beverly Hills. Termine logo o que for que esteja fazendo, e sobre o que você não vai me contar, e siga em frente. Entendeu?"

"Entendido, senhor."

Keri achou que a conversa havia transcorrido da melhor maneira possível, considerando todo o contexto.

Ela chegou na entrada principal do prédio de Courtenay e o avaliou. Era um edifício de cinco andares, com uns cem anos de idade. Alguém tinha feito uma tentativazinha infeliz de dar a ele um visual de estuque espanhol fixando azulejos marrons que estavam, em sua maioria, rachados ou quebrados.

Keri passou pelo portão. Courtenay supostamente vivia no quarto andar, no apartamento 412. No diretório de residentes, aquele apartamento estava listado como "A Fábrica de Sonhos". Keri sentiu uma leve vontade de vomitar.

Ela interfonou para o apartamento do síndico e, depois de um minuto, encontrou-se com uma mulher idosa, de camisola, com os cabelos em bobs. Keri mostrou seu distintivo e teve permissão para entrar.

"Você veio por causa dos drogados do 217 ou do tarado do 412?" ela perguntou, com uma voz rouca.

"Por causa do tarado, senhora", Keri respondeu. "Mas já que estamos conversando, os drogados são usuários ou vendedores?"

"São mais usuários. Eles vendem para seus amigos, eu acho".

"Não posso fazer nada sobre eles agora, mas posso pedir para alguém voltar mais tarde para resolver isso, se quiser".

"Não, não tem problema. Eles fazem barulho e fedem. Mas pagam o aluguel em dia. Hoje em dia, isso basta para ser um bom inquilino".

"Sim, senhora. Bem, aqui está meu cartão, de toda forma. Se mudar de ideia, ligue para mim e verei o que posso fazer, certo?"

"Obrigada, querida. Você não é como os tiras idiotas com os quais eu tenho que lidar, geralmente".

"Não, senhora", Keri disse e começou a subir as escadas, antes de se virar. "Ah, e se a senhora ouvir algumas reclamações e barulho vindo do apartamento 412, não precisa se preocupar. Algumas vezes, essas visitas podem ficar meio barulhentas".

A mulher a encarou por alguns segundos antes de dar uma risada.

"Você é fogo, não é?" ela riu.

"Sim, senhora".

"Não se preocupe, detetive. Eu sou meio surda". Ela riu novamente e voltou para seu apartamento.

Keri começou a subir os quatro andares até a casa de Courtenay. Os efeitos do Advil do bar do hotel já estavam começando a se dissipar e ela podia sentir a dor aguda voltando a suas costelas, a cada novo degrau. Ela abraçou seu cotovelo esquerdo com a mão direita e o pressionou contra o peito para diminuir o impacto.

Quando chegou no quarto andar, ela entrou no modo profissional, soltando seu braço esquerdo e usando a mão direira para desabotoar o coldre. O corredor estava silencioso, a não ser por algumas conversas altas e do barulho de várias televisões. Algo esperado numa noite de terça.

Ela chegou na porta de Courtenay e encostou o ouvido nela, esperando por alguma dica do que estivesse acontecendo dentro. Mas a não ser pelo som abafado de música ao fundo, não havia nada. Keri deu um passo para trás, bateu com força na porta, e se moveu para a direita, de modo a ficar fora de vista do olho-mágico e fora da linha de tiro se ele reagisse com uma arma ao invés de com um olá.

Ela ouviu a música parar, em seguida, algum movimento e o som do assoalho rangendo sob passos.

"Quem é?" Courtenay falou do outro lado da porta, após cerca de dez segundos. Sua voz era baixa e gutural.

"Detetive Keri Locke, polícia de LA", ela disse, enquanto exibia o distintivo na frente do olho-mágico. "Preciso lhe fazer algumas perguntas, Sr. Courtenay".

"Sobre o quê?" ele perguntou, cauteloso.

"Abra e eu explicarei. Não vou ficar gritando pela porta".

"Você precisa de um mandado para isso", ele disse, com firmeza.

"Preciso de um mandado para fazer uma busca em sua casa, Sr. Courtenay, não para lhe fazer perguntas. Ouça, eu vim lá do West Side até aqui para conversar com você. Foi uma longa viagem e estou de mau humor. Se quiser dificultar as coisas, posso chamar reforço, arrombar esta porta, cujo conserto você terá que pagar, e interrogá-lo algemado na rua ou na delegacia. Esse é um resultado possível. Ou você pode abrir a porta e teremos uma conversa amigável. É sua escolha, mas você tem cerca de cinco segundos para decidir".

Houve uma breve pausa antes que ela ouvisse vários ferrolhos sendo destravados e a porta se abrisse até a metade.

Rafe Courtenay se afastou apenas o bastante para ela poder vê-lo e disse, "Não tenho que lhe deixar entrar".

Keri percebeu que havia se equivocado ao imaginar que Courtenay não era uma ameaça iminente. Ele tinha 48 anos, mas estava em ótima forma. Ela avaliou que ele tinha cerca de 1,85 m de altura e uns 95 quilos. Usava uma regata branca muito justa e calças de ioga, e seus músculos saltavam em todas as direções. Ele tinha longos cabelos castanhos que escorriam pelo seu rosto, provavelmente numa tentativa de esconder as inúmeras cicatrizes causadas pela acne.

Atrás dele, Keri pôde ver uma cômoda com várias faixas de karatê emolduradas, incluindo uma preta, e fotos dele em competições. Um nunchaku pendia da parede.

Ocorreu-lhe que tentar entrar no apartamento de um obcecado por karatê, musculoso, chantagista e sequestrador em potencial enquanto ainda estava se recuperando de várias lesões sérias poderia não ser a escolha mais sábia. Mas o pensamento durou apenas um segundo antes que ela o afastasse e substituísse por outro, que lhe agradava mais.

É simplesmente assim que eu funciono.

 

CAPÍTULO DOZE

 

"Você gosta de Karatê?" Keri perguntou. Não era um maneira brilhante de puxar conversa, mas ela precisava afastar a discussão da porta, e massagear o ego desse cara parecia uma maneira eficaz de consegui-lo.

Aparentemente, funcionou, já que Courtenay abriu a porta inteira para que ela pudesse observar melhor sua exposição.

"'Gosta' é uma maneira de dizer. Prefiro falar que sou um praticante devotado". Ele tentou soar desinteressado, mas o orgulho tomou conta e vazou em seu tom de voz.

"Então, preta é a melhor faixa que você tem?" Keri perguntou, o mais inocentemente possível. Passou por sua cabeça que suas tentativas de paquera funcionariam mais se ela ainda estivesse usando o vestido de noite, mas afastou esse pensamento. Nenhum interrogatório valia o esforço para entrar novamente naquilo.

"É. Eu a conquistei há vinte anos, mas ainda treino como se ainda tivesse que alcançá-la". Ele tinha subitamente adotado o ar de um sábio mestre do karatê. Keri tentou não rir.

"Muito bacana", ela falou, admirada. "Poderia olhar mais de perto?"

"Claro que sim", ele disse, após uma breve hesitação. "Mas isso não significa que estou consentindo com qualquer tipo de busca. Estou apenas sendo educado".

"É claro", Keri disse, concordando que ele estava sendo polido, mas silenciosamente rejeitando suas declarações além disso. Ela cruzou o batente e caminhou até a cômoda, avaliando o lugar o mais casualmente possível.

Como Mags havia mencionado, as paredes estavam cobertas de fotos de rostos de jovens mulheres, muitas delas, assinadas. No canto da sala de estar, ela podia ver a porta para outro cômodo que parecia ser o estúdio fotográfico de Courtenay. O balcão da cozinha estava coberto com tigelas de frutas e notou um imenso liquidificador perto de uma delas. Suspeitou que Rafe era um grande fã de smoothies de proteína.

Foi até a cômoda e voltou sua atenção para o que havia no móvel, esperando encontrar algo para manter os níveis altos — e infundados — de autoestima de seu anfitrião.

"Esta foto parece recente", ela disse, apontando para uma das imagens emolduradas. "Você participa de muitas competições?"

"Esta é de quatro meses atrás. Eu conquistei a medalha de prata no meu grupo de idade, 45 até 49. Mas tenho 48 e o cara que ganhou o ouro havia acabado de completar 45 na semana anterior ao evento. Então, você sabe, não foi tão justo".

"Com certeza", Keri concordou, antes de acrescentar, com uma expressão tão séria quanto lhe era possível, "é difícil de acreditar que você tem 48 anos".

"Muito esforço e uma vida saudável", Rafe disse. "Na verdade, eu já ia preparar um smoothie de couve, banana e pera. Quer um?"

"É bom?" Keri perguntou, franzindo o nariz numa tentativa de ser fofa, pelo menos, era o que esperava. Estava claro que esse cara gostava de mulheres, digamos, mais jovens, mas ela teve a impressão de que ele estava feliz em ser bajulado por alguém que considerava desejável.

"É ótimo. E faz muito bem".

Keri o seguiu até a cozinha e se inclinou no balcão na frente dele, fingindo ouvir enquanto ele tagarelava sobre nutrientes e poderes regeneradores. Enquanto ele falava e preparava as bebidas, ela ponderou qual seria a melhor maneira de começar a fazer suas perguntas. Havia conseguido deixá-lo mais à vontade, mas tinha quase certeza de que ele iria se calar se ela fosse direta demais.

Ele deu a ela um copo de smoothie e ela tomou um gole, meneando a cabeça em sinal de apreciação. Não era a pior coisa do mundo, mas não iria substituir a garrafa de Glenlivet dela nem tão cedo. Enquanto Rafe tomava a vitamina aos goles, Keri decidiu que não podia esperar mais.

"Então, Rafe... posso lhe chamar de Rafe?" Ela continuou mesmo sem obter permissão. "Enfim, Rafe... e você, sinta-se à vontade para me chamar de Keri... lembra que eu disse que tinha algumas perguntas a lhe fazer? Agora, eu me sinto um pouco mal sobre como fui dura ao bater na porta. Nunca sei com que tipo de cara vou lidar, sabe?"

Rafe assentiu.

"Alguns são verdadeiros imbecis", ele disse.

"Exatamente. Então, eu não sabia se você era um imbecil também. Mas, obviamente, não é. E eu sinto que posso fazer essas perguntas de uma maneira mais casual, sabe, não tão hostil. A maioria são coisas bem básicas. E então você pode voltar para sua noite... sem problema algum. O que acha?"

"Parece bom. Mas ainda não vou responder a nada se não me sentir à vontade. E ainda não estou lhe dando permissão para fazer uma busca em minha casa sem um mandado, certo?"

"Rafe, é uma bobagem ficar falando desse negócio de mandado de busca. Você deveria participar da série Law & Order. Seria muito convincente como o suspeito errado, sabe... o cara durão que parece culpado, mas na verdade tem o coração mole. Alguém já lhe disse que você é desse tipo?"

"Já ouvi isso algumas vezes".

"Por falar em interpretação, eu sei que você é fotógrafo e parece que tem muita experiência com atrizes. Você deve ser muito bom, porque parece que elas assinaram as próprias fotos. Devem estar felizes em trabalhar com você".

"Não recebo muitas reclamações".

"Não?" Keri perguntou, deixando a pergunta no ar.

Rafe olhou para ela, sem saber se era uma pergunta realmente ou se era apenas algo retórico. Ele não disse nada. Keri colocou o smoothie sobre o balcão entre eles.

"Porque o negócio é o seguinte, Rafe... eu sei de pelo menos uma queixa. De uma mulher chamada Kendra Burlingame. Já ouviu falar dela?"

Rafe também abaixou seu copo e esperou vários segundos antes de responder.

"Se está aqui, obviamente sabe que sim. Do que ela está reclamando?"

"Bem, ela ainda não prestou uma queixa formal na polícia, se é isso que lhe preocupa. Mas reclamou a amigas. Acho que você sabe disso".

"Então, se ela não prestou uma queixa oficial, por que está aqui?"

"Estou aqui porque ela está desaparecida, Rafe. Por mais de um dia e meio. E eu soube de fontes confiáveis que você foi uma das últimas pessoas com quem ela falou antes de desaparecer. Então, pensei em passar aqui e, você sabe, ver o que tem para mim".

"Kendra está desaparecida?" ele perguntou. Keri não sabia dizer se ele estava realmente surpreso ou apenas querendo ganhar tempo. Em todo caso, conferiu se o fecho em seu coldre estava liberado e que a arma de eletrochoque estava acessível também.

"Sim. Sobre o que vocês conversaram quando ela passou por aqui no final de semana passado?"

"Ela não veio", ele disse, num tom desafiador. Keri podia notar que ele estava ficando agitado.

"Você não deveria se encontrar com ela nesse final de semana?"

"Deveria. Ela iria passar aqui na tarde do domingo. Mas ligou de última hora e disse que sua irmã viria em seu lugar".

"Ela disse por quê?"

"Não. Ela estava super vaga. Eu respondi que não queria lidar com mais ninguém a não ser ela, mas podia notar que ela não iria ceder".

"Essa foi a primeira vez que outra pessoa diferente de Kendra se envolveu no... acordo de vocês?"

"Foi. Eu nunca tratei com outra pessoa a não ser com ela esse tempo todo".

"Então, a irmã dela veio aqui na tarde de domingo?"

"Veio, por volta das quatro ou cinco. Acho que o nome é Catherine. Ela bateu na porta. Eu abri. Ela me deu o envelope. Eu o peguei e fechei a porta. Não dissemos nem uma palavra".

"E onde você estava ontem, Rafe?"

"Fiquei aqui quase o dia todo. Eu tinha um monte de ensaios para fazer".

"Vou precisar dos nomes e telefones de todas as suas... clientes de ontem, para verificar seu álibi".

"Não tem problema".

"Bom. Enquanto você os anota, vou dar uma olhadinha pelo apartamento. Não é uma busca oficial, apenas uma olhada rápida. Se o que está me dizendo é verdade, não deve ser um problema para você".

Rafe pareceu relutar, então Keri continuou antes que ele pudesse responder.

"Rafe, querido. Ambos sabemos o acordo que você tinha com Kendra. Se eu quisesse prendê-lo por isso, podia fazê-lo agora mesmo. Mas não. Não estou interessada nele. Estou interessada em encontrar Kendra Burlingame. A menos que haja algo neste apartamento que sugira que você está envolvido no desaparecimento dela, vou deixar passar tudo o que encontrar. Isso é um bom negócio para você".

Rafe parecia ver a lógica das palavras dela e assentiu. Enquanto escrevia os nomes das garotas que havia fotografado no dia anterior, Keri conferiu o resto da casa, começando com o cômodo que ele havia convertido em estúdio. Passou para o quarto dele e para o banheiro, e, em seguida, para o armário no corredor. Ela checava o tempo todo para garantir que Rafe ainda estava sentado no balcão da cozinha.

O lugar não era muito grande e a busca inteira levou menos de dez minutos. Ela não encontrou nada — nem sangue, nenhum sinal de luta, nenhuma câmara de tortura secreta. Era apenas o apartamento de solteiro de um fotógrafo imoral, cabeça-oca, que praticava umas chantagenzinhas por baixo dos panos. Keri duvidava que Kendra tenha sido sua única vítima. Ela voltou para a cozinha, onde Rafe a aguardava com a lista completa dos nomes.

"Obrigada, docinho", ela disse, enquanto colocava o papel no bolso. "Só preciso de mais uma coisa".

"O que é?" ele perguntou.

"As fotos de Kendra... todas, incluindo os negativos".

"O quê?" ele se sobressaltou.

"Todas as fotos que você já tenha tirado de Kendra, e todos os negativos. Preciso delas — agora. Tenho certeza de que você as mantêm num precioso arquivo, em algum lugar. Então, por favor, passe-as para cá".

"Não posso".

"Por que não?"

"Porque não posso... elas são meu sustento... simplesmente, não lhe darei".

"Com certeza, você vai me dar, Rafe. Veja, eu não vou deixá-las aqui e permitir que você potencialmente destrua evidências de sua conexão com uma pessoa desaparecida. Se for provado que seu álibi não vale de nada, vou precisar delas para acusá-lo".

"Mas você precisa de um mandado..." ele falou, com menos confiança do que da primeira vez.

"De novo, isso? Nada mudou, Rafe. Eu ainda posso conseguir esse mandado. Ainda posso arrastá-lo para a delegacia. A única maneira de você permanecer neste apartamento esta noite é se me der o arquivo completo de Kendra agora".

Rafe pareceu refletir sobre suas opções. Num certo ponto, ela percebeu que ele se deu conta de algo. Keri não gostou disso. O corpo dele, que estava tenso até aquele momento, pareceu relaxar um pouco.

"Estou me perguntando por que você insiste em pedir para que eu lhe dê as fotos, ao invés de simplesmente vir aqui com um monte de tiras, arrombar a porta com um mandado de busca e procurar por elas você mesmo. E acho que sei o motivo".

"E qual é?"

"Isso poderia afetar a reputação de Kendra. E você está tentando protegê-la. Sabe que ela vem pagando há anos e não quer que o que ela fez seja divulgado, se puder evitar. Mas se viesse aqui na marra, tudo ia vazar e aparecer nos jornais. Você é um doce, Keri".

Ele deu um pequeno passo na direção dela. Keri sentiu sua pele se arrepiar e latejar ao mesmo tempo.

"Você não está pensando com clareza, Rafe. Fiz isso dessa forma porque obter um mandado leva tempo e cada segundo conta quando se está tentando salvar a vida de uma pessoa desaparecida. Além disso, se isso se tornar público, toda garota que você fotografar vai saber o que fez a Kendra. Imagino como seu negócio vai ficar se você for marcado como um fotógrafo pornográfico e chantagista".

"Pode até melhorar", ele disse, dando mais um passo para a frente.

Keri notou que falar não adiantava mais. Rafe, apesar de seus melhores esforços, se sentia preso numa armadilha. E ele sentiu alguma fraqueza vindo dela. Era uma combinação perigosa, especialmente considerando que ela estava fisicamente mais fraca que o normal.

Ele estava apenas a um metro de distância dela agora e Keri podia ver a crescente agitação nos olhos de Rafe. Ele não estava mais pensando sobre as consequências do que estava prestes a fazer. Sentia-se ameaçado. Ele avaliou que podia derrotar aquela ameaça. E, a qualquer momento, iria tentar.

"Rafe..." ela começou a dizer, esperando impedir a escalada da situação. Mas era tarde demais. Ele pulou sobre ela de uma maneira forçada, mas controlada.

Ele era surpreendentemente rápido, mas Keri estava esperando por algo e recuou rapidamente. Suas costelas e ombro doíam, mas suas pernas estavam bem. Rafe pode ser um faixa preta no karatê, mas Keri tinha sido bem treinada em Krav Maga, e uma de suas aulas favoritas foi sobre como deixar seu oponente ser o agressor e apenas reagir a essa agressão.

Enquanto Rafe continuava a avançar, seus punhos fechados na direção dela, Keri puxou a arma de eletrochoque que havia discretamente removido de seu coldre e a pressionou com força contra o antebraço esquerdo de Rafe. Ele não parou completamente, mas seus olhos

delirantes pareceram confusos e ele olhou para baixo para ver o por que da sensação estranha em seu braço.

Nesse momento, Keri avançou e pressionou a arma de eletrochoque no pescoço dele. Seu corpo estremeceu involuntariamente antes que desmoronasse no chão. Keri se inclinou e deu-lhe um novo choque entre as omoplatas, apenas para se certificar.

Rafe ficou imóvel. O mais rápido que pôde, Keri guardou o eletrochoque, pegou as algemas e prendeu os braços dele às costas. Então, rolou o corpo de Rafe, que não ofereceu resistência.

Quando ele voltou a si alguns momentos mais tarde, Keri estava sentada numa cadeira ao lado, com o eletrochoque ainda nas mãos.

"E aí, Rafe?" ela perguntou, casualmente. "Parece que sua faixa de garotão não fez efeito desta vez".

Rafe balançou a cabeça como se estivesse tentando se livrar de teias de aranha invisíveis.

"O quêêêê...?" balbuciou.

"Tá tudo bem com o seu cérebro, amigo? Deixe-me explicar sua situação. Mas saiba que só vou fazer isso desta vez. Você acaba de tentar atacar uma policial. Essa foi uma péssima escolha. Quero dizer, pode esquecer a competição 'na categoria 50-até-54-anos'. Estamos a uma ligação de distância de você descobrir o quanto aquela faixa preta o ajudará a enfrentar o Grandão-pinto-pequeno e sua patota no pátio da penitenciária.

"Mas vou lhe dar uma última chance de se livrar das grades. Antes, tudo o que eu queria eram as fotos e negativos de Kendra. Mas agora, você vai me passar o material de todas as mulheres que tem chantageado. Eu sei que há outras. Você faz isso e eu esqueço sobre o que acabou de acontecer".

Rafe rosnou algo inaudível e tentou balançar a cabeça. Keri decidiu que ele precisava de um incentivo adicional.

"Caso contrário", ela continuou, "terá que cancelar todas as suas sessões de fotos pelos próximos cinco a oito anos. E não deixe sequer uma cliente de fora. Se fizer isso, vou descobrir e voltarei para prender você e confiscar todas as fotos que tirou em toda a sua carreira. A decisão é sua... é uma oferta única. E ela expira em três, dois, um..."

 

CAPÍTULO TREZE

 

Com um profundo senso de satisfação, Keri trancou as fotos e negativos de Kendra e de 16 outras mulheres no pequeno arquivo ao lado da sua mesa de trabalho e foi até a sala de tecnologia. Ela ficou tentada a apagá-las no drive. Mas se Rafe Courtenay fosse o raptor de Kendra, elas seriam necessárias como evidências.

No momento, tudo o que pôde fazer foi manter as fotos seguras. Isso e dar a Rafe um último choque antes de tirar as algemas e deixá-lo deitado no chão numa poça de sua própria urina.

A sala de tecnologia era um escritório grande, escuro, cheio de computadores conectados a várias bases de dados municipais, estaduais e federais. Havia vários monitores de tamanhos diferentes presos pelas paredes, por todo o cômodo. Os detetives Edgerton e Suarez estavam olhando para um com filmagens granulosas em preto e branco.

"O que estão examinando, garotos?" ela perguntou.

"Conseguimos as filmagens da rodoviária de Palm Springs para você", Manny Suarez disse. Ele era um cara baixinho, com uns 40 e poucos anos, uma barba de três dias e olhos sonolentos que escondiam um intelecto afiado.

"Espero que seja útil ou terei que ir lá eu mesma", Keri disse.

"O tenente Hillman já está resmungando por você ainda não ter ido", Suarez falou. "Isso me lembra de uma coisa. Ele pediu para eu lhe dizer que organizou um encontro entre você e a irmã de Kendra, Catherine. É na casa dela, em West Adams, amanhã, às oito da manhã".

"Sim, e ele disse que, se você faltasse, voltaria para o trabalho administrativo", acrescentou Kevin Edgerton, o bebê da tropa de detetives da Pacific Division. Alto e magro, com cabelo castanho claro que ele ficava o tempo todo afastando dos olhos, tinha apenas 28 anos.

Mas já havia se destacado com sua incrível expertise técnica. Ele tinha uma maneira própria de navegar por bancos de dados, filtrar estatísticas e conseguir informações digitais comparável à habilidade de Keri de compreender e predizer o comportamento humano. Era a maior esperança dela para finalmente descobrir o código do laptop de Pachanga.

No momento, ele estava digitando furiosamente num teclado, claramente aborrecido com algo.

"O que foi, Kevin?" Keri perguntou.

"Só estou frustrado. Veja aqui... isto é quando vemos o carro de Kendra entrar no estacionamento da rodoviária. Aqui está a placa do carro na imagem congelada. É meio difícil de ver porque o dipensador de tickets está bloqueado seu rosto, mas ela está pegando o ticket do estacionamento no portão de entrada. A hora é 9h31".

"Isso se encaixa. Se ela saiu de casa logo depois do marido, podia razoavelmente chegar a Palm Springs por volta desse horário", Keri disse.

"Certo", Suarez concordou. "Então, vemos Kendra aqui, aqui e aqui, enquanto ela vai até o terceiro andar do estacionamento. Mas essa é a última imagem que temos do carro. E é bem por volta desse momento, às 9h36, que o GPS é desligado, tanto no carro quanto no celular. A polícia de Palm Springs encontrou o veículo num dos poucos pontos do estacionamento que não é coberto pelas câmeras de segurança. Quais as chances disso acontecer?"

"Não muitas", Keri disse. "Vejam todas as vagas de estacionamento disponíveis pelas quais ela passou dirigindo no caminho até o terceiro andar. Ela estacionou nesse ponto de propósito. A pergunta é por quê".

"Essa não é a única coisa a esclarecer", Edgerton acrescentou. "Eu me pergunto para onde ela foi. Não há vídeo conclusivo que a mostre saindo do estacionamento ou entrando na rodoviária".

"Nenhum?" Keri perguntou, confusa.

"Bem, quase nenhum", disse Suarez. "usamos as fotos dela que você nos enviou e encontramos duas imagens que poderiam ser de Kendra. Mas não estão muito nítidas; não podemos fazer um reconhecimento facial".

"Mostrem-me as imagens e vamos conferir", Keri disse.

Enquanto Edgerton fazia isso, Keri se voltou para Suarez.

"Suponho que vocês já tenham conseguido os registros de ligações que Kendra fez e recebeu ontem. Algo interessante?"

"Não", ele disse. "Ela não fez uma única chamada de Beverly Hills até Palm Springs".

"E quanto a Jeremy Burlingame?"

"As ligações dele também estão limpas", Suarez disse, claramente desapontado. "Há várias mensagens de texto e chamadas perdidas dele para ela hoje, mas nada suspeito. E nada realmente de ontem, o que faz sentido, considerando que ele estava em cirurgia a maior parte do tempo".

Enquanto Keri processava isso em sua mente, Edgerton exibiu os trechos das filmagens. Mostravam quatro mulheres entrando na rodoviária dez minutos depois que o carro entrou na garagem. Keri entendeu por que os rapazes pensaram que todas podiam ser opções, mas imediatamente eliminou duas.

Uma tinha cerca de 1,60 m de altura, e Kendra estava mais perto de 1,77 m. Outra, mesmo sem ver seu rosto, estava, obviamente, no início dos vinte anos. Keri não podia explicar como sabia... algo na pele muito lisa e no jeito dela andar lhe diziam que esta não era uma mulher madura.

Levou mais de um momento para dispensar a terceira. A altura e constituição física eram as mesmas. Mas algo não batia. Finalmente, ocorreu-lhe. O cabelo da mulher era loiro escuro. Já que a filmagem era em preto e branco, Keri não notou a cor do cabelo, de início. Mas olhando novamente para a foto de Kendra e seu cabelo preto, ela percebeu que não podia ser a mesma pessoa.

A última mulher usava óculos escuros e um lenço na cabeça que lembrava a Keri de algo que Audrey Hepburn usaria para tentar se esconder dos jornalistas por volta de 1959.

Ela tinha a altura certa e seus modos combinavam com uma mulher no final dos trinta ou início dos 40 anos. Suas roupas — calças sociais, luvas longas e uma blusa solta e sofisticada — sugeriam alguém saindo de férias ou passando o dia num clube de campo. Podia ser ela.

"Acho que pode ser nossa garota. Não temos vídeo do interior da rodoviária, quando ela entra?" Keri perguntou.

"É claro que não", Manny disse, em um tom ácido. "Por que iriam facilitar para a gente? A câmera interna mostrando a entrada principal está quebrada. Desde a semana passada. Há várias outras câmeras, mas o lugar está muito lotado e, até agora, não tivemos ninguém em quem focar".

"E ainda não temos", disse Edgerton. "As câmeras são posicionadas bem alto e há tantas pessoas circulando que é como achar uma agulha num... bem, você entendeu".

"Certo. Então, esqueça isso", Keri sugeriu. "Talvez, seja melhor trabalhar de trás para frente".

"Como assim?" os dois perguntaram em uníssono.

"Ao mesmo tempo. Você me deve uma coca-cola", Edgerton disse, brincando.

"Vou ficar lhe devendo um sanduíche de socos se não tomar cuidado, garotão", Suarez rosnou.

"Só estou tentando descontrair", Edgerton balbuciou.

"Se as duas crianças terminaram", Keri disse, "vou explicar o que quero dizer. Se pudermos descobrir qual ônibus ela planejava pegar, talvez possamos identificá-la, ou ao menos seguir as filmagens de trás para frente até obter uma imagem clara. Além disso, vamos descobrir seu destino — matamos dois coelhos com uma cajadada só".

"Sabia que ficamos com você por uma boa razão", Suarez brincou enquanto Edgerton examinava os itinerários dos ônibus de ontem de manhã.

"Após duas horas da chegada dela na rodoviária, houve seis partidas: San Francisco, Las Vegas, Denver, Phoenix, San Diego e Los Angeles. Mas a maioria continuava para outros destinos. O ônibus para Vegas segue caminho até Nova York. O de Phoenix termina em Orlando. O de São Franciso continua até Portland e Seattle. O de San Diego para na fronteira com Tijuana. Quero dizer, como estreitar essa busca?"

Keri ficou em silêncio. Os dois homens sabiam que não deveriam interrompê-la quando entrava naquele estado.

San Diego faz um pouco de sentido, se ela seguiu até Tijuana. Se queria se perder, o México é um bom lugar para começar. Mas Kendra não parece uma garota do tipo Tijuana. Nenhuma razão para voltar para LA. Para onde, então?"

E então, ocorreu-lhe tão de repente que ela ficou envergonhada por ter levado tanto tempo.

"Confira a lista de passageiros para Phoenix", ela disse.

Edgerton recuperou o documento. Os três o escanearam ao mesmo tempo. O nome Kendra Burlingame não aparecia em lugar nenhum. Keri começou a ficar desanimada quando um nome lhe chamou a atenção.

"Clique neste aqui, Kevin", ela disse, apontando para um nome que parecia familiar. Os detalhes da passagem indicavam que foi comprada em dinheiro no dia da partida. Isso não ajuda".

"Por que estamos conferindo um passageiro chamado A. Maroney?" Suarez perguntou.

"Porque o nome de solteira de Kendra era Kendra Ann Maroney e ela cresceu em Phoenix, Arizona".

"Legal!" Edgerton exclamou, incapaz de conter seu entusiasmo juvenil.

"Agora, vamos para a câmera que mostra os passageiros entrando no ônibus para Phoenix para ver se damos sorte", ela sugeriu.

Edgerton exibiu o vídeo e, após alguns minutos, a mesma mulher de calça, luvas e blusa com os óculos escuros e o lenço na cabeça entrava no ônibus.

"A cabeça dela estava abaixada, então, ainda não podemos fazer o reconhecimento facial", Edgerton notou.

"É como se ela estivesse tentando esconder o rosto ou algo assim", Suarez disse, de maneira sarcástica. "Acho que, neste ponto, podemos dizer com segurança que ela não queria que o pessoal soubesse que estava fazendo esta viagem".

"Volte, Kevin", Keri disse, ignorando o falatório. Eram quase dez horas da noite e o dia longo estava claramente começando a consumir os nervos deles. "Vamos ver quando ela entra no enquadramento e então descobrir qual câmera pode ter pego uma imagem dela pela última vez".

"Ah, entendi", ele disse, combinando a localização dela no começo do vídeo do ônibus com onde ela estava em relação à câmera mais próxima. Usando o processo, eles puderam rastrear sua localização a partir do ônibus, de volta até uma pequena loja na rodoviária, onde ela olhou por um tempo alguns itens antes de comprar algo para comer.

Antes disso, eles a seguiram até o banheiro feminino. E, antes disso, ela se sentou por um tempo em uma das áreas de espera da rodoviária. Antes disso, ela estava caminhando por um longo corredor no hall principal da rodoviária. Era aí que terminava a filmagem, o que fazia sentido, já que a próxima imagem lógica teria vindo da câmera quebrada de frente para a entrada da estação.

"Certo, então, temos um passo a passo desde que ela entrou na rodoviária. Como isso nos ajuda?" Edgerton perguntou.

"Não tenho certeza ainda", Keri respondeu. "Por que não recuamos um pouco e apenas assistimos a tudo. Você pode reverter de modo que possamos ver os movimentos dela como realmente aconteceram?"

"É claro".

Edgerton deu início ao vídeo e eles assistiram-no quase em tempo real, a não ser pelos vinte minutos em que ela apenas ficou lendo uma revista na área de espera.

"Pode dar um zoom para ver o que ela está lendo?" Keri perguntou.

"Posso fazer isso depois que terminarmos com o vídeo. Pode levar algumas horas para processar a imagem, mas conseguiremos uma nitidez decente. Como isso pode ajudar?"

"Não sei. Estou tateando no escuro aqui".

Eles voltaram a atenção para a tela enquanto a mulher levantava e ia até o banheiro feminino. Ela saiu após alguns minutos e foi até a loja, onde olhou os produtos por algum tempo antes de comprar o que parecia ser uma barra de cereal e deixar o enquadramento da câmera.

"Volte novamente para quando ela estava olhando os itens da loja", Keri pediu.

Edgerton passou o vídeo novamente.

"Congele nesta imagem", Keri falou. "Há outras câmeras filmando em outros ângulos na loja?"

"Vou checar". Edgerton apertou algumas teclas e outra imagem apareceu do interior da loja. Quando chegou no mesmo ponto que o outro vídeo, ele o congelou. A mulher havia pego um pequeno bibelô circular.

"O que é isso?" Suarez perguntou.

"Acho que é um globo de neve", Edgerton disse, "e eu acho que posso distinguir o que está escrito. Diz... 'Palm Springs'. Para que criar um globo de neve de Palm Springs? Aqui nunca neva".

"É um souvenir idiota", Suarez disse. "E daí se eles fizeram nevar aqui? Eu me pergunto por que ela escolheu esse em particular. Pode ser importante. O que acha, Keri?"

"Talvez, mas não é nisso que estou interessada. Vejam, ela não está usando suas luvas. Percebi que ela não estava usando-as quando saiu do banheiro. Deve ter tirado-as lá dentro e esquecido de vesti-las novamente quando saiu. Mas ela está com as luvas quando sobe no ônibus".

"Qual a importância disso?" Edgerton perguntou. "E daí que sabemos que ela pratica bons hábitos de higiene e lavou as mãos".

Keri baixou os olhos e encarou o jovem detetive. Ele era uma gênio da tecnologia e ela esperava que suas habilidades fossem ajudá-la a descobrir o código de Pachanga. Mas, às vezes, ele era um pouco denso. Ela tentou não soar condescendente demais quando respondeu.

"A importância é que, a menos que alguém tenha comprado aquele globo de neve nos últimos dois dias, temos as impressões digitais desta mulher".

 

CAPÍTULO CATORZE

 

Keri sentiu o desgaste do dia enquanto estacionava na Marina Bay. Seus olhos pesavam e as dores que a vinham incomodando ao longo do dia estavam quase insuportáveis agora.

Não havia muita coisa que ela pudesse fazer na delegacia durante a noite. Ela pediu a Edgerton para contactar a polícia de Palm Springs para ver se eles poderiam coletar as impressões no globo de neve, supondo que ainda estivesse lá. Suarez se ofereceu para entrar em contato com a polícia de Phoenix para tentar obter as filmagens de segurança da rodoviária local. Eles esperavam rastrear os movimentos de Kendra a partir de lá para seja qual fosse seu próximo destino naquela cidade.

Mas essas duas coisas só iriam ser concluídas de manhã, no mínimo. Keri decidiu tirar vantagem do intervalo para ir para casa, tomar um banho e, quem sabe, dormir um pouco.

Mas enquanto ela se arrastava na direção da casa-barco de vinte anos de idade que vinha sendo seu lar pelos últimos anos, não podia parar de pensar nos detalhes do caso. Por que Kendra simplesmente deixaria tudo para fugir da própria vida? Por que ninguém que a conhecia — seu marido, suas amigas Mags e Becky Sampson, até aquele canalha do Rafe — achava que ela seria capaz disso? E ainda assim, as evidências até agora sugeriam que era exatamente o que tinha feito.

Estou deixando de ver algo. Estou olhando de uma perspectiva errada para isso.

Mas ela não conseguia mudar a perspectiva. A frustração estava deixando-a impaciente.

Keri chegou no seu barco e subiu. Talvez, uma pausa mental fosse ajudar.

A Sea Cups era, essencialmente, uma barraca decrépita flutuante. Foi batizada por um cara que claramente não era um feminista e Keri nunca tinha se importado em mudar isso ou pintar por cima. Tinha o básico: uma cama, uma cozinha, uma pequena sala de estar e uma escada que levava ao segundo andar, com uma chaise longue e uma mesa de cartas enferrujada. Era desprovida de quase tudo. Para tomar uma ducha e lavar roupas, ela tinha que ir até a estação de conveniência da marina, uma caminhada de quatrocentos metros.

Keri havia cansado desse estilo de vida e, enquanto estava internada no hospital, havia decidido fazer algumas buscas por um apartamento, assim que se sentisse um pouco melhor. Ela e Ray haviam até trocado jornais, circulando anúncios classificados que coubessem no orçamento. As simpáticas enfermeiras iam e vinham entre os quartos deles, fazendo o intercâmbio dos jornais. Era uma maneira de passar o tempo enquanto ambos estavam presos em um leito hospitalar.

Mas ela estava falando sério em relação a se mudar. Apesar do custo, planejava ficar na mesma vizinhança, mesmo que isso significasse conseguir um lugar minúsculo. Mas Keri queria um apartamento com dois quartos. Isso era fundamental. Era o jeito dela manter as esperanças de encontrar Evie um dia e trazê-la para casa, seja lá onde fosse.

Keri não tinha mais forças para caminhar até a estação de conveniência, então, lavou o rosto e chamou isso de banho. Tirou os tênis e abriu a geladeira. Não havia quase nada. Ela improvisou, fazendo ovos mexidos e usando-os para rechear uma tortilha. Então, sentou-se na minúscula mesa da cozinha e engoliu o jantar em menos de um minuto.

Ela pensou em subir no deck para relaxar, mas havia um vento frio soprando pela marina e Keri não estava no humor de encará-lo. Ao invés, desabou no sofá, abriu uma garrafa meio vazia de Glenlivet, e se permitiu tomar uma dose generosa.

Então, inclinou-se e puxou de baixo da mesa uma caixa de sapato cheia de cartões de indexação em branco e hidrocores coloridos. Anotou os nomes de todo mundo conectado ao caso e sua ligação com Kendra; em seguida, espalhou-os sobre a mesa e ficou olhando, esperando alguma inspiração. Nada.

Ela tomou um longo gole e deixou os olhos divagarem para o canto da sala, onde meia dúzia de caixas de mudança fechadas estavam encostadas na parede. Ela as havia comprado no primeiro dia que saiu do hospital e planejava começar a empacotar suas coisas imediatamente.

Mas então, a percepção de que ela ficaria presa a um apartamento realmente foi absorvida pela sua mente. Além disso, toda vez que olhava para as fotos que deveria estar empacotando, suas lembranças a sufocavam.

Ela tomou outro gole, fechou os olhos, e deixou o uísque preencher seu interior, com seu calor morno. As imagens flutuavam pela sua mente.

Ela viu o céu azul de setembro, a grama de um verde vivo do parque onde ela e Evie haviam estado há quase exatamente cinco anos. Ela viu o largo sorriso de sua filha de oito anos com seu dente superior lascado, seus cabelos loiros com dois rabos de cavalo, suas meias brancas de lacinho e tênis rosa pink.

Ela viu as costas do homem indo embora correndo com Evie, pela ampla extensão verde do parque e entrando no estacionamento, onde ele a jogou dentro de uma van branca. Ela viu o homem esfaquear um adolescente que correu para ajudar. Ela viu uma mecha de cabelos loiros sob o boné do homem e parte de uma tatuagem no lado direito do seu pescoço antes que ele desaparecesse dentro da van e arrancasse. Ela viu que a van não tinha placas. Ela sentiu o cascalho afiado afundando em seus pés descalços enquanto corria pelo estacionamento, tentanto alcançar a van, que acelerava com sua amada filha dentro.

Ela viu tudo isso. Então, abriu seus olhos, cheios de lágrimas, terminou o que restava do seu drinque, e se levantou. Sua noite ainda não tinha terminado.

 

*

 

No carro, a caminho do escritório de Jackson Cave, Keri, agitada com a expectativa e a ansiedade, olhou-se no espelho retrovisor e suspirou.

Ainda bem que não planejo usar meu charme para entrar lá, porque este visual não vai conquistar ninguém.

Keri não havia sequer se trocado. Para o que ela tinha em mente, seria melhor permanecer com seu moletom com capuz e jeans folgado.

Quando ela trocou de rodovias, da 405 norte para a 10 leste, a dúvida começou a se infiltrar em sua mente.

Esta é realmente a atitude mais inteligente agora? Estou colocando minha carreira inteira em risco?

Como geralmente fazia quando enfrentava um dilema, Keri decidiu ignorar o atual clima estranho entre ela e Ray e ligou para ele.

"Alô...?" disse uma voz sonolenta do outro lado da linha. Keri olhou para o relógio do seu carro.

Droga, são 23h40. Ele estava dormindo. O cara está se recuperando de um tiro.

"Ray? Desculpe. Esqueci que horas são. Ligo amanhã".

"O que foi?" ele perguntou, um pouco menos tonto.

"Queria a sua opinião sobre algo, mas pode esperar até amanhã", ela mentiu.

"Já acordei. Pode perguntar".

Essa era a deixa de que ela precisava.

"Acho que estou tomando uma decisão profissional realmente terrível, no momento".

"Certo", Ray disse. "Bem, agora estou completamente acordado... continue".

"Estou indo para o centro da cidade para invadir o escritório de advocacia de Jackson Cave".

Houve uma longa pausa.

"Bem, é uma coisa boa eu estar no hospital", Ray disse, por fim.

"Por quê?"

"Porque os médicos estarão por perto para tratar meu ataque do coração. Você ficou doida, Keri?"

"Já fui acusada disso".

"Dê a volta agora mesmo".

"Então, entendo que você acha que essa é uma decisão profissional terrível?"

"Acho que não é apenas uma decisão profissional terrível. É uma que pode lhe levar à prisão. Por que quer fazer isso?"

"Edgerton e eu estamos bloqueados em relação ao computador de Pachanga. Precisamos do criptograma correto para quebrar o código. De outro modo, é inútil. Então, eu visitei Cave hoje à tarde, para ver o que poderia descobrir, e tentei provocá-lo".

"Conseguiu?"

"Não tenho certeza. Talvez, um pouco. Tenho um palpite".

"Sobre o quê?" Ray perguntou.

"Não quero dizer. Não quero lhe causar problemas".

"Você está me dizendo que planeja invadir o local de trabalho de um advogado e agora vai dar uma de quem quer me proteger? É um pouco tarde para isso, não acha, Mini-Me?"

"Ouça, Optimus Prime — se eu for presa, você pode dizer que me disse para não ir e que eu mudei de ideia com base nisso. Na verdade, quando terminar esta conversa, é exatamente o que farei isso. E você está completamente dopado, então, vai acreditar em mim e voltar a dormir imediatamente. Mas se eu lhe der informações mais específicas, pode realmente ficar em apuros se for considerado cúmplice".

"Você é a mulher mais maluca que eu já conheci em toda a minha vida", Ray disse.

Keri não sabia dizer se ele estava horrorizado ou impressionado.

"Obrigada?" ela replicou.

"Você percebe que, se for pega, vai estar nas mãos do mesmo homem que pode saber a verdade sobre o desaparecimento de Evie. Realmente quer dar a esse cara tanto poder?"

"Não tenho escolha, Ray. Preciso arriscar. Faz cinco anos desde que ela foi levada. Essa é a melhor pista que já tive. Não posso simplesmente ficar esperando sentada. Não posso".

"Eu sei".

Ambos ficaram em silêncio. Keri manteve seus olhos úmidos na estrada, imaginando Ray deitado em seu leito de hospital, imaginando sua mão forte segurando o telefone ao ouvido.

"O que está acontecendo no outro caso?" ele perguntou, por fim. "Aquele da esposa desaparecida?"

"Ah, isso. Ainda estamos trabalhando nele. Não tenho certeza do que fazer ainda. Talvez eu ligue para você em algumas horas para pedir uma opinião. Que tal às três da manhã?"

"Parece bom, supondo que você não seja presa".

"Por que eu seria presa, Ray? Afinal, estou seguindo seu conselho profissional. Estou dando a volta e indo para casa. Decidi não prosseguir com meu plano maluco".

"Você é muito convincente. Acredito mesmo em você", Ray disse, sem estar convencido e sem acreditar no que estava ouvindo.

"Boa noite, Ray".

"Boa noite, Keri. E boa sorte".

Keri desligou e prosseguiu para onde estava indo. Ela podia ver a torre a distância, mas ainda não iria para lá.

Tinha que fazer uma breve parada no caminho.

 

CAPÍTULO QUINZE

 

Keri tentou não deixar seu nervosismo transparecer enquanto observava de pé, no escritório de segurança da US Bank Tower, o gerente de segurança examinar sua identidade falsa.

Para um gerente, ele parecia incrivelmente jovem. Era magricelo e seu uniforme pendia frouxamente em sua estrutura esquelética. Apesar de parecer inexperiente, estava hesitante sobre as alegações de Keri. Mas já que ela estava oficialmente violando a lei, decidiu pisar fundo.

"Por quanto tempo vai olhar para isso aí, Sr. Delacruz? O senhor começa a me fazer pensar se eu deveria investigar mais alguém aqui além da equipe de limpeza".

"Desculpe, policial Brid", ele disse, devolvendo-lhe a identidade. "É que ninguém me avisou que a empresa responsável pela limpeza do prédio estava sendo investigada, quanto mais que você faria uma operação-surpresa".

"Para começar, é para ser surpresa, Sr. Delacruz. Se lhe informássemos com antecedência, seria contra o propósito da operação. Segundo, é detetive Sue Bird, não policial. Eu trabalhei duro pela promoção e gostaria de receber o respeito que conquistei".

Sue Bird era, na verdade, o nome de uma jogadora profissional de basquete. Keri havia escolhido o nome para sua identidade policial falsa porque Bird era durona e determinada. Ajudava-a a desempenhar bem o papel.

"É claro", Delacruz disse, confuso e sem estar mais na ofensiva. "Do que você precisa mesmo, exatamente?"

"Preciso de um uniforme de limpeza e das chaves para todos os escritórios dos andares 69, 70 e 71. É onde acreditamos que o suspeito estará hoje à noite".

"E você realmente acha que um dos funcionários está roubando coisas dos escritórios?"

"Sabemos que uma empresa privada está pagando a uma terceirizada de limpeza para copiar material privado de computadores em várias instituições de alto nível na região do centro. Diminuímos o escopo da busca até duas empresas de limpeza. A de vocês é uma delas. Temos outra operação-surpresa acontecendo agora num prédio diferente para a outra. Esperamos encerrar este caso hoje à noite".

"Eu acho que deveria ligar para o gerente da segurança diurno para obter permissão, detetive Bird".

"Sinta-se à vontade. Mas devo avisá-lo que, se for descoberto que a empresa que limpa este prédio é culpada, os promotores podem considerar suas tentativas de interferir como conivência criminosa, e você pode enfrentar queixas de conspiração para cometer roubo. Mas a decisão é sua, Sr. Delacruz".

O homem só precisou de um segundo para decidir pular a ligação e levá-la até o vestiário feminino.

Enquanto Keri o seguia, permitiu-se dar um silencioso suspiro de alívio. Nunca havia usado sua identidade falsa e estava começando a se perguntar se Ray estava brincando quando sugeriu que ela fizesse uma, "no caso de precisar", há um ano. Ele tinha dito que, às vezes, era útil ser apenas um policial, ao invés de você mesmo. Não tinha realmente entendido o que ele queria dizer na época, mas comprendia agora.

"Pronto, detetive. Os uniformes ficam ali. Você pode escolher o que for do seu tamanho. Voltarei daqui a pouco com as chaves".

Quando ele saiu, Keri trocou-se o mais rápido que pôde, tirando seu moletom e jeans. Levou mais tempo do que ela gostaria, por causa das lesões no ombro e nas costelas, mas ela tomou cuidado para não se encolher de dor visivelmente ou dar qualquer dica de que estava machucada.

Quem sabe se existem câmeras no vestiário? Eu não posso deixar rastro.

Ela tirou o boné enterrado na cabeça, cobrindo seus olhos, mas com cuidado para não remover a peruca de cabelos castanho-escuros despenteados que estava usando. Em seguida, vestiu um grosso uniforme de limpeza para esconder a estrutura de seu corpo e enfiou duas luvas de borracha no bolso da calça.

Ainda que não houvesse ninguém no vestiário, o resto do prédio estava coberto por câmeras de segurança e não havia como Keri localizar todas elas. Então, o melhor era manter seu rosto escondido e não deixar impressões digitais. Mesmo se escapasse dessa, o pessoal da segurança, Cave mesmo e, possivelmente, a polícia, revisaria cada segundo das filmagens que pudessem encontrar para descobrir quem era realmente a detetive Sue Bird. Um passo em falso e ela seria descoberta, algemada, e, possivelmente, presa.

Foi por isso que Keri estacionou a doze quarteirões de distância, num estacionamento ao ar livre, sem câmeras, caminhou até uma estação de metrô e desceu perto da torre. Era por isso que ela estava calçando um par de velhos sapatos pretos que não usava há meses e que seriam jogados no lixo depois de hoje à noite, de modo que nenhuma pegada pudesse levar até ela. Era por isso que usava óculos escuros falsos levemente tingidos. E foi por isso que ela fingiu muito mal ter um sotaque sulista ao falar com Delacruz.

Ele bateu na porta. Keri olhou-se no espelho pela última vez e, satisfeita por não poder ser facilmente identificada, saiu para dar início à próxima fase do seu plano.

 

*

 

Keri saiu do elevador de serviço no 70º andar e caminhou até a porta com a trava em que ela havia enfiado um lenço. Fingindo usar o cartão-chave que o Sr. Delacruz lhe havia dado, ela empurrou a porta, que cedeu, abrindo-se.

Ela entrou e reajustou as luvas de borracha que havia vestido quando entrou no elevador do lobby. Ficou ali parada em silêncio, tentando pensar. Ter um cartão como chave ao invés de chaves de metal havia bagunçado seu plano. Ela teve sorte do lenço ter funcionado na porta externa. Mas qualquer escritório que ela abrisse a partir desse ponto iria registrar no sistema de segurança do prédio um horário, localização e ID do usuário.

É claro que, nesse caso, o cartão registraria a ID como sendo de um convidado geral ou funcionário. Mas quando eles checassem mais tarde, não seria difícil rastrear o usuário até a detetive inexistente que havia aparecido no meio da noite.

Isso significava que, eventualmente, Jackson Cave saberia que outra pessoa diferente da equipe normal de limpeza havia entrado em seu escritório. Quando ele fizesse essa descoberta, certamente iria mover o criptograma do lugar ou até mesmo destruí-lo. Então, ela só tinha esta única chance de encontrá-lo.

Enquanto caminhava rapidamente pelo corredor, Keri teve uma ideia.

Eu não tenho que abrir apenas o escritório de Cave. Posso abrir todos eles e esconder meu verdadeiro alvo.

O escritório de Cave ficava na extremidade do prédio, então, Keri começou em um no final do longo corredor, metodicamente destravando a porta de cada advogado. Depois de abrir a de Cave, ela continuou pelo outro corredor até todas estarem abertas.

Apesar de não poder vê-las, Keri sabia que havia câmeras por todo lugar, então, entrou em vários escritórios, fingindo procurar alguma coisa, esperando que seus movimentos os despistassem quando eles assistissem às filmagens dela mais tarde.

Quando chegou no escritório de Cave, Keri sabia exatamente aonde ir mas se conteve por um segundo. Um cara como Jackson Cave certamente teria segurança adicional além do que quer que o prédio oferecesse.

Ele deveria ter vários fios de alarme eletrônicos que avisariam-no se alguém violasse seus arquivos, computador ou qualquer coisa que ele achasse importante. Era inteiramente possível que ele ligasse para Delacruz no mesmo segundo em que um fosse ativado. Ou, pior, que ele viesse direto para o escritório.

Ocorreu a Keri que ela não tinha ideia de onde Cave morava.

Recentemente, o centro havia se tornado uma área residencial muito procurada. E se ele comprou uma cobertura em algum lugar aqui perto? Poderia chegar em minutos.

Era tarde demais para fazer algo a respeito agora, então ela entrou e caminhou diretamente para a foto de Cave com o monsenhor. Quando ela havia comentado sobre ela durante sua primeira visita naquela tarde, ele havia ficado tenso, ainda que de maneira quase imperceptível. Se o criptograma estava naquele escritório, era perto daquela foto.

Ela a levantou da parede e sentiu uma leve resistência, e então, ela se soltou. Olhando para a parede atrás da moldura, ela viu um fino fio elétrico pendendo para baixo. Obviamente, estava conectado às costas da moldura. A conexão havia sido cortada, o que era, quase que com certeza, o alerta que ela temia que Cave poderia receber.

Bem, pelo menos, estou no caminho certo.

Keri olhou para o seu relógio. Passava um pouco da meia-noite e meia. Ela imaginou que tinha dez minutos, no máximo, para sair do prédio, se Cave estivesse chamando a segurança. Puxou a cadeira dele e se sentou sob a mesa, onde nenhuma câmera poderia ver o que estava fazendo.

Então, tateou o forro da parte de trás da moldura até que seus dedos enluvados passaram por uma pequena saliência do tamanho de um pen drive. Em seguida, ela pegou o velho celular Android que tinha trazido, conectou-o ao drive com um cabo e começou o download.

Havia apenas um arquivo e o processo inteiro levou menos de um minuto. Keri enfiou o celular e o cabo novamente em seu bolso, recolocou o pen drive atrás da moldura e começou a posicioná-lo novamente na parede.

Mas, percebendo que não havia por que fazer aquilo naquele ponto, ela tentou outra tática. Ao invés de recolocar a foto no lugar, deixou-a cair no chão, quebrando o vidro. Em seguida, ela removeu e deixou cair várias outras fotos ao longo da parede. Talvez pudesse convencer Cave de que as fotos tinham caído durante um mini-terremoto. Não era uma solução, mas poderia segurá-lo até que visse as filmagens.

Keri caminhou pelo corredor o mais rápido que seu corpo machucado lhe permitiu e passou pela mesma porta lateral pela qual havia entrado no escritório. Correu até o elevador de serviço e apertou o botão para descer. As portas se abriram imediatamente. Ela considerou isso um bom sinal. Se não estivesse lá, provavelmente significava que Delacruz ou um de seus homens estava subindo.

Ela desceu, tomando o cuidado de manter sua cabeça abaixada e seu boné bem enterrado, checando seu relógio o tempo inteiro. Eram 24h37. Era difícil acreditar que Cave ainda não tinha entrado em contato com Delacruz ou outro segurança. Não ficaria surpresa se eles estivessem esperando por ela no lobby.

Keri levantou os olhos. Estava no quarto andar e descendo rápido. Ela apertou então o botão para o segundo andar, com força. O elevador parou um momento depois e ela saiu. Estava na metade do corredor quando ouviu o ding indicando que as portas estavam se fechando novamente.

Ela foi até a porta das escadas no final do corredor e olhou pela pequena janela. Não havia ninguém. Abriu a porta e desceu até chegar ao lobby. Não havia janela naquela porta, então, ela abriu apenas um brecha e deu uma espiada. Não podia ver, mas ouvia pessoas falando alto.

"Entre em contato comigo assim que encontrá-la", ela ouviu Delacruz ordenar a alguém. Keri saiu e se moveu em silêncio pelo corredor. Um ding alto lhe avisou que um guarda havia provavelmente acabado de entrar no elevador de serviço e estava subindo para procurar por ela. Havia outro segurança na mesa da recepção, de costas para Keri.

Ela virou no final do corredor a tempo de ver Delacruz voltando para o escritório da segurança, provavelmente para informar Cave sobre o progresso das buscas. Assim que a porta se fechou, ela foi na ponta dos pés de volta para o vestiário. Não havia tempo para vestir suas roupas, mas também não queria deixá-las aqui. Delacruz iria se lembrar de que estiveram lá, e alguém pensaria em extrair seu DNA do tecido.

Ela enfiou as roupas num saco de lixo, jogou-o sobre o ombro, e saiu pela porta dos fundos dos funcionários que lhes permitia entrar e sair do prédio sem que ricaços elegantes de terno tivessem que pôr seus olhos nelas.

A porta dava para um longo corredor, que terminava numa escada estreita. Keri desceu por elas e abriu a porta embaixo. Dava para um estacionamento que parecia se estender por quilômetros.

Ela viu uma cabine de segurança no ponto mais extremo e caminhou na direção oposta, para uma porta que parecia ser uma saída de pedestres. Abriu-a e descobriu que era, na verdade, um longo túnel que subia lentamente. Ela o seguiu até chegar a uma outra porta que se abria para a rua.

Keri saiu e respirou fundo. Estava finalmente fora do prédio. Mas ainda muito longe de estar segura.

 

CAPÍTULO DEZESSEIS

 

Com o coração batendo forte, Keri se acocorou desconfortavelmente no canto do pequeno estacionamento, respirando sofregamente e ignorando a dor em suas costelas, que latejavam. Ela correu até aqui ao ouvir as sirenes próximas e quase não teve tempo de se esconder atrás do muro de concreto de um metro de altura do estacionamento, antes de um carro de patrulha dobrar a esquina.

Ela esperou o som diminuir antes de se levantar novamente. Estava a dois quarteirões de distância da torre, ainda perigosamente perto. Também teria que atravessar dez ruas para chegar a seu carro, e não havia chance de voltar como veio, de metrô. O caminho estaria coberto por policiais à procura de uma mulher usando uniforme de limpeza.

Ela tinha que encontar um lugar lotado, onde pudesse se trocar e se misturar à multidão, para enfim escapar sem ser notada. Keri correu até a South Grand Avenue, na direção noroeste, onde estava seu carro, procurando algum lugar em que pudesse se enfiar.

O som de música house alta, pulsante, emanava de algum ponto na West 4th , e ela cortou caminho naquela direção. Perto da esquina da South Olive, ela viu uma casa noturna chamada The Gentry. Uma longa fila partia da porta da frente e serpenteava, dobrando a esquina. Não havia como o segurança deixá-la entrar da forma como estava vestida, então, ela foi até o beco atrás do prédio.

Quando chegou na porta dos fundos da casa noturna, Keri ouviu mais sirenes bem próximas. Ela bateu com força na porta e aguardou, na esperança de que alguém abriria antes das luzes de uma viatura da polícia de LA iluminasse o beco.

Após o que pareceu uma eternidade, a porta se abriu. Uma mulher pequena nos seus cinquenta anos, usando uma rede nos cabelos e um avental, apareceu diante dela. A mulher olhou Keri de cima a baixo, e imediatamente começou a fechar a porta.

A policial colocou o pé na brecha para bloquear a porta e implorou.

"Por favor, deixe-me entrar".

A mulher parecia pronta a fechar a porta com força, quando percebeu o som das sirenes próximas. Os olhos dela se abriram e ela olhou ao redor para ver se as viaturas estavam visíveis. As luzes vermelhas e azuis não estavam à vista ainda, mas, pelo som, não podiam estar a mais de um quarteirão de distância.

"Policia?" ela perguntou, com uma voz apressada, amedrontada.

"Sí", Keri sussurrou de volta.

A mulher olhou para ela por mais um momento sem fim. Então, sem mais uma palavra, a puxou para dentro.

"Obrigada", Keri sussurrou.

"Sigueme", a mulher disse, indicando a Keri para segui-la. Ela mostrou o caminho por um pequeno corredor até o que parecia um vestiário de funcionários.

"Obrigada", Keri repetiu, sentando-se no banco minúsculo no meio da pequena sala.

"Espera aquí", a mulher disse, levantando a mão. O espanhol de Keri era limitado, mas ela entendeu a mensagem. A mulher queria que ela permanecesse ali.

Quando saiu, Keri começou a trocar o uniforme de limpeza e voltou a usar seu moletom e jeans de antes. Mais ou menos na metade daquele processo lento e trabalhoso, a mulher voltou. Trazia roupas nas mãos, que imediatamente pendurou nas costas da porta.

Keri ficou surpresa com o que viu. A mulher havia conseguido uma saia navy solta, uma regata lavanda e um par de sapatilhas pretas estilosas. Ela também trazia uma boina preta e uma pequena bolsa de noite, com espaço bastante para a identidade falsa de Keri e o celular Android com os dados do pen drive de Cave.

"Onde conseguiu tudo isto?" Keri perguntou, impressionada.

"Achados e perdidos", a mulher replicou, com um forte sotaque. Então, sem perguntar, aproximou-se e tirou a peruca morena desgrenhada da cabeça de Keri, pegou um elástico do bolso e fez um coque alto e bem apertado com os cabelos verdadeiros da detetive. Ela recuou um passo e assentiu, aprovando.

Depois, a mulher a ajudou-a a entrar nas roupas e ajustou a boina, de modo que nenhuma parte do cabelo loiro de Keri ficou visível. A mulher pegou o uniforme de limpeza, as roupas, sapatos, peruca e boné de Keri, e enfiou tudo num saco plástico.

"Quemar", ela disse, enquanto mostrava um isqueiro.

"Não tenho como lhe agradecer. Como se chama?"

"Esmeralda", a mulher disse, sorrindo. Ela não perguntou de propósito o nome de Keri e Keri não o ofereceu a ela.

"E agora?"

"Ven", Esmeralda disse, novamente fazendo menção para segui-la. Elas foram até os fundos da casa noturna, passando por máquinas de lavar louça e pelos cozinheiros, que mantinham intencionalmente a cabeça baixa enquanto ela passava.

Quando chegaram na porta que levava da cozinha para o clube em si, Esmeralda apontou pela janela na direção da entrada do clube. Keri assentiu, compreendendo.

"Gracias", ela disse.

Esmeralda fez que sim com a cabeça e abriu a porta sem uma palavra mais. Keri saiu e foi até a parte da frente, com a cabeça baixa, deslizando entre os clientes na pista de dança e bêbados barulhentos, tentando ser o mais discreta possível.

Quando chegou do outro lado, já estava na Olive e continuou na direção norte, até voltar ao estacionamento. Ainda havia sirenes ocasionais, mas todas pareciam estar concentradas perto da torre. Keri não havia visto um único carro da polícia no seu trajeto de volta.

Seu carro ainda estava lá, sozinho no estacionamento quase que completamente vazio. O papelão que ela havia colado nas placas da frente e traseiras ainda estavam no lugar. Ela entrou no carro e partiu, seguindo cada lei de trânsito ao pé da letra, pegando ruas laterais ao invés da rodovia, até chegar numa rua residencial.

Havia chegado ao West Adams District, o mesmo bairro em que a irmã de Kendra Burlingame, Catherine, vivia. Tudo estava em silêncio. Keri podia sentir seus batimentos cardíacos voltarem lentamente ao normal.

Ela pegou o celular e o ligou. Esperando a informação carregar, tentou manter suas expectativas sob controle. Este arquivo podia conter tudo de que precisaria para encontrar Evie. Ou podia ser apenas mais uma rua sem saída.

Terminou sendo algo entre essas duas coisas. Quando a tela carregou, Keri viu que precisava digitar uma senha para acessar o criptograma. O fato de seja lá o que estivesse no drive estar protegido por senha e escondido atrás de uma foto emoldurada sugeria que era o que ela buscava. Mas não tinha ideia de como adivinhar a senha de Cave.

Que inferno! Como vou descobrir esta senha?

Parte dela considerou apenas ficar ali e fazer algumas tentativas até descobrir. Mas sabia que era perda de tempo. Ela também estava exausta e poderia terminar cometendo algum tipo de erro irreparável. Apesar de ser exasperador, precisava olhar para isso novamente quando estivesse de cabeça fria.

Ela considerou brevemente reclinar o banco e capotar ali mesmo no carro até a entrevista com Catherine, de manhã. Mas isso iria estragar o álibi que ela havia planejado tão meticulosamente. Então, afastou o pensamento de sua mente e continuou para seu próximo destino.

 

*

 

Keri estava deitada na mesa de massagem. Seus olhos estavam exaustos, mas ela se forçava a permanecer acordada. O objetivo era um facilitado pela massagista, que estava lhe dando uma esfoliação corporal bem intensa. Keri havia tentado explicar que suas costelas e ombro estavam machucados, mas, de vez em quando, ainda era sacudida por uma mão firme demais. Enquanto tentava relaxar, Keri pensou em sua atual situação.

Ela tinha um álibi e achou que seria convincente. Antes de ir até o escritório de Cave, havia parado em Koreatown para agendar uma massagem em um de seus spas 24h. Esses lugares eram um dos mais estranhos, mas cada vez mais populares pontos de encontro de LA. Muitos deles ficavam abertos 24h por dia, sete dias por semana, e ofereciam de tudo, de esfoliação corporal e saunas, até jantares e salas de leitura com Wi-Fi.

Keri havia selecionado um lugar menor, conhecido por deixar seus clientes sozinhos quando não estavam sendo atendidos. Ela havia ido até o vestiário, onde deixou seu celular e identidade verdadeira num armário com chave, juntamente com uma muda de roupas limpas. Assim, enquanto Keri estava no escritório de Cave, o GPS do seu celular diria que ela estava relaxando num spa de Koreatown.

Em seguida, ela se esgueirou por uma porta lateral, deixando-a destrancada usando seu truque patenteado com o lenço, entrou no carro e se dirigiu ao centro para violar várias leis. Quando voltou, usou a mesma porta lateral e voltou para a sala do armário para tirar a roupa que usaria durante sua massagem e esfoliação, às 2h30 da manhã.

Em algum momento após sua esfoliação e durante a massagem, ela caiu no sono. Quando a massagista a acordou, eram 3h30 da manhã. Ela agradeceu à mulher pelo tratamento que não conseguia se lembrar de ter recebido e entrou novamente numa sala silenciosa, onde capotou por três horas.

Quando seu alarme a acordou, às 6h30, Keri não se sentia exatamente renovada. Sua pele estava sensível e não eram apenas os machucados que doíam. Quase todo músculo em seu corpo doía. Ela sabia que deveria ter tomado um banho logo depois do tratamento, mas estava cansada demais. Seja lá o que fosse que a mulher tinha feito a ela enquanto dormia, Keri estava pagando o preço por isso agora.

Ela se arrastou até um dos chuveiros e ficou de pé sob a ducha por 15 minutos, deixando a água morna aliviar seu corpo cansado. Quando se sentiu algo parecida com o normal, ela saiu e voltou para a sala dos armários.

Ainda em seu robe, pegou novamente o celular. Ela o ligou, na esperança de que alguma senha tivesse magicamente sido auto-preenchida na tela durante a noite. Não deu sorte. A palavra "senha" com um retângulo vazio sob ela a encarou de volta, quase a provocando.

Tentando manter a calma, Keri devolveu-o para sua bolsa, vestiu suas roupas limpas — as calças de todo dia, blusa e sapatos confortáveis — e foi embora.

Chegou na casa de Catherine Maroney Wexler dez minutos mais cedo e usou o tempo extra para engolir o bolinho de mirtilo que tinha comprado numa cafeteria a caminho de lá. Enquanto bebia seu café, olhou para o celular com os dados baixados mais uma vez.

Sabia que isso estava ficando ridículo. Estava começando a parecer como se todos os riscos insanos que havia corrido na noite anterior tivessem sido em vão. Ela não teria um momento "eureka!", de repente, e entenderia o que se passava dentro do cérebro de Jackson Cave. E se ela não sabia como ele pensava, não havia como descobrir o código.

Isso não é de todo verdade. Eu conheço sim uma pessoa que pode ter alguma ideia de como a mente de Cave funciona.

Keri olhou para seu relógio. Eram 7h58 da manhã. Não havia tempo para fazer nada antes da entrevista com a irmã de Kendra. Mas depois que terminasse, sabia exatamente aonde estava indo: visitar um fantasma.

 

CAPÍTULO DEZESSETE

 

Keri tentou manter a calma, apesar de sua crescente insatisfação. A má vontade de Catherine era surpreendente para alguém cuja irmã estava desaparecida. Depois de receber a policial no que ela anunciou como a sala de estar da casa no ornamentado estilo neogótico tradicional, Catherine pediu à governanta para trazer chá.

Keri teve a impressão de que esta era uma mulher muito mais interessada nas aparências do que em sua irmã mais velha. Tinha os mesmos cabelos longos e escuros, mas usava uma maquiagem muito mais pesada, mesmo às oito da manhã, do que Kendra usava em qualquer foto que Keri havia visto.

Ela era um pouco mais baixa e mais magra, meio como se passasse fome por vontade própria. Também parecia ter feito algumas cirurgias plásticas, ainda que Keri avaliasse que Catherine tinha quase a mesma idade que ela.

"Então, você se mudou para cá depois de Kendra?" Keri perguntou enquanto elas esperavam pelo chá.

"Sim, ela é três anos mais velha que eu e eu fui inspirada por ela a ser uma atriz. É claro que, na época em que cheguei, ela havia desistido e estava trabalhando como uma publicitária trainee. Acho que sua tentativa de estrelato a deixou com um gosto ruim na boca".

"Você está se referindo às fotos?" Keri perguntou.

"Como você soube delas?" Catherine perguntou, com olhos arregalados de surpresa.

"É meu trabalho saber essas coisas. Isso é algo sobre o qual eu queria lhe perguntar. Pelo que entendi, você se encontrou com Rafe Courtenay para fazer o pagamento mais recente no domingo. Ele disse que foi a primeira vez em que alguém diferente de Kendra fez o pagamento. Por que a mudança?"

Catherine começou a responder, mas se interrompeu quando a governanta trouxe o chá. Só quando a mulher saiu ela deu a resposta.

"Não tenho ideia. Só falamos sobre essas fotos uma vez, quando eu me mudei para cá pela primeira vez e ela estava me alertando sobre como as pessoas podem ser inescrupulosas. Eu nem sabia que Kendra estava sendo chatageada. Então, foi uma surpresa total para mim quando ela me pediu para fazer aquilo. Tudo o que me disse foi que tinha que resolver algo importante, e que não podia esperar. Eu fiquei bem desconfiada. Mas ela parecia desesperada, então, concordei".

Catherine bebeu um gole forçado de seu chá, quase como se estivesse usando o calor da bebida para se acalmar. Keri continuou, sem querer dar a ela tempo para se sentir confortável demais.

"Ela não deu nenhum detalhe sobre com o que estava lidando?"

"Não", Catherine retrucou. "Falou algo sobre acertar as coisas. Mas, além disso, estava muito calada".

"Sra. Wexler, temos indícios de que sua irmã pode ter fugido. Você acha que isso é possível? Ela pode simplesmente ter ido embora da cidade sem dizer a ninguém?"

Catherine pôs sua xícara de chá sobre a mesa e olhou Keri nos olhos.

"Ouça, detetive, minha irmã e eu não somos mais muito próximas. Ela pensa que eu vendi minha alma".

"Fez isso?" Keri perguntou, sem cerimônia.

Catherine pensou por um momento antes de responder. Ela parecia estar sinceramente ponderando a pergunta.

"Eu não sei. Ser atriz era difícil. Então, casei com um executivo da área imobiliária fabulosamente rico. Tenho dois filhos. Passo meu tempo em nosso clube. Fiz algumas plásticas. Ela achou que eu desisti dos meus sonhos rápido demais. Mas sou bastante feliz com minha vida".

"E o que você pensa sobre ela?"

"Acho que minha irmã é uma mulher incrível. Quando criança, lá em Phoenix, ela aprendeu espanhol para poder se conectar melhor com os filhos de imigrantes ilegais no abrigo em que era voluntária. Mas ela não é do tipo de ficar satisfeita com o que tem. Era uma RP incrível, mas ficou entediada de apenas aliviar a barra de celebridades. Então, criou a fundação. Ela faz um trabalho incrível para ajudar essas crianças, mas também queria viajar pelo mundo, tentar coordenar clínicas-satélites em países subdesenvolvidos. Mas Jeremy estava satisfeito em manter a caridade localmente. Acho que isso a deixava frustrada. Especialmente por causa do problema com filhos".

Keri tentou manter uma expressão calma enquanto sua respiração se acelerava. Na experiência dela, "problema com filhos" frequentemente tinha uma papel proeminente em conflitos matrimoniais.

"Que problema?" ela perguntou, o mais casualmente que pôde, sem querer dar a entender a Catherine seu elevado estado de interesse.

"Ela não podia ter filhos... eles descobriram há uns cinco anos. Acho que ela mergulhou neste trabalho como uma maneira de compensar. Eu sei que Kendra ficou para baixo algumas vezes. Isso é uma das razões pelas quais ela se mantinha tão ocupada. Odiava ficar parada e Jeremy estava mais do que satisfeito apenas vivendo a vida que eles levavam. Acho que ele gostava do fato de serem apenas os dois".

"Você acha que o tédio pode ter se manifestado de outras maneiras?" Keri perguntou.

"Está perguntando se ela pode ter tido um caso?" Catherine perguntou, sem rodeios.

"Sim", Keri confirmou, da mesma forma.

"Como eu disse, não éramos mais tão próximas, então, eu não sou a pessoa mais indicada para responder essa pergunta. Mags Merrywether deve saber mais sobre os segredos de Kendra. Mas isso me surpreenderia. Minha irmã tinha uma bússola moral muito boa. Foi em parte por isso que nós nos afastamos. Ela achava que a minha não funcionava tão bem".

"Certo. Acho que tenho o que preciso. Mas há mais uma coisa."

"Sim?"

"Você não respodeu realmente a minha pergunta. Acha que Kendra pode ter simplesmente ido embora?"

"Não, detetive. A Kendra que eu conhecia nunca abandonaria sua vida aqui, a menos que tivesse uma razão muito boa".

"Então, se ela não foi embora por conta própria, pode pensar em alguém que pudesse querer fazer mal a ela?"

Catherine ficou em silêncio por um momento, mergulhada em seus próprios pensamentos. Quando levantou os olhos, Keri sabia da resposta antes dela falar.

"Ninguém", ela disse, por fim. "A maioria das pessoas — Jeremy, Mags, as crianças que ela ajudou — a adoram. Não somos melhores amigas, mas a amo muito. Ela é minha irmã mais velha, afinal. Mas alguém com uma verdadeira animosidade contra ela? Não, não consigo pensar em ninguém".

Keri agradeceu e foi embora rápido. Enquanto voltava para o carro, um pensamento frustrante não saía de sua cabeça.

De volta à estaca zero.

 

CAPÍTULO DEZOITO

 

Keri estava sentada em silêncio, tentando esconder a ansiedade enquanto aguardava seu convidado ser trazido para a sala de concreto fria e sem janelas.

O único conforto ali eram a mesa de metal no centro da sala e duas cadeiras, também de metal, uma em cada lado da mesa. Todas eram chumbadas no chão. Quase tudo era chumbado na Unidade Correcional Twin Towers, no centro de Los Angeles.

Esse era o nome oficial da cadeia do condado. Era para ser uma estação intermediária para as pessoas aguardando julgamento ou transferência para uma prisão de longo prazo. Mas, devido à superlotação, frequentemente, abrigava criminosos condenados por semanas, meses e até anos, até abrir uma vaga em algum outro lugar.

Essa era a situação do homem que ela esperava — Thomas "Fantasma" Anderson. Anderson era um sequestrador profissional de crianças frequentemente contratado para raptar crianças. Algumas vezes, seus clientes eram casais sem interesse pelo processo legal de adoção. Outras vezes, seus "clientes" tinham intenções mais nefastas.

Keri havia pesquisado sobre ele enquanto procurava informações sobre o raptor de Evie. Num certo ponto, até pensou que ele poderia ser o culpado, antes de conhecê-lo pessoalmente. Apesar de eliminá-lo como suspeito, quanto mais Keri pensava nele, mais parecia que o raptor de Evie também era um profissional. Portanto, ela havia decidido que, para pegar um sequestrador profissional de crianças, poderia ser útil buscar informações com um "colega".

E Anderson vinha, realmente, sendo útil. Havia dado a ela uma visão geral sobre como o submundo dos raptos de crianças operava. Ele havia dito o nome de guerra — "Colecionador" — do homem cujo modus operandi mais batia com como Evie foi levada.

E, mais relevante para Keri agora, ele havia falado sobre como alguns advogados de defesa corruptos às vezes agiam como intermediários entre sequestradores e potenciais clientes. E mencionou um nome em particular, seu próprio advogado, Jackson Cave.

Por que ele havia sido tão generoso, Keri não sabia. Ela havia prometido escrever uma carta para o Conselho Penitenciário a seu favor, algo que ainda não havia feito por causa de seu confronto com Pachanga e subsequente hospitalização e recuperação.

Mas isso não parecia razão suficiente para Anderson liberar tantos segredos de negócio. A detetive teve a impressão de que ele estava visando algo a longo prazo. Mas, no momento, se ele pudesse ajudá-la, ela não ligava para isso.

E Keri tinha quase certeza de que ele podia ajudá-la agora. Afinal, como um dos clientes de Jackson Cave, ele havia passado muitas horas com o homem. E Anderson era perspicaz, de uma forma assustadora. Se alguém podia arriscar um bom palpite para qual poderia ser a senha de Cave, era ele.

A porta da sala se abriu e Keri se levantou, afastando qualquer pensamento alheio de sua mente. Quando se tratava de Thomas Anderson, ela precisava estar em sua melhor forma.

Ele entrou arrastando os pé, usando correntes nos tornozelos e algemas nos pulsos. Era difícil ter certeza, mas ela pensou detectar que ele mancava um pouco.

Como da última vez em que eles se encontraram, Anderson estava vestindo o macacão laranja vivo de prisioneiro. Como da última vez, seu volumoso cabelo preto estava bem dividido, como se ele o tivesse molhado em antecipação ao encontro deles.

Mas, diferente da última vez, quando ele já estava sentado na sala esperando por ela, Keri podia agora avaliar sua altura e constituição física. Ele não era muito alto, talvez tivesse 1,72m de altura. Mas tinha uma constituição maciça. E, para um homem de cinquenta anos, ficava claro que ele havia se esforçado para permanecer em forma. Mesmo sob o macacão frouxo, ela podia notar que ele usava regularmente a sala de musculação da cadeia.

Parecia impossível, mas ele havia feito ainda mais tatuagens nas duas semanas desde que Keri o havia visto pela última vez. Quase todo centímetro visível do lado direito do corpo dele, dos dedos até a orelha, estava coberto com elas. E agora havia um pequeno curativo no lado externo do pulso dele, que, ela suspeitava, escondia uma nova obra de arte. Interessante que o lado esquerdo do seu corpo era completamente destituído de tinta.

Keri olhou para o rosto de Anderson e viu seus olhos escuros estudando-a atentamente. Ela notou que ele estava fazendo algum tipo de cálculo mental. A detetive não se ofendeu, já que isso era exatamente o que ela vinha fazendo com ele.

"Nova tatuagem?" Keri perguntou, indicando com a cabeça na direção do pulso dele enquanto o guarda prendia suas correntes numa barra da mesa.

"Um pardal", ele disse, "eu lhe mostraria, mas ainda está muito recente e sanguinolenta para ser realmente apreciada. Como estão as costelas?"

"Ainda doloridas", ela respondeu, tentando esconder sua surpresa. A natureza de suas lesões não havia sido divulgada no noticiário e ela não tinha se movido desde que entrou na sala. "Como sabia...?"

"Sua respiração está mais superficial do que da última vez que me visitou, o que indica ou uma lesão na costela ou uma lesão muscular nessa área. E a maneira como você está cuidadosamente mantendo o braço meio afastado do lado do seu corpo, de modo que não bata acidentalmente nelas, sugere costelas".

"Muito perspicaz, especialmente para um homem que deve provavelmente estar usando um andador. É apenas artrite ou alguém lhe deu uma rasteira no pátio?"

Anderson riu, revelando uma boca cheia de dentes muito brancos.

"Touché, detetive Locke. Realmente, a lesão na minha perna foi o resultado de uma briga. Tudo para defender sua honra".

"Como?"

"Houve uma matéria no jornal sobre sua luta com Alan Pachanga. Aliás, parabéns. Outro prisioneiro viu você na coletiva de imprensa, de cadeira de rodas, pedindo ajuda para encontrar sua filha, e lhe chamou de 'capeta dos infernos'".

"Eu sou uma capeta dos infernos", Keri admitiu.

"De todo modo, achei a observação muito inapropriada e disse isso a ele. Ele se ofendeu com meu comentário. Entramos numa disputa, e eu terminei com a lesão no joelho que você notou".

"Causou algum estrago nele, pelo menos?" Keri perguntou, suspeitando que Thomas Anderson, mesmo na sua idade, poderia causar alguns danos sérios.

"Posso dizer que sim. Ele ainda está na enfermaria. Parece que teve uns dedos quebrados, uma rótula despedaçada e um fratura craniana na linha da testa".

Ele mencionou as lesões como se fossem itens numa lista de supermercado. Lembrou a Keri que, apesar de seus modos gentis, o homem à sua frente era muito perigoso.

"Uau", ela disse, tentando agir calmamente, "estou surpresa de lhe permitirem visitas depois disso".

"Normalmente, não deixariam. Na verdade, tenho estado na solitária desde a briga e permanecerei lá pelas próximas duas semanas. Mas acho que eles fazem exceções para visitas da polícia. Então, suponho que devo lhe agradecer por me permitir receber um pouco de ar comparativamente mais fresco e esticar um pouco as pernas".

Ele tentou se reclinar em sua cadeira, como se tentasse se deleitar com o entorno, mas as correntes não lhe permitiam muito conforto.

"Bem, sei uma maneira de me agradecer", Keri disse-lhe.

"Apenas dizer 'obrigado' não é o bastante?" ele perguntou, com apenas um traço de indignação fingida.

Keri falava sério, então, se inclinou e foi direta.

"Estou procurando por algo um pouco mais concreto".

Anderson sorriu levemente, degustando uma pausa mais demorada antes de responder.

"Seria um prazer. Posso supor que o favor será recíproco, de alguma forma? Afinal, o Conselho Penitenciário pode processar apenas um certo número de cartas de recomendação".

Keri não podia dizer se ele realmente não sabia que ela ainda tinha que escrever a carta ou se estava testando-a.

Melhor esclarecer esse ponto com este cara. Se ele não confiar mais em mim, nunca vai ajudar.

"Sobre isso", ela disse, "estive um pouco ocupada desde que nos encontramos pela última vez, encontrando o raptor de Ashley Penn, entrando numa briga de vida ou morte com ele, e passando uma semana no hospital. Por isso, ainda não tive a chance de escrever sua carta. Não queria escrevê-la com pressa, entende?"

Anderson assentiu, aparentemente, sem se deixar perturbar pelo atraso.

"Agradeço sua honestidade, detetive Locke. Mas seria muito bom se pudesse fazer isso logo. Talvez, quando eu sair da solitária. Tenho uma audiência em novembro e adoraria acrescentá-la ao relatório oficial".

"Realmente acha que fará alguma diferença, depois de ter passado um mês no buraco?"

"Você ficaria surpresa", ele replicou. "Posso ser muito persuasivo quando quero".

Ela já sabia que era esse o caso. Quando ela revisou os registros dele pela primeira vez, viu que Anderson havia atuado como seu próprio defensor no mais recente julgamento. Aparentemente, ele tinha sido tão persuasivo que, se o caso não tivesse sido amortecido, ele poderia ter pego pena por enforcamento.

"Se não importa que eu diga, Sr. Anderson, estou mais surpresa por vê-lo aqui do que pela possibilidade de ser convincente. O senhor parece tão meticuloso que é incrível ter sido pego".

Anderson sorriu antes de responder.

"Acho que meticuloso é uma palavra maravilhosa para me descrever, detetive Locke. Talvez tenha me tornado bibliotecário por causa disso".

"O senhor era um bibliotecário?" Keri não pôde conter o tom chocado em sua voz.

"Por mais de 30 anos, os últimos dez na Biblioteca Central de Los Angeles. Já esteve lá? É uma verdadeira jóia. Quanto a eu ter sido pego apesar de ser tão meticuloso, isso é bem interessante. Quase suspeito, não acha?"

Keri tentou processar tudo aquilo. Anderson ter sido um bibliotecário era surpreendente o bastante. Mas ele parecia estar sugerindo que foi preso meio de propósito. Era coisa demais para compreender de uma vez. E nada daquilo era relevante para ela no momento. Precisava fazer essa conversa voltar aos eixos.

"Definitamente, eu escreverei essa carta em breve", ela prometeu, forçando-se a manter um tom polido, quase brincalhão, apesar de sua crescente impaciência. "Mas, como mencionei, poderia ter sua ajuda com algo, se estiver inclinado a isso".

"É claro. Farei o que posso, desde que seja razoável. O que é?"

Keri levantou os olhos para o guarda de pé no canto da sala.

"Preciso de um momento", ela lhe disse. O homem não parecia muito feliz por sair, mas fez isso, sem dizer uma palavra.

"Ah, isso parece um jogo de espionagem", Anderson disse, num tom quase alegre.

"É meio delicado".

O prisioneiro se inclinou, aproximando-se o máximo dela que as correntes permitiam. Suas próximas palavras foram ditas num sussurro.

"Então, você deve saber que, mesmo com o guarda fora da sala, as paredes têm ouvidos".

"Acho que terei que ser criptográfica, então", Keri replicou, recusando-se a sussurrar, mas baixando a voz. "Lembra-se da última vez que estive aqui, conversamos sobre... seu amigo?"

"Lembro".

Sua voz era agradável, mas o tom divertido havia desaparecido de seus olhos. Keri continuou cuidadosamente, sem querer assustá-lo.

"Tive a impressão de que o conhece bem; e que, no tempo em que passaram juntos, o senhor possa ter desenvolvido alguma noção de como o processo de pensamento dele funciona".

"É possível" ele disse, sem revelar nada.

Keri se perguntou se devia continuar. Colocar suas cartas na mesa com um homem como O Fantasma a deixava profundamente desconfortável. Mas não tinha muita escolha. Estava sem opções.

"Então, se esse amigo quisesse proteger algumas informações digitais, para mantê-las a salvo de olhares curiosos, ao fazer com que as informações seja recuperadas através de algum tipo de senha escrita, tem alguma ideia sobre qual seria essa chave?"

"Você procurou a pessoa certa, detetive Locke. Acontece que tenho quase certeza que sei qual é... a chave dele".

"Ótimo", Keri disse, incapaz de esconder a animação em sua voz. "Qual é?"

"Não posso lhe dizer".

 

 

CAPÍTULO DEZENOVE

 

"O quê?" Keri perguntou, com uma mistura de raiva e confusão na voz.

"Temo não poder revelar essa informação", ele repetiu.

"Como assim, não pode revelá-la? Por que não?"

"As informações que compartilhei com você na nossa última visita eram, se não de conhecimento público, pelo menos, facilmente acessíveis. Ainda que eu estivesse formalmente agindo como um 'rato', era perdoável, porque o que lhe disse não era propriedade de ninguém".

"Então, está me dizendo que se sentiria culpado se me dizesse o que preciso saber agora porque é um segredo?" Keri perguntou, atônita.

"De jeito nenhum. Culpa é uma emoção com a qual eu não perco tempo. Como poderia fazer as coisas que fiz se a culpa fosse um fator que eu levasse em consideração? Estou dizendo que, se eu desse a você o que está buscando, isso poderia ser rastreado de volta até mim. E meu amigo tem muitos recursos nesta unidade, tanto entre prisioneiros quanto entre guardas. Suspeito que, se o fato de eu tê-la ajudado se espalhasse, eu não conseguiria chegar a minha audiência".

"Entendo, está apenas protegendo seu próprio rabo."

"Pode me culpar, detetive Locke? Mesmo na minha idade avançada, acho que é um traseiro adorável. E gostaria que permanecesse inteiro".

Keri balançou a cabeça, sem achar graça. Havia chegado tão perto. Tinha em mãos os dados para encontrar Evie. Estava diante de um homem que poderia lhe dar a senha que daria acesso a elas. E ele não ia falar.

Olhou novamente para ele, tentando decidir se valia a pena tentar novamente, de alguma outra forma. Mas podia notar que seria perda de tempo. O rosto de Anderson estava impassível e o brilho alegre havia deixado seus olhos.

"Guarda!" ela gritou. Enquanto esperava que ele retornasse, o Fantasma subitamente se inclinou com uma intensidade incomum nos olhos.

"Keri", ele sussurrou devagar, usando o primeiro nome dela pela primeira vez, pelo que ela lembrava. "Ouça com muita atenção. Quero ajudá-la, mas não posso. Você precisa entender como essas coisas funcionam. Jackson Cave é a chave para este lugar. Você entende tudo de trás para frente. Seria capital para você encontrar o que procura. Na verdade, você já tem tudo de que precisa. Grave minhas palavras".

O guarda entrou e Anderson se levantou sem ser solicitado. Ele olhou para Keri com um nível de intenção que ela nunca havia visto antes. Enquanto o guarda o direcionava para fora da sala, ele se virou e repetiu:

"Grave minhas palavras". E então, foi embora.

 

*

 

Keri revirava o último e estranho comentário de Anderson em sua mente, enquanto dirigia de volta para a delegacia. É como se ele tivesse incorporado uma pessoa diferente naqueles últimos instantes. Ela não conseguia entender o que havia acontecido.

Seus pensamentos foram interrompidos por uma ligação de Edgerton.

"Você já está chegando?" ele perguntou, quando ela atendeu.

"Devo estar aí em vinte minutos. Por quê?"

"Hillman convocou uma reunião geral. Começa em 15 minutos. Vou tentar atrasá-lo".

"Por que ele mesmo não me ligou para avisar?" ela perguntou.

"Tenho quase certeza de que fez isso".

Keri olhou para o celular e viu duas mensagens perdidas. Elas devem ter chegado quando ela estava com Anderson. Ela teve que dar seu celular e arma aos guardas, quando entrou. Havia estado tão concentrada em tentar entender o que estava acontecendo com Anderson que havia esquecido de conferir o aparelho.

"Ele está irritado?" ela perguntou, já sabendo qual a resposta.

"Você já o viu sem estar irritado?" Edgerton replicou.

Vinte minutos depois, Keri entrou na Sala de Conferência A. Todos já estavam reunidos. Edgerton estava no canto, mostrando a Hillman um pedaço de papel, gesticulando bastante.

Mas, assim que ele viu Keri, parou e foi até sua cadeira, sorrindo levemente para ela. Keri percebeu que, seja lá o que for que ele estivesse mostrando a Hillman, deve ter sido para distraí-lo até sua chegada. Então, sorriu de volta, agradecida.

"Agora que todos estão aqui", Hillman disse acusadoramente, enquando encarava Keri, "vamos começar. Detetive Brody, pode nos atualizar sobre o estado da investigação no momento?"

Brody, que estava mastigando um bagel, ficou de pé e, alheio às sementes de papoula e migalhas em sua gravata, caminhou até a frente da sala.

"Então, ontem à noite, fomos para o grande evento dos Burlingames e entrevistamos um monte de idiotas ricos. Todo mundo tinha a mesma história para contar... 'São um ótimo casal'. Ninguém fazia ideia de por que ela poderia simplesmente dar o fora. Nenhum sinal disso. Nenhum problema no casamento.

"Tive que falar com o médico por um tempo. Ele manteve o controle emocional enquanto estava no palco, dando seu discurso. Mas, depois, me acossou e começou a perguntar um monte de perguntas sobre o que podia fazer para ajudar. Estava arrasado. Senti pena do cara, mas o que todo mundo diz sobre ele é verdade. Ele é entediante. E, de acordo com os convidados de lá, ela não é. Supostamente, eles parecem gostar das coisas assim. Mas eu acho que ela estava mais entediada do que as pessoas pensavam, porque tudo dar a entender que disse adios para sua vida antiga, certo, garotão?"

Edgerton, parecendo chateado com o apelido, começou a abrir a boca, mas Hillman o fez se calar.

"Vamos chegar lá num minuto. E, Brody, tente ser profissional, ok?" Ele voltou sua atenção para Keri. "Locke, você esteve inacessível durante a manhã inteira. Como tem usado seu tempo?"

"Passei a manhã entrevistando a irmã mais nova de Kendra, Catherine", Keri disse, recusando-se a morder a isca. "Ela também indicou que o casamento parecia bem, apesar de admitir que ela e Kendra não eram muito próximas nos últimos anos. Também acha difícil de acreditar que sua irmã iria apenas abandonar sua vida. Era comprometida demais com seu trabalho".

"Ou não", Hillman disse, voltando-se para Kevin. "Diga-nos o que encontrou, Edgerton".

"Sim, senhor. Recentemente, descobrimos que a conta bancária de Kendra Burlingame foi fechada e todo o dinheiro foi transferido para uma conta na Suíça".

"Quanto tinha na conta?" perguntou o detetive Jerry Cantwell, um veterano quase tão fossilizado quanto Brody.

"Um pouco mais de 70 mil. Mas o que é estranho é que poderia ter sido muito mais. O casal tem suas próprias contas correntes separadas, assim como uma conjunta. Ela poderia ter pego o quanto quisesse da conta conjunta também, mas o dinheiro retirado veio exclusivamente da conta dela".

"Quanto havia na conta conjunta?" Keri perguntou.

"332 mil".

"Puta merda!" Brody quase gritou. "Ela simplesmente deixou todo esse dinheiro para trás?"

"Talvez, ela não quisesse prejudicar o marido", Suarez opinou. "Se sentia que simplesmente precisava recomeçar a vida, faz sentido que não quisesse destituí-lo de nada. E não parece que ela queria arruinar a vida dele, só recomeçar a dela".

"Alguma outra coisa foi retirada de outras contas?" Hillman pergunou.

"Não", Edgerton respondeu. "Todos os investimentos dela estão intocados. Mas acessá-los levaria mais tempo e seria mais complicado. Talvez, ela não quis correr o risco de levantar suspeitas sobre o que estava fazendo".

"Bom trabalho. E quanto ao negócio da rodoviária de Palm Springs?"

"Ah, eu pedi a Patterson para assumir, para poder focar nas contas correntes".

"Certo, em que pé estamos, Patterson?" Hillman perguntou.

Detetive Garrett Patterson, um cara pequeno, calmo, no meio dos trinta anos, pigarreou. Seu apelido era Paciência-de-Jó, principalmente porque ele não se importava em fazer os trabalhos mais monótonos. Ele podia passar infinitas horas checando filmagens de câmeras de segurança, revisando registros em bancos de dados, ou ligando para várias testemunhas em potencial.

"Eu analisei as filmagens da rodoviária de Phoenix e não há registro da mulher que aparece no vídeo da estação de Palm Springs chegando lá. Talmbém conferi todas as outras paradas que tinham imagens de segurança: Tucson, El Paso, San Antonio, Houston, Nova Orleans..."

"Entendemos, Patterson", Brody interrompeu. "Vá direto ao ponto".

"Ela não pode ser vista saindo do ônibus em nenhum local ao longo do caminho ou quando pararam de vez, em Orlando".

"O que isso significa?" Brody perguntou, visivelmente frustrado. "Está dizendo que ela ainda está se escondendo naquele ônibus?"

"Não. Houve várias outras paradas em rodoviárias menores, sem câmeras. Ela poderia ter descido em qualquer uma delas, e nunca ficaríamos sabendo".

"E quanto ao ônibus em si?" Keri perguntou. "Ele não tem câmeras?"

"Havia uma perto do espelho retrovisor do motorista. Mas não estava funcionando".

"Desativada?" Edgerton perguntou.

"Não se sabe. Mas estava funcionando bem durante todas as viagens de ônibus da semana passada. E há mais uma coisa".

"Boas notícias, tenho certeza", murmurou sarcasticamente o detetive Sterling, parceiro de Cantwell.

"Temo que não. A polícia de Palm Springs coletou todos os globos de neve daquela loja de souvenirs na rodoviária para testar as impressões digitais".

"Por que não apenas aquele com a fachada de Palm Springs?" Keri perguntou.

"Havia quatro globos de neve de Palm Springs e eles não tinham certeza de qual Kendra podia ter pego. Estão testando esses primeiro, mas pegaram todos, apenas para ter certeza".

"O que encontraram?" Suarez perguntou.

"Muitas impressões. Vocês podem imaginar quantas pessoas entraram naquela loja e pegaram aqueles globos. Aparentemente, eles não são limpos com tanta frequência. Os caras da forense estão trabalhando para identificar todo mundo que podem, mas é um processo lento".

"Obrigada, Patterson", Hillman disse, dando um passo à frente. "Então, como podem ver, estamos meio que num impasse aqui. Ainda não vamos desistir do caso. Quero unir todos os pontos sobre as pendências: as digitais, mais interrogatórios com os colegas do médico, a análise dessa conta na Suíça para ver se alguém veio retirar o dinheiro, supondo que o banco coopere. Vamos analisar tudo isso e ter outra reunião geral amanhã, bem cedo, às oito da manhã. Mas se nada consistente aparecer até lá..."

"Senhor", Keri começou a falar, mas parou quando viu a expressão no rosto de Hillman. Ele continuou.

"Se não tivermos nada até lá, podemos ter que encerrar este caso, queiram vocês ou não, queira o marido dela ou não. Ele tem recursos para contratar seu próprio detetive, se quiser. Mas, como todos vocês sabem, se Kendra Burlingame decidiu abandonar sua vida e não fez nada nefasto ao longo do caminho, não há muito que possamos fazer. Estamos no negócio de investigação de crimes e não parece que um crime foi cometido aqui. Isso é tudo".

A reunião se encerrou e todo mundo saiu apressado, sem querer expor-se à ira de Hillman. Keri permaneceu sentada.

"Algo a acrescentar, Locke?" ele perguntou bruscamente enquanto recolhia seus papeis.

"Não, senhor", ela disse, levantando-se e se dirigindo para sua mesa.

Hillman estava certo. Todas as evidências indicavam que Kendra havia saído da cidade, ou para fugir de sua vida atual ou apenas para começar uma nova. Só porque familiares e amigos consideravam isso improvável, não significava que não fosse possível. Frequentemente, o trabalho de Keri consistia em prender pessoas que ninguém pensava serem capazes do crime que cometeram.

Ela sentou em sua mesa e se permitiu uma pausa mental do caso. Ainda sentia que algo não se encaixava. Mas não havia muito o que fazer até que a polícia forense concluísse suas análises e não havia sentido em continuar o que ela fazia com tanta frequência: ficar obcecada.

Keri pegou o velho celular Android com os dados de Cave e olhou para ele novamente.

Então, esta é minha vida? Se não estou obcecada por um caso, tenho que estar obcecada por outro?"

Aparentemente, era, tinha que admitir para si mesma, enquanto encarava sem expressão a palavra "senha" estampada como uma provocação na tela do celular.

Tudo de que ela precisava era uma palavra para abrir um mundo inteiro de informações sobre o submundo do mercado de sequestro de crianças. Se pudesse descobrir essa única palavra, ela abriria todas as portas. Era a chave.

Então, algo surgiu em sua mente, algo que Thomas Anderson havia dito quando estava divagando no final do último encontro: Jackson Cave era a chave.

E se ele estava falando literalmente? Eu realmente perguntei qual era a chave.

Ela voltou a mente para a conversa deles. Foi há menos de uma hora e ainda podia se lembrar de tudo quase que completamenente:

Você precisa entender como essas coisas funcionam. Jackson Cave é a chave para este lugar. Você entende tudo de trás para frente. Seria capital para você encontrar o que procura. Na verdade, você já tem tudo de que precisa. Grave minhas palavras.

Jackson Cave é a chave. E se isso não é apenas uma figura de linguagem, mas a verdade literal? Anderson havia dito para gravar suas palavras. E ele havia dito isso duas vezes. Foi a última coisa que disse a ela, quase implorando para que Keri entendesse. E se o nome de Cave fosse a chave, a senha?

Mas a senha podia ser apenas uma palavra, não duas. Keri afastou a dúvida de sua mente e se forçou a focar nas palavras de Anderson.

Você entende tudo ao contrário.

O mais rápido que pôde, Keri digitou o nome de Cave de trás para a frente como uma única palavra: evacnoskcaj.

A tela piscou antes de exibir a mensagem "senha inválida" em letras vermelhas.

Essa não é a dica inteira. Ele também disse "Seria capital para você encontrar o que está procurando".

"Seria capital" soava ridículo, como se ele tivesse subitamente se unido ao elenco de algum musical de Gilbert e Sullivan. Mas ele saberia disso. Ele queria que soasse estranho, queria chamar a atenção para isso: capital.

Keri tentou o nome de trás para a frente novamente, desta vez, em letras maiúsculas, capitais: EVACNOSKCAJ.

A tela piscou novemente. Após um longo segundo, uma nova frase apareceu:

"Senha aceita".

 

CAPÍTULO VINTE

 

Keri ficou olhando para a tela por vários segundos, recusando-se a piscar com medo de que o que estava vendo pudesse desaparecer. Não podia acreditar no que seus olhos estavam vendo.

Na tela, havia uma longa lista, organizada de uma maneira indecifrável, com códigos numéricos espalhados por todo o lado. Mas, entre os códigos, estava o que parecia claramente serem iniciais e datas.

Após alguns minutos, tornou-se claro que o princípio organizador da lista eram os raptores. Havia uma espécie de cabeçalho com o que pareciam ser iniciais. Abaixo disso, datas com os números codificados, que ela não conseguia entender. Suspeitava que eles se referiam aos dados específicos do rapto ou talvez à identidade do cliente, ou até da criança.

Keri rolou a tela desesperadamente, procurando por qualquer coisa que lhe parecesse familiar. Então, ela congelou. Na tela à sua frente estava uma data: 18/09/11. O dia em que Evie foi levada.

Após a data, havia uma série de números e letras que não significavam nada para ela. Keri rolou a tela novamente para cima para ver qual o título da lista, e quase deu um grito.

Suarez, uma mesa à frente, levantou os olhos, alarmado. Ela sorriu amarelo.

"Liquidação na Target", falou, para tranquilizá-lo. Ele assentiu, desinteressado, e voltou para sua papelada.

Os olhos de Keri voltaram para a tela, sem acreditar. O cabeçalho que servia de título dizia simplesmente "Cldr." Podia significar qualquer coisa, mas uma possibilidade razoável era que isso fosse uma contração de "Colecionador". Ainda mais promissor, após essas letras, havia um endereço de e-mail.

Após todos esse anos, seria possível que ela estivesse apenas a um e-mail de distância de contactar o homem que havia levado sua filha? Era realmente possível?

Acho que estou prestes a descobrir.

Keri rapidamente criou uma conta no Gmail e se preparou para digitar uma mensagem. Mas enquanto seus dedos descansavam sobre o teclado, podia sentir a ansiedade crescente. E se ela estragasse tudo e o cara nunca respondesse? E se ele cancelasse a conta?

Com raiva de si mesma, ela afastou esses pensamentos.

Mantenha as emoções fora disso. Esqueça Evie. Apenas combine algo com o suspeito. Faça seu trabalho.

Ela queria escrever algo simples e não-ameaçador. Nem mesmo sabia se o endereço de e-mail era real. Mas, se fosse, queria enviar uma mensagem vaga, e que ao mesmo tempo atiçasse o interesse do Colecionador. Por fim, digitou uma breve mensagem:

"Preciso realizar um trabalho. Você foi recomendado. JC fala muito bem de você. Gostaria de contactá-lo".

Keri olhou várias vezes para o e-mail, tentando descobrir alguma falha que pudesse entregar quem ela era. Mas parecia muito bom. Seu endereço de e-mail, Guy347BD5, foi escolhido ao acaso e, ela esperava, daria a impressão de que ela era um cliente em potencial, além de cauteloso.

Você está perdendo tempo. Clique em Enviar.

Ela fez isso, e então escreveu um e-mail separado para Edgerton, pedindo-lhe para rastrear o e-mail de "Cldr". Ela duvidava que ele fosse encontrar algo. Esse cara era um profissional e ela suspeitava que fosse muito bom em não deixar rastros, ou já teria sido pego há muito tempo. Ainda assim, valia a pena tentar.

E já que ela estava um pouco paranoica que "Cldr" pudesse, de alguma forma, ser capaz de saber que seu e-mail estava sendo rastreado, ela avisou a Edgerton que o caso era altamente confidencial e que ele não deveria fazer nada que pudesse revelar para o sujeito que estava sendo investigado.

Feito isso, e após vinte minutos de atualizar constantemente sua caixa de entrada, Keri decidiu que sua obsessão não era construtiva e que ela precisava de uma pausa mental.

Talvez, uma visita a Ray possa acalmar meus nervos.

A ideia foi reconfortante. Ela pegou suas coisas e correu para o carro, fazendo de tudo para ignorar o protesto de suas costelas.

No trajeto, Keri tentou limpar sua mente, mas não adiantou. Seus pensamentos continuavam voltando para a lista e para o homem que a tinha criado, Jackson Cave.

Parte sua queria dirigir até o escritório dele agora mesmo, prendê-lo, e resolver tudo depois. Mas, após respirar profundamente algumas vezes para esfriar a cabeça, ela se lembrou por que isso era uma ideia terrível.

Primeiro, a lista não provava nada, realmente; pelo menos, não ainda. Era só uma série de números e de letras. Para ela, estava claro que representavam iniciais, datas e informações de contato. Mas isso poderia não ser evidente para todo mundo, e certamente não para um promotor.

Além disso, usar a lista para tentar ferrar Cave a implicaria também. Ela tinha conseguido o pen drive invadindo o escritório de um advogado. Mesmo que um processo fosse aberto contra Jackson Cave, ela estava garantindo sua própria prisão e, provavelmente, condenação.

Mas até isso valeria a pena se ela achasse que ajudaria a ter Evie de volta. Infelizmente, duvidava que pudesse. No segundo em que a prisão de Cave saísse nos jornais, o Colecionador desaparecia e ela perderia a melhor pista que havia encontrado desde que sua filha foi levada.

Cave era apenas um meio para conseguir um objetivo. E esse objetivo era encontrar o Colecionador, na esperança de que ele a levaria até Evie. Qualquer coisa que interferisse nisso deveria ser evitada. Então, ela teria que deixar Cave livre, por ora.

Keri entrou no quarto de hospital de Ray uma hora depois, e encontrou-o tirando um cochilo. Ela não havia falado com ele desde a noite passada, a caminho do escritório de Cave. Pelo que ele sabia, ela podia ter estado presa por invasão e roubo.

Ela se sentou em silêncio na descaonfortável cadeira no canto da sala, observando seu amigo dormir, periodicamente checando seu celular para ver se havia chegado um e-mail com a resposta do Colecionador. Algo na respiração lenta, ritmica dele a relaxava e ela sentiu a ansiedade do dia sumir. Mesmo a dor de suas lesões e a massagem bruta da madrugada desapareceram.

Seria assim que eu eu me sentiria se dormisse ao seu lado à noite, acalmada até dormir pelo relaxante som que ele faz?

Ela ficou assim por um tempo, meditando sobre isso em silêncio. De repente, ouviu um ruído, percebendo que tinha caído no sono. Uma enfermeira havia posto uma bandeja sobre a mesa ajustável conectada à mesa e o barulho fez Ray acordar. Keri olhou para o relógio de parede. Eram exatamente 12h30. Ela havia dormido por mais de meia hora. Conferiu seu e-mail de novo: nada.

"Hora do almoço, detetive Sands", a enfermeira disse numa voz alegre demais, que fez Keri ter vonta de de esmagá-la. "Precisa de ajuda para se sentar?"

"Não, obrigada. Eu consigo, Janet", ele disse, sonolento. Ray se apoiou na cama para ficar na posição sentada e viu Keri no canto pela primeira vez. Ele sorriu para ela, mas não falou até Janet sair.

"Fico feliz em ver que está aqui, ao invés de sendo solicitada a pagar o dinheiro da fiança", ele disse, assim que a porta se fechou, deixando-os a sós.

"Você está brincando, mas isso quase se tornou realidade, tanto que nem quero pensar".

"Então, suponho que não tenha dado a volta e ido para casa, como você tinha prometido?"

"Na verdade, eu tive um súbito desejo por uma massagem e esfoliação corporal tarde da noite e passei a madrugada em Koreatown".

"Eu nem sei por onde começar com essa", ele disse. "É um eufemismo? Deveria perguntar se você teve um final feliz?"

"Eu realmente tive uma sessão de massagem", Keri garantiu. "Mas também consegui realizar outra tarefa e posso dizer que, apesar de alguns momentos de incerteza, tive mesmo um final muito feliz".

"Esta conversa está me deixando um pouco desconfortável", Ray retrucou. "Você poderia ser criptográfica de uma maneira menos assustadora?"

"Foi você quem começou. Mas, tudo bem. Sim, fiz uma parada no caminho e consegui encontrar um item de que precisava. Na verdade, acabei de descobrir como usá-lo".

Os olhos de Ray se arregalaram.

"Descobriu o criptograma?" ele balbuciou.

Keri assentiu antes de acrescentar, com uma voz apressada:

"Acho que sim".

"Então, o que acontece agora?" ele sussurrou.

"Bem, acontece que há e-mails em tudo isso. E um deles parece pertencer ao cara que estou procurando. Então, entrei em contato".

"Você fez o quê?" Ray perguntou, sem sussurrar mais.

"Mantenha o tom de voz baixo, Ray. Eu criei um e-mail anônimo e contactei o cara. Disse que precisava de ajuda com um trabalho".

"Ele já respondeu?"

A pergunta a fez olhar o celular novamente. Nenhuma resposta.

"Ainda não. Mas eu enviei o e-mail há menos de duas horas".

"O que vai fazer se ele responder?" ele perguntou.

"Acho que vou decidir isso quando a oportunidade chegar".

"Você sabe que não pode ir atrás desse cara sozinha. Não sabemos do que ele é capaz".

"Sei disso, Raymond", ela disse, tentando acalmá-lo.

"Não aja como se estivesse lhe insultando. Ir atrás de suspeitos sozinha é praticamente uma descrição do seu trabalho para você. Sério, não vai fazer nada sem falar comigo antes, certo?"

"É claro que não", ela mentiu.

Eles ficaram parados por alguns minutos enquanto Ray beliscava seu almoço: frango e sopa de arroz, suco de fruta e a salada mais infeliz que Keri já tinha visto. Depois de um tempo, ele desistiu e afastou a bandeja.

"Como está indo o caso Burlingame?" perguntou.

"Parado. Todos os indícios apontam que ela simplesmente fugiu. Algo me diz que isso não é verdade, mas não tenho nada consistente em que me basear. Estamos esperando por algumas impressões digitais e filmagens de câmeras de segurança. Mas não é promissor".

"Então, o que está fazendo enquanto isso? Já empacotou tudo na casa-barco?" Ray perguntou.

Keri levantou as sobrancelhas, sem acreditar.

"Está brincando, não é? Estou trabalhando num caso. E fazendo paradas estratégicas tarde da noite para... visitar o pessoal. Acabo de tirar a tipoia do meu ombro ontem e toda vez que respiro fundo, parece que alguém está esfaqueando minhas costelas".

"Quer que eu tenha pena de você entre os feridos na batalha?" ele perguntou, incrédulo.

"Estou só dizendo que não tive muito tempo para embalar meus objetos de valor em plástico-bolha. Além disso, ainda não encontrei um apartamento. Então, você sabe, não posso colocar o carro na frente dos bois".

"Estou procurando apartamentos para você. Acho que encontrei algo bom".

"Mesmo? Onde?"

"Playa del Rey. Não fica muito longe da delegacia. É na mesma vizinhança da casa-barco, então, você ainda poderá ir para seu mercado favorito. É bem pequeno. E antigo. E meio horrível, se as fotos que vi são recentes. Mas tem dois quartos".

"Quanto é o aluguel?" Keri perguntou, precavida.

"O aluguel é razoável. Fica no andar de cima de um bar e restaurante em Culver, a cerca de seis ruas da praia. Conheço o dono e ele está disposto a lhe dar um desconto. Deveria dar uma olhada hoje, já que tem um pouco de tempo sobrando".

Ele deu a ela uma folha de papel com o endereço.

"Não é má ideia. Acho que vou passar lá agora".

"Acho bom. Vou avisar a René que você está indo".

Keri ficou de pé, foi até o leito de Ray e colocou uma mão sobre o braço dele.

"Obrigada", ela disse. "Você vai mesmo receber alta no final desta semana?"

"Assim espero".

"Talvez, eu possa levá-lo para casa. Poderíamos tomar um café e falar sobre... coisas".

"Coisas?" ele perguntou.

"Sim, coisas".

"Eu adoraria falar sobre coisas", ele disse. "Coisas são um dos meus assuntos preferidos".

"Certo", Keri disse, tirando a mão do braço dele e se dirigindo à porta. "Já basta. Estou indo conferir o apartamento. Cuide-se, ok?"

"Farei isso", ele prometeu, e, falando mais alto enquanto ela deixava o quarto, acrescentou, "vou só ficar por aqui, pensando sobre coisas".

Ela não pôde conter o sorriso enquanto caminhava pelo corredor. Quando chegou ao elevador, conferiu o celular. O sorriso imediatamente desapareceu.

O Colecionador havia respondido ao e-mail.

 

 

CAPÍTULO VINTE E UM

 

Keri arrancou com o carro pelo estacionameto do hospital sem olhar para placas, outros carros ou até pessoas. Seu coração palpitava e suas mãos agarravam o voltante com força, o que deixava seu dedos brancos.

O Colecionador, ou seja lá quem estava por trás do e-mail que ela havia recebido, havia lhe dado apenas uma breve janela de tempo para chegar ao local escolhido. A mensagem era curta e direto ao ponto:

13h30 hoje. 3rd street promenade. santa monica. Logo ao sul da arizona com a 3rd. cadeira de metal no lado leste da rua, ao lado da escultura. venha de camisa vermelha. sente-se. espere.

Ela respondeu imediatamente: "Ok".

O e-mail não lhe dava muito tempo, o que, obviamente, era de propósito. Se ela estivesse no centro ou no Vale San Fernando, nunca chegaria a tempo. Mas o hospital em Beverly Hills não ficava tão longe. Ainda assim, Keri tinha apenas uns 45 minutos para dirigir até Santa Monica, estacionar, e encontrar alguém para sentar na cadeira de metal na hora combinada.

Não podia ser ela, é claro. Se o Colecionador a visse, poderia reconhecê-la daquele dia, há tantos anos, o dia em que ele raptou Evie. Se ele sequer imaginasse que a mãe de uma menina que ele mesmo sequestrou estava na área, iria embora e o endereço de e-mail estaria perdido como recurso. E ela não podia adiar o encontro. Com qualquer tentativa de alterar os termos, poderia afastar o Colecionador, e isso era um risco que ela não estava disposta a correr.

Não havia saída. Keri tinha que encontrar um substituto convincente... alguém que o Colecionador veria sentado naquela cadeira de metal e acreditasse ser um cliente em potencial no mercado de sequestros.

E ela tinha que ser ágil, escolhendo sua isca com base em pouco mais do que a disposição da pessoa em participar. Não era assim que ela queria realizar esta operação. Mas não estava no controle e simplesmente teria que se adaptar da melhor forma que pudesse.

Enquanto descia pela Wilshire Boulevard, Keri decidiu usar o tempo para tentar equilibrar suas chances de ter sucesso. Ela ligou para Edgerton para ver se ele tinha feito algum progresso ao rastrear o endereço de e-mail.

"Sinto muito, Keri", o jovem detetive lamentou. "Só fico encontrando becos sem saída. E tenho medo de que, se tentar forçar minha entrada, seu sujeito possa receber um alerta. Este cara é sorrateiro e temo acionar um alerta eletrônico se for adiante. Aliás, quem é ele?"

"Realmente, não posso dar mais detalhes agora", Keri respondeu, tanto para proteger Edgerton quanto para guardar seus próprios segredos. "Deixe isso de lado por ora e vamos retomar mais tarde. Foque no caso Burlingame, ok?"

"Sem problema", ele disse.

Keri já ia desligar, quando teve uma ideia.

"Ei, Kevin, a policial Castillo está aí?" ela perguntou.

"Acho que está de folga hoje, mas posso lhe enviar o celular pessoal dela por mensagem, se quiser".

"Faça isso", Keri pediu, enquanto passava voando sob o viaduto da rodovia 405. Ela estava a menos de 15 minutos da Promenade, mas já eram quase 13h. Nesse ritmo, não teria muito tempo para organizar as coisas.

"A mensagem de Edgerton chegou e Keri ligou para o celular de Castillo.

"Jamie falando", disse uma voz animada.

"Policial Castillo, é a detetive Keri Locke. Sinto incomodá-la no seu dia de folga. Mas preciso lhe pedir um favor".

"É claro, detetive. O que posso fazer para ajudar?" Castillo respondeu, sem hesitar.

"Espere um momento", Keri disse.

Ela olhou para o relógio: 13h02. Quase desesperada, agarrou a sirene do banco do passageiro, ligou-a e colocou-a no teto do carro. Em seguida, fechou o vidro da janela.

"Desculpe", ela continuou. "Você disse que costumava trabalhar na Divisão do Oeste de LA. Isso quer dizer que mora na área?"

"Com certeza. Eu chegava na delegacia em menos de cinco minutos".

"Por acaso, está na vizinhança no momento?" Keri perguntou, esperançosa.

"Acabei de sair de um cinema na Westwood", Castillo respondeu, feliz.

Keri passou voando pela interseção na Centinela Avenue, buzinando para um pedestre distraído na faixa.

"Está portando seu revólver de serviço?" ela perguntou.

Houve uma breve pausa no outro lado da linha.

"Estou", Castillo respondeu, sua voz, agora, completamente séria.

"Certo, oficial, vou lhe fazer um pedido incomum. Se recusar, não ficarei decepcionada. Mas gostaria muito de sua ajuda e é meio urgente".

Menos de um segundo se passou antes dela responder.

"Do que precisa?"

"Entre em seu carro e dirija até a Third Street Promenade. Explicarei a caminho".

"Estou dando a partida no meu carro agora, detetive. Pode me passar as informações".

Keri hesitou por um segundo, ciente de que se abrir dessa forma poderia pô-la em risco. Mas, neste ponto, ela não tinha escolha. Então, pisou fundo.

"Certo. Esta é a versão resumida. Você sabe que minha filha foi raptada há cinco anos. Eu tenho um suspeito em potencial. Devo encontrá-lo na Promenade, perto da esquina da Third e da Arizona. Ele pensa que eu sou um cliente em potencial que quer pagar para sequestrar alguém".

Keri estava prestes a cruzar a interseção da 26th Street, quando uma caminhonete, ignorando sua sirene, passou correndo por ela. Ela pisou fundo no freio, chegando a um metro de bater no idiota. Ondas de adrenalina correram pelos seus braços e subiram até as pontas dos dedos. Todas as suas extremidades latejavam.

"Você está bem, detetive Locke?" Castillo gritou do outro lado do telefone.

"Mais ou menos", Keri respondeu. "Onde eu estava?"

"Você é uma cliente em potencial".

"Certo. Estou indo para lá agora. Já que o cara me reconheceria, tenho que encontrar alguém para servir como meu emissário e passar uma mensagem a esse sequestrador. Espero que ele considere isso um indício de que seu cliente em potencial é cuidadoso e que pode confiar nele. Isso faz sentido?"

"Certamente", Castillo disse. "Então, você quer que eu seja a emissária?"

Keri considerou essa possibilidade brevemente antes de ligar, mas achou arriscado demais.

"Não, acho que ele ficaria mais confortável se a isca fosse um homem. Terei que achar alguém convincente quando chegar lá. Preciso de você para me dar cobertura. Quero que se posicione num telhado adjacente, de onde possa ver tudo. Se o cara aparecer, pode me manter informada a partir do seu ponto de vantagem. Se as coisas derem errado, não estarei sozinha ao tentar prendê-lo".

Keri parou de falar e percebeu que Castillo não tinha dito nada por um bom tempo. Ela ficou preocupada, achando que a jovem policial estava ficando com medo.

"Está tudo bem, Jamie?" ela perguntou.

"Sim. É só que tenho a impressão de que isso não é uma emboscada aprovada pelo departamento".

Keri lutou contra o impulso de convencer aquela jovem policial facilmente impressionável a jogar a cautela pela janela.

"Não é", ela admitiu. "Esse é o outro lado da questão. O plano todo é uma operação não-oficial. Consegui as informações sobre esse cara através de métodos questionáveis. O tenente Hillman certamente iria desaprovar, se ficasse sabendo. Meu plano não foi meticulosamente planejado. E é potencialmente perigoso. Portanto, como eu disse, não ficarei chateada se você recusar. Na verdade, eu até recomendo".

Keri passou pela Lincoln Boulevard. Agora, estava a apenas alguns minutos da Promenade. Mordendo o lábio, esperou pela resposta de Castillo. O silêncio pareceu durar uma eternidade. Finalmente, a policial novata respondeu.

"Mande-me uma mensagem quando chegar lá e me informe exatamente onde quer que eu fique".

"Tem certeza?" Keri perguntou, dando a ela uma última chance de desistir. "Uma das razões pelas quais lhe liguei é que ninguém que está nesta carreira há um tempo sequer consideraria fazer isso".

"Devo chegar em dez minutos", Castillo respondeu, e desligou sem mais uma palavra.

Keri sorriu para si mesma enquanto desligava a sirene e a devolvia para o banco do passageiro. Ela virou rapidamente na 5th Street e entrou num estacionamento coberto. Olhou para a hora: 13h10. Ainda havia muito trabalho a fazer e apenas 20 minutos para isso.

 

CAPÍTULO VINTE E DOIS

 

Depois de estacionar, Keri se permitiu trinta segundos para respirar fundo algumas vezes e focar novamente. Estava agitada e isso podia levar a erros. Não podia se dar ao luxo de cometer nenhum.

Pegando uma folha de papel de uma caderneta, ela escreveu uma curta mensagem em letra de forma. Dizia:

"Enviei este estranho como um intermediário. Perdoe minha cautela. Colega de trabalho problemático precisa de longas férias. Sua ajuda podia ser útil. Por favor, mande um e-mail".

Não era uma obra-prima literária, mas, sob as circunstâncias, ia dar. Keri fez um coque no cabelo, colocou um boné por cima, óculos escuros e, com esse disfarce improvisado, entrou numa butique vintage na 4th Street para comprar uma camiseta vermelha barata. A menos cara que ela pôde encontrar custava trinta dólares, mas, sem tempo para procurar, comprou essa mesmo.

Após parar num caixa eletrônico para retirar 200 dólares, ela correu para a 3rd Street, uma rua ao sul da Arizona, e começou a olhar ao redor, procurando um candidato para o trabalho.

Ela encontrou-o encostado numa banca de jornal, no meio do passeio, folheando uma revista sobre marcenaria. Ele parecia ter uns 25 anos. Tinha uma barba rala e vestia uma camiseta cinza com os dizeres "Vem conferir minha madeira".

Mas, ao invés de abordá-lo diretamente, Keri decidiu tomar um nível a mais de precaução. Ela usaria duas iscas. Assim, se o Colecionador perguntasse ao fã de marcenaria quem o havia enviado lá, sua identidade ainda estaria protegida.

Ela vistoriou a área, procurando pela outra metade de sua equipe. Levou um minuto antes que pudesse encontrar alguém aceitável. Finalmente, viu seu substituto: um cara parrudo no início dos quarenta anos, com cabelos loiros alisados e um suéter de gola alta. Ele estava sentado num banco ao lado de uma fonte, deslizando a tela de seu celular enquanto terminava um sanduíche.

Keri tinha apenas dez minutos até a hora marcada, e precisava agir rápido. Caminhando até o cara do sanduíche, ela sorriu da maneira mais charmosa que podia. Ficou parada na frente dele por um momento, esperando ser notada. Quando ele a viu, parecia assustado, o que era justamente o que ela queria.

"Oiê", Keri disse, da maneira mais doce que podia.

"Oi?" ele respondeu, mais uma pergunta que uma saudação.

"Está ocupado?"

"Só estava terminando meu almoço. Tenho que voltar ao trabalho de uma e meia".

"Ah, onde você trabalha?"

"Na GameStop".

"Legal. Enfim, parece que você ainda tem alguns minutinhos. Estava pensando se podia me fazer um pequeno favor?"

"O que é?" ele perguntou, na defensiva.

"Vai parecer estranho. Mas é inofensivo. E, se aceitar, vou lhe dar cem dólares".

"Eu não sei. Parece suspeito". Ele estava prestes a dar o fora.

"Ouça. Vou lhe dizer qual é o favor. Se achar loucura demais, basta dizer não. Mas se soar apenas algo estranho e 'normal' e você disser sim, ganha cem pratas. Nada a perder, certo?"

"Diga-me qual é o favor e eu verei".

"Quero que você vá até aquele cara", ela disse, apontando para o marceneiro. "Precisa convencê-lo a vestir esta camiseta vermelha e ir se sentar numa cadeira de metal ao lado da escultura, perto do final do quarteirão, ali. Não mencione nada sobre mim e nem mesmo olhe na minha direção. O cara precisa pensar que foi ideia sua".

"Por que ele faria isso?"

"Porque você vai dar a ele cem dólares também", Keri disse, com sua melhor voz de vendedora.

"Por que você mesma não pede a ele para fazer isso e economiza cem pratas?"

"Qual o seu nome, docinho?"

"Randall".

"Randy, eu sou Carol. Você é esperto demais, mas tenho minhas razões. Tudo o que precisa saber é que, se conseguir convencê-lo a fazer o que pedi, ganha cinco notas de vinte. Topa ou não?"

"Acho que sim".

"Que bacana. Agora, há mais uma coisinha".

"Sabia que tinha um lado ruim", Randall disse, indignado.

"Não é nada ruim. Basta dizer a ele que precisa se sentar na cadeira exatamente às uma e meia, e que deve ficar lá até, pelo menos, uma e quarenta e cinco. Se alguém se aproximar, ele deve dar este bilhete à pessoa. Mas não deve lê-lo. Agora, só faltam sete minutos, então, é melhor ir andando".

Randall pegou o dinheiro, dobrou o bilhete e começou a caminhar até o outro cara, quando Keri pensou num incentivo a mais.

"Ei, Randy, se você conseguir isso, vou lhe dar meu telefone". Ela piscou para enfatizar, lutando contra a vontade de vomitar.

A expressão acuada dele mudou para uma mistura de animação e medo. Mas pareceu funcionar. Ele assentiu e caminhou na direção do marceneiro com mais propósito, aparentemente.

Ela foi para trás da fonte e observou enquanto Randy GameStop batia um papo com o rapaz. Como ela suspeitava, este último não precisou de muito para ser convencido. No momento em que ele viu o dinheiro, topou na hora. Vestiu a camiseta, enfiou as notas e o bilhete no bolso, e foi imediatamente na direção da cadeira.

"Ele topou", Randy disse, ao retornar.

"Eu imaginei. Disse a ele para sentar exatamente às uma e meia?"

"Exatamente como você falou", Randy garantiu. "Então, posso pegar meu dinheiro agora?"

"É claro", ela disse, dando as notas para ele.

"E seu telefone... ainda vai me dar?"

"Sabe, Randy, por que não me dá o seu? Você parece um cara muito bacana. Mas uma garota precisa se precaver, ultimamente".

"Mas você prometeu", Randy choramingou.

"Você não precisa voltar ao trabalho em cinco minutos? Não quero criar problemas, Randy. Dê-me o seu número e eu prometo que vou ligar, certo?"

Randy deu o número a ela, apesar de sua expressão triste indicar que não acreditava que ela fosse ligar. Quando ele foi embora, Keri foi o mais rápido que pôde para a Coffee Bean & Tea Leaf, cafeteria que ficava em frente à cadeira de metal, onde podia observar os eventos se desdobrando sem ser vista.

Enquanto andava, enviou uma mensagem para Castillo para saber se ela havia encontrado um bom posto de observação. A resposta veio rápido.

"No teto do cinema. Vendo você caminhar agora. Vi você com os garotos. Imagino que devo mirar a camiseta vermelha?"

Keri respondeu tão rápido quanto.

"E qualquer um que se aproximar dele".

A detetive entrou na cafeteria e encontrou uma pequena mesa na janela, onde se sentou inquieta, tentando parecer tranquila. Ela fingiu ler a seção de Economia do LA Times, enquanto estava, na verdade, focada no fã de marcenaria com sua camiseta vermelha, de pé, a pouca distância da cadeira. Ela olhou para seu relógio pela terceira vez nos últimos três minutos. Eram 13h28. O encontro deveria acontecer em dois minutos. Ela enviou uma última mensagem de texto para Castillo.

"Ficarei em silêncio para focar no alvo. Mantenha-me informada".

Exatamente às 13h30, Woody se sentou. Já que ele não sabia o que fazer além disso, ficou, na maior parte do tempo, olhando ao redor sem ter ideia do que estava fazendo, bilhete na mão, esperando ser abordado.

Keri escaneou a área, procurando qualquer um que parecesse até mesmo vagamente com o homem que havia levado Evie, há cinco anos. Mas ninguém nem chegava perto.

Mesmo usando óculos escuros, ela ficava o tempo todo olhando para baixo, para o jonal, intermitentemente. Se o Colecionador veio, ele provavelmente também estava monitorando todo mundo também. Ela não tinha a expectativa de que o homem que levou sua filha iria simplesmente caminhar até a isca e dizer, "Oi, eu trabalho roubando crianças. Como posso ajudá-lo?"

E, se ele estava lá, o Colecionador precisava saber que seu potencial cliente, a menos que a pessoa fosse idiota, não iria realmente sentar naquela cadeira. Foi por isso que ela havia oferecido aquele rapaz, mexendo a cabeça de um lado para o outro, como um esquilo cafeinado. Mesmo antes dele ler o bilhete, ela estava enviando a mensagem ao Colecionador de que seu potencial cliente era cuidadoso o bastante para enviar um substituto.

Após 15 minutos em que nada aconteceu, o rapaz se levantou e se afastou, parecendo confuso, mas satisfeito. Ele havia acabado de ganhar cem dólares apenas por sentar numa cadeira.

O celular de Keri vibrou e ela olhou para ele. Era uma mensagem de Castillo:

"Não peguei nada. Ninguém se aproximou. Vou seguir o camisa vermelha no caso de alguém fazer contato depois. Certo?"

Keri digitou de volta:

"Sim, valeu. Vou manter os olhos na cadeira. Mantenha-me informada".

Keri ficou sentada ali por mais 45 minutos, só para garantir. Finalmente, desistiu. Enquanto se preparava para sair, ligou para Castillo.

"Alguma coisa?" ela perguntou.

"Nada. Ele foi até um bar e encontrou alguns amigos. Está jogando sinuca pelos últimos vinte minutos. Lamento, detetive Locke".

"Não, tudo bem", Keri disse, abafando o nó na garganta. "Valeu a pena tentar. Obrigada, de toda forma. Eu lhe devo uma. E, Castillo, por favor, lembre-se..."

"Isto fica apenas entre nós", a jovem policial disse, lendo a mente dela. "Não se preocupe. Meus lábios estão selados".

Keri desligou e voltou para seu carro, digitando um e-mail rápido para o Colecionador, que dizia simplesmente: "onde você estava?"

Foi só quando ela fechou a porta do Prius e se sentiu protegida no silêncio do estacionamento que o impacto total do fracasso a atingiu. Seu intelecto sabia que o encontro provavelmente não daria frutos, mas parte dela ainda tinha esperanças. Agora, essa esperança havia desaparecido.

Antes que se desse conta de que estava acontecendo, ela sentiu massivos soluços sacudirem seu peito. Seu corpo inteiro tremia, chacoalhando suas costelas, seu ombro e tudo o mais. Mas ela não podia parar e não se importava. Apenas cedeu para toda aquela dor que a consumia, chorando até não haver mais lágrimas.

Em seguida, ela estava dirigindo, sem nem saber ao certo para onde, deixando sua dor, sua fúria e seus instintos mais primitivos a guiarem para onde quisessem. Quando finalmente parou, levantou os olhos para ver onde estava. Levou um segundo para cair a ficha, mas assim que reconheceu o lugar, ela soube por que havia vindo até ali e o que tinha a fazer.

 

CAPÍTULO VINTE E TRÊS

 

Keri, furiosa e alheia a tudo o mais, caminhou com determinação pelo amplo átrio no lobby da imensa torre de escritórios onde seu ex-marido trabalhava, ignorando os avisos do segurança atrás dela. Apertou o botão do elevador e esperou, impaciente.

Ela não tinha certeza do que iria dizer a Stephen quando o visse. Mas parecia que Evie havia sido arrancada dela uma segunda vez. E, apesar de suas diferenças, ele era a única pessoa no mundo que poderia compreender pelo que ela estava passando naquele momento. E talvez fosse o único que pudesse ajudar.

Assim que o elevador chegou, o segurança a alcançou. Ele era um um cara atarracado e molenga, com quase trinta anos, com um bigode ralo e olhos úmidos.

"Lamento, senhora. Terá que assinar um formulário na recepção. Por favor, volte até a mesa da segurança".

Ela entrou no elevador sem dizer uma palavra, mostrou a ele seu distintivo, e apertou o botão para o 46º andar. O segurança ainda estava espremendo os olhos para ler sua identificação quando as portas se fecharam sobre ele.

As duas mulheres de pé ao lado dela, ambas na casa dos cinquenta anos, podiam sentir a fúria emanando de Keri e se afastaram alguns centímetros, desconfortáveis, para o canto mais extremo do elevador. Nenhuma fez contato visual. Keri não ligou. Quando as portas se abriram no 17º andar, elas saíram o mais rápido que puderam. Vê-las quase correrem foi levemente divertido para a policial.

Quando desceu no 46º andar, ela podia dizer que, apesar de mostrar seu distintivo, a segurança já tinha avisado à recepcionista sobre sua chegada. A jovem parecia quase nem ter idade para votar, de tão nova. Ela se levantou, parcialmente bloqueando a logo chique da companhia, AAC, ou a Agência para Artistas Criativos.

"Posso ajudá-la?" a garota perguntou, numa voz trêmula.

"Sim. Estou aqui para ver meu ex-marido, Stephen Locke. Não precisa avisá-lo. Conheço o caminho".

Ela começou a caminhar pelo corredor da agência de talentos Century City, que não visitava desde antes do divórcio. Desde então, ele havia se casado novamente com uma jovem atriz, tinha tido um garotinho com ela, e sido promovido a diretor do departamento de TV da agência. Mas ela sabia que ele ainda usava o mesmo escritório de antes. Stephen odiava mudanças.

A recepcionista tentava desesperadamente acompanhar seu ritmo, mas estava tendo dificuldade, por causa do salto de cinco centímetros. Quando Keri chegou à porta de Stephen, a pobre garota estava a uns bons 15 passos atrás.

Stephen estava de pé atrás de sua mesa, usando um fone de ouvido e microfone, falando rápido e mexendo as mãos animadamente. Ele parecia o mesmo desde que Keri o havia visto pela última vez, há quase dois anos.

Seus cabelos castanhos ondulados, volumosos, caíam casualmente pelo rosto, e ele usava óculos finos e estilosos. Ele parecia elegante e saudável, e as olheiras que sempre tinha sob os olhos quando estavam juntos haviam desaparecido.

Quando ele levantou os olhos e viu Keri, congelou por um momento antes de se recompor.

"Terei que lhe ligar de volta", ele disse para quem quer que estava do outro lado da linha. Então, desligou e retirou o fone.

A recepcionista finalmente chegou e parou na porta, ao lado de Keri.

"Sinto muito, Sr. Locke. Ela passou voando por mim".

"Está tudo bem, Brandi", ele disse.

"A segurança está subindo".

"Está tudo certo. Você pode cancelar isso. A Srtª Locke não é um risco para a segurança. Você pode nos deixar a sós. Pode fechar a porta, por favor?"

"Sim, senhor", Brandi disse e fez como ele lhe pedira enquanto Keri entrava na sala.

Eles se olharam por um longo momento antes de darem uma palavra. Agora que estava realmente ali, Keri não tinha certeza de por onde começar.

"Keri, que surpresa. Ouvi falar sobre sua luta com aquele cara que raptou a filha do senador. Você está muito bem, considerando o tempo em que esteve internada".

"Obrigada", ela disse, ignorando o fato dele nunca ter nem ligado para saber como ela estava. Precisava estar no controle, e ressentimentos não iam ajudar. "Você parece bem".

"Obrigado. Eu meio que me transformei num fanático pelo CrossFit. O que posso fazer por você?"

"Preciso de sua ajuda, Stephen", sem perder tempo.

"Com o quê?" ele perguntou, desconfiado.

"Tenho uma pista forte sobre o possível sequestrador de Evie. Mas não posso usar os recursos do departamento para ir atrás dele. Então, preciso dos seus".

Keri observou Stephen levar um momento para absorver tudo.

"O que quer dizer? Por que a polícia não pode ajudar?"

Ele estava levantando a guarda. A conversa não estava indo da maneira como esperava. Ela tinha vindo para lá com tanta pressa que não pensou bem sobre o que fazer em seguida. Agora, estava comprometida. Teria que revelar mais do que gostaria.

"Os métodos que usei para conseguir a pista não foram totalmente legais", ela admitiu. "Se eu for até meu tenente, terei que explicar como consegui a informação. Ele não poderá autorizar isso e eu posso ser presa".

"Jesus, Keri, o que você fez?" ele perguntou. Seu rosto mostrava a mesma expressão atônita que ele usava tão frequentemente quando estavam juntos. Stephen parecia confuso com Keri durante boa parte de seu casamento e, aparentemente, nada havia mudado.

"Eu realmente não posso dizer muito mais do que já disse. Você poderia ter problemas se soubesse. Mas não há nada de errado em você, como cidadão, oferecer recursos para investigar um suspeito. É isso que preciso de você: dinheiro e a disposição de usá-lo".

"Como você o usaria?" ele perguntou, claramente intrigado, apesar de sua apreensão.

"Eu contrataria um especialista em tecnologia para fazer uma busca digital. Também precisaria de uma agência de investigação completa, com recursos humanos e de vigilância, uma com experiência em rastrear suspeitos sem ser detectada. Conheço duas opções de qualidade".

Keri podia sentir que era demais para ele. Mas Stephen ficava facilmente sobrecarregado pela maioria das coisas que não envolviam fechar negócios para seus clientes. E ela não tinha tempo para segurar a mão dele. Precisava iniciar o processo em pouco tempo. Então, apesar do óbvio desconforto do ex-marido, Keri continuou.

"Além disso, precisaria de dinheiro vivo que eu pudesse repassar para pessoas no submundo do rapto, pessoas que podem ter informações úteis. E eu precisaria de tudo isso rápido. Minha pista pode desaparecer com o tempo. Daqui a 24h, pode esfriar".

Stephen sentou-se na sua mesa e colocou a cabeça nas mãos. Keri queria sacudi-lo, gritar que ele deveria estar feliz com a primeira chance real de encontrarem o sequestrador da filha.

Ao invés, ela ficou de pé em silêncio, esperando ele se recompor. Stephen tinha o hábito de se "desligar" emocionalmente quando as coisas ficavam feias. Ela esperava que ele pudesse frear esse instinto daquela vez.

Após um momento que pareceu uma eternidade, ele levantou os olhos para ela. Estudando sua expressão, ela sabia da resposta antes que ele falasse.

"Desculpe, Keri. Mas simplesmente não posso. Não posso estar envolvido em algo que é tão legalmente questionável".

"Não estou lhe pedindo para fazer nada legalmente questionável", ela insistiu. "Estou basicamente pedindo um empréstimo. Só que é um empréstimo que poderia ajudar a encontrar nossa filha".

Stephen suspirou profundamente antes de responder.

"Eu sei que parte de você acredita nisso", ele disse. "E parte de mim também quer acreditar. Mas acho que, lá no fundo, sabe a verdade. Evie nunca vai voltar. E quanto antes você se reconciliar com isso, mais rápido pode começar a se curar".

Keri sentiu a raiva fervilhar dentro dela e tentou abafá-la.

Se eu explodir, ele nunca vai ajudar.

"Stephen, o que me ajudará a curar é ter nossa filha de volta. Se não for possível, eu até aceitarei saber o que realmente aconteceu com ela. Dar-me esse dinheiro pode me ajudar a alcançar isso e não vai impedir a sua 'cura'".

Ela sabia que essa última frase sarcástica era contra-produtiva, mas podia sentir que estava perdendo o controle. Stephen, como sempre, permanecia impassível.

"Keri. Você está obcecada. Pense no que está fazendo. Seu emprego envolve procurar por crianças desaparecidas. Todo dia, vai trabalhar e arranca a casca da mesma ferida várias vezes. Não faz bem para você".

Ele disse isso com tanta indiferença e calma que ela teve vontade de lhe dar um soco. Ela costumava adorar como a fria cautela dele equilibrava o eterno sangue quente dela. Mas, agora, sem Evie para aparar as arestas entre eles, não o suportava. A condescendência sem emoção de Stephen era demais para aguentar.

"Você vai me dar o dinheiro ou não?" perguntou pela última vez.

"Sinto muito, Keri".

Ao ouvir isso, os últimos vestígos de contenção desapareceram e ela explodiu, dizendo as palavras que havia guardado por anos.

"Sim, eu também sinto muito. Sinto que você se importa mais com sua reputação do que com sua filha. Nós dois sabemos que você nem tem certeza se quer Evie de volta. Iria perturbar demais seu mundo perfeito ter uma filha de 13 anos com sequelas emocionais em sua vida. Seria intenso demais. Afinal, você está estabelecido, não é? Tem sua esposa atriz. Tem seu filhinho substituto. Quantos anos Sammy tem agora... dois? E Shalene não quer ser madrasta de uma garota que nunca viu e que pode exigir atenção extra. É bagunçado demais, não é, Stephen?"

Houve uma longa pausa tensa entre eles antes que Stephen finalmente falasse.

"Acho que deveria ir embora", ele disse.

"Sim, acho que sim. Nenhuma razão de ficar. Mas, lembre-se, quando eu a encontrar, e eu vou encontrá-la, sua filha vai perguntar o que você fez para ajudar. E terá que explicar para ela que você não fez porcaria nenhuma. E por quê? Porque seria incoveniente".

Ela foi embora, batendo a pesada porta atrás de si com tanta força que um quadro caiu da parede do corredor, quebrando o vidro. Passou como um furacão pela recepção, onde dois seguranças a esperavam. Quando a viram, ambos recuaram um passo para o lado sem dizer palavra, deixando-a entrar no elevador sozinha. As portas se fecharam, mas Keri esperou até que tivesse começado a descer antes de começar a gritar, numa fúria desesperada.

 

CAPÍTULO VINTE E QUATRO

 

Tudo estava confuso. Keri piscou várias vezes, tentando dissipar a névoa que parecia cobrir seus olhos. Sua boca estava completamente seca e seu corpo todo doía. Um zumbido irritante a distância parecia estar ficando mais alto. Ela se forçou a abrir os olhos e olhou ao redor, avaliando onde estava.

Keri estava na casa-barco, deitada de barriga para baixo na namoradeira em sua minúscula sala de estar. Seu braço e sua perna direita pendiam de lado. Quando tentou movê-los, percebeu que ambos estavam dormentes.

Sua cabeça latejava e ela sentia vontade de vomitar. Ainda assim, o barulho de telefone tocando continuava ficando mais forte. Por fim, percebeu o que era: seu despertador. Ficava ao lado da cama, a uns dois metros de distância, trajeto aparentemente intransponível.

Então, seu celular começou a tocar também. Estava sobre a mesa de centro, a pouco mais de um metro. Mas aquilo ainda parecia uns cem quilômetros para ela. Tentou se esticar para alcançá-lo, mas perdeu o equilíbrio e caiu completamente da namoradeira.

Acho que nunca tive uma ressaca tão forte em toda a minha vida.

Keri conseguiu pegar o celular e desligar aquele alarme, mas o relógio ao lado da cama ainda requeria uma jornada impossível. Ela rolou de quatro e usou os cotovelos para se apoiar na mesa de centro e alcançar algo parecido com uma posição ereta.

Em seguida, cambaleou até a cama e golpeou o botão do despertador, silenciando-o, por fim. Então, sentou na cama, tentando se mover o mínimo possível. Sentiu a tentação de se deitar, mas algo lhe disse que não deveria fazer isso.

Olhou para o relógio. Eram 7h15. Por que tinha ajustado o despertador tão cedo na noite passada? Deve ter sido de propóstio. Mas não conseguia se lembrar por quê. Tudo que aconteceu na noite passada estava envolto em névoa espessa.

Flashes vieram à sua mente. Parar no Ralph’s para comprar algumas asas de frango e uma garrafa de Glenlivet ao retornar de seu terrível encontro com Stephen; assistir a uma das séries intercambiáveis sobre os Kardashians equanto bebia a garrafa inteira; vomitar.

Antes que pudesse ter uma imagem clara, seu celular tocou. Percebendo que o havia deixado na mesinha de centro, Keri usou a parede para se levantar e rastejou de volta para pegá-lo.

"Alô", ela disse, sem nem olhar quem estava ligando.

"Keri, está acordada?" a voz era do detetive Kevin Edgerton.

"É claro que estou. Por que está me ligando para perguntar isso?"

"Porque você me pediu quando me ligou na noite passada".

"Pedi?"

"Sim, você disse que ia beber até cair e me pediu para ligar hoje às sete e quinze para garantir que você acordaria a tempo para a reunião sobre o caso Burlingame, às oito".

Ai, merda... a reunião. Como vou ficar apresentável e chegar na delegacia às oito? Enquanto isso, Edgerton deve achar que enlouqueci.

"Certo. Eu havia me esquecido. Valeu, Kevin, apesar de estar um pouco atrasado. No meu relógio, são sete e dezoito".

"Eu sei. Desculpe..."

"Não se preocupe", ela disse, satisfeita por tê-lo colocado na defensiva. Tinha esperanças de que ele não ligasse muito para a questão da bebedeira. "Vejo você daqui a pouco".

Ela desligou e cambaleou até o banheiro. A mulher que a olhou de volta no espelho parecia uma estranha: pálida, inchada, olhos vermelhos com olheiras ao redor, cabelo despenteado. Ela parecia uma década mais velha que seus 35 anos.

Pegou uma sacola e começou a colocar rapidamente dentro o que ia precisar ao longo do dia: roupas limpas, sua toalha e produtos de banho, seu coldre e uma imensa garrafa de água. Então, correu do barco até a estação de conveniência, nas docas. O ar fresco da manhã tanto a reavivou quanto a irritou.

Tenho que dar uma olhada naquele apartamento que Ray mencionou. Que mulher adulta precisa caminhar quatrocentos metros para tomar um banho?

Enquanto caminhava, Keri conferiu seu celular. Havia várias mensagens de texto e de voz recebidas ontem, e ela havia ou ignorado ou perdido todas. Uma mensagem era de Ray, no final da tarde, perguntando por que ela ainda não havia se encontrado com René, o cara com o apartamento para alugar. Outra mensagem era de Stephen, implorando para ela buscar ajuda.

Logo em seguida, havia uma mensagem de voz:

"Oi, detetive Locke. Aqui é Susan Granger falando. Não quero incomodá-la. Eu sei que se machucou muito lutando com aquele bandido. Mas você prometeu que viria me visitar quando melhorasse e espero que não tenha esquecido. Enfim, obrigada. Tchau".

Keri não achava que podia se sentir pior, com a cabela latejando, desidratada, com enjoo, costelas e ombro doloridos e auto-desprezo. Mas, agora ela podia acrescentar culpa ao inventário.

Susan Granger era uma garota de 14 anos que havia fugido de casa e sido forçada a se prostituir, por um cafetão chamado Crabby. Enquanto investigava o desaparecimento de Ashley Penn, há duas semanas, Keri havia encontrado ambos numa rua de Venice, e por um breve momento confundiu Susan com o que ela imaginava que Evie se pareceria enquanto adolescente.

Depois de bater em Crabby e prendê-lo, ela colocou Susan num lar coletivo em Redondo Beach. Elas se falaram pelo telefone algumas vezes, mas Keri havia garantido que iria visitá-la quando estivesse melhor.

De algum modo, a combinação das suas lesões e de sua relutância de estar frente a frente de novo com uma garota que lhe lembrava o possível destino de Evie, manteve Keri afastada até agora. Mas o desapontamento na voz de Susan lhe alertou que ela havia estagnado por tempo demais.

Keri entrou no chuveiro e tentou afastar a vergonha que sentia, focando apenas no sabonete e no xampu. Não funcionou, já que imagens de Susan, com um quilo de maquiagem no rosto e uma mini-saia na rua, no meio da noite, continuavam a aparecer em sua mente.

Depois de se vestir e pôr um pouco de maquiagem para esconder a noite difícil, Keri foi direto para a delegacia. Ela entrou na Sala de Conferência A às 7h58, com dois minutos de antecedência. Nem o tenente Hillman havia chegado ainda. Sentou entre Suarez e Edgerton e se inclinou para falar com o mais jovem.

"Obrigada por hoje de manhã", ela sussurrou. Ele assentiu e sorriu, mas não respondeu, já que Hillman havia acabado de entrar na sala.

"Certo", ele disse, dispensando as formalidades. "Acho que temos algumas novidades esta manhã. Quem quer começar?"

Garrett Patterson levantou a mão e Hillman fez um gesto para ele vir até a frente da sala. Patterson adiantou-se e ligou a grande tela que dominava toda a parede posterior.

"Sabemos que a conta corrente individual de Kendra foi esvaziada e que foi comprada uma passagem em Palm Springs por alguém que parecia ser ela, sob o nome de A. Maroney, que bate com a inicial de seu nome do meio e nome de solteira. A passagem foi para um ônibus com destino a Phoenix, mas não há evidência da mulher ter descido lá. Mas agora acreditamos que sabemos onde ela desceu".

"Onde?" Brody perguntou, impaciente.

"Blythe, Califórnia, logo a oeste da fronteira do Arizona", Patterson disse, enquanto o monitor exibia uma nota fiscal na tela. "Conseguimos o registro de um carro sendo alugado na mesma rua da rodoviária. O nome no cartão de crédito era A. Maroney. O carro foi devolvido na manhã de ontem em El Paso, no Texas".

"Ótimo", Brody rosnou,"de lá, ela deve ter cruzado a pé a fronteira com o México e nunca mais saberemos aonde ela foi depois disso".

"Na verdade, achamos que foi exatamente isso que ela fez. Mas não a perdemos. Certo, Manny?"

O detetive Manny Suarez pegou isso como deixa e ficou de pé ao lado de Patterson.

"Sendo o único membro bilíngue desta unidade, eu me ofereci como voluntário para entrar em contato com as autoridades mexicanas. Por fim, fui posto em contato com o pessoal certo e eles me enviaram isto".

A imagem na tela foi substituída com uma impressão do que parecia ser a lista de pasageiros de um avião. Suarez continuou.

"Este é o registro de um voo de Juarez para a Cidade do México, ontem. Notem o 17º nome na lista: A. Maroney. E aqui estão imagens de câmeras de segurança da área do portão de embarque, enquanto as pessoas embarcavam no voo".

Keri examinou as imagens granuladas. Após alguns momentos, ela viu o que parecia ser a mulher da rodoviária de Palm Springs. Ela estava usando uma roupa diferente, mas tinha o mesmo lenço na cabeça e óculos escuros, e tinha o cuidado de manter a cabeça abaixada o tempo todo.

Suarez colocou uma nova imagem na tela.

"E aqui podemos ver o registro de um voo diferente", ele disse. "Este é do final da tarde de ontem. Foi da Cidade do México até Barcelona".

"Barcelona, na Espanha?" Cantwell perguntou, surpreso.

"Pois é", Suarez respondeu. "Aqui estão imagens da mesma mulher embarcando nesse voo. E esta imagem é do início desta manhã, no aeroporto de Barcelona".

Na tela, estavam várias capturas de tela do que parecia ser a mesma mulher. Uma era dela deixando o portão após descer do avião. Outra era dela caminhando por um pátio. E a última imagem era dela esperando na fila numa parada de ônibus do lado de fora da área de decolagens do aeroporto.

"Esta é a última imagem que temos dela. Os ônibus pegam passageiros lá a cada dez minutos, e param ao longo de vários pontos pela cidade. Não há como rastreá-la depois disso".

"E tem mais uma coisa", Edgerton acrescentou, interrompendo pela primeira vez. "Manny, pode exibir a imagem tratada da área de espera da rodoviária?"

Enquanto Suarez procurava pela imagem, Edgerton se voltou para Keri.

"Lembra que nos pediu para dar um zoom nas imagens dela lendo aquela revista na estação? Bem, fizemos isso e veja o que encontramos".

Na tela, apareceu um close-up da mulher segurando a revista. O título estava um pouco borrado, mas Keri pôde distinguir o que dizia: Vivenciar a Espanha.

"Bem, eu diria que isso fecha tudo", Brody anunciou, triunfante.

"E quanto às impressões digitais do globo de neve?" Keri perguntou.

Edgerton balançou a cabeça.

"A polícia de Palm Springs ainda está analisando. Eles identificaram 14 impressões, definitivamente, mas nada de Kendra ainda. Ainda estão processando outras, mas me disseram que, mesmo que ela tenha tocado no globo, eles podem não conseguir uma impressão nítida. Tem dedos demais naquela coisa".

O tenente Hillman olhou para Keri. Ela sabia que ele estava esperando por ela, já que era sempre a última a querer encerrar um caso. Aquele instinto havia sido muito útil quando todo muito supôs que Ashley Penn havia fugido. Ela tinha se aferrado àquele caso, contra ordens diretas e, por fim, provou que estava certa. Uma adolescente estava viva por causa de sua teimosia.

Mas, apesar de sua intuição lhe dizer que algo estava errado, ela não podia pensar em nada concreto que pudesse justificar a continuação das investigações.

"A irmã dela me disse que Kendra falava espanhol fluentemente", ela falou, relutante. "Então, faz sentido que, se quisesse fugir, iria para um lugar onde conhecesse a língua. Tudo se encaixa".

"Eu concordo", Hillman disse, dando um passo à frente. "É o seguinte, pessoal. Ainda não vamos encerrar o caso oficialmente. Só fazem 72 horas desde que ela desapareceu. Pode aparecer algo. E, além disso, o marido vai fazer uma confusão se dissermos a ele que estamos encerrando. Essa mulher é a coisa mais póxima de uma santa que temos nesta cidade e não queremos Burlingame indo para a imprensa, dizendo que abandonamos sua esposa. Mas, por questões práticas, estamos encerrando as investigações. Podem continuar com outros casos. Se algo aparecer sobre este, vamos revisitá-lo. Entendido?"

Todos concordaram, assentindo.

"E, Locke", ele acrescentou, "tire o resto do dia de folga. Acho que lhe empurramos para o campo depressa demais. Você parece um zumbi. Tenha uma boa noite de sono e nos vemos amanhã".

"Sim, senhor", Keri disse. Pela primeira vez num longo tempo, ela não se sentia em oposição a ele. Tudo o que queria era ir para casa e dormir. Saiu da delegacia, conferindo as mensagens que pode ter perdido durante a reunião. Havia um e-mail esperando por ela.

Era do Colecionador.

 

CAPÍTULO VINTE E CINCO

 

Em choque e com as pernas subitamente fraquejando, ela se apoiou na parede mais próxima, para não cair.

Era uma réplica ao seu e-mail da tarde de ontem, perguntando "onde você estava?"

A resposta dele era curta e direto ao ponto:

 

eu estava lá. você, não. cautela é bom. você passou nesse teste. mas confiança é fundamental. talvez, uma próxima vez.

 

Keri entrou no carro, fechou a porta e ficou parada, em silêncio, imóvel. Não podia decidir se a mensagem era desoladora ou se continha um raio de esperança. Ele não havia encerrado a comunicação completamente. Havia até dado a entender que uma próxima vez era possível.

Mas ela não tinha ideia de como garantir essa possibilidade sem correr o risco de assustá-lo. Por fim, violando a própria essência de sua natureza, decidiu não fazer nada, pelo menos por ora.

Estou cansada. De ressaca. Sinto-me mal. Estou fisicamente machucada. E estressada além do inimaginável. Não é o melhor momento para entrar em contato e correr o risco de cometer um erro. Deixe estar.

Com a decisão tomada, Keri sentiu um peso sair de seus ombros. Ela ainda se sentia um lixo. Mas ao menos podia seguir em frente. Ao menos, podia funcionar. Ao menos, podia focar em outras tarefas sem se sentir como um nervo em carne-viva, latejando, a todo momento. E ela sabia a tarefa em que ela precisava focar naquele momento.

 

*

 

Enquanto estacionava na frente do lar coletivo em North Redondo Beach, Keri desligou o telefone. Tinha acabado de deixar o que ela esperava ser uma mensagem graciosa para Randall, o funcionário da GameStop.

Por alguma razão, estava se sentindo generosa e ele havia se beneficiado. Ela o agradeceu pela sua ajuda ontem e disse que, apesar dele ser bonito e gentil, havia decidido voltar com seu namorado. Sentindo orgulho de si mesma pela primeira vez naquele dia, Keri saiu do carro e foi até a casa.

Para a pessoa comum, a casa-lar South Bay parecia com qualquer outra residência da vizinhança. Era um pouco afastada da rua, cercada por grossas palmeiras, e o estilo mediterrâneo combinava com o das casas ao redor.

Os únicos sinais de que o lugar tinha alguma coisa de diferente eram os muros de pedra muito altos que circulavam a casa, e as câmeras discretamente instaladas, que vigiavam a calçada e a rua, em ambas as direções.

Elas eram uma infeliz necessidade, já que muitas das moradoras, todas adolescentes, foram vítimas de violência doméstica. Em raras ocasiões, o perpretador descobria o endereço da casa e tentava fazer uma visita surpresa.

Keri tocou a campainha no portão externo e esperou alguém responder. Podia sentir que havia uma câmera focada nela também e ela levantou seu distintivo e identidade para facilitar as coisas para quem quer que a estivesse examinando. Após um momento, uma voz surgiu do interfone.

"Como posso ajudá-la, detetive?" perguntou uma mulher de voz rouca.

"Eu sou Keri Locke, estou aqui para ver Susan Granger. Ela solicitou uma visita".

"Normalmente, nós pedimos aos visitantes para avisarem com antecedência, detetive Locke".

"Entendo. Mas estive incapacitada por um tempo. Esta é a minha primeira chance de passar por aqui. Poderia abrir uma exceção?"

Houve um longo silêncio. Então, Keri ouviu um zumbido. Ela empurrou o portão e caminhou até a porta da frente, onde uma mulher muito pequena a esperava. Tinha óculos grossos e seu cabelo grisalho estava arrumado num coque. Sua pele muito enrugada sugeria uma vida inteira abusando do sol e do cigarro.

"Incapacitada por um tempo", ela disse, parecendo se divertir um pouco, enquanto Keri se aproximava. "Essa é uma forma de dizer. Eu a vi no noticiário, detetive. Estou surpresa por já estar andando. Pensei que ficaria numa cadeira de rodas por um mês".

"Sim, pois é. Eles enjoaram de mim no hospital, então, me mandaram sair. Imaginei que queriam que eu desse o fora caminhando, então, tentei ficar logo de pé".

A mulher começou a rir, mas rapidamente a risada se tornou uma tosse longa, cavernosa. Indiferente a isso, ela acenou para Keri segui-la para dentro da casa. Quando se recuperou, fechou a porta e começou travar os três diferentes cadeados nela.

"Susan ficará feliz em vê-la", ela disse, enquanto caminhavam por um longo corredor decorado com um intrincado piso de cerâmica. "Eu sou Rita Skraeling, aliás. Tomo conta deste lugar. Pode me chamar de Rita".

"Oi, Rita, pode me chamar de Keri. Como ela está?"

"Há dias bons e dias nem tanto. As sessões de terapia desta semana têm sido difíceis. Mas ela está realmente tentando. E as outras garotas a adotaram e a mantêm debaixo da asa. Muitas delas sabem pelo que ela passou, então, podem entendê-la melhor".

"Quantas garotas moram aqui?"

"Isso varia; geralmente, entre quatro e oito. Agora, temos cinco, com Susan. Ela está na biblioteca".

Elas dobraram no final do corredor e Keri viu que a biblioteca era apenas uma sala bem iluminada pela luz natural, com duas prateleiras cheias de livros. Havia uma namoradeira perto da janela e dois puffs. Susan estava sentada num deles, lendo casualmente um livro de Nancy Drew, a famosa adolescente detetive.

Era chocante o quanto ela estava diferente da única e última vez em que Keri a havia visto, naquela rua de Venice. Naquela noite, ela podia ter passado como tendo 19 ou 20 anos. Mas, agora, usando calças de moletom e uma camiseta azul navy, sem maquiagem, com seu cabelo loiro num rabo de cavalo frouxo e as pernas dobradas, ela parecia mais perto de 12.

Susan sentiu que estava sendo observada e levantou os olhos, com medo. Mas, no segundo em que viu Keri, seu rosto suavizou e se abriu num largo sorriso. Ela ficou de pé e correu até ela, dando-lhe um abraço apertado. Keri fez uma careta de dor, mas se forçou a não gemer enquanto suas costelas eram esmagadas.

"Cuidado, Srta. Granger. Lembre-se de que a detetive Locke ainda está se recuperando de suas lesões".

Susan recuou imediatamente.

"Desculpe. Eu esqueci", ela disse baixinho.

"Tudo bem", Keri tranquilizou-a e levantou os braços como um fisiculturista, exibindo os músculos. "Forte como um touro".

Susan riu.

"Deixarei vocês a sós", Rita disse, e saiu sem mais uma palavra.

"Quer se sentar?" Keri perguntou. Susan assentiu e elas se sentaram na namoradeira.

"Obrigada por vir".

"Claro. Desculpe por demorar tanto", Keri disse, decidindo não se explicar além disso.

"Tudo bem. Eu sei que você está lidando com muitas coisas ao mesmo tempo. Só queria garantir que não tinha esquecido".

Keri ignorou a nova onda de culpa que a cobriu.

"É claro que não", ela disse. "Então, como estão as coisas aqui?"

"Muito bem. A Sra. Skraeling é rígida... mas de um jeito bom. As meninas são legais. Acho que o que eu mais gosto é simplesmente estar acordada de dia e dormindo à noite.

Keri assentiu, tentando ignorar o nó na garganta. Ela se lembrou de que esta garota havia passado quase toda noite dos últimos anos andando pelas ruas, satisfazendo as vontades grotescas de homens três ou quatro vezes mais velhos que ela. O pensamento a fez querer chorar, vomitar e bater em alguém ao mesmo tempo.

"Isso é bom", ela conseguiu dizer, com uma voz calma.

"Como vai a outra menina, aquela que foi raptada... Ashley?" Susan perguntou.

"Ah, puxa. Eu também ainda não tive a chance de visitá-la. Ela se machucou muito, especialmente na perna. Mas sei que seu corpo estava se recuperando bem. Os médicos disseram que ela poderia surfar novamente um dia. Eu preciso ir visitá-la também. Talvez faça isso mais tarde, ainda hoje".

"Eu me preocupo com ela", Susan disse, com uma sinceridade que fez Keri perder o fôlego.

"Eu também, querida", ela disse. "Mas ela é como você, durona. E vai ficar bem".

"Por falar em ser durona, você prometeu que me ensinaria alguns dos golpes de Krav Maga que usou para derrubar Crabby. Eu sei que ainda está sentindo dor. Mas, quando estiver se sentindo melhor, acha que poderia voltar e me mostrar alguns movimentos?"

"Pode apostar. Mas, por ora, acho que conversarmos neste sofá é a melhor coisa a fazer".

Susan riu novamente, dando a Keri uma dose de energia que fez suas dores desaparecerem, pelo menos por um momento. A garota olhou para ela timidamente, antes de ter coragem de fazer a pergunta que obviamente queria fazer há algum tempo.

"Quando decidiu se tornar uma detetive policial?"

"Ah, vejo que está lendo Nancy Drew. Está interessada em mistérios policiais, não é?"

Susan não respondeu, mas esperou em silêncio. Ela queria uma resposta verdadeira e não iria se distrair. Keri decidiu respeitá-la o bastante para dizer a verdade.

"Bem, foi alguns anos atrás. Eu era uma professora universitária que ensinava sobre criminalidade. Um dia, no parque, minha filha foi raptada, bem na minha frente. Eu me senti desesperada. Fiquei despedaçada por um bom tempo depois disso. Para ser sincera, ainda não me recuperei completamente. Perdi meu emprego. Meu casamento se desfez. Mas um amigo detetive me convenceu de que, com minha experiência, eu também poderia ser uma boa detetive. Comecei a pensar que ele poderia estar certo. Achei que seria uma boa maneira de ajudar outras pessoas, mesmo que eu não tivesse conseguido ajudar minha própria garotinha. Então, é o que tento fazer agora. Ajudar as pessoas, especialmente as desaparecidas, a encontrar seu caminho de volta para casa".

Keri ficou em silêncio. Susan pegou a mão dela e a apertou. Nenhuma delas falou por um longo tempo. Por fim, a garota quebrou o silêncio.

"Acho que você deveria vir me visitar mais vezes. Não quero que se sinta sozinha". A voz dela expressava uma preocupação sincera. Keri não sabia se ria ou se chorava.

"Tenho uma ideia", ela respondeu. "Por que não marcamos um encontro semanal? Com o emprego que tenho, não posso prometer muito. Mas vou tentar visitá-la toda semana, para falar sobre o que você quiser. Podemos até entrar num clube do livro de Nancy Drew. Eu vou ler o mesmo que você e podemos conversar sobre isso quando eu vier de novo. O que acha?"

Susan assentiu, levantando a capa do livro, para que Keri pudesse anotá-lo. O título era O Segredo do Velho Relógio.

Então, a menina ficou em silêncio novamente, como se perdida em seus pensamentos.

"O que foi, querida?" Keri perguntou. "Você está bem?"

Após vários segundos, Susan levantou os olhos e falou, em um tom solene.

"Acho que eu gostaria de ser uma detetive policial um dia também", ela disse.

"Tenho a impressão de que você seria uma grande detetive".

 

CAPÍTULO VINTE E SEIS

 

Keri estava tão imersa em seus próprios pensamentos que quase não notou os semáforos na rodovia ou o tráfego ao seu redor enquanto retornava de Redondo Beach. Então, algo pareceu lhe ocorrer subitamente, como se tivesse acabado de acordar após uma hibernação.

Ao invés de sair da rodovia 405 e voltar à casa-barco, ela continuou seguindo para o norte. A conversa com Susan a havia lembrado de algo.

Não importa o quanto minha própria vida esteja arruinada, sou boa no que faço, porque me importo. Eu luto por quem não pode lutar por si. É isso que eu faço. E é isso que vou fazer por Kendra Burlingame.

Algo estava incomodando Keri. Mas ela vinha ignorando sua intuição porque não parecia valer a pena averiguar. Mas isso era o que ela fazia: seguia pistas aonde for que a levassem. E era isso que faria agora.

Vinte minutos depois, chegou num prédio de três andares de aparência modesta em Culver City, literalmente, a dez metros da rodovia. Abrigava o jornal semanal alternativo mais conhecido de Los Angeles, o Weekly LA. Para surpresa de Keri, também era o local de trabalho de Margaret "Mags" Merrywether.

Keri se registrou na recepção e Mags apareceu em menos de um minuto. Não estava usando um vestido de noite desta vez, mas até suas roupas de trabalho comuns eram impressionantes. Ela usava uma blusa creme solta desabotoada muito abaixo do que Keri achava apropriado, calças pretas justas e um par de sandálias de salto que faziam um barulho alto quando ela caminhava. Seu flamejante cabelo vermelho estava puxado num coque desleixado, mas, de alguma forma, ainda elegante.

"Esta é uma surpresa magnificamente inesperada", ela disse, com um largo sorriso.

"Oi, Mags. É bom ver você. Poderíamos conversar num local mais reservado?"

"É claro que sim. É um papo do tipo 'sair até a cafeteria no final da rua' ou uma conversa 'a portas fechadas no escritório'"?

"Acho que é o segundo caso".

"Ah, querida. Bem, venha por aqui, então".

Ela a guiou pelo corredor, muito à vontade entre as caixas empilhadas por todo lado e mesa ou cadeira ocasionalmente fora do lugar. Por fim, elas chegaram num escritório apenas um pouco maior que a cozinha de Keri, com uma vista para os carros voando na rodovia, perigosamente perto. Estava cheia até o topo com pilhas altas de papeis muito bem organizados. Todas as estantes estavam cheia de livros. Fotos e primeiras páginas emolduradas do jornal cobriam as paredes.

"Por favor, desculpe a bagunça. Gostaria de dizer que não é sempre assim. Mas é. Pegue uma cadeira".

Keri fechou a porta e manobrou até a pequena cadeira de madeira na frente da mesa de Mags.

"No que você trabalha aqui, exatamente?" ela perguntou.

"Escrevo uma coluna sob o pseudônimo de 'Mary Brady'".

"É a coluna dos escândalos... aquela que fez o vice-prefeito ser indiciado e expôs os casos de suborno na vigilância sanitária. É você?"

"Com muito orgulho", Mags disse, seus olhos brilhando de satisfação.

"Com base na outra noite, eu não a imaginaria como uma jornalista militante, que defende o 'poder para o povo'".

"Bem, acho que todos somos cheios de segredos, não é? Então, o que foi, detetive? Algum progresso nas buscas por Kenny?"

"Quase nenhum. Apesar do que todo mundo que a conhece diz, tudo sugere que ela saiu da cidade por conta própria. Na verdade, meu chefe ficaria irritado se soubesse que estou aqui, já que ele provavelmente acha, e com razão, que o caso está pronto para ser encerrado".

"E ainda assim, aqui está você", Mags notou.

"É verdade. Eu estava falando com a irmã de Kendra ontem..."

"Ah, sim, Catherine. A mulher com a vida mais abençoada que já conheci", Mags disse, num tom que poderia ser interpretado tanto como insulto quanto como elogio.

"Sim... bem, ela disse algo que não consegui tirar da cabeça".

"O que foi?"

"Ela sugeriu que Kenny poderia ter ficado um pouco entediada com sua vida como Sra. Jeremy Burlingame. Ela só não sabia aonde esse tédio poderia levar, mas disse que você talvez soubesse, já que você e Kenny eram mais próximas que as duas nos últimos anos. Então, há algo relacionado a isso? O tédio de Kenny já a enviou por um caminho meio inesperado?"

"Ah, Catherine, sempre ressentida por ser vista como a irmã Maroney com menos princípios. Que esperto da parte dela dar a entender que Kenny poderia não ser tão respeitável quanto todo mundo pensa, sem dizer isso abertamente. Impressionante o perfil passivo-agressivo dela, não acha?"

Keri encarou Mags. Gostava dela, provavelmente mais do que deveria gostar de alguém que estava interrogando. Ela podia imaginar o quanto devia ser divertido ter uma amiga quanto Margaret Merrywether. A mulher era como uma Dorothy Parker moderna.

Mas era perigoso ser sugada demais pelo charme do sujeito de um interrogatório. Keri podia deixar passar coisas importantes. E ela tinha a impressão clara de que Mags estava tentando despistá-la.

"Sabe, Mags, eu notei que, entre todos esses floreios linguísticos, você nunca respondeu minha pergunta".

"Não?"

"Bem, talvez eu tenha deixado escapar no meio de toda a baboseira psicológica 'passivo-agressiva'. Então, vou perguntar um pouco mais diretamente. Que você saiba, Kendra Burlingame estava tendo um caso?"

"Ah, meu Deus, então, todas as cartas estão na mesa, não é?"

Keri não respondeu, recusando-se a deixar Mags escapar dessa. Por fim, ela baixou a cabeça e deu um profundo suspiro. Quando levantou os olhos novamente, o tom de brincadeira havia deixado seus olhos.

"Detetive Locke, lembra como eu compartilhei a informação sobre o ensaio de fotos de Kenny com você, sob a condição de que manteria aquilo em segredo, se possível?"

"Lembro. E acho que honrei aquele pedido".

"Vou fazer-lhe o mesmo pedido novamente. Vai concordar?"

"Desde que o que você me disser termine não sendo relevante para o caso, farei meu melhor. Mas não posso prometer nada".

"Entendo. E, como antes, sua palavra basta para mim. Há cinco anos, Kenny soube que não poderia ter filhos. No início, ela ficou arrasada. Mas começou a pensar sobre adoção ou barriga de aluguel. Infelizmente, Jeremy não queria ser pai, não importava como a criança viesse. Ele disse que perturbaria muito a rotina dos dois. Ela decidiu que, se ambos não estavam comprometidos com a ideia, então, não seria uma escolha sábia. Mas ela estava infeliz. Eu iria até além, eu diria que ela estava deprimida."

"Ela tomou alguma medicação?"

"Sim. E acho que ajudou. Mas ainda estava um pouco perdida. E acho que Kenny se ressentiu um pouquinho de Jeremy também. Foi bem nessa época que ela conheceu um homem em sua aula de ioga".

"Qual o nome dele?"

"Alex Crane. Ela me disse que ele é um ilustrador de livros infantis, muito em contato com suas própias emoções... a antítese de Jeremy. E ele é um pouco mais jovem. Quando se conheceram, Kenny tinha 33 e acho que ele estava no final dos vinte. E, aparentemente, ele é lindo e musculoso e, você sabe, maravilhoso".

Keri assentiu. Ela conhecia o tipo. Mags continuou.

"Enfim, eles começaram apenas conversando, tomando um café depois das aulas. E, para encurtar uma história extremamente longa, ela terminou tendo um caso breve com ele, talvez, por seis semanas. Não tenho nem certeza se ela gostou, porque se sentiu muito culpada. Quando falávamos a respeito, ela apenas se torturava. Estava traindo seu marido, seus princípios, sua própria percepção de quem era como pessoa. Enfim, ela terminou aquilo".

"Como Alex reagiu?"

"Não muito bem. Acho que ele se apaixonou por ela. Quero dizer, não dá para culpá-lo. Ele ligou para ela e tentou vê-la algumas vezes. Mas terminou entendendo e seguiu em frente. Sei que agora está casado e tem um bebê".

"Kendra já falou alguma coisa sobre ele ser perigoso?"

"Ela nunca usou essa palavra. Ela o chamava de apaixonado. Mas, às vezes, acho que ela queria dizer mais do que isso".

"Acha que Jeremy descobriu?"

"Nunca vi um sinal disso. Ela pensava em dizer a ele, apenas para esclarecer tudo. Mas temia que fosse magoá-lo demais e que ele não a veria da mesma forma depois disso. Além do mais, ela decidiu que dizer a ele seria apenas uma maneira de diminuir a própria culpa. Não seria por ele".

"Provavelmente, ela estava certa", Keri disse, falando de sua própria e dolorosa experiência pessoal.

"Para ser sincera, acho que Jeremy estava alheio até mesmo à possibilidade de que ela pudesse fazer algo assim. Não tenho nem certeza de que ele sabia que ela estava fazendo ioga. Ele vive tão imerso no seu próprio mundo a maior parte do tempo, focado em seu trabalho, que acho que não nota detalhes como esse".

"Certo, Mags. Obrigada por isso. Há algo mais que eu deveria saber sobre Kenny? Agora é o momento de me dizer. Não serei tão condescendente se deixar de me dizer algo mais uma vez".

"É isso, detetive. Kenny é uma boa pessoa. Ela fez algumas escolhas erradas, mas não muitas. E ela se castiga por elas mais do que qualquer pessoa que eu conheço. Só não quero sua boa reputação na lama".

"Eu entendo. Mas minha prioridade é proteger a vida dela. A reputação é secundária".

"É claro. É só que... é difícil encontrar boas amigas lá fora. E Kendra é uma grande amiga. A ideia de que ela pode ter nos deixado..." Mags não conseguiu continuar.

Pela primeira vez, Keri viu uma emoção real por trás da fachada de mulher forte.

"Farei meu melhor por ela", Keri prometeu.

Mags assentiu, pegou um lenço e enxugou o que quase parecia uma lágrima.

"Então, agora que completamos a parte 'a portas fechadas' de sua visita", ela disse, recuperando-se, "quer tomar um café comigo?"

"Na verdade, quero. Mas não agora. Tenho que fazer uma coisa".

"Alguma coisa empolgante, espero?"

"Depende. Você considera interrogar ilustradores de livros infantis destruidores de lares, praticantes de ioga, empolgante?"

"Na verdade, acho", Mags disse.

"Eu também".

 

 

CAPÍTULO VINTE E SETE

 

Keri estava um pouco envergonhada pela antecipação que sentiu enquanto batia na porta do apartamento de Alex Crane. Mas sua curiosidade assanhada sobre o homem que havia feito Kendra Burlingame pular a cerca já havia tomado conta.

Infelizmente, Alex não era tão excitante quanto Keri esperava. Quando ele abriu a porta do seu apartamento em Mar Vista, estava mais barrigudo e careca do que ela havia previsto. Ele usava jeans folgado e uma camiseta marrom extra-grande. Keri podia ouvir um bebê chorando alto ao fundo e uma voz feminina tentando acalmar o pequenino.

"Posso ajudá-la?" ele perguntou.

"Acho que sim. Meu nome é Keri Locke. Sou uma detetive da unidade de pessoas desaparecidas da Polícia de Los Angeles. Preciso falar com você sobre Kendra Burlingame".

A expressãod e Crane turned panicky e ele rapidamente olhou sobre o ombro para ver se sua esposa estava perto.

"Precisamos fazer isso agora?" ele sussurrou.

"Quem é?" sua mulher gritou de outro cômodo.

"Sinto informar que sim", Keri disse a ele com firmeza.

"Não é nada", Crane gritou de volta, sobre o ombro. "É só uma mulher pedindo ajuda, porque a bateria do seu carro morreu. Volto logo".

"Por favor, apresse-se, Alex", sua mulher gritou de volta. "Preciso de ajuda aqui".

"Serei rápido", ele respondeu, enquanto pegava as chaves do carro e saía. Em silêncio, ele levou Keri para fora do condomínio e começou a descer a rua, onde abriu seu porta-malas e começou a procurar o equipamento e fios para recarregar baterias. Keri notou um pé-de-cabra suspeito por perto e sua mão direita automaticamente foi para seu coldre.

"Pare, Sr. Crane. Tire suas mãos do carro e feche o porta-malas".

"Mas, se minha mulher sair, preciso estar com eles".

"Não dou a mínima para a mentira que precisa inventar para sua esposa. Sua mão está muito perto de algo que considero ser uma arma agora. Afaste-se, feche o porta-malas e sente-se no meio-fio... agora".

Crane fez o que ela mandou. Depois que ele sentou, levantou os olhos para ela.

"Eu me perguntei se alguém viria me ver".

"Você poderia ter vindo até nós".

"Qual é. Eu tenho uma mulher e um filho. Não vejo Kendra há anos. Não vi sentido em desenterrar coisas antigas sem uma boa razão".

"O ponto é, agora você parece suspeito, Alex. Se tivesse vindo até nós, poderia ter ganho algumas estrelinhas de bônus. Agora, tenho que destroçar sua vida".

"Por favor... não tive nada a ver com isso. Responderei todas as suas perguntas".

"Certo, vamos começar com onde você estava na manhã de segunda".

O olhar assustado no rosto dele foi quase que imediatamente substituído por um de alívio.

"Foi quando ela desapareceu? Isso é ótimo".

"Ótimo?" Keri perguntou, com raiva.

"Espere, não foi o que quis dizer. Só que eu estava fora da cidade. Eu estava num retiro de trabalho em Ojai, de domingo até ontem. Havia pelo menos uma dúzia de pessoas lá o tempo todo, eu participei de umas quinze reuniões. Além disso, dividi o quarto do hotel com um colega de trabalho. Posso prestar contas por cada segundo".

"Que tipo de trabalho fez no retiro?" Keri perguntou, ignorando o sentimento de decepção que começou a consumi-la de repente. "Achei que você era ilustrador de livros infantis".

"Eu era. Mas não pagava bem. Então, consegui um emprego como ilustrador técnico. Desenho as imagens que você vê quando compra escrivaninhas e mesas, coisas assim".

"Sério?"

"Eu me casei e tenho um filho. Precisava de algo estável, ok? É um saco, obviamente. Quero dizer, que empresa de manual de instruções requer retiros durante finais de semana? Mas paga bem. E era onde eu estava. Então, estou limpo?"

Keri olhou para ele, sentado de maneira displicente no meio-fio, e suspeitou que ele provavelmente estava. Alex Crane era patético e só estava preocupado com o próprio umbigo. Mas ela não podia acreditar que ele era um sequestrador movido pela luxúria. Não parecia ter a energia necessária para isso.

"Se seu álibi for confirmado, você estará bem. Mas precisa se ajudar, Alex".

"O que tenho que fazer?" ele perguntou, ávido.

"Ligue para o detetive Manny Suarez neste número", ela disse, dando-lhe um cartão. "Diga a ele que você falou comigo e que está dando um depoimento. Conte-lhe tudo: o caso, a viagem para Ojai, e tudo o mais que ele queira saber. Faça isso agora. Entendeu?"

Ele assentiu e pegou seu celular ali mesmo. Keri o deixou sentado e voltou para seu carro.

Crane pode não ser o cara, mas ainda há alguém que pode ser. Infelizmente, para saber com certeza, terei que quebrar aquela promessa a Mags.

 

*

 

O consultório de Jeremy Burlingame em Marina del Rey ficava numa torre de vidro com vinte andares a pouca distância a pé da casa-barco de Keri. Ela havia passado pelo prédio inúmeras vezes sem nunca notá-lo, realmente. Mas, agora, enquanto subia pelo elevador panorâmico, Keri se maravilhou com a vista da marina inteira. Mesmo a insignificante embarcação que ela chamava de lar, apenas um ponto ao longe, parecia respeitável daquela altura.

A porta se abriu e ela entrou num escritório estéril de paredes azuis e cinza com um teto em arco e vista para a cidade. Uma recepcionista sorriu para ela ao vê-la se aproximar.

"Meu nome é Keri Locke. Marquei um horário para ver o Dr. Burlingame às 14h".

"Certo, Srta. Locke", ela disse, com simpatia, "queira por favor preencher estes formulários enquanto tiro uma xerox do cartão do seu plano de saúde e carteira de identidade, eu volto logo".

"Ah, não é esse tipo de consulta. Sou a detetive Keri Locke, estou aqui para falar da esposa dele. Liguei mais cedo e ele disse que me encaixaria".

"Lamento por isso, Srta. Locke. Realmente, estou vendo uma nota aqui no computador. Foi erro meu", ela disse, parecendo muito mais mortificada do que Keri achava ser necessário. "Dê-me um momento e levarei você à sala dele".

Keri caminhou pela recepção enquanto esperava, olhando para as imagens emolduradas na parede. A maioria delas eram de crianças sorrindo, aparentemente, histórias com finais felizes. Outras eram de mulheres, e pareciam fotos tiradas para o cinema ou a televisão. Todas essas tinha a palavra "Borboleta" impressa no canto inferior direito da foto. Keri não tinha ideia do que aquilo significava.

Uma enfermeira abriu a porta e fez sinal para Keri segui-la. Elas dobraram no final de um longo corredor, até chegar num grande escritório, no canto noroeste. A enfermeira bateu na porta aberta para chamar a atenção de Burlingame, que estava inclinado sobre um caso.

Ele levantou os olhos, levemente surpreso, e então se recuperou e fez sinal para ela entrar.

"Obrigado por vir, detetive. Queria vê-la desde que ligou e imaginei que aqui era mais conveniente para nós dois, em termos logísticos. Para dizer a verdade, tenho consultas uma atrás da outra até as sete da noite, então, isso funciona melhor para mim".

"Sem problemas, Dr. Burlingame. Obrigada pelo seu tempo. Só queria falar um pouco com o senhor sobre o caso".

"Sim, obrigado. Continuo conferindo como estão as coisas com o tenente Hillman, mas ele nunca tem algo a compartilhar. Mencionou que a investigação até agora sugere que ela tenha apenas ido embora. Eu disse-lhe várias vezes que isso não era possível. Estou começando a me preocupar, achando que o caso de Kendra não tem a mesma prioridade para ele do que para mim".

"Definitivamente, não é assim, doutor. Ainda estamos perseguindo toda pista que encontramos, agressivamente. Na verdade, eu estava interrogando alguém de interesse logo antes de vir aqui. Deixe-me perguntar, o nome Alex Crane significa algo para você?"

Ela o observou atentamente, mas Burlingame só parecia um pouco perplexo.

"Acho que não. Se ele era um paciente, eu lembraria. É uma testemunha? Ou suspeito, ou coisa assim?"

"Neste ponto, nenhum dos dois. Mas ele foi, pelo menos por um tempo, o amante de sua esposa. O senhor sabia que Kendra estava tendo um caso, Dr. Burlingame?"

Os olhos do médico se arregalaram em choque e incredulidade.

"O quê?" ele balbuciou. "O que está dizendo?"

"Sua mulher teve um caso com um homem chamado Alex Crane. Sabia disso?" ela perguntou com mais firmeza, desta vez.

"Não, quero dizer, não, isso não é verdade. Não pode ser verdade. Esse homem... ele deve estar mentindo... você sabe, pelos quinze minutos de fama. Por favor, você não pode acreditar nisso. Kendra nunca faria isso".

De início, Keri não respondeu. Toda a sua atenção estava focada no rosto de Burlingame, procurando por qualquer traço de decepção. Ela não o conhecia bem, então, não tinha muito com o que comparar a reação dele. Mas ele parecia genuinamente angustiado.

A polidez fria com a qual normalmente se comportava tinha desaparecido. Ele parecia um garotinho que havia sido separado de sua mãe numa grande multidão e estava agora procurando desesperadamente por ela.

"Ela nunca mencionou nada sobre isso com o senhor?"

"Não, nunca. Está dizendo que ela fugiu com esse homem? É por isso que Hillman não fala abertamente comigo? Não acredito em nada disso".

"O caso aconteceu há cinco anos. Acabou há muito tempo, doutor. Ela nunca mais viu Crane desde que terminaram".

"Espere, o quê? Então, por que está me dizendo isso? Que bem vai fazer?"

Keri esperou os mecanismos da mente daquele médico se moverem. Ele baixou os olhos para sua mesa, então, levantou-os de volta para ela, tentando controlar sua respiração rápida. Ela podia notar que ele havia percebido.

"Você acha que eu posso ter descoberto sobre esse homem", ele disse, por fim, "que eu posso ter feito algo a Kendra como vingança. Você queria ver como eu reagiria quando me contasse".

"Sim", Keri disse.

"E acha que eu fiz algo?"

"Sinceramente, eu não sei, doutor".

Isso não era exatamente verdade. Nada que Jeremy Burlingame tinha dito ou feito lhe tinha dado uma razão para suspeitar dele. O único ponto contra ele era o fato dele ser o marido. E os maridos são sempre suspeitos.

"Bem, o que eu posso fazer para provar que não fiz nada?" ele implorou. "Posso fazer um teste com um detector de mentira? Quer levar meu celular para conferir minha localização nos últimos dias? Quer interrogar novamente os médicos com os quais trabalhei em San Diego na segunda-feira? O que posso fazer para lhe assegurar de minha inocência e fazê-la continuar procurando por ela?"

Havia um traço de desespero na voz dele, como se fosse perder o controle a qualquer momento. Mas Keri tinha que continuar pressionando. Era o trabalho dela.

"Acho que não há nada que possa fazer, Dr. Burlingame. Afinal, quase sempre, o culpado é o marido. Então, o senhor precisa se resignar de que vai estar sob suspeita".

"Sim, mas imaginei que um bom detetive seguiria os fatos e não faria simplesmente suposições preguiçosas baseadas em clichês. Não esperava que viesse até aqui usar alegações de um caso para me testar. Um caso, aliás, que acho que você simplesmente inventou.

Alguém bateu na porta. Uma enfermeira estava de pé, aguardando, submissa, no limiar.

"O que foi, Brenda?" Burlingame perguntou rispidamente.

"Desculpe, doutor. Mas a Sra. Rossetti está esperando há vinte minutos e está ficando chateada".

"Eu já vou", ele disse, brusco.

"Sim, senhor", Brenda disse, retirando-se de maneira servil.

Ele voltou os olhos para Keri, claramente frustrado.

"Já terminamos, detetive? Ou vai me prender?"

"Está livre para retomar suas atividades, doutor".

"Deixe-me perguntar uma coisa, detetive Locke. Há algum impedimento legal que me proíba de contratar meu próprio detetive particular para prosseguir com a busca? Porque para mim, é claro que a polícia não está interessada. E apesar do que possa imaginar, eu amo minha esposa. Diabos, estou dormindo no sofá porque não aguento deitar em nossa cama sem ela ao meu lado. Estou desesperado".

"O senhor é livre para fazer o que quiser, doutor", Keri disse, tentando manter a voz calma e profissional. "Mas posso lhe garantir que ainda estou muito interessada neste caso". Com isso, ela se levantou e saiu.

Foi só quando entrou no elevador que Keri se permitiu respirar normalmente. Acabara de correr um grande risco. Ela havia conduzido um interrogatório agressivo com o marido de uma mulher desaparecida, sem a permissão e sem sequer avisar ao seu superior.

E o que ela tinha para mostrar por isso? Nada. Não estava mais convencida da culpa de Burlingame agora do que quando entrou no seu consultório. Na verdade, o sentimento de pânico e impotência que ele projetou a fez sentir como se ele fosse tão vítima quanto Kendra.

Enquanto o elevador descia rapidamente até o térreo, ela se perguntava se sua carreira estava indo na mesma direção: para baixo.

 

CAPÍTULO VINTE E OITO

 

Com um pouco de apreensão, Keri saiu do consultório de Burlingame e foi visitar Ashley Penn, em Venice. Estava quase chegando quando recebeu a ligação que vinha temendo. Ela apertou o viva-voz e se preparou para o que estava por vir.

"Que diabos está pensando?" berrou a voz furiosa do tenente Cole Hillman.

"Boa tarde, tenente", ela falou, da maneira mais agradável que pôde, "não tenho certeza se sei do que o senhor está falando".

"Estou falando de você invadir o consultório de Burlingame e tratá-lo como o principal suspeito, quando todos sabemos que não há suspeito nenhum".

"Com todo o respeito, senhor, o senhor mesmo disse que o caso não estava oficialmente encerrado. Eu estava apenas seguindo as pistas".

Houve uma longa pausa. Keri se preparou para outra explosão.

"Locke, acho que lhe disse para ir para casa descansar. Por que você não pode seguir as ordens apenas uma vez, especialmente quando são para seu próprio bem?" Ele parecia menos zangado agora.

"Eu só quero fazer bem meu trabalho, tenente".

"Entendo isso. E eu sei que está ansiosa para voltar ao jogo. Mas parte de seu trabalho é ouvir seu superior".

"Sim, senhor".

"Então, ouça-me com atenção. Você vai parar de investigar este caso. Vá para casa. Durma. Assista TV. Coma comida que faça mal para a sua saúde. Não me importo com o que fizer, desde que não envolva perseguir este caso quase encerrado. Estamos entendidos?"

"Sim, senhor. Eu só..."

"Bom", ele disse, cortando a fala dela e desligando antes que ela pudesse dizer mais uma palavra.

Keri encostou o carro. Ela estacionou na rua perto da casa de Ashley Penn, nos canais de Venice. Tinha recebido ordens de deixar o caso de lado, de ir para casa.

Na verdade, ele disse que não se importava com o que eu fizesse desde que não fosse perseguir o caso. Visitar uma garota que eu resgatei da morte certa não é perseguir o caso.

Satisfeita por estar seguindo as ordens de Hillman ao pé da letra, Keri saiu do carro e caminhou até a casa dos Penn.

O lar do senador Stafford Penn, de sua esposa, Mia, e de sua filha, Ashley, era uma grande mansão de três andares cercada por muros altos e localizada ao lado do canal, inspirado naqueles da cidade italiana. Keri interfonou no portão externo e acenou para a câmera que lhe olhava de cima.

Após alguns segundos, o portão emitiu um ruído e ela caminhou até a porta da frente, que se abriu de repente para revelar Ashley Penn. A garota de 15 anos estava de pé no batente da porta, apoiada em muletas, com um gesso enorme em sua perna direita, que ia do tornozelo até o quadril. Seu pulso esquerdo também estava envolto numa faixa com gesso.

Apesar disso, Ashley tinha um sorriso largo no rosto. Seu cabelo loiro caía frouxamente sobre os ombros. Ela usava uma regata branca e shorts azul-marinho, que contrastavam ambos com sua pele muito bronzeada.

Antes que Keri pudesse detê-la, a garota mancou na direção dela, deixou cair as muletas e a envolveu nos braços, dando-lhe um poderoso abraço. Keri não se importou com a onda de dor que ecoou pelo seu corpo.

"É tão bom ver você", Ashley murmurou no ouvido dela. Quando finalmente deu passo para trás, havia lágrimas em seus olhos. Os de Keri estavam úmidos também.

"Você está muito bem, considerando tudo pelo que passou", Keri disse, e falava sério. Da cintura para cima, a adolescente parecia uma modelo pronta para um ensaio fotográfico. Ela pegou as muletas e as devolveu a Ashley.

"Obrigada", ela disse, enquanto levava Keri para dentro da casa. "Você também. Da última vez que a vi, estava numa cadeira de rodas, com seu braço numa tipoia. Agora, está com esse visual bem profissional. Nunca poderia dizer que você estava internada, tipo, há uma semana".

"Não me sinto tão bem quanto aparento, acredite".

Elas se sentaram na sala de estar da frente. Era um pouco formal, mas estava claro que Ashley não podia cobrir longas distâncias e aquele cômodo tinha o sofá mais próximo. Uma empregada entrou e perguntou se elas precisavam de alguma coisa. Ashley pediu uma limonada e Keri também. Um homem alto, forte, num terno impecável, estava de pé bem do lado de fora do cômodo, em silêncio, mas alerta. Keri o reconheceu como parte da equipe de seguranças do senador Penn.

"É apenas uma visita social ou é relacionada ao caso?" Ashley perguntou, com um traço de apreensão em sua voz.

"Eu só queria saber como você estava", Keri a tranquilizou. "Senti-me mal por não ter tido a chance de passar aqui ainda".

"Não se sinta mal. De todo modo, provavelmente foi melhor ter esperado. As coisas estão um pouco turbulentas por aqui ultimamente".

"O que quer dizer?"

"Meus pais estão se separando. Papai se mudou durante o final de semana. Ele vai publicar uma nota amanhã para tentar acalmar os tabloides".

"Sinto muito ouvir isso, Ashley".

"Está tudo bem. Ia acontecer um dia. Já faz um tempo que minha mãe estava infeliz. O fato de eu ter sido raptada por um cara contratado pelo irmão do meu pai não ajudou. E meu pai tentar manter tudo em segredo porque prejudicaria suas chances de ser reeleito foi meio que a gota d'água".

"Queria poder dizer que estou surpresa. Mas, tenho que admitir, seu pai não pareceu gostar muito quando as coisas saíram... do combinado".

"Essa é uma boa maneira de descrever. Veja, eu o amo. Ele é meu pai. Mas a família não é a maior prioridade dele. Às vezes, parecia que éramos um obstáculo para a sua vidinha perfeita. Ele é meio que maníaco por controle, sabe?"

"Não acha que isso é duro demais?" Keri perguntou.

"De jeito nenhum. Quando as coisas não saem como ele planejou, meu pai perde a cabeça. Ele aprendeu a controlar-se porque é um político, e os eleitores não gostam de monstros raivosos. Mas quando as coisas não saem do jeito dele, especialmente quando pensa que foi prejudicado por alguém, ele ferve por dentro. E termina se vingando mais tarde.

"De um jeito violento? Ele não machucou você ou sua mãe, machucou?" Keri perguntou, alarmada.

"Não. Ele não é violento. Mas eu lembro que, na sua última eleição, algum conselheiro local apoiou seu principal oponente depois de ter prometido em privado a meu pai que o apoiaria. Em um ano, o cara foi exonerado, sua casa foi hipotecada, e ele estava sendo investigado pelo Ministério Público".

"Bem, se o cara era corrupto..."

"Ele não era. Era tudo falso. Mas, na época em que a verdade apareceu, a vida dele já havia sido destruída. Depois, teve uma socialite rica de Malibu que se negou a fazer uma campanha de arrecadação de fundos no último minuto. Meu pai conseguiu que a expulsassem do clube country. E fez com que a investigassem por violar o plano de zoneamento urbano. Isso também não foi comprovado. Mas, na época, ela ficou tão envergonhada que teve que se mudar. Agora, vive em La Jolla. Eu poderia lhe contar uma dúzia de outras histórias como essas. Ele não é um cara muito bacana".

"Sinto muito", Keri disse, sem saber o que mais poderia acrescentar.

"Eu também. Só é bom que minha mãe saiba de todas essas coisas também, ou talvez ele provavelmente tentaria arrasá-la no divórcio. Mas ele não pode, porque ela conhece todos os seus segredos".

A limonada delas chegou e Keri aproveitou a distração como uma chance de mudar de assunto.

"Quando você volta à escola?" ela perguntou.

"Semana que vem. Estou um pouco nervosa. Toda aquela publicidade... não sei como as pessoas vão reagir".

"Seus amigos vieram lhe visitar, não foi? Eles agiram de algum modo estranho com você?"

"Não, eles estão sendo incríveis. Todo dia, vem alguém me trazer o dever de casa e conversar um pouco". Ashley sorriu ao pensar nisso.

"Veja, as pessoas que importam já mostraram quem são", Keri disse, e então se inclinou para sussurrar o próximo comentário. "Eu lhe diria para mandar se danar qualquer um que não valha a pena".

Ashley assentiu, mas Keri podia notar que ela não estava totalmente convencida. Decidiu não forçar.

"Os médicos lhe deram uma previsão de quando você pode começar a surfar ou jogar basquete novamente?"

O rosto de Ashley se iluminou.

"Se eu continuar com a fisioterapia, eles dizem que poderia voltar para minha prancha na primavera. Eu não farei aéreos por um tempo. Mas só quero estar no mar de novo, sabe? O basquete é um pouco mais difícil. Vou perder esta temporada. E os médicos não querem que eu pratique nenhum esporte de impacto até o próximo outono, de todo modo. Então, veremos como as coisas vão ficar ".

"Eu adoraria ir a um de seus jogos", Keri disse. "Ou até mesmo, antes disso, você pudesse me dar uma aula ou duas de surfe. Sempre quis aprender".

Ashley riu. Aparentemente, imaginar Keri Locke sobre uma prancha de surfe era inerentemente engraçado. Nesse momento, a empregada apareceu.

"Senhorita Ashley, sua fisioterapeuta está aqui para a sessão desta tarde", ela disse.

"Obrigada, Maricela", Ashley disse, e então se voltou para Keri. "Eu não paro. Tenho sessões de manhã, de tarde e de noite. Pelo menos, o cara da noite é um gatinho".

"Ashley Penn, por favor, mantenha distância dos caras por um tempo, especialmente dos gatinhos", Keri disse, surpresa com sua postura de mãe.

Ashley riu alto. O som de sua risada deu a Keri uma sensação de pura alegria. Depois de tudo pelo que a garota passou, o fato de ainda ter senso de humor era um milagre.

Ashley deve ter pensado o mesmo, porque o riso rapidamente deu lugar às lágrimas. Keri se aproximou e abraçou a adolescente, que a apertou de volta.

"Ainda tenho pesadelos com ele", Ashley sussurrou. "Eu me imagino amarrada naquela máquina, meus braços e pernas sendo puxados em diferentes direções, ele me olhando de cima, sentindo prazer com a minha agonia".

"Eu sei", Keri sussurrou de volta, abraçando a adolescente trêmula. "Também os tenho. Mas eu prometo que eles diminuirão com o tempo".

"Tem certeza?" Ashley perguntou baixinho. Keri se afastou um pouco para olhar a menina nos olhos.

"Tenho. Já vi muitas coisas terríveis, Ashley. E quase todas elas desaparecem com o tempo. Isso também vai desaparecer. Só não fique calada. Continue a falar com seus médicos, terapeutas, com sua mãe, comigo. E lembre-se de que Alan Pachanga está num buraco na terra. Na próxima primavera, você vai estar fazendo espirais no ar sobre as ondas".

"Aéreos", Ashley disse, abrindo um pequeno sorriso.

"Sim, isso. Ouça, tenho que ir. Você tem sua fisioterapia e eu tenho que tornar Los Angeles segura para jovens sem juízo, como você. Mas gostaria de visitá-la novamente, se me permitir. Talvez, na semana que vem?"

"Eu ficaria muito feliz", Ashley disse.

Elas se abraçaram pela última vez. Então, Keri saiu. Enquanto saía da sala, olhou para o segurança na porta. Ele baixou um pouco a cabeça, polido, e Keri achou ter visto uma lágrima descendo pelo seu rosto. Desejou que não fosse apenas imaginação.

Enquanto voltava para o carro, não podia deixar de se impressionar com a resiliência da garota. Nas últimas três semanas, ela foi raptada e torturada, quebrou vários ossos, descobriu que seu tio era um sociopata assassino e que seus pais estavam se divorciando. Ainda assim, recebeu Keri com um sorriso sincero no rosto.

Quando entrou no carro, Keri se perguntou se ela ganharia mais substituindo um pouco do seu tempo com o Glenlivet por visitas a outras crianças que havia ajudado. Definitivamente, era uma maneira mais saudável de se animar.

É claro que nem toda criança se levantava tão rápido quanto Ashley. E nem todo maluco obcecado pelo controle se vingava com hipotecas e processos por violação de zoneamento. Há quem se vingue de uma forma mais íntima e pessoal.

Um pensamento fugídio começou a provocar a mente de Keri, apenas por pouco fora do alcance, como fumaça que ela não podia agarrar. Fechou os olhos e respirou profundamente, tentando focar na ideia que estava provocando-a, tão perto de se revelar.

Controle é tudo. A ordem precisa ser mantida. O caos precisa ser punido. A vingança deve ser feita. Pessoal. Íntima. Retribuição.

Sem aviso, uma imagem surgiu em sua mente, aparentemente, do nada. Era da recepcionista no consultório do Dr. Burlingame, de manhã. Ela parecia quase assustada quando percebeu que não havia visto a nota sobre o encontro com Keri no computador. E então, teve também a enfermeira, tão hesitante em interromper a conversa deles, saindo muito rapidamente depois das respostas ríspidas do chefe.

O que as deixou tão nervosas? Muitos médicos são rígidos com seus funcionários. Existe aquela história deles terem um Complexo de Deus. Mas, de algum modo, parecia haver algo mais.

Keri se lembrou de como Mags havia dito que Jeremy Burlingame não queria filhos. E isso fazia sentido. Crianças dão muito trabalho, não apenas fisicamente, mas emocionalmente. Elas perturbam uma vida ordenada.

Mas recusar o desejo de sua esposa de ter um filho sob quaisquer circunstâncias — nem pela adoção, nem através de uma barriga de aluguel — so porque seria uma chateação? Isso eleva a necessidade de uma vida certinha para outro nível.

Mas essa postura não era um crime. Só provava que ele era um idiota do tipo A, ultra-anal.

Além disso, Jeremy Burlingame queria continuar a investigar o caso da sua mulher mesmo quando a polícia planejava fechá-lo. Ele se ofereceu para se submeter a um polígrafo. Pareceu realmente devastado ao saber que Kendra o havia traído. E ele tinha um álibi.

Ou não tinha? Keri lembrou que o álibi havia sido verificado pelo detetive Frank Brody, o policial mais preguiçoso e desmazelado que ela já conheceu, e que está a apenas poucos meses da aposentadoria. Era fácil imaginar que ele pode não ter perseguido cada pista vigorosamente.

Keri pegou o telefone e procurou pelo número de que precisava. Depois de encontrá-lo, ligou para o número e esperou. Enquanto o celular chamava, ocorreu-lhe que ela estava prestes a violar a instrução específica de Hillman para não continuar a investigar o caso.

Uma voz masculina atendeu e disse "Alô".

Não era muito tarde. Ela ainda podia desligar. Ainda podia ir para casa e dormir.

"Alô?" a voz perguntou de novo.

Última chance, Keri. Apenas desligue.

Ela não desligou.

 

CAPÍTULO VINTE E NOVE

 

Keri engoliu em seco, ignorou a sensação de estar cometendo um erro que arruinaria sua carreira, e falou.

"Alô, aqui é a detetive Keri Locke, da polícia de LA. Com quem estou falando?"

"Aqui é o Dr. Vijay Patel, da San Diego Plastic Surgery Associates. O que posso fazer por você, detetive?"

"Estou ligando sobre um colega seu, o Dr. Jeremy Burlingame".

"Sim, outro detetive do seu departamento esteve aqui outro dia fazendo perguntas sobre o Dr. Burlingame também".

"Certo, estou apenas dando prosseguimento. Pelo que sei, ele estava em cirurgia o tempo inteiro em que passou aí. Isso é correto?"

"Sim, pelo que me lembro, e eu chequei com vários outros médicos e enfermeiras para garantir. Ele chegou no hospital por volta das nove e meia da manhã. Começamos o procedimento logo após as dez. A cirurgia durou até por volta das duas e meia da tarde. Ele estava lá o tempo todo, a não ser por uma pausa muito curta".

"Imagino que todo mundo precisa de uma pausa para ir ao banheiro", Keri brincou.

"Suponho que isso seja possível, detetive", o Dr. Patel respondeu, sem nenhum traço de humor, "mas essa seria uma pausa extremamente curta".

"O quer quer dizer?" Keri perguntou com polidez, apesar de sua respiração estar ficando mais rápida.

"Acho que estou apenas sendo detalhista. Sabe, o banheiro mais perto fica a pelo menos três minutos a pé da sala de cirurgia. É algo sobre o que reclamamos repetidamente com a administração".

"Não sei se entendo o que quer dizer, Doutor", Keri falou, confusa.

"Ele se ausentou por menos de cinco minutos. Não foi tempo o bastante para fazer muita coisa, se é que você me entende".

Keri ficou em silêncio por um momento.

Que outra razão Burlingame poderia ter para sair no meio de um procedimento complexo?

"Entendo", ela disse. "É possível que ele tenha saído para fazer uma ligação ou conferir uma mensagem de voz ou de texto?"

"Seria estranho ter um celular na sala de operação", disse o Dr. Patel. "Geralmente, não é permitido. Eles não são estéreis, e o som súbito do toque ou da vibração pode fazer uma grande diferença quando se está com um bisturi na mão".

"O senhor ouviu algo vibrando?" Keri perguntou, esperançosa.

"Não, não ouvi. E, para ser honesto, detetive Locke, provavelmente, eu não diria nada se tivesse ouvido. O Dr. Burlingame fez uma viagem especial até aqui para nos ajudar. Fez isso completamente de graça. Ninguém criaria problemas em relação a qualquer uma das particularidades dele. Se ele precisasse fazer meia dúzia de pausas durante o procedimento, ficaríamos felizes em permitir".

Keri podia sentir que o médico estava ficando impaciente e decidiu encerrar as coisas.

"É claro. Foi muita gentileza dele viajar até San Diego e passar tantas horas voluntariamente com sua equipe. Só mais uma coisa, quando ele saiu?"

"Foi bem no começo. Talvez, às dez e meia da manhã, mais ou menos".

"E o senhor disse que ele esteve fora por menos de cinco minutos?"

"Sim, e isso inclui ter que vestir as luvas novamente e escovar as mãos".

"Obrigada, Dr. Patel. O senhor foi muito atencioso. Tentaremos não incomodá-lo novamente".

Keri desligou e se sentou em silêncio no carro, por um momento.

Por que ainda estou obcecada com Jeremy Burlingame? É por que as coisas não saíram como esperava com o Colecionador e eu tenho que ter outra pessoa para perseguir? O cara tem apoiado mais minha investigação do que meu próprio chefe. E, ainda assim, continuo desconfiando dele. Isso está se transformando numa caça às bruxas.

Depois de um minuto, ela deu a partida no carro, voltou ao trânsito, e ligou para Kevin Edgerton.

Se isso não der em nada, deixe para lá.

"Edgerton falando".

"Kevin, preciso de um favor".

"Keri, por que está ligando? O tenente disse para não ligar para você sobre o caso".

"Sou eu que estou ligando para você, então, não vai ter problemas. Por que você ligaria para mim? Tem informações novas?"

"Não", Edgerton disse, sem convencer.

"Você mente muito mal. Diga logo o que é".

"De jeito nenhum. E se Hillman voltar e me ouvir? Ele me mataria".

"Então, ele não está aí... ótimo. Você não tem desculpas agora".

"Não posso".

"Kevin, diga-me o que você sabe ou eu vou para a delegacia agora mesmo. E quando Hillman me vir, vou lhe dedurar".

"Certo... Jesus. São as impressões digitais. Temos as identidades de todas as impressões reconhecíveis".

"E...?"

"Kendra Burlingame não está entre elas. Apesar da polícia de Palm Springs dizer que ainda havia nove impressões parciais que eles não conseguiram identificar".

"Então, ainda não sabemos definitivamente se Kendra sequer esteve naquela rodoviária ou se a mulher que vimos era ela", Keri disse.

"Hillman acha que ela era uma dessas nove parciais. Ele está pronto para encerrar o caso. Na verdade, acho que vai assinar a papelada quando voltar".

"Onde ele está agora?" ela perguntou.

"Ele foi comer alguma coisa... saiu há poucos minutos".

"Bom", Keri disse, então, você precisa me fazer aquele favor que lhe pedi".

"O que é?"

"Eu sei que Suarez já fez isso. Mas quero que confira os registros do celular de Jeremy Burlingame novamente, especificamente por qualquer chamada recebida ou realizada na segunda-feira, entre dez e onze da manhã".

"Qual é, Keri. Eu pude ouvir Hillman gritando com você mais cedo sobre incomodar aquele cara".

"Ninguém o está incomodando", Keri insistiu. "Estamos apenas conferindo alguns números de telefone. É inofensivo. E enquanto faz isso, preciso que faça mais uma coisa".

"Você está me matando. Eu posso sentir literalmente a força da vida saindo do meu corpo".

"Não seja um chorão, Kevin. Preciso que volte às filmagens da estação de trem", ela disse, ignorando-o. "Veja se a mulher com o lenço faz alguma ligação. Não não me lembro disso e acho que teria notado. Mas, só para conferir".

"Mais alguma coisa?" ele perguntou sarcasticamente.

"Sim, por favor. Imprima as fotos das pessoas que foram identificadas a partir das impressões digitais".

"Por quê?"

"Porque eu vou querer dar uma olhada nelas quando chegar na delegacia em cinco minutos".

Ela desligou antes que ele pudesse responder.

 

*

 

Ninguém disse nada a Keri enquanto ela caminhava pelo salão da delegacia até a mesa de Edgerton, mas a detetive podia ver um monte de gente chocada olhando para ela de soslaio. Ela ignorou a todos.

"Quero boas notícias", ela disse, enquanto pegava uma cadeira e se sentava ao lado de Edgerton, que estava olhando fixamente para o monitor do seu computador.

"Não sei se são boas, mas eu tenho novidades", ele disse, apontando para um número de telefone na tela. "Não há nenhuma ligação feita ou recebida pelo celular do Dr. Burlingame durante o período que você me deu".

O coração de Keri afundou. Tinha certeza de que ele havia feitou ou recebido uma ligação ou mensagem. Que outra razão teria para se ausentar de uma cirurgia por um período tão breve?"

Talvez, ele tenha tido uma cãibra. Talvez, tivesse que peidar. Talvez, ele só precisasse de um momento para se recompor. Você faz isso o tempo todo.

"Ele poderia ter usado um celular descartável?" ela perguntou, ciente de que soava desesperada agora.

"Claro. Mas eu não teria nenhum registro dele", Edgerton respondeu.

"Certo, você conseguiu conferir as filmages na rodoviária para ver se nossa mulher misteriosa estava ao celular por volta das dez e meia da manhã?"

"Não".

"Por que não?" ela perguntou, a voz um pouco mais alta.

"Por que não mostro a você, simplesmente?" ele disse, exibindo o vídeo, que estava parado às 10h22.

Ele apertou o play e Keri assistiu enquanto a mulher caminhava por um corredor e virava no final. Outra câmera continuou filmando-a enquanto ela virava para a direita e passava por uma porta com a placa "Mulheres". Edgerton pausou o vídeo. O horário na tela mostrava 10h23.

"Ela estava no banheiro?" Keri perguntou.

"Ela estava no banheiro", Edgerton confirmou, sorrindo. "E veja em que momento ela sai".

Ele acelerou o vídeo até o ponto em que a mulher saía do banheiro, sem usar suas luvas. O horário era 10h31.

"Então, ela podia estar fazendo uma ligação durante esse tempo?" Keri disse.

"Não tem como ter certeza absoluta. Não prova nada. Mas, sim, ela poderia. Ou ela poderia apenas ter tido problemas digestivos".

"E não há jeito de conferir se foi feita uma ligação desse banheiro num celular descartável para outro celular descartável no hospital, em San Diego?"

"Isso seria bem difícil, Keri. Para começar, não há provas de que alguém tenha feito alguma ligação em algum celular, em algum momento. É só especulação sua".

"Uau... isso foi um pouco duro", Keri disse, apesar de saber que ele estava certo.

"Estou apenas citando os fatos. Ainda que fosse nessa teroria em que estivéssemos trabalhando, iria levar semanas para desemaranhar registros telefônicos. Ainda assim, não poderíamos identificar quem fez qualquer uma delas. E preciso lembrá-la que Hillman vai fechar este caso completamente depois de voltar".

Keri deixou-se cair na cadeira. Estava sem ideias. Além de não ter razão nenhuma para suspeitar de Burlingame, parecia não haver como provar nada, mesmo se ela tivesse.

As pessoas simplesmente fogem, às vezes. Nem todo mundo é uma vítima.

"Mas..." Edgerton disse baixo, hesitante, quase num sussurro.

A cabeça de Keri levantou imediatamente. Havia algo na voz de Edgerton que lhe lembrou a voz de Evie quando ela encontrou um biscoito inesperado no fundo do pote, uma vez. Era a voz de alguém que havia desenterrado um tesouro.

 

CAPÍTULO TRINTA

 

O corpo todo de Keri latejava. Todas as dores pareciam ter diminuído. Ela olhou para Edgerton animada e podia sentir imediatamente que havia mais coisa.

"O que foi?" ela perguntou.

Ele suspirou antes de mostrar a ela uma série de fotos de carteiras de habilitação.

"O que é isso?"

Então, ela percebeu para o que estava olhando. Elas eram todas as fotos cujas impressões digitais haviam sido identificadas nos globos de neve na loja de souvenirs da rodoviária. Havia 67 no total.

"Você pode eliminar todos os homens e qualquer mulher que não tenha entre 30 e 50 anos?"

A velocidade com a qual ele fez isso sugeriu a Keri que essa não era a primeira vez que ele tentava aquele filtro.

Depois que ele terminou, o monitor exibiu oito mulheres. Cinco delas claramente não batiam. Quatro estavam muito acima do peso. A habilitação de uma dizia que ela tinha 1,57 m de altura.

Das três mulheres restantes, nenhuma combinava perfeitamente. Uma era loira e, aos 46, estava muito perto do limite de idade. Outra era provavelmente baixinha demais, com 1,70 m, e, aos 30 anos, parecia simplesmente jovem demais. A última mulher tinha cabelos escuros e a altura aproximada. Mas a linha do seu queixo era tão quadrada e pronunciada que mesmo sem ter uma imagem nítida da mulher na rodoviária, ficava claro que não eram a mesma pessoa.

"Lamento, Keri. Conferi todas elas mais cedo. Não queria lhe dizer porque sabia que você tinha esperanças. Mas nenhuma delas parece bater, nem de perto. Isso apenas reforça a confiança do tenente de que era Burlingame mesmo no vídeo. É por isso que ele está tão confortável em encerrar o caso".

Keri ficou olhando para a tela, conferindo cada mulher de perto. Sentiu aquela ansiedade novamente, o sentimento de que havia algo bem na sua frente, se ela pudesse apenas olhar para isso da perspectiva certa.

Sua mente divagou para sua própria aventura recente, tentando evitar ser detectada enquanto navegava por um prédio repleto de câmeras de segurança.

Consegui me safar... pelo menos, até agora. É possível.

"Mostre a loira mais uma vez", ela disse, de repente. Edgerton colocou a habilitação dela em tela cheia. Podia-se ler:

JENNIFER HORNER, 46 ANOS, 1,76 m, 56 KG, SHERMAN OAKS, CA

Horner havia renovado sua habilitação há apenas dois anos, então, não era muito antiga. Seu cableo curto repicado lhe favorecia, fazendo-a parecer mais nova, assim como sua maquiagem perfeita. Era uma das melhores fotos de documento que Keri já tinha visto.

"Qual a profissão de Jennifer, Kevin?" Keri perguntou, enquanto olhava nos olhos da mulher.

"Ela é uma maquiadora. Parece que trabalha principalmente em reality shows cafonas. Na habilitação, consta Sherman Oaks, mas ela mora em Silverlake agora. É solteira. Tem uma irmã que também vive na cidade. Nenhuma conexão óbvia com os Burlingames, pelo que eu saiba".

"Você pode fazer alterações na foto dela, usar um pouco de Photoshop?"

"Acho que sim, mas não vai ficar muito bom".

"Tudo bem. Ponha nela cabelos negros".

Os dedos de Edgerton se moveram rapidamente pelo teclado e mouse. Levou menos de 30 segundos para Jennifer se tornar uma morena.

"Agora, ponha óculos escuros nela e um lenço de cabelo, como a outra mulher".

Esse processo levou apenas dois minutos. Sem que ela pedisse, Edgerton recuperou a imagem da mulher nas filmagens da rodoviária e colocou-a ao lado da foto da habilitação retocada de Horner.

Keri abafou seu espanto, sem querer influenciar o colega.

"O que você acha?" ela perguntou.

"Acho que talvez não devêssemos encerrar este caso. Elas poderiam ser gêmeas".

Keri assentiu, tentando manter a calma e não deixar a súbita onda de euforia que ela sentia tomar conta. As imagens da rodoviária eram granulosas, mas não havia dúvidas de que essas duas mulheres pareciam incrivelmente parecidas.

Finalmente, uma pista válida!

"Você quer mostrar isso a Hillman?" Keri perguntou. Ao vê-lo hesitar, ela continuou, antes que ele pudesse responder. "Que tal se, antes de darmos esse passo, você ligar para a Srta. Horner? Hillman disse que eu não posso fazer isso... ou qualquer outra coisa. Vamos descobrir onde ela está agora. Se ela atender a ligação e concordar em vir aqui para um interrogatório esta tarde, saberemos que pegamos a garota errada".

"Ainda não sei se isso é o bastante para ir atrás de Burlingame".

"Não é. Tecnicamente, essas coisas não têm relação alguma. Assim como pode ser apenas azar o fato da mulher da rodoviária nunca, nem uma vez, levantar a cabeça, para que pudéssemos ter uma imagem de qualidade do seu rosto".

"Mas é terrivelmente suspeito", Edgerton disse.

"Sim", Keri concordou. "Assim como é suspeito que ela nunca tire seus óculos de sol ou lenço durante a manhã inteira, mesmo num ambiente interno. E talvez seja apenas uma coincidência que as câmeras que mais nos ajudariam a identificar essa mulher — as da entrada da rodoviária e a do ônibus em si — estivessem ambas quebradas naquela manhã. Nada disso é suficiente para levar à promotoria. Não há provas de que um crime foi cometido".

"Então, o que fazemos agora?" Edgerton perguntou.

Keri ficou em silêncio ao lado dele, ponderando sobre a mesma questão. Uma ideia começou a se formar em sua mente, mas, antes que ela pudesse expressá-la, seu celular tocou. Era da sua psiquiatra designada pelo departamento, a Drª. Beverly Blanc. Keri deveria ligar para ela periodicamente.

"Tenho que atender", falou para Edgerton enquanto se levantava para sair. "Mas lhe direi o que pode fazer. Tente contactar Jennifer Horner. Se não puder, contacte sua irmã e empregador. Se não souberem do paradeiro dela, informe à interpol para procurá-la, especificamente em Barcelona".

"E eu imagino que você esteja indo tirar um chochilo?" ele disse, sarcasticamente.

"Isso mesmo, Kevin. Certamente, eu não vou procurar por evidências de que um crime foi cometido. Pelo menos, de acordo com Hillman".

 

 

CAPÍTULO TRINTA E UM

 

Keri tentou manter-se calma, mas não era fácil. Enquanto sentava no carro no estacionamento da delegacia, e ouvia sua psiquiatra, ela estava ficando mais ansiosa, não menos.

A terapia não deveria diminuir meu estresse, ao invés de aumentá-la?

"Keri", a Dra. Beverly Blanc falou, em seu tom de voz perpetuamente calmo, mas preocupado, "o tenente Hillman parecia estar no limite de despedi-la. Nunca o vi tão irritado".

Keri detestava ter que se consultar com uma profissional de saúde mental, mas, considerando tudo, Beverly Blanc não era tão ruim. A mulher não falava besteira. Ela sinceramente parecia se importar com o bem-estar de Keri. E não a infernizava com ligações irritantes o tempo todo. Mas sua descrição de Hillman deixou Keri no limite.

"Sem ofensas, doutora. Mas já o vi irritado assim várias vezes por dia. Não é grande coisa".

"Já pensou por que você sempre parece estar lá quando ele perde a cabeça? Acha que pode haver alguma conexão aqui?"

Keri pensou sobre isso. Como sempre, a Dra. Blanc podia ter razão.

"O que quer que eu faça?" ela perguntou enquanto dava a partida no carro e saía do estacionamento.

"Veja, você me falou sobre esse caso Burlingame e posso notar que está frustrada por não lhe permitirem investigá-lo. Eu também posso sentir que há algo mais acontecendo, mas que não quer me contar. Suspeito que tenha a ver com Evie, mas não vou tocar nesse assunto agora".

"Agradeço por isso".

"O que farei é lhe pedir para seguir as ordens de seu chefe", disse a Dra. Blanc. "Vá para casa. Descanse. Ou vá para a reunião de um grupo de apoio. São cinco e trinta e cinco agora. Há várias reuniões às dezoito horas, e posso direcioná-la para uma. Ou venha me ver. Não tenho mais consultas hoje".

"Obrigada, doutora. É muito generoso de sua parte. Mas estou bem".

"Está, Keri? Você diz isso, mas ainda está tão fechada. Quando sairá do seu casulo?"

"Com a senhora do meu lado, serei uma linda borboleta em breve".

"Sinto que você não está me levando a sério".

"Estou, mas tenho que ir. Cochilar, sabe".

"Keri..." a Dra. Blanc começou a dizer.

"Obrigada, doutora. Tenho que ir".

Ela desligou e parou o carro no acostamento. Algo que a Dra. Blanc disse sobre casulos havia disparado uma vaga memória.

Foi há uns dois anos. Ela estava na casa-barco, era tarde da noite, e estava mudando de canal para canal de TV e se entupindo de pizza, quando se deparou com um reality show sobre mulheres descontentes com sua aparência. Todas concordaram em perder peso e participar de um programa de exercícios para fazer uma cirurgia plástica. O programa se chamava Borboleta.

Keri percebeu que aquela era a palavra no canto das fotos no consultório de Burlingame. Aquelas mulheres eram participantes do programa e ele deve ter sido um de seus cirurgiões plásticos.

Ela fez uma busca pelo celular para ver em quais reality shows Jennifer Horner havia trabalhado como maquiadora. Como havia previsto, lá estava. Ela aparecia nos créditos como maquiadora na primeira temporada do programa, antes dele ser cancelado por não receber avaliações muito boas.

Não havia provas ainda de que ela e Burlingame haviam interagido. Isso iria requerer interrogatórios com a equipe do show. Mas encontrar e interrogar essas pessoas, todas agora trabalhando em outras séries, iria requerer tempo e mão de obra, duas coisas que Keri não tinha no momento.

Se a mulher naquela rodoviária e no voo para Barcelona era Jennifer Horner, então, Kendra Burlingame estava desaparecida. E alguém queria esconder isso do mundo. Keri não tinha muito para prender Jeremy Burlingame ou até para conseguir um mandado de busca. Ela não tinha o apoio de seu superior ou nada mais a não ser evidências circunstanciais e seu instinto afiado de detetive.

Mas aquilo bastava para ela. Então, deu a volta e dirigiu para o norte, na direção de Beverly Hills. Estava indo para a mansão Burlingame.

 

CAPÍTULO TRINTA E DOIS

 

Keri estava numa situação muito desconfortável, ajoelhada nos arbustos perto do portão externo da propriedade de Burlingame, há quase 15 minutos. Suas coxas ardiam e suas costelas estavam começando a latejar pelo esforço de estar agachada por tanto tempo. Não ajudava o fato dela estar usando um colete à prova de balas, que aumentava seu peso ainda mais.

Ela podia ver Lupe, a governanta, indo e voltando para o carro dela na entrada da casa, e suspeitava que estava se preparando para largar.

Mas a mulher não tinha a menor pressa, e Keri estava ficando impaciente. Ela olhou para o relógio. Eram 18h29. Burlingame havia lhe dito que tinha consultas hoje até as sete da noite. Isso não lhe dava muito tempo para fazer uma busca na casa e sair sem ser detectada antes que ele chegasse.

Exatamente às 18h30, Lupe saiu pelo que pareceu ser a última vez, e entrou no carro. Aparentemente, ela era daquelas que não saía mais cedo, mesmo sozinha na casa. Enquanto se aproximava do portão, pegou um controle remoto para abri-lo. Ela começou a dirigir pelo caminho conectado à rua residencial.

Keri se forçou a permanecer quieta e abaixada, mesmo querendo desesperadamente correr portão adentro. Em seguida, conferiu sua cintura pela quinta vez. Tudo ainda estava lá: sua arma, algemas, a arma de choque.

Na metade da passagem, Lupe viu a grande pedra que Keri havia posto lá mais cedo. Ela parou o carro e saiu para movê-la. Só quando se certificou de que a governanta estava focada nessa tarefa e não podia simplesmente dar uma olhada pelo retrovisor, Keri correu do ponto em que se escondia, passou voando pelo portão logo antes de se fechar, e se escondeu atrás de uma grande coluna de pedra.

Ela espiou a tempo de ver Lupe jogar a pedra na grama. A governanta deu uma última olhada na mansão, voltou para o carro e saiu dirigindo. Keri estava sozinha.

A detetive se moveu em silêncio. O sol já estava começando a se pôr e, dentro da próxima meia hora, estaria numa escuridão relativa. Se Kendra Burlingame estava sendo mantida em algum esconderijo na propriedade, Keri tinha apenas um curto período de tempo para encontrá-la.

Ela começou do lado de fora, conferindo uma barraca no jardim e o anexo da piscina. Não havia nada fora do comum. Bateu nas paredes e pisou forte no chão, procurando por locais ocos que pudessem sugerir cômodos escondidos. Nada.

Então, ela foi para a casa em si. No caminho até a mansão, havia averiguado se os Burlingames usavam um sistema de segurança. Aparentemente, tinham um, mas que só era usado quando estavam viajando. Ainda um pouco preocupada, ela forçou delicadamente a trava da porta da cozinha, abriu-a e esperou para ver se ouvia algum bipe ou sirene. Não houve nada.

Após um minuto, sentiu-se confiante o bastante para entrar. Ela usou as plantas que havia baixado mais cedo para ir diretamente ao escritório do Dr. Burlingame. Ela nem se importou em examinar a papelada sobre a mesa. Se o médico estava por trás disso, era altamente improvável que tivesse deixado provas em documentos facilmente encontrados em seu escritório.

Ao invés, ela procurou por qualquer coisa que parecesse fora do comum: amassões no assoalho de madeira que pudessem sugerir que móveis haviam sido recentemente movidos do lugar. Correntes de ar incomuns que pudessem indicar um cômodo oculto. Novamente, ela bateu nas paredes, mas eram todas sólidas.

Em seguida, subiu a escada, indo até o quarto para dar uma olhada melhor do que da última vez em que esteve aqui.

As brigas costumavam começar no quarto e podiam escalar facilmente. Se houve algum tipo de altercação física, este poderia ser o melhor lugar para encontrar provas disso.

Mas nada parecia estranho. Nenhum porta-retrato fora do lugar, nenhum quadro torto na parede, nenhuma mancha de sangue escondida sob tapetes. É claro que Lupe teria corrigido os dois primeiros, então, tirar qualquer conclusão agora seria inútil, provavelmente.

Keri foi até o banheiro e deu uma olhada. Nada lhe chamou a atenção. Havia um grande balcão com duas pias. Um lado era imaculado, com tudo — barbeador, escova de dentes, pente, toalha de rosto — em seu lugar adequado. O outro parecia ter sido atingido por um tornado.

Keri se aproximou da parte que Kendra obviamente usava e a estudou. Ao lado da pia, estava um secador de cabelos fora do suporte, um tubo plástico cheio até a borda com maquiagem, duas escovas de cabelo, e um longo fio solitário de fio-dental. As únicas coisas que obviamente estavam faltando eram uma escova de dente, pasta de dente e qualquer medicação.

Fazia sentido, se você acreditasse na teoria de que Kendra havia fugido e levado apenas o essencial. Também fazia sentido se alguém suspeitasse que a pia estava cuidadosamente arrumada para criar essa impressão.

Keri desligou a luz e pegou sua leal lanterna de seu bolso. Num modo, era uma lanterna tradicional. Mas, ao apertar um botão, ela se tornava uma luz negra, que usava raios UV para detectar materiais invisíveis a olho nu.

Apontou-a cuidadosamente sobre o chão, procurando por qualquer pista de que houvesse sangue pelo cômodo. Como não encontrou nada, passou para a banheira e o chuveiro. Ainda, nada.

Keri olhou para o relógio. Eram 19h04. Burlingame deve ter teminado sua última consulta do dia. Se ele voltasse imediatamente, poderia chegar em 30 a 35 minutos. Por volta desse horário, ela já deveria ter saído há muito tempo. Diante disso, ela tentou focar.

Onde mais um tipo meticuloso, controlador, poderia fazer seu trabalho sujo?

Então, surgiu em sua mente, tão óbvio que ela teve vontade de se chacoalhar. Keri desceu as escadas correndo, ignorando suas costelas e ombro, ainda sensíveis, e foi até a garagem. Abriu a porta e acendeu a luz. Estava vazia, é claro. O carro de Kendra estava com a polícia de Palm Springs e Jeremy estava dirigindo o dele até ali naquele momento.

Mas, ainda assim, parecia raramente ser usada para os carros. O chão estava impecável e as ferramentas na parede mais distante estavam perfeitamente organizadas.

Animada, Keri desligou a luz do teto e tentou novamente sua luz negra. Mas não havia nenhum traço de sangue pelo chão. A detetive acendeu a luz principal novamente, e sentou no degrau da garagem, tentando não deixar sua frustração sobrepujar seu senso investigativo.

Era possível que ela estivesse errada sobre isto? Que tudo fosse apenas uma grande coincidência e que Kendra havia realmente fugido para a Espanha? Apesar de não parecer provável, não era inconcebível que tanto Kendra quanto Jennifer Horner tenham estado na rodoviária de Palm Springs há poucos dias.

Havia até a chance de que Jennifer tivesse desenvolvido algum tipo de fixação nos Burlingames e tramado um esquema de roubo de identidade, no estilo do filme "O Talentoso Ripley". Keri duvidava disso, e, se fosse sincera, nunca pensaria sequer em perseguir tal teoria.

Aliás, ela nunca havia pensado seriamente sobre a possibilidade de que Lupe, a governanta, estivesse envolvida, de algum modo; ou Becky, a amiga viciada em cocaína; ou até Mags. Havia deixado de olhar sob várias pedras.

Independente do que tenha acontecido, tinha que admitir que não havia encontrado um único traço definitivo de evidência de que Jeremy Burlingame havia feito algo de errado.

Ela se levantou e foi até a parede de ferramentas, observando-a distraidamente enquanto repassava as possibilidades em sua cabeça. A maioria das ferramentas, apesar de estar bem organizada, estava coberta de terra. Aparentemente, limpar ferramentas de jardinagem não fazia parte das obrigações de Lupe.

Considerando o quão gastas e encardidas muitas delas estavam, Keri suspeitou que Kendra, a menos melindrosa do casal, tinha o dedo verde da família.

Por fim, ela chegou na pá, localizada no ponto mais extremo da parede. Surpreendentemente, estava em muito boas condições. Na verdade, tão limpa que parecia nunca ter sido usada. Keri a virou e viu que ainda tinha o código de barras e os adesivos da loja Home Depot, na parte de trás.

Todas as outras ferramentas nesta garagem estão sujas. Mas esta pá nunca foi usada. Parece que foi comprada apenas para substituir uma velha. Mas por que a antiga precisou ser substituída? A menos que estivesse quebrada. Ou que houvesse algo nela que pudesse incriminar alguém.

De repente, Keri percebeu que estava procurando no lugar errado.

 

CAPÍTULO TRINTA E OITO

 

Ela agarrou a pá e correu para o lado de fora, tentando controlar a adrenalina correndo por seu sistema. Estava quase que completamente escuro agora e ela tinha dificuldade em encontrar seu caminho até o ponto que procurava.

Finalmente, viu a piscina iluminada a distância e usou isso para guiá-la até seu destino. Quando chegou lá, soube que estava no lugar certo.

Keri olhou para o buraco profundo ao lado da piscina, que havia sido cavado para a instalação da banheira de hidromassagem. O buraco tinha cerca de um metro e meio de profundidade. Mas era plenamente possível que a mini-escavadeira pudesse ter criado um buraco muito maior, onde um corpo pudesse ser enterrado e coberto com terra.

Mas usar uma escavadeira industrial para despejar a terra de novo sobre o buraco teria sido arriscado. Se algo desse errado, ela poderia acidentalmente cavar novamente para dentro do buraco, arriscando cortar o corpo.

Melhor usar uma pá para cobri-lo e usar a escavadeira apenas para assentar a terra firmemente depois. Mas quem sabe se DNA humano podia ter acidentalmente ficado naquela pá, quando estava enterrando o corpo? A atitude mais segura seria jogá-la fora e simplesmente comprar uma nova.

Keri estava prestes a pular dentro do buraco e começar a cavar quando seu celular vibrou. Era Edgerton. Ela atendeu:

"O que foi, Kevin? Estou meio ocupada aqui".

"Você disse para ligar quando tivesse algo novo. Então, estou ligando".

"Desculpe. Prossiga".

"Acabamos de fazer uma descoberta alarmante sobre Jennifer Horner", ele disse.

"Ótimo. Onde ela está?"

"Está morta".

"O quê?" Keri perguntou, sem saber se tinha ouvido direito.

"Ela foi encontrada num hotel de Barcelona há algumas horas. Os resultados completos da autópsia só ficarão prontos em semanas, mas o patologista me disse que ela foi envenenada, aparentemente".

"Como isso é possível?"

"Encontraram grandes quantidades de potássio no corpo dela".

"Potássio? Como nas bananas?"

"Sim, mas em quantidades mais de quinhentas vezes o que você encontraria numa banana. Em doses tão altas, causa falência renal e cardíaca. Mas agiu lentamente, então, levou uns três dias para o efeito ser total. Isso explica por que ela pôde viajar por um tempo. E, Keri, apenas um profissional de saúde teria acesso ao potássio em quantidades tão altas".

"Você sabe o que isso significa, não é, Kevin?"

"Significa que Burlingame estava elimando a única pessoa que podia entregá-lo".

"Exatamente. E eu encontrei uma ligação entre os dois. Ambos trabalhavam..."

Keri ouviu o ruído de gravetos estalando sob passos atrás dela e começou a se virar. Mas, antes que pudesse fazer isso, sentiu uma grande explosão de dor atrás da cabeça. Em seguida, tudo ficou escuro.

 

*

 

Ela ouviu sons antes que pudesse ver alguma coisa.

Keri não sabia por quanto tempo havia ficado inconsciente. Mas tinha certeza de que não havia sido um simples desmaio. Alguém a havia golpeado na cabeça.

Enquanto estava deitada ali, tentando se recompor e ignorar a agonia excruciante em seu crânio, Keri podia notar que alguém estava se movendo nas proximidades. Havia também um zumbido alto, de natureza metálica.

Então, sentiu um súbito choque de peso sobre si. Foi necessário usar todas as suas forças para não gemer alto. A pontada de dor que correu pelo seu corpo imediatamente clareou sua cabeça, que já vibrava com um zumbido.

Ela podia sentir o cheiro e o gosto de algo familiar. Após um momento, percebeu o que era: terra. Estava sendo coberta de terra.

E então reconheceu o que era o zumbido metálido: a mini-escavadeira. Alguém a havia ligado e estava usando para jogar terra sobre ela.

Keri espremeu os olhos, abrindo-os apenas um pouco. Levou um segundo para entender o que estava vendo. Ela estava no buraco da banheira, deitada sobre as costas. A maior parte de seu corpo estava coberta de terra. Não podia ver as pernas, mas sabia que elas havia sido, de algum modo, amarradas pelos tornozelos. Suas mãos estavam livres, mas imobilizadas por vários quilos de terra.

Não havia ninguém à vista, mas ela ouviu a escavadeira se aproximando. As luzes da máquina estavam cada vez mais brilhantes. De repente, estavam acima dela, na beira do buraco. A caçamba deixou cair uma enorme quantidade de terra sobre ela e Keri sentiu que o peso começava a esmagar seu peito. Não sabia se a dor vinha de suas costelas sendo destruídas novamente, ou de um tipo novo de tortura.

Enquanto tentava inspirar, um pouco de terra desceu por sua garganta e ela tossiu de forma involuntária. A escavadeira subitamente diminuiu o ritmo e ela ouviu passos.

"Olha só quem está acordada", ela ouviu uma voz familiar dizer.

Uma silhueta parou na frente das luzes da escavadeira e ela o viu: Jeremy Burlingame. Ele parecia calmo e impassível, como se enterrar uma detetive da polícia de LA viva fosse algo normal de se fazer após o expediente.

Estava usando a mesma camisa e calça social de hoje à tarde, apesar de haver tirado o blazer e a gravata. Havia uma linha fina de suor sobre sua sobrancelha e minúsculas manchas sob as axilas. Mas, tirando isso, parecia imperturbável.

"Lamento ter chegado a este ponto, detetive Locke. Não queria que fosse assim, de jeito nenhum. Mas a ouvi falando ao celular. Distingui a palavra 'potássio' e percebi que você havia descoberto sobre Jennifer. E eu pensava que tinha planejado tudo isso tão bem. Mas acho que é verdade o que dizem: não existe um crime perfeito. Isso me desaponta, considerando todo o trabalho que tive. Só preciso saber, como você descobriu sobre ela?"

Keri tossiu um pouco mais, então, cuspiu a terra que ainda estava em sua boca antes de sussurrar.

"Difícil... falar... com... isto sobre... peito".

"Eu imagino. Apenas sacuda-se um pouco e a terra deve deslizar para os lados. Isso vai ajudar".

Enquanto ele esperava, ela balançou um pouco os ombros e um pouco de terra realmente deslizou o suficiente para que pudesse respirar com mais facilidade. Quando o peso diminuiu, ela deslizou as mãos pela terra até chegarem na sua cintura. Tateou um pouco, mas não encontrou o que procurava.

"Procurando por isto?" Burlingame perguntou, enquanto levantava seu cinto com a arma, algemas e eletrochoque presos nele. "Ou talvez esteja procurando seu celular? Está aqui".

Com isso, ele chutou o que restava do celular destroçado dela para o buraco em que Keri estava. Ela viu que ele estava segurando algo entre o polegar e o dedo indicador. O médico continuou.

"Lamento. Tive que remover o localizador. Não posso permitir que seus amigos policiais a encontrem cedo demais, sabe. Quero dizer, eles a encontrarão eventualmente. Mas será tarde demais para lhe ajudar... ou para me prejudicar".

"Sem álibi... para... isto", ela balbuciou, numa voz rouca.

"É verdade. É um pouco frustrante, tenho que admitir. Coloquei tanta energia no meu álibi para o desaparecimento de Kendra e não tenho nada para você... chega a ser constrangedor. Felizmente, tenho um plano de contingência".

"O que... é?" Keri perguntou.

Mantenha-o falando. Ele parece gostar disso. Não teve ninguém com quem compartilhar seu grande plano. Ele quer se gabar. Quer ser admirado e respeitado. Quanto mais falar sobre seu brilhantismo, mais tempo eu tenho para descobrir uma forma de sair desse buraco infernal".

"Eu não deveria lhe contar. Mas já que estará morta em breve, sinto que merece saber. Digamos apenas que tenho planejado uma fuga rápida desde que tramei este plano, há mais de um ano".

"Há um piloto aguardando com um avião no aeroporto de Santa Monica. Ele ficará feliz em me levar a um país cujo nome prefiro não mencionar. Mas a nação não tem um tratado de extradição com os EUA. Nem ele nem nenhum outro dos quatro outros países que defini como reservas, no caso das coisas ficarem complicadas. Eu esperava permanecer aqui e viver minha vida como o marido injustiçado, santo, ainda procurando por sua esposa desaparecida. Mas passar minha vida bebericando drinques de rum na praia não é um plano B tão ruim".

"Mas... por quê?" Keri perguntou, em parte, para ganhar tempo, mas também porque queria saber a resposta. "Ela o amava".

De repente, a expressão serena no rosto dele desapareceu, substituída por algo que ela nunca tinha visto antes: uma fúria pura e distorcida.

Sem falar nada, Burlingame se virou e saiu de vista. Ela ouviu a escavadeira ser ligada novamente e viu a sombra da caçamba baixar para pegar uma nova pilha de terra. No breve momento que ela tinha sem ser observada, Keri tateou um pouco até encontrar seu bolso de trás. Para seu alívio, sua pequena lanterna ainda estava lá. Ela a pegou e apertou bem contra o peito, assim que uma nova leva de terra a cobria novamente, enterrando mais sua cintura, peito e rosto.

Ela estava prendendo o fôlego, por isso, levou alguns segundos para perceber que havia tanta terra cobrindo seu rosto que ela não podia respirar.

Keri estava sufocando.

 

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

 

Ela tentou não entrar em pânico. Com a mão direita segurando firme a lanterna, não tinha escolha a não ser levantar seu braço esquerdo, forçando-o e ignorando a dor lancinante em seu ombro, enquanto se esticava para retirar o pesado monte de terra de seu rosto.

Enquanto ela tossia e arfava por ar, Burlingame reapareceu. O olhar de fúria havia desaparecido. Ele parecia ter voltado ao seu antigo eu.

"Desculpe, detetive. Mas não pude suportar o seu comentário. A noção de que uma adúltera como aquela me amava é ofensivo. E pensar que, se eu não tivesse ido procurar em sua caixa de joias pelo colar favorito dela, para poder comprar-lhe uma pulseira combinando, nunca teria encontrado aquele compartimento escondido. E nunca teria visto a carta de amor de Alex Crane. E nunca saberia que eu estava vivendo com uma vadia mentirosa, traidora".

O rosto dele se contorceu novamente na última frase, mas ele conseguiu recuperar o controle. Keri precisava que ele continuasse a falar, mesmo arriscando deixá-lo com raiva.

"Foi há... cinco anos. Estava no... passado. Ela não lhe contou... porque não queria... machucá-lo". Era difícil fazer respirações completas. Keri começou a se preocupar de que outro monte de terra seria muito para ela lidar.

"Ela maculou sua honra", Burlingame disse. "E maculou a minha honra. Só Deus sabe quantas de suas amigas sabiam que ela vinha me enganando, e com um otário, alienado da nova era, da aula de ioga? Não tenho dúvida de que, sempre que as amigas dela me viam, pensavam, 'lá vai aquele corno, coitado'. Eu não desconfiei de nada por anos, um alvo do escárnio e do riso dos outros. E não por causa de algo que eu tenha feito. Mas por causa dela!"

"Então... a solução era... matá-la? Não podia apenas... se divorciar?"

"Não. Ela tinha que pagar um preço mais elevado. Eu não ia pagar pensão para aquela prostituta. Ela tinha que saber que eu havia descoberto seu crime. Tinha que enfrentar completamente as consequências. Por isso levei tanto tempo, detetive. Encontrar a mulher substituta certa para forjar a 'fuga' de Kendra da cidade; conseguir um passaporte e cartões de crédito falsos para ela; ensinar a Jennifer todos os detalhes de sua tarefa e como evitar ser detectada e identificada ao longo do caminho; desabilitar as câmeras certas na rodoviária e no ônibus; organizar minhas futuras acomodações em vários países que não poderiam me extraditar; e, é claro, o potássio. Detetive, não pode imaginar como foi difícil acumular o suficiente para este trabalho sem atrair suspeitas... muito complicado".

Seus olhos faiscavam com um fervor louco. Estava se exaltando ao descrever suas proezas, com uma energia maníaca. Enquanto ele caminhava de um lado para o outro, com a atenção em outro lugar, Keri sacudiu-se para afastar o máximo de terra que podia, sem que ele notasse. Então, empurrou os braços para baixo e deixou-os descansar ao longo do corpo.

Quando ele voltou, Keri ficou parada e fez outra pergunta que, ela esperava, fosse capaz de atrair o ego dele.

"Como você... convenceu... Jennifer?"

"Ah, isso foi fácil. Eu não disse nada a ela sobre a verdadeira natureza das coisas. Mas eu sabia, a partir de nossa interação durante aquele reality show cafona, que ela era uma mulher gananciosa, mercenária, endividada e cansada da ingrata vida estressante de produção de TV. Quando lhe disse que, se me ajudasse sem fazer perguntas, eu lhe daria meio milhão de dólares, ela agarrou a chance. Se suspeitou de algo, evitou me fazer qualquer pergunta. Acho que estava animada para viver no exterior".

Ele riu, aparentemente, ao se lembrar da ingenuidade dela. Após um momento, continuou.

"Evidentemente, nunca lhe ocorreu que eu não podia simplesmente transferir meio milhão de dólares para a Europa sem levantar suspeitas aqui. Ela não avaliou que um homem com um plano tão misterioso, claramente nefasto, não devia ser confiável. Não vai fazer falta nenhuma, na minha opinião".

Enquanto ele falava, Keri formulava o esboço de um plano. Era maluco e desesperado. Mas era o único que ela podia imaginar sob tais circunstâncias. E, para que desse certo, ela teria que lançar uma isca que o provocasse, mas não a ponto de voltar a enterrá-la viva. Ela decidiu dar a ele mais uma massagem de ego antes de descer o martelo.

"Então, seu... álibi? Era real... porque... você já tinha... matado Kendra?" ela perguntou, reforçando intencionalmente sua falta de fôlego, apesar de muito real.

Burlingame parecia se deliciar com o interesse dela. Era difícil de acreditar que aquela figura histriônica era o mesmo homem que havia sido tão reservado e profissional em seus outros encontros. Não surpreendia o fato de sentir prazer em planejar um crime tão elaborado. Para ele, aquilo tinha o efeito de uma droga.

"Impressionante, não é? Ao fazer todo mundo pensar que Kendra havia fugido e que, no mínimo, estava viva até o meio da manhã da segunda-feira, ninguém pensaria em checar meu álibi para um horário diferente. Mas, se tivessem checado meu paradeiro na noite de domingo, teriam descoberto que tanto Kendra quanto eu estávamos aqui. E, por aqui, quero dizer literalmente bem aqui, onde eu e você estamos agora. Eu estava jogando enormes montes de terra dentro deste buraco. E ela estava onde você está deitada, lentamente sufocando até morrer, sendo enterrada viva. Talvez, quando eu jogar mais terra sobre você possa vê-la com seus próprios olhos mortos".

As palavras dele foram como um soco no estômago para Keri. Até agora, uma pequena parte dela ainda tinha esperanças de que Kendra ainda estivesse vida, sendo mantida em algum porão oculto na propriedade. Mas, ao ouvir Burlingame descrever a terrível morte dela de maneira tão fria, com um prazer tão malévolo, aquele último raio de esperança desapareceu.

A detetive se permitiu aceitar a verdade: havia fracassado em salvar esta mulher, uma pessoa que todos achavam ser gentil e honesta, e que merecia um destino muito melhor. Mas, para a surpresa de Keri, a descoberta da perda de Kendra não evocou desespero dentro de si. Ao invés, ela sentiu uma outra emoção, mais poderosa, crescer em seu peito: determinação.

"Talvez", Keri disse, por fim, decidindo que havia chegado o momento de agir, antes que ele desse continuidade a suas ameaças. "Ou talvez... você vai ferrar... tudo... assim como... você... fez com... Jennifer. Eu... lhe superei..."

No final de sua frase, Keri falou de propósito numa voz tão baixa que parecia quase um sussurro rouco. Ela o viu inclinar-se para ouvi-la melhor.

"Sim, esse realmente é o último mistério", ele reconheceu. "Sabe, se você me contar como identificou Jennifer, posso ficar inclinado a atirar em sua cabeça antes de enterrá-la. Não seria melhor? O que me diz, detetive? É uma troca justa... seu segredo pela minha misericórdia".

"Sim. Mas... não... consigo respirar", Keri disse, numa voz quase inaudível.

É isso. Ou ele morde a isca e eu tenho uma chance. Ou ele não morde e eu morro.

"Ah, certo então. Você atiçou minha curiosidade. Afinal, um bom médico sempre aprende com seus erros", ele falou, enquanto começava a caminhar desajeitadamente para dentro do buraco. "Sabe, a culpa é sua, detetive. Afinal, eu a escolhi especificamente para lidar com meu caso".

Agora já dentro do buraco, ele se ajoelhou ao lado dela e começou a escavar os maiores pedaços de terra de cima do peito de Keri.

"Por que... eu?" ela perguntou, enquanto se preparava para o que estava por vir.

"Porque eu sabia que, se pudesse convencer até você, a famosa salvadora dos desaparecidos, de que Kendra havia fugido, nunca seria pego. Outros policiais, como seu colega, o detetive Brody, não precisaram de muito incentivo para engolir minha história. Mas, se eu insistisse em manter o caso aberto — aceitando me submeter a detectores de mentira, pedindo para contratar meus próprios investigadores — e mesmo você concordasse em encerrá-lo, então, eu estaria livre. Mas você não largou o osso, detetive. Simplesmente, não desistia. Acho que a subestimei, não?"

Ele continuou a deslizar a terra de cima do peito dela, tagarelando, sem nem olhar para ela. Ela abriu a boca e falou tão baixo que Burlingame teve que se inclinar e se aproximar muito para ouvi-la.

"Sim... você... subestimou".

 

CAPÍTULO TRINTA E CINCO

 

Naquele momento, e antes que Burlingame soubesse o que estava acontecendo, Keri levantou seu braço direito, rápido e com firmeza.

Do canto do olho, Burlingame notou o movimento e começou a virar a cabeça. Mas foi lento demais para impedir que a lanterna que Keri segurava firme esmagasse sua têmpora direita.

O médico pareceu apenas surpreso. Mas, antes que pudesse reagir, Keri o golpeou novamente no mesmo lugar, e de novo, várias vezes, numa rápida sucessão. Ela batia nele com tanta força que a lanterna começou a rachar. Algumas vezes, errava o alvo, atingindo o rosto de Burlingame, rasgando-o. Estilhaços de plástico perfuravam a pele dele e o sangue começou a jorrar da ferida em sua têmpora.

Burlingame, perplexo, debateu-se para pegar a lanterna. Mas Keri evitava a mão dele e, pegando a agora destruída base da lanterna, golpeou rapidamente e com força o lado esquerdo do pescoço dele.

O sangue jorrava. Ela feriu o homem novamente, com mais força ainda do que da primeira vez. O pedaço de plástico preto ficou preso lá, enquanto o sangue saía em profusão. Burlingame levou a mão até o pescoço para retirar o plástico, com olhos delirantes.

Enquanto isso, Keri reuniu todas as suas forças e usou o braço direito para empurrá-lo para a esquerda, de modo que ele caiu sobre ela e aterrissou sobre as costas. A policial rolou até ficar em cima dele. Ele não pareceu notar, enquanto puxava furiosamente a base da lanterna, ainda alojada no lado esquerdo do seu pescoço.

Keri agarrou os ombros dele para se preparar enquanto tentava ajustar suas pernas em volta da cintura do médico. Seus tornozelos ainda estavam amarrados, então, a manobra era desajeitada, e ela quase caiu.

Mas conseguiu se equilibrar justo quando Burlingame arrancou o que restava da lanterna em seu pescoço. Furioso, com pânico e raiva em seus olhos, ele a encarou fixamente.

Eles se moveram ao mesmo tempo. Ele levantou a lanterna com força, esperando fazer com ela o mesmo que ela fez com ele. Enquanto isso, Keri levantou seu antebraço para bloqueá-lo. O braço dela bateu com força no pulso do homem, a lanterna escorregou da mão encharcada de sangue dele e foi parar, inofensiva, a vários metros de distância.

Sem uma pausa, Keri apertou o pescoço ensanguentado dele com as duas mãos, cobrindo-as com sangue de um vermelho intenso. Ele começou a socá-la, sacudindo-se furiosamente, algumas vezes, tocando o queixo ou ombro dela, outras vezes, errando completamente o alvo.

Keri ignorava tudo. Estava totalmente focada em espremer até a última gota de fôlego do homem, até que ele ficasse imóvel. Após o que pareceu uma eternidade, ele foi parando de se debater e, finalmente, parou por completo. Seus braços caíram sem vida aos lados do corpo. E ainda assim ela apertava, pressionando até suas mãos ficarem dormentes e seus braços não terem nenhum força.

Apenas então ela o soltou, permitindo-se colapsar na terra ao lado do corpo. Ela ficou ali por um tempo, ofegante e com acessos ocasionais de tosse. Por fim, rolou para uma posição sentada e se esticou para desamarrar seus tornozelos.

Keri se pôs de joelhos e então usou a parede do buraco para se apoiar enquanto se levantava lentamente. Ela cambaleou contra o lado do buraco, descansando lá enquanto esperava que suas forças retornassem.

O brilho intenso das luzes da escadaveira ainda estava voltado para dentro do buraco, iluminando Burlingame. Ela baixou os olhos para vê-lo — seu corpo sem vida, seu rosto destruído, seus olhos, agora apagados, sem todo o furor maníaco que os havia consumido alguns minutos antes.

Durante alguns momentos, ela respirou lentamente, mas de maneira regular, e então se preparou para mais um esforço: puxou-se para fora do buraco e se afastou. Nem olhou para trás.

 

 

CAPÍTULO TRINTA E SEIS

 

Sua cabeça, que teve que levar 16 pontos, estava latejando sem parar. Parecia que alguém tinha inserido uma mini-britadeira em seu crânio. Mas, desta vez, Keri só teve que passar uma noite no hospital. Havia sido diagnosticada com uma concussão séria e os médicos queriam monitorá-la por 24 horas antes de lhe dar alta.

A não ser por isso, os danos foram mínimos. Seu rosto e ombros estavam sensíveis e descoloridos onde Burlingame a havia golpeado. Surpreendentemente, a terra jogada sobre ela machucou suas costelas, mas não as quebrou. Provavelmente, deveria agradecer a seu colete à prova de balas por isso.

Além de dar seu depoimento, Keri preferiu não pensar sobre o que aconteceu na mansão Burlingame, pelo menos por ora. Haveria tempo para analisar cada detalhe mais tarde; para enfrentar o fato de que ela havia literalmente matado com suas próprias mãos mais um ser humano e que não tinha sido capaz de salvar Kendra. Por ora, ela mantinha essas lembranças a uma certa distância e focava no positivo.

Não era tão ruim estar no hospital. A oficial Jamie Castillo veio lhe fazer uma visita.

"Nunca tive a chance de lhe agradecer pelo que fez na Promenade", Keri disse a ela.

"Não se preocupe. Agradeço por ter confiado em mim o bastante para tentar".

"Na verdade, eu escolhi você mais porque estava perto, porque é muito inexperiente e por saber que me admirava. Eu estava contando com isso para sobrepujar seu senso de dever para com o departamento".

"Sei disso", Castillo disse, "mas agradeço, de todo modo. E sinto muito por não ter dado certo. Espero que isso não lhe impeça de me chamar no futuro".

"Lembrarei de você", Keri disse, num tom sarcástico, mas suavizado pelo largo sorriso em seu rosto.

Depois que Castillo saiu, Keri pôde passar um tempo com Ray, que receberia alta no próximo final de semana. Eles jogaram damas, comeram gelatina e procuraram em sites por móveis para o novo apartamento dela em Playa del Rey. Keri ainda não o havia visto, mas confiava em Ray e ele confiava no dono do apartamento, René. Isso bastava para ela.

"Como foi sua fisioterapia mais cedo?" ela perguntou.

"Não foi muito ruim. Disseram que, se eu me comportar e não me exceder, posso voltar ao trabalho administrativo em uma semana, e ao campo em um mês".

"Isso é ótimo!"

"É, mas eu não sei como me manterei ocupado por uma semana", ele disse. "Aho que vou enlouquecer se ficar o tempo todo sentado no mesmo lugar".

"Não, se focar em decoração de interiores", Keri disse, apontando para o catálogo que eles estavam folheando. "Vou ganhar um bom dinheiro com a venda da casa-barco e, além da mobília, o apartamento ainda precisa de alguns toques para ficar mais com cara de lar, como quadros e tapetes, artigos para a cozinha e... bem, quase tudo. Você pode ser minha Martha Stewart pessoal".

"Keri, eu sou um ex-boxeador profissional e um detetive policial de LA condecorado. Não sou um especialista em feng shui".

"Tenho certeza de que se sairá muito bem. E, se ferrar tudo, só preciso substituir os itens da lista. Você nunca notará a diferença".

"Provavelmente, você está certa", Ray disse. "Vai encerrar o caso Burlingame em breve?"

 

"Sim, provavelmente no domingo. Posso lhe pegar depois".

"Sabe, seria muito mais fácil para todo mundo se tivessem apenas me ouvido desde o início. Eu resolvi o caso sem nem sequer saber os detalhes".

"Ah, foi? Como assim?" ela perguntou, com um sorriso irônico no rosto.

"Eu previ, foi o marido".

"Ok, Colombo. Não sei como conseguimos sem você".

"Nem eu".

Ele ficou em silêncio por um momento e ela podia notar que ia falar sério.

"O que foi?" ela perguntou.

"Você nunca me contou se conseguiu algo com aquele e-mail que enviou para o Colecionador. Isso me faz imaginar que não foi muito bem".

Keri ponderou sobre o quanto dizer a ele no momento. Sua cabeça ainda doía e ela não queria revisitar os detalhes daquele dia terrível no momento.

"Para encurtar: ele marcou um encontro em Santa Monica. Eu fui, mas, por razões complicadas, não deu em nada . Acho que há uma chance dele entrar em contato novamente, então, estou me forçando a não contactá-lo, por medo de assustá-lo. Pode imaginar que não tem sido fácil".

"Posso", ele disse, enquanto tentava se levantar para passar da cadeira para a cama. Keri se levantou para ajudá-lo.

"Vá devagar", ela sussurrou.

"Certo", ele disse, então, acrescentou, delicadamente, "Talvez, você possa me contar a versão mais detalhada quando sentir vontade?"

"Com certeza. Talvez quando lhe levar para casa no domingo".

"Casa?" ele disse, desapontado. "Não vamos direto para casa".

"Aonde vamos?" ela perguntou.

"Tomar um café. Você me disse que, no caminho de casa, poderíamos parar para tomar um café e falar sobre coisas, lembra?"

Keri subitamente sentiu um nó no estômago, mas não deixou que ele percebesse.

"Lembro", ela disse, enquanto o ajudava a ficar de pé.

"Bom", ele replicou, passando seu braço enorme ao redor dos ombros dela para se apoiar. "Porque eu sempre digo, coisas é um dos meus tópicos favoritos".

 

*

 

Keri recebeu alta na sexta-feira à noite e tinha acabado de tirar as roupas do hospital e vestir as suas quando um visitante surpresa entrou no quarto: Jackson Cave.

Ele entrou sem ser anunciado, enquanto ela calçava as meias.

"Olá, detetive", ele disse, como se estar ali fosse a coisa mais natural do mundo."Acabei de visitar um cliente no segundo andar e ouvi dizer que você estava aqui. Tive que vir lhe desejar melhoras. Mas também me sinto obrigado a comentar... você parece gastar uma quantidade de tempo incomum em hospitais".

Após o choque inicial de vê-lo ali, Keri estudou bem Cave, tentando determinar se havia descoberto sua visita noturna ao escritório dele, no início da semana. Nem seus comentários nem sua linguagem corporal traíam nada. Ela se forçou a ser igualmente inescrutável.

"Realmente, eu uso mais o dinheiro que pago ao plano de saúde do que a pessoa comum. Mas é dinheiro bem usado, na minha opinião. Você poderia perguntar a Payton Penn. Ou a Alan Pachanga. Bem, não para ele".

"Não, o Sr. Pachanga certamente não está disponível para comentar. Mas tenho certeza de que ele está aqui conosco em espírito. Sinto que era o tipo de homem que tinha muito mais a oferecer antes de ser tirado de nós".

"Mais para oferecer... como o quê?" Keri perguntou, refletindo se isso era apenas a admiração doentia de uma mente distorcida por outra, ou uma referência vaga ao laptop de Pachanga, que a havia posto no caminho que, por fim, permitiu-lhe descobrir a senha de Cave.

"Esse é o ponto. Acho que nunca saberemos, não é? Ele não pode falar do túmulo e compartilhar seus segredos agora, não é?"

"Acho que não", Keri disse, recusando-se a morder a isca. "Gostaria de mais alguma coisa, Sr. Cave?"

"Não. Eu só queria me assegurar que você estava bem. E agora que vejo que está, vou embora", ele disse, encaminhando-se para a porta. "Mas tenho certeza de que nos veremos novamente. É muito determinada, detetive Locke, e estou de olho em você".

"Adeus, Sr. Cave", Keri disse, ignorando o que ela considerava uma ameaça.

Ele começou a sair, puxando a porta atrás de si, mas então colocou a cabeça de volta pela abertura da porta.

"Se não se importa em me responder uma última coisa, detetive, só queria saber se você já pensou em tingir seu cabelo".

"Por quê?"

"Acho que ficaria adorável num tom mais escuro".

Então, ele se foi, deixando Keri sozinha no quarto para tentar calçar seus sapatos e aceitar o fato de que, certamente, o canalha sabia que ela havia roubado seus dados. Tentou ignorar o calafrio que subitamente percorreu sua espinha.

 

CAPÍTULO TRINTA E SETE

 

Dois dias depois, na manhã do domingo, Keri acordou e se sentiu realmente bem pela primeira vez em quase três semanas.

Suas costelas apenas doíam quando ela tossia ou ria. Seu ombro estava se recuperando mais lentamente, mas não era mais uma fonte constante de dor. A cabeça ainda doía um pouco, mas não a ponto de lhe impedir de funcionar bem. E duas noites consecutivas de sono decente a deixaram com tanta energia que ela nem sabia o que fazer com ela.

Deitada no beliche de sua casa-barco pela última vez, ela revisou os planos para o que seria um dia ocupado. O pessoal da mudança chegaria às nove da manhã para levar seus poucos pertences até o apartamento em Playa.

De todo modo, ela estava deixando a maior parte da mobília aqui e substituindo-a por itens que havia comprado online no hospital. A administração da marina havia se oferecido para comprar o barco dela "como está", e esse dinheiro pagaria suas coisas novas e lhe daria uma poupança decente por alguns meses. Além disso, todos os seus pertences pessoais cabiam numa caminhonete, que era o que os caras da mudança planejavam usar.

Após organizar as coisas no novo apartamento, tinha que ir à delegacia para concluir a papelada sobre o caso Burlingame. O tenente Hillman havia permitido adiar o fechamento por causa de sua estada no hospital, mas agora ele estava ficando impaciente para concluir oficialmente o caso e insistiu que ela viesse, mesmo que fosse domingo.

Keri precisava lidar com seu relatório delicadamente, já que tinha invadido a mansão. Se Burlingame tivesse apenas atirado nela lá mesmo, talvez pudesse ter um caso de legítima defesa. Felizmente, ele tinha sentido a necessidade de compartilhar seu brilhantismo com ela antes de levar a cabo algum tipo de vingança poética.

Agora, ele estava morto e ela podia dizer o que quisesse em seu relatório policial. E o que ela queria dizer era que tinha ido à casa do médico para um interrogatório. Quando ela virou-lhe as costas, ele a golpeou e jogou-a no buraco. Mentir em seu relatório não lhe deixava orgulhosa. Mas ela não ia se preocupar tanto, sob as circunstâncias.

O corpo de Kendra realmente foi encontrado no buraco, a pouco mais de um metro abaixo de onde o marido morreu. O exame forense preliminar indicou que Burlingame não mentiu quando disse que a havia enterrado viva. O pensamento do terror que a mulher deve ter sentido em seus últimos momentos chocou Keri. Também apagou o pouco de culpa que ela sentiu por estrangular um homem que estava, provavelmente, apenas a minutos de morrer, de todo modo.

Burlingame havia desdenhosamente chamado-a de "famosa salvadora dos desaparecidos". Keri não ligava muito quanto a ser "famosa". Mas aceitou o restante do título. Era seu objetivo, sua missão na vida, tentar encontrar aqueles que desapareceram e devolvê-los a salvo para suas famílias.

Na cabeça dela, sabia que nem todas essas pessoas poderiam voltar vivas, mas ainda era sua meta. E era por isso que sentia um mal-estar constante, uma impressão de que havia falhado com Kendra Burlingame, ainda que a mulher estivesse morta antes de sequer atribuírem o caso a Keri. Ela já havia sentido essa culpa antes e sabia que só havia um remédio: o tempo.

Também não faria mal ter distrações, e havia agendado uma para segunda-feira. Iria almoçar com Mags. Quando ela recebeu a mensagem de voz perguntando se queria se encontrar com a amiga de Kendra, Keri ficou relutante, de início. Mas refletiu a respeito.

O caso estava encerrado. Não haveria um julgamento, então, não havia conflito profissional. E Margaret Merrywether era o máximo. Keri não tinha uma amiga de verdade há anos, e a ideia de que podia fazer amizade com Mags lhe dava uma sensação quase reconfortante.

Também suspeitava que, após a morte de Kendra, Mags também precisasse de uma amiga. Então, ela iria. Talvez, pudesse até deixar que a chamasse de Keri, ao invés de "detetive".

No resto de seu domingo, após assinar a papelada do caso, ela iria para o hospital se encontrar com Ray, que receberia alta de tarde. Planejava dar a ele uma carona para casa — depois daquele café, é claro — e ajudar a organizar o apartamento dele para que pudesse se virar sozinho.

Depois de se levantar e começar a se arrumar, escovando os dentes e se vestindo, os pensamentos de Keri se voltaram, como quase sempre faziam em momentos tranquilos, para Evie.

De pé no chuveiro da estação na marina, também pela última vez, ela deixou a água quente acalmá-la até entrar num tipo de devaneio. Fechou os olhos e imediatamente viu sua garotinha: rabos de cavalo loiros, sorriso largo e com uma "janelinha", com um dente lascado em cima, olhos verdes como esmeraldas.

Se eu a encontrasse hoje, Evie me reconheceria? Ainda atenderia pelo seu nome? Ficaria feliz em me ver ou sentiria raiva pelo modo como falhei com ela?"

Keri saiu do chuveiro e se enxugou lentamente. Pegando seu celular, leu a mensagem do Colecionador mais uma vez.

 

eu estava lá. você, não. cautela é bom. você passou nesse teste. mas confiança é fundamental. talvez, uma próxima vez.

 

Aquela última frase, "talvez, uma próxima vez", a corroía por dentro. Ela queria tanto combinar uma próxima vez agora mesmo. Seus dedos estavam ansiosos para digitar uma resposta.

Mas ela sabia que não podia. Provavelmente, tinha apenas mais uma chance de se conectar com ele. Se não lidasse bem com isso, ele desapareceria, talvez, para sempre.

E, no momento, ela não tinha a habilidade para ir atrás dele da maneira adequada. Podia ter os recursos financeiros, com a venda da casa-barco. Mas todas as informações foram obtidas ilegalmente, então, não podia contar com a ajuda do departamento. Na verdade, se eles soubessem o que havia feito, ela podia ser presa.

Para piorar, Keri tinha quase certeza de que estava sendo investigada por Jackson Cave agora. Ele podia estar monitorando a casa dela. Podia ter grampeado seu telefone. Com certeza, ele a estava rastreando. Se descobrisse seu plano, poderia encontrar uma forma de passar essa informação para as autoridades, ou, pior, avisar ao Colecionador. Ela tinha que ser muito cuidadosa a partir desse ponto. Tinha que se comportar como se estivesse sendo observada o tempo todo, de modo constante.

Porque, provavelmente, estava.

 

CAPÍTULO TRINTA E OITO

 

Keri, animada com a ideia de pegar Ray no hospital, havia concluído toda a papelada do caso e já estava saindo do salão principal da delegacia, quando Hillman colocou a cabeça para fora da porta do seu escritório.

"Locke, preciso de você aqui".

Ela foi até ele, tentando não deixar transparecer seu nervosismo.

Será que ele descobriu sobre a emboscada na Promenade? Ou, pior, sobre a invasão no escritório de Cave? Ele só estava esperando eu encerrar este caso para poder me demitir?

"Sente-se", ele disse, apontando para a namoradeira.

Percebendo que o chefe geralmente a dirigia para a cadeira de metal de encosto duro em frente à sua mesa, ela relutantemente fez o que ele mandou. Hillman sentou-se em sua cadeira e ficou parado, sem falar uma palavra.

"Sim, senhor?" Keri perguntou, incapaz de lidar com o silêncio.

"Detetive Locke", ele disse, sentindo-se claramente desconfortável, "só queria lhe dizer... que você deveria saber... bem... bom trabalho".

"Desculpe, senhor, poderia ser mais claro?"

"Eu indiquei seu nome para uma condecoração por seu desempenho neste caso. Quando todos no departamento, inclusive eu, estavam prontos a encerrar tudo, você continuou, às vezes em oposição a minhas ordens diretas. Vamos deixar isso de lado por ora. O ponto é que, este caso não teria sido solucionado sem sua diligência e dedicação. Falei com a Capitã Beecher sobre isso e ela concordou que uma condecoração seria pertinente. Então, prepare-se, pois ela virá em breve".

Keri se forçou a continuar séria. Parecia que o tenente Hillman estava literalmente sofrendo enquanto falava essas palavras. Mas ele as falou. E ela não queria estragar a melhor interação que eles haviam tido na vida com um sorriso fora de hora.

"Obrigada, senhor", ela disse, em tom baixo.

"Dispensada", ele replicou, redescobrindo sua postura tipicamente ranzinza. Mas, enquanto ela se dirigia até a porta, ele acrescentou baixinho, "De nada".

Enquanto caminhava para a saída, Keri manteve a mandíbula bem fechada, recusando-se a deixar qualquer um ver o quão feliz ela se sentia por dentro. Andou apressada pela delegacia, com medo de chegar atrasada para o encontro com Ray, que a provocaria sem dó por isso. Mas assim que chegou ao portão da frente, a recepcionista a chamou de volta.

"Você recebeu uma carta ontem", a mulher falou.

"Obrigada", Keri disse, levamente surpresa, e pegou o envelope. Em mais de um ano trabalhando como detetive policial, ela nunca havia recebido uma carta de verdade pelo correio. Enquanto caminhava até o carro, notou que não havia remetente. Entrou no carro e abriu a carta. A mensagem estava digitada em letras de forma. E dizia:

 

QUERO AJUDAR. CONFIRA O ARMAZÉM NOVAMENTE. VOCÊ NÃO COBRIU TUDO.

 

Keri suspeitava que essa mensagem era da mesma pessoa de voz rouca que havia deixado uma mensagem de voz para ela, dizendo-lhe para investigar o armazém abandonado em Palms, em busca de informações sobre Evie. Aquilo não havia dado em nada, e ela teria marcado essa pista como uma brincadeira cruel se não fosse por uma coisa.

Quando os especialistas em tecnologia tentaram analisar a ligação, não conseguiram achar nada. O número era impossível de rastrear. A voz, apesar de humana, havia sido tão alterada que ela nem podia ter certeza de que era masculina. Quem quer que tenha deixado aquela mensagem teve muito trabalho para evitar ser descoberto. Por que passar por tudo aquilo apenas para fazer uma brincadeira? Não fazia sentido. Mas, com tudo o que aconteceu desde então, Keri não havia pensado muito a respeito.

Mas já que o armazém ficava no caminho do hospital, e apesar do sentimento de que estavam brincando com ela, decidiu passar por lá mais uma vez. Provavelmente, não iria ajudar, mas não faria mal algum.

Quando chegou, Keri estacionou quase no mesmo lugar que da última vez. Ela fez a curta caminhada até o armazém, procurando qualquer coisa fora do comum, qualquer coisa que ela pudesse ter deixado passar em sua última visita. Não encontrou nada extraordinário.

Ela passou pela mesma placa com os dizeres Preservação de Itens Inestimáveis, o mesmo que parecia estar provocando-a, e entrou no armazém. Não parecia diferente desde sua última visita. Ela caminhou apressadamente pelo lugar antes de voltar ao ponto estranho que ela sabia ser um falso painel do piso, com placas de gesso empilhadas sobre uma cadeira. Restos de gesso estavam espalhados pelo chão, onde eles haviam caído quando Keri os movera de lugar. Não parecia que alguém havia vindo ali, no ínterim.

Ela deslizou a cadeira para o lado novamente e apertou o botão sobressalente no painel de madeira do piso, pintado para se parecer com concreto. Mais uma vez, ele se soltou facilmente e ela o moveu para examinar o pequeno buraco logo abaixo. Não havia nada dentro.

Keri se sentou no chão e tentou não deixar sua crescente frustração tomar conta de si.

Por que alguém faria isso comigo? Apenas para ser cruel? Quantas vezes terei que me decepcionar antes de finalmente parar de me fazer passar por isso?

Keri tentou afastar a auto-piedade e focar no que estava à frente. Alguém habilidoso havia-lhe deixado aquela mensagem de voz. Alguém havia dedicado tempo para dar seguimento e enviar-lhe uma carta. Talvez houvesse mais coisas a descobrir.

Ela pegou a mensagem e leu de novo:

 

QUERO AJUDAR. CONFIRA O ARMAZÉM NOVAMENTE. VOCÊ NÃO COBRIU TUDO.

 

As primeiras duas linhas pareciam muito simples: puramente informativas. Mas a estrutura da última frase parecia um pouco estranha. Era mais codificada. Por que não dizer "você não procurou em todos os lugares?"

Podia ser uma pista? Você não cobriu tudo. O que quer dizer?

Sem ideias, Keri suspirou e pegou o tampo de madeira para colocá-lo de volta ao seu lugar.


O tampo, a cobertura de madeira... você não cobriu tudo.

Ela examinou o quadrado de madeira que tinha nas mãos por um longo momento antes de virá-lo de cabeça para baixo para procurar algo estranho — alguma coisa escrita ou marcas de algum tipo. Nada.

Ela o sacudiu. Ouviu algo chacoalhar levemente em seu interior. Ela sacudiu o painel mais vigorosamente e ouviu melhor o som. Definitivamente, havia algo ali dentro.

Keri tateou pelos lados, procurando por alguma forma estranha. Em um dos lados, encontrou uma pequena depressão, com o tamanho de uma moeda de um centavo. Ela a pressionou com força. Houve um minúsculo clique e uma fina abertura apareceu. Ela virou o painel, de modo que a abertura ficasse voltada para baixo, e balançou. Caiu uma pequena folha de papel.

Keri pôs o painel de lado e pegou o papel. Era um pedaço de papel branco simples, com cerca de 12 cm x 17 cm. Ela o virou. Naquele lado, estava uma imagem, preto-e-branca, granulada e obviamente tirada a grande distância, com uma lente teleobjetiva.

Ela o close-up de uma garota, e a foto estava tão recortada que não dava para identificar os arredores. A menina parecia ter uns 13 anos. Apesar de ser preto-e-branca, ficava claro que ela tinha os cabelos loiros, bem curtos. Seu rosto estava inexpressivo, mas seus olhos eram penetrantes. Sua boca estava levemente aberta e Keri podia dizer que ela tinha um dente da frente lascado.

Ela ficou olhando para a imagem por um longo tempo, sem querer (talvez, sem poder) tirar qualquer conclusão a respeito. Era Evie? Era alguma foto photoshopada de uma garota qualquer, feita para torturá-la? O fato de não poder dizer, à primeira vista, se essa era ou não sua filha, fez Keri sentir um nó no estômago.

Que tipo de mãe sou eu que não sabe imediatamente se essa foto é falsa ou verdadeira?

Ela sentiu o ambiente começar a girar ao seu redor, sentiu o mundo escapando do seu controle, como tantas vezes antes. Sua respiração se tornou rápida e superficial. O armazém parecia se dissolver. Gotas grossas de suor apareceram subitamente em sua testa. Keri se sentiu afundar naquele desespero familiar, misturado ao pânico.

Não! Não vou deixar isso acontecer. Não vou perder o controle. Não mais. Já cansei dessa merda. Recomponha-se, Locke!

E tão rapidamente quanto o ataque de pânico começou, ele acabou. A visão dela clareou e sua respiração se tornou mais lenta. A tontura parou e a náusea desapareceu.

Após um momento para se recompor, a detetive tomou uma decisão. Levaria a foto para Edgerton, para saber o que ele podia fazer com ela. Examinaria o painel de metal do chão, a cadeira de metal e tudo o mais dentro do armazém para procurar por impressões digitais. Seguiria esta pista com a mesma ferocidade com que havia investigado toda pista envolvendo Evie.

Mas ela não se permitiria mais ser a vítima, sempre à mercê de sua perda e dos momentos de terror incontrolável que ela causou. Tinha que permanecer forte para Evie e, igualmente importante, para si mesma. Pois, um dia, encontraria sua filha.

Evie, segure firme, ela falou para si mesma, em silêncio. Estou indo buscar você.

 

 

                                                   Blake Pierce         

 

 

 

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