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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REMÉDIOS / Donna Leon
REMÉDIOS / Donna Leon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

A mulher caminhava em silêncio pelo campo deserto. À esquerda, impassíveis, as vitrines gradeadas de um banco vazio repousavam no impenetrável torpor das primeiras horas da madrugada. No meio do campo ela parou, ao lado das correntes baixas que isolam o monumento a Daniele Manin, mártir da independência da cidade. Bem a calhar, ela pensou.
Ao ouvir um ruído à esquerda, ela se voltou, mas era só um dos Guardia di San Marco, acompanhado de seu pastor-alemão, um cachorro babão que parecia muito jovem e amigável para amedrontar de fato os ladrões. Se achou estranho encontrar uma senhora parada no meio do campo Manin às três e meia da manhã, o guarda não demonstrou, e continuou em sua rotina de fixar retângulos de papel laranja nos batentes e próximos às fechaduras das lojas, a forma que tinha bolado para provar que cumprira suas rondas e que encontrara a vizinhança tranquila.
Assim que o guarda e seu cão partiram, a mulher se afastou da corrente baixa e se encaminhou para a frente de uma grande vitrine no outro lado da praça. À luz fraca que vinha de dentro, ela examinou os anúncios, leu os preços listados para as várias ofertas especiais e viu que ali aceitavam MasterCard, Visa e American Express.
A tiracolo, no ombro esquerdo, ela levava uma sacola de praia azul, de pano. Com um giro de corpo, usou o peso do que havia na sacola, trazendo-a para a frente.
Colocou a sacola no chão, olhou-a e, com a mão direita, alcançou seu interior.

 


 


Antes que pudesse pegar qualquer coisa, levou tamanho susto com o som de passos vindos de trás que arrancou a mão da sacola e pôs-se de pé. Mas eram somente quatro homens e uma mulher que, tendo acabado de descer do primeiro barco que parava no Rialto, o das três e catorze, atravessavam agora o campo rumo a alguma outra parte da cidade. Não deram a mínima para ela. O som de seus passos foi diminuindo enquanto cruzavam a ponte que conduzia à calle della Mandola.
De novo ela se abaixou e vasculhou a sacola, e desta vez sua mão saiu dali com uma pedra enorme, que passara muitos anos na mesa de seu estúdio. Havia trazido a
pedra de umas férias em uma praia do Maine, há mais de dez anos. Do tamanho de uma grapefruit, encaixava-se perfeitamente na palma enluvada de sua mão. Olhou para
baixo, para a pedra, e levantou a mão, chegando a jogá-la para cima e para baixo algumas vezes, como se fosse uma bola de tênis e estivesse na sua vez de sacar.
Seu olhar correu da pedra para a vitrine e da vitrine novamente para a pedra.
Recuando uns dois metros, girou o corpo até ficar de perfil, sem no entanto despregar os olhos da vitrine. Então, levantando a mão direita à altura da cabeça, ergueu
o braço esquerdo como contrapeso, exatamente como o seu filho lhe havia ensinado certo verão, quando tentou treiná-la para que arremessasse como um rapaz e não como
uma menina. Por um instante lhe ocorreu que sua vida, ou ao menos parte dela, poderia talvez se esfacelar com o que estava prestes a fazer, mas logo descartou aquilo
como mera presunção melodramática.
Em um movimento abrangente impulsionou a mão para a frente com toda a força. Quando o braço se retesou completamente ela largou a pedra, dando um sobrepasso de mais
ou menos meio metro, sem conseguir conter o momentum de seu próprio impulso. E foi este avanço que permitiu que ela abaixasse a cabeça e os cacos de vidro que explodiram
da vitrine estilhaçada pousassem em seus cabelos sem feri-la.
A pedra deve ter se chocado com alguma fissura preexistente na vidraça, porque, em vez de deixar ali um buraco não muito maior do que sua própria circunferência,
abriu um rombo de dois metros de altura por outros dois de largura. A mulher esperou até que o ruído de estilhaços caindo ao chão cessasse, mas nem bem isso aconteceu
e, dos fundos da loja, soou o agudo intermitente de um alarme contra roubo, troando no silêncio da manhã. Ela ficou ali empertigada, removendo sem pressa os estilhaços
de vidro que tinham aderido à parte da frente de seu casaco, depois balançou vigorosamente a cabeça, como se emergindo de um mergulho, agora para se livrar dos fragmentos
de vidro ali emaranhados. Recuou, apanhou a sacola e dispôs as alças sobre os ombros. Dando-se conta de como lhe tremiam os joelhos, foi até um dos pilares baixos
que sustentavam as correntes do monumento e ali se sentou.
Ela não chegara de fato a imaginar o tamanho que teria o buraco, mas ficou surpresa quando viu o resultado final, grande o bastante para que um homem passasse por
ele. Ramificações finas como teias de aranha se espraiavam pela vitrine estilhaçada, do centro para os cantos; o vidro em torno do buraco era leitoso e opaco, mas
os cacos pontiagudos que apontavam para o centro não deixavam de ser perigosos.
Às suas costas, na cobertura à margem esquerda do canal, algumas luzes se acenderam e, em seguida, também se iluminou o apartamento logo acima do alarme que ainda
soava. O tempo ia passando, mas ela não parecia estar preocupada com isso, curiosamente: o que tivesse de acontecer iria acontecer, não importava se a polícia demorasse
ou não para aparecer por ali. O barulho, porém, a incomodava. Um berro agudo destruindo a paz noturna. Mas afinal, pensou, não era disso exatamente que se tratava,
da destruição da paz?
Algumas venezianas se abriram, três cabeças apareceram e imediatamente desapareceram, novas luzes se acenderam. Era impossível dormir enquanto o alarme continuasse
a trombetear que o crime campeava na cidade. Dez minutos depois, chegaram correndo dois policiais, um deles com a pistola em punho. Ele foi até o buraco na vitrine
estilhaçada e gritou: “Quem quer que seja aí dentro, é melhor sair agora. É a polícia”.
Não aconteceu nada. O alarme continuava soando.
Ele gritou mais uma vez e, como continuou sem receber resposta, virou-se para o parceiro, que deu de ombros e balançou a cabeça. Pôs então a pistola de novo no coldre
e se aproximou um pouco mais da vidraça estilhaçada. Acima dele, uma janela se abriu e alguém berrou: “Não dá pra vocês desligarem essa droga de alarme?”. Outra
voz contrariada seguiu-se: “Eu quero dormir um pouco”.
O segundo policial se aproximou do parceiro e os dois espiaram lá dentro; então o primeiro levantou o pé e afastou com um chute as pequenas estalagmites de vidro
que despontavam perigosamente da parte de baixo da vitrine. Pularam juntos para dentro e sumiram pelos fundos. Passaram-se alguns minutos sem que nada acontecesse.
Foi quando as luzes no escritório se apagaram e o alarme silenciou no mesmo instante.
Os policiais voltaram ao salão, um deles iluminando o caminho com uma lanterna. Olharam em volta para ver se algo tinha sido levado ou destruído e, em seguida, voltaram
ao campo pelo buraco na vitrine. Foi só então que notaram a mulher sentada ao pilar de pedra.
O policial que chegara empunhando a pistola foi até ela. “Por favor, a signora viu o que aconteceu?”
“Sim.”
“E o que foi? Quem fez isto?” Ao ouvir as perguntas do parceiro, o outro policial se aproximou, feliz por terem encontrado uma testemunha, o que aceleraria as coisas,
evitando que tivessem de tocar campainhas e interrogar as pessoas, pois agora teriam uma descrição dos fatos e poderiam sair desse frio úmido de outono e voltar
ao conforto morno da questura para escrever seu relatório.
“Quem foi?”, perguntou o primeiro.
“Alguém jogou uma pedra na vitrine”, disse a mulher.
“Como é que ele era?”
“Não foi um homem”, ela respondeu.
“Uma mulher?”, interrompeu o segundo policial, e ela se conteve para não perguntar se haveria talvez alguma alternativa que ela desconhecesse. Sem gracinhas. Nada
de gracinhas. Não haveria mais gracinhas, não até que tudo isso tivesse acabado.
“Sim, uma mulher.”
Trocando um olhar agudo com o parceiro, o primeiro policial perguntou de novo: “E como é que ela era?”.
“Uns quarenta anos, cabelos loiros, à altura dos ombros.”
Os cabelos dela estavam cobertos por uma echarpe, o que fez com que o policial não entendesse de pronto. “E o que ela estava vestindo?”, ele perguntou.
“Casaco e botas marrons.”
Ele notou a cor do casaco que ela usava, então olhou para baixo, para os pés dela. “Sem brincadeiras aqui, signora. Queremos saber como é que ela se parecia.”
Ela o encarou, e sob a luz dos postes de rua ele vislumbrou o brilho de algum ímpeto secreto nos olhos dela. “Eu não estou brincando, policial. Era isso o que ela
vestia.”
“Mas a senhora está descrevendo a si mesma, signora.” Uma vez mais, seu alarme interno contra melodramas a impediu de dizer: “Se tu o dizes”. Em vez disso, ela apenas
confirmou balançando a cabeça.
“Foi a senhora?”, perguntou o primeiro policial, incapaz de disfarçar seu espanto.
De novo ela confirmou.
O segundo foi mais direto. “A senhora jogou uma pedra naquela vitrine?”
E pela terceira vez ela assentiu.
Eles não precisaram dizer nada; afastaram-se até onde ela não os pudesse ouvir, sem, no entanto, tirar os olhos dela. Com os rostos bem próximos um do outro, conversaram
em voz baixa por um momento, depois um deles pegou o celular e ligou para a questura. Acima deles, uma veneziana se abriu e uma cabeça apareceu, mas logo se recolheu.
A janela bateu com um estrondo.
O policial falou por alguns minutos, informando tudo o que sabia, inclusive que já haviam detido a pessoa responsável. Quando o sargento de plantão pediu que o levassem
até ele, o policial não se incomodou em corrigi-lo. Em seguida, desligou o aparelho e pôs de volta no bolso de sua jaqueta. “O Danieli pediu que eu a levasse até
lá”, disse ao parceiro.
“Então eu vou ter que ficar por aqui?”, perguntou o outro, sem fazer o mínimo esforço para disfarçar sua irritação por ter de ficar esperando ali naquele frio.
“Você pode esperar lá dentro. O Danieli já está ligando para o proprietário. Acho que ele mora aqui por perto.” Passou o celular para o parceiro. “Ligue para nós
se ele não aparecer.”
Aparentando uma gentileza forçada, o segundo policial recebeu o telefone com um sorriso. “Vou ficar até ele aparecer, mas da próxima vez eu que levo o suspeito.”
Seu parceiro sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. Restabelecida a concórdia, os dois voltaram até a mulher que, no curso da longa discussão entre eles, permanecera
exatamente onde estava, sentada encostada no pilar, os olhos apreciando a vitrine danificada e os cacos de vidro que tinham se espalhado à sua frente em uma espécie
de arco-íris monocromático.
“Me acompanhe”, disse o primeiro policial.
Em silêncio, ela se levantou e se pôs a caminhar até uma estreita calle à esquerda da vitrine destruída. Nenhum dos policiais pareceu notar que ela sabia qual era
o caminho mais curto para a questura.
Os dois permaneceram calados durante os dez minutos de caminhada. Se alguma das pouquíssimas pessoas que os viram pelo caminho tivesse se ocupado em prestar atenção
a eles enquanto caminhavam sob a parte coberta da piazza San Marco, e dali para a estreita calle que levava à San Lorenzo e à questura, teria notado uma mulher atraente
e bem-vestida caminhando ao lado de um policial uniformizado. Algo estranho de ver às quatro da madrugada, mas talvez a casa dela tivesse sido assaltada ou ela tivesse
sido chamada para identificar uma criança perdida.
Não havia ninguém à espera deles, e o policial teve de tocar a campainha várias vezes até que o rosto sonolento de um jovem policial aparecesse na cabine que ficava
à direita da porta de entrada. Assim que os viu, voltou para dentro. Retornou alguns segundos depois, vestindo seu paletó enquanto abria a porta e balbuciava um
pedido de desculpas. “Ninguém me avisou que vocês estavam chegando, Ruberti.” Ruberti recusou as desculpas do outro, mas em seguida acenou-lhe indicando que voltasse
para a cama, lembrando-se de como era ser um novato na corporação e sofrer de um cansaço profundo.
Depois, levou a mulher pelas escadas à esquerda até o primeiro andar, onde ficavam as salas dos oficiais. Abriu a porta, segurando-a gentilmente enquanto ela entrava,
e a acompanhou até o interior de um gabinete, onde se sentou à mesa. Abriu a gaveta da direita, tirou dali um bloco pesado de formulários, jogou-o sobre a mesa diante
deles, olhou fixo para a mulher e, com um gesto de mão, indicou a ela que se sentasse na cadeira à sua frente.
Enquanto ela se sentava e desabotoava o casaco, ele preenchia a parte de cima do formulário com a data, a hora, seu nome e patente. Ele se deteve por um momento
no item “Crime”, e então cravou “vandalismo” no retângulo vazio.
Olhou para ela e foi então que, pela primeira vez, pôde enxergá-la nitidamente. Estava intrigado com algo que para ele não fazia nenhum sentido: como tudo nela -
suas roupas, seus cabelos, até mesmo o jeito dela sentar - transmitia uma autoconfiança que somente o dinheiro, muito dinheiro, poderia proporcionar. “Que ela não
seja uma louca”, rogou ele em silêncio.
“A signora está com a sua carta d’identità?”
Ela fez que sim com a cabeça e procurou em sua sacola. Em nenhum momento ocorreu ao policial que podia ser perigoso permitir a uma mulher que acabara de prender
por um crime relativamente violento remexer em uma grande sacola, procurando algo lá dentro.
A mão dela emergiu empunhando uma carteira de couro. Ela a abriu, tirando dali uma carteira de identidade marrom, que colocou com a face para cima na mesa em frente
ao policial.
Ele deu uma espiada na foto, notando que parecia ter sido tirada há muito tempo, quando ela ainda era de fato bonita. Foi então que ele viu o nome. “Paola Brunetti?”,
ele perguntou, incapaz de disfarçar o seu espanto.
Ela assentiu.
“Jesus Cristo, a senhora é a esposa do Brunetti.”
2
Brunetti estava deitado na praia quando o telefone tocou, o braço cruzado sobre os olhos para protegê-los da poeira levantada pelos hipopótamos dançarinos. Quer
dizer, em seu mundo de sonhos, Brunetti estava deitado em uma praia, local escolhido sem dúvida por causa da discussão pesada com Paola há alguns dias, e os hipopótamos
não eram nada mais que um vestígio da fuga que ele encontrara para escapar daquela briga: ir para a sala assistir à metade final de Fantasia com Chiara.
O telefone tocou seis vezes até que Brunetti identificasse o que era aquele som e se virasse de lado na cama a fim de alcançá-lo.
“Sí ?”, ele respondeu, ainda grogue pelo sono intermitente que sempre o acometia após os conflitos não resolvidos com Paola.
“Commissario Brunetti ?”, perguntou uma voz masculina.
“Un momento”, disse Brunetti, afastando um pouco o aparelho para acender a luz. Voltando a se esticar na cama, puxou as cobertas até a altura de seu ombro direito,
olhando em seguida na direção de Paola para ver se não a havia descoberto. A cama estava vazia do lado dela. Ela devia estar no banheiro, claro, ou descera até a
cozinha para beber um pouco d’água, ou, se ela ainda estivesse tão irritada quanto ele, talvez para beber um copo de leite quente com mel. Ele se desculparia quando
ela voltasse, especialmente pelas palavras que dissera e por este telefonema, mesmo que não fosse o responsável por tê-la feito acordar.
Esticando o braço, apanhou o telefone. “Pois não, o que houve?”, perguntou, afundando nos travesseiros e torcendo para que não fosse a questura convocando-o para
sair da cama e dirigir-se para a cena de algum novo crime.
“Estamos com a sua mulher, senhor.”
Sua mente esvaziou-se com a justaposição das palavras iniciais, exatamente o tipo de coisa que todo sequestrador dizia, com o uso de “senhor”.
“O quê?”, ele perguntou assim que voltou a raciocinar.
“Estamos com a sua mulher, senhor.”
“Quem é que está falando?”, ele perguntou, o nervosismo começando a aparecer em sua voz.
“É o Ruberti, senhor. Da questura.” Depois de uma longa pausa, o homem acrescentou, “Estou na ronda, senhor, eu e o Bellini”.
“E o que você está dizendo da minha mulher?”, Brunetti perguntou, nem um pouco interessado em saber onde eles estavam ou quem fazia a ronda.
“Nós estamos, senhor. Bem, eu estou. Bellini ainda está no campo Manin.”
Brunetti fechou os olhos num esforço para escutar ruídos em alguma outra parte da casa. Nada. “O que ela está fazendo aí, Ruberti?”
Depois de uma longa pausa, Ruberti disse: “Nós a prendemos, senhor”. E como Brunetti não respondeu, ele acrescentou: “Quer dizer, eu a trouxe até aqui, senhor. Ela
ainda não foi presa”.
“Deixe eu falar com ela”, ordenou Brunetti,
Depois de uma longa pausa, ele ouviu a voz de Paola. “Ciao, Guido.”
“Você está na questura ?”
“Sim.”
“Então, você fez aquilo?”
“Eu te disse que faria.”
Brunetti voltou a fechar os olhos, mantendo o aparelho à distância de um braço. Pouco depois aproximou o fone e disse: “Diga a ele que chego em quinze minutos. Não
fale nada e não assine nada”.
Sem esperar pela resposta, desligou o telefone e pulou da cama, vestiu-se rapidamente e foi até a cozinha, onde deixou um bilhete para os filhos, em que dizia que
ele e Paola tiveram de sair, mas que voltariam logo. E saiu, com o cuidado de fechar a porta em silêncio, e desceu pela escada como se fosse um ladrão.
Ao sair, tomou a direita, o passo agora acelerado, quase correndo, o corpo inflamado pela raiva e pelo medo. Passou rápido pelo mercado abandonado e pela ponte Rialto,
sem ver nada nem ninguém que passasse, os olhos no chão à sua frente, cegos a qualquer sensação. Lembrava apenas da raiva dela, da paixão com que ela tinha batido
a mão na mesa, fazendo os pratos chacoalharem e derrubando uma taça de vinho tinto. Lembrou-se de ter ficado observando o vinho encharcar a toalha e de se perguntar
por que ela tinha ficado tão enlouquecida com tudo aquilo. Tanto naquele momento quanto agora - sabendo que o que quer que ela tivesse feito fora provocado pela
mesma raiva -, ele se surpreendia ao vê-la tão revoltada com aquela injustiça já ultrapassada. Em todas essas décadas que passaram casados ele já tinha se acostumado
com sua fúria, tendo aprendido que as injustiças civis, políticas e sociais podiam tirá-la do sério e fazê-la sofrer uma indignação sufocada, mas nada o ensinara
a prever com exatidão o que poderia levá-la a ultrapassar aquela distância excepcional que a colocava além de qualquer possibilidade de contenção.
Enquanto cruzava o campo Santa Maria Formosa, ele se lembrava de algumas das coisas que ela tinha dito, e que ela nem prestara atenção quando ele a alertara de que
os filhos estavam ali, e que ela não percebera a surpresa dele com a sua resposta. “É porque você é homem”, ela sibilou em uma voz firme e contrariada. E depois,
“Tem que haver um jeito de fazer com que lhes saia mais caro continuar a fazer o que estão fazendo do que parar. Se não for assim, não vai acontecer nada”. E, finalmente:
“Não me importa se não é ilegal. É errado e alguém vai ter que impedi-los”.
E, como de hábito, Brunetti não levou a fúria dela a sério, ignorando também a sua promessa - ou teria sido uma ameaça? - de fazer algo a respeito pessoalmente.
E agora aqui estava ele, três dias depois, virando no aterro de San Lorenzo e se aproximando da questura, onde Paola o aguardava, detida por um crime que tinha dito
a ele que cometeria.
O mesmo jovem policial o deixou entrar, prestando-lhe continência. Mas foi ignorado por Brunetti, que seguiu direto para as escadas, saltando de dois em dois degraus
até a sala dos oficiais, onde encontrou Ruberti à sua mesa e Paola sentada calmamente em frente a ele.
Ruberti se levantou e prestou continência à entrada de seu superior.
Brunetti respondeu com um aceno. Depois olhou para Paola, que lhe devolveu o olhar, mas ele não tinha nada a dizer.
Com um gesto, indicou a Ruberti que se sentasse. Quando o policial se sentou, Brunetti disse: “Conte-me o que aconteceu”.
“Recebemos um chamado há uma hora, senhor. Um alarme antirroubo disparou no campo Manin, e Bellini e eu fomos atender.”
“A pé?”
“Sim, senhor.”
Como Ruberti permanecia calado, Brunetti sinalizou para que continuasse. “Quando chegamos ao local, encontramos a vitrine quebrada. O alarme estava a toda, de enlouquecer.”
“De onde vinha o alarme?”, perguntou Brunetti, embora já soubesse.
“Dos fundos, senhor.”
“Sim, sim. Mas de que loja?”
“Da agência de viagens, senhor.”
Com a reação de Brunetti, Ruberti ficou mudo novamente, até que Brunetti o incitasse com a pergunta: “E então?”.
“Entrei, senhor, e desliguei a chave geral. Para parar o alarme”, ele explicou, embora não fosse preciso. “Depois, ao sairmos, vimos uma mulher no campo, que parecia
estar nos esperando, e perguntamos a ela o que tinha acontecido.” Ruberti baixou os olhos para a sua mesa, depois encarou Brunetti e Paola. Como os dois continuaram
calados, ele prosseguiu. “Ela disse que tinha visto quem tinha feito aquilo, e quando lhe pedimos que o descrevesse, ela disse que tinha sido uma mulher.”
Ele parou de novo, passeando o olhar de um para o outro, e mais uma vez ninguém disse nada. “Então, quando pedimos que ela nos descrevesse a mulher, ela descreveu
a si mesma, e quando eu a alertei quanto a isso, ela disse que ela mesma tinha feito aquilo. Quebrado a vitrine, senhor. E foi isso o que aconteceu.” Ele refletiu
por um momento e depois acrescentou: “Bem, ela não chegou a dizer isso, senhor, mas ela concordou com a cabeça quando eu perguntei se tinha sido ela”.
Brunetti acomodou-se em uma cadeira à direita de Paola e espalmou as mãos sobre a mesa de Ruberti.
“E cadê o Bellini?”
“Ficou por lá, senhor, esperando o proprietário chegar.”
“E isso faz quanto tempo?”
“Mais de meia hora, senhor”, disse Ruberti, depois de dar uma espiada em seu relógio de pulso.
“Ele tem um telefone?”
“Sim, senhor.”
“Ligue pra ele.”
Ruberti se inclinou para pegar o telefone, mas antes que começasse a digitar o número, ouviram-se passos na escada e Bellini entrou no gabinete. Ao ver Brunetti,
ele o saudou, mas não conseguiu demonstrar sua surpresa por encontrar o commissario ali àquela hora.
“Buon dì, Bellini”, disse Brunetti.
“Buon dì, commissario”, respondeu o policial, olhando em seguida para Ruberti em busca de alguma pista do que estava se passando.
O gesto de Ruberti foi pouquíssimo informativo.
Brunetti esticou o braço por sobre a mesa e puxou para si a pilha de boletins de ocorrência. Viu a bela caligrafia de Ruberti, verificou a data e a hora, o nome
do policial e o nome que Ruberti havia escolhido para descrever o crime. Não havia mais nada escrito no prontuário, nenhum nome sob a rubrica “Detido”, nem mesmo
sob a de “Interrogado”.
“O que a minha esposa disse?”
“Como eu falei, senhor, ela não chegou de fato a dizer nada. Apenas balançou a cabeça quando eu perguntei se ela que tinha feito aquilo”, disse Ruberti, e, para
disfarçar o suspiro que escapou pelos lábios de seu parceiro, acrescentou, “senhor”.
“Acho que você pode não ter entendido o que ela quis dizer, Ruberti”, disse Brunetti. Paola se aprumou, como se prestes a falar, mas Brunetti de repente pôs sua
mão sobre o boletim de ocorrência e o reduziu a uma minúscula bola de papel.
Ruberti lembrou-se, novamente, de seus tempos de jovem policial, bêbado de sono e certa vez paralisado de medo, e recordou-se que por mais de uma vez o commissario
tinha feito vistas grossas para os seus erros de juventude. “Sim, senhor, acho mesmo que posso ter entendido errado o que ela quis dizer”, respondeu sem pudor, e
olhou para Bellini, que concordou, sem entender de fato, mas consciente do que teria de ser feito.
“Bom”, disse Brunetti, e se levantou. O boletim de ocorrência, que era agora uma bola de papel amassado em sua mão, foi para o bolso do seu sobretudo. “Agora vou
levar minha esposa pra casa.”
Ruberti se levantou e se aproximou de Bellini, que disse: “O proprietário está no local agora, senhor”.
“Você disse algo a ele?”
“Não, senhor, somente que o Ruberti tinha voltado para a questura.”
Brunetti balançou a cabeça. Chegou mais perto de Paola, mas não a tocou. Ela se levantou apoiando-se nos braços da cadeira, sem se aproximar do marido.
“Boa noite, então, policiais. Vejo vocês pela manhã.” Os dois homens prestaram continência, Brunetti fez um gesto com a mão e se afastou, permitindo que Paola caminhasse
à sua frente até a porta, que ela atravessou primeiro, com Brunetti logo atrás. Ele fechou a porta e, em fila indiana, eles desceram as escadas. O jovem policial
continuava lá, segurando a porta para eles. Cumprimentou Paola, embora não tivesse a mínima ideia de quem fosse. E, como de costume, prestou continência a seu superior
enquanto ele passava pela porta rumo à congelante madrugada veneziana.
3
Fora da questura, Brunetti seguiu à esquerda até a primeira esquina. Chegando ali, parou e ficou esperando que Paola se juntasse a ele. Continuavam calados. Lado
a lado, prosseguiram pelas calli desertas, os pés conduzindo-os em piloto automático para casa.
Quando dobraram na salizzada San Lio, Brunetti finalmente conseguiu falar, mas não para dizer algo de importante. “Deixei um bilhete para os meninos. Para o caso
de eles acordarem.”
Paola anuiu, mas ele estava evitando olhar para ela, e portanto não percebeu. “Não queria que Chiara se preocupasse”, ele disse, e ao notar que isto poderia parecer
uma tentativa de fazer com que a esposa se sentisse culpada, admitiu para si mesmo que não ligava muito se de fato passasse essa impressão.
“Eu esqueci”, disse Paola.
Pela travessa, chegaram logo ao campo San Bartolomeo, onde o sorriso alegre da estátua de Goldoni aparentava estar completamente fora de lugar. Brunetti deu uma
espiada no relógio. Veneziano, sabia que tinha de acrescentar uma hora: quase cinco da manhã, não era cedo o bastante para se dar ao trabalho de voltar para a cama,
e, no entanto, o que fazer para passar o tempo dali até a hora de sair de fato para o trabalho? Olhou à sua esquerda, mas nenhum dos bares estava aberto. Só o que
queria era um café; sobretudo, ele precisava desesperadamente da distração que um café traria.
Do outro lado do Rialto, viraram à esquerda, depois à direita, para a travessa que se estendia ao longo da ruga degli Orefici. Na metade do caminho, um bar estava
acabando de abrir e, de comum e silencioso acordo, eles entraram. No caixa havia uma enorme pilha de brioches frescos, ainda embrulhados no papel branco da pasticceria.
Brunetti pediu dois expressos, mas ignorou os pães. Paola nem sequer notou que eles estavam ali.
Quando o barman trouxe os cafés, Brunetti adoçou-os e deslizou o de Paola até ela pelo balcão. O barman foi até o caixa e começou a arrumar os brioches, um a um,
em um expositor de vidro.
“Bem?”, Brunetti perguntou.
Paola provou o café, acrescentou mais meia colher de açúcar, e disse: “Eu falei que ia fazê-lo.”
“Não foi essa a impressão que você me deu.”
“E que impressão eu te dei, então?”
“De que você estava apenas dizendo que era algo que todos deviam fazer.”
“Todos deviam fazer”, disse Paola, numa voz que já não trazia nenhum traço da revolta que acompanhara essas palavras na primeira vez em que as pronunciara.
“Eu não pensei que você estava falando sério.” Brunetti fez com a mão um gesto que encerrava não o bar, mas tudo o que havia acontecido até chegarem ali.
Paola pôs sua xícara no pires e o encarou pela primeira vez. “Guido, podemos conversar?”
Teve um impulso de dizer que era exatamente o que estavam fazendo, mas ele a conhecia o suficiente para entender o que ela queria dizer, então só balançou a cabeça.
“Eu te disse, há três noites, o que eles estavam fazendo.” E antes que ele pudesse interrompê-la, ela continuou. “E você disse que não havia nada de ilegal nisso,
que era o direito deles como agentes de viagem.”
Brunetti concordou com um gesto da cabeça, e quando o barman se aproximou, ele sinalizou que queria mais café. Enquanto o homem se dirigia de volta para a máquina,
Paola continuou. “Mas é errado. Você sabe disso; eu sei disso. É nojento promover excursões sexuais para que homens ricos - e não apenas eles - viajem até a Tailândia
ou às Filipinas e estuprem meninas de dez anos.” E antes que ele pudesse falar, ela o impediu levantando a mão. “Eu sei que agora isso é ilegal. Mas alguém foi preso?
Condenado? Você sabe tão bem quanto eu, tudo o que eles têm que fazer é alterar o texto dos anúncios para dar a impressão de ser um pacote como outro qualquer. ‘Hotéis
tolerantes. Acompanhantes amigáveis no local.’ Não me diga que você não sabe o significado disso. Pacotes como outros quaisquer, Guido. E é isso que me dá nojo.”
Brunetti continuou calado. O barman trouxe duas xícaras de café fresco e levou as usadas. A porta se abriu e dois homens corpulentos entraram no bar, trazendo um
cheiro de orvalho. O barman foi atendê-los.
“Aí eu te disse”, resumiu Paola, “que isso era errado e que eles deviam ser impedidos.”
“E você acha que pode impedi-los?”
“Sim”, ela respondeu, e antes que ele pudesse questioná-la ou contradizê-la, ela prosseguiu. “Não só eu, não aqui em Veneza, quebrando a vidraça de uma agência de
turismo no campo Manin. Mas se todas as mulheres na Itália saíssem à noite com pedras nas mãos e quebrassem as vitrines de toda agência de turismo que ofereça pacotes
de turismo sexual, então, em muito pouco tempo não haveria mais pacotes de turismo sexual sendo oferecidos na Itália, não é?”
“É uma pergunta retórica ou é pra valer?”
“Acho que é pra valer”, ela disse. Desta vez, foi ela quem pôs açúcar nos cafés.
Brunetti bebericou seu café antes de dizer algo. “Você não pode sair por aí quebrando vitrines de escritórios ou lojas que fazem coisas que você não quer que eles
façam ou que vendam coisas que você não acha que eles devam vender.” E, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele perguntou: “Lembra quando a Igreja tentou
proibir a venda de anticoncepcionais? Lembra como você reagiu? Você pode não se lembrar, mas eu me lembro, e foi do mesmo jeito: numa cruzada contra o que você tinha
decidido ser o mal. A diferença é que daquela vez você estava do outro lado, contra aqueles que estavam fazendo o que agora você acha que tem, você mesma, o direito
de fazer: impedir as pessoas de fazer o que você julga ser errado. O direito não, a obrigação”. Ele percebeu que começava a se entregar à raiva que vinha crescendo
nele desde que tinha se levantado, que o tinha acompanhado pelas ruas e que agora se encontrava a seu lado, neste pacato bar matinal.
“É sempre a mesma coisa. Você decide, sozinha e sem ouvir outras pessoas, que algo é errado, então se coloca num pedestal, pensando ser a única que pode pôr um fim
a nisso, a única que consegue enxergar a verdade absoluta.”
Achou que ela iria dizer alguma coisa, mas como ela não disse nada, continuou, implacável. “Este é o exemplo perfeito. Você está em busca do quê? Sua fotografia
na primeira página do Gazzettino como a grande defensora das criancinhas?” Em um ato consciente de vontade própria conseguiu se impedir de prosseguir. Pôs a mão
no bolso, foi até o barman e pagou os cafés. Em seguida, abriu a porta do bar e segurou-a enquanto ela saía.
Do lado de fora, ela virou à esquerda, deu alguns passos, parou e esperou que ele a alcançasse. “É assim mesmo que você encara tudo? Você acha que tudo o que eu
quero com isso é atenção, que eu quero que as pessoas me vejam como alguém importante?”
Ele passou por ela, ignorando a pergunta.
Às suas costas, ele ouviu a voz dela, que era alta pela primeira vez. “É isso, Guido?”
Ele parou e voltou-se para encará-la. Um homem vinha vindo atrás dela, empurrando um carrinho coberto com pilhas de jornais e revistas empacotados. Brunetti esperou
que o homem passasse e respondeu: “Sim, em parte”.
“E que parte?”, ela devolveu.
“Não sei. Não dá pra separar uma coisa da outra.”
“E você acha que é esse o motivo pelo qual estou fazendo isso?”
Exasperado, ele respondeu sem pensar: “Por que é que tudo se torna uma causa para você, Paola? Por que é que tudo o que você faz, ou lê ou diz - ou mesmo veste e
come, pelo amor de Deus! -, por que é que tudo tem que estar tão repleto de significado?”.
Ela ficou olhando pra ele por um tempo, sem dizer nada, então abaixou a cabeça e se afastou dele, a caminho de casa.
Ele a alcançou. “E o que é que isso quer dizer?”
“Isso o quê?”
“Esse olhar.”
Ela parou novamente e o encarou. “Às vezes eu me pergunto pra onde foi o homem com quem eu me casei.”
“E o que isso quer dizer?”
“Quer dizer, Guido, que quando nos casamos você acreditava em todas essas coisas que agora ironiza.” Antes que ele pudesse perguntar que coisas eram essas, ela respondeu.
“Coisas como justiça e o que é certo, e como decidir fazer o que é certo.”
“Eu ainda acredito nessas coisas.”, ele insistiu.
“Agora você acredita na lei, Guido”, ela disse, mas agora calmamente, como se estivesse falando com uma criança.
“É exatamente disso que eu estou falando”, ele disse, elevando a voz, sem ligar para as pessoas que passavam apressadas por eles em número cada vez maior, já que
a hora de partida das primeiras barcas estava chegando. “Você me faz parecer estúpido ou corrupto. Eu sou um policial, pelo amor de Deus. O que você acha que me
resta a fazer senão obedecer à lei? E fazer com que ela seja cumprida?” Sentiu uma onda quente de raiva por todo o corpo ao perceber, ou achar que percebera, como
ela havia desvirtuado e desprezado por anos o que ele fazia.
“Então por que você mentiu para o Ruberti?”
A raiva dele só fez aumentar. “Eu não menti.”
“Você disse a ele que tinha havido algum engano, que ele não tinha entendido o que eu quis dizer. Mas ele sabe, assim como você, eu e o outro policial sabemos exatamente
o que eu quis dizer e o que eu fiz.” Como ele não respondeu, ela se aproximou. “Eu violei a lei, Guido. Eu quebrei a vitrine daquela loja e eu faria isso de novo.
E vou seguir quebrando as vitrines deles até que a sua lei, essa lei preciosa da qual você tanto se orgulha, até que sua lei faça algo - ou a mim ou a eles. Porque
eu não vou deixar que eles continuem com o que estão fazendo.”
Sem que pudesse se conter, suas mãos se anteciparam e a agarraram pelos ombros. Mas ele não a puxou até si. Em vez disso, aproximou-se dela, enlaçou-a com os braços
e com uma mão encostou o rosto dela ao seu pescoço. Depois beijou-a no topo da cabeça e mergulhou o rosto em seus cabelos. De repente, deu um passo para trás, a
mão espalmada sobre a boca.
“Que foi?”, ela perguntou, pela primeira vez amedrontada.
Brunetti recolheu a mão e viu que nela havia sangue. Depois levou um dedo até os lábios, e sentiu que havia algo duro, afiado.
“Não, deixa que eu faço”, disse Paola, colocando a mão direita em sua bochecha e aproximando o rosto do dele. Ela tirou a luva e tocou os lábios dele com dois dedos.
“O que é?”, ele perguntou.
“Um pedaço de vidro.”
Uma repentina fisgada de dor e ela o beijou no lábio inferior, delicadamente.
4
No caminho de casa, pararam em uma pasticceria e compraram uma grande porção de brioches, dizendo um ao outro que eram para os filhos, mas sabendo tratar-se de um
tipo de oferenda em homenagem a seu armistício, apesar da precariedade com que fora estabelecido. A primeira coisa que Brunetti fez ao entrar em casa foi retirar
o bilhete que havia deixado na mesa da cozinha e enfiá-lo bem fundo no saco de lixo que ficava embaixo da pia. Então, cruzou o corredor em silêncio, por causa dos
filhos que ainda dormiam, e foi até o banheiro, onde tomou um longo banho, na esperança de vaporizar os problemas que o haviam atingido de forma tão inesperada e
tão cedo nesta madrugada.
Quando voltou à cozinha, barbeado e trocado, Paola já tinha colocado o pijama e o roupão, uma coisa antiga de flanela xadrez que ela vinha usando há tanto tempo
que nenhum dos dois lembrava mais onde ela tinha arranjado. Ela estava sentada à mesa, lendo uma revista e mergulhando um brioche numa grande xícara de caffè latte,
como se tivesse acabado de despertar de uma longa e repousante noite de sono.
“Devo entrar, beijar sua bochecha e dizer ‘Buon giorno, cara, dormiu bem?’”, ele perguntou assim que a viu; não havia, no entanto, a menor ponta de sarcasmo em sua
voz ou em sua atitude. Procurava, pelo contrário, distanciá-los dos acontecimentos da noite, embora soubesse que isso seria quase impossível. Adiar, enfim, as consequências
inevitáveis das ações de Paola, ainda que tais consequências se resumissem a uma nova discussão entre eles, cada qual condenado a jamais aceitar a posição do outro.
Ela o olhou, pensou no que ele acabara de dizer e sorriu, dando a entender que também ficaria feliz em esperar. “Você almoça em casa hoje?”, ela perguntou, levantando-se
para ir até o fogão servir-se de café em uma xícara grande. Acrescentou leite quente e posicionou a xícara na parte da mesa em que ele costumava se sentar.
Ao sentar-se, Brunetti pensou em como era estranha a situação, e que ainda mais estranho era o fato de os dois a terem aceitado tão prontamente. Ele lera algo sobre
a espontânea trégua natalina que havia irrompido nas trincheiras do fronte oriental durante a Primeira Guerra Mundial; alemães cruzando a fronteira para acender
os cigarros que tinham acabado de dar aos soldados Tommies [soldados britânicos], que acenavam e sorriam para os hunos. Uma chuva de bombardeios pusera um fim àquilo:
Brunetti não conseguia vislumbrar nenhuma possibilidade mais luminosa de uma trégua prolongada com a esposa. Mas ele a aproveitaria enquanto pudesse, de modo que
adoçou seu café, pegou um brioche e respondeu: “Não, tenho que ir a Treviso interrogar uma das testemunhas do assalto ao banco no campo San Luca na semana passada”.
Por ser algo tão incomum em Veneza, aquele assalto ao banco lhes deu a deixa para mudarem de assunto, e Brunetti contou a Paola - ainda que todos na cidade houvessem
certamente lido sobre o assunto nos jornais - o pouco que se sabia: três dias antes, um jovem armado havia entrado naquele banco, exigido dinheiro, saído de lá com
o dinheiro em uma mão e a pistola na outra e desaparecido tranquilamente em direção a Rialto. A câmera oculta no teto do banco fornecera apenas uma imagem imprecisa
que, no entanto, permitira à polícia fazer uma primeira identificação do irmão de um homem da região de quem se dizia ter sérias ligações com a Máfia. Ao entrar
no banco, o assaltante tinha enrolado um cachecol sobre o nariz e a boca, que tirou quando saiu, de forma que um homem que entrava naquele momento viu seu rosto
com clareza.
A testemunha, um pizzaiolo de Treviso que tinha ido ao banco para pagar uma parcela de uma hipoteca, tinha dado uma boa olhada no assaltante e Brunetti esperava
que ele pudesse apontá-lo dentre as fotos de suspeitos que a polícia tinha reunido, o que bastaria para ordenar uma prisão e talvez fosse suficiente para conseguir
uma condenação. Era por isso que Brunetti ia para lá nesta manhã.
Dos fundos do apartamento, eles ouviram o som de uma porta se abrindo e o inconfundível andar pesado de Raffi, bêbado de sono, a caminho do banheiro e, assim esperavam,
da consciência.
Brunetti pegou outro brioche, surpreso com a própria fome a esta hora, ele que não tinha muita paciência ou simpatia por esse rito do café da manhã. Enquanto esperavam
novos sons de vida dos fundos do apartamento, mantinham-se muito ocupados com seus cafés e brioches.
Estava terminando quando outra porta se abriu. Pouco depois, Chiara veio cambaleando pelo corredor até a cozinha, esfregando os olhos com uma das mãos, como se eles
precisassem de ajuda para se abrir. Muda, ela se arrastou descalça cozinha adentro e se jogou no colo de Brunetti, enlaçando-o com um braço e repousando a cabeça
em seu ombro.
Brunetti abraçou-a e beijou sua cabeça. “É assim que você vai para a escola hoje?”, ele perguntou em um tom perfeitamente normal, observando a estampa do pijama
da filha. “Legal. Aposto que seus colegas vão gostar do visual. Balões. De muito bom gosto, os balões. Chique, eu diria. Um estilo de fazer inveja a qualquer criança
de doze anos.”
Paola baixou a cabeça e voltou a se concentrar na revista.
Chiara se remexeu no colo do pai, afastando-se dele para examinar o próprio pijama. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, Raffi entrou na cozinha, abaixou-se para
beijar a mãe e foi até o fogão servir-se de um pouco de café com leite. Voltando à mesa, sentou-se e disse: “Espero que o senhor não se incomode por eu ter usado
sua gilete, papà.”
“E pra fazer o quê?”, Chiara perguntou. “Cortar as unhas? Porque com certeza não tem nada crescendo nesse seu rosto que precise de uma gilete.” Dito isso, ela foi
pra longe de Raffi, aproximando-se de Brunetti, que lhe deu um apertão reprovador por sobre a grossa flanela do pijama.
Raffi tentou alcançá-la por cima da mesa, mas sem muita convicção, pois no meio do caminho sua mão se deteve sobre a pilha de brioches. Apanhou um deles, mergulhou
na xícara e deu-lhe uma bela mordida. “E de onde vieram estes brioches?”, ele quis saber. Como ninguém respondeu, ele virou para Brunetti e perguntou: “Você já saiu?”.
Brunetti assentiu, desvencilhou-se de Chiara, escorregando por baixo dela, e se levantou.
“E também trouxe os jornais?”, Raffi perguntou, a boca cheia de brioche.
“Não”, disse Brunetti, caminhando em direção à porta.
“Mas como não?”
“Eu esqueci”, ele mentiu para seu único filho. Foi até o corredor, vestiu o paletó e saiu do apartamento.
Ao sair, tomou a direção de Rialto, no trajeto de décadas que levava à questura. Na maioria das manhãs, ele se alegrava com algum elemento insignificante durante
a caminhada: uma manchete particularmente absurda em um dos jornais de circulação nacional, algum novo erro de grafia nas estampas das blusas de moletom baratas
que abarrotavam as barracas nos dois lados do mercado, a primeira remessa de alguma fruta ou vegetal pelos quais todos estavam esperando. Mas nesta manhã ele viu
pouco e nada percebeu enquanto passava pelo mercado e atravessava a ponte em direção às ruas estreitas que o levariam à questura e ao trabalho.
Durante grande parte do tempo que levou para caminhar até seu gabinete, ele esteve pensando em Ruberti e Bellini, refletindo se a lealdade pessoal de ambos a um
superior que os havia tratado com certo grau de humanidade seria para eles motivo suficiente para trair seu juramento de lealdade ao Estado. Brunetti concluiu que
sim, mas, ao perceber como isso estava suspeitadamente próximo da escala de valores que incitara o comportamento de Paola, ele se obrigou a deixar esses pensamentos
de lado e, em vez disso, passou a se concentrar na tribulação mais imediata do dia: a nona das “convocations du personnel ” que seu supervisor imediato, o vice-questore
Giuseppe Patta, havia implantado na questura após o recente curso de treinamento de que participara no quartel-general da Interpol em Lyon.
Em Lyon, Patta entrara em contato com os elementos das várias nações que agora compunham a Europa unificada: champanhe e trufas franceses, presunto holandês, cerveja
inglesa e alguns conhaques espanhóis bem envelhecidos. Simultaneamente, teve o exemplo dos vários estilos gerenciais empregados pelos burocratas de diferentes nações.
Terminado o curso, voltou à Itália, a bagagem repleta de salmão defumado e manteiga irlandesa e a cabeça fervilhando com novas e avançadas ideias de como tratar
as pessoas que trabalhavam para ele. A primeira delas, e até o momento a única a ter sido revelada aos membros da questura, consistia nas semanais “convocations
du personnel ”, reuniões intermináveis, nas quais questões de uma trivialidade acachapante eram apresentadas a toda a equipe para serem então discutidas, dissecadas
e finalmente desconsideradas por todos os presentes.
Quando as reuniões começaram, havia dois meses, Brunetti achou, como os demais, que aquilo não duraria mais que uma ou duas semanas; no entanto, ali estavam eles,
depois de oito delas, e sem saber quando isso teria fim. A partir da segunda vez, Brunetti começou a trazer seu jornal, mas foi logo dissuadido pelo tenente Scarpa,
o assistente pessoal de Patta, que perguntou repetidas vezes se ele estava tão pouco interessado em saber o que acontecia na cidade para ter de ler o jornal durante
as reuniões. Então ele tentou um livro, mas nunca conseguiu encontrar um pequeno o suficiente para esconder na concha das mãos.
Sua salvação viera, como sempre acontecia de uns anos para cá, da signorina Elettra. Na manhã da quinta reunião ela chegou ao seu gabinete dez minutos antes de começar
o expediente e pediu a Brunetti dez mil liras, sem dar nenhuma explicação.
Ele deu o dinheiro e, em troca, ela devolveu vinte moedas de quinhentas liras. Em resposta a seu ar interrogativo, ela lhe entregou um pequeno cartão, pouco maior
que uma caixinha de CD.
Ele olhou para o cartão, notando que era dividido em vinte e cinco quadrados, cada qual contendo palavras ou frases impressas em letras bem pequenas. Teve de aproximá-lo
bem dos olhos para poder ler algumas delas: “maximizar”, “priorizar”, “recursos”, “parceria”, “interface”, “meta” e uma sucessão dos mais recentes e vazios termos
empresariais que haviam sido incorporados ao vocabulário corrente de uns anos pra cá.
“O que é isso?”, ele perguntou.
“Bingo”, foi a resposta curta da signorina, e antes que ele pudesse perguntar, ela explicou. “Minha mãe costumava jogar. Basta esperar que alguém use uma das palavras
do seu cartão - todos os cartões são diferentes. Ao ouvir a palavra, é só cobri-la com uma moeda. Ganha quem completar primeiro cinco palavras em uma linha reta.”
“E ganha o quê?”
“O dinheiro dos outros jogadores.”
“Que outros jogadores?”
“O senhor vai ver”, e foi tudo o que ela teve tempo de dizer antes que fossem chamados para a reunião.
Daquele dia em diante, as reuniões tornaram-se mais suportáveis, pelo menos para os que tinham os pequenos cartões. No primeiro dia, apenas Brunetti, a signorina
Elettra e um dos outros commissari, uma mulher que tinha acabado de voltar da licença-maternidade. Desde então, contudo, os cartões começaram a aparecer no colo
ou no notebook de um número cada vez maior de pessoas, e a cada semana Brunetti ficava mais interessado em saber quem tinha um cartão do que em ganhar de fato o
jogo. E, a cada semana, também as palavras mudavam, normalmente para acompanhar as alterações no padrão ou no entusiasmo do discurso de Patta: com frequência elas
refletiam os esforços do vice-questore de urbanidade e “multiculturalismo” - palavra essa que também se fizera presente -, assim como seu empenho ocasional de empregar
o vocabulário de idiomas que ele não falava, o que levava a coisas como: voodoo economics, pyramid scheme e Wirtschaftlicher Aufschwung.
Brunetti chegou à questura meia hora antes da hora marcada para o começo da reunião. Ruberti e Bellini já tinham terminado o plantão quando ele chegou, e foi outro
policial que lhe entregou o registro dos crimes da noite anterior quando ele pediu para vê-lo. Folheou as páginas com uma pronunciada expressão de enfado: um assalto
no Dorsoduro, na casa de pessoas que haviam saído de férias; uma briga num bar em Santa Marta, entre os marinheiros de um cargueiro turco e dois comissários de bordo
de um cruzeiro grego. Três homens foram levados ao pronto soccorso do Hospital Giustinian, um deles com o braço quebrado, mas nenhuma queixa fora prestada, já que
as duas embarcações iriam zarpar naquela tarde. A vitrine de uma agência de viagens no campo Manin tinha sido quebrada por uma pedra, mas ninguém fora preso e não
havia nenhuma testemunha. Por fim, uma máquina 24 horas que vendia remédios em uma farmácia no Cannaregio tinha sido arrombada, provavelmente com uma furadeira,
o que, segundo os cálculos do dono da farmácia, causara um prejuízo de dezessete mil liras e dezesseis caixas de remédios.
Quando finalmente ocorreu, a reunião não trouxe surpresa alguma. No começo da segunda hora, o vice-questore Patta informou que, para garantir que não estivessem
sendo usadas para lavagem de dinheiro, as diversas organizações sem fins lucrativos da cidade seriam intimadas a permitir que seus arquivos fossem “accessed” pelos
computadores da polícia, e foi então que a signorina Elettra fez um pequeno gesto com a mão direita, olhou para Vianello à sua frente, sorriu e, bem baixinho, disse:
“Bingo”.
“Perdão, signorina?” O vice-questore Patta já vinha desconfiando fazia algum tempo de que algo estava acontecendo, mas não sabia o que poderia ser.
Ela olhou para ele, sorriu novamente, e disse: “Dingo, senhor”.
“Dingo?”, ele indagou, encarando-a por cima dos óculos de meia lente que ele usava nessas reuniões.
“O pessoal da proteção aos animais, senhor, aqueles que instalam depósitos nas lojas onde recolhem doações para cuidar dos vira-latas. É uma organização sem fins
lucrativos. Acho que devíamos entrar em contato com eles também.”
“Mesmo?”, Patta perguntou, sem saber ao certo se fora isso mesmo o que tinha escutado, ou se era isso que esperava ouvir.
“Eu não queria que ninguém os esquecesse”, ela explicou.
Patta voltou a se concentrar nos papéis à sua frente e a reunião continuou. Brunetti, com o queixo apoiado nas mãos, verificou que outras seis pessoas empilhavam
moedas à frente delas. O tenente Scarpa as observava atentamente, mas os cartões, previamente protegidos por mãos, notebooks e xícaras de café, haviam todos desaparecido.
Restaram apenas as moedas - e a reunião, que se arrastou exaustivamente por outra meia hora.
Quando uma insurreição já se anunciava - e a maioria das pessoas ali portava armas -, Patta tirou os óculos, colocou-os bem devagarinho sobre os papéis à sua frente
e perguntou: “Alguém quer dizer mais alguma coisa?”.
Se alguém tinha algo a dizer não o fez, por certo dissuadido pela imagem de todas aquelas armas juntas, e então a reunião acabou. Patta saiu, seguido por Scarpa.
Pequenas pilhas de moedas foram empurradas dos dois lados da mesa, até que ficassem à frente ou bem ao lado da signorina Elettra. Com a elegância de um crupiê, ela
as deslizou pela borda da mesa até a mão em concha e se levantou, indicando que a reunião estava realmente encerrada.
Brunetti subiu as escadas ao lado dela, estranhamente animado pelo som das moedas tilintando no bolso da blusa de seda cinza que ela vestia. “‘Accessed?’”, ele repetiu,
usando a palavra em inglês, mas desta vez fazendo-a soar de fato como uma palavra inglesa.
“É jargão de computador, senhor.”
“‘To access’? É um verbo, agora?”
“Sim, senhor, creio que sim.”
“Mas não costumava ser”, disse Brunetti, lembrando dos tempos em que a palavra era apenas um substantivo.
“Creio que os americanos podem fazer isso com as palavras deles, senhor.”
“Transformá-las em verbos? Ou em substantivos? Só porque querem?”
“Sim, senhor.”
“Ah”, suspirou Brunetti.
No topo do primeiro lance de escadas, ele se despediu com um aceno, e ela seguiu para o seu pequeno gabinete, na fachada do prédio, bem ao lado do de Patta.
Brunetti subiu até o seu gabinete, refletindo sobre as liberdades que certas pessoas julgam poder tomar em relação à linguagem. Semelhantes às liberdades que Paola
achava que podia tomar em relação à lei.
Brunetti entrou no seu gabinete e fechou a porta. Ao tentar ler os documentos sobre a mesa, percebeu que qualquer leitura conduziria seus pensamentos de volta a
Paola e aos eventos daquela manhã. Enquanto não pudessem falar sobre aquilo, não haveria solução e eles não conseguiriam deixar tudo pra trás, mas a lembrança do
que ela tivera a ousadia de fazer o deixava em um estado de fúria tão exasperante que ele sabia que ainda não estava pronto para discutir o assunto com ela.
Olhou pela janela, sem fixar-se em nada, tentando identificar o verdadeiro motivo de sua raiva. Se ele não tivesse conseguido acobertá-la, o que ela fez teria posto
em risco seu emprego e sua carreira. Não fosse pela presença e pela cumplicidade silenciosas de Ruberti e Bellini, os jornais não teriam demorado para fazer a cobertura
da história. E havia muitos jornalistas - alguns dos quais Brunetti se ocupou em listar mentalmente por alguns minutos - que se deleitariam em contar a história
da esposa criminosa do commissario. Reelaborou a frase, transformando-a em uma manchete, com letras garrafais.
Mas, pelo menos por enquanto, ela havia sido contida. Ele se lembrou do momento em que a tomou em seus braços, sentindo novamente a irradiação de medo irracional
que a percorrera. Talvez essa exposição dela à violência real, mesmo tratando-se apenas de violência contra a propriedade, acabasse sendo um gesto suficiente contra
a injustiça. E talvez ela tivesse tempo para concluir que a carreira de Brunetti poderia ser prejudicada pelos seus atos. Olhando para o relógio, percebeu que já
era hora de ir até a estação pegar o trem para Treviso. A perspectiva de poder se ocupar de algo tão objetivo como um assalto a banco encheu Brunetti de uma sensação
de contentamento e alívio.
5
No final da tarde, Brunetti voltava frustrado de Treviso, apesar de a testemunha ter identificado uma foto do homem que a polícia julgava ser o que aparecia no vídeo
e se prontificado a testemunhar em juízo contra ele. Brunetti sentiu-se na obrigação de explicar à testemunha quem era o suspeito e os possíveis perigos de identificá-lo
e de testemunhar contra ele. Para sua surpresa, porém, o signor Iacovantuono, que era cozinheiro em uma pizzeria, não se preocupou com o perigo, e não pareceu ficar
sequer interessado em tal questão. Ele tinha presenciado um crime sendo cometido. Identificou as fotos do homem que estava sendo acusado por isso. Assim, considerava
seu dever de cidadão testemunhar contra o criminoso, apesar do risco que isso representava para si ou para sua família. Embora não tivesse se intimidado, ele pareceu
confuso com as insistentes garantias de Brunetti de que teriam proteção policial.
O intrigante era que o signor Iacovantuono vinha de Salerno, sendo, portanto, um daqueles sulistas predispostos à criminalidade, cuja presença ali no norte era tida
como a responsável pela destruição do tecido social da nação. “Mas, commissario”, ele insistiu em seu sotaque carregado, “se não fizermos algo a respeito dessa gente,
que futuro terão nossos filhos?”
Brunetti não conseguia se libertar do eco dessas palavras e passou a temer que seus dias fossem agora assombrados pelos uivos dos cães guardiões da moral que tinham
sido libertados em sua consciência pelo comportamento de Paola na noite anterior. Parecia ser tão simples para o pizzaiolo moreno de Salerno: o mal fora cometido;
era seu dever agir para que esse ato fosse punido. Mesmo tendo sido alertado para os possíveis riscos, ele permaneceu inflexível em sua vontade de fazer o que pensava
ser o certo.
Enquanto os campos adormecidos dos arredores de Veneza passavam pela janela do trem, Brunetti se perguntava por que algo que parecia tão simples para o signor Iacovantuono
era tão complicado para ele mesmo. Talvez o fato de que fosse ilegal roubar bancos tornasse a coisa mais fácil. Afinal, a sociedade estava de acordo quanto a isso.
Mas não havia nenhuma lei que dissesse que era errado vender uma passagem para a Tailândia ou para as Filipinas; nem que era ilegal comprar uma dessas passagens.
E, além disso, a lei também não se preocupava com o que o viajante decidiria fazer quando lá chegasse, pelo menos nenhuma das leis que até então tinham vigorado
na Itália. À semelhança das leis contra a blasfêmia, elas habitavam uma espécie de limbo judicial, e sua existência ainda não fora atestada por nenhuma prova real.
Nos últimos meses, antes até, apareceram alguns artigos em jornais e revistas de circulação nacional em que diversos especialistas analisavam o tráfico internacional
para o turismo sexual; abordagens e estatísticas, psicológicas, sociológicas - e de todas aquelas formas que a imprensa adorava explorar um assunto polêmico. Brunetti
lembrava de algumas daquelas matérias, até mesmo da foto de garotas pré-púberes trabalhando em um bordel no Camboja: seus seios em botão afrontando-o; seus rostos
pequeninos mascarados por algum recurso digital.
Ele havia lido os relatórios da Interpol sobre o assunto, tomando ciência de como as estimativas sobre os números dos envolvidos, tanto de clientes quanto de - e
para ele não havia outra palavra - vítimas, chegavam quase à casa do meio milhão. Ao ler as estatísticas, preferiu acreditar nos menores números informados: sua
humanidade seria aviltada se considerasse os maiores.
O mais recente artigo - que havia saído na Panorama, talvez - foi o responsável pela indignação incendiária de Paola. Ele ouviu o primeiro sinal de alerta na voz
da esposa duas semanas antes, um “Bastardi ” gritado dos fundos do apartamento, um som que abalou a paz de uma tarde de domingo e, era o que Brunetti temia agora,
evoluiu para algo muito maior.
Na ocasião, ele nem precisou ir até o estúdio dela para ver o que tinha acontecido, pois ela irrompeu na sala, a revista enrolada na mão direita. E já foi dizendo,
sem preâmbulo: “Ouça isto, Guido”.
Paola tinha desenrolado a revista, apoiando-a em seu joelho e endireitando-se para lê-la. “‘Um pedófilo, como a própria palavra diz, é aquele que inegavelmente ama
as crianças’”. Ela parou por ali e o encarou do outro lado da sala.
“E os estupradores, eu presumo, são aqueles que amam as mulheres?”, perguntou Brunetti.
“Dá pra acreditar?” Paola perguntou, ignorando sua observação. “Uma das revistas mais populares do país - sabe lá Deus por quê - pode imprimir essa merda?” Ela voltou
a olhar para a página e acrescentou: “E o sujeito é professor de sociologia. Deus, será que essas pessoas não têm consciência? Quando é que alguém neste país desprezível
vai reconhecer que somos responsáveis por nosso comportamento, em vez de pôr a culpa na sociedade ou, pelo amor de Deus, na vítima?”.
Como essa era uma pergunta que Brunetti era incapaz de responder, ele nem tentou fazê-lo. Em vez disso, perguntou a ela o que mais dizia o artigo.
Então ela contou a ele, com uma fúria nem um pouquinho abrandada pela lucidez que a ação exigia. Como qualquer boa excursão, o artigo mencionava todos os lugares
agora famosos - Pnom Pen, Bangoc, Manila -, e depois trazia o foco para a Europa, recordando os mais recentes casos ocorridos na Bélgica e na Itália. Mas era o tratamento
dado ao tema que a havia enfurecido e, Brunetti tinha que admitir, tinha enojado a ele mesmo: a partir da espantosa premissa de que os pedófilos amam as crianças,
o sociólogo residente da revista punha-se a explicar como uma sociedade permissiva induzia os homens a fazerem essas coisas. Em parte, opinava esse sábio, isso se
devia à tremenda capacidade de sedução das crianças. A raiva impediu Paola de continuar a leitura.
“Turismo sexual”, Paola murmurou entre dentes tão cerrados que Brunetti podia ver os tendões de seu pescoço saltando da pele. “Deus, só de pensar que eles podem
fazer isto, que podem comprar um bilhete, se inscrever numa excursão e viajar para estuprar meninas de dez anos.” Ela jogou a revista atrás do sofá e voltou ao seu
estúdio. Foi naquela noite, após o jantar, que ela concebeu pela primeira vez a ideia de pôr um fim àquele comércio.
No começo, Brunetti pensou que ela estava brincando, mas agora, em retrospecto, ele achou que sua recusa em levá-la a sério pudesse ter acelerado as coisas e contribuído
para que ela desse o passo fatal da indignação à ação. Ele se lembrava de ter perguntado, em tom nostálgico e condescendente, se ela pretendia acabar sozinha com
o tráfico.
“Mas não é contra a lei?”
“O que é contra a lei?”
“Jogar pedras em vitrines, Paola.”
“E não é contra a lei estuprar meninas de dez anos?”
Brunetti encerrou a conversa ali e, em retrospecto, foi obrigado a admitir que o tinha feito porque não sabia como responder a ela. Não, parecia que em alguns lugares
do mundo não era contra a lei estuprar meninas de dez anos. Mas era proibido, aqui em Veneza, na Itália, jogar pedras em vidraças, e o seu trabalho era cuidar para
que as pessoas não o fizessem, ou, se o fizessem, que fossem presas por isso.
Reduzindo a velocidade, o trem entrou na estação. Muitos dos passageiros que desciam na plataforma carregavam cones de papel com flores, lembrando a Brunetti que
hoje era o primeiro dia de novembro, o dia dos mortos, em que a maioria dos cidadãos ia aos cemitérios deixar flores nos túmulos de seus entes queridos. Era um sinal
de sua desgraça que ele saudasse a lembrança de entes queridos como uma confortável distração. Não iria visitá-los; raramente o fazia.
Brunetti resolveu ir para casa, em vez de voltar para a questura. Alheio ao seu entorno, caminhou pela cidade, cego e surdo a seus encantos, passando e repassando
as conversas e altercações que tinham se seguido à primeira explosão de Paola.
Dentre suas muitas peculiaridades, ela era uma escovadora de dentes peripatética, que sempre caminhava pelo apartamento ou pelo quarto durante a atividade. Assim,
Brunetti não estranhou que ela estivesse, três noites atrás, em pé à porta do quarto, com a escova de dentes nas mãos, lhe dizendo, sem prelúdio algum, “Vou fazer
aquilo”.
Brunetti entendeu do que ela estava falando, mas, sem acreditar nela, não fez nada mais que encará-la e balançar a cabeça. E isso encerrara a questão, pelo menos
até que o telefonema de Ruberti interrompesse o seu sono e, agora, a sua paz.
Passou na pasticceria abaixo de sua casa e comprou um saco pequeno de fave, os bolinhos de amêndoas que só eram encontrados nesta época do ano. Chiara era louca
por eles. Pensando de relance no assunto, chegou à conclusão de que, no caso de Chiara, isso se aplicava virtualmente a qualquer coisa comestível, e foi essa lembrança
que libertou Brunetti da tensão que vinha experimentando desde a noite anterior.
No apartamento estava tudo calmo, o que não significava grande coisa no contexto atual. O casaco de Paola estava pendurado em um gancho atrás da porta, ao lado do
de Chiara, e seu cachecol vermelho de lã largado no chão. Brunetti apanhou-o e o jogou por cima do casaco, tirando em seguida o próprio paletó e pendurando-o à direita
do casaco de Chiara. Pareciam os três ursos, ele pensou: Mamma, papà e bebê.
Abriu o saco de papel, deixou cair algumas fave na palma da mão, jogou uma na boca, depois outra, e finalmente mais duas. De repente, num lampejo de memória, lembrou-se
de ter comprado alguma para Paola, há décadas, nos seus tempos de universidade, quando ainda estavam envoltos pela primeira chama do amor.
“Você não se cansa dessas pessoas que falam de Proust toda vez que comem um bolo ou um biscoito?”, ele perguntou, como se agraciado com alguma abertura direta para
a mente dela.
Uma voz às suas costas o assustou, quebrando seu devaneio. “Posso comer algumas, papà ?”
“Eu as trouxe pra você, meu anjo”, ele respondeu, enquanto abaixava e passava o saco de papel para Chiara.
“Você liga se eu comer só as de chocolate?”
Ele fez que não com a cabeça. “Sua mãe está no estúdio?”
“Você vai brigar com ela?”, ela perguntou, a mão sobre o saco de papel aberto.
“Por que você está dizendo isto?”
“Você sempre chama a mamma de ‘sua mãe’ quando vai brigar com ela.”
“É, acho que faço isso mesmo. Ela está lá?”
“Ahã. Vai ser uma briga das grandes?”
Brunetti deu de ombros. Ele não tinha a mínima ideia.
“É melhor eu comer o pacote inteiro, então. Caso seja.”
“E por quê?”
“Porque o jantar vai atrasar. Sempre atrasa.”
Ele estendeu a mão até o saco e pegou algumas fave, tomando o cuidado de deixar as de chocolate para a filha. “Então eu vou me esforçar para que não seja uma briga.”
“Que bom.”
Dando meia-volta, ela começou a caminhar pelo corredor que levava a seu quarto, carregando o saco consigo. Passados alguns minutos, Brunetti seguiu pelo mesmo caminho,
parando à porta do estúdio de Paola. Bateu na porta.
“Avanti ”, ela exclamou.
Ao entrar, encontrou-a como de costume ao voltar do trabalho, sentada à mesa, uma pilha de papéis à sua frente, os óculos bem baixos sobre o nariz enquanto lia.
Levantando os olhos na direção dele, Paola abriu um sorriso franco, tirou os óculos e perguntou: “Como foi em Treviso?”.
“Exatamente o contrário do que achei que seria. Do que poderia ser”, disse Brunetti, e avançou pelo estúdio até o seu lugar de costume, um sofá macio, de meia-idade,
que ficava encostado na parede à direita de Paola.
“Ele vai testemunhar?”
“Ele está louco para testemunhar. Identificou a foto na hora e virá amanhã para dar uma olhada no sujeito pessoalmente, mas eu diria que ele tem certeza.” Em resposta
à evidente surpresa de Paola, Brunetti acrescentou: “E ele é de Salerno”.
“E está realmente convicto?” Ela não tentou disfarçar seu espanto. Quando Brunetti assentiu, ela disse: “Me fale sobre ele”.
“É um homem baixo, na casa dos quarenta, que sustenta uma esposa e dois filhos trabalhando numa pizzeria em Treviso. Já mora aqui há vinte anos, mas vai lá para
o sul todo ano, de férias. Quando eles podem.”
“A esposa trabalha?”, Paola perguntou.
“Ela é faxineira numa escola primária.”
“E o que ele estava fazendo em um banco em Veneza?”
“Veio pagar a hipoteca do apartamento deles em Treviso. O banco que vendeu a hipoteca original foi comprado por um banco daqui, então ele tem de vir para cá uma
vez por ano para quitar as prestações. Se fosse fazer isto através do banco em Treviso, cobrariam dele uma taxa de duzentos mil liras, e é por isso que ele vem até
Veneza no seu dia de folga, para pagar a prestação.”
“E aí se viu no meio de um assalto?”
Brunetti assentiu.
Paola balançou a cabeça. “É impressionante que ele esteja ansioso para testemunhar. Você não disse que o homem que foi preso tem relações com a Máfia?”
“O irmão dele.” Brunetti guardou para si a certeza de que isso significava que ambos tinham.
“E esse homem de Treviso sabe disso?”
“Sim. Eu disse a ele.”
“E ainda assim ele está disposto?” Quando Brunetti assentiu de novo, Paola disse: “Então talvez ainda reste esperança para todos nós”.
Brunetti deu de ombros, sabendo que havia um quê de desonestidade, talvez bastante desonestidade, em omitir de Paola o que Iacovantuono tinha dito quanto à obrigação
de nos comportarmos com valentia em nome de nossos filhos. Afundou-se no sofá, jogou os pés para a frente e cruzou as pernas.
“E você? Já deu um basta nisso?”, ele perguntou, sabendo que ela entenderia.
“Acho que não, Guido”, ela disse, com uma voz que deixava transparecer hesitação e arrependimento.
“Por quê?”
“Porque quando noticiarem o que aconteceu, os jornais vão dizer que foi um ato gratuito de vandalismo, como quando alguém derruba uma lata de lixo ou rasga os assentos
de um trem.”
Brunetti, embora tentado, não disse nada, esperando que ela continuasse.
“Não foi aleatório, Guido, e não foi vandalismo.” Ela apoiou o rosto nas palmas das mãos e as deslizou até que cobrissem o topo de sua cabeça. Lá de baixo, sua voz
chegou até ele. “O público tem de entender por que isto foi feito, que essas pessoas estão fazendo algo que é ao mesmo tempo nojento e imoral, e que devem ser impedidas.”
“Você pensou nas consequências?”, Brunetti perguntou em voz baixa.
Ela o encarou. “Não teria como eu estar casada com um policial há vinte anos e não ter pensado nas consequências.”
“Para você?”
“Claro.”
“E para mim?”
“Sim.”
“E você não se arrepende nem um pouquinho?”
“Claro que sim. Eu não quero perder meu emprego ou prejudicar a sua carreira.”
“Mas...?”
“Eu sei que você deve achar que eu sou uma terrível exibicionista, Guido”, ela começou, prosseguindo antes que ele tivesse a chance de interrompê-la. “E é verdade,
mas só às vezes. Mas agora não, não mesmo. Eu não estou fazendo isto para aparecer nos jornais. Na verdade, posso dizer honestamente que tenho medo dos problemas
que isto poderá nos trazer. Mas eu não podia ter deixado de fazer o que fiz.” Ao notar que ele estava prestes a interrompê-la novamente, ela emendou: “O que eu estou
querendo dizer é que alguém tem de fazer isso, ou, para usar a voz passiva que você tanto detesta”, ela disse com um sorriso, “algo tem de ser feito”. Ainda sorrindo,
acrescentou: “Estou disposta a ouvir o que você tiver a dizer, mas não creio que eu possa fazer nada diferente do que optei por fazer”.
Brunetti mudou a posição dos pés, deixando o esquerdo por cima, e inclinou-se um pouco para a direita. “Os alemães mudaram a lei. Agora podem processar alemães por
coisas que eles fazem em outros países.”
“Eu sei. Eu li o artigo”, disse ela, afiada.
“E?”
“E um homem foi condenado a uns poucos anos de prisão. Como dizem os americanos, ‘Big fucking deal’, grande merda. Centenas de milhares de homens viajam todos os
anos para esses lugares. Colocar um deles na cadeia, em uma cadeia alemã bem iluminada, onde ele pode ver televisão e receber visitas semanais da esposa, não vai
dissuadir outros homens de irem à Tailândia fazer turismo sexual.”
“E o que você pretende fazer?”
“Se os aviões não partirem, se ninguém estiver disposto a correr o risco de organizar essas excursões, com quartos de hotel, refeições e guias para levá-los aos
bordéis, bem, desse modo serão menos deles partindo. Não é muito, eu sei, mas não deixa de ser alguma coisa.”
“Eles irão por conta própria.”
“Em menor número.”
“Alguns? Muitos?”
“Provavelmente.”
“Então, por que fazer isso?”
Ela balançou a cabeça, chateada. “Talvez tudo seja assim porque você é um homem”, ela disse.
Pela primeira vez desde que tinha entrado ali, Brunetti ficou com raiva. “E o que você quer dizer com isso?”
“Que homens e mulheres encaram essas coisas de modo diferente. Será sempre assim.”
“E por quê?” Seu tom de voz era baixo, mas ambos sabiam que a raiva havia invadido aquele quarto e se instalado entre eles.
“Porque, ainda que você tente imaginar o que isso significa, não irá além de um exercício da imaginação. É algo que não pode acontecer a você, Guido. Você é grande,
forte e, desde seus tempos de menino, está acostumado a vários tipos de violência: futebol, brincadeiras pesadas com outros garotos; e, no seu caso, também o treinamento
policial.”
Ela percebeu que Brunetti estava perdendo o interesse. Ele já tinha ouvido isso tudo antes e jamais acreditara nela. Paola achava que ele não queria acreditar, mas
não havia dito isso a ele. “Mas pra nós, mulheres, é diferente. Nós passamos a vida inteira com medo da violência, sempre pensando em como evitá-la. Mas mesmo assim,
todas nós sabemos que o que acontece a essas crianças no Camboja, na Tailândia ou nas Filipinas poderia muito bem ter acontecido conosco, pode muito bem vir a acontecer
conosco. É simples assim, Guido: você é grande, nós somos pequenas.”
Ele não respondeu, então ela continuou. “Guido, há anos que nós discutimos isso sem nunca chegar a um acordo. Não será agora que chegaremos.” Ela fez uma pequena
pausa, e perguntou: “Posso dizer mais duas coisas? Depois eu escuto o que você tem a dizer”.
Brunetti tentou impor a sua voz um tom afável, aberto e generoso; ele queria dizer “Claro”, mas o melhor que conseguiu foi um “Sim” atravessado.
“Veja o caso daquele artigo desprezível, o daquela revista. Trata-se de uma das maiores fontes de informação deste país, e naquele espaço um sociólogo - não sei
onde ele dá aula, mas certamente é numa boa universidade, o que faz com que seja considerado um especialista e as pessoas acreditem no que ele escreve - pode afirmar
que os pedófilos amam as crianças. E ele pode dizer o que diz porque é conveniente para os homens que todo mundo acredite nisto. E são os homens que mandam neste
país.
Ela se deteve por um momento, e então acrescentou: “E eu não sei se o que vou dizer agora tem a ver com o que nós estamos discutindo, mas eu acho que outra razão
para o abismo que nos separa quanto a isto - e não apenas eu e você, Guido, mas todos os homens e mulheres - é o receio de que a ideia do sexo como uma experiência
desagradável seja real para todas as mulheres e inconcebível para a maioria dos homens”. Ao ver que ele começava a ensaiar um protesto, Paola disse: “Guido, está
para nascer a mulher que pense por um momento sequer que os pedófilos amam as crianças. Eles as desejam e querem dominá-las, mas isso não tem nada a ver com amor”.
Ele manteve a cabeça baixa; ela percebeu sua postura ao observá-lo de onde estava. “Era esta a segunda coisa que eu queria dizer, meu querido Guido, que eu amo do
fundo do meu coração. Em geral, é assim que nós, mulheres, pensamos: amor não é desejo e dominação.” Ela parou e olhou para baixo, para a própria mão direita, arrancando
distraidamente um grande pedaço de cutícula do polegar esquerdo. “É tudo, eu acho. Fim do sermão.”
O silêncio entre eles se prolongou até que Brunetti o rompesse, mas com cautela.
“Você acredita que todos os homens pensam dessa maneira, ou somente alguns deles?”
“Apenas alguns, eu acho. Os bons, como você, que é um bom homem, esses não.” Mas antes que ele pudesse continuar, ela acrescentou: “Eles não pensam como nós, no
entanto, como as mulheres. Eu não creio que a ideia do amor como desejo, violência e exercício de poder - eu não creio que essa ideia seja tão estranha para eles
como é para nós”.
“Para todas as mulheres? Estranha para todas vocês?”
“Quem me dera. Não, não para todas nós.”
Ele a encarou. “Chegamos a alguma conclusão, então?”
“Não sei. Mas eu queria que você soubesse quanto isto é sério para mim.”
“E se eu pedir que você pare com isso, que você não faça mais nada?”
Paola fechou a boca apertando os lábios, um gesto que Brunetti observava há décadas. Ela balançou a cabeça sem dizer mais nada.
“Isso quer dizer que você não vai parar ou que você não quer que eu lhe pergunte se vai parar?”
“As duas coisas.”
“Eu vou perguntar, eu estou perguntando.” Mas, antes que ela pudesse responder, ele ergueu uma mão em sua direção e disse: “Não, Paola, não diga nada, pois já sei
o que você vai dizer e não quero escutar. Mas lembre-se, por favor, que eu te pedi para não fazer isso. Não por mim ou pela minha carreira, seja lá o que isso signifique,
mas porque eu acredito que o que você está fazendo e o que você pensa que deve ser feito é errado”.
“Eu sei”, disse Paola, e se levantou.
Antes que ela se afastasse da mesa, ele acrescentou: “E eu também te amo do fundo do meu coração. Sempre amarei”.
“Ah, isso é bom de ouvir, e saber.” E pelo tom de alívio em sua voz, ele sabia que ela arremataria a conversa com alguma observação jocosa e desdenhosa. E como sempre
em todos esses consideráveis anos de sua vida, ela não o desapontou. “Então acho que é seguro pôr as facas na mesa para o jantar.”
6
Na manhã seguinte, Brunetti não foi à questura pelo caminho de sempre, mas virou à direita depois de cruzar a ponte Rialto. O Rosa Salva, todos concordavam, era
um dos melhores bares da cidade; Brunetti apreciava especialmente seus bolinhos de ricota. Então deu uma passada lá para o café da manhã, trocou amabilidades com
alguns conhecidos e alguns acenos com aqueles que já vira antes.
Ao sair do bar, dirigiu-se à calle della Mandola em direção ao campo Sant Stefano, um caminho que o levaria eventualmente até a piazza San Marco. O primeiro campo
que ele atravessou no caminho foi o campo Manin, onde quatro operários estavam passando uma grande lâmina de vidro de um barco para um carrinho de madeira, a fim
de transportá-la até a agência de viagens em que seria instalada.
Brunetti se juntou aos outros espectadores que haviam se reunido para observar os homens empurrando a placa de vidro através do campo. Os operários tinham encaixado
toalhas entre o vidro e a armação de madeira que o mantinha reto. E, dois de cada lado, transportaram-no até o espaço vazio que o aguardava.
À medida que os homens atravessavam o campo, toda sorte de opiniões eram emitidas pelas pessoas às suas costas. “Foram os ciganos.” “Não, foi um antigo empregado
que voltou com uma arma.” “Ouvi dizer que foi o próprio dono, para receber o seguro.” “Que estupidez; foi um raio.” Tipicamente, cada um deles estava absolutamente
convencido de que a sua versão era a verdadeira, e não sentia nada além de desprezo ao considerar as outras possibilidades.
Quando o carrinho de madeira chegou a seu destino, Brunetti se afastou da pequena aglomeração e continuou o seu caminho.
Já na questura, deu uma passada no grande salão onde os policiais de uniforme trabalhavam e pediu para ver os prontuários dos crimes da noite anterior. Pouca coisa
havia acontecido, e nenhuma ocorrência lhe interessou minimamente. No andar de cima, passou a maior parte da manhã no que parecia ser um processo interminável: mover
os papéis sobre a mesa de um lado para o outro. O gerente do seu banco tinha dito, fazia alguns anos, que todas as cópias das transações bancárias, importantes ou
não, deveriam permanecer arquivadas por dez anos antes de serem destruídas.
Seus olhos abandonaram os papéis, assim como sua atenção, e ele se pôs a imaginar uma Itália totalmente afundada, à altura dos quadris de um homem, em papéis, relatórios,
fotocópias, cópias em carbono, minúsculas notas de bares, lojas e farmácias. E, nesse mar de papel, uma carta de Veneza ainda leva duas semanas para chegar a Roma.
Essa cadeia de pensamentos foi interrompida pela chegada do sargento Vianello, que veio lhe dizer que tinha conseguido marcar um encontro com um dos reles criminosos
que às vezes lhes passavam informações. O homem tinha dito a Vianello que tinha algo interessante para negociar, mas como o ladrão tinha medo de ser visto em companhia
de alguém da polícia, Brunetti tinha de encontrá-lo em um bar de Mestre, ou seja, ele tinha que pegar o trem para Mestre depois do almoço e então um ônibus para
chegar ao bar. Não era o tipo de lugar onde uma pessoa chega de táxi.
Acabou não dando em nada, como Brunetti suspeitara. Incentivado pelo que os jornais noticiavam sobre os milhões que o governo estaria pagando para os que traíssem
a Máfia e estivessem dispostos a testemunhar contra a organização, o jovem queria que Brunetti lhe adiantasse cinco milhões de liras. A ideia era absurda e a tarde
foi desperdiçada, mas ao menos aquilo o mantivera ativo até depois das quatro, quando voltou ao seu gabinete e encontrou um ansioso Vianello à sua espera.
“Que foi?”, Brunetti perguntou assim que viu a expressão no rosto de Vianello.
“Aquele homem de Treviso.”
“Iacovantuono?”
“Sim.”
“O que tem ele? Resolveu não vir mais?”
“A esposa dele foi assassinada.”
“Como?”
“Ela caiu nas escadas do apartamento deles e quebrou o pescoço.”
“Quantos anos ela tinha?”
“Trinta e cinco.”
“Alguma doença?”
“Nada.”
“Testemunhas?”
Vianello balançou a cabeça.
“Quem a encontrou?”
“Um vizinho. Um homem que voltava do almoço.”
“E ele viu alguém?”
Vianello balançou a cabeça novamente.
“Quando foi isso?”
“O homem disse que talvez ela ainda estivesse viva quando a encontrou, pouco antes da uma da tarde. Mas ele não tem certeza.”
“Ela chegou a dizer algo?”
“Ele ligou para o 113, mas quando a ambulância chegou ela já tinha morrido.”
“E eles conversaram com os vizinhos?”
“Quem?”, Vianello perguntou.
“A polícia de Treviso.”
“Não, eles ainda não conversaram com ninguém. E eu não acho que vão conversar.”
“E por que não, pelo amor de Deus?”
“Estão tratando o caso como um acidente.”
“Mas é óbvio que iria parecer um acidente”, Brunetti explodiu. E já que Vianello não disse nada, ele perguntou: “Alguém conversou com o marido?”.
“Ele estava no trabalho quando aconteceu.”
“Mas alguém chegou a conversar com ele?”
“Acho que não, senhor. Só para dizer a ele o que tinha acontecido.”
“Você pode pedir um carro para nós?”, perguntou Brunetti.
Vianello pegou o telefone, digitou um número e travou um rápido diálogo. Ao desligar, ele disse: “Haverá um carro esperando por nós na piazzale Roma às cinco e meia”.
“Preciso avisar a minha mulher”, disse Brunetti. Paola não estava em casa, então ele pediu a Chiara que dissesse a ela que ele precisara ir a Treviso e que provavelmente
chegaria tarde em casa.
Nas mais de duas décadas em que trabalhara como policial, Brunetti tinha desenvolvido um instinto que quase sempre se provara preciso e lhe permitia antecipar alguma
falha bem antes de se deparar com ela. Assim, antes mesmo de deixar a questura com Vianello, ele sabia que a viagem até Treviso estava fadada ao fracasso e que,
se havia alguma possibilidade de eles contarem com o testemunho de Iacovantuono, ela morrera com a sua esposa.
Já passava das sete quando chegaram lá, e só depois das oito conseguiram convencer Iacovantuono a falar com eles, e das dez quando enfim aceitaram sua recusa em
se envolver de qualquer outra forma com a polícia. A única coisa que deixou Brunetti tranquilo e satisfeito foi sua própria recusa em confrontar Iacovantuono com
a pergunta retórica sobre o que iria acontecer a todos os seus filhos caso ele não quisesse testemunhar. Era evidente, ao menos segundo a leitura que Brunetti fazia
dos acontecimentos, o que aconteceria com eles, nesse caso: ele e seus filhos permaneceriam vivos. Sentindo-se um grande tolo, deu ao pizzaiollo de olhos vermelhos
um de seus cartões antes que ele e Vianello voltassem ao carro.
O motorista estava de mau humor por ter ficado à toa por tanto tempo, então Brunetti sugeriu que os três fizessem uma parada para comer algo no caminho de volta,
embora soubesse que com isso chegaria em casa bem depois da meia-noite. O chofer os deixou na piazzale Roma pouco antes da uma da manhã, e, exausto, Brunetti resolveu
pegar um vaporetto em vez de voltar para casa a pé. Ele e Vianello jogaram conversa fora enquanto esperavam o barco e depois, dentro da cabine, ao cruzarem majestosamente
o mais belo canal do mundo.
Brunetti desceu em San Silvestro, cego ao encanto do luar. Só o que ele queria agora era encontrar sua esposa na cama e apagar da memória os olhos tristes e acusadores
de Iacovantuono. No apartamento, pendurou seu paletó e percorreu o corredor até o quarto. Nenhuma luz se acendeu nos quartos dos filhos, mas mesmo assim ele abriu
as portas e certificou-se de que os dois estavam dormindo.
Abriu silenciosamente a porta do quarto do casal, pretendendo se despir à luz que vinha do corredor para não incomodar a esposa. Mas sua delicadeza foi em vão: a
cama estava vazia. E ainda que nenhuma luz escapasse pela fresta da porta do estúdio dela, ele foi até lá para se assegurar de que estava vazio. No resto do apartamento
não havia mais nenhuma luz acesa, mas ainda assim ele foi até a sala, ainda esperançoso, mesmo sabendo como era vã a esperança de encontrá-la cochilando no sofá.
A única luz naquela parte da casa era o pisca-pisca vermelho da secretária eletrônica. Havia três mensagens. A primeira era o seu próprio telefonema, que ele fizera
de Treviso, por volta das dez, para avisar Paola que chegaria ainda mais tarde. A segunda não chegara a se completar, mas a terceira era da questura, como ele a
um só tempo sabia e temia que fosse. O oficial Pucetti pedia ao commissario que retornasse a ligação assim que pudesse.
E foi o que ele fez, ligando para o ramal da sala dos oficiais. Atenderam ao segundo toque.
“Pucetti, aqui quem fala é o commissario Brunetti. O que aconteceu?”
“Acho melhor o senhor vir até aqui, commissario.”
“O que foi, Pucetti?”, Brunetti repetiu, mas com a voz cansada, nem brusca nem imperativa.
“É a sua esposa, senhor.”
“O que foi que aconteceu?”
“Nós a prendemos, senhor.”
“Entendo. Será que você pode me dizer algo mais.?”
“Acho melhor o senhor vir até aqui, senhor.”
“Eu posso falar com ela?”, Brunetti perguntou.
“Claro”, respondeu Pucetti, e dava pra notar o alívio em sua voz.
Passado um momento, Paola atendeu: “Sim?”.
De repente, ele foi tomado por um acesso de raiva. Ela consegue ser presa e tudo o que faz é bancar a prima Donna. “Já estou indo até aí, Paola. Você fez aquilo
de novo?”
“Sim, eu fiz.” E nada mais.
Ele desligou o telefone, foi até a cozinha, deixou um bilhete e a luz acesa para as crianças. Foi até a questura, com o coração mais pesado que os pés.
Uma fina garoa começou a cair, mais uma liquefação do ar do que algo que pudesse se chamar de chuva. Num reflexo, ele levantou a gola enquanto caminhava.
Quinze minutos depois ele chegou à questura. Um policial com o semblante muito preocupado estava à porta, que abriu para ele com uma saudação tão firme que pareceu
descabida a uma hora daquelas. Brunetti acenou para o jovem, cujo nome ele não conseguia lembrar, mesmo sabendo que já o conhecia, e subiu até o primeiro andar.
Pucetti se levantou e prestou-lhe continência. Paola olhou para ele do lugar em que estava sentada, de frente para Pucetti, mas sem sorrir.
Brunetti sentou-se na cadeira ao lado de Paola e arrastou o boletim de ocorrência que estava voltado para o seu colega em sua direção. Leu-o lentamente.
“Você a encontrou lá, no campo Manin?”, perguntou Brunetti ao policial.
“Sim, senhor”, respondeu Pucetti, ainda de pé.
Brunetti fez menção de que o jovem se sentasse, e ele obedeceu com evidente timidez. “Tinha alguém com você?”
“Sim, senhor. Landi.”
Isso explica tudo, então, pensou Brunetti, devolvendo o papel à mesa. “E o que vocês fizeram?”
“Voltamos para cá, senhor, e pedimos a ela, à sua esposa, sua carta d’identità. Quando ela a entregou para nós e vimos de quem se tratava, Landi ligou para o tenente
Scarpa.”
Landi estava louco pra fazer isto, Brunetti sabia. “Por que os dois voltaram para cá? Por que um de vocês não permaneceu no local?”
“Um dos guardia di San Marco ouviu o alarme e veio ver o que estava acontecendo, e nós o deixamos lá até que o proprietário aparecesse.”
“Certo, certo”, disse Brunetti, e perguntou: “O tenente Scarpa passou por aqui?”
“Não, senhor. Ele e Landi conversaram, mas ele não nos deu nenhuma ordem, orientando apenas que procedêssemos como de costume.”
Brunetti quase disse que não havia um jeito costumeiro de prender a mulher de um commissario de polícia, mas preferiu apenas levantar e olhar para Paola, dirigindo-se
a ela pela primeira vez. “Acho que podemos ir agora, Paola.”
Ela não respondeu, mas levantou-se imediatamente.
“Vou levá-la pra casa, Pucetti. Voltaremos de manhã. Se o tenente Scarpa perguntar algo, informe-o disto, sim?”
“Claro, senhor”, Pucetti respondeu. Ainda tentou acrescentar alguma coisa, mas foi interrompido pela mão levantada de Brunetti.
“Tudo bem, Pucetti. Você não tinha escolha.” E, olhando para Paola, continuou: “Além do mais, isso ia acontecer, mais cedo ou mais tarde”. E esboçou um sorriso para
o subordinado.
Depois de descerem as escadas, encontraram o jovem policial de prontidão, que abriu a porta para eles. Brunetti deixou Paola passar à sua frente, acenou sem olhar
de fato para o jovem, e caminhou rumo à noite. O ar úmido os cercou, transformando instantaneamente sua respiração em pequeninas nuvens. Eles caminharam lado a lado:
a espada da discórdia era tão palpável entre eles quanto a sua respiração visível no ar.
7
Não trocaram nenhuma palavra no caminho de casa, tampouco dormiram no que restava da noite, salvo por estranhos retalhos de sonhos inquietos. Por vezes, enquanto
vagavam entre a vigília e momentos de ausência, seus corpos se tocavam, num contato que não trazia, porém, traço algum do conforto provido pela longa familiaridade.
Muito pelo contrário: o toque podia ter sido o de um estranho, e dos dois lados a reação foi se afastar. Cuidaram para que o movimento não fosse brusco, para não
responder com espanto e repulsa ao toque desse estranho que havia invadido seu leito nupcial. Talvez tivesse sido mais honesto deixar que o corpo desse voz à mente
e ao espírito, mas os dois conseguiram controlar esse impulso, reprimi-lo, inspirados por alguma noção de lealdade que tinha origem na recordação ou do amor que
os dois temiam ter sido prejudicado ou modificado de alguma maneira.
Brunetti se forçou a esperar pelas sete badaladas da San Polo, recusando-se a sair da cama antes disso. Mas elas mal haviam acabado de soar e ele já estava no banheiro,
onde permaneceu por um bocado de tempo embaixo do chuveiro, lavando-se da noite e da lembrança de Landi e Scarpa e do que o aguardava quando chegasse ao trabalho
naquela manhã.
Enquanto permanecia sob a água, pensou consigo que teria de dizer algo a Paola antes de sair, mas não tinha a mínima ideia do quê. Acabou decidindo que isso dependeria
de seu comportamento quando ele voltasse para o quarto, mas ao voltar ela já não estava lá. Ele a ouviu na cozinha, os sons familiares da água, do bule de café,
do arrastar da cadeira no chão. Enquanto ajeitava a gravata, dirigiu-se para lá e, observando-a sentar-se em seu lugar de sempre, notou que as duas xícaras grandes
estavam postas em seus lugares habituais à mesa. Terminou de dar o nó na gravata, inclinou-se e beijou-a no topo da cabeça.
“Por que você faz isso?”, ela perguntou, estendendo o braço direito para trás, abraçando as pernas dele e trazendo-o para junto de si.
Ele se inclinou em sua direção, mas não a tocou com as mãos. “Hábito, eu acho.”
“Hábito?”, ela perguntou, quase ofendida.
“O hábito de te amar.”
“Ah”, ela disse, mas o que quer que viesse em seguida foi interrompido pelo silvo do bule de café. Ela serviu o café, adicionando espuma de leite e açúcar às duas
xícaras. Ele não chegou a se sentar, bebendo de pé.
“O que vai acontecer?”, ela perguntou depois do primeiro gole.
“Como é o seu primeiro delito, acho que vai haver uma multa.”
“Só isso?”
“É o suficiente”, disse Brunetti.
“E quanto a você?”
“Isso vai depender de como os jornais tratarão o caso. Alguns jornalistas esperam há anos por uma oportunidade dessas.”
E antes que ele pudesse fazer uma lista das possíveis manchetes, ela disse, “Eu sei. Eu sei”, e ele decidiu poupá-los de tais detalhes.
“Mas também é possível que você seja transformada em uma heroína, a Rosa Luxemburgo da indústria do sexo.”
Os dois sorriram sem nenhum sarcasmo.
“Não é isso o que eu quero, Guido. Você sabe muito bem.” E sem deixar que ele perguntasse o que ela queria afinal, ela disse: “Só o que eu quero é que eles parem.
Eu quero que eles se sintam tão envergonhados pelo que estão fazendo que sejam obrigados a parar com isso”.
“Quem, os agentes de viagem?”
“Sim, eles”, ela disse, e voltou a concentrar-se em seu café por algum tempo. Então pousou a xícara, quase vazia, e disse: “Mas eu gostaria que todos eles sentissem
vergonha pelo que fazem”.
“Os homens que fazem turismo sexual?”
“Sim, todos eles.”
“Isso não vai acontecer, Paola, não importa o que você faça.”
“Eu sei.” Ela terminou o café e levantou-se para fazer um pouco mais.
“Não”, disse Brunetti. “Eu paro em algum bar no caminho e tomo.”
“É cedo.”
“Sempre tem um bar aberto.”
“Certo.”
De fato havia, e lá ele parou para mais um café, agarrando-se a ele como se quisesse adiar sua chegada à questura. Comprou o Gazzettino, embora soubesse que seria
impossível algo aparecer antes do dia seguinte. Mesmo assim, ele passou os olhos pela primeira página do primeiro caderno, depois pelo segundo, o das notícias locais,
mas não havia nada.
O oficial à porta da questura era outro, e como ainda não eram oito horas ele teve que destrancar a porta para Brunetti, e prestou-lhe continência enquanto ele entrava.
“O Vianello já chegou?”, perguntou Brunetti.
“Não, senhor, ainda não o vi.”
“Assim que ele chegar, diga a ele que eu quero que ele venha ao meu gabinete, está bem?”
“Sim, senhor”, disse ele, e prestou-lhe continência novamente.
Brunetti subiu as escadas dos fundos. Marinoni, a mulher que tinha acabado de voltar da licença-maternidade, cumprimentou-o nos degraus, mas disse apenas que tinha
ouvido falar sobre o homem em Treviso e que sentia muito.
No gabinete, ele pendurou o paletó, sentou à sua mesa e abriu o Gazzettino. Havia o de sempre: juízes investigando outros juízes, ex-ministros fazendo acusações
contra outros ex-ministros, levantes na capital da Albânia, o ministro da saúde solicitando a abertura de uma investigação sobre a fabricação ilegal de remédios
falsos para o Terceiro Mundo.
Passando para o caderno de cidades, ele encontrou, na terceira página, uma reportagem sobre a morte da signora Iacovantuono. “Casalinga muore cadendo per le scale”
(Esposa morre ao cair na escada). Certo.
Ele já sabia de tudo desde o dia anterior: ela caiu, foi encontrada pelo vizinho no pé da escada e declarada morta pelos paramédicos. O funeral seria no dia seguinte.
Ele tinha acabado de ler o artigo, quando Vianello bateu à sua porta e entrou. Brunetti apenas olhou para o seu rosto e perguntou: “O que estão dizendo?”.
“O Landi começou a falar no assunto conforme o pessoal ia chegando. Já o Ruberti e o Bellini, não disseram uma palavra. E os jornais ainda não ligaram.”
“Scarpa?”, Brunetti perguntou.
“Ainda não chegou.”
“O que o Landi está dizendo?”
“Que ele trouxe a sua esposa para cá na noite passada depois dela ter quebrado uma vidraça da agência de viagens no campo Manin, e que o senhor chegou e levou-a
para casa sem preencher a papelada. Ele está encarnando o advogado de porta de cadeia, dizendo que, tecnicamente, ela é uma fugitiva da justiça.”
Brunetti dobrou o jornal ao meio uma vez, depois outra. Lembrou-se de ter dito a Pucetti que traria sua esposa consigo pela manhã, mas nem por isso achava que sua
ausência fosse motivo bastante para transformá-la em uma fugitiva da justiça. “Entendi”, ele disse. Permaneceu em silêncio por bastante tempo, e finalmente perguntou:
“Quantos ficaram sabendo da primeira vez?”.
Vianello pensou um pouco antes de responder. “Oficialmente, ninguém sabe. Oficialmente, nada aconteceu.”
“Não foi isso o que eu perguntei.”
“Acho que ninguém que não devia saber ficou sabendo”, disse Vianello, obviamente relutando em fornecer maiores explicações.
Na dúvida entre agradecer ao sargento ou a Ruberti e Bellini, Brunetti resolveu mudar de assunto. “Alguma notícia da polícia de Treviso?”
“O senhor Iacovantuono foi até a delegacia de lá para dizer que não tinha muita certeza do reconhecimento que tinha feito na semana passada. Ele acha que se enganou.
Porque estava com muito medo. E agora ele diz ter certeza de que o assaltante era ruivo. Parece que ele lembrou disso há alguns dias, mas não tinha chegado a contar
à polícia.”
“Até sua mulher morrer?”
A princípio, Vianello não respondeu. Depois, perguntou: “O que o senhor faria?”.
“Se?”
“Se estivesse no lugar dele?”
“Acho que eu também me lembraria do cabelo ruivo.”
Vianello enfiou as mãos nos bolsos de seu paletó e anuiu. “Acho que todos faríamos o mesmo, não? Especialmente se tivéssemos uma família?”
O interfone de Brunetti tocou. “Pois não?”, ele disse ao atendê-lo. Escutou por um momento, em seguida desligou e levantou-se. “É o vice-questore. Ele quer falar
comigo.”
Vianello ergueu a manga do casaco e olhou para o relógio. “Nove e quinze. Acho que agora sabemos por onde andava o tenente Scarpa.”
Antes de sair do gabinete, Brunetti ajeitou o jornal com cuidado, deixando-o bem no meio da mesa. À porta da sala de Patta, a signorina Elettra estava sentada de
frente para o computador, embora a tela estivesse em branco. Ela ergueu os olhos quando Brunetti chegou, mordeu o lábio superior e franziu as sobrancelhas. Podia
ser uma manifestação de surpresa, mas podia ser também aquele tipo de encorajamento que os estudantes manifestam entre si quando um deles é chamado à sala do diretor.
Brunetti fechou os olhos por um momento e percebeu que cerrava os lábios. Não disse nada à secretária, e simplesmente bateu à porta, abrindo-a ao ouvir “Avanti ”
lá de dentro.
Brunetti esperava encontrar apenas o vice-questore em seu gabinete, portanto não conseguiu disfarçar sua surpresa ao deparar-se com quatro pessoas: Patta; tenente
Scarpa, sentado à esquerda do seu superior, o mesmo lugar que as pinturas reservam a Judas nas representações da Última Ceia, e dois homens, um beirando os sessenta,
o outro cerca de dez anos mais novo. Brunetti não teve tempo de estudá-los, a não ser para ter certa noção de que o mais velho estava de alguma forma no comando,
embora o mais jovem fosse mais compenetrado.
Patta começou sem rodeios. “Commissario Brunetti, este é o dottor Paolo Mitri.” Apontou para o mais velho com um discreto aceno de mão. “E este é o seu avvocato,
Giuliano Zambino. Estamos aqui para discutir com o senhor os eventos da noite passada.”
Havia uma quinta cadeira, um pouco à esquerda do advogado, mas ninguém sugeriu a Brunetti que se sentasse ali. Ele cumprimentou os dois homens com um aceno.
“Talvez o commissario queira se juntar a nós?”, sugeriu o dottor Mitri, indicando a cadeira vazia com a mão.
Patta assentiu e Brunetti sentou-se.
“Suponho que o senhor saiba por que está aqui”, disse Patta.
“Gostaria que me fosse dito de forma mais clara”, respondeu Brunetti.
Patta acenou para o seu tenente, que começou. “Na noite passada, por volta da meia-noite, recebi de um dos meus homens uma chamada informando que a vidraça da agência
de viagens no campo Manin, agência que pertence ao dottor Mitri,” ele completou, inclinando levemente a cabeça na direção do proprietário, “fora novamente destruída
por vândalos. Ele me disse que um suspeito tinha sido levado para a questura, e que o suspeito era a esposa do commissario Brunetti.”
“Isso é verdade?”, interrompeu Patta, dirigindo-se a Brunetti.
“Eu não tenho ideia do que o oficial Landi disse ao tenente na noite passada”, foi a resposta calma de Brunetti.
“Não foi isso o que eu quis dizer”, interrompeu Patta antes que o tenente pudesse dizer qualquer coisa. “Foi a sua esposa?”
“No prontuário que eu li na noite passada”, começou Brunetti, com voz ainda calma, “o oficial Landi informava seu nome e endereço, e dizia que ela admitiu ter quebrado
a janela.”
“E da outra vez?”, perguntou Scarpa.
Brunetti não se deu ao trabalho de perguntar a que outra vez o tenente se referia. “O que tem a outra vez?”
“Foi a sua esposa?”
“O senhor vai ter que perguntar a ela, tenente.”
“Vou perguntar. Pode ter certeza de que vou.”
O dottor Mitri deu uma tossida, abafando o som com a mão. “Talvez eu possa continuar daqui, Pippo”, ele disse a Patta. O vice-questore, sentindo-se aparentemente
honrado pelo tratamento íntimo, concordou balançando a cabeça.
Mitri voltou-se para Brunetti. “Commissario, acho que ajudaria bastante se pudéssemos chegar a um acordo sobre este assunto.” Brunetti virou na direção deles, mas
não disse nada. “Os prejuízos causados à agência foram consideráveis: trocar a primeira vidraça me custou quase quatro milhões de liras, e creio que vá custar o
mesmo desta vez. Isso sem contar os negócios perdidos enquanto a agência estava fechada, aguardando que a vidraça fosse trocada.”
Ele parou por um momento, como se estivesse aguardando que Brunetti falasse ou perguntasse algo, mas, como o commissario não disse nada, Mitri continuou. “Como ninguém
foi indiciado pelo primeiro crime, creio que minha seguradora vai cobrir o custo dessas perdas, e talvez até mesmo o dos negócios perdidos. Vai levar um bocado de
tempo para que eu receba esse dinheiro, claro, mas estou certo de que chegaremos a um acordo. Na verdade, eu até já falei com o meu corretor e ele me garantiu que
vai ser assim mesmo.”
Brunetti observava o homem enquanto ele falava, percebendo a confiança em sua voz. Tratava-se de um homem acostumado a receber total atenção das pessoas com quem
lidava; sua segurança e autopercepção emanavam em ondas que eram quase tangíveis. Sua aparência transmitia a mesma impressão: corte de cabelo mais curto do que ditava
a moda, um leve bronzeado, pele e unhas que por certo recebiam os cuidados de um especialista. Seus olhos eram castanho-claros, quase da cor do âmbar, e sua voz
era tão agradável que chegava a ser sedutora. Como ele estava sentado, Brunetti não soube precisar sua altura, mas ele parecia ser alto, com braços e pernas longos
como os de um corredor.
Durante todo esse tempo, o advogado permaneceu sentado em silêncio, atento, ouvindo o que dizia seu cliente.
“O senhor está me ouvindo, commissario ?”, Mitri perguntou, talvez infeliz ao perceber que Brunetti o avaliava. “Sim.”
“O segundo caso é e será diferente. Como sua esposa aparentemente admitiu ter quebrado a vidraça, parece mais que justo que ela pague por isso. E foi por isso que
eu pedi para falar com o senhor.”
“Sim?”, perguntou Brunetti.
“Achei que o senhor e eu poderíamos chegar a um acordo quanto a isto.”
“Acho que não estou entendendo”, disse Brunetti, imaginando até que ponto poderia pressionar aquele homem e o que aconteceria quando ele passasse dos limites.
“E o que foi que o senhor não entendeu, commissario ?”
“O motivo pelo qual o senhor me chamou para esta conversa.”
A voz de Mitri engrossou, mas permaneceu branda. “Eu quero resolver este assunto. De homem para homem.” Ele se voltou na direção de Patta. “Eu tenho o privilégio
da amizade do vice-questore, e preferiria não causar nenhum constrangimento à polícia por conta dessa questão.”
Era isso, pensou Brunetti, que explicava o silêncio da imprensa.
“Assim, julguei que poderíamos resolver isso tudo discretamente, evitando complicações desnecessárias.”
Brunetti se dirigiu a Scarpa. “Na noite passada, a minha esposa chegou a dizer algo ao Landi sobre os motivos de ela ter feito o que fez?”
Scarpa foi pego desprevenido pela pergunta, e trocou um rápido olhar com Mitri, que se adiantou ao tenente. “Estou certo de que isso não interessa agora. O que importa
é que ela admitiu o crime.” E, dirigindo-se a Patta: “Creio que o melhor para todos aqui é que entremos em acordo enquanto podemos. Tenho certeza de que você concorda,
Pippo”.
Patta se permitiu um cortante “Mas é claro”.
Mitri voltou a atenção para Brunetti. “Se o senhor estiver de acordo, então podemos prosseguir. Se não estiver, temo estar perdendo meu tempo.”
“Eu continuo sem saber com o que o senhor quer que eu concorde, dottor Mitri.”
“Eu quero que o senhor concorde com o seguinte: a sua esposa vai me pagar pelo dano à minha vidraça e pelos negócios que a agência tiver pedido por estar fechada
para reforma.”
“Isso eu não posso fazer”, disse Brunetti.
“E por que não?”, Mitri perguntou, com a paciência por um fio.
“O assunto não me diz respeito. Se o senhor quiser discutir a questão com a minha esposa, fique livre para fazê-lo. Mas eu não posso tomar nenhuma decisão por ela,
muito menos uma desse tipo.” Brunetti achou que o tom de sua voz soou tão razoável quanto o que tinha dito.
“Mas que tipo de homem é o senhor?”, perguntou Mitri, irado.
Brunetti voltou-se para Patta. “Há mais alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-lo, vice-questore ?” Patta pareceu surpreso demais para responder, ou com muita
raiva, então Brunetti levantou-se e deixou rapidamente o gabinete.
8
A resposta de Brunetti ao cenho franzido e aos lábios cerrados da signorina Elettra foi apenas um ligeiro e indefinido meneio da cabeça, sinalizando que lhe explicaria
tudo depois. Subiu os degraus de volta para o seu gabinete, pensando no significado do que acabara de acontecer.
Por certo, Mitri, que havia se vangloriado tanto de sua amizade com Patta, era influente o bastante para manter longe dos jornais uma história com potencial tão
explosivo. Era a história perfeita, continha tudo o que um repórter podia querer: sexo, violência, envolvimento da polícia. E, se conseguissem descobrir que o primeiro
ataque de Paola fora acobertado, ainda poderiam fornecer aos leitores manchetes mais saborosas - corrupção policial e abuso de poder.
Que editor renunciaria a uma oportunidade como aquela? Que jornal se negaria o prazer de publicar algo tão valioso? Para melhorar, Paola era filha do conte Orazio
Falier, um dos mais célebres e com certeza um dos mais ricos homens da cidade. Nenhum jornal recusaria notícias tão boas.
Isso significava que teria de haver uma compensação bem maior ao editor - ou editores - que deixassem o caso passar. Ou, ele acrescentou após refletir por um momento,
às autoridades que dessem um jeito de evitar que a história chegasse aos jornais. Havia ainda a possibilidade de a história ter sido censurada, abafada por razões
de Estado e, portanto, vetada à imprensa. Mitri não aparentava ser um homem tão poderoso, mas esse tipo de homem, Brunetti ponderou, mantinha sempre um perfil discreto.
Bastava pensar naquele político da velha guarda que estava sendo julgado por suas ligações com a Máfia, e que por décadas fora alvo do humor de cartum. Normalmente,
ninguém associaria tanto poder a um homem de aparência tão anódina, e no entanto Brunetti não tinha a menor dúvida de que uma simples piscada daqueles olhos verde-claros
poderia levar à destruição de quem o contradissesse, mesmo que minimamente.
Havia um misto de provocação e sinceridade quando Brunetti afirmou que não cabia a ele decidir por Paola, mas agora, esfriados os ânimos, percebeu que dissera a
pura verdade.
Mitri viera ao gabinete de Patta acompanhado de um advogado, que Brunetti conhecia, ao menos pela reputação. O commissario lembrava-se vagamente que a especialidade
de Zambino era a advocacia empresarial, servindo normalmente grandes empresas do continente. Talvez ele ainda morasse em Veneza, mas o número de empresas que haviam
restado por ali era tão reduzido que Zambino fora obrigado, ao menos do ponto de vista profissional, a seguir o êxodo para o continente em busca de trabalho.
Por que trazer um advogado empresarial para uma entrevista com a polícia? Por que envolvê-lo em algo que era ou poderia vir a se tornar uma questão criminal? Zambino
tinha a fama, lembrou-se Brunetti, de ser um homem impetuoso e de ter alguns inimigos. Ainda assim, ele não havia dito nada durante todo o tempo em que o commissario
esteve no gabinete de Patta.
Brunetti ligou para a Vianello, pedindo a ele que subisse. Passados alguns minutos, o sargento chegou e Brunetti fez sinal para que se sentasse. “O que você sabe
sobre um tal dottor Paolo Mitri e sobre o avvocato Giuliano Zambino?”
Vianello já devia ter ouvido aqueles nomes em outra ocasião, pois respondeu de pronto. “Zambino mora em Dorsoduro, não muito longe de Salute. Num casarão de uns
trezentos metros. Sua especialidade é o direito empresarial e financeiro. A maioria dos seus clientes é do continente: empresas químicas e petroquímicas, farmacêuticas
e uma fábrica de maquinário pesado para remoção de terra. Há três anos, uma das companhias químicas para a qual ele trabalha foi apanhada jogando arsênico na laguna.
Ele livrou os donos com uma multa de três milhões de liras e a promessa de nunca mais fazer aquilo.”
Brunetti ouviu em silêncio até que o sargento terminasse, imaginando se não teria sido a signorina Elettra a fonte daquela informação. “E quanto ao Mitri?”
Brunetti percebeu que Vianello se controlava a duras penas para disfarçar o orgulho que sentia por ter reunido todas essas informações com tanta discrição. Ele continuou,
avidamente: “Sua carreira começou em uma companhia farmacêutica, para onde foi assim que saiu da universidade. Ele é químico, mas não exerce mais a profissão, ao
menos desde que assumiu a primeira fábrica e em seguida as duas outras. Ele vem diversificando os negócios nos últimos anos: além de mais algumas fábricas, possui
aquela agência de viagens, duas imobiliárias e há rumores de que seja o maior acionista daquela cadeia de lanchonetes que abriu no ano passado”.
“Problemas com algum deles?”
“Não”, disse Vianello, “nenhum deles.”
“Poderia ser negligência?”
“De quem?”
“Nossa.”
O sargento refletiu sobre isso por um momento. “É possível. Está cheio disso por aí.”
“Então devemos dar uma olhada, não é?”
“A signorina Elettra já está conversando com os bancos nos quais eles têm conta.”
“Conversando?”
Em vez de responder, Vianello apoiou as mãos abertas na mesa de Brunetti e fingiu estar digitando em um computador.
“Há quanto tempo ele tem essa agência de viagens?”, perguntou o commissario.
“Cinco ou seis anos, eu acho.”
“Imagino há quanto tempo eles vêm promovendo essas excursões”, disse Brunetti.
“Eu me lembro de ter visto cartazes há alguns anos, na agência que nós usamos lá em Castello. Eu ficava me perguntando como uma semana na Tailândia podia custar
tão barato. Perguntei à Nadia e ela me explicou qual era o truque. A partir de então, comecei a observar os anúncios nas vitrines das agências de viagem.” Vianello
não explicou o porquê dessa sua curiosidade e Brunetti não quis perguntar.
“Para onde mais elas vão?”
“As excursões?”
“Sim.”
“Em geral para a Tailândia, acho, mas várias vão para as Filipinas. E Cuba. Nos dois últimos anos eles começaram a montar pacotes para a Birmânia e o Camboja.”
“E como são os anúncios?”, perguntou Brunetti, que nunca havia prestado atenção em nenhum deles.
“Eles costumavam dizer tudo abertamente: ‘No centro da zona, queridos amigos, todos os sonhos se realizam’, esse tipo de coisa. Mas, depois da mudança na lei, a
linguagem se tornou cifrada: ‘Hotéis com funcionários de mente aberta, próximos à vida noturna, recepcionistas amigáveis’. É sempre o mesmo tipo de coisa, no entanto,
montes de prostitutas para homens com muita preguiça de sair à rua e procurar por elas.”
Brunetti não tinha ideia de como Paola havia se informado sobre isso ou do quanto ela sabia sobre a agência de Mitri. “E esse tipo de anúncio? Eles também aparecem
na vitrine da agência de Mitri?”
Vianello encolheu os ombros. “Suponho que sim. Todas as agências que oferecem o serviço parecem usar o mesmo tipo de linguagem cifrada. Logo se entende o que os
anúncios significam. A maioria delas também oferece pacotes legítimos: para as Maldivas, para a Seychelles, e para onde mais houver diversão barata e muito sol.”
Por um momento Brunetti temeu que Vianello, que tinha removido um tumor pré-canceroso das costas há alguns anos, e que desde então passara a evitar o sol com disciplina
militar, começasse a discorrer sobre o seu assunto predileto, mas em vez disso ele disse: “Eu perguntei sobre Mitri. Lá embaixo. Como quem não quer nada, só para
saber se o pessoal sabia de algo”.
“E?”
Vianello balançou a cabeça. “Nada. Pode ser que não haja nada.”
“Bem, o que ele faz não é ilegal”, disse Brunetti.
“Eu sei que não é ilegal. Mas devia ser.” E antes que Brunetti pudesse responder, ele acrescentou: “Eu sei que não é nosso trabalho fazer as leis. É provável que
nosso trabalho não seja nem questioná-las. Mas não deveria ser permitido a ninguém mandar homens adultos ao exterior para fazer sexo com crianças”.
Vistas as coisas desse modo, Brunetti concluiu que não havia como argumentar contrariamente. Mas tudo o que a agência fazia, no que concernia à lei, era fornecer
as passagens para que as pessoas pudessem viajar a outros lugares e conseguir hotéis para elas se hospedarem quando chegassem a seus destinos. O que elas fariam
quando lá chegassem era algo que só dizia respeito a elas. De repente Brunetti se viu recordando do seu curso de lógica na universidade e da excitação que sentia
com sua simplicidade quase matemática. Todos os homens são mortais. Giovanni é um homem. Logo, Giovanni é mortal. Havia regras, ele se lembrou, para pôr à prova
a validade de um silogismo, qualquer coisa como um termo maior e um termo médio: eles tinham que estar em certa posição e a maior parte deles não podia ser negativa.
Os detalhes aparentemente haviam desaparecido, abandonados junto aos outros fatos, estatísticas e primeiras noções com as quais ele deixara de se preocupar nas últimas
décadas, desde que completara os seus exames e fora elevado ao posto de doutor em direito. Ele conseguiu evocar, mesmo depois de tanto tempo, a tremenda sensação
de segurança que o havia tomado quando aprendeu que certas leis valiam de fato e podiam ser utilizadas para assegurar a validade das conclusões; que se podia demonstrar
que elas eram corretas ou que levavam à verdade.
Os anos posteriores haviam eliminado essa segurança. A verdade parecia agora estar à mercê daqueles que podiam falar mais alto ou contratar os melhores advogados.
E não havia silogismo que pudesse resistir ao argumento de um revólver ou de uma faca ou a quaisquer outras formas de argumentação - das quais sua vida profissional
estava repleta.
Afastando-se dessas reflexões e voltando a concentrar-se no que dizia Vianello, Brunetti ainda conseguiu pegar o resto de uma frase: “...um advogado?”.
“Perdão?”, disse Brunetti. “Eu estava pensando em outra coisa.”
“Eu estava me perguntando se o senhor pensou em procurar um advogado.”
Desde o momento em que deixara o gabinete de Patta, Brunetti estava afastando essa ideia. Assim como não iria responder por sua esposa aos homens ali reunidos, não
se permitiria conceber uma estratégia para enfrentar as consequências legais dos atos de Paola. Embora conhecesse a maior parte dos advogados criminais da cidade,
com os quais mantinha um bom relacionamento, seu contato era estritamente profissional. De repente, viu-se listando os nomes, tentando recordar-se de um sujeito
que fizera uma bem-sucedida defesa num caso de assassinato dois anos mais cedo. Voltou então a se concentrar. “Acho que minha esposa terá de cuidar disso.”
Vianello anuiu, levantou-se e, sem dizer mais nada, saiu.
Após a sua saída, Brunetti levantou-se e começou a caminhar, indo e voltando entre o armário e a janela. A signorina Elettra estava vasculhando os registros bancários
de dois homens que não haviam feito nada senão denunciar um crime e sugerir que tudo fosse acertado de modo a causar o menor transtorno possível à pessoa que fazia
questão de vangloriar-se de tê-lo cometido. Eles haviam se dado ao trabalho de vir até a questura, onde propuseram um acordo, que salvaria o acusado das consequências
legais de seu comportamento. E Brunetti permaneceria ali sentado enquanto as finanças deles eram investigadas de um modo provavelmente tão ilegal quanto o crime
original de que um deles fora vítima.
Não restava a mínima dúvida sobre a ilegalidade do que Paola havia feito. Ele parou de andar e deu-se conta de que ela nunca negara que aquilo era ilegal. Ela simplesmente
não se importava. Ele dedicava seus dias e sua vida à lei, e ela conseguia cuspir nela como se aquilo se tratasse de alguma convenção estúpida que não se aplicava
de forma alguma a ela, simplesmente porque não estava de acordo. Sentiu seus batimentos cardíacos acelerarem à medida que sua indignação evoluía para a raiva que
ele vinha contendo em seu peito há dias. Ela atendera a um capricho, seguindo algum tipo de definição autofabricada de comportamento apropriado, e tudo o que lhe
restava era apoiá-la impassivelmente, boquiaberto diante da nobreza de seus atos, enquanto sua carreira era destruída.
Ao perceber que estava ficando abalado, Brunetti se deteve, antes de começar a lamentar a influência que isso tudo teria em sua posição entre os seus companheiros
na questura, o custo que isso traria à sua autoestima. De modo que ele foi obrigado, neste ponto, a dizer para si próprio a mesma coisa que dissera a Mitri: ele
não era o responsável pelo comportamento da esposa.
Mas a explicação não foi suficiente para conter a sua raiva, e ele voltou a caminhar. Quando isso também se provou inútil, desceu até a sala da signorina Elettra,
que o recebeu com um sorriso.
“O vice-questore foi almoçar”, foi só o que ela disse, enquanto avaliava o humor de Brunetti.
“Eles o acompanharam?”
Ela fez que sim com a cabeça.
“Signorina”, ele começou, e fez uma pausa, medindo as palavras. “Acho que não é preciso continuar investigando esses senhores.”
Ao perceber que ela insinuava um protesto, ele continuou a falar, antes que ela pudesse fazer qualquer tipo de ressalva. “Não há suspeita de que eles tenham cometido
qualquer crime, e eu acho que seria pouco diplomático começarmos a investigá-los. Especialmente nessas circunstâncias.” Permitiu que ela mesma imaginasse que circunstâncias
seriam essas.
Ela anuiu. “Entendo, senhor.”
“Eu não perguntei se a signorina entendeu. Eu estou dizendo que você não deve iniciar uma investigação sobre a situação financeira deles.”
“Sim, senhor”, ela disse, voltando a encarar a tela do seu computador.
“Signorina”, ele repetiu, no seu tom de voz normal. Quando ela o encarou por sobre a tela do computador, ele disse: “Estou falando sério, signorina. Não quero que
se investigue nada a seu respeito”.
“Nada será investigado, então, senhor”, ela disse, com um sorriso que irradiava falsidade. E, como as coquetes dos filmes de comédia, ela apoiou os cotovelos na
mesa, juntou as mãos com os dedos enlaçados e ali apoiou o queixo. “Isso é tudo, commissario, ou tem mais alguma coisa que o senhor queira que eu faça?”
Ele deu meia-volta, sem responder, caminhou em direção às escadas, mas desistiu e saiu da questura. Foi caminhando pela amurada na direção da igreja grega, atravessou
a ponte e entrou no bar que apareceu à sua frente.
“Buon giorno, commissario”, cumprimentou-o o barman. “Cosa desidera ?”
Antes de decidir o que ia pedir, Brunetti olhou para seu relógio de pulso. Ele tinha perdido totalmente a noção de tempo, e ficou surpreso ao constatar que já era
quase meio-dia. “Um’ombra”, ele respondeu, e, quando foi servido, tomou a pequena taça de vinho branco sem se dar ao trabalho de saboreá-lo. Não ajudou muito, na
verdade, e ele tinha juízo o bastante para saber que a próxima taça ajudaria menos ainda. Jogou uma nota de mil liras no balcão e voltou para a questura. Não falou
com ninguém, apenas passou pelo gabinete, pegou o paletó, saiu do prédio outra vez e foi para casa.
No almoço, ficou claro que Paola tinha contado tudo para os filhos. Chiara olhava para a mãe com uma expressão evidentemente confusa, enquanto a de Raffi parecia
demonstrar interesse e talvez até mesmo curiosidade. Nenhum deles tocou no assunto, e a refeição foi relativamente calma. Em um dia como outro qualquer, Brunetti
teria se deliciado com as porções frescas de tagliatelle e porcini, mas naquela ocasião ele mal as provou. Também não apreciou devidamente os spezzatini ou as melanzane
fritas que foram servidas depois. Ao terminarem, Chiara foi para a aula de piano e Raffi à casa de um amigo para estudar matemática.
Sozinhos à mesa ainda repleta de pratos e vasilhas, Paola e Brunetti tomaram seus cafés, o dele turbinado com grappa, o dela puro e com açúcar. “Você vai consultar
um advogado?”, ele perguntou.
“Eu falei com meu pai hoje de manhã”, ela respondeu.
“E o que ele disse?”
“Você quer saber o que ele disse antes ou depois de ter gritado comigo?”
Brunetti não conseguiu conter um sorriso. “Gritar” era um verbo que nem em seus mais delirantes voos de imaginação ele associaria a seu sogro. A incongruência da
imagem o divertiu.
“Depois, eu imagino.”
“Ele me disse que eu era uma tola.”
Brunetti lembrou que resposta era igual à que o conde dera à filha quando ela declarou, vinte anos mais cedo, que iria se casar com ele. “E depois?”
“Ele me disse para contratar o Senno.”
Brunetti assentiu ao ouvir o nome do melhor advogado criminal da cidade. “Talvez seja um exagero.”
“Por quê?”
“O Senno se especializou na defesa de estupradores e assassinos, garotos ricos que espancam as namoradas, essas mesmas namoradas quando são pegas traficando heroína
para sustentar o vício. Não acho que você se enquadre em nenhuma dessas categorias.”
“Não sei se encaro ou não isto como um elogio.”
Brunetti deu de ombros. Ele também não sabia.
Como Paola não prosseguiu, ele perguntou: “E você vai contratá-lo?”.
“Eu não contrataria um homem como ele.”
Brunetti puxou a garrafa e serviu um pouco mais de grappa na xícara de café vazia. Agitou-a em movimentos circulares e bebeu tudo de uma só tragada. Lembrando-se
então de que deixara em suspenso a conversa, perguntou: “E quem você vai contratar?”.
Ela ergueu os ombros. “Vou esperar para ver qual será a acusação. Depois decido.”
Por um momento ele pensou em tomar outra grappa, mas percebeu que não queria. Sem oferecer-se para ajudar a lavar a louça ou mesmo limpar a mesa, Brunetti levantou-se
e ajeitou sua cadeira à mesa. Olhou para o relógio e desta vez ficou surpreso por ainda ser tão cedo, nem duas horas. “Acho que vou me deitar um pouco antes de voltar.”
Paola assentiu, levantou-se e começou a empilhar os pratos.
Ele seguiu até o quarto pelo corredor, tirou os sapatos e sentou-se em um dos lados da cama, percebendo como estava cansado. Deitou-se de costas, cruzando as mãos
por trás da cabeça, e fechou os olhos. Da cozinha vinha o som de água corrente, pratos tilintando ao se chocarem uns contra os outros, o barulho de uma panela. Retirou
uma das mãos detrás da cabeça e cobriu os olhos com o pulso. Aquilo o fez lembrar-se de seus tempos de escola, quando se escondia no quarto ao chegar em casa trazendo
um boletim com notas ruins, encolhendo-se na cama por medo da raiva do seu pai e do desapontamento de sua mãe.
A memória cravou os dentes em seu espírito e levou-o para longe. A certa altura, notou um movimento a seu lado, na cama, e ao mesmo tempo sentiu uma pressão, depois
um calor atravessando o seu peito. Foi envolvido pelo cheiro dos cabelos dela,então sentiu-os tocando seu rosto, exalando aquela combinação característica de sabão
e saúde que as décadas haviam fixado em sua memória. Tirou o braço dos olhos sem se preocupar em abri-los. Movendo-o para baixo sobre os ombros de Paola, uniu-o
a seu outro braço e enlaçou-a, cruzando as mãos sobre suas costas.
Passado um momento, os dois dormiram; quando acordaram, nada havia mudado.
9
O dia seguinte foi calmo, um dia normal na questura. Patta ordenou que Iacovantuono fosse trazido a Veneza e interrogado quanto a sua recusa em testemunhar, o que
foi feito. Brunetti cruzou com ele nos degraus enquanto era conduzido ao gabinete de Patta sob a escolta de dois policiais armados de metralhadoras. O pizzaiolo
ergueu os olhos na direção de Brunetti, mas não demonstrou reconhecê-lo. Seu rosto estava petrificado naquela máscara de ignorância que os italianos aprendem a adotar
perante as autoridades.
À visão de seus olhos tristes, Brunetti se perguntou se saber a verdade sobre o que tinha acontecido faria alguma diferença. Tivesse a Máfia realmente assassinado
a esposa de Iacovantuono ou o pizzaiolo simplesmente acreditasse que ela o fizera - fosse como fosse, ele não sentia que o Estado e suas agências fossem capazes
de protegê-lo da ameaça de um poder bem maior.
A mente de Brunetti fervilhava com essas reflexões enquanto ele via o pequeno homem subindo os degraus em sua direção, mas elas eram confusas demais para que ele
conseguisse expressá-las, até mesmo para si próprio, em palavras, de modo que tudo o que conseguiu fazer foi um gesto de reconhecimento enquanto eles passavam, o
pequeno homem diminuído entre os dois policiais, que pareciam gigantes ao lado dele.
Seguindo escada acima, Brunetti se lembrou do mito de Orfeu e Eurídice, da história do homem que perdeu a esposa ao olhar para trás para assegurar-se de que ela
ainda estava lá, desobedecendo assim à ordem dos deuses e, assim, condenando-a a permanecer no Hades eternamente. Os deuses que governam a Itália haviam ordenado
a Iacovantuono que não visse o que viu e, uma vez que ele não obedeceu, sua esposa lhe foi tomada para sempre.
Por sorte, Vianello o aguardava no topo da escada e as reflexões de Brunetti se esvaíram. “Commissario”, começou o sargento assim que o viu chegar, “recebemos um
telefonema de uma mulher em Treviso. Ela disse que vive na mesma casa que os Iacovantuono, mas pela maneira como ela falou, creio que more no mesmo prédio.”
Brunetti passou pelo sargento, indicando a ele com um aceno de cabeça que o seguisse, e conduzindo-o pelo corredor até o seu gabinete. Enquanto pendurava o paletó
no armadio, Brunetti perguntou: “E o que ela disse?”.
“Que eles brigavam.”
Pensando em seu próprio casamento, Brunetti respondeu: “Muitas pessoas brigam”.
“Ele batia nela.”
“E como é que essa mulher sabe disso?”, perguntou Brunetti, imediatamente curioso.
“Ela disse que a senhora Iacovantuono costumava ir até o apartamento dela para lamentar-se a respeito disso.”
“Ela chegou a chamar a polícia?”
“Quem?”
“A esposa. A signora Iacovantuono.”
“Não sei. Eu acabei de falar com essa mulher”, disse Vianello, olhando para um pedaço de papel na sua mão, “acabei de falar com a signora Grassi, há uns dez minutos.
Quando o senhor entrou eu tinha acabado de desligar. Ela disse que ele é bem conhecido nas redondezas, no prédio.”
“E por quê?”
“Por arrumar confusão com os vizinhos. Por gritar com os filhos.”
“E pelo que fazia com a esposa?”, perguntou Brunetti, sentando-se à mesa. Enquanto falava, puxou para si uma pilha de pequenos papéis e envelopes, mas num primeiro
momento não olhou para eles.
“Não sei. Ao menos por enquanto. Ainda não deu tempo de falar com mais ninguém.”
“Está fora da nossa jurisdição”, disse Brunetti.
“Eu sei. Mas o Pucetti disse que iriam trazê-lo para cá nesta manhã, para ser interrogado pelo vice-questore a respeito do assalto ao banco.”
“Sim. Eu o vi.” Brunetti olhou para o envelope no topo da pilha à sua frente, encarando o selo, tão distraído pelo que Vianello havia acabado de lhe contar que tudo
o que ele conseguia ver era um retângulo verde-claro. Aos poucos, o desenho emergiu: um soldado gaulês, com a esposa agonizante a seus pés, e uma espada completamente
enfiada em seu próprio corpo. De um lado, “Roma Museo Nazionale Romano”, do outro, “Galatea Suicida”. E, na parte de baixo, o número “750”.
“Seguro?”, perguntou Brunetti, finalmente.
“Não sei, senhor. Acabei de atender o telefone.”
Brunetti levantou-se. “Vou até lá perguntar a ele”, disse, deixando o gabinete vazio e dirigindo-se às escadas que o levariam para o andar de baixo, onde ficava
o gabinete do vice-questore.
A sala de espera estava vazia e pequenas torradeiras voavam suavemente pelo monitor do computador da signorina Elettra. Brunetti bateu à porta de Patta e foi convidado
a entrar.
Lá dentro, deparou-se com uma cena familiar: Patta sentado à sua mesa, completamente vazia, e portanto ainda mais intimidante. Iacovantuono sentado na beira de uma
cadeira, de frente para Patta, nervoso, as mãos agarradas às laterais do assento e os cotovelos rijos, suportando todo o seu peso.
Patta encarou Brunetti, impassível. “Sim?”, ele perguntou. “O que há?”
“Eu gostaria de fazer algumas perguntas ao signor Iacovantuono”, respondeu Brunetti.
“Acho que o senhor vai perder seu tempo, commissario”, disse Patta. Então, elevando a voz, acrescentou: “Assim como eu estou perdendo o meu. O signor Iacovantuono
parece ter se esquecido do que aconteceu no banco”. Patta inclinou-se para a frente sobre a mesa - talvez “esgueirou-se” fosse uma descrição mais precisa - e bateu
com o punho sobre sua superfície, não de forma brusca, mas com força suficiente para que sua mão se abrisse e ficasse com os quatro dedos apontados para Iacovantuono.
Como nem assim o cozinheiro respondeu, Patta voltou a olhar para Brunetti. “O que é que o senhor quer perguntar a ele, commissario? Se ele se lembra de ter visto
Stefano Gentile no banco? Se ele se lembra da primeira descrição que nos forneceu do assaltante? Ou se ao menos se lembra de ter identificado a foto de Gentile assim
que a viu?” Patta voltou a se encostar na cadeira, a mão volteando no ar à sua frente, os dedos ainda apontando para Iacovantuono. “Não, eu não acredito que ele
se lembre de nada disso. Então sugiro que o senhor não perca seu tempo perguntando a ele.”
“Não é isso o que eu quero perguntar a ele, senhor”, disse Brunetti, com a voz baixa, dissonante em relação à raiva histriônica de Patta.
Iacovantuono voltou-se para Brunetti, de forma que pudesse vê-lo.
“Bem, de que se trata?”, Patta perguntou.
“Eu queria saber”, começou Brunetti, dirigindo-se a Iacovantuono e ignorando Patta completamente, “se a sua esposa tinha seguro.”
Os olhos de Iacovantuono se arregalaram, surpresos de fato. “Seguro?”
Brunetti assentiu. “Seguro de vida.”
Iacovantuono olhou novamente para Patta, mas como não encontrou ali nenhum auxílio, voltou sua atenção para Brunetti. “Eu não sei.”
“Obrigado”, disse Brunetti, e virou-se para sair.
“É só isso?”, perguntou Patta furioso, às suas costas.
“Sim, senhor”, disse Brunetti, virando-se para Patta, mas encarando Iacovantuono, que permanecia na ponta da cadeira, as mãos agora apertando os joelhos. Sua cabeça
estava inclinada para baixo e ele parecia examinar as próprias mãos.
Brunetti dirigiu-se para a porta e saiu. As torradeiras continuavam em sua migração sem fim para a direita, criaturinhas tecnológicas lançando-se à sua própria destruição.
Chegando ao seu gabinete, encontrou Vianello à sua espera, parado à janela, observando o jardim do outro lado do canal e a fachada da igreja de San Lorenzo. Ao ouvir
a porta se abrir, o sargento virou-se e perguntou, enquanto Brunetti entrava: “E?”.
“Perguntei a ele sobre o seguro.”
“E?”, repetiu Vianello.
“Ele não sabe.” Vianello não fez nenhum comentário, o que levou Brunetti a perguntar: “Afinal, a Nadia tinha algum seguro?”.
“Não.” Então, após uma pequena pausa, Vianello acrescentou: “Pelo menos é o que eu acho”. Os dois refletiram um pouco, e finalmente Vianello perguntou: “O que o
senhor vai fazer?”.
“A única coisa que posso fazer é informar o pessoal de Treviso.” E de repente lhe ocorreu a pergunta: “Por que ela ligaria para nós?”. Ao dizer isso, voltou-se rapidamente
para Vianello, com uma das mãos a meio caminho da boca.
“O que o senhor quer dizer?”
“Por que a vizinha ligaria para a polícia de Veneza? A mulher morreu em Treviso.” Brunetti sentiu-se corar de repente. Claro, claro. A reputação de Iacovantuono
teria de ser manchada somente aqui, em Veneza: se ele decidisse testemunhar, seria aqui. Será que eles estão vigiando o Iacovantuono tão de perto a ponto de saberem
que a polícia o traria aqui? Ou, pior, será que sabiam quando a polícia o traria? “Gesù bambino”, ele sussurrou. “Como foi que ela disse que se chamava?”
“Grassi”, respondeu Vianello.
Brunetti pegou o telefone e pediu para ser conectado à polícia de Treviso. Quando a ligação foi completada, ele se identificou e pediu para falar com o encarregado
da investigação do caso Iacovantuono. Levou alguns minutos para que o homem com quem falou lhe dissesse que o caso tinha sido arquivado como morte acidental.
“Você tem o nome do homem que informou ter encontrado o corpo?”
O homem abandonou o telefone por um momento e voltou em seguida. “Zanetti. Walter Zanetti.”
“Quem mais mora no prédio?”, Brunetti perguntou.
“Somente as duas famílias, senhor. Os Iacovantuono no andar de cima, os Zanetti no térreo.”
“Nenhum Grassi mora lá?”
“Não. Só essas duas famílias. Por que o senhor pergunta?”
“Por nada, nada. Uma confusão em nossos arquivos, não conseguíamos encontrar o nome Zanetti. Era tudo o que precisávamos. Obrigado pela ajuda.”
“Foi um prazer, senhor”, disse o policial, e desligou.
Antes que Brunetti explicasse a situação, Vianello perguntou: “Ela não existe?”.
“Se existe, não mora naquele prédio.”
Vianello analisou tudo por um momento, então perguntou: “O que faremos a respeito, senhor?”.
“Informaremos Treviso.”
“O senhor pensa que veio de lá?”
“A informação?”, perguntou Brunetti, embora soubesse que Vianello não podia estar falando de outra coisa.
Vianello assentiu.
“De lá ou daqui, não importa. O importante é que a informação vazou.”
“Mas isso não significa que eles sabiam que ele estaria aqui hoje.”
“Por que ligariam, então?”
“Apenas para plantar a ideia. Caso ele estivesse.”
Brunetti balançou a cabeça. “Não. O timing foi muito preciso. Pelo amor de Deus, ele tinha acabado de entrar aqui quando você recebeu a ligação.” Brunetti hesitou
por um momento, dizendo, por fim: “com quem eles pediram para falar?”.
“O telefonista disse que eles queriam falar com a pessoa que tinha ido a Treviso para falar com Iacovantuono. Acho que ele tentou falar com o senhor, e como não
estava, ele encaminhou a ligação para nós. Pucetti passou para mim porque fui eu que acompanhei o senhor até Treviso.”
“E como ela soava?”
Vianello procurou recordar a conversa. “Preocupada, como se não quisesse causar problemas para ele. Disse aquilo uma ou duas vezes, que ele já tinha sofrido o bastante,
mas que ela tinha que nos dizer o que sabia.”
“Uma verdadeira cidadã.”
“Sim.”
Brunetti foi até a janela, olhou para o canal e para os barcos da polícia ancorados na doca em frente à questura. Lembrou-se da expressão no rosto de Iacovantuono
quando lhe perguntou sobre o seguro e sentiu seu rosto enrubescer novamente. Percebeu que tinha reagido como uma criança com um brinquedo novo, correndo impulsivamente,
sem dar-se o bastante para refletir ou para averiguar as informações que já tinham sobre o assunto. Ele sabia que o padrão em caso de morte suspeita era investigar
o esposo, mas deveria ter confiado em sua intuição acerca de Iacovantuono, devia ter-se recordado de sua voz hesitante, de seu temor sincero pelos filhos. Deveria
ter confiado em tudo isso, em vez de se apegar intempestivamente à primeira acusação que se insinuara no ar.
E não havia como se desculpar com o pizzaiolo, porque qualquer explicação só aumentaria sua culpa e vergonha. “Alguma chance de rastrear a chamada?”
“Havia ruídos ao fundo. Ruídos de rua, aparentemente. Aposto que a chamada foi feita de um telefone público.”
Se tinham sido espertos o bastante para fazer a chamada - ou bem informados o bastante, acrescentou uma voz cortante na mente de Brunetti -, então devem ter sido
cuidadosos o bastante para fazê-la de um telefone público. “Bom, então é tudo o que temos, suponho.” Ele se esticou na cadeira, sentindo-se repentinamente muito
cansado.
Sem dar-se ao trabalho de acrescentar qualquer coisa, Vianello saiu do gabinete, e Brunetti voltou a atenção aos documentos sobre a mesa.
Começou por um fax de um colega de Amsterdam, que perguntava se Brunetti podia de algum modo acelerar um pedido de informações da polícia holandesa sobre um italiano
que havia sido preso lá pelo assassinato de uma prostituta. Como o passaporte do homem informava que ele morava em Veneza, as autoridades holandesas tinham entrado
em contato com a polícia desta cidade para saber se o homem tinha antecedentes criminais. O pedido original fora feito há mais de um mês antes e ficara sem resposta
até aquele momento.
Brunetti estava a ponto de apanhar o telefone, ligar lá para baixo e pedir que verificassem se o homem tinha ou não uma ficha na polícia, quando o telefone tocou...
e então tudo começou.
Em certo sentido, ele sabia que isso iria acontecer, tinha mesmo se preparado, pensando em qual estratégia utilizaria para lidar com a imprensa. Mas ainda assim
foi totalmente pego de surpresa por aquela ligação.
No começo, o jornalista, um conhecido seu que trabalhava para o Gazzettino, disse que estava ligando para apurar a notícia de que o commissario Brunetti havia se
exonerado da polícia. Quando Brunetti respondeu que aquilo era uma completa surpresa para ele, que jamais tinha pensado em renunciar a seu cargo, Piero Lembo, o
jornalista, perguntou como ele planejava lidar, nesse caso, com a prisão de sua mulher e com os conflitos que tal situação traria diante de sua posição na polícia.
Brunetti respondeu que, como não tinha nenhum envolvimento com o caso, não via possibilidade alguma de conflito.
“Mas certamente o senhor tem amigos na questura ”, prosseguiu Lembo, empenhando-se para imprimir um soar cético em relação a essa possibilidade. “Amigos na magistratura.
Isso não poderia comprometer os julgamentos ou decisões que eles têm a tomar?”
“Acho improvável”, mentiu Brunetti. “Além do quê, não há razão para acreditarmos que haverá um julgamento.”
“E por que não?”
“Normalmente, um julgamento busca determinar a culpa ou a inocência. Isso não está em questão. Acho que haverá uma audiência de conciliação e uma multa.”
“E depois?”
“Acho que não entendi sua pergunta, signor Lembo”, disse Brunetti, olhando para além das janelas de seu gabinete, para um pombo que acabava de pousar no telhado
de um prédio do lado oposto do canal.
“O que vai acontecer quando a multa for imposta?”
“Esta é uma pergunta que eu não posso responder.”
“E por que não?”
“Porque qualquer multa será imposta à minha mulher, não a mim.” E Brunetti se perguntou quantas vezes mais teria que dar esta mesma resposta.
“E qual é a sua opinião sobre o crime cometido por ela?”
“Eu não tenho nenhuma opinião.” Nenhuma, ao menos, que ele fosse expor à imprensa.
“Estranho”, disse Lembo, e acrescentou, como se o emprego deste título pudesse fazer Brunetti soltar a língua, “commissario.”
“Como queira.” Então, elevando a voz, Brunetti disse: “Se o senhor não tiver mais nenhuma pergunta, signor Lembo, desejo-lhe uma boa tarde”, e desligou o telefone.
Esperou o tempo suficiente para que a linha fosse interrompida e pegou o telefone novamente, discando o número da central. “Não atenderei mais nenhum telefonema
hoje”, ele disse, e desligou.
Ligou para o funcionário na sala de arquivos, passou a ele o nome do homem preso em Amsterdam, pediu que verificassem se ele tinha sido fichado e, caso encontrassem
algo, que passassem um fax para a polícia holandesa imediatamente. Tinha se preparado para ouvir uma reclamação sobre a imensa quantidade de trabalho, mas não houve
nenhuma. Em vez disso, disseram-lhe que o fax seguiria naquela tarde, assumindo-se, claro, que fosse mesmo encontrado algum registro criminal do sujeito.
Brunetti passou o resto da manhã respondendo cartas e redigindo relatórios sobre os dois casos que estavam sob sua responsabilidade no momento, ambos sem nenhum
progresso notável.
Pouco depois da uma da tarde ele se levantou da mesa e preparou-se para sair do gabinete. Desceu as escadas e cruzou o portão da frente. Não havia nenhum guarda
à entrada, o que não era de estranhar durante a hora do almoço, quando os gabinetes estavam fechados e nenhum visitante podia entrar no prédio. Brunetti pressionou
o botão que abria a grande porta de vidro e a empurrou para sair. O frio havia se instaurado no vestíbulo e em resposta ele levantou a gola, abrigando a pele sob
a proteção do tecido grosso de seu sobretudo. Com a cabeça baixa, saiu em direção à tempestade.
O primeiro indício foi um repentino clarão, ao qual se seguiu outro e depois outro. Seus olhos baixos viram pés se aproximando, cinco ou seis pares de pés, até que
seu caminho foi bloqueado e ele teve de parar e olhar para cima para ver com o que se confrontava.
Estava cercado por um círculo apertado de cinco homens portando microfones. Atrás deles, num círculo maior, dançavam três homens com câmeras de vídeo apontadas para
ele, com luzes vermelhas piscando, intermitentes.
“Commissario. É verdade que o senhor teve de prender sua esposa?”
“Vai haver julgamento? Sua esposa já contratou um advogado?”
“E o divórcio? O senhor confirma?”
Os microfones ondulavam à sua frente, mas ele conteve o impulso de afastá-los com um gesto nervoso. Diante da evidente surpresa de Brunetti, as vozes se elevavam
histericamente e as perguntas atropelavam umas às outras. Ele ouvia somente pedaços de frases: “Sogro”, “Mitri”, “livre iniciativa”, “obstrução da justiça”.
Brunetti pôs as mãos nos bolsos do casaco, abaixou a cabeça novamente e retomou a caminhada. Seu peito chocou-se com um corpo humano, mas ele continuou a caminhar,
pisando duas vezes com força em pés alheios. “O senhor não pode simplesmente ir embora”, “obrigação”, “direito à informação...”
Outro corpo se colocou em seu caminho, mas ele prosseguiu, olhando para o chão, evitando agora pisar em seus pés. Na primeira esquina, virou à esquerda e seguiu
em direção a Santa Maria Formosa, caminhando a passos firmes, sem dar o menor sinal de estar fugindo. Uma mão agarrou seu ombro, mas ele se desvencilhou dela, desvencilhando-se
também da vontade de lançar-se sobre o repórter e esmagá-lo contra o muro.
Continuaram em seu encalço por alguns minutos, mas ele não diminuiu o passo, nem fez caso de sua presença. De repente, virou à direita em uma calle estreita. Alguns
dos repórteres, não familiarizados com Veneza, devem ter se assustado com a escuridão, pois nenhum deles o seguiu. Chegando ao fim da calle, Brunetti dobrou à esquerda
e seguiu margeando o canal, finalmente livre deles.
De um telefone público no campo Santa Marina, ligou para casa e soube por Paola que uma equipe de jornalistas havia estacionado em frente à sua casa e que três repórteres
tentaram sem sucesso impedi-la de entrar em casa, por tempo o bastante para que lhe arrancassem uma entrevista.
“Vou ter que almoçar em outro lugar, então”, ele disse.
“Sinto muito, Guido... eu não...” ela parou de falar, mas ele não tinha o que dizer em resposta a seu silêncio.
Não, ele concluiu que ela não tinha pensado sobre as consequências de seus atos. Estranho, realmente, para uma mulher tão inteligente como Paola.
“O que você vai fazer?”, ela perguntou.
“Volto à tarde. E você?”
“Eu só tenho que dar aula depois de amanhã.”
“Você não pode ficar trancada em casa todo esse tempo, Paola.”
“Deus, é como ficar numa prisão, não é?”
“A prisão é pior.”
“Você vai voltar pra casa? Depois do expediente?”
“Claro.”
“Mesmo?”
Ele ia dizer que não tinha outro lugar para onde ir, mas concluiu que ela o entenderia mal se ele falasse dessa maneira. Assim, ele disse: “Não há outro lugar para
onde eu queira ir”.
“Oh, Guido”, ela disse, e então: “ciao, amore”, e desligou.
10
Seus sentimentos, contudo, não significavam nada para a multidão que o aguardava em seu retorno à questura depois do almoço. Metáforas aviárias pipocavam a seu redor
enquanto ele descia pela Ponte dei Greci e caminhava na direção dos membros reunidos da imprensa: corvos, abutres, harpias amontoados em um pequeno círculo à frente
da questura: só faltava um corpo em decomposição a seus pés para que a imagem ficasse completa.
Um deles o viu e - traidor -, sem avisar os companheiros, se desvencilhou deles e correu na direção de Brunetti, com o microfone adiantado à sua frente como uma
bengala para tocar gado. “Commissario”, ele começou, ainda a um metro de Brunetti, “o dottor Mitri decidiu processar a sua esposa?”
Sorrindo, Brunetti parou. “Acho que isso você vai ter que perguntar ao dottor Mitri.” Enquanto respondia, viu que o bando sentiu a ausência do colega e, numa espécie
de espasmo coletivo, voltou-se na direção das vozes que vinham de trás. E logo se dispersaram e correram em sua direção, com os microfones à frente, como se quisessem
capturar quaisquer palavras que ainda pudessem estar flutuando no ar em torno de Brunetti.
No pânico da movimentação toda, um dos câmeras tropeçou num cabo, estatelou-se no chão, e sua filmadora se espatifou no chão ao seu lado. A lente, expelida do corpo
da máquina estraçalhada, saiu rolando, como as latinhas de refrigerante que as crianças chutam à beira do canal em suas brincadeiras. Todos pararam, unidos pela
surpresa ou por outras emoções, e acompanharam o avanço da lente até os degraus que levavam à água. Ela se aproximou do patamar, rolou suavemente pela borda, aterrissou
suavemente no segundo degrau, depois no terceiro e, com um discreto tibum, afundou nas águas verdes do canal.
Brunetti aproveitou-se do momento de distração coletiva para retomar seu caminho até a entrada principal da questura, mas os repórteres também se refizeram prontamente
e foram em seu encalço para detê-lo. “O senhor vai deixar a polícia?” “É verdade que a sua esposa já tinha sido detida antes?” “...e mantida longe dos tribunais?”
Exibindo o sorriso mais fabricado que tinha, ele seguiu o seu caminho, sem empurrá-los, mas sem permitir tampouco que os corpos o impedissem de alcançar seu objetivo.
Assim que conseguiu atingir seu objetivo, a porta se abriu e Vianello e Pucetti apareceram, colocando-se cada um de um lado, com os braços esticados para impedir
a entrada dos repórteres.
Brunetti entrou, seguido por Vianello e Pucetti. “Que selvagens, hein?”, disse Vianello, escorando a porta de vidro com as costas. Ao contrário de Orfeu, Brunetti
não olhou para trás e não disse nada, e começou a subir as escadas para o seu gabinete. Ouvindo passos às suas costas, virou-se e viu Vianello, que subia os degraus
de dois em dois. “Ele quer ver o senhor.”
Ainda vestindo o paletó, Brunetti foi até o gabinete de Patta, onde encontrou a signorina Elettra com a edição vespertina do Gazzettino aberta sobre a mesa.
Ele deu uma espiada e viu que na primeira página do segundo caderno havia uma foto sua, tirada há muitos anos, além da foto da carta d’identità de Paola. Olhando
para ele, a signorina disse: “Se o senhor começar a ficar muito famoso eu vou ter que implorar por um autógrafo”.
“Será que é isto o que a vice-questura quer?”, ele perguntou sorrindo.
“Não, acho que querem a sua cabeça, mesmo.”
“Foi o que eu imaginei”, ele disse, e bateu à porta.
A voz de Patta soou em tons apocalípticos. Brunetti se viu pensando que tudo seria mais fácil se eles deixassem o melodrama de lado e tomassem logo uma decisão.
Ao entrar, uma linha da Anna Bolena, de Donizetti, lhe veio à mente: “Se aqueles que me julgam me condenam de antemão, não tenho chances”. Meu Deus, isso sim é melodrama.
“O senhor queria me ver, vice-questore?”
Patta estava sentado à mesa, o rosto impassível. Só lhe faltava o capuz negro que os juízes ingleses colocam sobre suas perucas quando vão anunciar a sentença de
morte a um prisioneiro. “Sim, Brunetti. Não, não precisa nem sentar. O que eu tenho a dizer é bem curto. Falei sobre esse assunto com o questore e nós decidimos
que o senhor ficará de licença administrativa até que isso se resolva.”
“E o que isso significa?”
“Que até que se chegue a um acordo em relação a esse caso não é preciso que o senhor venha à questura.”
“Chegar a um acordo?”
“Até que uma sentença seja dada e sua esposa pague uma multa, ou compense o dottor Mitri pelos prejuízos que ela causou a sua propriedade e a seus negócios.”
“Isso é assumir que ela será acusada e condenada”, disse Brunetti, sabendo que as duas coisas eram muito prováveis. Patta nem se dignou a responder. “O que pode
levar anos”, acrescentou Brunetti, que sabia como a lei funcionava.
“Tenho minhas dúvidas quanto a isso”, disse Patta.
“Senhor, há casos em meus arquivos que estão em aberto há mais de cinco anos, aguardando que se marque uma data para o julgamento. Eu repito: pode levar anos.”
“Isso é algo que depende somente do que a sua esposa decidir, commissario. O dottor Mitri foi civilizado o bastante, eu diria mesmo gentil o bastante, ao oferecer
uma solução eficaz para esse problema. Mas aparentemente a sua esposa preferiu não aceitá-la. Assim, as consequências serão de sua inteira responsabilidade.”
“O senhor me perdoe”, disse Brunetti, “mas isso não é totalmente verdadeiro.” E antes que Patta pudesse contestar, Brunetti prosseguiu. “O dottor Mitri ofereceu
a solução a mim, não à minha esposa. E, como eu expliquei, é uma decisão que não posso tomar no lugar dela. Se ele fizer a oferta a Paola, diretamente, e ela recusá-la,
então o que o senhor disse será verdadeiro.”
“O senhor não disse nada a ela?”, Patta perguntou, sem tentar disfarçar sua surpresa.
“Não.”
“E por que não?”
“Isso cabe ao dottor Mitri, a meu ver.”
Mais uma vez mais a surpresa de Patta ficou evidente. Ele pensou por um momento e disse: “Vou falar com ele”.
Brunetti balançou a cabeça. Se foi em agradecimento ou assentimento, nem ele nem Patta sabiam ao certo. “Isso é tudo, senhor?”
“Sim. Mas ainda assim considere-se em licença administrativa. Fui claro?”
“Sim, senhor”, disse Brunetti, embora ele não tivesse ideia do que aquilo significava. Não poder mais trabalhar como policial era não poder de fato trabalhar. Sem
ter mais nada a dizer para Patta, ele se virou e deixou o gabinete.
Fora, a signorina Elettra ainda estava sentada à mesa, mas agora, tendo terminado o Gazzettino, lia uma revista. Ela olhou para Brunetti assim que ele saiu da sala
de Patta.
“Quem vazou para a imprensa?”
Ela balançou a cabeça. “Não tenho a mínima ideia. Provavelmente o tenente.” Ela olhou de relance para a porta de Patta.
“Licença administrativa.”
“Nunca ouvi falar nisso”, ela disse. “Devem ter inventado especialmente para a ocasião. O que o senhor vai fazer, commissario ?”
“Vou pra casa ler”, ele respondeu, e com a resposta veio o pensamento, e com o pensamento o desejo. Tudo o que ele tinha de fazer era passar pelos repórteres na
frente do edifício, escapar de suas câmeras e questões repetitivas; assim poderia ir para casa e ler pelo tempo que fosse preciso, até que Paola chegasse a uma decisão,
ou até que tudo se resolvesse. Ele podia deixar que seus livros o carregassem para além da questura, para além de Veneza, para além deste século lamentável, repleto
de sentimentalismo barato e sede de sangue, e o conduzissem novamente aos mundos onde seu espírito se sentia mais confortável.
A signorina Elettra sorriu, percebendo a ironia de sua resposta, e voltou a concentrar-se na revista.
Ele nem se preocupou em voltar ao seu gabinete, e seguiu direto para a saída da questura. Estranhamente, os repórteres tinham ido embora, deixando como únicos sinais
de sua presença recente algumas fichas de plástico e uma alça de câmera quebrada.
11
Ele voltou a encontrar membros do bando quando chegou à frente de seu apartamento, três deles os mesmos que haviam tentado interrogá-lo do lado de fora da questura.
Sem esboçar a mínima tentativa de responder às perguntas que berravam, Brunetti abriu caminho entre eles e colocou a chave na fechadura do enorme portone que conduzia
ao hall de entrada. De repente, uma mão se esgueirou por trás dele e agarrou o seu braço, tentando afastar sua mão da porta.
Brunetti girou para a direita, empunhando o enorme molho de chaves como se fosse uma arma. O repórter, sem notar as chaves, mas vendo a expressão no rosto de Brunetti,
recuou, erguendo entre eles a mão espalmada, em gesto de calma. “Perdão, commissario”, ele disse, com um sorriso tão falso quanto suas palavras. Com algum instinto
animal, os outros perceberam o medo em seu tom de voz e reagiram a isso. Todos silenciaram. Brunetti passou seus rostos em revista. Nenhuma câmera foi acionada e
as filmadoras permaneceram abaixadas.
Brunetti voltou-se para a porta e pôs a chave na fechadura. Girou a chave, entrou no saguão, fechou a porta e encostou-se nela. Seu peito, na verdade todo o seu
torso, estava empapado com o suor grosso provocado pela súbita raiva, e seu coração batia descontrolado. Ele desabotoou o paletó e o abriu, deixando-se refrescar
pelo ar frio do corredor. Com um impulso de ombros, afastou-se da porta e começou a subir as escadas.
Paola deve tê-lo ouvido se aproximar, porque abriu a porta assim que ele chegou ao topo do último lance de escadas. Ela segurou a porta para que ele passasse e,
quando ele entrou, tirou seu paletó e o pendurou. Ele se abaixou e beijou a bochecha da esposa, deliciando-se com seu cheiro.
“O que houve?”, ela perguntou.
“‘Licença administrativa’. Pelo menos é como eles a chamaram. Criada especialmente para a ocasião, eu acho.”
“E o que isso significa?”, ela perguntou, seguindo-o até a sala.
Ele desabou no sofá, os pés estendidos à sua frente. “Significa que eu fico em casa até que você e Mitri cheguem a algum tipo de acordo.”
“Acordo?”, ela perguntou, sentando-se a seu lado, na ponta do sofá.
“Aparentemente, o Patta acha que você deve ressarcir o Mitri pela vidraça e desculpar-se.” Ele refletiu sobre Mitri e se corrigiu: “Ou apenas pagar pelo prejuízo”.
“Uma ou duas vezes?”
“E isso faz alguma diferença?”
Ela olhou para baixo e, com o pé, alisou a ponta do carpete que se estendia à frente do sofá. “Não, não mesmo. Eu não posso pagar nem uma lira para ele.”
“Não pode ou não quer?”
“Não posso.”
“Bem, então acho que finalmente terei a chance de ler o Gibbon.”
“Como?”
“Vou ter que ficar em casa até que o caso se resolva de algum modo, amigável ou juridicamente.”
“Se eles me impuserem uma multa, eu pagarei”, disse ela, com uma voz tão imbuída de um sentimento cívico virtuoso que Brunetti foi obrigado a sorrir.
Ainda sorrindo, ele disse: “Acho que foi o Voltaire que disse, não me lembro onde, o seguinte: ‘Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito
de dizê-lo’”.
“Ele disse um bocado de coisas como essa, Voltaire. Soa bem. Ele tinha o costume de dizer coisas que soavam bem.”
“Você está parecendo um pouco cética.”
Ela deu de ombros. “Sempre desconfiei dos sentimentos nobres.”
“Principalmente quando vêm de pessoas do sexo masculino?”
Ela se inclinou em sua direção, cobrindo uma de suas mãos com a dela. “É você quem está dizendo isso, não eu.”
“Não deixa de ser verdade.”
Ela deu de ombros novamente. “Você vai mesmo ler o Gibbon?”
“Eu sempre quis lê-lo. Mas traduzido, eu acho. O estilo dele é muito enfeitado pro meu gosto.”
“Mas essa é a graça.”
“Já tenho a minha dose de retórica empolada nos jornais; não preciso disso em um livro de história.”
“Eles vão amar tudo isto, não vão, os jornais?”
“Faz muito tempo que ninguém tenta prender o Andreotti. Eles precisam escrever sobre alguma coisa.”
“É, acho que sim.” Ela se levantou. “Quer que eu te traga alguma coisa?”
Brunetti, que tinha almoçado pouco e sem muito gosto, disse: “Um sanduíche e uma taça de dolcetto”. Ele se inclinou e começou a desamarrar os sapatos. Paola estava
se dirigindo para a porta quando ele a chamou. “E o primeiro volume do Gibbon.”
Em dez minutos ela estava de volta com os três pedidos, que ele saboreou sem pudores, esticando-se no sofá: a taça na mesinha a seu lado, o prato sobre o peito,
enquanto abria o livro e começava a ler. O paninno era de presunto defumado e tomate, com fatias finas de um pecorino bem curado entre os dois. Passados alguns minutos,
Paola voltou com um guardanapo, que colocou sobre o seu queixo, bem a tempo de pegar um pedaço de tomate amassado que caiu do sanduíche. Ele pôs a comida no prato,
alcançou a taça e tomou um grande gole. Voltando ao livro, leu o magistral capítulo de abertura, com sua ode politicamente incorreta ao Império Romano.
Algum tempo depois, bem na hora em que Gibbon se punha a explicar a tolerância com que os politeístas entendem todas as religiões, Paola entrou, encheu novamente
sua taça, tirou o prato vazio do peito de seu marido, apanhou o guardanapo e voltou para a cozinha. Gibbon certamente teria algo a dizer sobre a submissão da boa
esposa romana: Brunetti não via a hora de chegar a essa parte.
No dia seguinte, ele passou a alternar a leitura do Gibbon com a dos jornais nacionais e locais, que os filhos traziam para casa. O Gazzettino, o jornal do repórter
que havia puxado seu braço da porta, trazia um discurso inflamado sobre o abuso de poder por parte das autoridades e sobre a recusa de Brunetti em cooperar com o
legítimo direito da imprensa à informação, ressaltando sua arrogância e sua inclinação à violência. Os motivos alegados por Paola, que eles conseguiram descobrir
de algum jeito, foram abordados discretamente. Toda a energia do jornal foi reservada à denúncia de seu espírito de justiceiro, à descrição de Paola como uma mulher
em busca de publicidade, claramente inadequada a sua profissão de professora universitária. O fato de ela não ter sido sequer chamada para uma entrevista não era
mencionado no artigo.
Os jornais maiores eram menos fulminantes, embora a história fosse sempre apresentada como exemplo de uma perigosa tendência, por parte dos cidadãos comuns, de assumir
o poder do Estado numa desorientada busca por alguma noção equívoca de “justiça”, uma palavra que eles jamais deixavam de incluir entre as aspas do desprezo.
Após a leitura dos jornais, Brunetti continuava com seu livro, sem sair de casa. Paola também não saía, passando a maior parte do tempo em seu estúdio, analisando
a tese de doutorado de um orientando que estava se preparando para sua qualificação. Os filhos, embora tivessem sido alertados pelos pais sobre o que estava acontecendo,
saíam e voltavam sem ser perturbados, fazendo as compras, trazendo os jornais e, no geral, comportando-se muito bem diante das perturbações de sua vida familiar.
No segundo dia, Brunetti se permitiu tirar uma longa soneca depois do almoço, passando inclusive pelo ritual de ir para a cama e entrar debaixo das cobertas, em
vez de simplesmente esticar-se no sofá e deixar que o sono lhe apanhasse de surpresa. De tarde, o telefone tocou algumas vezes, mas ele deixou que Paola atendesse.
Se Mitri ou o seu advogado ligassem para falar com ela, ela diria a ele, ou talvez não.
O telefone tocou logo depois do café da manhã, no terceiro dia do que Brunetti já chegava a considerar uma purgação. Minutos depois, Paola veio até a sala e disse
que era para ele.
Ele se aprumou no sofá, sem preocupar-se em pôr os pés no chão, e apanhou o telefone. “Sí?”
“Vianello falando, senhor. Eles ligaram para o senhor?”
“Quem?”
“Os policiais que estavam de plantão na noite passada.”
“Não. Por quê?”
O que quer que Vianello tenha começado a dizer foi abafado por um barulho de vozes altas ao fundo.
“Onde você está, Vianello?”
“No bar perto da ponte.”
“O que aconteceu?”
“Mitri foi assassinado na noite passada.”
Brunetti pulou do sofá, os pés no chão à sua frente. “Como? Onde?”
“Em sua casa. Ele foi asfixiado, ou pelo menos é o que parece. Alguém deve tê-lo apanhado pelas costas e o estrangulado. Seja lá o que usaram para fazer isso, levaram
embora. Mas...”, ele disse e novamente sua voz foi abafada pelo que parecia o ruído de estática vindo de um rádio.
“O quê?”, perguntou Brunetti quando o ruído diminuiu.
“Eles encontraram um bilhete perto do corpo. Eu não cheguei a vê-lo, mas Pucetti me disse que era algo sobre pedófilos e as pessoas que os ajudavam. Algo sobre justiça.”
“Gesù bambino”, sussurrou Brunetti prendendo a respiração. “Quem encontrou o corpo?”
“Corvi e Alvise.”
“E quem os chamou?”
“A esposa do Mitri. Ela chegou em casa depois de um jantar com amigos e o encontrou na cozinha, no chão.”
“Com quem ela jantou?”
“Não sei, senhor. Tudo o que eu sei foi o pouco que Pucetti conseguiu me dizer, e tudo o que ele sabe é o que Corvi lhe disse antes de largar o plantão hoje de manhã.”
“Quem ficou encarregado do caso?”
“Acho que o tenente Scarpa foi para a cena do crime depois de o Corvi ligar para ele.”
Brunetti não fez nenhum comentário, embora tenha ficado se perguntando por que o assistente pessoal de Patta seria designado para o caso. “O vice-questore já chegou?”
“Não até eu sair e vir aqui para baixo, há alguns minutos, mas o Scarpa telefonou para a casa dele e contou-lhe tudo.”
“Estou indo aí”, Brunetti disse, procurando os sapatos com os pés.
Vianello ficou em silêncio por um longo tempo, então disse: “Certo. Acho melhor o senhor vir”.
“Vinte minutos”, e desligou.
Amarrou os sapatos e foi até os fundos do apartamento. A porta do estúdio de Paola estava aberta, num convite mudo para que ele entrasse e lhe contasse sobre o telefonema.
“Era o Vianello”, ele disse enquanto entrava.
Ela levantou os olhos, viu seu rosto, largou a página que estava lendo e, tampando a caneta, colocou-a sobre a mesa. “E o que ele disse?”
“Mitri foi assassinado ontem à noite.”
Ela se encolheu em sua cadeira, como se alguém a tivesse ameaçado com os punhos. “Não.”
“Pucetti disse que deixaram um recado, algo sobre pedófilos e justiça.”
O rosto dela se enrijeceu, então ela levou as costas de sua mão direita à boca. “Oh, Madonna Santa.” Ainda com a mão na boca, ela sussurrou: “Como?”.
“Ele foi estrangulado.”
Ela balançou a cabeça, com os olhos fechados. “Oh, meu Deus, meu Deus.”
O momento era agora, Brunetti sabia. “Paola, antes de fazer o que fez, você conversou com alguém sobre isso? Ou alguém a encorajou a fazê-lo?”
“O que você está querendo dizer?”
“Você agiu sozinha?”
Ele observou seus olhos mudarem, viu as íris diminuírem com o choque. “Você está me perguntando se alguém que eu conheço, algum fanático, sabia que eu ia quebrar
a vitrine? E foi e o matou?”
“Paola”, ele disse, tomando o cuidado de manter a voz baixa. “Estou tentando lhe fazer uma pergunta para excluir uma possibilidade antes que alguém junte as peças
do mesmo jeito que eu e lhe faça a mesma pergunta.”
“Não há peça nenhuma para ser juntada”, ela respondeu imediatamente, enfatizando o peso das últimas palavras.
“Então não há outra pessoa?”
“Não. Eu nunca falei disso com ninguém. Foi uma decisão completamente independente. E não foi fácil.”
Ele assentiu. Se ela agiu sozinha, então alguém havia se excitado ou encorajado pela forma como a imprensa estava abordando o caso. Deus, estávamos nos tornando
iguais à América, onde os policiais vivem com medo dos assassinos copy-cat, onde a mera menção a um crime basta para encorajar sua imitação. “Vou até lá”, ele disse.
“Não sei a que horas volto.”
Ela balançou a cabeça, mas continuou sentada à mesa, sem dizer uma só palavra.
Brunetti seguiu pelo corredor, apanhou o paletó e saiu do apartamento. Ninguém o esperava do lado de fora, mas ele sabia que a trégua logo acabaria.
12
E ele acabou na frente da questura, cuja porta estava bloqueada por uma tripla fileira de repórteres. Na linha de frente estavam os homens e mulheres com os notebooks.
Atrás deles ficavam os que empunhavam os microfones e, por trás destes, mais próximos da porta, as fileiras de câmeras de vídeo, duas das quais haviam sido montadas
em tripés, com os postes de iluminação atrás delas.
Percebendo a aproximação de Brunetti, um dos homens o enquadrou com a câmera. O commissario fingiu que não o viu, e também todos que se amontoaram a seu redor. Estranhamente,
nenhum deles lhe perguntou nada, nem sequer se dirigiu a ele; não fizeram senão voltar os microfones em sua direção e observar em silêncio enquanto Brunetti, como
Moisés, atravessava imperturbável a passagem aberta entre as águas da curiosidade para entrar na questura.
Lá dentro, Alvise e Riverre o cumprimentaram, o primeiro incapaz de disfarçar sua surpresa por vê-lo ali.
“Buon dì, commissario”, disse Riverre, cumprimento que foi repetido por seu parceiro.
Brunetti respondeu balançando a cabeça, sabendo que seria perda de tempo perguntar o que quer que fosse a Alvise, e começou a subir os degraus que conduziam ao gabinete
de Patta. Ao chegar à antessala, a signorina Elettra estava sentada em sua mesa falando ao telefone. Cumprimentou-o com um aceno, nem um pouco surpresa por vê-lo
ali, e levantou a mão para que ele esperasse. “Eu preciso disso até a tarde”, ela disse, aguardando até que a pessoa do outro lado da linha respondesse, então se
despediu e desligou. “Seja bem-vindo, commissario”, disse ela.
“Sou?”
Ela lhe respondeu com um ar enigmático.
“Bem-vindo?”, ele explicou.
“Por mim, certamente. Não posso responder pelo vice-questore, mas ele perguntou há pouco se o senhor viria.”
“E o que a senhorita respondeu?”
“Que eu achava que o senhor chegaria logo.”
“E?”
“Ele pareceu aliviado.”
“Bom.” Brunetti ficou igualmente aliviado. “E o tenente Scarpa?”
“Ele está com o vice-questore desde que voltou da cena do crime.”
“E a que horas foi isso?”
“O telefonema da signora Mitri foi registrado às dez e vinte e sete. O Corvi comunicou o ocorrido às onze e três.” Ela olhou para um pedaço de papel sobre a mesa.
“O tenente Scarpa ligou às onze e quinze, foi direto para a casa dos Mitri, e só voltou de lá à uma hora.”
“E ele está lá...?”, disse Brunetti, indicando a porta do gabinete de Patta com o queixo.
“Desde as oito e meia da manhã.”, respondeu a signorina Elettra.
“Não tem por que ficar esperando”, disse Brunetti, mais para si mesmo do que para ela. Foi até a porta e bateu. A voz de Patta respondeu de pronto, pedindo que ele
entrasse.
Brunetti abriu a porta e entrou. Como de costume, Patta estava atrás de sua mesa. Os raios de luz que vinham de trás dele refletiam na superfície da mesa e atingiam
diretamente os olhos de qualquer um que se sentasse à sua frente.
O tenente Scarpa ladeava seu comandante, em postura tão ereta e com o uniforme alinhado com tamanha perfeição que se parecia assustadoramente com Maximilian Schell
em um de seus bons papéis de nazista.
Patta saudou Brunetti com um aceno silencioso e indicou-lhe a cadeira à frente de sua mesa. Brunetti empurrou a cadeira um pouco para o lado, de modo que a sombra
projetada pelo corpo de Patta bloqueasse alguns dos reflexos que saltavam da madeira lustrada. O tenente transferiu seu peso de um pé para o outro e se deslocou
um pouco para a direita. Brunetti, em compensação, moveu-se um pouco para a esquerda e virou-se um pouquinho mais para aquele lado.
“Bom dia vice-questore”, disse Brunetti, saudando Scarpa.
“Então você soube?”, disse Patta.
“Soube apenas que ele foi assassinado. Nada além disso.”
Patta olhou para Scarpa. “Conte a ele, tenente.”
Scarpa olhou para Brunetti, e então novamente para Patta, antes de começar a falar. Tudo isso com uma pequena mesura na direção de Patta. “Com todo o respeito, vice-questore,
mas eu pensei que o commissario estivesse de licença administrativa.” Patta não disse nada, então ele continuou. “Eu não sabia que ele seria chamado de volta para
essa investigação. E, se o senhor me permite, a imprensa pode achar estranho que ele tenha sido designado para ela.”
Brunetti gostou de saber que, pelo menos na mente de Scarpa, tudo estava sendo tratado como uma investigação. Ficou pensando se isso seria um indício de que o tenente
acreditava que, de algum modo, Paola estivesse implicada no assassinato.
“Sou eu quem decide quem é designado para o quê, tenente”, disse Patta com voz firme. “Diga ao commissario o que aconteceu. O problema agora é dele.”
“Sim, senhor”, respondeu Scarpa sem alterar-se. Aprumando-se mais um pouco, ele começou a explicar. “Corvi me ligou pouco depois das onze e eu fui direto para a
residência dos Mitri. Quando cheguei lá, encontrei seu corpo no chão da cozinha. Pela aparência do pescoço, ele parecia ter sido estrangulado, embora não houvesse
sinal de nenhuma arma.” Ele fez uma pausa e olhou para Brunetti, e como o commissario não disse nada, ele continuou. “Eu examinei o corpo, então chamei o dottor
Rizzardi, que chegou depois de uns trinta minutos e confirmou minha opinião sobre a causa da morte.”
“E o doutor tinha alguma ideia de o que teria sido usado para o estrangulamento?”, interrompeu Brunetti.
“Não.” Brunetti percebeu que Scarpa não se dirigiu a ele com o usual “senhor”, mas deixou passar. Não era preciso especular muito para saber como o tenente devia
ter tratado o dr. Rizzardi, um homem conhecido por sua amizade com Brunetti. Assim, não ficou surpreso em saber que Rizzardi não se dispôs a arriscar um palpite
sobre o que teria sido usado para estrangular Mitri.
“E a autópsia?”, Brunetti perguntou.
“Hoje, se possível.”
Brunetti iria ligar para Rizzardi assim que a reunião terminasse. Teria que ser possível.
“Posso prosseguir, senhor?”, perguntou Scarpa a Patta.
Patta encarou Brunetti, como se lhe perguntasse se ele o interromperia com mais alguma questão. Mas Brunetti ignorou seu olhar, então Patta se voltou para Scarpa
e disse: “Claro”.
“Ele estava sozinho no apartamento naquela noite. A esposa tinha ido a um jantar com amigos.”
“E por que Mitri não foi?”, perguntou Brunetti.
Scarpa olhou para Patta, como que o sondando para saber se deveria responder à pergunta do commissario. Quando Patta assentiu, ele explicou: “A esposa disse que
eram velhos amigos dela, de seus tempos de solteira, e que Mitri raramente os acompanhava nesses jantares”.
“Filhos?”, perguntou Brunetti.
“Uma filha, mas ela mora em Roma.”
“Empregados?”
“Está tudo no relatório”, disse Scarpa, petulante, olhando para Patta, e não para Brunetti.
“Empregados?”, Brunetti repetiu.
Scarpa fez uma pausa, mas respondeu em seguida. “Não. Pelo menos não do tipo que dorme no serviço. Só uma mulher que limpa a casa duas vezes por semana.”
Brunetti se levantou. “Onde está a esposa?”, perguntou a Scarpa.
“Ela ainda estava em casa quando eu saí de lá.”
“Obrigado, tenente”, disse Brunetti. “Eu gostaria de ver uma cópia do seu relatório.”
Scarpa concordou balançando a cabeça, mas não disse nada.
“Eu tenho que falar com a esposa”, disse Brunetti a Patta, e antes que o vice-questore dissesse qualquer coisa, o próprio commissario acrescentou: “Serei bem cuidadoso
com ela”.
“E a sua?”, perguntou Patta.
Isso podia significar várias coisas, mas Brunetti optou por responder ao sentido mais óbvio da pergunta. “Ela esteve em casa durante toda a noite passada, comigo
e com nossos filhos. Nenhum de nós saiu de casa depois das sete e meia, quando o meu filho chegou da casa de um amigo, onde esteve estudando.” Então fez uma pausa,
para ver se Patta faria outra pergunta. Uma vez que este se manteve em silêncio, Brunetti saiu do gabinete sem dizer ou perguntar mais nada.
A signorina Elettra tirou os olhos de alguns documentos sobre sua mesa e, sem se preocupar em disfarçar sua curiosidade, perguntou: “E?”.
“É meu”, disse Brunetti.
“Mas isso é uma loucura”, disse a signorina, antes que pudesse se conter. Rapidamente, ela acrescentou: “Digo, a imprensa vai fazer um escarcéu quando descobrir”.
Brunetti deu de ombros. Não havia muito que pudesse fazer para conter os ânimos da imprensa. Ignorando a observação dela, perguntou: “A senhorita conseguiu aqueles
documentos que eu lhe disse para deixar de lado?”.
Ele a observou enquanto ela refletia sobre as implicações dessa pergunta: acusações de desobediência e insubordinação, incapacidade de obedecer a uma ordem direta
de um superior, demissão por justa causa, destruição de carreira. “Mas claro, senhor”, foi a resposta dela.
“E a senhorita pode me dar uma cópia?”
“Em alguns minutos. Eles estão escondidos por aqui, em algum lugar”, ela explicou, apontando para a tela do computador.
“Onde?”
“Num arquivo que eu acho que ninguém além de mim encontraria.”
“Ninguém?”
“Ah”, ela disse altivamente, “se forem tão bons quanto eu, talvez.”
“E isso é provável?”
“Não, pelo menos não por aqui.”
“Bom. Traga-os para mim assim que estiverem impressos, está bem?”
“Claro, senhor.”
Ele se despediu dela com um aceno de mão e voltou para o andar de cima.
Ligou para Rizzardi imediatamente, e encontrou o patologista em seu consultório, no hospital. “Você está com tempo para conversar?”, perguntou Brunetti depois de
se identificar ao médico.
“Não, entro daqui a uma hora. O primeiro caso da lista é um suicídio. Jovem, menina, apenas dezesseis anos. O namorado a deixou e ela tomou todos os soníferos da
mãe.”
Brunetti lembrou que Rizzardi se casara tarde e que seus filhos eram adolescentes. Duas meninas, se estava bem lembrado. “Pobre garota”, disse Brunetti.
“Sim.” Rizzardi permitiu que uma pausa se estabelecesse, então prosseguiu. “Acho que não há nenhuma dúvida. Pode ter sido um cabo fino, provavelmente encapado com
plástico.”
“Como um fio elétrico?”
“É o mais provável. Só vou saber quando examinar mais de perto. Pode até mesmo ter sido aquele fio duplo que se utiliza para conectar caixas acústicas. Havia uns
vestígios bem tênues de uma segunda marca, paralela à outra, mas isso pode ter acontecido porque o assassino afrouxou o fio por um momento para conseguir um aperto
melhor. Vou saber mais assim que observar com um microscópio.”
“Homem ou mulher?”, Brunetti perguntou.
“Ambos, eu diria. Isto é, ambos poderiam tê-lo feito. Se você chega por trás de alguém com uma corda, a pessoa não tem chance alguma; não importa a força que você
tenha. Mas normalmente os estranguladores são homens: acho que as mulheres não se julgam fortes o bastante para isso.”
“Graças a Deus, pelo menos isso.”
“E aparentemente há algo sob as unhas de sua mão esquerda.”
“Algo?”
“Pele, se tivermos sorte. Ou algum vestígio das roupas que o assassino vestia. Saberei assim que examinar mais de perto.”
“E isso seria suficiente para identificar alguém?”
“Se você encontrar esse alguém, sim.”
Brunetti refletiu por um momento, então perguntou: “Horário?”.
“Só vou saber quando olhá-lo por dentro. Mas a esposa o viu às sete e meia, quando saiu, e encontrou o corpo um pouco antes das dez, quando voltou. Então, não há
muita dúvida quanto a isso e nada que eu venha a descobrir poderia determinar o horário com maior precisão.” Rizzardi interrompeu-se por um momento, tapou o bocal
do telefone com a mão e falou com alguém que estava ao seu lado. “Tenho que ir agora. Ela já está na mesa.” Antes mesmo que Brunetti pudesse agradecer, Rizzardi
disse: “Mando tudo para você amanhã”, e desligou.
Embora estivesse ansioso para ir falar com a signora Mitri, Brunetti se obrigou a ficar sentado à mesa até que a signorina Elettra lhe trouxesse a informação sobre
Mitri e Zambino, o que ela fez depois de uns cinco minutos.
Ela entrou depois de bater à porta e colocou duas pastas sobre a mesa, sem dizer nada. “Quanto do que tem aí é de conhecimento público?”, perguntou Brunetti, olhando
para as pastas.
“A maioria veio dos jornais. Mas parte vem dos bancos em que eles têm conta e dos contratos de incorporação de suas várias empresas.”
Brunetti não conseguiu se conter. “E como a senhora tem acesso a isso?”
Notando que havia apenas curiosidade, e não louvor, na voz do commissario, ela não sorriu. “Tenho alguns amigos que trabalham na prefeitura e em bancos. De vez em
quando, eu peço a eles que me resolvam algumas dúvidas.”
“E o que você lhes dá em troca?” Perguntou Brunetti, finalmente fazendo a pergunta que o incomodava há anos.
“Muito do que sabemos aqui, commissario, logo se torna de conhecimento geral, ou, no mínimo, de conhecimento público.”
“Isto não é uma resposta, signorina.”
“Eu nunca passei nenhuma informação policial a alguém que não tivesse o direito de conhecê-la.”
“Legal ou moral?”, perguntou Brunetti.
Ela estudou o rosto dele por um longo tempo, e então respondeu: “Legal”.
Brunetti sabia que o único preço alto o suficiente para certo tipo de informação era outra informação, por isso insistiu: “E então, como é que a senhorita consegue
tudo isto?”.
Ela pensou na pergunta por um momento. “Eu também aconselho meus amigos quanto a métodos mais eficientes de obter informações.”
“E o que isso quer dizer, em linguagem corrente?”
“Eu lhes ensino como bisbilhotar e onde procurar.” E, antes que Brunetti pudesse reagir, ela continuou. “Mas eu nunca, senhor, nunca forneci nenhum tipo de informação
confidencial, nem a meus amigos, nem àqueles que não são meus amigos, mas com quem troco informações. Eu gostaria que o senhor acreditasse nisso.”
Ele fez um gesto com a cabeça para indicar que acreditava, resistindo à tentação de perguntar se alguma vez ela já tinha ensinado alguém a obter informações da polícia.
Em vez disso, ele bateu nas pastas novamente. “Teremos mais informações?”
“Talvez uma extensa lista dos clientes de Zambino, mas eu não creio que haja algo mais a ser descoberto sobre o Mitri.”
Claro que havia, disse Brunetti para si mesmo: havia o motivo pelo qual ele ou ela colocaria um fio ao redor de sua garganta e o puxaria com força até interromper
sua vida. “Vou dar uma olhada, então”, ele disse.
“Acho que eles falam por si, mas se o senhor tiver alguma dúvida, pode me perguntar.”
“Mais alguém sabe que a senhorita me deu isto?”
“Não, claro que não”, ela disse, e saiu do gabinete.
Ele preferiu começar pela pasta mais fina, a de Zambino. Nascido em Modena, o advogado estudou na Universidade Cà Foscari e começou a praticar o ofício em Veneza,
há cerca de vinte anos. Especializou-se em advocacia empresarial e adquiriu reputação na cidade. A signorina Elettra tinha anexado uma lista de alguns de seus clientes
mais conhecidos; Brunetti reconheceu boa parte deles. Não havia um padrão aparente, e por certo Zambino não trabalhava somente para os ricos: a lista trazia tantos
nomes de garçons e vendedores quanto de médicos e banqueiros. Embora ele houvesse aceitado alguns casos criminais, sua principal fonte de rendimentos era o trabalho
para empresas, sobre o qual Vianello já comentara com Brunetti. Casado há vinte e cinco anos com uma professora, ele tinha quatro filhos, e nenhum deles teve problemas
com a polícia. Ele nem mesmo era, Brunetti notou, um homem rico; pelo menos, não possuía riquezas em território italiano.
A maldita agência de viagens do campo Manin já pertencia a Mitri fazia seis anos, embora, ironicamente, ele não estivesse nada envolvido com a administração cotidiana
do negócio. Um gerente que alugara a licença de operar a agência cuidava de toda a parte prática; aparentemente, esse gerente havia decidido promover as excursões
que tinham provocado a ação de Paola e pareciam ter sido a causa do assassinato de Mitri. Brunetti anotou o nome do gerente e continuou a ler.
A esposa de Mitri também era veneziana, dois anos mais jovem que o marido. Embora eles tivessem apenas um filho, ela nunca trabalhara, e Brunetti não se lembrava
de ter visto seu nome envolvido em qualquer das instituições de caridade da cidade. Mitri tinha ainda um irmão, uma irmã e um primo. O irmão, que também era químico,
morava perto de Padova, a irmã, em Verona, e o primo, na Argentina.
A seguir vinham os números de três contas bancárias mantidas em diferentes bancos da cidade, uma lista de títulos da dívida pública e aplicações em ações: tudo isso
somava mais de um bilhão de liras. E era tudo. Mitri nunca tinha sido acusado de um crime e nunca, nem sequer uma vez em mais de meio século, havia despertado a
atenção da polícia por qualquer motivo.
Em vez disso, pensou Brunetti, ele provavelmente tinha chamado a atenção de alguém que pensava como Paola - e embora tentasse, Brunetti não conseguia evitar este
pensamento - e que, como sua esposa, tinha decidido fazer uso da violência para expressar sua oposição às excursões promovidas pela agência de viagens. Brunetti
sabia que a história estava coalhada de casos em que as pessoas erradas eram assassinadas. O filho bom do kaiser Wilhelm, Friedrich, viveu por apenas alguns meses
após a morte do pai, deixando livre o caminho da sucessão para seu próprio filho, Wilhelm II, e abrindo assim o caminho para a primeira verdadeira guerra mundial.
A morte de Germânico pusera em risco a sucessão e, no limite, levara a Nero. Mas estes foram casos em que o destino, ou a história, interveio; ninguém usara um fio
para arrastar a vítima à morte; nenhuma escolha intencional havia sido feita.
Brunetti ligou para Vianello, que atendeu ao segundo toque. “A perícia já analisou o bilhete?”, perguntou sem preâmbulo.
“Provavelmente. O senhor quer que eu vá lá embaixo perguntar a eles?”
“Sim, e se o resultado estiver pronto, traga-o para cá.”
Enquanto esperava por Vianello, Brunetti examinou novamente a pequena lista dos clientes de Zambino acusados de crimes comuns, tentando lembrar o que pudesse sobre
os nomes que havia reconhecido. Havia um caso de homicídio e, embora o homem tivesse sido condenado, a sentença fora reduzida a apenas sete anos, pois Zambino trouxe
algumas mulheres que viviam no mesmo prédio que a vítima para testemunhar a seu respeito. As mulheres alegaram que por muitos anos a vítima as ofendera no elevador
e nos corredores do prédio. Zambino tinha conseguido convencer os jurados que seu cliente estava defendendo a honra de sua esposa quando começou a brigar em um bar.
Em outro julgamento, dois suspeitos de roubo foram soltos por falta de provas: Zambino argumentara que eles haviam sido presos só porque eram albaneses.
Brunetti foi interrompido por uma batida na porta, seguida da entrada de Vianello, que trazia um enorme envelope de plástico transparente na mão direita, que levantou
enquanto entrava. “Eles acabaram de terminar. Nada. ‘Lavata con Perlana’”, Vianello arrematou, fazendo uso do mais famoso slogan televisivo da década. Tudo fica
mais limpo quando se lava com Perlana. Mais limpo que isso, Brunetti pensou, só um bilhete deixado na cena de um crime para ser encontrado e examinado pela polícia.
Vianello se adiantou e pôs o envelope sobre a mesa de Brunetti. Apoiando seu peso nas mãos e inclinando-se para a frente, analisou-o com o commissario.
Pareceu a Brunetti que as palavras haviam sido extraídas do La Nuova, o mais sensacionalista e quase sempre o mais vulgar dos jornais da cidade. Ele não podia afirmar
com certeza, mas os técnicos saberiam dizer. Elas tinham sido coladas em uma das metades de uma folha de papel pautado. “Pederastas nojentos e pornógrafos infantis.
Todos vocês morrerão assim.”
Brunetti pegou uma das pontas do envelope e o virou. Tudo o que se podia ver eram as mesmas linhas e uns poucos pedaços onde a cola tinha atravessado o papel, manchando-o
de cinza. Virando o envelope de novo, ele o leu mais uma vez. “Parece que houve algum mal-entendido, não?”, ele perguntou.
“Pra dizer o mínimo”, concordou Vianello.
Embora Paola tivesse dito ao policial que a prendeu por que quebrara a vitrine, ela não chegou a conversar com nenhum dos repórteres, exceto rapidamente e sob pressão.
Então, quaisquer histórias que os jornais trouxessem sobre seus motivos teriam vindo de alguma outra fonte: o tenente Scarpa era uma boa aposta. As reportagens que
Brunetti havia lido não faziam senão sugerir que o seu impulso motivador era o “feminismo”, embora o termo jamais fosse definido. As excursões promovidas pela agência
eram mencionadas, mas a acusação de que seriam de fato excursões sexuais havia sido negada veementemente pelo gerente, que insistiu que a maioria dos homens que
compravam passagens para Bangcoc em sua agência viajava com a esposa. O Gazzettino, lembrou-se Brunetti, trazia uma extensa entrevista com ele, na qual ele expressava
seu espanto e nojo à menção de turismo sexual, assinalando com cuidado e repetidamente que se tratava de algo proibido na Itália, sendo assim inconcebível que qualquer
agência de turismo legalmente estabelecida desempenhasse algum papel em sua organização.
Assim, o peso da opinião e da autoridade era invocado contra Paola, uma “feminista” histérica, e em benefício do gerente cumpridor da lei e, por trás dele, do assassinado
dottor Mitri. Quem quer que houvesse tido a ideia dos “pornógrafos infantis” teria entendido tudo muitíssimo errado.
“Acho que está na hora de falarmos com algumas pessoas”, disse Brunetti, ficando de pé. “Começando pelo gerente da agência. Eu gostaria de ouvir o que ele tem a
dizer sobre todas essas esposas que querem ir a Bangcoc.”
Brunetti olhou para seu relógio de pulso e viu que eram quase duas horas. “A signorina Elettra ainda está por aqui?”, perguntou a Vianello.
“Sim, senhor. Estava quando eu subi.”
“Bom. Eu queria ter uma palavra com ela, e depois talvez pudéssemos sair para comer alguma coisa.”
Confuso, Vianello fez um gesto com a cabeça e acompanhou seu superior até o andar de baixo, à sala da signorina Elettra. Da porta, ele observou Brunetti se inclinar
e conversar com a signorina, e viu e ouviu sua risada. Ela balançou a cabeça e voltou-se para seu computador. Brunetti se juntou a Vianello e os dois desceram para
o bar da Ponte dei Grechi, onde tomaram vinho e tramezzini, jogando conversa fora. Brunetti não parecia ter pressa em sair, então eles pediram outra rodada de sanduíches
e mais uma taça de vinho.
Meia hora depois, a signorina Elettra entrou, conseguindo arrancar um sorriso do barman e uma oferta de café de dois homens que estavam no bar. Embora o bar ficasse
a menos de um quarteirão da questura, ela tinha vestido um casaco de seda preto que cobria suas ancas. Balançou a cabeça recusando polidamente o café, foi até os
dois policiais e tirou do bolso algumas folhas de papel, entregando-as a eles. “Brincadeira de criança.” E balançou a cabeça fingindo desolação. “Fácil demais.”
“Claro.” Brunetti sorriu e pagou pelo almoço improvisado.
13
Brunetti e Vianello chegaram à agência de viagens bem na hora em que ela estava abrindo, depois do almoço, às três e meia, e pediram para falar com o signor Dorandi.
Brunetti passou os olhos pelo campo às suas costas e percebeu que o vidro da vitrine estava tão limpo que parecia invisível. A recepcionista loira perguntou seus
nomes, apertou um botão do telefone e, passado um momento, a porta à sua esquerda se abriu, revelando o signor Dorandi.
Não tão alto quanto Brunetti, ele tinha uma barba espessa que já começava a ficar grisalha, embora não aparentasse muito mais que trinta anos. Quando viu o uniforme
de Vianello, apressou-se em estender-lhe a mão, com um sorriso brotando dos cantos da boca. “Ah, a polícia. Fico feliz por terem vindo.”
Brunetti disse boa tarde, mas não disse seus nomes, deixando que o uniforme de Vianello bastasse como apresentação. Perguntou se poderiam conversar em seu escritório.
Voltando-se, o homem de barba abriu a porta para os outros dois, fazendo uma pausa para lhes perguntar se aceitariam um café. Os dois recusaram.
Dentro, as paredes estavam repletas dos previsíveis pôsteres de praias, templos e palácios, prova suficiente de que uma economia ruim e a conversa constante sobre
as crises econômicas não bastavam para prender os italianos em casa. Dorandi assumiu o lugar atrás de sua mesa, afastou alguns papéis para o lado e se voltou para
Brunetti, que pôs seu paletó nas costas de uma das cadeiras de frente para Dorandi e se sentou. Vianello sentou-se na outra.
Havia algo errado com o paletó que Dorandi vestia. Distraído, Brunetti tentou identificar o que seria, se a roupa era muito grande ou muito pequena, mas não parecia
ser nem um nem outro. De fechamento duplo, o paletó era feito de algum grosso material azul, que parecia lã, mas que bem podia ser gesso. O casaco tinha um caimento
reto: desde o ombro, até desaparecer atrás da mesa, não apresentava uma única ruga. O rosto de Dorandi passou a mesma impressão a Brunetti, como se algo estivesse
faltando, mas ele não conseguia identificar o que seria. Foi então que viu o bigode. Dorandi tinha raspado a parte de cima, deixando nua a área acima do lábio superior,
de modo que o adorno corria em uma fina linha reta sob seu nariz para desaparecer dos dois lados de sua barba. O corte tinha sido feito com tanto esmero que claramente
não resultara do trabalho de uma mão descuidada, mas as proporções do bigode haviam sido destruídas, e o resultado ficara artificial em vez de aparentar ter crescido
naturalmente.
“O que posso fazer pelos senhores?”, perguntou Dorandi, sorrindo e cruzando as mãos à sua frente.
“Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre o dottor Mitri e a agência, se o senhor não se incomodar”, disse Brunetti.
“Mas claro, com prazer.” Dorandi fez uma pequena pausa, enquanto refletia por onde começar. “Eu o conhecia fazia anos, desde que vim trabalhar aqui.”
“E quando foi isso exatamente?”, perguntou Brunetti.
Vianello puxou um bloquinho do bolso, abriu-o em seu colo e começou a tomar notas.
Dorandi virou o rosto de lado e encarou o pôster na parede oposta, buscando a resposta no Rio de Janeiro. Voltando-se novamente para Brunetti, disse: “Em janeiro
se completarão exatamente seis anos”.
“E qual era o seu cargo quando começou?”
“O mesmo de agora: gerente.”
“Mas o senhor não é também proprietário?”
Dorandi sorriu ao responder. “Sou, em tudo, menos no nome. Eu sou o dono do negócio, mas o dono da licença para operar ainda é o dottor Mitri.”
“E o que, exatamente, isso quer dizer?”
Mais uma vez, Dorandi apelou para a providencial cidade na parede oposta. Ao encontrar a resposta, voltou-se novamente para Brunetti. “Quer dizer que eu decido sobre
as contratações e as demissões, sobre que tipo de publicidade usar, que ofertas promover, e também fico com a maior parte do lucro.”
“Qual a sua parte?”
“Setenta e cinco por cento.”
“E o resto vai para o dottor Mitri?”
“Sim, e mais o aluguel.”
“Que é de?”
“O aluguel?”, perguntou Dorandi.
“Sim.”
“Três milhões de liras por mês.”
“E os lucros?”
“Por que é que o senhor precisa saber disso?”, perguntou Dorandi no mesmo tom de voz.
“A esta altura, signore, eu não tenho ideia do que preciso ou não preciso saber. Estou simplesmente tentando acumular o maior número possível de informações sobre
o dottor Mitri e seus negócios.”
“E para quê?”
“Para entender melhor por que ele foi assassinado.”
A resposta de Dorandi veio de pronto. “Eu achei que o bilhete que vocês encontraram havia deixado isso bem claro.”
Brunetti levantou uma mão, como que em concessão a essa possibilidade. “Mesmo assim, eu acho que é importante sabermos quanto pudermos sobre ele.”
“Havia um bilhete, não havia?”, arguiu Dorandi.
“Onde o senhor ouviu falar disso, signor Dorandi?”
“Estava nos jornais, em dois deles.”
Brunetti admitiu. “Sim, havia um bilhete.”
“E ele dizia o que saiu nos jornais?”
Brunetti, que havia lido os jornais, confirmou com a cabeça.
“Mas é um absurdo”, disse Dorandi, com a voz elevada, como se o próprio Brunetti tivesse escrito aquelas palavras. “Não há pornografia infantil aqui. Não estamos
à cata de pederastas. A coisa toda é rídícula.”
“O senhor tem alguma ideia do motivo de alguém ter escrito aquilo, signore ?”
“Provavelmente por causa daquela louca”, Dorandi disse, sem preocupar-se em disfarçar seu desprezo e sua raiva.
“E que louca seria essa?”
Dorandi fez uma longa pausa antes de responder, estudando cuidadosamente o rosto de Brunetti, tentando identificar a armadilha embutida na pergunta. Por fim, disse:
“Aquela mulher que jogou a pedra. Foi ela que começou tudo. Se ela não tivesse começado com suas acusações malucas - tudo mentira, tudo mentira -, então nada disso
teria acontecido”.
“Elas são mentirosas, signor Dorandi?”
“Como o senhor se atreve a perguntar isso?” Dorandi se inclinou na direção de Brunetti, elevando a voz. “É claro que são mentirosas. Nós não temos nenhuma relação
com pornografia infantil ou com pederastas.”
“Era isso o que dizia o bilhete, signor Dorandi.”
“E que diferença isso faz?”
“São duas acusações diferentes, signore. Estou tentando entender por que a pessoa que escreveu o bilhete chegou a acreditar que a agência estava envolvida com pederastia
e pornografia infantil.”
“E eu lhe disse o porquê”, disse Dorandi, em um tom de crescente exasperação. “Por causa daquela mulher. Ela foi a todos os jornais, ficou me difamando, difamando
a agência, dizendo que nós promovíamos o turismo sexual...”
“Mas nada sobre pederastia ou pornografia infantil?”, Brunetti interrompeu.
“E faz diferença para uma louca? É tudo a mesma coisa para eles, o que quer que tenha a ver com sexo.”
“Então as excursões organizadas pela agência tinham algo a ver com sexo?”
“Não foi isso o que eu disse”, Dorandi gritou. Então, percebendo que falava alto demais, fechou os olhos por um momento, abriu e voltou a cerrar as mãos cuidadosamente
e, em um tom de voz absolutamente normal, disse: “Não foi isso o que eu disse”.
“Eu devo ter entendido errado.” Brunetti deu de ombros, então perguntou: “Mas por que essa louca, como o senhor a chama, diria essas coisas? Por que qualquer pessoa,
na verdade, diria essas coisas?”.
“Um mal-entendido.” O sorriso de Dorandi estava de volta. “O senhor sabe como são essas pessoas: elas enxergam aquilo que querem enxergar, fazem as coisas significarem
o que elas querem que as coisas signifiquem.”
“O senhor pode ser mais específico?”, Brunetti perguntou com uma expressão de prazer.
“Refiro-me especificamente ao que essa mulher fez. Ela vê os nossos pôsteres de excursões a lugares exóticos - Tailândia, Cuba, Sri Lanka -, depois lê algum artigo
histérico em alguma revista feminista que denuncia a existência de prostituição infantil nesses lugares e informa que as agências de viagens promovem excursões para
lá, turismo sexual, daí ela junta as duas coisas de alguma forma insana, vem para cá à noite e destrói minha vitrine.”
“O senhor não acha que essa é uma reação exagerada? Assim, sem provas?” A voz de Brunetti era totalmente doce e racional.
Dorandi respondeu com mais que uma pitada de sarcasmo. “É por isso que eles são chamados de doidos, porque fazem doidices. É claro que é uma reação excessiva. E
totalmente sem motivo.”
Brunetti permitiu que uma longa pausa se estabelecesse entre eles, então disse: “No Gazzettino foi citada uma declaração sua, em que dizia que nas excursões para
Bangcoc vão tanto mulheres quanto homens. Isto é, que a maioria dos homens que compra as passagens para lá leva consigo suas esposas.”
Dorandi olhou para baixo, para as suas mãos entrelaçadas, mas não respondeu. Brunetti procurou nos bolsos de seu paletó e de lá retirou as folhas de papel que a
signorina Elettra havia lhe entregado. “O senhor poderia ser um pouco mais preciso quanto a isso, signor Dorandi?”, perguntou Brunetti, olhando para baixo, para
os papéis.
“Sobre o quê?”
“Sobre o número de homens que levam consigo suas esposas quando vão para Bangcoc. No ano passado, por exemplo.”
“Eu não sei do que o senhor está falando.”
Brunetti não se deu ao trabalho de sorrir para ele. “Signor Dorandi, eu devo lembrá-lo de que esta é a investigação de um assassinato, o que significa que nós temos
o direito de requerer, ou exigir, se formos forçados a isso, certas informações dos envolvidos.”
“O que o senhor quer dizer com ‘envolvidos’?”, Dorandi balbuciou.
“Isto deveria estar claro para o senhor”, Brunetti respondeu em voz firme. “Esta é uma agência de viagens, que vende um certo número de passagens e promove excursões
para o que o senhor chama de locais ‘exóticos’. Foi feita uma acusação de que essas excursões têm por fim o turismo sexual, o que, o senhor deve lembrar-se, agora
é ilegal neste país. Um homem, o proprietário desta agência, foi assassinado e um bilhete foi deixado sugerindo que essas excursões podem ter motivado o crime. O
senhor mesmo parece acreditar que há uma ligação. Então, tudo indica que a agência está envolvida, assim como o senhor, por ser seu gerente.” Brunetti fez uma pequena
pausa antes de perguntar: “Fui claro?”.
“Sim.” Disse Dorandi com uma voz séria.
“Então, o senhor poderia me dizer em que medida foi precisa - ou, se o senhor me permite falar com franqueza -, em que medida foi verdadeira a sua declaração de
que a maioria dos homens que vão para Bangcoc leva as esposas junto?”
“Mas é claro que é verdade”, Dorandi insistiu, deslocando-se para o lado esquerdo de sua cadeira, com uma das mãos ainda sobre a mesa à sua frente.
“Não é o que diz o registro de suas vendas, signor Dorandi.”
“Minhas o quê?”
“As vendas de passagens feitas por sua agência, que estão todas, como o senhor certamente sabe, armazenadas em um sistema central de computadores.” Brunetti olhou
para o registro e prosseguiu. “A maioria das passagens para Bangcoc que a sua agência vendeu, pelo menos durante os últimos seis meses, foi para homens viajando
sozinhos.”
Antes que pudesse pensar, Doranti explodiu: “As esposas juntaram-se a eles depois. Eles estavam viajando a negócios, os homens, e as esposas juntaram-se a eles”.
“E elas compraram as passagens de sua agência?”
“Como é que eu vou saber?”
Brunetti colocou os documentos, voltados para cima, na mesa à sua frente, deixando-os abertos e bem à vista, caso Dorandi quisesse lê-los. Respirou fundo. “Signor
Dorandi, vamos começar de novo? Vou repetir a minha pergunta, e desta vez gostaria que o senhor pensasse na sua resposta antes de dizê-la.” Ele fez uma longa pausa,
e então perguntou: “Os homens que compraram passagens para Bangcoc pela sua agência viajaram ou não viajaram com as esposas?”.
Dorandi levou um bom tempo para responder, mas finalmente disse: “Não”, e nada mais.
“E essas excursões que o senhor promove com ‘gerência tolerante’ e ‘local conveniente’” - a voz de Brunetti era absolutamente neutra, não se ouvindo nela o menor
traço de emoção - “são feitas com objetivos sexuais?”
“Eu não sei o que eles fazem quando chegam lá”, insistiu Dorandi. “Não é da minha conta.” Ele enfiou a cabeça no colarinho de seu paletó, que era muito largo, à
maneira de uma tartaruga sob ataque.
“O senhor sabe algo sobre o tipo de hotéis em que esses turistas específicos se hospedam?” Antes que Dorandi pudesse responder, Brunetti apoiou os cotovelos na mesa,
o queixo na palma de uma das mãos e olhou para a lista.
“Eles têm gerentes tolerantes”, Dorandi disse, finalmente.
“E isso quer dizer que eles permitem que prostitutas trabalhem ali, talvez até mesmo providenciando algumas delas?”
Dorandi deu de ombros. “Talvez.”
“Meninas? Não mulheres, meninas?”
Dorandi encarou o commissario por sobre a mesa. “Eu não sei nada a respeito dos hotéis além dos preços. O que os meus clientes fazem por lá não é da minha conta.”
“Meninas?”, Brunetti repetiu.
Dorandi agitou uma mão nervosamente no ar. “Eu já lhe disse, não é da minha conta.”
“Mas é da nossa conta agora, signor Dorandi, então eu prefiro que o senhor responda.”
Dorandi olhou para a parede novamente, mas não encontrou ali nenhuma solução conveniente. “Sim”, ele disse.
“E é por isso que o senhor prefere trabalhar com eles?”
“Eu os escolho porque eles me oferecem o preço mais baixo. Se os homens que vão para lá decidem levar prostitutas para seus quartos nesses hotéis, isso é da conta
deles.” Ele tentou, mas não conseguiu conter sua ira. “Eu vendo pacotes de viagem. Eu não prego a moralidade. Eu revisei cada palavra daqueles anúncios com meu advogado,
e não há nada remotamente ilegal neles. Eu não estou violando nenhuma lei.”
“Estou certo disso”, disse Brunetti, sem conseguir se conter. De repente, ele já não queria mais estar ali, e levantou-se. “Acho que já tomamos muito do seu tempo,
signor Dorandi. Vou deixá-lo agora, mas provavelmente vamos querer conversar com o senhor novamente.”
Dorandi não se deu ao trabalho de responder. Nem se levantou quando Brunetti e Vianello saíram da sala.
14
Enquanto cruzavam o campo Manin, Vianello e Brunetti sabiam, sem precisar falar sobre isso, que teriam de falar com a viúva agora, enquanto ainda estivessem fora,
em vez de retornar à questura. Para chegar ao apartamento dos Mitri, que ficava no campo del Ghetto Nuovo, eles voltaram na direção do Rialto e tomaram a barca número
1 até a estação.
Escolheram ficar do lado de fora, preferindo o frio do convés descoberto ao ar viciado que se acumulava na cabine de passageiros. Brunetti esperou até passarem sob
a Rialto, e só então perguntou a Vianello: “Então?”.
“Ele venderia a própria mãe por cem liras, não venderia?”, respondeu Vianello, sem tentar disfarçar seu desprezo. Depois de uma longa pausa, ele perguntou: “O senhor
acha que é a televisão?”.
Sem entender, Brunetti perguntou: “A televisão o quê?”.
“Que nos aliena tanto do mal que nós mesmos fazemos.” Ele percebeu que atraíra a atenção de Brunetti, e continuou. “É que, quando assistimos às coisas, lá na tevê,
é real, mas ao mesmo tempo não é, certo? Quer dizer, vemos tantas pessoas sendo baleadas e assassinadas, e nos vemos”, aqui ele fez uma pausa, sorriu um pouco e
explicou, “quer dizer, a polícia. Assistimos a nós mesmo descobrindo as coisas mais horríveis. Mas os policiais não são reais, nem as coisas. Então, talvez, se nós
vemos televisão demais, os horrores verdadeiros, quando acontecem, ou quando acontecem para os outros, não parecem reais também.”
Brunetti ficou um pouco confuso com o jeito de Vianello se expressar, mas achou que entendeu o que ele queria dizer e concordou com aquilo, de modo que respondeu:
“A que distância elas estão de nós, aquelas meninas de quem ele não sabe nada, quinze mil quilômetros? Vinte? Eu diria que provavelmente é muito fácil não perceber
o que acontece a elas como algo real. Ou, mesmo que perceba, provavelmente não é muito importante para ele”.
Vianello assentiu. “O senhor acha que vai piorar?”
Brunetti deu de ombros. “Há dias em que eu penso que tudo vai piorar, há dias em que eu sei que tudo já piorou. Mas então o sol nasce e eu mudo de ideia.”
Vianello balançou a cabeça novamente, desta vez acrescentando um abafado “hum-hum”.
“E você?”, Brunetti perguntou.
“Eu acho que é pior”, respondeu o sargento sem hesitar. “Como o senhor, entretanto, eu tenho dias em que tudo vai bem: meus filhos pulam em cima de mim quando eu
chego em casa, ou então Nadia está feliz e me contagia. Mas no geral eu acho que o mundo está se tornando um lugar cada vez mais inóspito.”
Tentando animar um pouco o seu companheiro, Brunetti disse: “Não nos resta muita escolha, não é?”.
Vianello teve a delicadeza de rir. “Não, acho que não. Para o bem ou para o mal, é tudo o que temos.” E, depois de uma pequena pausa, observando o palazzo que abrigava
o Casinò se aproximando. “Talvez seja diferente para nós porque temos filhos.”
“Por quê?”
“Porque nós podemos ao mesmo tempo imaginar o mundo em que eles vão viver e olhar para trás e lembrar daquele em que crescemos.”
Brunetti, um aplicado leitor de história, lembrou das inúmeras vezes em que os antigos romanos haviam praguejado contra as várias épocas que viveram, sempre insistindo
que a época de sua própria juventude, ou a de seus pais, havia sido superior, em todos os sentidos, àquela em que então se encontravam. E se lembrou dos violentos
discursos que faziam contra a insensibilidade dos jovens - a preguiça, a ignorância, a falta de respeito e obediência aos mais velhos -, e sentiu-se enormemente
confortado por essa lembrança. Se a cada época pensa-se desse jeito, então talvez estejamos sempre enganados e as coisas não estejam ficando piores. Ele não sabia
como explicar isso a Vianello, e não se sentiu confortável para citar Plínio, com medo de que o sargento não reconhecesse o escritor ou ficasse envergonhado ao ter
que demonstrar que não o conhecia.
Em vez disso, deu um tapinha caloroso no ombro do sargento enquanto a barca ancorava na parada de San Marcuola, e os dois desembarcaram, caminhando em fila indiana
pela estreita calle, abrindo caminho para as pessoas que corriam para alcançar o embarcadero.
“Não é algo que a gente possa resolver, não é, senhor?”, comentou Vianello quando eles chegaram à rua mais larga, que ladeava a igreja, e puderam caminhar lado a
lado.
“Eu duvido que haja alguém capaz de resolvê-lo”, disse Brunetti, sabendo como era vaga a resposta que escolhera, insatisfeito com ela desde o momento em que a proferiu.
“Posso lhe fazer uma pergunta, senhor?” O sargento começou a caminhar novamente. Os dois sabiam o endereço, de modo que tinham alguma ideia de onde a casa ficava.
“É sobre a sua esposa, senhor.”
Brunetti soube, pelo tom da pergunta, do que ela se trataria. “Sim?”
Mantendo os olhos fixados à frente, embora ninguém mais caminhasse em sua direção na estreita calle, Vianello perguntou: “Ela disse ao senhor por que fez aquilo?”.
Brunetti continuou a caminhar, acompanhando os passos de seu sargento. Olhou de lado para ele e respondeu: “Acho que está no relatório”.
“Ah”, disse Vianello. “Eu não sabia.”
“Você não o leu?”
Vianello parou novamente e se voltou para Brunetti. “Como era sobre a sua esposa, senhor, eu não achei que seria certo lê-lo.” Vianello era conhecido por sua lealdade
a Brunetti, de modo que era pouco provável que Landi, um seguidor de Scarpa, tivesse falado com ele sobre o assunto, e ele que havia prendido Paola e tomado o seu
depoimento.
Os dois homens voltaram a caminhar, e então Brunetti respondeu. “Ela disse que era errado promover excursões sexuais e que alguém deveria impedi-los.” Ele esperou
para ver se Vianello responderia, e como o sargento não o fez, ele continuou. “Ela me disse que, como a lei não fazia nada a respeito, ela iria fazer.” Brunetti
fez outra pausa, aguardando a reação de Vianello.
“Foi a sua esposa, na primeira vez?”
Sem hesitar, Brunetti respondeu: “Sim”.
Passo a passo, os pés perfeitamente alinhados. Finalmente, o sargento disse: “Bom pra ela”.
Brunetti se voltou para encarar Vianello, mas tudo o que viu foi seu perfil robusto e seu grande nariz. Antes que pudesse perguntar qualquer coisa, o outro parou
e disse: “Se for o seiscentos e sete, deve ficar logo depois desta esquina”. Ao dobrá-la, eles se viram em frente à casa.
A campainha dos Mitri era a mais alta de três. Brunetti tocou, esperou, e tocou novamente.
Do interfone veio uma voz que parecia sepulcral, fosse pelo luto ou por uma má conexão, perguntando quem era.
“Commissario Brunetti. Eu gostaria de falar com a signora Mitri.”
Por um longo momento não houve resposta, então a voz disse “Um minuto” e sumiu.
Muito mais de um minuto se passou antes que se ouvisse o clique da porta. Brunetti a empurrou e abriu caminho até um grande átrio, onde duas grandes palmeiras cresciam
ao lado de uma fonte redonda. Uma luz filtrada se projetava do céu.
Eles atravessaram a passagem à frente e se dirigiram às escadas nos fundos do prédio. Assim como no prédio de Brunetti, a pintura das paredes estava descascando,
vítima do sal que subia pela absorção das águas dos canais. Retalhos do tamanho de moedas de uma lira estavam pelo chão, varridos ou chutados para os lados da escada,
expondo os tijolos dos muros. Quando chegaram ao primeiro patamar, puderam ver a linha horizontal que marcava o ponto que a umidade tinha atingido: dali para cima,
as escadas estavam livres de manchas na pintura; os muros eram lisos e brancos.
Brunetti pensou na estimativa de custos que uma companhia de engenharia fornecera aos sete proprietários dos apartamentos em seu próprio prédio para resolver a umidade:
uma soma enorme. Deprimido, afastou imediatamente aquele pensamento de sua mente.
No topo da escadaria, a porta se abriu e uma jovem, mais ou menos da idade de Chiara, apareceu atrás dela, com o corpo meio escondido.
Brunetti parou e disse, sem oferecer a mão em cumprimento: “Sou o commissario Brunetti e este é o sargento Vianello. Gostaríamos de falar com a signora Mitri”.
A garota não se mexeu. “Minha avó não está bem.” A voz dela oscilava com o nervosismo.
“Lamento ouvir isso”, disse Brunetti. “E lamento pelo que aconteceu a seu avô. É por isso que estou aqui, para tentarmos fazer algo a respeito disso.”
“Minha avó diz que não há nada que se possa fazer.”
“Talvez possamos descobrir quem fez isso.”
A garota refletiu um pouco. Tão alta quanto Chiara, ela tinha cabelos castanhos partidos ao meio que caíam sobre seus ombros. Ela não seria bela quando crescesse,
pensou Brunetti, mas isso não tinha nada a ver com seus traços, que eram finos e regulares: olhos bem espaçados e uma boca bem definida. Sua insipidez era decorrência
inevitável de uma total falta de animação quando falava ou ouvia. Sua placidez e inércia davam a impressão de que ela não prestava atenção no que dizia ou, de certo
modo, de que não participava de fato da conversa. “Podemos entrar?”, ele perguntou, dando um passo à frente enquanto falava, tanto para tornar a decisão dela mais
fácil quanto para deixá-la sem alternativa.
Ela não disse nada, mas se afastou, segurando a porta para eles. Polidamente, os dois pediram permissão para entrar e a seguiram apartamento adentro.
Um longo corredor central conduzia da porta para um conjunto de quatro janelas góticas, no lado oposto. O sentido de orientação disse a Brunetti que a luz devia
estar vindo do Rio di San Girolamo, notadamente porque a distância entre os prédios ali visíveis era tão grande: o único espaço aberto assim tão largo era o da extensão
do rio.
A garota os levou até o primeiro quarto à direita, uma grande sala de estar com uma lareira ladeada por duas janelas, com aproximadamente dois metros de altura cada
uma. Ela indicou o sofá que ficava de frente para a lareira, mas nenhum dos homens se sentou.
“A senhorita poderia dizer a sua avó que estamos aqui?”, pediu Brunetti.
Ela fez um gesto com a cabeça, mas disse: “Acho que ela não quer falar com ninguém”.
“Por favor, diga a ela que é muito importante”, insistiu Brunetti. Pensando na melhor maneira de deixar claro que pretendia ficar, ele tirou o sobretudo e o colocou
nas costas de uma cadeira, depois se sentou em uma ponta do sofá. Fez um gesto a Vianello para que se juntasse a ele, o que o sargento fez, primeiro colocando o
seu casaco sobre o de Brunetti, e depois se sentando na outra ponta do sofá. Vianello tirou seu bloco do bolso e pendurou a caneta na página da frente. Nenhum deles
disse uma palavra.
A menina deixou o cômodo, e os dois homens aproveitaram a oportunidade para examinar os arredores. Um grande espelho dourado pairava sobre uma mesa, na qual repousava
um enorme arranjo de gladíolos vermelhos, refletidos pelo espelho em cor e número, de modo que pareciam multiplicar-se e encher o aposento. Um tapete de seda, que
Brunetti pensou tratar-se de um Nain, estendia-se em frente à lareira, tão perto do sofá que todos que ali se sentassem seriam forçados a pôr os pés sobre ele. Havia
um baú de carvalho apoiado contra a parede oposta às flores, e sobre ele uma grande bandeja de latão escurecida pela idade. A riqueza e a opulência, embora discretas,
eram evidentes.
Antes que pudessem fazer qualquer comentário, a porta se abriu à entrada de uma mulher na casa dos cinquenta. Imponente, trajava um vestido de lã cinza que passava
dos joelhos. Tinha um quadril firme e pés pequenos calçando uns sapatos que pareciam desconfortavelmente apertados. Os cabelos e a maquiagem estavam perfeitos, evidenciando
grande dedicação de tempo e esforço. Seus olhos eram mais claros que os da neta, os traços mais rijos: na verdade, a semelhança familiar entre as duas era mínima,
salvo pela placidez do trato.
Os dois se levantaram prontamente e Brunetti foi até ela. “Signora Mitri?”
Ela anuiu em silêncio.
“Sou o commissario Brunetti e este é o sargento Vianello. Gostaríamos de conversar um pouco com a senhora sobre o seu marido e sobre essa coisa terrível que aconteceu
a ele.” Ouvindo isso, ela fechou os olhos e se manteve em silêncio.
Seu rosto demonstrava a mesma ausência de ânimo que era tão perceptível em sua neta, e Brunetti pôs-se a refletir se a filha, que morava em Roma e devia ser a mãe
da menina, também apresentaria essa mesma imobilidade.
“O que desejam saber?”, disse a signora Mitri, ainda de pé em frente a Brunetti. Sua voz tinha o tom agudo comum às mulheres que já haviam passado pela menopausa.
Ainda que, como sabia Brunetti, ela fosse veneziana, optou por falar em italiano, como ele.
Antes de responder, Brunetti afastou-se do sofá e indicou-lhe com a mão o lugar que até então ocupara. Ela se acomodou ali imediatamente, e então os dois homens
voltaram a se sentar, Vianello no mesmo lugar de antes e Brunetti em uma espreguiçadeira forrada de veludo virada para a janela.
“Signora, eu gostaria de saber se o seu marido alguma vez comentou a respeito de inimigos ou de alguém que o estaria ameaçando.”
Ela começou a balançar a cabeça em sinal de negação antes que Brunetti terminasse a pergunta, mas sem falar, deixando que o gesto servisse como resposta.
“Ele nunca mencionou algum desentendimento com outras pessoas, sócios? Talvez algum pacote ou contrato que não saiu como o planejado?”
“Não, nada”, ela falou afinal.
“Na vida pessoal, então. Algum problema com os vizinhos, ou talvez com algum amigo?”
Ela balançou a cabeça em sinal de negação, novamente sem dizer palavra alguma.
“Signora, peço que me desculpe pela minha ignorância, mas eu não sei quase nada sobre o seu marido.” Ela não disse nada sobre isso. “Será que eu poderia saber onde
ele trabalhava?” Ela pareceu tão surpresa com essa pergunta - como se Brunetti tivesse acabado de sugerir que Mitri batesse ponto por oito horas em uma fábrica -
que ele teve de esclarecê-la. “Quer dizer, em qual de suas fábricas ele tinha escritório? Em qual delas passava a maior parte de seu tempo?”
“Numa empresa química em Marghera. O escritório dele ficava lá.”
Brunetti anuiu, mas não pediu o endereço. Sabia que poderiam encontrá-lo facilmente. “A senhora tem alguma ideia do quanto ele estava envolvido com as várias empresas
e negócios que possuía?”
“Envolvido?”
“Diretamente, em sua administração cotidiana.”
“O senhor terá que perguntar isso à secretária dele.”
“Em Marghera?”
Ela fez que sim com a cabeça.
Enquanto conversavam, apesar da brevidade de suas respostas, Brunetti a observava, procurando sinais de abalo ou luto. A impassividade de seu rosto não ajudava,
mas ele pensou ter detectado sinais de tristeza, mais porque ela olhava continuamente para baixo, para suas mãos entrelaçadas, do que por qualquer coisa que ela
houvesse dito ou pelo tom de sua voz.
“Por quantos anos vocês foram casados, signora ?”
“Trinta e cinco”, ela disse sem hesitar.
“E foi a sua neta que nos recebeu?”
“Sim”, ela respondeu, com um sorriso mais que forçado quebrando a superfície de sua imobilidade. “Giovanna. Minha filha mora em Roma, mas Giovanna disse que queria
passar um tempo comigo. Agora.”
Brunetti fez um gesto com a cabeça para demonstrar que entendia, embora a preocupação da neta com a avó tornasse ainda mais estranho o seu plácido comportamento.
“Deve ser um grande alívio tê-la por aqui.”
“Sim, de fato”, a signora Mitri concordou, e desta vez seu rosto relaxou em um sorriso sincero. “Seria terrível ficar aqui sozinha.”
Brunetti assentiu baixando a cabeça e aguardou por alguns segundos antes de voltar a olhar diretamente para ela. “Só mais algumas perguntas, signora, então a senhora
poderá ficar sozinha com a sua neta novamente.” Ele não esperou que ela respondesse. Em vez disso, e sem preâmbulo, disse: “A senhora é a herdeira de seu marido?”.
A surpresa ficou patente em seus olhos - a primeira vez que algo pareceu tê-la abalado. “Sim, penso que sim”, ela disse, sem hesitação.
“O seu marido tem outra família?”
“Um irmão e uma irmã, e um primo, mas este emigrou para a Argentina anos atrás.”
“Mais ninguém?”
“Não, nenhum parente direto.”
“O signor Zambino era amigo do seu marido?”
“Quem?”
“O avvocato Giuliano Zambino.”
“Não que eu soubesse. Não.”
“Creio que ele era o advogado de seu marido.”
“Infelizmente sei muito pouco sobre os negócios de meu marido”, ela disse, e Brunetti foi forçado a se lembrar de quantas mulheres lhe haviam dito a mesma coisa
no curso desses anos. Revelou-se que pouquíssimas delas estavam dizendo a verdade, de modo que esta era uma resposta em que ele jamais acreditava. Vez ou outra,
ele sentia um grande incômodo com relação à forma como Paola estava a par dos seus próprios negócios, se é que se podia dar tal nome às identidades de estupradores,
aos resultados de autópsias desagradáveis e aos sobrenomes dos vários suspeitos que ganharam as páginas dos jornais, como “Giovanni S., 39, motorista de ônibus,
de Mestre” ou “Federico G, 59, pedreiro, de San Dona di Piave”. Brunetti sabia que poucos segredos resistiam ao leito matrimonial, o que o fez encarar com ceticismo
a ignorância professada pela signora Mitri. Não obstante, ele não a contestou.
Eles já sabiam o nome das pessoas com quem ela jantara na noite em que o marido fora assassinado, então não era preciso investigar isso agora. Em vez disso, ele
perguntou: “A senhora percebeu alguma alteração no comportamento do seu marido nas últimas semanas? Ou nos últimos dias?”.
Ela balançou a cabeça em negação veemente. “Não, ele era o mesmo de sempre.”
Brunetti queria perguntar a ela como isso se dava exatamente, mas resistiu e, em vez disso, levantou-se. “Obrigado, signora, por seu tempo e ajuda. Receio que precisarei
conversar com a senhora novamente assim que tivermos mais informações.” Brunetti notou que essa perspectiva não lhe agradou, mas pensou que ela não se negaria a
fornecer informações adicionais. Suas últimas palavras foram protocolares: “Espero que este momento lhe seja o menos doloroso possível e que a senhora encontre coragem
para suportá-lo”.
Ela sorriu à sinceridade dessas palavras, e novamente ele detectou doçura naquele sorriso.
Vianello se levantou, pegou seu sobretudo, entregou a Brunetti o dele e os dois os vestiram. Brunetti se dirigiu à porta. A signora Mitri se levantou e os acompanhou
até o limiar do apartamento.
Ali, Brunetti e Vianello se despediram dela e desceram pelas escadas até o átrio, onde as palmeiras ainda imperavam.
15
Na rua, ficaram em silêncio por algum tempo, enquanto voltavam ao embarcadero. Assim que chegaram, a barca 82 proveniente da estação estava atracando. Eles embarcaram,
sabendo que ela faria o contorno do Canale Grande, levando-os até San Zaccaria, a poucos passos da questura.
Como a tarde havia esfriado, eles foram para dentro e sentaram-se nos lugares da metade dianteira da cabine vazia. À sua frente estavam sentadas duas velhas, com
a cabeça coberta, conversando sobre o frio repentino num veneziano audível.
“Zambino?”, perguntou Vianello.
Brunetti anuiu. “Eu quero saber por que Mitri trouxe um advogado consigo quando foi falar com Patta.”
“E sobretudo um especializado em defesa criminal”, acrescentou Vianello, sem que fosse necessário. “Afinal, ele não tinha feito nada, certo?”
“Talvez ele quisesse ser orientado sobre o tipo de ação civil que poderia mover contra Paola caso eu conseguisse impedir que a polícia a autuasse da segunda vez.”
“Não havia a menor chance de isso ocorrer, havia?”, perguntou Vianello, num tom de voz que evidenciava o seu desgosto.
“Não, não com Landi e Scarpa envolvidos.”
Vianello resmungou qualquer coisa abafada, mas Brunetti nem ouviu nem pediu ao sargento que repetisse o que acabara de dizer. “Não estou seguro do que vai acontecer
agora.”
“Em relação a quê?”
“Ao caso. Se Mitri está morto, é pouco provável que sua herdeira processe Paola. Mas pode ser que o gerente o faça.”
“E quanto a...”, Vianello hesitou enquanto decidia como chamar a polícia. Acabou optando por um “...nossos colegas?”.
“Isso vai depender da avaliação do juiz encarregado.”
“Quem é ele? O senhor sabe?”
“Pagano, acho.”
Vianello refletiu, evocando os anos em que trabalhou com e para o juiz, um idoso que estava nos últimos anos de sua carreira. “Não seria do seu feitio abrir um processo,
não é?”
“Não, acho que não. Ele nunca se deu muito bem com o vice-questore, então é pouco provável que ceda a pressões nesse sentido ou que seja coagido.”
“Então o que vai acontecer? Uma multa?” Como Brunetti deu de ombros, Vianello deixou a questão de lado e perguntou: “E agora?”.
“Quero ver se chegou alguma coisa nova, depois iremos falar com o Zambino.”
Vianello deu uma espiada no relógio. “E vai dar tempo?”
Como de costume, Brunetti tinha perdido completamente a noção do tempo, e ficou surpreso ao ver que passava bastante das seis. “Não, acho que não. Na verdade, não
faz muito sentido voltar para a questura, faz?”
Vianello sorriu, especialmente porque a barca ainda estava amarrada na parada de Rialto. Ele foi em direção à saída. Quando chegou lá, sentiu os motores da embarcação
acelerarem e viu o marinheiro desamarrar a corda do pilar, começando a recolhê-la. “Espere”, ele gritou.
O marinheiro não respondeu, nem sequer olhou para ele, e o motor acelerou ainda mais.
“Espere”, gritou Vianello mais alto, e mais uma vez não conseguiu qualquer resultado.
Abrindo caminho por entre as pessoas no convés, ele tocou gentilmente o braço do marinheiro. “Sou eu, Marco”, disse, em tom completamente normal. O marinheiro olhou
para ele, viu o uniforme, reconheceu seu rosto e acenou com a mão para o capitão, que olhava para trás, observando a confusão no convés pela janela da sua cabine.
O marinheiro acenou novamente e o capitão fez uma manobra brusca, invertendo a direção do barco. Alguns dos que estavam no convés cambalearam enquanto tentavam manter
o equilíbrio. Uma mulher caiu pesadamente sobre Brunetti, que a amparou com um braço e a ajudou a aprumar-se. A última coisa que ele queria era uma queixa por brutalidade
policial ou o que quer que resultasse de sua queda. Mas ele a havia segurado antes mesmo de pensar nisso e, ao soltá-la, ficou satisfeito de ver que ela sorria agradecida.
Aos poucos, a barca fez uma volta na água, percorrendo meio metro até o embarcadero. O marinheiro abriu o portão e Vianello e Brunetti passaram por ele em direção
à plataforma de madeira à entrada da doca. Com um aceno, Vianello agradeceu-lhe; os motores aceleraram e a barca seguiu adiante.
“Mas por que você desceu?”, Brunetti perguntou. Era a sua parada, mas Vianello devia ter ficado até chegar ao Castello.
“Eu pego o próximo. E quanto a Zambino?”
“Amanhã de manhã”, respondeu Brunetti. “Mas não tão cedo. Primeiro vou ver se a signorina Elettra consegue descobrir algo que estamos deixando escapar.”
Vianello fez um gesto de aprovação. “Ela faz milagres”, ele disse. “Se eu o conhecesse bem, eu diria que o tenente Scarpa tem medo dela.”
“Eu o conheço bem”, respondeu Brunetti, “e ele tem medo dela. Porque ela não tem, nem de longe, medo dele. E isso a faz uma das poucas pessoas na questura que não
o temem.” Uma vez que ele e Vianello eram outros dois dos que também não temiam, Brunetti podia falar desse jeito. “Mas isso também o torna perigoso. Eu tentei alertá-la,
mas ela nem o leva em conta.”
“Mas devia”, disse Vianello.
Outra barca surgiu sob a ponte e começou a ancorar. Quando todos os passageiros desceram, Vianello subiu para o espaço aberto do convés. “A domani, capo.” Brunetti
acenou em retorno e tomou o seu caminho antes de ver os outros passageiros embarcarem.
Ele parou em um dos telefones públicos perto do cais e, de memória, ligou para o número do consultório de Rizzardi no hospital. O legista já tinha ido embora, mas
deixara com seu assistente uma mensagem para o commissario Brunetti, caso ele ligasse. Tudo se confirmara como o médico previra. Fora apenas um fio, encapado e com
a grossura de cerca de seis milímetros. Nada mais. Brunetti agradeceu ao assistente e seguiu pra casa.
O dia tinha levado todo o calor consigo. Brunetti lamentou não ter trazido o cachecol quando saiu de manhã, mas se conformou em levantar o colarinho do seu casaco
e enfiar o pescoço ali dentro. Passou rápido sobre a ponte, virando à esquerda lá embaixo e preferindo caminhar pelas margens do canal, atraído pelas luzes que emanavam
dos vários restaurantes ao longo do riva. Dobrando à direita, apressou o passo sob a passagem para o campo San Silvestro e, em seguida, tomou a esquerda em direção
a seu apartamento. Ao passar pela Biancat, ficou tentado pelas flores de íris da vitrine, mas lembrou que ainda estava com raiva de Paola e passou direto. Enfim
lembrou-se simplesmente de Paola, deu meia-volta, entrou na floricultura e comprou uma dúzia das roxas.
Quando chegou em casa, ela estava na cozinha, esticou o pescoço para ver quem tinha chegado, ele ou um dos filhos, e viu o pacote em seus braços. Ela veio pelo corredor,
com um pano molhado nas mãos. “O que você tem aí, Guido?”, ela perguntou, realmente intrigada.
“Abra e veja”, ele disse, entregando as flores a ela.
Jogando o pano nos ombros, ela pegou as flores. Ele se virou, tirou o casaco e pendurou-o no closet enquanto ouvia o ruído do pacote sendo aberto. De repente, fez-se
um silêncio, um silêncio mortal, e ele voltou-se para olhá-la, com medo de ter feito algo errado. “O que foi?”, perguntou ao ver sua expressão atônita.
Ela envolveu o buquê com os dois braços e puxou-o de encontro ao peito. Suas palavras foram abafadas pelo barulho do embrulho estalando.
“Quê?”, ele perguntou, inclinando-se um pouco, pois ela tinha abaixado a cabeça e mergulhado seu rosto entre as pétalas.
“Não consigo suportar o pensamento de que algo que eu fiz resultou na morte daquele homem.” Um soluço abafou sua voz, mas ela continuou. “Sinto muito, Guido. Sinto
muito por toda a confusão que lhe causei. Eu faço isso e você me traz flores.” Ela começou a soluçar, com o rosto mergulhado nas suaves pétalas das íris e os ombros
trêmulos pela intensidade das emoções.
Brunetti pegou as flores e procurou um lugar onde colocá-las. Não havia nenhum, então ele as colocou no chão e enlaçou Paola com seus braços. Ela chorou contra o
seu peito com um abandono que a sua filha jamais demonstrara, mesmo quando era só uma criança. Ele a amparou de forma protetora, como se temesse que ela se partisse
em dois pela intensidade de seus soluços. Inclinou-se, e beijou o topo de sua cabeça, embriagou-se com seu cheiro e observou os pequenos pontos onde o seu cabelo
se separava em duas ondas, na base de seu crânio. Ainda envolvendo-a, ele a embalou um pouquinho de um lado para o outro, repetindo seu nome sucessivas vezes. Ele
nunca a tinha amado tanto quanto neste momento. Sentiu um lampejo de vingança e rapidamente percebeu que seu rosto inchava com o maior sentimento de vergonha que
ele já experimentara. Com força de vontade, afastou de si todo o senso de direito, todo o senso de vitória, descobrindo-se em um espaço limpo onde não havia senão
a dor pela intensidade da agonia que sua esposa, a outra metade de seu espírito, enfrentava. Inclinou-se uma vez mais e beijou os seus cabelos; então, percebendo
que seus soluços estavam chegando ao fim, afastou-a de si, ainda segurando-a pelos ombros. “Tudo bem, Paola?”
Ela fez que sim com a cabeça, incapaz de falar, mantendo o rosto abaixado para que ele não pudesse olhar para ela.
Ele pôs a mão no bolso de suas calças e de lá tirou um lenço. Não era um lenço recém-lavado, mas isso dificilmente importaria, naquele momento. Com ele, Brunetti
enxugou o rosto dela, sob cada olho, abaixo do nariz, e depois o pousou firmemente em sua mão. Ela o aceitou e enxugou o resto do rosto, e então assoou o nariz com
grande estardalhaço. Em seguida, pressionou o pedaço de pano contra os olhos, escondendo-se dele.
“Paola”, ele disse de um modo que chegava quase a reproduzir o seu tom de voz normal, embora não completamente, “o que você fez foi totalmente digno. Não me agrada
que você o tenha feito, mas você agiu com honra.”
Por um momento, ele pensou que aquilo iria fazê-la se descontrolar novamente, mas não foi o que aconteceu. Paola afastou o lenço do rosto e olhou para ele com seus
olhos vermelhos. “Se eu soubesse...”, ela começou.
Mas ele a interrompeu levantando a mão. “Agora, não, Paola. Mais tarde, talvez, quando nós dois pudermos falar sobre isso. Agora vamos para a cozinha ver se encontramos
algo para beber.”
“E para comer”, ela não demorou muito para acrescentar, e sorriu, agradecida pelo adiamento.
16
Na manhã seguinte, Brunetti foi à questura no seu horário de sempre, parando no caminho para comprar três jornais. O Gazzettino continuava a devotar páginas inteiras
ao assassinato de Mitri, lastimando a perda que representava para a cidade, embora não esclarecesse o motivo de tanto lamento. Os jornais nacionais, por sua vez,
pareciam ter perdido o interesse no assunto, pois apenas um deles se dava ao trabalho de o mencioná-lo e, ainda assim, em uma nota de apenas dois parágrafos.
O relatório final de Rizzardi estava sobre sua mesa. A marca dupla no pescoço de Mitri era, segundo determinou o legista, uma “marca de hesitação” por parte do assassino,
que provavelmente havia afrouxado o fio por um momento para reforçar o aperto, deslocando-o e deixando assim uma segunda fissura na carne de Mitri. O material sob
as unhas de sua mão esquerda era de fato pele humana, e umas poucas fibras de lã marrom-escura, possivelmente de um paletó ou sobretudo. Era muito provável que tais
indícios fossem resultado do esforço desesperado e inútil de Mitri em resistir a seu agressor. “Encontre um suspeito e eu lhe darei um resultado”, escreveu o médico
à margem.
Às nove horas, Brunetti decidiu que já não era tão cedo para ligar para seu sogro, o conde Orazio Falier. Ligou para o número de seu escritório, identificou-se e
foi imediatamente atendido.
“Buon dì, Guido”, cumprimentou o conde. “Che pasticcio, eh?”
Sim, uma confusão, e muito mais que isso. “É por isso que estou ligando.” Brunetti fez uma pausa, mas o conde não disse nada, então ele continuou. “O senhor ou o
seu advogado sabem de alguma coisa?” E, depois de uma breve interrupção: “Não sei nem mesmo se o seu advogado está envolvido com o caso”.
“Não, ainda não. Estou esperando para ver o que o juiz vai decidir. Além disso, não sei o que Paola vai querer fazer. Você tem alguma ideia?”
“Conversamos sobre isso na noite passada”, começou Brunetti, e ouviu o conde murmurar: “Que bom”.
Brunetti continuou: “Ela disse que vai pagar a multa e os custos de recolocação da vitrine”.
“E quanto às outras acusações?”
“Não perguntei mais nada a ela. Achei que era o bastante convencê-la a pagar a multa e compensar os danos, pelo menos a princípio. Assim, se houver algo além da
vitrine, é possível que ela concorde em arcar com isso também.”
“Certo, muito bem. Pode dar certo.”
Brunetti ficou irritado pela pressuposição do conde de que eles dois estariam unidos em algum tipo de plano para engambelar ou manipular Paola. Mesmo que seus motivos
fossem bons e eles estivessem certos de estar fazendo o melhor por ela, Brunetti não apreciou a casualidade com que o conde pressupôs que ele estivesse disposto
a iludir a própria esposa.
Ele não quis continuar com essa história. “Mas não foi por isso que eu liguei, e sim para que o senhor me dissesse qualquer coisa que saiba sobre o Mitri ou sobre
o avvocato Zambino.”
“Giuliano?”
“Sim.”
“Zambino é honesto.”
“Ele representou o Manolo”, Brunetti retrucou, mencionando um assassino da Máfia que Zambino defendera com sucesso há três anos.
“Manolo foi sequestrado na França e trazido para cá ilegalmente para ser julgado.”
As interpretações divergiam: Manolo estava em um vilarejo francês logo depois da fronteira entre os dois países, morando em um hotel, dirigindo todas as noites até
Mônaco para jogar no casinò. Uma jovem que ele conheceu na mesa de bacará sugeriu que eles fossem de carro até a Itália, para uma bebida na casa dela. Manolo foi
preso assim que cruzaram a fronteira, pela própria mulher, uma coronel dos carabinieri. Zambino argumentou, com sucesso, que seu cliente havia sido vítima de uma
armadilha policial seguida de sequestro.
Brunetti deixou isso de lado. “Ele já trabalhou para o senhor?”, perguntou ao conde.
“Uma ou duas vezes. É por isso que eu sei. E também por referência de amigos que ele ajudou. Ele é bom. Feroz na defesa de seus clientes. Mas honesto.” O conde fez
uma longa pausa, como se ponderasse se devia confiar a Brunetti a informação a seguir, e acrescentou: “No ano passado correu o boato de que ele não sonegava impostos.
Alguém me disse que ele declarou um rendimento de cinco milhões de liras, ou próximo disso.”
“E o senhor acha que foi tudo o que ele recebeu?”
“Sim, acho”, respondeu o conde, num tom de voz que reservava para o relato de milagres.
“O que os outros advogados pensaram disso?”
“Bem, você pode imaginar, Guido. Só complicou as coisas para eles. Se um advogado do porte de Zambino declara um rendimento desses e o resto deles segue afirmando
que ganhou dois milhões, ou menos ainda, isso só pode levantar suspeitas sobre as suas declarações.”
“Não deve ser fácil para eles.”
“Sim. Ele é...”, o conde começou, mas foi como se sua mente registrasse também o tom, além das palavras, e então se deteve. “Sobre Mitri”, ele disse sem preâmbulo,
“acho que você poderia investigá-lo mais de perto. Pode haver algo por ali.”
“Em relação a quê? Às agências de viagem?”
“Não sei. Na verdade, eu não sei nada sobre ele além do que ouvi de umas poucas pessoas desde que ele morreu. Você sabe como é, o tipo de coisas que se diz quando
alguém é vítima de um crime violento.”
Brunetti sabia bem. Ele ouvia boatos daquele tipo sobre pessoas mortas no fogo cruzado de assaltos a banco e sobre as vítimas de sequestros seguidos de morte. Sempre
havia alguém para perguntar o que essas pessoas estavam fazendo ali naquele exato momento, para questionar por que foram elas e não outras a morrer, e qual exatamente
seria a sua relação com os criminosos. Nada podia simplesmente ser, aqui na Itália, o que parecia. Sempre, não importava que as circunstâncias fossem inocentes,
ou que a vítima fosse isenta de culpa, sempre havia alguém a levantar o espectro da dietrologia e insistir que devia haver algo por trás de tudo, que todos tinham
seu preço ou tinham recebido a sua parte e que nada era o que parecia. “O que o senhor ouviu?”, ele perguntou.
“Nada direto ou específico. Todos foram muito cuidadosos ao expressar sua surpresa com o ocorrido. Mas havia um duplo sentido no que alguns deles diziam, o que sugeria
que tinham outra opinião sobre o ocorrido ou sobre o próprio Mitri.”
“Quem?”
“Guido”, disse o conde, com a voz alguns graus mais fria, “mesmo se eu soubesse, não lhe diria. Mas a verdade é que não me lembro. Não foi algo específico que alguém
disse, senão uma sugestão não verbalizada de que o que aconteceu a ele não chegou a ser uma completa surpresa. Eu não consigo ser mais claro do que isso.”
“Havia um bilhete”, disse Brunetti. Isso teria sido o bastante para que as pessoas concluíssem que Mitri estivera de certa forma envolvido com as questões violentas
que lhe furtaram a vida.
“Sim, eu sei.” O conde parou de falar por um momento, acrescentando em seguida: “Isso poderia ser suficiente para explicar tudo. O que é que você acha?”.
“Por que o senhor pergunta?”
“Porque eu não quero que a minha filha passe o resto de sua vida pensando que algo que ela fez levou ao assassinato de um homem.”
Esta era uma esperança que Brunetti compartilhava com ele de todo o coração.
“Como é que ela está encarando tudo isso?”, o conde perguntou.
“Na noite passada ela disse que lamentava por ter começado tudo.”
“Você acha que foi assim? Que foi ela que começou?”
“Não sei”, Brunetti admitiu. “Tem um monte de loucos à solta por aí hoje em dia.”
“É preciso ser maluco para matar alguém por ser o proprietário uma agência de viagens que promove excursões.”
“Excursões sexuais”, esclareceu Brunetti.
“Excursões sexuais. Excursões para as pirâmides”, retrucou o conde. “As pessoas não saem por aí matando os outros por causa disso, não importa o tipo de turismo.”
Brunetti evitou responder que as pessoas normalmente também não saem por aí jogando pedras em vidraças. Em vez disso, disse: “As pessoas fazem muitas coisas por
razões insanas, então não podemos excluir essa possibilidade”.
“Mas você acredita nisso?”, insistiu o conde, e Brunetti podia perceber, pela tensão em sua voz, como era difícil para ele perguntar isso ao seu genro.
“Eu já lhe falei, não quero acreditar nisso”, disse Brunetti. “E não sei se é a mesma coisa, mas isso significa que eu estou preparado para acreditar até que encontremos
razões muito boas para isso.”
“E que razões seriam essas?”
“Um suspeito.” Ele estava casado com a única suspeita, embora soubesse que ela estava com ele na hora do assassinato. Restava como suspeito alguém que o tivesse
assassinado por causa do turismo sexual ou alguém que o fizera por outras razões. Ele estava disposto a encontrar ambos, desde que encontrasse alguém. “Se ouvir
algo mais específico o senhor me conta?”, ele perguntou. E antes de o conde lhe impor as condições para tanto, Brunetti acrescentou: “Não precisa dizer quem falou,
apenas o que ele ou ela disse”.
“Tudo bem”, o conde aceitou. “E você vai me manter informado sobre Paola?”
“O senhor devia ligar para ela. Convide-a para almoçar. Faça algo que a deixe feliz.
“Obrigado, Guido, vou ligar.” Brunetti pensou que o conde havia desligado sem dizer mais nada, tão longo foi o silêncio que se seguiu do outro lado, mas foi então
que a voz dele se fez ouvir novamente. “Eu torço para que você encontre quem fez isso. E vou ajudá-lo em tudo o que eu puder.”
“Obrigado.”
Desta vez, o conde realmente desligou.
Brunetti abriu sua gaveta e pegou a fotocópia do bilhete que tinha sido encontrado junto a Mitri. Por que a acusação de pedofilia? E quem fora acusado, o próprio
Mitri ou o Mitri como proprietário de uma agência de viagens que encorajava a pedofilia? Se o assassino era maluco o suficiente para escrever algo desse tipo e,
então, ir mais adiante e assassinar o homem a quem as ameaças eram dirigidas, seria ele o tipo de homem que Mitri receberia em seu apartamento à noite? Embora soubesse
tratar-se de um preconceito arcaico, Brunetti era da opinião de que pessoas loucas em geral davam todas as pistas de serem exatamente o que eram. Bastava pensar
naqueles que ele sempre encontrava perto do palazzo Boldù nas primeiras horas da manhã para se lembrar dessa verdade.
Mas o assassino tinha conseguido ser recebido no apartamento de Mitri. Mais, ele - ou ela, Brunetti concedeu, embora não considerasse essa possibilidade de fato;
mais um de seus preconceitos - havia agido de modo sutil o bastante para que Mitri lhe desse as costas, permitindo que ele sacasse a corda ou cabo fatal, ou seja
lá o que fosse. E esse visitante entrou e saiu sem ser visto ou notado: ninguém no prédio - e todos foram interrogados - vira nada remotamente estranho naquela noite;
a maioria dos moradores esteve o tempo todo em seus apartamentos, e os vizinhos só se deram conta de que algo estava errado quando a signora Mitri irrompeu gritando
no corredor à frente de sua porta.
Não, para Brunetti aquilo não parecia o comportamento de um louco, nem o de alguém que escreveria um bilhete tão confuso quanto aquele. Além disso, ele achava difícil
resolver o paradoxo de que alguém disposto a se posicionar contra algo que considerava injusto - e aqui Paola logo se apresentou em sua mente como um exemplo disso
- cometeria um assassinato para corrigir aquela injustiça.
Continuou a seguir nesse raciocínio, descartando loucos e loucas enquanto prosseguia, e abandonando fanáticos e radicais. No fim, deparou-se com a mesma pergunta
lançada em toda investigação de assassinato: Cui bono? E isso tornou ainda mais remota a possibilidade de que a morte de Mitri e a administração da agência de viagens
estivessem relacionadas. Sua morte não modificaria nada. O assunto logo morreria. Era até mesmo provável que o signor Dorandi lucrasse com isso tudo, afinal, ao
menos porque o nome da agência ficaria gravado na mente das pessoas graças a toda a publicidade dada ao assassinato; e ele por certo aproveitara bem o palanque que
a imprensa lhe concedera para mostrar como ficava chocado e horrorizado com a simples ideia de turismo sexual.
Alguma outra coisa, então. Brunetti abaixou a cabeça e encarou a cópia da mensagem composta de letras recortadas. Outra coisa. “Sexo ou dinheiro”, disse em voz alta,
e ouviu a signorina Elettra arfar espantada. Ela havia entrado sem que ele notasse e estava à sua frente, com uma pasta na mão direita.
Ele olhou para ela e sorriu.
“Como é que é, commissario?”
“Foi por isso que ele foi assassinado, signorina. Sexo ou dinheiro.”
Ela entendeu na hora. “Sempre em boa companhia, esses dois”, ela disse, e colocou o arquivo em sua mesa. “Este é sobre o segundo.”
“De quem?”
“Dos dois.” Um olhar de desconsolo tomou seu rosto. “Não consegui entender nada destes números, os relativos ao dottor Mitri.”
“Como assim?”, perguntou Brunetti, sabendo que, se a signorina Elettra tinha achado os números confusos, havia pouca chance de ele vir a ter a mínima ideia do que
eles poderiam significar.
“Ele era muito rico.”
Brunetti, que estivera em sua casa, assentiu.
“Mas as fábricas e os negócios que ele possuía não faziam muito dinheiro.”
Esse era um fenômeno bem comum, Brunetti sabia. Segundo as declarações de imposto de renda, não havia na Itália quem lucrasse o bastante para viver; era uma nação
de pobres, trabalhando como escravos, usando os sapatos até gastarem e, pelo visto, sobrevivendo de restos e migalhas. E, no entanto, os restaurantes estavam lotados
de pessoas bem-vestidas, todo mundo parecia ter um carro novo e os aeroportos não cansavam de mandar para fora aviões abarrotados de turistas felizes. Go figure,
vai entender, como costumava dizer um americano amigo seu.
“Estranho que fique surpresa com isso.”
“Não, não estou surpresa. Todos nós sonegamos. Mas eu analisei todos os registros das empresas dele, e eles parecem corretos. Em resumo, nenhuma delas faturou muito
mais do que vinte milhões de liras por ano.”
“Somando quanto?”
“Cerca de duzentos milhões ao ano.”
“Lucro?”
“Foi o que ele declarou. Depois dos impostos ele ficou com menos da metade disso.”
Era bem mais do que Brunetti recebia por ano, e estava bem longe de significar uma vida na linha da pobreza. “Mas por que você tem tanta certeza?”
“Porque eu conferi também as suas despesas no cartão de crédito.” Ela apontou o arquivo com um gesto da cabeça. “Não são despesas de um homem que ganhe somente aquilo.”
Sem saber bem como reagir àquele derrisório “somente”, Brunetti disse: “E ela? Quanto ela gasta?”. E, com um aceno, convidou a signorina a sentar-se.
Ela ajeitou o vestido, sentou-se na ponta da cadeira - sua espinha não chegava nem a flertar com o encosto - e começou a gesticular com a mão direita. “Não lembro
da quantia exata. Acho que mais de cinquenta milhões. Então, se o senhor somar isso aos custos de manutenção da casa, de simplesmente administrar uma vida como a
dele, não há como explicar o fato de ele ter quase um bilhão de liras em investimentos e ações.”
“Talvez ele tenha ganhado na loteria”, sugeriu Brunetti com um sorriso.
“Ninguém ganha na loteria”, respondeu a signorina sem sorrir.
“E por que ele tinha tanto dinheiro guardado no banco?”
“Ninguém acha que vai morrer, eu suponho. Mas ele esteve movimentando a conta. Sumiu um bocado no ano passado.”
“E foi para onde?”
Ela respondeu com indiferença: “Suponho que para os lugares aonde o dinheiro vai quando desaparece: Suíça, Luxemburgo, Ilhas Cayman”.
“Quanto?”
“Cerca de meio bilhão.”
Brunetti voltou a olhar para a pasta, mas não a abriu. Levantou o olhar. “A senhorita consegue descobrir?”
“Na verdade, eu mal comecei a procurar, commissario. Quer dizer, eu comecei, mas só xeretando por aí, por assim dizer. Não comecei de fato a vasculhar as gavetas
abertas ou a passar o pente fino nos seus documentos privados.”
“E a senhorita acha que consegue encontrar tempo pra fazer isso?”
Brunetti não se lembrava da última vez que oferecera doce a uma criança, mas ele tinha uma vaga lembrança de ter visto um sorriso como o que a signorina Elettra
lhe deu em resposta. “Nada me daria mais prazer”, ela disse, surpreendendo-o apenas pela retórica, não pela resposta. Ela se levantou, ansiosa para começar.
“E o Zambino?”
“Nada. Nunca encontrei alguém cujo histórico fosse tão cristalino e tão...” Ela fez uma pausa aqui, como se estivesse procurando o termo exato. “Tão cristalino e
tão honesto”, ela disse por fim, incapaz de conter seu espanto ao som da última palavra. “Nunca.”
“A senhorita sabe algo a respeito dele?”
“Algo pessoal?” Brunetti assentiu, mas em vez de responder ela perguntou: “E por que o senhor quer saber?”.
“Nenhum motivo em particular”, ele respondeu, e, curioso por sua aparente relutância, insistiu: “Então, você sabe?”
“Ele é paciente da Barbara.”
Brunetti refletiu. Ele conhecia a signorina Elettra bem o bastante para saber que ela jamais revelaria algo que julgasse fazer parte do universo familiar, assim
como conhecia bem a sua irmã, e tinha certeza de que ela sempre estaria comprometida a seu juramento de médica. Assim, deixou isso pra lá. “E profissionalmente?”
“Tenho alguns amigos que usaram seus serviços.”
“Como advogado?”
“Sim.”
“Por quê? Quero dizer, para que tipo de casos?”
“O senhor se lembra de quando a Lily foi atacada?”
Brunetti se lembrou do caso, um dos que o reduziram a uma raiva muda. Há três anos, a arquiteta Lily Vitale tinha sido atacada quando voltava para casa da ópera,
no que começara como um aparente assalto e terminara num ataque muito mais violento, em que ela levou uma sucessão de murros no rosto e teve o nariz quebrado. Não
houve tentativa de roubo; sua bolsa foi encontrada intacta a seu lado pelas pessoas que saíram de suas casas ao ouvi-la gritar.
O agressor foi preso na mesma noite e logo identificado como o mesmo que tentara estuprar pelo menos outras três mulheres na cidade. Mas ele nunca tinha roubado
nada e era na verdade incapaz de praticar o estupro, então foi condenado a apenas três meses de prisão domiciliar, depois que sua mãe e sua namorada se apresentaram
diante do júri para louvar sua virtude, lealdade e integridade.
“Lily o processou por danos morais. Zambino foi seu advogado.”
Brunetti não sabia nada a respeito. “E?”
“Ela perdeu.”
“Por quê?”
“Porque ele não tentou roubá-la. Tudo o que fez foi quebrar o seu nariz, e o juiz não achou isso tão grave quanto tentar roubar a sua bolsa. Então ele nem sequer
determinou indenização por danos morais, afirmando que a prisão domiciliar era punição suficiente.”
“E a Lily?”
A signorina ergueu os ombros. “Ela não sai mais de casa sozinha, ou seja, sai bem menos de casa.”
Atualmente, o rapaz estava na cadeia por ter esfaqueado a namorada, mas Brunetti não supunha que isso fosse de algum consolo para Lily, nem que melhorasse as coisas.
“E como Zambino reagiu ao perder o caso?”
“Não sei. Lily nunca me disse.” E, depois disso, não tendo mais nada a oferecer, a signorina se levantou. “Vou procurar saber”, ela disse, lembrando que o caso em
questão dizia respeito a Mitri e não a uma mulher cuja coragem fora abalada.
“Sim, obrigado. Acho que vou ter uma conversa com o avvocato Zambino.”
“Como o senhor quiser, commissario.” Ela virou-se em direção à porta. “Mas acredite em mim, se tem alguém limpo, é ele.” Como se tratava de um advogado, Brunetti
devotou a essa fala a mesma atenção que devotava aos balbucios dos lunáticos que ficavam em frente ao palazzo Boldù.
17
Brunetti preferiu não levar Vianello consigo, na esperança de que assim sua visita ao advogado tivesse um caráter mais casual, apesar de achar improvável que um
homem tão acostumado com a lei em todas as suas manifestações, como era o caso de Zambino, ficasse muito incomodado com a presença de um policial uniformizado. Lembrou-se
da descrição de um dos peregrinos de Chaucer que Paola sempre citava, o Homem da Lei: “Ele parecia mais ocupado do que era”. Considerou, portanto, mais prudente
telefonar e deixar que o avvocato soubesse que ele estava a caminho, evitando assim ter de aguardar na sala de espera enquanto ele estivesse ocupado com seus assuntos
de advogado. A secretária de Zambino, ou seja lá quem atendeu o telefone, disse que ele estaria livre em cerca de uma hora, quando poderia receber o commissario.
O escritório ficava no campo San Polo, o que dava a Brunetti a oportunidade de terminar o expediente da manhã perto de casa e ter assim tempo suficiente para almoçar.
Telefonou a Paola para avisá-la. Eles falaram apenas sobre o tempo e o menu.
Assim que terminou de conversar com ela, Brunetti desceu até a sala dos policiais, onde encontrou Vianello à mesa lendo o jornal da manhã. Ao ouvir o commissario
se aproximar, o sargento fechou o jornal e olhou para cima.
“Alguma coisa hoje?”, perguntou Brunetti. “Ainda não tive tempo de ler.”
“Não, está murchando, provavelmente porque não há muito a dizer. Não até que prendamos alguém.”
Vianello fez menção de se levantar, mas Brunetti o deteve. “Não, sargento, não se preocupe. Eu vou ver Zambino. Sozinho.” E antes de ouvir a resposta, Brunetti acrescentou:
“A signorina Elettra disse que vai examinar com mais atenção as contas do Mitri e eu pensei que você poderia ter interesse em observar como é que ela faz isso”.
Recentemente, Vianello ficara intrigado pelo modo como a signorina descobria as coisas com o auxílio de seu computador e dos inúmeros amigos - alguns dos quais ela
nunca tinha encontrado pessoalmente - que se conectavam a ela por seu intermédio. As fronteiras entre as nações ou idiomas não pareciam mais impedir a livre troca
de informações, a maioria delas de grande interesse para a polícia. Brunetti tentou acompanhar esse movimento, o que não deu em nada, daí sua satisfação pelo entusiasmo
de Vianello. Ele queria que alguém mais fosse capaz de fazer o que a signorina Elettra fazia, ou pelo menos que fosse capaz de entender como ela fazia aquilo, caso
um dia tivessem de trabalhar sem ela. Na mesma hora em que esse pensamento lhe passou pela cabeça, ele mentalizou um apelo mudo para afastar tal possibilidade.
Vianello fechou o jornal e o colocou em sua mesa. “Será um prazer. Ela já me mostrou muita coisa, mas tem sempre algo na manga quando as vias normais não dão resultado.
Meus filhos estão impressionados.” Ele continuou: “Eles costumavam me amolar por eu entender tão pouco dos seus deveres de casa ou do que eles falavam, mas agora
são eles que me procuram quando têm algum problema ou não conseguem acessar alguém”. Inconscientemente, ele utilizou o verbo em inglês, o idioma que ele e a signorina
Elettra mais empregavam na busca de informações.
Estranhamente incomodado com essa curta conversa, Brunetti se despediu do sargento e deixou a questura. Havia apenas um cameraman do lado de fora, mas ele tinha
dado as costas para a entrada momentaneamente para se proteger do vento enquanto acendia um cigarro, e Brunetti pôde sair sem ser notado. Ao chegar ao Canale Grande,
o vento fez com que decidisse não pegar o traghetto e, em vez disso, cruzar a Rialto. Enquanto caminhava, ignorou a glória que o cercava por todos os lados e se
pôs a pensar sobre o que perguntaria ao avvocato Zambino. Estava distraído desses pensamentos quando viu o que tinha certeza serem cogumelos porcini em uma das barracas
de vegetais e, por um momento, teve esperança de que Paola também os visse e os servisse com polenta no almoço.
Apertou o passo ao longo da Rughetta, passou pela calle onde morava, atravessou a passagem subterrânea e saiu no campo. As folhas já haviam caído das árvores há
muito tempo, dando ao amplo espaço um aspecto curiosamente nu e exposto.
O escritório do advogado ficava no primeiro andar do palazzo Soranzo e, ao chegar, Brunetti ficou surpreso por ser recebido à porta pelo próprio Zambino.
“Ah, commissario Brunetti, que prazer”, disse o advogado, estendendo sua mão e cumprimentando Brunetti vigorosamente. “Não posso dizer que é um prazer conhecê-lo,
pois já nos conhecemos, mas é um prazer recebê-lo aqui para uma conversa.” No primeiro encontro, Brunetti prestara mais atenção a Mitri, e o advogado tinha passado
um pouco despercebido. Era um homem baixo, robusto, com um corpo que mostrava sinais de uma vida muito boa, sem muitos exercícios. Brunetti achou que ele estava
usando o mesmo paletó que vestira na ocasião do encontro no gabinete de Patta, mas não tinha certeza. Poucos fios de cabelo cobriam sua cabeça desconcertantemente
redonda; o mesmo valia para o rosto e para as bochechas. Seus olhos eram olhos de mulher: bem esticados, amendoados, azul-cobalto e de uma beleza estonteante.
“Obrigado”, Brunetti respondeu, desviando o olhar do advogado para observar o escritório. Para sua considerável surpresa, era humilde, o tipo de ambiente que ele
esperaria encontrar no ambulatorio de um médico recém-formado que tivesse acabado de abrir sua clínica. As cadeiras eram de metal, com assentos e encostos de fórmica
pessimamente disfarçados de madeira. Havia apenas uma mesa de centro, e sobre ela alguns exemplares de revistas velhas.
O advogado conduziu-o por uma porta aberta para o interior do que parecia ser a sua sala. As paredes estavam cobertas de livros que Brunetti logo percebeu serem
de direito: jurisprudências e códigos penais, civis e criminais do Estado italiano. Eles tomavam todas as paredes, do chão ao teto. Quatro ou cinco deles estavam
abertos sobre a mesa de Zambino.
Enquanto Brunetti se sentava em uma das três cadeiras que ficavam de frente para a do advogado, Zambino foi até a sua cadeira e fechou os livros, tendo o cuidado
de pôr pequenos pedaços de papel nas páginas abertas de cada um deles, antes de colocá-los de lado em uma pequena pilha.
“Para não perder tempo, vou assumir que o senhor tenha vindo até aqui para falarmos sobre o dottor Mitri”, começou Zambino. Brunetti assentiu. “Certo. Bem, se o
senhor me disser o que gostaria de saber, eu tentarei ajudá-lo da melhor forma possível.”
“Muito gentil de sua parte, avvocato”, começou Brunetti, com uma polidez estereotipada.
“Não se trata de gentileza, commissario. É meu dever como cidadão e meu desejo como advogado auxiliá-lo de qualquer modo que possa servir para ajudar o senhor a
encontrar o assassino do dottor Mitri.”
“O senhor não o chamava de Paolo, avvocato?”
“Quem, Mitri?”, perguntou o advogado, e quando Brunetti confirmou ele disse: “Não. O dottor Mitri era um cliente, não um amigo”.
“Algum motivo para ele não ser um amigo?”
Zambino já era advogado fazia muito tempo para demonstrar surpresa a qualquer pergunta que lhe fizessem, de modo que respondeu calmamente. “Não, nenhum motivo na
verdade, a não ser pelo fato de que nunca havíamos nos encontrado antes de ele ligar em busca de aconselhamento sobre o incidente da agência de viagens.”
“O senhor acha que ele poderia vir a se tornar um amigo?”, perguntou Brunetti.
“Não cabe a mim especular sobre isso, commissario. Falei com ele pelo telefone, nos encontramos aqui uma vez e em seguida o acompanhei na ida ao gabinete do vice-questore.
Esse foi o único contato que tive com ele, de modo que não tenho a mínima ideia se eu me tornaria ou não seu amigo.”
“Entendo. O senhor poderia me dizer o que ele havia decidido fazer a respeito do que o senhor chamou de incidente da agência de viagens?”
“Sobre a abertura de um processo?”
“Sim.”
“Após nossa conversa com o senhor e depois com o vice-questore, eu sugeri que ele fizesse um pedido de indenização pela vidraça e pelos negócios que ele achava que
a agência perdera - ele tinha direito a sua porcentagem desses negócios -, embora a vidraça fosse inteiramente de sua responsabilidade, já que ele era o dono do
espaço físico ocupado pela agência.”
“E foi difícil convencê-lo disso, avvocato?”
“Não, nem um pouco”, ele respondeu, quase como se já estivesse esperando essa pergunta. “Na verdade, eu diria que ele já tinha decidido proceder assim antes mesmo
de conversar comigo, e queria apenas confirmar sua opinião com um advogado.”
“E o senhor tem alguma ideia de por que ele escolheu o senhor?”
Por certo, um homem menos seguro de sua posição faria uma pausa nesse momento e fingiria estar surpreso com o fato de alguém se atrever a indagar o porquê de ele
ter sido escolhido para ser o advogado de alguém. Zambino, porém, disse: “Não, nenhuma mesmo. Ele por certo não precisava recorrer a alguém como eu”.
“Com isto o senhor quer dizer alguém especializado primeiramente em direito empresarial ou alguém com uma reputação tão alta como a sua?”
Zambino sorriu, e Brunetti sentiu-se estimulado por sua reação.
“É muito gentil da sua parte dizer isso, commissario, e me deixa sem alternativa além de louvar meus próprios feitos.” E, vendo que Brunetti sorria, continuou. “Não
faço ideia, como lhe disse. Pode ser que algum conhecido seu tenha me recomendado a ele. Até onde eu sei, ele pode ter achado meu nome por acaso na lista telefônica.
Embora eu ache difícil que o dottor Mitri fosse o tipo de homem que tomaria uma decisão desse jeito”, ele concluiu antes que o próprio Brunetti dissesse o mesmo.
“O tempo que o senhor passou com Mitri foi suficiente para formar alguma opinião sobre que tipo de homem ele era?”
Zambino pensou por um longo tempo. Por fim, respondeu. “Ele me deu a impressão de ser um homem de negócios muito perspicaz, e de estar muito interessado no sucesso.”
“O senhor ficou surpreso por ele ter decidido abandonar o caso contra minha esposa tão rapidamente?” Como Zambino não respondeu de pronto, Brunetti continuou. “Quer
dizer, não havia chances de que qualquer decisão fosse desfavorável a ele. Ela admitiu sua responsabilidade.” Os dois homens perceberam que Brunetti não usou a palavra
“culpa”. “Ela disse isso mesmo ao policial que a prendeu, de forma que ele poderia exigir dela praticamente a quantia que quisesse - por difamação, constrangimento
moral ou o que quer que escolhesse alegar -, e provavelmente teria vencido a causa.”
“E no entanto ele escolheu não o fazer”, Zambino disse.
“Por que o senhor pensa que ele agiu assim?”
“Pode ser que ele não tivesse nenhum desejo de vingança.”
“É isso mesmo que o senhor acha?”
Zambino avaliou a pergunta. “Não, na verdade. Eu acho que ele teria apreciado bastante a vingança. Ele estava muito, muito furioso com o que havia acontecido.” E
antes que Brunetti o interrompesse, ele continuou. “E ele estava furioso não apenas com a sua esposa, mas com o gerente da agência de viagens, já que ele havia dado
instruções expressas para que evitassem a todo custo aquele tipo de turismo.”
“O turismo sexual?”
“Sim. Ele me mostrou as cópias da carta e do contrato que ele enviara ao signor Dorandi três anos atrás, em que deixava bem claro que ele não deveria se envolver
com nada daquele tipo ou ele cancelaria a sua licença e o contrato de locação. Eu não sei ao certo em que medida o contrato seria juridicamente vinculativo, caso
Dorandi viesse a contestá-lo - não cheguei a vê-lo -, mas acho que isso dá provas da seriedade de Mitri.”
“O senhor acha que ele fez isso por razões morais?”
Zambino demorou a responder, como se tivesse avaliando suas obrigações legais para com um cliente que agora estava morto. “Não, acho que ele decidiu assim por perceber
que não era um bom negócio. Em uma cidade como Veneza, esse tipo de publicidade pode ser devastadora para uma agência de viagens. Não, não creio que ele considerasse
isso do ponto de vista moral; foi uma decisão estritamente comercial.”
“E o senhor, avvocato? O senhor acha que essa é uma questão moral?”
“Sim”, disse o advogado curta e prontamente.
Mudando de assunto, Brunetti perguntou: “E o senhor tem alguma ideia de quais seriam as intenções dele com relação a Dorandi?”.
“Sei que ele escreveu uma carta lembrando-o do contrato e pedindo a ele que explicasse os tipos de excursão contra os quais sua mulher protestou.”
“E ele chegou a encaminhar essa carta?”
“Ele passou um fax ao signor Dorandi e mandou outra cópia por carta registrada.”
Brunetti refletiu um pouco. Se os ideais de Paola fossem considerados motivo plausível para matar, então a perda da participação em um negócio muito lucrativo seria
um motivo mais plausível ainda. “Eu continuo intrigado com o fato de ele ter contratado o senhor, avvocato.”
“As pessoas fazem coisas estranhas, commissario.” O advogado sorriu. “Especialmente quando se veem obrigadas a lidar com a lei.”
“Empresários frequentemente gastam muito dinheiro e, o senhor me desculpe a vulgaridade, sem necessidade.” E, antes que Zambino pudesse contestar, Brunetti acrescentou:
“Porque esse caso não parecia demandar de fato um advogado, de forma alguma. Ele poderia simplesmente expor suas condições ao vice-questore, fosse por telefone,
fosse por carta. Ninguém se oporia a tais condições. E, no entanto, ele contratou um advogado”.
“O que tem um custo considerável, eu acrescentaria”, sugeriu Zambino
“Exatamente. O senhor consegue explicar isso?”
Zambino recostou-se na cadeira e cruzou as mãos atrás da cabeça. Com isso, expôs uma considerável porção de sua barriga. “Acho que é o que os americanos chamam de
‘overkill ’, chutar cachorro morto.” Sem tirar os olhos do teto, ele continuou: “Acho que ele queria garantir que as suas demandas fossem cumpridas, que a sua esposa
aceitasse as condições propostas e que a coisa terminasse ali”.
“Terminasse?”
“Sim.” O advogado se aprumou, pôs os braços sobre a mesa e continuou. “Eu tenho a forte impressão de que ele não queria que esse episódio lhe trouxesse absolutamente
nenhum problema ou que gerasse qualquer publicidade. Talvez a questão da publicidade fosse a mais importante. A certo ponto eu perguntei a ele o que estaria disposto
a fazer se a sua esposa, que parecia ter agido por princípio, se recusasse a pagar pelos prejuízos; se ele iria então considerar a abertura de uma ação civil. Ele
disse que não. E foi incisivo. Eu disse a ele que não havia como perder esse caso, mas ainda assim ele reiterou que não o faria, que nem consideraria tal hipótese.”
“Quer dizer então que se a minha esposa se recusasse a pagar ele não tomaria nenhuma providência legal contra ela?”
“Exatamente.”
“E o senhor diz isso mesmo sabendo que ela ainda pode mudar de ideia e se recusar a pagar?”
Zambino pareceu surpreso pela primeira vez. “Claro.”
“Mesmo sabendo que eu posso contar a ela o que Mitri havia decidido e assim influenciar a sua decisão?”
Zambino sorriu novamente. “Commissario, eu imagino que, antes de vir até aqui, o senhor despendeu bastante tempo levantando tudo o que pudesse sobre mim e a minha
reputação na cidade.” Antes de Brunetti admitir ou negar isso, o advogado continuou. “Eu fiz o mesmo, qualquer um de nós o faria. E o que apurei indica que posso
lhe confiar isto com segurança absoluta, sem correr o menor risco de que o senhor o conte a sua esposa ou que, por conta dessa informação, tente influenciar a decisão
dela de alguma maneira.”
O embaraço impediu Brunetti de reconhecer que aquilo era verdade. Fez apenas um gesto com a cabeça e continuou investigando: “O senhor chegou a perguntar a ele por
que era tão importante evitar a publicidade negativa?”.
Zambino balançou a cabeça. “Fiquei interessado, devo confessar, mas descobri que isso não era parte das minhas atribuições. Essa informação não me seria útil como
seu advogado, e foi para isso que ele me contratou.”
“Mas o senhor chegou a especular sobre isso?”
De novo aquele sorriso. “Claro que especulei, commissario. Isso não parecia combinar em nada com o homem que eu achava que ele era: rico, bem relacionado e, se o
senhor preferir, poderoso. Esse tipo de homem normalmente suporta todo tipo de mexerico, por pior que seja. E, nesse caso, a responsabilidade dificilmente lhe seria
atribuída, não é mesmo?”
Brunetti fez que não com a cabeça, concordando com a negativa e esperando que o advogado prosseguisse.
“Então, ou isso significa que para sua sensibilidade e senso ético era errado o envolvimento da agência - e essa possibilidade eu já descartei - ou que havia algum
motivo, pessoal ou profissional, que o fizesse evitar qualquer tipo de publicidade negativa ou a exposição que isso provocaria.”
Essa também havia sido a conclusão de Brunetti, que ficou satisfeito por vê-la confirmada por alguém que conhecera Mitri. “E o senhor chegou a cogitar que motivo
teria sido esse?”
Dessa vez, Zambino soltou um riso franco, agora envolvido no jogo e gostando disso. “Se vivêssemos em um século diferente, eu diria que ele temia por sua reputação.
Mas, considerando que agora esse produto é facilmente encontrado no mercado, eu diria que ele desejava impedir que a exposição revelasse algo que ele não queria
que fosse examinado.”
Uma vez mais seus pensamentos espelhavam os de Brunetti. “Alguma ideia?”
Zambino hesitou bastante antes de responder. “Temo que esse seja um ponto delicado para mim, commissario. Ainda que o homem esteja morto, eu continuo tendo uma obrigação
profissional para com ele, então não posso me permitir alertar a polícia sobre qualquer coisa que eu saiba ou que apenas suspeite sobre ele.”
Tomado de curiosidade, Brunetti imaginou o que Zambino sabia e como poderia arrancar isso dele. Mas, antes de formular uma pergunta, o outro continuou: “Para economizar
seu tempo, eu posso lhe dizer, extraoficialmente, que eu não tenho a mínima ideia de qual poderia ser a preocupação dele. Ele não me contou nada sobre seus outros
envolvimentos, apenas sobre este caso. Então não tenho a menor ideia, mas repito que, se tivesse, não as compartilharia com o senhor”.
Brunetti sorriu o seu sorriso mais franco, enquanto ponderava se o que acabara de ouvir era verdade. “O senhor foi muito generoso em me ceder seu tempo, avvocato.
Não o tomarei mais”, ele disse, levantando-se e indo até a porta.
“Espero que o senhor resolva isso, commissario”, disse Zambino, enquanto o acompanhava até a saída do escritório. Quando o advogado estendeu a mão, Brunetti a tomou
com pronunciado afeto, enquanto refletia se ele era um homem honesto ou um mentiroso de muito talento.
“Eu também, avvocato”, disse ele, saindo e dirigindo-se de volta para sua casa e para sua esposa.
18
Durante o dia todo, fervilhara em sua mente a lembrança de que ele e Paola tinham marcado um jantar naquela noite. Desde aquilo que Brunetti se recusava a chamar
de sua prisão, ele e Paola evitavam aceitar ou marcar quaisquer compromissos, mas o de hoje fora marcado há meses: a comemoração do vigésimo quinto aniversário de
casamento do melhor amigo de Paola, seu aliado mais próximo na universidade, Giovanni Morosini. Não havia, portanto, maneira de declinar amavelmente o convite. Em
duas ocasiões, Giovanni salvara a carreira de Paola: a primeira ao destruir uma carta que Paola escrevera para Il Magnifico Rettore, na qual o chamava de “incompetente
faminto de poder”; a segunda, ao convencê-la de não encaminhar seu pedido de demissão ao mesmo reitor.
Giovanni ensinava literatura italiana na universidade, e sua esposa, história da arte na Accademia di Belle Arti. Ao longo dos anos, os dois casais desenvolveram
uma estreita amizade. Às vezes, Brunetti sentia-se deslocado na companhia deles, já que os outros três viviam a maior parte de suas vidas profissionais imersos em
livros e, Brunetti estava convencido disso, consideravam a arte mais real que a vida cotidiana. Mas não havia dúvida sobre o afeto que os Morosini tinham por Paola,
então Brunetti teve de aceitar o convite, especialmente quando Clara ligou para deixar claro que eles não iriam a um restaurante, mas jantariam em casa. Brunetti
não queria passar nem um segundo sob o olhar do público, pelo menos não até que a situação legal de Paola fosse resolvida.
Paola não viu razão para parar de dar suas aulas na universidade, e portanto chegou em casa às cinco. Teve tempo para começar o jantar dos filhos, tomar um banho
e ficar pronta antes que Brunetti chegasse.
“Você já está vestida?”, ele perguntou assim que entrou no apartamento e a viu ali, trajando um vestido curto que parecia ouro reduzido a aéreo pó. “Nunca vi esse
antes”, ele completou, pendurando o seu paletó.
“E aí?”, ela perguntou.
“E aí que eu gosto”, ele terminou, “especialmente do avental.”
Surpresa, ela olhou para baixo, mas, antes de registrar seu desgosto por ter sido enganada, ele se virou e andou pelo corredor até o quarto. Ela voltou para a cozinha,
onde colocou de fato o avental, enquanto ele, em sua cama, vestia seu terno azul-escuro.
Endireitando o colarinho da camisa sob o paletó, ele entrou na cozinha. “A que horas temos que chegar lá?”
“Às oito.”
Brunetti levantou a manga e olhou para o relógio. “Saímos em dez minutos?” Paola respondeu com um grunhido, a cabeça inclinada sobre uma panela. Brunetti lamentou
que não houvesse tempo para uma taça de vinho. “Alguma ideia de quem mais vai estar por lá?”, ele perguntou.
“Não.”
“Hum”, disse Brunetti. Ele abriu a geladeira e puxou dali uma garrafa de Pinot Grigio, serviu-se de meia taça e tomou um gole.
Paola tampou a panela e desligou o fogo. “Já está bom o bastante”, ela disse. “Eles não vão passar fome.” Então, para ele: “Preocupado, não?”.
“Por não sabermos quem vai estar lá?”
Em vez de responder, ela disse: “Lembra dos americanos?”.
Brunetti suspirou e pôs a taça na pia. Seus olhares se encontraram e os dois riram. Os americanos eram um par de professores visitantes de Harvard que os Morosini
convidaram para jantar há dois anos, assiriologistas que não conversaram com ninguém a não ser entre si durante a noite toda e que, durante o jantar, conseguiram
a proeza de cair bêbados e tiveram que voltar para casa em um táxi - cuja conta foi colocada na caixa do correio dos Morosini na manhã seguinte.
“Você perguntou a eles?, quis saber Brunetti.
“Quem vai estar lá?”
“Sim.”
“Eu não poderia”, ela respondeu, e ao perceber que ele não se convencera com a resposta, acrescentou: “Você não pode, Guido. Eu não posso. O que eu faria se houvesse
algum convidado desagradável, diria que estou doente?”.
Ele deu de ombros, pensando nas noites que desperdiçou, prisioneiro dos gostos católicos dos Morosini e de suas amizades ecléticas.
Paola pegou seu casaco e o vestiu, sem deixar que ele a ajudasse. Juntos, saíram do apartamento e desceram na direção da San Polo. Atravessaram o campo, passaram
sobre uma ponte e viraram em uma estreita calle à direita. Logo depois, tomaram a direita e tocaram a campainha dos Morosini. A porta se abriu com um clique quase
imediato e eles subiram até o piano nobile, onde Giovanni Morosini aguardava, à porta de seu apartamento, o som de vozes fluindo pelas escadas às suas costas.
Homem robusto, Morosini ainda usava a barba que deixara crescer nos tempos de estudante, quando se envolvera com os violentos protestos de 1968. Com o passar dos
anos, a barba havia se tornado cada vez mais branca e grisalha e ele sempre contava a mesma piada sobre o mesmo ter acontecido a seus ideais e princípios. Um pouco
mais alto e bem mais largo que Brunetti, ele parecia preencher todo o espaço da porta. Recebeu Paola com dois beijinhos e Brunetti com um caloroso aperto de mãos.
“Bem-vindos, bem-vindos. Entrem e peguem algo para beber”, ele foi dizendo enquanto pendurava os casacos no cabide atrás da porta. “Clara está na cozinha, mas quero
apresentar algumas pessoas a vocês.” Como sempre, Brunetti se espantou com a disparidade entre o tamanho do homem e a delicadeza de sua voz, que mal passava de um
murmúrio, como se ele sempre tivesse medo de que alguém o ouvisse.
Ele se afastou para lhes dar passagem e os conduziu pelo corredor central que levava ao grande salotto, do qual afluíam os outros aposentos da casa. Havia quatro
pessoas em um canto da sala, e Brunetti foi invadido de imediato pela constatação de que duas delas pareciam muito formar um casal, enquanto as outras duas não passavam
nem perto disso.
Ao ouvi-los se aproximar, os presentes se viraram e Brunetti percebeu os olhos da mulher solteira brilharem quando viram Paola. Não era uma visão agradável.
Morosini, conduzindo-os, contornou um sofá baixo e chegou até os outros. “Paola e Guido Brunetti”, ele começou, “gostaria de apresentar-lhes o dottor Klaus Rotgeiger,
um amigo nosso que mora do outro lado do campo, e sua esposa Bettina.” Os dois membros do casal colocaram suas taças na mesa atrás deles e se viraram para estender
as mãos em apertos tão calorosos e fortes quanto o de Morosini. Os cumprimentos de praxe saíram de seus lábios em um italiano com leve sotaque. Brunetti se surpreendeu
pelo físico esguio e pela clareza do olhar que eles compartilhavam.
“E”, continuou Morosini, “dottoressa Filomena Santa Lucia e seu marido, Luigi Bernardi.” O segundo casal pôs suas taças perto das outras e estendeu as mãos. Os mesmos
cumprimentos foram trocados, mas desta vez Brunetti identificou uma espécie de relutância tátil, de ambas as partes, em permitir que suas mãos fossem apertadas longamente
por estranhos. Também percebeu que, embora se dirigissem tanto a ele quanto a Paola, passaram muito mais tempo a observando. A mulher tinha olhos escuros e o ar
de quem acreditava ser muito mais bonita do que era. O homem falava como um típico milanês, engolindo os erres.
De repente, ouviram a voz de Clara às suas costas: “A tavola, a tavola, ragazzi ”, e Giovanni os conduziu até o próximo aposento, onde havia uma grande mesa oval
paralela a uma sucessão de janelas altas, que davam para os prédios do outro lado do campo.
Então, Clara irrompeu da cozinha, a cabeça envolta por uma nuvem de vapor que saía de uma terrina que ela carregava à sua frente como uma oferenda. Brunetti identificou
o cheiro de brócolis e anchovas, e se lembrou de como estava faminto.
Enquanto comiam o macarrão, a conversa foi genérica, com aquelas piadinhas inocentes que sempre são feitas quando oito pessoas que não se conhecem muito bem tentam
descobrir seus interesses em comum. Brunetti se espantou, como vinha se espantando cada vez mais e com mais frequência nos últimos anos, por ninguém conversar sobre
política. Ele não estava certo se ninguém se importava mais ou se o assunto era simplesmente muito inflamável para ser discutido entre desconhecidos. Independentemente
da causa, a política se juntara à religião em algum tipo de gulag onde mais ninguém se atrevia ou se dava o trabalho de ir.
O dottor Rotgeiger explicava, num italiano que Brunetti achou muito bom, os problemas que estava enfrentando junto ao Ufficio Stranieri para que lhe fosse permitido
prolongar sua estadia em Veneza por mais um ano. Toda vez que ia até lá, era assediado por autoproclamados “agentes” que percorriam as enormes filas dizendo que
podiam ajudar a acelerar a papelada.
Brunetti aceitou uma segunda porção de macarrão e permaneceu calado.
Quando o peixe foi servido - um enorme branzino cozido que devia ter mais de um metro de comprimento -, o foco da conversa havia passado à dottoressa Santa Lucia,
uma antropóloga cultural que acabara de voltar de uma longa viagem de pesquisa na Indonésia, onde passara um ano estudando as estruturas de poder familiares.
Embora ela se dirigisse a todos na mesa, Brunetti podia ver que seu olhar quase sempre se voltava para Paola. “É preciso que vocês entendam”, ela disse, sem chegar
bem a sorrir, mas com a aparência orgulhosa de alguém que fora capaz de compreender a sutileza de uma cultura estrangeira, “que a estrutura familiar é baseada na
preservação da mesma. Isto é, tudo deve ser feito para preservar a família, mesmo que isso implique no sacrifício de seus membros menos importantes.”
“E quem define quem é importante?”, Paola perguntou enquanto tirava uma pequenina espinha de sua boca e a colocava com cuidado excessivo ao lado de seu prato.
“Uma pergunta muito interessante”, disse a dottoressa, exatamente no mesmo tom de voz que ela devia usar ao explicar a questão centenas de vezes a seus alunos. “Mas
eu acho que esse é um dos poucos casos em que os juízos sociais de sua cultura complexa e sofisticada coincidem com a nossa visão mais simplista.” Ela fez uma pausa,
esperando que alguém pedisse algum esclarecimento.
Bettina Rotgeiger o fez. “Coincidem de que forma?”
“Nós concordamos a respeito de quem são eles, os membros menos importantes da sociedade.” Dizendo isto, a dottoressa fez uma pausa e, percebendo que tinha a atenção
de todos à mesa, tomou um pequeno gole de vinho enquanto esperavam por sua resposta.
“Deixa eu ver se consigo adivinhar”, Paola interrompeu, sorrindo, o queixo apoiado na palma da mão, o peixe esquecido à frente. “Meninas?”
Depois de uma breve pausa, a dottoressa Santa Lucia disse: “Exatamente”, sem mostrar-se abalada por a terem privado desse trovão. “Você acha isso estranho?”
“Nem um pouco”, Paola respondeu, sorrindo novamente, e voltou a se concentrar em seu branzino.
“Sim”, prosseguiu a antropóloga, “em certo sentido, sendo as normas societárias como são, as meninas são descartáveis, considerando que nascem em quantidade maior
do que a maioria das famílias pode sustentar e que os filhos homens são bem mais desejados.” Ela olhou em torno para ver como isso havia sido recebido e - com uma
rapidez que, ela deixou claro, era resultado do seu temor de ter de algum modo ofendido a sensibilidade rígida dos ocidentais - acrescentou: “Nos termos deles, claro,
segundo seu modo de pensar. Afinal, quem mais poderá sustentar os pais quando envelhecerem?”.
Brunetti pegou a garrafa de Chardonnay, encheu a taça de Paola e, depois, a sua. Seus olhares se encontraram; ela sorriu para ele e fez um gesto sutil de agradecimento.
“É preciso que enxerguemos a questão pelos seus olhos, que busquemos considerá-la da mesma forma que eles, a menos até onde nossos próprios preconceitos culturais
nos permitam fazê-lo”, proclamou a dottoressa antes de seguir explicando, por alguns minutos, a necessidade de ampliar nossa visão, de torná-la mais abrangente às
diferenças culturais, para que possamos concedê-las o devido respeito por terem evoluído, durante milênios, para responder às necessidades específicas de sociedades
diversas.
Depois de um momento que, calculou Brunetti, foi o tempo de terminar uma nova dose de vinho e comer seu reforço de batatas cozidas -, ela encerrou seu discurso,
pegou a taça e sorriu, como se aguardasse que os seus interessados alunos se aproximassem do pódio para dizer a ela como sua aula havia sido esclarecedora. O intervalo
se alongou bastante, até ser interrompido por Paola, que disse: “Clara, deixe-me ajudá-la a levar estes pratos até a cozinha.” Brunetti não foi o único a suspirar
aliviado.
Mais tarde, a caminho de casa, Brunetti perguntou: “Por que você a deixou falar livremente?”
A seu lado, Paola deu de ombros.
“Não, por quê? Diga.”
“Fácil demais”, disse Paola, fazendo pouco-caso. “Ficou óbvio, desde o começo, que ela queria me fazer falar sobre o caso, sobre o porquê de eu ter feito aquilo.
Que outra razão ela teria para falar toda aquela bobajada sobre as meninas serem descartáveis?”
Os dois caminhavam lado a lado, de braços dados. Brunetti balançou a cabeça. “Talvez ela acredite naquilo.” Eles deram mais alguns passos pensando sobre isso, então
ele disse: “Eu sempre detesto encontrar mulheres como ela”.
“Como assim?”
“Mulheres que não gostam de mulheres. Você consegue imaginar como seria uma sociedade entre elas?” E, antes de Paola responder, ele continuou. “Ela tem tanta convicção
em tudo o que diz, está tão segura de ter descoberto a verdade pura e simples. Imagine o que seria tê-la em sua banca examinadora. Discorde dela em qualquer coisa
e lá se vai o seu diploma.”
“Não que alguém fosse querer um diploma em antropologia cultural, na verdade”, Paola opinou.
Ele deu uma sonora gargalhada em completa concordância. E, ao virarem em sua calle, ele diminuiu o passo, parou e girou-a até que ela o encarasse. “Obrigado, Paola.”
“Pelo quê?”, ela perguntou, fingindo inocência.
“Por ter evitado o combate.”
“Teria terminado com ela me perguntando por que fui presa, e eu não acho que ela é alguém com quem eu falaria sobre isso.”
“Vaca estúpida”, Brunetti murmurou.
“Esse é um comentário sexista”, Paola observou.
“É, não é?”
19
Sua incursão na sociedade deixou-os sem a mínima vontade de repetir a experiência, então voltaram à política de recusar todo tipo de convite. Embora os dois se irritassem
por estarem condenados a ficar em casa toda noite e Raffi parecesse considerar sua presença contínua perfeita para fazer gracinhas, Chiara apreciava tê-los em casa
todas as noites e insistia em engajá-los em jogos de cartas, intermináveis documentários sobre animais na tevê e em um campeonato de Banco Imobiliário que ameaçava
estender-se até o o ano seguinte.
Diariamente, Paola ia à universidade e Brunetti à questura. Pela primeira vez em suas carreiras, eles ficam contentes com a interminável papelada criada pelo Estado
bizantino que os empregava.
O envolvimento de Paola com o caso fez com que Brunetti decidisse não comparecer ao funeral de Mitri, algo que normalmente teria feito. Dois dias depois, ele decidiu
reler os relatórios sobre o assassinato de Mitri: além dos relatórios da perícia e da cena do crime, releu as quatro páginas do laudo da autópsia de Rizzardi. Isso
tomou a maior parte da manhã, levando-o a refletir sobre o porquê de tanto a sua vida profissional quanto a pessoal parecerem estar sempre ocupadas com repetições
inesgotáveis das mesmas coisas. Durante seu exílio temporário da questura, ele tinha concluído sua releitura de Gibbon, e estava agora encarando Heródoto. E, quando
terminasse este, estaria pronto para o exemplar da Ilíada, que já havia separado. Todas as mortes, todas as vidas abreviadas pela violência.
Com o laudo da autópsia em mãos, Brunetti desceu até a sala da signorina Elettra, e encontrou nela o antídoto para tudo o que ele vinha pensando. Ela vestia a blusa
mais vermelha que ele já vira, além de uma blusa branca de crepe de seda, aberta até o segundo botão. Estranhamente, ela não estava fazendo nada quando ele entrou;
apenas sentada à mesa, o queixo apoiado na palma da mão, olhando pela janela na direção da San Lorenzo, da qual se podia ver um dos lados, à distância.
“Tudo bem, signorina ?”, ele perguntou ao vê-la.
Ela se ajeitou na cadeira. “Claro, commissario. Eu só estava pensando em um quadro.”
“Um quadro?”
“Hum hum”, ela disse, voltando a apoiar o queixo na mão e a olhar para a janela.
Brunetti se virou para acompanhar seu olhar, como se achasse que o quadro de que ela falava pudesse estar ali, mas tudo o que viu foi a janela e, além dela, a igreja.
“Que quadro?”, ele perguntou.
“Aquele que está no Correr, das cortesãs com os cachorrinhos.” Ele conhecia o quadro, embora nunca se lembrasse de quem o havia pintado. Eles ficaram sentados, tão
alheios e entediados quanto a signorina lhe tinha parecido quando ele chegou, olhando para os lados, como se a lembrança de que tinham uma vida pela frente fosse
desanimadora.
“E o que tem ele?”
“Eu nunca soube ao certo se elas eram cortesãs ou simplesmente mulheres ricas daquela época, tão entediadas por terem tudo e por não terem nada de fato para fazer
todos os dias, que tudo o que podiam fazer era sentar-se e observar.”
“E por que a senhorita está pensando nisso?”
“Oh, eu não sei”, ela respondeu, dando de ombros.
“Isso aqui está te entediando?”, ele perguntou, referindo-se, com um gesto de mão, à sala e a tudo o que ela representava, e esperando que sua resposta fosse negativa.
Ela girou a cabeça e o encarou. “O senhor está brincando, commissario?”
“Não, não mesmo. Por que a pergunta?”
Antes de responder, ela o observou por algum tempo. “Isso aqui não me entedia. Pelo contrário.” Brunetti não ficou realmente surpreso com a alegria que sentiu ao
ouvir isso. Depois de uma nova pausa, ela disse: “Embora eu não tenha muita certeza de qual seja minha posição aqui”.
Brunetti não sabia o que ela queria dizer com aquilo. O nome do seu cargo era “Secretária do Vice-Questore”. Ela também devia dividir seu tempo secretariando Brunetti
e outro commissario, embora jamais houvesse escrito uma carta ou um memorando para nenhum deles. “Acho que a senhorita se refere a sua verdadeira posição, em oposição
à oficial”, ele sugeriu.
“Sim, claro.”
Durante a conversa, a mão com que Brunetti segurava os relatórios havia caído ao longo de seu corpo. Ele a ergueu então à sua frente, apontou-a ligeiramente na direção
dela e disse: “Para mim, a signorina é nossos olhos e nosso nariz, e a alma de nossa curiosidade”.
A cabeça da signorina ergueu-se de sua mão e ela lhe agradeceu com um de seus radiantes sorrisos. “Seria muito agradável ler algo assim numa descrição de trabalho,
commissario.”
“Eu acho que seria melhor”, ele disse, apontando com a pasta na direção do gabinete de Patta, “deixarmos a descrição do seu trabalho assim mesmo, do jeito que está.”
“Ah”, foi tudo o que ela disse, mas seu sorriso alargou-se ainda mais calorosamente.
“E não se preocupe sobre a forma como deve nomear a ajuda que nos dá.”
A signorina Elettra se inclinou para a frente para alcançar a pasta que Brunetti lhe estendia. “Eu estava pensando se seria possível verificar se esse método de
assassinato foi usado antes e, se sim, por quem e em quem.”
“O garrote?”
“Sim.”
Ela balançou a cabeça em curtos movimentos de contrariedade. “Se eu não estivesse tão ocupada lamentando minha própria condição, eu estaria pensando nisso”, ela
disse. Então, rapidamente: “Em toda a Europa ou somente na Itália? E desde quando?”.
“Comece pela Itália e, se não conseguir descobrir nada, amplie as buscas, a partir do Sul.” Brunetti supunha que se tratava de um método mediterrâneo de assassinato.
“Volte uns cinco anos. Se não encontrar nada, dez.”
Ela se virou, reavivando seu computador, e Brunetti se surpreendeu com a maneira como ela passara a considerar a máquina uma perfeita extensão de sua mente. Ele
sorriu e saiu, deixando-a com seu trabalho e imaginando se esse era mais um comportamento sexista de sua parte, ou se a diminuíra de algum modo ao pensar nela como
sendo, de alguma forma, parte de um computador. Na escada, surpreendeu-se rindo, na verdade, gargalhando, ao dar-se conta do que a vida ao lado de uma fanática poderia
fazer a um homem. Feliz, percebeu que não se importava.
Vianello estava parado à porta do gabinete de Brunetti, obviamente à sua espera. “Vá entrando, sargento. O que foi?”
O sargento seguiu Brunetti sala adentro. “Iacovantuono, senhor.” E como Brunetti não respondeu, Vianello continuou. “Estamos conversando com o pessoal de Treviso.”
“Conversando sobre o quê?”, perguntou Brunetti apontando uma cadeira para Vianello.
“Sobre os amigos dele.”
“E sobre a esposa?”, perguntou Brunetti. A visita de Vianello só podia ser sobre isso.
Vianello assentiu.
“E?”
“Parece que a mulher que ligou para nós estava certa, senhor, embora ainda não a tenham encontrado. Eles brigavam.” Ele se sentou em silêncio e ouviu. Vianello continuou.
“Uma mulher que mora no prédio ao lado disse que ele batia nela, que ela teve de ir para o hospital uma vez.”
“E ela foi mesmo?”
“Sim. Ela caiu no banheiro, ou pelo menos foi o que ela disse.” Tanto Brunetti como Vianello já tinham ouvido muitas mulheres dizerem a mesma coisa.
“E eles conferiram os horários?”, perguntou Brunetti, sabendo que não precisava explicar mais nada.
“Ela foi encontrada nas escadas às onze e quarenta. Iacovantuono chegou ao trabalho pouco depois das onze.” Antes que Brunetti dissesse qualquer coisa, Vianello
prosseguiu. “Não, ninguém sabe por quanto tempo ela ficou lá antes de ser encontrada.”
“Quem está investigando?”
“Aquele com quem conversamos quando estivemos lá pela primeira vez, Negri. Quando contei a ele sobre o telefonema que recebemos, ele disse que já tinha começado
a interrogar os vizinhos. Também é um procedimento de rotina para eles. Eu disse a ele que nós achávamos que o telefonema era falso.”
“E?”
Vianello deu de ombros. “Ninguém o viu sair para o trabalho. Ninguém sabe exatamente quando ele chegou. Ninguém sabe quanto tempo o corpo dele ficou lá.”
Embora muita coisa tivesse acontecido desde a última vez que o vira, Brunetti ainda se lembrava com nitidez do rosto do pizzaiolo, de seus olhos fundos de dor. “Não
há nada que possamos fazer”, ele disse por fim a Vianello.
“Eu sei. Mas achei que o senhor gostaria de ficar por dentro de tudo.”
Brunetti assentiu em agradecimento e Vianello desceu para a sala dos policiais.
Meia hora depois, a signorina Elettra bateu à porta. Ela entrou trazendo algumas folhas de papel na mão direita.
“É o que estou pensando?”, ele perguntou.
Ela fez que sim com a cabeça. “Houve três assassinatos parecidos com esse nos últimos seis anos. Dois deles foram obra da Máfia, ao que parece.” Ela se aproximou
da mesa, colocou as duas primeiras folhas à sua frente, lado a lado, e apontou para dois nomes. “Um em Palermo e o outro na Reggio Calabria.”
Brunetti leu os nomes e as datas. Um dos homens fora encontrado na praia, o outro em seu próprio carro. Os dois haviam sido estrangulados com um pedaço fino do que,
provavelmente, era um cabo elétrico encapado: não foram encontrados fios ou fibras em torno do pescoço das vítimas.
Ela pôs uma terceira folha de papel ao lado das outras duas. Davide Narduzzi fora assassinado em Padova há um ano e o ambulante marroquino que foi acusado do crime
desapareceu antes de ser preso. Brunetti leu os detalhes: aparentemente, Narduzzi fora apanhado pelas costas e estrangulado, sem poder reagir. A mesma descrição
se aplicava aos outros dois assassinatos. E ao de Mitri.
“O marroquino?”
“Nem pista.”
“Esse nome não é familiar?”
“Narduzzi?”
“Sim.”
A signorina Elettra pôs a última folha de papel à frente de Brunetti. “Drogas, assalto à mão armada, roubo, ligações com a Máfia e suspeita de chantagem”, ela leu
a lista de acusações que foram levantadas contra Narduzzi durante sua breve existência. “Pense no tipo de amigos que um homem desse tipo deve ter. Não é de espantar
que o marroquino tenha desaparecido.”
Brunetti foi lendo rapidamente até o fim da página. “Se é que ele existe.”
“O quê?”
“Olha isso”, ele disse, indicando um dos nomes da lista. Dois anos antes, Narduzzi tinha se metido numa briga com Ruggiero Palmieri, dito membro de um dos mais violentos
clãs do Norte da Itália. Palmieri terminou no hospital, mas não quis prestar queixa. Brunetti conhecia bem esse tipo de homem para saber que a questão entre eles
seria resolvida em privacidade.
“Palmieri?”, perguntou a signorina. “Esse nome eu não conheço.”
“É natural. Ele nunca trabalhou - se é que essa é a palavra certa - aqui. Graças a Deus.”
“O senhor o conhece?”
“Eu o encontrei uma vez, há dois anos. Mau. Um homem mau.”
“E poderia ter sido ele?”, ela perguntou, batendo com um dedo nas outras duas folhas.
“Acho que é o trabalho dele, eliminar pessoas.”
“Então por que este outro, o Narduzzi, se meteria com ele?”
Brunetti balançou a cabeça. “Não tenho a mínima ideia.” Ele leu de novo os três pequenos relatórios e se levantou. “Vejamos o que a senhorita consegue descobrir
sobre o Palmieri”, ele disse, e a acompanhou até a sua sala.
Não muito, infelizmente. Palmieri estava foragido fazia um ano, depois de ter sido identificado como um dos três homens envolvidos no assalto a um carro-forte. Dois
guardas haviam saído feridos, mas os ladrões não conseguiram pôr as mãos nos mais de oito bilhões de liras que o caminhão transportava.
Lendo nas entrelinhas, Brunetti podia ver que não se havia despendido grande energia policial ou recursos financeiros para tentar encontrar Palmieri, afinal, ninguém
tinha morrido e nada fora roubado. Só que agora eles estavam às voltas com um assassinato.
Brunetti agradeceu a signorina e foi ao encontro de Vianello. O sargento estava sentado, a cabeça abaixada sobre uma pilha de papéis, a testa apoiada nas palmas
das mãos. Não havia mais ninguém ali, de modo que Brunetti o observou por um tempo, e depois se aproximou da mesa. Vianello o ouviu e levantou os olhos.
“Acho que está na hora de pedir alguns favores”, disse Brunetti.
“De quem?”
“De um pessoal em Padova.”
“Gente boa ou gente ruim?”
“Dos dois tipos. Quantos a gente conhece?”
Se Vianello ficou honrado por ser incluído naquele plural, não demonstrou. Depois de pensar um pouco, respondeu: “Alguns. Dos dois tipos. O que perguntaremos a eles?”
“Quero informações sobre Ruggiero Palmieri.” Brunetti deixou que Vianello registrasse o nome e o observou enquanto ele começava a pensar nos nomes de qualquer um,
bom ou mau, que fosse capaz de lhes dizer algo sobre o Palmieri.
“Que tipo de informação o senhor quer?”, Vianello perguntou.
“Eu gostaria de saber onde ele estava quando esses homens morreram”, disse Brunetti, colocando na mesa de Vianello os papéis que a signorina Elettra lhe entregara.
“E eu gostaria de saber onde ele estava na noite em que Mitri foi assassinado.”
Vianello levantou o queixo, curioso, e Brunetti explicou. “Pelo que sei, ele é um assassino de aluguel. Há alguns anos ele teve problemas com um cara chamado Narduzzi.”
Vianello balançou a cabeça para mostrar que reconhecia o nome.
“Lembra do que aconteceu com ele?”, perguntou Brunetti.
“Morto. Mas não me lembro como.”
“Estrangulado. Talvez com um fio elétrico.”
“E esses outros dois?”, perguntou Vianello, apontando para a documentação que estava abaixo.
“A mesma coisa.”
Vianello pôs os documentos sobre aqueles que já estavam na mesa e os leu com atenção. “Nunca ouvi falar de nenhum desses. O assassinato do Narduzzi foi há cerca
de um ano, não foi?”
“Sim, em Padova.” A polícia de lá provavelmente ficou contente ao saber que Narduzzi foi despachado. E a investigação com certeza não chegou até Veneza. “Você consegue
pensar em alguém que poderia saber de alguma coisa?”
“Tem aquele cara com quem o senhor trabalhou, o de Padova.”
“Della Corte”, lembrou Brunetti. “Sim, já pensei nele. É provável que ele conheça alguns tipos da pesada, com quem poderia se informar. Mas queria saber se você
não conhece mais alguém.”
“Mais dois”, disse Vianello, sem oferecer explicação alguma.
“Tá bem. Pergunte a eles.”
“E o que é que eu posso oferecer a eles como recompensa, commissario?”
Brunetti teve de refletir por um momento, considerando tanto os favores que poderia pedir aos outros policiais quanto os que ele próprio poderia oferecer. Ao final,
disse: “Ficarei lhes devendo um favor e, se algo acontecer a eles em Padova, Della Corte também.”
“Não é um grande acordo”, disse Vianello, com franqueza cética.
“É o melhor que terão.”
20
A hora seguinte foi preenchida com telefonemas de e para Padova, através dos quais Brunetti contatou a polícia e os carabinieri e se dedicou à delicada arte de cobrar
alguns favores que ele acumulara em seus anos de ofício. A maioria desses telefonemas foi feita de seu gabinete para os outros gabinetes. Della Corte aceitou investigar
em Padova e disse que esperava fazer jus ao favor que Brunetti lhe oferecia em troca de qualquer auxílio. Quando encerrou os telefonemas, saiu da questura, caminhou
até um conjunto de telefones públicos na Riva Degli Schiavoni e, dali, fez uso de um pequeno maço de cartões telefônicos de mil e quinhentas liras, ligando para
os telefonini de uma porção de criminosos medíocres - e outros não tão medíocres - com os quais ele havia lidado no passado.
Como todos os italianos, ele sabia que esses telefonemas podiam ser e talvez já estivessem sendo grampeados e gravados pelas várias agências do Estado. Assim, ele
jamais revelava seu nome e falava sempre de forma vaga, dizendo apenas que alguém em Veneza estava interessado em saber o paradeiro de Ruggiero Palmieri, mas que
não, de jeito nenhum, esse alguém não queria se identificar, nem que o signor Palmieri soubesse que estavam perguntando sobre ele por aí. O sexto telefonema foi
para um traficante, cujo filho Brunetti não prendera, mesmo tendo sido agredido pelo garoto um dia depois da última condenação do pai, há alguns anos. Brunetti ouviu
do homem que ele veria o que poderia fazer.
“E o Luigino?”, Brunetti perguntou para demonstrar que não havia ressentimentos.
“Mandei-o para os Estados Unidos. Foi estudar administração”, disse o pai, antes de desligar. Aquilo provavelmente significava que Brunetti teria de prendê-lo quando
o encontrasse de novo. Ou, talvez, com seu diploma em administração de empresas de alguma prestigiada universidade americana, ele fosse promovido a um dos cabeças
da organização, ingressando em um terreno onde dificilmente seria preso por um humilde commissario di polizia veneziano.
Com o último de seus cartões telefônicos, e consultando um pedaço de papel com o número dela anotado, Brunetti ligou para a viúva de Mitri e, como tinha acontecido
no dia que se seguiu à sua morte, ouviu uma mensagem gravada dizendo que a família, de luto, não estava recebendo mensagens. Passando o telefone para a outra orelha,
remexeu nos bolsos até encontrar um pedaço de papel com o número do irmão de Mitri, mas ao ligar para ele, mais uma vez ouviu apenas uma gravação. Em um impulso,
decidiu passar no apartamento de Mitri para ver se encontrava alguém da família por lá.
Pegou a 82 para San Marcuola e encontrou sem dificuldades o caminho até o prédio. Ao chegar, tocou a campainha e logo ouviu uma voz masculina ao interfone, perguntando
quem era. Ele disse que era da polícia, informou seu cargo, mas não seu nome, esperou por um momento e foi por fim convidado a entrar. O sal ainda se empenhava em
seu trabalho corrosivo e a tinta e o reboco se acumulavam em pequenas pilhas sobre os degraus, como antes.
No patamar, um homem de terno preto estava à porta. Ele era alto, muito magro, com um rosto estreito, e cabelos pretos e curtos que começavam a embranquecer na região
das têmporas. Ao ver Brunetti, afastou-se para que ele entrasse e lhe estendeu a mão. “Sou o Sandro Bonaventura”, ele disse, “cunhado de Paolo.” Como a irmã, ele
optou por falar italiano, e não veneziano, mas seu sotaque era audível.
Brunetti trocou com ele um aperto de mãos e, ainda sem se identificar, entrou no apartamento. Bonaventura o conduziu a uma sala ampla ao fim do corredor. Ele percebeu
que o chão da sala era coberto com o que parecia ser o piso de carvalho original, e não com parquê, e que as cortinas à frente das duplas janelas pareciam autênticas
Fortuny.
Bonaventura indicou uma cadeira e, quando Brunetti já estava sentado, sentou-se de frente para ele. “Minha irmã não está”, ele começou. “Ela e a neta foram passar
uns dias com a minha esposa.”
“Eu preciso falar com ela”, disse Brunetti. “O senhor tem ideia de quando ela vai estar de volta?”
Bonaventura fez que não com a cabeça. “Ela e minha esposa são muito próximas, quase como irmãs, por isso nós a convidamos para passar um tempo conosco... assim que
aconteceu.” Ele olhou para baixo, para as próprias mãos, balançou lentamente a cabeça, e voltou a olhar para cima, encarando Brunetti. “Não consigo acreditar que
isso tenha acontecido, não a Paolo. Não havia motivo, nenhum mesmo.”
“Na maioria das vezes não há motivo algum, se a pessoa chega e surpreende o ladrão, ele entra em pânico e...”
“O senhor acha que foi um roubo? Mas e o bilhete?”
Brunetti fez uma pausa antes de responder. “Pode ser que o ladrão o tenha escolhido por causa da publicidade causada pela agência de viagens. Ele pode ter levado
o bilhete consigo, planejando deixá-lo no local após o roubo.”
“Mas por que se dar ao trabalho?”
Brunetti não tinha a menor ideia e achou a própria hipótese ridícula. “Para desviar a atenção que poderíamos dar a um ladrão profissional”, ele inventou.
“Isso é impossível. Paolo foi assassinado por algum fanático que achou ser ele o responsável por algo que ele nem imaginava estar ocorrendo. A vida da minha irmã
foi arruinada. Isso é uma maluquice. Não venha me falar de ladrões que trazem bilhetes consigo e não perca seu tempo saindo em busca deles por aí. O senhor devia
estar procurando pelo louco que fez isso.”
“Seu cunhado tinha inimigos?”, Brunetti perguntou.
“Mas é claro que não.”
“Acho isso estranho.”
“O que o senhor está insinuando?”, Bonaventura perguntou, inclinando-se para a frente em sua cadeira e avançando sobre o espaço de Brunetti.
“Por favor, não se ofenda, signor Bonaventura.” Brunetti ergueu uma mão pacificadora entre eles. “O que eu quis dizer é que o dottor Mitri era um empresário, e um
empresário bem-sucedido. Estou certo de que ao longo dos anos ele tomou decisões que desagradaram a pessoas, que as enfureceram.”
“As pessoas não saem por aí se matando por conta de problemas nos negócios”, insistiu Bonaventura.
Brunetti, que sabia como era frequente que o fizessem, na verdade, calou-se por algum tempo. Então, disse: “O senhor consegue se lembrar de alguém com quem ele estivesse
enfrentando alguma dificuldade?”.
“Não”, respondeu Bonaventura de pronto, e, após refletir por algum tempo, acrescentou: “Ninguém”.
“Entendo. O senhor está familiarizado com o trabalho do seu cunhado? O senhor trabalha com ele?”
“Não. Eu administro nossa fábrica em Castelfranco Veneto, a Interfar. É minha, mas está registrada no nome da minha irmã.” Ele viu que Brunetti não ficara satisfeito
com essa resposta, e completou: “Por causa do imposto de renda”.
Brunetti balançou a cabeça de uma maneira que lhe pareceu muito parecida com a de um padre. Às vezes, ele sentia que as pessoas na Itália seriam desculpadas por
qualquer horror, de qualquer enormidade, bastava a simples afirmação de que tal atitude foi tomada por causa do imposto de renda. Elimine sua família, atire no seu
cachorro, bote fogo na casa do vizinho: é só afirmar que você teve de fazê-lo por causa do imposto de renda e nenhum juiz, nenhum júri, vai condená-lo. “O dottor
Mitri tinha algum envolvimento na sua fábrica?”
“Não, nenhum.”
“E de que tipo de fábrica se trata, se me permite a pergunta?”
Bonaventura pareceu não estranhar a pergunta. “Mas é claro que o senhor pode perguntar. Remédios. Aspirina, insulina, diversos produtos homeopáticos.”
“E o senhor é farmacêutico para supervisionar as operações?”
Bonaventura hesitou para responder. “Não, não mesmo. Sou apenas um empresário. Eu cuido dos números, consulto os cientistas que preparam as fórmulas e me dedico
a descobrir estratégias de marketing vitoriosas.”
“Mas não é preciso ter conhecimentos de farmacologia?”, perguntou Brunetti, lembrando que Mitri era químico.
“Não. É uma questão de tomar decisões gerenciais, nada além disso. Não importa qual é o produto: sapatos, barcos, cera para lacre.”
“Certo”, disse Brunetti. “Seu cunhado era químico, não era?”
“Sim, acho que sim, originalmente, no começo da carreira.”
“E depois não mais?”
“Não, ele não exercia a profissão fazia muitos anos.”
“O que ele fazia, então, em suas empresas?” Brunetti se perguntou se Mitri também teria sido um defensor das estratégias gerenciais.
Bonaventura se levantou. “Commissario, me desculpe por ter que interromper a nossa conversa, mas tenho coisas a fazer e não tenho como responder a essas perguntas.
Acho que seria melhor o senhor procurar os diretores das fábricas de Paolo. Eu realmente não sei nada sobre os negócios dele, nem como ele os administrava. Sinto
muito.”
Brunetti se levantou. Fazia sentido. O fato de Mitri ter sido um químico não implicava necessariamente sua participação na administração cotidiana de suas fábricas.
No multifacetado mundo empresarial, não era mais necessário que um homem soubesse todos os detalhes de um negócio para administrá-lo. Bastava pensar em Patta, ele
refletiu, para ver como isso era verdadeiro. “Obrigado pelo seu tempo”, ele disse, erguendo de novo a mão para cumprimentar Bonaventura. Ele devolveu o gesto e conduziu
Brunetti até o hall de entrada, onde se separaram. O commissario pôs-se a caminho da questura pelas ruas ao fundo do Cannaregio, que para ele era o bairro mais belo
da cidade. Ou seja, ele presumia, o mais belo bairro do mundo.
Ao voltar, a maior parte do pessoal já tinha saído para o almoço e ele se contentou em deixar um recado na mesa da signorina Elettra, em que lhe pedia que descobrisse
tudo o que pudesse sobre o cunhado de Mitri, Alessandro Bonaventura. Enquanto se esticava, tomando a liberdade de abrir a primeira gaveta de sua mesa para devolver
o lápis que havia utilizado, ele pensou em como gostaria de lhe mandar um e-mail. Ele não tinha ideia de como aquilo funcionava ou o que era preciso fazer para enviar
algo a ela, mas mesmo assim queria fazê-lo, ainda que fosse apenas para mostrar a ela que não era o Neandertal tecnológico que ela parecia achar que ele era. Afinal,
Vianello tinha aprendido; nada o impediu de se tornar um alfabetizado em computadores. Era formado em direito; isso certamente devia valer para alguma coisa.
Olhou para o computador: silencioso, torradeiras quietas e monitor em repouso. Não podia ser tão difícil. Mas, talvez - ocorreu-lhe finalmente num vislumbre -, talvez,
como Mitri, ele fosse mais habilitado a ser o homem dos bastidores do que aquele que se envolve com o funcionamento cotidiano das máquinas. Com aquela desculpa fresca
na consciência, ele foi até o bar da ponte para um tramezzino e uma taça de vinho, enquanto aguardava que os outros voltassem do almoço.
Isso aconteceu mais perto das quatro horas que das três, mas Brunetti já havia abandonado há muito quaisquer ilusões quanto ao nível de dedicação das pessoas com
quem trabalhava, portanto não se importou nem um pouco de ficar sentado em silêncio no seu gabinete por mais de uma hora, lendo o jornal do dia. Checou inclusive
o seu horóscopo, que o deixou curioso sobre a loira desconhecida que ele iria conhecer e contente por descobrir que “em breve iria receber boas notícias”. Bem que
ele estava precisando.
Seu interfone tocou pouco depois das quatro e ele atendeu - sabendo que devia ser Patta -, interessado no fato de que as coisas estivessem acontecendo tão rápido
e curioso para saber o que o vice-questore queria.
“O senhor poderia descer até o meu gabinete, commissario?”, perguntou seu superior, e Brunetti respondeu polidamente que já estava a caminho.
A blusa da signorina Elettra estava pendurada nas costas de sua cadeira, e uma lista de nomes e do que pareciam ser números se apresentava em linhas organizadas
na tela de seu computador, mas não havia nenhum sinal dela. Ele bateu à porta de Patta e entrou ao ouvir o som de sua voz.
Ao entrar, encontrou a signorina Elettra sentada à frente da mesa de Patta, com as pernas unidas elegantemente, uma caderneta no colo, e a caneta erguida enquanto
a última palavra de Patta ainda ressoava no ar. Era apenas o “Avanti ” gritado por ele, indicando a Brunetti que entrasse, então ela não o anotou.
Patta mal registrou a chegada de Brunetti, dirigindo-lhe o mais discreto dos acenos e voltando a concentrar-se em seu ditado. “E diga a eles que eu não quero...
Não, melhor escrever ‘Eu não tolerarei...’ Acho que soa mais impositivo, não acha, signorina ?”
“Com certeza, vice-questore”, ela disse, os olhos atentos ao que escrevia.
“Eu não tolerarei”, continuou Patta, “o uso continuado de barcos e automóveis da polícia em viagens não autorizadas. Se um membro do pessoal...” Ele fez uma pausa,
para acrescentar em um estilo mais informal: “Será que poderíamos verificar que patentes são autorizadas a utilizar os barcos e carros e acrescentar essa informação,
signorina ?”.
“Claro, vice-questore.”
“...solicitar o uso de transporte policial, ele deve... O que foi, signorina ?” Patta interrompeu, reagindo à expressão de confusão que surgiu em seu rosto quando
ela ouviu estas últimas palavras.
“Talvez fosse melhor dizer ‘essa pessoa’, senhor”, ela sugeriu, “para evitar que soe como preconceito sexual, como se apenas homens tivessem a autoridade para requisitar
barcos.” Ela baixou o olhar e virou uma página da caderneta.
“Claro, claro, se a senhorita achar mais prudente”, Patta concordou e continuou: “...essa pessoa deve preencher os requerimentos e aguardar a aprovação da autoridade
competente.” De repente, todo o seu porte se alterou e seu rosto tornou-se menos imperioso, como se ele houvesse dito a seu queixo que parasse de se espelhar no
de Mussolini. “Se a senhorita puder me fazer essa gentileza, confira quem são os responsáveis pelas autorizações e acrescente seus nomes ao memorando, está bem?”
“Claro, senhor”, ela disse, e escreveu mais algumas palavras, erguendo os olhos e sorrindo. “Isso é tudo?”
“Sim, sim”, disse Patta. Sob o olhar de Brunetti, ele chegou a se inclinar na cadeira enquanto ela se levantava, como se a força simpática de seu movimento pudesse
ajudá-la a se erguer.
À porta, ela se virou e sorriu para os dois. “Será a primeira coisa que farei amanhã pela manhã, senhor”, disse ela.
“Antes, não?”
“Temo que não, senhor. Ainda tenho que calcular o orçamento para nossas despesas do mês que vem.” O sorriso dela era uma mistura de lamento e convicção.
“Claro.”
Sem dizer mais nada, ela saiu, fechando a porta atrás de si.
“Brunetti”, disse Patta sem preâmbulo, “como vai o caso Mitri?”
“Eu falei com o cunhado dele, hoje”, começou Brunetti, curioso para saber se Patta já sabia disso. A palidez em seu rosto sugeria que não, então Brunetti continuou.
“Também descobri que houve três outros assassinatos nos últimos anos em que provavelmente se usou um fio encapado de algum tipo, talvez elétrico, e todas as vítimas
parecem ter sido atacadas pelas costas, como Mitri.”
“E que tipo de crimes foram esses? Iguais ao último?”
“Não, senhor. Aparentemente foram execuções. Máfia, provavelmente.”
“Então”, disse Patta, logo descartando a possibilidade, “eles não têm nada a ver com isso. Esse crime foi obra de um lunático, algum tipo de fanático levado a matar
por...” E aqui Patta perdeu o fio do seu argumento, ou lembrou com quem estava falando, pois parou subitamente.
“Eu gostaria de considerar a possibilidade de que haja alguma conexão entre as mortes, senhor”, disse Brunetti, como se Patta simplesmente não tivesse falado.
“Onde elas ocorreram?”
“Palermo, Reggio Calabria e, o mais recente, em Padova.”
“Ah.” Patta suspirou alto. E, depois de um momento, explicou: “Se os crimes estiverem relacionados, isso significa que provavelmente não são de nossa alçada, certo?
Que, na verdade, a polícia dessas outras cidades deveria investigar nosso crime como parte de uma série?”.
“Isso é bem possível, senhor.” Brunetti não se deu ao trabalho de mencionar que o mesmo se aplicava à polícia de Veneza: que também ela deveria investigar a série.
“Bem, alerte-os então, todos eles, sobre o que aconteceu e, assim que você tiver alguma resposta deles, me avise.”
Brunetti tinha que reconhecer a genialidade da solução. A investigação do crime havia sido enviada para fora, entregue à polícia daquelas outras cidades, e assim
Patta fez o que era oficialmente correto, o que burocraticamente funcionava: ele passou aquilo para outro departamento e, ao fazê-lo, cumpriu seu próprio dever ou,
sobretudo, daria a impressão de tê-lo cumprido, caso sua decisão viesse a ser questionada. Brunetti se levantou. “Claro, senhor. Vou entrar em contato com eles imediatamente.”
Patta abaixou a cabeça em uma gentil despedida. Era raro que Brunetti, um cabeça-dura, um homem difícil, fosse tão receptivo à razão.
21
Ao sair do gabinete de Patta, Brunetti encontrou a signorina Elettra, no momento exato em que ela vestia a jaqueta. Bolsa e sacola de compras estavam posicionadas
lado a lado sobre a mesa, e seu casaco entre as duas. “E o orçamento?”, perguntou Brunetti.
“Isso”, ela disse, com o que soava como um grunhido de satisfação. “É a mesma coisa todo mês. Gasto cinco minutos para imprimi-lo. Só mudo o nome do mês.”
“Ninguém nunca percebeu?”, Brunetti perguntou, pensando em quanto lhes custariam as flores que compravam diariamente.
“O vice-questore reclamou há algum tempo”, ela disse, estendendo a mão para alcançar seu casaco.
Brunetti pegou o casaco e o segurou enquanto ela o vestia. Nenhum dos dois achou adequado mencionar que o local em que ela trabalhava ainda estaria aberto por três
horas. “E o que ele disse?”
“Ele queria saber por que estávamos gastando mensalmente mais dinheiro com flores que com material de escritório.”
“E o que a senhorita disse?”
“Eu me desculpei, disse que devia ter invertido os totais das duas colunas e que isso não aconteceria novamente.” Ela pegou a bolsa e pôs sua longa alça de couro
no ombro.
“E?” Brunetti não pôde conter a curiosidade.
“Não aconteceu novamente. É a primeira coisa que eu faço quando elaboro o relatório mensal. Troco a coluna de gastos com flores pela de gastos com material de escritório.
Ele está muito satisfeito agora.” Ela pegou sua sacola de compras - Bottega Veneta, ele notou - e seguiu em direção à porta da sala.
“Signorina”, ele começou, constrangido pela insistência. “E aqueles nomes?”
“Amanhã de manhã, commissario. Estou cuidando disso.” Dizendo isso, ela apontou para o computador com o queixo, pois uma das mãos estava ocupada com a sacola e a
outra ajeitando uma mecha de cabelo.
“Mas está desligado”, disse Brunetti.
Ela fechou os olhos pela mais curta fração de um segundo, mas ainda assim ele percebeu. “Pode acreditar em mim, commissario. De manhã.” Ele demorou a aquiescer,
então ela acrescentou: “Lembre, commissario, eu sou os seus olhos e o seu nariz. Tudo o que puder ser descoberto estará aqui amanhã bem cedo”.
Embora a porta da sala estivesse aberta, Brunetti acompanhou a signorina até lá, como se quisesse garantir que ela sairia em segurança. “Arrivederci, signorina.
E grazie.”
E ela se foi com um sorriso.
Brunetti ficou ali por um momento, refletindo sobre o que deveria fazer com o que restava do dia. Não possuía a coragem espontânea da signorina Elettra, então voltou
a seu gabinete. Sobre a mesa, encontrou um recado escrito à mão: o conde Orazio Falier solicitava que ele entrasse em contato.
“Aqui é o Guido”, ele disse ao ouvir o conde identificar-se do outro lado.
“Que bom que você ligou. Podemos conversar?”
“É sobre Paola?”
“Não, é sobre aquele outro assunto que você me pediu para sondar. Falei com uma pessoa com quem faço certas transações bancárias e ele me disse que, há cerca de
um ano, as contas de Mitri no exterior apresentaram uma considerável movimentação de dinheiro.” Antes de Brunetti responder, o conde disse: “Ele falou num total
de cinco milhões de francos”.
“Francos?”, perguntou Brunetti. “Suíços?”
“Não, franceses”, disse o conde, num tom que colocava o franco francês em paridade com a moeda da Letônia.
Brunetti sabia que não devia perguntar onde e como seu sogro havia conseguido tal informação, e era esperto o bastante para confiar completamente nela. “É a única
conta que ele tem?”
“A única de que eu ouvi falar. Mas andei perguntando a outras pessoas e talvez tenha algo mais a lhe dizer ao fim da semana.”
“E ele disse de onde veio esse dinheiro?”
“Os depósitos vinham de vários países. Espere um pouco que já lhe digo; anotei por aqui em algum lugar.” O conde largou o telefone e Brunetti puxou para si um pedaço
de papel. Ao fundo, ele ouviu o ruído de passos se afastando e depois se aproximando. “Aqui está”, começou o conde. “Nigéria, Egito, Quênia, Bangladesh, Sri Lanka
e Costa do Marfim.” Depois de uma longa pausa, ele disse: “Tentei entender isso de diversas formas: drogas, armas, mulheres. Mas há alguma coisa errada, algo não
se encaixa”.
“Primeiro, por serem países muito pobres”, Brunetti murmurou.
“Exato. Mas o dinheiro veio deles. Havia outras quantias, muito menores, que vieram de países europeus e algo do Brasil, mas o grosso veio desses países. Quer dizer,
sempre veio nas moedas locais dos respectivos países, e depois uma parte era enviada de volta, mas em dólares, sempre em dólares.”
“Mas aos mesmos países?”
“Sim.”
“Quanto foi devolvido?”
“Não sei.” E, antes que Brunetti perguntasse, o conde disse: “Essa é toda a informação que ele se dispôs a fornecer. É tudo o que ele me devia”.
Brunetti entendeu. Dali não sairia mais nada; não fazia sentido insistir. “Obrigado”, disse ele.
“O que você acha que isso significa?”
“Não sei. Tenho que refletir um pouco.” Decidiu pedir mais um favor ao conde: “E há uma pessoa que preciso encontrar”.
“Quem?”
“Um homem chamado Palmieri, um assassino profissional, ou algo muito próximo disso.”
“E o que isso tem a ver com Paola?”
“Ele pode estar envolvido de algum modo no assassinato de Mitri.”
“Esse Palmieri?”
“Sim, Ruggiero. Acho que ele é de Portogruaro. Mas, segundo as últimas notícias que tivemos, ele pode estar em Padova. Por que o senhor pergunta?”
“Eu conheço bastante gente, Guido. Vou ver o que posso descobrir.”
Por um momento, Brunetti quis recomendar ao conde que fosse cuidadoso, mas um homem não chega a uma posição como a dele sem ter a cautela como hábito de toda uma
vida.
“Falei com Paola ontem”, disse o conde. “Ela parece bem.”
“Sim.” E, subitamente consciente de como aquilo havia soado mesquinho, acrescentou: “Se aquilo de que eu estou começando a suspeitar for verdade, ela não teve nada
a ver com a morte do Mitri”.
“Mas é claro que ela não teve nada a ver com a morte dele.” A resposta veio no ato. “Ela estava com você naquela noite.”
Brunetti conteve sua primeira reação e falou pausadamente. “Eu quero dizer no sentido de ela haver planejado, não da maneira como nós planejaríamos - que os atos
dela levassem alguém a matá-lo.”
“Mesmo se isso fosse verdade...”, o conde começou, mas de repente perdeu o interesse em discutir o caso hipotético e disse em tom normal: “Verei o que posso descobrir
sobre o envolvimento dele com aqueles países”.
“Aguardo.” Brunetti despediu-se educadamente e desligou o telefone.
Quênia, Egito e Sri Lanka eram todos países às voltas com explosões de violência assassina, mas nada que Brunetti lera sugeria alguma causa comum aos três, já que
todos os grupos acusados pareciam ter objetivos inteiramente diversos. Matéria-prima? Brunetti não sabia o suficiente sobre eles para ser capaz de adivinhar o que
possuíam que pudesse ser do interesse de um voraz ocidental.
Olhou para o relógio e viu que já passava das seis; certamente um commissario, particularmente um que ainda estava oficialmente em um regime chamado licença administrativa,
podia ir pra casa.
No caminho, continuou a especular sobre o assunto; chegou a parar, pegar a lista de países e estudá-la mais uma vez. Entrou no Antico Dolo, pediu uma taça de vinho
branco e duas lulas, mas sua preocupação era tamanha que mal os provou.
Chegou antes das sete a um lar vazio. Foi até o estúdio de Paola, pegou seu atlas mundial, sentou-se no sofá velho e confortável com o livro aberto sobre os joelhos
e contemplou os mapas multicoloridos das várias regiões. Deixou-se afundar no sofá, repousando a cabeça no encosto.
Paola o encontrou daquele jeito meia hora depois, dormindo profundamente. Chamou seu nome uma vez, duas, mas ele só acordou quando ela foi até o sofá e sentou-se
ao seu lado.
Dormir de dia sempre o deixava tonto e lerdo, com um gosto estranho na boca.
“O que é isso?”, ela disse, beijando sua orelha e apontando para o livro.
“Sri Lanka. E aqui, Bangladesh, Egito, Quênia, Costa do Marfim e Nigéria”, ele disse, virando as páginas silenciosamente.
“Deixa eu adivinhar: o itinerário da nossa segunda viagem de lua de mel, pelas capitais mais pobres do mundo?”, ela perguntou com uma gargalhada. Então, vendo que
ele sorria, prosseguiu. “E eu serei a Madame Bountiful, com os bolsos cheios de pequenas moedas que lançarei à população local enquanto visitamos os pontos turísticos?”
“É curioso”, disse Brunetti, fechando o livro, mas deixando-o sobre os joelhos. “Curioso que a primeira coisa que venha à sua mente também seja a pobreza.”
“Isso ou os distúrbios civis que ocorreram na maioria desses lugares.” Ela fez uma pequena pausa, e acrescentou: “Ou Imodium barato”.
“Hein?”
“Lembra quando estávamos no Egito e precisamos de Imodium?”
Brunetti lembrava-se da viagem para o Egito, uma década atrás, quando os dois tiveram uma diarreia pesada e passaram dois dias à base de iogurte, arroz e Imodium.
“Sim”, ele respondeu. Achava que se lembrava, embora não tivesse muita certeza.
“Sem receita, sem perguntas e baratinho, baratinho. Se eu tivesse levado uma lista das coisas que meus amigos neuróticos tomam, eu teria garantido minhas compras
de Natal dos próximos cinco anos.” Ela percebeu que ele não entendeu a piada, então voltou a se concentrar no atlas. “Mas por que a preocupação com esses países?”
“Mitri recebeu dinheiro deles, muito dinheiro. Ou suas empresas receberam. Não sei ao certo, pois todo o dinheiro foi para a Suíça.”
“Todo dinheiro acaba indo, não acaba?”, ela perguntou com um ar de enfado.
Ele se libertou do pensamento acerca dos países e jogou o atlas para trás, no sofá. “Onde estão as crianças?”
“Foram jantar com os meus pais.”
“Vamos sair, então?”
“Você está disposto a sair comigo de novo, a ser visto comigo?”, ela perguntou calmamente.
Brunetti não sabia se ela estava brincando, então respondeu: “Sim”.
“Para onde?”
“Onde você quiser.”
Ela se esparramou sobre o marido, esticando as pernas à frente, ao lado das dele, que eram mais longas. “Não quero ir longe. Que tal uma pizza na Due Colonne?
“Que horas as crianças vão voltar?”, ele perguntou, pondo as mãos sobre as dela.
“Não antes das dez, acho”, ela respondeu, olhando para o relógio.
“Que bom”, ele disse, trazendo as mãos dela até os seus lábios.
22
Brunetti não descobriu nada sobre Palmieri nos dois dias que se seguiram. O Gazzettino publicou um artigo que comentava a falta de avanços na investigação do caso
Mitri, mas não fazia menção a Paola, e Brunetti concluiu que seu sogro havia de fato falado com seus conhecidos. A imprensa nacional mantinha silêncio similar; onze
pessoas foram queimadas até a morte em uma câmara de oxigênio num hospital em Milão e, assim, a história do assassinato de Mitri foi preterida em favor das denúncias
sobre o sistema nacional de saúde.
Conforme havia prometido, a signorina Elettra lhe entregou três folhas com informações sobre Sandro Bonaventura. Ele e a esposa tinham dois filhos, que já estavam
na universidade; uma casa em Padova e um apartamento em Castelfranco Veneto. Como Bonaventura tinha informado, a Interfar, que ficava lá, estava no nome de sua irmã.
Ela fora comprada fazia um ano e meio, com dinheiro, após um polpudo resgate feito em uma conta de Mitri em um banco veneziano.
Bonaventura trabalhara como diretor de uma das fábricas de Mitri até assumir a diretoria de uma das fábricas de propriedade da irmã. E isso era tudo: uma perfeita
reprodução do sucesso da classe média.
No terceiro dia, um homem foi apanhado roubando a agência dos correios do campo San Polo. Após cinco horas de interrogatório, ele confessou o roubo do banco do campo
San Luca. Tratava-se do mesmo homem cuja foto fora identificada por Iacovantuono da primeira vez e que, após a morte de sua esposa, ele não identificava mais. Enquanto
interrogavam o homem, Brunetti desceu para dar uma espiada nele através do vidro de visão unilateral que ficava na porta da sala de interrogatórios. O homem que
ele viu era baixo, robusto, com cabelos castanhos e ralos; o homem que Iacovantuono havia descrito da segunda vez era ruivo e pelo menos vinte quilos mais magro.
Brunetti voltou ao seu gabinete e ligou para Negri, o responsável pela investigação da morte da signora Iacovantuono em Treviso - o caso que não era um caso -, e
lhe disse que haviam prendido alguém pelo roubo ao banco e que ele não se parecia nada com o homem que Iacovantuono identificara da segunda vez.
Depois de dar essa informação, Brunetti perguntou: “O que ele está fazendo?”.
“Ele sai para ir ao trabalho, volta para casa e dá de comer aos filhos e, dia sim dia não, vai até o cemitério para colocar flores frescas no túmulo da esposa”,
Negri respondeu.
“Tem outra mulher?”
“Até agora, não.”
“Se foi ele quem fez aquilo, ele é bom,” declarou Brunetti.
“Eu o achei totalmente convincente quando falei com ele. Cheguei a mandar uma equipe para lhes dar proteção, manter a casa sob vigília, um dia depois que ela morreu.”
“E eles viram algo?”
“Nada.”
“Se aparecer alguma coisa, me avise.”
“Meio difícil, não?”
“É.”
Normalmente, o instinto de Brunetti o avisava quando alguém estava mentindo ou tentando esconder algo, mas com Iacovantuono ele não tinha nenhuma ideia, nenhum sinal
de alerta ou suspeita. Brunetti se pegou refletindo sobre o que ele queria que fosse verdade: queria estar certo ou queria que o pequeno pizzaiolo fosse um assassino?
Quando o telefone tocou, despertando-o de seus inúteis devaneios, sua mão ainda estava apoiada sobre ele.
“Guido, aqui é o Della Corte.”
O pensamento de Brunetti voou até Padova, Mitri e Palmieri. “O que foi?”, ele perguntou, excitado a ponto de esquecer da etiqueta, e expulsando Iacovantuono de sua
mente.
“Acho que o encontramos.”
“Palmieri?”
“É.”
“Onde?”
“Ao norte. Parece que estava dirigindo um caminhão.”
“Um caminhão?”, repetiu Brunetti estupidamente. Parecia excessivamente banal para um homem que podia ter matado quatro pessoas.
“Ele está usando outro nome. Michele de Luca.”
“Como vocês o encontraram?”
“Um de nossos homens do esquadrão de narcóticos investigou por aí e um dos seus informantes lhe disse. Ele não tinha certeza, então nós mandamos alguém até lá e
ele voltou com uma identificação positiva.”
“É possível que Palmieri o tenha visto?”
“Não, o cara é bom.” Os dois ficaram calados por um momento, então Della Corte perguntou: “Você quer que a gente o prenda?”.
“Não creio que seja tão fácil.”
“Nós sabemos onde ele mora. Podemos ir até lá de noite.”
“Onde é?”
“Castelfranco Veneto. Ele dirige um caminhão para uma fábrica de remédios chamada Interfar.”
“Vou até lá. Quero prendê-lo eu mesmo. Esta noite.”
Para se juntar à polícia de Padova na investida ao apartamento de Palmieri, ele teve que mentir a Paola. Durante o almoço, disse a ela que a polícia de Castelfranco
tinha um suspeito em custódia e queria que ele fosse até lá para interrogá-lo. Quando ela perguntou por que ele teria que passar a noite fora, ele explicou que o
homem só chegaria lá bem tarde da noite e não havia trens para voltar depois das dez. Na verdade, naquela tarde não haveria nenhum na região do Vêneto. Uma greve
surpresa dos controladores de voo tinha começado ao meio-dia, fechando o aeroporto e forçando as aeronaves a desviarem sua rota para os aeroportos de Bolonha ou
de Trieste. Aí, o sindicato dos ferroviários decidiu aderir à greve em solidariedade às demandas dos companheiros do ar, paralisando toda a operação ferroviária
na região do Vêneto.
“Vá de carro, então.”
“Eu vou, mas só até Padova. É o máximo que Patta vai autorizar.”
“O que significa que ele não quer que você vá até lá, não é?”, ela disse, encarando-o por cima dos pratos e restos da refeição. Os filhos já haviam se enfurnado
em seus quartos, e eles podiam falar abertamente. “Ou não sabe que você vai.”
“Mais ou menos”, ele disse, e, apanhando uma maçã da fruteira, começou a descascá-la. “Boas estas maçãs”, ele observou, enquanto saboreava o primeiro pedaço.
“Não seja evasivo, Guido. Qual é o outro motivo?”
“Talvez eu tenha que interrogá-lo por muito tempo, então não sei quando vou poder voltar.”
“Eles apanharam esse homem e tudo o que fazem é trazê-lo para que você dê uma prensa nele?”, ela perguntou ceticamente.
“Eu tenho que interrogá-lo a respeito de Mitri”, disse Brunetti, preferindo uma resposta evasiva a mentir descaradamente.
“Esse homem é o assassino?”
“Pode ser. Estão atrás dele; ele precisa ser interrogado por pelo menos outros três assassinatos.”
“Interrogado? E o que isto quer dizer?”
Brunetti lera os relatórios, portanto sabia que uma testemunha o vira em companhia da segunda vítima na noite em que ela foi assassinada. Além disso, havia a briga
com Narduzzi. E agora um trabalho como motorista de caminhão para uma fábrica de remédios. Em Castelfranco, na empresa de Bonaventura. “Ele está envolvido.”
“Entendo”, ela disse, percebendo pelo tom de voz do esposo que ele relutava em ser mais explícito. “Então você só volta amanhã de manhã?”
“Sim.”
“E que horas você sai hoje?”, ela perguntou, em repentina concessão.
“Às oito.”
“Você ainda volta para a questura?”
“Sim.” Ele ia acrescentar que precisava saber se o homem fora acusado formalmente, mas se deteve. Brunetti não gostava de mentir, mas parecia melhor do que preocupá-la
por estar se colocando deliberadamente em perigo. Se soubesse, ela lhe diria que tanto sua idade como sua patente deviam lhe poupar disso.
Ele não sabia se conseguiria dormir naquela noite, ou onde, mas mesmo assim foi até o quarto e colocou algumas coisas em uma pequena mala. Abriu a porta esquerda
do grande armadio de carvalho, presente de casamento do conde Orazio, e pegou suas chaves. Com uma delas abriu uma gaveta, com a outra, uma caixa retangular de metal.
Tirou dali sua pistola e uma cartucheira, colocou-as no bolso e, em seguida, trancou cuidadosamente a caixa e a gaveta.
Então ele pensou na Ilíada, e em Aquiles vestindo a armadura antes da batalha com Heitor: o poderoso escudo, grevas, lança, espada e elmo. Como parecia insignificante
e ignóbil este pequeno objeto de metal pressionado contra seu quadril, a arma que Paola sempre dizia ser um pênis portátil. E, mesmo assim, rapidamente as armas
de fogo puseram um fim à cavalaria e a todas aquelas ideias que descendiam de Aquiles. Ele parou à porta e disse a si mesmo para se concentrar: ele iria a Castelfranco
a trabalho e tinha que se despedir de sua mulher.
* * *
Ele não via Della Corte fazia anos, mas ainda assim o reconheceu no instante em que entrou na questura de Padova: os mesmos olhos negros e o bigode rebelde.
Brunetti o chamou, e o policial se voltou ao ouvir o seu nome. “Guido”, ele disse, acelerando o passo. “Que bom vê-lo novamente.”
Enquanto caminhavam até o gabinete do Della Corte, conversaram sobre o que haviam feito nos últimos anos. Lá, tomaram café e continuaram o papo sobre casos antigos;
quando terminaram, começaram a discutir os planos para aquela noite. Della Corte sugeriu que esperassem passar das dez para sair de Padova; chegariam a Castelfranco
por volta das onze, onde deviam encontrar a polícia local que, quando alertada a respeito de Palmieri, insistiu em ir até lá.
Ao chegarem à questura de Castelfranco, pouco antes das onze, foram recebidos pelo commissario Bonino e outros dois oficiais vestidos à paisana, com jeans e jaquetas
de couro. Eles providenciaram um mapa dos arredores do apartamento em que Palmieri vivia, completo em cada detalhe: vagas no estacionamento ao lado, localização
de todas as portas no edifício, até mesmo uma planta baixa do apartamento de Palmieri.
“Como vocês conseguiram isso?”, perguntou Brunetti, deixando transparecer sua admiração.
Bonino fez um gesto com a cabeça indicando o mais jovem dos policiais. “O prédio é novo”, ele explicou, “e eu sei que as plantas deviam ficar arquivadas no ufficio
catasto, então fui até lá e solicitei uma cópia do segundo andar. Ele mora no terceiro, mas o projeto é o mesmo.” Ele parou de falar e olhou para a planta, convidando-os
a fazer o mesmo.
Parecia bem simples: uma única escada conduzia a um corredor. O apartamento de Palmieri era o último. Tudo o que tinham de fazer era colocar dois homens debaixo
das janelas, um ao pé da escada, dois para entrar no apartamento e dois em retaguarda no corredor. Brunetti esteve a ponto de dizer que aquilo lhe parecia excessivo,
mas lembrou que Palmieri podia ter assassinado quatro homens e ficou calado.
Os dois carros estacionaram a algumas centenas de metros do prédio e todos desembarcaram. Os dois jovens à paisana foram escolhidos para subir até o apartamento
com Brunetti e Della Corte, que fariam a prisão de fato. Bonino disse que cobriria as escadas e os dois homens de Padova tomaram suas posições sob os três grossos
pinheiros que ficavam entre o prédio e a rua: um deles guardando a entrada, o outro, os fundos.
Brunetti, Della Corte e os dois oficiais subiram as escadas. Ao chegarem ao andar de Palmieri, dividiram-se. Os homens à paisana permaneceram próximos às escadas,
um deles segurando a porta aberta com o pé.
Brunetti e Della Corte foram até a entrada do apartamento. Silenciosamente, Brunetti girou a maçaneta, mas a porta estava trancada. Della Corte bateu duas vezes,
discretamente. Silêncio. Bateu de novo, agora mais forte. Então chamou: “Ruggiero, sou eu. Eles me mandaram te buscar. Você tem que sair. A polícia está a caminho”.
Dentro, algo caiu e se quebrou, provavelmente uma lanterna. Mas ninguém se aproximou da porta. Della Corte bateu de novo. “Ruggiero, per l’amor di Dio, saia daí.
Mexa-se.”
Dentro, mais ruídos; outra coisa caiu, mas desta vez algo pesado, uma cadeira ou mesa. Eles ouviram gritos vindos de baixo, provavelmente dos outros policiais. Ao
ouvir as vozes, tanto Brunetti como Della Corte se afastaram da porta e se encostaram contra a parede.
E foi bem na hora. Uma, depois duas, então outras duas balas atravessaram a madeira espessa da porta. Brunetti sentiu algo pungir seu rosto e, ao olhar para baixo,
viu duas gotas de sangue na parte da frente de seu casaco. De repente, os dois jovens oficiais estavam agachados, um em cada lado da porta, com as armas empunhadas.
Como uma enguia, um deles girou o corpo, encolhendo as pernas contra o peito e, como um pistão, bateu com os pés contra a porta, no ponto exato em que ela encontrava
a dobradiça. A madeira cedeu e com um segundo chute ele a escancarou. Antes mesmo que a porta se chocasse com a parede interna, o homem ao chão se projetou no interior
do apartamento.
Brunetti mal tinha levantado sua pistola quando ouviu dois tiros, seguidos de um terceiro. Depois, nada. Alguns segundos se passaram, e uma voz masculina disse:
“Certo, podem entrar agora”.
Brunetti deslizou pela entrada, Della Corte grudado atrás dele. O policial estava ajoelhado atrás de um sofá virado, a arma ainda empunhada. No chão, com a cabeça
visível sob um feixe de luz que vinha do corredor, estava um homem que Brunetti reconheceu: Ruggiero Palmieri. Um de seus braços estava projetado para a frente,
os dedos buscando a porta e a liberdade que esta antes oferecia; o outro braço estava sob seu corpo, invisível. No lugar onde deveria estar sua orelha esquerda,
havia apenas um buraco vermelho, o ferimento provocado pelo segundo tiro dos policiais.
23
Brunetti era policial fazia muito tempo e já vira muitas coisas darem errado para perder tempo tentando entender o que tinha acontecido ou tentar especular sobre
um plano alternativo que pudesse ter funcionado. Os outros, no entanto, eram bem mais jovens e ainda não haviam aprendido que os erros tinham muito pouco a ensinar,
de modo que ele ouviu um pouco o que eles tinham a dizer, sem de fato prestar atenção, mas concordando com tudo, enquanto aguardavam a chegada da perícia.
A certa altura, quando o oficial que havia atingido Palmieri se deitou no chão do apartamento para estudar o ângulo em que invadira o apartamento, Brunetti foi ao
banheiro, umedeceu seu lenço com água fria e limpou o pequeno corte em seu rosto, no local em que uma farpa de madeira da porta arrombada tinha arrancado um pedaço
de carne do tamanho de um dos botões de sua camisa. Sem largar o lenço, ele abriu o pequeno armário de remédios do banheiro em busca de um pedaço de gaze ou de algo
para estancar o sangue. O armário estava cheio, mas não de curativos.
Diz-se que os convidados costumam xeretar os armários dos banheiros que utilizam; Brunetti nunca havia feito algo assim. Ele ficou surpreso com o que viu: três fileiras
de todo tipo de remédios, pelo menos cinquenta caixas e frascos, de variadas embalagens e tamanhos, todos exibindo o selo de identificação com o número de nove dígitos
do Ministério da Saúde. Mas nada de curativos. Fechou a porta e voltou até o aposento em que Palmieri estava.
Enquanto Brunetti estava no banheiro, os outros policiais chegaram. Os jovens estavam reunidos perto da porta, onde reproduziam o tiroteio com o mesmo entusiasmo
de quem revê um vídeo de ação, o que Brunetti percebeu com desgosto. Os mais velhos estavam esparsos, em várias partes do local. Brunetti foi até Della Corte. “Podemos
começar a vasculhar o local?”
“Não enquanto a perícia não chegar, eu acho.”
Brunetti assentiu. Na verdade, não fazia nenhuma diferença. Só em relação ao tempo, e agora eles tinham a noite inteira para fazer isso. Ele desejava apenas que
eles se apressassem para que o corpo fosse levado embora. Evitou olhá-lo, mas, à medida que o tempo ia passando e os jovens paravam de recontar sua história, aquilo
se tornava mais difícil. Brunetti havia acabado de ir até a janela quando ouviu passos nas escadas e se voltou para presenciar os conhecidos uniformes entrando no
apartamento: peritos e fotógrafos, os lacaios da morte violenta.
Voltando para a janela, ele observou os carros no estacionamento e os poucos que ainda circulavam àquela hora. Queria ligar para Paola, mas não o fez, pois ela acreditava
que ele estaria seguro na cama de algum hotelzinho. Ele não se virou quando o flash do fotógrafo foi acionado repetidamente, nem com a chegada daquele que devia
ser o medico legale. Nada de segredos por aqui.
Só se virou quando ouviu os resmungos dos dois homens de branco do necrotério, seguidos do ruído seco de um dos carregadores da maca, que esbarrou no batente. Foi
até Bonino, que falava com Della Corte, e perguntou: “Podemos começar?”.
Ele concordou com a cabeça. “Claro. A única coisa encontrada no corpo foi uma carteira. Com mais de doze milhões de liras dentro, nas novas cédulas de cinco mil
liras. Já mandamos para o laboratório para que as impressões digitais sejam analisadas.”
“Bom”, disse Brunetti, e perguntou, voltando-se para Della Corte: “Vamos revistar o quarto?”.
Della Corte anuiu e, juntos, foram até o quarto, deixando o resto do apartamento por conta do pessoal local.
Eles nunca haviam revistado um quarto juntos, mas, em acordo tácito, Della Corte foi ao armário e começou a vasculhar os bolsos das calças e casacos ali pendurados.
Brunetti começou pela cômoda, e só se deu ao trabalho de pôr as luvas de plástico quando viu o pó para coleta de impressões digitais espalhado por toda a sua superfície.
Abriu a primeira gaveta e surpreendeu-se ao encontrar as roupas de Palmieri em pilhas bem organizadas. Perguntou-se então por que presumira que um assassino deveria
ser desleixado. Havia duas pilhas de cuecas e meias enroladas que Brunetti achou estarem separadas por cor.
Na outra gaveta estavam as blusas e o que pareciam ser roupas de ginástica. A de baixo estava vazia. Ele a fechou com o pé e voltou-se para Della Corte. Poucas coisas
pendiam no guarda-roupa: ele podia ver uma parca, alguns casacos e, aparentemente, calças dentro do saco plástico transparente de uma lavanderia.
Uma caixa talhada em madeira estava sobre a cômoda. A tampa fora fechada pelo perito e, quando Brunetti a abriu, o pó que estava sobre ela se elevou em uma pequena
nuvem cinza. Dentro da caixa, encontrou um maço de papéis, que pegou e colocou sobre a cômoda.
Com cuidado, começou a lê-los, empilhando-os ao lado à medida que concluía a leitura. Encontrou contas de luz e gás, ambas no nome de Michele de Luca. Não havia
nenhuma conta de telefone, o que se explicava pelo telefonino que se encontrava ao lado da caixa.
Embaixo de tudo isso, encontrou um envelope endereçado a R. P.: a parte de cima, no local em que fora cuidadosamente aberto, estava cinza por causa do intenso manuseio.
Dentro, encontrou um pedaço de papel azul-claro com uma mensagem datada de cinco anos atrás, escrita em boa caligrafia. “Te encontro no restaurante amanhã às oito.
Até lá, as batidas do meu coração me dirão como os minutos demoram a passar.” No lugar da assinatura, um M. Maria?, especulou Brunetti. Mariella? Mônica?
Ele dobrou a carta, devolveu-a ao envelope e o depositou sobre as contas. Não havia mais nada na caixa.
Voltou a olhar para Della Corte. “Encontrou alguma coisa?”
“Só isso”, ele respondeu, voltando-se do armário com um grande chaveiro nas mãos. “Duas delas são de algum carro.”
“Um caminhão, talvez?”, sugeriu Brunetti.
Della Corte balançou a cabeça. “Vamos ver o que está estacionado lá fora.”
A sala estava vazia, mas Brunetti notou que havia dois homens na pequena cozinha ao lado, onde a geladeira e todos os armários estavam abertos. Do banheiro saíam
luzes e ruídos, mas Brunetti duvidou que encontrassem algo ali.
Ele e Della Corte desceram e saíram em direção ao estacionamento. Olhando para trás, viram que a maioria das luzes do prédio estavam acesas. Percebendo-os ali, alguém
no apartamento acima do de Palmieri abriu a janela e gritou: “O que está acontecendo?”.
“Polícia”, respondeu Della Corte. “Está tudo bem.”
Por um momento, Brunetti imaginou se o homem na janela perguntaria mais alguma coisa, se exigiria uma explicação para os tiros, mas o temor italiano às autoridades
falou mais alto e ele se recolheu, fechando a janela.
Havia sete veículos estacionados atrás do prédio, cinco carros e dois caminhões. Della Corte começou com o primeiro destes, um caminhão cinza com o nome de uma loja
de brinquedos impresso na lateral. Sob o nome, à esquerda, um ursinho de pelúcia cavalgava um cavalinho de madeira. Nenhuma das chaves serviu. Duas vagas à frente,
estava um Iveco também cinza, sem nenhuma inscrição. A chave também não serviu, tampouco as outras chaves serviram nos demais carros.
Enquanto se preparavam para voltar para cima, notaram uma sucessão de portas de garagem nos fundos do estacionamento. Levaram algum tempo experimentando todas as
chaves nos cadeados das três primeiras portas, mas finalmente uma delas abriu a quarta porta.
Ao abrir a porta e ver o caminhão branco que estava estacionado ali dentro, Della Corte disse: “Acho melhor chamarmos o pessoal da perícia de volta”.
Brunetti deu uma espiada no relógio e viu que já passava bastante das duas. Della Corte entendeu e pegou a primeira chave, experimentando-a na fechadura da porta
do motorista. A chave girou sem dificuldades e abriu a porta. Com uma caneta que tirou do bolso da frente de sua jaqueta, ele acendeu a luz da cabine. Brunetti pegou
as chaves e foi até a porta do passageiro. Depois de abri-la, escolheu uma chave menor e abriu o porta-luvas. Aparentemente, o envelope de plástico que estava ali
dentro não continha apenas a apólice de seguro e os documentos do proprietário. Brunetti pegou sua caneta e aproximou o envelope da luz, virando-o de modo que pudesse
ler o que estava escrito nos papéis. O caminhão estava registrado no nome da Interfar.
Com a parte de cima da caneta ele empurrou os papéis de volta ao seu lugar, fechou o porta-luvas e, em seguida, fechou a porta. Depois de trancá-la, foi até a porta
traseira. A primeira chave serviu para abri-la. A carroceria estava repleta, quase até o teto, de grandes caixas de papelão estampadas com o que parecia ser o logotipo
da Interfar: as letras “I” e “F” em preto, uma em cada lado de um caduceu vermelho. As etiquetas de papel estavam coladas no centro das caixas e, acima das etiquetas,
em vermelho, estava impresso “Frete Aéreo”.
Todas estavam lacradas com fita adesiva, e Brunetti não quis cortá-las, deixando esse serviço para os rapazes da perícia. Apoiando um dos pés no para-choque, ele
esticou a cabeça para dentro do compartimento, de modo que pudesse ler a etiqueta da primeira caixa.
“Translanka”, era o que constava, com um endereço em Colombo.
Brunetti recuou para o chão, fechou, trancou as portas e voltou ao apartamento com Della Corte.
Os policiais estavam de pé, aguardando do lado de dentro, deixando claro que tinham terminado a revista. Quando os dois entraram, um dos oficiais locais balançou
a cabeça e Bonino disse: “Nada. Não encontramos nada, nem nele, nem aqui. Nunca vi coisa igual”.
“Alguma ideia de quanto tempo ele ficou aqui?”, perguntou Brunetti.
“O mais alto dos dois oficiais, aquele que não atirou, respondeu. “Falei com os moradores do apartamento vizinho. Eles acham que ele se mudou pra cá há uns quatro
meses. Nunca causou nenhum problema, nunca fez nenhum barulho.”
“Até esta noite”, ironizou o seu parceiro, mas todos o ignoraram.
“Certo”, disse Bonino. “Acho que podemos ir pra casa agora.”
Eles saíram do apartamento e avançaram pela escada. Lá embaixo, Della Corte parou e perguntou a Brunetti: “O que você vai fazer? Quer uma carona até Veneza?”.
Era generoso da parte dele, pois fazer o trajeto até a piazzale Roma e então de volta a Padova com certeza iria atrasá-los em no mínimo uma hora. “Obrigado, mas
não é preciso”, disse Brunetti. “Quero interrogar o pessoal da fábrica, então não faz sentido eu ir com vocês. Depois eu teria de voltar.”
“E o que você vai fazer?”
“Deve haver uma cama na questura”, ele respondeu, e foi perguntar a Bonino.
Quando se deitou naquela cama, cansado demais para adormecer, Brunetti tentou lembrar-se da última vez que havia ido dormir sem Paola. Recordou-se apenas da noite
em que ela não estava lá e tudo isso havia irrompido em sua vida. Então adormeceu.
Bonino providenciou um carro e um motorista para ele na manhã seguinte e, por volta das nove e meia, Brunetti já estava na Interfar, um prédio grande no centro de
um parque industrial em uma das muitas rodovias que irradiavam de Castelfranco. Absolutamente desprovidos de beleza, os prédios ficavam a uns cem metros da estrada,
cercados de todos os lados pelos carros das pessoas que trabalhavam ali, como um pedaço de carne rodeado de formigas.
Ele pediu ao motorista que encontrasse um bar e lhe ofereceu um café. Embora tivesse dormido profundamente, Brunetti não dormira o bastante, e se sentia entorpecido
e irritável. Uma segunda xícara pareceu ajudá-lo; a cafeína ou o açúcar o manteriam em pé pelas horas seguintes.
Passava um pouco das dez quando ele entrou no escritório da Interfar e perguntou se podia falar com o signor Bonaventura. A pedido, ele informou seu nome e esperou
ao lado da mesa enquanto a secretária telefonava a ele pedindo instruções. A resposta foi imediata, e assim que a ouviu, ela desligou o telefone, levantou-se e conduziu
Brunetti por uma porta, e em seguida ao longo de um corredor forrado com carpete industrial cinza-claro.
Ela parou à segunda porta à direita, bateu e a abriu, afastando-se para permitir que Brunetti entrasse. Bonaventura estava sentado atrás de uma mesa forrada de papéis,
folhetos e brochuras. Levantou-se à entrada de Brunetti, mas permaneceu atrás da mesa, sorrindo à aproximação do commissario e se esticando sobre ela para apertar
sua mão. Enfim, os dois se sentaram.
“O senhor está longe de casa”, disse Bonaventura amigavelmente.
“É. Vim aqui a negócios.”
“Negócios da polícia, imagino.”
“Sim.”
“E eu faço parte desses negócios?”
“Acho que sim.”
“Se é assim, é a coisa mais milagrosa que já aconteceu comigo.”
“Acho que não entendi”, disse Brunetti.
“Acabei de conversar com o meu encarregado e ia justamente ligar para os carabinieri.” Bonaventura deu uma espiada em seu relógio de pulso. “Isso não foi nem há
cinco minutos e eis que o senhor aparece, um policial, à minha porta, como se tivesse lido minha mente.”
“E posso saber por que o senhor ia ligar para a polícia?”
“Para denunciar um roubo.”
“De quê?”, Brunetti perguntou, embora estivesse quase certo da resposta.
“Um dos nossos caminhões desapareceu e o motorista não apareceu para o trabalho.”
“E isso é tudo?”
“Não. Meu encarregado me disse que aparentemente sumiu uma grande quantidade de mercadoria.”
“Mais ou menos um caminhão lotado, o senhor diria?”, perguntou Brunetti em voz neutra.
“Se tanto o caminhão quanto o motorista estiverem desaparecidos, isso faria sentido, não faria?” Ele ainda não estava nervoso, mas Brunetti dispunha de tempo suficiente
para fazê-lo chegar lá.
“E quem é esse motorista?”
“Michele de Luca.”
“Há quanto tempo ele trabalha para o senhor?”
“Não sei, uns seis meses. Não costumo me ocupar desse tipo de coisa. Tudo o que sei é que o tenho visto aqui já há alguns meses. Nesta manhã, o encarregado me disse
que o caminhão dele não estava onde deveria estar e que ele não havia aparecido.”
“E a mercadoria desaparecida?”
“De Luca saiu daqui ontem à tarde com o caminhão lotado. Ele tinha que trazê-lo de volta antes de ir para casa e estar aqui hoje às sete da manhã para transportar
outro carregamento. Mas ele não apareceu, e o caminhão não estava estacionado onde deveria estar. O encarregado ligou para ele, mas ele não atendeu seu telefonino,
então eu resolvi chamar os carabinieri.”
Aquilo pareceu a Brunetti uma resposta exagerada ao que poderia não passar de um empregado atrasado para o trabalho. Porém, ele refletiu, Bonaventura não chegara
de fato a fazer a ligação. Assim, Brunetti guardou para si a sua surpresa, esperando o desenrolar da cena. “Sim, percebe-se que o senhor o faria”, ele disse. “Qual
era a carga?”
“Remédios, claro. É o que fazemos aqui.”
“E para onde seriam mandados?”
“Não sei.” Bonaventura olhou para os papéis que poluíam sua mesa. “Tenho os comprovantes de envio por aqui em algum lugar.”
“O senhor poderia encontrá-los?”, pediu Brunetti, movendo a cabeça na direção dos papéis.
“Que diferença faz para onde seriam levados? O que interessa é achar esse homem e recuperar a carga.”
“O senhor não precisa se preocupar com ele”, disse Brunetti, embora suspeitasse que Bonaventura também estivesse mentindo ao dizer que queria o carregamento de volta.
“E o que isso quer dizer?”
“Ele foi baleado e morto pela polícia na noite passada.”
“Morto?”, repetiu Bonaventura, parecendo sinceramente espantado.
“A polícia foi até o seu apartamento para interrogá-lo e ele abriu fogo contra os oficiais. Foi morto quando invadiram o apartamento.” Então, mudando de assunto
rapidamente, Brunetti perguntou: “Para onde ele estava levando aquela carga?”.
Desconcertado pela súbita mudança de tópico, Bonaventura hesitou antes de finalmente responder. “Para o aeroporto.”
“O aeroporto estava fechado ontem. Os controladores de voo estavam em greve”, disse Brunetti, mas deduziu pela expressão de Bonaventura que ele já sabia disso. “O
que ele deveria ter feito caso não fosse possível entregar a carga?”
“O mesmo que todos os outros motoristas: trazer o caminhão de volta e estacioná-lo na garagem.”
“Ele poderia ter levado o caminhão para a garagem dele?”
“E eu sei lá o que ele pode ter feito?”, explodiu Bonaventura. “O caminhão sumiu. E, segundo o que o senhor me disse, o motorista está morto.”
“O caminhão não desapareceu”, disse Brunetti com calma, observando a expressão de Bonaventura ao ouvi-lo. Claramente, Bonaventura tentou esconder seu espanto e,
depois, se esforçou rapidamente para mudar de expressão, mas tudo o que conseguiu foi uma grotesca imitação de alívio.
“E onde é que ele está?”
“A esta altura, na garagem da polícia.” Ele esperou para ver o que Bonaventura perguntaria, mas como ele permaneceu em silêncio, acrescentou: “As caixas estão na
carroceria”.
Bonaventura tentou disfarçar seu choque; tentou e falhou.
“Mas também não foram mandadas para o Sri Lanka. Será que o senhor pode me ajudar a encontrar essas ordens de remessa agora, signor Bonaventura?”
“Claro.” Bonaventura abaixou a cabeça para procurá-las. Sem empenho ou rumo, moveu os papéis de um lado para o outro da mesa, então empilhou-os todos e passou a
examiná-los um a um. “Estranho”, ele disse, olhando para cima, na direção de Brunetti, depois de examinar todo o lote. “Não consigo encontrá-los aqui.” Ele se levantou.
“Se o senhor esperar, pedirei a minha secretária que os traga para mim.”
Antes que ele pudesse dar o seu primeiro passo até a porta, Brunetti se levantou. “Talvez o senhor pudesse chamá-la”, ele sugeriu.
Bonaventura forçou um sorriso. “Na verdade, quem está com elas é o encarregado, e ele está nos fundos, na área de carregamento.”
Ele começou a se distanciar de Brunetti, que ergueu a mão e colocou-a em seu braço. “Deixe-me acompanhá-lo, signor Bonaventura.”
“Não é necessário, mesmo”, ele disse, fazendo outro movimento com a boca.
“Eu acho que é”, foi a resposta de Brunetti. Ele não tinha a mínima ideia de quais eram seus direitos legais aqui, se ele tinha autoridade para prender ou seguir
Bonaventura. Ele estava fora de Veneza, além dos limites da província de Veneza, e nenhuma acusação havia sido levantada - e muito menos prestada - contra Bonaventura.
Mas nada disso tinha importância para ele. Deu um passo ao lado para deixar Bonaventura abrir a porta de seu escritório e, então, o seguiu pelo corredor, afastando-se
com ele da frente do prédio.
Nos fundos, uma porta se abriu para uma comprida plataforma de carregamento cimentada. Dois caminhões enormes estavam encostados a ela, com as portas traseiras abertas.
Quatro homens empurravam carrinhos repletos de caixas retiradas das portas ao fundo da plataforma e as colocavam nas traseiras abertas dos caminhões. Eles olharam
para cima quando viram os dois homens aparecerem à porta, mas logo voltaram ao trabalho. Abaixo deles, entre os caminhões, dois homens conversavam em pé, com as
mãos nos bolsos de seus jalecos.
Bonaventura andou até a beirada da plataforma de carregamento. Quando olharam para cima, ele chamou um deles lá embaixo. “O caminhão do De Luca foi encontrado. O
carregamento ainda está lá. Este policial deseja ver as ordens de remessa.”
Nem bem ele terminou de falar a palavra “policial” e o mais alto dos homens se afastou do parceiro e apalpou o interior de seu jaleco. A mão saiu do bolso carregando
uma pistola, mas assim que viu esse movimento, Brunetti recuou até o interior da porta ainda aberta e sacou a própria pistola de seu coldre.
Não aconteceu nada. Nenhum barulho, nenhum tiro, nenhum grito. Ele ouviu passos, a porta de um carro batendo e depois outra; em seguida, o ruído de um grande motor
colocado em movimento. Em vez de sair novamente à plataforma para ver o que estava acontecendo, Brunetti voltou correndo pelo corredor e saiu pela porta da frente
do prédio, onde seu motorista o aguardava. O motor estava ligado para manter o carro aquecido, e o motorista lia O Gazzettino dello Sport.
Brunetti abriu a porta do passageiro, saltou para dentro do carro e percebeu o pânico do motorista desaparecer quando o reconheceu. “Um caminhão, saindo pelo portão
de trás. Dê a volta e siga-o.” Antes que a mão de Brunetti alcançasse o telefone do carro, o motorista jogou seu jornal no banco de trás e pôs o carro em movimento,
fazendo o retorno em direção aos fundos do prédio. Enquanto dobravam a esquina, o motorista jogou as rodas bruscamente para a esquerda, tentando não atingir uma
das caixas que haviam caído das portas abertas do caminhão. Mas ele não conseguiu desviar da próxima caixa e as rodas do lado esquerdo do carro passaram por cima
dela, arrebentando-a e espalhando pequenas garrafas por uma larga esteira atrás deles. Assim que cruzaram os portões, Brunetti conseguiu enxergar o caminhão se movendo
pela rodovia na direção de Padova, com as portas traseiras batendo abertas.
O resto foi tão previsível quanto trágico. Logo depois de Resana, duas viaturas dos carabinieri foram atravessadas na estrada, bloqueando o tráfego. Na tentativa
de ultrapassá-las, o motorista do caminhão desviou para a direita, até o acostamento da estrada. Assim que fez isso, um pequeno Fiat - dirigido por uma mulher a
caminho do asilo local, onde iria buscar sua filha - diminuiu a velocidade ao ver o bloqueio da polícia. O caminhão, voltando à estrada, passou para a outra pista
e se chocou com a lateral do Fiat, matando a mulher no ato. Os dois homens, Bonaventura e o motorista, estavam com cinto de segurança: nenhum deles se feriu, mas
ambos ficaram severamente abalados com a batida.
Antes que eles pudessem se libertar do cinto de segurança, foram cercados pelos carabinieri, que os arrancaram do caminhão, arrastando seus rostos contra as portas
do veículo. Quatro carabinieri os rodearam, com metralhadoras em punho. Outros dois correram até o Fiat, mas descobriram que não havia mais nada a fazer.
O carro de Brunetti estacionou e ele desceu. Tudo estava no mais absoluto silêncio, surpreendentemente. Ele ouviu seus próprios passos ao se aproximar dos dois homens,
que respiravam com intensidade. Algo metálico chocou-se contra o chão.
Ele se virou para o sargento. “Ponha os dois no carro”, foi tudo o que disse.
24
Discutiram para decidir aonde os homens deveriam ser levados para o interrogatório: a Castelfranco, que tinha jurisdição sobre o local de sua captura, ou a Veneza,
onde a investigação tivera início. Brunetti ouviu tudo por alguns momentos e logo interrompeu a conversa com voz de ferro: “Eu disse para colocá-los no carro. Vamos
levá-los até Castelfranco”. Os outros policiais trocaram olhares, mas ninguém se opôs ao commissario, e assim foi feito.
No gabinete de Bonino, disseram a Bonaventura que ele podia chamar seu advogado, e o mesmo foi dito ao outro, quando se identificou como Roberto Sandi, o encarregado
da fábrica. Bonaventura deu o nome de um advogado de Veneza, com larga experiência na área criminal. Pediu que ligassem para ele e ignorou Sandi.
“E quanto a mim?”, Sandi perguntou.
Bonaventura se recusou a responder.
“E quanto a mim?, Sandi insistiu.
Bonaventura permaneceu calado.
Sandi, que tinha um carregado sotaque piemontês, voltou-se para o policial a seu lado e exigiu: “Onde está seu chefe? Eu quero falar com ele”.
Antes da resposta do policial, Brunetti se adiantou e, embora não estivesse certo disso, falou: “Sou eu que vou assumir este caso”.
“Então é com o senhor que eu quero falar”, declarou Sandi, olhando para Brunetti com olhos brilhantes de malícia.
“Agora chega, Roberto”, interrompeu Bonaventura, pegando Sandi pelo braço. “Você sabe que pode usar meu advogado. Assim que ele chegar vamos falar com ele.”
Sandi afastou a mão de Bonaventura com um resmungo abafado. “Nada de advogado. Não o seu. Eu quero falar com o policial.” E, para Brunetti: “E então? Onde é que
podemos conversar?”.
“Roberto”, disse Bonaventura, tentando soar ameaçador, “você não quer falar com ele”.
“Você não vai mais me dizer o que fazer”, Sandi estourou. Brunetti se virou, abriu a porta do gabinete e levou Sandi ao corredor. Um dos policiais uniformizados
os acompanhou até o lado de fora e os conduziu pelo corredor. Ao abrir a porta de uma pequena sala de interrogatório, ele disse “Aqui, senhor”, e aguardou que eles
entrassem.
Brunetti viu uma pequena mesa e quatro cadeiras e sentou-se, aguardando Sandi. Quando ele se sentou, Brunetti o encarou e disse: “E então?”.
“Então o quê?”, Sandi perguntou, ainda cheio da raiva provocada por Bonaventura.
“O que você tem a me dizer sobre as remessas?”
“O que o senhor já sabe?”
“Quantos de vocês estão envolvidos nisso?”, disse Brunetti, ignorando a pergunta.
“Nisso o quê?”
Em vez de responder de cara, Brunetti apoiou os cotovelos na mesa, fechou as mãos e descansou a boca nas costas das juntas dos seus dedos. Ficou assim por quase
um minuto, encarando Sandi em cima da mesa. Então, repetiu: “Quantos de vocês estão nisso?”.
“Nisso o quê?”, Sandi também repetiu, desta vez se permitindo um pequeno sorriso, o tipo de sorriso que as crianças dão ao fazer perguntas que acham que vão constranger
o professor.
Brunetti levantou a cabeça, colocou suas mãos sobre a mesa e se levantou. Sem dizer palavra, ele foi até a porta e bateu nela. Um rosto apareceu no visor gradeado.
A porta se abriu e Brunetti saiu da sala, fechando a porta atrás de si. Com um gesto, pediu ao guarda que permanecesse ali e voltou pelo corredor. Deu uma espiada
na sala em que Bonaventura estava detido e viu que ele ainda estava lá, embora ninguém estivesse com ele. Brunetti permaneceu atrás do vidro de visão unilateral
por uns dez minutos, observando o homem lá dentro. Bonaventura estava sentado ao lado da porta, tentando não olhar para ela ou reagir aos passos das pessoas que
passavam por ali.
Finalmente, sem bater, Brunetti abriu a porta e entrou. Bonaventura girou a cabeça. “O que o senhor quer?”, ele perguntou ao ver Brunetti.
“Quero falar com você sobre as remessas.”
“Que remessas?”
“De drogas. Para o Sri Lanka. E para o Quênia. E para Bangladesh.”
“E o que têm elas? São perfeitamente legais. Temos todos os documentos em nosso escritório.”
Brunetti não tinha a menor dúvida quanto a isso. Ele permaneceu à porta, encostando-se nela, um pé levantado às suas costas, os braços cruzados sobre o peito. “Signor
Bonaventura, o senhor quer falar sobre isso ou quer que eu volte e converse mais uma vez com o seu encarregado?” Brunetti imprimiu a sua voz um tom de extremo cansaço,
quase de tédio.
“O que ele está dizendo?”, perguntou Bonaventura, sem conseguir se segurar.
Brunetti se aprumou e o observou por um tempo. Depois, disse: “Eu quero falar sobre as remessas”.
“Eu não vou dizer nada antes de ver meu advogado”, Bonaventura decidiu, cruzando os braços numa imitação de Brunetti.
Brunetti saiu e voltou para a outra sala, onde o mesmo policial que continuava sua vigília se afastou da porta ao ver o commissario, abrindo-a para ele.
Sandi encarou Brunetti quando ele entrou e, sem preâmbulo, disse: “Tá legal. O que o senhor quer saber?”
“As remessas, signor Sandi”, Brunetti começou, dizendo seu nome para os microfones ocultos no teto e indo sentar-se de frente para ele. “Para onde elas são mandadas?”
“Para o Sri Lanka, como a da noite passada. E para o Quênia e a Nigéria. Para vários outros lugares.”
“Sempre remédios?”
“Sim, como os que o senhor encontrou naquele caminhão.”
“Que tipo de remédios?”
“A maioria para hipertensão. Alguns xaropes para tosse. E ansiolíticos. Muito populares no Terceiro Mundo. Acho que eles podem comprá-los sem receita. E antibióticos.”
“Quantos deles são bons?
Sandi deu de ombros, desinteressado em tais detalhes. “Não tenho a mínima ideia. A maioria está vencida ou não é mais fabricada, coisas que não podemos mais vender
na Europa, pelo menos não aqui, na parte ocidental.”
“E você faz o quê? Troca as etiquetas?”
“Não sei direito. Ninguém me explicou. Eu só embarcava as remessas.” A voz de Sandi tinha a segurança tranquila de um mentiroso experiente.
“Mas claro que você deve ter alguma ideia”, incentivou Brunetti, amaciando a voz como se sugerisse que um homem tão esperto quanto Sandi teria descoberto algo. Como
Sandi não respondeu, Brunetti engrossou a voz: “Signor Sandi, acho que já está na hora de você começar a dizer a verdade”.
Sandi pensou um pouco, enquanto encarava um Brunetti implacável. “Eu acho que é o que eles fazem”, ele disse, afinal. Movendo a cabeça na direção da sala em que
Bonaventura estava, ele acrescentou: “Ele também é dono de uma empresa que recolhe remédios vencidos das farmácias. Para armazenamento ou destruição. Eles têm que
ser incinerados.”
“E o que acontece?”
“As caixas são incineradas.”
“Caixas do quê?”
“Papéis velhos. Algumas são simplesmente caixas vazias. O bastante para registrar o peso correto. Ninguém dá a mínima para o que está dentro, desde que o peso esteja
correto.”
“E não há ninguém encarregado de conferir o serviço?”
Sandi balançou a cabeça. “Há um homem do Ministério da Saúde.”
“E?”
“Nós cuidamos dele.”
“Então essas coisas, essas drogas que não são queimadas, são levadas para o aeroporto e enviadas para o Terceiro Mundo?”
Sandi assentiu.
“São enviadas?”, Brunetti repetiu, garantindo que as respostas de Sandi fossem gravadas.
“Sim.”
“E pagas?”
“Claro.”
“E já estão vencidas ou expiradas?”
Sandi pareceu se ofender com a pergunta. “Várias dessas coisas duram bem mais do que diz o Ministério da Saúde. Uma grande parte ainda funciona. E provavelmente
duram mais do que o que está escrito na caixa.”
“E o que mais é embarcado?”
Sandi olhou para Brunetti desconfiado, mas não disse nada.
“Quanto mais você me disser agora, melhores as coisas ficarão para você no futuro.”
“Melhores como?”
“Os juízes saberão que você se dispôs a cooperar conosco e isso contará a seu favor.”
“E que garantia eu tenho?”
Brunetti deu de ombros.
Os dois ficaram em silêncio por um longo tempo, então Brunetti perguntou: “O que mais é embarcado?”
“O senhor vai dizer que eu ajudei?”, Sandi perguntou, sem se contentar enquanto não fizesse um acordo.
“Sim.”
“E que garantia eu tenho disso?”
Brunetti deu de ombros novamente.
Sandi baixou a cabeça por um momento, desenhou com o dedo uma figura na superfície da mesa e depois olhou para cima. “Parte do carregamento não presta. Nem um pouco.
Farinha, açúcar ou o que quer que eles usem quando fazem placebos. E água colorida ou óleo nas ampolas.”
“Entendo. E onde tudo isso é feito?”, disse Brunetti.
“Lá.” Sandi ergueu a mão apontando ao longe na direção em que ficava, ou não ficava, a fábrica de Bonaventura. “Há um pessoal que vem à noite para trabalhar nisso.
Eles preparam o negócio, etiquetam e colocam nas caixas. Então, tudo é levado para o aeroporto.”
“Por quê?”, Brunetti perguntou, e quando viu que Sandi não entendeu a pergunta, acrescentou: “Por que placebos? Por que não remédios de verdade?”.
“O remédio para hipertensão, especialmente, é muito caro. A matéria bruta ou química ou seja lá o que for. E algumas dessas coisas para diabetes. Pelo menos eu acho
que é por isso. Assim, para cortar despesas, eles usam os placebos. Pergunte a ele sobre isso”, disse Sandi, apontando na direção de Bonaventura.
“E no aeroporto?”
“Nada. Tudo acontece como deve acontecer. Nós carregamos os aviões e tudo é entregue. Nunca houve nenhum problema. Tudo certo.”
“É tudo vendido?”, perguntou Brunetti, possuído por uma nova ideia. “Ou alguma parte é dada?”
“Nós vendemos boa parte disso a instituições de caridade, se é isso o que o senhor está perguntando. Para as Nações Unidas, coisas do tipo. Damos um desconto a eles
e mandamos uma parte sem taxas. Como caridade.”
Brunetti se deteve e não demonstrou nenhum tipo de reação ao que estava ouvindo. Aparentemente, Sandi fazia bem mais do que dirigir um caminhão até o aeroporto.
“Ninguém das Nações Unidas confere o conteúdo?”
Sandi bufou, incrédulo. “Esse pessoal só se importa em tirar fotografias no momento em que entregam a coisa toda nos campos de refugiados.”
“E vocês mandam para os campos o mesmo que mandam nas remessas de sempre?”
“Não, a maioria é para diarreia e disenteria amebiana. E um monte de xarope pra tosse. Como eles são muito magros, é com isso que devem se preocupar, com essas coisas.”
“Entendo”, arriscou Brunetti. “Há quanto tempo você faz isso?”
“Um ano.”
“Em que posição?”
“Encarregado. Eu costumava trabalhar para o Mitri, na fábrica dele. Mas depois eu vim para cá.” Ele fez uma careta, como se essa memória lhe causasse dor ou arrependimento.
“O Mitri também fazia isso?”
Sandi assentiu. “Até quando vendeu a sua fábrica.”
“E por que ele a vendeu?”
Sandi encolheu os ombros. “Eu ouvi dizer que ele recebeu uma oferta irrecusável. Quer dizer, que não era seguro recusar. Um pessoal da pesada queria comprar.”
Brunetti entendeu perfeitamente o que ele queria dizer e ficou surpreso ao perceber que, mesmo aqui, Sandi tinha medo de dizer diretamente o nome da organização
que esse “pessoal da pesada” representava. “E então ele a vendeu?”
Sandi balançou a cabeça. “Mas ele me recomendou a seu cunhado.” A menção a Boaventura o resgatou do território da memória. “E eu amaldiçoo o dia em que comecei a
trabalhar pra ele.”
“Por causa disso?” Brunetti perguntou, apontando para a soturna esterilidade da sala em que estavam sentados e tudo o que ela representava.
Sandi fez que sim com a cabeça.
“E quanto ao Mitri?”, Brunetti perguntou.
Sandi franziu as sobrancelhas numa expressão falsa de confusão.
“Ele tinha algum envolvimento com a fábrica?”
“Qual fábrica?”
Brunetti levantou a mão e deixou que seu punho cerrado se chocasse contra a mesa, à frente de Sandi, que deu um pulo, como se Brunetti o houvesse atingido. “Não
me faça perder meu tempo, signor Sandi”, Brunetti gritou. “Não me faça perder meu tempo com perguntas estúpidas.” Como Sandi não respondeu, ele se inclinou em sua
direção e ordenou: “Você entendeu?”.
Sandi balançou a cabeça.
“Bom”, disse Brunetti. “E quanto à fábrica? Mitri tinha alguma participação nela?”
“Deve ter tido.”
“Por quê?”
“Ele aparecia algumas vezes para preparar uma fórmula ou para dizer a seu cunhado que aparência algo devia ter. Ele tinha que garantir que o conteúdo dos pacotes
tivesse a aparência adequada.” Sandi olhou para Brunetti e acrescentou: “Eu não entendia tudo aquilo, mas acho que era por isso que ele vinha”.
“E com que frequência ele vinha?”
“Talvez uma vez por mês, às vezes um pouco mais que isso.”
“Como era a relação deles?”, perguntou Brunetti, e então, para impedir que Sandi perguntasse de quem, completou: “De Bonaventura e Mitri?”.
Sandi pensou por um momento antes de responder. “Não era boa. Mitri era casado com a irmã dele, então eles tinham que se relacionar de algum modo, mas não me parecia
que eles gostavam disso.”
“E o assassinato de Mitri? O que você sabe sobre isso?”
Sandi balançou a cabeça várias vezes. “Nada. Nada mesmo.”
Brunetti esperou um longo momento antes de perguntar: “E aqui na fábrica, houve alguma conversa?”.
“Sempre há alguma conversa.”
“Sobre o assassinato, signor Sandi. Houve alguma conversa sobre o assassinato?”
Sandi continuou em silêncio, tentando se lembrar ou considerando as possibilidades. Por fim, balbuciou: “Falaram que o Mitri queria comprar a fábrica”.
“Por quê?”
“Por que falaram ou por que ele queria comprar?”
Brunetti respirou fundo e disse calmamente: “Por que ele queria comprar?”.
“Porque ele era muito melhor nisso que o cunhado. Era uma confusão com Bonaventura administrando tudo. Os pagamentos sempre atrasavam. Não havia registro de nada.
Eu nunca sabia quando as remessas ficariam prontas para o envio.” Enquanto Brunetti o observava, Sandi balançou a cabeça e apertou os lábios num gesto de desaprovação:
o retrato perfeito de um contador cuidadoso, levado ao limite de sua paciência pela irresponsabilidade fiscal.
“Você disse que era o encarregado da fábrica, signor Sandi.” Sandi anuiu. “Mas tudo indica que você sabe mais sobre a rotina dela do que o próprio proprietário.”
Sandi anuiu novamente, como se não estivesse de todo insatisfeito por saber que alguém podia admitir isso.
De repente, bateram à porta, e quando abriram uma fresta, Brunetti viu que Della Corte sinalizava a ele para que saísse. Assim que ele pisou no corredor, o outro
disse: “A esposa está aqui”.
“Do Bonaventura?”
“Não, do Mitri.”
25
“Como ela veio parar aqui?”, Brunetti perguntou. Percebendo que a pergunta havia confundido Della Corte, ele explicou: “Quer dizer, como ela soube?”.
“Ela disse que estava passando uns dias com a esposa dele - de Bonaventura - e veio para cá assim que soube da prisão.”
A noção de tempo de Brunetti tinha sido distorcida pelos eventos daquela manhã e ele se surpreendeu quando olhou para o seu relógio e viu que já eram quase duas
da tarde; horas se passaram desde que os dois homens foram trazidos à delegacia, mas ele estivera muito concentrado para perceber. De repente, foi tomado de uma
fome intensa e sentiu um tênue zumbido percorrer todo o seu corpo, como se tivesse sido conectado a uma fraca corrente elétrica.
Seu impulso seria falar com ela imediatamente, mas sabia que não teria bons resultados antes de comer algo ou dar um jeito de controlar a tremedeira de seu corpo.
Seria a idade ou o estresse que estariam provocando aquilo? E será que ele deveria se preocupar com a possibilidade de se tratar de um indício de algo mais, de alguma
doença que o estava espreitando? “Preciso comer alguma coisa”, ele disse para Della Corte, cuja surpresa ao ouvir isso foi tão grande que ele não pôde disfarçar.
“Tem um bar na esquina. Vá até lá e pegue um sanduíche.” Ele levou Brunetti até a saída e indicou o lugar. Disse então que tinha de ligar para Padova, e voltou para
dentro do prédio. Brunetti percorreu a meia quadra que o separava do bar, onde então comeu um sanduíche do qual mal sentiu o gosto e tomou dois copos de água mineral
que não aplacaram sua sede. A menos os tremores cessaram e ele recuperou o controle sobre si mesmo, mas a forte reação que seu corpo manifestara ao amanhecer ainda
o preocupava.
Caminhou de volta à questura, pediu o número do telefonino de Palmieri. Com o número em mãos, ligou para a signorina Elettra e lhe disse que parasse tudo o que estivesse
fazendo para ir atrás de uma lista de todas as chamadas feitas e recebidas pelo telefonino de Palmeri nas últimas duas semanas, e também pelos telefones dos escritórios
e residências de Mitri e Bonaventura. Pediu a ela que aguardasse um pouco na linha e perguntou ao policial que lhe emprestara o telefone para onde fora levado o
corpo de Palmieri. Ao ser informado de que o corpo estava no necrotério do hospital municipal, pediu à signorina Elettra que avisasse Rizzardi e mandasse alguém
até lá imediatamente para colher amostras. Ele queria compará-las aos vestígios encontrados sob as unhas de Mitri.
Ao terminar, pediu para ser levado até a signora Mitri. Depois da primeira e única conversa que tiveram, seu instinto o fizera acreditar que ela não sabia nada sobre
a morte do esposo e, portanto, ele não quis interrogá-la novamente. No entanto, o fato de ela ter vindo até ali fez com que ele pusesse em dúvida a sabedoria daquela
decisão.
Um policial de uniforme o esperava à porta e o conduziu pelo corredor, parando em frente a uma sala vizinha daquela em que Bonaventura estava sendo mantido. “O advogado
está lá dentro com ele”, disse o policial a Brunetti, e, indicando a porta ao lado, acrescentou: “A mulher está aqui”.
“Vieram juntos?”, perguntou Brunetti.
“Não, senhor. O advogado chegou pouco depois dela, mas não se reconheceram.”
Brunetti agradeceu e se adiantou para observar pelo vidro de visão unilateral. Um homem estava sentado de frente para Bonaventura, mas tudo o que Brunetti conseguia
ver era a sua nuca e os seus ombros. Passou então para a porta ao lado e se deteve por um momento, estudando a mulher sentada ali dentro.
Espantou-se, de novo, com sua arrogância. Desta vez, ela vestia uma blusa de lã com uma saia de corte quadrado que não fazia concessão alguma à moda ou ao estilo.
Era o tipo de roupa que as mulheres de seu tamanho, idade e classe vestiam fazia décadas e que, provavelmente, ainda vestiriam por muitas outras décadas. Usava pouca
maquiagem e, se havia passado batom, ele se apagara durante o dia. Suas bochechas eram tão redondas que parecia que ela as inflava fazendo uma careta a alguma criança.
Sentada, as mãos cruzadas no colo e os joelhos bem juntos, ela olhava em direção à janela no topo da porta. Parecia mais velha que da última vez, mas Brunetti não
soube identificar o motivo. Seus olhos se encontraram, e ele ficou desconcertado pela impressão de que ela o estava encarando, embora soubesse muito bem que tudo
o que ela podia ver era um painel de vidro aparentemente negro. Ela continuou a olhar fixamente, e ele foi o primeiro a desviar o olhar.
Ele abriu a porta e entrou. “Boa tarde, signora”. Aproximando-se, estendeu a mão para ela.
Ela o avaliou, o rosto neutro, o olhar atento. E não se levantou, mas estendeu a mão para apertar a dele, sem fraqueza ou hesitação.
Brunetti sentou-se de frente para ela. “Veio ver seu irmão, signora?”
Os olhos dela eram infantis e cheios de uma confusão que Brunetti julgou sincera. Sua boca se abriu e sua língua se projetou nervosamente, lambendo seus lábios e
se retraindo. “Eu queria perguntar a ele...”, ela começou, mas não chegou a completar a frase.
“Perguntar o quê, signora?”
“Eu não sei se devia estar dizendo isso a um policial.”
“E por que motivo?” Brunetti inclinou-se um pouco em sua direção.
“Porque...”, ela começou, então fez uma pausa curta. Em seguida, como se tivesse explicado algo e ele houvesse entendido, ela disse: “Eu preciso saber”.
“O que a senhora precisa saber?”, Brunetti provocou.
Ela apertou os lábios e, aos olhos de Brunetti, tornou-se uma velha banguela. “Eu preciso saber se ele fez isso”, disse por fim. Então, considerando as outras possibilidades,
ela acrescentou: “Ou mandou fazer”.
“A senhora está se referindo à morte do seu marido?”
Ela concordou com a cabeça.
Para que a resposta dela fosse registrada pelos microfones e pelas fitas que gravavam tudo o que era dito na sala, Brunetti repetiu a pergunta. “A senhora acha que
ele pode ser o responsável pela morte do seu marido?”
“Eu não...”, ela começou, então mudou de ideia e sussurrou um “sim” tão baixo que poderia não ter sido captado pelos microfones.
“E por que a senhora acha que ele estaria envolvido?”
Ela se moveu desajeitadamente na cadeira e ele a viu fazer um movimento que vinha observando as mulheres fazerem por mais de quatro décadas: ergueu-se um pouco e
puxou a parte de baixo da saia, esticando-a. Então, sentou-se de novo e juntou as coxas e os joelhos.
Por um momento, pareceu-lhe que ela esperava que esse gesto seria resposta suficiente, o que levou Brunetti a repetir. “E por que a senhora acha que ele estaria
envolvido?”
“Eles brigavam”, ela ensaiou como resposta.
“Por quê?”
“Negócios.”
“Será que a senhora pode ser mais específica? Que negócios?”
Ela balançou a cabeça algumas vezes, insistindo em demonstrar que desconhecia o assunto. Finalmente, disse: “Meu marido nunca me contava nada sobre os seus negócios.
Ele dizia que eu não precisava saber de nada”.
Brunetti perguntou-se novamente quantas vezes já ouvira isso e com que frequência essa era uma resposta construída para afastar a culpa. Mas ele acreditava que essa
mulher corpulenta estava lhe dizendo a verdade, e achava inteiramente crível que seu marido tivesse preferido não partilhar sua vida profissional com ela. Recordou-se
então do homem que havia encontrado no gabinete de Patta: elegante, loquaz, e até mesmo astuto. Difícil visualizá-lo junto a essa mulher pequenina, com seus cabelos
brancos e roupas apertadas. Olhando para seus pés, viu que ela calçava um par de sapatos fechados de salto alto que comprimiam seus dedos a ponto de lhe causar dor.
No pé esquerdo, um calo enorme se projetara do couro e ficara ali, como o pedaço de um ovo, o couro bem apertado sobre ele. Seria o casamento o maior dos mistérios?
“E quando eles brigavam, signora ?”
“O tempo todo, especialmente no mês passado. Acho que aconteceu algo que deixou Paolo furioso. Eles nunca se deram bem, nunca mesmo, mas, por causa da família e
dos negócios, bem, eles davam um jeito de conviver.”
“Aconteceu algo específico durante o último mês?”
“Acho que houve uma discussão”, ela disse, numa voz tão baixa que Brunetti pensou outra vez naqueles que teriam de ouvir a gravação no futuro.
“Uma discussão entre eles, entre seu marido e seu irmão?”
“Sim.” Ela balançava a cabeça várias vezes enquanto falava.
“E o que a leva a pensar dessa maneira, signora ?”
“Paolo e ele se reuniram em nosso apartamento. Isso foi duas noites antes de acontecer.”
“Antes de acontecer o quê, signora ?”
“Antes do meu marido ser... antes dele ser assassinado.”
“Certo. E por que a senhora acha que eles discutiram? A senhora ouviu o que eles disseram?”
“Oh, não”, ela respondeu de pronto, encarando Brunetti como se estivesse surpresa pela insinuação de que se elevava a voz na casa dos Mitri. “Eu sabia disso pela
maneira como Paolo se comportou quando subiu, depois que eles terminaram de conversar.”
“Ele disse alguma coisa?”
“Só que ele era um incompetente.”
“Ele falava do seu irmão?”
“Sim.”
“Algo mais?”
“Ele disse que Sandro estava arruinando a fábrica, acabando com o negócio.”
“E a senhora sabe a que fábrica ele estava se referindo?”
“Acho que à fábrica daqui, de Castelfranco.”
“E qual seria o interesse de seu marido nesta fábrica?”
“Havia dinheiro investido nela.”
“Dinheiro dele?”
Ela balançou a cabeça. “Não.”
“Dinheiro de quem, signora ?”
Ela fez uma pausa, considerando como responder da melhor maneira. “O dinheiro era meu”, ela disse por fim.
“Seu, signora ?”
“Sim. Eu trouxe muito dinheiro para o casamento. Mas ele permaneceu em meu nome, sabe. Era o desejo de nosso pai”, ela acrescentou, fazendo um gesto vago com a mão
direita. “Paolo sempre me ajudou a decidir o que fazer com o dinheiro. E, quando Sandro disse que precisava comprar a fábrica, os dois sugeriram que eu investisse
nela. Isso faz um ano. Talvez dois.” Ela interrompeu sua fala ao perceber a reação de Brunetti à sua imprecisão. “Desculpe, mas eu não presto muita atenção nessas
coisas. Paolo me pediu para assinar os papéis e o homem do banco me explicou o que estava acontecendo. Mas acho que eu nunca cheguei a entender, de fato, para que
servia o dinheiro.” Ela parou e alisou a saia. “Foi tudo para a fábrica de Sandro, mas como o dinheiro era meu, Paolo sempre achou que ela também lhe pertencia.”
“A senhora tem alguma ideia de quanto investiu nessa fábrica?” Ela olhou para Brunetti como uma garotinha prestes a explodir em lágrimas por não conseguir se lembrar
da capital do Canadá. Ele, então, completou a frase: “Só uma ideia. Nós realmente não precisamos saber a quantia exata”. Era verdade; tudo seria descoberto depois.
“Acho que foram três ou quatro milhões de liras.”
“Certo. Obrigado”, disse Brunetti, e depois perguntou: “E o seu marido disse algo mais naquela noite, depois da conversa com o seu irmão?”.
“Bem.” Ela fez uma pausa e, pareceu a Brunetti, tentou se lembrar. “Ele disse que a fábrica estava perdendo dinheiro. Pelo jeito como ele falou, me pareceu que Paolo
pudesse ter investido seu próprio dinheiro na fábrica, sem que ninguém soubesse.”
“Além do seu?”
“Sim. Apenas pelo tom de Paolo. Nada oficial.” Como Brunetti permaneceu calado, ela continuou. “Eu acho que Paolo queria ter mais controle sobre o modo como eles
faziam as coisas.”
“O seu marido lhe deu alguma pista sobre o que pretendia fazer?”
“Oh, não.” Ela ficou realmente surpresa com a pergunta. “Ele nunca me contava esse tipo de coisa.” Brunetti se perguntou que tipo de coisa ele de fato contava à
esposa, mas achou melhor não perguntar. “Depois ele foi para o seu quarto e no dia seguinte não falou mais no assunto, então eu achei, ou esperei, que ele e Sandro
tivessem se acertado.”
Brunetti reagiu no ato à menção que ela fez ao “seu quarto”, algo que por certo não fazia parte de casamentos felizes. Imprimindo um tom mais baixo à sua voz, ele
prosseguiu. “Desculpe-me pela pergunta, mas a senhora poderia me dizer em que termos estava a sua relação com o seu marido?”
“Termos?”
“A senhora disse que ele foi para ‘o seu quarto’”, respondeu Brunetti com uma voz suave.
“Ah.” O som silencioso lhe escapou involuntariamente.
Brunetti esperou. Por fim, disse: “Ele não está mais aqui, signora, então eu acho que a senhora pode me dizer”.
Ela o encarou e ele viu lágrimas se formarem em seus olhos. “Havia outras mulheres”, ela sussurrou. “Por anos, outras mulheres. Certa vez eu o segui e esperei ele
sair do lado de fora da casa de uma delas, na rua.” As lágrimas escorriam por seu rosto, mas ela as ignorava. Elas começaram a pingar em sua blusa, deixando grandes
marcas ovais no tecido. “Em outra ocasião eu contratei um detetive para segui-lo. Depois comecei a gravar suas ligações telefônicas. Eu as escutava sempre, ouvia
ele falar com elas. As mesmas coisas que ele costumava dizer para mim.” As lágrimas a interromperam e ela fez uma longa pausa, mas Brunetti se forçou a ficar calado.
Finalmente, ela prosseguiu. “Eu o amei do fundo do meu coração. Desde o primeiro dia em que o vi. Se foi o Sandro quem fez isso...” Os olhos dela se encheram de
lágrimas novamente, mas ela as enxugou com as palmas das duas mãos. “Então eu quero que o senhor descubra e quero que ele seja punido. É por isso que eu quero falar
com o Sandro.” Ela parou, olhando para baixo.
“Será que o senhor pode me procurar depois para me contar o que ele disse?”, ela perguntou, ainda olhando para as mãos, que repousavam imóveis em seu colo.
“Acho que não posso fazer isso antes que tudo esteja encerrado, signora. Mas, quando isso acontecer, pode contar comigo.”
“Obrigada”, disse ela, erguendo os olhos e baixando-os novamente. De repente, ela se levantou e foi até a porta. Brunetti se adiantou para abri-la para ela, recuando
e permitindo que ela a cruzasse à sua frente. “Vou voltar para casa, então”, ela disse e, antes que ele pudesse se pronunciar, ela saiu pela porta, atravessou o
corredor e foi até o hall de entrada da delegacia.
26
Ele voltou até a mesa do policial cujo telefone havia usado e, sem se dar ao trabalho de pedir permissão, ligou de novo para a signorina Elettra. Assim que ouviu
sua voz, ela lhe contou que o perito já estava a caminho do necrotério de Castelfranco para recolher as amostras de tecido e pediu a ele que lhe desse o número de
fax da questura. Brunetti largou o telefone e foi para a mesa da recepção, onde pediu ao sargento de plantão que escrevesse o número para ele. Depois de dar o número
à signorina Elettra, ele se lembrou que não ligara para Paola de manhã e discou o número de casa. Como ninguém atendeu, ele deixou uma mensagem dizendo que tinha
se atrasado em Castelfranco, mas que voltaria ainda no fim da tarde.
Em seguida, sentou-se e apoiou a cabeça nas mãos. Depois de alguns minutos, ele ouviu alguém dizer: “Com licença, commissario, isso aqui acabou de chegar para o
senhor”.
Ao olhar para cima ele viu um jovem policial parado em frente à mesa em que estava sentado. Na mão esquerda, ele trazia várias das típicas folhas enroladas de um
fax.
Brunetti tentou sorrir para o policial e esticou a mão para pegar os papéis que este lhe estendia. Colocando-os sobre a mesa, alisou-os o melhor que pôde com a ponta
da mão. Observando as colunas, ficou contente ao descobrir que a signorina Elettra sinalizara com um asterisco todas as chamadas feitas entre cada um dos números.
Em seguida, ele separou os papéis em três pilhas diferentes: Palmieri, Bonaventura e Mitri.
Nos dez dias anteriores ao assassinato de Mitri, houve diversos telefonemas entre o telefonino de Palmieri e o número da Interfar, sendo que um deles chegou a durar
sete minutos. Um dia antes do crime, às nove e vinte e sete da noite, houve uma chamada da residência de Bonaventura para o número de Mitri. Essa conversa durou
dois minutos. Na noite do assassinato, quase à mesma hora, uma chamada de quinze segundos foi feita do telefone de Mitri para o de Bonaventura. Depois dessa, havia
três chamadas da fábrica para o telefonino de Palmieri e algumas entre as residências de Bonaventura e Mitri.
Ele empilhou os papéis e voltou ao corredor. Ao entrar na pequena sala em que conversara pela última vez com Bonaventura, encontrou-o sentado de frente para um homem
de cabelos negros, cuja maleta de couro repousava sobre a mesa ao lado. Aberta à sua frente, havia uma caderneta revestida do mesmo tipo de couro. O homem se virou
e Brunetti reconheceu Piero Candiani, um advogado criminal de Padova. Candiani usava óculos sem armação. Através das lentes, Brunetti viu um par de olhos negros
que transmitiam, de modo surpreendente, sobretudo para um advogado, tanto inteligência como franqueza.
Candiani ficou de pé e estendeu-lhe a mão. “Commissario Brunetti”, ele reconheceu, cumprimentando-o.
“Avvocato.” Brunetti fez com a cabeça um aceno na direção de Bonaventura, que não se dera ao trabalho de levantar.
Candiani puxou a cadeira restante e esperou que Brunetti se sentasse antes de retornar à sua própria cadeira. Sem preâmbulo, ele disse, abanando a mão de forma negligente
em direção ao teto. “Presumo que nossa conversa esteja sendo gravada.”
“Sim”, concordou Brunetti. Então, para ganhar tempo, ele recitou em voz alta o dia, a hora e os nomes dos três.
“Creio que o senhor já teve uma conversa com o meu cliente”, começou Candiani.
“Sim. Eu perguntei a ele sobre certas remessas de remédios que a Interfar vem fazendo para outros países.”
“Isso tem algo a ver com as normas da Comunidade Europeia?”, perguntou Candiani.
“Não.”
“Então, de que se trata?”
Brunetti olhou para Bonaventura, que agora estava sentado com as pernas cruzadas, um braço pendurado no encosto da cadeira.
“De remessas para países do Terceiro Mundo.”
Candiani anotou algo em sua caderneta. Sem levantar a cabeça, perguntou: “E qual o interesse da polícia nessas remessas?”.
“Parece que a maioria delas contém remédios que já não têm mais efeito. Isto é, estão fora do prazo de validade ou, em alguns casos, contêm substâncias inúteis,
tendo sido camuflados para parecerem remédios de verdade.”
“Compreendo.” Candiani virou uma folha. “E que evidência o senhor tem para confirmar essas acusações?”
“Um cúmplice.”
“Cúmplice?” Candiani perguntou com um ceticismo descarado. “E será que eu posso perguntar quem seria esse cúmplice?” Da segunda vez que pronunciou a palavra, ele
a carregou com a ênfase da dúvida.
“O encarregado da fábrica.”
Candiani olhou para o seu cliente e Bonaventura deu de ombros em sinal de confusão ou ignorância. Ele apertou os lábios e, com um rápido piscar de olhos, afastou
a possibilidade. “E o senhor gostaria de interrogar o signor Bonaventura a esse respeito?”
“Sim.”
“E isso é tudo o que o senhor deseja?” Candiani ergueu os olhos de sua caderneta.
“Não. Eu também gostaria de lhe perguntar o que ele sabe sobre o assassinato de seu cunhado.”
Ao ouvir isso, a expressão de Bonaventura progrediu para algo próximo do espanto, mas assim mesmo ele permaneceu calado.
“Por quê?” A cabeça de Candiani curvou-se mais uma vez sobre a sua caderneta.
“Porque começamos a considerar a possibilidade de que ele possa de alguma forma estar implicado na morte do signor Mitri.”
“Implicado como?”
“É exatamente isso que eu gostaria que o signor Bonaventura me dissesse.”
Candiani ergueu os olhos para o seu cliente. “O senhor gostaria de responder às perguntas do commissario ?”
“Não acho que possa”, disse Bonaventura. “Mas é claro que estou disposto a ajudá-lo como eu puder.”
Candiani voltou-se para Brunetti. “Se o senhor quiser interrogar o meu cliente, commissario, então eu sugiro que o faça.”
“Eu gostaria de saber”, começou Brunetti, dirigindo-se diretamente a Bonaventura, “qual era o seu envolvimento com Ruggiero Palmieri, ou, como ele era conhecido
quando trabalhava para sua empresa, Michele de Luca.”
“O motorista?”
“Sim.”
“Como eu lhe disse antes, commissario, eu o via ocasionalmente circulando pela fábrica. Mas ele era apenas um motorista. Eu posso ter conversado com ele uma ou duas
vezes, mas não passou disso.” Bonaventura não quis saber o motivo da pergunta de Brunetti.
“Então o senhor não possuía outros assuntos com ele além dos contatos fortuitos que tinham no trabalho?”
“Não. Eu já te disse: ele era um motorista.”, completou Bonaventura.
“O senhor nunca lhe deu nenhum dinheiro?”, Brunetti perguntou, torcendo para que as digitais de Bonaventura aparecessem nas cédulas encontradas na carteira de Palmieri.
“Claro que não.”
“Então, as únicas ocasiões em que o senhor o viu ou falou com ele foram seus encontros na fábrica?”
“Foi o que eu acabei de lhe dizer.” Bonaventura mal tentou disfarçar sua irritação.
Brunetti dirigiu-se a Candiani. “Acho que por enquanto isso é tudo o que eu quero saber do seu cliente.”
Os dois homens ficaram obviamente surpresos com isso, mas o primeiro a reagir foi Candiani, que se levantou, fechando sua caderneta. “Então podemos ir?”, ele perguntou,
esticando-se sobre a mesa e puxando sua maleta para si.
Uma Gucci, Brunetti percebeu. “Acho que não.”
“Como?”, disse Candiani, depositando em uma palavra décadas de perplexidade vividas nos tribunais. “E por que não?”
“Eu imagino que a polícia de Castelfranco terá algumas acusações a registrar contra o signor Bonaventura.”
“Por exemplo?”, exigiu Candiani.
“Fuga da prisão, conspiração para impedir uma investigação policial, homicídio culposo por acidente de trânsito, isso para mencionar algumas delas.”
“Eu não estava dirigindo”, estourou Bonaventura, com uma indignação perceptível tanto nas palavras como no tom.
Brunetti observava Candiani enquanto Bonaventura falava, e pôde ver a pele sobre os olhos do advogado se contrair minimamente, por surpresa ou por algum motivo mais
desagradável, não podia ter certeza.
Candiani pôs a caderneta dentro da maleta e a fechou. “Eu gostaria de me assegurar de que a polícia de Castelfranco assim o decidiu, commissario.” Então, como se
quisesse afastar qualquer resquício de fé que suas palavras poderiam sugerir, acrescentou: “Uma mera formalidade, claro”.
“Claro”, repetiu Brunetti, também se levantando.
Brunetti bateu no vidro da janela para chamar o policial que aguardava no corredor. Deixando Bonaventura na sala, ele e o advogado foram ter com Bonino, que confirmou
o julgamento de Brunetti de que a polícia de Castelfranco iria, de fato, prestar várias acusações graves contra Bonaventura.
Deixando Brunetti e Bonino a sós, Candiani voltou à sala de interrogatório, acompanhado de um policial, para informar seu cliente e despedir-se dele.
“Vocês registraram tudo?”, perguntou Brunetti.
Bonino assentiu. “É todo novo, o equipamento de som. Consegue registrar o menor suspiro, mesmo a respiração pesada. Então, sim, nós registramos tudo.”
“E antes de eu estar lá?”
“Não. Nós só podemos ligar o aparelho quando há um policial na sala. Privilégio da relação cliente-advogado.”
“É mesmo?”, perguntou Brunetti, sem poder disfarçar seu espanto.
“Mesmo”, repetiu Bonino. “Perdemos um caso no ano passado porque a defesa conseguiu provar que nós ouvimos o que o suspeito disse a seu advogado. Então o questore
determinou que não haveria exceções. Nada pode ser ligado até que haja um policial na sala.”
Brunetti anuiu e perguntou em seguida: “Assim que o advogado dele for embora, você poderia tirar as suas digitais?”
“Para comparar com as do dinheiro?”
Brunetti fez que sim com a cabeça.
“Já foi feito”, Bonino disse com um pequeno sorriso. “De forma completamente extraoficial. Ele tomou um pouco de água mais cedo, pela manhã, e nós conseguimos obter
três boas impressões do copo depois de ele terminar.”
“E?”, perguntou Brunetti.
“E nosso perito diz que elas se encaixam, que pelo menos duas das impressões aparecem em algumas das notas encontradas na carteira de Palmieri.”
“Vou checar com o banco dele também”, disse Brunetti. “Aquelas notas de cinco mil liras ainda são novas. A maioria das pessoas nem as aceita: são difíceis de trocar.
Não sei se eles mantêm um registro dos números, mas se mantiverem...”
“Lembre-se de que o advogado dele é o Candiani.”
“Você o conhece?”
“Todos no Vêneto o conhecem.”
“Mas nós temos os registros dos telefonemas de Bonaventura para um homem que ele nega ter conhecido e, agora, temos as impressões digitais”, Brunetti insistiu.
“O advogado dele continua sendo Candiani.”
27
E nunca uma profecia se revelou tão verdadeira. O banco em Veneza mantinha um registro dos números das notas de cinco mil liras distribuídas no dia em que Bonaventura
sacou quinze milhões em dinheiro, e entre eles estavam os das cédulas encontradas na carteira de Palmieri. Qualquer dúvida que restasse sobre se tratarem das mesmas
cédulas foi eliminada pela presença das digitais de Bonaventura.
Representando Bonaventura, Candiani insistiu que não havia nada de estranho nisso. Seu cliente tinha sacado o dinheiro para quitar um empréstimo pessoal que seu
cunhado, Paolo Mitri, lhe fizera em espécie. Bonaventura devolvera o dinheiro a Mitri um dia depois de ter feito o saque, no dia de seu assassinato. Os fragmentos
da pele de Palmieri encontrados sob as unhas de Mitri tornavam tudo perfeitamente claro. Palmieri roubara Mitri e preparara o bilhete antes, para evitar que as suspeitas
recaíssem sobre ele. Palmieri havia matado Mitri, por acidente ou planejadamente, durante o roubo.
Quanto aos telefonemas, Candiani arrematou o assunto: assinalou que a Interfar possuía um número central e que, portanto, chamadas feitas por qualquer extensão eram
todas registradas a partir daquele número. Assim, qualquer pessoa, em qualquer ponto da fábrica, poderia ter feito as chamadas para o telefonino de Palmieri, assim
como ele poderia ter ligado para a fábrica, simplesmente para informar sobre um atraso na remessa.
Indagado sobre a ligação registrada na noite do assassinato - do apartamento de Mitri, para o seu número pessoal -, Bonaventura lembrou-se que Mitri havia telefonado
para ele naquela noite, convidando-os, ele e sua esposa, para um jantar na semana seguinte. Quando foi ressaltado que a chamada durara apenas quinze segundos, Bonaventura
recordou que Mitri interrompera a ligação rapidamente, dizendo que havia alguém tocando a campainha. Ao perceber que devia se tratar do assassino de Mitri, sua expressão
foi de horror.
Cada um deles teve tempo de construir uma história para explicar a fuga da Interfar. Sandi disse que entendeu o inesperado alerta de Bonaventura sobre a presença
da polícia como uma ordem para fugir e que este havia disparado à sua frente em direção ao caminhão. Bonaventura, por sua vez, insistiu que Sandi apontou uma arma
em sua direção, forçando-o a entrar no caminhão. O terceiro homem disse que não viu nada.
Com relação ao problema das remessas de remédios, Candiani foi bem menos hábil ao tentar afastar as suspeitas dos braços da justiça. Sandi repetiu e expandiu seu
testemunho, além de fornecer os nomes e endereços do pessoal do turno noturno que era contratado para encher e embalar os remédios falsos. Como eles eram pagos em
espécie, não havia nenhum registro de seus salários em bancos, mas Sandi providenciou folhas de ponto com seus nomes e assinaturas. Ele também forneceu à polícia
uma lista completa das remessas anteriores, com datas, conteúdos e destinos.
O Ministério da Saúde interveio, a essa altura. A Interfar foi fechada e seus prédios lacrados, enquanto os inspetores abriam e examinavam caixas, vidros e tubos.
Verificou-se que todos os remédios da parte central da fábrica continham exatamente o que diziam suas etiquetas, mas toda uma seção do depósito continha caixotes
prontos para serem embarcados repletos de caixas de substâncias que provaram, depois de examinadas, não ter valor medicinal algum. Havia três caixotes repletos de
garrafinhas de plástico com rótulos de xarope para a tosse. A análise do conteúdo mostrou que era uma mistura de açúcar, água e anticongelante, uma combinação que
poderia ser prejudicial e até mesmo letal para quem a ingerisse.
Outros caixotes continham centenas de caixas de remédios que estavam vencidos fazia muito tempo; havia ainda caixas de gaze e curativos cujo tecido se desmanchava
ao toque, por terem permanecido um longo tempo armazenados em algum lugar. Sandi forneceu as notas de embarque e recibos que acompanhariam esses caixotes aos seus
destinos finais - terras devastadas pela fome, pela guerra e pela peste - e também uma lista dos preços a serem pagos por eles pelas agências internacionais de auxílio,
tão ansiosas para distribuí-los aos pobres sofredores.
Impedido de qualquer envolvimento com o caso por ordem direta de Patta, que por sua vez obedecia a uma ordem do ministro da Saúde, Brunetti acompanhava a investigação
pelos jornais. Bonaventura admitiu ter algum envolvimento com a venda de remédios falsos, embora insistisse que o plano e o incentivo originais vieram de Mitri.
Ao comprar a Interfar, a maioria do pessoal contratado veio da fábrica que Mitri fora forçado a vender: trouxeram consigo a decadência e a corrupção que Bonaventura
não conseguiu contornar. Quando levou suas queixas a Mitri, seu cunhado ameaçou cobrar o empréstimo que lhe fizera e retirar o dinheiro que sua esposa investira
na fábrica, o que por certo arruinaria Bonaventura financeiramente. Assim, vítima de sua própria fraqueza e impotente diante do poder financeiro de Mitri, Bonaventura
não teve escolha senão continuar com a produção e venda dos remédios falsos. Reclamar teria feito com que ele fosse à falência e desgraça.
De tudo o que leu, Brunetti deduziu que, se algum dia o caso de Bonaventura fosse a júri, ele teria apenas de pagar uma multa, e não muito pesada, já que as etiquetas
do Ministério da Saúde não chegaram de fato a ser trocadas ou adulteradas. Brunetti não sabia ao certo que lei fora quebrada pela venda de remédios vencidos, especialmente
se essa venda aconteceu em outro país qualquer. A lei sobre a falsificação de remédios era clara, mas a questão se complicava pelo fato de os remédios não terem
sido vendidos ou distribuídos na Itália. Tudo isso, contudo, ele considerou uma especulação inútil. O crime de Bonaventura havia sido um assassinato, não a manipulação
dos lotes: o assassinato de Mitri e o de quem quer que tenha morrido por causa dos remédios que ele vendia.
Nesse ponto, Brunetti estava sozinho. Os jornais estavam agora totalmente convencidos de que Palmieri assassinara Mitri, embora não se lesse em lugar nenhum qualquer
retratação pela publicação da teoria inicial segundo a qual o assassino era um fanático inflamado e encorajado pelo ato de Paola. O juiz encarregado do caso decidiu
não prestar a queixa-crime contra Paola e o caso foi apenas registrado nos arquivos do Estado.
Poucos dias depois de Bonaventura ser mandado para casa, onde deveria permanecer em prisão domiciliar, Brunetti estava sentado na sala de sua casa, absorto no relato
de Arriano sobre as campanhas de Alexandre, quando o telefone tocou. Ele levantou a cabeça para ver se Paola atenderia em seu estúdio. Quando a campainha parou,
no terceiro toque, voltou a seu livro e ao evidente desejo de Alexandre em ver seus amigos prostrados diante dele como se fosse um deus. O encanto do livro transportou
Brunetti imediatamente àquele lugar distante naqueles tempos remotos.
“É pra você”, disse Paola às suas costas. “Uma mulher.”
“Hein?”, ele perguntou, levantando os olhos das páginas, ainda não muito situado no quarto ou no presente.
“Uma mulher”, repetiu Paola, parada à porta.
“Quem?”, Brunetti perguntou, marcando o livro com uma passagem de barco usada e colocando-o a seu lado, no sofá.
Ele estava se levantando quando Paola disse: “Não faço ideia. Não costumo ouvir seus telefonemas”.
De repente, ele ficou duro, encurvado como um velho com problemas de coluna. “Madre di Dio”, exclamou. E ficou ali parado, encarando Paola, que permanecia à porta,
olhando-o de modo estranho.
“Que foi, Guido? Suas costas estão doendo?”
“Não, não, estou bem. Mas acho que o peguei. Acho que o peguei.” Ele foi até o armadio e pegou seu casaco.
“O que você está fazendo?”, perguntou Paola ao vê-lo agir assim.
“Vou sair”, ele disse, sem oferecer nenhuma explicação.
“E o que eu digo a essa mulher?”
“Diga a ela que eu não estou”, ele respondeu. No instante seguinte, isso era verdade.
A signora Mitri o recebeu. Não usava maquiagem, e seu cabelo, repartido, exibia raízes grisalhas. Ela vestia um vestido marrom sem formas e seu corpo parecia ainda
mais robusto desde a última vez em que ele a vira. Ao se aproximar para cumprimentá-la, ele sentiu um tênue aroma de algo doce, vermute ou Marsala.
“O senhor veio aqui pra me contar alguma coisa?”, ela perguntou. Os dois estavam na sala de visita, olhando um para o outro por cima de uma mesa de centro, onde
havia três taças sujas e uma garrafa vazia de vermute.
“Não, signora, temo não estar autorizado a lhe dizer o que quer que seja.”
A decepção a fez cerrar os olhos e apertar uma mão contra a outra. Depois de um momento, ela o encarou e sussurrou: “Eu esperava...”.
“A signora leu os jornais?”
Ela não precisou lhe perguntar o que ele queria dizer, e balançou a cabeça.
“Eu preciso saber uma coisa, signora. Eu preciso que a senhora me explique algo”, disse Brunetti.
“O quê?”, ela perguntou de forma neutra, na verdade não muito interessada.
“A senhora disse, na última vez em que conversamos, que a senhora ouvia as conversas do seu marido.” Quando ela não deu sinais de saber sobre o que ele estava falando,
Brunetti completou: “Com outras mulheres”.
Como ele temia, as lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto e a pingar no tecido grosso de seu vestido. Ela assentiu.
“Signora, pode me dizer como fazia isso?”
Ela olhou para ele, os olhos apertados em total confusão.
“Como a senhora ouvia as ligações?”
Ela balançou a cabeça.
“Como a senhora fazia isto, signora ?” Ela não respondeu e ele continuou. “É importante, signora. Eu preciso saber.”
Enquanto ele observava, o rosto dela corava de vergonha. Ele dizia a muita gente que era como um padre, que todos os segredos estavam seguros com ele, mas estava
consciente de que isso era mentira, então não procurou convencê-la. Em vez disso, esperou.
Finalmente, ela falou. “O detetive. Ele anexou alguma coisa ao telefone do meu quarto.”
“Um gravador?”
Ela fez que sim com a cabeça, com o rosto ainda mais vermelho.
“E ele ainda está lá, signora ?”
Novamente, ela anuiu.
“A senhora pode pegá-lo para mim, Signora ?” Ela pareceu não ter escutado, então ele repetiu. “A senhora pode pegá-lo para mim? Ou me dizer onde ele está?”
Ela pôs uma mão sobre os olhos, mas as lágrimas continuaram a jorrar.
Brunetti esperou. Finalmente, com a outra mão, ela apontou para os fundos do apartamento por cima de seu ombro esquerdo. No ato, antes que ela tivesse tempo de mudar
de ideia, Brunetti se levantou e foi até o corredor. Atravessou-o, passou por uma cozinha de um lado e uma sala de jantar do outro. Nos fundos, ele deu uma espiada
em um quarto, onde viu um cabideiro masculino encostado contra a parede. Abriu a porta oposta e se viu no quarto dos sonhos de uma adolescente: babados de chiffon
brancos contornavam a parte de baixo da cama e a penteadeira; uma das paredes era totalmente coberta por espelhos.
Ao lado da cama havia um estiloso telefone de bronze: o fone repousava sobre uma grande caixa quadrada; o discador redondo era um memento de um tempo distante. Ele
se aproximou do aparelho, ajoelhou e afastou as cortinas de babados. Dois cabos saíam da base, um até a tomada do telefone e o outro até um pequeno gravador preto
não maior que um walkman, semelhante a um que ele usara no passado para interrogar suspeitos: ativado pela voz, seu potencial de captação de som era notável para
algo tão pequeno.
Ele desconectou o gravador e voltou à sala de estar. Ao entrar, ela ainda estava com as mãos sobre os olhos, mas olhou para cima assim que o ouviu chegar.
Ele pôs o aparelho na mesa à frente dela. “É este o gravador, signora ?”
Ela assentiu.
“Posso ouvir o que foi gravado nele?”
Certa vez, ele assistira na TV a um programa que mostrava como as cobras conseguiam hipnotizar sua presa. Ao vê-la mover a cabeça para a frente e para trás, acompanhando-o
enquanto ele se inclinava na direção do gravador, lembrou-se disso, e esse pensamento o deixou desconfortável.
Ela concordou com um aceno e sua cabeça acompanhou novamente os gestos de Brunetti, que se inclinou e apertou o botão de rebobinar; quando ouviu um clique indicando
que a fita tinha chegado ao início, ele apertou o “play”.
Juntos eles ouviram a gravação, enquanto as vozes preenchiam o aposento, uma delas era a de um morto, Mitri, marcando um jantar com um amigo dos tempos de escola;
a signora Mitri encomendando novas cortinas; o signor Mitri dizendo a uma mulher que queria desesperadamente vê-la de novo - neste ponto, a signora Mitri virou o
rosto com vergonha e as lágrimas voltaram a correr.
Seguiram-se minutos da mesma mistura de telefonemas, todos iguais em sua banalidade e inconsequência. E nada, sobretudo agora, que estava abraçado à morte, parecia
mais inconsequente que a forma como Mitri verbalizava a sua luxúria. Então, Brunetti ouviu a voz de Bonaventura perguntando a Mitri se ele poderia reservar um tempo
para dar uma olhada em alguns papéis na noite seguinte. Quando Mitri concordou, Bonaventura disse que passaria lá por volta das nove, ou talvez mandasse um dos motoristas
levar os papéis que ele queria que Mitri visse. E então ele ouviu o telefonema que rezara para que estivesse ali. O telefone tocou duas vezes, Bonaventura respondeu
com um nervoso “si” e a voz de outro morto se fez ouvir no aposento. “Sou eu. Está feito.”
“Tem certeza?”
“Sim. Ainda estou aqui.”
A pausa que se seguiu a isso era prova do choque de Bonaventura diante daquela temeridade. “Então saia. Agora.”
“Quando nos encontramos?”
“Amanhã, no meu escritório. Vou te dar o resto.” Então os dois ouviram o telefone sendo desligado.
A próxima coisa que ouviram foi a voz trêmula de um homem chamando a polícia. Brunetti alcançou o gravador com a mão e apertou a tecla “stop”. Quando ele a encarou,
toda a emoção havia sido expulsa de seu rosto e todas as lágrimas esquecidas. “Seu irmão?”
Como uma vítima de bombardeio, ela pôde apenas concordar, com olhos arregalados e fixos.
Brunetti levantou e se inclinou para apanhar o gravador, que pôs no bolso. “Não tenho palavras para dizer quanto lamento, signora.”
28
Ele foi a pé para casa, com o pequeno gravador pesando mais em seu bolso do que já pesara qualquer pistola ou instrumento letal. O aparelho o atraía para baixo,
e as mensagens que continha pesavam em seu espírito. Como foi fácil para Bonaventura providenciar o encontro de seu cunhado com a morte: bastou um telefonema e a
informação de que o motorista passaria por lá com alguns papéis que ele queria que Mitri lesse. Mitri, sem suspeitar, deixou que seu assassino entrasse. Talvez tenha
recebido papéis, e se virado para colocá-los em uma mesa ou escrivaninha, dando a Palmieri a oportunidade de que ele precisava para passar o cabo fatal por sua cabeça
e apertá-lo com força em torno de seu pescoço.
Para um homem tão forte e experiente como Palmieri, seria questão de um instante, talvez de um minuto, talvez menos que isso, para puxar as extremidades com força
e segurá-las até que a vida de Mitri fosse sufocada. Os vestígios de pele sob as unhas de Mitri provaram que ele tentara resistir, mas já não havia esperanças desde
o momento em que Bonaventura ligou para combinar a entrega dos papéis; desde que, seja lá em que momento ou por qual razão, Bonaventura decidiu se livrar do homem
que ameaçava sua fábrica e seu repulsivo negócio.
Brunetti não tinha ideia de quantas vezes afirmara que, no que dizia respeito à maldade humana, pouca coisa ainda podia surpreendê-lo. No entanto, cada vez que se
deparava com ela ou a combatia, ele se surpreendia. Ele já havia visto homens serem assassinados por um punhado de liras e por alguns milhões de dólares, mas isso
jamais fizera sentido para ele, não importava qual fosse o montante, pois se tratava de pôr um preço na vida humana e afirmar que o acúmulo de riquezas era um bem
maior - um princípio cujo fundamento ele não podia compreender. Concluiu também que não poderia jamais entender totalmente como alguém podia fazer isso. Podia compreender
por que o faziam. Era fácil, e os motivos eram tão claros quanto variados: cobiça, luxúria, ciúme. Mas como chegaram às vias de fato? Faltava-lhe imaginação; o crime
parecia excessivamente profundo e suas consequências excediam sua capacidade de compreensão.
Ao chegar em casa, essa confusão ainda povoava sua mente. Paola, ouvindo-o entrar, saiu de seu estúdio e atravessou o corredor para encontrá-lo. “Vou fazer um chá”,
ela disse, vendo a expressão em seu rosto.
Ele pendurou o paletó e foi até o banheiro, onde lavou as mãos e o rosto e se olhou no espelho. Como ele podia saber dessas coisas, pensou, e não ver nenhum sinal
delas em seu rosto? Lembrou-se então de uma poema que Paola havia lido para ele uma vez, algo sobre o modo como o mundo observa o desastre sem ser afetado por ele.
Lembrou-se das palavras do poeta: os cães continuam a cuidar dos seus afazeres caninos. E ele continuava a cuidar dos seus.
Na cozinha, o bule de sua avó repousava sobre uma esteira de ráfia no centro da mesa, ladeada por duas xícaras e um grande pote de mel à esquerda. Ele se sentou
enquanto Paola serviu o chá aromático.
“Pode ser de tília?”, ela perguntou enquanto abria o mel e derramava um pouco com a colher em sua xícara. Ele assentiu e ela deslizou a xícara pela mesa, deixando
a colher lá dentro. Ele mexeu com a colher repetidamente, feliz de sentir o aroma e o vapor que subia por suas narinas.
Sem preâmbulos, ele disse: “Ele mandou alguém matá-lo e, depois que o serviço foi feito, o assassino telefonou para ele, de dentro da casa do Mitri”. Paola não disse
nada, e iniciou o mesmo ritual de acrescentar mel, desta vez em menor quantidade, à sua própria tisana. Enquanto ela mexia, Brunetti continuou. “A mulher de Mitri
estava gravando os telefonemas que ele fazia para outras mulheres. E para eles.” Brunetti soprou por cima da xícara e bebericou. Apoiando-a na mesa, continuou. “Há
uma gravação da chamada. Do assassino para Bonaventura. Ele diz que lhe dará o resto do dinheiro no dia seguinte.”
Paola continuou mexendo a xícara, como se tivesse esquecido de beber o chá. Quando ela percebeu que Brunetti não tinha mais nada a dizer, ela perguntou: “E isso
é o bastante? O bastante para condená-lo?”.
Brunetti assentiu. “Espero que sim. Acho que sim. Eles devem ser capazes de obter um registro de voz a partir da gravação. É um aparelho muito sofisticado.”
“E a conversa?”
“Não há como se enganar quanto à intenção deles.”
“Espero que não”, ela disse, ainda mexendo o seu chá.
Brunetti imaginou quem seria o primeiro deles a confessar. Ele a encarou, viu as lustrosas madeixas do cabelo dela se derramando em cada lado de seu rosto e, tocado
por tal visão, disse: “E você não teve nada a ver com isso”.
Ela ficou em silêncio.
“Nada mesmo”, ele repetiu.
Desta vez ela tremeu, mas ainda assim não disse nada.
Ele se inclinou sobre a mesa e tirou a colher dos dedos dela. Colocou-a sobre a esteira de ráfia e envolveu a mão dela na sua. Como ela não reagiu, ele insistiu:
“Paola, você não teve nada a ver com isso. Ele teria sido assassinado de qualquer jeito”.
“Mas eu dei a ele um jeito de tornar isso mais fácil.”
“Você está falando do bilhete?”
“Sim.”
“Ele teria usado qualquer outra coisa, feito de outro jeito qualquer.”
“Mas ele fez daquele jeito.” A voz dela era firme. “Se eu não tivesse dado a eles a oportunidade, talvez ele não tivesse morrido.”
“Isso você não tem como saber.”
“Não, e eu jamais saberei. E isso eu não consigo suportar, o fato de que jamais saberei. E, portanto, sempre me sentirei responsável.”
Ele fez uma longa pausa para encontrar a coragem de perguntar: “Você ainda faria aquilo?”. Ela não respondeu, então ele acrescentou, curioso: “Você ainda jogaria
a pedra?”.
Ela refletiu por um longo tempo, com a mão imóvel sob a dele. Finalmente, respondeu: “Se eu soubesse apenas o que eu sabia então, sim, eu ainda o faria”.
Como ele não respondeu, ela virou a mão e deu um aperto interrogativo na dele. Ele olhou para baixo, e depois para cima, na direção dela. “Bem?”, ela perguntou por
fim.
“Você precisa da minha aprovação?”, ele disse, num tom de voz firme.
Ela balançou a cabeça.
“Você sabe que eu não posso”, ele disse, não sem tristeza. “Mas eu posso lhe dizer que você não foi responsável pelo que aconteceu a ele.”
Ela considerou o que ele disse por um momento. “Ah, Guido, você quer tanto eliminar os problemas do mundo, não quer?”
Ele pegou a xícara com a mão que estava livre e tomou outro gole. “Isso eu não posso fazer.”
“Mas você quer, não quer?”
Ele refletiu por um tempo considerável, e finalmente disse, como se confessasse uma fraqueza: “Sim”.
Então ela sorriu e voltou a apertar a mão dele. “Basta querer, eu acho.”
REGINE MOSIMANN / DIOGENES VERLAG AG ZÜRICH
DONNA LEON nasceu em Nova Jersey, em 1942, e desde 1981 mora na Itália. Dela, a Companhia das Letras já publicou Morte no teatro La Fenice, vencedor do prêmio Suntory
de melhor romance policial, Acqua alta, Morte e julgamento, Morte em terra estrangeira, Vestido para morrer, Enquanto eles dormiam e O fardo da nobreza. Remédios
mortais é o oitavo volume de sua série com o commissario Guido Brunetti, best-seller internacional.

 

 

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